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LOSBELEUC é uma linda vila bretã situada à margem dum ribeiro de águas claras e cercado de florestas, onde não penetrou ainda o machado implacável, que tem devastado sem piedade as mais belas regiões francesas. É também uma vila antiga, ufana do seu bairro velho de ruas estreitas, cujos pavimentos são todos dissemelhantes e cujas casas remontando ao reinado da duquesa Ana (1) ofereceu ao turista arqueólogo, ou simplesmente
(1) Ana de Bretanha, ilha de Francisco II, duque de Bretanha, nascida em Nantes, mulher de Carlos VIII (1491) e depois de Luís XII (1499), que entregou em dote à França aquele antigo ducado Independente e hoje uma das províncias francesas onde mais arraigados se conservam ainda o culto do passado e o sentimento religioso. - N. do T.
curioso do passado, ampla matéria para estudo e observação. A igreja, muito escura,! e a ponte sobre o ribeiro são interessantes espécimens da arquitectura do tempo. A admiração dos entendidos é excitada a cada passo, ora por um torreão trabalhado como uma renda de pedra, ora por uma janela característica da época, ora por um venerável chafariz brasonado com as armas da Bretanha. E desde a erva que brota nas calçadas e o bulor esverdeado que recobre as paredes de construções vetustas aos jardins deliciosos abandonados a eles mesmos e alongando-se, em luxuriantes vagas de verdura desgrenhada, para o tranquilo ribeiro, tudo acrescenta ao velho bairro uma nota de pitoresco e de poesia arcaica.
A Losbélluc possui também um bairro novo junto da estação, uma linda estação branca, onde poucos viajantes descem, porque a vila só oferece atractivos para aqueles que atrai a novidade do passado. A palavra novidade deve aqui entender-se como termo de comparação, porque a maior parte das habitações que compõem esse bairro, apesar de não terem a honra de haver conhecido o reinado da boa duquesa, nem por isso são menos veneráveis.
Nessas condições se encontra por exemplo, a moradia do Sr. Arzen, principal notário de Losbéleuc, bela casa antiga sem pretensões arquitecturais, onde toda a ninhada se acondiciona com folgança, onde o ar e a luz circulam em plena liberdade por todos os compartimentos, em que as janelas não foram poupadas.
Uma encantadora família, essa dos Azen. Sete filhos, todos bem educados por pais extremosos e de fé radicada. Além disso, uma avòzinha, que todos veneram. E devemos acrescentar ainda a cozinheira, a velha Joana Maria, às vezes resmungona, mas capaz de se atirar ao lume pelos seus "meninos".
... Naquela tarde de Março um tanto chuvosa e fresca, a senhora Arzen e sua sogra trabalhavam no salão, junto dum magnífico lume de achas. Era um salão muito simples que nada ostentava de moderno. As duas mulheres tinham-no adornado com lavores de tapeçaria e de bordado, antes que o aumento excessivo da criançada lhes roubasse todo o tempo para trabalhos deste género. Agora, era preciso fazer concertos e acrescentos, arranjar fatinhos para o pequeno Pascal, que tinha oito anos, e vestidinhos para Josefa, a mais nova do rancho. O notário dispunha duma boa clientela, mas, com tão numerosa família era indispensável fazer economias. Os Arzen viviam com muita simplicidade, o que não impedia que fossem felizes, porque se contentavam com a sua sorte, não invejando a fortuna alheia, e também porque reinava entre eles uma união perfeita.
Num recanto do salão, Pascal brincava com a pequena Josefa, que tinha completado cinco anos. Pascal era cego, o que constituia o único e profundo desgosto desse lar abençoado. E não poderia imaginar-se, contudo, criança mais deliciosa. Os seus loiros cabelos, esparsos em ondas naturais, emolduravam-lhe um rosto fino, quási sempre sorridente, porque Pascal era a alegria em pessoa, e ninguém acreditaria de relance, que esses olhos tão belos eram incapazes de ver. E o rapazinho tinha ainda um génio extremamente calmo e sossegado, propenso à ternura e à afeição.
- Pascal, meu queridinho, vai pedir um candieiro, disse a senhora Arzen. Parece-me que Armela se esqueceu de nós.
A criança levantou-se, e, sem hesitar, encaminhou-se para a porta. Abriu-a, deu alguns passos no corredor, e, voltando logo ao salão" aproximou-se da mãe, cujo pescoço envolveu caridosamente com os braços.
- A Armela vem aí, ouço Armela, mamã. Aparecia uma luz no corredor, A donzela mostrou-se logo, trazendo um candieiro que colocou sobre a mesa, junto da qual trabalhavam a senhora Arzen e a avó.
- Demorei-me um pouco, - disse com uma voz harmoniosa - Mas a pobre Joana-Maria tem uma dor de cabeça tão grande que tive de fazer a maionese, e ela deu-lhe para se estragar...
-Agora! A Joana-Maria?
O interruptor era um rapaz duns quinze anos, robusto e desempenado, cabelos ruivos cortados, rosto enérgico, inteligência viva, mas um tanto brincalhão. Estava à entrada da porta, tendo numa das mãos uma pasta de rapaz da escola e na outra um barrete, que tirara para saudar a mãe e a avó.
A rapariga soltou uma linda risada clara, que pôs a descoberto uns dentinhos maravilhosos.
Desde que Tug entrou, não podia faltar uma gracinha!... E que fizeste de João?
- Presente! - acudiu uma voz aflautada. Entre Tugdual e a ombreira da porta surgiu uma cabeça loira, um fino rosto esperto, em que brilhavam olhos risonhos.
- Ide rnudar de roupa, meus filhos, - atalhou a senhora Arzen - E de caminho, Tug, dize à Mariquinhas que já trabalhou hoje demais e que venha ter connosco.
- Lá vou, mamã, mas a dona Sapiência vai fazer má cara.
Tugdual, o trocista da família, tinha posto aquela alcunha a sua irmã Mariquinhas, uma rapariga de catorze anos, agarrada ao estudo, e que tinha as primeiras classificações no colégio Cordier.
Abrindo a porta que comunicava com a sala de jantar, Armela começou a pôr a mesa. Pouco depois, juntou-se-lhe Mariquinhas. As duas irmãs não se pareciam nada. Fina e esbelta, a mais velha tinha um delicioso rosto rosado, grandes olhos azues, profundos e meigos, e uma cabeleira dum castanho doirado, leve e vaporosa, que em Losbéleuc despertava fartas invejas. Mariquinhas era a única pessoa da família que tinha cabelos pretos e cor de cigana. Alta e desageitada, possuía pouco de bonita, como a cada passo declarava Tug. Estava no período da idade ingrata.
Mariquinhas possuía, além disso, um carácter pouco acessível e uma boa soma de amor-próprio... o coração era bom, contudo, e amava muito todos os seus.
A porta do salão, fez-se ouvir de repente a voz do sr. Arzen...
- Mamã, Helena, fazem-me o favor de virem por um momento ao meu gabinete!
A sogra e a nora abandonaram o aposento, emquanto Armela e Mariquinhas trocavam olhares inquietos.
- Haverá qualquer má nova? - murmurou Armela - O papá tinha a voz alterada. Nada notaste, Mariquinhas?
A irmã fez um sinal afirmativo... com gestos mais lentos, as duas raparigas continuaram a sua tarefa. Depois voltaram para o salão, no momento em que aparecia Tugdual e João em trajo caseiro...
- É boa! A avózinha e a mamã desapareceram! - exclamou Tug- Queria dizer-lhes que fiz um tema de estalo...
E fez estalar os dedos.
- Estão ambas a falar com o papá... João, vai dizer a Joana-Maria que se não apresse a tirar o jantar.
João, um rapazinho de doze anos, magro e nervoso, fingiu um ar embaraçado.
- Mas ela vai devorar-me, Armela. Já esta manhã estava como uma bicha, e mandou-me passear, quando lhe pedi com muito bons modos que me desse um ovo para tomar.
É que está muito mal da cabeça. Vai preveni-la e não te importes com o seu mau humor.
- Ah! sim, ele há-de importar-se muito com o seu mau humor! - exclamou Tug - E eu da mesma forma. Joana-Maria é uma velha rabugenta, mas a gente bem sabe que aquilo é feitio, e é bem nossa amiga.
- Gosto muito de Joana-Maria, - disse gravemente Pascal.
- Ah! pudera! Tu és o seu menino bonito! E Tugdual, erguendo o irmão com os braços,
assentou-lhe em ambas as faces um beijo ressonante.
- E eu! e eu! -acudiu a pequena Josefa, correndo, de nariz no ar e os loiros anéis a flutuar-lhe no rosto miudinho.
- Dois beijos também para ti, Zefinha, não tenhas inveja!... Isso é coisa que não existe entre nós.
- Não, graças a Deus! - comentou Armela, sentando-se e pegando num lavor começado.
Os minutos escoavam-se; tinha passado a hora de jantar e os pais não apareciam. Armela trabalhava; Mariquinhas, que evitava o mais possível todos os lavores, de que não gostava, folheava um livro, já lido e relido; Tug arreliava a irmãzinha; João descrevia a Pascal o seu professor de alemão.
Por fim, o sr. Arzen e sua mulher voltaram.
Mostravam-se tristes e preocupados.
- Vamos para a mesa, meus filhos! - disse o pai.
Joana-Maria trouxe a terrina; a senhora Arzen serviu a sopa, um prato cheio para cada um. Mas o pai preveniu:
- Muito pouca para mim, Helena.
E, ao ver os olhares ansiosos que se xlevantavam para ele, depois de se haverem demorado no lugar da avó, disse com tristeza:
- Recebi há pouco um telegrama, dizendo que tinha morrido o vosso tio Gustavo. A avózinha e eu partimos logo para Paris.
O tio Gustavo!... Ninguém o conhecia. Os mais velhos sabiam apenas que era o irmão mais novo de seu pai, cérebro esquentado, que desertara cedo da casa paterna sob pretexto de vocação artística, e desposara aos vinte e cinco anos uma russa, artista lírica de segunda ordem num teatro parisiense. Sete anos mais tarde, a mulher morrera, deixando uma filhita. Ele nunca procurara, porém, aproximar-se da família. Por ocasião do seu casamento, o irmão mais velho dirigiu-lhe censuras que ele jamais lhe perdoou. A própria mãe não sabia notícias dele, e muitas vezes a pobre senhora derramou lágrimas ardentes orando pelo filho pródigo.
Agora teria apenas a triste consolação de o beijar no seu leito de morte.
- Pobre avózinha! - disse Armela, com lágrimas nos olhos - Que tormentosa viagem para ela!... E para si também, papá!
- Sim, porque nunca deixei de amar esse infeliz ingrato. Como é que ele morreria? Quem lhe assistiria aos últimos momentos?... Que novas tristezas nos reservará talvez a sua filha? Deve ter sido educada por forma bem singular, a pobre criança!
- Que idade tem ela, papá?
- Dezoito anos, creio eu, como tu, minha querida!... Joana-Maria, traga-me depressa legumes e um pouco de queijo. Tenho de dar ainda umas instruções a Camélieu, antes de partir. Armela, vê a hora exacta do comboio... João, hás-de ir buscar a minha mala.
- Não te preocupes com nada, Roberto, eu preparei tudo -, atalhou a senhora Arzen - E vou já subir para ajudar a pobre mamã.
- Eu vou lá, quer mamã? - propôs espontaneamente Mariquinhas, que, no entanto, gostava muito pouco de se incomodar.
- Não, pequena, tenho de falar com a vossa avózinha... Procura comer alguma coisa, Coberto, precisas de ganhar forças, para tratares em Paris de todos esses tristes serviços.
- Sim, vou fazer o possível... Tug. ficas encarregado de escrever a Francisco, para lhe dares parte deste luto que nos fere.
Quando mestre Tug, naquela noite, subiu para o quarto que ocupava sosinho desde que Francisco, o mais velho, estava na Escola Naval, sentou-se à mesa, pegou numa larga folha de papel e começou ao meio dela:
MEU CARO IRMÃO:
É uma carta de participação a que te envio esta noite. O tio Gustavo morreu. O papá, e a avózinha partiram há pouco para Paris.
Estou triste por causa deles, visto que o tio Gustavo é um desconhecido para nós. A pobre avó encontra-se inconsolável. Estamos mortos que ela volte mais sossegada para o meio de nós. Mas há agora a outra neta dela, que talvez lhe dê que fazer.
vou largar a pena, estou cheio de sono. Tu já sabes bem que tenho pouco geito para escrever cartas. Deixo à dona Sapiência o cuidado de te mimosear com uma jóia literária, à Sévigné. Sempre agarrada aos livros, a nossa Mariquinhas. Boa rapariga, não há dúvida, mas suscetível... Emfim, todos teem os seus defeitos, não é verdade, meu velho?
Boa noite, e um abraço do teu irmão
Tug.
EM frente da habitação do notário, erguia-se uma casa da mesma época, de bela aparência, separada da rua por um estreito jardim, fechado com uma grade ferrugenta. Pertencia a um dos médicos de Losbélluc, o dr. Dornoy, condiscípulo e amigo do sr. Arzen, a. quem o ligavam remotos laços de parentesco. Tendo casado com a filha dum magistrado de Vennes, enviuvara pouco depois do nascimento do seu último filho, o pequeno Roberto, afilhado do notário. Veio fazer-lhe companhia uma dás suas tias, a senhora Lazarina Dornoy, para dirigir o governo da casa e a educação de três filhos que ele tinha. A primeira parte do programa tinha sido admiravelmente cumprida, pois o governo duma casa não tinha segredos para D. Lazarina. Mas não se dava o mesmo a respeito da educação das crianças. A tia Lazarina era boa certamente, mas um pouco seca, autoritária e assomadiça, muito senhora das suas opiniões. com Pedro, o mais velho, um rapazola gordo e fleugmático, as coisas não corriam mal.
Mas Micaela e Roberto, Michon e Bobby, na intimidade, não eram tão fáceis de levar. Havia alguns meses principalmente, que Bobby, todo ufano com os seus seis anos e os seus primeiros calções, se tornara muito independente. A ti" Lazarina atribuía o facto ao exemplo de Micael" e aos conselhos de Tugdual e de João... Porque os pequenos Dornay estavam constantemente na casa fronteira. A reciprocidade é que se não dava com frequência. D. Lazarina Dornay não permitia os brinquedos ruidosos ou que podiam sujar ou desarranjar fosse o que fosse na casa sempre bem conservada. E assim Tug afirmava que, logo à entrada, lhe caía sobre os ombros um enorme peso de gelo.
- Vinde aquecer em nossa casa, meus velhos,
- dizia aos seus amigos - Se não fôssemos nós, qualquer dia aparecíeis transformados em múmias.
Pedro, Micaela e Roberto não se faziam rogados para aproveitar a vizinhança. Reinava entre eles e os jovens Arzen uma fraternal amizade. Por seu lado, a avó e sua nora, a própria Armela, desde que se tornava jovem senhora esforçavam-se por substituir junto das pobres crianças amãe desaparecida, dando-lhes discretamente bons conselhos e dirigindo-lhes também censuras, que, se não tinham a fria severidade das da tia Lazarina, produziam, contudo, quási sempre melhor resultado.
Cinco dias após a partida do sr. Arzen e de sua mãe, estava todo o rancho reunido no jardim, sob a vigilância de Armela, que trabalhava à sombra dum pequeno caramanchão rústico, porque o sol daquela tarde de março estava muito quente. Todos tinham feriado naquele dia e procuravam aproveitá-lo bem. O velho jardim à moda antiga estrondeava de risos e de interpelações alegres.
- Ora! vou descansar um bocado. Tenho muito calor, Tug! - disse Micaela, deixando-se cair num banco - Vem daí também!
Tugdual acedeu logo. Entendia-se sempre admiravelmente com Micaela, cuja natureza viva e decidida se harmonizava com o seu carácter resoluto.
A rapariga esteve em silêncio durante alguns momentos, fazendo do chapéu leque para refrescar o rosto fino, iluminado por dois olhos escuros duma rara inteligência, À beira dela, Tug traçava letras na areia da álea com a ponta duma vara. Micaela, inclinando-se, leu, em voz alta: -Mussia... É o nome da tua prima, não é? Tug respondeu afirmativamente.
- Tens vontade de a conhecer?
- Nenhuma!
A pequena fitou-o, abrindo muito os olhos.
- Como tu dizes isso! Mas tua avó e teu pai escrevem que ela é muito gentil, muito bem educada.
- É possível, mas a questão é o meu nariz.
- Que tem o teu nariz para o caso? Interrogou Micaela com espanto.
- Muito. É que possuo um extraordinário nariz, ou antes faro, se assim o preferes. Essa Mussia não me cheira...
- Essa agora é muito forte! Demais, sem a conheceres...
- Mas o meu nariz, o meu nariz, Michon, o meu infalível nariz!
Micaela desatara a rir por causa desse nariz maravilhoso, irreverência com que não se melindrou o bom rapaz que era Tug.
- Quem viver, verá! - concluiu ele filosóficamente - Em todo caso, estou contente por saber que voltam o papá e a avòzinha. Camélia também está satisfeito, porque poderá ir assistir ao casamento da sua irmã.
- Olha! Aí vem precisamente Camélia.
Pela álea avançava um homenzinho atarracado, duns quarenta anos, fronte calva, rosto redondo e tez fresca. Por trás dos vidros da luneta, faiscavam dois olhos pretos sorridentes.
Esse personagem dava pelo nome de Lucas Caméllen, e era o ajudante do sr. Arzen, que nele depositava a maior confiança. Era um homem excelente, muito estimado pelos filhos aos quais testemunhava uma sincera afeição.
Tug tratava-o por Camélia, menos por analogia com o seu nome do que por causa da sua cor rosada, dizia o malicioso rapaz.
Josefa, Bobby foram logo ter com ele.
- Não traz hoje as rãs, sr. Camélieu, - perguntou o pequeno.
- Hoje não, menino. Só as posso encontrar em minha casa, perto de Josselin. Hoje trago apenas uma notícia.
Micaela, Tugdual, Pedro e João aproximaram-se, curiosos; a própria Mariquinhas, que estava a ler sentada num banco, ergueu a cabeça.
- Uma boa notícia? - inquiriu Micaela.
- Boa... Isso é conforme. Se essas pessoas forem de boas relações, estará bem; se não forem.
- Quais pessoas? - interrompeu Tug.
- Os proprietários da casa das Aves.
- Vêem habitá-la!
Manifestou-se em todos os rostos a mesma consternação.
- É verdade! o criado do senhor de Rodennec, a quem acompanhou quando ele saiu daqui, nunca mais o largando, veio hoje buscar a chave para observar as reparações que será preciso fazer. Seu amo encontra-se doente, e veio-lhe o desejo de tornar a ver a sua terra natal e vir morrer nela.
Deve chegar por estes quinze dias, tendo feito a viagem no seu iate, com a mulher e o filho único. Eh! eh! se entregarem os seus negócios ao nosso cartório, serão uns clientes de mão cheia. Já rico antes de partir, o sr. de Rodennec tornou-se lá fora um autêntico nababo.
Esfregava as mãos, radiante com a ideia de que essa pechincha pudesse tocar ao "patrão", porque o bom Camélieu não estava dentro das ideias do tempo, e considerava como seus os interesses daquele de quem era empregado. Contemplava já em pensamento os serviços soberbamente remuneradores que seriam confiados ao cartório Arzen. O contrato de casamento do mancebo... e depois os negócios a regularizar após a morte do sr. de Rodennec. Porque o bom Camélieu previa tudo.
Mas as crianças não viam o caso por esse lado.
Havia em todos uma verdadeira desolação, e o motivo era simples: o pequeno parque da casa das Aves estava separado do jardim dos Arzen apenas por uma sebe, em que Tug e João tinham aberto uma passagem havia muito. Abandonado de cultura, fresco e tufado que era um encanto, atravessado por um braço do ribeiro, esse parque constituía um lugar ideal para recreio da pequenada. Que belas recordações ele avivava! Francisco escolhera-o para assunto da sua primeira poesia; Tug e João já não contavam as brincadeiras que ali tinham feito com os seus companheiros, nos dias de feriado; Armela apreciava também o seu pitoresco abandono e a sombra tão agradável durante o estio. Não corriam o risco de serem desalojados pelo proprietário. Este deixara a Bretanha depois de perder a mulher e um filhinho. Viajara e tornara a casar-se nas índias com uma senhora de alta hierarquia, que lhe dera um filho. Nunca voltara à terra natal. O sr. Arzen guardava as chaves da casa e enviava-lhe os rendimentos duma importante quinta que ele possuía nos arredores. E assim as crianças consideravam-se como em terreno seu no parque abandonado.
- Que grande espiga, meus amigos! - exclamou Tug.
E, correndo para a irmã mais velha, que havia interrompido o trabalho para escutar, disse:
- Ouviste, Armela? Tu que tanto gostavas do velho parque!
- Sim, é lamentável! Mas que quereis vósf não podemos impedir a entrada dos seus legítimos proprietários!
- Apesar de tudo, continuarei a ir lá! - declarou Bobby.
- E eu também! - respondeu como um eco a voz da pequena Josefa.
O sr. Camélieu levantou-a nos braços.
- Mas eles mandarão vir a polícia para te prender, Zefinha!
- Não tenho medo da polícia! Não tenho medo de nada!
- A não ser dos trapeiros, hein, minha linda!
- atalhou Tug.
Josefa corou um pouco e fez beicinho, voltando a cabeça.
- Devem ser pessoas bem desagradáveis" para nos virem importunar assim, - observou Micaela - Que te diz o teu nariz a tal respeito, meu caro Tug?
- Não me diz por emquanto nada. Se vier a indicar-me qualquer coisa, não deixarei de te dar parte das minhas observações.
Chamando João aparte, Bobby cochichou-lhe ao ouvido:
- Ora dize cá: e se a gente deitasse no parque animais muito maus? Talvez que tivessem medo e fugissem!
- Sim, mas que animais!
- Serpentes com óculos, como aquelas da gravura que Mariquinhas nos mostrou outro dia. E depois leões, e grandes macacos...
- Mas onde hás-de ir buscar tudo isso, meu tolinho? Ainda se eu arranjasse umas boas ratazanas para lhes soltar às pernas!... Ah! o nosso parque! Que desgraça.
De fronte enrugada, Tug andava à volta dum sicómoro, numa atitude à Napoleão.
Micaela olhava-o curiosamente. Daí a pouco, não pôde conter-se e aproximou-se.
- Em que pensas tu? - perguntou ela.
Tug parou, pegou-lhe no braço e murmurou, misteriosamente:
- É ela que nos traz esta arrelia!
- Ela quem?
- Ah! a prima russa! Tem mau olhado.
- Estás doido, Tug.
- Os doidos são muitas vezes os que têem mais tino, Michon. Em todo o caso, vou pôr-me de atalaia, e de olhos bem abertos!
- A AVÓZÍNHA trazia, com efeito, a sua neta. Ficara surpreendida, escrevera ela à senhora Arzen, por encontrar uma rapariga tão bem educada, meiga e encantadora, muito afectuosa, cuja maior aspiração era a vida tranquila da família. Mussia vivera até à idade de dezasseis anos em casa duma tia de sua mãe, que possuía uma pequena propriedade, por ela própria explorada, no governo de Kief. Depois, o senhor Gustavo Arzen, que nunca até ali se preocupara com sua filha, lembrara-se de a mandar vir para Paris e internara-a num bom colégio, donde saía apenas para ir passar as férias com a sua parenta.
Mas essa parenta morrera pouco tempo antes. Mussia possuía apenas uma dezena de mil francos, e era, além disso, muito nova para viver sozinha. A avó disse-lhe logo:
- Queres vir connosco? Encontrarás uma família que não tardará a estimar-te sinceramente.
Mussia caiu em choro nos braços da avózinha.
- Se eu quero! oh! querida avó, que maior felicidade poderia ambicionar uma pobre orfãnzinha como eu!
A notícia fora acolhida com prazer por toda a família Arzen, se exceptuarmos Tugdual. Todos se preparavam para acolher o melhor possível a infeliz rapariga, até ali privada das alegrias do lar. Foi-lhe destinado um quarto perto do de Armela, que o adornou com flores no dia em que deviam chegar os viajantes, fazendo-o com o requintado bom-gosto que punha em todas as coisas.
Às sete horas da tarde, tendo voltado do colégio os rapazes e Mariquinhas, encaminharam-se todos para a estação. O chefe cumprimentou a senhora Arzen e Armela, respondendo completamente às perguntas de João, a quem tudo interessava, ao passo que Tug, de mãos atrás das costas passeava com passo desembaraçado, seguido de Josefa, que levava à trela o seu cãozito Kif-Kif.
- O Comboio! - exclamou de repente João. Um rolo de fumo avançava, com efeito. Na curva da linha, mostrou-se a locomotiva, depois a série de vagons. À portinhola dum deles vinha debruçado alguém que agitava um lenço.
É a avózinha! gritou Josefa, saltando de alegria..
-Boa tarde, avózinha!
Ao chegar ao cais, o comboio parou, rangendo.
As crianças precipitaram-se para uma portinhola que se abria e caíram nos braços do sr. Arzen.
-Boa tarde, queridinhos! Boa tarde Helena!... Não há nada de novo?
Aparecia agora também a avózinha, um pouco pálida, mas sorrindo para a nora e para os netos.
- Tudo bem, Roberto. Vem muito cansada, mamã?
- Nem por isso, querida Helena, e julgo-me feliz, na minha tristeza, por trazer comigo a minha neta.
O sr. Arzen sustentou a mãe quási em peso, para a fazer descer, pois era alto e forte, e ela muito franzina, e viu-se então surgir à portinhola uma rapariga de pequena estatura, envolvida em crepes. Saltou a terra com ligeireza, sem o auxílio de ninguém, e, erguendo o véu, correu para a senhora Arzen.
- Minha tia Helena, não é verdade? - exclamou com voz muito doce.
- Sim, querida filha, tua tia que deseja a consideres tua mãe, - respondeu a senhora Arzen, abrindo-lhe os braços.
Mussia abraçou-se à tia e beijou-a.
- A avó já mo tinha dito!... oh! como é boa, e como eu a vou amar!
As lágrimas humedeciam-lhe os olhos dum azul pálido e cambiante. Era uma criatura baixa e delgada, com um rosto que não era nem bonito nem feio. A sua fisionomia tinha uma expressão de doçura e de tristeza, tão enternecedora que imediatamente cativou o coração de Armela e de Mariquinhas, com as quais a pequenita trocou beijos muito afectuosos. João também se deixou beijar de bom grado; depois Tug, correcto e frio, a seguir Josefa, que Mussia declarou uma "criança deliciosa", e por fim Pascal.
- Pobre pequeno! - murmurou a meiga voz de Mussia um pouco cantante, ao baixar-se para poisar os seus lábios na fronte do rapazinho.
Pascal fez então uma espécie de movimento de recuo, desviando um tanto o rosto.
- Não quer que o beije, menino? - perguntou a rapariga.
- Então que é isso, Pascal? - interveio a senhora Arzen com surpresa, porque o pequeno cego não era dado a caprichos.
A criança deixou-se beijar com modo contrafeito. Observando-o de soslaio, Tugdual não perdeu um único pormenor dessa curta cena. E, quando toda a família saiu da estação, a caminho de casa, pegou na mão do irmãozinho e reteve-o um pouco mais atrás.
- É gentil, a prima! - disse-lhe despreocupadamente.
- Não, eu não gosto dela! declarou Pascal com toda a franqueza.
- Mas logo assim à primeira, sem a conheceres?
- Sim, porque a sua voz mente... sabes, é como a da senhora Qradu, quando cumprimenta as pessoas muito amavelmente, para depois dizer mal delas.
- Ora! ora! rosnou Tug, entre dentes. Quando chegaram a casa, sentaram-se logo à mesa, para fazerem honra ao jantar que Joana-Maria preparara com todo o cuidado. Como a avózinha dissera, Mussia parecia realmente bem educada. Conversou pouco, mas com habilidade e inteligência, e muitas vezes exprimiu com tocante emoção o seu reconhecimento.
A avó e ela, ambas fatigadas, retiraram-se logo que o jantar acabou. Armela foi mostrar-lhe o quarto e recebeu dois ternos beijos de agradecimento pelas suas flores. Quando a irmã mais velha veio outra vez encontrar-se com a mãe Mariquinhas e os irmãos no salão, a sua voz juntou-se ao juizo favorável que a recém-chegada inspirava. Apenas Tugdual e Pascal permaneciam silenciosos.
O mais velho, sentado a um canto, parecia mergulhado em profundas meditações.
- Então que é isso, Tug, estás a dormir? - inquiriu Armela.
- Não, querida, estou a pensar.
- Mas em quê?
- Em qualquer coisa de muito sério, que por emquanto não tens necessidade de saber.
- Guarda o teu segredo, meu amigo. Não tenho pressa de o conhecer. Mas diz-me as tuas impressões a respeito da nossa nova prima.
- Não me agrada! - respondeu Tug laconicamente.
Esta declaração perentória foi acolhida com uma exclamação de espanto.
- Essa agora! Pois olha que ela é muito gentil!
- És muito precipitado em julgar as pessoas, Tug, - acrescentou a senhora Arzen - É um dos teus defeitos, como te disse já muitas vezes.
- Sim, mamã, bem sei... Mas confesse que acerto muitas vezes.
- Que presunção! - exclamou Mariquinhas, em tom zombeteiro - Mas desta vez formas um juízo falso, pois tenho a certeza de que Mussia é uma criatura encantadora.
Tug levantou-se e estendeu o braço com gesto majestoso.
- Desejo-o de todo o meu coração! - disse com ênfase - E se, dentro dum ano, reconhecer que me enganei, de bom grado confessarei o meu erro.
Entretanto, procurarás não dar a perceber essa tua opinião antecipada, - atalhou a senhora Arzen em tom severo - Essa rapariga é tua prima, é uma órfã que nunca foi feliz; deve encontrar aqui, por parte de todos, uma larga e afectuosa hospitalidade. Compreendes-me,
Tug?
- Sim, mamã, muito bem, e farei o possível por não a desgostar... tanto mais que o meu maior desejo é que ela não desconfie de mim, - concluiu ele comsigo mesmo.
No dia seguinte de manhã, quando Tugdual saía para se dirigir ao colégio, descobriu por trás da grade da casa Dornoy a cabeça desgrenhada de Micaela.
- E então, Tug, a tua prima? - interrogou ela em voz baixa.
- Parece que é encantadora! - respondeu gravemente.
- Como? Parece? Tu não a viste?
- Vi.
- E então, que pensas?
- Parece que não devo, por emquanto, formular opinião a esse respeito! - disse com ar mais grave ainda.
Micaela encarou-o com admiração; depois desatou a rir.
- Porque fazes uma cara tão solene, Tug? João, que saía de casa, aproximou-se nesse momento:
- É muito gentil a nossa prima, sabes, Michon!
Tug aprumou-se com um belo movimento de indignação.
- Tomo-te por testemunha, Michon, para que digas se isto não é também um juizo precipitado! Todos podem dizer, logo à primeira vista, que ela é gentil, encantadora, deliciosa!... Só o pobre Tug é que tem de ser repreendido, por dizer em consciência que ela lhe não agrada. Ó justiça, tu não és deste mundo!
E, muito digno, mestre Tug voltou costas e afastou-se, seguido de João, que ria perdidamente, e deixando Micaela embasbacada, com o nariz encostado à grade.
- Mas que terá ele? - pensava a pequena - Seria a chegada da prima que lhe deu volta à cabeça?
Abriu-se uma janela no primeiro andar, e uma voz seca chamou:
- Micaela, onde estás?
- Estou aqui, minha tia!
Dum pulo, a rapariguinha encontrava-se no patamar.
Lá em cima, Dona Lazarina inclinava a cabeça magra, coberta de bandós pretos e reluzentes.
- Que fazes aí?... Estavas à grade com esses cabelos em desordem? É vergonhoso! Sobe imediatamente, penteia-te e vai buscar Bobby, que anda a brincar no jardim. Temos de ir ao moinho Brahon procurar ovos.
Micaela abafou um suspiro. Não lhe agradavam os passeios com sua tia, porque tinha de caminhar tranquilamente a seu lado, sem se desviar para a direita nem para a esquerda, quase sem falar, pois a tia Lazarina entendia que era comprometedor para a sua dignidade falar com as crianças... Tug chamava àquilo "o passeio regimental"... Mas os soldados tinham ainda tambores e cornetas para os auxiliar na marcha.
Foi vestir-se e desceu à sala, onde Dona Lazarina passou minuciosa inspecção ao seu trajo.
Depois de Bobby sofrer a mesma formalidade, dirigiram-se todos para o moinho, que ficava a uns três quilómetros, em pleno campo. A estrada era deliciosa e estava um sol magnífico.
Emquanto caminhavam, Micaela pensava:
- Se ao menos Tug viesse connosco!... Mas que telha ele tinha esta manhã!.
E lembrava-se também dessa prima Mussia, dizendo de si para si que nenhuma pressa tinha de a conhecer.
HAVIAM passado já dez dias, e as primeiras impressões da família confirmavam-se. Mussia era a doçura em pessoa e dum trato extremamente cativante. Mostrava-se muito afectuosa e acariciadora com a avózinha, duma deferência gentil com o tio e a tia, auxiliando Armela nos cuidados caseiros, dando lições a Mariquinhas e a João, divertindo Josefa e entretendo Pascal, com leituras, e fazendo tudo isso com a mesma amabilidade sorridente, com a mesma invariável serenidade.
Em obediência à palavra dada, Tugdual nada deixava transparecer dos seus pensamentos secretos e esforçava-se por aparentar, nas relações com Mussia, a simpatia que lhe testemunhava o resto da família. No entanto, a donzela parecia ter a intuição da reserva de que era objecto por parte dele, pois que se mostrava fria a seu respeito. Não deixou, contudo, de lhe dirigir cumprimentos muito graciosos, por duas ou três vezes que Tug foi muito feliz nas suas lições, amabilidade que ele se limitou a agradecer, respondendo com toda a correcção e tranquilidade:
- Obrigado, minha prima.
Mussia fora apresentada aos Dornoy no dia seguinte ao da sua chegada. Desde logo cativou Dona Lazarina, deixou Pedro indiferente, e entusiasmou Bobby, ensinando-lhe um jogo russo, que obteve a aprovação da terrível tia, porque tinha a vantagem de o fazer conservar-se quieto.
Quanto a Micaela, na tarde desse mesmo dia Tug perguntou-lhe:
- E então, que dizes tu de Mussia?
- Agrada-me muito, é extremamente amável e deve ser muito boa! O teu nariz, Tug, mentiu-te!
O rapaz pegou nas mãos de sua amiguinha, e, olhando-a bem de frente, disse com seriedade:
- Ela disse-te alguma amabilidade, Michon?
- A que propósito vem isso?
- Não te disse que tinhas uns lindos olhos?
- Mas como conseguiste adivinhar, Tug? - exclamou a pequena, atarantada.
É que ela não é nenhuma cega, vê logo o que há de melhor em cada pessoa e também o seu ponto fraco. E aproveita-se disso. Tu, Michon, tens um pouco de vaidade nos olhos; à Mariquinhas, elogia-lhe os lindos dentes e a aplicação ao estudo; a João, que é preguiçoso, disse outro dia que a sua inteligência lhe bastaria para triunfar. Procura conquistar Pascal, cuja antipatia soube adivinhar, contando-lhe maravilhosas histórias.
- Mas porque julgas que ela faz isso com má intenção, Tug?
- Ouve, Michon, tu és geralmente muito sagaz.
Quando a tornares a ver, observa-a com atenção, depois me dirás o que notares.
Dois dias depois, os meninos Dornoy tinham vindo brincar com os seus amiguinhos. Micaela aproximou-se de Tugdual e disse-lhe ao ouvido:
- Tens razão, Tug, os seus olhos mentem!
- Muito bem, agora poderás vigiá-la também, porque não és cega! com os teus olhos, com os ouvidos de Pascal e o meu nariz, seremos fortes, e, se for preciso desmascará-la, nós nos encarregaremos disso!
Depois destas sentenciosas palavras, o belicoso Tug foi ter com o seu amigo Pedro e sacudiu-o a valer, porque o achou naquele dia mais adormecido que de costume.
O parque da casa das Aves estava agora fechado às crianças. Faziam-se na propriedade trabalhos de reparação e de adaptação, que eram fiscalizados por Hervé Binic, o criado do conde de Rodennec, um homenzarrão ruivo, de cara antipática, que fazia mexer operários e fornecedores, mas pagava sem regatear, como serviçal de patrões que não sabem roer as unhas. De Nantes, e de Paris haviam chegado numerosas caixas,! móveis, depois um soberbo automóvel, uma carruagem, cavalos de sela e de tiro. Os Arzen sabiam tudo aquilo pelos praticantes do cartório, cujas janelas davam para a rua em que se abria o portão da casa das Aves, e também por Matutino, o criadito encarregado de cuidar do jardim, do carro e do cavalo do sr. Arzen.
Nas crianças, a curiosidade lutava com o pezar que lhes causava a perda do "seu parque".
Iam contemplá-lo melancolicamente pela abertura da sebe. E, como nem de propósito, nunca ele lhes parecera tão fresco e verdejante, nunca ali tinham admirado tantas aves!
Armela teve de admoestar um dia seriamente Bobby por lhe ouvir formular este desejo criminoso:
- Quem dera que o navio deles naufragasse, como o do Robinson, e ficassem toda a vida numa ilha, muito longe, entre selvagens!
A próxima chegada dos nababos era um grande acontecimento na pacata povoação. Seria uma pechincha para o comércio, bastante pobre. As mãis que tinham filhas casadouras pensavam já no jovem visconde de Rodennec. Informavam-se discretamente do dia da chegada dos opulentos estrangeiros para os examinarem na passagem. Mas Hervé mantinha-se impenetrável. Seu amo, segundo ele dizia, estava acostumado a avisar só à última hora, e havia muito que ele, Hervé, se via na necessidade de conservar-se sempre de atalaia.
Ora, certa manhã, mestre Tug acordou numa melancólica disposição de espírito. Sonhara que o sr. de Rodennec mandara abater todas as árvores do parque, transformando-se este num horroroso deserto.
Dizia-se que ele era outrora muito original, e podia dar-se o caso de lhe passar pela cabeça, tal loucura, pensou Tug.
E, acudindo-lhe subitamente uma ideia, saltou da cama, vestiu-se sumariamente e dirigiu-se ao quarto vizinho, onde dormiam seus irmãos mais novos.
Pascal dormitava ainda, João procedia às suas abluções cantarolando, porque tinha génio folgazão.
- Olha cá, João: como os vizinhos não chegaram, se nós fôssemos dizer adeus ao "nosso "parque?
- Quem dera! mas o criado?
- Não se deve levantar cedo, porque não tem cá os patrões. Mesmo nós não nos aproximaremos da casa. Queres vir?
- Vamos lá!
Acabaram de vestir-se rapidamente, e, nos bicos dos pés, dirigiram-se para a escada. Era preciso não despertar a atenção de Joana-Maria que já devia estar a contas com a cozinha, e de Armela, que se preparava para a missa das seis horas. Sem ruído, chegaram ao jardim e daí passaram ao parque, através da sebe.
- Se ao menos Micaela tivesse vindo connosco, ela que tanto gosta do velho parque! disse Tug.
- E Francisco também, acrescentou João - Fez lindos versos a propósito dele! Deve sofrer um grande desgosto, por lá não tornar a entrar!
Começaram a percorrer os arruamentos arrelvados, por cima dos quais a folhagem das velhas árvores se entrelaçava. O ar estava fresco, embalsamado de odores silvestres. O sol nascente iluminava com suavidade os pequenos bosques e fazia espelhar o estreito regato, em cujo leito a corrente arrastava grossos calhaus, agitando consíantemente as altas ervas verde-pálido.
- Atravessamos? -disse João, indicando o tronco da árvore que tinha substituído a velha ponte rústica, desfeita pela vetustez.
- Pois atravessemos! - respondeu Tug.
Do lado de lá, descobria-se uma deliciosa clareira, tapetada de relva alta, que aquele começo de Abril entressachava de flores.
O coro das aves enchia o espaço com um sussurro duma alegria vibrante.
João parou para escutar uma toutinegra... Mas teve um sobressalto ao ouvir uma voz grossa bradar:
- Então! então! que vem a ser isso? Pás -, seia-se aqui como se fosse logradouro público?
Surgia duma alea o criado do sr. de Rodennec.
Tug e João, muito atrapalhados, ficaram imóveis, emquanto o criado avançava para eles, de sobrecenho carregado.
- Quem foi que os autorizou? - começou ele.
- Deixa as crianças, Hervé - acudiu uma voz máscula e harmoniosa. Julgaram sem dúvida que a casa ainda não estava habitada.
Os dois irmãos voltaram-se e viram-se em frente dum mancebo, que vestia um elegante fato caseiro. No seu rosto de tez mate brilhavam dois olhos pretos chamejantes, mas naquele momento sorridentes.
Tug e João descobriram-se.
- Peço-lhe que nos desculpe, senhor, disse polidamente o mais velho. - Julgávamos, com efeito, que não incomodaríamos ninguém esta manhã, e veio-nos a ideia, a mim e a meu irmão, de dizer adeus ao parque.
- Estão desculpados... tu procuravas-me, Hervé?
- Vinha saber se o sr. Visconde saía esta manhã!
- Não, hoje não.
Hervé inclinou-se, afastando-se, emquanto o jovem titular se voltava para os dois irmãos.
- São vizinhos, não é verdade? - perguntou com amável interesse.
- Sim, senhor, somos filhos do sr. Arzen, o notário. O parque está separado do nosso jardim apenas por uma sebe.
- E atravessavam-na muitas vezes, no tempo em que a casa das Aves estava abandonada? Tinham razão, porque este pequeno parque agreste é delicioso, e deviam aqui passar belas horas!
- Oh! se passamos! - disse Tug com um suspiro, a que João respondeu em eco.
O sr. de Rodennec pôs a mão nos ombros do mais velho:
- Nesse caso, o que teem a fazer é continuar, nada mais simples!
Tug olhou-o um tanto desconfiado:
- Mas então consentirá?
- Porque não? Nós não somos papões, que demónio! e até ficaremos satisfeitos por ver o velho parque remoçado com os vossos folguedos.
- É que não somos sozinhos, senhor. Lá em casa somos sete, mas temos de exceptuar Armela, que já é grande, Francisco, que está na Escola Naval, e Mariquinhas, que não gosta de brincar. Temos porém, os nossos amigos Dornoy!...
- Julgo que esses amigos também poderão vir. No entanto, eu tenho de visitar o sr. Arzen e falar-lhe-ei a este respeito. Até à vista, pois espero vê-los em breve.
Estendeu aos dois irmãos uma fina mão branca, em que faiscava um soberbo rubi, que deslumbrou a vista de João.
Tug e o irmão regressaram triunfantes, contentíssimos por poder anunciar a boa nova e comunicar aos seus que estavam já nas boas graças do jovem e simpático vizinho.
- É o que se chama um tipo chique! exclamou Tug. - E amável!
- E tem uns olhos! - acrescentou João.
O sr. Arzen arrefeceu-lhes o entusiasmo, censurando-os pela indiscrição cometida. Souberam também que, se não estivessem a dormir profundamente, ouviriam na véspera, às onze horas, o automóvel ir para a estação e voltar, trazendo os vizinhos, que assim pregavam uma partida aos seus novos concidadãos:
Tug disse com sorriso malicioso: -Que contrariedade em Losbéleuc! A linguareira da senhora Gradu vai ficar desolada!
A senhora Gradu era a primeira das más línguas da pequena cidade. Sórna, melíflua, rasgava o próximo pelas costas, com os seus dentes acerados. E era por isso que Tug, tão bom e leal, não a podia ver.
Houve um grande alvoroço na pequena cidade quando viram os criados índios dos estrangeiros. Eram seis, quatro homens e duas mulheres, que usavam todos o trajo do seu país. Um deles exercia as funções de condutor de automóvel, e viram-no, logo no dia seguinte, sentado junto de seu jovem amo, que governava o volante, vindo estendido no interior do carro um enorme cão de pêlo ruivo.
No regresso desse passeio, feito sem dúvida para reconhecer os arredores de Losbéleuc, o visconde Even de Rodennec parou em frente da casa Arzen e teve com o notário uma entrevista muito cordial. Conquistou desde logo as simpatias do sr. Arzen, cujo carácter ponderado se não deixava, contudo, entusiasmar à primeira vista.
- É duma distinção e amabilidade perfeitas! declarou ele à família, quando à noite se encontrou com os seus, à hora de jantar. - Além disso, parece muito sério, apesar dos seus vinte e três anos, e extremamente instruido. Disse-me que voltaria com sua mãe, para nos visitar.
- Joana-Maria, que naquele momento levantava os pratos da sopa, resmungou:
- Devem ser todos pagãos, com certeza!
- Engana-se redondamente, Joana! Amos e criados são católicos... Ah! o senhor de Rodennec disse-me também, meus filhos, que podieis ir brincar para o parque, e que teria até muito prazer com isso. Mas peço-vos que não abuseis.
- Seria até conveniente esperar a visita da senhora de Rodennec, - acrescentou a senhora Arzen... - Vamos a ver se ela está de acordo com o convite do filho.
- Tem mão, Helena, - aprovou a avó. - Não se deve incomodar essa gente nem dar a perceber que nos queremos meter à cara.
Mussia mastigava em silêncio pequenos bocados de pão, ouvindo atentamente, como os outros. Tug observava-a, olhando de canto. Viu os pequenos lábios cor de coral arrepanharem-se como os duma criança gulosa ao ouvir falar em deliciosas iguarias, e surpreendeu o clarão de cobiça que lhe atravessou os olhos pálidos, "olhos angélicos", dizia Dona Lazarina quando se referia à sua doçura sorridente e cândida.
- Que quererá isto dizer? - pensou o feroz observador. - É preciso vigiar! Tenho de prevenir Micaela.
No dia seguinte de manhã, quando Armela se dirigia ao jardim para procurar a sua irmãzita, que ali brincava, encontrou Josefa, muito inquieta e afadigada em procura do seu cãozinho, que tinha desaparecido.
- Passou com certeza para o parque. Mas estou farta de o chamar, e não vem.
- Pois está lá, não pode haver dúvida. Vem daí, vamos chamá-lo outra vez.
Pegando na mão de Josefa, Armela dirigiu-se para o fundo do jardim.
Quando chegaram junto da sebe, ouviram um ladrido sonoro e em seguida um ganir assustado dum cãozito.
- É Kif-Kif! Estão a fazer-lhe mal! - exclamou Josefa, com desespero. - Kif-Kif, vem depressa!... vem, meu Kif-Kif!
No mesmo instante, ouviu-se uma voz masculina...
- Piloto, aqui! Não assustes esse animalzinho!
Instantes depois, Even de Rodennec aparecia por trás da sebe, segurando nas mãos o pobre Kif-Kif, todo trémulo.
À vista de Armela, descobriu-se rapidamente.
- Peço a fineza de desculpar o meu cão, minha senhora, - disse a sorrir. - Não fez mal nenhum ao pequerrucho, mas foi a sua grande corpulência que o assustou, creio eu.
- O nosso é que andou mal, e nós é que temos de pedir-lhe desculpa, senhor. vou prevenir meu pai para mandar tapar a sebe, quando não Kif-Kif estará sempre aí metido.
- Mas, nesse caso, por onde passarão seus irmãozinhos?... pois suponho que tenho a honra de falar à menina Arzen, não é verdade?
-É verdade, senhor... Mas é demasiadamente bom em autorizar todos esses traquinas a fazer brincadeiras no parque.
- Pelo contrário, teremos nisso grande prazer. Os dois irmãos de vossa excelência que ontem vi teem um ar franco e simpatizei muito com eles. O mais velho, sobretudo, tem uma fisionomia inteligente e resolvida, que me surpreendeu.
- É Tug! - disse Josefa, cujos olhos azues, parecidos com os de Armela, não desfitavam o amável rosto do novo vizinho. - Mas pode fazer o favor de me dar Kif-Kif, senhor, porque o seu cão está aí atrás e mete-lhe medo?
Even pôs-se a rir, estendendo por cima da sebe o pequeno animal, em que Armela pegou, "para o pôr nas mãos de Josefa.
- É muito medroso o seu Kif-Kif, menina... Como se chama?
- Josefa ou Zefinha, senhor, como quiser, - respondeu ela gravemente, encostando ao peito o pobre Kif-Kif, que tremia sempre.- É verdade que ele não é valente, mas também o seu cão é muito grande!
- O que o não impede de ser bom, como verá quando nos der o prazer da sua visita... Porque a menina Zefinha também virá brincar no parque, não?
- Oh! senhor, é esse o meu maior desejo!... Mas com Bobby?
- Quem é Bobby?
- É Bobby Dornoy, que mora em frente de nós. Seu pai é médico, sabe?
- Não, ainda não sabia, pois conheço pouca gente aqui, menina Zefinha.
- Mas acaba já de tomar conhecimento com uma grande tagarela, senhor, - disse Armela, sorrindo. - Vamos, Zefinha, agradece ao sr. Rodennec e voltemos para casa.
- Obrigada, senhor!... e Kif-Kif também lhe fica muito grato, pois não consentiu que o seu canzarrão o comesse! - acrescentou a endiabrada petiza, levantando nos braços o animalzito, que protestou com um grunhido.
O sr. de Rodennec, muito divertido com a cena, respondeu alegremente:
- Espero em breve Kif-Kif e a sua pequena dona... com Bobby, ainda a mais.
Saudou respeitosamente Armela, dirigiu a Josefa um amigável aceno de mão e retirou-se da sebe. Mas não se afastou. Emquanto pôde ver Armela e sua irmãzinha no jardim vizinho, seguiu-as com os olhos, pensando:
- Como é bonita! E tão simples! Quando as duas irmãs desapareceram, retomou o caminho da habitação, seguido de Piloto.
Foi dar uma vista à cavalariça e acariciar o seu cavalo preferido; depois, entrou em casa, vasta construção que datava de dois séculos, sem grande carácter, mas de aparência majestosa. No limiar da porta envidraçada, estava em pé uma mulher ainda nova e bela. Vestia um longo penteador branco, guarnecido de rendas e uma faixa de tule laminada de prata, que lhe envolvia a cabeça e o pescoço.
- Estás aí, querido? - disse com voz meiga e um leve acento. - Então, na verdade, esse parque agrada-te?
- Cada vez mais, mamã! É delicioso!... e parece-me que temos uns vizinhos encantadores
Uma voz de homem disse no interior com alegria irónica:
- Já formaste o teu juizo, só por teres visto o pai e os dois filhos?
- E as duas filhas, ou, pelo menos, duas delas, querido papá - volveu Even, penetrando no grande salão guarnecido de móveis antigos, onde seu pai, homem de rosto fino embora doentio, mas duma expressão inteligente e bondosa, estava sentado junto duma mesa, coberta de livros e jornais.
- Ah! isso já é outra coisa! Numa família, são as mulheres que dão a nota. E então, gentis, as raparigas?
- Meu pai, uma delas tem apenas cinco anos... o que não impede que seja uma criaturinha muito interessante. Tenho a certeza de que o havia de divertir muito.
- Preciso de travar relações com ela. As crianças outrora eram-me indiferentes; à medida que envelheço, gosto cada vez mais delas. Tenho toda a disposição para avô, Even. Mas receio bem que afastes de mim indefinidamente essa felicidade, com as tuas ideias. Pelos vistos, meu caro, queres uma perfeição absoluta!
Emquanto falava, envolvia o filho num olhar de orgulhosa ternura.
Even pôs-se a rir com toda a vontade.
- Havemos de descobri-la, meu pai, verá!... Querida mamã, não acha que poderíamos fazer a nossa visita às senhoras Arzen esta tarde?
- Já, Even? É muito cedo, parece-me! Mal acabamos de chegar!
-Que importa, mamã! São vizinhos tão próximos! Não lhe parece, papá, que não há nenhum inconveniente?
- Absolutamente nenhum!... Mas diz-me cá Even, a outra irmã também tem cinco anos?
Even riu-se de novo.
- Não, papá: essa é já donzela, o que não quer dizer que não seja tão deliciosa como a sua irmãzinha.
- Estou desconfiado... Tu não costumas ser tão apressado em fazer visitas. Mas não te deixes prender por um lindo rosto, hein? Precisas duma mulher séria e boa, pois que, se assim não for, com a tua natureza, sofrerias muito, meu querido filho.
A fisionomia de Even tornou-se repentinamente grave.
- Esteja tranquilo, meu pai. Primeiro que tudo, observarei a alma, o coração, a inteligência daquela que lhe der por filha... E bem sabe, querido papá, que tenho a maior confiança em minha mãe e em si, e que seguirei sempre os conselhos da sua experiência.
- Muito bem, meu querido filho! Como só queremos a tua felicidade, podes ter a certeza de que aprovaremos a tua escolha, desde que ela nos ofereça as garantias necessárias... Ide, pois, ambos ver essas senhoras à tarde... e tu depois Diana, hás-de dizer-me a tua opinião a respeito dessa jovem fada que teve o privilégio de agradar, logo à primeira vista, a esse rapaz tão difícil, - acrescentou ele maliciosamente, dirigindo-se a sua mulher.
NAQUELA tarde, portanto, as senhoras Arzen receberam a visita da condessa de Rodennec e de seu filho. Ficaram verdadeiramente encantadas.
A senhora de Rodennec era a bondade em pessoa; inteligente e distinta, devia parte da sua educação ao marido, que a desposara aos quinze anos, criada nos usos e costumes orientais.
Foram-lhes apresentadas Armela e Mussia, depois Pascal e Josefa. Even sentara esta nos joelhos, perguntando-lhe se Kif-Kií já estava refeito do susto que tomara de manhã.
- Completamente, senhor, - respondeu ela com gravidade. - Comeu a sopinha muito bem. Mas estou agora arreliada, porque Bobby zangou-se.
- Mas que é que lhe fez, Zefinha?
- Não lhe fiz nada. Disse-lhe apenas que o senhor o convidava a vir comigo para o parque, ainda a mais. E então ele fez-se muito vermelho, como quando a senhora Lazarina lhe ralha, e disse-me:
"Pois se é assim, não irei!... Lá ainda a mais é que não vou!"
As senhoras e Even desataram a rir.
- Que idade tem esta criaturinha tão sensível? - perguntou o visconde.
- Seis anos, senhor, - disse a avó. - É muito inteligente, mas é preciso corrigir-lhe o amor-próprio.
- Não há dúvida: há-de dizer-lhe, Zefinha, que não é bonito ser assim orgulhoso e que eu exijo em absoluto que me venha ver consigo.
- E Kif-Kif
- E Kif-Kif, naturalmente.
- Mas mandará prender o seu enorme cão, diga? - perguntou Josefa num tom de rogo mimalho.
- Zefinha, que estás a dizer? - exclamou Armela, em ar de censura.
Mas Even ria com vontade.
- Não faça caso, minha senhora. Decididamente, o meu pobre Piloto intimida-a... Mas é preciso habituar-se, Zefinha, pois quero que se tornem bons amigos.
- Oh! isso nunca poderá ser! - suspirou.Josefa. - Ele é muito grande!
- Não quer dizer nada, verá como se dá com ele. Nas índias, as crianças dum dos nossos vizinhos tinham-lhe tal afeição que era quási preciso empregar a força para os separar.
Quando Micaela voltou do colégio, pelas cinco horas, Dona Lazarina mandou-a pedir umas informações à senhora Arzen. A rapariguinha trouxe Bobby com ela. Ao ver o seu amigo, Josefa correu para ele, triunfante...
- Sabes que ele veio?
- Quem?
- O senhor da casa das Aves! É muito gentil! Só tenho medo que me faça comer pelo cão... Disse-me para te dizer que é muito feio ser assim orgulhoso, e que exige que venhas comigo.
Bobby empertigou-se como quem sente a sua dignidade ofendida.
- Pois não obedecerei a esse cavalheiro... Tenho a certeza de que é muito mau... Primeiro porque te quer fazer comer pelo cão.
- Mas não, eu é que tenho medo. Tu és tolinho, Bobby! Ele não é nada mau, tem até uns olhos muito bons, e muito grandes, muito grandes... E tão negros como a noite!.. Lembras-te daquele conto que nos contava Armela? Havia um príncipe que tinha os olhos assim, e a princesa tinha os olhos azues, como os de Armela,
- Também eu tenho os olhos azues, Zefinha, - disse uma voz cariciosa.
Mussia aproximava-se das crianças.
- Sim, mas não são tão azues como os de Armela, nem tão grandes. Tenho a certeza de que os da princesa se não pareciam com os teus.
Mussia deu uma risadinha exquisita, muito parecida com o som dum sino rachado.
- E o príncipe de olhos negros desposou a princesa de olhos azues? - perguntou ela.
- com certeza! Foram muito felizes. Queres que peça a Armela que te conte essa história?
- Obrigada, Zefinha, já passou o tempo em que eu me divertia com contos de fadas. Tenho agora mais que fazer.
- Mas o quê? - interrogou Josefa.
65
Um sorriso descobriu os dentes ponteagudos de Mussia.
- Tenho que trabalhar, pequena. É a vida...
Zefinha fez um leve tregeito:
- É tão aborrecido!... Vens brincar, Bobby?
- Não, porque vais tornar a falar-me do tal senhor! - respondeu Bobby, muito digno.
- E assim tem de ser, pois exige que vás a casa dele!
- Não, não e não! - afirmou Bobby com energia.
Atraída por aquele protesto veemente, Armela aproximou-se, informando-se do que se passava. Logo que o soube, pôs Bobby sobre os joelhos e deu-lhe alguns bons conselhos por forma que o pequeno recalcitrante, embora não convencido inteiramente, prometeu, contudo, acompanhar Josefa, logo que ela fosse ao parque do "senhor".
À noite, quando toda a família estava reunida, as senhoras trocaram impressões sobre as visitas da tarde. Mussia aprovava com o olhar ou com um monossílabo. Mostrava-se muito reservada
sempre que se tratava de apreciar coisas ou pessoas, o que levava a avó a dizer:
"Como esta pequena é discreta e delicada!"
Alguns dias mais tarde, a senhora Arzen e as filhas dirigiram-se à Casa das Aves. Foram recebidas com a maior amabilidade pelo senhor e pela senhora de Rodennec. Quando se despediram, o conde declarou que tinha o maior desejo de ver a sua casa tornar-se "a casa das crianças".
Foi o início de relações frequentes e cada vez mais íntimas. Apesar-da sua enorme fortuna, os Rodennec eram pessoas simples e levavam vida folgada, mas sem luxo exagerado, gastando em obras caritativas uma grande parte dos seus rendimentos.
Pelas opiniões e pelos gostos, entendiam-se admiravelmente com os Arzen. Não tardou que o notário, dado à literatura nas horas vagas, se entendesse com o conde e o filho, também apaixonados por assuntos literários e dotados de inteligência profunda. A senhora de Rodennec procurava a companhia das senhoras distintas que eram a mulher do notário e sua sogra. Também gostava de atrair a sua casa Armela e Mussia. Quanto às crianças, entravam quando queriam, não só no parque, mas em casa. Quási sempre preso à sua poltrona de enfermo, o sr. de Rodennec, divertia-se infinitamente com as brincadeiras de Josefa e Bobby. Já inteiramente convertido, este não se fazia rogar para seguir a sua amiguinha, e eram agora ambos os grandes amigos do terrível Piloto. Even, muito satisfeito tomava parte nos jogos dos seus jovens vizinhos, dos quais rapidamente se tornou um verdadeiro ídolo, mas sabendo impor-se ao respeito, porque sob uma aparência graciosa, possuía uma grande firmeza e um vivo sentimento do dever.
Era, além disso, um notável carácter, e as qualidades intelectuais e morais, reunidas aos seus dons físicos, justificavam a terna admiração que seus pais lhe votavam.
Nas férias da Páscoa, o licenciamento da Escola Naval por causa duma epidemia reconduziu Francisco à casa paterna. Era um rapaz alto e loiro, magro e nervoso como João, de carácter meigo, espírito sonhador, poeta nas horas de ócio, muito trabalhador.
Entre Francisco e Even estabeleceu-se logo uma simpatia profunda, reconhecendo mutuamente as suas naturezas leais e sérias. Fizeram longas excursões em automóvel para que muitas vezes foram convidados Tug, João e Pedro Dornoy. E, como Even fizesse instalar um jogo de tennis e outros jogos no parque, houve frequentes partidas com Armela e Mussia, a que se juntavam às vezes outros rapazes e raparigas, porque os proprietários da casa das Aves haviam alargado já o círculo das suas relações.
Muito estimado e lisongeado, Even mostrava-se amável com todos, mas reservava a sua amizade para a família Arzen. Ensinava Francisco e Tug a guiar e a montar a cavalo, Mussia no tennis, tocava com Armela, dava conselhos a Mariquinhas sobre os seus estudos literários, confeccionava para Bobby e Zefinha figuras cómicas de gesso, que arrebatavam as crianças em transportes de alegria.
- Meu filho é um enfeitiçador, - dissera um dia o sr. de Rodennec à velha senhora Arzen, quando ela o cumprimentava pela delicada cortesia de que Even usava para com todas as mulheres, novas e velhas.
E Bobby teve um dia esta reflexão, que muito fez rir o mancebo:
- Ainda hoje pergunto a mim mesmo como é que a gente podia aqui viver, quando o senhor cá não estava!
Essas encantadoras relações entre vizinhos, as distracções que se proporcionavam mutuamente, faziam escurecer um pouco certas mudanças que gradualmente se iam produzindo nalguns membros da família Arzen.
A avó, outrora muito benevolente, que apoiava sempre a nora, tornava-se agora mais reservada, censurava isto ou aquilo, mostrava-se severa com Armela, que antes era a sua preferida. Mariquinhas tomava uns ares pretensiosos, a sua susceptibilidade aumentava dia a dia, valendo-lhe frequentes reprimendas, depois das quais se mostrava extremamente despeitada. A preguiça de João transformava-se em indisciplina, e choviam sobre ele as punições no colégio. Do mais velho ao mais novo, o carácter de todos azedava-se pouco a pouco; somente Zefinha continuava a mesma.
Tinha penetrado um germe de discórdia naquela família tão unida. Era ainda coisa insignificante, algumas pequenas fendas na paz familiar; mas, em certos momentos, uns e outros sentiam a sua influência, sem descobrir donde partia o vento maligno que ameaçava a tranquilidade do lar.
Parecia loucura, contudo, acusar Mussia, "esse anjo de Mussia", como dizia a avó, que cada vez se afeiçoava mais à que entrara de novo na família. Mussia tinha uma índole duma igualdade incomparável, sabia mostrar-se alegre, séria ou compassiva, conforme os casos. Era impossível imaginar alguém mais serviçal. Armela tinha disso a experiência. Logo nos primeiros dias da sua chegada, Mussia pediu-lhe que lhe deixasse prestar à avó alguns ligeiros serviços que ela até ali recebera sempre da neta mais velha.
Embora contra vontade, porque esses carinhos constituiam um prazer para o seu coração amorável e reconhecido, não ousou recusar, por delicada bondade, lembrando-se de que era natural que Mussia também quisesse testemunhar a sua afeição à excelente velhinha.
Pouco a pouco, porém, encontrava-se completamente suplantada pela prima. Insinuante e carinhosa, muito dextra, discretamente lisongeira, possuindo uma habilidade maravilhosa para discernir em cada um as disposições de momento, a fim de com elas conformar os seus actos, as suas palavras e a sua fisionomia, insinuara-se em absoluto no coração da avó, em detrimento de Armela, cujos serviços quase sempre eram agora recusados.
E Armela, de coração muito afectuoso, começava a sofrer por se ver posta de lado por quem tanto extremecia. Mas não ousava acusar Mussia.
Esta mostrava-se tão solícita em prestar-lhe serviços! Dizia-lhe com uma ternura tocante:
- Amo-a como se fosse minha irmã, querida Armela!
Para com o tio e a tia, Mussia tinha atenções filiais. Mariquinhas via apenas pelos olhos da prima: João declarava que ela era mais gentil que Armela, que o obrigava a trabalhar; Zefinha, muito gulosa, acarinhava-a para que lhe desse bonbons, que Mussia lhe entregava às escondidas, porque as gulodices raras vezes eram permitidas fora da refeição.
Os refractários eram sempre Tugdual e Pascal.
As lindas histórias da sua prima não conseguiam vencer a reserva do pequeno cego.
Tug, embora houvesse descurado um pouco o seu papel de observador no embevecimento das primeiras relações com seus vizinhos, voltava a desempenhá-lo com a maior atenção, desde que surpreendera um clarão estranho que se escapara dos olhos de Mussia, ao fixar o rubi que Even de Rodennec trazia no dedo.
Por sua vez Micaela, que tinha uma confiança ilimitada no seu amigo Tug, vigiava também constantemente a recém-vinda, sem o dar a perceber.
E foi por isso que ela disse a Tug, num domingo à tarde, emquanto se organizava uma partida de croquet no parque:
- Estive sempre a olhar para Mussia, durante a missa, esta manhã. Tinha um ar tão recolhido, tão piedoso! Distinguia-se mesmo junto de Armela, que é muito fervorosa. Mas, de tanto que olhei para ela, descobri uma coisa curiosa: os seus olhos, que pareciam não abandonar o altar ou o livro, viam tudo que estava à volta dela e fixavam-se constantemente no banco do sr. de Rodennec.
- Ora vejam lá!... Está muito bem, Michon... Mas deves confessar que não foi apenas Mussia a que deixou de estar com atenção à missa!
Micaela corou.
- É verdade! Agora estou sempre a distraír-me com ela. Mas é tua a culpa, Tug, pois foste tu que me tornaste desconfiada.
- Evidentemente, andas empenhada numa boa causa. É bem desagradável ter esta hipócrita em casa, e se um dia a pudéssemos desmascarar!...
- Desmascarar quem? - perguntou Even que avançava para eles, a cujo fino ouvido tinham chegado as últimas palavras.
Tug ficou embaraçado e Micaela corou novamente.
- Alguém que é muito hipócrita, senhor, respondeu o rapaz. - Mas não posso dizer-lhe o seu nome, porque não seria bonito.
Entreabriu os lábios de Even urn sorriso enigmático.
- Não, não me digas nada, amigo Tug, não tenho necessidade de o saber. Mas aprovo-o, porque é um dever desmascarar a hipocrisia, onde quer que ela se encontre...
Micaela, a menina Armela e eu levámo-la para o nosso campo. Tug irá para o da sua prima Mussia.
Tug enfiou o braço no do mancebo, erguendo para ele uns olhos meio sorridentes, meio contrariados.
- Mas é de propósito que me põe a jogar com ela, sr. Even?
- Certamente, para o ensinar a reprimir as suas antipatias.
- Como o sabe?...
O visconde teve um sorriso zombeteiro.
- Não é só você que observa, amigo Tug! Tenho também bons olhos, e mais que uma vez o tem reconhecido - tão bons olhos, como Micaela que esta manhã esteve com muita atenção à missa... a olhar para a menina Mussia.
Soltou uma leve gargalhada, ao ver a cara espantada de Tug e a cor rosada que se espalhou no rosto de Micaela.
- Mas guardarei segredo, nada receie! - acrescentou num tom subitamente sério.
Afastou-se rapidamente na direcção do terreno do croquet, deixando os dois amigos embasbacados.
- Tug, creio que ele é um tanto feiticeiro, - murmurou por fim Micaela, com um certo espanto. -Não voltou esta manhã uma única vez os olhos para o meu lado.
Tug encolheu desdenhosamente os ombros.
- Feiticeiro, que tolice... Mas eu creio que... E incendiou-se-lhe no olhar uma chama de triunfo, emquanto balbuciava aos ouvidos da rapariguinha:
- Creio que a Hipócrita encontrou nele também uma pessoa que não cairá na esparrela!
Da avó a Francisco:
DEMOREI um pouco a resposta, meu querido, à tua amável carta, porque estive doente, como já te informaram. Agora encontro-me quási restabelecida, e saí ontem pela primeira vez, com Mussia, no automóvel dos Rodennec. Insistiram tanto que não pude recusar, embora este modo de locomoção me não inspire confiança, como sabes. Mas o sr. Even conduziu o carro com tão moderada marcha, que estou quase tentada a mudar de opinião.
Gostei muito deste passeio, principalmente por causa de Mussia, que estava pálida e fatigada do trabalho que teve comigo, tratando-me com admirável solicitude. Que encantadora rapariga!
Estava sempre à minha beira, espiava os meus menores desejos e recusava deixar-se substituir por tua mãe ou por Armela, a não ser quando a isso a constrangia.
- Passei tantos anos sem a conhecer e sem poder consagrar-lhe a minha afeição, avozinha! Deixe-me recuperar agora o perdido! - dizia ela.
Que pequena tão feiticeira! Todos gostam dela aqui. A senhora de Rodennec e seu marido fazem-lhe os mais calorosos elogios a respeito da sua gentileza, do seu carácter atraente e da sua fina inteligência. O visconde Even sente prazer ao que parece, em conversar com ela. Todas as nossas relações, afinal, mostram ter por ela a maior consideração. O senhor reitor está maravilhado da sua piedade e as damas de caridade admiram a delicada solicitude com que ela trata a família pobre que foi confiada aos seus cuidados.
Mas vejo agora que te estou falando apenas de Mussia. Teu pai e tua mãe estão bons, teus irmãos também. Armela há tempos que anda um pouco pálida, menos alegre e um tanto nervosa. Não tem a extraordinária igualdade de humor de sua prima. Em compensação, está cada vez mais bonita, possivelmente mesmo um tôdo-nada garrida.
Nota-se uma certa mudança nos seus vestidos, até agora tão simples. Mariquinhas mostra-se também fatigada, irrita-se facilmente e não quer abandonar os livros. Zefinha é cada vez mais gentil e continua a fazer as delícias dos nossos vizinhos, como esse ruim macaquinho, que é Bobby.
As nossas relações com essa encantadora família de Rodennec vão tornando-se dia-a-dia mais íntimas. Nos dias de feriado, Even leva muitas vezes Tug e João a passeio. Ontem foi a vez da tua mãe, das raparigas e dos petizes, que ele conduziu a Vannes, dando uma linda volta. Tive de forçar Mussia a ir também. Não queria abandonarme, a querida pequena!
Não sou mais extensa, meu bom Francisco, porque me sinto ainda um pouco fatigada. Além disso, o doutor Dornoy recomendou-me que não cansasse a vista. Mussia faz-me a leitura; não tem a voz harmoniosa de Armela, mas lê admiravelmente, com muito sentimento e belas inflexões...
Beijo-te ardentemente, meu queridinho. Não te canses muito.
Tua avó, B. ARZEN.
De Tugdual a Francisco:
MEU ALMIRANTE:
Saúde e fraternidade, como diziam os cidadãos da República una e indivisível, primeira de nome, cuja verídica história estou agora estudando. Resolvo-me a pegar hoje na pena para te enviar algumas amostras da minha prosa, visto que te queixas do meu silêncio. Bem sabes, meu velho, que sou muito teu amigo! Mas enfim, já que exiges o meu estilo, vamos lá à obra!
Que há por aqui de novo? Nada, meu amigo, pelo menos para o comum dos mortais. Mas para quem sabe ver!...
Para que falar-te, porém, de semelhante coisa?
Como os outros, achaste que a hipócrita era perfeita. E vais, por isso, chamar-me doido se te afirmar, que em menos dum ano, terá semeado a cizânia por toda a parte.
- Mas que faz ela? -perguntar-me-ás tu.
com a lisonja e a mentira, indispõe a avó contra a nossa mãe e Armela, anima os defeitos de Mariquinhas, de João e de Josefa, infiltra-se cada vez mais nas boas graças de Dona Lazarina, a quem excita contra Micaela, e nas da senhora de Rodennec e de seu marido. Na casa das Aves, não é apenas angélica, é seráfica!
E os ares devotos que ela toma na igreja!... e as suas visitas aos pobres, com um grosso embrulho debaixo do braço, sempre nas horas em que pode ser bem vista! Diz-mo Joana-Maria, que nunca a pôde tolerar e que também a anda vigiando.
Suspeitará que Michon desconfia dela? A verdade é que não perde nenhuma ocasião de a prejudicar a ocultas, mostrando-se na aparência encantadora e afectuosa. Mas é isto que me faz dar sério cavaco! Se ela fosse má abertamente, ainda vá! Mas esta hipocrisia!...
A nossa dona Sapiência torna-se cada vez mais intratável. No outro dia, descobri que ela tinha inveja de Armela. Quando o papá voltou de Vannes, trouxe para a nossa irmã mais velha uma linda gola de renda. Era uma coisa natural, porque Armela, como sabes, é muito boa, muito dedicada a todos nós e auxilia muito a mamã no governo da casa. Pois Mariquinhas foi aos arames!... Mostrou o seu despeito com Armela durante uns poucos de dias. Não obstante, a inveja não era conhecida entre nós. Éramos tão amigos uns dos outros!...
E imagina tu que a avó acha Armela muito garrida, muito presunçosa! Dantes, contudo, era ela mesma que a incitava a vestir-se bem, e lembro-me de a ouvir dizer, no ano passado, baixinho, à mamã: "Como esta pequena sabe enfeitar-se com qualquer coisa! Um vestidinho de chita dá nela o efeito dum vestido de seda!"
Ora bem! Armela não mudou desde o ano passado. É ela quem faz os seus vestidos e chales, e não gasta mais com certeza, porque é muito razoável.
Quem foi, pois, que deu volta a isto? E com que fim?
Ora atende: ontem, domingo, Armela, para ir à missa de festa pôs um chapéu que tinha concluído na véspera. Era de tule preto, com pregueados e laços, ou não sei quê... Ficava-lhe a matar, é o caso! Mariquinhas tinha um igual mas já não era a mesma coisa.
Armela foi, pois, à missa com o seu chapéu. Ao sair, juntamo-nos com a senhora de Rodennec e seu filho. Li imediatamente nos olhos do sr. Even que também ele achara o chapéu bonito. A senhora de Rodennec, por sua parte, cumprimentou Armela e convidou-a para almoçar em sua casa com Mussia, Pascal e Zefinha. Mussia recusou, "para não abandonar a sua querida avózinha". Armela foi, pois, com as crianças, e nós fomos lá ter depois, para passar uma boa tarde na casa das Aves.
Nunca vi o sr. Even tão satisfeito, e Armela não tinha a palidez nem o ar preocupado, que lhe noto há algum tempo. Na volta, porém, a avó quase lhe deu uma descompostura a propósito desse infeliz chapéu! Era já de luto aliviado... e a sua garridice, o seu desejo de agradar faziam-lhe esquecer que a avó e a prima ainda traziam luto pesado...
O caso é que a nossa querida irmã tinha os olhos cheios de lágrimas quando saiu do quarto da avó!
Interroguei-a, e acabou por contar-me a causa do seu desgosto.
- Não sei o que a avó tem contra mim! acrescentou com ar desolado. - Nunca a vi assim!
Não pude conter-me, e, beijando a pobre irmã, exclamei:
- Que é que ela há-de ter? É essa peste de Mussia que lhe mete minhocas na cabeça, porque tem ciúmes de ti, minha querida Armela. Mas defende-te, não consintas que outra ocupe o teu lugar! És boa e caritativa em excesso, é o que é!
Ela olhou-me com ar de espanto.
- Deixas arrebatar-te pela imaginação, Tug!
Na verdade, acusar assim Mussia!...
- Ora adeus! Tu, afinal, minha querida, já começas a desconfiar! Mas, por caridade cristã, não queres deter-te nesse pensamento. Não te assustes, porém; eu vigio, nós vigiamos, e, se acaso tentar fazer-te mal, ou a algum dos nossos, ai dela!
- Estás doido, Tug!
- Sim, sim! Já é conhecido o estribilho! Tug é doido, Tug tem ideias extraordinárias!... Mas um dia se reconhecerá que o nariz de Tug era, apesar disso, uma coisa famosa!
-lá te disse que João se torna também insuportável? Ontem, surpreendi Zefinha a comer bonbons às escondidas. Depois de muito instada, acabou por dizer-me que foi Mussia "que lhos deu, recomendando-lhe que nada dissesse a ninguém, "porque seria um grande pecado".
- É verdade, Tug? - perguntou-me a inocente.
- O que é um pecado é ocultares-te dessa forma! Tu não eras assim reservada noutro tempo, Zefinha, e como isso é feio!
Ela começou a chorar, e eu consolei-a,
contando depois tudo à mamã, que caiu das nuvens, mas não em absoluto, pois que a transformação da avó a seu respeito dava já que cismar.
Pensou primeiro em falar ao papá, mas resolveu-se a esperar mais um pouco, porque estando ele todo o dia fora, e vendo a sobrinha apenas às horas da refeição, talvez se mostrasse incrédulo. Além disso, é necessário também poupar a avó. Mas agora a mamã vigiará de perto as crianças, principalmente Josefa e João, porque Pascal não parece disposto a sofrer a influência de Mussia.
Eis o ponto a que chegamos, meu caro irmão. Há alguma coisa que se dessolda na família. Mas estou contente, ainda assim, com esta aragem de desconfiança que sopra já nalguns. A venda começa a afastar-se, e há-de cair por completo.
Um que me parece ter tão bom faro como este teu criado é o sr. Even. Tenho a impressão de que nunca se deixou embaír pelos ares cândidos da hipócrita, e de que a observa também. Ainda queria saber a razão por que, há algum tempo, ele conversa muito mais com ela quando estamos reunidos. Mas não o faz com o mesmo modo que tem para Armela.
Cada vez mais gentil, o nosso amigo. Estimo-o como se fosse um velho conhecimento.
Temos ambos palestras demoradas, e às vezes muito sérias, acredita. apesar da sua idade, é já um sábio.
Falo com ele em alemão, e tenho aprendido mais nestes dois meses do que em cinco anos de lições dadas por esse bom podre Mulbach, que em vão se esfalfa para nos fazer entrar na cabeça essas abomináveis palavras germânicas. O sr. Even, além de muitos dialectos índios, fala muito bem o inglês e o russo. Esta última língua foi-lhe ensinada por um secretário de seu pai, o sr. Arnzof, neste- momento ausente por motivo de saúde, mas que deve retomar o seu posto no princípio do estio.
Mas que carta, meu almirante! É pior que um jornal! Tenho de pôr-lhe dois selos, e se Mussia dá por isso, dirá com o seu mais inocente sorriso:
- Tug dá bons lucros ao correio, a palestrar com seu irmão.
Porque é preciso que saibas também, meu caro, que eu sou agora acusado de ser muito "gastador.
Hein!
É duma força, a tal menina... E está albergada em nossa casa, e recebe lindos presentes da avó!...
Mas tenho de ficar por aqui! Há ainda tanta coisa cá dentro, que nunca mais acabaria. Quando voltares, conversaremos à vontade. Faço-te a minha continência, meu caro Francisco, e abraço-te cordialmente.
Teu irmão muito amigo,
Tug".
A DISTRIBUIÇÃO de prémios coroou com êxitos numerosos o ano escolar de Tugdual, cujo trabalho era sempre sério e regular. As composições de João foram, pelo contrário, tão detestáveisque o director do colégio se viu obrigado a censurar o rapaz na presença do pai. No regresso a casa, o sr. Arzen admoestou-o também severamente, mas João retrucou pela primeira vez com tal indelicadeza que se tornou necessária uma punição exemplar: um dia inteiro de retenção no quarto e, - foi essa a parte mais sensível do castigo, - a privação do passeio que se devia realizar alguns dias depois a Belle-Isle, a bordo do Djalma, que era o iate dos Rodennec.
Havia já muitos dias que o navio cruzava nas aguas de Morbihan. Even projectava realizar excursões frequentes ao longo da costa, e fora Tug, em homenagem aos seus triunfos escolares, quem indicara o primeiro passeio.
Por uma brumosa e fresca manhã, o automóvel conduziu a Vannes o sr. Arzen, Armela, Mussia, Mariquinhas, Micaela, Tugdual, e Pedro. Embarcaram logo e o Djalma levantou ferro, emquanto Even mostrava aos seus hóspedes o interior do iate, pequena maravilha de elegância e conforto.
Desde que atingiram, porém, o mar alto, começou o enjoo a manifestar-se nalguns, tendo Armela e Michaela de refugiar-se nos lindos beliches, onde ficara à sua disposição uma criada de quarto, índia. Não tardou também que o sr. Arzen, Mariquinhas e Pedro abandonassem a coberta.
Só Mussia e Tugdual resistiram intrepidamente. De mãos atrás das costas, Tug passeava por toda a parte, conversando com a marinhagem e interessando-se pela manobra.
Quanto a Mussia, permanecia no spardek, sentada numa grande cadeira de junco, em que a sua delgada estatura desaparecia, e conversando com Even, que se conservava de pé junto dela, de mãos apoiadas nas costas duma cadeira.
Enquanto ia e vinha, para não perder o hábito, Tug observava sua prima. Notou, uma vez mais, que nunca ela tomava ares tão seráficos e embaidores, como quando estava na presença do visconde de Rodennec. Naquele dia, principalmente, observou qualquer coisa de extraordinário na fisionomia dela, sem poder, contudo, definir às suas impressões.
Even conversava alegremente, e Mussia replicava-lhe a sorrir, com esse sorriso cândido e suave que lhe era habitual, mas agora mais açucarado que nunca, no entender de Tug. Pouco a pouco, a fisionomia transformou-se, e fez-se melancólica e tocante. Even, tornando-se também sério, mostrava-se extremamente interessado e atento.
- Que lhe estará a contar a hipócrita? pensou Tug, intrigado e inquieto, sem saber porquê.
Dirigiu-se ao spardek, com a maior naturalidade possível. Ouviu então a voz de Mussia, patética e trémula, dizendo:
- Sim, a minha existência foi até aqui triste e dolorosa, mas o futuro não me deve ser mais propício.
- Porquê? Tem a mais encantadora família que é possível imaginar-se.
- Decerto, são todos muito bons para mim, e de todos gosto imenso! Mas não posso viver sempre à sua custa, preciso de escolher uma posição... E a necessidade de viver entre pessoas estranhas será ainda mais penosa, por deixar parentes tão afeiçoados, tão cheios de solicitude.
A sua voz tornava-se débil, parecia que a embargavam as lágrimas.
- Quem sabe? Talvez consiga casar-se antes!
Fez um movimento de espanto, erguendo para Even os seus olhos azues, naquele momento impregnados duma resignação angélica.
- Casar-me! Sem dote!... Oh! não penso nisso, acredite-me!
- Mas há almas desinteressadas, minha senhora...
- São muito raras!... Ainda se eu tivesse a beleza de Armela, talvez...
- A beleza não é tudo, para um homem sério.
- Certamente! Mas Armela tem outras qualidades!
Não me canso de admirar a sua habilidade para tudo, eu que sou uma desastrada. É inimitável no arranjo dos seus vestidos. Sente nisso, aliás, o seu maior prazer. Gosta de emoldurar lindamente a sua beleza, e julgo que apreciaria muito uma existência luxuosa e mundana. Infelizmente, não é em casa de seu pai que a poderá encontrar. Ser-lhe-ia preciso arranjar um casamento rico... E pareceu-me compreender já que pensa nisso muito, sem embora escolher marido.
Desta vez era demais. Tug, indignado, avançou na intenção de lançar em rosto a sua perfídia à imprudente mentirosa. Mas Even volveu os olhos para ele, e o rapaz ficou mudo. Nesse olhar, acabava de ler uma ordem de se calar.
Porque? Tug não soube explicar o facto, mas teve a intuição de que Even punha em prática naquele momento a execução dum plano. Ora Tug tinha uma confiança absoluta na lialdade e inteligência do seu grande amigo, e ficou sossegado e secretamente satisfeito, com a ideia de que a pérfida Mussia ia ficar lograda.
-Então, amigo Tug, essa valentia não vai ao fundo? - perguntou o sr. de Rodennec, sorrindo.
- Isso sim! Parece que nasci para marinheiro, e, se não tivesse de continuar a descendência dos Arzen notários, iria juntar-me a Francisco, a bordo.
- Mas então vai sacrificar-se, meu caro Tug?
- De nenhum modo. O papá deu-me liberdade, dizendo: "Se o notariado te desagrada, escolhe segundo os teus gostos e aptidões. Nunca te forçarei a abraçar uma determinada carreira. "Para dizer a verdade, o ofício de tabelião não me entusiasmava, positivamente, mas, emfim, também me não inspirava grande repugnância. E então, sabendo que era esse o íntimo desejo de meu pai disse-lhe: "Serei notário, papá... "E é desta maneira, sr. visconde de Rodennec, que Tugdual Arzen terá a honra e o prazer de lhe oferecer os seus serviços, daqui a alguns anos, para quaisquer actos que se digne confiar às suas notas.
Even pôs-se a rir, mas brilhou-lhe nos olhos pretos um lampejo de emoção.
- É um excelente rapaz, Tug, - disse-lhe batendo-lhe no ombro. E creio que os seus clientes se entregarão nas mãos dum perfeito homem de bem.
- Mas todos os Arzen teem sido, senhor! disse Tug com altivez. - Só tenho que seguir o seu exemplo, é muito simples.
- Muito simples, com efeito, e só terá que dar-se por feliz, Tug. O testemunho duma boa consciência é ainda o que há de melhor-... Não é verdade, minha senhora?
- Oh! decerto! - disse Mussia num tom concentrado. - A honestidade e a rectidão são virtudes admiráveis; mas quantos, infelizmente, as põem de lado, como uma bagagem embaraçante!
- Oh! sim, quantos! - suspirou Tug, erguendo para o céu um olhar patético.
Even, voltando-se brevemente, mordeu os lábios para evitar uma gargalhada, emquanto Mussia envolvia o primo num rápido olhar de desconfiança.
- vou ver o que é feito de Armela e Mariquinhas, - disse ela erguendo-se. - Essa pobre Armela não tem resistência para as viagens por mar. Receio que o abalo lhe seja desfavorável, no estado de saúde em que se encontra.
- Mas como? Então ela está doente? - perguntou Even com alguma vivacidade.
- Sim, há algum tempo que tem mau aspecto. Ainda não deu por isso?
- com efeito, mas não deve ter importância; talvez uma crise de anemia...
- É possível... - disse Mussia em tom hesitante. - Mas tem necessidade de tratar-se, a pobre amiga... Uma irmã de sua mãe não morreu tuberculosa, Tug?
O rapaz arregalou os olhos.
- Não é verdade! Como imaginou isso? A tia Henriqueta, que tinha mais dez anos que a mamã, morreu em resultado duma escarlatina que apanhou ao tratar das crianças pobres.
- Deveras? Julguei compreender o contrário, segundo o que me disse a avózinha...
Mas, voltando a Armela, digo que ela tem necessidade de se tratar. É bastante fraca. Ontem ficou esbaforida ao subir as escadas... Bem, vou ver os enfermos! Até já!
Even e Tug viram-na afastar-se, muito esguia franzina, com o seu grande véu de tule preto a flutuar-lhe em volta dos cabelos cor de linho.
Quando desapareceu, o jovem ergueu para o sr. de Rodennec o rosto preocupado.
- É verdade que Armela se mostra bastante fatigada. Receio que ela se aflija com...
- com quê-perguntou Even com vivacidade.
Tug hesitou um momento, mas depois resolveu-se...
- com o facto de ver que a avó a troca por Mussia! A nossa Armela é muito sensível, e isso causa-lhe um grande desgosto, tanto mais que a avó se torna para com ela injusta e quase ríspida.
Atravessou os olhos sombrios de Even um relâmpago de irritação.
- Mas então essa víbora fá-la sofrer? - disse num tom de cólera surda.
Ao ver o olhar estupefacto que para ele se levantava, pegou nas mãos de Tug.
- Ouça-me, meu amigo! A expressão escapou-me, peço-lhe que a ninguém a repita, pelo menos até nova ordem. Sei que desconfia de sua prima, e tem razão. Desde o primeiro dia que tive a intuição do que ela era. Tenho-a estudado constantemente, e cada vez se radica mais no meu espírito a convicção de que é a personificação da perfídia, e de que não hesitará em empregar os meios para alcançar o seu fim. Esse fimr tenho eu medo de o compreender... Nunca o atingirá, mas receio por sua irmã, e estarei inquieto até ao momento em que ela for desmascarada diante de todos.
- Mas que receia? -balbuciou Tug aterrado.
- Tudo! É uma dessas criaturas perigosas que nenhuma consideração moral faz deter, que não recuam seja deante do que for para conseguir o que pretendem. Mas como fazer compreender isto a seus pais, e principalmente a sua avó? Nenhumas provas tenho, e não passo mesmo dum estranho, e demais muito novo. A si tratam-no como criança, embora haja sido neste caso o mais perspicaz da família. Só nos resta continuar a nossa vigilância, sem pôr sua prima de sobre-aviso. Por seu lado, não lhe dê a perceber que desconfia dela... Está entendido, Tug?
- Perfeitamente, senhor... Mas... chega a assustar-me!... Julga acaso que ela é capaz de fazer algum mal a Armela?
Uma forte emoção fez empalidecer e estremecer o rosto de Even.
- Espero que não! Se o suspeitasse, nada me deteria para prevenir o sr. Arzen. Mas deve contentar-se com manobras surdas para fazer decair Armela no conceito da avó!... e no de outra pessoa... São manobras que temos de frustar à força de paciência e de habilidade.
Tug apertou fortemente as mãos de Even.
- Consigo, havemos de consegui-lo, sr. visconde! Que pena os outros serem cegos!
- É que ela é de grande força, Tug! Só um espírito de observação muito apurado pôde penetrar as suas intenções! Mas, quanto a nós, é coisa assente, não é verdade?
- Oh! sim! E também quanto a Micaela, e ainda talvez a Joana-Maria!
- Ah! ah! também a vossa velha e resmungona criada! É um bom auxílio nesta ocasião... Bem, ponhamos este assunto de lado, Tug. Parece-me que temos à vista Belle-Isle!
Sob um ligeiro véu de bruma, mostravam-se, com efeito, as altas penedias da grande ilha bretã. Em volta do iate, o mar estava coalhado de barcos de pesca, e as vagas agitavam incessantemente as bóias flutuantes que marcam os pontos em que estão imersas as redes para apanhar a lagosta. À medida que se aproximavam do molhe, o mar tornava-se calmo e coloria-se de azul sob uma atmosfera muito quente, cujo ardor era temperado por uma brisa fresca, com um sabor a sal.
Os doentes apareciam agora na coberta. Para o-sr. Arzen, Armela e Mariquinhas, o enjoo limitara-se a um simples mal-estar. Embora um tanto pálida, mas sorridente, Armela declarou a Even, que se informava do seu estado com solicitude, que se sentia já forte e disposta a explorar a ilha.
Mussia, aproximando-se, passou-lhe carinhosamente o braço em volta do pescoço.
- Não se vá fatigar, querida Armela. O ar do mar deve excitá-la, mas depois sentirá a reacção.
- Não tem dúvida! Sinto-me bem e absolutamente restabelecida. Foi coisa sem importância.
- Tenha cuidado! insistiu ainda a voz suave de Mussia.
Atravessou o olhar de Even um clarão de impaciência, logo extinto.
- Vamos primeiro restaurar as forças, - disse ele alegremente. - Depois desembarcaremos e veremos então o que é possível fazer.
O iate passava junto do pequeno farol que assinala a ponta da ilha. Entrou no porto de Falais, a gentil capital de Belle-Isle, edificada no rebordo dum fiord em miniatura, muito pitoresco. Num alto promontório eleva-se a cidade de Vauban. Nas diversas bacias do porto viam-se alguns barcos de pesca, mas o maior número deles, haviam saído em busca do atum e da sardinha.
Even conduziu os hóspedes à sala de jantar, onde os aguardava um lanche delicado, a que todos fizeram as devidas honras, incluindo mesmo Pedro Dornoy, que tinha sido o mais sensível ao enjoo. Em seguida, os excursionistas desembarcaram, e, depois de reservarem os seus quartos no hotel, pois só deviam regressar no dia seguinte, foram numa bela disposição de espírito visitar a pequena cidade e as principais curiosidades da ilha.
Belle-Isle parece muito agreste de fora, mas é no interior extremamente fértil e de aspectos variados. Numa vertente encontra-se a costa bravia, contra a qual as ondas se precipitam furiosamente, escavando as rochas em recortes fantásticos e imprevistos. Esta parte do planalto, varrida pelos borrifos salinos é estéril, sendo raras as aldeias. Mas o contraste é absoluto na vertente oposta. Ali, ao longo de vales estreitos, estendem-se campinas verdejantes cercadas de árvores, erguem-se risonhas aldeias no meio de encantadores vergéis e culturas vigorosas. Os loureiros e os mirtos, o mar calmo de tons azulados, a amenidade da temperatura dão a ilusão da natureza meridional.
- Que preferem ver primeiro? - perguntou Even aos seus hóspedes. - A costa bravia ou a costa azul?
Armela, Tugdual e Micaela optaram pela primeira, mas o sr. Arzen, Mussia, Mariquinhas e Pedro prefeririam a segunda.
- Vejamos hoje primeiro a costa bravia, - disse Even. - Amanhã antes de partir, desde que nos levantemos cedo, teremos tempo de fazer uma pequena excursão do outro lado... Que diz a isto, senhor Arzen?
- Acho muito bem, - aprovou o notário. - Dizem na verdade que a costa bravia é muito bonita, particularmente nas proximidades do farol de Bangor.
Tug, que estava perto de Mariquinhas, ouviu-a murmurar:
- Como é esse o gosto de Armela, toca a sacrificar o dos outros.
Ele inclinou-se e murmurou-lhe ao ouvido:
- Cala-te aí, terrível invejosa! Lembra-te das Vezes que ela tem sacrificado os seus gostos pelos nossos!
Mariquinhas respondeu com um olhar raivoso e voltou costas ao irmão. Mas Tug ainda teve tempo de lhe cochichar em tom zombeteiro:
- Toma por modelo essa "angélica" Mussia! Olha para o seu ar sorridente e satisfeito, como se não tivesse também optado pela costa azul!
De facto Mussia, com a mais requintada amabilidade, declarava-se encantada por visitar primeiro a costa bravia, pois que era esse o desejo da sua querida Armela.
- Eu não quero impor o meu gosto a ninguém, - protestou vivamente Armela. - Respondi simplesmente à pergunta do sr. de Rodennec. Terei muito prazer, contudo, em ver também a costa azul.
- Muito bem! vê-la-emos amanhã, minha senhora. Está resolvido que hoje visitaremos a outra parte, - disse tranquilamente Even.
Ninguém lamentou a escolha depois de ver o pitoresco local da ponte dos Poldros, a gruta do Boticário, o farol de Bangor, que se eleva numa região terrível para os navios e o porto de Donant, praia imensa de areia, cercada de soberbos rochedos a pique.
No decorrer da excursão, produziu-se um incidente, que poderia ter consequências trágicas.
Emquanto os passeantes repousavam um momento, Mussia e Tug, sempre infatigáveis, exploravam os rochedos. A rapariga avançava com a ligeireza dum cabrito montez, muito ágil e graciosa.
De repente, escorregou numa rocha. Tug chegava nesse momento junto dela. Sustentou-a com mão já vigorosa, até que ela conseguiu restabelecer o equilíbrio.
Estava lívida e sacudia-a uma tremura.
- Obrigada, Tug!
Queria pegar-lhe nas mãos, mas ele retirou-se, dizendo-lhe com um encolher de ombros:
- Oh! não vale a pena!
- Como é que não vale a pena? Salvou-me a vida, meu caro Tug.
Ele sacudiu novamente os ombros, rosnando qualquer coisa entre-dentes. Depois afastou-se, pulando por entre os rochedos, sacudindo nervosamente a cabeça por instantes.
O incidente não passara despercebido. Além disso Mussia, ao chegar junto dos outros apressou-se a contá-lo com uma emoção que lhe enchia de lágrimas os olhos. Felicitaram Tug, que recebeu os cumprimentos com ar desprendido, dizendo mais uma vez que "não valia a pena".
No dia seguinte, quando o iate abandonou a ilha, Even encontrou-se por um momento só com o seu jovem amigo. Tug, pensativo, de fronte enrugada, olhava as altas penedias douradas pelo sol.
- Em que pensa, meu amigo? - perguntou Even, pondo-lhe a mão no ombro.
Tug levantou para o mancebo o seu olhar recto, naquele instante um pouco duro.
- perguntava a mim mesmo se não fiz mal em impedir que ela caísse.
- Tug, julgo que não fala seriamente?
- Palavra que sim!
- Ora adeus! Não é você, tão honesto e bom cristão, que deve lamentar ter cumprido o seu dever!
- Mas penso justamente se seria esse o meu dever! Ora veja! Ela vai certamente fazer muito mal em nossa casa! E então, se...
- Não podemos ser os juizes, meu pobre amigo!
O rapaz suspirou:
- Sim... mas acredite que dormi esta noite muito mal, por causa disso.
- Convença-se, Tug, de que nunca devemos lamentar ter cumprido o nosso dever, sejam quais forem os acontecimentos que daí resultem...
Além disso, não deve preocupar-se excessivamente com sua prima. Ela é falsa, destituída de escrúpulos, mas seria pouco razoável e nada caritativo levar as coisas ao extremo. Vigie-a, mais não é preciso... Depois, não será lícito esperar que o exemplo de sua mãe e de sua irmã, tão boas e tão liais, consiga com o tempo exercer sobre ela uma salutar influência? Tug meneou a cabeça.
- Desconfio bem que não! As hipócritas não mudam facilmente. Conhece acaso a senhora Gradu?
- Sim, vi-a uma vez em casa dos Dornoy...
Uma mulher muito alta, magra, com um perfil um pouco de cabra, cujo sorriso melífluo é extremamente desagradável.
- Isso mesmo! Pois é também uma hipócrita. Vem a nossa casa dizer à mamã e a Armela as coisas mais amáveis que é possível imaginar, beija-as, elogia-as, mas logo que sai, muda de tom, nós somos todos criticados, não valemos um chavo.
Julgo que apesar de feia, tem inveja de Armela.
- É possível. Mas há infelizmente no mundo muita gente dessa espécie, meu caro Tug. O essencial é não nos deixarmos enredar.
Belle-lsle desaparecia pouco a pouco numa bruma loira. O mar tomava tons mais glaucos, as vagas engrossavam, fazendo jogar o elegante barco. Na popa, Mussia conservava-se de pé, junto de Armela.
O olhar de Even dirigia-se para as duas donzelas. Poisou com suavidade em Armela, depois desviou-se para Mussia... E por entre os lábios perpassou-lhe uma palavra que ninguém ouviu:
- Traidora!
HAVIA essa tarde grande conciliábulo na sala de estudo, onde se tinham refugiado as crianças, que a chuva obrigara a abandonar o jardim. Estavam todos reunidos, incluindo os três Dornoy. Armela presidia à reunião, que tinha por fim resolver a forma de festejar o aniversário da avózinha, o qual se celebrava na semana seguinte. João havia emitido já algumas ideias extravagantes de que tinha a especialidade, sendo contraditado por Tugdual, que tomava muito a sério o seu papel de vice-presidente.
- Poderíamos desempenhar uma tragédia de Corneille, - aventou Mariquinhas, que na véspera fora felicitada diante do curso, por ter Tecitado sem omissões uma cena completa de "Horácio".
Seus irmãos soltaram-lhe uma gargalhada na cara.
- Mas então, pequena, julgas acaso que te vamos ajudar a massacrar diante de testemunhas esse pobre Corneille? - exclamou Tug.
"No outro dia estavas a gritar no quarto as imprecações de Camila, o que me fez lembrar a senhora Bichonneau, quando berra para o garoto:
"Ah! Ivonnick, grande tratante, és a desonra da família! Ou deixas de andar a rebolar-te no regato, ou levas uma boa surra!"
Uma gargalhada unânime acolheu esta reflexão de Tug, feita no tom cáustico e sonso que o caracterizava. Mariquinhas, porém, tornou-se cor de púrpura e levantou-se bruscamente.
- Está muito bem, arranjai-vos lá como quiserdes, eu desinteresso-me disso em absoluto, - disse com voz trémula de irritação.
Armela segurou-a pelo braço.
- Não sejas tão sensível! - disse-lhe num tom de suave censura. - Os gracejos de Tug não teem má intenção!
- Para mim teem-na sempre! Procura todos os pretextos para me vexar e arreliar!
- Não é difícil, porque tudo te irrita, amável dona Sapiência! - volveu Tug - Mas, enfim, como estamos aqui reunidos em honra da avózinha, façamos as pazes e continuemos o estudo dos nossos projectos.
- Não precisais de mim, - continuou Mariquinhas com teimosia. - Fazei o que entenderdes. Eu, por minha parte, recitarei um pequeno diálogo com Mussia, que sabe também recitar versos.
- Perfeitamente, arranja-te lá com a tua Mussia; representai ambas a comédia, é coisa com que ela se ageita lindamente!
- Que bicho te mordeu, Tug? - exclamou Armela.
Ele encolheu os ombros.
- Não faças caso; é que às vezes tenho comichões na língua... Mas que dizíamos nós? Que é que tu propões, Micaela?
- Um fogo de artifício, - respondeu a pequena, emquanto Mariquinhas saía majestosamente.
- Sim, não está mal, - aprovou Tug.
- Haveria uma grande peça, com a sra Arzen no meio, - acrescentou Bobby.
- Como é isso? - perguntou Armela.
- Sim, como no fogo de artifício que foi queimado pelo S. Pedro. No meio dos fogos, que giravam, havia a figura do santo, com as chaves na mão.
Armela pôs-se a rir.
Não seria fácil de arranjar isso para a avó, meu caro Bobby. Mas acho que o fogo de artifício ficava bem a fechar o dia, tanto mais que os nossos vizinhos jantarão em nossa casa. Pascal recitará a pequena poesia de Francisco, Zefinha a fábula do Lobo e o Cordeiro.
- E eu também direi qualquer coisa em honra da senhora Arzen, - declarou Bobby. - Que poderei eu dizer, Armela?
- Primeiro que tudo, é preciso falar em bom francês, Bobby... Que aprendeste na tua aula?
- Muitas coisas, - disse Bobby com importância. - O Cabo de Esquadra... ou então os Peixes vermelhos... ou ainda a Rã que se quer fazer mais gorda do que o boi ou mesmo a Raposa e o corvo...
- Alto, isso é muito bom para Mussia e Mariquinhas, - interrompeu o incorrigível Tug.
Hei-de lembrar-lhes que escolham esse trecho... Bem, mostra lá o que sabes, para vermos o que serás capaz de fazer, meu petiz!
Mas Bobby, rubro como a crista dum galo, ergueu-se repentinamente.
- Eu não sou um petiz! - exclamou com indignação. - Tu é que és um... um...
Nenhum qualificativo bastante forte lhe acudia à memória. De repente, porém, veio-lhe à lembrança qualquer conversa ouvida e não compreendida, pois concluiu em tom esmagador:
- Um anarquista!
Ficou muito penalizado, contudo, ao ver que Tug, João e Micaela se torciam de riso, emquanto Armela empregava grandes esforços para se manter séria.
- Ora é isso mesmo, meu homem! - arquejou Tug. - O rapazote tem boas ideias!
- Infelizmente para Bobby, Dona Lazarina, que naquele momento saía do salão, onde a senhora Arzen lhe tinha dado uma receita para conservas de feijões, ouvira e compreendera que seu sobrinho estava sob a influência duma dessas perrices a que era atreito. Entrou na sala de estudo seguida de Mussia, que a acompanhava.
-Já vejo que Bobby fez alguma das dele.
- disse com voz seca. - Esta criança é insuportável.
- Não tem nenhuma importância, minha senhora! - explicou rapidamente Armela. - Foi um ligeiro movimento de susceptibilidade de que Bobby já está arrependido, tenho a certeza disso.
- Como é indulgente, querida Armela, - murmurou Mussia. - Torna-se por essa forma adorada pelas crianças, mas não é esse o melhor processo de as educar.
- Certamente que não! - apoiou Dona Lazarina.
Não percebe nada disto, Armela, só sabe animar estes indisciplinados... Volta para casa, Bobby, ficarás esta noite privado de sobremesa, e amanhã não virás brincar para aqui.
Era ferir o pequeno nos pontos mais sensíveis. Lançou-se nos braços de Armela e desatou em soluços.
- Sim, sim, hei-de vir amanhã, - balbuciou ele. - Diga, Armela, virei?
- Obedece primeiro a tua tia, Bobby, aconselhou a donzela num tom de firmeza suave,
- e talvez que amanhã ela te perdoe, se te mostrares mais razoável.
- Ainda bem que a senhora Dornoy não tem a sua fraqueza, minha querida, - acrescentou Mussia com meiguice.
- De facto, não devem contar amanhã com Bobby, - volveu Dona Lazarina com um modo implacável. - Retira-te imediatamente, Bobby, se não queres que seja aumentado o teu castigo.
A pequena Josefa, de faces rubras e olhos brilhantes, colocou-se diante dela.
- É muito má, a senhora! - gritou com voz sibilante.
Zefinha, que quer dizer isso? - atalhou Armela com severidade. - Pede imediatamente perdão à senhora Dona Lazarina!
Josefa voltou a cabeça, declarando:
- Nunca!... Isso nunca!...
- Nesse caso, serás privada esta noite de sobremesa, como Bobby.
Então a pequena bradou triunfalmente para o seu amiguinho, que se retirava de cabeça baixa:
- Vês tu, Bobby? Seremos tratados da mesma forma!
Mas Bobby, arreliado, resmungou:
- És uma tola! Se te dessem a sobremesa, guardavas-me para amanhã metade, percebeste?
E Zefinha ficou esmagada pelo espírito prático do mestre Bobby, que lhe revelara a inutilidade dum sacrifício para ela tão meritório.
Mussia e Armela foram acompanhar à porta Dona Lazarina. Pedro, de mãos nos bolsos, via cair a chuva. Zefinha esfregava os olhos com força, porque pela porta entreaberta, lhe chegava um perfume delicioso. Quando expontaneamente se associara ao castigo de Bobby, não sabia que naquela noite haveria doce de chocolate à sobremesa! Se assim fosse... estaria quietinha, aguardando melhor ocasião para censurar Dona Lazarina.
E oxalá que Joana-Maria se não lembrasse de fazer pastéis de chocolate... o nec plus ultra para Zefinha!
Tug, escarranchado numa cadeira, reflectia, de olhos no teto. Micaela contemplava-o, impressionada com a sua seriedade.
Mas ele inclinou-se de repente para a rapariguinha e cochichou-lhe:
- Foi devido a ela que Bobby apanhou aquele castigo!
- Ela, quem?
- A Hipócrita, sempre! Dantes a tia Lazarina atendia muitas vezes Armela, que apreciava pela sua compostura e sensatez. Agora, a outra anda também a minar por esse lado, e a nossa irmã mais velha é acusada de nos estragar com mimos, de vos ser prejudicial, a ti e a Bobby.
- Talvez tenhas razão! -disse Micaela, visivelmente chocada pela sagacidade de Tug. - Mas a verdade é que minha tia se mostra mais severa connosco depois que conhece Mussia.
- Então, já vês! É preciso abrir os olhos, digo-to eu, porque...
Interrompeu-se. Armela e Mussia voltavam para a sala de estudo.
- Que segredinhos eram esses com Micaela, Tug? - perguntou Mussia, com ar sorridente.
- Coisas muito interessantes!
- E não se podem conhecer?
- Impossível!... Segredo de Estado! - afirmou Tug com solene gravidade.
Claro.
É preciso metê-lo na diplomacia, meu.
- Não me devia dar mal. Mas o pior é que está à minha espera o cartório. Em vez de pôr de acordo o meu país com os outros Estados, terei de reconciliar os herdeiros quando eles andarem desavindos por causa do pecúlio. E o papá diz que a coisa não é tão fácil como parece, porque a humanidade é muitas vezes vil e perversa.
Ressoou um toque de campainha.
- Não se incomode, eu vou! - disse Tug, avançando rapidamente para o vestíbulo.
Abriu a porta e soltou uma exclamação de regosijo.
- O sr. de Rodennec! Que felicidade! Vai dar-nos algumas ideias para a festa da avózinha!
- Se for capaz disso, não me furtarei, Tug. Mas vinha falar com seu pai...
- O papá só deve voltar ao fim da tarde. Creio que foi fazer um testamento para as bandas de Plouernac. Mas se Camélia o puder substituir, esse está no escritório...
- Não, esperarei, Tug. Dizia então?...
- Mas entre, estamos todos lá dentro... excepto Mariquinhas e Bobby, que fizeram tolices.
- Como, também Mariquinhas?
- É verdade! É uma coisa que lhe acontece como a todos nós! - disse Tug filosoficamente. - Deu-lhe a mosca por eu não cair em êxtase diante das suas imprecações...
- Mas que quer afinal dizer com isso, Tug?
-Tolices também, segundo creio, - interveio Armela, que aparecia no limiar da sala de estudo. - Como passa o senhor seu pai, sr. visconde? - acrescentou, estendendo a mão a Even que se inclinava.
- Muito melhor, minha senora. O clima da terra natal realiza maravilhas. Há muitos anos que instávamos com ele para que viesse, mas receava que minha mãe sentisse nostalgia das índias.
- E nada disso aconteceu, segundo creio.
- Felizmente. Minha mãe dá-se muito bem aqui... e encanta-a principalmente o facto de ter vizinhos tão amáveis.
- Mas que geito o senhor tem para fazer cumprimentos! - declarou Tug. - Só há a notar que são muito sinceros, o que não acontece com os de toda a gente.
- Tug não perde ensejo de fazer reflecções deste género, - disse Armela sorrindo- Mas visto que meu pai não está, não quer vir até ao salão, onde deve encontrar-se agora a avózinha?
- Terei muito prazer em ir cumprimentar a senhora Arzen. Mas parece que antes solicitam o meu concurso para a organização duma pequena festa...
- Tug é indiscreto! Não se incomode com semelhante coisa.
- Gostaria até muito de contribuir para a celebração do aniversário da sua avó, por quem tenho a maior consideração.
- Se assim é, venha para a sala das deliberações, - disse jovialmente Armela.
Zefinha precipitou-se para o mancebo e disse-lhe num tom meio carinhoso, meio imperativo:
- Ora faça favor de me pegar nos braços, sr. visconde.
Pegou nela como uma pena e pô-la ao colo.
Então Zefinha colando-lhe a boca aos ouvidos, desabafou a grande novidade:
- Estou privada de sobremesa!
- Como! como! Acho isso muito extraordinário, Zefinha!
- É verdade, para que Bobby não ficasse sozinho.
- Ah! Bobby está privado de sobremesa Que fez ele então?
- Teve uma pequena zanga. A Dona Lazarina surpreendeu-o e castigou-o. Amanhã, não virá brincar connosco. E então, para ter o mesmo castigo, eu disse à Dona Lazarina que ela era muito má, e Armela privou-me também da sobremesa.
- Ah! bem, foi a menina Armela que... Mas, pelo facto de o seu amiguinho ter uma perrice, não era motivo para se mostrar pouco delicada com a Dona Lazarina. A punição é bem merecida.
- Tanto mais que se recusou a pedir perdão, - acrescentou Armela.
- com efeito, isso é ainda muito maisgrave.
Se soubesse disso, não teria pegado em si ao colo, Zefinha, porque não gosto das meninas desobedientes.
Josefa, muito corada, baixava os olhos, que estavam cheios de lágrimas. O aspecto de Even era severo.
- Ouça-me: se me prometer que irá logo com toda a delicadeza pedir perdão à Dona Lazarina, rogarei a sua irmã que lhe levante o castigo... mas por esta vez apenas, porque, se voltar a fazer o mesmo, não poderá contar mais comigo.
- Pois sim... irei...-balbuciou Josefa.
- Muito bem, veremos logo isso, e, quando estiver cumprida a penitência, pedirei o seu perdão... Mas então, amigo Tug, de que se trata?
- Queríamos arranjar qualquer coisa que fosse bonita para a festa da avózinha. Pensámos já num fogo de artifício...
- Está bem.
- Depois as crianças recitarão qualquer coisa. Mariquinhas também... com Mussia, ao que parece.
A rapariga fitou-o com espanto.
- Ela nada me disse, Tug.
- Isso pouco importa. Se meteres a mão no saco, hás-de tirar de lá qualquer coisa, - retorquiu Tug com bastante irreverência.
Mas os outros também querem fazer figura... Hein! meu velho Pedro, que me dizes tu? acrescentou com uma pancadinha amistosa nas costas do seu pacífico amigo.
Pedro mostrou-se aterrado.
- Oh!... eu não sei recitar nada! Atrapalho-me logo... e é uma coisa que me faz muito calor...
- Poremos gelados à disposição de sua excelência... e uma tina para se refrescar, - disse Tug com ironia.
Todos riram, incluindo Pedro, cuja excelente natureza plácida nunca se formalizava com os gracejos do seu amigo.
- Tratemos agora do caso a sério! - propôs Even, sentando-se na cadeira que Armela lhe indicou, em frente da grande mesa de trabalho, agrupando-se todos à volta dele. - Que diriam duns quadros vivos?
- Bela idêa! - acudiu Tug. João fez estalar os dedos.
- E representaríamos qualquer coisa patriótica, sr. visconde?
- Sim, João, com certeza. Depois, procuraríamos uma cena bíblica em que pudéssemos fazer entrar Pasca! e Zefinha... Mas onde está a nossa Zefinha?
Micaela correu à porta, que tinha ficado aberta e chamou:
- Zefinha!.. Zefinha!
Ouviu-se um passinho hesitante, depois apareceu Josefa com ar sorridente.
- Onde estavas tu? - perguntou Armela.
- Na cozinha?
- E que fazias lá?
- Fui perguntar a Joana-Maria porque é que cheirava tão bem a chocolate... E está a fazer pasteis para hoje à noite!
As pequenas narinas dilatavam-se, aspirando o perfume que vinha da cozinha.
- In! grande gulosa! - exclamou Tug, num tom de virtuosa indignação.
Zefinha arrebitou o nariz num movimento de desafio.
- Também tu eras muito guloso em pequeno, e sei que foste uma vez castigado pelo papá, por teres lambido os tachos do doce!
- Está entalado, Tug! - disse Even sorrindo.
- Mas a Zefinha bem vê que seu irmão se corrigiu. É preciso fazer como ele. Josefa ficou perplexa.
- Mas... não será proibido gostar dos pasteis de chocolate! - murmurou ela.
- com certeza, querida Zefinha. O que é preciso é não gostar demasiadamente deles, isto é, não pensar muitas horas antes no prazer que se sentirá ao comê-los, como certa menina do meu conhecimento.
Tranquilizada, Zefinha foi buscar Kif-Kif, que estava a dormir a um canto, e veio sentar-se num pequeno tamborete junto de Even.
- Falávamos de quadros vivos, - continuou o mancebo. - Quais havemos de escolher?
Todos emitiram a sua opinião e acordaram numa cena tirada da "Atalia". Pascal devia representar Eliacin; Tug, o sumo-sacerdote; Mariquinhas, Atalia.
- Se ela quiser, - observou João.
- Sim, sim, nós combinaremos isso, nada receie, - disse Even. - E que diriam, depois, dum quadro em que todos envergassem trajos índios?
- Esplêndido! - aprovou Tug. - Mas tãobém entraria, sr. Even? Já nos prometeu que havia de trazer um dia o trajo que usava na sua terra.
- Pois sim! Vesti-lo-ei em honra da senhora Arzen, para lhes ser agradável. Quanto aos outros vestuários, tratará disso Arvati, a criada de quarto de minha mãe. Os ensaios serão feitos na casa das Aves, para que a festejada tenha uma surpresa.
- Mas será um grande incómodo para os pais do sr. Even, - objectou Armela.
- Um prazer e uma distracção, deveria dizer, minha senhora! Tenho a certeza de que minha mãe será a primeira a querer organizar as coisas, e de que meu pai nos fornecerá uma aluvião de ideias. Vão lá todos esta noite, depois do jantar.
- E eu também? - perguntou Zefinha.
- Também está convidada, Zefinha, e Micaela, e Pedro, se a sra Dornoy der licença.
- E Bobby não?
- Ah! Bobby!... Esse está castigado!... A não ser que eu obtenha o seu perdão.
Zefinha bateu palmas, o que fez rosnar Kif-Kif.
- É isso mesmo, peça à Dona Lazarina! Ela disse um dia que se lhe não podia recusar nada.
- Isso é muito lisonjeiro para mim! Veremos se me saio bem das minhas negociações... E agora irei cumprimentar a senhora Arzen, se por acaso a não incomodo!
- Oh! de modo algum! A avózinha não ficaria satisfeita se a não fosse ver! - atalhou rapidamente Mussia. - Venha daí, senhor visconde.
- Até logo, não é verdade, minha senhora?
- disse Even, inclinando-se diante de Armela.
- Espero que não surja qualquer impedimento... onde vais tu, Zefinha?
A pequena, conservando Kif-Kif nos braços, dirigia-se para a porta.
Vou ver a avózinha com o sr. Even, pois tenho medo que ele se esqueça de me levar a casa de Dona Lazarina, e tu não me darias pasteis.
- Não, Zefinha, não me esquecerei, - volveu Even. - Mas pode vir comigo. Vá anunciar-me à sua avózinha... E muito cuidado com a língua, não diga nada das surpresas que preparamos para a sua festa!
Ela ergueu para o mancebo o rosto muito vivo, colocando o dedo nos lábiozitos rosados.
Saiu depois da sala de estudo e ouviram-na abrir a porta do salão, anunciando:
- Avózinha, é o sr. Even! Vem dar-lhe as boas tardes, e depois iremos ambos a casa de Dona Lazarina.
- Que vão fazer a casa da Dona Lazarina?
- interrogou a avó com surpresa.
- vou pedir-lhe perdão.
- E tu que fizeste?
Even, que entrava depois de Mussia, contou-lhe o que se tinha passado, e a condição que pusera para a sua intervenção junto de Armela, a fim de obter o perdão da pequena.
- Receio, infelizmente, que a perspectiva dos pasteis de chocolate haja influido muito na sua contricção, - acrescentou ele,
- Como vês, Zefinha, o sr. de Rodenneq julga-te, e com muita razão, uma pequenina gulosa, - disse a avó.
Mussia, aproximando-se da petiza, acariciou-lhe os cabelos com a mão.
- Não é bem assim, querida avózinha. É lícito gostar dos pasteis de chocolate, não é verdade?...
E parece-me que Armela foi bastante cruel em privar a sua irmãzinha de sobremesa precisamente no dia em que serviam o seu doce preferido.
- Pelo contrário, minha senhora, acho que fez muito bem! - interveio Even num tom em que, embora contra a vontade, vibrava uma surda irritação.
- Certamente, se a culpa fosse grave. Mas não era assim... Demais, se procedessem com habilidade e meiguice, facilmente conseguiriam que a criança pedisse perdão, - acrescentou a meia-voz, como falando para si mesma.
- Não há dúvida que Armela é às vezes um pouco severa, - murmurou a avó. - E tem pouco geito para lidar com crianças.
Aos lábios de Even acudiam palavras de indignado protesto. Conteve-se, porém, trocando algumas frases insignificantes com a avó e a petiza. Depois saiu com Josefa.
Dona Lazarina estava só no salão, correcto e frio como ela. À vista do sr. de Rodennec e da pequena, mostrou um certo espanto. Mas Zefínha, que tinha pressa de arrumar o caso, avançou resolutamente e disse corando muito:
- Minha senhora, venho pedir-lhe perdão por lhe ter dito que era má...
- Muito bem! Assim é que se faz, - disse majestosamente. - Procura agora ter juizinho, Zefinha, para não dares maus exemplos a Bobby.
Even explicou então os motivos porque acompanhava a pequena penitente.
- Oh! não será preciso pedir muito a Armela para levantar o castigo! É tão mole com as crianças!
Julgo, ao contrário, que as sabe dirigir muito bem, minha senhora.
- Tem graça! É duma tolerância única, digo-lho eu! Só há pouco tempo é que dei por isso. Outrora estava convencida de que daria uma boa dona de casa, mas tenho agora as minhas dúvidas. Tem ainda gostos dispendiosos e prefere vestuários que julgo incompatíveis com a sua posição. E é pena, porque ela é bonita.
- Mas possui outras qualidades, - disse Even com uma tranquilidade forçada, porque sentia o sangue a ferver.
- Sim, ela não é má rapariga. Mas amimam-na muito em casa, estão sempre em admiração diante dela. Precisaria de ter um pouco da existência da prima. Pobre Mussia! Essa é tão boa, tão resignada! E que simplicidade, que desprendimento!... Ah! essa não é pretensiosa! E, a respeito da educação das crianças, tem já princípios bem definidos.
- Da teoria à prática vai às vezes uma certa distância, - disse Even com ironia. - Como explica a senhora que ainda há poucos momentos ouvisse Mussia censurar sua prima pelo castigo, aliás bem merecido, aplicado a Zefinha?
- Compreendeu mal, com certeza, meu caro senhor. Isso é tão inverosímil, que Mussia repreendeu Armela amigavelmente diante de mim pela sua excessiva indulgência para com as crianças.
Os lábios de Even tiveram uma crispação.
- É realmente possível que compreendesse mal, - disse ele com muita calma. - Mas a senhora vai também com certeza acusar-me de fraco, se lhe pedir que perdoe a Bobby...
- É impossível, senhor! Essa criança torna-se intolerável!
- E se ele lhe pedir perdão, minha senhora?
- Nesse caso, talvez... Mas não há receio de que o faça.
- Permite-me que experimente?
- À vontade! vou mandá-lo chamar...
- Não, preferirei ir ter com ele. Onde está?
- No quarto, creio eu... Zefinha, mostra o quarto de Bobby ao sr. de Rodennec. Mas vai ter um trabalho inútil, senhor, porque essa criança é a coisa mais teimosa e mais orgulhosa que se pode imaginar.
Quem ficou bem surpreendida foi Dona Lazarina quando viu aparecer, dez minutos mais tarde, atrás do sr. de Rodennec, Bobby muito decidido, pedindo-lhe perdão nos melhores termos, e prometendo não se tornar a zangar quando lhe chamassem petiz.
- Visto que assim é, está suspenso o castigo, - concedeu magnanimamente a senhora Dornoy. - E podes agradecer ao sr. de Rodennec, pois que o faço para lhe ser agradável, porque não é meu hábito revogar as decisões tomadas.
- E consentirá que tanto ele como Micaela e Pedro se juntem esta noite em minha casa com os seus amigos, a fim de prepararmos qualquer coisa para a festa da senhora Arzen?
- Hum!... Emfim!... Mas está fora dos hábitos em que os mantenho, senhor.
- Fico orgulhoso e encantado por obter tais vitórias, - volveu Even amavelmente. - Mas creia que não abusarei. Farei reconduzir as crianças pelo meu fiel Seradi.
Quando o senhor Dornoy chegou junto de sua irmã, alguns minutos depois, Dona Lazarina exclamou com entusiasmo.
- Decididamente, esse visconde de Rodennec é encantador! Que diferença da maior parte dos rapazes de hoje!... Uma delicadeza extraordinária!... Maneiras tão distintas!... E acima de tudo muito sério. É o que estava a matar para Mussia.
O doutor fitou a irmã com admiração.
- Mussia!... E porque não Armela, tão boa e tão bonita!
Dona Lazarina encolheu os ombros.
- Não vale metade de Mussia. É muito garrida.
- Oh! - protestou o doutor.
- Sei bem o que digo. Agora que sua prima está aqui, vejo bem a diferença... E creio que o sr. de Rodennec saberá escolher como homem inteligente.
O doutor não quis entrar em discussões. Tinha a mesma natureza fleugmática de seu filho mais velho, e não ignorava já, por experiência, que sua irmã queria ser sempre a última a falar. Mas não mostrava cara de convencido ao sair do salão, e Micaela, que vinha de casa das suas amigas, ouviu-o murmurar:
- Apesar disso, não me agrada! Não a acho franca!... Ao passo que Armela é uma bela rapariga!
Entretanto Even, tocando à porta da casa do notário, entregava Josefa a sua irmã, dava solenemente conta da sua embaixada e pedia perdão para a culpada, o que lhe foi concedido sem dificuldade. Num impulso de alegria e reconhecimento, Zefinha saltou-lhe ao pescoço.
- Obrigada, sr. Even! Pelo trabalho que teve, hei-de levar-lhe logo um pastel.
Armela e o sr. de Rodennec não puderam conter uma gargalhada.
- Mas, com chocolate, Zefinha? - perguntou Even.
- com certeza, são os melhores. E hei-de deitar-lhe muito, sabe, por ser tão gentil.
Even beijou-a em ambas as faces.
- E a Zefinha também é gentil, quando tem juizinho. Coma o seu pastel à minha saúde, terei nisso muito maior prazer.
- Não, hei-de guardá-lo para Bobby, porque também gosta muito.
- Tem uma excelente natureza esta pequena,
- disse Even a meia-voz para Armela. - A ideia de ser agradável ao seu amigo prevalece sobre a gulodice.
- Sim, tem muito bom coração, felizmente. Isso compensa os seus pequenos defeitos, que se atenuarão com a idade, se for dirigida com firmeza.
Naquela noite, quando Armela, terminado o jantar, se levantava da mesa para acompanhar a prima e os irmãos à casa das Aves, a senhora Arzen, dirigindo-se à nora, disse-lhe no tom agridoce que ás vezes tomava:
- Talvez fosse melhor, Helena, que eu a ajudasse a concluir o vestido de Zefinha, se quer que ela o traga amanhã, domingo.
- Terei ainda tempo de trabalhar quando vier, avó, e hei-de terminá-lo antes da meia-noite, esteja descansada, - replicou Armela com vivacidade, sentindo a censura, embora indirecta. - Já tinha falado à mamã, ficando assente que ela se não apressasse.
- Sim, mas será trabalho mal amanhado. Outrora cuidavas de tudo que fazias, mas agora não acontece o mesmo. Basta, para prova, aquele nó que deste outro dia no meu chapéu. Mussia viu-se obrigada a fazê-lo ontem de novo. É preciso não pensar apenas no prazer, minha filha.
O rosto de Armela purpureou-se. Era tão pouco merecida a censura, que teve um movimento de revolta instintiva.
- Está bem, não sairei esta noite! - disse com voz em que tremia uma indignação dificultosamente contida.
- Oh! se fazes esse sacrifício com tão amável humor, isso de nada vale, porque o trabalho assim não renderá.
- Levar-lho-ei amanhã de manhã, avó, para o examinar à vontade e fazer-lhe a sua crítica.
E saiu da sala de jantar, porque as lágrimas lhe enchiam os olhos, e receando também pronunciar algumas palavras mais ásperas. Estava já envergonhada das que lhe tinham escapado. Não tinha isso por costume. Mas as repreensões da avó eram tão injustas e rudes...
Reflectindo bem, não as teria ela merecido em parte?
Positivamente que não, pois estava convencida de que havia procurado agradar a todos e se não descuidara no seu trabalho. Gostava muito, de facto, das relações com os Rodennec, mas não fizera mais que imitar todos os seus, e até Mussia, apesar dos seus ares desprendidos.
Mussia!...
Que singular sensação de desconfiança se implantava desde algum tempo no coração de Armela! Censurava-se por isso, mas não podia repeli-la em absoluto... E naquela noite dizia:
- Ela é que tem a culpa de tudo isto. Mas pensou logo:
- Que má ideia! É tão afectuosa e amável para comigo! Isto deve ser inveja, pois observo que a avó gosta mais dela.
Era-lhe impossível, contudo, libertar-se daquele pensamento obsidiante. E sentia-se triste, a pobre Armela, ao recordar-se dos belos momentos que teria passado com seus irmãos na casa das Aves.
Entre suspiros, pôs-se a coser o famoso vestido que motivara a cena daquela noite. Como tinha dito à avó, era trabalho para uma hora, hora e meia, quando muito.
A senhora Arzen veio ter com sua filha. Ao ver-lhe lágrimas nos olhos, atraiu a linda cabeça contra o peito e beijou-a demoradamente.
- Não te aflijas, querida. Foi um momento de vivacidade de tua avó. Ela aprecia, porém, como todos nós, a dedicação e o espírito de dever da nossa Armela.
- Mamã, não acredita certamente que penso acima de tudo no prazer e que me descuido no meu trabalho?
- Não, minha filha, és sempre o exemplo que eu proponho a teus irmãos. Não te inquietes, repito, porque a avó gosta sempre de ti.
A fronte de Even cobriu-se de sombra, naquela noite, quando Mussia lhe comunicara que sua prima não podia ir, porque tinha de acabar um vestido para o dia seguinte.
- Um vestido para Zefinha, - rectificara Tug, que assistira à cena, e cuja fisionomia estava também carregada de nuvens.
- Que pena! - disse a senhora de Rodennec. - Vai fazer-nos grande falta essa encantadora Armela, tão graciosa e alegre.
- Uma verdadeira pérola, - acrescentou o conde, o que fez brilhar de contentamento os olhos de Tugdual.
- Oh! sim, - apoiou Mussia compungidamente. De boa vontade a substituiria, mas não sei costurar tão bem como ela, e tinha receio que o vestido não ficasse ao seu gosto.
- Mas nós também a queremos aqui, rninha senhora, - exclamou amavelmente a condessa. - As duas primas são-nos igualmente simpáticas, e gostaríamos de as ter ambas junto de nós.
- É muito boa, minha senhora!... E, pensando bem, deveria ter procurado trazer Armela, porque...
Lançou a vista para Tug, a quem a entrada de Piloto distraía naquele momento... E, inclinando-se para a condessa, concluiu a meia-voz:
- O trabalho não era de grande urgência, mas a verdadeira razão foi uma birra dessa boa Armela, por causa duma observação aliás bem natural, que lhe fez a avó.
- Não acho sua prima capaz de amuar disse a senhora de Rodennec.
- Não tem isso muito por hábito. Mas também se lhe não oferece ocasião, porque lhe fazem todas as vontades. Pais, irmãos, irmãs, Tugdual sobretudo, estão em constante admiração diante dela. Compreendo bem isso, pois também cedo aos seus encantos.
Quando Mussia e as crianças voltaram da casa das Aves, Armela ajudou a deitar a sua irmãzinha. Retirou-se depois para o seu quarto. Estava ali havia cinco minutos, ageitando o cabelo, quando ouviu bater à porta. Viu entrar Mussia, quase infantil no seu penteador preto, um tanto flutuante, com as tranças do cabelo soltas.
- Quero informá-la do que se resolveu na sessão desta noite para a festa da avózinha, querida Armela.
- Muito obrigada, mas Tug disse-me o que se passou, emquanto deitava Zefinha, - respondeu friamente Armela.
- Ah! bem, não sabia... Tenho também de pedir-lhe perdão, minha querida, por não me oferecer para ficar em seu lugar e concluir o vestido de Josefa. Não me atrevi a fazê-lo na ocasião, porque a avózinha estava muito descontente...
Mas fiquei depois penalizada, por me lembrar de que gostaria de passar este serão em casa dos nossos encantadores vizinhos.
- Agradeço-lhe a intenção, mas não aceitaria que, por minha causa, se privasse desse prazer, - disse Armela com a mesma frieza.
Mussia meneou levemente a cabeça.
- Oh! a mim pouco me importava! A minha única satisfação é ver os outros contentes... e a si principalmente, querida Armela!
A sua cabeça inclinou-se e os lábios poisaram nas faces de Armela. Esta fez um leve movimento de recuo ao seu contacto, mas quase imperceptível. Quando a prima saiu, ficou longo tempo imóvel, caindo-lhe sobre o penteador a esplêndida cabeleira em ondas douradas. Por fim, passando a mão pela fronte, murmurou pensativamente:
- Como é triste duvidar de alguém!
DURANTE os dias seguintes houve frequentes idas e vindas entre a casa do notário e a casa das Aves. A avó fingia nada ver, nada adivinhar, e não pedia explicações sobre aquelas assíduas relações com os vizinhos.
- Vamos brincar com Piloto, avózinha! dissera um dia Zefinha, olhando para a avó com olhos maliciosos.
- Diverti-vos muito, meus filhos, - respondera ela benevolamente.
A pedido instante da condessa, as raparigas acompanhavam quási sempre Tug e as crianças. Ajudavam a senhora de Rodennec e a sua criada índia a preparar os trajos para os quadros vivos, emquanto o senhor de Rodennec e o filho se distraíam com os petizes ou conversavam com Tug e Mariquinhas. Depois uma merenda esperada sempre com impaciência por Zefinha e Bobby, pois que Even recomendara ao cozinheiro que preparasse sempre alguma gulodice de chocolate, reunia toda a gente no salão ou no jardim, se o tempo estava bom. A alegria e o entusiasmo não faltavam nessas pequena reuniões, e o sr. de Rodennec esfregava as mãos de contente, declarando que remoçava, no meio daquela juventude.
A sua saúde melhorava, de facto, dia a dia; dava agora pequenos passeios no parque, apoiando-se ao braço do filho ou do seu fiel Hervé.
- A minha Bretanha realiza milagres.
- dizia.
Na véspera da festa da avó, Mussia apresentou-se só com as crianças na casa das Aves, Armela ficara retida em casa com violentas nevralgias.
- Tenho pena dela, pois sei bem o que isso é, - dizia ela. - Ainda ontem estive apoquentada todo o dia.
- E então conseguiu mostrar-se tão alegre, tão amável! - interrogou a condessa com evidente admiração. Como é corajosa!
- Oh! não, estou apenas acostumada a não ouvir as minhas dores, - disse Mussia com modéstia.
Naquele dia, o guarda-roupa estava concluído. Vestiram os jovens amadores para um último ensaio, dirigido por Even, que não tinha a animação do costume, como sempre que faltava Armela.
- A senhora não veste também o seu trajo índio? - perguntou Tug à condessa.
- Se isso lhes dá prazer, não me recuso, Vestir-nos-emos ambos, Even e eu.
- Será uma coisa chique! - exclamou João. - Quando for oficial de marinha, hei-de ir ver o seu país, minha senhora. Sempre tive esse desejo.
- E eu também irei, - declarou Zefinha, que se encostava confiadamente ao terrível Piloto.
- Também eu! - disse Bobby. - Passearei a cavalo nos elefantes e matarei tigres, como os que há em casa do sr. Even.
O mancebo deu-lhe uma palmada amigável.
- A não ser que o tigre te coma, Bob!
- Oh! mas eu não me deixarei comer! Não tenho medo dos animais grandes!
- Lá fanfarrão és tu, Bobby! - disse sorrindo o conde de Rodennec. - Gostava de ver-te em apuros. Bastaria que mandássemos vir um pequeno tigre, um muito pequenino, para ver a tua valentia.
- Matava-o! - repetiu soberbamente Bobby.
- E eu também! - acrescentou Zefinha.
Even ergueu-a nos braços.
- Ouve cá, Zefinha; olha que um tigre é maior que Piloto, e, principalmente, muito pior. Não obstante, estavas cheia de medo ao ver o meu pobre cão.
- Mas já não tenho medo... não tenho medo de nada!
- Muito bem, veremos isso. Entretanto, ide brincar para o jardim,
A pedido da senhora de Rodennec, Mussia acompanhou-a ao quarto. A condessa queria perguntar-lhe a sua opinião sobre um bordado que acabava de terminar. Emquanto o procurava na gaveta dum móvel, Mussia lançava em roda os seus olhos investigadores, parecendo calcular o valor dos objectos preciosos que ornavam este aposento, que o conde fizera decorar com o luxo oriental a que sua mulher estava acostumada.
Ao voltar-se, a senhora de Rodennec fez cair um bracelete colocado no rebordo do fogão. Mussia precipitou-se para o apanhar, soltando uma exclamação admirativa.
- Que maravilhoso trabalho de cinzeladura!... E com que arte estas pedras estão engastadas!
- Sim, é bonito, e constitui para mim uma recordação. Meu marido ofereceu-mo alguns dias depois dos nossos esponsais... Gosta de jóias, minha senhora?
- Para as ver nos outros, sim. Pessoalmente, não as aprecio. Armela ficou no outro dia muito admirada quando lhe disse isto mesmo. Não podia compreender, porque ela tem paixão pelas jóias.
- Na verdade? Não supunha tal coisa... Pois se ela traz apenas um anel muito simples...
- Não pode proceder doutra forma. Meu tio, com a numerosa família que tem, não está em situação de pagar jóias a sua filha. Mas espera encontrar uma compensação quando se casar. No outro dia, estando ambas a conversar, disse-me ela, naturalmente por gracejo: "Ora veja lá: por causa de lindas jóias, seria capaz de cometer um crime!"
- Sim, calculo efectivamente que ela gracejava, - disse a condessa sorrindo. - Não me parece que Armela fosse capaz de tornar-se criminosa mesmo por todas as jóias do mundo... Ora aqui está o bordado, minha senhora. Diga-me o que pensa dele.
- É admirável! Que tons bem combinados. É uma fada, minha senhora.
- E a senhora uma grande lisonjeira. Ora diga sinceramente, vamos...
- Minha senhora! falo-lhe com toda a franqueza! É esse o meu costume, como tem tido ocasião de reconhecer.
Emquanto falava, embaindo a condessa com o olhar e com o sorriso, os dedos, com gesto quási inconsciente, acariciavam o bracelete que continuavam a segurar. A senhora de Rodennec era pouco observadora e não notou esse pormenor. Mas Arvati, a criada de quarto, que estava acocorada a um canto do aposento, aparentemente ocupada com um trabalho de agulha, não tirava os olhos da donzela, e observou ainda o gesto da mão branca e esguia que colocou a jóia sobre a pedra do fogão quási como que a custo.
Quando a condessa e Mussia se reuniram na pequena clareira do parque a Even e aos seus jovens companheiros, viram Tug, Micaela, Mariquinhas e até o pacífico Pedro em volta de Bobby e Josefa, vermelhos e envergonhados, zombando visivelmente deles, emquanto Even sorria com malícia.
- Então que há? - perguntou a senhora de Rodennec.
- Forma-se-lhe o carácter, - disse a meia-voz Even.
E, mais alto, acrescentou:
- Estes dois bravos, que de nada tinham medo, acabam de fugir diante dum rato, que estava longe, contudo, de atingir o tamanho dum tigre.
Já vêem que não foi preciso esperar muito para lhes experimentar a coragem.
- Não prolongues muito a sua humilhação, Even, - aconselhou a senhora de Rodennec.
- Oh! isto é excelente! Estes dois figurões teem um grande amor-próprio... Venham cá, Bobby e Zefinha. Já ficam sabendo agora que não é bom gabarem-se antecipadamente!...
Chora, Zefinha? Oh! são lágrimas de despeito, essas, e eu não quero vê-las nos seus olhos. Toca a limpá-las, vamos!
Inclinando-se para a pequena, passou-lhe o lenço pelos olhos. Depois sentou-se numa das cadeiras do jardim e colocou Josefa sobre os joelhos.
- Prometeu no outro dia contar-me uma linda história, Zefinha. Se quisesse dizê-la
agora?
- Pois sim, sr. Even... Era uma vez uma princesa que tinha os cabelos doirados e os olhos muito azues. Um dia, uma maldita feiticeira levou-a para um castelo, no alto duma montanha. Então um príncipe, que tinha os olhos pretos...
Interrompeu-se e curvou a cabeça um pouco para ver melhor Even.
- Julgo que se parecia muito consigo, -
disse gravemente.
- Ah! parece-lhe, Zefinha?
- Sim, com certeza, e a princesa, de olhos azues, era Armela.
-É muito possível, no fim de contas! disse Even com não menor gravidade-, Mas então, Zefinha, que fez o príncipe?
- Ah! sim!... Abriu a porta do castelo, meteu a feiticeira na prisão e fez sair a pobre princesa. Depois casaram-se, e foram muito, muito felizes...
É verdade isto, sabe? - acrescentou ela agitando a sua pequenina cabeça.
- Não duvido, Zefinha.
Bobby, que ouvira atentamente, disse com ar profundo:
- O senhor é que é o príncipe dos olhos pretos, e há-de ser marido de Armela.
Os cílios de Even baixaram-se velando-lhe por momentos os olhos. Mas não tardou a soltar uma gargalhada franca.
- Casa a gente com grande facilidade, amigo Bob! Ora vá antes buscar Piloto, que está em baixo a esgravatar não sei o quê.
- Também o vou buscar! - disse Zefinha saltando ao chão. - Obedece-me melhor que a Bobby.
- Não é verdade! - exclamou Bobby, vexado.
- Mas é verdade, é! Tu vais ver!... Piloto! Vem, Piloto, vem, meu pequenino!
- Meu pequenino! Tens uma chança! comentou Tug. - Ele é maior do que tu! -E vais ferir também esse animal no seu amor-próprio.
- Aposto que não vem! -disse Micaela.
- Mas vem, sim... Piloto, vem depressa, meu grandalhão!
Mas nem a voz aflautada nem os braços estendidos exerciam influência sobre Piloto, que continuava a esgravatar ao pé duma árvore.
- Descobriu trufas! - anunciou Pedro. Bobby exclamou:
-Trufas! Que bom Já comi uma vez. vou ajudar Piloto.
Correu para junto do cão. Foi preciso que Mariquinhas o fosse buscar e tirasse à força, porque as mãos, que esgravatavam com tanta constância como Piloto, estavam já cheias de terra.
- Mas ele vai comê-las todas! - gritou quase a chorar.
- Tolinho! Pedro estava a brincar. Não há lá trufas nenhumas.
- Então porque esgravatava ele?
- É um hábito que teem os cães. Kif-Kif também às vezes faz o mesmo no jardim.
- Sim, mas nunca vi fazer isso a Piloto... Deixa-o, Zefinha, é preciso ver o que ele procura! - disse para a petiza, que pegara no cão pela coleira e pretendia arrastá-lo.
- O senhor Even disse que lho levasse retorquiu Josefa com ares de importância.
- É verdade Zefinha, - aprovou Even mas Piloto está recalcitrante, ao que parece...
Aqui, Piloto!
O cão obedeceu logo, e veio apoiar a cabeça magnífica nos joelhos do amo, voltando para Josefa uns olhos que pareciam um tanto zombeteiros, porque a petiza exclamou:
- Está a escarnecer de mim, o mau! Eh! como isso é feio, cavalheiro! Já não gosto de si, ouviu?
E voltou-lhe majestosamente as costas, com grande risota de todos.
No dia seguinte de manhã toda a família desfilou no quarto em que a avó acabava de ler uma carta de Francisco, o único que faltava à reunião, pois só devia chegar dali a dez dias.
À Armela ofereceu-lhe uma linda touca bordada por ela. Mussia, uma saquinha de trabalho, Tug um desenho feito em grande segredo, e que representava Pascal e Josefa, aliás muito parecidos. Kif-Kif também fazia parte do quadro, como notou Zefinha com embevecimento.
- O senhor Even disse-me que não estava mal, e que podia atrever-me a oferecer-lho, avozinha, - explicou Tug.
- É verdade, meu rapaz! tiveste uma lembrança encantadora. Conservarei sob meus olhos estes retratos dos nossos dois benjamins, e pensarei em ti quando olhar para eles.
Zefinha puxou pela manga do casaco de João e perguntou baixinho:
- Dize, João, Benjamim não havia dois. Porque é que a avozinha disse "dois benjamins"?
- Porque sois os dois mais novos, essa é "boa!
- Não, a mais nova sou eu!
- É tão orgulhosa desse privilégio, como se tratasse do direito de primogenitura! - disse o senhor Arzen sorrindo. - Vá, Pascal não fará questão, minha derradeira!
- Oh! não, eu nunca faço questão! - declarou o meigo Pascal ocupado em acariciar a avozinha, que lhe passava a mão carinhosa pelhos seus belos olhos sem vista.
Um pouco mais tarde, apareceram os três Dornoy, trazendo as suas saudações e os seus ramalhetes.
Depois veio da casa das Aves um grande molho de flores, com cartões do senhor de Rodennec, de sua mulher e de seu filho.
À tarde, toda a família, bem como Dona Lazarina e seus sobrinhos, dirigiram-se à casa das Aves. Hervé e Seradi, o criado índio de Even, haviam levantado na clareira do parque um pequeno estrado. Foi ali que os jovens artistas se fizeram ver e ouvir, diante durn público muito indulgente, a que se juntara o bom Caméleu, radiante por aplaudir os seus pequenos amigos.
Armela tinha ensinado a Zefinha e a Bobby um pequeno diálogo, que eles disseram admiravelmente. Tug fez rir até às lágrimas toda a assistência, incluindo os criados índios e mesmo a rabugenta Joana Maria, com um monólogo cómico, a que o seu ar de trocista dava ainda mais hilaridade.
Mariquinhas, num tom monótono e pretensioso, recitou algumas estrofes das "Orientais",, que seus irmãos, sem respeito por Victor Hugo,, e não atendendo senão à insuficiência da intérprete, declararam "maçadoras arrazantes". João disse uma pequena poesia composta por Francisco para a festa da avó, e Micaela que tinha uma linda voz obteve muito êxito numa canção bretã.
Vieram depois os quadros vivos, que foram bisados e aplaudidos freneticamente, principalmente o último, em que se agrupavam todas as crianças, vestidas à indiana, em lindas atitudes, marcadas por Even, o ensaiador.
Toda a gente voltou depois para a casa das Aves, onde foi servida uma deliciosa merenda, E, emquanto os seus hóspedes merendavam, a senhora de Rodennec e seu filho afastaram-se dissimuladamente para reaparecerem daí a pouco no seu trajo índio: ele todo de branco, e de turbante de seda vaporosa, ornado com um magnífico enfeite de diamantes; ela, trazendo uma véstia curta de veludo púrpura, bordada a oiro, e uma saia de seda branca, que deixava ver, em volta do tornozelo, braceletes ornados de admiráveis pedrarias. Outros braceletes lhe rodeavam os pulsos, cercava-lhe o colo uma tríplice fileira de pérolas, retinham-lhe o véu de gaze que a envolvia alfinetes de ouro com diamantes de cintilações deslumbrantes.
Nunca ela parecera tão formosa à vista maravilhada dos Arzen. Nunca os olhos de Even haviam tido semelhante brilho, tão sedutor encanto, como à sombra desse turbante que fazia ressaltar a sua tez escura e aveludada.
Zefinha murmurou ao ouvido de Tugdual: A senhora de Rodennec é uma fada, não é?
- É possível, - respondeu Tug distraídamente, entretido a observar Mussia.
A donzela tinha os olhos pregados na condessa, parecendo não poder desviá-los. Depois, dirigiram-se para Even, ou com mais exactidão, para o seu enfeite de diamantes.
- Oh! minha senhora, se quisesse mostrar-nos as suas jóias! - pedia naquele momento Mariquinhas.
- És indiscreta, minha filha! - censurou a senhora Arzen.
Mas a condessa protestou:
- De modo algum! Se as pequenas têem gosto nisso, vou mostrar-lhes algumas.
Tocou e deu uma ordem à criada de quarto.
Esta reapareceu logo, trazendo um cofre de madeira preciosa, que a senhora de Rodennec abriu com uma pequena chave de ouro.
Houve um coro de exclamações admirativas em face daquelas jóias maravilhosas, uma parte das quais vinha da família da condessa, tendo-lhe sido as outras oferecidas por seu marido.
Armela admirou principalmente os longos alfinetes de ouro destinados a prender os véus, ornados de diamantes e safiras duma rara beleza
e dispostos com requintado gosto.
Mussia conservava-se modestamente, por trás de sua prima. Tinha as pálpebras descidas, parecendo não ligar grande importância às jóias que passavam de mão em mão.
Tug, a quem essas riquezas nada interessavam, não tirava os olhos dela... E ia fazendo as suas observações. Sob os cílios pálidos, via brilhar as pupilas claras, que se fixavam nas gemas deslumbrantes com uma expressão de cobiça. Os lábios tinham bem esse arrepanhado de avidez que por mais que uma vez lhe notara, principalmente quando ela estava na casa das Aves.
E, quando segurava nas mãos um pingente com diamantes, Tug observou que os dedos finos,, de unhas ponteagudas, se crispavam na soberba jóia com um gesto rapace.
Tugdual dirigiu instintivamente os olhos para Even. O mancebo estava sentado aparte.
Acariciava os loiros cabelos de Pascal, que se encostava carinhosamente, e parecia interessado com a cara de pasmo e engraçadas reflexõesde Josefa, diante das "belas pedras brilhantes". Mas Tug sabia agora que o seu grande amigo tinha a faculdade de ver tudo sem o parecer, e não duvidou que o gesto significativo de Mussia o tivesse surpreendido.
Depois que todos admiraram as jóias à sua vontade, a senhora de Rodennec voltou a colocá-las no cofre, um pouco ao acaso, deixando para mais tarde dispô-las melhor. Levou tudo para uma sala próxima, e, como a senhora Arzen estranhasse o facto de não fechar o cofre à chave, ela replicou:
- Oh! nada há a recear. Tenho tanta confiança nos meus criados como em mim mesma.
Como a temperatura estava deliciosa, o senhor de Rodennec, apoiado no braço do filho, foi sentar-se no terraço e todos se agruparam em volta dele, à sombra de velhos castanheiros.
- Não tem receio de apanhar frio, minha senhora? - perguntou a condessa a avó, que estava um pouco encatarrada.
- Não haverá perigo. Está muito calor.
- Ainda assim, vou buscar o seu pequeno chaile, - disse Armela, levantando-se. E aproveitou o ensejo para fazer uma recomendação a Joana-Maria, por causa do jantar.
- O chaile está no salão, Armela, deixei-o lá esta manhã por esquecimento, - disse Mussia.
Havia cinco minutos que Armela tinha partido, quando sua prima bateu de repente na fronte.
- Que tola eu sou! O chaile não está no salão, mas no seu guarda-vestidos, avózinha. Lembro-me de o lá ter colocado esta manhã.
E Armela a procurá-lo inutilmente cá fora! vou ter com ela...
- Não vale a pena incomodar-se, minha filha, - atalhou a senhora Arzen. Se Armela o não encontrar no salão, lembrar-se-à de o procurar em cima.
- Ainda assim, o mais simples é eu lá ir, minha tia, para o não procurar inutilmente, o que é sempre aborrecido.
Afastou-se, e, mal desapareceu, a senhora Dornoy disse num tom convicto:
- Como esta pequena é amável! Está sempre com receio de causar qualquer desgosto ou incómodo, seja a quem for.
- É, com efeito, uma natureza encantadora! - apoiou a senhora de Rodennec sinceramente.
A senhora é muito feliz com todos os netos.
- Oh! certamente, e por isso dou graças a Deus, - respondeu a avó com um afectuoso olhar sobre as jovens cabeças que a rodeavam. - Mas estes e Armela conheceram-me sempre, foram tratados e amimados por mim. A afeição de Mussia é mais espontânea, menos influenciada pelo hábito, porque a pobre pequena conhece-me há pouco tempo.
No entanto, como ela me estima! E que dedicação!
Even mordeu os beiços, como para reter uma palavra que lhe ia escapar. Tug, receando não poder conter-se, levantou-se, foi ter com Piloto, pegou-lhe nas patas dianteiras, colocou-as nos ombros e beijou-lhe o focinho sedoso.
- És ainda tu o melhor, meu velho - declarou ele. - É por isso que sou teu amigo a valer, meu adorável pachá!
Piloto deitou de fora a sua língua rosada e lambeu delicadamente o nariz de Tug, com enorme gáudio de Zefinha, que pretendeu que o excelente cão lhe mostrasse, com aquela carícia, que por seu lado também era amigo a valer dos amiguinhos do seu dono.
Pouco depois, apareceram ao mesmo tempo Armela e Mussia. Esta chegara a tempo, visto que a prima, tendo de conferenciar com Joana-Maria, ainda não tinha procurado o chaile.
Os Rodennec e os Dornoy jantavam nessa noite em casa do notário. Era uma recepção" íntima, por motivo do luto da família Arzen. Joana-Maria, que tinha uma consideração muito especial pelos habitantes da casa das Aves, preparou em sua honra um delicado jantar, e ficou muito satisfeita com os cumprimentos que se dignou dirigir-lhe a senhora de Rodennec, quando, ao sair da sala de jantar para o jardim, descobriu a cozinheira no vestíbulo.
Na hora própria, Tug e João encarregarm-se do fogo de artifício, sob a direcção de Even. O visconde tinha querido absolutamente encarregar-se da compra do fogo, e fizera tudo à grande. Todo o bairro ficou em sobressalto. Os vizinhos vieram às janelas para gozarem em parte o espectáculo, o que fez dizer a Tug, sempre bom coração aliás, que deveria ter pedido autorização para deitar o fogo na praça da igreja, para que todos se pudessem divertir.
Quando tudo acabou, os Rodennec voltaram para sua casa. E emquanto o conde, pelo braço de Hervé, se dirigia para o quarto, a senhora de Rodennec foi dispor as jóias que tinham ficado na sala. Even seguiu maquinalmente a sua mãe, e, emquanto ele punha nos respectivos lugares caixas e escrínios, trocaram algumas impressões sobre a festa.
- Acho esta família cada vez mais encantadora- disse a condessa. - E parecem todos tão unidos!... Que belo e franco temperamento o de Tugdual!
- Sem dúvida, e uma inteligência muito perspicaz! Quem me agrada menos é Mariquinhas. Toma umas atitudes cada vez mais irritantes e pedantescas.
- Sim, talvez, mas isso há-de passar-lhe. O que nunca terá é a beleza de sua irmã nem as suas maneiras graciosas. O preto fica admiravelmente a Armela, não é verdade?
- Tudo lhe fica admiravelmente, minha mãe.
A senhora de Rodennec pôs-se a rir, com certa malícia.
- Sim, a teus olhos, é a perfeição personificada. Confesso que dificilmente se encontrará uma rapariga assim. E parece muito séria...
Mas sê-lo-á de facto?
- Donde lhe vem essa dúvida, minha mãe?
- perguntou Even com alguma vivacidade.
- É cá uma idea... Parece que gosta muito dos vestuários ricos, do luxo...
- Ainda não dei por isso! Os vestidos são feitos por ela, e ficam-lhe muito bem, porque tem um gosto delicado, mas muito simples. Quanto a gostar do luxo, nada observei ainda que o fizesse acreditar.
- Oxalá que assim seja... Mas onde se terá metido aquele escrínio? Eu ainda o não guardei...
- Que procura, minha mãe?
- O escrínio que contém os meus alfinetes de safiras e diamantes... É possível, afinal, que o tenha metido no cofre. vou tirar tudo outra vez para verificar.
Foi em vão, contudo, que a senhora de Rodennec e seu filho procuraram primeiro no cofre e depois por toda a sala, onde o escrínio poderia ter ficado esquecido nalgum móvel.
Os preciosos alfinetes não apareceram.
- É impossível, contudo, suspeitar dos nossos criados! - dizia a condessa, esquadrinhando por todos os cantos. - Há tantos anos que estão ao nosso serviço, e nunca houve a menor coisa que atribuir-lhes a este respeito.
- Não, não devemos suspeitar deles, - disse Even, em cuja fronte se cavava uma ruga de preocupação. - Voltaremos a procurar amanhã, talvez que o escrínio se haja escondido em qualquer canto... Mas tem a certeza de que estava entre as jóias que mostrou a essas senhoras?
- Oh! Absolutamente! Lembro-me até de que Armela admirou muito os alfinetes.
- É verdade, também me recordo! Deixemos por hoje essa busca, minha mãe, amanhã veremos.
Uma vez no quarto, e tendo despedido Seradi, Even encostou-se à varanda de pedra cinzenta, que as aristologias engrinaldavam.
E meditou longamente, de olhos fitos na casa Arzen. Cobria-lhe o rosto uma tristeza infinita, e murmurou de repente:
- Pobres amigos! Que desgosto para eles quantlo conhecerem a sua indignidade!
JOANA-MARIA, a senhora de Rodennec encarregou-me de te pedir uma coisa.
A velha criada, que estava depenando frangos à entrada da cozinha, volveu para Armela o seu rosto carrancudo.
- Então que é, menina?
-Serás capaz de ensinar o cozinheiro dela a fazer aquele prato do meio de que tanto gostou no dia da festa da avózinha?
Joana-Maria ficou um tanto perplexa. Estava visivelmente lisonjeada com o pedido, porque o cozinheiro índio dos Rodennec passava por ser um mestre na sua arte. Mas, por outro lado, era muito avara dos seus segredos culinários, e, em particular, desse prato da sua invenção, que era para ela um triunfo sempre que seus amos tinham convidados.
Armela conhecia bem a velha serviçal, não ignorava que era a sua favorita, e estava acostumada a obter sempre o que desejava. Curvando-se um pouco, pôs a mão nos ombros de Joana-Maria, e disse-lhe em tom de amável censura:
- Vamos, Joaninha, sê generosa e faz esse favor à senhora de Rodennec, tão amável e bondosa!
- Ah! por esse lado está bem, é uma senhora muito gentil! Dir-lhe-á que irei quando ela quiser, menina.
- Então esta tarde, se não tiveres muito que fazer?
- Está bem, esta tarde. Se a menina quiser ir, aprenderá também a fazer o cozinhado. Se eu morrer qualquer dia, sem ter tempo de falar, saberá arranjá-lo sem mim.
- Que ideia, Joana-Maria! Mas tenho grande prazer em que me ensines; e prometo não dar a ninguém a receita, sem te falar primeiro.
- O que tem de me prometer é que nunca a dará principalmente a essa má rês, a essa serpente...
- De quem falas tu, Joana?
- Eh! dessa Mussia! - rugiu a velha, agitando no ar o pescoço do frango, já meio depenado, como se desejasse bater em alguém.
- No que tu pensas! - exclamou Armela espantada. - Estás louca, Joana-Maria?
- Ah! não, não! E vejo muito claro, acredite! Não sou como a pobre senhora, a quem essa feiticeira arrasta pela ponta do nariz. Parece impossível que alguém se deixe enlear nas lisonjas dessa embusteira!
- Joana-Maria, isso é demais!
- Não julgue que é capaz de me fazer mudar de ideias! E eu vigio-a, esteja descansada!
Imagine que, já há bastante tempo, desaparece o chocolate do armário da cozinha, onde o guardo. Pensei primeiro em acusar Maturino, embora esse pequeno não seja guloso. Mas vi logo que não era ele. Para Zefinha, o armário era muito alto. João não gosta de chocolate. Mas, em compensação, gosta ela, a tal Mussia. Espreitei-a pela porta entreaberta uma manhã que estava sozinha a almoçar na sala de jantar, e era de ver como ela saboreava aquilo, não deixando nem gota no fundo da chávena!
- É ridículo e parece mal o que tu dizes, Joana-Maria! exclamou Armela em tom severo. -
Ainda bem que só eu te estou a ouvir! Enganaste-te com certeza na conta dos paus de chocolate!
- Pois é isso, eu não sei contar!... Ou então, fui eu que os comi. E eram capazes de acusar toda a gente, menos a ela, essa maldita hipócrita!
A velha criada estava furiosa, sendo em vão que Armela procurou acalmá-la. E, emquanto a a donzela se afastava, Joana-Maria resmungava ainda:
- Esta era capaz de se deixar devorar como um cordeiro por essa grande loba! E estão todos cegos, por desgraça! Muito mais cegos que o pequeno Pascal, que esse ao menos, não gosta dela! E Tugdual também tem as suas ideias. Temos de impedir que faça mal à nossa Armela. Eu tenho bons olhos, e bem vi como ela a fitava, ainda há pouco.
"Mas ficas por minha conta, minha excomungada!
E depois disto, Joana-Maria continuou a depenar o frango, resmungando palavras de ameaça.
À tarde, dirigiu-se com Armela à casa das Aves. Em pé no patamar de pedra cinzenta, Even vigiava a instalação de aves raras no viveiro de pássaros, havia muitos anos vazio, e que dera o nome à habitação.
- Vem por causa do famoso prato do meio, Joana-Maria? -disse ele para a velha, depois de cumprimentar Armela. - Vá até à cozinha, deve lá estar o chefe. Minha senhora, consente-me que a acompanhe aos aposentos de minha mãe?
- Irei cumprimentar a senhora de Rodennec mais logo, senhor; queria aproveitar agora, com o seu cozinheiro, esta lição, de Joana-Maria, - disse a donzela sorrindo.
- Está muito bem, minha senhora!... E que diria dum terceiro aluno, Joana-Maria?
- Palavra, se é o sr. Even, nada direi. Mas há alguém que eu não consentiria que me trouxessem...
- Mas quem?
com gesto discreto, Armela fez sinal a Joana-Maria para que se calasse: Mas não era fácil impor silêncio à velha recalcitrante, quando ela tinha vontade de falar.
- Não desejaria confiar os meus segredos a Mussia, é o caso; cada qual tem as suas ideias não é verdade?
Os lábios de Even entreabiram-se num leve sorriso.
- Mas certamente, minha boa Joana-Maria!... Vamos então para a cozinha... E conte com a minha absoluta discrição.
-Que prova de extraordinária confiança lhe dá a nossa velha criada! - murmurou Armela
ao ouvido de Even, quando desciam para o subsolo.
- Sinto-me extremamente lisojeado, acredite... Mas diga-me, minha senhora, porque não trouxe a Zefinha?
- Zefinha mostrou-se esta manhã bastante caprichosa e malcriada com a mamã, e teve de ser punida severamente, tanto mais que o facto se repete já há algum tempo.
- Verdade? E a que atribuir essa mudança?
- Mas... não sei... Às vezes as crianças têem destes maus momentos, sem motivo...
Parecia embaraçada, e corou um pouco sob o olhar de Even.
O mancebo não insistiu. Chegavam também à cozinha, onde os aguardava o cozinheiro índio, homem baixo, magro e moreno, de olhar inteligente, que Joana-Maria mediu com ar de superioridade. A velha criada pôs-se logo em atitude de explicar a confecção da sua obra-prima, e de a preparar em seguida com mão hábil. Armela ouvia e olhava com atenção... e Even olhava Armela.
Joana-Maria estava na última fase das suas explicações, quando a porta se abriu devagarinho, deixando aparecer uma cabeça de cabelos cor de linho. A criada interrompeu-se bruscamente, e o sr. de Rodennec não pôde evitar um franzimento de sobrancelhas.
- Oh! perdão, - disse a voz cantante de Mussia, - Maturino acaba de dizer-me que Joana-Maria estava aqui, e como a senhora de Rodennec mostrou no outro dia desejos a Armela de que o seu chefe de cozinha fosse iniciado na confecção dum certo prato delicioso, calculei imediatamente que era hoje o dia da lição. Nesse caso, vinha aumentar o número dos alunos de Joana-Maria.
Emquanto falava, num tom gracioso e doce, ia avançando para o meio da cozinha.
No seu vestido preto, algo flutuante, cuja gola decotada punha a nu um colo branco e fino, com os seus cabelos desmaiados negligentemente enlaçados na nuca, parecia muito mais nova e não deixaria de tornar-se atraente a olhos desprevenidos.
Joana-Maria, que mostrara tanto agrado a Even, cujas qualidades era a primeira a elogiar, tornou-se de súbito áspera e rezinguenta, ripostando com dureza:
- Não valia a pena incomodar-se, minha senhora. Está acabado... E, além disso, de nada lhe serviria a minha receita, porque não gosta de gulodices.
Brilhou nos olhos de Joana-Maria um clarão de zombaria. No rosto de Mussia houve um estremecimento imperceptível.
- Mas não é em mim que penso ao querer conhecer essa receita, minha boa Joana-Maria, - disse ela com o seu mais suave sorriso. - Seria um meio de ser agradável aos outros, e devemos aproveitar todos os ensejos que se nos oferecem, não acha, sr. Even?
Parece que o "celeste olhar", como dizia Dona Lazarina, não produziu efeito em Even, porque lhe respondeu com frieza levemente irónica:
- É certo, minha senhora, mas julgo que neste momento esbarra com uma cidadela inexpugnável. Joana-María não quer confiar-lhe o seu segredo.
- Mas a si, sr. Even...
- É um imenso favor que muito lhe agradeço, - respondeu a sorrir. - E Joana-Maria sabe que sou homem de segredo.
- com certeza que sei. Se assim não fosse, pode crer, sr. visconde, que não teria dito uma única palavra, - replicou Joana-Maria com majestade, fulminando com um olhar carregado Mussia, imperturbavelmente sorridente.
- Tenho então de desistir em absoluto de conhecer essa maravilhosa receita, Joana-Maria?
- perguntou ela num carinhoso tom de mágoa.
- Decerto, minha senhora, contente-se em saborear o petisco, - rematou Joana-Maria, com uma espécie de sorriso escarninho.
Mussia não insistiu. com ar de vivo interesse, informou-se do estado do senhor de Rodennec.
Depois Even acompanhou as duas donzelas ao salão em que trabalhava a condessa. Após a festa que se dera em honra do aniversário da avó, Armela julgou notar uma certa reserva na sua vizinha, pelo menos a seu respeito. Às vezes surpreendia fitos nela os olhos pretos da senhora de Rodennec, semelhantes aos de Even, e parecia-lhe ler neles uma perplexidade, um receio cuja causa ignorava. Bastava esta observação para roubar a Armela a sua expontaneidade habitual, quando agora se encontrava em frente da condessa, e havia alguns dias que tinha resolvido espaçar as visitas.
Naquele dia, encontrou a condessa quase glacial. A discreta solicitude de Even não conseguiu apagar essa impressão, e ia levantar-se, passados dez minutos, para sair, quando entrou o senhor de Rodennec seguido dum homem de meia idade, alto e forte, de comprida barba loira e fisionomia simpática.
- As meninas Arzen! Estou encantado por as encontrar, - disse com a cordialidade do costume. - Permitam-me que lhes apresente o senhor Arnzof, meu secretário, que acaba de chegar... mas é verdade, menina Mussia, é um seu meio-compatriota!
Even, que nesse momento olhava a donzela, julgou surpreender um lampejo de inquietação nos seus olhos claros, que fitaram rapidamente o estrangeiro. Este, depois de atentar discretamente nas duas primas, inclinou-se respeitosamente, pronunciando algumas palavras amáveis. Travou-se uma conversação entre todos. O senhor Arnzof falou da Rússia com Mussia, que pouco sabia do país natal de sua mãe, visto que a velha tia, em casa da qual passava as férias, nunca saía da aldeia.
- Em que parte da Rússia ficava essa aldeia? - perguntou o senhor Arnzof.
Ela teve uma imperceptível hesitação antes de responder.
- No governo de Kief.
Armela não prolongou a visita. A atitude da condessa incomodava-a e penalizava-a. Afastou-se com Mussia, a despeito das amáveis instâncias do senhor de Rodennec e de seu filho.
Pouco depois, o conde retirou-se do salão com o secretário. Even, cuja fronte parecia coberta de nuvens, aproximou-se de sua mãe e sentou-se junto dela, num canapé.
- Que tem contra Armela, querida mamã?
- perguntou num tom de grave censura.
Ela estremeceu ligeiramente, subindo-lhe às faces de cor mate um pouco de rubor.
- Não me atrevo a dizer-to, Even... Esta desconfiança parece-me tão odiosa!
Even estremeceu violentamente.
- Mas será capaz de pensar!... disse ele numa voz cuja veemente indignação não conseguiu dominar. - Essa admirável rapariga, tão recta e delicada!... Oh! como pode conservar um único instante no seu espírito essa ideia
horrível?
- Sim, chego a recriminar-me, digo para mim que é impossível. No entanto o misterioso desaparecimento desses alfinetes!... Ela passou precisamente no salão para ir buscar o chaile da avó...
Even pegou na mão da mãe.
- Nem uma palavra mais, suplico-lho! Não posso consentir que chegue a roçá-la sequer com a mais leve desconfiança! E a mamã será a primeira um dia a lamentá-lo quando tudo estiver a claro, quando a máscara arrancada puser à vista a culpada.
- Even, sabes acaso?...
- Nada quero dizer sem apresentar provas, minha mãe. Mas peço-lhe que não mantenha a menor suspeita a respeito de Armela! Ela é digna, mais que nunca, da sua afeição e da sua confiança. Acredite em seu filho, que sabe bem agora o juizo que deve fazer sobre o valor moral dessas duas primas tão diferentes.
- Quererás dizer então, Even, que... que Mussia...?
-Estude-a bem, mamã, - disse ele simplesmente. - E espero que não quererá pô-la em paralelo com Armela. Quanto a esta, nunca mais lhe mostrará semelhante frieza, não é verdade, querida mamã?
Com gesto acariciante, ela passou a mão pelos cabelos escuros de seu filho.
- Não, meu Even. Tenho confiança na tua perspicácia, e não pensarei mais nessa odiosa suspeita que me atravessou o espírito, não sei como... talvez por saber que Armela gosta muito de jóias.
- Ela? Quem lho disse?
- Foi Mussia. Ontem ainda, não sei a que propósito, falou-me disso.
Crispou nos olhos de Even um relâmpago de cólera.
- Que víbora essa encantadora família Arzen aquece no seio! - exclamou. - Parece-me que essa criatura é capaz de tudo, e chego a temer pela sorte de Armela, a quem ela odeia.
- Julgas isso, Even... e a esse ponto?
- Sim, não tenho a menor dúvida. Mas felizmente, eu vigio, Tug também... e a Joana-Maria está longe de a trazer no coração. É duma habilidade e duma velhacaria extraordinárias.
O que seria preciso era desmascará-la aos olhos do senhor Arzen e de sua mãe, completamente cegos. Será difícil, a não ser com provas absolutamente seguras. E, entretanto, essa boa Armela sofre profundamente, como o demonstra a sua fisionomia, desde algum tempo desfigurada.
- Sim, tenho notado, com efeito, que ela vai empalidecendo, tornando-se mais magra, e já não tem a costumada vivacidade. Mas tu ama-la muito, meu querido? - acrescentou ela com ternura.
- Sim, muito, minha mãe. Ela realiza tudo que eu sempre ambicionei nos meus sonhos mais belos. Se o papá e a mamã se não opuserem, será ela a minha mulher. Mas como não quero que em volta dela paire a mais leve sombra, esperarei, antes de lhes pedir consentimento, que todo este caso se esclareça, e que os manejos da mais velhaca das criaturas sejam postos a descoberto. Então, será a mamã a primeira a dizer-me:
"Sê seu esposo: ela é digna de ser nossa filha!"
HAVIA dias que a saúde de Armela preocupava "seriamente os seus. Tinha perdido o apetite, cansava ao menor esforço e todas as noites a acometia uma ligeira febre, que só a abandonava de manhã. Vinham-lhe também regularmente, quase todas as tardes, nevralgias atrozes. O dr. Dornoy falou a princípio em anemia, mas agora confessava não saber a que causa deveria atribuir o estado da donzela.
Armela não queria recolher ao leito. Continuava a trabalhar, a não ser nos momentos de grande prostração. Mussia era duma solicitude admirável em a tratar, em lhe evitar a fadiga, e Armela, em face de tanta dedicação, chegava a recriminar-se pela desagradável impressão que, havia algum tempo, sua prima lhe causava.
A senhora de Rodennec vinha todos os dias ver a sua jovem amiga, testemunhando-lhe uma simpatia talvez mais afectuosa ainda do que dantes. Pelo contrário parecia agora um tanto reservada com Mussia.
A avó, preocupada com o definhamento de Armela, tornava-se mais carinhosa para com ela. Mussia era a primeira a deixar a sua prima o primeiro lugar, o que não fazia diminuir a admiração que por ela tinha a senhora Arzen.
Depois que sua irmã adoecera, Tugdual tornara-se estranhamente sombrio. Rondava por todos os cantos da casa com as atitudes dum pele-vermelha que seguisse uma pista, e ficava longas horas a cismar no quarto, de cabeça entre as mãos. A própria Micaela não conseguia distraí-lo, e arreliava-se por já não ser considerada a sua confidente.
Passava pela casa Arzen um vento de tristezas e de inquietação. E parecia que chegava também à casa das Aves, onde Even mostrava uma fisionomia anciosa e carregada.
Uma tarde, contudo, Armela sentiu-se um pouco melhor, e, a instâncias da senhora de Rodennec, consentiu em dar um curto passeio de automóvel com sua mãe e a condessa, em marcha moderada. Mussia recusou acompanhá-las. Tinha de concluir um montão grande de saiotes para as crianças pobres visitadas pelas damas de caridade, e via-se obrigada a privar-se daquele prazer.
- E além disso, querida avózinha, prefiro ficar consigo, - acrescentou cariciosamente, quando se encontrou só com a senhora Arzen na sala de trabalho.
A avó beijou-a enternecidamente..
- Sempre boa e amável, minha querida! Também eu tenho grande prazer em ver-te à minha beira! Mas gostaria, ainda assim, que te distraísses um pouco!
- Oh! que me importa isso, avózinha? Desde que Armela esteja satisfeita, nada mais desejo.
Mas preciso de agarrar-me ao trabalho... já encontrou o trancelim que tinha perdido, avózinha?
- Não, minha filha. Receio que Joana-Maria o haja varrido, apesar de dizer que não! Como tu observaste no outro dia, é pouco cuidadosa e torna-se cada vez mais desagradável.
- No entanto, é delicada.
Sem dúvida. Nunca pensaríamos, por isso, em despedi-la. Faz parte da família... Que estás a procurar, Mussia?
- O seu cordãozinho, avó. Já remexi esta gaveta, mas pôde ser que me escapasse. Mas não, decididamente não está aqui. Se fosse procurar na mesa de trabalho de Armela? Podiatê-lo fechado, por esquecimento, naquela tarde em que lhe doía muito a cabeça.
- É possível. Vai ver, minha filha. Se não aparecer, preciso de comprar outro amanhã, porque tenho absoluta necessidade dele.
A mesa de trabalho de Armela era um lindo móvel de jacarandá e pau rosa, que lhe tinha dado como presente de boas-festas, sua madrinha, morta havia alguns anos.
Como a donzela trabalhava quase sempre no meio dos seus, deixava-a na sala em que todos se reuniam. A parte interior estava sempre bem arranjada, e Armela encontrava tudo que procurava à primeira vista. Mussia, porém, não estava a par daquela arrumação, e os seus dedos compridos, de unhas finas, deslocaram cuidadosamente todas as pequenas caixas, e objectos miúdos.
- Não, aqui também não está!... Ah! talvez ali, naquela pequena divisão fechada... Não, são bocados de seda, novelos de lã... Ah!...
A exclamação quase se estrangulou na garganta de Mussia.
- Então que é?-exclamou a senhora Arzen, já inquieta.
- Nada, avózinha... nada... é que...
Mas o embaraço, a alteração da voz impressionaram a senhora Arzen. Ergueu-se com a ligeireza que a idade lhe permitia, e dirigiu-se para a mesa.
- Mas então que há, Mussia?
A donzela, sem dizer uma palavra, apontou para a divisão. Ao fundo, entre sedas e lãs afastadas, cintilava um objecto. A senhora Arzen inclinou-se mais; os seus dedos, que repentinamente se haviam tornado trémulos, pegaram em qualquer coisa... eram os alfinetes de diamantes e safiras da senhora de Rodennec.
A velha senhora fez-se lívida, e as unhas quase se lhe cravaram no ombro de Mussia.
- Como se encontra isto aqui... Não compreendo, Mussia...
- Também eu não... avózinha, não trema assim! Armela explicará tudo... Talvez que os encontrasse...
- Encontrar? onde?... E, nesse caso, deveria entregá-los imediatamente à senhora de Rodennec!
- No entanto, avózinha... não pôde haver outra explicação.
No olhar desvairado da velha senhora leu Mussia uma angústia atroz. Como se respondesse a uma acusação por ela mesma formulada, a senhora Arzen murmurou:
- Não, não, é possível! Nunca ousarei pensar semelhante coisa!
De aspecto preocupado e triste, Mussia olhava-a com terna compaixão. Pálida e trémula, a avó colocou os alfinetes onde os tinha encontrado, fechou a tampa da mesa, e, voltando-se para Mussia, disse numa voz cuja agitação mal conseguia reprimir:
- Nem uma palavra seja a quem for, ouviste, minha filha? Armela dar-me-à as necessárias explicações, e tenho a certeza de que serão satisfatórias. E agora deixa-me só, tenho necessidade de reflectir.
- Não tenha receios, avózinha! Por mim, ninguém saberá nada! Pobre Armela!... Oh! não se aflija, querida avózinha, e pense na sua querida Mussia, que a ama tanto!
Lançou os braços ao pescoço da velha senhora, beijou-a, e saiu leve e silenciosa como uma sombra.
Armela e a mãe voltaram uma hora depois.
Parecia que o passeio tinha feito bem à donzela. Trazia a cor menos pálida e os olhos mais vivos. Entrou na sala de trabalho com um sorriso nos lábios, dizendo alegremente:
- Avózinha, trago-lhe algumas flores colhidas para si pelo senhor de Rodennec na estrada de Ervenc.
Mas o sorriso apagou-se-lhe ao ver o rosto severo e preocupado que se voltava para ela.
- Que tem, avó? - perguntou ela, subitamente inquieta.
- Sim, que tem, minha mãe? - interrogou também a senhora Arzen, que entrava.
Desenhou-se uma hesitação no rosto da velha senhora. O olhar perplexo envolveu o rosto encantador de Armela, parecendo mergulhar por momentos nos seus belos olhos azues, tão sinceros e límpidos...
- Preciso duma rápida explicação, minha filha, - disse-lhe com uma voz que, apesar de todos os seus esforços, estava perturbada. - Há pouco, procurando o meu cordãozinho na tua mesa de trabalho, onde supúnhamos que o terias guardado por engano, encontramos qualquer coisa... cuja presença ali não compreendo.
Perscrutava avidamente a fisionomia da neta..
Mas apenas podia decifrar nela a surpresa e uma certa inquietação causada pelo tom invulgar da avó.
- Qualquer coisa?... Mas quê, avózinha? Sem dizer uma palavra, a velha senhora levantou-se, abriu a mesa, afastou as lãs e as sedas...
Armela soltou uma exclamação de espanto,, à qual correspondeu o eco da voz da sua mãe, que se havia aproximado para ver.
Os alfinetes da senhora de Rodennec!
Patenteava-se na fisionomia de Armela um espanto intenso. Os seus olhos inquiridores, dilatados pela surpresa, voltaram-se para a avó.
- Que quer dizer isto, avózinha?
- Era o que eu desejava que me explicasses" Armela, - volveu friamente a velha senhora.
A donzela fez um movimento brusco.
Mas o olhar encheu-se-lhe repentinamente de angústia, e cobriu-lhe o rosto um rubor ardente...
- Avó... será possível... será possível que pensasse?... balbuciou com voz estrangulada.
- Não quero pensar em nada... Espero apenas que me expliques...
- Que quer dizer, minha mãe? - exclamou a senhora Arzen, saindo do seu primeiroespanto.
- Não digo nada... Mas a verdade é que é preciso justificar a presença aqui destas jóias.
Dos lábios descorados de Armela escapou um cortante grito de dor.
-Ah! julga então que fui eu... eu que roubei?... oh! avó!
Fugiu da sala, galgou as escadas, foi lançar-se de joelhos no quarto, diante da cama. Escondendo na coberta o rosto ardente, pôs-se a soluçar. Sua mãe seguiu-a, procurando acalmá-la com palavras ternas. Mas ela repetia:
- Oh! é horrível! é horrível! Quem faria aquilo?... E a avó julga-me capaz dessa coisa horrorosa!... E a mamã? sim, a mamã?
- Ó minha filhinha, nada receies, sei bem que és sempre a minha Armela tão recta e delicada, incapaz do menor compromisso de consciência. E tua avó está disso tão convencida como eu. com certeza já se arrependeu de te falar assim.
- Sim, mas emquanto se não explicar tudo, ela duvidará. E como explicar-lho, visto que nada sei? Quem poria ali esses alfinetes? Quem...
Interrompeu-se. O seu olhar havia-se encontrado com o da sua mãe, e compreenderam ambas que lhes atravessava o espírito o mesmo pensamento.
- Oh! isso era horroroso! - murmurou Armela.
- Abominável! Mas há algum tempo que abro os olhos, e desconfio. Ouve, Armela: vou contar tudo a teu pai, dar-lhe parte das nossas observações...
A donzela torceu as mãos.
- E se o papá também acredita?...
- Não tenhas esse receio, minha filha. Teu pai conhece-te bem. E a tua avó, mesmo, repito, não te acusa. Vamos, deita-te depressa. Tens febre, queridinha.
- Mas, mamã, como havemos de proceder para entregar as jóias? - interrogou com angústia.
- Procuraremos um meio. Nada receies, nem te aflijas, minha filha, suplico-to! Nós descobriremos todas estas maquinações, pois é preciso que a culpada seja conhecida.
- Seja o que for, nunca poderei esquecer que a avó, a querida avó que eu tanto amava, desconfiou de mim - murmurou a donzela com um estremecimento de dor.
Estava pálida e trémula, parecendo que não podia aguentar-se em pé. A instâncias da mãe, recolheu ao leito. Uma hora depois, Joana-Maria ia à pressa chamar o dr. Dornoy. Armela estava em delírio, queixava-se constantemente, levando a mão à cabeça. Este último abalo fora demasiado forte para o seu organismo debilitado. E, quando Mariquinhas e os irmãos voltaram do colégio, souberam que a irmã mais velha estava muito doente.
Em três pulos, Tug subiu as escadas. Esbarrou com a avó, que saía do quarto de Armela com lágrimas nos olhos, porque a donzela, ao vê-la junto do leito, manifestou tão viva agitação que teve de retirar-se imediatamente.
- Avó, que tem ela?
- O doutor ainda se não pronunciou...
Receia uma febre cerebral...
- Mas que houve?... Ela estava melhor esta manhã...
Interrompeu-se ao ver Mussia, que aparecia nas escadas. Trazia cautelosamente uma chávena duma infusão. Brilhou um relâmpago nas pupilas de Tug. Mal a prima chegou ao alto das escadas, correu para ela, apoderou-se da chávena e enguliu o conteúdo dum trago.
- Tug, que quer dizer isso?... - exclamaram ao mesmo tempo a senhora Arzen e sua neta.
Mas Tug fugiu para o seu quarto, levando a chávena, em cujo fundo ficara um pouco de líquido. Fechou-se à chave, recusando abrir à avó e repetindo obstinadamente:
- Desta vez não posso obedecer-lhe, avó; perdoe-me, castigue-me quando quiser mas o que faço, tenho de o fazer.
Passada uma hora, desceu cautelosamente à cozinha, lançando em roda olhares desconfiados.
Joana-Maria estava só. Entregou-lhe a chávena embrulhada com muito cuidado, e disse-lhe em voz baixa!
- Confio-te isto. Vais escondê-lo no armário do teu quarto, imediatamente, tendo cuidado de que ninguém te veja, porque no meu quarto nada posso fechar em termos. E, se eu amanhã estiver doente, farás notar que fui eu que bebi a tisana que Mussia levava a Armela.
A velha encarou-o aturdida.
- Que história vem a ser essa, menino?
- Não tens necessidade de me compreender por emquanto. Mas não consintas que ninguém, a não seres tu, leve a Armela as tisanas ou qualquer coisa de que ela precise.
- Meu Deus! que ideias são essas, Tug? E porque há-de estar amanhã doente?
- Veremos! replicou laconicamente o rapaz, que voltou costas e desapareceu.
NAQUELA mesma tarde, os Rodennec souberam "que a doença de Armela se agravara. No dia seguinte de manhã, muito cedo, Even estava na casa Arzen, pedindo informações a Joana-Maria com uma ansiedade que não conseguia dissimular.
A velha serviçal, cuja fisionomia estava transtornada, comunicou-lhe que a sua jovem ama nem estava pior nem melhor. O dr. Dornoy nada dizia ainda, mas mostrava-se apreensivo.
- E aconteceu que Tug também se encontrou mal esta noite! - acrescentou Joana-Maria. - Ele que nunca teve nada,
- Tug! É extraordinário, com efeito! Mas que tem?
A criada tomou uns ares um tanto embaraçados e misteriosos.
- Tenho cá umas ideias a esse respeito, senhor, mas nada posso dizer por emquanto. Enfim, o pobre pequeno esta manhã está melhor e já fala em levantar-se.
- Diga-lhe que o virei ver à tarde, Joana-Maria.
- Ficará radiante, senhor.
Even retirou-se pensativo. Tinha descoberto na velha criada reticências que lhe davam que pensar. Aquele súbito agravamento da incompreensível doença de Armela, o inexplicável mal-estar do robusto Tugdual, tudo aquilo era muito singular.
Voltava para casa, distraído e preocupado e quási esbarrava no vestíbulo com o senhor Arnzof, o secretário de seu pai.
- Ah! perdão! Não tinha dado pela sua presença! - disse Even, estendendo-lhe a mão.
- Ia precisamente procurá-lo, para me conceder uns momentos de atenção.
- Da melhor vontade. Venha daí.
Conduziu o secretário aos seus aposentos e introduziu-o num salão mobilado à oriental, decorado com peles de tigres, objectos preciosos, soberbos tapetes do Oriente. A convite do mancebo, o senhor Arnzof sentou-se. Parecia muito agitado e respirou profundamente antes de falar.
- Ora eis aqui do que se trata, senhor Even: Esta manhã, quando saía, encontrei o distribuidor. A meu pedido, entregou-me a minha correspondência, que constava apenas de jornais. Mas ao abrir há pouco um deles, encontrei uma carta que se tinha metido nas dobras. Era dirigida a Dona Mussia Arzen. Mas a letra do sobrescrito fez-me estremecer. Essa letra tão característica, tão diferente de todas as outras, era...
Respirou de novo com mais força, e concluiu em voz baixa:
- Era de minha irmã.
- O senhor tem uma irmã? - perguntou Even com surpresa, porque o secretário nunca falava de sua família.
- Sim, senhor, infelizmente! Taciana filiou-se, muito nova, numa sociedade de milistas, e desde então considerou-se perdida para seus pais e para mim. É uma tresloucada, que julga cumprir um dever fazendo-se cúmplice, e, quem sabe, talvez executora, por vezes, de crimes horrorosos.
Procurei muitas vezes reconduzi-la ao caminho do bem, mas sempre em vão. Da última vez que a vi, há dois anos, encontrei-a em Moscou, numa casa que ela me tinha indicado.
Ao subir as escadas, cruzei com uma rapariga que evidentemente saía da sua casa, e cujas feições pude descobrir, apesar do véu que lhe ocultava o rosto. Ora calcule o meu espanto ao notar outro dia uma singular semelhança entre Dona Mussia e ela.
Even deu um pulo na cadeira.
- Encontraríamos a boa pista? Mas, nesse caso, tê-lo-ia ela reconhecido? Ora eu nada notei no momento em que lhe foi apresentado, salvo talvez uma leve inquietação no olhar.
- Não desejando por forma alguma comprometer-me, disfarcei-me para ir ver Taciana. Não podia, pois, reconhecer-me. Nada quis dizer porque aquela semelhança podia ser fortuita. Mas esta carta, se realmente vem de Taciana, e a letra não pôde deixar de ser a dela, dar-me-ia a certeza de que essa rapariga e a que saía de casa de minha irmã são uma e a mesma pessoa.
- Nesse caso... seria também uma niilista?
- É possível, e até muito provável. Se assim não fosse, não teria relações com Taciana, cujas doutrinas e actos lhe causariam horror.
"Em todo o caso, essas relações são excessivamente perigosas, e julguei de meu dever falar-lhe, senhor, para que veja se será conveniente prevenir o senhor Arzen do perigo que para ele e para os seus representa a presença dessa rapariga. Desde que ela se corresponde com Taciana, é porque continua a seguir as mesmas doutrinas.
- É terrível! Sim, devo preveni-lo... Mas é um caso muito delicado, senhor Arnzof; porque, se essa carta, no fim de contas, não fosse de sua irmã?
- É a sua letra, tenho a certeza disso! Não há nenhuma diferença, por pequena que seja! Confrontei-a, apesar de tudo, com outras que ainda conservo. Aqui as tem. Veja, senhor.
Após um minucioso exame, Even reconheceu, com efeito, que não podia haver dúvidas.
- Quer entregar-me tudo isso? - perguntou ele. Esta tarde falarei com o senhor Arzen, e comunicar-lhe-ei a sua descoberta, a qual, aliás, não me causa grande espanto, porque a minha desconfiança a respeito dessa rapariga aumentava dia a dia. Mas que tristeza para esses pobres amigos, se nós virmos bem!
- Oh! calculo por mim! - murmurou o senhor Arnzof.
Even pegou-lhe nas mãos e apertou-as fortemente.
- Obrigado por não ter hesitado em dar-me a conhecer o seu doloroso segredo para prestar um serviço a esses amigos que profundamente estimo. Mas esteja descansado que saberei guardar esse segredo, e pelo senhor Arzen posso também tomar a responsabilidade.
- Perfeitamente, senhor! Conheço bem a sua delicadeza, e, apesar de ter visto poucas vezes o senhor Arzen, já adivinhei que é um perfeito homem de bem. Essa Mussia, ao contrário, desagradou-me desde o primeiro momento.
- E todos estão rendidos de admiração diante dela!... Todos, não, porque Tug detesta-a desconfia. Acabo de saber que também ele está doente.
- Ah! sim? E a irmã como vai?
O rosto de Even ensombrou-se.
- Muito mal ainda. É exquisita essa doença, que ninguém compreende!... E agora Tug!... Mas não, eu não quero pensar nisso!
O senhor Arnzof abanou a cabeça.
- Se está filiada nos Vingadores vermelhos, todas as desconfianças podem ser permitidas, - disse ele tristemente.
- quer então dizer que...
- Não quero dizer nada, senhor, antes de saber se verdadeiramente adivinhei.
- Mas o senhor faz-me entrever horizontes pavorosos! - murmurou Even, bastante pálido.
A tarde, Tugdual sentia-se melhor. Teimara em levantar-se e sentara-se junto da janela aberta. Apresentava o rosto pálido e alterado, mas brilhava-lhe nos olhos um clarão de contentamento. Tinha a consciência de haver cumprido o seu dever, na véspera, e de ter dado um grande passo na obra a prosseguir por ele e pelos seus aliados. Naquela manhã, em presença de Joana-Maria, contara a seu pai e a sua mãe o que se passara com a chávena de tisana. Depois Joana-Maria entregara solenemente a prova do crime. Como nesse intervalo chegara o dr. Dornoy, o senhor Arzen teve uma conferência com ele, em resultado da qual o médico partiu, levando a chávena, em cujo fundo havia ainda um pouco de líquido.
- Parece-lhe que seria veneno, papá? havia perguntado Tug.
- Não sei... nem me atrevo a pensá-lo! respondera o senhor Arzen, a quem a revelação do filho parecia aturdir completamente.
Não disseram uma única palavra à avó, já afectada pela doença de Armela, e que naquela tarde recolhera à cama. Mas, emquanto Tugdual sorvia à janela o ar fresco daquele dia de outono, o senhor Arzen e sua mulher falavam em voz baixa no gabinete do notário. A senhora Arzen contava todas as suas observações a respeito de Mussia, falava da mudança da avó com respeito a Armela. E aquela descoberta dos alfinetes na mesa da donzela! Que mão criminosa poderia colocá-los ali, a não ser a de Mussia?
O pobre senhor Arzen estava abismado! Também ele, como sua mãe, tivera uma espessa venda nos olhos.
- Mas é horrível! Como acreditar em semelhante coisa? - repetia.
Bateram à porta, e apareceu um dos empregados, dizendo que o visconde de Rodennec lhe desejava falar.
- Que faça o favor de entrar, - disse o senhor Arzen.
A mulher desapareceu, quando Even entrava.
O notário avançou, de mão estendida, para o jovem vizinho. E, reciprocamente, notaram a alteração das suas fisionomias.
- Como vai a menina Armela? - perguntou logo Even com voz ansiosa.
- Um tanto melhor, há uma hora. O doutor espera que ela entre numa fase mais tranquilizadora.
- E Tug?
- Está melhor também, muito obrigado. Mas que noite nós passamos, com os dois filhosdoentes!
- E a que atribuem o mal-estar de Tug?
O senhor Arzen teve um estremecimento, que não escapou ao olhar arguto de Even.
- Não sei bem... uma digestão má, talvez...
Even não insistiu. Mas, tirando a carta do bolso, entregou-a ao senhor Arzen.
- Foi encontrada por engano no correio do senhor Arnzof, e vinha trazer-lha.
- Oh! é para Mussia, da sua amiga russa,, disse o notário.
- Ela tem lá uma amiga?
- Tem, e escrevem uma à outra frequentes vezes. É filha dum médico, parece, e conheceu-a em Bagleff, a aldeia em que habitava sua tia. Os pais dessa rapariga tinham ali uma pequena propriedade, onde passavam o estio.
- Como se chamavam eles?
- Varénine, se bem me recordo.
- Nunca se lembrou de tirar informações a respeito dessa amiga?
- Não, minha mãe tinha toda a confiança em Mussia... e eu também.
-Perdoe-me, se sou indiscreto, - disse resolutamente o mancebo. - É unicamente a minha profunda estima e a minha afeição por todos que neste momento me guiam. Eis o caso em duas palavras: o senhor Arnzof julga reconhecer nesse sobrescrito a letra de sua irmã, niilista das mais perigosas.
O senhor Arzen estremeceu violentamente.
- Também só faltava isso! Terá minha mulher razão?
- A senhora Arzen desconfia de sua sobrinha?
- Desconfia... Tem umas suspeitas... Eu não queria acreditar, é uma coisa horrorosa! Mas, se,, de facto, ela tem semelhantes relações... Ouça-me: eu sou o seu tutor, ela é menor, tenho o direito de abrir esta carta.
Even inclinou afirmativamente a cabeça. O senhor Arzen rasgou o sobrescrito com mãofebril e tirou uma folha do papel escrita em língua estrangeira.
- Ora! está escrito em russo!
- Permite-me que lha traduza? - propôs Even.
O senhor Arzen estendeu-lhe a carta nervosamente, e Even começou:
"Decididamente, minha querida, chego a convencer-me de que tens segredinhos para a tua amiga Taciana. Para que poderão servir os pós que, a teu pedido, te enviei? Poderias logo dizer-mo por meias palavras. Em vez de o fazeres, porém, contas-me uma história inverosímil em que não podia por forma alguma acreditar. E em que ficaram as tuas esperanças de casamento com esse vizinho rico? Arranja as coisas o mais depressa que puderes, porque tenho necessidade de dinheiro, e estou menos disposta que nunca a esquecer a tua promessa. Desejo guardar silêncio, mas tenho de ser compensada. Ora tu como não tens um chavo, e os teus pretensos parentes não dispõem de fortuna, só poderás tirar-te de apuros com um bom casamento. Desposa rapidamente o teu visconde e prepara as coisas por forma que ele te estabeleça um grande dote. Realizarás assim um belo sonho, Lídia! Jamais a modesta prima de Natália Varénine poderia esperar semelhante coisa. E é preciso que com isso aproveitem os teus camaradas, e principalmente esta boa Taciana, que te auxiliou poderosamente. Se não fosse eu, minha pombinha, não passarias ainda de Lídia Galgof, isto é, duma infortunada da minha espécie.
Nunca te esqueças disto.
Responde-me rapidamente, e informa-me "também a respeito dos pós que me pediste. Tenho remorsos. Tudo faria pela "causa", mas, fora disso, há actos que me repugnam, e até tu és capaz de praticar a sangue-frio.
Even fizera esta leitura em voz baixa e trémula.
Ao terminar, ergueu a cabeça e encontrou na sua frente um olhar horrorizado. Os dois homens estavam igualmente lívidos.
- Mas que espécie de criatura é esta? - balbuciou o senhor Arzen. - E esses pós?... Teria Tug adivinhado?...
- Tug?... Adivinhado o quê?...
- Quê... que Armela estava a ser vítima duma tentativa de envenenamento. Havia tempo que o dedicado rapaz tinha desconfianças, e para se convencer, entendeu que o melhor era ingerir a tisana que Mussia levava a minha filha ontem à tarde. Ora ele esteve seriamente incomodado esta noite.
- Bravo rapaz! - exclamou Even, muito comovido. - tão bom e inteligente como heróico Sim, ele adivinhou bem, e aqui temos a prova! Essa abominável criatura, pois que assim a considero há muito tempo, odiava a menina Aimela. Para a suprimir do seu caminho, não hesitou diante dum crime.
- E é a filha de meu irmão! - murmurou o senhor Arzen com voz apagada.
Even abanou a cabeça.
- Não me convenço disso! Porque é que Taciana lhe chama Lídia e fala dum segredo entre elas? Deve existir, com certeza, uma tenebrosa maquinação.
- Oh, se assim fosse!... Se ao menos essa miserável não pertencesse à nossa família! Mas oxalá que a minha pobre Armela...
A voz estrangulou-se-lhe na garganta.
- Oh! não, não, ela há-de sarar! Confio que Deus lha deixará, essa filha amantíssima, que é o encanto de sua casa! E para ter também o direito de protegê-la contra a sua odiosa inimiga, seguro antecipadamento do consentimento de meus pais, peço-lhe, senhor, a mão da menina Armela.
O senhor Arzen olhou-o um pouco aturdido.
- Mas então o senhor quer?...
- Sim, peço-lhe.encarecidamente. Dir-lhe-á que tenho por ela uma grande afeição, que a tornarei muito feliz!...
O notário apertou-lhe vigorosamente as mãos.
- Não duvido! O senhor é digno de toda a nossa estima, e não posso dizer-lhe com que alegria lhe confiaremos a nossa Armela. Mas ela está enferma, infelizmente! E, se na verdade se trata de veneno, quem sabe que perturbações poderão resultar no seu organismo!
- Não se aflija. Nós havemos de curá-la. Fale-lhe o mais depressa possível, fale também à senhora Arzen; por minha parte, vou prevenir meus pais. É preciso que sejamos noivos o mais depressa possível. E então essa criatura, vendo logradas todas as suas esperanças, talvez que espontaneamente se dê a conhecer. Não posso acreditar que ela seja uma Arzen! Repare bem nas alusões que se fazem nesta carta e na ameaça que ela oculta... Mesmo que não queira falar, poderemos informar-nos da sua verdadeira personalidade por intermédio do senhor Arnzof. Essa Taciana precisa de dinheiro; ser-lhe-á dado em troca das revelações que fizer sobre a falsa Mussia.
- Oxalá que o senhor acerte nas suas previsões. Mas como deveremos proceder, para tentar arrancar-lhe a verdade? O incidente provocado por Tug deve tê-la posto de sobreaviso, deve recear que o seu crime seja descoberto.
Os dois homens conferenciaram longamente. Não tardou a reunir-se com eles o dr. Dornoy, que trazia o rosto grave e preocupado. Ao sair do conciliábulo, o senhor Arzen foi ter com sua mulher, que descansava um pouco no quarto próximo ao de Armela. Pouco tempo depois, dirigiu-se para o quarto de Mussia.
A jovem trabalhava numa aguarela que devia ser oferecida a Armela por ocasião da sua festa, como pouco antes havia comunicado a sua tia. À entrada do senhor Arzen, percorreu-lhe o semblante um imperceptível estremecimento. Mas levantou-se com graciosa solicitude, entreabrindo-lhe os lábios um sorriso de bom acolhimento.
- Preciso de falar-lhe, Lídia, - disse friamente o senhor Arzen.
Fez um movimento brusco, e empalideceu um pouco.
- Lídia? Porque me dá esse nome, meu tio? - interrogou ela com uma voz cuja tranquilidade aparente já não enganava o senhor Arzen.
- Porque é esse o seu nome, Lídia Galgoff... E não me chame seu tio, porque o não sou, - disse o senhor Arzen, um pouco à ventura, porque lhe faltava a certeza a esse respeito.
O rosto de Mussia empalideceu mais ainda. Mas ruborizou-se de súbito, e nos olhos apagados incendiou-se um clarão de revolta.
- Pois que? Pretende renegar a infeliz órfã, cujo único abrigo é o seu teto? Que lhe fiz para justificar essa atitude, meu tio?
- Começou por semear a perturbação na nossa família, tão unida antes da sua chegada; indispôs Armela com a sua avó... e, para coroar a sua obra, tentou envenenar a minha pobre filha.
Mussia teve uma exclamação de horror, admiravelmente fingida.
-O senhor atreve-se!... oh! é abominável! Dizer-me isso de cara, a mim que tanto quero a Armela!
- Cale-se, miserável hipócrita! - exclamou o senhor Arzen, não podendo conter-se. - Graças a Tugdual, temos as provas do seu crime. No líquido que ficou no fundo da chávena, encontrou o dr, Dornoy o veneno que esta noite fez adoecer meu filho, e que pouco a pouco a senhora ministrava a Armela.
O rosto de Mussia alterou-se repentinamente.
Mas, levantando a cabeça, ela contestou, num tom de desafio:
- E quem lhe disse que fui eu? A tisana não foi preparada pela minha mão.
- Não; mas como é impossível acusar a nossa fiel Joana-Maria, e era a senhora quem a levava à doente... Além disso, numa carta de que acabo de tomar conhecimento, fala-se duns certos pós a respeito dos quais a sua correspondente manifesta remorsos, pois receia que os haja destinado a um fim criminoso.
Passou nos olhos de Mussia um lampejo de terror.
- Uma carta? Que carta? - perguntou com voz alterada.
- Está assinada por T. A. e é muito instrutiva. Por ela soubemos que a senhora não passa duma aventureira, que tem usado criminosamente do nome de Arzen.
Por alguns momentos, Mussia mostrou-se sucumbida sob a pesada acusação formulada pelo senhor Arzen, no tom dum homem que tem a certeza do que diz. Mas aprumou-se novamente e assumiu um aspecto arrogante, brilhando-lhe nos olhos um surdo furor.
- Ah! o senhor acredita? E as provas?... onde estão as provas?
- Hei-de fornecê-las a quem de direito, não se aflija. A justiça vai ser avisada da sua tentativa de envenenamento.
A cor lívida acentuou-se no rosto de Mussia.
Mas tentou recorrer ainda à audácia...
- Pois seja, acuse-me! Por meu lado contarei também como os alfinetes da senhora de Rodennec apareceram na mesa de Armela.
- Pode contar à sua vontade, miserável!... Pode contar tudo quanto quiser. Mas a senhora de Rodennec revelará igualmente as pérfidas insinuações que lhe fez a respeito da pretensa paixãode Armela pelas jóias; seu filho dirá como surpreendeu os seus olhares e os seus gestos de cobiça quando lhe mostraram as jóias da condessa. Sim, pode repetir as suas mentiras diante da justiça, mas nós não as recearemos, e havemos de desmascará-la, miserável hipócrita!
Só acontecimentos muito graves podiam arrancar o tranquilo senhor Arzen à sua calma habitual. Mas desta vez estava visivelmente fora de si. Já não duvidava da culpabilidade da falsa Mussia, e tinha a convicção de que nenhum parentesco a ligava à sua família.
Compreendia, contudo, como era difícil obter explicações e uma confissão. com efeito, a donzela ripostava tranquilamente à sua ameaça:
- Está bem! A justiça decidirá! E há-de arrepender-se de ter tratado sua sobrinha dessa forma.
- Minha sobrinha! Não, a senhora não o é, e havemos de prová-lo! Entretanto, fica fechada, para que não possa prejudicar ninguém!
E, juntando o gesto à palavra, o senhor Arzen saiu do quarto dando uma volta à chave da fechadura.
NA tarde desse dia, a senhora de Rodennec veio em seu nome e no do marido fazer o pedido oficial aos pais de Armela. Não foi sem hesitação que o conde e ela acederam aos desejos de seu filho. Armela agradava-lhes infinitamente, mas, como o senhor Arzen, receavam as consequências que para a donzela podia ter o lento envenenamento de que, havia tempos, era vítima.
No entanto, em face das instâncias de Even, resolveram fazer-lhe a vontade.
Os esposos Arzen receberam a condessa e renovaram lealmente as objecções já feitas ao mancebo.
- Devo esclarecer, contudo, - acrescentou o senhor Arzen, - que o dr. Dornoy me afirmou não duvidar do restabelecimento de Armela, havendo os devidos cuidados, e com um tratamento apropriado, bons ares, e distracções.
Mas, no entanto, seria mais prudente esperar.
Não queria que o sr. Even pudesse um dia ter o menor motivo para nos censurar.
- Nunca os poderá censurar, porque é ele que assim o quer. Nosso querido filho deplora ter sido a causa, embora involuntária, do ódio encarniçado que Mussia votava a sua filha. Essa criatura imaginou provavelmente que, não existindo Armela, poderia com facilidade tornar-se viscondessa de Rodennec, e entendeu que o melhor que tinha a fazer era suprimir o obstáculo. Ora Even, com a sua afeição, com as atenções que dispensará à noiva, deseja concorrer para a sua cura.
Um quarto de hora depois a condessa era introduzida no quarto de Armela. A donzela estava melhor nessa tarde, tendo desaparecido o perigo da febre cerebral. O fino rosto pálido iluminou-se de alegria e felicidade quando a senhora de Rodennec, depois de a ter beijado, lhe disse que vinha pedir-lhe fosse esposa de Even, e, portanto, sua filha.
A donzela objectou, contudo:
- Mas estou doente...
- Isso não é nada, querida, vai curar-se depressa. Even há-de auxiliá-la. Vamos, diga-me que sim depressa, minha Armela!
- Oh! Sim, sim!... Serei tão feliz! - disse Armela, apoiando a face repentinamente rosada no ombro da amável senhora.
Ao saber da notícia, Tug deu um pulo na cadeira de braços, apesar da fraqueza que lhe ficou do mal-estar da noite antecedente.
- Ora é isso mesmo! Viva meu cunhado e viva a nossa Armela! A pobre irmã bem o merece. Mas sempre queria ver a cara que vai fazer essa maldita Mussia, quando o souber.
Esse desejo de Tug não poderia ser satisfeito, porque, no dia seguinte de manhã, quando Joana-Maria entrou no quarto de Mussia para lhe levar o primeiro almoço, o pássaro tinha batido as asas.
A rapariga havia fugido, com certeza pela janela, o que era fácil, porque se encontrava por baixo o teto da lavandaria. Vendo-se descoberta, não julgara prudente que a justiça se intrometesse no caso..
Com mil precauções, informaram a velha senhora Arzen do que se passava. Foi um golpe terrível para a pobre avó. A princípio não quis acreditar. Teve, contudo, de render-se à evidência, ao ler a carta de Taciana e ao saber da fuga da que tinha chamado sua neta.
- Então não era a filha de Gustavo? exclamou.
- É essa a minha profunda convicção, - respondeu o senhor Arzen. - Não temos, contudo, certeza absoluta a esse respeito. Mas o senhor Arnzof fez-me há pouco o oferecimento de partir imediatamente para Petersburgo, e tentar descobrir o paradeiro de sua irmã, afim de lhe arrancar a verdade com respeito a Mussia. Esta é beneficiada ainda com a incerteza em que estamos, porque, se estivesse inteiramente convencido de que ela não é filha de meu irmão, denunciá-la-ia imediatamente à justiça.
- Oh! não, não! - disse a avó mortificada pelo desgosto. Deixa-a ir, e oxalá que nunca mais ouçamos falar dessa desgraçada.
- Sim, desejaria impedir que fosse fazer mal para outra parte. É uma envenenadora, nem mais nem menos, e era bem tempo de descobrirmos o crime, para evitar a morte da nossa pobre Armela.
A velha senhora estremeceu e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, que lhe correram pelas faces enrugadas. Recriminava-se agora amargamente pela confiança que concedera à embaidora.
Dona Lazarina caiu também das nuvens ao conhecer a indignidade daquela que tanto elogiava. E não foi só com ela que esse facto se deu em Losbéleuc, onde Mussia, com o seu ar meigo e simples, as suas hábeis lisonjas, a hipócrita modéstia que a caracterizava, tinha criado inúmeras simpatias.
-Eu é que nunca simpatizei com ela! declarava o dr. Dornoy. - E nunca pude compreender o entusiasmo de minha irmã.
A senhora de Rodennec, arrependida de ter desconfiado por momentos de Armela, por causa dos alfinetes desaparecidos, não sabia que mais fazer para animar a sua futura nora. A convalescença da jovem enferma fêz-se rapidamente,, naquela atmosfera de afeição e de alegria tranquila.
Tug tornara-se entre os seus uma espécie de herói. O bom rapaz não se vangloriava com isso, e contentava-se com fruir um pouco da felicidade de sua irmã mais velha e do seu amigo Even, o único a descobrir, como ele, a hipocrisia de Mussia.
A respeito desta, foram conhecidas por intermédio do senhor Arnzof todas as informações necessárias. Era filha duma irmã da falecida senhora Gustavo Arzen. Órfã de pai e mãe, fora educada, como sua prima, a verdadeira Mussia, por sua tia comum. Foi ali que ela conheceu Taciana Arnzof, muito mais velha, e que não tardou a dominá-la, mas sem poder confiar muito na sua natureza esquiva, cuja velhacaria pouco a pouco foi reconhecendo.
Uma tarde, Mussia Arzen deitou-se, tomada por uma súbita indisposição. Lavrava a esse tempo na região uma epidemia que fazia numerosas vítimas e ocasionava mortes às vezes fulminantes. Mussia tinha sido certamente atingida por essa doença, porque morrera durante a noite.
Acudiu então uma idea ao espírito de Lídia.
As duas primas pareciam-se muito. Porque não seria Lídia dada por morta, fazendo-se passar na realidade por Mussia, ficando-lhe a esperança de ser um dia adoptada e dotada pela família francesa desta, admitindo a hipótese de Gustavo Arzen persistir em não se preocupar com sua filha, enviando-lhe apenas o necessário para o seu sustento?.
Consultada, Taciana aprovou o plano. Deram parte à tia, que a princípio se mostrou mais resistente. Era, contudo, uma natureza fraca, sobre que Lídia exercia uma certa influência..Cedeu, por fim, e foi levada ao cemitério a pretensa Lídia Galgoff.
Pouco tempo depois, o senhor Arzen, resolvendo cuidar de sua filha, mandou-a vir para França e colocou-a num colégio, para completar, embora tardiamente, a sua educação.
Inteligente e de espírito assimilador, Lídia fizera admiráveis progressos em dois anos, conquistando a simpatia das professoras, que, a seu respeito, fizeram um entusiástico elogio ao senhor Arzen e a sua mãe quando, após a morte de Gustavo, pensaram em trazer a órfã para Losbéleuc.
Tudo se explicava, pois, e foi um grande alívio para os Arzen a idea de que essa criatura traiçoeira e criminosa nenhuma ligação tinha com a sua família. O notário mandou então procurar a aventureira. A polícia conseguiu saber que embarcara em Saint-Nazaire para os Estados Unidos. Mas, em Nova-York, perdiam-se os seus vestígios. E os Arzen nunca mais ouviram falar dela.
O casamento de Even e Armela realizou-se num belo dia de fim de outono. Foi um acontecimento na terra. Os Rodennec tinham-se mostrado duma generosidade real para com os dirigentes de Losbéleuc, e o bom reitor estava em extática admiração diante dos ornamentos e vasos sagrados oferecidos pelo futuro esposo. A igreja não pôde conter toda a assistência, que trasbordava para o adro. Contemplavam avidamente os recém-casados, tão novos e belos, e a condessa de Rodennec, muito formosa ainda e tão elegantemente vestida. Mas um dos donzéis de honor obteve também um triunfo. Foi Tugdual, que conduzia Micaela, toda garrida no seu vestido azul pálido e um pouco ufana do lindo bracelete que lhe oferecera a noiva nessa mesma manhã.
- Foi aquele que bebeu o veneno para salvar a irmã! - cochichava-se.
Tug espraiava pela assistência o seu olhar claro e franco, sem timidez mas também sem orgulho. E essa fisionomia simpática provocou num velho cliente de seu pai esta reflexão:
- Eis aí um rapaz que há-de ser um grande homem de bem e que continuará dignamente a descendência dos Arzen.
A dolorosa recordação da malvada criatura, que usurpara o lugar de Mussia Arzen devia pairar por longo tempo na habitação do notário. Em todos ela deixara uma ferida. E a da avó era mais larga, mais cruenta que as outras. Só cicatrizou verdadeiramente no dia em que recebeu em seus braços um pequeno Tugdual Rodennec. Pais e avós haviam declarado todos, por comum acordo, que Tug era bem digno de ser padrinho, sendo madrinha a senhora de Rodennec. Tug apreciou essa honra no seu justo valor, e foi certamente do fundo do coração que fez ao nome do recém-nascido as promessas do costume. Como disse Armela a seu marido, aquele não seria um padrinho meramente decorativo, mas saberia cumprir o seu dever junto do pequenino Tug, se um dia lhe faltassem os seus protectores naturais.
Numa tarde de verão, as duas famílias encontraram-se reunidas no terraço da casa das Aves.
Josefa, que se esquecia de Kif-Kif após o nascimento daquele a quem pomposamente chamava "meu sobrinho", caíra em êxtase diante da criancinha adormecida nos joelhos de Armela. Sentado junto de sua irmã, Tug contemplava também o afilhado. Bobby apareceu nesse momento, fazendo grande barulho, como tinha por hábito. Tugdual fez-lhe sinal para que se moderasse, e Zefinha avançou para ele, de dedo no ar.
- Tu vais acordar meu sobrinho! - disse
em tom severo, e tão engraçado que todos ficaram perdidos de riso.
Bobby, um tanto vexado, respondeu desdenhosamente:
- Também agora só pensas nele! Já ninguém pode brincar contigo! As raparigas são muito aborrecidas!
- Está bem! Deixa-te ficar em casa! -
volveu Zefinha majestosamente, voltando-lhe as costas. - Gosto mais de meu sobrinho que de ti!
Àquela declaração, o pobre Bobby perdeu toda a sua serenidade. com ar consternado, contemplava a sua amiguinha, que voltava para junto da criança. Armela notou o facto, e, inclinando-se para Zefinha, disse-lhe em tom de censura:
- Isso é mal feito, Zefinha, não se deve entristecer assim o pobre Bobby.
A pequena voltou-se de repente e viu a cara desolada de Bobby. Num impulso irresistível, correu para o rapazinho e saltou-lhe ao pescoço.
Armela afastou-se para ir deitar a criança. Micaela, que trabalhava um pouco afastada, ouvindo a leitura que Mariquinhas fazia a Pascal, deixou o trabalho para responder a um chamamento de Tugdual.
- Tenho a convicção, Micaela, de que está reparado todo o mal feito por essa falsa Mussia, - disse Tug após um momento de silêncio.
- Assim me parece. Armela está boa de saúde e é muito feliz; João compreendeu emfim a necessidade de trabalhar; Mariquinhas está muito mudada para bem dela, como ontem dizia o senhor de Rodennec à senhora Arzen.
- É verdade, a nossa dona Sapiência segue o exemplo de Armela. Começa a preocupar-se mais com os outros, e menos com a sua própria pessoa, principalmente com a sua inteligência, que a hipócrita lhe dissera ser muito superior, podendo dispensar-se, por esse facto, dos deveres habituais e dos cuidados com o próximo. Ah! a miserável!
- Se não fôsse o teu aviso, Tug, talvez me deixasse apanhar, como os outros.
- Não acredito, porque és observadora e não deixariam de te chocar as notas falsas.
"Ainda bem que Even teve faro! Ora imagina que essa embusteira vinha a ser viscondessa de Rodennec! Que desgosto para essa pobre Armela!... e que desgraça para Even! Só eu é que tive nariz em todo este negócio, Micaela.
- Foi um nariz famoso, Tug; conheceste-la à primeira vista, logo ao descer do vagon.
- Sim, mas não quiseram acreditar no pobre Tug, todos se deixaram seduzir pelos bons modos da Hipócrita. Ah! como isso nos podia ter custado caro! Mas emfim, bem está o que bem acaba. O melhor, Micaela, é nunca mais pensarmos nesses maus dias.
Passearam um bocado, conversando jovialmente como de costume, e voltaram para casa.
A avó, que se deitava cedo, tinha-se retirado; o senhor Arzen também, para concluir um trabalho urgente; os pequenos haviam ido para a cama; João e Mariquinhas estavam estudando as suas lições.
- E tu não te esqueças de que tens de escrever esta noite a Francisco, Tug, - recomendou a senhora Arzen, ao ver aparecer o filho.
-Estás a dever resposta, e o nosso querido aspirante ficaria triste, se não recebesse carta por este correio.
- Sim, não me esqueço, mamã. vou acompanhar Micaela a casa e volto já!
Momentos depois, sentado à mesa, Tug começava:
MEU QUERIDO FRANCISCO:
Aí vão algumas notícias da família, que te encontrarão muito longe, nesses distantes mares da China, onde navegas, feliz mortal! Como eu te invejo, meu irmão! Bem sei que há os acasos da profissão, mas isso não importa, é bem mais agradável essa vida do que a de tabelião. No entanto, devemos seguir o caminho que nos traça a Providência, como dizia o bom senhor Jacquet, nosso antigo professor de literatura, de cuja morte João te falou na última carta. É mais um homem de bem que desapareceu. Arrependo-me agora de o ter feito arreliar às vezes. Mas a infância é cruel, como disse não sei quem, e passa-se metade da vida a lamentar o que se fez durante a outra metade.
Que tal, hein? Não achas que teu irmão sabe já filosofar lindamente? Lembra-te de que tenho já dezasseis anos, meu velho, e uma pinha em que se aloja um montão de ideias, de observações em massa. Mas isso não impede que me divirta a aler e pregue partidas a Micaela, a João e a esse bonacheirão de Pedro, sempre fleugmático e pacífico.
Vamos agora a notícias de todos. A avó vai melhor; consola-se acariciando agora o meu lindo afilhado, que medra a olhos vistos. Estou radiante com ele, mas podes acreditar que o papá e a mamã o estão ainda mais. - É um casal encantador, Francisco. Mas olha que, apesar de tanto tempo decorrido, ainda tenho arrepios quando me lembro do espantoso perigo que era no meio de nós essa abominável Mussia!...
Tug parou nesta altura. Pela janela aberta,, penetrava o ar fresco da noite, perfumado de aromas silvestres. Um raio de luar iluminava o jardim da casa Arzen e o pequeno parque da casa das Aves, com o queixo apoiado na mão" Tug meditava agora. Revia em todos os seus pormenores as cenas em que entrara a falsa Mussia durante a sua permanência no seio da família Arzen. E pensou de repente:
- Pensar que lhe salvei a vida em Belle-Isle!
"Não o lamento, era o meu dever! Mas, para me pagar, ela envenenava minha querida irmã mais velha! Ah! miserável hipócrita!
M. Delly
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