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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HERANÇA DO GENERAL / Evelyin Anthony
A HERANÇA DO GENERAL / Evelyin Anthony

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Demorou exactamente quinze minutos o seu percurso desde o apartamento na Avenida da Infanta até à esquina da Calle Royale, para ir comprar os jornais.

De Inverno, mesmo com um frio de rachar e neve nas ruas de Madrid, dirigia-se sempre para a loja àquela hora, comprava periódicos ingleses, franceses e alemães, regressava a casa e passava a tarde a lê-los. Nunca se interessara pelos jornais italianos; aquela gente mostrara-se cobarde, unira-se aos Aliados e ele nunca lhes perdoaria isso.

No decorrer do mês de Maio, o Sol iluminava toda a cidade; dali a poucas semanas a temperatura subiria e a atmosfera tornar-se-ia sufocante.

Em fins de Junho resolvera ir passar duas semanas de férias à Costa do Sol.

Vivera dez anos na Suíça, onde levara uma existência miserável, quase sempre na pobreza, sujeitando-se aos trabalhos mais baixos e auxiliado pelos fundos da organização que o ajudara também na fuga.

Finalmente, conseguira um emprego em Espanha e, pouco a pouco, a sua vida começara a melhorar, diminuindo também o risco de ser descoberto; empregava o melhor do seu esforço e boa vontade no desempenho do trabalho de engenharia que lhe tinha sido confiado.

Assim, 25 anos após a sua fuga da Alemanha, era agora um funcionário bem pago e residia num apartamento em Madrid.

Em Espanha era conhecido por Paul Weiss. Tinha muito poucos amigos: apenas uma família espanhola que visitava de vez em quando e dois casais alemães, ambos expatriados e muito mais novos do que ele.

 

 


 

O seu apartamento estava situado no terceiro andar de um edifício moderno; porém, nunca utilizava o elevador, preferia subir as escadas a pé. Durante toda a vida dera grande importância às suas condições físicas e nunca perdia uma oportunidade de fazer exercício.

Quando chegava a casa dirigia-se à cozinha, fazia café, levava-o para a pequena saleta e ali se instalava a ler os jornais durante as quatro horas da sesta, quando tudo estava fechado em Espanha.

A ideia de perder uma tarde a dormir era demasiado ridícula para a poder encarar a sério. Assim, começava sempre pelos jornais franceses, os quais lia de uma ponta à outra; de vez em quando soltava uma exclamação em voz baixa. Seguiam-se os jornais ingleses.

Numa página interior do Daily Express viu a notícia do divórcio e uma fotografia. Leu-a cuidadosamente uma vez; depois mais outra. Por fim, dobrou o jornal e ficou a contemplar a fotografia.

A mulher de James Stanley ganha acção de divórcio.

Nunca teria lido a notícia completa; limitar-se-ia a passar-lhe uma vista de olhos porque os escândalos da sociedade não lhe interessavam, mas a fotografia era grande, muito nítida e reproduzida de retrato pintado por um artista. Era tal qual a cara dele, a cara da sua mãe e de uma irmã morta num bombardeamento durante a guerra.

Paula Stanley ganhara a acção de divórcio em virtude de se ter provado o adultério do marido com uma tal Mrs. Fiona Harper. Seguiam-se os pormenores do julgamento e uma longa narrativa exaltando o marido e a sua carreira como corredor de automóveis.

O nome dele, por si só, era notícia.

James Stanley era um herói, o campeão dos circuitos internacionais, o opulento amador que desafiava os profissionais de todo o mundo no mais perigoso desporto.

O jornal também publicava uma fotografia dele tirada junto de um comprido carro de corrida, com um dos braços descaído ao longo do corpo e agarrando com o outro uma enorme taça de prata. O rosto não estava muito nítido e o título da fotografia referia-se a uma vitória qualquer em Lê Mans.

O homem pegou na chávena de café e tentou beber um pouco.

Depois tornou a ler a história. O corredor de automóveis e as suas façanhas ocupavam noventa por cento da notícia. Os poucos factos referentes à mulher eram rudes e vagamente antipáticos. Tinha agora 28 anos de idade.

Paul Weiss pegara num lápis e estava a sublinhar determinadas passagens da notícia. A idade estava certa. Não havia filhos daquele casamento e indicavam a morada completa. O seu nome de solteira era Paula Ridgeway e o casamento durara cinco anos.

Ridgeway. Este apelido também estava certo. Sim, era o nome do homem com quem sua mulher casara depois da guerra.

A organização conservara-o sempre informado a respeito da situação da família durante o período que se seguira à derrota da Alemanha. Soubera da confiscação dos seus bens, da ocupação da casa por oficiais do exército britânico e depois do casamento de sua mulher com o major Ridgeway.

Mais tarde tinham deixado a Alemanha, levando a sua filha e, até àquela tarde - 25 anos depois - , nunca mais soubera nada deles.

Paul ergueu-se e dirigiu-se para a secretária; era um móvel funcional onde guardava pastas e correspondência de serviço para trabalhar em casa; cortou o artigo e a fotografia do jornal.

Na algibeira interior do casaco, Paul tinha uma carteira e dentro dela uma pequena fotografia já amarelecida pelo tempo. Tudo o mais que pudesse identificá-lo havia sido destruído. Conservava apenas aquela fotografia, fotografia que com ele viajara durante o pesadelo da retirada da Rússia. Quantas vezes lhe pegara com os dedos tão hirtos por causa do frio que mal conseguia segurá-la, a contemplara e beijara!

Essa fotografia reproduzia a figura de uma garotinha de três anos de idade, de pernas compridas e delgadas, no seu vestidinho de passeio com gola de renda, cabelo castanho puxado para trás e preso com uma fita, olhando muito séria para a lente da máquina fotográfica; o retrato estava muito gasto nas extremidades e tinha um vinco em diagonal.

Paul Weiss colocou o retrato ao lado da fotografia do jornal; a semelhança era muito vaga, provavelmente apenas visível para quem procurasse encontrá-la e Paul compreendia isso muito bem, mas os traços fisionómicos do ramo feminino da família eram evidentes. Era uma face tipicamente Bronsart: ossos da maçã do rosto salientes, olhos claros e testa alta como a dele.

Depois, Paul Weiss afastou-se da secretária. Finalmente, decorridos 25 anos - quando já estava resignado a perdê-la para sempre, a deixar que a sua recordação se apagasse da memória tal como a imagem começava a desaparecer da fotografia-, acontecera o impossível: tornara a encontrar a filha!

O sonho que Paul Weiss acalentara para ela durante o último ano antes do desastre ter submergido o seu país, podia agora transformar-se em realidade.

O amor - conforme dizia tanta vez - morria rapidamente entre homens e mulheres. O casamento era uma conveniência e o sentimento uma verdadeira armadilha. Porém, o amor paternal transcendia tudo; esse e o amor pela Pátria era o que distinguia as emoções humanas da fraqueza e da carnalidade.

Paul nunca amara a mãe de Paula; adorava a filha com uma paixão ingénua, mas sincera, com ternura e um orgulho fanático. Era a carne da sua carne, o sangue do seu sangue; tinha os seus olhos, olhos de um azul tão característico que lhe haviam posto a fuga em perigo. Em resumo, a filha despertara nele um sentimento de protecção que, normalmente, só têm as mulheres para com os filhos. Paula era o único ser humano com quem as suas emoções se encontravam sempre ligadas.

Assim, por causa dela tornou a sentar-se e, desde há cinco anos, fez a sua primeira chamada telefónica para a Suíça.

Tratava-se de um telefone que só devia ser utilizado em caso de emergência. Paul sabia que o número ainda era o mesmo; se tivesse havido alguma mudança, tê-lo-iam avisado. Ele sabia perfeitamente quem responderia; tinham servido juntos no exército, tinham combatido juntos e, por fim, tinha sido através dos bons ofícios deste homem que conseguira escapar.

Weiss pediu o número e ficou à espera; e quando fizeram a ligação, disse apenas uma frase:

- Fala o general. Amanhã sigo de avião para a Suíça. Vai esperar-me ao aeroporto de Zurique das seis para as sete. Preciso da tua ajuda!

Paula Stanley estava no banho quando o telefone tocou. Desde que se separara do marido vivia sozinha. Deixou tocar, esperando que desligassem, mas a campainha persistiu. Saltou da banheira, enrolou uma toalha em volta do corpo e entrou no quarto. Os pés deixaram marcas húmidas no tapete; olhou para o chão e fez uma careta.

James - o marido - tinha sido sempre uma pessoa sem ordem nem método. Atirava com o fato para o chão, deitava a cinza para qualquer lado, atirava com os jornais para um canto quando acabava de os ler e recusava submeter-se a qualquer espécie de rotina doméstica. Toda a sua concentração e disciplina eram dedicadas à carreira de corredor. Talvez fosse precisamente a negligência com que encarava a vida que tivesse atraído Paula quando se tinham encontrado pela primeira vez. Não ligava importância nenhuma fosse ao que fosse; era um homem despreocupado. Gastava dinheiro em futilidades e esquecia as necessidades da vida, como, por exemplo, a conta da electricidade.

Tratava-se de um rapaz capaz de passar a noite a correr de um clube nocturno para outro, levando consigo amigos e estranhos, rodeado por parasitas seus admiradores e arrastando Paula, aturdida e confusa.

A vida dela tinha sido sempre dura, governada pela rotina desde a infância, educada num colégio interno e por uma mãe cuja principal aversão era pedirem-lhe qualquer coisa ou esperarem que se preocupasse com a filha.

Assim, Paula vivera dentro de estreitos limites e encontrar um homem como James Stanley era como se estivesse permanentemente embriagada. Desapareceram as proibições, desintegraram-se as obrigações da normalidade e sentiu uma assustadora sensação de liberdade.

Porém, aquela vida não durara; a euforia tinha sido temporária e a liberdade - depois do casamento - tornou-se numa horrível sensação de emancipação, pior do que nunca conhecera.

O marido declinava as responsabilidades; tudo quanto se relacionava com a vida matrimonial e representasse maçadas, preocupações ou aborrecimentos eram casos que entregava nas mãos de Paula para ela os resolver, pois não podia distrair a sua atenção com ninharias quando se preparava para as corridas.

O facto de as mulheres, a bebida e o desregramento não serem considerados distracções, não o impressionava e se Paula se lembrava de protestar, ele desaparecia.

Os automóveis eram toda a sua vida; a excitação, a concentração, a publicidade e a adulação era tudo quanto lhe interessava.

Paula muita vez meditava no motivo que levara James a casar com ela. Recusara ir deitar-se com ele a primeira vez que se tinham encontrado. Sentia vergonha da sua própria inexperiência, lembrando-se que aos 23 anos ainda era virgem, mas essa circunstância certamente nunca lhe passara pela cabeça.

James desejava-a e não conseguira possuí-la. Assim, tipicamente impulsivo e irresponsável, pedira-lhe para casar com ele e, no meio de uma tremenda publicidade na imprensa e dos gritos e espanto das suas admiradoras, dirigiram-se para o registo.

Sexualmente, o casamento não tinha sido um êxito. Paula não sabia ao certo quando tinham começado as infidelidades de James, mas um instinto que a fazia tremer com medo de ser magoada, obrigava-a a não fazer perguntas nem investigar, embora as desculpas do marido fossem muito inconsistentes.

Assim tinham vivido durante cinco anos, enquanto ele projectava a imagem de homem de ”roda livre” para benefício das suas admiradoras, dentro e fora da pista, e Paula esperava, indecisa e perplexa, que acontecesse qualquer coisa. E, quando o facto se deu, era tipicamente do marido.

Começara com grande publicidade uma ligação com uma mulher e confessara, num impulso de candura infantil, que estava apaixonado por outra. Uma era amiga íntima de Paula, que os acompanhara duas vezes durante as férias, mas o objecto da sua nova paixão era desconhecido, devendo tratar-se de uma daquelas cabeças loucas que rodeiam os heróis das corridas.

Nesse mesmo dia Paula fez as malas e saiu de casa. O divórcio acabava de ser pronunciado apenas há um mês.

Paula levou o auscultador ao ouvido.

- Está?...

- Mrs. Stanley?

Era uma voz masculina com pronúncia estrangeira.

- Sim. Quem fala?

- Chamo-me Black, mas a senhora não me conhece. Gostaria que me autorizasse a ir visitá-la.

Paula hesitou. Eram cinco e meia da tarde e estava a preparar-se para ir a casa da mãe passar o fim-de-semana.

- Por que razão me quer falar? - perguntou. - Em que lhe posso ser útil?

- Gostava de ir falar consigo - insistiu a voz. - Mas não se assuste, Mrs. Stanley. Não sou nenhum paranóico. Tenho uma coisa muito importante para lhe dizer. É um assunto de seu interesse.

- Que quer dizer? É solicitador?

Paula lembrou-se imediatamente que isto não era possível, pois não tinha ninguém que pudesse morrer e deixar-lhe qualquer coisa. A mãe era a sua única parente.

- Não, Mrs. Stanley. Não sou solicitador... sou um amigo de seu pai. Quando posso ir falar consigo?

- Que diz?... Um amigo de meu pai? Mas o meu pai já morreu!

- Eu sei... mas o apelido Poellenberg diz-lhe alguma coisa?

- Absolutamente nada! Nunca o ouvi.

Por momentos, Paula sentiu-se tentada a desligar; a toalha tinha começado a escorregar e sentia frio.

- Deixe-me ir falar consigo e eu explico-lhe tudo-disse a voz. - Porém, não fale nisto a ninguém. Não mencione o nome de Poellenberg. Dá-me licença que vá a sua casa amanhã de manhã?

- Não - respondeu Paula. - Vou passar o fim-de-semana fora. Mas... porque não posso falar nisto a ninguém?... Porquê este mistério todo, Mr. Black?

- Explicarei tudo quando falar consigo. Prometo dar-lhe todas as explicações; porém, para isso é necessário ter confiança em mim. E segunda-feira, às dez da manhã?

- Vou para o escritório às dez... Um momento... deixe-me pensar... E se fosse ao meu escritório?... Às onze e meia, está bem?

- Podemos conversar em particular?

- Com toda a certeza! Ninguém nos incomodará. Um momento, diga-me uma coisa: diz que é amigo de meu pai...

- Irei ao seu escritório segunda-feira, às onze e meia interrompeu a voz. - Sei a morada. Adeus, Mrs. Stanley! Até à vista!

Cortou-se a ligação; ele desligara. Paula colocou o auscultador no descanso. Tremia, segurando a toalha em volta do corpo. Evidentemente, não estava a tremer de medo. James costumava dizer:

Não há nada que te assuste, querida!... Bem se vê que te corre nas veias sangue alemão! Pareces da raça dos Hunos!’’

Esta observação magoava-a, pois dava a entender que podia muito bem tratar de si e, consequentemente, o marido estava livre de quaisquer obrigações ou deveres. Mesmo que James tivesse razão, aquela alusão aos Hunos irritava-a sempre. Não era apenas como se tivesse passado a infância na Alemanha e falasse o idioma; James considerara sempre a questão do sangue como um crime genético, embora ela tivesse nascido na Alemanha e saído de lá ainda criança; o inglês com quem a mãe casara depois, adoptara-a legalmente, e dera-lhe o seu nome.

Paula voltou à casa de banho e despejou a banheira. Começou a enxugar-se e, pelo espaço de um momento, ficou diante do espelho a examinar o corpo nu, à procura de qualquer defeito. Porém, não havia nenhum visível. Era uma mulher jovem, esbelta, bem constituída, de rosto atraente, emoldurado em fino cabelo castanho; apenas os olhos eram extraordinariamente azuis, mas de um azul intenso e forte.

Em seguida dirigiu-se para o quarto, vestiu umas calças, um sweater e um casaco. A mala para o fim-de-semana já estava pronta. Tornou a olhar para o telefone.

Que estranha chamada! Um homem que lhe era inteiramente desconhecido telefonava-lhe do ignoto, dizendo ter notícias de grande interesse para ela e alegando ter conhecido o seu falecido pai, de quem Paula já não conseguia recordar-se.

Era um caso fantástico, mas compreendeu imediatamente ter sido essa a razão que a levara a concordar com um encontro e não a curiosidade que lhe pudesse despertar o facto de aludir a um caso de grande interesse para ela, nem tão-pouco a natural delicadeza a fizera concordar, em vez de declinar o convite.

Dizia ter conhecido o pai... Quem seria então este Mr. Black, com uma pronúncia que vinha da sua desconhecida pátria do outro lado do Reno? A voz era de pessoa idosa e se ele conhecera o pai, o general, devia ter os seus 60 anos.

Paula fechou a porta de casa e dirigiu-se para o carro. Quando o automóvel arrancou, o seu pensamento estava muito longe das dificuldades que lhe apresentava o denso tráfego através das ruas de Londres, ao passar pelo East End e depois, já na estrada de Newmarket. Conhecia aquele caminho de cor, pois há mais de dez anos fazia o percurso para casa do padrasto no Essex, depois de ter saído de lá aos vinte, quando tinha ido trabalhar para Londres e passara a viver sozinha.

Sozinha. Sim, esta era a palavra apropriada para descrever os melhores anos da sua vida. Cinco anos daquele desventurado casamento, após uma infância passada a fingir que pertencia àqueles dois adultos que apenas desejavam, realmente, ficar em paz e sossego um junto do outro.

Agora, Paula era de facto independente, livre dos laços da família e sem James a importuná-la, dizendo que não fazia caso deles, só para poder andar mais à vontade, indo de vez em quando visitá-los a Essex. Não sentiam a falta dela quando se encontrava ausente. Gostavam de a ver, mostravam-se simpáticos a amáveis, preparados para a deixar compartilhar o calor e o conforto da sua companhia e o resultado era sair dali o mais depressa que as boas maneiras lhe permitiam.

Porém, a mãe tinha 60 anos -embora não os aparentasse - e algumas vezes a consciência de Paula fazia-se ouvir. Nessas ocasiões abdicava de um fim-de-semana com as amigas em Londres ou declinava qualquer convite, e resolvia ir fazer uma visita à quinta.

A casa de Essex era uma daquelas bonitas casas em madeira e gesso, quase toda do século XVI, tendo uma ala século XVUI, mandada construir por um dos antepassados do padrasto.

Paula lembrava-se perfeitamente do brigadeiro Gerald Ridgeway, condecorado com a Cruz de Guerra e medalha de Mérito Militar, de cara um pouco avermelhada, com um pequeno bigode arruivado e voz forte, curvado para ela, dando-lhe a impressão de ter uma altura gigantesca. Costumava cheirar a cabedal e a água-de-colónia.

Gerald Ridgeway sempre se mostrara muito simpático para a enteada, porém, as suas relações eram um tanto cerimoniosas e distantes, com acessos de falsa bonomia, o que embaraçava Paula ainda quando era muito jovem.

As crianças têm um instinto especial para sentir o que é fingido e, instintivamente, sabia que o homem com quem a mãe casara não tinha por ela amor nenhum.

Portanto, não havia qualquer afinidade entre eles. Porém, Paula não o odiava, como poderia ter acontecido, se a sua atitude para com ela tivesse sido mais positiva. Aceitara-o como fazendo parte da sua vida e também aceitara o facto de ter perdido a mãe por causa dele, como se ela tivesse morrido como morrera o general, seu pai.

Paula não se recordava do general. Sabia que ele morrera e a mãe tinha respondido às suas perguntas com evidente ressentimento por ser obrigada a dar explicações. Paula não prosseguira com o assunto. A mãe mostrava o seu desagrado e Paula, embora já crescida, resolveu não prosseguir com a contenda.

O homem chamado Black conhecera o pai. Paula conseguira já livrar-se do tráfego denso e sair do engarrafamento para além de Epping; carregou no acelerador e o pequeno carro ganhou velocidade.

Black insistira para ela guardar segredo. Qual era o nome que dissera?... Ah! Poellenberg! Paula encolheu os ombros enquanto ia conduzindo. Aquilo não tinha, para ela, qualquer significado, não lhe dizia nada. Seria um nome próprio, uma terra?... Que quereria dizer?

Levara hora e meia a chegar e parara à entrada. Decorria o mês de Junho e a frontaria da casa estava coberta com uma deslumbrante cintilação de rosas amarelas. O brigadeiro gostava imenso de jardinagem, conseguira interessar a mãe nessa mesma arte e Paula lembrava-se perfeitamente do seu espanto quando vira aquela interessante figura de joelhos, com uma colher de trolha na mão, a sachar um canteiro de flores.

Dois labradores pretos correram para a porta principal, a ladrar e aos saltos, dando-lhe as boas-vindas. Cães, rosas, o instituto feminino e um distinto oficial reformado - o marido que a adorava - era o mundo que a mãe de Paula escolhera para viver durante o resto da sua vida.

Uma senhora alta, delgada, com um vestido de algodão, já idosa, mas ainda muito bonita, com a estrutura óssea da fina aristocracia sempre jovem e olhos azuis cheios de vitalidade, apareceu à porta atrás dos labradores.

Os seus olhos azuis não tinham a mesma cor dos de Paula; aquele maravilhoso tom azul-escuro intenso e forte era legado do general.

- Querida Paula!-exclamou, beijando levemente a filha, nas faces. - Vieste cedo! Tiveste boa viagem?

- Havia bastante tráfego... - disse Paula. - E a tua saúde, mãe? Estás com óptimo parecer!

- Estou bem, querida, mas o teu pobre pai apanhou uma constipação! Vamos, entra e afasta esses cães marotos que estão a estragar o teu fato!

A mãe referia-se sempre ao brigadeiro como ”teu pai”. Fazia-o quase inconscientemente e Paula tinha a certeza de que ela ficaria horrorizada se soubesse como isso a irritava.

A casa estava mobilada com conforto e elegância. O casal passava o seu tempo numa saleta apainelada onde estava a colecção de livros militares do padrasto; quadros e móveis condiziam perfeitamente com o carácter do dono. Tudo muito inglês, um pouco em desalinho, valioso, mas dando a impressão de ser menos do que era na realidade.

Não havia nada naquela residência de campo de um fidalgo que recordasse a Paula a vaga memória do palácio de estuque e cheio de dourados onde nascera e vivera até à idade dos 4 anos. Isto era apenas uma recordação confusa e quase apagada, sem a ajuda de fotografias e as normais lembranças de uma outra vida. Era como se a mãe tivesse querido apagar a lembrança dos primeiros 30 anos antes de ter conhecido e casado com Gerald Ridgeway.

Conseguira alcançar o que pensara, como na realidade acontecia sempre, com tudo quanto desejava. Uma baronesa alemã, viúva de um homem que se elevara até ao posto de general, combatendo os Aliados, representava agora importante papel na vida social do lugar onde vivia, admirada e respeitada por toda a gente; conseguira vencer como mulher de um oficial do exército inglês nas mais difíceis condições do pós-guerra. Até mesmo a família ultraconservadora do marido acabara por aceitar a linda alemã no seu círculo.

A mãe ofereceu uma bebida a Paula, que se sentou, enquanto um dos labradores se instalava a seu lado, encostado ao joelho dela.

Era natural que esta atmosfera de conforto a fizesse sentir como em sua casa, descansada, despreocupada, naquela sala tranquila e confortável, com a mãe sentada na sua frente, conversando acerca das últimas novidades da vila, enquanto, lá fora, a noite descia lentamente.

Porém, na realidade, o seu efeito sobre Paula era sentir-se uma estranha e isolada de tudo quanto a rodeava. Aquele mundo não fazia parte da sua vida, embora se tivesse sobreposto ao dele. Contrariamente à atitude da mãe, não adoptara como pátria um país estranho nem aceitara uma cultura estrangeira. Resultado: não tinha pátria nem afinidades, mas por outro lado era impossível perder uma coisa que jamais tivera. Portanto, não podia atribuir as culpas desse sentimento de inquietação e vazio ao que sempre lhe faltara.

Assim, se Paula se sentia infeliz, não sabia a quem lançar as culpas nem como definir aquilo de que necessitava. No entanto, sempre sentira essa falta.

- Se não te importas, querida, vou lá acima...- anunciou Mrs. Ridge way. - Obriguei o teu pai a ficar na cama para evitar uma recaída. A última constipação atacou-lhe os brônquios e esteve muito mal.

- Mas com certeza! Não faça cerimónia, mãe - respondeu Paula. - Depois também vou lá acima cumprimentá-lo. No entanto, devo dizer-lhe que estou muito satisfeita por estarmos sós, esta noite. Preciso conversar consigo...

- Sobre que assunto?

A mãe nunca conseguira reprimir aquela expressão de ansiedade quando a filha fazia qualquer tentativa de intimidade.

- Oxalá não seja mais nenhuma complicação por causa do James!

- Não. O assunto nada tem a ver com ele - retorquiu Paula.

- Sabes perfeitamente o desgosto que tivemos! - prosseguiu a mãe. - Romper o casamento foi um horrível procedimento final!

- E ir para a cama com a minha melhor amiga também foi uma linda decisão final - interrompeu Paula. - Isto já para não falar na pombinha com quem dizia querer casar. Talvez eu devesse aguentar um pouco mais, porém estas coisas ultrapassam qualquer medida. Além disso, já não estávamos apaixonados um pelo outro... mais tarde ou mais cedo era de esperar este desfecho.

- Pois eu nunca pensaria em deixar o meu marido, fizesse ele o que fizesse! - opinou Mrs. Ridgeway.

- Mas ele não fez nada, pois não? - interpôs Paula.- Tem-na adorado durante toda a vida de casados! Portanto, como sabe a mãe o que faria se ele fosse um desses maridos corrompidos, por exemplo?!

O lindo rosto daquela mulher parecia uma máscara. A frieza da expressão penetrou na filha e tornou-a furiosa.

Como podia a mãe saber qualquer coisa a respeito dos problemas de uma pessoa casada com um homem que não ligasse importância à mulher, evitasse maçadas e responsabilidades, e só quisesse ter relações com ela quando muito bem entendesse?!

A mãe tinha sido amada e estragada com mimos por um homem que sentia por ela uma paixão obcecante. Tudo quanto eles desejavam na vida era estar sós, compartilhar a cama e a existência, sem serem perturbados por uma criança que parecia ter ficado sempre na sombra, como simples espectadora.

- Mas seja como for, não quero falar a respeito de James... Recebi hoje um telefonema muito curioso. Telefonou-me um homem que disse chamar-se Black e ser amigo de meu pai. Pediu para falar comigo...

Paula notou uma leve cor no rosto que tinha na sua frente; a fina pele das faces tornou-se rosada, como se a mãe tivesse corado e Paula viu a expressão de reprovação impassível mudar para verdadeiro alarme. Entreabriu a boca pelo espaço de um segundo; a filha pensou que ela ia dizer qualquer coisa. Depois, esse instante passou e agora era verdadeiramente uma máscara; a cor começou a desaparecer, deixando-lhe nas faces uma palidez acinzentada, enquanto os olhos cintilavam desconfiados, analisando a filha como se fosse um intruso, uma pessoa completamente estranha.

- Não percebo... - a voz era fria e irritada.-Não conheço ninguém ligado a nós que se chame Black. Dá toda a impressão de ser uma brincadeira de mau gosto.

- Não é - insistiu Paula. - Tenho a certeza de que o assunto é sério e Mr. Black tinha uma pronúncia que parecia alemã. Por favor, mãe, não saia! Gostava de falar consigo sobre o assunto!...

- Não temos nada a falar!

Mrs. Ridgeway estava de pé, pronta a sair da sala.

- ...Aconselho-te a não falares com esse homem, seja ele quem for e tenho a certeza de que teu pai dirá a mesma coisa.

Paula ergueu-se também.

- Ele não é meu pai! É seu marido, não me é absolutamente nada! Deixe-o fora deste assunto! Quero falar consigo a respeito do meu verdadeiro pai. Não se vá embora, mãe! De que tem medo?

- Não admito insolências - retorquiu a mãe. - Não tenho nada a discutir contigo a respeito do teu pai. Morreu

na Rússia e tu nunca o conheceste! Desconfio que andas a inventar qualquer história a seu respeito... Aconselho-te a não ser parva, e, quanto a Mr. Black, provavelmente é um burlão ou uma dessas horríveis criaturas com a mania de telefonar a mulheres que vivem sós. Parece-me que foste extraordinariamente pateta em atendê-lo. É tudo quanto tenho para te dizer!

- Mas ele mencionou uma coisa... - insistiu Paula -, Pollenberg! Foi o que ele disse. Perguntou-me se eu sabia o que significava... mas pela expressão da mãe, parece-me que a si lhe diz qualquer coisa!

- Vou para cima! Preciso de ir ver o teu pai! - exclamou Mrs. Ridgeway.

- Deixe-se de lhe chamar meu pai! - gritou Paula, numa explosão de raiva de uma vida inteira. - Ele é o meu maldito padrasto e não tenho nada a ver com ele! Vá-se embora e deixe-me em paz! Deixe-me!... Pelo menos é o que a mãe tem feito toda a vida!

Paula deixou-se cair numa cadeira e começou a chorar. O labrador imediatamente colocou o focinho preto em cima do joelho dela. A porta fechou-se quando a mãe saiu da sala.

Houve um prolongado silêncio. Um dos cães deu uma volta pela sala e depois voltou para o seu lugar, junto da cadeira da dona, vazia.

Durante algum tempo, Paula chorou, luxo que negara a si própria, até mesmo quando o casamento se desmanchara. Nessa altura não sentira uma dor tão profunda como agora, sozinha, sentada naquela sala, na casa onde crescera e sempre se sentira uma estranha.

Decorrido algum tempo, acalmou. Doía-lhe a cabeça, tinha os olhos inchados e doridos. Olhou em volta e reprimiu um súbito impulso de sair dali, de abandonar aquela casa e voltar imediatamente para o seu apartamento, em Londres.

Depois, no meio do silêncio, começou a ouvir alguns sons lá em cima; era o estalar de tábuas como se alguém andasse a passear de um lado para o outro; porém, o edifício estava construído com a solidez de há séculos e não se ouviam vozes, embora a mãe e o brigadeiro devessem estar a conversar.

Paula parecia estar a ver o padrasto deitado na larga cama de casal, de roupão de seda e um lenço enrolado em volta do pescoço. Nunca o odiara; naquele momento odiava, sim, mas a mãe, com toda a força de uma filha repudiada.

Ela nunca lhe ligara importância, nem correspondera ao seu amor filial, tal como não lhe respondia às perguntas. Pusera o marido de parte como se a filha não tivesse o direito de pensar nele e a morte fosse uma razão para ser esquecida para sempre. Era como se nunca tivesse passado pela terra, não tivesse casado com ela, não tivessem dormido juntos, nem tivessem tido uma filha.

”Maldita mulher! Malditos sejam ambos!”... Paula ouviu estas palavras saírem-lhe dos lábios, em voz alta. Afinal ela tinha uma identidade e o pai fazia parte dessa identidade! Ninguém tinha o direito de o renegar, mas a expressão da cara da mãe era de absoluta resistência e frieza.

Aquela conversa tinha sido como se Paula tivesse abordado um assunto proibido, qualquer coisa que se encontrasse irhplicitamente interdita.

A mãe negara conhecer Black e Paula acreditara-a. Porém, aquele estranho nome - Poellenberg - esse tinha qualquer significado para ela. Era como se a filha, de súbito, lhe tivesse dado uma bofetada. Não valia a pena ir lá acima e insistir numa resposta. Se Paula tentasse enfrentar a mãe e o padrasto, eles unir-se-iam numa defesa, como sempre acontecera, e ela retirar-se-ia vencida.

Não queriam falar no pai dela. O general Paul Bronsart morrera e encontrava-se sepultado algures, nos ermos russos, perto de Estalinegrado. Assim, ambos tinham posto de parte o seu fantasma e haviam encetado uma vida sem qualquer sensação de culpa, desde que ele e aquilo que ele representava desaparecessem da recordação humana.

Tinha sido neste ambiente miserável que nascera, pensou Paula, revoltada. Isso devia ter tomado difícil a mãe esquecer que era a viúva de um distinto oficial alemão e confraternizara com os invasores pouco tempo depois da sua morte.

Viviam na velha casa de Platzburg, nos arredores de Munique, quando as forças Aliadas entraram na cidade e o comandante e seis dos seus oficiais se aboletaram em sua casa.

Paula ouvira contar isto à mãe, aos poucos e poucos, durante o decorrer dos anos; uma frase aqui, outra acolá e uma vez uma narrativa sentimental da maneira como o brigadeiro, então um jovem major, descobrira a dona da mansão a viver nas geladas e desconfortáveis águas-furtadas da casa, com a filha doente.

Era uma história muito comovente e Paula recordava-se como se haviam aproximado e dado as mãos, enquanto evocavam o assunto. Depois a mãe casara com ele e tinham fugido das ruínas da Alemanha e do passado, a fim dela poder gozar uma nova vida, envolta na adoração do marido inglês.

Talvez tivesse sido mais fácil a Paula compreender a situação, se a mãe tivesse dado a entender que o brigadeiro havia sido ludibriado e ela se servira dele para escapar ao desastre da derrota. Porém, tal não acontecia. Eles eram inseparáveis, estavam sempre embevecidos um no outro; a conclusão estava bem à vista. Fosse como fosse o pai de Paula, a mulher não tinha por ele o menor interesse.

Paula ergueu-se e acendeu um cigarro. Sentia-se cansada e furiosa, presa naquela casa, pelo menos por essa noite, como uma criminosa, à espera cá em baixo enquanto a mãe se encontrava lá em cima para ser confortada e consolada.

O relógio do vestíbulo começou a bater as oito horas e ao soar a última pancada, a porta abriu-se; a mãe estava no limiar.

- Não vens jantar?... Estamos à tua espera!

O brigadeiro devia ter-se levantado e descido, a fim de a ajudar; de novo eram dois contra um.

- Não tenho vontade... - respondeu Paula. - Estou com uma forte dor de cabeça e parece-me que vou já para a cama, se não se importam.

Mrs. Ridgeway entrou na sala. A filha reparou imediatamente que trocara o vestido de algodão por uma blusa e uma saia comprida, preta. Estava pálida, mas muito elegante.

- Paula!... Estiveste a chorar! Nunca mais te vi chorar desde criança!... Vamos... Vem jantar connosco e esqueçamos aquela estúpida discussão...

Aproximou-se e colocou a mão no braço de Paula; parecia preocupada.

- Mas eu não quero discutir, mãe! Desculpe aquelas palavras, sim?

- Não tem importância, querida! Promete apenas que esquecerás essa chamada telefónica. Não ligues importância alguma ao assunto... Será melhor para todos nós!

- Mas porquê?... Não pode ao menos responder a esta pergunta?... Por que razão será melhor?!

- Porque não se ganha nada em reviver o passado!

O olhar da mãe era firme; estava resolvida a vencer toda a resistência. Tinha condescendido e agora pedia o seu preço: rendição. Faz o que eu quero e esquece o caso!

Paula encolheu os ombros e apagou o cigarro. O padrasto detestava qualquer pessoa a fumar durante as refeições.

- Isso não é bem uma resposta, mãe! Porém, já percebi que é a única que resolveu dar-me e por isso não vale a pena discutirmos. Vou jantar, mas depois irei cedo para cama.

Abriu a porta e a mãe saiu à sua frente, sem mais comentários. Paula ouviu o padrasto tossir na sala de jantar.

Durante o dia seguinte não se tornou a abordar o assunto. Paula dormiu até tarde, depois levou a mãe de carro à aldeia, para fazer compras.

Tudo parecia normal e tranquilo. O brigadeiro mostrara-se simpático e bem disposto na noite anterior, mas Paula não tinha ilusões. As coisas não eram bem o que pareciam.

Compreendeu que apesar da presença de amigos que tinham sido convidados para ir tomar umas bebidas, a forçada bonomia do padrasto -bastante atrapalhado com tosse por causa da constipação- e o ar sério e digno da mãe eram apenas fachada.

Trocavam olhares apreensivos e tinham uma atitude tensa e preocupada. Não se tornou a falar no telefonema. Tacitamente, estava entendido que Paula devia fazer o que a mãe dissera e ignorar Mr. Black. Porém, como não estavam certos da sua obediência, era essa incerteza que os preocupava.

Paula passou aquele dia e meio muito aborrecida, até poder sair.

Quando partiu, a mãe e o padrasto foram à porta dizer-lhe adeus, acompanhados pelos cães. Paula teve a impressão de que só os dois animais tinham pena de a ver partir.

- Adeus, querida! - disse a mãe, tocando-lhe a face com os lábios frios.

- Adeus, Paula!...

Gerald Ridgeway, debraço-dado com a mulher, sorriu-lhe e acenou-lhe um adeus de despedida. No seu rosto continuava o mesmo ar infeliz e de tensão, principalmente na expressão da boca, sob o bigode ruivo. O cabelo branco começava a escassear. Não havia dúvida; sentia-se infeliz e doente.

Paula entrou no automóvel, baixou o vidro e acenou-lhes um adeus com a mão.

- Até à vista!... Obrigado pelo fim-de-semana! Foi um belo descanso! Tenham cuidado convosco! Gerald, não fique aí ao frio!

Enfim, todos os pormenores da partida; as pequeninas frases amáveis que se esperam de um estranho. Era a despedida mais fria e indiferente de que Paula se recordava, e de súbito sentiu-se tão triste e tão magoada que arrancou e afastou-se de casa.

Depois, aquela sensação começou a diminuir e pareceu-lhe que ia passando a pouco e pouco. O dia seguinte era uma segunda-feira e a sua entrevista com Black estava apenas a algumas horas de distância.

Pela primeira vez, Paula ia saber qualquer coisa a respeito do pai, a sua outra metade. Esqueceu que o mensageiro tinha uma coisa importante para lhe comunicar; esquecera Poellenberg, a palavra misteriosa que fizera assomar uma onda de sangue ao rosto da mãe até ficar depois pálida como um cadáver.

Paula não pensava senão na exaltação da descoberta e na sede de saber; portanto, se a Providência se mostrasse propícia, ainda estava a tempo de amar, mesmo que a recordação do pai lhe fosse passada em segunda mão.

O avião onde viajava Eric Fisher aterrou no aeroporto de Munique às três e meia. Estava uma tarde quente e o sol, batendo em chapa sobre a pista, fazia-o transpirar depois do ar condicionado do avião.

Fisher estava muito habituado a viajar de avião; considerava isso como uma boa oportunidade para dormir. Aborrecia-se com a rotina, aqueles snacks antes do almoço, o carrinho das bebidas com as garrafas a tilintar e a meiga e

simpática hospedeira tão bela e tão irreal, que esteve tentado a dar-lhe um beliscão através da sai’a justa.

Assim, instalou-se no seu lugar e, até mesmo numa viagem tão curta como de Londres para Munique, acabou por adormecer até aterrarem.

Já conhecia Munique e estava muito interessado em passar ali um dia e uma noite, para tornar a visitar velhos lugares conhecidos nos primeiros tempos da guerra fria, quando era jornalista. Estava convencido de que o negócio de que ia tratar se arrumaria em duas horas e que ficaria com o resto do tempo livre. Os clientes pagavam todas as despesas e ele reservara quarto no Hoffburger, o melhor hotel da cidade.

Fora da Alfândega, parou. Calculava que o fossem esperar. Um homem com fardamento de motorista, castanho-escuro, foi ao seu encontro e saudou-o militarmente. Fisher reparou com espanto que calçava botas antigas de cabedal e polainas de polimento.

- Herr Fisher?

- Exactamente.

- O carro de Sua Alteza está lá fora. A sua mala, se faz favor... Queira seguir-me... por aqui.

Com todo o prazer, pensou Fisher, abrindo caminho por entre a multidão. Não havia nada tão aborrecido como um táxi vulgar ou um carro de aluguer. Esperava-o o de Sua Alteza!

Eric Fisher sorriu, muito divertido. Este era o género de clientela que preferia. O carro era um enorme Mercedes, preto, muito brilhante, com estofos cinzento-prateados e um grande brasão pintado nas portas. Entrou, instalou-se no lugar de trás e sentiu-se tentado a fazer um régio aceno aos porteiros e moços que estavam no passeio.

A viagem durou 35 minutos; Fisher tomou nota do tempo para se entreter com qualquer coisa. A paisagem não lhe interessava. Tirou um maço de cigarros da algibeira e acendeu um. A divisória de vidro que separava o compartimento de trás do da frente deslizou e o motorista, sem voltar a cabeça, disse:

- Desculpe, Herr Fisher, mas Sua Alteza não gosta do fumo dos cigarros no carro. Não se importa de não fumar?... Peço imensa desculpa, mas as ordens são restritas.

- Muito bem!...

Fisher apagou o cigarro. Sua Alteza dava a impressão de ser de uma exigência extraordinária. Porém, dinheiro, distinção, classe e poder raras vezes melhoram a natureza humana e muito especialmente quando herdados com um verdadeiro império, num país onde o feudalismo estava profundamente entranhado no povo.

Os Alemães tinham uma paixão pela classe e pela autoridade. Fisher estava convencido de que o motorista o desprezava devido à maneira despretenciosa como estava vestido e por a sua atitude ser como o fato.

Com um passageiro de classe diferente não teria falado na proibição de fumar. Teria depois limpo e arejado o automóvel, mas nunca teria dito uma palavra.

Fisher conhecia os Alemães; era a única raça do mundo de que não gostava. No entanto, falava a sua língua fluentemente, tal como falava francês e italiano. Não gostava de se considerar um académico, mas desprezava a atitude inglesa, dos que recusavam aprender outra língua, convencidos de que quando gritavam os estrangeiros os compreendiam.

Eric tinha sido correspondente de um dos mais importantes jornais do Midlands, durante cinco anos e conhecera então Dunston que trabalhava para a Interpol num caso de contrabando em que estavam a passar ouro da Europa Ocidental para a Oriental, em troca de fornecimentos de ópio puro.

Tratava-se de um caso importante e complicadíssimo com vários crimes e rapto. Fisher tomara parte na caçada por conta do seu jornal e quando o caso terminou e a quadrilha foi dispersa, ele e o funcionário da Interpol tinham-se tornado bons amigos.

Um ano mais tarde, Dunston contactou Fisher e fez-lhe uma proposta, enquanto tomavam umas bebidas em Londres.

Dunston deixara a Interpol e estabelecera-se de conta própria como detective particular. Possuía a prática necessária, tinha muito bons contactos com a polícia, mas precisava de um sócio. Fisher produzira-lhe uma esplêndida impressão; na opinião de Dunston era um belo ”cão de caça”. Além disso, uma das melhores fontes de informação do mundo eram os jornais, onde ele tinha entrada franca. De princípio, o dinheiro não seria muito, mas se fossem bem sucedidos, o céu podia ser o limite dos seus lucros.

Fisher não tinha parentes chegados; os pais já haviam morrido e não pensava casar-se. Assim, resolveu aproveitar a oportunidade e ver o resultado.

Decorridos seis anos, a Dunston Fisher Agency era a firma mais importante de investigações particulares na Europa, com escritórios em todas as capitais e cerca de 100 funcionários ao seu serviço.

Dunston costumava trabalhar à secretária, na sede, em Londres, e Fisher apenas se encarregava de casos importantes, quando os honorários pagos por conta orçavam pelos milhares.

A carta da princesa Margaret von Hessel era dirigida a Dunston, mas Dunston encontrava-se em Portugal, em gozo de férias. Com essa carta vinha um cheque de 1000 libras como incentivo para aceitarem o caso sem mais demora.

Fisher telegrafou imediatamente, informando que iria no lugar do sócio, e antes de partir para a Alemanha fez as necessárias investigações acerca da família.

Tratava-se de um nome bastante famoso. Indústria de aço, carvão, armamento, propriedades, milhões e milhões das duas guerras e nova fortuna desde o final da última. Corria-lhe nas veias sangue de reis bávaros e de várias famílias reais da Europa, hoje desapossadas ou extintas. O título tinha-lhes sido concedido por Frederico, o Grande.

Possuíam castelos na Alemanha, vastas propriedades na Prussia Oriental, que tinham sido invadidas, e uma casa de campo em Cap Ferrat, que não era utilizada há mais de 20 anos. A sua paixão eram os traiçoeiros cães dos campos de concentração, os Doberman pinscher.

Hoje, à testa da família, estava a princesa, de 70 anos de idade, mãe de dois filhos. Enviuvara durante a última guerra; o marido morrera de um colapso cardíaco.

Assim, antes de chegar a casa, Eric Fisher esperava qualquer coisa formidável.

O automóvel transpôs os portões de ferro forjado, encimados pelo javali heráldico, timbre do brasão dos Von Hessel. A casa era enorme, um edifício quadrado, todo de pedra e cal e pintado de rosa-pálido. Em volta, havia lindos vasos com flores e um pátio empedrado onde cabia à vontade meia dúzia de Mercedes; as árvores cercavam o jardim que se estendia pelos dois lados do edifício. Todo aquele conjunto dava a impressão de se encontrar situado no meio do campo, quando afinal estava apenas a uns oito quilómetros do centro de Munique.

Fisher saiu do carro e o motorista avançou à sua frente. Um mordomo fardado, com casaca de botões de latão e luvas brancas, abriu a porta principal, pegou-lhe no chapéu, fez uma pequena vénia e pediu-lhe que o seguisse.

O vestíbulo principal parecia uma igreja. Era dominado por uma enorme e horrível janela estilo Vitoriano, com vidros de cor num dos extremos; o tecto desaparecia no meio de nuvens pintadas e faunos perseguindo ninfas nuas. O perfume das flores era quase insuportável; enormes jarras e vasos estavam cheios delas, o que dava ao vestíbulo aquela atmosfera fúnebre.

Os móveis eram todos de mogno esculpido e as tapeçarias em veludo. Um enorme espelho, com moldura dourada, de cerca de três metros, deu a Fisher um rápido reflexo da sua figura baixa e ar indeciso, no meio de um ambiente majestoso, enquanto a luz coada através da vidraça imprimia manchas sanguinolentas sobre a sua figura.

- Tenha a bondade... por aqui... - disse o mordomo. Ao mesmo tempo abriu-se uma porta e Fisher pestanejou;

parecia-lhe ter entrado num sítio onde o sol cintilasse intensamente. O enorme aposento estava pintado de branco e as cores predominantes eram o amarelo e o verde, enquanto a luz do sol entrava também pelas três grandes janelas.

Ali, aguardavam-no três pessoas como figuras num palco. A do centro estava sentada muito direita, de costas para a luz, segurando uma bengala. Por trás dela, a silhueta de outras duas figuras, sentadas cada uma de um lado do sofá, como se fossem sentinelas.

- Sua Alteza... Herr Fisher!

Eric ouviu a voz do mordomo dizer isto e depois o estalido da porta ao fechar-se. Avançou pelo aposento, por cima de um tapete Aubusson verde com flores douradas formando uma grinalda ao centro e parou diante do sofá.

A princesa Von Hessel estendeu-lhe a mão; Fisher olhou-a com firmeza e apertou-lhe a mão sem cerimónia.

- Como está, Mr. Fisher?... Permita-me que lhe apresente os meus filhos...

Senhora de 70 anos, aparentava ter 50; não se via um cabelo branco na sua cabeça e o rosto parecia o de uma ave de rapina: nariz de papagaio, pele esticada, olhos escuros cintilantes, fixos, com um círculo amarelo em volta da íris.

Formidável, não era a palavra apropriada. Porém, ele não lhe beijara a mão e sentia-se satisfeito com isso.

- O meu filho mais velho, o príncipe Heinrich, o meu segundo filho, o príncipe Philip. Queira sentar-se, se faz favor.

Fisher desviou o olhar da princesa e examinou os dois filhos. O mais novo foi quem primeiro lhe atraiu a atenção por ser um homem extremamente interessante, de 30 anos, e muito louro. Parecia encontrar-se deslocado ao lado da mãe alemã, de cabelo escuro, e do irmão mais velho. Este parecia-se mais com a princesa. Tinha o mesmo rosto de ave de rapina, mas as linhas do carácter e orgulho estavam esfumadas, o seu contorno sombreado e os olhos escuros afundados em bolas de carne. Estava muito aprumado, ombros direitos e uma das mãos, com um anel de brasão no dedo mínimo, descansava nas costas do sofá.

- Fez boa viagem? - perguntou Philip, o filho mais novo.

- Óptima, muito obrigado!

Todos falavam inglês. Fisher preferia que fosse em alemão, mas parecia não haver hipótese para mudar. Resolveu tomar a iniciativa antes da princesa, desconfiando que os filhos não devessem contribuir grandemente.

- Na sua carta dizia muito pouco a respeito da investigação, princesa.

Eric não tencionava tratá-la por alteza, como qualquer mordomo. A sua hostilidade aumentava de minuto a minuto. Não podia suportar aquele olhar altivo e imperioso nem aquele ar arrogante que lhe devia ser peculiar.

- Referia-se à recuperação de determinado objecto, nada mais...

-Pareceu-me melhor esperar a sua presença para podermos discutir os pormenores particularmente. Creio que se deve evitar tratar estas coisas por correspondência, Mr. Fisher. A nossa família aprendeu a ser cautelosa.

- Poderá fornecer-me agora esses pormenores? - inquiriu Fisher, ansioso por fumar um cigarro, mas lembrando-se do aviso do motorista.

Porém, aquela proibição ainda o irritava mais do que a necessidade. Quem diabo se julgava aquela mulher para ele não poder fumar quando lhe apetecesse?

- Como sabe... - principiou a princesa.

Fisher teve a impressão de que ela ia começar uma longa narrativa já estudada. Cruzara as mãos e acomodara-se no seu lugar. Eric estava a ver ali os sintomas de uma longa história.

- ...como sabe, os nazis encetaram uma política sistemática de saquear tesouros artísticos durante a guerra. Confiscavam quadros, jóias, objectos de arte e tudo quanto era valioso. Tive a infelicidade de ir visitar Goering e observar o resultado dessa horrível pilhagem. As casas de todos os oficiais nazis de alta patente estavam cheias de bens pertencentes a outras pessoas. Por exemplo, roubaram alguns dos meus mais queridos amigos que tinha em França. Um objecto foi recuperado depois da guerra e devolvido aos donos, mas num estado deplorável. Estava em Berlim e a casa encontrava-se ocupada pelos russos. Um magnífico quadro de Ticiano cheio de buracos feitos com tiros de metralha. Uma verdadeira tristeza, um horror!

Eric conservava-se imóvel. Aquilo ia ser uma longa narrativa. O filho mais velho, por trás do sofá, mudou de posição e Eric reparou que apertava com tanta força as costas do móvel que os nós dos dedos esticavam a pele da mão. Quanto ao príncipe Heinrich, conservava-se inflexível, fazendo um esforço enorme para continuar atento, como se fosse um respeitoso soldado atrás da cadeira do general.

- Ora Mr. Fisher já sabe tudo isto, como eu disse antes. Porém, o que provavelmente não sabe é que estas criaturas também roubavam da mesma forma os seus compatriotas alemães. Há muitas famílias antigas neste país que foram saqueadas como se se tratasse de inimigos. Um camião das tropas S. S. parava à porta e carregava todos os objectos constantes de uma lista que, provavelmente, tinha sido feita por qualquer oficial superior, visita da casa. Era uma coisa infame e eu podia citar-lhe vários casos.

- E foi isso o que lhe aconteceu, não?! - interrompeu Fisher, que não estava nada interessado nas vicissitudes sofridas pelos que comiam e bebiam com os membros da hierarquia nazi. As desgraças da aristocracia raras vezes o comoviam.

- Não, não foi - respondeu a princesa. - Éramos demasiado importantes para sermos tratados assim. Meu marido tinha certa influência junto de pessoas como Goering, por exemplo. Era um terrível gangster, mas descendia de boas famílias e podia-se confiar na sua palavra. Não fomos nada importunados nem maltratados.

- Mas há qualquer coisa que lhes roubaram...

- Sim... roubado, exactamente. Foi retirado de Schloss Wurzen, a nossa casa na Renânia. Devo dizer-lhe, Mr. Fisher, que tinha perdido a esperança de a recuperar até ler no jornal... Philip, vai buscar aquela notícia do Allgemeine Zeitung, sim? Está na segunda gaveta da minha secretária, à esquerda.

Fisher viu o filho da princesa atravessar a sala. Por contraste com a figura rígida do irmão mais velho, era agradável vê-lo. Movia-se como um ser humano. Olhou para Fisher e sorriu-lhe enquanto entregava o recorte do jornal à mãe.

A princesa pegou-lhe e estendeu-o a Eric. Este leu a notícia rapidamente; não mostrou qualquer sinal de surpresa. A impassividade fazia parte do seu ofício. Porém, se aquilo tinha alguma ligação com o desejo da princesa de recuperar o que lhe tinha sido roubado, aquele cheque de mil libras não passava de uma caixinha de rebuçados. Fisher devolveu-lhe o papel.

- É apenas uma informação - disse ele. - Tem havido dezenas como esta.

- Mas não com referência a este homem - insistiu a princesa. - Estava dado como morto desde 1945. Acredite, Mr. Fisher, fizemos as nossas investigações depois da guerra e as respostas foram todas as mesmas: morto, positivamente identificado e sepultado. Agora esta notícia diz que foi visto em Paris, na rua, à luz do dia!

- Presumo que isso significaria ser ele o ladrão - disse Fisher.

- Exacto - confirmou a princesa, com um gesto de assentimento.

Aqueles olhos faziam-lhe lembrar qualquer coisa, mas não sabia o quê. Um pássaro e, com toda a certeza não um bicho doméstico; era por causa daquele círculo amarelo em volta da íris.

- Ele roubou-nos a Taça Poellenberg, Mr. Fisher; jamais será encontrada, mas se ele está vivo é a única pessoa que sabe onde a esconderam. Foi por esse motivo que o mandei chamar. Quero que descubra esse homem!

 

Mr. Black era baixo. Paula encontrava-se sentada à secretária quando o introduziram no seu gabinete; ficou surpreendido ao ver que era mais baixo do que ela. Esperava ir ver um homem alto.

Black era magro, de ossos delgados. Tirou o chapéu de feltro escuro; o cabelo completamente branco, estava penteado para trás. Tinha testa alta, feições eslavas, maçãs do rosto salientes, olhos cinzentos de pálpebras pesadas e boca pequena.

Paula estendeu-lhe a mão; Black fez uma pequena reverência e beijou-lha. Não lhe deu um verdadeiro beijo; foi apenas aquele gesto da classe nobre alemã, no qual os lábios nunca tomavam contacto.

- Como está, Mr. Black? - saudou ela.- Queira sentar-se...

- Como está, Mrs. Stanley?... Obrigado... Aqui?

Ela indicou uma das duas modernas cadeiras de braços que mobilavam o gabinete. Era uma sala alegre com as paredes revestidas com os seus próprios desenhos e modelos, o que representava uma parte muito importante da vida.

Durante os últimos tempos do seu casamento com James, a profissão de decoradora havia-lhe proporcionado refúgio e confiança. Nesta esfera tivera êxito.

- Em que lhe posso ser útil? - perguntou Paula. - Não quer um cigarro?

- Não, obrigado, não fumo... Mrs. Stanley, tenho uma coisa muito importante para lhe dizer, mas parece-me que primeiro devo explicar-me melhor...

- Ao telefone, não me disse nada. Mencionou apenas ter

conhecido meu pai. Gostava que me falasse dele se fizesse favor.

- Que deseja saber? - inquiriu Mr. Black. - Durante três anos servi sob as suas ordens e também era seu amigo e devotado admirador. Era um grande homem, Mrs. Stanley. Espero que se convença disso...

Os olhos cinzentos estavam dilatados e a sua cintilação fazia com que Paula se sentisse pouco à vontade.

- ...um grande homem, creia. Trabalhei com ele e posso dizê-lo. Parece-se imenso com ele... Sabia isso?

- Não - respondeu Paula lentamente-, não sabia...

- Tem os mesmos olhos - prosseguiu Black. - No momento em que entrei neste gabinete e a vi, foi como se estivesse a ver novamente o general. Ele tinha imenso orgulho em si... Tinha um retrato seu na carteira. Costumava mostrá-lo. Não se importava que não fosse um rapaz... A senhora não se lembra dele, pois não?

- Não - respondeu Paula. - Era muito pequena e nem sequer tinha uma fotografia sua. Não sei sequer como ele era...

- Ah! - exclamou Black, lentamente. - A sua mãe tornou a casar... com um oficial inglês, não é verdade? Sim... ouvi falar nisso. Ela preferiu esquecer o general. Não lhe disse que eu tinha telefonado, pois não?

- Disse, sim - confessou Paula.

Em sua opinião não merecia a pena mentir. Mr. Black tinha um ar fanático que a perturbava. Embora baixo, de cabeça branca e ar franzino, impunha respeito, inspirava certo medo. Paula nunca conhecera ninguém assim e não era capaz de explicar por que ele a assustava. Depois Black sorriu e o seu rosto tornou a mostrar-se amável.

- Eu não estou a criticá-la... Por favor, não me julgue erradamente. Ela sempre foi encantadora para comigo... Mas as coisas estavam muito difíceis depois da guerra. Tínhamos que sobreviver o melhor possível. É uma pena não se recordar do general... Ele era muito seu amigo... Muitíssimo...

- Não sabia... - murmurou Paula. - Nunca me disseram nada a respeito dele.

- Adorava-a... - disse Black.

Depois curvou-se um pouco na cadeira e, cruzando as mãos com força sobre os joelhos, prosseguiu:

- Amava-a como nenhum homem jamais amou a filha. Nos últimos tempos... já perto do fim, disse-me que se morresse, apenas tinha pena de a deixar para sempre. Estava convencido de que sua mãe facilmente se arranjaria sozinha...

- E foi verdade - confirmou Paula, surpreendida com a sua sensação de amargura. -Tornou a casar e veio embora.

- Teve muita sorte. A maior parte das famílias importantes perderam tudo e isto já não falando nas mais infelizes, residentes na zona oriental, que nunca mais foram vistas. Muitos dos nossos resolveram suicidar-se... eu optei pela sobrevivência, Mrs. Stanley e tenho uma pergunta a fazer-lhe... uma pergunta muito importante...

-Qual é?

Os olhos claros cintilavam, fitando-a. Paula, subitamente, teve a impressão de que o medo que lhe inspirava aquele homem era motivado pela estranha expressão que aparecia e desaparecia dos seus olhos. Paula deu consigo a apertar os braços da cadeira.

- Qual é a pergunta, Mr. Black?

- Gostava que seu pai estivesse vivo ou morto?

- Não se trata do que eu gostava - respondeu ela, realmente assustada, porque Mr. Black parecia um louco.-Meu pai está morto há vinte e cinco anos... Foi morto na Rússia...

- Muita gente se disse ter morrido na Rússia...

Black sorriu e o seu olhar tinha uma expressão dissimulada.

- ...ou em Berlim durante o avanço final russo. Mas, supondo que, por milagre, o general conseguiu escapar, qual a sua opinião, Mrs. Stanley?

- Não sei - respondeu Paula. - Tenho muita pena, mas não consigo encarar isso a sério. Meu pai morreu, é assim que vejo a situação.

Depois, erguendo o pulso, olhou para o relógio e disse:

- Mr. Black, tenho uma entrevista dentro de poucos minutos.

- Compreendo - respondeu ele. - Deseja ver-se livre de mim. Muito bem, Mrs. Stanley. No entanto, prometi a seu pai transmitir-lhe uma mensagem e quero cumprir a minha palavra. A fortuna e todos os bens do general foram confiscados depois da guerra. Ele calculara que isso aconteceria se fôssemos derrotados; porém, ainda conseguiu pôr a salvo determinado objecto para si, Mrs. Stanley. Trata-se de uma coisa muito preciosa... O nome Poellenberg diz-lhe alguma coisa?

- Não - respondeu Paula. - Absolutamente nada. Nunca o ouvi.

- Pois bem - prosseguiu então Black -, no século XVI, um conde Von Poellenberg desposou uma sobrinha dos Médicis. O casamento efectuou-se em Florença e uma peça do dote da noiva esteve exposta durante a festa. Benvenuto Cellini tinha sido o seu autor e esse objecto passou a ser considerado como uma obra-prima da cidade. Era uma espécie de centro de mesa, uma peça em ouro maciço, revestida de jóias e lapidada pelo maior e mais primoroso ourives de todos os tempos. Porém, sendo grande e muito pesada, só a força de um homem a podia levantar. Essa obra ficou então conhecida pelo nome de Taça Poellenberg. Pelo espaço de quatrocentos anos foi considerada como um dos tesouros da Alemanha e, durante a última guerra, deram-na a seu pai.

- Deram-na?!

- Deram-na! - repetiu Black, pronunciando a palavra com ênfase. - O general aceitou-a como presente, pois tendo feito um favor aos seus proprietários, eles quiseram manifestar-lhe assim a sua gratidão. Sabiam tratar-se de uma pessoa de bom gosto, de um verdadeiro connaisseur. Deram-lha, e seu pai legou-lha em testamento.

, - Não acredito! - exclamou Paula. - Não acredito nada disso e, ou o senhor está a tentar enganar-me, Mr. Black, ou então deve ir consultar um psiquiatra.

Black ergueu-se da cadeira e olhou para Paula; a sua expressão era fria e autoritária, talvez um eco do passado, quando ainda era jovem e estava sob as ordens do pai, caso isso não fosse também a mentira de um louco.

- Não me acredita?

- Não. Tenho muita pena, mas não acredito. A sua história é demasiado fantástica. Não sei por que razão veio visitar-me e não estou disposta a ouvir mais nada. Queira fazer o favor de se retirar, Mr. Black, e se tornar a incomodar-me, serei obrigada a dirigir-me à polícia!

- Eu bem disse ao general qual seria a sua reacção, mas ele confiava mais em si do que em mim! -comentou o visitante com uma expressão desdenhosa. - Não me acreditou, paciência!... Bem, o general não me disse onde o tesouro estava escondido, porém, confiou-me o seguinte como pista: Paris, 25 de Junho de 1944- Tia Ambrosine e o sobrinho Jacquot. Se quiser entrar na posse do tesouro sem a intervenção de seu pai, terá de resolver esta pequena charada, mas se quiser as duas coisas pode entrar em contacto com o general por meu intermédio. Telefonar-lhe-ei ainda mais uma vez... Partirei depois de amanhã.

- Não acredito nada disso! - exclamou Paula, erguendo-se -, o senhor deve estar mentalmente descontrolado para vir aqui com essa história. Não existe nenhuma Taça Poellenberg e, nem esse enigma faz sentido, nem creio que meu pai esteja vivo. Se estivesse, ele próprio viria procurar-me.

- Não sabe nada a respeito dele, pois não, Mrs. Stanley? Porém, acredite ou não, conforme lhe aprouver, eu disse-lhe a verdade. Pense bem no caso... Talvez mude de ideias... Bom dia!

Juntou os calcanhares, produzindo um pequeno estalido, fez uma reverência e, antes de Paula ter feito um gesto, saiu.

A sala de consultas do Museu Britânico cheirava a bolor. O funcionário, com o seu fato-macaco verde-escuro, meneou a cabeça.

- Nunca ouvi falar em semelhante coisa, miss. Pode ir à Secção de Cellini. Ali encontrará um livro onde estão mencionados todos os seus trabalhos conhecidos; alguns deles estão ilustrados. Tem também os Tesouros da Europa, a História da Ourivesaria e da Prata, Tesouros de Arte da Renascença. Primeiro, tente Cellini; se é uma das suas obras mais importantes, deve lá estar mencionada.

Paula tirou dois volumes e foi sentar-se numa das longas mesas de consulta. Um grupo de estudantes e dois homens idosos estavam a ler e a tomar notas.

Era a hora do almoço de Paula e, durante o caminho do escritório até ali, tinha vindo a dizer a si própria que era uma pateta e devia ter ido dar um passeio, em vez de desperdiçar aquele maravilhoso dia de Verão numa ridícula pesquisa para provar que um louco inofensivo estava enganado.

Evidentemente, Black era um excêntrico; talvez tivesse conhecido o pai ou tivesse servido com ele no exército. Paula estava inclinada a acreditar essa parte; provavelmente -conforme suspeitou depois, porque queria acreditar- ansiava ouvir falar no pai, embora não estivesse nada interessada na história de um tesouro escondido, obra de Benvenuto Cellini, o que era, sem sombra de dúvida, um produto da imaginação doentia do velho.

Em resumo, Paula estava desapontada e aborrecida e queria provar a si mesma que aquela história não passava de um disparate. Não havia nenhuma Taça Poellenberg em ouro maciço e cravejada de jóias. Tratava-se de uma pura fantasia.

Porém, lá estava na última terça parte do livro a respeito de Cellini! Fotografada a cores, dava todos os pormenores: cerca de 91 cm de altura, cravejada com 118 diamantes, 83 rubis, 105 safiras e 25 toscas barrocas de tamanho grande. Entrara na família Poellenberg como parte do dote de Adela de Medíeis. Presentemente estava na posse do príncipe Von Hessel, em Schloss Wurzen, na Renânia.

Paula ficou sentada a olhar para o livro.

Muito bem. Existia, realmente. Essa parte da história era verdadeira; porém, pertencia a um príncipe e não a seu pai.

Seguidamente, Paula foi verificar as primeiras folhas do livro. A impressão estava datada de antes da guerra.

Black devia ter visto a taça em qualquer parte, talvez num museu ou numa revista de arte e tecera à sua volta aquela história. O facto de uma coisa ser verdadeira não dava crédito

ao resto.

Não havia dúvida de que a jóia se devia encontrar ainda na posse do príncipe bávaro, Von Hessel. Paula recordava-se do nome.

Agora o que ela precisava era de um livro actualizado a respeito de Cellini e não de um escrito há 40 anos, qualquer coisa onde pudesse identificar o seu actual possuidor. Foi guardar o livro e começou à procura de outro, nas prateleiras.

Nessa altura principiou a censurar-se por ser tão ridícula. Estava a comportar-se como se pudesse haver alguma verosimilhança no conto de fadas de Mr. Black. Olhou para o relógio e pensou que já era tarde; devia ir-se embora.

Porém, quase no fim da prateleira, havia um volume recente, Os Grandes Tesouros de Arte da Europa. Tirou-o e consultou o índice. Lá estava: Poellenberg, página 187.

Ali se encontrava novamente reproduzida a jóia, cintilante no seu maravilhoso colorido. Graciosas figuras de ninfas e centauros entrelaçados em volta da base de um rochedo cavado no ouro maciço, enquanto uma assombrosa colecção de pedras preciosas envolvia o pedestal, espalhando-se também nas folhas de uma árvore dourada que coroava o conjunto.

As delicadas figurinhas estavam tão prodigiosamente esculpidas, o cinzelado era tão perfeito, que pareciam mover-se.

Por baixo da fotografia lia-se a mesma história do livro sobre Cellini, embora menos pormenorizada.

Em resumo: a jóia entrara na posse dos Von Hessel pelo casamento do último membro daquela antiga família, em

1693, com uma Poellenberg. Depois, uma última frase pareceu aumentar de volume aos olhos de Paula, antes dela começar a ler: ”Infelizmente a Taça Poellenberg encontrava-se entre os tesouros de arte saqueados pelos nazis durante a guerra, e o seu paradeiro nunca mais foi descoberto.”

Paula fechou o livro e arrumou-o novamente na prateleira. Era pesado; doía-lhe o braço. Quando saiu da sala, o funcionário perguntou em voz baixa:

- Conseguiu encontrar alguma coisa?

- Consegui, muito obrigada!

Lá fora brilhava o sol e estava calor.

Paula deixara o carro perto da esquina de Bedford Square; lentamente, encaminhou-se na sua direcção.

Tudo aquilo devia ser mentira e Black estava louco, desequilibrado. Durante a entrevista, várias vezes lhe parecera notar uma expressão de loucura.

Mas sendo assim, por que motivo o nome Poellenberg perturbara a mãe? Ela evitara responder à pergunta; portanto, o que Black dissera, de qualquer modo fazia sentido. Sim, a mãe devia conhecer o nome e com certeza não tinha sido por acaso, em referência a um tesouro nacional saqueado pelos nazis durante a guerra. Depois, o sinistro homenzinho acentuara bem a frase: dado ao pai como prova de gratidão por determinado favor. Porém, se ela quisesse decifrar a charada, devia ir a Paris, descobrir uma pessoa chamada Tia Ambrosine, bem como o sobrinho Jacquot. Junho de 1944.

Então que fizera o pai? Estaria realmente de posse do objecto e escondera-o?... Valeria a pena tornar a perguntar à mãe, forçando-a a falar a respeito de um assunto que parecia proibido?

Paula ligou o carro, arrancou e meteu-se no tráfego.

Supondo que era verdade; supondo por momentos que o estranho visitante dessa manhã dissera a verdade nua e crua, que o pai ainda vivia e, em tempos, escondera uma obra de arte de valor inestimável!...

Ao princípio, aquilo parecia-lhe um disparate; ou antes, fantasia era a palavra mais própria, mas agora Paula tinha provas suficientes de alguns factos poderem ser verdadeiros. Porém, não sabia onde se encontrava Black e a mãe não parecia disposta a cooperar. Por que razão seria melhor deixar o passado em paz?!

Paula perguntara isto repetidas vezes a si própria e ouvia sempre a mesma resposta: não havia nada a ganhar! No entanto, agora, a resposta tomava um sentido diferente: não representava apenas uma frase estereotipada, mas sim uma mentira! Se não havia nada a ganhar, talvez houvesse qualquer coisa a perder e essa perda dizia respeito à mãe e ao padrasto: talvez perdessem a vida confortável que faziam e da qual ela estivera sempre excluída.

Supondo, portanto, que a parte mais importante da história de Black era um facto e não a fraude que ela supusera ao princípio... supondo que o pai não morrera, e apenas tinha sido dado como desaparecido, e a mãe mentira e contraíra um casamento bígamo...

Se assim fosse, não era para admirar não querer o assunto revivido, nem admirava preferir um silêncio absoluto sobre o passado.

Agora, algumas coisas começavam a fazer sentido. Se Black dissera realmente a verdade, que louca tinha sido, mandando-o embora! Que pressa e arrogância ter-lhe chamado mentiroso e louco e deixá-lo sair apenas com a ténue promessa de tornar a telefonar-lhe antes de partir!..

De novo no seu escritório, Paula tentou trabalhar, mas era impossível concentrar-se. Os factos lidos a respeito daquela obra de arte dos Poellenberg não lhe deixavam o pensamento. Tinha sido saqueada pelos nazis. Essa parte da história não condizia com a narrativa de Black, que insistira, dizendo ter sido uma oferta; além disso, o pai dela era um general do exército, não um nazi. Talvez isto lançasse certas dúvidas sobre o que Black dissera... talvez ela estivesse a acumular esperanças loucas sobre uma coisa que, por fim, não passaria de uma desilusão.

Às cinco, doía-lhe a cabeça e desperdiçara toda a tarde; tudo quanto fizera teria de ser posto de parte. Paula tinha um convite para jantar nesse dia; a perspectiva de ser obrigada a conversar com o simpático mas insignificante homem que a convidara, era apenas um grau melhor do que passar a noite sozinha, à espera que as horas passassem até Black lhe telefonar.

Por fim, se ele não tornasse a contactá-la, Paula ficaria com o mistério insolúvel que nunca se desvendaria. ”Tia Ambrosine e o sobrinho Jacquot.” Dava a impressão de uma canção de embalar, canção que ela nunca conseguira interpretar em termos de um tesouro escondido. De toda a confusão e dúvidas que a tinham assaltado, emergia um facto importante que saltava sobre tudo o mais: se parte da história de Black era verdadeira, então a única coisa que interessava era a possibilidade de, finalmente, encontrar o pai!

- Preferia que não fosses a Londres!...

Mrs. Ridgeway nunca incomodava nem aborrecia o marido quando ele pretendia fazer qualquer coisa, e só a grande preocupação pela sua saúde a obrigava a repetir isto durante toda a manhã.

O brigadeiro estava pálido, ainda tinha tosse e inchaços por baixo dos olhos. Porém, resolvera ir a Londres e falar com Paula e, coisa alguma que a mulher lhe dissesse, o obrigaria a desistir da ideia.

- Ainda estás muito constipado! Aquela viagem na segunda-feira de manhã fez-te piorar - disse ela. - Sabes perfeitamente que o médico disse para ficares de cama e uma viagem de comboio pode provocar uma recaída! Porque insistes em lá ir novamente?!

- Sinto-me muito melhor - respondeu o marido. Passou-me a dor e aqueles comprimidos fizeram o milagre. Não te preocupes comigo, querida! Não é preciso!... O mais importante é deter aqueles disparates da Paula!... Sei que nunca mais tiveste uma noite de repouso desde que ela veio visitar-nos...

- Não consegues nada! - insistiu Mrs. Ridgeway. Tentei tudo. Pedi-lhe para abandonar o assunto, mas ela está teimosa. Quer averiguar o que há quanto ao passado, e terá mais pena e sofrerá mais do que ninguém quando tudo vier a lume!

O marido aproximou-se dela e rodeou-lhe o corpo com o braço. Em seguida beijou-lhe a testa e apertou-a muito.

- Não terá tanta pena como tu e eu... - disse o brigadeiro gentilmente.- Temos tudo a perder... A tua tranquilidade de espírito, a tua felicidade... e é isso o que me interessa, nada mais! Por mim, não me importava nada com isso, mas não posso suportar a ideia de te ver infeliz. Nunca pude e tu bem o sabes!... E quanto a este caso, sei o que significa para ti. Construímos as estradas das nossas vidas, minha querida, e ninguém virá agora arruinar os nossos últimos anos, seja sob que pretexto for...

O brigadeiro fez uma breve pausa e depois continuou:

- Paula é uma boa rapariga, embora me pareça que fez asneira deixando o James e passando a viver sozinha; porém, isso é com ela. Mas o general e tudo quanto a ele está ligado é assunto nosso... Vou falar com ela e obrigá-la a desistir. Portanto, não te preocupes... Promete que não te preocupas !

- Tentarei - respondeu a mulher. - Mas isto tudo parece-me um pesadelo!... Depois de todos estes anos decorridos, porque é que hão-de contactar-me e por que motivo falar na Taça Poellenberg?!

- É isso mesmo o que quero averiguar - disse o brigadeiro.

Suspendeu a respiração e depois teve um ataque de tosse.

- Vou falar com a Paula e, se for necessário, hei-de assustá-la. Porém, meu amor, promete-me que não te preocuparás! Bem... e agora vou-me embora, de contrário perco o comboio. Voltarei depois do chá!

Tornou a beijar a mulher, que o acompanhou até ao carro e ficou a vê-lo afastar-se.

O brigadeiro era extremamente bondoso e simpático; a gentileza dele atraíra-a desde o princípio; estava encantada com a sua delicadeza, um estranho misto de timidez e bondade que ela agora sabia ser tão tipicamente inglês.

Quanto ao primeiro marido, não era uma pessoa amável nem capaz de compreender ou sentir a timidez. Tratava-se de um homem fanático, disciplinado e corajoso, mas completamente desprovido de sentimentos de ternura, pois não se recordava de lhos ter notado durante os 13 anos de casados. Portara-se sempre com a mais escrupulosa correcção, mas, ao mesmo tempo, com a mais completa indiferença. Em resumo, durante todo o tempo de casados, podia dizer-se que haviam estado juntos um do outro; vivido, não!

Ao princípio, o marido fizera amor por uma questão física, para proporcionar a si próprio satisfação sexual; mais tarde o amor só existia para a procriação; queria filhos. Porém, jamais se mostrou cruel ou irreflectido e ela, só depois de ter casado com Gerald Ridgeway soube compreender o verdadeiro significado das relações entre marido e mulher.

O general queria filhos; ela deu-lhe uma filha e a única inconsistência que lhe conheceu foi a sua reacção quanto à criança e ao seu sexo. Esperara desapontamento e censuras, mas em vez disso ficou surpreendida com a afeição que ele demonstrava pela filha.

Aquele homem inflexível, e de certo modo repulsivo, de quem ela fundamentalmente sempre tivera medo, embalava o bebé, cantava em tom monótono e já não sabia se esse procedimento lhe causava repulsa ou aumentava a sua aversão e nervosismo.

Porém, inconscientemente, um sentimento primitivo e ciúme agitavam-se na sua natureza, despertando um instinto de ressentimento pela réplica dada a outro ente do sexo feminino pelo homem em quem não produzira qualquer impressão sentimental. Por isso odiava a filha, mas reprimia esse ódio, tal como fazia relativamente ao marido, a quem começara por amar.

Quando se tinham casado, ele era um jovem oficial, alto, elegante, com o encanto peculiar da elite de então; um homem exótico que atraía as mulheres talvez mais pela sua atitude fria e distante do que pela atenção que lhes dispensava. Para os anseios masoquistas das suas amigas, ele representava um desafio dos deuses; para a mulher, não passava de um estranho insensível, implacável e frio, com quem era obrigada a viver.

Acabara por odiá-lo e odiar a filha, a quem o marido amava tanto e tão extravagantemente que, à medida que crescia, se transformava numa cópia do pai a papel químico.

Mrs. Ridgeway voltou para casa e suspirou. O marido continuava com a bronquite. Na segunda-feira tinha ido a Londres a uma reunião de direcção do clube; porém, não se devia ter levantado da cama e muito menos voltar a Londres, a fim de falar com Paula.

No entanto, a verdadeira culpada tinha sido ela, pois fora lá acima a correr - na noite em que Paula falara a respeito de Black - para desabafar com ele. Porém, o hábito de se sentir sempre na sua dependência era demasiado forte. Confiava no marido em tudo e para tudo e ele nunca a desapontara. Amava-o com a intensidade de um espírito simples, de uma pessoa obcecada, a quem a segurança emocional tinha sido finalmente concedida. Era capaz de fazer tudo quanto fosse humanamente possível pelo marido, tal como Gerald Ridgeway pela mulher.

O quarto do hotel barato onde Black se hospedara encontrava-se completamente às escuras quando ele entrou.

Black nunca deixava uma luz desnecessariamente acesa. Há 25 anos que vivia com os míseros recursos de que dispunha, provenientes de pequenos serviços que prestava, andando de um lado para o outro. Vivia como um nómada, sozinho, e recebia uma pensão do fundo, que lhe permitia um modesto nível de subsistência. Essa ajuda era a sua compensação por actuar como agente de ligação entre outros como ele.

Nos primeiros tempos pensara muita vez se mereceria a pena viver naquelas condições, pois, conforme dissera a Paula, muitos dos seus camaradas haviam preferido morrer a sofrer as consequências da derrota.

Porém, ele tinha o instinto da sobrevivência; continuava a ter esperança, embora desde há muito não soubesse em quê nem para quê. Talvez fosse simplesmente pelo prazer de despertar, ver de novo o Sol e mover-se em liberdade neste mundo. Parecia que isto lhe bastava; os anos decorridos tinham-lhe obscurecido e distorcido as recordações.

Presentemente, Black vivia de lembranças, mas das quais se afastava mais um pouco em cada dia que passava, indo do presente e das suas tristes realidades ao passado brilhante, quando ele e os seus compatriotas haviam julgado ter o mundo na mão, mundo onde se moviam suavemente lindas e sorridentes mulheres, presas nos braços de militares, enquanto o champanhe jorrava e se ouvia música.

As casas de então eram palácios; as camas, tronos e os carros enormes e brilhantes, puxados a cavalos e com trintanários.

Era então o paraíso dos militares e até mesmo a destruição do inimigo, com os seus consequentes horrores, tinha uma magnificência wagneriana que transformava num quadro poético a vista de tantos moribundos, à luz daquele fogo.

Black passara o dia em St. James Park a dar de comer aos passarinhos. Comprara umas sanduíches e sentara-se à borda da água atirando migalhas aos pardais e chamando-os para lhe irem comer à mão.

Um grupo de crianças rodeara-o, encantadas, a observá-lo. Black gostava de crianças. Dava-lhes pedaços de pão e mostrava-lhes como haviam de segurá-lo, muito quietas, a fim de atrair os pássaros. Sorria e conversava com elas, gozando o seu dia, ao sol.

Tinha sido casado, tivera um filho e uma filha mas ambos tinham morrido. A filha morrera durante um ataque aéreo num hospital em Berlim, onde trabalhava como enfermeira e o filho tinha sido morto na Polónia.

Divorciara-se da mulher nos primeiros tempos da guerra e mesmo agora nunca pensava nela. Depois do nascimento do último filho ficara estéril e por isso tinha sido impossível continuar casado com ela. Esta atitude foi um mau exemplo para os oficiais mais novos. A mulher levara muito a mal esta decisão, especialmente depois de o tribunal ter confiado ao marido a guarda das duas crianças e ele ter resolvido não lhe permitir contacto com elas. Assim, da parte da mulher tinha havido grande amargura e muitas censuras.

Naquele momento, Black já esquecera os filhos mortos. Tinha morrido tanta gente! Tinham sido queimados tantos e as cinzas lançadas ao vento!...

Sentado ao sol, Black dormitara um pouco. Cumprira a sua promessa; sentia-se feliz ao pensar que depois de tantos anos ainda podia ser útil ao general.

A semelhança entre pai e filha era extraordinária. Paula tinha os mesmos olhos azuis, de um azul intenso e forte, brilhantes e penetrantes. As mulheres costumavam ficar loucas pelo general por causa desses olhos, mas ele era um homem elegantíssimo, com um ar provocador, que chamava a atenção de toda a gente. Estivesse com quem estivesse, o general destacava-se sempre.

Na realidade, Black adorava-o. Não havia ninguém a quem mais admirasse. O general protegera-o e fizera dele seu confidente. Tinham combatido juntos na última campanha na Rússia, quando os Vermelhos os tinham esmagado e feito recuar até à pátria. A morte e destruição durante os últimos meses tinha sido horrível.

Mesmo agora, Black sonhava que passava por um sítio onde as paredes eram feitas de mortos. Não era um pesadelo que o assustava, era um sonho. Vivera essa realidade e emergia a salvo, resolvido a sobreviver.

Os anos de exílio tinham-no desnorteado um pouco; a solidão ensinara-o a conversar consigo próprio em voz alta e as pessoas olhavam-no muito surpreendidas por ir a falar alto, enquanto seguia pela rua.

Gostara da filha do general; tinha vivacidade e energia, tal como o pai. Recebera-o muito bem, ouvira-o calmamente, mas por fim acabara por estragar tudo, recusando acreditar e dizendo-lhe que devia ir consultar um psiquiatra.

Black reconhecera o general imediatamente no aeroporto de Zurique. Estava mais velho, com o cabelo completamente branco, mas conservava o mesmo ar arrogante; nem o decorrer do tempo o obrigara a curvar-se. Quando, por momentos, tirou os óculos escuros, os seus olhos, daquele azul tão especial, eram exactamente os mesmos de que Schwarz se recordava. Este homem não era um homossexual, mas admitia para consigo que havia na sua amizade qualquer coisa mais forte do que uma lealdade e fidelidade normal de inferior para superior, na sua atitude para com o general. Tinha sido sempre assim, e concebera uma quase adoração de adolescente por aquele herói a quem começou a prestar serviço como ajudante-de-campo.

O general personificava a perfeição ideológica da vida de Schwarz; todos os alemães deviam pensar e proceder como ele. Schwarz seguira o general como um cão e o general por sua vez honrara-o com a sua confiança e várias provas de consideração que podiam perfeitamente ser interpretadas como de amizade.

Tinha sido ele quem conseguira salvar o general quando terminara a guerra, por ter sido escolhido pela organização como um dos seus homens-chave. Fizera-o atravessar a Alemanha, depois a Suíça; em seguida tinham-lhe ordenado que o deixasse e, quanto a ele, desaparecesse da circulação.

Como nunca desobedecera a uma ordem, Schwarz fizera o que lhe tinham mandado. Nos vinte e tantos anos que se seguiram falara duas vezes com o general; em ambas as ocasiões tinha sido para’lhe pedir que lhe arranjasse nova documentação e outro lugar para onde ir viver.

Schwarz tratara dos documentos e fizera os arranjos necessários. Desde então nunca mais tornara a ouvir falar no general, e como envelhecera e o número de homens que viviam na clandestinidade era cada vez menor devido à idade e à morte, também cada vez tinha menos que fazer para a organização. O tempo enfraquecera-o, prejudicando-lhe o equilíbrio mental, o qual se encontrava agora bastante descompensado.

Presentemente vivia pelo simples prazer de existir, como por exemplo passar o dia no parque de Londres e dar de comer aos pardais, com um grupo de crianças inglesas à sua volta.

O seu encontro com o general provocara-lhe uma enorme vaga de recordações; apertara-lhe a mão e enxugara as lágrimas que tinha nos olhos. Depois foram tomar uma refeição juntos e para Schwarz aquilo era como um sonho em que o passado voltava como se o tempo fosse o pêndulo de um relógio. Ouviu tudo quanto o general lhe disse e prometeu fazer o que ele queria.

Aceitou o dinheiro do general -uma quantia bastante generosa - e repetiu a curiosa indicação que devia dar à filha. Compreendeu, embora fosse demasiado orgulhoso para o expressar em palavras, que o desejo do general era estabelecer contacto entre ele e a filha. Porém, mesmo que ela o rejeitasse- como parecia ter acontecido - o seu amor por Paula levara-o a arranjar maneira dela poder encontrar a Taça Poellenberg.

Schwarz vira-a uma vez. Era a coisa mais maravilhosa que se podia imaginar. Demasiado linda, demasiado preciosa, cheia de jóias e ouro. A posse de semelhante objecto nunca o seduzira. Teria derretido o ouro e retirado as pedras preciosas. Só um homem como o general podia ser possuidor e dono de um objecto daqueles. Compreendeu que o general não lhe confiara uma mensagem franca e completa; porém, aceitou essa precaução.

No entanto, Schwarz esperava - por saber que era esse o desejo do general - que a filha tomasse o partido do pai e pedisse para tomar contacto directo com ele. Esperava... mas sem convicção. A ideia de ela desapontar o pai, fê-lo zangar-se. Telefonar-lhe-ia no dia seguinte, antes de partir. Depois de deixar o escritório de Paula, telegrafara ao general, dizendo: ”Contacto estabelecido e instruções cumpridas.”

Quanto ao general, tomara um avião para Paris e ali se encontrava, na expectativa. Queria estar perto, caso a filha desejasse vê-lo. Aquilo pareceu-lhe um risco desnecessário, mas Schwarz não se arriscou a argumentar.

Paris estava mais perto do que a Suíça. Mais perto do que... Schwarz afastou esse pensamento. Aquele objecto não lhe dizia respeito. Se o general lhe tivesse dito para ir buscá-lo, teria ido, sem qualquer ideia de lucro pessoal.

Abriu a porta e ligou a luz. Havia um pequeno fogareiro a gás e um fogão; Black encheu uma cafeteira de água e pô-la ao lume para fazer café. Acabara de preparar uma caneca enorme para beber, quando ouviu alguém bater suavemente à porta.

- Heinrich, abre a porta!-exclamou a princesa, batendo na almofada da porta com o punho da bengala; bateu uma vez, duas vezes num rápido staccato - Abre a porta! Sei muito bem o que estás a fazer!

Ouviu-se um som confuso no outro lado, um forte tropeção de encontro à porta e o ruído de uma chave a ser desajeitadamente metida na fechadura, ao contrário. Por fim, quando a porta se abriu, Henry, príncipe Von Hessel, estava encostado à ombreira. A mãe passou por ele e depois voltou-se.

- Fecha isso imediatamente e sai daí! Não quero que passe um criado e te veja nesse estado miserável!

- Mas eu não estou num estado miserável... - respondeu o filho.- Estou apenas um pouco tocado... nada mais. A mãe sabia que me vinha encontrar assim... Porque resolveu entrar?

- Porque preciso de falar contigo! Senta-te antes que caias!

Dizendo isto, a princesa foi sentar-se numa cadeira, muito direita; esta mulher nunca baixara a cabeça em toda a sua vida. Olhava para o filho mais velho com um misto de desgosto e desespero.

- Não podias esperar até o detective sair?! Não és capaz de te controlar apenas por um dia e uma noite!

- Não era preciso eu lá estar! - respondeu o príncipe com certa razão.

Atravessou o quarto, passando por cima do tapete com todo o cuidado como se estivesse a andar sobre um rochedo. Por fim sentou-se aos pés da cama e enterrou-se no colchão.

- Esse assunto não me diz respeito! Já a tinha avisado. Não quero tomar parte no caso!

- Mas tu já tomaste! -exclamou ela, furiosa. - Se não fosses tu!... Ah! Mas de que serve censurar-te? Para que hei-de falar contigo?!

- Não perca mais tempo, mãe. Não descerei para jantar. A princesa olhou para ele.

- Philip podia passar uma busca a este quarto e fazer em pedaços as garrafas que tens escondidas!

- A mãe podia mandar-me prender - disse Henry. - Seria mais razoável. Se me tirar as garrafas, arranjarei outras. Porque não me deixa embebedar em paz? Parece-me que não é pedir muito. Não a maçarei; sei tomar conta de mim!

- Excepto quando conduzes um carro!-exclamou a princesa, erguendo a voz.- Pegas no carro, matas uma dessas malditas crianças e quem paga a indemnização aos pais e o silêncio da polícia?... A tua família!... Sempre a tua família...

- A mãe não queria escândalo... - disse ele, encolhendo os ombros. - Eu nem sequer me lembro de ter tido um acidente!

- Como podias lembrar-te? Estavas inconsciente, descaído sobre o volante e cheirando a brande. Philip quase não conseguia retirar-te do carro.

- Ser um Von Hessel tem as suas vantagens... Henry riu para a mãe, com a boca aberta num riso de bêbado, olhos semicerrados e ar escarnecedor.

- Não há nada que não possamos comprar, não é verdade? Até mesmo os pais a tratavam por alteza e todos eles eram reverências quando a mãe lhes pagou!... Vá para baixo e trate do assunto com o seu detective, mãe! Deixe o Philip impressioná-lo. Eu não interesso desde o momento que tenha o Philip!

- Se ele te vê embriagado - prosseguiu a princesa - e começa a fazer perguntas ou principia com curiosidade, pode estalar-nos a castanha na boca! Eu vi-o a observar-te na sala, tu cambaleavas... percebi perfeitamente!

Henry tornou a encolher os ombros e estendeu as mãos.

- A mãe é que o diz... Porque não deixa as coisas tal como estão? Para que tentar arrancar os mortos da sepultura?! É um erro e acabará por se arrepender. A mãe e o meu irmão, que tem sempre razão, evidentemente... Mas desta vez, não! Desta vez é um erro!

- Não estou a arrancar os mortos da sepultura. Estou a tentar certificar-me se ele continua enterrado. Se está morto, então podemos dormir descansados. Porém, se está vivo...

- Sim - disse o filho.

O sorriso do embriagado tinha agora um ar malicioso. Havia ódio no olhar que lançava à mãe, mas ela não reparou; o seu próprio olhar parecia distante, desesperadamente concentrado em qualquer coisa.

- Sim... Admitamos que a notícia do jornal estava certa. Que vai fazer?... Não o pode comprar... É ele quem tem a taça. Portanto, qual é a sua ideia?

A princesa voltou-se para o filho; lentamente, ergueu-se da cadeira com a ajuda da bengala.

- Vou recuperá-la! -exclamou.- É tudo quanto direi. Quero que te conserves aqui e não desças esta noite. Fisher está com o teu irmão na biblioteca, a examinar alguns dos nossos registos. É preciso que não te veja e eu quero a chave do teu quarto. Dá-ma!

- Está na fechadura. Leve-a, mãe! Leve-a e feche-me no quarto como se eu fosse um garoto endiabrado. Tenho 52 anos; porém, pode fechar-me se quiser. Tenho uma garrafa para me entreter e não arrombarei a porta para sair!

- Pois então, vê bem o que fazes - disse-lhe a mãe.- Acaba a garrafa! Não me interessa nada o teu procedimento desde que o mundo nunca saiba aquilo que és!

A princesa pegou na chave e saiu. Henry ouviu-a dar a volta na fechadura e depois a maçaneta a mover-se. Então abriu o armário que tinha ao lado da cama e tirou uma garrafa de conhaque do respectivo compartimento. Havia uma outra garrafa vazia na parte de trás. Deitou uma porção no copo da água e ergueu-o na direcção da porta.

- À sua saúde, mãe! -exclamou. - Esperemos que ele esteja realmente vivo... Não há dúvida, será um belo par para si!

Fisher partia no primeiro avião da manhã. Acabava de pagar o táxi e dirigiu-se para a sala das partidas, quando sentiu alguém tocar-lhe no braço. Voltou-se e viu o príncipe Philip von Hessel.

- Bom dia!

Muito elegante e simpático, tinha um sorriso encantador e franco. Apesar de não se sentir nada inclinado para qualquer deles, Fisher reparou que, afinal, gostava do filho mais novo.

- Esperava conseguir apanhá-lo ainda! Teremos tempo para tomar uma chávena de café?

Fisher consultou o relógio.

- Suponho que sim; vamos até ao salão.

Muitas pessoas voltavam-se à sua passagem e Fisher sabia que era o seu companheiro quem despertava tanta atenção.

Philip era bastante alto, movia-se com determinação, rápido, mas sem pressa. A maior parte das pessoas que iam viajar caminhavam de corpo inclinado e muito apressadas, ansiosas por causa do tempo, preocupadas com a bagagem e acerca do voo.

Este alemão de raça nobre não se perturbava com coisa alguma. Fisher seguiu-o e deixou-o pedir o que queria. Continuava a sorrir, mas o sorriso era um pouco menos aberto. Fisher pensou que talvez não fosse tão invulnerável como parecia. Alguma coisa o levara ali àquela hora e não era para tomar um café nem para se despedir.

- Precisava de lhe falar a sós - anunciou o príncipe. Foi por isso que vim.

- Tenha a bondade de dizer... - convidou Fisher, oferecendo-lhe um cigarro.

- Acha possível que o homem ainda esteja vivo?

- Não sei... Não posso dizer nada. Sua mãe parecia convencida de terem coberto todos os ângulos depois da

guerra, mas alguns ficaram por explorar. Não posso responder a essa pergunta enquanto não tiver feito algumas investigações. Que lhe parece?

- Parece-me que devíamos pôr o assunto de parte...- disse o príncipe, curvando-se para diante. - O meu irmão também. Essa obra de arte está perdida para sempre. É uma perda terrível, mas comparados com outras famílias, tivemos muita sorte. Sobrevivemos.

- Isso já é pôr o caso com muita indulgência... - disse Fisher.

Philip von Hessel riu.

- Minha mãe é uma pessoa muito decidida. Quando meu pai morreu, durante a guerra, foi ela quem passou a dirigir todos os negócios, fábricas, propriedades, tudo. É uma mulher extraordinária, devemos-lhe tudo. Porém, desta vez, Herr Fisher, parece-me que pretende ir demasiado longe. Tem uma verdadeira obsessão por aquela peça e quer reavê-la. Conheço minha mãe, sei como é obstinada. Já aceitara a sua perda, mas ao ler a notícia no jornal, dizendo que ele tinha sido visto em Paris, voltou-lhe a mesma mania, que se tornou agora numa ideia fixa.

- Que está a tentar dizer-me, príncipe? - perguntou Fisher, depois de terminar o café.

Entretanto, ouviu-se um aviso pelo altifalante.

- Estou a sugerir para limitar as suas investigações. O preço será pago, Herr Fisher. Nada perderá com isso. Contente minha mãe durante certo período, mas não tome o caso muito a sério. Trata-se de verdadeira perda de tempo... O homem morreu! A notícia vinda de Paris é um disparate, tenho a certeza! Faz isso?!

Fisher ergueu-se.

- Não, príncipe! Neste género de negócios há um ponto essencial; a integridade para com quem trabalhamos... Sua mãe contratou-nos para descobrir esse homem, se ainda estiver vivo. Portanto, é isso que vou tentar fazer. Se ele morreu e a notícia não tem fundamento, então não precisa preocupar-se... Bem, estão a chamar para o meu voo. Tenho de ir andando... Obrigado pelo café!

O príncipe levantou-se também.

- O prazer foi todo meu! Adeus!... Boa viagem!

Fisher atravessou a sala e dirigiu-se para o avião.

Os Von Hessel pensavam que ele regressava a Inglaterra; porém, dirigia-se para a sede da Interpol, em Bona, onde poderia proceder às necessárias investigações a respeito do general Paul Heinrich Bronsart. Eles tinham, com toda a certeza, um dossier completo a seu respeito.

Três dias depois, Fisher dirigiu-se para o escritório de Paula Stanley.

Tinha uma preferência especial pelas loiras; evitava as ruivas; não gostava das sardentas nem do temperamento que condizia com a sua cor de cabelo; quanto às morenas, podia pegar ou largar.

Porém, Fisher não estava preparado para a combinação da cor castanha com aqueles surpreendentes olhos azuis. Aquilo produziu-lhe um choque, pois a sua memória fotográfica registava imediatamente que o azul intenso dos olhos se encontrava anotado entre as mais acentuadas características do general.

Paula ergueu-se e apertou-lhe a mão. Fisher aspirou uma leve aragem de perfume caro; o seu aperto de mão era firme, o que lhe agradou. Cumprimentos de mão-morta de qualquer dos sexos sempre lhe causavam repulsa. Paula era bonita. Muito bonita realmente, muito bem vestida, bastante distinta, não parecia alemã, mas, por outro lado, depois de ser bem observada, também não era tipicamente inglesa.

Eric Fisher sentou-se na mesma cadeira onde estivera Mr. Black e tirou a cigarreira. Indicara o nome de uma companhia produtora francesa quando marcara a entrevista. Em geral ninguém gostava de dar entrevistas a detectives particulares. Assim, estava preparado para o mandarem sair quando revelasse a sua verdadeira identidade.

A voz era agradável e o sorriso cativante, mas com certeza desapareceria quando ele apresentasse o seu cartão. Não merecia a pena desperdiçar tempo. Aproximou-se da secretária e colocou em cima dela o cartão da agência com a sua fotografia.

- Desculpe, Mrs. Stanley. Encontro-me aqui sob um pretexto falso. Pertenço à Dunston Fisher Investigating Agency e estou a fazer investigações para um cliente, esperando que me possa auxiliar...

Paula olhou para ele.

- O senhor disse que vinha da parte de Levée Frères... Se isto é a maneira normal de pedir entrevistas, Mr. Fisher, fico com uma fraca opinião a seu respeito.

- Peço-lhe imensa desculpa, mas de outra maneira tenho a impressão de que não me receberia. Toda a gente se mostra bastante discreta quando se trata de investigadores e isso dificulta muito a nossa vida.

- Lastimo - disse Paula friamente. - E agora, ou me diz o que pretende, ou então pode sair. Só lhe posso dispensar cinco minutos.

- Digamos... dez - respondeu Fisher, sorrindo-lhe. - E não esteja zangada... Não demorarei. O assunto pode interessar-lhe... É filha do general Paul Bronsart, não é verdade?

- Sou...

”Meu Deus! exclamou ele para consigo. ”Acertei em cheio!”

- Tinha pensado em falar com sua mãe, mas uma vez que a senhora está em Londres, resolvi falar consigo primeiro.

- Porquê?

Paula conservava a voz calma; deixou descair as mãos abaixo do nível da secretária. Aquele homem tinha um olhar agudo, observava tudo, anotava todos os pormenores e fixava-os. Não sabia porque motivo se sentia nervosa.

- Não conheci o meu pai. Foi morto durante a guerra. Que investigação está a fazer?

Fisher tomou uma rápida decisão. O seu amigo da Interpol, em Bona, acentuara bem um ponto:

”Se esse bastardo ainda está vivo e resolver aparecer, dirigir-se-á à filha se precisar de falar com alguém. A mulher tornou a casar; não irá contactá-la. A filha pode ser a chave do caso...”

- A investigação - explicou Fisher -é feita por ordem de clientes alemães e não estou autorizado a divulgar o nome. Eles desejam localizar seu pai...

- Mas eu já lhe disse que ele morreu. Foi morto na Rússia em 1944.

- Mrs. Stanley - disse Fisher, erguendo-se -, não desejo fazer-lhe nascer esperanças, mas há uma remota possibilidade dele ainda estar vivo. Permite-me que a convide para almoçar e falarmos sobre o assunto?... Trata-se de uma longa narrativa, e como só tem agora cinco minutos...

Uma hora depois, Paula e Fisher encontravam-se lado a lado no Caprice, Era o restaurante favorito de Fisher; conheciam-no muito bem. Deram-lhe uma mesa perto de um grande grupo, onde um famoso artista teatral estava sendo homenageado.

Isto proporcionou a Paula um motivo de interesse; os primeiros momentos, quando se encontraram no bar, tinham sido um tanto difíceis. Fisher tentara encetar conversa, mas Paula estava pouco à vontade.

- Um homem com um aspecto maravilhoso, não acha? - disse Fisher. - Vi-o no Othelo e foi uma das peças mais grandiosas a que assisti no palco. Também a viu?

- Vi... - respondeu Paula.

Tinha ido com James e lembrava-se de que lhe agradara imenso. Há muito tempo que não pensava em James e naquele momento tinha muita pena que ele não estivesse ali sentado junto dela. Havia qualquer coisa em Fisher que lhe dava uma sensação de desalento. Devia ser uma pessoa dura, inflexível. Exactamente; Paula acabava de lhe reconhecer essa enganadora qualidade.

Fisher era um homem delicado, atraente de certo modo, autoritário, com sentido de humor, mas fundamentalmente arrogante e teimoso, vindo de um mundo completamente diferente.

Nada deste mundo teria persuadido Paula a ir almoçar com ele, excepto esta frase:

”É possível que ainda esteja vivo.”

Ela recompusera-se por completo do choque inicial; as mãos estavam firmes. Acendeu um cigarro e a chama do isqueiro não tremeu; antes de almoçar mandou vir um Tom Collins e esteve a ver o famoso actor, num espectáculo particular para o restaurante.

Fisher encontrava-se sentado ao lado de Paula, tomando um uísque com soda e dando-lhe tempo para ela descansar. Estava pálida e sob uma certa tensão; Fisher tinha pena dela. Começou a pensar no que ela saberia a respeito do pai e, instintivamente, pela forma como falava pareceu-lhe que devia ser o mínimo possível. Tinha sido morto na Rússia em

  1. Ponto final.

Ora Fisher passara duas horas a ler o seu dossier em Bona, a tomar notas, a analisar os pormenores do passado e a ver velhas fotografias.

Muitas delas mostravam com clareza o pai da rapariga cujo cotovelo tocava o dele naquele momento. Era um homem de boa figura, interessante, muito bem uniformizado. Seria possível ela saber mais alguma coisa, além do simples facto de ter tido um pai militar, morto em combate? Parecia-lhe que não.

Entregou-lhe a lista e sugeriu-lhe a especialidade do restaurante.

- Não seria melhor comer primeiro? - perguntou Fisher. - Depois podíamos tratar dos nossos assuntos. Não há motivo para não gozar o prazer de uma boa refeição!

- Não tenho apetite - respondeu Paula. - Preferia conversar agora. Por favor, diga-me uma coisa, Mr. Fisher: que vem a ser tudo isto?...

- Dá-me licença que lhe faça umas perguntas primeiro? Não estou a tornar o caso difícil, mas isso talvez dê oportunidade para me ajudar a explicar, se souber até que ponto conhece o caso. Sua mãe tornou a casar, não é verdade?

- Sim... logo depois da guerra terminar. Casou com um inglês chamado Ridgeway que se encontrava aboletado em nossa casa. Só me lembro dele... nessa ocasião teria três anos e meio. Nunca conheci o meu pai... estava fora em combate.

- Sua mãe falava-lhe nele?... Que lhe dizia a seu respeito?

- Praticamente nada - respondeu Paula. - Ela não é o género de pessoa faladora nem disposta a confidências. Verificará isso quando lhe fizer perguntas.

- Se me ajudar o bastante, talvez não me veja forçado a incomodá-la - respondeu Fisher.

- Espero que não. Isso será uma coisa que a aborrecerá imenso. Não gosta de falar a respeito do meu pai. Parece-me que prefere fazer de conta que ele nunca existiu. Enfim, pelo menos é essa a atitude que sempre tem adoptado para comigo...

- Portanto, nunca lhe contou nada; disse-lhe apenas que era general do exército alemão e tinha sido morto... Na retirada de Estalinegrado, creio.

- Se assim o diz...

Paula acendeu outro cigarro; desde que se tinham sentado não parara de fumar.

- Não gosta muito da sua mãe, pois não? - perguntou Fisher de repente.

- Isso é uma observação muito pessoal.

- Desculpe, mas foi sem qualquer intenção... apenas um simples reparo. E sobre seu pai, apenas sabe isso?... Não sabe nada a respeito dos seus serviços durante a guerra, quem eram os seus amigos, se deixou família?

- Não. Nada...

Paula hesitou. Era humilhante confessar tão total ignorância. Fisher pedia-lhe informações e ela queria também obtê-las. Nunca desejara nada tão ardentemente na vida como ouvi-las da boca daquele estranho.

- Um momento... Conheço uma pessoa. Um oficial que serviu sob as ordens no exército alemão. Disse chamar-se Black.

- Black?...- repetiu Fisher. - Black... É engraçado. Ele teve um ajudante-de-campo chamado Albrecht Schwarz. Como sabe isso?

- Porque esse homem chamado Black veio visitar-me a semana passada - explicou Paula.

Nem um só músculo do rosto de Fisher se moveu. Terminou a sua bebida antes de tornar a falar.

- Black foi visitá-la... Aqui, em Inglaterra? Albrecht Schwarz anglizara o nome para Black. Também

vira o dossier dele, duas vezes mais volumoso do que o do general. Estava dado como desaparecido, julgando-se que deveria ter morrido em Berlim durante o bombardeamento russo à cidade. Schwarz! Deus do Céu!

Fisher mudou de ideias e terminou o seu uísque. Olhou para Paula. Tinha o rosto pálido, mas com expressão inocente. Não havia sombra de dissimulação naqueles lindos olhos azuis.

- Sim. Ele foi ao meu escritório. Com franqueza, pensei que estava um pouco mal da cabeça.

Mal da cabeça... Bem, era muito possível, disse Fisher para consigo. Naturalmente tivera sonhos estranhos durante a noite.

- Por que motivo foi visitá-la?

- Para se apresentar.

Isto era mentira e Fisher percebeu porque Paula desviou a vista. Nesse momento, ele sentiu imensa pena de não ser jornalista. Em que notícia sensacional isto poderia transformar-se!... Albrecht Schwarz em Inglaterra. Ora se ele estava vivo...

Chegou o primeiro prato. Paula principiou a comer; sentia-se tensa e sem apetite. Fisher pedira um vinho excelente e Paula bebeu.

- Ele falou a respeito de seu pai?

- Falou. Disse que era uma pessoa excepcional! Paula falava devagar, mais como se estivesse a falar para

consigo do que para Fisher.

- Contou que tinha na carteira um retrato meu. Talvez isto lhe pareça patetice, Mr. Fisher, mas não calcula como fiquei impressionada com essa ideia.

- Não me parece patetice... E foi tudo? Ele não deu a entender que o general talvez não tivesse morrido... que pudesse ter escapado?

- Sim, realmente falou nessa hipótese, mas o homem não me parecia estar em juízo perfeito, como lhe disse, e, portanto, não acreditei.

- Compreendo... E onde se encontra esse Mr. Black ou Schwarz? Preciso de falar com ele.

- Não sei - respondeu Paula. - Apresentou-se no meu escritório e depois foi-se embora. Não deixou qualquer morada e eu esqueci-me de perguntar. Já lhe expliquei, pareceu-me um pouco... esquisito, uma pessoa estranha, não sei explicar bem... Prometeu telefonar-me mais tarde, mas até agora não tornei a ter notícias dele. Para ser franca, duvido até que tenha conhecido o meu pai; era uma pessoa muito estranha... um homenzinho que conseguiu assustar-me...

- Era baixo? - perguntou rapidamente Fisher. Lembrava-se de uma fotografia do general passando revista

a um regimento, com Schwarz atrás dele.

- Sim, um pouco. Talvez com um metro e sessenta e cinco, creio eu.

- Isso condiz - murmurou Fisher. - Se eu lhe trouxesse uma fotografia era capaz de o reconhecer, não é verdade? Mesmo que a fotografia tivesse sido tirada há alguns anos...

- Oh! Parece-me que sim. Ele tinha uma cara bastante característica. Podia pôr um anúncio dizendo que era procurado...

- Podia - disse Fisher. - Suponho que sim!

A ideia fê-lo sorrir ironicamente. Já se publicara o anúncio, mas o homem não tinha nada o sentido da publicidade. Mantivera-se muito calado e nunca respondera.

Naquele momento, Fisher começava a ter de facto muita pena de Paula Stanley, mas o pior era os seus sentimentos arrastarem-no para o caso.

- Então? Um pouco mais de vinho... Não se lembra de mais nada? Não se recorda de qualquer coisa que me possa ajudar? Até aqui tem sido realmente maravilhosa!

- Mais nada... -respondeu Paula.- Importa-se se eu não comer tudo?... Na verdade não tenho apetite. Foi um almoço delicioso, mas não consigo comer mais. E agora, chegou a sua vez, Mr. Fisher: quero saber tudo! Quero saber exactamente por que razão me disse que meu pai podia estar vivo...

Ele olhou-a e ao fitar aqueles olhos e a expressão angustiada do rosto, pensou como era linda quando preocupada.

- Há cerca de dois meses apareceu uma notícia num jornal alemão, dizendo que o general tinha sido visto em Paris. Foi inicialmente publicada no AHgemeine Zeitung e reproduzida nos mais importantes jornais europeus através da Associated Press. Os meus clientes leram-na e mandaram fazer uma investigação.

- Foi visto em Paris?... Impossível!... Sendo assim, então Black tinha razão!

- Talvez tivesse - concordou Fisher. - Parecia não haver dúvidas. Porém, de qualquer modo é para isso que me pagam.

- Quem disse que o viu em Paris e quem são os seus clientes?

Fisher possuía uma fotocópia da notícia, na pasta. Tinha sido uma mulher francesa que apresentara a denúncia e insistia ser verdade. Reconhecera o general pelos olhos, e pelos olhos o conhecia.

- Foi alguém que o conheceu durante a ocupação e disse tê-lo visto numa rua de Paris. Ainda tentaram apanhá-lo, mas ele desapareceu no meio da multidão. Quanto à segunda pergunta, não posso responder-lhe. Só se os meus clientes autorizassem...

Fisher não admitia a possibilidade de a princesa autorizar. Prometera voltar dali a um mês e apresentar um relatório pessoal acerca das suas descobertas, e estava ansioso por ver a cara do filho mais novo quando ouvisse contar os últimos acontecimentos.

Porque diabo quereria ele que o assunto fosse abafado?! E porque seria que o mais velho, o herdeiro do título e o chefe da família, não dissera palavra durante toda aquela maldita entrevista e se limitara a inclinar-se ora para um lado ora para

o outro e a agarrar-se às costas do sofá como se tivesse medo de cair?

Durante o tempo passado em Bona, Fisher estivera sempre muito ocupado para fazer estas perguntas a si mesmo e ver se conseguia encontrar uma resposta. Agora, voltavam-lhe à ideia, por causa da pergunta de Paula.

Fisher sentia-se mal com a sua consciência por ocultar estes pormenores a Paula, mas conforme dissera ao sorridente e persuasivo príncipe, quando ele tentara fazê-lo atraiçoar a mãe, na sua profissão a integridade para com o cliente era muito importante. Tratava-se daquelas profissões em que a respeitabilidade é o ponto vital.

- Mr. Fisher... o senhor sabe alguma coisa a respeito de meu pai. Fale-me dele... Diga-me tudo! Ficar-lhe-ia imensamente grata.

Fisher chamou o criado.

- Não deseja mais nada? Paula abanou a cabeça.

- Não, obrigada! Apenas café.

- Dois cafés sem leite... Quando pede para contar tudo quanto sei, não quer a história desde o princípio até ao fim, não é verdade? Calculo que sabe tudo isso, evidentemente... O que deseja saber é onde ele foi morto... se foi...

Paula desejaria saber tudo, mas a vergonha impediu-a de lho pedir. Tinha vergonha de não saber... Sentia-se uma rapariga exposta. Cada vez se revoltava mais contra a mãe por causa daquelas malditas reticências com que a obrigava a calar-se.

O ex-marido sempre dissera que ela era uma pessoa pouco expansiva e desorientada. James gostava de frases longas e complicadas e aquela descrição irritava-a, mas se o que ele dizia era verdade, sabia a quem devia lançar as culpas.

- Apenas o fim - retorquiu Paula. - Onde foi e como se supõe que tenha sido.

- Numa aldeia próximo de Cracóvia, durante a retirada final alemã, em 1944... Deixe-me acender esse cigarro. Tem estado a fumar como uma chaminé, Mrs. Stanley. Não sabe que isso é mau para si?

Ela deixou que Fisher lhe acendesse o cigarro.

- Bem, pelo menos o quartel-general de seu pai era lá. É um nome terrível que nem sequer sou capaz de pronunciar, mas era ali que estava seu pai e o regimento dele, incluindo o nosso amigo Schwarz, ou Black. Haviam-se instalado onde tinha sido a esquadra da polícia, um edifício construído com tijolos. Estas povoações polacas eram bastante pequenas e primitivas; a maior parte delas já tinham sido ocupadas e ali se haviam travado combates durante a campanha original. Calculo que as condições nessa ocasião eram bastante rudimentares; os russos perseguiam ferozmente o exército alemão e o combate não se pode dizer que obedecesse às regras estandardizadas do boxe, conforme o estatuto do oitavo Marquês de Queensberry, de 1867...

Fisher, após uma pausa breve, continuou:

- Por fim, em 23 de Novembro, um bombardeamento maciço dos russos começou a fazer-se sentir sobre aquela área. A casa onde seu pai habitava foi atingida e todos quantos lá estavam morreram. Aparentemente, encontrou-se um cadáver com as condecorações dele, mas à parte isso estava irreconhecível e nada mais o identificava. Meia dúzia de sobreviventes dessa batalha juraram que o general se encontrava dentro de casa, reunido com os seus oficiais nessa ocasião. Ninguém de lá saiu vivo e os cadáveres foram enterrados ali mesmo. Sua mãe deve ter sido avisada da morte do marido durante o combate. Não percebo, portanto, por que razão ela não lhe disse isso!...

Paula ignorou a implícita pergunta e murmurou apenas:

- Há uma coisa que não percebo...

- Qual é?

- Por que razão uma notícia dessas havia de ser publicada em tantos jornais?! Por que motivo alguém se importa que meu pai possa estar vivo depois de tantos anos?! É muito estranho!

- Ele era uma pessoa muito importante - respondeu Fisher. - Era condecorado com a Cruz dos Cavaleiros, a Cruz de Ferro e agraciado com todas as condecorações que possa imaginar; tratava-se de um dos mais famosos soldados alemães...

Fisher tinha uma recordação mental da fotografia existente no dossier de Bona: um rosto correcto de feições duras, sob o boné de pala, com o galão dourado e as inconfundíveis estrias na gola. Na sua juventude devia ter sido muito interessante, o espécime perfeito do super-homem wagneriano. Fisher sorriu para Paula.

- Não há nada mais excitante do que os mortos regressarem à vida... - murmurou gentilmente.- É natural despertarem grande interesse...

- Acredita que meu pai esteja vivo, Mr. Fisher? perguntou ela. - Acha possível?

- Gostava que assim fosse, não é verdade?

- Não gostaria também... se nunca tivesse conhecido um dos seus pais?

- Não sei - respondeu Fisher. - Também não conheci bem nenhum dos meus. Morreram quando eu era ainda muito jovem. Porém, conformei-me... O mesmo acontecerá consigo. No seu lugar, não me preocuparia muito com o assunto. No entanto, se eu descobrir alguma coisa, dir-lhe-ei, mas... particularmente, entre amigos...

- Isso é uma grande amabilidade da sua parte! - exclamou Paula.

Apesar da sua primeira reacção, começava a simpatizar com Fisher. Dir-se-ia diferente quando sorria; pareceu-lhe que, normalmente, não era amável como estava a ser agora para com ela.

- Promete?

- Prometo se aceitar jantar comigo esta semana - respondeu Fisher. - Far-lhe-ei um relato completo do que tiver apurado. No entanto, se precisar falar-me antes disso, aqui tem a minha morada; ligando para este número pode deixar qualquer recado. Será uma chamada de serviço. Que diz a jantarmos juntos na quinta-feira?... Pensei em me meter no carro e ir fazer uma visita a sua mãe e ao seu padrasto, na quarta. Posso ir buscá-la por volta das oito?

- Eu ainda não disse que aceitava - observou Paula. Isso não é para mais perguntas, pois não? Nada mais tenho a dizer-lhe.

- Não, é pura e simplesmente prazer, da minha parte... Fisher pagou a conta.

- ...e conforme já disse, informá-la-ei dos progressos da investigação... mas grátis. Geralmente levo uma fortuna por esta espécie de trabalho... Vai jantar comigo, não é verdade?

- Está bem. Moro em Charlton Square, vinte e oito, segundo. Porém, desde já o aviso que não conseguirá arrancar nada a minha mãe nem a meu padrasto. Tentei saber qualquer coisa ainda não há muito tempo e não consegui informação absolutamente nenhuma.

- Talvez eu seja mais duro... - disse Fisher, sorrindo. Enfim, depois veremos. Vamos. Vou metê-la num táxi. Volta para o escritório?

Encontravam-se já na rua, no passeio; o céu começava a cobrir-se de nuvens com o advento de uma chuvada de Verão.

- Com certeza! Preciso de trabalhar.

Paula estendeu a mão.

- Adeus e obrigada pelo almoço!

- Eu também vou trabalhar - retorquiu Fisher.

Ele gostava da maneira como Paula se penteava; cabelo levemente ondulado, não demasiadamente curto, suave e natural, caindo com graça e singeleza. Até ali nunca gostara de cabelos castanhos, mas com uns olhos azuis como aqueles, tinha de ser.

- Até quinta! - disse ele.

Ajudou Paula a entrar no táxi; depois voltou-se e seguiu pela rua abaixo até ao seu carro.

Fisher começou a pensar como seria a mãe dela. Vira-a também numa das fotografias: uma mulher alta, elegante, de cabelo louro entrançado em volta da cabeça, peles de raposa sobre os ombros, trocando um aperto de mão com o chefe do marido, o general que estava a seu lado.

Depois, principiou a idealizar também o seu segundo marido inglês. Que espécime de homem seria ele para a aceitar e dar-lhe o seu nome, sabendo o que devia saber?! Talvez houvesse uma linda história de amor a decorrer na serenidade da casa de campo em Essex.

Talvez a atraente rapariga a quem ele acabava de deixar fosse a criança amaldiçoada com a sua hereditariedade, embora não o soubesse. No entanto, Fisher duvidava; os laços de parentesco não são reais; hereditariedade sem convivência não fazia sentido. O que fazia sentido era o aparecimento de um homem que era sem sombra de dúvida o ajudante-de-campo do general, um homem que estava dado como morto há vinte e tantos anos, e o facto de ter contactado Paula Stanley dava a impressão de que o general continuava vivo.

Fisher resolveu telegrafar para Bona e pedir a fotocópia do retrato de Schwarz a fim de obter a confirmação; porém, a coincidência era já bastante grande. Schwarz anglizara o nome para Black; dissera ter servido sob as ordens do general e tê-lo conhecido pessoalmente.

Mas, por que razão procurara Paula Stanley? Por que motivo, depois de tantos anos, o homenzinho se arriscara a ser descoberto? Para efectuar uma reconciliação... ou para dar a entender qualquer coisa e ver a reacção de Paula?

Isso parecia-lhe pouco provável, muito inconsistente. Ela descrevera-o como uma pessoa esquisita, excêntrica; talvez isto justificasse a sua inexplicável falta de cuidado. Não havia nada que convencesse Fisher que ele a tivesse procurado para se lhe apresentar, se não tivesse qualquer intuito. E, fosse qual fosse o intuito, Paula não o dissera a Fisher. O seu convite para jantar não era inteiramente motivado pela sua graça e força atractiva. Havia qualquer coisa que Fisher precisava saber e havia de encontrar maneira de a obrigar a dizer-lhe.

Quanto à visita aos pais de Paula, tratava-se de uma formalidade que não podia deixar de cumprir, mas se alguma pista existia - e Fisher começava a sentir uma estranha convicção da sua existência! - essa pista seria encontrada através de Paula Stanley.

Capítulo terceiro

- Tentei telefonar-te para o escritório, mas ainda não tinhas regressado do almoço. Assim, pensei em dar um salto até aqui!

Paula abriu a porta e encontrou o padrasto à sua espera. Primeiro pareceu-lhe embaraçado e depois alegre. Porém, ele tinha um ar de permanente bonomia que Paula achava muitíssimo desanimador.

- Que bela surpresa, Gerald! Entre e tome qualquer coisa!

Ele sentou-se na pequena saleta e fez exactamente as mesmas agradáveis observações a respeito da decoração que fizera na última visita, continuou a falar a respeito de ninharias, até chegar ao ponto de Paula sentir um desejo louco de o mandar calar ou dizer-lhe para se deixar de rodeios. Por fim, como se o esforço de ir falar com ela com tacto o tivesse esgotado, disse muito simplesmente:

- Precisava vir falar contigo, Paula! A tua mãe está muito preocupada!

- Sim? Tenho imensa pena... Mas porquê?

Paula sabia perfeitamente a razão antes dele a dizer. Sabia muito bem o que preocupava a mãe e qual o motivo porque o brigadeiro deixara o seu confortável ninho em Essex e fizera aquela viagem a Londres. Vinha informar-se a respeito de Black.

- Tem passado as noites sem dormir - explicou ele. Ontem obriguei-a a ir ao médico. Disseste-lhe qualquer coisa que a apoquentou imenso... Falaste-lhe a respeito de teu pai!

- Exactamente. Disse-lhe que um amigo dele tinha pedido para me visitar. A mãe não queria que eu acedesse. Tivemos uma pequena discussão por causa disso no último fim-de-semana. Eu sei que ela lhe contou, Gerald... Para si, não tem segredos. E agora veio saber o que fiz, não é verdade?

- Sim, de certo modo foi isso...

A falsa alegria evaporava-se; o padrasto tinha todo o aspecto de um velho muito preocupado, com a testa enrugada e uma expressão de ressentimento.

- Que fizeste, Paula? Seguiste o conselho de tua mãe, ou falaste com esse homem?

- Falei com ele - respondeu Paula. - Foi ao meu escritório na segunda-feira passada. Conversámos a respeito de meu pai e ele contou-me muitas coisas...

- Oh! Meu Deus!... - exclamou o brigadeiro metendo a cabeça entre as mãos. - Por que motivo não puseste esse assunto de parte?... Se soubesses a agonia em que se encontra tua mãe!

- Não sei nada a respeito da minha mãe - retorquiu Paula, friamente. - Ela nunca confiou em mim. Nunca falou comigo nem me disse nada. Tem-me conservado sempre à distância, durante toda a vida. E porque há-de dizer ”meu Deus!’’ com essa expressão?... Por que motivo não hei-de saber nada a respeito de meu pai?!

O rosto do brigadeiro tornara-se vermelho; endireitou-se na cadeira e exclamou:

- Por causa do que isso significa para ela! Tua mãe merece que a deixem viver agora em paz e sossego! Não sabes que idade ela tem?

- E que tem isso a ver com o caso? Dá a impressão de que nunca amou o meu pai! Nunca se importou com ninguém, senão consigo! Não me venha dizer que não pode suportar recordações tristes... passados mais de vinte e cinco anos. Desculpe, Gerald, mas tenho todo o direito de conhecer o outro lado da minha família!

- Mesmo que isso seja um desgosto para ela? ?

- E porque havia de ser um desgosto para ela? - perguntou Paula. - Há alguma coisa a esconder?...

O brigadeiro não respondeu. Ergueu-se da cadeira e olhou Paula fixamente.

- Se eu te pedisse para pores uma pedra no assunto e não fizesses perguntas, acedias ao meu desejo?

- Não, Gerald! Desculpe... tenho muita pena. Porém, apresente-me uma razão, uma única razão, e escutá-lo-ei. Não faço promessas arbitrárias a ninguém.

- Não consigo compreender-te! - exclamou o brigadeiro.- Fizemos o máximo por ti. Tua mãe...

- Não quero falar a respeito da minha mãe - retorquiu Paula. - Gerald fez por mim tudo quanto podia e sei apreciar isso. Eu não era sua filha... Por acaso... ainda não receberam nenhuma visita?

- Que queres dizer?... Que espécie de visita?

- Um detective particular. Se Gerald e a mãe não querem que o passado seja desenterrado, receio que não vão gostar disto... Há a notícia de meu pai ter sido visto em Paris... Afinal de contas talvez esteja vivo!

Com grande admiração sua, não houve reacção de surpresa nem de alarme. O brigadeiro olhou para ela e fez um gesto de assentimento com a cabeça.

- Nós lemos - respondeu. - Mas, graças a Deus, não era verdade!

- Com franqueza! - exclamou Paula. - E não ocorreu a nenhum dos dois contarem-me isso?! Era apenas o meu pai que podia estar vivo, nada mais! A si, posso desculpá-lo, Gerald; porém, nunca perdoarei a minha mãe! Como pôde ela ocultar-me uma coisa dessas! Como pôde ela proceder com tanta crueldade?

- Que te contou esse tal Black a respeito dele? A pergunta era totalmente inesperada.

- Disse-me que era uma pessoa maravilhosa e tinha um amor extraordinário por mim! Oh!...-prosseguiu com amargura. - Eu sei qual é o mal... soube-o sempre. O pai era um general nazi... combateu por Hitler... e o Gerald e a mãe não querem que se fale nisto. Gerald é um inglês cheio de preconceitos e não seria nada conveniente que na sociedade em que vivem se soubesse que ela era viúva de uma dessas bestas nazis de quem tanto se tem ouvido falar! Estou farta de atrocidades e de campos de concentração! Já sabia o que era um maldito Huno antes de ter idade bastante para saber que também era uma! A mãe é uma cobarde! Não quer que se saiba a que país pertence! É por isso que ela nunca gostou de mim! Eu era o laço que a ligava ao pai e à Alemanha! Sem mim, ela seria apenas uma maldita Mrs. Ridgeway.

- Não sabes o que estás a dizer! - exclamou o padrasto, a quem Paula nunca vira tão zangado. - E não tornes a atrever-te a falar de tua mãe dessa maneira! Espero que nunca saibas aquilo por que passou, embora estejas demasiadamente predisposta para o poderes avaliar, caso algum dia venhas a sabê-lo! E agora vou para casa!

O brigadeiro fez uma breve pausa e depois acrescentou:

- Se qualquer detective se aproximar da minha casa será convidado a afastar-se dela imediatamente! Se anda a querer saber alguma coisa a respeito dessa história do teu pai ter sido visto em Paris, perde tempo e feitio. Ele morreu, Paula, e o máximo que te posso dizer é que deves dar graças a Deus por isso!

Gerald Ridgeway saiu da sala e Paula ouviu bater a porta da rua. Então, sentou-se e acendeu um cigarro. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Aquela era a sua primeira zanga com o padrasto.

Deus do Céu!... Como ela invejava aquela amizade, forte união protectora que existia entre eles, impenetrável do exterior!

Gerald não era um homem cruel nem sequer desleal; porém, não conseguia compreender o seu ponto de vista e apreciar qualquer coisa que não fossem os sentimentos da mulher.

Paula referira-se a sofrimento mudo durante anos; trouxera à superfície a sensação de vergonha e controvérsia suportada na sua adolescência. Crescera e agora compreendia ser um membro de uma raça cujos crimes contra a humanidade eram um ultraje às sociedades civilizadas de todo o mundo.

As hordas de pilhagem do século XII da Mongólia, tinham características idênticas às da sua raça. Genocídio! Dez milhões de judeus; dois milhões de ciganos. Homens, mulheres e crianças ceifadas em França, Itália, Polónia e nos Países Baixos. Horror sobre horror! Nomes associados a infâmias indizíveis: Dachau, Belsen, Buchenwald!

Mas o nome dela tinha sido mudado para Ridgeway quando Paula ainda era criança. Portanto, ninguém saberia o que ela era: uma alemã, filha de um general alemão.

A única pessoa que podia ter mitigado aquela terrível solidão e acalmado a sua sensação de culpa era a mãe, que havia feito descer uma cortina de silêncio que a filha nunca conseguira ultrapassar.

Paula foi preparar uma bebida, o que não era nada habitual nela. Normalmente nunca bebia quando estava sozinha. Passou uma escova pelo cabelo, pôs pó-de-arroz no rosto; estava pálida e tinha uma expressão de fadiga no olhar. Toda a vida vira aquele mesmo rosto reflectido nos espelhos sem conseguir identificar-se com ele.

James acusava-a de ser uma estranha; provavelmente tinha razão. Paula nunca saíra da sua concha interior, expondo-se aos ventos frios do mundo. Devia ser uma pessoa com quem era difícil viver...

Pela primeira vez, compreendeu a razão porque o marido lhe tinha sido infiel. A sua amiga íntima era uma mulher ardente, afectuosa, que, embora não fosse particularmente bonita, tinha um riso franco e atraente. James gostara dela e o inevitável acontecera.

Quanto à rapariga mais nova, não sabia nada, nem se importava... Tornou a escovar o cabelo e, de súbito, pensou que perdoara a James. Quanto a isso, estava perfeitamente calma. Preparou outra bebida, sentou-se junto do telefone a fim de lhe falar e dizer-lhe exactamente isso, quando soou a campainha da porta.

Paula olhou para o relógio. Eram nove horas. Esquecera-se do jantar, esquecera tudo com a sua imersão no passado. Quando abriu a porta, viu Fisher.

- Hoje não é quinta-feira - disse ela. - Vem dois dias adiantado!

- Deixe-me entrar - pediu ele. - Resolvi vir aqui imediatamente, quando vi os jornais.

- Quais jornais?

Paula seguiu-o pelo vestíbulo; o jornal ainda estava ali em baixo, na entrada. Esquecera-se de o ir buscar.

Uma vez na saleta, Fisher esperou; ela-aproximou-se.

- É por causa de Black - disse Fisher. - Portanto, resolvi vir.

Ele tinha o jornal na mão. Paula pegou-lhe. O título negro desfocou-se. Havia a fotografia de uma cara que ela conhecia, uma cara com as maçãs do rosto muito salientes e os olhos fixos no vácuo. Depois, o título tornou a aparecer:

Homem assassinado, identificado como criminoso de guerra.

Fisher deixou-a ler, observando-lhe o rosto. Ele próprio ficara chocado quando abrira o jornal rmmpub em Shepherd’s Market. Era um local que costumava frequentar e onde ia encontrar-se com um amigo dos seus tempos de jornalista. Saiu àopub sem deixar qualquer mensagem. Não tinha sido a fotografia, nem a descoberta de Albrecht Schwarz ter sido

assassinado com uma pancada vibrada na cabeça. Não; era a história que vinha por baixo.

De súbito, Paula começou a ler em voz alta: Albrecht Schwarz, que também usava o nome de Black e de Winter, residente na Suíça e viajando com passaporte suíço durante os últimos quinze anos, era um dos célebres criminosos de guerra de um pequeno bando, procurado por múltiplos assassínios na Ucrânia e por ter tomado parte no infame massacre da população da aldeia polaca de Darienne, durante a retirada alemã em 1944.

Baixou o jornal e olhou para Fisher. Parecia completamente assombrada.

- Venha sentar-se. Vou preparar-lhe uma bebida - disse Fisher.

Porém, Paula não se moveu. Estava de novo a ler o jornal, enquanto os lábios se moviam silenciosamente. Fisher encontrou o uísque e preparou-lhe um bastante forte. O sifão silvou; estava vazio. Fisher lembrou-se de repente que sifões vazios e a falta de certas coisas como água tónica ou fósforos eram as marcas das mulheres que viviam sozinhas. Soltou uma pequena praga e resolveu que Paula podia beber o uísque puro. Deu-lhe o copo e fê-la sentar a seu lado.

- Está muito pálida - disse ele de súbito. - Isto foi um choque para si!

- Não posso acreditar! - exclamou. - Ele esteve sentado no meu escritório... um homenzinho estranho, de cabeça branca. Pensei que era maluco e ainda penso!... Mr. Fisher, não compreendo o que se passa! Esteve aqui o meu padrasto, furioso, por eu ter falado com Black e dizendo-me que eu magoara minha mãe e não tinha o direito de desenterrar o passado. Mas porque não?... Se o meu pai está vivo, porque não hei-de descobri-lo?

- Não seria preferível perguntar a si mesma por que motivo ele não se apresentou?... - disse Fisher, delicadamente. - Para que havia o general de mandar Black, ou Schwarz... porque tem vivido na clandestinidade durante todos estes anos?

Paula colocou o copo em cima da mesa.

- Que pretende dizer com isso? Está a dar-me a entender que ele cometeu qualquer acto criminoso?

- Não sei - respondeu Fisher.- A Interpol tem o seu cadastro, como tem o de todos quantos desempenharam os mais altos cargos nazis. O seu pai não estava na Wehrmacht. Era general dos S.S.

- Porque não mo disse? - perguntou Paula.

- Porque a minha função era obter informações suas retorquiu Fisher. - Além disso parecia estar tão interessada nele que não quis desiludi-la. Escute, tenho uma ideia: já jantou?

- Não - respondeu Paula, abanando a cabeça.-E depois disto não tenho vontade nenhuma de comer!

- Nunca tem!-observou Fisher, dando-lhe uma palmada amigável na mão e sorrindo. - Quando a levei a almoçar, deixou tudo no prato. Esta noite vou levá-la, Mrs. Stanley, e se não quiser comer, não come! Por outro lado também não precisa de falar nestes assuntos. Vai ser uma saída estritamente de prazer e não de negócios! Vá buscar um casaco e passe um pouco de pó-de-arroz pelo nariz!

- Não quero ir a parte nenhuma! -exclamou Paula. Se quer tomar qualquer coisa, tome aqui em casa!

- Não posso passar sem água tónica - insistiu Fisher - e não a tem cá! Então?! Vá buscar o casaco, depressa!

Fisher acendeu um cigarro enquanto esperava por Paula. Parecia extremamente abalada e ele tinha a certeza de que se lhe fizesse a vontade, acabava por ficar sozinha em casa e depois dele sair começaria a chorar. Porém, isso não aconteceria.

Em boa verdade, Eric não sabia qual o motivo porque não aconteceria, porém, não estava a gostar nada daquela ideia. Apetecia-lhe ir passar a noite fora. Não havia nada para comemorar -antes pelo contrário -, e o assassínio de Schwarz representava um contratempo para as suas investigações. Assim, iria festejar isso mesmo, pois o que realmente desejava era arrancar Paula Stanley de casa. Quando ela entrou na saleta, Fisher ergueu-se e exclamou:

- Está formidável!... E é assim mesmo que vai sentir-se a partir de agora. Conheço um sítio ideal para esta noite! Vamos embora!

Seguiram de automóvel para o centro de Londres. Passaram pelo Parlamento; brilhava uma luzinha na torre do relógio, mostrando assim que havia reunião. Depois, Whitehall e Trafalgar Square, onde Nelson, do cimo da sua coluna, vigiava a cidade enquanto os pombos descansavam empoleirados, apesar dos muitos esforços feitos para os desalojar.

As fontes lançavam jactos de água, formando graciosas arcadas e os turistas vagueavam em volta dos lagos ou agrupavam-se nos degraus, a gozar a atmosfera nocturna.

Subiram Picadilly, passaram o Circus com as suas tabuletas a néon e os pequenos e tristes grupos de adictos, já em bicha, junto de uma das farmácias de serviço permanente, para se abastecerem.

Quando entraram em Berkeley Square, Paula perguntou:

- Para onde vamos?

- Para o Annabel - respondeu Fisher. - Ali teremos luz suave, música gritante e muito para ver!

Fisher entregou as chaves do carro ao porteiro.

- Guarde-mo em qualquer parte, sim?

O homem cumprimentou-o e sorriu. Fisher tinha sempre uma enorme lista de despesas de representação por conta da firma e por isso podia frequentar o melhor clube nocturno de Londres.

Paula nunca lá tinha ido. Os clubes nocturnos de primeira categoria, os mais chiques e mais requintados não serviam para a espécie de divertimentos que agradavam a James e, quanto a ela, não frequentava esse círculo da sociedade. Os homens com quem costumava sair escolhiam sempre lugares discretos e tradicionais onde a comida fosse boa.

Fisher e Paula atravessaram o bar, que mais parecia o estúdio da casa de campo de um homem rico. Tinha as paredes cobertas de desenhos, gravuras e quadros de bastante mérito, lareira com resguardo à moda antiga, sofás de cabedal e um tapete de lã enxadrezado, feito de encomenda.

Alguns metros adiante, o restaurante parecia uma escura caverna cheia de música. Ainda era cedo e por isso havia pouca gente; porém, cerca das onze horas, estava tão cheio como um comboio em hora de ponta.

Eric não se deteve no bar; era um sítio demasiado público; as pessoas costumavam sentar-se ali para verem e ser vistas. Seguiram directamente para a sala e Fisher sentou Paula de forma a ficar de frente.

Mandou vir champanhe. Depois debruçou-se um pouco sobre a mesa e pegou-lhe na mão. Estava fria.

- Não posso continuar a tratá-la por Mrs. Stanley... Num sítio destes seria ridículo. Chamo-me Eric...

- Trate-me por Paula.

Ela olhou para a mão que segurava a sua; eram mãos fortes, másculas e punhos fortes com pêlos escuros. A mão estava quente e segurava a dela com força.

- Porque me trouxe aqui?

- Para a obrigar a sair da sua concha. Beba! Não gosta?

- Gosto, mas qual o motivo de fazer tudo isto por mim? Para que há-de estar a maçar-se?

- Tem um certo interesse neste assunto, .não é verdade? - disse Fisher.

Aproximara-se mais dela; respirava-lhe o perfume e a mão já estava mais quente.

- Porque não há-de haver alguém que também se interesse por si? Deve haver muitos homens...

- Um marido - cortou Paula - que me trocou por outra mulher. Ou antes, por duas, para ser franca! Disse-me que eu não servia...

- Não servia, como? Sexualmente ou como mulher casada? Em minha opinião são duas coisas diferentes.

- Não servia para uma coisa nem para outra - respondeu Paula.

Levou aos lábios a taça de champanhe e depois acrescentou:

- Era demasiado reservada, demasiado encerrada em mim mesma. Por meu lado ele parecia-me diabólico; portanto, suponho que era igual. Quanto a outros homens, engana-se. Aqueles que se apaixonavam por mim, eram imediatamente postos à distância.

- Nunca gostei de mulheres convencionais - observou Fisher. - Talvez seja por isso que não casei, isto à parte de levar uma vida um pouco desorganizada...

- E porque a escolheu?... Ninguém se interessa por um detective privado?!

- Bem... - interrompeu Fisher - nem todos somos aqueles homens franzinos, de impermeável, que vão passar revista aos quartos dos hotéis. Somos uma agência muito importante e tratamos de toda a espécie de problemas... Descobrir tesouros nazis. Peças soltas, como, por exemplo, uma obra de arte de Benvenuto Cellini que vale milhões... Enfim, tudo quanto seja deste género - acrescentou, olhando para Paula e sorrindo.

Fez uma breve pausa e depois prosseguiu:

- Agora já está um pouco melhor não é verdade?... Parece menos abalada.

- Talvez...

Fisher sentiu a mão dela apertar levemente a sua e isto produziu-lhe uma onda de excitamento.

- Conte-me mais coisas a seu respeito - disse Paula. - É solteiro e detective. Antes disso trabalhava na polícia?

- Não. Fui jornalista durante cerca de cinco anos. Era uma vida cheia de movimento e excitação e viajava muito. Um dia encontrei um rapaz chamado Dunston que trabalhava na Interpol. Investigámos juntos o caso de uma quadrilha que fazia contrabando de ouro em Berlim Oriental e simpatizámos um com o outro. Ele é diferente de mim. É um homem mais firme e já assente: tem mulher e três filhos... Estivemos algum tempo sem nos ver e, um dia, ele procurou-me. Deixara a Interpol e abrira um escritório de investigações particulares. Pediu-me para me associar a ele, convencido de que eu tinha certa habilidade para esse negócio. Aceitei e aqui estou! Mais champanhe?

- Não posso beber mais! -protestou Paula.

- Pode, sim! Não lhe faz mal nenhum. Deseja saber qualquer coisa mais a meu respeito?

- Não... excepto aquilo que não me diz. Por exemplo: por que razão anda à procura de meu pai e quem o encarregou do assunto?

- Façamos uma combinação - propôs Fisher, alegremente -, Paula diz-me a razão da visita de Schwarz e eu respondo às suas perguntas! Mas agora vamos dançar... Lembre-se que viemos aqui para esquecer tudo isso!

Paula ergueu-se quando ele se levantou.

- Mas eu não posso esquecer, Eric! Sinto-me incapaz de pensar noutra coisa!

- Mas vai esquecer, pelo menos esta noite! Amanhã não hesitarei em empregar todos os meios possíveis e imagináveis para lhe arrancar as respostas, mas esta noite, não! Estão agora a tocar uma música lenta... Vamos dançar!

Porém, Paula não dançou com Fisher; agarrou-se a ele. O braço de Eric segurava-a, suportando-lhe todo o peso; o seu corpo aquecia o dela, enquanto a apertava junto a si.

A pista de baile era pequena e estava cheia de gente, de pares agarrados. Alguns dançavam, sacudindo-se e agitando-se ; a discoteca passou de um ritmo lento para um ritmo apressado e agudo que fazia dores de ouvidos.

Fisher ignorou o movimento da música e continuou a segurá-la de encontro a si. Paula, porém, não correspondia à sua pressão; a intenção dele era protegê-la contra o choque e fora bem sucedido. Demasiado bem, pensou para consigo, permitindo-se um sorriso.

Paula era extremamente atractiva; Eric conhecera mulheres que se podiam considerar muito mais bonitas e, evidentemente, muito mais sexys; no entanto, Paula Stanley exercia sobre ele um efeito profundo e o facto de ela estar completamente alheia a isso e nada fazer para contribuir para esse estado perturbava-o muito mais. Paula descansara a cabeça sobre o seu ombro e dançava de olhos fechados.

Fisher fez um esforço e disse:

- Agora vamo-nos sentar, sim?... Estou cheio de sede!

O clube encontrava-se já demasiado cheio; lindas mulheres com caros vestidos de noite, elegantes raparigas de túnicas de veludo e blusas de seda pura, pares de todas as idades, arrastavam-se, dançando.

Fisher sentou-se à mesa e pegou na mão de Paula.

- Agora está melhor, não é verdade?

- Melhor ou excitada, não sei bem - respondeu. - Já lhe agradeci ter feito tudo isto por mim?

- Já - retorquiu Fisher. - Agora deve ter sido a quarta vez. Por outro lado, há uma coisa que também não repetirei: fi-lo com verdadeiro prazer! Vamos, beba!

- Se bebo, acabo por adormecer!

- Não faz mal - respondeu Fisher. - Pela manhã talvez se sinta um pouco esquisita, mas, entretanto, o pior terá passado. Mais uma dança para a obrigar a conservar os olhos abertos e depois levo-a a casa.

Quando Fisher viu Paula pela primeira vez, pareceu-lhe que os seus olhos eram os mais estranhos que vira em toda a vida. A cor era indescritível, embora a sua expressão fosse o que mais o intrigava. Dava a ideia de uma pessoa que se magoava facilmente e Fisher não estava habituado a este género. Passara toda a vida na companhia de mulheres fortes, boas para uma paródia, para tomarem umas bebidas e depois passarem uns momentos de boa disposição e prazer. Porém, Paula Stanley não era esse tipo de mulher.

Fisher continuou mais uns quinze minutos a segurá-la com força, na pista de dança, enquanto desejava, confusamente, poder ir deitar-se com ela.

Por fim, levou-a-, a casa. Parou à entrada,, curvou-se e abriu-lhe a porta do carro.

- Estou a ser muito pouco cavalheiro não a acompanhando até casa, mas a verdade é que me sinto bastante excitado e não posso prometer portar-me com muito juízo, se Paula não sair imediatamente!

Ela voltou-se.

- Se quiser vir comigo, pode vir. Não me importo!

- Obrigado! -respondeu ele com um cumprimento de cabeça. - Muito obrigado, mas não aprecio a rotina de aproveitar as ocasiões. No estado em que se encontra só está boa para uma noite de repouso! Convide-me em qualquer outra ocasião e ficará surpreendida com o que lhe poderá acontecer!

- Telefone-me amanhã! -disse Paula, depois de ter saído do automóvel e já no passeio.

Entretanto, Fisher, apesar do’que’dissera, também saiu.

- Tem as chaves?

- Tenho. Não vou ao escritório e responderei a tudo o que quiser se me telefonar amanhã. Devo-lho isso, por tudo quanto fez por mim esta noite. Adeus, Eric! Boa noite e mais uma vez obrigada!

Fisher ficou a vê-la entrar a porta da rua e esperou dentro do carro até ver acender-se a luz na sua janela.

Ela convidara-o a subir e ele recusara! Custava-lhe a crer ter feito isso. Passara toda a noite a desejá-la tanto que chegara a sofrer intensamente e depois procedera como um cavalheiro!

Qualquer coisa muito suspeita - pensou para consigo -, muito estranha, estava a acontecer-lhe numa idade daquelas!

Margaret von Hessel encontrava-se sozinha com o filho mais novo. Estavam a tomar café na enorme estufa existente no lado sul da casa.

Via-se à sua volta toda a variedade de flores; a princesa recordava-se perfeitamente de respirar aquela mesma atmosfera no tempo da avó. Calor, falta de ventilação, humidade e o aroma penetrante das flores tropicais.

A princesa estava sentada numa cadeira alta de verga e o filho, Philip, acomodava-lhe as almofadas nas costas. A mãe ergueu a vista para ele e afagou-lhe a mão. Este recordava-lhe o lado da sua família, ao passo que Heinrich era um puro Von Hessel, do ramo dos Wurzen: fraco; degenerado, um ébrio, um inútil para Deus e para a humanidade.

Mulheres e jogo tinham sido a ocupação do velho príncipe. O seu grande império deslizava por si só... vivia rodeado de riqueza na opulência, sem fazer para isso o mais leve esforço! E ao casar, adquirira maior fortuna!

Margaret era sua segunda prima. Ela não amava o príncipe; o amor não fazia parte do dote. Porém, fidelidade em público, acima de tudo, a conservação da honra da família, eram obrigações que a jovem princesa cumpriu desde o princípio do casamento. Tinha sido uma linda e elegante rapariga, alta e bastante desenvolvida, naquele estilo que a sua geração admirava. Tratava-se de uma jovem muito invejada entre o seu meio.

O príncipe era novo e de aspecto distinto; o facto de ser pessoa com pouca vida e sem sentido de humor não representava motivos para crítica. O orgulho e o passado assentavam como um manto sobre os ombros da família Von Hessel.

A princesa era tratada com o respeito devido à média realeza; tinha jóias, vestidos, carros, um chalé em França

- onde o rei Eduardo VII frequentemente ficava - a Schloss no cimo da montanha, que parecia saída de um conto de fadas de Grimm, a casa de cidade em Berlim, as cabanas de caça e os tesouros de arte que podiam figurar em qualquer museu do mundo; todas essas coisas faziam parte da vida diária de Margaret.

Entretanto, viver com um homem que contraíra uma doença venérea antes de estarem casados há um ano - e que passava a noite a jogar com os amigos ou a jantar com qualquer das muitas amantes - era a parte oculta da existência de Margaret.

Suportara a humilhação, o desgosto que lhe causava e a sua juventude solitária, com silenciosa força de alma. Era uma Von Hessel e oitocentos anos de tradição ajudavam-na a aguentar aquela vida. Entretinha-se com obras de caridade, tomava interesse pessoal pelo governo das suas casas e compilava um inventário pormenorizado dos tesouros que se encontravam na posse da família.

Foi nesta altura que se desenvolveu a sua paixão pela Taça Poellenberg.

Costumavam passar parte do ano em Schloss Wurzen, um melancólico castelo medieval mandado construir por um antepassado no século XIII e muito modernizado já pelo avô do marido.

A maravilhosa obra de arte encontrava-se exposta no salão de jantar. Não tinha qualquer espécie de protecção; estava colocada em cima da enorme mesa de carvalho, exactamente como há centenas de anos, brilhando com uma beleza inefável naquele salão escuro, de tectos altos, enquanto as suas jóias magníficas pareciam luzes de farol quando o salão se iluminava.

Margaret era capaz de ficar a admirá-la durante horas, absorvida nas linhas poéticas das suas figurinhas e tocando nas trémulas folhas douradas da árvore central com um dedo, a fim de fazer mexer os ramos. Havia um rubi do tamanho de um seixo; Margaret gostava de olhar fixamente o seu centro, onde aparecia um pálido reflexo do próprio rosto. Dizia-se que pertencera a Lorenzo, o Magnifico. Os rostos das ninfas também a fascinavam; havia um leve laivo de sensualidade nos olhos dourados e em volta da curva dos lábios, ainda mais subtil do que o olhar voluptuosamente sexual das musculosas figuras masculinas. Dir-se-ia impossível; porém, cada um dos rostos femininos era diferente. O mestre pintara retratos em metal e cada um deles possuía uma primorosa semelhança com uma verdadeira mulher.

Aquelas formas capitosas seduziam Margaret; adorava a preciosa jóia e esse sentimento era tão pessoal que se ofendia se alguém lhe tocava. Era como se toda aquela incrível criação tivesse sido talhada, esculpida apenas para ela, para outra noiva a contemplar ardente e ternamente, depois de Eleanor de Médicis, já morta há quinhentos anos.

O marido entendia que esta obsessão por um objecto inanimado era anormal e dizia-o. A extraordinária beleza das figuras, o seu primor, a harmonia das jóias que não permitia que tanta opulência pudesse ter uma nota de vulgaridade, nada disto o interessava. Preferia as mulheres de carne e osso à nua frieza das ninfas douradas. Porém, se a mulher se divertia contemplando-as voluptuosamente, não punha qualquer objecção. Pelo contrário, raramente objectava ao que ela fazia!

Margaret dera-lhe um filho e depois disso esquecera a sua existência. Podia gastar o que quisesse, viajar por onde lhe apetecesse, rodear-se de amigas e divertir-se, enquanto ele ia gozando a vida a seu gosto. Tão-pouco se interessava pelo filho; isso era da competência da mãe.

À medida que Heinrich crescia, Margaret notava nele as mesmas características da personalidade do pai. Era estúpido; ainda pequeno, faltava-lhe iniciativa, contentando-se em estar sentado a brincar com os punhos e a chupar nos dedos, a ponto da ama ser obrigada a calçar-lhe as luvas. Os olhos tinham aquela expressão vaga de indiferença pela vida dos Von Hessel. Nos estudos fazia poucos progressos. Os preceptores diziam com toda a franqueza que ele não se interessava por coisa nenhuma.

No colégio demonstrou certa aptidão pelo desporto e, sendo ele quem era, os seus malogros académicos passaram em claro. Em resumo, Heinrich era um falhado, protegido pelo nome da família e nada que a mãe dissesse ou fizesse era capaz de despertar nele um laivo de ambição ou de entusiasmo. Quanto mais o criticava menos ele reagia. Aos catorze anos de idade foi encontrado no quarto completamente embriagado.

Pertencia à Juventude Hitleriana, onde o pai insistira que fosse inscrito, convencido de que a disciplina lhe faria bem. Margaret objectara amargamente, mas nada podia fazer. Era preciso obedecer ao marido. Ele falava de disciplina, mas o que realmente queria dizer era política.

Eram imensamente poderosos e incrivelmente ricos, mas mesmo assim não se atreviam a zombar do crescente poder do ditador que controlava o país. Amizade com a hierarquia nazi não era necessária para pessoas como eles; porém, não era prudente afastarem-se em público.

Assim, Henry alistou-se na ”Hitler Jugend” e passou a andar uniformizado, mas após um ano foi expulso, particularmente por se embriagar.

Mandaram-no para uma clínica na Áustria, sob outro nome, acompanhado por criados e um guarda-costas para afastar os curiosos. Regressou aparentemente curado, mas dali a seis meses recomeçaram os ataques. Destruiu a mobília do quarto e houve um pequeno espaço de tempo numa casa de saúde antes de se tentar novo tratamento de cura, mas desta vez na Suíça. Foi o princípio da amostra do que se repetiria durante os próximos dez anos.

Entretanto, foi crescendo à imagem pública dos Von Hessel; o típico aristocrata alemão, herdeiro de um imenso império de fábricas de armamento, aço, carvão e respectivas indústrias; enfim, um dos mais recomendáveis celibatários do mundo. Porém, Henry não mostrava interesse pelas mulheres. Tinha um caso de amor permanente - a sua paixão pelo álcool -, e o seu mundo estava limitado pelas possibilidades e disponibilidades da bebida.

Não havia qualquer contacto entre ele e o pai, que declarava calmamente a sua inutilidade e não lhe ligava importância. A sua única preocupação era evitar que o segredo fosse conhecido, a fim de proteger o bom nome da família. Toda a influência que a sua riqueza podia obter era empregada para conservar os delitos e o vício de Henry a coberto de qualquer publicidade nos jornais.

No entanto, na roda dos amigos, corriam boatos. As suas ausências frequentes eram atribuídas a sofrer de desequilíbrio mental. Também se dizia ser homossexual devido ao facto de não se conhecerem mulheres na sua vida.

Quando rebentou a guerra, Heinrich tinha 18 anos. O príncipe nomeou-o director de uma fábrica de armamento no Rur, ficando assim isento do serviço militar. Foi a única ocasião durante a longa vida de casados em que Margaret teve pena do marido. Passaram a noite juntos - o que raramente acontecia - e ele disse-lhe ser aquele o dia mais infeliz de toda a sua vida.

- O meu filho não serve sequer para defender a pátria! É preciso escondê-lo, enquanto os amigos vão combater, e é o último da nossa família que terminará como um bêbado degenerado em quem não se pode depositar confiança e só serve para se desgraçar a si próprio e a nós! Mas isso é culpa minha e não tua! É preciso termos mais filhos!

A mulher suspeitava da sua esterilidade, quando deixara de ter relações com ela. Curara-se da sífilis, mas os efeitos ulteriores eram permanentes. Margaret não sabia que responder; o marido parecia esperar uma resposta e o silêncio prolongou-se entre ambos. Por fim, o príncipe quebrou-o:

- Se arranjares um amante, não levantarei qualquer objecção desde que seja da nossa linhagem. Pensei dever dizer-te isto! Agora vou deitar-me!

Dois anos depois, em 1942, Margaret deu à luz o fruto do seu único caso de relações sexuais, o seu único romance: o filho Philip. Encontrara o pai durante uma visita a Berlim. Era piloto da Lufwaffe - mais novo do que ela sete anos - um rapaz alegre e encantador, filho de uma sua segunda prima. Corria-lhe nas veias o sangue Von Hessel, ligavam-nos as mesmas tradições. Juntos, conservariam a linhagem imaculada.

Margaret sabia que ele seria morto; sentia uma sensação de impermanência que lhe causava uma dor profunda. A criança nascera depois de o pai ter morrido em acção, num combate sobre o canal inglês. Foi baptizado na capela de Schloss Wurzen, na mesma pia baptismal onde dez gerações da família tinham sido baptizadas.

Philip Friedhrich Augustus Franz, príncipe Von Hessel, o filho bastardo de um homem já morto. A princesa encontrava-se na capela e aceitava as congratulações dos amigos. O marido estava a seu lado; nunca deu a entender que Philip não era seu filho. Sentia-se contente: a família tinha outro herdeiro; o nome continuaria, portanto, apesar de Heinrich. Depois, com a sua mesma atitude muda, deu a entender à mulher que, dali em diante, não haveria mais amantes.

- Philip - disse Margaret. - Sei que tenho razão. O que o inglês disse ao telefone convence-me que nos encontramos muito perto...

- Sabia da existência de uma filha? - perguntou Philip.

- Sabia - respondeu a mãe. - Sabia da existência de uma criança mas já não me lembrava do sexo. Fisher foi muito esperto, tomando contacto com ela tão rapidamente. Diz estar convencido de que ela sabe qualquer coisa, mas se não lhe revelar o nosso interesse no caso, não lhe diz nada. Dei-lhe autorização, meu filho, porque precisamos saber o que Schwarz lhe foi dizer. Fisher concordou comigo.

- Mãe... - disse Philip-, não merecerá a pena tentar persuadi-la a pôr um ponto no assunto, mesmo agora? Bem sabe qual a minha opinião sobre o caso e também sabe o que o Henry pensa...

- Henry não tem o direito de pensar nada! -retorquiu ela, zangada. - Se não fosse ele, nunca aquela obra maravilhosa se teria perdido!

-Já morreu um homem - prosseguiu Philip num tom lento. - Agredido mortalmente após todos estes anos! Quem o matou? Haverá alguma ligação entre a sua morte e aquela notícia acerca de Bronsart ter sido visto em Paris?... Mãe, parece-me que estamos a mexer num assunto em que nunca mais se devia tocar! Suponhamos que está vivo... Sabendo que Schwarz escapou e esteve escondido todos estes anos, é possível que com Bronsart tivesse sucedido o mesmo. Portanto, se ele resolve aparecer e andar por sítios onde pode ser reconhecido, com certeza o apanham. Então se for julgado, vem a lume a história toda! Por favor, querida mãe...

Philip pegou na mão da mãe; tinham grande amor um pelo outro e profunda simpatia.

-... por favor acabe com isso enquanto é tempo! Esqueça a taça! Outras pessoas perderam grandes tesouros. Que importa isso agora, comparado com outro risco?

- Importa-me a mim!

Aqueles olhos altivos cintilavam com a evocação.

- Importa-me a mim saber que um dos mais lindos objectos de arte no mundo nos foi arrebatado por um miserável aventureiro que o levou e escondeu de forma a poder, um dia, surgir das trevas e ir buscá-lo! Não, Philip, farei tudo para o recuperar!...

E após uma breve pausa, continuou:

- Se ele está vivo, e acredito que sim, é ele mesmo quem nos vai dar a pista e dessa forma voltará para o sítio onde pertence! É tua, meu filho! Um dia há-de ser tua, bem sabes. Não ignoras que tudo é teu e serás tu o responsável pelos nossos interesses. A Taça Poellenberg é tua!

- Mas... e Heinrich?... - perguntou Philip, calmamente -; a mãe fala como se ele não existisse... Gostava que não o fizesse...

- És muito bondoso - respondeu a mãe. - Encontras sempre maneira de o desculpar... Eu, não! Não há desculpa para aquilo em que ele se transformou! É um degenerado! Não tem vontade própria, não tem sentimentos e o seu único interesse é ficar em coma, embriagado! Ele é meu filho, mas no dia em que morrer, não verterei uma só lágrima! Além disso, odeia-te e tu bem o sabes!...

- Porque a mãe gosta de mim e demonstra-o claramente... Não lho posso levar a mal.

- Ele há-de morrer!-prosseguiu a princesa. - Tem o fígado podre e a sua saúde é cada vez mais precária sempre que sofre novo ataque. Há-de chegar o dia em que não conseguirá recuperar. Os médicos já mo disseram e, quando chegar essa ocasião, serás tu o chefe da família e eu poderei então descansar, passando a ser uma velha a fazer croché, na minha cadeira de braços!

Margaret apertou a mão do filho e sorriu. A recordação do pai estava ali diante dela. Sempre que Philip ria, era como se o homem a quem amara regressasse do seu túmulo. Sim, seria tudo de Philip! Milhões, poder, prestígio, teria um grande futuro na Alemanha, onde já possuía voz activa nas reuniões do mundo que quase conquistara, e aquela preciosa obra de arte pertencia-lhe!

- Se Bronsart ainda vive - disse ela subitamente - havemos de recuperar o nosso tesouro, mas se morreu durante a retirada, então está perdido para sempre. Portanto, estamos nas mãos do destino, meu filho, e o destino decidirá o que vai acontecer!

- Mas não foi o destino que matou Schwarz... - observou Philip.

- Não - concordou ela. - Pode ter sido um ladrão a quem ele apanhou em flagrante, conforme disseram os jornais. Pode ter sido uma zanga e também pode ter sido o general que lhe quisesse fechar a boca para sempre. Isto, meu querido, é o que eu penso e parece-me que Fisher é da mesma opinião... Agora vamos esperar a ver o que sucede com a filha! Calcula tu, que horror!, ser filha de um homem daqueles!... Vamos, já são horas de ir para casa. Preciso telefonar por causa da ampliação de Verbegen.

- Ainda me sinto muito tonta! - exclamou Paula ao telefone.- À parte isso, estou perfeitamente. E Eric, como se sente?

Fisher parecia muito satisfeito.

- Óptimo! Disse que hoje não trabalhava... E se fôssemos almoçar juntos?

- Mudei de ideias - respondeu Paula de olhos fechados e doendo-lhe a cabeça. - Tenho algumas coisas a fazer e preciso de escrever umas cartas e expedi-las. Podia jantar, ou ainda melhor, venha até cá e arranja-se qualquer coisa. Precisamos de conversar...

- Não mudou de ideias quanto a isso - observou Fisher. - Estou muito contente, pois precisamos um do outro neste caso. Pelo menos neste momento, sou eu quem precisa de si e posso dar-lhe a informação que desejava. Acha bem pelas oito horas?

- Se puder, venha às sete e meia... Preciso de tirar a desforra... oferecendo-lhe um aperitivo.

Dava a impressão de que Paula estava a sorrir. Fisher tinha pena de o encontro não ter sido marcado para mais cedo. Estava ansioso por continuar o seu trabalho e obter a informação. Falara com a princesa às oito da manhã e arrancara-lhe autorização para revelar a sua identidade e a finalidade do seu inquérito.

Sentia-se impaciente para prosseguir as investigações, para poder começar uma caça a sério a fim de descobrir Bronsart, mas não podia actuar enquanto Paula não lhe desse as necessárias informações.

Porém, havia ainda uma outra razão que, à luz daquela prosaica manhã, não estava muito inclinado a reconhecer... o seu desejo de tornar a ver Paula.

O pai dela era um general nazi, membro daqueles infames esquadrões de assassinos uniformizados de negro, que haviam espalhado o terror hitleriano através de toda a Europa. Não admirava que a mãe o tivesse posto de parte. Fisher via perfeitamente o seu ponto de vista; porém, tinha sido uma atitude cruel e egoísta torná-lo extensivo à filha. Devia ter-lhe dado a entender qualquer coisa, um aviso qualquer para ela não perceber que o pai não era aquela figura de herói que, evidentemente, tentara criar do nada. Mais ainda, a mãe casara com ele, portanto sabia o que ele fazia.

Enfim, as mulheres de todos os grandes cantavam a mesma canção depois da guerra... ”Nós não sabíamos, não nos contavam nada, o nosso lugar era em casa!

Fisher chamava a estas razões desculpas de mau pagador. As suas propriedades estavam cheias de escravos-trabalhadores estrangeiros; nas casas viam-se por toda a parte os tesouros que haviam pertencido a outros e as peles e as jóias chegadas de França e dos Países Baixos eram propriedade de judeus capturados que tentavam comprar as suas vidas.

Em boa verdade, Fisher não tinha pena nenhuma de Mrs. Ridgeway, a qual conseguira fugir depois da guerra com um bem intencionado inglês como seu protector. Se alguém lhe despertava pena era Paula, que passara a ser um apêndice na vida deles.

Num impulso de vingança resolveu ir nesse mesmo dia a Essex e fazê-los despertar. Por que motivo havia de ser só Paula a responder às perguntas?

- Vou fazer uma visita a sua mãe - anunciou. - Logo à noite lhe conto o que se passou.

- Ela deve ter visto a notícia nos jornais - respondeu Paula. - Calculo que deve estar horrorizada, pois podem relacioná-la com o caso.

- Mas por que razão?! - exclamou ele, irritado. - Ela é Mrs. Ridgeway e toda a gente a conhece como tal. Pode continuar a ocultar-se! O assassínio de Black foi anunciado ontem à noite na televisão, durante o noticiário. Não pode dizer-me que não sabe nada.

- Vai ficar muito admirado - disse Paula.- Mas não conhece a minha mãe! Tem muito sangue-frio... Nunca me telefonou sequer!

- E isso que tem?! Interessa alguma coisa! Telefonei-lhe eu, não é verdade? Não seja exigente, querendo toda a atenção para si! Vá tomar qualquer coisa para essa indisposição e prometo estar aí às sete e meia. Mas hoje não trabalhe demasiado, ouviu?

- Está bem!-prometeu Paula. - Sinto-me tão atordoada que não poderia! Ainda não lhe agradeci o que fez a noite passada. Foi muito amável! Teria endoidecido se tivesse ficado aqui sozinha!

- Havemos de repetir, sim? Também gostei imenso!...

Paula desligou o telefone e saltou da cama. Doía-lhe a cabeça; era uma dor esquisita, latejavam-lhe as fontes; a aspirina devia fazer-lhe bem. Preparou o seu chá e tomou dois comprimidos.

A noite anterior parecia-lhe muito distante e irreal. Custava-lhe a crer ter convidado Fisher a subir. Devia estar completamente embriagada. Nunca convidara um homem a ir a sua casa, depois de lhe ter falado e visto duas vezes! Após a separação do marido, jamais passara a noite com um homem, nem nunca pensara fazê-lo.

No entanto, aquele teimoso Fisher despertara-lhe um sentimento qualquer, sentimento que apesar do seu mal-estar continuava dentro dela. Era como se uma pessoa a nadar num mar infindo tivesse encontrado uma tábua onde se agarrar. Estava ali um homem, estabelecera-se um contacto. Tinha sido um contacto transitório, um breve encontro, mas, de momento, chegava.

Paula dirigiu-se para a saleta. O jornal com a fotografia de Black estava no chão. Pegou-lhe e leu a notícia.

O pai era um general dos S. S. Ela nunca pudera imaginá-lo em pormenor; não possuía nenhuma fotografia e nem sequer tinha recordações que provassem a sua existência. Porém, a sua imaginação fantasiara uma imagem sem rosto, mas identificável; como era militar, via-o com o uniforme de general alemão encontrado num livro de uniformes que consultara quando ainda era rapariga. Tinha os seus olhos azuis, pois recordava-se de uma observação que ouvira a mãe fazer a Gerald Ridgeway:

’ ’Ela tem os olhos dele; é por isso que se parecem!’’

Paula fora examinar-se ao espelho e tentara visualizá-lo como homem. Evidentemente a imagem era uma sombra que tinha ido buscar a livros e relacionara com coisas ouvidas durante anos.

Em sua opinião o exército alemão não era responsável pelas atrocidades; eles eram perfeitos cavalheiros, os melhores soldados do mundo. A casta dos antigos oficiais odiava os nazis. O pai era um desses homens, acerca de quem até os próprios inimigos falavam com respeito. Muito em segredo, Paula podia orgulhar-se dele, ainda que a mãe, tão manifestamente, mostrasse ter vergonha.

Foi tomar banho e vestiu-se; sentia-se entorpecida. Uma parte dela falara com Fisher, aparentando encontrar-se normal; sorrira, dissera uma graça e até parecia ansiosa por se encontrar com ele nessa noite.

Porém, à parte essa, havia uma personalidade fria, estática, quase uma segunda entidade, vigiando a outra através de todos os seus movimentos e impulsos, como se fosse um estranho. E agora, com o jornal na mão, as duas partes haviam-se fundido e pensava, quase sem surpresa, que já não era Paula Ridgeway, mas sim, Paula Bronsart.

Finalmente, tinha uma identidade. Não a de divorciada, com uma carreira e uma vida independente, com a mãe e o padrasto a protegê-la, mas sim uma alemã, vivendo num país estrangeiro. A sombra adquirira substância; notava-se o cheiro de fumo e da morte, o eco das trombetas numa vasta arena, onde a multidão se juntara para prestar a sua homenagem.


Chegara a realidade e agora Paula passava a viver, conhecendo-a. Dirigiu-se para o vestíbulo, com a carteira e as luvas na mão e parou diante do espelho. Parecia-se com ele. Não tinha qualquer semelhança com a aristocrática mãe, cuja linhagem vinha realmente do velho exército conservador alemão.

Paula era a filha de Paul Bronsart, fosse ele quem fosse; fazia parte dele. Assomou-lhe aos lábios aquela frase: ”Carne da minha carne, sangue do meu sangue.” O pai pegara no retrato e mostrara-o a Black e aos outros. Estabelecera um laço entre si e aquela filha que nunca o conhecera e esse laço estendera-se desde o passado, prendendo-a à sua memória. O que ele fizera e o que era como ser humano, não os podia separar. Conservara qualquer coisa para ela, tendo traçado um plano válido para muitos anos após a sua morte, isto caso estivesse realmente morto, e não como Black, escondido em qualquer parte e prestes a aparecer. Paul Bronsart ocultara um dos maiores tesouros do mundo para a filha ter uma prova evidente do seu amor paternal; ela, porém, não o queria!

Paula abriu a porta da rua e saiu de casa. Não, não queria esse tesouro e, se estivesse dentro das possibilidades humanas - e sem atender ao passado!- sabia o que queria realmente: encontrar o pai!

A mãe de Paula chorava sentada no sofá de tecido estampado, na acolhedora saleta; o marido rodeava-lhe o corpo com os braços e repetia, meigamente:

- Não chores, querida! Não te apoquentes! Depois do que eu lhe disse, não se atreve a voltar!

Tinha sido uma entrevista horrível. Desde o princípio, a atitude de Fisher fora agressiva. Não marcara entrevista; apresentara-se de surpresa. O brigadeiro estava ausente e a mulher no jardim. Mrs. Ridge way não pudera fazer outra coisa senão convidá-lo a entrar e, uma vez dentro de casa, começara o implacável interrogatório.

Mrs. Ridgeway não era tão fácil de dominar como Fisher imaginara; porém, era preciso ver que não estava a tratar com a filha, pensou ele. Colocara-lhe o jornal com a fotografia de Black na frente e pedira-lhe para o identificar como ajudante-de-campo do primeiro marido.

Ficara chocada e empalidecera, mas conservara o sangue-frio. Tentara mentir, porém, logo à primeira negativa, Fisher saltara, dizendo:

- Em Março de 1938 a senhora casou com o coronel Paul Bronsart da Quarta Divisão Waffen S. S., no registo de Potsdam; o copo-de-água foi em casa de seu pai, em Shrievenburg; assistiram quatrocentos convidados e foram passar a lua-de-mel à Dinamarca... Devo prosseguir ou quer ter a bondade de responder agora às minhas perguntas?

Então Mrs. Ridgeway cedeu. Não havia nela nada que lembrasse Paula e ele sentiu-se satisfeito com isso.

- Sim, tratava-se de Albrecht Schwarz e prestara serviço como ajudante-de-campo do meu marido.

- Sabia que ele ia visitar a sua filha, não é verdade?

- Prefiro não dizer mais nada, enquanto meu marido não regressar.

- Sabia que um ex-nazi criminoso de guerra andava à solta, rondando em volta da sua filha e nunca lhe disse uma palavra a esse respeito, não é verdade?... Nem sequer a avisou... não lhe pareceu que podia ser perigoso?

- Pedi-lhe para ela não o receber!

Mrs. Ridgeway falara com súbito ardor e Fisher compreendeu que não conseguiria mais nada enquanto o brigadeiro não voltasse.

- Paula recusou escutar qualquer de nós! É de uma teimosia extrema e eu não podia fazer nada para a convencer!

- Excepto dizer-lhe a verdade... - observou Fisher, zombeteiro - em vez de permitir que a descobrisse. Estava ontem a seu lado quando leu o jornal, Mrs. Ridgeway! Vi a cara dela. Com certeza não deixaria de se impressionar com a sua expressão!

Nessa altura Mrs. Ridgeway ainda tentou obrigar Fisher a sair, ameaçando-o de telefonar à policia. Ele respondeu-lhe que o fizesse e lembrou-lhe que podiam fazer-lhe algumas perguntas, quando soubessem da ligação de Black com a sua família.

- O que vim realmente aqui fazer - insistiu Eric - foi obter resposta a duas perguntas muito simples. Dê-mas, e não a maçarei mais, Mrs. Ridgeway...

Fez uma curta pausa e depois disse:

- Primeira: seu marido nunca discutiu consigo a possibilidade de uma fuga, se a Alemanha perdesse a guerra?

Ela olhou-o com amargura, quase com desdém:

- Se tivesse conhecido o meu marido nunca me faria uma pergunta dessas! Ninguém se atreveria a mencionar a palavra derrota, nem fuga! Além disso detestávamo-nos um ao outro! Ele nunca discutiria qualquer assunto comigo!

- Muito bem! -disse Fisher, acendendo um cigarro. Portanto, a senhora recebeu a notificação oficial da sua morte. Nunca a pôs em dúvida?

- Nunca, nem mesmo agora!

- Que fez ele da Taça Poellenberg?

Mrs. Ridgeway voltou-se para Fisher, a surpresa contorcia-lhe o rosto.

- Tinha-a, não é verdade? - insistiu o detective.

- Sim. Desapareceu. Não sei onde a pôs nem lho perguntaria!

- É capaz de jurar isso, Mrs. Ridgeway? Produziu-se um movimento por trás de Fisher.

- Jurar o quê?! Que diabo se passa em minha casa?

Era o brigadeiro. A conversa foi curta; no espírito de Fisher não havia dúvidas de que ele não hesitaria em chamar a polícia para o obrigar a sair. Não tinha direito legal para forçar a casa nem para lhes exigir respostas; fizera bluff com Mrs. Ridgeway mas não se atrevia a fazer o mesmo com o marido furioso. Depois, como para tornar a situação ainda pior, ela rompeu subitamente num verdadeiro pranto e Fisher pensou que o brigadeiro ia perder a cabeça e pô-lo fora a soco e a pontapé.

- Saia daqui imediatamente, seu maldito delator e metediço! Se torna a vir incomodar minha mulher, corro-o à chicotada!

Fisher afastou-se; a última coisa que viu foi Ridgeway passar o braço em torno da cintura da mulher, enquanto olhava a direcção da porta da rua.

Realmente não devia haver nada que não fizesse para a proteger, pensou ele, mas esquecendo em breve esta mesma observação.

Paula não exagerara ao dizer serem loucos um pelo outro; devia causar uma impressão de isolamento viver na sua companhia.

Quando Fisher, nessa tarde, chegou a casa de Paula, levava uma garrafa de riesling. A rapariga estava pálida; penteara o cabelo para trás e os seus lindos olhos azuis pareciam mais vivos e cintilantes à luz artificial.

- Como está?!-perguntou, com um estranho sentimento no peito, quando ela lhe sorriu. - Desculpe vir um pouco atrasado, mas o trânsito era horrível!

- Não vem atrasado - respondeu Paula. - Entre! Ele entregou-lhe a garrafa, dizendo gentilmente:

- Uma coisa boa, originária da sua terra! Paula olhou-o e respondeu com toda a calma:

- Mas a minha terra tem dado muito boas coisas ao mundo, não é verdade? Estive hoje a pensar em quantas e quantas têm sido... Beethoven, Mozart, vinhos do Reno, Goethe, Mann... e não me lembro de mais nenhum cientista senão Von Braun. Mas... entre e sente-se, Eric! Vou preparar-lhe uma bebida.

- Uísque, se faz favor.

E Fisher ficou a observá-la, enquanto ela se dirigia para a mesa pequena onde estavam as garrafas. Paula movia-se sem parecer ter a consciência dos seus actos ou de ser observada e sem mover as ancas de forma a chamar a atenção. Vista de frente era uma mulher atractiva, não tendo o peito liso de um rapaz e Fisher gostava daquele género. Por fim desviou o espírito para uma apreciação menos pessoal e anunciou:

- Estive em Essex...

Deu um cigarro a Paula; ela sentou-se a seu lado no sofá e Fisher ficou satisfeito com isso.

- Não consegui nada senão a identificação de Black como sendo Schwarz e uma importante confissão, acerca da qual falaremos daqui a um instante.

- Como estava minha mãe? - perguntou Paula em voz fria. - Ela ainda não contactou comigo. É muito estranho, mas agora nem sequer me sinto magoada com isso!

- Fico muito satisfeito em ouvi-la falar assim - disse Fisher. - Estava extremamente abalada. Ficou num vale de lágrimas, como se costuma dizer!

- Pois não sou capaz de a imaginar chorando - retorquiu Paula. - Parece-me que foi coisa que nunca vi! Mas, continue...

- O seu padrasto entrou de repente, como um são-bernardo furioso, ameaçando chamar a polícia e expulsar-me à chicotada! Aquilo tinha o seu quê de cómico, mas compreendi que ele estava disposto a fazer o que dizia. Deixei-os nos braços um do outro. E, a propósito, disse-me uma coisa: ela e. seu pai, Paula, odiavam-se mutuamente!

- Compreendo e talvez seja essa a razão porque sempre me evitou. Deve ser realmente horrível estar atrelada a uma criança, filha de alguém a quem se odeia. Sempre suspeitei isso. E qual foi a outra coisa que ela lhe disse?

- Só mais -um momento - retorquiu Fisher. - Tinha prometido dizer-lhe quem eram os meus clientes, não é verdade? Obtive a respectiva autorização esta manhã, antes de lhe telefonar. É a princesa Von Hessel. Sabe a quem me refiro ... àquela família que possui as fábricas de armamento.

- Sim, conheço o nome - respondeu Paula. - Mas tudo isso é extraordinário! E eles querem descobrir o meu pai?!

- A ideia é essa. Compreende... durante a guerra ele apoderou-se de qualquer coisa que lhes pertencia e agora pretendem a sua recuperação...

Fisher pôs de parte as considerações pessoais; era um profissional e estava a observá-la. Paula olhava-o sem pretender ocultar as suas reacções.

- E eu sei de que objecto se trata - disse ela. - Foi por isso que Black me veio procurar. Contou-me a história toda e não o acreditei. Pensei que era louco! Trata-se da Taça Poellenberg, não é verdade?

- Sim - respondeu Fisher. - Era o seu pai quem a tinha ... sua mãe disse-o. Paula: o que lhe contou Black?... Isso pode ser o bastante para resolver o assunto!

Ela estendeu a mão, dando voltas ao cigarro entre os dedos.

- Disse que meu pai a tinha escondido para ma dar - ergueu os olhos para Fisher e acrescentou: - Suponho que isso faz uma certa diferença...

Eric controlou a sua surpresa.

- Sim, mas Paula, legalmente, não tem direito a ela... Foi roubada!

- Black disse ter-lhe sido oferecida. Foi um ponto que ele vincou bem. Explicou ter prometido a meu pai falar comigo e dar-me a indicação do sítio onde se encontrava escondida...

- E vai dar-me essa mesma indicação?

- Eu não quero semelhante objecto! Ponderei o caso... há centenas de anos pertencia a essa família. Gostava de lha restituir. Porém, tenho apenas uma breve indicação, uma pista insignificante. Black disse que meu pai não lhe confiara o segredo todo... Tinha a certeza que estava vivo. Quanto à mensagem não faz sentido!

- Pelo amor de Deus!-exclamou Fisher - Qual foi?

- Paris, 25 de Junho de 1944; Tia Ambrosine e seu sobrinho Jacquot. Nada mais. Jacquot é um nome de homem. Para mim, é completamente incompreensível.

- Seu pai não era doido nem parvo - observou Fisher, com leve irritação. - Sabia muito bem o que estava a fazer. Essa mensagem deve ter qualquer sentido. ”Paris, vinte e cinco de Junho de 1944; Tia Ambrosine e seu sobrinho Jacquot.” Terei de descobrir o que significa!

- Teremos ambos que descobrir!-interpôs Paula, calmamente.- E a propósito, que sucederia se meu pai fosse encontrado vivo, agora?

- Seria extraditado para a Alemanha Ocidental e submetido a julgamento. Foi um homem muito influente do partido nazi. É procurado por crimes de guerra.

- Mas se encontrar a Taça Poellenberg, isso será o suficiente para si, não é verdade? Não precisa de descobrir o meu pai!

- Pois não! Os meus clientes só pretendem recuperar o seu tesouro, nada mais.

- Podem ficar com ele! Prometo! E como acredito em Black, estou convencida de que meu pai entrou legalmente na sua posse e é meu. Porém, prometo dá-lo, sob uma condição...

- Eu desistir de procurar seu pai?

- Não! De me ajudar a descobri-lo, se ainda está vivo... Fisher hesitou.

- Está a falar a sério? Sabe o que está a fazer?

- Verdadeiramente, talvez não. Sinto-me ainda muito confusa - disse Paula.- Estou à procura de uma coisa e ainda não a encontrei.

- Será de um pai? - perguntou Fisher.

- Também não sei. Hoje, deve ser um homem idoso. Tenho passado o dia a pensar nisso... a pensar no que ele era e que espécie de homem terá sido. Um general dos S. S. Cresci sempre na ideia desses homens de uniforme negro serem umas pessoas terríveis... Porém, gostava de o conhecer pessoalmente. Neste momento é só até onde vou. Ajudei-o, portanto, espero que também me ajude. Não faz parte do seu trabalho descobri-lo nem entregá-lo, mas faz parte do meu ajudá-lo se ainda vive e se precisa de auxílio. Quero proceder às pesquisas consigo, Eric, e ainda que o tesouro me pertença legalmente, prometo oferecê-lo a essa família. Combinado?

- Está bem!

Paula voltou-se e estendeu-lhe a mão. Fisher pensou que ela devia estar louca e quis dizer-lho. Porém, ao mesmo tempo desejava beijá-la, o que não tinha nada a ver com generais nazis nem com obras de arte escondidas.

Eric podia esperar todas as eventualidades, mas esta não. Comprometera-se a descobrir aquele precioso tesouro e Paula queria esconder o pai! Assim, para bem ou para mal, haviam-se associado. Fisher pegou-lhe na mão, apertou-lha e conservou-a na sua durante alguns momentos, até Paula a retirar.

- Está bem!-repetiu Eric.- Combinado! A próxima paragem é Paris!

- Entendido - disse Dunston.- Segues, portanto, para Paris. Felicidades!

- Mas eu vou trabalhar - respondeu Fisher.-Não me digas que continuas a ter aquela ideia dos ingleses de que Paris é só paródia e music-hall... garotas e Folies Bergère! Fui incumbido de um negócio bastante sujo e quando quiseres tomar conta dele é só dizer!

- Não, obrigado!-respondeu Dunston com uma gargalhada.

Esta conversa decorria enquanto os dois sócios se encontravam num pub, situado na mesma rua do escritório. Fisher pediu uma cerveja e Dunston tinha um uísque duplo na sua frente. Na opinião de Fisher, bebia demasiado.

Dunston era um homem alto, forte, com espesso cabelo preto e sobrancelhas fartas, uma genial fealdade remida por lindos dentes brancos. Ria com facilidade e mostrava-os. Casara com uma mulher bonita, tinha três filhos e era muitíssimo mais inteligente do que a sua jovial personalidade dava a entender. Segundo ele próprio confessava, não era um cavalheiro e tinha uma paixão pelo vil metal.

- Nada de viagens pela Europa neste momento anunciou. - Tenho aqui trabalho até à ponta dos cabelos. E o teu caso como vai?

- Não sei bem... - respondeu Fisher. - O general deve estar vivo e escondido em qualquer parte. Tudo dá essa impressão e por outro lado estou convencido de que quando surgir à luz do dia, se surgir!, é por causa da filha. Segundo ouvi dizer era louco pela garota e tudo indica que resolveu contactá-la através de Schwarz. Portanto, continua interessado e deseja que a filha acabe por descobrir a tal obra de arte. Porém, partindo do ponto de vista dos nossos clientes, isso preocupa-me, porque a rapariga, depois do que Schwarz lhe disse, ficou convencida de que lhe pertence, podendo daí resultar uma luta pela posse do maldito objecto.

No entanto, disse-me estar disposta a entregá-lo aos nossos clientes.

- Bem... isso disse ela agora!-objectou Dunston.- Mas a verdade é que conheço casos tão bonitos como esse, que depois são negados!... Já falaste no assunto à princesa Von Hessel?

- Mandei-lhe um longo relatório. Pessoalmente, Mrs. Stanley parece-me pessoa incapaz de não cumprir a sua palavra. É uma rapariga muito especial... não é nada o género das que se penduram.

- Sim?! -exclamou Dunston, erguendo as espessas sobrancelhas e mostrando os dentes. - É a primeira vez que te ouço fazer uma boa referência a esse género de pássaros! Vais levá-la então a Paris, não é verdade ?... Calculo que as respectivas despesas serão apresentadas na conta...

- Eu não a levo. Ela é que resolveu ir também - respondeu Fisher num tom mais irritado do que desejava. O sorriso de Dunston excitara-o.

- Diverte-te!

- Vai p’ro diabo!... Mais outro uísque?

- Desde que sejas tu a pagar... Quando tencionas partir para a alegre Parisss?

- Amanhã de manhã. Ficamos no Hotel Odile... Calculo que não sobrecarregará muito a conta das despesas. Depois contactarei contigo a fim de te dizer como vão as coisas. Quem me dera saber o que significa a tal indicação ”Tia Ambrosine e o sobrinho Jacquot”!

- Experimenta a lista telefónica - sugeriu Dunston. Talvez seja um restaurante. Supõe que alguém dizia a um desgraçado estrangeiro para procurar o Grande Desastre Americano, que te parece que ele faria? Tia Ambrosine e o sobrinho Jacquot... pode ser muita coisa. Já fizeste alguma investigação a esse respeito?

 

- Dirigi-me directamente ao Joe Daly, da Reuter, em Paris - informou Fisher. - A ele também não lhe diz nada. Não tem nenhuma ligação com qualquer ”cenário” pop contemporâneo de Paris, de contrário também nós saberíamos. Enfim, veremos o que se consegue quando lá estivermos. A minha primeira acção será investigar junto de quem supôs ter visto Bronsart.

- Muito bem, e eu parto esta tarde para Manchester

- anunciou Dunston, espreguiçando-se um pouco; era um homem forte e bem constituído.

Foi a vez de Fisher comentar, a rir:

- Ah! Então não admira nada que estivesses tão despeitado por causa da minha ida a Paris! Aí não é sítio onde possas fazer grandes avarias...

- Pois não, mas posso arranjar talvez algum dinheirinho para nós... Uma insignificante importância de quinhentos guinéus para investigar determinado passado! Um muito rico paizinho de uma muito desavergonhada filhinha que quer casar com o espertalhão que lhe trata do cabelo. Se eu conseguir encontrar qualquer nodoazinha no carácter do tipo, para o papá poder mostrar à sua querida filha, talvez consiga um bónus! Bem... vou andando. Felicidades com a tia Ambrosine!

- Obrigado - respondeu Fisher com um aceno de cabeça. Ao chegar à porta, Dunston voltou-se e disse-lhe adeus. Os dois sócios davam-se muito bem; como homens eram

de tipo absolutamente diferente e numa investigação procediam também de modo diferente. Fisher usava a intuição e corria riscos; Dunston era metódico, não se desviava do caminho e possuía um instinto extraordinário para tudo quanto fosse patifaria.

No entanto, não estavam ligados por estreitos laços de amizade, mas passavam muitas tardes juntos em bom convívio e nunca havia sérios desacordos. Fisher gostava da companhia dele, embora por vezes fosse extremamente grosseiro, mas de certo modo divertido.

Eric pagou a conta e saiu para voltar ao escritório. Na rua, Dunston chamou um táxi, entrou, sentou-se comodamente e acendeu um cigarro mentolado. A sua escolha daquela marca era uma idiossincrasia que Fisher muitas vezes usava contra ele. Não conseguia deixar de fumar, mas tinha um horror mórbido ao cancro do pulmão.

”Muito bem! Fisher vai a Paris com Mrs. Stanley! Muito bem!”, repetiu para consigo. No caminho comprou um bolo.

Fisher não era pessoa que se interessasse muito pelas mulheres, segundo a opinião de Dunston. Escolhia sempre o mesmo tipo. Eram todas de moral duvidosa, mas interessantes e com boa figura. Nunca tinha havido a mais leve possibilidade de Fisher se apaixonar por qualquer delas. Quando se interessava por uma mulher era apenas para satisfação dos seus caprichos e mais nada.

Dunston estava com curiosidade de saber quem seria esta Mrs. Stanley. Estava divorciada de James Stanley e todos quantos costumavam ler os jornais sabiam que espécie de playboy seria! Provavelmente, ela era do mesmo tipo habitual de Fisher, mas de uma edição mais cara, reivindicando um título legal à Taça Poellenberg. Dunston tinha visto a fotografia e isso bastava. Muita gente era capaz de assassinar por causa de um objecto daqueles. Não, ela não o daria, com toda a certeza. Se lhe pertencia -por meio de qualquer golpe insuspeitado -, guardá-lo-ia e lutaria pela sua posse até correr sangue. Seria, pois, provavelmente por isso mesmo que Dunston se dirigia -não a Manchester, conforme dissera a Fisher - mas à Alemanha, devido a uma chamada urgente e secreta que lhe tinha sido feita pela princesa Von Hessel.

- Entre, Mr. Dunston. Vamos dar uma volta.

A porta de trás estava aberta e segura pelo motorista. Dunston viu de relance uma mulher sentada; o seu rosto era pálido e triste; entrou e sentou-se a seu lado.

- Sou a princesa Von Hessel! - anunciou ela. Depois falou ao motorista em alemão e em seguida premiu

um botão que havia no braço do assento. A divisória de vidro deslizou e isolou-os da frente do automóvel.

- Foi uma grande amabilidade da sua parte vir esperar-me- disse Dunston.

Não sabia bem como se lhe dirigir. O tamanho do carro, o motorista uniformizado e a arrogância aristocrática da mulher sentada a seu lado tinham-lhe abalado um pouco a confiança em si próprio. O mesmo já não aconteceria se estivesse a lidar com novos ricos, mas um rosto como o da princesa Von Hessel, era o resultado de séculos de gerações aristocráticas e de poder.

- Não vim esperá-lo - retorquiu ela. - Estou aqui por causa da nossa entrevista. É por isso que vamos dar uma volta... Sabe que a minha carta original lhe era dirigida?

- Fisher mostrou-ma... - disse Dunston. - Encontrava-me em Portugal em gozo de férias. Segui as suas instruções e não lhe disse que vinha aqui. Não está satisfeita com o seu trabalho, é isso, não é verdade?

- Não era o homem que desejava - prosseguiu a princesa-, mas uma vez que ele tomou conta do caso, pode prosseguir nas suas investigações. Fez grandes progressos em pouco tempo...

- Nesse caso, permita-me perguntar-lhe por que razão me mandou chamar?

A princesa olhou para Dunston; havia qualquer coisa no seu olhar que o obrigou a acautelar-se; tinha um instinto infalível para tudo quanto fosse inesperado, e sabia -por

uma questão de cega intuição - que a entrevista não ia ser aquilo que parecia.

- Passou bastante tempo na Alemanha, há cerca de cinco anos, não é verdade, Mr. Dunston? Quando estava na Interpol...

- Sim, conheço muito bem o país.

- E o seu último trabalho foi destruir uma quadrilha de contrabandistas, creio...

A pele do rosto de Dunston, começou a mover-se lentamente.

- Exacto! Pelos vistos, fez uma boa investigação a respeito dos investigadores

- Naturalmente! Prefiro sempre saber com quem lido e aquilo que descobri convenceu-me de que o senhor era o homem de quem eu precisava. Foi uma pena Mr. Fisher ter vindo em seu lugar. Dá a impressão de ser um carácter honesto...

A princesa voltou-se para ele e sorriu com uma expressão de desprezo.

- O senhor corou, Mr. Dunston. Por favor não tome isto como um insulto! Ofender-se é um luxo que me parece não estar ao seu alcance!

- Não percebo o que quer dizer - principiou Dunston, irritado -, mas se está a sugerir, princesa Von Hessel, que existe alguma coisa...

- Que importância recebeu do grupo dos contrabandistas para afrouxar essa investigação?

A pergunta apanhou-o no meio da frase. Dunston calou-se e sossobrou, enquanto ela prosseguia, continuando a sorrir e implacável:

- O senhor saiu da Interpol suspeito de ter sido subornado. Não se pôde provar nada contra si, mas depois desse episódio já não tinha futuro. A importância mencionada foi de umas miseráveis dez mil libras. Talvez nessa altura não fosse

uma quantia tão miserável como isso, porém, na época presente é insignificante. Ora eu não o insultaria, oferecendo-lhe uma soma tão mesquinha...

Dunston tirou da algibeira um maço de cigarros. Estava corado e suava.

- Por favor, guarde isso! Não gosto que fumem. É um hábito desagradável!

Por momentos, Dunston hesitou. Perdera a calma com aquele ataque directo. Sentia-se como se estivesse nu, sentado no automóvel com aquela velha a fitá-lo, enquanto a força intangível da sua autoridade lhe quebrava a resistência. Lentamente fechou o maço e tornou a metê-lo na algibeira.

- Muito bem - disse então, calmamente. - Tem com certeza uma proposta a fazer-me. Deve ser bastante suspeitosa, de contrário não teria falado nesse velho boato... Sim, porque isso não passou de boato, não tem qualquer foro de verdade, mas o mal estava feito. Resolvi suportar os prejuízos e demiti-me.

- Mr. Dunston - cortou a princesa-, se pretende convencer-me da sua probidade moral, então não lhe posso fazer nenhuma proposta... Felizmente, sei que começou o seu negócio de detective com uma soma de capital que não possuía antes. Portanto, tenho a certeza de que recebeu o suborno e é um homem com o seu preço... Devo continuar ou persiste nessa ficção acerca da sua personalidade?

- Não há mal nenhum em escutar...

- Óptimo. O senhor está ao facto do que se passa a respeito de termos perdido a Taça Poellenberg. Sabe tanto a esse respeito como Mr. Fisher, não é verdade?

- Sim, ele mantém-me ao facto das investigações - respondeu Dunston. - Deseja reavê-la; está convencido de que o general Bronsart vive e poderá conduzir-nos ao local onde se encontra.

- Exactamente! Estou resolvida a recuperá-la.

Durante um momento a princesa olhou através da vidraça, de sobrancelhas carregadas.

- Absolutamente resolvida e nada me deterá. Porém, há complicações e Mr. Fisher desconhece-as...

- Demasiado honesto, não? - perguntou Dunston, que começava a recuperar a serenidade.

- Demasiadamente honestíssimo! O meu filho mais novo tentou persuadi-lo a ignorar as minhas instruções e abandonar as pesquisas, mas ele recusou.

- E por que razão havia seu filho de fazer uma coisa dessas? Ele não quer recuperar essa jóia?

- Não está preparado para correr o risco - respondeu a princesa. - Eu estou! Estou preparada para correr todos os riscos e fazer tudo quanto for possível. Foi por essa razão que o mandei chamar.

- Quais são as complicações?

- O general, legalmente, tem direito - retorquiu ela com calma. - Foi um roubo moral, mas ele está legitimamente na sua posse. Por razões que não lhe interessam, nunca poderemos lutar com ele em público.

- Mas o general não se encontra em posição de lutar respondeu Dunston. - É um criminoso a quem procuram. Nunca poderá mostrar-se à luz do dia.

- Não - concordou a princesa, voltando-se para ele e encarando-o. - Não... mas a filha pode. Preciso de alguém que descubra o general e essa obra de arte e depois ponha o general fora de circulação.

- Compreendo... - disse Dunston, com um lento aceno de cabeça. - Agora estou a perceber, mas não conta com a filha.

- Exacto.

- Quando disse ”pôr fora de circulação”-prosseguiu Dunston de forma casual - que queria dizer exactamente?

- Aquilo que pensa que pretendi dizer... - retorquiu a princesa friamente. - Pô-lo fora de circulação... matá-lo, se prefere uma linguagem mais comum. Preciso do general morto!

- E a filha? Ela pode reclamar a posse desse objecto e ficar com ele. Esse é o verdadeiro risco, não é verdade?

- Sim, e uma vez que ela ficou envolvida no caso, tudo mudou... Mr. Dunston, pagar-lhe-ei duzentas e cinquenta mil libras, que serão entregues numa conta numerada, num banco suíço. Cinquenta mil por conta, como depósito de garantia e o resto depois. Porém, desejo entrar na posse da jóia e não quero ninguém vivo que ma possa reclamar.

- Deus do Céu!-murmurou Dunston; em seguida franziu os lábios e assobiou, mas não se ouviu qualquer som.

- Está a pedir-me para cometer um assassínio. Quer que eu mate a rapariga!

- Estou a pedir-lhe para matar ambos, mas vou pagar-lhe um quarto de milhão de libras. Pense no dinheiro que isso representa, Mr. Dunston! Pense na fortuna que terá nas suas mãos. Não é preciso dar-me agora a resposta... Pense bem no caso!

- Está a arriscar-se muito confiando-me esse projecto. Que me impedirá de me dirigir à polícia e contar esta história toda?

- Nada, a não ser o seu bom-senso - retorquiu a princesa.- Ninguém o acreditaria... Não tem testemunhas... não tem provas. Por outro lado, tem a oportunidade de vir a ser um homem rico. Estou convencida de que fará a escolha acertada.

- Creio que sim - disse Dunston. - Porém, só se dobrar a oferta. É essa a minha resposta: meio milhão e eu tratarei da saúde a ambos. Entrará na posse do tesouro e não haverá nenhuma Mrs. Stanley para reclamar o seu direito.

- Se eu concordar em dobrar a quantia, encarrega-se do caso?

- Podemos já fechar o contrato com um aperto de mão respondeu Dunston.

- Muito bem... Meio milhão!

- E a propósito - disse ele ainda. - Que motivos tinha o general para a obrigar a entregar-lhe um objecto tão precioso?

No rosto da princesa apareceu de novo o mesmo sorriso lento e zombeteiro.

- Se o senhor soubesse isso, Mr. Dunston, a sua vida não estaria mais a salvo do que a de Mrs. Stanley neste momento! E agora, vamos levá-lo de novo ao aeroporto.

 

Paris, no mês de Julho, estava cheia de turistas. O calor não era tão intenso como em Agosto, quando os parisienses fugiam da cidade, deixando-a para os estrangeiros. Porém, viam-se muitas caras inglesas e americanas no meio das multidões que vagueavam pelos elegantes boulevards e passeavam nos Campos Elísios.

Paula reparou também na quantidade de alemães que andavam por ali e entravam nas lojas mais caras. Não experimentava qualquer sensação de identidade com eles; a seus olhos eram estrangeiros e falavam o idioma áspero e duro que ela nunca aprendera.

Fisher reservara alojamentos num bom hotel - mas não de luxo - perto da Madeleine; os quartos eram no mesmo andar, mas não contíguos.

Na primeira noite jantaram juntos no restaurante do hotel e Fisher acompanhou Paula até à porta do seu quarto. Puxou-a para si e beijou-a. Paula passou-lhe os braços em volta do pescoço, mas não repetiu o convite feito tempos antes. Entrou no quarto, fechou a porta e deixou-o no corredor.

Na manhã seguinte, Fisher dirigiu-se para a Súreté, sugerindo a Paula que se entretivesse durante uma hora, mais ou menos, e depois se encontrassem para almoçar.

- Por que motivo vai à polícia?... Como podem eles ajudar-nos?

- Podem dizer-me o nome e a morada da mulher que julgou ter visto e identificado seu pai. Trataremos primeiro dela antes de começarmos a tentar descobrir quem é a Tia Ambrosine e Jacquot. Esses é que vão ser o nosso verdadeiro problema. Vá comprar um chapéu e encontrar-nos-emos à uma hora na Tour d’Argent. Convido-a para almoçar e conto-lhe o que houver de novo. Porém, tenha cuidado... não se deixe raptar!

- E porque não?! Talvez fosse engraçado!

Paula sorriu-lhe com uma expressão tão ardente no olhar, como ele nunca lhe tinha visto até então.

- Porque eu não gostava! -replicou Eric; depois, pondo-lhe a mão sobre o ombro, acrescentou: -A partir de agora, Mrs. Stanley, está à minha guarda!

Fisher conseguiu falar com um superintendente, depois de estar meia hora a argumentar e recusar aceitar as tácticas obstrucionistas de um funcionário subalterno, disposto a não ajudar uma pessoa a quem classificava desdenhosamente como flic amateur anglais.

O oficial superior era um homem corpulento de meia-idade, mastigando a ponta de um cachimbo já muito enegrecido. Cumprimentou Fisher sem entusiasmo. Ele mostrou-lhe o seu cartão, explicando que estava a trabalhar para clientes particulares na Alemanha e pedindo o nome e a morada da mulher que julgara ter visto o antigo general das S. S. Bronsart, numa rua de Paris.

- Porque não vai consultar antes os dossiers dos jornais em vez de nos vir incomodar?

- Porque ali apenas falam numa Madame Brevet, mas não dão nenhuma outra informação - respondeu Fisher. Quantas centenas de pessoas há em Paris com esse mesmo nome?

- Umas quinhentas, pouco mais ou menos. Também podia publicar um anúncio nos jornais. Como sabe, temos muitas outras coisas para fazer...

- Foi o que me explicou o funcionário que estava lá fora, menos delicadamente do que o senhor - replicou Fisher. Compreendo... isto é uma maçada, porém, gastarão apenas alguns momentos a consultar os vossos arquivos. Além disso,

se quiser ter a bondade de me dizer quais as conclusões a que chegou quanto a este assunto...

O superintendente encolheu os ombros. Dava a impressão de ficar horrivelmente aborrecido com a presença de pessoas como Fisher, que o obrigavam a perder tempo.

- Vou mandar buscar o dossier... Não lhe posso oferecer um cigarro porque só fumo isto - acrescentou, acenando-lhe com o nojento cachimbo.

- Muito obrigado! Eu tenho...

Fisher tirou da algibeira um maço de cigarros. Conhecia os franceses e gostava deles. Trabalhara em Paris durante quase dois anos e habituara-se a gostar da cidade e a compreender as peculiaridades dos seus cidadãos.

Geralmente eram descritos como as pessoas mais solitárias, mais práticas do mundo, capazes de deixarem alguém morrer antes de lhes prestar auxílio. Porém, vistos como devia ser - e com os descontos devido à disposição de ânimo e desconfiança- eram obsequiadores, hospitaleiros e amáveis. O superintendente provou isso mesmo, acabando com uma longa conversa a respeito do caso Bronsart e mostrando a Fisher tudo quanto havia no dossier dele, na Súreté. Tendo-se queixado com o desperdício de tempo, passara uma hora com Fisher, fumando e evocando as suas recordações do tempo da guerra.

- Seguimos-lhe a pista imediatamente - disse ele. Nada nos daria maior prazer do que deitar a mão a esse bastardo, ainda vivo, para ser entregue à justiça. Esteve em Paris durante seis meses. Posso mostrar-lhe as sepulturas de homens e mulheres que foram executados em Fresnes por sua ordem pessoal. Humildes cidadãos que não tinham feito nada e haviam sido apanhados na rua pelo seu pelotão de assassinos, à procura de reféns! Porém, o que a mulher dizia não faz sentido, Mr. Fisher. Falava, gaguejava, insistindo tê-lo visto, mas afinal não era nada. Apenas um rosto no meio da multidão... Imaginação dela. Ele morreu, tenho a certeza! Porém, aqui tem a morada, caso queira ir verificar pessoalmente.

Fisher ergueu-se; trocaram um aperto de mãos.

- Concordo consigo - disse Eric. - Porém, tenho de justificar o meu salário!

- Faça-se pagar bem! - aconselhou o superintendente. Eles são todos o mesmo!... Boches!... Obrigue-os a pagar!

Fisher viu Paula seguir pela rua adiante, quando chegou ao restaurante num táxi. Havia sol e sentia-se satisfeito, feliz. Tratava-se de uma estranha sensação, pouco habitual na sua maneira de ser e estava poderosamente ligada à presença da rapariga que se dirigia agora para ele, acenando-lhe com uma das mãos, enquanto a outra segurava o chapéu de feltro de abas largas que levava na cabeça

Eric não era cobarde; pelo contrário, fisicamente, fazia face a todas as situações e já dera provas disso várias vezes. Porém, quanto a Paula Stanley e à maneira como o seu coração começava a bater quando a via, necessitava doutra espécie de coragem que não possuía.

Deu-lhe o braço e conduziu-a para a mesa reservada nessa manhã. Os criados reconheceram-no e travou-se uma animada conversa em francês, enquanto Paula se sentava e o observava. Tinha o cabelo arripiado por onde passara a mão, gesto em que ela reparara e o vira fazer, sempre que se concentrava. Eric não era um homem interessante e não se podia fazer nada para o tornar afável e com boa aparência. Possuía um corpo onde não assentava bem senão um fato vulgar e o rosto tinha uma expressão de desconfiança, como alguém sempre na expectativa de complicações. Porém, quanto a Paula, mostrava-se gentil; ela sentia a sua sexualidade quando havia qualquer contacto entre eles. Demonstrava-o quando a beijava e quando a ajudava a entrar ou sair de táxis ou elevadores.

Fisher segurava-a e Paula sentia aquela atitude de propriedade tão claramente máscula.

”A partir de agora está à minha guarda!” James nunca seria capaz de dizer nem de pensar semelhante coisa. Jamais se julgara responsável por ela durante os cinco anos de casados. Fisher tomara o comando de tudo a partir do momento que tinham deixado Inglaterra e agora era precisa toda a sua força de vontade para resistir à apropriação final.

- Que se passou?

Ele sorriu-lhe por cima de um copo de cinzano.

- Consegui o nome e a morada da mulher. Porém, não deve servir para nada. Eles fizeram investigações e não encontraram qualquer pista. Estou quase inclinado a sugerir que aluguemos um carro e vamos dar uma volta, esta tarde, pelo Bosque de Bolonha, pondo o assunto de parte, por hoje. Qual a sua opinião?

- Preferia ir falar com a mulher - respondeu Paula. Gostava de terminar com o assunto de uma maneira ou de outra. Além disso, Eric, também não será capaz de encontrar o tesouro dos Von Hessel se for passear comigo...

- Um dia não tem importância. Mais ainda: não tenho grande simpatia pelos meus clientes. Sinto-me inclinado a concordar com o que disse o superintendente esta manhã. São autênticos Boches... Ah! Desculpe! Não devia ter dito isto... Não quero ofendê-la!

- Ofendeu... mas não faz mal - disse Paula. - Tenho a certeza que são pessoas terríveis. Lembro-me de ter lido um artigo no Time, parece-me que era a respeito da sua imensa fortuna e da maneira como continuavam a viver depois da guerra. Conte-me o que sabe a respeito deles, sim? Bem, não esteja a olhar para mim dessa maneira! Sei perfeitamente que lhes chamou boches, sem ofensa. Não me julgue tão pateta como isso!

- Ainda bem!

Estendeu a mão, apertou a dela e ficou radiante ao sentir que a pressão era correspondida.

- Sou um desastrado! Sabe perfeitamente que era incapaz de dizer qualquer coisa que a pudesse magoar, não é verdade? Muito bem; agora quanto aos Von Hessel. A mãe é a pessoa mais interessante: parece uma ave, qualquer coisa entre águia e falcão raro. Feminina e tentadora, digamos assim. Dura, arrogante, inteligente, é ela quem governa tudo e todos. Quanto a mim, não me tratou propriamente como uma pessoa sem importância; porém, mostrou o que pensava a meu respeito. Tem dois filhos; o marido morreu durante a guerra. O filho mais velho deve andar pelos cinquenta; é uma pessoa estranha. Havia nele qualquer coisa que não consegui perceber bem. Tive uma entrevista de meia hora com a mãe e ele nunca disse palavra. Assistiu a tudo como se fosse mudo.

- Naturalmente estava com medo de falar, tendo uma mãe daquelas - opinou Paula. - Parecem pessoas horríveis!

- E são! - concordou Fisher. - Mas o mais novo deu-me uma sensação diferente. Chegava a ser uma pessoa agradável; muito interessante para quem gostar do tipo super-homem louro. Falou e parecia muito senhor e seguro de si. A primeira deve realmente odiar o filho mais velho. Enfim, era um espectáculo muito original... A casa dava a impressão de um ambiente de pesadelo. Quando entrei, dir-se-ia ter entrado numa igreja. Janelas com vidros coloridos e vasos com palmeiras. Mas tudo aquilo do tamanho de uma catedral! Podia-se escrever uma boa peça acerca de um cenário daqueles, que ninguém acreditaria. Diriam ser uma coisa muito artificial, muito forçada! -sorriu, olhou em volta e reparou que o criado se aproximava. - Óptimo! Ai vêm os lagostins. Espero que tenha apetite.

- E tenho!-respondeu Paula, sorrindo-lhe. - A sua descrição é maravilhosa, mas esqueci-me que é jornalista e fala um francês perfeito.

- Sou um homem cheio de qualidades! Porque não tira o chapéu? Assim, não lhe posso ver a cara!

- Não gosta dele? Segui o seu conselho e comprei-o esta manhã. Achei-o muito chique!

- Também me parece, mas gosto muito de a ver... É bonita... Não sabia?!

- Se Eric o diz...

- Digo! Ponha-o na cadeira ao meu lado e coma os lagostins... São deliciosos! Tem a certeza de que não prefere ir dar um passeio comigo, esta tarde?

- Absoluta! - respondeu Paula. - Vamos visitar essa mulher, sim?

- Está bem, mas esta noite iremos jantar a um sítio muito especial e faremos um pacto: não se falará a respeito de seu pai nem na Taça Poellenberg.

- Então sobre que assunto havemos de conversar?

- A nosso respeito - disse Fisher. - Contar-lhe-ei a história da minha vida e quero saber tudo a respeito desse seu simpático marido. E a propósito, ele deve ter sido uma boa porcaria!

- Não era mau de todo... - respondeu Paula. - Eu é que não sou uma pessoa com quem se conviva facilmente.

- Até agora - disse Fisher, limpando a boca ao guardanapo- não a tenho achado muito difícil.

Eric alugara um automóvel nessa manhã e então seguiram de carro, à procura de Madame Brevet.

Viam-se barcos no Sena, uns com mercadorias, outros com turistas. Também passou por eles um enorme batelão carregado com carvão, levando à proa um cão solitário, como sentinela. Quanto às ruas do percurso, eram cada vez mais miseráveis e sujas; lixo e gatos vadios enchiam os passeios estreitos e nas janelas via-se roupa pendurada, a secar.

Levaram 45 minutos, arrastando-se entre o tráfego das ruas estreitas, para chegar ao sítio onde vivia Madame Brevet.

Quanto ao prédio, era um edifício quase a desmoronar-se, de paredes esburacadas, com o estuque a desfazer-se e cuja porta se encontrava meio aberta. Paula e Fisher entraram no vestíbulo escuro e foram imediatamente assaltados pelo cheiro a comida e a urina de gato. Subiram um lanço de escadas de madeira e bateram à porta.

Abriu-a uma mulher nova, que lhes bloqueou a entrada; levava nos braços uma criança gorda de dois anos.

- Madame Brevet, está? - perguntou Fisher.

- Eu sou Madame Brevet! A mulher devia ter 25 anos.

- Creio que era com a sua sogra que precisávamos falar... - disse Fisher delicadamente. - Poderíamos vê-la por um momento? Pode ter a certeza de que merecerá a pena...

- Que desejam? - inquiriu a mulher sem se mover.

Tinha uma cara de pessoa cansada, ar sombrio e casmurro, olhando-os desconfiada. A maneira como olhava Paula era ostensivamente hostil.

- Uma informação... - respondeu Fisher, estendendo-lhe uma nota de 50 francos. - Quer fazer o favor de pedir a Madame Brevet para nos receber?

A nora pegou no dinheiro; deu duas sacudidelas à criança, que ia começar a chorar, com os dedos metidos na boca.

- Podem falar com ela, mas não me parece que lhes diga alguma coisa de jeito. Ela dá comigo em doida, senhor! Esteve cá há pouco a polícia! Entrem!

Dizendo isto, a nora recuou e eles entraram numa casa cheia de móveis, dominada por uma enorme mesa de madeira ao centro. O cheiro da comida era insuportável, como insuportável era o calor, pois tinham as janelas fechadas e a um canto o fogão aceso.

Uma velhota de cabelo branco e vestida de preto, estava sentada numa cadeira de braços, perto do fogão.

- Estão aqui umas pessoas que lhe querem falar... Qual é o seu nome, senhor?

Fisher aproximou-se da cadeira; um rosto pálido e enrugado ergueu-se para ele.

- Eu sou o senhor Fisher e esta senhora é Madame Stanley. Somos ingleses e gostávamos de lhe fazer algumas perguntas... Quer fazer o favor de nos responder?

Os olhos pareciam enterrados na pele; a expressão era mortiça e vaga.

- Quais são as perguntas? Farei o melhor possível, mas a minha memória já não é nada do que era. Ela diz que eu me esqueci de tudo!

A velhota voltou a cabeça para a nora.

- E esqueceu mesmo! - retorquiu a outra. - Quase me faz endoidecer por causa da maneira como se esquece de tudo!

- Madame Brevet... - principiou Fisher. - Ainda há pouco tempo a senhora ia pela Rue d’Auvergne e pareceu-lhe ver um homem... um oficial alemão que esteve em Paris durante a guerra. Lembra-se?

Por momentos houve uma absoluta confusão, uma inteira perplexidade. Paula adiantou-se um passo; era inútil, tal como dissera a polícia. A velhota estava senil; não se podiam fiar nela fosse para o que fosse! A cabeça branca voltou-se de Fisher para Paula e depois novamente para ele.

- Qual oficial alemão? - perguntou.

- Aquele que disse ter visto! - exclamou a nora sem se poder conter. - Jesus! Fez com que caíssem cá em casa todos os jornalistas e os flics por causa dessa história! Para que está agora a perguntar, qual oficial alemão... sua cabra e velha estúpida!

- O general Bronsart-disse Fisher.--Pareceu-lhe tê-lo visto na Avenue d’Auvergne... É capaz de nos dizer como foi?

- Ah! Meu Deus! -exclamou a mulher.

De súbito os olhos animaram-se e a cara tomou uma expressão mais viva.

- Ah! Aquele demónio... Vi-o, sim senhor! Vi-o tão bem como estou agora a vê-lo a si!.... Ia do mesmo lado pela rua fora... Era ele! Conheci-o imediatamente apesar de já terem passado uns bons vinte anos...

- Talvez uns trinta é que é!-emendou a nora rudemente. - Ao menos veja se diz qualquer coisa como deve ser! Velha cabra! - repetiu.

- Tem a certeza que era ele? - perguntou Paula, aproximando-se mais; sentia-se sufocada com o calor e a ansiedade.

A vida do pai pendia do fio de crédito que se pudesse dar ao que aquela mulher dizia.

- Com toda a certeza! Reconheci-o... Conhecia-o muito bem!

- Quando viu o general pela última vez? - perguntou Fisher.

- Já lhe disse, foi há pouco tempo. Não me lembro quando, mas foi há pouco...

- E quando o tornou a ver - interrompeu Fisher - ele tinha mudado muito? Estava mais velho? Como ia vestido?

Ela ergueu a cabeça e olhou para Eric; tinha de novo uma expressão vaga.

- De preto, evidentemente! Todos eles usam uniformes pretos...

- Eu bem lhes disse - insistiu a nora. - Foi tudo quanto a polícia lhe conseguiu arrancar. Mas sabe uma coisa? Ela foi à esquadra e disse que tinha visto o homem! Está a ver?! A cabra velha e estúpida!...

Abanou a cabeça e mudou o bebé de um braço para o outro.

- Não me parece que valha a pena insistir - disse Fisher a Paula, dando-lhe o braço. - Desculpe a maçada, mas agora estou convencido de que foi tudo uma fantasia... reviveu o passado... É melhor irmos embora.

- Pois sim - concordou Paula.

A atmosfera naquele pequeno aposento tinha o calor de um forno. Aquilo tinha sido um fracasso e só agora, em face de um desapontamento total, compreendeu quanta esperança pusera naquela entrevista.

O calor era sufocante; Paula respirou fundo e tirou o chapéu.

No mesmo instante ouviu-se um pequeno grito, vivo, mas feroz. A mulher levantara-se da cadeira e uma das mãos erguera-se no ar, de punho cerrado.

- Os olhos! -gritou ela. - Foi assim que o conheci! Já estava velho e com a cabeça toda branca, mas conheci-o por causa dos olhos! E ela tem os mesmos olhos! Os mesmos olhos daquele porco que matou o meu filho!

- Sim - respondeu Paula calmamente. - Creio bem que os tenho... Sou a filha do general Bronsart!

Avançando rapidamente dois passos, a velha Madame Brevet ficou junto de Paula e, estendendo a cabeça, cuspiu-lhe no rosto!

- Heinrich, como pensas que tudo isto acabará?... Se interferires, só nos podes prejudicar! Prejudicas a mãe e prejudicas todos!

- Gostava imenso de prejudicar a mãe - retorquiu o príncipe Henry. - Já não é sem tempo haver alguém que lhe faça dano para variar! Tu estás cá para a consolar... Por que razão não hei-de ir a Paris? Queres convencer-me que ficas com saudades minhas?

O irmão fez um gesto de impaciência.

- Ainda acabas por te meter em sarilhos - disse ele. Obrigas-me a dizer estas coisas. Compreendes... és capaz de te embriagar e depois lá temos nós um escândalo nos jornais. Porque não hás-de ficar aqui... ou então ires para Schloss, se estás aborrecido?

- Um ébrio nunca se aborrece - respondeu Heinrich von Hessel. - Nem se aborrece nem nunca está só... Engole a consolação de todos os seus males! Odeio Schloss. Passei ali três meses fechado com um maldito enfermeiro que me enchia de nódoas negras com os socos que me dava quando ninguém estava a ver!

Soltou uma pequena gargalhada e prosseguiu:

- Mas quanto a isso ninguém se importava!... O que era preciso era o nome da família não ficar manchado! E que grande nome que nós temos, lá isso é verdade. Ganhamos milhões a vender armamento, utilizamos o trabalho dos escravos e financiamos os nazis!

Henry interrompeu-se de novo e tornou a rir.

- Pois eu vou para Paris, e ponho um letreiro em volta do pescoço dizendo quem sou, e hei-de ir para a rua a cair de bêbado!

O irmão saiu e bateu com a porta. O príncipe encaminhou-se para a janela; o carro da mãe acabava de parar lá em baixo, no pátio. Dali a pouco ela e Philip reunir-se-iam em conselho de família e discutiriam o que seria melhor fazer a seu respeito.

O pior, pensou ele, era que enquanto estivesse dentro de certos limites de sobriedade, eles não poderiam fazer grande

coisa.

O seu último ataque mais forte tinha sido apenas há dois meses; o acidente com o automóvel tinha sido antes... Estava completamente bêbado; cambaleava, mas não caíra. E, a não ser que caísse, a família não lhe podia impor restrições. Possuía fortuna pessoal, herdada graças ao crédito que tinham

- e que o pai não conseguira abalar - e, portanto, não podia ser dado como demente nem metido numa casa de saúde sem provocar escândalo.

Isto tinha sido sempre a sua salvaguarda e continuava a sê-lo. Podia mover-se livremente e, assim, atormentar a mãe com suspense e receio. Dissera, portanto, a seu irmão Philip que tencionava ir a Paris, em parte pelo prazer de o alarmar e em parte por uma questão de curiosidade irresponsável.

Henry tinha o hábito de certos jovens de escutar as conversas telefónicas e bisbilhotar as gavetas. Espiava a mãe com aquela aguda perspicácia da manha dos bêbados - e toda a vida a espiara- em parte para se proteger e em parte por maldade, pois sabia que ela o excluía de tudo.

Assim, descobrira que Fisher se encontrava em Paris e a filha do general estava com ele e, durante a noite, quando acordara para tomar qualquer coisa, surgira-lhe a ideia de lá ir e dar-se a conhecer. Isto devia pôr os nervos da mãe em franja e causar muitas horas de ansiedade ao seu íntegro mano. Porém, eles nada podiam fazer para o deter.

Levaria consigo o criado particular -que há 20 anos também lhe servia de enfermeiro - e reservaria aposentos no Ritz Hotel. Não precisaria de deixar a sua suite, a não ser que se sentisse inclinado a fazê-lo, ou então podia divertir-se satisfazendo um dos seus pouco frequentes ataques de vaidade, como por exemplo, encomendar um Ferrari e conduzi-lo embriagado.

Não se recordava de ter morto a criança. Não se lembrava absolutamente de nada, senão de ter acordado na sua cama e ver a mãe junto dele, parecendo ter envelhecido repen-

tinamente. Tinham subornado e intrujado aquela gente, haviam-no livrado de um caso de homicídio involuntário e feito com que a publicidade fosse a menor possível.

Henry aceitara, mas ao mesmo tempo ficara aborrecido porque isso o colocava numa posição de ter recebido um favor e a gratidão não era sentimento que estivesse no seu carácter. Há muitos meses que não fazia uma viagem; quando Philip sugerira que podia estar aborrecido, negara; porém, sabia que era verdade. Estava cansado de tudo quanto o rodeava, reprimido pela presença da família, mas obrigado a mostrar-se, como sucedera quando o detective tinha ido lá a casa. Estivera por trás do sofá, tentando não cambalear e depois haviam-no fechado no quarto com medo que tropeçasse ao descer. Outras vezes desaparecia com a ajuda da discreta conivência do criado. Henry gostava dele; entendiam-se muito bem. O príncipe Heinrich pagava-lhe o ordenado e dava-lhe uma gratificação quando estava bem disposto. Assim, o criado recebia ordens da princesa durante as crises, mas no dia-a-dia fazia o possível para agradar ao príncipe.

Naquele dia, Henry estava ébrio como de costume; porém, não se encontrava incapacitado. Resolvera ir a Paris. Tocou, chamando o criado, deu-lhe a novidade e disse-lhe para fazer as malas.

Lá em baixo, a mãe e Philip encontravam-se em conferência, como ele calculara.

- Não vai! Não lhe dou licença!-exclamou a princesa. - Sabe Deus o que ele faria quando lá chegasse! Calcula tu!... Ir para o Ritz e se lhe desse um daqueles ataques, no meio de uma bebedeira, começar a partir tudo!

- Não! Isso não faria!-opinou Philip, tentando confortar a mãe. - Na clínica curou-se desses ataques. Agora limita-se a beber, mãe! Tentei convencê-lo a não ir, mas bem sabe como é teimoso quando se argumenta.

O seu último ataque mais forte tinha sido apenas há dois meses; o acidente com o automóvel tinha sido antes... Estava completamente bêbado; cambaleava, mas não caíra. E, a não ser que caísse, a família não lhe podia impor restrições. Possuía fortuna pessoal, herdada graças ao crédito que tinham - e que o pai não conseguira abalar - e, portanto, não podia ser dado como demente nem metido numa casa de saúde sem provocar escândalo.

Isto tinha sido sempre a sua salvaguarda e continuava a sê-lo. Podia mover-se livremente e, assim, atormentar a mãe com suspense e receio. Dissera, portanto, a seu irmão Philip que tencionava ir a Paris, em parte pelo prazer de o alarmar e em parte por uma questão de curiosidade irresponsável.

Henry tinha o hábito de certos jovens de escutar as conversas telefónicas e bisbilhotar as gavetas. Espiava a mãe com aquela aguda perspicácia da manha dos bêbados - e toda a vida a espiara- em parte para se proteger e em parte por maldade, pois sabia que ela o excluía de tudo.

Assim, descobrira que Fisher se encontrava em Paris e a filha do general estava com ele e, durante a noite, quando acordara para tomar qualquer coisa, surgira-lhe a ideia de lá ir e dar-se a conhecer. Isto devia pôr os nervos da mãe em franja e causar muitas horas de ansiedade ao seu íntegro mano. Porém, eles nada podiam fazer para o deter.

Levaria consigo o criado particular -que há 20 anos também lhe servia de enfermeiro - e reservaria aposentos no Ritz Hotel. Não precisaria de deixar a sua suite, a não ser que se sentisse inclinado a fazê-lo, ou então podia divertir-se satisfazendo um dos seus pouco frequentes ataques de vaidade, como por exemplo, encomendar um Ferrari e conduzi-lo embriagado.

Não se recordava de ter morto a criança. Não se lembrava absolutamente de nada, senão de ter acordado na sua cama e ver a mãe junto dele, parecendo ter envelhecido repen-

tinamente. Tinham subornado e intrujado aquela gente, haviam-no livrado de um caso de homicídio involuntário e feito com que a publicidade fosse a menor possível.

Henry aceitara, mas ao mesmo tempo ficara aborrecido porque isso o colocava numa posição de ter recebido um favor e a gratidão não era sentimento que estivesse no seu carácter.

Há muitos meses que não fazia uma viagem; quando Philip sugerira que podia estar aborrecido, negara; porém, sabia que era verdade. Estava cansado de tudo quanto o rodeava, reprimido pela presença da família, mas obrigado a mostrar-se, como sucedera quando o detective tinha ido lá a casa. Estivera por trás do sofá, tentando não cambalear e depois haviam-no fechado no quarto com medo que tropeçasse ao descer. Outras vezes desaparecia com a ajuda da discreta conivência do criado. Henry gostava dele; entendiam-se muito bem. O príncipe Heinrich pagava-lhe o ordenado e dava-lhe uma gratificação quando estava bem disposto. Assim, o criado recebia ordens da princesa durante as crises, mas no dia-a-dia fazia o possível para agradar ao príncipe.

Naquele dia, Henry estava ébrio como de costume; porém, não se encontrava incapacitado. Resolvera ir a Paris. Tocou, chamando o criado, deu-lhe a novidade e disse-lhe para fazer as malas.

Lá em baixo, a mãe e Philip encontravam-se em conferência, como ele calculara.

- Não vai! Não lhe dou licença!-exclamou a princesa. - Sabe Deus o que ele faria quando lá chegasse! Calcula tu!... Ir para o Ritz e se lhe desse um daqueles ataques, no meio de uma bebedeira, começar a partir tudo!

- Não! Isso não faria!-opinou Philip, tentando confortar a mãe. - Na clínica curou-se desses ataques. Agora limita-se a beber, mãe! Tentei convencê-lo a não ir, mas bem sabe como é teimoso quando se argumenta.

- És demasiado bondoso - retorquiu a princesa aborrecida.-Tomas sempre o seu partido e tentas desculpá-lo! Vou mandar interná-lo... Para aborrecimentos, já chega! Arranjo um atestado e fica preso. Só assim poderemos ter paz!

- A mãe não pode fazer isso! - disse Philip com toda a calma. - Henry não está doido e a mãe não pode fazer semelhante coisa! Por minha parte não concordo e bem sabe que isso viria imediatamente a lume! Temo-lo encoberto durante toda a vida e a mãe já disse que ele não deve durar muito! Não pode pensar numa solução dessas! É impossível!

O olhar cruel e feroz da mãe fitou-o por um momento, como um relâmpago. A princesa parecia mais velha e perversa devido à raiva.

- Para nós, não há nada impossível! - exclamou. - E já uma vez demos provas disso! Apesar do poder da Gestapo de Adolfo Hitler, os Von Hessel sobreviveram. Nunca me digas que há qualquer coisa que não se pode fazer!

- Evidentemente, mas... tudo tem o. seu preço, mãe! Além disso, a época em que se podia pagar também já lá vai. Hoje, temos poder e temos dinheiro, mas já não temos o direito de abusar de uma coisa nem doutra. Os tempos antigos permitiam-no, o mundo de hoje não, pense a mãe o que pensar!... Conseguimos ocultar o desastre da morte daquela criança porque garantimos o futuro dos pais e os instalámos a mais de oitocentos quilómetros de distância de Francoforte, porém, não podemos meter Henry num manicómio e convencer-nos que nos sairemos bem. Ele tem os seus procuradores e, nominalmente, é o chefe da família. A mãe com certeza não deseja que o escândalo por causa dessa obra de arte, nos possa destruir! Isso teria quase o mesmo resultado!

- Tens uma nova consciência, não é verdade, meu filho?... -perguntou a princesa em tom zombeteiro, muito direita, com a força do seu desprezo de patrícia pelo padrão

da vulgar moral. - Falas como um burguês! Esqueces quem és!

- Nunca faria uma coisa dessas!-recordou-lhe

Philip. - Tenho vivido e respirado a importância desta família desde o dia em que nasci. Tenho-a visto sempre dirigir o nosso império, mãe, e tenho aceite todas as minhas obrigações. Porém, os tempos mudaram e nem mesmo nós podemos fazê-los voltar ao que eram. Somos poderosos, sim, mas já não somos os barões feudais de antes da guerra. Não podemos pôr e dispor a nosso belo prazer de ninguém, mesmo que se trate daqueles que são do nosso sangue. A sociedade não nos toleraria se o tentássemos e eu gostaria imenso que não experimentássemos fazê-lo.

- Mas essa não é a razão de quereres proteger esse maníaco ébrio!-exclamou a princesa. - Isso é fraqueza!

A princesa estava tão furiosa com o filho, por ele se opor com tanta determinação aos seus desejos, que se sentia capaz de dizer tudo para o castigar. Amava Philip como amara o pai, mas amava ainda mais do que tudo o poder de dominar.

Philip era um Von Hessel, mas de uma matéria mais fraca, com uma consciência débil e de uma moralidade tíbia que a enchiam de desgosto. Por momentos, sentiu a tentação de lho dizer; porém, conteve-se. Só um louco deita a casa abaixo por uma porta ranger!

- Ele é um perigo e é mau! -insistiu a princesa friamente. - Sempre estive convencida de que nos traria qualquer horrível desgraça! Pois bem, deixá-lo ir para Paris! Deixá-lo fazer o que lhe apetecer; deixá-lo ir meter-se na boca do lobo, a cair de bêbado, com Fisher e essa tal mulher! Porém, se qualquer coisa correr mal, a responsabilidade é tua!

Dizendo isto, a princesa voltou as costas ao filho e saiu da sala. O príncipe ficou a observá-la, enquanto se afastava. A fúria da mãe duraria dias; andaria pela casa toda de um lado para o outro, ignorando-o, até ele, abjectamente, lhe ir pedir desculpa. A mãe era uma pessoa que, uma vez estabelecido o contacto, não permitia afastamentos. Philip sentia a sua influência, o poder da sua afeição, o impulso da sua força de vontade, mesmo quando separados.

No entanto, admirava-a pela firmeza de carácter de super-homem, tendo conseguido conservar na posse dos Von Hessel, as fábricas de que o governo tentara apoderar-se. Combatera as acusações de simpatizante dos nazis e conservara - guardando-o para si - a lealdade de milhares de operários. Parecia de ferro aquele rochedo sobre o qual Philip se debruçara desde a infância, porquanto o velho príncipe morrera quando era ainda pequeno.

A mãe odiava o seu irmão Heinrich, como só uma mulher daquela raça é capaz de odiar uma criatura fraca, a quem não consegue subjugar. No entanto, ficaria muito surpreendida se soubesse que esse sentimento lhe era retribuído; estava convencida de que a personalidade do filho, deformada pela bebida, era incapaz de uma emoção coerente ou de uma sensibilidade que pudesse ser ferida e magoada, mas se o soubesse, Philip sabia que não se importaria nada com isso.

Henry desapontara-a; personificava tudo quanto ela mais desprezava. Falta de domínio sobre si mesmo, quer se encontrasse em estado de coma a vomitar para o chão, junto da cama, quer presa de violentos acessos quando partia os móveis ou conduzia um automóvel a velocidade louca fora de mão, pela estrada.

Verdade seja que o irmão tinha um guarda, um criado treinado para o livrar de embaraços e lhe acudir, armado com uma agulha hipodérmica quando entrava em delirium tremens. Henry vivia com eles, no entanto, possuía um carácter e uma liberdade que a mãe nunca conseguira arrancar-lhe. Henry raras vezes punha obstáculos aos desejos da mãe, mas quando o fazia - como na ocasião em que anunciara o seu plano de ir a Paris - o efeito sobre ela era alarmante.

As soluções eram do género radical, daquelas que costumam acudir ao espírito de quem possui poder demasiado. Afastá-lo, encerrá-lo para sempre! Porém, os termos de uma velha sociedade formada pelo bisavô do filho, tornava isso impossível, sem um máximo de publicidade.

Philip ignorava se o irmão conhecia os factores que o tinham salvo, ou se continuaria a capitalizar ainda mais, para embaraçar a família, caso soubesse. De qualquer modo, não interessava. O que interessava era a sua intenção de ir a Paris e envolver-se nas actividades de Fisher. Evidentemente logo atrairia todas as atenções, pois o seu nome era como mel para um enxame de vespas, relativamente à imprensa de todo o mundo.

Henry seria seguido e fotografado; os velhos rumores da sua doença ressuscitariam, seguidos por sugestões veladas quanto à verdadeira causa. Crise nervosa; tuberculose. Tinha sido isso o que disfarçara uma estada de seis meses numa clínica suíça, após um violento ataque que, felizmente, teve lugar em Schloss Wurzen, bastante longe da vista do público. Solteiro. O rapaz solteiro mais atraente do mundo, o recluso mais rico, que raras vezes saía da sua suite do hotel.

Philip vira as notícias dos jornais que a mãe guardara

- relativas aos primeiros tempos do pós-guerra- quando Heinrich andava à vontade pela Europa, pela segunda vez. O criado, após porfiados esforços, conseguiu que voltasse a casa sem estar mais deprimido e sem indícios reveladores da verdadeira doença: degeneração alcoólica e demonstrando que Heinrich não era louco.

Clinicamente, o caso era discutível. O príncipe era o resultado de séculos de gerações consecutivas, um infeliz acidente genético a que ele, Philip, escapara.

Por isso, o filho mais novo insistia que o conhecimento da sua sorte, o tornava culpado em relação ao irmão, dizendo à mãe que podia ter sido ele - em vez de Heinrich - em quem tivesse recaído a tara, sendo obrigado a carregar durante toda a vida com o fardo dos pecados e o resultado dos intercasamentos dos seus antepassados.

Philip suspirou e puxou para trás uma madeixa de cabelo louro que lhe descaía sobre a testa, gesto genético do pai morto num Stuka que caíra em chamas sobre o canal.

Se o irmão estava resolvido a partir, o melhor era ele segui-lo. Talvez assim acalmasse a ira da mãe, proporcionando-lhe uma salvaguarda para o futuro, que podia tornar-se bastante negro se o último relatório do detective estivesse certo.

Em sua opinião, Fisher tinha sido bastante claro ao telefone. A notícia publicada nos jornais há cerca de um ano era verdadeira: o general estava vivo.

- Minha querida, porque não te sentas e descansas um pouco? Trouxe-te os jornais... Está uma tarde linda!

Dizendo isto, o brigadeiro olhava para a mulher, cheio de ansiedade. Estava de calças e com luvas de jardinagem, o rosto cheio de rugas e um aspecto fatigado. O Sol brilhava no céu sem nuvens; o suave aroma das rosas enchia o ar e os pássaros, empoleirados na linda e velha nespereira junto das cadeiras de jardim, cantavam.

Estava uma tarde de sonho de verão inglês, demasiado quente para se poder trabalhar; uma verdadeira hora de paz e silêncio, para ler os jornais de domingo, passear depois de um pequeno repouso e tomar uma chávena de chá acompanhada de bolos caseiros.

Isto tinha sido o seu idílio durante muitos anos; as suas vidas tinham-se passado numa calma ininterrupta e de mútua compreensão. Faziam jardinagem, liam, conversavam e davam-se as mãos como ardentes apaixonados, o que, apesar das idades, continuavam a ser. A sua vida de casados tinha sido excelente. Era quase uma frase bíblica que o brigadeiro gostava de usar para descrever qualquer coisa inteiramente satisfatória aos olhos de Deus e dos homens.

Estendeu a mão na direcção da mulher e ela obedeceu-lhe, sentando-se a seu lado. Depois reclinou-se para trás e fechou os olhos. Em repouso, o seu rosto ainda era lindo; possuía a pureza de feições que tanto o haviam encantado no primeiro dia em que a vira, nas águas-furtadas de sua casa, aquele enorme edifício, em Munique, que o comandante escolhera para se instalarem.

Nessa ocasião ela era uma jovem, assustada e hostil, olhando para um intruso inimigo que subira pela escada de serviço e tinha sido testemunha da sua humilhação e desespero. Estava a queimar no fogão pedaços de móveis partidos para se conservar aquecida, bem como a sua filha Paula. A criança, na cama, tossia de forma arripiante.

Gerald Ridgeway não poderia nunca esquecer o seu encontro com a mulher. Apaixonara-se imediatamente e pela primeira vez na vida. Havia em Inglaterra uma rapariga inglesa, muito bonita e convencional com quem esperava casar um dia, mas essa possibilidade desapareceu ao ver o rosto escultural da alemã e vislumbrara a tragédia no seu olhar. Amou-a a partir do primeiro instante e os seus sentimentos ainda não tinham diminuído de intensidade. Agora não dormia tranquila; estava inquieta e triste. A serenidade -o seu esforço mais valoroso- desaparecera.

- Minha querida - disse ele -, não te preocupes! Tudo terminou.

- Impossível! - retorquiu Magda. - Passo horas e horas acordada a pensar que tudo virá a lume e para onde quer que vamos seremos apontados! Como reagirão os nossos amigos quando souberem quem fui... quem era o meu primeiro marido?

- Tudo isso já lá vai há muito tempo! Hoje, ninguém liga importância a essas coisas.

- A nossa geração ainda se importa - prosseguiu Magda. - Combateram e tomaram parte nessa guerra. A seus olhos isso será uma mancha indelével e eu nunca me libertarei dela!

- Não digas isso, querida!-teimou o marido, voltando-se para ela. - Tu não tens nada a ver com o passado!

- Estive casada com ele dez anos...

Magda falava devagar como se fizesse um grande esforço.

- Essas criaturas foram recebidas em minha casa. Vivi com o produto da pilhagem feita a famílias que foram expulsas e assassinadas. Fiz parte de tudo isso, Gerald. Vivi à sombra da morte... Ele foi meu marido e dei à luz uma filha sua. Isso foi precisamente o pior... a coisa mais horrível era a sua obsessão pela criança.

Mrs. Ridgeway fez uma pequena pausa e estremeceu.

- Tratava-se de um homem sem piedade. Não havia nele um sentimento humano por ninguém nem por qualquer coisa e, no entanto, com a filha, parecia um pateta, um louco! Não podes calcular... Passava horas e horas a brincar com a pequenita. Sentava-se junto do berço, observava todos os seus movimentos e segurava-lhe a mão entre os dedos. Quando eu subia ao quarto, ouvia-o falar com ela e cantarolar. Se a criança chorava, corria ao quarto e gritava com a ama. Acredita: sentia-me completamente enojada com tudo aquilo. Mais ainda: aquele procedimento era tão singular, tão anormal, que eu não conseguia estar junto de Paula!

Magda fez uma breve pausa, soltou um suspiro e prosseguiu:

- E ele sabia-o! Ficava furioso comigo e dizia que eu não tinha amor à filha. Porém, não conseguia modificar-me; a filha pertencia-lhe! Quando a pequenita olhava para mim, os seus olhos eram tal qual os do pai, aqueles olhos de um azul intenso e estranho e isso causava-me a impressão de ter dado à luz um monstro! O pai gostava dela por ser a sua imagem! Pobre Paula! E a verdade é que nunca consegui vencer essa impressão e por isso, intimamente, julgo-me culpada!

- Foste uma mãe maravilhosa! - retorquiu Gerald. Não digas disparates! Em minha opinião, Paula está estragada com a mania da independência e agora a perda de James tornou o caso ainda pior. Tem um feitio agreste, mas a culpa não é tua, minha querida! Portanto, é preciso deixares de pensar em Bronsart e no passado. Ele morreu e esse tal Black também! Nada te poderá prejudicar!

- Lembro-me tão bem de Black!-continuou Magda, pensativa. - Albrecht Schwarz, um homem baixo, mas muito gentil no seu elegante uniforme. Adorava o general e seguia-o como uma sombra. Lembro-me que também estava na sala quando levaram para casa a Taça Poellenberg!... O meu marido ria e disse-me: ”Gostas dela na mesa do centro? Que te parece?’’ Ele apenas me disse isto, mas eu sabia donde vinha aquela obra de arte e nunca poderei esquecer a sensação de vergonha que senti: o meu pai e o avô dos Von Hessel eram amigos!... Então, saí da sala a correr e sabes o que ele fez? Foi buscar a filha e mais tarde disse-me: ”Paula tocou-lhe e riu-se! Portanto, gostou! Será um presente meu, para ela!” Pouco tempo depois, levou a taça de casa e nunca mais a tornei a ver. Não lhe perguntei por ela* nem me interessava saber! Quando a guerra começou a piorar para nós, parecia um louco. Tornou-se ainda pior... era mau. Então começou a dizer que ia combater para a Rússia com a sua divisão dos S. S., e havia de fazer desaparecer todos os russos da face da terra! Talvez fosse pecado, mas nessa altura rezei, pedindo para ele não voltar e a minha prece foi ouvida! Sabes uma coisa? Nessa ocasião acreditei em Deus!

- Eu sei... -murmurou Gerald.- Já me tinhas contado... Portanto, ele morreu e ninguém o pode ressuscitar, faça Paula o que fizer!

- Mas quanto à obra de arte? Que lhe teria dito Black? Por que motivo partiu ela para Paris?

- Isso, não sei - respondeu o marido-, mas tenho a certeza de que não importa e tu não tens motivo para te apoquentares!

Magda olhou para o marido. Tinha um ar cansado e mais rugas começavam a aparecer-lhe em volta dos olhos e da boca. Pegou-lhe na mão, levou-a aos lábios e beijou-lha.

- Tudo isto te tem tirado anos de vida... - murmurou ela com tristeza. - Hoje só tenho um receio... um medo horrível de que não consigo livrar-me: que sucederá se aquele demónio ainda está vivo?

- Não está! -respondeu Gerald. - Mas se aconteceu o improvável e conseguiu escapar, encararemos a situação como temos encarado tudo até hoje, meu amor: juntos! No entanto, peço-te por tudo quanto há que não te preocupes. Suceda o que suceder, proteger-te-ei!

- Meu Deus! - exclamou Fisher. - Heinrich von Hessel está em Paris! A notícia vem no jornal! Hospedou-se no Ritz!

Eric passou o jornal a Paula. Naquele momento tomavam o pequeno-almoço na sala de jantar do hotel. Tratava-se de um ritual que nunca agradara muito a Fisher. Ser obrigado a sentar-se e comer tão cedo irritava-o e era uma coisa que evitava fazer, pois considerava esse hábito uma perda de tempo.

No entanto, agora estava sempre ansioso por descer e esperar a chegada de Paula. Depois dos primeiros dias, habituara-se a passar pelo quarto dela e descerem juntos. Pelo ar indulgente do pessoal do hotel dava a impressão de estarem convencidos de que eles eram amantes e Eric só tinha pena de que os criados - com o seu sorrisinho cúmplice - não tivessem razão.

Uma espécie de horror, uma sensação estranha, ligava-os ainda mais um ao outro por causa do sucedido, quando saíram de casa de Madame Brevet.

Paula continuava a esfregar a face, apesar de já estar limpa e tremia, embora Eric lhe tivesse passado o braço em volta da cintura. Aquilo tinha sido uma experiência enervante, inesperada e, fisicamente, desagradável. Ela cuspira-lhe o ódio na cara.

Fisher estava arrependido de ter levado Paula, mas por outro lado pensou que se não o tivesse feito teria saído de casa de Madame Brevet -como os funcionários da Súreté convencido de que a mulher padecia de visões senis.

Verdade seja que devia estar senil e mentalmente cheia de recordações confusas, porém, naquele breve instante dissipara-se a neblina e não podia haver dúvidas a respeito da sua reacção ao ver os olhos de Paula, nem daquele grito horrível.

”Ele estava um velho, com a cabeça toda branca, mas eu conheci-o pelos olhos!”

O homem continuava vivo. Estava velho, tinha a cabeça branca, mas os seus olhos eram os mesmos e ela reconhecera-o. Recordara com a terrível clareza da dor maternal a cara do homem que condenara o filho à morte.

Tremendo de raiva e debatendo-se para atingir Paula, Madame Brevet revivera o terror e o pesadelo da última fase da guerra. Através dela, Paula vira o pai, caminhando no meio de uma multidão de homens acobardados e assustados, arrastados pelas ruas de Paris como reféns, seleccionando friamente as vítimas, com um movimento do pingalim.

Tinha sido deste modo que condenara à morte o filho de Madame Brevet, na presença da mãe desolada e chorosa’, que se dirigira depois à prisão à procura do filho. Não havia proibição para os parentes procurarem os filhos e os maridos desaparecidos, espalhando a agonia quando passavam a testemunhas impotentes das execuções diárias.

Através das palavras de Madame Brevet, a figura do general erguia-se como a de um demónio, no quarto pequeno e esquálido, vestido com o seu sinistro uniforme negro, impiedoso e desumano, mandando o trémulo rapaz para o pelotão de execução. Olhara para a cara dele, gritara e amaldiçoara-o e tornara a ver essa mesma cara, numa rua cheia de gente, 25 anos mais tarde; lembrava-se dele perfeitamente. Se Fisher e a nora não a tivessem segurado teria atacado Paula com as unhas.

Durante a viagem de regresso, Paula não articulara uma só palavra. No hotel, Fisher abraçara-a e dissera:

- Isto foi terrível para si! Deus sabe como estou arrependido de a ter levado lá!

- Foi tudo tão ao vivo! - murmurou Paula. - Ela descreveu a cena com tanta realidade que eu parecia estar a ver tudo...

- Vou arranjar-lhe qualquer coisa para beber. Ainda está a tremer! Sente-se!

- Suponho - disse Paula lentamente - que já suspeitava aquilo. Quando ouvi dizer que ele pertencia às S. S. e estava na lista dos criminosos de guerra, calculei que devia ter feito qualquer coisa deste género; porém, não me convenci. Sabia... mas não podia acreditar. Compreende uma coisa destas?

- Parece-me que sim. Beba isto. Venha sentar-se...

- Ela fez com que eu visse tudo - prosseguiu Paula. Fisher passara-lhe o braço em torno da cintura; ela parecia

não dar por isso; continuou a falar, olhando em frente e segurando o balão de conhaque com ambas as mãos.

- Quanto mais ela gritava e se debatia, procurando chegar até junto de mim, mais eu a via no pátio da prisão, suplicando e pedindo-lhes para não levarem o filho, enquanto o meu pai, apontando com o pingalim...

- Está bem - interrompeu Fisher. - E agora que já sabe, agora que aceitou a realidade, continua a querer encontrá-lo? Tem a certeza? :

- Sim, tenho. Paula voltou-se para ele pela primeira vez.

- Sim, quero encontrá-lo. Não há nada que possa alterar isso. Ele é meu pai, eu sou sangue do seu sangue, carne da sua carne. Seja como for, fizesse o que fizesse, preciso vê-lo cara a cara. Preciso de ouvir o que ele diz...

- Mas... depois? - perguntou Fisher. - Não seria melhor conservar a ilusão? Como se sentirá, se verificar que ele é o género de pessoa acerca de quem Madame Brevet falou hoje... um bastardo sem consciência ou um meio tarado como Schwarz deu a entender?! É preciso pensar no que pode ir encontrar no fim de tudo isto!

- Se está doente - disse Paula -, tratarei dele. Isso seria ainda o mais fácil. Se precisar de mim, eu sou sua filha! Viveu todos estes anos na clandestinidade. Já deve ter pago bem o que fez...

- E Paula era capaz de lhe perdoar?

- Assim o desejo, por isso quero encontrá-lo. Bem sei que me julga louca, mas quando eu era pequenina e via a minha mãe e o marido saírem juntos, punha-me a pensar como seria bom meu pai entrar de repente pela porta dentro ou apanhar-me no jardim e levar-me consigo. Criei uma imagem, Eric, porque não tinha mais nada, e agora, sabendo que ele é real, sinto que em mim tudo me pede para o encontrar, para o ver, para lhe tocar, transformando o sonho em realidade.

- E está preparada para chegar à conclusão de que o sonho é um... pesadelo?

- Não acredito que seja! - respondeu Paula. - O que ele fez não me interessa. Estou absolutamente convencida de que não me importo com o seu passado!

- Percebo... - murmurou Fisher.

Em seguida levantou-se e foi preparar uma bebida. Depois, olhando-a intensamente, prosseguiu com toda a calma:

- Amo-te, Paula! Amo-te! Sei que este amor não pode representar um substituto do amor de teu pai, porém... não serias capaz de te contentar com toda a minha devoção e carinho?

Paula abanou a cabeça. Eric parecia infeliz e tenso; talvez o tivesse magoado involuntariamente.

- Não, querido! Não é a mesma coisa... Nunca seria feliz contigo, se abandonasse o meu pai! Chegará a nossa vez, quando tudo estiver terminado.

- Talvez nunca termine... Ele pode aparecer e levar-te consigo, para sempre!

- Não creio - retorquiu Paula-, mas enquanto não o vir, não prometo nada. Continuarás a ajudar-me?

- Foi esse o nosso contrato. Cumpri-lo-ei se assim o desejares; porém, não penses que me sentirei feliz com isso! Não esperes que, ao ver-te correr para os braços do teu pai, solte três gritos de alegria!

- Pois não... - concordou Paula. - No entanto, lembra-te de uma coisa... Também te amo!

Dizendo isto, Paula beijou-o e nada mais disseram.

No dia seguinte, quando Eric a foi buscar para tomarem o pequeno-almoço, ela sorria e parecia estar calma; porém, tinha um ar cansado como se não tivesse dormido bem. A caminho do elevador, Paula deu-lhe o braço.

Ao ler o Monde, enquanto ainda se encontravam à mesa, Fisher vira a notícia da chegada do príncipe Heinrich.

- Mas porque diabo teria ele vindo a Paris? Telegrafei à mãe contando-lhe o que havia a teu respeito e dizendo-lhe que vinhas comigo. Talvez ele deseje certificar-se... Mas há uma coisa que não suporto: sentir a respiração do cliente no meu pescoço!

Fisher dobrou o jornal e largou-o.

- Vou fazer uma visita ao cavalheiro a fim de lhe explicar bem isto!

Vinte minutos depois, Fisher dirigiu-se à recepção do Ritz e foi conduzido à suite do príncipe.

O pessoal do hotel mostrara-se reservado e pouco cooperativo quando Fisher pediu para lhe ser transmitida uma mensagem. O príncipe não queria ser incomodado. Eric sugeriu agressivamente que essa ordem não lhe dizia respeito e o melhor era experimentarem. Com certa relutância, o recepcionista falou com o subgerente, que por sua vez falou com alguém ainda a mais alto nível. Por fim, foi conduzido ao primeiro andar por um paquete.

Ao chegar à porta da suite F/G, o rapaz afastou-se. Fisher bateu; um minuto depois, um homem de casaco e calças de criado particular abriu-a e, num péssimo francês, convidou-o a entrar.

Eric falou-lhe em alemão e o homem respondeu-lhe com grande alívio. Sua alteza aguardava-o; agradecia que tivesse a bondade de esperar na saleta alguns instantes.

O aposento era pequeno, mas encantador; as paredes estavam guarnecidas com lindos trabalhos em madeira do século XVIII; o esquema de cores e os quadros pertenciam à mesma época. Era tudo delicado, tranquilo e nada parecido com a uniformidade usual da decoração das suites, mesmo em hotéis da categoria dos famosos Ritz.

Fisher ouviu abrir-se a porta atrás de si e voltou-se. Heinrich von Hessel vestia um roupão de seda e, por baixo, calças escuras. Trazia um cachecol de seda branca em volta do pescoço e lembrou a Fisher um personagem de comédia de Noel Coward. Avançou muito direito - parecendo ter dificuldade em dobrar as pernas - e estendeu a mão. Fisher apertou-lha.

- Muito bom dia!-disse o príncipe.

Era a primeira vez que Eric o ouvia falar; tinha uma voz forte e profunda, com pronúncia gutural inglesa.

- Muito bom dia! Vi a notícia da sua chegada no jornal da manhã e pensei que devia vir falar-lhe. Fez boa viagem?

- Excelente! -respondeu o príncipe-, de uma grande suavidade!

Ao mesmo tempo sentou-se numa das elegantes cadeirinhas de braços. Fisher reparara no tremor da mão quando lha apertara. Movia-se com a incerteza de uma pessoa muito idosa ou muito débil. Quanto ao físico estava acima da média. Era alto, muito bem constituído e, proporcionalmente, mais forte do que Fisher. Não tinha nada o aspecto de um homem que sofresse de qualquer enfermidade, mas notava-se uma certa reflexão na forma como falava e se conduzia, o que pareceu anormal a Fisher, tão anormal como a sua estância atrás do sofá onde estava sentada a mãe, na primeira tarde, quando o conhecera.

- Gosto de viajar de avião... é agradável... muito repousante - disse ele.

Parecia procurar qualquer coisa; os olhos vagueavam rapidamente em volta do aposento e depois fixaram-se em Fisher com uma expressão vaga. Eric tirou os cigarros.

- Dá-me licença que lhe ofereça um?

Era mais convencional no seu contacto com o príncipe do que tinha sido com a mãe.

Quanto a Heinrich não tentava exibir-se nem impressionar; apenas parecia o que era: um homem imensamente rico, de modos delicados e não mostrando o menor desejo de se impor. Parecia olhar através de Fisher e não para ele.

- Aceito, sim, muito obrigado. Fala alemão, Mr. Fisher? Ach, Josef!...

Nesse momento, o criado entrou no quarto. Levava um copo grande, com asa de prata, numa salva. A expressão do rosto do príncipe levou Fisher a fazer uma pausa antes de responder. Satisfação e reserva; pegou no copo com ambas as mãos. Num impulso, Fisher resolveu mentir:

- Não! - respondeu. -Ah!

O príncipe fez um aceno com a cabeça; olhou em volta e falou à vontade para o criado no seu idioma:

- Traz outro brande dentro de quinze minutos e não tornes a fazer-me esperar...

Depois, dirigiu-se a Fisher, em inglês:

- Este é o meu pequeno vício... chá frio! Quer tomar um café?

- Não, muito obrigado!

Pelo espaço de um momento, Fisher esteve tentado a pedir o mesmo que o seu anfitrião, mas depois pensou que as graças não eram permitidas, nem mesmo em particular. Viu o príncipe tomar um bom trago, segurando o copo entre as mãos, como se tivesse receio que pudesse cair ou lho tirassem. Chá frio!...

”Deus do Céu!”, pensou Fisher. ”Um brande às dez e meia da manhã e mais outro daqui a um quarto de hora!’’

Portanto, era aquilo!... A maneira de andar e o aristocrático olhar vago e vítreo. O príncipe estava completamente embriagado.

- Gosto de viajar de avião!... - observou ele. - Voar é muito agradável.

Fisher não respondeu e estava tão surpreendido que se esqueceu de acender o cigarro. Agora os pormenores começavam a fazer sentido. Estava a observar o homem sentado na sua frente e reparou que o corpo começava a mergulhar na cadeira e as mãos, com o tremor do alcoólico, agarravam o copo como as garras de um animal. Sem qualquer razão especial, Fisher, subitamente, teve pena dele; a expressão dos olhos era miserável.

- Como está a princesa? - perguntou Fisher.

Eric não conseguiu pensar em qualquer outra coisa para dizer. A ideia de conversar a sério com uma pessoa naquele estado estava fora de questão.

- Minha mãe está bem - respondeu o príncipe, bebendo novo gole. - É uma senhora muito activa para a sua idade... Mas não gosta de viajar de avião. Eu gosto. Acho repousante...

Fisher reconheceu a ingenuidade do alcoólico. Era capaz de repetir a observação acerca das viagens aéreas de minuto a minuto.

- E o príncipe Philip?

- Deve vir a caminho de Paris. Resolveu vir por eu ter vindo. Receiam que eu interfira com o seu trabalho, Mr. Fisher! Estão ansiosos pela recuperação do tesouro...

- O seu irmão, não!-respondeu Fisher. - Foi ter comigo ao aeroporto, quando estive em vossa casa, e tentou persuadir-me a não tomar o caso muito a sério. Também não tem grande interesse?

- Muito pouco...

O príncipe descansou o precioso copo em cima da mesa com certa dificuldade e tirou um cigarro de uma caixa. Fisher levantou-se para lho acender. O cheiro a brande era inconfundível; devia estar cheio de álcool para ir abaixo tão depressa, só com um copo. Olhou para o relógio; deviam ser horas de nova provisão.

- Por que motivo não lhe interessa? - perguntou Fisher.

- E porque há-de interessar? - retorquiu Heinrich, fazendo um gesto de despreocupação com o cigarro. - Temos mais do que bastante!... Minha mãe possui um dos mais lindos Rafaeis no seu quarto! Para que havemos de querer mais? Temos tesouros de sobra para pensar em mais um!...

No entanto, minha mãe é de uma teimosia extraordinária, Mr. Fisher. Está habituada a ter tudo quanto deseja. Por vezes acede ao que Philip lhe pede, mas nunca ao que eu quero. O senhor sabe que sou o chefe da família?

- Sei - respondeu Eric que, nessa altura, devia ter apresentado qualquer desculpa e sair.

Porém, não o fez.

O príncipe estava embriagado; era um alcoólico e esse era o significado do que se encontrava por detrás daquele homem ”solitário, de saúde débil”.

Encontrava-se enfrascado em álcool até à medula e devia estar assim desde há anos. Não era responsável pelas suas palavras e, portanto, não admirava que Philip fosse atrás dele para afastar os visitantes.

Se Fisher não tivesse escutado a conversa entre patrão e criado -e não tivesse visto com os seus olhos o homem voltar com outro copo e repetir a pantomima- não teria percebido nada. Isto era uma prova da doença do príncipe já estar profundamente enraizada: o verdadeiro alcoólico encontra-se em permanente embriagues e só de vez em quando tem momentos lúcidos, o que o denuncia. Era por isso que

- o criado e a influência da família - conseguiam erguer um escudo, protegendo-o e ocultando-o ao mundo.

’ ’Pobre bastardo!’’, pensou Fisher. ”Pobre bastardo solitário, matando-se aos poucos!... Tenho a certeza de que aquela maldita mãe ficará radiante quando o vir morto!’’

- Sim, sou o chefe da família - repetiu o príncipe Heinrich. - Mas eles não ligam importância ao que eu digo. Como ficará a minha mãe se Bronsart disser a verdade? Qual será a cara dela nessa altura?

- Mas ele não pode dizer nada se estiver morto!

Fisher avançava lentamente. Sentia postos em si aqueles olhos tristes e inchados, onde havia uma cintilação levemente zombeteira. Porém, devia ser um humor muito estranho...

- Mas ele não morreu, pois não? Ouvi-os conversar... O senhor não é dessa opinião? Homens como ele não morrem, vivem sempre, para atormentar e vexar e ela há-de arrepender-se. Foi a única pessoa que conseguiu vencer a minha mãe. Sabia? Coisa invulgar... ela costuma levar sempre a melhor... mas com ele, não!

Heinrich acariciava o copo vazio, com os dedos.

- Nunca gostei dele, Mr. Fisher, nem mesmo antes daquilo acontecer. Mas ele venceu-a... Quer fazer o favor de me dar lume? Não encontro o meu isqueiro.

Fisher ergueu a chama à altura do trémulo cigarro. A mão estava agora mais firme, mas a cabeça balanceava.

- Que verdade pode ele dizer, se estiver vivo?... Que sucedeu entre ele e a sua família?

- Isso não lhe posso dizer... - respondeu o príncipe.- Não! É impossível. Além disso, esqueci os pormenores. Por fim, acabamos por esquecer tudo. Porém, se o descobrir e tentar reaver a preciosa peça, tudo virá a lume. Minha mãe sabe-o perfeitamente. Ela ainda não lhe pediu para o matar?

Fisher voltou para o seu lugar. Pegou num cigarro e acendeu-o.

- Não... - respondeu. - Não pediu e de nada lhe servirá pedir!

- Há-de pedir!

Heinrich tornou a consultar o relógio; parecia tão calmo como se estivessem de novo a conversar acerca do voo de Munique para Paris.

- Há-de pedir e o senhor dirá que sim... Ninguém lhe diz

”não” por muito tempo...

O príncipe sorriu para Fisher. Quando novo, devia ter sido um rapaz muito interessante. O criado apareceu.

- Josef... vieste dois minutos atrasados. Ach, Mr. Fisher, o senhor não quer tomar nada? Eu só bebo chá...

- Não, muito obrigado! Fisher ergueu-se. Havia um pormenor que o intrigava e

recusava-se a tomar a sério a última sugestão. O príncipe estava louco por causa da bebida e era capaz de dizer os maiores disparates. Como diabo o tinham deixado tão à-vontade naquele dia? Fisher nunca teria descoberto aquilo.

- Se o príncipe e seu irmão não estavam interessados na recuperação daquela obra de arte por que motivo sua mãe não me recebeu sozinha?

- Porque sou o chefe da família! As pessoas andam sempre a dizer que não me vêem e daquela forma ela quis mostrar que não havia nada de mau... Uma vez, um jornal publicou a notícia que eu tinha morrido. Nessa noite fui à ópera com ela. Detesto ópera e Philip também, porque ela confia no meu irmão. Está a compreender?

- Sim, compreendo... -respondeu Fisher.

Porém, Fisher não compreendia nada e com a estranha perspicácia dos da sua espécie, o príncipe pareceu perceber isso.

- Ela vai precisar de si se o general ainda estiver vivo explicou -, e não ficará nada satisfeita por eu ter falado consigo.

- Mas eu não preciso dizer-lhe nada - retorquiu Fisher. Ao mesmo tempo estendeu a mão ao príncipe e este,

largando o balão do brande, apertou-lha.

- Ficar-lhe-ei muito grato - respondeu. - Bom dia, Mr. Fisher e obrigado pela sua visita!

Enquanto Fisher deixava a suite, acompanhado até à porta pelo criado, ouviu uma voz erguer-se da romântica saleta, gritando :

- Josef! Josef!

- Tia Ambrosine e sobrinho Jacquot - disse Fisher - 25 de Junho de 1944. É tudo quanto temos para prosseguir as investigações. Isto e o facto da certeza de seu pai ainda estar vivo e nesta cidade. O ponto é: por onde vamos começar à procura de quê, minha querida?

Estavam de mãos dadas, no carro, parado sob as árvores, numa avenida do Bosque de Bolonha. Eric oferecera o almoço a Paula e depois levara-a a dar um passeio fora de Paris, no ambiente de paz e beleza do famoso bosque, onde os reis de França tinham caçado e a gente bem costumava passear nas suas carruagens, até estalar a I Guerra Mundial.

Agora, era um local para turistas, passeios de automóvel, onde se comiam doces e gelados, cujos invólucros estavam espalhados por cima da relva, e onde se ouvia ainda o eco dos séculos, quando por ali passava um alegre grupo de cavaleiros.

Fisher contara a Paula a visita feita ao príncipe Heinrich e ficou surpreendido com a sua atitude, ao responder:

- Então ele é um alcoólico! Não me parece caso para tão grande segredo e, com certeza, não se dão a tanto trabalho apenas para ocultar a sua pista. Não. Deve haver qualquer coisa mais!

Por momentos, Fisher não respondeu. A simplicidade da observação de Paula era evidente. Devia haver mais qualquer coisa... Por exemplo: o segredo relativo da posse do tesouro e do general Bronsart das S. S.

”Ela ainda não pediu para o matar?”

Eric não falara nisto a Paula. Recusara tomar o caso a sério, mas agora começava a preocupar-se. A princesa, graças à sua influência, podia ter-se dirigido à Interpol. Pediria uma investigação completa a respeito da reaparição de Bronsart e dessa forma chegaria mais depressa ao fim da meada, do que por intermédio de uma agência de detectives, por muito competente que fosse.

Porquê tanto segredo a respeito da herança Poellenberg? Porque não publicar um anúncio, oferecendo uma boa recompensa pela informação?

Este seria o curso normal tomado por uma pessoa na sua posição; porém, ela não o fizera. Queria sigilo e havia sempre uma certa reserva ligada ao desejo de investigações particulares.

Assim, fossem quais fossem as circunstâncias em que Bronsart tomara posse do tesouro, estas não deviam reflectir nenhum crédito sobre os Von Hessel; o próprio príncipe Heinrich deixara transparecer isso durante a sua conversa. Sim, o crédito devia ser pouco ou nenhum, para os dois filhos estarem dispostos a abandonar essa obra de arte sem preço, em vez de se interessarem pela sua descoberta. Tudo isto era misterioso e um tanto sinistro.

Entretanto, Fisher não tinha esperanças de descobrir nada, senão quando pudesse começar a seguir a pista do tesouro, através da mensagem do general para a filha.

- Jacquot... - repetiu. - Quem diabo será o Jacquot?!

- E quanto à data? - perguntou Paula. - Isso também deve ter qualquer significado: Junho de 1944. Que aconteceu em Paris, em Junho de 1944?

- Um inferno! - respondeu Fisher. - Foi, por exemplo, o Dia D. Deve haver milhares de incidentes aplicáveis ao caso, mas qual e por onde começar?

- Podemos começar por meu pai! - sugeriu Paula. - Se ele escondeu o tesouro, deve ter sido nessa ocasião, de contrário a mensagem não faria sentido e eu tenho a certeza que Black não sabia mais nada. Meu pai disse-lhe apenas aquilo. Não lhe quis confiar o segredo completo. Porque não começar pela data?

- Devias vir trabalhar para a nossa firma! -exclamou Fisher.

Em seguida abraçou-a e beijou-a.

- Vamos sair daqui e dar uma volta a pé... Tenho uma ideia!

Começaram então a andar por um caminho para passeios a cavalo; o sol traçava riscos no chão, aos pés deles, e cintilava através das folhas das árvores. Estava uma atmosfera fresca e tranquila.

- E qual é a ideia? - perguntou Paula.

Iam de braço-dado e Eric apertava-a de encontro a si, enquanto caminhavam.

- Vou tentar caçar dois coelhos de uma só cajadada! retorquiu ele. - Estou aborrecidíssimo com esses Von Hessel. Quanto mais penso no caso, mais sinto que não gosto de trabalhar às escuras. A princesa não me disse nem metade da verdade e tudo quanto consegui arrancar àquele desgraçado bêbado esta manhã também não me satisfez.

Fisher fez uma pequenina pausa.

- Ele deve ser a ovelha ranhosa da família e, conforme dizes, ali deve haver qualquer coisa mais do que alcoolismo. Assim, vou fazer uma pequena investigação de conta própria, acerca dos Von Hessel. Pedirei uma chamada telefónica para um associado em Bona e vamos ver o que eles conseguem descobrir, especialmente durante 1944, pois calculo que tens razão. Deve ter sido nesse ano que teu pai escondeu o tesouro e também quando entrou na sua posse. Portanto, vamos ver o que faziam os Von Hessel nessa ocasião... especialmente o príncipe Heinrich, o qual devia estar no exército nessa altura.

- E quanto à outra parte... a Tia Ambrosine e Jacquot?

- Tive uma grande conversa com o homem da Súreté no outro dia...

Fisher acendeu os dois cigarros do costume e entregou um a Paula.

- Vou tentar a sorte e tornarei a falar com ele. Recorda-se perfeitamente de teu pai. Tenho o pressentimento de que, nessa ocasião, também estava em Paris. É uma tentativa... Pode ter ouvido falar nesses nomes ou lembrar-se de alguém com quem eu possa contactar sobre o assunto. São apenas fragmentos, mas neste momento é tudo quanto posso fazer. Porque estás a franzir as sobrancelhas?... Que estás a pensar?

- Com certeza não estás a pensar que meu pai viveu todos estes anos em França, pois não?

- De maneira nenhuma! - respondeu Eric. - Era demasiadamente conhecido. Penso que a velhota só o viu uma vez e reconheceu-o logo. No seu tempo era um homem célebre; portanto, não podia ter-se escondido em parte alguma da Europa ocupada. A maior parte deles refugiou-se na América do Sul ou Central, graças à organização que têm. O nome de código é Odessa. Sabias?

Fisher fez uma breve pausa; depois, prosseguiu:

- Tinham tudo organizado com a sua costumada eficiência, quando se tornou evidente que iam perder a guerra. A minha opinião é que teu pai se deve ter escondido na Suíça ou em Espanha, tal como o nosso amigo Black e foi por isso que conseguiu vir a França e Black pôde entrar em Inglaterra. Vivia na Suíça há muito tempo, com um passaporte falso.

- Nesse caso por que motivo voltou meu pai a Paris?

- Por saber que Black transmitiria a mensagem - respondeu Fisher com toda a calma. - Assim, teu pai veio para Paris, esperar por ti. Não parece evidente? Não compreendeste ainda ser isso mesmo o que ele queria ?

-Não!

Paula parou no caminho; libertou-se de Eric.

- Não, não pensei nisso. Quer dizer que ele anda à minha procura? Que andamos à procura um do outro?

- É exactamente o que penso...

Paula não tornou a dar-lhe o braço; deixou-se ficar, com o sol a dourar-lhe o cabelo castanho, sozinha, no meio da avenida. Fisher não gostou da reacção. Puxou-a para si e disse:

- Deve encontrar-se perto do tesouro... é o que calculo; portanto, se descobrirmos um, é quase certo que encontraremos o outro. Ou talvez não... talvez ele queira apenas ter a certeza de que entras na sua posse...

- Isso é correr um risco tremendo... -observou Paula, lentamente. - Responde-me com toda a sinceridade: foi ele quem matou Black?

- Não sei...

Fisher não lhe mentiu; agora, não havia intimidade entre eles. Paula retratara-se.

- Talvez... Destruiu o laço depois de o ter utilizado... Porém, não tenho a certeza. Com franqueza, não posso responder.

- Devia estar doido, se o fez! Não acredito!

- Não era preciso estar doido... A morte não significa nada para pessoas como ele. Muita vez é apenas a solução lógica de um problema. Pessoalmente, não me parece haver qualquer ligação. Não te preocupes... tenho a certeza de que não foi o teu pai.

- Mas se ele anda à minha procura - disse Paula - com certeza não se aproximará se estiver acompanhada... não se atreverá.

- Tenho muita pena, mas estou junto de ti, Paula! exclamou Fisher, começando a sentir-se irritado. - Achas mal, não é verdade?

- Faz-me muita impressão que ele ande à minha procura

- prosseguiu Paula, sem parecer reparar no aborrecimento dele. - Começou a arrefecer... Vamos para o carro, sim?

- Está bem - concordou Fisher. - Daremos uma volta pelo bosque e depois regressamos. Talvez convide o funcionário da Súreté para tomar qualquer coisa. Quanto a nós, iremos jantar fora. Ao Maxime?... Que te parece?

Eric estava ansioso por ver desaparecer do rosto de Paula aquela expressão vaga e ver também os seus olhos azuis tomarem consciência da sua presença, em vez de o olharem como se fosse uma sombra.

No entanto, o silêncio entre ambos durou todo o caminho até ao hotel. Fisher não acompanhou Paula ao quarto; ela disse-lhe que se sentia cansada e ia tomar duche. Entretanto, ele podia ir procurar o seu contacto na Súreté e tomarem qualquer coisa juntos. Se Eric quisesse ir buscá-la, estaria pronta às oito, ou talvez um pouco mais tarde. ’

Fisher colocou as mãos sobre os ombros de Paula e perguntou:

- Que tens?

- Nada... Estava apenas a pensar noutra coisa...

- Então faz-me um favor - pediu ele, afagando-lhe o queixo e sorrindo, embora um pouco forçadamente-, fazes? Durante as próximas horas pensa em mim... Voltarei cerca das oito...

Beijou-a e dirigiu-se para o seu quarto a fim de telefonar.

A primeira chamada foi para Bona. A firma tinha um contrato com uma agência naquela cidade. O pessoal era reduzido: meia dúzia de operadores especializados, três dos quais tinham sido membros da polícia da Alemanha Ocidental. A única empregada trabalhara três anos para o Serviço Secreto Alemão.

Fisher precisava de informações a respeito dos Von Hessel. O pedido foi recebido com certa reserva; não era fácil saber mais do que já era do domínio público, ou melhor, do infundado escândalo dos Von Hessel. Estavam muito bem protegidos.

Sendo assim, dissera Fisher com certo azedume, vejam o que há realmente a respeito desse infundado escândalo da sua vida social e também onde se encontrava o príncipe Heinrich durante os anos de 1943 e 1944. Certamente havia uma folha de registo dos seus serviços no tempo da guerra. Talvez fosse leitura interessante para a população alemã sitiada saber que os gigantes da indústria lutavam na lama pela sobrevivência da pátria.

Eric mandou vir uma bebida antes de procurar o número da Súreté e pedir para falar com o inspector.

A resposta foi vacilante; eram quase quatro da tarde e ele prometera ir mais cedo para casa. Fisher sugeriu dirigir-se à repartição, mas ao mesmo tempo lembrou que talvez fosse mais agradável tomarem qualquer coisa a caminho de casa. Por fim, embora com certa má vontade, o inspector aceitou e combinaram encontrar-se num pequeno bar à esquina da Súreté.

Era uma casa moderna, pintada de claro, com uma máquina de discos a um canto e mesas com tampo de plástico. Fisher olhou em volta com certa repugnância, por causa do cheiro dos alhos; viu os clássicos fatos de xadrez e respirou o ar bolorento, típico dos bares franceses. Depois, com grande horror da sua parte, a máquina começou a lançar para o ar uma selecção de barulhenta música pop.

O inspector já se encontrava sentado a um canto, de olhos fechados e de cachimbo na mão, do qual saía uma leve nuvem de fumo como se fosse um vulcão.

Fisher encaminhou-se para ele, sentou-se e perguntou-lhe o que queria tomar.

- Uma cerveja à pressão, se faz favor!

O inspector chamava-se Foulet; apertou a mão de Fisher por cima da mesa. Trocaram impressões a respeito do tempo. Fisher disse-lhe que passara a tarde no Bosque e Foulet fez um sinal de aprovação comentando ser um sítio muito bonito. Tinha havido ali um horrível crime sexual, há seis semanas, e o criminoso ainda não fora apanhado. Os bosques atraíam os loucos, observou, e um psiquiatra sugeria que isso era indício de retorno aos tempos primitivos, com tantos tarados mentais. Pessoalmente, estava convencido de que o criminoso escolhera o local por ser um dos favoritos das raparigas que passeavam ou andavam a cavalo, sozinhas. A vítima era uma amazona; tinha sido arrancada de cima do cavalo e horrivelmente mutilada.

Fisher pensou ser melhor interromper a conversa antes de o inspector lhe dar também os pormenores anatómicos. A polícia, a lei e os médicos eram todos semelhantes num vício: entendiam que a sua actividade era o único tema de conversa. Eric conseguiu deter o entusiasmo de Foulet a respeito do homicídio, oferecendo-lhe outra cerveja, que ele aceitou.

- Fui visitar Madame Brevet - anunciou. -Sim?!

O inspector tirou o cachimbo da boca durante um momento.

- Tal como disse... estava gaga de todo. Foi absoluta perda de tempo. No entanto, muito obrigado pela sua ajuda.

- Não tem importância. Temos dúzias de relatórios a respeito de Bronsart depois daquele. Mas são todos o mesmo: gente chalada!

- O senhor estava em Paris quando ele cá esteve?

Eric resolvera desviar a conversa para o assunto, na sua generalidade, sem dizer ao inspector que Madame Brevet não se enganara e tencionava também contar-lhe parte da verdade.

- Estava - respondeu o francês, tornando a tirar o cachimbo da boca e bebendo a cerveja. - Ele esteve cá em 1942, em serviço de inspecção. Nessa altura eu era muito novo. Saíra da tropa depois de 1940: tinham-me desmobilizado e entrei para a polícia. Pareceu-me ser o sítio mais seguro; além disso, assim, teria possibilidade de trabalhar contra os boches...

Nessa altura a Wehrmacht controlava Paris e esses porcos malditos estavam ansiosos para vir também, trazendo com eles a Gestapo, mas o exército não deixou. Como sabe, havia

muita inveja entre as duas organizações... Não era que os prussianos fossem humanos... não... fuzilavam tantos reféns como a Gestapo, quando começavam os sarilhos, porém, olhavam os S.S. como adventícios, como gente vinda do nada e que de repente tinha o poder nas mãos. Não tinham sido educados para oficiais nem para cavalheiros... Merde! Tinha-lhes um ódio de morte! No entanto, o pior de todos eles não era nada comparado com esse bastardo! Mais tarde, quando voltou, não foi para fazer inspecções no exército. Vinha cheio de força, Monsieur Fisher, e fazia uso dela!

- E quando voltou?

- Em Maio de 1944, passando três meses em Paris. A Gestapo e as S.S. tinham-se instalado aqui... Mas, porque está interessado nesse homem?

- Já lhe disse... contrataram-me particularmente para o descobrir...

Fisher mandou vir a terceira cerveja para o inspector e um Campari para ele.

- Se o homem morreu, está apenas arrumada uma parte do caso. Roubou uma obra de arte aos meus clientes durante a guerra e eles estão a tentar recuperá-la. Os nazis esconderam uma imensidade de tesouros por toda a Europa. Ora este Bronsart deixou uma espécie de pista a um parente, que os meus clientes conseguiram apanhar e eu estou a ver se descubro o que quer dizer.

- E essa obra de arte é um tesouro valioso?

- É de um valor inestimável! - informou Fisher. - Ora diga-me uma coisa, inspector Foulet: Tia Ambrosine e seu sobrinho Jacquot dizem-lhe alguma coisa?

O inspector abanou a cabeça.

- Não... nada. Tia Ambrosine, Jacquot. Sim, isto pode significar qualquer coisa; nessa altura toda a gente vivia sob nomes falsos. Tenho muita pena, mas parece-me que não posso ajudá-lo. A pista é só isso?

- Não. Temos ainda: 25 de Junho de 1944. Nada mais.

- Hmm... Bem, nessa ocasião ele estava em Paris. Posso afiançá-lo. Desde Maio até fins de Julho. Sei, porque todos os distritos estavam alertados quanto a medidas de segurança. Ele era dos homens mais odiados em França; em fins de Junho todos os chefes da Resistência tinham prometido matá-lo; porém, não conseguiam sequer aproximar-se. Movia-se sempre com um exército de homens das S. S. Vi-o uma ou duas vezes em Fresnes. Costumava lá ir para assistir à execução dos reféns. Vi ali mulheres a chorar, a suplicar de joelhos, pedindo-lhe a vida do marido... do filho...

Fisher só desejava que o homem se calasse. Parecia-lhe estar a ver a expressão de Paula, no bosque, com o olhar vago, como se estivesse a ver alguma coisa ou alguém, muito ao longe.

- Também já ouvi dizer isso.

- Era impiedoso! - insistiu Foulet. - Alguns deles eram verdadeiros sádicos; sentiam um grande prazer com as coisas que se faziam. Porém, entre eles havia franceses... é preciso não esquecer isso. A milícia de Vichy era pior do que a Gestapo. Mas esse Bronsart superava tudo e todos. Era um desumano. Tia Ambrosine... Jacquot...

Foulet tornou a abanar a cabeça; depois acrescentou:

- Não o posso ajudar, Monsieur Fisher. Não me diz nada.

- De qualquer modo, muito obrigado!-redarguiu Fisher. - Pelo menos, deu-me a certeza de uma coisa: Bronsart estava em Paris em Junho desse ano. Já é uma ajuda.

Eric Fisher resolveu regressar ao hotel, a pé; estava uma tarde quente e Paris preparava-se para a noite e suas actividades.

As ruas encontravam-se cheias de multidões que se moviam lentamente. Fisher deu consigo, no meio daquelas massas humanas. Em qualquer parte da cidade, o homem a quem procurava, estava vivo e à espera.

Mas... à espera de quê? À espera que a filha decifrasse o enigma que lhe tinha sido apresentado após um lapso de quase

30 anos. Estava à espera de a ver descobrir o tesouro dos Poellenberg -como observador silencioso e na sombra para depois desaparecer para sempre.

No entanto, Fisher não era dessa opinião. O seu instinto rejeitava uma suposição tão romântica. Homens como Bronsart não desaparecem do mundo por motivos de egoísmo. Não. O general, agora, estava velho; Madame Brevet, lançando todo o seu ódio e dor à cara da filha, falara nele como estando velho e de cabelo branco. Porém, os seus ardentes olhos azuis não tinham perdido o brilho com o decorrer do tempo, nem tão-pouco perdera a tenacidade e a dureza que o conservara vivo e salvo, enquanto os criminosos, seus camaradas, haviam pago e expiado os seus crimes.

O general encontrava-se na mesma cidade que Paula e se eles não conseguissem compreender o sentido da mensagem e descobrir o tesouro dos Poellenberg, então nunca encontrariam Bronsart, o que -no interesse da sua própria felicidade - talvez fosse a melhor de todas as soluções.

 

O recepcionista do Ritz Hotel viu uma sombra projectar-se sobre o balcão; largou a caneta e ergueu a vista. Um homem alto, de cabelo branco, uma figura distinta, com óculos escuros protegendo-o contra a quente cintilação da rua, encontrava-se diante dele.

O recepcionista tinha um instinto especial para conhecer a posição social e financeira dos clientes; quase farejava a riqueza e os títulos, mesmo os mais discretos.

O homem estava muito bem vestido com um fato leve, cinzento, camisa branca de seda e gravata escura; tinha o aspecto de um militar e, antes dele falar, o recepcionista percebeu que devia ser alemão. Havia qualquer coisa de peculiar no corte do cabelo e na posição dos ombros.

- Boa tarde. Desejava alugar uma suite... - disse ele, em francês.

O homem que se encontrava por detrás do balcão abanou a cabeça.

- Lastimo imenso, monsieur, não termos suites disponíveis. Está tudo ocupado... No entanto, posso oferecer... Um momento, se faz favor.

Abriu o registo e lançou-lhe uma rápida vista de olhos.

- Posso oferecer-lhe um quarto duplo com casa de banho, mas só para depois de amanhã.

- Eu queria a suite Luis XV do terceiro andar - retorquiu o homem alto. - Não estou interessado num quarto. Por quanto tempo está reservada a suite?... Não tenho pressa imediata.

- Não sei - respondeu o recepcionista. - O presente ocupante não disse quando tencionava retirar-se.

- Quem é o presente ocupante?

- Desculpe, mas não posso dizer.

- O príncipe Heinrich von Hessel está aqui hospedado?

- Está... - respondeu o recepcionista, mostrando-se bastante retraído. - Sim... está.

- E não me pode dizer se é ele quem está na suite Luís XV?

- Desculpe - repetiu o homem -, mas não estou autorizado a dar informações a seu respeito, seja a quem for. A única coisa que posso dizer-lhe é que a suite se encontra ocupada e não faço ideia de quando estará livre. Se monsieur não tem pressa, também tenho uma esplêndida suite no segundo andar que lhe posso reservar para daqui a dez dias.

- Receio que isso não me interesse. O príncipe Von Hessel é um velho amigo meu. Quer fazer o favor de ligar para a sua suite?

- Com certeza, monsieur! Tenha a bondade de se dirigir à cabina número seis e eu faço a ligação.

O general atravessou o vestíbulo e entrou na pequena cabina à prova de som. Friamente, acendeu um cigarro e aspirou o fumo.

Afinal, sem saber, o vaidoso francês dera-lhe a informação. Se Von Hessel estivesse noutro quarto, negaria a sua presença na suite especificamente mencionada pelo general. Agora sabia onde ele se encontrava. A ideia da chamada telefónica acudira-lhe durante os últimos segundos da conversa com o recepcionista.

Bronsart dirigira-se ao hotel sem qualquer plano em mente, senão averiguar a presença do príncipe e conseguir pôr termo à sua ansiedade. Lera a notícia da chegada do príncipe Von Hessel a Paris e a ideia dele estar ali hospedado, precisamente naquela ocasião, sugeriu-lhe mais do que uma coincidência.

Sabia muita coisa a respeito do príncipe Heinrich e sorriu um pouco para consigo, enquanto esperava na cabina. Conhecia-o desde há muitos anos e aquela defesa de recluso rico não o protegia do general.

De facto, recordava-se muito bem quando o vira pela última vez, completamente embriagado, com a mãe a seu lado, pálida como um cadáver e a tremer, como uma leoa em volta do filho, porque ele se rebaixava, chorando.

O general gozara imenso com a cena, não por se comprazer com a desgraça do infeliz alcoólico, mas por isso dar motivo à humilhação da mulher mais arrogante que conhecera em toda a sua vida, tão orgulhosa e altiva em relação ao mundo exterior e a todos quantos nele viviam. Sabia que ela o tolerava - bem como à sua raça - por não ousar fazer outra coisa, mas que os odiava e desprezava.

Suportara a sua gélida condescendência e o desprezo que demonstrava pela mulher - de nascimento irrepreensível mas, por fim, conseguira vingar-se.

Conhecia Heinrich talvez melhor do que qualquer outra pessoa à excepção da mãe e do irmão; começou a pensar se o príncipe, naquela ocasião, estaria mentalmente capaz de se recordar fosse do que fosse. Porém, as raízes do medo eram profundas e, com certeza, se se lembraria se o general mencionasse determinadas coisas.

O telefone tocou a seu lado; levantou o auscultador e falou em alemão.

- É o príncipe Von Hessel?

Reconheceu imediatamente a voz rouca; não se modificara durante 25 anos, quando a ouvira pela última vez.

- Sim... Heinrich von Hessel... Quem fala?

- Muito bem - disse o general -; então escute o que lhe vou dizer...

Alguns momentos depois colocou o auscultador no seu lugar, acendeu outro cigarro e atravessou o salão, dirigindo-se para as poltronas. Escolheu uma de onde se via o elevador, sentou-se e cruzou as pernas, numa atitude de completa descontracção.

Fisher saiu depois de almoço e esteve entretido a consultar recortes de notícias antigas do France Soir, cujo editor tinha sido seu amigo nos tempos de jornalista.

Tratava-se de uma longa e aborrecida tarefa para um dia de calor. As pastas cheiravam a mofo e aquela tira de luz brilhante na sala do arquivo provocava-lhe dores de cabeça.

Havia ali material suficiente para mais de duas horas a ler e a tomar notas.

A primeira visita de Bronsart a Paris tinha sido em 1942; havia uma fotografia e uma breve notícia acerca da sua visita ao então governador militar da cidade, o general Von Stuplagle. O retrato não era muito bom e tinha sido tirado à distância.

Em 1944, as escassas referências que lhe eram feitas quando se deslocava de avião de um lado para o outro - fazendo breves visitas a vários locais de França- tinham-se tornado um forte manancial de informações de propaganda, que os jornais franceses eram obrigados a publicar.

Havia também notícias referindo a sua presença na ópera, fins-de-semana com alguns dos mais notáveis colaboracionistas e, finalmente, a sua tomada de posse do cargo, em Junho de 1944, quando houvera uma onda de sabotagens e o assassínio de militares alemães aumentara na proporção do êxito da invasão das forças aliadas.

Isto era exactamente o que Fisher queria averiguar: a duração da permanência do general em Paris e se teria havido qualquer facto que pudesse influir na escolha do dia 25 desse mês. Porém, quanto a esse ponto, falhara. Não havia nada. Devolveu as pastas e regressou ao hotel.

Quando atravessou o vestíbulo, olhou para o quadro e reparou que havia qualquer coisa branca no cacifo referente ao seu quarto.

Eram de facto duas mensagens; ambas tinham sido chamadas telefónicas. Uma do príncipe Heinrich von Hessel, que ligara duas vezes no espaço de um quarto de hora; a outra do inspector Foulet. O príncipe já telefonara há uma hora. O telefonema de Foulet era mais recente.

Pouco havia de ganhar com outra conversa com o príncipe Heinrich. Se ele resolvera telefonar, fá-lo-ia constantemente até conseguir a sua finalidade. Fisher lidara com grande número de etílicos e todos eles seguiam o mesmo padrão de rotina. Era como um disco e a obsessão da repetição fazia parte dele.

Porém, a chamada do inspector Foulet devia ser mais importante. Há muito tempo aprendera que, na sua profissão, não devia excitar-se. Olhou para o relógio; eram quase cinco horas. Foulet talvez estivesse ainda no seu gabinete, mas o telefonista da Súreté informou que o superintendente já não se encontrava no edifício e aconselhou a telefonar no dia seguinte.

Fisher praguejou e ligou para o Ritz.

Foi Josef, o criado, quem atendeu. Fisher perguntou-lhe pelo príncipe. Josef parecia muito preocupado; o seu inglês era bastante precário, enquanto tentava explicar a situação.

O príncipe não se encontrava no hotel. Ele - Josef - saíra por breves instantes para tratar de um assunto particular e deixara o príncipe confortavelmente instalado na saleta a ver televisão. Fisher pensou para consigo que Heinrich devia ter a seu lado uma garrafa de brande...

Quando Josef voltara, o príncipe tinha saído. Estava preocupadíssimo, mas não fazia a menor ideia onde o patrão teria ido e por outro lado não podia fazer nada, senão esperar.

Fisher disse-lhe que o príncipe tentara, por duas vezes, falar-lhe pelo telefone. Josef saberia o que ele desejava? Não. A resposta foi rápida; Josef sabia apenas que o príncipe recebera um telefonema que parecia tê-lo perturbado bastante e tinha sido depois disso que tentara comunicar com ele.

Na opinião de Fisher, devia tratar-se de qualquer fraqueza devida ao alcoolismo e disse ao criado para não se preocupar. Telefonaria dentro de uma hora a fim de saber se o príncipe já regressara.

Depois subiu, foi ter com Paula e não tornou a pensar em Heinrich von Hessel.

O príncipe Heinrich von Hessel desceu pelo elevador e atravessou o vestíbulo do hotel com todo o cuidado. Encontrara o chapéu e a bengala. O porteiro do hotel aproximou-se imediatamente e perguntou se sua alteza desejava um táxi. O príncipe hesitou; a luz brilhante do sol, na rua, magoava-lhe os olhos; as pessoas passavam por ele a toda a pressa; tudo aquilo lhe fazia confusão e sentiu um impulso de voltar para trás e recolher ao seu abrigo, no hotel.

Heinrich não estava habituado ao mundo exterior sem Josef a seu lado, para suavizar o impacto. Porém, o hotel, afinal, já não era um abrigo e por isso resolvera deixá-lo.

Josef saíra. Quando o príncipe verificou isso assustou-se, ao pensar que se encontrava só depois daquele misterioso telefonema. O seu primeiro reflexo foi comunicar com Fisher, mas ele não estava. Então, perturbadíssimo, sentou-se junto do telefone, cada vez com mais medo, enquanto o telefonista do hotel tentava localizar o detective.

O criado dera-lhe uma dose de bebida reforçada, por lhe parecer que o príncipe estava preocupado e nada indicava que pensasse em sair, pois essa resolução só tinha sido tomada depois de receber o telefonema.

Agora, o porteiro estava ao lado do príncipe e perguntava-lhe se queria um táxi. Heinrich ainda não resolvera qual seria o seu destino; assim, abanou a cabeça e respondeu:

- Não, obrigado!

Então, começou a encaminhar-se lentamente para a Praça da Concórdia.

Heinrich era um homem muito interessante, com o seu ar distinto, afável, e várias pessoas se voltavam para o olhar duas vezes. Seguia de cabeça erguida, caminhando com o passo cuidadoso de quem não está sóbrio e segurava a bengala com a mão direita, sem saber para onde se dirigir nem por que motivo se havia de sentir mais protegido na rua do que no hotel.

Normalmente, era Josef quem atendia o telefone, mas no momento daquela chamada o príncipe encontrava-se sentado junto do aparelho a beber, vendo o programa das corridas na televisão, numa agradável neblina mental, sem aborrecimentos nem preocupações de maior. De súbito retiniu a campainha e, automaticamente, atendeu. A conversa foi curta e Heinrich apenas falou duas vezes. Da primeira, respondeu à pergunta que tinham feito, dizendo ser ele próprio quem falava e da segunda perguntara quem estava ao telefone; porém, o seu interlocutor não lhe satisfizera a curiosidade. Estranhamente, limitara-se a uma mensagem breve: se queria continuar a viver, que saísse imediatamente do Ritz! Nada mais, nada menos, do que um ultimato; em seguida, o silêncio.

O príncipe colocou o auscultador no seu lugar e ficou alguns momentos a olhar para ele, muito surpreendido. O medo só chegou um pouco mais tarde, depois de pensar melhor no caso. Tinha sido então que tentara contactar Fisher. Este homem era um detective; devia saber como proceder quando se recebiam ameaças. Devido à sua experiência do passado - fossem quais fossem as circunstâncias! - nunca se devia dirigir à polícia. Além disso, depois do acidente em que a criança se metera à frente do seu automóvel, ficara a antipatizar com eles. O facto de o carro ter subido o passeio não lhe acudia sequer à memória.

Não; não confiava na polícia, eles estavam apenas interessados em descobrir qualquer escândalo na família. Assim, não pensava em os chamar; quanto a Josef, era um criado e também não confiava muito nele. Limitava-se a pedir-lhe mais de beber e sentia-se confortado por ele se encontrar ali, na suite, podendo servir-lhe de protecção.

No entanto, após uma segunda tentativa vã para falar com Fisher, começou a ficar inquieto e chamou Josef. Foi nessa altura que descobriu encontrar-se só e, então, sentiu um pânico inexplicável.

Aquela suite encantadora pareceu-lhe mergulhada num silêncio estranho e inquietante. O quarto de cama, o quarto de banho e a saleta assumiram um aspecto sinistro, como se estivesse para acontecer qualquer coisa.

Tinham-lhe dito para sair imediatamente do Ritz, senão a sua vida perigava! Pegou no chapéu e na bengala e saiu.

Já na rua, o medo subsistia. O sol brilhava? mas não estava demasiado quente; começara a descer a tarde; era agradável o passeio a pé.

O príncipe sempre gostara de Paris; tinha melhores recordações de França do que de qualquer outro país como a Suíça e a Dinamarca, onde passara bastante tempo, numa clínica particularmente desagradável, antes da guerra. Desde então, odiava os dinamarqueses; quanto aos suíços, considerava-os carcereiros, mas dóceis e submissos, devido à sua posição e dinheiro e por isso a sua vida, enquanto estivera ao cuidado deles, não tinha sido muito desagradável.

Paris era a sua cidade favorita; sentia-se calmo e com um humor nostálgico. Um passeio a pé devia fazer-lhe bem; mostraria claramente o seu desagrado a Josef, quando regressasse ao hotel. Afinal, aquilo tinha sido apenas um telefonema e não o devia ter tomado a sério. Nenhum mal lhe poderia advir; mas Heinrich esquecera o que o assustara: aquela voz.

Encaminhava-se para os Campos Elísios quando de súbito parou. Um homem que seguia atrás tropeçou nele. O príncipe tirou o chapéu e pediu desculpa. O homem respondeu com uma imprecação e afastou-se rapidamente.

Havia um café no outro lado do passeio; Heinrich atravessou a rua sem pensar sequer se devia ou não. Sentou-se, colocou o chapéu e a bengala em cima de uma cadeira e chamou o criado.

Estava a precisar de uma bebida. Era uma simples necessidade que tinha de ser satisfeita. Depois, o pânico desapareceria e já não sentiria nada. Bebeu dois conhaques e acendeu um cigarro. Era um sítio esplêndido, muito agradável, de onde se viam passar as multidões.

Seguiram-se mais duas bebidas e Heinrich esqueceu-se por que precisava delas. Esqueceu também o telefonema. Começava a cair a noite e as luzes principiaram a brilhar ao longo da linda avenida central, enquanto as lojas e os cafés se preparavam para o negócio nocturno.

Pairava no ar um cheiro desagradável, misto das emanações de gasolina, do cheiro humano e dos cozinhados, vindos da cozinha. Pensou que talvez pudesse comer qualquer coisa. Porém, não era pressa. Tornou a fumar e o criado que, entretanto, andava a vaguear perto da sua mesa serviu-lhe imediatamente mais outro conhaque.

Heinrich passara dois meses em Paris antes da guerra; fizera a viagem com a avó paterna, um majestosa velha senhora que reservara um andar no Ritz para se acomodar com o seu séquito de pessoal, cabeleireira e enfermeira.

Tinha sido muito amável para com o neto, cuja doença não compreendia muito bem. Heinrich gostava dela; amor era uma palavra demasiado forte para descrever qualquer emoção sua. Heinrich nunca amara. Realmente jamais sentira amor... existia e bebia, para tornar essa condição mais fácil.

Acompanhara a velha princesa a Paris e sentira uma espécie de felicidade muito especial. Sim, uma felicidade muito especial.

Recordou então essa visita, enquanto a vista e os aromas da cidade acompanhavam as lembranças. As recordações apresentavam-se desconexas, incoerentes, mas, no fundo, tinham certa realidade.

Heinrich acariciava o balão de conhaque com os dedos e sorria. Os criados observavam-no e segredavam. Já estava na verdade bastante embriagado; ergueu o copo como se o braço direito fosse um guindaste a levantar uma carga enorme. O cigarro ardia, esquecido no cinzeiro e os olhos tinham uma espécie de brilho vidrado, enquanto olhava em frente, muito distraído.

Os criados apostavam a ver quando ele sossobraria. Cada vez estava mais escuro; os carros que seguiam pelos Campos Elísios formavam uma corrente de luzes vermelhas; o príncipe continuava sentado, muito direito como uma figura de cera, bebendo conhaques sobre conhaques.

Quando queria mais erguia a mão, fazia um estalido com os dedos, mas entretanto, algures no recesso do seu cérebro, um sinal avisou-o ser tempo de regressar ao hotel.

Ajudaram-no a levantar-se; Heinrich levou alguns minutos para encontrar a carteira e tirar uma nota.

Um homem que se encontrava numa mesa próxima e estivera a beber cafés e a ler o jornal levantou-se também, pagou a conta e aproximou-se. Parecia condoído.

- Eu acompanho-o a um táxi - disse - e levo-o a casa. Pobre diabo! Tive um irmão assim...

Pegou no chapéu e na bengala e ofereceu o braço ao príncipe.

- Não há novidade!... Dê-me o seu braço e segure-se bem.

Não encontraram nenhum táxi. O príncipe tentava libertar-se. Parecia-lhe que podia caminhar sozinho e irritava-se por se sentir conduzido. Por fim conseguiu libertar o braço, mas vacilou imediatamente e perdeu o equilíbrio. O homem auxiliou-o e ele deixou-se amparar.

Naquele momento estavam perto do Sena, avançando lentamente na direcção da elegante silhueta da Pont Neuf. Não falavam. Parzinhos passavam por eles, de braço-dado, muito juntos um ao outro.

O príncipe não fazia ideia das horas; as estrelas brilhavam no céu, lá no alto, reflectidas nas águas escuras do Sena. O seu reflexo dançava ao sabor da maré. Um barco passou com as luzes de estibordo acesas como se fossem olhos na água.

Pararam. O homem deixou de segurar o príncipe.

- E agora - disse o general -, por que razão se encontra aqui?

Heinrich olhou para ele, meio deslumbrado, mas incapaz de fixar a vista.

- Quero ir-me embora... Para o meu hotel... Quero regressar ao hotel...

- Irá depois de me responder. Por que motivo veio a Paris? Por que razão o deixaram voltar aqui?

O príncipe sorriu, subitamente. Não fazia a mais leve ideia da razão por que se encontrava junto do rio, respondendo àquelas perguntas. Não reconhecera o homem que lhas fazia e que retirara de súbito o braço que o amparava, precisamente quando precisava mais dele. O seu espírito não registava nada, senão a última coisa que ouvira. Pensou na mãe.

- Ela não conseguiu evitar!... -respondeu. -Eles não querem a minha interferência, mas eu sou o chefe da família e tenho o direito de saber!

- Isso está certo! - concordou o general. - Com certeza está a aborrecê-los!

- Não quero a taça! - murmurou o príncipe. - Já disse à minha mãe para se deixar disso, mas o senhor sabe como ela é... Consegue sempre tudo o que deseja!

Heinrich vacilou e agarrou-se ao parapeito, um tanto desajeitadamente.

- Sim... - disse o general. - Conheço-a, mas ela nem sempre consegue fazer a sua vontade. Que quer dizer acerca da taça? Ela desapareceu... está perdida para a vossa família.

- Ela está convencida que há-de encontrá-la! O príncipe soltou uma gargalhada horrível.

- Ela julga que o Bronsart ainda está vivo!... Oxalá que esteja... Quem dera! Sabe uma coisa? Ele é o único homem capaz de a assustar! Sabia?

- Sabia - respondeu o general com um gesto de assentimento.-Sabia... E quando regressa o senhor a casa?

- Não regresso! - retorquiu o príncipe. - Gosto de Paris! Tem para mim grandes recordações! Recordações muito felizes. Fico onde estou. Talvez para sempre... Para que havia eu de voltar para casa?... Agora vou-me embora... sinto as pernas cansadas...

- O senhor é um homem cansado, vê-se perfeitamente ... - disse o general.

- É uma grande amabilidade da sua parte acompanhar-me ao hotel

O príncipe levantou a cabeça e olhou para ele.

- É um prazer! Vamos embora?

- Sim... Vamos! Os dois homens seguiam por baixo do parapeito, na

margem escura do rio.

- E tem a certeza de que quer ficar em Paris?... Não estaria mais seguro em qualquer lado, em vez do Ritz?!

- Não! Temos um detective que anda à procura da jóia. Ele cuidará de mim. Pensei que conseguira telefonar-lhe!... Vamos embora! Porque não vamos já.

- Vamos, sim - respondeu o general-, mas por caminhos separados!

Não havia ninguém à vista. O rio não tinha tráfego. O general recuou um passo e deu um soco na cara do príncipe. Antes do pesado corpo ter vacilado e caído, agarrou-o e suportou-lhe o peso. Depois voltou-o, empurrou-o e afastou-se imediatamente. Houve um chape, algumas gotas de água salpicaram o pavimento e a frente do casaco do general. Ele sacudiu-as e afastou-se para o lado.

Não se notou mais nada, senão uma certa turbulência na água e um círculo de bolhas de ar. Mesmo que o general não o tivesse atordoado com o soco, o príncipe encontrava-se demasiado embriagado para nadar. Depois, o general olhou e viu a bengala no sítio onde o príncipe a deixara cair. Deixou-a onde estava e começou a andar; atravessou a rua. Enquanto esperava um táxi, acendeu um cigarro. Agora quando tornasse a telefonar para o hotel, a suite do Ritz já não estava ocupada!

O primeiro telefonema que Fisher recebeu foi do príncipe Philip von Hessel, anunciando-lhe que o irmão saíra do hotel e tinha desaparecido.

Na manhã seguinte os jornais traziam a notícia e nas primeiras páginas publicavam a fotografia da bengala do príncipe com o castão de prata, no chão, à beira do rio.

- Que horror!-exclamou Paula. - É já a segunda morte!

- Bem sei... - respondeu Fisher, apertando-lhe a mão. Paula estava pálida e com um ar infeliz. Custava-lhe suportar aquilo e Eric só desejava vê-la sorrir e poder apertá-la nos braços.

- Eu sei... As coisas estão a tornar-se bastante aborrecidas. Escuta, querida, tenho estado a pensar numa coisa... Já sei que não vais gostar da ideia, mas, mesmo assim, parece-me não ser má de todo... Gostava que voltasses para Londres...

- Não!-exclamou Paula imediatamente, voltando-se para ele. - Eu já sabia o que ias dizer! Mas por que motivo havia de regressar? Fizemos uma combinação e prometeste cumpri-la.

- Exacto - concordou Fisher. - Prometi ajudar-te a encontrar o teu pai, mas agora já não sei se isso será uma ideia razoável. Sê boa rapariga e desiste. Deixa-me ver se descubro essa maldita peça tão valiosa! Se não o conseguir, paciência, e os Von Hessel receberão o depósito feito; pelo menos é essa a minha opinião. Porém, não gostava de te ver misturada neste assunto. Não gosto nada da feição que começou a tomar...

- Não regressarei a Londres! - teimou Paula. - Não desisto! Disseste que gostavas de mim... Amas-me... Por minha vez já te expliquei o que isto representa a meus olhos. Se me queres obrigar a desistir, nunca te perdoarei!

- Sabes perfeitamente que nunca faria semelhante coisa! Mas quanto a amor, ainda não pensaste se isso não será só de um lado? Compreendo o que sentes a respeito de teu pai; porém, não tenho a certeza do que sentes por mim...

- Pois devias ter! Já te disse: também te amo. No entanto, isto é uma coisa que tem de ser feita primeiro!

- Não sei... - disse Fisher, lentamente. - Não sei se não estarás a enganar-te a ti própria. Talvez no teu coração não haja lugar senão para esse fantasma que criaste e, como sabes, ele tem um nome!

- Sei muito bem - insistiu Paula, erguendo-se-, mas como também já te disse, não me importo. Quero ter oportunidade para julgar por mim mesma, de contrário passarei o resto da vida a lembrar-me das coisas que aquela mulher disse! Não és capaz de compreender a minha situação?

- Não... - respondeu Fisher. - Com toda a franqueza... não! A única coisa que percebo é que não sou o suficiente para ti e isso é muito dificil de aceitar. É engraçado... és a primeira mulher por quem realmente me interesso. Queres casar comigo, ou isso fica na lista de espera?

- Nada de discussões! -exclamou Paula.

E, colocando-lhe os braços em volta do pescoço, acrescentou - Por favor não me digas coisas dessas! Sei que é dificil aceitares a situação, mas tenta ser paciente... Como posso eu dizer-te que caso contigo, neste momento, se a minha vida é um caos? Estou divorciada apenas há algumas semanas e agora vou encontrar o meu pai depois de pensar que tinha morrido quando eu era ainda uma criança! Sê razoável!

- Não! Parece-me que não posso!

Eric puxou-a para si e beijou-a suavemente nos lábios.

- O meu mal é ter medo de te perder!

- Não tenhas - disse Paula. - Preciso de ti... e provavelmente ainda vou precisar mais, antes de tudo terminar. Toda a vida tenho sido posta de parte e obrigada a tratar da minha vida sozinha, mas as mulheres não toleram isso! Fi-lo, mas sentia-me numa posição horrível... Contigo, sei que será diferente... És um homem, querido! És um homem e por isso te amo! Provavelmente és o primeiro que encontrei em toda a minha vida!...

- E o último, se me permites uma opinião - disse Fisher. - Mas, a propósito: não gostarias de me provar o que acabas de dizer?

- Como?

- Permitindo-me que te fizesse amor...

- Isso convencia-te?

- Não sei... -respondeu Eric, apertando-a pela cintura.-Porém, creio que ajudaria...

Paula não respondeu. Deixou-se ficar como estava, sentindo as contracções do corpo dele e permitindo que Eric lhe revelasse a carícia de duas bocas feitas numa só boca, enquanto as mãos sequiosas começavam a desapertar-lhe o fecho do vestido.

Aquela maneira de fazer amor era diferente da do marido, de James. Tratava-se de uma forma mais possessiva, embora mais refreada.

Fisher sabia o que estava a fazer; tomou imediatamente a iniciativa e não deixou acalmar a labareda. Conduziu Paula para o quarto, continuando sempre a beijá-la, num hino desaustinado de amor. Não dizia nada; não empregava nenhum dos superlativos que ela ouvira acerca do seu corpo ardente e luxurioso, nem lhe falava na viagem fantástica e aliciadora que iam fazer.

Eric não dizia nada; usava apenas o bailado másculo e poderoso do seu corpo, num ondular flexível e cadenciado para a fazer delirar e sentir um anseio estonteante, dando assim ao acto do amor um significado tão profundo e expressivo como Paula nunca julgara poder existir.

Não tinha dúvidas; Eric amava-a, sabia afagá-la na sua paixão e, pela primeira vez na vida, Paula sentiu-se dignificada pelo arrebatamento sexual, em vez de desenganada.

- Amo-te!... - murmurou. - Quero-te muito e ninguém, nem coisa alguma, conseguirão arrancar-te dos meus braços! Nunca esqueças isto!

- Não... -segredou Paula.- A partir deste momento acredita que nada nos separará!

Durante o resto da noite, Eric não duvidou, mas pela manhã, ao acordar e quando saiu, deixando-a a dormir, já não sentia a mesma segurança.

Às onze horas, Fisher chegou à Súreté e pediu para falar com o superintendente Foulet. Este, porém, estava muito ocupado; parecia bastante fatigado e pouco satisfeito com a visita de Fisher; depois, a sua expressão mudou. Pediu-lhe para se sentar.

- Espero que me desculpe - disse ele -, mas estou com grande falta de tempo. Estes Von Hessel dão comigo em maluco. Porque havia uma pessoa tão rica de querer atirar-se ao Sena? Raparigas pobres e estudantes sem vintém, ainda se compreende, mas aquele boche com todos os seus milhões!

- Eu conheci-o - disse Fisher. - E talvez possa fornecer-Ihe a explicação. Mande analisar o conteúdo do seu estômago e encontrará lá dentro álcool suficiente para qualquer pessoa se afogar. Ele não se atirou ao Sena, Superintendente, caiu!

- Tem a certeza?

- Absoluta. A princesa Von Hessel é a cliente para quem estou a trabalhar...

Eric viu a mandíbula do velho polícia descair.

- Para os Von Hessel?! Eles querem descobrir esse criminoso de guerra? Era por causa disso que o príncipe estava em Paris?

- Em parte - respondeu Fisher - e em parte para se intrometer. Estou convencido de que metade do tempo não sabia o que fazia! Pobre homem! Que maneira tão estúpida de morrer!

- Não diga isso! - exclamou o francês, cujos olhos escuros tinham uma expressão hostil -, não tenha pena dele nem de nenhum deles! Os Von Hessel são um bando de milionários criminosos, culpados de tudo quanto os nazis fizeram. Trabalhos forçados, colaboracionistas ao máximo e prosperando sempre à custa das vítimas alemãs. Não desperdice a sua simpatia com nenhum dos Von Hessel! São todos o mesmo! Nenhum se aproveita!

- Se o senhor o diz!... Eu limito-me a receber o dinheiro e a fazer o meu trabalho. E a propósito: o senhor teve a bondade de me telefonar, não é verdade?

- Exactamente! Foi por causa daquela sua pergunta... a Tia Ambrosine e Jacquot...

Fisher ficou em ânsias.

- Sim... Encontrou-os?

- Oh! Não!... - respondeu o superintendente, abanando a cabeça e franzindo as sobrancelhas. - Eu não faço milagres! Esses nomes são um mistério para mim, mas tenho um amigo a quem pode ir visitar... Trabalhou na Resistência durante a guerra, e operava em Paris quando Bronsart cá esteve. Talvez ele consiga dizer-lhe alguma coisa... Escrevi o nome e a morada num papel. Um momento, enquanto procuro...

Em seguida passou uma folha de bloco a Fisher.

- Tenho a certeza de que gostará de falar com ele - disse Foulet. - É um velho amigo meu e um homem formidável. Era comunista e dirigia a rede Maquis de maior êxito, na área central de Paris. Agora está retirado; a política enoja-o, tal como nos enoja a quase todos nós, mas ele é a pessoa que lhe poderá valer, caso haja alguém nessas condições! E agora dá-me licença? O telefone ainda não parou de tocar durante toda a manhã e eu tenho uma imensidade de trabalho a fazer!

Fisher agradeceu e saiu.

Uma vez na rua parou e tornou a ler o nome e a morada: Albert Montand e o número de uma casa no 16.° Bairro. Para um ex-comunista, era um sítio excessivamente chique para viver...

Meteu o papel na algibeira e seguiu para o Hotel Ritz a fim de falar com o príncipe Philip. A princesa devia chegar de avião ainda nesse mesmo dia e tinham combinado levar o corpo do príncipe Heinrich para a Alemanha, para ali ficar sepultado.

No caminho, pensou que a família talvez estivesse demasiado preocupada com o escândalo, para se interessar por outra coisa, incluindo a obra de arte de Cellini.

E isso foi precisamente a primeira coisa que o príncipe lhe disse, depois de Fisher lhe ter apresentado as suas condolências.

- Quero que termine com as investigações - disse Philip von Hessel. - Peço-lhe que aceite um cheque meu para cobrir as despesas feitas e ainda uma importância substancial para compensar o tempo perdido. Tentei persuadir minha mãe a pôr esta investigação de parte, mas não consegui; agora, sei que ficará satisfeita, esquecendo tudo.

- Recebeu instruções de sua mãe para fazer isso? perguntou Fisher. - Instruções por escrito, quero eu dizer.

- Não - retorquiu o príncipe. - Encontra-se demasiado desgostosa com o sucedido a meu irmão para ir apoquentá-la agora com o assunto. Porém, pode confiar na minha palavra!

- Infelizmente, não posso! - respondeu Fisher. - Pensei que já lhe tinha dito isto mesmo... Estou a trabalhar para sua mãe e se ela quiser pôr ponto no assunto, terei muito prazer em cumprir as suas ordens, mas por razões pessoais, príncipe Von Hessel, estou ansioso por encontrar o general Bronsart ou a obra de arte de Cellini e sinto-me responsável perante a minha cliente. Por favor não me ofereça dinheiro, pois sairei imediatamente daqui se insistir. Sou alérgico a subornos...

Por momentos, o príncipe ficou a olhar para ele; depois, subitamente, fez um gesto e disse:

- Mr. Fisher, por favor, sente-se e escute-me... Esqueça que está a trabalhar para minha mãe. Quero falar consigo de homem para homem... Pertenço a uma velha e digna família. Durante a guerra perdemos o nosso bom nome e fizemos coisas de que me sinto pessoalmente envergonhado. O que nos teria acontecido se tivéssemos recusado colaborar com os nazis, pode ser discutido sob vários aspectos. Não estou preparado para julgar os meus pais, pois naquela idade não sabia avaliar as consequências e é sempre fácil julgar retrospectivamente. Hoje, porém, desejo resgatar o passado e quero colocar a minha família, para sempre, como uma fonte de energia no destino da pátria. A isso tenho dedicado a minha vida -se entende que devemos dar às coisas estes termos dramáticos! - e essa obra de arte de Cellini pode destruir tudo quanto pretendo fazer.

Philip interrompeu-se por um breve instante e depois prosseguiu:

- Agora que meu irmão Heinrich morreu, estou certo de que o conseguirei. Minha mãe ainda tem toda a autoridade nas suas mãos, mas está velha e creio poder persuadi-la e transferi-la para mim. Estou muito a tempo de fazer qualquer coisa construtiva e nobre, com os nossos recursos. Portanto, ponha fim a essa investigação... Peço-lhe como um favor pessoal, não por dinheiro, se isso o ofende!, mas sim por muitas e mais importantes razões. Não mexa mais nesse assunto...

Por momentos, Fisher esteve tentado a aceder. Philip pareceu-lhe muito sentimental e nobre e as suas palavras faziam chegar as lágrimas aos olhos. Teria sido mais fácil pôr o assunto imediatamente de parte se o seu apelo fosse uma peça de chantagem; mas não, era sincero. As palavras eram verdadeiras; falava com o idealismo apaixonado que representava mais uma faceta contraditória da sua raça. Porém, Fisher também tinha as suas éticas e delas não se separava para salvar a alma de um Von Hessel.

Ergueu-se e disse:

- Desculpe-me... Repito que desistiria do caso com a mesma boa vontade do senhor, mas só o poderei fazer se receber instruções directas de sua mãe. Mais ainda, se ela pedir a minha opinião, aconselho-a a esquecer o assunto. É o máximo que posso fazer.

- Obrigado!-disse o príncipe Philip, que não parecia tão grato como dizia, enquanto tocava a campainha que estava junto do fogão.

Apareceu um criado de libré.

- Acompanhe Mr. Fisher - disse ele.

- Lamento muito o que sucedeu a seu filho - murmurou Dunston.

- Obrigado - respondeu a princesa em voz rápida, sem mostrar desejos de discutir o caso. - Por que motivo me telefonou?

- Recebi uma carta da Suíça - explicou Dunston. - Já fez o primeiro pagamento... Muito obrigado. Pensei, portanto, que devia vir dizer-lhe que estou pronto para entrar em acção acerca do assunto de que falámos. Vou investigar e dar uma volta, para me encontrar com a pessoa em causa. Compreende, não é verdade?

- Desde o momento que consiga atingir o fim em vista, não me interessam os métodos - respondeu a princesa -, mas o seu sócio está cheio de confiança... Assim, espero que seja bastante eficiente na maneira de conduzir o nosso negócio.

- Oh! Não se preocupe! Pagando o preço que paga, obterá os meus melhores serviços!

- Que pensa fazer agora?

- Vou para lá. Quero estar no local.

- Muito bem. Não me parece necessário tornar a haver qualquer contacto. Quando completar a sua tarefa a conta será paga no total. Adeus, Mr. Dunston!

- Adeus!

Desligou e, por momentos, deixou-se ficar sentado a olhar para o telefone.

Durante as últimas duas semanas, muita vez acordara de noite -enquanto a mulher dormia profundamente a seu lado - a pensar se seria capaz de fazer o que prometera, embora isso representasse entrar na posse de uma enorme fortuna.

Dunston não era pessoa para escrúpulos, nem tinha uma imaginação impressionável. Não haveria fantasmas capazes de lhe perturbar a consciência, nem teria de acalmar qualquer sentimento de culpa, para gozar uma vida de despreocupação e riqueza. Nunca olharia para o passado, mas nas horas de silêncio durante a madrugada, analisava o problema e ponderava nos meios a empregar.

Já uma vez matara - durante o exercício das suas funções como polícia- e isso deixara-o absolutamente tranquilo. Tinha uma fraca opinião a respeito dos seres humanos e ainda muito mais baixa a respeito do seu valor no esquema da vida. Em resumo, possuía uma certa afinidade com a desonestidade, devido -segundo supunha- ao seu longo contacto com crimes e criminosos.

Sabia-se que nalguns casos, a lama dos transgressores da lei tendia a sujar aqueles que estavam empenhados na sua supressão. O polícia que se submetia era um fenómeno familiar, e Dunston ter aceite o suborno de um dos homens mais importantes da quadrilha do contrabando, era o progresso lógico da sua atitude nesse trabalho. Não se mostrara muito difícil. Dez mil libras era muito dinheiro e o que lhe pediam para fazer bastante simples: demorar as operações e pouco a pouco ir suprimindo as provas.

Retrospectivamente, a sua acção tinha sido uma loucura. Arriscara a carreira por não ganhar bastante e depois quando saíra da Interpol, deixando uma interrogação quanto ao seu carácter, prometera a si próprio não tornar a correr riscos dessa espécie. Dirigia a agência com uma honestidade escrupulosa, ajudado pela atitude firme de Fisher, que não admitia nada contra as regras.

Mas o que ele ia fazer agora era uma coisa muito diferente de aceitar dinheiro e obstruir uma investigação. Era cometer um crime!

E Dunston disse a palavra em voz alta durante as suas meditações noctuma

  1. Teria de matar uma mulher de maneira que nunca lhe pudessem atribuir a mais leve culpa... Nem a ele nem a ninguém e isto significava que a morte devia ser provocada por um acidente.

Desta vez, Dunston gostou do som da palavra. Sugeria cenas de automóveis caindo sobre os rochedos, comboios avançando com enorme barulho sobre um corpo arremessado para debaixo dele, de janelas a grande altura do chão.

Assim, quando se desembaraçasse de Paula Stanley, tinha de o fazer de forma a não dar a impressão de crime, pois, como profissional, sabia perfeitamente que uma vez que começasse uma investigação -por muito cuidado que o assassino tivesse em tramar o crime - as possibilidades de ser descoberto eram maiores do que as de se livrar.

Por outro lado havia uma circunstância que muito o preocupava: a simpatia de Fisher pela rapariga. Era preciso saber em que ponto estavam essas relações; iria a Paris e começaria a observar a sua vítima e a analisar a sua rotina.

Este era o primeiro passo para conseguir o seu fim de a isolar e depois matá-la. Não ia ser fácil; Dunston sabia muito bem as dificuldades que encontraria e não tentara minimizar os riscos. Porém, no outro prato da balança havia uma soma de dinheiro tão grande que era difícil acreditar não ter coragem para a alcançar.

O primeiro pagamento adiantado, já por si representava uma fortuna e estava depositado num banco suíço, numa conta de que ele tinha o número. Assim, a importância final permitir-lhe-ia ir com a família viver para qualquer parte do mundo, longe da agência e sem a necessidade de pensar em dinheiro. Podia comprar uma vivenda em Portugal, onde passara umas férias esplêndidas. Compraria também um iate e o automóvel que quisesse. Quanto à mulher

- boa rapariga e boa mãe - comprar-lhe-ia algumas jóias e ele - Dunston - poderia ter todas as mulheres que quisesse. Enfim, seria um mundo de felicidade para todos!

Dunston pegou no telefone e começou a traçar planos para a sua ida a Paris.

Fisher chegou ao local onde habitava Montand e verificou tratar-se de uma elegante moradia com uma linda fachada século XVII.

Uma criada fardada abriu a porta da rua e conduziu-o a uma sala no primeiro andar.

Para ser sincero, Fisher tinha certa dificuldade em ajustar a descrição de Foulet - contando-lhe que Montand era comunista - com um homem a viver numa zona chique e requintada e numa casa cara. Depois, ao transpor a porta e vendo um Modigliani pendurado na parede, desapareceram-lhe completamente todas as noções preconcebidas a respeito do que iria encontrar.

A sala era comprida, discretamente iluminada por luz indirecta -vinda do tecto- e focando quadros que, até mesmo aos olhos desinteressados de Eric, pareciam de facto muitíssimo bons. A sala era moderna, de luz suave, confortável, com um certo ar de galeria de arte, tendo também várias peças de arte de escultura avant-garde.

- Monsieur Fisher - anunciou a criada.

De um sofá forrado de pele branca, ergueu-se uma senhora que se dirigiu para ele, de mão estendida.

- Boa noite!... Sou Madame Jenarski... Albert não demora. Tenha a bondade de se sentar. Deseja tomar alguma coisa?

Tratava-se de uma mulher de 50 anos, de cabelo escuro, olhos negros a brilhar como carvões, ainda com um rosto bonito -que noutros tempos devia ter sido lindo- mas agora um tanto desfigurado por linhas profundas que lhe vincavam a pele da fronte.

Estava muitíssimo bem vestida e com um alfinete de ouro com rubis, em forma de tigre, no ombro esquerdo. Rica; devia ser riquíssima. O perfume que usava custava dez libras cada onça.

Sorriu para ele; na boca notava-se a cintilação do ouro. Não era francesa; Fisher calculou que talvez fosse grega.

Sentou-se e aceitou um uísque. Depois Madame Jenarski ofereceu-lhe também um cigarro, de uma pequena caixa de ouro. Eric fez um pequeno comentário a respeito do tempo. Ela sentou-se na sua frente e sorriu-lhe de novo, perguntando - Por que motivo deseja falar com Albert, Mr. Fisher? O seu amigo Jean Foulet anunciou-nos a sua visita. Espero que o assunto não seja nada que o possa perturbar...

- Não, minha senhora. Estou a fazer uma investigação e vinha pedir a sua ajuda, convencido de que me poderá auxiliar...

- Trata-se de alguma coisa relativa à guerra? Oxalá não seja nada ligado com o campo de concentração! Não permitiria que lhe falasse nesse assunto, pois isso podia perturbá-lo e ser-lhe-ia muito prejudicial.

- Não, minha senhora! - repetiu Eric admirando-lhe a rectidão, embora ressentindo o tom em que se lhe dirigia. -

Não se trata de nenhum assunto relativo a campos de concentração...

Fisher fez uma breve pausa e depois continuou:

- Nesse caso, calculo que esteve prisioneiro...

- Sim, esteve em Dachau durante oito meses. Quando vir Albert, compreenderá o que lhe fizeram. Muita gente tem tentado entrevistá-lo para escrever a história da sua vida... Compreende, não é verdade? Seria muito doloroso para ele fornecer pormenores dessa época!... Levei cinco anos para conseguir fazer dele o que hoje é, Mr. Fisher!

- Ficou inválido e a senhora tratou dele, não é verdade?

- Não... - respondeu Madame Jenarski. - Agora, graças a Deus, já pode andar. Levei-o aos melhores especialistas da Europa para ver o que conseguiriam... Os alemães deixaram-no estropiado... Sofreu horrivelmente! Quando o encontrei, terminada a guerra, estava num hospital de doentes incuráveis, morrendo de solidão e desespero. Tive muita sorte em conseguir encontrá-lo!

- E ele também!-observou Fisher.

Os olhos negros da sua interlocutora cintilaram.

- Não! A sorte foi minha! Albert salvou-me a vida durante a guerra. Amava-o quando era o maior herói da Resistência, na época em que os malditos boches, em Paris, o procuravam. Agora, se é possível!, ainda o amo mais e poder cuidar dele é para mim um verdadeiro privilégio, Mr. Fisher!

- Muito obrigado, por me ter contado tudo e prometo não falar em coisa nenhuma que possa impressioná-lo.

- Assim espero!

Ela sorriu e tornou a ser encantadora.

- Albert ficará muito satisfeito em recebê-lo. Gosta de visitas...

Quando a porta se abriu, ambos se levantaram. Montand entrava, amparado a duas bengalas; tinha uma das pernas grotescamente torcida. Era quase calvo, e a pele cheia de rugas dava-lhe uma aparência de velho. Uma venda cobria-lhe o olho direito.

Fisher aproximou-se e apresentou-se.

Madame Jenarski dirigiu-se para Montand e passou-lhe um braço em volta da cintura.

- Senta-te, Albert! Estive a conversar com Monsieur Fisher... Vou preparar-te uma bebida, sim?

Eric não iniciou a conversa. Deixou que Montand se instalasse numa cadeira e aceitasse a bebida. Por fim, foi ele quem falou, perguntando:

- Em que lhe posso ser útil? Jean Foulet falou-me um pouco a seu respeito. É detective particular, não é verdade?

- Exactamente. Não posso entrar em pormenores a respeito do meu trabalho, conforme calculará... mas, muito resumidamente, dir-lhe-ei estar interessado na carreira do general Bronsart, que foi comandante das S.S. em Paris, por volta de Junho de 1944.

Os olhos de Montand eram cinzentos-claros; pelo menos, aquele que se via tinha esse tom e estava profundamente enterrado na cara. Fisher pensou, subitamente, como era difícil calcular emoções num homem, sem ter o guia de dois bons olhos.

- Conheci-o - respondeu Montand. - Qual o seu interesse por ele?

- Roubou um tesouro de arte - explicou Fisher.

Ao mesmo tempo pensou que, sem uma explicação mais ampla, Albert e a mulher se recusariam a falar.

- Os proprietários originais estão muito interessados em recuperá-lo. Temos uma ou duas fracas pistas; uma delas é o nome de um homem e o inspector Foulet disse-me que talvez tivesse algum significado para o senhor...

- Ele contou-me... - respondeu Montand - Tia Ambrosine e seu sobrinho Jacquot, não é verdade?... O senhor quer saber o significado?

- Quero... Gostava imenso. É muito importante. Quem são a tia Ambrosine e Jacquot?

Era tudo simples e sem qualquer esforço da sua parte. Eric fez a pergunta e de súbito, inesperadamente, ouviu a resposta:

- Tia Ambrosine era o nome de código da minha rede durante a guerra - explicou Montand. - Quanto a Jacquot era o nome de código de um dos seus membros. Porém, ele nada poderá fazer para o ajudar, Monsieur Fisher. Morreu... Foi executado por ordem pessoal do general Bronsart nesse mesmo mês de Junho.

Na sala reinava um profundo silêncio; nenhum dos três se moveu. Depois, Fisher disse calmamente:

- Sempre receei qualquer coisa desse género. O senhor conhecia-o bem? Por que razão Bronsart usou o nome dele em relação a um objecto saqueado e escondido?

- Por que motivo o general o mandou fuzilar?! Era um rapaz humilde, ainda muito jovem e sem importância. Foi preso e interrogado. Executaram-no no dia seguinte. A mãe contou-me como foi. Agora o senhor diz-me haver uma ligação com um tesouro escondido...

O único olho que o fitava, desviou-se de Fisher para Madame Jenarski.

- Que te parece, Madeleine?

- Parece-me uma coisa fascinante - respondeu ela, sorrindo, enquanto uma expressão de ternura lhe suavizava o rosto. - Um tesouro escondido... fascinante!-repetiu.- Pobre Jacquot!... Não posso compreender a ligação do desgraçado com semelhante coisa!... Lembro-me perfeitamente dele!

E voltando-se para Fisher, prosseguiu:

- Compreende... ele trabalhava para Albert, tal como eu. Embora não seja francesa, encontrava-me em Paris quando eles invadiram a Grécia, a minha terra. Assim, encontrei Albert e tornei-me num dos seus mensageiros. Nesse tempo, ele não me ligava grande importância... não simpatizava com as pessoas ricas, não é verdade, querido?

Montand abanou a cabeça; a cabeça calva brilhou à luz da lâmpada que estava por cima dele.

- Pois não... Porém, tentei remir-te, não foi? O senhor compreende... era um fervente comunista e esperava salvar a alma de Madeleine apesar da sua riqueza! E ainda penso da mesma maneira, embora tenha a sorte de gozar essa fortuna!

Albert riu e Madeleine acompanhou-o.

- Não há mais nada que me possa dizer a respeito de Jacquot?

-Nada!

Ambos abanaram a cabeça em uníssono.

- Era um mensageiro - disse Montand. - Um rapaz calmo, simples, leal e bom patriota. Foi capturado por uma questão de pouca sorte: foi surpreendido na rua, por ocasião de uma rusga da Gestapo para apanhar reféns. Levaram os desgraçados para a prisão de Fresnes, onde estiveram alguns dias antes de serem executados. Quanto a Jacquot, foram-no buscar na manhã seguinte, levado à presença do general e executado minutos depois... Recolhi todas as informações possíveis por outros prisioneiros que se encontravam em Fresnes. Disseram também que Jacquot estivera ausente toda a noite e regressara sem qualquer marca... E quando eles interrogavam... acredite, senhor!... deixavam sempre marcas!...

Montand ergueu a mão e tocou na venda. Madame Jenarski ergueu-se subitamente e olhou para Fisher.

- Obrigado por ter vindo ver-nos - disse ela. - Desculpe não podermos dar-lhe maior ajuda... Eu acompanho-o!

Fisher apertou a mão de Montand. De perto, podia ver uma cicatriz horrível por debaixo da venda. Lá em baixo, no vestíbulo, Madeleine voltou-se para ele e estendeu-lhe a mão.

- Vi uma notícia nos jornais há talvez um mês - disse ela. - Parece que alguém reconheceu aqui Bronsart... Curiosa coincidência... foi a mãe do pobre Jacquot quem julga tê-lo visto!

- Agradeço as suas condolências...

A princesa estava sentada, direita como um fuso, vestida de preto dos pés à cabeça, mas os seus olhos claros não mostravam sinais de choro recente.

Fisher apresentara-se na manhã seguinte à da sua chegada a fim de lhe fazer o relatório. Apresentara-lhe as condolências, por mera formalidade e ela aceitara-as secamente, como se o desprezasse por estar a desperdiçar o tempo de ambos.

Enquanto olhava para aquele rosto duro, cujas feições mais se destacavam devido ao vestido e lenço de seda pretos, Fisher recordou-se das feições contorcidas do filho que morrera, com aquela mesma expressão de desespero no olhar e tornou a ter pena dele.

- Foi um assunto muito desagradável - disse ela, subitamente. - Fui assediada por fotógrafos quando cheguei e os jornalistas estavam escondidos no hotel. Avisei a gerência, dizendo que se algum intruso conseguisse aproximar-se de mim, mudava imediatamente para o Crillon!

A princesa reservara aposentos no Ritz, no andar por baixo daquele onde estava instalado o seu filho Philip.

- Afogado no Sena! - exclamou. - É inacreditável! Que coisa tão vulgar nos havia de acontecer! Se meu filho tivesse morrido de qualquer outra maneira, Mr. Fisher, talvez encarasse o caso com mais serenidade de ânimo!

Fisher calculava isso perfeitamente. A princesa fazia tão pouco esforço para se fingir pesarosa que chegava a ser grotesca. Eric sentia aumentar a sua antipatia pela princesa, na mesma proporção da sua pena pelo infeliz alcoólico, cuja morte tinha sido tão pouco lamentada.

- Fui visitar o príncipe Heinrich... - disse Fisher, enquanto o olhar frio como aço se fixava nele.

- Porquê?

- Queria fazer-lhe o meu relatório - respondeu Fisher sem conseguir conter-se. - Devo dizer-lhe, princesa, que me pareceu que estivera a beber.

A observação foi feita com a malícia pura e simples da classe baixa; pelo menos era assim que Fisher analisava o motivo, para consigo. Queria ver aquela arrogante cadela um pouco amachucada. A boca contorceu-se num gesto de desprezo, que Fisher não sabia bem se seria pelo seu esforço para tentar amesquinhá-la.

- Meu filho bebia de vez em quando - explicou, friamente. - Porém, portava-se sempre como um cavalheiro e só isso interessava. Que progressos conseguiu?

- Não muitos, depois da última vez que lhe apresentei o meu relatório. No entanto, descobri um homem que parecia fazer parte vital do assunto, mas já morreu. Receio bem que isso nos conduza a um ponto morto.

- Porquê? O senhor adquiriu a certeza de que o general está vivo. Concordo consigo! Já conseguiu contactar a filha, portanto, o que resta fazer é resolver o enigma!

- O homem que morreu, fazia parte dele!-disse Fisher. - Esperava que estivesse vivo e nos pudesse dar algumas respostas; porém, morreu e a sua morte deve-se a uma ordem dada pelo próprio general!

Mal acabou de pronunciar estas palavras, Fisher compreendeu a irracionalidade do argumento e ficou surpreendido por não ter pensado nisso mais cedo, enquanto conversava com Montand. Quando saíra de casa dele tinha ido falar com Paula e afastara tudo o mais do pensamento. A princesa não levou muito tempo a ver aquilo que lhe escapara.

- Bronsart devia saber perfeitamente que dava o nome de um homem morto como fazendo parte da pista; portanto, o facto dele ter morrido não tem importância nenhuma. O que deve interessar é saber qualquer coisa mais a seu respeito. Na verdade, Mr. Fisher, para que estou eu a pagar os seus serviços?!

- Isso - respondeu Eric devagar - era precisamente uma coisa que desejava perguntar-lhe. O que é mais importante para si, princesa Von Hessel: encontrar a obra de arte ou conseguir apanhar o general?

- A obra de arte!

A resposta foi um pouco rápida em demasia.

- Para isso contratei os seus serviços. Se descobrir o homem que no-la roubou, encantados da vida! Portanto, não percebo a sua pergunta.

- Os seus dois filhos tentaram dissuadir-me de prosseguir com as pesquisas - explicou Fisher. - O seu filho mais velho falou num escândalo... Desejo saber o que há por detrás de tudo isso, ou antes, aquilo que não me disse. Não gosto de trabalhar às escuras.

- O meu filho mais velho, bebia - retorquiu ela em tom agreste.- Às vezes, a sua imaginação vagueava longe dos factos. Não faço a menor ideia a que ele se referia!

-O seu segundo filho disse-me o mesmo! Agora, Eric estava disposto a não recuar um passo.

- E não me parece que não se possa confiar na palavra dele!

- Philip disse-lhe um disparate desses?!... Não acredito!

- Duas vezes!-insistiu Fisher. - Uma, quando foi acompanhar-me ao aeroporto depois da primeira entrevista e, anteontem, precisamente neste hotel, ordenou-me que cessasse com as investigações.

- Compreendo... - disse a princesa de olhos semicerrados e observando-o com toda a atenção. - E qual foi a sua resposta, Mr. Fisher?

- Disse-lhe que tinha sido contratado pela princesa e não recebia instruções dele nem de qualquer outra pessoa. Caso a princesa me desse essas instruções, evidentemente, cumpri-las-ia.

- Aprecio a sua lealdade.

Aquilo era uma zombaria e Fisher sentiu-se corar.

- Fez muito bem! Não faça caso do que o meu filho Philip lhe disser. Eu falarei com ele e tratarei do assunto.

- Gostava que, primeiro, tratasse comigo.

Estas palavras surpreenderam-na; a princesa, repentinamente, moveu-se na cadeira.

- Não preciso de tratar mais nada consigo! Estou a pagar-lhe... É tudo quanto tem a esperar de mim.

- Preciso de saber a verdade!-disse Fisher. - Pode guardar o seu dinheiro, a não ser que me diga qual a razão do poder do general sobre os Von Hessel, para lhe ter dado a Taça Poellenberg!

A princesa aceitou bem o desafio; Fisher teve de lhe reconhecer esse mérito; não empalideceu nem se traiu com um simples pestanejar daqueles olhos implacáveis.

- Que deseja? - perguntou, fitando-o. - Mais dinheiro? É por causa disso todo o seu interesse pela verdade? Não pense que me engana. Sei qual a sua profissão... uma vez afastado das classes criminosas!

Fisher não respondeu. Levantou-se e dirigiu-se para a porta. A voz dela ergueu-se acima do tom normal:

- Mr. Fisher!... Como se atreve a sair?    

Ao chegar à porta, Eric voltou-se.

- Aquele pobre diabo era casado, não é verdade? - perguntou ele, calmamente. - Que tinha a rapariga de especial? Por que razão ocultava esse facto?

- Venha cá, se faz favor!

A princesa fez o convite de uma maneira normal; porém, tinha agora duas rosetas na face e as duas mãos, com os anéis de diamantes, agarravam os braços da cadeira como se fosse uma jangada num mar tempestuoso.

- Por favor! - repetiu. - Sente-se e sejamos razoáveis. Não ganhamos nada, perdendo a cabeça.

Fisher não se moveu e disse:

- Eu não a perdi e a senhora ainda não respondeu à minha pergunta.

- E por que razão havia de responder? - retorquiu ela em tom agreste. - Quem é o senhor para vir imiscuir-se em assuntos da minha família e tentar acarear-me?

- A senhora acaba de o dizer... uma vez afastado das classes criminosas... Tem medo que faça chantagem?! Não tenha!... Porém, quero saber a verdade, de contrário não continuarei com o caso, pois há outra pessoa inocente, à parte a senhora!

- Compreendo...

A princesa ergueu-se; agora parecia mais baixa.

- Muito bem! Afaste-se da porta e dir-lhe-ei o que pretende saber. Como descobriu que meu filho era casado?

- Por causa de uma notícia publicada num jornal suíço em 1943. Dizia-se que o príncipe casara secretamente em Paris, durante uma viagem que fizera a França. Dei instruções ao meu escritório para averiguar o caso e descobriram uma notícia semelhante num jornal local, francês. Heinrich casou numa pequena aldeia a vinte e oito quilómetros de Paris, não é verdade?

-Sim!

A princesa pareceu cuspir-lhe a resposta; depois, acrescentou :

- Mas como souberam?... Não existem registos oficiais...

- Pois não - explicou Fisher -, mas o meu colaborador falou com o oficial da repartição. Ele lembrava-se perfeitamente do caso por ter havido uma grande agitação em volta do assunto e lhe terem pedido os livros, os quais lhe foram devolvidos mais tarde, mas já sem o assento desse casamento. O homem sabia apenas dizer que a cerimónia se realizara por ter sido ele o oficiante.

A princesa fez um gesto de desdém com a mão e comentou:

- O senhor deve ser muito estúpido se ainda não adivinhou o motivo!... A rapariga era judia e Heinrich um completo irresponsável! Tudo começou porque a parva da minha sogra se afeiçoara ao neto e insistira em levá-lo consigo. Heinrich casou, enquanto estava em Paris, com a avó!

Num movimento de nervosismo, a princesa atravessou a sala e tirou um lenço da carteira.

- O senhor deve calcular o que semelhante loucura significou para nós, no meio da guerra! Procurámos abafar o caso, separámo-los e trouxemos Heinrich para a Alemanha. Infelizmente, não se conseguiu um segredo absoluto. Bronsart descobriu-o... Compreende agora como ele entrou na posse da Taça Poellenberg?

- Em troca do seu silêncio?! ;

- Exactamente; portanto, compreende também por que motivo estou resolvida a recuperá-la!

- E que aconteceu à sua nora?

A princesa pareceu pestanejar ao ouvir o título.

- Não faço a menor ideia. Tratava-se de uma aventureira que viu frustrados os seus intentos. Desapareceu depois de termos levado Heinrich para a Alemanha.

- Sendo judia, não deve ter sido coisa fácil, numa altura daquelas!

- Foi antes de começarem as perseguições alemãs aos Judeus em França - respondeu a princesa. - Espero que, nessa ocasião, ela tenha conseguido escapar. Grande parte deles conseguiu... Porém, não é assunto que me diga respeito.

- Compreendo - disse Fisher. - Obrigado por me ter dito.

- Se isto se tornar do conhecimento público - disse a princesa com toda a calma - será um caso pessoal entre o senhor e eu, Mr. Fisher e, acredite uma coisa: nem o senhor nem a sua agência levarão a melhor!

- Acredito - respondeu Fisher -, mas não se preocupe, ninguém saberá que seu filho se apaixonou e casou com uma judia e a senhora o arrastou para a Alemanha, enquanto abandonavam a rapariga e a deixavam só.

- Se não tivéssemos feito isso - prosseguiu a princesa e se o caso tivesse chegado ao conhecimento de Hitler, o meu filho seria enviado para um campo de concentração e nós podíamos perder as nossas fábricas. Fizemos o que devíamos, atendendo às circunstâncias, nessa altura. O senhor pode não aprovar, mas não tem esse direito. Não estava lá, não pode julgar! Eu tinha de proteger o meu filho!

- Compreendo o seu ponto de vista - disse Fisher. Conservá-la-ei ao corrente de tudo quanto acontecer, mas agradeço-lhe o favor de pedir a seu filho, o príncipe Philip, para não continuar a maçar-me. Não quero receber mais telefonemas dele, dizendo-me para pôr o caso de parte!

- Continuará a trabalhar para mim? - perguntou ela. Conseguirá reaver aquela obra de arte?

- Já disse que sim - retorquiu Fisher - e apesar de eu ser apenas um inglês vulgar e quase um vigarista... em sua opinião, sempre cumpro a minha palavra. Muito bom dia!...

Quando a porta se fechou, a princesa ficou a olhar para ela durante uns momentos. Depois dirigiu-se ao telefone e mandou ligar para a suite de seu filho Philip. Enquanto esperava, o pé direito batia num ritmo de impaciência.

- Philip? Acabo de falar com Fisher.

- Que disse ele?

A voz de Philip, através do auscultador, parecia ansiosa.

- Queria saber a verdade... - respondeu a mãe. - Foste um estúpido, pois apenas conseguiste exacerbar-lhe a curiosidade, tentando fazer as coisas nas minhas costas! Tu não tens nada com isto e proibo-te terminantemente que interfiras!

- Desculpe, mãe - respondeu Philip -, mas pensei que fazia bem. Que lhe disse?

- Ele já tinha descoberto a história do casamento e eu confirmei-a. Foi tudo.

- E ele ficou satisfeito?

- Sim, graças a Deus e espero que não averigue mais nada.

 

- Já morreu!...

Esta foi a resposta da mulher mais nova, com a criança agarrada à cintura, a chuchar os dedos. Olhou para Fisher com hostilidade, conservando a porta meio fechada para ele não poder entrar.

- Lastimo muito! Quando foi?

- No dia a seguir a ter vindo cá! - retorquiu a mulher. Ficou demasiadamente excitada, parecia doida e começou a delirar depois de se terem ido embora... Bendita a hora em que veio cá com a sua amiga! Depois disso nunca mais sossegou. No dia seguinte teve um ataque de coração e pronto! Graças a Deus!

Revirou os olhos e terminou:

- Tenho que lhes agradecer!... Estava a ver que aquela cabra viveria eternamente!...

- Então, talvez a senhora me possa ajudar...

Fisher estava ansioso por poder conservar a porta aberta; tinha uma das mãos metida na algibeira do casaco, segurando um maço de notas. A mulher olhou para ele, desconfiada.

- Ajudá-lo em quê?... Não é, com certeza, por causa dessa história durante a guerra!

- É por causa do seu cunhado Jacquot, aquele que foi fuzilado pelos alemães... Gostava que me falasse a seu respeito...

- Mas eu não lhe posso dizer nada! - retorquiu a mulher com um encolher de ombros e tirando a mão da criança da boca. - Por quem é!... Que idade supõe que eu tinha nessa altura? O meu marido teria seis anos quando isso aconteceu e eu nem sequer ainda nascera! A velha cabra contou-lhe tudo quanto sabia. Ele deixou-se apanhar como um parvo, por se ter metido em coisas que não lhe diziam respeito e os alemães trataram-lhe da saúde...

Ela fez uma breve pausa e acrescentou:

- A maldita bruxa passava a vida a falar nisso. Nunca mais se calava!... Ia dando comigo em doida! Felizmente, morreu!

Fisher tirou a mão da algibeira, vazia, e, dirigindo um olhar de desprezo a Madame Brevet, disse:

- Espero que também tenha sido uma felicidade para a sua sogra!... Viver na sua companhia devia ser um verdadeiro sacrifício!

E, voltando-se, saiu; a mulher ficou a gritar, insultando-o. Ao chegar ao fim da rua miserável, Eric disse para consigo, em voz alta:

- Maldita sorte! E agora que vamos fazer?!

A única fonte de informação pessoal acerca de Jacquot desaparecera; Eric ia cheio de esperança quando saíra do hotel para lhe tornar a falar, nessa manhã.

Estava pronto a passar horas junto dela -se tal fosse necessário- até conseguir arrancar-lhe qualquer coisa a respeito do filho, que pudesse fazer sentido, para o general ter incluído o seu nome no enigma. Agora, perdera toda a esperança. A porta que parecia ter-se aberto, acabava de se fechar para sempre.

Como se tudo isto ainda não fosse suficiente, o sócio

- Dunston - telefonara-lhe muito cedo pela manhã, para lhe dizer que ia fazer uma viagem a França - devido a um outro caso- e tinha tenções de passar por Paris.

Fisher gostava de Dunston, mas não lhe agradava a sua presença naquele momento, para não começar com grande barulho a respeito dos Von Hessel, e também por causa de Paula. Além disso -e ainda o mais importante! - era não querer que Dunston lhe fosse apresentado, pois começaria logo a olhá-la de cima a baixo e depois faria os seus habituais comentários picantes a Fisher.

Dunston era um homem inteligente, um belo companheiro de paródias, mas quanto a relações pessoais, tinha a delicadeza de um elefante numa fábrica de porcelanas. E agora, Fisher, tinha mais uma razão para lhe desagradar a visita do sócio: encontrava-se num beco sem saída. Pusera todas as suas esperanças na velha Madame Brevet, por saber que os senis possuem uma grande facilidade para reviver o passado, ao passo que o presente lhes produz uma confusão extrema.

Eric recordava-se de uma velha tia - que morava numa casa triste perto de Brighton - capaz de falar com uma extraordinária clareza a respeito da Guerra Mundial, mas incapaz de dizer em que dia da semana estava, sendo-lhe inclusivamente difícil dizer o seu nome.

Depois, lembrou-se da cara de víbora da mulher que acabara de deixar, e soltou uma praga. Jacquot estava tão nítido na memória da mãe como se a sua morte brutal tivesse acontecido na véspera. Ela era capaz de responder às perguntas; Fisher tinha a certeza; porém, chegara demasiado tarde. Devido à sua morte, já não havia ninguém a quem pudesse interrogar a respeito de Jacquot.

Procurou cigarros nas algibeiras; só tinha um num maço e quando tentou acendê-lo verificou que a mortalha estava rota. Tornou a praguejar e deitou-o fora. Viu uma tabacaria no outro lado da rua e atravessou.

Havia três crianças a brincar com giz de cor, em cima do passeio; iam aos saltos, a pé coxinho, de um quadrado para o outro, rindo, muito satisfeitas. Fisher passou e entrou na loja.

Lá dentro estava escuro e cheirava a bafio; uma mulher contava dinheiro e um homem esperava, atrás do balcão. Vestia uma camisa suja, sem colarinho, aberta no pescoço, deixando ver pêlos negros na garganta; o bigode era farto e amarelado nas pontas.

Olhou para Fisher, enquanto dava o dinheiro à mulher e esta se dirigia para a porta.

- O senhor?!

- Um maço de Gauloise.

Fisher deu-lhe o dinheiro; o homem pegou nas moedas com mão calejada pelo trabalho e olhando o cliente, disse:

- Desculpe a minha indiscrição, mas... o senhor é amigo de Madame Brevet?

As palavras saíram rapidamente como se tivesse estado à espera de as poder dizer desde que Eric entrara na loja. A pergunta apanhou-o de surpresa.

- De qual Madame Brevet?

O homem fez um gesto com o polegar, na direcção da montra:

- Não daquela maldita cadela!... Da outra... da de idade... Ouvi a víbora ficar a berrar depois do senhor sair. Já o tinha visto à porta da rua. Ela não o deixou entrar, pois não?

- Não, mas eu vinha falar com a sogra e ela disse-me que já tinha morrido! Fiquei com pena...

- Não tenha pena!

O homem curvou-se sobre o balcão e uma baforada de ar impregnado com o cheiro de alho e vinho envolveu Fisher.

- Para a desgraçada, foi uma sorte ter morrido! Viveu durante dez anos com a víbora da nora, a atormentá-la o dia inteiro! Não calcula! Estava sempre a chamar-lhe nomes e nunca teve para a desgraçada uma palavra de carinho. Despedaçava-nos o coração, monsieur, ver a pobre mulher a morrer aos poucos, quando, com aquela idade, já só lhe bastava uma palavra de simpatia! E que mulher ela era!

- Sim?!

Fisher esteve a ponto de voltar as costas e sair; não se sentia com disposição para conversas de alcoviteiros. Porém, acrescentou:

- O senhor conhecia-a?

- Toda a vida morou nesta rua - respondeu o velhote. Fizemos a guerra juntos... a família dela e a minha. Uma pessoa nunca esquece estas coisas!

- Isso, não!

Fisher aproximou-se e curvou-se sobre o balcão; estendeu o maço dos Gauloise e ofereceu-lhe um.

- Tenho a certeza que não! Nesse caso, também conheceu o filho dela...

- Muito prazer em conhecê-la! -disse Dunston, estendendo a mão, que Paula apertou.

Fisher não tinha vontade nenhuma de lha apresentar, nem tivera prazer nenhum em ver Dunston; não ouvira sequer a razão apresentada pelo sócio para ter ido a Paris e a qual era um cliente fictício com um problema de negócios.

Tentara ao máximo evitar aceder ao pedido de Dunston para ser apresentado a Paula e oferecer a ambos de jantar, mas o sócio não quisera aceitar a recusa; era uma pessoa extraordinária, insistente e, por fim, ganhara a partida.

Tinham-se encontrado no vestíbulo do hotel de Paula e de Fisher e Dunston imediatamente deu crédito a Fisher pelo seu bom gosto. A rapariga era muitíssimo interessante. Observou-a rapidamente, sem se tornar notado. Boa figura, pernas bonitas e um lindo rosto com olhos maravilhosos.

Trocou um aperto de mão com ela e sorriu, mostrando uns lindos dentes brancos. Era uma pena ter de ser ela, mas... era assim mesmo!

Levou-os ao bar do Tour de France para tomarem umas bebidas e dispôs-se a extrair o máximo de informações possível. Pareceu-lhe que Fisher estava um pouco preocupado por qualquer coisa; naturalmente ainda não tinha conseguido deitar-se com ela!

Dunston continuou a observar Paula. Nunca vira Fisher

proceder assim com mais nenhuma rapariga; dir-se-ia muito interessado nesta, o que ia ser uma maçada dos diabos. Era necessário intrujar Fisher; ainda não resolvera qual o método a empregar, porém este factor não podia ser ignorado.

Não havia dúvidas. Aquele estúpido estava apaixonado pela rapariga; mas, quanto a ela - tão fria e tão delicada, com os seus modos superiores e o seu elegante vestuário- que sentiria por ele?

Dunston entreteve-se a falar da cidade e do tempo, durante a primeira meia hora, enquanto os observava com toda a atenção. Não conseguia perceber bem o que se passava com ela; não tinha a certeza dos seus sentimentos para com Fisher, nem até que ponto estava interessada e esta questão podia ser de grande importância.

Se ia precisar de lhe preparar uma cilada, era necessário a rapariga encontrar-se sozinha e estar seguro de ela aceitar qualquer sugestão sem falar nisso a mais ninguém. Assim, resolveu continuar o jogo a ver o que sucedia.

- E agora diga-me uma coisa... -pediu, curvando-se para Paula - qual a sensação quanto à descoberta do tesouro, Mrs. Stanley?

- Não tenho interesse nenhum - replicou Paula. - E há muito disse ao Eric que se o descobrirmos, e eu tiver direito legal à sua posse, não tenciono guardá-lo. Os proprietários anteriores podem ficar com ele!

- Isso é um lindo gesto da sua parte--comentou Dunston. - No entanto, quando o vir, pode mudar de ideias. Em minha opinião não devia desistir tão precipitadamente.

Dunston soltou uma gargalhada e olhou para Fisher.

- E que faz durante o dia, enquanto o nosso amigo anda a brincar aos Sherlock Holmes?

- Paula anda sempre comigo! - respondeu Fisher imediatamente.

O detective não estava nada disposto a permitir que Dunston aproveitasse qualquer oportunidade para se encontrar com ela, pois reparara que o sócio a olhava de cima a baixo, de uma forma insólita, quase impura e com uma expressão tão ofensiva, que teve dificuldade em se conservar calmo. Nunca imaginara poder sentir tão grande antipatia pelo sócio! Naquele momento sentia-se capaz de o agarrar pela gola do casaco e dizer-lhe que guardasse para si olhares tão vis.

- Leva-la para toda a parte?!

- Bem, não será tanto assim - cortou Paula. -Eu também tenho andado sozinha a ver a cidade e, o que é muito pior!, a fazer compras. Paris é um sítio terrível para se gastar dinheiro!

- Isso lembra-me que preciso comprar qualquer coisa bonita para Betty... - disse Dunston. - Betty é a minha mulher. Talvez um dia não se importe de me acompanhar para lhe comprar um vestido... Tenho as medidas dela...

- Com todo o prazer! - exclamou Paula.

- Quanto tempo pensas demorar-te em Paris? - perguntou Fisher.

Eric não queria que Paula fosse fazer compras com Dunston nem aceitasse a companhia de qualquer pessoa. No entanto, esta ideia surpreendeu-o. O ciúme latente não viera à superfície, enquanto não começou a sentir-se aborrecido e desconfiado, quando se encontravam separados.

O facto de serem amantes não melhorara as relações entre ambos -pelo menos quanto a Fisher -, pois apenas transformara a incerteza numa obsessão. Quantas mais vezes a possuía -e Paula se lhe entregava carinhosa, sensitiva e exuberante - mais ele desejava vê-la abandonar as pesquisas para encontrar o pai e mais profundo e doloroso era o seu ressentimento por ver que ela não dava mostras de tencionar fazê-lo.

Eric julgava-se suficiente para preencher o vácuo daquela vida e não compreendia que Paula sentisse o desejo de satisfazer um capricho de criança abandonada, estando apaixonada por ele, e não simplesmente feliz com a satisfação do desejo saciado.

Aborrecido, observava Paula enquanto ela conversava com Dunston, surpreendido por não a ver apresentar objecções e sorrir, parecendo sentir-se muito à vontade. Mas porque diabo havia aquele homem de pedir a Paula para o ajudar a comprar um vestido para a mulher?!

- Quanto tempo pensas demorar-te em Paris? - repetiu.

- Não sei - respondeu o sócio. - Depende dos progressos da minha caçada. No entanto, confesso não ter pressa de regressar. Está-se aqui muito bem... A senhora fica até final do caso, Mrs. Stanley?

- Sim - respondeu Paula, evitando olhar para Fisher. Fico...

- Óptimo!-exclamou Dunston a rir; depois, voltando-se um pouco para Fisher, acrescentou. - E uma vez que estamos em família, pergunto: ainda nos encontramos muito longe do fim?

- Agora tenho de ir a Inglaterra - disse Fisher curvando-se e pegando na mão de Paula, sem se importar com o que Dunston pudesse pensar. - Preciso de falar com a mãe de Paula mais uma vez e só depois disso começaremos a cavar.

- Literalmente?

- Não, simbolicamente, creio - retorquiu Fisher. Nesse momento sentiu os dedos de Paula crisparem-se e

depois tornarem-se hirtos, sem corresponder à sua pressão. Ainda não lhe falara a respeito da viagem a Inglaterra e achava difícil discutir agora o progresso das pesquisas. Cada passo em frente era um movimento de avanço na direcção do general e, Eric, por muito seguro que estivesse como amante num confronto, não tinha a certeza se a mulher a quem amava o escolheria a ele e não ao pai. No estado de espírito em que se encontrava, apostaria sempre no general.

- Isso quer dizer que já conseguiste resolver o pequeno enigma da tia Ambrosine?

- Sim. Trata-se do nome de código de um grupo da Resistência - explicou Fisher, que já dissera isso mesmo a Paula. - Jacquot era também o pseudónimo de um mensageiro desse grupo. Consegui obter informações suficientes a esse respeito e agora creio ter quase todos os fios da meada devidamente ligados. Quanto ao último, deve poder ser completado por tua mãe... - acrescentou, dirigindo-se a Paula.

Depois apertou-lhe a mão e pediu que lhe perdoasse. Ela perdoou e a partir desse momento Eric sentiu-se mais bem disposto.

Dunston mandou vir mais bebidas. O assunto da conversa mudou para o negócio de Dunston em Paris e Paula afastou-se da discussão.

Conservou-se sentada, com a mão de Fisher na sua e, olhando para os dois homens, começou a pensar no que eles poderiam ter em comum. O que estava a seu lado, meigo, possessivo, mas taciturno, era um ser humano de uma espécie invulgar. Dunston representava o protótipo do homem desprendido, alegre e confiante; talvez a palavra ”jovial” fosse uma definição mais apropriada. Dunston parecia não se preocupar com coisa nenhuma e ser um homem simples, mas quanto mais conhecia Fisher mais complicado ele lhe parecia.

A rendição sexual, só por si, não o satisfazia. Quando iam para a cama, Eric buscava a satisfação física como se estivesse numa guerra, conduzindo uma campanha de sedução calculada e destinada a dominá-la completamente. Porém, a trágica verdade que Paula jamais lhe deixaria ver, era que o seu êxito num campo lhe assegurava o insucesso no outro; nunca se deixava dominar por completo, sensualmente; o corpo e as emoções eram interdependentes e ainda não estava pronta para lhe entregar ambos, embora o amasse.

E Paula insistia neste ponto: amava-o. Queria amá-lo para poder negar a sua insistência constante do contrário e por isso, à noite - muita vez quando ele a deixava - Paula ficava a chorar, numa espécie de agonia.

Aquelas relações podiam ser arrebatadoras e estonteantes, tão diferentes das frívolas e insípidas que experimentara durante o casamento; porém, o espírito possessivo de Eric arruinava tudo. Devia tê-lo avisado das consequências, mas não conseguira.

Fisher era demasiado forte para ela e, ao mesmo tempo, demasiado vulnerável. Paula sentia-se infeliz e confusa: ele não chegava para preencher os anos desperdiçados; não lhe podia responder à pergunta imperiosa, se ainda viria a conhecer a paz ou a independência de espírito.

Afinal, que espécie de homem era o pai? O bruto desumano, retratado na horrível e selvática denúncia da velha Madame Brevet, ou o terno pai de uma filha que o amava ternamente?

Eric não lhe podia perdoar esta ânsia de saber; isto parecia-lhe um desprezo pessoal, uma prova de não lhe pertencer completamente e, portanto, ainda ter a liberdade de escolher.

E Paula era livre; com a mão presa na dele, sentia uma febre desesperada dessa liberdade de escolha, da liberdade de ver toda a sua vida - ao menos uma vez! - na verdadeira perspectiva, antes de se submeter às ordens de qualquer outra pessoa. Estivera sozinha tempo demasiado e conservara sempre a sua independência. Agora, surgira um homem na sua vida, querendo que ela se entregasse completamente, de corpo e alma, aos seus cuidados apaixonados.

Paula sentia-se incapaz de o fazer. Suavemente, retirou a mão a pretexto de acender um cigarro. Eric estava a pedir-lhe demasiado... demasiadamente depressa.

Dunston dirigiu-se a Paula:

- Também vai a Inglaterra falar com sua mãe, Mrs. Stanley?

- Não - respondeu Paula. - Fico aqui!

- E tu quando partes? - perguntou a Fisher.

- Terça-feira - respondeu o sócio. - Só estarei ausente uma noite.

- Muito bem! -exclamou Dunston, sorrindo para ambos. - Nesse caso, Mrs. Stanley podia ir comigo e ajudar-me nas minhas compras. Seria formidável! Achas bem, Eric?

- Porque não? - respondeu Fisher, bruscamente.- Se Paula quiser...

- Não te preocupes! - disse Dunston muito satisfeito. Tomarei conta de Mrs. Stanley durante a tua ausência. E agora vamos jantar, sim? Estou com imensa fome!

Paula estava sentada no salão do hotel; colocara uma cadeira voltada para a entrada e logo que aquele homem alto e louro transpôs a porta e parou por momentos, olhando em volta, ela adivinhou tratar-se de Philip von Hessel.

Assim, teve oportunidade de o estudar, enquanto ele parara. Tratava-se de um dos homens mais interessantes que tinha visto; muito direito, tinha uma graça arrogante, mas absolutamente natural. Este era o aspecto de um homem com uma fortuna de centenas de milhões e um título antigo como esteio da sua personalidade, juntando ainda a vantagem da sua juventude e de um rosto wagneriano.

Por sua vez, o príncipe reparou no olhar de Paula e dirigiu-se para ela. Esta ergueu-se e foi ao seu encontro, de mão estendida.

- Príncipe Von Hessel?

- Exacto! Mrs. Stanley?...

Ao mesmo tempo pegou-lhe na mão e beijou-a, curvando-se um pouco.

O telefonema tinha sido uma surpresa tão grande que quando ele pediu para lhe falar durante alguns minutos - na ausência de Fisher- Paula não conseguira arranjar uma desculpa. Ao telefone, parecera-lhe mais velho, muito peremptório e grave, como-muitos estrangeiros que falam um bom inglês, mas não têm prática.

A realidade era muito diferente. Sentou-se ao lado de Paula, ofereceu-lhe um cigarro e perguntou se podia mandar vir uma bebida para ela. Sorriu; Paula sentiu um impacto de simpatia e encanto. Nesse momento, lembrou-se subitamente que, à parte a mãe, este era o primeiro compatriota com quem conversava.

Porém, esquecera Schwarz, com os seus olhos brilhantes a fitarem-na, sentado, no escritório. Ele também era alemão, como este jovem encantador que estava agora a seu lado.

- Espero que perdoe ter-me introduzido quase à força disse o príncipe.- Esperava poder falar com Mr. Fisher, mas também estava ansioso por conhecê-la. Quando do hotel me informaram que a senhora estava, pareceu-me uma oportunidade demasiado boa para a perder.

Paula reparou que o príncipe usava gravata preta.

- Tive muito prazer’em conhecê-lo - disse - e, se me permite, queira aceitar as minhas condolências pelo que aconteceu a seu irmão.

- Muito obrigado! Minha mãe também está em Paris. Vamos levar o corpo de meu irmão depois de se completarem as formalidades. Já esteve na Alemanha, Mrs. Stanley?

Paula mudou de assunto, muito satisfeita.

- Não, nunca! Espero lá ir um dia, mas minha mãe saiu no fim da guerra e nunca mais voltou.

- Grande número de pessoas fizeram o mesmo por causa do passado - disse o príncipe. - Pessoas como sua mãe, apenas inocentes espectadores. É uma pena!... Importa-se que diga isto?

- De forma alguma! - respondeu Paula. - Fui educada de maneira a sentir vergonha daquilo que era, mas nunca me disseram a razão. Agora, ao menos, conheço-a!

- Também não é responsável pelo passado - prosseguiu ele em tom suave. - Nem eu, Mrs. Stanley. Seu pai cometeu crimes; a minha família também! Começamos agora a ser aceites pelo mundo civilizado, nós e a nossa nação, porque, evidentemente, precisam de nós. Portanto, não se sinta culpada. Parece-me que não somos tão feios como parecemos nem o resto do mundo tão bonito como dizem!

Paula olhou para ele.

- Meu pai roubou-lhes um tesouro de família e reparo que não se mostra amargo nem mordaz... Fala dele com toda a calma. É admirável da sua parte e tenho imenso prazer em conhecê-lo, príncipe Von Hessel, pois desejo dizer-lhe uma coisa...

- Por favor... - respondeu ele com uma expressão de suavidade no olhar -não tem nada que me dizer!...

- Desculpe, mas quero dizer! - insistiu Paula, voltando-se para ele. - É possível que eu tenha direito legal à Taça Poellenberg. Não sei se é verdade, mas se por qualquer eventualidade assim for, quero informá-lo que em minha opinião esse tesouro pertence à sua família e entregá-lo-ei imediatamente.

- Isso é um gesto de grande generosidade e aprecio-o profundamente; porém, sabe qual é o seu valor?

- Sei - respondeu Paula. - Não tem preço! Mas, isso é um assunto que não me diz respeito. Não o quero! Foi-lhes arrebatado e, fossem quais fossem os meios usados, tenho a certeza de que, moralmente, foram ilegais! Portanto, têm de o receber. Queria apenas dizer-lhe isto. Não haverão dificuldades nem contestações a respeito da propriedade: é vosso!

- Mrs. Stanley - disse o príncipe calmamente, fazendo girar o anel de brasão, em ouro, que tinha no dedo-, repito: isso é a coisa mais generosa que tenho ouvido até hoje. Porém, posso perguntar uma coisa?

- Sim, pergunte-me tudo quanto quiser!

- Se não quer o tesouro Poellenberg, usará a sua influência junto de Mr. Fisher para ele não continuar a procurá-lo? Isso é terrivelmente importante para mim. Não quero que seja encontrado, Mrs. Stanley. Não quero tornar a vê-lo! Não consigo convencer disso Mr. Fisher nem minha mãe. No entanto, continuarei a falar com minha mãe se prometer falar também com ele.

- Por que razão não o quer? - perguntou Paula. - É um dos tesouros do mundo! Por que motivo não deseja a sua restituição?

- Não lhe posso dizer - respondeu o príncipe muito sério. - Assim, por favor, não me pergunte, não? Sei que não tenho o direito de dizer isto, pois sou apenas um estranho, para si; porém, deve acreditar-me se lhe disser que é um objecto manchado de sangue e, por isso, é melhor deixá-lo para sempre onde seu pai o escondeu. Por favor... fará isto por mim?

Philip von Hessel tinha uns olhos bonitos; enquanto falava curvara-se e pusera a mão no braço de Paula. Subitamente baixou-a e, de forma emocional, apertou a mão dela; o calor da mão do príncipe produziu um choque em Paula que, lentamente, meneou a cabeça:

- Não posso fazê-lo... É impossível! Não me encontro aqui junto de Eric Fisher para descobrir essa obra de arte! Estou aqui à procura de meu pai e, se encontrar o tesouro, estou convencida de que o encontrarei a ele. Como vê, não posso ajudar, príncipe Philip!... Quem me dera poder, creia!

- Está bem!-disse ele, retirando a mão. - Desculpe ter-me tornado sentimental. Não sabia isso, de contrário nunca lho teria pedido.

- Não espero encontrar alguém que compreenda - disse Paula. - Ninguém compreende... Não o conheci... Conforme lhe disse, cresci e fui educada de maneira a envergonhar-me de ser sua filha e ter vergonha de ser alemã. Mudaram o meu nome, a minha nacionalidade, tudo. Depois, falaram-me dele e começou a tomar forma a meus olhos. Nunca fui amada, príncipe Philip!... Desculpe se estou a mostrar-me sentimental, mas é verdade. Minha mãe não gostava de mim, meu marido também não... Preciso de meu pai... Preciso de o ver e julgá-lo. É um criminoso de guerra, tem vivido na clandestinidade há quase trinta anos e, tenha ele feito o que fez, devo ser a única pessoa no mundo que se interessa por ele ou deseja ajudá-lo... É por isso que não posso fazer nada!

- Compreendo - disse o príncipe calmamente. - Eu também sinto o mesmo; é o nosso sangue germânico. Todos nós possuímos um forte sentido da família. Para seu bem, espero que o encontre... mas, sem o tesouro. A ironia é haver uma só pessoa que o deseja: minha mãe. Para ela, tornou-se uma obsessão.

- Disse que está manchado de sangue? - perguntou Paula. - Que significa isso?

- Também não lhe posso explicar - respondeu Philip von Hessel. - Quer fazer-me um favor, Mrs. Stanley?

- Se puder...

- Dar-me-á a honra de jantar comigo antes de eu regressar à Alemanha?... Prometo não lhe falar no tesouro!

- É uma grande gentileza da sua parte! -disse Paula, erguendo-se.

Estendeu-lhe a mão que ele beijou, tocando-lhe os dedos com a boca.

- Falar-lhe-ei acerca do seu país... Há muita coisa de que nos devemos envergonhar; porém, também há muitas de que nos podemos orgulhar! Dar-me-á imenso prazer!... Diga que aceita!

- Aceito! - respondeu Paula. - Na terça à tarde, estarei sozinha. Talvez nos pudéssemos encontrar então...

- Tenho um compromisso na terça-feira, mas vou cancelá-lo - retorquiu Philip. - Virei aqui às oito. Adeus, Mrs. Stanley, ou antes: auf Wiedersehen!

O jardim de Essex era famoso pelas suas rosas. O roseiral era uma das atracções do distrito. Os Ridgeways tinham sido convencidos a abrir o jardim ao público, com fins de caridade e, numa tarde resplandescente de Julho, uma multidão de mais de cem pessoas caminhava através das árvores e relvados, vagueando e admirando os canteiros, que eram o maravilhoso trabalho da mãe de Paula.

Entretanto, o brigadeiro rondava perto, parando de vez em quando para responder às perguntas acerca de várias plantas e das raridades existentes num pequeno terreno murado de que ele próprio cuidava.

A jardinagem era uma paixão, escolhida como ocupação favorita nos anos seguintes a ter-se reformado, transformada num absorvente passatempo que a mulher compartilhava com grande entusiasmo.

Ele via-a caminhar por entre as roseiras, sorrindo e conversando com os visitantes e sentia uma espécie de angústia, de orgulho e paixão, enquanto a observava, encantadora e fresca no seu vestido de linho, com o cabelo cinzento-loiro a brilhar ao sol, tão linda e nobre já naquela idade, como quando era jovem.

Não havia nada que ele não fizesse ou não tivesse feito para lhe preservar o ar sereno, vê-la sorrir e atravessar a vida, livre de preocupações e cuidados. Sofrera demasiado para poder suportar um momento de inquietação ou um desfalecimento provocado pela dor.

A mulher proporcionara-lhe um amor e uma alegria que ele nunca imaginara possível. Portanto, o débito só podia ser pago com uma vida inteira de carinho, de ternura e protecção sem limites. Sentia-se feliz apenas por estar vivo e actuar como pára-choques entre ela e a vida.

O brigadeiro respondia às perguntas de um casal de meia-idade a respeito de uma espécie miniatura de clematis, que crescia em abundância com sombreados púrpura e branco ao longo de uma velha parede de tijolos vermelhos, quando a velha cozinheira que trabalhava para eles desde que se tinham mudado para ali apareceu na avenida e se lhe dirigiu.

Chamavam-no ao telefone; pediu desculpa e seguiu para casa, caminhando lentamente ao calor, pensando, muito irritado, qual seria o amigo que - impensadamente - o chamava ao telefone num dia em que os jardins estavam abertos ao público. O posto de Cruz Vermelha local era a obra de caridade favorita dos Ridgeways e todos os anos beneficiava desta ocasião.

Ouviam-se os característicos estalidos das linhas aéreas, peculiares dos sistemas dos telefones rurais ingleses.

- Brigadeiro Ridgeway?

- Sim. Quem fala?

- Eric Fisher... da Agência de Dectectives Dunston & Fisher... Fui falar consigo e com a sua mulher há cerca de duas semanas...

O brigadeiro aconchegou melhor o auscultador ao ouvido.

- Quem? Desculpe, mas a linha está terrível...

Não tinha querido ouvir o nome; a sua negativa era instintiva. O outro repetiu as mesmas palavras. Desta vez não podia continuar a fingir; não tinha maneira de escapar. Soltou uma praga com a mão sobre o bocal.

- Não tenho nada a dizer-lhe! - e levantando mais a voz, acrescentou. - Escolheu uma péssima ocasião para telefonar!

- Vou amanhã a Inglaterra. Precisava de lhe falar. É um assunto muito importante... Paula está aqui comigo...

- Sei isso muito bem - retorquiu o brigadeiro -, mas o que a minha enteada faz é com ela! Não temos nada com isso!

- Desculpe, mas tem. Preciso de falar consigo e com a mãe dela. Pode receber-me?

- Não!-exclamou o brigadeiro para dentro do telefone. - Não, com toda a certeza, nem quero que venha aqui incomodar a minha mulher!

- Há uma forte possibilidade dela não estar legalmente casada consigo!

Agora o brigadeiro ouvia Fisher claramente; tinham cessado as intermitências na linha e aquelas terríveis palavras pareciam ter sido ditas dentro da sala.

- Tenho quase a certeza de que o general Bronsart está vivo! Parece-me que era melhor receber-me... Chego amanhã de manhã de avião e sigo directamente para aí.

- Vá para o raio que o parta!

Atirou com o auscultador e ficou a olhar para o telefone como se o aparelho tivesse uma vida própria e maligna. Depois, deixou-se cair numa cadeira, como um velho a quem os joelhos tremiam. As pernas eram a única parte do corpo que lhe mostrava a marca da idade; isso e os pulmões era o que preocupava a mulher quando se constipava. Levou as mãos ao rosto e deixou descair a cabeça.

- Meu Deus!... Meu Deus!... - murmurou.

Lá fora, à luz do sol brilhante, o casal que ficara à espera do seu regresso desistiu e prosseguiu o passeio.

Philip von Hessel olhou para a mãe; estava sentada na cama com a bandeja do pequeno-almoço sobre os joelhos.

A manhã estava linda e o quarto cheio de sol. À medida que avançava o Verão, Paris começava a esvaziar-se; poucos parisienses havia já nos hotéis; abundavam os turistas, transformando a cidade numa terra estranha.

O Ritz estava cheio de americanos, os quais irritavam a princesa, que achava a sua pronúncia e a sua presença nos locais consagrados à aristocracia europeia extraordinariamente aborrecida.

Olhou para o filho, tão interessante e a sua expressão suavizou-se. De todos os seres humanos com quem contactara durante a sua longa vida, era o filho mais novo aquele a quem mais amava. Nem dor nem qualquer sentimento de pena por Heinrich lhe perturbara o espírito. A princesa era a relíquia de uma época em que a dor era considerada uma indulgência, o luxo das classes inferiores, cujas mulheres escondiam a cabeça nos aventais e choravam.

O seu casamento com o príncipe Von Hessel fizera-lhe murchar toda e qualquer sensibilidade. Estendeu a mão para o filho; Philip curvou-se e beijou-lha.

- Com certeza não quer que a acompanhe? - perguntou ele.

- Não; é melhor ficares aqui. Fisher vai a Inglaterra por um dia e uma noite. O funeral será realizado particularmente e farei constar que estás doente. É preciso cá estares para o caso de ele voltar com qualquer notícia decisiva. Pareceu-me muito confiante, ao telefone!

- Mas haverá bastantes fotógrafos no aeroporto...- insistiu Philip. - Já há uma meia dúzia à entrada do hotel.

- As autoridades prometeram que não seríamos incomodados. Quando tudo terminar, voltarei imediatamente de avião - disse ela. - Entretanto, deixo o caso nas tuas mãos. Tenho o pressentimento de que tudo resultará pelo melhor para nós. Promete-me não te preocupares. Este será o fim de um longo e penoso período para a nossa família. Daqui em diante compete-te a ti apagar o passado e construíres o que preservei para ti!... Tenho a certeza de que o farás!

- Fá-lo-ei! -prometeu Philip. - Dou-lhe a minha palavra!

A princesa começou a pensar como ele se parecia com o pai, aquele galante aviador que passara tão breve e decisivamente pela sua vida.

Poder, riqueza, influência mundial!

Recostou-se sobre as almofadas, um pouco cansada com a investida de emoções, e ao mesmo tempo semiembriagada com o seu triunfo: apesar de tudo, tinha sido bem sucedida e, através do filho, o futuro estava salvo!

Por momentos as suas mãos apertaram-se e murmurou

com ternura:

- Meu filho! Sinto tanto orgulho em ti!

 

Estava-se já no meio da tarde quando o automóvel de Fisher parou à porta da casa dos Ridgeways, em Essex.

Saiu do carro e os dois labradores começaram aos pulos, a farejar e a ladrar. Fisher não gostava de cães; tinha sido mordido por um cão vadio quando era criança. Honestamente, podia dizer ser o seu único medo, aquele instintivo recuo, quando eles saltavam e mostravam os dentes. Gritou-lhes uma praga e os animais recuaram, surpreendidos e magoados.

Demoraram alguns momentos a abrir a porta e quando esta se abriu, o brigadeiro estava na sua frente.

- Tinha-lhe dito para não vir! - exclamou.

- Bem sei - respondeu Fisher calmamente -, mas precisava de falar consigo. Não estou a tentar arranjar dificuldades nem contrariar ninguém. Disse-lhe a verdade ao telefone. É um assunto muito importante.

O brigadeiro afastou-se, voltou-se e deixou a porta aberta para que entrasse e o seguisse. Dentro do vestíbulo sombrio, disse:

- Está bem, entre! Minha mulher espera-o.

A mãe de Paula encontrava-se na sala; parecia pálida e tinha olheiras. À primeira vista, Fisher notou-lhe uma certa semelhança com a filha pela forma como estava e pela maneira de inclinar a cabeça.

Eric devia sentir um certo desgosto pelo que ia fazer; porém, não sentia. Estes dois entes tinham passado a vida juntos; estavam ali de braço-dado, unidos contra ele, tal como tinham feito com a filha.

- Meu marido informou-me do seu telefonema -principiou ela. - Porque diz que o meu primeiro marido está vivo? Que provas tem?

- Foi visto em Paris - respondeu Fisher. - A notícia do jornal estava certa. Entrevistei a mulher. Ela lembrava-se do general e tinha muito boas razões para isso... tinha sido ele quem ordenara a execução do filho! Viu-o na rua, ele desapareceu...

A mãe de Paula agarrou-se ao braço do marido.

- Tenho a certeza de que está vivo... - prosseguiu Fisher - e, portanto, fazia bem em me ajudar a arrumar este assunto. Se ele torna a ser visto e a polícia lhe deita a mão, estou convencido de que a senhora fica numa situação muito embaraçosa.

- Casámos de boa-fé! -exclamou o brigadeiro. - Informaram minha mulher de que ele tinha sido morto em batalha. Não lhe podem atribuir qualquer culpa!...

- Não vale a pena, Gerald! -interrompeu subitamente Mrs. Ridgeway. - Ele sabe o que nós temos a recear... O conhecimento público do meu passado, não é verdade? A mulher de um criminoso de guerra, a mulher que foi presa quando as tropas Aliadas entraram em Munique e esteve várias semanas na prisão. O senhor desconhecia esta parte, não é verdade, Mr. Fisher?

Fez uma pequena pausa e depois continuou:

- Eu era a mulher de um homem, companheiro de Hitler. Espancaram-me, injuriaram-me, humilharam-me... fui acusada de cumplicidade nos crimes de meu marido e denunciada por ter escravos a trabalhar em minha casa e se alguma destas coisas tivesse sido provada contra mim ter-me-iam mandado para a prisão por muitos anos!

Nova pausa e em seguida, ela prosseguiu em voz desolada:

- Quando me soltaram e deixaram ir para casa, para junto de minha filha, havia uma multidão enfurecida a gritar, uivando e cuspindo-me, cá fora, junto aos portões... Senti-me desfalecer... pensei no suicídio... -fez uma ligeira pausa.- Depois, Gerald foi encontrar-me a queimar o mobiliário no fogão, para eu e minha filha termos algum calor, sem alimentos para comer e demasiado envergonhada para sair e ir esmolar, como o resto dos alemães civis. Odeei o meu primeiro marido; era cruel e um bruto sem coração e agradeci a Deus quando recebi a notícia da sua morte! Porém, era a única que podia ser castigada pelo que ele fizera, Mr. Fisher! Só estes anos vividos com um homem como o meu actual marido conseguiram fazer-me esquecer esse passado... Pois bem, se eu tiver de viver e passar novamente por essas vergonhas, morrerei. Portanto, não vale a pena falar em ”situações embaraçosas” e tentar assustar-nos. Sabemos o que temos a recear. Compreende? A mulher de um criminoso de guerra descoberta numa aldeia em Essex... Um brigadeiro cometeu bigamia durante a guerra... Meu Deus! ”Situação embaraçosa!...”

Um triste sorriso aflorou-lhe ao rosto pálido.

- Isso seria a ruína do resto das nossas vidas! Aqui somos respeitados e gostam de nós. Gerald foi um oficial de carreira distinta. Vivemos felizes e decentemente durante quase trinta anos! Pois bem, se quiser faça-me as perguntas e eu responderei. No entanto, lembre-se de uma coisa: hoje, nada que faça ou diga, me pode assustar. Não, querido! -acrescentou, voltando-se para o marido. - Deixa... Não podemos continuar escondidos... Teremos sempre o carinho um do outro!

- Um momento!-interrompeu o brigadeiro, dirigindo-se a Fisher. -Antes de minha mulher dizer qualquer coisa, quero que me responda a uma pergunta: se encontrar o general, o que tenciona fazer?

- Nada - respondeu Fisher. - Procuro um tesouro de arte e não estou interessado em apanhar criminosos de guerra.

Tal como as coisas se apresentam, tenho o mesmo interesse que os senhores em que ele não seja descoberto. Sabem que Paula anda à sua procura. Tem uma obsessão pelo pai. Pensa que vai encontrar um pobre velho desgraçado e perseguido que precisa de alguém para cuidar dele. Ignoro se ela própria o sabe, mas estou convencido de que o seu desejo não é vê-lo uma vez e depois deixá-lo afastar-se da sua vida... se eles se juntarem, perdê-la-ei. Irá com o pai para longe e não desejo que isso aconteça!

- Não sabíamos que estava pessoalmente interessado no assunto - disse o brigadeiro.

- Não me perguntaram - retorquiu Fisher. - Deixaram Paula sozinha no meio daquela baralhada, pensando apenas na vossa situação. Se me permite dizer-lho, em minha opinião, Mrs. Ridgeway, não tinha o direito de deixar a sua filha na ignorância quanto ao pai. Se lhe tivesse dito a verdade, nunca teria experimentado esta terrível ansiedade. Sabe Deus o efeito que terá sobre ela o encontro, se alguma vez tal acontecer! É por esta razão que desejo descobrir o tesouro sem a presença de Paula. Se ele alguma vez estiver disposto a mostrar-se, será com certeza essa ocasião que escolherá, esperando encontrá-la à procura dele. Não quero, pois, que as coisas se passem dessa maneira. Desejo casar com ela e espero que os senhores compreendam agora o que realmente se passa.

- Compreendo - disse Mrs. Ridgeway, voltando-se para o marido. - Parece-me que seria o melhor para todos nós, querido. Como posso ajudá-lo, Mr. Fisher?

- Sei que o general se encontrava em Paris em Junho de

1944 - disse Fisher - mas não consegui descobrir onde vivia. Naturalmente teve o máximo cuidado em se ocultar, porque a Resistência procurava-o, era dos que estavam à cabeça da lista. Sabe onde ele vivia, Mrs. Ridgeway? Acredite, tudo depende da minha descoberta a esse respeito.

- Sei, com toda a certeza! -respondeu a mãe de Paula.

Tinha o braço enfiado no do marido; nesse momento libertou-se e fez um pequeno gesto com a mão.

- Sei exactamente onde era! Passei ali um fim-de-semana^ com ele! Mas porque não nos sentamos todos?!

- Mrs. Stanley? Bom dia! Fala Joe Dunston.

- Como está? - disse Paula um pouco ensonada. Fisher deixara-a de madrugada. Paula sentia-se cansada e

deprimida, depois da noite que tinham passado juntos. Pela primeira vez se sentira como que amolentada, triste e tensa apesar de todos os esforços de Eric para lhe despertar a chama capitosa da luxúria; porém, nada conseguiu e essa impotência teve sobre ele um efeito profundo.

Quase não falara; sentara-se na cama e, de olhos abertos, fitando a escuridão do quarto, murmurou:

- Já não me amas, pois não?

E quando Paula negou, pareceu não ouvir, prosseguindo:

- Sei que não! Tudo terminou. Nunca sentiste nada por mim, não é verdade?

- Estou cansada - protestou Paula, torturada e quase a romper em pranto. - Meu amor, esta foi a primeira vez que os nossos corpos e os nossos desejos não conseguiram atingir a culminância! Não exageres, dando tão grande importância a um nada!

- Nada! -exclamou Fisher, atirando com a roupa.- Tens razão, é a palavra apropriada! Bem, agora vou deixar-te dormir... Tentarei telefonar-te de Inglaterra. Parto de madrugada.

E Fisher saiu, deixando penetrar um breve raio de luz do corredor, quando abriu e tornou a fechar a porta do quarto.

Paula conservou-se acordada durante muito tempo e chorou, mais por ele do que por ela. Sentia-se vazia, incapaz de se deixar arrastar pela onda da sua arrebatada sexualidade.

Porém, isso contecera por acaso, por uma dolorosa renúncia da natureza e não pela fria insensibilidade que ele suspeitava. Sentira-se impotente para lhe saciar o desejo e, dolorosamente, Paula pensou que talvez nunca mais sentisse renascer o ardor dos sentidos desenfreados.

Quando, finalmente, adormeceu, o seu descanso foi fugaz ; o sono era perturbado por sonhos exaustivos de viagens que começava, mas a cujo termo nunca chegava.

Ao receber o telefonema de Dunston, olhou para o relógio e viu que dormira até às dez horas. Fisher partira no avião das oito e meia.

- Não a acordei, pois não?

A voz alegre de Dunston soltou uma gargalhada.

- Ainda bem que o fez!-exclamou Paula. - É muitíssimo tarde!

- Deve ter tido uma noite muito divertida! Sei que o nosso homem partiu hoje para Inglaterra e pensei que talvez não se importasse de fazer aquela expedição de compras comigo!

Houve uns breves segundos de pausa e depois a voz dele já era um pouco tímida:

- Gostava imenso, caso isso não seja uma maçada para si! O meu gosto quanto a vestidos é horrível!

- Mas com certeza! Não é maçada nenhuma!

Paula afastou o cabelo que lhe descaíra sobre o rosto e recostou-se na almofada que ainda conservava os vestígios da presença de Eric.

- É um prazer! Onde quer ir?

- Não faço ideia!-respondeu ele. - A qualquer sítio que não seja muito barato, mas também não é preciso ser precisamente Christian Dior. Preferia deixar isso consigo.

- Bem... deixe-me pensar. E se fôssemos ao Lafayette? Eles têm alguns vestidos bastante bonitos e não são excessivamente caros.

- O que entender melhor! - Dunston parecia encantado. - Onde é? Talvez fosse melhor eu ir lá directamente, se não se importa, porque tenho uma reunião dentro de vinte minutos. Às onze e meia, acha bem? Onze e meia, um quarto para o meio-dia?!

- Perfeitamente! - respondeu Paula. - Encontramo-nos em baixo, na entrada principal ao meio-dia menos um quarto! É na Rua Saint-Honoré.

- Maravilhoso e mil vezes obrigado! Até logo!

Paula levantou-se e foi para a casa de banho. A luz eléctrica parecia pálida e as olheiras profundas indicavam a noite passada num anseio de amor que tanto a fizera sofrer.

O primeiro homem da sua vida nunca se importara com ela; agora, ficara seduzida por um que se importava demasiado. Eric queria o que ela não lhe podia dar: a sua posse completa, total. James, aborrecia-se por causa da sua vergonha, do seu acanhamento, mas em dada altura, pareceu-lhe que Fisher conseguira esmagar as reservas que a conservavam parcialmente afastada.

Agora, porém, a barreira erguera-se de novo e isso - mais do que a importância naquela noite que haviam passado juntos - era o que ele pressentira e o levara a sair do quarto, verdadeiramente desesperado.

Mas o desespero também ameaçava agora Paula; o desespero de voltar à solidão, saber que se movia longe de Eric, longe do amor e de se sentir amada, voltando ao mundo da espera solitária. Sim, esperar era a verdadeira definição.

Foi tomar um duche, vestiu-se e preparou-se para o encontro com Dunston. Sempre à espera de qualquer coisa ou de alguém. E o que lhe dava satisfação por passar esse tempo com Dunston era saber que esse alguém, afinal de contas, não era Eric Fisher.

Pelo espaço de um momento, já vestida e pronta para sair, deitou-se em cima da cama. Estava furiosa consigo própria por tê-lo magoado. Eric também era independente e quase invulnerável. Dissera-lhe ter sido ela a primeira mulher a quem amara; Paula acreditara-o e, contrariamente ao que se passava com ela, entregara-se-lhe, sem reservas nem restrições.

Ela devia-lhe muito; devia-lhe até a sorte de se ter sentido feliz. Levantou-se da cama, verificou se tinha a chave do quarto dentro da malinha e resolveu mostrar-se especialmente terna e afectuosa quando ele telefonasse.

Sentado no café defronte do hotel, Dunston espreitava por cima do jornal e viu-a sair para a rua, chamar um táxi e entrar. Pagou o café, atirou com o jornal e deu a volta, dirigindo-se à entrada de serviço.

Dunston sabia o número do quarto de Paula, por lho terem dito quando telefonara. Abriu a porta, não viu ninguém; entrou para um corredor a cheirar a comida e a lixo e um gato fugiu para uma casa de banho. Joe movia-se com todo o cuidado, experimentando as portas. Por fim descobriu a das escadas de serviço e começou a subir. Ao chegar ao primeiro andar, encontrou-se no patamar principal e dirigiu-se para o elevador. Era automático e, após uma pequena espera, chegou com dois passageiros que subiam.

Com o maior à-vontade Dunston entrou, levou a mão ao chapéu, cumprimentando o casal idoso e carregou no botão três. Ao chegar ao terceiro andar saiu, enquanto os outros continuaram a subir, e dirigiu-se pelo corredor fora em direcção ao quarto de Paula: 399. Não se via ninguém nas proximidades. O único perigo era a criada de quarto poder aparecer naquele sector, para iniciar as limpezas. Porém, tinha de correr esse risco; dirigiu-se para a porta e em menos de um minuto conseguiu abri-la.

O quarto estava em desalinho e a cama numa confusão; com todo o cuidado encaminhou-se para a janela e baixou a persiana. Em seguida acendeu a luz e começou a olhar em volta. Não era um quarto luxuoso; estava pintado de azul com mobília em mogno, num estilo vagamente moderno. Em cima da escrivaninha uma jarra com rosas. Dunston calculou que teriam sido oferecidas por Fisher. Aproximou-se mais do móvel e abriu a gaveta. Dentro, havia apenas algumas folhas de papel do hotel, sobrescritos e uma lista com os preços da lavandaria.

Em seguida, olhou para os frascos de loção e de creme e para a fila dos batons, alinhados ao lado uns dos outros, como soldadinhos. Pó-de-arroz, um perfume caro num frasco de cinco onças. Começou a pensar se isto também teria sido a mão de Fisher.

Depois dirigiu-se ao roupeiro e olhou para os vestidos de Paula. Pesquisou tudo sem saber o que andava a procurar; pegou na camisa de noite que ela vestira e sentiu um breve estremecimento de sensualidade.

Abriu a porta da casa de banho. Mais frascos, pasta de dentes, pentes e uma escova de cabelo. Não encontrou comprimidos de espécie alguma. Evidentemente, Paula não era neurótica. Portanto, não podia haver um acidente por dose excessiva.

O chão da casa de banho ainda estava húmido. Cedendo a um impulso, Dunston afastou a cortina do chuveiro; algumas gotas de água salpicaram-no. Olhou para cima e então, subitamente, imobilizou-se. Não procurara e nem sequer pensara poder encontrar aquela possibilidade... a ideia era tão antiga!... Porém ali estava! Um irradiador eléctrico comprido, preso na parede por cima da banheira. Aproximou-se e puxou o cordão. Os elementos começaram a tornar-se rubros. O aparelho encontrava-se acima do nível dos olhos; Dunston era alto e teve de olhar para cima para o ver, preso na parede, a fim de aquecer o corpo nu quando saísse da água.

Tornou a puxar o cordão e a chama desapareceu. Duas vezes puxou o cordão e de cada vez empregava menos força. Às vezes podia estar duro, inteiriçado, mas este estava bastante flexível. Começou a assobiar baixinho. Pegou na ponta do cordão e meteu o pequeno nó dentro de uma das argolas da cortina do banho. O irradiador acendeu-se imediatamente. Desprendeu o nó da argola. Depois descalçou os sapatos e trepou para a borda da banheira, ficando assim ao nível do aparelho. Examinou-o com todo o cuidado; em seguida, desceu. Precisava de tempo para trabalhar sem o receio de ser perturbado.

Dunston olhou para o relógio: 11.45 horas. Paula devia estar à sua espera nas Galerias Lafayette. Por outro lado era preciso sair dali antes da criada ir arrumar o quarto. Saiu da casa de banho, levantou as gelosias e saiu para o corredor. Enquanto se dirigia apressadamente na direcção do elevador, viu chegar a criada pela porta de serviço, empurrando o carrinho da roupa suja. Um quarto de hora depois Joe Dunston chegava, arquejante e com uma imensidade de desculpas, junto de Paula, que o esperava à porta.

Quando Fisher, nessa tarde, telefonou para o hotel, do quarto de Paula ninguém respondeu.

Tinha almoçado num bar a uma hora de caminho da casa dos Ridgeways e começou a pensar por que motivo não se sentia feliz e entusiasmado. O fim das pesquisas estava à distância de um voo sobre o canal, precisando apenas de fazer as necessárias combinações e informar a princesa Von Hessel de que, em breve, entraria na posse do tesouro.

Fisher estava sentado no bar a comer sanduíches e a beber cerveja, ansioso por poder ver ou falar com Paula. Tencionava quebrar a promessa feita, convencido de que a sua obsessão relativamente ao pai era a barreira que obstava a que ela se lhe entregasse completamente. Paula queria conservar-se à parte, de forma a estar livre quando chegasse o momento da opção.

Aborrecido, triste e infeliz, fumava, desprezando-se a si mesmo por ir enganá-la, embora convencido de não ter outra alternativa.

Paula tinha sede de amor. Eric podia satisfazer-lhe essa necessidade e já lhe provara que o dele era bastante mais forte do que um anseio sexual. Queria-a como nunca imaginara poder desejar alguém e o medo de a perder produzia-lhe uma tal sensação que quase não reconhecia a sua própria personalidade. Tornara-se ciumento, estava obcecado e sentia-se capaz de tudo para evitar que Paula lhe fugisse fosse sob que pretexto fosse, até alegando que a necessidade que o pai tinha dela estava em primeiro lugar.

Assim, Fisher pensara seriamente em entregar o general à polícia, caso ele aparecesse no momento de irem buscar o tesouro, pois calculava que Bronsart não tinha outro meio de entrar em contacto com a filha, senão esperando que ela se dirigisse ao sítio onde estava escondido. Porém, Paula não iria!

Fisher saiu do bar e dirigiu-se para Londres. Não! Paula não estaria perto do tesouro e, se o pai se materializasse, podia ameaçá-lo ou entregá-lo.

No seu presente estado de espírito, Eric preferia a segunda hipótese, mas, ao mesmo tempo, o receio da reacção de Paula tornava isso impossível. Se ele aparecesse e fosse preso e condenado, ela nunca lhe perdoaria, mas se não se encontrassem, Fisher tinha a impressão de que seria aceite sem restrições.

Quanto ao tesouro, estava ansioso pelo momento de poder também abandonar o caso e se, de facto, Paula tinha direitos legais sobre a maldita obra de arte, os Von Hessel que ficassem com ela! O seu único desejo era ver o assunto terminado e deixarem-lhe levar Paula sã e salva! Podiam então casar e procurar casa.

Eric Fisher, o nómada profissional que nunca se incomodara com coisa alguma - senão em pagar a renda do seu apartamento mobilado -, começou a suspirar por uma casa com todas as comodidades, uma mulher e filhos. Os seus pensamentos já tinham ido até esse ponto.

Quando chegou ao escritório, pediu uma chamada para o hotel, em Paris. Ao saber que Paula não estava, ficou furioso e atirou com o auscultador. A incerteza da despedida continuaria, até conseguir falar com ela e reparar o seu erro. De facto, Eric procedera mal, saindo daquela maneira. O seu orgulho tinha sido ultrajado e a insegurança fizera-lhe perder a noção do senso comum. Portara-se como um louco!

Pediu nova chamada para dali a uma hora e, entretanto, telefonou à princesa Von Hessel, em Munique. A resposta dela foi curta, mas cheia de reprimida excitação; Eric notava que o tom de voz se modificava enquanto falava.

- E quando pode ser?

- Amanhã, se puder tratar do assunto com o hotel.

- Deixe o caso comigo. Seguirei esta noite, de avião. Trabalhou muitíssimo bem!

- Obrigado! - respondeu Fisher. - Regresso amanhã a Paris e depois contactarei consigo.

Desligou. Ainda lhe parecia um sonho a explicação ser tão simples e tão inteligente. O general era um homem espertíssimo, com a sua irónica ambiguidade de espírito. Nada de caves em sítios isolados, nem frios lagos suíços, para o seu tesouro. Escondera-o onde ninguém se lembraria de procurar, mas de difícil acesso para quem não soubesse o segredo.

Tinha sido realmente um plano bastante inteligente e nem mesmo, no final, perderia o interesse. Fisher tinha a certeza de que o general havia de aparecer. Surgiria das sombras, para reclamar a filha e o tesouro que conservara oculto durante todos aqueles anos. Porém, Eric ia proceder de maneira que não levasse um nem outro.

A segunda chamada não demorou; porém, não teve maior êxito do que a primeira: Paula ainda não regressara ao hotel.

Dunston oferecera-lhe o almoço, depois das compras. Tinham comprado um lindo vestido e um casaco para a mulher dele, ou antes, o primeiro de muitos -pensou para consigo - que havia de comprar mal tivesse terminado a sua tarefa.

Procurou mostrar-se alegre e bem disposto; tinha uma maneira especial de lidar com as mulheres, a qual lhe tinha sido bastante útil durante anos. Conseguira mesmo deitar-se nalgumas camas inacessíveis, facto que chegava a surpreender as próprias mulheres seduzidas. Em resumo, Dunston seria um sério concorrente de Fisher - com Paula Stanley - se o seu papel naquele caso não fosse diferente...

- Muito bem!-exclamou, dando-lhe o braço quando saíram do restaurante. - E agora para onde? Regressa ao hotel?

- Não - respondeu Paula. - Vou ao cabeleireiro. Estou com um cabelo horrível!

- Não sou dessa opinião! - respondeu ele. - A meus olhos está suficientemente apetitosa e comê-la-ia se não tivesse já almoçado! E a propósito de almoço... Esta noite, quais são os seus projectos a respeito de jantar?

- Vou sair - disse Paula. - Mas de qualquer forma, muito obrigado! Espero que sua mulher goste do vestido.

- Vai ficar encantada - disse Dunston com um sorriso -, desde o momento que não saiba ter sido uma rapariga tão linda quem me ajudou a escolhê-lo... Onde é o cabeleireiro? Levo-a lá!

Quando chegaram, Joe saiu do táxi e trocaram um aperto de mão; ele mostrou os seus lindos dentes brancos num sorriso amigável e esperou até Paula entrar e vê-la dirigir-se ao balcão.

Depois disso, disse ao motorista que o levasse a uma loja de ferragens e aparelhagem eléctrica. Comprou um alicate de pontas, uma chave para parafusos grandes e pequenos, metro e meio de fio e um rolo de fita isoladora.

Seguidamente chamou outro táxi e deu a morada do hotel de Paula.

Entrou e dirigiu-se à recepção.

- Mrs. Stanley, se faz favor.

- Um momento, vou ligar para o quarto.

Dunston ficou à espera, olhando de relance em volta da sala, com o embrulho das compras debaixo do braço. Paula podia ter usado o cabeleireiro como uma desculpa para se ver livre dele, ter entrado na loja sem fazer marcação e dizer que se viera embora por estar tudo marcado. Precisava de ter a certeza absoluta de que não estava no quarto.

O empregado da recepção olhou para ele e abanou a cabeça.

- Não respondem; Madame Stanley saiu esta manhã e ainda não a vi entrar.

- Não tem importância - disse Dunston.- Vim ao acaso.

- Deseja deixar algum recado?

- Não, obrigado! Telefonarei esta tarde.

Saiu para a rua e voltou à esquerda. Passou por duas mulheres que estavam a conversar muito entretidas; abriu a porta de serviço do hotel e entrou. Dirigiu-se ao quarto de Paula, subindo as escadas e evitando o elevador.

Àquela hora da tarde o pessoal do hotel não andava pelos corredores e ele não desejava ser visto por nenhum dos hóspedes. Forçou a fechadura da porta do quarto - como tinha feito pela manhã -, entrou e fechou a porta com todo o cuidado, trancando-a por dentro; se alguém viesse ou Paula regressasse inesperadamente, dessa forma seria avisado e poderia esconder as ferramentas.

O quarto estava todo em ordem; na casa de banho tinham sido colocadas toalhas lavadas e notava-se um cheiro a desinfectante. Dunston viu ainda restos de pó branco na prateleira por cima do lavatório. As cortinas do chuveiro estavam puxadas para o lado.

Dunston desatou o embrulho, colocou o fio, a fita isoladora e a chave de parafusos em cima do banco, descalçou os sapatos e trepou para cima da banheira para inspeccionar o irradiador. Em seguida desceu, pegou na chave de parafusos e começou a trabalhar. Dez minutos depois retirou o irradiador da parede. Fê-lo descer uns quinze centímetros e pendurou-o, ficando apenas preso pelo fio ligado à parte de trás.

Com todo o cuidado, largou-o; o fio era grosso e forte e o irradiador fixou-se. Joe, hesitou por momentos, a ponderar. Por fim, teve um leve encolher de ombros e encostou-o à parede; prendeu os dois parafusos principais para o aguentarem temporariamente e desceu.

Saiu do quarto e encontrou o corredor vazio; percorreu-o nos dois sentidos, à procura da caixa dos fusíveis. Não estava num lado nem no outro. Abriu a porta de serviço e viu-a na parede, mas demasiado alta para lhe poder chegar. Soltou uma blasfémia. Devia haver maneira de o conseguir. Encontrou uma porta e abriu-a. Era um armário e lá dentro, entre espanadores de penas, vassouras, latas de pó de limpeza e de cera, encontrou um escadote. Então abriu a caixa dos fusíveis e olhou para o relógio. Eram três horas e quarenta e oito minutos. Ninguém devia estar com luzes acesas nem utilizando a electricidade a essa hora, naquele andar e, pelo tamanho da caixa dos fusíveis, percebeu que cada andar tinha o seu sector separado; portanto, a falta de corrente num andar, não significava cortar a distribuição em todo o hotel.

Dunston desligou o interruptor principal, foi rapidamente colocar o escadote no seu lugar, olhou para o corredor a fim de se certificar de que não vinha ninguém a descer e voltou ao quarto.

Dentro do quarto de banho trabalhou a toda a pressa. Desligou o irradiador do seu fio e acrescentou o bocado extra; feito isto, tornou a ligar. Suavemente, deixou-o deslizar e o resultado satisfê-lo. Pendurado no novo fio, o irradiador descia até ao nível da água dentro da banheira; ia em linha recta com a cabeça do chuveiro. Dunston fê-lo subir e meteu o fio extra dentro de um buraco feito na parede; em seguida segurou o irradiador com uma das mãos e meteu dois parafusos bastante soltos nos respectivos buracos, dando-lhes apenas duas voltas.

Por fim, pendurou o irradiador; pegou no cordão e meteu-o através da argola da cortina da banheira. Puxou a cortina, o cordão foi arrastado e no mesmo instante o irradiador soltou-se e caiu. Dunston agarrou-o antes dele ter ficado suspenso até ao fim do fio. Como estava em pé dentro da banheira, senão estivesse preparado, o aparelho ter-lhe-ia caído em cima, tal como uma bala.

Não havia dúvida: Paula seria instantaneamente electrocutada. Se estivesse ainda sentada dentro da banheira e tocasse na cortina, o efeito do irradiador, ao tocar na água, seria o mesmo e... tudo seria atribuído a um acidente!

Desta forma o hotel tornar-se-ia responsável por uma instalação deficiente e ele receberia o seu meio milhão na conta do banco da Suíça.

Satisfeito, Dunston tornou a colocar o irradiador no seu lugar, ajeitou os parafusos e deixou ficar os dois maiores suficientemente lassos para caírem ao mais leve movimento. Depois, amparando o aparelho, fixou o extremo do cordão à argola da cortina, ficando um momento a olhar para a sua obra: estava instalado na parede, bastante alto e a própria cortina ocultava-o um pouco.

Ora se Paula ia jantar fora, como tinha dito, quando voltasse tomaria um duche e isso - murmurou Dunston para consigo - bastava para completar a obra. Fisher ficaria muito deprimido, mas havia que partir ovos para fazer omeletas. Paula era uma rapariga simpática e ele não lhe desejava mal nenhum; a pouca sorte era ser o preço da sua riqueza!

Muito contente com a sua obra, Joe meteu a ferramenta e o papel em que tinha vindo embrulhada dentro da algibeira, abriu a porta e dirigiu-se para o corredor de serviço onde estava a caixa dos fusíveis. Ligou a electricidade, foi arrumar o escadote no armário e desceu as escadas.

Concluíra o trabalho em menos de uma hora. Regressou ao seu hotel de táxi, mandou vir uma garrafa de brande e deitou-se na cama, à espera. Após o segundo copo, adormeceu.

- Tenho estado todo o dia a ligar para aí! Onde diabo te meteste?!

Paula estava a despir-se quando o telefone tocou. Acabava de entrar, cheia de calor e exausta, depois de ter passado a tarde no cabeleireiro. Regressara a pé, num passeio pelas ruas quentes, gozando a atmosfera tipicamente parisiense da cidade ao cair da tarde, quando os cafés começavam a encher-se e a multidão de turistas deambulava para cima e para baixo, a ver as montras.

Paula podia ter saído do cabeleireiro e ir directamente para o hotel; porém, havia qualquer coisa de solitário e pouco atraente no quarto vazio e, por isso, tentara evitá-lo. Entretanto, o telefone tocava; ninguém atendia até que por fim, depois de várias tentativas, tornou a tocar e ela atendeu.

- Fui fazer compras com o Joe! -explicou.

- Mas, pelo amor de Deus, não me digas que estiveram nisso até esta hora! - exclamou ele num tom de aborrecimento.- Então, diz lá!

- Almoçámos, depois fui ao cabeleireiro e vim por aí fora, a pé, a passear. Mas... porque estás tão irritado, querido? Desculpa não ter vindo mais cedo, porém, não sabia a que horas telefonavas...

Paula recostou-se na cama, com um dos braços por baixo da cabeça, a ouvir a voz zangada de Fisher. O quarto estava quente, mas vazio e a claridade começava a desaparecer; sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos. Aquilo não era nada o que esperava; não representava uma tentativa para curar a ferida, era abri-la ainda mais e ela nada podia fazer.

- Naturalmente esteve a fazer-te a corte. É o hábito dele...

- Por favor, não sejas pateta! Mostrou-se bastante simpático e comprámos um vestido para a mulher. Não percebo que bicho te mordeu! Diz-me uma coisa: falaste com a minha mãe?

- Falei. Que estás a fazer agora?

- Estou deitada em cima da cama a falar contigo! E que disse a minha mãe?

- Quase nada - mentiu Fisher. - Não estava disposta a cooperar. Só tenho pena de não estar agora junto de ti. Tentaria fazer apagar a recordação da noite passada. Estou louco por ti e tu sabes isso perfeitamente, não é verdade? Até tenho ciúmes desse estafermo do Dunston!

- Não precisas ter - respondeu Paula, meigamente.- Também gostava imenso que estivesses aqui. Quando voltas?

- Amanhã, mas não sei a que horas. Continuas a amar-me?

- Pois com certeza! Bem sabes que sim!

- Então está bem - disse Fisher. - Tem cuidado contigo, querida! Até amanhã!

- Adeus!

Paula colocou o auscultador no descanso e ficou imóvel.

Podia muito bem ter-lhe contado o que se passara com Philip von Hessel, mas não o fez, pois se ele mostrava ciúmes de uma pessoa como Joe Dunston...

Enfim, tinham-se despedido bem dispostos; Eric parecia mais satisfeito, mais feliz. Mas a mãe não lhe tinha dito nada!

Paula fechou os olhos; que havia de fazer?! Tinha sido um dia de viagem perdido. O telefone começou a tocar novamente. Ela olhou de relance para o relógio e sentou-se na cama. Queria tomar um banho antes de se vestir para se encontrar com Philip. Porém... era Philip quem estava ao telefone.

- Mrs. Stanley? Venho perguntar-lhe se posso ir buscá-la mais cedo. Já falou com Mr. Fisher?

- Já, há poucos minutos!

- Nesse caso deve estar excitada... Minha mãe contou-me tudo e deve chegar ainda esta noite.

Paula endireitou-se.

- Excitada, porquê? Que sucedeu?

- Ele não lhe disse?! Já sabe onde se encontra o tesouro! Vamos buscá-lo amanhã!

- Não... Não sabia... ele não me disse nada. A que horas quer vir?

- São agora sete. Gostava de ir esperar o avião onde vem a minha mãe e que chega às onze. Se pudesse ir buscá-la ao seu hotel dentro de vinte minutos, podíamos jantar um pouco mais cedo. Importa-se.

- Não, de maneira nenhuma! Às sete e meia estou pronta! Até já!

Paula ergueu-se lentamente. Fisher mentira-lhe. Fosse qual fosse a informação que pedira à mãe, obtivera-a! Sabia onde estava o tesouro e negara!

Dirigiu-se para a casa de banho. A janela estava aberta, mas o calor era intenso. Foi até à banheira, pôs a válvula e abriu as duas torneiras.

Iam então buscar o tesouro! No dia seguinte, conforme dissera o príncipe Philip. Eric alertara os Von Hessel e não lhe dissera nada a ela. De repente, Paula sentiu-se enojada, enojada com a sensação de ter sido enganada, fosse qual fosse a razão. Confiara nele e amava-o; afinal de contas, a seu modo, não procedia melhor do que James!

Tinha sido o príncipe quem lhe dera a notícia; Fisher não contara com aquela reviravolta das circunstâncias quando lhe dissera que a amava e mentira, ao mesmo tempo.

O príncipe ia buscá-la dali a pouco; não havia tempo para tomar um banho; fechou as torneiras e tirou a válvula. Lavou-se rapidamente no lavatório e escolheu um vestido de seda, escuro, com um colar de pérolas que James lhe dera; estava muito bem penteada e utilizou um pouco daquele perfume caro que Eric lhe oferecera.

Olhando para o relógio viu que eram sete horas e meia. Saiu do quarto, desceu pelo elevador e foi esperar o príncipe.

Grande número de mulheres tinham tentado captar Philip. Já desde a juventude, as raparigas o olhavam de soslaio e as suas diligências tornavam-se mais sérias à medida que crescia e se tornava melhor partido.

Mais tarde houve flirts e fugazes idílios; teve uma amante durante três anos, já casada, e que há muito abandonara a esperança de casar com ele. Porém, nunca estivera apaixonado ao ponto de pedir a qualquer rapariga para ser sua mulher. Tal como os reis, os Von Hessel ou casavam com primas ou com raparigas de outras famílias de títulos equivalentes.

Nunca se podia pensar que Philip pudesse interessar-se por alguém fora do seu círculo ou tivesse intenções sérias relativamente a uma mulher de classe mais baixa. Como resultado disto, conservava-se um solteiro impenitente, à espera que acontecesse o improvável e lhe aparecesse alguém à altura da sua classe e por quem se apaixonasse, pois, sem amor, rejeitara todos os argumentos da mãe quando lhe dizia que devia casar-se.

A princesa Von Hessel chamava ao filho um sentimental, mas ao mesmo tempo o seu procedimento demonstrava uma força de vontade igual à dela. Philip nunca punha obstáculos às decisões da mãe senão quando estas eram contra a sua consciência e isto também contrariava a mãe que negava a existência de um código moral que não fosse ditado pelas exigências de momento.

Philip não tinha intenção de fazer mais do que jantar com Paula e tentar obter a sua promessa de ajudar a fazer com que Fisher desistisse das pesquisas para encontrar o tesouro. O convite tinha sido espontâneo e, mais tarde, ele próprio ficou um pouco surpreendido com a sua acção; não costumava ceder a impulsos, mas este gesto tinha sido de certo modo impulsivo.

Paula, evidentemente, não era a mais bonita nem a mais atraente mulher que encontrara. A amante era uma loira magnífica e considerada na sociedade de nobreza e opulência onde vivia, como um perfeito exemplo da raça alemã. Paula não se podia comparar em elegância, em presença, nem importância com as mulheres que frequentavam o seu círculo; as outras eram exóticas, criaturas ricas, divorciadas da realidade da vida.

Por essa razão, Philip sentira -quando falara com Paula - que estava junto de uma mulher viva, vulnerável, perplexa séria e tímida.

Quando chegou ao salão do hotel e ela se ergueu, Philip sentiu-se deslumbrado, como se qualquer coisa estranha estivesse para acontecer.

- Foi uma grande amabilidade da sua parte ter acedido a jantarmos mais cedo - disse ele que, entretanto, lhe pegara na mão e a beijara.

Depois olhou para ela e sorriu; pareceu-lhe que Paula estava pálida e um pouco distraída, mas após uns breves instantes ela sorriu-lhe e, de súbito, a atmosfera desanuviou-se.

O sucesso daquela noite estava assegurado desde o momento em que Philip lhe pegou no braço e a conduziu até ao carro. O príncipe raramente se entregava ao prazer de contactos físicos. Tinha sido educado de forma a não tolerar aquelas palmadinhas amigáveis, geralmente aceites como excessos sociais, beijos de pessoas comparativamente estranhas, o emprego instantâneo do nome de baptismo e todas aquelas práticas falsas que dignificavam relações de amizade entre duas pessoas. Nunca pegava no braço de uma mulher, fosse sob que pretexto fosse. Instalou-se na parte de trás da limousine e ofereceu-lhe um cigarro.

- Obrigada! - disse Paula. - E agora conte-me o que há a respeito do tesouro, sim? Onde estava?

- Não sei - respondeu Philip. - Minha mãe apenas teve tempo de me dizer que vinha para aqui e as pesquisas terminavam amanhã. Estava com pressa para embarcar no avião. Não posso compreender por que razão Mr. Fisher não lho disse. Sempre pensei ser por essa razão que se encontrava aqui.

- Parece-me que compreendo - disse Paula, olhando para ele. - O mal foi eu confiar nele. Para onde vamos?

- Ao Grand Vefour - respondeu Philip. - É um sítio muito sossegado e creio que gostará.

- Tenho a certeza que sim! Esperemos até lá chegar e para conversarmos sobre o assunto.

- Não falaremos nisso se é coisa que a incomoda respondeu o príncipe. - E pareceu-me que sim. Ficou com aspecto de pessoa desiludida e eu gostava que esta noite fosse agradável para ambos. Além disso, não aceitará outro convite se não se sentir satisfeita.

- Não creio que receba muitas recusas - disse Paula, sorrindo. - Não é casado, pois não?

- Não. Sou solteiro e o desespero de minha mãe. Ela deseja netos e eu desejo ser feliz. Um contratempo! Bem, estamos chegados!

Tratava-se de um restaurante chique, com aquela atmosfera suave das casas elegantes e caras, um paraíso para os gourmets ricos que gostavam de se concentrar na comida e na companhia, sem distracções. Não tinha música; era um restaurante de três estrelas e serviço rápido.

Paula sentou-se e Philip reparou que vários homens olhavam para ela.

- Posso dirigir-lhe um cumprimento?

- Por favor!

- Mrs. Stanley é a mulher mais atraente que se encontra nesta sala!

- Muito obrigada! Mas... porque ri?

- Porque é de uma simplicidade deliciosa, Mrs. Stanley! Dirijo-lhe um cumprimento lisonjeiro e não sorri pretensiosamente nem tenta negar. Limita-se a agradecer! Onde foi buscar esses seus olhos azuis?! Nunca vi cor semelhante!

- Herdei-os de meu pai - respondeu Paula. - Também me vai dirigir um cumprimento por causa deles?

- Não - respondeu Philip. - O seu pai não me interessa; porém, sei que a si lhe interessa bastante. Ainda não teve notícias dele?

- Não - disse Paula -, e se o assunto depender de Mr. Fisher, nunca o encontrarei. Ele não quer que o descubra e deve ter sido por isso que não me disse ter encontrado a solução do enigma do tesouro. O seu desejo é que eu volte para Inglaterra e esqueça tudo isto!

- Mas porquê? Que tem ele com a sua vida?

- Ama-me! -respondeu ela.

O príncipe mandara vir um sherry seco; bebeu um gole.

Por qualquer razão que não era capaz de explicar a si própria, Paula sentia desejos de contar a verdade àquele homem. Philip tinha o hábito de a olhar fixamente, enquanto falava; concentrava nela toda a sua atenção. Paula achava isto mais cordial e amigo do que desconcertante. Ele tinha uns olhos bonitos, com uma expressão que inspirava confiança.

No entanto, basicamente, Paula desejava surpreendê-lo e afastar-se.

- E quanto a si? - perguntou Philip. - A ele, compreendo-o perfeitamente, mas com certeza que Mrs. Stanley não.

- Estou a viver com ele - respondeu Paula lentamente. - Eric Fisher quer casar comigo.

- Tem muito bom gosto - retorquiu Philip. - Mas estou surpreendido por ele lhe ter agradado!

- Também eu estou! -exclamou ela. - Porém é muito homem e isso foi uma coisa nova para mim. É uma pessoa decidida. Junto dele sinto-me a salvo!

- Ama-o? !

- Não sei.

Paula abanou a cabeça. Philip admirou-lhe o pescoço branco e delicado.

- Estou tão zangada com ele e tão desapontada! Tentou enganar-me! Ele sabe muito bem que encontrar meu pai é a única coisa que me interessa neste mundo e, no entanto, enganou-me e mentiu-me! Deve regressar amanhã e não sei como irei encará-lo. A minha vontade era mudar-me daquele hotel e quando chegasse, amanhã, já não me encontrar lá!

- E porque não o faz? - perguntou Philip. - Porque não sai já esta noite?

- Não conseguiria arranjar quarto. Paris está cheia de turistas nesta época do ano. Quanto a si, não deve ter preocupações... Naturalmente tem uma suite permanente no Ritz.

- Temos a suite que meu irmão ocupava - explicou ele, subitamente. - Porque não se muda para lá? Era uma ideia excelente! Está vaga e ninguém a utilizará. Minha mãe tem a dela e eu tenho a minha. É um autêntico desperdício!

- Mas eu não faria uma coisa dessas!

- Porque não? Apenas por um ou dois dias, até recuperarmos o tesouro. Depois regressa a Inglaterra. Isso evitaria o embaraço de ver Fisher no mesmo hotel.

- De facto, talvez fosse mais fácil. Quero romper com ele. Já resolvi!

- Nesse caso, não o ama! Mais ainda, eu diria que nunca o amou. Sentia-se só, naturalmente infeliz e ele pareceu-lhe a resposta. Porém, não era e, com certeza, verifica isso agora!

- Não verifico senão a impossibilidade de continuar e não estou disposta a uma dessas horríveis cenas emocionais! Sinto-me furiosa, mas ao mesmo tempo tenho pena dele!

- Tem um coração muito bondoso - disse Philip. - Eu também nunca senti prazer em magoar as outras pessoas.

- Especialmente quando nós próprios já fomos magoados - observou Paula. - O meu marido tinha uma habilidade extraordinária para ferir a susceptibilidade alheia. Quando nos divorciámos eu não tinha a mais leve ilusão a meu respeito. Eric restituiu-me grande parte da confiança perdida, mas agora perdeu a dele; tem receio que eu encontre o meu pai e o escolha entre os dois... por isso faltou à sua palavra e ocultou-me o que se passava. Nunca pensou que eu pudesse vir a saber!

- E... escolheria, realmente, o seu pai?

- Se ele precisasse de mim... não sei! Ninguém poderia responder a uma pergunta dessas. Mas quando ele descobrir o tesouro, quero estar presente!

- E deve estar - respondeu Philip, muito sério. - Assim poderá provar que lhe pertence!

- A razão não é essa - retorquiu Paula. - Pode haver uma mensagem de meu pai, qualquer indicação que me conduza até ele. Conforme já lhe disse, não quero o tesouro!

- Sei que o disse e prometo que quando souber alguma coisa lhe direi! Nessa altura verificará que, contrariamente a Mr. Fisher, cumprirei a minha palavra!

- O príncipe não tem o mesmo motivo. Eu desiludi-o. De qualquer modo, livre de mim, ficará melhor.

- Não me parece que ele concorde com essa ideia observou Philip.-Tenho pena dele! Se me dá licença, vou num instante telefonar para o Ritz e dizer-lhes que Mrs. Stanley utilizará a suite. Será muito mais fácil para si.

- Tenho a certeza que sim - respondeu Paula. Aproveito a sua gentil oferta e mudo-me ainda esta noite!

Momentos depois, Philip von Hessel regressava; olhou para ela e sorriu:

- Está tudo combinado. Verá que fica confortavelmente instalada e ninguém a incomodará ali.

- É muitíssimo amável e sei apreciar a sua bondade.

- Não é necessário! Tenho imenso prazer em poder ajudá-la. E agora, vamos saborear o nosso jantar, esquecendo as coisas aborrecidas! Tem um sorriso encantador, Mrs. Stanley e, deste momento em diante, quero vê-lo nos seus lábios!

- Esquece que são os Austríacos que têm fama de ser alegres. Eu sou precisamente, meio-alemã.

- Também eu! - respondeu o príncipe. - Talvez por isso nos compreendamos tão bem. Conheço o nosso temperamento. Somos a única raça do mundo que sempre procurou viver de acordo com as suas lendas.

- Mas só com as tristes... as destrutivas... o gõtterdãmmerung - observou Paula. - Mas o mais estranho é que eu também gosto de Wagner!

- Odeio-o!-exclamou Philip a rir. - Para mim, Mozart! Gosta de música?

- Muito, mas prefiro a orquestra à ópera, sempre... excepto Wagner!

- Nesse caso precisa de ir à Alemanha! - disse o príncipe suavemente. - Aí ouvirá a nossa música como ela deve ser executada: por alemães... para alemães!

Philip debruçou-se um pouco e, por momentos, a mão dele descansou sobre a de Paula; estava quente, mas a pressão demorou apenas alguns segundos.

- Deve lembrar-se das boas coisas a respeito do nosso povo. O mundo recordar-lhe-á com demasiada frequência o que temos de mau e o que fizemos noutros tempos. Porém, a minha resposta para isso é que todas essas coisas pertencem ao passado e agora o nosso dever é encarar o futuro! Isso é também o seu dever, Mrs. Stanley! É alemã e tem um lugar entre os da sua raça. Se quiser convencer-se disso, não precisará de ninguém como Eric Fisher.

- Fui educada de forma a ter vergonha da minha nacionalidade - disse Paula.- Nunca me falaram nela, nunca falaram em meu pai. O meu nome e a minha nacionalidade foram mudados, porém... jamais me senti inglesa!

- O nosso sangue é forte - respondeu Philip.- Não é fácil reprimi-lo. Por que motivo fez sua mãe uma coisa dessas?!

- Pela vergonha que sentia - respondeu Paula. - Odiava meu pai e tudo quanto lhe dizia respeito e por isso creio que também me odeia... de certo modo, evidentemente, pois não julgo isso; no entanto, sinto que me odeia.

- Não tem tido uma vida feliz - disse Philip. - Lastimo.

- E a sua vida? Qual a sensação de ter tanto dinheiro e poder?

- Trata-se de uma pesada responsabilidade que muita vez representa um fardo insuportável - replicou Philip. - Porém, tem as suas compensações e não me refiro a determinadas vantagens, como poder comprar o que nos apetece ou ir até qualquer parte do mundo. Não; refiro-me às oportunidades de fazer coisas, de moldar os acontecimentos. Devo parecer-lhe muito pretensioso, Mrs. Stanley... um homem monótono com a mania de estar incumbido de uma missão.

- De maneira alguma! -protestou Paula. - Estou interessadíssima. Por favor, continue, sim?

- Eu também me envergonho do que sou.

O príncipe interrompeu-se para acender um cigarro.

- O nome da minha família ficou manchado, devido à nossa associação com os nazis e, de facto, colaborámos com eles. Minha mãe tentou resistir-lhes; é altiva e orgulhosa e ignora o significado do medo. Meu pai, porém, queria sobreviver. O preço era a colaboração com Hitler e nós acedemos. Utilizávamos os trabalhos forçados nas nossas fábricas ; dávamos fundos para o partido. Protegíamos os nossos interesses, participando nos crimes deles e, quanto ao resto do mundo, éramos igualmente culpados. Com certeza sabe isto; sabe o que o nome Von Hessel significa para os que não são alemães.

Philip fez uma pausa.

- Agora que meu irmão morreu, sou o chefe da família e o responsável pelo seu futuro. Quero provar que a imagem se modificou. Quero fazer bem com o nosso dinheiro e o nosso poder. Quero remir o nome da minha família... servir o meu país.

- E há-de fazê-lo! - exclamou Paula. - Tenho a certeza de que o fará. Sabe o que alguém me disse, numa reunião, sem saber nada a meu respeito? ”Se alguma vez encontrares um bom alemão, mata-o antes que ele se torne mau!’’

- Eu sei - respondeu o príncipe, sorrindo. - Mas não se deve importar! Mrs. Stanley e eu pertencemos à nova geração e é isso que interessa. Somos diferentes dos nossos pais; amo a minha mãe e, naturalmente, ela influencia-me; de uma maneira diferente. Há certas coisas que já não posso aceitar. Pertenço a um outro mundo e estou resolvido a ajudar a Alemanha a entrar nele. Esta é a única desculpa para sermos tão ricos como somos, Mrs. Stanley e termos esta espécie de poder: usar o dinheiro e o poder para finalidades correctas. De contrário, como família, seremos desprezados e condenados... tenho a certeza!

- Desejo-lhe muita sorte e felicidades - disse Paula. Vai precisar de uma e de outra coisa, mas estou convencida de que vencerá e, de certo modo, invejo-o por ter uma finalidade para trabalhar.

- Também pode trabalhar por ela.

O príncipe curvou-se e Paula pensou - fora de propósito - que ele era o homem mais interessante que conhecera e, pessoalmente, o menos afectado.

- Devia voltar à Alemanha e ver com os seus próprios olhos o que está a acontecer. Já lhe disse... não se considere uma exilada!

- E eu prometi que talvez - respondeu Paula. - Porém, quem sabe?! Quem sabe onde estarei daqui a três meses?

- Pode estar junto de seu pai. É isso que quer dizer?

- Sim... se as coisas tomarem esse caminho ou então nunca chegar a conhecê-lo e voltar para Inglaterra e prosseguir com a mesma vida vazia. De qualquer maneira... - encolheu os ombros, sorriu-lhe e desdenhando a sua própria profecia acrescentou: -Quem sabe? Também pode ser que um dia vá à Alemanha!

- E quando for -disse o príncipe - será minha convidada! Vou pagar a conta e levá-la ao hotel. Depois podemos ir juntos para o Ritz.

- Seu estúpido! -exclamou Margaret von Hessel. - Incompetente! Estúpido! Desastrado! Ela está no Ritz! O meu filho levou-a para lá a noite passada!

Dunston afastou um pouco o auscultador do ouvido. Encontrava-se no vestíbulo do hotel e resolvera telefonar à princesa.

Pensara fazer o relatório, embora prematuramente, por se sentir cheio de confiança. Na véspera, cerca das sete e meia, telefonara a Paula, convencido de que ela não sairia tão cedo para jantar e não obtivera resposta. Desligara, já com o quadro mental dela jazer nua e morta dentro da banheira. Não tornara a telefonar, não valia a pena. O procedimento normal seria um inquérito imediato e Dunston não tinha vontade nenhuma de ser reconhecido como a pessoa que almoçara com ela no dia da sua morte.

Assim, ficou muito tranquilo e calculou que tudo se passara conforme havia planeado. Quando telefonara para a suite dos Von Hessel, cometeu o erro de dizer à princesa que tudo tinha sido liquidado de acordo com os seus desejos. A resposta furiosa apanhou-o completamente de surpresa; segurando o auscultador, suspendeu a respiração. Depois praguejou, disse umas breves obscenidades sem se importar se a princesa estava a ouvi-lo ou não.

- Mas que diabo anda o seu filho a fazer com ela?!

- Isso não interessa!-retorquiu a princesa em voz áspera. - Deixe o meu filho comigo e trate de fazer a parte do trabalho que lhe compete. Ela encontra-se aqui, no andar de cima e você a pensar no que estava a acontecer noutro lado! Maldito azêmola! Seu desastrado! - repetiu ela.-Teve tempo de sobra para organizar as coisas. Agora, não há tempo para nada! Fisher chega hoje e já encontrou o tesouro! Se não quiser que anule o nosso acordo, meta mãos à obra e faça imediatamente qualquer coisa! Dentro das próximas horas, ouviu? E não pense que fica com a importância que lhe foi entregue por conta! O banco congela-a logo que eu dê instruções.

- Quer dizer com isso que o assunto fica arrumado hoje? - perguntou Dunston.

- O mais tardar, amanhã! Foi o que Fisher disse.

- Uma coisa - cortou Dunston, que estava a pensar a grande velocidade-, até que ponto sabe seu filho... da combinação feita entre nós?

- Não sabe nada! - retorquiu a princesa. - E é preciso nunca saber. Ele não era pessoa para lhe pagar... entregava-o logo à polícia! Pelo amor de Deus, conserve-se longe dele, ouviu?

- Está bem! - respondeu Dunston. - Vou já tratar do assunto e liquidarei o caso de qualquer maneira, mas não fique admirada se daí resultar uma grande confusão! O seu filho é que foi o culpado de tudo isto por a tirar do hotel! Se ele não o tivesse feito, a esta hora já estava tudo terminado!

- Não interessa! -exclamou a princesa. - Termine agora, de contrário não recebe um cêntimo!

Margaret von Hessel desligou.

Dunston ficou na cabina, olhando para o telefone. Não receberia nada... nem mesmo a importância que a princesa depositara como garantia. Aquela filha do diabo tinha-o amarrado de pés e mãos! Tentara o capítulo acidente, mas agora, se quisesse o dinheiro, já não podia usar processos suaves. Portanto, conforme dissera, aquilo ia ser um grande sarilho, uma tremenda confusão.

A princesa dissera-lhe que Paula se encontrava no andar de cima. Dunston olhou para o tecto. Três andares! Era muito alto. Mas que grande maçada! Porém, devido ao tempo e às circunstâncias, não havia outra maneira!

- Tenho imensa pena - respondeu o recepcionista - mas a suite Luís XV está ocupada!

O empregado do hotel recordava-se perfeitamente do alemão alto, de cabeça branca e de óculos escuros que alguns dias antes tinha ido fazer a mesma pergunta. Dava a impressão de uma pessoa com uma ideia fixa naquela suite do hotel e o recepcionista começava a sentir-se irritado. Já lhe dissera que não estava disponível e o homem parecia não ter ouvido, pois tornara a fazer a mesma pergunta.

- Tem a certeza? - insistiu o alemão.-Pensei que estaria vaga, uma vez que o príncipe Von Hessel morreu daquela forma tão desgraçada...

- Continua à disposição da família - elucidou o empregado. - Está ocupada por uma senhora que chegou a noite passada.

- Que pena! - exclamou o general. - Tinha pensado em poder cá ficar!

- E agora já não tenho mais suites disponíveis. A que lhe ofereci antes também se encontra ocupada. No entanto, tenho um quarto com banho no terceiro andar, que se encontra vago por ter sido cancelada a sua reserva anteontem.

- É no terceiro andar?

- Exactamente. Porém, um momento, se faz favor. Vou ver o número e dir-lhe-ei a sua posição exacta; parece-me que é do lado da frente.

O general ficou à espera. Uma das mãos abotoou e depois desabotoou o botão superior do casaco. À parte isto, conservava-se imóvel e calmo.

Uma senhora... Onde ficaria exactamente o quarto vago, em relação à suite Luís XV? Pelo menos eram no mesmo andar.

- É o número 370, monsieur, e dá para a Place.

- Obrigado - disse o general com um aceno de cabeça.

Depois, desabotoou o casaco pela última vez e acrescentou :

- Fico com esse... por uma semana.

- Quer fazer o favor de preencher o registo e dar-me o seu passaporte.

- Com toda a certeza! Aqui tem! Chamo-me Weiss... Tirou da algibeira o passaporte suíço e preencheu todos os

pormenores do registo. Deu a morada em Espanha e assinou o nome sob o qual vivia há dez anos.

Foi precisamente nesse momento que viu também o nome de Paula Stanley escrito na linha anterior. Fez uma breve pausa, enquanto terminava a assinatura, passando-lhe um traço por baixo e leu a sua morada, em Inglaterra. Era a mesma onde ele mandara Schwarz.

Afluíram-lhe ao rosto duas pálidas manchas rosadas e outra à testa. A pele do general era muito clara, a cor de um louro puro. Porém, aquela onda de excitação rapidamente se dissipou. Paula aparecera! As mãos estavam perfeitamente firmes e a voz não se alterara.

- Estou a ver que está aqui hospedada uma amiga minha... - disse ele. - Mrs. Paula Stanley.

O recepcionista olhou para o registo. O passaporte suíço mudara-lhe a atitude; sentia uma profunda antipatia pelos alemães. Assim, sorrindo para o general, respondeu:

- Está sim, monsieur Weiss. De facto, é precisamente a senhora que se encontra na suite que desejava. Chegou a noite passada.

- Que coincidência!-exclamou o general. - Muito bem! Vou agora ao hotel onde estou hospedado e voltarei dentro de uma hora com a minha bagagem.

- Sentir-se-á aqui muito confortavelmente! - disse o empregado.

- Tenho a certeza que sim! Costumava sempre vir para este hotel!

E dirigiu-se para a rua, de costas muito direitas e uma das mãos na algibeira. Era um local demasiado familiar para os seus subordinados na época a que se referira com ironia secreta, nos dias em que saía do vestíbulo daquele mesmo hotel e todos quantos se encontravam à vista abriam caminho para ele e para os que o acompanhavam...

Regressou -conforme dissera- dali a uma hora, trazendo só uma pequena mala de mão e um pesado saco de lona, de desportista, que surpreendeu o porteiro, devido ao peso.

O general subiu de elevador e seguiu o empregado até ao seu quarto no terceiro andar. O homem colocou a bagagem lá dentro, ele deu-lhe uma boa gorjeta e o porteiro agradeceu e saiu, deixando-o sozinho.

Bronsart olhou em volta do aposento; estava muito bem mobilado, combinando um gosto e conforto de que ele não gozava há muitos anos. Até mesmo o cheiro do quarto lhe recordava o passado; era um aroma agradável, peculiar do Ritz, com as flores frescas que havia em todos os quartos e o cheiro da cera com que limpavam os móveis.

Recordava-se de tudo.

A suite Luís XV estava situada duas portas adiante, no mesmo corredor. Acendeu um cigarro e dirigiu-se para a janela; estava fechada para não deixar entrar no quarto o ruído e a poeira da rua movimentada. O condicionador de ar conservava o aposento com uma temperatura fresca e agradável. O quarto de banho também era bom, todo em azulejos amarelo-esverdeados.

Num impulso súbito, o general abriu a janela e olhou para baixo; o ruído do tráfego produzia um sussurro constante. Prendeu o fecho, preferindo o barulho da actividade e agitação ao silêncio alcatifado.

Seguidamente despiu o casaco, colocou-o nas costas de uma cadeira e deitou-se em cima da cama. Não era o momento oportuno para se apresentar à filha; em qualquer hotel as manhãs são sempre muito movimentadas; há a limpeza dos quartos e os hóspedes que chegam e saem. Ele precisava de um período de calma, de preferência durante o calor da tarde ou então entre as sete e as nove horas, quando toda a gente estava a jantar.

Agora que o momento do encontro estava próximo, com grande surpresa da sua parte, Bronsart teve a impressão de estar menos preparado para ele do que imaginara. Tinha um discurso pronto; ensaiara-o várias vezes desde aquela tarde em Madrid, quando abrira o jornal e vira a fotografia. Lera a notícia muitas vezes e manuseara-a tanto que já estava gasta e amarrotada.

Paula... A sua filha!

Este era o único elo que o ligava ao passado, a única razão de ser de um futuro para além do seu curto limite. Estava um velho, sem ter qualquer finalidade senão a de uma morte tranquila, na cama, e a frustração dos seus inimigos. Em resumo: triste e fraco fim de carreira de uma pessoa que atingira altos níveis de poder e encontrara os grandes abismos do fracasso. Sentira a embriagues da grandiosidade e isso permitira-lhe acrescentar um brilho singular ao seu papel, quando arrancava velozmente no grande Mercedes preto para uma missão de morte, como um anjo infernal, loiro e terrível, transformando-se numa criatura para além do homem vulgar.

Bronsart fugira da queda rápida do seu Governo e preservara a vida porque, a alternativa de um julgamento público e uma morte sórdida por enforcamento, repelia a sensação do que lhe era devido.

O destino negara-o durante quase 30 anos; vivera a existência mesquinha de um comerciante burguês, expatriado em Madrid e dera-se por satisfeito.

Porém, no meio ambiente do passado, o dia presente e as suas realidades retrocediam; ao longe, como um eco, as trombetas soavam-lhe aos ouvidos, executando a música obcecante de uma dança macabra, tocada diante de um mundo alarmado.

Perdera a partida; tudo em quanto acreditara caíra em ruínas e desaparecera, deixando apenas a recordação de um imenso crime genesíaco. Para ele nada ficara senão a obscuridade, mas para a filha podia ser diferente; para ela podia haver riqueza e poder, entrando na posse da Herança Poellenberg, e, para ele, a satisfação final de ver o triunfo do seu sangue através da criatura viva que sempre amara.

Paula seria imensamente rica, famosa, todos a procurariam. E os pensamentos do general corriam em desordem, sem disciplina, transpondo as fronteiras do senso comum que impusera a si mesmo. A emoção lutara com ele e ganhara. O fatal amor alemão pelo drama sentimental estava ligado ao ideal de pai e filha, empurrando-o para diante até ter esquecido a necessidade de prudência e dissimulação.

Bronsart continuava deitado, de olhos fechados, à espera.

- Mas que aconteceu aqui?! -explodiu Fisher, furioso. Regressara à tarde e dirigira-se imediatamente para cima,

para o quarto de Paula. A porta estava aberta e o quarto cheio de gente. Abriu caminho e passou.

- Onde está Mrs. Stanley? Que se passa?

De súbito, encontrou-se em frente do gerente do hotel; o rosto do homem estava pálido e dois fios de suor deslizavam-lhe pela cara.

- Houve um acidente?! - exclamou Fisher. - Onde está Mrs. Stanley?

- Há poucos minutos, uma das criadas foi encontrada... Estava a limpar a banheira e foi electrocutada. Por favor, monsieur, desculpe.    

- Uma Criada?      

O espírito de Fisher registou apenas um facto: fosse qual fosse o acidente, não sucedera a Paula.

- Mas escute: onde está Mrs. Stanley?

- Foi-se embora, monsieur-respondeu o gerente com certa impaciência, voltando-se para ele. - Saiu do hotel ontem à noite. É a única coisa que lhe posso dizer. E agora, por favor, dê-me licença!

Fisher viu então dois homens saírem da casa de banho, transportando um corpo morto, de vestido azul e avental branco, vendo de relance uma cabeça a balouçar e uma face enegrecida da qual os dois globos dos olhos pareciam saltar. Eric sentiu uma sensação de vómito: electrocutada enquanto limpava a banheira!

Voltou-se, saiu do quarto e desceu as escadas, demasiado ansioso para ter paciência de esperar pelo elevador. Desceu-as tão depressa que quando chegou lá abaixo respirava ofegante.

- Mrs. Stanley saiu do hotel a noite passada... - disse ele para o empregado da recepção.-Deixou dito para onde ia?

- Não, monsieur. Apenas pagou a conta e partiu.

- Têm algum recado para mim?

- Não me parece, mas... um momento: vou verificar. Não... Não há nada. Não deixou coisa nenhuma para si.

- Impossível!-exclamou Fisher. - Deve ter deixado uma mensagem qualquer! O que disse ela? Por que motivo partiu?

- Tenho muita pena, mas nada mais lhe posso dizer respondeu o recepcionista. - Vinha acompanhada por um cavalheiro. Entraram, foram buscar a bagagem, ela pagou a conta e partiu. Tenho muita pena, mas não sei mais nada!

- Um cavalheiro - repetiu Fisher. - Vinha um homem com ela?

- Sim, monsieur.

- Está bem! Obrigado! Ah! Espere: tomaram um táxi? O porteiro saberá para onde foram?

- Pode perguntar-lhe. Talvez ele se lembre de qualquer coisa.

Mas o homem abanou a cabeça. Fisher deu-lhe dez francos.

- Não foram de táxi, monsieur-disse ele.-Mrs. Stanley e o cavalheiro foram de automóvel. Era um grande Mercedes. Meti a bagagem lá dentro e eles foram-se embora. Tenho muita pena, mas não sei mais nada.

- Não faz mal.

Fisher voltou-se e, lentamente, tornou a entrar no hotel.

Quase não podia acreditar! Paula partira na companhia de um homem, sem deixar qualquer mensagem; absolutamente nada! Saíra do hotel e da vida dele. Aquilo parecia-lhe completamente impossível!

Eric estava quase resolvido a voltar para trás e pedir ao recepcionista para verificar mais uma vez se haveria alguma carta, quando de súbito se lembrou que talvez Paula lhe tivesse deixado uma mensagem no quarto. Tornou a subir as escadas a correr e entrou. Não havia nada! Procurou melhor, mas não viu nenhum sobrescrito.

Paula partira! De novo sentiu uma sensação de agonia. Comprimiu o estômago com a mão, para aliviar a dor. Era um verdadeiro facto físico, uma reacção do corpo à violência vulcânica do espírito.

Perdera-a! Alguém a tinha ido buscar, alguém a quem ela nunca se referira, alguém suficientemente íntimo que chegara e a levara no carro, com as malas no porta-bagagem.

Porém, nessa mesma tarde, tinham falado ao telefone e Paula mostrara-se gentil e amável, paciente com ele, quando se mostrara ciumento! Ciumento por causa do Dunston, que a levara a fazer compras e depois para almoçar.

Dunston!

Fisher agarrou no telefone e deu o número de Joe. Houve uma grande pausa, enquanto no hotel procuravam por ele; por fim acabaram por informar que a chave estava na recepção e ele saíra. Praguejou. Então pediu para ligarem para Mrs. Stanley e Eric viu-se subitamente em contacto com uma voz rouquenha do Médio Oriente, dizendo ser ela. Furioso, desligou.

Paula não estava no hotel. Paula não estava com Dunston. Aquilo tinha sido uma ideia louca! Ergueu-se lentamente e dirigiu-se para a casa de banho. Lavou a cara e olhou para o espelho; tinha um aspecto assustador, estava transtornado pelo choque sofrido.

- Meu grandessíssimo palerma - exclamou em voz alta. - Meu pobre pateta! Oxalá que isto te sirva de lição!

Pela manhã comprara-lhe uma pulseira de ouro com pedras lápis-lazuli e pequenos diamantes entre os anéis de cada cadeia.

Estivera a ver os anéis, mas faltara-lhe a coragem para lhe oferecer um quando se encontrassem. Não queria fazer nada, enquanto não retirasse o tesouro do local onde estava escondido e falasse com o último dos Von Hessel.

Já tinha o estojo da pulseira quase desembrulhado para dar à criada ou atirá-lo pela janela fora quando se deteve, devido a uma ideia súbita que acabava de lhe acudir: o general!

Sim, devia ter sido com ele que Paula partira. Haviam-se encontrado e, em sua opinião, enquanto ele estava ali sentado, no mais profundo abatimento, tinham ido buscar a famosa obra de arte!

- Mãe!-disse o príncipe Philip von Hessel. - Mãe, onde está? Tenho o direito de saber!

- Não tens direito nenhum! Como te atreveste a ir buscar essa mulher e trazê-la para este hotel? Endoideceste?

Philip nunca vira a mãe tão zangada; estava pálida e os seus curiosos olhos amarelados tinham-se dilatado tanto que pareciam negros.

A princesa encontrava-se no meio da saleta, ornamentada com rosas vermelhas oferecidas pela direcção do hotel e gritava para o filho. Era a primeira vez que Philip via a mãe perder todo o controlo.

- És um imbecil! Tens andado a meter-te e a interferir no assunto desde o princípio e agora... agora vais instalar a filha de Bronsart precisamente ali! Oh! Meu Deus! Custa-me a crer que tenhas sido tu!

- Onde está o tesouro? - insistiu Philip. - Fisher já lhe disse! Onde está, mãe?

- Queres realmente saber?! -rosnou ela.

A princesa parecia um animal furioso; dirigiu-se para o filho e, pelo espaço de um breve momento, argueu a mão como se fosse esbofeteá-lo.

- Queres saber, não é verdade? - repetiu em voz rouca.

- Muito bem, vou dizer-te... vou dizer-te onde está! Está na suite! Está escondido no quarto onde essa mulher se encontra! E agora já percebeste o que fizeste?!

- A mãe devia ter-me dito! - respondeu-lhe o filho. Devia ter confiado em mim!

- Confiar em ti?! Tu nunca quiseste a sua recuperação... tens sido sempre contra isso desde o primeiro instante. Portanto, para que havia eu de confiar em ti? Não tens nada com isso!

- A mãe está obcecada! Sabe perfeitamente o risco que representa recuperá-la. Não há nada que mereça a ruína e a desgraça de todos nós. Heinrich não podia lutar consigo... Deus tenha a sua alma em descanso! Era um homem vivo que já parecia morto... Eu, porém, não tenho medo de si, mãe! Amo-a, mas não tenho medo!

Philip respirou fundo, como se todas aquelas palavras lhe produzissem uma dor horrível. Depois, prosseguiu:

- Aquele tesouro não lhe pertence, mãe, pertence à família. Tem andado atrás dele apesar de todos os meus conselhos; porém, não poderá fazer nada sozinha. Trouxe Mrs. Stanley para aqui porque ela precisa de auxílio; também lhe prometi que quando a obra de arte fosse descoberta lho diria e cumprirei a minha promessa! Assim, se a jóia está escondida na suite Luís XV, isso torna as coisas mais fáceis!

- Estou a perceber! -exclamou a princesa, afastando-se do filho. - Já percebi tudo! Queres proceder como um nobre, como um brilhante cavalheiro! É assim que te vês, não é verdade? Queres ser um homem de honra, o cavalheiro alemão! Pois então espera e verás, meu palerma! Espera até a verdade vir a lume... como pode muito bem suceder... e deixa essa mulher ser testemunha do caso! Nessa altura verás que não há dinheiro que chegue para a comprar!

- Não me parece pessoa para se vender - replicou o filho, calmamente. - A mãe ainda não a conhece, de contrário não diria uma coisa dessas! Ela prometeu entregar o tesouro aos Von Hessel, mesmo que tenha direito legal a ele e... é muito possível que tenha... ambos o sabemos! Portanto, não estou disposto a transformar-me num simples comparsa e permitir que ela seja enganada! Quando regressa Fisher?

- Não digo! -gritou a princesa com os olhos ardentes de fúria. - Não te digo nada! Sai imediatamente dos meus aposentos!

- Muito bem!

A princesa voltou as costas a Philip; em seguida ouviu o ruído da porta a fechar-se.

Esta era a sua primeira discussão e abalara-a profundamente. Margaret estava convencida do amor do filho e do hábito de submissão à sua vontade, mas depois da morte de Heinrich ele modificara-se.

Philip sempre tinha sido um bom rapaz, prudente e sério, mas agora desenvolvera a mentalidade numa direcção muito sua e contra os desejos da mãe. Possuía um código de honra diferente e uma força de carácter a seu modo, mas tão grande como a dela. Por momentos a princesa reflectiu, num misto de raiva e de orgulho, que ele não parecia nada um filho seu! Mas, onde estava Dunston? Que andava ele a fazer? Era muito possível ter desistido do contrato feito e resolvido perder o direito ao dinheiro. Porém, intimamente e em sua opinião, a princesa não pensava isso; tratava-se de um homem insensível, implacável, cheio de sangue-frio e excessivamente ambicioso. Pelo dinheiro que ela oferecera, correria todos os riscos. Margaret não podia fazer nada, não havia remédio para a sua impaciência; tinha que esperar.

Paula estava a preparar-se para ir almoçar, quando bateram à porta. As criadas já tinham arrumado o quarto e trazido uma grande jarra com rosas amarelas e brancas para a saleta.

Quando chegara, Paula sentira-se muito cansada para inspeccionar a suite e, por isso, pela manhã dera uma volta pelo pequeno aposento todo apainelado, admirando o relógio de bronze dourado que estava em cima da prateleira do fogão de sala e os castiçais do século XVIII que havia sobre a escrivaninha.

Era um quarto sossegado, cheio de sol, num misto de colorido outonal, para condizer com a madeira cor de mel que cobria as paredes. O entalhado e o desenho eram primoroso trabalho de um mestre gravador.

Paula nunca pensara poder existir um único apartamento com tanto requinte, nem mesmo num hotel como o Ritz. Tinha uma atmosfera de paz e tranquilidade que lhe fazia lembrar o campo. E, no entanto, tinha sido o irmão de Philip von Hessel a última pessoa a habitá-lo e do mesmo idílico ambiente saíra para acabar com a vida!

Entregue aos seus pensamentos, Paula ouviu a primeira pancada e depois a segunda. Abriu a porta para o corredor de comunicação.

- Bom dia, Mrs. Stanley!

- Viva, Mr. Dunston!

- Desculpe vir incomodá-la, mas precisava de falar consigo. Posso entrar por uns momentos?

Paula abriu a porta e afastou-se para trás.

- Com toda a certeza! Entre.

O general ainda estava deitado quando ouviu o grito, vindo através da janela aberta, alto e forte, cobrindo o sussurro do tráfego da rua.

Sentou-se rapidamente e esperou.

Soou então novo grito, mas já mais fraco, que terminou como se qualquer coisa o tivesse abafado. Dirigiu-se para a janela e olhou para fora. A janela da suite Luís XV também estava aberta; ouviu um som como de vidros partidos. O instinto impeliu-o. O grito abafado tinha sido de mulher e aquele som de objecto estilhaçado indicava violência.

Abriu a porta do seu quarto e em poucas passadas alcançou a suite. Há 25 anos que tinha uma chave dessa porta na corrente do relógio; abriu-a.

Dentro da saleta, um homem e uma mulher lutavam. O homem era alto e forte; as janelas estavam abertas e ele arrastava o corpo que lhe resistia na sua direcção. Levava uma das mãos sobre a boca da vítima e com o outro braço segurava-a pela cintura, prendendo-lhe os movimentos.

Uma mesa pequena tinha sido derrubada e uma figurinha de porcelana estava no chão, feita em pedaços. Era uma cena à qual o silêncio intensificava o horror e a ameaça.

O general não hesitou; deu um salto e com um semiesquecido reflexo do seu treino militar ergueu o braço direito e desferiu um golpe no lado da cara do homem, falhando o ponto vital do pescoço que o teria morto; a pancada, porém, bastou.

Dunston largou Paula e cambaleou, cego com a dor que tinha na maçã do rosto. A visão ficou enevoada com a súbita aparição daquele homem. Empurrou Paula e ainda ouviu o seu grito abafado, enquanto corria para a porta a fugir.

Sentia a cabeça tonta e um fio quente de sangue, escorria-lhe pela cara, no sítio onde a mão do general ferira a pele; porém, continuava a corrida pelo corredor fora, assustado com a interrupção.

Já no andar de baixo, Dunston encontrou maneira de se pôr a salvo pela escada de serviço; levou um lenço à cara e correu na direcção da saída. Não sabia o que ia acontecer, além de um alarme imediato dentro do hotel. Falhara e tinha uns escassos minutos para se pôr a salvo.

Ao princípio, tudo começara bem. Entrara na suite, conversando amigavelmente e começou a falar numa história para se irem encontrar com Fisher. Paula estava descontraída e quando ele abriu as janelas e fez uma observação a respeito da vista, Paula aproximou-se. Começara a sorrir e, pela cara de Paula, percebeu que ela pensava na tentativa de uma cena de amor. Quando a agarrou, Paula continuava com a mesma impressão. Assustada, gritara: ”Não!...” e tentara libertar-se, antes dele lhe pôr a mão na boca, abafando um segundo grito, e arrastando-a pela casa fora.

As janelas abertas estavam a poucos metros de distância. Dunston não se atrevera a vibrar-lhe uma pancada e fazer-lhe perder os sentidos porque dessa forma deixaria marcas de não se tratar de suicídio. Porém, não conseguira alcançar o parapeito.

Já fora do hotel, Dunston receava perder as forças até que se deixou cair dentro de um táxi. Os nervos tinham sofrido um abalo terrível. Depois, pouco a pouco, foi recuperando a calma, mas continuava com o lenço na cara, a praguejar.

Ainda não tinham chegado junto da janela quando o outro homem intervirá. Talvez Paula não tivesse percebido que a sua intenção era atirá-la à rua e tivesse confundido o ataque com uma tentativa de violação, pois no começo da luta e antes de lhe prender os braços apalpara-lhe os seios.

Furioso, entrou no hotel e dirigiu-se imediatamente para o quarto. Examinou a cara ao espelho da casa de banho. Tinha um golpe do comprimento de cinco centímetros e uma grande contusão. Uma pancada dos diabos!

Foi buscar a garrafa de brande que tinha na gaveta e bebeu uma golada. Que grande fracasso! O melhor que podia esperar era Paula acusá-lo de assalto sexual, e o pior de tentativa de assassínio, se ela acabasse por ligar o caso com a abertura da janela. Verdade seja que também havia um sofá; talvez julgasse que ele tentava levá-la para ali.

Curvou-se sobre a mesa e procurou descansar. Lá se ia o dinheiro! Agora já não lhe restava qualquer possibilidade! Não podia fazer nada senão ir para o inferno!

Levantou-se, foi buscar a mala e colocou-a em cima da cama, abrindo-a. Quando já estava a arrumar o primeiro fato, tocou o telefone. Hesitou... Bem, poderei negar tudo; não tinha havido testemunhas. É sabido que as mulheres são conhecidas por alegarem este género de coisas e depois o homem, por sua vez, acusá-las de histerismo ou de actuarem sob o efeito de drogas.

O telefone continuava a tocar; de súbito, pegou no auscultador.

- Meu Deus! -exclamou.

Era Fisher quem estava no outro extremo da linha.

- Tenho procurado por ti em todos os lados! Que diabo fazes tu pela manhã?

- Tenho andado a admirar as vistas - respondeu Dunston.

Continuava a segurar o lenço de encontro à face; tirou-o e viu que tinha nova mancha de sangue. Precisava de um penso. Ele devia ter um em qualquer parte. O homem aplicara-lhe um golpe profissional de karaté...

-E tu?

Realmente não lhe interessava nada, mas tinha de dizer qualquer coisa ao sócio.

- Tenho trabalhado bastante! - foi a resposta. - Mas escuta uma coisa: vou precisar da tua ajuda. Já sei onde está o tesouro e vou buscá-lo hoje com a princesa. Porém, há uma complicação...

- Sim? - disse Dunston, sentindo que lhe doíam todos os dentes do lado da pancada. - Que aconteceu?

- O general está com Paula - informou Fisher. Quando formos buscar o tesouro ele deve estar à nossa espera. Não quero que Paula seja incomodada, se houver sarilho. Preciso da tua presença...

- Mas onde está isso? - interrogou Dunston.

O seu pensamento andava muito longe da conversa; mordeu os lábios, parecendo-lhe estar a ver novamente aquela figura cair sobre ele enquanto lutava com Paula e aplicando-lhe um golpe de profissional. Na realidade tratava-se de um daqueles golpes fatais, dirigidos ao pescoço. Dera-lhe a impressão de um homem alto de cabelo branco... Sim, agora lembrava-se perfeitamente: cabelo branco.

- Meu Deus! - repetiu baixinho, para Fisher não ouvir. Exactamente! Era o general quem tinha salvo Paula

Stanley! Com certeza se encontrava escondido na suite.

- Onde está? - repetiu.

- No Ritz. Na velha suite do general, onde ele viveu durante a guerra!

- Muito engenhoso! - disse Dunston lentamente. - Creio que tens razão. Quando fores buscar o tesouro, encontras ambos. Não te preocupes! Podes contar comigo. Diz-me a hora e o número do quarto.

- Digo-te tudo depois de falar com a princesa - prometeu Fisher. - Porém, nem uma palavra a respeito do general quando falares com ela. Tenho uma razão especial, não quero a polícia envolvida no caso.

- E porque havíamos de ter? - perguntou Dunston. Não precisamos deles para nada! Eu dou-te uma ajuda!

Paula não se queixaria. Tendo o pai escondido junto dela, não se atreveria a falar.

Dunston tornou a tirar as camisas que já metera na mala e foi pô-las na gaveta. A rapariga não o poderia acusar de coisa nenhuma, arriscando-se a chamar a atenção da polícia.

Estava salvo e Fisher chamara-o para lhe dar uma ajuda na recuperação do tesouro. Dunston abriu a gaveta da cómoda e tirou a sua pistola. Carregou-a e meteu-a na algibeira. Ia enfrentar um perigoso criminoso de guerra procurado pela Interpol.

”De uma cajadada vou matar dois coelhos!”, disse para consigo, esboçando uma gargalhada que se transformou numa careta de dor por causa da cara inchada.

- Não tenhas medo! - pediu o general. - Não te faço mal. Olha para mim, Paula!

Ela caíra ao chão quando Dunston a empurrou; o general estava ajoelhado a seu lado, com um dos braços sobre os ombros da filha. Paula tinha as faces com sulcos das lágrimas; ergueu a vista para ele e Bronsart viu a expressão dos seus olhos modificar-se.

- Sou o teu pai!-disse ele, suavemente. - Sou o teu pai!

Pai...

Pronunciou a palavra num suave murmúrio; depois os lábios começaram a tremer. Paula levantou uma das mãos e tocou no general, como se quisesse certificar-se que ele era real.

- É... o pai?!

- Sou, sim, mas não chores, minha querida filha! Deixa-me olhar para ti!

Ajudou-a a levantar-se e, por momentos, Bronsart conservou-a segura na sua frente; depois curvou-se e beijou-a na testa. Paula avançou um passo e passou-lhe os braços em torno do pescoço. Durante um longo e silencioso espaço de tempo ficaram abraçados.

- Não acredito! - exclamou Paula. - Mas é realmente o pai? E o pai chegou no momento preciso? Chegou quando aquele homem... me atacou subitamente?

- Ouvi-te gritar - explicou o general. - Ele queria matar-te. Porquê?

- Não me queria matar! Tentou violentar-me!-disse Paula estremecendo. - Conheço-o. Meu Deus, se o pai não tivesse chegado!

- Eu devia tê-lo morto com aquele golpe!-disse o general. - Mas a gente envelhece... perde a prática.

- Pai! O pai não devia ter vindo... Nunca devia ter-se arriscado! Sem óculos, qualquer pessoa o identifica!

- São os nossos olhos!-exclamou ele a sorrir. - É a marca de Caim. Mas tu és linda, tal qual como te imaginei! Vamos, senta-te e dá-me a tua mão! Há vinte e sete anos que sonho com este momento!

- E eu também - respondeu Paula com os olhos cheios de lágrimas.

Bronsart tinha um rosto bonito, mas cheio de rugas e pele rija; os olhos azuis cintilantes fitavam-na com ternura e uma estranha luz de triunfo. A mão apertava a dela com força.

- Sorri! - pediu ele. - Sorri para mim, sê feliz! Este é o dia mais importante na vida de ambos!

Levantou a mão de Paula e beijou-lha.

- Agora, diz-me a verdade: sou um desapontamento? Um velho... fraco e de cabeça branca. Era assim que esperavas?

- Não sei - respondeu Paula. - Nunca vi sequer um retrato seu. Não tinha nada por onde me guiar. Por isso, quando era pequena, idealizei-o e disse: ”Este é o meu pai! É assim que ele deve ser!” Sinto-me feliz por tê-lo encontrado, mas não sei o que dizer... não sei expressar o meu sentimento em palavras! Desculpe!

- Sabia que virias, depois de Schwarz te dar o meu recado. Sabia que descobririas onde o tesouro estava escondido. Porém, antes de entrarmos em pormenores sobre esse assunto, minha filha, quero que me fales a teu respeito!

- Mas como foi que o pai me descobriu? - perguntou Paula, passando-lhe a mão livre por baixo do braço e apertando-o de encontro a si.

O general exalava o perfume fresco de quem acabara de se barbear. Sentada tão junto dele, Paula sentia-se quase criança, como se os anos e a maturidade lhe tivessem fugido.

- Oh! Pai!-exclamou, encostando a cabeça ao ombro dele. - Sinto-me tão satisfeita por estarmos juntos!

- E eu também! Vi a notícia do teu divórcio nos jornais ingleses. Foi assim que te reconheci. Tens um extraordinário ar de família. Pareces-te imenso com a minha mãe e minhas irmãs. Além disso sabia que Ridgeway era o apelido do homem com quem tua mãe casara depois da guerra.

Bronsart fez uma breve pausa.

- Foi então que resolvi enviar-te Schwarz. Era um belo homem, muito leal... No entanto, não lhe quis confiar o nosso segredo completo. Mandei-te aquele enigma porque não há nenhum homem no mundo capaz de resistir àquele tesouro maravilhoso e Schwarz tinha-o visto!

- Porque não me mandou chamar?!

- Tê-lo-ia feito se ele não tivesse morrido - respondeu o general. - Só quando tivesse a certeza de que desejavas encontrar-me! Podias ter vergonha de mim, ou a tua mãe ter-te influenciado. Não sabia qual seria a tua reacção...

- A mãe nunca falava a seu respeito - disse Paula. Limitou-se a informar-me que o pai morrera na frente russa.

- Ela ignorava a verdade. Não confiava nela. Odiava-me.

- Eu sei. Não me contou quase nada a seu respeito. Disse apenas que o pai era general do exército alemão. Eles mudaram o meu apelido para Ridgeway.

- Eu era general de um corpo de elite!-apressou-se Bronsart a explicar. - Pertencia às S.S., onde a flor dos nossos homens serviam o Fúrer! Éramos deuses, Paula! Éramos nós quem governava a terra nesses dias!

Bronsart apertou a mão da filha e sorriu.

- Esta era a minha suite durante a ocupação da França. Vivia como um príncipe... a melhor comida, os melhores vinhos, mulheres maravilhosas, gente rastejando a pedir favores! Foram anos de verdadeira excitação, anos admiráveis, estupendos! Quando agora os recordo, afigura-se-me que a irrealidade é a minha vida presente... Mr. Weiss, da Suíça, trabalhando em Madrid!

- O pai parece sentir saudades do passado! - disse Paula. Bronsart ergueu a cabeça e um sorriso de altivez curvou-lhe os lábios. Depois, olhando-a, disse:

- Só tenho pena da derrota. Tenho pena do que se perdeu, nada mais! E nós estivemos tão perto, tão perto de ganhar tudo, minha filha! Hoje são os Judeus quem governa o mundo! Para mim, já não há atracção possível. E agora, fala-me a teu respeito... do teu casamento. Que espécie de homem era o teu marido?

- Não é fácil descrevê-lo - respondeu Paula. - A mãe gostava dele por ser um snobe, mas não era feito para o casamento. Só lhe interessavam as corridas de automóveis, o sexo e a excitação. Foi um desastre para ambos.

- Não interessa! Na próxima vez escolherás melhor!

- Não tornarei a escolher! - respondeu Paula rapidamente.- Basta de casamento! Agora que encontrei o meu pai, não preciso de mais nenhum homem!

- És uma mulher - reprovou ele, suavemente. - És uma mulher e não uma criança. Precisas de um homem que tome conta de ti e não de um pai já velho, a dois passos da sepultura.

- Não fale dessa maneira! - suplicou ela. - O que disse, está dito! Não preciso de mais ninguém. Durante toda a vida tenho desejado alguém do meu sangue que me pudesse amar, pai! A mãe não gostava de mim, o homem com quem casei também não; agora, não interessa! Podem ir todos passear! O pai e eu viveremos juntos! Passarei a vida inteira consigo e sentir-me-ei completamente feliz. Foi por isso que quis vir ao seu encontro. A herança Poellenberg não me diz absolutamente nada! O que eu desejava encontrar era o pai e agora já o tenho!

- Não sabes o que estás a dizer, minha filha!

O general falava rapidamente; apertou-a de encontro ao peito e depois largou-a; acendeu um cigarro e prosseguiu:

- Não fazes a mais pequena ideia do que dizes! É impossível, acredita!

- Oh! Não! Nem é! Nós vamos partir os dois. Voltamos a Madrid, se era aí que o pai vivia! Vou consigo e... desaparecemos!

- Não!-insistiu o pai, abanando a cabeça; depois, expeliu uma nuvem de fumo azul. - Não, minha filha. Não te podes aliar a mim.

- Porque não? Que esperava o pai? Que nos encontrássemos e, em seguida, o pai afastava-se e desaparecia?! Não lhe permito semelhante coisa!

- Vim procurar-te com uma finalidade - disse Bronsart. - Saí de Espanha, onde vivi a salvo durante dez anos e voltei a França, a Paris, mas não foi com o propósito de te levar para partilhares da minha vida de exilado. Um modesto apartamento, um modesto rendimento, solidão, aborrecimento, anonimato! Julgas ser esse o destino que desejo para a minha filha?

- É o que eu quero!-teimou Paula. - É o que eu sempre desejei: estar junto de si!

- És minha filha! Durante todos estes anos guardei uma coisa, para quando se aproximasse o fim do nosso mundo e eu pudesse morrer ou fazerem-me desaparecer da circulação. Queria ter a certeza de te deixar uma herança. Guardei um dos maiores tesouros do mundo para te dar! E agora, minha filha, é teu, pertence-te!

- Não o quero! Não quero a herança Poellenberg! Não me interessa!

- Não sejas pateta!

A voz de Bronsart tornara-se áspera; levantou-se, deixando Paula no sofá a olhar para ele, enquanto percorria o aposento de um lado para o outro.

- A Taça Poellenberg é tua! Como podes recusá-la dessa maneira? Nunca a viste! Não sabes o que ela significa! É uma fortuna imensa em ouro e pedras preciosas, uma obra de arte que não tem preço no mundo! Serás uma das mulheres mais ricas... poderosa... requestada. Casarás com um príncipe, se assim o desejares! Serás adulada, lisonjeada por toda a gente, tal como aconteceu comigo, para obterem um sorriso, uma palavra!

- Por favor, meu pai! -suplicou Paula, tentando deter aquela vaga.

Aos ouvidos dela, aquelas palavras soavam com um tom horrível de exagero; o rosto do pai apresentava um ar duro e excitado que ridicularizava a sua suavidade anterior; quando olhou para ela, estava zangado, quase hostil.

- Eu posso viver como um zero à esquerda, um exilado, mas, tu, não! Ires para Madrid e partilhar a minha vida, fazeres o papel de minha enfermeira até eu desaparecer deste mundo! Se pensas que seria capaz de permitir semelhante coisa, então foi um grande erro encontrarmo-nos! Não, minha filha! Tu tens o teu destino e vais cumpri-lo! Ficarás com o tesouro. Vim aqui para to entregar!

- Mas ele não me pertence!-exclamou Paula, desesperada. - Pertence aos Von Hessel e eles já descobriram onde está. Planearam ir buscá-lo hoje, não sei a que horas...

O general parou abruptamente; a mão que segurava o cigarro meio fumado desceu devagar ao longo do corpo.

- Que estás a dizer? Como podem eles saber uma coisa dessas?

- Porque têm um detective particular a trabalhar no assunto. Ele contactou-me e eu transmiti-lhe a charada que o pai me enviara. Fizemos um contrato: ele queria encontrar o tesouro e eu queria encontrar o pai! Agora já sabem tudo!

- Dizes que sabem onde está escondido?!

Bronsart estava rígido, atento, completamente modi ficado. Paula tremia. O homem que tinha na sua frente era assustador, metia medo.

- Muito bem! Responde-me, Paula: eles sabem onde está escondido?

- Sabem... Já lhe disse! Têm tenções de o ir buscar hoje.

- Percebo - disse o general calmamente. - Essa mulher quer enganar-me!

- Eles têm direito ao tesouro! - observou Paula. - O pai é que se apossou dele. Pertencia à família há centenas de anos... O pai levou-o como despojo!

- É isso o que julgas? Pensas que o roubei? Sim, eles tentariam dizer isso, é natural. Mas é mentira! Pertence-te legalmente e, legalmente, é teu, conforme depois verificarás!

- Não! -disse Paula. - Eu insisto, pai! No que me diz respeito, o passado morreu! Não sou seu juiz, quanto ao seu procedimento, mas o tesouro faz parte desse passado. Não lhe quero tocar, não quero ser rica, nem famosa por causa dele!

Paula interrompeu-se, olhou para o pai e depois acrescentou - E o pai esquece-se de si! Corre o risco de ser reconhecido enquanto aqui estiver! Uma mulher velha, chamada Madame Brevet reconheceu-o; fui visitá-la e ela cuspiu-me na cara quando lhe disse quem era! O pai mandou fuzilar o filho dela. Não falaremos dessa parte da herança, mas isso está ligado ao caso e se o pai me der o tesouro, entregá-lo-ei imediatamente aos Von Hessel. Prometi fazer isso, caso ele venha a pertencer-me legalmente.

- És louca! - disse Bronsart. - Só uma louca prometeria fazer uma coisa dessas. Tu não sabes nada a seu respeito e queres ir dá-lo a Margaret von Hessel?!

O general soltou uma gargalhada dura, insolente e desdenhosa.

- Pois bem, se recusares, prometo-te uma coisa: ela é que nunca entrará na sua posse!

- Por favor! Por favor, pai! - suplicou Paula. - Não nos zanguemos por causa disto! Então não vê que só interessa, realmente, neste momento, o pai e eu?! O dinheiro não me diz nada. Não preciso de coisa nenhuma dessas que o pai idealizou... não me interessa a fortuna nem o poder. Só o tenho a si no mundo! Só o tenho a si e o pai fala em se afastar e deixar-me! Se o fizer, causa-me um desgosto profundo, creia!

Bronsart olhou para a filha e a sua expressão modificou-se lentamente. Aproximou-se e estendeu a mão; ela pegou-lhe e abraçou-o. Agarrou-o com força e, pela primeira vez desde a infância, formulou uma oração silenciosa.

”Deus do Céu! Meu Deus! Por favor... Não deixeis que eu o perca!...”

- Quero que sejas feliz - disse o general. - És a única pessoa a quem amei em toda a minha vida. Foi o teu pensamento que me conservou vivo; deu-me esperança de vir a conhecer-te um dia, quando já fosses crescida, longe da ruína que se seguiu à nossa derrota... Quando eras pequenina, segurava-te nos meus braços e prometia-te o mundo. Não sou o mundo, minha querida filha, não tenho nada para te oferecer...

E notando que Paula se preparava para o interromper, pediu:

- Não... Não digas nada, deixa-me terminar isto. Não tenho futuro, sou um velho e estou salvo. Para mim, é o que basta. Se te obriguei a vir aqui para te ver condenada a viveres a minha vida, destroçando-te, então sou eu que morrerei de dor. Perco completamente todas as minhas esperanças. Posso viver através de ti, sabendo que estás gozando aquilo que te daria, se não tivéssemos perdido a guerra.

Olhando-a com ternura imensa, terminou:

- Não me negues isso! Deixa que te dê uma prova do meu amor por ti. Aceita o tesouro... Pelo menos permite-me que to mostre e prove que realmente é teu! Depois, se o recusares...

O general ergueu o rosto de Paula e olhou-a; os olhos dele tinham lágrimas.

- Não mo negues... Vivi até hoje para isto!

- Meu Deus! Meu Deus!-murmurou Paula. - Meu Deus, que hei-de eu fazer?!

Nesse momento, tocou o telefone. O pai segurou-a; depois largou-a e recuou:

- Atende, Paula!

Ela levantou o auscultador.

- Sou eu! - disse Fisher. - Não digas nada... limita-te a escutar: ele está junto de ti, não é verdade?

- É! Como sabes?

- Não interessa. Daqui a poucos minutos subirei. Ele já te disse onde está escondido?

- Não - respondeu Paula. - Porque razão não me deixas em paz e sossego? Não quero tornar a ver-te!

- Calculei isso pela forma como te afastaste de mim. Porém, o assunto agora é outro: o tesouro está na tua suite. Vou subir com um carpinteiro e a princesa Von Hessel. Portanto, é melhor fazeres com que ele saia daí. Pensei que devia avisar-te.

- Obrigada! - respondeu Paula muito calma; olhou para o pai, de pé, escutando aquela conversa sem compreender. Obrigada por me avisares. Desculpa o que se passou.

- Não penses mais nisso! - respondeu Fisher em voz um pouco rude. - Eu já sabia que se chegasse o momento de ser necessário fazer uma escolha entre ele e eu, o escolherias a ele!

Ouviu-se um estalido; Eric desligara o telefone.

- Eles vêm aí, pai!-exclamou Paula. - Vêm a caminho! Pai, vá-se embora, sim?

- O tesouro encontra-se neste quarto - anunciou o general. - Trouxe uma coisa para o retirarmos, mas agora já não há tempo. Quem te disse?

- Foi o detective. Ele calculou que o pai estava aqui e deu-me tempo para o avisar. Por favor, dê-me um beijo de despedida e saia imediatamente, sim? Espere! Espere! Depois, onde posso encontrá-lo?

- Não podes - respondeu ele.

- Mas o pai não vai desaparecer,». Não vai sair daqui e... desaparecer, pois não?

Bronsart curvou-se e beijou-a.

- O tesouro é o que interessa. Em breve verás a tua herança e acredita: é tua! A prova está junto dele!

Depois largou-a e, sem se voltar para tornar a olhar para ela, abriu a porta e saiu para o corredor.

Pelo espaço de alguns instantes, Paula hesitou, lutando contra o impulso de ceder e começar a chorar com a sensação de uma criança que se vê abandonada. Em seguida correu para a porta da suite, à procura do pai, mas o corredor estava vazio.

Minutos depois o recepcionista telefonou, dizendo que o príncipe Philip ia subir.

- Esteve a chorar! -exclamou ele.

Paula abrira-lhe a porta, esperando serem a princesa e Fisher e mostrou-lhe a sua surpresa por vê-lo só.

- Que se passa?

- Nada... Estou perfeitamente. Pensava que os outros vinham consigo.

- Quais outros? Eu vim saber como estava e convidá-la para jantar comigo.

- Era sua mãe e Eric Fisher... - respondeu ela. - O tesouro está escondido aqui, em qualquer parte, nesta suite, Vêm buscá-lo. Pensei que eram eles.

- Ela nunca me disse nada! - murmurou o príncipe, lentamente. - Nunca me disse uma palavra a esse respeito. É bom eu estar aqui. Pode precisar de um aliado, Mrs. Stanley... se é que conheço a minha mãe! Esperaremos por eles, juntos. Foi por causa disso que esteve a chorar?

- Não! Foi por uma coisa inteiramente diferente. É capaz de me dar um cigarro?

- Com toda a certeza!

Philip von Hessel acendeu-lho. O seu rosto tinha uma expressão grave e, contrariamente ao costume, tocou-lhe no ombro.

- Agora não faço mais perguntas - disse suavemente-, mas depois deste assunto arrumado, talvez pudéssemos ir a qualquer lado conversar.

- Não sei - disse Paula. - Não sei o que se vai passar. Sinto desejos de fugir... de desaparecer!

- Mas agora, não!-aconselhou Philip. - O fim está próximo. Tenha coragem e, se for necessário, já sabe que me tem aqui como amigo!

- Eu sei. Estou convencida disso - murmurou Paula. Estou já a ouvi-los.

A primeira pessoa a entrar na saleta foi Margaret von Hessel. Quando viu Paula e o filho, parou. Depois, falando por cima do ombro disse:

- Mr. Fisher... o que estão estas pessoas a fazer aqui? Eric entrou, seguido por um homem de fato-macaco e uma

mala com ferramenta. Primeiro, olhou para Paula; e depois, tenso, desconfiado, para o príncipe.

Philip von Hessel aproximara-se de Paula e estava tão junto dela que pareciam estar lado a lado.

- Mrs. Stanley? - perguntou a princesa em tom grave e imperioso. - Quer ter a bondade de sair? Este assunto não lhe diz respeito! E quanto a ti... - prosseguiu, dirigindo-se ao filho - o melhor é acompanhares essa senhora!

- Mrs. Stanley fica - respondeu Philip - e eu também! Ouviu-se um ruído lá fora e Dunston entrou no aposento,

com uma das mãos na algibeira e um pedaço de emplastro cobrindo-lhe a face.

Paula suspendeu a respiração e recuou. Dunston olhou directamente para ela e sorriu.

Depois, dirigindo-se a Fisher, disse:

- Parece-me que o melhor é vermos se não estará aqui mais ninguém!

E antes de Fisher poder dizer qualquer coisa, abriu a porta de ligação com o quarto e entrou. Saiu passados uns instantes e olhou para Paula; a sua mensagem era bastante clara:

’ ’Se dizes uma só palavra acerca do que sucedeu, ponho os cães na pista dele!...”

Ela desviou a vista, cheia de repulsa e sentindo-se desamparada por causa daquele sorriso insultante e escarnecedor.

A recordação daquelas mãos a apertarem-na, daquela pressão fortíssima sobre a boca e a força do joelho a empurrá-la por trás, fê-la estremecer subitamente. Dunston reconhecera seu pai; sabia que ela nada podia fazer e que, apesar de Fisher se encontrar a poucos metros de distância, ela nunca o acusaria.

Dunston saíra do quarto de cama e dirigira-se para a janela; Paula via-o sacudir os pesados cortinados de forma a ter a certeza de não haver ninguém escondido atrás deles.

- A não ser que tu e Mrs. Stanley saiam daqui, desisto das pesquisas! -disse a princesa de novo.

- Eles ficam ou, pelo menos, Mrs. Stanley fica! Não estou interessado em seu filho - observou Fisher friamente.

Porém, não olhou para Paula, pois estando Philip von Hessel tão junto dela, quase numa atitude íntima, não sabia se conseguiria mostrar-se calmo.

- Sou a única pessoa que sabe onde se encontra o tesouro e não darei nem mais um passo para o retirar, a não ser que Mrs. Stanley seja testemunha. Há a questão de propriedade e ela tem o direito de estar presente!

- É essa a minha opinião! - exclamou o príncipe Philip.- Por favor, proceda, Mr. Fisher.

- Está bem! -disse a mãe, voltando-se para ele. - Está bem! Faça-se como dizes!... Mas pelo amor de Deus, Mr. Fisher, mande o seu homem começar a trabalhar!

O carpinteiro do hotel avançou e Fisher disse-lhe:

- Experimente as paredes. Creio que deve ser aí onde está. Veja se há alguma peça apainelada que tenha sido substituída.

Paula, dirigindo-se a Eric, pediu:

- Antes de começar o trabalho, diz-me uma coisa: como soubeste onde se encontrava?

Pela primeira vez olharam directamente um para o outro; Fisher sentiu a mesma dor abdominal solar plexus. Paula parecia diferente; a sua pose habitual desaparecera. Havia nela qualquer coisa que não estava certa; talvez o cabelo um pouco em desalinho, quando habitualmente estava sempre chique e muito bem arranjada, à parte os seus olhares ansiosos em volta da sala e, em especial, para Dunston, que se conservava imóvel e impenetrável, um pouco afastado de todos.

-Soube-o por intermédio de um amigo de Madame Brevet, um vizinho que conhecia a família - respondeu Eric. Jacquot era carpinteiro... a chave do enigma era essa!

Fisher fez uma pequena pausa e depois prosseguiu:

- Teu pai escolheu-o dentre os reféns por ter descoberto o seu ofício e, naquela noite, pô-lo aqui a trabalhar. Era nos seus aposentos particulares, onde podia fazer o que quisesse sem ninguém o incomodar. Depois, na manhã seguinte, mandou-o fuzilar para não poder contar a ninguém o seu segredo. Eu tinha a certeza de que o general se servira dele para ocultar o tesouro e quando a tua mãe me disse que vivera nesta suite, precisamente naquela data, foi o bastante para perceber onde o carpinteiro trabalhara. Mal soube qual era o ofício de Jacquot, tudo quanto me restava descobrir era o local. Como vês, não foi muito difícil!

- Porque não se começa a trabalhar?!-exclamou a princesa. - O senhor já me contou tudo isso. Agora diga ao carpinteiro para começar!

Passou mais de meia hora antes de o operário encontrar uma parte da parede que parecia não assentar perfeitamente.

Examinou a superfície a partir do chão até cima e ia batendo, enquanto Paula o observava e a princesa - sentada numa cadeira, de costas muito direitas e um ar desdenhoso de fadiga- balouçava com um pé ao ritmo das pancadas do carpinteiro. Nem uma só vez olhou para o sítio onde estava o filho.

Por fim, o operário voltou-se e dirigiu-se a Fisher:

- Há aqui qualquer coisa que não está bem. Tem um som diferente do resto do apainelado da sala.

Isto era no lado direito do fogão de mármore e à altura de cerca de um metro e vinte do chão. O painel estava coberto com um maravilhoso rendilhado de folhas e acantos, com um desenho de narcisos e espigas de milho.

Fisher curvou-se sobre a área indicada e passou um dedo pelo rendilhado. Era impossível notar qualquer junta.

- Tem a certeza?

O homem fez um aceno afirmativo com a cabeça; tinha um cigarro ao canto da boca. A princesa esquecera-se de objectar quando ele o acendera.

- Eu diria que a parede por trás deste painel é oca insistiu o carpinteiro. - Não deve haver nada sólido atrás desta madeira, mas por outro lado também não vejo onde haja um corte. Um momento, tenho uma lâmpada eléctrica dentro da minha mala.

Acendeu a lanterna e passeou o raio de luz sobre a madeira. Depois, Fisher segurou a lanterna enquanto o carpinteiro passava os dedos sobre a superfície entalhada.

- Impossível! -murmurou o homem. - É impossível ver-se! Quem quer que tirou o painel e o tornou a colocar era um verdadeiro mestre!

- Era sim... - concordou Fisher. - Não há dúvidas a esse respeito! Mas o senhor encontra aí qualquer diferença?

- Aproxime mais a luz, se faz favor! Exactamente! Parece-me que já encontrei! Há aqui uma leve aspereza.

Repare... aqui neste sítio... uma linha fina... parece um fio, ao longo desta curva! Depois diminui, mas ainda se vê... Foi o sítio onde cortaram a madeira!

Ouviu-se a voz da princesa. Antes, conservava-se silenciosa, não traindo as suas emoções senão pelo movimento pendular do pé.

- Abra-o! - ordenou. - Corte-o!

O carpinteiro olhou para ela por cima do ombro.

- Eu não vou dar cabo deste painel, madame! É um trabalho maravilhoso do século XVIII. Farei o trabalho, mas é preciso dar tempo ao tempo.

Ninguém disse nada.

Fisher continuou ao lado do homem, segurando a lanterna.

Lentamente, com todo o cuidado, o carpinteiro assestou a ponta finíssima de uma serra sobre o desenho e começou a cortar. O ruído parecia enorme e desproporcionado; era como se todos os presentes tivessem deixado de respirar.

Paula não conseguia fazer um único movimento, como se estivesse hipnotizada pelo círculo de luz amarela e pelo movimento da serra, para diante e para trás, cortando a madeira.

De súbito, houve um movimento. A princesa levantou-se.

- Corte isso! - gritou. - Corte isso tudo e pelo amor de Deus, despache-se!

- Faça o que ela diz - aprovou Fisher, falando calmamente. - Ela pode pagar os estragos que se fizerem e o senhor não pode evitá-los. Vamos, depressa! Arranque o painel!

Lá fora, um relógio bateu horas; imediatamente, um relógio de bronze dourado e porcelana que havia na sala começou a sua suave harmonia de sons.

Agora só faltava acabar de cortar de um lado; a madeira já estava a abrir-se em três lados, mostrando uma linha negra em volta.

- Ah!... Pronto!

O carpinteiro largou a serra e começou a puxar.

Fisher dirigiu a luz para dentro da abertura e imediatamente se notou a brilhante cintilação de ouro. Como quem estava mais perto era o operário, foi ele quem viu primeiro. Retirou o painel para o lado e a madeira caiu, batendo de encontro a uma mesa.

- Deus do céu!

Fisher deixou também cair a lanterna, que rolou pelo chão e acabou por se apagar.

- Ajude-me! - exclamou. - Ajude-me a tirar isto daqui! Mau grado seu, Paula dirigiu-se para eles, pois a figura de

Margaret von Hessel tirava-lhe a vista.

Os dois homens meteram as mãos no buraco, agarraram o objecto brilhante e, lentamente, levantaram-no.

- Saiam daí! Afastem-se! - gritou a princesa. - Deixem-me ver!

A enorme taça estava agora em cima do tapete, brilhando como a luz do sol, com as pedras preciosas a cintilar, enquanto o enorme rubi vermelho da base parecia uma ferida a sangrar.

Fisher ergueu-se e exclamou:

- Meu Deus! Meu Deus! Olhem para isto!

As gravuras não tinham sido exageradas; representavam uma peça sem preço, mas inanimada. Porém, aquele maravilhoso centro de ouro parecia ter vida. As folhas das árvores tremiam visivelmente, enquanto as ninfas, perseguidas pelos sátiros, pareciam mover-se como se fossem de carne dourada. A beleza e a magnificência queimava e brilhava como um sol.

- Enfim!-gritou Margaret von Hessel com voz tremente de triunfo e paixão, vibrando com tantas emoções que parecia quase incoerente. - Finalmente recuperei-a!

- Não, princesa Von Hessel! Não recuperou.

As palavras foram proferidas por detrás deles. Fisher voltou-se rapidamente e depois imobilizou-se.

Todos se voltaram, olhando para o homem que se encontrava no limiar, empunhando uma arma.

Fisher não precisou ouvir o grito angustiado de Paula nem o arfar da princesa que ficara imóvel, de mãos erguidas como se quisesse defender-se de um ataque, para saber quem era aquele homem.

O general avançou e, deliberadamente, visou Margaret von Hessel com a arma.

- Há ainda mais uma coisa dentro dessa abertura - disse ele. - Alguém que a tire, mas se houver quem tente uma brincadeira, já sabe que atiro sobre esta mulher!

Depois, com um gesto na direcção de Dunston:

- Você... você fique junto dos outros. Gostava imenso de o matar, porém...

Eric dirigiu-se para o buraco; havia de facto qualquer coisa lá dentro, uma coisa clara que estalou quando os seus dedos lhe tocaram. Era um sobrescrito já amarelado e teso.

- Ah!... - disse o general em voz baixa. - Muito bem! Depois, acrescentou:

- Mas está tudo escrito em alemão. Deixem-me dizer-lhes o que contém.

- Não! - gritou Margaret von Hessel. - Não!

- No dia vinte e três de Abril de 1944, a senhora assinou o documento que se encontra lá dentro. Por ele, torna-me possuidor legal da Taça Poellenberg. É uma escritura de doação entre vivos. Está devidamente testemunhada e é válida em qualquer tribunal do mundo.

A arma continuava apontada para a princesa. Fisher calculou que se ele fizesse um movimento, o general dispararia o primeiro tiro através do lado esquerdo de Margaret von Hessel; portanto, nada podia fazer.

- Pai! - gritou Paula. - Pai, não!

- Isto é um dos documentos.

O general nem sequer voltou a cabeça para a filha e continuou:

- O segundo é também uma escritura de doação entre vivos feita por mim, a favor da minha única filha e passando para ela a posse e propriedade do tesouro. Esse documento também é legal em qualquer parte do mundo.

Bronsart falava agora directamente para a princesa e perguntou:

- Mas não é disso que tem receio, pois não? A senhora podia contestar esses documentos, podia utilizar o seu dinheiro e até talvez ganhasse a causa, porque eu não me posso defender.

O general fez uma breve pausa.

- Lembrei-me de tudo isso. Sabia que se aproximava o fim e, portanto, tinha de pensar em todas as hipóteses. Lá dentro há ainda outro papel, Paula, e esse é que a princesa não quer que ninguém veja!

E dirigindo-se a Fisher, disse:

- Abra o sobrescrito! Dê os documentos a minha filha, mas devagar, senão esta mulher morrerá!

Depois, olhando para Margaret von Hessel, sorriu.

Fisher olhou para Dunston e fez um rápido movimento com a cabeça. Entregou três documentos dobrados a Paula, movendo-se sempre com cuidado, conforme o general dissera. Já tinha visto homens com aquela expressão no olhar e não queria ser responsável pela morte da princesa.

- General Bronsart - disse Philip von Hessel em voz calma-, se tenciona matar alguém, sugiro que seja eu o escolhido. Por favor, não aponte a arma a minha mãe!

Bronsart olhou para ele.

- A sua coragem é mal empregada. A sua mãe era capaz de arriscar a vida do filho, mas o senhor não fará o mesmo com a dela e, enquanto ela estiver em perigo, o senhor não fará um só movimento. Nem o senhor nem ninguém! Paula: os dois documentos grandes são as escrituras de propriedade de que já falei. A folha de papel mais pequena é a razão por que nenhum Von Hessel ousará atrever-se a contestá-la. Abre e lê!

A filha obedeceu, mas fê-lo lentamente, por sentir os dedos quase hirtos e húmidos devido à crescente sensação de medo.

Dunston conservava-se imóvel ao lado da princesa. Tinha a mão direita levemente assente sobre o corpo; enquanto aquela arma estivesse apontada à princesa não podia levar a mão à algibeira. Observava prudentemente o general.

- Está escrito em alemão! - exclamou Paula. - Não posso ler!

- Destrua-a!

A princesa fez um movimento de impaciência, e deu um passo em frente, de mão estendida.

O pequeno orifício negro do cano da arma seguiu-a.

- Destrua-a!-gritou. - Dar-lhe-ei tudo! Tudo! Um milhão de dólares por essa carta!

- Não! - disse o general sorrindo, cruel e implacável. Não! A senhora não pode comprar o meu silêncio uma segunda vez! Comprou-o durante estes anos, mas depois tentou enganar-me! Enganar a minha filha... Aquele tesouro pertence-lhe!

Houve uma breve pausa.

- Diga-me uma coisa, príncipe Philip - prosseguiu Bronsart-, quando o senhor se ofereceu em vez de sua mãe, sabia da existência daquela carta que sua mãe me escreveu? Creio que não... - abanou a cabeça. - Não! Penso que ela guardou o segredo para si. Queres que te diga o que está aí escrito, Paula? Isso é uma carta que a princesa me dirigiu. Foi entregue numa noite de Maio de 1944.

- Era a única maneira! -gritou Margaret, dirigindo-se aos presentes. - O senhor descobriu o casamento de Heinrich... ameaçou denunciá-lo... ameaçou destruir-nos a todos nós!...

E voltando-se para o filho que estava branco e imóvel junto de Paula:

- Eu disse-te... Eu disse-te que não havia outra alternativa. Hitler estava furioso... louco... ter-nos-ia mandado a todos para um campo de concentração, apoderar-se-ia das nossas fábricas e ter-nos-ia destruído!

- Eu sei, mãe! A mãe contou-me - murmurou Philip.

- Sim?! - interveio o general. - Mas isso foi tudo o que ela lhe disse, não é verdade? Contou-lhe que me dera o tesouro como preço do meu silêncio. O senhor sabia isso e sabia também a mentira que ela espalhara pelo mundo, dizendo que a jóia tinha sido saqueada, não é verdade? Porém, não é por isso que ela está a oferecer um milhão de dólares para ser suprimida! Não é isso o que está escrito naquela carta que minha filha tem... Não, e eu vou dizer o que essa carta contém.

- Não! - gritou de novo Margaret von Hessel. - Não, é mentira!... É uma falsificação!

Mas de súbito calou-se, como se acabasse de ser derrotada.

- Nessa carta indica o nome de uma aldeia na fronteira franco-germânica, perto da Alsácia e dá o nome de uma pensão. ”Aí...”, diz ela na carta ”é onde os encontrará... Eles não suspeitam de coisa alguma e estão à espera que os vão buscar para virem para junto de nós.” Recordo-me perfeitamente das palavras e recordo-me perfeitamente do contrato que fizemos, princesa Von Hessel, a senhora e eu!, quando a senhora me entregou o tesouro em troca do meu silêncio a respeito da sua nora judia, e ainda por mais um favor...

O ambiente era aterrador; dir-se-ia que ninguém respirava.

- Cumpri a minha parte do contrato, não é verdade? Mandei prender a sua nora e o filho... o seu neto... e foram ambos enviados para Mauthausen, para as câmaras de gás, conforme havíamos combinado... Que idade tinha o seu neto?... Dezoito meses?

Houve um momento de completo silêncio; parecia ter havido uma paragem do tempo.

Paula ouvia a voz dele e a última pergunta feita em tom zombeteiro; de súbito pareceu-lhe que o chão lhe começava a fugir debaixo dos pés e ia desmaiar. Porém, com um tremendo esforço de vontade, olhou para o rosto do pai e viu aqueles ardentes olhos azuis, cintilando com o triunfo sobre aquela mulher aterrorizada, viu o sorriso cruel da sua boca e a horrorosa, a incrível falta de remorso daquilo que acabava de confessar.

O chão começou a oscilar; vacilou e sentiu a mão de alguém ampará-la. Não era o príncipe que se encontrava apenas a pequena distância... Desafiando o general e a arma, tinha sido Fisher quem se aproximara dela.

- Mãe!-exclamou Philip von Hessel. - Mas a mãe tinha dito que tinha sido ele quem a encontrara e também nunca falou na criança!

- Não havia outra alternativa - respondeu ela lentamente, procurando ganhar coragem e endireitando-se, após um instante em que estivera à beira de um colapso.- Enquanto eles vivessem, éramos vulneráveis. Ele descobrira isso, portanto, qualquer outra pessoa também podia descobrir! Ela era judia... uma aventureira...

- E a criança? O filho de Heinrich... também o mandou assassinar?... - perguntou Philip.

A mãe não respondeu; ainda fez um gesto com a mão como se tentasse defender, mas acabou por não dizer nada.

- Agora, Paula... - disse o general, falando com estranha exaltação e num tom de vingança. - Agora, sabes a verdade! Continuas resolvida a restituir-lhes esse tesouro? Olha para ele! Olha para essa beleza magnífica!

- Que Deus lhe perdoe! - exclamou Paula, tremendo. Posso lá olhar para semelhante objecto manchado de sangue?! Mãe e filho! O pai assassinou-os!

- Era uma judia e um meio judeu - retorquiu o general. - Para mim não representavam nada. Morriam aos milhões! Era uma casta inferior a poluir o mundo. Que eram eles, comparados com isso?!

No meio do chão, aquela enorme taça de ouro cintilava e as pedras preciosas que a adornavam pareciam olhos faiscantes a fitá-los.

- Nunca lhe tocarei! -exclamou Paula. - Nem eu, nem o pai!

- Percebo... - disse o general. - Já calculava isso, mas vim preparado para tudo! Paula, vai ao corredor e traz-me o saco que está junto da porta.

- Não! - recusou ela. - Não farei nada para si! Bronsart desviou a vista e olhou para Fisher, que a amparava pela cintura.

- Vá o senhor! Largue a minha filha, vá buscar o saco e entregue-mo. Se não obedecer, mato a princesa.

- Calma, minha querida!-segredou Eric.

Em seguida largou Paula e dirigiu-se para o limiar da porta. Lá fora estava um saco de desportista; trouxe-o para dentro e entregou-o ao general.

Nesse momento, ainda lhe passou pela mente a ideia de agarrar o general, esperando que a bala não atingisse ninguém. Se atingisse a princesa não tinha importância, mas Paula estava ali, pálida, cheia de medo, cambaleante. Não, não podia arriscar-se.

- Abra! - ordenou o general. - Agora, dê-mo!

Lá dentro havia um pequeno cilindro e ligado a este, por meio de um tubo, um maçarico; Fisher colocou o maçarico na mão que o general lhe estendia.

- Agora acenda-o!-ordenou Bronsart.

Brilhou a chama do isqueiro, ouviu-se um silvo fortíssimo e uma flâmula, que depois se transformou numa brilhante chama azul e branca, encheu imediatamente a sala com uma luz deslumbrante.

- Não!-gritou Margaret von Hessel. - Não! Não! Oh! Meu Deus!...

Ao mesmo tempo, a chama voraz do oxiacetileno começou a lamber a parte superior da árvore de ouro.

Na mão direita, o general continuava a segurar a arma e com a esquerda dirigia o fogo cauterizante para o tesouro. Os ramos da parte de cima já se encontravam delapidados e jaziam disformes e a gotejar no chão. O metal começou a liquefazer-se, enquanto todos olhavam, resguardando os olhos contra aquela luz que cegava. O feitio principiou a desaparecer e as figuras das ninfas, tão delicadas e graciosas, começavam a ser mutiladas, deslizando como regatos de ouro para cima da alcatifa, enquanto as jóias caíam como uma cascata cintilante.

Margaret von Hessel soluçava. Não se ouvia mais nada senão o assobiar da chama abrasadora a devorar e mutilar aquela enorme massa de ouro, agora de tal maneira disforme que já não tinha qualquer configuração reconhecível.

- Aí tem o seu tesouro! - gritou o general. - Olhe para ele! Agora pode guardá-lo!

Pelo espaço de breves segundos, Bronsart encarou Margaret von Hessel e a mão que segurava a arma baixou.

Num só movimento, Dunstou levou a mão à algibeira. Disparou através do tecido do casaco, em seguida tirou a pistola e tornou a disparar.

O general inclinou-se e soltou um grito; deixou cair a arma. Dunston voltou-se e apontou deliberadamente na direcção de Paula.

Porém, nesse mesmo instante a chama do maçarico mudou de direcção, fazendo um arco brilhante e apenas se ouviu um grito de verdadeira agonia vindo de Dunston, ao ser atingido pelo fogo. A bala dirigida a Paula foi cravar-se na parede, a pequena distância do alvo.

Pelo espaço de um segundo, pareceu que o general olhava para Paula, tentando falar. Depois, a luz deslumbrante do maçarico apagou-se e ele caiu no chão, morto.

Paula soltou um grito, mas ainda mais agudo foi o clamor angustiado da princesa, em direcção do corpo mutilado e gemente de Dunston:

- Seu estúpido! Demasiado tarde... seu estúpido!

Fisher voltou o corpo do general. Ainda tinha os olhos abertos e a boca apenas semicerrada para articular as palavras que não conseguira dizer.

Entretanto, ao alcance da sua mão, a massa mutilada do tesouro dos Poellenberg continuava a chorar lágrimas de ouro.

- Parto esta tarde.

O príncipe Philip von Hessel parecia mais velho; tinha rugas sob os olhos, um vinco profundo atravessava-lhe a testa e Paula nunca os notara antes.

Philip estava na suite, muito direito e cheio de dignidade; exteriormente - à excepção do seu aspecto de forte tensão parecia impassível acerca do que se passara; os seus inimigos diriam o que quisessem, mas a verdade é que ninguém podia negar a força que tinha sobre si mesmo.

- Tencionava ir visitá-lo - disse Paula. - Regresso a Inglaterra... Como está a sua mãe?

A última vez que Paula vira a princesa tinha sido quando a haviam transportado para fora da suite, transformada subitamente numa mulher velha que sucumbira sob a angústia do choque.

- Creio que já está refeita - respondeu Philip calmamente.- Ainda não fui vê-la...

- Compreendo o que tudo isto foi para si. Lamento imenso - disse Paula.

- Espero que nunca possa compreender - retorquiu ele.

- O que minha mãe fez jamais poderá ser perdoado. Daqui em diante nada terei a ver com ela!

- Pode ser que venha a mudar de ideias.

- E Mrs. Stanley mudaria, se seu pai não tivesse morrido?

- Não - concordou ela. - Também estou convencida que não. Gostava de lhe dar uma coisa. Não demoro nada. Por favor, sente-se, sim? Tem um aspecto tão cansado...

- Obrigado!-disse Philip, fazendo um esforço para sorrir, mas o qual apenas lhe realçou a tristeza do olhar.- Estava muito preocupado consigo, Mrs. Stanley. Espero que não tenha ficado demasiadamente emocionada...

Paula voltou e entregou-lhe um sobrescrito.

- Fiquei - respondeu ela. - Mas, graças a Deus, não estava só e isso bastou para tornar as coisas mais fáceis. Espero conseguir esquecer o passado e o príncipe deve tentar fazer o mesmo...

- Vai ser muito difícil - disse Philip. - Sou alemão e além disso um Von Hessel e sê-lo-ei durante toda a vida. Terei de viver o resto da minha existência sabendo o que minha mãe fez e isso será o mais difícil de suportar.

- Quero que aceite isto... - disse Paula, entregando-lhe um sobrescrito. - São os documentos legais e a carta dirigida a meu pai. Pode destruí-los e ninguém saberá. Por favor, aceite...

O príncipe olhou para ela e murmurou:

- Não lhe agradeço... nem direi uma só palavra... mas, Mrs. Stanley sabe... tenho a certeza que sabe...

- Partirei em breve - disse Paula. - Regresso a casa.

- A Inglaterra? A casa?

- Sim - retorquiu ela, estendendo a mão.

Ele apertou-lha em vez do beijo formal e conservou-a na sua.

- Vamos partir em direcções diferentes - disse calmamente. - Porém, eu mantenho o que disse. Irá visitar a Alemanha?

- Não. Não, príncipe Philip. Agora não! Procurar raízes na Alemanha era como se procurasse o meu pai. Acabaram-se as fantasias. Disse que voltaria para casa e para a minha pátria.. . Era precisamente o que pretendia dizer. Adeus e muitas felicidades, príncipe!

Philip curvou-se e levou a mão dela aos lábios.

- Adeus, Mrs. Stanley! Gostaria muito mais que fosse auf Wiedersehen!

A porta da suite fechou-se e ele desapareceu. Paula dirigiu-se para o telefone e disse:

- Fala Mrs. Stanley. É favor mandar buscar a minha bagagem.

O som convulsivo da agonia pairava no quarto; ora aumentando ora diminuindo, de acordo com o ritmo da dificuldade de respiração do brigadeiro.

Um raio do sol da tarde entrava pelas janelas e ia morrer aos pés da cama, enquanto milhões sem conta de átomos de poeira esvoaçavam na atmosfera. Estava um dia muito quente e as janelas abertas.

Os ruídos da vida interrompiam o estertor de morte, vindo dos pulmões cheios de líquido. O brigadeiro apanhara a sua última constipação e sofria a última infecção. A mulher não podia fazer nada senão continuar sentada junto dele, à espera que chegasse a última hora. Recusara abandoná-lo e nem mesmo quisera que a enfermeira o tratasse.

O brigadeiro ainda estava consciente, embora tivesse caído numa espécie de entorpecimento que se prolongaria até à morte. A mulher conservava a mão dele na sua e, de vez em quando, o marido fazia uma leve pressão, tentando confortá-la.

Toda a gente se mostrara muito simpática durante a doença. A mãe de Paula nunca apreciara as verdadeiras qualidades do carácter inglês enquanto o pesadelo do general lhes pesava sobre as cabeças, mas a fachada que haviam erigido à sua volta não foi abatida pela imprensa nem pela televisão.

Os amigos não os abandonaram. Esperavam ficar isolados e, em vez disso, viram-se rodeados de gente, confortados e acarinhados no seu triste dilema junto da imprensa esfomeada, e apoiados em todas as fases do drama por pessoas que os conheciam há muitos anos.

Não houve uma palavra de censura nem um olhar de crítica pela situação em que se encontravam.

A aldeia conservou-se firme ao lado do brigadeiro e da mulher. Porém, decorrido um mês após os acontecimentos, o marido foi atacado por uma pneumonia e Mrs. Ridgeway compreendeu que ia perdê-lo.

O enfermo encontrava-se sentado na cama, recostado sobre as almofadas; voltou a cabeça para ela e sorriu-lhe com os lábios já azulados.

- Tenho tanta pena, minha querida... - murmurou.- Tenho imensa pena, mas sinto que já não posso lutar mais!

- Nem tentes! -suplicou ela. - Não te esforces! Fecha os olhos e procura dormir.

- Daqui a um bocado - disse ele. - Daqui a um minuto, minha querida!

Porém, fechou os olhos e deixou-se descair um pouco.

Aquela sonolência era inquieta; mexia-se constantemente, a cabeça abanava de um lado para o outro e murmurava palavras incompreensíveis. O ruído do estertor era cada vez mais forte.

A mãe de Paula baixou a cabeça e começou a chorar. Procurava sempre mostrar-se calma por causa do marido, reservando as agonias do choro para as horas que passava sozinha no quarto dos hóspedes.

Paula e o rapaz com quem ia casar tinham acorrido prontamente, mal haviam recebido as notícias dela; encontravam-se lá em baixo, na sala. O médico dissera-lhes que era apenas uma questão de horas. Com certeza não chegaria à noite. Eles haviam oferecido levá-la na sua companhia, mas Mrs. Ridgeway recusara.

Sentia-se comovida com a simpatia da filha; parecia menos reservada, menos hostil, pelo menos de acordo com o que recordava. Não que isso interessasse; quando o marido morresse, a sua vida chegaria a um fim efectivo e reconhecia isto com o fatalismo exaltado do seu passado. Porém, tinha um significado bondoso.

A mão que Mrs. Ridgeway tinha apertada na sua apertou-a de súbito e, depois, fugiu-lhe. O brigadeiro, de olhos abertos fitava-a, mas notava-se neles uma leve névoa acinzentada que não tinham antes.

- Não pude evitar! - sussurrou, quase sufocado. - Tentei, minha querida... mas não consegui... matei-o! Matei-o - prosseguiu, falando cada vez com mais dificuldade. Segui-o quando ele saiu do escritório de Paula e matei-o para te proteger. Queria evitar que a história viesse a lume.

A mulher olhou para ele através das lágrimas. Procurou a mão dele e apertou-lha.

- Eu sabia - respondeu ela. - Eu sabia que tinhas sido tu quando foste a Londres a primeira vez, ao saber que não tinha havido nenhuma reunião.

Mrs. Ridgeway sentia dificuldade em falar, sem que a comoção lhe embargasse a voz.

- E tu fizeste-lo por amor... amavas-me e tens razão! Não há nada na tua consciência, descansa, não há nada senão amor!

- Mas fracassei - murmurou ele, cada vez mais a custo.

- Sofreste tanto! Não consegui nada, afinal. Mas tu, agora, estás bem, não é verdade, minha querida? Ficas bem?

- Com toda a certeza! Com toda a certeza, não te preocupes. Farei o que quiseres e Deus permita que muito em breve estejamos juntos!

- Ele morreu imediatamente - prosseguiu o brigadeiro, falando cada vez mais dificilmente e lutando, à procura das palavras. - Depois queimei a bengala e não me arrependo, minha querida. Não há nada neste mundo que não seja capaz de fazer por ti...

- Não há nada neste mundo que não tenhas feito! corrigiu ela.

Depois debruçou-se sobre o marido e, pelo espaço de alguns momentos, os seus lábios pousaram com força no rosto dele.

De súbito, a boca do moribundo descaiu e ouviu-se um som áspero, sufocado e estrangulado sair-lhe da boca aberta.

- Amo-te! Amo-te muito! - segredou a mãe de Paula. Amo-te com toda a força da minha alma, Gerald!... Fico á espera de me reunir a ti!

O brigadeiro não respondeu; já não devia ouvir. Notou-se ainda um último estertor e depois o quarto ficou no mais absoluto silêncio.

Trémula, angustiada, a mulher colocou a mão sobre aqueles olhos semicerrados e fechou-lhos; antes de sair do quarto tornou a beijá-lo.

- Tenho imensa pena, mãe! Não posso fazer nada, pois não?

Havia lágrimas nos olhos de Paula; Fisher passara-lhe o braço em torno da cintura, mas quando a mãe entrou na sala largou-a.

Paula dirigiu-se para ela e deu-lhe o braço. Eric, que as observava, reparou que a mãe estremecera; não queria que Paula lhe tocasse e por isso não estranhou que, logo em seguida, se libertasse.

Quando lhes participou a morte do marido, limitara-se a entrar no aposento e anunciar:

- O teu pai morreu!

Tinha sido a mesma declaração positiva que os fizera vir de Londres.

”O teu pai está a morrer. Calculei que gostarias de saber.”

E agora, no quarto banhado de sol, com os dois labradores sentados a seus pés, encarava ambos com a mesma dignidade estóica.

- Era um homem extraordinário... - murmurou.- Deu-me uma perfeita e completa felicidade!

Parecia não haver nada a acrescentar; dir-se-ia não desejar conforto nem simpatia. Sentada, acariciava um dos cães.

Eric viu Paula no meio da sala, mais abandonada e mais perdida do que a própria mãe.

Então, encaminhou-se para ela e pegou-lhe na mão.

- Não quer realmente que fiquemos consigo, Mrs. Ridgeway? - perguntou. - Pode ter a certeza de que ficaríamos da melhor vontade ou então podíamos levá-la para Londres.

- Não, obrigada!-respondeu, conseguindo até forças para esboçar um pálido e delicado sorriso. - É muito amável, mas não quero prendê-lo aqui a si, nem à Paula. Prefiro ficar sozinha. Não quero deixar a casa... era a nossa casa e ele gostava imenso dela.

- Amanhã entraremos em contacto consigo - disse Fisher.

Mrs. Ridgeway ergueu-se e dirigiu-se para eles. Estendeu a mão e Fisher apertou-lha.

Por um breve momento, mãe e filha abraçaram-se; em seguida, Mrs. Ridgeway recuou um passo e disse:

- Obrigado por terem vindo! Calou-se, mas imediatamente acrescentou:

- Sinto-me muito feliz por ti, Paula! E se tiveres na vida qualquer coisa parecida com a alegria que eu e teu pai tivemos, serás na verdade imensamente afortunada! Se não se importam, não os acompanho até lá fora... Parece que me vou deitar e descansar um pouco.

Paula e Eric saíram da sala, transpuseram a porta e encontraram-se na rua cheia de sol.

O automóvel estava arrumado à entrada. Seguiram vagarosamente pela faixa de cimento em direcção ao carro, Eric abriu a porta para Paula entrar e depois sentou-se ao volante. Acendeu um cigarro e deu-lho.

- Não vou dizer-te nada - principiou ele - senão que te amo muito e tenho a certeza que te farei imensamente feliz!

Depois voltou-se para ela e beijou-a.

- Agora, acabou-se tudo, minha querida! Vamos encetar uma vida nova.

Seguidamente ligou a ignição e o motor começou a trabalhar.

- Afastemo-nos daqui, sim?!

 

                                                                                Evelyin Anthony 

 

 

                      

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