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A HERDEIRA
51
FLORESTA DE EPPING, ESSEX
Quando Charles Bennett saiu de sua residência na Albion Road às 9h30
de sábado, vestia um anoraque à prova d’água azul-escuro e calças de tecido de secagem rápida. Pendurada em um dos ombros havia uma mochila de nylon, e, na mão direita, ele segurava um bastão de caminhada de carbono. Um andarilho dedicado, Bennett tinha feito trilhas por boa parte das ilhas Britânicas. Nos fins de semana, precisava se virar com algumas das muitas excelentes trilhas perto da Grande Londres. Hester, que considerava jardinagem um exercício, nunca o acompanhava. Bennett não ligava; preferia ficar sozinho. Nisso, pelo menos, os dois eram totalmente compatíveis.
O destino de Bennett naquela manhã era uma das trilhas na Floresta de Epping, antigo bosque que ia de Wanstead, ao leste de Londres, a Essex, ao norte. O caminho se estendia por mais de dez quilômetros pela parte mais alta da floresta, perto do vilarejo de Theydon Bois. Bennett dirigiu até lá no sedan sueco de Hester. Estacionou na estação de metrô e, violando as regras do serviço, deixou seu BlackBerry do MI6 no porta-luvas. Com o bastão em mãos e a mochila nas costas, seguiu pela Coppice Row.
Passou por algumas lojas e restaurantes, pela prefeitura do vilarejo e pela igreja matriz. Uma névoa fina pairou sobre Theydon Plain, como a fumaça de uma batalha distante e então a floresta o engoliu. A trilha era larga e com solo regular, coberta de folhas caídas. À frente, da penumbra, emergiu uma mulher de cerca de 40 anos que, sorrindo, desejou-lhe uma boa manhã. Ela o lembrou de Magda.
Magda...
Ele a conhecera no Rose & Crowe, certa noite, ao parar para tomar uma cerveja em vez de ir direto para casa encontrar o abraço frio de Hester. Ela havia acabado de imigrar da Polônia, ou assim dissera. Era uma mulher linda, recém-divorciada, com pele branca e uma boca larga que sorria com facilidade. Alegou que esperava uma pessoa — “uma amiga, não um homem” — atrasada. Bennett achou suspeito. Mesmo assim, tomou um segundo drinque com ela. E quando a “amiga” mandou mensagem dizendo que tinha que cancelar, ele concordou em andar com Magda até a casa
dela. Ela o levou para o Clissold Park e o empurrou contra uma árvore perto da antiga igreja. Antes de Bennett conseguir reagir, sua braguilha estava aberta e ela o engoliu.
Ele sabia o que viria. De fato, imaginou saber desde o momento em que colocou os olhos nela. Aconteceu uma semana depois. Um carro parou ao lado dele em Stamford Hill, alguém o chamou com a mão por uma janela traseira aberta. Era a mão de Yevgeny. Segurava uma fotografia.
— Que tal aceitar uma carona? É uma noite horrível para se estar a pé.
Bennett chegou a uma lata de lixo. A marca de giz na base estava claramente visível. Ele saiu da trilha e abriu caminho entre as árvores densas e a vegetação rasteira. Yevgeny estava com as costas apoiadas no tronco de uma bétula, com um cigarro apagado quase caindo dos lábios.
Parecia genuinamente feliz de ver o inglês. O russo era um canalha cruel, como a maioria dos oficiais do SVR, mas podia ser agradável quando lhe convinha. Bennett tinha a mesma habilidade. Eram dois lados da mesma moeda. Bennett, num momento de fraqueza, tinha permitido que Yevgeny ficasse com a vantagem. Mas, quem sabe, um dia seria Yevgeny o obrigado a entregar os segredos de seu país por causa de um delito pessoal.
Era assim o jogo. Só precisava de um único deslize.
— Tomou cuidado? — perguntou o russo.
Bennett fez que sim.
— E você?
— Os idiotas do A4 tentaram me seguir, mas os despistei em Highgate.
— A4 eram os artistas de vigilância do MI5, o serviço de segurança e contrainteligência britânico. — Sabe, Charles, eles realmente precisam melhorar um pouco. Chegou ao ponto de não ser nem esportivo.
— Você tem mais oficiais de inteligência em Londres agora do que na época da Guerra Fria. O A4 está sobrecarregado.
— Quanto mais, melhor. — Yevgeny acendeu seu cigarro. — Dito isso, não podemos demorar por aqui. O que você tem?
— Uma operação que seus superiores em Moscou talvez achem interessante.
— De que tipo?
— Um recrutamento de longo prazo de um ativo em alto escalão.
— Russo?
— Casa de Saud — respondeu Bennett. — A fonte está trabalhando para nós há vários anos. Ele nos informa regularmente sobre questões
familiares internas e desenvolvimentos políticos dentro do reino.
— Você é o controlador do Oriente Médio, Charles. Por que só estou sabendo disso agora?
— A fonte foi recrutada e era controlada pela Estação de Londres. Só fiquei sabendo dele nesta semana.
— Por quem?
— Pelo próprio “C”.
— Por que Graham decidiu informá-lo agora?
— Porque o ativo de alto escalão virá a Londres em algumas semanas para uma visita oficial.
— Do que está falando?
— O Príncipe Herdeiro Abdullah, próximo rei da Arábia Saudita, é um ativo do MI6. Somos donos dele, Yevgeny. Ele é nosso.
52
MOSCOU
O sonho chegou a Rebecca, como sempre, nas últimas horas antes do alvorecer. Ela estava submersa em águas rasas, perto do leito de um rio americano ladeado de árvores. Um rosto pairava acima dela, borrado, indistinto, contorcido de raiva. Gradualmente, conforme ela começou a perder consciência, o rosto recuou na escuridão, e o pai dela apareceu.
Rebecca, minha q-q-querida, precisamos discutir algo...
Ela se sentou na cama de uma vez, ofegante. Através da janela sem cortinas de seu quarto, conseguia ver uma estrela vermelha acima do Kremlin. Mesmo agora, nove meses após sua chegada a Moscou, a vista a surpreendia. Parte dela ainda esperava acordar toda manhã na pequena casa na Warren Street, no norte de Washington, onde havia morado durante seu último posto no MI6. Se não fosse pelo homem do seu sonho — aquele que quase a afogara no rio Potomac —, ela ainda estaria lá. Podia até ser diretora do serviço secreto britânico.
O céu acima do Kremlin estava preto, mas, ao checar o horário em seu telefone do SVR, ela viu que eram quase sete da manhã. A previsão para Moscou era de pouca neve e máxima de doze graus abaixo de zero; estava começando a esquentar. Rebecca jogou a roupa de cama para o lado e, tremendo, colocou o roupão e foi até a cozinha.
Era clara e moderna, cheia de eletrodomésticos brilhantes de fabricação alemã. O SVR tinha sido justo com ela — um apartamento grande perto das muralhas do Kremlin, uma datcha no interior, um carro com motorista. Tinham até lhe concedido um destacamento de segurança.
Rebecca não se iludia sobre o motivo de ter recebido um benefício reservado apenas para os oficiais mais graduados do serviço de inteligência russo. Ela nascera e fora criada para ser espiã de sua terra natal, tinha trabalhado para a Rússia durante uma carreira longa e bem-sucedida no MI6. Mesmo assim, não confiavam totalmente nela. No Centro de Moscou, onde ela se apresentava todos os dias para o trabalho, referiam-se a ela, de forma pejorativa, como novaya devushka: a herdeira.
Ela ligou a máquina automática; e, quando ela tossiu ruidosamente e cuspiu o que sobrava de café, Rebecca o bebeu numa xícara grande com
espuma de leite vaporizado, como fazia na infância em Paris. Seu nome, na época, era Bettencourt — Rebecca Bettencourt, filha ilegítima de Charlotte Bettencourt, comunista e jornalista francesa que, no início dos anos 1960, havia morado em Beirute, onde teve um breve caso com um correspondente freelancer casado que escrevia para os veículos Observer e The Economist. Manning era o nome que Rebecca assumiu quando sua mãe, por ordem da KGB, casara-se com um homossexual da alta classe inglesa para que sua filha tivesse cidadania britânica e fosse aceita em Oxford ou, de preferência, em Cambridge. Publicamente, Manning ainda era o sobrenome pelo qual a espiã era conhecida de forma infame. Dentro do Centro de Moscou, porém, era chamada pelo nome de seu pai, Philby.
Rebecca apontou o controle remoto para a televisão, e, alguns segundos depois, a BBC apareceu na tela. Por motivos profissionais, seus hábitos midiáticos tinham permanecido decididamente britânicos. Rebecca trabalhava no Departamento do Reino Unido do Diretorado. Era essencial que ela se mantivesse atualizada nas notícias de Londres. Nesses dias, quase todas eram ruins. O Brexit, clandestinamente apoiado pelo Kremlin, era uma calamidade nacional. A Grã-Bretanha logo seria uma sombra de si mesma, incapaz de qualquer resistência significativa à influência cada vez mais ampla da Rússia e ao seu poder militar crescente. Rebecca tinha prejudicado a Inglaterra de dentro do Serviço Secreto de Inteligência. Seu trabalho então passara a ser acabar com seu antigo país de trás de uma mesa no Centro de Moscou.
Passando os olhos pelas manchetes de Londres no telefone, Rebecca fumou o primeiro L&B do dia. Seu consumo de cigarros tinha crescido muito desde a chegada à Rússia. A rezidentura de Londres os comprava em pacotes de uma loja em Bayswater e os enviava por malote ao Centro de Moscou. Seu consumo de Black Label, que ela comprava com grande desconto na cooperativa militar do SVR, também tinha aumentado. Era só o clima do inverno, garantiu a si mesma. A melancolia passaria quando o verão chegasse.
Em seu quarto, Rebecca retirou do armário um terninho escuro e uma blusa branca, e os colocou na cama desarrumada. Como os cigarros L&B, os lençóis vinham de Londres. Involuntariamente, ela tinha caído nos velhos hábitos de seu pai. Ele nunca se ajustou de verdade à vida em Moscou. Ouvia as notícias de casa na BBC Internacional, seguia os resultados do críquete no Times, passava geleia inglesa na torrada e
mostarda inglesa nas salsichas e bebia Red Label, quase sempre até desmaiar. Quando criança, Rebecca testemunhara os porres homéricos de seu pai durante suas visitas clandestinas à Rússia. Ela o amava mesmo assim. Até hoje. Era o rosto dele que ela via quando examinava sua própria aparência no espelho do banheiro. O rosto de uma traidora. O rosto de uma espiã.
Vestida, Rebecca se empacotou num sobretudo e cachecol de lã, e desceu de elevador até o lobby. O motorista de sua Mercedes sedan a aguardava na rua Sadovnicheskaya. Ela ficou surpresa ao encontrar Leonid Ryzhkov, seu superior imediato no Centro de Moscou, no banco de trás.
Ela se abaixou para entrar e fechou a porta.
— Algum problema?
— Depende.
O motorista fez um retorno fechado e acelerou rapidamente. O Centro de Moscou ficava na direção oposta.
— Aonde estamos indo? — perguntou Rebecca.
— O chefe quer dar uma palavrinha.
— O diretor?
— Não — respondeu Ryzhkov. — O chefe.
53
O KREMLIN
Mal se via a estrela vermelha em cima da Torre Borovitskaya, entrada comercial do Kremlin, sob a neve que caía. O motorista parou num pátio em frente ao Grande Palácio Presidencial, e Rebecca e Leonid Ryzhkov correram para dentro. O presidente os esperava lá em cima, atrás das portas douradas de seu escritório. Levantando-se, ele saiu de sua mesa com seu caminhar característico, braço direito esticado ao lado e esquerdo balançando mecanicamente. Seu terno azul lhe caía com perfeição, e algumas mechas de cabelo louro-acinzentado estavam penteadas cuidadosamente por cima de sua careca. Seu rosto, inchado, liso e bronzeado da viagem anual de esqui a Courchevel, mal parecia humano.
Os olhos eram muito repuxados, dando a ele uma vaga aparência de ser da Ásia Central.
Rebecca esperava uma recepção calorosa — não encontrava o presidente desde a coletiva de imprensa do Kremlin anunciando sua chegada a Moscou —, mas ele só lhe ofereceu um aperto de mão profissional antes de gesticular com indiferença para os sofás. Mordomos entraram, chá foi servido. Então, sem preâmbulo, a autoridade máxima da Rússia entregou a Rebecca uma cópia de um telegrama do SVR. Tinha sido transmitido ao Centro de Moscou, durante a noite, por Yevgeny Teplov, da rezidentura de Londres. O assunto era uma reunião clandestina de Teplov com um agente de codinome Chamberlain. Seu nome real era Charles Bennett. Rebecca, ainda no MI6, escolhera-o como alvo de comprometimento sexual e recrutamento.
O russo dela tinha melhorado muitíssimo desde sua chegada a Moscou.
Mesmo assim, ela leu o telegrama lentamente. Quando levantou o olhar, o presidente a estudava sem expressão. Era como ser contemplada por um cadáver.
— Quando você planejava nos contar? — perguntou ele, por fim.
— Contar o quê?
— Que o Príncipe Herdeiro Abdullah é, há muito tempo, um ativo da inteligência britânica.
Uma vida inteira de mentiras e traições permitiu que Rebecca escondesse seu desconforto por ser interrogada pelo homem mais poderoso do mundo.
— Enquanto eu estava no MI6 — disse ela —, não fiquei sabendo da relação entre Vauxhall Cross e o Príncipe Abdullah.
— Você estava a um passo de se tornar diretora-geral do MI6. Como podia não saber?
— É chamado de Serviço Secreto de Inteligência por um motivo. Eu não tinha necessidade de saber. — Rebecca devolveu o telegrama. — Além do mais, não deveria ser um choque o MI6 ter ligações com um príncipe saudita que passava a maior parte do tempo em Londres.
— A não ser quando o príncipe saudita deveria estar trabalhando para mim.
— Abdullah? — O tom de Rebecca era incrédulo.
As instruções dela eram estritamente limitadas ao Reino Unido. Mesmo assim, tinha acompanhado a queda espetacular de KBM com mais do que um interesse passageiro. Nunca imaginou que o Centro de Moscou tivesse um dedo naquilo. Nem o presidente.
Como sempre, ele sentou-se de forma desleixada na cadeira. Seu queixo estava baixo, o olhar voltado ligeiramente para cima. De algum jeito, ele conseguia transmitir ao mesmo tempo tédio e ameaça. Rebecca imaginou que ele praticasse a expressão no espelho.
— Suponho — disse ela, após um momento — que a abdicação de Khalid não tenha sido voluntária.
— Não. — O presidente deu um meio sorriso. Depois, a vida sumiu mais uma vez de sua expressão. — Nós o encorajamos a abrir mão de seu direito ao trono.
— Como?
O presidente lançou um olhar para Ryzhkov, que narrou para Rebecca a operação que levara à remoção do príncipe herdeiro da linha sucessória.
Era monstruosa, não havia outra palavra. Mas, claro, ela sempre soubera que os russos não seguiam as mesmas regras dos britânicos.
— Tivemos muito trabalho para tornar Abdullah o próximo rei da Arábia Saudita — disse Ryzhkov. — Mas agora parece que fomos enganados. — Ele balançou o telegrama de Londres de forma dramática, como um advogado num tribunal. — Ou talvez esta seja a enganação.
Talvez o MI6 esteja usando de novo seus velhos truques. Talvez queiram que a gente pense que Abdullah esteja trabalhando para eles.
— Por que fariam isso?
Foi o presidente quem respondeu.
— Para desacreditá-lo, é claro. Para nos fazer desconfiar dele.
— Graham é um policial superestimado. Não é capaz de algo tão inteligente.
— Ele a desmascarou, não foi?
— Quem me encontrou foi o Allon, não Graham.
— Ah, sim. — A raiva passou brevemente pelo rosto do presidente. —
Receio que ele também esteja envolvido nisto.
— O israelense?
O presidente assentiu.
— Depois de sequestrarmos a menina, Abdullah nos contou que o sobrinho tinha buscado a ajuda de Allon.
— Teria sido sábio matar ele, em vez da filha de Khalid.
— Tentamos. Infelizmente, as coisas não saíram exatamente como planejado.
Rebecca pegou o telegrama da mão de Ryzhkov e o releu.
— Me parece que Abdullah está se vendendo para os dois lados. Ele pegou seu dinheiro e seu apoio quando precisou. Mas agora que as chaves do reino estão ao seu alcance...
— Ele decidiu ser um homem independente?
— Ou um homem de Londres — disse Rebecca.
— E se ele for mesmo um ativo britânico? O que fazemos? Deixo que ele leve bilhões de dólares meus sem retaliação? Deixo os britânicos rirem nas minhas costas? Dou o mesmo privilégio a Allon?
— Claro que não.
Ele levantou a mão.
— Então, o quê?
— Sua única escolha é remover Abdullah da linha sucessória.
— Como?
— De uma forma que prejudique ao máximo a credibilidade e o prestígio britânicos.
O sorriso do presidente pareceu quase genuíno.
— Fico aliviado de ouvi-la dizendo isso.
— Por quê?
— Porque se tivesse sugerido deixar Abdullah onde está, eu teria duvidado de sua lealdade à pátria. — Ele ainda estava sorrindo. —
Parabéns, Rebecca. Conseguiu o trabalho.
— Que trabalho?
— Livrar-se de Abdullah, é claro.
— Eu?
— Quem melhor para executar uma grande operação em Londres?
— Não é o tipo de coisa que eu faça.
— Você não é diretora do Departamento do Reino Unido do SVR?
— Vice-diretora.
— Sim, claro. — O presidente olhou de relance para Leonid Ryzhkov.
— Erro meu.
54
MOSCOU–WASHINGTON–LONDRES
A suposição do diretorado de contrainteligência do SVR era que o MI6
não conhecia o endereço da coronel Rebecca Philby em Moscou. Na realidade, não era o caso. O serviço secreto britânico tinha ficado sabendo da localização do apartamento dela por acaso, quando um dos oficiais baseados em Moscou a vira caminhando pelo Arbat com dois guarda-costas e uma mulher de idade avançada e aparência imponente. O oficial as seguiu até o cemitério de Kuntsevo, onde colocaram flores no túmulo de um dos maiores traidores da história, depois até a entrada de um prédio residencial elegante e novo na rua Sadovnicheskaya.
Sob comando de Vauxhall Cross, a Estação de Moscou tomou muito cuidado com sua descoberta. Não foi feita nenhuma tentativa de colocar Rebecca sob vigilância 24 horas — não era possível numa cidade como Moscou, em que os próprios funcionários do MI6 estavam sob vigilância quase constante —, e um esquema para comprar um apartamento no prédio dela logo foi descartado. Em vez disso, eles só a observavam ocasionalmente, sempre de longe. Confirmaram que ela morava no nono andar do prédio e se apresentava toda manhã na sede do SVR em Yasenevo. Nunca a viram resolver qualquer tarefa pessoal, jantar num restaurante ou ir a uma apresentação do Bolshoi. Não havia evidência de um homem em sua vida, nem, aliás, uma mulher. Em geral, ela parecia bastante infeliz, o que lhes agradava infinitamente.
No início de março, por motivos que a Estação de Moscou não conseguia nem imaginar, Rebecca desapareceu de vista. Quando se passaram cinco dias sem sinal dela, o chefe local informou a Vauxhall Cross — e Vauxhall Cross mandou notícias para a casa ampla em estilo Tudor com muitas alas e frontões em Hatch End, em Harrow. Lá, interpretaram, cautelosamente, o desaparecimento repentino de Rebecca como evidência de que o Centro de Moscou estava seguindo as migalhas que eles tinham espalhado.
Havia também outras evidências, como um pico alarmante de tráfego de sinais codificado emanando do teto da Embaixada Russa nos Jardins de Kensington; uma segunda reunião na floresta de Epping entre Charles
Bennett e seu controlador do SVR, Yevgeny Teplov; e a chegada em Londres, no meio de março, de certo Konstantin Dragunov, amigo pessoal e sócio comercial tanto do atual governante da Rússia quanto do futuro rei da Arábia Saudita. Tomados de forma isolada, os acontecimentos não eram prova de nada. Mas vistos pelo prisma da equipe anglo-israelense em Hatch End, pareciam os primeiros indicativos de uma grande empreitada russa.
Gabriel mais uma vez cutucara a onça com vara curta. Ele monitorava a reação russa não de Hatch End, mas de sua mesa no Boulevard Rei Saul, baseado em sua firme convicção operacional de que, se ficarem olhando, a panela com água nunca vai ferver. No fim de março, ele fez mais uma visita clandestina ao iate de Khalid no golfo de Aqaba, mesmo que só para ouvir as últimas fofocas de Riad. Sem que o mundo externo soubesse, o pai de KBM tinha dado uma guinada para pior — outro derrame, talvez um ataque cardíaco. Ele estava ligado a várias máquinas no Hospital da Guarda Nacional Saudita. Os abutres circulavam, dividindo os espólios, lutando pelas sobras. Khalid tinha pedido permissão para voltar a Riad e ficar ao lado do pai. Abdullah tinha recusado.
— Se você tiver uma carta na manga — disse Khalid —, sugiro que a utilize agora. Senão, a Arábia Saudita logo será controlada pelo camarada Abdullah e seu titereiro no Kremlin.
Uma tempestade repentina impediu o helicóptero do Tranquility de decolar e forçou Gabriel a passar a noite no mar em uma das luxuosas suítes de hóspede do navio. Quando ele voltou ao Boulevard Rei Saul na manhã seguinte, encontrou um relatório em sua mesa. Era a análise dos arquivos iranianos roubados. Os documentos provavam de forma conclusiva que o Irã estava trabalhando numa arma nuclear enquanto dizia à comunidade global o oposto. Mas não havia evidência sólida de que o país estivesse violando os termos do acordo negociado com o governo americano anterior.
Gabriel informou ao primeiro-ministro naquela tarde, no escritório dele em Jerusalém. Uma semana depois voou a Washington para deixar os americanos por dentro. Para surpresa dele, a reunião aconteceu na sala de crises da Casa Branca, com o próprio presidente. Ele não escondeu sua intenção de tirar os Estados Unidos do acordo nuclear com o Irã e ficou decepcionado por Gabriel não ter levado prova irrefutável — “um mulá cabal” — de os iranianos estarem secretamente construindo uma bomba.
Mais tarde no mesmo dia, Gabriel viajou a Langley, onde fez um briefing mais detalhado aos oficiais da Casa Pérsia, unidade de operações da CIA no Irã. Depois, jantou sozinho com Morris Payne numa sala coberta de painéis de madeira no sétimo andar. A primavera finalmente chegara na Virgínia do Norte, depois de um inverno inóspito, e as árvores ao longo do Potomac estavam com folhas novas. Em meio a verduras refogadas e carne cartilaginosa, eles trocaram segredos e boatos maliciosos, incluindo alguns sobre os homens a quem serviam. Como vários de seus predecessores na Agência, Payne não tinha muito tempo na inteligência. Antes de chegar a Langley, tinha sido soldado, empresário e deputado conservador de uma das Dakotas. Era grande, franco e grosseiro, com um rosto de estátua da ilha de Páscoa. Gabriel o considerava uma mudança revigorante em comparação ao diretor anterior da CIA, que, rotineiramente, referia-se a Jerusalém como al-Quds.
— O que acha de Abdullah? — perguntou Payne, abruptamente, durante o café.
— Nada de mais.
— Britânicos de merda.
— O que eles fizeram agora?
— Convidaram o homem para ir a Londres antes de conseguirmos trazê-lo para Washington.
Gabriel deu de ombros, indiferente.
— A Casa de Saud não pode sobreviver sem vocês. Abdullah vai prometer comprar alguns brinquedos britânicos e depois vai vir correndo.
— Não temos tanta certeza disso.
— Ou seja?
— Ficamos sabendo que o MI6 está com as garras nele.
Gabriel suprimiu um sorriso.
— Abdullah? Ativo britânico? Fala sério, Morris.
Payne assentiu com seriedade.
— Estávamos querendo saber se você estaria interessado em facilitar uma mudança na linha sucessória saudita.
— Que tipo de mudança?
— O tipo que acabe colocando a bunda de KBM no trono.
— Khalid já era.
— Khalid é o melhor que podemos esperar, e você sabe. Ele nos ama e, por algum motivo, gosta de você.
— O que fazemos com Abdullah?
— Ele teria que ser afastado.
— Afastado?
Payne olhou inexpressivo para Gabriel.
— Morris, sério.
Depois do jantar, Gabriel foi levado num comboio da CIA para o hotel Madison, no centro de Washington. Exausto, caiu num sono sem sonhos.
Foi acordado às 3h19 por uma mensagem urgente em seu BlackBerry. Ao amanhecer, dirigiu-se para a Embaixada Israelense e ficou lá até o início da tarde, quando saiu para o Aeroporto Internacional de Dulles. Ele tinha dito a seus anfitriões que planejava voltar a Tel Aviv. Em vez disso, às 5h30, embarcou num voo da British Airways para Londres.
O Brexit tinha produzido pelo menos um impacto positivo na economia britânica. Devido a uma queda de dois dígitos no valor da libra, mais de dez milhões de turistas estrangeiros entravam no Reino Unido a cada mês.
O MI5, rotineiramente, fazia triagens nos desembarques buscando elementos indesejados, como terroristas, criminosos e agentes de inteligência russos conhecidos. Por sugestão de Gabriel, a equipe anglo-israelense em Hatch End estava duplicando os esforços do MI5. Como resultado, eles sabiam que o voo 216 da British Airways, vindo de Dulles, pousou às 6h29 da manhã, e que Gabriel passou pela imigração às 7h12.
Encontraram até vários minutos de vídeo da passagem dele pela infinita fila para cidadãos não europeus. Estava sendo transmitido em looping em um dos grandes monitores de vídeo quando ele entrou no centro de operações improvisado.
Sarah Bancroft, usando jeans e um pulôver de lã, dirigiu a atenção dele ao monitor de vídeo adjacente. Nele, havia uma imagem estática de um homem magro e bem constituído atravessando um estacionamento à noite com um casaco de marinheiro e uma mala pendurada no ombro direito.
Um boné obstruía a maior parte do rosto dele.
— Reconhece? — perguntou ela.
— Não.
Mikhail Abramov apontou um controle remoto para a tela e apertou PLAY.
— E agora?
O homem se aproximou de um Toyota compacto, jogou a mala no banco de trás e sentou-se atrás do volante. As luzes se acenderam automaticamente quando o motor ligou, um pequeno erro nas táticas de espionagem. O homem rapidamente as desligou e saiu de ré da vaga.
Alguns segundos depois, o carro desapareceu das vistas da câmera.
Mikhail apertou PAUSE.
— Nada?
Gabriel fez que não.
— Assista de novo. Mas dessa vez, preste muita atenção na forma como ele anda. Você já o viu antes.
O russo colocou o vídeo uma segunda vez. Gabriel focou somente o andar atlético do homem. Mikhail tinha razão, ele já o vira. O suspeito atravessara na frente do carro de Gabriel em Genebra, alguns minutos depois de deixar sua pasta para trás no Café Remor. Mikhail estava andando alguns passos atrás dele.
— Gostaria de poder levar o crédito por vê-lo — disse ele —, mas foi Sarah.
— Onde o vídeo foi feito?
— No estacionamento do terminal de balsas Holyhead.
— Quando?
— Duas noites atrás.
Gabriel franziu a testa.
— Duas noites?
— Fizemos o melhor possível, chefe.
— Como ele chegou até Dublin?
— Num voo vindo de Budapeste.
— Sabemos como o carro chegou lá?
— Dmitri Mentov.
— O ninguém da seção consular da Embaixada Russa?
— Posso mostrar o vídeo, se quiser.
— Eu uso minha imaginação. Onde está nosso homem agora?
Mikhail usou o controle remoto e um novo vídeo apareceu na tela. Um homem saindo de um Toyota compacto em frente a um hotel à beira-mar.
— Onde está Graham?
— Vauxhall Cross.
— Fazendo o quê?
— Esperando por você.
Parte Quatro
ASSASSINATO
55
FRINTON-ON-SEA, ESSEX
No fim do século XIX, havia apenas uma igreja, algumas fazendas e um conjunto de cabanas. Então, um homem chamado Richard Powell Cooper pôs um campo de golfe ao longo do mar, e lá surgiu uma cidade de veraneio com casas elegantes ladeando amplas avenidas e diversos hotéis ao longo da esplanada. A Connaught Avenue, via principal da cidade, ficou conhecida como a Bond Street de East Anglia. O príncipe de Gales era um visitante frequente, e Winston Churchill, certa vez, alugara uma casa para o verão. A última bomba que os alemães jogaram na Grã-Bretanha em 1944 caiu em Frinton-on-Sea.
Embora a cidade já não fosse um destino da moda, seus habitantes tinham se apegado, com grau variado de sucesso, às maneiras refinadas do passado. Velhos, ricos e profundamente conservadores, não aceitavam imigrantes, a União Europeia e as políticas do Partido Trabalhista. Para sua consternação, o primeiro pub de Frinton, Lock & Barrel, tinha sido recentemente aberto na Connaught Avenue. Ainda era uma violação do regulamento da cidade, porém, vender sorvete na praia ou fazer piquenique no gramado de Greensward no topo dos penhascos. Se alguém quisesse estender um cobertor no chão e comer ao ar livre, podia descer a estrada até a vizinha Clacton, um lugar em que a maioria dos nascidos em Frinton jamais punha os pés.
Entre Greensward e o mar ficava um passeio com uma fileira de cabanas de praia cor pastel. Como era início de abril e a tarde estava fria e com vento, Nikolai Azarov andava sozinho pelo calçadão. Carregava uma mochila nas costas e usava binóculo Zeiss pendurado no pescoço. Se alguém lhe tivesse desejado uma boa tarde ou perguntado o caminho de algum lugar, teria suposto que Nikolai era exatamente o que parecia: um inglês educado de classe média, provavelmente de Londres ou de um dos condados ao redor da capital, quase certamente graduado em Oxbridge ou em outra dentre as grandes universidades do país. Um olhar mais perspicaz poderia até notar um traço vagamente eslavo em suas feições.
Mas ninguém teria suposto que ele era russo, nem que era assassino e agente especial do Centro de Moscou.
Não era a carreira que Nikolai escolhera para si. De fato, quando jovem, crescendo numa Moscou pós-soviética, sonhava em ser ator, de preferência no Ocidente. Infelizmente, a escola prestigiosa onde ele havia aprendido a falar seu inglês impecável com sotaque britânico era o Instituto de Línguas Estrangeiras de Moscou, um dos locais favoritos de recrutamento do SVR. Ao se formar, Nikolai entrou na academia do SVR, onde seus instrutores determinaram que ele tinha talento especial para certos aspectos mais sombrios do negócio, incluindo a construção de dispositivos explosivos. Ao fim de seu treinamento, ele foi mandado para o diretorado responsável por “medidas ativas”. Entre elas, o assassinato de cidadãos russos que ousavam se opor ao Kremlin ou de oficiais de inteligência que espionavam para os inimigos da Rússia. Nikolai tinha matado pessoalmente mais de uma dúzia de seus compatriotas que viviam no Ocidente — com veneno, armas químicas ou radiológicas, revólveres ou bombas —, todos sob ordem direta do próprio presidente russo.
A próxima cidade ao norte de Frinton era Walton-on-the-Naze. Nikolai parou para tomar um café no píer antes de se dirigir aos pântanos da reserva natural Hamford Water. Na ponta do promontório, ele pausou por um momento e, usando o binóculo, olhou além do mar do Norte, na direção da Holanda. Depois, foi para o sul pelas margens do canal de Walton. Isso o levou ao rio Twizzle, onde encontrou uma marina cheia de ótimos barcos a vela e iates motorizados. O russo planejava sair da Inglaterra da mesma forma que tinha entrado, de carro pela balsa. Mas, em sua experiência, era sempre bom ter um ás na manga. As operações nem sempre saíam como o planejado. Como em Genebra, pensou de repente.
Ou na França.
É a morte... Morte, morte, morte...
Duas turistas aposentadas vinham pela trilha, seguidas por um cocker spaniel cor de ferrugem. Nikolai desejou-lhes uma boa tarde, e elas responderam enquanto se afastavam. Por um instante, ele chegou a considerar a melhor forma de matar as duas. Tinha sido treinado para supor que todo encontro — especialmente num local remoto, como um pântano em Essex — era potencialmente hostil. Ao contrário de agentes comuns do SVR, Nikolai tinha autoridade para matar primeiro e se preocupar com as consequências depois. Anna também.
Ele checou o horário. Eram quase duas da tarde. Cruzou o promontório para a Torre Naze e refez seus passos até a beira-mar em Frinton. O sol
finalmente saía por um buraco entre as nuvens quando ele chegou ao Bedford House. Um dos últimos hotéis sobreviventes da era de ouro da cidade, ele ficava na ponta sul da esplanada, um mausoléu vitoriano com estandartes voando nos torreões. A mulher tinha escolhido, aquela conhecida no Ocidente como Rebecca Manning e no Centro de Moscou, como Rebecca Philby. A administração do Bedford tinha a impressão de que Nikolai era Philip Lane, roteirista de dramas criminais televisivos que tinha ido a Essex em busca de inspiração.
Ao entrar no hotel, ele se dirigiu ao Café Terrace, lugar que lembrava um átrio, para o chá da tarde. Phoebe, a garçonete de saia justa, levou-o a uma mesa com vista para a esplanada. Nikolai, no papel de Philip Lane, abriu um caderno Moleskine. Então, distraído, pegou seu celular do SVR.
Escondido entre os aplicativos, havia um protocolo que lhe permitia comunicar-se de forma segura com o Centro de Moscou. Mesmo assim, a composição da mensagem que ele digitou era vaga a ponto de ser incompreensível para um serviço de inteligência adversário, como o GCHQ britânico. Dizia que ele tinha acabado de completar uma operação de detecção de segurança e não via evidências de estar sendo seguido. Em sua opinião, era seguro inserir o próximo membro da equipe. Na chegada, ela deveria ir a Frinton para pegar a arma do assassinato, que Nikolai contrabandeara para dentro do país. E, depois de completar sua missão, ele cuidaria para que ela saísse em segurança da Inglaterra. Nesta operação, pelo menos, ele era pouco mais que um garoto de entregas e motorista superestimado. Ainda assim, estava ansioso para vê-la de novo. Ela era sempre melhor quando estavam em campo.
Phoebe colocou um bule de chá Earl Grey na mesa, junto com um prato de sanduíches delicados.
— Está trabalhando?
— Sempre — falou Nikolai, arrastado.
— Em que tipo de história?
— Não decidi.
— Alguém morre?
— Várias pessoas, na verdade.
Naquele momento, um Jaguar F-Type conversível vermelho vivo encostou na entrada do hotel. O motorista era um homem bonito de talvez 50 anos, louro, de pele muito bronzeada. Sua companheira, uma mulher de
cabelos pretos, registrava a chegada deles num smartphone, com o braço esticado. Pareciam estar vestidos para uma ocasião especial.
— Os Edgerton — explicou Phoebe.
— Perdão?
— Tom e Mary Edgerton. Recém-casados. Aparentemente, foi coisa de momento. — Um carregador tirou duas bagagens do porta-malas do carro enquanto a mulher tirava fotos do mar. — Ela é linda, não?
— Muito — concordou Nikolai.
— Acho que deve ser americana.
— Não vamos culpá-la por isso.
Nikolai viu o casal entrar no lobby, onde o gerente deu uma taça de champanhe a cada um. Ela, examinando o interior sóbrio do hotel, encontrou sem querer o olhar de Nikolai e sorriu. O homem segurou-a possessivamente pelo braço e a conduziu ao elevador.
— Ela definitivamente é americana — disse Phoebe.
— De fato — concordou Nikolai. — E o marido dela é ciumento.
A suíte de núpcias ficava no terceiro andar. Keller passou o cartão na leitora, abriu a porta e a segurou para Sarah entrar. As malas deles estavam nos suportes ao pé da cama. Keller colocou o aviso NÃO PERTURBE na maçaneta e trancou a porta com a barra de segurança.
— Foi ele que você viu no Café Remor em Genebra?
Sarah assentiu uma vez.
Keller mandou uma breve mensagem em seu BlackBerry à equipe em Hatch End. Então, enfiou a mão no paletó e tirou sua Walther PPK do coldre de ombro.
— Já usou uma dessas?
— Uma Walther, não.
— Já atirou em alguém?
— Numa garota russa, na verdade.
— Que sortuda. Onde?
— No quadril e no ombro.
— Eu quis dizer...
— Foi num banco em Zurique.
Keller puxou o ferrolho da Walther, carregando a primeira bala. Então, ativou a trava de segurança e entregou a arma a Sarah.
— Agora, está totalmente carregada. Só tem sete balas. Quando quiser disparar, é só soltar a trava e puxar o gatilho.
— E você?
— Vou me virar.
Sarah praticou soltar e ativar a trava.
— O presente de casamento perfeito para uma mulher que tem tudo. —
Keller levantou sua taça de champanhe. — Seu primeiro casamento, é?
— Receio que sim.
— O meu também. — Ele caminhou até a janela e olhou para o mar cor de granito. — Vamos torcer para desafiar as probabilidades.
— Sim — concordou Sarah, colocando a Walther na bolsa. — Vamos.
56
DOWNING STREET, 10
Às 20h15, enquanto Keller e Sarah jantavam no restaurante de carnes do Bedford, a menos de seis metros de sua presa russa, a limusine Jaguar que levava Gabriel Allon e Graham Seymour passou por um portão pesadamente vigiado na saída da Horse Guards Road, e estacionou em frente ao prédio de tijolos vermelhos de cinco andares na Downing Street, 12. Antes residência do chief whip, deputado responsável por garantir que os seus pares votem de acordo com o partido líder do governo, era onde ficava a equipe de imprensa e comunicação do primeiro-ministro. O
chanceler do Tesouro residia ao lado, no número 11, e o próprio primeiro-ministro, é claro, no número 10. A famosa porta preta se abriu automaticamente quando Gabriel e Seymour se aproximaram. Observados por um gato malhado marrom e branco de aparência feroz, eles entraram rapidamente.
Geoffrey Sloane, chefe de gabinete do primeiro-ministro e oficial não eleito mais poderoso da Grã-Bretanha, estava esperando no hall de entrada. Estendeu uma das mãos na direção de Gabriel.
— Eu estava lá na manhã em que você matou o homem-bomba do Estado Islâmico no portão de segurança. Aliás, consegui ouvir os disparos do meu escritório. — Sloane soltou a mão de Gabriel e olhou para Seymour. — Infelizmente, o primeiro-ministro não tem muito tempo.
— Não vai demorar.
— Eu gostaria de estar presente.
— Sinto muito, Geoffrey, mas não é possível.
Jonathan Lancaster aguardava na sala Terracotta, no andar de cima.
Naquela tarde, mais cedo, ele tinha sobrevivido, por pouco, a uma moção de censura na Câmara dos Comuns. Mesmo assim, o corpo de imprensa de Westminster estava naquele momento escrevendo o obituário político dele.
Graças à tolice do Brexit, à qual Lancaster havia se oposto, sua carreira tinha efetivamente acabado. Se não fosse por Gabriel e Graham Seymour, que ele cumprimentou afetuosamente, podia ter acabado bem antes.
O primeiro-ministro olhou de relance para seu relógio de pulso.
— Tenho convidados para o jantar.
— Desculpe — disse Seymour —, mas receio que tenhamos uma situação séria com os russos.
— De novo, não.
Seymour assentiu com gravidade.
— E qual é a natureza dessa situação?
— Um assassino conhecido do SVR entrou no país.
— Onde ele está agora?
— Num pequeno hotel em Essex. O Bedford House.
— Eu me lembro com carinho de lá quando era mais novo — declarou Lancaster. — Imagino que o russo esteja sob vigilância.
— Total — confirmou Seymour. — Quatro observadores do MI6
fizeram check-in no hotel ao lado, o East Anglia Inn, além de dois oficiais de campo altamente experientes de Israel. O Departamento de Operações Técnicas plantou transmissores no quarto dele, áudio e vídeo. Também hackeou a rede interna de câmeras de segurança do hotel. Estamos vigiando todos os movimentos dele.
— Temos alguém dentro do Bedford?
— Christopher Keller. Aquele que...
— Eu sei quem ele é — interrompeu Lancaster. Então, perguntou: —
Sabemos qual é o alvo do russo?
— Não podemos afirmar com certeza, primeiro-ministro, mas acreditamos que os russos estejam planejando assassinar o príncipe herdeiro Abdullah durante sua visita a Londres.
Lancaster absorveu a notícia com uma calma admirável.
— Por que os russos iam querer matar o próximo rei da Arábia Saudita?
— Porque o futuro rei é agente russo. E se chegar ao trono, vai inclinar a Arábia Saudita para o Kremlin e causar danos irreparáveis aos interesses britânicos e americanos no golfo.
Lancaster olhou para Seymour, perplexo.
— Se é assim, por que diabos os russos iam querer eliminá-lo?
— Porque, provavelmente, estão com a suspeita de que Abdullah está trabalhando para nós.
— Para nós?
— O Serviço Secreto de Inteligência.
— E como chegaram a essa conclusão?
— Nós dissemos a eles.
— Como?
Seymour deu uma risada fria.
— Rebecca Manning.
Lancaster alcançou o telefone.
— Infelizmente, vou demorar um pouco, Geoffrey. Por favor, peça desculpas a nossos convidados por mim. — Ele colocou de volta no gancho e olhou para Seymour. — Estou prestando atenção. Continue.
Foi Gabriel, não o diretor-geral do Serviço Secreto de Inteligência, que explicou ao primeiro-ministro por que parecia que os russos pretendiam assassinar o futuro rei da Arábia Saudita em solo britânico. O briefing era idêntico ao que Gabriel dera a Graham Seymour várias semanas antes na casa segura de St. Luke’s Mews, embora, dessa vez, contivesse detalhes da operação de farsa de que era alvo Rebecca Manning, ex-oficial do MI6 e filha de Kim Philby. Lancaster ouviu em silêncio, a mandíbula tensa.
Antes da intervenção da Rússia na política norte-americana, o país tinha se metido na Grã-Bretanha, com o próprio primeiro-ministro como vítima.
Também havia ampla evidência sugerindo que o Kremlin tinha, secretamente, apoiado o Brexit, que jogara a Inglaterra no caos e arruinara a carreira dele. Se alguém queria punir os russos tanto quanto Gabriel, esse alguém era o primeiro-ministro Jonathan Lancaster.
— E você tem certeza de que esse Bennett está trabalhando para os russos?
Gabriel deferiu a Seymour, que explicou que o agente tinha sido visto duas vezes encontrando-se com seu controlador do SVR, Yevgeny Teplov, na floresta de Epping.
— Outro escândalo de espionagem — disse Lancaster. — É justamente o que o país precisa.
— Sempre soubemos que haveria outros, primeiro-ministro. Rebecca estava na posição perfeita para encontrar oficiais vulneráveis à abordagem russa.
— Como Bennett escapou da detecção até agora?
— Ficou dormente depois da captura de Rebecca. Nós o investigamos muito, mas...
— Você deixou de notar outro espião russo debaixo do seu nariz.
— Não, primeiro-ministro. Eu mantive um espião russo no lugar para usá-lo depois e destruir a mulher que destruiu meu serviço.
— Rebecca Manning.
Seymour fez que sim.
— Explique.
— Se prendermos os membros de uma equipe de assassinos do SVR na véspera de sua reunião com Abdullah, os russos vão sofrer enormes prejuízos internacionais, e Rebecca vai ficar sob suspeita de ser a fonte do vazamento.
— Os russos vão achar que ela é agente tripla. É isso que está sugerindo?
— Exato.
O primeiro-ministro ficou pensativo.
— Você disse se prendermos a equipe de assassinos russa. Que outra opção temos?
— Podemos deixar o plano seguir.
— Se fizermos isso, os russos...
— Vão matar seu próprio ativo, o príncipe herdeiro Abdullah, futuro rei da Arábia Saudita. E, com um pouco de sorte — completou Seymour —, talvez matem Rebecca também.
Lancaster olhou para Gabriel.
— Certamente, é ideia sua.
— Que resposta o senhor preferiria?
Lancaster franziu o cenho.
— O que acontece se Abdullah for...
— Removido da linha sucessória?
— Sim.
— O pai de Khalid provavelmente vai fazer com que seu filho seja reinstalado como príncipe herdeiro, em especial, quando descobrir que Abdullah conspirou com os russos para sequestrar e assassinar a filha de Khalid.
— É isso que queremos? Um menino precoce com problemas para controlar seus impulsos governando a Arábia Saudita?
— Será diferente desta vez. Vai ser o KBM que todos esperávamos que fosse.
O sorriso de Lancaster foi condescendente.
— Você nunca me pareceu ingênuo. — Ele olhou para Seymour. —
Imagino que não tenha falado com Amanda.
Amanda Wallace era a contraparte de Seymour no MI5. Com sua expressão, o diretor indicou que ela estava totalmente no escuro.
— Ela nunca vai concordar com isso — disse Lancaster.
— Por isso ela jamais vai ficar sabendo.
— Quem sabe?
— Um pequeno número de oficiais israelenses e do MI6 trabalhando numa casa segura em Harrow.
— Algum deles está espionando para os russos? — Lancaster se voltou a Gabriel. — Sabe o que vai acontecer se um chefe de Estado de facto for assassinado em solo britânico? Nossa reputação será destruída.
— Não se a culpa for dos russos.
— Os russos — respondeu Lancaster, incisivamente — vão negar ou colocar a culpa em nós.
— Não vão conseguir.
Lancaster duvidava.
— Como eles planejam matá-lo?
— Não sabemos.
— Onde vai acontecer?
— Não...
— Têm ideia — completou Lancaster.
Gabriel esperou que o calor da discussão se dissipasse.
— Temos um dos agentes russos sob vigilância. Quando ele entrar em contato com outro membro da equipe...
— E se não entrar?
Gabriel deixou um momento passar.
— Hoje é terça-feira.
— Não preciso de um espião para saber que dia é. Para isso, tenho o Geoffrey.
— Sua reunião com Abdullah é só na quinta. Deixe que a gente ouça e assista por 36 horas.
— Trinta e seis horas está fora de questão. — Lancaster analisou seu relógio de pulso. — Mas posso dar 24. Vamos nos reunir de novo amanhã à noite. — Ele se levantou abruptamente. — Agora, se me dão licença, senhores, gostaria de terminar meu jantar.
57
OUDDORP, HOLANDA
O bangalô de férias ficava numa fenda nas dunas nos arredores do vilarejo de Ouddorp. Era branco como um bolo de casamento, com um teto de telhas vermelhas. Barreiras de acrílico protegiam o pequeno terraço do vento, que soprava sem dar trégua do mar do Norte. Sem aquecimento, com isolamento térmico leve, ele mal era habitável no inverno. De vez em quando, uma alma corajosa em busca de solidão o alugava em maio, mas em geral ficava desocupado até pelo menos meados de junho.
Portanto, Isabel Hartman, corretora imobiliária local que administrava a propriedade, ficou surpresa com o e-mail recebido em meados de março.
Aparentemente, certa Madame Bonnard, de Aix-en-Provence, desejava alugar o chalé por um período de duas semanas a partir de primeiro de abril. Ela pagou adiantado por transferência bancária. Não, disse num e-mail subsequente, não precisava de um tour da propriedade ao chegar; uma brochura impressa seria suficiente. Isabel deixou-a no balcão da cozinha.
A chave, escondeu embaixo de um vaso de flor no terraço. Não era sua prática usual, mas ela não viu mal algum. O bangalô não continha nada de valor fora uma televisão. Isabel recentemente tinha instalado internet wi-fi na tentativa de atrair mais visitantes estrangeiros — como a Madame Valerie Bonnard, de Aix-en-Provence. Isabel só podia se perguntar por que ela estava visitando a melancólica Ouddorp. Até o nome soava como algo que precisava ser removido cirurgicamente. Se Isabel tivesse a sorte de viver em Aix, nunca sairia.
Devido ao isolamento do bangalô, a corretora não conseguiu determinar exatamente quando a francesa chegara. Imaginou que um dia depois do esperado, pois foi quando viu o veículo, um Volvo sedan escuro com placa holandesa, estacionado na entrada para carros não asfaltada da propriedade. Viu a mulher também. Estava saindo do supermercado Jumbo com algumas sacolas de compras. Isabel considerou se apresentar, mas decidiu não fazer isso. Havia algo no comportamento da mulher e na expressão cautelosa em seus olhos incomumente azuis que a tornava totalmente inacessível.
Havia algo insuportavelmente triste nela. Passara por algum trauma recente, tinha certeza. Um filho morto, um casamento destruído, uma traição. Ela estava preocupada, isso era óbvio. A corretora não conseguia decidir se a mulher estava de luto ou tramando um ato de vingança.
Isabel viu a mulher no vilarejo no dia seguinte, tomando café no New Harvest Inn — e noutro dia, almoçando sozinha no Akershoek. Dois dias se passaram antes da próxima aparição, que ocorreu de novo no supermercado Jumbo. Dessa vez, o carrinho da mulher estava cheio quase até o topo, dando a entender que a nova inquilina esperava visitas.
Chegaram na manhã seguinte num segundo carro, uma Mercedes Classe E.
Isabel se surpreendeu com o fato de que os três eram homens.
Ela viu a mulher só mais uma vez, às duas da tarde do dia seguinte, aos pés do antigo farol West Head. Estava vestindo um par de botas Wellington e uma jaqueta impermeável verde-escura, e olhava na direção da Inglaterra, do outro lado do mar do Norte. Isabel pensou que nunca tinha visto uma mulher tão triste — nem tão determinada. Estava tramando um ato de vingança. Disso, Isabel Hartman tinha certeza.
A mulher parada à sombra do farol estava ciente de estar sendo observada.
Não se alarmou; era só a corretora enxerida. Esperou até a holandesa ir embora antes de se dirigir ao bangalô. Era uma caminhada de dez minutos pela praia. Um de seus guarda-costas estava do lado de fora, no terraço. O
outro estava dentro do chalé, com o oficial de comunicações. Na mesa da sala de jantar estava um notebook aberto. A mulher checou o status do voo 579 da British Airways de Veneza a Heathrow. Então, acendeu um cigarro L&B com um velho isqueiro prateado e se serviu de três dedos de uísque escocês. Era só o clima, garantiu a si mesma. A melancolia passaria quando o verão chegasse.
58
AEROPORTO DE HEATHROW, LONDRES
Os passageiros do voo de Veneza demoraram a ser liberados do avião.
Portanto, Anna teve que passar cinco minutos extras apertada contra a janela da fileira 22 da classe econômica para evitar o braço úmido e corpulento de Henry, seu vizinho invasivo de assento. Sua mala de mão estava no compartimento superior e a bolsa, embaixo do assento à sua frente. Nela, um passaporte alemão identificava Berlim como seu local de nascimento. Isso, pelo menos, era verdade.
Ela nascera na metade oriental da cidade em 1983, produto indesejado de um relacionamento secreto entre dois oficiais de inteligência. Sua mãe, Johanna Hoffmann, trabalhava para o departamento da Stasi que fornecia apoio logístico a grupos terroristas palestinos e da Europa Ocidental. Seu pai, Vadim Yurasov, era coronel da KGB baseado no fim de mundo de Dresden. Eles fugiram da Alemanha Oriental alguns dias depois da queda do Muro de Berlim e se estabeleceram em Moscou. Depois do casamento, aprovado pela KGB, Anna assumiu o nome Yurasova. Ela frequentou uma escola especial reservada para filhos dos oficiais da KGB e, depois de se formar na prestigiosa Universidade Estatal de Moscou, entrou na academia de treinamento do SVR. Um de seus colegas de classe era um aspirante a ator alto e bonito chamado Nikolai Azarov. Eles trabalharam juntos em inúmeras operações e, como os pais de Anna, eram amantes em segredo.
Dentro do terminal, Anna seguiu a procissão até o controle de passaporte e entrou na fila para cidadãos da União Europeia. O homem uniformizado na cabine mal olhou o passaporte dela.
— O propósito de sua visita?
— Turismo — respondeu Anna com o sotaque alemão de sua mãe.
— Algum plano especial?
— O máximo de teatro possível.
O passaporte foi devolvido. Anna se encaminhou ao saguão de desembarque e, dali, para a plataforma do Heathrow Express. Chegando à estação de Paddington, ela caminhou na direção norte pela Warwick Avenue até a Formosa Street e virou à esquerda. Ninguém a seguia. Ela virou de novo à esquerda em Bristol Gardens. Um Renault Clio prata-
azulado encontrava-se estacionado em frente a uma academia de ginástica.
As portas estavam destrancadas. Ela jogou a mala no compartimento traseiro e sentou-se atrás do volante. As chaves estavam no console central. Ligou o motor e se afastou do meio-fio.
Anna tinha estudado a rota com atenção, para não se distrair com um GPS. Foi para norte na Finchley Road até a A1, depois para leste na M25
Orbital Motorway até a A12. Diligentemente, examinou a estrada atrás de si procurando sinais de vigilância, mas quando a escuridão caiu, sua mente começou a vagar. Pensou sobre a noite em que fugira com seus pais de Berlim Oriental. Eles haviam feito a viagem a bordo de um avião de carga soviético fedorento. Um dos outros passageiros era um homenzinho com bochechas emaciadas e olheiras escuras. Ele trabalhava com o pai de Anna no escritório da KGB em Dresden. Era um ninguém que passava os dias posando de tradutor e recortando artigos de jornais alemães.
De alguma forma, o pequeno ninguém era o homem mais poderoso do mundo neste momento. No espaço de alguns anos, tinha causado caos na ordem mundial política e econômica do pós-guerra. A União Europeia estava aos cacos. A OTAN estava por um fio. Depois de interferir na política da Inglaterra e dos Estados Unidos, ele tinha atuado também na Arábia Saudita. Anna e Nikolai tinham o ajudado a alterar a linha sucessória da Casa de Saud. Agora, por motivos que eram obscuros para eles, estavam prestes a alterá-la de novo.
Anna nunca questionava ordens do Centro de Moscou —
especialmente, quando diziam respeito a “medidas ativas” caras ao presidente —, mas a missão a deixava nervosa. Ela não gostava de receber ordens de alguém como Rebecca Manning, ex-oficial do MI6 que mal falava russo. Também estava preocupada com um assunto mal resolvido de sua última missão.
Gabriel Allon...
Anna deveria ter matado o israelense no café em Carcassonne quando teve a chance, mas as ordens do Centro de Moscou tinham sido específicas. Queriam que ele morresse junto com o príncipe saudita e a menina. Anna não tinha vergonha de admitir que temia a vingança de Allon. Ele não era o tipo de homem que fazia ameaças em vão.
É a morte! Morte, morte, morte...
Anna deixou seus pensamento abandonarem o israelense ao se aproximar da cidade mercantil de Colchester. A única rota para Frinton-
on-Sea era a passagem na Connaught Avenue. Nikolai estava hospedado num hotel na esplanada. Ela entregou o carro a um manobrista, mas levou sua mala para o lobby.
Um casal dividia uma garrafa de Dom Perignon no bar — um homem bonito, de talvez 50 anos, louro e bronzeado, e uma mulher de cabelo escuro. Não prestaram atenção em Anna enquanto ela ia à recepção coletar a chave que tinha sido deixada em seu nome falso. Sua acomodação ficava no quarto andar, e ela entrou num recinto escuro sem bater. Tirou a roupa e, observada pelas câmeras do MI6, foi lentamente na direção da cama.
59
DOWNING STREET, 10
Pela segunda noite consecutiva, uma limusine Jaguar passou pelo portão de segurança na Horse Guards Road às 8h15. O gato malhado marrom e branco saiu correndo enquanto Gabriel e Graham Seymour seguiam apressados pela Downing Street numa chuva torrencial. Geoffrey Sloane os recebeu sem dizer nada na sala do gabinete, onde o primeiro-ministro estava sentado em sua cadeira de sempre no centro da longa mesa. Diante dele estava uma cópia da agenda final da visita do príncipe herdeiro Abdullah a Londres.
Depois que Sloane se foi e as portas se fecharam, Graham Seymour entregou a atualização prometida. No início daquela noite, uma segunda agente russa tinha chegado de automóvel ao Bedford House Hotel em Frinton-on-Sea. Depois de fazer sexo com seu colega, ela tinha tomado posse de uma pistola Stechkin 9mm, dois pentes, um silenciador e um pequeno objeto que Operações Técnicas ainda tentava identificar.
— Melhor chute? — perguntou Lancaster.
— Não quero especular.
— Onde ela está agora?
— Ainda no quarto.
— Sabemos como entrou no país?
— Ainda estamos tentando determinar.
— Há outros?
— Não sabemos o que não sabemos, primeiro-ministro.
— Poupe-me dos clichês, Graham. Só me diga o que eles vão fazer agora.
— Não conseguimos, primeiro-ministro. Ainda não.
Lancaster xingou baixinho.
— E se o carro dela tiver uma bomba como aquela que explodiu na Brompton Road há alguns anos? — Ele olhou para Gabriel. — Você se lembra dessa, não, diretor Allon?
— Já verificamos o carro dela. Do namorado também. Estão limpos.
Além do mais — disse Gabriel —, não há forma de conseguirem chegar
com uma bomba perto de Abdullah amanhã. Londres vai estar completamente isolada.
— E o comboio dele?
— Assassinar um chefe de Estado num carro em movimento é quase impossível.
— Diga isso ao arquiduque Francisco Ferdinando. Ou ao presidente Kennedy.
— Abdullah não vai estar num carro conversível, e as ruas estarão completamente vazias.
— Então, onde vai ser a tentativa?
Gabriel olhou para a agenda.
— Posso?
Lancaster a empurrou pela mesa. Tinha uma página, em tópicos.
Chegada em Heathrow às 9 horas. Reunião entre delegações britânicas e sauditas em Downing Street das 10h30 às 13 horas, seguida por um almoço profissional. O príncipe herdeiro sairia do número 10 às 15h30, e iria de comboio até sua residência particular em Belgravia para algumas horas de descanso. Sua volta a Downing Street para jantar estava marcada para as 20 horas. A saída para Heathrow estava, provisoriamente, marcada para as 22 horas.
— Se eu tivesse que adivinhar — disse Gabriel, apontando para uma das entradas —, vai acontecer aqui.
O primeiro-ministro apontou para uma outra entrada.
— E se for aqui? — Seu dedo se moveu página abaixo. — Ou aqui? —
Houve um silêncio. Então, Lancaster falou: — Prefiro não ser uma vítima colateral, se é que me entende.
— Entendo — respondeu Gabriel.
— Talvez devamos aumentar a segurança em Downing Street ainda mais do que o planejado.
— Talvez.
— Imagino que você não esteja disponível.
— Seria uma honra, primeiro-ministro. Mas acredito que a delegação saudita acharia minha presença curiosa, para dizer o mínimo.
— E Keller?
— Uma escolha bem melhor.
O olhar de Lancaster se moveu lentamente pela sala.
— De todas as decisões importantes que foram tomadas dentro destas paredes... — Ele olhou para Graham Seymour. — Reservo-me o direito de ordenar a prisão daqueles dois russos em qualquer momento amanhã.
— É claro, primeiro-ministro.
— Se qualquer coisa der errado, os culpados vão ser vocês, não eu. Não ordenei, tolerei nem tive papel algum nisto tudo. Está claro?
Seymour assentiu uma vez.
— Bom. — Lancaster fechou os olhos. — E que Deus tenha piedade de nós.
60
WALTON-ON-THE-NAZE
Christopher Keller ficou no Bedford House Hotel até as três da manhã, quando saiu escondido pela entrada de serviço dos fundos e caminhou pelo calçadão na direção norte até Walton-on-the-Naze. O carro estava em frente à loja Terry’s Antique & Secondhand, na Station Street. Keller passou duas vezes diante dele antes de entrar no banco do carona. O
motorista era um agente de apoio de campo chamado Tony. Enquanto ele se afastava do meio-fio, Keller inclinou seu banco e fechou os olhos.
Tinha passado as duas últimas noites num quarto de hotel com uma americana linda de quem tinha passado a gostar muito. Ele precisava de algumas horas de sono.
Acordou com a visão de homens de manto andando por uma rua praticamente escura. Era só a Edgware Road. Tony seguiu por ela até o Marble Arch. Atravessou o parque na West Carriage Drive e seguiu pelas ruas ainda sonolentas de Kensington até o endereço chique de Keller em Queen’s Gate Terrace.
— Bacana — comentou Tony, com inveja.
— Nove da manhã está bom?
— Acho melhor 8h30. O trânsito vai estar um inferno.
Keller saiu do carro, cruzou a calçada e desceu os degraus até a entrada inferior de sua casa de dois andares. Lá dentro, preparou a cafeteira com água Volvic e Carte Noire e assistiu ao BBC Breakfast enquanto o café passava. A visita do príncipe herdeiro Abdullah superara o Brexit como reportagem principal. Os analistas estavam esperando uma reunião amigável e muitas promessas sauditas de futuras compras de armamento.
O Serviço de Polícia Metropolitano de Londres, porém, estava preparado para um dia difícil, e esperava reunião de milhares de manifestantes na Trafalgar Square para protestar contra a prisão de ativistas pró-democracia na Arábia Saudita e o assassinato do jornalista dissidente Omar Nawwaf.
No geral, disse um policial sênior, era melhor evitar o centro de Londres.
— Não vai dar — murmurou Keller.
Ele bebeu uma primeira xícara de café enquanto assistia à cobertura e uma segunda enquanto fazia a barba. No chuveiro, viu-se,
inesperadamente, sonhando acordado com a linda americana que tinha deixado num hotel em Frinton. Tomou mais cuidado que o normal com sua arrumação e vestimenta, escolhendo um terno cinza-escuro de corte e tecido medianos, uma camisa branca e uma gravata lisa azul-marinho.
Examinando sua aparência no espelho, concluiu que tinha alcançado o efeito desejado. Parecia um oficial da Proteção Especialista da Realeza (RaSP, na sigla em inglês). Um braço do Comando de Proteção da Polícia Metropolitana, a RaSP era responsável por guardar a família real, o primeiro-ministro e dignitários estrangeiros em visita. Keller e o resto da equipe tinham um longo dia à frente.
Ele desceu para a cozinha e assistiu ao BBC Breakfast até o fim, às 8h30. Então, colocou um sobretudo respeitável e subiu os degraus até a rua, onde Tony já o esperava ao volante de um carro do MI6. Enquanto atravessavam Londres na direção leste, os pensamentos de Keller retornaram à mulher. Dessa vez, ele pegou seu BlackBerry do MI6 e discou.
— Onde você está? — perguntou.
— Acabando de sair do café da manhã.
— Alguém interessante lá?
— Alguns observadores de pássaros e um agente russo.
— Só um?
— A namorada dele saiu há alguns minutos.
— Gabriel e Graham sabem?
— O que você acha?
— Para onde ela está indo?
— Para o seu lado.
— Quem está no rastro dela?
— Mikhail e Eli.
Keller ouviu o plim do elevador do Belford e o ruído das portas.
— Onde está indo?
— Tenho planos de relaxar com um livro e uma arma, e esperar meu marido voltar.
— Lembra como usar?
— Soltar a trava e puxar o gatilho.
Keller desligou e olhou com melancolia pela janela. Tony tinha razão, o trânsito estava um inferno.
Os manifestantes já tinham tomado a Trafalgar Square. Estavam espalhados dos degraus da National Gallery à Coluna de Nelson, uma multidão com cartazes e gritos de guerra, alguns de manto e véu, outros com roupas de lã e flanela, todos revoltados que o governante de facto da Arábia Saudita estivesse prestes a ser festejado por um chefe de governo britânico.
A rua Whitehall estava fechada para o trânsito de veículos. Keller saiu do carro e, depois de mostrar seu cartão de identificação do MI6 para um policial com uma prancheta, teve permissão para seguir a pé. Sarah Bancroft finalmente saiu de seus pensamentos, para ser substituída por memórias da manhã em que ele e Gabriel tinham impedido uma tentativa do Estado Islâmico de soltar uma bomba suja no coração de Londres.
Gabriel matara o terrorista com vários tiros na nuca. Mas fora Keller quem impedira que o detonador automático fosse ativado, disparando o explosivo e dispersando uma nuvem mortal de cloreto de césio por toda a sede do poder britânico. Ele tinha sido forçado a segurar o dedão sem vida do homem-bomba no gatilho por três horas, enquanto uma equipe especializada trabalhava freneticamente para desarmar o dispositivo.
Foram, sem dúvida alguma, as três horas mais longas de sua vida.
Keller desviou do local em que ele e o terrorista morto tinham deitado juntos, e se apresentou no portão de segurança da Downing Street. Após mostrar sua identificação do MI6, mais uma vez teve permissão para seguir adiante. Ken Ramsey, líder de operações de Downing Street, aguardava-o no hall de entrada do número 10.
Ramsey entregou a Keller um rádio e uma Glock 17.
— Seu chefe está lá em cima, na Sala Branca. Quer dar uma palavra.
Keller correu pela Grande Escadaria, ladeada de retratos de primeiros-ministros anteriores. Geoffrey Sloane o esperava no corredor em frente à Sala Branca. Abriu a porta e mandou Keller entrar com um aceno de cabeça. Graham Seymour estava sentado numa das poltronas. Na outra, o primeiro-ministro Jonathan Lancaster. Sua expressão era séria e tensa.
— Keller — falou com ar ausente.
— Primeiro-ministro. — Keller olhou para Seymour. — Onde ela está?
— Na A12 em direção a Londres.
— E Abdullah?
— Me diga você.
Keller inseriu o fone e ouviu o falatório na frequência segura da RaSP.
— Pontual para uma chegada às 10h15.
— Então, talvez — disse Lancaster —, você devesse estar lá embaixo com seus colegas.
— Isso quer dizer...
— Que vamos seguir com a reunião de cúpula como planejado? —
Lancaster se levantou e abotoou seu paletó. — Por que diabos não seguiríamos?
61
NOTTING HILL, LONDRES
Às 10h13, enquanto um comboio de limusines Mercedes fluía pelo portão aberto de Downing Street, um único carro, um Opel compacto popular parou em frente a St. Luke’s Mews, 7, em Notting Hill. O homem no banco de trás, príncipe Khalid bin Mohammed Abdulaziz Al Saud, estava de péssimo humor. Como seu tio, ele tinha chegado naquela manhã no Aeroporto de Heathrow — não de jatinho particular, seu meio de transporte habitual para viagens, mas num voo comercial vindo do Cairo, uma experiência que ele demoraria a esquecer. O carro era a gota d’água.
Khalid encontrou o olhar do motorista no retrovisor.
— Você não vai abrir a porta para mim?
— É só puxar a maçaneta, querido. Funciona toda vez.
O príncipe saiu para a rua molhada. Quando se aproximou da porta número 7, ela continuou fechada. Ele olhou para trás. O motorista, com um gesto, indicou que ele deveria anunciar sua presença batendo à porta.
Outro insulto calculado, pensou. Nunca na vida KBM batera numa porta.
Um homem com aparência de menino e um rosto benevolente o deixou entrar. A casa era muito pequena e escassamente mobiliada. A sala de estar continha cadeiras baratas e uma televisão ligada na BBC. Diante dela estava Gabriel Allon, a mão no queixo, cabeça inclinada ligeiramente para o lado.
Khalid se juntou a ele e assistiu a seu tio, com roupas tradicionais sauditas, emergir da traseira de uma limusine enquanto câmeras disparavam flashes como raios. O primeiro-ministro Jonathan Lancaster estava parado bem em frente à porta do número 10, um sorriso congelado no rosto.
— Deveria ser eu chegando em Downing Street — disse Khalid. — Não ele.
— Fique feliz por não ser você.
Khalid examinou a sala com desaprovação.
— Imagino que não haja nenhuma bebida.
Gabriel apontou para uma porta.
— Sirva-se.
O príncipe foi à cozinha, outra primeira vez. Perplexo, ele gritou:
— Como funciona a chaleira?
— Coloque água e aperte o botão que liga — respondeu Gabriel. —
Isso deve resolver.
Como seu jovem sobrinho tempestuoso, o príncipe herdeiro Abdullah não ficou impressionado com a casa em que entrou naquela manhã. Embora tivesse vivido em Londres por muitos anos e transitasse em círculos sociais elevados, era sua primeira visita a Downing Street. Tinham-lhe assegurado que, por trás do hall de entrada bastante sisuda, havia uma casa de elegância extraordinária e tamanho inesperado. À primeira vista, porém, parecia difícil imaginar. Abdullah preferia seu novo palácio de bilhões de dólares em Riad — ou o Grande Palácio Presidencial no Kremlin, onde havia se encontrado secretamente em várias ocasiões com o homem com quem adquirira uma dívida enorme. Enfim, faria seu primeiro pagamento.
O primeiro-ministro insistia em mostrar a Abdullah uma poltrona de couro desgastada e de aparência modular amada por Winston Churchill.
Abdullah fez os ruídos de admiração apropriados. Por dentro, porém, estava pensando que a poltrona, como Jonathan Lancaster, precisava ser sacrificada.
Por fim, Abdullah e seus assistentes foram levados à sala do gabinete.
Tinha mesmo o tamanho de um gabinete. Ele se sentou no lugar designado, e Lancaster, à sua frente. Diante de cada um estava a pauta acordada para a primeira sessão da cúpula. O inglês, porém, depois de muitos pigarros e de folhear papéis, sugeriu que primeiro tirassem da frente “alguns assuntos desagradáveis”.
— Assuntos desagradáveis?
— Chegou a nosso conhecimento o fato de que uma dúzia ou mais de ativistas mulheres estão sendo mantidas, sem acusação formal, numa prisão saudita, sujeitas a várias formas de tortura, incluindo choque elétrico, afogamento simulado e ameaças de estupro. É imperativo que elas sejam libertadas imediatamente. Caso contrário, não poderemos proceder com nosso relacionamento de forma normal.
Abdullah conseguiu disfarçar seu assombro. Seu ministro do Exterior e seu embaixador em Londres tinham garantido que a reunião seria
amigável.
— Aquelas mulheres — disse ele, calmamente — foram presas por meu sobrinho.
— Seja como for — retorquiu Lancaster —, você é responsável pelo confinamento atual delas. Devem ser libertadas imediatamente.
O olhar de Abdullah era firme e frio.
— O Reino da Arábia Saudita não interfere em questões internas da Grã-Bretanha. Esperamos a mesma cortesia.
— O Reino da Arábia Saudita ajudou direta e indiretamente a transformar este país no principal centro mundial de ideologia salafista-jihadista. Isso também precisa acabar.
Abdullah hesitou e, então, disse:
— Talvez devêssemos passar ao próximo item da pauta.
— Acabamos de fazer isso.
Para além das zonas governamentais de Whitehall e Westminster, o trânsito do meio-dia em Londres estava o emaranhado de sempre. Anna Yurasova levou quase duas horas para dirigir de Tower Hamlets ao estacionamento Q-Park na Kinnerton Street, em Belgravia, muito mais do que ela esperava.
A rezidentura de Londres tinha clandestinamente reservado uma vaga na garagem. Anna escondeu a Stechkin 9mm embaixo do banco do carona do Renault antes de entregar o carro ao manobrista. Então, ela subiu a rampa, bolsa pendurada num ombro, e se dirigiu para a Motcomb Street, uma via de pedestres estreita com algumas das lojas e restaurantes mais exclusivos de Londres. Com sua saia, meia-calça escura e casaco de couro curto, saltos batendo alto nos paralelepípedos, atraiu olhares de admiração e inveja. Estava confiante, porém, de não estar sendo seguida.
Na Lowndes Street, virou à esquerda na direção da Eaton Square. A seção noroeste estava fechada para tráfego de veículos e pedestres. Anna se aproximou de um oficial da Polícia Metropolitana e explicou que era empregada de uma das casas na praça.
— Qual delas, por favor?
— Número 70.
— Preciso olhar sua bolsa.
Anna a tirou do ombro e a abriu. O policial a revistou com atenção antes de permitir que ela passasse. O terraço de casas ao longo do lado oeste da praça era um dos mais imponentes em Londres: três janelas panorâmicas, cinco andares, um porão e um belo pórtico sustentado por duas colunas, cada uma com o endereço da casa. Anna subiu os quatro degraus do número 70 e colocou o dedo indicador na campainha. A porta se abriu, e ela entrou.
Embora Anna Yurasova não soubesse, a equipe em Hatch End estava monitorando todos os seus passos com ajuda das câmeras de segurança.
Eli Lavon, que a seguia a pé, era só uma medida de segurança. Após vê-la entrar na casa da Eaton Square, 70, ele caminhou para oeste até Cadogan Place, e entrou no banco do carona de um Ford Fiesta. Mikhail Abramov estava ao volante.
— Parece que Gabriel tinha razão sobre o local onde os russos planejavam agir.
— Você parece surpreso — respondeu Lavon.
— Nem um pouco. A questão é: como vão chegar até ele?
Mikhail bateu os dedos nervosamente no painel. Era, pensou Lavon, um hábito muito inconveniente para um homem do mundo secreto.
— Será que dá para parar com isso?
— Parar com o quê?
Lavon exalou lentamente e ligou o rádio do carro. Era uma da tarde. Em Downing Street, disse a Radio 4, da BBC, o primeiro-ministro e o príncipe herdeiro acabavam de se sentar para almoçar.
62
EATON SQUARE, BELGRAVIA
Foi Konstantin Dragunov, amigo e parceiro comercial do presidente da Rússia, que admitiu Anna Yurasova à casa elegante na Eaton Square. Ele vestia um terno escuro típico dos oligarcas e uma camisa social branca aberta até o esterno. Seu cabelo e barba grisalhos e escassos tinham comprimento uniforme. Seu lábio inferior proeminente brilhava como a casca de uma maçã recém-polida. Anna recuou ao pensar num tradicional beijo russo de cumprimento. Defensivamente, ofereceu sua mão em vez disso.
— Senhor Dragunov — disse ela, em inglês.
— Por favor, me chame de Konstantin — respondeu ele, no mesmo idioma. Então, em russo, continuou: — Não se preocupe, uma equipe da rezidentura fez uma varredura completa na casa ontem à noite. Está limpa.
Ele ajudou Anna a tirar o casaco. O olhar dele sugeria que queria ajudá-
la a tirar também a roupa e a lingerie. Konstantin Dragunov era considerado um dos piores devassos da Rússia, uma conquista notável, dado o nível da competição.
Anna olhou o gracioso hall de entrada. Antes de sair de Moscou, ela tinha se familiarizado com o interior da casa, estudando fotografias e plantas. Não tinham feito justiça. A construção era impressionantemente bonita.
Ela pegou o casaco de volta.
— Talvez você devesse me mostrar a casa.
— Vai ser um prazer.
Dragunov a levou por um corredor até um par de portas duplas, cada uma com uma janela redonda, como escotilhas de navio. Atrás ficava uma cozinha profissional muito maior que o apartamento de Anna em Moscou.
Era óbvio, pela atitude indiferente de Dragunov, que ele não frequentava esse cômodo de sua mansão em Belgravia.
— Dei o dia de folga ao resto da equipe, como a inglesa mandou.
Duvido que Abdullah vá comer algo, mas antes de o cordão de isolamento da polícia ser colocado, recebi a entrega de uma bandeja de canapés do bufê favorito dele. Está na geladeira.
Havia duas, na verdade, lado a lado.
— O que ele vai beber?
— Depende do humor. Champanhe, vinho branco, um uísque se seu dia tiver sido difícil. Os vinhos estão na adega embaixo do balcão. As bebidas destiladas ficam no bar. — Dragunov empurrou as portas duplas como um garçom apressado. O bar ficava numa alcova à direita. — Abdullah prefere Black Label. Mantenho uma garrafa só para ele.
— Como ele toma?
— Com muito gelo. Tem uma máquina automática embaixo da pia.
— A que horas ele deve chegar?
— Entre 16h30 e 17 horas. Por motivos óbvios, não pode ficar muito.
— Onde vai recebê-lo?
— Na sala de estar.
Ficava um lance de escadas acima, no primeiro andar da mansão. Como o resto da casa, não havia nada russo. Anna imaginou a cena que aconteceria ali dentro de poucas horas.
— É essencial que você se comporte normalmente — instruiu ela. —
Só pergunte o que ele quer beber, e eu cuido do resto. Consegue fazer isso, Konstantin?
— Acho que sim. — Ele pegou-a pelo braço. — Tem mais uma coisa que você deveria ver.
— O que é?
— Surpresa.
Ele guiou Anna para um pequeno elevador com painéis de madeira e apertou o botão para ir ao andar mais alto. O enorme quarto de Dragunov
— a câmara dos horrores — dava vista para a Eaton Square.
— Não se preocupe, eu a trouxe aqui só pela vista.
— Do quê?
Ele deu um empurrãozinho nela na direção de uma das três janelas panorâmicas e apontou para o lado sul da praça.
— Sabe quem mora bem ali, no número 56?
— Mick Jagger?
— O chefe do Serviço Secreto de Inteligência. E você vai matar o ativo premiado dele bem debaixo do seu nariz.
— Que ótimo, Konstantin. Mas, se não tirar a mão da minha bunda, vou matar você também.
O assunto reservado para o almoço de trabalho na Downing Street era a guerra da Arábia Saudita contra os rebeldes houthis apoiados pelos iranianos no Iêmen. Jonathan Lancaster exigiu que Abdullah parasse com os ataques aéreos indiscriminados a civis inocentes, em especial, aqueles feitos com aeronaves de caça britânicas. Abdullah argumentou que a guerra era do sobrinho, não dele, embora tivesse deixado claro que compartilhava da visão de KBM de que os iranianos não podiam ter permissão de espalhar sua influência maligna por todo o Oriente Médio.
— Também estamos preocupados — falou Lancaster — com a influência regional crescente dos russos.
— A influência de Moscou está crescendo porque o presidente russo não permitiu que seu aliado na Síria fosse varrido pela loucura da Primavera Árabe. O resto do mundo árabe, incluindo a Arábia Saudita, não pôde deixar de notar.
— Posso dar um conselho, príncipe Abdullah? Não caia nas promessas russas. Não vai acabar bem.
Eram 15h15 quando os dois líderes saíram pela porta de número dez. A negociação comercial e o investimento informados pelo primeiro-ministro para os jornalistas reunidos era relevante, mas alguns bilhões abaixo da expectativa pré-reunião — assim como o compromisso de Abdullah de comprar armas britânicas no futuro. Sim, disse Lancaster, eles tinham discutido assuntos espinhosos envolvendo direitos humanos. Não, ele não estava satisfeito com todas as respostas do príncipe herdeiro, incluindo aquela sobre o assassinato brutal do jornalista saudita dissidente Omar Nawwaf.
— Foi — declarou Lancaster, em conclusão — uma troca honesta e frutífera entre dois velhos amigos.
Com isso, apertou a mão de Abdullah e fez um gesto na direção da limusine Mercedes que o esperava. Quando o comboio saiu de Downing Street, Christopher Keller entrou no banco de trás de uma van preta do Comando de Proteção. Em circunstâncias normais, o caminho até a residência particular de Abdullah na Eaton Square, 71 podia levar vinte minutos ou mais. Mas, em ruas vazias com escolta da Polícia Metropolitana, eles chegaram em menos de cinco.
As câmeras de segurança da praça registraram que o príncipe herdeiro Abdullah entrou em sua casa às 15h42, acompanhado por uma dezena de assistentes com vestimentas tradicionais e vários seguranças sauditas de
ternos escuros. Seis oficiais da RaSP imediatamente assumiram posições em frente à residência, ao longo da calçada. Um membro do destacamento, porém, permaneceu no banco de trás da van do Comando de Proteção, invisível à mulher parada na janela do terceiro andar da casa vizinha.
Levou o mesmo tempo, cinco minutos, para o primeiro-ministro Jonathan Lancaster se separar de seus assistentes e subir até a Sala Branca. Ao entrar, removeu uma folha oficial de anotações do número 10 do bolso interno do paletó. O bloco do qual ela tinha sido arrancada estava na mesa de centro em frente a Graham Seymour, embaixo da caneta Parker do chefe do MI6.
— Suspeito que nenhum primeiro-ministro na história tenha recebido um bilhete assim no meio de uma visita de Estado. — Lancaster o colocou na mesa de centro. — Falei a Abdullah que era sobre o Brexit. Não sei se ele acreditou.
— Achei que você deveria saber onde ela estava.
Jonathan Lancaster baixou os olhos para a nota.
— Faça um favor, Graham. Queime esse negócio. O resto do bloco também.
— Primeiro-ministro?
— Você deixou uma marca no bloco quando escreveu. — Lancaster balançou a cabeça em reprovação. — Eles não ensinam nada na escola de espiões?
63
EATON SQUARE, BELGRAVIA
As recriminações começaram no instante em que a porta se fechou. A reunião em Downing Street tinha sido um desastre absoluto. Não havia outra palavra. Desastre! Como eles podiam não saber que Lancaster pretendia encurralar Vossa Alteza Real na questão dos direitos humanos e das mulheres presas? Por que não foram informados de que ele ia levantar o assunto do apoio financeiro saudita a instituições islâmicas na Inglaterra? Por que foram pegos de surpresa? Obaid, o ministro do Exterior, colocou toda a culpa em Qahtani, embaixador em Londres, que via conspirações em todo canto. Al-Omari, chefe da corte real, ficou tão enraivecido que sugeriu cancelar o jantar e voltar imediatamente a Riad.
Foi Abdullah, de repente um estadista, que o contrariou. Não ir ao jantar, disse, só ofenderia os britânicos e o enfraqueceria em casa. Melhor terminar a visita num ponto alto, mesmo que falso.
Nesse meio-tempo, era preciso uma reação agressiva de mídia. Obaid correu para a BBC, Qahtani para a CNN. No silêncio repentino, Abdullah se recostou em sua cadeira, olhos fechados, a mão na testa. A performance era para al-Omari, o cortesão. Não havia tarefa pequena demais, humilhante demais, para este funcionário. Ele pairava sobre Abdullah noite e dia. Portanto, seria preciso lidar com ele com cuidado.
— Não está se sentindo bem, Vossa Alteza?
— Um pouco cansado, só isso.
— Talvez devesse subir para descansar.
— Acho que vou nadar um pouco primeiro.
— Devo ligar a sauna?
— Algumas coisas, eu mesmo consigo fazer. — Abdullah levantou-se lentamente. — Com exceção de um golpe palaciano ou um ataque iraniano na Arábia Saudita, não quero ser perturbado por nada até 19h30. Consegue fazer isso, Ahmed?
Abdullah desceu à sala da piscina. Uma luz azul molhada dançava num teto abobadado pintado com corpos fortes nus rodopiantes à moda de Rubens ou Michelangelo. Como ficariam chocados os devotos homens do ulemá, pensou, se o vissem agora. Ele renovara o pacto entre os
wahabistas e a Casa de Saud para ganhar apoio do clero em seu golpe contra Khalid. Mas, em seu interior, detestava os barbados tanto quanto os reformistas. Apesar da reunião inesperadamente litigiosa em Downing Street, Abdullah tinha aproveitado seu breve respiro da religiosamente sufocante Riad. Percebia quanto sentia falta da visão da pele feminina, ainda que só uma panturrilha descoberta, pálida de inverno, vista pela janela de uma limusine acelerando.
Ele entrou no vestiário, ligou a sauna e tirou a roupa. Nu, contemplou seu reflexo num espelho de corpo inteiro. A visão o deprimiu. Os poucos músculos adquiridos na puberdade fazia muito tempo haviam se transformado em gordura. Seu peitoral caía como os seios de uma velha sobre sua barriga colossal. Suas pernas, compridas e sem pelos, pareciam sofrer com a carga. Só seu cabelo o salvava da feiura inconteste. Era brilhante, grosso e apenas levemente grisalho.
Ele entrou na piscina e, como um peixe-boi, nadou várias voltas.
Depois, mais uma vez diante do espelho, pensou detectar uma leve melhoria em seu tônus muscular. No armário havia uma muda de roupas: calças de lã, um blazer, uma camisa social listrada, roupas de baixo, mocassins, um cinto. Depois de passar desodorante nas axilas e um pente no cabelo, ele se vestiu.
A porta de vidro pesada da sauna estava opaca com o vapor. Ninguém, nem mesmo o grudento al-Omari, ousaria olhar lá dentro. Abdullah trancou a porta exterior do vestiário antes de abrir o que antes fora um armário para roupões e toalhas de piscina. Tornara-se uma espécie de vestíbulo. Dentro, havia outra porta. Na parede, um teclado. Abdullah digitou o código de quatro dígitos. A tranca se abriu com um baque suave.
64
EATON SQUARE, BELGRAVIA
A porta contígua do outro lado da parede já estava aberta. À meia-luz da passagem, estava Konstantin Dragunov. Ele mirou Abdullah por um longo tempo. Não havia nada deferente em seu olhar direto. O saudita entendia que o russo tinha direito a sua insolência. Se não fosse por Dragunov e seus amigos no Kremlin, Khalid ainda seria o próximo na linha sucessória do trono, e Abdullah, só mais um príncipe falido de meia-idade do lado errado da árvore genealógica.
Por fim, Dragunov abaixou levemente a cabeça. O gesto não era nada genuíno.
— Vossa Alteza Real.
— Konstantin. Que bom vê-lo novamente.
Abdullah aceitou a mão esticada. Fazia vários meses desde o último encontro dos dois. Naquela ocasião, o monarca tinha informado ao russo que seu sobrinho Khalid contratara os serviços de Gabriel Allon, chefe da inteligência israelense, para encontrar sua filha sequestrada.
O russo soltou a mão de seu interlocutor.
— Vi a coletiva conjunta com Lancaster. Devo dizer, pareceu muito tensa.
— E foi. A reunião que a precedeu também.
— Fico surpreso. — Dragunov olhou seu grande relógio de pulso de ouro. — Quanto tempo pode ficar?
— Meia hora. Nem um minuto a mais.
— Vamos subir?
— E os repórteres e fotógrafos na praça?
— As venezianas e cortinas estão fechadas.
— E sua equipe?
— Só uma garota. — Dragunov deu um sorriso de predador. — Espere só até vê-la.
Eles subiram dois lances de escada até a grande sala de estar dupla. Era mobiliada como um clube de cavalheiros de Pall Mall e cheia de quadros de equinos, caninos e homens com perucas brancas. Uma empregada com um vestido preto curto estava colocando bandejas de canapés numa mesa
baixa. Ela tinha uns 35 anos e era bem bonita. Abdullah se perguntou onde Dragunov as encontrava.
— Algo para beber? — perguntou o russo. — Suco? Água mineral?
Chá?
— Suco.
— De quê?
— De uvas francesas e que solte bolhas quando colocado numa taça alta e esguia.
— Acho que tenho uma garrafa de Louis Roederer Cristal na adega.
Abdullah sorriu.
— Bem, vai ter que servir.
Com um aceno de cabeça, a mulher se retirou.
Abdullah se sentou e dispensou a oferta de comida de Dragunov.
— Eles me encheram de comida em Downing Street. A segunda rodada começa às oito.
— Talvez seja melhor que a primeira.
— Duvido bastante.
— Você antecipava uma recepção mais calorosa?
— Me disseram para esperar isso.
— Quem?
Abdullah sentiu-se num interrogatório.
— Os canais de sempre, Konstantin. Que diferença faz?
Um momento se passou. Então, o russo disse, em voz baixa:
— Não haveria reprimendas se você tivesse ido a Moscou em vez de Londres.
— Se minha primeira viagem ao exterior como príncipe herdeiro tivesse sido a Moscou, mandaria um sinal perigoso aos americanos e aos meus rivais na Casa de Saud. É melhor esperar até eu ser rei. Assim, ninguém vai poder me contestar.
— Seja como for, nosso amigo mútuo no Kremlin gostaria de um sinal claro de suas intenções.
Assim começa, pensou Abdullah. A pressão para cumprir sua parte do acordo. Cauteloso, ele perguntou:
— Que tipo de sinal?
— Algo que deixe absolutamente claro que você não planeja seguir sozinho depois de virar líder de uma família que vale mais de um trilhão de dólares. — O sorriso de Dragunov era forçado. — Com uma riqueza
assim, pode ficar tentado a esquecer quem o ajudou quando ninguém mais se interessava por você. Lembre, Abdullah, meu presidente investiu muito em você. Ele espera um belo retorno.
— E vai ter — garantiu Abdullah. — Depois que eu virar rei.
— Enquanto isso, ele gostaria de um gesto de boa vontade.
— O que tem em mente?
— Um acordo para investir cem bilhões de dólares do fundo de riqueza soberana da Arábia Saudita em vários projetos russos de importância fundamental para o Kremlin.
— E para você também, suspeito. — Sem receber resposta, Abdullah complementou: — Isso está me parecendo uma extorsão.
— Está?
Abdullah fingiu deliberar.
— Diga para seu presidente que vou despachar uma delegação a Moscou na semana que vem.
Dragunov juntou as mãos num gesto de alegria.
— Que ótima notícia.
O saudita, de repente, ficou sedento por álcool. Olhou por cima do ombro. Onde diabos estava a garota? Quando se virou de novo, Dragunov estava devorando um canapé de caviar. Um único ovo negro tinha se alojado como um carrapato em seu lábio inferior proeminente.
— Por que não me disse que ia tentar matá-lo?
— Matar quem?
— Allon.
O russo passou as costas da mão pela boca, desalojando o pontinho de caviar.
— A decisão foi tomada pelo Kremlin e o SVR. Não tive nada a ver com isso.
— Você deveria ter matado Khalid e a menina como concordamos e deixado Allon de fora disso.
— Era preciso dar um jeito nele.
— Mas vocês não dera um jeito nele, Konstantin. Allon sobreviveu.
Dragunov balançou a mão em desdém.
— De que você tem tanto medo?
— De Gabriel Allon.
— Não há nada a temer.
— Mesmo?
— Fomos nós que tentamos matá-lo, não você.
— Duvido que ele vá ver alguma diferença.
— Você é príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Abdullah. Logo, será rei.
Ninguém, nem Gabriel Allon, pode tocar em você agora.
Abdullah olhou para trás. Onde diabos estava a garota?
O SVR tinha treinado Anna Yurasova em todos os tipos de armamentos —
armas de fogo, facas, explosivos —, mas ela jamais havia ensaiado abrir uma garrafa de champanhe Louis Roederer sob condições de estresse operacional.
Quando a rolha finalmente pulou com um estouro, vários mililitros caros do líquido espumoso caíram no balcão. Ignorando a sujeira, Anna pegou no bolso de seu avental de empregada uma pipeta de Pasteur e uma fina ampola de vidro. O líquido claro dentro era uma das substâncias mais perigosas do mundo. O Centro de Moscou havia garantido a Anna que era inofensiva enquanto estivesse no frasco. Quando ela removesse a tampa, porém, o líquido imediatamente emitiria uma fonte invisível de radiação alfa letal. Anna deveria trabalhar rápido, mas com extremo cuidado. Ela não podia ingerir ou tocar a substância, nem inalar seus gases.
No balcão, havia uma bandeja com duas taças de champanhe de cristal.
As mãos dela tremiam ao girar a tampa de metal da ampola. Com a pipeta de Pasteur, tirou alguns mililitros do líquido e esguichou em uma das taças. Não tinha cheiro algum. O Centro de Moscou prometera que também não teria gosto.
Anna rosqueou a tampa da ampola e jogou no bolso de seu avental, com a pipeta. Então, encheu duas taças com o champanhe e, com a mão esquerda, levantou a bandeja. A contaminada estava na direita. Ela quase conseguia sentir a radiação subindo com a efervescência. Abriu uma das portas vaivém e pegou alguns guardanapos de coquetel de linho do bar. Ao se aproximar da sala de estar, ouviu o saudita falando um nome que fez seu coração dar uma pirueta. Colocou o guardanapo em frente a Abdullah e, em cima do tecido, a taça contaminada. Dragunov, ela serviu diretamente, de sua mão direita para a dele.
O oligarca levantou a taça com formalidade.
— Ao futuro — disse, e bebeu.
O saudita hesitou.
— Sabe — falou, depois de um momento —, não toco numa gota de álcool desde a noite em que voltei à Arábia Saudita para virar príncipe herdeiro.
— Ela pode pegar outra coisa, se preferir.
— Está maluco? — O saudita virou a taça inteira de champanhe num só gole. — Tem mais? Acho que não consigo aguentar o jantar em Downing Street sem.
Anna pegou de volta a taça contaminada e a devolveu à cozinha. O
saudita acabara de consumir toxina radioativa suficiente para intoxicar todo mundo na Grande Londres. Não havia medicação ou tratamento de emergência capaz de impedir a inevitável destruição de suas células e seus órgãos. Ele já estava morrendo.
Mesmo assim, Anna decidiu dar mais uma dose.
Dessa vez, não se deu ao trabalho de usar a pipeta. Derramou a toxina líquida restante diretamente na taça e adicionou champanhe. Bolhas dançaram por cima da borda. Anna imaginou um Vesúvio de radiação.
Na sala de estar, ela serviu a bebida ao saudita e, com um sorriso, saiu apressada. Voltando à cozinha, tirou o avental e colocou dentro da lata de lixo, junto com a ampola vazia e a pipeta. A inglesa tinha ordenado que Anna não deixasse itens contaminados para trás ao fugir. Era uma ordem que ela não tinha intenção de obedecer.
Cercada por uma névoa invisível de radiação, ela checou o horário no celular. 16h42. Na sala de estar do andar de cima, Vossa Alteza Real Príncipe Abdullah bin Abdulaziz Al Saud já estava morrendo. Anna, com as mãos tremendo, acendeu um cigarro e esperou que ele fosse embora.
65
EATON SQUARE, BELGRAVIA
Konstantin Dragunov saiu de sua casa às 17h22. Como o canto noroeste da praça estava fechado, ele foi obrigado a caminhar uma curta distância até Cliveden Place, onde o motorista em sua limusine Mercedes Maybach o aguardava. Segurando uma pasta e com um sobretudo dobrado no braço, ele entrou no banco de trás. O veículo acelerou para leste, seguida por um observador do Escritório numa motocicleta BMW.
A mulher emergiu sete minutos depois. No fim dos degraus, ela virou-se para a esquerda e passou pela casa em que Vossa Alteza Real Príncipe Abdullah bin Abdulaziz Al Saud deveria estar descansando antes do jantar em Downing Street às oito da noite. Os seis oficiais do Comando de Proteção em frente à residência a observaram com atenção quando ela passou. Christopher Keller, ainda abrigado na van, também, embora o interesse dele na mulher fosse de natureza bem diferente.
Ela passou pelo cordão de isolamento e, seguida por Eli Lavon, caminhou diretamente para o estacionamento Q-Park na Kinnerton Street.
Lá, aguentou uma espera de dez minutos pelo Renault Clio. Quando o carro finalmente chegou, ela se dirigiu para norte, entrando no trânsito de fim da tarde em Londres. Alguns minutos após as 18 horas, ela passou pela entrada da estação de metrô Swiss Cottage, na Finchley Road. Lavon e Mikhail Abramov estavam atrás dela no Ford Fiesta. A equipe anglo-israelense em Hatch End a seguia pelas câmeras de segurança.
Os dois líderes das equipes continuavam em locais separados. Graham Seymour, em Downing Street; Gabriel, na casa segura de Notting Hill.
Estavam conectados por uma linha telefônica segura. A ligação tinha sido iniciada por Gabriel às 15h42, momento em que o príncipe herdeiro Abdullah chegara em sua casa em Eaton Square. Não o tinham visto desde então. Também não viam nenhuma evidência que sugerisse que Konstantin Dragunov ou a agente do SVR tivessem estado na presença de Abdullah.
— Então, por que estão fugindo? — questionou Gabriel.
— Parece que decidiram abortar.
— Por que fariam isso?
— Talvez tenham notado nossa vigilância — sugeriu Seymour.
— Ou talvez Abdullah tenha dado o cano.
— Ou talvez Abdullah já esteja morto — disse Gabriel —, e as duas pessoas que o mataram estejam correndo para escapar.
Houve silêncio na linha. Finalmente, Seymour disse:
— Se Abdullah não sair da porta como marcado às 19h45, vou ligar para a delegada da Polícia Metropolitana e ordenar a prisão de Dragunov e da mulher.
— Vai ser tarde demais às 19h45. Precisamos saber se Abdullah ainda está vivo.
— Não posso exatamente pedir para o primeiro-ministro ligar para ele.
Já o envolvi demais até aqui.
— Então, acho que vamos ter que mandar outra pessoa entrar na casa para checar.
— Quem?
Gabriel desligou o telefone.
66
EATON SQUARE, BELGRAVIA
Nigel Whitcombe dirigiu de Notting Hill até Belgravia em exatamente oito minutos. Gabriel e ele ficaram no carro enquanto Khalid se aproximava do cordão de isolamento na Eaton Square. Foi Christopher Keller quem o levou até a porta da frente da casa de número 71.
A campainha atraiu Marwan al-Omari, cortesão principal. Estava com vestimentas tradicionais sauditas. Fixou um olhar fulminante em Khalid.
— O que está fazendo aqui?
— Vim ver meu tio.
— Posso garantir que seu tio não deseja vê-lo.
Al-Omari tentou fechar a porta, mas Khalid o impediu.
— Ouça, Marwan. Eu sou um Al Saud, e você é apenas um mordomo supervalorizado. Agora, leve-me ao meu tio antes que eu...
— Antes que o quê? — Al-Omari conseguiu dar um sorriso. — Ainda fazendo ameaças, Khalid? Seria de se imaginar que já tivesse aprendido a lição.
— Ainda sou filho de um rei. E você, Marwan, é bosta de camelo.
Agora, saia da minha frente.
O sorriso de Al-Omari desapareceu.
— Seu tio deixou instruções estritas para não ser perturbado até as sete e meia.
— Eu não estaria aqui se não fosse uma emergência.
Al-Omari manteve sua posição por um momento mais antes de finalmente dar um passo para o lado. Khalid entrou apressado no hall de entrada, mas o cortesão pegou o braço de Keller quando este tentou segui-lo.
— Ele, não.
Keller foi para a praça sem dizer nada enquanto o sobrinho, seguido por al-Omari, corria pelas escadas até a suíte de Abdullah. A porta exterior estava fechada. A batida anêmica de al-Omari mal se ouviu.
— Vossa Alteza Real?
Quando não houve resposta, Khalid empurrou o cortesão e bateu na porta com a palma da mão.
— Abdullah? Abdullah? Está aí?
Recebido pelo silêncio, ele agarrou a maçaneta e a balançou. A porta pesada era sólida como um navio.
Ele olhou para al-Omari.
— Saia da frente.
— O que você vai fazer?
Khalid levantou a perna direita e enfiou a sola do sapato contra a porta.
Houve o som de madeira lascando, mas ela segurou. O segundo golpe soltou a maçaneta, e o terceiro espatifou o batente da porta. Também quebrou vários ossos do pé de Khalid, ele tinha certeza.
Mancando com dor, ele entrou na magnífica suíte. A sala de estar estava desocupada, bem como o quarto. Khalid gritou o nome de Abdullah, mas continuou sem resposta.
— Ele deve estar se banhando — afligiu-se al-Omari. — Não podemos incomodá-lo de forma alguma.
A porta do banheiro também estava fechada, mas a maçaneta cedeu ao toque de Khalid. Abdullah não estava na banheira nem no chuveiro.
Também não estava se arrumando na pia. Havia uma última porta. A porta do vaso sanitário. Khalid não se deu ao trabalho de bater.
— Meu Deus — sussurrou al-Omari.
67
DOWNING STREET, 10
Graham Seymour ligou para Stella McEwan, delegada do Serviço de Polícia Metropolitano, às 18h42. Depois, durante o inevitável inquérito, muito se diria sobre a curta duração do telefonema, cinco minutos. Em nenhum ponto da conversa Seymour mencionou que estava na Sala Branca da Downing Street, 10, nem que o primeiro-ministro estava sentado ansioso ao seu lado.
— Uma equipe de assassinos do SVR? — perguntou McEwan.
— Mais uma — lamentou Seymour.
— Quem é o alvo?
— Não temos certeza. Supomos que seja alguém que entrou em conflito com o Kremlin, ou talvez um ex-oficial de inteligência russo vivendo aqui na Inglaterra com identidade falsa. Infelizmente, não posso dar muitos detalhes.
— E a equipe de assassinos?
— Identificamos três suspeitos. Uma mulher de trinta e poucos anos.
Está agora indo na direção leste na M25 num Renault Clio. — Seymour recitou a placa do carro. — Deve ser considerada armada e extremamente perigosa. Assegure-se de ter seus oficiais armados à disposição.
— Número dois?
— Está esperando pela mulher no Bedford House em Frinton. Achamos que planejam ir embora da Inglaterra hoje.
— Harwich fica logo ao lado.
— E a última balsa — completou Seymour — sai às 23 horas.
— Frinton é em Essex, o que significa que a polícia de Essex é a responsável.
— É uma questão de segurança nacional, Stella. Afirme sua autoridade.
E lide com ele com cuidado. Achamos que é ainda mais perigoso que a mulher.
— Vai levar algum tempo para colocarmos nossos agentes a postos. Se estiverem vigiando...
— Estamos.
Stella McEwan perguntou sobre o terceiro suspeito.
— Está prestes a embarcar num jato particular no Aeroporto London City — respondeu Seymour.
— Com destino a Moscou?
— Acreditamos que sim.
— Sabe o nome dele?
Seymour recitou.
— O oligarca?
— Konstantin Dragunov não é um oligarca comum, se é que isso existe.
— Não posso deter um amigo do presidente russo sem um mandado.
— Teste-o para agentes químicos e radiação, Stella. Com certeza, vai ter provas mais que suficientes para prendê-lo. Mas seja rápida.
Konstantin Dragunov não pode ter permissão de embarcar naquele avião.
— Tenho uma sensação de que você não está me contando tudo, Graham.
— Sou diretor-geral do Serviço Secreto de Inteligência. Por que você pensaria qualquer outra coisa? — Seymour cortou a ligação e olhou para Jonathan Lancaster. — Receio que as coisas vão ficar ainda mais interessantes.
— Mais? — Houve uma batida à porta. Era Geoffrey Sloane. Parecia mais pálido que nunca. — Algo errado, Geoffrey?
— Parece que o príncipe herdeiro está doente.
— Ele precisa ser levado para o hospital?
— Vossa Alteza Real deseja voltar imediatamente a Riad. Ele e sua delegação estão saindo da residência em Eaton Place agora.
Pensativo, Lancaster colocou a mão no queixo.
— Peça para o gabinete de imprensa redigir uma declaração. Assegure-se de que o tom está certo. Recuperação rápida, esperamos vê-lo no próximo G20, coisa e tal.
— Vou cuidar disso, primeiro-ministro.
Sloane saiu. Lancaster olhou para Seymour.
— A decisão dele de ir embora imediatamente foi um golpe de sorte.
— Sorte não teve nada a ver com isso.
— Como você fez isso?
— Khalid aconselhou o tio a voltar para casa para se tratar. Planeja acompanhá-lo.
— Bela dica — disse Lancaster.
O BlackBerry de Seymour apitou.
— O que foi agora?
Seymour mostrou a tela. A chamada era de Amanda Wallace, diretora-geral do MI5.
— Boa sorte — desejou Jonathan Lancaster, antes de deixar a sala em silêncio.
68
AEROPORTO LONDON CITY
Konstantin Dragunov ouviu as primeiras sirenes enquanto estava preso no trânsito da hora do rush na East India Dock Road. Instruiu Vadim, seu motorista, a ligar o rádio. O apresentador da Radio 4 parecia entediado.
O príncipe herdeiro Abdullah, da Arábia Saudita, ficou doente e não participará do jantar nesta noite em Downing Street como planejado. O
primeiro-ministro Jonathan Lancaster lhe desejou uma recuperação rápida...
— Já basta, Vadim.
O motorista desligou o rádio e virou à direita em Lower Lea Crossing.
A via os fez passar pelas docas da Companhia das Índias Orientais e pelas novas torres comerciais brilhantes de Leamouth Peninsula. O Aeroporto London City ficava a cerca de cinco quilômetros a leste, pela North Woolrich Road. Entrar no aeroporto exigia navegar por algumas rotatórias.
O trânsito fluía normalmente na primeira, mas a polícia bloqueara a segunda.
Um oficial de jaqueta verde-limão se aproximou da Maybach — com cuidado, pareceu a Dragunov — e bateu na janela de Vadim. O motorista a abaixou.
— Desculpe pela demora — disse o oficial —, mas infelizmente temos um problema de segurança.
— Que problema? — perguntou Dragunov, do banco traseiro.
— Uma ameaça de bomba. Deve ser falsa, mas não estamos deixando passageiros entrarem no terminal neste momento. Só os que voarão em aeronaves particulares têm permissão para passar.
— Pareço alguém que viaja de avião comercial?
— Nome, por favor?
— Dragunov. Konstantin Dragunov.
O oficial dirigiu Vadim à segunda rotatória. Ele imediatamente virou à esquerda no estacionamento do London Jet Centre, operadora fixa do aeroporto.
Dragunov xingou baixinho.
O estacionamento estava lotado de veículos e funcionários da Polícia Metropolitana, inclusive vários oficiais técnicos do SCO19, o Comando Especialista de Armas de Fogo. Quatro oficiais imediatamente cercaram a Maybach, armas em punho. Um quinto bateu à janela de Dragunov e o ordenou que saísse.
— O que significa isso? — indagou o russo.
O oficial do SCO19 colocou sua Heckler & Koch G36 diretamente na cabeça de Dragunov.
— Agora!
Dragunov destrancou a porta. O oficial a abriu com força e arrancou o russo do banco de trás.
— Sou cidadão da Federação Russa e amigo pessoal do presidente.
— Sinto muito por você.
— Você não tem direito de me prender.
— Não estou prendendo.
Uma tenda estranha tinha sido montada em frente ao Jet Centre. O
oficial do SCO19 tirou o telefone de Dragunov antes de empurrá-lo pela entrada. Dentro, havia quatro técnicos vestidos com trajes de proteção a radiação. Um o examinou com um pequeno scanner, passando-o pelo torso e os membros dele. Quando o técnico analisou a mão direita de Dragunov, deu um passo para trás, assustado.
— O que foi? — perguntou o oficial do SCO19.
— Deflexão de escala total.
— O que isso quer dizer?
— Quer dizer que ele está completamente radioativo. — O técnico passou o scanner pelo oficial. — E você também.
Naquele mesmo momento, Anna Yurasova já estava começando a sentir os efeitos da quantidade titânica de radiação à qual tinha sido exposta dentro da casa de Konstantin Dragunov em Belgravia. A cabeça dela doía, ela tremia e estava muito nauseada. Duas vezes, quase parou no acostamento da M25 para vomitar, mas a urgência de esvaziar o conteúdo do estômago tinha passado. Enquanto ela se aproximava da saída para uma cidade chamada Potters Bar, a sensação pareceu retornar. Só por isso, ela ficou aliviada de ver o que parecia um acidente de trânsito à sua frente.
As três faixas da direita estavam bloqueadas, e um oficial com uma lanterna de ponta vermelha estava direcionando todo o trânsito para a da esquerda. Quando Anna passou por ele, o olhar dos dois se encontraram no escuro.
O trânsito parou. Outra onda de náusea a tomou. Ela tocou a testa.
Estava pingando de suor.
De novo, a onda recuou. Anna, de repente, foi tomada por um frio intenso. Ligou o aquecedor e pegou sua bolsa no banco do carona. Levou um momento tateando até encontrar o telefone e outro para discar o número de Nikolai.
Ele atendeu na mesma hora.
— Cadê você?
Ela disse onde estava.
— Ouviu o noticiário?
Não tinha ouvido. Estava ocupada demais tentando não vomitar.
— Abdullah cancelou o jantar. Aparentemente, está um pouco indisposto.
— Eu também.
— Do que está falando?
— Devo ter me exposto.
— Você bebeu a toxina?
— Não seja idiota.
— Então, vai passar — falou Nikolai. — Igual a uma gripe.
Outra onda a tomou. Dessa vez, Anna abriu a porta e vomitou violentamente. A convulsão foi tão poderosa que borrou sua visão. Quando voltou a enxergar, viu vários homens com equipamentos táticos cercando seu carro, armas empunhadas.
Ela colocou o telefone na coxa com o viva-voz ligado.
— Nikolai?
— Não me chame por esse nome.
— Não importa mais, Nikolai.
Ela esticou o braço até embaixo do banco do carona, e colocou a mão em volta do cabo da Stechkin. Conseguiu dar um único tiro antes de as janelas do carro explodirem num furacão de disparos na sua direção.
É a morte, pensou. Morte, morte, morte...
O tiroteio durou dois ou três segundos, no máximo. Quando acabou, Mikhail Abramov abriu com força a porta do Ford Fiesta e correu pela lateral da pista até o Renault estilhaçado. A mulher estava pendurada pela porta aberta do lado do motorista, suspensa pelo cinto de segurança, uma arma na mão. Rádios policiais estalavam, passageiros dos carros ao redor gritavam aterrorizados. E, em algum lugar, pensou Mikhail, um homem gritava em russo.
Está aí, Anna? O que está havendo? Consegue me ouvir, Anna?
De repente, dois oficiais do SCO19 deram meia-volta e apontaram os fuzis HK G36 para Mikhail. De mãos levantadas, ele andou de ré lentamente e voltou ao Ford.
— Ela está morta? — perguntou Lavon.
— Com certeza. E o amigo dela no hotel em Frinton sabe.
— Como?
— Ela estava ao telefone com ele quando aconteceu.
Lavon digitou uma mensagem para Gabriel. A resposta foi instantânea.
— O que diz? — perguntou Mikhail.
— Ele acabou de ordenar que Sarah saia imediatamente do hotel. Quer que a gente vá embora de Essex o mais rápido possível.
— É mesmo? — Atrás deles, um coro de buzinas subiu na noite. O
trânsito estava paralisado. — Melhor dizer a ele que vamos ficar um tempo aqui.
69
FRINTON-ON-SEA, ESSEX
Nikolai Azarov tinha permitido que a conexão com o telefone de Anna ficasse ativa por mais tempo do que deveria — cinco minutos e doze segundos, de acordo com o cronômetro de seu próprio aparelho. Ele tinha ouvido a explosão de tiros de arma automática, o som do vidro estilhaçando, os gritos agoniados de Anna. O que se seguiu foram de fato os primeiros momentos caóticos de uma investigação de cena de crime altamente incomum. Houve uma declaração de óbito, seguida um momento depois por um grito de alerta de algo chamado deflexão de escala total, um termo com o qual Nikolai não estava familiarizado. A mesma voz instruiu os oficiais a se afastarem do veículo até ele estar seguro. Um deles, porém, ficou perto o bastante para ver o telefone de Anna no chão do carro. Também notou que havia uma chamada em progresso. Pediu permissão de um superior para pegar o aparelho, mas o superior recusou.
— Se ela tocou no telefone — gritou —, essa porcaria está expelindo radiação.
Foi ali, cinco minutos após a morte de Anna, que Nikolai terminou a ligação. Não, pensou, com raiva. Não a morte de Anna, o assassinato.
Nikolai era bem versado nas regras e táticas da Polícia Metropolitana e das várias forças regionais e locais. Oficiais comuns não carregavam armas, só oficiais com autorização para armas de fogo ou os especialistas do SCO19. Os primeiros, em geral, não levavam o tipo de fuzil automático que Nikolai tinha ouvido pelo telefone. Só oficiais do SCO19 tinham esse armamento. Sua presença na M25 sugeria que estavam esperando por Anna. A presença de uma equipe de materiais perigosos com um aparelho de detecção de radiação também. Mas como a Polícia Metropolitana sabia que Anna estaria contaminada? Obviamente, concluiu Nikolai, ela estava sendo vigiada pelos britânicos.
Mas, se fosse o caso, por que não tinham tentado prendê-lo? No momento, ele estava tomando chá em sua mesa de sempre no bar do hotel.
Tinha feito check-out do quarto à tarde. Seu carro estava esperando no meio-fio da esplanada. Sua pequena mala de mão encontrava-se aos
cuidados do porteiro. A bagagem não continha nada de valor operacional.
A Makarov 9mm de Nikolai estava descansando confortavelmente apoiada em sua lombar. No bolso da frente de sua calça ficava o frasco extra de toxina radioativa que o Centro de Moscou tinha insistido que ele levasse para a Inglaterra. Garantiram que a radiação não podia escapar do frasco.
Depois de ouvir a voz do técnico de materiais perigosos, ele já não tinha certeza disso.
Deflexão de escala total...
Ele olhou para a televisão acima do bar. Estava ligada na Sky News.
Aparentemente, Khalid bin Mohammed tinha feito uma visita à casa de seu tio em Eaton Square antes de Downing Street anunciar o cancelamento do jantar da noite. O evento era importante por outro motivo; era a primeira vez que KBM era visto em público desde a abdicação. A Sky News, de algum jeito, tinha obtido um vídeo da chegada dele. Com roupas ocidentais e a cabeça descoberta, mal se podia reconhecê-lo. O olhar de Nikolai, porém, foi atraído ao agente de segurança britânico caminhando ao lado dele. Nikolai já tinha o visto antes, estava certo disso.
Ele pegou seu telefone. A Sky News tinha postado a matéria no site, junto com o vídeo. Nikolai viu três vezes. Não estava enganado.
São recém-casados. Aparentemente, foi coisa de momento...
Ele desligou seu telefone e removeu o chip. Depois, foi para o terraço que dava vista para a esplanada. Estava escuro, tinha parado de ventar. Ele não conseguia ver sinais de vigilância, mas sabia que estava sendo observado. O carro dele também, estacionado em frente à entrada do hotel.
De repente, outro carro parou atrás. Um Jaguar F-Type conversível.
Vermelho vivo. Nikolai sorriu.
Subindo ao quarto, Sarah enfiou o Walther PPK na bolsa e foi para o corredor. Seu telefone tocou enquanto ela esperava pelo elevador.
— Cadê você? — perguntou Keller, ansioso.
Ela explicou.
— Quanto tempo leva para sair de um hotel?
— Estou tentando.
— Tente mais, Sarah. E mais rápido.
O elevador chegou. Ela colocou a mala dentro.
— Ainda aí? — perguntou Sarah.
— Ainda aqui.
— Tem planos para hoje à noite?
— Estava pensando num jantar mais tarde.
— Algum lugar especial?
— Na minha casa.
— Quer companhia?
— Adoraria.
O elevador desacelerou até parar, e as portas se abriram com um chiado. Passando pela recepção, Sarah despediu-se ruidosamente de Margaret, chefe de serviços aos hóspedes, e Evans, o concierge. No bar do hotel, viu Keller passando na tela da televisão com Khalid ao seu lado. O
assassino russo estava se levantando, como se estivesse com pressa de ir embora. Sarah considerou dar meia-volta e refazer seus passos até o elevador. Em vez disso, acelerou o ritmo. Não eram mais de vinte passos até a entrada, mas ele parou ao seu lado e pressionou algo duro na base da coluna dela. Não havia como imaginar que fosse nada além de uma arma.
Com a mão esquerda, ele agarrou o braço dela e sorriu.
— A não ser que queira passar o resto da vida numa cadeira de rodas —
disse ele, em voz baixa —, sugiro que continue andando.
Sarah apertou com força o telefone.
— Ainda aí?
— Não se preocupe — respondeu Keller. — Ainda aqui.
70
FRINTON-ON-SEA, ESSEX
Lá fora, o russo pegou o telefone da mão de Sarah e cortou a ligação. Os dois carros estavam na rua, observados por um manobrista. Ele ficou confuso com a cena que testemunhava. Apenas 48 horas antes, Sarah tinha chegado ao hotel como recém-casada. E de repente saía com outro homem.
O manobrista pegou a mala de Sarah.
— Qual carro? — perguntou.
— O da senhora Edgerton — respondeu o russo com um sotaque britânico nítido.
Sarah conseguiu disfarçar sua surpresa. Claramente, o russo estava ciente de sua presença no hotel havia algum tempo. Ele aceitou as chaves do manobrista e o instruiu a colocar a mala da “senhora Edgerton” no porta-malas do Jaguar. Sarah tentou ficar com a bolsa, mas o russo a arrancou de seu ombro e jogou no porta-malas também. Ela caiu com um baque incomumente pesado.
O sobretudo do russo estava dobrado sobre o braço direito dele. Com o esquerdo, ele fechou o porta-malas e abriu a porta do carona. Os olhos de Sarah escanearam a esplanada enquanto ela entrava. Em algum lugar lá perto havia quatro observadores do MI6, nenhum deles armado. Era imperativo que não a perdessem de vista.
O russo fechou a porta e foi por trás do carro até o lado do motorista, onde o manobrista ansiava por sua gorjeta. Nikolai deu a ele uma nota de dez libras antes de entrar atrás do volante e ligar o motor. A arma estava na mão esquerda dele, apontada para o quadril direito de Sarah. Quando se afastaram do meio-fio, ela olhou por cima do ombro e viu o manobrista correndo atrás deles.
O russo tinha esquecido sua mala.
Ele virou na Connaught Avenue e pisou fundo no acelerador. Um desfile de lojas passou pela janela de Sarah: Café 19, Allsorts Cookware, Caxton Books & Gallery. O russo continuava com o cano da arma no quadril dela.
Com a mão direita, segurava firme no volante. O olhar dele estava grudado no retrovisor.
— É melhor prestar atenção aonde está indo — disse Sarah.
— Quem são eles?
— Cidadãos britânicos inocentes tentando desfrutar de uma noite agradável numa comunidade à beira-mar.
O russo afundou a arma no quadril de Sarah.
— As duas pessoas na van atrás de nós. — O sotaque britânico tinha desaparecido. — Polícia de Essex? MI5? MI6?
— Não sei do que você está falando.
Ele colocou o cano da arma na lateral da cabeça dela.
— Estou dizendo, não sei quem são.
— E seu marido?
— Trabalha na City, em Londres.
— Onde ele está agora?
— No hotel, se perguntando onde eu estou.
— Eu o vi na televisão há alguns minutos.
— Impossível.
— Ele acompanhou Khalid à casa do tio na Eaton Square.
— Que Khalid?
Sarah não antecipou o golpe — uma coronhada, dois centímetros acima da orelha dela. A dor foi de outro mundo.
— Acabou de cometer o segundo maior erro da sua vida.
— Qual foi o primeiro?
— Amarrar uma bomba na filha de Khalid.
— Que bom que esclarecemos as coisas. — Ele desviou de um pedestre que atravessava a rua. — Para quem seu marido trabalha?
— Para o MI6.
— E você?
— Para a CIA.
Era uma inverdade, mas pequena. E faria o russo pensar duas vezes antes de matá-la.
— E as duas pessoas que estão me seguindo?
— SCO19.
— Está mentindo, senhora Edgerton.
— Se você acha...
— Se fossem do SCO19, teriam me matado no hotel.
Ele saiu da Connaught Avenue e dirigiu perigosamente rápido por uma área residencial tranquila. Depois de um momento, checou o retrovisor.
— Que pena.
— Conseguiu despistá-los?
Ele sorriu friamente.
— Não.
Nikolai acelerou pela Upper Fourth Avenue até o estacionamento da estação ferroviária de Frinton. Era um antigo prédio de tijolos, com um pórtico branco íngreme acima da entrada. Sarah se lembraria para sempre das flores — dois vasos de gerânios vermelhos e brancos pendurados em ganchos pela fachada.
Um trem deveria ter acabado de chegar, porque alguns passageiros estavam saindo para a noite agradável. Um ou dois olharam para o homem alto que saiu de um chamativo Jaguar F-Type, mas a maioria o ignorou.
Com agilidade, ele caminhou até a van Ford branca que o tinha seguido ao espaço confinado do estacionamento. Sarah gritou um alerta, mas foi inútil. O russo disparou quatro tiros pela janela do motorista e mais três pelo para-brisas.
— Caso esteja se perguntando — disse ele, quando voltou ao volante
—, guardei uma bala para você.
Da estação, ele foi para norte na Elm Tree Avenue. Parecia a Sarah que ele sabia exatamente para onde estava indo. Virou à direita na Walton Road e de novo na Coles Lane. A pista era ladeada por cercas-vivas e os levou a um pântano. O primeiro sinal de habitação humana era uma sala de segurança azul em forma de cubo na entrada de uma marina. Dentro, havia um único guarda. Apesar dos apelos de Sarah, o russo atirou nele com a última bala de sua arma. Depois, recarregou e atirou mais três vezes.
Calmamente, voltou ao Jaguar e dirigiu pela estrada de acesso à marina.
Uma parte de Sarah ficou aliviada por estar deserta. O russo tinha acabado de matar três pessoas em menos de cinco minutos. Quando estivessem no mar, não haveria mais ninguém para ser morto, exceto ela.
71
ESSEX–AEROPORTO LONDON CITY
Unidades da Polícia de Essex responderam a relatos de um tiroteio na estação ferroviária de Frinton-on-Sea às 19h26. Lá, descobriram duas vítimas. Uma tinha sido baleada quatro vezes; a outra, três. Dois homens com ar perturbado tentavam desesperadamente ressuscitá-las.
Testemunhas traumatizadas descreveram o atirador como um homem alto, bem vestido, dirigindo um Jaguar conversível vermelho vivo. Havia uma mulher no banco do passageiro. Ela tinha gritado durante todo o incidente.
Nos Estados Unidos, onde as armas de fogo são abundantes e a violência armada, epidêmica, os policiais talvez tivessem atribuído as mortes, inicialmente, a uma briga de trânsito. As autoridades em Essex, porém, não fizeram tal suposição. Com ajuda da Polícia Metropolitana —
e dos homens perturbados —, estabeleceu-se que o atirador era agente de inteligência russa. A mulher não era sua cúmplice, e sim, sua refém. A Polícia de Essex não recebeu informação sobre a origem profissional dela, só se sabia que era americana.
Apesar de uma busca frenética pelo russo e pela mulher, mais de noventa minutos se passariam antes de dois policiais ligarem para a marina localizada no fim da Coles Lane. O guarda no portão estava morto, baleado quatro vezes à queima-roupa, e o Jaguar vermelho vivo estava estacionado de qualquer jeito em frente ao escritório da marina, que tinha sido invadido e saqueado. Com ajuda do sistema de vídeo do local, a polícia determinou que o russo havia roubado um iate Bavaria 27 Sport de propriedade de um empresário local. A embarcação tinha dois motores Volvo-Penta e um tanque de combustíveis de 147 galões, que o russo encheu antes de sair para alto-mar. Com só 29 pés, o Bavaria fora construído para navegar no porto e na costa. Mas, com um marinheiro experiente ao leme, era mais do que capaz de chegar ao continente europeu em poucas horas.
Embora os dois policiais não soubessem, o guarda morto e o iate desaparecido eram só uma pequena parte de uma crise diplomática e de segurança nacional que se desdobrava rapidamente. Os elementos dessa crise incluíam uma agente russa morta na rodovia M25 e um oligarca
russo preso numa tenda no Aeroporto London City porque era radioativo demais para sair dali.
Às oito da noite, o primeiro-ministro Lancaster reuniu o COBRA, grupo sênior de administração de crises da Inglaterra. Eles se encontraram, como sempre, na sala de reunião A do gabinete. Foi uma reunião conflituosa desde o início. Amanda Wallace, diretora-geral do MI5, ficou irada de não ter sido informada da presença de uma equipe russa de assassinos em solo britânico. Graham Seymour, que tinha acabado de perder dois oficiais, não estava a fim de uma querela intestina. O MI6 descobrira sobre os agentes russos, disse, como parte de uma operação de contrainteligência cujo alvo era o SVR. Seymour havia informado o primeiro-ministro e a Polícia Metropolitana sobre os russos depois de confirmar que tinham de fato chegado à Inglaterra. Em resumo, tinha feito tudo de acordo com as regras.
Curiosamente, o registro oficial da reunião não continha uma única referência ao príncipe herdeiro Abdullah — nem à possibilidade de haver uma conexão entre seu mal-estar repentino e a equipe de assassinos russa.
Graham Seymour, por sua vez, não entregou o ouro. O primeiro-ministro, aliás, também não.
Às nove da noite, porém, Lancaster, novamente, se pôs diante das câmeras em frente ao número 10, dessa vez para informar o público britânico sobre os acontecimentos extraordinários na Grande Londres e na cidade de veraneio de Frinton-on-Sea, em Essex. Pouco do que disse era verdade, mas evitou contar mentiras diretas. A maioria era omissão. Não falou nada, por exemplo, sobre um guarda morto numa marina ao longo do rio Twizzle, um iate Bavaria 27 roubado ou uma refém americana que já tinha trabalhado para a CIA.
Lancaster também não viu motivo para mencionar que tinha dado a Gabriel Allon, chefe da inteligência israelense, ampla liberdade para encontrar a mulher desaparecida. Às 21h15, Gabriel chegou ao Aeroporto London City acompanhado de dois de seus agentes mais fiéis e de um oficial do MI6 chamado Christopher Keller. Um Gulfstream G550 o aguardava na pista. Por enquanto, sem destino.
72
AEROPORTO LONDON CITY
Um oficial da Polícia Metropolitana estava de sentinela em frente à entrada do London Jet Centre. Ele puxou a manga de seu traje de proteção volumoso quando Gabriel se aproximou.
— Tem certeza de que não quer um desses? — perguntou através da máscara protetora transparente.
Gabriel balançou a cabeça.
— Pode arruinar minha imagem.
— Melhor que a alternativa.
— Quão ruim é a situação?
— Um pouco pior que Hiroshima, mas não muito.
— Quanto tempo é seguro ficar na presença dele?
— Dez minutos não vão matar. Vinte, talvez.
Gabriel entrou. A equipe tinha sido evacuada. No saguão de embarque, um homem grisalho de terno estava sentado no fim de uma mesa retangular. Podia parecer um usuário típico de um avião particular se não fossem os quatro oficiais fortemente armados vestindo trajes de proteção num semicírculo ao seu redor. Gabriel se sentou do lado oposto da mesa, o mais longe possível do homem, e marcou o horário em seu relógio de pulso. Eram 21h22.
Dez minutos não vão matar. Vinte, talvez...
O homem estudava as próprias mãos, dobradas na mesa à sua frente.
Depois de muito tempo, ergueu o olhar. Por um instante, pareceu aliviado por alguém ter ousado entrar com roupas normais. De repente, sua expressão mudou. Era o mesmo olhar que Gabriel tinha visto no rosto de Hanifa Khoury no apartamento seguro em Berlim.
— Olá, Konstantin. Não me leve a mal, mas você está com uma cara péssima.
Gabriel olhou para os oficiais do SCO19 e, com um movimento de olhos, os instruiu a sair do salão. Um momento se passou. Então, os quatro foram embora em fila.
Konstantin Dragunov observou a demonstração de autoridade de Gabriel com alarme evidente.
— Imagino que você seja o motivo de eu estar aqui.
— Você está aqui porque é um rojão de radioatividade. — Gabriel hesitou, antes de completar: — E a mulher também.
— Onde ela está?
— Numa situação parecida com a sua. Você, porém, está num apuro muito mais sério.
— Eu não fiz nada.
— Então, por que está exalando radiação? E por que sua casa chique em Belgravia é uma zona de desastre nuclear? As equipes de materiais perigosos estão trabalhando em turnos de quinze minutos para evitar superexposição. Um técnico se recusou a entrar de novo, de tão ruim. Sua sala de estar está um pesadelo, mas a cozinha encontra-se pior ainda. O
balcão em que ela serviu o champanhe está igual a Fukushima, e a lata de lixo em que jogou o frasco e a pipeta quase quebrou os scanners. O mesmo aconteceu com a taça de champanhe vazia de Abdullah, mas a sua também não estava nada boa. — Gabriel adotou um tom de confidências. — É de se pensar.
— Sobre o quê?
— Se seu bom amigo, o czar, estava tentando matar você também.
— Por que ele faria isso?
— Porque lhe confiou vários bilhões de dólares para transformar Abdullah num fantoche do Kremlin. E só o que o czar conseguiu por esse dinheiro foi um ativo do MI6. — Gabriel sorriu. — Ou foi o que ele pensou.
— Ele não é agente britânico?
— Abdullah? — Gabriel balançou a cabeça em negação. — Não seja tolo.
O rosto de Dragunov se acendeu de raiva.
— Desgraçado.
— Não adianta me elogiar, Konnie.
— O que eu fiz para você?
— Disse para o czar que Khalid me pediu para encontrar a filha dele, e seu chefe usou a oportunidade para tentar me matar. Se eu não tivesse percebido a bomba embaixo do casaco de Reema naquela noite, estaria morto.
— Talvez devesse ter tentado salvá-la. Sua consciência estaria mais tranquila.
Gabriel se levantou lentamente, caminhou até o outro lado da mesa e, com toda a força que conseguiu reunir, enfiou o punho na cara de Konstantin Dragunov. O russo tombou no chão do salão. Gabriel ficou surpreso de ver a cabeça dele ainda presa no pescoço.
— Quem planejou, Konstantin?
Por um momento, Dragunov não foi capaz de falar. Finalmente, rosnou:
— Planejou o quê?
— O assassinato de Abdullah.
O russo não respondeu.
— Preciso lembrá-lo de sua situação atual? Você vai passar o resto da vida numa prisão britânica. Acho que vai ver que é bem menos luxuosa que Eaton Square.
— O presidente nunca vai permitir.
— Ele não vai estar em posição de ajudar. Aliás, se eu tivesse que chutar, o governo britânico vai emitir um mandado de prisão contra ele.
— E se eu der o nome do oficial do SVR que executou a operação? Que diferença faria?
— Sua cooperação não será esquecida.
— Desde quando você fala pelo governo britânico?
— Eu falo por Reema. E se não me contar o que quero saber, vou bater em você de novo.
Gabriel olhou de novo seu relógio. 21h26... Segundo a Polícia de Essex, Sarah e o assassino russo tinham partido da marina na direção norte de Frinton às 19h49. Agora, estavam vários quilômetros mar adentro. A Guarda Costeira de Sua Majestade buscava a embarcação, por enquanto, sem sucesso.
— O que você ia dizendo, Konnie?
Dragunov ainda estava deitado no chão.
— Foi a inglesa.
— Rebecca Manning?
— Ela usa o nome do pai agora.
— Você a viu?
— Tive algumas reuniões com ela.
— Onde?
— Numa pequena datcha em Yasenevo. Tinha uma placa em frente, não consigo lembrar o que dizia.
— Comitê de Pesquisa Interbáltico?
— Sim, era isso. Como você sabe?
Gabriel não respondeu.
— Em circunstâncias normais, eu o ajudaria a levantar. Mas você entende se eu não fizer isso.
O russo se arrastou até a cadeira; o lado esquerdo do rosto já estava muito inchado, e seu olho começava a se fechar. No geral, pensou Gabriel, foi uma leve melhoria em sua aparência.
— Continue falando, Konnie.
— Não era uma operação complexa, na verdade. Só precisávamos pedir para Abdullah separar alguns minutos enquanto estivesse em Londres.
— Isso era trabalho seu?
Dragunov fez que sim.
— É assim que essas coisas funcionam. É sempre um amigo.
— Ele foi pela passagem no porão?
— Pela porta da frente é que não foi, não é?
— O que você deu a ele além de uma taça de Louis Roederer?
— Ele bebeu duas, na verdade.
— Ambas contaminadas?
Dragunov confirmou.
— Qual era a substância?
— Não me disseram.
— Talvez você devesse ter perguntado.
Dragunov não respondeu.
— Por que a mulher não veio ao aeroporto com você?
— Por que não pergunta a ela?
— Porque eu a matei, Konstantin. E vou matar você se não continuar falando.
— Mentira.
Gabriel acendeu seu BlackBerry e o colocou na mesa em frente a Dragunov. Na tela, havia a fotografia de uma mulher cheia de sangue pendurada na porta da frente de um Renault Clio.
— Meu Deus.
Gabriel guardou o BlackBerry no bolso da jaqueta.
— Continue, Konnie.
— A inglesa queria que a gente saísse da Inglaterra separados. Anna ia embora hoje na balsa de Harwich para Hoek van Holland. A das 23 horas.
— Anna?
— Yurasova. O presidente a conhece desde que ela era criança.
— O agente no hotel deveria ir embora com ela?
Dragunov assentiu.
— O nome dele é Nikolai.
— Onde planejavam ir quando chegassem à Holanda?
— Se fosse seguro entrarem num avião, iriam direto para o Aeroporto de Schiphol.
— E se não fosse?
— Tem uma casa segura.
— Onde?
— Não sei. — Quando Gabriel se levantou com raiva de sua cadeira, Dragunov cobriu o rosto com as mãos. — Por favor, Allon, de novo, não.
Estou falando a verdade. A propriedade fica no sul da Holanda, em algum lugar perto da costa. Mas só sei isso.
— Tem alguém lá agora?
— Alguns gorilas e alguém para cuidar das comunicações seguras com Yasenevo.
— Por que precisam de um link seguro com o Centro de Moscou?
— Não é só um lugar para passar a noite, Allon. É um posto de comando avançado.
— Quem mais está lá, Konstantin?
O russo hesitou antes de dizer:
— A inglesa.
— Rebecca Manning?
— Philby — corrigiu o preso. — Ela usa o nome do pai agora.
73
MAR DO NORTE
Nikolai Azarov estava longe de ser um marinheiro experiente, mas seu pai tinha sido oficial de alta patente na Marinha soviética, e ele sabia uma coisa ou outra sobre barcos. Ao sair da marina, ele guiara o Bavaria 27
pelas águas rasas do litoral do canal de Walton até o mar do Norte. Uma vez longe da terra, ele virou para o leste e aumentou a velocidade para 25
nós. Era confortavelmente abaixo da velocidade máxima de cruzeiro da embarcação. Mesmo assim, o sistema de navegação de bordo antecipou a chegada para 1h15.
Era uma linha reta até o destino. Depois de estabelecer o curso, Nikolai desligou o sistema de navegação para que não fosse usado pelos britânicos para localizar sua posição. Seu telefone — aquele para o qual Anna tinha ligado pouco antes de ser morta — estava no fundo do canal. O telefone que ele tinha arrancado da mulher em frente ao hotel, também. Nikolai, porém, não estava sem meios de comunicação. O Bavaria tinha um telefone Inmarsat e uma rede sem fio. Ele desligou o sistema logo depois de sair da marina. O receptor portátil estava em seu bolso, bem longe do alcance da mulher.
A mala dela ainda estava no porta-malas do Jaguar, mas Nikolai tinha pegado a bolsa, onde encontrou alguns cosméticos, um frasco de antidepressivo, seiscentas libras em dinheiro e uma velha Walther PPK —
escolha interessante. Não havia passaporte ou carteira de motorista, nem cartão de crédito ou de débito.
O mar diante do Bavaria estava vazio. Nikolai ejetou o pente da Walther e removeu a bala da câmara. Então, colocou o iate em piloto automático e foi com a arma e o frasco de antidepressivo escada de tombadilho abaixo. Entrando no salão, viu a mulher à mesa o fuzilando com os olhos. Um vergão vermelho feio tinha surgido na bochecha dela onde Nikolai havia atingido quando ela se recusou a entrar no barco.
O rádio, sintonizado na BBC, estava com sinal fraco e intermitente. O
primeiro-ministro acabara de falar com os repórteres em frente ao número 10. O cadáver radioativo de uma agente russa tinha fechado a M25. Um oligarca russo radioativo tinha fechado o Aeroporto London City. Um
terceiro russo matara duas pessoas na estação ferroviária de Frinton-on-Sea. Dizia-se que os policiais estavam procurando desesperadamente por ele.
Nikolai desligou o rádio.
— Não mencionaram o guarda na marina — disse ele.
— Provavelmente ainda não o encontraram.
— Duvido muito.
Nikolai sentou-se em frente à mulher. Apesar do machucado, ela era muito atraente. Seria ainda mais bonita se não fosse a peruca morena ridícula.
Ele colocou o frasco de pílulas na frente dela.
— Por que está deprimida?
— Passo tempo demais com gente igual a você.
Ele lançou um olhar para o frasco.
— Talvez devesse tomar uma. Vai se sentir melhor.
Ela o olhou sem expressão.
— Que tal isto? — Ele colocou a ampola de líquido transparente na mesa.
— O que é?
— O mesmo elemento químico radioativo que Anna deu a Abdullah quando ele visitou a mansão de Konstantin Dragunov em Belgravia. E, por algum motivo — acrescentou Nikolai —, você e seus amigos deixaram aquilo acontecer.
Ela estudou o frasco.
— Talvez fosse melhor se livrar disso.
— Como? Jogando no mar do Norte? — Ele fez uma careta de repulsa fingida. — Pense nos danos ambientais.
— E os danos que está fazendo para nós agora?
— É totalmente seguro, a não ser que seja ingerido.
— O Centro de Moscou disse isso?
Nikolai guardou a ampola no bolso da calça.
— É o lugar perfeito.
Nikolai não conseguiu segurar o sorriso. Tinha que admitir, admirava a coragem da mulher.
— Há quanto tempo você está carregando isso? — perguntou ela.
— Uma semana.
— Isso explica seu brilho esverdeado peculiar. Você deve estar mais contaminado que Chernobyl.
— E agora, você também está. — Ele examinou o vergão na bochecha dela. — Dói?
— Não tanto quanto minha cabeça.
— Tire a peruca. Vou dar uma olhada.
— Obrigada, mas já fez o suficiente.
— Talvez você não tenha me ouvido. — Nikolai baixou a voz. — Eu disse para tirar.
Quando ela hesitou, ele esticou a mão pela mesa e arrancou a peruca da cabeça dela. Seu cabelo louro estava desarrumado e emplastrado de sangue seco acima da orelha direita. Mesmo assim, Nikolai percebeu que já tinha visto a mulher antes. Na noite em que ele entregara uma bomba numa pasta ao imbecil do chefe de segurança da Escola Internacional de Genebra. Ela estava numa mesa embaixo do toldo, ao lado do homem alto com cara de russo que tinha seguido Nikolai na saída do café. Um carro também tinha ido atrás dele. Nikolai não reconhecera o homem ao volante, aquele com têmporas grisalhas. Mas na noite seguinte, o Centro de Moscou conseguira confirmar a identidade dele.
Gabriel Allon...
Nikolai jogou a peruca para o lado. Sem ela, a mulher era ainda mais bonita. Ele só conseguia imaginar o tipo de trabalho que ela fazia para eles. Os israelenses usavam mulheres como isca quase tanto quanto o SVR.
— Achei que você tinha dito que era americana.
— E sou.
— Judia?
— Da Igreja Anglicana, na verdade.
— Você fez a Aliá?
— Para a Inglaterra?
Nikolai bateu nela pela terceira vez. Forte o bastante para tirar sangue do nariz dela. Forte o bastante para que ela se calasse.
— Meu nome é Nikolai — disse ele, após um momento. — E o seu?
Ela hesitou, antes de dizer:
— Allison.
— Allison do quê?
— Douglas.
— Fale sério, Allison, você consegue fazer melhor.
Ela já não parecia mais tão corajosa.
— O que está planejando fazer comigo? — perguntou.
— Eu ia matá-la e jogar seu corpo no mar. — Nikolai tocou na bochecha inchada dela. — Para seu azar, mudei de ideia.
74
ROTERDÃ
O primeiro-ministro Jonathan Lancaster deu permissão para uma única aeronave partir do Aeroporto London City naquela noite. O Gulfstream G550 pousou em Roterdã à 00h05. O Boulevard Rei Saul tinha deixado um par de Audi sedans estacionados em frente ao terminal. Keller e Mikhail foram direto para a cidade de Hellevoetsluis, lar de uma das maiores marinas do sul da Holanda. Gabriel pediu para Eli Lavon, que evitava barcos sempre que possível, escolher um segundo local.
— Você sabe o tamanho da costa holandesa?
— Tem 441 quilômetros.
Lavon levantou o olhar do telefone.
— Como é possível que você saiba isso?
— Chequei enquanto estávamos no avião.
Lavon voltou a contemplar o mapa no celular.
— Se eu estivesse no leme...
— Sim, Eli?
— Não tentaria entrar numa marina escura.
— O que faria?
— Atracaria numa praia em algum lugar.
— Onde?
Lavon estudou a imagem como se fosse a Torá.
— Onde, Eli? — perguntou Gabriel, exasperado.
— Bem aqui. — Lavon bateu na tela. — Em Renesse.
Depois de uma única ligação breve com o telefone Inmarsat, Nikolai tinha aumentado a velocidade para trinta nós. Como resultado, chegou à costa holandesa quinze minutos antes da previsão original do sistema de navegação. As luzes do barco estavam apagadas. Ele as piscou e, imediatamente, viu o facho de uma lanterna na terra.
O russo aumentou a velocidade ao máximo e esperou a batida do chão de areia. Quando chegou, o barco freou violentamente, adernando para estibordo. Ele desligou o motor e colocou a cabeça pela escada de
tombadilho. A mulher lutava para ficar de pé no chão de teca inclinado da galeria.
— Você podia ter me avisado — disse ela.
— Vamos.
Ela subiu desajeitada pela escada. Nikolai a puxou para a cabine e a empurrou na direção da popa.
— Vá em frente — ordenou ele.
— Sabe o quanto essa água está fria?
Ele apontou a Makarov para a cabeça dela.
— Entre.
Depois de remover os sapatos, ela deslizou pela prancha até o mar e conseguiu colocar o pé no chão. A água chegou à altura dos seios.
— Ande — mandou Nikolai.
— Para onde?
Ele apontou na direção dos dois homens parados na costa.
— Não se preocupe, eles são o menor dos seus problemas.
Tremendo, ela foi em direção à margem. Nikolai entrou no mar sem fazer barulho e, segurando a Makarov acima da água, foi atrás dela. O
carro, um sedan sueco com placa holandesa, estava estacionado no lote público atrás das dunas. Nikolai sentou-se com ela no banco de trás, a arma em suas costelas. Quando estavam atravessando a sonolenta cidade litorânea, um único carro se aproximou pelo lado oposto e passou por eles num borrão.
O estacionamento estava abandonado às gaivotas. Gabriel correu pela trilha de pedestres até a praia e viu um iate Bavaria 27 Sport apagado a cerca de trinta metros da margem. Correu para o mar e, com seu telefone, iluminou a areia dura e lisa ao longo da linha da água. Havia pegadas por todo lado. Três homens de sapato esportivo, uma mulher descalça. As impressões eram recentes. Ela tinha acabado de passar por ali.
Ele correu de volta para o estacionamento e entrou no Audi.
— Alguma coisa? — perguntou Lavon.
Ele contou.
— Não podem ter chegado há mais do que alguns minutos.
— Não chegaram.
— Você não acha que ela estava naquele carro, acha?
— Sim — disse Gabriel, colocando o Audi em ré. — Acho que estava.
Eles cruzaram um istmo estreito, com uma grande baía interior do lado direito e o mar do esquerdo. A justaposição dizia a Sarah que estavam indo para o norte. Por fim, uma placa de estrada apareceu na escuridão. O nome da cidade, Ouddorp, não significava nada para ela.
O carro contornou uma rotatória e acelerou por um trecho de terras cultiváveis planas como tábuas. A pista estreita em que viraram não tinha indicação. Levava a uma série de bangalôs de madeira escondidos numa cadeia de dunas cobertas por grama. Um era ladeado por cercas altas e tinha uma garagem separada com portas vaivém antiquadas. Nikolai trancou o Volvo lá dentro antes de levar Sarah à propriedade.
Era branco como um bolo de casamento, com um teto de telhas vermelhas. Barreiras de acrílico protegiam o terraço do vento. Uma mulher esperava lá sozinha, como uma espécie de animal num pote. Usava uma capa de chuva e jeans com stretch. Seus olhos eram incomumente azuis — e cansados, pensou Sarah. A noite não tinha sido gentil com a aparência da mulher.
Uma mecha solta caíra sobre um dos olhos dela. A mulher a afastou e estudou Sarah atentamente. Algo no gesto era familiar. No rosto também.
De repente, a americana percebeu de onde a conhecia.
Uma coletiva no Grande Palácio Presidencial em Moscou...
A mulher na varanda era Rebecca Manning.
75
ROTERDÃ
O carro era um Volvo, modelo do ano, cor escura. Nisso, Gabriel e Eli Lavon concordavam inteiramente. Ambos tinham visto a grade dianteira e notado um ornamento circular e uma linha diagonal distinta da esquerda para a direita. Gabriel tinha certeza de que era um sedan. Lavon, porém, estava convencido de que era uma perua.
Não havia dúvida sobre a direção em que ele estava indo: norte. Os dois se concentraram nos pequenos vilarejos ao longo da costa, enquanto Mikhail e Keller trabalhavam nas cidades maiores mais para o interior.
Somando as duas duplas, avistaram 112 Volvos. Em nenhum encontraram Sarah.
Na verdade, era uma tarefa impossível — “uma agulha num palheiro holandês”, como disse Lavon —, mas eles continuaram até as 7h15, quando os quatro se reuniram num café num bairro industrial ao sul de Roterdã. Eram os primeiros clientes da manhã. Havia um posto de gasolina ao lado e algumas concessionárias em frente. Uma, é claro, vendia Volvos.
Uma viatura holandesa ecológica passou na rua lentamente.
— Qual é o problema dele? — perguntou Mikhail.
Foi Lavon quem respondeu:
— Talvez esteja procurando os idiotas que estavam correndo pelo interior a noite toda. Ou o gênio que encalhou um Bavaria 27 perto de Renesse.
— Acha que o encontraram?
— O iate? — Lavon fez que sim. — É difícil não ver, especialmente depois de amanhecer.
— O que acontece depois?
— A polícia holandesa descobre quem é o dono do barco e de onde veio. E, logo, todos os policiais do país vão estar procurando por um assassino russo e uma americana bonita chamada Sarah Bancroft.
— Talvez seja bom — disse Mikhail.
— A não ser que Rebecca e seu amigo Nikolai decidam minimizar as perdas e matá-la.
— Talvez já tenham feito isso. — Mikhail olhou para Gabriel. — Tem certeza de que eram pegadas de mulher?
— Tenho certeza, Mikhail.
— Para que se dar ao trabalho de tirá-la do barco? Por que não aliviar a carga e fugir para Moscou?
— Imagino que queiram fazer algumas perguntas antes. Você não ia querer, no lugar deles?
— Acha que vão engrossar com ela?
— Depende.
— Do quê?
— De quem está fazendo as perguntas. — Gabriel notou que Keller, de repente, começou a mexer em seu BlackBerry. — O que está havendo?
— Parece que Konstantin Dragunov não está se sentindo bem.
— Imagine só.
— Acabou de admitir à Polícia Metropolitana que a mulher e ele envenenaram o príncipe herdeiro ontem. Lancaster vai fazer o anúncio em Downing Street às dez.
— Preciso de um favor, Christopher.
— O quê?
— Diga para Graham e Lancaster anunciarem agora.
76
DOWNING STREET, 10
Graham Seymour esperava no hall do número 10 quando Jonathan Lancaster desceu a Grande Escadaria com Geoffrey Sloane ao seu lado. O
assessor ajustava a gravata com nervosismo, como se fosse ele que estivesse prestes a enfrentar a bateria de câmeras posicionadas em frente à Downing Street. Lancaster segurava alguns cartões azuis. Levou Seymour à sala do gabinete e fechou a porta solenemente.
— Funcionou perfeitamente. Como você e Gabriel disseram.
— Com um problema, primeiro-ministro.
— “Os melhores planos dos ratos e dos homens...” — Lancaster levantou os cartões. — Acha que vai ser suficiente para impedir que os russos a matem?
— Gabriel parece achar que sim.
— Ele realmente deu um soco em Dragunov?
— Receio que sim.
— Foi um soco bom? — perguntou Lancaster, com malícia.
— Bastante.
— Espero que Konstantin não tenha ficado muito machucado.
— Neste ponto, duvido que ele se lembre.
— Está doente, é?
— Quanto antes o colocarmos num avião, melhor.
Lancaster analisou os cartões e, movendo os lábios, ensaiou a frase de abertura de seus comentários preparados. Era verdade, pensou Seymour.
Tinha funcionado perfeitamente. Ele e Gabriel tinham ganhado dos russos em seu próprio jogo. O czar matara, de forma temerária, com armas de destruição em massa. Mas dessa vez tinha sido pego no pulo. As consequências seriam graves — sanções, expulsões, talvez até expulsão do G8 — e o dano, provavelmente, seria permanente.
— Ela é muito cara de pau — disse Lancaster, de repente.
— Sarah Bancroft?
— Rebecca Manning. — O primeiro-ministro ainda estava olhando seus comentários. — Seria de se imaginar que ela ficasse segura em Moscou. — Ele baixou a voz. — Igual ao pai.
— Deixamos claro que não queríamos nada com ela. Portanto, é seguro que ela viaje para fora da Rússia.
— Talvez devamos reavaliar nossa posição em relação à senhora Philby.
Depois disso, ela merece ser trazida de volta à Inglaterra algemada. Aliás
— continuou Lancaster, balançando os cartões —, estou pensando em fazer uma pequena mudança em meus comentários preparados.
— Eu aconselharia a não fazer.
A porta se abriu e Geoffrey Sloane inclinou o corpo para dentro da sala.
— Está na hora, primeiro-ministro.
Lancaster, ator político consumado, endireitou os ombros antes de caminhar até a porta mais famosa do mundo e o brilho das luzes. Seymour seguiu Sloane até o escritório dele para assistir ao anúncio na televisão. O
primeiro-ministro parecia totalmente só no mundo. Sua voz era calma, mas afiada de raiva.
Esse ato monstruoso e depravado executado pelos serviços de inteligência da Federação Russa, sob ordem direta do presidente russo, não ficará impune...
Tinha funcionado perfeitamente, pensou Seymour. Com um problema.
77
OUDDORP, PAÍSES BAIXOS
Minutos após a chegada de Sarah à casa segura, ficou evidente que não estavam preparados para uma refém. Nikolai cortou um lenço, amarrou as mãos e os pés dela e colocou uma mordaça em sua boca. O porão do bangalô era uma câmara pequena e revestida de pedras. Sarah sentou-se encostada numa parede úmida e os joelhos embaixo do queixo. Ensopada de sua caminhada até a margem, ela logo começou a tremer incontrolavelmente. Pensou em Reema e nas muitas noites que a menina tinha passado em cativeiro antes de seu assassinato brutal. Se uma criança de 12 anos conseguia suportar a pressão, Sarah também conseguiria.
Havia uma porta no alto das escadas de pedra. Atrás, Sarah ouvia duas vozes conversando em russo. Uma era de Nikolai; a outra, de Rebecca Manning. Pelo tom, estavam tentando reconstruir a série de acontecimentos que levara à prisão de um grande amigo do presidente russo e à morte de uma agente do SVR. Nesse ponto, já tinham, sem dúvida, determinado que sua operação estava comprometida desde o início
— e que Gabriel Allon, homem responsável por desmascarar Rebecca Manning como informante russa, estava envolvido de alguma forma. Ela, no momento, lutava por sua carreira, talvez até por sua vida. Em algum momento, iria atacar Sarah.
Ela se obrigou a cair num sono intranquilo, ainda que só para cessar o tremor convulsivo do corpo. Em seus sonhos, estava deitada numa praia caribenha com Nadia al-Bakari, mas acordou com Nikolai e os dois brutamontes a olhando de cima. Eles a levantaram do chão frio e úmido como se ela fosse feita de lenço de papel, e a carregaram para o andar de cima. Uma mesa de madeira clara sem acabamento tinha sido colocada no centro da sala de estar. Eles a forçaram a se sentar numa cadeira e removeram só a mordaça, deixando suas mãos e seus pés amarrados.
Nikolai tapou sua boca com a mão e disse que ia matá-la se ela gritasse ou tentasse pedir ajuda. Nada na atitude dele sugeria que a ameaça fosse vã.
Rebecca Manning parecia não estar ciente da presença de Sarah. Com os braços dobrados, ela olhava para a televisão, ligada na BBC. O
primeiro-ministro Jonathan Lancaster acabava de acusar a Rússia de tentar
assassinar o príncipe herdeiro da Arábia Saudita durante sua visita real à Inglaterra.
Esse ato monstruoso e depravado...
Rebecca ouviu o anúncio de Lancaster por mais um momento antes de apontar um controle remoto para a tela e colocar o som no mudo. Então, virou-se e olhou furiosa para Sarah.
Por fim, perguntou:
— Quem é você?
— Allison Douglas.
— Para quem trabalha?
— Para a CIA.
Rebecca lançou um olhar para Nikolai. O golpe foi de mão aberta, mas cruel. Sarah, com medo do aviso do russo, sufocou o grito.
Rebecca Manning deu um passo à frente e colocou a ampola de líquido transparente na mesa.
— Uma gota — disse — e nem seu amigo arcanjo vai conseguir salvá-
la.
Sarah estudou em silêncio o frasco.
— Achei que isso refrescaria sua memória. Agora, me diga seu nome.
Sarah esperou até Nikolai recolher a mão antes de finalmente responder.
— É um nome de trabalho? — perguntou Rebecca.
— Não, é real.
— Sarah é um nome judeu.
— Rebecca também.
— Para quem você trabalha, Sarah Bancroft?
— Para o Museu de Arte Moderna de Nova York.
— É um trabalho de disfarce?
— Não.
— E antes disso?
— Para a CIA.
— Qual é sua conexão com Gabriel Allon?
— Trabalhei com ele em algumas operações.
— Diga uma.
— Ivan Kharkov.
— Allon sabia do plano para matar Abdullah?
— É claro.
— Como?
— Foi ideia dele.
Rebecca absorveu as palavras de Sarah como um soco na barriga. Ficou em silêncio por um momento. Então, perguntou:
— Abdullah já foi um ativo do MI6?
— Não — disse Sarah. — Ele era ativo russo. E você, Rebecca Manning, acabou de matá-lo.
Eram 8h30 quando o BlackBerry de Gabriel vibrou com uma chamada. Ele não reconhecia o número. Em geral, cortava esse tipo de ligação sem pensar duas vezes. Mas não esta. Não a chamada que chegou em seu telefone às 8h30 em Roterdã.
Ele clicou em ATENDER, levou o BlackBerry ao ouvido e murmurou um cumprimento.
— Achei que você não fosse atender.
— Quem é?
— Não reconhece minha voz?
Era feminina e levemente rouca de fadiga e tabaco. O sotaque era britânico, com um traço francês. E, sim, Gabriel reconhecia.
Era a voz de Rebecca Manning.
78
OUDDORP, HOLANDA
O pavilhão na praia se chamava Natural High. No verão, era um dos locais mais badalados da costa holandesa. Mas às dez e meia de uma manhã de abril, tinha o ar de um entreposto colonial abandonado. O clima estava indeciso, sol ofuscante num minuto, chuva no outro. Gabriel observava da proteção do café. Nunca vi um dia tão feio e tão belo... De repente, ele pensou num café à beira-mar no topo dos penhascos de Lizard Point, na Cornualha. Costumava caminhar até lá pela trilha costeira, tomar um bule de chá, comer um bolinho com clotted cream e, depois, andar de volta ao seu chalé em Gunwalloe Cove. Parecia outra vida. Talvez um dia, ao fim de seu mandato, ele voltasse. Ou talvez levasse Chiara e as crianças a Veneza. Viveriam num belo apartamento em Cannaregio, ele restauraria quadros para Francesco Tiepolo. O mundo e seus muitos problemas não o afetariam. Ele passaria suas noites com a família e seus dias com seus velhos amigos Bellini, Ticiano, Tintoretto e Veronese. Seria anônimo de novo, um homem com um pincel e uma paleta em cima de uma plataforma de trabalho, escondido atrás de um véu.
Por enquanto, porém, estava bastante à vista. Sentava-se sozinho à mesa encostada na janela, onde estava seu BlackBerry. Ele tinha ficado quase sem bateria ao debater os detalhes da negociação. Rebecca tinha discordado de um ou dois pontos em relação ao cronograma, mas, depois de uma última ligação para Londres, estava feito. Downing Street, parecia, queria fazer a troca tanto quanto Gabriel.
Nesse momento, o BlackBerry acendeu. Era Eli Lavon, que estava lá fora no estacionamento.
— Ela acabou de chegar.
— Sozinha?
— Parece que sim.
— O que isso quer dizer?
— Quer dizer — disse Lavon — que não tem mais ninguém visível no carro.
— Qual é a marca?
— Um Volvo.
— Sedan ou perua?
A ligação caiu. Era um sedan, pensou Gabriel.
Ele olhou por cima do ombro para Mikhail e Keller. Estavam sentados a uma mesa no canto dos fundos do salão. Em outra, havia dois valentões do SVR com jaquetas de couro. Os russos observaram Rebecca Manning atentamente quando ela entrou no café e se sentou à frente de Gabriel. A espiã parecia muito inglesa com sua jaqueta Barbour. Colocou o telefone na mesa, com um maço de cigarros L&B e um velho isqueiro prateado.
— Posso? — perguntou Gabriel.
Ela assentiu.
Ele pegou o isqueiro. Mal dava para ler a inscrição. Por uma vida de serviço à pátria-mãe...
— Eles não podiam ter comprado um novo para você?
— Era do meu pai.
Gabriel olhou para o relógio de pulso.
— E isso?
— Estava acumulando poeira no museu particular do SVR. Levei a um joalheiro e mandei trocar o mostrador. Funciona muito bem, na verdade.
— Então, por que está dez minutos atrasada? — Gabriel colocou o isqueiro em cima do maço de cigarros dela. — Você provavelmente deveria guardá-los.
— Até num café de praia? — Ela colocou os cigarros e o isqueiro de volta na bolsa. — As coisas são um pouco mais relaxadas na Rússia.
— E sua expectativa de vida reflete bem isso.
— Acredito que tenhamos caído abaixo da Coreia do Norte na última lista.
O sorriso dela era genuíno. Ao contrário do último encontro deles, que tinha acontecido num centro de detenção do MI6 no norte da Escócia, foi tudo muito cordial.
— Minha mãe me perguntou de você outro dia — falou ela, de repente.
— Ela ainda está na Espanha?
Rebecca fez que sim.
— Eu esperava que ela fosse morar comigo em Moscou.
— Mas?
— Ela não gostou muito quando foi me visitar.
— É difícil se acostumar.
A garçonete estava cercando os dois.
— Você deveria pedir algo — recomendou Gabriel.
— Eu não estava planejando ficar muito.
— Qual é a pressa?
Ela pediu um koffie verkeerd. Então, quando a garçonete foi embora, ela destravou seu telefone e o empurrou na direção de Gabriel. Na tela, uma imagem estática de Sarah Bancroft. Um lado do seu rosto estava vermelho e inchado.
— Quem fez isso com ela?
Rebecca ignorou a pergunta.
— Aperte o play.
Gabriel clicou no ícone do PLAY e ouviu o máximo que conseguiu aguentar. Então, apertou PAUSE e olhou furioso para Rebecca.
— Eu aconselharia a nunca divulgar essa gravação.
— Teríamos direito de divulgar.
— Seria um erro grave.
— Mesmo?
— Sarah é americana, não israelense. A CIA vai retaliar se descobrir que vocês a violentaram dessa forma.
— Ela estava trabalhando para Israel quando você nos alimentou com aquela desinformação sobre Abdullah ser um ativo do MI6. — Rebecca pegou o telefone de novo. — Não se preocupe, a gravação é para meu uso pessoal.
— Você acha que vai ser suficiente?
— Para quê?
— Para salvar sua carreira no SVR.
Rebecca ficou em silêncio enquanto a garçonete colocava um copo de café holandês com leite diante dela.
— Era tudo para isso? Me destruir?
— Não. Era para destruir ele.
— Nosso presidente? Está lutando contra moinhos de vento, Don Quixote.
— Espere algumas horas para assentar a notícia de que o Kremlin ordenou o assassinato do futuro rei da Arábia Saudita. A Rússia vai ser o pária dos párias.
— Foi seu assassinato, não nosso.
— Boa sorte provando isso.
— Quando os trolls da Agência de Pesquisas de Internet terminarem, ninguém no mundo vai acreditar que tivemos qualquer coisa a ver com isso.
Rebecca colocou açúcar no café e mexeu cuidadosamente.
— E quem vai fazer a Rússia cumprir esse seu tal status de pária?
Você? A Grã-Bretanha? Os Estados Unidos? — Ela balançou a cabeça devagar. — Talvez você não tenha notado, mas as instituições tão reverenciadas pelo Ocidente estão em ruínas. Só sobramos nós no jogo.
Rússia, China, Irã...
— Esqueceu a Arábia Saudita.
— Quando a retirada americana do Oriente Médio estiver completa, os sauditas perceberão que não têm mais onde buscar proteção a não ser conosco, com ou sem Abdullah no trono.
— Não se Khalid for rei.
Ela levantou uma das sobrancelhas.
— É esse seu plano?
— Quem vai escolher o próximo rei é o Conselho de Aliança, não o Estado de Israel. Mas eu aposto no homem que ficou ao lado do tio que estava sofrendo com os efeitos terríveis de um veneno radioativo russo.
— Quer dizer isso? — Ela colocou um pequeno frasco de vidro na mesa.
Gabriel se afastou.
— O que é?
— Ainda não tem nome. Com certeza, a Agência de Pesquisas de Internet vai pensar em algo sugestivo. — Ela sorriu. — Algo que soe bem israelense.
— Alguma chance de Abdullah sobreviver?
— Zero.
— E você, Rebecca?
Ela guardou a ampola de novo na bolsa.
— Eles nunca mais vão confiar em você — disse Gabriel. — Não depois disso. Quem sabe até suponham que você esteja trabalhando para o MI6 desde o momento em que pisou no Centro de Moscou. De toda forma, seria uma tolice sua voltar. O melhor que pode esperar é ser trancada em algum vilarejo ermo, o tipo de lugar que tem um número em vez de um nome. Vai terminar igual ao seu pai, uma velha bêbada e quebrada, sozinha no mundo.
— Você não tem direito de falar assim do meu pai.
Gabriel aceitou a reprimenda em silêncio.
— E onde eu iria? De volta a Inglaterra? — Rebecca franziu a mesma sobrancelha. — Agradeço pelo conselho sincero, mas acho que vou me arriscar na Rússia. — Ela pegou o telefone. — Vamos terminar isso?
Gabriel pegou seu BlackBerry, digitou uma mensagem breve e apertou ENVIAR. A resposta chegou dez segundos depois.
— O avião de Dragunov acabou de ser liberado para partir. Vai estar fora do espaço aéreo britânico em 45 minutos.
Rebecca digitou um número. Falou algumas palavras em russo e cortou a ligação.
— Há uma praça grande no meio de Renesse com uma igreja no centro.
Bem lotada, cheia de gente. Vamos deixá-la em frente à pizzaria exatamente daqui a uma hora. — Ela olhou para o velho relógio de pulso do pai, como se estivesse marcando o tempo. Então, jogou o telefone na bolsa e olhou para a mesa em que Mikhail e Keller estavam sentados. —
Aquele bem pálido não me é estranho. Ele estava naquele Starbucks em Washington quando você montou uma armadilha para eu me entregar?
Gabriel hesitou e, então, fez que sim.
— E o outro?
— É o que você baleou naquela ruazinha em Georgetown.
— Que pena. Eu tinha certeza de tê-lo matado. — Rebecca Manning se levantou abruptamente. — Vamos esperar os próximos episódios. — E
saiu.
79
RENESSE, HOLANDA
A igreja era de tijolo, austera e cercada por um rotunda de paralelepípedos. Gabriel e Eli Lavon estavam estacionados em frente a um pequeno hotel. Mikhail e Keller tinham encontrado um lugar em frente a um restaurante de frutos do mar chamado Vischmarkt Renesse. Atrás ficava a pizzaria em que Rebecca Manning tinha prometido deixar Sarah, exatamente às 11h43.
Eram 11h39. Mikhail observava a pizzaria pelo retrovisor; Keller, espelho lateral. Estava fumando um Marlboro atrás de outro. Mikhail baixou sua janela alguns centímetros e escaneou a praça.
— Você percebe que somos alvos fáceis, né? — Mikhail hesitou, antes de completar: — E o diretor-geral do meu serviço também.
— Temos um acordo.
— Khalid também tinha — ponderou Mikhail, enquanto Keller amassava um cigarro e imediatamente acendia outro. — Você realmente precisa parar com isso, sabe.
— Por quê?
— Porque Sarah detesta.
Keller fumou em silêncio, olhos no retrovisor.
— Não acha que deveríamos falar sobre isso?
— Sobre o quê?
— Seus sentimentos por Sarah.
Keller olhou de soslaio para Mikhail.
— Qual é o problema de vocês?
— Vocês?
— Gabriel e você. Não têm nada melhor para fazer do que se intrometer na vida pessoal dos outros?
— Goste ou não, você agora é um de nós, Christopher. E isso quer dizer que nos reservamos o direito de meter o bedelho na sua vida amorosa sempre que quisermos. — Depois de um breve silêncio, Mikhail completou em voz baixa: — Especialmente quando envolve minha ex-noiva.
— Não aconteceu nada naquele hotel, se é isso que você está sugerindo.
— Não estou sugerindo nada.
— E não estou apaixonado por ela.
— Se você diz... — Mikhail olhou as horas: 11h41. — Não quero que fique um clima estranho, só isso.
— Como assim?
— Na nossa relação.
— Não sabia que estávamos em uma relação.
Mikhail não pôde evitar um sorriso.
— Estamos trabalhando muito bem juntos, você e eu. E suspeito de que vamos trabalhar juntos de novo no futuro. Não quero que Sarah complique as coisas.
— Por que ela complicaria?
— Faça um favor para mim, Christopher. Trate-a melhor do que eu. Ela merece. — Mikhail levantou o olhar para o retrovisor. — Especialmente agora.
Um momento se passou. Depois, outro. O relógio do painel mostrava 11h44. O do telefone de Keller, também. Ele xingou bem baixinho enquanto esmagava o cigarro.
— Você não achou que Rebecca ia cumprir o horário, achou? Graças a Gabriel, ela vai voltar para um futuro bem incerto em casa.
Keller passou a mão pela clavícula distraidamente.
— E ela é uma pessoa tão legal.
— Olhe — disse Mikhail, de repente. — Lá está o carro.
Ele tinha parado em frente à pizzaria, um Volvo sedan de cor escura, dois homens na frente, duas mulheres atrás. Uma era a filha de Kim Philby. A outra era Sarah Bancroft. Em um último ato de rebeldia, ela deixou a porta aberta depois de descer. Rebecca se inclinou por cima do banco de trás e a fechou. Então, o carro acelerou, passando a alguns centímetros da janela de Mikhail.
Sarah ficou parada por um momento na luz clara do sol, parecendo confusa. Mas quando viu Keller correndo em sua direção, o rosto dela irrompeu num enorme sorriso.
— Desculpe por não aparecer para o jantar ontem à noite, mas foi por um motivo de força maior.
Keller tocou na bochecha machucada.
— Nosso amigo do hotel fez isso. O nome dele é Nikolai, aliás. Talvez um dia você possa retribuir o favor.
Keller a ajudou a entrar no banco de trás do veículo. Ela observou uma fileira de lindos chalezinhos passando por sua janela enquanto Mikhail seguia Gabriel e Eli Lavon para fora da cidade.
— Eu gostava da Holanda. Agora, só quero ir embora o mais rápido possível.
— Temos um avião em Roterdã.
— Para onde ele vai nos levar?
— Para casa — respondeu Keller.
Sarah apoiou a cabeça no ombro dele e fechou os olhos.
— Estou em casa.
Parte Cinco
VINGANÇA
80
LONDRES–JERUSALÉM
Começou numa sala no hotel InterContinental em Budapeste. Dali, pulou para o banco de trás de um táxi, para a cadeira 14A de um Boeing 737
operado pela Ryanair, para o salão de uma balsa irlandesa chamada Ulysses, para um Toyota Corolla e para o Bedford House na cidade de veraneio de Frinton-on-Sea, em Essex.
Altos níveis de radiação também foram encontrados no escritório saqueado de uma marina no rio Twizzle, em um Jaguar F-Type conversível e nas dependências de um Bavaria 27 Sport que encalhara na comunidade litorânea holandesa de Renesse. Depois, as autoridades holandesas também encontrariam contaminação num bangalô de férias nas dunas perto de Ouddorp.
O marco zero, porém, eram duas casas conjugadas na Eaton Square. Lá, a história do que se passou estava escrita de forma indelével numa trilha de radiação que se espalhava de um banheiro no andar mais alto do número 71 até a sala de estar e a cozinha do número 70. Na lata de lixo, a Polícia Metropolitana encontrou as armas do crime — uma ampola de vidro vazia, uma pipeta de Pasteur, o avental de empregada. Todos registraram leituras de 30 mil contagens por segundo. Perigosas demais para serem armazenadas nas salas de evidência policiais, as provas foram enviadas por segurança para o Estabelecimento de Armas Atômicas em Aldermaston, instalação nuclear do governo.
A mulher que tinha usado as armas fora a primeira a morrer. Seu cadáver era tão radioativo que foi colocado num caixão com proteção nuclear — e o banco do motorista de seu carro, um Renault Clio, ficou tão saturado que também foi enviado a Aldermaston. A cadeira do saguão do London Jet Centre também. A fonte dessa contaminação, certo Konstantin Dragunov, tivera permissão para sair da Inglaterra a bordo de seu jatinho particular, após apresentar sintomas de síndrome aguda da radiação. O
governo russo, em seu primeiro comunicado oficial, atribuiu o mal-estar de Dragunov na noite do incidente a um simples caso de intoxicação alimentar. Quanto à contaminação dentro da casa do oligarca, o Kremlin disse que tinha sido plantada pelo Serviço Secreto de Inteligência
britânico numa tentativa de desacreditar a Rússia e prejudicar sua posição na região árabe.
A linha de defesa russa colapsou no dia seguinte, quando a delegada Stella McEwan, da Polícia Metropolitana, tomou a atitude incomum de liberar parte do depoimento gravado dado por Dragunov antes de embarcar em seu avião. O Kremlin alegou que a gravação era uma fraude, assim como o próprio oligarca. Dizia-se que ele estava se recuperando em sua mansão no bairro de Rublyovka, em Moscou. Na verdade, estava sob forte guarda no Hospital das Clínicas Central em Kuntsevo, instituição reservada para oficiais sêniores do governo e elites comerciais russas. Os médicos que lutavam para salvar sua vida o faziam em vão. Não havia medicação ou tratamento de emergência capaz de impedir a inevitável destruição das células e dos órgãos de Dragunov. Para todos os efeitos, ele já estava morto.
O russo duraria, porém, mais três semanas, enquanto a posição de Moscou no mundo caía a profundezas não vistas desde o ataque ao voo 007 da Korea Air Lines em 1983. Manifestações contra a Rússia varreram a região árabe e muçulmana. Uma bomba explodiu em frente à Embaixada Russa no Cairo. Manifestantes invadiram a do Paquistão.
No Ocidente, a reação foi pacífica, mas devastadora aos interesses diplomáticos e financeiros da Rússia. Reuniões foram canceladas, contas bancárias foram congeladas, embaixadores foram chamados de volta, agentes conhecidos do SVR foram expulsos. Londres foi seletiva em suas expulsões, pois desejava mandar uma mensagem. Só Dmitri Mentov e Yevgeny Teplov, dois oficiais operando sob disfarce diplomático, foram declarados persona non grata e ordenados a ir embora. Na mesma noite, um oficial sênior do MI6 chamado Charles Bennett foi discretamente levado sob custódia enquanto tentava embarcar num Eurostar com destino a Paris na estação de St. Pancras. O público britânico nunca seria informado dessa prisão.
Muitos outros fatos foram omitidos dos cidadãos, tudo em nome da segurança nacional. Eles não foram informados, por exemplo, como ou quando os serviços de inteligência tinham ficado sabendo que uma equipe de assassinos russos estava em solo britânico. Também não receberam uma explicação satisfatória de por que Konstantin Dragunov tivera permissão de ir embora do país depois de admitir seu papel na operação.
Sob o olhar implacável da mídia, logo apareceram furos no relato oficial. No fim, Downing Street admitiu que a ordem tinha vindo diretamente do próprio primeiro-ministro, embora sem informar detalhes em relação aos motivos dele. Um repórter investigativo respeitado do The Guardian sugeriu que Dragunov tinha sido liberado em troca de uma refém após, primeiro, passar por um duro interrogatório. A declaração cuidadosa de Stella McEwan de que nenhum oficial da Polícia Metropolitana tinha maltratado o oligarca deixou aberta a possibilidade de outra pessoa tê-lo feito.
Quase esquecido em meio ao turbilhão de controvérsias estava o príncipe herdeiro Abdullah bin Abdulaziz Al Saud. Segundo a Al Arabiya, a transmissora estatal saudita, ele tinha morrido nove dias depois de sua volta a Londres, às 4h37. Entre aqueles em seu leito de morte estava o amado sobrinho príncipe Khalid bin Mohammed.
Mas por que os russos tinham envenenado o príncipe herdeiro, afinal?
O Kremlin não estava cortejando novos amigos na região árabe? A Rússia não estava no processo de substituir os americanos como potência dominante da região? De Riad, apenas silêncio. De Moscou, negações e pistas falsas. Os especialistas televisivos especulavam. Os repórteres investigativos escavavam e esquadrinhavam. Ninguém passou remotamente perto da verdade.
Havia pistas por todos os lugares, porém — num consulado em Istambul, numa escola particular em Genebra e num campo no sudoeste da França. Mas, como a trilha de radiação, a evidência era invisível a olho nu.
Uma jornalista sabia muito mais que a maioria, mas, por motivos que não compartilhou com seus colegas, escolheu ficar em silêncio.
Na noite em que o Kremlin, com atraso, anunciou a morte de Konstantin Dragunov, ela emergiu de seu escritório em Berlim e, como era seu costume, examinou a rua nas duas direções antes de seguir para um café na Friedrichstrasse, perto do antigo Checkpoint Charlie. Ela estava sendo seguida, tinha certeza. Um dia, viriam buscá-la. E ela estaria pronta para eles.
Havia uma última trilha de radiação, cuja existência nunca seria revelada.
Ia do Aeroporto London City a um café de praia na Holanda, um apartamento em Jerusalém e o andar mais alto de um prédio comercial
anônimo em Tel Aviv. Era, declarou Uzi Navot, mais uma marca do mandato já distinto de Gabriel como chefe. Ele era o único diretor-geral que havia matado alguém em campo, e o único a ser atingido num bombardeio. Agora, ganhava a duvidosa distinção de ser o primeiro a ser contaminado por radiação, russo ou não. Navot lamentou de brincadeira a boa sorte de seu rival.
— Talvez — disse a Gabriel, quando ele voltou ao Boulevard Rei Saul
— seja melhor parar enquanto está ganhando.
— Tentei. Várias vezes, aliás.
Alguém tinha grudado uma placa amarela na porta do escritório dele dizendo CUIDADO, ÁREA DE RADIAÇÃO, e, na primeira reunião de sua equipe sênior, Yossi Gavish o presenteou com um contador Geiger cerimonial e um traje de proteção com o nome dele bordado. Foi a comemoração deles.
Segundo todas as medidas objetivas, a operação tinha sido um sucesso retumbante. Gabriel convencera brilhantemente seu rival a cometer um erro colossal. Com isso, tinha conseguido, ao mesmo tempo, controlar a influência russa crescente no Oriente Médio e eliminar o fantoche do Kremlin em Riad. O trono saudita estava mais uma vez ao alcance de Khalid. Ele só precisava convencer seu pai e o Conselho de Aliança a dar-lhe uma segunda chance. Se tivesse sucesso, a dívida de KBM com Gabriel seria enorme. Juntos, eles podiam mudar a região. As possibilidades para Israel — e para o diretor-geral e o Escritório — eram infinitas.
Sua prioridade, porém, era o Irã. Naquela noite, ele passou várias horas na rua Kaplan relatando ao primeiro-ministro sobre os conteúdos dos arquivos nucleares secretos iranianos. Na noite seguinte, estava ao lado do primeiro-ministro, mas fora da imagem da câmera, no anúncio das descobertas numa coletiva transmitida ao vivo para o mundo inteiro em horário nobre. Três dias depois, Gabriel instruiu Uzi Navot a dar um relatório resumido sobre a operação no Irã a repórteres do Haaretz e do The New York Times. A mensagem das matérias era indiscutível. Gabriel tinha ido ao coração de Teerã e roubado os segredos mais preciosos do regime. E, se os iranianos ousassem recomeçar seu programa de armas nucleares, ele voltaria.
Apesar de todos os sucessos, Reema raramente saía de seu pensamento.
Durante o calor da operação contra os russos, ele tivera um breve alívio.
Mas, de volta ao Boulevard Rei Saul, a menina não lhe dava paz. Em sonhos, ela aparecia com seu casaco deformado e seus sapatos de couro
envernizado. Às vezes, tinha uma semelhança sobrenatural com Nadia al-Bakari. Em um sonho terrível ela apareceu como o filho de Gabriel, Daniel. O cenário não era um campo remoto na França, mas uma praça nevada em Viena. A criança de casaco e sapato de couro envernizado, a menina com rosto de garoto, tentava dar partida numa Mercedes.
— Não é linda? — comentou a criança, quando a bomba explodiu.
Então, enquanto as chamas a consumiam, ela olhou para Gabriel e disse:
— Um último beijo...
Na noite seguinte, jantando tranquilamente um fettuccine com cogumelos na pequena mesa de bistrô na cozinha, ele descreveu a Chiara exatamente o que tinha se passado no campo no sudoeste francês. A voz da russa no telefone, o tiro pela janela de trás do carro, Khalid pegando os membros de Reema na luz branca dos faróis. A bomba, contou, era para ele. Ele tinha punido os responsáveis, ganhado deles num grande jogo de enganação que mudaria o curso da história no Oriente Médio. Mas Reema se fora para sempre. Além disso, seu sequestro e assassinato brutal ainda não tinham vindo a público. Era como se ela nunca tivesse existido.
— Então, talvez — sugeriu Chiara —, você devesse fazer algo para mudar isso.
— Como?
Ela segurou a mão de Gabriel.
— Não tenho tempo — protestou ele.
— Já vi como você trabalha rápido quando está decidido.
Gabriel considerou a ideia.
— Acho que eu poderia pedir para Ephraim me deixar usar o laboratório de restauração no museu.
— Não — disse Chiara. — Você pode trabalhar aqui no apartamento.
— Com as crianças?
— É claro. — Ela sorriu. — É hora de elas conhecerem o verdadeiro Gabriel Allon.
Como sempre, ele preparou sua própria tela — 180 por 120 centímetros, esticador de carvalho, linho italiano. Para a base, usou a fórmula que aprendeu em Veneza com o mestre restaurador Umberto Conti. Sua paleta era de Veronese, com um toque de Ticiano.
Ele só tinha visto Reema uma vez, em condições que, por mais que tentasse, não conseguia esquecer. E tinha visto a fotografia dela tirada pelos russos enquanto ela estava em cativeiro no País Basco Espanhol.
Também estava gravada na memória de Gabriel. Ela estava cansada e magra, seu cabelo, uma bagunça. A foto mostrava sua estrutura óssea real e, mais importante, sua personalidade. Para o bem ou para o mal, Reema bint Khalid era filha de seu pai.
Ele montou seu estúdio improvisado na sala de estar, perto do terraço.
Como de hábito, o israelense era protetor de seu espaço de trabalho. As crianças receberam instruções estritas de não tocar nos suprimentos. Como precaução, porém, ele sempre deixava um de seus pincéis Winsor &
Newton Série 7 num ângulo exato no carrinho, para saber se tinha havido um invasor, que, invariavelmente, era o caso. Na maior parte, não houve incidentes, embora em uma ocasião ele tenha voltado do Boulevard Rei Saul e encontrado várias digitais no canto inferior esquerdo da tela. Uma análise forense determinou que eram de Irene.
Ele trabalhava quando podia, mais ou menos uma hora pela manhã, alguns minutos à noite após o jantar. As crianças raramente saíam do seu lado. Gabriel não fez esboços preparatórios nem desenhou por baixo da pintura. Mesmo assim, sua técnica era impecável. Ele colocou Reema na mesma pose de Nadia, num sofá branco contra um pano de fundo preto à Caravaggio. A disposição de braços e pernas era infantil, mas Gabriel a envelheceu um pouco — 16 ou 17 anos, em vez de 12 — para Khalid poder tê-la por um tempo maior.
Gradualmente, conforme ela ganhava vida na tela, passou a ausentar-se dos sonhos de Gabriel. Durante sua última aparição, entregou-lhe uma carta para seu pai. Gabriel a adicionou à pintura. Depois, parou por muito tempo diante da obra, mão direita no queixo, mão esquerda apoiando o cotovelo direito, cabeça levemente inclinada para baixo, tão perdido em pensamentos que não percebeu Chiara parada ao seu lado.
— Está pronto, signor Delvecchio?
— Não — disse ele, limpando a tinta do pincel. — Ainda não.
81
LANGLEY–NOVA YORK
O diretor da CIA, Morris Payne, ligou naquela tarde para Gabriel na linha segura e pediu que ele fosse a Washington. Não era exatamente uma convocação, mas também não era um convite aberto. Depois de fingir consultar sua agenda, Gabriel disse que o mais cedo que podia ir seria na próxima terça-feira.
— Tenho uma ideia melhor. Que tal amanhã?
Na verdade, Gabriel estava ansioso pela viagem. Estava devendo a Payne um relato completo da operação para remover Abdullah da linha sucessória. Além disso, precisava que o americano e seu chefe na Casa Branca aprovassem a ascensão de Khalid ao trono. O Conselho de Aliança ainda não tinha nomeado um príncipe herdeiro. Mais uma vez, a Arábia Saudita estava sendo governada por um octogenário doente sem sucessor decretado.
Gabriel pegou um voo noturno para Washington e se encontrou com Payne no dia seguinte, no escritório dele no sétimo andar em Langley. No fim, não foi necessário confessar seu papel no caso de Abdullah. O
americano já sabia tudo.
— Como?
— Uma fonte dentro do SVR. Parece que você virou o lugar de cabeça para baixo.
— Alguma notícia sobre Rebecca Manning?
— Quer dizer Philby? — Payne balançou a cabeça com amargura. —
Quando você ia me contar?
— Não cabia a mim, Morris.
— Aparentemente, ela está por um fio.
— Eu disse para ela não voltar.
— Você a viu?
— Na Holanda — explicou Gabriel. — Tivemos que combinar uma troca de prisioneiros.
— Dragunov pela garota? — Payne esfregou seu queixo proeminente, pensativo. — Lembra nosso jantar recente?
— Com muito carinho.
— Quando sugeri que você talvez quisesse pensar em afastar Abdullah de vez da região, você me olhou como se eu tivesse acabado de dizer para tirar a Madre Teresa do caminho.
Gabriel não disse nada.
— Por que não nos incluiu?
— Caciques demais.
— A Arábia Saudita é nossa aliada.
— E graças a mim, continua sendo. Vocês só precisam mandar a Riad um sinal de que Washington veria com bons olhos a renomeação de Khalid a príncipe herdeiro.
— Pelo que ouvimos, ele não vai ser príncipe herdeiro por muito tempo.
— Provavelmente não.
— Ele está pronto?
— Ele vai ser diferente, Morris.
Payne não parecia tão certo. Mudou de assunto abruptamente, um hábito seu.
— Ouvi falar que os russos deram uma boa surra nela.
— Sarah?
O americano fez que sim.
— Considerando as circunstâncias — disse Gabriel —, podia ter sido pior.
— Como ela se comportou em campo?
— Ela tem talento nato, Morris.
— Então, por que está trabalhando num museu em Nova York?
— Leia o arquivo dela.
— Acabei de ler. — Havia uma cópia em sua mesa. — Alguma chance de convencê-la a voltar à Agência?
— Duvido.
— Por quê?
— Posso estar errado — disse Gabriel —, mas acredito que ela já tenha dono.
Gabriel saiu de Langley em tempo de pegar o trem das 15 horas para Nova York. Um carro do consulado israelense o encontrou na Penn Station, e o
conduziu pela tarde quente de primavera até a esquina da Second Avenue com a Sixty Four Street.
O restaurante em que ele entrou era italiano, antiquado e muito barulhento. O diretor-geral se espremeu para passar pela multidão no bar e foi até a mesa em que Sarah, com um terninho escuro, bebia um martíni com três azeitonas. Quando Gabriel se aproximou, ela sorriu e levantou o rosto para ser beijada. Já não havia traço de sua jornada noturna pelo mar do Norte com o assassino russo chamado Nikolai. Aliás, pensou Gabriel sentando-se, Sarah parecia mais radiante do que nunca.
— Peça um desses — sugeriu ela, batendo uma unha pintada na borda da taça. — Prometo que vai cuidar daquela dor nas suas costas.
Gabriel pediu um sauvignon blanc italiano e, prontamente, recebeu a maior taça de vinho que já tinha visto. Sarah levantou seu martíni uma fração de centímetro.
— Ao mundo secreto. — Ela olhou pelo salão lotado. — Sem amiguinhos?
— Não consegui uma reserva para eles.
— Quer dizer que tenho você só para mim? Vamos fazer algo absolutamente escandaloso. — Sarah sorriu com malícia e deu um gole em seu drinque. Ela tinha voz e modos de uma era diferente. Como sempre, Gabriel se sentiu conversando com uma personagem de Fitzgerald.
— Como foi Langley? — perguntou.
— Morris não parava de perguntar sobre você.
— Eles sentem minha falta?
Gabriel sorriu.
— A cidade inteira está desolada. Morris faria qualquer coisa para você voltar.
— O que está feito não pode ser desfeito. — Ela baixou a voz até um murmúrio de confidência. — Exceto no que diz respeito a Khalid. Você evitou que nosso herói trágico se destruísse.
Ela sorriu.
— Ele está restaurado.
— Literalmente — disse Gabriel.
— Morris deu sinal verde para a volta de Khalid?
Gabriel assentiu.
— A Casa Branca também. A segunda temporada do show de KBM está prestes a ser produzida.
— Vamos esperar que seja um pouco menos animada que a primeira.
Um garçom apareceu. Sarah pediu uma salada caprese e vitela salteada.
Gabriel quis o mesmo.
— Como está o trabalho? — perguntou ele.
— Parece que a Coleção Nadia al-Bakari não caiu das paredes do MoMA enquanto eu estive longe. Aliás, minha equipe mal notou minha ausência.
— Quais são seus planos?
— Uma mudança de cenário, acho.
Dessa vez, foi Gabriel quem examinou o salão.
— Este lugar é muito bom, Sarah.
— O Upper East Side? Tem seus charmes, mas sempre preferi Londres.
Kensington, em especial.
— Sarah...
— Eu sei, eu sei.
— Você já voltou a Londres para vê-lo?
— No fim de semana passado. Foi quase tão bom quanto este martíni.
Devo dizer, a casa dele é divina, mesmo sem móveis.
— Ele lhe contou onde conseguiu o dinheiro para comprá-la?
— Mencionou algo sobre certo Don Orsati da ilha de Córsega. Ele tem uma casa lá também, sabe.
— E um Monet. — Gabriel fixou um olhar de reprovação em Sarah. —
Ele é velho demais para você.
— É o homem mais jovem com quem saio em muito tempo. Além do mais, já o viu sem roupa?
— E você, já viu?
Sarah desviou o olhar.
— Não tem nada que eu possa fazer para dissuadi-la?
— Por que tentaria?
— Porque não é sábio você se envolver com um homem cujo trabalho era matar pessoas.
— Se você pôde superar o passado de Christopher, por que eu não posso?
— Porque eu nunca considerei me mudar para Londres para morar com ele. — Gabriel expirou lentamente. — O que você pretende fazer profissionalmente?
— Talvez seja um choque para você, querido, mas dinheiro não é exatamente um problema. Meu pai me deixou bastante bem de vida. Dito isso, eu gostaria de algo para fazer.
— O que tem em mente?
— Uma galeria, talvez.
Gabriel sorriu.
— Tem uma ótima em Mason’s Yard, em St. James’s. Especializada em Velhos Mestres italianos. O proprietário anda falando há alguns anos em se aposentar. Está em busca de alguém para assumir os negócios.
— Como estão as finanças dele? — perguntou Sarah, com preocupação justificada.
— Graças à associação dele com certo empresário russo, estão bastante boas.
— Christopher me contou tudo sobre a operação.
— Contou? — perguntou Gabriel, irritado. — E contou sobre Olivia Watson, também?
Ela assentiu.
— E sobre Marrocos. Só sinto muito por não ter sido convidada.
— A galeria de Olivia fica na Bury Street — avisou Gabriel. — É
possível que você trombe com ela.
— E Christopher vai trombar com Mikhail da próxima vez que nós...
— Sarah deixou o pensamento incompleto.
— Pode ficar um pouco incestuoso.
— Pode, mas vamos conseguir lidar. — Sarah sorriu com uma tristeza repentina. — Sempre conseguimos, não é, Gabriel?
Nesse momento, o BlackBerry dele vibrou. A pulsação distinta mostrou que era uma mensagem urgente do Boulevard Rei Saul.
— Alguma coisa séria? — perguntou Sarah.
— O Conselho de Aliança acabou de nomear Khalid como novo príncipe herdeiro.
— Que rápido. — De repente, o iPhone de Sarah também estava vibrando.
Ela sorriu ao ler a mensagem.
— Se for Keller, diga que quero falar com ele.
— Não é Keller, é Khalid.
— O que ele quer?
Ela entregou o telefone para Gabriel.
— Você.
82
TIBERÍADES
Em seu primeiro ato oficial após recuperar o posto de príncipe herdeiro, Khalid bin Mohammed cortou laços com a Federação Russa e expulsou todos os seus cidadãos do Reino da Arábia Saudita. Os analistas regionais aplaudiram sua ação. O velho Khalid, disseram, podia ter agido precipitadamente. Mas o novo tinha mostrado a astúcia e prudência de um estadista experiente. Claramente, especularam, havia uma voz mais sábia sussurrando em seu ouvido.
Em casa, ele passou rapidamente a desfazer os danos do breve reinado de seu tio — e alguns de seus próprios também. Ele soltou as ativistas feministas e apoiadores da reforma democrática. Libertou até um blogueiro popular que, como Omar Nawwaf, tinha feito críticas pessoalmente. Conforme a temida Mutaween se retirou da vida de Riad, a paz retornou. Um novo cinema abriu as portas. Jovens sauditas lotavam os cafés até tarde da noite.
Mas, na maior parte, as ações de Khalid foram recebidas com nova cautela. Sua corte real, embora cheia de legalistas preparados a fazer o que ele desejasse, continha vários tradicionalistas da velha guarda, sugerindo aos observadores do Oriente Médio que ele pretendia voltar à prática Al Saud de governar por consenso. Se o antigo KBM era um homem com pressa, o novo parecia favorecer o gradualismo à pressa. “Shwaya, shwaya” virou uma espécie de mantra oficial. Ainda assim, Khalid não era um governante com quem fosse bom se meter, como descobriu um reformista importante depois de vaiá-lo durante uma aparição pública. A pena de prisão de um ano deixou claro que havia limites à tolerância do novo governante com a dissidência. Ele era um déspota iluminado, disseram os observadores, mas mesmo assim, um déspota.
Sua conduta pessoal também mudou. Ele vendeu seu superiate e seu palácio na França, e devolveu vários bilhões de dólares aos homens que havia prendido no Ritz-Carlton. Também se despediu de boa parte de sua coleção de arte. Confiou a venda do Salvator Mundi à Isherwood Fine Arts, de Mason’s Yard, em Londres. Sarah Bancroft, ex-diretora do Museu
de Arte Moderna de Nova York, estava listada como a marchand do negócio.
A esposa dele, Asma, aparecia a seu lado em público, mas a princesa Reema, sua filha, tinha desaparecido de vista. Circulava um rumor de que estivesse matriculada numa escola exclusiva na Suíça. Logo foi descartado, porém, por uma denúncia publicada na revista alemã Der Spiegel. Com base, em parte, na reportagem de Omar Nawwaf, ela detalhava a série de acontecimentos que tinham levado à dramática queda em desgraça de Khalid e sua restauração final. O saudita, após vários dias de silêncio, deu uma confirmação chorosa da autenticidade do relato.
O que levou, principalmente no Ocidente, a outra grande reavaliação.
Talvez os russos, apesar de toda a sua imprudência, tivessem na verdade feito-lhes um favor. Talvez fosse hora de perdoar o jovem príncipe e o receber de volta no rebanho. De Washington a Wall Street, passando por Hollywood e pelo Vale do Silício, surgiu um grande clamor de todos os que o tinham rejeitado, implorando que ele voltasse. Um homem, porém, tinha ficado ao lado dele quando ninguém mais quis. Foi o convite desse homem, numa noite de verão abafada em junho, que Khalid aceitou.
O novo KBM, como o velho, estava eternamente atrasado. Gabriel o esperava às 17 horas, mas já eram quase 18h30 quando o Gulfstream dele pousou na base da Força Aérea Israelense em Ramat David. Ele emergiu sozinho da cabine, de blazer bem cortado e óculos escuros estilosos que brilhavam com o sol de fim de tarde. Gabriel ofereceu a mão a Khalid, mas de novo recebeu, em vez de um cumprimento, um abraço caloroso.
Após sair da base, passaram pela cidade de nascimento de Gabriel. Seus pais, explicou ele a Khalid, eram sobreviventes alemães do Holocausto.
Como todas as outras em Ramat David, a família Allon tinha morado numa pequena cabana de blocos de cimento. A deles era cheia de fotografias de entes queridos perdidos nos fogos da Shoah. Para escapar do luto de seu lar, Gabriel vagava pelo vale de Jezreel, a terra dada por Josué à tribo de Zebulom, uma das doze da antiga Israel. Ele passara a maior parte de sua vida adulta morando no exterior ou em Jerusalém. Mas o vale, contou a Khalid, sempre seria sua casa.
Enquanto iam na direção leste na rodovia 77, o telefone de Khalid apitava e vibrava sem parar. As mensagens eram da Casa Branca. Explicou
que o presidente e ele estavam planejando se encontrar brevemente em Nova York durante a reunião anual da Assembleia Geral da ONU, em setembro. Se tudo corresse bem, ele voltaria aos Estados Unidos, no outono, para uma cúpula formal em Washington.
— Parece que tudo está perdoado. — Ele olhou para Gabriel. —
Imagino que você não tenha tido nada a ver com isso?
— Os americanos não precisaram de nenhum encorajamento da minha parte. Estão ansiosos para normalizar as relações.
— Mas foi você que me tornou palatável de novo. — Ele hesitou. —
Omar Nawwaf e você. Aquele artigo na Der Spiegel levou embora a nuvem da minha cabeça de uma vez por todas.
Khalid finalmente desligou o telefone. Pelos trinta minutos seguintes, cruzando a Alta Galileia, ele deu a Gabriel um relatório muito impressionante — um tour guiado do Oriente Médio liderado por ninguém menos que o governante de facto da Arábia Saudita. A Diretoria de Inteligência Geral, DIG, estava ouvindo coisas promissoras do líder do Corpo da Guarda Revolucionária do Irã, algo sobre uma indiscrição financeira. As informações preliminares logo chegariam ao Boulevard Rei Saul. Khalid e a DIG também estavam animados para seu papel na Síria, no momento em que os americanos estavam indo na direção da saída.
Talvez a DIG e o Escritório pudessem começar um programa secreto para tornar a vida um pouco menos confortável na Síria para os iranianos e seus aliados do Hezbollah. Gabriel pediu que o saudita interviesse com o Hamas para parar os foguetes e mísseis que vinham de Gaza. Ele prometeu fazer o possível.
— Mas não espere muito. Aqueles malucos do Hamas me odeiam quase tanto quanto odeiam você.
— O que ficou sabendo sobre o plano de paz para o Oriente Médio do governo americano?
— Não muito.
— Talvez devêssemos criar nosso próprio plano de paz, você e eu.
— Shwaya, shwaya, meu amigo.
Enfim, chegaram à planície árida em que, numa tarde escaldante de julho de 1187, Saladin derrotou os exércitos sanguinários de Cruzados numa batalha que deixaria Jerusalém de novo em mãos muçulmanas. Logo depois, viram o mar da Galileia. Foram para o norte pela beira-mar, até chegarem a uma villa que parecia uma fortaleza empoleirada no topo de
uma escarpa rochosa. Havia vários sedans e SUVs estacionados no caminho íngreme da entrada.
— Onde estamos? — perguntou Khalid.
Gabriel abriu sua porta e desceu.
— Venha comigo. Vou mostrar.
Ari Shamron estava no hall de entrada. Ele avaliou Khalid cuidadosamente antes de, enfim, estender uma das mãos com manchas senis.
— Nunca achei que esse dia fosse chegar.
— Não chegou — respondeu Khalid, com ares de conspiração. — Não oficialmente, pelo menos.
Shamron gesticulou para a sala de estar, onde estava reunida a maioria da equipe sênior do Escritório — Eli Lavon, Yaakov Rossman, Dina Sarid, Rimona Stern, Mikhail Abramov, Natalie Mizrahi, Uzi e Bella Navot.
Chiara e as crianças estavam de pé ao lado de um cavalete de carvalho.
Sobre ele, uma pintura coberta com uma baeta preta.
Khalid olhou perplexo para Gabriel.
— O que é isso?
— Algo para substituir aquele seu Leonardo.
Gabriel fez um gesto para Raphael e Irene. Com ajuda de Chiara, eles removeram o véu negro. Khalid se balançou de leve e colocou a mão no coração.
— Meu Deus — sussurrou.
— Desculpe, eu deveria ter avisado.
— Ela parece... — A voz de Khalid sumiu. Ele esticou a mão na direção do rosto de Reema, depois na direção da carta. — O que é?
— Uma mensagem para o pai dela.
— O que diz?
— Isso é entre vocês.
Khalid estudou o canto inferior direito da tela.
— Não tem assinatura.
Khalid levantou os olhos.
— É famoso, o artista?
Gabriel deu um sorriso triste.
— Em alguns círculos.
Comeram ao ar livre no terraço, observados pelo retrato de Reema. A refeição era um banquete suntuoso de cozinhas israelense e árabe, incluindo o famoso frango com temperos marroquinos de Gilah Shamron, que Khalid decretou ser o melhor prato que ele já comera. Discretamente, recusou a oferta de vinho de Gabriel. Ele logo seria guardião das duas mesquitas sagradas de Meca e Medina, explicou. Seus dias de consumo de álcool, mesmo moderado, tinham chegado ao fim.
Cercado por Gabriel e seus chefes de divisão, Khalid falou não do passado, mas do futuro. A estrada à frente, alertou, seria difícil. Apesar de todas as riquezas, seu país era tradicional, retrógrado e, em muitas coisas, bárbaro. Além do mais, havia outra Primavera Árabe chegando. Ele deixou claro que nunca toleraria uma rebelião aberta contra seu governo. Pediu-lhes que fossem pacientes, mantivessem expectativas realistas e tornassem a vida tolerável para os palestinos. De alguma forma, algum dia, a ocupação de terras árabes tinha que acabar.
Pouco antes das 23 horas, soaram sirenes à beira do lago. Depois, um foguete do Hezbollah fez um arco sobre as colinas de Golã e, da bateria da Cúpula de Ferro na Galileia, um míssil subiu para encontrá-lo. Depois, Gabriel e Khalid ficaram parados sozinhos na balaustrada do terraço, observando uma única embarcação patrulhando o lago, sua popa iluminada por uma luz de navegação verde.
— É bem pequeno — comentou Khalid.
— O lago?
— Não, o barco.
— Provavelmente, não tem uma discoteca.
— Nem uma sala de neve.
Gabriel riu baixinho.
— Você sente falta?
Khalid negou.
— Só sinto falta da minha filha.
— Espero que o retrato ajude.
— É o quadro mais lindo que já vi. Mas você precisa me deixar pagar por ele.
Gabriel balançou a mão, indicando que não precisava.
— Então, me deixe dar isto a você. — Khalid segurou um pendrive.
— O que é?
— Uma conta na Suíça com cem milhões de dólares.
— Tenho uma ideia melhor. Use o dinheiro para construir a Escola Omar Nawwaf de Jornalismo em Riad. Treine a próxima geração de repórteres, editores e fotógrafos árabes. Depois, dê a eles liberdade para escrever e publicar o que quiserem, não importa se machucar seus sentimentos.
— É só isso mesmo que você quer?
— Não — disse Gabriel. — Mas é um bom começo.
— Na verdade, eu estava planejando começar em outro lugar. — Khalid guardou o pendrive no bolso do blazer. — Preciso fazer uma coisa antes de virar rei. Esperava que você estivesse disposto a fazer o papel de intermediário.
— No que está pensando?
Khalid explicou.
— Não é muito difícil encontrá-la — falou Gabriel. — É só mandar um e-mail.
— Já mandei. Vários, aliás. Ela não responde. E também não atende minhas ligações.
— Nem imagino por quê.
— Talvez você possa abordá-la por mim.
— Por que eu?
— Parece ter uma boa relação com ela.
— Eu não iria tão longe.
— Consegue providenciar isso?
— Um encontro? — Gabriel balançou a cabeça. — É uma má ideia, Khalid.
— Minha especialidade.
— Ela está com raiva demais. Deixe passar um pouco mais de tempo.
Ou melhor, deixe que eu cuido disso para você.
— Você não conhece muito bem os árabes, né?
— Estou aprendendo mais a cada dia.
— É parte essencial da nossa cultura — explicou Khalid. — Preciso fazer a reparação pessoalmente.
— Dinheiro de sangue?
— Uma expressão infeliz. Mas, sim, dinheiro de sangue.
— O que você precisa fazer — disse Gabriel — é aceitar total responsabilidade pelo que aconteceu em Istambul e garantir que nunca mais volte a acontecer.
— Não vai.
— Diga isso a ela, não a mim.
— Pretendo dizer.
— Nesse caso — falou Gabriel —, aceito. Mas se algo der errado, que caia sobre a sua cabeça.
— Isso é um provérbio judeu? — Khalid olhou para seu relógio. —
Está tarde, meu amigo. Talvez seja minha hora de ir.
83
BERLIM
Gabriel ligou para ela na manhã seguinte e deixou uma mensagem na caixa postal. Uma semana se passou antes de ela se dar ao trabalho de ligar de volta, um começo nada promissor. Sim, disse após ouvir a proposta dele, ela estaria disposta a ouvir Khalid. Mas a última coisa que ele deveria esperar dela era uma absolvição. Ela também não estava interessada em dinheiro de sangue. Quando Gabriel contou-lhe sobre sua ideia, ela ficou cética.
— É mais fácil os palestinos terem um Estado independente do que Khalid abrir uma escola de jornalismo em Riad com o nome de Omar.
Ela insistiu que o encontro acontecesse em Berlim. A embaixada, claro, estava fora de questão, e ela não ficava confortável com a ideia de ir à residência do embaixador ou mesmo a um hotel. Foi Khalid quem sugeriu o apartamento que ela antes dividia com Omar em Mitte, antigo bairro de Berlim Oriental. Os agentes dele tinham sido visitantes regulares e o conheciam bem. Mesmo assim, uma busca completa — uma pilhagem, na verdade — seria necessária antes da chegada dele. Não haveria registros do encontro nem comunicados públicos depois. E não, ele não aceitaria bebidas de nenhum tipo. Tinha medo de que os russos estivessem tentando matá-lo da mesma forma como haviam feito com seu tio. O medo, pensou Gabriel, era inteiramente justificado.
E foi assim que, numa tarde quente e sem vento em Berlim no início de julho, com as folhas murchas nas tílias e as nuvens baixas e escuras no céu, uma fileira de automóveis Mercedes chegou como uma procissão funerária na rua sob a janela de Hanifa Khoury. Franzindo o cenho, ela olhou a hora. Eram 15h30. Ele estava uma hora e meia atrasado.
Fuso horário KBM...
Várias portas de carro se abriram. De uma delas, saiu Khalid. Enquanto ele cruzava a calçada até a entrada do prédio, foi seguido por um único guarda-costas. Não tinha medo, pensou Hanifa. Confiava nela, da forma como ela tinha confiado nele naquela tarde em Istambul. A tarde em que vira Omar pela última vez.
Ela se afastou da janela e examinou a sala de estar do apartamento.
Havia fotografias de Omar por todo canto. Omar em Bagdá. Omar no Cairo. Omar com Khalid.
Omar em Istambul...
Naquela manhã, uma equipe da Embaixada Saudita tinha destruído o apartamento, buscando o quê, não disseram. Mas não tinham checado o grande vaso de flores de cerâmica no terraço com vista para o pátio interno. Tinham, sim, brutalizado os gerânios de Hanifa, mas deixado de fuçar o solo úmido.
O objeto que ela havia escondido ali, embrulhado num pano oleoso, guardado num ziplock de plástico, estava na palma da sua mão. Ela o tinha conseguido com Tariq, um garoto problemático da comunidade palestina que cometia pequenos crimes, rapper fracassado, delinquente. Tinha dito a Tariq que era para uma reportagem em que estava trabalhando para a ZDF.
Ele não acreditou nela.
O prédio era antigo, e o elevador, instável. Dois ou três minutos se passaram antes de ela ouvir duas pisadas masculinas duras e pesadas no corredor. Uma voz de homem, também. A voz do demônio. Soava como se ele estivesse ao telefone. Falando com o israelense, esperava ela. Que poesia perfeita, pensou. O próprio Darwish não poderia ter escrito melhor.
Ao se encaminhar para o hall, ela viu Omar entrando no consulado às 13h14. Só lhe restava imaginar o que tinha acontecido depois. Será que haviam fingido um breve momento de cordialidade ou o atacado imediatamente como feras selvagens? Esperaram até ele estar morto antes de o despedaçarem ou ele ainda estava vivo e consciente quando a lâmina cortou sua pele? Tal ato não podia ser perdoado, apenas vingado. Khalid sabia disso melhor do que ninguém. Afinal, ele era árabe. Filho do deserto.
Ainda assim, ia na direção dela com um único guarda-costas para protegê-
lo. Talvez ainda fosse o mesmo KBM inconsequente, no fim das contas.
Por fim, a batida. Hanifa alcançou a maçaneta. O guarda-costas se lançou à frente e o demônio escondeu o rosto. Omar, pensou Hanifa ao levantar a arma e atirar. A senha é Omar...
NOTA DO AUTOR
A herdeira é uma obra de entretenimento e não deve ser lida como nada mais do que isso. Os nomes, personagens, lugares e incidentes retratados na história são produto da imaginação do autor ou foram usados de forma fictícia.
A Escola Internacional de Genebra retratada no livro não existe e não deve, de forma alguma, ser confundida com a Ecole Internationale Genève, instituição fundada em 1924 com ajuda da Liga das Nações.
Visitantes do Museu de Arte Moderna de Nova York verão inúmeras obras extraordinárias, incluindo A Noite Estrelada, de Van Gogh, mas nada sob o título de Coleção Nadia al-Bakari. As histórias de Zizi e Nadia al-Bakari são contadas em A inflitrada, publicado originalmente em 2006, e na sua sequência, Retrato de uma espiã. Sarah também aparece em O aliado oculto, As regras de Moscou e O desertor. Gostei de seu retorno ao mundo secreto tanto quanto ela.
Manipulei os horários de aviões e trens para adequar-se às necessidades de minha narrativa, bem como o tempo de acontecimento de eventos do mundo real. O retrato, em A herdeira, do incrível roubo de arquivos nucleares iranianos pela Mossad é inteiramente especulativo, e não se baseia em nenhuma informação que eu tenha recebido de fontes israelenses ou americanas. Tenho certeza de que a Mossad não planejou nem supervisionou a operação real de um prédio anônimo localizado no Boulevard Rei Saul em Tel Aviv, já que essa é a localização apenas do meu
“Escritório” fictício. O capítulo 7 deste livro contém uma referência não tão velada à localização verdadeira da sede da Mossad, que, como o endereço de Gabriel Allon na rua Narkiss, é um dos segredos mais mal guardados de Israel.
Não há unidade de contraterrorismo francesa conhecida como Grupo Alpha, pelo menos não que eu conheça. Um ótimo estabelecimento chamado Brasserie Saint-Maurice ocupa o térreo de uma velha casa na Annecy medieval, e o popular Café Remor tem vista para a place du Cirque em Genebra. Ambos costumam estar livres de agentes de inteligência e assassinos, bem como a charmosa Plein Sud na avenue du Général Leclerc, em Carcassonne. Natural High é o nome do pavilhão na
praia na adorável cidade de veraneio holandesa de Renesse. Até onde sei, nem Gabriel Allon, nem Rebecca Philby jamais puseram os pés lá.
Não é aconselhável tentar reservar um quarto no Bedford House nem no East Anglia Inn em Frinton-on-Sea, pois nenhum dos dois existe. Há, de fato, uma marina às margens do rio Twizzle, em Essex, mas o brutal assassinato do guarda por Nikolai Azarov podia muito bem ter sido testemunhado por clientes do restaurante Harbour Lights. Pouco antes de entrar no Dorchester, em Londres, Christopher Keller tomou emprestada uma fala da versão cinematográfica de 007 contra o satânico Dr. No para descrever a potência de uma pistola Walther PPK. Devotos de F. Scott Fitzgerald devem ter notado que Gabriel e Sarah Bancroft trocam duas falas de O grande Gatsby enquanto jantam num restaurante italiano perto da esquina da Second Avenue com a East Sixty-Fourth Street, em Manhattan. Há rumores de que o restaurante seja o Primola, meu favorito no Upper East Side.
É verdade que visitantes do número 10 da Downing Street, muitas vezes, veem um gato malhado marrom e branco à espreita perto da famosa porta preta. O nome dele é Larry, e ele foi agraciado com o título de Caçador de Ratos Chefe do Escritório do Gabinete. Peço desculpas ao proprietário da casa de St. Luke’s Mews, 7 em Notting Hill por transformar seu lar numa casa segura do MI6, e aos ocupantes dos números 70 e 71 da Eaton Square por usar suas elegantes propriedades como cenário de um assassinato russo. Estou confiante de que nenhum primeiro-ministro britânico ou chefe do MI6, caso soubessem de tal plano, teriam permitido que acontecesse, mesmo que o resultado final fosse um desastre estratégico e de relações públicas para o presidente russo e seus serviços de inteligência.
Escolhi não identificar o veneno radioativo usado por meus assassinos russos fictícios. Suas propriedades mortais, porém, são claramente similares ao polônio-210, elemento químico altamente radioativo usado em novembro de 2006 no assassinato de Alexander Litvinenko, ex-oficial de inteligência russo e dissidente que morava em Londres. A reação débil da Inglaterra ao uso de uma arma de destruição em massa em seu solo sem dúvidas encorajou o Kremlin a mirar em um segundo russo vivendo no país, Sergei Skripal, em março de 2018. Ex-oficial do GRU, o serviço de inteligência do exército russo, e agente duplo, Skripal sobreviveu após ser exposto ao agente nervoso Novichok, da era soviética. Mas Dawn
Sturgess, de 44 anos, mãe de três filhos que morava perto de Skripal na cidade de Salisbury, morreu quatro meses depois do ataque inicial, uma vítima colateral da guerra do presidente russo Vladimir Putin contra a dissidência. Não é surpreendente que Putin tenha ignorado um pedido do filho da mulher para que autoridades britânicas interrogassem os dois assassinos russos suspeitos.
Não existe o Centro de Dados Real em Riad, mas há algo bem parecido: o ridiculamente chamado Centro para Estudos e Assuntos de Mídia (Center for Studies and Media Affairs, em inglês). Chefiado por Saud al-Qahtani, cortesão e confidente próximo do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, o centro obteve seu arsenal inicial de armas cibernéticas sofisticadas de uma firma italiana chamada Hacking Team. Depois, adquiriu software e expertise da DarkMatter, baseada nos Emirados Árabes, e do NOS Group, uma empresa israelense que, supostamente, emprega veteranos da Unidade de Inteligência 8200, o serviço de espionagem eletrônica e ciberguerra. Segundo o The New York Times, a DarkMatter também contratou graduados da Unidade 8200, além de vários americanos previamente empregados pela CIA e a NSA. Aliás, consta que um dos principais executivos da empresa trabalhou em algumas das operações cibernéticas mais avançadas da NSA.
Saud al-Qahtani supervisionava mais que o Centro para Estudos e Assuntos de Mídia. Também liderou o Grupo de Intervenção Rápida saudita, unidade clandestina responsável pelo brutal assassinato e desmembramento de Jamal Khashoggi, jornalista saudita dissidente e colunista do Washington Post. Onze sauditas estão enfrentando acusações criminais pelo crime, que foi executado dentro do consulado saudita em Istambul em outubro de 2018. Oficiais do país árabe alegaram, entre outras coisas, que os agentes agiram de forma unilateral. A CIA, porém, concluiu que o assassinato foi ordenado por ninguém menos que o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman.
Não pela primeira vez, o presidente Donald Trump discordou das descobertas de sua comunidade de inteligência. Num comunicado escrito, ele repetiu as alegações sauditas de que Khashoggi era um “inimigo de Estado” e membro da Irmandade Muçulmana, antes de, aparentemente, absolver MBS de ser cúmplice na morte do jornalista. “Pode muito bem ser que o príncipe herdeiro tivesse conhecimento desse acontecimento
trágico — talvez tivesse e talvez não tivesse.” E continuou: “Em todo caso, nosso relacionamento é com o Reino da Arábia Saudita.”
Mas o país não é uma democracia com instituições entrincheiradas. É
uma das últimas monarquias absolutistas do mundo. E, a não ser que haja outra mudança na linha sucessória, será governada, talvez por décadas, pelo comprovadamente inconsequente Mohammed bin Salman. Meu príncipe herdeiro saudita fictício — um KBM educado no Ocidente e falante de inglês —, no fim, era uma figura capaz de redenção. Receio que Mohammed bin Salman não possa ser restaurado. Sim, ele fez reformas modestas, incluindo dar às mulheres o direito de dirigir, algo há muito proibido no retrógrado reino. Mas, ao mesmo tempo, impôs uma ofensiva dura contra dissidentes sem paralelo na história saudita recente. MBS
prometeu mudanças. Em vez disso, entregou instabilidade à região e repressão em casa.
Por enquanto, o relacionamento entre Estados Unidos e Arábia Saudita parece congelado, e MBS está viajando pelo mundo em busca de amigos.
Xi Jinping, da China, recebeu-o em Pequim no início de 2019. Numa cúpula do G20 em Buenos Aires, MBS trocou um indecoroso “high five”
com Vladimir Putin. Uma fonte próxima ao príncipe herdeiro me disse que o cumprimento efusivo era uma mensagem aos críticos do monarca no Congresso norte-americano. A Arábia Saudita, segundo ele, já não contava mais só com a proteção dos americanos. A Rússia estava esperando por ele de braços abertos, sem mais questionamentos.
Uma década atrás, um alerta tão explícito teria sido vazio. Não mais. A intervenção de Putin na Síria tornou a Rússia novamente uma potência a ser temida no Oriente Médio, e os amigos tradicionais dos Estados Unidos notaram. O pai de MBS, rei Salman, fez uma única viagem ao exterior. Foi a Moscou. O emir do Catar envergonhou o governo Trump parando em Moscou na véspera de uma visita a Washington. Al-Sisi, do Egito, visitou a capital russa quatro vezes. Benjamin Netanyahu também. Até Israel, aliado mais próximo dos Estados Unidos no Oriente Médio, está se protegendo como pode na região. A Federação Russa é poderosa demais para ser ignorada.
Mas um líder saudita quebraria o laço histórico com os Estados Unidos e se inclinaria na direção da Rússia? Uma versão disso já começou, e é Mohammed bin Salman que está se inclinando para Moscou. A relação entre americanos e sauditas nunca foi baseada em valores comuns, apenas
em petróleo. MBS sabe muito bem que os Estados Unidos, agora grande produtor de energia, já não precisam do petróleo saudita como antes. No país de Putin, porém, ele encontrou um parceiro para ajudar a lidar com o fornecimento global de óleo e seu importantíssimo preço. Também achou, se necessário, uma fonte de armas e um canal valioso até os xiitas iranianos. E, talvez, o mais importante de tudo: MBS pode descansar tranquilo sabendo que seu novo amigo nunca o criticará por matar um jornalista enxerido. Afinal, os russos também são muito bons nisso.
51
FLORESTA DE EPPING, ESSEX
Quando Charles Bennett saiu de sua residência na Albion Road às 9h30
de sábado, vestia um anoraque à prova d’água azul-escuro e calças de tecido de secagem rápida. Pendurada em um dos ombros havia uma mochila de nylon, e, na mão direita, ele segurava um bastão de caminhada de carbono. Um andarilho dedicado, Bennett tinha feito trilhas por boa parte das ilhas Britânicas. Nos fins de semana, precisava se virar com algumas das muitas excelentes trilhas perto da Grande Londres. Hester, que considerava jardinagem um exercício, nunca o acompanhava. Bennett não ligava; preferia ficar sozinho. Nisso, pelo menos, os dois eram totalmente compatíveis.
O destino de Bennett naquela manhã era uma das trilhas na Floresta de Epping, antigo bosque que ia de Wanstead, ao leste de Londres, a Essex, ao norte. O caminho se estendia por mais de dez quilômetros pela parte mais alta da floresta, perto do vilarejo de Theydon Bois. Bennett dirigiu até lá no sedan sueco de Hester. Estacionou na estação de metrô e, violando as regras do serviço, deixou seu BlackBerry do MI6 no porta-luvas. Com o bastão em mãos e a mochila nas costas, seguiu pela Coppice Row.
Passou por algumas lojas e restaurantes, pela prefeitura do vilarejo e pela igreja matriz. Uma névoa fina pairou sobre Theydon Plain, como a fumaça de uma batalha distante e então a floresta o engoliu. A trilha era larga e com solo regular, coberta de folhas caídas. À frente, da penumbra, emergiu uma mulher de cerca de 40 anos que, sorrindo, desejou-lhe uma boa manhã. Ela o lembrou de Magda.
Magda...
Ele a conhecera no Rose & Crowe, certa noite, ao parar para tomar uma cerveja em vez de ir direto para casa encontrar o abraço frio de Hester. Ela havia acabado de imigrar da Polônia, ou assim dissera. Era uma mulher linda, recém-divorciada, com pele branca e uma boca larga que sorria com facilidade. Alegou que esperava uma pessoa — “uma amiga, não um homem” — atrasada. Bennett achou suspeito. Mesmo assim, tomou um segundo drinque com ela. E quando a “amiga” mandou mensagem dizendo que tinha que cancelar, ele concordou em andar com Magda até a casa
dela. Ela o levou para o Clissold Park e o empurrou contra uma árvore perto da antiga igreja. Antes de Bennett conseguir reagir, sua braguilha estava aberta e ela o engoliu.
Ele sabia o que viria. De fato, imaginou saber desde o momento em que colocou os olhos nela. Aconteceu uma semana depois. Um carro parou ao lado dele em Stamford Hill, alguém o chamou com a mão por uma janela traseira aberta. Era a mão de Yevgeny. Segurava uma fotografia.
— Que tal aceitar uma carona? É uma noite horrível para se estar a pé.
Bennett chegou a uma lata de lixo. A marca de giz na base estava claramente visível. Ele saiu da trilha e abriu caminho entre as árvores densas e a vegetação rasteira. Yevgeny estava com as costas apoiadas no tronco de uma bétula, com um cigarro apagado quase caindo dos lábios.
Parecia genuinamente feliz de ver o inglês. O russo era um canalha cruel, como a maioria dos oficiais do SVR, mas podia ser agradável quando lhe convinha. Bennett tinha a mesma habilidade. Eram dois lados da mesma moeda. Bennett, num momento de fraqueza, tinha permitido que Yevgeny ficasse com a vantagem. Mas, quem sabe, um dia seria Yevgeny o obrigado a entregar os segredos de seu país por causa de um delito pessoal.
Era assim o jogo. Só precisava de um único deslize.
— Tomou cuidado? — perguntou o russo.
Bennett fez que sim.
— E você?
— Os idiotas do A4 tentaram me seguir, mas os despistei em Highgate.
— A4 eram os artistas de vigilância do MI5, o serviço de segurança e contrainteligência britânico. — Sabe, Charles, eles realmente precisam melhorar um pouco. Chegou ao ponto de não ser nem esportivo.
— Você tem mais oficiais de inteligência em Londres agora do que na época da Guerra Fria. O A4 está sobrecarregado.
— Quanto mais, melhor. — Yevgeny acendeu seu cigarro. — Dito isso, não podemos demorar por aqui. O que você tem?
— Uma operação que seus superiores em Moscou talvez achem interessante.
— De que tipo?
— Um recrutamento de longo prazo de um ativo em alto escalão.
— Russo?
— Casa de Saud — respondeu Bennett. — A fonte está trabalhando para nós há vários anos. Ele nos informa regularmente sobre questões
familiares internas e desenvolvimentos políticos dentro do reino.
— Você é o controlador do Oriente Médio, Charles. Por que só estou sabendo disso agora?
— A fonte foi recrutada e era controlada pela Estação de Londres. Só fiquei sabendo dele nesta semana.
— Por quem?
— Pelo próprio “C”.
— Por que Graham decidiu informá-lo agora?
— Porque o ativo de alto escalão virá a Londres em algumas semanas para uma visita oficial.
— Do que está falando?
— O Príncipe Herdeiro Abdullah, próximo rei da Arábia Saudita, é um ativo do MI6. Somos donos dele, Yevgeny. Ele é nosso.
52
MOSCOU
O sonho chegou a Rebecca, como sempre, nas últimas horas antes do alvorecer. Ela estava submersa em águas rasas, perto do leito de um rio americano ladeado de árvores. Um rosto pairava acima dela, borrado, indistinto, contorcido de raiva. Gradualmente, conforme ela começou a perder consciência, o rosto recuou na escuridão, e o pai dela apareceu.
Rebecca, minha q-q-querida, precisamos discutir algo...
Ela se sentou na cama de uma vez, ofegante. Através da janela sem cortinas de seu quarto, conseguia ver uma estrela vermelha acima do Kremlin. Mesmo agora, nove meses após sua chegada a Moscou, a vista a surpreendia. Parte dela ainda esperava acordar toda manhã na pequena casa na Warren Street, no norte de Washington, onde havia morado durante seu último posto no MI6. Se não fosse pelo homem do seu sonho — aquele que quase a afogara no rio Potomac —, ela ainda estaria lá. Podia até ser diretora do serviço secreto britânico.
O céu acima do Kremlin estava preto, mas, ao checar o horário em seu telefone do SVR, ela viu que eram quase sete da manhã. A previsão para Moscou era de pouca neve e máxima de doze graus abaixo de zero; estava começando a esquentar. Rebecca jogou a roupa de cama para o lado e, tremendo, colocou o roupão e foi até a cozinha.
Era clara e moderna, cheia de eletrodomésticos brilhantes de fabricação alemã. O SVR tinha sido justo com ela — um apartamento grande perto das muralhas do Kremlin, uma datcha no interior, um carro com motorista. Tinham até lhe concedido um destacamento de segurança.
Rebecca não se iludia sobre o motivo de ter recebido um benefício reservado apenas para os oficiais mais graduados do serviço de inteligência russo. Ela nascera e fora criada para ser espiã de sua terra natal, tinha trabalhado para a Rússia durante uma carreira longa e bem-sucedida no MI6. Mesmo assim, não confiavam totalmente nela. No Centro de Moscou, onde ela se apresentava todos os dias para o trabalho, referiam-se a ela, de forma pejorativa, como novaya devushka: a herdeira.
Ela ligou a máquina automática; e, quando ela tossiu ruidosamente e cuspiu o que sobrava de café, Rebecca o bebeu numa xícara grande com
espuma de leite vaporizado, como fazia na infância em Paris. Seu nome, na época, era Bettencourt — Rebecca Bettencourt, filha ilegítima de Charlotte Bettencourt, comunista e jornalista francesa que, no início dos anos 1960, havia morado em Beirute, onde teve um breve caso com um correspondente freelancer casado que escrevia para os veículos Observer e The Economist. Manning era o nome que Rebecca assumiu quando sua mãe, por ordem da KGB, casara-se com um homossexual da alta classe inglesa para que sua filha tivesse cidadania britânica e fosse aceita em Oxford ou, de preferência, em Cambridge. Publicamente, Manning ainda era o sobrenome pelo qual a espiã era conhecida de forma infame. Dentro do Centro de Moscou, porém, era chamada pelo nome de seu pai, Philby.
Rebecca apontou o controle remoto para a televisão, e, alguns segundos depois, a BBC apareceu na tela. Por motivos profissionais, seus hábitos midiáticos tinham permanecido decididamente britânicos. Rebecca trabalhava no Departamento do Reino Unido do Diretorado. Era essencial que ela se mantivesse atualizada nas notícias de Londres. Nesses dias, quase todas eram ruins. O Brexit, clandestinamente apoiado pelo Kremlin, era uma calamidade nacional. A Grã-Bretanha logo seria uma sombra de si mesma, incapaz de qualquer resistência significativa à influência cada vez mais ampla da Rússia e ao seu poder militar crescente. Rebecca tinha prejudicado a Inglaterra de dentro do Serviço Secreto de Inteligência. Seu trabalho então passara a ser acabar com seu antigo país de trás de uma mesa no Centro de Moscou.
Passando os olhos pelas manchetes de Londres no telefone, Rebecca fumou o primeiro L&B do dia. Seu consumo de cigarros tinha crescido muito desde a chegada à Rússia. A rezidentura de Londres os comprava em pacotes de uma loja em Bayswater e os enviava por malote ao Centro de Moscou. Seu consumo de Black Label, que ela comprava com grande desconto na cooperativa militar do SVR, também tinha aumentado. Era só o clima do inverno, garantiu a si mesma. A melancolia passaria quando o verão chegasse.
Em seu quarto, Rebecca retirou do armário um terninho escuro e uma blusa branca, e os colocou na cama desarrumada. Como os cigarros L&B, os lençóis vinham de Londres. Involuntariamente, ela tinha caído nos velhos hábitos de seu pai. Ele nunca se ajustou de verdade à vida em Moscou. Ouvia as notícias de casa na BBC Internacional, seguia os resultados do críquete no Times, passava geleia inglesa na torrada e
mostarda inglesa nas salsichas e bebia Red Label, quase sempre até desmaiar. Quando criança, Rebecca testemunhara os porres homéricos de seu pai durante suas visitas clandestinas à Rússia. Ela o amava mesmo assim. Até hoje. Era o rosto dele que ela via quando examinava sua própria aparência no espelho do banheiro. O rosto de uma traidora. O rosto de uma espiã.
Vestida, Rebecca se empacotou num sobretudo e cachecol de lã, e desceu de elevador até o lobby. O motorista de sua Mercedes sedan a aguardava na rua Sadovnicheskaya. Ela ficou surpresa ao encontrar Leonid Ryzhkov, seu superior imediato no Centro de Moscou, no banco de trás.
Ela se abaixou para entrar e fechou a porta.
— Algum problema?
— Depende.
O motorista fez um retorno fechado e acelerou rapidamente. O Centro de Moscou ficava na direção oposta.
— Aonde estamos indo? — perguntou Rebecca.
— O chefe quer dar uma palavrinha.
— O diretor?
— Não — respondeu Ryzhkov. — O chefe.
53
O KREMLIN
Mal se via a estrela vermelha em cima da Torre Borovitskaya, entrada comercial do Kremlin, sob a neve que caía. O motorista parou num pátio em frente ao Grande Palácio Presidencial, e Rebecca e Leonid Ryzhkov correram para dentro. O presidente os esperava lá em cima, atrás das portas douradas de seu escritório. Levantando-se, ele saiu de sua mesa com seu caminhar característico, braço direito esticado ao lado e esquerdo balançando mecanicamente. Seu terno azul lhe caía com perfeição, e algumas mechas de cabelo louro-acinzentado estavam penteadas cuidadosamente por cima de sua careca. Seu rosto, inchado, liso e bronzeado da viagem anual de esqui a Courchevel, mal parecia humano.
Os olhos eram muito repuxados, dando a ele uma vaga aparência de ser da Ásia Central.
Rebecca esperava uma recepção calorosa — não encontrava o presidente desde a coletiva de imprensa do Kremlin anunciando sua chegada a Moscou —, mas ele só lhe ofereceu um aperto de mão profissional antes de gesticular com indiferença para os sofás. Mordomos entraram, chá foi servido. Então, sem preâmbulo, a autoridade máxima da Rússia entregou a Rebecca uma cópia de um telegrama do SVR. Tinha sido transmitido ao Centro de Moscou, durante a noite, por Yevgeny Teplov, da rezidentura de Londres. O assunto era uma reunião clandestina de Teplov com um agente de codinome Chamberlain. Seu nome real era Charles Bennett. Rebecca, ainda no MI6, escolhera-o como alvo de comprometimento sexual e recrutamento.
O russo dela tinha melhorado muitíssimo desde sua chegada a Moscou.
Mesmo assim, ela leu o telegrama lentamente. Quando levantou o olhar, o presidente a estudava sem expressão. Era como ser contemplada por um cadáver.
— Quando você planejava nos contar? — perguntou ele, por fim.
— Contar o quê?
— Que o Príncipe Herdeiro Abdullah é, há muito tempo, um ativo da inteligência britânica.
Uma vida inteira de mentiras e traições permitiu que Rebecca escondesse seu desconforto por ser interrogada pelo homem mais poderoso do mundo.
— Enquanto eu estava no MI6 — disse ela —, não fiquei sabendo da relação entre Vauxhall Cross e o Príncipe Abdullah.
— Você estava a um passo de se tornar diretora-geral do MI6. Como podia não saber?
— É chamado de Serviço Secreto de Inteligência por um motivo. Eu não tinha necessidade de saber. — Rebecca devolveu o telegrama. — Além do mais, não deveria ser um choque o MI6 ter ligações com um príncipe saudita que passava a maior parte do tempo em Londres.
— A não ser quando o príncipe saudita deveria estar trabalhando para mim.
— Abdullah? — O tom de Rebecca era incrédulo.
As instruções dela eram estritamente limitadas ao Reino Unido. Mesmo assim, tinha acompanhado a queda espetacular de KBM com mais do que um interesse passageiro. Nunca imaginou que o Centro de Moscou tivesse um dedo naquilo. Nem o presidente.
Como sempre, ele sentou-se de forma desleixada na cadeira. Seu queixo estava baixo, o olhar voltado ligeiramente para cima. De algum jeito, ele conseguia transmitir ao mesmo tempo tédio e ameaça. Rebecca imaginou que ele praticasse a expressão no espelho.
— Suponho — disse ela, após um momento — que a abdicação de Khalid não tenha sido voluntária.
— Não. — O presidente deu um meio sorriso. Depois, a vida sumiu mais uma vez de sua expressão. — Nós o encorajamos a abrir mão de seu direito ao trono.
— Como?
O presidente lançou um olhar para Ryzhkov, que narrou para Rebecca a operação que levara à remoção do príncipe herdeiro da linha sucessória.
Era monstruosa, não havia outra palavra. Mas, claro, ela sempre soubera que os russos não seguiam as mesmas regras dos britânicos.
— Tivemos muito trabalho para tornar Abdullah o próximo rei da Arábia Saudita — disse Ryzhkov. — Mas agora parece que fomos enganados. — Ele balançou o telegrama de Londres de forma dramática, como um advogado num tribunal. — Ou talvez esta seja a enganação.
Talvez o MI6 esteja usando de novo seus velhos truques. Talvez queiram que a gente pense que Abdullah esteja trabalhando para eles.
— Por que fariam isso?
Foi o presidente quem respondeu.
— Para desacreditá-lo, é claro. Para nos fazer desconfiar dele.
— Graham é um policial superestimado. Não é capaz de algo tão inteligente.
— Ele a desmascarou, não foi?
— Quem me encontrou foi o Allon, não Graham.
— Ah, sim. — A raiva passou brevemente pelo rosto do presidente. —
Receio que ele também esteja envolvido nisto.
— O israelense?
O presidente assentiu.
— Depois de sequestrarmos a menina, Abdullah nos contou que o sobrinho tinha buscado a ajuda de Allon.
— Teria sido sábio matar ele, em vez da filha de Khalid.
— Tentamos. Infelizmente, as coisas não saíram exatamente como planejado.
Rebecca pegou o telegrama da mão de Ryzhkov e o releu.
— Me parece que Abdullah está se vendendo para os dois lados. Ele pegou seu dinheiro e seu apoio quando precisou. Mas agora que as chaves do reino estão ao seu alcance...
— Ele decidiu ser um homem independente?
— Ou um homem de Londres — disse Rebecca.
— E se ele for mesmo um ativo britânico? O que fazemos? Deixo que ele leve bilhões de dólares meus sem retaliação? Deixo os britânicos rirem nas minhas costas? Dou o mesmo privilégio a Allon?
— Claro que não.
Ele levantou a mão.
— Então, o quê?
— Sua única escolha é remover Abdullah da linha sucessória.
— Como?
— De uma forma que prejudique ao máximo a credibilidade e o prestígio britânicos.
O sorriso do presidente pareceu quase genuíno.
— Fico aliviado de ouvi-la dizendo isso.
— Por quê?
— Porque se tivesse sugerido deixar Abdullah onde está, eu teria duvidado de sua lealdade à pátria. — Ele ainda estava sorrindo. —
Parabéns, Rebecca. Conseguiu o trabalho.
— Que trabalho?
— Livrar-se de Abdullah, é claro.
— Eu?
— Quem melhor para executar uma grande operação em Londres?
— Não é o tipo de coisa que eu faça.
— Você não é diretora do Departamento do Reino Unido do SVR?
— Vice-diretora.
— Sim, claro. — O presidente olhou de relance para Leonid Ryzhkov.
— Erro meu.
54
MOSCOU–WASHINGTON–LONDRES
A suposição do diretorado de contrainteligência do SVR era que o MI6
não conhecia o endereço da coronel Rebecca Philby em Moscou. Na realidade, não era o caso. O serviço secreto britânico tinha ficado sabendo da localização do apartamento dela por acaso, quando um dos oficiais baseados em Moscou a vira caminhando pelo Arbat com dois guarda-costas e uma mulher de idade avançada e aparência imponente. O oficial as seguiu até o cemitério de Kuntsevo, onde colocaram flores no túmulo de um dos maiores traidores da história, depois até a entrada de um prédio residencial elegante e novo na rua Sadovnicheskaya.
Sob comando de Vauxhall Cross, a Estação de Moscou tomou muito cuidado com sua descoberta. Não foi feita nenhuma tentativa de colocar Rebecca sob vigilância 24 horas — não era possível numa cidade como Moscou, em que os próprios funcionários do MI6 estavam sob vigilância quase constante —, e um esquema para comprar um apartamento no prédio dela logo foi descartado. Em vez disso, eles só a observavam ocasionalmente, sempre de longe. Confirmaram que ela morava no nono andar do prédio e se apresentava toda manhã na sede do SVR em Yasenevo. Nunca a viram resolver qualquer tarefa pessoal, jantar num restaurante ou ir a uma apresentação do Bolshoi. Não havia evidência de um homem em sua vida, nem, aliás, uma mulher. Em geral, ela parecia bastante infeliz, o que lhes agradava infinitamente.
No início de março, por motivos que a Estação de Moscou não conseguia nem imaginar, Rebecca desapareceu de vista. Quando se passaram cinco dias sem sinal dela, o chefe local informou a Vauxhall Cross — e Vauxhall Cross mandou notícias para a casa ampla em estilo Tudor com muitas alas e frontões em Hatch End, em Harrow. Lá, interpretaram, cautelosamente, o desaparecimento repentino de Rebecca como evidência de que o Centro de Moscou estava seguindo as migalhas que eles tinham espalhado.
Havia também outras evidências, como um pico alarmante de tráfego de sinais codificado emanando do teto da Embaixada Russa nos Jardins de Kensington; uma segunda reunião na floresta de Epping entre Charles
Bennett e seu controlador do SVR, Yevgeny Teplov; e a chegada em Londres, no meio de março, de certo Konstantin Dragunov, amigo pessoal e sócio comercial tanto do atual governante da Rússia quanto do futuro rei da Arábia Saudita. Tomados de forma isolada, os acontecimentos não eram prova de nada. Mas vistos pelo prisma da equipe anglo-israelense em Hatch End, pareciam os primeiros indicativos de uma grande empreitada russa.
Gabriel mais uma vez cutucara a onça com vara curta. Ele monitorava a reação russa não de Hatch End, mas de sua mesa no Boulevard Rei Saul, baseado em sua firme convicção operacional de que, se ficarem olhando, a panela com água nunca vai ferver. No fim de março, ele fez mais uma visita clandestina ao iate de Khalid no golfo de Aqaba, mesmo que só para ouvir as últimas fofocas de Riad. Sem que o mundo externo soubesse, o pai de KBM tinha dado uma guinada para pior — outro derrame, talvez um ataque cardíaco. Ele estava ligado a várias máquinas no Hospital da Guarda Nacional Saudita. Os abutres circulavam, dividindo os espólios, lutando pelas sobras. Khalid tinha pedido permissão para voltar a Riad e ficar ao lado do pai. Abdullah tinha recusado.
— Se você tiver uma carta na manga — disse Khalid —, sugiro que a utilize agora. Senão, a Arábia Saudita logo será controlada pelo camarada Abdullah e seu titereiro no Kremlin.
Uma tempestade repentina impediu o helicóptero do Tranquility de decolar e forçou Gabriel a passar a noite no mar em uma das luxuosas suítes de hóspede do navio. Quando ele voltou ao Boulevard Rei Saul na manhã seguinte, encontrou um relatório em sua mesa. Era a análise dos arquivos iranianos roubados. Os documentos provavam de forma conclusiva que o Irã estava trabalhando numa arma nuclear enquanto dizia à comunidade global o oposto. Mas não havia evidência sólida de que o país estivesse violando os termos do acordo negociado com o governo americano anterior.
Gabriel informou ao primeiro-ministro naquela tarde, no escritório dele em Jerusalém. Uma semana depois voou a Washington para deixar os americanos por dentro. Para surpresa dele, a reunião aconteceu na sala de crises da Casa Branca, com o próprio presidente. Ele não escondeu sua intenção de tirar os Estados Unidos do acordo nuclear com o Irã e ficou decepcionado por Gabriel não ter levado prova irrefutável — “um mulá cabal” — de os iranianos estarem secretamente construindo uma bomba.
Mais tarde no mesmo dia, Gabriel viajou a Langley, onde fez um briefing mais detalhado aos oficiais da Casa Pérsia, unidade de operações da CIA no Irã. Depois, jantou sozinho com Morris Payne numa sala coberta de painéis de madeira no sétimo andar. A primavera finalmente chegara na Virgínia do Norte, depois de um inverno inóspito, e as árvores ao longo do Potomac estavam com folhas novas. Em meio a verduras refogadas e carne cartilaginosa, eles trocaram segredos e boatos maliciosos, incluindo alguns sobre os homens a quem serviam. Como vários de seus predecessores na Agência, Payne não tinha muito tempo na inteligência. Antes de chegar a Langley, tinha sido soldado, empresário e deputado conservador de uma das Dakotas. Era grande, franco e grosseiro, com um rosto de estátua da ilha de Páscoa. Gabriel o considerava uma mudança revigorante em comparação ao diretor anterior da CIA, que, rotineiramente, referia-se a Jerusalém como al-Quds.
— O que acha de Abdullah? — perguntou Payne, abruptamente, durante o café.
— Nada de mais.
— Britânicos de merda.
— O que eles fizeram agora?
— Convidaram o homem para ir a Londres antes de conseguirmos trazê-lo para Washington.
Gabriel deu de ombros, indiferente.
— A Casa de Saud não pode sobreviver sem vocês. Abdullah vai prometer comprar alguns brinquedos britânicos e depois vai vir correndo.
— Não temos tanta certeza disso.
— Ou seja?
— Ficamos sabendo que o MI6 está com as garras nele.
Gabriel suprimiu um sorriso.
— Abdullah? Ativo britânico? Fala sério, Morris.
Payne assentiu com seriedade.
— Estávamos querendo saber se você estaria interessado em facilitar uma mudança na linha sucessória saudita.
— Que tipo de mudança?
— O tipo que acabe colocando a bunda de KBM no trono.
— Khalid já era.
— Khalid é o melhor que podemos esperar, e você sabe. Ele nos ama e, por algum motivo, gosta de você.
— O que fazemos com Abdullah?
— Ele teria que ser afastado.
— Afastado?
Payne olhou inexpressivo para Gabriel.
— Morris, sério.
Depois do jantar, Gabriel foi levado num comboio da CIA para o hotel Madison, no centro de Washington. Exausto, caiu num sono sem sonhos.
Foi acordado às 3h19 por uma mensagem urgente em seu BlackBerry. Ao amanhecer, dirigiu-se para a Embaixada Israelense e ficou lá até o início da tarde, quando saiu para o Aeroporto Internacional de Dulles. Ele tinha dito a seus anfitriões que planejava voltar a Tel Aviv. Em vez disso, às 5h30, embarcou num voo da British Airways para Londres.
O Brexit tinha produzido pelo menos um impacto positivo na economia britânica. Devido a uma queda de dois dígitos no valor da libra, mais de dez milhões de turistas estrangeiros entravam no Reino Unido a cada mês.
O MI5, rotineiramente, fazia triagens nos desembarques buscando elementos indesejados, como terroristas, criminosos e agentes de inteligência russos conhecidos. Por sugestão de Gabriel, a equipe anglo-israelense em Hatch End estava duplicando os esforços do MI5. Como resultado, eles sabiam que o voo 216 da British Airways, vindo de Dulles, pousou às 6h29 da manhã, e que Gabriel passou pela imigração às 7h12.
Encontraram até vários minutos de vídeo da passagem dele pela infinita fila para cidadãos não europeus. Estava sendo transmitido em looping em um dos grandes monitores de vídeo quando ele entrou no centro de operações improvisado.
Sarah Bancroft, usando jeans e um pulôver de lã, dirigiu a atenção dele ao monitor de vídeo adjacente. Nele, havia uma imagem estática de um homem magro e bem constituído atravessando um estacionamento à noite com um casaco de marinheiro e uma mala pendurada no ombro direito.
Um boné obstruía a maior parte do rosto dele.
— Reconhece? — perguntou ela.
— Não.
Mikhail Abramov apontou um controle remoto para a tela e apertou PLAY.
— E agora?
O homem se aproximou de um Toyota compacto, jogou a mala no banco de trás e sentou-se atrás do volante. As luzes se acenderam automaticamente quando o motor ligou, um pequeno erro nas táticas de espionagem. O homem rapidamente as desligou e saiu de ré da vaga.
Alguns segundos depois, o carro desapareceu das vistas da câmera.
Mikhail apertou PAUSE.
— Nada?
Gabriel fez que não.
— Assista de novo. Mas dessa vez, preste muita atenção na forma como ele anda. Você já o viu antes.
O russo colocou o vídeo uma segunda vez. Gabriel focou somente o andar atlético do homem. Mikhail tinha razão, ele já o vira. O suspeito atravessara na frente do carro de Gabriel em Genebra, alguns minutos depois de deixar sua pasta para trás no Café Remor. Mikhail estava andando alguns passos atrás dele.
— Gostaria de poder levar o crédito por vê-lo — disse ele —, mas foi Sarah.
— Onde o vídeo foi feito?
— No estacionamento do terminal de balsas Holyhead.
— Quando?
— Duas noites atrás.
Gabriel franziu a testa.
— Duas noites?
— Fizemos o melhor possível, chefe.
— Como ele chegou até Dublin?
— Num voo vindo de Budapeste.
— Sabemos como o carro chegou lá?
— Dmitri Mentov.
— O ninguém da seção consular da Embaixada Russa?
— Posso mostrar o vídeo, se quiser.
— Eu uso minha imaginação. Onde está nosso homem agora?
Mikhail usou o controle remoto e um novo vídeo apareceu na tela. Um homem saindo de um Toyota compacto em frente a um hotel à beira-mar.
— Onde está Graham?
— Vauxhall Cross.
— Fazendo o quê?
— Esperando por você.
Parte Quatro
ASSASSINATO
55
FRINTON-ON-SEA, ESSEX
No fim do século XIX, havia apenas uma igreja, algumas fazendas e um conjunto de cabanas. Então, um homem chamado Richard Powell Cooper pôs um campo de golfe ao longo do mar, e lá surgiu uma cidade de veraneio com casas elegantes ladeando amplas avenidas e diversos hotéis ao longo da esplanada. A Connaught Avenue, via principal da cidade, ficou conhecida como a Bond Street de East Anglia. O príncipe de Gales era um visitante frequente, e Winston Churchill, certa vez, alugara uma casa para o verão. A última bomba que os alemães jogaram na Grã-Bretanha em 1944 caiu em Frinton-on-Sea.
Embora a cidade já não fosse um destino da moda, seus habitantes tinham se apegado, com grau variado de sucesso, às maneiras refinadas do passado. Velhos, ricos e profundamente conservadores, não aceitavam imigrantes, a União Europeia e as políticas do Partido Trabalhista. Para sua consternação, o primeiro pub de Frinton, Lock & Barrel, tinha sido recentemente aberto na Connaught Avenue. Ainda era uma violação do regulamento da cidade, porém, vender sorvete na praia ou fazer piquenique no gramado de Greensward no topo dos penhascos. Se alguém quisesse estender um cobertor no chão e comer ao ar livre, podia descer a estrada até a vizinha Clacton, um lugar em que a maioria dos nascidos em Frinton jamais punha os pés.
Entre Greensward e o mar ficava um passeio com uma fileira de cabanas de praia cor pastel. Como era início de abril e a tarde estava fria e com vento, Nikolai Azarov andava sozinho pelo calçadão. Carregava uma mochila nas costas e usava binóculo Zeiss pendurado no pescoço. Se alguém lhe tivesse desejado uma boa tarde ou perguntado o caminho de algum lugar, teria suposto que Nikolai era exatamente o que parecia: um inglês educado de classe média, provavelmente de Londres ou de um dos condados ao redor da capital, quase certamente graduado em Oxbridge ou em outra dentre as grandes universidades do país. Um olhar mais perspicaz poderia até notar um traço vagamente eslavo em suas feições.
Mas ninguém teria suposto que ele era russo, nem que era assassino e agente especial do Centro de Moscou.
Não era a carreira que Nikolai escolhera para si. De fato, quando jovem, crescendo numa Moscou pós-soviética, sonhava em ser ator, de preferência no Ocidente. Infelizmente, a escola prestigiosa onde ele havia aprendido a falar seu inglês impecável com sotaque britânico era o Instituto de Línguas Estrangeiras de Moscou, um dos locais favoritos de recrutamento do SVR. Ao se formar, Nikolai entrou na academia do SVR, onde seus instrutores determinaram que ele tinha talento especial para certos aspectos mais sombrios do negócio, incluindo a construção de dispositivos explosivos. Ao fim de seu treinamento, ele foi mandado para o diretorado responsável por “medidas ativas”. Entre elas, o assassinato de cidadãos russos que ousavam se opor ao Kremlin ou de oficiais de inteligência que espionavam para os inimigos da Rússia. Nikolai tinha matado pessoalmente mais de uma dúzia de seus compatriotas que viviam no Ocidente — com veneno, armas químicas ou radiológicas, revólveres ou bombas —, todos sob ordem direta do próprio presidente russo.
A próxima cidade ao norte de Frinton era Walton-on-the-Naze. Nikolai parou para tomar um café no píer antes de se dirigir aos pântanos da reserva natural Hamford Water. Na ponta do promontório, ele pausou por um momento e, usando o binóculo, olhou além do mar do Norte, na direção da Holanda. Depois, foi para o sul pelas margens do canal de Walton. Isso o levou ao rio Twizzle, onde encontrou uma marina cheia de ótimos barcos a vela e iates motorizados. O russo planejava sair da Inglaterra da mesma forma que tinha entrado, de carro pela balsa. Mas, em sua experiência, era sempre bom ter um ás na manga. As operações nem sempre saíam como o planejado. Como em Genebra, pensou de repente.
Ou na França.
É a morte... Morte, morte, morte...
Duas turistas aposentadas vinham pela trilha, seguidas por um cocker spaniel cor de ferrugem. Nikolai desejou-lhes uma boa tarde, e elas responderam enquanto se afastavam. Por um instante, ele chegou a considerar a melhor forma de matar as duas. Tinha sido treinado para supor que todo encontro — especialmente num local remoto, como um pântano em Essex — era potencialmente hostil. Ao contrário de agentes comuns do SVR, Nikolai tinha autoridade para matar primeiro e se preocupar com as consequências depois. Anna também.
Ele checou o horário. Eram quase duas da tarde. Cruzou o promontório para a Torre Naze e refez seus passos até a beira-mar em Frinton. O sol
finalmente saía por um buraco entre as nuvens quando ele chegou ao Bedford House. Um dos últimos hotéis sobreviventes da era de ouro da cidade, ele ficava na ponta sul da esplanada, um mausoléu vitoriano com estandartes voando nos torreões. A mulher tinha escolhido, aquela conhecida no Ocidente como Rebecca Manning e no Centro de Moscou, como Rebecca Philby. A administração do Bedford tinha a impressão de que Nikolai era Philip Lane, roteirista de dramas criminais televisivos que tinha ido a Essex em busca de inspiração.
Ao entrar no hotel, ele se dirigiu ao Café Terrace, lugar que lembrava um átrio, para o chá da tarde. Phoebe, a garçonete de saia justa, levou-o a uma mesa com vista para a esplanada. Nikolai, no papel de Philip Lane, abriu um caderno Moleskine. Então, distraído, pegou seu celular do SVR.
Escondido entre os aplicativos, havia um protocolo que lhe permitia comunicar-se de forma segura com o Centro de Moscou. Mesmo assim, a composição da mensagem que ele digitou era vaga a ponto de ser incompreensível para um serviço de inteligência adversário, como o GCHQ britânico. Dizia que ele tinha acabado de completar uma operação de detecção de segurança e não via evidências de estar sendo seguido. Em sua opinião, era seguro inserir o próximo membro da equipe. Na chegada, ela deveria ir a Frinton para pegar a arma do assassinato, que Nikolai contrabandeara para dentro do país. E, depois de completar sua missão, ele cuidaria para que ela saísse em segurança da Inglaterra. Nesta operação, pelo menos, ele era pouco mais que um garoto de entregas e motorista superestimado. Ainda assim, estava ansioso para vê-la de novo. Ela era sempre melhor quando estavam em campo.
Phoebe colocou um bule de chá Earl Grey na mesa, junto com um prato de sanduíches delicados.
— Está trabalhando?
— Sempre — falou Nikolai, arrastado.
— Em que tipo de história?
— Não decidi.
— Alguém morre?
— Várias pessoas, na verdade.
Naquele momento, um Jaguar F-Type conversível vermelho vivo encostou na entrada do hotel. O motorista era um homem bonito de talvez 50 anos, louro, de pele muito bronzeada. Sua companheira, uma mulher de
cabelos pretos, registrava a chegada deles num smartphone, com o braço esticado. Pareciam estar vestidos para uma ocasião especial.
— Os Edgerton — explicou Phoebe.
— Perdão?
— Tom e Mary Edgerton. Recém-casados. Aparentemente, foi coisa de momento. — Um carregador tirou duas bagagens do porta-malas do carro enquanto a mulher tirava fotos do mar. — Ela é linda, não?
— Muito — concordou Nikolai.
— Acho que deve ser americana.
— Não vamos culpá-la por isso.
Nikolai viu o casal entrar no lobby, onde o gerente deu uma taça de champanhe a cada um. Ela, examinando o interior sóbrio do hotel, encontrou sem querer o olhar de Nikolai e sorriu. O homem segurou-a possessivamente pelo braço e a conduziu ao elevador.
— Ela definitivamente é americana — disse Phoebe.
— De fato — concordou Nikolai. — E o marido dela é ciumento.
A suíte de núpcias ficava no terceiro andar. Keller passou o cartão na leitora, abriu a porta e a segurou para Sarah entrar. As malas deles estavam nos suportes ao pé da cama. Keller colocou o aviso NÃO PERTURBE na maçaneta e trancou a porta com a barra de segurança.
— Foi ele que você viu no Café Remor em Genebra?
Sarah assentiu uma vez.
Keller mandou uma breve mensagem em seu BlackBerry à equipe em Hatch End. Então, enfiou a mão no paletó e tirou sua Walther PPK do coldre de ombro.
— Já usou uma dessas?
— Uma Walther, não.
— Já atirou em alguém?
— Numa garota russa, na verdade.
— Que sortuda. Onde?
— No quadril e no ombro.
— Eu quis dizer...
— Foi num banco em Zurique.
Keller puxou o ferrolho da Walther, carregando a primeira bala. Então, ativou a trava de segurança e entregou a arma a Sarah.
— Agora, está totalmente carregada. Só tem sete balas. Quando quiser disparar, é só soltar a trava e puxar o gatilho.
— E você?
— Vou me virar.
Sarah praticou soltar e ativar a trava.
— O presente de casamento perfeito para uma mulher que tem tudo. —
Keller levantou sua taça de champanhe. — Seu primeiro casamento, é?
— Receio que sim.
— O meu também. — Ele caminhou até a janela e olhou para o mar cor de granito. — Vamos torcer para desafiar as probabilidades.
— Sim — concordou Sarah, colocando a Walther na bolsa. — Vamos.
56
DOWNING STREET, 10
Às 20h15, enquanto Keller e Sarah jantavam no restaurante de carnes do Bedford, a menos de seis metros de sua presa russa, a limusine Jaguar que levava Gabriel Allon e Graham Seymour passou por um portão pesadamente vigiado na saída da Horse Guards Road, e estacionou em frente ao prédio de tijolos vermelhos de cinco andares na Downing Street, 12. Antes residência do chief whip, deputado responsável por garantir que os seus pares votem de acordo com o partido líder do governo, era onde ficava a equipe de imprensa e comunicação do primeiro-ministro. O
chanceler do Tesouro residia ao lado, no número 11, e o próprio primeiro-ministro, é claro, no número 10. A famosa porta preta se abriu automaticamente quando Gabriel e Seymour se aproximaram. Observados por um gato malhado marrom e branco de aparência feroz, eles entraram rapidamente.
Geoffrey Sloane, chefe de gabinete do primeiro-ministro e oficial não eleito mais poderoso da Grã-Bretanha, estava esperando no hall de entrada. Estendeu uma das mãos na direção de Gabriel.
— Eu estava lá na manhã em que você matou o homem-bomba do Estado Islâmico no portão de segurança. Aliás, consegui ouvir os disparos do meu escritório. — Sloane soltou a mão de Gabriel e olhou para Seymour. — Infelizmente, o primeiro-ministro não tem muito tempo.
— Não vai demorar.
— Eu gostaria de estar presente.
— Sinto muito, Geoffrey, mas não é possível.
Jonathan Lancaster aguardava na sala Terracotta, no andar de cima.
Naquela tarde, mais cedo, ele tinha sobrevivido, por pouco, a uma moção de censura na Câmara dos Comuns. Mesmo assim, o corpo de imprensa de Westminster estava naquele momento escrevendo o obituário político dele.
Graças à tolice do Brexit, à qual Lancaster havia se oposto, sua carreira tinha efetivamente acabado. Se não fosse por Gabriel e Graham Seymour, que ele cumprimentou afetuosamente, podia ter acabado bem antes.
O primeiro-ministro olhou de relance para seu relógio de pulso.
— Tenho convidados para o jantar.
— Desculpe — disse Seymour —, mas receio que tenhamos uma situação séria com os russos.
— De novo, não.
Seymour assentiu com gravidade.
— E qual é a natureza dessa situação?
— Um assassino conhecido do SVR entrou no país.
— Onde ele está agora?
— Num pequeno hotel em Essex. O Bedford House.
— Eu me lembro com carinho de lá quando era mais novo — declarou Lancaster. — Imagino que o russo esteja sob vigilância.
— Total — confirmou Seymour. — Quatro observadores do MI6
fizeram check-in no hotel ao lado, o East Anglia Inn, além de dois oficiais de campo altamente experientes de Israel. O Departamento de Operações Técnicas plantou transmissores no quarto dele, áudio e vídeo. Também hackeou a rede interna de câmeras de segurança do hotel. Estamos vigiando todos os movimentos dele.
— Temos alguém dentro do Bedford?
— Christopher Keller. Aquele que...
— Eu sei quem ele é — interrompeu Lancaster. Então, perguntou: —
Sabemos qual é o alvo do russo?
— Não podemos afirmar com certeza, primeiro-ministro, mas acreditamos que os russos estejam planejando assassinar o príncipe herdeiro Abdullah durante sua visita a Londres.
Lancaster absorveu a notícia com uma calma admirável.
— Por que os russos iam querer matar o próximo rei da Arábia Saudita?
— Porque o futuro rei é agente russo. E se chegar ao trono, vai inclinar a Arábia Saudita para o Kremlin e causar danos irreparáveis aos interesses britânicos e americanos no golfo.
Lancaster olhou para Seymour, perplexo.
— Se é assim, por que diabos os russos iam querer eliminá-lo?
— Porque, provavelmente, estão com a suspeita de que Abdullah está trabalhando para nós.
— Para nós?
— O Serviço Secreto de Inteligência.
— E como chegaram a essa conclusão?
— Nós dissemos a eles.
— Como?
Seymour deu uma risada fria.
— Rebecca Manning.
Lancaster alcançou o telefone.
— Infelizmente, vou demorar um pouco, Geoffrey. Por favor, peça desculpas a nossos convidados por mim. — Ele colocou de volta no gancho e olhou para Seymour. — Estou prestando atenção. Continue.
Foi Gabriel, não o diretor-geral do Serviço Secreto de Inteligência, que explicou ao primeiro-ministro por que parecia que os russos pretendiam assassinar o futuro rei da Arábia Saudita em solo britânico. O briefing era idêntico ao que Gabriel dera a Graham Seymour várias semanas antes na casa segura de St. Luke’s Mews, embora, dessa vez, contivesse detalhes da operação de farsa de que era alvo Rebecca Manning, ex-oficial do MI6 e filha de Kim Philby. Lancaster ouviu em silêncio, a mandíbula tensa.
Antes da intervenção da Rússia na política norte-americana, o país tinha se metido na Grã-Bretanha, com o próprio primeiro-ministro como vítima.
Também havia ampla evidência sugerindo que o Kremlin tinha, secretamente, apoiado o Brexit, que jogara a Inglaterra no caos e arruinara a carreira dele. Se alguém queria punir os russos tanto quanto Gabriel, esse alguém era o primeiro-ministro Jonathan Lancaster.
— E você tem certeza de que esse Bennett está trabalhando para os russos?
Gabriel deferiu a Seymour, que explicou que o agente tinha sido visto duas vezes encontrando-se com seu controlador do SVR, Yevgeny Teplov, na floresta de Epping.
— Outro escândalo de espionagem — disse Lancaster. — É justamente o que o país precisa.
— Sempre soubemos que haveria outros, primeiro-ministro. Rebecca estava na posição perfeita para encontrar oficiais vulneráveis à abordagem russa.
— Como Bennett escapou da detecção até agora?
— Ficou dormente depois da captura de Rebecca. Nós o investigamos muito, mas...
— Você deixou de notar outro espião russo debaixo do seu nariz.
— Não, primeiro-ministro. Eu mantive um espião russo no lugar para usá-lo depois e destruir a mulher que destruiu meu serviço.
— Rebecca Manning.
Seymour fez que sim.
— Explique.
— Se prendermos os membros de uma equipe de assassinos do SVR na véspera de sua reunião com Abdullah, os russos vão sofrer enormes prejuízos internacionais, e Rebecca vai ficar sob suspeita de ser a fonte do vazamento.
— Os russos vão achar que ela é agente tripla. É isso que está sugerindo?
— Exato.
O primeiro-ministro ficou pensativo.
— Você disse se prendermos a equipe de assassinos russa. Que outra opção temos?
— Podemos deixar o plano seguir.
— Se fizermos isso, os russos...
— Vão matar seu próprio ativo, o príncipe herdeiro Abdullah, futuro rei da Arábia Saudita. E, com um pouco de sorte — completou Seymour —, talvez matem Rebecca também.
Lancaster olhou para Gabriel.
— Certamente, é ideia sua.
— Que resposta o senhor preferiria?
Lancaster franziu o cenho.
— O que acontece se Abdullah for...
— Removido da linha sucessória?
— Sim.
— O pai de Khalid provavelmente vai fazer com que seu filho seja reinstalado como príncipe herdeiro, em especial, quando descobrir que Abdullah conspirou com os russos para sequestrar e assassinar a filha de Khalid.
— É isso que queremos? Um menino precoce com problemas para controlar seus impulsos governando a Arábia Saudita?
— Será diferente desta vez. Vai ser o KBM que todos esperávamos que fosse.
O sorriso de Lancaster foi condescendente.
— Você nunca me pareceu ingênuo. — Ele olhou para Seymour. —
Imagino que não tenha falado com Amanda.
Amanda Wallace era a contraparte de Seymour no MI5. Com sua expressão, o diretor indicou que ela estava totalmente no escuro.
— Ela nunca vai concordar com isso — disse Lancaster.
— Por isso ela jamais vai ficar sabendo.
— Quem sabe?
— Um pequeno número de oficiais israelenses e do MI6 trabalhando numa casa segura em Harrow.
— Algum deles está espionando para os russos? — Lancaster se voltou a Gabriel. — Sabe o que vai acontecer se um chefe de Estado de facto for assassinado em solo britânico? Nossa reputação será destruída.
— Não se a culpa for dos russos.
— Os russos — respondeu Lancaster, incisivamente — vão negar ou colocar a culpa em nós.
— Não vão conseguir.
Lancaster duvidava.
— Como eles planejam matá-lo?
— Não sabemos.
— Onde vai acontecer?
— Não...
— Têm ideia — completou Lancaster.
Gabriel esperou que o calor da discussão se dissipasse.
— Temos um dos agentes russos sob vigilância. Quando ele entrar em contato com outro membro da equipe...
— E se não entrar?
Gabriel deixou um momento passar.
— Hoje é terça-feira.
— Não preciso de um espião para saber que dia é. Para isso, tenho o Geoffrey.
— Sua reunião com Abdullah é só na quinta. Deixe que a gente ouça e assista por 36 horas.
— Trinta e seis horas está fora de questão. — Lancaster analisou seu relógio de pulso. — Mas posso dar 24. Vamos nos reunir de novo amanhã à noite. — Ele se levantou abruptamente. — Agora, se me dão licença, senhores, gostaria de terminar meu jantar.
57
OUDDORP, HOLANDA
O bangalô de férias ficava numa fenda nas dunas nos arredores do vilarejo de Ouddorp. Era branco como um bolo de casamento, com um teto de telhas vermelhas. Barreiras de acrílico protegiam o pequeno terraço do vento, que soprava sem dar trégua do mar do Norte. Sem aquecimento, com isolamento térmico leve, ele mal era habitável no inverno. De vez em quando, uma alma corajosa em busca de solidão o alugava em maio, mas em geral ficava desocupado até pelo menos meados de junho.
Portanto, Isabel Hartman, corretora imobiliária local que administrava a propriedade, ficou surpresa com o e-mail recebido em meados de março.
Aparentemente, certa Madame Bonnard, de Aix-en-Provence, desejava alugar o chalé por um período de duas semanas a partir de primeiro de abril. Ela pagou adiantado por transferência bancária. Não, disse num e-mail subsequente, não precisava de um tour da propriedade ao chegar; uma brochura impressa seria suficiente. Isabel deixou-a no balcão da cozinha.
A chave, escondeu embaixo de um vaso de flor no terraço. Não era sua prática usual, mas ela não viu mal algum. O bangalô não continha nada de valor fora uma televisão. Isabel recentemente tinha instalado internet wi-fi na tentativa de atrair mais visitantes estrangeiros — como a Madame Valerie Bonnard, de Aix-en-Provence. Isabel só podia se perguntar por que ela estava visitando a melancólica Ouddorp. Até o nome soava como algo que precisava ser removido cirurgicamente. Se Isabel tivesse a sorte de viver em Aix, nunca sairia.
Devido ao isolamento do bangalô, a corretora não conseguiu determinar exatamente quando a francesa chegara. Imaginou que um dia depois do esperado, pois foi quando viu o veículo, um Volvo sedan escuro com placa holandesa, estacionado na entrada para carros não asfaltada da propriedade. Viu a mulher também. Estava saindo do supermercado Jumbo com algumas sacolas de compras. Isabel considerou se apresentar, mas decidiu não fazer isso. Havia algo no comportamento da mulher e na expressão cautelosa em seus olhos incomumente azuis que a tornava totalmente inacessível.
Havia algo insuportavelmente triste nela. Passara por algum trauma recente, tinha certeza. Um filho morto, um casamento destruído, uma traição. Ela estava preocupada, isso era óbvio. A corretora não conseguia decidir se a mulher estava de luto ou tramando um ato de vingança.
Isabel viu a mulher no vilarejo no dia seguinte, tomando café no New Harvest Inn — e noutro dia, almoçando sozinha no Akershoek. Dois dias se passaram antes da próxima aparição, que ocorreu de novo no supermercado Jumbo. Dessa vez, o carrinho da mulher estava cheio quase até o topo, dando a entender que a nova inquilina esperava visitas.
Chegaram na manhã seguinte num segundo carro, uma Mercedes Classe E.
Isabel se surpreendeu com o fato de que os três eram homens.
Ela viu a mulher só mais uma vez, às duas da tarde do dia seguinte, aos pés do antigo farol West Head. Estava vestindo um par de botas Wellington e uma jaqueta impermeável verde-escura, e olhava na direção da Inglaterra, do outro lado do mar do Norte. Isabel pensou que nunca tinha visto uma mulher tão triste — nem tão determinada. Estava tramando um ato de vingança. Disso, Isabel Hartman tinha certeza.
A mulher parada à sombra do farol estava ciente de estar sendo observada.
Não se alarmou; era só a corretora enxerida. Esperou até a holandesa ir embora antes de se dirigir ao bangalô. Era uma caminhada de dez minutos pela praia. Um de seus guarda-costas estava do lado de fora, no terraço. O
outro estava dentro do chalé, com o oficial de comunicações. Na mesa da sala de jantar estava um notebook aberto. A mulher checou o status do voo 579 da British Airways de Veneza a Heathrow. Então, acendeu um cigarro L&B com um velho isqueiro prateado e se serviu de três dedos de uísque escocês. Era só o clima, garantiu a si mesma. A melancolia passaria quando o verão chegasse.
58
AEROPORTO DE HEATHROW, LONDRES
Os passageiros do voo de Veneza demoraram a ser liberados do avião.
Portanto, Anna teve que passar cinco minutos extras apertada contra a janela da fileira 22 da classe econômica para evitar o braço úmido e corpulento de Henry, seu vizinho invasivo de assento. Sua mala de mão estava no compartimento superior e a bolsa, embaixo do assento à sua frente. Nela, um passaporte alemão identificava Berlim como seu local de nascimento. Isso, pelo menos, era verdade.
Ela nascera na metade oriental da cidade em 1983, produto indesejado de um relacionamento secreto entre dois oficiais de inteligência. Sua mãe, Johanna Hoffmann, trabalhava para o departamento da Stasi que fornecia apoio logístico a grupos terroristas palestinos e da Europa Ocidental. Seu pai, Vadim Yurasov, era coronel da KGB baseado no fim de mundo de Dresden. Eles fugiram da Alemanha Oriental alguns dias depois da queda do Muro de Berlim e se estabeleceram em Moscou. Depois do casamento, aprovado pela KGB, Anna assumiu o nome Yurasova. Ela frequentou uma escola especial reservada para filhos dos oficiais da KGB e, depois de se formar na prestigiosa Universidade Estatal de Moscou, entrou na academia de treinamento do SVR. Um de seus colegas de classe era um aspirante a ator alto e bonito chamado Nikolai Azarov. Eles trabalharam juntos em inúmeras operações e, como os pais de Anna, eram amantes em segredo.
Dentro do terminal, Anna seguiu a procissão até o controle de passaporte e entrou na fila para cidadãos da União Europeia. O homem uniformizado na cabine mal olhou o passaporte dela.
— O propósito de sua visita?
— Turismo — respondeu Anna com o sotaque alemão de sua mãe.
— Algum plano especial?
— O máximo de teatro possível.
O passaporte foi devolvido. Anna se encaminhou ao saguão de desembarque e, dali, para a plataforma do Heathrow Express. Chegando à estação de Paddington, ela caminhou na direção norte pela Warwick Avenue até a Formosa Street e virou à esquerda. Ninguém a seguia. Ela virou de novo à esquerda em Bristol Gardens. Um Renault Clio prata-
azulado encontrava-se estacionado em frente a uma academia de ginástica.
As portas estavam destrancadas. Ela jogou a mala no compartimento traseiro e sentou-se atrás do volante. As chaves estavam no console central. Ligou o motor e se afastou do meio-fio.
Anna tinha estudado a rota com atenção, para não se distrair com um GPS. Foi para norte na Finchley Road até a A1, depois para leste na M25
Orbital Motorway até a A12. Diligentemente, examinou a estrada atrás de si procurando sinais de vigilância, mas quando a escuridão caiu, sua mente começou a vagar. Pensou sobre a noite em que fugira com seus pais de Berlim Oriental. Eles haviam feito a viagem a bordo de um avião de carga soviético fedorento. Um dos outros passageiros era um homenzinho com bochechas emaciadas e olheiras escuras. Ele trabalhava com o pai de Anna no escritório da KGB em Dresden. Era um ninguém que passava os dias posando de tradutor e recortando artigos de jornais alemães.
De alguma forma, o pequeno ninguém era o homem mais poderoso do mundo neste momento. No espaço de alguns anos, tinha causado caos na ordem mundial política e econômica do pós-guerra. A União Europeia estava aos cacos. A OTAN estava por um fio. Depois de interferir na política da Inglaterra e dos Estados Unidos, ele tinha atuado também na Arábia Saudita. Anna e Nikolai tinham o ajudado a alterar a linha sucessória da Casa de Saud. Agora, por motivos que eram obscuros para eles, estavam prestes a alterá-la de novo.
Anna nunca questionava ordens do Centro de Moscou —
especialmente, quando diziam respeito a “medidas ativas” caras ao presidente —, mas a missão a deixava nervosa. Ela não gostava de receber ordens de alguém como Rebecca Manning, ex-oficial do MI6 que mal falava russo. Também estava preocupada com um assunto mal resolvido de sua última missão.
Gabriel Allon...
Anna deveria ter matado o israelense no café em Carcassonne quando teve a chance, mas as ordens do Centro de Moscou tinham sido específicas. Queriam que ele morresse junto com o príncipe saudita e a menina. Anna não tinha vergonha de admitir que temia a vingança de Allon. Ele não era o tipo de homem que fazia ameaças em vão.
É a morte! Morte, morte, morte...
Anna deixou seus pensamento abandonarem o israelense ao se aproximar da cidade mercantil de Colchester. A única rota para Frinton-
on-Sea era a passagem na Connaught Avenue. Nikolai estava hospedado num hotel na esplanada. Ela entregou o carro a um manobrista, mas levou sua mala para o lobby.
Um casal dividia uma garrafa de Dom Perignon no bar — um homem bonito, de talvez 50 anos, louro e bronzeado, e uma mulher de cabelo escuro. Não prestaram atenção em Anna enquanto ela ia à recepção coletar a chave que tinha sido deixada em seu nome falso. Sua acomodação ficava no quarto andar, e ela entrou num recinto escuro sem bater. Tirou a roupa e, observada pelas câmeras do MI6, foi lentamente na direção da cama.
59
DOWNING STREET, 10
Pela segunda noite consecutiva, uma limusine Jaguar passou pelo portão de segurança na Horse Guards Road às 8h15. O gato malhado marrom e branco saiu correndo enquanto Gabriel e Graham Seymour seguiam apressados pela Downing Street numa chuva torrencial. Geoffrey Sloane os recebeu sem dizer nada na sala do gabinete, onde o primeiro-ministro estava sentado em sua cadeira de sempre no centro da longa mesa. Diante dele estava uma cópia da agenda final da visita do príncipe herdeiro Abdullah a Londres.
Depois que Sloane se foi e as portas se fecharam, Graham Seymour entregou a atualização prometida. No início daquela noite, uma segunda agente russa tinha chegado de automóvel ao Bedford House Hotel em Frinton-on-Sea. Depois de fazer sexo com seu colega, ela tinha tomado posse de uma pistola Stechkin 9mm, dois pentes, um silenciador e um pequeno objeto que Operações Técnicas ainda tentava identificar.
— Melhor chute? — perguntou Lancaster.
— Não quero especular.
— Onde ela está agora?
— Ainda no quarto.
— Sabemos como entrou no país?
— Ainda estamos tentando determinar.
— Há outros?
— Não sabemos o que não sabemos, primeiro-ministro.
— Poupe-me dos clichês, Graham. Só me diga o que eles vão fazer agora.
— Não conseguimos, primeiro-ministro. Ainda não.
Lancaster xingou baixinho.
— E se o carro dela tiver uma bomba como aquela que explodiu na Brompton Road há alguns anos? — Ele olhou para Gabriel. — Você se lembra dessa, não, diretor Allon?
— Já verificamos o carro dela. Do namorado também. Estão limpos.
Além do mais — disse Gabriel —, não há forma de conseguirem chegar
com uma bomba perto de Abdullah amanhã. Londres vai estar completamente isolada.
— E o comboio dele?
— Assassinar um chefe de Estado num carro em movimento é quase impossível.
— Diga isso ao arquiduque Francisco Ferdinando. Ou ao presidente Kennedy.
— Abdullah não vai estar num carro conversível, e as ruas estarão completamente vazias.
— Então, onde vai ser a tentativa?
Gabriel olhou para a agenda.
— Posso?
Lancaster a empurrou pela mesa. Tinha uma página, em tópicos.
Chegada em Heathrow às 9 horas. Reunião entre delegações britânicas e sauditas em Downing Street das 10h30 às 13 horas, seguida por um almoço profissional. O príncipe herdeiro sairia do número 10 às 15h30, e iria de comboio até sua residência particular em Belgravia para algumas horas de descanso. Sua volta a Downing Street para jantar estava marcada para as 20 horas. A saída para Heathrow estava, provisoriamente, marcada para as 22 horas.
— Se eu tivesse que adivinhar — disse Gabriel, apontando para uma das entradas —, vai acontecer aqui.
O primeiro-ministro apontou para uma outra entrada.
— E se for aqui? — Seu dedo se moveu página abaixo. — Ou aqui? —
Houve um silêncio. Então, Lancaster falou: — Prefiro não ser uma vítima colateral, se é que me entende.
— Entendo — respondeu Gabriel.
— Talvez devamos aumentar a segurança em Downing Street ainda mais do que o planejado.
— Talvez.
— Imagino que você não esteja disponível.
— Seria uma honra, primeiro-ministro. Mas acredito que a delegação saudita acharia minha presença curiosa, para dizer o mínimo.
— E Keller?
— Uma escolha bem melhor.
O olhar de Lancaster se moveu lentamente pela sala.
— De todas as decisões importantes que foram tomadas dentro destas paredes... — Ele olhou para Graham Seymour. — Reservo-me o direito de ordenar a prisão daqueles dois russos em qualquer momento amanhã.
— É claro, primeiro-ministro.
— Se qualquer coisa der errado, os culpados vão ser vocês, não eu. Não ordenei, tolerei nem tive papel algum nisto tudo. Está claro?
Seymour assentiu uma vez.
— Bom. — Lancaster fechou os olhos. — E que Deus tenha piedade de nós.
60
WALTON-ON-THE-NAZE
Christopher Keller ficou no Bedford House Hotel até as três da manhã, quando saiu escondido pela entrada de serviço dos fundos e caminhou pelo calçadão na direção norte até Walton-on-the-Naze. O carro estava em frente à loja Terry’s Antique & Secondhand, na Station Street. Keller passou duas vezes diante dele antes de entrar no banco do carona. O
motorista era um agente de apoio de campo chamado Tony. Enquanto ele se afastava do meio-fio, Keller inclinou seu banco e fechou os olhos.
Tinha passado as duas últimas noites num quarto de hotel com uma americana linda de quem tinha passado a gostar muito. Ele precisava de algumas horas de sono.
Acordou com a visão de homens de manto andando por uma rua praticamente escura. Era só a Edgware Road. Tony seguiu por ela até o Marble Arch. Atravessou o parque na West Carriage Drive e seguiu pelas ruas ainda sonolentas de Kensington até o endereço chique de Keller em Queen’s Gate Terrace.
— Bacana — comentou Tony, com inveja.
— Nove da manhã está bom?
— Acho melhor 8h30. O trânsito vai estar um inferno.
Keller saiu do carro, cruzou a calçada e desceu os degraus até a entrada inferior de sua casa de dois andares. Lá dentro, preparou a cafeteira com água Volvic e Carte Noire e assistiu ao BBC Breakfast enquanto o café passava. A visita do príncipe herdeiro Abdullah superara o Brexit como reportagem principal. Os analistas estavam esperando uma reunião amigável e muitas promessas sauditas de futuras compras de armamento.
O Serviço de Polícia Metropolitano de Londres, porém, estava preparado para um dia difícil, e esperava reunião de milhares de manifestantes na Trafalgar Square para protestar contra a prisão de ativistas pró-democracia na Arábia Saudita e o assassinato do jornalista dissidente Omar Nawwaf.
No geral, disse um policial sênior, era melhor evitar o centro de Londres.
— Não vai dar — murmurou Keller.
Ele bebeu uma primeira xícara de café enquanto assistia à cobertura e uma segunda enquanto fazia a barba. No chuveiro, viu-se,
inesperadamente, sonhando acordado com a linda americana que tinha deixado num hotel em Frinton. Tomou mais cuidado que o normal com sua arrumação e vestimenta, escolhendo um terno cinza-escuro de corte e tecido medianos, uma camisa branca e uma gravata lisa azul-marinho.
Examinando sua aparência no espelho, concluiu que tinha alcançado o efeito desejado. Parecia um oficial da Proteção Especialista da Realeza (RaSP, na sigla em inglês). Um braço do Comando de Proteção da Polícia Metropolitana, a RaSP era responsável por guardar a família real, o primeiro-ministro e dignitários estrangeiros em visita. Keller e o resto da equipe tinham um longo dia à frente.
Ele desceu para a cozinha e assistiu ao BBC Breakfast até o fim, às 8h30. Então, colocou um sobretudo respeitável e subiu os degraus até a rua, onde Tony já o esperava ao volante de um carro do MI6. Enquanto atravessavam Londres na direção leste, os pensamentos de Keller retornaram à mulher. Dessa vez, ele pegou seu BlackBerry do MI6 e discou.
— Onde você está? — perguntou.
— Acabando de sair do café da manhã.
— Alguém interessante lá?
— Alguns observadores de pássaros e um agente russo.
— Só um?
— A namorada dele saiu há alguns minutos.
— Gabriel e Graham sabem?
— O que você acha?
— Para onde ela está indo?
— Para o seu lado.
— Quem está no rastro dela?
— Mikhail e Eli.
Keller ouviu o plim do elevador do Belford e o ruído das portas.
— Onde está indo?
— Tenho planos de relaxar com um livro e uma arma, e esperar meu marido voltar.
— Lembra como usar?
— Soltar a trava e puxar o gatilho.
Keller desligou e olhou com melancolia pela janela. Tony tinha razão, o trânsito estava um inferno.
Os manifestantes já tinham tomado a Trafalgar Square. Estavam espalhados dos degraus da National Gallery à Coluna de Nelson, uma multidão com cartazes e gritos de guerra, alguns de manto e véu, outros com roupas de lã e flanela, todos revoltados que o governante de facto da Arábia Saudita estivesse prestes a ser festejado por um chefe de governo britânico.
A rua Whitehall estava fechada para o trânsito de veículos. Keller saiu do carro e, depois de mostrar seu cartão de identificação do MI6 para um policial com uma prancheta, teve permissão para seguir a pé. Sarah Bancroft finalmente saiu de seus pensamentos, para ser substituída por memórias da manhã em que ele e Gabriel tinham impedido uma tentativa do Estado Islâmico de soltar uma bomba suja no coração de Londres.
Gabriel matara o terrorista com vários tiros na nuca. Mas fora Keller quem impedira que o detonador automático fosse ativado, disparando o explosivo e dispersando uma nuvem mortal de cloreto de césio por toda a sede do poder britânico. Ele tinha sido forçado a segurar o dedão sem vida do homem-bomba no gatilho por três horas, enquanto uma equipe especializada trabalhava freneticamente para desarmar o dispositivo.
Foram, sem dúvida alguma, as três horas mais longas de sua vida.
Keller desviou do local em que ele e o terrorista morto tinham deitado juntos, e se apresentou no portão de segurança da Downing Street. Após mostrar sua identificação do MI6, mais uma vez teve permissão para seguir adiante. Ken Ramsey, líder de operações de Downing Street, aguardava-o no hall de entrada do número 10.
Ramsey entregou a Keller um rádio e uma Glock 17.
— Seu chefe está lá em cima, na Sala Branca. Quer dar uma palavra.
Keller correu pela Grande Escadaria, ladeada de retratos de primeiros-ministros anteriores. Geoffrey Sloane o esperava no corredor em frente à Sala Branca. Abriu a porta e mandou Keller entrar com um aceno de cabeça. Graham Seymour estava sentado numa das poltronas. Na outra, o primeiro-ministro Jonathan Lancaster. Sua expressão era séria e tensa.
— Keller — falou com ar ausente.
— Primeiro-ministro. — Keller olhou para Seymour. — Onde ela está?
— Na A12 em direção a Londres.
— E Abdullah?
— Me diga você.
Keller inseriu o fone e ouviu o falatório na frequência segura da RaSP.
— Pontual para uma chegada às 10h15.
— Então, talvez — disse Lancaster —, você devesse estar lá embaixo com seus colegas.
— Isso quer dizer...
— Que vamos seguir com a reunião de cúpula como planejado? —
Lancaster se levantou e abotoou seu paletó. — Por que diabos não seguiríamos?
61
NOTTING HILL, LONDRES
Às 10h13, enquanto um comboio de limusines Mercedes fluía pelo portão aberto de Downing Street, um único carro, um Opel compacto popular parou em frente a St. Luke’s Mews, 7, em Notting Hill. O homem no banco de trás, príncipe Khalid bin Mohammed Abdulaziz Al Saud, estava de péssimo humor. Como seu tio, ele tinha chegado naquela manhã no Aeroporto de Heathrow — não de jatinho particular, seu meio de transporte habitual para viagens, mas num voo comercial vindo do Cairo, uma experiência que ele demoraria a esquecer. O carro era a gota d’água.
Khalid encontrou o olhar do motorista no retrovisor.
— Você não vai abrir a porta para mim?
— É só puxar a maçaneta, querido. Funciona toda vez.
O príncipe saiu para a rua molhada. Quando se aproximou da porta número 7, ela continuou fechada. Ele olhou para trás. O motorista, com um gesto, indicou que ele deveria anunciar sua presença batendo à porta.
Outro insulto calculado, pensou. Nunca na vida KBM batera numa porta.
Um homem com aparência de menino e um rosto benevolente o deixou entrar. A casa era muito pequena e escassamente mobiliada. A sala de estar continha cadeiras baratas e uma televisão ligada na BBC. Diante dela estava Gabriel Allon, a mão no queixo, cabeça inclinada ligeiramente para o lado.
Khalid se juntou a ele e assistiu a seu tio, com roupas tradicionais sauditas, emergir da traseira de uma limusine enquanto câmeras disparavam flashes como raios. O primeiro-ministro Jonathan Lancaster estava parado bem em frente à porta do número 10, um sorriso congelado no rosto.
— Deveria ser eu chegando em Downing Street — disse Khalid. — Não ele.
— Fique feliz por não ser você.
Khalid examinou a sala com desaprovação.
— Imagino que não haja nenhuma bebida.
Gabriel apontou para uma porta.
— Sirva-se.
O príncipe foi à cozinha, outra primeira vez. Perplexo, ele gritou:
— Como funciona a chaleira?
— Coloque água e aperte o botão que liga — respondeu Gabriel. —
Isso deve resolver.
Como seu jovem sobrinho tempestuoso, o príncipe herdeiro Abdullah não ficou impressionado com a casa em que entrou naquela manhã. Embora tivesse vivido em Londres por muitos anos e transitasse em círculos sociais elevados, era sua primeira visita a Downing Street. Tinham-lhe assegurado que, por trás do hall de entrada bastante sisuda, havia uma casa de elegância extraordinária e tamanho inesperado. À primeira vista, porém, parecia difícil imaginar. Abdullah preferia seu novo palácio de bilhões de dólares em Riad — ou o Grande Palácio Presidencial no Kremlin, onde havia se encontrado secretamente em várias ocasiões com o homem com quem adquirira uma dívida enorme. Enfim, faria seu primeiro pagamento.
O primeiro-ministro insistia em mostrar a Abdullah uma poltrona de couro desgastada e de aparência modular amada por Winston Churchill.
Abdullah fez os ruídos de admiração apropriados. Por dentro, porém, estava pensando que a poltrona, como Jonathan Lancaster, precisava ser sacrificada.
Por fim, Abdullah e seus assistentes foram levados à sala do gabinete.
Tinha mesmo o tamanho de um gabinete. Ele se sentou no lugar designado, e Lancaster, à sua frente. Diante de cada um estava a pauta acordada para a primeira sessão da cúpula. O inglês, porém, depois de muitos pigarros e de folhear papéis, sugeriu que primeiro tirassem da frente “alguns assuntos desagradáveis”.
— Assuntos desagradáveis?
— Chegou a nosso conhecimento o fato de que uma dúzia ou mais de ativistas mulheres estão sendo mantidas, sem acusação formal, numa prisão saudita, sujeitas a várias formas de tortura, incluindo choque elétrico, afogamento simulado e ameaças de estupro. É imperativo que elas sejam libertadas imediatamente. Caso contrário, não poderemos proceder com nosso relacionamento de forma normal.
Abdullah conseguiu disfarçar seu assombro. Seu ministro do Exterior e seu embaixador em Londres tinham garantido que a reunião seria
amigável.
— Aquelas mulheres — disse ele, calmamente — foram presas por meu sobrinho.
— Seja como for — retorquiu Lancaster —, você é responsável pelo confinamento atual delas. Devem ser libertadas imediatamente.
O olhar de Abdullah era firme e frio.
— O Reino da Arábia Saudita não interfere em questões internas da Grã-Bretanha. Esperamos a mesma cortesia.
— O Reino da Arábia Saudita ajudou direta e indiretamente a transformar este país no principal centro mundial de ideologia salafista-jihadista. Isso também precisa acabar.
Abdullah hesitou e, então, disse:
— Talvez devêssemos passar ao próximo item da pauta.
— Acabamos de fazer isso.
Para além das zonas governamentais de Whitehall e Westminster, o trânsito do meio-dia em Londres estava o emaranhado de sempre. Anna Yurasova levou quase duas horas para dirigir de Tower Hamlets ao estacionamento Q-Park na Kinnerton Street, em Belgravia, muito mais do que ela esperava.
A rezidentura de Londres tinha clandestinamente reservado uma vaga na garagem. Anna escondeu a Stechkin 9mm embaixo do banco do carona do Renault antes de entregar o carro ao manobrista. Então, ela subiu a rampa, bolsa pendurada num ombro, e se dirigiu para a Motcomb Street, uma via de pedestres estreita com algumas das lojas e restaurantes mais exclusivos de Londres. Com sua saia, meia-calça escura e casaco de couro curto, saltos batendo alto nos paralelepípedos, atraiu olhares de admiração e inveja. Estava confiante, porém, de não estar sendo seguida.
Na Lowndes Street, virou à esquerda na direção da Eaton Square. A seção noroeste estava fechada para tráfego de veículos e pedestres. Anna se aproximou de um oficial da Polícia Metropolitana e explicou que era empregada de uma das casas na praça.
— Qual delas, por favor?
— Número 70.
— Preciso olhar sua bolsa.
Anna a tirou do ombro e a abriu. O policial a revistou com atenção antes de permitir que ela passasse. O terraço de casas ao longo do lado oeste da praça era um dos mais imponentes em Londres: três janelas panorâmicas, cinco andares, um porão e um belo pórtico sustentado por duas colunas, cada uma com o endereço da casa. Anna subiu os quatro degraus do número 70 e colocou o dedo indicador na campainha. A porta se abriu, e ela entrou.
Embora Anna Yurasova não soubesse, a equipe em Hatch End estava monitorando todos os seus passos com ajuda das câmeras de segurança.
Eli Lavon, que a seguia a pé, era só uma medida de segurança. Após vê-la entrar na casa da Eaton Square, 70, ele caminhou para oeste até Cadogan Place, e entrou no banco do carona de um Ford Fiesta. Mikhail Abramov estava ao volante.
— Parece que Gabriel tinha razão sobre o local onde os russos planejavam agir.
— Você parece surpreso — respondeu Lavon.
— Nem um pouco. A questão é: como vão chegar até ele?
Mikhail bateu os dedos nervosamente no painel. Era, pensou Lavon, um hábito muito inconveniente para um homem do mundo secreto.
— Será que dá para parar com isso?
— Parar com o quê?
Lavon exalou lentamente e ligou o rádio do carro. Era uma da tarde. Em Downing Street, disse a Radio 4, da BBC, o primeiro-ministro e o príncipe herdeiro acabavam de se sentar para almoçar.
62
EATON SQUARE, BELGRAVIA
Foi Konstantin Dragunov, amigo e parceiro comercial do presidente da Rússia, que admitiu Anna Yurasova à casa elegante na Eaton Square. Ele vestia um terno escuro típico dos oligarcas e uma camisa social branca aberta até o esterno. Seu cabelo e barba grisalhos e escassos tinham comprimento uniforme. Seu lábio inferior proeminente brilhava como a casca de uma maçã recém-polida. Anna recuou ao pensar num tradicional beijo russo de cumprimento. Defensivamente, ofereceu sua mão em vez disso.
— Senhor Dragunov — disse ela, em inglês.
— Por favor, me chame de Konstantin — respondeu ele, no mesmo idioma. Então, em russo, continuou: — Não se preocupe, uma equipe da rezidentura fez uma varredura completa na casa ontem à noite. Está limpa.
Ele ajudou Anna a tirar o casaco. O olhar dele sugeria que queria ajudá-
la a tirar também a roupa e a lingerie. Konstantin Dragunov era considerado um dos piores devassos da Rússia, uma conquista notável, dado o nível da competição.
Anna olhou o gracioso hall de entrada. Antes de sair de Moscou, ela tinha se familiarizado com o interior da casa, estudando fotografias e plantas. Não tinham feito justiça. A construção era impressionantemente bonita.
Ela pegou o casaco de volta.
— Talvez você devesse me mostrar a casa.
— Vai ser um prazer.
Dragunov a levou por um corredor até um par de portas duplas, cada uma com uma janela redonda, como escotilhas de navio. Atrás ficava uma cozinha profissional muito maior que o apartamento de Anna em Moscou.
Era óbvio, pela atitude indiferente de Dragunov, que ele não frequentava esse cômodo de sua mansão em Belgravia.
— Dei o dia de folga ao resto da equipe, como a inglesa mandou.
Duvido que Abdullah vá comer algo, mas antes de o cordão de isolamento da polícia ser colocado, recebi a entrega de uma bandeja de canapés do bufê favorito dele. Está na geladeira.
Havia duas, na verdade, lado a lado.
— O que ele vai beber?
— Depende do humor. Champanhe, vinho branco, um uísque se seu dia tiver sido difícil. Os vinhos estão na adega embaixo do balcão. As bebidas destiladas ficam no bar. — Dragunov empurrou as portas duplas como um garçom apressado. O bar ficava numa alcova à direita. — Abdullah prefere Black Label. Mantenho uma garrafa só para ele.
— Como ele toma?
— Com muito gelo. Tem uma máquina automática embaixo da pia.
— A que horas ele deve chegar?
— Entre 16h30 e 17 horas. Por motivos óbvios, não pode ficar muito.
— Onde vai recebê-lo?
— Na sala de estar.
Ficava um lance de escadas acima, no primeiro andar da mansão. Como o resto da casa, não havia nada russo. Anna imaginou a cena que aconteceria ali dentro de poucas horas.
— É essencial que você se comporte normalmente — instruiu ela. —
Só pergunte o que ele quer beber, e eu cuido do resto. Consegue fazer isso, Konstantin?
— Acho que sim. — Ele pegou-a pelo braço. — Tem mais uma coisa que você deveria ver.
— O que é?
— Surpresa.
Ele guiou Anna para um pequeno elevador com painéis de madeira e apertou o botão para ir ao andar mais alto. O enorme quarto de Dragunov
— a câmara dos horrores — dava vista para a Eaton Square.
— Não se preocupe, eu a trouxe aqui só pela vista.
— Do quê?
Ele deu um empurrãozinho nela na direção de uma das três janelas panorâmicas e apontou para o lado sul da praça.
— Sabe quem mora bem ali, no número 56?
— Mick Jagger?
— O chefe do Serviço Secreto de Inteligência. E você vai matar o ativo premiado dele bem debaixo do seu nariz.
— Que ótimo, Konstantin. Mas, se não tirar a mão da minha bunda, vou matar você também.
O assunto reservado para o almoço de trabalho na Downing Street era a guerra da Arábia Saudita contra os rebeldes houthis apoiados pelos iranianos no Iêmen. Jonathan Lancaster exigiu que Abdullah parasse com os ataques aéreos indiscriminados a civis inocentes, em especial, aqueles feitos com aeronaves de caça britânicas. Abdullah argumentou que a guerra era do sobrinho, não dele, embora tivesse deixado claro que compartilhava da visão de KBM de que os iranianos não podiam ter permissão de espalhar sua influência maligna por todo o Oriente Médio.
— Também estamos preocupados — falou Lancaster — com a influência regional crescente dos russos.
— A influência de Moscou está crescendo porque o presidente russo não permitiu que seu aliado na Síria fosse varrido pela loucura da Primavera Árabe. O resto do mundo árabe, incluindo a Arábia Saudita, não pôde deixar de notar.
— Posso dar um conselho, príncipe Abdullah? Não caia nas promessas russas. Não vai acabar bem.
Eram 15h15 quando os dois líderes saíram pela porta de número dez. A negociação comercial e o investimento informados pelo primeiro-ministro para os jornalistas reunidos era relevante, mas alguns bilhões abaixo da expectativa pré-reunião — assim como o compromisso de Abdullah de comprar armas britânicas no futuro. Sim, disse Lancaster, eles tinham discutido assuntos espinhosos envolvendo direitos humanos. Não, ele não estava satisfeito com todas as respostas do príncipe herdeiro, incluindo aquela sobre o assassinato brutal do jornalista saudita dissidente Omar Nawwaf.
— Foi — declarou Lancaster, em conclusão — uma troca honesta e frutífera entre dois velhos amigos.
Com isso, apertou a mão de Abdullah e fez um gesto na direção da limusine Mercedes que o esperava. Quando o comboio saiu de Downing Street, Christopher Keller entrou no banco de trás de uma van preta do Comando de Proteção. Em circunstâncias normais, o caminho até a residência particular de Abdullah na Eaton Square, 71 podia levar vinte minutos ou mais. Mas, em ruas vazias com escolta da Polícia Metropolitana, eles chegaram em menos de cinco.
As câmeras de segurança da praça registraram que o príncipe herdeiro Abdullah entrou em sua casa às 15h42, acompanhado por uma dezena de assistentes com vestimentas tradicionais e vários seguranças sauditas de
ternos escuros. Seis oficiais da RaSP imediatamente assumiram posições em frente à residência, ao longo da calçada. Um membro do destacamento, porém, permaneceu no banco de trás da van do Comando de Proteção, invisível à mulher parada na janela do terceiro andar da casa vizinha.
Levou o mesmo tempo, cinco minutos, para o primeiro-ministro Jonathan Lancaster se separar de seus assistentes e subir até a Sala Branca. Ao entrar, removeu uma folha oficial de anotações do número 10 do bolso interno do paletó. O bloco do qual ela tinha sido arrancada estava na mesa de centro em frente a Graham Seymour, embaixo da caneta Parker do chefe do MI6.
— Suspeito que nenhum primeiro-ministro na história tenha recebido um bilhete assim no meio de uma visita de Estado. — Lancaster o colocou na mesa de centro. — Falei a Abdullah que era sobre o Brexit. Não sei se ele acreditou.
— Achei que você deveria saber onde ela estava.
Jonathan Lancaster baixou os olhos para a nota.
— Faça um favor, Graham. Queime esse negócio. O resto do bloco também.
— Primeiro-ministro?
— Você deixou uma marca no bloco quando escreveu. — Lancaster balançou a cabeça em reprovação. — Eles não ensinam nada na escola de espiões?
63
EATON SQUARE, BELGRAVIA
As recriminações começaram no instante em que a porta se fechou. A reunião em Downing Street tinha sido um desastre absoluto. Não havia outra palavra. Desastre! Como eles podiam não saber que Lancaster pretendia encurralar Vossa Alteza Real na questão dos direitos humanos e das mulheres presas? Por que não foram informados de que ele ia levantar o assunto do apoio financeiro saudita a instituições islâmicas na Inglaterra? Por que foram pegos de surpresa? Obaid, o ministro do Exterior, colocou toda a culpa em Qahtani, embaixador em Londres, que via conspirações em todo canto. Al-Omari, chefe da corte real, ficou tão enraivecido que sugeriu cancelar o jantar e voltar imediatamente a Riad.
Foi Abdullah, de repente um estadista, que o contrariou. Não ir ao jantar, disse, só ofenderia os britânicos e o enfraqueceria em casa. Melhor terminar a visita num ponto alto, mesmo que falso.
Nesse meio-tempo, era preciso uma reação agressiva de mídia. Obaid correu para a BBC, Qahtani para a CNN. No silêncio repentino, Abdullah se recostou em sua cadeira, olhos fechados, a mão na testa. A performance era para al-Omari, o cortesão. Não havia tarefa pequena demais, humilhante demais, para este funcionário. Ele pairava sobre Abdullah noite e dia. Portanto, seria preciso lidar com ele com cuidado.
— Não está se sentindo bem, Vossa Alteza?
— Um pouco cansado, só isso.
— Talvez devesse subir para descansar.
— Acho que vou nadar um pouco primeiro.
— Devo ligar a sauna?
— Algumas coisas, eu mesmo consigo fazer. — Abdullah levantou-se lentamente. — Com exceção de um golpe palaciano ou um ataque iraniano na Arábia Saudita, não quero ser perturbado por nada até 19h30. Consegue fazer isso, Ahmed?
Abdullah desceu à sala da piscina. Uma luz azul molhada dançava num teto abobadado pintado com corpos fortes nus rodopiantes à moda de Rubens ou Michelangelo. Como ficariam chocados os devotos homens do ulemá, pensou, se o vissem agora. Ele renovara o pacto entre os
wahabistas e a Casa de Saud para ganhar apoio do clero em seu golpe contra Khalid. Mas, em seu interior, detestava os barbados tanto quanto os reformistas. Apesar da reunião inesperadamente litigiosa em Downing Street, Abdullah tinha aproveitado seu breve respiro da religiosamente sufocante Riad. Percebia quanto sentia falta da visão da pele feminina, ainda que só uma panturrilha descoberta, pálida de inverno, vista pela janela de uma limusine acelerando.
Ele entrou no vestiário, ligou a sauna e tirou a roupa. Nu, contemplou seu reflexo num espelho de corpo inteiro. A visão o deprimiu. Os poucos músculos adquiridos na puberdade fazia muito tempo haviam se transformado em gordura. Seu peitoral caía como os seios de uma velha sobre sua barriga colossal. Suas pernas, compridas e sem pelos, pareciam sofrer com a carga. Só seu cabelo o salvava da feiura inconteste. Era brilhante, grosso e apenas levemente grisalho.
Ele entrou na piscina e, como um peixe-boi, nadou várias voltas.
Depois, mais uma vez diante do espelho, pensou detectar uma leve melhoria em seu tônus muscular. No armário havia uma muda de roupas: calças de lã, um blazer, uma camisa social listrada, roupas de baixo, mocassins, um cinto. Depois de passar desodorante nas axilas e um pente no cabelo, ele se vestiu.
A porta de vidro pesada da sauna estava opaca com o vapor. Ninguém, nem mesmo o grudento al-Omari, ousaria olhar lá dentro. Abdullah trancou a porta exterior do vestiário antes de abrir o que antes fora um armário para roupões e toalhas de piscina. Tornara-se uma espécie de vestíbulo. Dentro, havia outra porta. Na parede, um teclado. Abdullah digitou o código de quatro dígitos. A tranca se abriu com um baque suave.
64
EATON SQUARE, BELGRAVIA
A porta contígua do outro lado da parede já estava aberta. À meia-luz da passagem, estava Konstantin Dragunov. Ele mirou Abdullah por um longo tempo. Não havia nada deferente em seu olhar direto. O saudita entendia que o russo tinha direito a sua insolência. Se não fosse por Dragunov e seus amigos no Kremlin, Khalid ainda seria o próximo na linha sucessória do trono, e Abdullah, só mais um príncipe falido de meia-idade do lado errado da árvore genealógica.
Por fim, Dragunov abaixou levemente a cabeça. O gesto não era nada genuíno.
— Vossa Alteza Real.
— Konstantin. Que bom vê-lo novamente.
Abdullah aceitou a mão esticada. Fazia vários meses desde o último encontro dos dois. Naquela ocasião, o monarca tinha informado ao russo que seu sobrinho Khalid contratara os serviços de Gabriel Allon, chefe da inteligência israelense, para encontrar sua filha sequestrada.
O russo soltou a mão de seu interlocutor.
— Vi a coletiva conjunta com Lancaster. Devo dizer, pareceu muito tensa.
— E foi. A reunião que a precedeu também.
— Fico surpreso. — Dragunov olhou seu grande relógio de pulso de ouro. — Quanto tempo pode ficar?
— Meia hora. Nem um minuto a mais.
— Vamos subir?
— E os repórteres e fotógrafos na praça?
— As venezianas e cortinas estão fechadas.
— E sua equipe?
— Só uma garota. — Dragunov deu um sorriso de predador. — Espere só até vê-la.
Eles subiram dois lances de escada até a grande sala de estar dupla. Era mobiliada como um clube de cavalheiros de Pall Mall e cheia de quadros de equinos, caninos e homens com perucas brancas. Uma empregada com um vestido preto curto estava colocando bandejas de canapés numa mesa
baixa. Ela tinha uns 35 anos e era bem bonita. Abdullah se perguntou onde Dragunov as encontrava.
— Algo para beber? — perguntou o russo. — Suco? Água mineral?
Chá?
— Suco.
— De quê?
— De uvas francesas e que solte bolhas quando colocado numa taça alta e esguia.
— Acho que tenho uma garrafa de Louis Roederer Cristal na adega.
Abdullah sorriu.
— Bem, vai ter que servir.
Com um aceno de cabeça, a mulher se retirou.
Abdullah se sentou e dispensou a oferta de comida de Dragunov.
— Eles me encheram de comida em Downing Street. A segunda rodada começa às oito.
— Talvez seja melhor que a primeira.
— Duvido bastante.
— Você antecipava uma recepção mais calorosa?
— Me disseram para esperar isso.
— Quem?
Abdullah sentiu-se num interrogatório.
— Os canais de sempre, Konstantin. Que diferença faz?
Um momento se passou. Então, o russo disse, em voz baixa:
— Não haveria reprimendas se você tivesse ido a Moscou em vez de Londres.
— Se minha primeira viagem ao exterior como príncipe herdeiro tivesse sido a Moscou, mandaria um sinal perigoso aos americanos e aos meus rivais na Casa de Saud. É melhor esperar até eu ser rei. Assim, ninguém vai poder me contestar.
— Seja como for, nosso amigo mútuo no Kremlin gostaria de um sinal claro de suas intenções.
Assim começa, pensou Abdullah. A pressão para cumprir sua parte do acordo. Cauteloso, ele perguntou:
— Que tipo de sinal?
— Algo que deixe absolutamente claro que você não planeja seguir sozinho depois de virar líder de uma família que vale mais de um trilhão de dólares. — O sorriso de Dragunov era forçado. — Com uma riqueza
assim, pode ficar tentado a esquecer quem o ajudou quando ninguém mais se interessava por você. Lembre, Abdullah, meu presidente investiu muito em você. Ele espera um belo retorno.
— E vai ter — garantiu Abdullah. — Depois que eu virar rei.
— Enquanto isso, ele gostaria de um gesto de boa vontade.
— O que tem em mente?
— Um acordo para investir cem bilhões de dólares do fundo de riqueza soberana da Arábia Saudita em vários projetos russos de importância fundamental para o Kremlin.
— E para você também, suspeito. — Sem receber resposta, Abdullah complementou: — Isso está me parecendo uma extorsão.
— Está?
Abdullah fingiu deliberar.
— Diga para seu presidente que vou despachar uma delegação a Moscou na semana que vem.
Dragunov juntou as mãos num gesto de alegria.
— Que ótima notícia.
O saudita, de repente, ficou sedento por álcool. Olhou por cima do ombro. Onde diabos estava a garota? Quando se virou de novo, Dragunov estava devorando um canapé de caviar. Um único ovo negro tinha se alojado como um carrapato em seu lábio inferior proeminente.
— Por que não me disse que ia tentar matá-lo?
— Matar quem?
— Allon.
O russo passou as costas da mão pela boca, desalojando o pontinho de caviar.
— A decisão foi tomada pelo Kremlin e o SVR. Não tive nada a ver com isso.
— Você deveria ter matado Khalid e a menina como concordamos e deixado Allon de fora disso.
— Era preciso dar um jeito nele.
— Mas vocês não dera um jeito nele, Konstantin. Allon sobreviveu.
Dragunov balançou a mão em desdém.
— De que você tem tanto medo?
— De Gabriel Allon.
— Não há nada a temer.
— Mesmo?
— Fomos nós que tentamos matá-lo, não você.
— Duvido que ele vá ver alguma diferença.
— Você é príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Abdullah. Logo, será rei.
Ninguém, nem Gabriel Allon, pode tocar em você agora.
Abdullah olhou para trás. Onde diabos estava a garota?
O SVR tinha treinado Anna Yurasova em todos os tipos de armamentos —
armas de fogo, facas, explosivos —, mas ela jamais havia ensaiado abrir uma garrafa de champanhe Louis Roederer sob condições de estresse operacional.
Quando a rolha finalmente pulou com um estouro, vários mililitros caros do líquido espumoso caíram no balcão. Ignorando a sujeira, Anna pegou no bolso de seu avental de empregada uma pipeta de Pasteur e uma fina ampola de vidro. O líquido claro dentro era uma das substâncias mais perigosas do mundo. O Centro de Moscou havia garantido a Anna que era inofensiva enquanto estivesse no frasco. Quando ela removesse a tampa, porém, o líquido imediatamente emitiria uma fonte invisível de radiação alfa letal. Anna deveria trabalhar rápido, mas com extremo cuidado. Ela não podia ingerir ou tocar a substância, nem inalar seus gases.
No balcão, havia uma bandeja com duas taças de champanhe de cristal.
As mãos dela tremiam ao girar a tampa de metal da ampola. Com a pipeta de Pasteur, tirou alguns mililitros do líquido e esguichou em uma das taças. Não tinha cheiro algum. O Centro de Moscou prometera que também não teria gosto.
Anna rosqueou a tampa da ampola e jogou no bolso de seu avental, com a pipeta. Então, encheu duas taças com o champanhe e, com a mão esquerda, levantou a bandeja. A contaminada estava na direita. Ela quase conseguia sentir a radiação subindo com a efervescência. Abriu uma das portas vaivém e pegou alguns guardanapos de coquetel de linho do bar. Ao se aproximar da sala de estar, ouviu o saudita falando um nome que fez seu coração dar uma pirueta. Colocou o guardanapo em frente a Abdullah e, em cima do tecido, a taça contaminada. Dragunov, ela serviu diretamente, de sua mão direita para a dele.
O oligarca levantou a taça com formalidade.
— Ao futuro — disse, e bebeu.
O saudita hesitou.
— Sabe — falou, depois de um momento —, não toco numa gota de álcool desde a noite em que voltei à Arábia Saudita para virar príncipe herdeiro.
— Ela pode pegar outra coisa, se preferir.
— Está maluco? — O saudita virou a taça inteira de champanhe num só gole. — Tem mais? Acho que não consigo aguentar o jantar em Downing Street sem.
Anna pegou de volta a taça contaminada e a devolveu à cozinha. O
saudita acabara de consumir toxina radioativa suficiente para intoxicar todo mundo na Grande Londres. Não havia medicação ou tratamento de emergência capaz de impedir a inevitável destruição de suas células e seus órgãos. Ele já estava morrendo.
Mesmo assim, Anna decidiu dar mais uma dose.
Dessa vez, não se deu ao trabalho de usar a pipeta. Derramou a toxina líquida restante diretamente na taça e adicionou champanhe. Bolhas dançaram por cima da borda. Anna imaginou um Vesúvio de radiação.
Na sala de estar, ela serviu a bebida ao saudita e, com um sorriso, saiu apressada. Voltando à cozinha, tirou o avental e colocou dentro da lata de lixo, junto com a ampola vazia e a pipeta. A inglesa tinha ordenado que Anna não deixasse itens contaminados para trás ao fugir. Era uma ordem que ela não tinha intenção de obedecer.
Cercada por uma névoa invisível de radiação, ela checou o horário no celular. 16h42. Na sala de estar do andar de cima, Vossa Alteza Real Príncipe Abdullah bin Abdulaziz Al Saud já estava morrendo. Anna, com as mãos tremendo, acendeu um cigarro e esperou que ele fosse embora.
65
EATON SQUARE, BELGRAVIA
Konstantin Dragunov saiu de sua casa às 17h22. Como o canto noroeste da praça estava fechado, ele foi obrigado a caminhar uma curta distância até Cliveden Place, onde o motorista em sua limusine Mercedes Maybach o aguardava. Segurando uma pasta e com um sobretudo dobrado no braço, ele entrou no banco de trás. O veículo acelerou para leste, seguida por um observador do Escritório numa motocicleta BMW.
A mulher emergiu sete minutos depois. No fim dos degraus, ela virou-se para a esquerda e passou pela casa em que Vossa Alteza Real Príncipe Abdullah bin Abdulaziz Al Saud deveria estar descansando antes do jantar em Downing Street às oito da noite. Os seis oficiais do Comando de Proteção em frente à residência a observaram com atenção quando ela passou. Christopher Keller, ainda abrigado na van, também, embora o interesse dele na mulher fosse de natureza bem diferente.
Ela passou pelo cordão de isolamento e, seguida por Eli Lavon, caminhou diretamente para o estacionamento Q-Park na Kinnerton Street.
Lá, aguentou uma espera de dez minutos pelo Renault Clio. Quando o carro finalmente chegou, ela se dirigiu para norte, entrando no trânsito de fim da tarde em Londres. Alguns minutos após as 18 horas, ela passou pela entrada da estação de metrô Swiss Cottage, na Finchley Road. Lavon e Mikhail Abramov estavam atrás dela no Ford Fiesta. A equipe anglo-israelense em Hatch End a seguia pelas câmeras de segurança.
Os dois líderes das equipes continuavam em locais separados. Graham Seymour, em Downing Street; Gabriel, na casa segura de Notting Hill.
Estavam conectados por uma linha telefônica segura. A ligação tinha sido iniciada por Gabriel às 15h42, momento em que o príncipe herdeiro Abdullah chegara em sua casa em Eaton Square. Não o tinham visto desde então. Também não viam nenhuma evidência que sugerisse que Konstantin Dragunov ou a agente do SVR tivessem estado na presença de Abdullah.
— Então, por que estão fugindo? — questionou Gabriel.
— Parece que decidiram abortar.
— Por que fariam isso?
— Talvez tenham notado nossa vigilância — sugeriu Seymour.
— Ou talvez Abdullah tenha dado o cano.
— Ou talvez Abdullah já esteja morto — disse Gabriel —, e as duas pessoas que o mataram estejam correndo para escapar.
Houve silêncio na linha. Finalmente, Seymour disse:
— Se Abdullah não sair da porta como marcado às 19h45, vou ligar para a delegada da Polícia Metropolitana e ordenar a prisão de Dragunov e da mulher.
— Vai ser tarde demais às 19h45. Precisamos saber se Abdullah ainda está vivo.
— Não posso exatamente pedir para o primeiro-ministro ligar para ele.
Já o envolvi demais até aqui.
— Então, acho que vamos ter que mandar outra pessoa entrar na casa para checar.
— Quem?
Gabriel desligou o telefone.
66
EATON SQUARE, BELGRAVIA
Nigel Whitcombe dirigiu de Notting Hill até Belgravia em exatamente oito minutos. Gabriel e ele ficaram no carro enquanto Khalid se aproximava do cordão de isolamento na Eaton Square. Foi Christopher Keller quem o levou até a porta da frente da casa de número 71.
A campainha atraiu Marwan al-Omari, cortesão principal. Estava com vestimentas tradicionais sauditas. Fixou um olhar fulminante em Khalid.
— O que está fazendo aqui?
— Vim ver meu tio.
— Posso garantir que seu tio não deseja vê-lo.
Al-Omari tentou fechar a porta, mas Khalid o impediu.
— Ouça, Marwan. Eu sou um Al Saud, e você é apenas um mordomo supervalorizado. Agora, leve-me ao meu tio antes que eu...
— Antes que o quê? — Al-Omari conseguiu dar um sorriso. — Ainda fazendo ameaças, Khalid? Seria de se imaginar que já tivesse aprendido a lição.
— Ainda sou filho de um rei. E você, Marwan, é bosta de camelo.
Agora, saia da minha frente.
O sorriso de Al-Omari desapareceu.
— Seu tio deixou instruções estritas para não ser perturbado até as sete e meia.
— Eu não estaria aqui se não fosse uma emergência.
Al-Omari manteve sua posição por um momento mais antes de finalmente dar um passo para o lado. Khalid entrou apressado no hall de entrada, mas o cortesão pegou o braço de Keller quando este tentou segui-lo.
— Ele, não.
Keller foi para a praça sem dizer nada enquanto o sobrinho, seguido por al-Omari, corria pelas escadas até a suíte de Abdullah. A porta exterior estava fechada. A batida anêmica de al-Omari mal se ouviu.
— Vossa Alteza Real?
Quando não houve resposta, Khalid empurrou o cortesão e bateu na porta com a palma da mão.
— Abdullah? Abdullah? Está aí?
Recebido pelo silêncio, ele agarrou a maçaneta e a balançou. A porta pesada era sólida como um navio.
Ele olhou para al-Omari.
— Saia da frente.
— O que você vai fazer?
Khalid levantou a perna direita e enfiou a sola do sapato contra a porta.
Houve o som de madeira lascando, mas ela segurou. O segundo golpe soltou a maçaneta, e o terceiro espatifou o batente da porta. Também quebrou vários ossos do pé de Khalid, ele tinha certeza.
Mancando com dor, ele entrou na magnífica suíte. A sala de estar estava desocupada, bem como o quarto. Khalid gritou o nome de Abdullah, mas continuou sem resposta.
— Ele deve estar se banhando — afligiu-se al-Omari. — Não podemos incomodá-lo de forma alguma.
A porta do banheiro também estava fechada, mas a maçaneta cedeu ao toque de Khalid. Abdullah não estava na banheira nem no chuveiro.
Também não estava se arrumando na pia. Havia uma última porta. A porta do vaso sanitário. Khalid não se deu ao trabalho de bater.
— Meu Deus — sussurrou al-Omari.
67
DOWNING STREET, 10
Graham Seymour ligou para Stella McEwan, delegada do Serviço de Polícia Metropolitano, às 18h42. Depois, durante o inevitável inquérito, muito se diria sobre a curta duração do telefonema, cinco minutos. Em nenhum ponto da conversa Seymour mencionou que estava na Sala Branca da Downing Street, 10, nem que o primeiro-ministro estava sentado ansioso ao seu lado.
— Uma equipe de assassinos do SVR? — perguntou McEwan.
— Mais uma — lamentou Seymour.
— Quem é o alvo?
— Não temos certeza. Supomos que seja alguém que entrou em conflito com o Kremlin, ou talvez um ex-oficial de inteligência russo vivendo aqui na Inglaterra com identidade falsa. Infelizmente, não posso dar muitos detalhes.
— E a equipe de assassinos?
— Identificamos três suspeitos. Uma mulher de trinta e poucos anos.
Está agora indo na direção leste na M25 num Renault Clio. — Seymour recitou a placa do carro. — Deve ser considerada armada e extremamente perigosa. Assegure-se de ter seus oficiais armados à disposição.
— Número dois?
— Está esperando pela mulher no Bedford House em Frinton. Achamos que planejam ir embora da Inglaterra hoje.
— Harwich fica logo ao lado.
— E a última balsa — completou Seymour — sai às 23 horas.
— Frinton é em Essex, o que significa que a polícia de Essex é a responsável.
— É uma questão de segurança nacional, Stella. Afirme sua autoridade.
E lide com ele com cuidado. Achamos que é ainda mais perigoso que a mulher.
— Vai levar algum tempo para colocarmos nossos agentes a postos. Se estiverem vigiando...
— Estamos.
Stella McEwan perguntou sobre o terceiro suspeito.
— Está prestes a embarcar num jato particular no Aeroporto London City — respondeu Seymour.
— Com destino a Moscou?
— Acreditamos que sim.
— Sabe o nome dele?
Seymour recitou.
— O oligarca?
— Konstantin Dragunov não é um oligarca comum, se é que isso existe.
— Não posso deter um amigo do presidente russo sem um mandado.
— Teste-o para agentes químicos e radiação, Stella. Com certeza, vai ter provas mais que suficientes para prendê-lo. Mas seja rápida.
Konstantin Dragunov não pode ter permissão de embarcar naquele avião.
— Tenho uma sensação de que você não está me contando tudo, Graham.
— Sou diretor-geral do Serviço Secreto de Inteligência. Por que você pensaria qualquer outra coisa? — Seymour cortou a ligação e olhou para Jonathan Lancaster. — Receio que as coisas vão ficar ainda mais interessantes.
— Mais? — Houve uma batida à porta. Era Geoffrey Sloane. Parecia mais pálido que nunca. — Algo errado, Geoffrey?
— Parece que o príncipe herdeiro está doente.
— Ele precisa ser levado para o hospital?
— Vossa Alteza Real deseja voltar imediatamente a Riad. Ele e sua delegação estão saindo da residência em Eaton Place agora.
Pensativo, Lancaster colocou a mão no queixo.
— Peça para o gabinete de imprensa redigir uma declaração. Assegure-se de que o tom está certo. Recuperação rápida, esperamos vê-lo no próximo G20, coisa e tal.
— Vou cuidar disso, primeiro-ministro.
Sloane saiu. Lancaster olhou para Seymour.
— A decisão dele de ir embora imediatamente foi um golpe de sorte.
— Sorte não teve nada a ver com isso.
— Como você fez isso?
— Khalid aconselhou o tio a voltar para casa para se tratar. Planeja acompanhá-lo.
— Bela dica — disse Lancaster.
O BlackBerry de Seymour apitou.
— O que foi agora?
Seymour mostrou a tela. A chamada era de Amanda Wallace, diretora-geral do MI5.
— Boa sorte — desejou Jonathan Lancaster, antes de deixar a sala em silêncio.
68
AEROPORTO LONDON CITY
Konstantin Dragunov ouviu as primeiras sirenes enquanto estava preso no trânsito da hora do rush na East India Dock Road. Instruiu Vadim, seu motorista, a ligar o rádio. O apresentador da Radio 4 parecia entediado.
O príncipe herdeiro Abdullah, da Arábia Saudita, ficou doente e não participará do jantar nesta noite em Downing Street como planejado. O
primeiro-ministro Jonathan Lancaster lhe desejou uma recuperação rápida...
— Já basta, Vadim.
O motorista desligou o rádio e virou à direita em Lower Lea Crossing.
A via os fez passar pelas docas da Companhia das Índias Orientais e pelas novas torres comerciais brilhantes de Leamouth Peninsula. O Aeroporto London City ficava a cerca de cinco quilômetros a leste, pela North Woolrich Road. Entrar no aeroporto exigia navegar por algumas rotatórias.
O trânsito fluía normalmente na primeira, mas a polícia bloqueara a segunda.
Um oficial de jaqueta verde-limão se aproximou da Maybach — com cuidado, pareceu a Dragunov — e bateu na janela de Vadim. O motorista a abaixou.
— Desculpe pela demora — disse o oficial —, mas infelizmente temos um problema de segurança.
— Que problema? — perguntou Dragunov, do banco traseiro.
— Uma ameaça de bomba. Deve ser falsa, mas não estamos deixando passageiros entrarem no terminal neste momento. Só os que voarão em aeronaves particulares têm permissão para passar.
— Pareço alguém que viaja de avião comercial?
— Nome, por favor?
— Dragunov. Konstantin Dragunov.
O oficial dirigiu Vadim à segunda rotatória. Ele imediatamente virou à esquerda no estacionamento do London Jet Centre, operadora fixa do aeroporto.
Dragunov xingou baixinho.
O estacionamento estava lotado de veículos e funcionários da Polícia Metropolitana, inclusive vários oficiais técnicos do SCO19, o Comando Especialista de Armas de Fogo. Quatro oficiais imediatamente cercaram a Maybach, armas em punho. Um quinto bateu à janela de Dragunov e o ordenou que saísse.
— O que significa isso? — indagou o russo.
O oficial do SCO19 colocou sua Heckler & Koch G36 diretamente na cabeça de Dragunov.
— Agora!
Dragunov destrancou a porta. O oficial a abriu com força e arrancou o russo do banco de trás.
— Sou cidadão da Federação Russa e amigo pessoal do presidente.
— Sinto muito por você.
— Você não tem direito de me prender.
— Não estou prendendo.
Uma tenda estranha tinha sido montada em frente ao Jet Centre. O
oficial do SCO19 tirou o telefone de Dragunov antes de empurrá-lo pela entrada. Dentro, havia quatro técnicos vestidos com trajes de proteção a radiação. Um o examinou com um pequeno scanner, passando-o pelo torso e os membros dele. Quando o técnico analisou a mão direita de Dragunov, deu um passo para trás, assustado.
— O que foi? — perguntou o oficial do SCO19.
— Deflexão de escala total.
— O que isso quer dizer?
— Quer dizer que ele está completamente radioativo. — O técnico passou o scanner pelo oficial. — E você também.
Naquele mesmo momento, Anna Yurasova já estava começando a sentir os efeitos da quantidade titânica de radiação à qual tinha sido exposta dentro da casa de Konstantin Dragunov em Belgravia. A cabeça dela doía, ela tremia e estava muito nauseada. Duas vezes, quase parou no acostamento da M25 para vomitar, mas a urgência de esvaziar o conteúdo do estômago tinha passado. Enquanto ela se aproximava da saída para uma cidade chamada Potters Bar, a sensação pareceu retornar. Só por isso, ela ficou aliviada de ver o que parecia um acidente de trânsito à sua frente.
As três faixas da direita estavam bloqueadas, e um oficial com uma lanterna de ponta vermelha estava direcionando todo o trânsito para a da esquerda. Quando Anna passou por ele, o olhar dos dois se encontraram no escuro.
O trânsito parou. Outra onda de náusea a tomou. Ela tocou a testa.
Estava pingando de suor.
De novo, a onda recuou. Anna, de repente, foi tomada por um frio intenso. Ligou o aquecedor e pegou sua bolsa no banco do carona. Levou um momento tateando até encontrar o telefone e outro para discar o número de Nikolai.
Ele atendeu na mesma hora.
— Cadê você?
Ela disse onde estava.
— Ouviu o noticiário?
Não tinha ouvido. Estava ocupada demais tentando não vomitar.
— Abdullah cancelou o jantar. Aparentemente, está um pouco indisposto.
— Eu também.
— Do que está falando?
— Devo ter me exposto.
— Você bebeu a toxina?
— Não seja idiota.
— Então, vai passar — falou Nikolai. — Igual a uma gripe.
Outra onda a tomou. Dessa vez, Anna abriu a porta e vomitou violentamente. A convulsão foi tão poderosa que borrou sua visão. Quando voltou a enxergar, viu vários homens com equipamentos táticos cercando seu carro, armas empunhadas.
Ela colocou o telefone na coxa com o viva-voz ligado.
— Nikolai?
— Não me chame por esse nome.
— Não importa mais, Nikolai.
Ela esticou o braço até embaixo do banco do carona, e colocou a mão em volta do cabo da Stechkin. Conseguiu dar um único tiro antes de as janelas do carro explodirem num furacão de disparos na sua direção.
É a morte, pensou. Morte, morte, morte...
O tiroteio durou dois ou três segundos, no máximo. Quando acabou, Mikhail Abramov abriu com força a porta do Ford Fiesta e correu pela lateral da pista até o Renault estilhaçado. A mulher estava pendurada pela porta aberta do lado do motorista, suspensa pelo cinto de segurança, uma arma na mão. Rádios policiais estalavam, passageiros dos carros ao redor gritavam aterrorizados. E, em algum lugar, pensou Mikhail, um homem gritava em russo.
Está aí, Anna? O que está havendo? Consegue me ouvir, Anna?
De repente, dois oficiais do SCO19 deram meia-volta e apontaram os fuzis HK G36 para Mikhail. De mãos levantadas, ele andou de ré lentamente e voltou ao Ford.
— Ela está morta? — perguntou Lavon.
— Com certeza. E o amigo dela no hotel em Frinton sabe.
— Como?
— Ela estava ao telefone com ele quando aconteceu.
Lavon digitou uma mensagem para Gabriel. A resposta foi instantânea.
— O que diz? — perguntou Mikhail.
— Ele acabou de ordenar que Sarah saia imediatamente do hotel. Quer que a gente vá embora de Essex o mais rápido possível.
— É mesmo? — Atrás deles, um coro de buzinas subiu na noite. O
trânsito estava paralisado. — Melhor dizer a ele que vamos ficar um tempo aqui.
69
FRINTON-ON-SEA, ESSEX
Nikolai Azarov tinha permitido que a conexão com o telefone de Anna ficasse ativa por mais tempo do que deveria — cinco minutos e doze segundos, de acordo com o cronômetro de seu próprio aparelho. Ele tinha ouvido a explosão de tiros de arma automática, o som do vidro estilhaçando, os gritos agoniados de Anna. O que se seguiu foram de fato os primeiros momentos caóticos de uma investigação de cena de crime altamente incomum. Houve uma declaração de óbito, seguida um momento depois por um grito de alerta de algo chamado deflexão de escala total, um termo com o qual Nikolai não estava familiarizado. A mesma voz instruiu os oficiais a se afastarem do veículo até ele estar seguro. Um deles, porém, ficou perto o bastante para ver o telefone de Anna no chão do carro. Também notou que havia uma chamada em progresso. Pediu permissão de um superior para pegar o aparelho, mas o superior recusou.
— Se ela tocou no telefone — gritou —, essa porcaria está expelindo radiação.
Foi ali, cinco minutos após a morte de Anna, que Nikolai terminou a ligação. Não, pensou, com raiva. Não a morte de Anna, o assassinato.
Nikolai era bem versado nas regras e táticas da Polícia Metropolitana e das várias forças regionais e locais. Oficiais comuns não carregavam armas, só oficiais com autorização para armas de fogo ou os especialistas do SCO19. Os primeiros, em geral, não levavam o tipo de fuzil automático que Nikolai tinha ouvido pelo telefone. Só oficiais do SCO19 tinham esse armamento. Sua presença na M25 sugeria que estavam esperando por Anna. A presença de uma equipe de materiais perigosos com um aparelho de detecção de radiação também. Mas como a Polícia Metropolitana sabia que Anna estaria contaminada? Obviamente, concluiu Nikolai, ela estava sendo vigiada pelos britânicos.
Mas, se fosse o caso, por que não tinham tentado prendê-lo? No momento, ele estava tomando chá em sua mesa de sempre no bar do hotel.
Tinha feito check-out do quarto à tarde. Seu carro estava esperando no meio-fio da esplanada. Sua pequena mala de mão encontrava-se aos
cuidados do porteiro. A bagagem não continha nada de valor operacional.
A Makarov 9mm de Nikolai estava descansando confortavelmente apoiada em sua lombar. No bolso da frente de sua calça ficava o frasco extra de toxina radioativa que o Centro de Moscou tinha insistido que ele levasse para a Inglaterra. Garantiram que a radiação não podia escapar do frasco.
Depois de ouvir a voz do técnico de materiais perigosos, ele já não tinha certeza disso.
Deflexão de escala total...
Ele olhou para a televisão acima do bar. Estava ligada na Sky News.
Aparentemente, Khalid bin Mohammed tinha feito uma visita à casa de seu tio em Eaton Square antes de Downing Street anunciar o cancelamento do jantar da noite. O evento era importante por outro motivo; era a primeira vez que KBM era visto em público desde a abdicação. A Sky News, de algum jeito, tinha obtido um vídeo da chegada dele. Com roupas ocidentais e a cabeça descoberta, mal se podia reconhecê-lo. O olhar de Nikolai, porém, foi atraído ao agente de segurança britânico caminhando ao lado dele. Nikolai já tinha o visto antes, estava certo disso.
Ele pegou seu telefone. A Sky News tinha postado a matéria no site, junto com o vídeo. Nikolai viu três vezes. Não estava enganado.
São recém-casados. Aparentemente, foi coisa de momento...
Ele desligou seu telefone e removeu o chip. Depois, foi para o terraço que dava vista para a esplanada. Estava escuro, tinha parado de ventar. Ele não conseguia ver sinais de vigilância, mas sabia que estava sendo observado. O carro dele também, estacionado em frente à entrada do hotel.
De repente, outro carro parou atrás. Um Jaguar F-Type conversível.
Vermelho vivo. Nikolai sorriu.
Subindo ao quarto, Sarah enfiou o Walther PPK na bolsa e foi para o corredor. Seu telefone tocou enquanto ela esperava pelo elevador.
— Cadê você? — perguntou Keller, ansioso.
Ela explicou.
— Quanto tempo leva para sair de um hotel?
— Estou tentando.
— Tente mais, Sarah. E mais rápido.
O elevador chegou. Ela colocou a mala dentro.
— Ainda aí? — perguntou Sarah.
— Ainda aqui.
— Tem planos para hoje à noite?
— Estava pensando num jantar mais tarde.
— Algum lugar especial?
— Na minha casa.
— Quer companhia?
— Adoraria.
O elevador desacelerou até parar, e as portas se abriram com um chiado. Passando pela recepção, Sarah despediu-se ruidosamente de Margaret, chefe de serviços aos hóspedes, e Evans, o concierge. No bar do hotel, viu Keller passando na tela da televisão com Khalid ao seu lado. O
assassino russo estava se levantando, como se estivesse com pressa de ir embora. Sarah considerou dar meia-volta e refazer seus passos até o elevador. Em vez disso, acelerou o ritmo. Não eram mais de vinte passos até a entrada, mas ele parou ao seu lado e pressionou algo duro na base da coluna dela. Não havia como imaginar que fosse nada além de uma arma.
Com a mão esquerda, ele agarrou o braço dela e sorriu.
— A não ser que queira passar o resto da vida numa cadeira de rodas —
disse ele, em voz baixa —, sugiro que continue andando.
Sarah apertou com força o telefone.
— Ainda aí?
— Não se preocupe — respondeu Keller. — Ainda aqui.
70
FRINTON-ON-SEA, ESSEX
Lá fora, o russo pegou o telefone da mão de Sarah e cortou a ligação. Os dois carros estavam na rua, observados por um manobrista. Ele ficou confuso com a cena que testemunhava. Apenas 48 horas antes, Sarah tinha chegado ao hotel como recém-casada. E de repente saía com outro homem.
O manobrista pegou a mala de Sarah.
— Qual carro? — perguntou.
— O da senhora Edgerton — respondeu o russo com um sotaque britânico nítido.
Sarah conseguiu disfarçar sua surpresa. Claramente, o russo estava ciente de sua presença no hotel havia algum tempo. Ele aceitou as chaves do manobrista e o instruiu a colocar a mala da “senhora Edgerton” no porta-malas do Jaguar. Sarah tentou ficar com a bolsa, mas o russo a arrancou de seu ombro e jogou no porta-malas também. Ela caiu com um baque incomumente pesado.
O sobretudo do russo estava dobrado sobre o braço direito dele. Com o esquerdo, ele fechou o porta-malas e abriu a porta do carona. Os olhos de Sarah escanearam a esplanada enquanto ela entrava. Em algum lugar lá perto havia quatro observadores do MI6, nenhum deles armado. Era imperativo que não a perdessem de vista.
O russo fechou a porta e foi por trás do carro até o lado do motorista, onde o manobrista ansiava por sua gorjeta. Nikolai deu a ele uma nota de dez libras antes de entrar atrás do volante e ligar o motor. A arma estava na mão esquerda dele, apontada para o quadril direito de Sarah. Quando se afastaram do meio-fio, ela olhou por cima do ombro e viu o manobrista correndo atrás deles.
O russo tinha esquecido sua mala.
Ele virou na Connaught Avenue e pisou fundo no acelerador. Um desfile de lojas passou pela janela de Sarah: Café 19, Allsorts Cookware, Caxton Books & Gallery. O russo continuava com o cano da arma no quadril dela.
Com a mão direita, segurava firme no volante. O olhar dele estava grudado no retrovisor.
— É melhor prestar atenção aonde está indo — disse Sarah.
— Quem são eles?
— Cidadãos britânicos inocentes tentando desfrutar de uma noite agradável numa comunidade à beira-mar.
O russo afundou a arma no quadril de Sarah.
— As duas pessoas na van atrás de nós. — O sotaque britânico tinha desaparecido. — Polícia de Essex? MI5? MI6?
— Não sei do que você está falando.
Ele colocou o cano da arma na lateral da cabeça dela.
— Estou dizendo, não sei quem são.
— E seu marido?
— Trabalha na City, em Londres.
— Onde ele está agora?
— No hotel, se perguntando onde eu estou.
— Eu o vi na televisão há alguns minutos.
— Impossível.
— Ele acompanhou Khalid à casa do tio na Eaton Square.
— Que Khalid?
Sarah não antecipou o golpe — uma coronhada, dois centímetros acima da orelha dela. A dor foi de outro mundo.
— Acabou de cometer o segundo maior erro da sua vida.
— Qual foi o primeiro?
— Amarrar uma bomba na filha de Khalid.
— Que bom que esclarecemos as coisas. — Ele desviou de um pedestre que atravessava a rua. — Para quem seu marido trabalha?
— Para o MI6.
— E você?
— Para a CIA.
Era uma inverdade, mas pequena. E faria o russo pensar duas vezes antes de matá-la.
— E as duas pessoas que estão me seguindo?
— SCO19.
— Está mentindo, senhora Edgerton.
— Se você acha...
— Se fossem do SCO19, teriam me matado no hotel.
Ele saiu da Connaught Avenue e dirigiu perigosamente rápido por uma área residencial tranquila. Depois de um momento, checou o retrovisor.
— Que pena.
— Conseguiu despistá-los?
Ele sorriu friamente.
— Não.
Nikolai acelerou pela Upper Fourth Avenue até o estacionamento da estação ferroviária de Frinton. Era um antigo prédio de tijolos, com um pórtico branco íngreme acima da entrada. Sarah se lembraria para sempre das flores — dois vasos de gerânios vermelhos e brancos pendurados em ganchos pela fachada.
Um trem deveria ter acabado de chegar, porque alguns passageiros estavam saindo para a noite agradável. Um ou dois olharam para o homem alto que saiu de um chamativo Jaguar F-Type, mas a maioria o ignorou.
Com agilidade, ele caminhou até a van Ford branca que o tinha seguido ao espaço confinado do estacionamento. Sarah gritou um alerta, mas foi inútil. O russo disparou quatro tiros pela janela do motorista e mais três pelo para-brisas.
— Caso esteja se perguntando — disse ele, quando voltou ao volante
—, guardei uma bala para você.
Da estação, ele foi para norte na Elm Tree Avenue. Parecia a Sarah que ele sabia exatamente para onde estava indo. Virou à direita na Walton Road e de novo na Coles Lane. A pista era ladeada por cercas-vivas e os levou a um pântano. O primeiro sinal de habitação humana era uma sala de segurança azul em forma de cubo na entrada de uma marina. Dentro, havia um único guarda. Apesar dos apelos de Sarah, o russo atirou nele com a última bala de sua arma. Depois, recarregou e atirou mais três vezes.
Calmamente, voltou ao Jaguar e dirigiu pela estrada de acesso à marina.
Uma parte de Sarah ficou aliviada por estar deserta. O russo tinha acabado de matar três pessoas em menos de cinco minutos. Quando estivessem no mar, não haveria mais ninguém para ser morto, exceto ela.
71
ESSEX–AEROPORTO LONDON CITY
Unidades da Polícia de Essex responderam a relatos de um tiroteio na estação ferroviária de Frinton-on-Sea às 19h26. Lá, descobriram duas vítimas. Uma tinha sido baleada quatro vezes; a outra, três. Dois homens com ar perturbado tentavam desesperadamente ressuscitá-las.
Testemunhas traumatizadas descreveram o atirador como um homem alto, bem vestido, dirigindo um Jaguar conversível vermelho vivo. Havia uma mulher no banco do passageiro. Ela tinha gritado durante todo o incidente.
Nos Estados Unidos, onde as armas de fogo são abundantes e a violência armada, epidêmica, os policiais talvez tivessem atribuído as mortes, inicialmente, a uma briga de trânsito. As autoridades em Essex, porém, não fizeram tal suposição. Com ajuda da Polícia Metropolitana —
e dos homens perturbados —, estabeleceu-se que o atirador era agente de inteligência russa. A mulher não era sua cúmplice, e sim, sua refém. A Polícia de Essex não recebeu informação sobre a origem profissional dela, só se sabia que era americana.
Apesar de uma busca frenética pelo russo e pela mulher, mais de noventa minutos se passariam antes de dois policiais ligarem para a marina localizada no fim da Coles Lane. O guarda no portão estava morto, baleado quatro vezes à queima-roupa, e o Jaguar vermelho vivo estava estacionado de qualquer jeito em frente ao escritório da marina, que tinha sido invadido e saqueado. Com ajuda do sistema de vídeo do local, a polícia determinou que o russo havia roubado um iate Bavaria 27 Sport de propriedade de um empresário local. A embarcação tinha dois motores Volvo-Penta e um tanque de combustíveis de 147 galões, que o russo encheu antes de sair para alto-mar. Com só 29 pés, o Bavaria fora construído para navegar no porto e na costa. Mas, com um marinheiro experiente ao leme, era mais do que capaz de chegar ao continente europeu em poucas horas.
Embora os dois policiais não soubessem, o guarda morto e o iate desaparecido eram só uma pequena parte de uma crise diplomática e de segurança nacional que se desdobrava rapidamente. Os elementos dessa crise incluíam uma agente russa morta na rodovia M25 e um oligarca
russo preso numa tenda no Aeroporto London City porque era radioativo demais para sair dali.
Às oito da noite, o primeiro-ministro Lancaster reuniu o COBRA, grupo sênior de administração de crises da Inglaterra. Eles se encontraram, como sempre, na sala de reunião A do gabinete. Foi uma reunião conflituosa desde o início. Amanda Wallace, diretora-geral do MI5, ficou irada de não ter sido informada da presença de uma equipe russa de assassinos em solo britânico. Graham Seymour, que tinha acabado de perder dois oficiais, não estava a fim de uma querela intestina. O MI6 descobrira sobre os agentes russos, disse, como parte de uma operação de contrainteligência cujo alvo era o SVR. Seymour havia informado o primeiro-ministro e a Polícia Metropolitana sobre os russos depois de confirmar que tinham de fato chegado à Inglaterra. Em resumo, tinha feito tudo de acordo com as regras.
Curiosamente, o registro oficial da reunião não continha uma única referência ao príncipe herdeiro Abdullah — nem à possibilidade de haver uma conexão entre seu mal-estar repentino e a equipe de assassinos russa.
Graham Seymour, por sua vez, não entregou o ouro. O primeiro-ministro, aliás, também não.
Às nove da noite, porém, Lancaster, novamente, se pôs diante das câmeras em frente ao número 10, dessa vez para informar o público britânico sobre os acontecimentos extraordinários na Grande Londres e na cidade de veraneio de Frinton-on-Sea, em Essex. Pouco do que disse era verdade, mas evitou contar mentiras diretas. A maioria era omissão. Não falou nada, por exemplo, sobre um guarda morto numa marina ao longo do rio Twizzle, um iate Bavaria 27 roubado ou uma refém americana que já tinha trabalhado para a CIA.
Lancaster também não viu motivo para mencionar que tinha dado a Gabriel Allon, chefe da inteligência israelense, ampla liberdade para encontrar a mulher desaparecida. Às 21h15, Gabriel chegou ao Aeroporto London City acompanhado de dois de seus agentes mais fiéis e de um oficial do MI6 chamado Christopher Keller. Um Gulfstream G550 o aguardava na pista. Por enquanto, sem destino.
72
AEROPORTO LONDON CITY
Um oficial da Polícia Metropolitana estava de sentinela em frente à entrada do London Jet Centre. Ele puxou a manga de seu traje de proteção volumoso quando Gabriel se aproximou.
— Tem certeza de que não quer um desses? — perguntou através da máscara protetora transparente.
Gabriel balançou a cabeça.
— Pode arruinar minha imagem.
— Melhor que a alternativa.
— Quão ruim é a situação?
— Um pouco pior que Hiroshima, mas não muito.
— Quanto tempo é seguro ficar na presença dele?
— Dez minutos não vão matar. Vinte, talvez.
Gabriel entrou. A equipe tinha sido evacuada. No saguão de embarque, um homem grisalho de terno estava sentado no fim de uma mesa retangular. Podia parecer um usuário típico de um avião particular se não fossem os quatro oficiais fortemente armados vestindo trajes de proteção num semicírculo ao seu redor. Gabriel se sentou do lado oposto da mesa, o mais longe possível do homem, e marcou o horário em seu relógio de pulso. Eram 21h22.
Dez minutos não vão matar. Vinte, talvez...
O homem estudava as próprias mãos, dobradas na mesa à sua frente.
Depois de muito tempo, ergueu o olhar. Por um instante, pareceu aliviado por alguém ter ousado entrar com roupas normais. De repente, sua expressão mudou. Era o mesmo olhar que Gabriel tinha visto no rosto de Hanifa Khoury no apartamento seguro em Berlim.
— Olá, Konstantin. Não me leve a mal, mas você está com uma cara péssima.
Gabriel olhou para os oficiais do SCO19 e, com um movimento de olhos, os instruiu a sair do salão. Um momento se passou. Então, os quatro foram embora em fila.
Konstantin Dragunov observou a demonstração de autoridade de Gabriel com alarme evidente.
— Imagino que você seja o motivo de eu estar aqui.
— Você está aqui porque é um rojão de radioatividade. — Gabriel hesitou, antes de completar: — E a mulher também.
— Onde ela está?
— Numa situação parecida com a sua. Você, porém, está num apuro muito mais sério.
— Eu não fiz nada.
— Então, por que está exalando radiação? E por que sua casa chique em Belgravia é uma zona de desastre nuclear? As equipes de materiais perigosos estão trabalhando em turnos de quinze minutos para evitar superexposição. Um técnico se recusou a entrar de novo, de tão ruim. Sua sala de estar está um pesadelo, mas a cozinha encontra-se pior ainda. O
balcão em que ela serviu o champanhe está igual a Fukushima, e a lata de lixo em que jogou o frasco e a pipeta quase quebrou os scanners. O mesmo aconteceu com a taça de champanhe vazia de Abdullah, mas a sua também não estava nada boa. — Gabriel adotou um tom de confidências. — É de se pensar.
— Sobre o quê?
— Se seu bom amigo, o czar, estava tentando matar você também.
— Por que ele faria isso?
— Porque lhe confiou vários bilhões de dólares para transformar Abdullah num fantoche do Kremlin. E só o que o czar conseguiu por esse dinheiro foi um ativo do MI6. — Gabriel sorriu. — Ou foi o que ele pensou.
— Ele não é agente britânico?
— Abdullah? — Gabriel balançou a cabeça em negação. — Não seja tolo.
O rosto de Dragunov se acendeu de raiva.
— Desgraçado.
— Não adianta me elogiar, Konnie.
— O que eu fiz para você?
— Disse para o czar que Khalid me pediu para encontrar a filha dele, e seu chefe usou a oportunidade para tentar me matar. Se eu não tivesse percebido a bomba embaixo do casaco de Reema naquela noite, estaria morto.
— Talvez devesse ter tentado salvá-la. Sua consciência estaria mais tranquila.
Gabriel se levantou lentamente, caminhou até o outro lado da mesa e, com toda a força que conseguiu reunir, enfiou o punho na cara de Konstantin Dragunov. O russo tombou no chão do salão. Gabriel ficou surpreso de ver a cabeça dele ainda presa no pescoço.
— Quem planejou, Konstantin?
Por um momento, Dragunov não foi capaz de falar. Finalmente, rosnou:
— Planejou o quê?
— O assassinato de Abdullah.
O russo não respondeu.
— Preciso lembrá-lo de sua situação atual? Você vai passar o resto da vida numa prisão britânica. Acho que vai ver que é bem menos luxuosa que Eaton Square.
— O presidente nunca vai permitir.
— Ele não vai estar em posição de ajudar. Aliás, se eu tivesse que chutar, o governo britânico vai emitir um mandado de prisão contra ele.
— E se eu der o nome do oficial do SVR que executou a operação? Que diferença faria?
— Sua cooperação não será esquecida.
— Desde quando você fala pelo governo britânico?
— Eu falo por Reema. E se não me contar o que quero saber, vou bater em você de novo.
Gabriel olhou de novo seu relógio. 21h26... Segundo a Polícia de Essex, Sarah e o assassino russo tinham partido da marina na direção norte de Frinton às 19h49. Agora, estavam vários quilômetros mar adentro. A Guarda Costeira de Sua Majestade buscava a embarcação, por enquanto, sem sucesso.
— O que você ia dizendo, Konnie?
Dragunov ainda estava deitado no chão.
— Foi a inglesa.
— Rebecca Manning?
— Ela usa o nome do pai agora.
— Você a viu?
— Tive algumas reuniões com ela.
— Onde?
— Numa pequena datcha em Yasenevo. Tinha uma placa em frente, não consigo lembrar o que dizia.
— Comitê de Pesquisa Interbáltico?
— Sim, era isso. Como você sabe?
Gabriel não respondeu.
— Em circunstâncias normais, eu o ajudaria a levantar. Mas você entende se eu não fizer isso.
O russo se arrastou até a cadeira; o lado esquerdo do rosto já estava muito inchado, e seu olho começava a se fechar. No geral, pensou Gabriel, foi uma leve melhoria em sua aparência.
— Continue falando, Konnie.
— Não era uma operação complexa, na verdade. Só precisávamos pedir para Abdullah separar alguns minutos enquanto estivesse em Londres.
— Isso era trabalho seu?
Dragunov fez que sim.
— É assim que essas coisas funcionam. É sempre um amigo.
— Ele foi pela passagem no porão?
— Pela porta da frente é que não foi, não é?
— O que você deu a ele além de uma taça de Louis Roederer?
— Ele bebeu duas, na verdade.
— Ambas contaminadas?
Dragunov confirmou.
— Qual era a substância?
— Não me disseram.
— Talvez você devesse ter perguntado.
Dragunov não respondeu.
— Por que a mulher não veio ao aeroporto com você?
— Por que não pergunta a ela?
— Porque eu a matei, Konstantin. E vou matar você se não continuar falando.
— Mentira.
Gabriel acendeu seu BlackBerry e o colocou na mesa em frente a Dragunov. Na tela, havia a fotografia de uma mulher cheia de sangue pendurada na porta da frente de um Renault Clio.
— Meu Deus.
Gabriel guardou o BlackBerry no bolso da jaqueta.
— Continue, Konnie.
— A inglesa queria que a gente saísse da Inglaterra separados. Anna ia embora hoje na balsa de Harwich para Hoek van Holland. A das 23 horas.
— Anna?
— Yurasova. O presidente a conhece desde que ela era criança.
— O agente no hotel deveria ir embora com ela?
Dragunov assentiu.
— O nome dele é Nikolai.
— Onde planejavam ir quando chegassem à Holanda?
— Se fosse seguro entrarem num avião, iriam direto para o Aeroporto de Schiphol.
— E se não fosse?
— Tem uma casa segura.
— Onde?
— Não sei. — Quando Gabriel se levantou com raiva de sua cadeira, Dragunov cobriu o rosto com as mãos. — Por favor, Allon, de novo, não.
Estou falando a verdade. A propriedade fica no sul da Holanda, em algum lugar perto da costa. Mas só sei isso.
— Tem alguém lá agora?
— Alguns gorilas e alguém para cuidar das comunicações seguras com Yasenevo.
— Por que precisam de um link seguro com o Centro de Moscou?
— Não é só um lugar para passar a noite, Allon. É um posto de comando avançado.
— Quem mais está lá, Konstantin?
O russo hesitou antes de dizer:
— A inglesa.
— Rebecca Manning?
— Philby — corrigiu o preso. — Ela usa o nome do pai agora.
73
MAR DO NORTE
Nikolai Azarov estava longe de ser um marinheiro experiente, mas seu pai tinha sido oficial de alta patente na Marinha soviética, e ele sabia uma coisa ou outra sobre barcos. Ao sair da marina, ele guiara o Bavaria 27
pelas águas rasas do litoral do canal de Walton até o mar do Norte. Uma vez longe da terra, ele virou para o leste e aumentou a velocidade para 25
nós. Era confortavelmente abaixo da velocidade máxima de cruzeiro da embarcação. Mesmo assim, o sistema de navegação de bordo antecipou a chegada para 1h15.
Era uma linha reta até o destino. Depois de estabelecer o curso, Nikolai desligou o sistema de navegação para que não fosse usado pelos britânicos para localizar sua posição. Seu telefone — aquele para o qual Anna tinha ligado pouco antes de ser morta — estava no fundo do canal. O telefone que ele tinha arrancado da mulher em frente ao hotel, também. Nikolai, porém, não estava sem meios de comunicação. O Bavaria tinha um telefone Inmarsat e uma rede sem fio. Ele desligou o sistema logo depois de sair da marina. O receptor portátil estava em seu bolso, bem longe do alcance da mulher.
A mala dela ainda estava no porta-malas do Jaguar, mas Nikolai tinha pegado a bolsa, onde encontrou alguns cosméticos, um frasco de antidepressivo, seiscentas libras em dinheiro e uma velha Walther PPK —
escolha interessante. Não havia passaporte ou carteira de motorista, nem cartão de crédito ou de débito.
O mar diante do Bavaria estava vazio. Nikolai ejetou o pente da Walther e removeu a bala da câmara. Então, colocou o iate em piloto automático e foi com a arma e o frasco de antidepressivo escada de tombadilho abaixo. Entrando no salão, viu a mulher à mesa o fuzilando com os olhos. Um vergão vermelho feio tinha surgido na bochecha dela onde Nikolai havia atingido quando ela se recusou a entrar no barco.
O rádio, sintonizado na BBC, estava com sinal fraco e intermitente. O
primeiro-ministro acabara de falar com os repórteres em frente ao número 10. O cadáver radioativo de uma agente russa tinha fechado a M25. Um oligarca russo radioativo tinha fechado o Aeroporto London City. Um
terceiro russo matara duas pessoas na estação ferroviária de Frinton-on-Sea. Dizia-se que os policiais estavam procurando desesperadamente por ele.
Nikolai desligou o rádio.
— Não mencionaram o guarda na marina — disse ele.
— Provavelmente ainda não o encontraram.
— Duvido muito.
Nikolai sentou-se em frente à mulher. Apesar do machucado, ela era muito atraente. Seria ainda mais bonita se não fosse a peruca morena ridícula.
Ele colocou o frasco de pílulas na frente dela.
— Por que está deprimida?
— Passo tempo demais com gente igual a você.
Ele lançou um olhar para o frasco.
— Talvez devesse tomar uma. Vai se sentir melhor.
Ela o olhou sem expressão.
— Que tal isto? — Ele colocou a ampola de líquido transparente na mesa.
— O que é?
— O mesmo elemento químico radioativo que Anna deu a Abdullah quando ele visitou a mansão de Konstantin Dragunov em Belgravia. E, por algum motivo — acrescentou Nikolai —, você e seus amigos deixaram aquilo acontecer.
Ela estudou o frasco.
— Talvez fosse melhor se livrar disso.
— Como? Jogando no mar do Norte? — Ele fez uma careta de repulsa fingida. — Pense nos danos ambientais.
— E os danos que está fazendo para nós agora?
— É totalmente seguro, a não ser que seja ingerido.
— O Centro de Moscou disse isso?
Nikolai guardou a ampola no bolso da calça.
— É o lugar perfeito.
Nikolai não conseguiu segurar o sorriso. Tinha que admitir, admirava a coragem da mulher.
— Há quanto tempo você está carregando isso? — perguntou ela.
— Uma semana.
— Isso explica seu brilho esverdeado peculiar. Você deve estar mais contaminado que Chernobyl.
— E agora, você também está. — Ele examinou o vergão na bochecha dela. — Dói?
— Não tanto quanto minha cabeça.
— Tire a peruca. Vou dar uma olhada.
— Obrigada, mas já fez o suficiente.
— Talvez você não tenha me ouvido. — Nikolai baixou a voz. — Eu disse para tirar.
Quando ela hesitou, ele esticou a mão pela mesa e arrancou a peruca da cabeça dela. Seu cabelo louro estava desarrumado e emplastrado de sangue seco acima da orelha direita. Mesmo assim, Nikolai percebeu que já tinha visto a mulher antes. Na noite em que ele entregara uma bomba numa pasta ao imbecil do chefe de segurança da Escola Internacional de Genebra. Ela estava numa mesa embaixo do toldo, ao lado do homem alto com cara de russo que tinha seguido Nikolai na saída do café. Um carro também tinha ido atrás dele. Nikolai não reconhecera o homem ao volante, aquele com têmporas grisalhas. Mas na noite seguinte, o Centro de Moscou conseguira confirmar a identidade dele.
Gabriel Allon...
Nikolai jogou a peruca para o lado. Sem ela, a mulher era ainda mais bonita. Ele só conseguia imaginar o tipo de trabalho que ela fazia para eles. Os israelenses usavam mulheres como isca quase tanto quanto o SVR.
— Achei que você tinha dito que era americana.
— E sou.
— Judia?
— Da Igreja Anglicana, na verdade.
— Você fez a Aliá?
— Para a Inglaterra?
Nikolai bateu nela pela terceira vez. Forte o bastante para tirar sangue do nariz dela. Forte o bastante para que ela se calasse.
— Meu nome é Nikolai — disse ele, após um momento. — E o seu?
Ela hesitou, antes de dizer:
— Allison.
— Allison do quê?
— Douglas.
— Fale sério, Allison, você consegue fazer melhor.
Ela já não parecia mais tão corajosa.
— O que está planejando fazer comigo? — perguntou.
— Eu ia matá-la e jogar seu corpo no mar. — Nikolai tocou na bochecha inchada dela. — Para seu azar, mudei de ideia.
74
ROTERDÃ
O primeiro-ministro Jonathan Lancaster deu permissão para uma única aeronave partir do Aeroporto London City naquela noite. O Gulfstream G550 pousou em Roterdã à 00h05. O Boulevard Rei Saul tinha deixado um par de Audi sedans estacionados em frente ao terminal. Keller e Mikhail foram direto para a cidade de Hellevoetsluis, lar de uma das maiores marinas do sul da Holanda. Gabriel pediu para Eli Lavon, que evitava barcos sempre que possível, escolher um segundo local.
— Você sabe o tamanho da costa holandesa?
— Tem 441 quilômetros.
Lavon levantou o olhar do telefone.
— Como é possível que você saiba isso?
— Chequei enquanto estávamos no avião.
Lavon voltou a contemplar o mapa no celular.
— Se eu estivesse no leme...
— Sim, Eli?
— Não tentaria entrar numa marina escura.
— O que faria?
— Atracaria numa praia em algum lugar.
— Onde?
Lavon estudou a imagem como se fosse a Torá.
— Onde, Eli? — perguntou Gabriel, exasperado.
— Bem aqui. — Lavon bateu na tela. — Em Renesse.
Depois de uma única ligação breve com o telefone Inmarsat, Nikolai tinha aumentado a velocidade para trinta nós. Como resultado, chegou à costa holandesa quinze minutos antes da previsão original do sistema de navegação. As luzes do barco estavam apagadas. Ele as piscou e, imediatamente, viu o facho de uma lanterna na terra.
O russo aumentou a velocidade ao máximo e esperou a batida do chão de areia. Quando chegou, o barco freou violentamente, adernando para estibordo. Ele desligou o motor e colocou a cabeça pela escada de
tombadilho. A mulher lutava para ficar de pé no chão de teca inclinado da galeria.
— Você podia ter me avisado — disse ela.
— Vamos.
Ela subiu desajeitada pela escada. Nikolai a puxou para a cabine e a empurrou na direção da popa.
— Vá em frente — ordenou ele.
— Sabe o quanto essa água está fria?
Ele apontou a Makarov para a cabeça dela.
— Entre.
Depois de remover os sapatos, ela deslizou pela prancha até o mar e conseguiu colocar o pé no chão. A água chegou à altura dos seios.
— Ande — mandou Nikolai.
— Para onde?
Ele apontou na direção dos dois homens parados na costa.
— Não se preocupe, eles são o menor dos seus problemas.
Tremendo, ela foi em direção à margem. Nikolai entrou no mar sem fazer barulho e, segurando a Makarov acima da água, foi atrás dela. O
carro, um sedan sueco com placa holandesa, estava estacionado no lote público atrás das dunas. Nikolai sentou-se com ela no banco de trás, a arma em suas costelas. Quando estavam atravessando a sonolenta cidade litorânea, um único carro se aproximou pelo lado oposto e passou por eles num borrão.
O estacionamento estava abandonado às gaivotas. Gabriel correu pela trilha de pedestres até a praia e viu um iate Bavaria 27 Sport apagado a cerca de trinta metros da margem. Correu para o mar e, com seu telefone, iluminou a areia dura e lisa ao longo da linha da água. Havia pegadas por todo lado. Três homens de sapato esportivo, uma mulher descalça. As impressões eram recentes. Ela tinha acabado de passar por ali.
Ele correu de volta para o estacionamento e entrou no Audi.
— Alguma coisa? — perguntou Lavon.
Ele contou.
— Não podem ter chegado há mais do que alguns minutos.
— Não chegaram.
— Você não acha que ela estava naquele carro, acha?
— Sim — disse Gabriel, colocando o Audi em ré. — Acho que estava.
Eles cruzaram um istmo estreito, com uma grande baía interior do lado direito e o mar do esquerdo. A justaposição dizia a Sarah que estavam indo para o norte. Por fim, uma placa de estrada apareceu na escuridão. O nome da cidade, Ouddorp, não significava nada para ela.
O carro contornou uma rotatória e acelerou por um trecho de terras cultiváveis planas como tábuas. A pista estreita em que viraram não tinha indicação. Levava a uma série de bangalôs de madeira escondidos numa cadeia de dunas cobertas por grama. Um era ladeado por cercas altas e tinha uma garagem separada com portas vaivém antiquadas. Nikolai trancou o Volvo lá dentro antes de levar Sarah à propriedade.
Era branco como um bolo de casamento, com um teto de telhas vermelhas. Barreiras de acrílico protegiam o terraço do vento. Uma mulher esperava lá sozinha, como uma espécie de animal num pote. Usava uma capa de chuva e jeans com stretch. Seus olhos eram incomumente azuis — e cansados, pensou Sarah. A noite não tinha sido gentil com a aparência da mulher.
Uma mecha solta caíra sobre um dos olhos dela. A mulher a afastou e estudou Sarah atentamente. Algo no gesto era familiar. No rosto também.
De repente, a americana percebeu de onde a conhecia.
Uma coletiva no Grande Palácio Presidencial em Moscou...
A mulher na varanda era Rebecca Manning.
75
ROTERDÃ
O carro era um Volvo, modelo do ano, cor escura. Nisso, Gabriel e Eli Lavon concordavam inteiramente. Ambos tinham visto a grade dianteira e notado um ornamento circular e uma linha diagonal distinta da esquerda para a direita. Gabriel tinha certeza de que era um sedan. Lavon, porém, estava convencido de que era uma perua.
Não havia dúvida sobre a direção em que ele estava indo: norte. Os dois se concentraram nos pequenos vilarejos ao longo da costa, enquanto Mikhail e Keller trabalhavam nas cidades maiores mais para o interior.
Somando as duas duplas, avistaram 112 Volvos. Em nenhum encontraram Sarah.
Na verdade, era uma tarefa impossível — “uma agulha num palheiro holandês”, como disse Lavon —, mas eles continuaram até as 7h15, quando os quatro se reuniram num café num bairro industrial ao sul de Roterdã. Eram os primeiros clientes da manhã. Havia um posto de gasolina ao lado e algumas concessionárias em frente. Uma, é claro, vendia Volvos.
Uma viatura holandesa ecológica passou na rua lentamente.
— Qual é o problema dele? — perguntou Mikhail.
Foi Lavon quem respondeu:
— Talvez esteja procurando os idiotas que estavam correndo pelo interior a noite toda. Ou o gênio que encalhou um Bavaria 27 perto de Renesse.
— Acha que o encontraram?
— O iate? — Lavon fez que sim. — É difícil não ver, especialmente depois de amanhecer.
— O que acontece depois?
— A polícia holandesa descobre quem é o dono do barco e de onde veio. E, logo, todos os policiais do país vão estar procurando por um assassino russo e uma americana bonita chamada Sarah Bancroft.
— Talvez seja bom — disse Mikhail.
— A não ser que Rebecca e seu amigo Nikolai decidam minimizar as perdas e matá-la.
— Talvez já tenham feito isso. — Mikhail olhou para Gabriel. — Tem certeza de que eram pegadas de mulher?
— Tenho certeza, Mikhail.
— Para que se dar ao trabalho de tirá-la do barco? Por que não aliviar a carga e fugir para Moscou?
— Imagino que queiram fazer algumas perguntas antes. Você não ia querer, no lugar deles?
— Acha que vão engrossar com ela?
— Depende.
— Do quê?
— De quem está fazendo as perguntas. — Gabriel notou que Keller, de repente, começou a mexer em seu BlackBerry. — O que está havendo?
— Parece que Konstantin Dragunov não está se sentindo bem.
— Imagine só.
— Acabou de admitir à Polícia Metropolitana que a mulher e ele envenenaram o príncipe herdeiro ontem. Lancaster vai fazer o anúncio em Downing Street às dez.
— Preciso de um favor, Christopher.
— O quê?
— Diga para Graham e Lancaster anunciarem agora.
76
DOWNING STREET, 10
Graham Seymour esperava no hall do número 10 quando Jonathan Lancaster desceu a Grande Escadaria com Geoffrey Sloane ao seu lado. O
assessor ajustava a gravata com nervosismo, como se fosse ele que estivesse prestes a enfrentar a bateria de câmeras posicionadas em frente à Downing Street. Lancaster segurava alguns cartões azuis. Levou Seymour à sala do gabinete e fechou a porta solenemente.
— Funcionou perfeitamente. Como você e Gabriel disseram.
— Com um problema, primeiro-ministro.
— “Os melhores planos dos ratos e dos homens...” — Lancaster levantou os cartões. — Acha que vai ser suficiente para impedir que os russos a matem?
— Gabriel parece achar que sim.
— Ele realmente deu um soco em Dragunov?
— Receio que sim.
— Foi um soco bom? — perguntou Lancaster, com malícia.
— Bastante.
— Espero que Konstantin não tenha ficado muito machucado.
— Neste ponto, duvido que ele se lembre.
— Está doente, é?
— Quanto antes o colocarmos num avião, melhor.
Lancaster analisou os cartões e, movendo os lábios, ensaiou a frase de abertura de seus comentários preparados. Era verdade, pensou Seymour.
Tinha funcionado perfeitamente. Ele e Gabriel tinham ganhado dos russos em seu próprio jogo. O czar matara, de forma temerária, com armas de destruição em massa. Mas dessa vez tinha sido pego no pulo. As consequências seriam graves — sanções, expulsões, talvez até expulsão do G8 — e o dano, provavelmente, seria permanente.
— Ela é muito cara de pau — disse Lancaster, de repente.
— Sarah Bancroft?
— Rebecca Manning. — O primeiro-ministro ainda estava olhando seus comentários. — Seria de se imaginar que ela ficasse segura em Moscou. — Ele baixou a voz. — Igual ao pai.
— Deixamos claro que não queríamos nada com ela. Portanto, é seguro que ela viaje para fora da Rússia.
— Talvez devamos reavaliar nossa posição em relação à senhora Philby.
Depois disso, ela merece ser trazida de volta à Inglaterra algemada. Aliás
— continuou Lancaster, balançando os cartões —, estou pensando em fazer uma pequena mudança em meus comentários preparados.
— Eu aconselharia a não fazer.
A porta se abriu e Geoffrey Sloane inclinou o corpo para dentro da sala.
— Está na hora, primeiro-ministro.
Lancaster, ator político consumado, endireitou os ombros antes de caminhar até a porta mais famosa do mundo e o brilho das luzes. Seymour seguiu Sloane até o escritório dele para assistir ao anúncio na televisão. O
primeiro-ministro parecia totalmente só no mundo. Sua voz era calma, mas afiada de raiva.
Esse ato monstruoso e depravado executado pelos serviços de inteligência da Federação Russa, sob ordem direta do presidente russo, não ficará impune...
Tinha funcionado perfeitamente, pensou Seymour. Com um problema.
77
OUDDORP, PAÍSES BAIXOS
Minutos após a chegada de Sarah à casa segura, ficou evidente que não estavam preparados para uma refém. Nikolai cortou um lenço, amarrou as mãos e os pés dela e colocou uma mordaça em sua boca. O porão do bangalô era uma câmara pequena e revestida de pedras. Sarah sentou-se encostada numa parede úmida e os joelhos embaixo do queixo. Ensopada de sua caminhada até a margem, ela logo começou a tremer incontrolavelmente. Pensou em Reema e nas muitas noites que a menina tinha passado em cativeiro antes de seu assassinato brutal. Se uma criança de 12 anos conseguia suportar a pressão, Sarah também conseguiria.
Havia uma porta no alto das escadas de pedra. Atrás, Sarah ouvia duas vozes conversando em russo. Uma era de Nikolai; a outra, de Rebecca Manning. Pelo tom, estavam tentando reconstruir a série de acontecimentos que levara à prisão de um grande amigo do presidente russo e à morte de uma agente do SVR. Nesse ponto, já tinham, sem dúvida, determinado que sua operação estava comprometida desde o início
— e que Gabriel Allon, homem responsável por desmascarar Rebecca Manning como informante russa, estava envolvido de alguma forma. Ela, no momento, lutava por sua carreira, talvez até por sua vida. Em algum momento, iria atacar Sarah.
Ela se obrigou a cair num sono intranquilo, ainda que só para cessar o tremor convulsivo do corpo. Em seus sonhos, estava deitada numa praia caribenha com Nadia al-Bakari, mas acordou com Nikolai e os dois brutamontes a olhando de cima. Eles a levantaram do chão frio e úmido como se ela fosse feita de lenço de papel, e a carregaram para o andar de cima. Uma mesa de madeira clara sem acabamento tinha sido colocada no centro da sala de estar. Eles a forçaram a se sentar numa cadeira e removeram só a mordaça, deixando suas mãos e seus pés amarrados.
Nikolai tapou sua boca com a mão e disse que ia matá-la se ela gritasse ou tentasse pedir ajuda. Nada na atitude dele sugeria que a ameaça fosse vã.
Rebecca Manning parecia não estar ciente da presença de Sarah. Com os braços dobrados, ela olhava para a televisão, ligada na BBC. O
primeiro-ministro Jonathan Lancaster acabava de acusar a Rússia de tentar
assassinar o príncipe herdeiro da Arábia Saudita durante sua visita real à Inglaterra.
Esse ato monstruoso e depravado...
Rebecca ouviu o anúncio de Lancaster por mais um momento antes de apontar um controle remoto para a tela e colocar o som no mudo. Então, virou-se e olhou furiosa para Sarah.
Por fim, perguntou:
— Quem é você?
— Allison Douglas.
— Para quem trabalha?
— Para a CIA.
Rebecca lançou um olhar para Nikolai. O golpe foi de mão aberta, mas cruel. Sarah, com medo do aviso do russo, sufocou o grito.
Rebecca Manning deu um passo à frente e colocou a ampola de líquido transparente na mesa.
— Uma gota — disse — e nem seu amigo arcanjo vai conseguir salvá-
la.
Sarah estudou em silêncio o frasco.
— Achei que isso refrescaria sua memória. Agora, me diga seu nome.
Sarah esperou até Nikolai recolher a mão antes de finalmente responder.
— É um nome de trabalho? — perguntou Rebecca.
— Não, é real.
— Sarah é um nome judeu.
— Rebecca também.
— Para quem você trabalha, Sarah Bancroft?
— Para o Museu de Arte Moderna de Nova York.
— É um trabalho de disfarce?
— Não.
— E antes disso?
— Para a CIA.
— Qual é sua conexão com Gabriel Allon?
— Trabalhei com ele em algumas operações.
— Diga uma.
— Ivan Kharkov.
— Allon sabia do plano para matar Abdullah?
— É claro.
— Como?
— Foi ideia dele.
Rebecca absorveu as palavras de Sarah como um soco na barriga. Ficou em silêncio por um momento. Então, perguntou:
— Abdullah já foi um ativo do MI6?
— Não — disse Sarah. — Ele era ativo russo. E você, Rebecca Manning, acabou de matá-lo.
Eram 8h30 quando o BlackBerry de Gabriel vibrou com uma chamada. Ele não reconhecia o número. Em geral, cortava esse tipo de ligação sem pensar duas vezes. Mas não esta. Não a chamada que chegou em seu telefone às 8h30 em Roterdã.
Ele clicou em ATENDER, levou o BlackBerry ao ouvido e murmurou um cumprimento.
— Achei que você não fosse atender.
— Quem é?
— Não reconhece minha voz?
Era feminina e levemente rouca de fadiga e tabaco. O sotaque era britânico, com um traço francês. E, sim, Gabriel reconhecia.
Era a voz de Rebecca Manning.
78
OUDDORP, HOLANDA
O pavilhão na praia se chamava Natural High. No verão, era um dos locais mais badalados da costa holandesa. Mas às dez e meia de uma manhã de abril, tinha o ar de um entreposto colonial abandonado. O clima estava indeciso, sol ofuscante num minuto, chuva no outro. Gabriel observava da proteção do café. Nunca vi um dia tão feio e tão belo... De repente, ele pensou num café à beira-mar no topo dos penhascos de Lizard Point, na Cornualha. Costumava caminhar até lá pela trilha costeira, tomar um bule de chá, comer um bolinho com clotted cream e, depois, andar de volta ao seu chalé em Gunwalloe Cove. Parecia outra vida. Talvez um dia, ao fim de seu mandato, ele voltasse. Ou talvez levasse Chiara e as crianças a Veneza. Viveriam num belo apartamento em Cannaregio, ele restauraria quadros para Francesco Tiepolo. O mundo e seus muitos problemas não o afetariam. Ele passaria suas noites com a família e seus dias com seus velhos amigos Bellini, Ticiano, Tintoretto e Veronese. Seria anônimo de novo, um homem com um pincel e uma paleta em cima de uma plataforma de trabalho, escondido atrás de um véu.
Por enquanto, porém, estava bastante à vista. Sentava-se sozinho à mesa encostada na janela, onde estava seu BlackBerry. Ele tinha ficado quase sem bateria ao debater os detalhes da negociação. Rebecca tinha discordado de um ou dois pontos em relação ao cronograma, mas, depois de uma última ligação para Londres, estava feito. Downing Street, parecia, queria fazer a troca tanto quanto Gabriel.
Nesse momento, o BlackBerry acendeu. Era Eli Lavon, que estava lá fora no estacionamento.
— Ela acabou de chegar.
— Sozinha?
— Parece que sim.
— O que isso quer dizer?
— Quer dizer — disse Lavon — que não tem mais ninguém visível no carro.
— Qual é a marca?
— Um Volvo.
— Sedan ou perua?
A ligação caiu. Era um sedan, pensou Gabriel.
Ele olhou por cima do ombro para Mikhail e Keller. Estavam sentados a uma mesa no canto dos fundos do salão. Em outra, havia dois valentões do SVR com jaquetas de couro. Os russos observaram Rebecca Manning atentamente quando ela entrou no café e se sentou à frente de Gabriel. A espiã parecia muito inglesa com sua jaqueta Barbour. Colocou o telefone na mesa, com um maço de cigarros L&B e um velho isqueiro prateado.
— Posso? — perguntou Gabriel.
Ela assentiu.
Ele pegou o isqueiro. Mal dava para ler a inscrição. Por uma vida de serviço à pátria-mãe...
— Eles não podiam ter comprado um novo para você?
— Era do meu pai.
Gabriel olhou para o relógio de pulso.
— E isso?
— Estava acumulando poeira no museu particular do SVR. Levei a um joalheiro e mandei trocar o mostrador. Funciona muito bem, na verdade.
— Então, por que está dez minutos atrasada? — Gabriel colocou o isqueiro em cima do maço de cigarros dela. — Você provavelmente deveria guardá-los.
— Até num café de praia? — Ela colocou os cigarros e o isqueiro de volta na bolsa. — As coisas são um pouco mais relaxadas na Rússia.
— E sua expectativa de vida reflete bem isso.
— Acredito que tenhamos caído abaixo da Coreia do Norte na última lista.
O sorriso dela era genuíno. Ao contrário do último encontro deles, que tinha acontecido num centro de detenção do MI6 no norte da Escócia, foi tudo muito cordial.
— Minha mãe me perguntou de você outro dia — falou ela, de repente.
— Ela ainda está na Espanha?
Rebecca fez que sim.
— Eu esperava que ela fosse morar comigo em Moscou.
— Mas?
— Ela não gostou muito quando foi me visitar.
— É difícil se acostumar.
A garçonete estava cercando os dois.
— Você deveria pedir algo — recomendou Gabriel.
— Eu não estava planejando ficar muito.
— Qual é a pressa?
Ela pediu um koffie verkeerd. Então, quando a garçonete foi embora, ela destravou seu telefone e o empurrou na direção de Gabriel. Na tela, uma imagem estática de Sarah Bancroft. Um lado do seu rosto estava vermelho e inchado.
— Quem fez isso com ela?
Rebecca ignorou a pergunta.
— Aperte o play.
Gabriel clicou no ícone do PLAY e ouviu o máximo que conseguiu aguentar. Então, apertou PAUSE e olhou furioso para Rebecca.
— Eu aconselharia a nunca divulgar essa gravação.
— Teríamos direito de divulgar.
— Seria um erro grave.
— Mesmo?
— Sarah é americana, não israelense. A CIA vai retaliar se descobrir que vocês a violentaram dessa forma.
— Ela estava trabalhando para Israel quando você nos alimentou com aquela desinformação sobre Abdullah ser um ativo do MI6. — Rebecca pegou o telefone de novo. — Não se preocupe, a gravação é para meu uso pessoal.
— Você acha que vai ser suficiente?
— Para quê?
— Para salvar sua carreira no SVR.
Rebecca ficou em silêncio enquanto a garçonete colocava um copo de café holandês com leite diante dela.
— Era tudo para isso? Me destruir?
— Não. Era para destruir ele.
— Nosso presidente? Está lutando contra moinhos de vento, Don Quixote.
— Espere algumas horas para assentar a notícia de que o Kremlin ordenou o assassinato do futuro rei da Arábia Saudita. A Rússia vai ser o pária dos párias.
— Foi seu assassinato, não nosso.
— Boa sorte provando isso.
— Quando os trolls da Agência de Pesquisas de Internet terminarem, ninguém no mundo vai acreditar que tivemos qualquer coisa a ver com isso.
Rebecca colocou açúcar no café e mexeu cuidadosamente.
— E quem vai fazer a Rússia cumprir esse seu tal status de pária?
Você? A Grã-Bretanha? Os Estados Unidos? — Ela balançou a cabeça devagar. — Talvez você não tenha notado, mas as instituições tão reverenciadas pelo Ocidente estão em ruínas. Só sobramos nós no jogo.
Rússia, China, Irã...
— Esqueceu a Arábia Saudita.
— Quando a retirada americana do Oriente Médio estiver completa, os sauditas perceberão que não têm mais onde buscar proteção a não ser conosco, com ou sem Abdullah no trono.
— Não se Khalid for rei.
Ela levantou uma das sobrancelhas.
— É esse seu plano?
— Quem vai escolher o próximo rei é o Conselho de Aliança, não o Estado de Israel. Mas eu aposto no homem que ficou ao lado do tio que estava sofrendo com os efeitos terríveis de um veneno radioativo russo.
— Quer dizer isso? — Ela colocou um pequeno frasco de vidro na mesa.
Gabriel se afastou.
— O que é?
— Ainda não tem nome. Com certeza, a Agência de Pesquisas de Internet vai pensar em algo sugestivo. — Ela sorriu. — Algo que soe bem israelense.
— Alguma chance de Abdullah sobreviver?
— Zero.
— E você, Rebecca?
Ela guardou a ampola de novo na bolsa.
— Eles nunca mais vão confiar em você — disse Gabriel. — Não depois disso. Quem sabe até suponham que você esteja trabalhando para o MI6 desde o momento em que pisou no Centro de Moscou. De toda forma, seria uma tolice sua voltar. O melhor que pode esperar é ser trancada em algum vilarejo ermo, o tipo de lugar que tem um número em vez de um nome. Vai terminar igual ao seu pai, uma velha bêbada e quebrada, sozinha no mundo.
— Você não tem direito de falar assim do meu pai.
Gabriel aceitou a reprimenda em silêncio.
— E onde eu iria? De volta a Inglaterra? — Rebecca franziu a mesma sobrancelha. — Agradeço pelo conselho sincero, mas acho que vou me arriscar na Rússia. — Ela pegou o telefone. — Vamos terminar isso?
Gabriel pegou seu BlackBerry, digitou uma mensagem breve e apertou ENVIAR. A resposta chegou dez segundos depois.
— O avião de Dragunov acabou de ser liberado para partir. Vai estar fora do espaço aéreo britânico em 45 minutos.
Rebecca digitou um número. Falou algumas palavras em russo e cortou a ligação.
— Há uma praça grande no meio de Renesse com uma igreja no centro.
Bem lotada, cheia de gente. Vamos deixá-la em frente à pizzaria exatamente daqui a uma hora. — Ela olhou para o velho relógio de pulso do pai, como se estivesse marcando o tempo. Então, jogou o telefone na bolsa e olhou para a mesa em que Mikhail e Keller estavam sentados. —
Aquele bem pálido não me é estranho. Ele estava naquele Starbucks em Washington quando você montou uma armadilha para eu me entregar?
Gabriel hesitou e, então, fez que sim.
— E o outro?
— É o que você baleou naquela ruazinha em Georgetown.
— Que pena. Eu tinha certeza de tê-lo matado. — Rebecca Manning se levantou abruptamente. — Vamos esperar os próximos episódios. — E
saiu.
79
RENESSE, HOLANDA
A igreja era de tijolo, austera e cercada por um rotunda de paralelepípedos. Gabriel e Eli Lavon estavam estacionados em frente a um pequeno hotel. Mikhail e Keller tinham encontrado um lugar em frente a um restaurante de frutos do mar chamado Vischmarkt Renesse. Atrás ficava a pizzaria em que Rebecca Manning tinha prometido deixar Sarah, exatamente às 11h43.
Eram 11h39. Mikhail observava a pizzaria pelo retrovisor; Keller, espelho lateral. Estava fumando um Marlboro atrás de outro. Mikhail baixou sua janela alguns centímetros e escaneou a praça.
— Você percebe que somos alvos fáceis, né? — Mikhail hesitou, antes de completar: — E o diretor-geral do meu serviço também.
— Temos um acordo.
— Khalid também tinha — ponderou Mikhail, enquanto Keller amassava um cigarro e imediatamente acendia outro. — Você realmente precisa parar com isso, sabe.
— Por quê?
— Porque Sarah detesta.
Keller fumou em silêncio, olhos no retrovisor.
— Não acha que deveríamos falar sobre isso?
— Sobre o quê?
— Seus sentimentos por Sarah.
Keller olhou de soslaio para Mikhail.
— Qual é o problema de vocês?
— Vocês?
— Gabriel e você. Não têm nada melhor para fazer do que se intrometer na vida pessoal dos outros?
— Goste ou não, você agora é um de nós, Christopher. E isso quer dizer que nos reservamos o direito de meter o bedelho na sua vida amorosa sempre que quisermos. — Depois de um breve silêncio, Mikhail completou em voz baixa: — Especialmente quando envolve minha ex-noiva.
— Não aconteceu nada naquele hotel, se é isso que você está sugerindo.
— Não estou sugerindo nada.
— E não estou apaixonado por ela.
— Se você diz... — Mikhail olhou as horas: 11h41. — Não quero que fique um clima estranho, só isso.
— Como assim?
— Na nossa relação.
— Não sabia que estávamos em uma relação.
Mikhail não pôde evitar um sorriso.
— Estamos trabalhando muito bem juntos, você e eu. E suspeito de que vamos trabalhar juntos de novo no futuro. Não quero que Sarah complique as coisas.
— Por que ela complicaria?
— Faça um favor para mim, Christopher. Trate-a melhor do que eu. Ela merece. — Mikhail levantou o olhar para o retrovisor. — Especialmente agora.
Um momento se passou. Depois, outro. O relógio do painel mostrava 11h44. O do telefone de Keller, também. Ele xingou bem baixinho enquanto esmagava o cigarro.
— Você não achou que Rebecca ia cumprir o horário, achou? Graças a Gabriel, ela vai voltar para um futuro bem incerto em casa.
Keller passou a mão pela clavícula distraidamente.
— E ela é uma pessoa tão legal.
— Olhe — disse Mikhail, de repente. — Lá está o carro.
Ele tinha parado em frente à pizzaria, um Volvo sedan de cor escura, dois homens na frente, duas mulheres atrás. Uma era a filha de Kim Philby. A outra era Sarah Bancroft. Em um último ato de rebeldia, ela deixou a porta aberta depois de descer. Rebecca se inclinou por cima do banco de trás e a fechou. Então, o carro acelerou, passando a alguns centímetros da janela de Mikhail.
Sarah ficou parada por um momento na luz clara do sol, parecendo confusa. Mas quando viu Keller correndo em sua direção, o rosto dela irrompeu num enorme sorriso.
— Desculpe por não aparecer para o jantar ontem à noite, mas foi por um motivo de força maior.
Keller tocou na bochecha machucada.
— Nosso amigo do hotel fez isso. O nome dele é Nikolai, aliás. Talvez um dia você possa retribuir o favor.
Keller a ajudou a entrar no banco de trás do veículo. Ela observou uma fileira de lindos chalezinhos passando por sua janela enquanto Mikhail seguia Gabriel e Eli Lavon para fora da cidade.
— Eu gostava da Holanda. Agora, só quero ir embora o mais rápido possível.
— Temos um avião em Roterdã.
— Para onde ele vai nos levar?
— Para casa — respondeu Keller.
Sarah apoiou a cabeça no ombro dele e fechou os olhos.
— Estou em casa.
Parte Cinco
VINGANÇA
80
LONDRES–JERUSALÉM
Começou numa sala no hotel InterContinental em Budapeste. Dali, pulou para o banco de trás de um táxi, para a cadeira 14A de um Boeing 737
operado pela Ryanair, para o salão de uma balsa irlandesa chamada Ulysses, para um Toyota Corolla e para o Bedford House na cidade de veraneio de Frinton-on-Sea, em Essex.
Altos níveis de radiação também foram encontrados no escritório saqueado de uma marina no rio Twizzle, em um Jaguar F-Type conversível e nas dependências de um Bavaria 27 Sport que encalhara na comunidade litorânea holandesa de Renesse. Depois, as autoridades holandesas também encontrariam contaminação num bangalô de férias nas dunas perto de Ouddorp.
O marco zero, porém, eram duas casas conjugadas na Eaton Square. Lá, a história do que se passou estava escrita de forma indelével numa trilha de radiação que se espalhava de um banheiro no andar mais alto do número 71 até a sala de estar e a cozinha do número 70. Na lata de lixo, a Polícia Metropolitana encontrou as armas do crime — uma ampola de vidro vazia, uma pipeta de Pasteur, o avental de empregada. Todos registraram leituras de 30 mil contagens por segundo. Perigosas demais para serem armazenadas nas salas de evidência policiais, as provas foram enviadas por segurança para o Estabelecimento de Armas Atômicas em Aldermaston, instalação nuclear do governo.
A mulher que tinha usado as armas fora a primeira a morrer. Seu cadáver era tão radioativo que foi colocado num caixão com proteção nuclear — e o banco do motorista de seu carro, um Renault Clio, ficou tão saturado que também foi enviado a Aldermaston. A cadeira do saguão do London Jet Centre também. A fonte dessa contaminação, certo Konstantin Dragunov, tivera permissão para sair da Inglaterra a bordo de seu jatinho particular, após apresentar sintomas de síndrome aguda da radiação. O
governo russo, em seu primeiro comunicado oficial, atribuiu o mal-estar de Dragunov na noite do incidente a um simples caso de intoxicação alimentar. Quanto à contaminação dentro da casa do oligarca, o Kremlin disse que tinha sido plantada pelo Serviço Secreto de Inteligência
britânico numa tentativa de desacreditar a Rússia e prejudicar sua posição na região árabe.
A linha de defesa russa colapsou no dia seguinte, quando a delegada Stella McEwan, da Polícia Metropolitana, tomou a atitude incomum de liberar parte do depoimento gravado dado por Dragunov antes de embarcar em seu avião. O Kremlin alegou que a gravação era uma fraude, assim como o próprio oligarca. Dizia-se que ele estava se recuperando em sua mansão no bairro de Rublyovka, em Moscou. Na verdade, estava sob forte guarda no Hospital das Clínicas Central em Kuntsevo, instituição reservada para oficiais sêniores do governo e elites comerciais russas. Os médicos que lutavam para salvar sua vida o faziam em vão. Não havia medicação ou tratamento de emergência capaz de impedir a inevitável destruição das células e dos órgãos de Dragunov. Para todos os efeitos, ele já estava morto.
O russo duraria, porém, mais três semanas, enquanto a posição de Moscou no mundo caía a profundezas não vistas desde o ataque ao voo 007 da Korea Air Lines em 1983. Manifestações contra a Rússia varreram a região árabe e muçulmana. Uma bomba explodiu em frente à Embaixada Russa no Cairo. Manifestantes invadiram a do Paquistão.
No Ocidente, a reação foi pacífica, mas devastadora aos interesses diplomáticos e financeiros da Rússia. Reuniões foram canceladas, contas bancárias foram congeladas, embaixadores foram chamados de volta, agentes conhecidos do SVR foram expulsos. Londres foi seletiva em suas expulsões, pois desejava mandar uma mensagem. Só Dmitri Mentov e Yevgeny Teplov, dois oficiais operando sob disfarce diplomático, foram declarados persona non grata e ordenados a ir embora. Na mesma noite, um oficial sênior do MI6 chamado Charles Bennett foi discretamente levado sob custódia enquanto tentava embarcar num Eurostar com destino a Paris na estação de St. Pancras. O público britânico nunca seria informado dessa prisão.
Muitos outros fatos foram omitidos dos cidadãos, tudo em nome da segurança nacional. Eles não foram informados, por exemplo, como ou quando os serviços de inteligência tinham ficado sabendo que uma equipe de assassinos russos estava em solo britânico. Também não receberam uma explicação satisfatória de por que Konstantin Dragunov tivera permissão de ir embora do país depois de admitir seu papel na operação.
Sob o olhar implacável da mídia, logo apareceram furos no relato oficial. No fim, Downing Street admitiu que a ordem tinha vindo diretamente do próprio primeiro-ministro, embora sem informar detalhes em relação aos motivos dele. Um repórter investigativo respeitado do The Guardian sugeriu que Dragunov tinha sido liberado em troca de uma refém após, primeiro, passar por um duro interrogatório. A declaração cuidadosa de Stella McEwan de que nenhum oficial da Polícia Metropolitana tinha maltratado o oligarca deixou aberta a possibilidade de outra pessoa tê-lo feito.
Quase esquecido em meio ao turbilhão de controvérsias estava o príncipe herdeiro Abdullah bin Abdulaziz Al Saud. Segundo a Al Arabiya, a transmissora estatal saudita, ele tinha morrido nove dias depois de sua volta a Londres, às 4h37. Entre aqueles em seu leito de morte estava o amado sobrinho príncipe Khalid bin Mohammed.
Mas por que os russos tinham envenenado o príncipe herdeiro, afinal?
O Kremlin não estava cortejando novos amigos na região árabe? A Rússia não estava no processo de substituir os americanos como potência dominante da região? De Riad, apenas silêncio. De Moscou, negações e pistas falsas. Os especialistas televisivos especulavam. Os repórteres investigativos escavavam e esquadrinhavam. Ninguém passou remotamente perto da verdade.
Havia pistas por todos os lugares, porém — num consulado em Istambul, numa escola particular em Genebra e num campo no sudoeste da França. Mas, como a trilha de radiação, a evidência era invisível a olho nu.
Uma jornalista sabia muito mais que a maioria, mas, por motivos que não compartilhou com seus colegas, escolheu ficar em silêncio.
Na noite em que o Kremlin, com atraso, anunciou a morte de Konstantin Dragunov, ela emergiu de seu escritório em Berlim e, como era seu costume, examinou a rua nas duas direções antes de seguir para um café na Friedrichstrasse, perto do antigo Checkpoint Charlie. Ela estava sendo seguida, tinha certeza. Um dia, viriam buscá-la. E ela estaria pronta para eles.
Havia uma última trilha de radiação, cuja existência nunca seria revelada.
Ia do Aeroporto London City a um café de praia na Holanda, um apartamento em Jerusalém e o andar mais alto de um prédio comercial
anônimo em Tel Aviv. Era, declarou Uzi Navot, mais uma marca do mandato já distinto de Gabriel como chefe. Ele era o único diretor-geral que havia matado alguém em campo, e o único a ser atingido num bombardeio. Agora, ganhava a duvidosa distinção de ser o primeiro a ser contaminado por radiação, russo ou não. Navot lamentou de brincadeira a boa sorte de seu rival.
— Talvez — disse a Gabriel, quando ele voltou ao Boulevard Rei Saul
— seja melhor parar enquanto está ganhando.
— Tentei. Várias vezes, aliás.
Alguém tinha grudado uma placa amarela na porta do escritório dele dizendo CUIDADO, ÁREA DE RADIAÇÃO, e, na primeira reunião de sua equipe sênior, Yossi Gavish o presenteou com um contador Geiger cerimonial e um traje de proteção com o nome dele bordado. Foi a comemoração deles.
Segundo todas as medidas objetivas, a operação tinha sido um sucesso retumbante. Gabriel convencera brilhantemente seu rival a cometer um erro colossal. Com isso, tinha conseguido, ao mesmo tempo, controlar a influência russa crescente no Oriente Médio e eliminar o fantoche do Kremlin em Riad. O trono saudita estava mais uma vez ao alcance de Khalid. Ele só precisava convencer seu pai e o Conselho de Aliança a dar-lhe uma segunda chance. Se tivesse sucesso, a dívida de KBM com Gabriel seria enorme. Juntos, eles podiam mudar a região. As possibilidades para Israel — e para o diretor-geral e o Escritório — eram infinitas.
Sua prioridade, porém, era o Irã. Naquela noite, ele passou várias horas na rua Kaplan relatando ao primeiro-ministro sobre os conteúdos dos arquivos nucleares secretos iranianos. Na noite seguinte, estava ao lado do primeiro-ministro, mas fora da imagem da câmera, no anúncio das descobertas numa coletiva transmitida ao vivo para o mundo inteiro em horário nobre. Três dias depois, Gabriel instruiu Uzi Navot a dar um relatório resumido sobre a operação no Irã a repórteres do Haaretz e do The New York Times. A mensagem das matérias era indiscutível. Gabriel tinha ido ao coração de Teerã e roubado os segredos mais preciosos do regime. E, se os iranianos ousassem recomeçar seu programa de armas nucleares, ele voltaria.
Apesar de todos os sucessos, Reema raramente saía de seu pensamento.
Durante o calor da operação contra os russos, ele tivera um breve alívio.
Mas, de volta ao Boulevard Rei Saul, a menina não lhe dava paz. Em sonhos, ela aparecia com seu casaco deformado e seus sapatos de couro
envernizado. Às vezes, tinha uma semelhança sobrenatural com Nadia al-Bakari. Em um sonho terrível ela apareceu como o filho de Gabriel, Daniel. O cenário não era um campo remoto na França, mas uma praça nevada em Viena. A criança de casaco e sapato de couro envernizado, a menina com rosto de garoto, tentava dar partida numa Mercedes.
— Não é linda? — comentou a criança, quando a bomba explodiu.
Então, enquanto as chamas a consumiam, ela olhou para Gabriel e disse:
— Um último beijo...
Na noite seguinte, jantando tranquilamente um fettuccine com cogumelos na pequena mesa de bistrô na cozinha, ele descreveu a Chiara exatamente o que tinha se passado no campo no sudoeste francês. A voz da russa no telefone, o tiro pela janela de trás do carro, Khalid pegando os membros de Reema na luz branca dos faróis. A bomba, contou, era para ele. Ele tinha punido os responsáveis, ganhado deles num grande jogo de enganação que mudaria o curso da história no Oriente Médio. Mas Reema se fora para sempre. Além disso, seu sequestro e assassinato brutal ainda não tinham vindo a público. Era como se ela nunca tivesse existido.
— Então, talvez — sugeriu Chiara —, você devesse fazer algo para mudar isso.
— Como?
Ela segurou a mão de Gabriel.
— Não tenho tempo — protestou ele.
— Já vi como você trabalha rápido quando está decidido.
Gabriel considerou a ideia.
— Acho que eu poderia pedir para Ephraim me deixar usar o laboratório de restauração no museu.
— Não — disse Chiara. — Você pode trabalhar aqui no apartamento.
— Com as crianças?
— É claro. — Ela sorriu. — É hora de elas conhecerem o verdadeiro Gabriel Allon.
Como sempre, ele preparou sua própria tela — 180 por 120 centímetros, esticador de carvalho, linho italiano. Para a base, usou a fórmula que aprendeu em Veneza com o mestre restaurador Umberto Conti. Sua paleta era de Veronese, com um toque de Ticiano.
Ele só tinha visto Reema uma vez, em condições que, por mais que tentasse, não conseguia esquecer. E tinha visto a fotografia dela tirada pelos russos enquanto ela estava em cativeiro no País Basco Espanhol.
Também estava gravada na memória de Gabriel. Ela estava cansada e magra, seu cabelo, uma bagunça. A foto mostrava sua estrutura óssea real e, mais importante, sua personalidade. Para o bem ou para o mal, Reema bint Khalid era filha de seu pai.
Ele montou seu estúdio improvisado na sala de estar, perto do terraço.
Como de hábito, o israelense era protetor de seu espaço de trabalho. As crianças receberam instruções estritas de não tocar nos suprimentos. Como precaução, porém, ele sempre deixava um de seus pincéis Winsor &
Newton Série 7 num ângulo exato no carrinho, para saber se tinha havido um invasor, que, invariavelmente, era o caso. Na maior parte, não houve incidentes, embora em uma ocasião ele tenha voltado do Boulevard Rei Saul e encontrado várias digitais no canto inferior esquerdo da tela. Uma análise forense determinou que eram de Irene.
Ele trabalhava quando podia, mais ou menos uma hora pela manhã, alguns minutos à noite após o jantar. As crianças raramente saíam do seu lado. Gabriel não fez esboços preparatórios nem desenhou por baixo da pintura. Mesmo assim, sua técnica era impecável. Ele colocou Reema na mesma pose de Nadia, num sofá branco contra um pano de fundo preto à Caravaggio. A disposição de braços e pernas era infantil, mas Gabriel a envelheceu um pouco — 16 ou 17 anos, em vez de 12 — para Khalid poder tê-la por um tempo maior.
Gradualmente, conforme ela ganhava vida na tela, passou a ausentar-se dos sonhos de Gabriel. Durante sua última aparição, entregou-lhe uma carta para seu pai. Gabriel a adicionou à pintura. Depois, parou por muito tempo diante da obra, mão direita no queixo, mão esquerda apoiando o cotovelo direito, cabeça levemente inclinada para baixo, tão perdido em pensamentos que não percebeu Chiara parada ao seu lado.
— Está pronto, signor Delvecchio?
— Não — disse ele, limpando a tinta do pincel. — Ainda não.
81
LANGLEY–NOVA YORK
O diretor da CIA, Morris Payne, ligou naquela tarde para Gabriel na linha segura e pediu que ele fosse a Washington. Não era exatamente uma convocação, mas também não era um convite aberto. Depois de fingir consultar sua agenda, Gabriel disse que o mais cedo que podia ir seria na próxima terça-feira.
— Tenho uma ideia melhor. Que tal amanhã?
Na verdade, Gabriel estava ansioso pela viagem. Estava devendo a Payne um relato completo da operação para remover Abdullah da linha sucessória. Além disso, precisava que o americano e seu chefe na Casa Branca aprovassem a ascensão de Khalid ao trono. O Conselho de Aliança ainda não tinha nomeado um príncipe herdeiro. Mais uma vez, a Arábia Saudita estava sendo governada por um octogenário doente sem sucessor decretado.
Gabriel pegou um voo noturno para Washington e se encontrou com Payne no dia seguinte, no escritório dele no sétimo andar em Langley. No fim, não foi necessário confessar seu papel no caso de Abdullah. O
americano já sabia tudo.
— Como?
— Uma fonte dentro do SVR. Parece que você virou o lugar de cabeça para baixo.
— Alguma notícia sobre Rebecca Manning?
— Quer dizer Philby? — Payne balançou a cabeça com amargura. —
Quando você ia me contar?
— Não cabia a mim, Morris.
— Aparentemente, ela está por um fio.
— Eu disse para ela não voltar.
— Você a viu?
— Na Holanda — explicou Gabriel. — Tivemos que combinar uma troca de prisioneiros.
— Dragunov pela garota? — Payne esfregou seu queixo proeminente, pensativo. — Lembra nosso jantar recente?
— Com muito carinho.
— Quando sugeri que você talvez quisesse pensar em afastar Abdullah de vez da região, você me olhou como se eu tivesse acabado de dizer para tirar a Madre Teresa do caminho.
Gabriel não disse nada.
— Por que não nos incluiu?
— Caciques demais.
— A Arábia Saudita é nossa aliada.
— E graças a mim, continua sendo. Vocês só precisam mandar a Riad um sinal de que Washington veria com bons olhos a renomeação de Khalid a príncipe herdeiro.
— Pelo que ouvimos, ele não vai ser príncipe herdeiro por muito tempo.
— Provavelmente não.
— Ele está pronto?
— Ele vai ser diferente, Morris.
Payne não parecia tão certo. Mudou de assunto abruptamente, um hábito seu.
— Ouvi falar que os russos deram uma boa surra nela.
— Sarah?
O americano fez que sim.
— Considerando as circunstâncias — disse Gabriel —, podia ter sido pior.
— Como ela se comportou em campo?
— Ela tem talento nato, Morris.
— Então, por que está trabalhando num museu em Nova York?
— Leia o arquivo dela.
— Acabei de ler. — Havia uma cópia em sua mesa. — Alguma chance de convencê-la a voltar à Agência?
— Duvido.
— Por quê?
— Posso estar errado — disse Gabriel —, mas acredito que ela já tenha dono.
Gabriel saiu de Langley em tempo de pegar o trem das 15 horas para Nova York. Um carro do consulado israelense o encontrou na Penn Station, e o
conduziu pela tarde quente de primavera até a esquina da Second Avenue com a Sixty Four Street.
O restaurante em que ele entrou era italiano, antiquado e muito barulhento. O diretor-geral se espremeu para passar pela multidão no bar e foi até a mesa em que Sarah, com um terninho escuro, bebia um martíni com três azeitonas. Quando Gabriel se aproximou, ela sorriu e levantou o rosto para ser beijada. Já não havia traço de sua jornada noturna pelo mar do Norte com o assassino russo chamado Nikolai. Aliás, pensou Gabriel sentando-se, Sarah parecia mais radiante do que nunca.
— Peça um desses — sugeriu ela, batendo uma unha pintada na borda da taça. — Prometo que vai cuidar daquela dor nas suas costas.
Gabriel pediu um sauvignon blanc italiano e, prontamente, recebeu a maior taça de vinho que já tinha visto. Sarah levantou seu martíni uma fração de centímetro.
— Ao mundo secreto. — Ela olhou pelo salão lotado. — Sem amiguinhos?
— Não consegui uma reserva para eles.
— Quer dizer que tenho você só para mim? Vamos fazer algo absolutamente escandaloso. — Sarah sorriu com malícia e deu um gole em seu drinque. Ela tinha voz e modos de uma era diferente. Como sempre, Gabriel se sentiu conversando com uma personagem de Fitzgerald.
— Como foi Langley? — perguntou.
— Morris não parava de perguntar sobre você.
— Eles sentem minha falta?
Gabriel sorriu.
— A cidade inteira está desolada. Morris faria qualquer coisa para você voltar.
— O que está feito não pode ser desfeito. — Ela baixou a voz até um murmúrio de confidência. — Exceto no que diz respeito a Khalid. Você evitou que nosso herói trágico se destruísse.
Ela sorriu.
— Ele está restaurado.
— Literalmente — disse Gabriel.
— Morris deu sinal verde para a volta de Khalid?
Gabriel assentiu.
— A Casa Branca também. A segunda temporada do show de KBM está prestes a ser produzida.
— Vamos esperar que seja um pouco menos animada que a primeira.
Um garçom apareceu. Sarah pediu uma salada caprese e vitela salteada.
Gabriel quis o mesmo.
— Como está o trabalho? — perguntou ele.
— Parece que a Coleção Nadia al-Bakari não caiu das paredes do MoMA enquanto eu estive longe. Aliás, minha equipe mal notou minha ausência.
— Quais são seus planos?
— Uma mudança de cenário, acho.
Dessa vez, foi Gabriel quem examinou o salão.
— Este lugar é muito bom, Sarah.
— O Upper East Side? Tem seus charmes, mas sempre preferi Londres.
Kensington, em especial.
— Sarah...
— Eu sei, eu sei.
— Você já voltou a Londres para vê-lo?
— No fim de semana passado. Foi quase tão bom quanto este martíni.
Devo dizer, a casa dele é divina, mesmo sem móveis.
— Ele lhe contou onde conseguiu o dinheiro para comprá-la?
— Mencionou algo sobre certo Don Orsati da ilha de Córsega. Ele tem uma casa lá também, sabe.
— E um Monet. — Gabriel fixou um olhar de reprovação em Sarah. —
Ele é velho demais para você.
— É o homem mais jovem com quem saio em muito tempo. Além do mais, já o viu sem roupa?
— E você, já viu?
Sarah desviou o olhar.
— Não tem nada que eu possa fazer para dissuadi-la?
— Por que tentaria?
— Porque não é sábio você se envolver com um homem cujo trabalho era matar pessoas.
— Se você pôde superar o passado de Christopher, por que eu não posso?
— Porque eu nunca considerei me mudar para Londres para morar com ele. — Gabriel expirou lentamente. — O que você pretende fazer profissionalmente?
— Talvez seja um choque para você, querido, mas dinheiro não é exatamente um problema. Meu pai me deixou bastante bem de vida. Dito isso, eu gostaria de algo para fazer.
— O que tem em mente?
— Uma galeria, talvez.
Gabriel sorriu.
— Tem uma ótima em Mason’s Yard, em St. James’s. Especializada em Velhos Mestres italianos. O proprietário anda falando há alguns anos em se aposentar. Está em busca de alguém para assumir os negócios.
— Como estão as finanças dele? — perguntou Sarah, com preocupação justificada.
— Graças à associação dele com certo empresário russo, estão bastante boas.
— Christopher me contou tudo sobre a operação.
— Contou? — perguntou Gabriel, irritado. — E contou sobre Olivia Watson, também?
Ela assentiu.
— E sobre Marrocos. Só sinto muito por não ter sido convidada.
— A galeria de Olivia fica na Bury Street — avisou Gabriel. — É
possível que você trombe com ela.
— E Christopher vai trombar com Mikhail da próxima vez que nós...
— Sarah deixou o pensamento incompleto.
— Pode ficar um pouco incestuoso.
— Pode, mas vamos conseguir lidar. — Sarah sorriu com uma tristeza repentina. — Sempre conseguimos, não é, Gabriel?
Nesse momento, o BlackBerry dele vibrou. A pulsação distinta mostrou que era uma mensagem urgente do Boulevard Rei Saul.
— Alguma coisa séria? — perguntou Sarah.
— O Conselho de Aliança acabou de nomear Khalid como novo príncipe herdeiro.
— Que rápido. — De repente, o iPhone de Sarah também estava vibrando.
Ela sorriu ao ler a mensagem.
— Se for Keller, diga que quero falar com ele.
— Não é Keller, é Khalid.
— O que ele quer?
Ela entregou o telefone para Gabriel.
— Você.
82
TIBERÍADES
Em seu primeiro ato oficial após recuperar o posto de príncipe herdeiro, Khalid bin Mohammed cortou laços com a Federação Russa e expulsou todos os seus cidadãos do Reino da Arábia Saudita. Os analistas regionais aplaudiram sua ação. O velho Khalid, disseram, podia ter agido precipitadamente. Mas o novo tinha mostrado a astúcia e prudência de um estadista experiente. Claramente, especularam, havia uma voz mais sábia sussurrando em seu ouvido.
Em casa, ele passou rapidamente a desfazer os danos do breve reinado de seu tio — e alguns de seus próprios também. Ele soltou as ativistas feministas e apoiadores da reforma democrática. Libertou até um blogueiro popular que, como Omar Nawwaf, tinha feito críticas pessoalmente. Conforme a temida Mutaween se retirou da vida de Riad, a paz retornou. Um novo cinema abriu as portas. Jovens sauditas lotavam os cafés até tarde da noite.
Mas, na maior parte, as ações de Khalid foram recebidas com nova cautela. Sua corte real, embora cheia de legalistas preparados a fazer o que ele desejasse, continha vários tradicionalistas da velha guarda, sugerindo aos observadores do Oriente Médio que ele pretendia voltar à prática Al Saud de governar por consenso. Se o antigo KBM era um homem com pressa, o novo parecia favorecer o gradualismo à pressa. “Shwaya, shwaya” virou uma espécie de mantra oficial. Ainda assim, Khalid não era um governante com quem fosse bom se meter, como descobriu um reformista importante depois de vaiá-lo durante uma aparição pública. A pena de prisão de um ano deixou claro que havia limites à tolerância do novo governante com a dissidência. Ele era um déspota iluminado, disseram os observadores, mas mesmo assim, um déspota.
Sua conduta pessoal também mudou. Ele vendeu seu superiate e seu palácio na França, e devolveu vários bilhões de dólares aos homens que havia prendido no Ritz-Carlton. Também se despediu de boa parte de sua coleção de arte. Confiou a venda do Salvator Mundi à Isherwood Fine Arts, de Mason’s Yard, em Londres. Sarah Bancroft, ex-diretora do Museu
de Arte Moderna de Nova York, estava listada como a marchand do negócio.
A esposa dele, Asma, aparecia a seu lado em público, mas a princesa Reema, sua filha, tinha desaparecido de vista. Circulava um rumor de que estivesse matriculada numa escola exclusiva na Suíça. Logo foi descartado, porém, por uma denúncia publicada na revista alemã Der Spiegel. Com base, em parte, na reportagem de Omar Nawwaf, ela detalhava a série de acontecimentos que tinham levado à dramática queda em desgraça de Khalid e sua restauração final. O saudita, após vários dias de silêncio, deu uma confirmação chorosa da autenticidade do relato.
O que levou, principalmente no Ocidente, a outra grande reavaliação.
Talvez os russos, apesar de toda a sua imprudência, tivessem na verdade feito-lhes um favor. Talvez fosse hora de perdoar o jovem príncipe e o receber de volta no rebanho. De Washington a Wall Street, passando por Hollywood e pelo Vale do Silício, surgiu um grande clamor de todos os que o tinham rejeitado, implorando que ele voltasse. Um homem, porém, tinha ficado ao lado dele quando ninguém mais quis. Foi o convite desse homem, numa noite de verão abafada em junho, que Khalid aceitou.
O novo KBM, como o velho, estava eternamente atrasado. Gabriel o esperava às 17 horas, mas já eram quase 18h30 quando o Gulfstream dele pousou na base da Força Aérea Israelense em Ramat David. Ele emergiu sozinho da cabine, de blazer bem cortado e óculos escuros estilosos que brilhavam com o sol de fim de tarde. Gabriel ofereceu a mão a Khalid, mas de novo recebeu, em vez de um cumprimento, um abraço caloroso.
Após sair da base, passaram pela cidade de nascimento de Gabriel. Seus pais, explicou ele a Khalid, eram sobreviventes alemães do Holocausto.
Como todas as outras em Ramat David, a família Allon tinha morado numa pequena cabana de blocos de cimento. A deles era cheia de fotografias de entes queridos perdidos nos fogos da Shoah. Para escapar do luto de seu lar, Gabriel vagava pelo vale de Jezreel, a terra dada por Josué à tribo de Zebulom, uma das doze da antiga Israel. Ele passara a maior parte de sua vida adulta morando no exterior ou em Jerusalém. Mas o vale, contou a Khalid, sempre seria sua casa.
Enquanto iam na direção leste na rodovia 77, o telefone de Khalid apitava e vibrava sem parar. As mensagens eram da Casa Branca. Explicou
que o presidente e ele estavam planejando se encontrar brevemente em Nova York durante a reunião anual da Assembleia Geral da ONU, em setembro. Se tudo corresse bem, ele voltaria aos Estados Unidos, no outono, para uma cúpula formal em Washington.
— Parece que tudo está perdoado. — Ele olhou para Gabriel. —
Imagino que você não tenha tido nada a ver com isso?
— Os americanos não precisaram de nenhum encorajamento da minha parte. Estão ansiosos para normalizar as relações.
— Mas foi você que me tornou palatável de novo. — Ele hesitou. —
Omar Nawwaf e você. Aquele artigo na Der Spiegel levou embora a nuvem da minha cabeça de uma vez por todas.
Khalid finalmente desligou o telefone. Pelos trinta minutos seguintes, cruzando a Alta Galileia, ele deu a Gabriel um relatório muito impressionante — um tour guiado do Oriente Médio liderado por ninguém menos que o governante de facto da Arábia Saudita. A Diretoria de Inteligência Geral, DIG, estava ouvindo coisas promissoras do líder do Corpo da Guarda Revolucionária do Irã, algo sobre uma indiscrição financeira. As informações preliminares logo chegariam ao Boulevard Rei Saul. Khalid e a DIG também estavam animados para seu papel na Síria, no momento em que os americanos estavam indo na direção da saída.
Talvez a DIG e o Escritório pudessem começar um programa secreto para tornar a vida um pouco menos confortável na Síria para os iranianos e seus aliados do Hezbollah. Gabriel pediu que o saudita interviesse com o Hamas para parar os foguetes e mísseis que vinham de Gaza. Ele prometeu fazer o possível.
— Mas não espere muito. Aqueles malucos do Hamas me odeiam quase tanto quanto odeiam você.
— O que ficou sabendo sobre o plano de paz para o Oriente Médio do governo americano?
— Não muito.
— Talvez devêssemos criar nosso próprio plano de paz, você e eu.
— Shwaya, shwaya, meu amigo.
Enfim, chegaram à planície árida em que, numa tarde escaldante de julho de 1187, Saladin derrotou os exércitos sanguinários de Cruzados numa batalha que deixaria Jerusalém de novo em mãos muçulmanas. Logo depois, viram o mar da Galileia. Foram para o norte pela beira-mar, até chegarem a uma villa que parecia uma fortaleza empoleirada no topo de
uma escarpa rochosa. Havia vários sedans e SUVs estacionados no caminho íngreme da entrada.
— Onde estamos? — perguntou Khalid.
Gabriel abriu sua porta e desceu.
— Venha comigo. Vou mostrar.
Ari Shamron estava no hall de entrada. Ele avaliou Khalid cuidadosamente antes de, enfim, estender uma das mãos com manchas senis.
— Nunca achei que esse dia fosse chegar.
— Não chegou — respondeu Khalid, com ares de conspiração. — Não oficialmente, pelo menos.
Shamron gesticulou para a sala de estar, onde estava reunida a maioria da equipe sênior do Escritório — Eli Lavon, Yaakov Rossman, Dina Sarid, Rimona Stern, Mikhail Abramov, Natalie Mizrahi, Uzi e Bella Navot.
Chiara e as crianças estavam de pé ao lado de um cavalete de carvalho.
Sobre ele, uma pintura coberta com uma baeta preta.
Khalid olhou perplexo para Gabriel.
— O que é isso?
— Algo para substituir aquele seu Leonardo.
Gabriel fez um gesto para Raphael e Irene. Com ajuda de Chiara, eles removeram o véu negro. Khalid se balançou de leve e colocou a mão no coração.
— Meu Deus — sussurrou.
— Desculpe, eu deveria ter avisado.
— Ela parece... — A voz de Khalid sumiu. Ele esticou a mão na direção do rosto de Reema, depois na direção da carta. — O que é?
— Uma mensagem para o pai dela.
— O que diz?
— Isso é entre vocês.
Khalid estudou o canto inferior direito da tela.
— Não tem assinatura.
Khalid levantou os olhos.
— É famoso, o artista?
Gabriel deu um sorriso triste.
— Em alguns círculos.
Comeram ao ar livre no terraço, observados pelo retrato de Reema. A refeição era um banquete suntuoso de cozinhas israelense e árabe, incluindo o famoso frango com temperos marroquinos de Gilah Shamron, que Khalid decretou ser o melhor prato que ele já comera. Discretamente, recusou a oferta de vinho de Gabriel. Ele logo seria guardião das duas mesquitas sagradas de Meca e Medina, explicou. Seus dias de consumo de álcool, mesmo moderado, tinham chegado ao fim.
Cercado por Gabriel e seus chefes de divisão, Khalid falou não do passado, mas do futuro. A estrada à frente, alertou, seria difícil. Apesar de todas as riquezas, seu país era tradicional, retrógrado e, em muitas coisas, bárbaro. Além do mais, havia outra Primavera Árabe chegando. Ele deixou claro que nunca toleraria uma rebelião aberta contra seu governo. Pediu-lhes que fossem pacientes, mantivessem expectativas realistas e tornassem a vida tolerável para os palestinos. De alguma forma, algum dia, a ocupação de terras árabes tinha que acabar.
Pouco antes das 23 horas, soaram sirenes à beira do lago. Depois, um foguete do Hezbollah fez um arco sobre as colinas de Golã e, da bateria da Cúpula de Ferro na Galileia, um míssil subiu para encontrá-lo. Depois, Gabriel e Khalid ficaram parados sozinhos na balaustrada do terraço, observando uma única embarcação patrulhando o lago, sua popa iluminada por uma luz de navegação verde.
— É bem pequeno — comentou Khalid.
— O lago?
— Não, o barco.
— Provavelmente, não tem uma discoteca.
— Nem uma sala de neve.
Gabriel riu baixinho.
— Você sente falta?
Khalid negou.
— Só sinto falta da minha filha.
— Espero que o retrato ajude.
— É o quadro mais lindo que já vi. Mas você precisa me deixar pagar por ele.
Gabriel balançou a mão, indicando que não precisava.
— Então, me deixe dar isto a você. — Khalid segurou um pendrive.
— O que é?
— Uma conta na Suíça com cem milhões de dólares.
— Tenho uma ideia melhor. Use o dinheiro para construir a Escola Omar Nawwaf de Jornalismo em Riad. Treine a próxima geração de repórteres, editores e fotógrafos árabes. Depois, dê a eles liberdade para escrever e publicar o que quiserem, não importa se machucar seus sentimentos.
— É só isso mesmo que você quer?
— Não — disse Gabriel. — Mas é um bom começo.
— Na verdade, eu estava planejando começar em outro lugar. — Khalid guardou o pendrive no bolso do blazer. — Preciso fazer uma coisa antes de virar rei. Esperava que você estivesse disposto a fazer o papel de intermediário.
— No que está pensando?
Khalid explicou.
— Não é muito difícil encontrá-la — falou Gabriel. — É só mandar um e-mail.
— Já mandei. Vários, aliás. Ela não responde. E também não atende minhas ligações.
— Nem imagino por quê.
— Talvez você possa abordá-la por mim.
— Por que eu?
— Parece ter uma boa relação com ela.
— Eu não iria tão longe.
— Consegue providenciar isso?
— Um encontro? — Gabriel balançou a cabeça. — É uma má ideia, Khalid.
— Minha especialidade.
— Ela está com raiva demais. Deixe passar um pouco mais de tempo.
Ou melhor, deixe que eu cuido disso para você.
— Você não conhece muito bem os árabes, né?
— Estou aprendendo mais a cada dia.
— É parte essencial da nossa cultura — explicou Khalid. — Preciso fazer a reparação pessoalmente.
— Dinheiro de sangue?
— Uma expressão infeliz. Mas, sim, dinheiro de sangue.
— O que você precisa fazer — disse Gabriel — é aceitar total responsabilidade pelo que aconteceu em Istambul e garantir que nunca mais volte a acontecer.
— Não vai.
— Diga isso a ela, não a mim.
— Pretendo dizer.
— Nesse caso — falou Gabriel —, aceito. Mas se algo der errado, que caia sobre a sua cabeça.
— Isso é um provérbio judeu? — Khalid olhou para seu relógio. —
Está tarde, meu amigo. Talvez seja minha hora de ir.
83
BERLIM
Gabriel ligou para ela na manhã seguinte e deixou uma mensagem na caixa postal. Uma semana se passou antes de ela se dar ao trabalho de ligar de volta, um começo nada promissor. Sim, disse após ouvir a proposta dele, ela estaria disposta a ouvir Khalid. Mas a última coisa que ele deveria esperar dela era uma absolvição. Ela também não estava interessada em dinheiro de sangue. Quando Gabriel contou-lhe sobre sua ideia, ela ficou cética.
— É mais fácil os palestinos terem um Estado independente do que Khalid abrir uma escola de jornalismo em Riad com o nome de Omar.
Ela insistiu que o encontro acontecesse em Berlim. A embaixada, claro, estava fora de questão, e ela não ficava confortável com a ideia de ir à residência do embaixador ou mesmo a um hotel. Foi Khalid quem sugeriu o apartamento que ela antes dividia com Omar em Mitte, antigo bairro de Berlim Oriental. Os agentes dele tinham sido visitantes regulares e o conheciam bem. Mesmo assim, uma busca completa — uma pilhagem, na verdade — seria necessária antes da chegada dele. Não haveria registros do encontro nem comunicados públicos depois. E não, ele não aceitaria bebidas de nenhum tipo. Tinha medo de que os russos estivessem tentando matá-lo da mesma forma como haviam feito com seu tio. O medo, pensou Gabriel, era inteiramente justificado.
E foi assim que, numa tarde quente e sem vento em Berlim no início de julho, com as folhas murchas nas tílias e as nuvens baixas e escuras no céu, uma fileira de automóveis Mercedes chegou como uma procissão funerária na rua sob a janela de Hanifa Khoury. Franzindo o cenho, ela olhou a hora. Eram 15h30. Ele estava uma hora e meia atrasado.
Fuso horário KBM...
Várias portas de carro se abriram. De uma delas, saiu Khalid. Enquanto ele cruzava a calçada até a entrada do prédio, foi seguido por um único guarda-costas. Não tinha medo, pensou Hanifa. Confiava nela, da forma como ela tinha confiado nele naquela tarde em Istambul. A tarde em que vira Omar pela última vez.
Ela se afastou da janela e examinou a sala de estar do apartamento.
Havia fotografias de Omar por todo canto. Omar em Bagdá. Omar no Cairo. Omar com Khalid.
Omar em Istambul...
Naquela manhã, uma equipe da Embaixada Saudita tinha destruído o apartamento, buscando o quê, não disseram. Mas não tinham checado o grande vaso de flores de cerâmica no terraço com vista para o pátio interno. Tinham, sim, brutalizado os gerânios de Hanifa, mas deixado de fuçar o solo úmido.
O objeto que ela havia escondido ali, embrulhado num pano oleoso, guardado num ziplock de plástico, estava na palma da sua mão. Ela o tinha conseguido com Tariq, um garoto problemático da comunidade palestina que cometia pequenos crimes, rapper fracassado, delinquente. Tinha dito a Tariq que era para uma reportagem em que estava trabalhando para a ZDF.
Ele não acreditou nela.
O prédio era antigo, e o elevador, instável. Dois ou três minutos se passaram antes de ela ouvir duas pisadas masculinas duras e pesadas no corredor. Uma voz de homem, também. A voz do demônio. Soava como se ele estivesse ao telefone. Falando com o israelense, esperava ela. Que poesia perfeita, pensou. O próprio Darwish não poderia ter escrito melhor.
Ao se encaminhar para o hall, ela viu Omar entrando no consulado às 13h14. Só lhe restava imaginar o que tinha acontecido depois. Será que haviam fingido um breve momento de cordialidade ou o atacado imediatamente como feras selvagens? Esperaram até ele estar morto antes de o despedaçarem ou ele ainda estava vivo e consciente quando a lâmina cortou sua pele? Tal ato não podia ser perdoado, apenas vingado. Khalid sabia disso melhor do que ninguém. Afinal, ele era árabe. Filho do deserto.
Ainda assim, ia na direção dela com um único guarda-costas para protegê-
lo. Talvez ainda fosse o mesmo KBM inconsequente, no fim das contas.
Por fim, a batida. Hanifa alcançou a maçaneta. O guarda-costas se lançou à frente e o demônio escondeu o rosto. Omar, pensou Hanifa ao levantar a arma e atirar. A senha é Omar...
NOTA DO AUTOR
A herdeira é uma obra de entretenimento e não deve ser lida como nada mais do que isso. Os nomes, personagens, lugares e incidentes retratados na história são produto da imaginação do autor ou foram usados de forma fictícia.
A Escola Internacional de Genebra retratada no livro não existe e não deve, de forma alguma, ser confundida com a Ecole Internationale Genève, instituição fundada em 1924 com ajuda da Liga das Nações.
Visitantes do Museu de Arte Moderna de Nova York verão inúmeras obras extraordinárias, incluindo A Noite Estrelada, de Van Gogh, mas nada sob o título de Coleção Nadia al-Bakari. As histórias de Zizi e Nadia al-Bakari são contadas em A inflitrada, publicado originalmente em 2006, e na sua sequência, Retrato de uma espiã. Sarah também aparece em O aliado oculto, As regras de Moscou e O desertor. Gostei de seu retorno ao mundo secreto tanto quanto ela.
Manipulei os horários de aviões e trens para adequar-se às necessidades de minha narrativa, bem como o tempo de acontecimento de eventos do mundo real. O retrato, em A herdeira, do incrível roubo de arquivos nucleares iranianos pela Mossad é inteiramente especulativo, e não se baseia em nenhuma informação que eu tenha recebido de fontes israelenses ou americanas. Tenho certeza de que a Mossad não planejou nem supervisionou a operação real de um prédio anônimo localizado no Boulevard Rei Saul em Tel Aviv, já que essa é a localização apenas do meu
“Escritório” fictício. O capítulo 7 deste livro contém uma referência não tão velada à localização verdadeira da sede da Mossad, que, como o endereço de Gabriel Allon na rua Narkiss, é um dos segredos mais mal guardados de Israel.
Não há unidade de contraterrorismo francesa conhecida como Grupo Alpha, pelo menos não que eu conheça. Um ótimo estabelecimento chamado Brasserie Saint-Maurice ocupa o térreo de uma velha casa na Annecy medieval, e o popular Café Remor tem vista para a place du Cirque em Genebra. Ambos costumam estar livres de agentes de inteligência e assassinos, bem como a charmosa Plein Sud na avenue du Général Leclerc, em Carcassonne. Natural High é o nome do pavilhão na
praia na adorável cidade de veraneio holandesa de Renesse. Até onde sei, nem Gabriel Allon, nem Rebecca Philby jamais puseram os pés lá.
Não é aconselhável tentar reservar um quarto no Bedford House nem no East Anglia Inn em Frinton-on-Sea, pois nenhum dos dois existe. Há, de fato, uma marina às margens do rio Twizzle, em Essex, mas o brutal assassinato do guarda por Nikolai Azarov podia muito bem ter sido testemunhado por clientes do restaurante Harbour Lights. Pouco antes de entrar no Dorchester, em Londres, Christopher Keller tomou emprestada uma fala da versão cinematográfica de 007 contra o satânico Dr. No para descrever a potência de uma pistola Walther PPK. Devotos de F. Scott Fitzgerald devem ter notado que Gabriel e Sarah Bancroft trocam duas falas de O grande Gatsby enquanto jantam num restaurante italiano perto da esquina da Second Avenue com a East Sixty-Fourth Street, em Manhattan. Há rumores de que o restaurante seja o Primola, meu favorito no Upper East Side.
É verdade que visitantes do número 10 da Downing Street, muitas vezes, veem um gato malhado marrom e branco à espreita perto da famosa porta preta. O nome dele é Larry, e ele foi agraciado com o título de Caçador de Ratos Chefe do Escritório do Gabinete. Peço desculpas ao proprietário da casa de St. Luke’s Mews, 7 em Notting Hill por transformar seu lar numa casa segura do MI6, e aos ocupantes dos números 70 e 71 da Eaton Square por usar suas elegantes propriedades como cenário de um assassinato russo. Estou confiante de que nenhum primeiro-ministro britânico ou chefe do MI6, caso soubessem de tal plano, teriam permitido que acontecesse, mesmo que o resultado final fosse um desastre estratégico e de relações públicas para o presidente russo e seus serviços de inteligência.
Escolhi não identificar o veneno radioativo usado por meus assassinos russos fictícios. Suas propriedades mortais, porém, são claramente similares ao polônio-210, elemento químico altamente radioativo usado em novembro de 2006 no assassinato de Alexander Litvinenko, ex-oficial de inteligência russo e dissidente que morava em Londres. A reação débil da Inglaterra ao uso de uma arma de destruição em massa em seu solo sem dúvidas encorajou o Kremlin a mirar em um segundo russo vivendo no país, Sergei Skripal, em março de 2018. Ex-oficial do GRU, o serviço de inteligência do exército russo, e agente duplo, Skripal sobreviveu após ser exposto ao agente nervoso Novichok, da era soviética. Mas Dawn
Sturgess, de 44 anos, mãe de três filhos que morava perto de Skripal na cidade de Salisbury, morreu quatro meses depois do ataque inicial, uma vítima colateral da guerra do presidente russo Vladimir Putin contra a dissidência. Não é surpreendente que Putin tenha ignorado um pedido do filho da mulher para que autoridades britânicas interrogassem os dois assassinos russos suspeitos.
Não existe o Centro de Dados Real em Riad, mas há algo bem parecido: o ridiculamente chamado Centro para Estudos e Assuntos de Mídia (Center for Studies and Media Affairs, em inglês). Chefiado por Saud al-Qahtani, cortesão e confidente próximo do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, o centro obteve seu arsenal inicial de armas cibernéticas sofisticadas de uma firma italiana chamada Hacking Team. Depois, adquiriu software e expertise da DarkMatter, baseada nos Emirados Árabes, e do NOS Group, uma empresa israelense que, supostamente, emprega veteranos da Unidade de Inteligência 8200, o serviço de espionagem eletrônica e ciberguerra. Segundo o The New York Times, a DarkMatter também contratou graduados da Unidade 8200, além de vários americanos previamente empregados pela CIA e a NSA. Aliás, consta que um dos principais executivos da empresa trabalhou em algumas das operações cibernéticas mais avançadas da NSA.
Saud al-Qahtani supervisionava mais que o Centro para Estudos e Assuntos de Mídia. Também liderou o Grupo de Intervenção Rápida saudita, unidade clandestina responsável pelo brutal assassinato e desmembramento de Jamal Khashoggi, jornalista saudita dissidente e colunista do Washington Post. Onze sauditas estão enfrentando acusações criminais pelo crime, que foi executado dentro do consulado saudita em Istambul em outubro de 2018. Oficiais do país árabe alegaram, entre outras coisas, que os agentes agiram de forma unilateral. A CIA, porém, concluiu que o assassinato foi ordenado por ninguém menos que o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman.
Não pela primeira vez, o presidente Donald Trump discordou das descobertas de sua comunidade de inteligência. Num comunicado escrito, ele repetiu as alegações sauditas de que Khashoggi era um “inimigo de Estado” e membro da Irmandade Muçulmana, antes de, aparentemente, absolver MBS de ser cúmplice na morte do jornalista. “Pode muito bem ser que o príncipe herdeiro tivesse conhecimento desse acontecimento
trágico — talvez tivesse e talvez não tivesse.” E continuou: “Em todo caso, nosso relacionamento é com o Reino da Arábia Saudita.”
Mas o país não é uma democracia com instituições entrincheiradas. É
uma das últimas monarquias absolutistas do mundo. E, a não ser que haja outra mudança na linha sucessória, será governada, talvez por décadas, pelo comprovadamente inconsequente Mohammed bin Salman. Meu príncipe herdeiro saudita fictício — um KBM educado no Ocidente e falante de inglês —, no fim, era uma figura capaz de redenção. Receio que Mohammed bin Salman não possa ser restaurado. Sim, ele fez reformas modestas, incluindo dar às mulheres o direito de dirigir, algo há muito proibido no retrógrado reino. Mas, ao mesmo tempo, impôs uma ofensiva dura contra dissidentes sem paralelo na história saudita recente. MBS
prometeu mudanças. Em vez disso, entregou instabilidade à região e repressão em casa.
Por enquanto, o relacionamento entre Estados Unidos e Arábia Saudita parece congelado, e MBS está viajando pelo mundo em busca de amigos.
Xi Jinping, da China, recebeu-o em Pequim no início de 2019. Numa cúpula do G20 em Buenos Aires, MBS trocou um indecoroso “high five”
com Vladimir Putin. Uma fonte próxima ao príncipe herdeiro me disse que o cumprimento efusivo era uma mensagem aos críticos do monarca no Congresso norte-americano. A Arábia Saudita, segundo ele, já não contava mais só com a proteção dos americanos. A Rússia estava esperando por ele de braços abertos, sem mais questionamentos.
Uma década atrás, um alerta tão explícito teria sido vazio. Não mais. A intervenção de Putin na Síria tornou a Rússia novamente uma potência a ser temida no Oriente Médio, e os amigos tradicionais dos Estados Unidos notaram. O pai de MBS, rei Salman, fez uma única viagem ao exterior. Foi a Moscou. O emir do Catar envergonhou o governo Trump parando em Moscou na véspera de uma visita a Washington. Al-Sisi, do Egito, visitou a capital russa quatro vezes. Benjamin Netanyahu também. Até Israel, aliado mais próximo dos Estados Unidos no Oriente Médio, está se protegendo como pode na região. A Federação Russa é poderosa demais para ser ignorada.
Mas um líder saudita quebraria o laço histórico com os Estados Unidos e se inclinaria na direção da Rússia? Uma versão disso já começou, e é Mohammed bin Salman que está se inclinando para Moscou. A relação entre americanos e sauditas nunca foi baseada em valores comuns, apenas
em petróleo. MBS sabe muito bem que os Estados Unidos, agora grande produtor de energia, já não precisam do petróleo saudita como antes. No país de Putin, porém, ele encontrou um parceiro para ajudar a lidar com o fornecimento global de óleo e seu importantíssimo preço. Também achou, se necessário, uma fonte de armas e um canal valioso até os xiitas iranianos. E, talvez, o mais importante de tudo: MBS pode descansar tranquilo sabendo que seu novo amigo nunca o criticará por matar um jornalista enxerido. Afinal, os russos também são muito bons nisso.
51
FLORESTA DE EPPING, ESSEX
Quando Charles Bennett saiu de sua residência na Albion Road às 9h30
de sábado, vestia um anoraque à prova d’água azul-escuro e calças de tecido de secagem rápida. Pendurada em um dos ombros havia uma mochila de nylon, e, na mão direita, ele segurava um bastão de caminhada de carbono. Um andarilho dedicado, Bennett tinha feito trilhas por boa parte das ilhas Britânicas. Nos fins de semana, precisava se virar com algumas das muitas excelentes trilhas perto da Grande Londres. Hester, que considerava jardinagem um exercício, nunca o acompanhava. Bennett não ligava; preferia ficar sozinho. Nisso, pelo menos, os dois eram totalmente compatíveis.
O destino de Bennett naquela manhã era uma das trilhas na Floresta de Epping, antigo bosque que ia de Wanstead, ao leste de Londres, a Essex, ao norte. O caminho se estendia por mais de dez quilômetros pela parte mais alta da floresta, perto do vilarejo de Theydon Bois. Bennett dirigiu até lá no sedan sueco de Hester. Estacionou na estação de metrô e, violando as regras do serviço, deixou seu BlackBerry do MI6 no porta-luvas. Com o bastão em mãos e a mochila nas costas, seguiu pela Coppice Row.
Passou por algumas lojas e restaurantes, pela prefeitura do vilarejo e pela igreja matriz. Uma névoa fina pairou sobre Theydon Plain, como a fumaça de uma batalha distante e então a floresta o engoliu. A trilha era larga e com solo regular, coberta de folhas caídas. À frente, da penumbra, emergiu uma mulher de cerca de 40 anos que, sorrindo, desejou-lhe uma boa manhã. Ela o lembrou de Magda.
Magda...
Ele a conhecera no Rose & Crowe, certa noite, ao parar para tomar uma cerveja em vez de ir direto para casa encontrar o abraço frio de Hester. Ela havia acabado de imigrar da Polônia, ou assim dissera. Era uma mulher linda, recém-divorciada, com pele branca e uma boca larga que sorria com facilidade. Alegou que esperava uma pessoa — “uma amiga, não um homem” — atrasada. Bennett achou suspeito. Mesmo assim, tomou um segundo drinque com ela. E quando a “amiga” mandou mensagem dizendo que tinha que cancelar, ele concordou em andar com Magda até a casa
dela. Ela o levou para o Clissold Park e o empurrou contra uma árvore perto da antiga igreja. Antes de Bennett conseguir reagir, sua braguilha estava aberta e ela o engoliu.
Ele sabia o que viria. De fato, imaginou saber desde o momento em que colocou os olhos nela. Aconteceu uma semana depois. Um carro parou ao lado dele em Stamford Hill, alguém o chamou com a mão por uma janela traseira aberta. Era a mão de Yevgeny. Segurava uma fotografia.
— Que tal aceitar uma carona? É uma noite horrível para se estar a pé.
Bennett chegou a uma lata de lixo. A marca de giz na base estava claramente visível. Ele saiu da trilha e abriu caminho entre as árvores densas e a vegetação rasteira. Yevgeny estava com as costas apoiadas no tronco de uma bétula, com um cigarro apagado quase caindo dos lábios.
Parecia genuinamente feliz de ver o inglês. O russo era um canalha cruel, como a maioria dos oficiais do SVR, mas podia ser agradável quando lhe convinha. Bennett tinha a mesma habilidade. Eram dois lados da mesma moeda. Bennett, num momento de fraqueza, tinha permitido que Yevgeny ficasse com a vantagem. Mas, quem sabe, um dia seria Yevgeny o obrigado a entregar os segredos de seu país por causa de um delito pessoal.
Era assim o jogo. Só precisava de um único deslize.
— Tomou cuidado? — perguntou o russo.
Bennett fez que sim.
— E você?
— Os idiotas do A4 tentaram me seguir, mas os despistei em Highgate.
— A4 eram os artistas de vigilância do MI5, o serviço de segurança e contrainteligência britânico. — Sabe, Charles, eles realmente precisam melhorar um pouco. Chegou ao ponto de não ser nem esportivo.
— Você tem mais oficiais de inteligência em Londres agora do que na época da Guerra Fria. O A4 está sobrecarregado.
— Quanto mais, melhor. — Yevgeny acendeu seu cigarro. — Dito isso, não podemos demorar por aqui. O que você tem?
— Uma operação que seus superiores em Moscou talvez achem interessante.
— De que tipo?
— Um recrutamento de longo prazo de um ativo em alto escalão.
— Russo?
— Casa de Saud — respondeu Bennett. — A fonte está trabalhando para nós há vários anos. Ele nos informa regularmente sobre questões
familiares internas e desenvolvimentos políticos dentro do reino.
— Você é o controlador do Oriente Médio, Charles. Por que só estou sabendo disso agora?
— A fonte foi recrutada e era controlada pela Estação de Londres. Só fiquei sabendo dele nesta semana.
— Por quem?
— Pelo próprio “C”.
— Por que Graham decidiu informá-lo agora?
— Porque o ativo de alto escalão virá a Londres em algumas semanas para uma visita oficial.
— Do que está falando?
— O Príncipe Herdeiro Abdullah, próximo rei da Arábia Saudita, é um ativo do MI6. Somos donos dele, Yevgeny. Ele é nosso.
52
MOSCOU
O sonho chegou a Rebecca, como sempre, nas últimas horas antes do alvorecer. Ela estava submersa em águas rasas, perto do leito de um rio americano ladeado de árvores. Um rosto pairava acima dela, borrado, indistinto, contorcido de raiva. Gradualmente, conforme ela começou a perder consciência, o rosto recuou na escuridão, e o pai dela apareceu.
Rebecca, minha q-q-querida, precisamos discutir algo...
Ela se sentou na cama de uma vez, ofegante. Através da janela sem cortinas de seu quarto, conseguia ver uma estrela vermelha acima do Kremlin. Mesmo agora, nove meses após sua chegada a Moscou, a vista a surpreendia. Parte dela ainda esperava acordar toda manhã na pequena casa na Warren Street, no norte de Washington, onde havia morado durante seu último posto no MI6. Se não fosse pelo homem do seu sonho — aquele que quase a afogara no rio Potomac —, ela ainda estaria lá. Podia até ser diretora do serviço secreto britânico.
O céu acima do Kremlin estava preto, mas, ao checar o horário em seu telefone do SVR, ela viu que eram quase sete da manhã. A previsão para Moscou era de pouca neve e máxima de doze graus abaixo de zero; estava começando a esquentar. Rebecca jogou a roupa de cama para o lado e, tremendo, colocou o roupão e foi até a cozinha.
Era clara e moderna, cheia de eletrodomésticos brilhantes de fabricação alemã. O SVR tinha sido justo com ela — um apartamento grande perto das muralhas do Kremlin, uma datcha no interior, um carro com motorista. Tinham até lhe concedido um destacamento de segurança.
Rebecca não se iludia sobre o motivo de ter recebido um benefício reservado apenas para os oficiais mais graduados do serviço de inteligência russo. Ela nascera e fora criada para ser espiã de sua terra natal, tinha trabalhado para a Rússia durante uma carreira longa e bem-sucedida no MI6. Mesmo assim, não confiavam totalmente nela. No Centro de Moscou, onde ela se apresentava todos os dias para o trabalho, referiam-se a ela, de forma pejorativa, como novaya devushka: a herdeira.
Ela ligou a máquina automática; e, quando ela tossiu ruidosamente e cuspiu o que sobrava de café, Rebecca o bebeu numa xícara grande com
espuma de leite vaporizado, como fazia na infância em Paris. Seu nome, na época, era Bettencourt — Rebecca Bettencourt, filha ilegítima de Charlotte Bettencourt, comunista e jornalista francesa que, no início dos anos 1960, havia morado em Beirute, onde teve um breve caso com um correspondente freelancer casado que escrevia para os veículos Observer e The Economist. Manning era o nome que Rebecca assumiu quando sua mãe, por ordem da KGB, casara-se com um homossexual da alta classe inglesa para que sua filha tivesse cidadania britânica e fosse aceita em Oxford ou, de preferência, em Cambridge. Publicamente, Manning ainda era o sobrenome pelo qual a espiã era conhecida de forma infame. Dentro do Centro de Moscou, porém, era chamada pelo nome de seu pai, Philby.
Rebecca apontou o controle remoto para a televisão, e, alguns segundos depois, a BBC apareceu na tela. Por motivos profissionais, seus hábitos midiáticos tinham permanecido decididamente britânicos. Rebecca trabalhava no Departamento do Reino Unido do Diretorado. Era essencial que ela se mantivesse atualizada nas notícias de Londres. Nesses dias, quase todas eram ruins. O Brexit, clandestinamente apoiado pelo Kremlin, era uma calamidade nacional. A Grã-Bretanha logo seria uma sombra de si mesma, incapaz de qualquer resistência significativa à influência cada vez mais ampla da Rússia e ao seu poder militar crescente. Rebecca tinha prejudicado a Inglaterra de dentro do Serviço Secreto de Inteligência. Seu trabalho então passara a ser acabar com seu antigo país de trás de uma mesa no Centro de Moscou.
Passando os olhos pelas manchetes de Londres no telefone, Rebecca fumou o primeiro L&B do dia. Seu consumo de cigarros tinha crescido muito desde a chegada à Rússia. A rezidentura de Londres os comprava em pacotes de uma loja em Bayswater e os enviava por malote ao Centro de Moscou. Seu consumo de Black Label, que ela comprava com grande desconto na cooperativa militar do SVR, também tinha aumentado. Era só o clima do inverno, garantiu a si mesma. A melancolia passaria quando o verão chegasse.
Em seu quarto, Rebecca retirou do armário um terninho escuro e uma blusa branca, e os colocou na cama desarrumada. Como os cigarros L&B, os lençóis vinham de Londres. Involuntariamente, ela tinha caído nos velhos hábitos de seu pai. Ele nunca se ajustou de verdade à vida em Moscou. Ouvia as notícias de casa na BBC Internacional, seguia os resultados do críquete no Times, passava geleia inglesa na torrada e
mostarda inglesa nas salsichas e bebia Red Label, quase sempre até desmaiar. Quando criança, Rebecca testemunhara os porres homéricos de seu pai durante suas visitas clandestinas à Rússia. Ela o amava mesmo assim. Até hoje. Era o rosto dele que ela via quando examinava sua própria aparência no espelho do banheiro. O rosto de uma traidora. O rosto de uma espiã.
Vestida, Rebecca se empacotou num sobretudo e cachecol de lã, e desceu de elevador até o lobby. O motorista de sua Mercedes sedan a aguardava na rua Sadovnicheskaya. Ela ficou surpresa ao encontrar Leonid Ryzhkov, seu superior imediato no Centro de Moscou, no banco de trás.
Ela se abaixou para entrar e fechou a porta.
— Algum problema?
— Depende.
O motorista fez um retorno fechado e acelerou rapidamente. O Centro de Moscou ficava na direção oposta.
— Aonde estamos indo? — perguntou Rebecca.
— O chefe quer dar uma palavrinha.
— O diretor?
— Não — respondeu Ryzhkov. — O chefe.
53
O KREMLIN
Mal se via a estrela vermelha em cima da Torre Borovitskaya, entrada comercial do Kremlin, sob a neve que caía. O motorista parou num pátio em frente ao Grande Palácio Presidencial, e Rebecca e Leonid Ryzhkov correram para dentro. O presidente os esperava lá em cima, atrás das portas douradas de seu escritório. Levantando-se, ele saiu de sua mesa com seu caminhar característico, braço direito esticado ao lado e esquerdo balançando mecanicamente. Seu terno azul lhe caía com perfeição, e algumas mechas de cabelo louro-acinzentado estavam penteadas cuidadosamente por cima de sua careca. Seu rosto, inchado, liso e bronzeado da viagem anual de esqui a Courchevel, mal parecia humano.
Os olhos eram muito repuxados, dando a ele uma vaga aparência de ser da Ásia Central.
Rebecca esperava uma recepção calorosa — não encontrava o presidente desde a coletiva de imprensa do Kremlin anunciando sua chegada a Moscou —, mas ele só lhe ofereceu um aperto de mão profissional antes de gesticular com indiferença para os sofás. Mordomos entraram, chá foi servido. Então, sem preâmbulo, a autoridade máxima da Rússia entregou a Rebecca uma cópia de um telegrama do SVR. Tinha sido transmitido ao Centro de Moscou, durante a noite, por Yevgeny Teplov, da rezidentura de Londres. O assunto era uma reunião clandestina de Teplov com um agente de codinome Chamberlain. Seu nome real era Charles Bennett. Rebecca, ainda no MI6, escolhera-o como alvo de comprometimento sexual e recrutamento.
O russo dela tinha melhorado muitíssimo desde sua chegada a Moscou.
Mesmo assim, ela leu o telegrama lentamente. Quando levantou o olhar, o presidente a estudava sem expressão. Era como ser contemplada por um cadáver.
— Quando você planejava nos contar? — perguntou ele, por fim.
— Contar o quê?
— Que o Príncipe Herdeiro Abdullah é, há muito tempo, um ativo da inteligência britânica.
Uma vida inteira de mentiras e traições permitiu que Rebecca escondesse seu desconforto por ser interrogada pelo homem mais poderoso do mundo.
— Enquanto eu estava no MI6 — disse ela —, não fiquei sabendo da relação entre Vauxhall Cross e o Príncipe Abdullah.
— Você estava a um passo de se tornar diretora-geral do MI6. Como podia não saber?
— É chamado de Serviço Secreto de Inteligência por um motivo. Eu não tinha necessidade de saber. — Rebecca devolveu o telegrama. — Além do mais, não deveria ser um choque o MI6 ter ligações com um príncipe saudita que passava a maior parte do tempo em Londres.
— A não ser quando o príncipe saudita deveria estar trabalhando para mim.
— Abdullah? — O tom de Rebecca era incrédulo.
As instruções dela eram estritamente limitadas ao Reino Unido. Mesmo assim, tinha acompanhado a queda espetacular de KBM com mais do que um interesse passageiro. Nunca imaginou que o Centro de Moscou tivesse um dedo naquilo. Nem o presidente.
Como sempre, ele sentou-se de forma desleixada na cadeira. Seu queixo estava baixo, o olhar voltado ligeiramente para cima. De algum jeito, ele conseguia transmitir ao mesmo tempo tédio e ameaça. Rebecca imaginou que ele praticasse a expressão no espelho.
— Suponho — disse ela, após um momento — que a abdicação de Khalid não tenha sido voluntária.
— Não. — O presidente deu um meio sorriso. Depois, a vida sumiu mais uma vez de sua expressão. — Nós o encorajamos a abrir mão de seu direito ao trono.
— Como?
O presidente lançou um olhar para Ryzhkov, que narrou para Rebecca a operação que levara à remoção do príncipe herdeiro da linha sucessória.
Era monstruosa, não havia outra palavra. Mas, claro, ela sempre soubera que os russos não seguiam as mesmas regras dos britânicos.
— Tivemos muito trabalho para tornar Abdullah o próximo rei da Arábia Saudita — disse Ryzhkov. — Mas agora parece que fomos enganados. — Ele balançou o telegrama de Londres de forma dramática, como um advogado num tribunal. — Ou talvez esta seja a enganação.
Talvez o MI6 esteja usando de novo seus velhos truques. Talvez queiram que a gente pense que Abdullah esteja trabalhando para eles.
— Por que fariam isso?
Foi o presidente quem respondeu.
— Para desacreditá-lo, é claro. Para nos fazer desconfiar dele.
— Graham é um policial superestimado. Não é capaz de algo tão inteligente.
— Ele a desmascarou, não foi?
— Quem me encontrou foi o Allon, não Graham.
— Ah, sim. — A raiva passou brevemente pelo rosto do presidente. —
Receio que ele também esteja envolvido nisto.
— O israelense?
O presidente assentiu.
— Depois de sequestrarmos a menina, Abdullah nos contou que o sobrinho tinha buscado a ajuda de Allon.
— Teria sido sábio matar ele, em vez da filha de Khalid.
— Tentamos. Infelizmente, as coisas não saíram exatamente como planejado.
Rebecca pegou o telegrama da mão de Ryzhkov e o releu.
— Me parece que Abdullah está se vendendo para os dois lados. Ele pegou seu dinheiro e seu apoio quando precisou. Mas agora que as chaves do reino estão ao seu alcance...
— Ele decidiu ser um homem independente?
— Ou um homem de Londres — disse Rebecca.
— E se ele for mesmo um ativo britânico? O que fazemos? Deixo que ele leve bilhões de dólares meus sem retaliação? Deixo os britânicos rirem nas minhas costas? Dou o mesmo privilégio a Allon?
— Claro que não.
Ele levantou a mão.
— Então, o quê?
— Sua única escolha é remover Abdullah da linha sucessória.
— Como?
— De uma forma que prejudique ao máximo a credibilidade e o prestígio britânicos.
O sorriso do presidente pareceu quase genuíno.
— Fico aliviado de ouvi-la dizendo isso.
— Por quê?
— Porque se tivesse sugerido deixar Abdullah onde está, eu teria duvidado de sua lealdade à pátria. — Ele ainda estava sorrindo. —
Parabéns, Rebecca. Conseguiu o trabalho.
— Que trabalho?
— Livrar-se de Abdullah, é claro.
— Eu?
— Quem melhor para executar uma grande operação em Londres?
— Não é o tipo de coisa que eu faça.
— Você não é diretora do Departamento do Reino Unido do SVR?
— Vice-diretora.
— Sim, claro. — O presidente olhou de relance para Leonid Ryzhkov.
— Erro meu.
54
MOSCOU–WASHINGTON–LONDRES
A suposição do diretorado de contrainteligência do SVR era que o MI6
não conhecia o endereço da coronel Rebecca Philby em Moscou. Na realidade, não era o caso. O serviço secreto britânico tinha ficado sabendo da localização do apartamento dela por acaso, quando um dos oficiais baseados em Moscou a vira caminhando pelo Arbat com dois guarda-costas e uma mulher de idade avançada e aparência imponente. O oficial as seguiu até o cemitério de Kuntsevo, onde colocaram flores no túmulo de um dos maiores traidores da história, depois até a entrada de um prédio residencial elegante e novo na rua Sadovnicheskaya.
Sob comando de Vauxhall Cross, a Estação de Moscou tomou muito cuidado com sua descoberta. Não foi feita nenhuma tentativa de colocar Rebecca sob vigilância 24 horas — não era possível numa cidade como Moscou, em que os próprios funcionários do MI6 estavam sob vigilância quase constante —, e um esquema para comprar um apartamento no prédio dela logo foi descartado. Em vez disso, eles só a observavam ocasionalmente, sempre de longe. Confirmaram que ela morava no nono andar do prédio e se apresentava toda manhã na sede do SVR em Yasenevo. Nunca a viram resolver qualquer tarefa pessoal, jantar num restaurante ou ir a uma apresentação do Bolshoi. Não havia evidência de um homem em sua vida, nem, aliás, uma mulher. Em geral, ela parecia bastante infeliz, o que lhes agradava infinitamente.
No início de março, por motivos que a Estação de Moscou não conseguia nem imaginar, Rebecca desapareceu de vista. Quando se passaram cinco dias sem sinal dela, o chefe local informou a Vauxhall Cross — e Vauxhall Cross mandou notícias para a casa ampla em estilo Tudor com muitas alas e frontões em Hatch End, em Harrow. Lá, interpretaram, cautelosamente, o desaparecimento repentino de Rebecca como evidência de que o Centro de Moscou estava seguindo as migalhas que eles tinham espalhado.
Havia também outras evidências, como um pico alarmante de tráfego de sinais codificado emanando do teto da Embaixada Russa nos Jardins de Kensington; uma segunda reunião na floresta de Epping entre Charles
Bennett e seu controlador do SVR, Yevgeny Teplov; e a chegada em Londres, no meio de março, de certo Konstantin Dragunov, amigo pessoal e sócio comercial tanto do atual governante da Rússia quanto do futuro rei da Arábia Saudita. Tomados de forma isolada, os acontecimentos não eram prova de nada. Mas vistos pelo prisma da equipe anglo-israelense em Hatch End, pareciam os primeiros indicativos de uma grande empreitada russa.
Gabriel mais uma vez cutucara a onça com vara curta. Ele monitorava a reação russa não de Hatch End, mas de sua mesa no Boulevard Rei Saul, baseado em sua firme convicção operacional de que, se ficarem olhando, a panela com água nunca vai ferver. No fim de março, ele fez mais uma visita clandestina ao iate de Khalid no golfo de Aqaba, mesmo que só para ouvir as últimas fofocas de Riad. Sem que o mundo externo soubesse, o pai de KBM tinha dado uma guinada para pior — outro derrame, talvez um ataque cardíaco. Ele estava ligado a várias máquinas no Hospital da Guarda Nacional Saudita. Os abutres circulavam, dividindo os espólios, lutando pelas sobras. Khalid tinha pedido permissão para voltar a Riad e ficar ao lado do pai. Abdullah tinha recusado.
— Se você tiver uma carta na manga — disse Khalid —, sugiro que a utilize agora. Senão, a Arábia Saudita logo será controlada pelo camarada Abdullah e seu titereiro no Kremlin.
Uma tempestade repentina impediu o helicóptero do Tranquility de decolar e forçou Gabriel a passar a noite no mar em uma das luxuosas suítes de hóspede do navio. Quando ele voltou ao Boulevard Rei Saul na manhã seguinte, encontrou um relatório em sua mesa. Era a análise dos arquivos iranianos roubados. Os documentos provavam de forma conclusiva que o Irã estava trabalhando numa arma nuclear enquanto dizia à comunidade global o oposto. Mas não havia evidência sólida de que o país estivesse violando os termos do acordo negociado com o governo americano anterior.
Gabriel informou ao primeiro-ministro naquela tarde, no escritório dele em Jerusalém. Uma semana depois voou a Washington para deixar os americanos por dentro. Para surpresa dele, a reunião aconteceu na sala de crises da Casa Branca, com o próprio presidente. Ele não escondeu sua intenção de tirar os Estados Unidos do acordo nuclear com o Irã e ficou decepcionado por Gabriel não ter levado prova irrefutável — “um mulá cabal” — de os iranianos estarem secretamente construindo uma bomba.
Mais tarde no mesmo dia, Gabriel viajou a Langley, onde fez um briefing mais detalhado aos oficiais da Casa Pérsia, unidade de operações da CIA no Irã. Depois, jantou sozinho com Morris Payne numa sala coberta de painéis de madeira no sétimo andar. A primavera finalmente chegara na Virgínia do Norte, depois de um inverno inóspito, e as árvores ao longo do Potomac estavam com folhas novas. Em meio a verduras refogadas e carne cartilaginosa, eles trocaram segredos e boatos maliciosos, incluindo alguns sobre os homens a quem serviam. Como vários de seus predecessores na Agência, Payne não tinha muito tempo na inteligência. Antes de chegar a Langley, tinha sido soldado, empresário e deputado conservador de uma das Dakotas. Era grande, franco e grosseiro, com um rosto de estátua da ilha de Páscoa. Gabriel o considerava uma mudança revigorante em comparação ao diretor anterior da CIA, que, rotineiramente, referia-se a Jerusalém como al-Quds.
— O que acha de Abdullah? — perguntou Payne, abruptamente, durante o café.
— Nada de mais.
— Britânicos de merda.
— O que eles fizeram agora?
— Convidaram o homem para ir a Londres antes de conseguirmos trazê-lo para Washington.
Gabriel deu de ombros, indiferente.
— A Casa de Saud não pode sobreviver sem vocês. Abdullah vai prometer comprar alguns brinquedos britânicos e depois vai vir correndo.
— Não temos tanta certeza disso.
— Ou seja?
— Ficamos sabendo que o MI6 está com as garras nele.
Gabriel suprimiu um sorriso.
— Abdullah? Ativo britânico? Fala sério, Morris.
Payne assentiu com seriedade.
— Estávamos querendo saber se você estaria interessado em facilitar uma mudança na linha sucessória saudita.
— Que tipo de mudança?
— O tipo que acabe colocando a bunda de KBM no trono.
— Khalid já era.
— Khalid é o melhor que podemos esperar, e você sabe. Ele nos ama e, por algum motivo, gosta de você.
— O que fazemos com Abdullah?
— Ele teria que ser afastado.
— Afastado?
Payne olhou inexpressivo para Gabriel.
— Morris, sério.
Depois do jantar, Gabriel foi levado num comboio da CIA para o hotel Madison, no centro de Washington. Exausto, caiu num sono sem sonhos.
Foi acordado às 3h19 por uma mensagem urgente em seu BlackBerry. Ao amanhecer, dirigiu-se para a Embaixada Israelense e ficou lá até o início da tarde, quando saiu para o Aeroporto Internacional de Dulles. Ele tinha dito a seus anfitriões que planejava voltar a Tel Aviv. Em vez disso, às 5h30, embarcou num voo da British Airways para Londres.
O Brexit tinha produzido pelo menos um impacto positivo na economia britânica. Devido a uma queda de dois dígitos no valor da libra, mais de dez milhões de turistas estrangeiros entravam no Reino Unido a cada mês.
O MI5, rotineiramente, fazia triagens nos desembarques buscando elementos indesejados, como terroristas, criminosos e agentes de inteligência russos conhecidos. Por sugestão de Gabriel, a equipe anglo-israelense em Hatch End estava duplicando os esforços do MI5. Como resultado, eles sabiam que o voo 216 da British Airways, vindo de Dulles, pousou às 6h29 da manhã, e que Gabriel passou pela imigração às 7h12.
Encontraram até vários minutos de vídeo da passagem dele pela infinita fila para cidadãos não europeus. Estava sendo transmitido em looping em um dos grandes monitores de vídeo quando ele entrou no centro de operações improvisado.
Sarah Bancroft, usando jeans e um pulôver de lã, dirigiu a atenção dele ao monitor de vídeo adjacente. Nele, havia uma imagem estática de um homem magro e bem constituído atravessando um estacionamento à noite com um casaco de marinheiro e uma mala pendurada no ombro direito.
Um boné obstruía a maior parte do rosto dele.
— Reconhece? — perguntou ela.
— Não.
Mikhail Abramov apontou um controle remoto para a tela e apertou PLAY.
— E agora?
O homem se aproximou de um Toyota compacto, jogou a mala no banco de trás e sentou-se atrás do volante. As luzes se acenderam automaticamente quando o motor ligou, um pequeno erro nas táticas de espionagem. O homem rapidamente as desligou e saiu de ré da vaga.
Alguns segundos depois, o carro desapareceu das vistas da câmera.
Mikhail apertou PAUSE.
— Nada?
Gabriel fez que não.
— Assista de novo. Mas dessa vez, preste muita atenção na forma como ele anda. Você já o viu antes.
O russo colocou o vídeo uma segunda vez. Gabriel focou somente o andar atlético do homem. Mikhail tinha razão, ele já o vira. O suspeito atravessara na frente do carro de Gabriel em Genebra, alguns minutos depois de deixar sua pasta para trás no Café Remor. Mikhail estava andando alguns passos atrás dele.
— Gostaria de poder levar o crédito por vê-lo — disse ele —, mas foi Sarah.
— Onde o vídeo foi feito?
— No estacionamento do terminal de balsas Holyhead.
— Quando?
— Duas noites atrás.
Gabriel franziu a testa.
— Duas noites?
— Fizemos o melhor possível, chefe.
— Como ele chegou até Dublin?
— Num voo vindo de Budapeste.
— Sabemos como o carro chegou lá?
— Dmitri Mentov.
— O ninguém da seção consular da Embaixada Russa?
— Posso mostrar o vídeo, se quiser.
— Eu uso minha imaginação. Onde está nosso homem agora?
Mikhail usou o controle remoto e um novo vídeo apareceu na tela. Um homem saindo de um Toyota compacto em frente a um hotel à beira-mar.
— Onde está Graham?
— Vauxhall Cross.
— Fazendo o quê?
— Esperando por você.
Parte Quatro
ASSASSINATO
55
FRINTON-ON-SEA, ESSEX
No fim do século XIX, havia apenas uma igreja, algumas fazendas e um conjunto de cabanas. Então, um homem chamado Richard Powell Cooper pôs um campo de golfe ao longo do mar, e lá surgiu uma cidade de veraneio com casas elegantes ladeando amplas avenidas e diversos hotéis ao longo da esplanada. A Connaught Avenue, via principal da cidade, ficou conhecida como a Bond Street de East Anglia. O príncipe de Gales era um visitante frequente, e Winston Churchill, certa vez, alugara uma casa para o verão. A última bomba que os alemães jogaram na Grã-Bretanha em 1944 caiu em Frinton-on-Sea.
Embora a cidade já não fosse um destino da moda, seus habitantes tinham se apegado, com grau variado de sucesso, às maneiras refinadas do passado. Velhos, ricos e profundamente conservadores, não aceitavam imigrantes, a União Europeia e as políticas do Partido Trabalhista. Para sua consternação, o primeiro pub de Frinton, Lock & Barrel, tinha sido recentemente aberto na Connaught Avenue. Ainda era uma violação do regulamento da cidade, porém, vender sorvete na praia ou fazer piquenique no gramado de Greensward no topo dos penhascos. Se alguém quisesse estender um cobertor no chão e comer ao ar livre, podia descer a estrada até a vizinha Clacton, um lugar em que a maioria dos nascidos em Frinton jamais punha os pés.
Entre Greensward e o mar ficava um passeio com uma fileira de cabanas de praia cor pastel. Como era início de abril e a tarde estava fria e com vento, Nikolai Azarov andava sozinho pelo calçadão. Carregava uma mochila nas costas e usava binóculo Zeiss pendurado no pescoço. Se alguém lhe tivesse desejado uma boa tarde ou perguntado o caminho de algum lugar, teria suposto que Nikolai era exatamente o que parecia: um inglês educado de classe média, provavelmente de Londres ou de um dos condados ao redor da capital, quase certamente graduado em Oxbridge ou em outra dentre as grandes universidades do país. Um olhar mais perspicaz poderia até notar um traço vagamente eslavo em suas feições.
Mas ninguém teria suposto que ele era russo, nem que era assassino e agente especial do Centro de Moscou.
Não era a carreira que Nikolai escolhera para si. De fato, quando jovem, crescendo numa Moscou pós-soviética, sonhava em ser ator, de preferência no Ocidente. Infelizmente, a escola prestigiosa onde ele havia aprendido a falar seu inglês impecável com sotaque britânico era o Instituto de Línguas Estrangeiras de Moscou, um dos locais favoritos de recrutamento do SVR. Ao se formar, Nikolai entrou na academia do SVR, onde seus instrutores determinaram que ele tinha talento especial para certos aspectos mais sombrios do negócio, incluindo a construção de dispositivos explosivos. Ao fim de seu treinamento, ele foi mandado para o diretorado responsável por “medidas ativas”. Entre elas, o assassinato de cidadãos russos que ousavam se opor ao Kremlin ou de oficiais de inteligência que espionavam para os inimigos da Rússia. Nikolai tinha matado pessoalmente mais de uma dúzia de seus compatriotas que viviam no Ocidente — com veneno, armas químicas ou radiológicas, revólveres ou bombas —, todos sob ordem direta do próprio presidente russo.
A próxima cidade ao norte de Frinton era Walton-on-the-Naze. Nikolai parou para tomar um café no píer antes de se dirigir aos pântanos da reserva natural Hamford Water. Na ponta do promontório, ele pausou por um momento e, usando o binóculo, olhou além do mar do Norte, na direção da Holanda. Depois, foi para o sul pelas margens do canal de Walton. Isso o levou ao rio Twizzle, onde encontrou uma marina cheia de ótimos barcos a vela e iates motorizados. O russo planejava sair da Inglaterra da mesma forma que tinha entrado, de carro pela balsa. Mas, em sua experiência, era sempre bom ter um ás na manga. As operações nem sempre saíam como o planejado. Como em Genebra, pensou de repente.
Ou na França.
É a morte... Morte, morte, morte...
Duas turistas aposentadas vinham pela trilha, seguidas por um cocker spaniel cor de ferrugem. Nikolai desejou-lhes uma boa tarde, e elas responderam enquanto se afastavam. Por um instante, ele chegou a considerar a melhor forma de matar as duas. Tinha sido treinado para supor que todo encontro — especialmente num local remoto, como um pântano em Essex — era potencialmente hostil. Ao contrário de agentes comuns do SVR, Nikolai tinha autoridade para matar primeiro e se preocupar com as consequências depois. Anna também.
Ele checou o horário. Eram quase duas da tarde. Cruzou o promontório para a Torre Naze e refez seus passos até a beira-mar em Frinton. O sol
finalmente saía por um buraco entre as nuvens quando ele chegou ao Bedford House. Um dos últimos hotéis sobreviventes da era de ouro da cidade, ele ficava na ponta sul da esplanada, um mausoléu vitoriano com estandartes voando nos torreões. A mulher tinha escolhido, aquela conhecida no Ocidente como Rebecca Manning e no Centro de Moscou, como Rebecca Philby. A administração do Bedford tinha a impressão de que Nikolai era Philip Lane, roteirista de dramas criminais televisivos que tinha ido a Essex em busca de inspiração.
Ao entrar no hotel, ele se dirigiu ao Café Terrace, lugar que lembrava um átrio, para o chá da tarde. Phoebe, a garçonete de saia justa, levou-o a uma mesa com vista para a esplanada. Nikolai, no papel de Philip Lane, abriu um caderno Moleskine. Então, distraído, pegou seu celular do SVR.
Escondido entre os aplicativos, havia um protocolo que lhe permitia comunicar-se de forma segura com o Centro de Moscou. Mesmo assim, a composição da mensagem que ele digitou era vaga a ponto de ser incompreensível para um serviço de inteligência adversário, como o GCHQ britânico. Dizia que ele tinha acabado de completar uma operação de detecção de segurança e não via evidências de estar sendo seguido. Em sua opinião, era seguro inserir o próximo membro da equipe. Na chegada, ela deveria ir a Frinton para pegar a arma do assassinato, que Nikolai contrabandeara para dentro do país. E, depois de completar sua missão, ele cuidaria para que ela saísse em segurança da Inglaterra. Nesta operação, pelo menos, ele era pouco mais que um garoto de entregas e motorista superestimado. Ainda assim, estava ansioso para vê-la de novo. Ela era sempre melhor quando estavam em campo.
Phoebe colocou um bule de chá Earl Grey na mesa, junto com um prato de sanduíches delicados.
— Está trabalhando?
— Sempre — falou Nikolai, arrastado.
— Em que tipo de história?
— Não decidi.
— Alguém morre?
— Várias pessoas, na verdade.
Naquele momento, um Jaguar F-Type conversível vermelho vivo encostou na entrada do hotel. O motorista era um homem bonito de talvez 50 anos, louro, de pele muito bronzeada. Sua companheira, uma mulher de
cabelos pretos, registrava a chegada deles num smartphone, com o braço esticado. Pareciam estar vestidos para uma ocasião especial.
— Os Edgerton — explicou Phoebe.
— Perdão?
— Tom e Mary Edgerton. Recém-casados. Aparentemente, foi coisa de momento. — Um carregador tirou duas bagagens do porta-malas do carro enquanto a mulher tirava fotos do mar. — Ela é linda, não?
— Muito — concordou Nikolai.
— Acho que deve ser americana.
— Não vamos culpá-la por isso.
Nikolai viu o casal entrar no lobby, onde o gerente deu uma taça de champanhe a cada um. Ela, examinando o interior sóbrio do hotel, encontrou sem querer o olhar de Nikolai e sorriu. O homem segurou-a possessivamente pelo braço e a conduziu ao elevador.
— Ela definitivamente é americana — disse Phoebe.
— De fato — concordou Nikolai. — E o marido dela é ciumento.
A suíte de núpcias ficava no terceiro andar. Keller passou o cartão na leitora, abriu a porta e a segurou para Sarah entrar. As malas deles estavam nos suportes ao pé da cama. Keller colocou o aviso NÃO PERTURBE na maçaneta e trancou a porta com a barra de segurança.
— Foi ele que você viu no Café Remor em Genebra?
Sarah assentiu uma vez.
Keller mandou uma breve mensagem em seu BlackBerry à equipe em Hatch End. Então, enfiou a mão no paletó e tirou sua Walther PPK do coldre de ombro.
— Já usou uma dessas?
— Uma Walther, não.
— Já atirou em alguém?
— Numa garota russa, na verdade.
— Que sortuda. Onde?
— No quadril e no ombro.
— Eu quis dizer...
— Foi num banco em Zurique.
Keller puxou o ferrolho da Walther, carregando a primeira bala. Então, ativou a trava de segurança e entregou a arma a Sarah.
— Agora, está totalmente carregada. Só tem sete balas. Quando quiser disparar, é só soltar a trava e puxar o gatilho.
— E você?
— Vou me virar.
Sarah praticou soltar e ativar a trava.
— O presente de casamento perfeito para uma mulher que tem tudo. —
Keller levantou sua taça de champanhe. — Seu primeiro casamento, é?
— Receio que sim.
— O meu também. — Ele caminhou até a janela e olhou para o mar cor de granito. — Vamos torcer para desafiar as probabilidades.
— Sim — concordou Sarah, colocando a Walther na bolsa. — Vamos.
56
DOWNING STREET, 10
Às 20h15, enquanto Keller e Sarah jantavam no restaurante de carnes do Bedford, a menos de seis metros de sua presa russa, a limusine Jaguar que levava Gabriel Allon e Graham Seymour passou por um portão pesadamente vigiado na saída da Horse Guards Road, e estacionou em frente ao prédio de tijolos vermelhos de cinco andares na Downing Street, 12. Antes residência do chief whip, deputado responsável por garantir que os seus pares votem de acordo com o partido líder do governo, era onde ficava a equipe de imprensa e comunicação do primeiro-ministro. O
chanceler do Tesouro residia ao lado, no número 11, e o próprio primeiro-ministro, é claro, no número 10. A famosa porta preta se abriu automaticamente quando Gabriel e Seymour se aproximaram. Observados por um gato malhado marrom e branco de aparência feroz, eles entraram rapidamente.
Geoffrey Sloane, chefe de gabinete do primeiro-ministro e oficial não eleito mais poderoso da Grã-Bretanha, estava esperando no hall de entrada. Estendeu uma das mãos na direção de Gabriel.
— Eu estava lá na manhã em que você matou o homem-bomba do Estado Islâmico no portão de segurança. Aliás, consegui ouvir os disparos do meu escritório. — Sloane soltou a mão de Gabriel e olhou para Seymour. — Infelizmente, o primeiro-ministro não tem muito tempo.
— Não vai demorar.
— Eu gostaria de estar presente.
— Sinto muito, Geoffrey, mas não é possível.
Jonathan Lancaster aguardava na sala Terracotta, no andar de cima.
Naquela tarde, mais cedo, ele tinha sobrevivido, por pouco, a uma moção de censura na Câmara dos Comuns. Mesmo assim, o corpo de imprensa de Westminster estava naquele momento escrevendo o obituário político dele.
Graças à tolice do Brexit, à qual Lancaster havia se oposto, sua carreira tinha efetivamente acabado. Se não fosse por Gabriel e Graham Seymour, que ele cumprimentou afetuosamente, podia ter acabado bem antes.
O primeiro-ministro olhou de relance para seu relógio de pulso.
— Tenho convidados para o jantar.
— Desculpe — disse Seymour —, mas receio que tenhamos uma situação séria com os russos.
— De novo, não.
Seymour assentiu com gravidade.
— E qual é a natureza dessa situação?
— Um assassino conhecido do SVR entrou no país.
— Onde ele está agora?
— Num pequeno hotel em Essex. O Bedford House.
— Eu me lembro com carinho de lá quando era mais novo — declarou Lancaster. — Imagino que o russo esteja sob vigilância.
— Total — confirmou Seymour. — Quatro observadores do MI6
fizeram check-in no hotel ao lado, o East Anglia Inn, além de dois oficiais de campo altamente experientes de Israel. O Departamento de Operações Técnicas plantou transmissores no quarto dele, áudio e vídeo. Também hackeou a rede interna de câmeras de segurança do hotel. Estamos vigiando todos os movimentos dele.
— Temos alguém dentro do Bedford?
— Christopher Keller. Aquele que...
— Eu sei quem ele é — interrompeu Lancaster. Então, perguntou: —
Sabemos qual é o alvo do russo?
— Não podemos afirmar com certeza, primeiro-ministro, mas acreditamos que os russos estejam planejando assassinar o príncipe herdeiro Abdullah durante sua visita a Londres.
Lancaster absorveu a notícia com uma calma admirável.
— Por que os russos iam querer matar o próximo rei da Arábia Saudita?
— Porque o futuro rei é agente russo. E se chegar ao trono, vai inclinar a Arábia Saudita para o Kremlin e causar danos irreparáveis aos interesses britânicos e americanos no golfo.
Lancaster olhou para Seymour, perplexo.
— Se é assim, por que diabos os russos iam querer eliminá-lo?
— Porque, provavelmente, estão com a suspeita de que Abdullah está trabalhando para nós.
— Para nós?
— O Serviço Secreto de Inteligência.
— E como chegaram a essa conclusão?
— Nós dissemos a eles.
— Como?
Seymour deu uma risada fria.
— Rebecca Manning.
Lancaster alcançou o telefone.
— Infelizmente, vou demorar um pouco, Geoffrey. Por favor, peça desculpas a nossos convidados por mim. — Ele colocou de volta no gancho e olhou para Seymour. — Estou prestando atenção. Continue.
Foi Gabriel, não o diretor-geral do Serviço Secreto de Inteligência, que explicou ao primeiro-ministro por que parecia que os russos pretendiam assassinar o futuro rei da Arábia Saudita em solo britânico. O briefing era idêntico ao que Gabriel dera a Graham Seymour várias semanas antes na casa segura de St. Luke’s Mews, embora, dessa vez, contivesse detalhes da operação de farsa de que era alvo Rebecca Manning, ex-oficial do MI6 e filha de Kim Philby. Lancaster ouviu em silêncio, a mandíbula tensa.
Antes da intervenção da Rússia na política norte-americana, o país tinha se metido na Grã-Bretanha, com o próprio primeiro-ministro como vítima.
Também havia ampla evidência sugerindo que o Kremlin tinha, secretamente, apoiado o Brexit, que jogara a Inglaterra no caos e arruinara a carreira dele. Se alguém queria punir os russos tanto quanto Gabriel, esse alguém era o primeiro-ministro Jonathan Lancaster.
— E você tem certeza de que esse Bennett está trabalhando para os russos?
Gabriel deferiu a Seymour, que explicou que o agente tinha sido visto duas vezes encontrando-se com seu controlador do SVR, Yevgeny Teplov, na floresta de Epping.
— Outro escândalo de espionagem — disse Lancaster. — É justamente o que o país precisa.
— Sempre soubemos que haveria outros, primeiro-ministro. Rebecca estava na posição perfeita para encontrar oficiais vulneráveis à abordagem russa.
— Como Bennett escapou da detecção até agora?
— Ficou dormente depois da captura de Rebecca. Nós o investigamos muito, mas...
— Você deixou de notar outro espião russo debaixo do seu nariz.
— Não, primeiro-ministro. Eu mantive um espião russo no lugar para usá-lo depois e destruir a mulher que destruiu meu serviço.
— Rebecca Manning.
Seymour fez que sim.
— Explique.
— Se prendermos os membros de uma equipe de assassinos do SVR na véspera de sua reunião com Abdullah, os russos vão sofrer enormes prejuízos internacionais, e Rebecca vai ficar sob suspeita de ser a fonte do vazamento.
— Os russos vão achar que ela é agente tripla. É isso que está sugerindo?
— Exato.
O primeiro-ministro ficou pensativo.
— Você disse se prendermos a equipe de assassinos russa. Que outra opção temos?
— Podemos deixar o plano seguir.
— Se fizermos isso, os russos...
— Vão matar seu próprio ativo, o príncipe herdeiro Abdullah, futuro rei da Arábia Saudita. E, com um pouco de sorte — completou Seymour —, talvez matem Rebecca também.
Lancaster olhou para Gabriel.
— Certamente, é ideia sua.
— Que resposta o senhor preferiria?
Lancaster franziu o cenho.
— O que acontece se Abdullah for...
— Removido da linha sucessória?
— Sim.
— O pai de Khalid provavelmente vai fazer com que seu filho seja reinstalado como príncipe herdeiro, em especial, quando descobrir que Abdullah conspirou com os russos para sequestrar e assassinar a filha de Khalid.
— É isso que queremos? Um menino precoce com problemas para controlar seus impulsos governando a Arábia Saudita?
— Será diferente desta vez. Vai ser o KBM que todos esperávamos que fosse.
O sorriso de Lancaster foi condescendente.
— Você nunca me pareceu ingênuo. — Ele olhou para Seymour. —
Imagino que não tenha falado com Amanda.
Amanda Wallace era a contraparte de Seymour no MI5. Com sua expressão, o diretor indicou que ela estava totalmente no escuro.
— Ela nunca vai concordar com isso — disse Lancaster.
— Por isso ela jamais vai ficar sabendo.
— Quem sabe?
— Um pequeno número de oficiais israelenses e do MI6 trabalhando numa casa segura em Harrow.
— Algum deles está espionando para os russos? — Lancaster se voltou a Gabriel. — Sabe o que vai acontecer se um chefe de Estado de facto for assassinado em solo britânico? Nossa reputação será destruída.
— Não se a culpa for dos russos.
— Os russos — respondeu Lancaster, incisivamente — vão negar ou colocar a culpa em nós.
— Não vão conseguir.
Lancaster duvidava.
— Como eles planejam matá-lo?
— Não sabemos.
— Onde vai acontecer?
— Não...
— Têm ideia — completou Lancaster.
Gabriel esperou que o calor da discussão se dissipasse.
— Temos um dos agentes russos sob vigilância. Quando ele entrar em contato com outro membro da equipe...
— E se não entrar?
Gabriel deixou um momento passar.
— Hoje é terça-feira.
— Não preciso de um espião para saber que dia é. Para isso, tenho o Geoffrey.
— Sua reunião com Abdullah é só na quinta. Deixe que a gente ouça e assista por 36 horas.
— Trinta e seis horas está fora de questão. — Lancaster analisou seu relógio de pulso. — Mas posso dar 24. Vamos nos reunir de novo amanhã à noite. — Ele se levantou abruptamente. — Agora, se me dão licença, senhores, gostaria de terminar meu jantar.
57
OUDDORP, HOLANDA
O bangalô de férias ficava numa fenda nas dunas nos arredores do vilarejo de Ouddorp. Era branco como um bolo de casamento, com um teto de telhas vermelhas. Barreiras de acrílico protegiam o pequeno terraço do vento, que soprava sem dar trégua do mar do Norte. Sem aquecimento, com isolamento térmico leve, ele mal era habitável no inverno. De vez em quando, uma alma corajosa em busca de solidão o alugava em maio, mas em geral ficava desocupado até pelo menos meados de junho.
Portanto, Isabel Hartman, corretora imobiliária local que administrava a propriedade, ficou surpresa com o e-mail recebido em meados de março.
Aparentemente, certa Madame Bonnard, de Aix-en-Provence, desejava alugar o chalé por um período de duas semanas a partir de primeiro de abril. Ela pagou adiantado por transferência bancária. Não, disse num e-mail subsequente, não precisava de um tour da propriedade ao chegar; uma brochura impressa seria suficiente. Isabel deixou-a no balcão da cozinha.
A chave, escondeu embaixo de um vaso de flor no terraço. Não era sua prática usual, mas ela não viu mal algum. O bangalô não continha nada de valor fora uma televisão. Isabel recentemente tinha instalado internet wi-fi na tentativa de atrair mais visitantes estrangeiros — como a Madame Valerie Bonnard, de Aix-en-Provence. Isabel só podia se perguntar por que ela estava visitando a melancólica Ouddorp. Até o nome soava como algo que precisava ser removido cirurgicamente. Se Isabel tivesse a sorte de viver em Aix, nunca sairia.
Devido ao isolamento do bangalô, a corretora não conseguiu determinar exatamente quando a francesa chegara. Imaginou que um dia depois do esperado, pois foi quando viu o veículo, um Volvo sedan escuro com placa holandesa, estacionado na entrada para carros não asfaltada da propriedade. Viu a mulher também. Estava saindo do supermercado Jumbo com algumas sacolas de compras. Isabel considerou se apresentar, mas decidiu não fazer isso. Havia algo no comportamento da mulher e na expressão cautelosa em seus olhos incomumente azuis que a tornava totalmente inacessível.
Havia algo insuportavelmente triste nela. Passara por algum trauma recente, tinha certeza. Um filho morto, um casamento destruído, uma traição. Ela estava preocupada, isso era óbvio. A corretora não conseguia decidir se a mulher estava de luto ou tramando um ato de vingança.
Isabel viu a mulher no vilarejo no dia seguinte, tomando café no New Harvest Inn — e noutro dia, almoçando sozinha no Akershoek. Dois dias se passaram antes da próxima aparição, que ocorreu de novo no supermercado Jumbo. Dessa vez, o carrinho da mulher estava cheio quase até o topo, dando a entender que a nova inquilina esperava visitas.
Chegaram na manhã seguinte num segundo carro, uma Mercedes Classe E.
Isabel se surpreendeu com o fato de que os três eram homens.
Ela viu a mulher só mais uma vez, às duas da tarde do dia seguinte, aos pés do antigo farol West Head. Estava vestindo um par de botas Wellington e uma jaqueta impermeável verde-escura, e olhava na direção da Inglaterra, do outro lado do mar do Norte. Isabel pensou que nunca tinha visto uma mulher tão triste — nem tão determinada. Estava tramando um ato de vingança. Disso, Isabel Hartman tinha certeza.
A mulher parada à sombra do farol estava ciente de estar sendo observada.
Não se alarmou; era só a corretora enxerida. Esperou até a holandesa ir embora antes de se dirigir ao bangalô. Era uma caminhada de dez minutos pela praia. Um de seus guarda-costas estava do lado de fora, no terraço. O
outro estava dentro do chalé, com o oficial de comunicações. Na mesa da sala de jantar estava um notebook aberto. A mulher checou o status do voo 579 da British Airways de Veneza a Heathrow. Então, acendeu um cigarro L&B com um velho isqueiro prateado e se serviu de três dedos de uísque escocês. Era só o clima, garantiu a si mesma. A melancolia passaria quando o verão chegasse.
58
AEROPORTO DE HEATHROW, LONDRES
Os passageiros do voo de Veneza demoraram a ser liberados do avião.
Portanto, Anna teve que passar cinco minutos extras apertada contra a janela da fileira 22 da classe econômica para evitar o braço úmido e corpulento de Henry, seu vizinho invasivo de assento. Sua mala de mão estava no compartimento superior e a bolsa, embaixo do assento à sua frente. Nela, um passaporte alemão identificava Berlim como seu local de nascimento. Isso, pelo menos, era verdade.
Ela nascera na metade oriental da cidade em 1983, produto indesejado de um relacionamento secreto entre dois oficiais de inteligência. Sua mãe, Johanna Hoffmann, trabalhava para o departamento da Stasi que fornecia apoio logístico a grupos terroristas palestinos e da Europa Ocidental. Seu pai, Vadim Yurasov, era coronel da KGB baseado no fim de mundo de Dresden. Eles fugiram da Alemanha Oriental alguns dias depois da queda do Muro de Berlim e se estabeleceram em Moscou. Depois do casamento, aprovado pela KGB, Anna assumiu o nome Yurasova. Ela frequentou uma escola especial reservada para filhos dos oficiais da KGB e, depois de se formar na prestigiosa Universidade Estatal de Moscou, entrou na academia de treinamento do SVR. Um de seus colegas de classe era um aspirante a ator alto e bonito chamado Nikolai Azarov. Eles trabalharam juntos em inúmeras operações e, como os pais de Anna, eram amantes em segredo.
Dentro do terminal, Anna seguiu a procissão até o controle de passaporte e entrou na fila para cidadãos da União Europeia. O homem uniformizado na cabine mal olhou o passaporte dela.
— O propósito de sua visita?
— Turismo — respondeu Anna com o sotaque alemão de sua mãe.
— Algum plano especial?
— O máximo de teatro possível.
O passaporte foi devolvido. Anna se encaminhou ao saguão de desembarque e, dali, para a plataforma do Heathrow Express. Chegando à estação de Paddington, ela caminhou na direção norte pela Warwick Avenue até a Formosa Street e virou à esquerda. Ninguém a seguia. Ela virou de novo à esquerda em Bristol Gardens. Um Renault Clio prata-
azulado encontrava-se estacionado em frente a uma academia de ginástica.
As portas estavam destrancadas. Ela jogou a mala no compartimento traseiro e sentou-se atrás do volante. As chaves estavam no console central. Ligou o motor e se afastou do meio-fio.
Anna tinha estudado a rota com atenção, para não se distrair com um GPS. Foi para norte na Finchley Road até a A1, depois para leste na M25
Orbital Motorway até a A12. Diligentemente, examinou a estrada atrás de si procurando sinais de vigilância, mas quando a escuridão caiu, sua mente começou a vagar. Pensou sobre a noite em que fugira com seus pais de Berlim Oriental. Eles haviam feito a viagem a bordo de um avião de carga soviético fedorento. Um dos outros passageiros era um homenzinho com bochechas emaciadas e olheiras escuras. Ele trabalhava com o pai de Anna no escritório da KGB em Dresden. Era um ninguém que passava os dias posando de tradutor e recortando artigos de jornais alemães.
De alguma forma, o pequeno ninguém era o homem mais poderoso do mundo neste momento. No espaço de alguns anos, tinha causado caos na ordem mundial política e econômica do pós-guerra. A União Europeia estava aos cacos. A OTAN estava por um fio. Depois de interferir na política da Inglaterra e dos Estados Unidos, ele tinha atuado também na Arábia Saudita. Anna e Nikolai tinham o ajudado a alterar a linha sucessória da Casa de Saud. Agora, por motivos que eram obscuros para eles, estavam prestes a alterá-la de novo.
Anna nunca questionava ordens do Centro de Moscou —
especialmente, quando diziam respeito a “medidas ativas” caras ao presidente —, mas a missão a deixava nervosa. Ela não gostava de receber ordens de alguém como Rebecca Manning, ex-oficial do MI6 que mal falava russo. Também estava preocupada com um assunto mal resolvido de sua última missão.
Gabriel Allon...
Anna deveria ter matado o israelense no café em Carcassonne quando teve a chance, mas as ordens do Centro de Moscou tinham sido específicas. Queriam que ele morresse junto com o príncipe saudita e a menina. Anna não tinha vergonha de admitir que temia a vingança de Allon. Ele não era o tipo de homem que fazia ameaças em vão.
É a morte! Morte, morte, morte...
Anna deixou seus pensamento abandonarem o israelense ao se aproximar da cidade mercantil de Colchester. A única rota para Frinton-
on-Sea era a passagem na Connaught Avenue. Nikolai estava hospedado num hotel na esplanada. Ela entregou o carro a um manobrista, mas levou sua mala para o lobby.
Um casal dividia uma garrafa de Dom Perignon no bar — um homem bonito, de talvez 50 anos, louro e bronzeado, e uma mulher de cabelo escuro. Não prestaram atenção em Anna enquanto ela ia à recepção coletar a chave que tinha sido deixada em seu nome falso. Sua acomodação ficava no quarto andar, e ela entrou num recinto escuro sem bater. Tirou a roupa e, observada pelas câmeras do MI6, foi lentamente na direção da cama.
59
DOWNING STREET, 10
Pela segunda noite consecutiva, uma limusine Jaguar passou pelo portão de segurança na Horse Guards Road às 8h15. O gato malhado marrom e branco saiu correndo enquanto Gabriel e Graham Seymour seguiam apressados pela Downing Street numa chuva torrencial. Geoffrey Sloane os recebeu sem dizer nada na sala do gabinete, onde o primeiro-ministro estava sentado em sua cadeira de sempre no centro da longa mesa. Diante dele estava uma cópia da agenda final da visita do príncipe herdeiro Abdullah a Londres.
Depois que Sloane se foi e as portas se fecharam, Graham Seymour entregou a atualização prometida. No início daquela noite, uma segunda agente russa tinha chegado de automóvel ao Bedford House Hotel em Frinton-on-Sea. Depois de fazer sexo com seu colega, ela tinha tomado posse de uma pistola Stechkin 9mm, dois pentes, um silenciador e um pequeno objeto que Operações Técnicas ainda tentava identificar.
— Melhor chute? — perguntou Lancaster.
— Não quero especular.
— Onde ela está agora?
— Ainda no quarto.
— Sabemos como entrou no país?
— Ainda estamos tentando determinar.
— Há outros?
— Não sabemos o que não sabemos, primeiro-ministro.
— Poupe-me dos clichês, Graham. Só me diga o que eles vão fazer agora.
— Não conseguimos, primeiro-ministro. Ainda não.
Lancaster xingou baixinho.
— E se o carro dela tiver uma bomba como aquela que explodiu na Brompton Road há alguns anos? — Ele olhou para Gabriel. — Você se lembra dessa, não, diretor Allon?
— Já verificamos o carro dela. Do namorado também. Estão limpos.
Além do mais — disse Gabriel —, não há forma de conseguirem chegar
com uma bomba perto de Abdullah amanhã. Londres vai estar completamente isolada.
— E o comboio dele?
— Assassinar um chefe de Estado num carro em movimento é quase impossível.
— Diga isso ao arquiduque Francisco Ferdinando. Ou ao presidente Kennedy.
— Abdullah não vai estar num carro conversível, e as ruas estarão completamente vazias.
— Então, onde vai ser a tentativa?
Gabriel olhou para a agenda.
— Posso?
Lancaster a empurrou pela mesa. Tinha uma página, em tópicos.
Chegada em Heathrow às 9 horas. Reunião entre delegações britânicas e sauditas em Downing Street das 10h30 às 13 horas, seguida por um almoço profissional. O príncipe herdeiro sairia do número 10 às 15h30, e iria de comboio até sua residência particular em Belgravia para algumas horas de descanso. Sua volta a Downing Street para jantar estava marcada para as 20 horas. A saída para Heathrow estava, provisoriamente, marcada para as 22 horas.
— Se eu tivesse que adivinhar — disse Gabriel, apontando para uma das entradas —, vai acontecer aqui.
O primeiro-ministro apontou para uma outra entrada.
— E se for aqui? — Seu dedo se moveu página abaixo. — Ou aqui? —
Houve um silêncio. Então, Lancaster falou: — Prefiro não ser uma vítima colateral, se é que me entende.
— Entendo — respondeu Gabriel.
— Talvez devamos aumentar a segurança em Downing Street ainda mais do que o planejado.
— Talvez.
— Imagino que você não esteja disponível.
— Seria uma honra, primeiro-ministro. Mas acredito que a delegação saudita acharia minha presença curiosa, para dizer o mínimo.
— E Keller?
— Uma escolha bem melhor.
O olhar de Lancaster se moveu lentamente pela sala.
— De todas as decisões importantes que foram tomadas dentro destas paredes... — Ele olhou para Graham Seymour. — Reservo-me o direito de ordenar a prisão daqueles dois russos em qualquer momento amanhã.
— É claro, primeiro-ministro.
— Se qualquer coisa der errado, os culpados vão ser vocês, não eu. Não ordenei, tolerei nem tive papel algum nisto tudo. Está claro?
Seymour assentiu uma vez.
— Bom. — Lancaster fechou os olhos. — E que Deus tenha piedade de nós.
60
WALTON-ON-THE-NAZE
Christopher Keller ficou no Bedford House Hotel até as três da manhã, quando saiu escondido pela entrada de serviço dos fundos e caminhou pelo calçadão na direção norte até Walton-on-the-Naze. O carro estava em frente à loja Terry’s Antique & Secondhand, na Station Street. Keller passou duas vezes diante dele antes de entrar no banco do carona. O
motorista era um agente de apoio de campo chamado Tony. Enquanto ele se afastava do meio-fio, Keller inclinou seu banco e fechou os olhos.
Tinha passado as duas últimas noites num quarto de hotel com uma americana linda de quem tinha passado a gostar muito. Ele precisava de algumas horas de sono.
Acordou com a visão de homens de manto andando por uma rua praticamente escura. Era só a Edgware Road. Tony seguiu por ela até o Marble Arch. Atravessou o parque na West Carriage Drive e seguiu pelas ruas ainda sonolentas de Kensington até o endereço chique de Keller em Queen’s Gate Terrace.
— Bacana — comentou Tony, com inveja.
— Nove da manhã está bom?
— Acho melhor 8h30. O trânsito vai estar um inferno.
Keller saiu do carro, cruzou a calçada e desceu os degraus até a entrada inferior de sua casa de dois andares. Lá dentro, preparou a cafeteira com água Volvic e Carte Noire e assistiu ao BBC Breakfast enquanto o café passava. A visita do príncipe herdeiro Abdullah superara o Brexit como reportagem principal. Os analistas estavam esperando uma reunião amigável e muitas promessas sauditas de futuras compras de armamento.
O Serviço de Polícia Metropolitano de Londres, porém, estava preparado para um dia difícil, e esperava reunião de milhares de manifestantes na Trafalgar Square para protestar contra a prisão de ativistas pró-democracia na Arábia Saudita e o assassinato do jornalista dissidente Omar Nawwaf.
No geral, disse um policial sênior, era melhor evitar o centro de Londres.
— Não vai dar — murmurou Keller.
Ele bebeu uma primeira xícara de café enquanto assistia à cobertura e uma segunda enquanto fazia a barba. No chuveiro, viu-se,
inesperadamente, sonhando acordado com a linda americana que tinha deixado num hotel em Frinton. Tomou mais cuidado que o normal com sua arrumação e vestimenta, escolhendo um terno cinza-escuro de corte e tecido medianos, uma camisa branca e uma gravata lisa azul-marinho.
Examinando sua aparência no espelho, concluiu que tinha alcançado o efeito desejado. Parecia um oficial da Proteção Especialista da Realeza (RaSP, na sigla em inglês). Um braço do Comando de Proteção da Polícia Metropolitana, a RaSP era responsável por guardar a família real, o primeiro-ministro e dignitários estrangeiros em visita. Keller e o resto da equipe tinham um longo dia à frente.
Ele desceu para a cozinha e assistiu ao BBC Breakfast até o fim, às 8h30. Então, colocou um sobretudo respeitável e subiu os degraus até a rua, onde Tony já o esperava ao volante de um carro do MI6. Enquanto atravessavam Londres na direção leste, os pensamentos de Keller retornaram à mulher. Dessa vez, ele pegou seu BlackBerry do MI6 e discou.
— Onde você está? — perguntou.
— Acabando de sair do café da manhã.
— Alguém interessante lá?
— Alguns observadores de pássaros e um agente russo.
— Só um?
— A namorada dele saiu há alguns minutos.
— Gabriel e Graham sabem?
— O que você acha?
— Para onde ela está indo?
— Para o seu lado.
— Quem está no rastro dela?
— Mikhail e Eli.
Keller ouviu o plim do elevador do Belford e o ruído das portas.
— Onde está indo?
— Tenho planos de relaxar com um livro e uma arma, e esperar meu marido voltar.
— Lembra como usar?
— Soltar a trava e puxar o gatilho.
Keller desligou e olhou com melancolia pela janela. Tony tinha razão, o trânsito estava um inferno.
Os manifestantes já tinham tomado a Trafalgar Square. Estavam espalhados dos degraus da National Gallery à Coluna de Nelson, uma multidão com cartazes e gritos de guerra, alguns de manto e véu, outros com roupas de lã e flanela, todos revoltados que o governante de facto da Arábia Saudita estivesse prestes a ser festejado por um chefe de governo britânico.
A rua Whitehall estava fechada para o trânsito de veículos. Keller saiu do carro e, depois de mostrar seu cartão de identificação do MI6 para um policial com uma prancheta, teve permissão para seguir a pé. Sarah Bancroft finalmente saiu de seus pensamentos, para ser substituída por memórias da manhã em que ele e Gabriel tinham impedido uma tentativa do Estado Islâmico de soltar uma bomba suja no coração de Londres.
Gabriel matara o terrorista com vários tiros na nuca. Mas fora Keller quem impedira que o detonador automático fosse ativado, disparando o explosivo e dispersando uma nuvem mortal de cloreto de césio por toda a sede do poder britânico. Ele tinha sido forçado a segurar o dedão sem vida do homem-bomba no gatilho por três horas, enquanto uma equipe especializada trabalhava freneticamente para desarmar o dispositivo.
Foram, sem dúvida alguma, as três horas mais longas de sua vida.
Keller desviou do local em que ele e o terrorista morto tinham deitado juntos, e se apresentou no portão de segurança da Downing Street. Após mostrar sua identificação do MI6, mais uma vez teve permissão para seguir adiante. Ken Ramsey, líder de operações de Downing Street, aguardava-o no hall de entrada do número 10.
Ramsey entregou a Keller um rádio e uma Glock 17.
— Seu chefe está lá em cima, na Sala Branca. Quer dar uma palavra.
Keller correu pela Grande Escadaria, ladeada de retratos de primeiros-ministros anteriores. Geoffrey Sloane o esperava no corredor em frente à Sala Branca. Abriu a porta e mandou Keller entrar com um aceno de cabeça. Graham Seymour estava sentado numa das poltronas. Na outra, o primeiro-ministro Jonathan Lancaster. Sua expressão era séria e tensa.
— Keller — falou com ar ausente.
— Primeiro-ministro. — Keller olhou para Seymour. — Onde ela está?
— Na A12 em direção a Londres.
— E Abdullah?
— Me diga você.
Keller inseriu o fone e ouviu o falatório na frequência segura da RaSP.
— Pontual para uma chegada às 10h15.
— Então, talvez — disse Lancaster —, você devesse estar lá embaixo com seus colegas.
— Isso quer dizer...
— Que vamos seguir com a reunião de cúpula como planejado? —
Lancaster se levantou e abotoou seu paletó. — Por que diabos não seguiríamos?
61
NOTTING HILL, LONDRES
Às 10h13, enquanto um comboio de limusines Mercedes fluía pelo portão aberto de Downing Street, um único carro, um Opel compacto popular parou em frente a St. Luke’s Mews, 7, em Notting Hill. O homem no banco de trás, príncipe Khalid bin Mohammed Abdulaziz Al Saud, estava de péssimo humor. Como seu tio, ele tinha chegado naquela manhã no Aeroporto de Heathrow — não de jatinho particular, seu meio de transporte habitual para viagens, mas num voo comercial vindo do Cairo, uma experiência que ele demoraria a esquecer. O carro era a gota d’água.
Khalid encontrou o olhar do motorista no retrovisor.
— Você não vai abrir a porta para mim?
— É só puxar a maçaneta, querido. Funciona toda vez.
O príncipe saiu para a rua molhada. Quando se aproximou da porta número 7, ela continuou fechada. Ele olhou para trás. O motorista, com um gesto, indicou que ele deveria anunciar sua presença batendo à porta.
Outro insulto calculado, pensou. Nunca na vida KBM batera numa porta.
Um homem com aparência de menino e um rosto benevolente o deixou entrar. A casa era muito pequena e escassamente mobiliada. A sala de estar continha cadeiras baratas e uma televisão ligada na BBC. Diante dela estava Gabriel Allon, a mão no queixo, cabeça inclinada ligeiramente para o lado.
Khalid se juntou a ele e assistiu a seu tio, com roupas tradicionais sauditas, emergir da traseira de uma limusine enquanto câmeras disparavam flashes como raios. O primeiro-ministro Jonathan Lancaster estava parado bem em frente à porta do número 10, um sorriso congelado no rosto.
— Deveria ser eu chegando em Downing Street — disse Khalid. — Não ele.
— Fique feliz por não ser você.
Khalid examinou a sala com desaprovação.
— Imagino que não haja nenhuma bebida.
Gabriel apontou para uma porta.
— Sirva-se.
O príncipe foi à cozinha, outra primeira vez. Perplexo, ele gritou:
— Como funciona a chaleira?
— Coloque água e aperte o botão que liga — respondeu Gabriel. —
Isso deve resolver.
Como seu jovem sobrinho tempestuoso, o príncipe herdeiro Abdullah não ficou impressionado com a casa em que entrou naquela manhã. Embora tivesse vivido em Londres por muitos anos e transitasse em círculos sociais elevados, era sua primeira visita a Downing Street. Tinham-lhe assegurado que, por trás do hall de entrada bastante sisuda, havia uma casa de elegância extraordinária e tamanho inesperado. À primeira vista, porém, parecia difícil imaginar. Abdullah preferia seu novo palácio de bilhões de dólares em Riad — ou o Grande Palácio Presidencial no Kremlin, onde havia se encontrado secretamente em várias ocasiões com o homem com quem adquirira uma dívida enorme. Enfim, faria seu primeiro pagamento.
O primeiro-ministro insistia em mostrar a Abdullah uma poltrona de couro desgastada e de aparência modular amada por Winston Churchill.
Abdullah fez os ruídos de admiração apropriados. Por dentro, porém, estava pensando que a poltrona, como Jonathan Lancaster, precisava ser sacrificada.
Por fim, Abdullah e seus assistentes foram levados à sala do gabinete.
Tinha mesmo o tamanho de um gabinete. Ele se sentou no lugar designado, e Lancaster, à sua frente. Diante de cada um estava a pauta acordada para a primeira sessão da cúpula. O inglês, porém, depois de muitos pigarros e de folhear papéis, sugeriu que primeiro tirassem da frente “alguns assuntos desagradáveis”.
— Assuntos desagradáveis?
— Chegou a nosso conhecimento o fato de que uma dúzia ou mais de ativistas mulheres estão sendo mantidas, sem acusação formal, numa prisão saudita, sujeitas a várias formas de tortura, incluindo choque elétrico, afogamento simulado e ameaças de estupro. É imperativo que elas sejam libertadas imediatamente. Caso contrário, não poderemos proceder com nosso relacionamento de forma normal.
Abdullah conseguiu disfarçar seu assombro. Seu ministro do Exterior e seu embaixador em Londres tinham garantido que a reunião seria
amigável.
— Aquelas mulheres — disse ele, calmamente — foram presas por meu sobrinho.
— Seja como for — retorquiu Lancaster —, você é responsável pelo confinamento atual delas. Devem ser libertadas imediatamente.
O olhar de Abdullah era firme e frio.
— O Reino da Arábia Saudita não interfere em questões internas da Grã-Bretanha. Esperamos a mesma cortesia.
— O Reino da Arábia Saudita ajudou direta e indiretamente a transformar este país no principal centro mundial de ideologia salafista-jihadista. Isso também precisa acabar.
Abdullah hesitou e, então, disse:
— Talvez devêssemos passar ao próximo item da pauta.
— Acabamos de fazer isso.
Para além das zonas governamentais de Whitehall e Westminster, o trânsito do meio-dia em Londres estava o emaranhado de sempre. Anna Yurasova levou quase duas horas para dirigir de Tower Hamlets ao estacionamento Q-Park na Kinnerton Street, em Belgravia, muito mais do que ela esperava.
A rezidentura de Londres tinha clandestinamente reservado uma vaga na garagem. Anna escondeu a Stechkin 9mm embaixo do banco do carona do Renault antes de entregar o carro ao manobrista. Então, ela subiu a rampa, bolsa pendurada num ombro, e se dirigiu para a Motcomb Street, uma via de pedestres estreita com algumas das lojas e restaurantes mais exclusivos de Londres. Com sua saia, meia-calça escura e casaco de couro curto, saltos batendo alto nos paralelepípedos, atraiu olhares de admiração e inveja. Estava confiante, porém, de não estar sendo seguida.
Na Lowndes Street, virou à esquerda na direção da Eaton Square. A seção noroeste estava fechada para tráfego de veículos e pedestres. Anna se aproximou de um oficial da Polícia Metropolitana e explicou que era empregada de uma das casas na praça.
— Qual delas, por favor?
— Número 70.
— Preciso olhar sua bolsa.
Anna a tirou do ombro e a abriu. O policial a revistou com atenção antes de permitir que ela passasse. O terraço de casas ao longo do lado oeste da praça era um dos mais imponentes em Londres: três janelas panorâmicas, cinco andares, um porão e um belo pórtico sustentado por duas colunas, cada uma com o endereço da casa. Anna subiu os quatro degraus do número 70 e colocou o dedo indicador na campainha. A porta se abriu, e ela entrou.
Embora Anna Yurasova não soubesse, a equipe em Hatch End estava monitorando todos os seus passos com ajuda das câmeras de segurança.
Eli Lavon, que a seguia a pé, era só uma medida de segurança. Após vê-la entrar na casa da Eaton Square, 70, ele caminhou para oeste até Cadogan Place, e entrou no banco do carona de um Ford Fiesta. Mikhail Abramov estava ao volante.
— Parece que Gabriel tinha razão sobre o local onde os russos planejavam agir.
— Você parece surpreso — respondeu Lavon.
— Nem um pouco. A questão é: como vão chegar até ele?
Mikhail bateu os dedos nervosamente no painel. Era, pensou Lavon, um hábito muito inconveniente para um homem do mundo secreto.
— Será que dá para parar com isso?
— Parar com o quê?
Lavon exalou lentamente e ligou o rádio do carro. Era uma da tarde. Em Downing Street, disse a Radio 4, da BBC, o primeiro-ministro e o príncipe herdeiro acabavam de se sentar para almoçar.
62
EATON SQUARE, BELGRAVIA
Foi Konstantin Dragunov, amigo e parceiro comercial do presidente da Rússia, que admitiu Anna Yurasova à casa elegante na Eaton Square. Ele vestia um terno escuro típico dos oligarcas e uma camisa social branca aberta até o esterno. Seu cabelo e barba grisalhos e escassos tinham comprimento uniforme. Seu lábio inferior proeminente brilhava como a casca de uma maçã recém-polida. Anna recuou ao pensar num tradicional beijo russo de cumprimento. Defensivamente, ofereceu sua mão em vez disso.
— Senhor Dragunov — disse ela, em inglês.
— Por favor, me chame de Konstantin — respondeu ele, no mesmo idioma. Então, em russo, continuou: — Não se preocupe, uma equipe da rezidentura fez uma varredura completa na casa ontem à noite. Está limpa.
Ele ajudou Anna a tirar o casaco. O olhar dele sugeria que queria ajudá-
la a tirar também a roupa e a lingerie. Konstantin Dragunov era considerado um dos piores devassos da Rússia, uma conquista notável, dado o nível da competição.
Anna olhou o gracioso hall de entrada. Antes de sair de Moscou, ela tinha se familiarizado com o interior da casa, estudando fotografias e plantas. Não tinham feito justiça. A construção era impressionantemente bonita.
Ela pegou o casaco de volta.
— Talvez você devesse me mostrar a casa.
— Vai ser um prazer.
Dragunov a levou por um corredor até um par de portas duplas, cada uma com uma janela redonda, como escotilhas de navio. Atrás ficava uma cozinha profissional muito maior que o apartamento de Anna em Moscou.
Era óbvio, pela atitude indiferente de Dragunov, que ele não frequentava esse cômodo de sua mansão em Belgravia.
— Dei o dia de folga ao resto da equipe, como a inglesa mandou.
Duvido que Abdullah vá comer algo, mas antes de o cordão de isolamento da polícia ser colocado, recebi a entrega de uma bandeja de canapés do bufê favorito dele. Está na geladeira.
Havia duas, na verdade, lado a lado.
— O que ele vai beber?
— Depende do humor. Champanhe, vinho branco, um uísque se seu dia tiver sido difícil. Os vinhos estão na adega embaixo do balcão. As bebidas destiladas ficam no bar. — Dragunov empurrou as portas duplas como um garçom apressado. O bar ficava numa alcova à direita. — Abdullah prefere Black Label. Mantenho uma garrafa só para ele.
— Como ele toma?
— Com muito gelo. Tem uma máquina automática embaixo da pia.
— A que horas ele deve chegar?
— Entre 16h30 e 17 horas. Por motivos óbvios, não pode ficar muito.
— Onde vai recebê-lo?
— Na sala de estar.
Ficava um lance de escadas acima, no primeiro andar da mansão. Como o resto da casa, não havia nada russo. Anna imaginou a cena que aconteceria ali dentro de poucas horas.
— É essencial que você se comporte normalmente — instruiu ela. —
Só pergunte o que ele quer beber, e eu cuido do resto. Consegue fazer isso, Konstantin?
— Acho que sim. — Ele pegou-a pelo braço. — Tem mais uma coisa que você deveria ver.
— O que é?
— Surpresa.
Ele guiou Anna para um pequeno elevador com painéis de madeira e apertou o botão para ir ao andar mais alto. O enorme quarto de Dragunov
— a câmara dos horrores — dava vista para a Eaton Square.
— Não se preocupe, eu a trouxe aqui só pela vista.
— Do quê?
Ele deu um empurrãozinho nela na direção de uma das três janelas panorâmicas e apontou para o lado sul da praça.
— Sabe quem mora bem ali, no número 56?
— Mick Jagger?
— O chefe do Serviço Secreto de Inteligência. E você vai matar o ativo premiado dele bem debaixo do seu nariz.
— Que ótimo, Konstantin. Mas, se não tirar a mão da minha bunda, vou matar você também.
O assunto reservado para o almoço de trabalho na Downing Street era a guerra da Arábia Saudita contra os rebeldes houthis apoiados pelos iranianos no Iêmen. Jonathan Lancaster exigiu que Abdullah parasse com os ataques aéreos indiscriminados a civis inocentes, em especial, aqueles feitos com aeronaves de caça britânicas. Abdullah argumentou que a guerra era do sobrinho, não dele, embora tivesse deixado claro que compartilhava da visão de KBM de que os iranianos não podiam ter permissão de espalhar sua influência maligna por todo o Oriente Médio.
— Também estamos preocupados — falou Lancaster — com a influência regional crescente dos russos.
— A influência de Moscou está crescendo porque o presidente russo não permitiu que seu aliado na Síria fosse varrido pela loucura da Primavera Árabe. O resto do mundo árabe, incluindo a Arábia Saudita, não pôde deixar de notar.
— Posso dar um conselho, príncipe Abdullah? Não caia nas promessas russas. Não vai acabar bem.
Eram 15h15 quando os dois líderes saíram pela porta de número dez. A negociação comercial e o investimento informados pelo primeiro-ministro para os jornalistas reunidos era relevante, mas alguns bilhões abaixo da expectativa pré-reunião — assim como o compromisso de Abdullah de comprar armas britânicas no futuro. Sim, disse Lancaster, eles tinham discutido assuntos espinhosos envolvendo direitos humanos. Não, ele não estava satisfeito com todas as respostas do príncipe herdeiro, incluindo aquela sobre o assassinato brutal do jornalista saudita dissidente Omar Nawwaf.
— Foi — declarou Lancaster, em conclusão — uma troca honesta e frutífera entre dois velhos amigos.
Com isso, apertou a mão de Abdullah e fez um gesto na direção da limusine Mercedes que o esperava. Quando o comboio saiu de Downing Street, Christopher Keller entrou no banco de trás de uma van preta do Comando de Proteção. Em circunstâncias normais, o caminho até a residência particular de Abdullah na Eaton Square, 71 podia levar vinte minutos ou mais. Mas, em ruas vazias com escolta da Polícia Metropolitana, eles chegaram em menos de cinco.
As câmeras de segurança da praça registraram que o príncipe herdeiro Abdullah entrou em sua casa às 15h42, acompanhado por uma dezena de assistentes com vestimentas tradicionais e vários seguranças sauditas de
ternos escuros. Seis oficiais da RaSP imediatamente assumiram posições em frente à residência, ao longo da calçada. Um membro do destacamento, porém, permaneceu no banco de trás da van do Comando de Proteção, invisível à mulher parada na janela do terceiro andar da casa vizinha.
Levou o mesmo tempo, cinco minutos, para o primeiro-ministro Jonathan Lancaster se separar de seus assistentes e subir até a Sala Branca. Ao entrar, removeu uma folha oficial de anotações do número 10 do bolso interno do paletó. O bloco do qual ela tinha sido arrancada estava na mesa de centro em frente a Graham Seymour, embaixo da caneta Parker do chefe do MI6.
— Suspeito que nenhum primeiro-ministro na história tenha recebido um bilhete assim no meio de uma visita de Estado. — Lancaster o colocou na mesa de centro. — Falei a Abdullah que era sobre o Brexit. Não sei se ele acreditou.
— Achei que você deveria saber onde ela estava.
Jonathan Lancaster baixou os olhos para a nota.
— Faça um favor, Graham. Queime esse negócio. O resto do bloco também.
— Primeiro-ministro?
— Você deixou uma marca no bloco quando escreveu. — Lancaster balançou a cabeça em reprovação. — Eles não ensinam nada na escola de espiões?
63
EATON SQUARE, BELGRAVIA
As recriminações começaram no instante em que a porta se fechou. A reunião em Downing Street tinha sido um desastre absoluto. Não havia outra palavra. Desastre! Como eles podiam não saber que Lancaster pretendia encurralar Vossa Alteza Real na questão dos direitos humanos e das mulheres presas? Por que não foram informados de que ele ia levantar o assunto do apoio financeiro saudita a instituições islâmicas na Inglaterra? Por que foram pegos de surpresa? Obaid, o ministro do Exterior, colocou toda a culpa em Qahtani, embaixador em Londres, que via conspirações em todo canto. Al-Omari, chefe da corte real, ficou tão enraivecido que sugeriu cancelar o jantar e voltar imediatamente a Riad.
Foi Abdullah, de repente um estadista, que o contrariou. Não ir ao jantar, disse, só ofenderia os britânicos e o enfraqueceria em casa. Melhor terminar a visita num ponto alto, mesmo que falso.
Nesse meio-tempo, era preciso uma reação agressiva de mídia. Obaid correu para a BBC, Qahtani para a CNN. No silêncio repentino, Abdullah se recostou em sua cadeira, olhos fechados, a mão na testa. A performance era para al-Omari, o cortesão. Não havia tarefa pequena demais, humilhante demais, para este funcionário. Ele pairava sobre Abdullah noite e dia. Portanto, seria preciso lidar com ele com cuidado.
— Não está se sentindo bem, Vossa Alteza?
— Um pouco cansado, só isso.
— Talvez devesse subir para descansar.
— Acho que vou nadar um pouco primeiro.
— Devo ligar a sauna?
— Algumas coisas, eu mesmo consigo fazer. — Abdullah levantou-se lentamente. — Com exceção de um golpe palaciano ou um ataque iraniano na Arábia Saudita, não quero ser perturbado por nada até 19h30. Consegue fazer isso, Ahmed?
Abdullah desceu à sala da piscina. Uma luz azul molhada dançava num teto abobadado pintado com corpos fortes nus rodopiantes à moda de Rubens ou Michelangelo. Como ficariam chocados os devotos homens do ulemá, pensou, se o vissem agora. Ele renovara o pacto entre os
wahabistas e a Casa de Saud para ganhar apoio do clero em seu golpe contra Khalid. Mas, em seu interior, detestava os barbados tanto quanto os reformistas. Apesar da reunião inesperadamente litigiosa em Downing Street, Abdullah tinha aproveitado seu breve respiro da religiosamente sufocante Riad. Percebia quanto sentia falta da visão da pele feminina, ainda que só uma panturrilha descoberta, pálida de inverno, vista pela janela de uma limusine acelerando.
Ele entrou no vestiário, ligou a sauna e tirou a roupa. Nu, contemplou seu reflexo num espelho de corpo inteiro. A visão o deprimiu. Os poucos músculos adquiridos na puberdade fazia muito tempo haviam se transformado em gordura. Seu peitoral caía como os seios de uma velha sobre sua barriga colossal. Suas pernas, compridas e sem pelos, pareciam sofrer com a carga. Só seu cabelo o salvava da feiura inconteste. Era brilhante, grosso e apenas levemente grisalho.
Ele entrou na piscina e, como um peixe-boi, nadou várias voltas.
Depois, mais uma vez diante do espelho, pensou detectar uma leve melhoria em seu tônus muscular. No armário havia uma muda de roupas: calças de lã, um blazer, uma camisa social listrada, roupas de baixo, mocassins, um cinto. Depois de passar desodorante nas axilas e um pente no cabelo, ele se vestiu.
A porta de vidro pesada da sauna estava opaca com o vapor. Ninguém, nem mesmo o grudento al-Omari, ousaria olhar lá dentro. Abdullah trancou a porta exterior do vestiário antes de abrir o que antes fora um armário para roupões e toalhas de piscina. Tornara-se uma espécie de vestíbulo. Dentro, havia outra porta. Na parede, um teclado. Abdullah digitou o código de quatro dígitos. A tranca se abriu com um baque suave.
64
EATON SQUARE, BELGRAVIA
A porta contígua do outro lado da parede já estava aberta. À meia-luz da passagem, estava Konstantin Dragunov. Ele mirou Abdullah por um longo tempo. Não havia nada deferente em seu olhar direto. O saudita entendia que o russo tinha direito a sua insolência. Se não fosse por Dragunov e seus amigos no Kremlin, Khalid ainda seria o próximo na linha sucessória do trono, e Abdullah, só mais um príncipe falido de meia-idade do lado errado da árvore genealógica.
Por fim, Dragunov abaixou levemente a cabeça. O gesto não era nada genuíno.
— Vossa Alteza Real.
— Konstantin. Que bom vê-lo novamente.
Abdullah aceitou a mão esticada. Fazia vários meses desde o último encontro dos dois. Naquela ocasião, o monarca tinha informado ao russo que seu sobrinho Khalid contratara os serviços de Gabriel Allon, chefe da inteligência israelense, para encontrar sua filha sequestrada.
O russo soltou a mão de seu interlocutor.
— Vi a coletiva conjunta com Lancaster. Devo dizer, pareceu muito tensa.
— E foi. A reunião que a precedeu também.
— Fico surpreso. — Dragunov olhou seu grande relógio de pulso de ouro. — Quanto tempo pode ficar?
— Meia hora. Nem um minuto a mais.
— Vamos subir?
— E os repórteres e fotógrafos na praça?
— As venezianas e cortinas estão fechadas.
— E sua equipe?
— Só uma garota. — Dragunov deu um sorriso de predador. — Espere só até vê-la.
Eles subiram dois lances de escada até a grande sala de estar dupla. Era mobiliada como um clube de cavalheiros de Pall Mall e cheia de quadros de equinos, caninos e homens com perucas brancas. Uma empregada com um vestido preto curto estava colocando bandejas de canapés numa mesa
baixa. Ela tinha uns 35 anos e era bem bonita. Abdullah se perguntou onde Dragunov as encontrava.
— Algo para beber? — perguntou o russo. — Suco? Água mineral?
Chá?
— Suco.
— De quê?
— De uvas francesas e que solte bolhas quando colocado numa taça alta e esguia.
— Acho que tenho uma garrafa de Louis Roederer Cristal na adega.
Abdullah sorriu.
— Bem, vai ter que servir.
Com um aceno de cabeça, a mulher se retirou.
Abdullah se sentou e dispensou a oferta de comida de Dragunov.
— Eles me encheram de comida em Downing Street. A segunda rodada começa às oito.
— Talvez seja melhor que a primeira.
— Duvido bastante.
— Você antecipava uma recepção mais calorosa?
— Me disseram para esperar isso.
— Quem?
Abdullah sentiu-se num interrogatório.
— Os canais de sempre, Konstantin. Que diferença faz?
Um momento se passou. Então, o russo disse, em voz baixa:
— Não haveria reprimendas se você tivesse ido a Moscou em vez de Londres.
— Se minha primeira viagem ao exterior como príncipe herdeiro tivesse sido a Moscou, mandaria um sinal perigoso aos americanos e aos meus rivais na Casa de Saud. É melhor esperar até eu ser rei. Assim, ninguém vai poder me contestar.
— Seja como for, nosso amigo mútuo no Kremlin gostaria de um sinal claro de suas intenções.
Assim começa, pensou Abdullah. A pressão para cumprir sua parte do acordo. Cauteloso, ele perguntou:
— Que tipo de sinal?
— Algo que deixe absolutamente claro que você não planeja seguir sozinho depois de virar líder de uma família que vale mais de um trilhão de dólares. — O sorriso de Dragunov era forçado. — Com uma riqueza
assim, pode ficar tentado a esquecer quem o ajudou quando ninguém mais se interessava por você. Lembre, Abdullah, meu presidente investiu muito em você. Ele espera um belo retorno.
— E vai ter — garantiu Abdullah. — Depois que eu virar rei.
— Enquanto isso, ele gostaria de um gesto de boa vontade.
— O que tem em mente?
— Um acordo para investir cem bilhões de dólares do fundo de riqueza soberana da Arábia Saudita em vários projetos russos de importância fundamental para o Kremlin.
— E para você também, suspeito. — Sem receber resposta, Abdullah complementou: — Isso está me parecendo uma extorsão.
— Está?
Abdullah fingiu deliberar.
— Diga para seu presidente que vou despachar uma delegação a Moscou na semana que vem.
Dragunov juntou as mãos num gesto de alegria.
— Que ótima notícia.
O saudita, de repente, ficou sedento por álcool. Olhou por cima do ombro. Onde diabos estava a garota? Quando se virou de novo, Dragunov estava devorando um canapé de caviar. Um único ovo negro tinha se alojado como um carrapato em seu lábio inferior proeminente.
— Por que não me disse que ia tentar matá-lo?
— Matar quem?
— Allon.
O russo passou as costas da mão pela boca, desalojando o pontinho de caviar.
— A decisão foi tomada pelo Kremlin e o SVR. Não tive nada a ver com isso.
— Você deveria ter matado Khalid e a menina como concordamos e deixado Allon de fora disso.
— Era preciso dar um jeito nele.
— Mas vocês não dera um jeito nele, Konstantin. Allon sobreviveu.
Dragunov balançou a mão em desdém.
— De que você tem tanto medo?
— De Gabriel Allon.
— Não há nada a temer.
— Mesmo?
— Fomos nós que tentamos matá-lo, não você.
— Duvido que ele vá ver alguma diferença.
— Você é príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Abdullah. Logo, será rei.
Ninguém, nem Gabriel Allon, pode tocar em você agora.
Abdullah olhou para trás. Onde diabos estava a garota?
O SVR tinha treinado Anna Yurasova em todos os tipos de armamentos —
armas de fogo, facas, explosivos —, mas ela jamais havia ensaiado abrir uma garrafa de champanhe Louis Roederer sob condições de estresse operacional.
Quando a rolha finalmente pulou com um estouro, vários mililitros caros do líquido espumoso caíram no balcão. Ignorando a sujeira, Anna pegou no bolso de seu avental de empregada uma pipeta de Pasteur e uma fina ampola de vidro. O líquido claro dentro era uma das substâncias mais perigosas do mundo. O Centro de Moscou havia garantido a Anna que era inofensiva enquanto estivesse no frasco. Quando ela removesse a tampa, porém, o líquido imediatamente emitiria uma fonte invisível de radiação alfa letal. Anna deveria trabalhar rápido, mas com extremo cuidado. Ela não podia ingerir ou tocar a substância, nem inalar seus gases.
No balcão, havia uma bandeja com duas taças de champanhe de cristal.
As mãos dela tremiam ao girar a tampa de metal da ampola. Com a pipeta de Pasteur, tirou alguns mililitros do líquido e esguichou em uma das taças. Não tinha cheiro algum. O Centro de Moscou prometera que também não teria gosto.
Anna rosqueou a tampa da ampola e jogou no bolso de seu avental, com a pipeta. Então, encheu duas taças com o champanhe e, com a mão esquerda, levantou a bandeja. A contaminada estava na direita. Ela quase conseguia sentir a radiação subindo com a efervescência. Abriu uma das portas vaivém e pegou alguns guardanapos de coquetel de linho do bar. Ao se aproximar da sala de estar, ouviu o saudita falando um nome que fez seu coração dar uma pirueta. Colocou o guardanapo em frente a Abdullah e, em cima do tecido, a taça contaminada. Dragunov, ela serviu diretamente, de sua mão direita para a dele.
O oligarca levantou a taça com formalidade.
— Ao futuro — disse, e bebeu.
O saudita hesitou.
— Sabe — falou, depois de um momento —, não toco numa gota de álcool desde a noite em que voltei à Arábia Saudita para virar príncipe herdeiro.
— Ela pode pegar outra coisa, se preferir.
— Está maluco? — O saudita virou a taça inteira de champanhe num só gole. — Tem mais? Acho que não consigo aguentar o jantar em Downing Street sem.
Anna pegou de volta a taça contaminada e a devolveu à cozinha. O
saudita acabara de consumir toxina radioativa suficiente para intoxicar todo mundo na Grande Londres. Não havia medicação ou tratamento de emergência capaz de impedir a inevitável destruição de suas células e seus órgãos. Ele já estava morrendo.
Mesmo assim, Anna decidiu dar mais uma dose.
Dessa vez, não se deu ao trabalho de usar a pipeta. Derramou a toxina líquida restante diretamente na taça e adicionou champanhe. Bolhas dançaram por cima da borda. Anna imaginou um Vesúvio de radiação.
Na sala de estar, ela serviu a bebida ao saudita e, com um sorriso, saiu apressada. Voltando à cozinha, tirou o avental e colocou dentro da lata de lixo, junto com a ampola vazia e a pipeta. A inglesa tinha ordenado que Anna não deixasse itens contaminados para trás ao fugir. Era uma ordem que ela não tinha intenção de obedecer.
Cercada por uma névoa invisível de radiação, ela checou o horário no celular. 16h42. Na sala de estar do andar de cima, Vossa Alteza Real Príncipe Abdullah bin Abdulaziz Al Saud já estava morrendo. Anna, com as mãos tremendo, acendeu um cigarro e esperou que ele fosse embora.
65
EATON SQUARE, BELGRAVIA
Konstantin Dragunov saiu de sua casa às 17h22. Como o canto noroeste da praça estava fechado, ele foi obrigado a caminhar uma curta distância até Cliveden Place, onde o motorista em sua limusine Mercedes Maybach o aguardava. Segurando uma pasta e com um sobretudo dobrado no braço, ele entrou no banco de trás. O veículo acelerou para leste, seguida por um observador do Escritório numa motocicleta BMW.
A mulher emergiu sete minutos depois. No fim dos degraus, ela virou-se para a esquerda e passou pela casa em que Vossa Alteza Real Príncipe Abdullah bin Abdulaziz Al Saud deveria estar descansando antes do jantar em Downing Street às oito da noite. Os seis oficiais do Comando de Proteção em frente à residência a observaram com atenção quando ela passou. Christopher Keller, ainda abrigado na van, também, embora o interesse dele na mulher fosse de natureza bem diferente.
Ela passou pelo cordão de isolamento e, seguida por Eli Lavon, caminhou diretamente para o estacionamento Q-Park na Kinnerton Street.
Lá, aguentou uma espera de dez minutos pelo Renault Clio. Quando o carro finalmente chegou, ela se dirigiu para norte, entrando no trânsito de fim da tarde em Londres. Alguns minutos após as 18 horas, ela passou pela entrada da estação de metrô Swiss Cottage, na Finchley Road. Lavon e Mikhail Abramov estavam atrás dela no Ford Fiesta. A equipe anglo-israelense em Hatch End a seguia pelas câmeras de segurança.
Os dois líderes das equipes continuavam em locais separados. Graham Seymour, em Downing Street; Gabriel, na casa segura de Notting Hill.
Estavam conectados por uma linha telefônica segura. A ligação tinha sido iniciada por Gabriel às 15h42, momento em que o príncipe herdeiro Abdullah chegara em sua casa em Eaton Square. Não o tinham visto desde então. Também não viam nenhuma evidência que sugerisse que Konstantin Dragunov ou a agente do SVR tivessem estado na presença de Abdullah.
— Então, por que estão fugindo? — questionou Gabriel.
— Parece que decidiram abortar.
— Por que fariam isso?
— Talvez tenham notado nossa vigilância — sugeriu Seymour.
— Ou talvez Abdullah tenha dado o cano.
— Ou talvez Abdullah já esteja morto — disse Gabriel —, e as duas pessoas que o mataram estejam correndo para escapar.
Houve silêncio na linha. Finalmente, Seymour disse:
— Se Abdullah não sair da porta como marcado às 19h45, vou ligar para a delegada da Polícia Metropolitana e ordenar a prisão de Dragunov e da mulher.
— Vai ser tarde demais às 19h45. Precisamos saber se Abdullah ainda está vivo.
— Não posso exatamente pedir para o primeiro-ministro ligar para ele.
Já o envolvi demais até aqui.
— Então, acho que vamos ter que mandar outra pessoa entrar na casa para checar.
— Quem?
Gabriel desligou o telefone.
66
EATON SQUARE, BELGRAVIA
Nigel Whitcombe dirigiu de Notting Hill até Belgravia em exatamente oito minutos. Gabriel e ele ficaram no carro enquanto Khalid se aproximava do cordão de isolamento na Eaton Square. Foi Christopher Keller quem o levou até a porta da frente da casa de número 71.
A campainha atraiu Marwan al-Omari, cortesão principal. Estava com vestimentas tradicionais sauditas. Fixou um olhar fulminante em Khalid.
— O que está fazendo aqui?
— Vim ver meu tio.
— Posso garantir que seu tio não deseja vê-lo.
Al-Omari tentou fechar a porta, mas Khalid o impediu.
— Ouça, Marwan. Eu sou um Al Saud, e você é apenas um mordomo supervalorizado. Agora, leve-me ao meu tio antes que eu...
— Antes que o quê? — Al-Omari conseguiu dar um sorriso. — Ainda fazendo ameaças, Khalid? Seria de se imaginar que já tivesse aprendido a lição.
— Ainda sou filho de um rei. E você, Marwan, é bosta de camelo.
Agora, saia da minha frente.
O sorriso de Al-Omari desapareceu.
— Seu tio deixou instruções estritas para não ser perturbado até as sete e meia.
— Eu não estaria aqui se não fosse uma emergência.
Al-Omari manteve sua posição por um momento mais antes de finalmente dar um passo para o lado. Khalid entrou apressado no hall de entrada, mas o cortesão pegou o braço de Keller quando este tentou segui-lo.
— Ele, não.
Keller foi para a praça sem dizer nada enquanto o sobrinho, seguido por al-Omari, corria pelas escadas até a suíte de Abdullah. A porta exterior estava fechada. A batida anêmica de al-Omari mal se ouviu.
— Vossa Alteza Real?
Quando não houve resposta, Khalid empurrou o cortesão e bateu na porta com a palma da mão.
— Abdullah? Abdullah? Está aí?
Recebido pelo silêncio, ele agarrou a maçaneta e a balançou. A porta pesada era sólida como um navio.
Ele olhou para al-Omari.
— Saia da frente.
— O que você vai fazer?
Khalid levantou a perna direita e enfiou a sola do sapato contra a porta.
Houve o som de madeira lascando, mas ela segurou. O segundo golpe soltou a maçaneta, e o terceiro espatifou o batente da porta. Também quebrou vários ossos do pé de Khalid, ele tinha certeza.
Mancando com dor, ele entrou na magnífica suíte. A sala de estar estava desocupada, bem como o quarto. Khalid gritou o nome de Abdullah, mas continuou sem resposta.
— Ele deve estar se banhando — afligiu-se al-Omari. — Não podemos incomodá-lo de forma alguma.
A porta do banheiro também estava fechada, mas a maçaneta cedeu ao toque de Khalid. Abdullah não estava na banheira nem no chuveiro.
Também não estava se arrumando na pia. Havia uma última porta. A porta do vaso sanitário. Khalid não se deu ao trabalho de bater.
— Meu Deus — sussurrou al-Omari.
67
DOWNING STREET, 10
Graham Seymour ligou para Stella McEwan, delegada do Serviço de Polícia Metropolitano, às 18h42. Depois, durante o inevitável inquérito, muito se diria sobre a curta duração do telefonema, cinco minutos. Em nenhum ponto da conversa Seymour mencionou que estava na Sala Branca da Downing Street, 10, nem que o primeiro-ministro estava sentado ansioso ao seu lado.
— Uma equipe de assassinos do SVR? — perguntou McEwan.
— Mais uma — lamentou Seymour.
— Quem é o alvo?
— Não temos certeza. Supomos que seja alguém que entrou em conflito com o Kremlin, ou talvez um ex-oficial de inteligência russo vivendo aqui na Inglaterra com identidade falsa. Infelizmente, não posso dar muitos detalhes.
— E a equipe de assassinos?
— Identificamos três suspeitos. Uma mulher de trinta e poucos anos.
Está agora indo na direção leste na M25 num Renault Clio. — Seymour recitou a placa do carro. — Deve ser considerada armada e extremamente perigosa. Assegure-se de ter seus oficiais armados à disposição.
— Número dois?
— Está esperando pela mulher no Bedford House em Frinton. Achamos que planejam ir embora da Inglaterra hoje.
— Harwich fica logo ao lado.
— E a última balsa — completou Seymour — sai às 23 horas.
— Frinton é em Essex, o que significa que a polícia de Essex é a responsável.
— É uma questão de segurança nacional, Stella. Afirme sua autoridade.
E lide com ele com cuidado. Achamos que é ainda mais perigoso que a mulher.
— Vai levar algum tempo para colocarmos nossos agentes a postos. Se estiverem vigiando...
— Estamos.
Stella McEwan perguntou sobre o terceiro suspeito.
— Está prestes a embarcar num jato particular no Aeroporto London City — respondeu Seymour.
— Com destino a Moscou?
— Acreditamos que sim.
— Sabe o nome dele?
Seymour recitou.
— O oligarca?
— Konstantin Dragunov não é um oligarca comum, se é que isso existe.
— Não posso deter um amigo do presidente russo sem um mandado.
— Teste-o para agentes químicos e radiação, Stella. Com certeza, vai ter provas mais que suficientes para prendê-lo. Mas seja rápida.
Konstantin Dragunov não pode ter permissão de embarcar naquele avião.
— Tenho uma sensação de que você não está me contando tudo, Graham.
— Sou diretor-geral do Serviço Secreto de Inteligência. Por que você pensaria qualquer outra coisa? — Seymour cortou a ligação e olhou para Jonathan Lancaster. — Receio que as coisas vão ficar ainda mais interessantes.
— Mais? — Houve uma batida à porta. Era Geoffrey Sloane. Parecia mais pálido que nunca. — Algo errado, Geoffrey?
— Parece que o príncipe herdeiro está doente.
— Ele precisa ser levado para o hospital?
— Vossa Alteza Real deseja voltar imediatamente a Riad. Ele e sua delegação estão saindo da residência em Eaton Place agora.
Pensativo, Lancaster colocou a mão no queixo.
— Peça para o gabinete de imprensa redigir uma declaração. Assegure-se de que o tom está certo. Recuperação rápida, esperamos vê-lo no próximo G20, coisa e tal.
— Vou cuidar disso, primeiro-ministro.
Sloane saiu. Lancaster olhou para Seymour.
— A decisão dele de ir embora imediatamente foi um golpe de sorte.
— Sorte não teve nada a ver com isso.
— Como você fez isso?
— Khalid aconselhou o tio a voltar para casa para se tratar. Planeja acompanhá-lo.
— Bela dica — disse Lancaster.
O BlackBerry de Seymour apitou.
— O que foi agora?
Seymour mostrou a tela. A chamada era de Amanda Wallace, diretora-geral do MI5.
— Boa sorte — desejou Jonathan Lancaster, antes de deixar a sala em silêncio.
68
AEROPORTO LONDON CITY
Konstantin Dragunov ouviu as primeiras sirenes enquanto estava preso no trânsito da hora do rush na East India Dock Road. Instruiu Vadim, seu motorista, a ligar o rádio. O apresentador da Radio 4 parecia entediado.
O príncipe herdeiro Abdullah, da Arábia Saudita, ficou doente e não participará do jantar nesta noite em Downing Street como planejado. O
primeiro-ministro Jonathan Lancaster lhe desejou uma recuperação rápida...
— Já basta, Vadim.
O motorista desligou o rádio e virou à direita em Lower Lea Crossing.
A via os fez passar pelas docas da Companhia das Índias Orientais e pelas novas torres comerciais brilhantes de Leamouth Peninsula. O Aeroporto London City ficava a cerca de cinco quilômetros a leste, pela North Woolrich Road. Entrar no aeroporto exigia navegar por algumas rotatórias.
O trânsito fluía normalmente na primeira, mas a polícia bloqueara a segunda.
Um oficial de jaqueta verde-limão se aproximou da Maybach — com cuidado, pareceu a Dragunov — e bateu na janela de Vadim. O motorista a abaixou.
— Desculpe pela demora — disse o oficial —, mas infelizmente temos um problema de segurança.
— Que problema? — perguntou Dragunov, do banco traseiro.
— Uma ameaça de bomba. Deve ser falsa, mas não estamos deixando passageiros entrarem no terminal neste momento. Só os que voarão em aeronaves particulares têm permissão para passar.
— Pareço alguém que viaja de avião comercial?
— Nome, por favor?
— Dragunov. Konstantin Dragunov.
O oficial dirigiu Vadim à segunda rotatória. Ele imediatamente virou à esquerda no estacionamento do London Jet Centre, operadora fixa do aeroporto.
Dragunov xingou baixinho.
O estacionamento estava lotado de veículos e funcionários da Polícia Metropolitana, inclusive vários oficiais técnicos do SCO19, o Comando Especialista de Armas de Fogo. Quatro oficiais imediatamente cercaram a Maybach, armas em punho. Um quinto bateu à janela de Dragunov e o ordenou que saísse.
— O que significa isso? — indagou o russo.
O oficial do SCO19 colocou sua Heckler & Koch G36 diretamente na cabeça de Dragunov.
— Agora!
Dragunov destrancou a porta. O oficial a abriu com força e arrancou o russo do banco de trás.
— Sou cidadão da Federação Russa e amigo pessoal do presidente.
— Sinto muito por você.
— Você não tem direito de me prender.
— Não estou prendendo.
Uma tenda estranha tinha sido montada em frente ao Jet Centre. O
oficial do SCO19 tirou o telefone de Dragunov antes de empurrá-lo pela entrada. Dentro, havia quatro técnicos vestidos com trajes de proteção a radiação. Um o examinou com um pequeno scanner, passando-o pelo torso e os membros dele. Quando o técnico analisou a mão direita de Dragunov, deu um passo para trás, assustado.
— O que foi? — perguntou o oficial do SCO19.
— Deflexão de escala total.
— O que isso quer dizer?
— Quer dizer que ele está completamente radioativo. — O técnico passou o scanner pelo oficial. — E você também.
Naquele mesmo momento, Anna Yurasova já estava começando a sentir os efeitos da quantidade titânica de radiação à qual tinha sido exposta dentro da casa de Konstantin Dragunov em Belgravia. A cabeça dela doía, ela tremia e estava muito nauseada. Duas vezes, quase parou no acostamento da M25 para vomitar, mas a urgência de esvaziar o conteúdo do estômago tinha passado. Enquanto ela se aproximava da saída para uma cidade chamada Potters Bar, a sensação pareceu retornar. Só por isso, ela ficou aliviada de ver o que parecia um acidente de trânsito à sua frente.
As três faixas da direita estavam bloqueadas, e um oficial com uma lanterna de ponta vermelha estava direcionando todo o trânsito para a da esquerda. Quando Anna passou por ele, o olhar dos dois se encontraram no escuro.
O trânsito parou. Outra onda de náusea a tomou. Ela tocou a testa.
Estava pingando de suor.
De novo, a onda recuou. Anna, de repente, foi tomada por um frio intenso. Ligou o aquecedor e pegou sua bolsa no banco do carona. Levou um momento tateando até encontrar o telefone e outro para discar o número de Nikolai.
Ele atendeu na mesma hora.
— Cadê você?
Ela disse onde estava.
— Ouviu o noticiário?
Não tinha ouvido. Estava ocupada demais tentando não vomitar.
— Abdullah cancelou o jantar. Aparentemente, está um pouco indisposto.
— Eu também.
— Do que está falando?
— Devo ter me exposto.
— Você bebeu a toxina?
— Não seja idiota.
— Então, vai passar — falou Nikolai. — Igual a uma gripe.
Outra onda a tomou. Dessa vez, Anna abriu a porta e vomitou violentamente. A convulsão foi tão poderosa que borrou sua visão. Quando voltou a enxergar, viu vários homens com equipamentos táticos cercando seu carro, armas empunhadas.
Ela colocou o telefone na coxa com o viva-voz ligado.
— Nikolai?
— Não me chame por esse nome.
— Não importa mais, Nikolai.
Ela esticou o braço até embaixo do banco do carona, e colocou a mão em volta do cabo da Stechkin. Conseguiu dar um único tiro antes de as janelas do carro explodirem num furacão de disparos na sua direção.
É a morte, pensou. Morte, morte, morte...
O tiroteio durou dois ou três segundos, no máximo. Quando acabou, Mikhail Abramov abriu com força a porta do Ford Fiesta e correu pela lateral da pista até o Renault estilhaçado. A mulher estava pendurada pela porta aberta do lado do motorista, suspensa pelo cinto de segurança, uma arma na mão. Rádios policiais estalavam, passageiros dos carros ao redor gritavam aterrorizados. E, em algum lugar, pensou Mikhail, um homem gritava em russo.
Está aí, Anna? O que está havendo? Consegue me ouvir, Anna?
De repente, dois oficiais do SCO19 deram meia-volta e apontaram os fuzis HK G36 para Mikhail. De mãos levantadas, ele andou de ré lentamente e voltou ao Ford.
— Ela está morta? — perguntou Lavon.
— Com certeza. E o amigo dela no hotel em Frinton sabe.
— Como?
— Ela estava ao telefone com ele quando aconteceu.
Lavon digitou uma mensagem para Gabriel. A resposta foi instantânea.
— O que diz? — perguntou Mikhail.
— Ele acabou de ordenar que Sarah saia imediatamente do hotel. Quer que a gente vá embora de Essex o mais rápido possível.
— É mesmo? — Atrás deles, um coro de buzinas subiu na noite. O
trânsito estava paralisado. — Melhor dizer a ele que vamos ficar um tempo aqui.
69
FRINTON-ON-SEA, ESSEX
Nikolai Azarov tinha permitido que a conexão com o telefone de Anna ficasse ativa por mais tempo do que deveria — cinco minutos e doze segundos, de acordo com o cronômetro de seu próprio aparelho. Ele tinha ouvido a explosão de tiros de arma automática, o som do vidro estilhaçando, os gritos agoniados de Anna. O que se seguiu foram de fato os primeiros momentos caóticos de uma investigação de cena de crime altamente incomum. Houve uma declaração de óbito, seguida um momento depois por um grito de alerta de algo chamado deflexão de escala total, um termo com o qual Nikolai não estava familiarizado. A mesma voz instruiu os oficiais a se afastarem do veículo até ele estar seguro. Um deles, porém, ficou perto o bastante para ver o telefone de Anna no chão do carro. Também notou que havia uma chamada em progresso. Pediu permissão de um superior para pegar o aparelho, mas o superior recusou.
— Se ela tocou no telefone — gritou —, essa porcaria está expelindo radiação.
Foi ali, cinco minutos após a morte de Anna, que Nikolai terminou a ligação. Não, pensou, com raiva. Não a morte de Anna, o assassinato.
Nikolai era bem versado nas regras e táticas da Polícia Metropolitana e das várias forças regionais e locais. Oficiais comuns não carregavam armas, só oficiais com autorização para armas de fogo ou os especialistas do SCO19. Os primeiros, em geral, não levavam o tipo de fuzil automático que Nikolai tinha ouvido pelo telefone. Só oficiais do SCO19 tinham esse armamento. Sua presença na M25 sugeria que estavam esperando por Anna. A presença de uma equipe de materiais perigosos com um aparelho de detecção de radiação também. Mas como a Polícia Metropolitana sabia que Anna estaria contaminada? Obviamente, concluiu Nikolai, ela estava sendo vigiada pelos britânicos.
Mas, se fosse o caso, por que não tinham tentado prendê-lo? No momento, ele estava tomando chá em sua mesa de sempre no bar do hotel.
Tinha feito check-out do quarto à tarde. Seu carro estava esperando no meio-fio da esplanada. Sua pequena mala de mão encontrava-se aos
cuidados do porteiro. A bagagem não continha nada de valor operacional.
A Makarov 9mm de Nikolai estava descansando confortavelmente apoiada em sua lombar. No bolso da frente de sua calça ficava o frasco extra de toxina radioativa que o Centro de Moscou tinha insistido que ele levasse para a Inglaterra. Garantiram que a radiação não podia escapar do frasco.
Depois de ouvir a voz do técnico de materiais perigosos, ele já não tinha certeza disso.
Deflexão de escala total...
Ele olhou para a televisão acima do bar. Estava ligada na Sky News.
Aparentemente, Khalid bin Mohammed tinha feito uma visita à casa de seu tio em Eaton Square antes de Downing Street anunciar o cancelamento do jantar da noite. O evento era importante por outro motivo; era a primeira vez que KBM era visto em público desde a abdicação. A Sky News, de algum jeito, tinha obtido um vídeo da chegada dele. Com roupas ocidentais e a cabeça descoberta, mal se podia reconhecê-lo. O olhar de Nikolai, porém, foi atraído ao agente de segurança britânico caminhando ao lado dele. Nikolai já tinha o visto antes, estava certo disso.
Ele pegou seu telefone. A Sky News tinha postado a matéria no site, junto com o vídeo. Nikolai viu três vezes. Não estava enganado.
São recém-casados. Aparentemente, foi coisa de momento...
Ele desligou seu telefone e removeu o chip. Depois, foi para o terraço que dava vista para a esplanada. Estava escuro, tinha parado de ventar. Ele não conseguia ver sinais de vigilância, mas sabia que estava sendo observado. O carro dele também, estacionado em frente à entrada do hotel.
De repente, outro carro parou atrás. Um Jaguar F-Type conversível.
Vermelho vivo. Nikolai sorriu.
Subindo ao quarto, Sarah enfiou o Walther PPK na bolsa e foi para o corredor. Seu telefone tocou enquanto ela esperava pelo elevador.
— Cadê você? — perguntou Keller, ansioso.
Ela explicou.
— Quanto tempo leva para sair de um hotel?
— Estou tentando.
— Tente mais, Sarah. E mais rápido.
O elevador chegou. Ela colocou a mala dentro.
— Ainda aí? — perguntou Sarah.
— Ainda aqui.
— Tem planos para hoje à noite?
— Estava pensando num jantar mais tarde.
— Algum lugar especial?
— Na minha casa.
— Quer companhia?
— Adoraria.
O elevador desacelerou até parar, e as portas se abriram com um chiado. Passando pela recepção, Sarah despediu-se ruidosamente de Margaret, chefe de serviços aos hóspedes, e Evans, o concierge. No bar do hotel, viu Keller passando na tela da televisão com Khalid ao seu lado. O
assassino russo estava se levantando, como se estivesse com pressa de ir embora. Sarah considerou dar meia-volta e refazer seus passos até o elevador. Em vez disso, acelerou o ritmo. Não eram mais de vinte passos até a entrada, mas ele parou ao seu lado e pressionou algo duro na base da coluna dela. Não havia como imaginar que fosse nada além de uma arma.
Com a mão esquerda, ele agarrou o braço dela e sorriu.
— A não ser que queira passar o resto da vida numa cadeira de rodas —
disse ele, em voz baixa —, sugiro que continue andando.
Sarah apertou com força o telefone.
— Ainda aí?
— Não se preocupe — respondeu Keller. — Ainda aqui.
70
FRINTON-ON-SEA, ESSEX
Lá fora, o russo pegou o telefone da mão de Sarah e cortou a ligação. Os dois carros estavam na rua, observados por um manobrista. Ele ficou confuso com a cena que testemunhava. Apenas 48 horas antes, Sarah tinha chegado ao hotel como recém-casada. E de repente saía com outro homem.
O manobrista pegou a mala de Sarah.
— Qual carro? — perguntou.
— O da senhora Edgerton — respondeu o russo com um sotaque britânico nítido.
Sarah conseguiu disfarçar sua surpresa. Claramente, o russo estava ciente de sua presença no hotel havia algum tempo. Ele aceitou as chaves do manobrista e o instruiu a colocar a mala da “senhora Edgerton” no porta-malas do Jaguar. Sarah tentou ficar com a bolsa, mas o russo a arrancou de seu ombro e jogou no porta-malas também. Ela caiu com um baque incomumente pesado.
O sobretudo do russo estava dobrado sobre o braço direito dele. Com o esquerdo, ele fechou o porta-malas e abriu a porta do carona. Os olhos de Sarah escanearam a esplanada enquanto ela entrava. Em algum lugar lá perto havia quatro observadores do MI6, nenhum deles armado. Era imperativo que não a perdessem de vista.
O russo fechou a porta e foi por trás do carro até o lado do motorista, onde o manobrista ansiava por sua gorjeta. Nikolai deu a ele uma nota de dez libras antes de entrar atrás do volante e ligar o motor. A arma estava na mão esquerda dele, apontada para o quadril direito de Sarah. Quando se afastaram do meio-fio, ela olhou por cima do ombro e viu o manobrista correndo atrás deles.
O russo tinha esquecido sua mala.
Ele virou na Connaught Avenue e pisou fundo no acelerador. Um desfile de lojas passou pela janela de Sarah: Café 19, Allsorts Cookware, Caxton Books & Gallery. O russo continuava com o cano da arma no quadril dela.
Com a mão direita, segurava firme no volante. O olhar dele estava grudado no retrovisor.
— É melhor prestar atenção aonde está indo — disse Sarah.
— Quem são eles?
— Cidadãos britânicos inocentes tentando desfrutar de uma noite agradável numa comunidade à beira-mar.
O russo afundou a arma no quadril de Sarah.
— As duas pessoas na van atrás de nós. — O sotaque britânico tinha desaparecido. — Polícia de Essex? MI5? MI6?
— Não sei do que você está falando.
Ele colocou o cano da arma na lateral da cabeça dela.
— Estou dizendo, não sei quem são.
— E seu marido?
— Trabalha na City, em Londres.
— Onde ele está agora?
— No hotel, se perguntando onde eu estou.
— Eu o vi na televisão há alguns minutos.
— Impossível.
— Ele acompanhou Khalid à casa do tio na Eaton Square.
— Que Khalid?
Sarah não antecipou o golpe — uma coronhada, dois centímetros acima da orelha dela. A dor foi de outro mundo.
— Acabou de cometer o segundo maior erro da sua vida.
— Qual foi o primeiro?
— Amarrar uma bomba na filha de Khalid.
— Que bom que esclarecemos as coisas. — Ele desviou de um pedestre que atravessava a rua. — Para quem seu marido trabalha?
— Para o MI6.
— E você?
— Para a CIA.
Era uma inverdade, mas pequena. E faria o russo pensar duas vezes antes de matá-la.
— E as duas pessoas que estão me seguindo?
— SCO19.
— Está mentindo, senhora Edgerton.
— Se você acha...
— Se fossem do SCO19, teriam me matado no hotel.
Ele saiu da Connaught Avenue e dirigiu perigosamente rápido por uma área residencial tranquila. Depois de um momento, checou o retrovisor.
— Que pena.
— Conseguiu despistá-los?
Ele sorriu friamente.
— Não.
Nikolai acelerou pela Upper Fourth Avenue até o estacionamento da estação ferroviária de Frinton. Era um antigo prédio de tijolos, com um pórtico branco íngreme acima da entrada. Sarah se lembraria para sempre das flores — dois vasos de gerânios vermelhos e brancos pendurados em ganchos pela fachada.
Um trem deveria ter acabado de chegar, porque alguns passageiros estavam saindo para a noite agradável. Um ou dois olharam para o homem alto que saiu de um chamativo Jaguar F-Type, mas a maioria o ignorou.
Com agilidade, ele caminhou até a van Ford branca que o tinha seguido ao espaço confinado do estacionamento. Sarah gritou um alerta, mas foi inútil. O russo disparou quatro tiros pela janela do motorista e mais três pelo para-brisas.
— Caso esteja se perguntando — disse ele, quando voltou ao volante
—, guardei uma bala para você.
Da estação, ele foi para norte na Elm Tree Avenue. Parecia a Sarah que ele sabia exatamente para onde estava indo. Virou à direita na Walton Road e de novo na Coles Lane. A pista era ladeada por cercas-vivas e os levou a um pântano. O primeiro sinal de habitação humana era uma sala de segurança azul em forma de cubo na entrada de uma marina. Dentro, havia um único guarda. Apesar dos apelos de Sarah, o russo atirou nele com a última bala de sua arma. Depois, recarregou e atirou mais três vezes.
Calmamente, voltou ao Jaguar e dirigiu pela estrada de acesso à marina.
Uma parte de Sarah ficou aliviada por estar deserta. O russo tinha acabado de matar três pessoas em menos de cinco minutos. Quando estivessem no mar, não haveria mais ninguém para ser morto, exceto ela.
71
ESSEX–AEROPORTO LONDON CITY
Unidades da Polícia de Essex responderam a relatos de um tiroteio na estação ferroviária de Frinton-on-Sea às 19h26. Lá, descobriram duas vítimas. Uma tinha sido baleada quatro vezes; a outra, três. Dois homens com ar perturbado tentavam desesperadamente ressuscitá-las.
Testemunhas traumatizadas descreveram o atirador como um homem alto, bem vestido, dirigindo um Jaguar conversível vermelho vivo. Havia uma mulher no banco do passageiro. Ela tinha gritado durante todo o incidente.
Nos Estados Unidos, onde as armas de fogo são abundantes e a violência armada, epidêmica, os policiais talvez tivessem atribuído as mortes, inicialmente, a uma briga de trânsito. As autoridades em Essex, porém, não fizeram tal suposição. Com ajuda da Polícia Metropolitana —
e dos homens perturbados —, estabeleceu-se que o atirador era agente de inteligência russa. A mulher não era sua cúmplice, e sim, sua refém. A Polícia de Essex não recebeu informação sobre a origem profissional dela, só se sabia que era americana.
Apesar de uma busca frenética pelo russo e pela mulher, mais de noventa minutos se passariam antes de dois policiais ligarem para a marina localizada no fim da Coles Lane. O guarda no portão estava morto, baleado quatro vezes à queima-roupa, e o Jaguar vermelho vivo estava estacionado de qualquer jeito em frente ao escritório da marina, que tinha sido invadido e saqueado. Com ajuda do sistema de vídeo do local, a polícia determinou que o russo havia roubado um iate Bavaria 27 Sport de propriedade de um empresário local. A embarcação tinha dois motores Volvo-Penta e um tanque de combustíveis de 147 galões, que o russo encheu antes de sair para alto-mar. Com só 29 pés, o Bavaria fora construído para navegar no porto e na costa. Mas, com um marinheiro experiente ao leme, era mais do que capaz de chegar ao continente europeu em poucas horas.
Embora os dois policiais não soubessem, o guarda morto e o iate desaparecido eram só uma pequena parte de uma crise diplomática e de segurança nacional que se desdobrava rapidamente. Os elementos dessa crise incluíam uma agente russa morta na rodovia M25 e um oligarca
russo preso numa tenda no Aeroporto London City porque era radioativo demais para sair dali.
Às oito da noite, o primeiro-ministro Lancaster reuniu o COBRA, grupo sênior de administração de crises da Inglaterra. Eles se encontraram, como sempre, na sala de reunião A do gabinete. Foi uma reunião conflituosa desde o início. Amanda Wallace, diretora-geral do MI5, ficou irada de não ter sido informada da presença de uma equipe russa de assassinos em solo britânico. Graham Seymour, que tinha acabado de perder dois oficiais, não estava a fim de uma querela intestina. O MI6 descobrira sobre os agentes russos, disse, como parte de uma operação de contrainteligência cujo alvo era o SVR. Seymour havia informado o primeiro-ministro e a Polícia Metropolitana sobre os russos depois de confirmar que tinham de fato chegado à Inglaterra. Em resumo, tinha feito tudo de acordo com as regras.
Curiosamente, o registro oficial da reunião não continha uma única referência ao príncipe herdeiro Abdullah — nem à possibilidade de haver uma conexão entre seu mal-estar repentino e a equipe de assassinos russa.
Graham Seymour, por sua vez, não entregou o ouro. O primeiro-ministro, aliás, também não.
Às nove da noite, porém, Lancaster, novamente, se pôs diante das câmeras em frente ao número 10, dessa vez para informar o público britânico sobre os acontecimentos extraordinários na Grande Londres e na cidade de veraneio de Frinton-on-Sea, em Essex. Pouco do que disse era verdade, mas evitou contar mentiras diretas. A maioria era omissão. Não falou nada, por exemplo, sobre um guarda morto numa marina ao longo do rio Twizzle, um iate Bavaria 27 roubado ou uma refém americana que já tinha trabalhado para a CIA.
Lancaster também não viu motivo para mencionar que tinha dado a Gabriel Allon, chefe da inteligência israelense, ampla liberdade para encontrar a mulher desaparecida. Às 21h15, Gabriel chegou ao Aeroporto London City acompanhado de dois de seus agentes mais fiéis e de um oficial do MI6 chamado Christopher Keller. Um Gulfstream G550 o aguardava na pista. Por enquanto, sem destino.
72
AEROPORTO LONDON CITY
Um oficial da Polícia Metropolitana estava de sentinela em frente à entrada do London Jet Centre. Ele puxou a manga de seu traje de proteção volumoso quando Gabriel se aproximou.
— Tem certeza de que não quer um desses? — perguntou através da máscara protetora transparente.
Gabriel balançou a cabeça.
— Pode arruinar minha imagem.
— Melhor que a alternativa.
— Quão ruim é a situação?
— Um pouco pior que Hiroshima, mas não muito.
— Quanto tempo é seguro ficar na presença dele?
— Dez minutos não vão matar. Vinte, talvez.
Gabriel entrou. A equipe tinha sido evacuada. No saguão de embarque, um homem grisalho de terno estava sentado no fim de uma mesa retangular. Podia parecer um usuário típico de um avião particular se não fossem os quatro oficiais fortemente armados vestindo trajes de proteção num semicírculo ao seu redor. Gabriel se sentou do lado oposto da mesa, o mais longe possível do homem, e marcou o horário em seu relógio de pulso. Eram 21h22.
Dez minutos não vão matar. Vinte, talvez...
O homem estudava as próprias mãos, dobradas na mesa à sua frente.
Depois de muito tempo, ergueu o olhar. Por um instante, pareceu aliviado por alguém ter ousado entrar com roupas normais. De repente, sua expressão mudou. Era o mesmo olhar que Gabriel tinha visto no rosto de Hanifa Khoury no apartamento seguro em Berlim.
— Olá, Konstantin. Não me leve a mal, mas você está com uma cara péssima.
Gabriel olhou para os oficiais do SCO19 e, com um movimento de olhos, os instruiu a sair do salão. Um momento se passou. Então, os quatro foram embora em fila.
Konstantin Dragunov observou a demonstração de autoridade de Gabriel com alarme evidente.
— Imagino que você seja o motivo de eu estar aqui.
— Você está aqui porque é um rojão de radioatividade. — Gabriel hesitou, antes de completar: — E a mulher também.
— Onde ela está?
— Numa situação parecida com a sua. Você, porém, está num apuro muito mais sério.
— Eu não fiz nada.
— Então, por que está exalando radiação? E por que sua casa chique em Belgravia é uma zona de desastre nuclear? As equipes de materiais perigosos estão trabalhando em turnos de quinze minutos para evitar superexposição. Um técnico se recusou a entrar de novo, de tão ruim. Sua sala de estar está um pesadelo, mas a cozinha encontra-se pior ainda. O
balcão em que ela serviu o champanhe está igual a Fukushima, e a lata de lixo em que jogou o frasco e a pipeta quase quebrou os scanners. O mesmo aconteceu com a taça de champanhe vazia de Abdullah, mas a sua também não estava nada boa. — Gabriel adotou um tom de confidências. — É de se pensar.
— Sobre o quê?
— Se seu bom amigo, o czar, estava tentando matar você também.
— Por que ele faria isso?
— Porque lhe confiou vários bilhões de dólares para transformar Abdullah num fantoche do Kremlin. E só o que o czar conseguiu por esse dinheiro foi um ativo do MI6. — Gabriel sorriu. — Ou foi o que ele pensou.
— Ele não é agente britânico?
— Abdullah? — Gabriel balançou a cabeça em negação. — Não seja tolo.
O rosto de Dragunov se acendeu de raiva.
— Desgraçado.
— Não adianta me elogiar, Konnie.
— O que eu fiz para você?
— Disse para o czar que Khalid me pediu para encontrar a filha dele, e seu chefe usou a oportunidade para tentar me matar. Se eu não tivesse percebido a bomba embaixo do casaco de Reema naquela noite, estaria morto.
— Talvez devesse ter tentado salvá-la. Sua consciência estaria mais tranquila.
Gabriel se levantou lentamente, caminhou até o outro lado da mesa e, com toda a força que conseguiu reunir, enfiou o punho na cara de Konstantin Dragunov. O russo tombou no chão do salão. Gabriel ficou surpreso de ver a cabeça dele ainda presa no pescoço.
— Quem planejou, Konstantin?
Por um momento, Dragunov não foi capaz de falar. Finalmente, rosnou:
— Planejou o quê?
— O assassinato de Abdullah.
O russo não respondeu.
— Preciso lembrá-lo de sua situação atual? Você vai passar o resto da vida numa prisão britânica. Acho que vai ver que é bem menos luxuosa que Eaton Square.
— O presidente nunca vai permitir.
— Ele não vai estar em posição de ajudar. Aliás, se eu tivesse que chutar, o governo britânico vai emitir um mandado de prisão contra ele.
— E se eu der o nome do oficial do SVR que executou a operação? Que diferença faria?
— Sua cooperação não será esquecida.
— Desde quando você fala pelo governo britânico?
— Eu falo por Reema. E se não me contar o que quero saber, vou bater em você de novo.
Gabriel olhou de novo seu relógio. 21h26... Segundo a Polícia de Essex, Sarah e o assassino russo tinham partido da marina na direção norte de Frinton às 19h49. Agora, estavam vários quilômetros mar adentro. A Guarda Costeira de Sua Majestade buscava a embarcação, por enquanto, sem sucesso.
— O que você ia dizendo, Konnie?
Dragunov ainda estava deitado no chão.
— Foi a inglesa.
— Rebecca Manning?
— Ela usa o nome do pai agora.
— Você a viu?
— Tive algumas reuniões com ela.
— Onde?
— Numa pequena datcha em Yasenevo. Tinha uma placa em frente, não consigo lembrar o que dizia.
— Comitê de Pesquisa Interbáltico?
— Sim, era isso. Como você sabe?
Gabriel não respondeu.
— Em circunstâncias normais, eu o ajudaria a levantar. Mas você entende se eu não fizer isso.
O russo se arrastou até a cadeira; o lado esquerdo do rosto já estava muito inchado, e seu olho começava a se fechar. No geral, pensou Gabriel, foi uma leve melhoria em sua aparência.
— Continue falando, Konnie.
— Não era uma operação complexa, na verdade. Só precisávamos pedir para Abdullah separar alguns minutos enquanto estivesse em Londres.
— Isso era trabalho seu?
Dragunov fez que sim.
— É assim que essas coisas funcionam. É sempre um amigo.
— Ele foi pela passagem no porão?
— Pela porta da frente é que não foi, não é?
— O que você deu a ele além de uma taça de Louis Roederer?
— Ele bebeu duas, na verdade.
— Ambas contaminadas?
Dragunov confirmou.
— Qual era a substância?
— Não me disseram.
— Talvez você devesse ter perguntado.
Dragunov não respondeu.
— Por que a mulher não veio ao aeroporto com você?
— Por que não pergunta a ela?
— Porque eu a matei, Konstantin. E vou matar você se não continuar falando.
— Mentira.
Gabriel acendeu seu BlackBerry e o colocou na mesa em frente a Dragunov. Na tela, havia a fotografia de uma mulher cheia de sangue pendurada na porta da frente de um Renault Clio.
— Meu Deus.
Gabriel guardou o BlackBerry no bolso da jaqueta.
— Continue, Konnie.
— A inglesa queria que a gente saísse da Inglaterra separados. Anna ia embora hoje na balsa de Harwich para Hoek van Holland. A das 23 horas.
— Anna?
— Yurasova. O presidente a conhece desde que ela era criança.
— O agente no hotel deveria ir embora com ela?
Dragunov assentiu.
— O nome dele é Nikolai.
— Onde planejavam ir quando chegassem à Holanda?
— Se fosse seguro entrarem num avião, iriam direto para o Aeroporto de Schiphol.
— E se não fosse?
— Tem uma casa segura.
— Onde?
— Não sei. — Quando Gabriel se levantou com raiva de sua cadeira, Dragunov cobriu o rosto com as mãos. — Por favor, Allon, de novo, não.
Estou falando a verdade. A propriedade fica no sul da Holanda, em algum lugar perto da costa. Mas só sei isso.
— Tem alguém lá agora?
— Alguns gorilas e alguém para cuidar das comunicações seguras com Yasenevo.
— Por que precisam de um link seguro com o Centro de Moscou?
— Não é só um lugar para passar a noite, Allon. É um posto de comando avançado.
— Quem mais está lá, Konstantin?
O russo hesitou antes de dizer:
— A inglesa.
— Rebecca Manning?
— Philby — corrigiu o preso. — Ela usa o nome do pai agora.
73
MAR DO NORTE
Nikolai Azarov estava longe de ser um marinheiro experiente, mas seu pai tinha sido oficial de alta patente na Marinha soviética, e ele sabia uma coisa ou outra sobre barcos. Ao sair da marina, ele guiara o Bavaria 27
pelas águas rasas do litoral do canal de Walton até o mar do Norte. Uma vez longe da terra, ele virou para o leste e aumentou a velocidade para 25
nós. Era confortavelmente abaixo da velocidade máxima de cruzeiro da embarcação. Mesmo assim, o sistema de navegação de bordo antecipou a chegada para 1h15.
Era uma linha reta até o destino. Depois de estabelecer o curso, Nikolai desligou o sistema de navegação para que não fosse usado pelos britânicos para localizar sua posição. Seu telefone — aquele para o qual Anna tinha ligado pouco antes de ser morta — estava no fundo do canal. O telefone que ele tinha arrancado da mulher em frente ao hotel, também. Nikolai, porém, não estava sem meios de comunicação. O Bavaria tinha um telefone Inmarsat e uma rede sem fio. Ele desligou o sistema logo depois de sair da marina. O receptor portátil estava em seu bolso, bem longe do alcance da mulher.
A mala dela ainda estava no porta-malas do Jaguar, mas Nikolai tinha pegado a bolsa, onde encontrou alguns cosméticos, um frasco de antidepressivo, seiscentas libras em dinheiro e uma velha Walther PPK —
escolha interessante. Não havia passaporte ou carteira de motorista, nem cartão de crédito ou de débito.
O mar diante do Bavaria estava vazio. Nikolai ejetou o pente da Walther e removeu a bala da câmara. Então, colocou o iate em piloto automático e foi com a arma e o frasco de antidepressivo escada de tombadilho abaixo. Entrando no salão, viu a mulher à mesa o fuzilando com os olhos. Um vergão vermelho feio tinha surgido na bochecha dela onde Nikolai havia atingido quando ela se recusou a entrar no barco.
O rádio, sintonizado na BBC, estava com sinal fraco e intermitente. O
primeiro-ministro acabara de falar com os repórteres em frente ao número 10. O cadáver radioativo de uma agente russa tinha fechado a M25. Um oligarca russo radioativo tinha fechado o Aeroporto London City. Um
terceiro russo matara duas pessoas na estação ferroviária de Frinton-on-Sea. Dizia-se que os policiais estavam procurando desesperadamente por ele.
Nikolai desligou o rádio.
— Não mencionaram o guarda na marina — disse ele.
— Provavelmente ainda não o encontraram.
— Duvido muito.
Nikolai sentou-se em frente à mulher. Apesar do machucado, ela era muito atraente. Seria ainda mais bonita se não fosse a peruca morena ridícula.
Ele colocou o frasco de pílulas na frente dela.
— Por que está deprimida?
— Passo tempo demais com gente igual a você.
Ele lançou um olhar para o frasco.
— Talvez devesse tomar uma. Vai se sentir melhor.
Ela o olhou sem expressão.
— Que tal isto? — Ele colocou a ampola de líquido transparente na mesa.
— O que é?
— O mesmo elemento químico radioativo que Anna deu a Abdullah quando ele visitou a mansão de Konstantin Dragunov em Belgravia. E, por algum motivo — acrescentou Nikolai —, você e seus amigos deixaram aquilo acontecer.
Ela estudou o frasco.
— Talvez fosse melhor se livrar disso.
— Como? Jogando no mar do Norte? — Ele fez uma careta de repulsa fingida. — Pense nos danos ambientais.
— E os danos que está fazendo para nós agora?
— É totalmente seguro, a não ser que seja ingerido.
— O Centro de Moscou disse isso?
Nikolai guardou a ampola no bolso da calça.
— É o lugar perfeito.
Nikolai não conseguiu segurar o sorriso. Tinha que admitir, admirava a coragem da mulher.
— Há quanto tempo você está carregando isso? — perguntou ela.
— Uma semana.
— Isso explica seu brilho esverdeado peculiar. Você deve estar mais contaminado que Chernobyl.
— E agora, você também está. — Ele examinou o vergão na bochecha dela. — Dói?
— Não tanto quanto minha cabeça.
— Tire a peruca. Vou dar uma olhada.
— Obrigada, mas já fez o suficiente.
— Talvez você não tenha me ouvido. — Nikolai baixou a voz. — Eu disse para tirar.
Quando ela hesitou, ele esticou a mão pela mesa e arrancou a peruca da cabeça dela. Seu cabelo louro estava desarrumado e emplastrado de sangue seco acima da orelha direita. Mesmo assim, Nikolai percebeu que já tinha visto a mulher antes. Na noite em que ele entregara uma bomba numa pasta ao imbecil do chefe de segurança da Escola Internacional de Genebra. Ela estava numa mesa embaixo do toldo, ao lado do homem alto com cara de russo que tinha seguido Nikolai na saída do café. Um carro também tinha ido atrás dele. Nikolai não reconhecera o homem ao volante, aquele com têmporas grisalhas. Mas na noite seguinte, o Centro de Moscou conseguira confirmar a identidade dele.
Gabriel Allon...
Nikolai jogou a peruca para o lado. Sem ela, a mulher era ainda mais bonita. Ele só conseguia imaginar o tipo de trabalho que ela fazia para eles. Os israelenses usavam mulheres como isca quase tanto quanto o SVR.
— Achei que você tinha dito que era americana.
— E sou.
— Judia?
— Da Igreja Anglicana, na verdade.
— Você fez a Aliá?
— Para a Inglaterra?
Nikolai bateu nela pela terceira vez. Forte o bastante para tirar sangue do nariz dela. Forte o bastante para que ela se calasse.
— Meu nome é Nikolai — disse ele, após um momento. — E o seu?
Ela hesitou, antes de dizer:
— Allison.
— Allison do quê?
— Douglas.
— Fale sério, Allison, você consegue fazer melhor.
Ela já não parecia mais tão corajosa.
— O que está planejando fazer comigo? — perguntou.
— Eu ia matá-la e jogar seu corpo no mar. — Nikolai tocou na bochecha inchada dela. — Para seu azar, mudei de ideia.
74
ROTERDÃ
O primeiro-ministro Jonathan Lancaster deu permissão para uma única aeronave partir do Aeroporto London City naquela noite. O Gulfstream G550 pousou em Roterdã à 00h05. O Boulevard Rei Saul tinha deixado um par de Audi sedans estacionados em frente ao terminal. Keller e Mikhail foram direto para a cidade de Hellevoetsluis, lar de uma das maiores marinas do sul da Holanda. Gabriel pediu para Eli Lavon, que evitava barcos sempre que possível, escolher um segundo local.
— Você sabe o tamanho da costa holandesa?
— Tem 441 quilômetros.
Lavon levantou o olhar do telefone.
— Como é possível que você saiba isso?
— Chequei enquanto estávamos no avião.
Lavon voltou a contemplar o mapa no celular.
— Se eu estivesse no leme...
— Sim, Eli?
— Não tentaria entrar numa marina escura.
— O que faria?
— Atracaria numa praia em algum lugar.
— Onde?
Lavon estudou a imagem como se fosse a Torá.
— Onde, Eli? — perguntou Gabriel, exasperado.
— Bem aqui. — Lavon bateu na tela. — Em Renesse.
Depois de uma única ligação breve com o telefone Inmarsat, Nikolai tinha aumentado a velocidade para trinta nós. Como resultado, chegou à costa holandesa quinze minutos antes da previsão original do sistema de navegação. As luzes do barco estavam apagadas. Ele as piscou e, imediatamente, viu o facho de uma lanterna na terra.
O russo aumentou a velocidade ao máximo e esperou a batida do chão de areia. Quando chegou, o barco freou violentamente, adernando para estibordo. Ele desligou o motor e colocou a cabeça pela escada de
tombadilho. A mulher lutava para ficar de pé no chão de teca inclinado da galeria.
— Você podia ter me avisado — disse ela.
— Vamos.
Ela subiu desajeitada pela escada. Nikolai a puxou para a cabine e a empurrou na direção da popa.
— Vá em frente — ordenou ele.
— Sabe o quanto essa água está fria?
Ele apontou a Makarov para a cabeça dela.
— Entre.
Depois de remover os sapatos, ela deslizou pela prancha até o mar e conseguiu colocar o pé no chão. A água chegou à altura dos seios.
— Ande — mandou Nikolai.
— Para onde?
Ele apontou na direção dos dois homens parados na costa.
— Não se preocupe, eles são o menor dos seus problemas.
Tremendo, ela foi em direção à margem. Nikolai entrou no mar sem fazer barulho e, segurando a Makarov acima da água, foi atrás dela. O
carro, um sedan sueco com placa holandesa, estava estacionado no lote público atrás das dunas. Nikolai sentou-se com ela no banco de trás, a arma em suas costelas. Quando estavam atravessando a sonolenta cidade litorânea, um único carro se aproximou pelo lado oposto e passou por eles num borrão.
O estacionamento estava abandonado às gaivotas. Gabriel correu pela trilha de pedestres até a praia e viu um iate Bavaria 27 Sport apagado a cerca de trinta metros da margem. Correu para o mar e, com seu telefone, iluminou a areia dura e lisa ao longo da linha da água. Havia pegadas por todo lado. Três homens de sapato esportivo, uma mulher descalça. As impressões eram recentes. Ela tinha acabado de passar por ali.
Ele correu de volta para o estacionamento e entrou no Audi.
— Alguma coisa? — perguntou Lavon.
Ele contou.
— Não podem ter chegado há mais do que alguns minutos.
— Não chegaram.
— Você não acha que ela estava naquele carro, acha?
— Sim — disse Gabriel, colocando o Audi em ré. — Acho que estava.
Eles cruzaram um istmo estreito, com uma grande baía interior do lado direito e o mar do esquerdo. A justaposição dizia a Sarah que estavam indo para o norte. Por fim, uma placa de estrada apareceu na escuridão. O nome da cidade, Ouddorp, não significava nada para ela.
O carro contornou uma rotatória e acelerou por um trecho de terras cultiváveis planas como tábuas. A pista estreita em que viraram não tinha indicação. Levava a uma série de bangalôs de madeira escondidos numa cadeia de dunas cobertas por grama. Um era ladeado por cercas altas e tinha uma garagem separada com portas vaivém antiquadas. Nikolai trancou o Volvo lá dentro antes de levar Sarah à propriedade.
Era branco como um bolo de casamento, com um teto de telhas vermelhas. Barreiras de acrílico protegiam o terraço do vento. Uma mulher esperava lá sozinha, como uma espécie de animal num pote. Usava uma capa de chuva e jeans com stretch. Seus olhos eram incomumente azuis — e cansados, pensou Sarah. A noite não tinha sido gentil com a aparência da mulher.
Uma mecha solta caíra sobre um dos olhos dela. A mulher a afastou e estudou Sarah atentamente. Algo no gesto era familiar. No rosto também.
De repente, a americana percebeu de onde a conhecia.
Uma coletiva no Grande Palácio Presidencial em Moscou...
A mulher na varanda era Rebecca Manning.
75
ROTERDÃ
O carro era um Volvo, modelo do ano, cor escura. Nisso, Gabriel e Eli Lavon concordavam inteiramente. Ambos tinham visto a grade dianteira e notado um ornamento circular e uma linha diagonal distinta da esquerda para a direita. Gabriel tinha certeza de que era um sedan. Lavon, porém, estava convencido de que era uma perua.
Não havia dúvida sobre a direção em que ele estava indo: norte. Os dois se concentraram nos pequenos vilarejos ao longo da costa, enquanto Mikhail e Keller trabalhavam nas cidades maiores mais para o interior.
Somando as duas duplas, avistaram 112 Volvos. Em nenhum encontraram Sarah.
Na verdade, era uma tarefa impossível — “uma agulha num palheiro holandês”, como disse Lavon —, mas eles continuaram até as 7h15, quando os quatro se reuniram num café num bairro industrial ao sul de Roterdã. Eram os primeiros clientes da manhã. Havia um posto de gasolina ao lado e algumas concessionárias em frente. Uma, é claro, vendia Volvos.
Uma viatura holandesa ecológica passou na rua lentamente.
— Qual é o problema dele? — perguntou Mikhail.
Foi Lavon quem respondeu:
— Talvez esteja procurando os idiotas que estavam correndo pelo interior a noite toda. Ou o gênio que encalhou um Bavaria 27 perto de Renesse.
— Acha que o encontraram?
— O iate? — Lavon fez que sim. — É difícil não ver, especialmente depois de amanhecer.
— O que acontece depois?
— A polícia holandesa descobre quem é o dono do barco e de onde veio. E, logo, todos os policiais do país vão estar procurando por um assassino russo e uma americana bonita chamada Sarah Bancroft.
— Talvez seja bom — disse Mikhail.
— A não ser que Rebecca e seu amigo Nikolai decidam minimizar as perdas e matá-la.
— Talvez já tenham feito isso. — Mikhail olhou para Gabriel. — Tem certeza de que eram pegadas de mulher?
— Tenho certeza, Mikhail.
— Para que se dar ao trabalho de tirá-la do barco? Por que não aliviar a carga e fugir para Moscou?
— Imagino que queiram fazer algumas perguntas antes. Você não ia querer, no lugar deles?
— Acha que vão engrossar com ela?
— Depende.
— Do quê?
— De quem está fazendo as perguntas. — Gabriel notou que Keller, de repente, começou a mexer em seu BlackBerry. — O que está havendo?
— Parece que Konstantin Dragunov não está se sentindo bem.
— Imagine só.
— Acabou de admitir à Polícia Metropolitana que a mulher e ele envenenaram o príncipe herdeiro ontem. Lancaster vai fazer o anúncio em Downing Street às dez.
— Preciso de um favor, Christopher.
— O quê?
— Diga para Graham e Lancaster anunciarem agora.
76
DOWNING STREET, 10
Graham Seymour esperava no hall do número 10 quando Jonathan Lancaster desceu a Grande Escadaria com Geoffrey Sloane ao seu lado. O
assessor ajustava a gravata com nervosismo, como se fosse ele que estivesse prestes a enfrentar a bateria de câmeras posicionadas em frente à Downing Street. Lancaster segurava alguns cartões azuis. Levou Seymour à sala do gabinete e fechou a porta solenemente.
— Funcionou perfeitamente. Como você e Gabriel disseram.
— Com um problema, primeiro-ministro.
— “Os melhores planos dos ratos e dos homens...” — Lancaster levantou os cartões. — Acha que vai ser suficiente para impedir que os russos a matem?
— Gabriel parece achar que sim.
— Ele realmente deu um soco em Dragunov?
— Receio que sim.
— Foi um soco bom? — perguntou Lancaster, com malícia.
— Bastante.
— Espero que Konstantin não tenha ficado muito machucado.
— Neste ponto, duvido que ele se lembre.
— Está doente, é?
— Quanto antes o colocarmos num avião, melhor.
Lancaster analisou os cartões e, movendo os lábios, ensaiou a frase de abertura de seus comentários preparados. Era verdade, pensou Seymour.
Tinha funcionado perfeitamente. Ele e Gabriel tinham ganhado dos russos em seu próprio jogo. O czar matara, de forma temerária, com armas de destruição em massa. Mas dessa vez tinha sido pego no pulo. As consequências seriam graves — sanções, expulsões, talvez até expulsão do G8 — e o dano, provavelmente, seria permanente.
— Ela é muito cara de pau — disse Lancaster, de repente.
— Sarah Bancroft?
— Rebecca Manning. — O primeiro-ministro ainda estava olhando seus comentários. — Seria de se imaginar que ela ficasse segura em Moscou. — Ele baixou a voz. — Igual ao pai.
— Deixamos claro que não queríamos nada com ela. Portanto, é seguro que ela viaje para fora da Rússia.
— Talvez devamos reavaliar nossa posição em relação à senhora Philby.
Depois disso, ela merece ser trazida de volta à Inglaterra algemada. Aliás
— continuou Lancaster, balançando os cartões —, estou pensando em fazer uma pequena mudança em meus comentários preparados.
— Eu aconselharia a não fazer.
A porta se abriu e Geoffrey Sloane inclinou o corpo para dentro da sala.
— Está na hora, primeiro-ministro.
Lancaster, ator político consumado, endireitou os ombros antes de caminhar até a porta mais famosa do mundo e o brilho das luzes. Seymour seguiu Sloane até o escritório dele para assistir ao anúncio na televisão. O
primeiro-ministro parecia totalmente só no mundo. Sua voz era calma, mas afiada de raiva.
Esse ato monstruoso e depravado executado pelos serviços de inteligência da Federação Russa, sob ordem direta do presidente russo, não ficará impune...
Tinha funcionado perfeitamente, pensou Seymour. Com um problema.
77
OUDDORP, PAÍSES BAIXOS
Minutos após a chegada de Sarah à casa segura, ficou evidente que não estavam preparados para uma refém. Nikolai cortou um lenço, amarrou as mãos e os pés dela e colocou uma mordaça em sua boca. O porão do bangalô era uma câmara pequena e revestida de pedras. Sarah sentou-se encostada numa parede úmida e os joelhos embaixo do queixo. Ensopada de sua caminhada até a margem, ela logo começou a tremer incontrolavelmente. Pensou em Reema e nas muitas noites que a menina tinha passado em cativeiro antes de seu assassinato brutal. Se uma criança de 12 anos conseguia suportar a pressão, Sarah também conseguiria.
Havia uma porta no alto das escadas de pedra. Atrás, Sarah ouvia duas vozes conversando em russo. Uma era de Nikolai; a outra, de Rebecca Manning. Pelo tom, estavam tentando reconstruir a série de acontecimentos que levara à prisão de um grande amigo do presidente russo e à morte de uma agente do SVR. Nesse ponto, já tinham, sem dúvida, determinado que sua operação estava comprometida desde o início
— e que Gabriel Allon, homem responsável por desmascarar Rebecca Manning como informante russa, estava envolvido de alguma forma. Ela, no momento, lutava por sua carreira, talvez até por sua vida. Em algum momento, iria atacar Sarah.
Ela se obrigou a cair num sono intranquilo, ainda que só para cessar o tremor convulsivo do corpo. Em seus sonhos, estava deitada numa praia caribenha com Nadia al-Bakari, mas acordou com Nikolai e os dois brutamontes a olhando de cima. Eles a levantaram do chão frio e úmido como se ela fosse feita de lenço de papel, e a carregaram para o andar de cima. Uma mesa de madeira clara sem acabamento tinha sido colocada no centro da sala de estar. Eles a forçaram a se sentar numa cadeira e removeram só a mordaça, deixando suas mãos e seus pés amarrados.
Nikolai tapou sua boca com a mão e disse que ia matá-la se ela gritasse ou tentasse pedir ajuda. Nada na atitude dele sugeria que a ameaça fosse vã.
Rebecca Manning parecia não estar ciente da presença de Sarah. Com os braços dobrados, ela olhava para a televisão, ligada na BBC. O
primeiro-ministro Jonathan Lancaster acabava de acusar a Rússia de tentar
assassinar o príncipe herdeiro da Arábia Saudita durante sua visita real à Inglaterra.
Esse ato monstruoso e depravado...
Rebecca ouviu o anúncio de Lancaster por mais um momento antes de apontar um controle remoto para a tela e colocar o som no mudo. Então, virou-se e olhou furiosa para Sarah.
Por fim, perguntou:
— Quem é você?
— Allison Douglas.
— Para quem trabalha?
— Para a CIA.
Rebecca lançou um olhar para Nikolai. O golpe foi de mão aberta, mas cruel. Sarah, com medo do aviso do russo, sufocou o grito.
Rebecca Manning deu um passo à frente e colocou a ampola de líquido transparente na mesa.
— Uma gota — disse — e nem seu amigo arcanjo vai conseguir salvá-
la.
Sarah estudou em silêncio o frasco.
— Achei que isso refrescaria sua memória. Agora, me diga seu nome.
Sarah esperou até Nikolai recolher a mão antes de finalmente responder.
— É um nome de trabalho? — perguntou Rebecca.
— Não, é real.
— Sarah é um nome judeu.
— Rebecca também.
— Para quem você trabalha, Sarah Bancroft?
— Para o Museu de Arte Moderna de Nova York.
— É um trabalho de disfarce?
— Não.
— E antes disso?
— Para a CIA.
— Qual é sua conexão com Gabriel Allon?
— Trabalhei com ele em algumas operações.
— Diga uma.
— Ivan Kharkov.
— Allon sabia do plano para matar Abdullah?
— É claro.
— Como?
— Foi ideia dele.
Rebecca absorveu as palavras de Sarah como um soco na barriga. Ficou em silêncio por um momento. Então, perguntou:
— Abdullah já foi um ativo do MI6?
— Não — disse Sarah. — Ele era ativo russo. E você, Rebecca Manning, acabou de matá-lo.
Eram 8h30 quando o BlackBerry de Gabriel vibrou com uma chamada. Ele não reconhecia o número. Em geral, cortava esse tipo de ligação sem pensar duas vezes. Mas não esta. Não a chamada que chegou em seu telefone às 8h30 em Roterdã.
Ele clicou em ATENDER, levou o BlackBerry ao ouvido e murmurou um cumprimento.
— Achei que você não fosse atender.
— Quem é?
— Não reconhece minha voz?
Era feminina e levemente rouca de fadiga e tabaco. O sotaque era britânico, com um traço francês. E, sim, Gabriel reconhecia.
Era a voz de Rebecca Manning.
78
OUDDORP, HOLANDA
O pavilhão na praia se chamava Natural High. No verão, era um dos locais mais badalados da costa holandesa. Mas às dez e meia de uma manhã de abril, tinha o ar de um entreposto colonial abandonado. O clima estava indeciso, sol ofuscante num minuto, chuva no outro. Gabriel observava da proteção do café. Nunca vi um dia tão feio e tão belo... De repente, ele pensou num café à beira-mar no topo dos penhascos de Lizard Point, na Cornualha. Costumava caminhar até lá pela trilha costeira, tomar um bule de chá, comer um bolinho com clotted cream e, depois, andar de volta ao seu chalé em Gunwalloe Cove. Parecia outra vida. Talvez um dia, ao fim de seu mandato, ele voltasse. Ou talvez levasse Chiara e as crianças a Veneza. Viveriam num belo apartamento em Cannaregio, ele restauraria quadros para Francesco Tiepolo. O mundo e seus muitos problemas não o afetariam. Ele passaria suas noites com a família e seus dias com seus velhos amigos Bellini, Ticiano, Tintoretto e Veronese. Seria anônimo de novo, um homem com um pincel e uma paleta em cima de uma plataforma de trabalho, escondido atrás de um véu.
Por enquanto, porém, estava bastante à vista. Sentava-se sozinho à mesa encostada na janela, onde estava seu BlackBerry. Ele tinha ficado quase sem bateria ao debater os detalhes da negociação. Rebecca tinha discordado de um ou dois pontos em relação ao cronograma, mas, depois de uma última ligação para Londres, estava feito. Downing Street, parecia, queria fazer a troca tanto quanto Gabriel.
Nesse momento, o BlackBerry acendeu. Era Eli Lavon, que estava lá fora no estacionamento.
— Ela acabou de chegar.
— Sozinha?
— Parece que sim.
— O que isso quer dizer?
— Quer dizer — disse Lavon — que não tem mais ninguém visível no carro.
— Qual é a marca?
— Um Volvo.
— Sedan ou perua?
A ligação caiu. Era um sedan, pensou Gabriel.
Ele olhou por cima do ombro para Mikhail e Keller. Estavam sentados a uma mesa no canto dos fundos do salão. Em outra, havia dois valentões do SVR com jaquetas de couro. Os russos observaram Rebecca Manning atentamente quando ela entrou no café e se sentou à frente de Gabriel. A espiã parecia muito inglesa com sua jaqueta Barbour. Colocou o telefone na mesa, com um maço de cigarros L&B e um velho isqueiro prateado.
— Posso? — perguntou Gabriel.
Ela assentiu.
Ele pegou o isqueiro. Mal dava para ler a inscrição. Por uma vida de serviço à pátria-mãe...
— Eles não podiam ter comprado um novo para você?
— Era do meu pai.
Gabriel olhou para o relógio de pulso.
— E isso?
— Estava acumulando poeira no museu particular do SVR. Levei a um joalheiro e mandei trocar o mostrador. Funciona muito bem, na verdade.
— Então, por que está dez minutos atrasada? — Gabriel colocou o isqueiro em cima do maço de cigarros dela. — Você provavelmente deveria guardá-los.
— Até num café de praia? — Ela colocou os cigarros e o isqueiro de volta na bolsa. — As coisas são um pouco mais relaxadas na Rússia.
— E sua expectativa de vida reflete bem isso.
— Acredito que tenhamos caído abaixo da Coreia do Norte na última lista.
O sorriso dela era genuíno. Ao contrário do último encontro deles, que tinha acontecido num centro de detenção do MI6 no norte da Escócia, foi tudo muito cordial.
— Minha mãe me perguntou de você outro dia — falou ela, de repente.
— Ela ainda está na Espanha?
Rebecca fez que sim.
— Eu esperava que ela fosse morar comigo em Moscou.
— Mas?
— Ela não gostou muito quando foi me visitar.
— É difícil se acostumar.
A garçonete estava cercando os dois.
— Você deveria pedir algo — recomendou Gabriel.
— Eu não estava planejando ficar muito.
— Qual é a pressa?
Ela pediu um koffie verkeerd. Então, quando a garçonete foi embora, ela destravou seu telefone e o empurrou na direção de Gabriel. Na tela, uma imagem estática de Sarah Bancroft. Um lado do seu rosto estava vermelho e inchado.
— Quem fez isso com ela?
Rebecca ignorou a pergunta.
— Aperte o play.
Gabriel clicou no ícone do PLAY e ouviu o máximo que conseguiu aguentar. Então, apertou PAUSE e olhou furioso para Rebecca.
— Eu aconselharia a nunca divulgar essa gravação.
— Teríamos direito de divulgar.
— Seria um erro grave.
— Mesmo?
— Sarah é americana, não israelense. A CIA vai retaliar se descobrir que vocês a violentaram dessa forma.
— Ela estava trabalhando para Israel quando você nos alimentou com aquela desinformação sobre Abdullah ser um ativo do MI6. — Rebecca pegou o telefone de novo. — Não se preocupe, a gravação é para meu uso pessoal.
— Você acha que vai ser suficiente?
— Para quê?
— Para salvar sua carreira no SVR.
Rebecca ficou em silêncio enquanto a garçonete colocava um copo de café holandês com leite diante dela.
— Era tudo para isso? Me destruir?
— Não. Era para destruir ele.
— Nosso presidente? Está lutando contra moinhos de vento, Don Quixote.
— Espere algumas horas para assentar a notícia de que o Kremlin ordenou o assassinato do futuro rei da Arábia Saudita. A Rússia vai ser o pária dos párias.
— Foi seu assassinato, não nosso.
— Boa sorte provando isso.
— Quando os trolls da Agência de Pesquisas de Internet terminarem, ninguém no mundo vai acreditar que tivemos qualquer coisa a ver com isso.
Rebecca colocou açúcar no café e mexeu cuidadosamente.
— E quem vai fazer a Rússia cumprir esse seu tal status de pária?
Você? A Grã-Bretanha? Os Estados Unidos? — Ela balançou a cabeça devagar. — Talvez você não tenha notado, mas as instituições tão reverenciadas pelo Ocidente estão em ruínas. Só sobramos nós no jogo.
Rússia, China, Irã...
— Esqueceu a Arábia Saudita.
— Quando a retirada americana do Oriente Médio estiver completa, os sauditas perceberão que não têm mais onde buscar proteção a não ser conosco, com ou sem Abdullah no trono.
— Não se Khalid for rei.
Ela levantou uma das sobrancelhas.
— É esse seu plano?
— Quem vai escolher o próximo rei é o Conselho de Aliança, não o Estado de Israel. Mas eu aposto no homem que ficou ao lado do tio que estava sofrendo com os efeitos terríveis de um veneno radioativo russo.
— Quer dizer isso? — Ela colocou um pequeno frasco de vidro na mesa.
Gabriel se afastou.
— O que é?
— Ainda não tem nome. Com certeza, a Agência de Pesquisas de Internet vai pensar em algo sugestivo. — Ela sorriu. — Algo que soe bem israelense.
— Alguma chance de Abdullah sobreviver?
— Zero.
— E você, Rebecca?
Ela guardou a ampola de novo na bolsa.
— Eles nunca mais vão confiar em você — disse Gabriel. — Não depois disso. Quem sabe até suponham que você esteja trabalhando para o MI6 desde o momento em que pisou no Centro de Moscou. De toda forma, seria uma tolice sua voltar. O melhor que pode esperar é ser trancada em algum vilarejo ermo, o tipo de lugar que tem um número em vez de um nome. Vai terminar igual ao seu pai, uma velha bêbada e quebrada, sozinha no mundo.
— Você não tem direito de falar assim do meu pai.
Gabriel aceitou a reprimenda em silêncio.
— E onde eu iria? De volta a Inglaterra? — Rebecca franziu a mesma sobrancelha. — Agradeço pelo conselho sincero, mas acho que vou me arriscar na Rússia. — Ela pegou o telefone. — Vamos terminar isso?
Gabriel pegou seu BlackBerry, digitou uma mensagem breve e apertou ENVIAR. A resposta chegou dez segundos depois.
— O avião de Dragunov acabou de ser liberado para partir. Vai estar fora do espaço aéreo britânico em 45 minutos.
Rebecca digitou um número. Falou algumas palavras em russo e cortou a ligação.
— Há uma praça grande no meio de Renesse com uma igreja no centro.
Bem lotada, cheia de gente. Vamos deixá-la em frente à pizzaria exatamente daqui a uma hora. — Ela olhou para o velho relógio de pulso do pai, como se estivesse marcando o tempo. Então, jogou o telefone na bolsa e olhou para a mesa em que Mikhail e Keller estavam sentados. —
Aquele bem pálido não me é estranho. Ele estava naquele Starbucks em Washington quando você montou uma armadilha para eu me entregar?
Gabriel hesitou e, então, fez que sim.
— E o outro?
— É o que você baleou naquela ruazinha em Georgetown.
— Que pena. Eu tinha certeza de tê-lo matado. — Rebecca Manning se levantou abruptamente. — Vamos esperar os próximos episódios. — E
saiu.
79
RENESSE, HOLANDA
A igreja era de tijolo, austera e cercada por um rotunda de paralelepípedos. Gabriel e Eli Lavon estavam estacionados em frente a um pequeno hotel. Mikhail e Keller tinham encontrado um lugar em frente a um restaurante de frutos do mar chamado Vischmarkt Renesse. Atrás ficava a pizzaria em que Rebecca Manning tinha prometido deixar Sarah, exatamente às 11h43.
Eram 11h39. Mikhail observava a pizzaria pelo retrovisor; Keller, espelho lateral. Estava fumando um Marlboro atrás de outro. Mikhail baixou sua janela alguns centímetros e escaneou a praça.
— Você percebe que somos alvos fáceis, né? — Mikhail hesitou, antes de completar: — E o diretor-geral do meu serviço também.
— Temos um acordo.
— Khalid também tinha — ponderou Mikhail, enquanto Keller amassava um cigarro e imediatamente acendia outro. — Você realmente precisa parar com isso, sabe.
— Por quê?
— Porque Sarah detesta.
Keller fumou em silêncio, olhos no retrovisor.
— Não acha que deveríamos falar sobre isso?
— Sobre o quê?
— Seus sentimentos por Sarah.
Keller olhou de soslaio para Mikhail.
— Qual é o problema de vocês?
— Vocês?
— Gabriel e você. Não têm nada melhor para fazer do que se intrometer na vida pessoal dos outros?
— Goste ou não, você agora é um de nós, Christopher. E isso quer dizer que nos reservamos o direito de meter o bedelho na sua vida amorosa sempre que quisermos. — Depois de um breve silêncio, Mikhail completou em voz baixa: — Especialmente quando envolve minha ex-noiva.
— Não aconteceu nada naquele hotel, se é isso que você está sugerindo.
— Não estou sugerindo nada.
— E não estou apaixonado por ela.
— Se você diz... — Mikhail olhou as horas: 11h41. — Não quero que fique um clima estranho, só isso.
— Como assim?
— Na nossa relação.
— Não sabia que estávamos em uma relação.
Mikhail não pôde evitar um sorriso.
— Estamos trabalhando muito bem juntos, você e eu. E suspeito de que vamos trabalhar juntos de novo no futuro. Não quero que Sarah complique as coisas.
— Por que ela complicaria?
— Faça um favor para mim, Christopher. Trate-a melhor do que eu. Ela merece. — Mikhail levantou o olhar para o retrovisor. — Especialmente agora.
Um momento se passou. Depois, outro. O relógio do painel mostrava 11h44. O do telefone de Keller, também. Ele xingou bem baixinho enquanto esmagava o cigarro.
— Você não achou que Rebecca ia cumprir o horário, achou? Graças a Gabriel, ela vai voltar para um futuro bem incerto em casa.
Keller passou a mão pela clavícula distraidamente.
— E ela é uma pessoa tão legal.
— Olhe — disse Mikhail, de repente. — Lá está o carro.
Ele tinha parado em frente à pizzaria, um Volvo sedan de cor escura, dois homens na frente, duas mulheres atrás. Uma era a filha de Kim Philby. A outra era Sarah Bancroft. Em um último ato de rebeldia, ela deixou a porta aberta depois de descer. Rebecca se inclinou por cima do banco de trás e a fechou. Então, o carro acelerou, passando a alguns centímetros da janela de Mikhail.
Sarah ficou parada por um momento na luz clara do sol, parecendo confusa. Mas quando viu Keller correndo em sua direção, o rosto dela irrompeu num enorme sorriso.
— Desculpe por não aparecer para o jantar ontem à noite, mas foi por um motivo de força maior.
Keller tocou na bochecha machucada.
— Nosso amigo do hotel fez isso. O nome dele é Nikolai, aliás. Talvez um dia você possa retribuir o favor.
Keller a ajudou a entrar no banco de trás do veículo. Ela observou uma fileira de lindos chalezinhos passando por sua janela enquanto Mikhail seguia Gabriel e Eli Lavon para fora da cidade.
— Eu gostava da Holanda. Agora, só quero ir embora o mais rápido possível.
— Temos um avião em Roterdã.
— Para onde ele vai nos levar?
— Para casa — respondeu Keller.
Sarah apoiou a cabeça no ombro dele e fechou os olhos.
— Estou em casa.
Parte Cinco
VINGANÇA
80
LONDRES–JERUSALÉM
Começou numa sala no hotel InterContinental em Budapeste. Dali, pulou para o banco de trás de um táxi, para a cadeira 14A de um Boeing 737
operado pela Ryanair, para o salão de uma balsa irlandesa chamada Ulysses, para um Toyota Corolla e para o Bedford House na cidade de veraneio de Frinton-on-Sea, em Essex.
Altos níveis de radiação também foram encontrados no escritório saqueado de uma marina no rio Twizzle, em um Jaguar F-Type conversível e nas dependências de um Bavaria 27 Sport que encalhara na comunidade litorânea holandesa de Renesse. Depois, as autoridades holandesas também encontrariam contaminação num bangalô de férias nas dunas perto de Ouddorp.
O marco zero, porém, eram duas casas conjugadas na Eaton Square. Lá, a história do que se passou estava escrita de forma indelével numa trilha de radiação que se espalhava de um banheiro no andar mais alto do número 71 até a sala de estar e a cozinha do número 70. Na lata de lixo, a Polícia Metropolitana encontrou as armas do crime — uma ampola de vidro vazia, uma pipeta de Pasteur, o avental de empregada. Todos registraram leituras de 30 mil contagens por segundo. Perigosas demais para serem armazenadas nas salas de evidência policiais, as provas foram enviadas por segurança para o Estabelecimento de Armas Atômicas em Aldermaston, instalação nuclear do governo.
A mulher que tinha usado as armas fora a primeira a morrer. Seu cadáver era tão radioativo que foi colocado num caixão com proteção nuclear — e o banco do motorista de seu carro, um Renault Clio, ficou tão saturado que também foi enviado a Aldermaston. A cadeira do saguão do London Jet Centre também. A fonte dessa contaminação, certo Konstantin Dragunov, tivera permissão para sair da Inglaterra a bordo de seu jatinho particular, após apresentar sintomas de síndrome aguda da radiação. O
governo russo, em seu primeiro comunicado oficial, atribuiu o mal-estar de Dragunov na noite do incidente a um simples caso de intoxicação alimentar. Quanto à contaminação dentro da casa do oligarca, o Kremlin disse que tinha sido plantada pelo Serviço Secreto de Inteligência
britânico numa tentativa de desacreditar a Rússia e prejudicar sua posição na região árabe.
A linha de defesa russa colapsou no dia seguinte, quando a delegada Stella McEwan, da Polícia Metropolitana, tomou a atitude incomum de liberar parte do depoimento gravado dado por Dragunov antes de embarcar em seu avião. O Kremlin alegou que a gravação era uma fraude, assim como o próprio oligarca. Dizia-se que ele estava se recuperando em sua mansão no bairro de Rublyovka, em Moscou. Na verdade, estava sob forte guarda no Hospital das Clínicas Central em Kuntsevo, instituição reservada para oficiais sêniores do governo e elites comerciais russas. Os médicos que lutavam para salvar sua vida o faziam em vão. Não havia medicação ou tratamento de emergência capaz de impedir a inevitável destruição das células e dos órgãos de Dragunov. Para todos os efeitos, ele já estava morto.
O russo duraria, porém, mais três semanas, enquanto a posição de Moscou no mundo caía a profundezas não vistas desde o ataque ao voo 007 da Korea Air Lines em 1983. Manifestações contra a Rússia varreram a região árabe e muçulmana. Uma bomba explodiu em frente à Embaixada Russa no Cairo. Manifestantes invadiram a do Paquistão.
No Ocidente, a reação foi pacífica, mas devastadora aos interesses diplomáticos e financeiros da Rússia. Reuniões foram canceladas, contas bancárias foram congeladas, embaixadores foram chamados de volta, agentes conhecidos do SVR foram expulsos. Londres foi seletiva em suas expulsões, pois desejava mandar uma mensagem. Só Dmitri Mentov e Yevgeny Teplov, dois oficiais operando sob disfarce diplomático, foram declarados persona non grata e ordenados a ir embora. Na mesma noite, um oficial sênior do MI6 chamado Charles Bennett foi discretamente levado sob custódia enquanto tentava embarcar num Eurostar com destino a Paris na estação de St. Pancras. O público britânico nunca seria informado dessa prisão.
Muitos outros fatos foram omitidos dos cidadãos, tudo em nome da segurança nacional. Eles não foram informados, por exemplo, como ou quando os serviços de inteligência tinham ficado sabendo que uma equipe de assassinos russos estava em solo britânico. Também não receberam uma explicação satisfatória de por que Konstantin Dragunov tivera permissão de ir embora do país depois de admitir seu papel na operação.
Sob o olhar implacável da mídia, logo apareceram furos no relato oficial. No fim, Downing Street admitiu que a ordem tinha vindo diretamente do próprio primeiro-ministro, embora sem informar detalhes em relação aos motivos dele. Um repórter investigativo respeitado do The Guardian sugeriu que Dragunov tinha sido liberado em troca de uma refém após, primeiro, passar por um duro interrogatório. A declaração cuidadosa de Stella McEwan de que nenhum oficial da Polícia Metropolitana tinha maltratado o oligarca deixou aberta a possibilidade de outra pessoa tê-lo feito.
Quase esquecido em meio ao turbilhão de controvérsias estava o príncipe herdeiro Abdullah bin Abdulaziz Al Saud. Segundo a Al Arabiya, a transmissora estatal saudita, ele tinha morrido nove dias depois de sua volta a Londres, às 4h37. Entre aqueles em seu leito de morte estava o amado sobrinho príncipe Khalid bin Mohammed.
Mas por que os russos tinham envenenado o príncipe herdeiro, afinal?
O Kremlin não estava cortejando novos amigos na região árabe? A Rússia não estava no processo de substituir os americanos como potência dominante da região? De Riad, apenas silêncio. De Moscou, negações e pistas falsas. Os especialistas televisivos especulavam. Os repórteres investigativos escavavam e esquadrinhavam. Ninguém passou remotamente perto da verdade.
Havia pistas por todos os lugares, porém — num consulado em Istambul, numa escola particular em Genebra e num campo no sudoeste da França. Mas, como a trilha de radiação, a evidência era invisível a olho nu.
Uma jornalista sabia muito mais que a maioria, mas, por motivos que não compartilhou com seus colegas, escolheu ficar em silêncio.
Na noite em que o Kremlin, com atraso, anunciou a morte de Konstantin Dragunov, ela emergiu de seu escritório em Berlim e, como era seu costume, examinou a rua nas duas direções antes de seguir para um café na Friedrichstrasse, perto do antigo Checkpoint Charlie. Ela estava sendo seguida, tinha certeza. Um dia, viriam buscá-la. E ela estaria pronta para eles.
Havia uma última trilha de radiação, cuja existência nunca seria revelada.
Ia do Aeroporto London City a um café de praia na Holanda, um apartamento em Jerusalém e o andar mais alto de um prédio comercial
anônimo em Tel Aviv. Era, declarou Uzi Navot, mais uma marca do mandato já distinto de Gabriel como chefe. Ele era o único diretor-geral que havia matado alguém em campo, e o único a ser atingido num bombardeio. Agora, ganhava a duvidosa distinção de ser o primeiro a ser contaminado por radiação, russo ou não. Navot lamentou de brincadeira a boa sorte de seu rival.
— Talvez — disse a Gabriel, quando ele voltou ao Boulevard Rei Saul
— seja melhor parar enquanto está ganhando.
— Tentei. Várias vezes, aliás.
Alguém tinha grudado uma placa amarela na porta do escritório dele dizendo CUIDADO, ÁREA DE RADIAÇÃO, e, na primeira reunião de sua equipe sênior, Yossi Gavish o presenteou com um contador Geiger cerimonial e um traje de proteção com o nome dele bordado. Foi a comemoração deles.
Segundo todas as medidas objetivas, a operação tinha sido um sucesso retumbante. Gabriel convencera brilhantemente seu rival a cometer um erro colossal. Com isso, tinha conseguido, ao mesmo tempo, controlar a influência russa crescente no Oriente Médio e eliminar o fantoche do Kremlin em Riad. O trono saudita estava mais uma vez ao alcance de Khalid. Ele só precisava convencer seu pai e o Conselho de Aliança a dar-lhe uma segunda chance. Se tivesse sucesso, a dívida de KBM com Gabriel seria enorme. Juntos, eles podiam mudar a região. As possibilidades para Israel — e para o diretor-geral e o Escritório — eram infinitas.
Sua prioridade, porém, era o Irã. Naquela noite, ele passou várias horas na rua Kaplan relatando ao primeiro-ministro sobre os conteúdos dos arquivos nucleares secretos iranianos. Na noite seguinte, estava ao lado do primeiro-ministro, mas fora da imagem da câmera, no anúncio das descobertas numa coletiva transmitida ao vivo para o mundo inteiro em horário nobre. Três dias depois, Gabriel instruiu Uzi Navot a dar um relatório resumido sobre a operação no Irã a repórteres do Haaretz e do The New York Times. A mensagem das matérias era indiscutível. Gabriel tinha ido ao coração de Teerã e roubado os segredos mais preciosos do regime. E, se os iranianos ousassem recomeçar seu programa de armas nucleares, ele voltaria.
Apesar de todos os sucessos, Reema raramente saía de seu pensamento.
Durante o calor da operação contra os russos, ele tivera um breve alívio.
Mas, de volta ao Boulevard Rei Saul, a menina não lhe dava paz. Em sonhos, ela aparecia com seu casaco deformado e seus sapatos de couro
envernizado. Às vezes, tinha uma semelhança sobrenatural com Nadia al-Bakari. Em um sonho terrível ela apareceu como o filho de Gabriel, Daniel. O cenário não era um campo remoto na França, mas uma praça nevada em Viena. A criança de casaco e sapato de couro envernizado, a menina com rosto de garoto, tentava dar partida numa Mercedes.
— Não é linda? — comentou a criança, quando a bomba explodiu.
Então, enquanto as chamas a consumiam, ela olhou para Gabriel e disse:
— Um último beijo...
Na noite seguinte, jantando tranquilamente um fettuccine com cogumelos na pequena mesa de bistrô na cozinha, ele descreveu a Chiara exatamente o que tinha se passado no campo no sudoeste francês. A voz da russa no telefone, o tiro pela janela de trás do carro, Khalid pegando os membros de Reema na luz branca dos faróis. A bomba, contou, era para ele. Ele tinha punido os responsáveis, ganhado deles num grande jogo de enganação que mudaria o curso da história no Oriente Médio. Mas Reema se fora para sempre. Além disso, seu sequestro e assassinato brutal ainda não tinham vindo a público. Era como se ela nunca tivesse existido.
— Então, talvez — sugeriu Chiara —, você devesse fazer algo para mudar isso.
— Como?
Ela segurou a mão de Gabriel.
— Não tenho tempo — protestou ele.
— Já vi como você trabalha rápido quando está decidido.
Gabriel considerou a ideia.
— Acho que eu poderia pedir para Ephraim me deixar usar o laboratório de restauração no museu.
— Não — disse Chiara. — Você pode trabalhar aqui no apartamento.
— Com as crianças?
— É claro. — Ela sorriu. — É hora de elas conhecerem o verdadeiro Gabriel Allon.
Como sempre, ele preparou sua própria tela — 180 por 120 centímetros, esticador de carvalho, linho italiano. Para a base, usou a fórmula que aprendeu em Veneza com o mestre restaurador Umberto Conti. Sua paleta era de Veronese, com um toque de Ticiano.
Ele só tinha visto Reema uma vez, em condições que, por mais que tentasse, não conseguia esquecer. E tinha visto a fotografia dela tirada pelos russos enquanto ela estava em cativeiro no País Basco Espanhol.
Também estava gravada na memória de Gabriel. Ela estava cansada e magra, seu cabelo, uma bagunça. A foto mostrava sua estrutura óssea real e, mais importante, sua personalidade. Para o bem ou para o mal, Reema bint Khalid era filha de seu pai.
Ele montou seu estúdio improvisado na sala de estar, perto do terraço.
Como de hábito, o israelense era protetor de seu espaço de trabalho. As crianças receberam instruções estritas de não tocar nos suprimentos. Como precaução, porém, ele sempre deixava um de seus pincéis Winsor &
Newton Série 7 num ângulo exato no carrinho, para saber se tinha havido um invasor, que, invariavelmente, era o caso. Na maior parte, não houve incidentes, embora em uma ocasião ele tenha voltado do Boulevard Rei Saul e encontrado várias digitais no canto inferior esquerdo da tela. Uma análise forense determinou que eram de Irene.
Ele trabalhava quando podia, mais ou menos uma hora pela manhã, alguns minutos à noite após o jantar. As crianças raramente saíam do seu lado. Gabriel não fez esboços preparatórios nem desenhou por baixo da pintura. Mesmo assim, sua técnica era impecável. Ele colocou Reema na mesma pose de Nadia, num sofá branco contra um pano de fundo preto à Caravaggio. A disposição de braços e pernas era infantil, mas Gabriel a envelheceu um pouco — 16 ou 17 anos, em vez de 12 — para Khalid poder tê-la por um tempo maior.
Gradualmente, conforme ela ganhava vida na tela, passou a ausentar-se dos sonhos de Gabriel. Durante sua última aparição, entregou-lhe uma carta para seu pai. Gabriel a adicionou à pintura. Depois, parou por muito tempo diante da obra, mão direita no queixo, mão esquerda apoiando o cotovelo direito, cabeça levemente inclinada para baixo, tão perdido em pensamentos que não percebeu Chiara parada ao seu lado.
— Está pronto, signor Delvecchio?
— Não — disse ele, limpando a tinta do pincel. — Ainda não.
81
LANGLEY–NOVA YORK
O diretor da CIA, Morris Payne, ligou naquela tarde para Gabriel na linha segura e pediu que ele fosse a Washington. Não era exatamente uma convocação, mas também não era um convite aberto. Depois de fingir consultar sua agenda, Gabriel disse que o mais cedo que podia ir seria na próxima terça-feira.
— Tenho uma ideia melhor. Que tal amanhã?
Na verdade, Gabriel estava ansioso pela viagem. Estava devendo a Payne um relato completo da operação para remover Abdullah da linha sucessória. Além disso, precisava que o americano e seu chefe na Casa Branca aprovassem a ascensão de Khalid ao trono. O Conselho de Aliança ainda não tinha nomeado um príncipe herdeiro. Mais uma vez, a Arábia Saudita estava sendo governada por um octogenário doente sem sucessor decretado.
Gabriel pegou um voo noturno para Washington e se encontrou com Payne no dia seguinte, no escritório dele no sétimo andar em Langley. No fim, não foi necessário confessar seu papel no caso de Abdullah. O
americano já sabia tudo.
— Como?
— Uma fonte dentro do SVR. Parece que você virou o lugar de cabeça para baixo.
— Alguma notícia sobre Rebecca Manning?
— Quer dizer Philby? — Payne balançou a cabeça com amargura. —
Quando você ia me contar?
— Não cabia a mim, Morris.
— Aparentemente, ela está por um fio.
— Eu disse para ela não voltar.
— Você a viu?
— Na Holanda — explicou Gabriel. — Tivemos que combinar uma troca de prisioneiros.
— Dragunov pela garota? — Payne esfregou seu queixo proeminente, pensativo. — Lembra nosso jantar recente?
— Com muito carinho.
— Quando sugeri que você talvez quisesse pensar em afastar Abdullah de vez da região, você me olhou como se eu tivesse acabado de dizer para tirar a Madre Teresa do caminho.
Gabriel não disse nada.
— Por que não nos incluiu?
— Caciques demais.
— A Arábia Saudita é nossa aliada.
— E graças a mim, continua sendo. Vocês só precisam mandar a Riad um sinal de que Washington veria com bons olhos a renomeação de Khalid a príncipe herdeiro.
— Pelo que ouvimos, ele não vai ser príncipe herdeiro por muito tempo.
— Provavelmente não.
— Ele está pronto?
— Ele vai ser diferente, Morris.
Payne não parecia tão certo. Mudou de assunto abruptamente, um hábito seu.
— Ouvi falar que os russos deram uma boa surra nela.
— Sarah?
O americano fez que sim.
— Considerando as circunstâncias — disse Gabriel —, podia ter sido pior.
— Como ela se comportou em campo?
— Ela tem talento nato, Morris.
— Então, por que está trabalhando num museu em Nova York?
— Leia o arquivo dela.
— Acabei de ler. — Havia uma cópia em sua mesa. — Alguma chance de convencê-la a voltar à Agência?
— Duvido.
— Por quê?
— Posso estar errado — disse Gabriel —, mas acredito que ela já tenha dono.
Gabriel saiu de Langley em tempo de pegar o trem das 15 horas para Nova York. Um carro do consulado israelense o encontrou na Penn Station, e o
conduziu pela tarde quente de primavera até a esquina da Second Avenue com a Sixty Four Street.
O restaurante em que ele entrou era italiano, antiquado e muito barulhento. O diretor-geral se espremeu para passar pela multidão no bar e foi até a mesa em que Sarah, com um terninho escuro, bebia um martíni com três azeitonas. Quando Gabriel se aproximou, ela sorriu e levantou o rosto para ser beijada. Já não havia traço de sua jornada noturna pelo mar do Norte com o assassino russo chamado Nikolai. Aliás, pensou Gabriel sentando-se, Sarah parecia mais radiante do que nunca.
— Peça um desses — sugeriu ela, batendo uma unha pintada na borda da taça. — Prometo que vai cuidar daquela dor nas suas costas.
Gabriel pediu um sauvignon blanc italiano e, prontamente, recebeu a maior taça de vinho que já tinha visto. Sarah levantou seu martíni uma fração de centímetro.
— Ao mundo secreto. — Ela olhou pelo salão lotado. — Sem amiguinhos?
— Não consegui uma reserva para eles.
— Quer dizer que tenho você só para mim? Vamos fazer algo absolutamente escandaloso. — Sarah sorriu com malícia e deu um gole em seu drinque. Ela tinha voz e modos de uma era diferente. Como sempre, Gabriel se sentiu conversando com uma personagem de Fitzgerald.
— Como foi Langley? — perguntou.
— Morris não parava de perguntar sobre você.
— Eles sentem minha falta?
Gabriel sorriu.
— A cidade inteira está desolada. Morris faria qualquer coisa para você voltar.
— O que está feito não pode ser desfeito. — Ela baixou a voz até um murmúrio de confidência. — Exceto no que diz respeito a Khalid. Você evitou que nosso herói trágico se destruísse.
Ela sorriu.
— Ele está restaurado.
— Literalmente — disse Gabriel.
— Morris deu sinal verde para a volta de Khalid?
Gabriel assentiu.
— A Casa Branca também. A segunda temporada do show de KBM está prestes a ser produzida.
— Vamos esperar que seja um pouco menos animada que a primeira.
Um garçom apareceu. Sarah pediu uma salada caprese e vitela salteada.
Gabriel quis o mesmo.
— Como está o trabalho? — perguntou ele.
— Parece que a Coleção Nadia al-Bakari não caiu das paredes do MoMA enquanto eu estive longe. Aliás, minha equipe mal notou minha ausência.
— Quais são seus planos?
— Uma mudança de cenário, acho.
Dessa vez, foi Gabriel quem examinou o salão.
— Este lugar é muito bom, Sarah.
— O Upper East Side? Tem seus charmes, mas sempre preferi Londres.
Kensington, em especial.
— Sarah...
— Eu sei, eu sei.
— Você já voltou a Londres para vê-lo?
— No fim de semana passado. Foi quase tão bom quanto este martíni.
Devo dizer, a casa dele é divina, mesmo sem móveis.
— Ele lhe contou onde conseguiu o dinheiro para comprá-la?
— Mencionou algo sobre certo Don Orsati da ilha de Córsega. Ele tem uma casa lá também, sabe.
— E um Monet. — Gabriel fixou um olhar de reprovação em Sarah. —
Ele é velho demais para você.
— É o homem mais jovem com quem saio em muito tempo. Além do mais, já o viu sem roupa?
— E você, já viu?
Sarah desviou o olhar.
— Não tem nada que eu possa fazer para dissuadi-la?
— Por que tentaria?
— Porque não é sábio você se envolver com um homem cujo trabalho era matar pessoas.
— Se você pôde superar o passado de Christopher, por que eu não posso?
— Porque eu nunca considerei me mudar para Londres para morar com ele. — Gabriel expirou lentamente. — O que você pretende fazer profissionalmente?
— Talvez seja um choque para você, querido, mas dinheiro não é exatamente um problema. Meu pai me deixou bastante bem de vida. Dito isso, eu gostaria de algo para fazer.
— O que tem em mente?
— Uma galeria, talvez.
Gabriel sorriu.
— Tem uma ótima em Mason’s Yard, em St. James’s. Especializada em Velhos Mestres italianos. O proprietário anda falando há alguns anos em se aposentar. Está em busca de alguém para assumir os negócios.
— Como estão as finanças dele? — perguntou Sarah, com preocupação justificada.
— Graças à associação dele com certo empresário russo, estão bastante boas.
— Christopher me contou tudo sobre a operação.
— Contou? — perguntou Gabriel, irritado. — E contou sobre Olivia Watson, também?
Ela assentiu.
— E sobre Marrocos. Só sinto muito por não ter sido convidada.
— A galeria de Olivia fica na Bury Street — avisou Gabriel. — É
possível que você trombe com ela.
— E Christopher vai trombar com Mikhail da próxima vez que nós...
— Sarah deixou o pensamento incompleto.
— Pode ficar um pouco incestuoso.
— Pode, mas vamos conseguir lidar. — Sarah sorriu com uma tristeza repentina. — Sempre conseguimos, não é, Gabriel?
Nesse momento, o BlackBerry dele vibrou. A pulsação distinta mostrou que era uma mensagem urgente do Boulevard Rei Saul.
— Alguma coisa séria? — perguntou Sarah.
— O Conselho de Aliança acabou de nomear Khalid como novo príncipe herdeiro.
— Que rápido. — De repente, o iPhone de Sarah também estava vibrando.
Ela sorriu ao ler a mensagem.
— Se for Keller, diga que quero falar com ele.
— Não é Keller, é Khalid.
— O que ele quer?
Ela entregou o telefone para Gabriel.
— Você.
82
TIBERÍADES
Em seu primeiro ato oficial após recuperar o posto de príncipe herdeiro, Khalid bin Mohammed cortou laços com a Federação Russa e expulsou todos os seus cidadãos do Reino da Arábia Saudita. Os analistas regionais aplaudiram sua ação. O velho Khalid, disseram, podia ter agido precipitadamente. Mas o novo tinha mostrado a astúcia e prudência de um estadista experiente. Claramente, especularam, havia uma voz mais sábia sussurrando em seu ouvido.
Em casa, ele passou rapidamente a desfazer os danos do breve reinado de seu tio — e alguns de seus próprios também. Ele soltou as ativistas feministas e apoiadores da reforma democrática. Libertou até um blogueiro popular que, como Omar Nawwaf, tinha feito críticas pessoalmente. Conforme a temida Mutaween se retirou da vida de Riad, a paz retornou. Um novo cinema abriu as portas. Jovens sauditas lotavam os cafés até tarde da noite.
Mas, na maior parte, as ações de Khalid foram recebidas com nova cautela. Sua corte real, embora cheia de legalistas preparados a fazer o que ele desejasse, continha vários tradicionalistas da velha guarda, sugerindo aos observadores do Oriente Médio que ele pretendia voltar à prática Al Saud de governar por consenso. Se o antigo KBM era um homem com pressa, o novo parecia favorecer o gradualismo à pressa. “Shwaya, shwaya” virou uma espécie de mantra oficial. Ainda assim, Khalid não era um governante com quem fosse bom se meter, como descobriu um reformista importante depois de vaiá-lo durante uma aparição pública. A pena de prisão de um ano deixou claro que havia limites à tolerância do novo governante com a dissidência. Ele era um déspota iluminado, disseram os observadores, mas mesmo assim, um déspota.
Sua conduta pessoal também mudou. Ele vendeu seu superiate e seu palácio na França, e devolveu vários bilhões de dólares aos homens que havia prendido no Ritz-Carlton. Também se despediu de boa parte de sua coleção de arte. Confiou a venda do Salvator Mundi à Isherwood Fine Arts, de Mason’s Yard, em Londres. Sarah Bancroft, ex-diretora do Museu
de Arte Moderna de Nova York, estava listada como a marchand do negócio.
A esposa dele, Asma, aparecia a seu lado em público, mas a princesa Reema, sua filha, tinha desaparecido de vista. Circulava um rumor de que estivesse matriculada numa escola exclusiva na Suíça. Logo foi descartado, porém, por uma denúncia publicada na revista alemã Der Spiegel. Com base, em parte, na reportagem de Omar Nawwaf, ela detalhava a série de acontecimentos que tinham levado à dramática queda em desgraça de Khalid e sua restauração final. O saudita, após vários dias de silêncio, deu uma confirmação chorosa da autenticidade do relato.
O que levou, principalmente no Ocidente, a outra grande reavaliação.
Talvez os russos, apesar de toda a sua imprudência, tivessem na verdade feito-lhes um favor. Talvez fosse hora de perdoar o jovem príncipe e o receber de volta no rebanho. De Washington a Wall Street, passando por Hollywood e pelo Vale do Silício, surgiu um grande clamor de todos os que o tinham rejeitado, implorando que ele voltasse. Um homem, porém, tinha ficado ao lado dele quando ninguém mais quis. Foi o convite desse homem, numa noite de verão abafada em junho, que Khalid aceitou.
O novo KBM, como o velho, estava eternamente atrasado. Gabriel o esperava às 17 horas, mas já eram quase 18h30 quando o Gulfstream dele pousou na base da Força Aérea Israelense em Ramat David. Ele emergiu sozinho da cabine, de blazer bem cortado e óculos escuros estilosos que brilhavam com o sol de fim de tarde. Gabriel ofereceu a mão a Khalid, mas de novo recebeu, em vez de um cumprimento, um abraço caloroso.
Após sair da base, passaram pela cidade de nascimento de Gabriel. Seus pais, explicou ele a Khalid, eram sobreviventes alemães do Holocausto.
Como todas as outras em Ramat David, a família Allon tinha morado numa pequena cabana de blocos de cimento. A deles era cheia de fotografias de entes queridos perdidos nos fogos da Shoah. Para escapar do luto de seu lar, Gabriel vagava pelo vale de Jezreel, a terra dada por Josué à tribo de Zebulom, uma das doze da antiga Israel. Ele passara a maior parte de sua vida adulta morando no exterior ou em Jerusalém. Mas o vale, contou a Khalid, sempre seria sua casa.
Enquanto iam na direção leste na rodovia 77, o telefone de Khalid apitava e vibrava sem parar. As mensagens eram da Casa Branca. Explicou
que o presidente e ele estavam planejando se encontrar brevemente em Nova York durante a reunião anual da Assembleia Geral da ONU, em setembro. Se tudo corresse bem, ele voltaria aos Estados Unidos, no outono, para uma cúpula formal em Washington.
— Parece que tudo está perdoado. — Ele olhou para Gabriel. —
Imagino que você não tenha tido nada a ver com isso?
— Os americanos não precisaram de nenhum encorajamento da minha parte. Estão ansiosos para normalizar as relações.
— Mas foi você que me tornou palatável de novo. — Ele hesitou. —
Omar Nawwaf e você. Aquele artigo na Der Spiegel levou embora a nuvem da minha cabeça de uma vez por todas.
Khalid finalmente desligou o telefone. Pelos trinta minutos seguintes, cruzando a Alta Galileia, ele deu a Gabriel um relatório muito impressionante — um tour guiado do Oriente Médio liderado por ninguém menos que o governante de facto da Arábia Saudita. A Diretoria de Inteligência Geral, DIG, estava ouvindo coisas promissoras do líder do Corpo da Guarda Revolucionária do Irã, algo sobre uma indiscrição financeira. As informações preliminares logo chegariam ao Boulevard Rei Saul. Khalid e a DIG também estavam animados para seu papel na Síria, no momento em que os americanos estavam indo na direção da saída.
Talvez a DIG e o Escritório pudessem começar um programa secreto para tornar a vida um pouco menos confortável na Síria para os iranianos e seus aliados do Hezbollah. Gabriel pediu que o saudita interviesse com o Hamas para parar os foguetes e mísseis que vinham de Gaza. Ele prometeu fazer o possível.
— Mas não espere muito. Aqueles malucos do Hamas me odeiam quase tanto quanto odeiam você.
— O que ficou sabendo sobre o plano de paz para o Oriente Médio do governo americano?
— Não muito.
— Talvez devêssemos criar nosso próprio plano de paz, você e eu.
— Shwaya, shwaya, meu amigo.
Enfim, chegaram à planície árida em que, numa tarde escaldante de julho de 1187, Saladin derrotou os exércitos sanguinários de Cruzados numa batalha que deixaria Jerusalém de novo em mãos muçulmanas. Logo depois, viram o mar da Galileia. Foram para o norte pela beira-mar, até chegarem a uma villa que parecia uma fortaleza empoleirada no topo de
uma escarpa rochosa. Havia vários sedans e SUVs estacionados no caminho íngreme da entrada.
— Onde estamos? — perguntou Khalid.
Gabriel abriu sua porta e desceu.
— Venha comigo. Vou mostrar.
Ari Shamron estava no hall de entrada. Ele avaliou Khalid cuidadosamente antes de, enfim, estender uma das mãos com manchas senis.
— Nunca achei que esse dia fosse chegar.
— Não chegou — respondeu Khalid, com ares de conspiração. — Não oficialmente, pelo menos.
Shamron gesticulou para a sala de estar, onde estava reunida a maioria da equipe sênior do Escritório — Eli Lavon, Yaakov Rossman, Dina Sarid, Rimona Stern, Mikhail Abramov, Natalie Mizrahi, Uzi e Bella Navot.
Chiara e as crianças estavam de pé ao lado de um cavalete de carvalho.
Sobre ele, uma pintura coberta com uma baeta preta.
Khalid olhou perplexo para Gabriel.
— O que é isso?
— Algo para substituir aquele seu Leonardo.
Gabriel fez um gesto para Raphael e Irene. Com ajuda de Chiara, eles removeram o véu negro. Khalid se balançou de leve e colocou a mão no coração.
— Meu Deus — sussurrou.
— Desculpe, eu deveria ter avisado.
— Ela parece... — A voz de Khalid sumiu. Ele esticou a mão na direção do rosto de Reema, depois na direção da carta. — O que é?
— Uma mensagem para o pai dela.
— O que diz?
— Isso é entre vocês.
Khalid estudou o canto inferior direito da tela.
— Não tem assinatura.
Khalid levantou os olhos.
— É famoso, o artista?
Gabriel deu um sorriso triste.
— Em alguns círculos.
Comeram ao ar livre no terraço, observados pelo retrato de Reema. A refeição era um banquete suntuoso de cozinhas israelense e árabe, incluindo o famoso frango com temperos marroquinos de Gilah Shamron, que Khalid decretou ser o melhor prato que ele já comera. Discretamente, recusou a oferta de vinho de Gabriel. Ele logo seria guardião das duas mesquitas sagradas de Meca e Medina, explicou. Seus dias de consumo de álcool, mesmo moderado, tinham chegado ao fim.
Cercado por Gabriel e seus chefes de divisão, Khalid falou não do passado, mas do futuro. A estrada à frente, alertou, seria difícil. Apesar de todas as riquezas, seu país era tradicional, retrógrado e, em muitas coisas, bárbaro. Além do mais, havia outra Primavera Árabe chegando. Ele deixou claro que nunca toleraria uma rebelião aberta contra seu governo. Pediu-lhes que fossem pacientes, mantivessem expectativas realistas e tornassem a vida tolerável para os palestinos. De alguma forma, algum dia, a ocupação de terras árabes tinha que acabar.
Pouco antes das 23 horas, soaram sirenes à beira do lago. Depois, um foguete do Hezbollah fez um arco sobre as colinas de Golã e, da bateria da Cúpula de Ferro na Galileia, um míssil subiu para encontrá-lo. Depois, Gabriel e Khalid ficaram parados sozinhos na balaustrada do terraço, observando uma única embarcação patrulhando o lago, sua popa iluminada por uma luz de navegação verde.
— É bem pequeno — comentou Khalid.
— O lago?
— Não, o barco.
— Provavelmente, não tem uma discoteca.
— Nem uma sala de neve.
Gabriel riu baixinho.
— Você sente falta?
Khalid negou.
— Só sinto falta da minha filha.
— Espero que o retrato ajude.
— É o quadro mais lindo que já vi. Mas você precisa me deixar pagar por ele.
Gabriel balançou a mão, indicando que não precisava.
— Então, me deixe dar isto a você. — Khalid segurou um pendrive.
— O que é?
— Uma conta na Suíça com cem milhões de dólares.
— Tenho uma ideia melhor. Use o dinheiro para construir a Escola Omar Nawwaf de Jornalismo em Riad. Treine a próxima geração de repórteres, editores e fotógrafos árabes. Depois, dê a eles liberdade para escrever e publicar o que quiserem, não importa se machucar seus sentimentos.
— É só isso mesmo que você quer?
— Não — disse Gabriel. — Mas é um bom começo.
— Na verdade, eu estava planejando começar em outro lugar. — Khalid guardou o pendrive no bolso do blazer. — Preciso fazer uma coisa antes de virar rei. Esperava que você estivesse disposto a fazer o papel de intermediário.
— No que está pensando?
Khalid explicou.
— Não é muito difícil encontrá-la — falou Gabriel. — É só mandar um e-mail.
— Já mandei. Vários, aliás. Ela não responde. E também não atende minhas ligações.
— Nem imagino por quê.
— Talvez você possa abordá-la por mim.
— Por que eu?
— Parece ter uma boa relação com ela.
— Eu não iria tão longe.
— Consegue providenciar isso?
— Um encontro? — Gabriel balançou a cabeça. — É uma má ideia, Khalid.
— Minha especialidade.
— Ela está com raiva demais. Deixe passar um pouco mais de tempo.
Ou melhor, deixe que eu cuido disso para você.
— Você não conhece muito bem os árabes, né?
— Estou aprendendo mais a cada dia.
— É parte essencial da nossa cultura — explicou Khalid. — Preciso fazer a reparação pessoalmente.
— Dinheiro de sangue?
— Uma expressão infeliz. Mas, sim, dinheiro de sangue.
— O que você precisa fazer — disse Gabriel — é aceitar total responsabilidade pelo que aconteceu em Istambul e garantir que nunca mais volte a acontecer.
— Não vai.
— Diga isso a ela, não a mim.
— Pretendo dizer.
— Nesse caso — falou Gabriel —, aceito. Mas se algo der errado, que caia sobre a sua cabeça.
— Isso é um provérbio judeu? — Khalid olhou para seu relógio. —
Está tarde, meu amigo. Talvez seja minha hora de ir.
83
BERLIM
Gabriel ligou para ela na manhã seguinte e deixou uma mensagem na caixa postal. Uma semana se passou antes de ela se dar ao trabalho de ligar de volta, um começo nada promissor. Sim, disse após ouvir a proposta dele, ela estaria disposta a ouvir Khalid. Mas a última coisa que ele deveria esperar dela era uma absolvição. Ela também não estava interessada em dinheiro de sangue. Quando Gabriel contou-lhe sobre sua ideia, ela ficou cética.
— É mais fácil os palestinos terem um Estado independente do que Khalid abrir uma escola de jornalismo em Riad com o nome de Omar.
Ela insistiu que o encontro acontecesse em Berlim. A embaixada, claro, estava fora de questão, e ela não ficava confortável com a ideia de ir à residência do embaixador ou mesmo a um hotel. Foi Khalid quem sugeriu o apartamento que ela antes dividia com Omar em Mitte, antigo bairro de Berlim Oriental. Os agentes dele tinham sido visitantes regulares e o conheciam bem. Mesmo assim, uma busca completa — uma pilhagem, na verdade — seria necessária antes da chegada dele. Não haveria registros do encontro nem comunicados públicos depois. E não, ele não aceitaria bebidas de nenhum tipo. Tinha medo de que os russos estivessem tentando matá-lo da mesma forma como haviam feito com seu tio. O medo, pensou Gabriel, era inteiramente justificado.
E foi assim que, numa tarde quente e sem vento em Berlim no início de julho, com as folhas murchas nas tílias e as nuvens baixas e escuras no céu, uma fileira de automóveis Mercedes chegou como uma procissão funerária na rua sob a janela de Hanifa Khoury. Franzindo o cenho, ela olhou a hora. Eram 15h30. Ele estava uma hora e meia atrasado.
Fuso horário KBM...
Várias portas de carro se abriram. De uma delas, saiu Khalid. Enquanto ele cruzava a calçada até a entrada do prédio, foi seguido por um único guarda-costas. Não tinha medo, pensou Hanifa. Confiava nela, da forma como ela tinha confiado nele naquela tarde em Istambul. A tarde em que vira Omar pela última vez.
Ela se afastou da janela e examinou a sala de estar do apartamento.
Havia fotografias de Omar por todo canto. Omar em Bagdá. Omar no Cairo. Omar com Khalid.
Omar em Istambul...
Naquela manhã, uma equipe da Embaixada Saudita tinha destruído o apartamento, buscando o quê, não disseram. Mas não tinham checado o grande vaso de flores de cerâmica no terraço com vista para o pátio interno. Tinham, sim, brutalizado os gerânios de Hanifa, mas deixado de fuçar o solo úmido.
O objeto que ela havia escondido ali, embrulhado num pano oleoso, guardado num ziplock de plástico, estava na palma da sua mão. Ela o tinha conseguido com Tariq, um garoto problemático da comunidade palestina que cometia pequenos crimes, rapper fracassado, delinquente. Tinha dito a Tariq que era para uma reportagem em que estava trabalhando para a ZDF.
Ele não acreditou nela.
O prédio era antigo, e o elevador, instável. Dois ou três minutos se passaram antes de ela ouvir duas pisadas masculinas duras e pesadas no corredor. Uma voz de homem, também. A voz do demônio. Soava como se ele estivesse ao telefone. Falando com o israelense, esperava ela. Que poesia perfeita, pensou. O próprio Darwish não poderia ter escrito melhor.
Ao se encaminhar para o hall, ela viu Omar entrando no consulado às 13h14. Só lhe restava imaginar o que tinha acontecido depois. Será que haviam fingido um breve momento de cordialidade ou o atacado imediatamente como feras selvagens? Esperaram até ele estar morto antes de o despedaçarem ou ele ainda estava vivo e consciente quando a lâmina cortou sua pele? Tal ato não podia ser perdoado, apenas vingado. Khalid sabia disso melhor do que ninguém. Afinal, ele era árabe. Filho do deserto.
Ainda assim, ia na direção dela com um único guarda-costas para protegê-
lo. Talvez ainda fosse o mesmo KBM inconsequente, no fim das contas.
Por fim, a batida. Hanifa alcançou a maçaneta. O guarda-costas se lançou à frente e o demônio escondeu o rosto. Omar, pensou Hanifa ao levantar a arma e atirar. A senha é Omar...
NOTA DO AUTOR
A herdeira é uma obra de entretenimento e não deve ser lida como nada mais do que isso. Os nomes, personagens, lugares e incidentes retratados na história são produto da imaginação do autor ou foram usados de forma fictícia.
A Escola Internacional de Genebra retratada no livro não existe e não deve, de forma alguma, ser confundida com a Ecole Internationale Genève, instituição fundada em 1924 com ajuda da Liga das Nações.
Visitantes do Museu de Arte Moderna de Nova York verão inúmeras obras extraordinárias, incluindo A Noite Estrelada, de Van Gogh, mas nada sob o título de Coleção Nadia al-Bakari. As histórias de Zizi e Nadia al-Bakari são contadas em A inflitrada, publicado originalmente em 2006, e na sua sequência, Retrato de uma espiã. Sarah também aparece em O aliado oculto, As regras de Moscou e O desertor. Gostei de seu retorno ao mundo secreto tanto quanto ela.
Manipulei os horários de aviões e trens para adequar-se às necessidades de minha narrativa, bem como o tempo de acontecimento de eventos do mundo real. O retrato, em A herdeira, do incrível roubo de arquivos nucleares iranianos pela Mossad é inteiramente especulativo, e não se baseia em nenhuma informação que eu tenha recebido de fontes israelenses ou americanas. Tenho certeza de que a Mossad não planejou nem supervisionou a operação real de um prédio anônimo localizado no Boulevard Rei Saul em Tel Aviv, já que essa é a localização apenas do meu
“Escritório” fictício. O capítulo 7 deste livro contém uma referência não tão velada à localização verdadeira da sede da Mossad, que, como o endereço de Gabriel Allon na rua Narkiss, é um dos segredos mais mal guardados de Israel.
Não há unidade de contraterrorismo francesa conhecida como Grupo Alpha, pelo menos não que eu conheça. Um ótimo estabelecimento chamado Brasserie Saint-Maurice ocupa o térreo de uma velha casa na Annecy medieval, e o popular Café Remor tem vista para a place du Cirque em Genebra. Ambos costumam estar livres de agentes de inteligência e assassinos, bem como a charmosa Plein Sud na avenue du Général Leclerc, em Carcassonne. Natural High é o nome do pavilhão na
praia na adorável cidade de veraneio holandesa de Renesse. Até onde sei, nem Gabriel Allon, nem Rebecca Philby jamais puseram os pés lá.
Não é aconselhável tentar reservar um quarto no Bedford House nem no East Anglia Inn em Frinton-on-Sea, pois nenhum dos dois existe. Há, de fato, uma marina às margens do rio Twizzle, em Essex, mas o brutal assassinato do guarda por Nikolai Azarov podia muito bem ter sido testemunhado por clientes do restaurante Harbour Lights. Pouco antes de entrar no Dorchester, em Londres, Christopher Keller tomou emprestada uma fala da versão cinematográfica de 007 contra o satânico Dr. No para descrever a potência de uma pistola Walther PPK. Devotos de F. Scott Fitzgerald devem ter notado que Gabriel e Sarah Bancroft trocam duas falas de O grande Gatsby enquanto jantam num restaurante italiano perto da esquina da Second Avenue com a East Sixty-Fourth Street, em Manhattan. Há rumores de que o restaurante seja o Primola, meu favorito no Upper East Side.
É verdade que visitantes do número 10 da Downing Street, muitas vezes, veem um gato malhado marrom e branco à espreita perto da famosa porta preta. O nome dele é Larry, e ele foi agraciado com o título de Caçador de Ratos Chefe do Escritório do Gabinete. Peço desculpas ao proprietário da casa de St. Luke’s Mews, 7 em Notting Hill por transformar seu lar numa casa segura do MI6, e aos ocupantes dos números 70 e 71 da Eaton Square por usar suas elegantes propriedades como cenário de um assassinato russo. Estou confiante de que nenhum primeiro-ministro britânico ou chefe do MI6, caso soubessem de tal plano, teriam permitido que acontecesse, mesmo que o resultado final fosse um desastre estratégico e de relações públicas para o presidente russo e seus serviços de inteligência.
Escolhi não identificar o veneno radioativo usado por meus assassinos russos fictícios. Suas propriedades mortais, porém, são claramente similares ao polônio-210, elemento químico altamente radioativo usado em novembro de 2006 no assassinato de Alexander Litvinenko, ex-oficial de inteligência russo e dissidente que morava em Londres. A reação débil da Inglaterra ao uso de uma arma de destruição em massa em seu solo sem dúvidas encorajou o Kremlin a mirar em um segundo russo vivendo no país, Sergei Skripal, em março de 2018. Ex-oficial do GRU, o serviço de inteligência do exército russo, e agente duplo, Skripal sobreviveu após ser exposto ao agente nervoso Novichok, da era soviética. Mas Dawn
Sturgess, de 44 anos, mãe de três filhos que morava perto de Skripal na cidade de Salisbury, morreu quatro meses depois do ataque inicial, uma vítima colateral da guerra do presidente russo Vladimir Putin contra a dissidência. Não é surpreendente que Putin tenha ignorado um pedido do filho da mulher para que autoridades britânicas interrogassem os dois assassinos russos suspeitos.
Não existe o Centro de Dados Real em Riad, mas há algo bem parecido: o ridiculamente chamado Centro para Estudos e Assuntos de Mídia (Center for Studies and Media Affairs, em inglês). Chefiado por Saud al-Qahtani, cortesão e confidente próximo do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, o centro obteve seu arsenal inicial de armas cibernéticas sofisticadas de uma firma italiana chamada Hacking Team. Depois, adquiriu software e expertise da DarkMatter, baseada nos Emirados Árabes, e do NOS Group, uma empresa israelense que, supostamente, emprega veteranos da Unidade de Inteligência 8200, o serviço de espionagem eletrônica e ciberguerra. Segundo o The New York Times, a DarkMatter também contratou graduados da Unidade 8200, além de vários americanos previamente empregados pela CIA e a NSA. Aliás, consta que um dos principais executivos da empresa trabalhou em algumas das operações cibernéticas mais avançadas da NSA.
Saud al-Qahtani supervisionava mais que o Centro para Estudos e Assuntos de Mídia. Também liderou o Grupo de Intervenção Rápida saudita, unidade clandestina responsável pelo brutal assassinato e desmembramento de Jamal Khashoggi, jornalista saudita dissidente e colunista do Washington Post. Onze sauditas estão enfrentando acusações criminais pelo crime, que foi executado dentro do consulado saudita em Istambul em outubro de 2018. Oficiais do país árabe alegaram, entre outras coisas, que os agentes agiram de forma unilateral. A CIA, porém, concluiu que o assassinato foi ordenado por ninguém menos que o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman.
Não pela primeira vez, o presidente Donald Trump discordou das descobertas de sua comunidade de inteligência. Num comunicado escrito, ele repetiu as alegações sauditas de que Khashoggi era um “inimigo de Estado” e membro da Irmandade Muçulmana, antes de, aparentemente, absolver MBS de ser cúmplice na morte do jornalista. “Pode muito bem ser que o príncipe herdeiro tivesse conhecimento desse acontecimento
trágico — talvez tivesse e talvez não tivesse.” E continuou: “Em todo caso, nosso relacionamento é com o Reino da Arábia Saudita.”
Mas o país não é uma democracia com instituições entrincheiradas. É
uma das últimas monarquias absolutistas do mundo. E, a não ser que haja outra mudança na linha sucessória, será governada, talvez por décadas, pelo comprovadamente inconsequente Mohammed bin Salman. Meu príncipe herdeiro saudita fictício — um KBM educado no Ocidente e falante de inglês —, no fim, era uma figura capaz de redenção. Receio que Mohammed bin Salman não possa ser restaurado. Sim, ele fez reformas modestas, incluindo dar às mulheres o direito de dirigir, algo há muito proibido no retrógrado reino. Mas, ao mesmo tempo, impôs uma ofensiva dura contra dissidentes sem paralelo na história saudita recente. MBS
prometeu mudanças. Em vez disso, entregou instabilidade à região e repressão em casa.
Por enquanto, o relacionamento entre Estados Unidos e Arábia Saudita parece congelado, e MBS está viajando pelo mundo em busca de amigos.
Xi Jinping, da China, recebeu-o em Pequim no início de 2019. Numa cúpula do G20 em Buenos Aires, MBS trocou um indecoroso “high five”
com Vladimir Putin. Uma fonte próxima ao príncipe herdeiro me disse que o cumprimento efusivo era uma mensagem aos críticos do monarca no Congresso norte-americano. A Arábia Saudita, segundo ele, já não contava mais só com a proteção dos americanos. A Rússia estava esperando por ele de braços abertos, sem mais questionamentos.
Uma década atrás, um alerta tão explícito teria sido vazio. Não mais. A intervenção de Putin na Síria tornou a Rússia novamente uma potência a ser temida no Oriente Médio, e os amigos tradicionais dos Estados Unidos notaram. O pai de MBS, rei Salman, fez uma única viagem ao exterior. Foi a Moscou. O emir do Catar envergonhou o governo Trump parando em Moscou na véspera de uma visita a Washington. Al-Sisi, do Egito, visitou a capital russa quatro vezes. Benjamin Netanyahu também. Até Israel, aliado mais próximo dos Estados Unidos no Oriente Médio, está se protegendo como pode na região. A Federação Russa é poderosa demais para ser ignorada.
Mas um líder saudita quebraria o laço histórico com os Estados Unidos e se inclinaria na direção da Rússia? Uma versão disso já começou, e é Mohammed bin Salman que está se inclinando para Moscou. A relação entre americanos e sauditas nunca foi baseada em valores comuns, apenas em petróleo. MBS sabe muito bem que os Estados Unidos, agora grande produtor de energia, já não precisam do petróleo saudita como antes. No país de Putin, porém, ele encontrou um parceiro para ajudar a lidar com o fornecimento global de óleo e seu importantíssimo preço. Também achou, se necessário, uma fonte de armas e um canal valioso até os xiitas iranianos. E, talvez, o mais importante de tudo: MBS pode descansar tranquilo sabendo que seu novo amigo nunca o criticará por matar um jornalista enxerido. Afinal, os russos também são muito bons nisso.
Daniel Silva
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