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A História da Minha Máquina de Escrever é um tributo à relação - intensa e muitas vezes determinante - entre um escritor e a sua máquina de escrever. Ao longo de 30 anos, a velha máquina Olympia de Paul Auster foi a corrente de transmissão dos romances, contos e textos de um dos mais emblemáticos escritores norte-americanos. Paralelamente, os vigorosos e obsessivos desenhos e pinturas que Sam Messer dedica ao autor e à sua máquina de escrever conseguiram, como escreve Paul Auster, "converter um objecto inanimado num ser com personalidade, com uma presença no mundo".
Três anos e meio depois, regressei à América. Foi em Julho de 1974 e, quando desfiz as malas nessa primeira tarde em Nova Iorque, descobri que a minha pequena máquina de escrever Hermes fora destruída. A tampa estava em cacos, as teclas esmagadas e retorcidas, e não havia a menor esperança de alguma vez a poder reparar.
Eu não tinha meios para comprar uma máquina de escrever nova. Naqueles tempos, nunca tinha muito dinheiro, mas, nesse momento particular, estava completamente liso.
Algumas noites depois, um velho amigo dos tempos de universidade convidou-me para jantar no seu apartamento. A certa altura, contei -lhe o que acontecera à minha máquina de escrever e ele disse-me que tinha uma máquina no armário que já não usava. Tinham-lha dado em 1962, fora uma prenda por ter concluído o nono ano. Se eu quisesse comprá-la, disse-me ele, vendê-la-ia de bom grado.
Chegámos a acordo quanto ao preço - quarenta dólares. Era uma Olympia portátil, fabricada na Alemanha Ocidental. Esse país já não existe, mas, desde aquele dia em 1974, cada palavra que escrevi foi dactilografada nessa máquina.
De início, não pensei muito no caso. Um ano passou, dez anos passaram, e nem por uma vez me ocorreu que pudesse ser estranho ou mesmo vagamente incomum trabalhar com uma máquina de escrever manual. A única alternativa era uma máquina de escrever eléctrica, mas eu não gostava do ruído dessas engenhocas: a zoeira constante do motor, as peças zumbindo e chocalhando, a pulsação nervosa da corrente alternada vibrando nos meus dedos. Preferia a tranquilidade da minha Olympia. Era agradável ao toque, trabalhava suavemente, podia confiar nela. E, quando eu não estava a martelar nas teclas, era silenciosa.
Mas o melhor de tudo era que a minha Olympia parecia indestrutível. Tirando a mudança de fitas e a limpeza ocasional da tinta que se ia acumulando nas teclas, eu estava dispensado de todas as tarefas de manutenção. Desde 1974, mudei o rolo duas vezes, talvez três. Levei-a à loja para uma limpeza geral não mais do que votei em eleições presidenciais. Nunca tive de substituir nenhuma peça. O único traumatismo sério que a minha máquina sofreu foi em 1979, quando o meu filho, então com dois anos, arrancou a peça que faz subir o papel. Mas isso não foi culpa da máquina de escrever. Andei num desespero o dia todo, mas, na manhã seguinte, levei-a a uma loja na Court Street onde soldaram a peça. Agora, há uma pequena cicatriz nesse sítio, mas a operação foi um êxito, e a peça, desde então, tem-se aguentado.
Nem vale a pena falar de computadores e processadores de texto. Numa fase inicial, ainda me senti tentado a comprar uma dessas maravilhas para mim, mas ouvi demasiadas histórias de terror em que uma pessoa carregava no botão errado e eliminava um dia de trabalho - ou um mês de trabalho - e demasiados avisos sobre súbitas falhas de energia, capazes de apagar todo um manuscrito em menos de meio segundo. Eu nunca fui bom com máquinas e sabia que, se houvesse um botão errado para carregar, acabaria por carregar nele.
De maneira que não mais larguei a minha velha máquina de escrever e os anos 80 passaram e deram lugar aos anos 90. Um a um, todos os meusamigos mudaram para Macs e IBMs. Comecei a parecer um inimigo do progresso, o último baluarte pagão num mundo de conversos digitais. Os meus amigos gozavam comigo por eu resistir as novas tecnologias. Quando não me chamavam sovina, diziam que eu era um reaccionário e teimoso que nem um burro. Entrava-me por um ouvido, saía-me pelo outro. O que era bom para eles não era necessariamente bom para mim, dizia eu. Por que raio é que eu havia de mudar se, como estava, me sentia perfeitamente feliz?
Até então, não me sentira especialmente ligado à minha Olympia. A máquina era apenas uma ferramenta que me permitia fazer o meu trabalho, mas, agora que se tornara uma espécie em perigo, um dos últimos artefactos sobreviventes do homo scriptorus do século xx, começava a desenvolver uma certa
afeição por ela. Dei-me conta de que tínhamos o mesmo passado. Gostasse ou não, essa era a pura verdade. Com o passar do tempo, acabei por compreender que tínhamos também o mesmo futuro.
Há dois ou três anos, pressentindo que o fim estava próximo, fui ter com Leon, o meu fornecedor de artigos de papelaria em Brooklyn, e pedi-lhe que encomendasse cinquenta fitas. Leon teve de fazer uma quantidade de telefonemas durante vários dias para arranjar tantas fitas. Algumas delas, contou-me ele mais tarde, foram-lhe enviadas de locais tão distantes como Kansas City.
Uso estas fitas tão cuidadosamente quanto possível, aproveitando-as até ao último momento, substituindo-as apenas quando a tinta se torna invisível na página. Tenho poucas esperanças de que ainda haja fitas quando o meu fornecimento acabar.
Nunca tive a intenção de transformar a minha máquina de escrever numa figura heróica. Isso é obra de Sam Messer, um homem que entrou na minha casa certo dia e logo se apaixonou por uma máquina. As paixões dos artistas são insondáveis. É uma ligação que dura há vários anos e suspeito que os sentimentos foram recíprocos desde o primeiro instante.
Para onde quer que vá, Messer leva quase sempre um caderno de esboços. Desenha a toda a hora, atacando a página com golpes rápidos, furiosos, erguendo os olhos do caderno a cada segundo para fixar a pessoa ou o objecto que tem à sua frente, e, sempre que nos sentamos para comer com ele, sabemos que também estamos a posar para o nosso retrato. Já participámos neste número tantas e tantas vezes nos últimos sete ou oito anos que, agora, já nem penso nisso.
Lembro-me de ter apontado para a máquina de escrever da primeira vez que ele me visitou, mas não consigo lembrar-me do que ele disse. Passado um dia ou dois, voltou. Eu não estava em casa nessa tarde, mas ele perguntou à minha mulher se podia ir lá abaixo à sala de trabalho para dar mais uma vista de olhos à máquina. Só Deus sabe o que ele terá feitolá em baixo, mas nunca tive a menor dúvida de que a máquina de escrever falou com ele. Acredito que, a seu tempo, Messer conseguiu até convencê-la a desnudar a sua alma.
Desde então, voltou várias vezes e cada visita produziu uma nova onda de pinturas, desenhos e fotografias. Sam apossou-se da minha máquina de escrever e, a pouco e pouco, transformou um objecto inanimado num ser com uma personalidade e uma presença no mundo. A máquina de escrever, agora, tem desejos e estados de espírito e exprime sombrias raivas e exuberantes alegrias e quase juraríamos que se ouve o bater de um coração, preso no seu corpo metálico e cinzento.
Tenho de admitir que acho tudo isto francamente perturbador. As pinturas são magníficas e eu sinto-me orgulhoso por a minha máquina de escrever se ter revelado um tema tão notável, mas, ao mesmo tempo, Messer obrigou-me a olhar para a minha velha companheira de um novo modo. Ainda estou num processo de ajustamento, mas, agora, sempreque olho para uma destas pinturas (e duas delas estão na parede da minha sala de estar), tenho dificuldade em pensar na minha máquina de escrever como uma coisa. De uma forma lenta, mas firme, a coisa transformou-se em criatura.
Estamos juntos há mais de um quarto de século. A máquina de escrever foi comigo para todo o lado. Vivemos em Manhattan, no norte do estado de Nova Iorque, em Brooklyn. Viajámos juntos para a Califórnia e para o Maine, para o Minnesota e para Massachusetts, para o Vermont e para França. Durante esse período de tempo, escrevi com centenas de lápis e canetas. Tive vários carros,vários frigoríficos, e ocupei vários apartamentos e residências. Gastei dezenas de pares de sapatos, larguei montes de camisolas e casacos, perdi ou abandonei relógios, despertadores e chapéus de chuva. Tudo se estraga, tudo se gasta, tudo acaba por deixar de servir, mas a máquina de escrever continua comigo. De todos os objectos que tinha há vinte e seis anos é o único que ainda possuo. Mais alguns meses e ela terá estado comigo exactamente metade da minha vida.
Massacrada e obsoleta, relíquia de uma época que rapidamente se esfuma na memória, o diabo da máquina nunca me desiludiu. Neste preciso momento em que evoco os nove mil e quatrocentos dias que já passámos juntos, ei-la aqui, diante de mim, tartamudeando a sua velha música, esta música que conheço de cor. Estamos no Connecticut para o fim-de-semana.
É Verão e a manhã que se vê da janela é quente e verde e bela. A máquina de escrever está na mesa da cozinha e as minhas mãos estão na máquina de escrever. Letra a letra, vi -a a escrever estas palavras.
Paul Auster
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