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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HERDEIRA 2 / Sidney Sheldon
A HERDEIRA 2 / Sidney Sheldon

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A HERDEIRA

 

LIVRO SEGUNDO

 

Capítulo 15

Portugal. Quarta-feira, 9 de setembro. Meia-noite.

Num quarto de um pequeno apartamento da Rua dos Bombeiros, Numa das ruas escusas e tortuosas do Alto Estoril, estavam rodando uma cena para um filme. Havia quatro pessoas no quarto.

Um cameraman, os dois actores sentados na cama, um homem de cerca de trinta anos e uma mulher loura e jovem de uma beleza estonteante, que não usava coisa alguma a não ser uma fita vermelha em volta do pescoço. O homem era alto, com ombros largos de atleta e um peito largo, Estranhamente desprovido de pêlos. Seu pénis, mesmo não erecto, era enorme. A quarta pessoa era um espectador, sentado em segundo plano. Usava óculos escuros e um chapéu preto de abas largas.

O cameraman olhou para o espectador e este lhe fez um sinal.

O cameraman ligou a máquina e disse aos actores:

- Pronto! Acção!

O homem ajoelhou-se ante a mulher, e ela tomou seu pénis na boca, até que ele começou a endurecer. Numa pausa a mulher disse:

- Nossa, como é grande! E depois, à ordem do cameraman, o homem penetrou-a.

- Devagar, querido. - Ela tinha uma voz alta e lamuriosa.

- Parece que você está gostando.

- Como posso gostar? Tem o tamanho de uma melancia.

O espectador se inclinava na sua cadeira e acompanhava tudo o que estava acontecendo. Estava com a respiração ofegante.

Aquela mulher era a terceira, e ainda mais bela que as outras.

A mulher começou a agitar-se e a gemer na cama.

- Sim, sim - gemeu. - Não pare! - Ela segurou o homem pelos quadris e puxou-o em sua direcção. O homem reagiu fazendo movimentos mais vigorosos e rápidos. Ela enterrou suas unhas nas costas nuas do homem. - Oh, sim - ela gemeu -, sim, sim, sim! Vou gozar!

O cameraman voltou-se para o espectador e este fez um sinal, com os olhos a brilhar por trás dos óculos escuros.

- Agora! - disse o cameraman ao homem em cima da cama.

A mulher, empolgada nas suas sensações, nem o ouviu. Enquanto seu rosto se enchia de êxtase, as grandes mãos do homem se fecharam em torno do seu pescoço e ela começou a debater-se, num esforço desesperado para respirar. Olhou para o homem, espantada, e então os seus olhos encheram-se de uma súbita e aterrorizada compreensão.

O espectador pensou: É esse o momento! Os olhos dela!

Os olhos estavam dilatados de terror. Lutou em vão para livrar-se das mãos de ferro que lhe apertavam o pescoço. O seu orgasmo e os estertores da morte se fundiram.

O espectador tinha o corpo ensopado de suor. A excitação era insuportável. No meio do mais refinado prazer da vida, a mulher morria.

De súbito, tudo acabou. O espectador estava exausto, abalado por espasmos, com os pulmões cheios de longos haustos entrecortados. A mulher fora punida.

O espectador se sentia como um deus.

 

Capítulo 16

Zurique. Sexta-feira, 11 de setembro. Meio-dia.

A sede mundial da Roffe and Sons ocupava vinte e cinco hectares ao lado do Sprettenbach, nos arredores da parte oeste de Zurique. O edifício da administração consistia numa estrutura moderna de doze andares com paredes de vidro, elevando-se sobre um imenso conjunto de edifícios de pesquisa, fábricas, usinas, laboratórios experimentais, divisões de planeamento e ramais de caminhos de ferro. Era o centro nervoso do vasto império da Roffe and Sons.

O vestíbulo de recepção era arrojadamente moderno, decorado de verde e branco, os móveis dinamarqueses. Uma recepcionista ficava sentada a uma mesa de vidro, e as pessoas admitidas no interior do edifício tinham de ser acompanhadas por um guia.

Nos fundos do vestíbulo, do lado direito, havia uma série de elevadores, um deles reservado para o presidente da companhia.

Naquela manhã, esse elevador particular tinha sido usado pelos componentes da directoria. Haviam chegado nas últimas horas vindos de vários pontos do mundo, de avião, trem, helicópteros e automóvel. Estavam reunidos naquele momento no grande salão da directoria, de alto pé-direito e paredes revestidas de carvalho. Lá estavam Sir Alec Nichols, Walther Gassner, Ivo Palazzi e Charles Martel. A única pessoa presente que não fazia parte da directoria era Rhys Williams.

Refrescos e drinques estavam servidos numa mesa ao lado, mas ninguém se mostrava interessado. Todos estavam tensos e nervosos.

Kate Erling, uma suíça eficiente de quase cinquenta anos, entrou na sala e anunciou:

- O carro da Senhorita Roffe acaba de chegar.

Correu os olhos pela sala a fim de ver se tudo estava em ordem: canetas, blocos de papel e garrafas de prata com água diante de cada cadeira, charutos e cigarros, cinzeiros e fósforos. Kate Erling fora secretária particular de Sam Roffe durante quinze anos. O facto de ele estar morto não era motivo para que ela baixasse os seus padrões de eficiência. ao ver que tudo estava correcto, retirou-se da sala.

Embaixo, em frente ao edifício da administração, Elizabeth Roffe estava saltando de um carro. Usava um costume escuro e uma blusa branca. Não tinha qualquer maquilhagem.

Parecia ter menos do que os seus vinte e quatro anos e estava muito pálida e abatida.

Os jornalistas estavam à espera dela. Foi logo cercada pelos repórteres dos jornais e da televisão, munidos de câmaras e microfones.

-Sou do L'Europeu, Senhorita Roffe. Quer fazer alguma declaração.

Quem vai dirigir agora a companhia?

- Olhe para cá, Senhorita Roffe. Pode dar um sorriso para os nossos leitores?

- Sou da Associated Press, Senhorita Roffe. Quer falar sobre o testamento de seu pai?

- Do Daily News, de Nova York. Seu pai não era um bom alpinista? Já o encontraram?

- Do Wall Street Journal. Quer dizer-nos alguma coisa sobre a situação da companhia?

- Sou do Times, de Londres. Pretendemos escrever um artigo sobre a Roffe e...

Elizabeth seguiu pelo vestíbulo, escoltada por três guardas de segurança que abriam caminho por entre os repórteres.

- Mais uma fotografia, Senhorita Roffe...

Elizabeth se viu por fim no elevador, cujas portas se fecharam. Deu um suspiro e estremeceu. Sam estava morto. Porque não a deixavam em paz?

Alguns instantes depois, Elizabeth entrava na sala da directoria. Alec Nichols foi a primeira pessoa a cumprimentá-la. Passou os braços pelos ombros dela e disse:

- Meus sentimentos, Elizabeth. Foi um choque para todos nós.

Vivian e eu tentamos telefonar-lhe, mas...

- Eu sei. Muito obrigada, Alec. Obrigada por sua carta.

Ivo Palazzi aproximou-se e beijou-a nas duas faces.

- O que é que posso dizer, cara? Você está bem?

- Muito bem. Obrigada, Ivo. - Voltou-se. - Alo, Charles.

- Elizabeth, Hélène e eu ficamos arrasados. Se houver alguma coisa que possamos fazer...

- Obrigada.

Walther Gassner se aproximou de Elizabeth e disse sinhestramente.

- Anna e eu queremos exprimir o nosso grande pesar pelo que aconteceu a seu pai...

- Obrigada, Walther.

Não queria estar ali entre toda aquela gente que lhe lembrava o pai. Queria fugir, ficar sozinha.

Rhys Williams estava de lado, pensando: Se não pararem com isso, ela vai ter alguma coisa.

Aproximou-se deliberadamente do grupo, estendeu a mão e disse:

- Alo, Liz.

- Alo Rhys.

Vira-o pela última vez quando ele fora até sua casa para dar-lhe a notícia da morte de Sam. Parecia que haviam se passado anos. Fora apenas uma semana antes.

Rhys tinha consciência do esforço que Elizabeth estava fazendo para manter a linha. Disse então:

- Já que todos estão aqui, por que não começamos? Não vai demorar muito - acrescentou com um sorriso para tranquilizá-la.

Ela sorriu, agradecendo. Os homens tomaram os seus lugares habituais em volta da grande mesa rectangular de carvalho. Rhys levou Elizabeth para a cabeceira da mesa e puxou uma cadeira para ela.

A cadeira de meu pai, pensou Elizabeth.

Charles disse então:

- Como não temos uma agenda, proponho que Sir Alec assuma a direcção dos trabalhos.

Alec olhou em torno e, como todos manifestaram a sua aprovação, disse:

- Muito bem.

Apertou um botão que estava à sua frente na mesa e Kate Erling voltou com o caderno de notas. Fechou a porta, puxou uma cadeira, preparou o caderno e as canetas e esperou.

- Creio que, em vista das circunstâncias, podemos dispensar as formalidades - disse Alec. - Todos nós sofremos uma terrível perda, mas o essencial agora é que a Roffe and Sons mostre ao público uma atitude coesa e firme.

- De acordo - disse Charles. - Temos sido muito atacados pela imprensa.

Elizabeth olhou para ele e perguntou:

- Por quê?

Foi Rhys quem explicou:

- A companhia está enfrentando alguns problemas excepcionais nestes últimos tempos, Liz. Estamos envolvidos em questões jurídicas delicadas, estamos sobre investigação do governo e alguns bancos estão fazendo pressão sobre nós. Nada disso é bom para a companhia. O público adquire produtos farmacêuticos porque tem confiança na companhia que os fabrica. Se perdermos essa confiança, perderemos os nossos fregueses.

- Não há porém, um só problema que não possa ser resolvido disse Ivo. - O essencial é reorganizar imediatamente a companhia.

- Como? - perguntou Elizabeth.

- Vendendo nossas acções ao público - respondeu Walther.

Charles acrescentou:

- Dessa maneira, podemos liquidar os nossos empréstimos bancários e ainda teremos dinheiro de sobra para...

Não concluiu a frase e Elizabeth se voltou para Alec.

- Está de acordo com isso?

- Creio que todos nós estamos de acordo, Elizabeth.

Ela se recostou na cadeira, pensando. Rhys se aproximou dela com alguns papéis.

- Já mandei preparar todos os documentos necessários. Terá apenas que assinar.

Elizabeth olhou para os papéis à sua frente e perguntou:

- Se eu assinar esses documentos, o que vai acontecer?

Foi Charles quem falou:

- Temos cerca de uma dúzia de escritórios internacionais de corretagem prontos a formar um consórcio para subscrever a nossa emissão. Garantirão a venda pelo preço que mutuamente assentarmos. Numa oferta tão grande assim, haverá compras de instituições e de particulares em grande número.

- Por exemplo, bancos e companhias de seguro? - perguntou Elizabeth.

- Exactamente.

- E haverá homens de confiança deles na directoria da companhia?

- É de praxe...

- Quer dizer que, na realidade, eles passariam a controlar a Roffe and Sons?

- Nós continuaríamos na directoria - apressou-se em dizer Ivo.

Elizabeth voltou-se para charles.

- Disse que há um consórcio de correctores, ainda não entraram em acção?

- Não compreendo, Elizabeth...

- Escute, se todos aqui estão de acordo em que a melhor coisa para a companhia é deixar de pertencer à nossa família e passar às mãos de estranhos, por que isso ainda não foi feito?

Houve um silêncio constrangido, e afinal Ivo disse:

- Uma decisão assim exige um consenso unânime. Toda a directoria tem de concordar.

- Quem não concordava?. - perguntou Elizabeth.

O silêncio foi mais longo desta vez.

- Sam - disse finalmente Rhys.

Elizabeth compreendeu então o que a havia perturbado desde que entrara naquela sala. Todos tinham manifestado as suas condolências, o choque e o pesar que sentiam com a morte do pai dela, mas, ao mesmo tempo, havia na sala uma atmosfera de ansiedade e expectativa, um sentimento de vitória! Não lhe era possível fugir dessa impressão. Todos os papéis estavam prontos para ela. Teria apenas de assinar. Mas, se o que pretendiam era certo, por que o pai dela se opusera? Fez essa pergunta em voz alta.

- Ora, Sam tinha lá as suas ideias - disse Walther. - Seu pai era, às vezes, muito obstinado em certas coisas.

Como o velho Sam, pensou Elizabeth. Nunca se deve deixar uma raposa dócil entrar no galinheiro. Um dia, a raposa pode ter fome. E Sam não quisera vender. Deveria ter tido muito boas razões.

Ivo disse:

- Creio, cara, que é melhor deixar tudo isso connosco. Você não entende dessas coisas.

- Mas gostaria de entender - disse calmamente Elizabeth.

- Porquê incomodar-se com essas coisas? - perguntou Walther.

- Quando as acções forem vendidas, terá uma enorme fortuna, mais do que conseguirá gastar. Poderá ir viver onde quiser e gozar a vida.

O que Walther dizia era sensato. Por que iria ela envolver-se naquelas coisas? Bastava assinar os papéis que estavam à sua frente e ir-se embora.

- Elizabeth, estamos simplesmente perdendo tempo - disse Charles, com impaciência. - Não pode fazer outra coisa.

Foi nesse momento que Elizabeth compreendeu que poderia fazer o que quisesse, como seu pai. Podia afastar-se e deixar que eles fizessem o que bem entendessem com a companhia ou ficar e descobrir por que estavam todos eles tão ansiosos por vender as acções e exerciam sobre ela uma pressão tão visível. Não só visível como quase material. Todos naquela sala desejavam que ela assinasse o quanto antes aqueles papéis.

Olhou para Rhys. Gostaria de saber o que ele estava pensando.

Mas a sua expressão era indefinível. Olhou para Kate Erling, que tinha sido por muito tempo secretária de seu pai. Elizabeth gostaria de ter uma palavra em particular com ela. Todos olhavam para Elizabeth, à espera de que ela assinasse.

- Não vou assinar - disse ela. - Pelo menos, por enquanto.

Houve um momento de atónito silêncio. Walther disse então:

- Não compreendo, Elizabeth. É claro que você deve assinar.

Tudo já está providenciado nesse sentido.

- Walther tem razão! - exclamou Charles irritadamente. - Você tem de assinar!

Começaram a falar ao mesmo tempo, numa confusão exaltada de palavras que iam quebrar-se de encontro a Elizabeth.

- Por que não quer assinar? - perguntou afinal Ivo.

Ela não podia dizer: "Porque meu pai não assinaria. Porque vocês estão me forçando". Tinha a nítida impressão de que havia alguma coisa errada em tudo aquilo, e estava decidida a descobrir o que era. Mas, naquele momento, disse apenas:

- Quero um pouco de tempo para pensar no assunto.

Os homens se entreolharam.

- Quanto tempo, cara? perguntou Ivo.

- Não sei ainda. Gostaria de compreender os factos e as questões em jogo.

Walther exclamou iradamente:

- Ora essa! Não podemos...

Mas Rhys atalhou firmemente:

- Acho que Elizabeth tem razão.

Os outros voltaram-se para ele.

- Ela deve ter oportunidade de ver com clareza os problemas que a companhia está enfrentando e chegar a uma decisão.

Todos pensaram no que Rhys havia dito.

- Concordo com isso - disse Alec.

- Não faz diferença concordarmos ou não - disse amargamente Charles. - Elizabeth é quem tem o controle de tudo.

Ivo olhou para Elizabeth.

- Precisamos de uma decisão rápida, cara.

- Está bem.

Todos a olharam, cada qual ocupado com os seus pensamentos.

Um deles pensava: "Ela também terá de morrer".

 

Capítulo 17

Elizabeth estava impressionada.

Havia estado outras vezes na sede da companhia em Zurique, mas sempre como visitante. O domínio sobre tudo aquilo pertencia a seu pai. Agora, o domínio era dela.

Olhava para o enorme escritório e sentiu-se como uma intrusa.

A sala fora magnificamente decorada por Ernst Hohl. Num canto, havia um armário de Roentgen, sobre o qual se via uma paisagem de Millet. Diante da lareira, havia um sofã de camurça, com uma mesa de café e quatro poltronas. Nas paredes, telas de Renoir, Chagall e Klee, bem como dois quadros da primeira fase de Courbet. A mesa era um bloco sólido de mogno preto. ao lado dela, numa mesa menor, havia um complexo de comunicações - telefones em ligação directa com as filiais da companhia através do mundo. Havia dois telefones vermelhos com dispositivos para baralhar as palavras, um sistema sofisticado de interfones, um telégrafo de fitas e outros equipamentos.

Atrás da mesa via-se um retrato do velho Samuel Roffe.

Uma porta levava a uma sala particular com armários de cedro e gavetas forradas. Tinham levado dali todas as roupas de Sam, e Elizabeth ficou satisfeita com isso.

Depois da sala, havia um banheiro revestido de ladrilhos, com uma banheira e box. Havia toalhas limpas nos cabides. O armário de remédios estava vazio.

Todas as coisas de uso pessoal de seu pai tinham sido retiradas dali, talvez pela secretária. Elizabeth pensou por um instante na possibilidade de que Kete Erling tivesse amado Sam.

Havia ainda, como partes do escritório de Sam, uma grande sauna, um ginásio bem equipado, uma barbearia e uma grande sala de jantar, com acomodação para cem pessoas.

Quando se recebiam convidados estrangeiros, uma pequena bandeira do país deles era colocada no ornamento floral ao centro da mesa.

Além disso, havia a sala de jantar particular de Sam, decorada com muito gosto e com paredes ornadas de murais.

Kate Erling havia explicado a Elizabeth:

- Há dois cozinheiros de serviço durante o dia e um à noite.

Se houver mais de doze convidados para o almoço ou para o jantar, eles precisam ser avisados apenas duas horas antes.

Naquele momento, Elizabeth estava sentada à mesa abarrotada de papéis, memorandos, estatísticas e relatórios, e não sabia por onde começar. Pensou no pai ali sentado naquela cadeira e sentiu-se dominada por uma terrível impressão de abandono. Sam era tão competente, tão brilhante! Como precisava dele naquele momento!

Elizabeth vira Alec apenas por alguns instantes antes que ele partisse para Londres.

- Tenha calma - dissera ele. - Não deixe ninguém forçá-la a fazer coisa alguma.

Ele tinha percebido os sentimentos dela.

- Alec, acha mesmo que eu devo permitir a venda das acções da companhia ao público?

Ele sorriu e dissera com algum constrangimento:

- Acho que sim, minha filha, mas acontece que eu sou interessado no caso. Nossas acções não têm valor para qualquer de nós enquanto não pudermos vendê-las. Cabe a você decidir.

Elizabeth pensava nessa conversa ao ver-se ali sentada no grande escritório. A tentação de telefonar para Alec era quase irresistível. Bastava que dissesse que havia mudado de ideia.

Poderia então ir-se embora. Aquele não era o lugar dela.

Sentiu-se deslocada e incapaz.

Olhou para os botões do interfone na mesa do lado. Pensou um momento e então apertou o botão que tinha o nome de Rhys Williams.

Rhys estava sentado diante dela. Elizabeth sabia muito bem o que ele estava pensando. Era o mesmo que os outros. Ela não tinha o que fazer ali.

- Você jogou uma verdadeira bomba hoje, na reunião - disse Rhys.

- Sinto muito a surpresa que causei.

- Surpresa não é bem a palavra - disse ele com um sorriso. Você aniquilou todo mundo. Julgava-se o caso pronto e resolvido. Os comunicados à imprensa já estavam até prontos.

Escute, Liz. Por que você resolveu não assinar?

Como é que ela podia explicar? Como podia dizer que tudo não havia passado de uma vaga intuição? Rhys iria rir dela.

Entretanto, Sam Roffe nunca vendera as acções da companhia. Ela estava empenhada em saber o motivo.

Como se lhe tivesse adivinhado os pensamentos, Rhys disse:

- Seu trisavô fundou a companhia como um negócio de família, fechado aos estranhos. Mas no tempo de seu trisavô, a companhia era pequena. As coisas mudaram muito desde então. Hoje, temos uma das maiores indústrias de produtos farmacêuticos do mundo.

Quem se sentar aí na cadeira de seu pai terá de tomar todas as decisões importantes. É uma responsabilidade tremenda.

Seria aquela a maneira de Rhys dizer-lhe que tinha de sair?

- Está disposto a ajudar-me?

- Você bem sabe que sim.

Elizabeth sentiu uma onda de alívio e compreendeu quanto havia contado com ele.

- A primeira coisa que temos de fazer - disse então Rhys - é levá-la para correr as fábricas aqui em Zurique. Sabe alguma coisa sobre a estrutura física da companhia?

- Quase nada.

Não era bem verdade. Elizabeth havia comparecido nos últimos anos a muitas reuniões de Sam e tinha alguma ciência do funcionamento da Roffe and Sons. Mas queria saber tudo do ponto de vista de Rhys.

- Nós fabricamos apenas medicamentos, Liz. Produzimos também substâncias químicas, perfumes, vitaminas, sprays para cabelos e pesticidas. Fabricamos produtos de beleza e outros bioeletrónicos. Temos ainda uma divisão de alimentos e outra de nitratos animais. Publicamos revistas adesivos, material de protecção para construção e explosivos plásticos.

Elizabeth notara o entusiasmo dele pelo que dizia e, ao perceber-lhe um tom de orgulho na voz, lembrou-se estranhamente do pai.

- A Roffe and Sons tem fábricas e companhias que possuem a maioria das acções de outras em mais de cem países. Todas elas directamente subordinadas a este escritório.

- Fez uma pausa, como se quisesse ter certeza de que ela estava compreendendo.

- O velho Samuel começou com uma égua velha e um tubo de ensaio. Tudo se expandira em sessenta fábricas através do mundo, dez centros de pesquisas e um conjunto de milhares de vendedores e propagandistas.

Elizabeth sabia que eram eles que visitavam os médicos e os hospitais.

- No ano passado, Liz, só nos Estados Unidos, gastaram-se catorze biliões de dólares em medicamentos, e uma parte substancial desse movimento foi nossa.

Apesar disso, a Roffe and Sons enfrentava problemas com os bancos. Alguma coisa devia estar errada.

Rhys levou Elizabeth para correr as fábricas da sede da companhia. A divisão de Zurique constava de doze fábricas espalhadas por setenta e cinco edifícios nos vinte e cinco hectares de terreno. Era um mundo em miniatura, completamente auto-suficiente. Visitaram as fábricas, os departamentos de pesquisa, os laboratórios de toxicologia, os depósitos. Rhys levou Elizabeth a um estúdio de cinema onde se faziam filmes para pesquisas e para as divisões de publicidade e de produtos do mundo inteiro.

- Usamos mais filmes aqui - disse Rhys - do que qualquer grande estúdio de Hollywood.

Passaram pelo departamento de biologia molecular e pelo centro de líquido, onde cinquenta gigantescos tanques de aço inoxidável estavam cheios de líquidos prontos para serem engarrafados. Viram as salas de comprimidos, onde diversas espécies de pó recebiam a forma de comprimidos, que eram marcados com o nome Roffe, embalados e rotulados sem que a pessoa tocasse neles. Alguns dos produtos eram destinados a venda sob prescrição médica, ao passo que outros podiam ser livremente vendidos nas farmácias.

Separados dos outros, havia vários edifícios menores.

Destinavam-se aos cientistas: analistas, químicos, bioquímicos, químicos orgânicos, parasitologistas, patologistas.

- Mais de trezentos cientistas trabalham aqui - disse Rhys.

- Agora, vou mostrar-lhe a Sala dos Cem Milhões de Dólares.

Era um edifício de tijolo isolado dos outros, vigiado por um guarda armado. Rhys mostrou a sua carteira de director, e ele e Elizabeth entraram por um cumprido corredor ao fim do qual havia uma porta de aço. O guarda usou duas chaves para abrir a porta, e Elizabeth e Rhys entraram. A sala não tinha janelas. Do chão ao tecto estava cheia de estantes, nas quais se via uma extensa variedade de frascos, jarros e tubos.

- Por que se chama isto aqui de Sala dos Cem Milhões de Dólares? - perguntou Elizabeth.

- Porque foi o que se gastou para enchê-la. Está vendo esses recipientes nas prateleiras? Nenhum deles tem nome, mas apenas um número. São as substâncias que não deram resultado. São os nossos insucessos.

- Mas, por que cem milhões?

- Para cada novo medicamento aprovado, há talvez mil outros que terminam nesta sala e então abandonados. Um medicamento pode custar cinco ou dez milhões de dólares em trabalhos de pesquisa, até chegar à conclusão que não serve para o fim a que se destina ou que alguém o fabricou antes de nós. Não jogamos nada fora, pois pode acontecer que algum dos nossos moços brilhantes faça uma descoberta que torne valiosa alguma coisa existente nesta sala.

As quantias envolvidas em tudo aquilo eram fantásticas.

- Agora, vou lhe mostrar a Sala do Prejuízo.

Ficava noutro edifício e, como a outra, estava cheia de estantes de vidros.

- Perdemos uma fortuna aqui - disse Rhys. - Mas tudo foi planeado.

- Não compreendo.

Rhys pegou duma prateleira um vidro que tinha o rótulo "Botulismo".

- Sabe quantos casos de Botulismo nos Estados Unidos, no ano passado? Vinte e cinco apenas. Mas, quando recorreram a nós, tínhamos em estoque o medicamento necessário, muito embora isso nos custasse milhões de dólares. Esta sala está cheia de medicamentos para doenças raras - venenos de determinadas cobras, plantas venenosas, etc.

Fornecemos esses medicamentos gratuitamente às forças armadas e aos hospitais, como um serviço público.

- Gosto disso - murmurou Elizabeth, e pensou que o velho Samuel teria gostado também.

Rhys levou Elizabeth à divisão de cápsulas, onde frascos vazios eram transportados através de esteiras rolantes. ao sair da sala, os vidros tinham sido esterilizados, enchidos de cápsulas, rotulados, tapados com algodão e fechados. Todo o processo era automático.

Havia uma fábrica de frascos, uma divisão de arquitectura para o planeamento de novos edifícios e uma divisão imobiliária para tratar da compra e da adaptação dos terrenos.

Num edifício, havia dezenas de redactores escrevendo bulas e prospectos em cinquenta línguas, ao lado de impressoras que os imprimiam.

Alguns departamentos fizeram Elizabeth pensar no 1984 de George Orwell. As salas de esterilização eram banhadas em fantásticas luzes ultravioletas. As salas adjacentes eram pintadas de cores diferentes - branco, verde ou azul -, e as pessoas que nelas trabalhavam usavam roupas de cores correspondentes. Cada vez que uma delas entrava ou saía da sala, tinha de passar por uma câmara especial de esterilização.

Os trabalhadores de roupa azul ficavam trancados o dia inteiro.

Antes que pudessem comer, descansar ou ir ao banheiro, tinham de tirar a roupa, entrar numa zona verde neutra, vestir outra roupa, e inverter o processo quando voltassem.

- Creio que vai achar isso muito interessante - disse Rhys.

Iam pelo corredor cinzento de um edifício de pesquisa.

Chegaram a uma porta, na qual se via o letreiro: "Reservado Não entre". Rhys empurro a porta e entrou com Elizabeth.

Passaram por outra porta, e Elizabeth se viu numa sala iluminada com uma luz fraca. Havia centenas de gaiolas com animais. A sala estava quente e húmida, e ela se sentiu de repente transportada para uma selva. Quando habituou os olhos à luz fraca, viu que as gaiolas estavam cheias de macacos, hamsters, gatos e ratos brancos.

Muito dos animais tinham excrescências de aspecto repulsivo a projectar-se de várias partes do corpo. Alguns animais estavam com as cabeças raspadas e mostravam

eléctrodos que lhes tinham sido implantados nos cérebros. Muito deles gritavam em tremenda algazarra, correndo dentro das gaiolas, enquanto outros pareciam em estado comatoso e letárgico. O barulho e o mau cheiro eram insuportáveis. Era uma espécie de inferno.

Elizabeth aproximou-se de uma gaiola em que havia um gatinho branco. O cérebro do animal estava exposto, dentro de um revestimento claro de plástico, do qual se projectava meia dúzia de fios.

- Para... para que isso? - perguntou Elizabeth.

Um homem alto e barbado, que tomava algumas notas em frente das gaiolas, explicou:

- Estamos testando um novo tranquilizante.

- Espero que dê resultado - murmurou Elizabeth. - Bem que eu ando precisando disso.

E saiu da sala antes de começar a passar mal.

Rhys estava ao lado dela no corredor.

- Está sentindo alguma coisa, Liz?

Ela respirou fundo e disse:

- Estou bem... Mas há mesmo necessidade de tudo isso?

- Essas experiências salvam muitas vidas, Liz. Mais de um terço das pessoas que nasceram depois de 1950 estão vivas graças às drogas modernas. Pense nisso.

Elizabeth assim o fez.

Levaram seis dias inteiros para conhecer os principais edifícios, e quando tudo terminou, Elizabeth estava exausta, atordoada com a vastidão de tudo o que vira.

E compreendia que vira apenas uma parte das instalações da companhia. Havia dezenas delas espalhadas pelo mundo.

Os factos e os números eram espantosos.

"São necessários cinco ou dez anos para lançar no mercado um novo medicamento, e, em geral, de cerca de duas mil substâncias testadas, só aproveitamos três produtos..."

"A Roffe and Sons tem trezentas pessoas trabalhando só no controle de qualidade..." "Há pelo menos meio milhão de pessoas ao serviço da companhia..." "Nossa receita bruta no ano passado foi de..." Elizabeth escutava, procurando assimilar os incríveis números que Rhys lhe revelava. Sabia que a companhia era grande, mas "grande" era um adjectivo quase abstracto. Ter essa grandeza traduzida em termos de pessoas e de dinheiro era estarrecedor.

Naquela noite, Elizabeth ficou na cama a pensar em tudo o que havia visto e ouvido, e foi tomada por um poderoso sentimento de impotência.

Ivo lhe dissera que não devia se meter com essas coisas que não entendia, deixando tudo com eles.

Alec achava que ela devia assinar, embora tivesse interesse na venda das acções.

Walther era de opinião que ela devia assinar, receber uma fortuna e gozar a vida como quisesse.

Eles têm razão, pensou Elizabeth. Vou me afastar e deixar que façam com a companhia o que quiserem. Eu não sou do ramo.

Depois de chegar a essa decisão, o seu alívio foi enorme.

Adormeceu quase imediatamente.

O dia seguinte, era o início de um fim de semana prolongado por um feriado. Quando Elizabeth chegou ao escritório, mandou chamar Rhys para comunicar-lhe a sua decisão.

- O Sr. Williams teve de tomar o avião para Nairóbi, ontem à noite - informou-lhe Kete Erling. - Pediu-me que lhe dissesse que estará de volta na terça-feira. Não serve outra pessoa?

- Faça então uma ligação para Sir Alec.

- Está bem, Senhorita Roffe - disse Kate Erling, com uma nota de hesitação na voz. - A polícia lhe mandou hoje um pacote com os objectos de uso pessoal deixados por seu pai em Chamonix.

A noção de Sam reavivou no mesmo instante a sua dor.

- A polícia pediu desculpas por não haver entregue o pacote ao seu mensageiro. Já lhe havia sido remetido.

- Meu mensageiro?

- Sim, o homem que mandou a Chamonix para pegar tudo.

- Mas eu não mandei ninguém a Chamonix. Onde está o pacote?- perguntou Elizabeth, julgando tratar-se de alguma confusão burocrática.

- Guardei no seu armário.

Encontrou uma mala Vuitton com as roupas de Sam. Havia também uma mala trancada, tendo ao lado a chave. Devia ser papéis da companhia. Entregaria tudo a Rhys para ver de que se tratava.

Lembrou-se, então, de que ele estava ausente. Bom, decidiu ela, também vou passar o fim de semana fora. Olhou então para a pasta e pensou que talvez contivesse alguma coisa pessoal e íntima de Sam. Primeiro tinha que olhar.

Kate Erling falou pelo interfone.

- Sinto muito, Senhorita Roffe, mas Sir Alec não está no escritório.

- Deixe então um recado para que me telefone logo que puder.

Estarei na Villa da Sardenha. Dê o mesmo recado ao Sr. Palazzi, ao Sr. Gassner e ao Sr. Martel.

Diria a todos que ia desistir e que eles podiam vender as acções e fazer o que quisessem.

Pensou com prazer no fim de semana que a esperava. A Villa da Sardenha era um retiro, um casulo protector, onde ela poderia ficar sozinha e pensar em si mesma e no seu futuro. Os acontecimentos haviam se passado com tal rapidez que ela não tivera tempo de ver as coisas sob outro prisma. O acidente de Sam... Elizabeth ainda não aceitava a palavra "morte". Depois, a sua herança do controle da companhia, a pressão da família para que ela vendesse as acções ao público, a própria companhia, a pulsação vibrante de um poder colossal que abarcava o mundo. Era difícil enfrentar tudo isso de uma vez.

Naquela noite, quando tomou o avião para a Sardenha, Elizabeth levava a pasta do pai.

 

Capítulo 18

Ela pegou um táxi no aeroporto. A Villa estava fechada, e Elizabeth não comunicara a ninguém a sua chegada. Entrou e percorreu lentamente as grandes salas, tão suas conhecidas, e teve a impressão de que nunca saíra dali. Só então deu-se conta da falta que sentira de Sardenha e da Villa. Parecia que as poucas lembranças felizes de sua infância ali estavam encerradas. E era muito estranho, estar sozinha naquele labirinto onde sempre tinha havido meia dúzia de empregados a cozinhar, polir e arrumar tudo. Naquele momento, porém, estava sozinha, com os ecos do passado.

Deixou a pasta de Sam no hall de entrada e levou a sua mala para o andar de cima. Como de costume dirigiu-se para seu quarto, no centro do corredor, e então parou.

O quarto do pai ficava no fim do corredor. Elizabeth caminhou até lá. Abriu lentamente a porta porque, embora compreendesse a realidade, um profundo instinto atávico a fazia esperar ver Sam ali, e ouvir o som de sua voz.

O quarto estava logicamente vazio e nada havia mudado nele desde que Elizabeth o vira pela última vez. Continha uma cama grande, uma cómoda com espelho, duas poltronas confortáveis e um sofá diante da lareira. Elizabeth deixou a mala no chão e foi até à janela. As persianas de metal estavam fechadas contra o sol de fim de setembro e os reposteiros, cerrados. Escancarou tudo e deixou que o ar fresco das montanhas entrasse livremente, leve e frio, com a promessa de outono. Dormiria naquele quarto.

Depois desceu e entrou na biblioteca. Sentou-se numa das confortáveis poltronas de couro, passando as mãos pelos lados.

Era sempre ali que Rhys se sentava quando tinha uma conferência com Sam.

Pensou em Rhys e desejou que ele estivesse ali com ela.

Lembrou-se da noite em que ele a levara de volta à escola, depois do jantar em Paris, e de como ela escrevera repetidamente num pedaço de papel "Sra. Rhys Williams".

Num impulso, Elizabeth foi até a mesa, pegou numa caneta e calmamente escreveu "Sra. Rhys Williams". Depois, pensou, com um sorriso: "Quem sabe quantas idiotas estão fazendo a mesma coisa neste momento".

Procurou deixar de pensar em Rhys, mas ele permaneceu na sua mente, agradavelmente reconfortante. Levantou-se e passou uma vista de olhos pela casa. Entrou na grande cozinha antiga, com o seu fogão a lenha e os dois fornos.

Abriu a geladeira. Estava vazia. Não era de esperar outra coisa com a casa fechada. Mas, ao ver a geladeira vazia, de repente sentiu fome. Vasculhou os armários e encontrou duas pequenas latas de atum, um vidro de Nescafé e um pacote fechado de biscoitos. Se ia passar o fim de semana ali, era preciso fazer os seus planos.

Em lugar de sair e fazer todas as refeições na cidade, seria melhor ir a um dos pequenos armazéns de Cala di Volpe e fazer compras para vários dias. Havia sempre um jipe na garagem. Olhou pela porta da cozinha e verificou que o jipe ainda estava lá. As chaves estavam penduradas numa tábua, na parede ao lado do armário. Pegou a chave do jipe e foi até a garagem. Será que havia gasolina no tanque? Girou a chave e pisou o acelerador. O motor começou a funcionar quase imediatamente. Esse problema estava, portanto, eliminado. No dia seguinte pela manhã, iria comprar tudo o que fosse necessário.

Voltou para casa. ao pisar no chão ladrilhado do hall de entrada, ouviu um eco surdo e um tanto assustador dos próprios passos. Desejou que Alec lhe telefonasse e, como por encanto, nesse momento o telefone tocou. Apanhou um susto e foi atender.

- Alo.

- Elizabeth? Aqui é Alec.

Elizabeth deu uma risada.

- De que está rindo?

- Você não acreditaria se eu lhe dissesse. Onde é que você está?

- Em Gloucester.

Elizabeth sentiu o urgente impulso de vê-lo, de comunicar-lhe a sua decisão sobre as acções da companhia. Mas não por telefone.

- Quer fazer-me um favor, Alec?

- Claro. Que é?

- Pegue um avião e venha passar o fim de semana aqui na Sardenha. Quero conversar sobre uma coisa muito importante com você.

Houve apenas uma breve hesitação, e Alec disse:

- Está bem.

Nem uma palavra sobre compromissos já assumidos, sobre os possíveis transtornos. Apenas "Está bem". Alec era assim.

- Pode trazer Vivian - disse Elizabeth com algum esforço.

- Creio que isso não será possível. Ela está agora mesmo... em Londres. Estarei aí amanhã de manhã. Certo.

-Optimo. Telefone-me quando souber a hora e irei esperá-lo no aeroporto.

- Será muito mais simples eu pegar um táxi.

- Está bem. Muito obrigada, Alec. Não sabe o quanto lhe agradeço.

Quando desligou o telefone, Elizabeth sentiu-se infinitamente melhor.

Sabia que a sua decisão estava certa. Só se via naquela posição porque Sam tinha morrido antes de ter tempo de apontar um sucessor.

Quem seria o novo presidente da Roffe and Sons? A directoria resolveria isso. Tentou pensar no caso do ponto de vista de Sam, e o nome que lhe veio no mesmo instante à cabeça foi Rhys Williams. Os outros eram competentes nos seus sectores, mas Rhys era a única pessoa que tinha conhecimento completo e eficiente do funcionamento global da companhia. Era inteligente e dinâmico. O único problema é que ele não era elegível para a presidência. Não sendo um Roffe, nem casado com uma Roffe, não podia nem ao menos participar das reuniões de directoria.

Chegou ao hall e viu a pasta de seu pai. Hesitou. Não havia sentido em se submeter àquilo naquele momento. Daria tudo a Alec quando ele chegasse na manhã seguinte.

Entretanto, podia haver alguma coisa muito pessoal ali...

Levou-a para a biblioteca, colocou-a em cima da mesa, pegou a chave e abriu os dois fechos laterais. No centro da pasta encontrou um grande envelope. Elizabeth abriu-o e tirou dele um maço de folhas dactilografadas dentro de uma pasta de cartolina, na qual estava escrito:

 SAM ROFFE CONFIDENCIAL SEM COPIAS  Era, evidentemente, um relatório, mas sem qualquer nome, e Elizabeth não podia saber quem o redigira. Começou a passar os olhos pelas folhas e, em dado momento, leu mais atentamente e parou. Não podia acreditar no que estava lendo. Levou os papéis para uma poltrona, tirou os sapatos, encolheu as pernas e recomeçou a leitura da primeira página.

Leu todas as palavras e ficou horrorizada.

Era um documento espantoso, o relatório confidencial de uma investigação em torno de uma série de factos ocorridos no ano anterior.

No Chile, uma usina de produtos químicos de propriedade da Roffe and Sons havia sofrido uma explosão, espalhando toneladas de substâncias venenosas por uma área de vinte e cinco quilómetros quadrados. Houve a morte de cerca de dez pessoas e centenas tinham sido internadas em hospitais. Todos os animais da área haviam morrido e a vegetação ficara envenenada. Toda a região tivera de ser evacuada. As acções de indemnização impetradas contra a companhia subiram a centenas de milhões de dólares.

Mas o espantoso era que a explosão fora criminosa.

Dizia o relatório: "A investigação do governo chileno sobre o acidente foi superficial. A conclusão oficial parece ter sido a de que a companhia era rica e o povo, pobre, em vista do que, a companhia tinha de pagar. Não há qualquer dúvida no espírito da nossa equipa de investigação de que houve um acto de sabotagem, da autoria de pessoa ou pessoas desconhecidas, por meio de explosivos plásticos. Em vista da atitude de antagonismo das autoridades locais, será impossível provar alguma coisa".

Elizabeth se lembrava muito bem do caso. Jornais e revistas haviam publicado reportagens com fotografias das vítimas. A imprensa do mundo inteiro atacara a Roffe and Sons, acusando a companhia de negligência e indiferença para com o sofrimento humano.

O facto havia prejudicado consideravelmente a reputação da empresa.

Em seguida, o relatório tratava de importantes projectos de pesquisa em que os cientistas da Roffe and Sons vinham trabalhando havia vários anos. Entre eles, quatro projectos de inestimável valor. O seu desenvolvimento ao todo tinha custado mais de cinquenta milhões de dólares. Em todos os casos, a firma rival havia requerido patentes para os produtos antes da companhia, apresentando fórmulas idênticas. O relatório continuava: "Um caso isolado poderia ser atribuído a simples coincidência.

Num campo em que dezenas de companhias trabalham em sectores correlatos, é inviável que várias firmas desenvolvam o mesmo tipo de produto. Mas o facto de que isso tenha acontecido quatro vezes no curto espaço de alguns meses força a concluir que alguém, a serviço da Roffe and Sons, deu ou vendeu o material de pesquisa à firma concorrente. Em vista da natureza secreta das experiências e do facto de que elas se realizaram em laboratórios bem distantes uns dos outros, dentro de condições da máxima segurança, é lógico supor que as pessoas responsáveis tenham acesso aos arquivos mais secretos da companhia. Assim, podemos chegar à conclusão de que se trata de alguém situado no mais alto escalão da Roffe and Sons".

Havia mais.

Uma grande quantia de substâncias tóxicas fora erradamente rotulada e despachada. Antes que ela pudesse ser recolhida, tinha havido várias mortes, com péssima publicidade para a companhia. Ninguém sabia quem tinha colocado os rótulos errados.

Uma toxina mortífera desaparecera de um laboratório sob pesada guarda. Uma hora depois, uma pessoa não foi identificada havia comunicado o facto aos jornais e desencadeara um alarma.

As sombras da tarde se alongavam lá fora e a noite chegou.

Elizabeth continuava totalmente absorvida pelo documento que tinha nas mãos. Quando a sala ficou escura, ela acendeu uma luz e continuou a ler aquela série de horrores.

Nem mesmo o tom seco e sucinto do relatório podia dissimular o drama que havia em tudo aquilo. Uma coisa era clara. Alguém estava metodicamente tentando prejudicar ou destruir a Roffe and Sons.

Alguém no mais alto escalão executivo da companhia. Na última página, havia uma nota à margem escrita com a letra precisa e inconfundível de seu pai: "Pressão sobre mim para vender as acções da companhia ao público? É preciso desmascarar o patife!" Lembrou-se então de como Sam lhe parecera preocupado nos últimos tempos. Vivia angustiado por aquele terrível segredo e não tinha em quem confiar. A nota na primeira página dizia que não havia cópias.

Elizabeth julgava que o relatório provinha de uma agência de investigação particular. Por conseguinte, só Sam tinha conhecimento daquele relatório. Depois de Sam, ela. A pessoa culpada não tinha ideia de que estava sob suspeita. Teria Sam interpelado de algum modo a pessoa antes do acidente? Ela não tinha como descobrir. Elizabeth sabia, que havia um traidor.

Alguém no mais alto escalão executivo da companhia.

Ninguém mais teria oportunidade ou capacidade de levar a cabo tanta destruição em níveis tão diferentes. Era por isso que Sam se recusara a vender acções ao público?

Estaria procurando primeiro descobrir quem era o culpado? Depois da companhia vendida, seria impossível realizar uma investigação secreta, pois todas as providências tomadas seriam logo do conhecimento de um grupo de estranhos.

Elizabeth pensou na reunião da directoria que participara, durante a qual todos lhe haviam recomendado que vendesse.

Sentiu-se de repente muito sozinha naquela casa. Deu um salto ao ouvir o telefone tocar. Foi atender.

- Alo?

- Liz? É Rhys. Acabo de receber o seu recado.

Era bom ouvir a voz dele, mas lembrou-se de repente do motivo pelo qual quisera falar com ele. Era para dizer que resolvera assinar e deixar que vendessem a companhia.

Mas em poucas horas tudo havia mudado. Olhou para o retrato do velho Samuel, que fundara a companhia e tinha lutado por ela, dedicando-lhe toda a sua vida.

- Rhys, quero uma reunião da directoria na terça-feira, às duas horas. Quer tomar as providências necessárias?

- Terça-feira, às duas horas? Está bem. Mais alguma coisa?

- Não. Só isso. Muito obrigada.

Elizabeth desligou o telefone. Ia lutar contra todos eles.

Estava no alto de uma montanha, escalando-a em companhia do pai. "Não olhe para baixo", dizia constantemente o pai, e Elizabeth desobedecia. Olhava para baixo e não via senão milhares de metros de espaço vazio. De Repente, houve o surdo ronco de um trovão e um raio veio ziguezagueando na direcção deles. Atingiu a corda de Sam, incendiou-a e Sam começou a cair no espaço vazio. Elizabeth viu o corpo do pai rolar e começou a gritar, mas seus gritos eram abafados pelo ribombar dos trovões.

Acordou em sobressalto, com a camisola ensopada de suor e o coração a bater descompassadamente. Houve um trovão mais forte, e Elizabeth viu a chuva entrar pelas janelas abertas.

Levantou-se e fechou-as. Pelas vidraças viu as nuvens de tempestade que enchia o céu e os relâmpagos que iluminavam o horizonte, mas não prestou atenção a nada disso.

Estava pensando no sonho que tivera.

Pela manhã, a tempestade passara sobre a ilha, deixando apenas uma chuva fina. Elizabeth esperava que o mau tempo não retardasse a chegada de Alec. Depois da leitura do relatório, tinha ardente necessidade de falar com alguém. Enquanto isso, seria bom guardar o relatório num lugar seguro. Havia um cofre na sala da torre, e ela o colocaria lá. Tomou um banho, vestiu um suéter e calças velhas e foi então à biblioteca pegar o relatório.

Não estava mais lá.

 

Capítulo 19

Parecia que um furacão havia passado pela sala. A tempestade abrira as janelas, e o vento e a chuva haviam espalhado e desarrumado tudo. Algumas páginas do relatório estavam em cima do tapete molhado, mas o resto fora evidentemente levado pelo vento.

Foi até à janela. Não via papéis no gramado, mas o vento poderia ter levado pela borda do penhasco. Fora certamente isso o que acontecera.

Não havia cópias. Tinha, portanto, de descobrir o nome do investigador que Sam contratara. Talvez Kete Erling soubesse.

Mas já não podia ter certeza de que Sam confiava em Kete Erling. Tudo se tornara um jogo terrível, em que ninguém podia confiar em ninguém. Daí por diante, devia ter cuidado em tudo o que fizesse.

Lembrou-se, de repente, de que estava sem comida em casa.

Podia ir fazer contas em Cala di Volpe e estar de volta antes que Alec chegasse. Foi até o armário embutido do hall e apanhou uma capa e uma charpe para a cabeça.

Mais tarde, quando a chuva parasse, procuraria as outras folhas do relatório nos arredores da casa. Pegou a chave do jipe e dirigiu-se à garagem.

Ligou o motor e manobrou cuidadosamente para sair da garagem, dirigindo com todo o cuidado, em vista do chão molhado pela chuva. Virou depois à direita para seguir a estreita estrada da montanha que ia para a aldeia de Cali di Volpe, mais abaixo.

Não havia movimento na estrada àquela hora. Na verdade, era difícil havê-lo a qualquer hora, pois raras eram as casas construídas naquela altura. à esquerda, o mar estava escuro e parecia revolto, ainda agitado pela tempestade da véspera.

Dirigia com muito cuidado, pois aquele trecho da estrada era traiçoeiro. Muito estreito, com duas pistas, abria-se no flanco da montanha, ao lado de um enorme precipício.

De um lado, o paredão de pedras da montanha; do outro, uma descida de centenas de metros até o mar. Elizabeth seguia beirando a outra pista, freando um pouco para contrabalançar o impulso da descida.

O carro aproximou-se de uma curva fechada. Ela pisou automaticamente nos freios para controlar a descida do jipe.

Os freios não funcionaram!

O facto levou algum tempo para ser consciencializado. Elizabeth tornou a frear, pisando no pedal com toda sua força, mas sentiu o coração bater mais forte ao ver que o jipe continuava a ganhar velocidade na descida. Fez a curva, mas viu que estava rodando desabafadamente pela íngreme estrada da montanha e que o jipe ganhava mais velocidade a cada segundo. Tornou a pisar nos freios. Não havia mais freios.

Outra curva surgiu à frente. Elizabeth tinha medo de olhar para o velocímetro e sentiu-se dominada pelo terror. Chegou à curva em alta velocidade e derrapou. As rodas traseiras chegaram próximo da beira do precipício, mas ela conseguiu controlar o jipe e seguiu em frente estrada abaixo. Não havia mais nada que pudesse fazê-lo parar, nem barreiras, nem controles. Continuaria naquela desabalada descida pela montanha, cheia de curvas fatais.

Pensou destemperadamente num meio de salvar-se. Teve a ideia de pular do carro. Arriscou-se a olhar para o velocímetro e viu que ia a cento e dez quilómetros, com a velocidade aumentando a cada momento, e que estava encurralada entre a montanha e o precipício. Se saltasse, morreria. Numa súbita revelação, Elizabeth compreendeu que estava sendo assassinada, e que Sam também fora assassinado. Sam tinha lido o relatório e fora morto. Ela também iria ser morta. Não tinha ideia de quem fosse o assassino, de quem os odiava a ponto de fazer aquela coisa terrível. Talvez tudo fosse mais tolerável se partisse de um estranho. Mas tinha de ser um deles, alguém situado no mais alto escalão executivo da companhia... Alec... Ivo... Walther... Charles...

A morte dela seria atribuída a um acidente, como a de Sam. As lágrimas rolaram pelo rosto de Elizabeth e se misturaram com a chuva fina que caía. O jipe fugia constantemente do seu controle no chão molhado. Elizabeth lutava para mantê-lo na estrada, mas sabia que era apenas uma questão de segundos para que fosse atirada para o precipício e o aniquilamento. O corpo ficou rígido com a tensão, e as mãos se tornaram dormentes devido à força que ela fazia para segurar a direcção. Estava sozinha no universo,

a descer vertiginosamente a estrada, enquanto o vento lhe zumbia em torno e empurrava o carro para a borda do penhasco. Houve outra derrapagem e Elizabeth lutou destemperadamente para controlar o carro, lembrando-se do que aprendera. Vá sempre a favor da derrapagem. Finalmemte, as rodas traseiras se firmaram e o jipe continuou a sua descida alucinante. Elizabeth tornou a olhar de relance o velocímetro.

Cento e trinta quilómetros por hora! Havia uma curva bem fechada à frente e sabia que não poderia passar dali.

Alguma coisa em seu espírito pareceu congelar-se, e foi como se uma trémula veia se estendesse entre ela e a realidade. Ouviu a voz de seu pai perguntar-lhe o que ela fazia sozinha no escuro e depois sentiu-se nos braços de Sam e levada para a cama.

No mesmo instante, estava no palco a dançar enquanto Mme Netturova gritava com ela (ou era o vento?), mas ela não podia parar. Alguém então lhe perguntava quantas vezes uma pessoa faz vinte e um anos, e Elizabeth pensou que nunca mais veria Rhys.

Gritou o nome dele e o véu desapareceu, mas o pesadelo ainda estava presente. A curva perigosa estava mais próxima e o carro corria para ela como uma bala. Cairia pelo precipício. Pelo menos, que tudo acontecesse bem depressa.

Nesse momento, à direita, um pouco antes da curva, Elizabeth viu um estreito caminho. Tinha de tomar uma decisão rápida. Não tinha ideia da utilidade ou do destino daquele caminho. Sabia apenas que subia à beira do precipício e que podia quebrar o ímpeto da descida. Entrou por ele, virando a direcção para a direita com toda a força. As rodas traseiras começaram a derrapar, mas as da frente já estavam no saibro do caminho e a velocidade deu bastante tracção ao carro para se estabilizar.

Elizabeth procurou mantê-lo no estreito caminho. Viu algumas árvores à frente, e alguns galhos lhe fustigaram o rosto e as mãos. De repente, viu, à sua frente, o ar Tirando, lá embaixo.

O caminho era apenas um breve acostamento à margem do penhasco.

Não havia a menor segurança!

Estava cada vez mais perto da borda, e ia tão depressa que não podia saltar. Quando o jipe se aproximou da borda, derrapou violentamente, e a última coisa de que Elizabeth teve consciência foi de uma árvore à sua frente e de uma explosão que pareceu eluminar o resto do universo.

Depois, o mundo ficou tranquilo, branco, pacífico e silencioso.

 

Capítulo 20

Quando abriu os olhos, estava numa cama de hospital, e a primeira pessoa que viu foi Alec Nichols.

- Não há nada lá em casa para você comer - murmurou Elizabeth, e começou a chorar.

Os olhos de Alec mostravam a sua tristeza. Aproximou-se e abraçou-a.

- Elizabeth!

- Tudo bem agora, Alec - murmurou ela.

E estava. Sentia contusões por todo o corpo, mas ainda estava viva, por mais incrível que isso parecesse. Lembrou-se do horror da descida sem freios pela montanha, e sentiu um arrepio.

- Há quanto tempo estou aqui, Alec?

- Trouxeram-na para cá há dois dias. Chegou inconsciente e só agora está voltando a si. O médico acha que se trata de um milagre. De acordo com os que viram o local do acidente, você devia estar morta. Quando uma turma de socorro trouxe você, estava inconsciente e cheia de contusões, mas felizmente não havia fracturas. Agora,

escute. por que é que você estava correndo tanto naquela estrada? Elizabeth contou tudo. Viu o horror estampado no rosto de Alec enquanto falava da sua terrível corrida estrada abaixo.

Quando acabou, Alec estava muito pálido.

- Que acidente horrível e idiota!

- Não foi acidente, Alec.

- Como assim? Não compreendo!

Não podia mesmo compreender, pois não havia lido o relatório.

- Mexeram nos freios de propósito para que isso acontecesse.

- Não, Elizabeth - disse ele, sacudindo a cabeça. - Que motivo teria alguém para fazer uma coisa dessas?

Ainda não podia dizer nada a ele. Confiava mais em Alec do que nos outros, mas só podia falar depois que estivesse mais forte e tivesse algum tempo para pensar.

- Não sei, Alec. Mas tenho certeza de que mexeram nos freios.

Notou a mudança de expressão no rosto dele. Da incredulidade passara ao espanto e, por fim, à raiva.

- Nesse caso, temos de descobrir quem foi!

Pegou o telefone e daí a poucos minutos estava falando com o delegado de polícia de Olbia.

- Aqui é Alec Nichols. Sim, ela está passando bem, muito obrigado. Direi isso a ela, sim. Estou lhe telefonando a respeito do jipe que ela estava dirigindo. Pode

me dizer onde é que está... Muito bem. Pode deixá-lo aí, e conseguir-me um bom mecânico? Estarei aí daqui a meia hora Desligou e disse a Elizabeth:

- O jipe está na garagem da polícia. Vou até lá.

- Vou com você - disse Elizabeth.

Ele olhou-a, surpreso.

- O médico disse que você devia passar ainda dois dias em repouso e observação.

- Ele pode ter dito isso, mas vou com você.

Quarenta e cinco minutos depois, Elizabeth, ainda bem machucada, saía do hospital sob os protestos do médico e seguia em companhia de Alec Nichols para a garagem da polícia.

Luigi Ferraro, delegado de polícia de Olbia, era um sardo robusto de meia-idade, com uma enorme barriga e pernas arqueadas. Tinha a seu lado o detective Bruno Campagna, um homem musculoso, de cerca de cinquenta anos e grande competência, bem mais alto do que o delegado. Estavam ambos, em companhia de Elizabeth e de Alec, vendo um mecânico examinar a parte inferior do jipe levantado por um macaco hidráulico. O pára-lamas esquerdo e o radiador estavam destroçados e mostravam fragmentos da árvore

em que batera. Elizabeth sentiu um começo de vertigem ao ver o carro, e teve de apoiar-se em Alec para não cair.

- Tem certeza de que vai resistir? - perguntou Alec.

- Absoluta - disse Elizabeth, que se sentia fraca e cansada, mas estava disposta a ver tudo pessoalmente.

O mecânico limpou as mãos num pano cheio de graxa e aproximou-se do grupo.

- Desses, não fazem mais hoje em dia - disse ele.

Graças a Deus, pensou Elizabeth.

- Qualquer outro carro teria sido reduzida a pedacinhos.

- E os freios? Estão em perfeitas condições.

Elizabeth sentiu que estava de novo entrando numa zona de irrealidade.

- Que está dizendo?

- Os freios estão funcionando muito bem. A batida não teve a menor acção sobre eles. Foi por isso que eu disse que não faziam mais...

- É impossível! - exclamou Elizabeth. - Os freios desse jipe não estavam funcionando.

- A Sra. Roffe acredita que alguém mexeu nos freios, inutilizando-os - disse o delegado Ferrraro O mecânico sacudiu negativamente a cabeça.

- De jeito nenhum!

Aproximou-se do carro no alto do macaco.

- Só há duas maneiras de danificar os freios de um jipe. Ou se cortam as bielas dos freios ou se desatarraxa esta porca e se deixa o óleo dos freios escorrer. Como pode ver, esta biela está firme e eu verifiquei o tambor dos freios. Está cheio.

Ferraro olhou para Elizabeth e disse:

- Posso muito bem compreender que no seu estado...

- Um momento! - exclamou Alec, e voltou-se para o mecânico.

- Não é possível que alguém tenha cortado esses bielas, substituindo-as depois, e que essa mesma pessoa tenha tornado a encher o tambor dos freios e depois de esvaziá-los?

- Não, não é possível. Ninguém tocou nestas bielas. Está vendo esta porca? Se alguém a tivesse afrouxado, haveria marcas recentes de chave inglesa nela, e não há nenhuma. Pelo menos, há seis meses ninguém toca nesta porca. Não há nada com estes freios e eu vou mostrar-lhes.

Foi até a parede e ligou um comutador. O macaco hidráulico principiou a descer o jipe para o chão. O mecânico entrou no jipe, ligou o motor e deu marcha à ré no carro. Quando estava quase encostando na parede dos fundos na direcção do detective Campagna. Elizabeth deu um grito, e neste instante o carro parou de súbito a alguns centímetros do homem. O mecânico não tomou conhecimento do olhar irado do detective e disse:

- Viram, Os freios estão perfeitos.

Todos se voltaram para Elizabeth, que sabia muito bem o que estavam pensando. Mas isso não diminuíra o terror daquela descida pela montanha. Sentira perfeitamente o seu pé comprimir o freio sem que nada acontecesse. O mecânico da polícia tinha provado que os freios estavam em ordem. A não ser que também estivesse metido na trama. E o delegado também... Estou é ficando paranóica, Pensou Elizabeth.

Alec murmurou desalentadamente:

- Elizabeth...

- Quando eu estava dirigindo o jipe, os freios não funcionavam.

Alec perguntou então ao mecânico:

- Vamos supor que alguém tivesse tomado providências para que os freios desse jipe não funcionassem. Que mais poderia fazer?

- Poderia ter molhado as lonas do freio - disse o detective Campagna.

Elizabeth sentiu o nervosismo crescer dentro dela.

- Que aconteceria se alguém fizesse isso?

- Quando as lonas do freio comprimissem o tambor, não haveria tracção.

- Tem razão - disse o mecânico, e perguntou a Elizabeth: - Os freios estavam funcionando logo que saiu com o jipe?

Elizabeth se lembrara de que manobrara o jipe para sair da garagem e chegara às primeiras curvas usando os freios.

- Estavam funcionando, sim - disse ela.

- Está aí a explicação - disse o mecânico vitoriosamente. A chuva molhou a lona dos freios.

- Espere um pouco - disse Alec. - Alguém não poderia ter molhado tudo antes que ela saísse?

- Nesse caso - disse o mecânico pacientemente -, os freios não teriam funcionado desde o início.

O delegado falou com Elizabeth.

- A chuva pode ser muito perigosa, Senhorita Roffe, especialmente nas estradas estreitas de montanha. Casos assim acontecem com muita frequência.

Alec olhava indeciso para Elizabeth. Ela se sentiu mal.

Afinal de contas, tudo não passara de um acidente. Queria sair dali o mais depressa possível. Olhou para o delegado.

- Desculpe ter-lhe causado todo esse incómodo.

- Sinto muito pelo acidente, mas tive muito prazer em servi-la. O detective Campagna irá levá-la de carro para a sua Villa.

Alec disse a ela:

- Não leve a mal, mas você está terrivelmente abatida. Quero que vá para a cama e passe alguns dias sem se levantar. Vou pedir alguns mantimentos pelo telefone?

- Se eu ficar na cama, quem vai cozinhar?

- Ora essa, eu! - exclamou Alec.

Naquela noite, preparou o jantar e levou-o para Elizabeth na cama.

- Creio que não sou muito bom cozinheiro - disse Alec, colocando a bandeja diante de Elizabeth.

Falando assim, Alec estava sendo muito pretensioso. Não havia um só prato que não estivesse queimado ou salgado demais. Mas Elizabeth conseguiu comer, não só porque

estava com fome, mas também para não melindrar Alec. Conversaram sobre um milhão de assuntos durante o jantar. Alec não se referiu à situação que ela criara na garagem da polícia. Elizabeth ficou-lhe muito grata por isso.

Os dois passaram mais alguns dias na Villa. Elizabeth continuou na cama e Alec, a fazer confusão na cozinha, lendo de vez em quando para ela. Ivo e Simonetta telefonavam diariamente para saber como ela estava e o mesmo faziam Hélène e Charles e Walther. Até Vivian telefonou para saber dela. Todos se ofereciam para ir fazer-lhe companhia na ilha.

- Estou passando bem - dizia ela. - Não há motivo para que venham aqui. Voltarei para Zurique dentro de poucos dias.

Rhys Williams telefonou. Elizabeth só compreendeu a falta que ele lhe fazia quando ouviu a voz dele.

- Ouvi dizer que você quis fazer concorrência a Hélène como piloto - disse ele, brincando, mas ela notou preocupação na voz dele.

- Em descida de montanha, duvido que ela seja páreo para mim.

Parecia-lhe incrível que estivesse pilheriando com o que acontecera.

- Fico muito contente de que você esteja bem, Liz.

O tom e as palavras dele encheram-na de alegria. Estaria ele naquele momento em companhia de outra mulher? Se estivesse, devia ser uma mulher muito bela.

Dane-se!

- Sabe que você saiu nos jornais do mundo inteiro?

- Não.

Falaram pelo telefone durante meia hora, e ao desligar Elizabeth estava se sentindo muito melhor. Rhys parecia sinceramente interessado nela. Gostaria de saber se ele fazia todas as outras mulheres sentirem-se assim. Aquilo fazia parte do encanto dele. Lembrou-se do jantar de aniversário. Sra. Rhys Williams.

Alec entrou no quarto e perguntou:

- O que houve? Está rindo à toa?

- Estou.

Rhys sempre lhe dera aquela sensação de felicidade. Talvez fosse melhor falar a Rhys sobre o relatório confidencial.

Alec tinha providenciado para que um avião da companhia os levasse para Zurique.

- Não gostaria que você saísse daqui ainda - disse ele -, mas há alguns assuntos urgentes que devem ser resolvidos o quanto antes.

O voo para Zurique foi calmo. Repórteres esperavam-na no aeroporto. Elizabeth fez uma breve declaração sobre o acidente.

Em seguida, Alec levou-a para o carro, e os dois partiram para a sede da companhia.

Ela estava na sala de reuniões com todos os membros da directoria presente, além de Rhys. A reunião já durava três horas, e o ar estava impregnado da fumaça dos charutos e cigarros. Elizabeth ainda estava abalada pelo acidente e sentia uma tremenda dor de cabeça. Os médicos haviam-na tranquilizado, dizendo que as dores de cabeça eram uma consequência do abalo nervoso e dentro em pouco passariam.

Olhou para os rostos cheios de tensão e de raiva que a cercavam.

- Resolvi não vender - tinha dito Elizabeth.

Pensaram que ela estava sendo arbitrária e obstinada. Se soubessem a tentação que ela teve de ceder! Mas agora era impossível. Alguém dentro daquela sala era um inimigo, e se ela batesse em retirada, esse inimigo seria vitorioso.

Tinham tentado convencê-la, cada qual à sua maneira.

Alec apresentara argumentos lógicos.

- A companhia precisa de um presidente experiente.

Particularmente agora, Elizabeth. Para o seu bem e para o bem de todos, gostaria de vê-la afastada disso.

Ivo fez uso do seu encanto.

- Você é bela e jovem, carissima. O mundo inteiro é seu. Por que escravizar-se a uma coisa tão enfadonha quanto os negócios, quando pode divertir-se, viajar...

- Já viajei muito - disse Elizabeth.

Charles usou a clara razão francesa.

- Você passou a deter o controle accionário em consequência de um trágico acidente, mas não é sensato você querer, por isso, dirigir a companhia. Nós temos problemas muito graves, e sua direcção só servirá para agravá-los.

Walther falou agressivamente.

- A companhia está em situação muito difícil, a tal ponto que você é incapaz de imaginar. Se não vender agora, depois será tarde demais.

Elizabeth sentia-se acuada. Ouvia a todos, estudando-os e pesando o que diziam. Todos eles baseavam os seus argumentos no bem da companhia; no entanto, um deles estava empenhado em destruí-la.

Uma coisa era clara. Todos queriam que ela se afastasse, que os deixasse vender as suas acções e levar pessoas estranhas para a Roffe and Sons. Elizabeth sabia que no momento em que fizesse isso as probabilidades de descobrir quem estava por trás de tudo aquilo estariam perdidas. Enquanto permanecesse ali, haveria possibilidade de descobrir o sabotador. Ficaria por tanto tempo quanto fosse necessário. Não passara aqueles três últimos anos com Sam sem aprender alguma coisa a respeito de negócios. Com a ajuda do pessoal qualificado que ele havia preparado, poderia prosseguir nas directrizes do pai. A insistência de todos para que ela saísse só servia para reforçar a sua determinação de ficar.

Resolveu encerrar a reunião.

- Tomei a minha decisão - disse ela -, e não pretendo dirigir a companhia sozinha. Sei muito bem quanto ainda tenho que aprender. Quero que todos aqui presentes me ajudem.

Enfrentaremos os problemas um por um.

Ivo abriu os braços num gesto desconsolado.

- Será que ninguém pode convencê-la do que é lógico?

- Creio que todos devem concordar com o que ela quiser fazer

- disse Rhys, olhando para Elizabeth e sorrindo.

- Obrigada, Rhys. Há mais uma coisa, senhores. Como vou ocupar o lugar de meu pai, parece conveniente oficializar o facto, não acham?

Charles perguntou, arregalando os olhos:

- Está querendo ser presidente?

- Presidente ela já é - disse Alec. - Está apenas fazendo a gentileza de nos homologar uma situação de facto.

Charles hesitou e, por fim, disse:

- Está bem. Proponho que Elizabeth Roffe seja eleita presidente da Roffe and Sons.

A proposta foi aprovada.

O ano não é bom para presidentes, pensou ele tristemente.

Muitos têm sido assassinados.

 

Capítulo 21

Ninguém tinha mais consciência do que Elizabeth da enorme responsabilidade que havia assumido. Agora que estava dirigindo a companhia, o emprego de milhares de pessoas dependia dela.

Precisava de ajuda, mas não sabia ao certo em quem confiar.

Alec, Rhys e Ivo eram os que lhe pareciam mais dignos de confiança, mas não estava ainda preparada para isso. Era muito cedo. Mandou chamar Kate Erling.

- Pronto, Senhorita Roffe.

Elizabeth não sabia por onde começar. Kate Eerling tinha trabalhado durante muitos anos para seu pai. Não podia deixar de ter algum conhecimento das correntezas subterrâneas que fervilhavam sob a aparente calma. Devia estar a par dos segredos da companhia e dos sentimentos e planos de Sam Roffe.

Podia ser uma valiosa aliada.

- Meu pai tinha mandado fazer uma espécie de relatório confidencial, Kate. Sabe alguma coisa a respeito disso?

Kate Erling franziu a testa num esforço para concentrar-se, mas acabou sacudindo a cabeça.

- Ele nunca falou nisso comigo, Senhorita Roffe.

Elizabeth tentou descobrir alguma coisa por outro caminho.

- Se meu pai tivesse querido uma informação confidencial, a quem procuraria?

- Naturalmente a nossa divisão de segurança - disse ela, sem hesitação.

O último lugar que ele teria procurado.

- Está bem. Muito obrigada - disse Elizabeth.

Não havia ninguém com quem ela pudesse falar.

Havia em sua mesa um relatório financeiro. Elizabeth leu-o com crescente assombro. Depois, mandou chamar o tesoureiro.

Chamava-se Wilton Kraus e era mais moço do que ela esperava.

Parecia inteligente e activo, ao mesmo tempo que ostentava um leve ar de superioridade. Devia ter sido diplomata pela Escola Wharton e talvez pela Universidade de Harvard.

Elizabeth entrou directamente no assunto.

- Como pode uma empresa como a Roffe and Sons estar em dificuldades financeiras?

Kraus olhou para ela e encolheu os ombros. Era claro que não estava habituado a entender-se com uma mulher. Disse então com condescendência:

- Não posso resumir tudo...

- Não resuma nada. Vamos começar pelos factos. Até há dois anos atrás, a Roffe and Sons sempre dispunha de todo capital de que precisava.

Ela viu a expressão dele mudar.

- Isso é verdade.

- Por que então estamos agora devendo tanto aos bancos?

- Bem, há alguns anos, tivemos um período de expansão excepcionalmente pesado. Seu pai e os outros membros da directoria julgaram melhor levantar o dinheiro necessário para a expansão tomando empréstimos a curto prazo nos bancos. Em consequência, temos agora compromissos com vários bancos no montante de seiscentos e cinquenta milhões de dólares. Alguns desses empréstimos estão para vencer.

- Já venceram - disse Elizabeth.

- Isso mesmo. Já venceram.

- Estamos pagando os juros combinados e mais um por cento de mora. Por que não pagamos os empréstimos vencidos e não diminuímos o montante dos outros?

O homem já havia passado da fase da surpresa.

- Isso aconteceu... em face de algumas ocorrências imprevistas e infortunadas. Por isso, o movimento de casa da companhia é consideravelmente menor do que fora previsto.

Em condições normais, pediríamos prorrogação aos bancos.

Entretanto, diante dos problemas, dos vários acordos de indemnização, dos prejuízos em nossos laboratórios experimentais e...

Elizabeth estudava o homem, tentando adivinhar de que lado ele estava. Olhou de novo para os balanços, procurando ver precisamente onde as coisas tinham começado a desandar. Os balanços mostravam acentuado declínio nos últimos três trimestres, principalmente em razão dos pagamentos das indemnizações relacionadas sob a rubrica:

"Despesas extraordinárias sem recorrência". Elizabeth pensou na explosão no Chile, na nuvem de substâncias tóxicas que se erguera no ar.

Pensou nos gritos das vítimas. Uma dúzia de pessoas mortas.

Centenas de pessoas levadas para os hospitais. No fim, todo o sofrimento humano era reduzido a dinheiro e consignado como "Despesas extraordinárias".

- De acordo com o seu relatório, Sr. Kraus os nossos problemas são de carácter temporário. Somos a Roffe and Sons.

Representamos ainda um risco da primeira classe para qualquer banco do mundo.

Agora era o homem quem estudava Elizabeth. Sua auto-suficiência havia desaparecido, mas ele se tornara cauteloso.

- Deve compreender, Senhorita Roffe, que a reputação de uma firma de produtos químicos e farmacêuticos é tão importante quanto seus produtos.

Quem tinha dito isso a ela? Seu pai? Alec? Lembrou-se: Tinha sido Rhys.

- Continue.

- Nossos problemas se tornaram muito conhecidos. O mundo dos negócios é uma selva sem lei. Quando os concorrentes suspeitarem que você está ferido, preparam-se para dar o golpe final.

- Por outras palavras - disse Elizabeth -, os nossos concorrentes fazem negócios com os nossos banqueiros e sabem de tudo.

- Exactamente. Os bancos têm um limite de fundo para empréstimos, e quando se convencem de que A é melhor risco do que B...

- E estão convencidos disso?

O homem passou nervosamente a mão pelos cabelos.

- Desde a morte de seu pai, recebi vários telefonemas de Herr Julius Badrutt, presidente do consórcio bancário com o qual negociamos.

- O que ele queria saber?

- Quem ia ser o novo presidente da Roffe and Sons.

- Já sabe quem é o novo presidente?

- Não.

- Sou eu. Que acha que vai acontecer quando Her Badrutt souber disso?

- Sem dúvida, aumentará a pressão sobre nós - disse Wilton Kraus.

- Vou falar com ele - disse Elizabeth, sorrindo e recostando-se na cadeira. - Quer tomar café?

- Não, obrigado.

Elizabeth viu Kraus tranquilizar-se. Sabia que fora testado e passara no teste.

- Gostaria de saber sua opinião, Sr. Kraus. Se estivesse no meu lugar, que faria?

O leve ar de superioridade voltou, e ele disse confidencialmente:

- Na minha opinião, tudo é muito simples. O activo da Roffe and Sons é enorme. Se vendermos um bloco substancial de acções ao público teremos dinheiro em quantidade mais do que suficiente para cobrir todos os nossos empréstimos bancários.

Elizabeth já sabia de que lado ele estava.

 

Capítulo 22

Hamburgo. Sexta-feira, 1 de outubro. 2 horas.

O vento soprava do mar e o ar da madrugada era frio e húmido.

No bairro Reeperbahn, em Hamburgo, as ruas estavam cheias de visitantes ansiosos por experimentarem os prazeres proibidos da cidade. Bebidas, drogas, garotas e rapazes estavam à disposição... mediante um preço.

Os bares com fachadas profusamente iluminadas ficavam na rua principal, enquanto a Grosse Freiheit apresentava os mais lascivos shows de striptease. A Herbertstrasse, a um quarteirão de distância, estava cheia de prostitutas que se exibiam às janelas de seus quartos com as roupas de dormir tão transparentes, que não ocultavam nada. O Reeperbahn era um vasto mercado onde se podia comprar tudo o que se quisesse em matéria de sexo, desde que se pagasse.

O camaraman andou lentamente pela rua sem dar maior atenção às pessoas até que se aproximou de uma loura que não devia ter mais de dezoito anos. Estava conversando com uma amiga. Sorriu quando o homem se aproximou.

- Gostaria de divertir-se, Liebchen? Minha amiga e eu podemos atendê-lo.

O homem olhou para ela e disse:

- Só você.

A outra mulher encolheu os ombros e afastou-se:

- Como se chama?

- Hildy.

- Quer trabalhar no cinema?

- Não me venha com essa história de Hollywood, que isso não engana mais ninguém.

O camaraman sorriu, tranquilizando-a.

- Nada disso. A minha proposta será: Faço filmes pornô para um amigo meu.

- Vai custar quinhentos marcos. Adiantados.

- Gut.

Ela se arrependeu no mesmo instante de não ter pedido mais.

Ora, daria um jeito de ganhar uma gratificação.

- Que é que tenho de fazer? - perguntou Hildy.

Hildy estava nervosa.

Estendida na cama, no apartamento mal mobiliado, olhava para os três homens e achava que havia alguma coisa estranha em tudo aquilo. Tinha apurado os seus instintos nas ruas de Berlim, Munique e Hamburgo. Aprendera a se virar por eles, e eles lhe diziam que havia naqueles três alguma coisa que não merecia confiança. Tinha vontade de sair dali antes que começassem. Só não fazia isso porque já recebera quinhentos marcos, e os sujeitos lhe haviam prometido mais quinhentos marcos se ela trabalhasse bem.

Ia trabalhar bem. Era uma profissional e tinha orgulho do seu trabalho. Olhou para o homem nu na cama ao lado dela. Era forte e tinha corpo liso, sem pêlos. O que inquietava Hildy era o rosto do homem. Parecia velho demais para fazer filmes daquela espécie. Mas era o espectador sentado nos fundos do quarto que mais afligia Hildy. Usava um grande capote, chapéu de abas largas e óculos escuros. Hildy não sabia se era homem ou mulher. As vibrações eram ruins. Hildy levou os dedos à fita vermelha que lhe tinham pedido que amarrasse ao pescoço, sem que compreendesse o motivo.

- Muito bem - disse o camaraman. - Estamos prontos. Acção.

Começaram a rodar o filme. Hildy tinha recebido todas as instruções necessárias. Quando as manobras preliminares terminaram, o camaraman disse ao homem:

- Entre nela!

O acto na cama se desenvolvia rapidamente. Nos fundos do quarto, o espectador se inclinava para a frente, sem perder um só movimento. Hildy, na cama, fechou os olhos.

Ela está estragando tudo!

- Os olhos! - exclamou o espectador.

Assustada, Hildy abriu os olhos. Olhou o homem sobre ela. Era impetuoso e forte. Assim é que ela gostava. Ele começou a fazer movimentos mais rápidos, e a reacção dela foi imediata. Não era comum ela ter orgasmos. Quase sempre fingia, e os homens nem sabiam a diferença. Mas o camaraman a havia avisado que, se ela não sentisse um orgasmo, não recebia o dinheiro da gratificação. Pensou em todas as coisas boas que ia comprar com o dinheiro e sentiu um orgasmo aproximar-se. Seu corpo começou a estremecer O espectador fez um sinal e o camaraman exclamou:

- Agora!

As mãos do homem moveram-se para o pescoço de Hildy. Ela sentiu a pressão, olhou para os olhos do homem, viu o que havia neles e foi dominada pelo terror. Quis gritar, mas já não podia nem respirar. Lutou desesperadamente, mas não havia meio de livrar-se daquelas mãos de ferro que a estrangulavam.

O espectador, do seu canto, não perdia um só detalhe da cena, contemplando os olhos que perdiam o brilho e vendo a mulher ser punida.

O corpo de Hildy estremeceu pela última vez e ficou imóvel.

 

Capítulo 23

Zurique. Segunda-feira, 4 de outubro. 10 horas.

Quando Elizabeth chegou ao seu escritório, encontrou um envelope fechado, com a rubrica "Confidencial", em cima de sua mesa. Era um relatório de química e estava assinado por Emil Joeppli. Estava cheio de termos técnicos, e Elizabeth leu-o do princípio ao fim sem compreender nada. Leu pela segunda e terceira vez, sempre mais vagarosa e atentamente. Quando afinal percebeu a significação, disse a Kate:

- Voltarei dentro de uma hora.

E foi procurar Emil Joeppli.

Era um homem alto, de cerca de trinta e cinco anos, com o rosto magro e sardento e que ostentava no alto da cabeça apenas um tufo de cabelos avermelhados. Ficou muito nervoso, pois não estava habituado a receber visitas no seu pequeno laboratório.

- Li o seu relatório - disse Elizabeth. - Há muitas coisas nele que não compreendo. Quer ter a bondade de explicar-me tudo?

O nervosismo de Joeppli desapareceu por encanto. Começou imediatamente a falar, seguro e confiante.

- Tenho feito experiências com um novo método de inibir a diferenciação rápida dos colagénios por meio de técnicas de bloqueio com mucopolissacarídeos e enzimas.

Os colagénios são, naturalmente, a base fundamental de proteínas de todo o tecido conjuntivo.

- Está bem - disse Elizabeth.

Não se esforçou por compreender a parte técnica das explicações de Joeppli. O que Elizabeth compreendia era que o projecto em que o homem estava trabalhando poderia retardar o processo de envelhecimento. Era uma ideia empolgante.

Continuou a ouvir, pensando na revolução que uma descoberta dessa ordem representaria para a humanidade. Segundo Joeppli, não haveria razão alguma para que os homens não chegassem aos cem anos ou a cento e cinquenta e até duzentos.

- Não seria nem preciso tomar injecções - dizia Joeppli. Com esta fórmula, os ingredientes podem ser tomados via oral, sob a forma de comprimidos.

As possibilidades eram incríveis. Isso representaria nada menos que uma revolução social e se converteria em biliões de dólares para a Roffe and Sons. A companhia fabricaria o produto e concederia licenças a outras empresas. Ninguém com mais de cinquenta anos de idade, deixaria de tomar os comprimidos para manter-se jovem.

Elizabeth tinha dificuldade em ocultar o seu interesse.

- Em que pé estão as suas pesquisas neste projecto?

- Como disse no meu relatório, há quatro anos que venho fazendo testes com animais. Os últimos resultados têm sido positivos. Já posso começar a fazer experiências com seres humanos.

Ela gostava do entusiasmo dele.

- Quem mais sabe disso?

- Seu pai sabia. Trata-se de um projecto da Pasta Vermelha, o que quer dizer absolutamente secreto. Só devo fazer as minhas comunicações ao presidente da companhia e a um dos directores.

- Qual dos directores? - perguntou Elizabeth, sentindo um arrepio.

- Walther Gassner.

- De hoje em diante, quero que faça as suas comunicações exclusivamente a mim.

Joeppli olhou-a com surpresa e disse:

- Está bem, Senhorita Roffe.

- Quando poderemos lançar esse produto no mercado?

- Se tudo correr bem, dentro de um ano e meio a dois anos.

- Muito bem. Se precisar de alguma coisa, dinheiro, pessoal, equipamento, fale comigo. Quero que trabalhe o mais depressa possível.

- Muito obrigado.

Elizabeth levantou,-se e Emil Joeppli acompanhou-a, dizendo, com um sorriso:

- Tive muito prazer em conhecê-la. Gostava muito de seu pai.

- Muito obrigada - disse Elizabeth.

Sam tinha tido conhecimento daquele projecto. Seria essa uma das razões pelas quais se negara a vender as acções da companhia?

Quando ela já ia saindo, Emil Joeppli lhe disse:

- Isso tem que dar resultado em gente.

- Claro - disse Elizabeth.

Era preciso.

- Como um projecto de Pasta Vermelha é executado?

- Desde o início? - perguntou Kate Erling.

- Desde o início.

- Bem, como sabe, temos várias centenas de produtos novos em fase experimental.

- Quem os autoriza?

- Até determinar a verba, os chefes dos departamentos interessados.

- Qual o limite da verba?

- Cinquenta mil dólares.

- E acima disso?

- O projecto tem de ser aprovado pela directoria. É claro que um projecto não passa à categoria de Pasta Vermelha senão depois de bem sucedido nas experiências iniciais.

- Isso é, só depois que tenha probabilidades de dar resultados.

- Exactamente.

- Como funciona a protecção ao projecto?

- Se o projecto é considerado importante, todo o trabalho é transferido para um laboratório de máxima segurança. Todos os papéis são retirados dos arquivos gerais e levados para um arquivo de Pasta Vermelha. Só três pessoas têm acesso a esses arquivos, o cientista encarregado do projecto, o presidente da companhia e um dos directores.

- Quem escolhe o director?

- Seu pai escolheu Walther Gassner.

No momento em que acabou de falar, Kate Erling percebeu o seu erro. As duas mulheres se olharam, e Elizabeth disse:

- Muito obrigada, Kate. É só isso.

Elizabeth não havia mencionado o projecto de Joeppli.

Entretanto, Kate compreendera do que Elizabeth estava falando.

Havia duas possibilidades. Ou Sam havia confiado em Kate e lhe falara sobre o projecto de Joeppli ou ela soubera dele por si mesma, a serviço de alguém.

Era muito importante não dar margem a que alguma coisa desse errado. Ela verificaria pessoalmente a segurança. Tinha também de falar com Walther Gassner. Estendeu a mão para o telefone e parou. Havia um meio melhor.

Naquela mesma tarde, Elizabeth embarcou num voo regular para Berlim.

Walther Gassner parecia nervoso.

Estavam sentados a uma mesa de um canto do salão do andar superior do Restaurante Papillon, no Kurfürstendamm. Sempre que Elizabeth ia a Berlim, Walther insistia em recebê-la para jantar em casa, em companhia de Anna. Dessa vez, nem falaram nisso e sugerira o restaurante, ao qual havia chegado só.

Walther Gassner ainda tinha as feições bem-marcadas de ume jovem artista de cinema, mas já se notava alguma deterioração na fachada. O rosto mostrava rugas de tensão e as mãos nunca ficavam paradas. Parecia estar sob o domínio de extraordinária tensão. Quando Elizabeth perguntou por Anna, respondeu vagamente:

- Anna não está passando bem. Não pôde vir.

- Algum problema grave?

- Não. Isso passa. Ficou em casa descansando.

- Vou telefonar para saber dela.

- É melhor não perturbá-la.

Era uma conversa surpreendente, pois Walther, a quem Elizabeth sempre conhecera animado e extrovertido, estava reservado e reticente.

Ela falou então no projecto de Emil Joeppli.

- Precisamos muito do que ele está fazendo.

- Vai ser uma grande coisa - murmurou Walther.

- Pedi-lhe que não lhe comunicasse mais nada - disse Elizabeth.

As mãos de Walther ficaram de repente imóveis.

- Por que fez isso, Elizabeth?

- Não é nada pessoal contra você, Walther. Eu faria a mesma coisa com qualquer outro director que estivesse trabalhando com ele. O que acontece é que quero cuidar do projecto à minha maneira.

- Compreendo - disse ele, ainda sem mover as mãos.

- É um direito seu. - Fez uma pausa e continuou com um sorriso forçado, que mostrava quanto aquilo estava lhe custando. - Escute, Elizabeth, Anna possui muitas acções da companhia. Mas não as pode vender sem a sua aprovação. Isso é muito importante para nós...

- Sinto muito, Walther, mas não posso concordar por enquanto com a venda das acções.

Neste momento, as mãos de Walther voltaram a agitar-se nervosamente.

 

Capítulo 24

Julius Badrutt era um homem magro e frágil, que parecia um louva-a-deus metido num terno preto. Era como um boneco desenhado por uma criança, com pernas e braços angulosos e um rosto magro e inacabado desenhado no alto do corpo. Estava sentado à mesa da directoria da Roffe and Sons, diante de Elizabeth. Havia mais cinco banqueiros em companhia dele.

Todos usavam ternos pretos com colete, camisas brancas e gravatas escuras. Elizabeth pensava que estavam não apropriadamente vestidos, mas fardados. Vendo os rostos impassíveis e frios em volta da mesa, Elizabeth não conseguia dominar seus receios. Antes da reunião, Kate Erling tinha levado para a sala uma bandeja com doces.

Os banqueiros recusaram o café e os doces, do mesmo modo que antes não tinham aceito o convite dela para almoçar. Era mau sinal. Queriam dizer com isso que estavam ali apenas para receber o dinheiro que lhes era devido.

- Antes de mais nada - disse Elizabeth -, quero agradecer a presença de todos.

Houve polidos resmungos ininteligíveis em resposta.

Ela respirou fundo e continuou:

- Pedi que viessem até aqui para discutirmos uma prorrogação dos empréstimos contraídos com os senhores pela Roffe and Sons.

Julius Badrutt sacudiu a cabeça em breves movimentos quase convulsivos.

- Sinto muito, Senhorita Roffe. Já informamos...

- Ainda não acabei - disse Elizabeth. - Se eu estivesse no lugar dos senhores também recusaria.

Os banqueiros se entreolhavam, confusos.

- Se estavam preocupados com os empréstimos quando meu pai, que era um homem brilhante, estava dirigindo a companhia, por que iriam conceder uma prorrogação a uma mulher inexperiente como eu?

- Creio que deu resposta cabal à pergunta que fez - disse Julius Badrutt secamente. - Não temos a intenção de...

- Espere um pouco. Ainda não acabei.

Observaram-na agora com mais cautela. Ela olhou para cada um dos homens, a fim de ter certeza de que estava merecendo toda a atenção deles. Tratava-se de banqueiros suíços, respeitados e invejados no mundo inteiro. Escutavam todos atentamente, e a sua atitude anterior de impaciência e enfado cedera lugar à curiosidade.

- Todos os senhores conhecem a Roffe and Sons há muito tempo.

E tenho certeza de que conheceram e respeitaram meu pai.

Alguns homens fizeram sinais de assentimento.

- Imagino que devem ter-se engasgado com o café da manhã quando leram a notícia de que eu havia ficado no lugar dele.

Um dos banqueiros sorriu, depois riu francamente e disse:

- Tem toda a razão, Senhorita Roffe. Se todos nós estamos de acordo, como disse, todos nós nos engasgamos com o café da manhã.

- Não o censuro - disse Elizabeth, rindo. - Eu teria reagido da mesma maneira.

Outro banqueiro tomou a palavra.

- Desculpe a curiosidade, Senhorita Roffe. Se todos nós estamos de acordo quanto ao resultado desta reunião, o que estamos fazendo aqui?

- Estão aqui porque desejei reunir nesta sala os maiores banqueiros do mundo. E agi assim porque não posso acreditar que tenham tido êxito encarando tudo exclusivamente do ponto de vista do dinheiro. Se fosse assim, qualquer guarda-livros poderia ter sucesso como banqueiro. Não pode ser só isso!

- Claro que não é - disse outro banqueiro. - Somos antes de mais nada homens de negócios e...

- E a Roffe and Sons é um grande negócio. Só tive uma ideia exacta da grandeza desta companhia depois que me sentei na cadeira de meu pai. Não sabia quantas vidas haviam sido salvas por esta companhia em todo mundo. As contribuições que fizemos à medicina são inestimáveis. Muitos milhares de pessoas dependem da Roffe and Sons para viver...

Julius Badrutt interrompeu-a.

- Tudo isso é muito meritório. Mas parece que estamos nos afastando do assunto. Sei que lhe foi sugerido que liberasse as acções da companhia. Neste caso, haveria dinheiro em quantidade mais que suficiente para cobrir todos os empréstimos.

Era o primeiro erro dele. Sei que lhe foi sugerido...

A sugestão fora feita no segredo de uma reunião da directoria da companhia, em que tudo era confidencial. Alguém que estava na reunião havia falado. Era alguém que queria exercer pressão sobre ela. Pretendia descobri-lo, mas isso podia ficar para depois.

- Posso fazer uma pergunta? - disse Elizabeth. - Se os empréstimos forem pagos, terá alguma importância para os senhores de onde veio o dinheiro?

Julius Badrutt olhou-a, ruminando a pergunta, à procura de alguma armadilha. Disse por fim:

- Não. Não tem importância de onde o dinheiro venha, contanto que os nossos títulos sejam pagos.

- Muito bem! Pouco importa que o dinheiro provenha da venda das acções da companhia a terceiros ou dos nossos recursos financeiros próprios. Tudo o que devem saber agora é que a Roffe and Sons não vai fechar as portas. Nem hoje, nem amanhã, nem nunca. Estou pedindo apenas a gentileza de uma prorrogação de prazo.

Julius Badrutt passou a língua pelos lábios secos e disse:

- Acredite, Senhorita Roffe, que conta com toda a nossa simpatia.

Compreendemos a tremenda tensão emocional por que está passando, mas não podemos...

- Três meses - disse Elizabeth. - Noventa dias. É claro que deverão cobrar juros adicionais.

Houve um silêncio em volta da mesa. Mas era um silêncio negativo. Elizabeth viu os rostos hostis e frios. tentou então um lance de desespero.

- Não sei se devo revelar - murmurou ela com deliberada hesitação. - Em todo caso, peço-lhes que guardem o maior sigilo possível. A Roffe and Sons está em vésperas de uma descoberta que vai revolucionar toda a indústria farmacêutica. - Fez uma pausa para causar maior efeito. - Esta companhia tem em estudos um novo produto que vai sobrepujar todos os medicamentos actualmente existentes no mercado!

Sentiu perfeitamente que tinha havido uma mudança no ambiente.

Foi Julius Badrutt quem mordeu primeiro a isca.

- De que tipo... é esse medicamento?

Elizabeth sacudiu a cabeça.

- Desculpe, Sr. Badrutt. Talvez eu já tenha falado mais do que devia. Só lhes posso dizer que será a maior inovação na história de nossa indústria. Exigirá uma imensa expansão de nossas instalações. Teremos de duplicá-las, talvez triplicá-las. é claro que iremos precisar de novos financiamentos em grande escala.

Os banqueiros olhavam uns para os outros, trocando sinais silenciosos. O silêncio foi quebrado por Badrutt.

- Se nós lhe dermos um prazo de noventa dias, esperamos naturalmente que a Roffe and Sons trabalhe connosco em todas as futuras transacções.

- Naturalmente.

Houve nova troca de olhares significativos. Funciona como os tambores na selva, pensou Elizabeth.

- Enquanto isso - disse Badrutt -, nós teremos a sua garantia de que ao fim de noventa dias todos os seus títulos vencidos seriam resgatados?

- Teriam, sim.

Durante um instante, Badrutt ficou olhando para o espaço. Em seguida, olhou para Elizabeth e para cada um dos seus companheiros, recebendo sinais silenciosos.

- Da minha parte - disse ele -, estou disposto a concordar.

Não creio que um novo prazo, com os juros correspondentes, é claro, faça algum mal.

Um por um, os outros banqueiros concordaram.

- Estamos com você, Julius...

E tudo foi combinado. Elizabeth recostou-se na cadeira, tentando dissimular a sua satisfação. Ganhara noventa dias.

Ia precisar de todos os minutos desse prazo.

 

Capítulo 25

Era como se ela estivesse no centro de um furacão.

Tudo convergia para a mesa de Elizabeth, das centenas de departamentos da sede, das fábricas de Zaire, dos laboratórios da Grõenlândia, dos escritórios da Austrália e da Tailândia, dos quatro cantos da Terra.

Havia relatórios sobre novos produtos, demonstrativos de vendas, projecções estatísticas, campanhas de publicidade, programas experimentais.

Era preciso tomar decisões sobre a construção de novas fábricas, venda de fábricas velhas, compra de companhias, admissão e demissão de directores. Elizabeth dispunha de pareceres técnicos em todas as fases dos negócios, mas as decisões finais tinham de ser tomadas por ela. Assim tinha sido Sam, e ela era grata pelos três anos que havia trabalhado com ele. Sabia muito mais sobre a companhia do que havia imaginado, e, ao mesmo tempo, sabia muito menos. A extensão da companhia era incalculável.

Elizabeth havia concebido a companhia como um reino. Via agora que se tratava de uma série de reinos, cada qual com seu vice-rei, e que o escritório do presidente era como uma sala do trono. Cada um dos seus primos se incumbia do seu domínio próprio; além disso, supervisionava alguns territórios estrangeiros. Por isso, todos viajavam constantemente.

Elizabeth compreende que tinha um problema especial. Era uma mulher no mundo masculino, e descobriu que isso fazia alguma diferença. Nunca havia realmente acreditado que os homens aceitassem como uma verdade o mito de inferioridade das mulheres, mas agora via que as coisas não se passavam de outra maneira. Ninguém dizia isso abertamente em palavras ou actos, mas Elizabeth tinha de enfrentar diariamente essa realidade.

Era uma atitude oriunda de velhos preconceitos e não se podia fugir dela. Os homens não gostavam de receber ordens de uma mulher. Não lhe agradava a idéia de que uma mulher pusesse em dúvida as suas conclusões ou discordasse dos seus conceitos. O facto de Elizabeth ser jovem e bela agravava a situação. Todos procuravam fazê-la compreender que o seu lugar era numa cama o numa cozinha, deixando os negócios aos cuidados dos homens.

Elizabeth marcava reuniões todos os dias com diversos chefes de departamento. Nem todos eram hostis. Alguns eram ousados. Uma mulher bonita na cadeira da presidência era um desafio irresistível para certos corações masculinos. Pensavam que, se conseguissem levá-la para a cama, poderiam controlá-la e a companhia também.

Eram uma versão adulta dos rapazes da Sardenha.

Os homens atacavam Elizabeth pelo lado errado. Deviam atacá-la pelo espírito, pois, no fundo, era dali que ela os controlava. Subestimavam-lhe a inteligência e se enganavam redondamente.

Calculavam mal a sua capacidade de exercer autoridade, e esse era outro erro.

Não levavam em consideração a sua energia, e esse era o maior de todos os erros. Ela era uma Roffe, descendente do velho Samuel e de Sam, com o espírito e a determinação deles.

Enquanto os homens a cercavam e procuravam usar Elizabeth, ela é que os usava. Apropriava-se dos conhecimentos, das experiências e da intuição que eles possuíam e passava a usar tudo isso como lhes pertencesse. Deixava os homens falarem e escutava. Fazia perguntas e guardava na memória as respostas.

Estava aprendendo.

Levava todas as noites duas pesadas pastas, cheias de relatórios a serem estudados. Trabalhava às vezes até às quatro horas da madrugada. Uma tarde, um fotógrafo registou para um jornal um flagrante de Elizabeth, que saía do edifício acompanhada de uma secretária com as duas pastas. A fotografia foi publicada no dia seguinte com a legenda: "Uma herdeira que trabalha".

Elizabeth se tornara uma celebridade internacional da noite para o dia. A história de uma mulher jovem e bela que herdava uma companhia de muitos biliões de dólares e resolvia assumir a sua direcção era irresistível. A imprensa explorou-a em todos os ângulos. Elizabeth era bela, inteligente e simples, uma combinação de qualidades muito raras entre as celebridades.

Atendia aos jornalistas sempre que possível, tentando recompor a imagem um pouco desgastada da companhia, e eles apreciavam essa solicitude. Quando ela não tinha a resposta à pergunta de algum repórter, não tinha a menor dúvida em pegar o telefone e perguntar a alguém. Os primos iam de avião a Zurique para as reuniões semanais.

Elizabeth passava com eles tanto tempo quanto possível. Via-os juntos e reunia-se com cada um deles separadamente. Falava com eles e estudava-os, pensando encontrar algum indício de que um deles fosse capaz de deixar pessoas inocentes morrerem numa explosão, de vender segredos a concorrentes e de procurar destruir a Roffe and Sons. Um de seus primos.

Ivo Palazzi, com o seu irresistível encanto.

Alec Nichols, tipo perfeito, o próprio gentleman, sempre solícito quando Elizabeth precisava dele.

Charles Martel, um homem dominado e amedrontado. Homens assim podiam ser perigosos quando acuados.

Walther Gassner. O tipo do herói alemão. Belo e extremamente afável. Como seria ele no íntimo? Casara-se com Anna, treze anos mais velha do que ele. Casara-se por amor ou por dinheiro?

Quando Elizabeth estava com eles, observava, escutava, sondava. Mencionava a explosão no Chile e observava as reacções de cada um. Falava das patentes que a Roffe tinha perdido para outras companhias e discutia as indemnizações a serem pagas.

Não conseguia apurar nada. Fosse quem fosse, era muito hábil para se deixar trair. Teria de ser colhido numa armadilha.

Lembrou-se da nota do próprio punho de Sam no relatório. Era preciso apanhar o patife. Ela teria de encontrar um meio.

Elizabeth ficava cada vez mais fascinada com o funcionamento interno da indústria farmacêutica.

As más notícias eram deliberadamente espalhadas. Quando se sabia que algum doente morrera depois de ter tomado um medicamento de um concorrente, meia hora depois cerca de dez homens estavam dando telefonemas através do mundo. "Sabe o que estão dizendo?" Entretanto, aparentemente, todas as companhias pareciam viver nas melhores relações possíveis. Os chefes de algumas das grandes firmas reuniam-se regularmente em encontros informais.

Elizabeth foi convidada para uma dessas reuniões. Foi a única mulher presente. Os homens debateram os seus problemas comuns.

O presidente de uma das grandes companhias, um homem de meia-idade que tinha seguido Elizabeth a noite inteira, disse-lhe em dado momento:

- As restrições são cada vez mais absurdas. Se a aspirina fosse descoberta hoje, duvido muito que as autoridades a aprovassem. Por falar nisso, minha bela jovem, tem alguma idéia de há quanto tempo nós temos a aspirina?

A bela jovem respondeu:

- Desde quatrocentos anos antes de Cristo, quando Hipócritas descobriu a salicina na casca do salgueiro.

O homem olhou para ela e o sorriso morreu em seus lábios.

- Certo - murmurou ele, e afastou-se.

Todos os chefes de companhia concordavam em que um dos seus maiores problemas era o das firmas sem escrúpulos que roubavam as fórmulas dos produtos que tinham êxito, mudavam os nomes e lançavam os medicamentos no mercado. Isso custava às empresas de boa reputação centenas de milhões de dólares por ano.

Na Itália, não havia sequer a necessidade de roubar.

- A Itália é um país que não tem regulamento de patentes a respeito de medicamentos - disse um dos directores a Elizabeth.

- Por algumas centenas de milhares de liras, qualquer pessoa pode comprar as fórmulas e vender os produtos com outro nome.

Gastamos milhões de dólares em pesquisas. E eles se limitam a arrecadar os lucros.

- Isso acontece apenas na Itália? - perguntou Elizabeth.

- A Itália e a Espanha são os piores lugares. A França e a Alemanha Ocidental, mais ou menos. Só nos Estados Unidos e na Inglaterra é que não acontece isso.

Elizabeth olhava para aqueles homens indignados e tinha vontade de saber quantos deles estariam envolvidos nos roubos das patentes da Roffe and Sons.

Elizabeth tinha a impressão de que estava passando a maior parte da vida a bordo de aviões. O seu passaporte ficava bem à mão, na primeira gaveta de sua mesa. Uma vez por semana, pelo menos, havia uma chamada angustiosa do Cairo, da Guatemala ou de Tóquio, e poucas horas depois, Elizabeth estava a bordo de um avião com alguns homens de sua confiança para atender a alguma emergência.

Encontrava-se com gerentes de fábricas e suas famílias em cidades grandes como Bombaim ou em pontos remotos como Puerto Vallarta, e pouco a pouco principiou a ver a Roffe and Sons sob outra perspectiva. Não era mais um acúmulo impessoal de relatórios e estatísticas. Chegava um relatório da Guatemala e isso significava Emilio Núñez, sua mulher gorda e feliz e seus doze filhos. Copenhague era Nils Bjorn e a mãe inválida com quem ele vivia. O Rio de Janeiro fazia lembrar uma noite passada com Alexandre Duval e sua vivaz companheira.

Elizabeth mantinha-se regularmente em contacto com Emil Joeppli. Telefonava-lhe sempre por uma linha privativa e às vezes ia visitá-lo à noite em seu pequeno apartamento no Aussershl.

Era cautelosa até pelo telefone.

- Como vão as coisas?

- Um pouco mais lentamente do que eu esperava, Senhorita Roffe.

- Precisa de alguma coisa?

- Não. Só de tempo. Encontrei um problema, mas creio que já resolvi.

- Muito bem. Telefone-me se precisar de alguma coisa, seja lá o que for.

- Está bem. Muito obrigado, Senhorita Roffe.

Elizabeth desligara o telefone com vontade de dizer mais alguma coisa, de apressá-lo, pois sabia que o vencimento dos empréstimos contraídos com os bancos estava próximo. Precisava muito do produto em que Joeppli estava trabalhando, mas sabia que pouco adiantava pressioná-lo e continha sua impaciência. As experiências não podiam evidentemente estar terminadas antes do prazo concedido pelos banqueiros. Mas ela tinha um plano.

Pretendia levar Julius Badrutt secretamente até o laboratório para que ele visse pessoalmente o projecto. Os bancos dariam o tempo necessário.

Elizabeth trabalhava cada vez mais em conjunto com Rhys Williams, e com frequência ficavam juntos até altas horas da noite.

Quase sempre trabalhavam sozinhos. Jantavam na sala privativa do escritório ou no elegante apartamento que ela passara a ocupar. Era um edifício moderno em Zurichberg, com as janelas dando para o lago de Zurique, amplo , arejado e bem-iluminado.

Elizabeth estava cada vez mais consciente do poderoso magnetismo animal de Rhys, mas, se ele sentia qualquer atracção por ela, tinha o maior cuidado em não dar a maior demonstração.

Era sempre gentil e simpático. A sua atitude era mais ou menos protectora, e essa palavra tinha no espírito de Elizabeth ressonância pejorativa.

Queria se apoiar nele, confiar nele, mas sabia que precisava tomar cuidado. Mais de uma vez, estivera a ponto de contar a Rhys tudo sobre os actos de sabotagem na companhia, mas recuava sempre. Não era ainda tempo de falar sobre o assunto com ninguém. Tinha de saber mais.

Elizabeth estava adquirindo confiança em si mesma. Na reunião de vendas, tinham discutido o caso de um preparado para os cabelos que estava tendo pouca saída.

- Há muitas devoluções das farmácias - disse um dos chefes de vendas. - O produto não pegou. Precisamos de mais publicidade.

- Nossa verba de publicidade está esgotada - disse Rhys. Temos de tomar uma providência diferente.

- Vamos tirar o produto das farmácias - disse então Elizabeth.

- Como? - perguntaram todos, voltando-se para ela.

- É isso mesmo. Devemos continuar a campanha de publicidade e passar a vender o produto exclusivamente nos salões de beleza. Procurem dar a impressão de que é uma mercadoria exclusiva, difícil de encontrar.

Rhys pensou um pouco e disse:

- Muito bem. Agrada-me a idéia.

As vendas do produto subiram da noite para o dia.

Depois, Rhys deu-lhe os parabéns.

- Você não é apenas uma mulher bonita - disse ele com um sorriso.

Então, ele estava começando a notá-la.

 

Capítulo 26

Londres. Sexta-feira, 2 de novembro. 14 horas.

Alec Nichols estava na sauna do clube quando a porta se abriu e um homem entrou na peça de vapor, com uma toalha amarrada à cintura. Foi sentar-se no banco de madeira ao lado de Alec.

- Isto aqui está quente como um colo de feiticeira, não é mesmo, Sir Alec?

Alec voltou-se. Era Jon Swinton.

- Como conseguiu entrar aqui?

- Disse que estava à minha espera - respondeu Swinton, piscando o olho. – E está mesmo, não é?

- Não. Já lhe disse que preciso de um pouco mais de tempo.

- Disse também que sua priminha ia consentir na venda das acções que, depois disso, nos daria o dinheiro.

- Ela... ela mudou de idéia.

- Pois é melhor você convencê-la a não mudar de idéia.

- Vou convencê-la. É apenas uma questão de...

- É apenas uma questão de quanto papo-furado vamos tolerar de sua parte - disse Jon Swinton, chegando mais perto e fazendo Alec escorregar pelo banco para afastar-se dele. - Não queremos ser duros, porque é sempre bom ter um amigo de confiança no Parlamento. Mas acontece que há um limite para tudo... Nós lhe fizemos um favor.

Agora, está na hora de você pagar. Tem de conseguir uma remessa de drogas para nós.

- Não! É impossível! Não posso fazer isso...

Alec viu de repente que tinha sido empurrado para aponta do banco, bem próximo ao recipiente de metal cheio de pedras quentes.

- Cuidado! - gritou Alec.

Swinton agarrou o braço de Alec e torceu-o, empurrando-o na direcção das pedras. Alec sentiu que os pêlos de seu braço começavam a chamuscar.

- Não!

No instante seguinte, o braço foi comprimido contra as pedras, e Alec soltou um grito de dor. Em seguida, rolou pelo chão. Swinton inclinou-se para ele e disse:

- Dê um jeito. Depois a gente se vê.

 

Capítulo 27

Berlim. Sábado, 3 de novembro. 18 horas.

Anna Roffe Gassner não sabia por quanto tempo poderia aguentar aquilo.

Era uma prisioneira dentro de sua própria casa. A não ser nas poucas horas m que a faxineira aparecia uma vez por semana, ela e os filhos ficavam sozinhos e inteiramente à mercê de Walther.

Este nem se dava mais ao trabalho de esconder o seu ódio. Anna estava no quarto das crianças, ouvindo um disco que gostava muito.

- Estou farto de ouvir isso! - gritou Walther, entrando impetuosamente.

Quebrou o disco, enquanto as crianças se encolhiam de terror.

Anna tentou acalmá-lo.

- Desculpe, Walther. Não sabia que você estava em casa. Quer alguma coisa?

Walther avançou para ela, com os olhos fuzilantes, e disse:

- Temos de nos librar das crianças, Anna.

Colocou as mãos nos ombros dela.

- O que acontecer nesta casa será nosso segredo.

Nosso segredo. Nosso segredo. Nosso segredo.

Sentiu as palavras ressoarem-lhe na cabeça enquanto os braços de Walther a apertavam até que ela não pôde mais respirar.

Perdeu os sentidos.

Quando Anna voltou a si estava deitada em sua cama. As cortinas estavam descidas. Olhou para o relógio na mesa-de-cabeceira. Seis horas da tarde. A casa estava em silêncio, num silêncio sinistro. Pensou imediatamente nas crianças.

Levantou-se com as pernas trémulas e foi até à porta do quarto. Estava trancada por fora. Encostou o ouvido à porta, procurando escutar. Devia estar ouvindo o barulho das crianças.

Não podiam deixar de procurá-la.

Se pudessem, se ainda estivessem vivas...

Suas pernas tremiam tanto que teve dificuldade em ir até ao telefone. Rezou em silêncio ao tirar o fone do gancho. Ouviu o ruído e hesitou, pensando no que Walther faria se a surpreendesse de novo. Começou a discar com as mãos trémulas.

Por isso, discou errado. Pela segunda vez também. Começou a chorar. Havia tão pouco tempo! Procurando dominar-se, e com movimentos muito lentos, discou 110. Ouviu a campainha tocar e em seguida uma voz milagrosa de homem.

- Aqui fala o Socorro Urgente da Polícia.

Anna não conseguiu articular uma só palavra.

- Fala o Socorro Urgente da Polícia. Que deseja?

- Por favor! Mande alguém aqui! Estou em grande perigo! Mande alguém...

Walther apareceu diante dela, arrancando-lhe o telefone da mão e atirou-a na cama com um empurrão. Com a respiração entrecortada arrancou o fio do telefone da parede e voltou-se para Anna.

- As crianças... - murmurou ela. - O que você fez com as crianças?

Walther não respondeu.

A Divisão Central da polícia Criminal de Berlim ficava na Keithstrasse, 2832, num bairro de aspecto comum, em que havia tantos edifícios de apartamentos quanto de escritórios. O número de emergência do Departamento de Delitos Pessoal era dotado de um dispositivo automático que não permite que uma ligação fosse desfeita enquanto não fosse cortada electronicamente pela mesa da polícia. Graças a isso, era possível apurar a procedência de todos os telefonemas, por mais breve que tivesse sido a conversação. Esse dispositivo era um equipamento moderno de que o departamento se orgulhava.

Cinco minutos depois do telefonema de Anna Gassner, o detective Paul Lange entrou no gabinete do seu chefe, o major Wageman, tendo na mão um toca-fitas.

- Gostaria que escutasse isso - disse o detective e apertou um botão.

Ouviu-se uma voz metálica dizer: "Aqui fala o Socorro Urgente da Polícia. Que deseja?" Ouviu-se então uma voz de mulher, cheia de terror: "Por favor! Mandem alguém aqui! Estou em grande perigo! Mandem alguém..." Houve um estalo, depois um baque, e o telefone ficou mudo.

- Identificou o telefonema? - perguntou o major Wageman.

- Sabemos de que casa foi dado o telefonema - respondeu o detective.

- Qual é o problema então? Fale com a Central para mandar um carro imediatamente para lá.

- Quero a sua autorização primeiro - disse Lange, colocando uma folha de papel na mesa diante do major.

- Epa! - exclamou Wageman. - Tem certeza?

- Tenho, major.

Wageman olhou para a folha de papel. O telefone constava da lista em nome de Walther Gassner, chefe da divisão alemã da Roffe and Sons, uma das grandes empresas da Alemanha.

Não havia necessidade de discutir as consequências. Só um idiota poderia desconhecê-las. Um passo em falso, e ambos poderiam ser demitidos.

- Muito bem - disse Wageman, depois de reflectir um pouco. Acho que você deve ir pessoalmente. E tenha muito cuidado, entendeu?

- Entendi, major.

A propriedade de Gassner ficava em Wannsee, um subúrbio de classe alta na parte sudoeste de Berlim. O detective Lange seguiu pelo caminho mais longo, o da Hohenszollerndamm, e não pela Autobahn, para encontrar o tráfego livre. Atravessou o Clayalle e passou pelo edifício da CIA, escondido por trás de mais de um quilómetro de cercas de arame farpado. Passou pelo quartel-general do exército americano e virou à direita para o que fora conhecido em outros tempos como Rodovia 1, a estrada mais longa da Alemanha, que ia da Prússia Oriental às fronteiras da Bélgica. à sua direita, ficava a Brück der Einheit, a Ponte da Unidade. O detective Lange saiu da grande estrada para as colinas cobertas de florestas de Wannsee.

O lugar era muito bonito. às vezes, aos domingos, o detective Lange ia com a mulher para aqueles lados só para apreciarem as lindas casas.

Encontrou o endereço que procurava pelo longo caminho que levava à casa de Walther Gassner. A dinastia Roffe era bastante poderosa para derrubar governos. Seguindo o conselho do seu chefe, o detective Lange estava empenhado em ter o máximo de cuidado.

Parou o carro à porta da casa de três andares, saltou, tirou o chapéu e tocou a campainha. Esperou. Havia o pesado silêncio de uma casa deserta. Sabia que isso era impossível e tornou a tocar. Nada senão aquele silêncio completo e opressivo. Já estava pensando em ir tentar os fundos da casa quando a porta se abriu inesperadamente.

Uma mulher apareceu. Era de meia-idade e de feições comuns. O detective Lange pensou que fosse a governanta. Mostrou a sua carteira de identificação e disse:

- Gostaria de falar com a Sra. Walther Gassner. Tenha a bondade de dizer-lhe que é o detective Lange.

- Sou a Sra. Gassner - disse a mulher.

O detective Lange conseguiu esconder a sua supresa. Tinha uma idéia inteiramente diferente da dona de uma casa como aquela.

- Recebemos na polícia ainda há pouco um chamado daqui.

Ela o olhou, com o rosto impassível e desinteressado. Lange tinha a impressão de que estava tratando erradamente do caso, não sabia por quê. Parecia-lhe que não estava levando em conta alguma coisa importante.

- O telefonema foi seu, Sra. Gassner?

- Foi, sim, mas tudo não passou de um engano.

Havia um tom surdo, forçado, na voz da mulher que não lhe agradava, principalmente quando o comparava com o apelo nervoso e angustiado pelo telefone.

- Só para constar dos nossos registos, que espécie de engano, senhora?

Houve um instante de pequena hesitação.

- Dei por falta de uma de minhas jóias e pensei que tivesse sido roubada. Mas já encontrei a jóia.

O número do telefone de emergência era para casos graves, assaltos, homicídio, agressão. Mas era preciso agir com cuidado.

- Está bem - disse o detective, com vontade de entrar na casa e ver o que ela estava escondendo, mas nada mais podia fazer.

- Muito obrigado, Sra. Gassner. Desculpe o incómodo.

O detective ficou frustrado e viu a porta ser fechada em sua cara. Voltou para o carro e foi embora.

Atrás da porta, Anna se voltou.

Walther disse com voz mansa:

- Saiu-se muito bem, Anna. Agora, vamos voltar lá para cima.

Ele se dirigiu para a escada. Anna pegou numa tesoura grande que levava escondida nas dobras do robe e cravou-a nas costas dele.

 

Capítulo 28

Roma. Domingo, 4 de novembro. Meio-dia.

Ivo Palazzi pensava que o dia estava prefeito para aquela visita à Villa d'Este, em companhia de Simonetta e das três belas filhas do casal. Enquanto passeava pelos fabulosos jardins do Tivoli, de braço dado com sua mulher, ao ver as meninas que corriam de uma fonte para a outra, ia pensando se Pirro Ligorio, que construíra o parque para a família D'Este, sonhara com a alegria que proporcionaria no futuro a milhões de pessoas.

A Villa D'Este ficava a nordeste de Roma, no alto dos montes Sabinos. Ivo já estivera muitas vezes ali, mas sempre sentia um prazer especial em ficar no ponto mais alto e olhar para as dezenas de fontes luminosas, cada qual artisticamente desenhada e diferente das outras.

Uma vez, Ivo tinha levado até ali Donatella e seus três filhos. Como tinha adorado o passeio! Essa lembrança entristeceu Ivo. Não vira Donatella, nem falara com ela, desde aquela horrível tarde no apartamento. Lembrava-se ainda das tremendas unhadas que recebera dela. Sabia que remorso ela devia estar sentindo, ao mesmo tempo que desejava a volta dele. Não fazia mal que ela sofresse um pouco, como ele havia sofrido.

Imaginava ouvir a voz de Donatella a dizer durante o passeio:

"Vamos. Por aqui, meninos".

Ouviu a voz de Donatella tão claramente que chegava a parecer-lhe real. Ouviu-a dizer:

- Ande mais depressa, Francesco!

Voltou-se e viu Donatella atrás dele em companhia dos três filhos, encaminhou-se determinadamente para onde estavam ele, Simonetta e as três meninas. No primeiro momento, Ivo pensou que a presença de Donatella ali nos jardins do Tivoli fosse pura coincidência, mas logo viu a expressão no rosto dela, ficou sabendo da verdade.

A grande putana estava reunindo as duas famílias para arruiná-lo. Agiu então como um alucinado.

Gritou para Simonetta:

- Quero mostrar-lhe uma coisa. Vamos andar depressa, todo mundo!

Levou então rapidamente a família pela sinuosa escadaria de pedra abaixo, empurrando quem encontrava no caminho para abrir passagem e de vez em quando lançando olhares desesperados para trás. Donatella e as crianças já estavam chegando ao alto da escadaria. Ivo sabia que, se os meninos o vissem, tudo estaria perdido. Bastava que um deles gritasse "Papai!" e ele não teria outro remédio senão afogar-se numa das fontes. Apressou Simonetta e as filhas, sem lhes dar oportunidade sequer para respirar.

- Para onde vamos? - perguntou Simonetta. - Porquê esta correria?

- É uma supresa. Você vai ver - disse Ivo, tentando mostrar-se alegre e despreocupado.

Arriscou outro rápido olhar para trás. Donatella e os três rapazes não estavam visíveis no momento. à frente, havia um labirinto, com um lanço de degraus para baixo e outro para cima. Ivo escolheu o último.

- Vamos! - disse ele para as meninas. - Quem chegar primeiro lá em cima ganhará um prémio!

- Estou exausta, Ivo - disse Simonetta. - Não podemos descansar um instante?

- Descansar? Nem me fale em descansar! Isso estragaria a supressa! Vamos!

Pegou Simonetta pelo braço e arrastou-a pelos degraus acima enquanto as três meninas corriam à frente. Ivo sentiu de repente falta de fôlego e pensou por um momento que seria bem feito para as duas mulheres que ele caísse ali fulminado por um ataque do coração. A verdade era que não se podia confiar nas mulheres. Precisavam obrigá-lo a fazer aquilo? Não o adoravam?

Mas ele ia matar aquela cadela!

Imaginou estrangular Donatella na cama. Ela estava nua e lhe pedia perdão. Sentiu então desejo ao invés de raiva.

- Não podemos parar agora? - perguntou Simonetta.

- Não! Estamos quase chegando!

Chegaram de novo ao alto. Ivo correu os olhos em torno e não viu Donatella e as crianças.

- Para onde você está nos levando, Ivo?

- Vocês vão ver. sigam-me! - disse Ivo nervosamente, levando-as para a saída.

- Mas já vamos sair, papai? - perguntou Isabella, a filha mais velha. - Chegamos ainda há pouco...

- Vamos para um lugar melhor - disse Ivo, ofegante.

Olhou para trás e viu Donatella, que subia a escada com os filhos.

- Mais depressa, meninas.

Um momento depois, Ivo e uma de suas famílias estavam fora dos portões da Villa d'Este, correndo para o carro, que havia ficado na grande praça.

- Nunca vi você agir dessa maneira - murmurou Simonetta.

- Nunca agi assim.

Ligou o motor antes mesmo que as portas estivessem fechadas e saiu do estacionamento como se os demónios o estivessem perseguindo.

- Ivo!

Ele bateu tranquilizadoramente na mão de Simonetta.

- Quero que todo mundo agora fique calmo. Como prémio especial, vou levar vocês para almoçarem no Hassler.

Sentaram-se a uma mesa diante de uma grande janela, de onde se via a Escada Espanhola e, ao longe, em todo o seu esplendor, a Basílica de São Pedro.

Simonetta e as crianças gostaram muito do almoço. Ivo tinha a impressão que estava comendo papel. Suas mãos tremiam tanto que mal conseguia segurar o talher. Não aguento mais, pensava ele. Não vou deixar que ela me arruine a vida.

Não tinha mais dúvidas de que era exactamente isso que Donatella pretendia fazer. A sorte estava lançada. A não ser que ele encontrasse um meio de dar o dinheiro a Donatella.

Tinha de conseguir o dinheiro. Pouco importava como...

 

Capítulo 29

Segunda-feira, 5 de novembro. 18 horas.

No momento em que Charles Martel entrou em casa, viu que estava em dificuldades. Hélène achava-se à espera dele em companhia dela estava Pierre Richaud, o joalheiro que fizera as imitações das jóias roubadas.

- Entre, Charles - disse Hélène com um subtom na voz que gelou de terror o coração de Charles. - Creio que você e M.Richaud já se conhecem.

Charles olhou-a, calado, sabendo que qualquer coisa que dissesse poderia condená-lo. O joalheiro voltara os olhos para o chão e era evidente que não se sentia à vontade.

- Sente-se, Charles.

Era uma ordem, e ele obedeceu.

- O que está enfrentando agora, mon cher mari, é um processo criminal como ladrão. Roubou minhas jóias e substituiu-as por imitações baratas feitas por M. Richaud.

Charles descobriu, horrorizado, que estava urinando nas calças, coisa que não lhe acontecia desde garotinho. Ficou muito vermelho e teve vontade de sair dali para ir trocar de roupa. Não, o que ele queria mesmo era fugir dali e nunca mais voltar.

Hélène sabia de tudo. Pouco importava como descobrira. Não havia escapatória e não havia piedade. Já era por demais aterrador que Hélène tivesse descoberto o roubo.

Pior seria quando ela soubesse o motivo, quando soubesse que ele planeava tirar o dinheiro de Hélène para fugir dela. O inferno em que vivia iria ter redobrada a violência. Ninguém conhecia Hélène mais que Charles. Era une sauvage capaz de tudo.

Destruí-lo-ia sem um momento de hesitação e o transformaria num clochard, num dos tristes vagabundos esfarrapados que dormem nas ruas de Paris. A vida dele se tornaria de repente uma merda.

- Pensou mesmo que poderia ter êxito com uma coisa tão imbecil? - perguntou Hélène.

Charles ficou miseravelmente calado. Sentia as calças mais molhadas ainda, mas não tinha coragem de olhar para ela.

- Consegui convencer M. Richaud a contar-me tudo.

Convencer... Charles não queria nem pensar como.

- Tenho cópias fotostáticas do recibo do dinheiro que você me roubou. Posso fazê-lo passar vinte anos na cadeia. - Fez uma pausa e acrescentou: - Se eu quiser.

As palavras dela só serviam para agravar o pânico de Charles.

A experiência lhe demonstrava que a generosidade de Hélène era ainda mais perigosa do que a cólera. Charles não tinha ânimo de olhar para ela. Não conseguia imaginar o que ela exigiria dele.

Devia ser alguma coisa monstruosa.

Hélène voltou-se para Pierre Richaud.

- Não diga uma palavra sobre isto a ninguém até eu resolver o que fazer.

- Sem dúvida alguma, Mme Roffe-Martel, sem dúvida. E agora, posso...?

Hélène assentiu, e Pierre Richaud deixou rapidamente a casa.

Hélène viu-o sair e, em seguida voltou-se para o marido.

Podia sentir o cheiro do medo dele. E de alguma coisa mais.

Urina. Sorriu. Charles tinha-se urinado de medo. Havia-o adestrado bem. Estava contente com Charles. Era um casamento muito satisfatório. Ensinara Charles, e ele havia reagido muito bem. Era um produto dela. As inovações que ele introduzira na Roffe and Sons eram brilhantes, mas tinham partido todas da cabeça de Hélène. Ela era uma Roffe. Era rica por direito próprio, e os seus casamentos anteriores lhe haviam dado ainda mais dinheiro. Mas não era por dinheiro que se interessava e, sim, pelo controle da companhia. Tinha planeado usar as suas acções para comprar mais acções, as acções dos outros. Já conversara com eles sobre isso. Todos haviam concordado em cooperar com ela para a formação de um grupo minoritário. Mas Sam tinha sido um obstáculo aos seus planos e, depois, Elizabeth. Hélène, porém, não tencionava deixar que Elizabeth, ou fosse lá quem fosse, a impedisse de conseguir o que desejava. Charles ia conseguir tudo para ela. Se acontecesse algum contratempo, ele serviria de bode expiatório.

Naquele momento, entretanto, ele devia ser punido por sua pequena revolta. Olhou para ele e disse:

- Ninguém me rouba, Charles. Ninguém. Você está liquidado. A não ser que eu resolva salvá-lo.

Charles estava sentado, desejava vê-la morta, apavorado diante dela. Hélène se aproximou dele e quase lhe roçou o rosto com as coxas.

- Quer que eu o salve, Charles?

- Quero - disse ele, a voz rouca.

Hélène estava tirando a saia com os olhos faiscando, e ele pensou: Oh, não! Agora não!

- Escute então o que lhe vou dizer. A Roffe and Sons é minha companhia. Quero o controle accionário dela.

Charles levantou os olhos para ela do fundo da sua angústia e disse:

- Sabe muito bem que Elizabeth não vai vender.

Hélène tirou a blusa e as calças.

- Você deve então fazer alguma coisa com ela. Ou isso ou vinte anos de cadeia. Não se preocupe, que eu lhe direi o que tem de fazer. Mas, primeiro, venha cá, Charles.

 

Capítulo 30

No dia seguinte, às dez horas da manhã, o telefone directo de Elizabeth tocou. Era Emil Joeppli. Ela lhe havia dado o número do telefone para que ninguém soubesse das conversas entre eles.

- Seria muito bom se eu pudesse vê-la - disse ele, numa voz em que a ansiedade era visível.

- Estarei aí dentro de quinze minutos.

Kate Erling mostrou surpresa quando viu Elizabeth sair do escritório com o casaco e a bolsa.

- Tem hora marcada com.... - disse ela.

- Cancele tudo por hora - disse Elizabeth e saiu.

No Edifício de Desenvolvimento, um guarda examinou o cartão de Elizabeth.

- Ultima porta à esquerda, Senhorita Roffe.

Joeppli estava sozinho no laboratório e recebeu-a com entusiasmo.

- Terminei os últimos testes ontem à noite. Dá resultado. As enzimas tolhem inteiramente o processo de envelhecimento.

Levou-a até uma gaiola onde havia quatro jovens coelhos irrequietos e animados de incessante vitalidade. Numa gaiola ao lado, viam-se também quatro coelhos, estes mais velhos e apáticos.

- Esta é a geração número 500 a receber a enzima - disse Joeppli.

- Parecem sádios - disse Elizabeth, olhando para a gaiola.

- Este é o grupo de controle - disse Joeppli, sorrindo. - Os mais velhos estão à esquerda.

Elizabeth olhou para os coelhos cheios de vida que se agitavam na gaiola e quase não pôde acreditar.

- Terão uma sobrevida três vezes maior que os outros.

Quando se aplicasse essa relação aos seres humanos, os resultados seriam assombrosos. Elizabeth não podia dissimular seu interesse.

- Quando poderá começar a fazer experiências com seres humanos, Joeppli?

- Estou reunindo minhas anotações. Depois disso, preciso de mais três ou quatro semanas, no máximo.

- Não fale nisso com ninguém, sim?

- Claro que não, Senhorita Roffe. Estou trabalhando sozinho e redobrarei os cuidados.

Toda a tarde foi tomada por uma reunião de directoria e tudo correu bem. Walther não apareceu. Charles ventilou novamente o assunto da venda das acções, porém Elizabeth opôs firmemente o seu veto. Depois disso, Ivo foi encantador como sempre, e Alec se mostrou mais cavalheiro do que nunca. Charles parecia excepcionalmente preocupado.

Elizabeth gostaria de saber porquê.

Convidou todos a ficarem em Zurique e jantarem com ela. Tão displicentemente possível, Elizabeth mencionou os problemas constantes do relatório, esperando alguma espécie de reacção, mas não notou nervosismo nem culpa. E todos os que podiam estar envolvidos no caso, à excepção de Walther, estavam sentados à mesa.

Rhys não comparecera à reunião nem ao jantar. Dissera a Elizabeth que tinha um caso urgente para resolver, e ela imaginou logo que se tratava de alguma mulher. Sabia que sempre que Rhys ficava trabalhando com ela até altas horas da noite, tinha de cancelar algum encontro. Certa vez, quando ele não conseguira avisar a tempo a mulher, esta apareceu no escritório. Era uma ruiva sensacional, com um corpo que fazia Elizabeth sentir-se humilhada. Estava furiosa e não procurava ocultar o desagrado que sentia. Rhys levou-a até o elevador e voltou.

- Desculpe, Elizabeth - disse ao voltar.

Elizabeth não se conteve.

- Ela é encantadora. O que faz na vida?

- É médica, especializava em neurocirurgia.

Elizabeth riu, mas soube no dia seguinte que a ruiva era realmente médica especializada em neurocirurgia.

Tinha havido outras, e Elizabeth sentiu-se mal em todos os casos. Gostaria de compreender Rhys melhor. Conhecia o Rhys Williams gregário e público. Queria conhecer o Rhys Williams íntimo, que vivia escondido sob o outro. Mais de uma vez, tinha pensado que quem deviria estar dirigindo a companhia era Rhys, em lugar de receber ordens dela. Gostaria muito de poder ser franca e ficar sabendo o que Rhys pensava disso.

Naquela noite, depois do jantar, quando os membros da directoria já se haviam despedido para embarcar em comboios e aviões de volta para casa, Rhys entrou no escritório onde Elizabeth estava trabalhando com Kate Erling.

- Resolvi vir ajudar um pouco - disse ele simplesmente.

Não explicou onde tinha estado. Por que teria de me dar explicações?, pensou Elizabeth. Ele não me deve nenhuma justificativa.

Todos começaram a trabalhar, e o tempo correu célere. Rhys estava inclinado sobre alguns papéis., examinando-os rapidamente, mas sem perder um só detalhe. Encontrou várias falhas em contratos importantes, que não tinham sido notadas pelos advogados. Por fim, levantou-se, espreguiçou-se e olhou para o relógio.

- Ih! Já passa de meia-noite! Estou cansado e tenho um encontro. Virei amanhã bem cedo para acabar de examinar estes contratos.

Elizabeth perguntou-se se o encontro seria com a neurocirúrgica ou com outra. Conteve-se, porém. O que Rhys Williams fazia com a sua vida particular era assunto exclusivamente dele.

- Desculpe - disse ela. - Não sabia que já era tão tarde.

Pode ir. Kate e eu ainda vamos ler alguns papéis.

- Até amanhã, então. Boa noite, Kate.

- Boa noite, Sr. Williams.

Elizabeth viu Rhys sair e voltou ao trabalho. Mas, um momento depois, pensava em Rhys de novo. Devia ter contado a ele os resultados alcançados por Emil Joeppli com o seu projecto.

Gostaria de partilhar tudo com ele. Dentro em breve, talvez...

à uma hora da madrugada, resolveram encerrar o trabalho.

- Mais alguma coisa, Senhorita Roffe? - perguntou Kate Erling.

- Não. Não há mais nada. Obrigada, Kate. Não se importe com a hora de entrada amanhã.

Elizabeth levantou-se e só então percebeu como estava cansada.

- Muito obrigada. Amanhã à tarde, baterei tudo isso à máquina.

- Optimo, Kate.

Elizabeth pegou o casaco e a bolsa e ficou à espera de Kate.

Saíram juntas para o corredor e se encaminharam para o elevador privativo que estava com a porta aberta à espera. As duas entraram no elevador. Quando Elizabeth ia primir o botão do térreo, ouviram o telefone tocar no escritório.

- Vou atender, Senhorita Roffe. Pode ir descendo - disse Kate Erling saindo do elevador.

Embaixo, o vigia do térreo olhou para o painel de controle dos elevadores quando uma luz vermelha se acendeu e o elevador privativo começou a descer. Isso significava que a Senhorita Roffe vinha descendo. O vigia voltou-se para o chofer dela, que cochilava a um canto, com um jornal na mão.

- Sua patroa já vem.

O chofer levantou-se e espreguiçou-se.

A campainha de alarme quebrou de repente o silêncio do vestíbulo.

O vigia olhou para o painel de controle. A luz vermelha descia rapidamente, descontrolada, indicando a queda do elevador.

- Meu Deus! - exclamou o vigia.

Correu para o painel dos elevadores e apertou o botão de emergência, para accionar os freios, mas a luz vermelha continuou sua descida veloz. O chofer tinha se aproximado, viu a fisionomia transtornada do vigia e perguntou:

- O que está havendo?

- Saia daqui! - gritou o vigia. - O elevador vai cair.

Correram para bem longe. O vestíbulo começava a vibrar com a velocidade do carro desgovernado. dentro do poço, e o guarda desejou que a Senhorita Roffe não estivesse dentro do elevador.

Quando o elevador passou pelo vestíbulo, veio do seu interior um grito de terror. Um instante depois, houve um estrondo no fundo do poço, e o edifício tremeu como se tivesse sido atingido por um terremoto.

 

Capítulo 31

O inspector-chefe Otto Schmied, da Polícia Criminal de Zurique, estava sentado à sua mesa, respirando profundamente de acordo com os princípios da ioga, procurando acalmar-se e controlar a fúria que o dominava.

Havia no processo policial regras tão básicas e evidentes que ainda ninguém julgara necessário incluí-las nos manuais da polícia. Eram coisas naturais e simples como respirar, dormir e comer. Por exemplo, quando ocorria um acidente fatal, a primeira coisa que um detective fazia, o primeiro movimento simples, óbvio, natural de um detective que valia o pão que comia era visitar o local do acidente. Nada poderia ser mais elementar do que isso. Entretanto, bem ali na mesa do inspector-chefe

Otto Schmied estava um relatório do detective Max Hornung que representava uma violação de todas as normas policiais conhecidas. Eu só poderia esperar isso, pensou o inspector. Por que estou tão surpreso?

O detective Hornung era uma pedra no sapato, a bête noire, a Moby do inspector Schmied, que era um admirador entusiástico do livro Melville. O inspector respirou de novo profundamente e deixou o ar escapar muito lentamente. Só então, mais calmo, apanhou o relatório de Max Hornung e leu-o de novo, desde o princípio.

"Relatório

Quarta-feira, 7 de novembro. Hora: 1:15 Assunto: Comunicado da mesa telefónica central de um acidente no edifício da administração da Roffe and Sons, na fábrica da Eichenbahn.

Tipo do acidente: Desconhecido.

Causa do acidente: Desconhecida.

Números de mortos e feridos: Desconhecido.

Hora: 1:27 Assunto: Segundo comunicado da mesa telefónica, um acidente na Roffe and Sons.

Tipo do acidente: Queda de elevador Causa do acidente: Desconhecida.

Números de mortos e feridos: Uma mulher, morta.

Iniciei uma investigação limitada. A 1:35 da madrugada, obtive o nome do superintendente do edifício da administração da Roffe And Sons e soube dele o nome do primeiro arquitecto no prédio.

2:30 da madrugada. Encontrei o primeiro arquitecto, que estava comemorando o seu aniversário em La Puce. Deu-me o nome da firma que instalou os elevadores no prédio:

Rudolf Schatz, A. G.

As 3:15 da madrugada, telefonei para a casa do Sr. Rudolf Schatz e pedi-lhe que procurasse imediatamente as plantas dos elevadores. Solicitei também os orçamentos, com os cálculos preliminares e as despesas totais. Solicitei ainda uma relação completa de todo o material mecânico eléctrico empregado." Neste ponto, o inspector Schmied sentiu uma contracção espasmódica na face direita. Respirou profundamente várias vezes e continuou a ler.

"6:15. Os documentos solicitados foram-me entregues aqui na chefura pela esposa do Dr. Schatz. Depois de examiná-los, fiquei convencido do seguinte:

a) não houve emprego de material inferior na construção dos elevadores; b) em vista da boa reputação da firma, deve ser excluída a hipótese de trabalho de montagem inferiore como a causa do acidente; c) as medidas de segurança de que foram dotados os elevadores foram satisfatórias; d) minha conclusão, portanto, é que a causa da queda do elevador não foi acidente.

(assinado) Max Hornung, detective.

N.B. Como os meus telefonemas foram feitos de madrugada, é possível que a polícia receba queixas das pessoas a quem eu possa ter despertado." O inspector Schmied jogou o relatório com raiva para um canto da mesa. "Pessoas a quem possa ter despertado!" O inspector-chefe tinha passado a manhã sob o fogo cruzado dos telefonemas das autoridades do governo suíço. O que ele pensava que a polícia era? Alguma Gestapo? Como se atrevera a acordar o presidente de uma respeitável empresa construtora e ordenou-lhe a entrega de documentos no meio da noite? Como tivera coragem de suspeitar da integridade de uma firma com a Rudolf Schatz? E assim por diante...

Mas o que era mais espantoso, o que era até incrível, era que o detective Max Hornung só havia aparecido no local do acidente catorze horas depois da comunicação do mesmo! Quando lá chegara, a vítima já fora removida, identificada e autopsiada. Meia dúzia de outros detectives tinham examinado o local do acidente, interrogado testemunhas e redigido relatórios.

Quando o inspector-chefe Schmied acabou de ler o relatório do detective Max Hornung, mandou chamá-lo ao seu gabinete.

O simples aspecto do detective Max Hornung já bastava para enfurecer o inspector-chefe. Max Hornung era um homem baixo, gordo e calvo. O rosto parecia o resultado de uma hora de divertimento de algum humorista. A cabeça era muito grande e as orelhas muito pequenas. A boca parecia uma ameixa comprida. Além de tremendamente míope, Max Hornung ficava dez centímetros abaixo da altura exigida pelos regulamentos da Polícia Criminal de Zurique. Como se tudo isso não bastasse, ainda era arrogante.

Havia unanimidade de sentimentos na polícia em relação a Max Hornung. Todos o odiavam.

A mulher do inspector-chefe perguntara um dia por que ele não demitia Hornung, e ele quase batera nela.

A razão pela qual Max Hornung continuava a fazer parte da polícia de Zurique era que ele, por si só, havia contribuído mais para a receita nacional da Suíça do que todas as fábricas de relógios e chocolates do país juntas. Max Hornung era contador, um verdadeiro génio matemático, dotado de um conhecimento enciclopédico de assuntos fiscais, de um instinto infalível para as traças humanas e de uma paciência que fazia Jó chorar de inveja. Max tinha sido funcionário do Betrug Abtelunh, o departamento encarregado de fiscalizar as fraudes financeiras, as irregularidades na venda de acções e as transacções bancárias, e a entrada e saída de dinheiro do território suíço. Foi Max Hornung quem bloqueou o contrabando de dinheiro ilegal para a Suíça, desmascarando engenhosos golpes financeiros no valor de muitos bilhões de dólares, o que levara para a prisão uma dezena dos mais respeitáveis líderes do mundo dos negócios. Pouco importava como o dinheiro fosse dissimulado, misturado, remisturado, mandado para as Seychelles, para ali ser manejado e transferido por meio de uma série complexa de empresas fantasmas. ao fim de tudo, Max Hornung apurava a verdade.

Em suma, tornara-se o terror da comunidade financeira suíça.

Acima de todas as coisas, os suíços consideravam sagrada a sua privacidade. Com Max Hornung à solta, não podia haver vida particular.

O salário de Max como um cão de guarda financeiro era bem modesto. Tinham tentado suborná-lo com um milhão de francos suíços numa conta numerada, um chalé em Cortina d'Ampezo, um iate e, em meia dúzia de oportunidades, belas mulheres, todas adolescentes. Em todos os casos, o suborno fora rejeitado, sendo as autoridades devidamente notificadas. Max Hornung não dava importância ao dinheiro. Poderia tornar-se milionário se aplicasse a sua sagacidade financeira no mercado de acções, mas essa idéia

nunca lhe ocorrera. Max Hornung só estava interessado numa coisa: surpreender aqueles que se desviavam do caminho da probidade financeira. Havia outra ambição no fundo do coração de Max Hornung, e essa ambição foi uma bênção para a comunidade financeira. Por motivos que só ele poderia aprofundar, Max Hornung desejava ardentemente ser um detective policial. Via-se como uma espécie de Sherlock Holmes ou de Maigret, seguindo infatigavelmente um labirinto de indícios até desentocar o criminoso do seu covil. Quando um dos principais financeiros da Suíça teve por acaso conhecimento dessa ambição de Max Hornung, reuniu-se imediatamente com alguns amigos de prestígio e, quarenta e oito horas depois, Max recebeu a oferta de um lugar de detective na polícia de Zurique. Aceitou pressurosamente, sem quase acreditar na sua sorte. Toda a comunidade financeira da Suíça deu um suspiro de alívio e retomou as suas actividades ocultas.

O inspector-chefe Schmied não fora consultado sobre o caso.

Recebera um telefonema do mais influente líder político da Suíça, fora instruído, e o assunto terminara ali. Ou melhor, ali é que tudo havia começado. Para o inspector-chefe, fora o começo de uma agonia que não mostrava o menor sinal de chegar ao fim. Tentara honestamente dissimular o seu ressentimento pela imposição de um detective, por mais competente que fosse.

Presumiu que devia haver fortes motivos políticos para um procedimento tão inusitado. Mas resolveu cooperar, na esperança de poder manobrar facilmente a situação.

A sua confiança foi abalada no momento em que Max Hornung se apresentou. A aparência do novo detective era por si só suficientemente ridícula. Mas o que assombrou o inspector Schmied foi a atitude de superioridade que se desprendia daquele farrapo de gente, era como se ele dissesse: "Bem, Max Hornung chegou! Descansem e não se preocupem mais com coisa alguma".

As idéias de fácil cooperação do inspector desapareceram.

Decidiu tomar uma atitude que deixasse Max Hornung encostado, transferindo-o de uma secção para outra e designando-o para serviços sem a menor importância. Hornung trabalhou na polícia técnica, na divisão de identificação, na secção de desaparecidos. Mas ele sempre acabava voltando.

Havia na polícia uma regra segundo a qual todo detective tinha de dar plantão nocturno no mínimo uma vez, de três em três meses. Invariavelmente, em todos os plantões de Max Hornung, acontecia alguma ocorrência importante, e, enquanto os outros detectives do inspector Schmied se esfalfavam investigando pistas, Max resolvia o caso.

Era de exasperar.

Não sabia absolutamente nada de processo policial, criminologia, medicina legal, balística ou psicologia criminal, coisas em que os outros detectives eram competentemente treinados, mas apesar disso, vivia resolvendo casos que desafiavam os outros. O inspector-chefe Schmied tinha de chegar à conclusão de que Max Hornung era o homem mais sortudo do mundo.

Na realidade, a sorte nada tinha que ver com o caso. O detective Max Hornung esclarecia os casos policiais da mesma maneira que o contador Max Hornung desmascarava centenas de planos engenhosos para fraudar os bancos e o governo. Max Hornung tinha uma mente de tacanha, por sinal. Precisava apenas de um fio solto, um pequeno fragmento que não se ajustasse ao resto da trama. Começava então a desenrolá-lo até que o plano que o criminoso considerava brilhante começasse as estourar nas costuras.

O facto de Max Hornung possuir uma memória fotográfica enlouquecia os seus colegas. Max podia se lembrar instantaneamente de qualquer coisa que tivesse visto, lido ou ouvido.

Outra circunstância que depunha contra ele, se mais alguma coisa fosse necessária, referia-se à sua conta de despesas, que era uma fonte de perplexidade e confusão para todo o corpo de detectives. Na primeira vez em que ele apresentara uma conta de despesas, o Oberleutnant chamou-o ao seu gabinete e dissera cordialmente:

- Notei alguns erros de cálculo nas suas contas, Max.

Isso equivalia acusar um campeão de xadrez a ter sacrificado a sua dama por descuido.

- Erros nas minhas contas?

- Sim, Max. Por exemplo, transporte através da cidade, oitenta cêntimos. Volta, oitenta cêntimos. O mínimo que gastaria num táxi seria trinta e quatro francos de ida e outro de volta.

- Exactamente. Foi por isso que tomei o autocarro.

- Autocarro? - perguntou o Oberleutnant, espantado.

Nenhum dos detectives andava de autocarro quando estava investigando alguns casos. Nunca se ouvira falar nisso. A única observação que lhe ocorreu fazer foi a seguinte:

- Muito bem, Hornung, Não incentivamos desperdícios ou extravagâncias na polícia. Mas temos uma margem para despesas bem razoável. Outra coisa. Você trabalhou durante três dias neste caso. Esqueceu-se de incluir as despesas com suas refeições.

- Está enganado, Herr Oberleutnant. De manhã, tomo apenas café. Preparo o almoço em casa e sempre o levo numa marmita. O jantar dos três dias está relacionado aqui.

E estava. Três jantares por dezasseis francos. Devia ter comido em alguma cantina do Exército de Salvação.

O Oberleutant disse friamente:

- Detective Hornung, este departamento existia havia mais de cem anos quando o Sr. veio trabalhar aqui, e continuará a existir pelo menos mais cem anos depois que sair. Há aqui certas tradições que devem ser observadas. Pense, pelo menos, nos seus colegas e faça uma revisão dessa prestação de contas.

- Certo, senhor. Sinto muito que não tenha sido correcto.

- Não tem importância. Afinal de contas, é novo aqui.

Meia hora depois, Max Hornung voltava com a prestação de contas revista. Diminuíra as despesas feitas em cerca de três por cento.

Naquele dia de novembro, o inspector-chefe Schmied tinha nas mãos o relatório do detective Max Hornung, o qual se achava de pé diante dele. Hornung estava com um terno azul-marinho, sapatos castanhos e meias brancas. Apesar de suas resoluções e dos seus exercícios respiratórios, o inspector-chefe Schmied falava aos gritos:

- Você estava de plantão quando foi recebida a comunicação.

Cabia-lhe investigar o acidente, você só chegou catorze horas depois. Durante esse tempo, toda a polícia da Nova Zelândia podia ter vindo até aqui e voltado, depois de investigar o caso.

- Não inspector! Está enganado. O tempo de uma viagem da Nova Zelândia até aqui num avião a jacto é de...

- Ora, cale a boca!

Schmied passou a mão pelos cabelos, pensando no que iria dizer àquele homem. Não era possível insultá-lo, nem tentar argumentar com ele. Era apenas um pobre imbecil de sorte.

- Não posso tolerar incompetência no meu departamento, Hornung. Quando os outros detectives chegaram aqui e viram a comunicação, foram imediatamente para o local do acidente.

Chamaram uma viatura, levaram o corpo para o necrotério, depois de identificá-lo... Em suma, Hornung, fizeram tudo o que um bom detective tinha de fazer. Enquanto isso, você esteve calmamente sentado, acordando pelo telefone metade dos homens mais importantes da Suíça...

- Pensei que...

- Não é preciso pensar. Passei a manhã toda pedindo desculpas pelo telefone por sua causa.

- Eu tinha de saber...

- Retire-se, Hornung!

- Está bem. Posso ir ao enterro hoje de manhã?

- Pode, sim!

- Obrigado, inspector! Eu...

- Pode ir!

Só meia hora depois, o inspector-chefe Schmied conseguiu respirar normalmente.

 

Capítulo 32

A capela funerária em Sihlfeld estava repleta. Era um velho edifício de pedra e mármore, com salas de velório e um crematório. Cerca de duas dezenas de directores e empregados da Roffe and Sons ocupava a primeira fila de cadeiras. Mais ao fundo, encontrava-se pessoas amigas, representantes da comunidade e repórteres. Na última fila, estava o detective Hornung, pensando em como a morte era uma coisa ilógica. O homem atingira seu auge e então, quando tinha o máximo para viver e para dar, morria. Não podia haver maior desperdício e ineficiência.O caixão era de mogno e estava coberto de flores. Mais desperdício, pensou Hornung. O caixão estava fechado, e ele compreendia o motivo.

Um ministro estava falando com uma voz de dia de Juízo Final- "...a morte no meio da vida, nascida do pecado, das cinzas"-, mas Max não prestava muita atenção às palavras. Observava as pessoas presentes.

- "O Senhor deu a vida e o Senhor a tomou"-, e as pessoas começaram a levantar-se e encaminhar-se para a saída. A cerimónia estava encerrada.

Max permaneceu próximo à porta e, quando um homem e uma mulher se aproximaram dele, deu um passo em direcção à mulher e disse:

- Senhorita Elizabeth Roffe? Poderia dar-me uma palavra?

O detective Max Hornung estava sentado com Elizabeth Roffe e Rhys Williams num reservado de uma confeitaria defronte a capela. Pela vitrina, viram o caixão ser levado para um cofre cinzento. Elizabeth olhou para o outro lado.

- Que deseja? - perguntou Rhys. - A Senhorita Roffe já prestou declarações à polícia.

O detective Max Hornung disse:

- É o Sr. Williams, não é? Há apenas alguns detalhes que desejo verificar.

- Não pode deixar para depois? A Senhorita Roffe ainda está abalada com o que aconteceu...

Elizabeth tocou no braço de Rhys.

- Não tem importância, desde que eu possa ajudar em alguma coisa. Que deseja saber, detective Hornung?

Max olhou para Elizabeth e pela primeira vez em sua vida sentiu lhe fugirem as palavras. As mulheres eram tão estranhas para Max, como seres de outro planeta. Eram ilógicas, imprevisíveis, sujeitas a reacções mais emocionais que racionais. Não era possível contar com elas. Max tinha poucos impulsos sexuais, pois era orientado pelo cérebro, mas podia apreciar a lógica exacta do sexo. Era a construção mecânica de partes móveis que se ajustavam num todo coordenado e funcional que lhe interessava.

Era essa a poesia do amor para Max. Era dinamismo puro, e Max notava que os poetas em geral não viam isso. As emoções eram imprecisas e incertas, um desperdício de energia capaz de mover um grão de areia, enquanto a lógica podia impulsionar o mundo.

O que espantava Max era o facto de ele se sentir à vontade com Elizabeth. Isso o inquietava. Nenhuma mulher até então agira sobre ele daquela maneira. Ela não parecia encará-lo como um homem frio e ridículo, como faziam as outras. Procurou desviar os olhos a fim de concentrar-se.

- Tinha o hábito de trabalhar até altas horas da noite, Senhorita Roffe?

- Quase sempre.

- Até que horas?

- Variava. às vezes, até às dez horas. às vezes, até à meia-noite ou um pouco mais.

- Quer dizer, então, que era costume seu? As pessoas que a cercam tinham conhecimento disso?

Elizabeth o olhou, um tanto confusa, e murmurou:

- Creio que sim.

- Na noite em que o elevador caiu, trabalhou com o Sr.Williams e Kate Erling até tarde?

- Sim.

- Mas não saíram ao mesmo tempo?

- Eu saí mais cedo. Tinha um compromisso - disse Rhys.

Max olhou-o por um momento e então voltou-se de novo para Elizabeth.

- A senhorita saiu do escritório quanto tempo depois do Sr.Williams?

- Seguramente uma hora.

- Saiu em companhia de Kate Erling?

- Saí. Pegamos os casacos e bolsas e fomos para o corredor.

O elevador já estava lá, à nossa espera.

O elevador directo e privativo.

- Que aconteceu então?

- Quando entramos no elevador, o telefone do escritório tocou. Kate Erling disse que ia atender. Ela já ia saindo, quando me lembrei que havia pedido um telefonema para o exterior, cuja ligação não se completara. Então eu disse a ela que atenderia. - Elizabeth parou, os olhos subitamente cheios de lágrimas. - Eu saí no elevador.

Ela me perguntou se queria que esperasse, e eu lhe disse que não precisava. Ela apertou o botão do térreo e eu voltei ao escritório. Quando estava abrindo a porta, ouvi o barulho...

Não pôde continuar, com a voz embargada pelas lágrimas.

Rhys olhou para Max Hornung com o rosto cheio de indignação.

- Não acha que já basta? O que significa tudo isso?

Max Hornung teve vontade de dizer que tudo isso queria dizer crime de morte. Alguém tinha planeado matar Elizabeth Roffe.

Max ficou ali concentrando-se e tentando se lembrar das informações que obtivera nas últimas quarenta e oito horas sobre a Roffe and Sons. Era uma empresa profundamente comprometida, forçada a pagar indemnizações astronómicas, solapada por uma publicidade negativa. Perdia clientes e devia quantias enormes aos bancos, que estavam ficando impacientes.

O presidente, Sam Roffe, que detinha o controle accionário, havia morrido num acidente nas montanhas, embora fosse um excelente alpinista. O controle accionário havia passado para a filha dele, Elizabeth, que quase morrera num acidente com um jipe na Sardenha e escapara havia pouco de morrer num elevador, o qual passara pouco antes por uma revisão periódica. Alguém estava empenhado em matar.

O detective Max Hornung devia ser no momento um homem feliz.

Encontrara um fio solto. Mas tinha conhecido Elizabeth Roffe, e ela já não era simplesmente um nome, uma equação num enigma matemático. Era uma pessoa muito especial, e Max sentia necessidade de protegê-la.

- Perguntei o que significa isso - disse Rhys.

- Nada - disse vagamente Max. - Rotina da polícia. Apenas.

Agora, com licença.

Tinha um trabalho urgente para fazer.

 

Capítulo 33

O inspector-chefe Schmied tivera uma manhã cheia. Tinha havido uma manifestação política diante do escritório das Linhas Aéreas Ibéria e três homens haviam sido detidos para averiguações. Houvera um incêndio de origem suspeita numa fábrica de papel em Brunau. Uma moça fora estrupada no parque de Platspitz. Tinha havido um

roubo com vitrinas quebradas em Guebelin e outro em Grima, perto do Baur-au-Lac. E, como se não bastasse, o detective Max Hornung estava de volta, com uma das suas hipóteses idiotas. O inspector-chefe recomeçou a abanar-se furiosamente..

- Os cabos do elevador foram cortados - disse Max. - Quando o elevador caiu, todos os dispositivos de segurança pifaram Parece...

- Vi os laudos dos técnicos, Hornung. Tudo foi resultado de um desgaste normal dos cabos e dos dispositivos.

- Não, inspector. Estudei minuciosamente as especificações.

Tudo devia durar mais cinco ou seis anos.

Schmied sentiu uma contracção no rosto.

- Que está querendo dizer?

- Alguém sabotou o elevador.

- Por que iria fazer isso?

- É o que eu gostaria de descobrir.

- Quer voltar à Roffe and Sons?

- Não, inspector. Quero ir a Chamonix.

A cidade de Chamonix fica sessenta e cinco quilómetros a sudeste de Genebra, mil e cinquenta metros acima do nível do mar, no departamento francês de Haute-Savoie, entre o maciço monte Branco e a cadeia de Aiguille Rouge, com uma das vistas mais deslumbrantes do mundo.

O detective Max Hornung estava completamente indiferente ao cenário quando desembarcou do combóio na estação de Chamonix, carregando uma velha maleta barata. Recusou um táxi e dirigiu-se a pé para a delegacia de polícia, num pequeno prédio da praça principal, no centro da cidade. Max entrou, sentiu-se no mesmo instante à vontade, confiante na camaradagem existente entre os polícias do mundo inteiro. Era um deles.

O sargento francês olhou de sua mesa e perguntou:

- Será que posso ajudar?

- Sim. - respondeu Max, todo alegre.

Começou então a falar. Max atacava todas as línguas estrangeiras da mesma forma. Abria caminho através da selva impenetrável dos verbos regulares, pretéritos e particípios, usando a sua língua materna como um facão. Enquanto ele falava, a expressão no rosto do sargento se transformou de confusão em incredulidade. O povo francês levava centenas de anos desenvolvendo línguas, abóbadas palatinas e laringes para formar a gloriosa musicalidade da língua francesa. Aquele homem diante dele conseguira transformá-la numa série de ruídos horríveis e incompreensíveis.

Afinal, o sargento não aguentou mais. Interrompeu-o e perguntou:

- Afinal, o que está querendo dizer?

Max respondeu:

- Não compreendeu? Estou falando francês.

O sargento curvou-se sobre a mesa e perguntou com sincera curiosidade.

- Você está falando francês agora?

Max pensou que aquele idiota não sabia sequer falar a sua própria língua. Tirou a sua carteira e passou-a às mãos do sargento. Este a examinou com todo cuidado, olhando de vez em quando para Max. Era impossível crer que o homem que estava à sua frente fosse um detective.

Devolveu por fim a carteira a Max e perguntou:

- Em que posso servi-lo?

- Estou investigando um acidente que houve aqui há dois meses. O nome da vítima era Sam Roffe.

- Lembro-me desse caso - disse o sargento.

- Gostaria de falar com alguém que pudesse me dar alguma informação sobre o acidente.

- Deve procurar a organização de socorros aos alpinistas. O nome Exacto é Société Chamoniarde de Secours en Montagne. Fica no Place du Mont Blanc. O número do telefone é 531689. Pode obter também alguma informação na clínica. Fica na Rue du Valai, telefone 530182. Espere que eu escrevo tudo.

- Não preciso - disse Max. - Société Chamoniarde de Secours en Montagne, Place du Mont Blanc, 531689. A clínica é na Rue du Valai, 530182.

O sargento ainda parecia espantado muito tempo depois de Max ter saído.

A Société Chamoniarde de Secours estava sob a guarda de um moço moreno e de aspecto atlético, sentado a uma velha mesa de pinho. Ele viu Max entrar e no mesmo instante pensou que era bem pouco provável que aquele homem esquisito pretendesse escalar alguma montanha.

- Que deseja?

- Sou o detective Max - disse, mostrando a sua carteira.

- Em que posso servi-lo, detective Hornung?

- Estou investigando a morte de um homem chamado Sam Roffe.

- Pois não. Eu gostava muito do Sr. Roffe. Foi um acidente muito triste.

- Estava presente quando ocorreu o acidente?

- Não. Subi com minha turma de socorro logo que recebi os sinais, mas infelizmente nada mais pudemos fazer. O corpo do Sr. Roffe tinha caído numa ravina profunda.

Nunca mais será encontrado.

- Como foi que tudo aconteceu?

- O grupo era composto de quatro alpinistas. O Sr. Roffe e o guia eram os últimos. Segundo me parece, estavam atravessando uma morena glacial. O Sr. Roffe escorregou e caiu.

- Não estava usando equipamento de protecção?

- Estava, mas a corda rebentou.

- É comum acontecer uma coisa dessas?

- Só aconteceu uma vez - disse o homem com um sorriso por sua gracinha, mas viu a cara do detective e apressou-se em acrescentar: - Os alpinistas experientes sempre verificam o seu equipamento cuidadosamente antes de qualquer subida, mas, ainda assim, acontecem acidentes.

Max pensou por um momento.

- Gostaria de falar com o guia de Sam Roffe.

- O guia habitual do Sr. Roffe não pôde subir nesse dia.

- Por quê?

- Se não me engano, estava doente. Outro guia tomou o seu lugar.

- Sabe como se chama?

- Se esperar um pouco, posso lhe dizer.

O homem desapareceu numa sala contínua e voltou minutos depois, com um papel na mão.

- Aqui está o nome do guia: Hans Bergmann.

- Onde posso encontrá-lo?

- Ele não é daqui. Mora numa aldeia chamada Lesgets. Fica a cerca de sessenta quilómetros daqui.

Antes de Max sair de Chamonix, passou pela portaria do Kleine Scheidegg Hotel e falou com a recepcionista.

- Estava trabalhando quando Sam Roffe esteve hospedado aqui?

- Estava, sim. Foi uma coisa triste aquele acidente.

- O Sr. Roffe estava sozinho?

- Não. Estava com um amigo.

- Um amigo? Tem certeza?

- Tenho. O Sr. Roffe fez as reservas dos quartos para os dois.

- Pode me dizer o nome desse amigo?

- Sem dúvida.

Abriu o livro de registro, virou algumas páginas, Correu o dedo e disse:

- Aqui está...

Max levou quase três horas para chegar a Lesgets no Volkswagen, o carro mais barato que encontrou para alugar em Chamonix. Quase passou recto. Não era sequer uma aldeia. Algumas lojas, uma cabana alpina e um armazém com uma bomba de gasolina.

Max parou o carro e entrou na cabana. Havia meia dúzia de homens conversando diante da lareira acesa, mas a conversa cessou no momento que ele entrou.

- Desculpem, mas quero falar com o Sr. Hans Bergnann.

- Com quem?

- Com Hans Bergnan, o guia. Ele está na aldeia.

Um velho com um rosto bastante enrugado cuspiu na lareira e disse:

- Devem ter feito uma brincadeira com o senhor. Nunca ouvi falar de nenhum Hans Bergnann.

 

Capítulo 34

Era o primeiro dia em que Elizabeth ia ao escritório depois da morte de Kate Erling, uma semana antes. Entrou nervosamente no vestíbulo do térreo, respondendo mecanicamente aos comprimentos do porteiro e do guarda. Viu, nos fundos, operários que consertavam as portas destruídas do elevador.

Pensou em Kate Erling e imaginou o terror que ela devia ter sentido, quando caiu para a morte da altura de doze andares.

Elizabeth sabia que nunca mais seria capaz de entrar naquele elevador.

Quando entrou no escritório, a sua correspondência já tinha sido aberta por Henriette, a nova secretária, que havia colocado tudo bem arrumado em cima de sua mesa.

Elizabeth passou os olhos rapidamente por tudo, escrevendo notas para as respostas e encaminhando os casos para vários departamentos.

Embaixo, havia um grande envelope fechado com uma observação:

"Elizabeth Roffe - Pessoal". Abriu-o com os olhos esbugalhados.

Preso à fotografia, havia o seguinte bilhete: "Este é meu belo filho John. Foram as drogas que provocaram isso. Vou matá-la".

Elizabeth deixou cair o bilhete e a fotografia e percebeu que suas mãos estavam trémulas. Henriette entrou na sala com alguns papéis.

- Aqui estão alguns papéis para serem assinados - disse ela, mas viu o rosto de Elizabeth e perguntou: - Aconteceu alguma coisa?

- Por favor, peça ao Sr. Williams para vir até aqui.

A Roffe and Sons não podia ser responsável por uma coisa tão horrível quanto aquela.

- A culpa foi nossa - disse Rhys. - Uma partida de medicamentos com rótulos errados. Conseguimos recolher quase tudo, mas em alguns casos não foi possível...

- Há quanto tempo aconteceu isso?

- Há quase quatro anos.

- Quantas pessoas foram prejudicadas?

- Cerca de cem. Todas foram indemnizadas. Nem todos os casos foram tão graves assim. Escute, Elizabeth, temos o máximo cuidado. Todas as precauções de segurança são tomadas, mas, afinal, as pessoas são humanas e podem errar.

Elizabeth continuava a olhar para a fotografia.

- Isso é horrível!

- Não deviam ter deixado esta carta chegar às suas mãos. Passou a mão pelos bastos cabelos pretos e acrescentou: - A ocasião é horrível, mas devo dizer-lhe que temos problemas mais importantes do que este..

- Não acredito, mas pode falar.

- A Administração Federal de Drogas acaba de chegar a uma decisão contra nós no caso sprays. Dentro de dois anos, os produtos com aerossol serão inteiramente proibidos.

- O que significa isso para nós?

- Não poderia ser pior. Teremos de fechar meia dúzia de fábricas através do mundo e perder um dos nossos melhores produtos.

Elizabeth pensou em Emil Joeppli e no medicamento que ele estava preparando, nada disse a Rhys.

- Que mais?

- Já leu os jornais?

- Não.

- A esposa de um ministro belga, Mme Van den Logh, tomou alguns comprimidos de Benexan.

- É um dos nossos medicamentos?

- Sim. Um anti-histamínico. É contra-indicado para as pessoas portadoras de hipertensão. O rótulo contém a advertência. Ela tomou os comprimidos, apesar disso.

- E que foi que aconteceu?

- Está em coma. Talvez não escape. Os jornais salientam o facto de que se trata de um produto nosso. Há cancelamento de encomendas em todo mundo. A Administração

Federal de Drogas já nos avisou que vai iniciar uma investigação, mas isso durará no mínimo um ano. E enquanto não acabarem, poderemos continuar a vender o medicamento.

- Quero que ele seja retirado do mercado - disse Elizabeth.

- Não há motivo para fazer isso. É um remédio muito bom para...

- Já teve efeitos prejudiciais em outras pessoas?

- Centenas de milhares de pessoas foram beneficiadas - disse Rhys. - Estou lhe dizendo que é um dos nossos melhores medicamentos.

- Não respondeu à minha pergunta.

- Creio que houve alguns casos isolados, mas...

- Quero que seja retirado do mercado. Imediatamente.

Rhys ficou alguns instantes calado, procurando dominar a sua irritação. Por fim, perguntou:

- Quer saber quanto isso vai custar à companhia?

- Não.

- Está bem. Até agora só soube das boas notícias. As más: os banqueiros querem nova reunião com você. Agora mesmo. Querem receber o dinheiro.

Elizabeth ficou no escritório sozinha, pensando no menino mongolóide e na mulher que estava em coma porque tomara um remédio produzido pela companhia. Ela bem sabia que tragédias dessa espécie atingiam outras companhias de produtos farmacêuticos e não apenas a Roffe and Sons. Os jornais publicavam quase diariamente casos semelhantes, mas a reacção dela nunca fora tão forte. Sentia-se pessoalmente responsável.

Ia ter uma conferência com os chefes dos departamentos para ver a possibilidade de se reforçarem as medidas de segurança.

"Este é meu belo filho John." "Mme Van den Logh está em coma e pode morrer." "Os banqueiros querem receber o dinheiro." Sentia-se atordoada, como se tudo começasse a desabar ao mesmo tempo sobre sua cabeça. Pela primeira vez,, Elizabeth duvidou seriamente de que fosse capaz de enfrentar tudo aquilo.

As cargas eram muito pesadas e estavam se acumulando com muita rapidez. Voltou-se um pouco na cadeira para olhar na parede o retracto do velho Samuel. Parecia tão capaz e tão seguro! No entanto, ela sabia das dúvidas, das incertezas e dos desesperos que o haviam acometido. Mas ele havia superado tudo. Ela conseguiria sobreviver Também. Era uma Roffe.

Notou que o retracto estava ligeiramente inclinado. Devia ser consequência da queda do elevador. Levantou-se para endireitá-lo. No momento em que tocou no retracto, o gancho que o prendia à parede se soltou e o quadro caiu. Elizabeth nem olhou para ele. Estava com os olhos fixos na parede. No lugar onde estivera o retracto, havia um pequeno microfone preso à parede.

Eram quatro horas da madrugada e Emil Joeppli ainda estava trabalhando. Nos últimos tempos, costumava trabalhar até muito tarde. Ainda que Elizabeth Roffe não tivesse estabelecido um prazo para a conclusão dos seus trabalhos, Joeppli sabia como o seu projecto era importante para a companhia e queria acabar o mais depressa possível.

Tinha ouvido rumores alarmantes sobre a situação da Roffe and Sons. Queria fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para ajudar a companhia que havia sido muito boa para ele. Recebia um bom trabalho e gozava de inteira liberdade. Gostava muito de Sam Roffe, e gostava da filha dele também. Elizabeth Roffe nunca saberia disso, mas aquelas horas extras de trabalho eram um presente especial para ela.

Debruçou-se sobre a sua mesa, conferindo os resultados de sua última experiência. Eram mais promissoras do que ele havia esperado. Ficou sentado, em profunda concentração.

Não tomava conhecimento do mau cheiro dos animais engaiolados no laboratório, da unidade intensa da sala ou do adiantado da hora. A porta se abriu, e Sepp Nolan, o vigia nocturno, entrou.

Nolan detestava aquele serviço. Dava-lhe arrepios andar à noite pelos laboratórios experimentais desertos. Os cheiros dos animais presos provocavam-lhe engulhos.

Nolan gostaria de saber se os animais ali mortos tinham alma e voltavam para aterrorizar os corredores. Devia requerer um pagamento extra para aturar os fantasmas dos bichos. Todo mundo no edifício já fora para casa há muito tempo. Só o cientista louco ainda estava ali entre seus bichos.

- Vai demorar muito ainda, doutor? - perguntou Nolan.

Joeppli levantou a vista, tomando pela primeira vez conhecimento do vigia.

- O quê?

- Se vai ficar aqui ainda, posso ir buscar uma sanduíche ou o que quiser. Estou indo à cantina.

- Só café - murmurou Joeppli, voltando aos seus papéis.

- Vou fechar a porta principal para ir à cantina. Não demoro.

Joeppli nem o ouviu.

Dez minutos depois, a porta do laboratório foi de novo aberta, e alguém disse:

- Está trabalhando até bem tarde, Emil.

Joeppli levantou a vista, espantado. Quando viu quem era, ergueu-se da cadeira. De certo modo, era uma honra que aquele homem tivesse ido vê-lo.

- É preciso, chefe - murmurou.

- O projecto da Fonte da Juventude é muito secreto, não é?

Emil Joeppli hesitou. A Senhorita Roffe havia dito que ninguém devia saber dos seus trabalhos. Mas, sem dúvida, essa determinação não podia estender-se àquela pessoa.

Fora aquele homem o responsável por sua entrada na companhia. Por isso, sorriu e disse:

- Sim, senhor. Muito secreto.

- ptimo. Continue assim. Como vai tudo?

- Magnificamente.

O visitante se encaminhou para uma das gaiolas de coelhos, e Emil Joeppli o acompanhou.

- Quer que lhe explique alguma coisa?

- Não é preciso - disse o homem, sorrindo. - Estou mais ou menos a par de tudo.

Quando o visitante se voltou para sair, roçou o braço num prato vazio de rações que estava numa prateleira e o prato caiu no chão.

- Desculpe.

- Pode deixar que eu apanho - disse Joeppli.

Quando se abaixou para pegar o prato, sentiu a parte posterior da cabeça explodir numa chuva rubra e a última coisa de que teve consciência foi de que o chão subia ao seu encontro.

O toque insistente da campainha do telefone acordou Elizabeth. Sentou-se na cama, tonta de sono, e olhou para o relógio digital na mesinha. Cinco horas da manhã.

Pegou o telefone.

Uma voz muito nervosa disse:

- Senhorita Roffe? É o guarda de segurança aqui da fábrica. Houve uma explosão num dos laboratórios, que ficou inteiramente destruído.

- Houve alguma vítima? - perguntou Elizabeth, já completamente acordada.

- Houve, sim, senhora. Um dos cientistas morreu queimado.

Elizabeth não precisava de perguntar o nome dele.

 

Capítulo 35

O detective Max Hornung estava pensando. a sala dos detectives ressoava o barulho das máquinas de escrever, de vozes empenhadas em discussões, de campainhas de telefone, mas Hornung não ouvia nada disso. Estava pensando no contrato social da Roffe and Sons, tal como fora estabelecido pelo velho Samuel para manter a companhia sob o controle da família. Era um dispositivo engenhoso mas também muito perigoso. Fazia Hornung lembrar-se da tontine, o plano italiano de seguros concebido pelo banqueiro Lorenzo Tonti, em 1695. Todos os sócios da tontine entravam com a mesma quota de dinheiro.

Quando um deles morria, os sobreviventes herdavam a sua quota.

Isso proporcionou um forte motivo para a eliminação dos outros sócios. Na Roffe and Sons estava acontecendo a mesma coisa. Era uma tentação muito grande fazer as pessoas herdarem acções no valor de muitos milhões e, ao mesmo tempo, impedi-las de vender, a menos que houvesse acordo unânime.

Max sabia que Sam Roffe não havia concordado com a venda.

Estava morto. Elizabeth Roffe também não havia concordado com a venda. E já escapara duas vezes da morte. Eram acidentes demais. O detective Max Hornung não acreditava em acidentes.

Foi falar com o inspector-chefe Schmied.

O inspector escutou o que Hornung lhe disse sobre o acidente de alpinismo de Sam Roffe e resmungou:

- Está bem. Houve uma confusão com o nome do guia.

Dificilmente isso pode constituir um indício de homicídio, pelo menos no meu departamento.

O detective retrucou pacientemente:

- Na minha opinião, não é apenas isso. A Roffe and Sons está envolvida em graves problemas internos. Talvez alguém tivesse pensado que o afastamento de Sam Roffe poderia resolver esses problemas.

Scmied encarou firmemente o detective Hornung. Decerto não havia em tudo aquilo senão as hipóteses malucas do detective.

Mas a perspectiva de ver o detective Max Hornung fora das suas vistas era uma coisa que o enchia de alegria. A ausência dele levantaria o moral de todo o departamento.

E havia outro ponto importante a levar em conta. Hornung pretendia investigar nada menos que a poderosa família Roffe. Em circunstâncias normais, teria ordenado que Hornung não se aproximasse nem em pensamento dos Roffes. Entretanto, se Hornung os irritasse - e isso não poderia deixar de acontecer -, tinham bastante prestígio para expulsá-lo da polícia. E ninguém teria qualquer acusação contra o inspector-chefe Schmied. Não havia forçado de maneira alguma o pequeno detective. Em vista de tudo isso, disse a Max Hornung.

- Fica encarregado do caso. Pode levar o tempo que julgar necessário.

- Muito obrigado - disse Max, todo feliz.

Quando Max ia pelo corredor em direcção à sua sala, encontrou-se com o médico-legista.

- Posso explorar a sua memória um minuto, Hornung?

- Como assim?

- A patrulha acaba de pescar um corpo na água. É uma mulher.

Quer olhá-la um instante?

- Está bem.

Não era uma tarefa que agradasse a Max, mas ele achava que aquilo fazia parte de seus deveres.

O corpo da mulher estava depositado numa gaveta de metal impessoal do necrotério. Era loura e devia ter no máximo vinte anos. O corpo estava inchado, devido à longa permanência na água, e nu, apenas com uma fita vermelha amarrada no pescoço.

Havia sinais de relações sexuais pouco antes da morte. A mulher fora estrangulada e depois jogada à água.

- Não morreu afogada, pois não há água nos pulmões. Não temos no arquivo as impressões digitais dela. Já a viu em algum lugar?

O detective Max Hornung olhou atentamente para o rosto da mulher e disse:

- Não.

Saiu então para pegar um autocarro para o aeroporto.

 

Capítulo 36

Quando o detective Max Hornung desembarcou no aeroporto da Costa Esmeralda, na Sardenha, alugou o carro mais barato que pôde achar, um Fiat 500, e tomou o caminho de Olbia. Diferente do resto da Sardanha, Olbia era uma cidade industrial e os seus arredores, desprovidos de qualquer beleza, eram uma extensão de usinas e fábricas, um depósito de lixo e um gigantesco cemitério de carros velhos. ao vê-lo, Max reflectiu que todas as cidades do mundo tinham esses depósitos de automóveis, como se fossem monumentos da civilização.

Chegando ao centro da cidade, parou diante de um prédio em cuja fachada se lia o seguinte letreiro: "Questure di Sassiri

- Commissariato di Polizia, Olbia". No momento em que entrou no edifício, ele sentiu o carácter familiar de identidade, de participação, Luigi Ferraro. Este se levantou com um sorriso no rosto. O sorriso se desvaneceu quando ele viu a figura que o procurava. Havia na aparência de Max Hornung alguma coisa que não se ajustava ao conceito que o delegado fazia de um "detective".

- Pode mostrar-me a sua identificação?

De posse da carteira, o delegado examinou-a cuidadosamente, devolvendo-a em seguida. Formulou então a idéia de que a Suíça devia estar enfrentando uma grande escassez de gente para a polícia, pois, do contrário, não admitiria um homem como aquele.

- Que deseja?

Max começou a explicar-se em italiano fluente. O problema foi que o delegado Ferraro demorou um pouco para descobrir que língua Max estava falando. Quando compreendeu a intenção do homem, levantou a mão e disse:

- Basta! Fala inglês?

- É claro - respondeu Max.

- Peço-lhe então que conversemos em inglês.

Quando Max acabou de falar, o delegado disse:

- Está enganado, sinore. Posso lhe assegurar que está perdendo o seu tempo. Meus mecânicos já examinaram o jipe e todos concordaram em que foi acidente.

- Mas eu ainda não o examinei - disse imperturbavelmente Max Hornung.

- Muito bem. O jipe está agora à venda numa garagem. Mandarei um dos meus homens levá-lo até lá. Gostaria de ver o local do acidente?

Max iscou os olhos e perguntou:

- Para quê?

O detective Bruno Campagna foi designado como acompanhante de Max.

- Já verificamos tudo - disse Campagna. - Foi um acidente.

- Não - replicou Max.

O jipe estava num canto da garagem ainda com a frente amassada e com vestígios da seiva verde da árvore.

- Ainda não tive tempo para consertá-lo - disse o mecânico da garagem.

Max se aproximou do jipe e começou a examiná-lo.

- Como foi que sabotaram os freios? - perguntou ele.

- Jesùs! O senhor também? - exclamou o mecânico, irritado. Há vinte anos que sou mecânico, signore, e examinei esse jipe pessoalmente. A última vez que alguém tocou nesses freios foi quando o carro saiu da fábrica.

- Mexeram nos freios - disse Max.

- Como? - perguntou o mecânico, exasperado.

- Não sei ainda, mas vou descobrir - declarou Max, confiantemente.

Lançou um último olhar ao jipe e então virou as costas e saiu da garagem.

O delegado olhou para o detective Bruno Campagna e perguntou:

- O que você fez com ele?

- Não fiz nada. Levei-o à garagem, onde ele quase fez o mecânico ficar fora de si. Depois, ele me disse que queria dar uma volta sozinho.

- Inacreditável!

Max estava na praia, olhando as águas esmeraldinas do Tirreno, mas não viu coisa alguma. Estava concentrado, procurando juntar todos os fragmentos. Tudo era como um gigantesco quebra-cabeça. Tudo se encaixava exactamente no seu lugar, quando se sabia onde a peça devia se ajustar. O jipe era uma parte pequena mas importante do enigma. Os freios tinham sido examinados pelos mecânicos, de cuja honestidade e competência não havia motivos para duvidar. Aceitava, portanto, o facto de que não tinham tocado nos freios do jipe. Mas como Elizabeth tinha dirigido o jipe e alguém desejava a sua morte, tinha também de aceitar o facto de que haviam mexido nos freios. Max estava diante de uma coisa executada com muita habilidade. E isso tornava tudo mais interessante.

Deu alguns passos na areia, fechou os olhos e procurou concentrar-se de novo. Pensou nos elementos do enigma, mudando-os de lugar, dissecando-os, reagrupando tudo.

Vinte minutos depois, a última peça se encaixou. Max abriu os olhos e pensou com admiração no homem que imaginara aquilo.

Tinha de conhecê-lo.

Depois disso, o detective Max Hornung tinha duas coisas a fazer, uma fora de Olbia e a segunda, nas montanhas. Pegou o último avião da tarde para Zurique.

Classe turista.

 

Capítulo 37

O chefe da segurança da Roffe and Sons disse a Elizabeth:

- Tudo aconteceu com muita rapidez, Senhorita Roffe. Nada pudemos fazer. No momento em que conseguimos colocar o aparelhamento de combate ao fogo em acção, o laboratório já estava destruído!

Tinham encontrado os restos do corpo carbonizado de Emil Joeppli. Não se podia saber se a sua fórmula fora retirada do laboratório antes da explosão.

- O Edifício de Desenvolvimento estava sobre vigilância ininterrupta, não estava?

- Estava, sim. Nós...

- Há quanto tempo chefia o nosso departamento de segurança?

- Cinco anos. Eu...

- Está despedido.

O homem ia dizer alguma coisa, mas mudou de idéia e murmurou:

- Está bem.

- Quantos homens trabalham sob suas ordens?

- Sessenta e cinco.

Sessenta e cinco homens! E não tinham conseguido salvar Emil Joeppli.

- Estão todos despedidos. Têm o prazo de vinte e quatro horas para sair daqui.

- Escute, Senhorita Roffe, acha que está sendo justa.

Elizabeth pensou em Emil Joeppli, nas preciosas fórmulas e no microfone escondido no seu escritório e que ela esmagara com o salto do sapato.

- Saia daqui - disse ela.

Passou a manhã toda esforçando-se por afastar a imagem do corpo carbonizado de Emil Joeppli e do seu laboratório cheio de animais queimados. Procurou não pensar no prejuízo que a companhia teria com a perda daquela fórmula. Era possível que dentro em pouco uma companhia rival a patenteasse. Não havia nada que pudesse fazer.

Vivia numa selva sem lei. Quando os concorrentes acreditaram que a vítima estava sem forças, acorriam para o golpe final. Mas, no caso, não se tratava de um concorrente, e, sim, de um amigo, um amigo fatal.

Elizabeth tomou providências para a contratação de uma nova força de segurança constituída de profissionais. sentir-se-ia mais segura cercada de estranhos.

Telefonou para o Hôspital Internationale de Bruxelas para ter notícias de Mme Van den Longh, a esposa do ministro belga.

Disseram-lhe que ela ainda estava em coma e que as possibilidades eram incertas.

Elizabeth ainda estava pensando em Emil Joeppli, no menino mongolóide e na mulher belga, quando Rhys Williams entrou no escritório. Olhou para o rosto dela e perguntou:

- As coisas estão tão ruins assim?

Ela fez tristonhamente um sinal afirmativo.

Rhys viu seu rosto abatido e esgotado. Era difícil saber até onde ela poderia resistir. Aproximou-se, tomou nas mãos as mãos de Elizabeth e disse:

- Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudá-la?

Pode fazer tudo, pensou Elizabeth. Precisava desesperadamente de Rhys. Precisava da energia, da ajuda e do amor dele. Os olhos de ambos se encontraram, e ela se viu prestes a cair nos braços dele e dizer-lhe tudo o que havia acontecido, tudo o que estava acontecendo

- Alguma novidade sobre Mme Van den Logh? - perguntou Rhys.

O momento havia passado.

- Não - disse Elizabeth.

- Já recebeu algum telefonema a propósito do comentário feito pelo Wall Streel Journal?

- Que comentário?

- Ainda não leu?

- Não.

Rhys Mandou buscar o jornal em sua sala. O comentário enumerava os recentes problemas da Roffe and Sons e sugeria que a companhia precisava de uma pessoa experiente e capaz de dirigi-la.

- Que mal nos fará esse comentário? - perguntou Elizabeth quando acabou de ler.

- O mal já está feito. Continuaremos a perder mercado.

O interfone tocou e Elizabeth apertou o botão.

- Pronto.

- O Sr. Julius Badrutt está na linha 2. Diz que é urgente.

Elizabeth olhou para Rhys. Ela vinha adiando o encontro com os banqueiros.

- Pode ligar - disse à secretária e, um instante depois: Bom dia, Sr. Badrutt.

- Bom dia - disse o banqueiro, com uma voz que parecia um pouco áspera do outro lado do fio - Tem algum tempo livre hoje á tarde?

- Acho que sim...

- Está bem. às quatro horas.

Houve um murmúrio seco ao telefone e Elizabeth compreendeu que Badrutt ainda estava falando.

- Sinto muito o que aconteceu com o Sr. Joeppli - disse ele.

O nome de Joeppli não fora mencionado no noticiário de nenhum jornal a respeito da explosão.

Desligou e viu que Rhys a estava olhando.

- Os tubarões farejam o sangue - murmurou ele.

Houve muitos telefonemas à tarde. Entre eles o de Alec.

- Você leu o jornal hoje de manhã, Elizabeth?

- Li, sim. O Wall Street Journal está exagerando.

Houve uma pausa, e então Alec disse:

- Não é só do Wall Street Jurnal que estou falando. É do Financial Times, que traz um artigo com grande destaque sobre a Roffe and Sons. O artigo não é favorável e os telefones não param de tocar. Os cancelamentos têm sido enormes. O que vamos fazer?

- Falarei com você mais tarde, Alec?

Ivo telefonou.

- Carissima, prepare-se para levar um choque.

- Estou preparada, Ivo. Pode falar.

- Um banqueiro italiano foi detido há poucas horas, sob a acusação de aceitar suborno.

Elizabeth teve um pressentimento do que viria depois.

- Continue.

- Não tivemos culpa. Ele se tornou ambicioso demais e facilitou. Foi preso no aeroporto quando tentava sair da Itália clandestinamente com o dinheiro. Apurou-se que o dinheiro era nosso.

Ainda que Elizabeth estivesse preparada para o pior havia uma nota de incredulidade em sua voz.

- Porque estávamos subornando esse banqueiro?

- Se não agíssemos desse modo, não poderíamos fazer negócios na Itália. O costume aqui é esse. Nosso crime não foi subornar o banqueiro, cara. Foi deixar que ele fosse apanhado.

Ela se recostou na cadeira, sentindo a cadeira rodar.

- E agora?

- Sugiro uma reunião o quanto antes com os advogados da companhia. Mas não se preocupe. Só os pobres vão para a cadeia, aqui na Itália.

Charles telefonou de Paris, e sua voz estava quase histérica pela preocupação. A imprensa francesa atacava a companhia por todos os lados. Elizabeth tinha que consentir na venda das acções enquanto a companhia tinha ainda alguma reputação.

- Nossos fregueses estão perdendo a confiança - dissera Charles. - E sem confiança não há companhia.

Elizabeth pensou nos telefonemas, nos banqueiros, nos primos, na imprensa. Era muita coisa acontecendo com muita rapidez.

Alguém devia estar por trás de tudo isso. Ela tinha de descobri-lo.

O nome ainda estava no caderno particular de Elizabeth. Maria Martinelli. Era uma moça alta e de pernas compridas que tinha sido sua colega na Suíça. Correspondiam-se de vez em quando. Maria havia se tornado modelo e mandara dizer a Elizabeth que estava noiva do director de um jornal de Milão. Elizabeth não levou mais que quinze minutos para falar com Maria. Depois da troca de cumprimentos, Elizabeth perguntou pelo telefone:

- Você ainda está noiva do jornalista?

- Claro. Vamos nos casar logo que o divórcio dele seja homologado.

- Quero um favor seu, Maria.

- É só dizer o que é.

Menos de uma hora depois, Maria Martinelli telefonava para ela.

- Já tenho a informação que você quer. O banqueiro que foi apanhado quando tentava levar dinheiro para fora da Itália foi vítima de uma traição. Meu noivo diz que alguém o denunciou à polícia de fronteira.

- Ele conseguiu o nome do delator?

- Ivo Palazzi.

O detective Max Hornung havia feito uma descoberta interessante. Apurara que a explosão nos laboratórios da Roffe and Sons fora provocada criminosamente e causada por um explosivo, Rylar X, fabricado exclusivamente para as forças armadas numa das unidades da Roffe and Sons. Com um simples telefonema, Max soube onde ficava a fábrica.

Era nos arredores de Paris.

As quatro da tarde em ponto, Julius Badrutt acomodou o corpo anguloso numa cadeira e disse sem preâmbulos:

- Por mais que quiséssemos atendê-la, Senhorita Roffe, parece que as responsabilidades que temos para com os nossos accionistas têm prioridade.

Badrutt devia dizer mais ou menos a mesma coisa às viúvas e aos órfãos, a quem não podia perdoar no vencimento das hipotecas. Mas dessa vez ela estava preparada para Badrutt.

- Em vista disso, recebi instruções da directoria para informar-lhe que nosso banco exigirá o pagamento imediato dos títulos devidos pela Roffe and Sons.

- Mas tive a promessa de um prazo de noventa dias - disse Elizabeth.

- Infelizmente, as circunstancias mudaram, para pior. Devo dizer-lhe que os outros bancos com os quais vocês trabalham chegaram à mesma conclusão.

Como os bancos se negavam a ajudá-la, não havia possibilidade de manter a companhia fechada a novos accionistas.

- Sinto muito dar-lhe essas más notícias, Senhorita Roffe, mas achei que devia vir falar-lhe pessoalmente.

- Não pode desconhecer que a Roffe and Sons ainda é uma companhia sólida e forte.

- Sem dúvida. É uma grande companhia.

- Ainda assim, não nos quer dar mais tempo.

Badrutt pensou por um momento e então disse:

- O banco julga que os seus problemas podem ser resolvidos, Senhorita Roffe. Mas...

- Parece-lhe que não há ninguém em condições de resolver esses problemas, não é?

- Infelizmente, é isso mesmo.

- E se eu passasse a presidência da Roffe and Sons a outra pessoa? - perguntou Elizabeth.

O banqueiro sacudiu a cabeça.

- Já discutimos essa possibilidade e, infelizmente, chegamos à conclusão de que nenhum dos membros da actual directoria tem a capacidade necessária para enfrentar...

- Eu estava pensando em Rhys Williams.

 

Capítulo 38

O agente Thomas Hiller, da Divisão da Polícia Marítima do Tamisa, via-se numa situação terrível. Estava com sono, fome, sexualmente excitado e ensopado. E não sabia ao certo qual dessas desgraças era a pior.

Estava com sono porque sua noiva, Flo, passara a noite discutindo com ele e não o deixara dormir. Estava com fome porque, quando Flo acabara de discutir, já estava na hora de ir para o trabalho e não havia mais tempo de comer nada. Estava excitado porque ela se recusava energicamente a deixar que a tocasse. E estava todo molhado porque a lancha de dez metros da patrulha do Tamisa não era feita exactamente para dar conforto aos seus ocupantes e porque o vento insistente tangia a chuva para a casa do leme onde ele estava.

Num dia como aquele, havia pouco para ver e menos a fazer. A circunscrição da patrulha se estendia por oitenta e cinco quilómetros do rio, de Dartford Creek a Staines

Brige. Em geral, Hiller gostava do serviço de patrulha, mas não quando se via naquele estado. O diabo levasse todas as mulheres! Pensou em Flo nua na cama, com os grandes seios em movimento, a brigar com ele. Olhou para o relógio. Mais meia hora e o serviço chegaria ao fim. A lancha já se encaminhava para o cais de Waterloo.

O seu problema agora era decidir o que fazer primeiro: comer, dormir ou ir para a cama com Flo. Talvez tudo ao mesmo tempo, por que não? Esfregou os olhos para afugentar o sono e olhou para o rio lamacento e denso, salpicado pelas borbulhas da chuva.

Aquilo apareceu de repente. Parecia um grande peixe boiando de barriga para cima. O primeiro pensamento de Hiller foi: "se o puxar para bordo, vai ser um mau cheiro insuportável".

Estava a cerca de dez metros a nordeste e a lancha estava se afastando dele. Se ele abrisse a boca, o maldito peixe retardaria a hora de largar o serviço. Seria preciso pegar o peixe com um gancho e puxá-lo para bordo ou rebocá-lo. Fosse o que fosse, faria com que se atrasasse na volta a Flo. Ora, ele bem podia calar a boca.

Quem podia afirmar que ele tinha visto alguma coisa? E estava cada vez mais longe.

O agente Hiller ergueu a voz:

- Sargento, há um peixe flutuando vinte graus a boreste.

Parece um grande tubarão.

O motor diesel de cem cavalos mudou subitamente de ritmo e a lancha começou a seguir em marcha lenta. O sargento Haskins aproximou-se dele.

- Onde está?

O vulto tinha desaparecido, oculto pela chuva.

- Ali daquele lado.

O sargento Haskins hesitou. Estava também ansioso para ir para casa e a vontade que tinha era de não tomar conhecimento do tal peixe.

- Acha que é tão grande que possa ameaçar a navegação?

O policial Hiller lutou consigo mesmo, e perdeu.

- Acho, sim.

Assim, a lancha da patrulha virou e seguiu na direcção em que o objecto fora visto. Este apareceu inesperadamente quase sob a proa da lancha, e ambos viram o corpo de uma jovem loura.

Estava nua, mas tinha uma fita vermelha amarrada ao pescoço.

 

Capítulo 39

No momento em que o policial Hiller e o sargento Haskins estavam recolhendo o corpo da jovem assassinada do Tamisa, a quinze quilómetros de distância, do outro lado de Londres, o detective Max Hornung entrava no vestíbulo de mármore cinza e branco da Nova Scotland Yard. O simples acto de entrar no imponente edifício dava-lhe uma sensação de orgulho. Fazia parte daquela grande fraternidade. Apreciava muito o facto de que o endereço telegráfico da Scotland Yard fosse Algemas. Max gostava muito dos ingleses. O seu único problema estava na dificuldade que experimentava de comunicar-se com eles. Os ingleses falavam a sua língua de maneira estranha.

O guarda sentado à mesa de recepção perguntou:

- Que deseja o senhor?

- Tenho hora marcada com o inspector Davidson.

- Nome, por favor?

Max disse lenta e distintamente:

- Inspector Davidson.

O guarda olhou-o com interesse.

- Perdão, mas o seu nome é inspector Davidson?

- Meu nome não é inspector Davison. Meu nome é Max Hornung.

- Desculpe, mas o senhor fala inglês?

Cinco minutos depois, Max estava sentado na sala do inspector Davidson, que era um homem tipicamente britânico, de meia-idade, com rosto vermelho e dentes amarelos e irregulares.

- Disse pelo telefone que estava interessado em obter informações sobre Sir Alec Nichols como possível suspeito de um homicídio.

- Ele é suspeito com mais uma meia dúzia de pessoas.

- Já sei o que fazer - disse o inspector. - Vou encaminhá-lo ao Departamento de Registros Criminais C-4. Se não houver nada sobre ele lá, tentaremos o Serviço Secreto Criminal C-11 e o C-14.

O nome de Sir Alec Nichols não constava de qualquer dos arquivos consultados. Mas Max já sabia onde conseguir a informação.

Logo cedo, naquela manhã, Max telefonara para vários homens de negócios que trabalhavam na City, o centro financeiro de Londres.

As reacções de todos foram idênticas. Quando Max declarou seu nome, ficaram inquietos, pois todos que tratavam de negócios na City tinham alguma coisa para esconder, e a reputação de Max Hornung como um anjo vingador financeiro era internacional.

Mas, no momento em que Max dizia estar procurando informações sobre outra pessoa, dispunham-se até a cooperar com ele.

Max passou dois dias visitando bancos e companhias financeiras, organizações de créditos e centros de registos estatísticos. Não se interessava em falar com as pessoas nesses lugares; queria falar com os seus computadores.

Max era um génio com os computadores. Sentava-se diante das mesas de controle e os digitava como um mestre. Não importava a língua que se houvesse ensinado ao computador na fábrica, pois Max falava todas elas. Falava com computadores digitais e com computadores de linguagem de baixo e de alto nível. Estava no seu elemento com o Fortran e o Fortran IV, com o gigante 370 da IBM, com o 10 e o 1 da PDP e o 68 da Algol.

Entendia tanto de Cobol, programado para os negócios, quanto do Basic usado pela polícia e do APL de alta velocidade, que só se exprimia por meio de mapas e gráficos.

Max falava com o LISP, o APT e o PL-1. Mantinha conversações em código binário e interrogava os grupos aritméticos e os CPV, recebendo as respostas em alta velocidade à razão de mil e cem linhas por minuto. Os computadores gigantes tinham sugado informações como bombas insaciáveis, armazenando-as, analisando-as, recordando-as, e estavam despejando tudo nos ouvidos de Max, sussurrando-lhe os seus segredos nas suas criptas com ar condicionado.

Nada era sagrado, nem seguro. A vida particular na civilização actual era uma ilusão, um mito. Todo cidadão vivia exposto, e os seus segredos mais ocultos estavam à mostra, à espera de que os lesse. As pessoas eram registadas se tinham um número de matrícula na Previdência Social, uma apólice de seguro, uma carteira de motorista ou uma conta bancária. Eram relacionadas se tinham pago impostos ou haviam recebido seguro desemprego ou algum fundo de assistência social. Os seus nomes eram armazenados nos computadores quando eram beneficiadas por algum plano de seguro médico, quando compravam uma casa com um empréstimo sob garantia hipotecária, quando tinham um automóvel ou até uma bicicleta ou quando eram depositantes em alguma poupança ou conta corrente de banco. Os computadores sabiam os nomes das pessoas que tinham passado por hospitais, que tinham feito serviço militar, que haviam tirado licença de caça ou pesca, que haviam tirado passaporte, que haviam pedido ligação de telefone ou energia eléctrica para suas casas, que tinham se casado ou divorciado, ou mesmo nascido.

Quando se sabia onde procurar e se tinha paciência, todos os factos estavam à disposição.

Max Hornung e os computadores tinham relacionamento admirável. Os computadores não riam do sotaque de Max, do seu aspecto, dos seus gestos ou das suas roupas. Para os computadores, Max era um gigante. Respeitavam-lhe a inteligência, admiravam-no, amavam-no. Perevoavam-lhe com prazer os seus segredos, comunicavam-lhe deliciosos rumores sobre as loucuras de que os mortais são capazes. Eram como velhos amigos que conversavam.

- Vamos falar sobre Sir Alec Nichols - disse Max.

E os computadores começaram. Deram a Max um perfil matemático de Sir Alec, traçado em algarismos, códigos binários e gráficos. Duas horas depois, Max tinha um retracto complexo do homem, um relatório financeiro dele.

Cópias de recibos de bancos, cheques cancelados e contas lhe foram apresentados. O que primeiro chamou a atenção de Max foi uma série de cheques de quantias vultosas, todos ao portador, emitidos por Sir Alec Nichols. Para onde fora o dinheiro? Mas procurou ver se ele fora consignado como despesas pessoais ou comerciais, talvez como uma dedução de impostos. Nada. Voltou às listas de despesas: um cheque para o White's Club, uma conta de açougue, que não fora paga... u vestido de noite de John Bates... o Guinea... uma conta de dentista, que não fora paga... Anabelleks... um vestido de challis de Yves Saint-Laurent... uma conta do White Elephant, que não fora paga... uma conta de avaliações... John Wydhan, salão de beleza, por pagar... quatro vestidos de Yves Saint-Lorent, River Gauche... salários dos empregados domésticos...

Max formulou uma pergunta ao computador no Centro de Licenciamento de veículo.

Positivo. "Sir Alec possui um Bentley e um Morris." Faltava alguma coisa. Não havia contas de oficinas mecânicas.

Max fez os computadores efectuarem uma pesquisa em suas memórias. Em sete anos, não tinha havido uma só conta de oficina.

"Esquecemos alguma coisa?" perguntaram os computadores.

"Não, não esqueceram", respondeu Max.

Sir Alec não precisava de mecânicos. Ele mesmo consertava seus carros. Um homem dotado dessa habilidade não tinha a menor dificuldade em preparar u desastre com um elevador ou com um jipe. Max Hornung se debruçou sobre os dados secretos fornecidos pelos seus amigos com a mesma ansiedade com que um egiptólogo decifraria hieróglifos recém-descobertos. Descobriu outros mistérios. Sir Alec estava gastando muito mais do que ganhava.

Outro fio solto.

Os amigos de Max na City tinham ligações com muitos sectores.

Dois dias depois, Max soube que Sir Alec tinha tomado dinheiro emprestado a Tod Michaels, dono de um clube no Soho.

Max procurou os computadores da polícia e formulou perguntas.

Os computadores ouviram e responderam: "Sim, podemos dar-lhe Tod Michaels. Já foi acusado de vários cremes, mas nunca condenado. Suspeito de estar envolvido em chantagem, prostituição e agiotagem".

Max foi ao Soho e fez mais perguntas. Ficou sabendo que Sir Alec não jogava, mas que a mulher dele era uma jogadora inveterada.

Quando Max acabou, não tinha a menor dúvida de que Sir Alec Nichols estava sendo chantageado. Deixara de pagar as contas e precisava sempre de dinheiro com urgência.

Tinha acções que valeriam milhões se ele pudesse vendê-las. Mas Sam Roffe fora um obstáculo no seu caminho, como o era Elizabeth Roffe.

Sir Alec Nichols tinha um motivo para assassinar.

Max verificou Rhys Williams. As máquinas fizeram o possível, mas o retracto saiu muito vago.

Os computadores informaram a Max que Rhys Williams era do sexo masculino, nascido no País de Gales, tinha trinta e quatro anos e era solteiro. Alto funcionário da Roffe and Sons.

Ganhava oitenta mil dólares por ano, sem contar as gratificações. Uma poupança em Londres com saldo de vinte e cinco mil libras. Tinha um depósito num banco em Zurique, de conteúdo desconhecido. Tinha todas as contas e cartões de crédito. Muitos dos artigos comprados com eles se destinavam a mulheres. Rhys Williams não tinha antecedentes criminais. Era empregado da Roffe and Sons havia nove anos.

Não bastava, pensou Max. Não bastava de modo algum. Parecia até que Rhys Williams estava se escondendo por trás dos computadores. O homem se mostrava muito protector quando Max fizera perguntas a Elizabeth depois do funeral de Kate Erling.

Estava protegendo a quem? A Elizabeth Roffe? Ou a si mesmo?

às seis horas daquela tarde, Max embarcou na classe turística num vôo da Alitália com destino a Roma.

 

Capítulo 40

Ivo Palazzi tinha passado quase dez anos construindo com habilidade e cuidado uma dupla vida de que nem mesmo as pessoas mais íntimas dele tinham desconfiado.

Max e seus amigos, os computadores, levaram menos de vinte e quatro horas para desvendar tudo. Max discutiu o caso com os computadores no Edifício Anagrafe, onde estavam registrados dados biográficos e administrativos, visitando também os computadores do SID e dos bancos. Todos receberam Max muito bem.

"Falem-me de Ivo Palazzi", disse Max.

"Com prazer", responderam os computadores.

As conversações começaram.

Uma conta de armazém de Amici... uma conta no salão de beleza de Sergio na Via Condoti... u terno azul de Angelo.. flores da Carducci... dois vestidos de noite de Irene Galitzne... uma bolsa Pucci... contas de luz e telefone.

Max lia os impressos, examinando, analisando, farejando. Uma coisa estava errada. Havia pagamentos de colégio para seis crianças.

"Será que erraram?", perguntou Max.

"Que tipo de erro?" "Os computadores do Anagrafe disseram que Ivo Palazzi registrado como pai de três filhas Confirmaram seis contas de colégio?" "Confirmamos."

"Dão o endereço de Ivo Palazzi em Olgiata?" "Exacto." "Mas ele está pagando um apartamento na Via Montemignaio?" "Está." "Há dois Ivo Palazzi?" "Não. Um só. Duas famílias. Três filhas com a esposa. Três filhos com Donatella Spolini." Max ficou sabendo das preferências da amante de Ivo Palazzi, do nome do seu salão de beleza e dos nomes dos três filhos ilegítimos de Ivo. Sabia que Simonetta era loura e Donatella, morena. Sabia dos números dos manequins, dos sutias e dos sapatos de cada uma e quanto custava cada artigo.

Entre as despesas, vários itens interessantes chamaram a atenção de Max. As quantias eram pequenas, mas as mercadorias comparadas se destacavam. Havia recibos pela compra de um torno, uma plaina de uma serra. Ivo gostava de trabalhos manuais. Mas Não se esqueceu do facto de que, sendo arquitecto, devia entender um pouco de elevadores.

"Ivo Palazzi solicitou recentemente um grande empréstimo bancário", informaram os computadores.

"Conseguiu?" "Não. Os bancos exigiram a assinatura da mulher dele, e Ivo desistiu do empréstimo." Max tomou o autocarro para o Centro di Polizia Scientifica, onde havia um computador gigantesco numa grande sala circular.

"Ivo Palazzi tem antecedentes criminais?", perguntou Max.

"Positivo. Ivo Palazzi foi condenado por assalto com violência aos vinte e três anos. A vítima teve de ir para o hospital. Ivo passou dois meses na prisão." "Mais alguma coisa?" "Ivo sustenta uma amante na Via Montemignaio." "Obrigado. Já sei disso." "Há várias queixas dos vizinhos à polícia." "Que espécie de queixas?" "Perturbação da ordem. Brigas, gritaria. Um dia, a mulher quebrou todos os pratos da casa. Isso tem importância?" "Muita. Obrigado." Isso queria dizer que Ivo Palazzi tinha temperamento exaltado. E Donatella Spolini também. Teria havido alguma coisa entre eles? Estaria ela a ameaçar denunciá-lo? Fora por isso que ele solicitara um grande empréstimo

ao banco? Até que extremos poderia ir um homem como Ivo Palazzi para proteger seu casamento, sua família, sua maneira de viver?

Havia um detalhe final a que o detective deu muita atenção.

A secção financeira da polícia de segurança italiana fizera um grande pagamento a Ivo Palazzi. Era uma recompensa, uma percentagem em dinheiro encontrado com o banqueiro a quem Ivo havia denunciado. Se Ivo estava precisando tanto de dinheiro, que mais seria capaz de fazer para consegui-lo?

Max despediu-se dos computadores e embarcou para Paris, no vôo do meio-dia da Air France.

 

Capítulo 41

O táxi marca do Aeroporto Charles de Gaulle até as proximidades da Notre-Dame setenta francos, sem contar a gorjeta. A passagem pelo autocarro 351 para o mesmo lugar custa sete francos e meio, também sem gorjetas. O detective Max Hornung tomou o autocarro. Hospedou-se no barato Hôtel Meublé e começou a fazer telefonemas.

Falou com pessoas que tinham nas mãos os segredos dos cidadãos da França. Os franceses eram normalmente mais desconfiados do que os suíços, mas mostravam-se ansiosos em cooperar com Max Hornung. Em primeiro lugar, Max Hornung era um perito no seu sector, grandemente admirado, sendo uma honra cooperar com um homem assim. Em segundo lugar, tinham pavor dele. Não havia segredos para Max. O homenzinho esquisito, com o seu sotaque impossível, desmascarava todo mundo.

- Sem dúvida - disseram a Max. - Pode usar à vontade nossos computadores. Tudo deve ser, porém, confidencial.

- É claro.

Max passou pelo Inspecteur des Finances, pelo Crédit Lyonnais e pela Assurannce Nationale, para conversar com os computadores de impostos. Visitou os computadores da Gendarmerie em Rosny-sous-Bois e os da Préfecture de police, na Ile de la Cité.

Começaram a conversa leve e calma de velhos amigos.

"Quem são Charles e Hélène Roffe-Martel?", perguntou Max.

"Charles e Hélène Roffe-Martel, residência Rue François Premier, 5, Vésinet, casados a 24 de maio de 1970 em Neuilly, sem filhos. Hélène três vezes divorciada, nome de solteira Roffe, conta bancária no Crédit Lynnais na Avenue Montaigne, no nome de Hélène Roffe-Martel, saldo médio de mais de vinte mil francos." "Despesas?" "Pois não. Uma conta de livros da Librairie Marceau... conta de dentista com tratamento de canais para Charles Martel...contas de hospital para Charles Martel... conta de exame de Charles Martel." "Resultado do diagnóstico?" "Pode esperar? Terei de falar com outro computador." "Por

favor." Max esperou.

A máquina com o relatório do médico principiou a falar.

"Tenho o diagnóstico." "Pode dizer?" "Esgotamento nervoso." "Mais alguma coisa?" "Equimoses e contusões graves nas coxas e nas nádegas." "Alguma explicação?" "Não

oi dada nenhuma." "Faça o favor de continuar." "Uma conta de um par de sapatos de homem de Pinet... um chapéu de Rose Valois... foie gras da Fauchon... salão de beleza Carita... jantar no Maxim's para oito pessoas... pratas de Christofle... um robe de homem da Sulka.." Max interrompeu o computador. Havia uma coisa a respeito das contas que lhe chamou a atenção. Todas as compras tinham sido assinadas por Mme Roffe-Martel, inclusive as de roupas para homens e as contas de restaurantes.

Tudo em nome dela.

Interessante!

E então surgiu o primeiro fio solto.

Uma companhia chamada Belle Paix havia comprado um selo de imposto territorial. Um dos proprietários da Belle Paix se chamava Charles Dessain. O número do Seguro Social de Charles Dessain era o mesmo de Charles Martel. Segredo.

"Fale-me sobre a Belle Paix", disse Max.

"A Belle Paix é propriedade de René Duchamps e Charles Dessain, também conhecido como Charles Martel." "Que faz a Belle Paix?" "Possui um vinhedo." "De quanto é o capital da companhia?" "Quatro milhões de francos." "Onde Charles Martel conseguiu a sua cota de capital?" "Chez ma tange." "Na casa de sua tia?" "Desculpe. É uma expressão de gíria francesa. Quer dizer no penhor, no Crédit Municipal." "O vinhedo tem dado lucro?" "Não. A companhia faliu." Max tinha de saber mais. Continuou a falar com seus amigos, sondando, lisonjeando, exigindo. Foi o computador dos seguros que falou a Max de uma advertência arquivada referente a uma possível fraude

de seguros. Max sentiu uma emoção deliciosa.

"Fale-me sobre isso", disse ele.

E falaram como duas velhas que trocam segredos enquanto lavam a roupa suja na manhã de segunda-feira.

Depois disso, Max foi procurar um joalheiro chamado Pierre Richaud.

Meia hora depois, Max sabia exactamente o valor das jóias de Hélène Roffe-Martel que tinham sido imitadas: pouco mais de dois milhões de francos, a quantia que Charles Martel investira no vinhedo. Por conseguinte, Charles Dessain-Martel tinha precisado tanto de dinheiro que não hesitara em roubar as jóias da mulher.

Que outros actos de desespero haveria ele cometido?

Havia outro facto que interessava a Max. Podia ter pouca significação, mas Max o arquivou rapidamente na memória. Era uma nota de um par de botas de alpinismo. Isso fazia Max pensar, pois o alpinismo não se ajustava à imagem que fazia de Charles Martel-Dessain, um homem dominado pela mulher que não podia comprar coisa alguma em seu nome e nem tinha conta bancária pessoal, a tal ponto que era forçado a roubar para fazer um investimento.

Não era possível imaginar Charles Martel escalando montanhas Voltou aos seus computadores.

"A conta que me mostrou ontem da loja de artigos desportivos. Gostaria de ter detalhes dela." "Certamente." A conta apareceu na tela diante dele. Número das botas: 3. Um número de mulher. A alpinista era Hélène Roffe-Martel.

Sam Roffe fora morto nas montanhas.

 

Capítulo 42

A Armengaud era uma rua tranquila de Paris, marginada dos dois lados por residências de um e dois andares, com telhados de calha inclinados. Destacava-se entre os outros prédios o do número 26, uma estrutura moderna de vidro, aço e pedra de oito andares, que servia de sede à Interpol.

O detective Max Hornung estava falando com um computador na grande sala com ar condicionado do porão, quando um dos funcionários entrou e disse:

- Vão passar um filme assassino lá em cima. Quer vê-lo?

Max levantou a vista e disse:

- Não sei. O que significa exactamente um filme assassino?

- Suba e verá.

Havia cerca de vinte homens e mulheres sentados na grande sala de projecção do terceiro andar. Havia funcionários da Interpol, inspectores de polícia Sûreté francesa, detectives à paisana e alguns policiais fardados.

Na frente da sala, diante da tela, René Almedin, secretário assistente da Interpol, estava falando. Max entrou e sentou-se numa das últimas filas.

- Nestes últimos anos - dizia René Almedin. -, temos tido notícias de filmes assassinos, isto é, de filmes pornográficos em que ao fim do acto sexual a vítima é assassinada diante das câmaras. Não havia provas de que tais filmes realmente existissem, embora houvessem um motivo para essa escassez de provas. Esses filmes não eram ou não são feitos para o público.

São feitos para exibição particular a homens ricos que encontram prazer dessa maneira deformada e sádica.

René Almedin tirou os óculos e continuou:

- Como já disse, tudo era boato e especulação. Isso, porém, muda agora. Dentro de alguns momentos, vocês vão assistir a algumas cenas de um filme assassino autêntico.

Há dois dias, um homem que levava uma pasta foi atropelado numa rua de Passy por um carro cujo o motorista fugiu. O homem morreu a caminho do hospital e ainda não foi identificado. A Sûreté encontrou este rolo de filme na sua pasta e mandou revelá-lo no seu laboratório. Vejam.

Fez um sinal, e a exibição começou.

Na tela, apareceu uma moça loura que devia ter no máximo dezoito anos. Causava um penoso constrangimento, como se estivesse diante de uma coisa irreal, ver aquela criatura tão linda praticar algumas perversões sexuais com o homem que estava na cama com ela. A câmara fechou em close para focalizar a introdução do enorme pénis na mulher. Em seguida, moveu-se e focalizou o rosto do homem. Max Hornung teve a certeza instantânea de que já tinha visto um dia aquele rosto. E havia alguma coisa mais que já conhecia. Era a fita amarrada no pescoço da mulher. Reavivou-lha a lembrança da fita vermelha.

Onde? A mulher na tela começou a entusiasmar-se com o acto e, quando ia atingir o orgasmo, o homem fechou as mãos em torno do pescoço dela e principiou a estrangulá-la.

A expressão no rosto da mulher se transformou de prazer em horror. Debateu-se desenfreadamente para fugir, mas as mãos do homem apertaram com mais força, e ela morreu no momento final do orgasmo. A câmara focalizou em close rosto dela. O filme terminara, e as luzes se acenderam na sala de projecção. Max lembrou-se.

A moça que fora pescada num rio, em Zurique.

Já estavam chegando à sede da Interpol em Paris respostas de toda a Europa às mensagens urgentes enviadas por cabo. Seis mortes semelhantes haviam ocorrido em Zurique, Londres, Roma, Portugal, Hamburgo e Paris.

René Almedin disse a Max que as características das vítimas eram semelhantes.

- São todas jovens e louras. Foram estranguladas durante o acto sexual e estavam nuas, com uma fita vermelha amarrada no pescoço. Estamos diante de um perigoso assassino, que dispõe de um passaporte e dinheiro suficiente para fazer todas essas viagens por sua conta ou às expensas de alguém.

Um detective apareceu nesse momento.

- Estamos com sorte. Já descobriram a origem do filme virgem usado. É produzido numa pequena fábrica em Bruxelas que tem um problema com o equilíbrio das cores, o que facilitou a identificação do filme. Já obtivemos uma lista das firmas que comparam os filmes nestes últimos tempos.

- Posso ver essa lista, quando a tiverem? - perguntou Max Hornung.

- Sem dúvida - disse René Almedin.

Olhou para o pequeno detective. Na opinião dele, ninguém no mundo podia parecer-se menos com um detective que Max Hornung.

Entretanto, fora ele quem dera o primeiro indício seguro no caso dos filmes assassinos.

- Temos com você uma dívida de gratidão - disse Almedin.

- Ora essa! Porquê?

 

Capítulo 43

Alec Nichols não havia desejado comparecer ao banquete, mas achara que Elizabeth não devia ir sozinha. Ambos tinham sido convidados a falar. O banquete era em Glasgow, cidade que Alec detestava. O carro o esperava defronte do hotel, a fim de levá-lo para o aeroporto assim que ele pudesse sair sem ser descortês. Já fizera o seu discurso, mas, naquele momento, estava pensando em outra coisa. Sentia-se muito nervoso e não estava passando bem do estômago. Algum imbecil tivera a péssima idéia de servir haggi o prato escocês que ele achava horripilante. Alec mal o provara.

- Está sentindo alguma coisa, Alec? - perguntou Elizabeth, que estava sentada ao lado dele.

- Não é nada - disse ele para tranquilizá-la.

Os discursos estavam quase terminados quando um garção se inclinou e sussurrou a Sir Alec:

- Telefonema interurbano para o senhor. Pode atender no escritório.

Alec seguiu o garção e passou do salão de jantar para o pequeno escritório atrás da portaria. Pegou no telefone.

- Alo?

Ouviu então a voz de Swinton.

- Este é o último aviso!

Em seguida, o telefone foi desligado.

 

Capítulo 44

A última cidade na agenda do detective Max Hornung era Berlim.

Os amigos computadores estavam à sua espera. Max falou com o exclusivo computador Nixdorf, ao qual só se tinha acesso com um cartão especial, perfurado. Falou com os grandes computadores de Allianz e Schuff e com os do Bundeskriminalamt em Wiesbaden, centro de colecta de dados sobre todas as actividades criminais da Alemanha.

"Que podemos fazer?", perguntaram eles.

"Falem-me de Walther Gassner." E os computadores falaram. Quando acabaram de revelar os segredos a Max Hornung, a vida de Walther Gassner estava exposta diante do detective em belos símbolos matemáticos. Max podia ver o homem tão claramente quanto se estivesse olhando para uma fotografia. Sabia das preferências dele em matéria de roupas, vinhos, comidas e hotéis. Tinha sido um jovem e belo professor de esqui que vivia à custas das mulheres e se casara com uma herdeira muito mais velha do que ele.

Houve um ponto que pareceu curioso a Max. Tratava-se de um cheque compensado de duzentos marcos feito em favor do Dr.Heissen. Estava escrito no cheque "para consulta". Que espécie de consulta? O cheque fora recebido no Dresdner Bank, em Düsseldorf. Quinze minutos depois, Max falava com o gerente do banco. Sim. o gerente conhecia bem o Dr. Heissen, um velho cliente.

Que espécie de médico era ele?

Psiquiatra.

Quando Max desligou, ficou sentado com os olhos fechados, pensando. Um fio solto. Por fim pegou o telefone e ligou para o Dr. Heissen, em Düsseldorf.

Uma recepcionista toda cerimoniosa disse a Max que o médico não podia ser perturbado. Max insistiu, e afinal o próprio Dr.Heissen pegou o telefone e informou rudemente a Max que não costumava dar informações a respeito dos seus clientes e que não tinha a intenção de discutir tais assuntos pelo telefone.

Desligou sem esperar qualquer resposta.

Max voltou aos computadores: "Falem-me de Heissen." Três horas depois, tornava a falar com o Dr. Heissen pelo telefone.

- Fique sabendo - disse o médico asperamente - que, se quiser alguma informação a respeito de qualquer dos meus clientes, terá que aparecer aqui no meu consultório com um mandado judicial.

- Não me é possível no momento ir a Düsseldorf - disse o detective.

- O problema é seu. Mais alguma coisa? Sou um homem ocupado.

- Sei disso. Tenho aqui em mãos as suas declarações de impostos de renda nos últimos cinco anos.

- E daí?

- Escute, doutor, não quero lhe criar problemas, mas vem sonegando ilegalmente vinte e cinco por cento de sua renda. Se preferir, poderei encaminhar as suas declarações às autoridades alemãs do Imposto de Renda e dizer-lhes onde devem procurar a sonegação. Poderei também falar do seu cofre num banco em Munique e de sua conta numerada em Basileia.

Houve um longo silêncio, e então o médico perguntou:

- Quem o senhor disse que era?

- Detective Max Hornung, da Polícia Criminal da Suíça.

Houve um longo silêncio, e então o médico perguntou:

- O que exactamente deseja saber?

Quando o Dr. Heissen começou a falar, não houve mais jeito de parar. Sim, lembrava-se perfeitamente de Walther Gassner. O homem tinha ido procurá-lo sem marcar hora e tinha insistido em ser imediatamente atendido. Não quisera dar o nome, dizendo que desejava discutir apenas os problemas de um amigo.

- É claro que isso logo me pôs em guarda - disse o Dr.Heissen. - é uma síndrome clássica de pessoas que têm receio de enfrentar os seus próprios problemas.

- Qual era o problema dele, doutor?

- Disse ele que o amigo era esquizofrénico e seria capaz de matar alguém, se não o impedissem. Perguntou se havia alguma espécie de tratamento capaz de atenuar esse estado. Acrescentou que não podia encarar a idéia de ver o amigo internado num hospício.

- O que o senhor lhe disse?

_ Expliquei que, em primeiro lugar, eu teria de examinar esse amigo dele. Adiantei que alguns tipos de doenças mentais eram susceptíveis de tratamento por meio de terapias medicamentosas e psiquiátricas, ao passo que outras eram incuráveis. Disse também que, no caso como o que ele em linhas gerais me expunha, o tratamento poderia ser muito demorado.

- O que aconteceu então?

- Nada. Foi só isso. Nunca mais vi o homem, e sinceramente gostaria de ter feito alguma coisa por ele. A sua visita ao meu consultório teve todas as características de um pedido de socorro. Era como se um assassino tivesse escrito na parede do apartamento de sua vítima: "Prendam-me, senão vou matar de novo!" Havia uma coisa que Max ainda estranhava.

- Disse que ele não quis dar o nome. Entretanto, deixou nas suas mãos um cheque assinado.

- Disse-me que havia se esquecido de pegar o dinheiro ao sair de casa. Estava muito aflito com isso e, no fim, teve de me dar um cheque. Foi assim que fiquei sabendo o nome dele. Deseja saber mais alguma coisa.

- Não.

Alguma coisa ainda estava desafiando Max. Era um fio solto que fugia do seu alcance. Tinha de encontrá-lo... Mas nada havia a fazer com os computadores. O resto era com ele.

Quando Max voltou a Zurique na manhã seguinte, encontrou um teletipo da Interpol em cima de sua mesa. Continha a relação dos fregueses que haviam comprado a partida de filme virgem com defeito e com o qual fora feito o filme assassino.

Havia oito nomes na lista.

Um deles era a Roffe and Sons.

O inspector-chefe Schmied estava ouvindo o detective Max Hornung e pensando que indiscutivelmente, graças a um golpe de sorte, o pequenino detective tropeçara em outro caso importante.

- É uma de cinco pessoas - dizia Max. - Todas elas tinham um motivo e tiveram a oportunidade. Estavam todas em Zurique numa reunião da directoria no dia em que o elevador caiu. Qualquer delas poderia estar na Sardenha quando houve o acidente com o jipe.

- Espere ai, Hornung - disse o inspector-chefe Schmied. Está falando em cinco suspeitos. Mas, na reunião da directoria, só havia quatro directores presentes além de Elizabeth Roffe.

Quem é o seu quinto suspeito?

- O homem que estava em Chamonix com Sam Roffe quando ele foi assassinado, Rhys Williams.

 

Capítulo 45

Sra. Rhys Williams.

Elizabeth nem poda acreditar. Tudo parecia um sonho como nos seus tempos de mocinha, quando tinha escrito o nome muitas e muitas vezes nos seus cadernos. Sra. Rhys Williams. Olhava sem acreditar para o anel que levava no dedo.

- De que está rindo? - perguntou Rhys.

Estava sentado à frente dela, numa poltrona a bordo do luxuoso Bõeing 707-320. Estavam dez mil metros acima do oceano Atlântico e faziam uma refeição de caviar iraniano com Dom Pérignon gelado. Era um completo clichê de La dolce vita, e Elizabeth não pôde deixar de rir.

- Alguma coisa que eu disse? - perguntou Rhys.

Elizabeth maneou a cabeça. Viu como ele era bonito. E era seu marido.

- Estou tão feliz! - murmurou ela.

Ele nunca saberia até que ponto ela era feliz. Como poderia Elizabeth dizer-lhe o que aquele casamento representava para ela? Ele não poderia compreender, porque para Rhys aquilo não era um casamento; era um acordo comercial. Mas ela amava Rhys.

Tinha a impressão de que sempre o amara. Queria passar o resto da vida com ele e dar-lhe muitos filhos. Queria pertencer a ele e fazer que ele pertencesse a ela.

Mas era preciso antes resolver um problema. Tinha de fazer Rhys apaixonar-se por ela.

Elizabeth tinha falado em casamento a Rhys no dia em que se encontrara com Julius Badrutt. Depois que o banqueiro saiu, Elizabeth ajeitou os cabelos e foi à sala de Rhys. Respirou fundo e perguntou:

- Quer se casar comigo, Rhys?

Viu a surpresa estampada no rosto dele e continuou apressadamente, querendo parecer eficiente e fria:

- Seria um acordo puramente comercial. Os bancos estão dispostos a prorrogar o prazo de empréstimos se você assumir a presidência da Roffe and Sons. A única maneira de você conseguir isso é casando-se com uma mulher da família, e parece que a única disponível sou eu.

Nas últimas palavras, a voz se tornou imprevisivelmente esganiçada. Elizabeth ficou muito vermelha e não pôde levantar a vista para ele.

- É claro - continuou Elizabeth - que não seria um verdadeiro casamento no sentido usual do termo... Você teria inteira liberdade de fazer o que quisesse...

Ele ficou a olhá-la, sem ajudá-la em nada. Elizabeth queria que ele falasse, que dissesse alguma coisa, fosse lá o que fosse.

- Rhys...

- Desculpe, Elizabeth - disse ele, sorrindo. - Mas não é todos os dias que se recebe um pedido de casamento de uma mulher bonita.

Ele estava querendo ganhar tempo, procurando um jeito de livrar-se daquilo, sem ofender os sentimentos dela. "Desculpe, Elizabeth, mas"...

- Combinado, Elizabeth - disse ele.

De repente, ela sentiu como se a tivesse aliviado de um tremendo peso. Não compreendera até aquele momento o quanto aquilo era importante para ela. Ganhara tempo de sobra para saber quem era o inimigo. Juntos, Rhys e ela poderiam acabar com todas aquelas coisas terríveis que estavam acontecendo. Mas uma coisa era preciso esclarecer desde daquele instante.

- Você será o presidente da companhia, mas o controle accionário permanecerá nas minhas mãos.

Rhys franziu a testa.

- Se eu vou presidir à companhia...

- Vai, sim.

- Mas o controle accionário...

- Continuará em meu nome. Quero ter a certeza de que as acções não poderão ser vendidas.

- Compreendo.

Ela sentia a reprovação de Rhys. Gostaria de dizer-lhe que decidira transformar a firma numa sociedade aberta e deixar os directores venderem as suas acções. Com Rhys na presidência, Elizabeth não teria mais receio de que os estranhos chegassem e se apossassem de tudo. Rhys saberia contê-los. Mas não podia deixar que isso acontecesse enquanto ela não soubesse que estava tentando destruir a companhia. Gostaria muito de dizer todas essas coisas a Rhys, mas sabia que ainda não era hora.

Limitou-se a dizer:

- Fora esse ponto, você terá o controle total da companhia.

Rhys ficou a olhá-la em silêncio durante um tempo que pareceu a Elizabeth intoleravelmente longo. Por fim, perguntou:

- Quando é que você quer se casar, Elizabeth?

- O mais depressa possível.

A exepção de Anna e Walther, que estava em casa doente, todos compareceram ao casamento em Zurique: Alec e Vivian, Hélène e Charles, Simonetta e Ivo. Pareciam todos muito felizes com o casamento, a tal ponto que Elizabeth em alguns momentos sentiu-se como uma impostora, pois não estava se casando realmente e, sim, fazendo um acordo comercial.

Alec abraçou-a e disse:

- Sabe muito bem que eu lhe desejo tudo de bom.

- Sei sim, Alec. Muito obrigada.

Ivo parecia em êxtase.

- Carissima, tanti auguri e figli mashi. Ficar rico é o sonho dos mendigos, mas ter amor é o sonho dos reis.

- Quem disse isso?

- Eu mesmo - disse Ivo. - Só espero que Rhys saiba apreciar a sorte que tem.

- É o que eu me canso de dizer a ele - disse Elizabeth rindo.

Hélène levou Elizabeth para um canto.

- Você é cheia de surpresas, ma chére. Nem sabia que você e Rhys se interessavam um pelo outro.

E afastou-se.

Depois da cerimónia, houve uma recepção no Baur-au-Lac. Na superfície, tudo foi alegre e festivo, mas Elizabeth podia sentir as correntes submersas. Pairava na sala uma maldição, mas ela não podia dizer de quem partia. Sabia apenas que uma das pessoas presentes a odiava. Era uma convicção profunda, ainda que em volta dela só visse sorrisos e rostos amigos.

Charles fez um brinde, mas ela recebera um relatório segundo o qual o explosivo que destruíra o laboratório fora fabricado nos arredores de Paris.

Ivo tinha um sorriso cordial, mas o banqueiro capturado quando tentava sair com dinheiro da Itália fora denunciado por ele. Alec? Walther? Qual deles?, perguntava-se Elizabeth.

Na manhã seguinte, houve uma reunião da directoria, e Rhys Williams foi eleito, por unanimidade, presidente e principal executivo da Roffe and Sons. Charles levantou a questão que estava no espírito de todos.

- Agora que está dirigindo a companhia, vai permitir as vendas das acções?

Elizabeth pôde sentir subitamente a tensão dominar a sala.

- O controle accionário ainda está nas mãos de Elizabeth informou Rhys. - Cabe a ela decidir.

Todas as cabeças se voltaram para Elizabeth.

- Não vamos vender - declarou ela.

Quando Elizabeth e Rhys ficaram sozinhos, ele perguntou:

- Gostaria de ir passar a lua-de-mel no Rio?

Elizabeth olhou-o e sentiu o coração bater mais forte. Mas Rhys acrescentou, com a maior calma do mundo.

- O nosso gerente lá está ameaçando demitir-se e é preciso resolver esse caso. Planeava tomar o avião amanhã. Pareceria estranho se eu fosse sem minha mulher.

- É claro - disse Elizabeth.

E pensou: Você é uma tola. Tudo isso foi idéia sua. Não se trata de um casamento, mas sim de um acordo comercial. Você não tem o direito de esperar coisa alguma de Rhys. Entretanto, quem sabe o que pode acontecer numa viagem dessas?

Quando desembarcaram do avião no Aeroporto do Galeão, fazia calor, e Elizabeth se lembrou de que no Rio era verão.

A espera deles havia um Mercedes 600 com um motorista, um homem magro de pouco mais de vinte anos.

- Onde está Luís? - perguntou-lhe Rhys ao entrar no carro.

- Luís está doente, Sr. Williams. Mas eu estarei à disposição do senhor e de sua mulher.

- Diga a Luís que desejo seu pronto restabelecimento.

O chofer olhou-os pelo retrovisor e respondeu:

- Direi, sim.

Meia hora depois, rolavam pela avenida ao longo de Copacabana. Pararam à porta de um hotel moderno, e, um momento depois, os empregados já estavam cuidando da bagagem deles.

Foram levados para uma enorme suíte de quatro quartos, uma bela sala, uma cozinha e um grande terraço de frente para o mar.

Havia flores em profusão, champanha, uísque e bombons. O gerente os havia levado pessoalmente até a suíte.

- Se desejarem alguma coisa, seja lá o que for, estou às ordens vinte e quatro horas por dia - disse ele, antes de retirar-se.

- São sem dúvida muito atenciosos - disse Elizabeth.

Rhys riu e respondeu:

- Têm motivos para ser. Este hotel lhe pertence.

- Oh, eu não sabia disso.

- Está com fome?

- Ainda não...

- Um pouco de champanha?

- Isso sim... Obrigada.

Tinha a impressão de que não estava falando naturalmente. Não sabia ao certo como proceder, nem o que devia esperar de Rhys.

Ele se tornara de repente uma pessoa estranha, e ela não podia esquecer um só momento que estava sozinha com ele numa suíte de hotel, que estava ficando tarde e que, dentro em pouco, seria hora de ir para a cama.

Viu Rhys abrir com facilidade a garrafa de champanha. Tudo o que ele fazia era assim, com aquela facilidade e a segurança de quem sabe o que quer e como consegui-lo.

O que queria ele?

Rhys levou a champanha para Elizabeth e fez um brinde.

- A um bom começo.

- A um bom começo - repetiu Elizabeth, e acrescentou intimamente: E a um final feliz.

Beberam. Deviam quebrar as taças para comemorar, pensou ela.

Acabou de beber o champanha.

Estavam em lua-de-mel no Rio e ela queria Rhys. Não só naquele momento, mas para sempre.

O telefone tocou. Rhys atendeu e disse algumas palavras.

Depois que desligou, disse a Elizabeth:

- Já é tarde. Por que não vai para a cama?

Para Elizabeth, a palavra "cama" ficou pairando no ar.

- Já vou - disse ela com voz fraca.

Levantou-se e foi para o quarto onde tinha deixado as suas malas. Havia uma cama enorme no centro do quarto. Uma camareira abrira as malas e preparava a cama. De um lado havia uma fina camisola de seda; do outro, um pijama azul de homem. Hesitou um momento e começou a despir-se. Quando ficou nua, passou ao quarto de vestir espelhado e tirou cuidadosamente a maquiagem.

Amarrou uma toalha na cabeça, entrou no banheiro e tomou um demorado banho de chuveiro, ensaboando bem o corpo e deixando a água quente descer-lhe por entre os seios e sobre seu ventre e coxas, como se compridos dedos quentes a afagassem.

Tentava não pensar em Rhys, mas não podia pensar em mais nada. Pensava nos braços dele em torno do seu corpo e o corpo dele nela. Tinha se casado com ele para ajudar a salvar a companhia ou isso fora apenas um pretexto, pois na verdade era a ele que queria? Não sabia mais. O seu desejo se transformava numa ardente necessidade.

Era com se a menina de quinze anos que ela fora estivesse durante todo o tempo à espera por ele sem ter consciência de que a ansiedade se transformara numa fome imperiosa. Saiu do chuveiro, enxugou-se, vestiu a camisola de seda e deitou-se. Ficou esperando, pensando no que ia acontecer, apenas com uma vaga idéia de como seria tudo e com o coração a bater com força. Ouviu a porta abrir-se e Rhys apareceu. Estava inteiramente vestido.

- Vou sair, Liz.

- Aonde... Aonde vai?

- Tenho de resolver um problema de negócios - disse ele, e saiu.

Elizabeth passou o resto da noite acordada, a virar-se na cama de um lado para outro, sacudida por emoções contraditórias, ora grata a Rhys por observar o acordo que tinham feito, ora furiosa por ter sido rejeitada por ele.

O dia já estava amanhecendo quando ouviu Rhys voltar. Os seus passos se encaminharam para o quarto e ela fechou os olhos, fingindo que dormia. Chegou a ouvir a respiração de Rhys quando ele se aproximou da cama. Ficou ali a olhá-la durante muito tempo. Por fim, voltou-se e foi para o outro quarto.

Poucos minutos depois, Elizabeth adormecia.

Nas últimas horas da manhã, fizeram a primeira refeição no terraço. Rhys estava muito agradável e falava com muita animação da cidade e do seu aspecto no tempo do carnaval. Mas não disse coisa alguma sobre onde passara a noite, e Elizabeth não perguntou. Um garção apareceu para saber o que queriam almoçar. Elizabeth notou que foi outro garçom que serviu pouco depois o almoço. Mas não deu muita atenção a isso. como também às camareiras que a todo momento entravam e saíam.

Elizabeth e Rhys estavam na fábrica de Roffe and Sons nos arredores do Rio, sentados no escritório do gerente. Roberto Tumas, um homem de meia-idade, que transpirava copiosamente.

- Deve compreender as coisas - dizia ele a Rhys. - A Roffe me é mais cara do que a própria vida. É como se fosse minha família. Quando sair daqui, sentir-me-ei como se tivesse abandonado o meu lar. Meu coração ficará dilacerado. Mas tenho uma excelente proposta de outra companhia . Tenho mulher, filhos e uma sogra em quem pensar.

Compreende, não é mesmo?

Rhys estava descansando confortavelmente numa poltrona e disse:

- É claro, Roberto. Sei muito bem o que a companhia representa para você e quantos anos você já passou aqui dentro.

Mas compreendo também que é um homem e tem de pensar na família.

- Obrigado, Rhys. Eu sabia que você iria compreender.

- E o seu contracto connosco?

Roberto encolheu os ombros.

- Ora, o meu contracto com a Roffe sempre foi mera formalidade. Que valor tem um contracto quando obriga um homem a trabalhar sentindo-se infeliz?

- Foi por isso que tomamos o avião até aqui, Roberto.

Queremos que você se sinta feliz.

- Pena que seja muito tarde... Agora, eu já acertei ir trabalhar em outra companhia.

- Essa outra companhia sabe que você pode ir para a prisão?- perguntou Rhys displicentemente.

- Para a prisão?

- O governo dos Estados Unidos obrigou toda a empresa de negócio no exterior a revelar todos os subornos pagos nos últimos dez anos. Infelizmente, você está envolvido nisso, Roberto. Além disso, deixou de cumprir várias leis brasileiras.

Estávamos dispostos a protegê-lo de todas as maneiras, como um verdadeiro membro da família. Mas, desde que vai sair da companhia, não há mais motivos para isso, não acha?

Roberto estava muito pálido.

- Mas tudo o que eu fiz foi em benefício da companhia. Estava apenas cumprindo ordens.

- Tenho certeza de que poderá explicar tudo durante o seu julgamento - disse Rhys, levantando-se. - Bem, não temos mais nada a fazer aqui. Vamos, Elizabeth.

- Espere um pouco! - exclamou Roberto. - Não pode abandonar-me assim!

- Creio que está fazendo um pouco de confusão. Quem quer nos abandonar é você.

Tumas enxugou o suor da testa, foi até a janela e olhou para fora, enquanto um profundo silêncio reinava na sala. Finalmente, voltou-se para Rhys e disse:

- Se eu ficar na companhia, posso contar com a protecção da Roffe?

- Total e absoluta - disse Rhys.

Quando estavam de novo no Mercedes de volta à cidade, Elizabeth disse a Rhys:

- O que você fez com ele foi chantagem.

- Decerto, mas não podíamos perder o homem para uma companhia rival. Ele sabe muito sobre nossos negócios e trataria de revelar isso fora daqui.

Elizabeth ficou pensando que ainda tinha muito que aprender com Rhys.

Naquela noite, foram jantar num restaurante, o Mirnder. Rhys se mostrou encantador, divertido e impessoal. Elizabeth tinha a impressão de que ele estava se escondendo por trás de uma cortina de fumaça de palavras e gentilezas para não revelar os seus verdadeiros sentimentos.

Quando acabaram de jantar, já passava da meia-noite.

Elizabeth tinha esperança de que fossem voltar para o hotel, mas Rhys disse:

- Vou lhe mostrar um pouco da vida nocturna do Rio.

Fizeram a ronda das boates e todo mundo parecia conhecer Rhys. Em todos os lugares, era o centro das atenções e encantava a todos. Eram convidados para as mesas de outros casais, e muitas pessoas iam sentar-se à mesa deles. Não ficavam um único minuto a sós. Sem dúvida, Rhys estava fazendo aquilo de propósito para estabelecer uma barreira entre eles.

Em outros tempos, tinham sido amigos. Tinham passado a ser... o quê?

Na quarta boate, onde tinham ido para uma mesa cheia de amigos de Rhys. Elizabeth chegou à conclusão de que já bastava. Interveio na conversa entre Rhys e uma linda moça espanhola.

- Desculpe, mas ainda não dancei uma só vez com meu marido.

Com licença.

Rhys olhou-a com surpresa e levantou-se, dizendo aos outros:

- Creio mesmo que estou esquecendo minha mulher.

Tomou o braço de Elizabeth e levou-a para a pista de dança.

Ela estava um pouco rígida, e ele murmurou:

- Você está brava.

Tinha razão, mas Elizabeth estava zangada consigo mesmo.

Impusera as regras do jogo e estava aborrecida porque Rhys não tratava de desrespeitá-las. Mas não era só isso. O pior de tudo era não ter certeza dos verdadeiros sentimentos de Rhys. Estava cumprindo o acordo apenas porque tinha senso de dignidade ou porque ela não lhe interessava? Elizabeth tinha de saber.

- Desculpe toda essa gente, Elizabeth - disse ele. - Todos estão ligados ao mundo dos negócios e, de uma forma ou de outra, podem nos ser úteis.

Isso mostrava que ele compreendia os sentimentos dela. Era muito agradável ter o braço dele passado por ela e o corpo bem junto ao seu. Tudo em Rhys era exactamente como ela queria. Um se ajustava ao outro. Ela sabia disso. Mas saberia ele o quanto ela precisava dele?

O amor-próprio não lhe permitia dizer coisa alguma. Mas ele não podia deixar de sentir alguma coisa. Encostou-se mais a ele. O tempo havia parado e não havia nada no mundo senão os dois, a música e a magia daquele momento. Ela poderia continuar dançando para sempre nos braços dele. Descontraiu-se, abandonou-se inteiramente a ele e, pouco depois, sentiu a dureza masculina contra as coxas. Abriu os olhos e viu nos olhos dele alguma coisa que nunca vira antes, uma urgência e uma necessidade que eram reflexos do que ela sentia.

Finalmente, ele disse, com voz rouca:

- Vamos voltar para o hotel.

Ela nem conseguia falar.

Quando ele a ajudava a colocar o casaco, os dedos dele lhe queimavam a pele. Sentaram-se no carro separados um do outro, com receio de qualquer contacto.

Elizabeth sentia-se a arder. Pareceu-lhe terem levado uma eternidade para chegar à suíte. Sentiu que não podia esperar um só momento mais. Logo que a porta se fechou, juntaram-se num abraço impetuoso, que a ambos tirou o fôlego.

Estava nos braços dele, e havia nele uma ferocidade que ela nunca pressentira. Ele a tomou nos braços e levou-a para o quarto. Não conseguiram despir-se com a rapidez que desejavam.

Elizabeth pensou que eram como duas crianças ansiosas, e ficou sem saber por que Rhys tardava tanto. Mas pouco importava agora. O que importava era a nudez e o maravilhoso contacto de um corpo contra o outro.

Acariciaram-se longamente e, quando não aguentaram mais, ele se moveu com lentidão sobre o corpo dela e penetrou-a lenta e profundamente, em gentis movimentos circulares, até que ela começou a mover-se ao ritmo dele, ao ritmo de ambos, ao ritmo do universo, e tudo se moveu cada vez mais depressa, a girar descontroladamente até que houve uma explosão maravilhosa e a terra voltou a ser tranquila e pacífica.

Ficaram ali abraçados, e Elizabeth pensou com alegria: Sra.Rhys Williams.

 

Capítulo 46

- Perdão, Sra. Williams - disse Henriette pelo interfone. Está aqui o detective Hornung, que deseja vê-la. Diz que é urgente.

Elizabeth olhou para Rhys, intrigada. Tinham chegado a Zurique, vindo do Rio, na noite anterior, e estavam no escritório havia poucos minutos apenas. Rhys encolheu os ombros.

- Diga-lhe que mande o homem entrar. Vamos saber que urgência é essa.

Pouco depois, estavam os três sentados no escritório de Elizabeth.

- Que deseja? - perguntou Elizabeth.

Max Hornung não era homem de rodeios.

- Alguém está tentando matá-la - disse ele.

Ao ouvir essas palavras, Elizabeth ficou muito pálida. Diante disso, Max Hornung pensou que devia ter tido mais tacto apresentando os factos de outra maneira.

- O que está dizendo, afinal de contas? - perguntou Rhys Williams.

Max continuou a dirigir-se a Elizabeth.

- Já houve duas tentativas de morte contra a sua pessoa.

Haverá provavelmente outras.

- Acho... que deve estar enganado - murmurou Elizabeth.

- Não estou, não. O desastre do elevador visava a sua pessoa.

Ela o encarou em silêncio, com os olhos negros cheios de espanto e outras emoções que Max não podia definir.

- E o desastre com o jipe também.

Elizabeth conseguiu falar:

- Está enganado. Foi um acidente. Não havia nada no jipe. A polícia de Sardenha examinou-o.

- Não.

- Eu vi os mecânicos examinarem o jipe - disse Elizabeth.

- Não, senhora. A senhora viu os mecânicos examinarem um jipe. Não era o seu.

Ambos o olhavam, estupefactos.

Max continuou:

- O seu jipe nunca esteve naquela garagem. Fui encontrá-lo num ferro-velho, em Olbia. A porca que fechava o cilindro principal foi afrouxada, deixando escoar todo o óleo do freio.

Foi por isso que a senhora ficou sem freios. O pára-lamas esquerdo ainda estava amassado e havia marcas verdes da seiva da árvore contra a qual bateu. Verifiquei tudo e vi que conferia.

O pesadelo estava de volta. Elizabeth sentiu-se dominada por ele, e as comportas dos seus temores ocultos se reabriam subitamente, revivendo o terror daquela descida pela montanha.

- Não compreendo - disse Rhys. - Como foi possível isso?

Max voltou-se para Rhys.

- Todos os jipes se parecem. Eles se aproveitaram disso.

Quando ele bateu na árvore em vez de rolar pelo precipício como esperavam, tiveram de improvisar. Não podiam deixar ninguém examinar o jipe, pois tudo tinha que parecer um acidente.

Tinham esperado que ele fosse parar no fundo do mar. Talvez a tivessem liquidado ali mesmo, se não tivesse chegado uma turma de socorro que a levou para o hospital.

Conseguiram então outro jipe, simularam uma batida e fizeram a mudança antes que a polícia chegasse.

- Quem são essas pessoas a quem se refere? - perguntou Rhys.

- Quem fez tudo aquilo teve auxílio. É por isso que falo no plural.

- Quem... quem poderia querer matar-me? - perguntou Elizabeth.

- A mesma pessoa que matou seu pai.

Ela teve uma súbita impressão de irrealidade, como se nada daquilo tivesse acontecido. Era tudo um pesadelo que em breve se dissiparia.

- Seu pai foi assassinado - continuou Max. - Escalou a montanha com um falso guia, que o matou. Seu pai não foi a Chamonix sozinho. Havia alguém com ele.

- Quem? - perguntou Elizabeth com um fio de voz.

Max olhou para Rhys e disse:

- Seu marido.

Essas palavras ressoaram sinistramente nos ouvidos de Elizabeth. Parecia vir de muito longe, crescendo e diminuindo.

Elizabeth teve a impressão de que estava perdendo o juízo.

- Liz, eu não estava com Sam quando ele foi morto - disse Rhys.

- Esteve em Chamonix com ele - insistiu Max.

- Verdade. Mas parti de Chamonix antes que Sam iniciasse a sua escalada!

- Por que não me disse isso, Rhys? - perguntou Elizabeth.

Rhys pareceu hesitar um momento. Em seguida, tomou uma decisão e começou a falar:

- Era um assunto que eu não podia discutir com ninguém. No ano passado alguém tinha começado a sabotar a Roffe and Sons.

Tudo era feito com muita habilidade, para que parecesse simplesmente uma série de acidentes. Mas eu comecei a perceber que havia um plano por trás de tudo. Fui falar com Sam e então combinamos em contactar uma agência particular para investigar os factos.

Elizabeth sabia o que ele ia dizer e foi dominada ao mesmo tempo por uma onda de alívio e por um sentimento de culpa. Rhys sabia do relatório. Devia ter confiado nele, devia ter contado tudo a ele, em lugar de guardar os receios para si mesma.

Rhys continuou a falar com Max Hornung.

- Sam Roffe recebeu um relatório que confirmou as minhas suspeitas. Ele me convidou a ir até Chamonix para discutir o caso com ele. Fui. Resolvemos guardar sigilo sobre tudo até sabermos quem era o responsável pelo que estava acontecendo. É evidente que o sigilo não foi absoluto. Sam foi morto porque alguém sabia que estávamos nos aproximando da verdade. O relatório desapareceu.

- Eu vi o relatório - disse Elizabeth, a quem Rhys olhou com surpresa. - Estava entre os objectos de Sam recolhidos pela polícia em Chamonix. O relatório indicava que o culpado era alguém da directoria da Roffe and Sons. Mas todos eles têm acções da companhia. Por que haveriam de querer destruí-la?

Max explicou:

- Não estão tentando destruí-la, Sra.. Williams. O que procuram é criar problemas suficientes para que os banqueiros fiquem impacientes e comecem a exigir o pagamento dos seus empréstimos. Queriam com isso forçar seu pai a transformar a companhia numa sociedade aberta e vender as acções. O culpado de tudo isso ainda não conseguiu o que queria. Por isso, a sua vida continua em perigo.

- Então é preciso dar protecção a ela - disse Rhys.

Max piscou os olhos e disse:

- Não se preocupe com isso, Sr. Williams. Ela tem estado sob nossas vistas desde o dia em que se casou com o senhor.

 

Capítulo 47

Berlim. Segunda-feira, 1 de dezembro. 10 horas.

A dor era insuportável e havia semanas que ele sofria.

O médico deixara-lhe alguns comprimidos, mas Walther Gassner tinha medo de Tomá-los. Devia ficar constantemente alerta para que Anna não fizesse outra tentativa de matá-lo ou fugir.

- Deve ir para um hospital - havia dito o médico. - Perdeu muito sangue...

Era isso o que Walther absolutamente não queria. Ferimentos feitos a faca ou com instrumentos pontiagudos eram comunicados à polícia. Havia se tratado com um médico da companhia, na certeza de que ele não faria qualquer comunicação à polícia, pois Walther não podia tolerar que ela se metesse na sua vida.

Ao menos naquele momento. O médico tinha dado, em silêncio, alguns pontos no ferimento, com os olhos cheios de curiosidade.

Perguntara depois:

- Quer que mande uma enfermeira, Sr. Gassner?

- Não, minha mulher cuidará de mim.

Isso havia acontecido já fazia um mês, Walther telefonara para sua secretária e lhe dissera que devido a um acidente, iria passar algum tempo em casa.

Pensou no terrível momento em que Anna tentara matá-lo com a tesoura. Ele se havia voltado no momento exacto, e a lâmina lhe atingira o ombro em vez de acertar-lhe o coração. Quase desmaiara com a dor e o choque, mas ainda conservara a consciência o tempo suficiente para arrastar Anna para o quarto e trancá-la. E durante o Tempo ela não parara de gritar: "O que você fez com as crianças? O que você fez com as crianças?" Desde então, Walther a mantinha trancada. Preparava a comida dela.

Levava uma bandeja ao quarto de Anna, abria a porta e entrava. Ela ficava sempre encolhida num canto, com medo dele, e só vivia perguntando num sussurro: "O que você fez com as crianças?" às vezes, ele abria a porta e a encontrava com o ouvido colado à parede, procurando escutar as vozes do filho ou da filha. A casa estava vazia agora, e só os dois estavam lá dentro.

Walther sabia que havia muito pouco tempo a perder. Os seus pensamentos foram, de repente, interrompidos por um leve ruído.

Escutou. Tornou a ouvir. Alguém estava andando pelo corredor do andar de cima. Entretanto, a casa devia estar vazia. Ele mesmo fechara todas as portas.

No andar de cima, a Sra. Mendler estava arrumando a casa.

Trabalhava como faxineira e era a segunda vez que ia àquela casa. Não gostava de lá. Quando trabalhava ali na quarta-feira anterior, o Sr. Gassner a havia acompanhado, como se tivesse receio de que ela roubasse alguma coisa. Quando ela se preparava para subir, ele falara bruscamente com ela, pagara o dia e a mandara embora. Havia alguma coisa no jeito do homem que lhe metia medo.

Naquele dia, ainda não o vira, graças a Deus. A Sra. Mandler havia entrado na casa com a chave que tinha pegado na semana anterior e subido para o andar superior.

A casa estava em completo silêncio, e ela julgou que o homem tivesse saído. Já havia arrumado um dos quartos, onde não encontrara nada senão algumas moedas espalhadas e uma caixinha dourada de pílulas.

Seguiu então o corredor até o quarto vizinho e tentou abrir a porta. Estava trancada. Estranho. Talvez o homem guardasse alguma coisa de muito valor lá dentro. Forçou a maçaneta e então ouviu uma voz de mulher vinda de dentro do quarto perguntar:

- Quem é?

A Sra. Mandler recuou, assustada.

- Quem é? Quem está aí?

- Sou eu, a faxineira. Não quer que arrume seu quarto?

- Não pode entrar. Estou trancada. Socorro! Por favor, chame a polícia! Diga que meu marido matou meus filhos! Agora, vai me matar! Depressa! Saia daqui antes que ele...

Nesse momento, agarraram violentamente a Sra. Mendler pelo braço e ela se viu frente a frente com o Sr. Gassner, que estava mortalmente pálido.

- O que está espionando aqui? - perguntou ele, apertando-lhe dolorosamente o braço.

- Não estou espionando nada. Sou a faxineira e hoje é meu dia. A agência me disse...

- Eu disse à agência que não queria mais ninguém. Eu...

Procurou lembrar-se. Havia telefonado mesmo para a agência?

Pensara em fazer isso, mas sentira tantas dores que talvez tivesse esquecido...

A Sra. Mandler olhava para ele, aterrada.

- Não me disseram nada...

Ele ficou parado para ver se escutava algum barulho por trás da porta fechada. Mas o silêncio era completo.

Voltou-se para a faxineira:

- Vá embora daqui. E não volte.

A Sra. Mandler saiu o mais depressa que pôde da casa. O homem não lhe pagara o dia. Mas ela pegara a caixinha dourada de pílulas e as moedas que encontrara espalhadas pelo quarto. Tinha pena da pobre mulher trancada no quarto. Gostaria de ajudá-la, mas não queria envolver-se no caso. Tinha ficha na polícia.

Em Zurique, o detective Max Hornung lia o seguinte teletipo recebido da sede da Interpol em Paris:

"Número da factura do filme virgem usado no filme assassino vendido a Roffe and Sons não pôde ser obtido pois funcionário não trabalha mais na companhia. Estamos investigando e comunicaremos todas as informações obtidas".

Em Paris, a polícia retirava das águas do Sena o corpo nu de uma mulher de quase vinte anos, loura. Tinha uma fita vermelha amarrada no pescoço.

Em Zurique, Elizabeth Williams fora colocada sob protecção permanente da polícia.

 

Capítulo 48

A luz branca se acendeu, indicando que havia uma ligação para a linha directa de Rhys Williams. Nem meia dúzia de pessoas sabiam desse número. Pegou o telefone.

- Alo?

- Bom dia, querido.

Não era possível confundir aquela voz gutural e diferente.

- Você não devia telefonar para mim.

A mulher riu.

- Você nunca se preocupou com essas coisas. Não me diga que Elizabeth já o dominou.

- O que você quer? - perguntou Rhys.

- Quero vê-lo hoje à tarde.

- Impossível!

- Olhe que eu me zango, Rhys. Quer que eu vá até Zurique?

- Não, não posso vê-la aqui... Está bem. Irei até aí.

- Assim, sim. No lugar do costume, chéri.

E Hélène Roffe-Martel desligou.

Rhys colocou o fone no gancho e ficou pensando. Para Rhys, não tinha passado de um breve caso puramente sexual com uma mulher interessante, mas estava encerrado havia algum tempo.

Mas Hélène não era mulher que pudesse ser abandonada com facilidade. Ela estava cansada de Charles e queria Rhys: "Você e eu formamos um par perfeito", dizia, e Hélène Roffe-Martel podia ser muito determinada e extremamente perigosa. Rhys chegou à conclusão de que a viagem a Paris era necessária.

Tinha de fazê-la compreender de uma vez por todas que não podia haver mais nada entre eles.

Momentos depois, entrou na sala de Elizabeth, e os olhos dela faiscaram. Abraçou-o e disse:

- Estava pensando em você. Vamos para casa e trataremos de ter uma folga pelo resto do dia.

Ele sorriu.

- Você está ficando maníaca em matéria de sexo.

Ela se aconchegou a ele.

- Sei disso. E não é bom?

- Infelizmente, tenho de tomar o avião para Paris hoje à tarde, Liz.

Ela procurou dissimular a sua decepção e perguntou:

- Devo ir com você?

- Não é o caso, Liz. Há um pequeno problema que eu tenho de resolver pessoalmente. Estarei de volta à noite. Jantaremos um pouco mais tarde.

Quando Rhys entrou no pequeno hotel da River Gauche, que conhecia tão bem, já encontrou Hélène à espera dele. Era organizada e eficiente, extraoordinariamente bela, inteligente e maravilhosa amante. Faltava-lhe, no entanto, alguma coisa.

Hélèn era uma mulher sem compaixão. Havia nela intensa crueldade, um verdadeiro instinto assassino. Rhys já vira outros massacrados por ela, e não tinha a intenção de se tornar uma de suas vítimas. Sentou-se diante dela.

- Você está com muito bom aspecto, meu querido. É evidente que está se dando bem com o casamento. Elizabeth tem sido satisfatória para você na cama?

Ele sorriu para atenuar a rudeza do que ia dizer.

- Não é da sua conta.

Ela se curvou para a frente e segurou uma das mãos dele.

- Ah, é, sim, cheri. É da nossa conta.

Começou a acariciar-lhe a mão, e ele pensou nela na cama.

Parecia um tigre, selvagem, à espreita e insaciável. Rhys afastou a mão.

Os olhos de Hélène ficaram frios.

- Escute, Rhys. Como é ser presidente da Roffe and Sons?

Ele quase havia esquecido o quanto ela era ambiciosa.

Lembrou-se das longas conversas que já haviam tido. Ela alimentava a obsessão de dominar a companhia. Você e eu, Rhys.

Se Sam estivesse fora do caminho, nós dois poderíamos dirigir a companhia.

Até nos momentos mais arrebatadores de amor ela murmurava: A companhia é minha, meu bem. Tenho nas veias o sangue de Samuel Roffe. A companhia é minha. Eu a quero.

Foda-me, é minha. Eu a quero. Foda-me, Rhys.

O poder era o afrodisíaco de Hélène. O perigo também.

- O que você quer comigo, Hélène?

- Acho que já está na hora de nós dois fazermos alguns planos.

- Não sei do que você está falando.

- Eu o conheço bem, Rhys. Você é ainda mais ambicioso do que eu. Por que acompanhou Sam como uma sombra quando teve óptimas propostas para dirigir outras companhias?

Sabia muito bem que um dia iria dirigir a Roffe and Sons.

- Fiquei porque gostava de Sam.

- É claro, chéri - disse ela, rindo. - E hoje está casado com a filhinha encantadora dele.

Tirou um cigarro da bolsa e acendeu-o com um isqueiro de platina.

- Charles me disse que Elizabeth mantém o controle accionário da companhia e ainda se recusa a abrir mão dele.

- É verdade, Hélène.

- Naturalmente, já deve ter pensado que, se ela sofrer um acidente, você herdará tudo, não é?

Rhys olhou demoradamente para ela.

 

Capítulo 49

Ivo Palazzi estava em sua casa, em Olgiata, e olhava pela janela quando viu uma coisa simplesmente horripilante.

Donatella e os três garotos vinham chegando pela entrada de carros. Simonetta estava no andar de cima, cochilando.

Ivo saiu às pressas ao encontro de sua segunda família. Estava com tanta raiva que tinha vontade de matar. Tinha sido tão bom, tão amigo, tão carinhoso para com aquela mulher, e a recompensa que ela lhe dava era a tentativa deliberada de destruir-lhe a carreira, o casamento e a vida. Viu Donatella saltar do Lancia Flava que ele tão generosamente lhe dera Para dizer a verdade, ela nunca lhe parecera tão bela quanto aquele instante. Os garotos saltaram também para abraçá-lo e beijá-lo.

Ivo sentiu que os amava demais. Desejava apenas que Simonetta não acordasse naquele momento.

- Vim falar com sua mulher - disse cerimoniosamente Donatella,. - Vamos entrar, garotos.

- Não! - ordenou Ivo.

- Como você vai impedir? Se eu não falar com ela hoje, falarei amanhã.

Ivo estava imprensado contra a parede e não via saída. Sabia, porém, que não podia deixar que ninguém lhe destruísse aquilo que lhe custava tanto a construir. Ivo se considerava um homem de bem e detestava o que tinha de fazer. Mas era preciso, não só por ele, mas por Simonetta, por Donatella e por todos os seus filhos.

- Eu lhe darei seu dinheiro - disse a Donatella. - Daqui a cinco dias.

- Está bem. Cinco dias - disse Donatella, com os olhos fixos nele.

Em Londres, Sir Alec Nichols estava tomando parte num debate na Câmara dos Comuns. Fora escolhido para fazer um importante discurso político a respeito das repetidas greves que estavam desarticulando a economia britânica. Tinha, porém, dificuldades de concentrar-se. Pensava na série de telefonemas que recebera naquelas últimas semanas. Conseguiam encontrá-lo onde quer que ele estivesse: no clube, no barbeiro, nos restaurantes, em reuniões comerciais. Alec sempre desligava sem dizer uma palavra. Sabia o que estavam querendo era apenas o começo. Depois que o tivessem sob controle, achariam um jeito de apoderar-se das suas acções e deteriam então

uma parcela da gigantesca indústria farmacêutica que fabricava drogas de todas as espécies. No início, telefonavam-lhe quatro ou cinco vezes por dia, até que os seus nervos ficaram em petição de miséria.

O que preocupava Alec naquele dia era não ter recebido ainda qualquer telefonema. Havia esperado o telefonema de manhã na hora do café e, mais tarde, quando almoçava no White's. Mas ninguém lhe telefonara, e ele não podia livrar-se da idéia de que aquele silêncio era mais sinistro que todas as ameaças.

Procurou, entretanto, esquecer-se de tudo ao ocupar a tribuna da Câmara.

"Ninguém é mais amigo dos trabalhadores do que eu. Nossa força de trabalho é que dá a grandeza ao país. Os trabalhadores alimentam as nossas usinas e movem as nossas fábricas. São a verdadeira elite do país, a espinha dorsal que torna a Inglaterra alta e forte entre as nações." Fez uma pausa e continuou: "Há todavia períodos na vida de toda a nação em que é preciso fazer sacrifícios..." Falava mecanicamente, pensando todo o tempo se a sua atitude teria afugentado os chantagistas. Afinal

de contas, não passavam de chantagistas vulgares. E ele era Sir Alec Nichols, baronete e membro do Parlamento. Nada poderiam fazer contra ele.

Com toda a certeza, tinham desistido de vez. Daí por diante, deixá-lo-iam em paz.

Terminou seu discurso entre aplausos entusiásticos do plenário.

Já ia saindo quando um funcionário se aproximou dele.

- Tenho um recado para o senhor, Sir Alec.

- Que é?

- Deve ir para casa o mais depressa possível. Houve um acidente.

Estavam levando Vivian para uma ambulância quando Alec chegou a casa. Havia um médico ao lado dela. Alec parou o carro junto ao meio-fio e saiu correndo, mas parou de repente. Olhou para o rosto inconsciente de Vivian e perguntou ao médico:

- O que houve?

- Não sei, Sir Alec. Recebi um telefonema anónimo que falava de um acidente. Quando cheguei, encontrei Lady Nichols caída no quarto com as rótulas perfuradas por dois regos cravados no chão.

Alec fechou os olhos, lutando contra o acesso de náusea que o invadia. Sentia a bile subir-lhe à garganta.

- Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance. Mas convém que prepare o espírito para uma coisa: talvez ela nunca mais possa andar.

Alec sentia dificuldades de respirar. Encaminhou-se para a ambulância.

- Ela está sob o efeito de um sedativo bem forte - disse o médico. Não poderá reconhecê-lo.

Alec subiu para a ambulância e se sentou num banco ao lado da mulher, sem ver as portas se fecharem e sem ouvir o silvo da sirene logo que o veículo começou a mover-se.

Segurou as mãos frias de Vivian.

- Alec - murmurou ela, abrindo os olhos.

Os olhos de Alec ficaram cheios de lágrimas.

- Oh, minha querida...

- Dois homens mascarados... me agarraram... quebraram minhas pernas... Nunca mais poderei dançar... Vou ficar aleijada...

Você me quer assim mesmo, Alec?

Ele encostou a cabeça no ombro dela e chorou. Eram lágrimas de desespero e de agonia e de mais alguma coisa que ele hesitava em reconhecer. Havia uma espécie de angustiado conforto no seu sentimento. Se Vivian ficasse aleijada, ele poderia cuidar dela com todo o carinho e ela não o deixaria por mais ninguém...

Alec sabia, porém, que os seus problemas não estariam terminados. Os inimigos ainda não deviam estar satisfeitos.

Aquilo era apenas um aviso. A única maneira de livrar-se deles era dar-lhes o que queriam.

O mais depressa possível.

 

Capítulo 50

Zurique. Quinta-feira, 4 de dezembro.

Era exactamente meio-dia quando a ligação chegou à mesa telefónica da sede da Polícia Criminal em Zurique. O telefonema foi encaminhado ao inspector-chefe Schmied e quando acabou de falar, mandou chamar o detective Max Hornung.

- Está tudo acabado - disse ele a Max. - O caso Roffe está resolvido. Já encontraram o assassino. Pode ir para o aeroporto. Tem o tempo exacto para pegar o avião.

- E para onde eu vou? - perguntou Max.

- Para Berlim.

O inspector-chefe Schmied telefonou para Elizabeth Williams.

- Tenho boas notícias para lhe dar. Não tem mais necessidade de protecção da polícia. O assassino foi capturado.

Elizabeth segurava nervosamente o telefone. Ia afinal saber o nome do seu implacável inimigo.

- Quem é ele, inspector?

- Walther Gassner.

Iam em alta velocidade pela Autobahn, em direcção a Wannsee.

Max ia no banco de trás, em companhia do major Wageman. Dois detectives estavam no banco da frente. Tinham ido esperar Max no aeroporto de Tempelhof, e o major Wageman havia explicado a situação. A casa estava cercada, mas deviam agir com cuidado, pois a esposa de Gassner estava detida por ele como refém.

- Como descobriram que Walther Gassner é o culpado? perguntou Max.

- Graças ao senhor. Foi por isso que pensamos que gostaria de estar presente à captura.

- Graças a mim?

- Falou-me do psiquiatra a quem ele foi consultar. Baseado nisso, mandei a descrição de Gassner a outros psiquiatras e apurei que ele consultou uma meia dúzia deles.

Usava cada vez um nome diferente e então desaparecia. Sabia que estava doente.

A mulher dele nos telefonou pedindo socorro alguns meses antes.

Mandamos um dos nossos homens até lá, mas ela o despistou com evasivas. Hoje de manhã, recebemos um telefonema de uma faxineira, a Sra. Mandler. Disse-me que tinha ido trabalhar na casa de Gassner na segunda-feira e que falou com a mulher dele através da porta fechada de um quarto. A Sra. Gassner disse a ela que o marido matara os dois filhos do casal e pretendia matá-la.

Max piscou os olhos.

- Isso aconteceu na segunda-feira? E a tal mulher só telefonou para a polícia hoje?

- A Sra. Mandler tem uma longa ficha de contravenções e teve receios de nos procurar. Ontem à noite, discutiu o caso com o companheiro dela, e os dois resolveram falar.

Haviam chegado a Wannsee. Pararam o carro a alguma distância da casa de Gassner, atrás de uma sebe. Um homem saiu do carro e dirigiu-se ao encontro do major Wageman e Max.

- Ele ainda está na casa, major. Os meus homens estão cercando tudo.

- Sabe se a mulher ainda está viva?

- Não dá para ver. Todas as cortinas estão fechadas.

- Muito bem. Vamos avançar com rapidez e silêncio. Dentro de cinco minutos.

O homem saiu às pressas. O major Wageman tirou do carro um pequeno aparelho-transmissor. Começou então a dar ordens. Max não o estava escutando. Pensava em alguma coisa que o major Wageman lhe dissera havia poucos minutos e que não fazia sentido.

Mas não havia tempo de falar sobre isso. Os homens estavam começando a avançar para a casa, escondendo-se por trás das árvores e arbustos.

- Vamos Hornung? - disse o major Wageman.

Max teve a impressão de que havia um verdadeiro exército a infiltrar-se pelo jardim. Alguns deles portavam fuzis de mira telescópica e couraças blindadas. Outros carregavam metralhadoras portáteis e bombas de gás lacrimogéneo. A operação foi executada com precisão matemática. A um sinal do major Wageman, as bombas de lacrimogéneo foram lançadas através das janelas dos dois andares da casa. No mesmo instante, as portas da frente e dos fundos foram arrombadas por homens que usavam máscaras contra gás. Foram seguidos por um enxame de detectives de pistola em punho.

Quando o major Wageman e Max entraram na casa pela porta da frente, encontraram o hall ainda cheio da acre fumaça, que, entretanto, começava a dissipar-se pelas janelas abertas. Dois detectives aparecem com Walther Gassner algemado. Estava de pijama e robe. Tinha a barba crescida, o rosto abatido e os olhos vermelhos.

Max olhou para ele. Era a primeira vez que o via pessoalmente. Pareceu-lhe de certo modo irreal. O outro Walther Gassner é que era real, o homem do computador, cuja

vida fora retractada em algarismos. Qual deles era a sombra e qual era o real?- Está preso, Sr. Gassner - disse o major Wageman. - Onde está sua esposa?

Walther Gassner respondeu com voz rouca:

- Não está aqui... Desapareceu...

Ouviu-se no andar de cima o barulho de uma porta sendo forçada. Um detective gritou então do alto:

- Encontrei-a. Estava trancada no quarto.

Em seguida, o detective apareceu na escada, apoiando Anna Gassner, que tremia. Estava desgrenhada e soluçava.

- Graças a Deus, vieram! - exclamou ela. - Graças a Deus!

O detective levou-a delicadamente para o grupo reunido no hall. Quando Anna viu o marido, começou a dar gritos.

- Tudo está bem agora, Sra. Gassner - disse o major Wageman.

- Ele não pode fazer-lhe nada mais.

- Meus filhos! - exclamou ela. - Ele matou meus filhos.

Max estava observando o rosto de Walther Gassner, que olhava para a mulher com uma expressão de completo desalento. Parecia esgotado e exausto.

- Anna... Anna... - murmurou.

O major Wageman disse.

- Tem o direito de ficar calado ou de chamar um advogado.

Para seu próprio bem, espero que coopere connosco.

Walther não o estava escutando.

- Por que você tinha de chamá-los, Anna? Por quê? Não éramos felizes juntos?

- As crianças estão mortas! - gritou Anna Gassner.

O major Wageman olhou para Walther Gassner e perguntou:

- É verdade?

Walther fez um sinal afirmativo, e os seus olhos pareciam velhos e abatidos.

- Sim... Estão mortas.

- Pode dizer-nos onde estão os corpos?

Walther Gassner estava chorando. As lágrimas desciam-lhe pelo rosto, e ele não conseguia falar.

- Onde estão as crianças? - tornou a perguntar o major Wageman.

Foi Max quem respondeu:

- As crianças estão enterradas no cemitério de Saint Paul.

Todos se voltaram para olhá-lo, e Max explicou:

- Morreram ao nascer, há cinco anos.

- Assassino! - gritou Anna Gassner para o marido.

E todos viram a loucura brilhando nos olhos dela.

 

Capítulo 51

Zurique. Quinta-feira, 4 de dezembro. 0 horas.

A noite fria de inverno havia caído, apagando o breve crepúsculo. Começava a nevar, e um manto de fina poeira branca se estendia sobre a cidade. No edifício da administração da Roffe and Sons, as luzes dos escritórios desertos brilhavam na escuridão com luas amarelas.

Elizabeth estava trabalhando sozinha em sua sala, esperando por Rhys, que fora participar de uma reunião em Genebra. Estava ansiosa por sua volta. Todo mundo já deixara havia muito o edifício. Elizabeth sentia-se nervosa e incapaz de concentrar-se. Não conseguia deixar de pensar em Walther e Anna. Lembrava-se de Walther

tal como conhecera, jovem e belo, loucamente apaixonado por Anna. Apaixonado ou fingia que estava. Era muito difícil acreditar que Walther fosse responsável por todos aqueles terríveis actos. Pensava em Anna com grande ternura. Tentara várias vezes, sem resultados, falar com ela pelo telefone. Logo que pudesse, iria até Berlim para confortá-la da melhor forma possível.

A campainha do telefone assustou-a. Atendeu. Alec estava do outro lado da linha, e Elizabeth teve prazer em ouvir a voz dele.

- Já soube de Walther? - perguntou Alec.

- Já. É horrível. Nem posso acreditar.

- Não acredite mesmo, Elizabeth.

Ela pensou que não tivesse ouvido bem.

- Como?

- Não acredite. Walther não é culpado.

- Mas a polícia disse...

- A polícia errou. Walther foi a primeira pessoa que eu e Sam investigamos. Foi liberado por nós. Não era o homem que estávamos procurando.

Elizabeth sentiu-se mergulhar em completa confusão. "Não era o homem que estávamos procurando"...

- Não compreendo o que está falando, Alec.

- É difícil dizer essas coisas pelo telefone, mas ainda não tive oportunidade de falar com você sozinha.

- Falar comigo de quê?

- Desde o ano passado, alguém vem sabotando a companhia.

Houve uma explosão numa de nossas fábricas na América do Sul, houve roubos de patentes, e drogas perigosas foram trocadas de embalagem. Não tenho tempo agora de lhe relatar tudo o que houve. Mas fui procurar Sam e lhe sugeri que contratasse uma agência particular para encontrar o culpado. Combinamos não falar sobre isso com mais ninguém.

Foi como se a terra se tivesse aberto aos pés de Elizabeth.

Era Alec que falava pelo telefone, mas a voz que ela ouvia era a de Rhys, a dizer-lhe a mesma coisa, a afirmar-lhe que tinha discutido o caso com Sam e que tinham resolvido contactar uma agência particular.

Alec prosseguiu:

- Quando a agência concluiu o relatório, Sam o levou para Chamonix e nós o discutimos pelo telefone.

Rhys havia dito que Sam o chamara a Chamonix para discutir o relatório e que tinham resolvido manter o segredo entre os dois até descobrirem o culpado.

Elizabeth estava com dificuldade para respirar. Procurou normalizar a voz e perguntou:

- Quem mais sabia desse relatório, Alec, além de Sam e você?

- Mais ninguém. Isso era da maior importância. O relatório indicava que o culpado era alguém que ocupava uma posição bem alta na administração da companhia.

Rhys não havia dito que estivera em Chamonix até o detective mencionar o facto...

Perguntou então, arrancando a custo as palavras da garganta:

- Acha que Sam disse alguma coisa a Rhys?

- Não. Por quê?

Havia somente uma maneira de Rhys saber o que estava no relatório. Tinha-o roubado. Havia somente um motivo para ele ter ido a Chamonix. Matar Sam.

Elizabeth não ouviu o resto das palavras de Alec. O zumbido em seus ouvidos abafava todas as palavras. Deixou cair o gancho, com a cabeça a rodar, lutando contra o horror que ia lhe invadindo a alma. Sentia na cabeça um tumulto de imagens caóticas. Por ocasião do acidente com o jipe, mandara dizer a Rhys que ia para a Sardenha.

Na noite da queda do elevador, Rhys não tinha ido à reunião de directoria, mas aparecera depois, quando ela e Kate estavam trabalhando sozinhas. Logo depois, deixara o edifício. Ou não tinha deixado? Elizabeth tremia da cabeça aos pés. Tudo aquilo era um tremendo equívoco. Não podia ser Rhys! Todo o seu ser se insurgia contra isso. Não! Era o grito angustiado do seu coração.

Levantou-se e, com as pernas trôpegas, passou pela porta que ligava a sua sala à de Rhys. A sala estava às escuras. Acendeu as luzes e ficou parada, indecisa, sem saber o que esperava encontrar. Não ia procurar provas que incriminassem Rhys, mas, sim, provas de sua inocência. Era intolerável pensar que o homem que ela amava, o homem que a tivera cheia de amor nos braços, fosse uma assassino insensível.

Havia uma agenda de compromissos em cima da mesa de Rhys.

Elizabeth folheou-a, à procura do fim de semana em setembro, quando ocorrera o acidente com o jipe. Naquela data estava marcada a viagem a Nairobi. Teria de examinar o passaporte dele para verificar se fora mesmo para lá. Começou a procurar o passaporte, sentindo-se culpada e certa de que haveria uma explicação que o inocentasse.

Uma das gavetas estava trancada. Elizabeth hesitou. Sabia que não tinha o direito de abri-la. Seria um abuso de confiança, a violação de uma fronteira proibida de que não poderia mais redimir-se. Rhys saberia que ela tinha feito aquilo, e ela teria de explicar-lhe tudo. Mas, apesar de tudo, tinha de saber.

Abriu a gaveta com uma espátula e encontrou uma pilha de papéis, notas e memorandos. Pegou tudo. Encontrou um envelope endereçado a Rhys com uma letra de mulher.

Tinha o carimbo de Paris e datada de poucos dias. Elizabeth hesitou um momento e abriu a carta. Era de Hélène e começava assim:

"Chéri, não consegui falar com você pelo telefone. É urgente que nos encontremos de novo para assentarmos os nossos planos..." Elizabeth não acabou de ler a carta.

Estava a olhar para o relatório roubado, no fundo da gaveta.

Sr. Sam Roffe confidencial sem cópias Elizabeth sentiu a sala girar em torno dela e teve de apoiar-se na mesa para não cair. Ficou ali muito tempo, com os olhos fechados, esperando a vertigem passar. O assassino já tinha um rosto. Era o rosto de seu marido.

O silêncio foi quebrado pelo toque insistente de um telefone distante. A Elizabeth custou muito a identificar de onde vinha o som. Por fim, voltou a passos lentos para sua sala e pegou o telefone.

Era o porteiro do térreo.

- Só queria saber se ainda estava aí, Sra. Williams. Seu marido já vai subir.

Vai preparar outro acidente!

A vida dela era o único obstáculo que separava Rhys do controle total da Roffe and Sons. Não podia enfrentá-lo, não podia fingir que nada havia acontecido. No momento em que ele a visse, saberia de tudo.

Tinha de fugir. Atordoada pelo medo, Elizabeth pegou a bolsa e cassaco e saiu correndo do escritório. De repente, parou.

Tinha se esquecido do passaporte. Tinha de fugir de Rhys, ir para algum lugar onde ele não pudesse encontrá-la. Abriu apressada a gaveta, pegou o passaporte e saiu pelo corredor, com o coração a bater como se fosse estourar. O elevador privativo estava subindo...

Oito... nove... dez.....

Elizabeth começou a descer as escadas às carreiras, para salvar a vida.

 

Capítulo 52

Havia uma balsa entre Civitavecchia e a Sardenha. Elizabeth subiu para bordo dirigindo um carro alugado, perdido entre dúzias de outros carros. Os aeroportos podem ter registos de passageiros, mas a grande balsa era anónima. Elizabeth era apenas uma das muitas pessoas que faziam a travessia para a Sardenha em busca de um pouco de lazer. Tinha certeza de que não fora seguida, mas isso não a impedia de sentir um medo absurdo. Rhys tinha ido muito longe, e não podia mais recuar diante de alguma coisa. Ela só podia desmascará-lo, e, sobretudo por isso, ele teria de livrar-se dela.

Quando fugira do edifício, não fazia idéia do lugar para onde iria. Sabia apenas que devia sair de Zurique e esconder-se, mas tinha certeza de que não estaria em segurança enquanto Rhys não fosse apanhado. A Sardenha foi o primeiro lugar em que pensou.

Alugou um carro e, no meio da estrada, na Itália, tentou telefonar para Alec. Não o encontrou. Deixou recado para que ele telefonasse para a Sardenha. Não conseguiu também falar com o detective Max Hornung e deixou o recado para ele. Iria para a Villa na Sardenha, mas desta vez não estaria sozinha, pois teria a polícia para protegê-la.

Quando a balsa chegou a Olbia, Elizabeth viu que não seria necessário procurar a polícia. Esta a esperava no cais, na pessoa de Bruno Campagna, o detective que ela conhecera em companhia do delegado Ferraro. Fora Campagna quem a levara para ver o jipe na garagem depois do acidente. O detective correu para o carro de Elizabeth.

- Já estava nos causando preocupações, Sra. Williams - disse ele.

Elizabeth olhou-o surpresa, e Campagna explicou:

- Recebemos um telefonema da polícia suíça, pedindo que a vigiássemos. Temos homens apostos em todos os cais de balsa e aeroportos.

Elizabeth sentiu-se cheia de gratidão. Max Hornung recebera o seu recado.

- Quer que eu dirija o carro? - perguntou o detective Campagna, vendo como Elizabeth estava abatida.

- Quero, sim. Muito obrigada.

Sentou-se no banco de trás, e o detective tomou posição no volante.

- Para onde prefere ir e esperar? Para a delegacia ou para a sua Villa?

- Para a Villa, se alguém puder ficar lá comigo. Não quero ficar sozinha lá em cima.

- Não se preocupe. Temos ordens de vigiá-la bem. Passarei a noite na Villa e, além disso, teremos um carro equipado com rádio estacionado na entrada. Ninguém poderá aproximar-se da senhora.

O detective falava com tanta confiança que Elizabeth ficou tranquilizada. Campagna dirigiu o carro com rapidez e segurança, deixando as pequenas ruas de Olbia para tomar a estrada de montanha que levava para a Costa Esmeralda. Todos os lugares por onde passavam faziam Elizabeth lembrar-se de Rhys.

Perguntou então:

- Há alguma notícia do meu marido?

- Ainda não - disse Campagna, depois de lançar-lhe um olhar de compaixão. - Ainda está solto, mas não poderá ir longe.

Esperam capturá-lo até amanhã cedo.

Elizabeth sabia que devia sentir alívio ao ouvir isso, mas uma dor cruciante lhe atingiu o coração. Era de Rhys que estavam falando. Era o seu Rhys que estava sendo caçado como um animal. Ele a arrojara àquele terrível pesadelo e naquele momento estava também vivendo um pesadelo, lutando para salvar a vida como ela havia feito.

E como havia confiado nele! Como acreditara na bondade, na rectidão e no amor de Rhys!

Estremeceu, e o detective Campagna lhe perguntou:

- Está sentindo frio?

- Não, estou bem.

Sentiu-se até febril. Um vento quente parecia passar silvando pelo carro, fazendo-a ficar nervosa. Pensou a princípio que era sua imaginação, mas o detective Campagna disse:

- O siroco vai soprar com força esta noite. Vai ser uma noite muito agitada.

Elizabeth compreendia o que ele queria dizer. O siroco podia alucinar homens e animais. Era um vento que vinha do Saara, quente, seco e carregado de partículas de areia, com um macabro silvo agudo que tinha efeito terrivelmente desastroso sobre o sistema nervoso. O índice de criminalidade sempre subia quando soprava o siroco, e os juizes costumavam ser complacentes com os acusados.

Uma hora depois a Villa surgiu da escuridão à frente deles.

O detective Campagna seguiu pela entrada de carros, parou diante da porta da casa e desligou o motor. Depois, deu a volta em torno do carro e abriu a porta do lado de Elizabeth.

- Seria bom que ficasse bem junto de mim, Sra. Williams.

Ninguém sabe o que pode acontecer.

- Está bem.

Encaminharam-se para a porta da frente da Villa às escuras.

- Tenho certeza de que ele não está aqui, mas não vou facilitar. Quer me dar a chave?

Elizabeth entregou-lhe a chave. O detective fê-la chegar um pouco para o lado e abriu a porta com a pistola em punho.

Entrou e ligou o interruptor. O hall ficou todo iluminado.

- Gostaria que me mostrasse a casa - disse o detective Campagna. - Temos de olhar tudo.

Começaram a percorrer a casa, e o detective Campagna ia acendendo a luz em todas as peças. Revistava os armários e os cantos e examinava se as janelas estavam bem fechadas. Quando voltaram à grande sala do térreo, Campagna disse:

- Agora, se me dá licença, vou telefonar para a delegacia.

- Está bem - disse Elizabeth, levando-o para o escritório.

Campagna pegou o telefone e discou. Um momento depois, disse:

- Fala o detective Campagna. Estamos na Villa. Vou passar a noite aqui. Mandem um carro da patrulha para ficar estacionado na entrada da Villa... Sim, ela está muito bem. Apenas um pouco cansada. Mais tarde, telefonarei de novo.

Elizabeth deixou-se cair numa poltrona. Estava muito nervosa e sabia que no dia seguinte iria ser pior, muito pior. Ela estaria em segurança, mas Rhys poderia estar morto ou jogado numa prisão. Fosse como fosse, apesar de tudo o que ele havia feito, essa idéia era intolerável.

O detective Campagna olhava-a com um ar de preocupação.

- Sabe que eu gostaria de uma xícara de café agora? E a senhora?

- Vou fazer - disse Elizabeth, fazendo menção de levantar-se.

- Nada disso. Fique onde está. Minha mulher diz que ninguém faz café como eu.

Elizabeth sorriu e tornou a recostar-se na poltrona. Não percebera até então como estava emocionalmente esgotada. Pela primeira vez, reconhecia que, mesmo durante a conversa pelo telefone com Alec, julgara que devia haver algum engano e que Rhys era inocente. Ainda durante a fuga, alguma coisa em seu coração lhe dizia que não era possível que ele tivesse feito aquelas coisas terríveis, que tivesse matado Sam, que a tivesse amado e, apesar disso, quisesse matá-la. Só um monstro seria capaz de fazer tudo aquilo. E, graças a isso, uma pequena luz de esperança brilhava dentro dela. Quase morrera quando o detective dissera que ele não podia ir muito longe e estaria preso até o dia seguinte.

Era muito doloroso pensar em tudo isso, mas ela não podia pensar em mais nada. Desde quando Rhys planeava apoderar-se da companhia? Com certeza, desde o momento em que conhecera numa escola da Suíça uma impressionável mocinha solitária de quinze anos. Decidira, naquele momento, que iria lograr Sam por intermédio da filha

dele. Tudo fora muito fácil para ele. O jantar no Maxim's, as longas conversas amistosas através dos anos e o encanto, o irresistível encanto de Rhys. Fora muito paciente. Esperava até que ela se tornasse uma mulher, e o mais revoltante de tudo era que Rhys não se dera ao trabalho de fazer-lhe a corte. Ela lhe facilitara tudo, e como ele devia ter rido! Pensou em Hélène. Estaria ela metida também em toda essa trama suja? Onde estaria Rhys? Seria morto pela polícia quando fosse encontrado?

Começou a chorar inconsolavelmente.

- Sra. Williams...

O detective Campagna estava do lado dela com uma xícara de café.

- Tome o café e se sentirá melhor.

- Desculpe - disse Elizabeth. - Não costumo proceder assim...

- Ora essa! Acho que está reagindo muito bem.

Elizabeth tomou um gole de café. Ele havia acrescentado alguma coisa. Olhou para o detective e ele sorriu.

- Achei que um gole de uísque no café não lhe faria mal algum.

Sentou-se perto dela em silêncio. O homem era uma boa companhia. Jamais conseguiria ficar ali sozinha. Tinha de saber antes o que acontecera a Rhys, se ele estava preso ou fora morto. Acabou de tomar o café.

O detective Campagna olhou para o relógio e disse:

- O carro da patrulha deve chegar a qualquer momento. Dois homens ficarão vigiando tudo a noite inteira. Eu vou ficar aqui embaixo. Não me leve a mal, mas acho melhor a senhora subir e procurar dormir um pouco.

- Eu não conseguiria dormir - murmurou Elizabeth.

Mas no mesmo instante em que disse isso um imenso cansaço a dominou. A longa viagem e a tensão sob a qual estava vivendo começavam a ter efeito sobre ela.

- Em todo o caso, vou me deitar um pouco.

Tinha dificuldade em articular as palavras.

Elizabeth estava deitada na cama, lutando contra o sono. Não lhe parecia direito dormir enquanto Rhys estava sendo caçado.

Imaginou-o abatido a tiros em alguma rua escura e sentiu um arrepio pelo corpo. Procurou manter os olhos abertos, mas as pálpebras lhe pesavam terrivelmente. Quando fechou os olhos, sentiu-se escorregar sem esforço no brando colchão do nada.

Algum tempo depois, ela foi acordada por gritos.

 

Capítulo 53

Elizabeth sentou-se na cama com o coração a bater descompassadamente e sem saber o que a acordara. Tornou a ouvir. Era um grito lúgubre e longo, como alguém que estivesse morrendo. Parecia vir da janela. Elizabeth correu para a janela e abriu-a. A noite, iluminada por uma fria lua de inverno, parecia uma paisagem de Daumier.

As árvores escuras eram sacudidas por um vento impetuoso. ao longe, muito abaixo, o mar se encapelava.

Ouviu de novo o grito. Compreendeu então o que era. As rochas cantantes. O siroco estava forte e soprava pelos rochedos, produzindo aquele som, que era quase um grito de socorro humano. Identificou-o sem demora com a voz de Rhys chamando por ela, pedindo a sua ajuda. Desvairada, tapou os ouvidos com as mãos, mas não deixou de escutar.

Foi até a porta do quarto e ficou espantada de ver como estava fraca. A exaustão lhe toldava as idéias. Saiu para o corredor e começou a descer as escadas. Tentou chamar o detective Campagna, mas da garganta só lhe saiu um fio de voz.

Desceu agarrando-se ao corrimão para não cair.

Conseguiu levantar a voz e chamar o detective Campagna. Não houve resposta. Foi de sala em sala, agarrando-se aos móveis.

O detective Campagna não estava em casa.

Ela estava sozinha.

Ficou parada no hall, completamente confusa, tentando raciocinar. O detective havia saído um instante para falar com os homens da patrulha. Sem dúvida. Foi até a porta da frente, abriu-a e olhou para fora.

Não viu ninguém. Só a noite escura e o vento gemente. Com um sentimento crescente de medo, encaminhou-se para o escritório.

Ia telefonar para a delegacia de polícia e saber o que acontecera.

Pegou o telefone e percebeu que estava inteiramente mudo.

Foi nesse momento que todas as luzes da casa se apagaram.

 

Capítulo 54

Em Londres, no Hospital Westminster, Vivian Nichols recobrava a consciência ao ser levada da sala de operações pelo longo corredor sombrio. A operação havia durado oito horas. Apesar de tudo o que haviam feito os competentes cirurgiões, ela nunca mais poderia andar. Quando acordou, sentia terríveis dores e murmurava sem cessar o nome de Alec. Precisava dele a seu lado dizendo-lhe que não deixaria de amá-la.

O pessoal do hospital não conseguiu encontrar Sir Alec.

Em Zurique, na sala de comunicações da Polícia Criminal, era recebida uma mensagem da Interpol procedente da Austrália. O homem que comprara o filme para a Roffe and Sons fora descoberto em Sydney. Tinha morrido de um ataque cardíaco três dias antes. As suas cinzas iam ser mandadas para a Inglaterra.

A Interpol não conseguira mais nenhuma informação sobre a compra do filme e aguardava instruções.

Em Berlim, Walther Gassner estava sentado na sala de espera de um sanatório particular, nos arredores da cidade. Estava ali havia quase dez horas. De vez em quando, uma enfermeira parava e conversava com ele, oferecendo-lhe alguma coisa para comer.

Walther nem sequer ouvia a enfermeira. Estava esperando a sua Anna.

Seria uma espera muito longa.

Em Olgiata, Simonetta Palazzi estava ouvindo uma mulher dizer pelo telefone:

- Meu nome é Donatella Spolini. Nunca a vi, Sra. Palazzi, mas nós duas temos muita coisa em comum. Quer almoçar comigo amanhã no Bolognese, na Piazza de Popolo?

A uma hora da tarde, está bem?

Simonetta tinha hora marcada no salão de beleza, mas adorava mistérios.

- Como poderei reconhecê-la?

- Meus três filhos estarão comigo.

Em sua Villa em Le Vésinet, Hélène estava lendo uma carta que encontrara no consolo da lareira. Era de Charles, que tinha fugido e a deixara. Dizia ele: "Nunca mais me verá. Não tente procurar-me". Hélène Roffe-Martel rasgou a carta em pedacinhos.

Iria vê-lo de novo. Iria encontrá-lo.

Em Roma, Max Hornung encontrava-se no aeroporto Leonardo da Vinci. Estava tentando havia duas horas falar pelo telefone com a Sardenha, mas as comunicações estavam todas interrompidas, e ele foi conversar de novo com o gerente de operações do aeroporto.

- Tem de me conseguir um avião que me leve até a Sardenha dizia ele. Acredite no que estou lhe dizendo. É uma questão de vida ou morte.

- Acredito piamente, signore, mas nada posso fazer. Não se pode chegar à Sardenha. Os aeroportos estão fechados. Até as balsas deixaram de operar. Só depois que o siroco parar, será possível aproximar-se da ilha ou sair de lá.

- E quanto tempo o siroco vai durar?

O gerente olhou para o mapa meteorológico na parede.

- Parece que ainda vai durar no mínimo doze horas.

Elizabeth Williams não estaria viva daí a doze horas.

 

Capítulo 55

A escuridão era hostil, cheia de inimigos invisíveis à espreita para atacá-la. E Elizabeth compreendia que estava à mercê desses inimigos. O detective Campagna levara-a para a Villa a fim de que ela fosse assassinada. Devia estar a serviço de Rhys. Lembrava-se de Max Hornung ter dito ao explicar a troca dos jipes que o assassino tivera ajuda de alguém que conhecia bem a ilha. Como o tal Campagna tinha sido convincente! Rhys sabia que ela procuraria esconder-se na Villa. O detective lhe perguntara se ela queria ir para a delegacia ou para a Villa, mas não tivera a menor intenção de levá-la para a polícia. E Não fora para a polícia que ele ligara. Fora para Rhys, a fim de dizer-lhe que já estavam na Villa.

Elizabeth sabia que precisava fugir, mas não tinha mais forças para isso. Estava lutando para manter os olhos abertos e mover braços e pernas, de repente pesados demais. Compreendeu então que o café que o homem lhe dera continha narcótico.

Dirigiu-se para a cozinha escura. Abriu um armário e remexeu as prateleiras até encontrar o que queria. Pegou um pouco de vinagre e despejou um pouco num copo com água. Bebeu com esforço e imediatamente depois começava a vomitar na pia. Poucos minutos depois, sentiu-se um pouco melhor, mas ainda fraca. O cérebro não podia funcionar direito. Era como se todos os circuitos dentro dela já se tivessem fechado, numa preparação para a escuridão da morte.

"Não", pensou ela febrilmente. "Você não vai entregar-se assim. Você tem de lutar. Eles estão a caminho para vir matá-la." Levantou a voz e disse:

- Pode vir matar-me, Rhys!

Mas a sua voz foi apenas um murmúrio. Voltou para o hall por instinto, guiada apenas por seu conhecimento da casa. Parou em frente ao retracto de Samuel Roffe, enquanto lá fora o vento soluçava e gemia, açoitando a casa, provocando-a, advertindo-a.

Continuou ali no escuro, sozinha, diante de uma alternativa de horrores: sair e enfrentar o desconhecido ou esperar que fosse matá-la ali, onde ela tentaria lutar.

Mas como?

Um pensamento procurava formar-se na sua cabeça, mas isso era difícil porque ela ainda estava levemente narcotizada. Não podia concentrar-se. Era alguma coisa a respeito de um acidente.

Lembrou-se então. Rhys tinha de fazer que a morte dela parecesse acidente.

Você tem de detê-lo, Elizabeth. Fora o velho Samuel que falara? Ou tudo se passara dentro de sua cabeça?

Não podia fazer nada. Era muito tarde. Os olhos estavam se fechando de novo, enquanto o rosto se colava à frieza do retracto. Dormir seria muito bom. Mas antes tinha de fazer uma coisa. Tentou lembrar-se, mas ela sempre lhe fugia.

Não deixe que sua morte pareça um acidente. Faça todo mundo ver que foi assassinato. Assim, a companhia nunca será dele.

Elizabeth já sabia o que tinha de fazer. Foi para o escritório. Pegou o pesado abajur e jogou-o de encontro a um espelho. Ouviu o barulho dos vidros quebrados. Em seguida, pegou a cadeira e bateu-a contra parede até que ela se arrebentasse. Foi até a estante e começou a abrir os livros e arrancar as páginas, que espalhava pelo chão. Arrancou da parede o fio do telefone inútil. Rhys que explicasse aquela confusão toda. Não ia facilitar a vida para ele. Não ia facilitar nada. Se queria fazer alguma coisa, teria de ser à força. Uma súbita rajada de vento passou pela sala, fazendo voar os papéis. Elizabeth levou algum tempo para compreender o que havia acontecido.

Não estava sozinha na casa.

No aeroporto Leonardo da Vinci, Max Hornung estava próximo do local onde se manipulavam as cargas. Viu um helicóptero pousar e, no momento em que o homem ia abrir a porta, Max estava ao lado dele.

- Pode levar-me para a Sardenha?

- O que está havendo por lá? Acabo de levar um camarada para a ilha. A tempestade por lá está violenta.

- Quer me levar?

- Só se me pagar três vezes o que o outro pagou.

Max não hesitou. Subiu no helicóptero. Logo que levantaram vôo, perguntou ao piloto:

- Quem foi o passageiro que levou para a Sardenha?

- Chamava-se Williams.

A escuridão era aliada de Elizabeth, ocultando-a. Era tarde demais para fugir. Tinha que achar um lugar para esconder-se dentro de casa. Subiu as escadas para aumentar a distância que a separava de Rhys. No alto das escadas, vacilou, mas acabou tomando a direcção do quarto de Sam. Alguma coisa pulou sobre ela no meio da escuridão, e ela começou a gritar, mas era apenas a sombra de uma árvore sacudida pelo vento do outro lado da janela. Seu coração batia tão forte que ela estava certa de que Rhys lá embaixo podia ouvi-lo.

Tinha de retardá-lo. Mas como? Sentia a cabeça pesada, e tudo era confuso. Que teria feito numa situação como aquela o velho Samuel? Tirou a chave da porta do fim do corredor e trancou-a por fora. Depois trancou as outras portas e pensou que estava trancando os portões do gueto em Cracóvia. Elizabeth não sabia por que estava fazendo isso, mas lembrou-se de que havia matado o guarda Aram e não podia ser apanhada. Viu a luz de uma lanterna eléctrica embaixo. Começava a subir as escadas e isso lhe causou um baque no coração. Rhys ia atacá-la. Elizabeth começou a subir a escada da torre, mas no meio do caminho os joelhos começaram a dobrar-se. Escorregou para o chão e subiu o resto dos degraus gatinhando. Chegou ao alto e levantou-se.

Abriu a porta da sala da torre e entrou. A porta. Feche a porta, disse Samuel.

Elizabeth fechou a porta, mas sabia que isso não ia impedir a entrada de Rhys. Ele terá de arrombá-la, pensou ela É mais violência que ele terá de explicar. A morte dela teria de parecer um assassinato. Empurrou móveis para escorar a porta.

Agia com muita lentidão, como se a escuridão fosse um mar que lhe embargasse os movimentos.

Empurrou uma mesa de encontro à porta, depois uma poltrona.

Trabalhava automaticamente, lutando contra o tempo e procurando construir a sua frágil fortaleza contra a morte.

Ouviu um baque surdo embaixo, logo seguido de outro e mais outro. Era Rhys arrombando as portas dos quartos, à procura dela. Seriam sinais de um ataque, uma pista que a polícia teria de seguir. Ela o havia enganado, do mesmo modo que ele a enganara.

Havia uma coisa que ela não compreendia. Se Rhys estava empenhado em fazer que a morte dela parecesse um acidente, por que estava arrombando as portas?

Abriu as portas envidraçadas da sala da torre e deixou que o vento assobiasse em torno dela. Além do balcão, um abismo descia a pique para o mar. Daquela sala não havia possibilidade de fuga. Era ali que Rhys teria de atacá-la. Elizabeth procurou uma arma, mas não viu nada que pudesse servir.

Esperou no escuro por seu assassino.

O que Rhys estava esperando? Por que não punha logo a porta abaixo e não acabava com aquilo? Por quê?

Alguma coisa não se ajustava. Ainda que Rhys levasse o corpo dela para dar-lhe fim de outra maneira, não podia explicar a confusão encontrada na casa, o espelho quebrado, as portas arrombadas. Tentou colocar-se no lugar de Sam e pensar no plano que ele poderia formular para explicar todas essas coisas sem que a polícia o considerava suspeito da morte dela. Só havia um meio.

E no momento em que a idéia ocorreu a Elizabeth, ela sentiu o cheiro acre da fumaça.

 

Capítulo 56

Max podia ver do helicóptero a costa da Sardenha, coberta por uma nuvem de poeira vermelha. O piloto gritou acima do barulho do aparelho:

- A situação piorou muito. Não sei se vou puder pousar.

- Tem de pousar! - gritou Max. - Vá até Porto Cervo.

O piloto olhou para Max.

- Fica no alto de uma montanha terrível.

- Sei disso. Vai conseguir?

- As chances são de setenta por cento.

- A favor ou contra?

- Contra.

A fumaça se infiltrava por baixo das portas e pelas tábuas do soalho. Um novo som se juntava aos gemidos do vento. Era o barulho das chamas, e Elizabeth sabia que era muito tarde para que ela escapasse com vida. Estava presa ali dentro. Sem dúvida, pouco importava a destruição de espelhos e de portas, pois dentro de alguns minutos nada mais restaria dela, nem da casa. Tudo seria consumido pelo fogo, como o laboratório e Emil Joeppli haviam sido destruídos, e Rhys teria um álibi que o eliminaria totalmente da culpa. Ele a vencera. Vencera a todos.

A fumaça começava a entrar na sala aos borbotões, fazendo Elizabeth tossir. As chamas já atingiam a porta, e ela sentia o calor.

Foi a raiva que deu a Elizabeth ânimo para mover-se.

Através da densa fumaça, correu às cegas para as portas envidraçadas do balcão. Abriu-as e saiu. No instante em que as portas foram abertas, as chamas entraram na sala, lambendo as paredes. Elizabeth ficou no balcão respirando a plenos pulmões o ar fresco da noite, enquanto o vento lhe agitava as roupas.

Olhou para baixo. O balcão se projectava da parede do prédio, com uma ilha minúscula suspensa sobre o abismo. Não havia a menor esperança de fuga.

Talvez... Elizabeth olhou para o telhado inclinado de ardósia, acima de sua cabeça. Se houvesse algum meio de alcançar o telhado e passar para o outro lado da casa que não havia chamas, poderia haver uma chance de salvação. Estendeu os braços para cima, mas não conseguiu alcançar as bordas do telhado. As chamas se aproximaram, envolvendo a sala.

Havia, porém, uma possibilidade mínima, e Elizabeth resolveu tentá-la. Correu para dentro da sala cheia de fumaça e fogo, sentindo-se quase sufocada. Pegou a cadeira de seu pai e arrastou-a para o balcão. Procurando não perder o equilíbrio, subiu na cadeira. Podia agora alcançar o telhado com os dedos, mas não encontrava um só ponto a que pudesse agarrar-se.

Tacteou cegamente e em vão à procura de um ponto de apoio.

Na sala, as chamas atingiam as cortinas e dançavam por todos os cantos, atacando os livros, o tapete e os móveis, aproximando-se do balcão. De repente, Elizabeth encontrou um ponto de apoio numa telha que se projectava dentre as outras. Os braços estavam pesados, e ela não tinha certeza se conseguiria.

Quando começou a levantar o corpo, a cadeira escorregou para baixo dos seus pés. Com tudo o que lhe restava de forças, conseguiu subir e segurar-se. Estava escalando os muros do gueto, lutando para salvar a vida. Esforçou-se, esforçou-se e finalmente se viu em cima do telhado inclinado, quase sem fôlego.

Subiu lentamente pelo telhado, com o corpo comprimido contra as telhas, sabendo muito bem que, se escorregasse, iria cair no negro abismo lá embaixo. Chegou no alto do telhado e parou para respirar um pouco e orientar-se. O balcão de que ela acabara de fugir estava em chamas. Não era possível voltar.

Olhando para o outro lado da casa, Elizabeth viu o balcão de um dos quartos de hóspedes. Ainda não havia fogo ali. Mas não estava segura de conseguir chegar lá.

O telhado era bem inclinado, as telhas estavam soltas e o vento soprava fortemente daquele lado. Se falseasse o pé, nada haveria para deter-lhe a queda. Ficou ali algum tempo, com medo de tentar.

De repente, um milagre, um vulto apareceu no balcão do quarto de hóspedes. Era Alec, que olhou para cima e disse calmamente:

- Vai conseguir, menina. Com a maior facilidade.

Elizabeth criou alma nova.

- Venha devagar - disse Alec. - Dê um passo de cada vez. Nada de pressa.

Ela então começou a mover-se cuidadosamente para onde ele estava, palmo a palmo, sem largar uma telha enquanto não tivesse agarrado firmemente outra. Teve a impressão de que levara um tempo enorme. Durante todo o tempo, ouvia a voz de Alec a animá-la, fazendo-a prosseguir. Estava quase chegando, deslizando para o balcão. De repente, uma telha se desprendeu e ela começou a cair.

- Segure-se! - gritou Alec.

Elizabeth encontrou outro ponto de apoio e agarrou-o febrilmente. Estava já na borda do telhado e nada havia abaixo dela senão o vácuo. Teria de deixar-se cair no balcão, onde Alec a esperava. Se errasse o impulso...

Alec olhava para ela, com o rosto cheio de calma e confiante.

- Não olhe para baixo - disse ele. - Feche os olhos e solte-se. Eu a segurarei.

Ela tentou. Respirou fundo duas vezes e soltou-se. Sentiu-se cair no espaço até que os braços de Alec a seguraram. Deu um suspiro de alívio.

- Muito bem - disse Alec.

Ela sentiu então o cano da pistola encostado à cabeça.

 

Capítulo 57

O piloto do helicóptero sobrevoava a terra o mais baixo que julgava possível sem correr perigo, passando rente à copa das árvores, a fim de evitar os ventos implacáveis.

Até nessa baixa altitude, havia turbulência mo ar. ao longe, o piloto avistou o cume da montanha de Porto Cervo.

- Lá está! - gritou Max. - Já posso ver a Villa.

Viu alguma coisa mais que lhe deu um aperto no coração.

- A casa está pegando fogo!

No balcão, Elizabeth ouviu o barulho do helicóptero que se aproximava e olhou para o alto. Alec não deu qualquer atenção ao aparelho. Olhava para Elizabeth com os olhos aflitos.

- Foi por amor a Vivian que tive de fazer tudo isso.

Compreende, não é? Não vão achar você na casa incendiada.

Elizabeth não o ouvia. Pensava apenas: Não foi Rhys. Não foi Rhys. Tinha sido Alec, sempre. Alec matara Sam e tentara matá-la. Havia roubado o relatório e resolvera envolver Rhys no caso. Obrigara-a a fugir com medo de Rhys, sabendo que ela iria para a Sardenha.

O helicóptero tinha desaparecido por trás de algumas árvores.

- Feche os olhos, Elizabeth - disse Alec.

- Não!

De repente, ouviu-se a voz de Rhys:

- Largue essa pistola, Alec!

Ambos olharam e viram no gramado embaixo, à luz trémula das lanternas, Rhys, o delegado de polícia Luiggi Ferraro e meia dúzia de detectives, armados de fuzis.

- Está tudo acabado, Alec - gritou Rhys. - Deixe-a.

Um dos detectives, que empunha um fuzil de mira telescópica, disse:

- Não posso atirar enquanto ela não sair da frente.

Afaste-se, gritou mentalmente Rhys. Afaste-se!

Max Hornung surgiu de trás das árvores e começou a correr em direcção de Rhys. Parou ou ver a cena no balcão.

- Recebi seu recado, mas cheguei tarde - disse Rhys.

Olharam para os dois vultos no balcão, que se destacavam contra a claridade das chamas do outro lado da casa. O vento atiçara o fogo, acendendo no meio da noite aquele imenso braseiro.

Elizabeth olhou para Alec e percebeu que o homem estava inteiramente desvairado e não a via mais. Afastou-se dele em direcção à porta do balcão.

No gramado, um dos detectives levantou o fuzil. Deu apenas um tiro. Alec cambaleou com o impacto e desapareceu no interior da casa.

Um momento antes, havia dois vultos no balcão, mas naquele momento só havia um.

- Rhys! - gritou Elizabeth.

Mas ele já estava correndo para ela.

Tudo aconteceu então num caleidoscópio rápido e confuso movimento. Rhys pegou-a e levou-a para um lugar seguro embaixo, enquanto ela se agarrava estreitamente a ele.

Estava deitada na relva, com os olhos fechados, e Rhys tinha-a nos braços e murmurava:

- Minha querida! Como a amo!

Ela lhe escutava a voz cariciosa e não podia falar. Olhava para ele e via nos seus olhos todo o amor e toda a angústia, e havia muito que lhe queria dizer. Mas estava cheia de culpa pelas horríveis suspeitas que tivera. Passaria o resto da vida com uma dedicação capaz de compensar esse erro.

Estava, porém, muito cansada para pensar nisso, muito cansada para pensar em qualquer coisa. Era como se tudo aquilo por que passara tivesse acontecido a outra pessoa, em outro lugar, em outra época.

O importante era que ela e Rhys estavam juntos. Os braços dele a cingiam apaixonadamente. Que isso durasse para sempre e seria o bastante.

 

Capítulo 58

Como se ele estivesse entrando num recanto ardente do inferno. A densa fumaça enchia o quarto de formas quiméricas que logo se desfaziam. O fogo deu um salto na direcção de Alec, chamuscando-lhe os cabelos, e ele ouviu na crepitação a voz de Vivian a chamá-lo, doce como um canto de sereia.

Viu-a então, subitamente iluminada, estendida na cama com o lindo corpo nu, tendo no pescoço uma fita vermelha que usara na primeira vez em que fora dele. Chamou-o de novo com uma voz cheia de desejo. Desta vez, era a ele que ela queria e não aos outros. "Você foi o único homem a quem amei", murmurou ela.

Alec acreditava. Tinha de puni-la pelas coisas que ela havia feito, mas fora hábil e fizera outras pagarem pelos pecados dela. Todas as terríveis coisas que tinha feito eram por amor a ela. Aproximou-se e Vivian tornou a dizer: "Você foi o único homem a quem amei". E Alec sabia que era verdade.

Ela abriu os braços para ele e Alec deixou-se cair ao lado dela. Abraçou-a e se fundiu a ela. Estava dentro dela e se transformara nela. Conseguiu satisfazê-la e isso lhe causou um prazer que logo se transformou num sofrimento intolerável.

Sentia o calor do corpo dela a consumi-lo e, de repente, a fita vermelha do pescoço de Viviam se transformou numa língua de fogo que o atingiu. Neste instante, uma trave do tecto em chamas caiu sobre ele.

Alec morreu como as mulheres tinham morrido. Em êxtase.

 

                                                                                            Sidney Sheldon

 

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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