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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HERDEIRA / Sidney Sheldon
A HERDEIRA / Sidney Sheldon

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A HERDEIRA

 

Capítulo 1

Istambul, Sábado, 5 de Setembro. 22 horas

Estava sentado sozinho e no escuro, atrás da mesa de Hajib Kafir, com os olhos voltados para as janelas empoeiradas do escritório e os minaretes  intemporais de Istambul.

Era um homem que se sentia bem numa dúzia de capitais do mundo, e Istambul era uma das suas favoritas. Não a Istambul para turistas da rua Beyoglu ou do espalhafatoso Bar Lalezab do Hilton, mas a Istambul dos recantos ocultos que só os muçulmanos conheciam: os yalis, os pequenos mercados além dos souks e o Telli Baba, o cemitério onde só uma pessoa estava enterrada e aonde ia gente para rezar em sua intenção.

A espera do homem era marcada por uma paciência de caçador e pela absoluta imobilidade de que domina o corpo e as emoções. Era do País de Gales e tinha a beleza enigmática e tempestuosa dos seus antepassados. Cabelos pretos, rosto forte e olhos vivos, de um azul intenso. Tinha mais de um metro e oitenta de altura e o corpo de um homem que se mantinha em boas condições físicas. Os cheiros de Hajib Kafir impregnavam a sala - o seu fumo adocicado, o seu acre café turco e o seu corpo gordo e oleoso. Rhys Williams não dava atenção a esses odores. Estava pensando no telefonema que lhe haviam dado de Chamonix uma hora antes.

- Um terrível acidente! Creia que estamos todos arrasados, Sr. Williams. Tudo aconteceu com tanta rapidez que não houve chance de salvá-lo. O Sr. Roffe morreu instantaneamente.

Sam Roffe era presidente da Roffe and Sons, a segunda companhia de produtos farmacêuticos do mundo, uma dinastia de muitos milhões de dólares que se espalhava por todo o globo.

Era impossível acreditar na morte de Sam Roffe. O homem sempre fora muito dinâmico, cheio de vida e energia, sempre em movimento, dentro de aviões que o levavam a fábricas e escritórios da companhia através do mundo, onde resolvia problemas que os outros nem podiam enfrentar, criava novos conceitos e fazia todo mundo trabalhar mais e melhor. Embora houvesse sido casado e tivesse uma filha, seu único interesse na vida haviam sido os negócios. Sam Roffe tinha sido um homem brilhante e extraordinário.

Quem poderia substituí-lo?

Quem seria capaz de governar o imenso império que ele deixava? Roffe não havia escolhido um herdeiro legítimo.

Também não havia pensado em morrer aos cinquenta e dois anos.

Sempre pensara que havia tempo de sobra.

E agora o tempo estava esgotado.

As luzes do escritório se acenderam de repente. Rhys Williams olhou para a porta, ofuscado por um momento.

- Sr. Williams! Não sabia que havia alguém aqui.

Era Sophia, uma das secretárias da companhia, que era sempre designada para servir Williams quando ele estava em Istambul. Turca, na casa dos vinte anos, tinha um belo corpo sensual, estonteante de promessas. Fizera Rhys saber, através de surtis e antigas sugestões, que estava à sua disposição para dar-lhe os prazeres que desejasse, na hora que quisesse, mas Rhys não se interessava.

Sophia disse:

- Voltei para acabar algumas cartas para o Sr. Kafir.

Acrescentou, então, com uma voz bem doce:

- Quem sabe se não posso também prestar-lhe algum serviço...

Quando ela se aproximou da mesa, Rhys sentiu o cheiro almiscarado de um animal selvagem no cio.

- Onde está o Sr. Kafir?

Sophia abanou a cabeça com pesar.

- Já foi e não volta mais hoje. Deseja alguma coisa?

Alisou com as palmas das mãos macias e hábeis a frente do vestido. Tinha olhos negros e húmidos.

- Desejo, sim. Procure-o.

- Não sei onde ele pode estar...

- Tente o Kervansaray ou o Mermara.

Estaria decerto no primeiro desses lugares, onde uma das amantes de Hajib Kafir apresentava a dança do ventre.

Mas Kafir era imprevisível. Poderia até estar em casa junto com a mulher.

- Vou tentar, mas não sei se... - murmurou Sophia.

- Diga a ele que, se não estiver aqui dentro de uma hora, será despedido.

A expressão do rosto dela mudou.

- Vou ver o que posso fazer, Sr. Williams.

Encaminhou-se para a porta.

- Apague a luz quando sair.

De qualquer maneira, era mais fácil ficar ali no escuro em companhia dos seus pensamentos. A imagem de Sam Roffe estava presente sempre. A escalada do monte Branco deveria ter sido fácil naquela época do ano, começo de setembro. Sam tinha tentado a empreitada anteriormente mas as tempestades o haviam impedido de chegar ao cimo.

- Desta vez vou cravar lá em cima a bandeira da companhia - dissera ele a Rhys.

E então houvera o telefonema de há pouco, quando ele se preparava para deixar o Pera Palace, onde estivera hospedado. Ouvia ainda a voz nervosa ao telefone. Estavam atravessando a geleira... Roffe falseara o pé e a sua corda se partira. Caíra numa fenda profunda.

Rhys podia visualizar o corpo de Sam na colisão com o gelo implacável e a sua queda no abismo. Procurou então afastar a cena do espírito. Aquilo já era passado.

O presente é que surgia repleto de preocupações. Era preciso comunicar a morte às pessoas da família de Sam Roffe, e elas estavam espalhadas por várias partes do mundo. Tinha de ser uma comunicação pela imprensa. A notícia ia percorrer os círculos financeiros internacionais como uma crise financeira, era essencial que o impacto da morte de Sam Roffe fosse reduzido ao mínimo. Cabia a Rhys conseguir isso.

Rhys Williams conhecera Sam Roffe havia nove anos.

Rhys tinha então, vinte e cinco anos e era gerente de vendas de uma pequena firma de produtos farmacêuticos. Era brilhante e gostava de inovar, tendo feito a firma se expandir. Com isso, a sua reputação havia crescido.

Recebera uma proposta para trabalhar na Roffe and Sons, e, logo depois de recusá-la, soube que Sam Roffe comprara a companhia em que ele trabalhava e mandara chamá-lo.

Ainda se lembrava do poder dominador de Sam Roffe naquele primeiro encontro.

- O seu lugar é aqui na Roffe and Sons - havia-lhe dito Sam Roffe. - Foi por isso que comprei aquela companhia trôpega em que você trabalhava.

Rhys se sentiu lisonjeado e irritado ao mesmo tempo.

- E se eu não quiser continuar?

Sam Roffe sorrira e respondera, cheio de confiança:

- Nós temos uma coisa em comum, Rhys. Somos ambiciosos. Queremos ser donos do mundo. E eu vou mostrar-lhe como se consegue isso.

Essas palavras foram mágicas. Representavam a promessa de um banquete para a fome que ardia no íntimo de Rhys. De facto, ele sabia alguma coisa que Sam Roffe desconhecia.

Rhys Williams não existia. Era um mito criado pela descrença, pela pobreza e pelo desespero.

Nasceu perto das jazidas de carvão de Gwent e Carmarthen, nos retalhos vales vermelhos do País de Gales, onde camadas de arenito e depósitos de calcário e carvão em forma de pires rasgavam a terra verde. Cresceu numa terra fabulosa, onde os próprios nomes exalavam poesias: Penderyn, Brecon, Pen-y Fan, Glyncorrwg e Maesteg.

Era uma terra de lenda, onde o carvão que se achava no fundo da terra se formara duzentos e oitenta milhões de anos antes, onde a paisagem fora, em outros tempos, coberta de tantas árvores que um esquilo poderia viajar do Farol de Brecon até o mar sem pousar as patas no chão. Mas a Revolução Industrial chegou e as belas árvores verdes foram abatidas pelos produtores de carvão vegetal para alimentar as fornalhas insaciáveis da industria do ferro.

O garoto cresceu conhecendo heróis de outro tempo e de outro mundo, como Robert Farrer, queimado na fogueira pela Igreja Católica porque não quisera fazer votos de celibato e abandonado a mulher; como o rei Hywel, o Bom, que levara a lei ao País de Gales no século X; e como o destemido guerreiro Brychen, que gerara doze filhos e vinte e quatro filhas e resistira com bravura a todos os ataques ao seu reino. Era uma terra de histórias gloriosas aquela em que o garoto cresceu Mas nem tudo era glória. Os antepassados de Rhys haviam sido mineiros, e o jovem costumava ouvir os casos de sofrimentos que seu pai e seus tios contavam.

Lembravam os terríveis tempos em que não havia trabalho, em que as ricas jazidas de carvão de Gwent e Carmarthen foram fechadas em consequência de uma amarga luta entre as companhias e os mineiros e em que estes foram reprimidos por uma pobreza que corroeu a ambição e o orgulho, solapando o espírito e a força dos homens até fazê-los capitular.

Quando as minas foram reabertas, houve outra espécie de inferno. Quase toda a família de Rhys tinha morrido nas minas. Alguns haviam morrido nas entranhas da terra, outros consumiram, tossindo, os pulmões enegrecidos. Poucos tinham passado dos trinta anos de idade.

Rhys costumava ouvir o pai e os tios falarem do passado, do desmoronamento, dos mineiros invalidados e das greves.

Falaram dos bons e dos maus tempos, e o garoto não via qualquer diferença entre uns e outros. Todos eram maus. A idéia de passar a vida dentro da escuridão da terra o apavorava, e ele sabia que tinha de fugir.

Saiu de casa aos doze anos. Abandonou os vales do carvão e foi para a costa, para a baía de Sully Ranny e para Lavernock, para onde corriam os turistas ricos. Foi mensageiro, carregador, ajudava as senhoras a descerem os caminhos escarpados para a praia, carregando cestas de piquenique, dirigiu um carro de póneis em Penarth e trabalhou no parque de diversões de Whitmore Bay.

Estava apenas a algumas horas de casa, mas a distância já era incomensurável. A gente do lugar onde ele estava parecia pertencer a outro mundo. Rhys Williams nunca imaginara que as pessoas pudessem ser tão belas ou usar roupas tão magníficas. Toda mulher lhe parecia uma rainha, e os homens eram elegantes e esplêndidos. Era aquele o seu mundo, e não havia nada que Rhys não fosse capaz de fazer para entrar nele.

Quando completou catorze anos, tinha economizado dinheiro suficiente para comprar uma passagem até Londres.

Passou lá os três primeiros dias simplesmente andando pela grande cidade, olhando para tudo e avidamente embebendo-se dos fantásticos espectáculos, sons e cheiros.

O seu primeiro emprego foi numa loja de tecidos. Havia dois caixeiros, ambos seres superiores, e uma caixeira que fazia o coração do jovem galês cantar sempre que a olhava.

Os caixeiros tratavam Rhys como ele devia ser tratado, isto é, como lixo. Era uma curiosidade. Vestia-se com roupas esquisitíssimas, tinha maneiras abomináveis e falava com um sotaque incompreensível. Não conseguiam sequer pronunciar-lhe o nome direito.

A moça teve pena dele. Chamava-se Gladys Simpkins e morava num pequeno apartamento em Tooting com três outras moças. Um dia, ela permitiu que o rapaz a levasse até a casa depois do trabalho e convidou-o para entrar e tomar uma xícara de chá.

O jovem Rhys estava muito nervoso. Pensava que aquela ia ser a sua primeira experiência sexual, mas quando passou o braço pelo corpo de Gladys, esta olhou muito séria para ele por um momento e depois riu.

- Não vou lhe dar nada disso, mas estou disposta a dar-lhe um bom conselho. Se você quiser ser alguma coisa, faça umas roupas melhores, procure instruir-se mais um pouco e aprenda a ter boas maneiras.

Olhou o rosto jovem e apaixonado de Rhys, viu seus profundos olhos azuis e disse com voz suave:

- Até que você vai ficar um bocado legal quando crescer...

Se você quiser ser alguma coisa... Neste momento o fictício Rhys Williams nasceu. O verdadeiro Rhys Williams era um rapaz ignorante e sem educação, sem meios, sem tradição, sem passado e sem futuro. Mas ele tinha imaginação, inteligência e ardente ambição. Isso era o bastante. Começou a imaginar do que queria conseguir, do que queria ser. Quando se olhava ao espelho, não via o rapaz bronco e desajeitado, de sotaque estranho. A imagem reflectia uma pessoa polida, delicada e bem-sucedida.

Pouco a pouco, Rhys começou a responder à imagem que trazia no espírito. Frequentava escolas nocturnas e passava os fins de semana em galerias de arte. Rondava as bibliotecas públicas e ia ao teatro, sentava-se nas galerias e reparando nas boas roupas dos homens sentados nas plateias. Fazia refeições frugais para poder, uma vez por mês, ir a um bom restaurante, onde imitava cuidadosamente as maneiras dos outros à mesa. Observava, aprendia e não esquecia. Era como uma esponja que apagava o passado e absorvia o futuro.

Em menos de um ano, Rhys aprendeu o bastante para compreender que Gladys Simpkins, sua princesa, era uma mocinha cockney vulgar, que estava abaixo do seu gosto.

Deixou a loja de tecidos e foi trabalhar numa farmácia, que fazia parte de uma grande rede. Tinha quase dezasseis anos, mas parecia mais velho. Estava mais cheio de corpo e mais alto. As mulheres estavam começando a prestar atenção á sua boa aparência morena de galês e á sua conversa fluente e cheia de palavras lisonjeiras.

Fazia muito sucesso na farmácia, e havia freguesas que esperavam até que Rhys pudesse atendê-las. Vestia-se bem e falava com correcção.

Mas, embora soubesse que já estava bem longe de Gwent e Carmarthen, ainda não ficava satisfeito quando se olhava no espelho. Tinha ainda uma longa jornada pela frente.

Depois de dois anos, Rhys passou a ser gerente da farmácia. O gerente distrital da rede lhe havia dito: "Isto é apenas o começo, Williams. Continue a trabalhar assim e um dia você será o superintendente de meia dúzia de casas".

Rhys quase deu uma gargalhada. Pensar que isso poderia ser considerado o máximo da ambição de uma pessoa! Nunca havia deixado de estudar. Estava fazendo cursos de administração de empresas, marketing e direito comercial.

Queria mais. Tinha os olhos voltados para o topo da escada e sabia que ainda não chegara nem aos primeiros degraus. Teve a sua primeira oportunidade de subir quando um vendedor de produtos farmacêuticos entrou um dia na farmácia e viu Rhys cercado de mulheres, às quais induziu vários artigos de que elas não tinham qualquer necessidade.

- Você está perdendo tempo aqui, rapaz - disse ele. Devia estar trabalhando num campo maior.

- Em que está pensando? - perguntou Rhys.

- Vou falar com meu chefe a seu respeito.

Duas semanas depois, Rhys estava trabalhando como vendedor de uma pequena firma de medicamentos. Fazia parte de uma equipe de cinquenta vendedores, mas quando se olhava no espelho, sabia que a verdade não era essa. A verdadeira competição que tinha de enfrentar era consigo mesmo. Já estava se aproximando de sua imagem, do tipo fictício que procurava criar. Um homem inteligente, culto, refinado e encantador. O que ele tentava fazer era impossível.

Qualquer pessoa sabia que era preciso trazer essas qualidades do berço. Não podiam ser criadas. Mas Rhys conseguiu o que queria. Tornou-se a imagem que havia elaborado.

Viajou pelo interior, vendendo produtos da firma, falando e escutando. Voltava a Londres cheio de sugestões práticas e tratava imediatamente de ir subindo a escada.

Três anos depois de haver entrado na companhia, Rhys foi nomeado gerente-geral de vendas. Sob a sua hábil orientação, a companhia começou a expandir-se.

Quatro anos depois, Sam Roffe entrou na vida de Rhys e percebeu a fome que o consumia.

- Você é como eu - disse Sam. - Nós queremos conquistar o mundo. E vou mostrar-lhe como fazê-lo.

Sam Roffe tinha sido um guia brilhante. Durante os nove anos em que vivera sob a direcção de Sam Roffe, Rhys Williams se tornara de valor inestimável para a companhia.

Com o correr do tempo, assumira responsabilidades cada vez maiores, reorganizando várias divisões, resolvendo problemas em qualquer ponto do mundo, coordenando as diversas filiais da Roffe and Sons e criando novos conceitos. No fim, Rhys Williams conhecia o funcionamento e a situação da companhia mais do que qualquer pessoa, à excepção do próprio Sam Roffe.

Rhys Williams era o sucessor natural para a presidência.

Um dia, quando Rhys e Roffe voltavam de Caracas num luxuoso Bõeing 707-320, que fazia parte da frota de oito aviões da companhia, Sam Roffe felicitou Rhys por uma transação lucrativa que ele havia fechado com o governo.

- Vai ganhar uma boa gratificação por isso, Rhys.

Rhys respondeu calmamente:

- Não quero gratificação, Sam. Prefiro algumas acções e um lugar na sua directoria.

Merecia isso, decerto, e os dois sabiam disso. Mas Sam respondeu:

- Sinto muito, mas não vou alterar os meus princípios, nem mesmo por sua causa. A Roffe and Sons é uma empresa privada e ninguém que não seja da família pode pertencer à directoria ou possuir acções.

Rhys sabia disso, sem dúvida. Comparecia a todas as reuniões da companhia, mas não como participante. Sam era o último elemento masculino da família Roffe. As outras pessoas da família eram todas mulheres, primas de Sam. Os homens com quem elas haviam casado tinham um lugar na directoria da companhia: Walther Gassner, que se casara com Anna Roffe; Ivo Palazzi, casado com Simonetta Roffe; Charles Martel, casado com Hélène Roffe e Alec Nichols, cuja mãe fora uma Roffe.

Rhys fora assim forçado a tomar uma decisão. Sabia que merecia fazer parte da directoria e que um dia dirigiria tudo. As circunstâncias actuais impediam isso, mas elas podiam ser alteradas. Rhys tinha decidido continuar à espera, para ver o que acontecia. Sam lhe ensinara a ser paciente. E agora Sam estava morto.

As luzes do escritório acenderam-se de novo e Hajib Kafir apareceu à porta. Kafir era o gerente de vendas da Roffe and Sons na Turquia. Era um homem baixo e moreno, que usava diamantes e uma barriga gorda com atributos de prestígio pessoal. Tinha o ar desmazelado de um homem que se vestia às pressas. Sophie não o encontrara, portanto, numa boate. Outro efeito secundário da morte de Roffe, pensou Rhys: um coito interrompido.

- Rhys! - exclamou Kkafir. - Nunca imaginei que ainda estivesse em Istambul! Quando o deixei, ia tomar o avião e, como eu tinha alguns casos para resolver...

- Sente-se, Hajib, e ouça com muita atenção. Quero que mande quatro telegramas no código da companhia. São para países diferentes. Quero que sejam levados pessoalmente para o telégrafo por mensageiros de confiança. Entendeu?

- É claro - disse Kafir, espantado. - Entendi perfeitamente. Rhys olhou para o fino relógio de ouro Baume & Mercier que tinha no pulso.

- A agência da Cidade Nova já está fechada. Passe os telegramas pelo Yeni Posthane Cad. Quero que estejam a caminho dentro de trinta minutos. - Entregou a Kafir uma cópia do telegrama que havia redigido. Qualquer pessoa que fizer algum comentário será sumariamente despedida.

Kafir viu o telegrama, os seus olhos se arregalaram.

- Meu Deus! Meu Deus! Como pôde acontecer uma coisa dessas?

- Sam Roffe morreu num acidente - disse Rhys.

Depois disso, pela primeira vez Rhys deixou que lhe chegasse à consciência o que ele estava reprimindo desde que recebera a notícia. Rhys tinha evitado pensar em Elizabeth Roffe, filha de Sam, que estava com vinte e quatro anos.

Na primeira vez em que Rhys a vira, era uma menina de quinze anos, com aparelho nos dentes, tremendamente tímida e gorda, solitária e rebelde. Com o passar dos anos, vira Elizabeth tornar-se uma moça muito interessante, que tinha ao mesmo tempo a beleza da mãe e a inteligência e o espírito do pai. Havia se ligado muito a Sam.

Rhys sabia que a notícia iria abalá-la profundamente e resolveu dá-la pessoalmente.

Duas horas depois, Rhys Williams sobrevoava o Mediterrâneo num jacto da companhia, rumo a Nova York.

 

Capítulo 2

Berlim. Segunda-feira, 7 de setembro. 22 horas.

Anna Roffe Gassner sabia que não devia gritar de novo, pois Walther voltaria para matá-la. Encolhida num canto do seu quarto, tremia incontrolavelmente e esperava a morte. O que havia começado como um belo conto de fadas terminava em terror, um indescritível terror. Ela tardara muito a convencer-se da verdade: o homem com quem se casara era um louco assassino.

Anna Roffe nunca tinha amado ninguém antes de conhecer Walther Gassner, nem mesmo sua mãe, seu pai ou a si própria. Fora uma menina frágil e doente, que sofria de frequentes desmaios. Não podia lembrar-se de um tempo em que não tivesse vivido às voltas com hospitais, enfermeiras e especialistas que eram trazidos de avião de lugares distantes. Como era filha de Anton Roffe, da Roffe and Sons, as maiores autoridades médicas eram levadas à cabeceira de Anna, em Berlim. Examinavam-na, submetiam-na a numerosos exames, e por fim partiam sem saber mais do que sabiam ao chegar. Não conseguiam fazer um diagnóstico.

Anna não pôde ir à escola como as outras crianças.

Tornou-se reservada e criou um mundo próprio, cheio de sonhos e fantasias, onde só ela entrava. Pintava à sua maneira os seus quadros da vida, pois as cores da realidade eram muito ásperas, e ela não podia aceitá-las.

Quando Anna completou dezoito anos, os seus desmaios desapareceram tão misteriosamente quanto haviam começado.

Mas tinham lhe marcado a vida. Numa idade em que as moças em geral ficavam noivas ou se casavam, Anna nunca fora beijada por um rapaz. Convencia-se de que isso não tinha a menor importância. Estava contente em viver no seu mundo de sonhos, longe de tudo e de todos. Por volta dos seus vinte e cinco anos, os pretendentes começaram a aparecer.

Anna Roffe era uma herdeira que tinha um dos mais prestigiados nomes do mundo, e muitos homens estavam ansiosos pela participação na fortuna dela. Recebeu propostas de um conde sueco, de um põeta italiano e de meia dúzia de príncipes de países pobres. Anna recusou todos. Quando ela fez trinta anos, Anton Roffe murmurou, tristonho:

- Vou morrer sem deixar netos.

No seu trigésimo aniversário, Anna foi para Kitzbühel, na Austria, e ali conheceu Walther Gassner, professor de esqui, treze anos mais moço que ela.

Na primeira vez em que Anna viu Walther, perdeu literalmente o fôlego. Ele estava esquiando pela íngreme encosta do Hahnenkamm, e foi o espectáculo mais belo que os olhos de Anna já haviam contemplado. Ela chegou mais perto do final da pista a fim de vê-lo melhor. Parecia-lhe um jovem deus, e ela ficou toda feliz só de olhá-lo.

Walther percebeu o olhar dela.

- Não está esquiando, gnãdiges Frãulein?

Ela abanou a cabeça, não confiando na sua voz. Ele sorriu e disse:

- Permita-me então convidá-la para almoçar.

Anna fugiu, apavorada como uma colegial. Daí em diante, Walther Gassner passou a perseguí-la. Anna Roffe não era tola. Sabia muito bem que não era bela, nem brilhante.

Era uma mulher comum e, além do seu nome, tinha muito pouco a oferecer a um homem. Mas sabia também que, por trás dessa fachada comum, escondia-se uma mulher intimamente bela e sensível, transbordante de amor, de poesia e de música.

Talvez por não ser bela, Anna tinha uma profunda veneração pela beleza. Visitava os grandes museus e passava horas a admirar quadros e estátuas. ao ver Walther Gassner, teve a impressão de que todos os deuses estavam vivos diante dela.

Anna estava fazendo a primeira refeição no terraço do Tennerhof Hotel quando Walther Gassner se aproximou dela.

Parecia, de facto, um jovem deus. Tinha um perfil clássico marcado com feições delicadas, sensíveis e enérgicas. O rosto estava bem queimado pelo sol da montanha e os dentes eram muito brancos e certos. Os cabelos eram louros e os olhos tinham um tom cinzento de ardósia. Sobre as roupas de esqui que ele vestia, Anna podia ver o movimento dos bíceps e dos músculos das coxas, o que a fazia sentir tremores pelo corpo. Tratou de esconder as mãos no colo para que ele não visse as calosidades da ceratose.

- Procurei-a ontem à tarde nas pistas - disse Walther.

Anna não conseguia dizer uma palavra.

- Se não sabe esquiar, terei prazer em ensinar-lhe. - E acrescentou com um sorriso: - De graça.

Ele a levou para Hausberg, a encosta dos principiantes, a fim de dar-lhe a primeira lição. Ficou logo evidente para ambos que Anna não tinha a menor aptidão para esquiar.

Perdia o equilíbrio e caía constantemente, mas insistia em tentar repetidamente, pois tinha receio de que Walther a desprezasse pelo seu fracasso. Ao invés disso, depois da décima queda, ele a ajudou a levantar-se para coisas melhores e disse:

- Você foi feita para coisas melhores.

- Eu lhe direi à noite na hora do jantar.

Jantaram juntos naquela noite. Tomaram café juntos na manhã seguinte, e novamente almoçaram e jantaram juntos.

Walther se esqueceu de seus alunos. Deixou de dar lições de esqui para acompanhar Anna até à aldeia. Levou-a ao cassino em Der Gojdene Greif. Andaram de trenó, fizeram compras, andaram a pé e ficaram horas e horas conversando no terraço do hotel. Para Anna, era um tempo de encantamento.

Cinco dias depois de se terem conhecido, Walther tomou-lhe as mãos e disse:

- Anna, quero casar-me com você.

Com isso, ele estragara tudo. Arrancou-a das paragens de sonhos em que ela estava vivendo e a levou para a cruel realidade de quem e do que era ela. Um prémio virginal e sem atractivos, de trinta e cinco anos, para quem estivesse disposto a dar o golpe do baú.

Tentou afastar-se, mas Walther a impediu:

- Nós nos amamos, Anna. Disso você não pode fugir.

Ela o ouviu mentir, ouviu-o dizer: "Nunca amei ninguém antes de você", e facilitou as coisas porque queria desesperadamente acreditar nele. Levou-o para o quarto dela e os dois ficaram ali conversando. Enquanto Walther contava a história de sua vida, ela de repente começou a acreditar nele e achou que a vida de Walther tinha sido muito semelhante à dela.

Do mesmo modo, Walther nunca tivera a quem amar. Fora marginalizado por ser filho ilegítimo, da mesma forma que Anna pela doença. Como Anna, ele sempre sentiu necessidade de dar amor. Criado num orfanato, quando chegou à adolescência e a sua beleza já era evidente, as mulheres do orfanato começaram a usá-lo, levando-o para os seus quartos à noite, pondo-o na cama e ensinando-lhe a dar-lhes prazer. Como recompensa, ganhava rações reforçadas, com pedaços de carne e sobremesas feitas com açúcar de verdade.

Recebia tudo, menos amor.

Quando Walther teve idade suficiente para fugir do orfanato, descobriu que o mundo lá fora não era diferente.

As mulheres continuavam a usá-lo, muitas vezes por vaidade, mas nunca iam além disso. Davam-lhe dinheiro, roupas e jóias, mas nunca se davam a si mesmas.

Anna compreendeu que Walther era sua alma gemia. Casaram-se, numa cerimónia simples, na prefeitura.

Anna esperava que seu pai ficasse contente. Ele se mostrou, ao contrário, exasperado.

- Você é uma tola vazia e imbecil! - gritou-lhe Anton Roffe. - Casou-se com um aventureiro que não vale nada. Já mandei fazer investigações sobre ele. Sempre viveu à custa das mulheres, mas foi a primeira vez que encontrou uma idiota a ponto de casar-se com ele.

- Pare com isso! - exclamou Anna. - Você não o compreende.

Mas Anton Roffe sabia que compreendia Walther Gassner até demais. Chamou o novo genro ao seu escritório.

Walther olhou com aprovação a decoração severa do escritório e os velhos quadros pendurados nas paredes.

- Gosto disso aqui - disse ele.

- Sem dúvida alguma, é melhor de que o orfanato.

Walther olhou para ele, cheio de cautela.

- Que foi que disse?

- Vamos acabar com isso. Você cometeu um erro. Minha filha não tem dinheiro.

Os olhos cinzentos de Walther tornaram-se de pedra.

- Que está querendo dizer-me?

- Não estou querendo dizer coisa alguma. Estou dizendo. Não receberá nada por intermédio de Anna, pois ela nada tem. Se você tivesse procurado saber das coisas mais a fundo, teria sabido que a Roffe and Sons é uma empresa fechada.

Isto significa que nenhumas das suas acções pode ser vendida. Vivemos com conforto, mas é só. Não há de modo nenhum uma grande fortuna com que você possa se locupletar aqui. - Tirou do bolso um envelope, que jogou na mesa à frente de Walther. - Isso o compensará do trabalho que teve.

Espero que esteja fora de Berlim às seis horas da noite de hoje. Anna nunca mais deve ter notícias suas.

Walther disse calmamente:

- Por acaso já lhe passou pela cabeça que eu me casei com Anna porque a amo?

- Claro que não. Já passou pela sua?

Walther olhou para ele um momento e disse:

- Vamos ver o preço que me foi atribuído.

Abriu o envelope e contou o dinheiro. Depois, olhou para Anton Roffe.

- Acho que valho muito mais do que vinte mil marcos.

- Pois é só o que vai receber. E dê-se por muito feliz.

- Para dizer a verdade, dou-me por muito feliz disse Walther. - Muito obrigado.

Guardou o dinheiro no bolso num gesto displicente e um momento depois saiu.

Anton Roffe sentiu-se reconfortado. Experimentava um sentimento de culpa e de aborrecimento pelo que tinha feito, mas sabia que aquela era a única solução. Anna ficaria infeliz com o facto de ter sido abandonada pelo marido, mas era melhor que isso tivesse acontecido o mais rápido possível. Tentaria descobrir alguns homens da idade dela em condições, tendo a certeza de que o homem que escolhesse iria respeitá-la, ainda que não a amasse. Teria de ser alguém que se interessasse por ela e não pudesse ser comprado por vinte mil marcos.

Quando Anton Roffe chegou em casa. Anna correu-lhe ao encontro com os olhos cheios de lágrimas. Ele a tomou nos braços e disse:

- Anna, tudo vai correr bem. Você se consolará...

Anton olhou por sobre os ombros dela e viu Walther Gassner à porta. Anna olhava para o dedo e dizia:

- Veja o que Walther comprou para mim! Já viu algum dia um anel mais bonito? Custou vinte mil marcos.

No fim, os pais de Anna foram forçados a aceitar Walther Gassner. Como presente de casamento,, compraram para o casal uma bela casa senhorial no Wannsee, com algumas antiguidades, sofás e poltronas confortáveis, uma mesa Roentgen na biblioteca e as paredes revestidas de estantes de livros. O andar de cima era mobiliado com elegantes peças dinamarquesas e suecas do século XVIII.

- Tudo isso é demais - disse Walther a Anna. - Nada quero deles, nem de você. Gostaria de poder comprar muitas coisas belas para você, - disse-lhe ele com um sorriso forçado de menino -, mas não tenho dinheiro.

- Claro que tem - respondeu Anna. - Tudo o que tenho é seu.

Walther sorriu ternamente para ela e disse:

- É mesmo?

Anna insistiu em explicar a sua situação financeira, embora Walther não se mostrasse disposto a discutir questões de dinheiro. Tinha um fundo no nome dela que lhe permitia viver com conforto, mas a base de sua fortuna era constituída de acções da Roffe and Sons. As acções não poderiam, porém, ser vendidas sem a aprovação unânime da directoria.

- Qual é o valor total de suas Acções? - perguntou Walther.

Anna disse. Walther não acreditou que fosse tanto e a fez repetir a importância.

- E você não pode vender as acções?

- Não. Meu primo Sam não consentiria. Ele retém as acções que asseguram o controle. Um dia...

Walther manifestou o seu desejo de trabalhar na empresa da família. Anton se opôs.

- Que pode um camarada como você, que não sabe senão esquiar, dar de positivo à Roffe and Sons? - perguntou ele.

Mas acabou cedendo aos apelos da filha, e Walther começou a trabalhar na administração da companhia. Dedicou-se ao trabalho e progrediu rapidamente. Quando o pai de Anna morreu, dois anos depois, Walther passou a fazer parte da directoria. Anna tinha orgulho dele, pois Walther era um marido perfeito e continuava a mostrar-se enamorado dela.

Levava-lhe sempre flores e pequenos presentes, e parecia muito feliz em passar as noites em casa a sós com ela. A felicidade de Anna era quase excessiva, e ela costumava rezar em silêncio, agradecendo a Deus.

Apreendeu a cozinhar para fazer os pratos favoritos de Walther. Fazia chucrute com batatas, carne de porco cozida com cerveja e temperada com caminho, acompanhada de uma maça cozida, recheada com airelles, as pequenas bagas vermelhas.

- Você é a melhor cozinheira do mundo, - dizia Walther, e Anna ficava vermelha de orgulho.

No terceiro ano de casada, Anna ficou grávida.

Houve algumas complicações durante os oito meses de gravidez, mas Anna tudo suportou, muito feliz. Havia, entretanto, uma coisa que a preocupava.

Começou num dia, depois do almoço. Ela estava tricotando um suéter para Walther, pensando na vida, e de repente ouviu a voz de Walther que dizia:

- Que é que você está fazendo, Anna, sentada aí no escuro?

A tarde tinha passado e anoitecia. Anna olhou para o suéter no colo e viu que não havia tocado nele. Para onde fora o tempo? Onde tinha estado seu espírito? Depois disso, Anna passou por estados semelhantes e começou a pensar que esses acessos de inconsciência, essas decidas para o nada talvez fossem um presságio, um sinal de que ela ia morrer. Na verdade, não tinha medo da morte, mas não podia tolerar a idéia de se separar de Walther.

Quatro semanas antes da data prevista para o parto, Anna teve uma das suas crises de inconsciência, falseou o pé nu degrau e rolou pela escada.

Acordou no hospital.

Walther estava sentado na cama e lhe segurava a mão.

- Que susto você me deu!

Num pavor súbito, Anna pensou: "Meu filho! Perdi meu filho!" Levou a mão à barriga e não sentiu mais nada.

- Meu filho! Onde está meu filho?

O médico disse:

- Teve gémeos, Sra. Gassner.

Anna voltou-se para Walther, que estava com os olhos cheios de lágrimas.

- Um menino e uma menina.

Ela poderia ter morrido naquele momento de felicidade.

Sentiu um desejo súbito de ter os filhos nos braços. Queria vê-los, apalpá-los, carregá-los.

- Falaremos sobre isso quando você estiver mais forte disse o médico. - Só depois que você estiver mais forte.

Asseguravam a Anna que ela estava melhorando dia após dia, mas ela se sentia apavorada. Estava acontecendo alguma coisa incompreensível com ela. Walther chegava, tomava-lhe a mão e se despedia. Ela o olhava, surpresa, e começava a dizer:

- Mas você chegou agora mesmo...

Olhava então para o relógio e via que três ou quatro horas se tinham passado.

Tinha a vaga lembrança de que haviam levado os filhos para ela uma noite e que no mesmo instante ela adormeceu. Não se lembrava com clareza das coisas e tinha receio de perguntar. Mas não tinha importância. Poderia ver os filhos à vontade quando Walther a levasse para casa.

Afinal, o grande dia chegou. Anna saiu do hospital numa cadeira de rodas, embora dissesse que tinha forças para caminhar. Na realidade, sentia-se muito fraca, mas estava muito nervosa e sabia que nada mais importava senão o facto de que ia ver os filhos.

Walther entrou com ela nos braços e começou a subir a escada em direcção do quarto.

- Não! - exclamou ela. - Leve-me para o quarto das crianças!

- Agora, você deve descansar. Está um pouco fraca...

Ela não quis mais escutar. Saiu dos braços dele e correu para o quarto das crianças.

As cortinas estavam descidas, e Anna levou algum tempo para ambientar os olhos à escuridão. Era tamanha a sua agitação que ela estava até um pouco tonta, e teve receio de desmaiar.

Walther a havia acompanhado e estava falando, tentando explicar alguma coisa. Mas, fosse o que fosse, não tinha importância.

Eles estavam ali, dormindo nos berços. Anna se aproximou lentamente como se não os quisesse perturbar e ficou a olhá-los. Eram as crianças mais lindas que já vira.

Mesmo naquela idade, podia ver que o menino seria bonito como o pai e teria os mesmos bastos cabelos louros. A menina era como uma frágil boneca de cabelos sedosos e dourados e rosto pequeno e triangular.

Anna voltou-se para Walther e disse com voz embargada pela emoção:

- São lindos... Eu estou tão feliz...

- Vamos, Anna - murmurou Walther.

Passou o braço pelo corpo dela, abraçando-a. Havia uma fome impetuosa dentro dele, e ela começou a sentir também alguns impulsos. Fazia tempo que não se amavam.

Walther tinha razão. Havia bastante tempo para as crianças.

Deu ao menino o nome de Peter e à menina, o de Birgitta.

Eram dois belos milagres que ela e Walther tinham feito, e Anna passava horas no quarto dos gémeos, brincando e falando com eles. Ainda que não pudessem compreendê-la, tinha certeza de que sentia o seu amor. às vezes, quando estava mais entretida com os filhos, voltava-se e via Walther parado à porta, de volta do escritório. Anna compreendia então que o dia inteiro passava sem que ela sentisse.

- Venha - dizia ela. - Estamos jogando.

- Já preparou o jantar? - perguntava Walther, e ela de repente se sentia culpada. Resolvia dar mais atenção a Walther e menos às crianças, mas no dia seguinte tudo se repetia. Os gémeos eram como um íman irresistível que a atraía. Anna ainda amava muito Walther e tentava atenuar o sentimento de culpa, convencendo-se de que as crianças eram também parte dele. Todas as noites, logo que Walther adormecia, ela saía da cama e ia para o quarto das crianças e ficava a olhá-los até que a luz da manhã começasse a encher o quarto. Apressando-se então em voltar para a cama antes que Walther acordasse.

Uma vez, Walther entrou no quarto das crianças no meio da noite e surpreendeu-a.

- Quer me dizer o que está fazendo?

- Nada, querido. Estava apenas...

- Volte para a cama!

Ele nunca lhe falara com tanta rispidez.

Na manhã seguinte, Walther disse:

- Acho que devemos tirar umas férias. Seria muito bom para nós dois.

- Mas, Walther, as crianças ainda são muito pequenas para viajar.

- Estou falando de férias para nós dois.

Ela abanou a cabeça.

- Eu não poderia deixar as crianças.

Ele lhe tomou as mãos e disse:

- Quero que se esqueça das crianças.

- Esquecer-me das crianças? - perguntou ela, atónita.

Walther olhou-a bem nos olhos e disse:

- Anna, lembra-se de como tudo corria bem entre nós antes de você ficar grávida? Lembra-se de como vivíamos alegres e felizes, sem ninguém mais para interferir?

Foi então que ela compreendeu. Walther tinha ciúmes dos filhos.

As semanas e os meses passaram rapidamente. Walther deixou de se aproximar das crianças. Nos aniversários delas, Anna lhes comprava belos presentes. Walther sempre achava um jeito de estar fora da cidade em negócios. Anna não podia continuar a iludir-se para sempre. A verdade era que Walther não tinha o menor interesse pelos filhos. Anna julgava que talvez a culpa fosse dela, pois era por demais interessada neles. "Obcecada" foi uma palavra que Walther certa vez usara. Ele lhe pedira que consultasse um médico a esse respeito, e ela fora só para fazer-lhe a vontade. Mas o médico era um bobo. No momento em que começara a falar com ela, Anna o isolara, deixando seu pensamento vagar para bem longe. Por fim, ouviu o homem dizer:

- Nosso tempo está esgotado, Sra. Gassner. Poderá vir na próxima semana?

- É claro.

Nunca mais voltou.

Anna sentiu que o problema era tanto de Walther quanto dela. Se ela era a culpada por amar demais as crianças, ele o era por não amá-las o quanto devia.

Anna apreendeu a não falar nelas na presença de Walther, mas logo que ele saía para o escritório, corria para o quarto dos filhos. Não eram mais bebés. Tinham completado três anos, e Anna já podia ter uma idéia de como seriam quando crescessem. Peter era alto para a sua idade e tinha um corpo forte e atlético, como o pai. Ana o tomava no colo e murmurava:

- Ah, meu Peter, o que você irá fazer com as pobres Frãuleins? Seja bom para elas, meu pobre filhinho, pois com você elas não têm chances.

Peter sorria timidamente e abraçava-a.

Anna voltava-se então para Birgitta, que ficava cada dia mais linda. Não se parecia nem com Anna nem com Walther.

Tinha finos cabelos dourados e uma pele delicada como porcelana. Peter tinha o temperamento do pai, e Anna de vez em quando tinha necessidade de repreendê-lo. Quando

Walther não estava em casa, Anna punha discos ou lia para eles. Insistiam em que Anna lhe lesse histórias de bichos-papões, duendes e feiticeiras, repetindo-as sem parar  à noite, Anna fazia-os dormir com uma canção.

Anna rezava muito para que o tempo suavizasse a atitude de Walther, fazendo-o mudar. Mudou, sim, mas para pior. Odiava as crianças. A princípio, Anna pensara que era porque Walther queria todo o amor para si, sem dividi-lo com mais ninguém.

Mas, pouco a pouco, teve consciência de que o sentimento dele não era proveniente do amor por ela. Era de ódio. O pai dela é que estava certo. Walther se casara com ela por dinheiro. As crianças representavam para ele uma ameaça, e ele queria ver-se livre delas. Falava cada vez com mais frequência a Anna da venda das acções.

- Sam não tem o direito de impedir-nos. Poderíamos pegar todo esse dinheiro e ir viver em algum canto. Só nós dois.

Ela o escutava, espantada.

- E as crianças?

- Não - respondia ele, exaltado. - Escute, para o nosso bem, temos que nos livrar delas. É preciso.

Foi então que Anna começou a compreender que ele era louco. Ficou apavorada. Walther tinha despedido todos os empregados, deixando apenas uma faxineira, que ia trabalhar uma vez por semana. Anna e as crianças estavam sozinhas em casa à mercê dele. Walther precisava de tratamento. Talvez não fosse muito tarde ainda. No século XV, os loucos eram arrebanhados e mantidos presos pelo resto da vida, em grandes barcos, Narrenschiffe, os navios de loucos. Mas agora, com os recursos da medicina moderna, devia haver um meio de curar Walther.

E naquele momento, naquele dia de setembro, Anna estava encolhida num canto do seu quarto, onde Walther a trancara, e esperava que ele voltasse. Sabia o que tinha de fazer pelo bem dele, dela e das crianças. Levantou-se e foi até o telefone. Hesitou apenas por um instante. Depois, tirou o telefone do gancho e discou o número de emergência da polícia.

Uma voz estranha atendeu:

- Hallo.

- Já! - Sua voz tremia.

Alguém lhe tomou de repente o telefone da mão e desligou-o.

Anna recuou.

- Por favor - disse ela em voz chorosa. - Não me faça mal...

Walther se aproximava dela com os olhos brilhantes e a voz tão macia que ela quase não podia ouvi-lo.

- Não vou lhe fazer mal. Eu amo você, não sabe disso?

Tocou-a, e ela sentiu um arrepio percorrer todo o corpo.

- Acontece que não queremos a polícia aqui em casa, não é mesmo?

Ela balançou a cabeça, tão aterrada que não podia falar.

- As crianças é que estão causando todo o problema. Temos de nos livrar delas. Eu...

Neste momento, a campainha da porta tocou no andar térreo.

Walther parou, hesitante. A campainha tornou a tocar.

- Fique aqui - ordenou ele. - Vou voltar.

Anna viu, petrificava, o marido atravessar o quarto. Bateu a porta e passou a chave.

Ele tinha dito que ia voltar.

Walther Gassner desceu as escadas rapidamente, foi até á porta e abriu-a. Um homem com uma farda cinzenta de mensageiro tinha um envelope na mão.

- Uma correspondência urgente para o Sr. e a Sra. Walther Gassner.

- Pode entregar - disse Walther.

Fechou a porta, olhou para o envelope e abriu-o. Leu então o telegrama.

"Tenho o pesar de comunicar que Sam Roffe morreu num acidente de alpinismo. Por favor, esteja em Zurique às doze horas de sexta-feira para uma reunião de emergência da directoria".

Quem assinava a mensagem era Rhys Williams.

 

Capítulo 3

Roma. Segunda-feira, 7 de setembro. 18 horas.

Ivo Palazzi estava de pé no meio do quarto com o sangue a escorrer-lhe do rosto.

- Mamma mia!

- Nem comecei ainda a arruinar você, miserável figlio di putana! - gritou Donatella.

Estavam ambos nus no grande quarto do seu apartamento na Via Montemignaio. Donatella tinha o corpo mais sensual e excitante que Ivo Palazzi já conhecera, e mesmo naquele momento, quando tinha o rosto ensanguentado pelas unhadas dela, sentia um prelúdio de desejo inflamar-lhe o corpo.

Dio, como era bela! Havia nela uma decadência inocente que o enlouquecia. Tinha um rosto de leopardo, com os malares salientes e os olhos amendoados, lábios cheios e sensuais que o mordiam e sugavam e... mas não devia pensar nisso naquele momento. Apanhou um pano branco em cima de uma cadeira, para estancar o sangue, e compreendeu tarde demais que se tratava de sua camisa.

Donatella estava no meio da grande cama e gritava para ele:

- Só quero é que você sangre até morrer! Quando eu acabar com você, seu mulherengo imundo, não restará nada onde um gatinho possa fazer cocó!

Pela centésima vez, Ivo Palazzi ficou sem saber como chegara àquela situação impossível. Sempre se gabara de ser o mais feliz dos homens, e todos os seus amigos concordavam com ele. Todos os seus amigos? Todo mundo! Ivo não tinha inimigos. Nos seus tempos de solteiro, fora um romano despreocupado, sem um só cuidado na vida, um conquistador invejado por metade dos homens da Itália. A sua filosofia se resumia na frase: "Fasi onore Con una donna". Isso mantinha Ivo muito ocupado. Era um verdadeiro romântico. Vivia a apaixonar-se, e, a cada vez, usava seu novo amor para ajudá-lo a esquecer o anterior. Ivo adorava as mulheres, e para ele todas eram belas, das putanas que exerciam o seu antigo ofício ao longo da Via Appia às modelos de alta moda que se pavoneavam pela Via Condotti. As únicas mulheres a que Ivo não ligava eram as americanas. Eram muito independentes para o seu gosto. Além disso, que se poderia esperar de uma nação cuja língua era tão pouco romântica a ponto de lá se traduzir Giuseppe Verdi por Joe Green?

Ivo tratara sempre de ter várias mulheres em cada uma das fases de preparação. Havia cinco fases. Na primeira, situavam-se os conhecimentos recentes. As garotas recebiam telefonemas diários, flores e pequenos volumes de poesia erótica. Na segunda fase, estavam aquelas a quem ele mandava pequenos presentes de Gucci e caixas de porcelana com bombons de Perugina. As da terceira fase recebiam jóias ou roupas, e eram levadas para jantar no El Toula ou na Taberna Flavia. As das quarta fase conheciam a cama de Ivo e apreciavam a sua notável técnica amorosa. Um encontro amoroso com Ivo era elaborado como uma produção de cinema. O belo apartamento na

Via Margutta ficava cheio de flores. A música podia ser ópera, clássica ou rock, de acordo com as preferências da escolhida. Ivo era soberbo cozinheiro, e uma das suas especialidades era justamente pollo alla cacciatora, frango à caçadora. Depois do jantar, uma garrafa de champanha gelado para beber na cama... Sim, Ivo adorava a quarta fase.

Mas a quinta era provavelmente a mais delicada de todas.

Constava de uma fala emocionada de adeus, de um generoso presente de despedida e um triste arrivederci.

Mas tudo isso havia acontecido no passado. Agora, Ivo Palazzi olhava para o rosto ensanguentado e arranhado no grande espelho acima da cama e se sentia horrorizado.

Parecia que fora atacado por uma máquina enlouquecida.

- Veja o que você fez comigo! - exclamou ele. - Sei que não foi de propósito, cara!

Aproximou-se da cama a fim de tomar Donatella nos braços. Os braços macios dela cingiram-no e, quando ele começou a abraçá-la, ela cravou as longas unhas nas suas costas, e as fez correr pela carne como se fosse um animal selvagem. Ivo deu um grito de dor.

- Pode gritar! - exclamou Donatella. - Se eu tivesse aqui uma faca, cortaria o seu cazzo e o enfiaria por sua miserável garganta dentro!

- Por favor! - pediu Ivo. - As crianças podem ouvir.

- Melhor! Já é tempo de saberem que espécie de monstro é o pai delas!

Ivo deu um passo na direcção dela.

- Caríssima...

- Não me toque! Prefiro me entregar ao primeiro marinheiro sifilítico que encontrar no meio da rua a deixar que você se aproxime de mim.

Ivo aprumou o corpo, ofendido no seu orgulho.

- Nunca esperei que a mãe dos meus filhos falasse assim comigo!

- Quer que eu fale delicadamente com você? Quer que eu deixe de tratá-lo como o verme que você é? - perguntou Donatella, erguendo de novo a voz. - Então me dê o que quero!

Ivo olhou nervosamente para a porta.

- Não posso dar, caríssima, porque não tenho...

- Consiga então para mim! Você prometeu!

Ela estava começando a ficar exasperada de novo, e Ivo achou que o melhor era sair dali antes que os vizinhos chamassem outra vez os carabinieri.

- Não vai ser fácil conseguir um milhão de dólares. Mas vou dar um jeito...

Vestiu apressadamente as cuecas e as calças e calçou as meias e os sapatos, enquanto Donatella andava pelo quarto com os seios magníficos e firmes empinados no ar e Ivo pensava:

"Meu Deus, que mulher! Como eu a adoro!" Pegou a camisa ensanguentada. Não havia outro jeito senão vesti-la. Sentiu nas costas e no peito a humidade pegajosa do sangue.

Olhou-se ainda uma vez ao espelho. Algumas gotas de sangue ainda escorriam dos profundos cortes que Donatella lhe abrira no rosto com as unhas.

Murmurou então:

- Caríssima, como é que eu vou explicar isso a minha mulher?

A mulher de Ivo Palazzi era Simonetta Roffe, uma herdeira do ramo italiano da família Roffe. Quando a conheceu, Ivo era um jovem arquitecto. O escritório mandara-o supervisionar algumas reformas na Villa Roffe em Porto Ercole. No momento em que Simonetta pôs os olhos em Ivo, seus dias de solteiro estavam contados. Ivo tinha chegado à quarta fase com ela na primeira noite e, pouco tempo depois, estava casado. Simonetta era tão decidida quanto bela, e sabia muito bem o que queria.

Queria Ivo Palazzi. Foi assim que Ivo se viu transformado de homem solteiro e despreocupado em marido de uma jovem e bela herdeira. Desistiu sem pesar dos seus sonhos como arquitecto e começou a trabalhar na Roffe and Sons, com um magnífico escritório na EUR, a parte de Roma iniciada com tantas esperanças pelo falecido e mal-aventurado Duce.

Desde o início, Ivo fez sucesso na firma. Era inteligente, aprendia com facilidade as coisas, e todos o adoravam.

Era impossível não adorar Ivo. Estava sempre sorridente e era sempre encantador. Os amigos invejavam-lhe a posição e não sabiam ao certo como ele conseguira. A explicação era simples. Ivo mantinha profundamente oculto o lado sombrio da sua natureza. Na realidade, era um homem violentamente emotivo, capaz de ódios explosivos, capaz até de matar.

O casamento de Ivo com Simonetta deu certo. A princípio, ele receara que pudesse ser uma servidão que lhe tolhesse a liberdade, mas logo viu que os seus receios eram infundados. Submeteu-se apenas a um programa de austeridade, reduzindo o número de suas mulheres, e tudo continuou como dantes.

O pai de Simonetta comprou para eles uma bela casa em Olgiata, uma grande propriedade vinte e cinco quilómetros ao norte de Roma, protegida por portões fechados e vigiada por guardas fardados.

Simonetta era uma esposa maravilhosa. Amava Ivo e tratava-o como um rei, o que, na opinião de Ivo, ele merecia.

Havia apenas uma leve falha em Simonetta. Quando sentia ciúmes, virava uma fera. Desconfiara certa vez que Ivo levara uma mulher do departamento de compras a uma viagem ao Brasil.

Ele se mostrara indignado e ofendido com a acusação. Antes que a discussão terminasse, a casa estava em cacos. Não havia um prato ou um móvel intacto, e quase tudo fora quebrado na cabeça de Ivo. Simonetta avançara para ele com uma faca de cozinha ameaçando matá-lo e matar-se depois. Ivo tivera que empregar toda a sua força para tomar-lhe a faca. Terminaram brigando no chão e, aí, Ivo rasgara-lhe todas as roupas e acabara com a raiva dela. Mas, depois desse incidente, Ivo se tornou mais discreto.

Disse à moça do departamento de compras que não podia mais fazer viagens com ela, e tinha o cuidado de não deixar que nem a sombra de uma suspeita o tocasse. Sabia que era o homem mais feliz do mundo. Simonetta era jovem, bela, inteligente e rica.

Gostavam das mesmas coisas e da companhia das mesmas pessoas.

Era um casamento perfeito, e Ivo, muitas vezes, ao levar uma garota da segunda para a terceira fase ou da quarta para a quinta, ficava sem saber por que era infiel.

Encolhia, então, os ombros filosoficamente e dizia: Alguém tem que dar um pouco de felicidade a essas mulheres.

Ivo e Simonetta estavam casados havia três anos quando ele conheceu Donatella Spolini durante uma viagem de negócios à Sicília. Foi mais uma explosão do que um encontro.

Eram dois planetas que se chocavam. Enquanto Simonetta tinha um corpo esbelto e suave de uma jovem esculpida por Manzú, Donatella tinha o corpo sensual e exuberante de uma figura de Rubens.

O rosto era excepcional, e os olhos verdes mortiços inflamavam Ivo. Foram para a cama uma hora depois de se terem conhecido, e Ivo, que sempre se vangloriava das suas proezas como amante, descobriu que era um simples aluno e Donatella, uma professora.

Ela o levou a altura que ele nunca havia atingido, e o corpo de Donatella podia fazer com ele coisas que Ivo nunca julgara possível. Ela era uma cornucópia inesgotável de prazer, e quando Ivo estava deitado na cama, de olhos fechados, saboreando sensações incríveis, convenceu-se de que seria rematado idiota se um dia abrisse mão de Donatella.

Assim, Donatella se tornara amante de Ivo. A única condição imposta por ela foi que ele se livrasse de todas as outras mulheres em sua vida, excepto a sua esposa.

Ivo concordara, todo feliz. Viviam assim haviam oito anos e durante esse tempo, ele nunca fora infiel, nem à esposa, nem à amante.

Satisfazer as duas mulheres ávidas seria suficiente para exaurir um homem comum, mas, no caso de Ivo acontecia exactamente o contrário. Quando amava Simonetta, pensava em Donatella e no seu corpo redondo e cheio, sentindo-se então cheio de desejo. Quando amava Donatella, pensava nos suaves seios jovens de Simonetta e no seu delicado cu e se portava como um animal enfurecido. Com qualquer das mulheres ao seu lado, sentia que estava enganando a outra, e isso ampliava entremente o seu prazer.

Ivo comprara para Donatella um belo apartamento na Via Montemignaio e ficava com ela todos os momentos possíveis.

Tomava todas as providências para uma viagem de negócios súbita e então passava o tempo todo na cama com Donatella. Parava para vê-la quando ia para o escritório e, depois do almoço, passava a hora da sesta com ela. Uma vez, quando viajava de navio para Nova York, no Queen Elizabeth II., em companhia de Simonetta, instalou Donatella num camarote, um convés abaixo. Foram os cinco dias mais estimulantes da vida de Ivo.

Na noite em que Simonetta anunciou a Ivo que estava grávida, ele sentiu uma alegria indescritível. Uma semana depois, Donatella informou a Ivo que estava esperando um filho, e o contentamento de Ivo transbordou. Por que, perguntava ele, os deuses me cumulam de bens? Com toda a humildade, Ivo reconhecia às vezes que não merecia todos os grandes benefícios que lhe caíam nas mãos.

No devido tempo, Simonetta deu à luz uma menina e, uma semana depois, Donatella deu a luz um menino. Que mais podia um homem querer? Mas os deuses ainda não estavam satisfeitos.

Pouco tempo depois, Donatella disse a Ivo que estava de novo grávida e, uma semana depois, Simonetta ficou grávida novamente. Nove meses depois, Donatella deu a Ivo outro filho, e Simonetta presenteou o marido com outra menina. Quatro meses depois, as duas mulheres estavam novamente grávidas e, desta vez, tiveram os partos no mesmo dia. Ivo correu nervosamente do Salvator Mundi, onde Simonetta estava internada, para a clínica Santa Chiara, para onde levara Donatella. Corria de hospital para hospital, no seu carro, pelo Reccordo Anulare, acenando para as mulheres sentadas á frente de suas barracas à beira da estrada, sobre guarda-sóis cor-de-rosa, à espera dos fregueses.

Ivo dirigia muito depressa e não podia ver-lhes os rostos, mas amava a todas e lhes desejava felicidades.

Donatella teve outro filho, e Simonetta, outra filha.

As vezes, Ivo desejava que tivesse acontecido ao contrário.

Era errado que sua mulher só lhe tivesse dado filhas, enquanto sua amante lhe dava filhos, pois ele desejava herdeiros masculinos que pudessem continuar o seu nome.

Apesar disso, era um homem contente. Tinha três filhos em casa e três fora. Adorava a todos e era muito bom para eles, nunca se esquecia dos aniversários, dos dias dos seus santos e dos seus nomes. As meninas se chamavam Isabella, Benedetta e Camilla. Os meninos, Francesco, Carlo e Luca.

Quando os filhos cresceram, as coisas começaram a ficar mais complicadas para Ivo. Incluindo a mulher, a amante e seis crianças. Ivo tinha que se lembrar de oito aniversários, de oito dias de santos e de oito presentes dobrados nas festas. Providenciou para que as escolas das filhas e dos filhos fossem bem separadas. As meninas foram mandadas para o Saint-Dominique, o convento francês na Via Cassia, e os meninos foram matriculados no Massimo, o colégio dos jesuítas na EUR.

Ivo conhecia e encantava todos os professores dos filhos, ajudava todos a fazer os deveres de casa e consertava os brinquedos quebrados. O esforço de manter duas famílias separadas punha à prova toda a energia de Ivo, mas ele dava um jeito. Era pai, marido e amante exemplar. No dia de Natal, ficava com Simonetta, Isabella, Benedetta e Camilla. No Dia dos Reis, a 6 de janeiro, Ivo se vestia como a Befana, a feiticeira, e distribuía presentes e carbone, a bala de açúcar-cande que as crianças adoravam, a Francesco, Carlo e Luca.

A mulher e a amante de Ivo eram belas e seus filhos eram inteligentes e bonitos. Sentia orgulho deles. A vida era maravilhosa.

Foi então que os deuses cuspiram no rosto de Ivo Palazzi.

Como acontece com muitas grandes catástrofes, tudo chegou sem o menor aviso.

Ivo tinha feito amor com Simonetta antes do café da manhã e depois fora directamente para o escritório, onde fizera um bom trabalho na parte da manhã. à uma hora da tarde, disse a seu secretário - Simonetta não admitia secretárias - que ia a uma reunião, que decerto lhe tomaria o resto da tarde.

Sorrindo ante os prazeres à sua espera, Ivo circundou a construção que bloqueava a rua no Lungo Tevere, onde estavam construindo o metro havia dezassete anos, atravessou a ponte para o Corso Francia e, trinta minutos depois, entrava na sua garagem na Via Montemignio. No momento em que abriu a porta do apartamento, soube que havia algo de anormal.

Francesco, Carlo e Luca rodeavam Donatella em prantos.

Quando se aproximou, Donatella o olhou com tal expressão de ódio, que por um instante, Ivo teve a impressão de haver entrado em outro apartamento.

- Stronzo! - gritou ela para Ivo.

Ivo correu os olhos em redor, cheio de espanto.

- Caríssima! Crianças! Que foi que houve? Que foi que eu fiz?

Donatella levantou-se e jogou-lhe um exemplar da revista Oggi.

- Está aí o que você fez. Veja!

Atónito, Ivo pegou a revista e viu na capa uma fotografia em que aparecia ele, Simonetta e suas três filhas com a legenda "Padre di famiglia" Dio! Tinha-se esquecido inteiramente daquilo. Meses antes a revista lhe pedira autorização para fazer uma reportagem sobre sua família e ele, sem dar muita atenção ao caso, concordara.

Nunca esperava que dessem tanto destaque à reportagem. Olhou para a amante e para os filhos que choravam e disse:

- Posso explicar isso...

- Os colegas deles já explicaram tudo - exclamou Donatella. - Meus filhos voltaram para casa chorando porque na escola todos os estavam chamando de bastardos!

- Cara, eu...

- Os vizinhos estão nos tratando como se fôssemos leprosos.

Não podemos mais levantar a cabeça. Temos de sair daqui!

Ivo olhou para ela, atordoado.

- Que é que você está dizendo?

- Vou sair de Roma com meus filhos.

- São meus filhos também, e você não pode fazer isso!

- Tente impedir-me e eu o matarei!

Era um pesadelo. Ivo ficou ali, vendo a amante e os filhos entregues a um verdadeiro acesso de desespero e pensando: "Não! Isso não pode estar acontecendo comigo"!

Mas Donatella ainda não dissera tudo.

- Antes de sairmos daqui, quero um milhão de dólares. Em dinheiro.

Era tão ridículo que Ivo começou a rir.

- Um milhão de dólares...

- Se não me der o dinheiro, telefonarei para sua mulher.

Isso havia acontecido seis meses antes. Donatella ainda não cumprira a sua ameaça, mas Ivo sabia que poderia cumpri-la.

Todas as semanas, ela aumentava a pressão. Telefonava para o escritório dele e dizia:

- Não me interessa como vai conseguir o dinheiro, mas trate de arranjá-lo.

Havia somente um meio de conseguir uma quantia tão grande.

Tinha de vender as acções da Roffe and Sons. Sam Roffe não consentiria na venda. Sam Roffe estava prejudicando a felicidade conjugal e o futuro de Ivo. Era preciso dar um jeito nisso. Se conhecesse as pessoas certas, isso poderia ser feito.

O que mais machucava Ivo era que Donatella, sua querida amante apaixonada, não o deixava tocar nela. Ivo podia visitar as crianças todos os dias se quisesse, mas não podia entrar no quarto.

- Só depois que me der o dinheiro deixarei você fazer amor comigo - dizia Donatella.

No seu desespero, Ivo telefonara para Donatella uma tarde e dissera:

- Vou para aí agora mesmo. Consegui o dinheiro.

Pretendia amá-la primeiro e acalmá-la depois. Não poderia deixar de dar certo. Conseguiu fazê-la tirar a roupa e então disse a verdade.

- Ainda não tenho o dinheiro, cara, mas dentro em breve...

Foi então que ela o atacou com as unhas como um animal feroz.

Ivo estava pensando nessas coisas ao afastar-se de carro do apartamento de Donatella, como então pensara a considerá-lo, e virou para o norte na movimentada Via

Cassia, de volta à sua casa em Olgiata. Olhou para o rosto no espelho. Os ferimentos não estavam mais sangrando, mas eram bem visíveis no seu rosto. Olhou para a camisa manchada de sangue. Como poderia explicar a Simonetta os arranhões no rosto e nas costas? Por um momento passou-lhe pela cabeça a idéia de contar a verdade, mas abandonou esse pensamento absurdo. Talvez pudesse confessar a Simonetta que, num momento de aberração mental, tinha ido para a cama com uma mulher e ela ficara grávida... Sim, poderia dizer isso e escapar com á vida. Mas três filhos? E no espaço de oito anos? A sua vida não valeria uma nota de cinco libras. E não podia deixar de ir para casa, pois estavam esperando convidados para jantar e Simonetta fazia questão da sua presença. Ivo estava num beco sem saída. O seu casamento estava acabado. Só San Gennaro, o santo dos milagres, poderia salvá-lo. De repente, viu um cartaz ao lado da Via Cassia.

Virou o carro na direcção do cartaz e feriou.

Trinta minutos depois, transpunha as portas de Olgiata.

Sem dar atenção aos olhares dos guardas para seu rosto arranhado e a sua camisa ensanguentada, Ivo seguiu pelos caminhos da propriedade e foi parar diante da casa.

Abriu a porta e entrou na sala, onde estavam Simonetta e Isabella, a filha mais velha. Simonetta ficou espantada ao olhar para o marido.

- O que aconteceu, Ivo?

Ivo sorriu a contragosto, tentando dissimular a dor que estava sentindo.

- Creio que fiz uma coisa completamente irreflectida, cara...

Simonetta havia se aproximado e examinava os arranhões. Ivo podia ver que ela já estava apertando os olhos. Perguntou então com uma voz repassada da maior frieza:

- Quem foi que lhe arranhou o rosto desse jeito?

- Tibério - disse Ivo, tirando de trás de si um grande e feio gato cinzento que, naquele momento, soltou-se de suas mãos e fugiu.

- Comprei-o para Isabella, mas o danado do bicho me atacou num trecho da estrada em que era muito perigoso parar.

- Povero amore mio! - Instantaneamente Simonetta estava ao seu lado. - Angelo mio! Vamos subir que eu quero botar você na cama. Vou telefonar para o médico e passar iodo nisso...

- Não! Não é possível! - disse Ivo, fazendo uma careta de dor quando ela passou os braços pelos ombros dele. Cuidado! Acho que o bicho me arranhou também as costas.

- Como você deve estar sofrendo, amore!

- Nem tanto - disse Ivo com convicção. - Estou até me sentindo bem.

A campainha da porta tocou.

- Vou ver quem é - disse Simonetta.

- Não, eu vou. Estou esperando uns papéis importantes do escritório.

Foi até à porta da frente e abriu-a.

- Signor Palazzi?

- Si.

Um mensageiro, vestido com um uniforme cinzento, entregou-lhe um envelope. Dentro havia um teletipo de Rhys Williams. Ivo leu rapidamente a mensagem e ficou muito tempo parado, a pensar. Depois, respirou fundo e subiu afim de preparar-se para o jantar.

 

Capítulo 4

Buenos Aires. Segunda-feira, 7 de setembro. 15 horas.

O autódromo de Buenos Aires, nos arredores da capital Argentina, estava apinhado com cerca de cinquenta mil espectadores, que tinham ido assistir às corridas do campeonato. Era uma corrida de cento e quinze voltas num circuito de quase sete quilómetros. A corrida já se realizava havia quase cinco horas sob um sol fortíssimo e, dos trinta carros que haviam largado, restavam poucos. A assistência estava presenciando o desenrolar de um capítulo da história do desporto. Talvez aquela corrida fosse única nos anais do automobilismo. Não tinha havido antes e talvez nunca houvesse depois nada parecido. Todos os nomes que se tinham tornado lendários nas pistas estavam ali naquele dia: Chris Amon, da Nova Zelândia, e Brian Redman, de Lancashire. Ali estavam o italiano Andrea Di Adamici num Alfa Romeo 33 e Carlos Moco, do Brasil, num Maech. O campeão belga Jack Ickx estava presente, e Reine Wisell, da Suécia, pilotava um brm.

A pista parecia um Arco-Iris alucinado, feito dos velozes vermelho, verde, preto, branco e dourado dos Ferraris, dos Brabhams, dos M19-A da McLarem e dos fórmula 3 da Lotus.

A medida que as voltas se sucediam, os gigantes começavam a cair. Chris Amon estava em quarto lugar quando o carro enguiçou. Raspou no Cooper de Brian Redman, que teve de desligar a ignição para não perder o controle, mas os dois carros ficaram fora de competição. Reine Wisell estava comandando a corrida, seguido de perto por Jack Ickx. Na grande curva, o câmbio do brm se desintegrou, e a bateria e o equipamento eléctrico pegaram fogo. O carro começou a rodar e bateu no Ferrari de Jack Ickx.

A multidão delirava.

Três carros se destacavam dos demais no primeiro pelotão.

Eram Jorge Amandaris, da Argentina, pilotando um Surtees; Nils Nilsson, da Suécia, num Matra, e Martel, da França, num Ferrari 312 B-2.. Estavam fazendo uma corrida brilhante, acelerando nas rectas, reduzindo nas curvas, avançando.

Jorge Amandaris ia à frente, e os argentinos aplaudiam febrilmente o seu compatriota. Logo atrás de Amandaris, vinha Nils Nilsson, ao volante de seu Matra vermelho e branco, seguido do Ferrari preto e dourado dirigido por Martel, da França.

O carro francês tinha passado quase despercebido até os últimos cinco minutos, quando começou a destacar-se. Do décimo lugar passara para o sétimo e depois para o quinto, fazendo uma corrida firme. A assistência viu então o francês avançar para disputar o segundo lugar ocupado por Nilsson. Os três carros corriam a mais de duzentos e oitenta quilómetros por hora. Era uma velocidade bastante perigosa em pistas cuidadosamente construídas como Brands Hatch ou Watkins Glen, mas numa pista como aquela da Argentina equivalia a suicídio. A um lado da pista foi afixado o sinal de que faltavam cinco voltas.

O Ferrari do francês tentou passar o Matra de Nilsson, mas o sueco se desviou um pouco, bloqueando a passagem.

Aproximando-se rapidamente de um carro alemão retardatário. O carro de Nilsson emparelhou com ele. O carro francês avançou até ficar no estreito espaço entre o alemão e o Matra. O francês acelerou ainda mais, forçando os dois carros a dar passagem, e partiu para ocupar o segundo lugar. A multidão, de respiração suspensa, aplaudiu essa manobra brilhante e perigosa.

Faltavam três voltas, e Amandaris estava em primeiro, com Martel em segundo e Nilsson em terceiro. Amandaris tinha visto a manobra. Sabia que o francês era bom, mas não acreditava que ele pudesse ameaçar-lhe a vitória nas últimas duas voltas. Pelo canto do olho, viu o Ferrari que tentava se emparelhar com ele.

Viu de relance o rosto frio e determinado do piloto sob o capacete. Amandaris lamentava o que tinha de fazer, mas as corridas não eram um jogo para desportistas, mas, sim, um jogo para vencedores.

Os carros se aproximavam da extremidade norte do circuito, onde havia uma curva com uma grande rampa inclinada para fora.

Era o ponto mais perigoso da pista, onde já tinha havido numerosos desastres. Amandaris lançou outro olhar rápido ao piloto francês da Ferrari e empunhou com mais força o volante.

Quando os dois carros começaram a aproximar-se da curva, Amandaris levantou levemente o pé do acelerador, de modo que o Ferrari começou a avançar. Viu o piloto lançar-lhe um olhar de espanto na sua armadilha. Jorge Amandaris esperou até que o Ferrari estivesse firmemente decidido a ultrapassá-lo por fora.

Neste momento, Amandaris abriu tudo e começou a mover-se para a direita, cortando em linha recta o caminho do francês, cujo único recurso seria subir pela rampa.

Amandaris viu a súbita expressão de espanto no rosto do francês e disse em silêncio: "Salud!" Neste momento, o piloto do carro francês virou a direcção para o Surtees de Amandaris.

O Ferrari ia colidir com ele. Havia apenas um metro de distância entre os dois carros e, naquela velocidade, Amandaris tinha de tomar uma decisão instantânea. Como alguém podia adivinhar que aquele piloto francês era inteiramente louco? Num acto rápido e reflexo, Amandaris virou o volante para a esquerda, tentando evitar que milhares de quilos de metal se chocasse com ele e freiou rápido, de modo que o carro de Jorge Amandaris derrapou. Depois, perdeu o controle e rolou pela pista numa coluna de fogo e fumaça.

Mas a atenção do público estava voltada para o Ferrari do piloto francês, que recebia a bandeirada da vitória e era imediatamente cercado por uma multidão entusiástica.

O piloto levantou-se e tirou o capacete e os óculos.

Era uma mulher de cabelos cor de trigo, curtos e feições clássicas finamente modeladas. O corpo estava trémulo não de cansaço, mas de emoção, desde o momento em que olhara para Jorge Amandaris e o fizera partir para a morte. Nos alto-falantes, um locutor dizia: "A corrida foi vencida por Hélène Roffe-Martel, da França, pilotando um Ferrari".

Duas horas depois, Hélène e seu marido Charles estavam em sua suíte no Hotel Ritz, no centro de Buenos Aires, deitados diante da lareira. Hélène estava nua sobre ele, na clássica posição de La diligence de Lyon, e Charles dizia:

- Oh, Deus! Por favor, não faça isso comigo! Por favor!

Ele foi sentindo sua excitação crescer, e ela foi aumentando a pressão, ferindo-o, observando as lágrimas aflorarem aos seus olhos.

"Estou sendo punido sem razão", pensou Charles. Ele temeu pensar no que Hélène seria capaz de fazer-lhe se soubesse do crime que ele havia cometido.

Charles Martel casara-se com Hélène Roffe pelo nome e pelo dinheiro dela. Depois da cerimónia, ela conservara o nome, ao qual acrescentara o dele, e Charles ficara com o dinheiro.

Quando descobriu que tinha feito um mau negócio, era muito tarde.

Charles Martel era advogado num grande escritório de advocacia em Paris quando conheceu Hélène Roffe. Tinham-lhe pedido que levasse alguns documentos à sala de conferências onde se realizava uma reunião. Na sala estavam os quatro sócios principais do escritório e Hélène. Charles já ouvira falar nela. Não havia na Europa quem a desconhecesse.

Era uma das herdeiras da fortuna feita com produtos farmacêuticos da família Roffe. Rebelde, alheia às convenções, e de quem os jornais e revistas gostavam de falar, era campeã de esqui, pilotava o seu Learjet, chefiava uma expedição às montanhas do Nepal, praticava automobilismo e hipismo e trocava de homem quase com a mesma facilidade com que trocava de roupa. A fotografia dela aparecia em quase todos os números de Paris-Match e Jours de France. Tinha ido ao escritório de advocacia porque ali estava se tratando do seu divórcio, mas Martel não estava interessado em saber. Os Roffes do mundo estavam fora do seu alcance.

Charles entregou os papéis. Estava um pouco nervoso não pela presença de Hélène, que não lhe interessava, mas porque se achava diante dos chefes do escritório. Representavam a Autoridade, e Charles Martel respeitava a Autoridade. Era fundamentalmente um homem retraído que se contentava em viver modestamente num pequeno apartamento em Passy, onde cuidava da sua colecção de selos.

Charles Martel não era um advogado brilhante, mas era competente, cuidadoso e honesto. Tinha um sentimento um pouco rígido de dignidade. Com pouco mais de quarenta anos, sua aparência física, embora simpática, pouco tinha de impressionante. Alguém havia dito que a personalidade dele era informe como areia molhada, e não havia injustiça na afirmação.

Foi, então, com grande surpresa para ele que, um dia depois de ter conhecido Hélène no escritório, Charles Martel foi chamado à sala de Michel Sachard, chefe da firma, que lhe disse:

- Hélène Roffe deseja que você se encarregue pessoalmente da acção de divórcio dela.

Charles Martel ficou estupefacto.

- Mas porquê eu, Monsier Sachard?

- Nem imagino. Veja se lhe presta bons serviços.

Estando encarregado da acção de divórcio de Hélène, Martel teve necessidade de vê-la com frequência. Com um pouco de exagero até, na opinião dele. Hélène lhe telefonava e o convidava para jantar em sua villa em Le Vésinet, a fim de discutirem o caso, e o levava à ópera e à sua casa em Deauville. Charles cansava-se de explicar-lhe que o caso era simples e que não havia problema em conseguir o divórcio, mas Hélène - ela insistia em que ele a chamasse de Hélène, com grande embaraço para ele - dizia que precisava ser tranquilizada constantemente por ele. Por fim, ele passou a pensar nisso com um interesse um tanto amargo.

Um belo dia, Charles Martel admitiu a possibilidade de que Hélène Roffe estivesse sentimentalmente interessada nele.

Não podia acreditar nisso. Não era ninguém, e Hélène pertencia a uma das grandes famílias da Europa. Um dia, Hélène não lhe deixou mais dúvidas sobre suas intenções e disse:

- Vou me casar com você, Charles.

Nunca pensara em se casar. Não se sentia bem ao lado das mulheres. Além disso, não amava Hélène e não tinha certeza nem mesmo de simpatizar com ela. A agitação e as atenções que a cercavam em todo lado aonde iam desconcertavam-no. Era atingido pela luz dos reflectores voltados para ela, e isso era um papel a que ele não estava absolutamente habituado. Tinha também plena consciência do contraste entre eles. A expansividade de Hélène era irritante para a natureza conservadora dele. Ela ditava moda e era o próprio requinte da elegância, ao passo que ele era apenas um simples e comum advogado de meia-idade.

Não podia compreender o que Hélène Roffe via nele. E ninguém mais podia. Em vista da notória participação de Hélène em desportos violentos que eram tidos como redutos exclusivos dos homens, havia quem dissesse que Hélène Roffe era partidária do movimento de libertação das mulheres. Na realidade, ela desprezava o movimento e se

insurgia contra o seu conceito de igualdade. Não via razão para que ter homens à mão, quando fossem considerados iguais às mulheres. Era bom ter homens à mão, quando fosse necessário. Não eram seres particularmente inteligentes, mas podiam ser ensinados a ir buscar e acender cigarros, a dar recados, a abrir portas e a dar satisfação na cama. Eram excelentes animais de estimação. Bem treinados, tomavam banho sozinhos e não sujavam a casa. Eram uma raça excelente.

Hélène Roffe tinha tido playboys, aventureiros, capitães de indústria, homens elegantes. Nunca tivera um Charles Martel.

Ela sabia exactamente o que ele era. Nada. Um pedaço de barro virgem que ela podia moldar como quisesse. Depois que Hélène Roffe tomou essa decisão, Charles Martel não teve mais chance.

Casaram-se em Neuilly e passaram a lua-de-mel em Monte Carlo, onde Charles perdeu a sua virgindade e as suas ilusões. Ele pretendia voltar ao escritório de advocacia.

- Não seja idiota! - disse-lhe a mulher. - Acha que vou querer ser casada com um advogadozinho? Você vai entrar para a firma da família e um dia vai tomar conta de tudo. Vamos tomar, aliás.

Hélène conseguiu que Charles trabalhasse na filial de Paris da Roffe and Sons. Ele lhe contava tudo que acontecia, e ela o orientava e ajudava, apresentando-lhe as sugestões. O progresso de Charles foi rápido. Em pouco, era chefe da filial francesa e fazia parte da directoria.

Hélène Roffe transformou-o de um obscuro advogado em director de uma das maiores empresas do mundo. Devia estar encantado. No entanto, sentia-se infeliz. Desde o primeiro momento do casamento, Charles se sentira totalmente dominado pela mulher.

Ela escolhia o seu alfaiate e os homens que lhe faziam os sapatos e as camisas. Fê-lo entrar para o circulo fechado do Jockey Club.

Hélène tratava Charles como um gigolô. O seu salário ia directamente para as mãos dela, e Hélène só lhe dava uma mesada embaraçosamente pequena. Se Charles precisava de um dinheiro a mais, tinha de pedi-lo a Hélène. Ela o fazia prestar contas de todos os momentos de seu tempo e queria que ele estivesse sempre à disposição dela.

Parecia gozar com a humilhação dele. Telefonava para ele no escritório e ordenava-lhe que fosse imediatamente para casa, com um vidro de creme para a pele ou qualquer coisa insignificante. Quando ele chegava a casa, ela estava nua no quarto, à espera dele. Era insaciável como um animal.

Charles viajou com a mãe até os trinta e dois anos de idade, quando ela morreu de câncer. Foi uma inválida por tanto tempo quanto a memória de Charles alcançava, e ele cuidou dela. Nunca teve tempo para sair com moças ou de se casar. A mãe foi uma carga pesada, e, quando ela morreu, Charles pensou que ia afinal viver em liberdade.

Teve, ao contrário, um sentimento de carência. Nunca se interessou por mulheres, explicou seus sentimentos a Hélène logo que ela lhe falou em casamento.

- Minha líbido não é muito forte - disse ele.

Hélène sorriu.

- Pobre Charles. Deixe a parte do sexo comigo. Garanto que você vai gostar.

Detestou. E isso só pareceu aumentar o prazer de Hélène.

Ria-se das fraquezas dele e o obrigava a fazer coisas revoltantes, que levava Charles a sentir-se degradado e nauseado. O acto sexual em si era suficientemente desmoralizante.

Mas Hélène vivia interessada em fazer experiências. Charles nunca sabia o que devia esperar. Certa vez, no momento em que ele estava tendo um orgasmo, ela pusera gelo picado em seus testículos e, de outra, lhe introduzira uma haste electrificada no ânus. Charles vivia apavorado com Hélène. Ela o fazia sentir-se como um elemento feminino enquanto ela o masculino. Ele tentava proteger o seu amor-próprio, mas infelizmente não havia um só ponto nela que não fosse superior a ele. Possuía uma inteligência brilhante.

Entendia tanto de direito quanto ele, e muito mais de negócios.

Passava horas e horas discutindo os casos da companhia com ele.

Nunca se cansava.

- Pense em nosso poder, Charles! - dizia ela. - A Roffe and Sons poderia arruinar ou fazer prosperar mais da metade dos países do mundo. Era eu que devia estar dirigindo a companhia que meu bisavô fundou. Ela faz parte de mim!

Depois de uma dessas explosões, Hélène se tornava sexualmente insaciável, e Charles era forçado a satisfazê-la de uma maneira em que não gostava de pensar. Acabou por desprezá-la. O seu sonho era livrar-se dela, fugir para nunca mais vê-la. Mas, para isso, precisava de dinheiro.

Um dia, na hora do almoço, René Duchamps, um amigo dele, falou-lhe numa oportunidade de fazer fortuna.

Charles não podia confessar que não tinha um franco seu, mas foi até a Borgonha para ver os vinhedos e ficou profundamente impressionado.

- Um tio meu, que possuí um grande vinhedo na Borgonha, acaba de morrer. O vinhedo vai ser posto à venda. São quatro mil hectares plantados de uvas de appellation d'origine. Eu tenho preferência porque sou da família, mas não tenho dinheiro bastante para fazer o negócio sozinho. Se quiser fazer sociedade comigo, dobraremos o capital empregado dentro de um ano. ao menos, você poderia dar uma olhada. Cada um de nós entrará com dois milhões de francos - disse Duchamps. - Dentro de um ano, teremos quatro milhões cada um.

Quatro milhões de francos! Seria a possibilidade de fuga, a liberdade! Iria para algum lugar onde Hélène nunca poderia encontrá-lo.

- Vou pensar nisso - disse Charles a seu amigo.

E de facto pensou. Dia e noite. Era a maior chance de sua vida.. Mas como? Seria impossível contrair algum empréstimo sem que Hélène tomasse imediatamente conhecimento disso. Tudo estava no nome dela - a casa, os quadros, os carros, As jóias... os belos ornamentos que ela guardava num cofre, no quarto. Pouco a pouco, a idéia tomou corpo em seu cérebro. Se ele pudesse pegar as jóias, algumas de cada vez, substituiria as peças por imitações e tomaria dinheiro emprestado sob a garantia das verdadeiras jóias. Depois, quando ganhasse nos vinhedos o dinheiro esperado, trataria de repor as jóias no cofre e teria dinheiro suficiente para desaparecer para sempre.

Telefonou para René Duchamps e disse com o coração a palpitar de emoção:

- Resolvi fazer sociedade com você.

A primeira parte do plano aterrorizou Charles. Tinha de Abrir o cofre e roubar as jóias de Hélène.

A antecipação da coisa terrível que ele ia fazer provocou tamanho nervosismo em Charles que ele mal conseguia trabalhar.

Passava os dias como um autómato, sem ver nem ouvir nada do que acontecia à sua volta. Todas as vezes que via Hélène, ficava encharcado de suor. Quase sempre as mãos lhe tremiam. Hélène ficou preocupada com o estado dele como ficaria com um cachorro de estimação que aparecesse doente. Mandou chamar um médico para examinar

Charles, mas ele não encontrou nada de anormal.

- Um pouco de tensão, talvez. Tudo deve se normalizar com dois dias de repouso.

Hélène olhou para Charles estendido na cama e disse:

- Muito obrigada, doutor.

No momento em que o médico saiu do quarto, ela começou a se despir.

- Eu... eu não estou me sentindo muito bem - murmurou Charles.

- Mas eu estou - respondeu Hélène.

Charles nunca a odiara tanto.

A oportunidade de Charles chegou na semana seguinte. Hélène ia a Garmisch-Partenkirchen esquiar com um grupo de amigos e resolveu deixar Charles em Paris.

- Quero que passe todas as noites em casa - disse Hélène. Vou lhe telefonar, ouviu?

Charles viu-a partir no seu Jensen vermelho e, no momento em que ela desapareceu, correu para o quarto onde estava o cofre.

Tinha-a visto abri-lo muitas vezes e sabia quase todo o segredo. Levou uma hora para descobrir o resto. Com os dedos trémulos, abriu a porta do cofre. Ali, nos estojos forrados de veludo, cintilantes como estrelas em miniatura, estavam os instrumentos da sua libertação. Havia entrado em empreendimentos com um joalheiro chamado

Pierre Richaud, um mestre em imitação de jóias. Nervoso, Charles começou a longa explicação acerca dos motivos pelos quais ia mandar fazer as imitações, mas Richaud sorriu e disse:

- Monsier, estou fazendo imitações para todo mundo. Ninguém em seu juízo perfeito sai às ruas com jóias verdadeiras nos dias que correm.

Charles lhe entregava uma peça de cada vez e, quando a imitação ficava pronta, ele a deixava no cofre no lugar da jóia. Empenhava então a jóia verdadeira no Crédit

Municipal, a instituição de penhores do Estado.

A operação demorou mais do que o esperado. Charles só podia abrir o cofre quando Hélène não estava em casa, e houve demoras imprevistas no trabalho de copiar as peças. Mas chegou afinal o dia em que Charles pôde comunicar a René Duchamps:

- Amanhã terei todo o dinheiro necessário para a nossa sociedade.

Havia conseguido o que queria. Era proprietário da metade do vinhedo, e Hélène não tinha a menor suspeita do que ele havia feito.

Começou a ler em segredo tudo o que podia sobre vinhas e vinhos. Por que não? Não passara a ser um vinhateiro? Ficou sabendo das diferentes uvas, da cabernet sauvignon, a principal uva usada, mas outras erram plantadas e extraídas ao lado dela, com a gros cabernet, a merlot, a malbec e a petit verdot. Uma das gavetas de Charles

no escritório vivia cheia de brochuras sobre a fabricação de vinhos. Ficou sabendo de fermentação, podas e enxertos. Soube também que o consumo mundial de vinhos continuava a aumentar.

Tinha frequentes encontros com o sócio.

- A coisa vai ser ainda melhor do que eu pensava - disse René. - Os preços dos vinhos estão subindo vertiginosamente.

Devemos ganhar uns trezentos mil francos por tonneau logo nas primeiras vindimas.

Mais do que Charles havia sonhado! As uvas representavam ouro, e Charles começou a procurar folhetos de turismo sobre as ilhas do Pacífico, a Venezuela e o Brasil.

Até os nomes dos lugares tinham para ele um encanto particular. O único problema era que havia poucos lugares no mundo onde não houvesse escritórios da Roffe and Sons e onde Hélène não pudesse descobri-lo. E, se ela o descobrisse, iria matá-lo. A não ser que ele a matasse antes. Era uma de suas fantasias predilectas.

Assassinou Hélène repetidamente, de mil maneiras deliciosas e reconfortantes.

Começou a gozar morbidamente os desmandos de Hélène, pensando sempre que ela o forçara a fazer coisas inconfessáveis:

"Vou desaparecer daqui a pouco, imunda. Ficarei rico graças ao seu dinheiro, e você nada poderá fazer".

E ela dava ordens: "Mais depressa!", ou: "Não pare agora!", enquanto ele obedecia mansamente e sorria, satisfeito.

Charles aprendeu também que, na cultura das uvas, os meses mais importantes eram os da primavera e do verão, pois os bagos eram colhidos em setembro e, para que apresentassem uma boa qualidade, era imprescindível uma temporada bem equilibrada de sol e chuva. O sol em excesso queimaria o gosto da uva, ao passo que o excesso de chuva o diluiria. Junho começou esplendidamente. Charles consultava o Serviço de Meteorologia todos os dias e, mais tarde, duas vezes por dia. Estava numa febre de impaciência, a apenas algumas semanas da realização dos seus sonhos.

Decidira-se pela baía de Montego, pois a Roffe and Sons não tinha escritório na Jamaica. Seria fácil desaparecer ali. Nem se aproximaria de Round Hill ou de Ocho Ríos, onde algum amigo de Hélène poderia reconhecê-lo. Compraria uma casinha nas montanhas. A vida era barata na ilha. Poderia ter até criados e comprar boa comida em sua vida modesta.

Por isso, naqueles primeiros dias de Junho, Charles Mantel foi um homem muito feliz. A vida que estava levando era uma verdadeira ignomía, mas ele não estava vivendo no presente.

Vivia já no futuro, numa ilha tropical banhada de sol e batida pelos ventos do Caribe.

O tempo em junho parecia melhorar a cada dia. Havia uma mistura bem doseada de sol e chuva, excelente para as uvas ainda tenras. E, com as uvas, crescia a fortuna de Charles.

Mas, no dia 15 de junho, começou a cair um chuvisco persistente na região da Borgonha. Depois, passou a chover mais forte. Choveu dias seguidos, semanas seguidas, até que Charles não teve mais coragem de olhar os boletins do tempo.

René Duchamps telefonou:

- Se a chuva parar até meados de julho, a safra ainda poderá ser salva.

Julho foi um dos meses mais chuvosos na história e nos registos de Serviço Meteorológico da França. A 1._ de Agosto, Charles Martel havia perdido todo o dinheiro que havia roubado. Nunca havia sentido tanto medo em toda a sua vida.

- Vamos tomar um avião para a Argentina no mês que vem disse Hélène a Charles. - Vou participar numa corrida de automóveis lá.

Ele já a vira correr pela pista no Ferrari, e não pôde deixar de pensar: "Se ela sofrer um desastre, eu ficarei livre!" Mas ela era Hélène Roffe-Martel. A vida a favorecera com um papel de vitoriosa, do mesmo modo que o tinha rebaixado ao papel de um derrotado.

O facto de ganhar a corrida havia excitado Hélène mais do que de costume. Tinham voltado para a sua suíte do hotel em Buenos Aires, e ela imediatamente fizera Charles despir-se e estender-se de bruços no tapete. Quando ele percebeu o que ela pretendia fazer, protestou:

- Não, Hélène! Não!

Neste momento, bateram na porta.

- Merda! - exclamou Hélène.

Esperou em silêncio, mas bateram de novo. Uma voz disse:

- Senhor Martel?

- Fique onde está! - ordenou Hélène.

Levantou-se, passou um robe de seda pelo corpo esbelto e firme e foi até a porta. Um homem com um uniforme cinza de mensageiro trazia um envelope.

- Tenho uma correspondência especial para o Senhor e senhora Martel.

Ela recebeu o envelope e fechou a porta. Abriu o envelope e leu a mensagem que ele continha. Depois, mais lentamente, tornou a ler.

- Que é? - perguntou Charles.

- Sam Roffe morreu - disse ela, sorrindo.

 

Capítulo 5

Londres. Segunda-feira, 7 de setembro. 14 horas.

O White's Club ficava no alto da St. James's Street, perto de Piccadill. Construído como um clube de jogo no século XVIII, o White's era um dos clubes mais velhos e mais fechados da Inglaterra. Os sócios inscreviam os nomes dos filhos logo que eles nasciam, pois havia uma lista de candidatos à espera há mais de trinta anos.

A fachada do White's Club era um modelo de discrição. As grandes janelas que se abriam para a St. James's Street visavam mais o prazer dos sócios do que a curiosidade dos transeuntes.

Havia alguns poucos degraus à entrada, mas além dos sócios e dos convidados, raras eram as pessoas que transpunham a porta do clube. As salas eram grandes, bem decoradas e todas revestidas da escura e rica batina do tempo. Os móveis eram velhos e confortáveis - sofãs de couro, estantes para jornais, mesas antigas preciosas e poltronas que tinham acomodado traseiros de meia dúzia de primeiros-ministros. Havia uma sala de gamão com uma grande lareira, por trás de uma balaustrada de bronze, e uma

escadaria curva que levava ao salão de jantar, no andar superior. O salão de jantar ocupava toda a largura do prédio e continha uma grande mesa de mogno, à qual podiam sentar-se umas trinta pessoas, e cinco mesas laterais. Na hora do almoço ou do jantar, reuniam-se ali alguns dos homens de maior prestígio do mundo.

Sir Alec Nichols, membro do Parlamento, estava sentado a uma das mesinhas de canto, almoçando com um convidado, Jon Swinton.

O pai de Sir Alec havia sido um baronete, como, antes dele, seu pai e seu avô. Todos eles tinham pertencido ao White's Club.

Sir Alec era um homem magro e pálido, de quase cinquenta anos, com um rosto vivo e aristocrático e um sorriso cativante.

Chegara havia pouco de carro de sua propriedade rural em Gloucestershire e estava vestido com um paletó e calças largas de twee, com sapatos desportivos. Seu convidado usava um terno listrado, com uma camisa xadrez espalhafatosa e uma gravata vermelha, parecendo deslocado naquele ambiente calmo e distinto.

- De facto, o trabalho aqui é primoroso - disse Jon Swinton, acabando de comer a costeleta que tinha no prato.

- A cozinha é soberba. Já se foram os tempos em que Voltaire dizia que os ingleses tinham cem religiões e apenas um molho - disse Sir Alec.

- Quem é Voltaire? - perguntou Jon Swinton.

Sir Alec ficou embaraçado e murmurou:

- Ah... É um francês.

- Oh...

Jon Swinton engoliu o último bocado de comida com um gole de vinho. Depois, largou o talher, enxugou os lábios com um guardanapo e disse:

- Agora, Sir Alec, creio que já é tempo de falarmos um pouco de negócios.

Alec Nichols disse com uma voz calma:

- Há duas semanas, Sr. Swinton, disse-lhe que estava calculando tudo. Tem de me dar um pouco mais de tempo.

Um garção se aproximou da mesa com uma pilha de caixas de charutos. Com uma habilidade, estendeu-as em cima da mesa.

- Não leve a mal - disse Jon Swinton.

Examinou os rótulos das caixas, deu assobios de admiração, escolheu vários charutos que guardou no bolso de cima do paletó e acendeu um. Nem o garçom, nem Sir Alec deram o menor sinal de ter notado essa falta de educação do homem. O garçom comprimentou Sir Alec e levou os charutos para outra mesa.

- Meus patrões têm sido muito indulgentes, Sir Alec. Mas parece que agora estão ficando impacientes.

Pegou o fósforo queimado e jogou-o dentro do copo de vinho de Sir Alec.

- Aqui entre nós, eles não são nada agradáveis quando perdem a paciência. Não os vai querer atrás de si, não é? Sabe o que estou querendo dizer?

- Acontece apenas que eu não tenho o dinheiro neste momento.

Jon Swinton deu uma risada.

- Não venha com essa para cima. Sua mae era uma Roffe, certo? E tem uma propriedade de cinquenta hectares, uma boa casa em Knightsbridge, um Rolls-Royce e, ainda por cima, em Bentley. Não me venha dizer que está na miséria, que eu não acredito.

Sir Alec olhou em torno, ressentido, e disse calmamente:

- Nada disso que acaba de mencionar constitui um activo passível de liquidação. Não posso...

Swinton piscou o olho e disse:

- E aquela sua mulherzinha, Vivian, não é um activo passivo de liquidação?

Sir Alec ficou rubro de raiva. O nome de Vivian nos lábios daquele homem era um sacrilégio. Alec pensou em Vivian como a deixara naquela manhã, ainda suavemente adormecida. Dormiam em quartos separados, e uma das grandes alegrias de Nichols era ir ao quarto de Vivian para uma das suas "visitas". às vezes, quando Alec acordava cedo, ia ao quarto de Vivian, que ainda dormia, só para olhá-la. Acordada ou adormecida, era a mulher mais bela que Alec já havia visto. Ela costumava dormir nua, e seu corpo elegante e curvo se revelava a meio, encolhida na cama. Era loura, com olhos azul-claros e uma pele que parecia creme.

Vivian era uma pequena actriz quando Sir Alec a conhecera numa festa de caridade. Ficou encantado com a sua beleza, mas o que mais o atraiu foi a personalidade esfuziante e extrovertida dela. Era vinte anos mais moça do que Alec e cheia de alegria de viver. Enquanto Alec era tímido e introvertido, Vivian era gregária e vivaz. Alec não conseguiu parar de pensar nela, mas levou duas semanas até ter coragem bastante para telefonar-lhe. Com surpresa e prazer para ele, Vivian aceitou o seu convite.

Alec levou-a a uma peça do Old Vic e depois para jantar no Mirabelle. Vivian morava num modesto apartamento térreo em Notting Hill e, quando Alec a levou até a casa, perguntou:

- Não quer entrar?

Ele passou a noite lá e isso lhe transformou inteiramente a vida. Era a primeira vez que uma mulher o fazia atingir o clímax. Jamais conhecera nada que se comparasse a Vivian. Ela tinha uma língua aveludada, longos cabelos esvoaçantes e possuía profundidades húmidas e exigentes que ele explorava até se exaurir. Sentia-se excitado só de pensar nela.

Havia mais algumas coisas. Ela o fazia rir e sentir-se vivo.

Fazia troça de Alec por ser tímido e um tanto casmurro, e ele adorava isso. Estava com ela sempre que Vivian permitia. Quando Alec a levava a alguma festa, Vivian era sempre o centro de todas as atenções. Alec se orgulhava disso, mas sentia ciúme dos rapazes que a cercavam e não podia deixar de pensar que muitos deles já deviam ter dormido com ela.

Nas noites em que Vivian não podia estar com ele porque tinha outro compromisso, Alec se roía de ciúmes. Ia até o apartamento dela, estacionava o carro nas vizinhanças para ver a que horas ela voltava para casa e se chegava acompanhada. Sabia que estava procedendo insensatamente, mas não conseguia agir de outro jeito. Estava enleado em laços muito difíceis de desatar.

Compreendia que Vivian não servia para ele e que seria um grande erro da sua parte casar-se com ela. Era um baronete, um respeitável membro do Parlamento, com um brilhante futuro.

Fazia parte da dinastia Roffe e integrava a directoria da empresa. Vivian não tinha meios para poder incorporar-se ao mundo em que ele vivia. Era filha de uma dupla de artistas de segunda classe de music-ball, que faziam turnês pelas províncias. Vivian não tinha instrução e o pouco que sabia aprendera nas ruas e nos bastidores dos teatros. Alec sabia que ela era promíscua e superficial. Era esperta mas não particularmente inteligente. Apesar de tudo isso, Alec vivia obcecado por ela. Resistiu.

Tentou deixar de vê-la, mas não conseguiu. Era feliz ao lado dela e quase desgraçado quando estava longe. No fim, propôs-lhe casamento porque não podia deixar de proceder assim, e, quando Vivian aceitou, ficou em êxtase.

Levou a esposa para a casa da família, uma bela mansão georgiana em Gloucestershire, com colunas délficas e uma longa entrada curva para carros. Ficava no centro de cinquenta hectares de ricas terras de lavoura, com um parque de caça e um rio para pescar. Nos fundos da casa, havia um jardim criado por um famoso paisagista.

O interior da casa era admirável. O grande hall de entrada tinha chão de pedras e paredes revestidas de madeira pintada.

Havia velhas lanternas e mesas douradas com tampo de mármore.

A biblioteca tinha estantes feitas ainda no século XVIII, mesas com pedestal de Henry Holland e cadeiras de Thomas Hope. A sala de estar era uma mistura de Hepplewhite e Chippendale,. com um tapete Wilton e dois lustres de Waterford. Havia um grande salão de jantar com capacidade para quarenta convivas e uma sala de fumar. No segundo andar, havia seis quartos, cada qual com sua lareira Adam. No terceiro andar, ficava os alojamentos dos criados.

Seis semanas depois de se mudarem para a casa, Vivian disse:

- Vamo-nos embora daqui, Alec.

Ele a olhou, atónito.

- Quer ir passar alguns dias em Londres, é isso?

- Não. Quero mudar-me para Deus.

Alec olhou através da janela para os campos verdes, onde brincara quando criança e onde se erguiam o gigantesco sicômoro e os grandes carvalhos, e murmurou com alguma hesitação:

- Mas isto aqui é tão tranquilo!...

- É justamente isso. Não suporto mais essa danada tranquilidade...

Mudaram-se para Londres na semana seguinte.

Alec tinha uma elegante casa de quatro andares em Londres, em Eilton Crescent, logo depois de Knightsbridge, com uma sala de estar, um escritório, uma grande sala de jantar e, nos fundos da casa, uma janela panorâmica, da qual se viam uma gruta, com uma cascata, estátua e alguns bancos brancos no centro de um belo jardim.

No andar de cima, havia um quarto grande e quatro menores.

Vivian e Alec viveram duas semanas no quarto grande. Certa Manhã, Vivian disse:

- Gosto muito de você, Alec, mas você ronca, sabe disso?

Alec não sabia.

- Tenho de dormir sozinha, amor. Você não se importa, não é?

Alec se importava e muito. Gostava de sentir na cama a maciez e o calor daquele corpo jovem. Mas sabia intimamente que não podia excitar sexualmente Vivian tanto quanto outros homens.

Era por isso que ela não o queria na cama. Disse, portanto:

- É claro que compreendo, querida.

Por insistência de Alec, Vivian continuou no quarto grande e Alec se mudou para um dos quartos menores.

A princípio, Vivian ia à Câmara dos Comuns e ficava na galeria dos visitantes nos dias em que Alec tinha de fazer algum discurso. Alec olhava para ela e se sentia cheio de um orgulho profundo e inefável. Vivian era sem dúvida a mulher mais bela entre todas ali presentes. Um dia, concluiu o seu discurso e, quando olhou para o alto, viu que o lugar de Vivian estava vazio.

Alec se julgava culpado pelo facto de Vivian viver insatisfeita. Todos os amigos dele eram mais velhos do que Vivian e muito conservadores para ela. Incentivou-a a convidar para a casa os jovens companheiros dela e misturou-os com os amigos dele. Os resultados foram desastrosos.

Alec vivia pensando que, quando Vivian tivesse um filho, se acomodaria. Mas, um dia - Alec nunca soube como -, ela apareceu com uma infecção vaginal e teve de fazer uma histerectomia.

Alec desejava tanto um filho que o facto o abalou profundamente, mas Vivian se mostrou imperturbável.

- Não se incomode, amor. Tiraram a chocadeira, mas deixaram o galinheiro, onde a gente pode brincar.

Ele a olhou em silêncio durante algum tempo, mas depois virou-lhe as costas e afastou-se.

Vivian gostava de fazer compras. Gastava indiscriminadamente em roupas, jóias e carros, e Alec não tinha ânimo de dizer-lhe que se contivesse. Justificou-a, dizendo que ela se criara na pobreza e tinha fome de luxo. Gostaria de comprar tudo para ela. Infelizmente, não podia. O seu salário era basicamente consumido pelos impostos.

A sua fortuna consistia nas acções da Roffe and Sons, mas o rendimento dessas acções era limitado.

Tentou explicar isso a Vivian, mas ela não mostrou o menor interesse. As conversas sobre negócios a irritavam. E Alec deixou-a continuar gastando.

A primeira vez em que soube que ela também jogava foi quando Tod Michaels, proprietário do Tod's Club, um antro de jogatina no Soho, foi procurá-lo.

- Tenho aqui uma promissória de mil libras, assinada por sua mulher, Sir Alec. Ela teve uma noite de pouca sorte na roleta.

Alec ficou atónito. Pagou a promissória e naquela noite chamou a atenção de Vivian.

- Assim não podemos aguentar, Vivian. Você está gastando mais do que eu posso ganhar.

Ela se mostrou muito arrependida.

- Desculpe, meu anjo. Sua Vivian tem procedido muito mal.

Abraçou-o então, comprimiu o corpo contra o dele e Alec esqueceu sua raiva.

Alec passou uma noite memorável na cama dela e ficou certo de que não haveria mais problemas.

Duas semanas depois, Tod Michaels foi procurá-lo de novo.

Desta vez, a promissória assinada por Vivian era de cinco mil libras. Alec ficou furioso.

- Por que você a deixa jogar a crédito?

- Ela é sua esposa, Sir Alec - respondeu Michaels com voz untuosa. - O que aconteceria se eu recusasse?

- Eu... eu terei de arranjar essa importância - disse Alec.

- Não a tenho no momento.

- Considere isso como um empréstimo. Pagará quando puder.

Alec sentiu um grande alívio.

- É muita generosidade da sua parte, Sr. Michaels.

Foi só um mês depois que Alec soube que Vivian tinha perdido no jogo mais de vinte mil libras e que ele pagaria sobre essa importância juros de dez por cento por semana. Ficou horrorizado. Não tinha meio algum de levantar tanto dinheiro. Nem tinha coisa alguma que pudesse vender. As casas, as belas antiguidades, os carros, tudo isso pertencia à Roffe and Sons.

A cólera que o agitava amedrontou tanto Vivian que ela prometeu nunca mais jogar. Mas era muito tarde. Alec caiu nas mãos de agiotas. Por mais dinheiro que desse, jamais conseguiria amortizar a dívida. Esta aumentava a cada mês, ao invés de diminuir, e ele vivia nessa agonia já havia um ano.

Quando os capangas de Tod Michaels começaram a exercer pressão sobre ele, cobrando dinheiro, Alec ameaçou ir à polícia.

- Tenho relações nas altas-rodas - disse ele.

O homem sorriu.

- E nós temos relações nas rodas mais baixas.

Agora, Sir Alec estava ali, no White's Club, com aquele homem terrível, tendo de rebaixar-se para pedir um pouco mais de tempo.

- Já paguei mais que o dinheiro que tomei emprestado. Não posso...

- Pagou apenas os juros, Sir Alec - replicou Swinton. - Ainda não deu nada do capital.

- Isso é uma extorsão!

O olhar de Swinton ficou mais duro. Disse, fazendo menção de levantar-se.

- Está bem. Darei o seu recado ao chefe.

- Não, não! Faça o favor de sentar-se - apressou-se em dizer Alec.

Swinton sentou-se vagarosamente e disse:

- Não diga mais essas coisas. O último sujeito que falou assim acabou com os joelhos pregados no chão.

Alec lera alguma coisa a esse respeito. Os irmãos Kray tinham inventado esse castigo para as suas vítimas. E as pessoas com quem ele estava tratando eram tão perversas e tão cruéis quanto eles. Sentiu a bile subir-lhe à garganta.

- Não quis dizer isso. Só sei que não tenho mais dinheiro...

Swinton bateu a cinza do charuto no copo de vinho de Alec e disse:

- Você tem uma porção de acções da Roffe and Sons, não tem, meu caro Alec?

- Tenho sim, mas não posso vendê-las, nem transferi-las. Não adianta a ninguém possuí-las, a menos que a Roffe and Sons se transforme numa sociedade anónima. Isso é com Sam Roffe. Bem que eu tenho tentado convencê-lo.

- Continue insistindo.

- Diga a Michaels que ele receberá seu dinheiro. Enquanto isso, deixem de importunar-me.

Swinton arregalou os olhos.

- Importuná-lo? Você, meu caro patife, não sabe nem o significado da palavra. Quando começarmos a importuná-lo, as suas cocheiras serão queimadas e você comerá carne de cavalo assada. Até sua casa será queimada. E com sua mulher dentro. Já comeu coxas de mulher assadas?

Alec estava pálido.

- Pelo amor de Deus!

- É claro que eu estou brincando - disse Swinton. - Tod Michaels é seu amigo. E amigos se ajudam uns aos outros.

Estivemos falando a seu respeito em nossa reunião desta manhã. E sabe o que o chefe disse? "Sir Alec é um bom sujeito. Se não tiver dinheiro, conseguirá na certa outro meio de atender-nos." Alec franziu a testa.

- Que outro meio é esse?

- Ora essa, não é tão difícil assim de imaginar para um homem como você. Trabalha numa grande companhia de produtos farmacêuticos, não é verdade? Produz coisa como cocaína, por exemplo. Aqui entre nós, particularmente, quem iria saber se você desviasse algumas sementes de vez em quando?

Alec encarou-o.

- Deve estar louco. Eu nunca poderia fazer uma coisa dessas.

- Não imagina a facilidade com que as pessoas podem fazer as coisas desde que seja necessário. Ou nos paga o dinheiro que nos deve ou nós teremos de dizer-lhe para onde deve remeter a mercadoria.

Apagou o charuto no pratinho de manteiga de Alec.

- Lembranças a Vivian, Sir Alec.

E Jon Swinton saiu.

Sir Alec ficou sentado sozinho, sem ver nada, cercado de todas as coisas confortáveis e amigas que tinham feito parte até então de sua vida e agora estavam ameaçadas.

A única coisa estranha era aquela obscena ponta de charuto no prato.

Como pôde permitir que tais coisas lhe acontecessem?

Deixara-se levar para uma posição onde ficara à mercê dos malfeitores. Sabia agora que não queriam dele apenas dinheiro.

O dinheiro fora apenas uma isca com que o tinham levado a uma armadilha. O que lhes interessava era a sua relação com a companhia de produtos farmacêuticos. Queriam forçá-lo a trabalhar com eles. Quando se soubesse que ele estava em poder daqueles criminosos, a oposição não deixaria de explorar o caso. O seu partido decerto lhe pediria que renunciasse à sua cadeira. Isso seria feito, naturalmente, com tacto e discrição.

Insistiriam em que ele se candidatasse a uma cadeira na Câmara dos Comuns, um posto da Coroa que pagava um salário nominal de cem libras por ano. Teria de deixar o Parlamento necessariamente, pois um parlamentar não podia receber qualquer pagamento da Coroa ou do governo. É claro que não poderia haver sigilo sobre os motivos.

Ele ficaria desmoralizado, a não ser que pudesse receber alguma quantia considerável. Tinha falado muitas vezes com Sam Roffe, procurando convencê-lo a transformar a companhia numa sociedade aberta e permitir que as suas acções fossem negociadas na Bolsa.

- Nem pense nisso - tinha-lhe dito Sam. - No minuto em que permitirmos a entrada de estranhos, eles começarão a querer ditar regras nos nossos negócios. Sem ninguém perceber, tomarão conta da directoria e, depois, da companhia. Que diferença isso faz para você, Alec? Você tem um bom salário, uma conta de despesas sem limite fixo. Não precisa de dinheiro.

Por um momento, Alec teve a tentação de expor a Sam a situação desesperada em que se encontrava. Mas bem sabia que isso não adiantava. Sam Roffe era antes de mais nada um homem da companhia. Se soubesse que Alec tinha de alguma maneira comprometido o prestígio da Roffe and Sons, demiti-lo-ia sem hesitação. Não, Sam Roffe era a última pessoa a quem ele podia recorrer.

Alec se via diante da ruína.

O porteiro da recepção dirigiu-se para a mesa de Alec em companhia de um homem com uma farda de mensageiro e um envelope fechado na mão.

- Perdão, Sir Alec - disse o porteiro -, mas este homem insiste em dizer que recebeu instruções para entregar-lhe pessoalmente alguma coisa.

- Obrigado - disse Alec, recebendo o envelope.

O porteiro saiu, acompanhando o homem.

Alec demorou muito a estender a mão para o envelope e abri-lo. Leu e releu a mensagem. Em seguida, amassou o papel e os seus olhos se encheram de lágrimas.

 

Capítulo 6

Nova York. Segunda-feira, 7 de setembro.11 horas.

O Böeing 707-320 particular estava se preparando para descer no Aeroporto Kennedy, depois de sobrevoar repetidamente a pista, à espera de ordem para pouso. O vôo tinha sido longo e enfadonho, e Rhys Williams estava exausto mas não conseguira dormir durante toda a noite. Tinha viajado muito naquele avião com Sam Roffe, e a presença do amigo ainda enchia o aparelho.

Elizabeth Roffe o esperava. Ele tinha lhe mandado um telegrama de Istambul, no qual dizia apenas que chegaria no dia seguinte.

Poderia ter-lhe comunicado a morte do pai pelo telefone, mas ela merecia mais do que isso.

O avião tocou no solo e taxiou para o terminal. Rhys levava muito pouca bagagem e sem demora passou pela alfândega. O céu estava cinzento e fechado, um prenúncio do inverno. Uma limosine o esperava numa das portas laterais a fim de levá-lo à propriedade de Sam Roffe, em Long Island, onde Elizabeth devia estar à espera dele.

Durante a viagem para Long Island, Rhys tentou pensar nas palavras que diria a Elizabeth logo que a visse, para suavizar o choque mas no momento em que ela abriu a porta para recebê-lo, ficou sem ter o que dizer. Sempre que Rhys via Elizabeth, a beleza dela o tomava de supressa. Herdara os traços da mãe, as mesmas feições aristocráticas e os olhos negros emoldurados pelos longos cílios. A pele era branca e fina e os cabelos, pretos e cintilantes. Estava com uma blusa creme de seda de gola aberta, uma saia pregueada de casimira cinza e sapatos marrons. Não havia nem sinal da menina desajeitada que Rhys conhecera nove anos antes. Tornara-se uma mulher inteligente e cordial, sem qualquer afectação decorrente da sua beleza. Sorria, satisfeita de vê-lo. Tomou-o pela mão e disse, levando-o para a grande biblioteca revestida de carvalho.

- Venha, Rhys. Sam veio com você?

Não havia meio de proceder suavemente. Rhys respirou fundo e disse:

- Sam sofreu um acidente, Liz.

Viu a cor fugir do rosto de Elizabeth. Ela ficou esperando que ele continuasse.

- O acidente foi grave. Morreu.

Ela ficou imóvel, como se estivesse petrificada. Quando finalmente falou, a sua voz mal pôde ser ouvida.

- Que... que foi que aconteceu?

- Não sabemos ainda dos detalhes. Ele estava escalando o monte Branco. Uma corda se partiu e ele caiu numa ravina.

- Encontraram?...

Ela fechou os olhos por um momento.

- Uma ravina insondável.

Elizabeth ficou muito pálida. Rhys sentiu-se imediatamente alarmado.

- Está sentindo alguma coisa?

Ela sorriu.

- Não. Estou bem. Muito obrigada. Quer tomar chá ou comer alguma coisa?

Rhys olhou para ela, surpreso, e então compreendeu. Ela se achava em estado de choque, embora estivesse agindo e falando como se nada tivesse acontecido. Tinha os olhos parados e o sorriso estava como que imobilizado em seus lábios.

- Sam era um grande atleta - disse Elizabeth. - Você já viu os trofeus que ele ganhou. Sempre vencia, não é? Sabia que ele já havia escalado o monte Branco?

- Liz...

- É claro que você sabia. Foi uma vez com ele, não foi Rhys?

Rhys deixou-a falar, anestesiar-se contra a dor, criar uma couraça de palavras que seria abandonada quando ela tivesse de enfrentar a sua angústia. Por um instante, enquanto a escutava, lembrou-se da menina vulnerável que ele conhecera em outros tempos, tão sensível e tímida que não tinha qualquer protecção contra a realidade

brutal. Tinha sido, naquele momento, profundamente atingida e havia nela uma fragilidade que preocupava Rhys.

- Vou chamar um médico, Liz. Ele pode lhe dar alguma coisa e...

- Nada disso. Já lhe disse que estou bem. Se não se incomodar, creio que vou me deitar um pouco. Estou cansada.

- Quer que eu fique aqui?

- Não será preciso. Muito obrigada.

Ela o levou até a porta e , quando ele já ia entrando no carro, chamou-o.

- Rhys!

Ele se voltou.

- Obrigada por ter vindo.

- Deus do céu!

Muitas horas depois de Rhys Williams ter saído, Elizabeth Roffe ainda estava deitada na cama, olhando para o tecto e vendo as sombras em movimento que nele traçava o pálido sol de setembro.

E a dor chegou. Não tinha tomado nenhum sedativo porque queria sentir a dor. Devia isso a Sam. Tinha de suportar tudo porque era filha dele. Passou ali o resto do dia e a noite inteira, pensando em nada, pensando em tudo, relembrando e sofrendo. Ria, chorava e se julgava num estado de grande depressão nervosa. Mas pouco importava.

Não havia ninguém para ouvi-la. No meio da noite, sentiu de repente uma fome violenta e levantou-se para ir comer uma grande sanduíche na cozinha.

Vomitou logo depois. Sentiu-se melhor.

Nada podia aliviar a dor que a consumia. Parecia-lhe que todos os seus nervos estavam em fogo. Recordava incessantemente os anos que vivera com o pai. Pela janela de seu quarto, viu o sol nascer. Algum tempo depois, uma das empregadas bateu à porta, e Elizabeth mandou-a embora. Houve uma hora em que o telefone tocou e ela sentiu um bate no coração. É Sam! Mas logo caiu na realidade e deixou o telefone tocar.

Sam nunca mais lhe telefonaria. Ela nunca mais ouviria a sua voz. Nunca mais o veria.

Uma ravina insondável.

Elizabeth deixou-se ficar ali, submersa no passado na saudade.

 

Capítulo 7

O nascimento de Elizabeth Rowane Roffe foi uma dupla tragédia. A tragédia menor foi a mãe de Elizabeth ter morrido no parto. A tragédia maior foi o facto de Elizabeth ter nascido mulher.

Durante nove meses, até que ela energisse das profundezas escuras do útero materno, tinha sido a criança mais ansiosamente esperada do mundo, destinada a herdar um colossal império, a empresa gigantesca e multimilionária que era a Roffe and Sons.

Patricia, a mulher de Sam Roffe, era uma criatura de cabelos pretos, dotada de excepcional beleza. Muitas mulheres tinham tentado se casar com Sam Roffe, fascinadas pela posição, pelo prestígio e pela riqueza dele. Patricia quis casar com ele porque o amava. Depois viu-se que esse era o pior dos motivos.

Sam Roffe tinha desejado apenas um acordo comercial, e Patricia havia correspondido plenamente às suas exigências. Sam não tinha nem tempo nem temperamento para ser um homem de família Não havia espaço em sua vida para qualquer coisa estranha à Roffe and Sons. Era fanaticamente dedicado à companhia e não esperava senão a mesma dedicação dos que o cercavam. A importância de Patricia em sua vida residia exclusivamente na contribuição que ela pudesse dar para a imagem da companhia.

Quando compreendeu a espécie de casamento que tinha feito, era muito tarde. Sam lhe deu um papel para representar e ela o representava brilhantemente. Era uma anfitriã perfeita, uma Sra. Sam Roffe impecável.

Não recebia amor do marido e, pouco a pouco, aprendeu a não lhe dar qualquer espécie de amor. Servia Sam e trabalhava para a Roffe and Sons tanto quanta a mais humilde secretária. Estava de plantão vinte e quatro horas por dia, pronta a tomar o avião para qualquer lugar que Sam julgasse necessário, capaz de receber um pequeno grupo de líderes mundiais ou de servir um jantar de gourmet a cem convidados com um aviso de um dia de antecedência, em toalhas de mesa bordadas, resplandecentes cristais

Baccarat e uma pesada baixela do activo não arrolado da Roffe and Sons. Lutava para conservar-se bela e submetia-se a exercícios e regimes como uma espartana. O seu corpo era perfeito, e os seus vestidos eram desenhados para ela por Norell em Nova York, Chanel em Paris, Hartnell em Londres e a jovem Sybil Connolly em Dublim.

As jóias que Patricia usava eram criadas para ela por Jean Schlumberger e Bulgari. Levava uma vida atarefada e dinâmica, mas vazia e sem alegria. A sua gravidez modificou tudo isso.

Sam Roffe era o último herdeiro masculino da dinastia Roffe, e Patricia sabia com que ansiedade ele desejava um filho. Tudo dependia dela e ela passou a ser a rainha-mãe, em cujo o seio se criava o jovem príncipe que um dia herdaria o reino. Quando levaram Patricia para a sala de parto, Sam apertou-lhe a mão e disse fervorosamente:

- Muito obrigado!

Patricia morreu de uma embolia trinta minutos depois, e a única felicidade para ela foi morrer sem ter sabido que falhara ao marido.

Sam Roffe achou tempo no seu programa repleto para enterrar a mulher e voltou então a atenção para resolver o problema: o que fazer com a filha recém-nascida.

Com uma semana de idade, Elizabeth foi levada para casa e entregue a uma babá, a primeira de uma longa série. Durante os primeiros cinco anos de sua vida, Elizabeth viu muito pouco o pai. Era pouco mais dum vulto mal definido, um estranho que estava sempre a chegar ou a sair. Viajava constantemente, e Elizabeth era um problema, pois tinha que ser levada como uma peça de bagagem a mais. Num mês, Elizabeth se viu na propriedade de Lon Island, com as suas pistas de boliche, as suas quadras de ténis, a sua piscina e a sua quadra de squash.

Poucas semanas depois, a babá fazia as malas com as roupas de Elizabeth e esta era levada de avião para a villa em Biarritz.

Nos seus cinquenta quartos e nos seus doze hectares de terreno, Elizabeth constantemente se perdia.

Sam Roffe possuía ainda um apartamento dúplex de cobertura em Beeckman Place e uma villa na Costa Esmeralda na Sardenha.

Elizabeth viajava para todos esses lugares, arrastada da casa para o apartamento e para a villa, crescendo no meio de todo esse pródigo luxo. Mas sempre considerou-se uma estranha que entrara por engano numa bela festa de aniversário dada por um desconhecido que não a amava.

Ao crescer, veio a saber o que significava ser filha de Sam Roffe. Foi como a mãe dela tinha sido, uma vítima emocional da companhia. Se não tinha vida de família era porque não havia família, mas apenas servidores assalariados e a figura distante do homem que a havia gerado e que parecia não ter o menor interesse por ela, dedicando-se exclusivamente à companhia.

Patricia tinha conseguido aceitar essa situação, mas para a criança aquilo era um tormento.

Elizabeth se sentia indesejada e mal-amada. Não sabia o que fazer no seu desespero e acabou convencida de que era a culpada, por ser incapaz de inspirar amor. Fez tudo o que era possível para ganhar a afeição do pai. Quando chegou à idade escolar, fazia coisas para ele na aula, desenhos infantis, aguarelas esquisitas e cinzeiros tortos, coisas que ela guardava cuidadosamente. Quando ele voltasse de uma das suas viagens, far-lhe-ia a surpresa do presente e o ouviria dizer:

"Gostei muito, Elizabeth. Você é muito talentosa".

As vezes, Elizabeth acordava no meio da noite, descia a longa escadaria circular do apartamento de Beekman Place e seguia o longo e cavernoso corredor que levava ao escritório do pai.

Entrava na sala vazia como se estivesse chegando a um santuário. Aquela era a sala dele, onde ele assinava papeis importantes e de onde governava o mundo. Elizabeth aproximava-se da grande mesa forrada de couro e passava lentamente as mãos por ela. Depois, parava atrás da mesa e se sentava na grande cadeira de couro. Sentia-se ali mais perto do pai. Era como se, estando onde estava, sentando-se onde ele se sentava, pudesse tornar-se uma parte dele. Mantinha conversações imaginárias com ele, que escutava, interessado e atento, enquanto ela expunha os seus problemas. Uma noite, Elizabeth estava sentada no escuro na cadeira do pai, as luzes da sala foram de repente acesas e o pai apareceu à porta. Olhou para Elizabeth, sentada na cadeira da mesa, e perguntou:

- Que é que você está fazendo aqui sozinha no escuro?

Tomou-a então nos braços e carregou-a para a cama dela no andar de cima. Elizabeth ficou acordada quase a noite inteira, pensando na alegria de ser carregada pelo pai.

Depois disso, descia todas as noites e se sentava na cadeira do escritório, esperando que ele chegasse e tornasse a carregá-la, mas isso nunca mais aconteceu.

Ninguém falava com Elizabeth sobre a mãe dela, mas havia um belo retrato de corpo inteiro de Patricia Roffe na sala de recepções e Elizabeth ficava muito tempo a olhá-lo. Em seguida, ia olhar-se ao espelho. Como era feia! Tinham lhe colocado um aparelho nos dentes e ela parecia um monstro. Não era de admirar que o pai não se interessasse por ela.

Adquiriu de repente um apetite insaciável e começou a engordar. Havia chegado a uma conclusão admirável. Se fosse gorda e feia, ninguém iria esperar que ela se parecesse com a mãe.

Quando Elizabeth completou doze anos, foi matriculada numa escola particular no East Side de Manhattan, frequentada pela aristocracia. Chegava num Rolls-Royce com chofer, caminhava até sua sala de aulas e ali ficava sentada, retraída e calada, sem dar atenção a ninguém. Nunca respondia espontaneamente a uma pergunta. E, quando era chamada, parecia nunca saber o que dizer. As professoras em pouco tempo tomaram o hábito de deixá-la de lado. Conversavam particularmente sobre o caso de Elizabeth e tinham a opinião unânime de que ela era a criança mais mimada que tinham conhecido. Num relatório anual confidencial à directora da escola, a professora de classe

de Elizabeth disse o seguinte:

"Não foi possível qualquer espécie de progresso com Elizabeth Roffe. Ela se conserva afastada das colegas e se nega a participar de qualquer actividade de grupo.

Não tem amigas na escola. As suas notas não são satisfatórias, mas é difícil dizer se isso acontece porque ela não faz qualquer esforço ou porque não tem capacidade de aprender a matéria. É arrogante e egoísta. Se o pai dela não fosse um dos grandes benfeitores desta escola, eu recomendaria a exclusão desta aluna".

Esse relatório estava a muitos anos-luz da realidade. A verdade era que Elizabeth Roffe não tinha um escudo protector, nem qualquer espécie de couraça contra a terrível solidão que a engolfava. Consciente de sua desvalia, tinha medo de fazer amizades para não revelar que não tinha méritos, nem era simpática. Não era arrogante, era de uma timidez quase patológica. Julgava que não pertencia ao mundo de seu pai. Não pertencia a mundo algum. Detestava ser levada para a escola no Rolls-Royce, pois sabia que não merecia isso. Nas aulas, estava a par de todas as perguntas que as professoras faziam, mas não tinha coragem de responder, para não chamar a atenção sobre ela. Gostava de ler e ficava acordada na cama até altas horas da noite, devorando livros.

Sonhava muito e se comprazia nas suas fantasias. Estava em Paris com o pai e, depois de atravessarem o Bois de Boulogne numa carruagem, ele a levava para o escritório, uma enorme sala, mais ou menos do tamanho da Catedral de Saint Patrick. As pessoas começavam a levar papeis para o pai assinar e ele dizia:

"Não vêem que estou ocupado? Estou conversando com minha filha Elizabeth".

Ela e o pai estavam esquiando na Suíça, descendo uma encosta ao lado um do outro. De repente ele caía e gritava de dor porque quebrava a perna, mas ela dizia: "Não se preocupe, papai. Eu cuidarei de você". Esquiava então até o hospital, onde dizia: "Depressa! Vão socorrer meu pai, que está machucado". Uma dúzia de homens de casacos brancos levavam-no então numa ambulância cintilante, e ela ficava à cabeceira dele, dando-lhe comida na boca. (já então quebrara o braço e não a perna), e aí a mãe entrava no quarto, de algum modo viva, e ele dizia: "Não posso falar com você agora, Patricia. Elizabeth e eu estamos conversando".

Ou então estava na bela villa de Sardenha e os empregados não estavam em casa. Ela preparava o jantar para o pai, que repetia todos os pratos e ao fim dizia: "Você é a melhor cozinheira do que sua mãe foi, Elizabeth".

Todas as cenas com seu pai tinham sempre o mesmo final. A campainha da porta tocava e um homem alto, bem mais alto do que o pai, entrava e a pedia em casamento.

O pai então pedia: "Não me deixe, Elizabeth. Eu preciso muito de você".

E ela resolvia ficar.

De todas as casas em que Elizabeth se criou, a villa na Sardenha era sua favorita. Não era de modo algum a maior, mas a mais pitoresca e acolhedora. A própria Sardenha encantava Elizabeth. Era uma ilha impressionante e rochosa, a cerca de cento e cinquenta milhas marítimas da costa da Itália. Era um maravilhoso conjunto de montanhas,

mar e terras verdes. Os seus enormes penhascos vulcânicos tinham irrompido havia milénios do mar primitivo, e a costa se estendia numa imensa meia-lua até onde a vista alcançava, bordada pela franja azul do mar Tirreno.

Para Elizabeth, a ilha tinha cheiros especiais e próprios, o aroma dos ventos do mar e das florestas, bem como da macchia, a flor amarela e branca que Napoleão tinha amado. Havia as moitas de corbeccola, que alcançavam quase dois metros de altura e davam uma frutinha vermelha que tinha gosto de morango, e as guarcias, os gigantescos carvalhos cuja casca era exportada para o continente, onde se faziam com elas rolhas para as garrafas de vinhos.

Gostava de ouvir os rochedos cantantes, as misteriosas e enormes pedras cheias de buracos. Quando o vento soprava nesses buracos, os rochedos emitiam sons fantasmagóricos e tristes, como lamentos de almas penadas.

Os ventos sopravam, e Elizabeth ficou conhecendo todos eles:

o mistral e o ponente, a tramontana, o grecate e o levante.

Havia ventos brandos, ventos impetuosos. O mais temido era o siroco, o vento quente que soprava do Saara.

A Villa Roffe ficava na Costa Esmeralda, acima do Porto Cervo, no alto de um penhasco sobre o mar, escondida entre zimbros e as oliveiras selvagens da Sardenha, que davam azeitonas amargas. Havia uma vista empolgante da baía muito abaixo, em torno da qual se espalhavam pelos montes verdes casas de alvenaria numa mistura desordenada de cores que lembravam um desenho de criança.

A villa era de alvenaria, com grandes traves de zimbro, no seu interior. Era construída em vários níveis, com grandes quartos confortáveis, cada qual com sua lareira e a sua varanda. As salas de estar e de jantar tinham grandes janelas que permitiam visão panorâmica da ilha. Uma escada irregular levava aos quatro quartos do andar de cima. A mobília combinava perfeitamente com o ambiente. Havia mesas e bancos rústicos de refeitório e poltronas macias. Diante das janelas, havia cortinas franjadas de la branca, tecidas à mão na ilha. O piso era revestido de vistosos ladrilhos ceresarda da Sardenha e de outros ladrilhos da Toscana. Nos banheiros e quartos, haviam tapetes de la da ilha coloridos tradicionalmente com tintas vegetais. A casa era cheia de quadros, uma mistura de impressionistas franceses, grandes mestres italianos e primitivos sardos. Na entrada, havia retratos de Samuel Roffe e Terenia Roffe, trisavós de Elizabeth.

O que mais agradava a Elizabeth era a sala da torre, sob o telhado inclinado. Subia-se para lá do segundo andar por uma estreita escada, e a sala servia de escritório a Sam Roffe.

Havia uma grande mesa de trabalho e uma confortável cadeira giratória estofada. Nas paredes viam-se estantes e mapas, muito destes pertencentes ao império Roffe.

Portas envidraçadas se abriam para uma pequena varanda sobre um penhasco abrupto e dali se tinha uma vista deslumbrante.

Foi nessa casa, aos treze anos de idade, que Elizabeth descobriu as origens de sua família e pela primeira vez sentiu que era de casa, que era parte de alguma coisa.

Tudo começou no dia em que Elizabeth encontrou o Livro. O pai havia ido a Olbia, e Elizabeth subiu a escada para a sala da torre. Não se interessava pelos livros das estantes, pois sabia havia muito que eles versavam sobre farmacologia e farmacognosia, empresas multinacionais e direito internacional.

Tudo era muito pesado e chato. Havia um volume médico em latim intitulado Circa instans, escrito na Idade Média, e outro chamado De materia medica. Elizabeth estava estudando latim e teve curiosidade de ver um daqueles volumes. ao puxar os livros, viu que havia outro embaixo. Apanhou-o. Era grosso, encardenado em couro e sem título.

Mais curiosa ainda, Elizabeth abriu-o. Foi como se abrisse uma porta para outro mundo. Era uma biografia de seu trisavô, Samuel Roffe, impressa em inglês numa edição particular em pergaminho. Não havia o nome do autor, nem a data, mas era evidente que o livro devia ter mais de cem anos. Algumas páginas estavam desbotadas, outras amareladas ou já começando a desfazer-se de velhice.

Mas nada disso tinha importância. O importante era a história que dava vida aos retratos pendurados na parede embaixo da escada. Elizabeth tinha visto muitas vezes esses retratos de um homem e de uma mulher de outros tempos, vestidos com roupas estranhas. O homem não era belo, mas havia em seu rosto energia e inteligência.

Tinha cabelos louros, os malares salientes dos eslavos e olhos azuis muito vivos. A mulher era uma beleza.

Cabelos negros, pele impecável e olhos negros como carvão.

Usava um vestido de seda branca com um casaquinho e um corpete de brocado. Dois estranhos que nada significavam para Elizabeth. Mas naquele dia em que, sozinha na sala da torre, Elizabeth abriu o Livro e começou a ler, Samuel e Terenia Roffe readquiriam vida. Elizabeth se sentiu transportada no tempo e começou a viver no gueto

de Cracóvia, no ano de 1853, em companhia de Samuel e Terenia.

E, ao ler o Livro, ficou sabendo que seu trisavô, Samuel, fundador de Roffe and Sons, fora romântico e aventureiro.

E também assassino.

 

Capítulo 8

De acordo com o Livro, uma das mais antigas lembranças de Samuel, era a do assassinato de sua mãe.

Samuel tinha cinco anos de idade. Ele fora escondido na adega da pequena casa de madeira em que os Roffes moravam, com outras famílias, no gueto de Cracóvia.

Quando a desordem finalmente terminara, depois de horas terríveis de angústia e sofrimento, e o único som que se ouvia era o choro dos sobreviventes, Samuel deixou cautelosamente seu esconderijo e saiu às ruas do gueto à procura da mãe. Parecia ao garoto que o mundo inteiro estava em chamas. O céu mostrava-se avermelhado com o incêndio de inúmeras casas de madeira, e nuvens de espessa fumaça negra se erguiam por toda a parte. As pessoas andavam freneticamente à procura dos parentes e amigos ou tentavam salvar o que ainda fosse possível das casas e bens. Eram meados do século XIX, Cracóvia possuía um corpo de bombeiros, que estava, proibido de prestar socorro aos judeus.

Ali no gueto, nos arredores da cidade, o povo era forçado a debelar os incêndios com as próprias mãos, tirando água dos poços. Dezenas de pessoas formavam cadeias de passagem de baldes no esforço de combater o fogo. Samuel via a morte por onde quer que olhasse, nos corpos mutilados de pessoas estendidas no chão como bonecos quebrados, de mulheres nuas e violentadas e de crianças ensanguentadas que pediam socorro.

Samuel encontrou a mãe estendida na rua, ainda consciente, o rosto coberto de sangue. O menino se ajoelhou ao lado dela, com o coração a bater descompassadamente.

- Mamãe!

Ela abriu os olhos, viu-o, tentou falar, e Samuel compreendeu que ela estava morrendo. Queria desesperadamente salvá-la, mas não sabia como, e quando lhe enxugou o sangue, ela morreu.

Mais tarde, Samuel assistiu ao sepultamento e viu os homens cavarem cuidadosamente o chão em que ela caíra, pois, de acordo com as Escrituras, ela teria de ser enterrada com todo o seu sangue para aparecer inteira diante de Deus.

Foi nesse momento que Samuel Roffe resolveu ser médico.

A família Roffe morava numa estreita casa de três andares, com mais oito famílias. O jovem Samuel vivia num pequeno quarto com o pai e com a tia Rachel, e nunca em sua vida tivera um quarto só seu, nunca dormira ou comera sozinho. Nunca tinha havido um só momento em que não ouvisse as vozes dos outros, mas não era uma vida isolada e privada que Samuel desejava, pois nem sabia que isso existia. Vivera sempre no meio duma confusão de gente.

Todas as tardes, Samuel e seus parentes e amigos eram trancados no gueto pelos gentios, e os judeus tratavam de guardar cabras, vacas e galinhas.

Ao anoitecer, as pesadas portas do gueto eram fechadas e trancadas com uma chave de ferro. Quando amanhecia, as portas eram abertas, e os mercadores judeus tinham permissão de ir a Cracóvia negociar com os gentios, mas antes de escurecer deviam estar todos de novo dentro dos muros do gueto.

O pai de Samuel viera da Rússia, fugindo de um pogrom em Kíev, e fora dar em Cracóvia, onde conhecera sua noiva. Era um homem encurvado e grisalho, com rosto encarquilhado.

Empurrava um carrinho, apregoando as miudezas, quinquilharias e utensílios que vendia, através das estreitas e tortuosas ruas do gueto.

O Jovem Samuel gostava de vaguear pelas ruas atravancadas, movimentadas e calçadas de pedras irregulares. Gostava do cheiro do pão recém-saído do forno misturado com os cheiros de peixe seco, queijo, frutas maduras, serragem e couro. Gostava de ouvir os pregões dos vendedores e as discussões com as freguesas que se fingiam escandalizadas com os preços. Era assombrosa a variedade de artigos que os ambulantes vendiam: roupas e rendas, pano de chão, la, couro, carnes, verduras, agulhas, sabonete, galinhas depenadas, bombons, botões, xaropes e sapatos.

No dia em que Samuel completou doze anos, o pai levou-o à cidade de Cracóvia pela primeira vez. A idéia de passar pelos portões proibidos e de ver Cracóvia, a terrados gentios, provocou no garoto uma ansiedade quase insuportável.

As seis horas da manhã vestido com uma única roupa boa que tinha, Samuel esperava no escuro, ao lado do pai, diante dos grandes portões fechados, no meio de uma barulhenta multidão de homens com carros de toda a espécie ao alcance das mãos. Fazia frio, e Samuel se embrulhou mais no seu velho e gasto capote de pele de carneiro.

Depois de uma espera que pareceu de muitas horas, o sol surgiu no horizonte e houve um tremor de expectativa entre os homens ali reunidos. Momentos depois, os grandes portões de madeira foram abertos. Todos passaram por eles e seguiram na direcção da cidade como um bando de formigas diligentes.

Quando se aproximavam da cidade admirável e terrível, o coração de Samuel começou a bater mais forte. Já avistava as fortificações que dominavam o Fístula. Samuel agarrou-se com mais força ao pai. Estava de facto em Cracóvia, cercado pelos temidos goyim, a gente que os trancava durante a noite. Lançava olhares furtivos e medrosos para as pessoas que passavam e se espantava de que fossem tão diferentes. Não usavam payves, cabelos encaracolados em cima das orelhas, nem bekeches, os longos casacos pretos, e muitos deles não tinham barba no rosto. Samuel e seu pai caminharam pelo Plante em direcção ao Ryneck, a movimentada praça do mercado, onde passaram pelo Pavilhão dos Tecidos e pela Igreja de Santa Maria com as suas torres gemias. Samuel jamais imaginara tanta magnificência. O novo mundo era cheio de maravilhas. Havia principalmente uma sensação embriagadora de liberdade e de espaço que deixava Samuel sem fôlego. As casas nas ruas eram separadas e não grudadas umas nas outras.

Quase todas tinham na frente um pequeno jardim. Com certeza, pensou Samuel, todos em Cracóvia são milionários.

Samuel acompanhou o pai a meia dúzia de fornecedores, aos quais o pai comprou mercadorias que jogou dentro do carro.

Quando este ficou cheio, ele e o filho voltaram para gueto.

- Não podemos ficar mais um pouco? - perguntou Samuel.

- Não, meu filho. Temos de ir para casa.

Samuel não queria ir para casa. Transpusera os portões do gueto pela primeira vez em sua vida e estava dominado por uma emoção tão forte que quase o sufocava. Havia gente que podia viver assim, podendo ir para onde bem quisesse, fazer o que bem entendesse... Por que é que ele não nascera do outro lado dos portões? Quase no mesmo instante, envergonhou-se desses pensamentos desleais.

Naquela noite, ao deitar-se, Samuel ficou pensando durante muito tempo em Cracóvia e nas belas casas com as suas flores e os seus jardins. Tinha de encontrar um meio de libertar-se.

Queria conhecer alguém que sentisse o mesmo que ele sentia, mas não havia ninguém que o compreendesse.

Elizabeth interrompeu a leitura do Livro e fechou os olhos, imaginando então a solidão, as emoções e as frustrações de Samuel.

Foi nesse momento que ela começou a identificar-se com ele, a sentir-se uma parte dele, como ele era uma parte dela. O sangue dele lhe corria nas veias. Era um sentimento admirável e perturbador de participação.

Ouviu o barulho do carro do pai que voltava e escondeu prontamente o Livro. Não teve mais oportunidade de lê-lo na Sardenha, mas quando voltou para Nova York levou-o escondido no fundo da mala.

 

Capítulo 9

Depois do sol quente de inverno da Sardenha, Nova York lhe pareceu uma Sibéria. As ruas estavam cheias de neve e lama. O vento que soprava do rio East era enregelante.

Mas Elizabeth não se importava. Estava vivendo na Polónia noutro século, participando das aventuras de seu trisavô. Todas as tardes, depois da escola, corria para o seu quarto, trancava a porta e pegava o Livro. Pensara em falar dele ao pai, mas tivera medo de que este o tomasse e lhe proibisse a leitura do resto.

De uma maneira admirável e inesperada, foi o velho Samuel quem animou Elizabeth, Afinal de contas, eram muito parecidos.

Ele vivia isolado da mesma maneira que ela e do mesmo modo não tinha ninguém com quem pudesse falar. E, como eram quase da mesma idade, com um século de diferença, Elizabeth conseguia identificar-se com ele.

Samuel queria ser médico.

Só três médicos tinham permissão para atender aos milhares de pessoas amontoadas nos limites insalubres e sujeito a epidemias do gueto. Dos três, o mais próspero era o Dr. Zenon Wal. A casa dele se destacava entre as de seus vizinhos mais pobres como um castelo entre pardieiros. Tinha três andares e por trás de suas janelas viam-se cortinas de renda brancas, sempre lavadas e engomadas, e alguns móveis polidos e brilhantes. Dentro de casa, Samuel imaginava o médico a atender aos seus pacientes, tratando deles, ajudando-os e curando-os. Fazia tudo o que Samuel desejava um dia fazer. Sem dúvida, se um homem como o Dr. Wal se interessasse por ele, poderia ajudá-lo a estudar para ser médico. Mas, no que se referia a Samuel, O Dr. Wal era tão inacessível quanto qualquer dos gentios que viviam em Cracóvia, fora dos muros proibidos.

De vez em quando, Samuel via de relance o grande Dr. Zenon Wal quando este se empenhava em animar conversa na rua com algum colega. Um dia, quando Samuel passava pela frente da casa do Dr. Wal, a porta da rua se abriu e o médico saiu em companhia da filha. Ela era mais ou menos da idade de Samuel, e este nunca vira criatura mais linda. No momento em que Samuel a viu, teve certeza de que ia casar-se com ela. Não sabia como conseguir esse milagre, mas estava certo de que era isso o que ia acontecer.

Depois desse dia, Samuel nunca mais deixou de passar diariamente pela casa do Dr. Wal, na esperança de vê-la.

Numa tarde, ia fazer alguma coisa que lhe haviam pedido e passou pela casa. Ouviu um piano e compreendeu que era ela que estava tocando. Tinha de vê-la. Olhou para um lado e para o outro, para certificar-se de que ninguém o estava observando, e encaminhou-se para a casa. A música vinha de um lado da casa.

No andar superior, bem acima de sua cabeça. Recuou um pouco e examinou a parede. Havia muitos lugares onde poderia apoiar as mãos e os pés. Sem um momento de hesitação , começou a escalada. O segundo andar era mais alto do que ele havia pensado e, antes que chegasse à janela, estava três metros acima do chão. Olhou para baixo e teve um princípio de vertigem. A música lhe chegava aos ouvidos com mais força, e ele teve a impressão de que ela tocava para ele. Estendeu a mão à procura de um ponto de apoio e se agarrou à janela. Ergueu lentamente a cabeça para olhar acima do peitoril. Viu diante dos seus olhos uma sala luxuosamente mobiliada. A moça estava sentada diante de um piano branco e dourado a tocar e, atrás dela, lendo um livro numa poltrona, estava o Dr. Wal. Samuel nem o notou. Tinha olhos apenas para a linda visão a alguns metros dele. Como a amava! Queria fazer alguma coisa espectacular e corajosa para que ela também o amasse. Tão envolvido ficou Samuel nos seus devaneios que se distraiu, perdeu o ponto de apoio e começou a rolar no espaço. Deu um grito e viu dois rostos assustados que o olhavam da janela no momento em que chegou ao chão.

Acordou numa mesa do consultório do Dr. Wal. Era uma sala espaçosa, cheia de armários e material cirúrgico. O Dr. Wal estava com um chumaço de algodão que tinha um cheiro horrível encostado ao nariz de Samuel. Este tossiu e sentou-se na mesa.

- Muito bem - disse o Dr. Wal. - Devia ter-lhe tirado o cérebro, mas fiquei em dúvida, sem saber se ia encontrar alguma coisa dentro da sua cabeça. O que você queria roubar, garoto?

- Nada - respondeu Samuel com indignação.

- Como é seu nome?

- Samuel Roffe.

O médico examinou com os dedos o pulso direito de Samuel, e o garoto deu um grito de dor.

- Hum... Você luxaçou o pulso, Samuel Roffe. Talvez seja melhor chamar a polícia para dar um jeito nesse pulso.

Samuel gemeu. Pensava no que poderia acontecer se a polícia levasse a desmoralização à casa dele. O coração de sua tia Rachel se partiria de dor e seu pai seria capaz de matá-lo. Mas o pior de tudo seria que, depois disso, poderia perder toda a esperança de ganhar o coração da filha do Dr. Wal. Seria um criminoso, um homem marcado. Samuel sentiu de repente uma dor estonteante no pulso e levantou os olhos para o médico numa desalentada surpresa.

- Está tudo certo - disse o Dr. Wal. - Vou colocar agora algumas talas nesse pulso. Você vive aqui por perto, Samuel Roffe?

- Não, Dr. Wal.

- Já não o vi aqui por perto?

- Deve ter visto.

- Por quê?

Sim, por quê? Se dissesse, o médico iria com certeza rir dele.

- Porque eu quero ser médico - exclamou Samuel, sem mais poder guardar o seu segredo.

O Dr. Wal o olhava, descrente.

- E foi por isso que subiu pelas paredes da minha casa, como se fosse um gatuno?

Samuel então, contou-lhe tudo. Falou de sua mãe morta no meio da rua, da luta de seu pai, de sua primeira visita a Cracóvia e da sua frustração de passar as noites trancado dentro dos muros do gueto como se fosse um animal. Disse também o que sentia pela filha do Dr. Wal. Disse tudo o que pensava, e o médico o escutava em silêncio.

Até a Samuel o que ele dizia parecia de um ridículo atroz. Quando chegou ao fim, só pôde dizer num sussurro:

- Desculpe...

O Dr. Wal olhou-o durante muito tempo e por fim disse?

- Todo homem é um prisioneiro, e o pior é ser prisioneiro de outro homem.

Samuel murmurou:

- Não compreendo, Dr. Wal.

- Um dia você compreenderá.

O médico levantou-se, escolheu um cachimbo em cima de sua mesa e encheu de fumo.

- Infelizmente, o dia de hoje vai ser muito triste para você, Samuel Roffe.

Acendeu o cachimbo, saltou a primeira baforada e continuou:

- Não em virtude do pulso luxaçado. Isso vai sarar. Mas tenho alguma coisa para lhe dizer, na qual você não se curará com muita facilidade. São poucas as pessoas que sonham. Você tem dois sonhos. E sou obrigado a destruir a ambos.

- Não...

- Escute com muita atenção, Samuel. Você nunca poderá ser médico, ao menos em nosso mundo. Só três médicos podem exercer a profissão no gueto. Há dezenas de médicos competentes aqui à espera que algum de nós morra para que possa tomar nosso lugar.

Não há chance para você, nenhuma chance. Você nasceu em época imprópria e em lugar impróprio. Está compreendendo, meu jovem?

- Estou, Dr. Wal.

O médico hesitou um pouco e continuou:

- Quanto ao seu segundo sonho, é tão impossível quanto ao outro. Não há chance de espécie alguma de você casar-se com Terinia.

- Por quê?

- Por quê? Pelas mesmas razões que o impedem de ser médico.

Vivemos de acordo com as regras impostas pelas nossas tradições. Minha filha tem de casar-se com alguém da mesma classe dela, alguém que a possa manter no mesmo estilo de vida em que foi criada. Terá de casar-se com um advogado, um médico ou um rabino. é melhor esquecer-se dela.

- Mas...

O médico levou-o até a porta do consultório.

- Mande alguém examinar essas talas dentro de alguns dias.

Conserve limpas as ataduras.

- Está bem. Muito obrigado, Dr. Wal.

O médico olhou o garoto louro e o rosto inteligente que estava diante dele e murmurou:

- Adeus, Samuel Roffe.

Na tarde do dia seguinte, Samuel tocou a campainha da casa do Dr. Wal. O médico viu-o pela janela e pensou que devia dizer que não estava. Mas disse à empregada.

- Faça-o entrar.

Depois disso, Samuel passou a frequentar a casa do Dr. Wal duas ou três vezes por semana. Dava recados e ia comprar coisas para o médico e este, em troca, deixava-o olhar enquanto ele atendia a clientes no consultório ou preparava medicamentos no laboratório. O garoto observava, aprendia e guardava tudo na memória. Tinha um talento natural, e o Dr. Wal experimentava um crescente sentimento de culpa, sabendo que estava erradamente incentivando Samuel a ser alguma coisa que ele nunca poderia ser. Entretanto, não tinha ânimo de dissuadi-lo.

Fosse por acaso ou propositadamente, Terinia quase sempre ficava por perto quando Samuel estava presente. Quase sempre ele a via de relance passando pela porta do laboratório ou saindo de casa. Houve um dia em que esbarrou nela na cozinha e sentiu uma emoção tão forte que pensou que fosse desmaiar. Ela o olhou demoradamente, com um brilho de indagação nos olhos.

Depois, teve um gesto frio de assentimento e afastou-se. ao menos ela o havia notado! Era o primeiro passo. O resto seria apenas uma questão de tempo. Não havia a menor dúvida a esse respeito no espírito de Samuel. Era inevitável. Terinia participava agora dos sonhos de Samuel quanto ao futuro.

Antigamente, sonhava por ele mesmo; passou a sonhar pelos dois.

De qualquer modo, sairia com ela daquele terrível gueto, daquela prisão imunda e atravancada. E seria um sucesso. Mas o sucesso não seria para ele apenas, e sim para os dois.

Ainda que tudo isso fosse impossível.

Elizabeth adormeceu lendo a história do velho Samuel. Quando acordou de manhã, escondeu cuidadosamente o Livro e começou a vestir-se para ir à escola. Mas não podia esquecer-se de Samuel. Como ele se cassara com Terinia? Como conseguira sair do gueto? Como se tornara famoso? Elizabeth estava empolgada com o Livro e se afligia com as lições que a levavam a abandoná-lo e a forçavam a voltar ao século XX.

Entre as aulas que Elizabeth frequentava, havia o balé, que ela detestava. Metia-se em sua malha cor-de-rosa e olhava-se ao espelho, tentando convencer-se de que tinha um corpo voluptuoso. Mas a verdade estava ali diante de seus olhos. Era muito gorda e nunca seria uma bailarina.

Logo depois do décimo quarto aniversário de Elizabeth, Mm Netturova, a professora de balé, anunciou que dali a duas semanas as alunas dariam o seu recital anual de dança no auditório. As moças deviam convidar os pais, e, ao ouvir isso, Elizabeth ficou em estado de pânico. A simples idéia de aparecer num palco diante do público enchia-a de medo. Nunca poderia fazer isso.

Uma criança estava atravessando a rua à frente de um carro.

Elizabeth viu tudo, correu e salvou a menina das garras da morte. Infelizmente, minhas senhoras e meus senhores, os dedos dos pés de Elizabeth Roffe foram esmagados pelas rodas do carro e ela não poderá dançar no espectáculo desta noite.

Uma empregada negligente deixou um pedaço de sabão no alto da escada. Elizabeth escorregou no sabão e rolou pela escada, luxaçando um osso do quadril. O médico diz que não é grave.

Dentro de três semanas, estará inteiramente curada.

Mas não teve essa sorte. No dia do recital, Elizabeth gozava de boa saúde e estava num tremendo nervosismo. Mais uma vez, foi o velho Samuel que a ajudou. Lembrou-se de como, apesar de seu medo, ele tinha voltado para enfrentar o Dr. Wal. Ela não poderia fazer outra coisa que desmoralizasse seu trisavô.

Preparou-se para enfrentar a tortura que a esperava.

Nem falara ao pai sobre o recital. Todas as vezes que ela lhe havia falado em festa e reuniões da escola para as quais os pais eram convidados, ele alegara sempre que estava muito ocupado e não podia ir. Na noite em que Elizabeth se preparava para o recital de dança, ele voltou para casa. Passara dez dias ausente da cidade.

Passou pela porta do quarto dela, viu-a e disse:

- Boa noite, Elizabeth. Sabe que engordou mais um pouco?

- Sim, papai - disse ela, ficando vermelha e tentando encolher a barriga.

Ele ia dizer alguma coisa, mas mudou de idéias.

- Tudo bem na escola?

- Tudo.

- Algum problema?

- Não, papai.

- Optimo.

Era um diálogo que se havia repetido mais de cem vezes através dos anos, uma troca de palavras sem significação que parecia ser a única forma de comunicação entre eles. Era como dois desconhecidos que falassem do tempo, sem o menor interesse pela opinião um do outro.

Desta vez, porém, Sam Roffe olhou para a filha pensativamente. Estava habituado a lidar com problemas concretos e, embora sentisse que havia algum problema, não tinha idéia do que fosse. Se alguém lhe abrisse os olhos, limitar-se-ia a dizer: "Está muito enganado. Elizabeth tem tudo".

Quando o pai ia saindo, Elizabeth disse quase sem querer:

- Minha turma de balé vai dar um recital esta noite e eu vou dançar. Não quer ir ver?

Logo que disse as palavras, sentiu-se horrorizada. Não queria que o pai fosse ver sua falta de jeito. Por que falara? Bem sabia por quê. Ela seria a única aluna da turma cujos pais não estariam presentes no auditório. Aliás, o convite não tinha qualquer importância, pois ele ia dizer que não podia. Sacudiu a cabeça com raiva de si mesma e já ia a afastar-se quando ouviu atrás dela estas palavras do pai:

- Gostarei muito de ir.

O auditório estava cheio de pais, parentes e amigos, vendo as mocinhas dançarem ao som de dois grandes pianos de cauda, colocados um de cada lado do palco. Mme Netturova estava um pouco à frente, marcando o compasso em voz alta enquanto as alunas dançavam, chamando a atenção dos pais para ela própria.

Algumas alunas eram muito graciosas e davam mostras de verdadeiros talentos. As outras faziam os movimentos determinados, substituindo a competência pelo entusiasmo.

O programa mimeografado anunciava trechos musicais de Copélia, Cinderela e O lago dos cisnes. A piéce de resistance seriam os solos, em que cada aluna teria sozinha o seu momento de glória.

Nos bastidores, Elizabeth estava tomada de verdadeira agonia.

Esticando um pouco o corpo, podia ver a plateia, e, sempre que avistava o pai sentado no centro da segunda fila, pensava em como tinha sido tola em convidá-lo. Até então, durante o recital, Elizabeth conseguira ficar em segundo plano entre as colegas que dançavam. Mas a hora do seu solo se aproximava. Ela se sentia enorme em sua malha como se fosse uma personagem de circo. Tinha certeza de que provocaria risos quando aparecesse no palco. E tinha convidado o pai para presenciar a sua humilhação! O único consolo de Elizabeth era o facto de seu solo não durar mais de que um minuto. Mme Netturova não era louca. Tudo acabaria tão rapidamente que ninguém prestaria atenção nela. Bastaria que o pai de Elizabeth olhasse um instante para o lado e seu número teria terminado.

Elizabeth olhava as outras dançarem e todas lhe pareciam iguais a Markova, a Maximova, a Margot Fonteyn. Assustou-se ao sentir a mão fria em seus braços nus. Era Mme Matturova.

- Prepare-se, Elizabeth. É a sua vez.

Elizabeth tentou dizer: "Sim, madame", mas estava com a garganta tão seca que não conseguiu articular as palavras. As duas pianistas iniciaram os compassos conhecidos do solo de Elizabeth. Ela ficou no mesmo lugar, paralisada, sem poder se mover-se, enquanto Mme Netturova lhe sussurrava:

- Vamos! Comece!

Sentiu um leve empurrão nas costas e foi sair no palco, quase nua, diante de uma centena de pessoas estranhas e hostis. Não tinha coragem de olhar para o pai. Queria apenas livrar-se daquele tormento o mais depressa possível e fugir. O que tinha de fazer era simples: alguns pliés e saltos. Começou a dar os passos, acompanhando o compasso da música e tentando imaginar-se esbelta, elegante e ágil. Quando terminou, houve algumas palmas esparsas e formais. Elizabeth olhou para a segunda fila e viu que o pai batia palmas e sorria, contente.

Ao ver que o pai aplaudia, alguma coisa se desprendeu dentro de Elizabeth. A música tinha cessado. Mas Elizabeth continuou a dançar, fazendo jetés, pliés, batteries e piruetas, transportada além de si mesma. As pianistas, confusas, tentaram acompanhá-la, primeiro uma, depois a outra. Nos bastidores, Mme Netturova, rubra de raiva,

fazia desesperados sinais a Elizabeth para encerrar tudo e sair do palco. Mas Elizabeth, toda feliz, nem tomava conhecimento dela e continuou a dançar.

O que importava apenas era que ela estava no palco, dançando para o pai.

- Tenho certeza de que compreende, Sr. Roffe, que esta escola não pode tolerar esse tipo de comportamento. - A voz de Mme Netturova tremia de raiva. - Sua filha desprezou todas as pessoas presentes e tomou conta do palco... como se fosse uma estrela!

Elizabeth sentiu o pai voltare-se para ela e teve medo de olhá-lo. Sabia que o que fizera era imperdoável, mas não conseguira se conter. Por um momento, tentara criar no palco algumas coisas belas para o pai, a fim de que ele a visse e tivesse orgulho dela, dando-lhe então o seu amor.

Ouviu o pai dizer:

- Tem toda a razão, Mme Netturova. Vou tomar providências para que Elizabeth seja devidamente punida.

Mme Netturova envolveu Elizabeth num olhar de triunfo e disse:

- Muito obrigada, Sr. Roffe. Deixo-a em suas mãos.

Elizabeth e o pai saíram da escola. Ela não dissera uma só palavra desde que tinha deixado a sala de Mme Netturova.

Elizabeth estava à procura de palavras com que pudesse pedir desculpas, mas o que poderia fazer? Como poderia seu pai compreender por que ela fizera aquilo? O pai era um estranho, e ela sentiu medo dele. Ouvira repetidas vezes o pai descarregar a sua cólera nos empregados por enganos ou desobediências. Não podia esperar senão uma manifestação dessa mesma cólera.

- Elizabeth - disse finalmente o pai, voltando-se para ela -, acha que podemos passar pelo Rumpelmayer's e tomar um sorvete de chocolate com soda?

Elizabeth desatou a chorar.

Estendeu-se na cama naquela noite com os olhos abertos, tão excitada que não conseguia dormir. Recordava sem cessar todos os acontecimentos daquela noite. A sua agitação era realmente excessiva. Nada daquilo era produto da sua imaginação. Tinha acontecido, era uma realidade.

Viu-se de novo sentada com o pai a mesa do Rumpelmayer's, cercada pelos grandes e pitorescos ursos, elefantes, zebras e leões empalhados. Pedira banana split, e, quando aquela coisa imensa chegara à mesa, o pai não havia feito a menor crítica.

E, depois, conversava com ela, sem os monossílabos habituais.

Falara da sua viagem a Tóquio, dissera que lá lhe haviam servido, como pratos especiais, gafanhotos e formigas cobertos de chocolate e que ele tivera de fazer um grande esforço para comer aquilo e não ofender o seu anfitrião.

Quando Elizabeth acabara o sorvete, o pai de repente perguntara:

- Por que você fez aquilo, Liz?

- Quis ser melhor do que todas as outras - dissera ela, mas não tivera coragem de acrescentar: "Por sua causa".

Ele olhara para ela durante muito tempo, rira e dissera com uma nota de orgulho na voz:

- Você certamente surpreendeu todo mundo.

Elizabeth sentiu o sangue subir-lhe ao rosto e perguntou:

- Não ficou então zangado comigo?

Havia nos olhos dele um brilho que Elizabeth nunca tinha visto.

- Por querer ser melhor que os outros? Foi sempre isso que nós, Roffes, fizemos.

E apertara carinhosamente a mão dela.

Os últimos pensamentos de Elizabeth antes de adormecer foram:

"Meu pai gosta de mim, gosta mesmo de mim. De agora em diante, vamos viver sempre juntos. Ele me levará nas suas viagens.

Conversaremos sobre todas as coisas e seremos bons amigos".

Na tarde seguinte, a secretária de seu pai informou-a de que tinham sido iniciados entendimentos para mandá-la para um internato na Suíça.

 

Capítulo 10

Elizabeth foi matriculada no International Château Lemand , uma escola para moças situada na aldeia de Saint-Blaise, às margens do lago de Neuchâtel. A idade das moças variava entre catorze e dezoito anos. Era uma das melhores escolas do excelente sistema educacional suíço.

Elizabeth odiou-a do princípio ao fim.

Sentia-se exilada. Fora mandada para longe de casa e estava sofrendo um cruel castigo por um crime que não cometera. Aquela noite mágica parecera o início de alguma coisa maravilhosa, da descoberta recíproca do pai e dela, duma amizade estreita com ele. Mas agora ele parecia mais distante que nunca.

Elizabeth seguia a vida do pai por intermédio dos jornais e revistas. Havia frequentes notícias e fotografias dele, sendo recebido por um primeiro-ministro ou por um presidente, inaugurando uma nova fábrica de produtos farmacêuticos em Bombaim, escalando uma montanha ou jantando com o xá do Ira.

Elizabeth colava tudo num caderno de recortes que constantemente olhava. Guardava-o ao lado do Livro de Samuel.

Elizabeth se mantinha afastada das outras alunas. Algumas viviam em quartos com duas ou três, mas Elizabeth pedira um quarto só para si. Escrevia longas cartas ao pai e depois rasgava as que revelava seus sentimentos. De vez enquanto recebia um bilhete dele e havia sempre alguns embrulhos vistosos de presentes de lojas caras no dia do seu aniversário, mandados pela secretária de seu pai. Elizabeth tinha muitas saudades dele.

Iria vê-lo no Natal na villa de Sardenha, e, à medida que a época se aproximava, a espera se tornava quase intolerável.

Chegara a passar mal de tanto nervosismo.

Fez uma lista de suas resoluções, disposta a cumpri-las fielmente:

Não seja inoportuna.

Procure ser interessante.

Não se queixe de coisa alguma, especialmente da escola.

Não o deixe saber que você se sente sozinha.

Não o interrompa quando ele estiver falando.

Tenha sempre boas maneiras, especialmente na hora do café da manhã.

Ria muito para ele pensar que você é feliz.

Essas notas eram como uma prece, uma oferenda aos deuses. Se ela fizesse todas essas coisas, talvez... talvez... As resoluções de Elizabeth se esfumavam em fantasias.

Ela teria profundas observações do Terceiro Mundo e os dezanove países em desenvolvimento, e o pai dela diria: "Não sabia que você era tão interessante (regra número 2). Você é brilhante, Elizabeth". Então, ele se voltaria para a secretária e diria:

"Não creio que Elizabeth precise voltar para a escola. Vai ficar aqui comigo".

Uma prece, uma oferenda.

Um Learjet da companhia pegou Elizabeth em Zurique e transportou-a até o aeroporto de Olbia, onde uma limusine estava à sua espera. Elizabeth sentou-se no carro em silêncio, com os joelhos bem juntos para não tremer. Aconteça o que acontecer, ele não me verá chorar, pensou Elizabeth. Nunca vai saber como tive saudades dele!

O carro subiu pela longa e sinuosa estrada de montanha que levava à Costa Esmeralda, tomando então a pequena estrada que conduzia até ao topo. Aquela estrada sempre amedrontava Elizabeth. Era muito estreita e íngreme, com a montanha de um lado e um abismo do outro.

O carro parou diante da casa, e Elizabeth saltou, começando a caminhada em direcção à casa, e depois correu tanto quanto lhe permitiam as pernas. A porta se abriu e Margherita, a cozinheira, apareceu, sorridente.

- Alô, Senhorita Elizabeth.

- Onde está meu pai? - perguntou Elizabeth.

- Teve de ir à Austrália para resolver um caso urgente. Mas deixou belos presentes. Vai ser um Natal muito feliz.

 

Capítulo 11

Elizabeth havia levado o Livro. Um dia, ficou diante dos retratos de Samuel e Terinia Roffe, sentindo-lhes a presença como se tivessem voltado à vida. Depois de algum tempo, subiu a escada para a sala de torre, levando o Livro. Ficava ali durante horas todos os dias, lendo e relendo as suas páginas.

De cada vez, sentia-se mais perto de Samuel e Terinia, como se não houvesse um século de intervalo entre eles.

Elizabeth leu que nos anos que se seguiram Samuel passou muitas horas no laboratório do Dr. Wal, ajudando o médico a preparar unguentos e outros medicamentos e apreendendo enquanto trabalhavam. E sempre no fundo de tudo estava Terinia, obsecante, linda. Vê-la era o bastante para alimentar o sonho de Samuel de que um dia ela lhe pertenceria.

Samuel se entendia muito bem com o Dr. Wal, mas com a mãe de Terinia a história era bem diferente. Tratava-se de uma mulher irascível, ferina e esnobe. Detestava Samuel e ele procurava manter-se o mais afastado possível dela.

Samuel ficava fascinado pelas muitas substâncias terapeuticas usadas através dos tempos. Fora encontrado um papiro que relacionava oitocentas e onze receitas usadas pelos egípcios no ano 1550 antes de Cristo. A expectativa de vida nessa época era de quinze anos, e Samuel compreendeu a razão desses números ao ler algumas receitas: excremento de crocodilo, carne de lagarto, sangue de morcego, saliva de camelo, fígado de leão, patas de ra e pó de unicórnio. O sinal Rx1 usado em muitas receitas era uma invocação antiga a Hórus, o deus egípcio da saúde. A própria palavra "química" derivada do antigo nome Egipto, a terra de Kahmi ou Chemi. Os sacerdotes médicos eram chamados de magos.

As farmácias no gueto e na própria Cracóvia eram primitivas.

Quase todos os vidros e potes continham medicamentos que nunca tinham sido analisados e devidamente experimentados. Alguns eram inúteis, outros, nocivos. Samuel conhecia todos. Havia óleo de rícino, calomelanos, ruibardos, composto de iodo, codeína e ipecacuanha. Compravam-se panaceias para coqueluche, cólicas e tifo. Como não havia precauções higiénicas, era comum encontrar unguentos e gargarejos cheios de insectos mortos, baratas, excremento de ratos e pedaços de pernas e peles.

Quase todos os doentes que tomavam esses remédios morriam ou das doenças ou dos remédios.

Havia várias revistas dedicadas a assuntos farmacêuticos, e Samuel lia-as todas com avidez. Discutia as suas teorias com o Dr. Wal.

- É claro - dizia ele com voz vibrante de convicção - que deve haver uma cura para cada doença. A saúde é natural, a doença, não.

- Pode ser - dizia o Dr. Wal -, mas os meus clientes não me permitem experimentar novos medicamentos neles. E acho que estão certos.

Samuel devorou os poucos livros do Dr. Wal sobre farmacologias. Depois de ler e reler esses livros, sentiu-se frustrado diante da falta de resposta para as questões suscitadas.

Samuel ficou entusiasmado com uma revolução que se vinha verificando. Alguns cientistas pensavam que era possível combater as causas das doenças criando uma resistência do organismo contra elas. O Dr. Wal tentou isso uma vez. Extraiu sangue de um doente com difteria e injectou num cavalo. Quando o cavalo morreu, o Dr. Wal abandonou a experiência. Mas o jovem Samuel estava convencido de que o Dr. Wal havia tomado o caminho certo.

O Dr. Wal sacudiu a cabeça.

- Você fala assim porque tem dezassete anos, Samuel. Quando chegar à minha idade, não terá mais certeza de coisa alguma.

Não pense mais nisso.

Essas palavras não convenceram Samuel. Queria prosseguir nas experiências, mas para isso precisava de animais e poucos havia à sua disposição, salvo os gatos e ratos que conseguia apanhar.

Todos eles morriam, por menores que fossem as doses que Samuel lhes aplicasse. Os animais eram muito pequenos, pensava Samuel.

Precisava de um maior, um cavalo, um boi ou um carneiro. Mas onde encontrá-lo?

Uma tarde, quando Samuel voltou para casa, encontrou um velho cavalo atrelado a uma carroça em frente à porta. Num dos lados da carroça estava pintado com letras toscas o letreiro: Roffe and Sons.

Samuel olhou para tudo sem acreditar, e correu para dentro de casa, onde estava o pai.

- Aquele cavalo lá fora... onde o conseguiu?

O pai dele sorriu todo orgulhoso.

- Fiz uma compra. Podemos cobrir mais território com um cavalo. Talvez daqui a quatro ou cinco anos possamos comprar outro cavalo. Imagine só. Teremos dois cavalos!

Era até onde iam as ambições de seu pai. Queria possuir dois cavalos velhos e cansados para arrastar carroças com mercadorias pelas ruas sujas e atravancadas do gueto de Cracóvia. Samuel teve vontade de chorar.

Naquela noite, quando todos dormiam, Samuel foi até a estrebaria e examinou o cavalo, a que tinham dado o nome de Fred. Em matéria de cavalos, aquele era sem dúvida um dos mais fracos da espécie. era muito velho, desancado e com tomores nas pernas. Talvez não pudesse andar muito mais depressa que o pai de Samuel. Mas nada disso importava.. O essencial era que Samuel já dispunha de uma cobaia. Podia fazer as suas experiências sem se preocupar em apanhar gatos vadios e ratos.

É claro que teria de ter cuidado. Seu pai nunca poderia saber o que ele estava fazendo. Samuel afagou a cabeça de Fred e informou-lhe:

- Você vai entrar no negócio de farmácia.

Samuel improvisou o seu laboratório num canto da estrebaria onde Fred era guardado.

Desenvolveu uma cultura de germes de difteria num prato fundo. Quando o caldo ficou denso, transferiu-o para outro recipiente, diluindo-o e em seguida aquecendo-o ligeiramente.

Encheu a seringa e aproximou-se de Fred.

- Lembra-se do que eu lhe disse? Hoje é o seu grande dia.

Samuel injectou o líquido na espádua do cavalo, como viro o Dr. Wal fazer. Fred voltou para ele os olhos tristes e respingou-o de urina.

Samuel estimou que a cultura levaria setenta e duas horas para desenvolver-se em Fred. Ao fim desse tempo, dar-lhe-ia uma dose mais forte. Se a teoria dos anticorpos fosse correcta, cada dose criaria uma resistência maior do sangue à doença, e Samuel teria a sua vacina. Mais tarde, teria de encontrar um ser humano em que pudesse experimentar a vacina, mas isso não seria difícil. Qualquer vítima da temida doença experimentaria pressurosamente qualquer coisa capaz de salvar-lhe a vida.

Nos dois dias seguintes, Samuel passou com Fred quase todos os momentos em que esteve acordado.

- Nunca vi ninguém gostar tanto de um animal! - disse-lhe o pai. - Não consegue deixar Fred, não é?

Samuel murmurou uma resposta inteligente. Tinha um sentimento de culpa a respeito do que estava fazendo, mas sabia o que iria acontecer se mencionasse o caso a seu pai. Tudo o que Samuel tinha de fazer era extrair sangue de Fred para encher um ou dois vidros de soro, e ninguém saberia de nada.

Na manhã do terceiro dia, que era decisivo, Samuel foi despertado pela voz do pai diante da casa. Samuel levantou-se e correu para a janela. O pai estava no meio da rua, com sua carroça, berrando com toda força de seus pulmões. Não havia nem sinal de Fred. Vestiu-se de qualquer maneira e saiu.

- Momser! - gritava o pai. - Tratante! Mentiroso! Ladrão!

Samuel passou por entre a multidão que começava a reunir-se em torno de seu pai.

- Onde está Fred? - perguntou Samuel.

- Ainda me pergunta? Morreu. Morreu na rua como um cachorro.

Samuel sentiu um baque no coração.

- Nós íamos bem calmamente. Eu estava tratando dos meus negócios, sem fazer o bichinho correr, sem bater nele, nem maltratá-lo, como fazem outros ambulantes que conheço. E o que foi que aconteceu? Caiu morto de repente. Quando eu pegar o gonif que me vendeu o cavalo, vou matá-lo Samuel afastou-se, desolado. Junto com Fred, morrera também os seus sonhos. Com Fred desaparecia a esperança de fugir do gueto e de libertar-se, de ter uma bela casa para Terinia e seus filhos.

Mas uma calamidade ainda maior estava por acontecer.

No dia seguinte ao da morte de Fred, Samuel soube que o Dr.

Wal e a Mulher tinham combinado o casamento de Terinia com um rabino. Samuel não acreditou. Era a ele que Terinia pertencia!

Correu para a casa do Dr. Wal. Encontrou o médico e sua mulher na sala de espera. Encaminhou-se para eles, respirando fundo e disse:

- Há um erro em tudo, no que diz respeito a Terinia. Ela vai casar-se é comigo!

Os dois olharam-no atónitos.

- Sei muito bem que não estou à altura dela - disse então. Mas ela não será feliz, casada com outro homem qualquer. Esse tal rabino é muito velho e...

- Nebbich! Rua! Rua! - gritou a mãe de Terinia, à beira de um ataque de apoplexia.

Sessenta segundos depois, Samuel estava no meio da rua, proibido de tornar a pôr os pés naquela casa.

No meio da noite, Samuel teve uma longa conversa com Deus.

- Que está querendo de mim? Se eu não posso ter Terinia, por que me fez amá-la? Não tem sentimentos? - Ergueu a voz na sua frustração e gritou: - Será que está me ouvindo?

Na casinha cheia de gente, todos gritaram:

- Estamos ouvindo, sim, Samuel! Pelo amor de Deus, veja se cala a boca e nos deixa dormir!

Na tarde seguinte, o Dr. Wal mandou chamar Samuel. Foi recebido na sala de espera, onde estavam reunidos o Dr. Wal, a mulher e Terinia.

- Parece que temos um problema - disse o Dr. Wal. - Nossa filha está irredutível. Por alguma razão que desconheço, tomou-se de um capricho por você. Não posso chamar isso de amor, Samuel, até porque não acredito que uma mocinha da idade dela saiba o que é amor. De qualquer maneira, ela não quer casar-se com o rabino Rabinowitz.

Acha que deve casar-se com você.

Samuel olhou rapidamente para Terinia, e esta sorriu para ele. Sentiu uma explosão de alegria, que, entretanto, durou pouco.

O Dr. Wal continuou:

- Você diz que ama nossa filha.

- É v-v-verdade - gaguejou Samuel e procurou falar com mais firmeza. - É isso mesmo, Dr. Wal.

- Muito bem, Samuel. Acha que Terinia poderá passar o resto da vida casada com um vendedor ambulante Samuel percebeu no mesmo instante a armadilha, mas não viu jeito de livrar-se dela. Tornou a olhar para Terinia e disse:

- Não, Dr. Wal.

- Compreende então o problema, não é? Nenhum de nós quer que Terinia se case com um vendedor ambulante. E você é um vendedor ambulante, Samuel.

- Mas não serei sempre, Dr. Wal - disse Samuel, com voz forte e segura.

- E que vai ser então? - perguntou a mãe de Terinia. - Você pertence a uma família de vendedores ambulantes, que nunca serão mais que isso. E eu não vou consentir que minha filha se case com um vendedor ambulante.

Samuel olhou para as três pessoas reunidas naquela sala, com apreensão e desespero, vira-se elevado às culminâncias da alegria e, naquele momento, era de novo mergulhado num torvo abismo. O que queriam dele?

- Vamos fazer um trato - disse o Dr. Wal. - Nós lhe daremos um prazo de seis meses para provar que não é apenas um vendedor ambulante. Se não o provar, ao fim desse tempo, ela se casará com o rabino Rabinowitz.

Samuel olhou-o, atarantado.

- Seis meses?

Ninguém poderia ter sucesso em seis meses, principalmente vivendo no gueto de Cracóvia.

- Estamos entendidos? - disse o Dr. Wal.

- Perfeitamente.

Sim, Samuel entendia tudo muito bem. Sentia uma contracção dolorosa no estômago. Não precisava de uma solução, mas de um milagre. A família de Terinia só se contentaria com um genro que fosse médico, rabino ou rico. Samuel examinou prontamente todas as possibilidades.

A lei impedia-o de ser médico.

Ser rabino? Começava-se a estudar para ser rabino aos treze anos de idade, e Samuel já estava com quase dezoito.

Rico? Era uma coisa fora de cogitação. Se trabalhasse vinte e quatro horas por dia vendendo suas mercadorias como ambulante pelas ruas do gueto, até aos noventa anos, não deixaria de ser um homem pobre. Os Wals lhe haviam proposto uma tarefa impossível. Tinha aparentemente cedido a Terinia, concordando em adiar o casamento dela com o rabino, impondo, porém, condições que sabiam que Samuel não poderia cumprir. Terinia era a única pessoa que acreditava nele. Confiava em que ele conseguisse de algum modo a fama ou a fortuna dentro de seis meses. É mais louca do que eu, pensou desesperadamente Samuel.

O tempo começou a correr. Samuel passava os dias como vendedor ambulante, ajudando o pai. Mas no momento em que as sombras do poente começavam a cair sobre os muros do gueto, ele corria para casa, comia alguma coisa à pressa e ia trabalhar no seu laboratório. Preparava centenas de frascos de soro e o injectava em coelhos, gatos, cães e pássaros, mas todos morriam. São muito pequenos, pensava Samuel. Preciso de um animal maior.

Mas não o conseguia, e o tempo ia passando.

Duas vezes por semana, Samuel ia a Cracóvia para renovar o estoque de mercadorias que ele e o pai vendiam. Chegava ao amanhecer diante dos portões fechados e ali ficava à espera, cercado pelos outros ambulantes. Mas não os via nem ouvia uma voz áspera que lhe dizia:

- Vamos, judeu! Vá andando!

Samuel levantou os olhos. Os portões tinham sido abertos, e sua carroça estava impedindo a passagem. Um dos guardas, muito zangado, lhe ordenava que prosseguisse.

Havia sempre dois guardas em serviço diante dos portões. Usavam fardas verdes com insígnias especiais e andavam armados de pistolas e pesados cassetetes. Numa corrente pendurada na cintura, um deles levava a chave dos portões. Ao lado do gueto, corria um pequeno rio sobre o qual havia uma velha ponte de madeira. Do outro lado da ponte, estava o posto de polícia, onde os guardas ficavam estacionados. Samuel vira mais de uma vez um judeu infortunado ser arrastado pela ponte. Era sempre uma viagem sem volta. Os judeus tinham de estar no interior do gueto ao escurecer, e qualquer judeu surpreendido fora dos portões depois que a noite caísse era capturado e deportado para um campo de trabalho, Todos os judeus viviam apavorados com a perspectiva de serem encontrados fora do gueto depois do anoitecer.

Os dois guardas eram obrigados a passarem as noites diante dos portões, em serviço de patrulha. Mas todos os habitantes do gueto sabiam que, logo que os judeus eram trancados, um dos guardas saía dali e ia passar a noite a divertir-se na cidade.

Pouco antes do amanhecer, voltava para ajudar o companheiro a abrir os portões para um novo dia.

Os dois guardas habitualmente postados nos portões chamavam-se Paul e Aram. Paul era um homem agradável e sempre de bom humor. Aram era inteiramente diferente dele.

Homem rude, robusto e forte, com braços vigorosos e um corpo que parecia um barril de cerveja, odiava os judeus. Sempre que estava de serviço, todos os judeus que se achavam fora do gueto faziam questão de voltar a tempo, pois nada encantava mais Aram do que encontrar um judeu do lado de fora, espancá-lo até fazê-lo perder os sentidos e então levá-lo através da ponte para o temido quartel da polícia.

Era Aram que estava gritando com Samuel para que tirasse sua carroça do caminho. Samuel passou pelos portões e dirigiu-se para a cidade, sentindo o olhar de ódio de Aram.

O período de seis meses concedidos a Samuel minguou rapidamente para cinco meses, depois para quatro, e três. Não havia um só dia, não havia sequer uma hora em que Samuel não pensasse numa solução para o seu problema, mesmo quando estava trabalhando febrilmente no seu diminuto laboratório. Tentou falar com alguns negociantes ricos do gueto, mas poucos tinham tempo para recebê-lo e os que o recebiam só estavam dispostos a dar-lhe conselhos inúteis.

- Quer ganhar dinheiro? Trate de economizar os níqueis, meu jovem, e um dia você terá o suficiente para montar um bom negócio como o meu.

Era muito fácil dizer isso, pois quase todos tinham tido pais ricos.

Samuel pensou em raptar Terinia e fugir. Mas, para onde? ao fim de qualquer viagem que fizessem, haveria outro gueto, e ele continuaria a ser um nebbich sem dinheiro.

Não, ele amava demais Terinia para fazer isso com ela. Via-se numa armadilha da qual não era possível fugir.

O tempo corria inexoravelmente, e os três meses se tornaram dois e, por fim, só restou um mês. O único consolo de Samuel era que, durante esse tempo, ele tinha permissão de ver sua adorada Terinia três vezes por semana, sempre sob a vigilância de alguém, evidentemente, e a cada vez que Samuel a via , mais a amava. Era um prazer agridoce, pois a cada encontro ficava mais próximo o momento em que iria perdê-la para sempre.

- Eu sei que você vai achar um jeito - não se cansava de dizer Terinia.

Mas faltavam apenas três semanas, e Samuel não estava mais perto de uma solução do que quando tinha começado.

Numa noite, já bem tarde, Terinia procurou Samuel na estrebaria. Abraçou-o e disse:

- Vamos fugir, Samuel.

Ele nunca a amara tanto quanto a amou nesse momento ao ver que, por amor a ele, Ela estava disposta a ficar desmoralizada, a abandonar o pai e a mãe e a desistir da boa vida que levava.

Tomou-a nos braços, e disse:

- Não podemos, Terinia. Para onde quer que eu vá, nunca deixarei de ser um vendedor ambulante.

- Não me importo.

Samuel pensou na bela casa onde ela morava, cheia de salas espaçosas e de empregados e se lembrou do quartinho sórdido em que ele morava com o pai e a tia.

- Mas eu me importo, Terinia.

E ela se afastou.

Na manhã seguinte, encontrou-se com Isaac, que tinha sido seu colega de escola e levava uma égua por um cabresto. O animal era cego de um olho, sofria de cólicas e de esparavões, sendo ainda por cima surdo.

- Bom dia, Samuel.

- Bom dia, Isaac. Não sei para onde vai com esse animal, mas é melhor andar depressa. Ele pode morrer a qualquer momento.

- Não é preciso que viva muito. Vou levar Lottie para uma fábrica de cola.

Samuel olhou a velha égua com súbito interesse.

- Não creio que vão lhe pagar muito por ela.

- Sei disso. Quero apenas dois florins para comprar uma carroça.

O coração de Samuel começou a bater com mais força.

- Quem sabe eu não possa lhe poupar a viagem? Estou disposto a trocar minha carroça pela égua.

Depois disso, Samuel tinha apenas de fazer outra carroça e explicar ao pai como perdera a velha e se tornar dono de um animal que estava nas ultimas.

Samuel levou Lottie para a estrebaria. Examinando a égua, viu que o estado dela era bem pior do que havia julgado, mas afagou o animal e disse:

- Não se preocupe, Lottie. Você vai entrar para a história da medicina.

Poucos minutos depois, Samuel começou a trabalhar num novo soro.

Em vista das condições insalubres e do super povoamento do gueto, as epidemias eram frequentes. A última peste consistia numa febre que produzia tosse sufocante, ingurgitamento dos gânglios e uma morte dolorosa. Os médicos desconheciam a sua causa, e não tinham qualquer idéia do tratamento. O pai de Isaac contraiu a doença.

Logo que Samuel soube disso, foi procurar Isaac.

- O médico já esteve aqui - afirmou o rapaz, chorando. Disse que nada pode fazer.

Do alto da casa, vinha o terrível som da tosse, que parecia prolongar-se indefinidamente.

- Quero que faça uma coisa para mim, Isaac - disse Samuel. Consiga-me um lenço de seu pai.

- O quê?

- Quero um lenço que ele tenha usado. Mas todo o cuidado será pouco da sua parte. O lenço deverá estar cheio de germes.

Uma hora depois, Samuel estava de volta à estrebaria e despejava cuidadosamente o conteúdo do lenço num prato cheio de caldo de cultura. Trabalhou durante toda a noite e todo o dia seguinte, injectou pequenas doses de substâncias na paciente Lottie. Depois aumentou as doses, lutando contra o tempo para tentar salvar a vida do pai de Isaac.

Para tentar salvar a própria vida.

Samuel nunca pôde ter certeza posteriormente de que Deus houvesse protegido a ele ou à velha égua, mas a verdade é que Lottie sobreviveu às doses cada vez maiores, e Samuel conseguiu a sua primeira partida de antitoxina. A tarefa seguinte era convencer o pai de Isaac a consentir na aplicação dessa substância.

Na realidade, não foi preciso convencê-lo. Quando Samuel chegou à casa de Isaac, havia muitos parentes que já esperavam a morte do homem doente no andar de cima.

- Resta-lhe pouco tempo de vida - disse Isaac a Samuel.Posso vê-lo?

Os dois rapazes subiram. O pai de Isaac estava estendido na cama, com o rosto afogueado pela febre. Cada acesso de tosse sacudia o corpo depauperado, levando-o a um espasmo que o enfraquecia ainda mais. Era evidente que estava morrendo. Samuel respirou fundo e disse:

- Quero falar com você e sua mãe.

Não tinham confiança alguma no pequeno vidro que Samuel tinha levado, mas, ante a iminência da morte, concordaram com a aplicação do remédio, simplesmente porque não havia mais nada a perder.

Samuel injectou o soro no pai de Isaac. Esperou três horas à cabeceira da cama e não houve qualquer alteração. O soro não estava fazendo efeito. Entretanto, os acessos de tosse pareciam menos frequentes. Por fim, Samuel saiu, evitando olhar para Isaac.

Tinha de ir a Cracóvia ao amanhecer do dia seguinte, para comprar mercadorias. Estava numa impaciência febril por voltar e ver se o pai de Isaac ainda estava vivo.

Havia muita gente em todos os mercados, e Samuel demorou muito para fazer as compras. Só no fim da tarde conseguiu afinal encher a carroça e voltar para o gueto.

Quando Samuel estava ainda a três quilómetros dos portões, houve o desastre. Uma das rodas da carroça se quebrou e as mercadorias começaram a espalhar-se pelo chão.

Samuel viu-se diante de um terrível dilema. Tinha de ir procurar uma roda para substituir a quebrada, e ao mesmo tempo, não podia deixar a carroça com as mercadorias abandonadas. Estava começando a juntar gente, e era visível o olhar de avidez que muitos lançavam para as mercadorias caídas. Samuel viu um guarda de uniforme aproximar-se, um gentio, e compreendeu que estava perdido. Iam tomar-lhe tudo. O guarda abriu caminho entre os curiosos e disse ao apavorado rapaz:

- Sua carroça precisa de uma roda nova.

- É... é verdade.

- Sabe onde encontrar uma?.

- Não, senhor.

O guarda escreveu alguma coisa num pedaço de papel.

- Vá procurar este homem. Diga a ele o que precisa.

- Mas eu não posso deixar o carro aqui assim.

- Pode, sim - disse o guarda. - Eu vou ficar aqui. Ande depressa!

Samuel saiu correndo. Seguindo o endereço do papel, chegou a oficina de ferreiro. Quando Samuel explicou a situação, o ferreiro encontrou uma roda do tamanho exacto para a carroça.

Samuel pagou a roda, tirando o dinheiro de uma sacola que levava. Depois dessa despesa, ficou apenas com uma dúzia de florins.

Correu para a carroça, rolando a roda pelo chão. O guarda ainda estava lá e os curiosos haviam se dispersado. As mercadorias estavam a salvo. Com a ajuda do guarda, levou mais meia hora para colocar a nova roda e prendê-la. Retomou o caminho de casa, pensando no pai de Isaac. Iria encontrá-lo vivo ou morto? A incerteza enchia-o de dolorosa ansiedade.

Já estava apenas a um quilómetro do gueto. Podia avistar os altos muros que se erguiam contra o céu. Mas, nesse momento, o sol desapareceu no horizonte e as ruas por onde ele passava mergulharam na escuridão. Na agitação de tudo o que havia acontecido, Samuel se esquecera da hora. Já havia escurecido e ele ainda estava fora dos portões! Começou a correr, empurrando a pesada carroça, com o coração a bater como se fosse saltar-lhe do peito. Os portões deviam estar fechados. Samuel pensou em todas as coisas terríveis que se contavam de judeus que tinham ficado do lado de fora dos portões. Correu mais depressa. Com certeza, só um guarda devia estar de serviço. Se fosse Paul, o bom homem, Samuel poderia ter uma oportunidade.

Mas, se fosse Aram, não era bom nem pensar no que lhe poderia acontecer. A escuridão era mais densa e o envolvia como um nevoeiro negro, ao mesmo tempo em que uma leve chuva começava a cair. Samuel se aproximava dos muros do gueto e, de repente, avistou os grandes portões. Já estavam trancados.

Era a primeira vez que os via fechados do lado de fora. Foi como se de súbito a vida lhe tivesse deixado o corpo, e Samuel começou a tremer de terror. Estava separado de sua família, do seu mundo, de tudo aquilo que lhe era íntimo e familiar.

Diminuiu o passo e se aproximou dos portões cautelosamente, esperando pelos guardas. Não os via e encheu-se de uma súbita esperança delirante. Os guardas talvez tivessem sido chamados para alguma emergência. Samuel descobriria um meio de abrir os portões ou de escalar o muro sem ser visto. Ao se aproximar dos portões, viu o vulto de um guarda emergir das sombras.

- Continue a andar - ordenou o guarda.

Na escuridão, Samuel não podia ver o rosto dele. Mas reconheceu a voz. Era Aram.

- Venha até aqui.

Aram olhava Samuel com um sorriso de satisfação no rosto. O rapaz tropeçou.

- Pise firme - disse Aram para animá-lo. - Continue a caminhar.

Samuel se aproximou lentamente do gigante, com o estômago contraído e a cabeça a latejar.

- Posso explicar tudo... Tive um acidente. Minha carroça...

Aram estendeu o braço forte, agarrou Samuel pela gola e suspendeu-o no ar.

- Judeu imundo! - exclamou ele. - Pensa que eu quero saber por que você ficou do lado de fora? Sabe o que é que vai acontecer com você agora?

O rapaz sacudiu a cabeça cheio de terror.

- Pois eu vou-lhe dizer. Temos um novo decreto nesta semana.

Todos os judeus capturados fora dos portões depois do escurecer serão deportados para a Sibéria. Dez anos de trabalhos forçados. Que tal?

Samuel não pôde acreditar.

- Mas... mas eu não fiz nada...

Aram deu um tapa com a mão direita na boca de Samuel, que foi ao chão, e em seguida disse:

- Vamos.

- Para... onde? - perguntou Samuel com a voz embargada de terror.

- Para o quartel. Amanhã de manhã será embarcado com o resto da ralé. Levante-se.

Samuel caíra com o tapa e estava ali, incapaz de coordenar os seus pensamentos.

- Eu... eu tenho de entrar para despedir-me de minha família.

Aram riu.

- Ninguém vai sentir sua falta.

- Por favor! Deixe-me ir até lá. Deixe-me pelo menos mandar um recado.

O sorriso desapareceu do rosto de Aram. Cresceu ameaçadoramente para Samuel, mas falou com voz suave:

- Mandei que você se levantasse, judeu imundo. Se eu tiver de dar-lhe a ordem outra vez, será a pontapés.

Samuel levantou-se lentamente. Aram agarrou-lhe o braço com mãos de ferro e começou a levá-lo para o quartel da polícia.

Dez anos de trabalhos forçados na Sibéria! Ninguém jamais voltara da Sibéria. Olhou para o homem que o levava pela ponte para o quartel da polícia.

- Não faça isso - disse Samuel. - Solte-me.

Aram apertou o braço de Samuel com mais força, a tal ponto que deu a impressão de que o sangue deixara de correr.

- Peça mais, implore mais! - disse Aram. - Não há nada de que eu goste mais do que ouvir as súplicas de um judeu. Sabe alguma coisa sobre a Sibéria? Vai chegar lá a tempo de passar o inverno. Não se preocupe. Dentro das minas, você vai sentir calor. Só quando seus pulmões estiverem pretos de tanto carvão, e você começar a vomitá-lo em acessos de tosse, tirarão você de lá para morrer em cima da neve.à frente deles, do outro lado da ponte, quase invisível sob a chuva, estava a lúgubre construção, o quartel da polícia.

- Mais depressa! - gritou Aram.

Samuel percebeu de repente que não podia deixar que ninguém fizesse aquilo com ele. Pensou em Terinia, em sua família, no pai de Isaac. Ninguém iria roubar-lhe a vida. Fosse como fosse, tinha de fugir para salvar-se. Estava atravessando a estreita ponte, sob a qual o rio corria cuidadosamente, engrossado pelas chuvas de inverno.

Restavam apenas uns trinta metros. O que tivesse de ser feito deveria ser naquele momento. Mas como seria possível fugir? Aram tinha uma pistola, e ainda que não estivesse armado, poderia matá-lo com a maior facilidade. Era quase duas vezes maior que Samuel e muito mais forte. Tinham chegado ao outro lado da ponte, e o quartel estava bem diante deles.

- Ande depressa - disse Aram, puxando Samuel pelo braço. Tenho outras coisas para fazer.

Estavam tão perto que Samuel podia ouvir os risos dos guardas lá dentro. Aram começou a arrastar o rapaz pelo pátio calçado que ficava diante do quartel. Faltava apenas alguns segundos, e Samuel levou a mão direita ao bolso, pegando o bornal em que levava cerca de meia dúzia de florins. Fechou-o na mão e sentiu no seu nervosismo o sangue correr-lhe mais depressa nas veias.

Tirou cuidadosamente o bornal do bolso, puxando então os cordões que o fechavam, e deixou-o cair. Ele caiu sobre as pedras, fazendo tilintar as moedas.

Aram parou de repente.

- Que foi isso?

- Nada - respondeu prontamente Samuel.

Aram olhou para o rapaz e riu. Sem deixar de segurar firmemente Samuel, deu um passo para trás e viu o bornal de dinheiro aberto.

- Você não precisará de dinheiro no lugar onde vai - disse Aram.

Curvou-se para apanhar o bornal e Samuel acompanhou-o. Mas não era o bornal que Samuel queria e, sim, uma grande pedra que estava no chão. Quando Aram levantou o corpo, Samuel bateu com a pedra no olho direito de Aram com toda a força, transformando-o numa posta de sangue. Continuou a bater desesperadamente no rosto e na cabeça. Viu o nariz do guarda afundar, depois a boca e, por fim, todo o rosto virou uma massa sanguenta. Mas Aram continuava de pé como se fosse algum monstro cego.

Samuel olhava-o, cheio de medo, sem coragem de bater de novo. Então, lentamente, o gigantesco corpo principiou a cair.

Samuel olhou para o guarda morto, sem poder acredita no que havia feito. Ouviu vozes no quartel e compreendeu o terrível perigo em que ainda se encontrava. Se o capturassem naquele momento, não o mandariam para a Sibéria. Tratariam de esfolá-lo e enforcá-lo em praça pública. A pena por bater num polícia era simplesmente a morte. E Samuel matara um deles. Tinha de fugir rapidamente. Poderia tentar atravessar a fronteira, mas, nesse caso, seria um fugitivo perseguido pelo resto da vida.

Deveria haver outra solução. Olhou para o corpo desfigurado e percebeu de repente o que devia fazer. Revistou o guarda até encontrar a grande chave que abria os portões. Depois, dominando a repulsa que sentia, agarrou as botas de Aram e começou a puxar o guarda para a margem do rio. O morto parecia pesar uma tonelada. Samuel continuou a puxar, estimulado pelo barulho que vinha do quartel.

Alcançou a margem do rio. Parou um momento para recuperar o fôlego. Depois, empurrou o corpo pela ribanceira e viu-o cair nas águas tumultuosas embaixo. Continuou inclinado sobre a margem por um tempo que lhe pareceu uma eternidade e, por fim, viu o corpo ser levado pelo rio e desaparecer. Ali ficou algum tempo como que hipnotizado, cheio de horror pelo que havia feito. Apanhou a pedra que tinha usado e jogou-a na água. Mas ainda corria enorme perigo. Atravessou a ponte e voltou correndo para os grandes portões trancados no gueto. Não havia ninguém à vista. Com os dedos trémulos, girou a chave na fechadura dos portões e empurrou-os. Nada aconteceu. Eram pesados demais. Mas naquela noite nada era impossível para Samuel. Com uma força que parecia vir de fora dele, conseguiu por fim abri-los. Empurrou a carroça para dentro, fechou os portões e foi correndo para casa. Todos os moradores da casa estavam reunidos na sala e, quando Samuel apareceu, olharam para ele como se fosse um fantasma.

- Deixaram você entrar!

- Não compreendo - murmurou o pai. - Pensávamos que você...

Samuel explicou em breves palavras o que havia acontecido, e a preocupação de todos se transformou em terror.

- Meu Deus! - exclamou o pai de Samuel. - Todos nós seremos mortos!

- Nada acontecerá se me escutarem - disse Samuel, e expôs o seu plano.

Quinze minutos depois, Samuel, o pai e dois vizinhos estavam juntos aos portões do gueto.

- E se o outro guarda voltar? - perguntou num sussurro o pai de Samuel.

- É um risco que temos de correr. Mas, se isso acontecer, eu assumirei toda a culpa.

Samuel abriu os portões e passou para o lado de fora. Colocou a grande chave na fechadura e deu a volta. Os portões do gueto estavam trancados pelo lado de fora.

Samuel amarrou a chave a cintura e deu alguns passos à esquerda dos portões. Um momento depois, uma corda deslizou pelo muro como uma cobra. Samuel agarrou-se a ela, enquanto do outro lado seu pai e os outros começaram a içá-lo. Quando Samuel chegou ao alto, prendeu a corda a uma escápula de ferro e desceu até o chão. Em seguida, sacudiu a corda até desprendê-la e puxou-a.

- Meu Deus! - exclamou o pai de Samuel. - Que irá acontecer amanhã cedo?

- Estaremos batendo nos portões e pedindo que nos deixem sair - respondeu Samuel.

Ao amanhecer, o gueto estava cheio de polícias e soldados.

Tiveram que descobrir uma chave especial para abrir os portões aos negociantes que queriam ir a Cracóvia. Paul, o outro guarda, confessou que havia abandonado o posto para ir passar a noite em Cracóvia e foi imediatamente preso. Mas isso não resolvia o mistério do desaparecimento de Aram. Em geral, o desaparecimento de um guarda nas proximidades do gueto seria um excelente pretexto para um progrom. Mas a polícia se achava perplexa diante dos portões fechados. Como os judeus estavam trancados dentro do gueto, era evidente que nada podiam ter feito ao guarda. Chegaram afinal à conclusão de que Aram devia ter fugido em companhia de uma das suas numerosas amiguinhas.

Devia ter jogado em algum canto a pesada chave que de nada lhe servia, mas, por mais que procurassem, não a encontraram. E, nunca a encontrariam, pois estava enterrada bem fundo sob a casa de Samuel.

Física e emocionalmente exausto, Samuel jogara-se e dormira quase num mesmo instante. Acordou com alguém ao lado, que gritava e o sacudia. O primeiro pensamento de Samuel foi de que haviam encontrado o corpo de Aram e tinham ido prendê-lo.

Abriu os olhos. Isaac estava diante dele, muito nervoso.

- Parou, Samuel! A tosse parou! Venha comigo até a minha casa.

O pai de Isaac estava sentado na cama. A febre havia desaparecido como por milagre e a tosse havia parado.

Quando Samuel se aproximou da cama, o velho lhe perguntou:

- Não acha que posso tomar um pouco de caldo de galinha?

Samuel começou a chorar. Num só dia, tirara a vida de um homem e salvara a vida de outro.

A notícia sobre o pai de Isaac se espalhou pelo gueto. As famílias das pessoas doentes cercavam a casa de Samuel, pedindo um pouco de soro mágico. Era impossível atender a todos, e ele foi procurar o Dr. Wal. O médico já sabia do feito de Samuel, mas ainda se mostrava céptico.

- Tenho que ver com meus próprios olhos - disse ele. Prepare uma partida de soro e eu aplicarei num dos meus clientes.

Havia dezenas de doentes à disposição, e o Dr. Wal preferiu o que lhe parecia mais próximo da morte. No prazo de vinte e quatro horas, o doente estava a caminho da recuperação.

O Dr. Wal foi até a estrebaria, onde Samuel trabalhava dia e noite preparando o soro, e disse:

- Dá resultado, Samuel. Você conseguiu. O que deseja como dote?

Samuel olhou para ele e respondeu, exausto:

- Outro cavalo.

Aquele ano de 1868 marcou o início da Roffe and Sons.

Samuel e Terenia se casaram, e Samuel recebeu como dote seis cavalos e um pequeno mas bem equipado laboratório. Samuel expandiu as suas experiências. Começou a destilar medicamentos de ervas e, em pouco tempo, os vizinhos passaram a ir até seu pequeno laboratório comprar remédios para os males que os afligiam. Eram bem atendidos, e a reputação de Samuel cresceu.

Quando alguém não podia pagar, Samuel dizia:

- Não se preocupe com isso. Pode levar. - E acrescentava, voltando-se para Terenia: - Remédio é para curar e não para dar lucro.

As vendas aumentaram, e depois de algum tempo, ele disse a Terenia:

- Já é tempo de abrirmos uma pequena farmácia onde possamos vender unguentos, pós e outras coisas além de receitas.

A farmácia foi, desde o início, um sucesso. Os homens ricos que anteriormente se haviam negado a ajudar Samuel apareceram, oferecendo-lhe dinheiro.

Queriam ser sócios e propunham uma fundação de uma rede de farmácias.

Samuel conversava sobre o caso com Terenia, dizendo:

- Tenho muito receio de sócios. O negócio é nosso e não me agrada a idéia de gente estranha possuir parte de nossa vida.

Terenia concordava com ele.

Quando os negócios cresceram e se expandiram com a abertura de outras farmácias, as ofertas de dinheiro aumentaram. Samuel continuou a recusá-las.

Quando seu sogro lhe perguntou o motivo, Samuel respondeu:

- Nunca se deve deixar uma raposa entrar num galinheiro, por mais amistosa que se mostre. Um dia, ela pode ficar com fome.

Do mesmo modo que os negócios, o casamento de Samuel e Terenia floresceu. Tiveram cinco filhos: Abaham, Joseph, Anton, Jan e Piotr. Samuel comemorava o nascimento de cada filho abrindo uma nova farmácia, cada uma maior do que a anterior. No começo, Samuel contratou um homem para auxiliá-lo. Depois, foram dois e, por fim, tinha mais de duas dúzias de empregados.

Um dia, Samuel recebeu a visita de um funcionário do governo.

- Vamos cancelar algumas restrições que pesam sobre os judeus - disse ele a Samuel. - Veríamos com muito agrado a abertura de uma de suas farmácias em Cracóvia.

E Samuel abriu a farmácia. Três anos depois, tinha prosperado tanto que construiu um prédio próprio no centro comercial de Cracóvia e comprou para Terenia uma bela casa na cidade. Samuel tinha realizado, afinal, o sonho de sair do gueto.

Mas os seus sonhos não se limitavam a Cracóvia.

Quando os seus filhos cresceram, contratou professores para eles e fez cada qual aprender uma língua diferente.

- Ficou maluco - dizia a sogra de Samuel. - Todos fazem troça deles, pois Abraham e Jan estão aprendendo inglês; Joseph, alemão; Anton, francês; e Piotr, italiano.

Com quem é que eles vão falar? Ninguém aqui fala dessas línguas bárbaras. Os garotos vão acabar sem ter com quem conversarem.

Samuel limitava-se a sorrir e dizia pacientemente:

- Isso faz parte da educação deles.

Quando os rapazes chegaram à adolescência, viajaram para países diferentes com o pai. Em cada uma de suas viagens, Samuel preparava-se para os seus futuros planos.

Quando Abraham completou vinte e um anos, Samuel reuniu a família e anunciou que Abraham ia viver nos Estados Unidos.

- Não! - exclamou a mãe de Terenia. - É um país de índios.

Não deixarei que faça isso com meu neto. O rapaz tem de ficar aqui, onde estará em segurança.

Segurança... Samuel pensou nos pogroms, em Aram e na morte de sua mãe.

- Ele vai para o estrangeiro - retrucou Samuel. - Abraham, você vai abrir uma fábrica em Nova York e se encarregará de todos os negócios por lá.

Abraham disse orgulhosamente:

- Está muito bem, papai.

Samuel voltou-se para Joseph.

- Aos vinte e um anos, você irá para Berlim.

Joseph fez um gesto de assentimento.

- E eu irei para a França - disse Anton. - Paris, assim espero.

- Exactamente - disse Samuel -, mas cuidado. Há lá entre os gentios algumas mulheres muito bonitas.

Olhou para Jan.

- Você irá para a Inglaterra.

Piotr, o mais moço, disse ansiosamente:

- É claro que irei para a Itália. Quando poderei Partir, papai?

Samuel riu e respondeu:

- Esta noite, não, Piotr. Terá de esperar até completar vinte e um anos.

E assim aconteceu. Samuel foi com os filhos ao estrangeiro e ajudou-os a abrir escritórios e fábricas. Sete anos depois, havia filiais da família Roffe em cinco países. Era já uma dinastia, e Samuel encarregou um advogado de elaborar estatutos que tornassem cada uma das companhias independente, embora ao mesmo tempo submetida à matriz.

- Nada de estranhos - disse Samuel ao advogado. - As acções nunca devem deixar de ser propriedade da família.

- Está bem - disse o advogado. - Mas, se seus filhos não puderem vender as suas acções, Samuel, como irão se arranjar?

É natural que queiram viver com conforto.

- Vou tomar providências para que morem em casas esplêndidas.

Ganharão excelentes ordenados e disporão de uma boa verba de representação, mas tudo o mais deverá reverter em favor da companhia. Se algum dia quiserem vender as suas acções, terão de obter a aprovação unânime dos outros sócios. A maioria das acções pertencerá sempre a meu filho mais velho e a seus herdeiros. Vamos ser uma grande empresa. Vamos ser maiores que os Rothschilds.

Com o correr dos anos, a profecia de Samuel se tornou uma realidade. A empresa cresceu e prosperou. Embora a família estivesse vivendo dispersa, Samuel e Terenia faziam todo o possível para uni-la. Os filhos voltavam à casa paterna por ocasião dos aniversários e festas. Porém, as visitas não eram, apenas, reuniões festivas.

Os filhos e os pais discutiam juntos os negócios da companhia. Tinham a sua rede de espionagem particular. Logo que um dos filhos tinha notícia de um progresso importante na indústria farmacêutica, participava o facto aos outros, e todos começavam a fabricar o produto, de modo que estavam sempre à frente dos seus concorrentes.

Com o advento do novo século, os cinco irmãos se casaram e deram netos ao velho Samuel. Abraham fora para os Estados Unidos aos vinte e um anos, em 1891. Casou-se com uma moça americana sete anos depois e, em 1905, ela deu à luz o primeiro neto de Samuel, Woodrow, que gerou um filho chamado Sam. Joseph se casou com uma moça alema, e teve um casal de filhos. O filho se casou e teve uma filha, Anna, a qual se casou com um alemão chamado Walther Gassner. Na França, Anton se casou com uma francesa, tornando-se pai de dois filhos. Um deles cometeu suicídio. O outro se casou e teve uma filha, chamada Hélène, que se casou várias vezes, mas não teria filhos. Jan, em Londres, se casara com uma inglesa. Sua filha única se casara com um baronete chamado Nichols e tivera um filho, a quem baptizara de Alec. Piotr tinha se casado em Roma com uma italiana. Tiveram um filho e uma filha. Quando o filho, por sua vez, se casou, a mulher deu-lhe uma filha, Simonetta, que se casara com Ivo Palazzi, um jovem arquitecto.

Eram esses os descendentes de Samuel e Terenia Roffe.

Samuel viveu o bastante para ver os ventos da mudança soprarem pelo mundo. Teve oportunidade de assistir transmissões de telégrafo sem fio e ao voo dos primeiros aviões.

Emocionou-se quando o casa Dreyfus ocupou as manchetes dos jornais e quando o almirante Peary chegou ao pólo norte. O modelo T de Henry Ford era produzido em massa.

Por quase toda a parte havia luz eléctrica e telefones. Em medicina, os germes que causaram a tuberculose, o tifo e a malária foram isolados e debelados.

A Roffe and Sons em pouco menos de meio século havia se transformado numa colossal empresa multinacional espalhada por todo mundo.

Samuel e a sua velha égua Lottie haviam criado uma dinastia.

Quando Elizabeth concluiu talvez a quinta leitura do Livro, tornou a guardá-lo na sala da Torre. Não precisava mais dele.

O Livro ficara incorporado à sua existência.

Pela primeira vez na vida, Elizabeth sabia quem era e de onde vinha.

 

Capítulo 12

Foi no seu décimo quinto aniversário, ao fim do primeiro ano na escola suíça, que Elizabeth conheceu Rhys Williams. Ele havia passado pela escola para levar-lhe um presente do pai dela.

- Ele queria vir pessoalmente, mas não pôde - explicou Rhys.

Elizabeth tentou dissimular sua decepção, mas Rhys não teve dificuldade em percebê-la. Era evidente nela uma sensação de abandono, uma indefesa vulnerabilidade que o comoveu. Agindo impulsivamente, perguntou:

- Acha que poderemos jantar juntos?

Elizabeth não gostou da idéia. Imaginou-se entrando num restaurante, gorda e com aquele aparelho nos dentes, em companhia daquele rapaz incrivelmente simpático e gentil.

- Muito obrigado, mas não é possível - disse Elizabeth, sem ao menos sorrir. - Tenho de preparar algumas lições.

Rhys Williams não se conformou com a recusa, pensando em todos os aniversários que passara sozinho. Obteve permissão da directora da escola para levar Elizabeth para jantar. Entraram no carro de Rhys e este tomou imediatamente o caminho do aeroporto.

- Neuchâtel fica do outro lado - disse Elizabeth.

- E quem foi que disse que vamos para Neuchâtel?

- Para onde vamos então?

- Para o Maxim's. É o único lugar onde se pode celebrar a passagem dos quinze anos.

Voaram para Paris num jacto da companhia, e o jantar foi soberbo. Começou com pâté de foie gras com trufas, seguido de bisquei de lagosta, pato com laranja e da especial salada do Maxim's. Tudo se encerrou com champanha e um bolo de aniversário. Depois, Rhys e Elizabeth atravessaram os Campos-Elísios de carro e voltaram para a Suíça a altas horas da noite.

Fora a noite mais emocionante da vida de Elizabeth. Rhys tinha conseguido fazê-la sentir-se interessante e bela. Quando Rhys a deixou à porta da escola, ela disse:

- Não sei como lhe agradecer. Foi o que de melhor já me aconteceu na vida.

- Agradeça a seu pai - disse Rhys, sorrindo. - Foi tudo idéia dele.

Mas Elizabeth sabia que isso não era verdade.

Chegou à conclusão de que Rhys Williams era o homem mais admirável que ela já havia visto. E sem dúvida o mais bonito.

Foi dormir naquela noite pensando nele. Em dado momento, levantou-se e foi até à sua pequena mesa, em frente à janela.

Pegou um pedaço de papel: "Madame Rhys Williams".

Ficou muito tempo olhando para o que escrevera.

Rhys adiou por vinte e quatro horas um encontro com uma glamourosa actriz, mas não se incomodou muito. Foi também ao Maxim's com ela e não pôde deixar de pensar que o jantar com Elizabeth fora bem mais interessante.

Ela seria alguém com quem ele poderia contar um dia.

Elizabeth nunca pôde ter certeza de quem fora o maior responsável pela transformação que se operara nela, se o velho Samuel Roffe ou Rhys Williams. A verdade é que passou a ter uma nova consciência de si mesma. Perdeu a compulsão de comer constantemente, e seu corpo foi ficando cada vez mais esbelto.

Começou a gostar de desportos e a se interessar pela escola.

Fazia um esforço para dar-se bem com as colegas, que não podiam acreditar nisso. Tinham sempre convidado Elizabeth para as suas festas de pijamas e ela nunca fora.

Compareceu inesperadamente uma noite. A festa se realizava num quarto onde dormia quatro moças, e quando Elizabeth chegou, já havia duas dúzias de alunas, todas de pijamas ou roubes. Umas das moças olhou-a com surpresa e disse:

- Estávamos apostando que você não viria.

- Pois estou aqui.

O ar estava cheio do aroma acre e adocicado da fumaça dos cigarros. Elizabeth percebeu que muitas garotas estavam fumando maconha, mas ela nunca havia passado por essa experiência. Uma das moças do quarto, uma francesa chamada Reneé Tocar, aproximou-se de Elizabeth fumando um toco de cigarro marrom.

Deu uma longa tragada e ofereceu a Elizabeth:

- Você fuma?

Era mais uma afirmação do que uma pergunta.

- É claro - mentiu Elizabeth.

Ela pegou o cigarro, hesitou um momento, colocou-o entre os lábios e deu uma tragada. Sentiu um começo de náusea e um baque nos pulmões, mas conseguiu sorrir e murmurou:

- Bom.

No momento em que Renée virou as costas, Elizabeth estendeu-se no sofá. Sentiu um começo de vertigem, mas isso passou num instante. Experimentou dar mais uma tragada.

Começou a sentir a cabeça estranhamente leve. Elizabeth tinha lido alguma coisa sobre o efeito de maconha. Dizia-se que suprimia inibições e fazia a pessoa sair de si mesma. Aspirou novamente, bem fundo desta vez, e começou a ter uma sensação agradável de flutuação, como se estivesse em outro planeta. Via as moças no quarto e as ouvia falar, mas tudo estava confuso e indistinto, imagens e sons. Fechou os olhos. No mesmo instante, saiu flutuando pelo espaço. Era uma sensação deliciosa.

Viu-se a voar sobre os telhados da escola e depois sobre os Alpes cobertos de neve, num mar de nuvens algodoadas. De repente, ouviu alguém chamá-la pelo nome, trazendo-a de volta à terra. Elizabeth abriu os olhos. Renée estava curvada sobre ela, com um ar de preocupação no rosto.

- Você está bem, Roffe?

Elizabeth sorriu, feliz, e murmurou:

- Estou muito bem. - E confessou na sua infinita euforia. É a primeira vez que fumo maconha.

- Maconha? - exclamou Renée. - Mas eu lhe dei apenas um Gauloise.

Do outro lado da aldeia, havia uma escola de rapazes, e as colegas de Elizabeth aproveitavam todas as oportunidades de encontrar-se com eles. As moças falavam constantemente sobre os rapazes. Sobre os corpos deles, o tamanho de seus órgãos, o que deixavam os rapazes fazer com elas e o que faziam com os rapazes. As vezes, Elizabeth tinha a impressão de que estava perdida dentro de uma escola cheia de ninfomaníacas delirantes.

Tinham a obsessão do sexo. Uma das moças ficara completamente nua e se deitava de costas na cama, enquanto outra a acariciava dos seios às coxas. O pagamento era um doce comprado na aldeia. Dez minutos de frôlage valia um doce. Em dez minutos, a moça em geral chegava ao orgasmo, mas, quando não acontecia, a garota incumbida das frôlage podia continuar e ganhava mais um doce.

Outro divertimento sexual favorito era usufruído no banheiro. A escola tinha grandes banheiras antigas, equipadas com chuveiros manuais flexíveis que podiam ser retirados de um gancho na parede. as moças se sentavam na banheira, ligavam o chuveiro e, quando a água quente começava a correr, colocava o chuveiro entre as pernas e o movia lentamente para cima e para baixo.

Elizabeth não praticava nem as frôlage nem os jogos com o chuveiro, mas os impulsos sexuais eram cada vez mais fortes dentro dela. Foi mais ou menos nessa época que ela fez uma descoberta que a deixou atordoada.

Uma das professoras de Elizabeth era uma mulher pequena chamada Harriot Chantal. Tinha cerca de trinta anos, e era um pouco mais que uma estudante. Tinha feições atraentes e quando sorria chegava a ser bela. Era a professora mais simpática de Elizabeth, que sentia profunda atracção por ela. Sempre que se sentia infeliz, Elizabeth ia procurar Mlle Harriot e lhe contava seus problemas. A professora era uma ouvinte atenta.

Quando Elizabeth acabava, ela lhe tomava amistosamente a mão, dava-lhe conselhos sensatos e depois lhe oferecia uma xícara de chocolate quente com bolinhos. Imediatamente,

Elizabeth se sentia melhor.

Mlle Harriot ensinava francês e dava também aulas sobre moda, em que acentuava a necessidade de estilo e harmonia de cores, bem como do uso de acessórios convenientes.

- Não se esqueçam de que o vestido mais elegante do mundo parecerá horrível se for usado com acessórios errados.

"Acessórios" era a divisa de Mlle Harriot.

Sempre que Elizabeth se encontrava na banheira quente, surpreendia-se a pensar em Mlle Harriot, na expressão do seu rosto quando estavam juntas e na maneira pela qual a professora lhe acariciava a mão com delicadeza e ternura.

Quando Elizabeth estava em outras aulas, o seu pensamento se voltava para Mlle Harriot e recordava as ocasiões em que a professora tinha passado os braços pelo corpo dela a fim de consolá-la e tinha tocado em seus seios. A princípio, Elizabeth pensava que esses contactos fossem casuais, mas haviam se repetido, e, nessas ocasiões,

Mlle Harriot havia olhado Elizabeth com carinho e interrogação, como se esperasse uma reacção. Em sua imaginação, Elizabeth podia ver Mlle Harriot com seios fartos e pernas brancas, e pensou em como ela pareceria nua numa cama. Foi então que teve a súbita compreensão que a deixou aturdida.

Ela era lésbica.

Não estava interessada nos rapazes, porque gostava das mulheres. Não das tolinhas que eram suas colegas, mas de uma mulher sensível e compreensiva como Mlle Harriot.

Elizabeth podia imaginar as duas juntas, a abraçar-se e confortar-se.

Elizabeth tinha lido e ouvido muitas coisas sobre as lésbicas e sabia como a vida era difícil para elas. A sociedade não aprovava o lesbianismo, considerava-o um crime contra a natureza. Mas que mal havia, pensava Elizabeth, em amar alguém profundamente? Que importância tinha que se tratasse de um homem ou de uma mulher?

O importante não era o amor?

Elizabeth pensou como seu pai ficaria horrorizado quando soubesse a verdade. Ora, era uma coisa que ela teria de enfrentar. Era preciso reajustar as suas idéias sobre o futuro.

Nunca poderia ter uma vida normal como as outras moças, que iriam casar e ter filhos. aonde quer que ela fosse, seria sempre uma mulher excluída e rebelde, que viveria longe da corrente da sociedade. Ela e Mlle Harriot Chantal viveriam num apartamento ou talvez numa casinha. Elizabeth decoraria tudo com cores suaves, sem faltar um só acessório necessário. Teriam graciosos móveis franceses e belos quadros nas paredes. O pai poderia ajudar... Não, ela não queria nenhuma ajuda do pai. O mais provável era que ele nunca mais falaria com ela.

Elizabeth pensou no seu guarda-roupa. Poderia ser uma lésbica, mas não se vestiria como as mulheres da espécie. Nada de tweeds, calças compridas, ternos ou chapéus vagamente masculinos, que funcionariam como as campainhas advertências dos leprosos para mulheres emocionalmente aleijadas. Procuraria ser sempre tão feminina quanto possível.

Resolveu aprender a ser uma grande cozinheira para fazer os pratos favoritos de Mlle Harriot Chantal. Imaginou as duas no seu apartamento ou na casinha, jantando à luz de velas os pratos que ela havia preparado. Primeiro, haveria uma vichyssoise, seguida de uma excelente salada. Depois, camarões ou talvez lagosta, quem sabe um chateaubriand, com um gostoso sorvete de sobremesa, Depois do jantar, sentar-se-iam no chão diante da lareira acesa, vendo a neve cair através das janelas.

Neve! Seria, portanto, no inverno. Elizabeth modificou às pressas o menu. Em lugar de uma vichyssoise fria, faria uma sopa de cebola ou talvez uma fondwe. A sobremesa seria um suflê. Teria de aprender a tempo para não falhar. Em seguida, as duas ficariam sentadas diante do fogo, lendo poesia uma para a outra. T. S. Eliot talvez.

Ou V. J. Rajadhon.

"O tempo é inimigo do amor, Ladrão que abrevia Todas as nossas horas douradas.

Nunca pude compreender por que Os que amam contam a sua felicidade Em dias, noites e anos, Quando o amor só pode ser medido pElas alegrias, suspiros e lágrimas."

Ah... Elizabeth podia ver os anos se desenrolarem diante dela até a passagem do tempo dissolver-se num clarão dourado e quente.

Adormecia então.

Elizabeth estava esperando alguma coisa desse tipo, mas, quando aconteceu, colheu-a inteiramente de surpresa. Acordou uma noite ao sentir que alguém entrava no seu quarto e fechara a porta sem fazer barulho. Abriu os olhos. Viu um vulto atravessar o quarto e aproximar-se da cama dela. A luz do luar que se infiltrava pelas janelas atingiu o rosto de Mlle Harriot Chantal. O coração de Elizabeth começou a bater desordenadamente.

- Elizabeth - disse Chantal num sussurro e deixou cair o robe.

Não estava usando nada por baixo. Elizabeth sentiu a boca seca. Pensava tanto naquele momento e, quando tudo estava acontecendo, sentia apenas medo. Na verdade, não sabia ao certo o que tinha de fazer ou como proceder. Não queria parecer ridícula aos olhos da mulher que amava.

- Olhe para mim - ordenou Chantal.

Elizabeth olhou. Deixou os olhos correrem pelo corpo nu da outra. Harriot Chantal não era exactamente o que Elizabeth havia imaginado. Os seios lembravam maças enrugadas e eram um tanto caídos. Tinha uma pequena barriga arredondada e o derriére parecia - Elizabeth não encontrou outra palavra no momento - pendurado.

Mas nada disso tinha importância. O que importava era o que havia sob o exterior, a alma da mulher, a coragem que ela tinha de ser diferente, de desafiar o mundo inteiro e de querer passar o resto da vida com Elizabeth.

- Chegue para lá, mon petit ang - murmurou ela.

Elizabeth obedeceu, e a professora se deitou ao lado dela. O corpo dela tinha um forte cheiro de animal. Ela virou-se arara.

Elizabeth, abraçou-a e disse:

- Oh, chérie, tenho sonhado tanto com este momento!

Beijou-a então, forçando a língua na boca de Elizabeth e dando pequenos gemidos.

Foi sem dúvida a sensação mais desagradável que Elizabeth já havia experimentado. Deixou-se ficar em estado de choque, enquanto os dedos de Chantal - de Mlle Harriot - lhe percorriam o corpo, apertando seus seios, deslizando lentamente abaixo de seu estômago, em direcção às suas coxas. E durante todo o tempo ela beijava Elizabeth, babando-se como um animal.

Era isso então. Era esse o momento mágico. "Se fôssemos uma só pessoa, você e eu, faríamos juntamente um universo que abalaria as estrelas e moveria os céus." As mãos de Mlle Harriot estavam acariciando as coxas de Elizabeth, tentando penetrar entre suas pernas. Rapidamente, Elizabeth procurou lembrar-se de todos os seus sonhos, dos jantares à luz de vela, dos suflês, das noites diante da lareira, dos anos de felicidade que as duas passariam juntas.

Não adiantou. Havia repulsa na carne e no espírito de Elizabeth. Sentiu como se seu corpo estivesse sendo violentado.

Mlle Harriot gemeu.

- Oh, chérie, quero comê-la.

E tudo o que Elizabeth conseguiu dizer foi:

- Há um problema. Uma de nós não tem os acessórios necessários.

Começou então a chorar e a rir histericamente, lamentando ver morrer a visão dos jantares à luz de velas. Ria porque compreendia que era uma mulher normal, livre afinal daquela obsessão.

No dia seguinte, Elizabeth experimentou o esguicho do chuveiro.

 

Capítulo 13

Nas férias da Páscoa, no seu último ano na escola, aos dezoito anos de idade, Elizabeth foi passar dez dias na villa da Sardenha. Aprendera a dirigir e, pela primeira vez, tinha liberdade de explorar a ilha sozinha. Fazia longas excursões pela costa e visitava as aldeias de pescadores. Tomava banho de mar na villa, sob o sol quente do Mediterrâneo, muitas vezes ficava acordada à noite na cama, ouvindo o vento a gemer nos rochedos ocos. Foi a uma festa em Tempos e encontrou toda a aldeia vestida com trajes tradicionais. Ocultas sob o anonimato das máscaras, as moças convidavam os rapazes para danças, e todos se sentiam estimulados a fazer coisas que não faziam em ocasiões normais. Um rapaz podia pensar que conhecia a moça com quem fizera amor à noite, mas na manhã seguinte já não tinha tanta certeza. Era, pensou

Elizabeth, como se a aldeia inteira representasse The guatdsman.

Foi até Punta Murra e viu os sardos assarem carneiros ao ar livre. Os homens da ilha lhe deram seada, um queijo de cabra, coberto de farinha de trigo e mel quente.

Elizabeth bebeu também o delicioso selememont, o vinho local, que não se podia provar em nenhum lugar do mundo, pois era muito delicado para suportar a viagem.

Um dos lugares que Elizabeth gostava de frequentar era a Hospedaria do Leão Vermelho, em Porto Cervo. Era um pequeno restaurante localizado no porão, com dez mesas e um bar antigo.

Elizabeth deu àquelas férias o nome de Tempo dos Rapazes.

Eram filhos de ricos e chegavam em grupos, convidando Elizabeth para uma ronda constante de banhos de Mar e passeios. Era isso o prelúdio do acto sexual.

- São todos muito bons partidos - assegurou-lhe o pai.

Para Elizabeth, eram todos uns grosseirões. Bebiam demais, falavam demais e apalpavam-lhe o corpo. Tinha certeza de que a procuravam não por ela mesma, nem porque ela fosse inteligente ou tivesse valor como ser humano, mas apenas porque ela era uma Roffe, herdeira da fortuna da família. Elizabeth não tinha idéia de que havia se transformado numa bela mulher, porque era muito fácil acreditar nas suas lembranças do passado do que no que lhe dizia nessa época o espelho.

Os rapazes tomavam vinho e jantavam com ela, tentando depois levá-la para a cama. Percebiam que Elizabeth era virgem e cada qual sentia, na sua vaidade masculina, que aquela virgindade lhe estava destinada e que bastaria conquistá-la para Elizabeth apaixonar-se e ser uma escrava pelo resto da vida. Não desistiam. Fosse para onde fosse que levassem Elizabeth, sempre terminavam a noite convidando-a a ir para a cama. Ela recusava com polidez, mas com firmeza.

Os rapazes não podiam compreendê-la. Achavam-na bonita e, portanto, devia ser um pouco inteligente. Nunca lhes ocorrera que ela fosse mais inteligente do que eles.

Quem já ouvira falar de uma moça ao mesmo tempo bonita e inteligente?

Assim Elizabeth saía com os rapazes para fazer a vontade do pai, mas aborrecia-se com todos eles.

Rhys Williams apareceu na villa, e Elizabeth ficou surpresa com o prazer que sentiu ao vê-lo. Estava ainda mais simpático do que da outra vez.

Rhys Williams sentiu prazer também em vê-la.

- Que foi que houve com você? - perguntou ele.

- Como assim?

- Tem-se olhado ao espelho ultimamente?

Elizabeth se voltou e respondeu:

- Não.

Ele se voltou para Sam e disse:

- A menos que todos os rapazes sejam cegos, surdos e mudos, acho que não vamos ter Elizabeth connosco por muito tempo.

Connosco! Elizabeth gostou de ouvi-lo dizer isso. Ficava com os dois homens tanto quanto podia, servindo-lhes bebidas, prestando-lhes pequenos favores, contente apenas de olhar para Rhys.às vezes, Elizabeth ficava num canto da sala, enquanto eles falavam de negócios, e sentia-se fascinada. Falavam de fusões, de novas fábricas, de produtos que tinham feito sucesso e de outros que haviam falhado, debatendo as causas. Falaram dos concorrentes e planejavam campanhas e estratégias. Tudo isso parecia empolgante a Elizabeth.

Um dia, quando Sam estava trabalhando na sala da torre, Rhys convidou Elizabeth para almoçar. Levou-a para o Leão Vermelho, jogou dados com os homens do bar, e Elizabeth se admirou de como Rhys parecia à vontade ali. Era um homem que se adaptava a qualquer ambiente. Ouvira um dia uma expressão espanhola, que não compreendera na ocasião.

Mas, vendo Rhys, entendia o que os espanhóis queriam exprimir quando diziam que um homem "cabia bem dentro da sua pele".

Sentaram-se a uma mesinha de canto com uma toalha vermelha e branca e comeram empadão de carneiro acompanhado de cerveja.

Rhys lhe perguntou como ia a escola.

- Não é tão ruim quanto eu pensava - disse Elizabeth. Ao menos, tive consciência da minha ignorância.

Rhys sorriu.

- São raras as pessoas que adquirem essa consciência. Você concluirá o curso em junho, Não é?

Elizabeth estranhou que ele soubesse disse e respondeu:

- É verdade.

- Já sabe o que quer fazer quando sair de lá?

Pensara muito nisso e ainda não encontrara uma resposta.

- Não. Ainda não sei.

- Tem algum interesse em se casar?

Por um instante, o coração dela falhou uma batida.

Compreendeu então que a pergunta tinha apenas um interesse geral.

- Não. Ainda não Encontrei ninguém.

Pensou então em Mlle Harriot e nos jantares íntimos diante da lareira com a neve caindo lá fora, e deu uma risada.

- Há algum segredo? - perguntou Rhys.

- Segredos?

Gostaria de contar tudo a ele, mas ainda não o conhecia bem.

Na verdade, quase não o conhecia. Era um desconhecido elegante e simpático que um dia tivera pena dela e a levara para comemorar o seu aniversário com um jantar em Paris. Sabia que ele era brilhante no mundo dos negócios e que seu pai na verdade confiava nele. Mas nada sabia da vida particular dele ou do que ele na realidade era. Observando-o, Elizabeth tinha a impressão de que se tratava de um homem de várias camadas, que só mostrava algumas emoções para esconder aquelas que realmente sentia. Era de duvidar que alguém o conhecesse de facto.

Rhys Williams foi responsável pela perda da virgindade de Elizabeth.

A idéia de ir para a cama com um homem era a cada dia mais imperiosa para Elizabeth. Em parte, era um impulso físico que de vez em quando se apoderava dela em ondas de frustração e uma urgência necessária, difícil de desaparecer. Mas havia também a curiosidade, a vontade de saber como era. É claro que não poderia ir para a cama com qualquer homem. Tinha de ser alguém com quem ela simpatizasse e que simpatizasse com ela.

Num sábado, o pai de Elizabeth deu um jantar de gala na villa.

- Escolha o seu melhor vestido - disse ele à filha. - quero mostrá-la a todos.

Emocionada, Elizabeth pensou que seria par de Rhys. Quando Rhys chegou, estava acompanhado de uma princesa italiana loura.

Elizabeth se sentiu insultada e traída, tanto que à meia-noite saiu da festa e foi para a cama com um pintor russo barbudo, chamado Vassílov.

O breve caso foi um desastre. Elizabeth estava tão nervosa e o pintor, tão bêbado, que para ela não houve começo, meio, nem fim. As manobras preliminares se limitaram a Vassílov tirar as calças e se jogar na cama. A essa altura, Elizabeth só tinha vontade de fugir, mas resolveu ir até o fim para castigar Rhys por sua perfídia.

Despiu-se e deitou-se na cama. Um instante depois, sem qualquer aviso, Vassílov estava a penetrá-la. Era uma sensação estranha. Não podia ser considerada desagradável, mas também não era nada de fazer a terra tremer.

Sentiu o corpo de Vassílov estremecer e, um instante depois, o pintor estava estendido na cama, roncando. Elizabeth ficou ali, com nojo de si mesma. Era difícil acreditar que tantas canções, tantos livros, tantos poemas se referissem àquilo.

Pensou em Rhys e teve vontade de Chorar.

Silenciosamente, vestiu-se e voltou para casa. Quando o pintor telefonou para ela na manhã seguinte, mandou dizer que não estava. No outro dia, Elizabeth voltou para a escola.

Voou no jacto da companhia, juntamente com o pai e Rhys. O avião, construído para comportar cem passageiros, fora transformado numa aeronave de luxo. Havia na calda dois camarotes bem decorados, ambos com banheiros completos, um escritório, uma sala confortável e uma cozinha totalmente equipada. Elizabeth dizia que o avião era o tapete mágico de seu pai.

Os dois homens falaram de negócios a maior parte do tempo.

Quando Rhys ficou livre, jogou uma partida de xadrez com Elizabeth. A partida terminou empatada, e Rhys a elogiou, dizendo que nunca havia pensado que ela jogasse tão bem.

Elizabeth corou de prazer.

Os últimos meses na escola passaram rapidamente. Era tempo de começar a pensar no futuro. A pergunta de Rhys: "Já sabe o que fazer quando sair de lá?", não lhe saía do pensamento, mas ainda não sabia. Entretanto, graças ao velho Samuel, Elizabeth ficara encantada com a empresa da família. Gostaria de trabalhar nela. Não sabia ainda o que poderia fazer. Talvez começasse ajudando o pai. Contavam-se ainda histórias da maravilhosa anfitriã que fora sua mãe, do inestimável auxílio para Sam.

Começaria procurando ficar no lugar da mãe. Seria um bom início.

 

Capítulo 14

A mão do embaixador da Suécia estava apertando as nádegas de Elizabeth, e ela procurou não tomar conhecimento disso enquanto dançavam através do salão. Sorria e com os seus olhos bem-treinados inspeccionava tudo, os convidados elegantemente vestidos, a orquestra, os empregados de libré, o bufe, em que se amontoavam pratos exóticos e excelentes vinhos, concluindo, satisfeita, que a festa estava muito boa.

Estavam no salão de baile da casa de Long Island. Havia duzentos convidados, todos importantes para a Roffe and Sons.

Elizabeth percebeu que o embaixador apertava o corpo contra o dela, tentando excitá-la. Ele tocou com a língua a orelha dela e murmurou:

- Sabe que dança muito bem?

- E o senhor também - disse Elizabeth com um sorriso.

Mas errou o passo deliberadamente e pisou no pé do embaixador, com toda força, com seu salto fino. Ele deu um grito de dor, e Elizabeth exclamou contritamente:

- Perdão, embaixador. Espere aqui que vou buscar-lhe um drinque.

Deixou-o e dirigiu-se para o bar, abrindo caminho por entre os convidados, correndo os olhos cuidadosamente pelo salão, para ver se tudo estava perfeito.

Perfeição - era tudo que o pai exigia. Elizabeth havia sido a anfitriã já numa centena de recepções de Sam, mas ainda não aprendera a descontrair-se. Cada festa era um acontecimento, uma noite de estreia., com uma porção de coisas que podiam sair erradas. Entretanto, nunca se sentira mais feliz. O seu sonho de menina de viver perto do pai, que a queria e precisava dela, havia se tornado realidade. Aprendera a ajustar-se ao facto de que as necessidades de seu pai eram impessoais e de que sua importância se limitava, para ele, à contribuição que pudesse dar à companhia. Era esse o único critério de Sam Roffe para julgar as pessoas. Elizabeth conseguira preencher a lacuna existente desde a morte de sua mãe. Passara a ser uma anfitriã.

Mas, como Elizabeth era uma moça muito inteligente, passara a ser mais que isso. Comparecia a conferências comerciais com o pai e o acompanhava em aviões, em suítes de hotéis no estrangeiro, em fábricas, embaixadas e palácios. Via o pai exercer o seu poder, empregando os bilhões de dólares à sua disposição para comprar e vender, para derrubar e construir. A Roffe and Sons era uma vasta cornucópia, e Elizabeth via o pai dispensar as suas dádivas aos amigos e recusar qualquer concessão aos inimigos. Era um mundo fascinante, cheio de pessoas interessantes, e Sam Roffe dominava tudo.

Quando Elizabeth correu os olhos pelo salão de baile, viu Sam perto do bar, conversando com Rhys, um primeiro-ministro e um senador da Califórnia. O pai a chamou e ela se encaminhou para ele, pensando no tempo em que, três anos antes, tudo começara.

Elizabeth tinha voado para casa no dia da formatura. Sua casa, então, era o apartamento em Beekman Place, Nova York.

Rhys estava lá com o pai. Ela esperava certamente encontrá-lo.

Levava a imagem dele nos recantos secretos dos seus pensamentos e, sempre que estava sozinha, reconfortava-se com as recordações. A princípio, tudo tinha parecido sem esperança.

Ela era uma colegial de quinze anos e ele, um homem de vinte e cinco. Esses dez anos de diferença podiam muito bem ser cem.

Mas, graças a alguma admirável alquimia matemática, aos dezoito anos a diferença de idade já parecia ter menos importância.

Era como se ela estivesse amadurecendo mais depressa do que Rhys, na ânsia de alcançá-lo.

Os dois homens se levantaram quando ela entrou na biblioteca, onde estavam falando de negócios. Sam disse calmamente:

- Ah, Elizabeth... Já chegou?

- Já.

- Disse então adeus à escola?

- Disse, sim.

- Muito bem.

E não passou daí a cordialidade com que o pai a recebeu de volta para casa. Rhys, porém aproximou-se dela com um sorriso.

Parecia sinceramente satisfeito de vê-la.

- Você está óptima, Liz! Como foi a formatura? Sam queria muito ir, mas não pôde fazer a viagem.

Ele estava dizendo todas as coisas que cabia ao pai dela dizer.

Elizabeth se aborreceu de ter ficado magoada. Sabia que, na verdade, o pai não deixara de amá-la, mas estava entregue a um mundo de que ela não fazia parte. Teria levado um filho para esse mundo; uma filha, era impossível. Ela não se ajustava de modo algum à mecânica da companhia.

- Vim interromper - murmurou ela, encaminhando-se para a porta.

- Espere um pouco - disse Rhys. - Ela chegou bem na hora, Sam. Pode ajudar-nos na festa de sábado à noite.

Sam olhou para Elizabeth, examinou-a objectivamente, como se quisesse aquilatar o seu valor. Parecia-se com a mãe. Tinha a mesma beleza, a mesma elegância natural.

Um lampejo de interesse brilhou nos olhos de Sam. Nunca lhe havia ocorrido a idéia de que ela pudesse dar uma contribuição positiva aos interesses da Roffe and Sons.

- Você tem um vestido adequado?

Elizabeth olhou-o, surpresa, e murmurou:

- Eu...

- Não tem importância. Compre o vestido. Sabe o que deve fazer numa festa?

- Sem dúvida. É claro que sei o que se deve fazer numa festa.

Não era essa uma das vantagens de uma boa escola suíça?

Ensinam lá todos os princípios e regras da sociedade.

- Optimo. Convidei um grupo da Arábia Saudita. Devem vir mais ou menos...

Voltou-se para Rhys, que sorriu para Elizabeth e disse:

- Mais ou menos umas quarenta pessoas.

- Deixem tudo comigo - disse então Elizabeth, cheia de confiança.

O jantar foi um desastre completo.

Elizabeth tinha dito ao cozinheiro que preparasse coquetel de caranguejos, seguindo de cassoulets individuais, que seriam servidos com bons vinhos. Infelizmente, os cassoulets tinham carne de porco e os árabes não tocavam nem em crustáceos, nem em carne de porco. Não tomavam, além disso, bebidas alcoólicas.

Os convidados olharam para a comida, mas não provaram coisa alguma. Elizabeth, sentada à cabeceira da mesa, tendo o pai à outra cabeceira, ficou petrificada de vergonha, sentindo a sua derrota.

Foi Rhys Williams que salvou a noite. Desapareceu por um instante no escritório e telefonou. Voltou então para o salão de jantar e começou a distrair os convidados, contando histórias divertidas, enquanto os empregados tiravam os pratos da mesa.

Quase no mesmo instante, segundo pareceu, uma frota de camiões chegou ao edifício e, como por encanto, uma variedade de pratos começou a aparecer na mesa. Cuscuz árabe e carneiro en brochete, travessas de peixe e galinha assada, seguidos de doces, queijos e frutas secas. Todos apreciaram a comida, menos Elizabeth. Estava tão acabrunhada que não conseguia engolir um só bocado. Sempre que olhava para Rhys, este a estava observando com um brilho de cumplicidade no olhar. Elizabeth não saberia explicar a razão, mas estava mortificada com o facto de que Rhys não só tivesse assistido à sua desmoralização, mas ainda a tivesse salvo. Quando tudo terminou e os convidados saíram com relutância já às primeiras horas da madrugada, Elizabeth, Sam e Rhys se reuniram na sala de estar.

Rhys estava servindo conhaque.

Elizabeth respirou fundo e voltou-se para o pai.

- Desculpe o que houve no jantar. Se não fosse Rhys...

- Tenho certeza de que da próxima vez você se sairá melhor disse Sam, sem maior interesse.

Mas Sam acertara. Daí por diante, quando havia uma recepção, fosse para quatro ou quatrocentas pessoas, Elizabeth fazia pesquisas sobre os convidados, descobria seus gostos e preferências, e até o tipo de acolhimento que lhes agradava.

Tinha um catálogo com fichas de cada pessoa. Os convidados se sentiam envaidecidos de encontrar sempre o vinho, o uísque ou os charutos de que gostavam, e de ter em Elizabeth uma pessoa que podia conversar com conhecimento de causa sobre o assunto que mais lhes interessava.

Rhys comparecia a quase todas as recepções, sempre acompanhado de belas mulheres. Elizabeth detestava-as todas, mas procurava imitá-las. Se Rhys aparecia com uma mulher com os cabelos penteados para trás, ela tentava o mesmo penteado.

Procurava imitá-las em tudo. Mas nada disso parecia impressionar Rhys. ao contrário, não notava coisa alguma.

Frustrada, Elizabeth resolveu afinal ser ela mesma e não imitar mais ninguém.

Na manhã do seu vigésimo primeiro aniversário, quando Elizabeth desceu para o café, o pai lhe disse:

- Encomende algumas entradas de teatro para esta noite.

Depois iremos jantar no 21.

Elizabeth pensou que o pai se tivesse lembrado do seu aniversário e ficou radiante.

Mas Sam acrescentou:

- Seremos doze pessoas. Vamos comemorar os novos contratos bolivianos.

Ela nada disso sobre o aniversário. Recebeu alguns telegramas de antigas colegas, e foi só. às seis da tarde recebeu um enorme buqué de flores. Elizabeth pensou que fosse o pai que as houvesse mandado. Mas o cartão que acompanhava as flores dizia:

"Um belo dia para uma bela mulher. Rhys." O pai saiu de casa às sete horas para o teatro. Viu as flores e perguntou:

- Algum pretendente?

Elizabeth teve vontade de dizer que se tratava de um presente de aniversário, mas de que adiantava? Quando se tem de lembrar o próprio aniversário a uma pessoa amada, então é tudo inútil.

Viu o pai sair e ficou sem saber o que iria fazer naquela noite. Os vinte e um anos sempre tinham lhe parecido um marco importante na vida. Significavam a maioridade, a liberdade, a transformação numa mulher. Bem, o dia mágico havia chegado, e ela não se sentia diferente em nada do que tinha sido no ano anterior ou dois anos antes.

Por que ele não se lembrara? Se fosse um filho, teria esquecido?

O mordomo apareceu para lhe perguntar sobre o jantar.

Elizabeth não estava com fome. Sentia-se sozinha e abandonada.

Sabia que estava pensando demais em si mesma, mas o que podia fazer? O que ela lamentava não era apenas aquele aniversário solitário, mas todos os outros aniversários do passado, a dor cresceu sozinha, sem ter uma mãe, um pai ou qualquer pessoa que tivesse o menor interesse por ela.

As dez horas da noite, estava vestida com um robe, sentada no escuro, diante da lareira. De repente, ouviu uma voz que dizia:

- Parabéns pra você!

As luzes se acenderam e ela viu Rhys Williams. Encaminhou-se para ela e disse:

- Isso é lá maneira de festejar o seu aniversário? Quantas vezes você pensa que vai fazer vinte e um anos?

- Pensei que você estivesse com meu pai esta noite - disse ela, agitada.

- Eu estava lá. Mas saí quando ele disse que você tinha ficado em casa. Vista-se e vamos jantar.

Elizabeth abanou a cabeça. Não queria aceitar a compaixão dele.

- Agradeço muito, Rhys. Mas não estou realmente com fome.

- Mas eu estou com fome e não gosto de comer sozinho. Tem cinco minutos para se vestir. Do contrário, vou levá-la como está.

Comeram numa lanchonete, em Long Island, hambúrgueres com chili, batatas fritas e cebolas, tudo acompanhado de refrigerantes. Conversaram muito, e Elizabeth pensou que aquele jantar ainda era melhor do que o do Maxim's. Toda a atenção de Rhys se concentrava nela, e ela começou a compreender por que ele atraía tanto as mulheres.

Não se tratava apenas de sua aparência física. Era também o facto de que ele gostava realmente das mulheres e sentia prazer na companhia delas. Fez Elizabeth sentir-se como alguém especial, alguém cuja companhia ele preferia à de qualquer outra pessoa do mundo. Não era de admirar que as outras se apaixonassem por ele.

Rhys contou-lhe um pouco da sua infância no País de Gales e fez tudo parecer admirável, aventuroso e alegre.

- Saí de casa, Liz porque havia em mim a fome de ver tudo e fazer tudo. Queria ser as pessoas que eu via. Eu não era bastante para mim. Pode compreender isso?

Como ela compreendia bem tudo aquilo!

- Trabalhei em parques, em praias e houve um verão em que trabalhei levando turistas em coracle pelo Rhosili...

- Espere um pouco, Rhys. O que é coracle e o que é o Rhosili?

- O Rhosili é um rio turbulento e veloz, cheio de correntezas e corredeiras. Os caracles são barcos feito de armação de madeira coberta de couro. Devem ser anteriores ao tempo dos romanos. Nunca esteve no País de Gales, não? Você adoraria aquilo. Há uma cachoeira no vale de Neath que é uma das coisas mais belas do mundo. Há tantos bonitos para ver!... Aber-Eiddi, Caerbwdi, Porthclais, Kilgetty, Llangwm....

E as palavras lhe rolavam dos lábios como uma cadência musical.

- É uma terra ainda selvagem e primitiva, cheia de surpresas mágicas.

- Apesar disso, você deixou o País de Gales...

Rhys sorriu e disse:

- Era a fome que havia em mim. Eu queria ser dono do mundo...

O que ele não disse foi que a fome ainda não se lhe aplacara no coração.

No decorrer dos três anos seguintes, Elizabeth tornou-se indispensável ao pai. Sua função era tornar a vida dele confortável para que pudesse concentrar-se naquilo que tinha exclusiva importância para ele: os negócios. Os detalhes de sua vida particular eram inteiramente confiados a Elizabeth. Ela contratava e despedia empregados, abria e fechava várias casas de acordo com as necessidades do pai e presidia às recepções para ele.

Mais ainda, ela se tornou os olhos e os ouvidos de Sam.

Depois de uma reunião de negócios, Sam pedia a opinião dela sobre este ou aquele homem ou lhe explicava por que motivo tinha agido desta ou daquela maneira. Ela o via tomar decisões que afectavam a vida de milhares de pessoas e envolviam centenas de milhões de dólares. Tinha visto chefes de Estados pedirem a Sam que abrisse uma fábrica ou deixasse de fichar outra.

Depois de uma dessas reuniões, Elizabeth disse ao pai:

- É incrível! É como se você estivesse governando um país.

Sam riu e replicou:

- A Roffe and Sons tem uma receita superior à de três ou quatro dos países do mundo.

Nas suas viagens com o pai, Elizabeth conheceu as outras pessoas da família Roffe, seus primos e primas e as pessoas com quem eram casados.

Quando era mocinha, vira-os quando iam visitar seu pai ou quando ela ia visitá-los nas breves férias da escola.

Simonetta e Ivo Palazzi, em Roma, tinham sido sempre os mais agradáveis. Eram francos e cordiais, e Ivo sempre fizera Elizabeth sentir-se mulher. Ivo era encarregado da divisão italiana da Roffe and Sons, e sempre se saíra muito bem. As pessoas gostavam de tratar com ele. Elizabeth se lembrava do que lhe dissera uma das suas colegas depois de conhecê-lo:

"Sabe por que eu gosto de seu primo? Tem calor e fervor.

Ivo era assim: calor e fervor.

Havia depois Hélène Roffe-Martel e seu marido Charles, em Paris, Elizabeth nunca havia realmente compreendido Hélène, nem se sentia à vontade com ela. Era sempre gentil com ela, mas havia uma fria reserva que Elizabeth não conseguia romper.

Charles era o chefe da filial francesa da Roffe and Sons. Era competente, embora, segundo dizia Sam, lhe faltava energia.

Podia cumprir ordens, mas não tinha espírito de iniciativa. Sam nunca o substituíra porque, apesar de tudo, a filial francesa era muito rentável. Elizabeth suspeitava de que Hélène Roffe-Martel fosse em grande parte a causa desse sucesso.

Elizabeth gostava da prima alemã Anna Roffe Gassner e de seu marido Walther. Lembrava-se de ter ouvido dizer nas conversas de família que Anna se cassara com um homem socialmente inferior. Walther Gassner era considerado na família uma ovelha negra, um caça-dotes, que se casara com uma mulher feia e mais velha do que ele, com os olhos no dinheiro dela. Elizabeth não julgava sua prima feia. Achara sempre que se tratara de uma pessoa tímida e sensível, reservada e um pouco apavorada diante da vida. Elizabeth tinha gostado de Walther desde o primeiro instante. Tinha o perfil clássico de um astro de cinema, mas não se mostrava arrogante nem falso.

Parecia amar sinceramente Anna, e Elizabeth não acreditava nas coisas terríveis que dele contavam.

Entre todos os seus parentes, Alec Nichols era o predilecto de Elizabeth. A mãe dele tinha sido uma Roffe que se casara com Sir George Nichols, terceiro baronete.

Era a Alec que Elizabeth havia sempre recorrido quando tinha um problema. Talvez em vista da sensibilidade e da gentileza de Alec, a menina sempre o julgara seu igual e só agora compreendia que grande elogio isso representava para Alec. Ele sempre a tratara em pé de igualdade, disposto a oferecer-lhe ajuda e conselhos.

Elizabeth se lembrava de que, num momento de grande desespero, resolvera fugir de casa. Arrumou as roupas numa maleta e então, num súbito impulso, telefonou para Alec em Londres a fim de despedir-se dele. Ele estava participando de uma conferência, mas foi ao telefone e falou com Elizabeth por mais de uma hora. ao fim da conversa, Elizabeth resolveu perdoar o pai e dar-lhe mais uma chance.

Assim era Sir Alec Nichols. Vivian, a mulher dele, era, porém, completamente diferente. Tanto quanto Alec era generoso e gentil, Vivian era egoísta e imprevidente.

Era a criatura mais egocêntrica que Elizabeth já havia conhecido.

Anos antes, quando Elizabeth estava passando um fim de semana na casa de campo deles, em Gloucestershire, foi fazer um piquenique sozinha. Mas começou a chover e ela voltou para casa. Entrou pela porta dos fundos e atravessava o corredor quando ouviu vozes alteradas no escritório.

- Estou cansada de servir de babá para essa fedelha - dizia Vivian. - Pode ficar com sua danada priminha e tratar de diverti-la esta noite. Vou a Londres. Tenho um compromisso.

- Você pode cancelar esse compromisso, Vivian. A menina só vai ficar mais um dia connosco e depois...

- Sinto muito, Alec. Estou precisando de homem, e é isso que eu vou fazer esta noite.

- Pelo amor de Deus, Vivian!

- Veja se me esquece! E não tente viver minha vida por mim!

Neste momento, antes que Elizabeth pudesse mover-se, Vivian saiu impetuosamente do escritório. Olhou de relance o rosto espantado de Elizabeth e disse alegremente:

- Já voltou, queridinha?

E subiu.

Alec chegou à porta do escritório e disse gentilmente:

- Entre, Elizabeth.

Ela acompanhou o primo sem muita disposição. O rosto de Alec estava vermelho de vergonha e confusão. Elizabeth gostaria muito de consolá-lo, mas não sabia o que dizer. Alec dirigiu-se para uma mesa grande de refeitório, pegou um cachimbo, encheu-o de fumo e acendeu-o.

Elizabeth teve a impressão de que ele gastara um tempo enorme nisso.

- Você deve compreender Vivian.

- Alec, não tenho nada com isso. Eu...

- De certo modo tem, Elizabeth. Você é da família e eu não quero que pense mal dela.

Elizabeth não podia acreditar. Depois da horrível cena que acabara de presenciar, Alec estava querendo defender a mulher.

- As vezes, num casamento - continuou Alec - marido e mulher têm necessidades diferentes. Não quero que você pense mal de Vivian pelo facto de eu não poder atender a certas necessidades dela. Vivian não tem culpa...

Elizabeth não pôde conter-se.

-Ela costuma... gozar da companhia de outros homens?

- Creio que sim - respondeu Alec.

Elizabeth ficou horrorizada.

- Por que não a deixa então?

Alec deu-lhe um sorriso.

- Não posso, minha filha. Acontece que eu gosto dela.

No dia seguinte, Elizabeth voltou para a escola. Mas, a partir desse dia, sentiu-se mais do que nunca ligada a Alec.

Elizabeth vivia ultimamente muito preocupada com o pai. Ele parecia ter algum problema, e ela não fazia a menor idéia do que fosse. Chegara um dia a perguntar-lhe e ele dissera:

- Apenas um pequeno problema que tenho de resolver. Depois lhe conto tudo.

Havia se tornado muito reservado, e Elizabeth não tinha mais acesso a seus papéis particulares. Quando ele lhe disse que ia partir no dia seguinte para Chamonix a fim de fazer um pouco de alpinismo, Elizabeth ficou satisfeita. Sabia que ele precisava de um pouco de repouso. Tinha emagrecido e andava pálido e abatido.

- Vou fazer as reservas para você.

- Não precisa, Elizabeth. Já estão feitas.

Também isso não estava nos hábitos dele. Partiu para Chamonix na manhã seguinte. Foi a última vez em que o viu. Nunca mais o veria...

Elizabeth ficou deitada no quarto às escuras, recordando.

Havia uma impressão de irrealidade persistente em torno da morte de seu pai.

Ela era a última descendente directa da família Roffe. Se não fosse ela, o nome desapareceria. Que iria acontecer à empresa?

Seu pai sempre tivera o controle accionário nas mãos. Para quem teria ele deixado as suas acções?

Elizabeth ficou sabendo na tarde seguinte. O advogado de Sam apareceu em sua casa.

- Trouxe uma cópia do testamento de seu pai. Sinto muito importuná-la num momento triste como este, mas creio que é bom que fique sabendo o quanto antes. É a herdeira universal de seu pai. Isso quer dizer que as Acções que representam o controle da maioria da Roffe and Sons estão em suas mãos.

Elizabeth não podia acreditar. Sam não devia ter certamente esperado que ela pudesse dirigir a empresa....

- Porquê? Porquê eu?

O advogado hesitou um pouco e disse:

- Permita-me falar-lhe com toda a franqueza. Seu pai era um homem relativamente novo. Tenho certeza de que esperava ainda ter muitos anos de vida. Com o tempo, ele faria naturalmente outro testamento, apontando a pessoa que deveria assumir o controle da companhia. Com toda a certeza, ainda não havia resolvido nada. Mas tudo agora não tem importância. A realidade é que o controle está em suas mãos e cabe-lhe decidir o que fazer, bem como escolher a pessoa que dirigirá a empresa. Nunca houve uma mulher na directoria da Roffe and Sons, mas, no momento pelo menos, terá de tomar o lugar de seu pai. Há uma reunião da directoria, na sexta-feira, em Zurique. Poderá comparecer?

Sam não esperaria outra coisa dela.

E o velho Samuel também.

- Estarei lá - disse Elizabeth.

                                                                                           

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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