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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HERDEIRA DAS SOMBRAS - P2 / Anne Bishop
A HERDEIRA DAS SOMBRAS - P2 / Anne Bishop

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Estava nas minas de sal de Pruul havia cinco anos.

 

Chegara o momento de morrer.

 

A fim de conseguir a morte completa e feroz que prometera a si mesmo, precisava vencer a força que Zuultah possuía de enfraquecê-lo com o Anel de Obediência. Não seria difícil. Como o achavam um covarde, os guardas não lhe davam muita atenção, e Zuultah tinha se tornado bastante negligente na utilização do Anel. Quando se lembrassem do que nunca deveriam esquecer sobre Lucivar, seria tarde demais.

 

Lucivar puxou a picareta da cintura do guarda e cravou-a no cérebro do homem, transmitindo, através do metal, força Cinza-Ébano suficiente para concluir o assassinato, estilhaçando sua mente e suas Joias.

 

Cerrando os dentes num sorriso selvagem, arrancou as correntes que o prendiam há cinco anos. Em seguida, invocou as Joias Cinza-Ébano e o largo cinturão de couro que guardava sua faca de caça e a espada de guerra eyriena. Ao longo dos séculos, muitas Rainhas tolas haviam tentado forçá-lo a entregar aquelas armas. Ele suportara os castigos e a dor e jamais admitira que estiveram sempre ao seu alcance — pelo menos, até fazer uso delas.

 

Desembainhando a espada de guerra, correu para a entrada da mina.

 

Os dois primeiros guardas morreram antes de notar sua presença.

 

Os dois seguintes explodiram ao serem atingidos pela Cinza-Ébano.

 

Os demais foram atropelados pelos escravos que corriam descontroladamente, tentando sair do caminho do enfurecido Príncipe dos Senhores da Guerra.

 

 

 

 

Lucivar lutava para abrir caminho entre a confusão de corpos. Chegou à entrada da mina e atravessou correndo o alojamento dos escravos, preparando-se mentalmente para um salto às cegas nas Trevas, na esperança de que, como uma flecha atirada de um arco, voasse diretamente para o Vento mais próximo e para a liberdade.

 

Uma dor atroz vinda do Anel de Obediência quebrou sua concentração justo no momento em que a flecha de uma balestra atravessou sua coxa, interrompendo a corrida. Uivando de raiva, Lucivar liberou uma extensa faixa de poder através do anel Cinza-Ébano, dilacerando a mente e os corpos dos guardas que o perseguiam. Outra explosão de dor vinda do Anel de Obediência irrompeu por seu corpo. Apoiando-se na perna boa, equilibrou-se e enviou uma onda de poder à casa de Zuultah.

 

A casa explodiu. Choveram pedras nas construções ao redor.

 

A dor provocada pelo Anel parou subitamente. Lucivar sondou depressa e praguejou. A filha da puta estava viva. Atordoada e ferida, mas ainda viva. Hesitou, com ânsia assassina. Uma leve batida em suas barreiras interiores chamou de novo a atenção dos guardas que haviam sobrevivido. Corriam na direção de Lucivar, tentando combinar as forças de suas Joias para conseguir dominá-lo.

 

Idiotas. Podia fazê-los aos pedações, e o teria feito pela alegria de vingar a dor com dor, mas a esta altura alguém já teria enviado um pedido de ajuda. E se Zuultah recobrasse os sentidos o suficiente para usar o Anel de Obediência...

 

O desejo de lutar corria em suas veias, entorpecendo a dor física. Talvez fosse melhor morrer lutando e transformar o Deserto de Arava num mar de sangue. O Vento mais próximo estava à distância de um longo salto às cegas. No entanto, fogo do Inferno, se Jaenelle havia conseguido pegá-lo aos sete anos, ele também conseguiria fazê-lo agora.

 

Sangue. Tanto sangue.

 

A amargura o fez se concentrar, se decidir.

 

Liberando outra explosão de poder pela Cinza-Ébano, recompôs-se e saltou para as Trevas.

 

Apoiado no poço, Lucivar encheu novamente a caneca com água doce e fresca e bebeu devagar, saboreando cada gole. Enchendo-a pela última vez, seguiu mancando até as ruínas do muro de pedra que estava a poucos passos dali e se instalou o mais confortavelmente possível.

 

O salto às cegas nas Trevas havia lhe custado caro. Zuultah tinha se recuperado o suficiente para enviar outra onda de dor pelo Anel de Obediência no exato momento em que Lucivar lançava-se nas Trevas, e ele esgotara metade das forças da Cinza-Ébano na tentativa desesperada de alcançar os Ventos.

 

Bebeu a água e ignorou o que o corpo sentia. Fome. Dor. Uma necessidade desesperada de dormir.

 

Um grupo de caçadores de Pruul estaria a três, talvez quatro horas dali. Poderia despistá-los, mas isso consumiria um tempo de que não dispunha. Uma mensagem transmitida de mente em mente chegaria a Prythian, a Sacerdotisa Suprema de Askavi, mais depressa do que Lucivar conseguia viajar neste momento, e ele não queria ser capturado por guerreiros eyrienos antes de chegar à Pista de Khaldharon.

 

E, se fosse possível, ainda havia um acerto de contas a fazer.

 

Lucivar pendurou a caneca no poço e esvaziou o balde. Satisfeito ao ver que estava tudo como havia encontrado, virou-se para sul e enviou o mais longe possível um chamado por um fio Cinza-Ébano.

 

*Sadi!*

 

Esperou um minuto, depois virou-se para sudeste.

 

*Sadi!*

 

Passado outro minuto inquieto, virou-se para leste.

 

*Sadi!*

 

Uma resposta vacilante. Débil, um tanto diferente, mas, ainda assim, familiar.

 

Lucivar suspirou como um amante satisfeito. Aquele era um local adequado para o Sádico tombar — de várias maneiras. As ruínas estavam repletas de rochas quebradas e caídas. Algumas seriam grandes o bastante para construir um altar improvisado. Ah, era sem dúvida um local bastante adequado.

 

Sorrindo, tomou um Vento Vermelho e dirigiu-se para leste.

 

Com exceção das histórias sobre Andulvar Yaslana, Lucivar nunca se interessara muito por história. Mas Daemon insistira uma vez que o Paço dos SaDiablo em Terreille tinha se mantido em bom estado de conservação até cerca de 1.600 anos antes, quando alguma coisa teria acontecido — não um ataque, mas alguma coisa — e quebrado os feitiços de preservação que perduravam há mais de 50 mil anos, o que havia provocado o início do declínio da construção.

 

Caminhando com cuidado pelas ruínas, Lucivar pensava que Daemon poderia ter razão. No local havia um vazio profundo, como se sua energia tivesse sido drenada de propósito. As pedras pareciam mortas. Não, mortas não. Famintas. Sempre que tocava em uma delas ao caminhar até um pátio interior, parecia que a pedra tentava sugar suas forças.

 

Seguiu o cheiro de madeira queimada, afastando a sensação de inquietude. Não tinha vindo ali para refletir sobre espectros. Em breve, ele mesmo seria um deles.

 

Mostrando os dentes cerrados num sorriso muito feroz, desembainhou a espada de guerra e entrou no pátio, permanecendo afastado do círculo de luz do fogo.

 

— Olá, Bastardo.

 

Daemon ergueu os olhos da fogueira, lentamente, e, com a mesma lentidão, identificou o som. Em seguida, exibiu um sorriso dócil e fatigado.

 

— Olá, Sacana. Veio me matar? — A voz de Daemon parecia entorpecida, como se ele não falasse há muito tempo.

 

A preocupação lutou contra a raiva até se tornar outro tempero da raiva. E a diferença no odor psíquico de Daemon o incomodava.

 

— Sim.

 

Acenando com a cabeça, Daemon se levantou e tirou o casaco rasgado.

 

Os olhos de Lucivar estreitaram-se enquanto Daemon abria os botões restantes da camisa, afastando-a para o lado e mostrando o peito, e dava a volta na fogueira, instalando-se num local onde a luz beneficiaria o agressor. Aquilo parecia errado. Tudo parecia errado. Daemon conhecia o suficiente de sobrevivência básica e sobre viver da terra — fogo do Inferno, ele próprio havia se assegurado disso — para se manter em condições melhores do que aquelas de agora. Lucivar examinou as roupas maltrapilhas e sujas, o corpo subnutrido que tremia à luz da fogueira, o olhar calmo e quase esperançoso daqueles olhos magoados e exaustos, e rangeu os dentes. A única pessoa que conhecera com a mesma indiferença em relação ao bem-estar físico era Tersa.

 

Talvez a voz de Daemon não estivesse entorpecida pela falta de uso, mas rouca por acordar gritando durante a noite.

 

— Você está preso, não é? — perguntou Lucivar baixinho. — Está preso no Reino Distorcido.

 

Daemon estremeceu.

 

— Lucivar, por favor. Você prometeu que me mataria.

 

Os olhos de Lucivar brilharam.

 

— Você a sente debaixo do seu corpo, Daemon? Sente a carne jovem ferida por suas mãos? Sente o sangue nas coxas enquanto se joga sobre ela, dilacerando-a? — Avançou. — Sente?

 

Daemon estremeceu.

 

— Eu não... — Ergueu uma mão trêmula, enrolando os dedos no emaranhado de cabelo. — Tanto sangue. Não desaparece. As palavras não desaparecem. Lucivar, por favor.

 

Certo de ter a atenção de Daemon, Lucivar recuou e embainhou a espada de guerra.

 

— Matá-lo seria uma gentileza que você não merece. Você deve a ela cada gota de dor que puder ser extraída de você até o fim dos seus dias. E eu lhe desejo uma vida muito longa.

 

Daemon limpou o rosto com a manga, deixando uma mancha de sujeira no rosto.

 

— Talvez quando voltarmos a nos encontrar você possa...

 

— Estou morrendo — retrucou Lucivar. — Não haverá próxima vez.

 

Uma brilho de compreensão apareceu no olhar de Daemon.

 

Lucivar sentiu um nó na garganta. As lágrimas ardiam os olhos. Não haveria reconciliação, nem compreensão, nem perdão. Somente uma amargura que se prolongaria para além da existência física.

 

Lucivar mancou para fora do pátio tão rápido quanto conseguiu, usando a Arte para apoiar a perna ferida. Procurando o caminho pelas pedras quebradas, na direção do que restava da teia de desembarque, ouviu um grito tão carregado de angústia que as pedras pareceram estremecer. Caminhou aos tropeços até a teia, ofegante e com a visão embaçada pelas lágrimas, relutante em voltar atrás, relutante em partir.

 

No entanto, logo antes de apanhar o Vento Cinza que o levaria a Askavi e à fuga derradeira, olhou para as ruínas do Paço e sussurrou:

 

— Adeus, Daemon.

 

Lucivar estava à beira do barranco, no meio da Pista de Khaldharon, esperando o sol nascer para iluminar o cânion abaixo.

 

A Arte era o que o mantinha de pé, era o que lhe permitiria usar o trapo seboso em que suas asas haviam se transformado depois de serem consumidas pelo mofo.

 

Determinado a ver o sol nascer, ele observava as pequenas silhuetas escuras voando na sua direção — guerreiros eyrienos que vinham para matá-lo.

 

Olhou para baixo, para a Pista de Khaldharon, avaliando sombras e a visibilidade. As condições não eram boas. Seria insensato se jogar naquela perigosa mistura de vento e de Ventos escuros, com asas que mal funcionavam, quando não conseguia distinguir as paredes salientes do cânion das sombras nem identificar as curvas que criariam mudanças repentinas de ventos. Na melhor das hipóteses, seria uma corrida suicida.

 

E era por isso que estava ali.

 

As pequenas silhuetas escuras que se dirigiam a Lucivar eram cada vez maiores e mais próximas.

 

Ao sul, a luz do sol tocava a formação rochosa conhecida como Dragões Adormecidos. Uma rocha estava virada para o norte, a outra, para o sul. A Pista de Khaldharon terminava ali, e o mistério começava, pois ninguém que tivesse entrado numa daquelas bocas cavernosas e escancaradas jamais voltara.

 

Vários quilômetros ao sul dos Dragões Adormecidos, o sol já beijava a Montanha Negra, Ebon Askavi. Ali teria morado a Feiticeira, sua jovem e desejada Rainha, se nunca tivesse conhecido Daemon Sadi.

 

Os guerreiros eyrienos já estavam agora tão perto que Lucivar podia ouvir suas ameaças e maldições.

 

Sorrindo, abriu as asas, ergueu o punho e emitiu um grito de guerra eyrieno que silenciou tudo ao seu redor.

 

Foi então que mergulhou na Pista de Khaldharon.

 

Era tão emocionante e tão ruim quanto imaginara.

 

Nem com a Arte as asas esfarrapadas conseguiam lhe dar o equilíbrio de que necessitava. Antes de conseguir se estabilizar, o vento que soprava pelo desfiladeiro jogou-o contra a encosta lateral, quebrando suas costelas e a omoplata direita. Gritando em tom de desafio, conseguiu se afastar do rochedo, fazendo fluir para o corpo a força da Cinza-Ébano, enquanto voltava a mergulhar no centro da combinação feroz de forças.

 

No exato momento em que os outros eyrienos mergulharam na Pista, Lucivar tomou o fio Vermelho e iniciou a perigosa corrida em direção aos Dragões Adormecidos.

 

Em vez de entrar e sair dos Ventos em espiral com toda a sua força de modo a manter a corrida o mais próximo possível do centro do desfiladeiro, Lucivar continuou no Vermelho, seguindo-o por estreitas aberturas na rocha, encolhendo as asas junto ao corpo para transpor as cavidades erodidas pelas intempéries, que arrancavam sua pele enquanto as atravessava.

 

O pé direito pendia incomodamente do tornozelo dilacerado. A metade externa da asa esquerda estava pendurada, inútil; seu esqueleto se partiu quando uma rajada de vento o lançou contra uma rocha. Os músculos das costas se rasgaram quando forçou as asas para fazer movimentos dos quais já não era capaz. Uma profunda ferida na barriga deixava que as entranhas caíssem por baixo do largo cinto de couro.

 

Sacudiu a cabeça, tentando afastar o sangue dos olhos, e soltou um rugido triunfante enquanto calculava como entraria entre as pedras pontiagudas, semelhantes a dentes.

 

Uma última rajada de vento o puxou para baixo e Lucivar entrou direto pela boca do Dragão. Um “dente” rasgou sua perna esquerda da cintura até o joelho.

 

Seguiu em direção à bruma em espiral, pretendendo chegar ao outro lado antes que suas forças se esgotassem e as Joias se esvaziassem.

 

Um movimento chamou sua atenção. Um rosto sobressaltado. Asas.

 

— Lucivar!

 

Esforçou-se até o limite, ciente de que seus perseguidores reduziam a distância que os separava a cada momento.

 

— LUCIVAR!

 

A outra boca tinha de estar... Ali! Mas...

 

Dois túneis. O da esquerda parecia conter uma luz crepuscular. O da direita parecia uma aurora suave.

 

A escuridão o ocultaria melhor. Seguiu em direção ao crepúsculo.

 

Uma agitação de asas à esquerda. Uma mão tentando agarrá-lo.

 

Chutou, contorceu-se para se esquivar e dirigiu-se ao túnel da direita.

 

— LUU-CI-VAARRR!

 

Passou pelos dentes e saiu, empinando para cima, ultrapassando a beira do desfiladeiro em direção ao céu da manhã, batendo as asas inúteis simplesmente devido a um orgulho obstinado.

 

E ali estava Askavi, como imaginara que teria sido há muito tempo. A corrente lamacenta sobre a qual voara era agora um rio profundo e límpido. A rocha árida era suavizada por primaveris flores silvestres. Além da Pista, a luz do sol se refletia em pequenos lagos e em riachos sinuosos.

 

Seus sentidos foram inundados pela dor. Sangue misturado com lágrimas.

 

Askavi. Pátria. Por fim, chegara em casa.

 

Lucivar bateu as asas uma última vez, curvou o corpo para trás lentamente, com graça e dor. Fechou as asas e mergulhou na água profunda e límpida.

 

O vento tentou arrancá-lo da pequena ilha que era seu único lugar de repouso neste mar interminável e impiedoso. As ondas o fustigavam, encharcando-o de sangue. Tanto sangue.

 

Você é meu instrumento.

 

As palavras mentem. O sangue, não.

 

As palavras andavam à sua volta, tubarões em sua mente que se aproximavam para arrancar mais um pedaço de sua alma.

 

Ofegante, engasgou-se com um pedaço de espuma sangrenta, enquanto enterrava os dedos na rocha que amoleceu de uma hora para outra. Gritou ao ver que a rocha sob suas mãos se transformara em feridas inchadas, de tom negro e roxo.

 

Carniceiro filho da puta.

 

Nããããão!

 

*Eu a amava!* Gritou. *Eu a amo! Não pretendia machucá-la.*

 

Você é meu instrumento.

 

As palavras mentem. O sangue, não.

 

Carniceiro filho da puta.

 

As palavras saltavam, brincalhonas, por cima da ilha, dilacerando cada vez mais fundo a cada passagem.

 

Dor que aprofundava a angústia que aprofundava o sofrimento atroz que aprofundava a dor até não haver mais dor.

 

Ou, talvez, ninguém para senti-la.

 

Surreal olhava estupefata para os destroços imundos e trêmulos daquele que tinha sido o homem mais perigoso e mais belo do Reino. Antes que ele pudesse recuar, arrastou-o para casa, fechou todas as fechaduras físicas da porta e, por via das dúvidas, trancou-as também com a Cinza. Depois de refletir por alguns instantes, pôs um escudo Cinza em todas as janelas para reduzir o risco de uma artéria cortada ou de um salto descontrolado de uma altura de cinco andares.

 

Fitou-o com atenção e perguntou-se se uma artéria cortada seria tão ruim assim. Ele estava ensandecido da última vez que o vira. Agora, além disso, parecia ter sido rasgado e esvaziado.

 

— Daemon? — chamou, devagar.

 

Daemon tremia, incapaz de se controlar. Seus olhos feridos, que mostravam apenas dor, encheram-se de lágrimas.

 

— Ele morreu.

 

Surreal se sentou no sofá e puxou-o para perto dela.

 

— Quem morreu? — Quem seria tão importante a ponto de produzir aquela reação?

 

— Lucivar. Lucivar morreu. — Enfiou a cabeça no colo de Surreal e chorou como uma criança inconsolável.

 

Surreal afagou o cabelo seboso e emaranhado de Daemon, incapaz de pensar em qualquer palavra de conforto. Lucivar fora importante para Daemon. Sua morte era relevante para ele. Porém, só de pensar em manifestar condolências já sentia ânsias de vômito. Na sua opinião, Lucivar também contribuíra para algumas das feridas na alma que empurraram Daemon para o abismo, e, agora, a morte do bastardo poderia ser o golpe fatal.

 

Quando ele parou de soluçar e começou a fungar quase em silêncio, Surreal invocou um lenço e o pôs na mão de Daemon. Faria muitas coisa por ele, mas isso não incluía assoar seu nariz.

 

Sem conseguir chorar mais, ele se sentou ao lado de Surreal, em silêncio. Ela ficou quieta, olhando fixamente para as janelas.

 

A rua isolada era bastante segura. Surreal tinha voltado ali várias vezes desde a última visita de Daemon, ficando por mais tempo a cada vez. Era um lugar onde se sentia confortável. Surreal e Wyman, o Senhor da Guerra que Daemon tinha curado, haviam criado uma amizade que mantinha a solidão afastada. Ali, com alguém para cuidar dele, talvez Daemon melhorasse um pouco.

 

— Daemon? Poderia ficar aqui comigo por um tempo? — Observando-o com atenção, não conseguia saber o que ele estaria pensando ou se estaria pensando.

 

Por fim, Daemon disse:

 

— Se você quiser.

 

Ela pensou ter visto em seus olhos um brilho hesitante de compreensão.

 

— Promete que fica? — insistiu. — Promete que não vai embora sem me avisar?

 

O brilho desapareceu.

 

— Não tenho outro lugar para ir.

 

Uma ligeira brisa. A luz do sol aquecia sua mão. Pássaros cantavam. Um conforto firme embaixo do seu corpo. Algodão suave por cima.

 

Lucivar abriu os olhos devagar e viu o teto branco e as colunas lisas. Onde...?

 

Por força do hábito, procurou imediatamente as possíveis rotas de fuga do lugar. Duas janelas cobertas por cortinas brancas bordadas com flores. Uma porta na parede do outro lado da cama onde estava deitado.

 

Depois observou o resto do quarto. A mesinha de cabeceira e a cômoda de pinho. Um pedaço de madeira transformado em lampião. Uma cômoda, e sobre ela um suporte de bronze para cristais de música. Um cesto de costura aberto e cheio de novelos. Uma cadeira grande e velha verde-escura e um descanso para os pés da mesma cor. Uma tela branca de bordados. Uma estante cheia de livros. Tapetes em tons de marrom entrelaçados entre si. Dois desenhos a carvão emoldurados — os bustos de um unicórnio e de um lobo.

 

Ao captar o odor psíquico feminino que impregnava as paredes e a madeira, Lucivar não conseguiu evitar uma careta involuntária. Depois, franziu a testa. Por alguma razão, aquele odor psíquico não lhe causava repulsa.

 

Voltou a olhar ao redor, confuso. Aquilo seria o Inferno?

 

Uma porta se abriu em outro ambiente. Ouviu uma voz feminina dizer:

 

— Está bem, vá lá, mas não o acorde.

 

Fechou os olhos. A porta se abriu. Ouviu o som de unhas no chão. Sentiu alguma coisa farejando seu ombro. Manteve os músculos relaxados, fingindo dormir, enquanto seus sentidos se esforçavam para identificar a criatura.

 

Sentiu um corpo peludo junto à sua pele nua. Um focinho frio e úmido farejava sua orelha.

 

Depois, um grunhido que o fez se sacudir, seguido de um silêncio satisfeito.

 

Cedendo à curiosidade e à sua necessidade de guerreiro de identificar um inimigo, Lucivar abriu os olhos, devolvendo o olhar surpreso do lobo por um instante. O animal deu um latido de satisfação e saiu às pressas do quarto.

 

Ele mal teve tempo de se recompor quando a mulher abriu a porta de repente, encostando-se no umbral.

 

— Então finalmente você decidiu se reunir aos vivos.

 

Parecia de bom humor, mas, a julgar pelo que via, a rouquidão na sua voz era fruto da tensão, do cansaço e do uso excessivo. Estava magra demais. Pela forma como as calças e a camisa estavam folgadas, era provável que tivesse perdido muito peso rapidamente e de um modo nada saudável. A trança loura, longa e solta, parecia tão pálida como a sua pele, e sob os belos e antigos olhos cor de safira era possível ver olheiras profundas.

 

Lucivar pestanejou. Engoliu com dificuldade. Lembrou-se, finalmente, de respirar.

 

— Gata? — sussurrou. Levantou a mão numa súplica muda.

 

Ela ergueu uma sobrancelha e foi até ele.

 

— Sei que você disse que me encontraria quando fizesse dezessete anos, mas nunca pensei que seria de uma forma tão dramática.

 

No momento em que tocou na sua mão, Lucivar puxou-a para cima dele, abraçando aquele corpo que se contorcia. Ria e chorava, ignorando os protestos abafados da garota:

 

— Gata, Gata, Gata, AI!

 

Jaenelle pulou para fora da cama, pondo-se fora do alcance de Lucivar, ofegante.

 

Lucivar esfregou o ombro.

 

— Você me mordeu.

 

A mordida não tinha importância — bem, tinha —, mas não gostava que ela se afastasse.

 

— Eu disse que não estava conseguindo respirar.

 

— E precisamos respirar? — perguntou ele, ainda esfregando o ombro.

 

Pelo olhar da garota, se fosse realmente felina, estaria com o pelo arrepiado.

 

— Não sei, Lucivar — disse, com uma voz que poderia queimar um deserto. — Eu poderia retirar seus pulmões, assim saberíamos se respirar é opcional.

 

A leve suspeita de que Jaenelle poderia estar falando sério foi suficiente para que Lucivar engolisse a observação atrevida que estava prestes a fazer. Além disso, já tinha muitas coisas confusas em que pensar, sem falar na necessidade de responder à mensagem urgente e básica que seu corpo lhe mandava. Fogo do Inferno, jamais poderia imaginar que estar morto fosse tão parecido com estar vivo.

 

Rolou para o lado, perguntando-se se os músculos ficariam sempre assim tão flácidos — existiria alguma vantagem em ser um demônio? — e puxou as pernas para fora da cama com esforço.

 

— Lucivar — disse Jaenelle com sua voz sombria.

 

Ele olhou-a de cima a baixo e decidiu ignorar o brilho perigoso que viu nos seus olhos. Conseguiu se sentar com um impulso, puxou o lençol para o colo e deu um sorriu frágil.

 

— Sempre me orgulhei da minha pontaria, Gata, mas nem mesmo eu consigo regar as flores a esta distância.

 

Felizmente, não entendeu nada do que ela lhe disse após os primeiros palavrões em eyrieno que falou.

 

Jaenelle colocou o braço de Lucivar sobre seus ombros e passou o braço pela cintura dele. Assim, ajudou-o a se levantar.

 

— Vá com calma. Estou segurando grande parte do seu peso.

 

— Os machos que servem aqui é que deveriam estar fazendo isto, e não você — resmungou Lucivar, enquanto se arrastavam até a porta. Não sabia se estava mais envergonhado por estar nu ou por precisar do apoio de Jaenelle.

 

— Não há nenhum deles aqui. Ei!

 

Lucivar quase fez os dois perderem o equilíbrio ao tentar alcançar a porta, pois precisava se agarrar a alguma coisa. Sua querida Gata estava aqui sozinha, desprotegida, apenas na companhia de um lobo? Cuidando de suas...

 

— Você é uma jovem mulher — disse, com os dentes cerrados.

 

— Sou uma Curandeira qualificada. — Puxou-o pela cintura. Não adiantou nada. — Era mais fácil cuidar de você antes de você acordar.

 

Lucivar rosnou.

 

— Lucivar — disse Jaenelle com o tom de voz que as Curandeiras usavam com pacientes irascíveis e idiotas —, nas últimas três semanas você dormiu um sono regenerador. Levando isso em consideração, e tudo o que foi necessário para recompor você, acho que já vi cada centímetro do seu corpo mais de uma vez. Agora, você vai ficar babando aí no chão como um cachorrinho ou vamos chegar até o lugar aonde você quer ir?

 

Um desejo intenso de melhorar o suficiente para conseguir ficar de pé e esganá-la ajudou-o a chegar ao banheiro. O orgulho o fez rosnar para que Jaenelle permanecesse do lado de fora. A teimosia o manteve de pé tempo suficiente para que ele satisfizesse suas necessidades, enrolasse uma toalha em volta da cintura e chegasse à porta do banheiro.

 

A essa altura, suas energias e emoções estavam esgotadas, por isso não protestou quando Jaenelle o ajudou a caminhar até o banco perto da grande mesa de pinho na sala da cabana. Jaenelle começou a tocar as costas de Lucivar, que mantinha os olhos fixos na porta que dava para a rua, sem coragem de perguntar sobre a cura. Nesse momento, sentiu uma das asas abrindo-se bem devagar, guiada pelas mãos suaves de Jaenelle.

 

A asa voltou a se fechar. A outra se abriu. Quando Jaenelle veio para sua frente, Lucivar olhou para trás e viu, abismado, uma asa saudável e inteira. Aturdido, mordeu o lábio e piscou para evitar que as lágrimas caíssem.

 

Jaenelle olhou de relance para o rosto de Lucivar, voltando a centrar sua atenção na asa.

 

— Você teve sorte — disse, serena. — Mais uma semana e não restaria tecido saudável o suficiente para reconstruí-las.

 

Reconstruí-las? Levando em conta os danos provocados pelo mofo bolorento e pelas minas de sal, até mesmo as melhores Curandeiras eyrienas teriam amputado suas asas. Como ela tinha conseguido reconstruí-las?

 

Mãe Noite, como estava cansado... Este local pouco correspondia às suas expectativas. Precisava desesperadamente entender o que estava acontecendo e não sabia por onde começar.

 

Nesse momento, Jaenelle se inclinou para observar a parte inferior de sua asa e as Joias que pendiam de seu pescoço ficaram à vista. Mais tarde, ele iria se perguntar por que a Feiticeira usava uma Joia Azul-Safira. Agora, toda a atenção de Lucivar estava no pingente em forma de ampulheta suspenso sobre a Joia.

 

A ampulheta era o símbolo da Viúva Negra e, ao mesmo tempo, uma declaração e uma advertência sobre a feiticeira que a usava. Aprendizes usavam o pingente com o pó de ouro na metade superior do vidro. O pingente de uma assistente tinha o pó de ouro dividido igualmente entre a parte superior e a inferior. As Viúvas Negras qualificadas tinham todo o pó de ouro na parte inferior.

 

— Quando você se tornou uma Viúva Negra qualificada?

 

O ar à sua volta esfriou.

 

— E isso o incomoda?

 

Obviamente, incomodava muita gente.

 

— Não, estou apenas curioso.

 

Ela lhe deu um breve sorriso de desculpas e prosseguiu o exame. O ar voltou ao normal.

 

— No ano passado.

 

— E você também se tornou Curandeira qualificada?

 

Lucivar fechou a asa com todo o cuidado e ela começou a examinar seu ombro direito.

 

— No ano passado.

 

Lucivar assobiou.

 

— Foi um ano movimentado.

 

Jaenelle riu.

 

— Papai diz que ficou muito feliz por você ter sobrevivido.

 

Ele quase conseguia ouvir a lâmina passando pela pedra de amolar enquanto sentia suas emoções chegarem ao limiar da morte. Ela tinha um pai, uma família e, ainda assim, vivia sem companhia humana, nem mesmo de um criado. Estaria exilada aqui por causa da Ampulheta? Ou por ser Feiticeira? Assim que Lucivar estivesse recuperado, esse pai dela teria de se ajustar a algumas coisas — tal como este Príncipe dos Senhores da Guerra que agora a servia.

 

— Lucivar. — A voz de Jaenelle parecia tão distante como a mão que lhe apertava o ombro tenso. — Lucivar, o que está acontecendo?

 

No limiar da morte, o tempo passava devagar e era medido pelas batidas do coração de um tambor de guerra. O mundo se encheu de detalhes pessoais e pungentes. Uma lâmina cortaria o músculo, perfurando o osso. E a boca se encheria do vinho vivo no momento em que os dentes afundassem na garganta.

 

— Lucivar.

 

Lucivar pestanejou. Sentiu a tensão nos dedos de Jaenelle enquanto ela apertava seus ombros. Afastou-se daquele limiar, passo mental a passo mental, enquanto a selvageria dentro de si gritava para se libertar. Os sentidos entorpecidos pelas minas de sal de Pruul renasceram. A terra chamava por ele, seduzindo-o com cheiros e sons. Jaenelle também o seduzia. O objetivo não era o sexo, mas outro tipo de vínculo, tão poderoso quanto. Queria roçar a pele na dela para que ficasse impregnado com o cheiro físico de Jaenelle. Queria roçar a pele na dela para que seu próprio cheiro físico se impregnasse em Jaenelle, alertando outros para o fato de que um macho poderoso tinha pretensões em relação a ela, era pretendido por ela. Queria...

 

Virou a cabeça e abocanhou os dedos de Jaenelle, com força suficiente para mostrar dominância, sem no entanto feri-la. A mão dela relaxou em sinal de submissão, acolhendo as trevas no íntimo de Lucivar. E, uma vez que ela era capaz de acolhê-las, Lucivar entregou-se inteiramente.

 

Um minuto depois, de volta ao mundo real, reparou na porta aberta e nos três lobos na varanda coberta que o observavam com vívido interesse.

 

Jaenelle, inspecionando agora os músculos da clavícula e do peito, olhou de relance para os lobos e sacudiu a cabeça.

 

— Não, ele não pode brincar com vocês.

 

Ganindo desapontados, os lobos foram embora.

 

Lucivar examinou a paisagem emoldurada pela porta aberta.

 

— Nunca pensei que o Inferno fosse assim — comentou com delicadeza.

 

— O Inferno não é assim. — Deu um tapa na mão dele quando Lucivar tentou impedi-la de examinar seu quadril e sua coxa.

 

Esforçando-se para lembrar que não deveria esbofetear uma Curandeira, cerrou os dentes e tentou novamente encontrar respostas.

 

— Eu não sabia que as crianças demônias-mortas cresciam, nem que os demônios pudessem ser tratados.

 

Jaenelle deu a ele um olhar penetrante antes de examinar a outra perna. Calor e energia fluíram das suas mãos.

 

— As cildru dyathe não crescem e os demônios não podem ser tratados. Mas eu não sou cildru dyathe e você não é demônio, apesar do seu maldito empenho em se tornar um deles — completou, mordaz. Puxou uma cadeira com encosto plano, sentou-se à sua frente e segurou suas mãos. — Lucivar, você não está morto. Este não é o Reino das Trevas.

 

Ele tinha tanta certeza do contrário.

 

— Então... onde estamos?

 

— Estamos em Askavi. Em Kaeleer. — Olhou para ele com ansiedade.

 

— O Reino das Sombras? — Lucivar murmurou baixinho. Dois túneis. Num deles, uma luz crepuscular, no outro, uma suave aurora. O Reino das Trevas e o Reino das Sombras. Deu um largo sorriso. — Já que não estamos mortos, podemos sair para explorar a área?

 

Observou, intrigado, enquanto Jaenelle se esforçava para transformar o sorriso de orelha a orelha numa expressão comedida e profissional.

 

— Quando você estiver completamente curado — disse com severidade. Mas em seguida estragou tudo com uma risada melodiosa. — Ah, Lucivar, os dragões que vivem nas Ilhas do Fogo vão adorá-lo. Você não apenas tem asas, mas também é grande o bastante para deslizar nas ondas.

 

— Deslizar no quê?

 

Arregalou os olhos e mordeu o lábio inferior.

 

— Hum. Deixa pra lá — ela disse, com alegria demais, saltando da cadeira.

 

Ele a segurou pela parte de trás da camisa. Após uma breve luta que deixou Lucivar ofegante e Jaenelle muito além de amarrotada, ela voltou a se sentar.

 

— Por que está vivendo aqui, Gata?

 

— Qual é o problema? — perguntou ela, na defensiva. — É um lugar ótimo.

 

Lucivar semicerrou os olhos.

 

— Eu não disse que não era.

 

Jaenelle inclinou-se para a frente, fitando o rosto de Lucivar.

 

— Você não é um daqueles machos que ficam histéricos por qualquer coisa, não é?

 

Lucivar inclinou-se para a frente, com os braços apoiados nas coxas, e sorriu, mostrando seu sorriso indolente e arrogante.

 

— Não sou chegado em histerias.

 

— Hum, hum.

 

O sorriso deixou aparecer parte dos seus dentes.

 

— Por quê, Gata?

 

— Os lobos podem ser mesmo uns fofoqueiros, sabia? — Olhou para ele, esperançosa. Ao ver que Lucivar não respondia, ajeitou o cabelo e suspirou. — Sabe, há momentos em que tenho necessidade de desaparecer e ficar junto à terra. Costumava vir aqui para acampar por alguns dias, mas, durante uma dessas excursões, choveu e dormi no chão molhado. Peguei um resfriado e os lobos correram para contar a papai. Ele disse que entendia minha necessidade de passar um tempo junto à terra, mas que não via qualquer razão que eu não pudesse ter um abrigo aqui. Respondi que um alpendre seria uma ótima ideia. Por isso ele mandou construir esta cabana. — Fez uma pausa e sorriu, apreensiva. — Papai e eu temos definições diferentes de “alpendre”.

 

Olhando para a grande lareira de pedra, para as sólidas paredes e para o teto e, em seguida, para a mulher-criança sentada à sua frente com as mãos entre os joelhos, Lucivar desfez, com relutância, o nó de raiva que sentia por este pai desconhecido.

 

— Sinceramente, Gata, prefiro a definição do seu pai.

 

Ela o fulminou com o olhar.

 

Podia ser Viúva Negra e Curandeira, mas mesmo à beira da maturidade conservava um pouco da inocência encantadora das jovens, fazendo com que Lucivar ainda pensasse nela como uma gatinha pulando para tentar pegar algum bicho.

 

— Então você não vive aqui o tempo todo? — perguntou, com cautela.

 

Jaenelle sacudiu a cabeça.

 

— A família possui várias residências em Dhemlan. A maior parte do tempo moro na casa de campo. — Olhou para ele de uma forma que Lucivar não conseguiu decifrar. — Meu pai é o Príncipe dos Senhores da Guerra de Dhemlan... entre outras coisas.

 

Era então um homem rico e de alta posição social. Provavelmente não aprovaria um cretino mestiço como companheiro para a filha. Bem, Lucivar cuidaria desse assunto depois.

 

— Lucivar. — Jaenelle fixou os olhos na porta aberta e mordeu o lábio.

 

Ele compreendia. Por vezes, esta era a parte mais difícil do tratamento: ter de dizer ao paciente, com honestidade, o que podia e o que não podia ser curado.

 

— As asas são meramente decorativas, não é?

 

— Não! — Jaenelle respirou fundo. — Os ferimentos foram graves. Todos eles, e não apenas os das asas. Tratei-os, mas o que vai acontecer de agora em diante depende em grande parte de você. Acho que deve levar uns três meses para que as costas e as asas fiquem completamente curadas. — Mordeu o lábio. — Mas não há margem para erros aqui, Lucivar. Tive de extrair tudo que você tinha para conseguir esta regeneração. Se você voltar a machucar qualquer coisa, os danos poderão ser permanentes.

 

Lucivar pegou a mão de Jaenelle e acariciou seus dedos com o polegar.

 

— E se eu fizer do seu jeito? — Ele a observou com atenção. Naqueles olhos azul-safira não havia falsas promessas.

 

— Se fizer as coisas do meu jeito, daqui a três meses estaremos na Pista.

 

Ele baixou a cabeça, mas não com o intuito de esconder as lágrimas. Simplesmente porque necessitava de um momento íntimo para saborear a esperança.

 

Depois de recuperar o controle, sorriu para Jaenelle.

 

Ela sorriu também, em sinal de compreensão.

 

— Aceita uma xícara de chá? — Como Lucivar assentiu, Jaenelle saltou da cadeira e passou pela porta à direita da lareira de pedra.

 

— Será que minha Curandeira teria também alguma coisa para comer?

 

A cabeça de Jaenelle espreitou pela porta da cozinha.

 

— Que tal uma grande fatia de pão fresco ensopada em caldo de carne?

 

Tão comestível quanto um pedaço de madeira.

 

— Tenho escolha?

 

— Não.

 

— Parece ótimo.

 

Depois de algum tempo, Jaenelle voltou e ajudou-o a se mudar do banco para uma cadeira de encosto plano que ajudava a apoiar suas costas, e colocou uma grande caneca na mesa de pinho.

 

— É uma infusão medicinal.

 

Os lábios de Lucivar se fecharam num rosnado mudo. Todas as infusões medicinais que já havia tomado sempre tinham gosto de mato e mijo. Por isso, passara a achar que as Curandeiras a faziam ter esse gosto como um castigo para os que haviam se ferido ou ficado doentes.

 

— Não vou lhe dar mais nada até você beber tudo — acrescentou Jaenelle, com uma desagradável falta de solidariedade.

 

Lucivar ergueu a caneca e cheirou o líquido com cuidado. O cheiro era... diferente. Bebeu um pouco, mantendo a infusão na boca por um momento, fechou os olhos e engoliu. Perguntou-se como Jaenelle teria destilado numa infusão medicinal a sólida força das montanhas de Askavi, as árvores, as ervas e as flores que enriqueciam o solo, os rios que corriam pela terra.

 

— Isto é maravilhoso — murmurou.

 

— Fico feliz com sua aprovação.

 

— É verdade — insistiu, respondendo ao riso na voz de Jaenelle. — Essas infusões normalmente têm um gosto horrível, mas esta é agradável.

 

O riso se transformou em perplexidade.

 

— A princípio deveriam ter um sabor agradável, Lucivar. Do contrário, ninguém iria querer bebê-las.

 

Sem argumentos, Lucivar não disse nada, e tomou a infusão, satisfeito. Estava satisfeito o bastante a ponto de sentir quase benevolente em relação à tigela com pão ensopado em caldo de carne que Jaenelle colocou à sua frente, uma benevolência que ficou ainda maior quando reparou nos pedaços de carne espalhados sobre o pão.

 

Em seguida percebeu que Jaenelle também se preparava para comer.

 

— Pelo visto não fui o único que se esgotou até o limite durante este tratamento, não é, Gata? — disse com calma, incapaz de disfarçar a raiva. Como Jaenelle se atrevia a se arriscar desta maneria, sem ninguém para tratar dela?

 

Jaenelle corou ligeiramente. Brincou com a colher, esmigalhou o pão e, por fim, encolheu os ombros.

 

— Valeu a pena.

 

Ele cortava o pão quando lhe ocorreu outro pensamento. Deixaria aquilo para depois. Provou o pão e o caldo de carne.

 

— Você não só sabe preparar uma excelente infusão medicinal como também é uma boa cozinheira.

 

Jaenelle fungou magoada e olhou-o com raiva.

 

— Foi a Sra. Beale que fez este prato. Eu não sei cozinhar.

 

Lucivar comeu outra colherada e deu de ombros.

 

— Cozinhar não é tão complicado. — Ergueu os olhos e se perguntou se alguma vez um homem adulto teria sido espancado até a morte com uma colher de sopa.

 

— Você sabe cozinhar? — Ela perguntou com ar ameaçador. Bufou. — Há alguma razão para tantos machos saberem cozinhar?

 

Lucivar mordeu a língua para não dizer “instinto de sobrevivência”. Comeu um pouco mais.

 

— Posso ensinar você a cozinhar. Com uma condição.

 

— Qual?

 

Logo antes de responder, sentiu uma delicada fragilidade em Jaenelle, mas só poderia responder como o Príncipe dos Senhores da Guerra que era.

 

— A cama tem espaço para dois — disse, serenamente, percebendo a rapidez com que Jaenelle empalideceu. — Se você não se sentir à vontade, não há problema. Mas se alguém vai dormir em frente à lareira, esse alguém sou eu.

 

Vislumbrou uma centelha de ira, rapidamente dominada pela garota.

 

— Você precisa da cama — disse Jaenelle, entre dentes. — O tratamento não terminou.

 

— Como não há mais ninguém para tomar conta de você, eu, como Príncipe dos Senhores da Guerra, tenho o dever e o privilégio de me encarregar da sua proteção. — Ele invocava tradições antiquíssimas, há muito ignoradas em Terreille. Mas soube, pelo resmungo frustrado de Jaenelle, que elas prevaleciam em Kaeleer.

 

— Muito bem — disse ela, escondendo as mãos trêmulas no colo. — Vamos dividir a cama.

 

— E os cobertores — acrescentou Lucivar.

 

O olhar hostil, misturado com o sorriso contido, revelou que Jaenelle não sabia o que pensar dele. Não importava. Nem ele mesmo sabia.

 

— Acho que também vai querer uma almofada.

 

Lucivar sorriu de forma indolente e arrogante.

 

— É claro. E prometo que não vou chutar você se roncar.

 

Como dominava o idioma eyrieno, os palavrões da garota poderiam fazer corar o capitão de um campo de caça.

 

Só mais tarde ele se lembrou, quando estava confortavelmente deitado de bruços na cama, com as asas abertas e ligeiramente apoiadas, e depois de Jaenelle e os lobos terem saído para dar um volta — uma palavra risível que afinal era uma descrição exata da dança intrincada e peluda realizada por três lobos em volta da garota, enquanto passeavam no fim da tarde.

 

Ele havia se lançado na Pista de Khaldharon com a intenção de morrer e, em vez disso, além de ter sobrevivido, encontrara também o mito vivo, a sua Rainha desejada.

 

Embora Lucivar sorrisse, as lágrimas começaram a cair, intensas e amargas.

 

Estava vivo. E Jaenelle estava viva. Daemon, porém...

 

Não sabia o que teria acontecido no Altar de Cassandra ou como aquele lençol tinha ficado encharcado com o sangue de Jaenelle ou o que Daemon teria feito, mas começava a entender o que aquilo custara.

 

Escondendo o rosto na almofada para abafar os soluços, fechando os olhos com força para rejeitar as imagens invocadas pela mente, viu Daemon. Em Pruul, naquela noite, extenuado, embora determinado. Nas ruínas do Paço dos SaDiablo em Terreille, destruído pelo pesadelo da loucura e disposto a morrer. Ouviu, novamente, a negação apavorada e enfurecida de Daemon. Ouviu, novamente, o grito angustiado que se erguia das pedras quebradas.

 

Naquela noite, se não estivesse tão dominado pelo ressentimento, se tivesse partido com Daemon, teriam encontrado uma forma de atravessar os Portões. E teriam encontrado Jaenelle, e passariam estes anos com ela, vendo-a crescer, participando das experiências que transformariam a criança na mulher, na Rainha.

 

Lucivar ainda faria isso. Estaria com ela nos últimos anos de transformação e conheceria o prazer de servi-la.

 

Daemon, porém...

 

Lucivar mordeu a almofada, abafando seu próprio grito angustiado.

 

Daemon, porém...

 

Lucivar estava nas margens do bosque e não se sentia completamente preparado para sair da sombra da floresta e entrar no campo banhado pelo sol. Os dias andavam quentes o suficiente para se apreciar a sombra. Além disso, Jaenelle estava fora, numa espécie de viagem obrigatória, por isso não havia razão para pressa.

 

Num passo rápido, Fumaça escolheu uma árvore, levantou uma perna e olhou com expectativa, para Lucivar.

 

— Já marquei território bem lá atrás — informou Lucivar.

 

O suspiro de Fumaça era uma clara indicação do que os lobos pensavam sobre a capacidade humana de marcar território.

 

Bem-humorado, Lucivar esperou até Fumaça se afastar apressado antes de avançar para a luz do sol e abrir as asas para secá-las. A lagoa que Jaenelle lhe indicara ainda não tinha esquentado o suficiente, mas ele apreciara o mergulho refrescante.

 

Balançou as asas devagar, saboreando o momento. Estava no meio do tratamento. Se tudo continuasse indo bem, na semana seguinte faria um teste de voo com as asas. Era difícil ser paciente, mas, no final do dia, ao sentir a dor genuína e serena nos músculos, sabia que Jaenelle estava avançando no ritmo certo.

 

Fechou as asas e caminhou tranquilamente de volta para a cabana.

 

Entorpecido pela atividade física a que se tinha submetido e pela temperatura elevada, demorou um pouco para perceber que havia algo errado na forma como os dois jovens lobos corriam na sua direção. Jaenelle ensinara-o a se comunicar com os parentes. Lucivar ficara lisonjeado ao saber que eles eram bastante seletivos em relação aos humanos com quem decidiam falar. No entanto, neste momento, procurando se preparar ao ver os lobos correndo na sua direção, perguntou-se até que ponto a opinião que tinham dele dependeria da presença de Jaenelle.

 

Um minuto depois, estava mergulhado em pelo, tentando se equilibrar enquanto o lobo atrás dele o abraçou pela cintura com as patas dianteiras e o empurrou para a frente, e o animal que estava à sua frente colocou as patas nos seus ombros e lambeu seu rosto com cuidado, ganindo à espera de encorajamento.

 

Os pensamentos dos lobos chocavam-se em sua mente, perturbados demais para fazerem sentido.

 

A Senhora tinha voltado. Alguma coisa ruim estava prestes a acontecer. Os animais estavam receosos. Fumaça montava guarda, à espera de Lucivar. Lucivar tinha de ir agora. Era humano. Ajudaria a Senhora.

 

Ele se sentiu livre o suficiente para começar a caminhar às pressas até a cabana. Não haviam lhe dito que ela estava mal, portanto não estava ferida. Mas alguma coisa ruim estava prestes a acontecer. Alguma coisa que os deixava receosos de entrar na cabana e de estar com ela.

 

Lembrou de Fumaça ter ficado apreensivo quando Jaenelle lhe disse que se ausentaria por alguns dias.

 

Alguma coisa ruim. Alguma coisa que um humano poderia melhorar.

 

Esperava que eles tivessem razão.

 

Abriu a porta da cabana e compreendu o receio dos lobos.

 

Jaenelle estava sentada na cadeira de balanço em frente à lareira, fitando o vazio.

 

A dor psíquica no quarto o atordoava. O escudo psíquico em volta de Jaenelle parecia ilusoriamente passivo, tão fácil de eliminar como uma teia de aranha. No entanto, sob a passividade jazia algo que, ao ser libertado, teria efeitos brutais.

 

Apertando as asas bem junto ao corpo, Lucivar contornou o escudo, cautelosamente, até ficar de frente para a garota.

 

A Joia Negra em volta do pescoço de Jaenelle resplandecia com um fogo mortífero.

 

Lucivar estremeceu, sem saber se temia por ele mesmo ou por ela. Fechou os olhos e fez promessas impulsivas para as Trevas permitirem que ele não vomitasse ali mesmo.

 

Como havia morado em Terreille durante a maior parte da vida, Lucivar sabia reconhecer alguém que tivesse sido torturado. Imaginava que Jaenelle não teria sido machucada fisicamente, mas havia tipos imperceptíveis de abusos tão destrutivos quanto. Sem dúvida seu corpo tinha pagado um preço terrível nos últimos quatro dias. O que ela engordara fora consumido, levando também o músculo que ela havia adquirido treinando com ele. A pele de seu rosto estava retesada e tinha um aspecto tão frágil que parecia prestes a rasgar. Seus olhos...

 

Não conseguia suportar o que via nos olhos.

 

Ela estava ali sentada, esvaindo-se em sangue por causa de uma ferida na alma e Lucivar não sabia como ajudá-la, não sabia se haveria algo que pudesse fazer que a ajudasse realmente.

 

— Gata? — chamou, com delicadeza. — Gata?

 

Sentiu a repulsa dela quando enfim olhou para ele, viu as emoções que se contorciam naqueles olhos inquietos e insondáveis.

 

Piscou. Mordeu o lábio inferior com força suficiente para sangrar. Voltou a piscar.

 

— Lucivar. — Não era uma pergunta nem uma afirmação. Era uma identificação dolorosamente extraída do fundo do seu interior. — Lucivar. — Os olhos se encheram de lágrimas. — Lucivar? — Uma súplica por consolo.

 

— Abaixe o escudo, Gata. — Viu-a com dificuldade para entender. Doces Trevas, como era jovem. — Abaixe o escudo. Deixe-me passar.

 

O escudo se dissolveu. Assim como Jaenelle. Mas ela já estava nos braços de Lucivar quando começou a chorar convulsivamente. Lucivar se sentou na cadeira de balanço e abraçou-a com força, murmurando sons reconfortantes, tentando lhe transmitir algum calor com massagens em seus membros gelados.

 

Quando ela parou de soluçar e começou apenas a fungar, passou o rosto nos cabelos de Jaenelle.

 

— Gata, acho que é melhor levar você para a casa do seu pai.

 

— Não! — Empurrou-o, lutando para se libertar.

 

As unhas poderiam ter chegado até seus ossos. O veneno do dente de serpente poderia matar dois dele. Um fluxo das Joias Negras poderia ter destruído suas barreiras interiores, transformando-o num mero invólucro gosmento.

 

Em vez disso, ela se debateu inutilmente contra um corpo mais forte. Isso lhe disse mais sobre o temperamento de Jaenelle do que qualquer outra coisa que pudesse ter feito — e também explicou por que isso acontecera, em primeiro lugar. Em algum momento, seu temperamento havia se libertado e o resultado a assustara muito. Naquele momento, ela não confiava em si mesma para demonstrar qualquer tipo de raiva — mesmo que fosse em legítima defesa. Bem, Lucivar podia fazer algo em relação a isso.

 

— Gata...

 

— Não. — Empurrou-o mais uma vez. No entanto, fraca demais para continuar lutando, caiu em cima de Lucivar.

 

— Por quê? — Podia pensar numa razão para ela ter medo de ir para casa.

 

As palavras saíram de rompante.

 

— Sei que estou com um aspecto horrível. É por isso que não posso ir para casa agora. Se papai me visse, ficaria preocupado. Iria querer saber o que aconteceu, e não posso lhe dizer, Lucivar. Não posso. Ficaria zangadíssimo, voltaria a discutir com os membros do Conselho das Trevas e isso só lhe traria mais problemas.

 

Na opinião de Lucivar, o pai de Jaenelle explodir num surto de raiva assassina pelo que tinha sido infligido à filha seria bastante positivo. Infelizmente, Jaenelle não concordava. Preferia suportar algo que a devastasse a causar problemas entre seu querido papai e o Conselho das Trevas. Isso poderia convir a ela, ao Conselho das Trevas e a seu papai, mas não a Lucivar.

 

— Isso não é o suficiente, Gata — disse, mantendo a voz baixa. — Ou você me diz o que aconteceu ou levo você ao seu pai agora mesmo.

 

Jaenelle fungou.

 

— Você não sabe onde ele mora.

 

— Ah, tenho certeza de que se fizer um grande escândalo, alguém terá muito prazer em me dizer onde encontrar o Príncipe dos Senhores da Guerra de Dhemlan.

 

Jaenelle examinou seu rosto.

 

— Você é um cretino, Lucivar.

 

Ele sorriu com um ar indolente e arrogante.

 

— Eu lhe disse isso da primeira vez que nos encontramos. — Aguardou um momento, esperando não ter de instigá-la, mas sabendo que teria de ser assim. — Como vai ser, Gata?

 

Jaenelle se contorceu. Ele compreendia esse gesto. Se alguém o colocasse entre a cruz e a espada, também se contorceria. Sentiu que Jaenelle pretendia se distanciar fisicamente antes de lhe contar. Mas imaginava que ouviria algo mais próximo da verdade se a mantivesse presa em seu colo.

 

Cedendo, por fim, ela ajeitou o cabelo e suspirou.

 

— Aos doze anos, fui gravemente ferida...

 

Tinha sido assim que lhe explicaram a violação? Fora ferida?

 

— ... e papai tornou-se meu tutor legal. — Parecia estar com dificuldades para respirar e sua voz baixou de tal forma que, mesmo tão próximo, Lucivar teve de se esforçar para ouvi-la. — Despertei, voltei ao meu corpo, dois anos depois. Estava... diferente quando voltei, mas papai me ajudou a reconstruir minha vida, uma coisa de cada vez. Contratou professores e estimulou meus amigos a me visitarem. Ele me compreendia. — Sua voz ganhou um tom ácido. — Contudo, o Conselho das Trevas não achou que papai fosse um tutor apropriado e tentaram me afastar dele e do resto da família. Por isso, impedi que fizessem isso e tiveram de me deixar ficar com papai.

 

Ela os impedira. Lucivar imaginou de que maneiras poderia ter feito isso. Pelo visto, não fora suficiente.

 

— Para tranquilizar o Conselho, concordei em passar uma semana a cada temporada na companhia de famílias aristocráticas da Pequena Terreille.

 

— Isso não explica o motivo de você ter voltado nestas condições — disse Lucivar, com toda a calma. Massageou o braço de Jaenelle, tentando aquecê-la. Ele transpirava. Ela ainda tremia de frio.

 

— É como se eu voltasse a viver em Terreille — sussurrou Jaenelle. Seus olhos voltaram a ficar perturbados. — Não, pior do que isso. É como viver em... — Fez uma pausa, desorientada.

 

— Até os aristocratas da Pequena Terreille precisam comer — disse ele, com delicadeza.

 

Jaenelle ficou com o olhar perdido. Sua voz estava inexpressiva.

 

— Não podemos confiar na comida. Nunca confie na comida. Mesmo que seja provada antes, nem sempre será possível detectar a maldade até que seja tarde demais. Não podemos dormir. Não devemos dormir. Vão nos achar, de qualquer maneira. As mentiras são verdades, e a verdade é castigada. Garota má. Garota ruim da cabeça por inventar mentiras assim.

 

Um murro gelado socou os rins de Lucivar enquanto ele imaginava qual seria o pesadelo que Jaenelle estava percorrendo em sua paisagem interior.

 

Segurando o queixo entre o polegar e o indicador, Lucivar virou-se para ela, forçando-a a olhar para ele.

 

— Você não é uma garota má, não está ruim da cabeça e não está mentindo — disse, com firmeza.

 

Jaenelle pestanejou. Seu olhar era confuso.

 

— O quê?

 

Teria entendido se ele lhe dissesse o que acabara de ouvir? Duvidava.

 

— Então a comida não presta e você não dorme bem. Mas isso ainda não é o suficiente para explicar o estado em que você voltou. O que fizeram com você, Gata?

 

— Nada — sussurrou Jaenelle, fechando os olhos. Cada palavra parecia arrancada dela. — É que os rapazes esperam ser beijados e...

 

— Esperam o quê? — rosnou Lucivar.

 

— Sou f-f-frígida e...

 

— Frígida! — exclamou Lucivar, ignorando o grito assustado da garota. — Você tem dezessete anos. Esses filhos da puta não deveriam tentar nada com você que pudesse sequer levantar a questão de ser ou não “frígida”. E, em nome do Inferno, onde estavam os responsáveis?

 

Ele se balançava furioso, afagando o cabelo dela com uma das mãos enquanto o outro braço a envolvia, protegendo-a. Saiu rapidamente da neblina vermelha ao ouvir o pequeno grito de dor de Jaenelle quando beliscou seu braço sem querer. Resmungou um pedido de desculpas, colocou-a de novo no colo e começou a balançar em um ritmo mais relaxante. Passados alguns minutos, sacudiu a cabeça.

 

— Frígida — disse, com um suspiro de aversão. — Bem, Gata, se relutar em que alguém babe em cima de você ou a apalpe e aperte é a definição deles de frigidez, neste caso também sou frígido. Eles não têm qualquer direito de usar você, não importa o que digam. Qualquer homem que lhe diga o contrário merece uma faca no peito. — Olhou para ela, examinando-a, e, em seguida, balançou a cabeça. — Provavelmente, dilacerar um homem não seria fácil para você. Não faz mal. Para mim é.

 

Jaenelle arregalou os olhos.

 

Ele pôs a mão em sua nuca e a massageou com delicadeza.

 

— Ouça com atenção, Gata, só direi isto uma vez. Você é a Senhora mais requintada que já conheci e minha amiga mais querida. Além disso, amo você como uma irmã. O canalha que magoar minha irmãzinha terá de se ver comigo.

 

— Você n-não pode — murmurou. — O acordo...

 

— Eu não faço parte do maldito acordo. — Sacudiu-a de leve, imaginando uma forma de fazer com que aquele olhar frágil e magoado desaparecesse. Foi então que abriu um sorriso. Teria de agir como agiria com qualquer felino que quisesse provocar: irritando-a. — Além do mais, Senhora — disse, com um rosnado cortês —, você quebrou a promessa solene que fez para mim. E quebrar uma promessa feita a um Príncipe dos Senhores da Guerra é uma ofensa gravíssima.

 

Os olhos de Jaenelle soltavam faíscas. Ele quase conseguia ver suas costas se arquearem e o pelo inexistente se arrepiando. Talvez não precisasse ir tão fundo para trazer à superfície um pouco da sua índole.

 

— Nunca fiz isso!

 

— Fez, sim. Lembro-me claramente de ensinar você o que fazer caso...

 

— Eles não estavam atrás de mim!

 

Lucivar semicerrou os olhos.

 

— Não tem amigos machos que sejam humanos?

 

— Claro que tenho!

 

— E nenhum deles levou você para os fundos do celeiro e lhe ensinou a usar o joelho?

 

De repente, Jaenelle começou a olhar para as unhas.

 

— Foi o que pensei — disse Lucivar, com frieza. — Por isso, você tem duas opções. Se algum desses elegantes e pervertidos machos aristocratas lhe fizer algo que não aprove, você pode lhe dar uma forte joelhada no saco, ou eu vou começar pelos pés e terminar no pescoço, quebrando todos os ossos pelo caminho.

 

— Você não faria isso.

 

— Não é assim tão difícil. Já fiz isso antes.

 

Aguardou um minuto e bateu no queixo de Jaenelle, que fechou a boca.

 

Nesse momento, ela parecia distante.

 

— Mas, Lucivar — disse, fragilmente. — E se a culpa for minha por ele estar excitado e precisar se aliviar?

 

Ele bufou, bem-humorado.

 

— Você não caiu nessa, não é?

 

Jaenelle semicerrou os olhos até eles virarem uma mínima fenda.

 

— Não sei como funciona em Kaeleer, mas, em Terreille, os rapazes podiam se registrar numa casa da Lua Vermelha e, além de conseguirem o “alívio” desejado, também podiam aprender mais do que uma transa de trinta segundos.

 

Jaenelle fez um som abafado que poderia ser uma gargalhada reprimida.

 

— E, se não tiverem dinheiro para uma casa da Lua Vermelha, podem se aliviar sozinhos com muita facilidade.

 

— Como?

 

Lucivar conteve a cara feia. Às vezes, despertar sua atenção era tão fácil como fazer um novelo de linha rolar diante de um gatinho.

 

— Não sei bem se seu irmão mais velho seria a pessoa mais indicada para lhe dar essa explicação — disse, um pouco formal.

 

Jaenelle observou Lucivar.

 

— Você não gosta de sexo, não é?

 

— Não das experiências que tive, é verdade. — Passou a mão pelos dedos de Jaenelle, pois precisava ser honesto. — Mas sempre pensei que, se gostasse de uma mulher, seria maravilhoso lhe dar esse tipo de prazer. — Sacudiu-se e pôs Jaenelle de pé. — Chega desta conversa. Você precisa comer e recuperar as forças. Há sopa de caldo de carne e um pão fresco.

 

Jaenelle empalideceu.

 

— Acho que não vou conseguir. Não depois de...

 

— Tente.

 

Quando se sentaram para comer, ela conseguiu engolir três colheres de sopa e um bocado de pão antes de correr para o banheiro.

 

Lucivar começou a tirar a mesa. Estava colocando a sopa de volta na panela quando Fumaça entrou furtivamente na cozinha.

 

*Lucivar?*

 

Lucivar ergueu sua tigela.

 

— Está servido?

 

Fumaça ignorou a oferta.

 

*Agora chegar sonhos ruins. Magoar a Senhora. Não falar com a gente, não querer nos ver, não querer machos perto. Não comer, não dormir, andar andar andar, rosnar para a gente. Agora sonhos ruins, Lucivar.*

 

*Os sonhos ruins vêm sempre depois destas visitas?*, perguntou Lucivar, limitando os pensamentos a um fio masculino.

 

Fumaça cerrou os dentes num rosnado mudo.

 

*Sempre.*

 

Lucivar sentiu um nó no estômago. Então aquilo não terminava assim que ela saía da Pequena Terreille.

 

*Quanto tempo isso dura?* Os parentes tinham um sentido fluido do tempo, mas pelo menos Fumaça compreendia as diferenças básicas entre dia e noite.

 

Fumaça inclinou a cabeça.

 

*Noite, dia, noite, dia... talvez noite.*

 

Logo, Jaenelle passaria esta noite e os próximos dois dias tentando superar os pesadelos que espreitavam, esgotando o corpo já exausto, que sucumbiria impiedosamente por falta de comida, água e repouso. Que tipos de sonhos poderiam levar uma jovem mulher a tal crueldade masoquista?

 

Naquela noite, descobriu a resposta.

 

A alteração na respiração de Jaenelle despertou-o bruscamente de um sono leve. Apoiando-se num braço, ele estendeu o outro para tocar seu ombro.

 

*Não poder acordar quando chegar sonhos ruins.* Ao pé da cama, os olhos de Fumaça brilhavam ao luar.

 

*Por quê?*

 

*Não nos ver. Não nos conhecer. Tudo sonhos.*

 

Lucivar praguejou em silêncio. Se cada som, cada toque fosse engolido pela paisagem onírica...

 

O corpo de Jaenelle se curvou, rígido.

 

Lucivar observou os músculos tensos e inflexíveis e voltou a praguejar. Na manhã seguinte, ela estaria completamente dolorida.

 

A tensão abandonou o corpo. Jaenelle sucumbiu no colchão, contorcendo-se, gemendo, suada.

 

Precisava acordá-la. Nem que fosse necessário colocá-la debaixo do chuveiro ou caminhar com ela o resto da noite pelos campos, mas iria acordá-la.

 

Voltou a estender a mão... e Jaenelle começou a falar.

 

Cada palavra era um golpe físico enquanto as memórias jorravam.

 

Lucivar inclinou a cabeça e, com o corpo tremendo, ouviu Jaenelle falar sobre e com Marjane, Myrol, Rebecca, Dannie e, em especial, Rose. Ouviu os horrores testemunhados e suportados por meninas num lugar chamado Briarwood. Ouviu os nomes dos homens que machucaram todas elas. E sofreu com Jaenelle enquanto ela revivia a violação que dilacerara seu corpo e estilhaçara sua mente, a violação que a levara, em desespero, a tentar romper a ligação entre o corpo e o espírito.

 

Mergulhando uma vez mais no abismo inalcançável, respirou profunda e irregularmente, murmurou um nome e sossegou.

 

Ficou olhando para ela durante vários minutos até ter a certeza quase absoluta de que seu sono era profundo. Então, foi ao banheiro e vomitou em silêncio.

 

Bochechou, foi para a cozinha sem fazer barulho e serviu uma dose generosa de uísque. Saiu nu para o alpendre, permitindo que a brisa noturna secasse o suor da pele enquanto bebia.

 

Fumaça saiu da cabana e ficou tão próximo que seu pelo fazia cócegas na pele nua de Lucivar. Os dois jovens lobos estavam aninhados na extremidade mais distante do alpendre.

 

*Nunca se lembra, não é?*, Lucivar perguntou a Fumaça.

 

*Não. As Trevas são bondosas.*

 

Talvez ela não estivesse preparada para enfrentar aquelas recordações. Com certeza, não iria forçá-la. Porém, tinha a sensação perturbadora de que chegaria o dia em que alguém ou alguma coisa a forçaria a abrir a porta, e, nesse momento, ela teria de enfrentar o passado. Até lá, manteria certas questões em silêncio — e esperava que ela o perdoasse.

 

Percebera o sofrimento de Jaenelle ao falar dos homens que a machucaram. Percebera o seu sofrimento ao falar sobre o homem que a violara.

 

Mas na única vez em que havia mencionado Daemon, seu nome soara como uma promessa, uma carícia.

 

Contendo as lágrimas e dominando a culpa que sentia, Lucivar terminou o uísque e entrou na cabana.

 

Lucivar instalou-se no tronco da árvore que marcava o ponto intermediário habitual para os passeios. O verão havia terminado. Ele estava completamente recuperado. Dois dias antes, completara com sucesso a Pista de Khaldharon. Ontem, com Jaenelle, fora às Ilhas do Fogo para brincar com os pequenos dragões de lá. Hoje, passaria o dia à toa de bom grado, mas alguma coisa havia tirado Jaenelle da cabana naquela manhã no momento em que voltavam, e, pela forma como ela se esquivava das suas perguntas, era evidente que tinha a ver com ele.

 

Bem, como não fora possível atrair a gatinha com um novelo de lã, com certeza um rápido mergulho numa banheira de água fria a provocaria.

 

— Você podia ter me avisado, Gata.

 

Jaenelle se agitou.

 

— Avisei para você prestar atenção no ângulo ao deslizar naquela onda. — Olhou de relance para o tronco de Lucivar. Mordeu o lábio inferior. — Lucivar, esse hematoma negro tem um aspecto horrível. Tem certeza...

 

— Eu não estava falando da onda — disse Lucivar, entre os dentes. — Estava me referindo às frutas azedas.

 

— Ah. — Jaenelle se sentou junto ao tronco e olhou para ele de soslaio. — Bem, pensei que o nome funcionasse como aviso para uma pessoa não sair mordendo uma fruta desconhecida.

 

— Eu estava com sede. Você havia me dito que tinha bastante suco.

 

— E tem — reafirmou Jaenelle, tão racional que ele ficou com vontade de lhe dar uma surra. Ela abraçou os joelhos. — Os dragões ficaram bastante impressionados com os sons que você emitiu. Não sabiam se estava demonstrando pretensões territoriais ou se era um ritual de acasalamento.

 

Lucivar estremeceu ao se lembrar do momento em que mordera aquele fruto com um nome tão adequado. Cheio de suco, era verdade. Ao mordê-lo, o líquido inundara sua boca, com uma doçura maravilhosa por um instante. Logo os dentes se crisparam e a garganta se fechou ao sentir a acidez. Esperneara e gritara de tal forma que entendia por que os dragões acharam que estava fazendo uma dança de acasalamento eyriena. Para piorar, os dragões tinham comido as frutas azedas durante aquele seu ataque ridículo, enquanto Jaenelle as mordia com elegância e observava a cena de olhos arregalados, apreensiva.

 

Aquela traidorazinha. Estava sentada ao seu alcance, a tolinha que confiava nele. Desarmada. Queria sentir sua pele nas mãos. O estrangulamento seria rápido demais, definitivo. Podia puxá-la, deitá-la no seu colo e bater em seu traseiro até ficar com a mão em brasa...

 

Jaenelle mudou de posição, saindo de seu alcance.

 

Lucivar sorriu, com os dentes cerrados, em reconhecimento do movimento.

 

Distanciando-se um pouco mais, Jaenelle começou a arrancar a grama.

 

— Uma vez, dei uma fruta azeda à Sra. Beale — disse, baixinho.

 

Lucivar tinha o olhar fixo nos campos. Nos últimos três meses, havia escutado muitas histórias sobre a cozinheira que trabalhava para a família de Jaenelle.

 

— Disse a ela como se chamavam?

 

— Não. — Um sorriso vago e satisfeito surgiu nos lábios de Jaenelle.

 

Lucivar cerrou os dentes.

 

— O que aconteceu?

 

— Bem, Papai me perguntou se eu sabia o motivo daqueles berros que vinham da cozinha e eu disse que achava que sim. Ele respondeu: “Compreendo.” Em seguida me enfiou em uma das nossas carruagens e disse a Khary para me levar para a casa de Morghann, uma vez que Scelt fica do outro lado do Reino.

 

Lucivar esforçava-se para manter uma expressão séria. Apertou o pulso esquerdo com a mão direita com força suficiente para doer. Ajudou.

 

— Na manhã seguinte, a Sra. Beale encurralou papai no escritório e disse que eu tinha lhe dado um novo tipo de fruta e que, depois de pensar no assunto, ela havia decidido usá-la para realçar o sabor de vários pratos simples. Por isso gostaria que eu colhesse algumas. Em seguida, colocou um cesto de vime na mesa de papai. Ele disse que não sabia de onde vinha a fruta e a Sra. Beale retrucou que obviamente eu sabia. Então papai disse com toda a educação que eu não estava em casa e a Sra. Beale sugeriu que ele fosse me procurar e que trouxéssemos a tal fruta. Assim, papai foi me procurar e levamos a fruta. E como as Ilhas do Fogo são um Território restrito, a Sra. Beale é invejada por outras cozinheiras por esse tempero especial.

 

Lucivar esfregou a cabeça com força, alisando depois o cabelo preto, que batia na altura dos ombros.

 

— A Sra. Beale é mais forte que seu pai?

 

— Nem de perto — disse Jaenelle, ácida, para depois acrescentar, sentidamente: — É que ela é bastante... volumosa.

 

— Gostaria de conhecer a Sra. Beale. Acho que estou apaixonado. — Reparou na expressão escandalizada de Jaenelle, então escorregou do tronco para o chão e riu. Não conseguiu parar de rir quando Jaenelle o tocou e disse, com ar preocupado: — Você estava brincando, não estava, Lucivar? Lucivar?

 

Dando um grito, puxou-a para cima dele, abraçando-a com força suficiente para agarrá-la, mas sem assustar.

 

— Você devia ser eyriena — disse, assim que conseguiu conter as gargalhadas. — Está à altura.

 

Depois, afastou o cabelo do seu rosto.

 

— O que foi, Gata? — perguntou com gentileza. — O que você tem para me dizer que é tão amargo assim que quis me dar esta explosão de doçura antes?

 

Jaenelle passou os dedos pela clavícula de Lucivar.

 

— Você está curado.

 

Quase conseguia saborear a relutância.

 

— E?

 

Ela rolou por cima dele, deu um salto e ficou de pé, num movimento mais gracioso do que qualquer criatura domada poderia realizar.

 

Lucivar levantou-se devagar, abriu as asas de repente para sacudir o pó e a grama, voltou a se sentar no tronco da árvore e aguardou.

 

— Até mesmo depois da guerra entre Terreille e Kaeleer, as pessoas atravessavam os Portões — disse Jaenelle baixinho, com os olhos fixos no horizonte. — A maioria havia nascido no local errado e procurava sua “terra natal”. E sempre houve algum comércio entre Terreille e a Pequena Terreille.

 

“Há alguns anos, o Conselho das Trevas aceitou uma convivência mais aberta com Terreille e muitos dos Sangue aristocratas começaram a ir para ver o Reino das Sombras. A quantidade de Sangue de classe mais baixa que pretendia imigrar para Kaeleer deveria ter servido como aviso ao Conselho sobre o estado das cortes em Terreille. No entanto, a Pequena Terreille abriu os braços para acolher os laços de sangue. Mas Kaeleer não é Terreille. A Lei dos Sangue e o Protocolo podem ter interpretações... diferentes.

 

“Foram muitos os terreillianos que se recusaram a compreender que o que praticavam impunemente em Terreille não era tolerado em Kaeleer e morreram.

 

“Ano passado, em Dharo, três machos terreillianos violaram uma jovem feiticeira por diversão. E com tanta violência que sua mente ficou estilhaçada, e nada restou para guiá-la de volta ao corpo. Tinha a minha idade.”

 

Lucivar concentrou-se nos punhos cerrados, forçando-os a se abrirem.

 

— Pegaram os canalhas?

 

Jaenelle deu um sorriso sinistro.

 

— Os machos de Dharo os executaram. Foi então que baniram todos os outros terreillianos de Dharo e os enviaram de volta à Pequena Terreille. Em seis meses, a taxa de mortalidade dos terreillianos na maior parte dos Territórios estava acima de noventa por cento. Até na Pequena Terreille estava acima de cinquenta por cento. Como a matança consumiu os bons sentimentos entre os Reinos, o Conselho das Trevas aprovou algumas leis de imigração. Agora, um terreilleano que queira imigrar tem de servir a uma feiticeira de Kaeleer a seu bel-prazer durante um determinado período. Os Sangue que não usam Joias têm de servir durante dezoito meses. Os de Joias mais claras têm de servir por três anos, e os de Joias mais escuras, por cinco. As Rainhas e os Príncipes dos Senhores da Guerra de qualquer categoria têm de servir por cinco anos.

 

Lucivar se sentiu agoniado. Seu corpo estremeceu, e teve por ele uma solidariedade indiferente. A seu bel-prazer. Isso significava que a vagabunda poderia fazer o que quisesse e ele teria de aceitar se quisesse permanecer em Kaeleer.

 

Tentou rir. Soou apavorado.

 

Jaenelle ajoelhou-se a seu lado e acariciou-o com ansiedade.

 

— Lucivar, não será tão ruim assim. Sério. As Rainhas... Servir em Kaeleer não é como servir em Terreille. Conheço todas as Rainhas do Território. Posso ajudá-lo a encontrar alguém adequado, uma Rainha a quem você vai gostar de servir.

 

— Por que não posso servir você? — Envolveu os ombros de Jaenelle com as mãos, em busca de amparo, enquanto se debatia com dor e pânico. — Você gosta de mim... pelo menos parte do tempo. E formamos uma boa dupla.

 

— Ah, Lucivar — disse Jaenelle, com doçura, segurando seu rosto entre as mãos. — Eu sempre gosto de você. Mesmo quando é um chato. Mas você devia passar pela experiência de servir em uma corte em Kaeleer.

 

— Daqui a um ou dois anos, você vai constituir sua corte.

 

— Não vou constituir corte. Não pretendo ter esse tipo de poder sobre os outros. Além disso, você não quer me servir. Você não me conhece, não compreende...

 

Perdeu a paciência.

 

— O quê? Que você é a Feiticeira?

 

Ela pareceu chocada.

 

Lucivar massageou seus ombros e disse, seco:

 

— Já que usa a Negra nessa idade, é um pouco óbvio, Gata. De qualquer forma, sei quem e o que você é desde que a conheci. — Tentou sorrir. — Na noite em que nos conhecemos, eu havia pedido às Trevas uma Rainha poderosa, que eu me orgulhasse de servir, e você apareceu. Claro que era um pouco mais nova do que eu imaginava, mas eu não ia me importar com isso. Gata, por favor. Esperei a minha vida toda para servi-la. Farei o que quiser. Por favor, não me mande embora.

 

Jaenelle fechou os olhos e encostou a cabeça no peito de Lucivar.

 

— Não é assim tão fácil, Lucivar. Mesmo que aceite o que eu sou...

 

— Aceito verdadeiramente o que você é.

 

— Há outras razões que poderão levá-lo a perder a vontade de me servir.

 

Dentro de Lucivar, alguma coisa se acalmou. Compreendia o costume de realizar testes ou desafios para receber um privilégio. Percebesse ou não, ela estava lhe dando uma chance.

 

— Quantas?

 

Ela olhou para ele, confusa.

 

— Quantas razões? Diga um número, agora. Se eu puder aceitá-las, então poderei optar por servi-la. É justo.

 

Jaenelle olhou-o de forma estranha.

 

— E você vai ser honesto com você mesmo e comigo sobre poder aceitá-las, certo?

 

— Sim.

 

Afastou-se, sentando-se fora do alcance de Lucivar. Depois de alguns minutos de silêncio tenso, disse:

 

— Três.

 

Três. Não eram doze ou nem nenhum outro número grande demais para que se preocupasse. Apenas três. O que significava que tinha de encará-las com seriedade.

 

— Muito bem. Quando?

 

Jaenelle se levantou, com elegância.

 

— Agora. Faça a mala para passar a noite. — Foi para a cabana num passo apressado.

 

Lucivar seguiu-a, embora não tentasse alcançá-la. Três testes determinariam os próximos cinco anos da sua vida.

 

Jaenelle seria justa. Gostasse ou não do resultado final, seria justa. E ele também.

 

Ao se aproximar da cabana, os lobos correram para cumprimentá-lo, oferecendo um conforto peludo ao membro adotivo da alcateia.

 

Lucivar afagou os lobos. Se tivesse de servir outra feiticeira, voltaria a vê-los?

 

Seria honesto. Não abusaria da confiança que Jaenelle depositava nele.

 

Mas iria vencer.

 

O coração de Lucivar batia acelerado. Nunca estivera no interior da Fortaleza, nem mesmo num pátio exterior. Um bastardo mestiço não era digno de entrar naquele local. Se nada tivesse aprendido nos campos de caça eyrienos, pelo menos saberia que, não importava as Joias que usasse ou a destreza com as armas, suas origens tornavam-no indigno de lamber as botas daqueles que viviam em Ebon Askavi, a Montanha Negra.

 

Agora, aqui estava, caminhando ao lado de Jaenelle, pelos aposentos majestosos com tetos abobadados, pátios e jardins a céu aberto, um labirinto de corredores amplos — e um arrepio o avisava de que algo o vigiava desde que entrara na Fortaleza. Algo que esvoaçava nas pedras, se escondia nas sombras, criava sombras onde não deveriam existir. Não era ruim — pelo menos, por enquanto. Contudo, as histórias sobre o que se escondia na Fortaleza eram histórias contadas à lareira que assustavam os garotinhos e lhes tiravam o sono.

 

Lucivar retesou o ombro e seguiu a Senhora.

 

Quando chegaram aos andares superiores que pareciam mais habitados, Lucivar começou a observar com ansiedade os bancos e cadeiras pelos corredores, prometendo a si mesmo um gole de água na próxima cascata decorativa ou fonte pela qual passassem.

 

Jaenelle nada dissera desde o momento em que deixaram a teia de desembarque no pátio exterior. Seu silêncio era solidário, embora não fosse reconfortante. Compreendia isso. Ebon Askavi era a casa da Feiticeira. Se viesse a servi-la, teria de se adaptar ao local sem depender dela.

 

Ao chegar a um cruzamento entre corredores, Jaenelle olhou para a esquerda e sorriu.

 

— Olá, Draca. Este é Lucivar Yaslana. Lucivar, esta é Draca. A Senescal da Fortaleza.

 

O odor psíquico de Draca, cheio de velhice e poder obscuro e antigo, o deixava nervoso, assim como suas feições reptílicas. Fez uma reverência respeitosa, mas estava nervoso demais para um cumprimento adequado.

 

Ela o encarou com aqueles olhos que não piscavam. Lucivar detectou uma rajada de emoção que o deixou ainda mais nervoso. Por alguma razão, ela achava graça nele.

 

— Então, você finalmente veio — disse Draca. Quando Lucivar não respondeu, virou-se para Jaenelle. — É tímido?

 

— De jeito algum — disse Jaenelle, com um ar divertido. — Mas acho que está um pouco atordoado. Fizemos um longo tour pela Fortaleza.

 

— E ainda esstá de pé? — Draca pareceu aprovar.

 

Lucivar teria apreciado ainda mais essa aprovação se suas pernas não estivessem tremendo tanto.

 

— Temoss visitass. Acadêmicoss. Deseja jantar em particular?

 

— Sim, obrigada — respondeu Jaenelle.

 

Draca saiu do caminho, afastou-se com uma graciosidade cautelosa e antiquíssima.

 

— Deixarei que prossigam a visita. — Voltou a encarar Lucivar. — Bem-vindo, Príncipe Yasslana.

 

Jaenelle o conduziu por outro labirinto de corredores.

 

— Tem outra pessoa a quem quero apresentá-lo. Até lá, Draca já terá preparado um quarto de hóspedes para você, com uma banheira de massagens. Vai ser bom para esses músculos tensos das suas pernas. — Estudou o rosto de Lucivar. — Ela o assustou?

 

Ele havia prometido ser honesto.

 

— Sim.

 

Jaenelle balançou a cabeça, perplexa.

 

— Todo mundo diz a mesma coisa. Eu não entendo. É uma pessoa maravilhosa depois que a conhecemos.

 

Ele olhou de relance para a Joia Negra que pendia sobre o decote em V da túnica preta e elegante e decidiu que não tentaria lhe explicar.

 

Após outro lance de escadas e muitos outros corredores, Jaenelle parou, por fim, em frente a uma porta. Esperava sinceramente que aquela viagem estivesse terminando. Ao final do corredor, havia uma porta aberta. Do aposento, vinham vozes entusiasmadas e acaloradas, embora não zangadas. Deviam ser os acadêmicos.

 

Ignorando as vozes, Jaenelle abriu a porta e eles entraram numa parte da biblioteca da Fortaleza. Uma grande mesa de madeira escura ocupava um dos lados do ambiente. Do outro lado era possível ver cadeiras confortáveis e pequenas mesas. A parede ao fundo era formada por uma série de grandes arcos. À frente deles, pilhas de dicionários e enciclopédias se estendiam a perder de vista. No arco da extremidade direita, havia uma porta embutida de madeira.

 

— O resto da biblioteca é de referência geral, Arte, folclore e história — disse Jaenelle. — O que qualquer pessoa pode consultar e usar. Estas salas contêm o material de referência mais antigo, os textos de Arte mais esotéricos e os registros dos Sangue que só podem ser consultados com a permissão do Geoffrey.

 

— Geoffrey?

 

— Sim? — respondeu uma voz calma e grave.

 

Era o homem mais pálido que Lucivar já vira. Tinha pele como mármore polido combinada com cabelo preto, olhos pretos, roupa preta e lábios de um vermelho profundo que pareciam tentadores de um jeito enervante. No entanto, havia algo estranho em seu odor psíquico, algo inexplicavelmente diferente. Como se o homem não...

 

Guardião.

 

A palavra deixou Lucivar sem ar.

 

Guardião. Um dos mortos-vivos.

 

Jaenelle fez as apresentações. Depois, sorriu para Geoffrey.

 

— Podem se conhecer melhor. Quero pesquisar uma coisa.

 

Geoffrey pareceu angustiado.

 

— Pelo menos diga-me o nome do volume antes de sair. Da última vez que não consegui informar seu pai onde você tinha “pesquisado uma coisa”, ele me brindou com algumas frases eloquentes que me fariam corar se eu ainda pudesse.

 

Jaenelle afagou o ombro de Geoffrey e beijou-o no rosto.

 

— Trago o livro aqui e até marco a página.

 

— Você é muito gentil.

 

Rindo, Jaenelle desapareceu entre os livros.

 

Geoffrey virou-se para Lucivar.

 

— Ah, bem. Então você finalmente veio.

 

Por que o faziam se sentir como se os tivesse deixado esperando?

 

Geoffrey pegou um decantador.

 

— Aceita uma taça de yarbarah? Ou outra bebida?

 

Com esforço, Lucivar conseguiu falar:

 

— Yarbarah seria ótimo.

 

— Já bebeu yarbarah alguma vez? — perguntou Geoffrey, curioso.

 

— Em algumas cerimônias eyrienas — disse. Mas o cálice usado nessas cerimônias continha apenas uma gota de vinho de sangue. Lucivar reparou, apreensivo, que Geoffrey enchia e esquentava dois copos inteiros.

 

— É de cordeiro — disse Geoffrey, oferecendo um copo a Lucivar e sentando-se numa cadeira ao lado da mesa.

 

Agradecido, Lucivar se acomodou numa cadeira em frente a Geoffrey e tomou um gole do yarbarah. Naquela mistura, havia mais sangue do que na usada nas cerimônias eyrienas, e o vinho era mais encorpado.

 

— O que acha? — Os olhos pretos de Geoffrey cintilaram.

 

— É... — Lucivar tentou encontrar algo inócuo para dizer.

 

— Diferente — sugeriu Geoffrey. — É um gosto que se vai adquirindo. Aqui bebemos por razões diferentes das cerimoniais.

 

Guardião. Será que o sangue misturado com o vinho era por vezes humano? Lucivar bebeu outro gole e decidiu que não valia a pena perguntar só para matar a curiosidade.

 

— Por que você nunca veio à Fortaleza, Lucivar?

 

Lucivar pousou o copo com cuidado.

 

— Achei que um bastardo mestiço não seria bem recebido.

 

— Compreendo — disse Geoffrey, muito tranquilo. — Mas exceto por aqueles que zelam pela Fortaleza, quem é que tem o direito de decidir quem é bem-vindo e quem não é?

 

Lucivar forçou-se a encarar Geoffrey.

 

— Sou um bastardo mestiço — repetiu, como se isso explicasse tudo.

 

— Mestiço. — Geoffrey parecia estar considerando a palavra. — Pela forma como fala, parece pejorativo. Talvez fosse mais exato pensar em linhagem dupla. — Ele se recostou, balançando o copo de vinho nas mãos. — Alguma vez lhe ocorreu que, sem essa outra linhagem, você não seria o homem que é? Que não teria a inteligência e a força que tem? — Com o copo, indicou a Joia Cinza-Ébano de Lucivar. — Que nunca teria usado essas Joias? A despeito de tudo o que tem de eyrieno, Lucivar, você também é o filho do seu pai.

 

Lucivar ficou petrificado.

 

— Você conhece meu pai? — perguntou, com a voz embargada.

 

— Somos amigos há muitos anos.

 

Estava ali, à sua frente. Só precisava formular a pergunta.

 

Precisou de duas tentativas para conseguir pronunciar as palavras.

 

— Quem é ele?

 

— O Príncipe das Trevas — disse Geoffrey, com gentileza. — O Senhor Supremo do Inferno. É a linhagem de Saetan que corre nas suas veias.

 

Lucivar fechou os olhos. Não era de admirar que a paternidade nunca tivesse sido registrada. Quem acreditaria numa mulher que declarasse ter sido fecundada pelo Senhor Supremo? E se alguém acreditasse nela, imagine o pânico que causaria. Saetan ainda caminhava pelos Reinos. Mãe Noite!

 

Será que Daemon sabia quem era o progenitor deles? Teria ficado satisfeito com esta linhagem paterna.

 

O pensamento o atravessou como uma lança e Lucivar trancou-o a sete chaves.

 

Pelo menos ainda tinha certeza de uma coisa. Talvez. Olhou para Geoffrey, temendo qualquer uma das respostas.

 

— Ainda assim, continuo sendo um bastardo.

 

Geoffrey suspirou.

 

— Fico relutante em puxar o resto do tapete debaixo dos seus pés, mas não, não é. Ele o registrou no dia seguinte ao seu nascimento. Aqui, na Fortaleza.

 

Não era bastardo. Eles...

 

— Daemon? — perguntou em voz alta.

 

— Também está registrado.

 

Mãe Noite. Não eram bastardos. Lutou com unhas e dentes, como se tentasse agarrar terra firme que se transformava em areia movediça.

 

— Não faz diferença alguma, já que ninguém sabe.

 

— Alguma vez o encorajaram a se tornar um reprodutor, Lucivar?

 

Fora encorajado, pressionado, encarcerado, castigado, sedado, sovado, forçado. Tinham conseguido usá-lo, mas nunca conseguiram fazê-lo procriar. Nunca tinha conseguido saber se havia algum motivo físico ou se, de alguma forma, sua própria raiva o mantivera estéril. Várias vezes havia se perguntado por que desejavam tanto a sua semente. Sabendo quem era seu pai e a potencial força dos descendentes que produzisse... Sem dúvida teriam vislumbrado muitas situações para que Lucivar gerasse descendentes em assembleias específicas, casas aristocráticas específicas com linhagens fracas.

 

Bebeu o yarbarah de um gole. Frio, parecia ter engrossado. Tremendo e engasgando, perguntou-se se vomitaria.

 

Um pequeno copo e um decantador apareceram.

 

— Aqui — disse Geoffrey, enchendo o copo rapidamente e entregando-o a Lucivar. — Acho que uísque é a bebida apropriada para este tipo de abalo.

 

O uísque purificou sua boca, queimando sua garganta. Estendeu o copo para mais uma dose.

 

Depois de esvaziar o quarto copo, ainda tremia, mas também se sentia distante e entorpecido. Gostava dessas sensações.

 

— O que você fez com Lucivar? — perguntou Jaenelle, colocando o livro sobre a mesa. — Pensei que eu fosse a única capaz de deixá-lo assim.

 

— Distante e entorpecido — murmurou Lucivar, encostando a cabeça em Jaenelle.

 

— Estou vendo — respondeu Jaenelle, afagando-o.

 

Lucivar sentiu-se cercado por um afeto compassivo. Isso também era bom.

 

— Vamos, Lucivar — disse Jaenelle. — Vou colocar você na cama.

 

Não queria que Jaenelle pensasse que quatro insignificantes copos de uísque o abateriam, por isso se levantou.

 

As últimas recordações antes de começar a sentir o aposento se mexer de um jeito imprevisível foram o sorriso afável de Geoffrey e a compreensão nos olhos de Jaenelle.

 

Na manhã seguinte, Jaenelle havia partido antes de Lucivar acordar, com a cabeça latejante e agitado. Ao descobrir que ela o deixara na Fortaleza, quase sentiu ódio, acusando-a em silêncio de ser fria, cruel e insensível.

 

Nos dois dias de ausência de Jaenelle, explorou a Fortaleza e a montanha Ebon Askavi. Voltava na hora das refeições, pois assim esperavam que o fizesse, falando apenas quando necessário e retirando-se para o quarto à noite. Os lobos ofereciam uma companhia silenciosa. Ele os afagava e os escovava. Finalmente, fez a pergunta que o atormentava.

 

Sim, respondeu Fumaça, relutante. Lucivar tinha chorado. Dor de coração. Dor como se tivesse sido apanhado numa armadilha. A Senhora o afagara e o afagara, cantara e cantara.

 

Sendo assim, não fora apenas um sonho.

 

Numa das paisagens oníricas que as Viúvas Negras teciam tão habilmente, Jaenelle conhecera o rapaz que ele havia sido antes e retirara o veneno da ferida na alma. Lucivar chorara pelo rapaz, por tudo o que não lhe tinha sido permitido fazer, por tudo o que não lhe tinham permitido ser. Porém, não chorara pelo homem em que havia se tornado.

 

— Ah, Lucivar — disse Jaenelle com pesar, enquanto caminhavam pela paisagem onírica. — Posso curar as cicatrizes do seu corpo, mas não as da alma. Nem as suas nem as minhas. Tem de aprender a viver com elas. Tem de decidir superá-las.

 

Não conseguiu se lembrar de mais nada do sonho. Talvez fosse de propósito. Por isso, não chorara pelo homem em que havia se tornado.

 

Lucivar e Jaenelle estavam numa das muralhas de um dos pátios externos da Fortaleza, contemplando o vale.

 

Jaenelle mostrou o povoado embaixo.

 

— Riada é o maior povoado de Ebon Rih. Agio fica na extremidade norte do vale. Doun está localizada na extremidade sul. Há também diversos povoados de plebeus e várias fazendas, dos Sangue e de plebeus. — Afastou os cabelos despenteados do rosto. — Fora de Doun, há uma grande casa de pedra, cercada por um muro de pedra. Não há como errar.

 

Lucivar aguardou.

 

— É para lá que vamos? — perguntou, por fim.

 

— Vou voltar para a cabana. Você vai para essa casa.

 

— Por quê?

 

Manteve os olhos fixos no vale.

 

— Sua mãe mora lá.

 

Uma grande casa de pedra, de três andares. Um muro baixo de pedra separando dois campos cultivados das flores silvestres e das ervas. Horta, jardim de ervas, jardins de flores, jardim de pedras. Num canto, um conjunto de árvores que sussurravam “floresta”.

 

Um lugar sólido que deveria ser acolhedor. Um lugar que não proporcionava conforto. Emoções em conflito, muito familiares, mesmo depois de tanto tempo.

 

Doces Trevas, não permita que seja ela.

 

Claro que era ela. E Lucivar se perguntou por que o teria abandonado tão pequeno que nem se lembrava dela e, mais tarde, tolerado suas visitas quando já era adolescente, sem dar a entender nem uma única vez que era sua mãe.

 

Escancarou a porta da cozinha, mas não entrou. Até transpor a soleira da porta, sua presença não seria notada. Quantas vezes lhe sugerira ampliar o escudo territorial para além das paredes de pedra em que vivia, de maneira a ficar de sobreaviso caso surgisse algum intruso?

 

Ela estava de costas para a porta, fazendo alguma coisa sem importância no balcão. Lucivar a reconhecera, de qualquer forma, pela emblemática madeixa branca no cabelo preto e pelos movimentos rígidos e irritados.

 

Entrou na cozinha.

 

— Olá, Luthvian.

 

Ela deu a volta, com uma faca de lâmina comprida na mão. Ele sabia que não era pessoal. Ela detectara o odor psíquico de um macho adulto e pegara a faca de maneira automática.

 

Olhou estupefata para Lucivar, com os olhos dourados cada vez mais arregalados, marejados.

 

— Lucivar — murmurou. Deu um passo na direção dele. Depois outro. Emitiu um som engraçado, entre uma gargalhada e um soluço. — Ela conseguiu. Conseguiu mesmo. — Estendeu-lhe os braços.

 

Lucivar olhou de relance para a faca e não avançou.

 

A confusão logo se transformou em fúria e depois em confusão outra vez. Lucivar pôde identificar o momento em que Luthvian percebeu que estava apontando uma faca para ele.

 

Mexendo a cabeça, ela pôs a faca sobre a mesa da cozinha.

 

Lucivar deu mais alguns passos.

 

Os olhos de Luthvian, cheios de lágrimas, percorriam Lucivar não como uma Curandeira estudando sua Arte de Irmã, mas como uma mulher que se preocupava de verdade. Luthvian colocou uma mão trêmula na boca e estendeu-lhe a outra.

 

Esperançoso, ele agarrou a mão dela.

 

E ela mudou. Como sempre fazia, como sempre tinha feito desde a primeira vez em que ele aparecera na sua porta, um adolescente meio animal vadio, meio bichinho de estimação, com as roupas tradicionais de um guerreiro eyrieno. Ele havia aprendido, a duras penas, que a Curandeira Viúva Negra que pensava ser sua amiga não sentia o mesmo por ele depois de ela ter deixado de chamá-lo de “garoto” e de acreditar nisso.

 

Agora, ao se afastar dele, com os olhos repletos de uma desconfiança prudente, percebeu pela primeira vez como era jovem. A idade e a maturidade eram traiçoeiras para as raças de longevidade prolongada. Havia um crescimento rápido seguido de longas estabilizações. A madeixa branca no cabelo, a perícia na Arte, o temperamento e a atitude contribuíram para que Lucivar acreditasse que Luthvian era uma mulher madura, que lhe concedia sua companhia, uma mulher séculos mais velha do que ele. Era séculos mais velha — e mal chegara à idade de conceber e carregar uma criança no ventre até o parto.

 

— Por que você despreza tanto os machos eyrienos? — Lucivar perguntou com toda a calma.

 

— Meu pai era um deles.

 

Infelizmente, não era necessário dar nenhuma explicação melhor do que esta.

 

Foi nesse momento que a viu fazer o que já fizera cem vezes antes — mudar sutilmente a forma como observava. Era como se criasse um escudo de visão que fazia com que as asas de Lucivar desaparecessem, deixando-o sem o único atributo físico que distinguia eyrienos de dhemlanos e hayllianos.

 

Engolindo a raiva e um pouco de medo, ele puxou uma cadeira e sentou-se com as pernas para os lados.

 

— Mesmo que eu perdesse as asas, não deixaria de ser um guerreiro eyrieno.

 

Movimentando-se freneticamente pela cozinha, Luthvian pegou a faca e guardou-a no suporte das facas.

 

— Se você tivesse crescido em outro lugar, onde os machos aprendem a ser homens decentes em vez de brutamontes... — Limpou as mãos na cintura. — Mas você cresceu nos campos de caça como os outros. É verdade, mesmo sem as asas não deixaria de ser um guerreiro eyrieno. É muito tarde para se transformar em outra coisa.

 

Lucivar ouviu o rancor, a mágoa. Ouviu o que não foi dito.

 

— Se você tinha tanta certeza, por que não fez nada? — Manteve a voz inexpressiva. Seu coração estava se partindo.

 

Ela olhou para ele, as emoções visíveis em seus olhos. Resignação. Ansiedade. Medo. Puxou uma cadeira para junto dele e se sentou.

 

— Não tive escolha, Lucivar — disse, suplicante. — Dar você a Prythian foi um erro, mas naquele momento achei que era a única forma de escondê-lo...

 

... dele.

 

Tocou a mão de Lucivar e afastou-a rapidamente, como se tivesse se queimado.

 

— Queria mantê-lo em segurança — acrescentou com amargura. Nesse momento, a voz se encheu de entusiasmo. — Mas agora você está aqui e podemos ficar juntos. — Mexeu a mão, silenciando-o antes que ele conseguisse falar. — Ah, eu sei muito bem que existe a lei da imigração, mas estou aqui há tempo suficiente para ser considerada uma feiticeira de Kaeleer. O trabalho não seria duro e você ficaria com bastante tempo para passear pelos campos. Sei que você gosta disso. — Sorriu com uma animação exagerada. — Nem precisaria morar aqui em casa. Poderíamos construir uma pequena cabana aqui perto para você ter sua privacidade.

 

Privacidade para quê?, perguntou-se Lucivar, com frieza, enquanto a porta interior da cozinha se abria. Sentiu que estava sendo acorrentado e fechado entre as paredes.

 

— O que você quer, Roxie? — perguntou Luthvian, ríspida.

 

Roxie observou-o e seus lábios formaram um sorriso e um beicinho.

 

— Quem é você? — perguntou, observando-o com olhos famintos.

 

— Não é da sua conta — retrucou Luthvian com severidade. — Volte já para seus estudos.

 

Roxie sorriu para Lucivar, acariciando o decote em V do vestido. Isso fez seu sangue ferver, mas não da forma que a garota imaginava.

 

Lucivar cerrou os punhos. Desfizera muitos olhares de muitos rostos ao longo dos séculos. Em sua voz havia fogo da batalha que manteve sob controle.

 

— Tire essa vagabunda daqui antes que eu quebre o pescoço dela.

 

Roxie arregalou os olhos, horrorizada.

 

Luthvian levantou-se de repente, jogou Roxie para fora da cozinha e bateu com a porta.

 

Leves tremores percorreram seu corpo.

 

— Bem, agora entendo por que precisaria de privacidade. E seria algo positivo para a escola, não é? Suas alunas poderiam dispor de um poderoso Príncipe dos Senhores da Guerra. Você poderia garantir aos pais inquietos que suas filhas teriam uma Noite da Virgem segura. Eu nem me atreveria a lhes proporcionar outra coisa, já que a feiticeira a que devo servir tem de ser servida a seu bel-prazer.

 

— Não seria bem assim — insistiu Luthvian, agarrando-se às costas de uma cadeira. — Você também teria vantagens. Fogo do Inferno, Lucivar, você é um Príncipe dos Senhores da Guerra. Precisa de alívio sexual regular para manter o temperamento sob controle.

 

— Nunca precisei — resmungou —, e não é agora que vou precisar. Consigo manter meu temperamento muito bem controlado... quando quero.

 

— Então não acho que queira isso com muita frequência!

 

— Não, não quero. Muito menos quando me levam para a cama à força.

 

Luthvian esmagou a cadeira contra a mesa. Cerrou os dentes.

 

— À força. Ah, claro, é uma tarefa difícil proporcionar algum prazer, não é? À força! Parece...

 

... o seu pai.

 

Ele havia suportado seu mau humor antes, os ataques de fúria. Sempre tentava ser compreensivo. Continuava tentando agora. O que não entendia era por que o Senhor Supremo havia desejado copular e fecundar uma jovem mulher perturbada como esta.

 

— Me fale sobre o meu pai, Luthvian.

 

A cozinha foi inundada pelo desespero e por uma profunda raiva.

 

— Isso é passado. Acabou. Ele não faz parte das nossas vidas.

 

— Me fale.

 

— Ele não nos quis! Não nos amava! Ameaçou cortar seu pescoço no berço se eu não fizesse o que ele queria. — Entre eles havia toda a extensão da mesa. Luthvian estava de pé, tremendo e se abraçando.

 

Tão jovem. Tão perturbada. E Lucivar podia ajudá-la. Eles se destruiriam em uma semana se tentasse ficar com ela naquela casa.

 

Luthvian sorriu para ele, vacilante.

 

— Podemos ficar juntos. Você pode ficar...

 

— Já sirvo a alguém. — Não pretendia dizer isso de um jeito tão rude, mas era melhor do que dizer que jamais aceitaria servi-la.

 

A vulnerabilidade virou rejeição, a rejeição se transformou em raiva.

 

— Jaenelle — disse Luthvian, com uma voz perigosamente inexpressiva. — Ela tem o dom de controlar os machos. — Apoiou as mãos sobre a mesa. — Quer saber sobre seu pai? Pergunte à sua amada Jaenelle. Ela o conhece melhor do que jamais o conheci.

 

Lucivar deu um salto e ficou de pé, derrubando a cadeira.

 

— Não.

 

Luthvian sorriu com uma malícia satisfeita.

 

— Cuidado com a forma como brinca com os brinquedos do seu pai, Principezinho. Ele pode acabar arrancando suas bolas. Não que isso tenha importância.

 

Sem desviar o olhar de Luthvian, Lucivar endireitou a cadeira e recuou até a porta da cozinha que dava para a rua. Anos de treinamento mantiveram-no estável enquanto transpunha a soleira. Mais um passo. Dois.

 

A porta se fechou na sua cara.

 

Depois de um momento, ouviu pratos partindo-se no chão.

 

Ela o conhece melhor do que jamais o conheci.

 

No final da tarde, chegou à cabana. Estava sujo, esfomeado e tremendo por causa do cansaço físico e emocional.

 

Aproximou-se lentamente, mas não teve coragem de subir para o alpendre onde Jaenelle estava sentada, lendo.

 

Ela fechou o livro e olhou para ele.

 

Olhos sábios. Olhos antigos. Olhos perturbados e perturbadores.

 

Lucivar forçou-se a proferir as palavras.

 

— Quero conhecer meu pai. Agora.

 

Jaenelle o examinou. Quando respondeu, por fim, sua dócil compaixão infligia uma dor contra a qual Lucivar não tinha defesas.

 

— Tem certeza, Lucivar?

 

Não, não tinha certeza!

 

— Sim, tenho certeza.

 

Jaenelle permaneceu sentada.

 

— Sendo assim, há algo que você deve entender antes de partirmos.

 

Ele ouviu a advertência subjacente à delicadeza e à compaixão.

 

— Lucivar, seu pai é também meu pai adotivo.

 

Petrificado, olhou-a estupefato, entendendo finalmente. Poderia aceitar ambos ou rejeitar os dois, mas não lhe seria permitido servi-la e lutar contra um homem que já tinha pretensões em relação ao seu amor.

 

Ela estava certa ao lhe dizer que havia razões que poderiam levá-lo a não querer ou não conseguir servi-la. Conseguiria lidar com a Fortaleza. Também conseguiria lidar com Luthvian. Mas e com o Senhor Supremo?

 

Só havia uma forma de descobrir.

 

— Vamos — disse Lucivar.

 

Jaenelle desceu da teia de desembarque.

 

— Esta é a sede da família.

 

Lucivar a seguiu, relutante. Alguns meses antes, caminhara entre as ruínas do Paço dos SaDiablo em Terreille. As ruínas não preparavam ninguém para este edifício cinza-escuro, como uma montanha. Fogo do Inferno, toda uma corte poderia viver neste local sem que jamais interferissem na vida uns dos outros.

 

Foi então que percebeu o significado de Jaenelle viver no Paço. Virou-se para olhá-la como se nunca a tivesse visto.

 

Todas as histórias divertidas que lhe contara sobre seu papai adorado e por ela importunado — era sobre Saetan que falava. O Príncipe das Trevas. O Senhor Supremo do Inferno. O homem que havia construído a cabana para ela, ajudado-a a reconstruir a vida. Não conseguia se reconciliar com as imagens conflitantes daquele homem, assim como não conseguia reconciliar o Paço com a mansão senhorial que havia imaginado.

 

E jamais se reconciliaria com coisa alguma se ficasse ali parado.

 

— Anda, Gata. Vamos bater na porta.

 

A porta se abriu antes de chegarem ao último degrau. O homem corpulento à entrada tinha a expressão estoica e fleumática de um funcionário de nível superior, mas usava uma Joia Vermelha.

 

— Olá, Beale — cumprimentou-o Jaenelle, já entrando.

 

Os lábios de Beale deixaram entrever um leve indício de sorriso.

 

— Senhora.

 

O sorriso desapareceu quando Lucivar entrou.

 

— Príncipe — disse Beale, fazendo uma reverência com a exata distância e cortesia.

 

O sorriso indolente e arrogante surgiu de imediato.

 

— Lord Beale. — Colocou na voz mordacidade suficiente para advertir o outro de que não se metesse com ele, mas nada que expressasse um desafio. Jamais desafiara um criado em toda a vida. Por outro lado, jamais conhecera um Senhor da Guerra de Joia Vermelha que fosse mordomo.

 

Ignorando as demonstrações sutis e arrogantes de dominância, Jaenelle invocou a bagagem e colocou-a no chão.

 

— Beale? Pode pedir a Helene para preparar um quarto na ala da família para o Príncipe Yaslana?

 

— Com todo prazer, Senhora.

 

Jaenelle apontou para o fundo do salão principal.

 

— E papai?

 

— Está no escritório.

 

Lucivar seguiu Jaenelle até a última porta à direita, tentando, sem sucesso, pensar em outra razão, além do bom humor, que justificasse o brilho repentino nos olhos de Beale.

 

Jaenelle bateu à porta e entrou antes de obter resposta. Lucivar seguiu-a de perto e tropeçou quando o homem que estava de pé, em frente à mesa de madeira escura, se virou.

 

Daemon.

 

Enquanto se entreolhavam, ambos muito surpresos para reagir, Lucivar assimilou os detalhes que o diferenciavam daquela impressão inicial.

 

O obscuro odor psíquico era semelhante, embora houvesse uma diferença sutil. O homem à sua frente era dois ou três centímetros mais baixo do que Daemon e mais esguio, ainda que se movesse com a mesma graciosidade felina. O espesso cabelo preto era grisalho nas têmporas. O rosto — com rugas provocadas pelo riso e também pelo peso dos fardos que carregava — era o de um homem no fim do seu apogeu ou no momento imediatamente posterior a seu auge. Mas aquele rosto. Masculino. Belo. O modelo mais caloroso e grosseiro da beleza fria e delicada de Daemon. E o toque final — as unhas compridas pintadas de preto e o anel com a Joia Negra.

 

Saetan cruzou os braços, encostou-se na mesa e disse, afável:

 

— Criança-feiticeira, vou esganá-la.

 

Por instinto, Lucivar cerrou os dentes e deu um passo à frente para proteger sua Rainha.

 

A aflição adolescente de Jaenelle o fez parar de maneira abrupta.

 

— É a sexta vez em duas semanas e quase não fiquei em casa!

 

A raiva invadiu Lucivar. Como o Senhor Supremo se atrevia a ameaçá-la?!

 

Mas sua amada Gata não parecia nem um pouco intimidada, e Saetan parecia se esforçar para manter um ar sério.

 

— A sexta vez? — disse Saetan, com a voz profunda ainda afável, mas com ares de diversão.

 

— Duas vezes por Prothvar, duas vezes por tio Andulvar...

 

O sangue esvaiu de Lucivar. Tio Andulvar?

 

— ... uma vez por Mephis e agora você.

 

Os lábios de Saetan tremeram.

 

— Prothvar está sempre disposto a esganá-la, por isso não fico surpreso, e a verdade é que você leva jeito para provocar Andulvar. Mas o que fez para aborrecer Mephis?

 

Jaenelle enfiou as mãos nos bolsos das calças.

 

— Não sei — lamuriou-se. — Ele disse que não podia falar sobre o assunto na minha presença.

 

A gargalhada profunda e afetuosa de Saetan tomou o escritório. Quando seu riso e e o mau humor de Jaenelle ficaram sob controle, Saetan olhou com um ar cúmplice para Lucivar.

 

— E imagino que Lucivar nunca tenha ameaçado esganá-la, por isso não entende esse impulso, mesmo quando não temos intenção de colocá-lo em prática.

 

— Ah, não — respondeu Jaenelle. — Ele só ameaça me bater.

 

Saetan ficou tenso.

 

— Perdão? — perguntou com suavidade, friamente.

 

Lucivar voltou a se colocar em posição de combate.

 

Surpresa, Jaenelle olhou para ambos.

 

— Vocês vão discutir sobre a palavra quando querem dizer a mesma coisa?

 

— Não se meta, Gata — rosnou Lucivar, observando o adversário.

 

Rosnando da mesma forma, Jaenelle lhe deu um soco com tanta fúria que poderia ter quebrado seu maxilar, se ele não tivesse se esquivado.

 

A luta que se seguiu estava ficando divertida quando Saetan gritou:

 

— Chega! — Olhou furioso para os dois enquanto se separavam, e em seguida esfregou as têmporas, resmungando. — Em nome do Inferno, como é que vocês dois conseguiram viver juntos e sobreviver?

 

Fitando Jaenelle com prudência, Lucivar sorriu abertamente.

 

— Agora é mais difícil prendê-la.

 

— Não exagere — resmungou Jaenelle.

 

Saetan suspirou.

 

— Você podia ter me avisado, criança-feiticeira.

 

Jaenelle entrelaçou os dedos.

 

— Bem, não havia forma de preparar Lucivar, por isso pensei que nenhum dos dois estivesse preparado, começariam em pé de igualdade.

 

Eles olharam boquiabertos para a garota.

 

Ela sorriu para eles com seu melhor sorriso.

 

— Criança-feiticeira, vá aterrorizar outra pessoa agora.

 

Depois que Jaenelle deslizou para fora do escritório, eles se estudaram.

 

— Está com um aspecto muito melhor do que da última vez que o vi — disse Saetan, quebrando o silêncio. — Mas ainda parece prestes a desabar. — Afastou-se da mesa. — Aceita um copo de conhaque?

 

Dirigindo-se à parte menos formal do escritório, Lucivar sentou-se em uma cadeira feita para acomodar asas eyrienas e aceitou o copo de conhaque.

 

— E quando foi a última vez que você me viu?

 

Saetan sentou-se no sofá e cruzou as pernas. Brincou com o copo de conhaque.

 

— Pouco depois de Prothvar levá-lo para a cabana. Se ele não estivesse de sentinela nos Dragões Adormecidos, se não tivesse conseguido alcançá-lo antes de... — Passou o dedo pela borda do copo. — Acho que você não tem noção da gravidade de seus ferimentos. As lesões internas, os ossos quebrados... as asas.

 

Lucivar bebeu o conhaque. Não, não tinha noção. Sabia que eram graves, mas ao chegar à Pista de Khaldharon parou de se preocupar com o que lhe poderia acontecer fisicamente. Se o que Saetan dizia fosse verdade...

 

— E você deixou uma Curandeira de dezessete anos cuidar de tudo sozinha — disse, esforçando-se para controlar a fúria crescente. — Deixou que ela fizesse todo aquele tratamento sabendo o que aquilo lhe custaria, e sem um único assistente ou criado para cuidar dela.

 

Os olhos de Saetan se encheram de raiva, também controlada com rédea curta.

 

— Eu estava lá para cuidar dela. Estive presente durante todo o tempo em que ela o recompôs. Estive lá para convencê-la a comer quando ela conseguia. Estive presente para observar a teia durante os períodos de repouso para que ela pudesse dormir um pouco. E quando você finalmente começou a despertar do sono regenerador, eu a abracei e lhe dei colheradas de chá com mel, enquanto ela chorava de cansaço e de dor, pois sua garganta estava dolorida de tanto cantar a teia curativa. Vim embora um dia antes de você despertar, porque você já tinha muito coisa para enfrentar, e não era necessário ter também que lidar comigo. Como você se atreve a imaginar... — Saetan cerrou os dentes.

 

Estava pisando em terreno perigoso. Talvez houvesse muitas coisas que ele já não poderia se dar ao luxo de imaginar.

 

Lucivar voltou a encher o copo.

 

— Considerando a gravidade das lesões, não teria sido melhor dividir o tratamento entre duas Curandeiras? — Manteve a voz cautelosamente inexpressiva. — Luthvian é uma vadia temperamental a maior parte do tempo, mas é uma excelente Curandeira.

 

Saetan hesitou.

 

— Ela se ofereceu. Não permiti, por causa das asas.

 

— Ela as teria removido. — Lucivar sentiu um nó de medo no estômago.

 

— Jaenelle tinha certeza de que conseguiria reconstruí-las, o que exigiria um tratamento sistêmico: apenas uma Curandeira cantando a teia, pois tudo teria de ser atraído para ela. Não poderia haver distrações, hesitações, falta de empenho. Seguindo o método de Luthvian, as duas poderiam curar todo o organismo, com exceção das asas. O método de Jaenelle era tudo ou nada — ou você sairia dali íntegro ou não sobreviveria.

 

Lucivar podia vê-las — duas mulheres determinadas, uma a cada lado da cama onde repousava seu corpo mutilado.

 

— Foi você que decidiu.

 

Saetan esvaziou o copo e voltou a enchê-lo.

 

— Fui eu que decidi.

 

— Por quê? Ameaçou cortar minha garganta no berço. Por que lutar por mim agora?

 

— Porque é meu filho. Porém, teria cortado sua garganta. — Era possível ouvir a tensão na voz de Saetan. — Que as Trevas me ajudem... Se ela te tivesse cortado suas asas, era o que eu teria feito.

 

Cortar suas asas. Lucivar sentiu-se agoniado.

 

— Por que a fecundou?

 

Saetan pousou o copo e passou as mãos pelo cabelo.

 

— Não era minha intenção. Quando concordei em acompanhá-la na Noite da Virgem, achava, sinceramente, que já não era fértil, e ela jurou que havia tomado a infusão para prevenir a gravidez. Jurou que não estava no seu período fértil. E nunca me disse que era eyriena. — Levantou os olhos, repletos de sofrimento. — Eu não sabia, Lucivar, juro por tudo aquilo que sou, até ver as asas, eu não sabia. No entanto, você é eyrieno de alma. Alterar sua aparência física não mudaria nada.

 

Lucivar esvaziou o copo e se perguntou se arriscaria fazer a pergunta. Aquele encontro estava ferindo tanto Saetan quanto a ele mesmo — se não mais. Mas tinha vindo ali perguntar a fim de que pudesse tomar uma decisão honesta.

 

— Você não podia ter estado presente algumas vezes? Mesmo que em segredo?

 

— Se você tem alguma objeção a fazer por eu não ter participado da sua vida, é a sua mãe que deve culpar. Foi uma opção dela, não minha. — Saetan fechou os olhos. Os dedos apertaram o copo. — Por razões que nunca consegui explicar racionalmente nem a mim mesmo, concordei que tentaria fecundar uma Viúva Negra para trazer de volta uma linhagem poderosa e negra às raças de longevidade prolongada. Dorothea foi a escolha da Ampulheta haylliana, mas não a minha. — Hesitou. — Você conhece Tersa?

 

— Sim.

 

— Uma feiticeira extraordinariamente talentosa. Dorothea jamais teria conseguido o domínio que tem hoje sobre Terreille se Tersa tivesse sobrevivido à Noite da Virgem. Tersa foi a minha escolha. E Tersa engravidou.

 

De Daemon. Daemon saberia disso, teria algum dia sequer imaginado?

 

— Algumas semanas depois, ela me pediu para acompanhar uma amiga na Noite da Virgem, uma jovem Viúva Negra com forte potencial que, sem o meu auxílio, acabaria quebrada e estilhaçada. Eu ainda era capaz de prestar esse tipo de serviço e não negaria nada a Tersa, desde que fosse razoável. Todos se dispunham a receber Tersa nessa época. Ninguém queria que ficasse estressada, arriscando-se a abortar, pois não haveria uma segunda chance.

 

“Algumas semanas depois de acompanhar Luthvian na Noite da Virgem, ela me disse que estava grávida. Na propriedade havia uma casa vazia, a cerca de um quilômetro e meio do Paço. Insisti para que Luthvian e Tersa vivessem ali, como alternativa à corte de Dorothea. Tersa não era muito mais velha do que Luthvian, mas seus conhecimentos eram mais abrangentes, sobretudo no que dizia respeito a Guardiões. Ela ficava satisfeita com a companhia que eu lhe fazia. Luthvian era mais suscetível e descobrira os prazeres da cama. Ansiava por sexo. Durante algum tempo, consegui dar a ela o tipo de intimidade que queria. Quando não pude mais, ela perdeu o interesse. No entanto, depois de se recuperar do parto, o desejo ardente voltou. Nessa época, eu conseguia satisfazê-la de outras formas, mas não do jeito pelo qual ela ansiava.

 

“Entre as discussões sobre educar você em Dhemlan — como ela queria — ou em Askavi — que eu acreditava ser o lugar adequado — e a minha incapacidade sexual, nossa relação se deteriorou a tal ponto que, quando ela começou a ouvir meias-verdades sobre os Guardiões, resolveu acreditar.

 

“Dorothea sabia escolher o momento certo de pôr seus planos em prática. Com a ajuda de Prythian, perdi os dois. Num dia, perdi os dois.”

 

Não Luthvian. Daemon.

 

Saetan estremeceu ao suspirar.

 

— Lucivar, se lhe serve de consolo, nunca lamentei sua existência. Lamentei o sofrimento a que foi submetido, mas nunca você. E estou muito feliz que tenha sobrevivido.

 

Sem conseguir pensar em algo para dizer, Lucivar assentiu com a cabeça.

 

Saetan hesitou.

 

— Se puder, responda-me uma coisa?

 

Lucivar sabia o que Saetan estava prestes a perguntar. Não tinha certeza sobre o que pensava do homem que lhe tinha dado a vida, mas, pelo menos neste momento, podia enxergar além dos títulos e do poder e ver o homem que perguntava por um dos seus filhos.

 

Fechou os olhos e disse:

 

— Ele está no Reino Distorcido.

 

Saetan estava deitado no sofá do escritório, desesperadamente satisfeito por estar sozinho.

 

Tudo tem um preço.

 

Mas não esperava que fosse tão alto.

 

Os remorsos de nada serviam. E a culpa, tampouco. O dever primordial de um Príncipe dos Senhores da Guerra é para com sua Rainha. Mas Daemon...

 

Fragmentos de memórias lhe vieram à cabeça, atormentando seu coração.

 

Tersa no fim da gravidez colocando a mão de Saetan na sua barriga.

 

O círculo constante de raiva e de apetite sexual de Luthvian.

 

Daemon em seu colo enquanto lia para ele uma história de ninar.

 

Lucivar voando pela sala, rindo contente e fora do alcance de Saetan.

 

Jaenelle virando o escritório de pernas para o ar na primeira vez em que tentou lhe ensinar a usar a Arte para deslocar os sapatos.

 

A loucura de Tersa. A fúria de Luthvian.

 

Lucivar deitado na cama da cabana, com o corpo dilacerado.

 

Daemon no chão do Altar de Cassandra, com a mente tão fragilizada.

 

Jaenelle ascendendo do abismo depois de dois anos terríveis.

 

Fragmentos. Como a mente de Daemon.

 

O que explicava por quê, durante as buscas minuciosas que empreendera nos últimos dois anos, não tinha conseguido encontrar o filho, que era como um reflexo seu. Havia procurado no lugar errado.

 

Um remorso, tão inútil como qualquer outro, entranhou-se nele.

 

Poderia encontrar Daemon, mas a única pessoa que sem dúvida poderia tirá-lo do Reino Distorcido era Jaenelle. E Jaenelle era a única pessoa que não poderia saber o que ele pretendia fazer.

 

Enquanto esperava o jantar, Saetan voltou a sentir o estômago embrulhado.

 

Jaenelle estava em casa há uma semana, acompanhando Lucivar na adaptação à família — e acompanhando a família na adaptação a Lucivar —, quando chegou uma carta incisiva do Conselho das Trevas, recordando que a garota não concluíra a visita à Pequena Terreille.

 

Ele não entendeu o comentário enigmático de Lucivar — “Joelhos ou ossos, Gata” —, mas Jaenelle saiu do Paço, furiosa, cuspindo palavrões em eyrieno, e Lucivar exibiu uma satisfação sombria.

 

Passaram-se três dias.

 

Naquela mesma tarde, ela voltara de repente, resmungado para Beale:

 

— Diga a Lucivar que usei o joelho.

 

Em seguida, fechou-se no quarto.

 

Transtornado, Beale informara Saetan do retorno de Jaenelle e da observação dirigida a Lucivar, acrescentando que a Senhora parecia adoentada.

 

Jaenelle sempre ficava com um ar adoentado depois das visitas à Pequena Terreille. Ele ainda não conseguira fazê-la explicar por que isso acontecia. O que a garota contava sobre as atividades de que participara não explicava seu olhar cansado e perturbado, a perda de peso, as noites agitadas que se seguiam e a falta de apetite.

 

A única pessoa além de Beale que vira Jaenelle após seu retorno foi Karla. E Karla, de olhos marejados e angustiada, provocara uma briga com a única pessoa que corresponderia: Lucivar.

 

Depois de suportar um monólogo cruel sobre machos, Lucivar arrastara a garota para o campo e lhe entregara um bastão eyrieno, deixando que tentasse acertá-lo. Instigou-a e atormentou-a até que os músculos e as emoções da garota cederam. Ele não dera qualquer explicação para aquilo, e a fúria em seu olhar advertia todos que não lhe perguntassem.

 

A porta da sala de jantar se abriu. Andulvar, Prothvar e Mephis juntaram-se a Saetan, a preocupação estampada nos olhares dispensava palavras.

 

Karla chegou um minuto depois, movendo-se com rigidez. Lucivar entrou logo atrás e passou o braço ao redor dos ombros dela — o que, por incrível que pareça, não provocou um acesso de mau humor — e a ajudou a se sentar.

 

Beale entrou, parecendo tão tenso quanto Saetan.

 

— A Senhora informa que não poderá jantar com vocês.

 

Lucivar puxou a cadeira à direita de Saetan.

 

— Diga à Senhora que ela se juntará a nós para o jantar. E que pode descer com os próprios pés ou sobre meus ombros. A escolha é dela.

 

Beale arregalou os olhos.

 

Um ligeiro resmungo de desaprovação veio, inesperadamente, de Mephis.

 

A sala emanava perigo.

 

Com a intenção de evitar o confronto que se anunciava entre os homens da família, Saetan acenou para Beale em apoio a Lucivar.

 

Beale se retirou às pressas.

 

Lucivar se recostou na cadeira e esperou.

 

Passados alguns minutos, Jaenelle apareceu, com o rosto pálido, exceto pelas manchas escuras embaixo dos olhos.

 

Com o sorriso indolente e arrogante, Lucivar puxou a cadeira a seu lado e aguardou.

 

Jaenelle engoliu em seco.

 

— D-desculpa. Não consigo.

 

Foi rápida. Lucivar foi mais rápido ainda.

 

Atordoados, observaram em silêncio enquanto Lucivar arrastava-a para seu lugar à mesa e largava-a na cadeira. No mesmo instante, ela deu um salto, batendo no punho que Lucivar mantinha sobre sua cabeça. Aturdida, ela não protestou quando ele empurrou sua cadeira para a frente e sentou-se a seu lado.

 

Saetan também se sentou, dividido entre a preocupação com Jaenelle e o desejo de tratar Lucivar com o mesmo tipo de afeto.

 

Andulvar, Prothvar e Mephis tomaram seus lugares, indignados. Se Lucivar reparou na fúria que dirigiam a ele, ignorou-a.

 

A arrogância de não reconhecer a desaprovação dos machos da mesma categoria ou de uma categoria mais escura exasperava Saetan, mas ele segurou a língua e o temperamento. Mais tarde, teria tempo para soltá-los.

 

— Você vai comer — disse Lucivar, com calma.

 

Jaenelle olhava fixamente para a frente.

 

— Não consigo.

 

— Gata, se tivermos de jogar a sopa no chão para você poder vomitar na tigela, é isso que vamos fazer. Mas você vai comer.

 

Jaenelle rosnou.

 

Um criado pálido e trêmulo entrou com a sopa.

 

Lucivar serviu uma concha cheia na tigela de Jaenelle, mas encheu a sua até o meio. Pegou a colher e esperou.

 

O resmungo de Jaenelle se intensificou ao pegar a colher com relutância.

 

Depois de olhar para Lucivar com os olhos semicerrados e um ar reflexivo, Karla fez uma pergunta sobre uma lição de Arte na qual estava trabalhando.

 

Mephis respondeu, e a discussão se prolongou por todo o primeiro prato.

 

Jaenelle comeu uma colher de sopa.

 

Andulvar mudou de posição na cadeira, e foi possível ouvir o ruído de suas asas.

 

Saetan olhou de relance para ele, advertindo-o para que ficasse quieto. Detectara o cheiro da raiva feminina. Detectara a atenção de Lucivar centrada em Jaenelle e a fúria crescente da garota, algo que Lucivar conseguia provocar com uma facilidade assustadora.

 

Quando veio o segundo prato, Lucivar pegou comida para ela, incitou-a, desarmou seu autocontrole.

 

— Fígado? — perguntou Lucivar.

 

— Só se for o seu — vociferou ela, com os olhos brilhando de modo singular.

 

Lucivar deu um sorriso vago.

 

No final do segundo prato, Jaenelle estava a ponto de explodir, e Saetan não entendia o motivo da provocação.

 

Até o prato de carne.

 

Lucivar pôs um pedacinho de costeleta no prato de Jaenelle e serviu-se de duas grandes porções.

 

Jaenelle olhou para a carne macia, rosada no meio, por um longo momento. Depois, pegou a faca e o garfo e começou a comer com extrema voracidade. Quando a carne desapareceu, virou-se para a direita e olhou para o prato de Karla.

 

A garota ficou lívida.

 

Quando Jaenelle se virou para a esquerda, e Saetan conseguiu ver claramente os seus olhos, percebeu que Lucivar transformara a refeição em uma dança violenta e brilhantemente coreografada, cujo intuito era trazer à tona o lado predador da Feiticeira.

 

Por fim, Jaenelle centrou as atenções no prato de Lucivar. Rosnando baixinho, lambeu os lábios e ergueu o garfo.

 

Com movimentos lentos e deliberados, Lucivar passou a segunda costeleta para ela.

 

Jaenelle espetou o garfo na carne e arreganhou os dentes para Lucivar.

 

Ele recolheu os talheres e as mãos e retomou a refeição calmo, enquanto Jaenelle devorava a carne.

 

Na hora da fruta e do queijo, a atenção de Jaenelle estava inteiramente centrada em Lucivar e nas ofertas de comida que ele fazia. Ao segurar a última uva, ela a encarou por um momento, torceu o nariz e se recostou com um suspiro de satisfação.

 

E a criança-mulher que Saetan conhecia e amava retornou.

 

Pela primeira vez desde o início da refeição, Lucivar olhou para os outros homens sentados à mesa. Saetan sentiu uma profunda compaixão pelo filho, que tinha olhos dourados cansados pela batalha.

 

Durante o café, Lucivar respirou fundo e virou-se para Jaenelle.

 

— Aliás, você me deve um anel.

 

— Que anel? — perguntou Jaenelle, desconcertada.

 

— O equivalente em Kaeleer ao Anel de Obediência.

 

Jaenelle se engasgou com o café.

 

Lucivar deu batidinhas em suas costas até ela fulminá-lo com os olhos marejados. Sorriu.

 

— Você diz, ou digo eu?

 

Jaenelle olhou para os homens que compunham sua família. Deu de ombros e disse, baixinho:

 

— Para preencher os requisitos de imigração, Lucivar me servirá pelos próximos cinco anos.

 

Desta vez, foi Saetan quem se engasgou.

 

— E? — incitou-a Lucivar.

 

— Vou pensar em alguma coisa — disse Jaenelle, irritada. — Embora não consiga entender por que você quer usar um desses Anéis.

 

— Estive pesquisando durante sua ausência. Os machos têm que usar um Anel Dominador como um dos requisitos de imigração.

 

Jaenelle deixou escapar um suspiro irritado.

 

— Lucivar, será que existe alguém tão insensato a ponto de lhe pedir que prove que está usando um?

 

— Esse Anel é prova física de que sirvo a você, e eu o desejo.

 

Jaenelle deu uma olhadela suplicante para Saetan, que a ignorou.

 

— Muito bem. Vou pensar em alguma coisa — resmungou, empurrando a cadeira. — Eu e Karla vamos dar um passeio.

 

Karla, controlando-se com uma rapidez superior à dos homens, levantou-se gemendo e arrastou-se atrás de Jaenelle.

 

Andulvar, Prothvar e Mephis logo encontraram motivos para sair.

 

Assim que o conhaque e o yarbarah foram trazidos à mesa, Saetan dispensou os criados, com uma satisfação sombria pela impaciência em voltar à ala dos empregados. Eles não comentavam nada com pessoas de fora, Beale e Helene certificavam-se disso, mas só um tolo poderia pensar que não conversavam entre si. A chegada de Lucivar provocara um grande rebuliço. Lucivar a serviço da Senhora...

 

Se hoje fosse uma amostra do que os esperava, seriam cinco anos interessantes — e muito longos.

 

— Esse seu jogo é muito intrigante — disse Saetan, calmo, esquentando um copo de yarbarah. — E perigoso.

 

Lucivar deu de ombros.

 

— Não é assim tão perigoso se não pressioná-la além da fúria superficial.

 

Saetan examinou a expressão cautelosamente neutra de Lucivar.

 

— Mas você entende quem, e o quê, jaz sob essa fúria superficial?

 

Lucivar sorriu, cansado.

 

— Sei quem ela é. — Deu um gole no conhaque. — Você não aprova que eu a sirva, não é?

 

Saetan fez o copo rolar entre as mãos.

 

— Em três meses você fez mais pela saúde física e emocional dela do que eu fui capaz em dois anos. Isso é um pouco perturbador.

 

— Os alicerces que você fundou são mais fortes do que imagina. — Lucivar sorriu. — Além disso, um pai deve ser forte, solidário e protetor. Os irmãos mais velhos, por outro lado, são chatos por natureza e tendem a ser valentões superprotetores.

 

Saetan sorriu.

 

— Você é um valentão superprotetor?

 

— É o que sempre me dizem, com muita veemência.

 

O sorriso de Saetan desapareceu.

 

— Tenha cuidado, Lucivar. Há cicatrizes emocionais profundas que você não conhece.

 

— Sei da violação. E de Briarwood. Quando se sente pressionada demais, ela fala durante o sono. — Lucivar voltou a encher o copo e se deparou com o olhar gélido de Saetan. — Dormi com ela. Não montei nela.

 

Dormiu com ela. Saetan manteve a fúria sob controle enquanto examinava minuciosamente as implicações daquela afirmação. Confrontou-a com a extensão de contato físico que Jaenelle permitia sem recuar para aquele gelado vazio emocional que sempre assustava todos os que a cercavam.

 

— Ela não se opôs? — perguntou, com cautela.

 

Lucivar bufou.

 

— É claro que se opôs. Que mulher não se oporia, depois de ter sido tão machucada? Porém, se opôs mais ainda a ver seu paciente dormir diante da lareira, e eu me opus com a mesma veemência diante da ideia de ver a Curandeira que salvou minha vida dormir diante da lareira. Por isso, chegamos a um acordo. Eu não me queixaria do jeito que ela monopolizava os travesseiros, enrolava os cobertores, ocupava mais do que o lado dela da cama, produzia aqueles sons bonitinhos que não chamamos de ronco, não importa como soarem, e resmungava com tudo e todos até beber a primeira xícara de café. E ela não se queixava da forma como eu monopolizava os travesseiros, enrolava os cobertores, ocupava mais do que a minha metade da cama, fazia sons esquisitos que a acordavam e que paravam no momento em que ela acordava, e tendia a ser exageradamente bem-disposto pela manhã. E ambos concordamos que nenhum de nós queria o outro para fazer sexo.

 

O que, para Jaenelle, teria feito toda a diferença.

 

— Você presta atenção especial a quem imigra para Kaeleer? — perguntou Lucivar, de repente.

 

— Não muita — respondeu Saetan, com cautela.

 

Lucivar examinou o conhaque.

 

— Você não saberia se um haylliano chamado Greer chegasse, não é?

 

A pergunta congelou Saetan.

 

— Greer está morto.

 

Lucivar fixou o olhar na parede da sala de jantar.

 

— Como Senhor Supremo do Inferno, você poderia marcar uma reunião, não é?

 

Por que Lucivar estava se esforçando para manter a respiração regular?

 

— Greer está morto, não é um habitante do Reino das Trevas.

 

O maxilar de Lucivar se retesou.

 

— Merda.

 

Saetan cerrou os dentes. Doces Trevas, o que Lucivar tinha a ver com Greer?

 

— Por que tanto interesse nele?

 

Lucivar cerrou os punhos com força.

 

— Foi o canalha que violou Jaenelle.

 

A raiva de Saetan explodiu. As janelas da sala de jantar se estilhaçaram. Fendas se abriram ao longo do teto. Com uma enxurrada de palavrões, ele redirecionou a energia para o caminho da entrada da frente, transformando o cascalho em pó.

 

Greer. Outra ligação entre Hekatah e Dorothea.

 

Saetan afundou as unhas na mesa, rasgando a madeira, num exercício inútil, já que o que queria dilacerar era carne.

 

A tradição era forte demais. Malditas fossem as Trevas, era forte demais. Não podia matar uma feiticeira a sangue-frio. E, se fosse quebrar o código de honra sob qual vivera a vida inteira, deveria tê-lo feito cinco anos antes, quando teve a chance de fazer diferença, quando teve a chance de salvar Jaenelle. Não agora, que ela já estava marcada pelas cicatrizes. Não agora, pois nada mudaria.

 

Duas mãos agarraram seus pulsos. Apertaram. Apertaram um pouco mais.

 

— Senhor Supremo.

 

Devia ter despedaçado aquele canalha na primeira vez que ele perguntou por Jaenelle. Devia ter triturado a mente dele. Qual era o seu problema? Tinha se tornado muito submisso, muito dócil? Qual era sua intenção ao aplacar aqueles tolos insignificantes do Conselho das Trevas, aqueles que estavam magoando sua filha, sua Rainha?

 

— Senhor Supremo.

 

E quem era aquele tolo que se atrevia a pôr as mãos no Príncipe das Trevas, o Senhor Supremo do Inferno? Já chega. Já chega.

 

— Pai.

 

Saetan inspirou, esforçando-se para controlar a mente. Lucivar. Lucivar estava prendendo suas mãos na mesa.

 

Batidas fortes soaram na porta.

 

— Saetan! Lucivar!

 

Jaenelle. Doces Trevas, não. Não podia vê-la neste momento.

 

— SAETAN!

 

— Por favor — sussurrou. — Não permita que ela...

 

A porta se estilhaçou.

 

— Saia, Gata — disse Lucivar, ríspido.

 

— O que...

 

— SAIA!

 

A voz de Andulvar.

 

— Suba, garota. Nós cuidamos disto.

 

Vozes discutiam, desapareciam.

 

— Yarbarah? — perguntou Lucivar, depois de um longo e tenso silêncio.

 

Saetan estremeceu, balançou a cabeça. Se sentisse o sabor de sangue antes de se acalmar, acabaria desejando quente, direto das veias.

 

— Conhaque.

 

Lucivar colocou um copo em sua mão.

 

Saetan engoliu a bebida de um só gole.

 

— Você devia ter saído daqui.

 

Lucivar ergueu o copo com a mão pouco firme e sorriu, vacilante.

 

— Tenho um pouco de experiência em lidar com a Negra. Pensando bem, você não é assim tão perigoso. Daemon sempre me assustava muito quando ficava irritado. — Esvaziou o copo e voltou a enchê-lo. — Espero que não tenha redecorado este aposento recentemente. Vai precisar refazer, mas não acho que o teto vá desabar.

 

— De qualquer forma, as garotas não gostavam mesmo do papel de parede. — Dez boas razões para controlar a fúria. Dez boas razões para libertá-la. E sempre, sempre, para os machos dos Sangue como ele, a tênue linha na qual era preciso caminhar para manter o equilíbrio entre dois instintos conflitantes. — As Harpias executaram Greer — revelou de repente. — Elas têm uma sensibilidade diferente para esse tipo de situação.

 

Lucivar concordou.

 

Estabilidade. Precisaria de estabilidade nos próximos dias.

 

— Lucivar, tente convencer Jaenelle a lhe mostrar Sceval. Você devia conhecer Kaetien e os outros unicórnios.

 

Lucivar observou-o com atenção.

 

— Por quê?

 

— Tenho assuntos a tratar. Preciso ficar na Fortaleza em Terreille por alguns dias e preferia não ter Jaenelle por perto fazendo perguntas ou querendo saber do meu paradeiro.

 

Lucivar refletiu por um momento.

 

— Acha que vai conseguir?

 

Saetan suspirou, cansado.

 

— Não vou saber se não tentar.

 

Saetan prendeu o anel de Joia Negra no centro da enorme teia emaranhada com cuidado. Passara dois dias pesquisando os arquivos da Ampulheta de Geoffrey para descobrir a resposta. Levara mais dois dias para construir a teia. Concedera-se dois outros dias tensos para descansar e reunir, lentamente, as forças.

 

Draca não dissera nada quando ele solicitou um quarto de hóspedes e uma sala de trabalho na Fortaleza de Terreille, mas cedera uma sala com dimensão suficiente para conter a teia emaranhada. Geoffrey nada dissera sobre os livros solicitados, embora tivesse acrescentado alguns outros de que Saetan não tinha se lembrado.

 

Saetan respirou fundo. Chegara o momento.

 

Uma Viúva Negra precisava de contato físico para guiar alguém para fora do Reino Distorcido. No entanto, os laços de sangue às vezes eram capazes de ultrapassar fronteiras que seriam impossíveis de atravessar de outra forma, e ninguém possuía uma ligação mais forte com Daemon do que Saetan. A ligação de um pai com o filho. Mais do que isso, o vínculo daquela noite no Altar de Cassandra.

 

E o Sangue há de cantar ao Sangue.

 

Espetando o dedo, Saetan deixou cair uma gota de sangue em cada um dos quatro fios de apoio que prendiam a teia à estrutura de madeira. O líquido escorreu pelos fios de cima e subiu pelos fios de baixo. Ao atingir o anel, Saetan tocou a Joia Negra de leve, cobrindo-a de sangue.

 

A teia se iluminou. Saetan entoou o feitiço para abrir a paisagem onírica que o levaria àquele que procurava.

 

Uma paisagem atormentada, repleta de sangue e de cálices de cristal estilhaçados.

 

Respirando fundo mais uma vez, Saetan concentrou os olhos no anel de Joia Negra e iniciou a viagem interior até a loucura.

 

*Daemon.*

 

Ergueu a cabeça.

 

As palavras em círculo aguardavam por ele. As margens da pequena ilha desmoronaram um pouco.

 

*Daemon.*

 

Conhecia aquela voz. Você é meu instrumento.

 

*Daemon!*

 

Olhou para cima. Estendeu-se no chão mole.

 

Uma mão pairava sobre ele, tentando alcançá-lo. Uma mão de pele morena clara, com unhas compridas pintadas de preto. Um pulso surgiu. Parte de um antebraço se esforçava para alcançá-lo.

 

Conhecia aquela voz. Conhecia aquela mão. Odiava-as.

 

*Daemon, me dê a sua mão. Posso lhe mostrar o caminho de volta.*

 

As palavras mentem. O sangue, não.

 

A mão tremeu com o esforço de alcançá-lo.

 

*Daemon, me deixe ajudá-lo. Por favor.*

 

Estavam separados por centímetros. Só precisava levantar a mão e poderia sair da ilha.

 

Os dedos se contraíram.

 

*Daemon, confie em mim. Posso ajudá-lo.*

 

Sangue. Tanto sangue. Um mar de sangue. Iria se afogar nele. Por ter confiado uma vez naquela voz, tinha feito algo... tinha...

 

*MENTIROSO!*, gritou. *Jamais confiarei em você!*

 

*Daemon.* Uma súplica angustiada.

 

*JAMAIS!*

 

A mão começou a desaparecer.

 

Daemon foi invadido pelo medo. Não queria ficar sozinho naquele mar de sangue rodeado por palavras que queriam cortá-lo. Queria agarrar aquela mão com toda a força. Desejava as mentiras que pudessem abrandar aquela dor por alguns momentos.

 

Mas devia esta dor a alguém, pois fizera algo...

 

Carniceiro filho da puta.

 

Aquela voz, aquela mão o tinham levado a machucar alguém. No entanto, doces Trevas, como desejava confiar, como desejava se agarrar.

 

*Daemon.* Um som sussurrado.

 

A mão se dissipou, desapareceu.

 

Esperou.

 

As palavras giravam em volta. A ilha desmoronou um pouco mais.

 

Aguardou. A mão não voltou.

 

Estendeu-se no chão mole e chorou de alívio.

 

Saetan caiu de joelhos. Os fios da teia emaranhada estavam negros e se desfazendo. Pegou o anel que caía do centro da teia e colocou-o no dedo.

 

Tão perto. À distância de uma mão, no máximo. Um momento de confiança. Bastava isso para iniciar a viagem para longe daquele sofrimento e daquela loucura.

 

Bastava isso.

 

Estendendo-se no chão frio, Saetan apoiou a cabeça nos braços e chorou lágrimas amargas.

 

Saetan olhou para Lucivar e balançou a cabeça.

 

— Bem — começou Lucivar, com a voz tensa —, pelo menos você tentou. — Um minuto depois, acrescentou: — Estão chamando você na cozinha.

 

— Na cozinha? Por quê? — perguntou Saetan, enquanto Lucivar o conduzia para o território incontestado da Sra. Beale.

 

O outro sorriu e pousou uma mão amiga no ombro de Saetan.

 

O gesto lhe deu um mau pressentimento.

 

— Como foi a viagem?

 

— Viajar com a Gata é sempre uma aventura.

 

— Vou mesmo querer saber do que se trata?

 

— Não — respondeu Lucivar animado —, mas mesmo assim vai acabar sabendo.

 

Jaenelle estava sentada de pernas cruzadas no chão da cozinha. Um cachorrinho de Scelt marrom e branco pulava diante dela. No seu colo havia um grande e branco... gatinho?

 

— Olá, papai — cumprimentou Jaenelle, submissa.

 

*Papai*, disse o cachorro. Vendo que Saetan não respondia, o cachorro olhou para Jaenelle. *Papai?*

 

— Parentes. — Saetan pigarreou. Sua voz ganhou o tom grave de um barítono. — Os sceltas são parentes?

 

— Nem todos — disse Jaenelle, defensiva.

 

— Mais ou menos na mesma proporção dos Sangue em relação aos plebeus — respondeu Lucivar, com um grande sorriso. — Você está aceitando isso muito melhor que Khardeen. Ele se sentou no meio da estrada e ficou histérico. Tivemos que arrastá-lo para um canto, para não ser atropelado por uma carroça.

 

Uma risadinha abafada veio do balcão onde a Sra. Beale cortava um pedaço de carne com esforço.

 

— E bastou essa pequena explicação para que os humanos finalmente entendessem por que alguns sceltas amadurecem tão tarde e possuem expectativa de vida mais longa — acrescentou Lucivar, com uma jovialidade irritante. — Depois de Ladvarian esclarecer que a Gata lhe pertencia...

 

*Minha!*, interrompeu o cachorro.

 

O gatinho ergueu uma pata branca enorme e peluda e derrubou o cachorro.

 

*Nossa!*, disse o cachorro, contorcendo-se para sair de debaixo da pata.

 

— ... preparamos um sedativo potente para o Senhor da Guerra, que acabara de descobrir que sua cadela era também uma Sacerdotisa.

 

— Mãe Noite. — Saetan desviou a conversa para um fio masculino Vermelho.

 

*Por que um scelta macho teria um nome com a terminação feminina eyriena?*

 

*Ele disse que se chamava assim. Quem sou eu para perguntar?*

 

— Depois — prosseguiu Lucivar —, Khary nos arrastou para Tuathal a fim de que visitássemos Lady Duana, que fez alguns comentários mordazes sobre não ter sido informada da existência de parentes no seu Território.

 

Sim, estava certo de que a Rainha de Scelt fizera alguns comentários, e que teria mais a fazer para ele.

 

Jaenelle escondeu o rosto no pelo do gatinho.

 

Lucivar, maldita fosse sua alma, parecia apreciar aquele momento, agora que podia jogar o problema para cima de alguém.

 

Como Jaenelle não estava participando da conversa, Lucivar prosseguiu a narrativa.

 

— Na discussão acalorada que se seguiu, também descobrimos que há duas raças de equídeos que são parentes.

 

Saetan cambaleou. Lucivar o conteve.

 

Os sceltas eram cavaleiros notáveis. As famílias de Khary e de Morghann, em especial, eram entusiastas de cavalos.

 

— Imagine a surpresa quando descobriram que os cavalos podiam lhes responder — disse Lucivar.

 

Saetan se ajoelhou ao lado de Jaenelle. Pelo menos, se desmaiasse agora, já não cairia tão longe.

 

— E o nosso Irmão felino?

 

Os dedos de Jaenelle apertaram com força o pelo do gatinho. Seu olhar era obscuro e perigoso.

 

— Kaelas é arceriano. E órfão. A mãe dele foi morta por caçadores.

 

Kaelas. No Idioma antigo significava “morte branca”. Indicava um tipo de tempestade de neve que chegava sem avisar — repentina, violenta e mortífera.

 

Outra vez, Saetan voltou a conversa para um fio masculino.

 

*Imagino que ninguém tenha lhe dado esse nome.*

 

*Não, senhor*, respondeu Lucivar.

 

Saetan não apreciou a prudência comedida no tom de Lucivar. Estendeu a mão para fazer festa no gatinho.

 

Kaelas tentou lhe dar uma patada.

 

— Ei! — disse Jaenelle rispidamente. — Não se deve bater no Senhor Supremo.

 

Kaelas rosnou, revelando dentes de leite impressionantes. As garras tampouco podiam ser ignoradas.

 

— Aqui, docinho — disse a Sra. Beale, em um tom carinhoso, colocando duas tigelas no chão da cozinha. — Carninha e leitinho morno.

 

Saetan fitou a cozinheira. Esta a mesma mulher que o confrontava sempre que os filhotes de lobo perseguiam os coelhos pela horta? Olhou, então, para a tigela de carne cortada e franziu a sobrancelha.

 

— Essas não eram as carnes frias que você ia servir no almoço?

 

A Sra. Beale fulminou-o com o olhar. Lucivar deu um prudente passo atrás.

 

Deixando a cozinha para a Sra. Beale e seus afazeres, Saetan foi para seus aposentos. Lucivar o acompanhou.

 

— O cachorro é bonitinho — disse. Se aquilo era o melhor elogio que conseguia fazer, sem dúvidas precisava descansar.

 

— Não se deixe enganar pelos encantos dele — respondeu Lucivar, calmo. — É um Senhor da Guerra, dentro daquela cabecinha peluda há uma inteligência sagaz. Se combinada com um enorme Príncipe dos Senhores da Guerra predador, eis aí uma parceria que deve ser tratada com todo o cuidado.

 

Saetan parou à porta de seus aposentos.

 

— Lucivar, os gatos arcerianos podem atingir que tamanho?

 

O outro deu um sorriso.

 

— Digamos que você devia começar logo a colocar feitiços de reforço na mobília.

 

— Mãe Noite — murmurou Saetan entre dentes, caminhando aos tropeções até a cama. A papelada sobre a mesa podia esperar. Não precisava procurar problemas.

 

Estava prestes a dormir quando sentiu que era observado. Virando-se na cama, piscou ao ver Ladvarian e Kaelas. Bufou. Alguém já tinha ensinado Ladvarian a caminhar pelo ar. É verdade que ele balançava um pouco, mas, no fim de contas, era apenas um filhote.

 

Gemendo, Saetan voltou à posição inicial, na esperança de que eles fossem embora.

 

Dois corpos pousaram na cama.

 

Bem, não precisava se preocupar em rolar para cima do scelta. Não se atrevia a virar para os lados com Kaelas junto às suas costas, a não ser, talvez, para o chão.

 

E onde estava Jaenelle?

 

A Senhora, disseram, estava tomando banho. Eles queriam tirar a sesta. Já que papai Senhor Supremo também tiraria a sesta, podiam lhe fazer companhia.

 

Com firme determinação, Saetan fechou os olhos.

 

Não precisava arranjar problemas. Os problemas tinham acabado de cair em cima dele.

 

Levando um globo de vidro e uma pequena taça de vidro nas mãos, ambos azul-cobalto, Tersa caminhou alguns metros pelo jardim dos fundos, os pés descalços afundados na neve até o tornozelo. A lua cheia brincava de se esconder entre as nuvens, assim como a visão que a iludira ao longo do dia. Vivera em meio a visões por tantos séculos que compreendia que aquela em especial teria de adquirir uma forma física, antes de se revelar.

 

Permitindo que seu corpo fosse o instrumento da paisagem onírica, usou a Arte para deslocar o globo e a taça pelo ar. Ao chegar ao centro do jardim, os objetos pousaram devagar sobre a neve.

 

Deu um passo em direção a eles para, em seguida, olhar para baixo. A camisola se arrastava pela neve, remexendo-a. Não serviria. Despindo-a, atirou-a para junto à porta dos fundos da casa e continuou a caminhada. Parou. Sim. Aquele era o local adequado para começar.

 

Uma caminhada a passos largos para manter a neve intacta entre as pegadas a partir de casa e as pegadas que orientariam sua visão. Colocando um pé à frente do outro com cuidado, o calcanhar de um colado aos dedos do outro, aguardou. Havia outra coisa, algo mais.

 

Usando a Arte, afiou uma unha e cortou o peito de cada pé com a profundidade necessária para que o sangue corresse. Em seguida, caminhou pela matriz da visão. Quando voltou à primeira pegada, saltou para alcançar a neve remexida pelas pegadas arrastadas.

 

Ao virar-se para observar o padrão das pegadas, a assistente Viúva Negra que estava passando umas semanas com ela gritou:

 

— Tersa? O que está fazendo aqui fora a esta hora da noite?

 

Rosnando, Tersa se virou e ficou de frente para a jovem feiticeira.

 

A assistente observou seu rosto por alguns instantes. Pegou a camisola que Tersa largara no chão, rasgou-a em tiras, envolveu seus pés para que o sangue fosse absorvido e depois se afastou.

 

A urgência apressou Tersa escada acima, até o quarto. Ela abriu as cortinas e olhou para baixo, para as linhas que desenhara na neve com o próprio sangue.

 

Dois lados de um triângulo, fortes e ligados. O pai e o irmão. O terceiro lado, o espelho do pai, estava separado dos outros dois, e o centro estava apagado. Caso se separasse totalmente, jamais teria força suficiente para completar o triângulo.

 

O pátio estava envolvido pelo luar e pelas sombras. O globo e a taça azul-cobalto, pousados no centro do triângulo, se transformaram em olhos azul-safira.

 

— Sim — sussurrou Tersa. — Os fios finalmente estão no devido lugar. Chegou o momento.

 

Com sua permissão tácita, Saetan entrou na sala de estar de Jaenelle. Olhou de relance para o quarto escuro onde Kaelas e Ladvarian estavam, acordados e inquietos. O que significava que Lucivar estaria prestes a aparecer. Nos cinco meses decorridos desde que começara a servi-la, Lucivar tornara-se excepcionalmente sensível aos estados de espírito de Jaenelle.

 

Saetan se sentou no descanso de pés em frente à cadeira forrada onde a garota estava aninhada.

 

— Sonho ruim? — perguntou. Nas últimas semanas, as noites agitadas e os pesadelos tinham sido muitos.

 

— Um sonho — concordou. Hesitou por um instante. — Eu estava diante de uma porta de cristal escurecido. Não conseguia ver o que havia atrás dela, não estava certa se queria ver. Mas alguém tentava me entregar uma chave dourada, e eu sabia que, se a aceitasse, a porta se abriria e eu teria de saber o que escondia.

 

— Você aceitou a chave? — Saetan manteve a voz suave e tranquilizadora, enquanto o coração disparava.

 

— Acordei antes de tocá-la — sorriu Jaenelle, com um ar cansado.

 

Era a primeira vez que se lembrava de um daqueles sonhos depois de acordar. Saetan tinha uma ideia precisa sobre as memórias que se escondiam atrás daquela porta de cristal. O que significava que, em breve, teriam de falar sobre o passado. Mas não esta noite.

 

— Quer um chá para ajudá-la a dormir?

 

— Não, obrigada. Vou ficar bem.

 

Saetan beijou a testa da filha e saiu.

 

Lucivar o aguardava no corredor.

 

— Problemas? — perguntou.

 

— Possivelmente. — Saetan respirou fundo, expirando devagar. — Vamos até o escritório. Precisamos discutir um assunto.

 

–Gata! — Lucivar entrou de rompante no salão principal. Ignorava o que a teria provocado, mas, depois da conversa com Saetan na noite anterior, não pretendia deixá-la ir sozinha para onde quer que fosse.

 

Por sorte, Beale mostrava a mesma relutância em deixar a Senhora sair porta afora sem informar o destino a ninguém.

 

Entre os dois, Jaenelle libertou as frustrações com uma fúria suficiente para que todas as janelas estremecessem.

 

— Malditos sejam os dois! Preciso ir.

 

— Muito bem. — Lucivar se aproximou devagar, com a mão erguida num gesto conciliador. — Vou acompanhá-la. Aonde vamos?

 

Jaenelle passou as mãos no cabelo.

 

— Halaway. Sylvia acabou de me enviar uma mensagem. Está acontecendo alguma coisa com Tersa.

 

Lucivar trocou um olhar com Beale. O mordomo acenou com a cabeça. Saetan e Mephis chegariam a qualquer momento da reunião com Lady Zhara, a Rainha de Amdarh, capital de Dhemlan — e Beale permaneceria no salão principal até sua chegada.

 

— Deixem-me passar! — lamuriou-se Jaenelle.

 

Graças às Trevas, ela não tinha pensado em usar a força contra eles. Poderia eliminar qualquer coisa que representasse um sinal de resistência sem dificuldade.

 

— Espere um minuto — disse Lucivar, engolindo em seco quando os olhos da garota ficaram tempestuosos. — Você não pode sair de meias. Há neve por todo lado.

 

Jaenelle praguejou. Lucivar invocou as botas de inverno e entregou-as a ela, enquanto um criado ofegante surgia com o sobretudo de inverno de Jaenelle e a capa de lã com cinturão e aberturas para as asas que servia de sobretudo a Lucivar.

 

Um minuto depois, voavam em direção à casa de campo de Tersa.

 

A Viúva Negra assistente abriu a porta logo que pousaram.

 

— No quarto — disse, com aflição na voz. — Lady Sylvia está com ela.

 

Jaenelle subiu as escadas correndo, e Lucivar a seguiu.

 

Ao vê-los, Sylvia apoiou-se na cômoda. O alívio em seu rosto ocultado pela grande preocupação. Lucivar abraçou-a, e ficou apreensivo pela forma como ela se agarrou a ele.

 

Jaenelle deu a volta na cama para ficar de frente para Tersa, que arrumava freneticamente um pequeno baú. Misturados às roupas que cobriam a cama havia livros, velas e alguns objetos que Lucivar reconheceu como instrumentos que só poderiam pertencer a uma Viúva Negra.

 

— Tersa — disse Jaenelle, com a voz calma, embora autoritária.

 

Tersa sacudiu a cabeça.

 

— Preciso encontrá-lo. Chegou o momento.

 

— Quem você precisa encontrar?

 

— O rapaz. Meu filho. Daemon.

 

Lucivar ficou com um nó na garganta ao ver Jaenelle empalidecer.

 

— Daemon. — Jaenelle estremeceu. — A chave dourada.

 

— Preciso encontrá-lo. — A voz de Tersa ecoava frustração e medo. — Se o sofrimento não terminar em breve, será sua destruição.

 

Jaenelle pareceu não ter ouvido nem compreendido as palavras.

 

— Daemon — murmurou. — Como pude esquecer Daemon?

 

— Preciso voltar a Terreille. Preciso encontrá-lo.

 

— Não — disse Jaenelle com sua voz de meia-noite. — Eu vou encontrá-lo.

 

Tersa interrompeu os movimentos inquietos.

 

— Sim — disse devagar, esforçando-se para se lembrar de alguma coisa. — Ele confiará em você. Vai segui-la para fora do Reino Distorcido.

 

Jaenelle fechou os olhos.

 

Ainda abraçado a Sylvia, Lucivar se apoiou na parede. Fogo do Inferno, por que o quarto estava girando lentamente?

 

Quando Jaenelle abriu os olhos, Lucivar a encarou atônito, incapaz de parar. Nunca vira os olhos dela daquela forma. Esperava nunca mais voltar a vê-los assim. Jaenelle saiu do quarto.

 

Deixando que Sylvia se recompusesse sozinha, Lucivar correu atrás dela, que caminhava a passos largos em direção à teia de desembarque na entrada do povoado.

 

— Gata, o Paço fica para o outro lado.

 

Sem obter resposta, tentou segurá-la pelo braço. O escudo à sua volta era tão gelado que queimou sua mão.

 

Ela passou pela teia de desembarque e continuou a caminhar. Lucivar caminhou do seu lado, sem saber ao certo o que dizer, sem saber ao certo o que se atreveria a dizer.

 

— Macho teimoso e rabugento — resmungou Jaenelle, enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas. — Eu o avisei que o cálice precisava de tempo para sarar. Disse para você ir para um lugar seguro. Por que não me escutou? Não podia ter me obedecido uma só vez? — Parou de caminhar.

 

Lucivar viu a dor se transformar em raiva quando ela se virou em direção ao Paço.

 

— Saetan — disse Jaenelle, num sussurro maléfico. — Você estava presente naquela noite. Você...

 

Lucivar não tentou acompanhá-la quando ela desatou a correr de volta para o Paço. Em vez disso enviou um aviso a Beale através de um fio Vermelho masculino. Beale, por sua vez, informou-o que o Senhor Supremo acabara de chegar.

 

Esperava que seu pai estivesse preparado para aquele combate.

 

Saetan sentiu a chegada iminente de Jaenelle.

 

Nervoso demais para se sentar, encostou-se à mesa de madeira escura, com as mãos agarradas ao tampo com uma força incrível.

 

Tivera dois anos para se preparar para este momento. Passara horas intermináveis tentando encontrar as frases certas para explicar a brutalidade que quase a destruíra. Contudo, de uma forma ou de outra, o momento certo para falar com ela nunca chegara. Mesmo depois da noite anterior, quando percebeu que aquelas memórias tentavam emergir, adiara a conversa.

 

Agora era a hora. E, ainda assim, não se sentia preparado.

 

Ele tinha chegado em casa e encontrado Beale aflito no salão principal, aguardando para transmitir o aviso de Lucivar:

 

— Ela se lembrou de Daemon... e está furiosa.

 

Sentiu quando Jaenelle entrou no Paço e torceu para encontrar uma forma de ajudá-la a encarar aquelas memórias à luz do dia, não nos sonhos.

 

A porta do escritório foi arrancada das dobradiças, despedaçando-se ao bater na parede oposta. A força negra se alastrou pela sala, desfazendo as mesas e destruindo o sofá e as cadeiras.

 

O medo o invadiu. Mas Saetan reparou que ela não atingira os quadros e a escultura, que não poderiam ser substituídos.

 

Foi nesse momento que Jaenelle entrou no escritório, e nada poderia tê-lo preparado para a raiva fria concentrada nele.

 

— Maldito. — A voz de meia-noite parecia calma. Um som mortífero.

 

Ela falava sério. Se a malevolência e a aversão nos seus olhos fossem uma indicação da intensidade da sua raiva, então Saetan estava mesmo condenado.

 

— Seu desgraçado insensível.

 

A mente de Saetan estava frenética, mas não conseguia produzir sequer um som. Torcia para que os sentimentos que a filha nutria por ele servissem para contrabalançar a fúria, mas sabia que isso não aconteceria, já que Daemon fora acrescentado à equação.

 

Jaenelle avançou na direção de Saetan, dobrando os dedos, fazendo com que o Senhor Supremo centrasse parte da atenção nas unhas afiadas como um punhal, que agora tinha razões para temer.

 

— Você o usou. Era um amigo e você o usou.

 

Saetan cerrou os dentes.

 

— Não havia outra opção.

 

— Havia outra opção. — Bateu na cadeira em frente à mesa, partindo-a ao meio. — HAVIA OUTRA OPÇÃO!

 

A fúria crescente de Saetan empurrou o medo para o lado.

 

— Perder você — disse, irritado. — Afastar-me, deixar seu corpo morrer e perder você. Não considerei essa opção, Senhora. Nem Daemon.

 

— Você não me perderia se meu corpo morresse. Eu acabaria conseguindo reconstruir o cálice de cristal e...

 

— Você é Feiticeira, e Feiticeiras não se tornam cildru dyathe. Perderíamos você. Completamente. Daemon sabia disso.

 

Esse argumento a deteve por um momento.

 

— Dei a ele toda a força que eu tinha. Ele desceu muito fundo no abismo, para tentar alcançar você. Quando tentei puxá-lo de volta, ele resistiu, e a ligação entre nós se partiu.

 

— Ele estilhaçou o cálice de cristal — disse Jaenelle com a voz sombria. — Estilhaçou a mente. Consegui reconstruí-la, mas estava bastante fragilizada. Quando ele saiu do abismo, qualquer coisa poderia tê-lo danificado. A essa altura, bastaria uma palavra mais dura.

 

— Eu sei — disse Saetan, com cautela. — Pude sentir.

 

A raiva fria voltou a invadir seu olhar.

 

— Mas você o deixou lá, não foi, Saetan? — perguntou, com uma delicadeza exagerada. — Os tios de Briarwood tinham chegado ao Altar, e você deixou um homem indefeso à própria sorte.

 

— Ele deveria ter atravessado o Portão — respondeu Saetan irritado. — Não sei por que não fez isso.

 

— É claro que sabe. — A voz de Jaenelle era um sussurro sepulcral. — Nós dois sabemos. Se um feitiço de tempo não tivesse sido colocado nas velas para que se apagassem, fechando o Portão, alguém teria de ficar ali para fazê-lo. Naturalmente, seria de se esperar que fosse o Príncipe dos Senhores da Guerra.

 

— Ele pode ter tido outros motivos para ficar — disse Saetan, com cuidado.

 

— É possível — respondeu Jaenelle, com a mesma prudência. — Mas isso não explica o fato de estar no Reino Distorcido, não é, Senhor Supremo? — Deu um passo na direção de Saetan. — Não explica por que o abandonou lá.

 

— Eu não sabia que ele estava no Reino Distorcido até... — Saetan cerrou os dentes para impedir que as palavras saíssem.

 

— Até Lucivar chegar a Kaeleer — Jaenelle concluiu por ele. Levantou a mão com indiferença, antes de Saetan conseguir falar. — Lucivar estava nas minas de sal de Pruul. Sei que não podia fazer nada. Mas você...

 

Saetan respondeu, pausando entre as palavras.

 

— O principal era trazer você de volta. Usei as minhas forças para essa tarefa. Daemon teria entendido, teria exigido isso.

 

— Voltei há dois anos, e agora não há nada esgotando suas forças. — Os olhos de Jaenelle ficaram repletos de sofrimento e traição. — E, no entanto, você nem sequer tentou chegar até ele, não é?

 

— Sim, tentei! MALDITA SEJA, TENTEI! — Saetan inclinou-se sobre a mesa. — Pare de agir como uma vagabundazinha arrogante. Ele pode ser seu amigo, mas também é meu filho. Você realmente acha que não tentaria ajudá-lo? — Voltou a sentir o sabor amargo do fracasso. — Estive tão perto, criança-feiticeira. Tão perto. Mas ele estava fora do meu alcance. E não confiou em mim. Se Daemon tivesse se esforçado um minímo que fosse, eu teria conseguido trazê-lo. Poderia ter indicado a saída do Reino Distorcido, mas ele não confiou em mim.

 

O silêncio se arrastou.

 

— Vou trazê-lo de volta — disse Jaenelle, em um tom sereno.

 

Saetan se endireitou.

 

— Você não pode voltar a Terreille.

 

— Não me diga o que posso ou não posso fazer — retrucou Jaenelle, ríspida.

 

— Ouça o que digo, Jaenelle — insistiu ele. — Você não pode voltar a Terreille. Assim que percebesse sua presença, Dorothea faria todo o possível para controlá-la ou destruí-la. E você ainda não atingiu a maioridade. Seus parentes em Chaillot poderiam tentar recuperar sua custódia.

 

— Terei de arriscar. Não vou abandoná-lo sofrendo. — Deu as costas para sair.

 

Saetan inspirou fundo e expirou devagar.

 

— Como sou pai dele, posso alcançá-lo sem necessidade de contato físico.

 

— Mas ele não confia em você.

 

— Posso ajudá-la, Jaenelle.

 

Ela se virou para olhá-lo, e Saetan se deparou com uma estranha.

 

— Não quero sua ajuda, Senhor Supremo — respondeu, calma.

 

Jaenelle foi embora, e Saetan soube que estava fazendo muito mais do que simplesmente deixar uma sala.

 

Tudo tem um preço.

 

Lucivar encontrou-a nos jardins algumas horas mais tarde, sentada num banco de pedra, as mãos apertadas entre os joelhos com tanta força que chegavam a doer. Sentando-se no banco, ele se aproximou o máximo que conseguiu, sem tocá-la.

 

— Gata? — disse, em um tom dócil, receando que até mesmo o som pudesse destroçá-la. — Fale comigo, por favor.

 

— Eu... — Ela se arrepiou.

 

— Você se lembra.

 

— Eu me lembro. — Deu uma gargalhada lancinante. — Eu me lembro de tudo. Marjane, Dannie, Rose, Briarwood. Greer. Tudo. — Olhou-o de soslaio. — Você sabia de Briarwood. E de Greer.

 

Lucivar afastou uma madeixa do rosto. Talvez tivesse que deixar o cabelo curto, como de hábito entre os guerreiros eyrienos.

 

— Às vezes, quando você tem pesadelos, fala enquanto dorme.

 

— Então vocês dois sabiam. E nada disseram.

 

— O que poderíamos dizer, Gata? — perguntou Lucivar, devagar. — Se a forçássemos a se lembrar de algo tão emocionalmente marcante, você teria tido um ataque de fúria.

 

Os lábios de Jaenelle insinuaram um sorriso.

 

— É verdade. — O sorriso desapareceu. — Sabe o que é pior? Eu me esqueci. Daemon era meu amigo, e me esqueci dele. Naquele Winsol, antes de... ele me deu uma pulseira de prata. Não sei o que aconteceu com ela. Eu tinha uma fotografia dele. Também não sei o que aconteceu com ela. E, além disso, Daemon deu tudo o que tinha para me ajudar, e, no final, todos o abandonaram como se ele não tivesse importância.

 

— Se você tivesse se lembrado da violação quando voltou, teria ficado? Ou teria abandonado o corpo outra vez?

 

— Não sei.

 

— Portanto, esquecer Daemon foi o preço a pagar para manter essas memórias à distância até ficar forte o suficiente para enfrentá-las... Daemon diria que foi um preço justo.

 

— É fácil afirmar o que Daemon diria quando ele não está presente para se opor, não é? — Os olhos dela se encheram de lágrimas.

 

— Você está esquecendo uma coisa, feiticeirazinha — disse Lucivar, ríspido. — Daemon é meu irmão e um Príncipe dos Senhores da Guerra. Eu o conheço há mais tempo e melhor do que você.

 

Jaenelle se ajeitou no banco.

 

— Eu não o culpo pelo que aconteceu com ele. Mas o Senhor Supremo...

 

— Se você vai exigir que o Senhor Supremo arque com a culpa por Daemon estar no Reino Distorcido, terá de dividir um pouco dessa culpa comigo também.

 

Jaenelle se virou para encará-lo, com um olhar frio.

 

Lucivar respirou fundo.

 

— Ele foi a Pruul me libertar. Queria que eu fosse com ele. E eu recusei, pois pensava que tivesse matado você, que a tivesse violado.

 

— Daemon?

 

Lucivar praguejou com violência.

 

— Às vezes você consegue ser incrivelmente ingênua. Não tem ideia do que Daemon é capaz, quando está frio.

 

— Você acreditou mesmo nisso?

 

Ele apoiou a cabeça nas mãos.

 

— Havia muito sangue, a dor era imensa. Eu não consegui vencer o sofrimento, pensar com clareza e duvidar do que tinham dito. E, quando o acusei, ele não negou.

 

Jaenelle ficou pensativa.

 

— Ele me seduziu. Bem, seduziu a Feiticeira. Quando estávamos no abismo.

 

— Ele fez o quê? — perguntou Lucivar, com uma calma mortífera.

 

— Não seja impertinente — retrucou Jaenelle. — Foi um truque para que eu curasse meu corpo. Ele não me desejava, de fato. A ela. Ele não... — Sua voz sumiu. Esperou um minuto antes de continuar. — Disse que esperara pela Feiticeira a vida toda. Que nascera para ser seu amante. Mas, depois, não quis ser seu amante.

 

— Fogo do Inferno, Gata — explodiu Lucivar. — Você tinha doze anos e tinha acabado de ser violada. O que esperava que ele fizesse?

 

— No abismo, eu não tinha doze anos.

 

Lucivar semicerrou os olhos, imaginando o que ela queria dizer.

 

— Ele mentiu para mim — disse Jaenelle, baixinho.

 

— Não, não mentiu. Ele sente mesmo tudo o que disse. Se você tivesse dezoito anos e ele lhe oferecesse o anel de Consorte, você teria descoberto mais rápido. — Lucivar fitou o jardim fora de foco. Pigarreou. — Saetan ama você, Gata. E você o ama. Tudo o que ele fez foi com o intuito de salvar sua Rainha. Fez o que qualquer outro Príncipe dos Senhores da Guerra faria. Se você não consegue perdoá-lo, como vai conseguir me perdoar algum dia?

 

— Ah, Lucivar. — Soluçando, Jaenelle o abraçou.

 

Lucivar também a abraçou, afagou-a e sentiu um consolo penoso pela força com que ela o agarrava. As lágrimas silenciosas dele molharam o cabelo dela. As lágrimas eram por ela, cujas feridas da alma tinham sido reabertas, e por ele próprio, que poderia ter perdido algo valioso pouco depois de ter encontrado. E também por Saetan, que poderia ter perdido muito mais, e por Daemon. Acima de tudo, por Daemon.

 

A luz do dia estava quase desaparecendo quando Jaenelle se afastou, delicada.

 

— Preciso falar com uma pessoa. Voltarei mais tarde.

 

Preocupado, Lucivar observou os ombros curvados e o rosto pálido da irmã.

 

— Onde... — A prudência entrou em conflito com o instinto, e ele vacilou.

 

Os lábios de Jaenelle transpareciam a sombra de um sorriso compreensivo.

 

— Não vou a nenhum lugar perigoso. Não sairei de Kaeleer. E não, Príncipe Yaslana, não é arriscado. Vou apenas visitar um amigo.

 

Ele a deixou partir, incapaz de agir.

 

Saetan fitava o vazio, mantendo o sofrimento à distância, mantendo as recordações à distância. Se perdesse o controle e as deixasse fluir... não sabia se conseguiria sobreviver, nem mesmo se tentaria.

 

— Saetan? — Jaenelle estava na soleira da porta aberta do escritório.

 

— Senhora. — Protocolo. As cortesias tradicionais de quando um Príncipe dos Senhores da Guerra se dirigia a uma Rainha de categoria idêntica ou mais escura. Perdera o privilégio de se dirigir a ela de outra forma, de representar algo mais.

 

Quando Jaenelle entrou na sala, Saetan contornou a mesa. Não podia se sentar enquanto ela estivesse de pé, e não podia lhe pedir que se sentasse, já que os outros móveis do escritório tinham sido destruídos e ele permitira que Beale limpasse a bagunça.

 

Jaenelle se aproximou, vacilante, mordendo o lábio inferior e com as mãos se entrelaçando, agitadas. Não olhou para Saetan.

 

— Falei com Lorn. — Sua voz tremia. Ele piscava depressa. — Assim como você, ele acha que não devo ir a Terreille... a não ser à Fortaleza. Decidimos que criarei uma sombra de mim mesma que possa interagir com outras pessoas e procurar Daemon, enquanto meu corpo ficará em segurança na Fortaleza. Só poderei fazer buscas durante três dias por mês, devido ao esgotamento físico que a sombra provocará, mas conheço alguém que talvez possa me ajudar a procurar por ele.

 

— Você deve agir como achar melhor — disse, com prudência.

 

Jaenelle olhou para Saetan com aqueles belos olhos, antigos e perturbados, cheios de lágrimas.

 

— S-Saetan?

 

Como era jovem para tanto poder e sabedoria.

 

Abriu os braços, abriu o coração.

 

Agarrou-se a Saetan, tremendo violentamente.

 

Jaenelle era a dança mais penosa e mais gloriosa da sua vida.

 

— Saetan, eu...

 

Ele colocou um dedo sobre seus lábios.

 

— Não, criança-feiticeira — disse, com doce pesar. — O perdão não funciona assim. Você pode querer me perdoar, mas ainda não consegue. Perdoar alguém pode levar semanas, meses, anos. Às vezes, até uma vida inteira. Até Daemon estar bem outra vez, tudo o que podemos fazer é tentar ser amáveis e compreensivos um com o outro, vivendo um dia de cada vez. — Ele a abraçou com força, aproveitando a sensação, sem saber quando a abraçaria desse jeito de novo, ou se alguma vez voltaria a fazê-lo. — Vamos, criança-feiticeira. Está quase amanhecendo. Agora você precisa descansar.

 

Saetan a acompanhou até o quarto, mas não entrou. Já em seus aposentos, sentiu a solidão se abater sobre si.

 

Aninhou-se na cama, incapaz de conter as lágrimas que segurara ao longo de toda a longa e terrível noite. Levaria tempo. Semanas, meses, talvez anos. Sabia que levaria tempo.

 

Mas, por favor, Doces Trevas, que não seja uma vida inteira.

 

Surreal caminhou pela rua abandonada em direção à praça do mercado, na esperança de que sua expressão fria contrabalançasse seu estado físico vulnerável. Não devia ter usado aquela infusão de feiticeira para suprimir o período da lua do mês anterior. No entanto, os guardas hayllianos que Kartane SaDiablo enviara atrás dela estavam prestes a capturá-la. Por isso, não se sentira segura para ficar indefesa nos dias em que seu corpo não toleraria o uso de poderes que não fossem da Arte básica.

 

Para as entranhas do Inferno com todos os machos dos Sangue! Quando o corpo de uma feiticeira enfraquece, todos os machos dos Sangue tornam-se potenciais inimigos. E, neste exato momento, havia muitos inimigos com que se preocupar.

 

Buscaria alguns mantimentos no mercado, para depois se refugiar em casa com dois longos romances.

 

Ouviu gritos abafados e assustados vindo do beco à frente.

 

Invocando uma faca de lâmina comprida, Surreal deslizou até a esquina do beco e pôs-se à espreita.

 

Quatro homens hayllianos, enormes e taciturnos. E uma garota que ainda era praticamente uma criança. Dois deles se afastaram, observando, enquanto um de seus companheiros segurava a garota e as mãos de outro a despiam.

 

Droga, droga, droga. Era uma armadilha. Não havia outra razão para que hayllianos viessem para esta zona do Reino, ainda mais numa cidade moribunda. Deveria apenas voltar para casa sem chamar atenção. Se fosse cuidadosa, talvez não a encontrassem. Outros hayllianos deviam estar aguardando em locais onde Surreal poderia comprar um bilhete para uma Carruagem da Teia, que por isso estava fora de questão. Caminhar pelos Ventos sem a proteção de uma Carruagem era quase o mesmo que sucídio.

 

No entanto, a garota estava ali. Se não fizesse nada, o destino daquela criança estaria nas mãos dos quatro brutamontes. Mesmo que alguém a “socorresse” depois, seria passada de homem em homem até que a ação contínua ou a brutalidade deles acabaria por matá-la.

 

Respirando fundo, Surreal correu para o beco.

 

Um golpe vertical rasgou um dos homens da axila à clavícula. Surreal balançou o braço, passando a poucos centímetros do rosto da garota, e conseguiu fazer um corte superficial no peito do outro homem, enquanto tentava libertar a menina.

 

Nesse momento, os outros dois homens entraram na luta.

 

Surreal se abaixou para evitar um soco que teria esmagado a lateral da sua cabeça. Em seguida, se desequilibrou, levantou de um salto, deu dois passos rápidos e, como ninguém a impediu de prosseguir pelo beco, deu a volta para sair.

 

Os hayllianos bloqueavam a única saída da via.

 

Surreal olhou para a garota, querendo transmitir seu pesar.

 

A garota que estava sendo atacada deu um sorriso ávido, enquanto um dos homens que não tinham sido atingidos por Surreal colocava um saco de moedas nas suas mãos. Ela juntou as roupas e correu para fora do beco.

 

Vagabunda mercenária.

 

Surreal tentou com todas as forças se lembrar das outras garotas que ajudara ao longo dos últimos cinco anos, mas recordá-las não abrandou o sentimento avassalador de traição. Bem, chegara ao fim de um ciclo. Sobrevivera em becos nojentos. Agora, morreria em um deles, pois não estava disposta a permitir que Kartane SaDiablo a aprisionasse e a oferecesse à Sacerdotisa Suprema de Hayll.

 

Os homens avançaram, exibindo sorrisos cruéis.

 

— Deixem ela em paz.

 

A voz de meia-noite, calma e sinistra, soou atrás de Surreal.

 

Surreal olhou para os homens, viu o choque, a inquietação e o medo se transformarem num olhar que, para uma mulher, sempre significou dor.

 

— Deixem ela em paz — repetiu a voz.

 

— Vá para o Inferno — disse o haylliano mais corpulento, avançando.

 

Surgiu uma névoa atrás dos homens, formando uma parede de um lado ao outro do beco.

 

— Corte a garganta da vagabunda e acabe logo com isto — disse o homem com o ombro ferido.

 

— Não podemos nos divertir nem brincar com a mestiça, por isso a outra terá de aprender a se comportar — disse o homem corpulento.

 

Uma névoa espessa invadiu o beco. Olhos apareceram, como pedras preciosas vermelhas e incandescentes, e ouviu-se um rosnado.

 

Surreal gritou sem fôlego ao sentir uma mão agarrando seu braço esquerdo.

 

— Venha comigo — disse aquela voz de meia-noite, incrivelmente familiar.

 

A névoa girou e era muito espessa para que fosse possível ver quem a guiava com tanta facilidade, como se caminhando em águas transparentes.

 

Mais rosnados. E, em seguida, gritos agudos e desesperados.

 

— O q-que... — gaguejou Surreal.

 

— Cães de Caça do Inferno.

 

À direita de Surreal, alguma coisa caiu no chão, fazendo um barulho como se tivesse caído na água.

 

Surreal tentou engolir, tentou não respirar.

 

Em seguida, saíram da bruma, voltando à paisagem acolhedora do beco abandonado.

 

— Você está morando aqui perto? — perguntou a voz.

 

Surreal finalmente olhou para sua salvadora, sentindo uma pontada de desilusão logo seguida por uma sensação de alívio. A mulher era da sua altura, e o corpo no macacão preto e justo, embora esguio, não pertencia totalmente à criança da qual se lembrava. Contudo, o cabelo comprido era louro e os olhos se escondiam por trás de óculos escuros.

 

Surreal tentou se afastar.

 

— Agradeço por salvar minha pele, mas minha mãe me aconselhou a não dizer onde eu moro para estranhos.

 

— Não somos estranhas, e tenho certeza de que esse não foi o único conselho de Titian.

 

Surreal tentou, outra vez, se libertar. A mão que agarrava seu braço apertou com mais força. Percebendo que ainda segurava a arma na outra mão, ela puxou a faca para trás, atacando com força o pulso da mulher.

 

A faca passou pelo pulso como se ele não existisse e desapareceu em seguida.

 

— O que é você? — arquejou Surreal.

 

— Uma ilusão que se chama sombra.

 

— Quem é você?

 

— Briarwood é o belo veneno. Não há cura para Briarwood. — A mulher sorriu com frieza. — Isto responde à sua pergunta?

 

Surreal observou a mulher, tentando encontrar algum vestígio da criança de que se recordava. Depois de um minuto, disse:

 

— Você é mesmo Jaenelle, não é? Ou uma parte dela?

 

Jaenelle sorriu, embora sem qualquer traço de satisfação.

 

— Sou eu mesma. — Uma pausa. Em seguida: — Precisamos conversar, Surreal. Em particular.

 

Oh, é claro que precisavam conversar.

 

— Primeiro tenho de ir ao mercado.

 

A mão com as unhas pintadas de preto e afiadas como um punhal aliviaram o aperto por um momento antes de soltá-la.

 

— Está bem.

 

Surreal hesitou. Era possível ouvir rosnados e rangidos que vinham da névoa atrás delas.

 

— Você não precisa terminar a matança?

 

— Isso não vai ser um problema — disse Jaenelle, seca. — Pilhas de cocô de Cães de Caça não são uma ameaça para ninguém.

 

Surreal empalideceu.

 

Os lábios de Jaenelle se crisparam.

 

— Peço desculpas — disse, passado um minuto. — Todos temos diferentes facetas de personalidade. Esse episódio trouxe à tona as minhas piores. Ninguém entrará no beco, e ninguém sairá de lá. As Harpias chegarão a qualquer momento e cuidarão do assunto.

 

Surreal seguiu até a praça do mercado e comprou pães, frango, legumes, empadinhas de carne e fruta fresca.

 

— Vou preparar uma infusão medicinal — disse Jaenelle, quando voltaram à casa de Surreal.

 

Ainda se perguntando sobre o que teria levado Jaenelle a procurá-la, Surreal assentiu com a cabeça antes de se retirar para o banheiro para se limpar. Quando voltou, havia um prato tapado sobre a pequena mesa da cozinha e uma caneca fumegante com uma infusão de feiticeira.

 

Sentando-se numa cadeira, Surreal bebeu a infusão e sentiu a dor no abdômen diminuindo aos poucos.

 

— Como você me encontrou? — perguntou.

 

Pela primeira vez, o sorriso de Jaenelle tinha um ar divertido.

 

— Bem, querida, como você é a única Joia Cinza em todo o Reino de Terreille, não é difícil de encontrar.

 

— Eu não sabia que era possível localizar alguém assim.

 

— Quem está atrás de você não pode se valer deste método. Seria preciso que usasse uma Joia igual ou mais escura do que a sua.

 

— Por que veio à minha procura? — Surreal perguntou, calma.

 

— Preciso da sua ajuda. Preciso encontrar Daemon.

 

Surreal fitou a caneca.

 

— Qualquer coisa que ele tenha feito no Altar de Cassandra aquela noite, foi para ajudar você. Será que ele já não sofreu o suficiente?

 

— Demais.

 

A voz de Jaenelle transparecia mágoa e pesar. Os olhos teriam transmitido mais.

 

— Precisa mesmo usar esses óculos escuros ridículos? — perguntou Surreal, ríspida.

 

Jaenelle hesitou.

 

— Meus olhos podem perturbá-la.

 

— Aceito correr o risco.

 

Jaenelle tirou os óculos.

 

Aqueles olhos pertenciam a alguém que sobrevivera aos pesadelos mais distorcidos da alma.

 

Surreal engoliu em seco.

 

— Entendo o que quer dizer.

 

Jaenelle colocou os óculos.

 

— Posso trazê-lo de volta do Reino Distorcido, mas preciso estabelecer uma ligação com o corpo.

 

Se Jaenelle tivesse vindo alguns meses antes.

 

— Não sei onde ele está — disse Surreal.

 

— Mas pode procurá-lo. Só posso manter esta forma durante três dias a cada mês. O tempo está se esgotando para Daemon, Surreal. Se o caminho não for indicado em breve, não restará nada dele.

 

Surreal fechou os olhos. Merda.

 

Jaenelle colocou o resto da infusão na caneca de Surreal.

 

— Nem mesmo o período da lua de uma feiticeira de Joia Cinza deveria causar este sofrimento.

 

Surreal mudou de posição. Encolheu-se.

 

— Suprimi o período do mês passado. — Envolveu a xícara com as mãos. — Daemon viveu comigo por uns tempos. Até alguns meses atrás.

 

— O que aconteceu depois?

 

— O que aconteceu foi Kartane SaDiablo — respondeu com a voz cruel, e sorriu em seguida. — O seu encantamento, ou teia ou o que quer que tenha tecido para os tios de Briarwood funcionou perfeitamente com ele. Você não reconheceria o desgraçado. — Fez uma pausa. — A propósito, Robert Benedict está morto.

 

— Que pena — murmurou Jaenelle, com veneno escorrendo pela voz. — E o prezado Dr. Carvay?

 

— Vivo, mais ou menos. Não por muito tempo, pelo que ouvi dizer.

 

— Me conte sobre Kartane... e Daemon.

 

— Na última primavera, Daemon apareceu na casa onde eu estava morando. Os nossos caminhos se cruzaram algumas vezes desde... — Surreal vacilou.

 

— Desde a noite no Altar de Cassandra.

 

— Pois é. Ele estava do mesmo jeito que Tersa. Aparecia, ficava uns dias e voltava a desaparecer. Da última vez, ficou. Foi então que Kartane apareceu. — Surreal esvaziou a caneca. — Parece que ele já estava atrás de Daemon há algum tempo, mas, ao contrário de Dorothea, parecia saber onde procurar. Começou a exigir que Daemon o ajudasse a se libertar do terrível feitiço que alguém armara para ele, como se não tivesse feito nada para merecê-lo. Quando percebeu que Daemon estava perdido no Reino Distorcido e era inútil, olhou para mim... e reparou nas minhas orelhas. Quando se deu conta de que eu era a filha de Titian — e dele também —, Daemon explodiu e o expulsou.

 

“Acho que ele percebeu que levar Daemon a Dorothea não seria de grande ajuda, mas levar seu único descendente possível seria um belo negócio. E uma descendente fêmea que pudesse dar continuação à linhagem seria um forte incentivo, mesmo mestiça.

 

“Daemon insistiu que partíssemos de imediato, pois Kartane voltaria ao escurecer, com guardas. E foi o que aconteceu.

 

“Antes de pegar o Vento para sair dali, Daemon e eu tínhamos decidido ir para uma cidade em outro Território. Ele estava logo atrás de mim, viajando perto. Mas depois não estava. Não o vi desde então.

 

— E desde então você tem fugido.

 

— Exato. — Surreal se sentia muito cansada. Queria se perder num livro, no sono. Mas agora seria muito arriscado. Os guardas hayllianos começariam a se perguntar sobre a ausência daqueles quatro homens, logo começariam as buscas.

 

— Coma, Surreal.

 

Surreal deu uma mordida no pão e se perguntou por que não provara a infusão — e por que não se importava com isso.

 

Jaenelle verificou o quarto e, em seguida, examinou o sofá velho na sala de estar.

 

— Você prefere se acomodar na cama ou deitar ali?

 

— Não posso — balbuciou Surreal, aborrecida por sentir que estava prestes a chorar.

 

— Pode sim. — Retirando almofadas e um edredom do quarto, Jaenelle transformou o sofá em um ninho acolhedor. — Posso ficar mais dois dias. Ninguém a incomodará enquanto eu estiver aqui.

 

— Eu te ajudo a procurar — disse Surreal, se enroscando no sofá.

 

— Eu sei. — Jaenelle sorriu com frieza. — Você é a filha de Titian. Não poderia ser diferente.

 

— Não sei se gosto de ser tão previsível — protestou Surreal.

 

Jaenelle providenciou outra caneca de infusão medicinal, deixou Surreal escolher entre dois novos romances e se instalou numa cadeira.

 

Surreal bebeu a infusão, leu duas vezes a primeira página do romance e desistiu. Olhando para Jaenelle, mil perguntas vinham à sua mente.

 

Não queria ouvir a resposta de nenhuma delas.

 

Por ora, bastava saber que, logo que encontrassem Daemon, Jaenelle o tiraria do Reino Distorcido.

 

Por ora, bastava se sentir segura.

 

–A primavera é a temporada dos romances — disse Hekatah, observando o companheiro. — E agora ela já tem dezoito anos. Idade o bastante para desfrutar um marido.

 

— É verdade. — Lord Jorval desenhava pequenos círculos na mesa arranhada. — No entanto, é importante escolher o marido adequado.

 

— Ele só precisa ser jovem, belo e másculo... e obediente — retrucou Hekatah. — Será apenas uma isca sexual que a afastará daquele monstro. Ou você quer viver sob o domínio do Senhor Supremo quando sua “filha” constituir corte e começar seu reinado?

 

Jorval parecia obstinado.

 

— Um marido poderia ser muito mais do que uma isca sexual. Um homem maduro poderia guiar sua esposa Rainha, ajudando-a a tomar as decisões certas, mantendo-a longe das más influências.

 

Frustrada a ponto de querer gritar, Hekatah se recostou e enrolou as mãos nos braços da cadeira, para evitar se esticar sobre a mesa e arrancar metade do rosto daquele idiota.

 

Fogo do Inferno, como sentia falta de Greer. Ele entendia a sutileza. Entendia a prudência sensível de fazer uso de intermediários sempre que possível, evitando ficar na linha de fogo. Como membro do Conselho das Trevas, Jorval era de grande utilidade, pois mantinha a aversão e a desconfiança do Conselho em banho-maria. Porém, desejava Jaenelle Angelline e imaginava noites de sexo que fariam a vadia pálida ficar maleável e submissa a todos os seus caprichos, na cama e fora dela. E até aí tudo bem, mas o idiota parecia não querer ver além dos lençóis suados e avaliar o que poderia estar esperando por ele para uma conversinha.

 

Hekatah sabia com alguma certeza que Saetan cerraria os dentes e suportaria um macho indesejável pelo qual sua Rainha estivesse apaixonada. Sua formação estava arraigada demais nas tradições dos Sangue para que agisse de outro modo. No entanto, o mestiço eyrieno... Esse não pensaria duas vezes antes de tirar sua Senhora dos braços do amante — ou de arrancar seus braços —, isolando-a até voltar a pensar com clareza.

 

E Hekatah duvidava que algum deles pudesse ser convencido de que Jaenelle estaria suspirando por alguém com a aparência de Lord Jorval.

 

— Precisa ser jovem — insistiu Hekatah. — Um rapaz bonito com experiência suficiente na cama para ser convincente, e encantador o bastante para a família acreditar, embora com desconfiança, que ela está perdidamente apaixonada.

 

Jorval se aborreceu.

 

Controlando a fúria com mais afinco, Hekatah alterou a voz para que parecesse hesitante.

 

— Há razões para sermos prudentes, Jorval. Talvez você se lembre de um colega meu. — Entortou as mãos que ficassem com o aspecto de garras retorcidas.

 

Jorval melhorou de humor.

 

— Eu me lembro dele. Foi bastante útil. Esperava que voltasse. — Vendo que Hekatah nada dizia, respirou de forma irregular. — O que aconteceu com ele?

 

— O que aconteceu foi o Senhor Supremo — respondeu Hekatah. — Cometeu o erro de chamar a atenção. Nunca mais foi visto.

 

— Entendo.

 

Sim, finalmente começava a entender.

 

Hekatah se inclinou para a frente e acariciou a mão de Jorval.

 

— Às vezes os deveres e as responsabilidades do poder exigem sacrifícios, Lord Jorval. — Percebendo que ele não iria protestar, Hekatah reprimiu um sorriso triunfante. — Bem, se você acertasse o casamento de Jaenelle Angelline com o filho de um homem com quem você se sentisse à vontade para colaborar... um filho atraente e influenciável...

 

— Que benefício isso me traria? — inquiriu Jorval.

 

Hekatah conteve a irritação.

 

— O pai aconselharia o filho sobre as políticas e mudanças a serem implementadas em Kaeleer... mudanças que, com a insistência de Jaenelle, seriam aceitas. Muitas decisões são tomadas em conversas de alcova, e com certeza você sabe disso.

 

— Que benefício isso me traria? — repetiu Jorval.

 

— Assim como o filho segue os conselhos do pai, o pai também segue os conselhos do amigo... que é a única fonte para o tônico que mantém a Senhora tão ávida pela atenção do filho que ela concordará com qualquer coisa.

 

— Ah. — Jorval passou a mão pelo queixo. — Aaaah.

 

— E se por alguma razão o Senhor Supremo ou qualquer outro membro da família — o indício de medo nos olhos de Jorval dizia que ele já teria sentido de perto a fúria de Lucivar Yaslana — reagir mal? Bem, encontrar um rapaz atraente e belo seria relativamente fácil, mas encontrar homens fortes e inteligentes para dirigir o Reino... — Hekatah abriu as mãos e encolheu os ombros.

 

Jorval refletiu por algum tempo. Hekatah aguardou, paciente. Por mais que ele desejasse a ardente fantasia sexual, desejava ainda mais o poder — ou a ilusão de poder.

 

— Lady Angelline virá à Pequena Terreille daqui a duas semanas. E eu tenho um... amigo... com um filho apropriado. Mas fazer Lady Angelline aceitar se casar...

 

Hekatah invocou um pequeno frasco, pousando-o sobre a mesa.

 

— Lady Angelline é conhecida pela compaixão e por seus poderes de cura. Se alguma criança ficasse ferida em algum acidente horrível, certamente conseguiriam convencê-la a ajudar. Caso os ferimentos pusessem em risco a vida da criança, a energia que gastaria numa cura completa a deixaria física e mentalmente esgotada. A essa altura, se alguém em quem ela confiasse lhe oferecesse um copo de vinho relaxante, provavelmente estaria muito cansada para testá-lo. O casamento infelizmente teria de ser uma cerimônia privada e discreta o mais cedo possível. Com o cansaço e esta infusão misturada ao vinho, ela estaria submissa o suficiente para dizer o que a mandassem dizer e assinar o que a mandassem assinar. O jovem casal permaneceria na cerimônia por um breve período, para depois se retirar para o quarto e consumar o casamento.

 

As narinas de Jorval se dilataram.

 

— Entendo.

 

Hekatah invocou um segundo frasco.

 

— A dose certa deste afrodisíaco, misturada ao vinho durante o brinde de casamento, irá deixá-la insaciável pelo novo marido.

 

Jorval passou a língua pelos lábios.

 

— Na manhã seguinte, é preciso que seja administrada uma segunda dose. Isto é muito importante, pois o desejo dela tem de ser tão forte que se sobreponha à vontade do Senhor Supremo de ter uma conversa particular com o marido. Quando ela estiver pronta para desobrigar o rapaz dos deveres conjugais, o Senhor Supremo não poderá negar nem opor-se ao vínculo sem parecer um tirano ou estar tomado de ciúmes. — Hekatah fez uma pausa, insatisfeita com a forma como Jorval fitava os frascos. — E o homem sensato que estiver orientando essa questão jamais levantará suspeitas... a menos que acabe chamando a atenção.

 

Com um esforço visível, Jorval deixou de lado suas fantasias. Fez os frascos desaparecerem.

 

— Permanecerei em contato.

 

— Não é necessário — disse Hekatah com uma rapidez exagerada. — Basta saber que posso ajudar. Depois informo onde e quando você pode buscar a dose seguinte do afrodisíaco.

 

Jorval fez uma reverência e saiu.

 

Hekatah se recostou, exausta. Jorval ignorava ou optava por ignorar as cortesias habituais. Não trouxera qualquer bebida nem oferecera nada. Provavelmente se achava muito importante. E era mesmo, o maldito. Neste momento, era importante demais para os planos de Hekatah para que ela insistisse em formalidades. Mas assim que a putinha fosse separada de Saetan, ela poderia se livrar de Jorval.

 

Duas semanas. Teria tempo para concluir o que restava do plano e montar a armadilha que, com sorte, iria livrá-la também de um Príncipe Eyrieno dos Senhores da Guerra.

 

Alguma coisa estava errada.

 

Lucivar colocou uma braçada de lenha no caixote junto à lareira da cozinha.

 

Errada demais.

 

Endireitando-se, sondou psiquicamente toda a área, usando a casa de Luthvian como ponto central.

 

Nada. Mas a sensação permaneceu.

 

Preocupado com a inquietação, Lucivar não se mexeu quando Roxie entrou na cozinha, não reparou no brilho nos olhos da garota ou na forma como seu andar se transformou ao caminhar na sua direção.

 

Ele passara os últimos dois dias ajudando Luthvian nas tarefas diárias, enquanto se esquivava das investidas amorosas de Roxie. Dois dias eram o que ele e Luthvian conseguiam passar juntos, e só o conseguiam porque Luthvian estava ocupada com suas alunas a maior parte do dia e ele saía logo após o jantar para passar a noite na clareira de uma montanha.

 

— Você é forte — disse Roxie, passando as mãos no peito.

 

De novo, não. De novo, não.

 

Normalmente, não permitiria que uma mulher o tocasse daquela forma. Normalmente, consideraria aquele tom de voz um motivo para lhe dar um soco.

 

Então, por que estava receoso? Por que tinha os nervos à flor da pele?

 

Vou acabar com isto desta vez. Acabar de vez com a ligação. Não. Não posso. Não conseguirei alcançá-lo se...

 

Os braços de Roxie se enroscaram no pescoço de Lucivar. Ela roçou os seios no seu peito.

 

— Ainda não tive um Príncipe dos Senhores da Guerra.

 

De onde vinha o medo?

 

Você não pode possuir este corpo. Este corpo está prometido para ele.

 

Roxie se encostou mais em Lucivar. Mordeu seu pescoço. Lucivar colocou as mãos na cintura, imobilizando-a enquanto se concentrava para descobrir a origem daquele zumbido de vespa raivosa.

 

De novo, não. De novo, não.

 

Vinha do Anel de Honra que Jaenelle havia lhe oferecido. O zumbido, o medo, a raiva fria crescendo sob o medo. Aquelas sensações não lhe pertenciam, pertenciam a Jaenelle.

 

Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as Trevas tenham misericórdia por ela.

 

— Vejo que você mudou de ideia... — disse Luthvian, mordaz, ao entrar na cozinha.

 

Uma raiva fria, tão fria. Se não fosse controlada logo...

 

— Preciso ir — disse Lucivar, distraído. Sentiu o puxão dos braços em volta do pescoço e, imediatamente, empurrou o corpo para longe.

 

Luthvian começou a praguejar.

 

Ignorando-a, ele se virou para a porta, perguntando-se o que Roxie estaria fazendo no chão da cozinha.

 

— Você tem que me servir! — gritou Roxie, sentando-se. — Você me excitou. Tem que me servir.

 

Voltando-se para ela, Lucivar arrancou a perna de uma cadeira da cozinha e lançou-a no colo de Roxie.

 

— Use isto. — E dirigiu-se à porta.

 

Não permitirei. Não me entregarei.

 

— Lucivar!

 

Rosnando, ele tentou se livrar da mão de Luthvian.

 

— Preciso ir. A Gata está em apuros.

 

A mão de Luthvian o apertou com mais força.

 

— Você tem certeza, não tem? Você a sente tão bem que tem certeza.

 

— Sim! — Não queria bater em Luthvian. Não queria magoá-la. Mas se não o deixasse ir...

 

A mão no braço estremeceu.

 

— Pode me mandar uma mensagem depois? Me diga se... se precisar de ajuda?

 

Lucivar olhou para Luthvian de maneira dura e firme. Ela podia ter ciúmes da forma como os homens da família eram atraídos por Jaenelle, mas se preocupava. Beijou-a no rosto, de leve.

 

— Eu lhe direi.

 

Luthvian se esquivou.

 

— Você passou tantos anos treinando para ser guerreiro, agora veja se coloca isso em prática.

 

Não.

 

Lucivar acelerou o máximo que pôde pela Teia Cinza-Ébano, certo de que já era tarde demais.

 

Não permitirei.

 

Cuidaria dela depois, o que quer que tivesse acontecido. Doces Trevas, permita que possa existir um depois. Acelerou ainda mais.

 

Do Anel não vinha qualquer emoção. Nenhum zumbido. Nada, a não ser...

 

Nãããããão!

 

... a raiva. Mãe Noite, a raiva!

 

Lucivar abriu caminho à força pela multidão de rostos nauseados, seguindo direto para o local onde estava concentrado o poder desencadeado por Jaenelle. Um Senhor da Guerra de meia-idade estava de um dos lados da entrada, tagarelando com um Mephis de aspecto sinistro. O gosto do poder rodopiava atrás de uma porta do outro lado.

 

Lucivar seguiu em direção à porta.

 

— Lucivar, não!

 

Ignorando a ordem de Mephis, Lucivar arrebentou a tranca Cinza que seu irmão demônio-morto mais velho havia colocado na porta.

 

— Lucivar, não entre aí!

 

Lucivar abriu a porta, entrou no quarto e ficou petrificado.

 

À sua frente, havia um dedo sobre o tapete, com o anel de ouro parcialmente fundido na carne e a Joia desfeita em um pó fino.

 

Era o maior pedaço — e o único identificável — daquilo que teria sido um homem adulto. O resto do corpo salpicava as paredes do quarto.

 

O zumbido na cabeça avisou-o para respirar normalmente antes que desmaiasse. Se respirasse normalmente no interior daquele quarto, ficaria enjoado por uma semana.

 

Porém, havia algo errado no quarto e ele não sairia dali até descobrir o que era.

 

Quando descobriu, sua fúria tornou-se assassina.

 

O corpo de um macho. Uma cama destruída. O restante da mobília, embora estragado por fragmentos de ossos e sangue, não sofrera qualquer dano.

 

Lucivar saiu do quarto, virando-se para o homem que conversava com Mephis.

 

— O que fizeram com ela? — perguntou com uma calma excessiva.

 

— O que fizeram com ela? — O Senhor da Guerra apontou para o quarto com uma mão trêmula. — Vejam o que aquela vagabunda fez com meu filho. É louca. Louca! Ela...

 

Com um grito de guerra eyrieno, Lucivar encostou o Senhor da Guerra na parede.

 

— O QUE FIZERAM COM ELA?

 

O Senhor da Guerra berrou. Ninguém tentou ajudá-lo.

 

— Lucivar. — Mephis segurava alguns papéis. — Ao que parece, Jaenelle se casou esta tarde com o Senhor...

 

Lucivar rosnou.

 

— Ela não se casaria por vontade própria sem a presença da família. — Cerrou os dentes para o Senhor da Guerra. — Não é?

 

— E-estavam a-apaixonados — gaguejou o Senhor da Guerra. — Foi amor à primeira vista. Não queria que soubessem até estar consumado.

 

— Alguém não queria — concordou Lucivar. Sorrindo, invocou a espada de guerra eyriena e ergueu-a para que o Senhor da Guerra a visse. — Deseja conservar seu rosto? — perguntou suavemente.

 

— Lucivar — advertiu Mephis.

 

— Não se meta, Mephis — resmungou Lucivar, com a fúria levemente controlada, petrificando todos os que estavam na entrada.

 

Pense. Ela ficara com medo, e quase nada assustava Jaenelle. Teve medo, mas também ficou tão irritada que pensou em romper a ligação entre espírito e corpo, preferindo abandonar o invólucro a se submeter. Pense. Se estavam em Terreille...

 

— O que você deu a ela? — Como o homem não respondia, Lucivar encostou a ponta da espada de guerra no rosto do homem. Abriu um corte. O sangue começou a escorrer.

 

— Uma i-infusão leve. Para acalmá-la. Ela estava com medo. Com medo de todos. Especialmente de v-você.

 

Algo estúpido para dizer a um homem que segurava uma arma grande e tão afiada que podia lhe atravessar os ossos.

 

Ela tinha sido drogada. Fora uma substância forte o suficiente para confundir seu discernimento sem impedi-la de assinar o contrato de casamento. Ainda assim, isso não explicava o quarto.

 

— Depois — advertiu Lucivar. — O que deu a ela a fim de prepará-la para o leito nupcial? — Vendo que o Senhor da Guerra o olhava fixamente, sem responder, apertou a espada de guerra, desta vez cortando um pouco mais fundo. — Onde estão os frascos?

 

Ofegante, o Senhor da Guerra apontou para uma porta próxima.

 

Mephis entrou no aposento e voltou com dois pequenos frascos.

 

Lucivar fez a espada de guerra desaparecer, pegou um frasco e abriu-o. Analisou as gotas no fundo. Se uma bebida misturada com aquela substância tivesse sido oferecida a ele, não a teria tocado. Em circunstâncias normais, Jaenelle faria o mesmo.

 

Fez o frasco desaparecer e pegou o outro, que ainda estava meio cheio com um pó escuro. Praguejou violentamente. Sabia — como sabia! — o que uma grande quantidade de safframate faria a alguém com sua compleição e peso. Podia apenas imaginar o sofrimento que produziria em Jaenelle.

 

Levantou o frasco.

 

— Você deu isso a ela? Se deu, então é o responsável pelo que aconteceu naquele quarto.

 

O Senhor da Guerra sacudiu a cabeça com violência.

 

— É inofensivo. Inofensivo! Adicionado a uma taça de vinho, é apenas uma variedade da infusão da Noite Ardente. A infusão da Noite Ardente é sempre usada na noite de casamento.

 

Lucivar mostrou os dentes cerrados ao sorrir.

 

— Já que é inofensivo, você não vai se importar de beber a outra dose. Mephis, vá buscar uma taça de vinho.

 

Na testa do Senhor da Guerra apareciam gotas de suor.

 

Mephis sumiu por um minuto e voltou com o vinho.

 

Depois de colocar quase todo o pó preto no vinho, Lucivar passou o frasco para Mephis e pegou o copo. Com a outra mão, agarrava a garganta do Senhor da Guerra.

 

— Bem, agora beba isto ou despedaço sua garganta. A escolha é sua.

 

— Q-quero uma audiência perante o Conselho das Trevas — choramingou o Senhor da Guerra.

 

— Você tem todo o direito — Mephis concordou, sereno. Olhou para Lucivar. — Vai despedaçar a garganta dele ou eu mesmo me encarrego disso?

 

Lucivar riu maliciosamente.

 

— Desse jeito não teria muita utilidade recorrer ao Conselho, não é? — Seus dedos se afundaram na garganta do Senhor da Guerra.

 

— B-bebo.

 

— Eu sabia que você seria sensato — respondeu Lucivar. Afrouxou a pressão para permitir que o Senhor da Guerra bebesse o vinho.

 

— Agora. — Jogou o Senhor da Guerra no aposento onde Mephis encontrara os frascos. — Para que possa fazer um relato preciso ao Conselho das Trevas, o melhor é ter a mesma experiência que preparava para Lady Angelline. — Depois de fechar a sala com um escudo Cinza-Ébano, acrescentando um feitiço temporizador, Lucivar virou-se para um homem ali perto. — O escudo desaparecerá em vinte e quatro horas.

 

Desta vez não precisou abrir caminho entre a multidão. Todos se encostaram na parede para deixá-lo passar.

 

Mephis alcançou-o antes de sair da mansão. Observando a área, foi para o quarto vazio mais próximo — o escritório de alguém. Achou-o sinistramente adequado, mesmo não sendo o de Saetan.

 

Mephis trancou a porta.

 

— Foi um belo espetáculo.

 

— O espetáculo ainda nem começou. — Lucivar andava pelo escritório. — E você não tentou me impedir.

 

— Não podemos mostrar divergências em público. Além disso, não havia razões para tentar impedi-lo. Você é de uma categoria superior e duvido que deixasse que sentimentos fraternos se colocassem no seu caminho.

 

— Nisso você tem razão.

 

Mephis praguejou.

 

— Você se dá conta dos problemas que vamos ter com o Conselho das Trevas por causa disto? Não estamos acima da Lei, Lucivar.

 

Lucivar parou diante de Mephis.

 

— Você vive de acordo com suas regras e eu com as minhas.

 

— Ela assinou um contrato de casamento.

 

— Contra a vontade.

 

— Você não sabe disso. E vinte testemunhas afirmam o contrário.

 

— Eu uso o Anel que ela me deu. Consigo senti-la, Mephis. — A voz de Lucivar tremeu. — Ela estava preparada para romper a ligação em vez de se submeter.

 

Mephis ficou em silêncio durante um minuto.

 

— Jaenelle tem problemas com a intimidade física. Você sabe disso.

 

Lucivar deu um murro na porta.

 

— Maldito seja! Você está tão cego ou está com o saco tão encolhido que se submete a qualquer coisa para não ouvir alguém reclamando dos abusos de poder da família SaDiablo? Bem, eu não estou cego nem há nada de errado com o meu saco. É a minha Rainha. Minha! Com ou sem regras, com ou sem Leis, com ou sem Conselho das Trevas, se alguém a faz sofrer, devolvo na mesma moeda.

 

Olharam fixamente um para o outro. Lucivar ofegante, Mephis imóvel.

 

Por fim, Mephis se encostou à porta.

 

— Não podemos passar novamente por isto, Lucivar. Não podemos voltar a ter medo de perdê-la.

 

— Onde ela está?

 

— O pai a levou para a Fortaleza. Com ordens expressas para que o resto da família se mantivesse afastado.

 

Lucivar puxou Mephis para o lado.

 

— Bem, todos sabemos como levo jeito para cumprir ordens, não é?

 

Saetan estava com aparência de alguém que acabara de sobreviver a uma batalha.

 

O que não estava longe da verdade, pensou Lucivar ao fechar, sem fazer barulho, a porta da sala de estar de Jaenelle na Fortaleza.

 

— Minhas instruções foram claras, Lucivar.

 

A voz não tinha força. O rosto estava pálido e cansado.

 

Com indiferença, Lucivar apontou para as Joias Vermelhas de Direito por Progenitura que Saetan usava.

 

— Você não vai conseguir me colocar para fora com isso.

 

Saetan não invocou a Negra.

 

Lucivar imaginou, corretamente, que trazer Jaenelle para a Fortaleza na sua atual condição física e emocional tinha esgotado a Negra.

 

Saetan mancou até uma cadeira, praguejando baixinho. Tentou pegar um decantador de yarbarah da mesa lateral, mas suas mãos tremiam muito.

 

Atravessando a sala, Lucivar pegou o decantador, encheu um copo e esquentou o vinho de sangue.

 

— Precisa de sangue fresco? — perguntou, sereno.

 

Saetan fitou-o com frieza.

 

Mesmo depois de todos aqueles séculos, as acusações de Luthvian ainda eram feridas profundas, com cicatrizes recentes. Os guardiões precisavam de sangue fresco de tempos em tempos, para preservar as forças. A princípio, Lucivar tentara entender a ira de Saetan quando lhe ofereciam sangue quente direto da veia, tentara não se sentir insultado ao notar que o Senhor Supremo aceitava essa oferta de todos, menos dele. Neste momento, sentia-se aborrecido por perceber que as palavras dos outros ainda se colocavam entre eles. Não era uma criança. Se o filho oferecia algo com boa vontade, por que o pai não aceitava?

 

Saetan desviou o olhar.

 

— Não, obrigado.

 

Lucivar enfiou a taça na mão de Saetan.

 

— Beba isto.

 

— Quero você longe daqui, Lucivar.

 

Lucivar serviu-se de um generoso copo de conhaque, chutou um apoio de pés até a cadeira de Saetan e se sentou.

 

— Quando sair daqui, vou levá-la comigo.

 

— Você não pode — rebateu Saetan. — Ela está... — Ele passou as mãos no cabelo. — Não acho que esteja bem de espírito...

 

— Não é de se admirar, já que foi drogada com safframate.

 

Saetan fulminou-o com o olhar.

 

— Não seja idiota. O safframate não causa isto.

 

— Como você pode saber? Nunca experimentou. — Lucivar esforçou-se para manter o ressentimento longe da voz. Aquele não era o momento para reabrir velhas feridas.

 

— Eu já experimentei safframate.

 

Lucivar semicerrou os olhos e examinou o pai.

 

— Explique-se.

 

Saetan esvaziou o copo.

 

— O safframate é um estimulante sexual usado para prolongar o vigor, a capacidade de proporcionar prazer. As sementes são do tamanho de uma semente de boca-de-lobo. Colocamos uma ou duas, trituradas, em um copo de vinho.

 

— Uma ou duas. — Lucivar bufou. — Senhor Supremo, em Terreille trituram as sementes até virarem pó, depois as administram às colheradas.

 

— Mas isso é uma loucura! Se alguém tomasse essa quantidade... — Saetan fixou os olhos na porta fechada que dava para o quarto de Jaenelle.

 

— Exato — disse Lucivar, em voz baixa. — O prazer logo se transforma em dor. O corpo fica tão estimulado e sensível que o contato com qualquer coisa causa sofrimento. O instinto sexual anula todo o resto, mas essa quantidade de safframate também bloqueia a capacidade de atingir o orgasmo. Então não existe alívio possível, apenas a necessidade instintiva e a sensibilidade que aumenta com o estímulo.

 

— Mãe Noite — sussurrou Saetan, afundando na cadeira.

 

— Mas se por alguma razão a pessoa não se sujeitar a ser usada até que passe o efeito da substância... bem, o encontro pode se tornar violento.

 

Saetan piscou, para reprimir as lágrimas.

 

— Você foi usado dessa maneira, não é?

 

— Sim. Mas não com muita frequência. A maioria das feiticeiras achava que montar no meu pau não compensava levar a minha fúria para a cama. E a maioria das que tentaram não voltou inteira, quando voltou. Eu tinha minha própria definição de paixão intensa.

 

— E Daemon?

 

— Tinha sua própria maneira de lidar com a questão. — Lucivar estremeceu. — Não o chamavam de Sádico por acaso.

 

Saetan estendeu a mão para tomar o yarbarah. Ela ainda tremia, mas não tanto.

 

— O que acha que podemos fazer com Jaenelle?

 

— Ela não merece passar por isto sozinha, e nunca aceitará fazer sexo, nem pelo menor alívio que lhe poderia proporcionar. Por isso, resta a violência. — Lucivar esvaziou o copo de conhaque. — Vou levá-la para Askavi. Ficaremos afastados dos povoados. Desse modo, se alguma coisa der errado, ninguém sofrerá as consequências.

 

Saetan baixou o copo.

 

— E você?

 

— Prometi a mim mesmo que tomaria conta dela. É o que farei.

 

Sem se permitir mais tempo para pensar, Lucivar colocou o copo na mesa e atravessou a sala. Hesitou ao chegar à porta, sem saber ao certo como abordar uma feiticeira com poder suficiente para dilacerar sua mente só com um pensamento. Depois deu de ombros e abriu a porta, confiando no instinto.

 

O quarto tinha uma atmosfera pesada por causa da crescente tempestade psíquica. Ele entrou, preparando-se.

 

Jaenelle andava de um lado para outro, as mãos agarradas aos braços com força suficiente para se ferir. Olhou de relance para Lucivar e cerrou os dentes. Nos seus olhos, havia repulsa e ausência de reconhecimento.

 

— Saia.

 

Ele se sentiu aliviado. A cada segundo que Jaenelle resistisse ao desejo de atacar um macho, aumentariam suas chances de sobreviver aos próximos dias.

 

— Faça a mala — disse Lucivar. — Roupas informais. Um casaco quente para a noite. Botas de caminhada.

 

— Não vou a lugar nenhum — rebateu Jaenelle.

 

— Vamos caçar.

 

— Não. Saia daqui.

 

Lucivar apoiou as mãos na cintura.

 

— Você pode fazer a mala ou não, mas vamos caçar. Agora.

 

— Não quero ir a lugar nenhum com você.

 

Percebeu o desespero e o temor na voz da garota. Desespero por não querer deixar a segurança do quarto. Temor pela pressão de Lucivar sobre ela, que, sentindo-se encurralada, poderia retaliar, machucando-o.

 

Ele ficou mais animado.

 

— Você pode sair deste quarto com seus próprios pés ou sobre meus ombros. A escolha é sua, Gata.

 

Jaenelle agarrou uma almofada e a rasgou, com uma enxurrada de palavrões em diversos idiomas. Vendo que a única reação de Lucivar era ir em direção a ela, apressou-se para fugir dele, colocando a cama entre os dois.

 

Será que percebia a ironia?

 

— O tempo está se esgotando, Gata — disse, afável.

 

Ela agarrou outra almofada e atirou-a contra Lucivar.

 

— Bastardo!

 

— Sacana — corrigiu. Começou a dar a volta na cama.

 

Jaenelle correu para a porta do closet.

 

Lucivar chegou antes dela, com as asas abertas, o que o fazia parecer imenso.

 

Jaenelle recuou.

 

Saetan entrou no quarto.

 

— Vá com ele, criança-feiticeira.

 

Encurralada entre o pai e o irmão, Jaenelle ficou imóvel, tremendo.

 

— Vamos nos afastar de todos — propôs Lucivar. — Só nós dois. Muito ar fresco e campo aberto.

 

Ele viu, em seus olhos e rosto, que ela considerava a ideia. Campo aberto. Espaço para se movimentar. Espaço para correr. Campo aberto, onde não estaria encurralada num quarto, com toda aquela masculinidade sufocando-a.

 

— Você não vai me tocar — Não era uma pergunta nem uma exigência. Era uma súplica.

 

— Não vou tocar em você — prometeu Lucivar.

 

Os ombros de Jaenelle relaxaram.

 

— Está bem. Vou fazer a mala.

 

Lucivar fechou as asas e se afastou para que a garota pudesse entrar no closet. A derrota naquela voz lhe deu vontade de chorar.

 

Saetan se aproximou.

 

— Tenha cuidado, Lucivar — disse baixinho.

 

Lucivar concordou. Já se sentia cansado.

 

— Vai ser melhor a céu aberto, nos campos.

 

— Você tem experiência?

 

— Sim. Primeiro vamos à cabana buscar sacos de dormir e outros apetrechos. Pedirei ao Fumaça que se junte a nós. Acho que ela vai conseguir tolerá-lo. E, se algo der errado, ele pode enviar uma mensagem.

 

Saetan não precisava perguntar o que poderia dar errado. Ambos sabiam do que uma Rainha Viúva Negra de Joia Negra podia fazer a um homem.

 

Saetan passou a mão nos ombros de Lucivar. Beijou o filho no rosto.

 

— Que as Trevas o protejam — disse com a voz rouca, virando-se para sair. Lucivar puxou Saetan e abraçou-o com força. — Tenha cuidado, Lucivar. Não quero que nada lhe aconteça, agora que finalmente estamos juntos. E não quero você comigo no Inferno.

 

Lucivar se afastou e exibiu um sorriso indolente e arrogante.

 

— Prometo ficar longe de confusão, pai.

 

Saetan bufou.

 

— Você dizia o mesmo quando era pequeno — afirmou, em um tom frio.

 

Sozinho enquanto Jaenelle fazia a mala, Lucivar se perguntou se estava agindo corretamente. Já lamentava os pássaros que caçariam, os animais que morreriam de forma tão bárbara. Se o derramamento de sangue quadrúpede não fosse suficiente, ela se voltaria contra ele. Era o que ele esperava. E, se fizesse isso, Saetan não voltaria a encontrar o filho no Reino das Trevas. Não restaria nada dele.

 

–O Conselho das Trevas está bastante consternado com o assunto. — Lord Magstrom se remexeu na cadeira, constrangido.

 

Saetan conteve a fúria com pura força de vontade. O homem sentado do outro lado da mesa de madeira escura nada fizera para merecer sua ira.

 

— O Conselho não está sozinho nessa consternação.

 

— Sim, é claro. Mas para Lady Angelline ter... — Magstrom hesitou.

 

— Entre os Sangue, o estupro é punido com a execução. Pelo menos, é assim em Kaeleer — disse Saetan, com uma afabilidade excessiva.

 

— Também é assim em Terreille — respondeu Magstrom, rígido.

 

— Então o desgraçado teve o que mereceu.

 

— Mas... eles eram recém-casados — protestou Magstrom.

 

— Mesmo que isso fosse verdade, o que duvido, apesar das malditas assinaturas, um contrato de casamento não justifica o estupro. Drogar uma mulher e deixá-la incapaz de recusar não significa que ela tenha concordado. Eu diria que Jaenelle manifestou sua recusa de forma bastante eloquente, não acha? — Saetan juntou os dedos das mãos à frente, recostando-se na cadeira. — Analisei as duas “substâncias inofensivas” que deram a ela. Como sou Viúva Negra, consigo reproduzi-las. Se quiserem insistir que não tiveram qualquer relação com o comportamento dela posso produzir outro lote. Podemos testá-lo na sua neta. Ela tem a idade de Jaenelle.

 

Agarrando-se aos braços da cadeira com força, Lord Magstrom ficou em silêncio.

 

Saetan deu a volta na mesa e serviu dois copos de conhaque. Ofereceu um deles a Lord Magstrom e sentou-se num canto.

 

— Fique tranquilo. Eu não faria uma maldade dessas com uma criança. Além do mais — acrescentou com a voz calma —, posso perder dois filhos nos próximos dias. Não desejaria isso a outro homem.

 

— Dois?

 

Saetan desviou o olhar da preocupação e compaixão nos olhos de Magstrom.

 

— A primeira infusão que deram a Jaenelle inibe a vontade. Ela diria o que lhe mandassem dizer, faria o que lhe mandassem fazer. Infelizmente, essa infusão faz com que os danos emocionais sejam muito maiores. Uma grande quantidade de safframate e uma violação são o bastante para deixá-la prestes a matar alguém. E ela permanecerá nesse estado até os efeitos passarem.

 

Magstrom tomou um gole de conhaque.

 

— Ela vai se recuperar?

 

— Não sei. Se as Trevas forem misericordiosas, sim. — Saetan cerrou os dentes. — Lucivar levou-a a Askavi para passar um tempo na terra, longe do contato com pessoas.

 

— Ele sabe dessas tendências violentas?

 

— Sim, está ciente.

 

Magstrom hesitou.

 

— Você não espera que ele volte, não é?

 

— Não. E ele também não. E não sei o que isso provocará em Jaenelle.

 

— Gosto dele — disse Magstrom. — Possui um charme bruto.

 

— Sim, é verdade. — Saetan esvaziou o copo, esforçando-se para não sofrer por antecipação. Reforçou o autocontrole. — Independente do que acontecer, Jaenelle não vai mais visitar a Pequena Terreille sem um séquito escolhido por mim.

 

Magstrom se levantou e pôs o copo com cuidado sobre a mesa.

 

— Acho que é a melhor atitude a tomar. Espero que o Príncipe Yaslana faça parte desse séquito.

 

Saetan se conteve até Lord Magstrom sair do Paço. E então atirou os copos de conhaque contra a parede. Não se sentiu melhor. Os vidros partidos lembravam um cálice de cristal estilhaçado e dois filhos que pagariam um preço alto por causa do pai.

 

Caiu de joelhos no chão. Já havia chorado um filho. Não lamentaria o outro. Ainda não. Não lamentaria aquele cretino eyrieno insensato e arrogante, aquele impertinente charmoso e temperamental.

 

Ah, Lucivar.

 

–Que droga, Gata, eu disse para você esperar. — Lucivar lançou um escudo Cinza-Ébano pela trilha de caça, retesando-se um pouco ao prever o embate.

 

Jaenelle parou a alguns centímetros do escudo e se virou, os olhos vidrados, procurando um local na densa vegetação que lhe permitisse abrir caminho.

 

— Afaste-se de mim — falou, ofegante.

 

Lucivar mostrou o cantil.

 

— Você cortou o braço nos espinhos lá atrás. Deixe eu limpar os cortes com um pouco de água.

 

Olhando para o braço, ela pareceu surpresa ao ver o sangue escorrendo de meia dúzia de arranhões profundos.

 

Lucivar rangeu os dentes e aguardou. Ela havia tirado as roupas e ficado apenas com uma camisola sem mangas, que não oferecia qualquer proteção à pele naquela terra inóspita. Mas neste momento a dor aguda não feria tanto quanto a fricção constante do tecido na pele hipersensível.

 

— Vamos lá, Gata — pediu. — Estique o braço para eu jogar água por cima.

 

Ela estendeu o braço com cuidado. Aproximando-se apenas o necessário, Lucivar jogou água nos arranhões, limpando o sangue e — assim esperava — a maior parte da sujeira.

 

— Beba um gole de água — disse, oferecendo-lhe o cantil. Se conseguisse convencê-la a beber um pouco, talvez conseguisse convencê-la a ficar quieta por cinco minutos, o que não acontecia desde que a trouxera para esta zona de Ebon Rih.

 

— Afaste-se de mim. — A voz soou grave e áspera. Desesperada.

 

Ele se afastou um pouco, mas continuou a lavar os cortes.

 

— Afaste-se de mim. — Ela se virou e atravessou o escudo Cinza-Ébano como se ele não existisse.

 

Lucivar tomou um longo gole de água e suspirou. De um jeito ou de outro, iria ajudá-la a superar esta situação. Contudo, após dois dias de esforço permanente, não estava certo de quanto tempo mais qualquer um dos dois aguentaria.

 

Lucivar encostou-se a uma árvore, e os sons ritmados que vinham da clareira o confortaram um pouco. Pelo menos, destruir a barraca abandonada com o martelo dava a Jaenelle uma válvula de escape para a fúria sexual e a energia ardente. E, mais importante, era algo que a manteria no mesmo lugar por alguns momentos.

 

Fogo do Inferno, ele estava cansado. Os capitães dos campos de caça eyrienos não eram capazes de manter o ritmo pesado de Jaenelle. Até Fumaça, com o passo rápido incansável, estava com dificuldades. É claro que, ao contrário de uma feiticeira impelida pelas drogas, os lobos gostavam de atividades como comer e dormir, dois elementos que agora estavam no topo da lista de prazeres de Lucivar.

 

Ele invocou o saco de dormir, desenrolou-o e usou a Arte para mantê-lo suspenso a uma altura suficiente para que as asas não arrastassem no chão. Puxando a parte de cima do saco até o tronco da árvore, sentou-se e gemeu, fazendo questão de esconder o ruído.

 

*Lucivar?*

 

Lucivar olhou ao seu redor até localizar Fumaça, que o espreitava atrás de uma árvore.

 

— Está tudo bem. A Senhora está destruindo uma barraca.

 

Fumaça ganiu e se escondeu atrás da árvore.

 

Ele ficou intrigado com a aflição do lobo, enviando, logo em seguida, uma imagem mental da estrutura destruída.

 

*Ah, um covil feito por algum humano idiota*, desdenhou Fumaça.

 

Lucivar conteve o riso. Não podia contestar a conclusão de Fumaça. As referências do lobo de um “covil humano adequado” incluíam o Paço, as casas de campo de Halaway, as outras casas de campo da família e a cabana de Jaenelle. Por isso, fazia sentido que achasse a barraca um covil construído por um humano inábil.

 

Quando a notícia do reaparecimento dos parentes se espalhou, os Sangue humanos se dividiram em dois grupos, os que defendiam e os que duvidavam da inteligência e capacidade na Arte dos Sangue não humanos. Os poucos humanos que tiveram a oportunidade de conviver com os Sangue animais ficaram divertidos e surpresos ao descobrirem que os parentes selvagens nutriam os mesmos preconceitos em relação a eles. Os humanos se dividiam em dois grupos: os humanos da Senhora e os outros humanos. Os humanos da Senhora eram inteligentes, bem treinados e dispostos a aprender os costumes dos outros, sem insistir que os seus eram melhores. Os outros humanos eram perigosos, estúpidos, cruéis e — segundo os Sangue felinos — presas. Tanto os gatos arcerianos como os tigres parentes usavam a mesma “palavra” para definir os humanos, cuja tradução literal era “carne estúpida”.

 

Certa ocasião, Lucivar argumentara que, como os humanos eram perigosos e podiam caçar com armas ou com Arte, não deveriam ser considerados estúpidos. Fumaça salientara que os javalis selvagens com dentes compridos também eram perigosos. Mesmo assim, não deixavam de ser estúpidos.

 

Tranquilo por saber que a Senhora não estava atacando nada com quatro patas, Fumaça desapareceu por alguns instantes e voltou com um coelho morto.

 

*Comer.*

 

— Já comeu? — Como Fumaça não respondeu, Lucivar invocou a mochila de comida e a grande garrafa que Draca lhe dera antes de deixar a Fortaleza com Jaenelle. Por pouco não recusara a comida, achando que haveria bastante carne fresca, tempo de sobra para fazer uma fogueira e cozinhá-la. — Fique com o coelho — disse, vasculhando a mochila. — Não gosto de carne crua.

 

Fumaça inclinou a cabeça.

 

*Fogo?*

 

Lucivar sacudiu a cabeça, recusando-se a pensar em fogueiras e sono. Retirou um sanduíche de carne da mochila.

 

*Lucivar comer.* Fumaça começou a comer o coelho.

 

Lucivar bebeu uns goles da garrafa de uísque e comeu o sanduíche devagar, com a atenção parcialmente concentrada no som de madeira estalando.

 

A viagem não tinha corrido como esperava. Trouxera Jaenelle ali para libertar os instintos selvagens induzidos pelas drogas em presas não humanas. Ele a acompanhara para agir como objeto de sua fúria e saciar, em grande parte, seu desejo de sangue — um macho humano.

 

Mas ela se recusara a caçar, a obter algum alívio em detrimento da vida de outra criatura. Incluindo Lucivar.

 

Porém, não tinha piedade do próprio corpo. Tratava-o como um inimigo que não merecia nada além de desprezo, um inimigo que a traíra, deixando-a vulnerável ao jogo sádico dos outros.

 

*Lucivar? *

 

Lucivar sacudiu a cabeça, verificando na mesma hora o motivo da ansiedade de Fumaça. Alguns pássaros cantando. Um esquilo pulando nos galhos acima. Os sons habituais do bosque. Apenas os sons habituais.

 

O coração quase saltava do seu peito enquanto corria junto com Fumaça para a pequena clareira.

 

A barraca agora era um amontoado de madeiras destruídas. A alguns metros, Jaenelle estava sentada no chão, de pernas abertas, ainda segurando o martelo.

 

Aproximando-se com cautela, Lucivar se agachou perto dela.

 

— Gata?

 

As lágrimas caíam por seu rosto. A mordida no lábio inferior fazia o sangue escorrer pelo queixo. Jaenelle engoliu em seco e estremeceu.

 

— Estou tão cansada, Lucivar. Mas é algo que se apodera de mim e...

 

Os músculos de Jaenelle ficaram tão tensos que o corpo vibrou. Ela arqueou as costas e as veias do pescoço saltaram. Inspirou pelos dentes cerrados. O cabo do martelo se desfez nas suas mãos.

 

Lucivar aguardou, sem se atrever a tocá-la enquanto os músculos estivessem tão tensos que podiam arrebentar. Não durou mais do que dois minutos. Pareceram horas. Por fim, seu corpo cedeu e Jaenelle começou a chorar com tal violência que Lucivar pensou que aquilo iria destruí-lo.

 

Ela não o impediu de passar os braços ao redor de seus ombros, então ele a abraçou, embalou e deixou que ela se desfizesse em lágrimas.

 

Assim que ela parou de chorar, Lucivar sentiu a tensão sexual se elevar, mas não a largou. Se estava interpretando a intensidade direito, o pior já tinha passado.

 

Depois de vários minutos, Jaenelle ficou relaxada o suficiente para apoiar a cabeça no ombro dele.

 

— Lucivar?

 

— Hmm?

 

— Estou com fome.

 

O coração de Lucivar cantou de alegria.

 

— Então vou alimentá-la.

 

*Fogo?*

 

Jaenelle levantou a cabeça de repente. Olhou espantada para o lobo na beira da clareira.

 

— Por que ele quer fazer uma fogueira?

 

— Eu bem queria saber. Mas, se fizéssemos uma fogueira, eu poderia preparar um café com uísque.

 

Jaenelle ficou pensativa por alguns momentos.

 

— Você faz um bom café com uísque.

 

Tomando o comentário como um sinal de concordância, Lucivar levou Jaenelle até o outro lado da clareira enquanto Fumaça começava a procurar lenha nos destroços.

 

Lucivar invocou a mochila de comida, a garrafa e o saco de dormir que deixara junto ao riacho. Jaenelle caminhava devagar, de um lado para outro, mordiscando o sanduíche que Lucivar lhe dera. Enquanto acendia a fogueira, invocava o resto do equipamento e montava o acampamento, ele a vigiava. Parecia agitada, mas não descontrolada, o que era positivo, já que estava escurecendo e esfriando.

 

Quando terminou de preparar o café com uísque, Jaenelle já estava aconchegada no saco de dormir, tremendo, e aceitou a caneca com avidez. Não lhe sugeriu que vestisse mais roupas. Contanto que ela percebesse a fogueira como uma fonte de calor, ficaria relutante em se afastar daquele local até o amanhecer.

 

Ele vasculhava a mochila de comida, à procura de algo que pudesse lhe oferecer para comer, quando ouviu um ronco suave.

 

Depois de mais de dois dias de atividade impiedosa, Jaenelle dormia.

 

Lucivar fechou o saco de dormir e adicionou um feitiço de aquecimento para mantê-la confortável à medida que a temperatura descia com o passar da noite. Retirou o café do fogo e acrescentou mais lenha à fogueira. Depois, descalçou as botas e acomodou-se no seu saco de dormir.

 

Deveria colocar um escudo protetor em volta do campo. Duvidava que um predador quadrúpede desejasse tanto assim o que restava na mochila de comida a ponto de desafiar os odores combinados de humanos e de lobo, mas estavam na fronteira setentrional de Ebon Rih, desconfortavelmente próximos do território Jhinka. O que Jaenelle menos precisava agora era ser acordada aos solavancos por um ataque surpresa de um grupo de caçadores jhinka.

 

Lucivar caiu em um sono profundo antes de terminar o pensamento.

 

Conformado com a intromissão, Saetan recostou-se numa das cadeiras junto à lareira e serviu dois copos de yarbarah. Decidira passar algum tempo em seu escritório privado sob o Paço, pois já não estava disposto a lidar com outras mentes atemorizadas e suplicantes, ainda mais depois das últimas vinte e quatro horas. Contudo, sendo ou não um Príncipe dos Senhores da Guerra de Joia Negra, sendo ou não o Senhor Supremo, um homem não podia recusar quando uma Rainha Dea al Mon solicitava uma audiência — sobretudo uma Harpia demônia-morta.

 

— O que posso fazer por você, Titian? — perguntou gentilmente, oferecendo-lhe um copo do vinho de sangue aquecido.

 

Titian aceitou o copo e bebericou com delicadeza, sem desviar os grandes olhos azuis dos olhos dourados de Saetan.

 

— Você deixou os habitantes do Inferno bastante nervosos. Esta foi a primeira vez, em todos os séculos como Senhor Supremo, que purgou o Reino das Trevas.

 

— Eu governo o Inferno. Aqui, posso agir como bem entender — disse Saetan sereno. Até um louco perceberia a advertência subjacente no tom de voz.

 

Titian ajeitou o longo e delicado cabelo grisalho atrás da orelha pontiaguda, optando por ignorar a advertência.

 

— Pode agir como bem entender ou tem que agir assim? Os mais atentos não deixaram de perceber que os únicos consumidos nesta purga foram os seguidores da Sacerdotisa das Trevas.

 

— É mesmo? — Parecia educadamente interessado. De fato, sentia-se aliviado por terem percebido aquela ligação. Isso não só deixaria os outros demônios-mortos tranquilos, assim que percebessem que os escolhidos para a antecipação da morte final tinham em comum uma lealdade específica, como qualquer um que Hekatah abordasse no futuro pensaria demorada e seriamente sobre o custo dessa lealdade. — Como isso não é da sua conta, que a trouxe aqui?

 

— Você deixou escapar alguns. Achei que deveria saber.

 

Saetan disfarçou depressa a repulsa e a consternação. Titian sempre via demais.

 

— Diga-me os nomes. — Não era uma pergunta.

 

Titian sorriu.

 

— Não é necessário. As Harpias encarregaram-se deles por você. — Hesitou por um instante. — E quanto à Sacerdotisa Suprema?

 

Cerrando os dentes, Saetan fitou a lareira.

 

— Não consegui encontrá-la. Hekatah é especialista em se esconder.

 

— Caso a tivesse encontrado, teria antecipado seu regresso às Trevas? Teria enviado a Sacerdotisa para a morte derradeira?

 

Saetan arremessou o copo para a lareira, arrependendo-se no mesmo instante que o fogo crepitou e o cheiro de sangue quente invadiu o aposento.

 

Fazia-se a mesma pergunta desde que tomara a decisão de eliminar todo o apoio de Hekatah entre os demônios-mortos. Se a encontrasse, conseguiria drenar toda a energia até ela desvanecer nas Trevas? Ou hesitaria, como acontecera tantas vezes antes, uma vez que séculos de desconfiança e de repulsa não eram o bastante para apagar o simples fato de lhe ter dado dois filhos. Três, se contasse... mas não podia contar, não podia contar essa criança, assim como nunca se permitira considerar quem teria segurado a faca.

 

Deu um salto quando Titian passou a mão pela dele.

 

— Tome. — Ofereceu-lhe outro copo de yarbarah aquecido. Sentando-se outra vez, passou o dedo pela borda do copo. — Não gosta de matar mulheres, não é?

 

Saetan bebeu o vinho de sangue de um gole só.

 

— Não, não gosto.

 

— Foi o que pensei. Você foi muito mais objetivo e condescendente com elas do que com os homens.

 

— Talvez pelos seus critérios. — Pelos critérios de Saetan, fora mais do que brutal. — Ele deu de ombros. — Somos filhos das nossas mães.

 

— Uma suposição razoável. — Ela soava solene. Parecia estar se divertindo.

 

Saetan retesou os ombros, incapaz de se livrar da sensação de que Titian acabara de passar uma corda por seu pescoço.

 

— É uma das minhas teorias preferidas para explicar por que não existe uma categoria para os machos equivalente à de Rainha.

 

— Porque os machos são filhos das suas mães?

 

— Porque faz muito tempo os únicos Sangue serem mulheres.

 

Titian enroscou-se na cadeira.

 

— Intrigante.

 

Saetan observou-a com cautela. Titian tinha a mesma expressão de Jaenelle quando o encurralava com êxito e se dispunha a aguardar até Saetan parar de se contorcer e lhe dizer o que ela queria saber.

 

— É só uma ideia que eu e Andulvar costumávamos discutir nas longas noites de inverno — resmungou, enchendo outra vez os copos.

 

— Podemos não estar no inverno, mas, no Inferno, as noites são sempre longas.

 

— Conhece a história sobre os dragões que governaram os Reinos, no princípio?

 

Titian deu de ombros, indiferente. Tinha se aconchegado para ouvir a história.

 

Saetan ergueu o copo num brinde, sorrindo contrariado. Os machos com Joias podiam ser treinados como defensores dos territórios, mas nenhum deles conseguia superar uma Rainha em termos de pensamento estratégico.

 

— Há muito tempo — começou —, quando os Reinos eram jovens, vivia neles uma raça de dragões. Poderosos, brilhantes e mágicos, governavam todas as terras e todas as criaturas. Porém, após centenas de gerações, chegou o dia em que perceberam que a raça se extinguiria. Em vez de deixar que seus conhecimentos e dons desaparecessem, optaram por concedê-los às outras criaturas, para que elas continuassem a Arte e cuidassem dos Reinos.

 

“Um após o outro, os dragões dirigiram-se aos seus covis e abraçaram a noite eterna, tornando-se parte das Trevas. Quando restavam apenas a Rainha e seu Príncipe, Lorn, a Rainha despediu-se do Consorte. Ao sobrevoar os Reinos, suas escamas caíam e se espalhavam, e qualquer criatura tocada por elas, não importa se caminhasse em duas ou quatro pernas ou fosse alada e dançasse pelos ares, tornava-se sangue do seu sangue. Não deixava de pertencer à raça de origem, mas também tornava-se Outra, renascida para se tornar vigilante e governante. Quando caiu a última escama, a Rainha se dissipou. Algumas histórias contam que seu corpo se metamorfoseou em outra forma, embora conservasse a alma de dragão. Outras, que o corpo se desvaneceu e regressou às Trevas.”

 

Saetan fez o yarbarah girar no copo.

 

— Li todas as histórias antigas, algumas do texto original. O que sempre me intrigou é que, independente da raça de onde se origina, nunca há referência ao nome da Rainha. Em todas as histórias, Lorn é mencionado pelo nome diversas vezes, mas ela não. A omissão parece deliberada. Sempre me perguntei qual a razão para isso.

 

— E o Príncipe dos Dragões? — perguntou Titian. — O que aconteceu com ele?

 

— De acordo com as lendas, Lorn ainda está vivo e detém toda a sabedoria dos Sangue.

 

Titian ficou pensativa.

 

— Quando Jaenelle fez quinze anos e Draca contou que Lorn afirmara que Jaenelle iria viver com você no Paço, pensei que tinha dito isso para impedir as objeções de Cassandra.

 

— Não, ela estava falando a verdade. Lorn e Jaenelle são amigos há anos. Foi ele quem lhe atribuiu as Joias que ela usa.

 

Titian abriu e fechou a boca, sem emitir qualquer som.

 

A expressão atordoada agradou Saetan.

 

— Já o viu?

 

— Não — respondeu Saetan com rancor. — Ele ainda não me concedeu uma audiência.

 

— Ah, querido — disse Titian, sem a menor compaixão. — O que a lenda tem a ver com o fato de os Sangue terem sido exclusivamente fêmeas em tempos passados, e por que não mantivemos as coisas desse jeito?

 

— Você gostaria que tivesse sido assim, não é?

 

Ela sorriu.

 

— Ora, a minha teoria é a seguinte. Como as escamas da Rainha concediam a Arte a outras raças, e como as características são compartilhadas pelo sexo semelhante, parece compreensível que apenas as fêmeas tivessem a capacidade de absorver a magia. Ficaram ligadas à terra, atraídas pelos próprios ritmos corporais ao fluxo e refluxo do mundo natural. Tornaram-se o Sangue.

 

— O que deve ter durado uma geração — Titian salientou.

 

— Nem todos os homens são estúpidos. — Vendo o ar duvidoso de Titian, Saetan soltou um suspiro exasperado. Mais inútil do que discutir com uma Harpia sobre o valor dos machos era ensinar uma pedra a cantar. Teria mais sorte com a pedra. — A favor da teoria, digamos que estejamos falando dos Dea al Mon.

 

— Ah. — Titian recostou-se, satisfeita. — Os nossos machos são inteligentes.

 

— Estou certo de que tirou um peso das costas deles por pensar dessa forma — disse Saetan, com frieza. — Ora, ao descobrirem que algumas mulheres do Território tinham adquirido poderes mágicos de uma hora para outra...

 

— Os melhores jovens guerreiros teriam se oferecido como parceiros e protetores — completou Titian, prontamente.

 

Saetan levantou uma sobrancelha. Como os plebeus, os elementos de cada raça que não eram Sangue, tendiam a ser tão desconfiados em relação aos Sangue e à Arte, não era bem assim que imaginara os acontecimentos. Contudo, achou interessante que uma feiticeira dos Dea al Mon partisse desse pressuposto. Teria de perguntar a Chaosti e a Gabrielle, quando surgisse a ocasião.

 

— E, dessas uniões, nasceram crianças. As garotas, pelo gênero, herdaram todo o dom.

 

— Mas os garotos eram meio-Sangue, com pouca ou nenhuma Arte. — Titian estendeu o copo. Saetan tornou a enchê-lo.

 

— As feiticeiras não concebem com frequência — prosseguiu Saetan, depois de voltar a encher o próprio copo. — Dependendo da proporção de filhos para filhas, pode ter levado várias gerações para que os machos fossem gerados com a linhagem completa. Durante todo esse tempo, o poder devia estar na linha materna das famílias, cada geração aprendendo com a anterior e tornando-se ainda mais forte. As primeiras Rainhas devem ter surgido muito antes do primeiro Senhor da Guerra, para não falar de um macho mais forte. Nessa altura, o conceito de que os machos serviam e protegiam as fêmeas já devia estar entranhado. Por fim, chegou-se a este ponto na sociedade dos Sangue em que os Senhores da Guerra possuem um status igual ao das feiticeiras, os Príncipes equivalem às Sacerdotisas e às Curandeiras e as Viúvas Negras só precisam ser deferentes aos Príncipes dos Senhores da Guerra e às Rainhas. E os Príncipes dos Senhores da Guerra, que todos pensam que agem por conta própria, estão um degrau acima das outras castas, e um degrau muito alto abaixo das Rainhas.

 

— Quando é adicionada uma casta à categoria social de cada indivíduo, bem como à categoria das Joias, gera-se uma dança estranha. — Titian pousou o copo na mesa. — Uma teoria interessante, Senhor Supremo.

 

— Uma distração interessante, Lady Titian. Por que fez isso? Por que me ofereceu sua companhia esta noite?

 

Titian ajeitou a túnica verde-floresta.

 

— Você é família da minha família. Achei... adequado... lhe oferecer consolo esta noite, já que Jaenelle está impossibilitada de fazê-lo. Boa noite, Senhor Supremo.

 

Muito tempo depois de Titian ter saído, Saetan permanecia sentado tranquilamente, observando os troncos na lareira que se partiam e se acomodavam. Reuniu energia suficiente para se servir de um copo de yarbarah e aquecê-lo, satisfeito pela solidão e pelo silêncio.

 

Não contestara a teoria de Titian sobre o que teria levado os machos a servir, mas não era nisso que acreditava. Não fora apenas a magia que atraíra os machos. Fora o esplendor interior contido nos corpos femininos, uma luminescência pela qual alguns homens ansiavam tal como ansiariam por uma luz brilhando numa janela, quando estivessem ao frio. Ansiavam por aquela luz com tanto ardor quanto ansiavam ser embainhados na encantadora escuridão de um corpo feminino, ou talvez ainda mais.

 

Os machos tornaram-se Sangue pois foram atraídos por ambas as coisas.

 

E, como bem sabia, isso ainda acontecia.

 

Lucivar estava deitado na grama, com as mãos atrás da cabeça e as asas abertas, tentando secá-las após o rápido mergulho na lagoa. Jaenelle ainda chapinhava na água gelada, lavando o suor e a sujeira dos longos cabelos.

 

Ele fechou os olhos e gemeu de satisfação ao sentir o sol aquecer lentamente seus músculos tensos, relaxando-os.

 

No dia anterior, acordara pouco antes do amanhecer e vira Jaenelle remexendo na mochila de comida. Prepararam uma refeição rápida antes que ela fosse forçada a se mover devido à tensão física provocada pelas drogas.

 

Não era o impulso impiedoso dos últimos dias e, ao longo das horas, a tensão física deu lugar a tempestades emocionais. De repente, ela era invadida pela fúria, para logo depois cair em lágrimas. Lucivar lhe dava espaço enquanto ela se enfurecia e praguejava. Abraçava-a quando chorava. Quando a tempestade passava, Jaenelle ficava bem durante breves momentos. Caminhava num passo tranquilo, detendo-se para pegar frutas silvestres ou descansar à margem de um regato. Então o ciclo recomeçava, diminuindo de intensidade a cada vez.

 

Naquela manhã, Lucivar e Fumaça abateram um pequeno veado. Guardaram carne suficiente para encher a pequena marmita que levavam, à qual Lucivar aplicou um feitiço para que se mantivesse fresca. Mandara Fumaça levar o resto para a Fortaleza. Se Saetan não estivesse na Fortaleza, Fumaça prosseguiria até o Paço para informar o Senhor Supremo de que o pior já passara e que ficariam mais alguns dias em Askavi, para depois voltarem para casa.

 

Casa. Fazia um ano que vivia em Kaeleer e, às vezes, ainda ficava perplexo pela forma como as feiticeiras tratavam os machos no Reino das Sombras.

 

Um dia, deparara-se com uma discussão entre Chaosti, Aaron e Khardeen sobre a diferença entre o Anel de Honra usado pelos machos do Primeiro Círculo de uma Rainha e o Anel Dominador que os terreillianos eram obrigados a usar até se provarem dignos de confiança. Contou-lhes sobre o Anel de Obediência usado em Terreille.

 

Não acreditaram nele. Racionalmente entenderam o que ele disse, mas não conheciam o medo intenso e diário a que os machos terreillianos estavam sujeitos, por isso não queriam, não podiam, acreditar nele.

 

Julgando que os rapazes apenas não tinham idade suficiente para conhecer as artimanhas das feiticeiras para manter os machos em rédea curta, perguntara a Sylvia, a Rainha de Halaway, como uma Rainha controlava um macho que não desejava servir na sua corte.

 

Ela olhou para Lucivar boquiaberta por um momento, antes de responder:

 

— Quem iria querer um desses?

 

Alguns meses antes, quando estava em Nharkhava tratando de assuntos do Senhor Supremo, fora convidado a tomar chá por três Senhoras anciãs que elogiaram seu físico de maneira tão adorável que lhe fora impossível sentir-se insultado. Sentindo-se à vontade com elas, perguntara se tinham ouvido falar de um Príncipe dos Senhores da Guerra que recentemente matara uma Rainha.

 

Com relutância, elas admitiram que a história era verdadeira. Uma Rainha que tomara gosto pela crueldade fora incapaz de constituir uma corte porque não conseguiu convencer doze machos a servi-la de livre vontade. Assim, decidiu forçá-los a servir, colocando neles um Anel de Obediência. Ela reunira onze Senhores da Guerra de Joias mais claras e procurava o décimo segundo quando o Príncipe dos Senhores da Guerra a confrontou. Estava à procura de um primo mais novo que desaparecera no mês anterior. Quando ela tentou forçá-lo a se submeter, ele a matou.

 

O que acontecera com o Príncipe dos Senhores da Guerra?

 

Demoraram alguns instantes para entender a pergunta.

 

Não acontecera nada com o Príncipe dos Senhores da Guerra. Seja como for, ele agira conforme o esperado. Sem dúvida preferiam que ele tivesse apenas dominado aquela mulher horrível e a entregado à Rainha de Nharkhava para que fosse castigada, mas este tipo de reação é esperado quando um Príncipe dos Senhores da Guerra é provocado ao ponto de ascender ao limiar do assassinato.

 

Lucivar passara o resto do dia numa taberna, sem saber se achava graça ou se sentia aterrado pela atitude das Senhoras. Lembrou-se das surras, dos açoites, das vezes em que gritou por causa das dores atrozes provocadas pelo Anel de Obediência. Pensou no que havia feito para merecer tal sofrimento. Sentado naquela taberna, riu até chorar ao perceber, por fim, que jamais conseguiria conciliar as diferenças entre Terreille e Kaeleer.

 

Em Kaeleer, prestar serviço era uma dança complexa, e a liderança alterava-se constantemente entre os gêneros. As feiticeiras estimulavam e protegiam a força e o orgulho dos machos. Os machos, por sua vez, protegiam e respeitavam a força feminina, mais dócil, embora, de certo modo, mais profunda.

 

Os machos não eram escravos ou animais de estimação cujos sentimentos podiam ser menosprezados. Eram parceiros valiosos e estimados.

 

Era essa a correia que as Rainhas usavam em Kaeleer, concluíra Lucivar, naquele dia — um controle tão delicado e encantador que não havia qualquer razão para que o homem não o aceitasse, e todas as razões o levavam a protegê-lo com unhas e dentes.

 

Lealdade recíproca. Respeito recíproco. Honra recíproca. Orgulho recíproco.

 

Era este o lugar que agora considerava, orgulhosamente, a sua casa.

 

— Lucivar.

 

Lucivar pôs-se em pé de um salto, rogando pragas em silêncio. Considerando a tensão que sentia em Jaenelle, tivera sorte de ela não ter partido sozinha.

 

— Tem alguma coisa errada — disse ela, com a voz de meia-noite.

 

Na mesma hora, ele perscrutou a área.

 

— Onde? Não estou sentindo nada.

 

— Não é aqui. A leste.

 

A leste havia apenas um povoado de plebeus sob a proteção de Agio, o povoado dos Sangue na extremidade setentrional de Ebon Rih.

 

— Há alguma coisa errada, mas é difícil de definir — disse Jaenelle, com os olhos semicerrados, olhando para leste. — E parece deturpada, de certo modo, como uma armadilha cheia de iscas envenenadas. Mas some sempre que me tento concentrar nela. — Resmungou, frustrada. — Devem ser as drogas, distorcendo minha capacidade de sentir.

 

Pensou na Rainha que iludira onze jovens antes de ser morta.

 

— Ou talvez a isca não seja dirigida ao seu gênero. — Mantendo as barreiras interiores fortemente escudadas, enviou uma suave sonda psíquica para leste. Passado um minuto, rompeu a ligação e agarrou-se a Jaenelle, deixando que a força límpida e obscura da garota fizesse a imundície em que tinha tocado desaparecer.

 

Colou a testa na dela.

 

— É coisa ruim, Gata. Muito desespero e sofrimento cercados por... — Procurou uma forma de descrever o que sentira.

 

Corpos em decomposição.

 

Arrepiando-se, perguntou-se por que tinha pensado naquela palavra.

 

Poderia sobrevoar o povoado e dar uma olhada. Se os plebeus estivessem se defendendo de um ataque surpresa dos jhinkas, ele estava forte o suficiente para oferecer a ajuda de que precisavam. Se fosse uma daquelas febres primaveris que às vezes assolam um povoado, era melhor descobrir antes de enviar uma mensagem para Agio, uma vez que precisariam de Curandeiras.

 

A maior preocupação era encontrar um lugar seguro para...

 

— Nem pense nisso, Lucivar — advertiu Jaenelle em um tom sereno. — Vou com você.

 

Lucivar fitou-a, tentando avaliar até que ponto poderia pressioná-la desta vez.

 

— Sabe, o Anel de Honra que você me deu não me deterá da mesma forma que um Anel Dominador.

 

Jaenelle murmurou uma praga eyriena entre dentes.

 

Lucivar deu um sorriso triste. Isso respondia à questão sobre até que ponto poderia pressioná-la. Olhou para leste.

 

— Muito bem, você vai comigo. Mas vamos fazer as coisas do meu jeito, Gata.

 

Jaenelle assentiu.

 

— É você que tem experiência de combate. Mas... — Colocou a palma da mão direita sobre a Joia Cinza-Ébano no peito de Lucivar. — Abra as asas.

 

Ao abrir as asas completamente, sentiu um formigamento quente-frio provocado pelo Anel de Honra.

 

Jaenelle recuou, satisfeita.

 

— Este escudo está trançado no escudo protetor contido no Anel. Mesmo que você esgote as Joias até elas se quebrarem, ele continuará ao seu redor. Está colocado a cerca de trinta centímetros do seu corpo, e combina com o meu de tal modo que podemos ficar juntos sem um colocar o outro em perigo. No entanto, certifique-se de ficar longe de qualquer coisa que não quiser danificar.

 

Como passeava com frequência por todos os povoados de Ebon Rih, Lucivar conhecia bem o povoado plebeu e as terras em volta. Havia muitos montes baixos e zonas arborizadas a uma curta distância do povoado, lugares perfeitos para o grupo de atacantes jhinka se esconder.

 

Os jhinka eram um povo alado e muito feroz, composto por clãs patriarcais mantidos juntos, com alguma dificuldade, por uma dúzia de chefes tribais. Tal como os eyrienos, eram originários de Askavi, mas eram menores e tinham apenas uma fração da expectativa de vida dos eyrienos, que viviam muito tempo. Desde tempos imemoriais, as duas raças nutriam um ódio profundo entre si.

 

Enquanto os eyrienos dispunham da vantagem da Arte, os jhinkas dispunham da numerosidade. Quando esgotavam as energias psíquicas e as reservas de suas Joias, os guerreiros eyrienos ficavam tão vulneráveis como qualquer outro homem diante de um inimigo em maioria numérica avassaladora. Por isso, cientes da matança exigida para derrotar um inimigo, os jhinkas estavam sempre dispostos a encarar um eyrieno no campo de batalha.

 

Salvo por duas exceções. Uma caminhava entre os mortos, a outra entre os vivos. Ambas usavam Joias Cinza-Ébano.

 

— Muito bem — declarou Lucivar. — Viajaremos neste fio radial Branco até passarmos o povoado, depois saltaremos dos Ventos e iremos bem depressa até o outro lado. Se for um ataque dos jhinkas, eu cuido deles. Se for alguma coisa diferente...

 

Jaenelle limitou-se a olhar para ele.

 

Pigarreou.

 

— Vamos, Gata. Vamos dar uma razão para se arrepender a quem quer que esteja incomodando o nosso vale.

 

Saltando do Vento Branco, Lucivar e Jaenelle planaram em direção ao povoado aparentemente tranquilo, ainda a cerca de um quilômetro e meio de distância.

 

*Você disse que iríamos bem depressa*, disse Jaenelle, num fio psíquico.

 

*Também disse que faríamos as coisas do meu jeito*, respondeu Lucivar, bruscamente.

 

*Lá embaixo há sofrimento e privação, Lucivar.*

 

Também havia a imundície que agora se esquivava. Ainda estava lá. Tinha de estar. O fato de já não detectá-la, de pensar que nunca a detectaria se fosse apenas verificar como estava o povoado, deixava-o apreensivo. Teria caído na armadilha, fosse ela qual fosse, que aguardava lá embaixo.

 

Sentiu o despertar do instinto predador em Jaenelle enquanto mergulhou pelos ares, deslizando para o povoado a toda velocidade. Praguejando, Lucivar juntou as asas e mergulhou atrás dela no exato momento em que centenas de jhinkas surgiram do nada, guinchando gritos de guerra enquanto tentavam cercá-lo e derrubá-lo.

 

Por meio da Arte, Lucivar aumentou a velocidade e atravessou o enxame de jhinkas, deleitando-se com os gritos que davam ao chocar-se contra o escudo protetor. Bradando um grito de guerra eyrieno, libertou a força das Joias Cinza-Ébano, enviando-a em explosões curtas e controladas.

 

Os corpos dos jhinkas explodiram numa nuvem de sangue e membros decepados.

 

Lucivar irrompeu pelo fundo do enxame, freando o mergulho a uma asa de distância do chão.

 

*Gata!*

 

*Venha até a rua principal, mas depressa. O túnel não resistirá por muito tempo. Evite as ruas secundárias. Estão... imundas. Na extremidade oposta do povoado, encontrará um edifício protegido por um escudo.*

 

Voando baixinho, Lucivar virou para a rua principal e logo chegou ao limite do povoado, praguejando com todas as forças ao sentir o escudo roçando na tempestade psíquica de feiticeira, que engolia o povoado enganosamente tranquilo. O escudo crepitou como gotas de água fria lançadas numa panela quente. Todos os fios psíquicos ilusórios cintilavam como se fossem fios físicos compostos por relâmpagos.

 

Impulsionando-se, voou pelo túnel que Jaenelle construíra ao passar pela tempestade de feiticeira, que já se estava se fechando. Alcançou-a, por fim, a um quarteirão do edifício escudado. Uma rápida exploração psíquica mostrou-lhe os parâmetros do escudo em cúpula, ovalado, que protegia um edifício de pedra de dois andares, além de dez metros do terreno ao redor.

 

Quatro homens correram na direção do limite do escudo, sacudindo os braços e gritando:

 

— Voltem! Afastem-se daqui!

 

Atrás dos homens, milhares de jhinkas surgiram dos montes baixos além do povoado, preenchendo o céu até obscurecerem o sol.

 

Jaenelle passou pelo escudo do edifício com tanta facilidade como se fosse feito de uma fina camada de água. Distraído pelos homens e pelos jhinkas que se aproximavam, Lucivar sentiu que atravessavam uma parede de caramelo quente.

 

Já no interior do escudo que protegia o edifício, Lucivar aterrissou junto aos quatro homens. O escudo protetor de Jaenelle foi diminuindo até se tornar um revestimento junto à pele, provocou um ligeiro formigamento no Anel de Honra e desapareceu por completo.

 

— Quantos feridos? — perguntou Jaenelle, de repente.

 

Lord Randahl, Senhor da Guerra de Agio e Mestre da Guarda de Lady Erika, respondeu com relutância:

 

— Pelas últimas contas, cerca de trezentos, Senhora.

 

— Quantas Curandeiras?

 

— No povoado havia dois médicos e uma sábia com conhecimentos de ervas medicinais. Estão todos mortos.

 

Sabendo que não deveria interromper quando Jaenelle se concentrava em curar, Lucivar esperou que ela corresse para dentro do edifício antes de fazer suas próprias perguntas.

 

— Quem está sustentando o escudo?

 

— Adler — disse Randahl, apontando para um jovem Senhor da Guerra de aspecto selvagem.

 

Lucivar olhou de relance para os montes baixos. Os jhinkas chegariam ali a qualquer momento.

 

— Consegue estender o escudo mais um centímetro ou dois em toda a extensão? — perguntou a Adler. — Colocarei um escudo Cinza-Ébano atrás dele. Depois, poderá deixar cair o seu e descansar.

 

O jovem Senhor da Guerra assentiu com dificuldade e fechou os olhos.

 

Poucos segundos depois de Lucivar levantar o escudo, os jhinkas atacaram. Chocaram-se contra a barreira invisível, e seus corpos começaram a se amontoar. Alguns jhinkas, comprimidos entre o escudo e o restante do grupo, foram asfixiados ou esmagados pela massa de corpos que se contorciam. Olhos mortos e cheios de ódios fitavam os cinco homens mais abaixo.

 

— Fogo do Inferno — murmurou Randahl entre dentes. — Nunca atacaram com esta ferocidade, nem mesmo durante as incursões mais violentas.

 

Lucivar examinou o Senhor da Guerra de meia-idade por um momento, antes de voltar a concentrar a atenção nos jhinkas. Talvez, até hoje, não tivessem conseguido encurralar aquilo que queriam.

 

Podia sentir a pressão de todos os corpos amontoando-se junto ao escudo, podia sentir as Joias Cinza-Ébano libertando gota após gota das reservas de energia. Embora todas as Joias tivessem um reservatório de poder psíquico, quanto mais escuras, mais fundo o reservatório. Sendo a segunda Joia mais escura, a Cinza-Ébano possuía um depósito de energia tão fundo que, se não tivesse necessidade de usá-la em nada além da manutenção do escudo contra ataques físicos, poderia manter os jhinkas afastados durante uma semana até começar a sentir a pressão. Até lá, alguém viria à procura deles. Tudo o que precisava fazer era aguardar.

 

No entanto, era preciso levar em consideração aquela tempestade de feiticeira. Tinha certeza de que alguém criara aquela cilada especialmente para ele. Teria de confirmar com Randahl, mas suspeitava que o primeiro ataque dos jhinkas não lhes dera tempo para juntar mantimentos. E Jaenelle precisava de outras Curandeiras para auxiliar os feridos. Só as Trevas sabiam que ela até possuía as reservas psíquicas para tratar de todos, mas seu corpo não resistiria àquele tipo de exigência, sobretudo depois das drogas e do esforço físico dos últimos dias.

 

Além do mais, jamais fora acusado de possuir um temperamento passivo.

 

Lucivar fez o anel Cinza-Ébano desaparecer e invocou a Vermelha de Direito por Progenitura. A Cinza-Ébano em volta do pescoço alimentaria o escudo. A Vermelha...

 

— Avise seus homens para se manterem junto ao edifício — pediu a Randahl, calmo. — Está na hora de igualarmos as condições.

 

Com seu típico sorriso indolente e arrogante, ergueu a mão direita e ativou o feitiço que passara anos aperfeiçoando. Sete finos “arames” psíquicos foram lançados da Joia Vermelha do anel. Mantendo o braço estendido, fez movimentos largos e lentos para a frente e para trás, tomando cuidado para não se aproximar demais do edifício. Para a frente e para trás. Para cima e para baixo.

 

O sangue dos jhinkas escorria pelo escudo. Corpos de jhinkas resvalavam e deslizavam, enquanto os que se davam conta do perigo tentavam abrir caminho antes que o braço devastador voltasse.

 

Satisfeito com a onda de pavor do outro lado do escudo, contornou o edifício, a mão sempre dirigida para o escudo.

 

E os jhinkas morreram.

 

Começava uma terceira volta quando os jhinkas que ainda tentavam escalar o escudo perceberam o pânico dos que tentavam fugir. Em alvoroço e aos gritos, abandonaram a empreitada e voaram para os montes baixos.

 

Lucivar retraiu os “arames” psíquicos para o anel, cessou o feitiço e baixou o braço devagar.

 

Randahl, Adler e os dois outros Senhores da Guerra a que ainda não tinha sido apresentado olhavam boquiabertos, com um ar agoniado, para o sangue que escorria pelo escudo, para os pedaços de corpos que deslizavam para o chão.

 

— Mãe Noite — murmurou Randahl. — Mãe Noite.

 

Não conseguiam olhar para Lucivar. Ou melhor, sempre que seus olhos se voltavam na direção dele, sua perturbação era perceptível, como se se perguntassem se o que estava ali dentro com eles não era muito mais perigoso e mortífero do que o inimigo do lado de fora.

 

O que era verdade.

 

— Vou ver como está a Senhora — disse Lucivar, de repente.

 

Por ser Mestre da Guarda, Randahl tentaria agir normalmente assim que dispusesse de alguns minutos para se recompor. Pelo menos o homem recorreria ao Protocolo para se dirigir a um Príncipe dos Senhores da Guerra. Já os outros...

 

Tudo tem um preço.

 

Lucivar aproximou-se da parte da frente do edifício e se permitiu um momento para estabilizar as próprias emoções. Se outros membros dos Sangue não conseguiam enfrentar um Príncipe dos Senhores da Guerra no limiar do assassinato decerto não seriam os plebeus feridos que fariam isso. E, neste momento, a histeria poderia desencadear um desejo feroz por derramamento de sangue. Um macho recém-saído do limiar do assassinato precisava de alguém, de preferência uma mulher, para ajudá-lo a estabilizar. Esse era um dos muitos finos fios que ligavam os Sangue. Durante os períodos em que estavam mais vulneráveis, as feiticeiras precisavam da força masculina agressiva, e os machos, por sua vez, às vezes precisavam desesperadamente do amparo e do conforto que encontravam na força delicada de uma mulher.

 

Ele precisava de Jaenelle.

 

Lucivar deu um sorriso amargo ao entrar no edifício. Naquele momento, todos precisavam de Jaenelle. Esperava — doces Trevas, e como esperava! — que bastasse estar junto dela.

 

O centro comunitário era formado por várias salas onde os aldeões podiam se reunir para bailes ou reuniões. Pelo menos, era para isso que julgava que seriam. Tivera pouco contato com os plebeus. Enquanto perscrutava os salões, ansiando pela presença familiar de Jaenelle, sentiu a dor e o medo dos feridos encostados às paredes ou deitados no chão. A dor era fácil de suportar. O medo, que brotava naqueles que reparavam nele, corroía o seu instável autocontrole.

 

Lucivar já tinha começado a se virar para ir embora quando reparou num jovem rapaz que jazia num colchão estreito perto da porta. Em circunstâncias normais, poderia pensar tratar-se de mais um plebeu, mas vira muitos homens em condições semelhantes para que o fraco odor psíquico passasse despercebido.

 

Apoiando-se num joelho, Lucivar levantou o lençol que cobria o corpo do pescoço aos pés com cuidado. Seus olhos iam das feridas ao rosto calado e tenso, e depois em sentido contrário. Praguejou baixinho. Os ferimentos internos eram graves. Por menos do que isso já vira homens morrer. As feridas não estavam além dos poderes curativos de Jaenelle, mas não sabia se ela conseguiria reconstruir os pedaços que já não existiam.

 

Baixando o lençol, Lucivar saiu do salão, praguejando cada vez mais alto e com mais crueldade, enquanto procurava uma sala vazia onde pudesse tentar controlar o temperamento, que estava caminhando para uma espiral descontrolada.

 

Randahl não mencionara nenhum ferido entre seus homens. E por que o rapaz — ou melhor, o homem: uma pessoa com aquele tipo de ferimentos de guerra não merecia ser chamado de rapaz. Por que ele estava separado dos outros, enfiado num canto escuro, onde poderia facilmente passar despercebido?

 

Detectando o calor de um odor psíquico feminino, Lucivar abriu uma porta de rompante e entrou na cozinha antes de se dar conta, tarde demais, de que a mulher que tentava bombear água com uma mão não era Jaenelle.

 

Ela se virou ao ouvir a porta bater na parede, levantando o braço esquerdo em defesa contra o atacante.

 

Lucivar odiou-a. Odiou-a por não ser Jaenelle. Odiou-a pelo medo nos olhos, que o impeliam a uma fúria cega. Odiou-a por ser jovem e bela. E, acima de tudo, odiou-a por saber que, a qualquer momento, ela sairia correndo e ele iria pegá-la, machucá-la e matá-la antes que conseguisse se controlar.

 

Ela engoliu em seco e disse, numa voz calma e trêmula:

 

— Estou tentando ferver água para fazer chá para os feridos, mas a bomba está dura e não consigo trabalhar só com uma mão. Poderia me ajudar?

 

Um nó de tensão se desfez dentro de Lucivar. Aqui, pelo menos, havia uma fêmea dos plebeus que sabia se dirigir aos machos dos Sangue. Pedir ajuda era sempre a forma mais fácil de redirecionar um deles para a prestação de serviços.

 

Quando Lucivar avançou, ela se afastou para o lado, tremendo. A fúria voltou a surgir, até que ele reparou no braço direito enfaixado que a jovem mantinha junto ao estômago, com a mão enfiada entre o vestido e o avental.

 

Não era medo, era cansaço e perda de sangue.

 

Lucivar puxou uma cadeira e posicionou-a perto o bastante para que ela supervisionasse, mas longe o suficiente para que não a tocasse ao passar.

 

— Sente-se.

 

Quando a mulher se sentou, Lucivar bombeou água e colocou os bules cheios no fogão a lenha. Reparou nos sacos de ervas organizados sobre a mesa de madeira ao lado da pia dupla e olhou para a mulher com curiosidade.

 

— Lord Randahl me disse que a sábia e dois médicos morreram.

 

Seus olhos encheram-se de lágrimas, e ela assentiu com a cabeça.

 

— Era minha avó. Disse que eu possuía o dom e estava me ensinando.

 

Lucivar encostou-se à mesa, intrigado. As mentes dos plebeus eram fracas demais para exalar um odor psíquico, mas a dela era diferente.

 

— Onde aprendeu a lidar com machos dos Sangue?

 

Ela arregalou os olhos, ansiosa.

 

— Não estava tentando controlá-lo!

 

— Eu disse lidar, não controlar. Há uma diferença.

 

— Eu... eu só fiz o que a Senhora disse.

 

A tensão interior aliviou-se um pouco mais.

 

— Como se chama?

 

— Mari. — Hesitou. — Você é o Príncipe Yaslana, certo?

 

— Isso a incomoda? — perguntou Lucivar, com voz inexpressiva. Para sua surpresa, Mari deu um sorriso tímido.

 

— Oh, não. A Senhora disse que podíamos confiar em você.

 

As palavras o reconfortaram como a carícia de uma amante. No entanto, ao detectar a ligeira ênfase no tom, perguntou-se em quem os plebeus no povoado não poderiam confiar. Semicerrou os olhos dourados, estudando-a.

 

— Há gente dos Sangue na sua família, não é?

 

Mari empalideceu um pouco e não conseguiu olhar para Lucivar.

 

— Minha bisavó era meio-Sangue. H-há quem diga que puxei a ela.

 

— Do meu ponto de vista, isso não é negativo. — O alívio evidente da mulher era demais para Lucivar, por isso ele começou a inspecionar os sacos de ervas. Ela logo pensaria que era a causa da raiva dele, por isso Lucivar ficou remexendo nos sacos até conseguir controlar as emoções.

 

Pela sua experiência, as crianças meio-Sangue raramente eram bem-vindas ou aceitas por qualquer uma das sociedades. Os Sangue não os queriam por não possuírem força suficiente para executar as ações mais básicas para as quais usavam a Arte, e, por isso eles nunca passariam de criados inferiores. Os plebeus não os queriam, já que possuíam poder demais, e esse dom, sem treino ou código moral como amparo, produzira muitos tiranos mesquinhos que se valeram da magia e do medo para governar povoados que, de outro modo, não os aceitariam.

 

A água começou a ferver.

 

— Sente-se — ordenou Lucivar, ríspido, quando Mari começou a se levantar. — Pode me dizer o que quer misturar daí. Além disso — acrescentou, sorrindo, para atenuar a rispidez —, já fiz misturas de infusões medicinais para uma Senhora mais severa do que você.

 

Com uma expressão apropriadamente compreensiva, e concordando que a Senhora era um pouco rabugenta no que dizia respeito à mistura de infusões medicinais, Mari ia indicando as ervas que pretendia usar e descrevia as misturas que queria.

 

— Vê a Senhora com frequência? — perguntou Lucivar, enquanto retirava os bules do fogão, colocando-os em tripés de pedra, dispostos numa das extremidades da mesa. Apesar de continuar se recusando a constituir uma corte formal, as opiniões de Jaenelle eram ouvidas com atenção em quase todo o território de Kaeleer.

 

— Ela nos visita durante a tarde, de duas em duas semanas. Jaenelle, Vovó e eu falamos sobre Arte medicinal enquanto seus amigos ensinam Khevin.

 

— Quem... — Interrompeu a pergunta. Julgara que o odor psíquico do jovem estava fragilizado devido à gravidade dos ferimentos. No entanto, era bastante forte para um meio-Sangue. — Quem são os amigos que ensinam ele?

 

— Lord Khardeen e Príncipe Aaron.

 

Khary e Aaron eram escolhas adequadas para ensinar Arte básica a um jovem meio-Sangue. O que não desculpava Jaenelle por não ter pedido a ele para participar. Lucivar colocou as trouxinhas de ervas nos bules com cuidado.

 

— Ambos possuem bons fundamentos na Arte básica. — E acrescentou, sentindo-se rancoroso: — Ao contrário da Senhora, que ainda não consegue invocar os próprios sapatos.

 

A fungadela afetada de Mari pegou-o de surpresa.

 

— Não sei por que fazem tanto estardalhaço por causa disso. Se eu tivesse uma amiga capaz de todas aquelas magias maravilhosas, não me importaria nem um pouco de ir buscar seus sapatos.

 

Aborrecido, Lucivar resmungou baixinho enquanto vasculhava os armários ruidosamente, à procura de xícaras. A maldita jovem com certeza era uma descendente. Pelo menos, tinha o temperamento de uma feiticeira.

 

Calou-se ao ver quão pálida Mari ficara. Um pouco envergonhado, encheu uma xícara com uma das infusões medicinais e aguardou enquanto a mulher bebia.

 

— Vi Khevin quando entrei — disse, com a voz serena. — Examinei os ferimentos. Por que Khary e Aaron não o ensinaram a se escudar?

 

Mari levantou os olhos, surpresa.

 

— Ensinaram. Foi Khevin que produziu o escudo em volta do centro comunitário, quando os jhinkas iniciaram os ataques.

 

— Acho que preciso de uma explicação melhor — disse Lucivar, com a sensação de que Mari retirara todo o ar de seus pulmões. Um meio-Sangue forte poderia ter poder suficiente para criar um escudo pessoal durante alguns minutos, mas não conseguiria criar e manter um escudo que protegesse todo um edifício. Mas, é claro, Jaenelle possuía instintos misteriosos no que dizia respeito a reconhecer forças bloqueadas.

 

Mari, com um ar intrigado, confirmou a ideia.

 

— Khevin conheceu a Senhora quando ela veio visitar a mim e à Vovó. Ela olhou para ele por um longo tempo, em seguida disse que era muito forte e não podia deixar de receber treinamento adequado na Arte. Quando voltou, trouxe Lord Khardeen e o Príncipe Aaron. A primeira lição foi a criação de um escudo.

 

A mão de Mari começou a tremer e bateu na xícara.

 

Lucivar usou a Arte para erguer a xícara de forma que o líquido não se derramasse.

 

— Foram os primeiros amigos que Khevin já teve. — Seus olhos suplicavam compreensão. Depois, corou e baixou-os. — Quero dizer, amigos homens. Ninguém ria dele ou lhe dava apelidos, como fazer alguns dos jovens Senhores da Guerra de Agio.

 

— E os Senhores da Guerra mais velhos? — perguntou Lucivar, cuidando para manter a fúria afastada da voz.

 

Mari deu de ombros.

 

— Quando vinham ver como estava o povoado, pareciam envergonhados sempre que o viam. Não queriam saber da sua existência. Também não gostavam de me ver por perto... — acrescentou, amarga. — Mas Lord Khardeen e Príncipe Aaron... Quando a aula terminava, ficavam mais um pouco bebendo cerveja e conversando. Falavam com ele sobre o código de honra dos Sangue e as regras pelas quais os machos devem reger suas vidas. Às vezes, eu me perguntava se os Sangue em Agio nunca ouviram falar dessas regras.

 

Se não tivessem ouvido, agora iriam.

 

— O escudo — lembrou.

 

— De um momento para outro, o céu ficou tomado de jhinkas aos gritos. Khevin me disse para ir ao centro comunitário. Nós... a Senhora diz que às vezes forma-se uma ligação quando pessoas como nós são... íntimas.

 

Lucivar olhou de relance para a mão esquerda da garota. Não tinha aliança, então eram amantes. Pelo menos, Khevin conhecera e proporcionara esse prazer.

 

— Eu estava nesta ponta do povoado, entregando algumas ervas medicinais da Vovó. Os adultos não me deram atenção, por isso agarrei uma menina que brincava na rua e gritei às outras crianças que viessem comigo. A-acho que obriguei algumas delas.

 

“Quando chegamos ao centro comunitário, Khevin já tinha levantado o escudo em volta do edifício. Ele transpirava. Parecia que aquilo o machucava.

 

Lucivar não tinha dúvidas.

 

— Khevin disse que tentaria enviar uma mensagem a Agio por um fio psíquico, mas não sabia se alguém o detectaria. Depois me disse que alguém precisava ficar dentro do escudo para atravessá-lo e puxar outra pessoa. Ele me puxou para dentro no momento exato em que um dos jhinkas se atirou sobre nós, chocando-se contra o escudo com tanta força que perdeu os sentidos. Khevin pegou o machado, estava cortando lenha quando começou o ataque, atravessou o escudo e matou o jhinka. A essa altura, todos os homens do povoado estavam nas ruas, lutando. Khevin ficou do lado de fora, protegendo as crianças enquanto eu as puxava para dentro.

 

“Os jhinkas já tinham feito o cerco. Muitas das mulheres que tentavam chegar ao edifício não conseguiram escapar ou já estavam gravemente feridas quando foram puxadas. Vovó... Vovó... estava quase alcançando o edifício quando um dos jhinkas atacou de repente e... Deu uma gargalhada. Olhou para mim e riu, enquanto matava Vovó.”

 

Lucivar voltou a encher a xícara e lançou um feitiço de aquecimento nos bules enquanto Mari remexia no bolso do avental à procura de um lenço.

 

Ela bebeu o chá de ervas em pequenos goles e ficou calada durante um minuto.

 

— Khevin não podia continuar lutando e, ao mesmo tempo, manter o escudo. Até mesmo eu podia perceber. Tinha f-flechas nas pernas. Não conseguia se mover com rapidez. Foi atingido antes de conseguir atravessar o escudo e sofreu aquilo. Foi então que Lord Randahl chegou com os outros, e eles começaram a lutar.

 

“Dois dos Senhores da Guerra escudavam os feridos, trazendo-os para cá, enquanto os outros dois continuavam a matança.

 

“O escudo de Khevin começava a enfraquecer. Temi que, se os Senhores da Guerra erguessem outro, eu não conseguiria atravessar e Khevin ficaria do lado de fora. Quando estendi o braço para pegá-lo, um dos jhinkas me viu e me golpeou. Puxei Khevin para dentro logo antes de os Senhores da Guerra atravessarem e erguerem outro escudo.”

 

Mari bebeu o chá.

 

— Lord Adler começou a vociferar, já que não conseguiam penetrar na tempestade de feiticeira ao redor do povoado e enviar uma mensagem para Agio. Lord Randahl, porém, não parava de olhar para Khevin. Depois, ele e Lord Adler pegaram Khevin, como se finalmente ele t-tivesse algum valor. Foram buscar o colchão e os lençóis na cama do zelador e fizeram o possível para que ficasse confortável.

 

Mari olhou fixamente para a xícara, as lágrimas escorrendo pelo rosto.

 

— E isso é tudo.

 

Lucivar pegou a xícara vazia, desejando oferecer-lhe algum consolo, mas sem saber se ela aceitaria aquilo vindo de um Príncipe dos Senhores da Guerra. Talvez de alguém como Aaron, que era da mesma idade, mas dele?

 

— Mari?

 

Quando Jaenelle entrou na cozinha, sentiu uma onda de alívio.

 

— Deixe-me ver seu braço — pediu Jaenelle, afrouxando as ataduras com cuidado e ignorando as súplicas de Mari para que tratasse de Khevin. — Primeiro, seu braço. Preciso que esteja bem para me ajudar com os outros. Vamos precisar de... ah, você já preparou.

 

Enquanto Jaenelle tratava o corte profundo que ia do cotovelo ao pulso de Mari, Lucivar encheu xícaras de chá medicinal e colocou um feitiço de aquecimento em cada uma delas. Depois de uma busca pelos armários, encontrou duas bandejas de metal. Com as xícaras, seriam muito pesadas para Mari, ainda mais porque Jaenelle acabara de avisá-la que o tipo de cura rápida que teria de aplicar não resistiria sob pressão. Mas os jovens Senhores da Guerra lá fora poderiam carregar e erguer pesos, agora que Lucivar estava mantendo o escudo.

 

Jaenelle resolveu o problema lançando um feitiço flutuante sobre as duas bandejas, para que pairassem ao nível da cintura. Mari não teria de carregá-las, apenas conduzi-las.

 

Com Lucivar e Mari guiando as bandejas, os três se dirigiram ao grande salão. Jaenelle ignorou o falatório que surgiu assim que os aldeões a viram, dirigindo-se ao canto onde Khevin repousava.

 

Mari hesitou, mordendo o lábio, claramente dividida entre o desejo de ir para perto do amante e seus deveres como assistente de Curandeira. Lucivar deu um rápido apertão em seu ombro, como encorajamento, antes de se juntar a Jaenelle. Não sabia como poderia ajudar, mas faria o que fosse possível.

 

Quando a Senhora começou a levantar o lençol, Khevin abriu os olhos. Com esforço, segurou a mão dela.

 

Jaenelle olhou para o jovem de um jeito inexpressivo. Era como se tivesse descido tão profundamente dentro de si mesma que as janelas da alma já não conseguiam revelar a pessoa que vivia lá dentro.

 

— Tem medo de mim? — perguntou, num sussurro de meia-noite.

 

— Não, Senhora — Khevin passou a língua pelos lábios secos. — Mas proteger seu povo é um privilégio de um Senhor da Guerra. Cuide deles primeiro.

 

Lucivar tentou alcançá-la por meio de um fio psíquico, mas Jaenelle bloqueara a entrada. Por favor, Gata. Deixe-o manter o orgulho.

 

Jaenelle pôs a mão debaixo do lençol. Khevin gemeu, um protesto sem palavras.

 

— Farei como pede só porque pediu — respondeu —, mas vou ligar alguns fios da teia curativa que acabei de tecer para que permaneça comigo. — Alisou o lençol e pousou um dedo com a unha comprida na base da garganta do rapaz. — E estou avisando, Khevin, é melhor que permaneça comigo.

 

Khevin sorriu e fechou os olhos.

 

Segurando-a pelo cotovelo, Lucivar conduziu Jaenelle até a entrada.

 

— Como não serão necessários para o escudo, mandarei os Senhores da Guerra mais novos aqui para dentro, para ajudarem no que for preciso.

 

— Adler, sim. Mas os outros dois, não.

 

O gelo na voz o assustou. Nunca ouvira uma Rainha condenando um homem com tamanha convicção.

 

— Muito bem — disse respeitosamente. — Posso...

 

— Mantenha este local seguro, Yaslana.

 

Sentiu o estremecimento, que controlou depressa, e trancou bem as emoções. Fogo do Inferno, mesmo que o efeito das drogas estivesse passando, permitindo que ela realizasse os tratamentos, as emoções ainda não tinham estabilizado. E ela sabia disso.

 

— Gata...

 

— Eu aguento. Não precisa ficar preocupado.

 

Ele sorriu.

 

— Na verdade, quando está silvando e bufando é que você é mais útil no que diz respeito a me vigiar.

 

Os olhos azul-safira reanimaram-se um pouco.

 

— Não deixarei que se esqueça disso.

 

Lucivar dirigiu-se à porta que dava para o exterior. Precisaria ficar de olho nela, para se certificar de que beberia água e comeria qualquer coisa de duas em duas horas. Falaria com Mari. Era sempre mais fácil fazer Jaenelle comer quando alguém também estava comendo.

 

Ao virar-se para trás, sentiu o impacto de corpos contra o escudo e ouviu os gritos de advertência dos Senhores da Guerra que estavam do lado de fora.

 

Falaria com Mari mais tarde. Os jhinkas tinham voltado.

 

Apoiando-se no poço coberto, Lucivar aceitou, agradecido, a caneca de café que Randahl oferecia. Tinha um sabor áspero e lamacento. Não importava. Naquele momento, beberia qualquer coisa quente, até urina.

 

Os jhinkas vieram durante toda a noite. Às vezes em pequenos grupos que atacavam o escudo e depois fugiam, outras vezes em agrupamentos de duzentos, que batiam no escudo sem parar, enquanto Lucivar os esquartejava. Sem dormir, sem descansar. O cansaço e o esgotamento físico aumentavam a cada segundo, por causa da canalização do poder armazenado nas Joias, que também ia se esgotando — um esgotamento mais rápido do que o previsto. Randahl e os outros Senhores da Guerra já tinham esgotado suas forças quando ele e Jaenelle chegaram, de maneira que Lucivar era a única proteção e a maior parte da capacidade de combate. Como o escudo não ia mais do que alguns centímetros sob a terra, descobrira, quase tarde demais, que os jhinkas estavam usando as pilhas de corpos como cobertura enquanto escavavam. Por isso, agora o escudo descia a uma profundidade de um metro e meio, para depois virar para dentro e ir, por baixo da terra até as fundações do edifício.

 

Enquanto combatiam os jhinkas que tinham conseguido penetrar sob a extremidade a sul do escudo, Lucivar reagira ao instinto e correra para a extremidade norte do edifício, chegando à esquina quando um jhinka corria na direção do poço. O pote de barro que carregava continha veneno concentrado em quantidade suficiente para destruir a única fonte de água de que dispunham. Por isso, o poço agora possuía um escudo de proteção separado.

 

Assim que o ataque ao poço foi frustrado e o escudo prolongado, a tempestade de feiticeira voltou a se formar sobre o edifício. Já não se estendia por todo o povoado para ocultar a destruição, tornando-se agora uma massa compacta de fios psíquicos emaranhados, uma nuvem invisível repleta de relâmpagos psíquicos que faiscavam sempre que tocava no escudo.

 

A proteção adicional e o reforço constante contra a Arte alheia eram responsáveis pelo que os jhinkas não conseguiam: esgotá-lo até o ponto de ruptura. Aguentaria mais um dia. Talvez dois. Depois disso, surgiriam pontos fracos no escudo, pontos que permitiriam a penetração da tempestade de feiticeira, enredando as mentes exaustas, pontos que poderiam ser atravessados pelos jhinkas, atacando os corpos exaustos.

 

Considerara por breves instantes a ideia de convencer Jaenelle a voltar à Fortaleza em busca de ajuda. Abandonara-a com a mesma rapidez. Até terminar os tratamentos, nada nem ninguém a convenceria a sair dali. Se admitisse que o escudo poderia vir a falhar, o mais certo era que Jaenelle erguesse um escudo Negro ao redor do edifício, esgotando um corpo já sobrecarregado pela enorme teia curativa que criara para fortalecer todos os feridos até conseguir chegar a cada um. Inteiramente concentrada nos tratamentos, ela não pensaria duas vezes em forçar o corpo além dos limites. E, se Lucivar argumentasse sobre os danos que infligiria a si própria, sabia qual seria a resposta: tudo tem um preço.

 

Por isso, calara-se e refreara o temperamento, determinado a resistir até que alguém de Agio ou da Fortaleza viesse procurá-los.

 

Agora, no despontar frio da aurora, não conseguia reunir energia suficiente para produzir calor corporal, por isso envolveu a caneca quente com as mãos geladas.

 

Randahl bebia o café em silêncio, com as costas voltadas para o povoado. Era um rihlander de pele clara, olhos azuis mortiços e cabelo fino acanelado. Seu corpo possuía uma rigidez característica da meia-idade, embora os músculos permanecessem fortes, e ele tivesse mais vigor do que os três Senhores da Guerra mais jovens juntos.

 

— As mulheres em boas condições estão ajudando na cozinha — disse Randahl, após alguns minutos. — Gostaram muito da carne de veado e dos outros mantimentos que vocês trouxeram. Estão usando grande parte da carne para fazer um caldo para os feridos mais graves, e disseram que, com o que sobrasse, fariam um guisado. Você devia ter visto os olhares azedos que lançaram a Mari quando ela insistiu que as primeiras tigelas deveriam ser para nós. Fogo do Inferno, queixaram-se até mesmo de nos dar esta água suja para beber, mesmo comigo presente. — Balançou a cabeça, indignado. — Malditos plebeus. A coisa chegou ao ponto de as crianças correrem, aos gritos, sempre que entramos num povoado. Eles fazem sinais para afastar o mal atrás das nossas costas, mas não deixam de gritar bem alto sempre que precisam de ajuda.

 

Lucivar bebeu o café que esfriava depressa.

 

— Se tem essa opinião sobre os plebeus, por que veio ajudá-los quando os jhinkas atacaram?

 

— Não foi por eles. Foi para proteger a terra. Não queremos essa escória dos jhinkas em Ebon Rih. Viemos proteger a terra e tirar aqueles dois daqui. — Os ombros de Randahl relaxaram. — Fogo do Inferno, Yaslana. Quem imaginaria que o rapaz conseguiria criar um escudo daqueles?

 

— Naturalmente, ninguém em Agio. — Antes que Randahl conseguisse responder, Lucivar prosseguiu, ríspido: — Se Khevin e Mari são importantes para vocês, por que não permitiram que vivessem em Agio, em vez de deixá-los aqui para serem zombados e desprezados?

 

O rosto de Randahl ganhou um tom vermelho sombrio.

 

— E o que sabe um Príncipe dos Senhores da Guerra sobre ser zombado e desprezado?

 

Lucivar não sabia se tomara a decisão por já não se importar com o que as pessoas sabiam sobre ele ou por não ter certeza se ele e Randahl sobreviveriam.

 

— Cresci em Terreille, não em Kaeleer. Era muito novo para me lembrar do meu pai quando fomos afastados, por isso cresci com a convicção de que era um mestiço bastardo, indesejado, que ninguém reclamara como seu. Você não faz ideia do que é ser bastardo num campo de caça eyrieno. Zombado? — Lucivar deu uma risada amarga. — A provocação preferida era “seu pai é um jhinka”. Sabe o que isso significa para um eyrieno? Que o seu progenitor é um macho de uma raça odiada e que sua mãe deve ter consentido na relação, já que o carregou na barriga até o parto? Oh, acho que sei o que alguém como Khevin sente.

 

Randahl pigarreou.

 

— Fico envergonhado por dizê-lo, mas não foi mais fácil para ele em Agio. Lady Erika tentou inseri-lo na corte. Sentia que era seu dever, já que o pai dele fora seu ex-Consorte. Contudo, ele não era feliz, e Mari e a Vovó dela ficaram aqui. Por isso, ele voltou.

 

E suportara o ostracismo por parte dos plebeus e as provocações dos jovens machos dos Sangue, o que explicava por que os dois Senhores da Guerra usando a Arte para afastar os corpos dos jhinkas do escudo estavam sendo mantidos tão longe de Jaenelle quanto possível.

 

Lucivar respondeu à pergunta que via nos olhos de Randahl.

 

— Dois amigos de Lady Angelline estavam treinando Khevin.

 

Randahl esfregou a nuca.

 

— Nós é que devíamos ter pensado em pedir isso. Ela tem um talento especial para isso.

 

Lucivar sorriu com pesar.

 

— Não há dúvida. — E talvez também tivesse alguma ideia de um local para onde o jovem casal poderia se mudar. Se sobrevivessem.

 

Por um momento, permitiu-se acreditar que sobreviveriam.

 

Logo em seguida, os jhinkas voltaram.

 

Randahl pôs a mão sobre os olhos para protegê-los do sol vespertino, examinando os montes baixos obscurecidos por jhinkas à espera.

 

— Devem ter chamado todos os clãs de todas as tribos — disse, com a voz rouca. Deixou-se cair contra as paredes dos fundos do centro comunitário. — Mãe Noite, Yaslana, devem ser uns cinco mil.

 

— Creio que seis mil. — Lucivar afastou mais as pernas. Era a única forma de fazer com que os membros cansados e trêmulos o mantivessem em pé.

 

Mais seis mil, além das centenas que matara no decorrer dos últimos dias, e aquela violenta tempestade de feiticeira em volta deles, alimentando-se do escudo para manter a força, esgotando Lucivar no processo. Mais seis mil, e não havia como pegar os Ventos, pois a tempestade impossibilitava a detecção das estradas psíquicas.

 

Podiam escudar-se e combater, mas não podiam enviar um pedido de ajuda nem fugir. A comida acabara no dia anterior. O poço secara naquela manhã. E ali estavam seis mil jhinkas, aguardando que o sol se pusesse atrás dos montes baixos a oeste, antes de iniciar o ataque.

 

— Não vamos sobreviver, não é? — perguntou Randahl.

 

— Não — respondeu Lucivar, sereno. — Não vamos sobreviver.

 

Nos últimos três dias, esgotara as Joias Cinza-Ébano e o anel com a Joia Vermelha. A Joia Vermelha em volta do pescoço agora era a única reserva de energia que possuía, e não resistiria muito além do primeiro ataque. Randahl e os outros três Senhores da Guerra tinham esgotado as Joias antes da chegada de Lucivar e Jaenelle. A comida e o repouso não foram suficientes para que recuperassem as forças.

 

Não, os machos não sobreviveriam. Todavia, Jaenelle tinha que sobreviver. Era uma Rainha valiosa demais para se perder numa cilada que, estava convencido, fora armada com o objetivo de destruí-lo.

 

Satisfeito por ter preparado todos os argumentos que o Protocolo permitia para fazer o pedido a Jaenelle, Lucivar disse:

 

— Peça à Senhora que venha se juntar a mim aqui.

 

Como não era tolo, Randahl compreendeu por que o pedido estava sendo feito naquele exato momento.

 

Sozinho por alguns instantes, Lucivar girou o pescoço e alongou os ombros, na tentativa de aliviar os músculos tensos e fatigados.

 

É mais fácil matar do que curar. É mais fácil destruir do que preservar. É mais fácil demolir do que construir. Aqueles que se alimentam de emoções e ambições destrutivas, negando a responsabilidade que é o preço de exercer o poder, podem destruir tudo aquilo que todos prezam e protegem. Estejam sempre atentos.

 

Palavras de Saetan. As advertências de Saetan aos jovens Senhores da Guerra e Príncipes dos Senhores da Guerra que se reuniam no Paço.

 

Contudo, Saetan nunca mencionara a parte final da advertência: às vezes a morte é mais misericordiosa.

 

Não tinha forças suficientes para proporcionar uma morte justa e rápida a Jaenelle. Mas, mesmo com todas as forças, Randahl e os outros Senhores da Guerra usavam Joias mais claras, e os plebeus não possuíam defesas interiores contra os Sangue. Assim que Jaenelle e Mari estivessem longe dali, assim que os jhinkas iniciassem a investida final, executaria uma descida veloz, reuniria todas as gotas de poder que lhe restassem e libertaria essa força. Os plebeus morreriam na mesma hora, com as mentes consumidas. Randahl poderia sobreviver mais alguns segundos, mas não por tempo suficiente para que os jhinkas os alcançassem.

 

E os jhinkas... também morreriam. Alguns. Muitos. Mas não todos. Ficaria sozinho enquanto os sobreviventes o destroçariam. Tomaria providências para isso. Já combatera jhinkas em Terreille. Vira o que faziam aos prisioneiros. No que dizia respeito à crueldade, eram um povo habilidoso. Assim como tantos dos Sangue.

 

Lucivar se virou quando percebeu um movimento com o canto do olho.

 

Jaenelle estava parada a alguns centímetros, com os olhos fixos nos jhinkas.

 

Não usava nada além da Joia Negra em volta do pescoço.

 

Percebia o motivo. Nem mesmo a roupa íntima teria servido. Todos os seus músculos tinham desaparecido, todas as curvas femininas que ganhara ao longo do ano anterior. Sem outra fonte de alimento, seu corpo consumira-se na luta para ser o receptáculo do poder interior. Os ossos exerciam pressão na pele pálida, abatida e suja de sangue. Conseguia contar as costelas, conseguia ver os ossos dos quadris deslocando-se quando ela mexia os pés. O cabelo louro estava escurecido e endurecido com o sangue que sujava nos fios sempre que ela levava a mão à cabeça.

 

Apesar disso, ou talvez por causa disso, seu rosto era estranhamente fascinante. A juventude fora consumida na fogueira curativa, deixando-a com uma beleza atemporal e eterna que se adequava aos olhos azul-safira antigos e perturbados. Parecia uma máscara refinada que jamais voltaria a ser tocada pelas preocupações da vida.

 

Foi então que a máscara se estilhaçou. O pesar e a fúria inundaram Lucivar, lançando-o contra o edifício.

 

Lucivar agarrou-se a um canto e aguentou com um desespero que logo foi consumido por um medo avassalador.

 

O mundo girava a uma velocidade revoltante, em espirais cada vez mais estreitas, arrasando sua mente, ameaçando arrancá-lo de qualquer abrigo de sanidade. Cada vez mais veloz. Indo cada vez mais fundo.

 

Espirais. Saetan dissera algo sobre as espirais, mas ele não conseguia ver, não conseguia respirar, não conseguia pensar.

 

O escudo de Lucivar cedeu, e a energia foi sugada para a espiral. A tempestade de feiticeira também foi puxada, e os fios psíquicos se partiam enquanto ele lutava para permanecer ao redor do edifício.

 

Cada vez mais rápido, cada vez mais fundo, e então o poder negro ergueu-se do abismo, ribombando ao passar por Lucivar a uma velocidade que congelou sua mente.

 

Lucivar empurrou-se para longe do edifício e cambaleou na direção de Jaenelle. Para baixo. Precisava puxá-la para o chão, precisava...

 

Pop.

 

Pop pop.

 

Pop pop pop pop pop.

 

— MÃE NOITE! — gritou Adler, apontando na direção das colinas.

 

Lucivar distendeu um músculo do pescoço ao virar a cabeça na direção do som dos corpos dos jhinkas, que explodiam.

 

Outra onda de poder negro dardejou através do que restava dos fios psíquicos da tempestade de feiticeira. Eles flamejaram, ficaram enegrecidos, desapareceram.

 

Pensou ter ouvido um grito fraco.

 

Pop pop pop.

 

Pop pop.

 

Pop.

 

Em trinta segundos, seis mil jhinkas foram destruídos.

 

Jaenelle não olhou para ninguém. Limitou-se a dar meia-volta e começar a caminhar devagar, rígida, na direção da extremidade oposta do povoado.

 

Lucivar tentou pedir para ela esperar, mas não conseguia produzir nenhum som. Tentou ficar de pé, sem entender como acabara ajoelhado, mas suas pernas pareciam feitas de gelatina.

 

Lembrou-se, por fim, do que Saetan dissera sobre espirais.

 

Não a temia, mas, fogo do Inferno, queria saber o que teria provocado Jaenelle, para que soubesse, de alguma forma, como lidar com ela.

 

Sentiu mãos puxando-o pelo braço.

 

Randahl, pálido e parecendo nauseado, ajudou-o a se levantar.

 

Ficaram ofegantes pelo esforço de alcançar o edifício e apoiaram-se na parede de pedra.

 

Randahl esfregou os olhos. Os lábios estavam trêmulos.

 

— O rapaz morreu — disse, com a voz rouca. — Ela tinha acabado de curar o último plebeu. Fogo do Inferno, Yaslana, curou os trezentos. Trezentos em três dias. Quase não se aguentava nos próprios pés. Mari estava dizendo que ela precisava se sentar, precisava descansar. A Senhora balançou a cabeça e foi cambaleando até o local onde Khevin estava deitado e... e ele olhou para ela e morreu. Extinguiu-se. Extinguiu-se completamente. Não restou nem um murmúrio.

 

Lucivar fechou os olhos. Pensaria nos mortos depois. Ainda havia muito a fazer pelos sobreviventes.

 

— Tem força suficiente para enviar uma mensagem a Agio?

 

Randahl negou com a cabeça.

 

— Nenhum de nós tem força suficiente para viajar pelos Ventos neste momento, mas éramos esperados há um dia, por isso deve haver gente nos procurando pelas estradas.

 

— Quando seu povo chegar, quero que acompanhem Mari ao Paço.

 

— Nós podemos tomar conta dela — respondeu Randahl, ríspido.

 

Mas será que Mari quer ficar sob os cuidados dos Sangue em Agio?

 

— Acompanhem-na ao Paço — disse Lucivar. — Ela precisa de tempo para o luto e de um local onde o coração possa começar a sarar. No Paço, terá quem possa ajudá-la.

 

Randahl pareceu descontente.

 

— Acha que os Sangue de Dhemlan serão mais afáveis com ela do que nós?

 

Lucivar deu de ombros.

 

— Não estava pensando nos Sangue de Dhemlan. Estava pensando nos parentes.

 

Depois que Randahl concordou, Lucivar entrou no centro comunitário, permanecendo apenas o tempo necessário para dizer a Mari que voltaria ao Paço. Ela agarrou-se a ele durante alguns minutos, chorando copiosamente.

 

Lucivar abraçou-a, consolando-a tanto quanto possível.

 

Quando duas plebeias, lançando olhares desafiadores às demais, se ofereceram para tomar conta de Mari, ele deixou-a, esperando sinceramente nunca mais ter de conviver com plebeus.

 

Encontrou Jaenelle a alguns passos dos limites do povoado, enroscada em posição fetal, produzindo pequenos sons desesperados.

 

Deixou-se cair de joelhos e tomou-a nos braços.

 

— Eu não queria matar — lamentou-se. — Não é o objetivo da Arte. Não é o objetivo da minha Arte.

 

— Eu sei, Gata — murmurou Lucivar. — Eu sei.

 

— Poderia ter colocado um escudo em volta deles, que os detesse até obtermos ajuda de Agio. Era essa a minha intenção, mas a fúria começou a fervilhar dentro de mim quando Khevin... Eu podia sentir as mentes deles, podia sentir sua ânsia de fazer o mal. Não consegui frear a fúria. Não consegui.

 

— São as drogas, Gata. Essas porcarias embaralham as emoções por muito tempo, ainda mais numa situação como esta.

 

— Não gosto de matar. Preferia ser ferida a ter de ferir alguém.

 

Lucivar não discutiu com ela. Estava exausto demais, e as emoções de Jaenelle eram brutas demais. Também não mencionou que ela apenas reagira à dor e à morte de um amigo. O que não conseguia, não queria fazer por si própria, faria por alguém de quem gostava.

 

— Lucivar? — disse Jaenelle, num tom queixoso. — Preciso de um banho.

 

Era apenas uma das coisas que Lucivar também desejava.

 

— Vamos para casa, Gata.

 

Dorothea SaDiablo deixou-se cair numa cadeira e olhou espantada para a visita inesperada.

 

— Aqui? Você quer ficar aqui? — Será que a vagabunda tinha se olhado num espelho, recentemente? Como explicaria a presença de um cadáver ambulante e ressequido que parecia acabar de ter saído da sepultura?

 

— Não aqui, na sua querida corte — respondeu Hekatah, com os lábios descarnados apertados em um rosnado. — E não estou lhe pedindo permissão. Estou avisando que vou ficar em Hayll e que preciso de alojamento.

 

Avisando. Sempre avisando. Sempre lembrando-a de que jamais teria se tornado Sacerdotisa Suprema de Hayll sem a orientação e o apoio sutil de Hekatah, sem que Hekatah lhe indicasse as rivais com forte potencial, que poderiam frustrar seus sonhos de se tornar uma Sacerdotisa Suprema tão poderosa que até as Rainhas se submeteriam a ela.

 

Bem, na verdade era a Sacerdotisa Suprema de Hayll, e, depois de séculos manobrando e maltratando machos, que, por sua vez, praticavam a sua própria cota de maus-tratos, não restara nenhuma Rainha de Joia escura em Terreille. Não havia Rainhas nem Viúvas Negras, não havia nenhuma outra Sacerdotisa que se equivalesse à sua Joia Vermelha. Em alguns territórios menores e mais renitentes, não havia sequer membros dos Sangue que usassem Joias. Em mais cinco anos, teria sucesso onde Hekatah falhara: se tornaria a Sacerdotisa Suprema de Terreille, temida e venerada por todo o Reino.

 

E, quando esse dia chegasse, teria algo especial preparado para sua mentora e conselheira.

 

Dorothea recostou-se e reprimiu um sorriso. Aquele saco de ossos ainda poderia ser útil. Sadi continuava solto por aí, jogando seu jogo furtivo e zombeteiro. Embora não sentisse sua presença há bastante tempo, sempre que abria a porta esperava encontrá-lo do outro lado, à sua espera. Mas se uma Sacerdotisa Suprema de Joia Vermelha e Viúva Negra estivesse alojada no chalé que mantinha para noites mais enérgicas e imaginativas, e ele por acaso descobrisse que uma feiticeira vivia ali tranquilamente... bem, seu odor psíquico estava entranhado no local, e pode ser que Sadi nem perdesse tempo distinguindo entre o odor do local e o odor psíquico da inquilina. Seria uma pena perder a construção, mas era certo que ela não restaria em pé quando ele terminasse.

 

E, claro, também não restaria nada de Hekatah.

 

Dorothea prendeu uma madeixa preta na trança simples em volta da cabeça.

 

— Percebi que não estava me pedindo permissão, Irmã — ronronou. — Alguma vez me pediu o que quer que fosse?

 

— Não se esqueça de a quem está se dirigindo — silvou Hekatah.

 

— Nunca esqueço — respondeu Dorothea, com gentileza. — Tenho um chalé no campo a cerca de uma hora de carruagem de Draega. É utilizado para diversões discretas. Você pode ficar lá o tempo que quiser. O pessoal está muito bem treinado, por isso lhe peço que não faça refeição deles. Providenciarei um banquete de jovens. — Franzindo a sobrancelha enquanto observava uma unha, invocou uma lixa, aparou uma imperfeição, avaliou o resultado e retomou a tarefa. Finalmente satisfeita, fez desaparecer a licha e sorriu para Hekatah. — Mas, é claro, se meus alojamentos não forem do seu agrado, sempre pode voltar para o Inferno.

 

Vadia gananciosa e ingrata.

 

Hekatah deixou outro espelho opaco. Até mesmo essa pequena amostra de Arte era quase demais.

 

Não era desse jeito que planejara voltar a Hayll, escondida como um parente senil e babão despachado para um lugar remoto sem ninguém como companhia além de criados taciturnos.

 

É claro que depois de recuperar um pouco de força...

 

Hekatah balançou a cabeça. As diversões teriam de ficar para mais tarde.

 

Considerou a ideia de tocar a sineta para que um criado viesse colocar mais lenha na lareira, mas acabou fazendo aquilo sozinha. Acomodada numa poltrona muito velha, observou enquanto a lenha era envolvida e consumida pelas chamas.

 

Consumida, tal como haviam sido todos os seus belos planos.

 

Primeiro, o fiasco com a garota. Se aquilo era o melhor que Jorval conseguia fazer, teria de reconsiderar sua pretensa utilidade.

 

Depois, o eyrieno conseguira fugir da cilada, destruindo todos aqueles adoráveis jhinkas que ela cultivara com tanto cuidado. E o poder que recebera de volta através da tempestade de feiticeira provocara-lhe isto.

 

E, por último, mas não menos importante, a purga que aquele filho da puta realizara no Reino das Trevas. Neste momento, não havia refúgio seguro no Inferno e ninguém, ninguém para servi-la.

 

Sendo assim, por ora, teria de aceitar a hospitalidade zombeiteira de Dorothea, teria de aceitar esmolas em vez do tributo que lhe era devido.

 

Não importava. Ao contrário de Dorothea, que estava ocupada demais tentando conquistar poder e devorar Territórios, tinha observado os dois Territórios dos vivos por muito tempo, com muita atenção.

 

Deixe que Dorothea fique com as ruínas de Terreille.

 

Hekatah teria Kaeleer.

 

Saetan apoiou a mão na parede de pedra, temporariamente desequilibrado devido à dupla explosão de fúria que fez a Fortaleza estremecer.

 

— Mãe Noite — murmurou entre dentes. — O que será que estão discutindo desta vez? — Contactando Lucivar com a mente, deparou-se com um muro de fúria psíquico.

 

Saiu correndo.

 

Ao se aproximar do corredor que levava aos aposentos de Jaenelle, começou a andar, pressionando o quadril com uma das mãos e praguejando em silêncio por não ter fôlego suficiente para rugir. De qualquer maneira, não faria diferença, pensou com amargor. Fosse qual fosse o motivo que enfurecia seus filhos, não afetava-lhes os pulmões.

 

— Saia da frente, Lucivar!

 

— Quando o sol brilhar no Inferno!

 

— Que se danem as suas asas, você não tem o direito de interferir.

 

— Eu estou a seu serviço. Isso me dá o direito de desafiar o que quer que seja ou quem quer que seja que ameace o seu bem-estar. Incluindo você mesma!

 

— Se você me serve, tem de me obedecer. SAIA DA MINHA FRENTE!

 

— A primeira Lei não é a obediência...

 

— Não se atreva a me citar as Leis dos Sangue.

 

— ... e, mesmo que fosse, eu não permitiria que fizesse isso. É suicida!

 

Saetan virou a esquina, subiu correndo o pequeno lance de escadas e tropeçou no último degrau.

 

No corredor fracamente iluminado, Lucivar parecia algo saído das histórias de ninar que os plebeus contavam aos filhos: asas escuras e abertas que se misturavam com a escuridão atrás, dentes cerrados, olhos dourados que faiscavam com o fogo da batalha. Até o sangue que escorria do corte superficial no braço esquerdo, provocado por um facão, fazia com que se parecesse qualquer coisa, menos um homem vivo.

 

Em contraste, Jaenelle parecia terrivelmente real. A camisola preta curta revelava muito do corpo sacrificado ao poder que ardia no interior enquanto procedia às curas no povoado plebeu, uma semana antes. Se fosse bem tratado, a carne não sofreria daquela forma, nem mesmo como instrumento das Joias Negras.

 

Observando os resultados do descuido de Jaenelle em relação ao próprio corpo, observando a mão que segurava o facão de caça eyrieno, trêmula e fraca demais, Saetan cedeu à raiva que crescia em seu íntimo.

 

— Senhora — disse com rispidez.

 

Jaenelle virou-se para encará-lo, cambaleando um pouco enquanto tentava se equilibrar. Seus olhos também faiscavam com o fogo da batalha.

 

— Encontraram Daemon.

 

Saetan cruzou os braços, encostou-se à parede e ignorou o desafio na voz da garota.

 

— Então você pretende canalizar as forças do seu corpo já enfraquecido, criar a sombra que tem usado para procurá-lo em Terreille, enviá-la para onde quer que o corpo dele se encontre, viajar pelo Reino Distorcido até encontrá-lo e depois tirá-lo de lá.

 

— Sim — disse Jaenelle, com uma delicadeza exagerada. — É exatamente o que vou fazer.

 

Lucivar bateu com o punho na parede.

 

— Isso é demais. Você nem sequer começou a se recuperar de todas as curas que realizou. Deixe essa sua amiga ficar com ele durante umas duas semanas.

 

— Não é possível “ficar” com alguém que está perdido no Reino Distorcido — retrucou Jaenelle. — Eles não veem nem vivem no mundo tangível como as outras pessoas. Se alguma coisa o assustar e ele fugir dela, poderá levar semanas, até mesmo meses, antes de encontrá-lo outra vez. E então pode ser tarde demais. O tempo está se esgotando.

 

— E se ela o levasse para a Fortaleza em Terreille? — argumentou Lucivar. — Poderíamos mantê-lo lá até você recuperar as forças para fazer cura.

 

— Ele está louco, não está quebrado. Ainda usa a Negra. Se alguém tentasse “manter” você, que tipo de memórias seriam trazidas à tona?

 

— Jaenelle tem razão, Lucivar — disse Saetan, com a voz calma. — Se ele pensar que esta amiga está conduzindo-o para uma cilada, independentemente das suas verdadeiras intenções, a confiança que tem nela, por menor que seja, se desfará, e essa será a última vez que o veremos.

 

Lucivar socou a parede com o punho. Continuou a socar, enquanto praguejava, demoradamente e em voz baixa. Por fim, massageou a parte lateral do punho na palma da outra mão.

 

— Se é assim, vou a Terreille buscá-lo.

 

— E por que ele confiaria em você? — perguntou Jaenelle, com amargura.

 

Os olhos de Lucivar reluziram de dor.

 

Saetan sentiu as barreiras interiores de Jaenelle abrindo-se um pouco. Não pensou duas vezes. No momento em que ela estava dividida entre a raiva e a angústia, entrou e saiu depressa por aquela pequena abertura, saboreando as correntes emocionais.

 

Ora, a feiticeirazinha pensava poder forçá-los a ceder. Pensava possuir uma arma emocional que eles não desafiariam.

 

Tinha razão. Possuía.

 

Porém, agora, também ele tinha essa arma.

 

— Deixe que ela vá, Lucivar — cantarolou Saetan, numa voz ronronante como um leve trovão. Ainda encostado à parede e de braços cruzados, curvou-se numa reverência zombeteira. — A Senhora nos encurralou e sabe disso.

 

Sentiu uma satisfação amarga ao ver a cautela nos olhos de Jaenelle.

 

Ela olhou depressa para os dois.

 

— Não vão me impedir?

 

— Não, não vamos impedi-la. — Saetan sorriu com malevolência. — A não ser, é claro, que não concorde com o preço da nossa submissão. Se recusar, a única forma de sair daqui será destruindo nós dois.

 

Uma cilada tão simples. Um embuste tão cativante.

 

Conseguiu confundi-la, conseguiu, por fim, enervá-la. Ela estava prestes a descobrir com que habilidade era envolvida numa teia.

 

— Qual é o seu preço? — perguntou com relutância.

 

Um olhar fortuito e ligeiro percorreu-a da cabeça aos pés.

 

— Seu corpo.

 

Ela deixou cair o facão.

 

Provavelmente teria decepado alguns dedos do pé de Lucivar se ele não tivesse feito o objeto desaparecer em pleno ar.

 

— Seu corpo, minha Senhora — cantarolou Saetan. — O corpo que você trata com tanto desprezo. Já que você obviamente não o quer, ficará sob minha guarda para aquele que já o reclamou.

 

Jaenelle olhava-o atônita, os olhos arregalados e inexpressivos.

 

— Você quer que eu abandone este corpo? D-do jeito que fiz antes?

 

— Abandonar? — A voz de Saetan era sedosa e cheia de perigo. — Não, não precisa abandoná-lo. Estou certo de que o reclamante lhe concederá um empréstimo permanente de bom grado. Mas será um empréstimo, compreenda, e você terá de dar a ele o mesmo tipo de atenção que daria a um objeto emprestado por um amigo.

 

Ela o encarou por um longo tempo.

 

— E se eu não ligar? O que vai fazer?

 

Saetan se afastou da parede.

 

Jaenelle retraiu-se, mas sem desviar os olhos de Saetan.

 

— Nada — disse, com uma serenidade exagerada. — Não a enfrentarei. Não recorrerei à força física nem à Arte para obrigá-la. Nada farei, a não ser registrar as suas transgressões. Jamais lhe pedirei qualquer explicação e nunca darei explicações em seu lugar. Você mesma poderá tentar justificar o abuso de parte daquilo por que Daemon pagou tão caro.

 

O rosto de Jaenelle ficou branco como cal. Saetan amparou-a quando ela vacilou, segurando-a junto ao peito.

 

— Desgraçado insensível — sussurrou.

 

— Talvez — respondeu Saetan. — Qual é a sua resposta, Senhora?

 

*Jaenelle! Você prometeu!*

 

Jaenelle saltou dos braços de Saetan, recuando para tentar manter o equilíbrio, mas acabando por bater com as costas na parede.

 

Saetan observou a expressão culpada de Jaenelle e começou a sentir uma animação maliciosa. Reparando que Lucivar aparecera do outro lado de Jaenelle, centrou a atenção no scelta aborrecido e ainda não totalmente desenvolvido e no silencioso gatinho arceriano, mas igualmente aborrecido, que agora pesava tanto quanto Lucivar, apesar de ainda ter cinco anos de crescimento pela frente.

 

— O que a Senhora prometeu? — perguntou a Ladvarian.

 

*Prometeu comer, dormir, ler livros e fazer passeios curtos até se recuperar*, disse Ladvarian em tom de recriminação, o olhar fixo em Jaenelle.

 

— É o que estou fazendo — balbuciou. — Foi o que fiz.

 

*Você estava brincando com Lucivar.*

 

Lucivar desviou-se da parede para que pudessem ver seu braço esquerdo.

 

— E foi uma brincadeira dura.

 

Ladvarian e Kaelas rosnaram para Jaenelle.

 

— É um caso diferente — retrucou Jaenelle. — É de grande importância. E eu não estava de brincadeiras com Lucivar. Estava lutando com ele.

 

— É verdade — concordou Lucivar, melancólico. — E só porque eu achei que ela deveria estar descansando, em vez de fazer esforço até entrar em colapso.

 

Ladvarian e Kaelas rosnaram mais alto.

 

*Que vergonha, Senhora*, disse Saetan, através de um fio Negro, para manter a conversa privada. *Quebrar uma promessa aos seus Irmãozinhos. Vai fazer a gentileza de aceitar minhas condições, ou continuaremos rosnando um pouco mais?*

 

O olhar rancoroso de Jaenelle não era só uma resposta, mas também um bom indicador da frequência com que ela perdia este tipo de “discussões” quando Ladvarian e Kaelas metiam qualquer coisa naquelas cabecinhas peludas.

 

— Meus Irmãos. — Saetan inclinou a cabeça com cortesia na direção de Ladvarian e Kaelas. — A Senhora jamais quebraria uma promessa se não tivesse uma razão para isso. Apesar dos riscos ao seu próprio bem-estar, comprometeu-se a executar uma tarefa delicada, que não pode ser adiada. Como a promessa foi feita antes da que fez a vocês, temos de nos submeter aos desejos dela. Como ela mesma salientou, é de grande importância.

 

*O que poderá ser mais importante do que a Senhora?*, perguntou Ladvarian.

 

Saetan não respondeu.

 

Jaenelle se contorceu.

 

— O meu... parceiro... está preso no Reino Distorcido. Se eu não mostrar a saída, ele morrerá.

 

*Parceiro?* As orelhas de Ladvarian se arrebitaram. O rabo com ponta branca abanou uma vez, depois duas. Olhou para Saetan. *Jaenelle tem um parceiro?*

 

Não deixava de ser interessante o fato de olhar para ele com o intuito de obter confirmação. Algo para recordar no futuro.

 

— Sim — confirmou Saetan. — Jaenelle tem um parceiro.

 

— E deixará de ter se for retida por muito mais tempo — avisou Jaenelle.

 

Todos se afastaram educadamente, observando-a enquanto percorria o corredor, lenta e penosamente.

 

Saetan não tinha dúvidas de que ela usaria a Arte para fazer o corpo flutuar assim que a perdessem de vista, o que causaria um desgaste ainda maior, embora abreviasse a viagem até o Altar das Trevas no interior de Ebon Askavi. E, a menos que fosse carregada por alguém, aquela era a única forma de chegar ao Portão que a levaria à Fortaleza em Terreille.

 

Assim que Ladvarian e Kaelas saíram para contar a Draca sobre o parceiro da Senhora, Saetan virou-se para Lucivar:

 

— Venha comigo até a sala de tratamentos. Vou cuidar desse braço.

 

Lucivar deu de ombros.

 

— Já não está mais sangrando.

 

— Rapaz, conheço os procedimentos eyrienos tão bem quanto você. As feridas são limpas e tratadas. *E quero falar com você num local seguro, longe de orelhas peludas.*

 

— Acha que ela conseguirá? — perguntou Lucivar, alguns minutos depois, enquanto Saetan limpava a ferida superficial.

 

— Ela tem a força, os conhecimentos e a vontade. Vai trazê-lo de volta do Reino Distorcido.

 

Não era o que Lucivar queria dizer, e ambos sabiam.

 

— Por que não a deteve? Por que permite que se arrisque?

 

Saetan inclinou a cabeça, evitando olhar diretamente para Lucivar.

 

— Porque ela o ama. Porque ele é, de verdade, o seu parceiro.

 

Lucivar permaneceu calado por um minuto. Depois suspirou.

 

— Daemon sempre disse que nasceu para ser o amante da Feiticeira. Parece que ele tinha razão.

 

Surreal observava Daemon andar pelo centro do imenso labirinto, perguntando-se quanto tempo conseguiria mantê-lo ali.

 

Ele não confiava nela. E ela não podia confiar nele.

 

Encontrara-o a cerca de um quilômetro e meio das ruínas do Paço dos SaDiablo, choramingando em silêncio e observando uma casa ser consumida pelas chamas. Não lhe perguntou sobre a casa nem sobre os vinte guardas hayllianos que haviam acabado de ser esquartejados, nem mesmo sobre o motivo que o levara a murmurar o nome de Tersa algumas vezes.

 

Tomara-o pela mão, pegara os Ventos e trouxera-o para cá. Não sabia se os donos desta propriedade tinham abandonado-a por vontade própria, sido forçados a sair ou sido assassinados quando Dhemlan Terreille por fim cedera ao domínio de Hayll. Agora, os guardas hayllianos usavam a casa senhorial como casernas para os soldados, que informavam ao povo de Dhemlan as punições por desobediência.

 

Daemon observara sem reagir enquanto Surreal aplicava feitiços ilusórios para preencher as falhas nas cercas vivas que levavam ao centro do labirinto. Nada dissera quando ela criou um escudo Cinza duplo em volta do local onde estavam escondidos.

 

A submissão de Daemon desaparecera quando Surreal invocou a pequena teia que Jaenelle dera, deixando cair quatro gotas de sangue no centro para despertá-la, transformando-a num sinal e num farol.

 

Depois disso, Daemon começara a perambular, com um sorriso frio, familiar e brutal, enquanto Surreal aguardava. E aguardava. E aguardava.

 

— Então, não vai chamar seus amigos, assassinazinha? — perguntou Daemon deslizando pelo local onde Surreal estava sentada, com as pernas dobradas e as costas encostadas à cerca viva. — Não quer ganhar sua recompensa?

 

— Não há recompensa, Daemon. Estamos esperando uma amiga.

 

— Mas é claro — respondeu com exagerada delicadeza, enquanto concluía outro circuito em volta do centro do labirinto. A essa altura, deteve-se e olhou para Surreal, com os olhos dourados repletos de um fogo gélido e vítreo. — Ela gostava de você. Me pediu para ajudá-la. Lembra?

 

— Quem, Daemon? — perguntou Surreal, com a voz serena.

 

— Tersa. — A voz embargou. — Puseram fogo na casa onde ela vivia com o filho. Ela teve um filho, sabia?

 

Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as Trevas fossem misericordiosas.

 

— Não, não sabia.

 

Daemon assentiu.

 

— Mas a vadia da Dorothea tirou o filho dela, que se afastou para muito, muito longe. Depois, a vagabunda colocou um Anel de Obediência no garoto e o treinou para se tornar um escravo do prazer. Levou-o para a cama e... — Daemon estremeceu. — Você é sangue do seu sangue.

 

Surreal levantou-se de repente.

 

— Daemon. Eu não sou como Dorothea. Não a reconheço como minha família.

 

Daemon cerrou os dentes.

 

— Mentirosa — rosnou. Deu um passo na direção de Surreal, o polegar direito roçando a unha irregular do dedo anelar. — Mentirosa afetada educada na corte. — Outro passo. — Vagabunda carniceira.

 

Quando Daemon ergueu a mão direita, Surreal vislumbrou uma pequena gota reluzente caindo da unha em forma de agulha, que ficava sob a unha normal.

 

Mergulhou para o lado esquerdo, invocando o punhal ao cair.

 

Daemon já estava em cima dela antes que chegasse ao chão.

 

Suereal gritou quando ele partiu o pulso direito. Voltou a gritar quando ele segurou seus dois pulsos com a mão esquerda, esmagando os ossos.

 

— Daemon — disse, sem fôlego e em pânico, enquanto a mão direita dele apertava seu pescoço.

 

— Daemon.

 

Surreal engoliu um soluço de alívio ao reconhecer a voz de meia-noite.

 

Os olhos de Daemon encheram-se de esperança e pavor quando levantou a cabeça, lentamente.

 

— Por favor — murmurou. — Não era minha intenção... Por favor. — Inclinou a cabeça para trás, soltou um grito de cortar o coração e sucumbiu.

 

Fazendo uso da Arte, Surreal o fez rolar de cima dela e se sentou, segurando o pulso partido. Zonza e nauseada, fechou os olhos ao sentir a aproximação de Jaenelle.

 

— Se tivesse chegado alguns segundos antes, não teria sido uma entrada tão emocionante. Mas eu teria ficado mais satisfeita.

 

— Deixe-me ver o pulso.

 

Surreal levantou os olhos e arquejou.

 

— Fogo do Inferno, o que aconteceu com você?

 

Das outras vezes em que a “sombra” de Jaenelle se juntara a Surreal na busca por Daemon, era impossível perceber que não se tratava de uma mulher de carne e osso, a menos que se tentasse tocá-la. Ninguém confundiria esta criatura transparente e debilitada com algo que caminhasse nos Reinos dos vivos. Ainda assim, os olhos azul-safira permaneciam repletos do fogo antigo, e as Joias Negras continuavam a resplandecer com a força ali encerrada.

 

Jaenelle balançou a cabeça e envolveu o pulso de Surreal com as mãos. Depois de um lampejo de frio entorpecedor, seguiu-se um ardor que aumentava cada vez mais. Surreal sentiu os ossos se deslocando, encaixando-se nos devidos lugares.

 

As mãos transparentes de Jaenelle pulsavam, extinguindo-se e voltando a surgir. Por um momento, ela também desapareceu por completo, deixando as Joias Negras suspensas, como se aguardando seu retorno.

 

Ao reaparecer, seus olhos estavam repletos de dor e ela ofegava como se não conseguisse respirar direito.

 

— Sucumbindo — Jaenelle arfou. — Agora não. Ainda não. — Seu corpo transparente agitou-se com violência. — Surreal, não consigo concluir a cura. Os ossos estão encaixados, mas... — Uma faixa de couro pairava no ar. Jaenelle colocou-a no pulso de Surreal, apertando-a com força. — Isso vai ajudar até sarar.

 

Com o indicador esquerdo, Surreal seguiu as linhas da cabeça de veado num círculo de videiras em flor — o mesmo veado que era o símbolo dos parentes de Titian, os Dea al Mon.

 

Antes que pudesse perguntar a Jaenelle o significado daquela faixa, algo pesado tombou no chão, próximo do local onde estavam. Ouviram um homem praguejando baixinho.

 

— Mãe Noite, os guardas nos ouviram. — Apoiando-se no braço esquerdo, Surreal se levantou. — Vamos levá-lo daqui e...

 

— Não posso sair daqui, Surreal — disse Jaenelle, num tom sereno. — Preciso fazer o que vim fazer... enquanto ainda sou capaz.

 

As Joias Negras cintilaram, e Surreal sentiu uma escuridão fluida e arrepiante circulando o labirinto.

 

Jaenelle forçou um sorriso.

 

— Não encontrarão o caminho pelo labirinto. Não neste labirinto, pelo menos — disse, olhando com tristeza para o corpo franzino e machucado de Daemon e afastando os cabelos pretos longos, sujos e embaraçados da testa. — Ah, Daemon. Eu já tinha me acostumado a pensar que meu corpo era uma arma que podia ser usada contra mim. Esqueci-me de que também é uma Oferenda. Se não for tarde demais, farei melhor. Prometo.

 

Jaenelle colocou as mãos transparentes em cada um dos lados da cabeça de Daemon. Fechou os olhos. A Joia Negra reluziu.

 

Atenta aos guardas hayllianos que destruíam o labirinto em algum lugar, Surreal deixou-se cair no chão, preparando-se para esperar.

 

*Daemon.*

 

A ilha afundava lentamente no mar de sangue. Ele se enroscou no centro do terreno mole, enquanto os tubarões de palavras circundavam a ilha, aguardando.

 

*Daemon.*

 

Ela não lembrava que todos esperavam o fim deste tormento? Não lembrava que todos esperavam que a dívida fosse paga? Agora, ela chamava por ele, exigindo a rendição absoluta.

 

*Mexa esse rabo, Sadi!*

 

Daemon rolou sobre o próprio o corpo e, de cócoras, olhou para a mulher de juba loura e olhos azul-safira na praia alagada de sangue que um minuto antes não existia. No centro da testa dela, havia um pequeno chifre em espiral. O vestido comprido parecia feito de teias de aranha negras, deixando entrever os cascos delicados.

 

Ficou zonzo com o prazer de vê-la. O estado de espírito dela incitou sua cautela. Sentou-se sobre os calcanhares com cuidado.

 

*Você está aborrecida comigo.*

 

*Deixe-me explicar de outra forma*, respondeu Jaenelle com doçura. *Se você afundar e eu tiver que puxá-lo para fora, vou ficar puta.*

 

Daemon balançou a cabeça devagar enquanto produzia um som de reprovação.

 

*Que linguagem.*

 

Com pronúncia perfeita, Jaenelle disse uma frase no Idioma Antigo.

 

Ele ficou boquiaberto. Engasgou-se quando riu.

 

*Isso, Príncipe Sadi, é linguagem.*

 

Você é meu instrumento.

 

As palavras mentem. O sangue, não.

 

Carniceiro filho da puta.

 

Ele oscilou, equilibrou-se e pôs-se de pé, com cuidado.

 

*Veio cobrar a dívida, Senhora?*

 

Não compreendia a mágoa nos olhos dela.

 

*Estou aqui por causa de uma dívida*, respondeu ela, com a voz repleta de sofrimento. Ergueu as mãos devagar.

 

Entre a praia e a ilha que afundava, o mar estava agitado e as ondas batiam sem parar. As ondas se ergueram e ficaram imóveis, formando paredes da altura de sua cintura. O mar se solidificou entre os dois, virando uma ponte de sangue.

 

*Venha, Daemon.*

 

Ele passou as mãos de leve nas cristas das ondas vermelhas e petrificadas. Caminhou até a ponte.

 

Os tubarões de palavras pairavam ao redor, arrancando pedaços da ilha, tentando romper a ponte sob seus pés.

 

Você é meu instrumento.

 

Jaenelle invocou um arco, pôs uma flecha e mirou. A flecha assobiou pelo ar. O tubarão de palavras agitou-se furiosamente, enquanto desaparecia e afundava.

 

As palavras mentem. O sangue, não.

 

Outra flecha assobiou o cântico da morte.

 

Carniceiro filho da...

 

A ilha e o último tubarão de palavras afundaram ao mesmo tempo.

 

Jaenelle fez o arco desaparecer, virou as costas para o mar e caminhou para a paisagem distorcida, coberta de cristais estilhaçados.

 

Sua voz chegou a Daemon, fraca.

 

*Venha, Daemon.*

 

Ele apressou o passo e correu até a praia, vociferando de frustração ao procurar um indicativo da direção que Jaenelle tomara.

 

Detectou o odor psíquico antes de reparar na trilha cintilante. Era como uma faixa de céu noturno salpicada de estrelas que o guiava pela paisagem distorcida até a rocha onde ela estava empoleirada, muito acima.

 

Jaenelle olhou para baixo, rindo com um desespero divertido.

 

*Macho teimoso e rabugento.*

 

*A teimosia é uma qualidade muito difamada*, respondeu, ofegante, enquanto escalava em direção a Jaenelle.

 

O riso de prata e veludo invadiu a paisagem.

 

Por fim, olhou-a com atenção.

 

*Estou em dívida com a Senhora.*

 

Jaenelle negou com a cabeça.

 

*Quem deve sou eu, e não você.*

 

*Decepcionei-a*, retrucou, amargo, olhando para o corpo debilitado de Jaenelle.

 

*Não, Daemon*, respondeu com delicadeza. *Fui eu que o decepcionei. Você me pediu para reconstruir o cálice de cristal e voltar ao mundo dos vivos. E foi o que fiz. Mas acho que nunca perdoei o meu corpo por ter sido o instrumento usado na tentativa de me destruir, e tornei-me seu mais cruel torturador. Lamento por isso, pois você estimava essa parte de mim.*

 

*Não, eu estimava tudo em você. Eu a amo, Feiticeira. Sempre amarei. Você é tudo que sonhei que seria.*

 

Jaenelle sorriu.

 

*E eu...* Estremeceu, levou a mão ao peito. *Venha. O tempo urge.*

 

Correu através dos rochedos, desaparecendo da vista de Daemon antes que ele conseguisse se mexer.

 

Ele apressou-se em segui-la, avançando pela trilha cintilante, arquejando ao sentir um peso esmagador descendo sobre si.

 

*Daemon.* A voz chegou fraca e carregada de dor. *Para que o corpo sobreviva, não posso ficar mais tempo.*

 

Ele lutou contra o peso.

 

*Jaenelle!*

 

*Você tem de vir devagar, por etapas. Descanse aqui agora. Descanse, Daemon. Marcarei o caminho. Siga-o, por favor. Estarei à sua espera na saída.*

 

*JAENELLE!*

 

Um sussurro sem palavras. Seu nome pronunciado como uma carícia. E, depois, o silêncio.

 

O tempo não tinha qualquer significado enquanto permanecia ali, com o corpo enroscado, esforçando-se para se agarrar à trilha cintilante que seguia para cima, enquanto tudo o que estava abaixo dele o puxava, tentando arrastá-lo de novo para o fundo.

 

Agarrou-se com força à lembrança da voz de Jaenelle, à promessa de que ela estaria à sua espera na saída.

 

Mais tarde — muito mais tarde — os puxões diminuíram, o peso esmagador abrandou.

 

A trilha cintilante, a faixa salpicada de estrelas, continuava seguindo para cima.

 

Daemon começou a escalar.

 

Surreal observava o céu que clareava e ouvia os guardas gritando e vociferando enquanto o labirinto chiava com as explosões de poder contra poder. Durante a longa noite, os guardas atacaram sem trégua, abrindo caminho em direção ao centro do labirinto enquanto o escudo de Jaenelle se partia, pedaço por pedaço. A julgar pelos gritos, quebrar o pouco do escudo que conseguiram custara muito caro aos guardas.

 

Havia alguma satisfação nisso, mas Surreal sabia igualmente o que os guardas sobreviventes fariam a quem quer que encontrassem no labirinto.

 

— Surreal? O que está acontecendo?

 

Por um momento, Surreal não conseguiu dizer palavra. Os olhos de Jaenelle tinham um aspecto inanimado e sem brilho, pois o fogo interior se transformara em cinzas. As Joias Negras pareciam ter sido esgotadas de grande parte da reserva de poder que continham.

 

Surreal ajoelhou-se ao lado de Daemon. Exceto pelo movimento do peito ao respirar, ele não se movera desde que caíra, inconsciente.

 

— Os guardas estão penetrando no escudo — disse, tentando parecer calma. — Acho que não nos resta muito tempo.

 

Jaenelle assentiu.

 

— Então, você e Daemon precisam ir embora. O Vento Verde passa junto ao limite do jardim. Consegue chegar lá?

 

Surreal hesitou.

 

— Com todo o poder que foi libertado nesta área, não tenho certeza.

 

— Mostre-me o seu anel com a Cinza.

 

Surreal estendeu a mão direita.

 

Jaenelle roçou sua Joia Negra no anel com a Cinza de Surreal.

 

Surreal sentiu um fio psíquico sair dos anéis quando estabeleceram contato, sentiu a Teia Verde atraindo-a.

 

— Aí está — Jaenelle arquejou. — Assim que partirem, o fio vai puxá-los para a Teia Verde. Leve a teia farol com você. Destrua-a assim que puder.

 

Daemon se mexeu, gemendo baixinho.

 

— E você? — perguntou Surreal.

 

Jaenelle balançou a cabeça.

 

— Não importa. Não voltarei. Vou segurar os guardas por tempo suficiente para que vocês possam avançar.

 

Jaenelle abriu a camisa esfarrapada de Daemon. Segurando na mão direita de Surreal, espetou o dedo médio e pressionou-o contra o peito de Daemon, ao mesmo tempo que murmurava palavras num idioma que Surreal não conhecia.

 

— Este feitiço de união irá mantê-lo junto a você até sair do Reino Distorcido. — Jaenelle desvaneceu e voltou a aparecer. — Uma última coisa.

 

Surreal pegou a moeda de ouro que pairava no ar. Em um dos lados via-se um S elaborado. Do outro lado estavam gravadas as palavras “Dhemlan Kaeleer”.

 

— É um sinal de travessia segura — disse Jaenelle, esforçando-se para que as palavras pudessem ser ouvidas. — Se alguma vez for a Kaeleer, apresente a moeda a quem encontrar e diga que estão à sua espera no Paço em Dhemlan. Isso lhe garantirá uma escolta segura.

 

Surreal fez a moeda desaparecer, bem como a pequena teia farol.

 

Daemon rolou para o lado e abriu os olhos.

 

Jaenelle recuou, flutuando, até desvanecer na cerca viva.

 

*Depressa, Surreal. Que as Trevas a protejam.*

 

Praguejando baixinho, Surreal puxou Daemon e o fez ficar de pé. Ele a olhou fixamente, com uma desorientação ingênua. Surreal passou o braço esquerdo de Daemon sobre os ombros e estremeceu ao envolver sua cintura com o braço direito.

 

Respirando fundo, deixou que o fio psíquico os puxasse pelas Trevas até pegar o Vento Verde e seguir rumo ao norte.

 

O refúgio estava preparado e à espera deles.

 

Antes da noite em que, embriagada, quebrara a afetuosa amizade entre os dois, Daemon lhe contara sobre duas pessoas: Lord Marcus, o administrador que cuidava dos seus investimentos bastante discretos, e Manny.

 

Pouco depois de Jaenelle contactá-la, visitara Lord Marcus para falar sobre a necessidade de encontrar um refúgio e descobrira que já existia um — uma pequena ilha cujo proprietário era um “Senhor da Guerra enfermo e solitário” que vivia com alguns criados.

 

Daemon era o proprietário da ilha. Todos que habitavam tinham sido física ou emocionalmente mutilados por Dorothea SaDiablo. Era um local onde podiam reconstruir algo próximo de uma vida.

 

Não se atrevera a visitar a ilha durante a busca por Daemon pois temia que Kartane SaDiablo a seguisse. Agora ela e Daemon poderiam desaparecer, e o fictício Senhor da Guerra inválido, bem como sua mais nova acompanhante, se tornariam reais.

 

Antes disso, porém, havia uma breve parada a fazer, uma coisa a ser perguntada. Desejava ardentemente que Manny dissesse que “sim”.

 

*Surreal...*

 

Surreal tentou fortalecer o fio feminino.

 

*Jaenelle?*

 

*Surreal... v... Fortale... o...*

 

Surreal esforçou-se para controlar as emoções quando o fio feminino se partiu. Faria todo o possível para que Daemon se fortalecesse.

 

Devia-lhe isso. Porque o que restava de Jaenelle se importava.

 

Sem se permitir pensar no que estaria acontecendo no centro daquele labirinto, Surreal prosseguiu viagem.

 

Os latidos desesperados de Ladvarian e os gritos de Lucivar despertaram Saetan de seu estado meditativo e atormentado. Impulsionando-se da cadeira na sala de estar de Jaenelle, na Fortaleza, correu para a porta que dava para o quarto e segurou-se ao vão, paralisado diante da visão do corpo destroçado que Lucivar segurava nos braços.

 

— Mãe Noite — murmurou entre dentes, segurando Kaelas pelo cangote e puxando o jovem felino que bufava para fora da cama. Ajeitando a roupa de cama, lançou um feitiço de aquecimento nos lençóis. — Deite-a.

 

Lucivar hesitou.

 

— Deita-a — insistiu, com rispidez, desalentado pelas lágrimas nos olhos de Lucivar.

 

Assim que Lucivar pousou Jaenelle na cama, Saetan ajoelhou-se ao lado dela. Pondo uma das mãos levemente sobre o peito da garota, usou uma delicada gavinha psíquica para detectar e classificar as lesões.

 

Os pulmões estavam entrando em colapso, assim como as artérias e veias, e o coração batia irregular e debilitado. Os demais órgãos internos pareciam prestes a falhar. Os ossos estavam frágeis como cascas de ovo.

 

*Jaenelle*, chamou Saetan. Doces Trevas, será que a ligação entre o corpo e o espírito tinha sido rompido? *Criança-feiticeira!*

 

*Saetan?* A voz de Jaenelle soou fraca e distante. *Deixei-o num estado lastimável, não foi?*

 

Saetan esforçou-se para manter a calma. Ela era exímia na Arte e dispunha dos conhecimentos para realizar a cura. Se conseguisse mantê-la conectada ao corpo, havia uma chance de salvá-la.

 

*Digamos que sim.*

 

*Ladvarian trouxe a teia curativa da Fortaleza em Terreille?*

 

— Ladvarian! — No mesmo instante, lamentou ter gritado, pois o scelta encolheu-se de medo e gemeu, perturbado demais para se lembrar de como se comunicar com ele. Mantenha a calma, SaDiablo. A fúria é destruidora em qualquer sala de tratamento, mas aqui poderá revelar-se fatal. — A Senhora está perguntando pela teia curativa — disse, calmo. — Você a trouxe?

 

Kaelas colocou as patas da frente de cada lado do corpo do pequeno cão e lambeu o amigo, como forma de encorajamento.

 

Depois de mais um incentivo de Kaelas, Ladvarian disse:

 

*Teia?* Levantou-se, ainda resguardado pelo corpo do gato. *Teia. Eu trouxe a teia.*

 

Entre Ladvarian e a cama surgiu uma pequena estrutura de madeira.

 

Aos olhos de Saetan, a teia curativa da estrutura parecia simples demais para ajudar um corpo com ferimentos como aqueles. Foi então que reparou no único fio de seda de aranha que ia da teia até o anel com Joia Negra preso à base da estrutura.

 

*Três gotas de sangue no anel despertarão a teia curativa*, disse Jaenelle.

 

Saetan olhou para Lucivar, que estava junto à cama como se aguardasse o golpe fatal. Hesitou e praguejou em silêncio, pois ainda sentia a picada de acusações antigas, embora não estivesse pedindo para si.

 

— Ela precisa de três gotas de sangue no anel. Não me atrevo a usar o meu. Não sei ao certo o que o sangue de um Guardião poderia provocar.

 

Os olhos de Lucivar faiscaram de raiva, e Saetan percebeu que o filho compreendera a razão da hesitação.

 

— Maldito seja nas entranhas do Inferno — praguejou Lucivar, enquanto desembainhava uma pequena faca da bota. — Você não tirou o meu sangue quando eu era criança, por isso pare de se desculpar por uma coisa que não fez. — Espetou um dedo e deixou que três gotas de sangue caíssem no anel com a Joia Negra.

 

Saetan prendeu a respiração até a teia começar a brilhar.

 

Lucivar embainhou a faca.

 

— Vou buscar Luthvian.

 

Saetan assentiu com a cabeça. Mas Lucivar não esperara pelo seu consentimento e já passara pela porta de vidro que dava para o jardim privado de Jaenelle, levantando voo em direção ao céu.

 

O corpo de Jaenelle se contorceu. Pelo fio psíquico, Saetan sentiu a Arte na teia inundando-a, estabilizando-a. Olhou de relance para a teia e tentou afastar os sentimentos de desespero. Um terço do fio já estava obscurecido, consumido.

 

*Não esperava que fosse assim tão grave*, disse Jaenelle, como se pedindo desculpas.

 

*Luthvian não deve demorar.*

 

*Ainda bem. Com a ajuda dela, poderei transferir o poder que meu corpo não consegue reter para a teia, de forma a auxiliar na cura.*

 

Sentiu que ela se extinguia.

 

*Jaenelle!*

 

*Encontrei-o, Saetan. Marquei uma trilha para que a seguisse. E... disse a Surreal para levá-lo à Fortaleza, mas não tenho certeza se me ouviu.*

 

*Não pense nisso agora, criança-feiticeira. Concentre-se no tratamento.*

 

Ela se deixou levar por um sono leve.

 

Quando Luthvian chegou à Fortaleza, dois terços da teia curativa simples de Jaenelle já tinham sido usados, e Saetan se perguntou se haveria tempo para criar outra antes que o último fio escurecesse.

 

Não conseguia ficar ali vendo aquela cena. Assim que Luthvian se recompôs o suficiente para começar, retirou-se para a sala de estar, levando Ladvarian e Kaelas. Não perguntou onde estava Lucivar. Sentia-se simplesmente agradecido por não desgastarem ainda mais os temperamentos um com o outro, pelo menos por um tempo.

 

Andou de um lado para outro até a perna começar a doer. Acolheu o desconforto físico como uma amante encantadora. Era melhor se concentrar nisso do que no desgosto que poderia estar à sua espera.

 

Porque não sabia se aguentaria outra vigília à beira da cama.

 

Porque não sabia se a operação teria sido bem-sucedida o suficiente para que todo o sofrimento valesse a pena.

 

Ele ia aprendendo conforme escalava.

 

Ela deixara pequenos recantos junto à trilha cintilante para ele descansar: violetas aninhadas junto a um pedregulho, água doce e límpida escorrendo por uma pedra até uma poça tranquila que acalmava o espírito, um canteiro de grama verde e densa grande o bastante para ele se esticar, um coelhinho marrom e rechonchudo que o observava enquanto se empanturrava de trevos, uma fogueira animada que derreteu a primeira camada de gelo que envolvia seu coração.

 

A princípio, tentara ignorar os recantos de repouso. Percebeu que conseguia ignorar um, talvez dois, enquanto se debatia com o peso que tornava cada passo mais lento. Se tentasse ignorar o terceiro, a trilha ficava bloqueada. O instinto o advertia que se saísse da trilha cintilante para contornar o obstáculo, talvez não fosse capaz de encontrar o caminho de volta. Por isso, ele retrocedia e descansava até sentir um alívio no peso, e então prosseguia com mais facilidade.

 

Não tardou a perceber que o peso tinha um nome: corpo. Isto o confundiu por algum tempo. Já não tinha um corpo? Caminhava, respirava, ouvia, via. Sentia-se cansado. Sentia dor. Este outro corpo provocava uma sensação diferente, era pesado e maciço. Não sabia ao certo se gostava de absorver sua essência — ou que a essência o absorvesse.

 

Contudo, o corpo fazia parte da mesma teia delicada que as violetas, a água, o céu e a fogueira — lembranças de um local além da paisagem estilhaçada — por isso, conformou-se com a ideia de se familiarizar com esses elementos.

 

Passado algum tempo, cada local de repouso continha, também, um presente intangível: uma peça de um quebra-cabeças de Arte, um pequeno aspecto de um feitiço. Aos poucos, as peças começaram a formar um todo, e ele aprendeu as bases da Arte da Viúva Negra, aprendeu a construir teias simples, aprendeu a ser o que havia sido.

 

Por isso, descansava e apreciava os pequenos presentes e quebra-cabeças que ela tinha deixado para ele.

 

E escalava até o local onde ela prometera que estaria à sua espera.

 

–A primeira parte do plano está progredindo muito bem — disse Hekatah. — Enfim a Pequena Terreille tem representação justa no Conselho das Trevas.

 

Lord Jorval mostrou um sorriso tenso. Como os membros oriundos da Pequena Terreille representavam um pouco mais da metade do Conselho, podia concordar que o Território que sempre sentira desconfiança em relação ao resto do Reino das Sombras tinha, enfim, uma representação justa.

 

— Devido a todos os ferimentos e doenças que provocaram a demissão de membros do Conselho nos últimos dois anos, os Sangue da Pequena Terreille foram os únicos dispostos a aceitar uma responsabilidade tão árdua em prol do Reino. — Ele suspirou, embora seus olhos cintilassem com uma aprovação maligna. — Fomos acusados de favoritismo por tantas vozes virem do mesmo Território, mas, quando outros homens e mulheres considerados dignos de tal tarefa se recusam a cumpri-la, o que deveríamos ter feito? Os assentos do Conselho precisam ser preenchidos.

 

— É verdade — concordou Hekatah. — E vários desses novos membros devem a ascensão ao apoio que você lhes deu na nomeação para o Conselho, e não desejam sofrer com angústia por não terem seguido seu entendimento na hora de votar. Chegou o momento de pôr em prática a segunda parte do plano.

 

— E qual seria essa parte? — Jorval desejava que ela despisse aquele manto de capuz grande. Já a vira antes. E por que estavam numa estalagenzinha vagabunda na periferia de Goth?

 

— Estender a influência da Pequena Terreille no Reino das Sombras. Você terá de convencer o Conselho a ser mais brando quanto aos requisitos de imigração. Aqui já vivem muitos aristocratas dos Sangue. É necessário deixar entrar os de categorias inferiores, trabalhadores, artesãos, agricultores, feiticeiras domésticas, criados, guerreiros de Joias mais claras. As decisões sobre quem entra ou não devem deixar de ser baseadas em poderem ou não pagar os subornos.

 

— Se as Rainhas terreillianas e os machos aristocratas desejam criados, que usem os plebeus — retrucou Jorval, taciturno. Os subornos, como Hekatah bem sabia, tinham se tornado uma importante fonte de renda para muitos aristocratas dos Sangue em Goth, a capital da Pequena Terreille.

 

— Os plebeus são forragem para os demônios — retrucou Hekatah. — Os plebeus não possuem magia. Os plebeus não dominam a Arte. Os plebeus têm tanta utilidade como os jhin... — Fez uma pausa. Puxou o capuz para a frente. — Aceitem também os plebeus terreillianos como imigrantes. Prometam-lhes privilégios e colônias depois de servirem. Mas não deixem de trazer os Sangue terreillianos de categorias inferiores.

 

Jorval abriu as mãos.

 

— E o que faremos com todos esses imigrantes? Nas feiras de imigração, que acontecem duas vezes por ano, todos os outros Territórios só aceitam cerca de duas dezenas de pessoas, se tanto. As cortes da Pequena Terreille já estão apinhadas, e há muitas queixas sobre os aristocratas terreillianos, que estão sempre se lamentando por servirem em Círculos inferiores e não possuírem terra para governar, como haviam esperado. E nenhum dos que já estão aqui preencheu os requisitos de imigração.

 

— Eles terão terra para governar. Fundarão novos e pequenos territórios em nome das Rainhas que servem. Isso aumentará a influência que as Rainhas da Pequena Terreille possuem em Kaeleer e, além disso, proporcionará uma nova fonte de renda. Uma parte dessa terra é obscenamente rica em pedras e metais preciosos. Dentro de poucos anos, as Rainhas da Pequena Terreille serão a força mais poderosa do Reino, e os outros Territórios terão de se sujeitar ao seu domínio.

 

— Que terra? — perguntou Jorval, sem conseguir ocultar a irritação.

 

— A terra a ser reclamada, é claro — respondeu Hekatah, ríspido. Invocou um mapa de Kaeleer, desenrolou-o e fez uso da Arte para mantê-lo estendido. Um dedo esquelético indicou grandes áreas na carta.

 

— Essa terra não está livre para ser reclamada — protestou Jorval. — Esses são Territórios interditos. Os chamados Territórios dos parentes.

 

— Exato, Lord Jorval — disse Hekatah, batendo com o dedo no mapa. — Os chamados Territórios dos parentes.

 

Jorval olhou para o mapa e endireitou-se na cadeira.

 

— Os parentes são Sangue, ao que parece. Não são?

 

— São? — refutou Hekatah, com uma suavidade venenosa.

 

— E os Territórios humanos, como Dharo, Nharkhava e Scelt? Suas Rainhas podem apresentar queixa em nome dos parentes.

 

— Não podem. Não haverá qualquer interferência nas terras delas. Segundo a Lei dos Sangue, as Rainhas dos Territórios não podem interferir além de suas próprias fronteiras.

 

— O Senhor Supremo...

 

Hekatah acenou com a mão, com desprezo.

 

— Sempre viveu de acordo com um rígido código de honra. Defenderá o próprio Território com ferocidade, mas não porá um pé fora dele. O máximo que pode acontecer é ele ir contra esses Territórios, se não cumprirem a Lei.

 

Jorval coçou o lábio inferior.

 

— Então, eventualmente, as Rainhas da Pequena Terreille governariam toda Kaeleer.

 

— E essas Rainhas estariam unidas por alguém com sabedoria e experiência, capa de guiá-las da maneira adequada.

 

Jorval inflou de orgulho.

 

— Não é você, idiota — silvou Hekatah. — Um macho não pode governar um Território.

 

— O Senhor Supremo governa!

 

O silêncio prolongou-se por tanto tempo que Jorval começou a transpirar.

 

— Não se esqueça quem é ou o que é, Lord Jorval. Não se esqueça do seu próprio código de honra. Você não pertence ao gênero certo. Se tentasse se colocar no seu caminho, ele o faria em pedaços. Eu governarei Kaeleer. — Sua voz tornou-se mais suave. — Você será meu Administrador, e, sendo meu braço direito e meu conselheiro mais estimado, terá tanta influência que não haverá mulher no Reino que se atreva a recusá-lo.

 

Jorval foi invadido por um calor na zona genital ao pensar em Jaenelle Angelline.

 

O mapa enrolou-se de repente, assustando-o.

 

— Acho que já adiamos as gentilezas por muito tempo, não é? — Hekatah baixou o capuz do manto.

 

Jorval deixou escapar um grito débil. Pondo-se em pé de um salto, derrubou a cadeira e tropeçou nela quando se virou para se afastar da mesa.

 

Enquanto Hekatah contornava a mesa lentamente, Jorval arrastava-se para trás. Continuou recuando até que acabou pressionado contra a parede.

 

— Só um golinho — disse Hekatah, desabotoando a camisa dele. — Só para provar. Quem sabe da próxima vez não se esqueça de providenciar as bebidas.

 

Jorval sentiu as entranhas se retorcendo.

 

Hekatah mudara nos últimos dois anos. Antes, parecia uma mulher atraente que já tinha vivido dias melhores. Agora, parecia que alguém a espremera, retirando todo o líquido da carne. E o perfume profusamente aplicado não ocultava o cheiro de decomposição.

 

— Há uma outra razão muito importante para que eu seja a governante de Kaeleer — murmurou Hekatah enquanto roçava os lábios na garganta de Jorval. — Uma coisa que você não deve esquecer.

 

— Sim, S-Sacerdotisa? — Jorval cerrou os punhos.

 

— Quando eu estiver governando, o Reino de Terreille apoiará nossos esforços.

 

— Apoiará? — disse Jorval com uma voz fraca, tentando manter a respiração controlada.

 

— Me certificarei disso — respondeu Hekatah, e em seguida cravou os dentes na garganta dele.

 

A nova carruagem de duas rodas avançava depressa pelo centro da larga estrada de terra batida que ia para nordeste, para além do povoado de Maghre.

 

Saetan tentou, mais uma vez, avisar Narciso de que deveria manter a carruagem do lado direito da estrada. E Narciso respondeu, mais uma vez, que, se fizesse isso, Yaslana e o Bailarino do Sol não conseguiriam trotar ao lado deles. Desviaria se cruzasse com alguma outra carruagem na estrada. Sabia conduzir o veículo. O Senhor Supremo se preocupava demais.

 

Sentada ao lado de Saetan, Jaenelle olhou de relance para os punhos fechados do pai adotivo e sorriu com um ar de divertida compaixão.

 

— Ser passageiro quando estamos habituados a estar no controle não é fácil. Khary acha que as carruagens puxadas pelos parentes deveriam ter um conjunto de rédeas presas à frente, para o passageiro ter alguma coisa em que se agarrar para se sentir mais seguro.

 

— Calmantes seriam mais eficazes — resmungou Saetan. Forçou-se a abrir as mãos, colocando-as sobre as coxas com firmeza, ignorando o riso abafado de Lucivar e se esforçando para não se ressentir com as rédeas presas na testeira de Bailarino do Sol.

 

Para desgosto dos humanos, os parentes insistiram que as rédeas fossem mantidas como parte do equipamento de equitação, pois os humanos precisavam se segurar em alguma coisa quando os parentes corriam e saltavam. Por sorte, após o choque inicial três anos antes, quando o povo scelta descobrira a quantidade de raças dos Sangue que habitavam a ilha, os humanos receberam seus Irmãos e Irmãs parentes com entusiasmo.

 

— Não vamos parar na casa de Morghann e de Khary? — perguntou Jaenelle, pondo uma das mãos sobre a cabeça a fim de evitar que o chapéu de palha de abas largas voasse.

 

— Eles disseram que queriam nos mostrar uma coisa e que iriam ao nosso encontro — respondeu Lucivar. — Eu e Bailarino do Sol vamos à frente, para ver se nos aguardam. — Lucivar e o cavalo Príncipe dos Senhores da Guerra partiram através dos campos.

 

Narciso emitiu um ruído de ansiedade e continuou trotando pela estrada. Passados alguns minutos, deixou a estrada principal e trotou com elegância por uma trilha comprida, ladeada de árvores.

 

Os olhos de Jaenelle se iluminaram.

 

— Vamos à casa de campo de Duana? Oh, é um lugar encantador. Khary disse que alguém alugou a propriedade e estava fazendo melhorias.

 

Saetan suspirou de alívio. Khary sabia o que dizer para despertar o interesse dela, mesmo sem nada revelar.

 

Jaenelle passara seis meses se recuperando depois de entrar no Reino Distorcido para salvar Daemon, dois anos antes. Permanecera na Fortaleza durante os dois primeiros meses, fraca demais para ser transportada. Depois que Saetan e Lucivar a levaram para o Paço, foram necessários mais quatro meses para que recuperasse as forças físicas. Durante esse tempo, seus amigos voltaram a ocupar o Paço, renunciando às cortes onde prestavam serviço para ficar junto dela. Jaenelle acolhera o grupo calorosamente, embora tivesse ficado intimidada pela presença dos rapazes — a primeira amostra de vaidade feminina que jamais demonstrara.

 

Atônitos pela recusa dela em vê-los, eles decidiram zelar por Jaenelle à distância e canalizaram as energias para os cuidados com a assembleia. Durante esse período, sob o olhar vigilante e discreto de Saetan, algumas amizades desabrocharam em amor: Morghann e Khardeen, Gabrielle e Chaosti, Grezande e Elan, Kalush e Aaron. Observara as garotas e imaginara se os olhos de Jaenelle alguma vez brilhariam daquela maneira por um homem. Mesmo que esse homem fosse Daemon Sadi.

 

Como Daemon e Surreal não apareceram na Fortaleza de Terreille, tentara localizá-los. Passadas algumas semanas, interrompeu as buscas, ao perceber que não era o único a procurá-los, e concluíra que o insucesso era melhor que conduzir um inimigo a um homem vulnerável. Além disso, Surreal era filha de Titian. Onde quer que tivesse se refugiado, encobrira seus rastros com perfeição.

 

E havia outro motivo para não querer provocar agitação. Hekatah não voltara ao Reino das Trevas. Desconfiava que ela estava muito bem escondida em Hayll. Desde que permanecesse lá, tanto ela como Dorothea podiam apodrecer juntas, mas a verdade é que ela ficaria atenta a qualquer sinal que demonstrasse o interesse renovado de Saetan por Terreille, então perseguiria a causa desse interesse.

 

— Lucivar e Bailarino do Sol foram mais rápidos — observou Jaenelle quando pararam diante da imensa casa de campo construída em arenito.

 

Narciso resfolegou.

 

— Não — disse Saetan, severo, ao ajudar Jaenelle a descer da carruagem. — As carruagens não atravessam cercas.

 

— Ainda mais quando o humano dentro dela não sabe que a passagem da outra metade depende dele — murmurou Jaenelle. Sacudiu as pregas da saia azul-safira e endireitou o casaco, entretida demais para encarar Saetan.

 

O que não era mal.

 

Jaenelle ergueu o olhar para a mansão e suspirou.

 

— Espero que os novos inquilinos deem a este lugar o amor que ele merece. Oh, sei que Duana anda ocupada e prefere viver na casa de campo perto de Tuathal, mas este lugar precisa despertar com cânticos. Os jardins aqui poderiam ser encantadores.

 

Em reconhecimento do sorriso satisfeito de Lucivar, Saetan tirou uma caixa achatada e retangular do bolso e entregou-a a Jaenelle.

 

— Feliz aniversário, criança-feiticeira. É de toda a família.

 

Jaenelle aceitou a caixa, mas não a abriu.

 

— Se é de toda a família, não deveríamos esperar até chegar em casa para abri-la?

 

Saetan balançou a cabeça.

 

— Concordamos que você deveria abri-la aqui.

 

Jaenelle abriu a caixa e franziu a sobrancelha ao ver a grande chave de bronze.

 

Emitindo um grunhido exasperado, Lucivar virou-a de frente para a casa.

 

— É da porta da frente.

 

Jaenelle arregalou os olhos.

 

— Minha? — Olhou para a porta da frente, depois para a chave, e outra vez para a porta da frente. — Minha?

 

— Bem, a família celebrou um contrato de arrendamento por dez anos, que abrange a casa e os terrenos — respondeu Saetan, sorridente. — Duana disse que você pode fazer o quiser com a casa, menos derrubá-la.

 

Jaenelle abraçou os dois com tanta força que eles mal conseguiram respirar, e em seguida correu até a porta. Que se abriu antes que ela a alcançasse.

 

— SURPRESA!

 

Rindo da expressão atordoada de Jaenelle, Saetan empurrou-a para dentro da casa, enquanto Khary e Morghann a puxavam para o meio da multidão.

 

Sentiu um nó na garganta quando viu Jaenelle passando de amigo a amigo, todos abraçando-a, felicitando-a. Astar e Sceron de Centauran. Zylona e Jonah de Pandar. Grezande e Elan de Tigrelan. A pequena Katrine de Philan. Gabrielle e Chaosti de Dea al Mon. Karla e Morton de Glácia. Morghann e Khary de Scelt. Sabrina e Aaron de Dharo. Kalush de Nharkhava. Ladvarian e Kaelas. Será que algo do tipo já acontecera ao Reino das Trevas?

 

Os anos em que a assembleia e o círculo de machos se reunia no Paço passaram depressa, e os jovens já não eram crianças ao seu cuidado, mas adultos a enfrentar em pé de igualdade. Todos os rapazes já tinham realizado a Oferenda às Trevas, e todos usavam Joias escuras. Se a forte amizade que unia Khary, Aaron e Chaosti sobrevivesse às exigências da idade adulta e ao serviço em cortes diferentes, eles se tornariam um triângulo admirável e influente de poder, nos anos por vir. E as garotas estavam quase preparadas para realizar a Oferenda. Quando fizessem isso... ah, o poder!

 

E havia Jaenelle. O que seria da adorada e dotada filha da sua alma quando realizasse a Oferenda?

 

Tentou afastar esse estado de espírito antes que ela o detectasse. O dia de hoje, porém, tinha um sabor agridoce para Saetan, por isso a família havia celebrado o aniversário de Jaenelle em particular, dois dias antes.

 

Um ribombar de trovão silenciou o falatório.

 

— Pois bem — disse Karla, com um sorriso perverso. — Vamos deixar que tio Saetan mostre a casa a Jaenelle enquanto terminamos de preparar a comida. Esta talvez seja nossa única oportunidade de nos divertirmos na cozinha.

 

As garotas desapareceram depressa nos fundos da casa.

 

— Acho melhor ajudá-las — disse Khary, liderando os rapazes, que apressaram o passo para salvar a casa e a comida.

 

Lucivar disse que voltaria dali a pouco, resmungando qualquer coisa sobre desatrelar Narciso antes que ele tentasse fazer isso sozinho.

 

— Duana disse que a mobília que você não quiser usar pode ser guardada no sótão — disse Saetan, depois de explorar o andar de baixo com Jaenelle.

 

Jaenelle concordou, distraída, enquanto subiam as escadas.

 

— Vi uns quadros esplêndidos que seriam perfeitos para este lugar. Tinha um... — Boquiaberta, à entrada do quarto, Jaenelle olhava abismada para a cama com dossel, para a cômoda, para as mesinhas de cabeceira, para os baús.

 

— O pessoal lá embaixo comprou para você. Acho que deve ter admirado alguma coisa parecida com frequência, então imaginaram que você gostaria.

 

Jaenelle entrou no quarto e passou a mão pela suave madeira de bordo da cômoda.

 

— É magnífico. É tudo magnífico. Mas por quê?

 

Saetan engoliu em seco.

 

— Hoje você faz vinte anos.

 

Jaenelle ergueu a mão direita e ajeitou o cabelo.

 

— Eu sei.

 

— Minha tutela legal termina hoje.

 

Ficaram olhando um para o outro, demoradamente.

 

— O que isso significa? — perguntou ela, baixinho.

 

— Exatamente o que eu disse. Minha tutela legal termina hoje. — Viu-a relaxar ao assimilar a distinção. — Você é uma jovem mulher, criança-feiticeira, e deve ter a própria casa. Sempre adorou Scelt. Achamos que seria bom ter uma casa também neste lado do Reino. — Como Jaenelle continuou em silêncio, o coração de Saetan disparou. — O Paço sempre será seu lar. Sempre seremos sua família — contanto que nos queira.

 

— Contanto que os queira. — Os olhos de Jaenelle se alteraram.

 

Saetan precisou reunir todas as suas forças para não se pôr de joelhos e suplicar à Feiticeira que o perdoasse.

 

Jaenelle afastou-se de Saetan, abraçando-se como se estivesse com frio.

 

— Naquele dia eu disse coisas muito cruéis.

 

Saetan respirou fundo.

 

— Eu realmente o usei. Ele foi meu instrumento. E, mesmo sabendo o que sei, se pudesse voltar atrás, faria tudo do mesmo jeito. Um Príncipe dos Senhores da Guerra é dispensável. Uma boa Rainha, não. E, para dizer a verdade, se não tivéssemos feito nada e você não tivesse sobrevivido, acho que Daemon não sobreviveria. Estou certo de que eu não sobreviveria.

 

Jaenelle abriu os braços.

 

Ele avançou para os braços abertos e apertou-a com força.

 

— Acho que você nunca percebeu como a ligação entre os Príncipes dos Senhores da Guerra e as Rainhas é forte e necessária. Precisamos que você permaneça intacta. É por isso que servimos. É por isso que todos os machos dos Sangue servem.

 

— Mas sempre me pareceu injusto que uma Rainha possa reivindicar um homem, controlar todos os aspectos da vida dele, se quiser, sem que ele possa opinar.

 

Saetan riu.

 

— Quem disse que o homem não tem opção? Nunca reparou na quantidade de homens que são convidados a servir numa corte e rejeitam o privilégio? Não, talvez não tenha reparado. Você esteve ocupada com muitos outros afazeres, e esse tipo de coisa acontece com muita discrição. — Fez uma pausa e balançou a cabeça, sorrindo. — Permita-me revelar um segredo de conhecimento geral, minha querida feiticeirazinha. Não é você que nos escolhe. Somos nós que a escolhemos.

 

Jaenelle refletiu sobre estas palavras e resmungou:

 

— Lucivar nunca me devolverá aquele maldito Anel, não é?

 

Saetan riu entre dentes.

 

— Você pode tentar recuperá-lo, mas acho que não conseguiria. — Encostou o rosto no cabelo da garota. — Acho que ele irá servi-la até o fim de seus dias, mesmo que não esteja efetivamente a seu lado.

 

— Como você e tio Andulvar com Cassandra.

 

Saetan fechou os olhos.

 

— Não, não como eu e Andulvar.

 

Ela se afastou o suficiente para examinar o rosto de Saetan.

 

— Compreendo. Uma ligação tão sólida quanto a família.

 

— Ainda mais sólida.

 

Jaenelle abraçou-o, suspirando.

 

— Talvez devêssemos encontrar uma esposa para Lucivar. Assim ele teria outra pessoa para importunar, além de mim.

 

Saetan engasgou.

 

— Não é nada simpático da sua parte mandar Lucivar para os braços de uma Irmã desavisada.

 

— Mas isso iria mantê-lo ocupado.

 

— Pense nas prováveis consequências dessa ocupação por um momento.

 

Jaenelle refletiu.

 

— Uma casa cheia de Lucivarezinhos — disse com a voz fraca.

 

Ambos gemeram.

 

— Muito bem — resmungou Jaenelle. — Preciso pensar em uma alternativa.

 

— Vocês dois se perderam aqui em cima?

 

Deram um salto. Lucivar estava à entrada do quarto, sorrindo.

 

— Papai estava me explicando que vou ter de aturar você para sempre.

 

— E só demorou três anos para entender. — O sorriso arrogante de Lucivar se alargou. — Eu não deveria avisá-la, porque não merece, mas enquanto você estava aqui ocupada tentando reorganizar a minha vida, embora em vão, Ladvarian estava lá embaixo reorganizando a sua. O que foi mesmo que ele disse? “Aqui, podemos criar e treinar os filhotes.”

 

— Podemos? — Jaenelle chiou. — Que filhotes? Filhotes de quem?

 

Lucivar desviou-se e Jaenelle saiu correndo e resmungando.

 

Saetan encontrou a porta bloqueada por um braço forte e musculoso.

 

— Não a ajudaria nessa bobagem, não é? — perguntou Lucivar.

 

Saetan encostou-se no vão da porta e balançou a cabeça.

 

— Se a mulher certa surgir na sua vida, você não a deixará partir. Eu seria o último a aconselhar que se comprometesse. Case com alguém que possa amar e aceitar como é, Lucivar. Case com alguém que o ame e o aceite. Não se contente com menos do que isso.

 

Lucivar baixou o braço.

 

— Acha que o homem certo surgirá na vida da Gata?

 

— Ele virá. Se as Trevas forem bondosas, ele virá.

 

Ele ficou na beira do local de repouso durante bastante tempo, estudando os detalhes, absorvendo a mensagem e o aviso. Ao contrário dos demais locais de repouso que ela preparara, este o perturbava.

 

Era um altar, um bloco de pedra preta sobre dois outros. Ao centro, um cálice de cristal outrora estilhaçado. Mesmo de onde estava, seus olhos conseguiam seguir cada linha de fratura, ver os locais onde os pedaços tinham sido cuidadosamente encaixados de volta. Havia lascas pontiagudas em volta da borda, onde faltavam pequenos fragmentos, lascas que poderiam infligir cortes graves numa pessoa. Dentro do cálice, relâmpagos e névoa negra executavam uma dança lenta e rodopiante. Na base do cálice havia um anel de ouro com um rubi facetado. Um anel masculino.

 

Um anel de Consorte.

 

Por fim, aproximou-se.

 

Se estivesse lendo a mensagem corretamente, Jaenelle se recuperara mas carregava cicatrizes na alma e não estava em sua plenitude. Ao reclamar o anel de Consorte, ele teria o privilégio de saborear o conteúdo do cálice, embora as arestas cortantes pudessem ferir qualquer homem que tentasse.

 

Porém, um homem cuidadoso...

 

Sim, decidiu, observando as arestas vivas, um homem cuidadoso, que soubesse da existência dessas arestas e que estivesse disposto a arriscar, poderia beber desse cálice.

 

Animado, voltou à trilha e continuou subindo.

 

Saetan caiu da cama depressa, buscando descobrir o motivo dos rugidos de Lucivar àquela hora da manhã.

 

Uma parte da sua mente insistia para que não irrompesse para fora do quarto nu em pelo, por isso agarrou as calças que largara na cadeira, ao final da festa de aniversário de Jaenelle, mas não parou para vesti-las. Deslocou o braço ao tentar abrir a porta, que estava inchada devido à chuva da noite anterior. Vociferando, segurou a maçaneta e, com auxílio da Arte, arrancou a porta das dobradiças.

 

Nesse momento, a entrada já estava apinhada de corpos mais ou menos vestidos. Saetan tentou abrir caminho, empurrando Karla, e levou uma cotovelada na barriga.

 

— Em nome do Inferno, o que é isto? — berrou.

 

Ninguém se deu o trabalho de responder, pois, nesse momento, Lucivar saiu do quarto de Jaenelle, gritando:

 

— GATA!

 

Aparentemente, Lucivar não sentia qualquer inibição por estar completamente nu diante de um grupo de jovens homens e mulheres. É claro que um homem com aquele tipo de compleição não tinha qualquer razão para se sentir inibido.

 

E ninguém em perfeito juízo provocaria um homem que vibrava com uma fúria tão intensa.

 

— Onde estão Ladvarian e Kaelas? — perguntou Lucivar.

 

— Ou melhor — disse Saetan, vestindo as calças depressa —, onde está Jaenelle? — Olhou sem rodeios para o Anel de Honra no órgão de Lucivar. — Consegue senti-la através dele, não?

 

Lucivar estremeceu com o esforço para se controlar.

 

— Consigo senti-la, mas não consigo encontrá-la. — Esmurrou uma pequena mesa, partindo-a em duas. — Maldita, vai levar uma surra por causa disso!

 

— Quem é você para se atrever a dizer uma coisa dessas? — rosnou Chaosti, abrindo caminho até a frente do grupo, a Joia Cinza brilhando com o poder crescente.

 

Lucivar cerrou os dentes.

 

— Sou o Príncipe dos Senhores da Guerra que a serve, o guerreiro que jurou protegê-la. Mas não poderei protegê-la se não souber por onde anda. O sangramento da lua começou ontem à noite. Preciso lembrá-lo de como uma feiticeira fica vulnerável nesses dias? Ela está perturbada, consigo sentir, e a única proteção de que dispõe são dois machos mal treinados, já que não me disse aonde ia.

 

— Chega — disse Saetan, ríspido. — Controlem a fúria. AGORA! — Enquanto aguardava, invocou os sapatos e calçou-os. Depois, paralisou Chaosti e Lucivar com um olhar.

 

Assim que todos ficaram imóveis, afastou-se do grupo e apoiou as costas numa parede. Respirou fundo algumas vezes, para se acalmar, fechou os olhos e desceu até a Negra.

 

Embora fosse verdade que as feiticeiras não conseguiam canalizar as forças das Joias sem sofrimento durante o período da lua, isso não impediria Jaenelle.

 

Fazendo de si próprio o ponto central, impulsionou a força da Negra para fora: com cautela, descrevendo círculos cada vez maiores, procurando senti-la, pelo menos para ter uma ideia do local onde estava. Os círculos alargaram-se cada vez mais, para além do povoado de Maghre, para além da ilha de Scelt, até...

 

Kaetien!

 

Foi invadido pelo medo e pelo horror, que se entrelaçavam na ira que se transformava em raiva absoluta.

 

Raiva Negra. Raiva em espiral. Raiva fria.

 

Começou a recuar para fugir da tempestade psíquica que estava a ponto de explodir sobre Sceval. Fortaleceu as barreiras interiores, sabendo que não seria de grande utilidade. A raiva de Jaenelle iria inundá-lo sob as barreiras, onde não havia proteção possível. Esperava ter tempo suficiente para avisar os outros.

 

KAETIEN!

 

Quando Jaenelle libertou a força das Joias Negras, seu grito angustiado invadiu a cabeça de Saetan, paralisando-o. Uma torrente de poder negro o atingiu como uma grande onda, enquanto um escudo psíquico se abatia sobre Sceval.

 

Depois, o vazio.

 

Ele flutuou ligeiramente para além do escudo, assustado, mas estranhamente consolado, como se estivesse seguro dentro de casa durante uma tempestade violenta no exterior.

 

Devia ter sido apanhado entre usos conflitantes do poder Negro, quando Jaenelle ergueu o escudo para conter a tempestade. Feiticeirazinha engenhosa. E todos aqueles relâmpagos psíquicos possuíam uma beleza aterradora. Não se importava de ficar flutuando ali por alguns momentos, mas tinha a irritante sensação de que havia algo que devia fazer.

 

*Senhor Supremo.*

 

Que maldita voz desagradável. Como deveria pensar quando...

 

*Pai.*

 

Pai. Pai. Fogo do Inferno, Lucivar!

 

Para cima. Precisava subir, sair da Negra. Precisava clarear a cabeça o suficiente para dizer a Lucivar... Mas onde ficava “para cima”?

 

Sentiu que alguém o segurava e o arrastava para fora do abismo. Proferiu algumas palavras incoerentes e rosnou. Sentiu-se como um cachorro rosnando ao ser levantado pelo cangote.

 

Quando voltou a si, sentiu algo pressionando-lhe os lábios e sua boca enchendo-se de sangue.

 

— Engula ou enfio seus dentes goela abaixo.

 

Ah, sim. Lucivar.

 

Por fim, conseguiu ver direito. Afastou o pulso de Lucivar da boca.

 

— Chega. — Tentou se levantar, o que não foi nada fácil, já que Lucivar o segurava de um lado e Chaosti do outro. — Estão todos bem?

 

Karla curvou-se sobre Saetan.

 

— Nós estamos bem. Você é que desmaiou.

 

— Não desmaiei. Fui apanhado... — Debateu-se. — Me larguem, me deixem levantar. Se a tempestade tiver passado, precisamos ir a Sceval.

 

— É onde a Gata está? — perguntou Lucivar, ajudando Saetan a se levantar.

 

— Sim. — Recordando-se do grito angustiado de Jaenelle, Saetan sentiu um calafrio. — Eu e você precisamos ir para lá o mais rápido possível.

 

Karla espetou um dedo afiado no peito nu de Saetan.

 

— Nós precisamos ir para lá o mais rápido possível.

 

Antes que conseguisse argumentar, já tinham todos desaparecido para seus quartos.

 

— Se formos agora, chegaremos antes de todos — sussurrou Lucivar, quando entraram no quarto de Saetan. Invocou as próprias roupas e vestiu-se depressa. — Sente-se forte o suficiente?

 

Saetan vestiu uma camisa.

 

— Estou preparado. Vamos.

 

— Sente-se forte o suficiente?

 

Saetan passou por Lucivar sem responder. Como um homem poderia responder a essa pergunta sem saber o que o aguardava?

 

— Mãe Noite — sussurrou Saetan. — Mãe Noite.

 

Saetan e Lucivar estavam no cume plano de um monte, um dos locais oficiais de desembarque em Sceval, olhando para o terreno levemente ondulado que se estendia abaixo. Extensos campos forneciam bons pastos. Grupos de árvores ofereciam sombra nas tardes de verão. Riachos riscavam a terra de água límpida.

 

Estivera naquele monte algumas vezes nos últimos cinco anos, olhando lá para baixo, para os unicórnios, enquanto os garanhões vigiavam atentamente as éguas pastando e os potros brincando.

 

Neste momento, o que via era uma carnificina.

 

Virando-se para norte, Lucivar balançou a cabeça e praguejou em voz baixa.

 

— Não se trata de uns desgraçados que vieram à procura de um chifre para exibir como troféu de caça, foi uma verdadeira guerra.

 

Saetan piscou para impedir que as lágrimas caíssem. De todos os Sangue, de todas as raças de parentes, os unicórnios sempre foram seus preferidos. Eram as estrelas nas Trevas, os exemplos vivos de poder e de força combinados com docilidade e beleza.

 

— Quando todos chegarem, vamos nos dividir para procurar sobreviventes.

 

Os unicórnios atacaram no momento em que a assembleia e o círculo de machos surgiram no monte.

 

— Escudo! — gritaram Saetan e Lucivar. Lançaram escudos Negros e Cinza-Ébano em volta de todo o grupo, enquanto os outros machos formavam um círculo protetor em volta da assembleia.

 

Os oito unicórnios garanhões desviaram antes de se chocar contra os escudos, mas o poder que canalizavam através dos chifres e dos cascos produziu faíscas ao roçar nas barreiras invisíveis.

 

— Esperem! — gritou Saetan, mas o trovão de sua voz mal era ouvido por conta dos relinchos e as imprecações desafiadoras. — Somos amigos! Viemos ajudá-los!

 

*Não são amigos*, retrucou um garanhão mais velho, com o chifre partido. *São humanos!*

 

— Somos amigos — insistiu Saetan.

 

*NÃO SÃO AMIGOS!*, gritaram os unicórnios. *SÃO HUMANOS!*

 

Sceron deu um passo em frente.

 

— O povo Centauran nunca lutou com nossos Irmãos e Irmãs unicórnios. Não desejamos fazer isso agora.

 

*Vieram matar. Primeiro nos chamam de Irmãos, depois vêm nos matar. Basta. BASTA. Agora, é a nossa vez de matar.*

 

Karla esticou a cabeça por cima do ombro de Saetan.

 

— Malditos sejam os seus cascos e chifres, somos Curandeiras. Deixem-nos cuidar dos feridos!

 

Os unicórnios hesitaram por um momento, balançaram a cabeça e voltaram a investir contra os escudos.

 

— Não reconheço nenhum deles — disse Lucivar —, e estão descontrolados demais para nos ouvir.

 

Saetan observou os garanhões investirem contra os escudos repetidamente. Compartilhava aquela fúria, compreendia perfeitamente o ódio. Porém, não podia virar as costas até se acalmarem o suficiente para ouvir, pois outros morreriam se não fossem tratados em breve.

 

Além disso, Jaenelle estava entre aqueles corpos, em algum lugar.

 

Os unicórnios pararam de atacar. Circundaram o grupo, resfolegando e escavando o solo, os chifres para baixo, preparados para outra investida.

 

— Graças às Trevas — murmurou Khary entre dentes, ao ver um jovem cavalo subindo o monte devagar, apoiando-se na perna dianteira esquerda com cuidado.

 

Aliviadas, as garotas começaram a murmurar sobre equipes de tratamento.

 

Observando enquanto o jovem cavalo se aproximava, Saetan desejou poder partilhar aquela confiança. Contudo, de toda a descendência de Kaetien, Mistral sempre fora o mais desconfiado em relação aos humanos, e o mais perigoso. Características necessárias a um jovem macho que todos esperavam que se tornasse o próximo Príncipe dos Senhores da Guerra de Sceval, mas extremamente perturbadoras para o homem na extremidade oposta daquela desconfiança.

 

— Mistral. — Saetan avançou, erguendo as mãos vazias. — Você nos conhece desde que era um potro. Permita-nos ajudar.

 

*Eu os conheço*, disse Mistral, com relutância.

 

*Isso não parece nada bom...*, disse Lucivar através de um fio masculino Cinza-Ébano.

 

*Se as coisas derem errado, tire todo mundo daqui*, respondeu Saetan. *Eu aguento o escudo.*

 

*Precisamos encontrar a Gata.*

 

*Tire-os daqui, Yaslana.*

 

*Sim, Senhor Supremo.*

 

Saetan avançou mais um passo.

 

— Mistral, juro pelas Joias que uso e pelo meu amor à Senhora que nossas intenções são as melhores.

 

O que quer que Mistral estivesse pensando sobre um macho humano com pretensões à Senhora se perdeu quando a voz de tenor suave de Ladvarian invadiu suas mentes.

 

*Senhor Supremo? Senhor Supremo! Temos alguns pequenos protegidos num escudo, mas eles estão assustados e não nos ouvem. Não param de investir contra o escudo. Jaenelle está chorando e também não quer ouvir. Senhor Supremo?*

 

Saetan prendeu a respiração. O que pesaria mais — a lealdade de Mistral à sua espécie ou seu amor e fé em Jaenelle?

 

Mistral olhou para norte. Passado um longo momento, resfolegou.

 

*O Irmãozinho acredita em você. Confiaremos. Por ora.*

 

Desejando ardentemente se sentar, mas sem se atrever a demonstrar qualquer sinal de fraqueza, Saetan baixou o escudo Negro com cuidado.

 

Passados alguns instantes, Lucivar baixou o Cinza-Ébano.

 

Dividiram-se em grupos. Khary e Morghann foram ajudar Ladvarian e Kaelas com os potros. Lucivar e Karla foram para norte, Karla como Curandeira principal, Lucivar como Curandeiro de apoio. O restante da equipe ficou incumbida de procurar os feridos e providenciar auxílio. Saetan, Gabrielle e sua equipe dirigiram-se para sul.

 

Era doloroso olhar para os corpos mutilados das éguas. Ainda mais doloroso, era ver um jovem potro que jazia morto sobre a mãe, com as patas dianteiras decepadas. Conseguiria salvar alguns. Por muitos outros, tudo o que podia fazer era retirar a dor para aliviar a viagem de volta às Trevas.

 

Passou horas procurando potros escondidos sob as mães. Encontrou jovens de até um ano escondidos em depressões do terreno pouco profundas, lugares que continham um poder que ele nunca sentira antes. Não invadiu esses locais. Os jovens unicórnios o observavam com olhos apavorados enquanto ele circundava os potros à procura de feridas. Percebeu aos poucos, ao pisar cadáveres humanos despedaçados, que os unicórnios que haviam conseguido alcançar esses locais tinham, na pior das hipóteses, pequenos cortes ou arranhões.

 

Continuou trabalhando, ignorando a dor de cabeça provocada pelo sol, ignorando os músculos doloridos e o cansaço crescente.

 

Suas emoções ficaram entorpecidas, em defesa contra a carnificina.

 

Porém, não estavam entorpecidas o suficiente quando encontrou Jaenelle e Kaetien.

 

— Aqui, minha bela Senhora — disse Lucivar, passando a mão pelo pescoço da égua. — Ficará dolorido por uns dias, mas vai curar bem.

 

O potro da égua resfolegou e bateu com as patas no chão até Lucivar lhe dar alguns pedaços de cenoura e um torrão de açúcar.

 

Quando a égua e o potro partiram, Lucivar bebeu água e comeu metade de um sanduíche de queijo enquanto aguardava que o unicórnio seguinte reunisse coragem para ser tocado por um humano.

 

Que as Trevas abençoassem o coração de Khary, um amante dos equídeos. Depois de uma rápida passada de olhos pela carnificina, Khary e Aaron tinham voltado a Maghre. Regressaram com Narciso e Bailarino do Sol puxando carroças carregadas de suprimentos medicinais, comida para os humanos, mudas de roupa, cobertores e os “subornos” de Khary — cenouras e torrões de açúcar.

 

Ao perceber a colaboração confiante entre Narciso, Bailarino do Sol e os humanos, o receio dos unicórnios arrefeceu. As palavras “Sirvo a Senhora” desencadearam uma resposta ainda mais vigorosa. Pela força daquelas palavras, a maioria dos unicórnios permitira que Lucivar os tocasse para tratar o que pudesse.

 

Enquanro comia o último pedaço do sanduíche, ele observou um potro de um ano aproximando-se devagar, com a pele retesada e as moscas zumbindo em volta da ferida no ombro, protegida por um escudo cada vez mais fraco.

 

Lucivar abriu os braços, revelando as mãos vazias.

 

— Sirvo...

 

O pequeno potro fugiu quando o grito de guerra de Sceron estilhaçou a trégua intranquila e Kaelas rugiu, desafiador.

 

Invocando a espada de guerra eyriena, Lucivar lançou-se em direção ao céu.

 

Ao dirigir-se a toda velocidade para o homem que corria do local de desembarque, assinalou com frieza todas as pequenas cenas que se desenrolavam lá embaixo: Morghann, Kalush e Ladvarian conduzindo os potros para as árvores; Kaelas derrubando e destroçando um homem; Astar girando nos quartos traseiros, colocando uma flecha no arco centaurano; Morton protegendo Karla e o unicórnio que estava tratando; Khary, Aaron e Sceron protegendo-se uns aos outros enquanto libertavam o poder de suas Joias em pequenas e controladas explosões que dilaceravam os humanos invasores.

 

Concentrando-se na presa escolhida, Lucivar libertou uma torrente de poder Cinza-Ébano no momento em que o homem chegava ao sopé do monte.

 

O homem caiu, com as duas pernas habilmente quebradas e a Joia Amarela exaurida.

 

Lucivar pousou no exato momento em que o velho cavalo ancião com chifre partido investia sobre o homem caído.

 

*Espere!*, gritou, enquanto lançava um escudo Vermelho sobre o homem.

 

O cavalo gritou de raiva e virou-se para enfrentar Lucivar.

 

*Espere*, repetiu Lucivar. *Primeiro quero respostas. Depois, pode destroçá-lo.*

 

O cavalo resfolegou, mas parou de raspar o chão.

 

Com um olhar atento no cavalo, Lucivar retirou o escudo. Pousando um pé no ombro do homem, o fez girar e ficar deitado de costas.

 

— Este é um Território restrito — disse rudemente. — O que o traz aqui?

 

— Não sou obrigado a dar respostas a gente da sua laia.

 

Palavras corajosas vindas de um homem com as duas pernas quebradas. Estúpidas, mas corajosas.

 

Com a espada de guerra eyriena, Lucivar indicou o joelho direito do homem e olhou para o cavalo.

 

— Uma vez. Neste lugar.

 

O cavalo empinou o corpo e obedeceu.

 

— Vamos tentar outra vez? — perguntou Lucivar com toda a calma assim que o homem parou de gritar. — O outro joelho ou passamos às mãos? A escolha é sua.

 

— Você não tem o direito de fazer isto. Quando isto for reportado...

 

Lucivar riu.

 

— Reportado a quem? E com que propósito? Você é um invasor guerreando contra os legítimos habitantes desta ilha. Quem se importará com o que puder lhe acontecer?

 

— O Conselho das Trevas. — Gotas de suor cobriam a testa do homem ao ver Lucivar manuseando a espada de guerra. — Você não tem qualquer direito sobre esta terra.

 

— Nem vocês — disse Lucivar com frieza.

 

— Nós temos direito, seu filho da puta com asas de morcego. Esta ilha foi atribuída à minha Rainha, e a outras cinco, para que seja seu novo território. Viemos aqui primeiro para estabelecer as fronteiras e resolver os problemas que pudessem existir.

 

— Como a raça que dominou esta terra durante milhares de anos? Sim, compreendo que isso pudesse representar um problema.

 

— Ninguém domina este lugar. Esta é uma terra a ser reclamada.

 

— Este é o Território dos unicórnios — disse Lucivar, furioso.

 

— Está doendo — choramingou o homem. — Preciso de uma Curandeira.

 

— Estão todas ocupadas. Voltemos ao que interessa. O Conselho das Trevas não tem ligitimidade para distribuir terras ou para tirá-las de uma raça que já detém os direitos sobre ela.

 

— Mostre-me a concessão de terras assinada. Minha Rainha tem uma, devidamente assinada e ratificada.

 

Lucivar cerrou os dentes.

 

— São os unicórnios que dominam estas terras.

 

O homem olhou para os lados.

 

— Os animais não têm qualquer direito à terra. Só as pretensões dos humanos são consideradas legítimas. Tudo o que aqui viver, viverá sob o consentimento tácito das Rainhas.

 

— São parentes — disse Lucivar, com a voz rouca devido a sensações que não queria identificar. — São Sangue.

 

— Animais. Não passam de animais. É só se livrar dos perigosos, os demais poderão ser úteis. — O homem choramingou. — Está doendo. Preciso de uma Curandeira.

 

Lucivar deu um passo para trás. Depois outro. Oh, claro. As Rainhas de Terreille, aquelas vagabundas, adorariam cavalgar sobre unicórnios. Não se importariam nem um pouco de quebrar os espíritos dos animais se fosse preciso. Não se importariam de maneira alguma.

 

Três gloriosos anos vivendo em Kaeleer não eram capazes de purificar os 1.700 anos que vivera em Terreille. Tentara ao máximo esquecer o passado, mas havia noites em que acordava tremendo. Conseguia controlar a mente na maioria das vezes, mas o corpo ainda recordava muito bem a sensação de usar um Anel de Obediência e quais os seus efeitos.

 

Engolindo em seco, Lucivar passou a língua pelos lábios secos e olhou para o velho cavalo.

 

— Comece pelos braços e pelas pernas. Assim, levará mais tempo até morrer.

 

Fazendo desaparecer a espada de guerra, virou-se e afastou-se, ignorando o som de cascos partindo ossos, ignorando os gritos.

 

Saetan tropeçou num braço decepado e admitiu, por fim, que precisava parar. O tonificante de sangue feito por Jaenelle lhe permitia tolerar e fruir um pouco da luz do sol, mas nem por isso podia deixar de descansar durante as horas em que o sol estava mais forte. À medida que a manhã dava lugar à tarde, trabalhara à sombra tanto quanto possível, mas isso não bastava para impedir o esgotamento que a luz forte do sol provocava no corpo de um Guardião, e ele tampouco suportava realizar tantas curas durante tantas horas seguidas.

 

Precisava parar.

 

Mas não podia até encontrar Jaenelle.

 

Tentou tudo de que se lembrou para localizá-la. Nada havia funcionado. Tudo o que Ladvarian conseguia lhe transmitir era que estava ali e chorando, mas nem Ladvarian nem Kaelas conseguiam lhe dar a menor indicação sobre o local onde procurar. Quando conseguiu que Mistral entendesse sua preocupação, o cavalo disse:

 

— A tristeza da Senhora impedirá que a encontremos.

 

Saetan esfregou os olhos, esperando que seu cérebro desorientado pelo cansaço continuasse a funcionar, pelo menos até que conseguisse chegar ao acampamento que Chaosti e Elan tinham erguido. Estava cansado demais, esgotado demais. Começava a delirar, a ver coisas.

 

Como por exemplo a Rainha unicórnio à sua frente, que parecia feita de raios de luar e névoa, com olhos sombrios tão antigos quanto a terra.

 

Demorou um minuto até perceber que conseguia ver através dela.

 

— Você está...

 

*Morta*, concluiu a voz feminina, como uma carícia. *Morta há muito, muito tempo. E jamais morta. Venha, Senhor Supremo. Minha Irmã precisa de seu progenitor.*

 

Saetan seguiu-a até um círculo de pedras baixas dispostas em intervalos regulares. No centro, um grande chifre de pedra erguia-se do solo. Um poder ancestral e profundo envolvia o círculo.

 

— Não posso entrar neste local — disse Saetan. — É um local sagrado.

 

*Um lugar venerado*, respondeu. *Eles estão perto. Ela lamenta pelo que não foi capaz de salvar. Você precisa fazê-la ver o que salvou.*

 

A égua caminhou para dentro do círculo. Ao se aproximar do grande chifre de pedra, desvaneceu até desaparecer, embora Saetan tenha tido a sensação de que aqueles olhos sombrios, antigos como a terra, ainda o observavam.

 

O ar tremeluziu à sua direita. Um véu que ele não sabia estar presente desapareceu. Caminhou até o local. E os encontrou.

 

Os desgraçados tinham destrinchado Kaetien. Deceparam-lhe as pernas, a cauda, os órgãos sexuais. Removeram suas entranhas.

 

Arrancaram-lhe o chifre.

 

Deceparam-lhe a cabeça.

 

Contudo, os olhos sombrios de Kaetien revelavam ainda uma inteligência impetuosa.

 

O estômago de Saetan se embrulhou.

 

Kaetien tornara-se demônio-morto naquele corpo mutilado.

 

Jaenelle estava sentada junto ao cavalo, inclinada sobre o ventre aberto. Dos seus olhos arregalados escorriam lágrimas. As mãos, com os nós dos dedos embranquecidos, envolviam o chifre de Kaetien.

 

Saetan caiu de joelhos ao lado de Jaenelle.

 

— Criança-feiticeira? — sussurrou.

 

O reconhecimento chegou devagar.

 

— Papai? P-papai? — Atirou-se para os braços de Saetan. As lágrimas silenciosas transformaram-se num choro histérico. O chifre de Kaetien arranhava as costas de Saetan enquanto Jaenelle se agarrava a ele.

 

— Oh, criança-feiticeira. — Enquanto ele e os outros procuravam sobreviventes, ela ficara ali sentada, o dia todo, aprisionada na própria dor.

 

— Que as Trevas sejam misericordiosas — disse uma voz atrás de Saetan.

 

Saetan olhou por cima do ombro, sentindo cada músculo ao virar a cabeça. Lucivar. Força viva que poderia fazer o que ele não conseguia.

 

Lucivar olhou para a cabeça de Kaetien e estremeceu.

 

Saetan ouvia as conversas aceleradas que estavam acontecendo em fios masculinos, mas estava cansado demais para extrair sentido delas.

 

Lucivar pousou um joelho no chão, pegou uma madeixa do cabelo embaraçado e ensanguentado de Jaenelle e, com toda a delicadeza, afastou sua cabeça do ombro de Saetan.

 

— Vamos lá, Gata. Você vai se sentir melhor depois de beber um gole disto. — Colocou uma grande garrafa de prata junto à boca da garota.

 

Ela se engasgou e cuspiu quando o líquido desceu pela garganta.

 

— Desta vez, engula — disse Lucivar. — Esta substância faz menos mal ao estômago do que aos pulmões.

 

— Esta substância vai derreter meus dentes — arquejou Jaenelle.

 

— O que deu a ela? — perguntou Saetan quando Jaenelle desfaleceu, de repente, nos seus braços.

 

— Uma dose generosa da infusão caseira de Khary. Ei!

 

Saetan viu-se apoiado no peito de Lucivar. Concentrou-se na própria respiração durante um minuto.

 

— Lucivar. Você perguntou se tinha forças suficientes para isto. Não tenho.

 

Uma mão forte e calorosa afagou sua cabeça.

 

— Aguente firme. Bailarino do Sol está chegando. Vamos levá-lo para o acampamento. As garotas tomarão conta da Gata. Só mais alguns minutos e poderá descansar.

 

Descansar. Sim, precisava descansar. A dor de cabeça que ameaçava despedaçar seu crânio aumentava de intensidade a cada fôlego.

 

Alguém lhe tirou Jaenelle dos braços. Alguém o amparou até o local onde Bailarino do Sol aguardava. Mãos fortes o mantiveram na garupa do cavalo.

 

Quando se deu conta, estava sentado no acampamento, envolvido em cobertores, e Karla estava ajoelhada a seu lado, incentivando-o a beber a infusão de feiticeira que havia preparado para ele.

 

Depois de beber uma segunda xícara, concordou em ser empurrado e acomodado num saco de dormir. Rosnou ligeiramente por estar sendo tão incomodado, até que Karla lhe perguntou com rispidez como esperava que convencessem Jaenelle a descansar se ele estava dando um exemplo tão ruim.

 

Sem saber como responder, rendeu-se à dor de cabeça, abrandada pela infusão, e adormeceu.

 

Lucivar bebia devagar seu café com uísque enquanto Gabrielle e Morghann acomodavam Jaenelle num saco de dormir. Deteve-se, ignorando os pedidos para que se deitasse e descansasse. Seus olhos perderam o aspecto entorpecido e aturdido quando centrou a atenção em Mistral, que rondava o limite do acampamento, ainda mancando por conta da perna dianteira esquerda ferida.

 

Lucivar sentiu-se grato por aquele fogo gélido e perigoso não ser dirigido a ele.

 

— E essa perna não foi tratada por quê? — perguntou Jaenelle com a voz de meia-noite, olhando fixamente para o jovem cavalo.

 

Mistral resfolegou e ficou agitado. Naturalmente, não queria admitir que não permitira ser tocado por ninguém.

 

Lucivar não o censurava.

 

— Sabe como são os machos — disse Gabrielle, tranquilizadora. — “Eu estou, estou bem, trate os outros primeiro.” Íamos cuidar dele quando você e tio Saetan chegaram.

 

— Estou vendo — disse Jaenelle com delicadeza, mas seu olhar continuava petrificando Mistral. — Pensei que estivesse insultando minhas Irmãs, recusando-se a ser tratado por elas, só porque são humanas.

 

— Que absurdo — disse Morghann. — Agora vamos lá, dê o bom exemplo.

 

Assim que a acomodaram, cercaram Mistral.

 

Tudo correria bem, pensou Lucivar apaticamente. Tinha de ser assim. Os unicórnios, assim como os outros parentes, não perderiam toda a confiança nos humanos e não se esconderiam de novo atrás das máscaras de poder que os manteriam afastados do resto de Kaeleer. A Gata se encarregaria disso. Assim como Saetan.

 

Fogo do Inferno, até hoje não tinha pensado muito sobre a diferença entre um Guardião e os vivos. No Paço, essas diferenças pareciam muito sutis.

 

Não percebera até que ponto o sol forte podia causar tamanho sofrimento, não se dera conta de há quantos anos o Senhor Supremo caminhava nos Reinos. Sabia a idade de Saetan, mas hoje fora a primeira vez que, aos seus olhos, seu pai lhe parecera velho.

 

É claro que os outros homens também estavam bastante abatidos física e emocionalmente, por isso não serviam como termo de comparação.

 

Khary estava agachado a seu lado e despejava um pouco da infusão caseira no café, no qual já havia outras substâncias.

 

— Há alguma coisa perturbando nossos Irmãos quadrúpedes — disse em voz baixa. — Alguma coisa além disto. — Acenou com a mão na direção dos cadáveres brancos que jaziam à vista.

 

Os unicórnios não se importavam com o destino dado aos cadáveres humanos — embora recusassem que os intrusos permanecessem na sua terra —, mas insistiram para que não movessem os unicórnios mortos. A Senhora os cantaria para a terra, disseram.

 

O que quer que isso significasse.

 

Contudo, à medida que as éguas e os potros foram sendo trazidos para este lado do monte com a teia de desembarque, os garanhões sobreviventes iam ficando cada vez mais perturbados.

 

— Talvez Ladvarian saiba alguma coisa — disse Lucivar, bebendo o café em pequenos goles. Enviou um chamado tranquilo. Alguns minutos depois, o scelta entrava penosamente no acampamento.

 

*A Sombra da Lua desapareceu*, disse Ladvarian quando Lucivar lhe perguntou. *A Nuvem de Estrelas estava ficando velha. A Sombra da Lua seria a nova Rainha. Ela usa uma Joia Opala. Uma das éguas contou que viu humanos lançando cordas e redes para prender Sombra da Lua, mas não viu para onde foram.*

 

Lucivar fechou os olhos. Pelo que observara, todos os machos dos Sangue que tinham invadido Sceval usavam Joias mais claras, mas um bando deles com redes e cordas enfeitiçadas poderia controlar uma Rainha de Joia Opala. Estariam as redes enfeitiçadas impedindo-a de contactar os outros ou teria sido levada da ilha?

 

— Voltarei antes do anoitecer — disse Lucivar, entregando a xícara a Khary.

 

— Tenha cuidado — avisou Khary, sereno. — Por via das dúvidas.

 

Lucivar voou para norte. Enquanto voava, enviava continuamente uma mensagem: Servia à Senhora. A Senhora estava num acampamento junto ao monte de desembarque. Havia Curandeiras com a Senhora.

 

Vislumbrou alguns grupos de unicórnios que corriam para as árvores o mais rápido que podiam assim que o detectavam.

 

Viu muitos corpos brancos imóveis.

 

Viu ainda mais cadáveres humanos vítimas de explosões e agradeceu às Trevas por Jaenelle ter mantido sua fúria circunscrita a esta ilha.

 

E ficou curioso quanto aos bolsões de energia que ia sentindo ao sobrevoar bosques e clareiras. Alguns eram fracos; outros, muito mais poderosos. Estava se afastando de um bolsão particularmente poderoso vindo das árvores à esquerda quando algo se apoderou dele. Algo cheio de cólera e desespero.

 

Usando a Vermelha de Direito por Progenitura, quebrou o contato, não sem algum esforço.

 

*Você serve à Senhora*, disse uma voz masculina, rouca.

 

Lucivar ficou pairando, respirando com dificuldade.

 

*Sirvo à Senhora*, afirmou com cautela. *Precisa de ajuda?*

 

*Ela precisa de ajuda. *

 

Pousando, deixou que a energia o guiasse através das árvores até chegar à sua origem. Numa cova, encontrou uma égua emaranhada em redes e cordas, ofegante e transpirando.

 

— Ah, minha querida — disse Lucivar com ternura.

 

Embora a maior parte dos unicórnios apresentasse diferentes tons de branco, havia alguns cinzentos com manchas. Esta égua tinha um tom cinza-claro com crina e cauda brancas. Em volta do seu chifre havia um anel de prata do qual pendia uma Joia Opala.

 

Não era apenas Rainha, mas também Viúva Negra. A única combinação ainda mais rara era Rainha/Viúva Negra/Curandeira. Jamais ouvira falar de uma feiticeira com estas características durante o tempo em que vivera em Terreille. Em Kaeleer, havia apenas três — Karla, Gabrielle e Jaenelle.

 

Mantendo a calma, Lucivar abriu lentamente as asas negras e membranosas. Durante toda a vida ouvira muitos comentários aviltantes sobre os “morcegos humanos” e reconhecia a vantagem que as asas poderiam lhe possibilitar agora. As asas, assim como os cascos e o pelo, costumavam fazer parte do domínio dos parentes.

 

— Lady Sombra da Lua — disse, mantendo a voz baixa e tranquila —, sou o Príncipe Lucivar Yaslana. Sirvo à Senhora. Gostaria de ajudá-la.

 

Ela não respondeu, embora o pânico em seus olhos diminuísse aos poucos.

 

Caminhou na direção da égua, cerrando os dentes quando o poder masculino que a rodeava se intensificou e depois esmoreceu.

 

— Calma, querida — disse, agachando-se junto a ela. — Calma.

 

O pânico voltou a crescer quando Lucivar tocou seu lombo.

 

Lucivar praguejava baixinho enquanto cortava as redes e as cordas. Haviam tentado quebrá-la, estilhaçar sua teia interior. A única diferença entre o que os desgraçados de Terreille haviam tendado fazer com ela e o que costumavam fazer com feiticeiras humanas era a violação física. Talvez por isso não tivessem tido sucesso antes de Jaenelle libertar a Negra. Não haviam tido a oportunidade de usar sua melhor arma.

 

— Pronto — disse Lucivar, atirando longe a última corda. — Vamos lá, querida. De pé. Com calma.

 

Passo a passo, conseguiu persuadi-la a sair das árvores para a clareira. Seu medo aumentava a cada passo, pois afastava-se daquela cova repleta de poder. Precisava levá-la para o acampamento antes que o medo concluísse o que aqueles filhos da puta tinham iniciado. Havia uma linha radial do Vento Rosa ali perto e Lucivar sabia que conseguiria guiá-la e escudá-la durante a curta viagem, mas como conseguiria convencê-la a confiar nele?

 

— Mistral vai ficar muito contente em vê-la — disse, descontraído.

 

*Mistral?* Ela virou a cabeça de repente. Lucivar conseguiu se desviar do chifre a tempo. *Ele está bem?*

 

— Está no acampamento com a Senhora. Se pegarmos o Vento Rosa, chegaremos lá antes do anoitecer.

 

A dor e o pesar invadiram seus pensamentos.

 

*Os que se foram precisam ser cantados para a terra ao crepúsculo.*

 

Lucivar reprimiu um calafrio. De repente, desejava com ardor estar de volta ao acampamento.

 

— Vamos, Senhora?

 

Todos haviam regressado ao acampamento, cansados e com uma dor profunda no coração.

 

Todos, exceto Lucivar.

 

Enquanto bebia a infusão fortificante que Karla havia lhe preparado, Saetan tentava não ficar preocupado. Lucivar sabia cuidar de si; era um guerreiro forte, com excelente condicionamento físico e muito bem treinado; conhecia seus limites, ainda mais depois de ter dado tanto de si ao longo do dia; não faria nenhuma bobagem como enfrentar sozinho um grupo de machos dos Sangue com Joias só por estar irritado com as mortes dos parentes.

 

E amanhã o sol se levantaria a leste.

 

— Lucivar está bem — disse Jaenelle, tranquila, enquanto se sentava ao lado de Saetan num dos troncos que os rapazes haviam arrastado até a fogueira para servir de assentos. Aconchegando à sua volta o cobertor aquecido por meio de um feitiço, deu um sorriso sombrio. — Em teoria, o Anel me permite sentir seus picos de fúria. Eu não tinha percebido que havia feito besteira em algum momento enquanto o estava criando até que Karla, Morghann, Grezande e Gabrielle resmungaram comigo porque eu estava abrindo um precedente perigoso, uma vez que todos os rapazes querem um Anel que funcione desse jeito. — Sua voz se transformou num ligeiro resmungo. — Sempre pensei que fosse apenas uma intuição extraordinária quando Lucivar aparecia, em todas as ocasiões em que eu me sentia mal-humorada. Com certeza ele nunca deu qualquer indicação de que fosse mais do que isso.

 

— Ele não é idiota, criança-feiticeira — respondeu Saetan, dando um gole na infusão para ocultar o sorriso.

 

— Há controvérsias. Mas por que ele precisava dizer aos outros?

 

Saetan compreendia o motivo da irritação das Rainhas. A base de qualquer corte oficial era formada por doze machos e uma Rainha. Pelo Anel de Honra a Rainha podia vigiar todas as variações na vida de um macho. Porém, por respeito à privacidade dos machos que as serviam e porque nenhuma mulher, no seu perfeito juízo, desejaria estar a par das correntes emocionais de tantos homens, em geral ajustavam a supervisão exercida de maneira a bloquear tudo, exceto sensações como o medo, a raiva e a dor — que revelavam que o portador do Anel precisava de ajuda.

 

Cada homem, porém, só precisava monitorar uma única Rainha.

 

Saetan teria de falar com Lucivar sobre os limites autoimpostos em relação àquele tipo de supervisão. Estava interessado em saber até onde iam os limites do seu filho.

 

— E por falar no chato que não é um idiota — disse Jaenelle, indicando duas silhuetas que se aproximavam do acampamento.

 

Mistral irrompeu selvagemente.

 

*Sombra da Lua! Sombra da Lua!*

 

Partiu a galope. Pelo menos, tentou.

 

Assim que Mistral começou a avançar, Gabrielle saltou do tronco onde estava sentada, estendeu o braço, fechou a mão como se tivesse pegado alguma coisa e deu um puxão para cima.

 

Mistral ficou suspenso no ar, com as pernas em grande agitação.

 

O braço de Gabrielle tremia com o esforço de sustentar aquele peso suspenso no ar, mesmo usando a Arte. Observando a garota, Saetan decidiu que teria de ter uma conversa com Chaosti assim que possível. Uma feiticeira capaz de fazer uma coisa daquelas depois de um exaustivo dia de curas era uma Senhora que precisava ser tratada com muito cuidado.

 

— Se tentar galopar nessa perna, ponho você para dormir — disse Gabrielle.

 

*É Sombra da Lua!*

 

— Nem que fosse a Rainha dos unicórnios ou a sua parceira — retrucou Gabrielle. — Não galope com a perna desse jeito!

 

— Por acaso — disse Jaenelle com um sorriso sarcástico —, ela é as duas coisas.

 

— Ora, ora, fogo do Inferno. — Gabrielle pousou Mistral no chão, mas não o largou.

 

— Gabrielle — disse Chaosti com o tom de voz insinuante que Saetan classificara como macho-apaziguador-da-fúria-feminina. — É a parceira dele. Ele estava preocupado. Eu não ia gostar de esperar se fosse você. Deixe-o ir.

 

Gabrielle fulminou-o com o olhar.

 

— Ele vai devagar — disse Chaosti. — Não vai, Mistral?

 

Mistral não estava em posição de recusar aliados, ainda que só possuíssem duas pernas.

 

*Vou devagar.*

 

Contra a vontade, Gabrielle o soltou.

 

Mistral arrastou-se em direção a Sombra da Lua, com a cabeça baixa como um rapazinho recém-repreendido ainda não muito longe dos olhos vigilantes do repreensor.

 

— Olha o que você fez — disse Khary. — O chifre dele murchou.

 

— Aposto que o seu chifre também murcha quando é repreendido — disse Karla com um sorrido maldoso.

 

Antes que Khary conseguisse responder, Jaenelle pousou a xícara e disse baixinho:

 

— Chegou a hora.

 

O sentimento de consternação foi geral quando Jaenelle caminhou até as árvores.

 

— Você sabe o que vai acontecer? — perguntou Lucivar a Saetan quando chegou ao acampamento e se sentou ao lado do pai.

 

Saetan balançou a cabeça. Como todos no acampamento, não conseguia tirar os olhos da égua.

 

— Mãe Noite, ela é linda.

 

— E também é Rainha Viúva Negra — disse Lucivar friamente, observando Mistral acompanhar sua Senhora. — Bem, se alguém vai ter que levar um coice por se intrometer, antes ele do que eu.

 

Saetan riu.

 

— A propósito, sua irmã tem um assunto que quer debater com você. — Sem obter qualquer resposta, olhou para o filho. — Lucivar?

 

Lucivar estava boquiaberto, os olhos fixos nas árvores à esquerda de Saetan — as árvores para onde Jaenelle havia se dirigido alguns minutos antes.

 

Ele se virou... e perdeu o fôlego.

 

Jaenelle usava um vestido comprido e esvoaçante de seda de aranha preta. Fios de teias corriam das mangas justas. A partir do decote, o vestido transformava-se numa teia aberta. Lascas de Joias Negras reluziam com fogo obscuro no final de cada filamento. Anéis com Joias Negras adornavam ambas as mãos. Em volta do pescoço, uma Joia Negra ao centro de uma teia feita de finos fios de ouro e prata.

 

Era um vestido cerimonioso feito para Jaenelle, a Feiticeira. Erótico. Romântico. Espantoso. Podia sentir o poder latente em cada fio daquele vestido. Foi nesse momento que percebeu quem o havia criado: os aracnianos. As Tecelãs de Sonhos.

 

Em silêncio, Jaenelle segurou o chifre de Kaetien e deslizou para campo aberto, a pequena cauda do vestido ondulando atrás de si.

 

Saetan desejou lembrá-la de que estava passando pelo período da lua e que, por isso, não deveria usar o corpo para canalizar o poder. Porém, recordou-se que, atrás da máscara humana, a Feiticeira tinha um pequeno chifre em espiral no centro da testa, por isso nada disse.

 

Jaenelle passou vários minutos andando em círculos, observando a terra como se à procura de um ponto específico.

 

Enfim satisfeita, voltou-se para norte. Erguendo o chifre de Kaetien para o céu, entoou um lamento. Baixou as mãos e, com o chifre, apontou para a terra, cantando outra vez. Depois, ergueu os braços e começou a cantar no Idioma Antigo.

 

Um cântico de feiticeira.

 

Saetan sentia-o nos ossos, sentia-o no sangue.

 

Uma teia fantasmagórica de energia formou-se sob os pés descalços de Jaenelle, alastrando-se com rapidez pela terra. Cada vez mais depressa.

 

O cântico virou um hino fúnebre cheio de pesar e enaltecimento. Sua voz tornou-se o vento, a água, a grama, as árvores. Circular. Espiralante.

 

Os corpos imóveis e brancos dos unicórnios mortos começaram a brilhar. Fascinado, Saetan imaginou se, vistos de cima, os corpos incandescentes não pareceriam estrelas que tinham vindo descansar num local sagrado.

 

Talvez fossem. Talvez tivessem vindo descansar.

 

O cântico voltou a mudar, tornando-se uma fusão dos dois anteriores. Cessando e principiando. Da terra e para a terra.

 

Os corpos dos unicórnios fundiram-se na terra.

 

Os parentes não iam para o Reino das Trevas. Agora sabia por quê. Assim como sabia por que os humanos jamais se estabeleceriam de maneira confortável nos Territórios dos parentes sem o seu consentimento. Assim como sabia o que havia criado aqueles bolsões de energia que evitara com todo cuidado.

 

Os parentes não deixavam seus Territórios, tornavam-se parte deles. A força que subsistira em cada um deles ficava ligada à terra.

 

A teia fantasmagórica de energia desvaneceu.

 

A voz de Jaenelle desvaneceu, bem como o que restava da luz dia.

 

Ninguém se mexeu. Ninguém disse nada.

 

Voltando a si, Saetan percebeu que o braço de Lucivar estava em volta de seus ombros.

 

— Droga — murmurou Lucivar, enxugando as lágrimas.

 

— O mito vivo — murmurou Saetan. — A realização dos sonhos. — Sentiu um nó na garganta. Fechou os olhos.

 

Sentiu que Lucivar o deixava e que tentava segurar alguma coisa.

 

Ao abrir os olhos, viu Lucivar amparando Jaenelle até o acampamento. Seu rosto estava contraído devido ao sofrimento e ao cansaço, mas os olhos azul-safira estavam tranquilos.

 

A assembleia reuniu-se à sua volta e levou-a para as árvores.

 

Conversando em voz baixa, os rapazes mexiam o guisado nas panelas, cortavam pão e queijo, reuniam tigelas e pratos para o jantar.

 

Para além da luz da fogueira, os unicórnios se acomodavam para passar a noite.

 

Khary e Aaron levaram tigelas de guisado e água para o local onde Ladvarian e Kaelas vigiavam os potros.

 

Quando as garotas regressaram, Jaenelle vestia calças compridas e um suéter grosso. Reclamou sem forças quando Lucivar a envolveu num cobertor com um feitiço de aquecimento e a sentou no tronco ao lado de Saetan, mas não resmungou em relação à comida que lhe ofereceu.

 

Conversavam em voz baixa enquanto comiam. Assuntos triviais e provocações amigáveis. Sem referências ao que haviam feito durante o dia ou ao que os aguardava no dia seguinte. Apesar do esforço, tinham coberto apenas uma pequena parte de Sceval e somente Jaenelle sabia quantos unicórnios habitavam o lugar.

 

Somente Jaenelle sabia quantos haviam sido cantados de volta à terra.

 

— Saetan? — chamou Jaenelle, com a cabeça encostada no ombro do pai.

 

Ele beijou sua testa.

 

— Criança-feiticeira? — Ela levou tanto tempo para responder que Saetan achou que havia caído no sono.

 

— Quando o Conselho das Trevas voltará a se reunir?

 

Lord Magstrom tentou se concentrar na peticionária que estava no círculo, mas a verdade é que suas queixas eram as mesmas das sete peticionárias anteriores, e ele duvidava que as vinte peticionárias que se seguiriam teriam algo diferente a apresentar ao Conselho das Trevas.

 

Ao tornar-se Terceiro Tribuno, julgara que suas opiniões pudessem ser levadas um pouco mais em conta. Esperava que sua posição ajudasse a debelar as constantes insinuações sussurradas sobre a família SaDiablo.

 

O fato de nenhuma das Rainhas dos Territórios fora da Pequena Terreille acreditarem na veracidade dessas insinuações deveria dito alguma coisa ao Conselho. O fato de os pareceres do Conselho das Trevas terem sido respeitados e merecido a confiança de todas as raças dos Sangue durante os anos em que o Senhor Supremo e Andulvar Yaslana serviram no Conselho deveria ter-lhes dito ainda mais — sobretudo porque isso já não correspondia mais à verdade.

 

Lord Jorval era agora Primeiro Tribuno, e a facilidade com que conseguia manipular as opiniões dos outros membros do Conselho era perturbadora.

 

E agora isto.

 

— Como posso povoar o território que me foi concedido quando meus homens são massacrados antes de conseguirem sequer montar acampamento? — perguntou a Rainha que apresentava a petição. — O Conselho precisa tomar providências!

 

— Os lugares selvagens são sempre perigosos, Senhora — respondeu Lord Jorval, tranquilo. — A Senhora foi avisada para tomar precauções adicionais.

 

— Precauções! — A Rainha estremeceu, indignada. — Você disse que esses animais, esses a quem chamam parentes, possuíam um pouco de magia.

 

— E é verdade.

 

— Mas não foi só um pouco de magia que usaram. Foi Arte!

 

— Não, não. Só as raças humanas são Sangue e só os Sangue são capazes de usar a Arte. — Lord Jorval lançou um olhar consternado para os membros do Conselho sentados de ambos os lados do grande hemiciclo. — Mas é possível, dado nossos parcos conhecimentos sobre esses seres, que não tenhamos plena consciência da extensão da magia que dominam. Talvez a única maneira de nossos Irmãos e Irmãs terreillianos salvaguardarem a terra que lhes foi concedida seja o envio de guerreiros, pelas Rainhas de Kaeleer, para aniquilar essas infestações.

 

E todas as Rainhas que enviassem guerreiros esperariam uma porcentagem maior dos rendimentos provenientes das terras conquistadas, pensava Magstrom com amargura. Estava prestes a se opor novamente aos outros membros do Conselho — lembrando-lhes que o Conselho das Trevas fora constituído para prevenir guerras, e não fomentá-las — quando uma voz de meia-noite invadiu o hemiciclo do Conselho e o impediu de prosseguir.

 

— Infestações? — Jaenelle Angelline caminhou a passos largos até o banco do Tribunal e parou imediatamente antes do círculo do peticionário, ladeada pelo Senhor Supremo e por Lucivar Yaslana. — Essas infestações de que fala, Lord Jorval, são parentes. São Sangue. Têm todo o direito de se defender, bem como à terra que lhes pertence, contra forças invasoras.

 

— Não estamos invadindo — retrucou a Rainha peticionária. — Entramos nos territórios para povoar a terra que não foi reclamada e que nos foi concedida pelo Conselho das Trevas.

 

— Não são terras por reclamar — disse Jaenelle, ríspida. — São Territórios dos parentes.

 

— Senhoras. — Lord Jorval teve de elevar o tom de voz para ser ouvido em meio ao burburinho dos membros do Conselho e das peticionárias. — Senhoras! — Quando o Conselho e as peticionárias se acalmaram, Lord Jorval sorriu para Jaenelle. — Lady Angelline, embora seja sempre um prazer revê-la, tenho de lhe pedir que não interrompa uma reunião do Conselho. Se há algum assunto que queira apresentar perante o Conselho, peço que aguarde até que sejam ouvidas todas as peticionárias que solicitaram previamente uma audiência.

 

— Se todas tiverem as mesmas queixas, posso poupar muito tempo ao Conselho — respondeu Jaenelle com frieza. — Os Territórios dos parentes não são terras por reclamar. Os Sangue as têm governado durante milhares de anos. Os Sangue ainda as governam.

 

— Embora me custe discordar — disse Lord Jorval, com delicadeza —, não há Sangue nesses “territórios dos parentes”. O Conselho estudou o assunto com a maior dedicação e concluiu que, embora esses animais possam ser considerados “primos mágicos”, o fato é que não são Sangue. Para se pertencer aos Sangue, é preciso ser humano. E este Conselho foi formado para tratar dos assuntos dos Sangue, dos direitos dos Sangue.

 

— E o que são os centauros? O que são os sátiros? Semi-humanos com metade dos direitos?

 

Ninguém respondeu.

 

— Compreendo — disse Jaenelle, com demasiada delicadeza.

 

Lord Magstrom sentiu a boca seca. Sentiu a língua enrugada. Ninguém mais se lembrava do que tinha acontecido da última vez que Jaenelle Angelline estivera diante do Conselho?

 

— Assim que os Sangue se estabelecerem nesses Territórios, tomarão conta dos parentes. Qualquer discordância poderá ser trazida ao Conselho pelos representantes humanos desses Territórios.

 

— Está dizendo que os parentes precisam de um representante humano antes que seus eventuais direitos sejam levados em consideração?

 

— Precisamente — respondeu Lord Jorval, sorridente.

 

— Nesse caso, eu serei a representante humana dos parentes.

 

Lord Magstrom teve a sensação de que uma armadilha havia sido acionada. Lord Jorval mantinha o sorriso, ainda parecia afável, mas Magstrom trabalhava com ele há tempo suficiente para reconhecer a crueldade sutil e profunda no homem.

 

— Infelizmente, isso não é possível — disse Lord Jorval. — As reivindicações desta Senhora podem estar em discussão — acenou com a cabeça para a Rainha peticionária —, mas você não tem nenhum direito a reivindicar coisa alguma. Não governa esses Territórios. Seus direitos não estão sendo infringidos. E uma vez que nem você nem os seus estão sendo afetados por esta questão, não têm nenhuma queixa justa a apresentar. Peço que deixem o hemiciclo do Conselho.

 

Lord Magstrom estremeceu perante o vazio nos olhos de Jaenelle. Suspirou de alívio quando a viu sair do hemiciclo do Conselho, seguida pelo Senhor Supremo e pelo Príncipe Yaslana.

 

— Agora, Senhora — disse Lord Jorval, com um sorriso cansado —, vamos ver o que podemos fazer em relação à sua legítima petição.

 

— Desgraçados — rosnou Lucivar enquanto caminhavam na direção da teia de desembarque.

 

Saetan passou o braço em volta dos ombros de Jaenelle. Não o preocupava a raiva explícita de Lucivar, e sim o distanciamento silencioso de Jaenelle.

 

— Não se aborreça com isso, Gata — prosseguiu Lucivar. — Vamos dar um jeito de driblar aqueles canalhas e manter os parentes protegidos.

 

— Não acho que exista uma maneira legítima de driblar o Conselho — disse Saetan, cauteloso.

 

— Não me diga que nunca quebrou a Lei? Nunca rejeitou uma decisão fazendo uso da força e da fúria?

 

Saetan cerrou os dentes. Na tentativa de explicar as divergências da família com o Conselho das Trevas, alguém contara a Lucivar por que o Conselho o tinha designado tutor de Jaenelle.

 

— Não, não foi isso que eu disse.

 

— Está dizendo que não é justificável lutar pelos parentes uma vez que são animais?

 

Saetan parou. Jaenelle prosseguiu pelo caminho de pedras, afastando-se um pouco deles.

 

— Não, também não foi isso que eu disse — respondeu Saetan, esforçando-se para manter o tom de voz baixo. — Precisamos encontrar uma resposta adequada às novas regras do Conselho ou então haverá uma guerra que irá dividir o Reino.

 

— E por isso sacrificaremos os Sangue que não são humanos, para salvar Kaeleer? — Com um sorriso amargo, Lucivar abriu as asas. — O que eu sou, Senhor Supremo? Segundo os critérios do Conselho sobre quem é e não é humano, o que eu sou?

 

Saetan recuou um passo. Poderia ser Andulvar ali. Andulvar é que havia estado ali todos esses anos. Quando a honra e a Lei já não estão do mesmo lado, como escolher, SaDiablo?

 

Saetan esfregou o rosto com as mãos. Ah, Hekatah, você tece habilmente os seus planos. Assim como antes.

 

— Encontraremos uma maneira legítima de proteger os parentes e suas terras.

 

— Você disse que não havia uma maneira legítima.

 

— Existe — disse Jaenelle suavemente, juntando-se aos dois. Apoiou-se em Saetan. — Existe.

 

Alarmado ao vê-la tão pálida, Saetan segurou-a junto a si, afagando seu cabelo enquanto a perscrutava delicadamente. Não apresentava qualquer problema físico à exceção do cansaço que o excesso de trabalho havia acarretado e a tensão emocional de contar os mortos entre os parentes.

 

— Criança-feiticeira?

 

Jaenelle estremeceu.

 

— Nunca desejei isso. Mas é a única maneira de ajudá-los.

 

— O que quer dizer, criança-feiticeira? — cantarolou Saetan.

 

Tremendo, ela afastou-se dele. Saetan se lembraria para sempre daquele olhar perturbado.

 

— Vou realizar a Oferenda às Trevas e constituir minha corte.

 

Banard estava sentado na sala de exposições particular nos fundos da sua loja, bebendo chá enquanto aguardava a chegada da Senhora.

 

Era um artesão talentoso, um artista que trabalhava com metais preciosos, pedras preciosas e semipreciosas e com as Joias dos Sangue. Um macho dos Sangue que não usava Joias, mas que as manuseava com tal sensibilidade e com um respeito tão profundo que o tornavam o preferido entre os Sangue que usavam Joias em Amdarh. Sempre dizia: “Manuseio uma Joia como se se tratasse do coração de alguém”, e estava sendo sincero.

 

Entre seus clientes estavam a Rainha de Amdarh e seu Consorte, o Príncipe Mephis SaDiablo, o Príncipe Lucivar Yaslana, o Senhor Supremo do Inferno e Lady Jaenelle Angelline, sua favorita.

 

E era por causa dela que ainda estava ali sentado, muito depois do fim do expediente. Como dissera à esposa, quando a Senhora pedia um favor, era como se a servisse, não era?

 

Por pouco não entornou o chá quando levantou os olhos dos seus devaneios e viu uma silhueta indistinta na soleira da porta. A loja era guardada por poderosos feitiços de defesa e proteção — oferecidos pelos clientes de Joias mais escuras. Ninguém deveria ser capaz de chegar até ali sem que os alarmes soassem.

 

— Aceite as minhas desculpas, Barnard — disse uma voz feminina, de meia-noite. — Não quis assustá-lo.

 

— De modo algum, Senhora — mentiu Barnard aumentando a luz das velas em volta da mesa-mostruário, forrada de veludo. — Estava distraído. — Virou-se, sorrindo, mas, ao ver o que ela segurava nas mãos, começou a suar frio.

 

— Gostaria muito que fizesse uma coisa para mim, se puder — disse Jaenelle, entrando na pequena sala.

 

Barnard engoliu em seco. Ela havia mudado desde a última vez que a vira, alguns meses antes. Era algo além do luto de Viúva que usava. Era como se o fogo que sempre tinha ardido no seu interior estivesse agora mais próximo da superfície, iluminando e ofuscando. Podia sentir o poder sombrio rodopiando em volta de Jaenelle — força bruta compensada por uma fragilidade aflitiva.

 

— Isso é o que eu gostaria que fizesse — disse Jaenelle.

 

Na mesa-mostruário surgiu um pedaço de papel.

 

Barnard estudou o esboço durante alguns minutos, pensando no que poderia dizer, pensando em como recusar educadamente, imaginando por que ela, entre todas as pessoas, tinha aquilo que segurava nas mãos.

 

Como se compreendesse o silêncio e a relutância, Jaenelle acariciou o chifre em espiral.

 

— Ele se chamava Kaetien — disse, ternamente. — Era o Príncipe dos Senhores da Guerra dos unicórnios. Foi esquartejado há alguns dias, assim como centenas de outros membros do seu povo, quando os humanos foram reclamar Sceval como seu território. — Seus olhos encheram-se de lágrimas. — Eu o conhecia desde pequena. Foi o primeiro amigo que fiz em Kaeleer e um dos melhores. Ofertou-me o seu chifre. Em sua memória. Como advertência.

 

Barnard voltou a examinar o esboço.

 

— Permite-me fazer uma ou duas sugestões, Senhora?

 

— Foi por isso que vim aqui — disse Jaenelle, com um sorriso vacilante.

 

Pegando um lápis fino de carvão, Barnard fez alterações no esboço. Passada uma hora de aperfeiçoamentos, estavam ambos satisfeitos com o resultado.

 

Novamente sozinho, Barnard preparou outra xícara de chá e sentou-se por alguns instantes, estudando o esboço e olhando espantado para o chifre que ainda não se sentia preparado para tocar.

 

O que ela queria que ele fizesse seria um tributo adequado a um amigo querido. E um instrumento apropriado a uma Rainha daquele calibre.

 

Saetan andava de um lado para outro na sala de estar que Draca havia reservado para eles na Fortaleza. Reservado? Onde os havia “confinado” aproximava-se mais da verdade.

 

Lucivar levantou-se da cadeira e espreguiçou-se.

 

— Tenho que aguentar quando você anda de um lado para outro, sem me mostrar incomodado, mas quando sou eu você me expulsa para o jardim. Por quê? — perguntou com frieza.

 

— Porque sou mais velho e de uma categoria superior — resmungou Saetan. Deu meia-volta e continuou andando até o outro lado da sala.

 

Do crepúsculo à alvorada. Era essa a duração da Oferenda às Trevas. Não importava se a pessoa saía dela com uma Joia Branca ou uma Negra, era esse o tempo que levava. Do crepúsculo à alvorada.

 

Jaenelle havia iniciado sua Oferenda três dias atrás.

 

Saetan permanecera calmo quando a primeira madrugada se arrastou até o início da tarde, pois ainda se lembrava de como ficara fragilizado após realizar a Oferenda, de como passara horas na sala do altar do Santuário, enquanto se adaptava à sensação das Joias Negras.

 

Entretanto, quando o sol começara-se a se pôr, dirigira-se ao Altar das Trevas na Fortaleza para saber o que havia acontecido. Draca proibira sua entrada, lembrando-o de maneira contundente das consequências de se interromper uma Oferenda. Por isso, havia voltado à sala de estar para aguardar.

 

Quando a meia-noite veio e se foi, tentara ir outra vez ao Altar das Trevas, deparando-se com todos os corredores bloqueados por um escudo impenetrável até para a Negra. Desesperado, enviara uma mensagem urgente a Cassandra, na esperança de que ela conseguisse vencer a resistência de Draca. Mas Cassandra não respondera, e ele amaldiçoara esta evidência do seu crescente afastamento.

 

Estava cansada. Saetan compreendia. Ele próprio descendia de uma raça de longevidade prolongada e já transcorrera várias vidas além do normal. Cassandra vivera centenas e vira seus antepassados entrarem em declínio, enfraquecerem e, por fim, serem absorvidos por raças mais jovens e emergentes. Enquanto havia dominado, fora respeitada e venerada.

 

Porém, Jaenelle era amada.

 

Por isso, Cassandra não havia respondido. Mas Tersa respondeu.

 

— Há alguma coisa errada — resmungou Saetan ao passar pelo sofá e pela mesa baixa sobre a qual Tersa se curvava enquanto ordenava as peças de um quebra-cabeça, formando figuras que só faziam apenas para ela. — A Oferenda não leva tanto tempo.

 

Tersa encaixou uma peça do quebra-cabeça, afastando o cabelo preto embaraçado do rosto.

 

— Leva o tempo que levar.

 

— A Oferenda é realizada entre o crepúsculo e a alvorada.

 

Tersa inclinou a cabeça, refletindo.

 

— Isso foi verdadeiro para o Príncipe das Trevas. E quanto à Rainha? — Deu de ombros.

 

Saetan sentiu um arrepio gelado. Como seria Jaenelle depois de se tornar Rainha das Trevas?

 

Agachou-se diante de Tersa, a mesa entre os dois. Ela lhe deu tanta atenção quanto deu à aproximação silenciosa de Lucivar.

 

— Tersa — disse Saetan, calmamente, tentando chamar sua atenção. — Você sabe de alguma coisa, consegue ver algo?

 

Os olhos de Tersa ficaram vidrados.

 

— Uma voz nas Trevas. Um uivo, repleto de alegria e sofrimento, raiva e celebração. Está chegando o momento em que todas as dívidas serão pagas. — Seus olhos desanuviaram-se. — Contenha o seu receio, Senhor Supremo — disse, com certa rispidez. — Neste momento, isso será mais prejudicial para ela do que qualquer outra coisa. Contenha-o ou irá perdê-la.

 

Saetan envolveu o pulso de Tersa com a mão.

 

— Não tenho receio dela, mas receio por ela.

 

Tersa balançou a cabeça.

 

— Ela estará cansada demais para perceber a diferença. Perceberá unicamente o medo. Escolha, Senhor Supremo, e viva com sua escolha. — Olhou para a porta fechada. — Ela está chegando.

 

Saetan tentou se erguer às pressas e estremeceu. Mais uma vez, forçara demais a perna. Puxando as mangas da túnica e ajeitando o cabelo, desejou, frivolamente, ter tomado banho e vestido roupas limpas. Desejou também, frivolamente, que o coração se acalmasse.

 

Foi então que a porta se abriu e Jaenelle apareceu.

 

Nos últimos segundos de pensamento racional, a mente de Saetan registrou a hesitação da garota, a incerteza. Registrou também a quantidade de Joias que usava.

 

Lorn havia lhe dado treze Joias Negras brutas. Uma delas tinha tamanho suficiente para ser transformada num pingente e num anel, e ainda sobrariam lascas menores que poderiam ter vários usos. Segundo suas contas, ela devia ter levado seis dessas treze Joias para a cerimônia. Seis Joias Negras que, de alguma forma, tinham sido transformadas em algo mais do que Negro.

 

Em Ébano.

 

Não era de admirar que tivesse demorado tanto para proceder à descida ao seu poder absoluto. Ele sequer conseguia estimar o poder que teria agora. Desde o dia em que a conhecera sabia que chegaria a este ponto. Ela agora caminhava por estradas que os outros sequer conseguiriam imaginar.

 

O que isso lhe provocaria?

 

A escolha de Saetan.

 

O pensamento o abalou pela clareza. Deu a ele liberdade para agir.

 

Avançando, ele ofereceu a mão direita.

 

Assustada, Jaenelle entrou na sala, hesitou por um instante e lhe deu a mão.

 

Puxou-a para seus braços, aninhando o rosto no pescoço de Jaenelle.

 

— Estive tão preocupado com você — resmungou baixinho.

 

Jaenelle afagou suas costas.

 

— Por quê? — Parecia verdadeiramente perplexa. — Você também realizou a Oferenda. Sabe...

 

— Normalmente, não demora três dias!

 

— Três dias! — Deu um saltou para trás, tropeçando em Lucivar. — Três dias?

 

— Temos de seguir o Protocolo daqui para a frente? — perguntou Lucivar.

 

— Não seja tolo — retrucou Jaenelle.

 

Com um sorriso de orelha a orelha, Lucivar passou o braço esquerdo em volta de Jaenelle, segurando-a com firmeza junto ao seu peito.

 

— Nesse caso, proponho mergulhá-la na fonte mais próxima.

 

— Você não pode fazer isso! — protestou Jaenelle, contorcendo-se.

 

— Por que não? — Lucivar parecia interessado.

 

A razão que ela apresentou foi criativa mas anatomicamente impossível.

 

Uma vez que o riso não seria uma atitude diplomática, ainda que motivado pelo alívio de perceber que o fato de usar Joias Ébano não a havia modificado, Saetan cerrou os dentes e permaneceu em silêncio.

 

Tersa, porém, despertou e juntou-se a eles. Balançando a cabeça, deu uma cotovelada em Jaenelle.

 

— Agora não adianta se lamentar. Você aceitou as responsabilidades de uma Rainha e parte dos seus deveres é cuidar dos machos que lhe pertencem.

 

— Tudo bem — resmungou Jaenelle. — Quando posso dar uns socos neles?

 

Tersa fez um som de impaciência.

 

— São machos. Estão autorizados a importunar e mimar. — Depois sorriu e afagou o rosto de Jaenelle. — Os Príncipes dos Senhores da Guerra, em particular, precisam de contato físico com a Rainha.

 

— Oh — exclamou Jaenelle, acidamente. — Bem, então tudo bem.

 

Tersa estendeu-se no sofá.

 

— Muito bem, gatinha rabugenta, você tem uma opção — disse Lucivar.

 

— Não uma das suas — lamentou-se Jaenelle, caindo contra Lucivar.

 

— Alguma dessas opções inclui comer e dormir? — perguntou Saetan.

 

— E um banho? — acrescentou Jaenelle, franzindo o nariz.

 

— Uma delas, sim — disse Lucivar, soltando-a.

 

— Então não quero saber qual é a outra — Jaenelle massageou as costas. — Essa fivela do seu cinto incomoda demais.

 

— Assim como você.

 

Saetan massageou as têmporas.

 

— Chega, filhos.

 

Surpreendentemente, ambos obedeceram. Olhos dourados e azul-safira olharam para ele por um momento antes de deixarem a sala, abraçados pela cintura.

 

— Você se saiu bem, Saetan — disse Tersa, baixinho.

 

Pegando um cobertor que estava largado numa cadeira, Saetan colocou-o em volta de Tersa e ajeitou seu cabelo com as mãos.

 

— Tive ajuda — respondeu, e riu suavemente quando Tersa bateu na sua mão. — Os machos estão autorizados a importunar e mimar, lembra?

 

— Não sou Rainha.

 

Saetan vigiou-a até adormecer.

 

— Não, mas é uma Senhora muito dotada e extraordinária.

 

Convencendo-se de que não estava nervoso, apesar do coração aos pulos e das palmas das mãos suadas, Saetan entrou na grande câmara de pedra que Draca indicara como sendo o local onde os convidados aguardariam até serem convocados para o Trono das Trevas. Exceto pelos pilares de madeira escura que comportavam as velas e por algumas mesas compridas encostadas às paredes e sobre as quais havia bebidas variadas, a sala não continha qualquer outra mobília.

 

O que na verdade era bom, uma vez que abrir caminho por assentos concebidos para humanos faria com que os parentes ficassem ainda mais nervosos do que já estavam, e algumas espécies — como os pequenos dragões das Ilhas do Fogo — precisavam de um espaço considerável. Saetan reparou, com crescente inquietação, que nenhum parente, e não somente os que pouco ou nenhum contato haviam tido com os humanos, estava se misturando com os Sangue humanos, embora os humanos ali presentes fossem em sua maioria amigos — ou pelo menos eram antes das carnificinas. O fato de estarem todos juntos naquele espaço limitado e exíguo dizia muito da devoção que tinham por Jaenelle.

 

Essa era uma preocupação. Ebon Rih era o Território da Fortaleza em Kaeleer — atualmente, o Território de Jaenelle. Reinar sobre Ebon Rih não ajudaria os parentes nem afastaria os invasores humanos dos seus Territórios. Tradicionalmente, a Rainha de Ebon Askavi exercia influência considerável em todos os Reinos, mas isso, além da cautela inata no seio dos Sangue, bastaria para não hostilizarem um poder obscuro e amadurecido? Será que algum dos idiotas do Conselho das Trevas de Kaeleer saberia o que estavam desafiando?

 

Outra preocupação era em relação à composição da corte de Jaenelle. Saetan sempre partira do princípio de que a assembleia e os amigos homens de Jaenelle formariam seu Primeiro Círculo. Não era fora do comum que Rainhas servissem na corte de uma Rainha mais forte, uma vez que as Rainhas dos Distritos serviam às Rainhas das Províncias, que, por sua vez, serviam à Rainha do Território. Era essa teia de poder que mantinha a união de um Território.

 

Porém, as Rainhas que governavam um Território não serviam em outras cortes. Representavam a lei decisória da sua terra, não se submetendo a ninguém.

 

Na última semana, enquanto Jaenelle descansava após a cerimônia da Oferenda, sua assembleia, composta apenas por Rainhas, também realizara a Oferenda. E todas, sem exceção, foram escolhidas como as novas Rainhas de seus Territórios — suas antecessoras cederam o lugar e aceitaram posições nas cortes recém-criadas.

 

Da mesma forma, os rapazes chegaram ao poder. Chaosti era agora o Príncipe dos Senhores da Guerra dos Dea al Mon e Consorte de Gabrielle. Khardeen, Consorte de Morghann, era o Senhor da Guerra reinante em Maghre, sua terra natal. Depois de aceitar o anel de Consorte de Kalush, Aaron tornara-se o Príncipe dos Senhores da Guerra de Tajrana, a capital de Nharkhava. Sceron e Elan eram os Príncipe dos Senhores da Guerra de Centauran e de Tigrelan, servindo nos Primeiros Círculos das cortes de Astar e de Grezande. Jonah servia agora como Primeiro Acompanhante de sua irmã Zylona e Morton, como Primeiro Acompanhante de sua prima Karla.

 

Ao ouvir vozes femininas vindo do corredor atrás de si, Saetan dirigiu-se à mesa onde Lucivar, Aaron, Khary e Chaosti estavam reunidos. Geoffrey e Andulvar cumprimentaram-no com um aceno de cabeça, mas não interromperam a conversa com Mephis e Prothvar. Sceron, Elan, Morton e Jonah dialogavam com um minúsculo Príncipe dos Senhores da Guerra que Saetan nunca vira. O Consorte ou Primeiro Acompanhante da pequena Katrine?

 

— O alfaiate fez um excelente trabalho — disse Saetan a Lucivar, aceitando a taça de yarbarah aquecido.

 

— Ahã. — A resposta parecia azeda, mas, passado um momento, Lucivar balançou a cabeça e riu. Pôs a mão sobre o peito. — Fui um desafio digno para o bom Lord Aldric. Como ele mesmo alegremente me disse, enquanto espetava alfinetes por todos os lados, nunca tinha desenhado um traje formal que comportasse asas.

 

— Bem, agora que tem as suas medidas... — começou Saetan.

 

— Ah, não. — Lucivar balançou a cabeça, assumindo uma expressão que Saetan reconheceu de imediato dos seus próprios contatos com o bom Lord Aldric. — “Cada tecido tem a sua própria personalidade, Príncipe Yaslana” — disse Lucivar, imitando a voz pesarosa do alfaiate. — “Precisamos saber como cada um deles flui em volta desses prodigiosos acréscimos ao seu físico.”

 

Khary, Aaron e Chaosti tossiram em uníssono.

 

— Talvez ele queira apenas afagar suas asas — disse Karla, juntando-se aos dois. Deslizou a mão pelo ombro de Saetan, encostando-se às suas costas, com o queixo pontiagudo apoiado no outro ombro. — São impressionantes. É verdade que o tamanho do... — os olhos azuis como gelo saltaram para a virilha de Lucivar — é diretamente proporcional ao tamanho das asas?

 

Lucivar fez um gesto obsceno.

 

— Sensível, não é? Pena que não podemos sentir. Ah, está bem. Beijos.

 

— Vá se catar, Karla — disse Lucivar, cerrando os dentes e sorrindo.

 

Karla riu.

 

— É tão bom estar de novo entre os mal-humorados. Há poucos dias disse “beijos!” e todos tentaram me beijar. — Deu de ombros de forma dramática, em seguida despenteou o cabelo de Saetan, ignorando alegremente o rosnado dele. — Sabe de uma coisa, tio Saetan?

 

— O que foi? — respondeu Saetan com bastante cuidado, tomando um gole de yarbarah.

 

O sorriso perverso de Karla apareceu de repente.

 

— Uma vez que você é o Príncipe dos Senhores da Guerra de Dhemlan e governa esse Território, e sendo eu a Rainha de Glácia, agora, sempre que Dhemlan tiver assuntos a tratar com Glácia, é comigo que terá de falar.

 

Saetan engasgou.

 

— É um pensamento aterrador, não é? Vai ter de enfrentar tudo o que me ensinou.

 

— Mãe Noite — arfou Saetan quando Karla arrancou o copo das suas mãos, dando-lhe um soco nas costas.

 

— O que você fez com tio Saetan? — perguntou Morghann, aceitando um copo de vinho de Khary.

 

— Apenas lembrei a ele que agora somos nós as Rainhas com quem terá de tratar.

 

— Que injustiça, Karla — disse Kalush, juntando-se ao grupo. — Devia ter ido com calma em vez de pegá-lo de surpresa.

 

— Como assim? — Karla fez uma careta. — Além disso, ele já sabia disso. Ou não sabia?

 

Saetan recuperou o copo e esvaziou-o para não precisar responder. Depois de todas as horas que havia passado com Geoffrey, Andulvar e Mephis debatendo as implicações da chegada ao poder daquele grupo específico de Rainhas, nenhum deles considerara o óbvio — que ele teria de lidar com elas na qualidade de Rainhas de Território.

 

Um gongo ressoou em toda a Fortaleza. Uma vez. Duas vezes. Três vezes. Depois de uma pausa, ressoou uma quarta vez.

 

Quatro vezes pelos quatro lados do triângulo dos Sangue, sendo o quarto lado aquele no interior dos outros três. Como os três machos — Administrador, Mestre da Guarda e Consorte — que formam um triângulo poderoso e íntimo em volta da Rainha.

 

Ao fundo da sala, abriram-se enormes portas duplas, revelando um vazio sombrio.

 

Sem dar atenção ao burburinho hesitante à sua volta, Saetan pousou o copo, passou a mão pelo cabelo e ajeitou as roupas novas. Como o Protocolo ditava que os cortejos começassem pelas Joias mais claras, passando depois para as mais escuras, primeiro todos os machos, depois as fêmeas, Saetan seria o último da fila masculina.

 

Por isso não se deu conta de que ninguém havia se movido e que todos olhavam para ele, até Lucivar lhe dar uma cotovelada.

 

— O Protocolo estipula... — começou.

 

— Que se dane o Protocolo — respondeu Karla laconicamente. — É você que vai primeiro.

 

Quando todos assentiram com a cabeça, ele caminhou devagar em direção às portas duplas. Lucivar e Andulvar seguiram a seu lado. Mephis, Geoffrey e Prothvar foram atrás.

 

— O que há lá dentro? — perguntou Lucivar em voz baixa.

 

— Não sei — respondeu Saetan. — Nunca estive nesta parte da Fortaleza. — Olhou de relance para Geoffrey por cima do ombro.

 

Assim que chegaram às portas, detiveram-se. As luzes da sala atrás deles revelavam os primeiros amplos degraus da escada que descia.

 

Se tentarmos descer no escuro, vamos acabar quebrando o pescoço.

 

Mal havia formulado o pensamento e surgiram pequenas centelhas de luz na pedra escura, cada vez mais incandescentes.

 

Como turbilhões de estrelas, pensou Saetan, recobrando o fôlego. Como o poema que Geoffrey citara anos atrás, sobre os nobres dragões que haviam criado os Sangue. Descem em espiral até o ébano, capturando as estrelas com as caudas.

 

Ébano fora, antigamente, a expressão poética para Trevas.

 

Saetan congelou, o pé suspenso sobre o primeiro degrau.

 

Estaria imóvel?

 

— Está acontecendo alguma coisa? — sussurrou Lucivar.

 

Saetan balançou a cabeça e começou a descer devagar, grato pela enorme força eyriena a seu lado.

 

Quando chegou ao último degrau, um segundo conjunto de portas duplas se abriu de rompante. A câmara, escura como breu, iluminou-se aos poucos, a escuridão cedendo lugar à aurora. A luz espalhou-se gradualmente do lado da câmara onde estavam até o lado oposto. Contudo, Saetan reparou ao avançar, não iluminava o teto. Elevando-se a três vezes a sua altura, a luz cedia lugar ao crepúsculo, que, por sua vez, sucumbia novamente à escuridão.

 

A parede ao fundo começou a se iluminar dos dois lados. Um baixo-relevo detalhado a preenchia até onde se podia ver. Uma paisagem onírica, uma paisagem noturna, figuras que se erguiam e que se dissolviam em outras. Silhuetas de parentes. Silhuetas humanas. Que se confundiam. Que se entrelaçavam. Ferinas e belas. Odiosas e amáveis.

 

Por fim, a luz chegou ao centro da parede e ao Trono das Trevas. Três amplos degraus percorriam o estrado em três lados. Nele havia uma simples cadeira de madeira escura de espaldar alto e cinzelado. A evidente simplicidade era indicadora de que o poder que aqui governava não precisava de ornamentos nem ostentações — ainda mais sendo protegida do lado direito por uma enorme cabeça de dragão que saía da pedra.

 

— Mãe Noite — sussurrou Andulvar. — Ela criou uma escultura da cabeça de Lorn.

 

— Fogo do Inferno — murmurou Lucivar. — Onde ela conseguiu tantas Joias brutas para compor as escamas?

 

Tremendo, Saetan balançou a cabeça, incapaz de dizer uma palavra. De onde estava, talvez Andulvar não conseguisse ver a escuridão além do baixo-relevo iluminado, uma escuridão que sugeria outra ampla câmara além daquela onde estavam. Talvez não conseguisse ver o fogo iridescente nas escamas do dragão. Talvez tivesse esquecido o som daquela voz antiga e poderosa. Talvez...

 

Lentamente, as pálpebras se abriram. Olhos de meia-noite deixaram todos petrificados.

 

Geoffrey agarrou o braço de Saetan, apertando os dedos com força.

 

— Mãe Noite, Saetan — disse Geoffrey, a respiração irregular. — A Fortaleza é o covil dele. Esteve aqui o tempo todo.

 

Não esperava que Lorn fosse tão grande. Se o corpo fosse proporcional à cabeça...

 

Escamas de dragão. As Joias eram escamas de dragão transformadas, de alguma forma, em pedras duras e translúcidas. Teriam existido dragões das cores de todas as Joias ou seriam todos daquele tom dourado-prateado iridescente, a cor das Joias variando de modo a corresponder à força do destinatário?

 

Saetan tocou cuidadosamente a Joia Negra que pendia do seu pescoço. A Vermelha de Direito por Progenitura e a Negra tinham sido Joias brutas. Haveria duas escamas faltando em algum lugar daquele enorme corpo — que devia se estender pela câmara adjacente — que corresponderiam às suas Joias brutas?

 

Compreendeu então por que havia detectado um vestígio de masculinidade nas Joias brutas que tinham sido atribuídas a Jaenelle.

 

Lorn. O grande Príncipe dos Dragões. O Guardião da Fortaleza.

 

Precisando pensar em outra coisa que não o poder que aquele corpo antiquíssimo deveria conter, Saetan virou-se para Geoffrey.

 

— A Rainha dele. Qual era o nome da Rainha dele?

 

— Draca — disse uma voz sibilante vindo de trás.

 

Viraram-se e olharam estupefatos para a Senescal da Fortaleza.

 

Seus lábios formaram um ligeiríssimo sorriso.

 

— Chamava-sse Draca.

 

Olhando-a nos olhos, Saetan perguntou-se qual teria sido o feitiço imperceptível que fora lançado, permitindo-lhe ver agora o que deveria ter adivinhado há muito tempo. Sua longevidade, sua força, a inquietação que tantos sentiam na sua presença. O que o levou a pensar em outra coisa.

 

— Jaenelle sabe?

 

Draca emitiu um som que poderia ser uma gargalhada.

 

— Ssempre ssoube, Ssenhor Ssupremo.

 

Saetan fez uma careta e depois se rendeu tão graciosamente quanto pôde. Mesmo que tivesse se lembrado de perguntar, duvidava que ela respondesse. Jaenelle era muito boa em guardar segredos.

 

— São seus familiares? — perguntou Lucivar, indicando os dragões do Fogo que olhavam Lorn fixamente.

 

— Vocêss todoss ssão nossoss familiaress — respondeu Draca, olhando para a Joia Cinza-Ébano de Lucivar. — Nóss criámoss oss Ssangue. Todoss oss Ssangue. Logo, ssob a ssuperfície, todoss vocêss ssão dragõess.

 

Saetan olhou de relance para os parentes que estavam por perto.

 

— Vocês, é claro, já sabiam. — Vislumbrou um ar divertido nos olhos de Draca.

 

— Não ssou eu quem diz, Ssenhor Ssupremo. É Jaenelle. — Draca olhou para além deles, para o Trono das Trevas.

 

Eles se viraram, todos juntos.

 

Usando o vestido de teias de aranha e as Joias Ébano, Jaenelle estava serenamente sentada na cadeira de madeira escura. Seu longo cabelo louro estava penteado para trás, revelando, por fim, a beleza ímpar do seu rosto.

 

— Chegou o momento de aceitar meus deveres como Rainha de Ebon Askavi — disse Jaenelle. Não falava num tom de voz alto, porém toda a câmara a ouvia. — Chegou o momento de escolher minha corte.

 

Uma tensão ansiosa tomou conta da sala.

 

Saetan concentrou-se em respirar devagar e regularmente. Passara dias dizendo a si mesmo que o serviço nas cortes era para os jovens e vigorosos, que sua intenção nunca fora servir formalmente, que o serviço tácito que prestava seria suficiente, que já passara pela experiência de servir na Corte das Trevas em Ebon Askavi quando fora Consorte de Cassandra.

 

Mas, na verdade, não passara por essa experiência, porque, de uma forma inexprimível, aquela não fora realmente a Corte das Trevas. Não como esta iria ser.

 

E, de repente, compreendeu o motivo do afastamento de Cassandra.

 

Era por esta corte que Saetan aguardara. Era esta a corte pela qual ansiara. Queria servir a filha da sua alma, que chegara, por fim, ao seu poder obscuro e glorioso.

 

Feiticeira. O mito vivo. A realização dos sonhos.

 

Este fora o seu sonho.

 

Bem como o de Lucivar, percebeu, ao ver o fogo nos olhos do filho. Sim, Lucivar teria ansiado por uma Rainha que correspondesse à sua força.

 

A voz de Jaenelle trouxe-o de volta à realidade.

 

— Príncipe Chaosti, aceita servir no Primeiro Círculo?

 

Com graciosidade, Chaosti baixou um joelho, com a mão fechada sobre o coração.

 

— Sim, aceito.

 

Saetan franziu a sobrancelha. Como Chaosti poderia servir no Primeiro Círculo de Jaenelle se já tinha aceitado prestar serviço no Primeiro Círculo de Gabrielle?

 

— Príncipe Kaelas, aceita servir no Primeiro Círculo?

 

*Sim, aceito.*

 

Ficou cada vez mais perplexo à medida que Jaenelle chamava nome após nome. Mephis, Prothvar, Aaron, Khardeen, Sceron, Jonah, Morton, Elan. Ladvarian, Mistral, Fumaça, Bailarino do Sol.

 

A essa altura, ele, Andulvar e Lucivar eram os únicos machos em pé, e todo o seu ser aguardava as palavras que se seguiriam.

 

— Lady Karla, aceita servir no Primeiro Círculo?

 

— Sim, aceito.

 

O choque espalhou-se por Saetan, prontamente seguido pelo sofrimento, um sofrimento tão intenso que pensou que não conseguiria sobreviver. Ela não o havia perdoado. Pelo menos, não totalmente.

 

— Lady Sombra da Lua, aceita servir no Primeiro Círculo?

 

*Sim, aceito.*

 

Engoliu em seco. Não podia reagir, não podia deixar que os outros o vissem sofrer. Entretanto, se Jaenelle permitia que Mephis e Prothvar lhe servissem, por que não Andulvar? Por que não Lucivar, que já lhe servia?

 

Quase não ouviu os outros nomes sendo chamados. Gabrielle, Morghann, Kalush, Grezande, Sabrina, Zylona, Katrine, Astar, Cinza. Ininterruptamente, até todas as feiticeiras terem aceitado um lugar na corte.

 

Draca e Geoffrey não podiam servir formalmente uma vez que serviam à própria Fortaleza. Se algum conforto havia nesse fato, era um conforto muito amargo.

 

Podia sentir Lucivar tremendo a seu lado.

 

Depois de um momento de silêncio, Jaenelle ergueu-se e desceu os três degraus. Semicerrou os olhos ao fixar Saetan. Ele sentiu a exasperação da filha quando ela roçou a primeira de suas barreiras interiores.

 

Jaenelle puxou a manga esquerda do vestido e fez um pequeno corte no pulso.

 

O sangue brotou e escorreu.

 

— Príncipe Lucivar Yaslana, aceita servir como Primeiro Acompanhante e Príncipe dos Senhores da Guerra de Ebon Rih?

 

Lucivar olhou para ela, atônito, durante poucos segundos, e depois se aproximou devagar.

 

— Sim, aceito. — Ajoelhou-se, segurou a mão esquerda de Jaenelle com a mão direita e pôs a boca sobre a ferida.

 

Rendição absoluta. Rendição eterna. Ao aceitar o sangue de Jaenelle, Lucivar oferecia todos os aspectos do seu ser para todo o sempre. Jaenelle iria dominá-lo, corpo e alma, mente e Joias.

 

Não demorou muito — foi uma eternidade — e Lucivar retirou a boca, ergueu-se e deu um passo para o lado, parecendo aturdido.

 

Não era de surpreender, pensou Saetan. Do local onde estava, podia sentir o calor, a força que corria naquelas veias.

 

— Príncipe Andulvar Yaslana, aceita servir como meu Mestre da Guarda?

 

— Sim, aceito — respondeu Andulvar, aproximando-se dela e ajoelhando-se para aceitar o fluido vital.

 

Quando Andulvar deu um passo para o lado, Jaenelle olhou para Saetan.

 

— Príncipe Saetan Daemon SaDiablo, aceita servir como Administrador da Corte das Trevas?

 

Saetan aproximou-se bem devagar, procurando nos olhos da garota alguma pista que indicasse a resposta que verdadeiramente pretendia receber. Como não podia colocar a questão em voz alta, tocou sua mente, hesitante.

 

*Tem certeza?*

 

*É claro que tenho certeza*, respondeu, ríspida. *Há momentos em que você é um idiota, Saetan. Só esperei até agora para que os três soubessem naquilo em que estariam se metendo antes de aceitar.*

 

*Nesse caso...* Caiu de joelhos.

 

— Sim, aceito.

 

Imediatamente antes de pousar a boca sobre a ferida, imediatamente antes de a língua experimentar o sabor do sangue na sua força amadurecida, Jaenelle acrescentou:

 

*Além disso, quem estaria disposto a arbitrar disputas?*

 

Com um olhar contundente, Saetan aceitou o sangue. Céu noturno, terra profunda, o cântico das marés, a escuridão protetora de um corpo feminino. E fogo. Saetan saboreou tudo isto, sentindo-se inundado, cauterizado, marcado como dela.

 

Retirou a boca e passou um dedo pela ferida, usando Arte medicinal para estancar o sangue.

 

*Isto precisa ser tratado adequadamente.*

 

*Em breve.* Jaenelle retirou a mão e voltou ao Trono das Trevas.

 

Não, Saetan decidiu enquanto se punha de pé, ouvindo os outros se levantarem, aquela não era uma ocasião propícia para uma amostra da teimosia masculina. Além disso, a cerimônia estava prestes a terminar.

 

*Percebe alguma coisa estranha nesta corte?*, perguntou Lucivar à medida que a tensão voltava a se alastrar pela sala.

 

Surpreendido pela pergunta, Saetan observou os rostos solenes e decididos.

 

*Estranha? Não. São os mesmos...*

 

Finalmente percebeu. Havia pensado naquilo, mas depois ficara tão magoado pela rejeição de Jaenelle que se esquecera do assunto. A assembleia unira-se ao Primeiro Círculo, mas não devia ter feito isso, porque eram Rainhas de Território...

 

Karla avançou.

 

— Minha Rainha. Peço autorização para falar.

 

— Pode falar, minha Irmã — respondeu Jaenelle, solene.

 

... e as Rainhas de Território não servem a ninguém.

 

Um fogo contido incendiou os gélidos olhos azuis de Karla quando disse com um ar triunfante:

 

— Glácia submete-se a Ebon Askavi!

 

Saetan sentiu um aperto no coração. Mãe Noite! Karla estava fazendo de Jaenelle o poder dominante do Território que ela deveria dominar.

 

Gabrielle avançou.

 

— Dea al Mon submete-se a Ebon Askavi!

 

— Scelt submete-se a Ebon Askavi! — gritou Morghann.

 

— Nharkhava!

 

— Dharo!

 

— Tigrelan!

 

— Centauran!

 

*Sceval!*

 

*Arceria!*

 

*As Ilhas do Fogo!*

 

Sentiu uma cotovelada nas costas interrompendo seu silêncio aturdido.

 

— Dhemlan submete-se a Ebon Askavi!

 

Deu um salto quando Andulvar rugiu:

 

— Askavi submete-se a Ebon Askavi!

 

Os nomes dos Territórios que agora permaneciam sob a proteção de Ebon Askavi finalmente deixaram de ecoar na câmara. Foi então que uma voz débil flutuou pelas mentes de todos.

 

*Aracna submete-se à Senhora da Montanha Negra.*

 

— Mãe Noite — murmurou Saetan, imaginando se as Tecelãs de Sonhos estariam tecendo teias emaranhadas no teto da sala.

 

— Eu aceito — disse Jaenelle com serenidade.

 

Lucivar apertou levemente o ombro de Saetan num ato de divertida compreensão.

 

— Devo felicitar o Administrador desta corte ou dar-lhe os meus pêsames? — disse, baixinho.

 

— Mãe Noite. — Saetan recuou um passo, cambaleante. Sentiu que mãos o seguravam pelos braços, mantendo-o em pé.

 

Lucivar riu suavemente ao passar por Saetan. Subiu os degraus até o Trono e estendeu a mão direita. Jaenelle se levantou e colocou a mão esquerda sobre a dele. Formou-se um amplo corredor enquanto a nova corte se afastava para dar passagem ao Primeiro Acompanhante, que conduzia sua Rainha para fora da câmara.

 

Preparando-se para segui-los, Saetan sentiu que alguma coisa o detinha. Acenando a Andulvar e aos outros para que prosseguissem, sentiu um nó na garganta enquanto os parentes se misturavam timidamente com os humanos, oferecendo-lhes, outra vez, sua confiança.

 

A sala ficou vazia. Os últimos a sair foram Draca e Geoffrey.

 

Não lhe restando qualquer desculpa, Saetan virou-se para Lorn. Enquanto se fitavam, sentiu uma doce melancolia a comprimi-lo, uma melancolia ainda mais terrível por estar coberta de compreensão. Soube então por que Lorn havia se mantido afastado. Também sentira essa melancolia, diante dos peticionários cheios de medo do Príncipe das Trevas, do Senhor Supremo do Inferno. Sabia o que era ansiar por afeto e companhia e não ter nada disso por ser quem era.

 

Tocando com o dedo na Joia Negra, disse:

 

— Obrigado.

 

*Você usou corretamente a minha Oferenda. Sserviu com jussteza.*

 

Saetan recordou tudo o que havia feito na vida. Todos os erros, os desgostos. O sangue derramado.

 

— Servi? — perguntou baixinho, mais para si mesmo do que para Lorn.

 

*Honrou ass Trevass. Resspeitou oss cosstumess doss Ssangue. Ssempre compreendeu a missão doss Ssangue — vigilantess e guardiõess. Usou garrass e dentess ssempre que foi necessário usar garrass e dentess. Protegeu oss maiss novoss. Ass Trevass lhe cantaram e você sseguiu caminhoss peloss quaiss poucoss sseguiram, a não sser oss Dragõess. Compreendeu o coração doss Ssangue, a alma doss Ssangue. Sserviu com jussteza.*

 

Saetan respirou fundo. O nó da garganta estava apertado demais para que pudesse formular uma resposta.

 

— Obrigado — disse, com a voz rouca.

 

Houve um longo silêncio.

 

*Assim como ela é a filha da sua alma, você é o filho da minha.*

 

Saetan segurou com força a Joia ao pescoço. Lorn faria ideia do que aquelas palavras significavam para ele?

 

Não importava. O que importava é que formavam uma ligação entre ambos, uma ponte que ele poderia atravessar. Poderia, finalmente, falar com o guardião de todo o conhecimento da Arte dos Sangue. Talvez até conseguisse descobrir como Jae...

 

— Se sou a filha da alma de Saetan e ele é o filho da sua alma, isso faz de você o meu avô? — perguntou Jaenelle, juntando-se a eles.

 

*Não*, respondeu Lorn, imediatamente.

 

— E por que não?

 

Foram atingidos por uma lufada de ar quente, seco e poeirento que os fez recuar alguns passos.

 

— Imagino que isso seja uma resposta — resmungou Jaenelle. Sacudiu os braços para desembaraçar os fios das teias. — Embora eu não entenda por que você fica todo cheio de raiva por causa de uma netinha.

 

— E a grande variedade de sobrinhas-netas e sobrinhos que vêm com ela — murmurou Saetan entre dentes.

 

Jaenelle deu a Saetan um olhar duro e sacudiu os pulsos uma última vez.

 

— Bem, pelo menos vocês enfim se conheceram. Devia tê-lo convidado antes — acrescentou, olhando Lorn com uma expressão do tipo “Eu avisei”.

 

*Ele não esstava preparado. Era muito jovem.*

 

Saetan teria protestado se Jaenelle não tivesse se adiantado.

 

— Eu era muito mais nova quando você me convidou — disse Jaenelle.

 

Saetan pressionou o braço contra o estômago, tentando ao máximo manter a expressão neutra. No entanto, o aroma emocional de macho desconcertado que conseguia detectar vindo de Lorn tornava a tarefa bastante complicada.

 

*Não convidei você, Jaenelle*, disse Lorn, devagar.

 

— Convidou, sim. Mais ou menos. Bem, não de maneira tão evidente quanto Saetan...

 

Saetan cerrou os dentes e produziu um som de rosnar.

 

— ... mas ouvi você, por isso respondi. — Sorriu para os dois.

 

Receber um sorriso daqueles era uma boa razão para um homem entrar em pânico.

 

Antes de se dar conta, Jaenelle já se dirigia às pressas para as escadas, murmurando alguma coisa sobre ter de estar presente para o brinde, com a mão forte de Lucivar sobre seu ombro.

 

— Se o bisavô já tiver terminado — disse Lucivar com um sorriso feral —, gostaria que me acompanhasse e repreendesse Karla, pois, Rainha de Glácia ou não, se voltar a fazer mais algum comentário engraçadinho sobre o tamanho das minhas asas, vou largá-la num profundo lago da montanha.

 

— Lucivar, esta é uma ocasião solene — disse Saetan, enquanto Lorn atalhou:

 

*Não ssou sseu bisavô.*

 

— Não, não é — concordou Lucivar. — Mas uma vez que ninguém tem realmente certeza de quantas gerações nos separam de você — e que isso é diferente para cada raça ou espécie —, decidimos que seria melhor condensar todas as gerações num único “bis”. Quanto a esta ser uma ocasião solene, de fato não há dúvida. Já sobre a festa que está em vias de acontecer, tenho certeza que vai ser muitas coisas, menos solene. — Lucivar olhou para os dois e soltou um suspiro compadecido. — Vocês dois já são bem crescidinhos para saber o que os aguarda. E conhecem Jaenelle há tempo suficiente para não ficarem surpresos.

 

Saetan pegou-se sendo conduzido para as portas na extremidade oposta da sala.

 

— Vamos lá, seja um bom avozinho e deixe o bisavô dragão descansar antes que os dragõezinhos venham pular em cima dele.

 

Ao chegar às escadas, Saetan pensou que as portas interiores para a câmara tinham se fechado rápido demais.

 

*Conversaremos mais tarde*, disse Lorn, afavelmente. *Temos muito que conversar.*

 

Sim, tinham muito que conversar, pensou Saetan enquanto entrava na câmara superior, aceitava uma taça de yarbarah e percorria com os olhos os rostos animados e sorridentes que agora dominavam Kaeleer.

 

Perguntou-se o que Lorn pensaria da teia de múltiplos fios que Jaenelle havia tecido sobre Kaeleer, a teia que desafiara tantas raças a sair da névoa que as encobrira durante milhares de anos.

 

E imaginou o que pensaria o Conselho das Trevas.

 

Lord Magstrom esfregou a testa e desejou ardentemente que aquela sessão do Conselho das Trevas terminasse logo. Desde que a primeira peticionária pisara no círculo, Lord Jorval, o Primeiro Tribuno, vinha produzindo ruídos tranquilizadores, evitando, habilmente, fazer promessas concretas. Todas queriam a mesma coisa: a garantia de que os machos enviados para as terras dos parentes não fossem massacrados por aqueles “animais gerados no Inferno”.

 

O Conselho não podia dar essa garantia.

 

As histórias contadas pelos poucos sobreviventes que haviam voltado das primeiras expedições de assentamento incitaram uma ira extrema no povo da Pequena Terreille, que exigia represálias. As pilhas de cadáveres mutilados — alguns parcialmente devorados — que obstruíam a rua principal de Goth alguns dias depois de todos os machos que tinham entrado nas terras dos parentes terem sido devolvidos de maneira misteriosa transformaram aquela ira numa furiosa impotência.

 

Todos clamavam para que se fizesse alguma coisa de maneira a tornar aquelas terras de ninguém seguras para a ocupação humana. Ninguém queria enfrentar o que já vivia naquelas terras de “ninguém”.

 

— Posso lhe garantir, Senhora — disse Jorval dirigindo-se à peticionária estridente —, estamos fazendo tudo ao nosso alcance para corrigir a situação.

 

— Quando vim para cá, prometeram-me terras para governar e machos capazes de servir adequadamente — respondeu cheia de cólera a Rainha terreilliana.

 

Lord Magstrom imaginou se mais alguém teria reparado que a maior parte dos machos nascidos em Kaeleer — mesmo atraídos pela ideia de servir no Primeiro ou Segundo Círculos da corte de uma Rainha terreilliana — renunciava ao serviço com uma animosidade amarga depois de algumas semanas. Os machos terreillianos imploravam para servir Rainhas nascidas em Kaeleer, dispondo-se a servir como lacaios no Décimo Terceiro Círculo se essas fossem as únicas vagas restantes. Nos últimos três anos, alguns lhe pediam às lágrimas que intercedesse junto a Rainhas de categorias inferiores, fora da Pequena Terreille, para que considerassem a possibilidade de servirem em Territórios como Dharo ou Nharkhava. Fariam o que quer que fosse, diziam. O que quer que fosse.

 

Para alguns dos mais jovens que considerou adequados a essas Rainhas de Território, redigira cartas respeitosas, salientando sua competência e seu empenho em se adaptar aos costumes do Reino das Sombras. Alguns foram aceitos. A cada mudança de estação recebia breves cartas de cada um desses jovens e todos expressavam o alívio e a alegria por suas novas vidas.

 

As súplicas, porém, estavam se tornando cada vez mais desesperadas à medida que cada vez mais terreillianos invadiam a Pequena Terreille. E a cada súplica, a cada história que ouvia sobre Terreille, crescia a preocupação quanto à sua neta mais nova. Mesmo no seu pequeno povoado já haviam acontecido incidentes, não sendo aconselhável que uma mulher viajasse sem uma forte escolta depois de anoitecer. Teria sido assim que começara em Terreille, com o medo e a desconfiança penetrando em espiral, cada vez mais fundo, até não haver forma de detê-los?

 

— Registramos seu pedido — disse Lord Jorval, com um gesto indicativo de dispensa. — A próxima...

 

As portas ao fundo do hemiciclo abriram-se de rompante com tanta força que bateram na parede.

 

Jaenelle Angelline deslizou para o hemiciclo do Conselho, detendo-se, mais uma vez, logo antes do círculo do peticionário, outra vez ladeada pelo Senhor Supremo e pelo Príncipe Lucivar Yaslana. Ao longo do grande decote do vestido preto e esvoaçante viam-se dezenas de lascas de Joias Negras cintilando com um fogo negro. Do pescoço destacava-se uma Joia Negra — Negra? — engastada num colar parecido com uma teia de aranha formada por delicados fios dourados e prateados. Nas mãos...

 

As mãos de Lord Magstrom ficaram trêmulas.

 

Ela segurava um cetro. A metade inferior era feita de ouro e prata e tinha duas Joias aparentemente Negras encaixadas acima da empunhadura. A metade superior era um chifre em espiral.

 

Dedos apontavam para o chifre. Sussurros tomaram conta do hemiciclo.

 

— Lady Angelline, devo protestar contra esta interrupção... — começou Jorval.

 

— Tenho algo a dizer a este Conselho — interrompeu Jaenelle com frieza, sua voz sobrepondo-se às outras. — Serei breve.

 

Os sussurros aumentaram, tornando-se mais enérgicos.

 

— Por que ela foi autorizada a usar um chifre de unicórnio? — gritou a Rainha terreilliana que havia sido dispensada. — Eu não obtive essa autorização como compensação pela morte dos meus homens.

 

O rosto do Senhor Supremo não demonstrava qualquer emoção ao olhar para a Rainha terreilliana. No entanto, Lucivar não tentou disfarçar sua repulsa.

 

— Silêncio. — Jaenelle não se esforçou para elevar a voz, mas seu tom maligno fez todos ficarem em silêncio. Olhou para a Rainha terreilliana e proferiu quatro palavras.

 

Lord Magstrom conhecia o Idioma Antigo o suficiente para reconhecer a língua, mas não para entendê-la. Alguma coisa sobre recordar?

 

Jaenelle acariciou o chifre, afagando-o da base até a ponta e em sentido inverso.

 

— Ele se chamava Kaetien — disse, com sua voz de meia-noite. — Este chifre foi uma Oferenda, feita de livre vontade.

 

— Lady Angelline — disse Jorval, batendo no banco do Tribunal e tentando pôr ordem na sala.

 

Nos assentos mais próximos do banco do Tribunal, Lord Magstrom ouviu vozes severas falando sobre certas pessoas que julgavam poder ignorar a autoridade do Conselho.

 

Jaenelle balançou o cetro, desenhando um arco, suspendendo-o por um momento quando o chifre apontou para o chão e apontando-o em seguida para o teto do hemiciclo.

 

Um vento frio soprou de repente. Trovões fizeram o edifício estremecer. Do teto, surgiram relâmpagos que penetraram no chifre do unicórnio.

 

Um poder obscuro invadiu a sala. Um poder inflexível e inexorável.

 

Quando os trovões finalmente pararam, quando o vento finalmente serenou, os membros trêmulos do Conselho das Trevas voltaram a seus assentos.

 

Jaenelle Angelline estava tranquila e serena, segurando o cetro novamente com ambas as mãos. O chifre do unicórnio permanecia intacto, mas Magstrom podia ver os raios dos relâmpagos agora contidos naquelas Joias Negras-mas-não-Negras, podia sentir o poder que aguardava libertação.

 

— Ouçam o que tenho a dizer — começou Jaenelle —, pois só o direi uma vez. Realizei a Oferenda às Trevas. Agora sou a Rainha de Ebon Askavi. — Com o cetro, indicou a bancada do Tribunal.

 

Lord Magstrom estremeceu. O chifre apontava diretamente para ele. Ele prendeu a respiração, aguardando o impacto. Em vez disso, um pergaminho enrolado com uma fita vermelho-sangue surgiu à sua frente.

 

— Essa é uma lista dos Territórios que se submeteram a Ebon Askavi. Encontram-se agora sob a proteção da Fortaleza. Pertencem a mim. Quem quer que tente se instalar no meu Território sem a minha autorização sofrerá as consequências. Quem quer que faça mal a um membro do meu povo será executado. Não haverá espaço para desculpas nem exceções. Vou pôr as coisas de forma simples para que os membros deste Conselho e os intrusos que julgavam poder se apoderar da terra sobre a qual não têm qualquer direito jamais possam dizer que não entenderam direito. — Os lábios de Jaenelle tomaram a forma de um rosnado. — NÃO ENTREM NO MEU TERRITÓRIO!

 

As palavras ressoaram pelo hemiciclo, ecoando e voltando a ecoar.

 

Seus olhos azul-safira, que não pareciam exatamente humanos, detiveram-se no Tribunal por um longo momento. Depois, ela se virou e deslizou para fora da sala, seguida pelo Senhor Supremo e pelo Príncipe Yaslana.

 

As mãos de Magstrom tremiam com tanta violência que só na quarta tentativa conseguiu desatar a fita vermelho-sangue. Desenrolou o pergaminho, ignorando que deveria tê-lo entregado a Jorval, uma vez que este era o Primeiro Tribuno.

 

Nome após nome após nome após nome. Alguns ele conhecia das histórias que a avó lhe contava. Outros, como “terras por reclamar”. Outros ainda, desconhecia completamente.

 

Nome após nome após nome.

 

No final do pergaminho, acima da assinatura de Jaenelle e do selo de cera preta, havia um mapa de Kaeleer com os Territórios atualmente sob a proteção da Fortaleza assinalados.

 

À exceção da Pequena Terreille e da ilha que há séculos fora atribuída ao Conselho das Trevas, todo o Reino das Sombras pertencia agora a Jaenelle Angelline.

 

Magstrom atentou à bela caligrafia da assinatura. Ela havia estado na presença do Conselho por duas vezes como donzela e por duas vezes tinham ignorado os avisos sobre aquilo que se tornaria. Agora teriam de enfrentar uma Rainha que não toleraria erros.

 

Estremeceu e observou o selo. No centro havia uma montanha. Sobre a montanha podia-se ver um chifre de unicórnio. Em volta da orla do selo havia quatro palavras no Idioma Antigo.

 

Um pequeno papel dobrado surgiu de repente sobre o selo. Magstrom pegou-o no exato momento em que Jorval lhe tirou o pergaminho das mãos. Enquanto Jorval e o Segundo Tribuno liam a lista para os demais membros do Conselho, as vozes cada vez mais vacilantes, à medida que iam se dando conta do significado daquilo, Magstrom desdobrou o papel, mantendo-o escondido.

 

Uma mão masculina escrevera as mesmas quatro palavras que estavam no selo. Logo embaixo estava a tradução.

 

Em memória. Como advertência.

 

Magstrom levantou os olhos.

 

O Senhor Supremo estava logo atrás das portas abertas do hemiciclo.

 

Magstrom assentiu ligeiramente com a cabeça e fez o papel desaparecer, aliviado por ninguém ter reparado que Saetan permanecera ali para lhe transmitir aquela mensagem.

 

Encararia o aviso com grande seriedade e enviaria uma mensagem para casa naquela mesma noite. Suas duas netas mais velhas tinham casamentos felizes fora da Pequena Terreille. Avisaria Arnora, sua neta mais nova, para que partisse de imediato para a casa de uma das irmãs mais velhas. Uma vez lá, certamente haveria uma forma de persuadir a nova Rainha de Dharo ou de Nharkhava a lhe conceder autorização para ficar.

 

Ouvindo em parte o falatório indignado e atemorizado do Conselho, Magstrom sentiu uma tênue esperança pelo futuro de Arnora. Não conhecia as novas Rainhas, mas conhecia alguém que as conhecia.

 

Depois de todos os sussurros, de todas as histórias, achou irônico que a única pessoa a quem poderia recorrer e que iria compartilhar suas preocupações, bem como ajudá-lo, era o Senhor Supremo do Inferno.

 

–Nunca tive intenção de reinar — disse Jaenelle enquanto passeava com Saetan pelos jardins da Fortaleza sob a luz do luar. — Nunca desejei controlar a vida de ninguém, a não ser a minha.

 

Saetan passou um braço em volta da sua cintura.

 

— Eu sei. E é por isso que é a Rainha perfeita para governar Kaeleer. — Ao vê-la perplexa, riu serenamente. — É a única que consegue tecer todos os fios individuais numa teia unificada, ao mesmo tempo encorajando todos os fios a permanecerem distintos. Se prometer não se zangar, posso lhe contar um segredo.

 

— O quê? Está bem, está bem. Prometo que não me zango.

 

— Já faz anos que você reina em Kaeleer, de maneira informal, e talvez seja a única que ainda não se deu conta disso.

 

Jaenelle deu um resmungo e logo depois murmurou entre dentes:

 

— Desculpe.

 

Saetan riu.

 

— Está desculpada. No entanto, esse conhecimento deveria lhe trazer algum consolo. Duvido que existam muitas diferenças entre a Corte das Trevas oficial e a corte informal que se formou no primeiro verão em que a assembleia e os rapazes vieram ao Paço, fazendo dele sua segunda casa.

 

Jaenelle afastou o cabelo do rosto.

 

— Bem, se isso é verdade, então você foi mesmo um idiota por não perceber que se tornaria o Administrador, uma vez que tem sido o Administrador informal há pelo menos tanto tempo quanto eu tenho sido a Rainha informal.

 

Como não tinha uma resposta adequada, Saetan nada disse.

 

— Saetan... — Jaenelle mordeu o lábio inferior. — Acha que vão começar a agir de forma diferente? Nunca me importei com isso antes, mas... a assembleia e os rapazes não vão começar a ser subservientes, não é?

 

Saetan ergueu uma sobrancelha.

 

— Fico surpreso que algum de vocês conheça a palavra, quanto mais seu significado. — Abraçou-a. — Acho que não tem razões para se preocupar. Creio que a subserviência de Lucivar não passará do que é.

 

Jaenelle apoiou-se em Saetan e gemeu. Em seguida, empertigou-se ligeiramente.

 

— Bem, essa é uma das vantagens de ter constituído a corte. Pelo menos dei a ele algo com que se ocupar e que o impedirá de ficar sempre no meu caminho e me atormentando.

 

Saetan estava prestes a responder, mas pensou melhor. Ela tinha direito a algumas ilusões — sobretudo porque em breve iriam se desfazer.

 

Jaenelle bocejou.

 

— Vou para dentro. Hoje é minha vez de contar as histórias de dormir. — Beijou Saetan no rosto. — Boa noite, Papai.

 

— Boa noite, criança-feiticeira. — Aguardou que Jaenelle entrasse antes de começar a caminhar em direção à ponta mais afastada do jardim.

 

— A garota já se recolheu? — perguntou Andulvar, juntando-se a Saetan.

 

— Hoje é a vez dela de contar a história de dormir e uivar em coro — respondeu Saetan.

 

— Vai ser um grande Rainha, SaDiablo.

 

— A melhor que já tivemos. — Caminharam em silêncio durante alguns minutos. — Algum sinal da vagabunda?

 

Andulvar balançou a cabeça.

 

— Há fortes indícios de que tem as garras bem enfiadas no Conselho das Trevas, mas não há sinais dela. Hekatah sempre soube muito bem fugir da sordidez depois de desencadeá-la. Ainda fico surpreso que tenha se deixado matar na última guerra entre os Reinos. — Esfregou a nuca e suspirou. — Deve estar roída de inveja por saber que a garota detém o tipo de poder sobre um Reino que ela sempre desejou.

 

— Sim, deve mesmo. Por isso, fique alerta, está bem?

 

— Devíamos avisar os rapazes antes de voltarem a seus Territórios, para que saibam o que procurar caso ela tente vir de outra direção.

 

— Concordo. Mas, se as Trevas forem bondosas, teremos algum tempo para que estes jovens se ambientem antes de termos de lidar com outro plano de Hekatah.

 

— Se as Trevas forem bondosas. — Andulvar pigarreou. — Sei muito bem por que você queria esperar e também por quem tem esperado, Saetan. Mas Jaenelle já é uma mulher feita e agora é a Rainha. O triângulo deveria estar completo. Ela deveria ter um Consorte.

 

Saetan apoiou os braços no topo do muro de pedra do jardim. Um vento noturno e suave assobiava nos pinheiros além do jardim.

 

— Ela já tem um Consorte — disse, com calma e firmeza. — Como Primeiro Acompanhante, Lucivar pode cumprir a maior parte dos deveres de um Consorte e ser o terceiro lado do triângulo até... — A voz se extinguiu.

 

— Se isso algum dia vier a acontecer, SaDiablo — disse Andulvar, com afável severidade. — Até que alguém esteja usando o anel de Consorte, todo e qualquer macho ambicioso do Reino... E não serão poucos os que vão aparecer diretamente de Terreille... Tentará enfiar-se na cama dela atrás de poder e prestígio. Ela precisa de um bom homem, Saetan, não de uma lembrança. Precisa de um homem forte, de carne e osso, que aqueça sua cama à noite e goste dela.

 

Saetan olhava fixamente para as terras além do jardim.

 

— Ela já tem um Consorte.

 

— Tem? — Vendo que Saetan não respondia, Andulvar deu um tapinha no ombro do amigo e se afastou.

 

Saetan deixou-se ficar ali durante muito tempo, ouvindo o cântico da brisa noturna.

 

— Ela já tem um Consorte — sussurrou. — Não tem?

 

A brisa noturna não respondeu.

 

Ele escalou.

 

Naquele local, o terreno não era tão sinuoso nem tão íngreme, mas os pequenos tufos de névoa que preenchiam as cavidades às vezes cobriam a trilha, dando-lhe a sensação inquietante de que nada havia abaixo dos joelhos.

 

Com o passar do tempo, percebeu que aquele lugar era familiar, que já explorara aqueles caminhos antes, quando era forte e estava intacto. Havia entrado na zona limítrofe entre a sanidade e o Reino Distorcido.

 

Sentia no ar a suavidade do orvalho fresco. A luz era branca, como se fosse de manhã, bem cedo. Em algum lugar ali perto, pássaros piavam e gorjeavam, despertando o dia, e, ao longe, ouvia-se uma forte rebentação.

 

O cálice de cristal estava praticamente intacto. Durante a longa escalada, os fragmentos tinham sido colocados no lugar, um a um. Faltavam algumas lascas, algumas memórias. Uma em particular. Não se recordava do que havia feito na noite em que trouxeram Jaenelle ao Altar de Cassandra.

 

Ao passar por duas enormes pedras erguidas como sentinelas, uma de cada lado da trilha, a névoa começou a subir ao seu redor.

 

À sua frente, a água, os pássaros, o cheiro de terra fértil, o calor do sol — e a promessa de que ela estaria à sua espera.

 

À sua frente, a sanidade.

 

Contudo, também ali havia conhecimento, sofrimento. Podia senti-los.

 

Daemon.

 

Uma voz que reconhecia, mas não aquela que desejava ouvir. Procurou nas memórias até conseguir ligá-la a um nome.

 

Manny. Falando com alguém sobre torradas e ovos.

 

Daemon.

 

Também reconhecia aquela outra voz. Surreal.

 

Uma parte de si ansiava por uma conversa banal, pelas coisas simples como torradas e ovos. Uma outra parte estava assustada.

 

Recuou um passo... e sentiu que uma porta se fechava de leve às suas costas.

 

As sentinelas de pedra tinham se tornado uma muralha alta, sólida.

 

Apoiou-se nessa muralha, tremendo.

 

Não havia como voltar.

 

Daemon.

 

Reunindo os fragmentos de sua coragem, caminhou em direção às vozes, em direção à promessa.

 

Abandonou o reino Distorcido.

 

 

                                                                                                    Anne Bishop

 

 

 

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