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Este livro não é um relato imparcial. Procura explicar o que é Biafra, por que seu povo decidiu separar-se da Nigéria, como reagiu ao que lhe foi infligido. Posso ser acusado de defender o caso biafrense, uma acusação que não seria de todo injustificada.
É a história de Biafra e é relatada do ponto de vista biafrense.
Não obstante, sempre que possível, procurei encontrar confirmações em outras fontes, especialmente estrangeiras (e na maioria britânicas), que estavam em Biafra no início da guerra, lá permaneceram, como o extraordinário grupo de padres irlandeses da
Ordem do Espírito Santo, de Dublin, ou chegaram posteriormente, como jornalistas, voluntários e equipes internacionais de socorro aos refugiados.
Quando há opiniões expressas, a fonte é citada ou então são minhas... e não tentarei ocultar a subjetividade de minhas opiniões.
Para mim, a desintegração da Federação da Nigéria não é um acidente da história, mas sim uma consequência inevitável dessa mesma história. A guerra atual, em que 14 milhões de biafrenses enfrentam 34 milhões de nigerianos, não é uma luta nobre, mas sim um exercício de inutilidade. A política do governo trabalhista britânico, apoiando uma facção que detém o poder militar em Lagos, não é a expressão de todos aqueles padrões que a Inglaterra supostamente representa e defende; ao contrário, é o repúdio a todos esses padrões.
A História de Biafra não é um relato completo, em todos os seus detalhes. Há muitas coisas que ainda não se sabem, muitas coisas que ainda não podem ser reveladas. Qualquer tentativa, neste momento, de escrever a história da guerra não passaria de uma colcha de retalhos.
E porque seria irreal imaginar que Biafra simplesmente aconteceu de repente, emergindo de um vácuo, a 30 de maio de 1967, começo a narrativa com um breve relato da história da Nigéria antes da eclosão da guerra. É indispensável compreender como a
Nigéria foi formada pela Inglaterra através da reunião de povos irreconciliáveis; como esses povos foram descobrir que, seguindo as determinações britânicas, as diferenças não se atenuaram, mas sim se acentuaram; como a estrutura deixada pela Inglaterra tornou-se finalmente incapaz de conter as forças explosivas nela confinadas.
I. O caminho para a divisão
1. Os Antecedentes
Um dos argumentos principais contra a política dos biafrenses e a favor da política de guerra nigeriana visando a esmagá-los é a de que o rompimento de Biafra destruiu a unidade de um estado feliz e harmonioso, que o General Gowon, da Nigéria, está agora tentando restaurar. Na verdade, a Nigéria jamais foi unida ao longo de todos os anos do período pré-colonial; e durante os 60 anos de colonialismo e os 63 meses da Primeira República somente uma fina camada de verniz encobriu a desunião básica.
A 30 de maio de 1967, quando Biafra se separou, a Nigéria não era feliz nem harmoniosa e há cinco anos que vinha tropeçando de crise em crise, por três vezes estivera à beira da desintegração.
Em cada caso, embora a centelha imediata tenha sido política, a causa fundamental foi a hostilidade tribal profundamente enraizada nessa nação enorme e artificial. É que a Nigéria jamais passou de um amálgama de povos reunidos no interesse e em benefício de uma potência européia.
Os primeiros europeus a aparecerem no território que é atualmente a Nigéria foram viajantes e exploradores, cujas histórias trouxeram em sua esteira os mercadores de escravos.
A partir de 1450, aproximadamente, com os portugueses, uma sucessão variada de flibusteiros comprava jovens escravos saudáveis dos reis nativos da costa, para revenda. A princípio, eram trocados por ouro, na Costa do Ouro, sendo posteriormente embarcados para o Novo Mundo com um lucro considerável. Depois dos portugueses, vieram os franceses, holandeses, dinamarqueses, suecos, alemães, espanhóis e ingleses.
Enquanto os traficantes de escravos europeus ganhavam fabulosas fortunas particulares, fundavam-se e floresciam dinastias no lado africano, com base nos lucros do papel de intermediário, especialmente nas ilhas de Lagos e Bonny. Os reis nativos da costa desencorajavam a penetração dos europeus no interior. Gradativamente, outros produtos foram acrescentados ao comércio de escravos, principalmente óleo de coco, madeira e marfim. Em 1807, os ingleses proibiram o comércio de escravos. Na primeira metade desse século, a Marinha Real britânica patrulhou o comércio costeiro, para garantir que a proibição fosse eficaz.
Diante da chamada opção de Hobson, que era a de aceitar o que lhes era oferecido ou ficar sem nada, os mercadores não viram mais qualquer motivo para continuarem a dar dinheiro aos potentados nativos, insistindo que lhes fosse permitido penetrar no interior, a fim de negociar diretamente com os produtores.
Tal atitude provocou consideráveis atritos com os reis da costa.
Por volta de 1850, diversos cônsules britânicos estavam estabelecidos ao longo da costa e já começara a penetração para o norte de Lagos, no que é hoje a Nigéria Ocidental.
O mais notável desses mercadores foi Sir George Goldie.
Em 1879, esse pitoresco pioneiro já tinha conseguido unir os mercadores britânicos ao longo da costa numa frente coesa e ativa, não contra os africanos, mas sim contra os franceses, que eram seus rivais naturais.
Goldie e o cônsul local, Hewett, queriam que o governo britânico interviesse e declarasse a região dos rios Oil e do Baixo Níger uma colônia britânica. Mas o governo liberal britânico hesitou, achando que colônias em lugares assim não passavam de uma perda de tempo dispendiosa. Embora esse governo tivesse rejeitado a recomendação da Comissão Real sobre a África Ocidental de 1875 exigindo a retirada das colônias existentes, não parecia também disposto a criar qualquer nova colônia. Assim, durante cinco anos, Goldie travou uma guerra em duas frentes: por um lado, contra os mercadores franceses, aos quais finalmente dominou, a peso de ouro e sob pressão, por volta de 1884; por outro lado, contra a apatia em Whitehall.
Mas, em 1884, mudou a disposição da Europa em relação às colônias africanas. O Chanceler Bismarck, da Alemanha, anteriormente tão indiferente quanto Gladstone à idéia de colônias na África Ocidental, convocou a Conferência de Berlim. Nesse mesmo ano a Alemanha anexou Camarões, que fica a leste do território ocupado atualmente por Biafra. O objetivo da conferência era ostensivamente permitir a Bismarck apoiar as exigências francesas e belgas de cessação das atividades britânicas na bacia do Congo. Tais atividades eram realizadas basicamente por missionários batistas e mercadores de Manchester e Liverpool. Bismarck conseguiu atingir seu objetivo. A conferência decidiu que o Estado Livre do Congo, criado pelos belgas, seria a autoridade a administrar o Congo. Como não desejasse aprofundar demais a colaboração franco-germânica, a conferência não hesitou em permitir que a Inglaterra fosse responsável pela bacia do rio Níger. Goldie compareceu à conferência como observador.
O resultado de todas as deliberações foi o Acordo de Berlim, pelo qual qualquer país europeu que pudesse comprovar um interesse predominante em qualquer região africana seria aceito como a potência administradora na referida região, contanto que pudesse comprovar que sua administração era uma realidade.
Mas o governo britânico ainda não estava disposto a assumir os encargos de mais uma colônia. Assim, foi concedida à companhia de Goldie, em 1886, uma "carta de administração". Durante os dez anos seguintes, Goldie avançou para o norte, estabelecendo em sua esteira um monopólio do comércio, flanqueado pelos alemães em Camarões, à direita, e pelos franceses no Daomé, à esquerda.
Entre os dois, Goldie temia mais os franceses, liderados por um homem vigoroso e ativo, Faidherbe. Goldie desconfiava que os franceses queriam cruzar o seu território, do Daomé ao Lago Chad, estabelecendo um contato com outros interesses franceses que avançavam do norte, procedentes do Gabão. Em 1893, graças principalmente a seus próprios esforços, Goldie conseguiu persuadir os alemães de Camarões a se expandirem para o norte, na direção do Lago Chad, frustrando o projeto francês de um contato e criando uma proteção adequada em seu flanco leste. Mas, a esta altura, os franceses liderados por Faidherbe já tinham conquistado todo o Daomé e estavam avançando para leste, penetrando no território atual da Nigéria.
Goldie não dispunha nem dos homens nem dos recursos necessários para impedir o acesso dos franceses. Fez dramáticos apelos a Londres. Em 1897, o governo britânico despachou Sir Frederick Lugard, soldado e administrador, que servira em Uganda e Niasalândia. Em um ano, Lugard expulsou os franceses da Nigéria.
Houve ameaça de uma guerra com a França. A crise do Níger foi solucionada pelo acordo anglo-francês de junho de 1898, que definiu as bases para as fronteiras do novo país.
A Inglaterra ganhara uma colônia. Não fora conquistada, não fora realmente explorada. E não tinha nome, que só foi dado mais tarde, por Lady Lugard: Nigéria.
Era uma terra de grande variedade climática, territorial e étnica. Da costa de 650 quilômetros de comprimento, caracterizada por pântanos e mangues, seguia para o interior um cinturão de densa floresta tropical, entre 150 e 250 quilômetros de profundidade.
Essa terra, que mais tarde se tornou a Nigéria Meridional, era dividida numa região leste e outra oeste pelo rio Níger, correndo para o sul, depois de sua confluência com o rio Benue, em Lokoja. Na parte ocidental do sul, o grupo predominante era o Iorubá, um povo com uma longa história de reinos altamente desenvolvidos. Como a penetração britânica ocorreu através de Lagos, a cultura ocidental alcançou primeiro os Iorubás e as outras tribos do oeste.
Na região leste do sul viviam diversos povos, entre os quais predominavam os Ibos. Eles se espalhavam pelas duas margens do rio, mas se concentravam principalmente a leste. Ironicamente, tendo em vista seu rápido desenvolvimento e progresso posteriores que lhes permitiram finalmente alcançar os outros grupos étnicos da Nigéria em termos europeus, os Ibos e outros povos do leste eram considerados mais atrasados que os demais, em 1900.
Ao norte da floresta tropical havia uma região de selva menos densa, antecedendo as savanas e pradarias e finalmente a área semidesértica, de vegetação escassa. Ao longo da margem sul dessa vasta área estende-se o chamado Cinturão Intermediário, habitado por numerosos povos não-Hausa, basicamente pagãos, de religião animista. Não obstante, eram vassalos do Império Hausa/Fulani.
O norte propriamente dito era a terra dos Hausas, kanuris e fulanis. Os fulanis procediam do sul do Saara, tendo se estabelecido na região pela conquista, trazendo a sua religião muçulmana.
Lugard passou três anos subjugando o norte, conquistando um emirado depois do outro, com suas forças reduzidas. A oposição mais renhida foi a do sultanato de Sokoto. Apesar da superioridade dos exércitos fulanis, Lugard contava com um poder de fogo muito maior, conforme Belloc expressou em verso: "Whatever happens we have got/Tbe Maxim gun, and they have not” (Não importa o que aconteça/Temos a metralhadora e eles não).
As armas de repetição de Lugard destroçaram a cavalaria do sultão e assim caiu o último bastião do império fulani na terra Hausa.
Lugard representa a ponte entre o. período de desbravação dos missionários e mercadores e o imperialismo autêntico. Contudo, o império que ele formou não foi o primeiro na Nigéria Setentrional.
Entre 1804 e 1810, Usman Dan Fodio, estudioso e reformador muçulmano, liderou uma jihad (guerra santa) contra os reinos Hausas, submetendo-os ao domínio dos fulanis. O que começou como uma cruzada para erradicar práticas irreligiosas no Islã transformou-se rapidamente num movimento para conquista de terra e poder. O Império Fulani deslocou-se para o sul, na direção da terra dos Iorubás. O movimento da jihad foi detido entre 1837 e 1840 pelo avanço dos ingleses para o norte, a partir de Lagos. Foi parar em Ilorin e ao longo da Linha de Kabba.
Toda a região ao norte dessa linha tornou-se a Nigéria Setentrional, ocupando três quintos do território da Nigéria e com mais de 50 por cento da população. A enorme superioridade do norte tornou-se mais um dos fatores que condenaram a viabilidade de uma federação realmente equilibrada.
Durante as guerras de Lugard contra os emires, estes não contavam, de um modo geral, com o apoio dos súditos Hausas, que constituíam e ainda constituem a grande maioria da população do norte. Contudo, ao consolidar sua vitória, Lugard optou por manter os emires no poder e governar por intermédio deles, ao invés de afastá-los e governar diretamente. É possível que não lhe restasse alternativa; suas forças eram reduzidas, a atitude de Londres continuava a ser de indiferença, a região a ser governada era imensa e exigiria centenas de administradores. Em contraste, os emires dispunham de uma estrutura administrativa, judicial e fiscal em escala nacional, já plenamente instalada. Lugard optou assim em permitir que os emires continuassem a governar como antes (sujeitos a determinadas reformas), mantendo para si mesmo apenas uma posição de suserania distante.
O domínio indireto tinha suas vantagens. Era mais barato em termos de recursos humanos britânicos e não exigia um investimento tão elevado; era um controle pacífico. Mas também consolidou a estrutura feudal, confirmou a repressão pelos emires privilegiados e seus prepostos, prolongou a incapacidade do norte de ingressar no mundo moderno e frustrou os esforços futuros para introduzir uma democracia parlamentar.
A idéia de Lugard parece ter sido a de que o governo local começaria no nível do conselho da aldeia, passaria ao conselho tribal e daí ao nível regional, até finalmente produzir um governo nacional representativo. Era muito bom na teoria, mas acontece que fracassou totalmente na prática.
Por um lado porque a preocupação dos emires e suas cortes, como sempre acontece com a maioria dos potentados feudais, era a de permanecer no poder, em condições tão inalteráveis quanto fosse possível. Assim, eles se opuseram ao maior desafio a seu próprio conservantismo: a mudança e o progresso. O precursor óbvio dessas coisas é a massificação da educação. Não foi por acaso que no Ano da Independência, 1960, o norte, embora contasse com mais da metade da população da Nigéria, de 50 milhões de habitantes, tinha apenas 41 escolas secundárias, contra as 842 do sul. E também não foi por acaso que somente nove anos antes da independência é que saiu de uma universidade o primeiro habitante do norte. A educação ocidental era perigosa para os emires, que se empenharam ao máximo para limitá-la a seus próprios filhos ou aos filhos da aristocracia.
Em contraste, o sul, invadido por missionários, precursores da educação em massa, não tardou a desenvolver uma sede insaciável de educação, em todas as suas formas. Por volta de 1887, quando a região leste separou-se da Nigéria, possuía sozinha mais médicos, advogados e engenheiros que qualquer outro país da África Negra. O trabalho dos missionários no norte, que poderia ter contribuído para o ingresso da região no século XX, foi eficazmente detido por Lugard, a pedido dos emires. A alegação de Lugard foi a de que se deveria desencorajar o trabalho apostólico cristão ao norte da Linha de Kabba.
Nos 60 anos de Lugard à Independência, as diferenças em atitudes e valores religiosos, sociais, históricos e morais entre o norte e o sul, assim como a distância tecnológica, não foram diminuindo gradativamente, mas sim se alargando cada vez mais, até que a viabilidade de um país unido a ser dominado por qualquer das regiões tornou-se impraticável.
Em 1914, Lord Lugard reuniu o norte e o sul como um ato de conveniência administrativa... pelo menos no papel. "Para causar o mínimo de distúrbio administrativo" (sua própria frase), Lugard manteve o vasto norte intacto e as duas administrações separadas. Contudo, também impôs a teoria do governo indireto, que funcionara tão bem no norte, ao sul, onde fracassou por completo, especialmente na parte leste do sul, a terra dos Ibos.
Os ingleses estavam tão obcecados pela idéia de chefes regionais que, onde não existiam, tentaram impô-los de qualquer maneira. Os Motins de Aba de 1929 (Aba fica no coração do território Ibo) foram em parte provocados pelo ressentimento “ontra os "chefes por procuração", impostos pelos ingleses, mas que o povo se recusava a aceitar. Não era difícil impor medidas administrativas aos nortistas, acostumados a uma obediência implícita.
Mas isso não funcionava no leste. Toda a estrutura tradicional do leste tornava a região virtualmente imune às ditaduras, uma das razões da guerra atual. Os habitantes do leste exigiam que os consultassem em todas as medidas que os afetassem. Essa posição dificilmente poderia atrair-lhes as simpatias dos administradores coloniais e foi uma das razões pelas quais passaram a ser classificados de "arrogantes". Em contraste, os ingleses adoravam o norte. O clima é quente e seco, muito diferente do sul úmido e cheio de malária; a vida é tranqüila e indolente, quando se é um inglês ou um emir; a pompa é exótica e pitoresca; o povo é obediente e nada exige. Incapazes de manter em funcionamento os escritórios e fábricas recentemente instalados, os nortistas sentiam-se contentes em importar numerosos burocratas e técnicos britânicos. Esse é um dos motivos pelos quais, atualmente, existe em Londres um vigoroso e ativo grupo de defensores da Nigéria, formado por antigos funcionários civis, soldados e administradores coloniais, para quem a Nigéria é apenas a região norte, que tanto amaram.
Mas os vazios na sociedade causados pela apatia do norte em relação à modernização não podiam ser preenchidos exclusivamente pelos britânicos. Havia postos para burocratas, executivos menores, contabilistas, operadores de mesas telefônicas, mecânicos, maquinistas, supervisores de obras, bancários, equipes de supervisão em fábricas e empreendimentos comerciais que os nortistas não estavam capacitados a preencher. Uns poucos, bem poucos mesmo, Iorubás da região oeste do sul emigraram para o norte, a fim de ocupar tais postos. A maioria, no entanto, foi preenchida por homens do leste, mais ativos e empreendedores. Por volta de 1966, havia aproximadamente 1.300.000 orientais, Ibos na maioria, na região norte. Outros 500.000 tinham ocupado empregos na região oeste do sul, onde também fixaram residência. A diferença no grau de assimilação de cada grupo era enorme e isso serve para se ter uma visão da "unidade" da Nigéria, sob o véu das relações públicas.
Na região oeste do sul, a assimilação dos orientais foi total.
Viviam nas mesmas ruas que os Iorubás, misturavam-se em todas as ocasiões sociais, os filhos freqüentavam as mesmas escolas. No norte, a pedido dos governantes locais, que os ingleses não hesitaram em atender, todos os sulistas, quer fossem do leste ou do oeste, foram confinados em Sabon Garis, ou Bairros dos Estrangeiros, uma espécie de gueto fora das cidades muradas. Dentro dos Sabon Garis, a vida de gueto era animada e vigorosa. Mas o contato com os compatriotas Hausas era mínimo, por vontade dos próprios Hausas. As escolas eram segregadas e coexistiam duas sociedades radicalmente diferentes, sem que houvesse qualquer tentativa dos ingleses para promover uma integração gradativa.
O período de 1914 a 1944 pode ser examinado apenas de passagem, porque os interesses britânicos não tiveram muito a ver com a Nigéria durante esses anos. Houve inicialmente a 1ª Guerra Mundial, depois dez anos de reconstrução britânica, seguidos pela Depressão internacional. A Nigéria desfrutou um breve momento de prosperidade, quando suas matérias-primas foram bem vendidas durante a corrida armamentista que antecedeu a 2ª Guerra Mundial. Durante esse período, a política colonial britânica permaneceu tradicional e ortodoxa: manter a lei e a ordem, estimular a produção de matérias-primas, criar um mercado para as exportações britânicas e elevar os impostos a fim de pagar o domínio colonial. Foi somente nos 15 anos entre 1945 e 1960, especialmente nos últimos dez anos desse período, que houve uma tentativa mais séria de encontrar uma fórmula que propiciasse a existência da Nigéria depois da independência. Mas essa tentativa teve um começo desastroso e nunca mais se recuperou. Esse começo desastroso foi chamado de Constituição Richards.
Em 1944-45, o Governador Sir Arthur Richards, agora Lord Milverton, um homem que (segundo os relatos contemporâneos) conseguiu se tornar impopular, apesar de seu profundo amor pelo norte, fez uma excursão pelo país, sondando a opinião local a respeito de uma reforma constitucional. Foi o norte que deixou bem claro, mantendo tal atitude desde então, que não queria a fusão com o sul. O norte só concordou em aceitar uma federação se;
1) O princípio do desenvolvimento regional separado fosse consagrado e reconhecido na nova constituição e,
2) Se o norte tivesse quase 50 por cento dos assentos na legislatura (Norte 9, Oeste 6, Leste 5).
A oposição do norte a uma fusão com o sul foi expressa por numerosas declarações de seus líderes, desde essa época. Em 1947 (o ano em que foi promulgada a Constituição Richards) foi anunciada claramente por um dos mais eminentes nortistas, Mallam Abubakar Tafawa Balewa, que mais tarde se tornaria Primeiro-Ministro da Nigéria. Disse ele:
— Não queremos que nossos vizinhos do sul interfiram com nosso desenvolvimento. ... Gostaria de deixar bem claro que se os ingleses deixassem a Nigéria agora, neste momento, o povo do norte prosseguiria em sua conquista interrompida até o mar.
De um estado unitário, governado por uma autoridade legislativa central, a Nigéria tornou-se em 1947 um estado federal de três regiões. Desde que começou a guerra entre a Nigéria e Biafra, Lord Milverton, na Câmara dos Lordes, tem sido ferrenho defensor da unidade nigeriana, aparentemente esquecido de que foi justamente a sua constituição que regou as sementes do regionalismo, a doença responsável pela morte da Nigéria. O estado de três regiões distintas foi a pior de todas as soluções possíveis, a partir do momento em que a atitude do norte se tornou inequívoca. Era uma tentativa de casamento entre irreconciliáveis. .
Foi o norte, de certa forma, que se mostrou mais realista. Os líderes nortistas jamais esconderam seu desejo separatista. Depois de Richards, veio Sir John Macpherson, que introduziu uma nova constituição, virtualmente unitária. Mas os danos já tinham sido causados. O norte aprendera que podia conseguir o que desejava, bastando ameaçar retirar-se da Nigéria (e assim provocando um calafrio nos ingleses). A Constituição Macpherson deu lugar a uma outra, em 1954.
Durante as várias conferências regionais convocadas por Macpherson, em 1949, os delegados nortistas reivindicaram para o norte 50 por cento de representação no governo central. Na Conferência Geral em Ibadan, em janeiro de 1950, os emires de Zaria e Katsina anunciaram que, "a menos que a região norte tenha 50 por cento dos lugares na legislatura central, será pedida a separação do resto da Nigéria, com base nos acordos existentes antes de 1914". Conseguiram o que desejavam e o domínio nortista sobre o governo central tornou-se uma das principais características da política nigeriana.
O norte também exigiu e obteve a forma de federação mais frouxa possível, jamais escondendo a sua profunda convicção de que a fusão entre as duas regiões, norte e sul, em 1914, tinha sido um tremendo erro. A expressão dessa convicção está em todo o pensamento político nortista, do final da 2ª Guerra Mundial até a Independência. Em março de 1953, o líder político nortista Sir Ahmadu Bello declarou na Câmara dos Representantes, em Lagos:
— O erro cometido em 1914 é agora cada vez mais patente e eu gostaria que não fosse aprofundado.
Em sua autobiografia, Minha Vida, Bello recordou o intenso movimento no norte a favor da secessão e acrescentou que a idéia "parecia extremamente tentadora". Ele admite que acabou se decidindo contra a secessão por dois motivos, que nada tinham a ver com o ideal da unidade nigeriana defendido pelos ingleses. Um dos fatores foi a dificuldade de cobrar impostos alfandegários ao longo de uma fronteira exclusivamente terrestre; e outro foi a dúvida quanto à possibilidade de um acesso ao mar, através de um país vizinho independente.
Por ocasião das conferências de 1953, produziram a quarta constituição, o norte já havia alterado suas posições a respeito do separatismo, querendo agora "uma estrutura que proporcione às regiões maior liberdade de movimento e ação que for possível; uma estrutura que reduza os poderes do Centro ao mínimo absoluto".
O Times de Londres comentou essas ideias a 6 de agosto de 1953: "Os nortistas declararam que querem uma simples agência no centro e aparentemente estão pensando nas linhas de alguma organização como a Comissão Superior da África Oriental. Mas até mesmo a Comissão Superior está vinculada a uma Assembléia Central, enquanto os nigerianos do norte insistem que não deve haver nenhum organismo legislativo central."
O que os nortistas estavam exigindo, aparentemente com o apoio total da opinião pública do norte, era uma Confederação de Estados Nigerianos. Foi exatamente o que pediu o Coronel Ojukwu, Governador Militar da Região Leste, em Aburi, Gana, a 4 de janeiro de 1967, depois que 30.000 orientais foram mortos e 1.800.000 expulsos de volta ao leste, como refugiados. Mesmo nessa ocasião, Ojukwu só pediu isso como uma providência temporária, enquanto os ânimos exaltados se acalmavam. Se os nortistas tivessem conseguido o que desejavam em 1953 e os orientais em 1967, é bem provável que as três regiões pudessem hoje estar convivendo em paz.
Os ingleses cederam novamente às exigências isolacionistas do norte, mas deixaram de perceber o perigo que havia na relutância nortista em se integrar. Assim, acabou prevalecendo o compromisso imposto pelos ingleses. Eram os sulistas que desejavam um estado com diversas regiões, a fim de que a futura federação tivesse um equilíbrio político. O governo britânico optou por três regiões, norte, oeste e leste, a mais instável de todas as opções, mas também o desejo do norte. Há dois outros fenômenos, na década anterior à independência, que merecem também ser examinados, já que indicam a recusa britânica em dar qualquer atenção às advertências sobre a estabilidade futura da Nigéria, mesmo quando tais advertências partiam de seus próprios servidores civis. Ao longo de toda essa década, as manifestações políticas nortistas, tanto orais como escritas, refletiam uma aversão crescente contra os orientais que viviam em seu meio. Vezes sem conta, oradores na Câmara dos Representantes do norte manifestaram a sua profunda convicção de que "o norte era para os nortistas” e os sulistas deveriam voltar para casa. (A maioria desses sulistas era do leste.) Violências esporádicas contra os orientais já tinham ocorrido no passado, especialmente durante os sangrentos Motins Jos, em 1945.
Em maio de 1953, uma delegação do Grupo de Ação, o principal partido político Iorubá, deveria visitar Kano, a maior cidade do norte. Estimulou-se intensamente a opinião pública contra a visita. Mallam Inua Wada, secretário da Seção de Kano do Congresso do Povo do Norte, foi o principal responsável por isso.
Num discurso pronunciado dois dias antes da programada visita, Wada declarou num encontro de chefes de seção da Administração Nativa:
— Depois de nos injuriarem no sul, esses sulistas decidiram vir ao norte para nos injuriar aqui. ... Assim sendo, já organizamos um grupo de mil homens, prontos para responderem à força com a força. ...
A visita do Grupo de Ação foi cancelada. Mas, a 16 de maio, começou uma sucessão de massacres. Não conseguindo encontrar Iorubás, os Hausas voltaram-se contra todos os orientais, com o que um relatório oficial, preparado por um servidor civil britânico, classificou de "um grau de violência inesperado".
Em sua autobiografia, Sir Ahmadu recorda que "em Kano, ao final das contas, a luta ocorreu entre os Hausas... e os Ibos; estranhamente, os Iorubás ficaram de fora".
O relatório oficial foi um esforço consciencioso. O relator condenou o discurso de Wada como "extremamente inoportuno e provocador". Em relação às estimativas moderadas de 52 mortos e 245 feridos, ele comenta que "ainda há uma possibilidade de que tenham morrido mais pessoas do que se comunicou oficialmente, tendo em vista as declarações conflitantes de motoristas de ambulância e de caminhões (que removiam tanto os mortos como os vivos)". E acrescenta que "nenhuma provocação possível, a curto ou longo prazo, poderia justificar seu comportamento (dos Hausas)". Mas talvez a observação mais expressiva tenha sido a que. se encontrava na conclusão: "As sementes da crise que irrompeu em Kano, a 16 de maio de 1953, têm equivalentes ainda semeadas.
Pode acontecer novamente e só uma perfeita compreensão e aceitação das causas fundamentais podem eliminar o perigo de recorrência." Mas não houve a menor compreensão, nem ao menos uma tentativa de compreensão.
Em 1958 os ingleses resolveram estudar o problema das tribos minoritárias, isto é, os povos que não pertenciam aos "Três Grandes", Hausas, Iorubás e Ibos. Pediram a Sir Henry Willinck que fizesse um levantamento do problema e apresentasse recomendações.
Na região leste, então dividida em três pela decisão unilateral de Lagos de 1967, Sir Henry descobriu que as diferenças entre Ibos e as minorias não-ibos eram suficientemente reduzidas para serem removidas rapidamente com o crescente nacionalismo.
Estranhamente, tais diferenças foram quase que totalmente eliminadas não pelo nacionalismo nigeriano, mas sim pelo sofrimento comum nas mãos dos nigerianos e pelo nacionalismo biafrense.
Outra observação de Sir Henry Willinck sobre o leste foi a de que Port Harcourt, a maior cidade da região, era basicamente uma cidade Ibo. No período pré-colonial era apenas um povoado pequeno, habitado pelos povos dos rios. Mas tornara-se uma cidade próspera, um porto movimentado, graças principalmente à capacidade empreendedora dos Ibos. Na cidade, Ibos e não-ibos viviam lado a lado, pacificamente. Em maio de 1967, quando o governo do General Gowon,.na Nigéria, decidiu unilateralmente dividir a Nigéria em doze novos estados, três deles foram formados no leste. Port Harcourt seria a capital do Estado dos Rios, o que provocou uma intensa revolta e clamor a leste do Níger.
Depois da constituição de 1954, houve um período adicional de cinco anos de negociações sobre a forma futura da Nigéria e uma quinta constituição. A 1º de outubro de 1960, a Nigéria tornou-se independente, aos tropeções, aclamada intensamente, interna e externamente, como um modelo para a África. Mas, lamentavelmente, por trás das cortinas era tão estável quanto um castelo de cartas. Nenhuma dás diferenças básicas entre o norte e o sul fora eliminada, as dúvidas e temores não tinham sido atenuados, as tendências centrífugas não estavam dominadas. As esperanças, ambições e aspirações das três regiões ainda eram essencialmente divergentes e a estrutura projetada para estimular um tardio sentimento de unidade era incapaz de suportar as pressões múltiplas.
O Sr. Walter Schwarz, em seu livro Nigéria, comentou: "O produto que emergiu de uma década de negociações entre governantes e governados estava longe de ser satisfatório. A Nigéria tornou-se independente com uma estrutura federal que, dois anos depois, foi abalada por uma terrível emergência e, cinco anos depois, desmoronou no caos, para ser finalmente destruída por dois golpes militares e uma guerra civil. [Walter Schwarz, Nigéria, Londres. 1968, pág. 86.]
A nova constituição era um amontoado altamente intrincado de controles e equilíbrios, direitos e garantias, utópica demais para suportar a implacável luta pelo poder que iria começar a fervilhar na Nigéria logo depois da independência.
Na África, como em todas as outras partes do mundo, o poder político representa sucesso e prosperidade, não apenas para o homem que o detém mas também para sua família, sua cidade e até mesmo toda a região de onde veio. Em decorrência, há muitos homens que se empenham a fundo para conquistar o poder político a qualquer custo; e, depois que o obtêm, são capazes de se superarem para mantê-lo. As eleições anteriores à independência, em 1959, ofereceram uma indicação do que estava para acontecer, com os candidatos sulistas sendo intimidados no norte, durante a campanha. Essas eleições foram as últimas presididas em grande parte pelos servidores civis britânicos, que fizeram o melhor possível para garantir a lisura. Em eleições subseqüentes, a fraude e a intimidação tornaram-se mais ou menos a norma vigente.
Apesar de tudo, as eleições de 1959 proporcionaram um governo à Nigéria. O padrão da luta pelo poder que iria se seguir já estava definido e acompanhou bem de perto as linhas de regionalismo fixadas pela malfadada Constituição Richards, de doze anos antes. O leste era dominado pelo Conselho Nacional de Cidadãos Nigerianos (CNCN), partido liderado pelo Dr. Nnamdi Azikiwe, pioneiro do nacionalismo na África Ocidental e antigo defensor (se bem que pacífico) da independência nigeriana. No início, o CNCN tivera as características de um partido realmente nacional. Mas a ascensão de outros partidos, com um apelo mais regional que político, em seguida à Constituição Richards, o foi restringindo cada vez mais ao leste. Não obstante, o próprio Azikiwe ainda preferia a atmosfera mais pan-nigeriana de Lagos, embora já fosse, por ocasião da independência, há cinco anos Primeiro-Ministro do Leste.
A região oeste do sul era dominada pelo Grupo de Ação do Chefe Awolowo, cujo apelo era forte e quase que exclusivamente Iorubá. Há cinco anos que ele era Primeiro-Ministro do Oeste.
O norte era o domínio do Congresso do Povo do Norte (CPN), cujo líder era o Sardauna de Sokoto, Sir Ahmadu Bello.
Esse equilíbrio triangular de poder já existia há cinco anos, desde as eleições de 1954, em que o CPN e o CNCN, formando uma coalizão com 140 dos 184 representantes na assembléia nacional, haviam colocado o Grupo de Ação de Awolowo na oposição.
O processo se repetiu nas eleições de 1959. Numa Câmara ampliada, o CPN ficou com as 148 cadeiras do norte, o CNCN conquistou o leste e uma parte do oeste (especialmente as áreas não-Iorubás, conhecidas como Meio-Oeste), ficando com 89 deputados.
O Grupo de Ação saiu-se vitorioso em quase todo o oeste Iorubá, mas conquistou apenas 79 cadeiras na Câmara. Embora nenhum dos partidos contasse com maioria absoluta, qualquer coalizão de dois partidos poria o terceiro na oposição. Depois de algumas manobras e acordos nos bastidores, o CPN se aliou ao CNCN e tudo continuou como antes, com Awolowo tendo que passar outros cinco anos numa oposição impotente.
Já em 1957, depois da última das conferências constitucionais, tinha sido designado um Primeiro-Ministro federal. Foi Sir Abubakar Tafaw Balew, um Hausa, vice-líder do CPN e até aquele momento Ministro dos Transportes. Não foi surpresa que Sir Ahmadu, o líder da maioria do CPN e que poderia ter ocupado o cargo pessoalmente, se recusasse a ir para o sul a fim de dirigir o país. Como ele próprio disse, contentou-se em mandar seu "lugar-tenente” para ocupar o cargo. O termo indica perfeitamente o futuro relacionamento entre o Primeiro-Ministro federal e o Primeiro-Ministro do norte, assim como quem realmente detinha o poder.
Foi dessa forma que a Nigéria ingressou na independência, trôpega e vacilante. Pouco depois, o Dr. Azikiwe foi designado como o primeiro Governador-Geral nigeriano. O cargo de PrimeiroMinistro do leste ficou com seu auxiliar imediato, o Dr. Michael Okpara. No oeste, o Chefe Akintola já substituíra o Chefe Awolowo como Primeiro-Ministro. Enquanto isso, Awolowo chefiava a oposição, na Câmara Federal. O Sardauna permaneceu como senhor absoluto do norte.
A breve história parlamentar da Nigéria foi muito bem documentada.
O que parece emergir de todos os relatos, embora raramente alguém assim o expresse, foi que a forma tradicional de democracia parlamentar, elaborada em Whitehall, mostrou-se inteiramente inadequada na estrutura étnica existente, incompreensível até mesmo para os políticos locais, imprópria para a civilização africana e impraticável numa nação criada artificialmente, na qual as rivalidades de grupos, longe de terem sido eliminadas pelo poder colonial, haviam sido exacerbadas, como um expediente útil para o domínio indireto.
Doze meses depois da independência, acentuou-se uma cisão no Grupo de Ação, como era de se esperar num partido que já estava há seis anos na oposição e assim teria que continuar pelo menos por mais quatro anos. Uma parte do Grupo apoiou Awolowo, enquanto os outros ficavam com Akintola. Em fevereiro de 1962, a convenção do partido apoiou Awolowo. Akintola foi declarado culpado de má administração e pediu-se a sua destituição do cargo de Primeiro-Ministro.
Em resposta ao pedido, o Governador do Oeste demitiu Akintola e designou Adegbenro, um partidário de Awolowo, para formar um novo governo na região oeste. Akintola apelou ao Primeiro-Ministro federal, por vias indiretas. Na Câmara dos Representantes do Oeste, Akintola e seus partidários iniciaram um tumulto de grandes proporções, que a polícia teve que dissolver com gás lacrimogêneo. O Primeiro-Ministro Balewa, em Lagos, acionou sua maioria para aprovar uma moção declarando o estado de emergência no oeste, apesar dos protestos de Awolowo. Balewa designou em seguida um Administrador para o oeste, com poderes para deter pessoas, ao mesmo tempo em que suspendia o Governador de suas funções. Como não podia deixar de ser, o Administrador era amigo de Balewa. Foram impostas restrições às atividades de Awolowo, Adegbenro e Akintola, que prontamente formaram um novo partido, o Partido dos Povos Unidos (PPU).
A providência seguinte dos adversários de Awolowo foi determinar uma investigação sobre a corrupção no oeste. Era uma arma das mais úteis e não era difícil provar a corrupção, tanto no oeste como em qualquer outro lugar.
A corrupção na vida pública não era uma novidade. Já ocorria sob o domínio inglês, mas floresceu de maneira alarmante depois da independência. Os "dez por cento" que os Ministros habitualmente exigiam das firmas, estrangeiras antes de lhes conceder contratos lucrativos, a participação acionária em negócios que subseqüentemente passavam a desfrutar de privilégios fiscais, o suborno franco e declarado de policiais e magistrados nativos, tudo isso era comum e conhecido. Eram poucos os ministros que não tiravam proveitos ilícitos do poder de que dispunham. Não resta a menor dúvida de que isso era causado em parte por simples ganância, mas também porque se esperava que qualquer homem no poder mantivesse um séquito numeroso, providenciasse devidamente- a sua reeleição e cumulasse de benefícios a sua cidade natal. Juntamente com a simples corrupção financeira, florescia o nepotismo e a corrupção eleitoral.
A Comissão Coker não teve maiores dificuldades em comprovar que vultosas somas dos recursos públicos haviam sido canalizadas, especialmente através da Junta de Comercialização e da Companhia Nacional de Propriedade e Investimento, controladas pelo governo, para o partido e, subseqüentemente, para uso particular.
O Chefe Awolowo e um dos seus principais assessores, o Chefe Anthony Enahoro, foram envolvidos na investigação sobre corrupção e ficou bem clara a atitude que assumiam em relação às responsabilidades da vida pública. Os dois voltaram agora a ocupar cargos elevados no governo nigeriano.
Entre o início do autogoverno regional, em 1956, e a investigação realizada pela Comissão Coker, em 1962, constatou-se que 16 milhões de libras haviam sido canalizados para os cofres do Grupo de Ação. Essa quantia representava 30 por cento da renda regional durante esse período. Por mais estranho que possa parecer, não se descobriu a menor prova da participação desse desvio de dinheiros públicos do Chefe Akintola, que era o Primeiro-Ministro desde 1959, quando Awolowo fora para a Câmara Federal, em Lagos.
Não se pode saber se as conclusões da Comissão Coker teriam levado a alguma ação judicial contra os principais elementos da facção de Awolowo. É que o caso foi engolfado pelos acontecimentos.
Ao final de 1962, Awolowo e Enahoro foram acusados de traição, juntamente com diversos outros.
O julgamento foi bastante tortuoso e prolongou-se por oito meses. A promotoria alegou que Awolowo e Enahoro tinham importado armas e treinado voluntários para um golpe a ser desfechado a 23 de setembro de 1962. O Governador-Geral, o Primeiro-Ministro e outras altas autoridades seriam presos, Awolowo tomaria o poder e se declararia o Primeiro-Ministro da Nigéria. A defesa argumentou que a atmosfera de violência e medo predominantes no oeste desde a independência tornava tais precauções aconselháveis. Awolowo acabou sendo condenado a dez anos de prisão, a sentença sendo reduzida para sete anos na apelação.
Enahoro, depois de ser repatriado da Inglaterra e julgado em separado posteriormente, foi condenado a 15 anos de prisão, com uma redução para dez anos na apelação. O Juiz de Apelação que reduziu a sentença de Enahoro foi Sir Louis Mbanefo, mais tarde Ministro da Justiça de Biafra. Juiz e acusado voltaram a se encontrar nas conversações de paz de Kampala, em maio de 1968, cada um chefiando a delegação de seu país.
O caso rumoroso permitiu a Akintola consolidar seu poder no oeste, apesar de um Conselho Privado, reunido em Londres em maio de 1963, haver decidido que a sua destituição do cargo de Primeiro-Ministro, feita pelo Governador-Geral, fora válida. O protetor de Akintola, o Primeiro-Ministro federal Balewa, declarou que as conclusões do Comitê Judicial do Conselho Privado eram "infundadas e totalmente fora de contato com a realidade". No mesmo ano, foram abolidas as apelações ao Conselho Privado e outra salvaguarda passou para a história.
O estágio final do julgamento de Awolowo rivalizou em escândalo com a fraude no censo nacional. O censo anterior, em 1953-54, fora de alguma maneira prejudicado pelos rumores de que estava relacionado com um esquema de impostos. Assim, muitas pessoas tinham evitado ser contadas no censo, especialmente no leste. O número global de habitantes da Federação, estimado nessa ocasião em 30,4 milhões, estava provavelmente errado pelo menos em dez por cento. Por ocasião do censo de 1962, correu o rumor de que estava de alguma forma relacionado com uma representação em nível político. Conseqüentemente, os dados foram consideravelmente ampliados em todas as regiões, especialmente no leste. O censo de 1962 custou 1,5 milhão de libras e os resultados jamais foram divulgados. Indicavam que a população do- norte crescera 33 por cento em oito anos, passando para 22,5 milhões de habitantes, enquanto a população do sul crescera mais de 70 por cento, passando para 23 milhões de habitantes. Com isso, a população total da Nigéria seria de 45,5 milhões de habitantes. O Sr. J. J. Warren, o chefe britânico dos 45 mil agentes censitários, rejeitou os dados sulistas, considerando-os "falsos e inflacionados". Tal conclusão não desagradou o Sardauna de Sokoto, que não ficou muito satisfeito ao descobrir que a população do sul aparentemente superava a do norte em meio milhão de habitantes. Conta-se que ele rasgou os resultados do censo num acesso de fúria e ordenou a Balewa que tentasse outra vez. Outro censo foi realizado em 1963, desta vez sem a ajuda do cético Sr. Warren.
Talvez tenha sido melhor assim, porque ele provavelmente teria um ataque se tivesse visto a preparação dos resultados do censo, sob a supervisão pessoal de Balewa. Numa bela manhã de fevereiro de 1964, os nigerianos acordaram para descobrir que eram 55,6 milhões, um pouco menos de 30 milhões na região norte.
O Sr. Warren recusara-se a aceitar os dados do sul, no ano anterior, por diversos motivos. Entre outras coisas, porque indicavam existir na ocasião entre três e quatro vezes mais homens adultos do que os dados constantes dos registros civis. Além disso, havia mais crianças com menos de cinco anos do que poderiam ser produzidas por todas as mulheres em idade de ter filhos, mesmo que tivessem ficado continuamente grávidas durante esse período. Aceitara os dados para o norte porque pareciam razoáveis, apresentando um crescimento anual de dois por cento, em relação ao censo anterior.
Se o norte fora surpreendido cochilando em 1962, estava alerta e desperto em 1963. O aumento da população de 22,5 milhões de habitantes para pouco menos de 30 milhões em apenas um ano representava um crescimento demográfico realmente extraordinário.
O sul, cujos dados em 1962 já tinham parecido inacreditáveis para o Sr. Warren, passou de 23 para 25,8 milhões de habitantes.
Muitos expatriados perguntaram se esses dados não incluiriam os carneiros e bodes. Os políticos nigerianos recriminaram-se acerbada mente, recusando-se terminantemente a aceitar os dados para a outra metade do país. A população chegou à conclusão de que tudo não passava de um "arranjo" e provavelmente estava certa.
Cálculos mais comedidos e realistas indicam que a população nigeriana era aproximadamente de 47 milhões de habitantes ao final de maio de 1967. Desse total, Biafra desligou cerca de 13,5 milhões de habitantes, inclusive o enorme refluxo de refugiados, ao declarar sua própria independência, ao final desse mesmo mês, maio de 1967.
O escândalo do censo foi gradativamente abafado pela greve geral de 1964. Durante todo esse tempo e até o primeiro golpe militar, em janeiro de 1966, os Motins Tiv agitaram a área conhecida como Cinturão Intermediário, a terra tradicional dos Tivs. Esses nativos obstinados e independentes, mas de um modo geral bastante atrasados, há muito que reivindicavam um Estado do Cinturão Intermediário. Eram representados pelo Congresso Unido do Cinturão Intermediário. Os líderes do CPN, que não fizeram a menor objeção em criar a Região Meio-Oeste no território do este em 1963, como um estado para as minorias não-Iorubás, acharam que não havia qualquer necessidade de fazer a mesma coisa para os Tivs, já que estes podiam ser considerados, politicamente, como nortistas. Assim, o exército foi incumbido de esmagar as revoltas dos Tivs, que ocorreram logo depois da independência e perduraram até o golpe militar de 1966. A maioria das unidades militares despachadas para a região era da Primeira Brigada, recrutada predominantemente no norte. Alguns oficiais objetaram ao uso do exército para esmagar revoltas civis, mas outros empenharam-se em conquistar os favores dos políticos nortistas, mostrando-se mais realistas do que o rei no combate aos dissidentes. Contudo, quanto mais duramente os Tivs eram tratados, mais encarniçadamente reagiam.
Por volta de 1966, observadores independentes calculavam que cerca de três mil pessoas já tinham morrido nesses distúrbios, sobre os quais se ergueu o véu do segredo perante o resto do mundo.
Pouco depois da greve geral, foram realizadas as eleições gerais de 1964. A aliança de dez anos entre o CPN e o CNCN foi rompida por Sir Ahmadu Bello, que anunciou bruscamente que "os Ibos nunca foram amigos verdadeiros do norte e jamais o serão".
Ao mesmo tempo, ele anunciou uma aliança com Akintola que estava agora firmemente consolidado no poder no oeste. Parece mais do que provável que Bello, sabendo que uma aliança com um dos partidos do sul era indispensável para manter seu lugar-tenente no poder em Lagos, concluiu que Akintola, que muito lhe devia, seria bem mais maleável que Okpara. Assim, Akintola fundiu seu partido com o CPN do Sardauna, formando a Aliança Nacional Nigeriana (ANN). O CNCN não teve alternativa que não ligar-se ao que restara do Grupo de Ação, os membros do partido que tinham permanecido leais ao aprisionado Awolowo.
Surgiu a Grande Aliança Unida Progressista (GAUP).
A campanha foi a mais sórdida que se poderia imaginar (ou pelo menos foi o que se pensou na ocasião, até que Akintola superou a tudo o que já fizera anteriormente, no ano seguinte, durante as eleições na região oeste). No oeste, o apelo eleitoral da ANN foi fortemente racista, contra um suposto "domínio Ibo". Boa parte da literatura da campanha recordava as exortações anti-semitas da Alemanha antes da guerra. O Dr. Azikiwe, Presidente da Federação desde que a Nigéria se tornara uma república em 1963, apelou em vão para que as eleições fossem conduzidas com nobreza e elevação, advertindo contra os perigos da discriminação tribal.
No norte, os candidatos da GAUP foram hostilizados e até mesmo espancados por seguidores do CPN, sempre que tentavam fazer campanha.
Tanto no norte como no oeste, os candidatos da GAUP queixaram-se que eram impedidos de se registrar ou então, mesmo quando o conseguiam, os oponentes da ANN eram apresentados como "candidatos únicos. Até o último momento, houve dúvidas se sequer chegaria a haver eleições. Ao final, as eleições acabaram se realizando, mas foram boicotadas pela GAUP. Como já era de se esperar, a ANN obteve uma grande vitória.
O Presidente Azikiwe, mesmo sentindo-se infeliz com a posição constitucional, pediu a Balewa que formasse um governo nacional de bases amplas. Evitou-se uma crise que poderia ter destruído a Federação em 1964. Em fevereiro de 1965, foram finalmente realizadas eleições federais no leste e no meio-oeste, com uma votação maciça nos candidatos da GAUP. Os resultados finais foram 197 cadeiras para a Aliança Nacional e 108 para a GAUP.
Esse escândalo mal fora esquecido quando começaram os preparativos para as eleições de novembro de 1965 na região oeste.
Akintola estava defendendo seu cargo de Primeiro-Ministro e uma história administrativa estarrecedora. Parece não haver a menor dúvida de que a impopularidade de Akintola levaria a uma vitória da GAUP na oposição, se as eleições fossem realizadas com lisura.
Com isso, a GAUP teria o controle do Leste, do Meio-Oeste (que já tinha), do Oeste e de Lagos, o que lhe daria maioria no Senado, muito embora a aliança norte/oeste continuasse a controlar a Câmara Baixa.
Tudo indicava que Akintola estava perfeitamente a par dessa possibilidade. Sabia também que contava com o apoio irrestrito do poderoso e impiedoso Ahmadu Bello no norte e de Balewa, que era o Primeiro-Ministro federal. Confiante na impunidade, Akintola empenhou-se em ganhar as eleições de qualquer maneira demonstrando uma engenhosidade considerável, já que não ignorou uma só oportunidade de cometer um ato torpe.
A GAUP, já prevenida pelo que ocorrera nas eleições federais, registrou todos os seus candidatos com grande antecedência, inclusive com declarações juramentadas de que os 94 tencionavam concorrer às eleições. Mesmo assim, 16 partidários de Akintola, inclusive ele próprio, foram declarados candidatos únicos. Autoridades eleitorais sumiram misteriosamente, umas desapareceram mesmo estando sob a custódia da polícia, candidatos foram detidos, cabos eleitorais foram assassinados, novos regulamentos foram introduzidos no último minuto, sendo comunicados apenas aos candidatos de Akintola. Enquanto se processava a contagem dos votos, os candidatos e representantes da GAUP foram mantidos à distância, por diversos meios, sendo que o mais suave foi um toque de recolher aplicado seletivamente pela polícia controlada pelo governo.
Quase que milagrosamente, diversos candidatos da GAUP foram declarados eleitos pelas autoridades das circunscrições eleitorais que ainda estavam em seus cargos. Houve instruções especiais para que todos os resultados fossem encaminhados ao gabinete de Akintola. O público aturdido ouviu a rádio do oeste, sob o controle de Akintola, anunciar determinados resultados, enquanto a rádio do leste apresentava resultados diferentes, fornecidos pela GAUP, que os obtivera com as autoridades das circunscrições eleitorais.
Segundo o governo do oeste, o resultado das eleições proporcionou 71 cadeiras para Akintola e 17 para a GAUP. Assim sendo, pediu-se a Akintola que formasse um novo governo. A GAUP alegou que na verdade vencera as eleições, conquistando 68 cadeiras na assembleia regional. Levantou a acusação de fraude, uma alegação que os observadores não precisaram se esforçar muito para acreditar. Adegbenro, líder da GAUP no oeste, declarou que iria formar seu próprio governo. Ele e seus partidários foram presos.
Foi o sinal para o colapso total da lei e da ordem, se é que se podia dizer que isso existia antes. Eclodiram motins e distúrbios em toda a região ocidental. Assassinatos, saques, incêndios, espancamentos, tudo ocorreu. Nas estradas, bandos rivais cortavam as árvores e detinham os motoristas, exigindo que declarassem suas tendências políticas. A resposta errada implicava morte ou assalto.
Calcula-se que, em poucas semanas, houve entre mil e duas mil mortes.
Diante de tais acontecimentos, Balewa, que tão prontamente declarara um estado de emergência em 1962 por causa de um tumulto na assembleia regional do oeste, permaneceu inativo.
Apesar dos reiterados apelos para que declarasse o estado de emergência, dissolvesse o governo de Akintola e convocasse novas eleições, Balewa limitou-se a declarar que não tinha "poderes" para tais providências.
A poderosa Federação da Nigéria estava desmoronando em ruínas, diante dos olhos dos observadores estrangeiros, que apenas uns poucos anos antes haviam-na aclamado como a grande esperança da África. Contudo, tais acontecimentos mal transpiraram para o mundo exterior. Ansioso em manter as aparências, o governo de Balewa promoveu a realização de uma conferência de Primeiros-Ministros da Commonwealth em Lagos, na primeira semana de janeiro de 1966, a fim de se discutir o problema da restauração da lei e da ordem na Rodésia amotinada. O Sr. Harold Wilson compareceu com o maior prazer. Enquanto os Primeiros-Ministros da Commonwealth apertavam-se as mãos e exibiam sorrisos radiantes no Aeroporto Internacional de Ikeja, a poucos quilômetros de distância havia nigerianos morrendo às dezenas, à medida que o exército ia eliminando os partidários da GAUP.
Mas o exército também não conseguiu restaurar a ordem.
Por insistência do seu comandante-em-chefe, Major-General Johnson
Ironsi, as tropas foram retiradas. Nessa ocasião, a maioria dos soldados de infantaria do exército federal provinha do Cinturão
Intermediário, isto é, das tribos minoritárias do norte. Essas tropas, particularmente os Tivs, que formavam a porcentagem mais elevada, não podiam ser usadas para dominar os distúrbios que ainda ocorriam na terra dos Tivs. É que, provavelmente, não iriam disparar contra seu próprio povo. Assim, a maioria das tropas federais que não estava na terra dos Tivs era formada em grande parte por Tivs.
Pelo mesmo motivo por que não podiam ser usadas na terra dos Tivs, também não eram de grande valia no oeste. As simpatias dos Tivs não estavam com o regime de Akintola. Afinal, Akintola não era o aliado e vassalo do Sardauna de Sokoto, o perseguidor implacável dos Tivs? A tendência deles era ficar do lado dos amotinados, já que estavam na mesma posição, vis-à-vis com o grupo no poder de Sokoto/Akintola.
Na segunda semana de janeiro de 1966, era evidente que alguma coisa iria acontecer. A descrição feita posteriormente pelo atual regime militar nigeriano apresentou os acontecimentos subseqüentes como de iniciativa exclusiva dos Ibos, não levando em consideração a inevitabilidade de uma démarche do exército ou então a anarquia total.
Na noite de 14 de janeiro, no norte, no oeste e na capital federal de Lagos, um grupo de jovens oficiais entrou em ação.
Em poucas horas, Sokoto, Akintola e Balewa estavam mortos.
Com eles, morreu também a Primeira República.
Por ocasião da independência da Nigéria, a Inglaterra reivindicou o mérito pelo aparente sucesso inicial de seu experimento.
A Inglaterra não pôde agora esquivar-se à sua parcela de responsabilidade pelo fracasso, já que a Nigéria foi essencialmente um experimento britânico, não nigeriano. Durante anos, o pensamento político de Whitehall em relação à Nigéria baseara-se numa recusa resoluta em enfrentar as realidades, uma convicção obstinada de que os fatos podiam ser distorcidos e pressionados para se ajustarem à teoria, a determinação de varrer para baixo do tapete todas as manifestações que pudessem desacreditar o sonho. E essa atitude continua até hoje.
2. O Golpe Que Fracassou
Dois golpes estavam provavelmente fermentando durante a primeira quinzena de 1966. As provas do que não ocorreu são basicamente circunstanciais. Mas declarações subseqüentes de que o golpe de 15 de janeiro frustrou outro golpe, marcado para 17 de janeiro, são certamente bem plausíveis.
O outro golpe planejado teria começado com um breve reinado de terror no delta do Níger, na região leste, comandado por um estudante da Universidade de Nsukka, Isaac Boro, que foi abastecido de recursos vultosos para esse objetivo. Isso daria ao Primeiro-Ministro Balewa a oportunidade de declarar um estado de emergência no leste. Simultaneamente, segundo acusações' que foram feitas posteriormente no oeste, unidades comandadas por nortistas deveriam realizar uma "blitz implacável" contra elementos da oposição (isto é, da GAUP) da região. As duas ações seriam suficientes para destruir a oposição, consolidar a posição de Akintola como Primeiro-Ministro de uma região que a esta altura odiava-o intensamente e deixado a ANN, o partido do Sardauna de Sokoto, no controle supremo e absoluto da Nigéria.
Houve algumas ocorrências que parecem confirmar o planejamento desse golpe. A 13 de janeiro, Sir Ahmadu Bello, que fazia uma peregrinação a Meca, retornou abruptamente à sua capital nortista, Kaduna. No dia seguinte, houve uma reunião secreta entre Bello, Akintola, que seguiu de avião para o norte especialmente para o encontro, e o comandante da Primeira Brigada, um oficial ocidental pró-Akintola, General Ademolegun. Anteriormente, o Ministro da Defesa federal, um nortista do CPN, ordenara que o comandante-em-chefe do Exército, Major-General Ironsi, tirasse imediatamente a sua licença acumulada. O InspetorGeral da Polícia, Sr. Louis Edet, também recebeu ordens para entrar de licença, já que era igualmente um oriental. O segundo homem da hierarquia da polícia, Sr. M. Roberts, um ocidental, foi aposentado prematuramente, para ser substituído pelo Hausa Alhaji Kam Salem, que estaria assim controlando a Polícia Federal, a 17 de janeiro. O Presidente, Dr. Azikiwe, estava na Inglaterra, por problemas de saúde. Se havia de fato uma conspiração, acabou fracassando, porque foi precedida por outro golpe, planejado com igual sigilo por um pequeno grupo de oficiais subalternos, liderado principalmente, embora com toda certeza não exclusivamente, por homens originários do leste.
Em Kaduna, o líder do grupo era um homem de tendências esquerdistas e altamente idealista, o Major Chukwuma Nzeogwu, um Ibo da região meio-oeste, que passara toda a sua vida no norte e falava o Hausa melhor do que o Ibo. Na tarde de 14 de janeiro, esse oficial brilhante mas errático, instrutor da Academia de Defesa Nigeriana sediada em Kaduna, levou um pequeno destacamento de soldados, Hausas em sua maioria, para fora da cidade ostensivamente em exercícios de rotina. Ao se aproximarem da magnífica residência de Sir Áhmadu, Nzeogwu disse aos soldados que a missão deles era matar o Sardauna. Os soldados não demonstraram a menor hesitação.
— Eles estavam armados. ... Se por acaso tivessem discordado, poderiam ter atirado em mim — disse Nzeogwu mais tarde.[West África, 29 de janeiro de 1966.]
Os soldados avançaram à força pelos portões, matando três guardas do Sardauna e perdendo apenas um homem na manobra.
Além dos muros, despejaram uma chuva de morteiros sobre o palácio.
Depois, Nzeogwu lançou uma granada de mão na porta principal. Chegou perto demais e acabou ferindo a mão. Os soldados entraram no palácio e o Sardauna foi morto a tiros, juntamente com dois ou três criados. Em outra parte de Kaduna outro grupo entrava na casa do General Ademolegun e o matava a tiros, na cama, junto com a esposa. Um terceiro grupo matou o Coronel Shodeinde, o Iorubá que era o subcomandante da Academia de Defesa. Com isso, o derramamento de sangue no norte estava terminado.
Na tarde de 15 de janeiro, Nzeogwu falou pela rádio de Kaduna, declarando aos ouvintes:
— Nossos inimigos são os aproveitadores e escroques políticos, situados nos cargos mais altos e também nos mais baixos, homens que procuram os subornos e exigem a comissão de dez por cento para aprovarem qualquer negócio, aqueles que se empenham em manter o país permanentemente dividido a fim de que possam permanecer no poder, como os Ministros e capitalistas, os tribalistas, os nepotistas, todos os que fazem a Nigéria parecer grande por fora nos círculos internacionais, sem que haja qualquer esteio internamente.
Posteriormente, Nzeogwu comentou em particular:
— Nosso objetivo era mudar o país e transformá-lo num lugar a que pudéssemos orgulhosamente chamar de pátria, não desencadear uma guerra. ... Àquela altura, nenhum de nós estava absolutamente pensando em considerações tribais.
Em Lagos, o golpe era comandado pelo Major Emmanuel Ifeajuana, um jovem Ibo que já experimentara antes o sabor da fama, por suas proezas como atleta. Algumas horas depois do anoitecer, ele entrou em Lagos com diversos caminhões carregados de soldados do quartel de Abeokuta. Pequenos destacamentos foram despachados para diversos pontos de Lagos, a fim de cumprir missões específicas. Três oficiais superiores de origem nortista, o General-de-Brigada Maimalari, comandante da Segunda Brigada, o Tenente-Coronel Pam, ajudante-de-ordens, e o Tenente-Coronel Lagema, comandante do Quarto Batalhão, foram mortos, os dois primeiros em suas residências e o terceiro no Hotel Ikoyi, onde estava hospedado. O Major Ifeajuana foi pessoalmente caçar os políticos. O Primeiro-Ministro Balewa foi preso em sua casa e jogado na parte de trás de um Mercedes, sendo obrigado a ficar deitado no chão. O Ministro das Finanças, Chefe Festus Okotie-Eboh, originário do meio-oeste, um homem que conquistara uma extraordinária reputação de corrupção e venalidade mesmo pelos padrões da política nigeriana, foi fuzilado em sua casa, sendo o corpo jogado na mala do Mercedes. Os soldados também foram atrás do Dr. Kingley Mbadiwe, um Ibo, Ministro do Comércio, que escapou pelos jardins e foi se esconder no Palácio do Estado, que estava vazio e era a residência oficial do ausente Presidente Azikiwe. Foi o único lugar que os soldados jamais pensaram em revistar.
A última vítima em Lagos, naquela noite, foi outro Ibo, o Major Arthur Unegbu. Ele estava no comando do paiol do quartel de Ikeja e foi morto porque se recusou a entregar as chaves aos revoltosos.
Em Ibadan, capital do oeste, o objetivo óbvio era o odiado Akintola. Os soldados que cercaram sua casa foram recebidos por uma rajada de tiros de automáticas. O Primeiro-Ministro ocidental mantinha o seu próprio arsenal particular. Depois que a casa foi invadida, à custa da morte de três soldados, Akintola foi arrastado para fora, gravemente ferido, recebendo o tiro de misericórdia no jardim. Ainda em Ibadan, o Vice-Primeiro-Ministro, Chefe Fani Kayode, foi preso. Quando os soldados arrastavam-no para fora de sua casa, ele gritou:
— Eu já sabia que o exército ia entrar em ação, mas não imaginava que fosse assim!
Até esse momento, o golpe transcorrera mais ou menos de acordo com os planos. Ao amanhecer, se os oficiais rebelados tivessem consolidado seu poder, poderiam estar controlando as capitais do norte e do oeste, além de Lagos, a capital federal. Benín, a capital da pequena região meio-oeste, aparentemente estava fora dos planos. Havia um motivo para isso: o meio-oeste poderia ser dominado posteriormente, sem maiores dificuldades, concentrando-se inicialmente as forças rebeldes nos pontos mais importantes .
Mesmo para as testemunhas e participantes, as versões do que exatamente saiu errado variam consideravelmente. Pode-se apenas tentar chegar a um relato coerente com base nas impressões conflitantes. O Major Ifeajuana e seus companheiros de conspiração em Lagos aparentemente voltaram para Abeokuta no Mercedes, largando os corpos de Balewa e Okotie-Eboh no caminho.
Quase todos acreditam que Balewa foi morto a tiros, embora uma testemunha tenha declarado que ele morreu de um ataque cardíaco. Os corpos foram encontrados uma semana depois na estrada para Abeokuta.
Ifeajuana e seu principal colaborador em Lagos, Major David Okafor, comandante da Guarda Federal, parecem ter cometido o erro crasso de não deixarem ninguém de pulso no comando da situação na capital federal, ao se retirarem. Foi em grande parte por isso que o golpe fracassou. O outro motivo fundamental foi a ação rápida e enérgica do comandante-em-chefe do Exército, Major-General Ironsi.
Assim, quando o grupo de Ibadan entrou em Lagos pouco depois do amanhecer, com o cadáver de Akintola e Fani-Kayode ainda vivo, mas todo amarrado, a cidade já tinha trocado de mãos.
O grupo de Ibadan foi preso por soldados leais a Ironsi e Fani-Kayode foi libertado.
Enquanto isso, Ifeajuana e Okafor chegavam à conclusão de que não havia nenhum oficial para assumir o controle de Enugu, a capital do leste, a última das quatro cidades que tencionavam dominar. Partiram para Enugu no Mercedes, seguido por um Volkswagen com alguns soldados, numa viagem de 650 quilômetros por estradas irregulares.
Um dos principais argumentos de que o golpe de 15 de janeiro foi planejado pelos Ibos, visando a dominar a Nigéria, sempre foi o de não ter ocorrido nenhuma tentativa de tomar o poder em Enugu. Mas os fatos não confirmam essa teoria. Soldados do Primeiro Batalhão cercaram a residência do Primeiro-Ministro às duas horas da madrugada, mas ficaram aguardando ordens para o ataque. O comandante do Primeiro Batalhão, Tenente-Coronel Adekunle Fajuyi, um Iorubá, estava ausente, em viagem. O subcomandante, Major David Ejoor, do meio-oeste, estava em Lagos.
Os soldados, que não eram predominantemente Ibos, como foi sugerido, mas principalmente homens do Cinturão Intermediário da região norte, estavam agachados em torno da casa quando o dia despontou, aguardando ordens. Enquanto isso, Ifeajuana e Okafor avançavam a toda velocidade pelos campos, a fim de dar as ordens necessárias.
Nenhum homem contribuiu mais do que o comandante-em-chefe do Exército, Major-General Ironsi, para frustrar o golpe.
Ele próprio era um Ibo, de Umuahia. Ingressara no Exército ainda quase um menino, como soldado, subindo até os mais altos escalões.
Era um homem corpulento, soldado de carreira, meticuloso, consciencioso. Sabia qual era o seu dever e não admitia nenhum desvio.
Ao que tudo indica, ele também estava marcado para morrer naquela noite. No início da noite, comparecera a uma festa oferecida pelo General-de-Brigada Mainalari e depois fora a outra festa, no navio-postal Aureol, atracado no porto de Lagos. Ao voltar para casa, depois de meia-noite, o telefone estava tocando. Era o Coronel Pam, informando que alguma coisa estava acontecendo.
Minutos depois, Pam estava morto. Ironsi desligou o telefone no momento em que seu motorista, um jovem soldado Hausa, vinha comunicar que havia tropas percorrendo as ruas de Lagos. Ironsi entrou em ação rapidamente.
Entrou no carro e ordenou ao motorista que o levasse imediatamente ao quartel de Ikeja, o maior da região e sede do quartel-general do Exército. Foi detido por um bloqueio na estrada erguido pelos homens de Ifeajuana, que lhe apontaram suas armas.
Ironsi saltou do carro, empertigou-se e gritou:
— SAIAM DA MINHA FRENTE!
Os soldados se afastaram para lhe dar passagem.
Chegando a Ikeja Ironsi prontamente reuniu as tropas que lá estavam. E, de Ikeja, emitiu um intenso fluxo de ordens para todos os lados, durante a manhã inteira. Tropas leais a ele e ao governo assumiram o controle da situação. O Major Ejoor, apresentando-se pouco antes do amanhecer, recebeu ordens de voltar para Enugu o mais depressa possível e reassumir o comando do Primeiro Batalhão. Ejoor foi para um aeroporto próximo, embarcou num avião pequeno e seguiu prontamente para Enugu. No caminho, passou pelo Mercedes de Ifeajuana, seguindo pela estrada lá embaixo.
Chegando primeiro a Enugu, Ejoor assumiu o comando da guarnição e retirou as tropas que cercavam a casa do Dr. Okpara.
Às 10 horas da manhã, os mesmos soldados formavam uma guarda de honra, enquanto o assustado Primeiro-Ministro despedia-se no aeroporto do Presidente Makarios, de Chipre, que encerrava por Enugu uma viagem à Nigéria. Mais tarde, o Dr. Okpara recebeu permissão para retornar à sua cidade natal, Umuahia.
No meio-oeste, as tropas rebeldes chegaram à casa do Primeiro-Ministro às 10 horas da manhã, mas retiraram-se às duas horas da tarde, por ordem do General Ironsi. O golpe fracassara.
Ifeajuana e Okafor encontraram Ejoor no comando da situação quando chegaram a Enugu. Esconderam-se na casa de um farmacêutico, onde Okafor acabou sendo preso. Ifeajuana fugiu para Gana, para voltar posteriormente e juntar-se a seus companheiros de conspiração na prisão.
Não foi um golpe branco, mas também não chegou a haver um banho de sangue. Os Primeiros-Ministros do Norte, do Oeste e da Federação tinham morrido, assim como um Ministro federal.
Entre os oficiais superiores do Exército morreram três nortistas, dois ocidentais e dois orientais. (Outro major Ibo também foi morto, mas por tropas leais, que julgaram erroneamente que ele fosse um dos conspiradores.) Morreram também alguns civis, inclusive a esposa de um dos oficiais e criados de Sir Áhmadu Bello, além de menos de uma dúzia de soldados. Nzeogwu afirmou depois que não deveria ter ocorrido nenhuma morte, mas alguns de seus companheiros ficaram por demais entusiasmados.
Em Lagos, o General Ironsi assumira inteiramente o controle do Exército e restaurara a ordem. Mas não foi isso o que posteriormente o levou ao poder. Foi basicamente a reação da população, que deixou patente para todos que o reinado dos políticos chegara ao fim. Essa reação pública, muitas vezes esquecida atualmente, desmente cabalmente a idéia capciosa de que o golpe de janeiro foi obra de uma facção.
Em Kaduna, uma multidão de Hausas delirantes saqueou o palácio do autocrata morto. Um sorridente Major Hassan Usman Katsina, filho do fulani Emir de Katsina, sentou-se ao lado de Nzeogwu numa entrevista coletiva, antes de ser indicado para Governador Militar do Norte. Alhaji Ali Akilu, chefe do Serviço Civil nortista, declarou publicamente seu apoio a Nzeogwu. Mas a estrela do major Ibo estava começando a cair rapidamente.
Em Lagos e no resto do sul, Ironsi dominava inteiramente a situação e não estava disposto a fazer qualquer concessão aos conspiradores. Mas teve o bom senso de compreender que, embora os conspiradores tivessem cometido ações que eram contra o seu próprio condicionamento e inclinações, haviam prestado um serviço público e contavam com amplo apoio popular. Na tarde de sábado, 15 de janeiro, Ironsi pediu ao Presidente em exercício que designasse um Primeiro-Ministro provisório, do qual poderia aceitar ordens válidas, nos termos da Constituição. Mas os políticos protelaram qualquer decisão até a manhã de domingo. Quando o Gabinete finalmente se reuniu, Ironsi comunicou que não mais poderia garantir-lhes a lealdade de seus oficiais e evitar a guerra civil, a menos que ele próprio assumisse o poder. Parece não haver a menor dúvida de que Ironsi estava certo quanto a isso, como numerosos oficiais já o confirmaram desde então, em declarações públicas. Mesmo os oficiais que não haviam participado do golpe não iriam aceitar o retorno ao regime dos políticos, agora totalmente desacreditados.
A esta altura, a situação também se agravara consideravelmente.
Nzeogwu, compreendendo que seus colegas no sul haviam malogrado, assumiu pessoalmente o comando de uma coluna militar e seguiu para lá, chegando a Jebba, na margem do rio Níger.
Se as guarnições do sul tivessem se dividido em facções em luta, contra ou a favor de Nzeogwu, o resultado inevitável seria a guerra civil. Quinze minutos antes da meia-noite, Ironsi falou pelo rádio, de Lagos, anunciando que, como o governo civil deixara de funcionar, as forças armadas tinham sido convocadas a formar um governo militar provisório. E ele, General Ironsi, fora investido na autoridade de chefe do Governo Militar Federal.
A crise pendeu a favor de Ironsi. O exército acatou suas ordens e Nzeogwu retirou-se para o quartel de Kaduna, onde foi posteriormente preso.
É possível que o Gabinete nigeriano (reunido sob a presidência de Alhaji Dipcharima, Ministro dos Transportes, um Hausa e a mais alta autoridade do CPN, depois de Balewa) não tivesse alternativa que não concordar com a solicitação do General Ironsi para que lhe fosse concedido o poder absoluto. Mas é igualmente verdade que Ironsi não tinha alternativa que não fazer tal solicitação, se queria evitar a guerra civil, entre unidades militares rivais.
Isso foi muito importante por três razões: explica por que a acusação de que o golpe foi uma conspiração Ibo para derrubar o regime constitucional e dominar a Nigéria não passou de uma invenção, alegada muito tempo depois do golpe e inteiramente em desacordo com os fatos; contradiz a alegação posterior de que os subseqüentes massacres de orientais vivendo no norte eram desculpáveis ou pelo menos compreensíveis já que "eles é que começaram tudo"; e esclarece e confirma a convicção inabalável do Tenente-Coronel Ojukwu de que a ascensão de Ironsi ao poder foi ao mesmo tempo constitucional e legal, enquanto a do Tenente-Coronel Gowon, seis meses depois do assassinato de Ironsi, foi ilegal e, assim sendo, não tinha a menor validade.
3. O Homem de Ferro
Johnson Thomas Umunakv/e Aguiyi-Ironsi nasceu perto de Umuahia, uma linda cidadezinha nas colinas, no centro da região leste, em março de 1924. Foi educado em parte em Umuahia e em parte em Kano, no norte, onde se alistou no Exército como soldado, aos 18 anos. Passou o resto da 2ª Guerra Mundial ao longo da costa da África Ocidental, tornando-se sargento aos 22 anos. Dois anos depois, foi para o Camberley Staff College, uma escola de oficiais. Voltou em 1949, como Segundo-Tenente, indo para o quartel-general do Comando da África Ocidental, em Acra.
Em seguida, foi para a Diretoria de Material Bélico, em Lagos.
Foi depois transferido para um regimento de infantaria. Já como tenente, foi ajudante-de-ordens do Governador, Sir John Macpherson.
Como capitão, promovido recentemente, compareceu à Coroação em Londres, em junho de 1953. Foi promovido a major em 1955 e escolhido para acompanhar a Rainha na visita dela à Nigéria, em 1956. Foi promovido a tenente-coronel em setembro de 1960 e ganhou o seu primeiro comando de tropa, o do Quinto Batalhão, sediado em Kano. No mesmo ano, comandou o contingente nigeriano na força da ONU no Congo, em luta contra os catangueses.
Demonstrou na ocasião que era algo mais que um simples oficial de estado-maior. Quando a equipe médica austríaca e os soldados nigerianos que foram em seu socorro ficaram cercados pelos rebeldes, Ironsi pegou um pequeno avião e foi sozinho negociar a libertação dos reféns. O governo austríaco condecorou-o com a Ritter Kreuz, Primeira Classe.
Em 1961 e 1962, Ironsi foi Conselheiro Militar da Alta Comissão Nigeriana em Londres. Nessa ocasião, foi promovido a general-de-brigada. Fez um curso no Colégio Imperial de Defesa.
Voltou ao Congo em 1964, como comandante de toda a Força de Paz da ONU, no posto de major-general (que corresponde ao posto de general-de-divisão na hierarquia militar brasileira), o primeiro oficial africano a conquistar tal promoção. Durante as operações, enfrentou sozinho uma turba enfurecida em Leopoldville e persuadiu os manifestantes a se dispersarem. Esse e outros feitos similares valeram-lhe o apelido afetuoso de "Johnny Ironside", o homem de ferro, o homem de grande coragem.
Retornando à Nigéria, voltou ao posto de general-de-brigada e assumiu o comando dá Primeira Brigada. Mas não demorou muito a suceder o Major-General Welby-Everard, o último britânico a comandar o Exército Nigeriano. Voltou a ser major-general. Segundo um funcionário civil britânico, em declaração posterior e escolhendo cuidadosamente as palavras, Ironsi era "um homem honrado e íntegro".
O novo regime começou muito bem. Contava com maciço apoio popular. Por toda a Nigéria, inclusive no norte, o povo se regozijava pelo término do domínio dos políticos corruptos e acalentava a esperança de um novo amanhecer. Os últimos conspiradores de janeiro foram tirados pacificamente de seus esconderijos e ficaram detidos em suas diversas regiões de origem. O CPN, do norte, o Grupo de Ação, do oeste, e o CNCN, do leste e do meio-oeste, declararam sua lealdade ao novo regime, embora os políticos desses partidos estivessem alijados do poder e alguns fossem presos.
Os sindicatos trabalhistas, as associações estudantis e os emires do norte também declararam o seu pleno apoio. Os correspondentes estrangeiros destacavam a popularidade do novo regime.
Um colunista do African World comentou em março: "A recepção favorável a essas mudanças constitucionais, por parte dos diferentes setores da população nigeriana, demonstra claramente que o movimento militar foi na verdade uma revolta popular das massas." [A Revolução Nigeriana, African World, março de 1966]Um mês antes, o correspondente na Nigéria do Economist, de Londres, visitara Sokoto, a cidade no extremo norte da Nigéria da qual Sir Ahmadu Bello tirara seu título, escrevendo posteriormente: "Sokoto era a paixão mimada do regime do Sardauna de Sokoto, mas mesmo ali a sua morte foi aceita sem maiores problemas. Se há quaisquer dúvidas a respeito dos acontecimentos, não sobrou ninguém para expressá-las, depois da morte do Sardauna."[12 de fevereiro de 1966] Mais tarde, verificou-se que era uma opinião por demais otimista.
O General Ironsi era um homem honesto e tentou conduzir um regimento honesto. Embora fosse Ibo, empenhava-se em não demonstrar qualquer favoritismo em relação a seu próprio povo ou à sua região de origem. Em algumas ocasiões levou tal posição a extremos, a ponto de provocar críticas dos seus conterrâneos do leste. Um dos seus primeiros atos foi a designação de governadores militares para as quatro regiões. Para o norte, foi escolhido o Tenente-Coronel (ex-major) Hassan Katsina, que já tinha sido indicado para o posto por Nzeogwu, que estava agora preso; para oeste, a escolha recaiu no Tenente-Coronel Fajuyi, anteriormente comandante da guarnição de Enugu; para o meio-oeste, o indicado foi o Tenente-Coronel (ex-major) Ejoor, que também integrara anteriormente a guarnição de Enugu; e para o leste o escolhido foi o Tenente-Coronel Chukwuemeka Odumegwu Ojukwu, um federalista convicto, que não tivera a menor participação no golpe de janeiro, limitando-se a conferenciar com as autoridades Hausas locais, em Kano, a fim de manter a cidade pacífica e leal às autoridades constituídas.
A ascensão de Ironsi ao poder também pôs fim aos conflitos na região ocidental, à violência na terra dos Tivs e à insurreição de Isaac Boro no delta do Níger. Boro foi inclusive preso. Todos os partidos pareciam depositar confiança suficiente em Ironsi para dar uma oportunidade a seu regime.
Apesar de sua honestidade, o General Ironsi não era um político. Carecia totalmente de astúcia e não demonstrava a menor aptidão para os labirintos da diplomacia necessária numa sociedade altamente complexa. Além disso, foi pessimamente aconselhado em diversas ocasiões, o que parece ser um destino comum dos militares no poder. Não obstante, nada fez que pudesse valer-lhe o que em breve iria acontecer.
No sul, Ironsi determinou a detenção de antigos políticos que poderiam provocar inquietações e fomentar distúrbios. Mas os políticos do norte puderam manter sua liberdade e não demorou muito para que estivessem tirando todo o proveito possível. Ironsi formou um Supremo Conselho Militar e um Conselho ExecutivoFederal, para ajudá-lo a governar. Tendo em vista as insinuações posteriores de que o regime de Ironsi foi pró-leste, vale a pena verificar a composição dos dois conselhos. Além do próprio Ironsi, havia no Supremo Conselho Militar um outro Ibo, o Coronel Ojukwu, que dele fazia parte ex-offício como um dos quatro governadores militares regionais, e um oriental não-ibo, o Tenente-Coronel Kurubo, comandante da Força Aérea e um homem dos povos dos rios. O Conselho Executivo era integrado pelo Conselho Militar e por mais seis homens, dois dos quais eram do leste, o Procurador-Geral, Sr. Onyiuke, um Ibo, e o Inspetor-Geral da Polícia, Sr. Edet, um efik. Ambos já ocupavam os respectivos cargos antes do golpe de janeiro. Ao nomear os secretários permanentes do Serviço Público Federal (cargos extremamente importantes e poderosos), Ironsi distribuiu as 23 vagas disponíveis da seguinte maneira: oito para norte; sete para o meio-oeste; cinco para o oeste e três para o leste.
Os políticos designados para as empresas públicas foram afastados e criaram-se Tribunais de Investigações para examinar suas atividades no cargo. Os três primeiros desses tribunais, examinando a Companhia Ferroviária Nigeriana, a Companhia de Eletricidade da Nigéria e o Conselho Municipal de Lagos, foram presididos respectivamente por um ocidental, um nortista e um inglês.
Posteriormente, as 25 vagas de gerente-geral, presidente e secretário das empresas federais foram assim divididas: doze para o oeste; seis para o norte; três para o leste; uma para o meio-oeste; e três para estrangeiros.
O General Ironsi fez diversas outras nomeações, todas confirmando a sua atitude a favor de uma só Nigéria. Nomeou o Tenente-Coronel Yakubu Gowon, um sho-sho do norte para chefe do Estado-Maior do Exército e seu lugar-tenente. Mallam Hamsad Amadu, jovem parente do Sardauna de Sokoto, tornou-se seu secretário particular. A guarda pessoal de Ironsi era constituída basicamente de soldados Hausas, comandados por um jovem Hausa, o Tenente W.G. Walbe, um fato que mais tarde iria custar a própria vida ao general.
Sua atitude inflexível em relação à corrupção nos altos escalões da vida pública produziu efeitos rápidos e não demorou muito para que estivesse restaurada a confiança internacional na Nigéria.
Deu-se prosseguimento ao plano de desenvolvimento de seis anos.
Mas o principal problema ainda não estava resolvido. Era o da futura constituição da Nigéria, em grande parte um sinônimo da questão da unidade nigeriana. Mais uma vez, manifestou-se a desunião intrínseca da Nigéria. Apesar do maciço apoio popular no sul e da concordância do Exército com uma política de abolição do regionalismo, até chegar-se a um estado unitário, a simples menção da fusão, a não ser com base em seu controle total, era suficiente para lançar o norte na trilha da guerra. E foi justamente o que aconteceu.
O General Ironsi prometera, pouco depois de subir ao poder, que o retorno a um governo civil seria precedido por uma série de estudos dos grandes problemas nacionais, a instalação de uma Assembléia Constituinte e um referendum de uma nova constituição nacional. O Chefe Rotimi Williams e o antigo Procurador-Geral, Dr. T.O. Elias, ambos do oeste, foram convidados a elaborar um projeto da nova constituição. Outra comissão, presidida pelo Sr. Francis Nwokedi, um Ibo, deveria examinar a unificação dos serviços públicos. Depois de muitos protestos pelo fato de uma questão tão importante ser confiada a um único homem e Ibo ainda por cima — os protestos foram mais veementes no norte, onde a separação do serviço civil era considerada como a maior salvaguarda contra o domínio do sul — um representante do meio-oeste foi designado para participar também da Comissão Nwokedi.
Outra comissão ficou encarregada de estudar os meios para a unificação do sistema judiciário. Outra comissão, de planejamento econômico, foi confiada ao Chefe Simeon Adebo, um Iorubá, e ao Dr. Pius Okigbo, um Ibo. Todas as comissões apresentaram seus relatórios com a mesma recomendação: a unificação.
A unificação era um tema amplamente debatido desde os primeiros dias do regime de Ironsi. Ao final de janeiro, o Coronel Ejoor, no meio-oeste, pediu uma "forma unitária de governo". Numa entrevista coletiva, em fevereiro, Ironsi declarou:
— Já ficou patente para todos os nigerianos que a adesão rígida ao "regionalismo" foi a desgraça do último regime e um dos principais fatores que contribuíram para a sua queda. Não resta a menor dúvida de que o país receberia com satisfação um rompimento definitivo com as deficiências causadas por tal sistema.
Ironsi estava sendo excessivamente otimista. O sul certamente teria aprovado tais medidas. Na verdade, foi o que aconteceu.
Mas o norte apresentava uma situação inteiramente diferente.
Seus representantes, os membros da assembleia regional nortista e os emires, haviam aprovado anos antes o regionalismo previsto pela Constituição Richards, encarando-o como proteção permanente de sua própria sociedade, com toda sua letargia e inércia, contra as incursões dos sulistas, mais vigorosos e mais instruídos.
A unificação era particularmente popular entre os Ibos do leste. Eram os mais viajados e os mais bem preparados dos grandes grupos étnicos, tinham plena confiança em sua capacidade de competir de igual para igual com quaisquer outros grupos. Para eles, o regionalismo sempre significara um tratamento como cidadãos de segunda classe no norte, um sistema duplo de efetuar as nomeações públicas fora da região leste.
Assim, o que era para o sul uma oportunidade gloriosa representava para o norte quase que uma ameaça fatal. Quase-dois anos depois, em Enugu, o cônsul americano James Barnard resumiu muito bem o conflito de interesses inerente que atormentara a Nigéria durante todos esses anos: "Não adianta se esquivar ou tentar contornar a principal realidade política imutável deste país: em qualquer corrida pelos benefícios materiais da vida, começando do mesmo ponto e de uma base de oportunidades iguais, os orientais vão ganhar por uma diferença de mais de um quilômetro. O que é inadmissível para o norte. A única maneira de impedir que isso aconteça é impor empecilhos artificiais ao progresso do leste, o que é inadmissível para seus habitantes."[conversa com o autor, em Enugu, em julho de 1967]
O descontentamento no norte começou a fervilhar pouco depois que as comissões incumbidas de estudar os diversos aspectos da unificação começaram a funcionar. Mais tarde, apresentou-se esse descontentamento como inteiramente espontâneo, envolvendo supostamente um ressentimento amplo pela morte do amado Sardauna de Sokoto nas mãos de um Ibo, em janeiro. O que não passa de uma falsa imagem.
Em primeiro lugar, o Sardauna era considerado, a julgar pela reação imediata dos súditos depois de sua morte, não como um pai benevolente, mas sim como um velho déspota inescrupuloso, como ele de fato era. Em segundo lugar, a violência que irrompeu no norte, em maio de 1966, nada teve de espontânea. Ao contrário, foi preciso muito esforço para fomentá-la e desencadeá-la.
Quando os políticos foram alijados do poder, isso não representou apenas a queda de um punhado de homens. Milhares de outras pessoas perderam sua fonte de renda, a partir do momento em que se impediu o acesso dos políticos aos recursos públicos.
Famílias imensas descobriram-se subitamente sem meios de sustento, ameaçadas de serem obrigadas a enfrentar o trabalho. De uma hora para outra, acólitos, mercenários do partido, cabos eleitorais, intermediários, empresários que haviam obtido lucros fabulosos através de suas ligações nos altos escalões e administradores que não tinham condições de manter seus cargos sem proteção política viram-se na chamada rua da amargura. Quando umas poucas pessoas começaram a promover manifestações contra o regime de Ironsi, não foi difícil obter o apoio dessa pequena multidão.
Era quase um exército disposto a espalhar rumores, inflamar as paixões e atear fogo aos corações, acenando com a ameaça de domínio pelos Ibos. Jogava-se astuciosamente com a ameaça aparente da liquidação do isolacionismo protetor do norte. E, finalmente, começou-se a incitar o povo com o motivo da vingança.
Assim, o Sardauna morto foi transformado em santo e os oficiais encarcerados, que tinham comandado o golpe de janeiro, passaram a ser verdadeiros demônios.
No oeste, o Coronel Fajuyi, um homem capaz e enérgico, expurgara a vida pública de todos os antigos parasitas, demitindo todas as autoridades governamentais locais nomeadas pelo odiado regime de Akintola, inclusive onze ministros do partido dele.
Medidas similares foram adotadas no meio-oeste e no leste. Contudo, tais medidas não tinham sido tão draconianas, porque o CNCN, que controlava as duas regiões antes de janeiro de 1966, fora legitimamente eleito (mais tarde sob a bandeira da GAUP) pela grande maioria dos eleitores, sem trapaças.
No norte, a situação era bastante diferente. AH, o poder político e a aristocracia dos emires eram quase sinônimos desde tempos imemoriais. O Coronel Hassan, o novo Governador Militar, era filho do Emir de Katsina. Não havia praticamente qualquer opção a se fazer em matéria de homens competentes para dirigir a Administração Nativa. Além do mais, aqueles que estavam no poder eram quase que invariavelmente os indicados pelos emires. Assim, os establishments aristocrata e administrativo permaneceram no poder. Os políticos, embora não mais estivessem no poder, também não estavam presos. Nem ficaram em desgraça por muito tempo. E foram justamente os políticos que desencadearam a campanha de boatos, que iria em breve florescer e frutificar em solo fértil.
Houve queixas e boatos mais acentuados em relação ao Sr. Nwokedi, cujos estudos sobre a possibilidade de unificar o serviço civil levaram-no a realizar uma excursão pelo norte. Embora escutasse todas as opiniões dos nortistas, deles discordou frontalmente, nas conclusões do relatório final que apresentou ao General Ironsi.
Em Lagos, o General Ironsi estava sendo pressionado por todos os lados. Conhecia o descontentamento no norte contra a idéia da unificação, mas havia defensores poderosos dessa providência em seu círculo imediato. A 24 de maio, Ironsi finalmente pulou o muro. Em discurso pelo rádio, anunciou o Decreto da Constituição (Suspensão e Modificação). Os dispositivos implicavam a abolição das regiões e sua conversão em grupos de províncias, embora com as mesmas fronteiras, governadores e administrações.
A Nigéria deixaria de ser uma federação e se tornaria simplesmente a República da Nigéria. Os serviços públicos seriam unificados sob uma única Comissão de Serviços Públicos, mas comissões regionais (ou provinciais, a partir daquele momento) continuariam a escolher todos os funcionários, à exceção da equipe de direção. Ironsi acrescentou em seguida que tais providências tinham um caráter transitório e assim deveriam ser encaradas, que eram adotadas "sem prejuízo" das conclusões da Comissão Rotimi Williams. Infelizmente, essa comissão estava justamente estudando o problema dos méritos relativos dos sistemas federal e unitário.
É bem possível que o General Ironsi estivesse querendo apaziguar os sulistas mais radicais, ao mesmo tempo em que tentava não provocar demasiadamente os nortistas. Uma análise do Decreto de Unificação (como se tornou conhecido) mostra que, na verdade, não mudou praticamente nada, a não ser os nomes. No fundo, o decreto simplesmente formalizava um sistema de governo que estava em vigor desde que o exército tomara o poder, governando através do Supremo Conselho Militar, que era um organismo tipicamente unitário.
O Decreto de Unificação foi aproveitado como pretexto para uma sucessão de violentos massacres de orientais por toda a região norte. Tudo começou com uma manifestação estudantil em Kano.
Em poucas horas, iniciara-se um verdadeiro banho de sangue. Os Iorubás da região oeste, que também defendiam a unificação e assim estavam quase na mesma situação que os Ibos do leste, praticamente não foram molestados pelas multidões enfurecidas. Os Ibos e outros originários do leste é que foram massacrados pelos nortistas. Pouco depois do início da manifestação estudantil em
Kano, centenas de arruaceiros armados espalharam-se pelo espaço entre os muros da cidade e o Sabon Garis onde viviam os orientais, invadindo o gueto e pondo-se a incendiar as casas, violentar, saquear e matar todos os homens, mulheres e crianças que encontravam.
Qualquer idéia de espontaneidade foi descartada pela expansão dos massacres. Em caminhões e ônibus convenientemente oferecidos por benfeitores anônimos, bandos de antigos arruaceiros do partido espalharam-se por todo o norte, seguindo para Zaria, Kaduna e outros lugares. Quando tudo terminou, a Nigéria estava novamente à beira da desintegração. Embora jamais tenham sido divulgados dados oficiais, quer pelo governo federal ou pelas autoridades nortistas, os orientais calcularam posteriormente que mais de três mil pessoas foram mortas nesses massacres.
É bem possível que alguns pensassem que os manifestantes estavam apenas dando vazão a seus sentimentos... o que tinham todo direito de fazer. Mas a carnificina ocorrida, o grau de organização e a facilidade com que os massacres foram perpetrados deveriam constituir uma advertência do perigo latente que representava um sombrio presságio para o futuro. Mas, novamente, a advertência foi ignorada.
Muitos nortistas provavelmente estavam absolutamente convencidos, depois de muitos meses de sutil doutrinação, de que os Ibos realmente tencionavam dominar a Nigéria, colonizar o norte mais atrasado e utilizar seus talentos indiscutíveis para controlar o país de um extremo a outro. A questão da secessão do norte foi novamente defendida publicamente. Funcionários públicos civis, realizando uma manifestação em Kaduna, carregavam faixas em que se podia ler: "Queremos a secessão." Na mesma cidade, o Coronel Hassan convocou uma reunião de todos os emires nortistas e muitos compareceram com a reivindicação de seus povos pela secessão imediata do norte. Em Zaria, o emir foi cercado por uma multidão furiosa, que exigia a secessão.
Depois da reunião, os emires enviaram um comunicado secreto a Ironsi, pedindo-lhe que revogasse o Decreto de Unificação ou iriam se separar da Nigéria. O General Ironsi deu uma resposta interminável, explicando que o decreto não envolvia quaisquer alterações de fronteiras e que, na verdade, praticamente não mudava o status quo. Ressaltou que era apenas uma medida temporária, visando a permitir que o Exército, acostumado a um comando unificado, pudesse governar. Disse também que não seriam efetuadas mudanças permanentes sem a realização do prometido referendum.
Os emires declararam-se satisfeitos com a resposta.
Em junho, o Coronel Ojukwu, ao dar as boas-vindas ao Emir de Kano, seu contemporâneo e amigo, com cuja ajuda conseguira manter Kano pacífica e sem derramamento de sangue em janeiro, nomeado recentemente para reitor da Universidade de Nsukka, conclamou publicamente seu povo a retornar a suas casas e empregos no norte. Muitos orientais haviam fugido do norte depois dos massacres de maio, indo procurar a segurança no leste. O Coronel Ojukwu pediu-lhes que acreditassem que aquelas mortes haviam sido "parte do preço que tivemos de pagar" pelo ideal de uma Nigéria unida.
Durante todo o mês de junho, o governo de Ironsi procurou desesperadamente por uma solução para o problema da crescente tensão na Nigéria. Não ocorreu a ninguém, muito menos ao Coronel Ojukwu, que a solução poderia ser permitir aos nortistas que consumassem seu desejo antigo, criando um estado separado.
O General Ironsi acabou deixando a capital federal, para uma excursão pelo interior, a fim de sondar as opiniões locais, na base mais ampla possível, quanto à futura constituição da Nigéria desejada por seu povo. Ironsi nunca mais voltou a Lagos.
4. O Segundo Golpe Que Fracassou
Alguns dos que procuram explicar o golpe de oficiais subalternos do Exército de origem nortista, desfechado a 29 de julho de 1966, têm sugerido que foi motivado por idéias de justa vingança pelas mortes em janeiro de três oficiais superiores nascidos no norte. Não resta a menor dúvida de que, antes mesmo do segundo golpe, havia clamores crescentes no norte pela execução dos amotinados de janeiro. Não seria uma retaliação pelas mortes dos políticos, que quase ninguém lamentara, mas sim pelas mortes do General Maimalari e dos Coronéis Pam e Largema.
O argumento não é absolutamente convincente. Além desses três oficiais, dois coronéis Iorubás e dois majores Ibos também foram mortos em janeiro. Parece bem mais provável que a chave para os motivos dos oficiais que se amotinaram em julho seja encontrada na palavra de código que desencadeou a operação: ARABA. É a palavra Hausa para "secessão". Embora houvesse indubitavelmente um forte elemento de vingança dentro do movimento e nas atividades subseqüentes dos amotinados, o objetivo político era consumar o desejo antigo da maioria dos nortistas: a separação da Nigéria, de uma vez por todas.
Nisso e em outros pontos, os dois golpes foram totalmente diferentes. No primeiro golpe, havia um empenho fervoroso em expurgar da Nigéria um punhado de males incontestáveis; a motivação era reformadora; o derramamento de sangue foi mínimo, com a morte de apenas quatro políticos e seis oficiais. Teve uma natureza extrovertida e uma orientação não-regionalista.
O golpe de julho foi totalmente regionalista, introvertido, revanchista e separatista em suas origens, além de desnecessariamente sangrento na execução.
Poucos anos antes, fora verificado que a grande maioria dos soldados de infantaria era de origem nortista; sendo que 80 por cento dessa maioria eram Tivs. Mas, por outro lado, quase 70 por cento dos oficiais provinham do leste. Não era por acaso que isso acontecia; mas também não era um plano deliberado dos orientais, como desde então vem sendo alegado. No início, o Exército Nigeriano dava extrema importância à instrução, na hora de escolher os oficiais. Em decorrência da abolição das escolas primárias (fato já mencionado anteriormente), o norte tinha uma deficiência crônica de homens devidamente instruídos.
Em 1960, o ano da independência, havia apenas seis oficiais do norte no Exército. O novo Ministro da Defesa, Alhaji Ribadu, um Hausa, determinou que deveria haver pelo menos 50 por cento de oficiais nortistas. Mas tal providência não podia ser consumada da noite para o dia. Mas, em 1966, já havia muitos oficiais inferiores de origem nortista no Exército. Embora o planejamento do golpe de julho tenha sido feito indubitavelmente por um pequeno grupo de oficiais superiores, a execução coube a esses jovens tenentes nortistas.
Dentro do Exército, a distribuição dos oficiais refletia as características regionais, não deliberadamente, mas com base na instrução e tendências. A grande maioria dos oficiais nortistas estava nos batalhões de infantaria, enquanto os setores técnicos — suprimentos, rádio, engenharia, "manutenção, arsenal, transporte, médico, informações, instrução e material bélico — eram praticamente reservados aos orientais. Quando o golpe de julho foi desfechado, os amotinados tiveram apenas que se apoderar dos arsenais das diversas guarnições e armar seus homens, para terem assim o controle do Exército e, por conseguinte, do país. E foi justamente o que eles fizeram.
Na noite de 28 de julho, o General Ironsi estava jantando com o Tenente-Coronel Fajuyi, Governador Militar do Oeste, na residência deste, em Ibadan. Ironsi acabara de-concluir sua excursão por todo o país. Com eles estava o Coronel Hilary Njoku, o comandante Ibo do Segundo Batalhão, aquartelado em Ikeja, nos arredores de Lagos.
O golpe começou com um motim no quartel de Abeokuta, na região ocidental, onde um oficial Hausa comandou um grupo de soldados até o rancho dos oficiais, às 11 da noite, matando a tiros três oficiais orientais, um tenente-coronel, um major e um tenente.
Depois, o capitão Hausa cercou o quartel, desarmou os sulistas que estavam de guarda, apoderou-se do arsenal e armou todos os nortistas.
Foi dado o toque de ação e toda a guarnição deixou os dormitórios e entrou em formação no campo de exercícios. Os soldados sulistas foram separados dos demais e presos na casa da guarda, enquanto nortistas saíam a revistar casa por casa, a procurar os que não estavam presentes. Ao romper do dia, quase todos os oficiais e sargentos sulistas já estavam presos. Foram arrancados da casa da guarda ao amanhecer e sumariamente fuzilados.
Os amotinados aparentemente telefonaram para os ajudantes-de-ordens (ambos nortistas) do Segundo Batalhão, em Ikeja, e do Quarto Batalhão, em Ibadan, comunicando o que estava acontecendo.
Mas, às 3,30 horas da madrugada, um capitão Ibo que' estava entre os prisioneiros em Abeokuta conseguiu escapar e também deu um telefonema, mas para o quartel-general do Exército, em Lagos. Informou a ocorrência, que julgava ser um simples motim. No QG, o homem que estava no comando, na ausência de Ironsi, era o seu chefe do Estado-Maior, Tenente-Coronel Gowon.
E foi Gowon que assumiu o comando. Até hoje se debate veementemente se ele assumiu o comando para orientar melhor o golpe e os massacres subseqüentes ou se empenhou-se em impedir os trágicos acontecimentos. Gowon afirmou que nada tivera a ver com o golpe, mas seu comportamento posterior lançou sérias dúvidas a respeito dessa alegação. É bem possível que ele tenha sido um cúmplice não muito hesitante durante e depois do golpe.
A notícia chegou também ao conhecimento do General Ironsi. Os três oficiais reunidos em Ibadan conferenciaram rapidamente, depois de meia-noite. Combinaram que Njoku voltaria a Lagos num veículo civil e à paisana, a fim de assumir o controle da situação e acabar com o "motim". Njoku saiu para ir mudar de roupa. Lá fora, deparou com soldados desembarcando de dois Landrovers. Os soldados dispararam uma rajada de metralhadora em sua direção.Njoku conseguiu escapar, ferido na coxa. Depois de fazer um curativo no hospital de Ibadan, ele seguiu de volta ao leste disfarçado em padre, enquanto patrulhas militares vasculhavam o oeste à sua procura e os soldados nos bloqueios rodoviários recebiam ordens de fuzilá-lo sumariamente. A persistência e a duração da caçada aos oficiais orientais, mesmo depois que o Coronel Gowon assumiu o comando supremo, em nome dos amotinados, é que lançam sérias dúvidas tanto sobre o aspecto político do golpe quanto sobre a inocência alegada de Gowon.
Os soldados sulistas da guarda pessoal de Ironsi haviam sido desarmados por seus colegas nortistas antes da meia-noite, com a ajuda de 24 outros soldados nortistas despachados do quartel do Quarto Batalhão, em Ibadan. Esse batalhão, depois da morte do Coronel Largema, em janeiro, estava sob o comando do Coronel J. Ahakan, um tiv do norte. O grupo recém-chegado era comandado pelo Major Tehophilus Danjuma, um Hausa, que é agora o subcomandante da Primeira Divisão do Exército nigeriano e comandante da guarnição de Enugu.
Dentro da casa, Ironsi e Fajuyi ouviram os tiros. Mandaram o ajudante-de-ordens da Força Aérea de Ironsi, Tenente Nwankwo, descobrir o que estava acontecendo. (O ajudante-de-ordens do Exército de Ironsi, Tenente Bello, um Hausa, desaparecera abruptamente, embora não haja provas de que estivesse ligado ao golpe.) Ao sair da casa, Nwankwo foi preso e amarraram-lhe as mãos. Depois de esperar quase até o amanhecer, o Coronel Fajuyi desceu para descobrir o que acontecera com Nwankwo. Foi preso também. Finalmente, às nove horas da manhã, o Major Danjuma subiu à procura do General Ironsi e prendeu-o.
Entre os que sabem o que aconteceu a seguir, somente o Tenente Nwankwo prestou depoimento. O governo federal preferiu lançar um véu de silêncio sobre os acontecimentos. O relato apresentado a seguir é, portanto, a descrição de Nwankwo.
Os três prisioneiros foram despidos e chicoteados cruelmente. Depois, foram colocados em veículos separados e o comboio partiu, com o Major Danjuma à frente. Em Mokola, onde a estrada se divide, um lado seguindo para a cidadezinha de Oyo e o outro para o quartel de Letmauk, a guarnição do Quarto Batalhão, o comboio se dividiu. Danjuma voltou para Letmauk, depois de sussurrar algumas ordens para o Tenente Walbe, que comandava a escolta do General Ironsi. O resto do comboio seguiu em frente.
Quinze quilômetros adiante, os três prisioneiros receberam ordens de saltar e foram obrigados a avançar por uma trilha estreita no mato. Foram novamente detidos, espancados e torturados tão barbaramente que mal conseguiam ficar de pé. Mas, empurrados e quase se arrastando, foram em frente, até chegarem a um riacho.
Estavam tão fracos que não conseguiram transpô-lo. Foram carregados para a outra margem e por mais alguns metros pela trilha, sendo em seguida deitados no chão, de barriga para baixo, e novamente espancados. A esta altura, Nwankwo conseguira afrouxar o arame em torno de seus pulsos e saiu correndo. Conseguiu escapar.
Os outros dois, quase mortos dos suplícios a que tinham sido submetidos, foram finalmente liquidados, com rajadas de metralhadoras.
Mais tarde, a polícia encontrou os cadáveres e enterrou-os no cemitério de Ibadan, de onde foram exumados seis meses depois e levados para o repouso final nas respectivas cidades natais.
Depois do amanhecer de 29 de julho, o massacre de oficiais e soldados de origem oriental ocorreu por toda a Nigéria, com uma rapidez, precisão e uniformidade de método que afastam qualquer desculpa subseqüente de espontaneidade. No quartel de Letmauk, em Ibadan, o comandante, Coronel Akahan, afirmou ao nascer do sol que não tivera o menor conhecimento das manobras noturnas contra o General Ironsi. Mas é improvável que os soldados, transportes, armas e munições utilizados no cerco à casa em que estava Ironsi pudessem ser retirados do quartel sem o conhecimento do comandante. Às 10 horas da manhã, o Coronel Akahan convocou uma reunião dos oficiais, à qual não compareceu.
Assim que todos os oficiais se reuniram, os orientais foram presos e levados para a casa da guarda, sendo mais tarde transferidos para a alfaiataria. À meia-noite, 36 granadas de mão foram arremessadas pelas janelas da alfaiataria. Os sobreviventes foram fuzilados.
Em seguida, os soldados orientais foram obrigados a lavar todo o sangue, antes de serem também fuzilados. Os soldados orientais da guarda pessoal de Ironsi foram também fuzilados. Na tarde do dia 30, o Coronel Akahan reuniu os soldados nortistas e deu-lhes os parabéns, dizendo ao mesmo tempo que não deveria haver mais matanças, "pois a situação está agora equilibrada".
Confiando nessa declaração, muitos soldados orientais saíram de seus esconderijos. Mas naquela noite foram também caçados, matando-se todos os que eram encontrados. O massacre prosseguiu por vários dias, juntamente com violências de toda espécie contra as esposas dos orientais. O terror foi levado inclusive até a cidade de Ibadan. O Coronel Akahan tornou-se mais tarde o chefe do Estado-Maior do Exército de Gowon.
Em Ikeja, os acontecimentos foram similares. Na hora do café da manhã, no dia 29, o Coronel Gowon chegou de Lagos, a 25 quilômetros de distância. Das cinco horas da manhã em diante, os soldados nortistas da guarnição tinham estado prendendo os orientais, inclusive dezenas de civis, policiais e funcionários alfandegários de origem oriental, que trabalhavam no aeroporto próximo.
Ao meio-dia de 29 de julho, havia cerca de 200 homens presos na casa da guarda. O Tenente Walbe chegou ao final da tarde, comunicando ao Coronel Gowon a captura e morte do General Ironsi.
No dia seguinte, os civis na casa da guarda foram soltos, enquanto se anotava os nomes de todos os militares orientais presos. Os oficiais e soldados foram levados à presença do pelotão de fuzilamento por ordem de antigüidade. Oito oficiais, de major a tenente, e 42 sargentos e praças foram fuzilados. O fuzilamento era precedido por bárbaros espancamentos. Mas depois que um cabo Ibo conseguiu escapar (e viveu para contar a história), os demais foram simplesmente algemados e levados para o local da execução, atrás da casa da guarda. Quando cansados de fuzilar, os soldados nortistas largavam os rifles e pegavam as facas, cortando as gargantas dos prisioneiros. Antes de morrer, muitos prisioneiros foram açoitados e obrigados a se deitar em poças de urina e excremento, forçados a comer a mistura. O Capitão P. C. Okoye ia fazer um curso de especialização nos Estados Unidos e foi capturado já no aeroporto de Ikeja, prestes a embarcar, sendo levado de volta ao quartel. Foi amarrado a uma cruz de ferro e açoitado quase até a morte. Depois, foi jogado numa cela, ainda amarrado na cruz, onde morreu.[As provas desses acontecimentos nos quartéis de Ibadan e Ikeja estão nos Arquivos Militares, no QG da Defesa Nacional, em Umuahia, Biafra.]
Tudo isso aconteceu a menos de 200 metros do gabinete em que o Coronel Gowon instalara o seu quartel-general e onde assumira o título de Comandante Supremo das Forças Armadas. Foi desse gabinete que ele declarou ao mundo que estava tentando manter o país unido, num momento de crise.
Apesar das afirmações subseqüentes de que foi um problema rápido e de curta duração, há testemunhas de que os massacres prosseguiram esporadicamente por quatro semanas. A 22 de agosto, um jovem oficial nortista tirou da prisão de Benin os prisioneiros condenados por sua participação na conspiração de janeiro (ostensivamente, o motivo para o golpe de julho). Os cinco foram mortos. No mesmo dia, chegaram notícias do leste, segundo as quais o Coronel Ojukwu estava pedindo pela repatriação de todos os oficiais e soldados orientais. O Tenente Nuhu ordenou para que os restantes 22 prisioneiros orientais, todos sargentos e praças, fossem sumariamente executados.
Muito antes dessa data, o Coronel Gowon anunciara ao mundo que as matanças tinham cessado e que "a situação voltou ao normal".
O Coronel Akahan e o Major Danjuma não foram os únicos a conquistar uma promoção por atos que normalmente são punidos com a forca. Em Makurdi no coração da terra dos Tivs, um destacamento do Quarto Batalhão, sediado em Ibadan, chegou entre 11 e 14 de agosto. Quinze soldados de origem oriental foram presos. No dia 16, o comandante do destacamento, Major Daramola, disse-lhes que seriam levados para Kaduna e depois mandados de volta para o leste de avião. O comboio seguiu pela estrada com o Major Daramola na retaguarda. Depois de 80 quilômetros de viagem, o comboio saiu da estrada e entrou pelo matagal, onde havia um pelotão de fuzilamento à espera. Um a um, os homens foram sendo levados para a execução. Três conseguiram escapar, pulando do caminhão e correndo pelo matagal. Voltaram para o leste a pé e contaram a história. O Tenente-Coronel Daramola comanda atualmente a Oitava Brigada da Segunda Divisão do Exército Nigeriano, que guarnece a estrada de Enugu para Onitsha, no trecho entre a aldeia de Abagana e Udi.
Mas chega de falar sobre os massacres de julho. Já foram convenientemente descritos, em detalhes, por outros. Basta dizer que em todos os quartéis e guarnições, em Lagos e por todas as regiões norte e oeste, o padrão foi o mesmo. Soldados nortistas se apoderavam dos arsenais e se armavam; prendiam os colegas de origem oriental; posteriormente, levavam muitos deles para serem executados. Alguns escaparam e conseguiram voltar para o leste, a fim de formar a base do Exército Biafrense, um ano depois. Entre os oficiais superiores, quase todos que eram da infantaria foram mortos. A maioria dos sobreviventes estava nos quadros técnicos. É por isso que os atuais comandantes do Exército Biafrense que tinham o posto de major para cima no antigo Exército Nigeriano eram, de um modo geral, integrantes das unidades técnicas e não das unidades de combate. Quando tudo terminou, mais de 300 oficiais e soldados de origem oriental estavam mortos ou desaparecidos. Como uma unidade coesa, como uma instituição realmente nigeriana, em que os homens de todas as tribos, nações, culturas “ credos podiam viver lado a lado e se chamarem de camaradas, o Exército fora abalado além de qualquer possibilidade de recuperação. E o Exército era a última instituição desse gênero. Apesar do que aconteceu antes e depois, apesar de todos os esforços (que poderiam ter dado certo) para manter a Nigéria unida de alguma forma, se algum momento pode ser determinado como aquele em que pereceu irrevogavelmente a unidade nigeriana foi o instante em que o General chamado Johnny Ironside tombou morto nos arredores de Ibadan.
O objetivo do golpe foi em parte uma vingança contra os Ibos pelo golpe de janeiro, no qual tinham' participado representantes de todos os grupos. Mas visava também, em parte, a secessão do norte. Assim que o Tenente-Coronel Gowon instalou sua base em Ikeja, uma estranha bandeira foi vista tremulando no portão principal e lá permaneceu durante 18 dias. Tinha listras laterais vermelha, amarela, preta, verde e caqui. Era a bandeira da República Setentrional da Nigéria. Durante três dias, ônibus, caminhões, carros, trens e aviões foram mobilizados em Lagos e na região ocidental para transportarem o enorme refluxo de famílias nortistas de volta.
As guarnições em Lagos, no oeste e no norte estavam sob o controle de unidades comandadas por oficiais nortistas e integradas por soldados nortistas. Enquanto o massacre dos soldados orientais continuava, o Tenente-Coronel Hassan Katsina, Governador Militar do Norte, passou a apoiar a causa dos rebeldes, dando margem para suspeitas de que, se não fora um dos instigadores do golpe, pelo menos sabia de antemão o que estava para acontecer. Não havia ninguém para falar pelo oeste, já que o Coronel Fajuyi estava morto. Também não havia ninguém para falar por Lagos.
No meio-oeste, contudo, não houvera qualquer manifestação do golpe. Mas também não havia soldados ali estacionados. A região era considerada pequena demais para que alguém se preocupasse. No leste, havia um Governador Militar de pulso forte,, juntamente com uma guarnição leal. Assim, também não houve sequer uma tentativa de golpe. Em decorrência, a autoridade do antigo regime permaneceu intacta nessa região.
Quando ficou patente que os oficiais nortistas tencionavam consumar a separação, um vento frio soprou em diversos lugares, especialmente na Alta Comissão britânica. No leste, o Coronel Ojukwu compreendeu o que estava para acontecer e, pelo telefone, insistiu com o General-de-Brigada Ogundipe, um Iorubá, o mais alto oficial do Exército e legalmente o sucessor do General Ironsi, para que assumisse o controle da situação e se declarasse Supremo Comandante. Ojukwu prometeu que seria o primeiro a reconhecer a autoridade de Ogundipe. Mas o Iorubá não estava convencido de suas possibilidades. Depois de um discurso de três minutos pelo rádio, em que pediu a todos que mantivessem a calma, Ogundipe seguiu para o Daomé e de lá para Londres, onde concordou, alguns meses depois, em tornar-se o Alto Comissário nigeriano. Enquanto isso, a Alta Comissão britânica e outros setores faziam esforços frenéticos para tentar dissuadir o norte da idéia de secessão. Mas os oficiais não estavam sozinhos nessa exigência. A independência separada, a bandeira dos amotinados de maio e a reivindicação do memorando dos emires em junho, ainda era o desejo da grande maioria do norte. Havia apenas uma maneira de mantêlos na Nigéria, que era a de atender à velha alternativa: "Ou mandamos em tudo ou caímos fora." Segundo depoimentos posteriores de altos funcionários civis, trabalhando na ocasião em Lagos, o Alto Comissário britânico, Sir Francis Cumming-Bruce, teve um encontro particular de seis horas com Gowon, na manhã de 1º de agosto. Em seguida, Gowon reuniu-se com outros oficiais nortistas. De tarde, o Coronel Ojukwu telefonou de Enugu para perguntar o que Gowon tencionava fazer. Foi informado de que o grupo de Gowon tencionava permanecer em Lagos " e assumir o controle do país. Como Ojukwu protestasse, Gowon declarou:
— É isso o que meus homens estão querendo e é justamente o que vão ter.
E foi o que aconteceu. O primeiro discurso de Gowon para a nação, pelo rádio, já preparado e gravado, fora apressadamente editado, mas sem muita habilidade. Eis o que Gowon disse:
Chego agora à parte mais difícil, mas também a mais importante, desta declaração. Estou perfeitamente consciente do grande desapontamento e desolação que minhas palavras irão provocar em todos os que amam com sinceridade a Nigéria e a unidade nigeriana, tanto aqui como no exterior, especialmente nossos irmãos na Commonwealth. Em conseqüência dos recentes acontecimentos e de outros similares anteriores, cheguei à conclusão de que não podemos, honesta e sinceramente, continuar na situação atual, já que a base de confiança em nosso sistema unitário de governo não foi capaz de resistir ao teste do tempo. Já me referi ao problema em questão. Basta dizer que, somando todas as considerações, políticas, e econômicas e também sociais, verifica-se que a base para a unidade não está presente ou foi tão profundamente abalada, não apenas uma vez, mas muitas vezes. Portanto, estou convencido de que devemos fazer uma revisão da questão da nossa situação nacional, a fim de ajudar a impedir que o país acabe mergulhando na mais completa destruição.[Schwarz, op. cit., pág. 211]
Houve uma frase que ficou inacabada. Depois de se ouvir "foi tão profundamente abalada, não apenas uma vez, mas muitas vezes", fica-se esperando por um "que" e depois a informação sobre as conseqüências desse abalo. Além do mais, é um absurdo sugerir que a intenção de impedir o país de mergulhar na mais completa destruição possa causar desapontamento e desolação a todos os que amam com sinceridade a Nigéria. Na verdade, antes de ser editado, o discurso comunicava a secessão do norte.
Se isso tivesse acontecido, parece não haver a menor dúvida de que o oeste, o meio-oeste e o leste chegariam rapidamente a um modus vivendi apropriado e pouco depois o norte e o sul poderiam formar uma confederação de estados autônomos ou pelo menos uma Organização de Serviços Comuns, pondo-se os benefícios econômicos ao alcance de todos os grupos, ao mesmo tempo em que se evitava o barril de pólvora da incompatibilidade racial entre o norte e o sul.
A esta altura, Gowon já se nomeara ou fora nomeado Supremo Comandante das Forças Armadas e Chefe do Governo Militar Nacional da Nigéria. No leste, o Coronel Ojukwu não teve a menor hesitação em contestar o direito de Gowon a qualquer dos dois títulos. É de importância vital para se compreender por que Biafra existe hoje saber que, depois de 1º de agosto de 1966, a Nigéria não teve um governo legítimo e um regime rebelde, mas sim dois governos de fato separados, governando partes diferentes do País.
O golpe de julho foi radicalmente diferente do golpe de janeiro em outro aspecto, como já se tornara patente a 1º de agosto. No primeiro golpe, os amotinados não tinham conquistado o poder, mas terminaram na prisão. No segundo golpe, assumiram o controle do governo federal e de duas regiões. A terceira região reconheceu o regime posteriormente. A quarta região jamais o reconheceu nem estava obrigada a fazê-lo legalmente.
Foi por isso que o golpe fracassou. Seus objetivos básicos eram a vingança (que foi consumada) e depois a separação (que não chegou a acontecer). Optando pela mudança do segundo objetivo, que passou a ser a tomada do poder, os líderes do golpe foram obrigados a presumir a aquiescência das duas regiões que não tinham sido afetadas. Como não conseguiram obter a concordância da maior dessas duas regiões, a Nigéria foi efetivamente dividida em duas.
Mas o Departamento da Commonwealth britânico conseguira o que desejava e não tardou a haver o reconhecimento do novo regime. Em outubro, fazendo um apelo aos nortistas para que cessassem de matar os orientais que ainda se encontravam na região, Gowon pôde usar um argumento decisivo:
— Todos sabem que, desde o final de julho, Deus, em Seu poder, colocou a responsabilidade deste nosso grande país, a Nigéria, nas mãos de outro nortista.
A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE
Um dos principais argumentos dos governos nigeriano e britânico contra Biafra é o de que o regime biafrense é ilegítimo, enquanto o do Coronel Gowon é o único governo legítimo no país. Mas há muitos juristas, nem todos biafrenses, que afirmam que ambos os regimes, por lei, podem ser considerados legítimos.
O regime do atual Governo Militar nigeriano está baseado no controle efetivo da capital e de três das antigas regiões, um domínio que se estende por mais de 70 por cento.da população. O mundo diplomático tem verdadeira obsessão por capitais e dá uma extraordinária importância ao controle de uma capital. Se Lagos ficasse na região leste e Gowon tivesse assumido o controle das três outras regiões, ficando a capital sob o domínio do Coronel Ojukwu, provavelmente a vantagem diplomática seria totalmente invertida.
A alegação do Coronel Ojukwu de que é o Governo Gowon e não o seu que está em estado de rebelião e , portanto, é ilegítimo, baseia-se na continuação da autoridade legalmente constituída na região leste, depois de julho de 1966. Anteriormente, o General Ironsi fora designado para o posto de Supremo Comandante e chefe do Conselho Militar Supremo por quase todos os ministros do Gabinete existente. Se esse Gabinete tivesse se reunido, depois da morte do Primeiro-Ministro Balewa (na ocasião, pensava-se que ele fora simplesmente seqüestrado), sob a presidência de um ministro Ibo, poder-se-ia dizer mais tarde que a indicação fora "arrumada. Mas a presidência da reunião ficou com Alhaji Dipcharima, um Hausa, o mais alto representante do Congresso do Povo do Norte no Gabinete.
O General Ironsi também não exerceu uma pressão indevida para persuadir os ministros. Disse-lhes, objetivamente, que não tinha condições de garantir a lealdade do Exército ao governo da lei, a menos que os militares assumissem o controle. Com Nzeogwu marchando para o sul e muitas guarnições fervilhando, tal declaração não era um exagero. A designação do General Ironsi pode, portanto, ser considerada legítima, dentro da lei. E foi Ironsi quem designou o Coronel Ojukwu para governar a região leste, o que foi também uma indicação legítima.
Para o Coronel Ojukwu, o único homem que tinha direito ao posto de sucessor do General Ironsi era o oficial que lhe era diretamente inferior, o General-de-Brigada Ogundipe. Se Ogundipe não fosse nomeado, teria que haver uma reunião plenária do Conselho Militar Supremo para a escolha do sucessor. Isso não aconteceu. O Coronel Gowon nomeou-se a si mesmo ou foi nomeado pelos amotinados, nos três dias seguintes ao golpe de 29 de julho. Entre esses amotinados, havia apenas um membro do Conselho, o Coronel Hassan Usman Katsina, Governador Militar do Norte. Até mesmo a reunião posterior do Conselho que confirmou Gowon no posto não foi plenária, já que se realizou em tais condições que tornava impossível o comparecimento do Coronel Ojukwu com alguma chance de sair vivo de lá.
Somente no leste é que o governo continuou ininterrupto e não afetado pelos acontecimentos de julho de 1966. A cadeia de designações legítimas permaneceu intacta. Para os biafrenses, a sua separação da Nigéria, em maio de 1967, foi legítima pelo Direito Internacional, tendo em vista o tratamento dispensado â região e seus cidadãos. Essa alegação conta com incontáveis adeptas, no mundo inteiro.
5. Dois Coronéis
Os dois homens que detêm o poder nas duas partes até agora irreconciliáveis da Nigéria eram totalmente diferentes. O Tenente-Coronel Yakubu Gowon tinha 32 anos, era filho de um ministro metodista e fora educado numa missão evangelista, numa das menores tribos do norte, a sho-sho. Nascera nas proximidades da pequena cidade de Bauchi. Depois de aprender as primeiras letras na missão, entrara para uma escola primária. Ingressara no Exército aos 19 anos e tivera a sorte de ser logo enviado para um curso de treinamento de oficiais em Eaton Hall e depois Sandhurst. Retornara à Nigéria para- assumir uma carreira normal de oficial de infantaria. Posteriormente, fizera outros cursos na Inglaterra, especialmente em Hythe e Warminster. Na volta, tornara-se 1ª primeiro ajudante-de-ordens nigeriano e posteriormente servira, como o General Ironsi, no contingente nigeriano despachado para o Congo. Por ocasião do golpe de janeiro, estava fazendo mais um curso na Inglaterra, desta vez na Escola de Estado-Maior.
Na aparência também era totalmente diferente do seu colega no outro lado do Níger. Gowon era e é um homem pequeno, guapo, bem-apessoado, sempre muito elegante, com um sorriso infantil, cativante. Mas, provavelmente, a maior diferença entre os dois líderes está no caráter. Os que conheciam Gowon a fundo e serviram com ele, descrevem-no como um homem tranqüilo e suave, incapaz de fazer mal a uma mosca... pessoalmente. Mas descrevem-no também como um homem de imensa vaidade e dominado pelo rancor e despeito, apesar da simpatia instantânea que tem atraído tantos estrangeiros desde que subiu ao poder. Em termos políticos, a maior censura que lhe fazem os biafrenses moderados é de que é um homem fraco e vacilante quando há necessidade de tomar decisões firmes, um homem facilmente influenciado pelos espíritos mais fortes e vigorosos, que se deixa intimidar por um tratamento insolente e atrevido. Em suma, Gowon não seria um antagonista à altura de muitos dos oficiais do Exército que lideraram o golpe de julho e dos astutos funcionários públicos civis que viram em seu regime a oportunidade de conquistar o poder na Nigéria.
Para os biafrenses, Gowon nunca foi o verdadeiro governante da Nigéria, mas apenas um testa-de-ferro internacionalmente aceitável, delicado com os visitantes e correspondentes estrangeiros, encantador com os diplomatas, cativante na televisão.
A fraqueza de caráter de Gowon ficou patente pouco depois que ele subiu ao poder. Um dos seus primeiros atos foi ordenar a cessação do massacre de oficiais e soldados orientais do Exército nigeriano. Contudo como ficou comprovado, o massacre prosseguiu sem qualquer controle até o final do mês de agosto. Dois anos depois, Gowon aparentemente continuava a não ter qualquer controle sobre suas forças armadas. Por diversas vezes, ele jurou a diplomatas e correspondentes que ordenara à sua força aérea que cessasse de bombardear os centros civis em Biafra. Mas os aviões nigerianos continuaram a bombardear e metralhar implacavelmente mercados, igrejas e hospitais.
O Tenente-Coronel Chukwuemeka Odumegwu Ojukwu é um homem inteiramente diferente. Nasceu há 35 anos em Zungeru, uma cidadezinha da região norte, onde os pais estavam em visita temporária. O pai, Sir Louis Odumegwu Ojukwu, que morreu em setembro de 1966, com o título de cavalheiro e vários milhões de libras no banco, começara a vida como um pequeno negociante em Nnewi, na região leste. Criou um sistema nacional de transporte pelas estradas, tendo a bom senso de vendê-lo por um alto preço, pouco antes das ferrovias se tornarem o meio de transporte básico. Investiu em imóveis e altas finanças. Tudo o que Sir Louis tocava parecia se transformar em ouro. Investiu em terras na área de Lagos, numa época em que os preços eram baixos. Por ocasião de sua morte, os terrenos pantanosos que comprara na Ilha Victoria estavam sendo vendidos a preços astronômicos, pois ali se previa a construção de um novo bairro diplomático e residencial da capital em expansão.
A história do seu segundo filho, o predileto, não pode ser descrita como um conto de fadas do gênero da-miséria-à-riqueza. A casa da família onde o jovem Emeka Ojukwu brincava, antes de ir para a escola, era uma luxuosa mansão. Como a maioria dos negociantes ricos, Sir Louis mantinha a casa sempre aberta e a mansão era um ponto de encontro de toda a elite endinheirada da próspera colônia. Em 1940, o jovem Ojukwu entrou para a escola primária da Missão Católica, passando depois para o King s College, uma elegante escola particular, à imagem das escolas públicas britânicas. Ali permaneceu até os 13 anos, quando o pai mandou o para o Epsom College, entre as colinas ondulantes e verdejantes do Surrey, na Inglaterra. Ojukwu recordou mais tarde que sua primeira impressão da Inglaterra foi a de estar completamente perdido "entre um mar de rostos brancos". O isolamento de um menino africano num ambiente totalmente estranho foi a primeira grande influência no caráter em formação. Compelido a depender de si mesmo e de mais ninguém, Ojukwu desenvolveu uma filosofia pessoal de confiança em si mesmo, uma inabalável auto-suficiência interna que não exigia o apoio externo de outros. Apesar dos freqüentes atritos com a autoridade estabelecida e representada pelo prefeito do internato, Ojukwu saiu-se razoavelmente bem na escola, tornando-se um bom jogador de rugby e marcando um recorde de juniors no lançamento do disco que até hoje ainda não foi superado.
Aos 18 anos, Ojukwu foi para o Lincoln College, em Oxford. Foi nessa ocasião que teve o primeiro atrito com o pai e acabou vencendo. Sir Louis era o típico pai vitoriano, o chefe de família autoritário, que não podia imaginar qualquer oposição dos filhos a seus desejos. Mas, no segundo filho, tinha a impressão de ver a si próprio, de reencontrar muita de sua obstinação e força de vontade. E provavelmente estava certo. Sir Louis queria que o filho estudasse Direito. Mas depois do curso preparatório de um ano, Emeka Ojukwu decidiu mudar para História Moderna, que o interessava muito mais. Ainda jogava rugby e quase chegou à seleção universitária. Formou-se com distinção, sem precisar empenhar-se a fundo nos estudos. Os três anos que passou em Oxford foram os mais felizes de sua vida. Estava se aproximando dos 21 anos, era forte e bem-apessoado, rico e despreocupado.
Ao voltar para a Nigéria, passou a atrair a atenção em Lagos "apenas pelo corte impecável dos meus ternos ingleses", conforme comenta agora. Teve então o segundo choque com o pai. A medida óbvia era o jovem Ojukwu ingressar num dos muitos negócios prósperos do pai ou de um dos amigos do pai, no qual as promoções seriam automáticas e o trabalho mínimo. Mas ele era por demais independente e procurou um emprego onde pudesse fazer alguma coisa por conta própria, sem a proteção da influência do nome Ojukwu. Optou pelo serviço civil e pediu que o mandassem para a região norte, esperando assim escapar ao nome e a paternidade.
Mas o regionalismo do serviço civil impediu-o. O norte era para os nortistas. Assim, o jovem Ojukwu foi despachado para o leste. O fato de o filho ingressar no serviço civil em posição humilde foi um tremendo golpe para Sir Louis, mas ele conseguiu suportá-lo. Ir para o leste foi um tremendo golpe para Ojukwu. Acalentara a esperança de escapar ao nome, influência e prestígio do pai. Em vez disso, encontrou-os por toda parte. Sir Louis era o menino pobre local que conseguira vencer na vida. Seu nome parecia uma senha mágica. O novo Assistente Divisional não demorou a compreender que, qualquer que fosse o seu desempenho, os relatórios anuais a seu respeito jamais deixariam de ser laudatórios. Nenhum superior se atreveria a apresentar um relatório desfavorável sobre o filho de Sir Louis. E era justamente isso a última coisa que o rapaz desejava.
Numa tentativa de provar do que era capaz, a si mesmo e aos outros, lançou-se de corpo e alma ao trabalho, quase como uma vingança, optando por sair da cidade tanto quanto possível, indo ajudar na construção de estradas, valas e sistemas de irrigação, junto com os camponeses. Ironicamente, foi um aprendizado vital para a posição que Ojukwu ocupa atualmente, do qual ele está constantemente extraindo ensinamentos que o orientam. Nesses dois anos, o jovem privilegiado de Lagos aprendeu a conhecer o seu próprio povo, o Ibo, a compreender seus problemas, esperanças e temores. O mais importante é que Ojukwu aprendeu a ser tolerante com as fraquezas de seu povo, a desculpar-lhe os fracassos, algo que normalmente está além da compreensão de seus colegas de educação ocidental. É esse vínculo com o povo, uma comunicação profunda e que se processa nos dois sentidos, que constitui a base da liderança atual de Ojukwu sobre os biafrenses. E é justamente isso o que deixa aturdidos e desconcertados os seus oponentes estrangeiros, que há muito desejam e sonham que ele se torne a vítima de um golpe violento. O povo sabe que Ojukwu o compreende e a seus costumes, reagindo com uma lealdade inabalável.
Depois de dois anos no serviço civil, trabalhando entre Ibos e não-ibos no leste, Ojukwu decidiu largar tudo e ingressar no Exército. O motivo é extremamente irônico para o homem que é agora acusado por alguns de "destruir a Federação. Ojukwu era um federalista tão convicto que não podia suportar o regionalismo tacanho que sufocava o serviço civil. Via no Exército uma instituição onde tribo, raça e nascimento nada representavam. Tira também uma instituição em que poderia libertar-se do prestígio sufocante do nome Ojukwu e conquistar as promoções por seus próprios méritos.
Foi imediatamente enviado para uma escola de treinamento de oficiais em Eaton Hall, Chester, de onde saiu como segundo-tenente. (Muita gente costuma dizer, erroneamente, que ele passou por Sandhurst.) Depois de cursos adicionais em Hythe e Warminster, Ojukwu voltou para a Nigéria e obteve o. seu primeiro posto: no Quinto Batalhão, baseado em Kano, na Nigéria Setentrional. Dois anos depois, foi promovido a capitão e transferido para o quartel-general do Exército, em Ikeja, nos arredores de Lagos. Isso aconteceu em 1960, o ano da independência.
A vida era extremamente agradável para um oficial rico e solteiro do Exército, uma das mais queridas instituições da Nigéria. Em 1961, Ojukwu foi transferido para a escola de treinamento da Força de Fronteira da África Ocidental, em Teshie, na vizinha Jana, como instrutor de táticas militares. O primeiro da turma, em táticas, foi o Tenente Murtela Mohammed.
Ao final do ano, o Capitão Ojukwu voltou para o Quinto Batalhão, em Kano. Pouco depois, foi promovido a major e transferido para o quartel-general da Primeira Brigada, em Kaduna. Ainda no mesmo ano, serviu em Luluabourg, Província de Kasai, Congo, com a Terceira Brigada da Força de Paz da ONU, por ocasião da secessão catanguesa. Foi escolhido para treinamentos militares adicionais e em 1962 fez o curso da Escola de Estado-Maior, na Inglaterra. Em janeiro de 1963 foi promovido a tenente-coronel e tornou-se o primeiro Diretor de Intendência nativo do Exército Nigeriano.
Foi nesse cargo que tomou a decisão e adquiriu a experiência que lhe permitiu mais tarde desmentir as alegações do governo britânico de que os embarques de armas de Londres para Lagos não passavam de uma parte do "fornecimento tradicional". É que, como Diretor de Intendência, Ojukwu adotou a política de "comprar o melhor, ao menor preço, de qualquer fonte". Assim a maioria dos contratos de fornecimentos de armas e munições com firmas britânicas foi cancelada, assinando-se novos contratos com fornecedores de preços mais competitivos, da Holanda, Bélgica, Itália, Alemanha Ocidental e Israel. No momento em que irrompeu a guerra atual, o Exército Nigeriano dependia da Inglaterra apenas para o fornecimento de uniformes de gala e veículos blindados.
Um ano depois, Ojukwu voltou ao Quinto Batalhão, desta vez como comandante. Foi durante o período que Ojukwu passou em Kano, em 1965, que o jovem Major Nzeogwu, em Kaduna, começou a tramar o golpe de janeiro de 1966. Jamais alguém se deu ao trabalho de insinuar que o Coronel Ojukwu participou do golpe ou sequer tomou conhecimento do que ia acontecer. Os conspiradores simplesmente não o- envolveram. Por um lado, Ojukwu era considerado como uma figura representativa do "sistema"; mais importante do que isso, porém, era o fato de que todos conheciam as suas propensões legalistas e sabiam que a idéia de uma rebelião contra as autoridades legalmente constituídas iria causar-lhe repugnância.
Quando o golpe de janeiro de 1966 foi desfechado, Ojukwu foi um dos poucos que não perdeu a cabeça. Convocou para uma reunião o Administrador Provincial e o Emir de Kano, recomendando-lhes que unissem esforços para impedir que houvesse distúrbios e derramamento de sanque em Kano e no resto da província. Tiveram pleno sucesso, pois não houve qualquer distúrbio em Kano. Horas depois, Ojukwu falava pelo telefone com o General Ironsi, confirmando a sua lealdade e a do Quinto Batalhão.
Poucos dias depois, quando Ironsi precisou de um oficial oriental para tornar-se Governador Militar do Leste, o primeiro nome que lhe ocorreu foi o do Coronel Ojukwu.
Aos 33 anos, o Coronel Ojukwu foi escolhido para governar seu próprio povo e os cinco milhões de não-ibos da região oriental. Os dias de despreocupação estavam acabados. Aqueles que conheceram Ojukwu nos velhos tempos .declaram que ele mudou consideravelmente . Com as responsabilidades do governo e mais tarde da liderança popular, o jovem oficial alegre e animado desapareceu, dando lugar a um homem mais sóbrio e comedido. Ojukwu ainda leva o posto extremamente a sério, digno de todo e qualquer sacrifício pessoal. A sua frente, embora ele não pudesse sabê-lo na ocasião, estavam os massacres de maio de 1966 contra o seu próprio povo, outro coup d'état, mais carnificina racial, ódio, desconfiança, promessas quebradas, a decisão de acatar a vontade do povo e separar-se da Nigéria, guerra, fome, a calúnia de metade do mundo e possivelmente a morte.
Mas quando Ojukwu assumiu o poder, em janeiro de 1966, tal perspectiva não passava pela cabeça de ninguém. Assim como os Coronéis Fajuyi e Ejoor, o Coronel Ojukwu não perdeu tempo para atacar a corrupção e a venalidade que encontrou na vida pública no leste. Como aconteceu no resto do sul, embora o mesmo não se desse no norte, alguns dos principais políticos do antigo regime foram presos, durante a operação de limpeza.
Até mesmo os massacres de maio, na Nigéria Setentrional, não liquidaram as esperanças de Ojukwu de uma só Nigéria. Depois que o General Ironsi obteve do Sultão de Sokoto a garantia de que não haveria mais matanças, o Coronel Ojukwu aproveitou a primeira oportunidade, da visita a Nsukka de seu amigo o Emir de Kano, para pedir à sua gente que fugira do norte para que retornasse a seus empregos. Mais tarde, ele iria se arrepender dessa posição e sentiria um profundo remorso, quando muitos dos que voltaram, seguindo o seu conselho, morreram em massacres posteriores .
O Coronel Ojukwu é praticamente único em duas coisas, entre todos os que estão atualmente no topo dos acontecimentos. Em primeiro lugar, ele não estava comprometido por qualquer participação, direta ou indireta, no regime corrupto dos políticos. Os políticos que atualmente estão mandando e desmandando em Lagos são basicamente os mesmos que se exibiam no velho circo político, onde a ordem do dia era o enriquecimento ilícito à custa dos dinheiros públicos. Em segundo lugar, Ojukwu não esteve envolvido em nenhum dos dois golpes militares. Quase todos os oficiais que estão por trás dos políticos na Nigéria de hoje são os mesmos que desencadearam o sangrento golpe de julho de 1966. Não podemos também esquecer que Ojukwu sempre teve uma grande fortuna pessoal. Quando o pai morreu, em 1966, Ojukwu herdou grandes propriedades em Lagos e outros lugares. Mas a herança não era exclusivamente imobiliária. O velho financista tinha vultosas quantias depositadas em bancos suíços. Antes de morrer, forneceu ao segundo filho todas as informações necessárias para a retirada desse dinheiro. Se o Coronel Ojukwu tivesse feito o que desejava a facção de Lagos, depois do golpe de julho, poderia manter tudo o que possuía e ainda permanecer no cargo. Mas, fazendo o que fez, perdeu todas as propriedades em Lagos e toda a sua fortuna na Nigéria. Em relação ao dinheiro no exterior, Ojukwu insistiu, quando chegou o momento da decisão, que até a última moeda fosse aplicada em Biafra, antes que se tocasse nos antigos fundos da região oriental depositados no exterior. O total de sua fortuna pessoal foi calculado em oito milhões de libras.
6. As Atrocidades do Outono
Depois do golpe de julho, a situação era complexa e profundamente difícil. Quando chegaram ao leste as notícias da matança de oficiais e soldados orientais em todos os quartéis do norte e do oeste da Nigéria, houve uma explosão de revolta. Sem suas armas, disfarçados em trajes civis, andando de noite e escondendo-se durante o dia, os primeiros grupos de oficiais e soldados que haviam escapado aos massacres começaram a atravessar o Níger e contar a história.
Para o Coronel Gowon, foi uma semana crucial. Diversas razões já foram citadas como base de sua escolha para líder dos conspiradores. Não era obviamente verdadeiro o fato de que ele era o oficial mais graduado do Exército, depois do General Ironsi. A explicação que ele próprio apresentou pelo rádio, a 1º de agosto, de que fora escolhido pela maioria do Conselho Militar Supremo, também foi prontamente rejeitada no leste. Por um lado, o Conselho não tomava decisões por maioria; por outro, o Conselho nem sequer se reunira. Uma terceira razão apresentada para a sua escolha, especialmente pelos autores expatriados na ocasião, foi a de que ele era "o único homem que podia controlar os rebeldes".
O novo regime enfrentou de saída três problemas urgentes, que precisavam ser resolvidos a qualquer custo: a matança dentro do Exército tinha que ser detida; era preciso encontrar um Comandante Supremo que fosse aceitável para todos; e era preciso definir a base futura da associação das quatro regiões.
O Coronel Ojukwu, embora não estivesse disposto a reconhecer a supremacia do Coronel Gowon, compreendia perfeitamente que, para salvar a Nigéria do caos, teria que tentar cooperar com o novo regime. Com esse objetivo, propôs pelo telefone, de Enugu, que fosse realizada uma reunião de representantes dos Governadores Militares, a fim de se chegar a um acordo ou pelo menos definir os termos de uma associação temporária dos blocos de poder militar regional, criados pelo golpe.
A força que agora controlava o norte, o oeste e Lagos era o Exército Setentrional. Os orientais no "exército" (isto é, o Exército Federal) tinham sido mortos ou expulsos. A maioria dos originários do meio-oeste (e não eram muitos) pertencia ao grupo Ibo dessa região e fora assim classificada como oriental, sofrendo o mesmo destino. Os ocidentais no Exército eram poucos. Tradicionalmente, os Iorubás não se apresentavam como candidatos ao serviço militar.
A reunião dos representantes dos Governadores Militares foi realizada a 9 de agosto e chegou-se a um acordo vital, com o qual os nortistas concordaram: todas as tropas deveriam retornar às suas regiões de origem. Embora freqüentemente ignorado mais tarde, por todos os que analisaram a crise nigeriana, esse acordo poderia ter salvado a Nigéria, se fosse cumprido. O golpe no oeste contara com o apoio apenas dos políticos dos tempos de Akintola, que ainda eram odiados pela maioria da população. O retorno dos soldados nortistas ao norte teria permitido que os ocidentais manifestassem sua vontade, algo inteiramente impossível enquanto permanecessem guarnições nortistas em todos os quartéis e pelotões de nortistas estivessem nos bloqueios nas estradas.
O Chefe Awolowo, libertado da prisão, ainda contava com popularidade suficiente para falar pelo oeste. Mas acontece que a promessa' jamais foi cumprida pelo novo regime. A desculpa apresentada foi a de que não havia praticamente tropas Iorubás para substituir os nortistas. Na verdade, a segurança poderia ter sido garantida pela polícia, já que os ocidentais não tinham qualquer motivo para se revoltarem. Assim, os soldados nortistas acabaram ficando. Para os ocidentais, assim como para os orientais, mais parecia um exército de ocupação. E, diga-se de passagem, os soldados nortistas freqüentemente se comportaram como tal.
No leste, o Coronel Ojukwu cumpriu rigorosamente o acordo. Os nortistas que integravam a guarnição de Enugu foram repatriados para o norte de trem. Nos termos do acordo de 9 de agosto, tiveram permissão para levar as armas e munição suficiente, para poderem se defender caso houvesse uma emboscada no caminho. As armas deveriam ser devolvidas, assim que os soldados chegassem ao norte. Mas uma vez em Kaduna, os soldados procedentes de Enugu mantiveram suas armas, não mais se ouvindo falar delas.
Em diversos lugares, soldados nascidos no leste estavam querendo voltar para sua terra. Além dos fugitivos de 29 de julho e dos dias subseqüentes, havia outros grupos que ainda estavam ilesos. Alguns foram despachados do norte para o leste, mas sem armas nem escolta, sujeitos a repetidos vexames no caminho, por parte de populações agora hostis. A tensão aumentava cada vez mais.
Ao final do mês, ficou patente que ainda havia centenas de orientais cujo paradeiro se desconhecia. Foi nessa ocasião que o Coronel Ojukwu pediu que o pessoal mais proeminente tivesse permissão para voltar ao leste. Em conseqüência, 22 oficiais orientais que estavam em Ikeja foram sumariamente executados. .
Esses acontecimentos não podiam deixar de ter efeitos no leste. Depois dos massacres de maio no norte, o General Ironsi instituíra uma Comissão de Inquérito, sob a presidência de um juiz do Alto Tribunal Britânico. Ao tomar tal iniciativa, Ironsi estava seguindo uma prática fixada pelos ingleses depois dos distúrbios de Jos, em 1945, e das matanças em Kano, em 1953. Mas antes que a Comissão começasse a funcionar, Ironsi pedira a seu chefe do Estado-Maior que realizasse um rápido inquérito preliminar. Pressionado diversas vezes pelo Conselho Militar Supremo para que divulgasse suas descobertas, o Coronel Gowon protelara, alegando que o relatório ainda não estava pronto. Na verdade, o relatório jamais ficou pronto. E Gowon, ao tomar o poder, dissolveu a Comissão, que nunca chegou a funcionar. Em conseqüência, não houve qualquer atribuição de responsabilidade pelas matanças de maio, nenhum culpado foi levado à justiça, não houve qualquer indenização pelas vítimas.
Por tudo isso, foi-se intensificando no leste uma desconfiança profunda do Coronel Gowon. Parecia que ele jamais tivera a intenção de permitir que as matanças de maio fossem esclarecidas. Essa impressão foi reforçada quando Gowon autorizou a publicação de um documento que afirmava terem sido os distúrbios de maio causados exclusivamente pelo Decreto de Unificação de 24 de maio. Esse decreto fora uma decisão unânime do Conselho Militar Supremo, que era integrado inclusive por dois nortistas, o Coronel Hassan Katsina e Alhaji Kam Selem.
Há um fato ainda mais importante e que é freqüentemente ignorado: houve uma completa volte-face no pensamento oriental sobre a questão da forma futura da Nigéria. Anteriormente, os orientais tinham sido os mais ferrenhos defensores da Nigéria unificada, empenhando-se na consecução desse objetivo mais que qualquer outro grupo étnico, promovendo-o constantemente no nível político. Mas entre 29 de julho e 12 de setembro, o leste deu uma volta de 180 graus. Não era uma experiência das mais felizes para eles, mas não podiam deixar de considerar que não havia outra alternativa, em face dos acontecimentos recentes. Um parágrafo queixoso numa publicação oficial do governo da região oriental, no outono, explica a conclusão a que se chegou:
Os acontecimentos recentes demonstraram que a convicção dos orientais de que somente uma autoridade central forte poderia manter o povo do país unido era obviamente presunçosa e provavelmente uma simplificação excessiva da situação. Agora, parece que nunca existiu a base em que os orientais firmaram a sua concepção de uma só nação, uma só cidadania e um só destino.[The Problem of Nigerian Unity: The Case of Eastern Nigéria, (O Problema da Unidade Nigeriana: A Defesa da Nigéria Oriental), pág. 28.]
Não era uma confissão agradável de se fazer e a desilusão foi profunda, quase traumática. Mesmo hoje, ainda se reflete nos biafrenses que participaram diretamente desses acontecimentos.
Enquanto isso, em todas as regiões, em todos os níveis, discutia-se qual a posição que deveria ser assumida na iminente conferência de Revisão Constitucional Ad Hoc, a ser realizada em Lagos, a partir de 12 de setembro. Nessa conferência, o leste propôs uma associação frouxa de estados, com um alto grau de autonomia interna. Não se tratava do sonho oriental para a Nigéria, mas é que parecia ser a única forma que levava em consideração as realidades da situação. Três meses depois, o Coronel Ojukwu expressou essa posição em duas frases:
— É melhor nos afastarmos ligeiramente e sobrevivermos. Seria pior nos aproximarmos e perecermos na colisão. [Relatório textual das conversações do Conselho Militar Supremo, em Aburi, Gana, 4-5 de janeiro de 1967, pág. 45.]
O norte também optou por uma federação frouxa, ainda mais do que propunha o leste. A proposta nortista praticamente equivalia a uma Confederação de Estados. A fim de não deixar a menor dúvida quanto às suas intenções, a delegação nortista apresentou um memorando detalhado sobre a Organização de Serviços Comuns do Leste Africano, que sugeria como modelo a ser adotado na Nigéria. Em suas propostas, a delegação nortista fez o seguinte comentário a respeito da unidade nigeriana:
Os recentes acontecimentos demonstraram claramente que qualquer tentativa dos líderes nigerianos de construir o futuro para o país com base numa ideologia política rígida será irrealista e desastrosa. Pretendemos por tempo demais que não existiam diferenças entre os povos deste país. O fato indiscutível, que devemos humildemente aceitar, o fato de suprema importância para a experiência nigeriana, especialmente para o futuro, é que somos povos diferentes, reunidos por acasos recentes da história. Será uma loucura pensar que pode ser algo diferente.[Memorando original apresentado pela Delegação Nortista à Conferência Constitucional Nigeriana Ad Hoc, iniciada em Lagos, a 12 de setembro de 1966. Citado integralmente em The North and Constítutional Developments in Nigéria, (O Norte e os Desenvolvimentos Constitucionais na Nigéria), pág. 23.]
É óbvia a semelhança entre a conclusão desse trecho e a passagem da publicação oriental citada anteriormente. Pela primeira vez, parecia que norte e leste concordavam com as evidências de sua própria incompatibilidade.
O norte foi ainda mais longe, pedindo que, em qualquer nova Constituição Nigeriana, fosse acrescentada uma cláusula de secessão. "Qualquer estado-membro da União deve reservar-se o direito de separar-se completa e unilateralmente da União, adotando as providências cabíveis para a cooperação com os outros estadosmembros da União, pela forma que julgarem coletiva ou individualmente- apropriada."[ibid., pág. 25]
Ao contrário da atitude do leste, a posição do norte era perfeitamente coerente com décadas de tradição. Foi nesse momento que ocorreu a segunda volte-face. Depois de alguns dias, parece que houve uma crise na delegação nortista. O Coronel Katsina veio de Kaduna, os delegados partiram apressadamente para o norte. A conferência foi suspensa. Quando os nortistas voltaram, depois de suas consultas, apresentaram propostas inteiramente diferentes. Agora, queriam um governo central forte e eficaz, com a conseqüente redução da autonomia regional; concordavam com a idéia de se criarem mais estados na Nigéria (algo que sempre haviam combatido antes); e concordavam em eliminar qualquer menção de secessão.
Tem havido diversas explicações para esse súbito e extraordinário rompimento com todas as atitudes tradicionais do norte. Uma dessas explicações é a de que elementos do Cinturão Intermediário, de onde provinha a maioria dos soldados do Exército, deixaram bem claro que não queriam um retorno à autonomia regional, pois isso significaria o retorno à hegemonia dos emires, o que consideravam inaceitável. Assim, pressionaram tanto o norte como o governo central, com sua preponderância no Exército, do qual as duas facções no poder dependiam inteiramente. Se isso é verdade, representou a introdução de uma nova força na política nigeriana: as tribos minoritárias. Ao mesmo tempo, causou o que o Sr. Walter Schwarz chama de "o terceiro golpe".
Outra explicação é a de que ocorreu aos emires ou lhes foi explicado que regiões virtualmente autônomas dependeriam basicamente de sua própria renda e o norte teria assim que pagar sozinho os vultosos empréstimos contraídos para a construção da Barragem de Kainji e da Ferrovia de Bornu, enquanto o leste controlaria a maior parte dos rendimentos do petróleo.
Uma terceira explicação é a de que os diplomatas ingleses mais uma vez entraram em ação e usaram a sua indubitável influência no norte para avisar que Whitehall não desejava que a Nigéria se transformasse numa Confederação de Estados.
É possível também que os governantes nortistas compreendessem que podiam se dar ao luxo de permitir que representantes de tribos minoritárias assumissem o primeiro plano numa Nigéria unificada, podiam até mesmo permitir a criação de novos estados, contanto que permanecessem como a verdadeira base do poder nos bastidores. Não seria difícil conseguir isso: bastava que o governo central fosse dependente do Exército e que o Exército não passasse de um instrumento do norte. Há alguns indícios a favor dessa quarta explicação. Depois que o norte foi ostensivamente dividido em seis estados, um correspondente da BBC perguntou ao Coronel Katsina se isso afetava de alguma maneira a estrutura de poder tradicional da região. Katsina declarou, categoricamente:
— Não altera absolutamente nada.
E já em plena guerra, quando Gowon parecia deter o controle total, Katsina subitamente transferiu uma brigada de Hausas para as proximidades de Lagos e calmamente designou a si mesmo para chefe do Estado-Maior do Exército, em substituição a outro nortista, o Coronel Bissalla.
Qualquer que tenha sido o motivo para a mudança, foi tão súbito e inesperado que só pode ter sido decorrência de um "acordo secreto* nos bastidores. A satisfação de Whitehall com a mudança ficou tão patente em Lagos que é difícil acreditar que a Alta Comissão Britânica tivesse se contentado em permanecer como espectadora ociosa, durante todo o desenrolar da crise.
Ao final, a Conferência Constitucional fracassou inteiramente. É que foi interrompida e desacreditada por outra erupção de massacres de orientais no norte, ainda piores que os anteriores, com tal intensidade que destruiu de uma vez por todas qualquer ilusão que ainda pudesse existir de que o ódio do norte pelo leste fosse uma fase transitória numa nova nação. Lançou também as bases para o sentimento oriental de que a única esperança de sobrevivência como povo era a separação da Nigéria.
Em literatura explicatória posterior publicada pelo Governo Militar Nigeriano (a literatura federal é acentuadamente favorável aos nortistas, o que não é de surpreender), são apresentadas diversas razões para esses massacres, atenuando-se também as suas proporções e características. Um exame superficial dessas desculpas revela que foram inventadas depois dos massacres. Uma comparação dos dados pertinentes e dos depoimentos de europeus que testemunharam os acontecimentos demonstra a sua falsidade. A principal desculpa foi a de que houve algumas matanças de nortistas no leste, o que desencadeou o massacre de orientais no norte. Embora não se possa negar que tenha havido alguma violência contra os nortistas que viviam no leste, só começou a se manifestar sete dias depois das matanças de orientais no norte.
Como em maio, os massacres foram planejados e organizados praticamente pelos mesmos elementos que haviam sido desacreditados em janeiro: ex-políticos, servidores civis, autoridades governamentais locais e agentes do partido. Novamente, tais homens foram vistos seguindo em ônibus alugados de cidade para cidade, no norte, exortando as massas à violência, liderando-as em seus ataques aos Sabon Garis, onde viviam os orientais. Houve, contudo, uma diferença significativa: naquele verão, a polícia e o Exército em diversos casos lideraram ativamente os bandos assassinos, antecipando-se inclusive no saque dos bens das vítimas e no estupro de suas mulheres.
Esses massacres começaram entre 18 e 24 de setembro, ou seja, a poucos dias do início da Conferência Constitucional em Lagos, nas cidades setentrionais- de Makurdi, Minna, Gboko, Gombe, Jos, Sokoto e Kaduna. O Quarto Batalhão, estacionado em Kaduna, deixou o quartel e participou dos massacres junto com os civis. O Coronel Katsina emitiu uma advertência para que os soldados voltassem ao quartel, mas sem qualquer resultado.
A 29 de setembro de 1966, o Coronel Gowon fez um discurso pelo rádio, visando aparentemente acabar com a violência. E declarou:
— Parece que os tumultos ultrapassaram os limites da razão, chegaram a um ponto de temeridade e irresponsabilidade.
Com isso, dava a impressão aos ouvintes de que a matança de orientais, até certo ponto, podia ser considerada como uma prática razoável. Seja como for, a interferência de Gowon foi infrutífera. Ao invés de diminuir, o pogrom explodiu naquele dia, passando de um braseiro para um terrível holocausto.
Para que os leitores não fiquem pensando que as descrições do que aconteceu não passam de uma criação da imaginação uma teoria que posteriormente esteve a pique de ser formulada em alguns círculos dos governos britânico e nigeriano, vamos dar a palavra a três europeus que tudo testemunharam.
O correspondente da revista Time assim escreveu, a 7 de outubro:
O massacre começou no aeroporto, perto da base do Quinto Batalhão, na cidade de Kano. Um jato com destino a Lagos acabara de chegar de Londres. Os passageiros que iam desembarcar em Kano tinham sido escoltados ao galpão da Alfândega quando apareceu um soldado de aparência desvairada, brandindo um rifle e gritando:
— Ina Nyamiri?
Isso é Hausa e significa "Onde estão os malditos Ibos?" Havia Ibos entre os funcionários da Alfândega. Largaram imediatamente o que estavam fazendo e fugiram, para serem mortos a tiros no terminal principal por outros soldados. Gritando palavras de ódio e proclamando uma Guerra Santa muçulmana, os soldados Hausas transformaram o aeroporto num verdadeiro matadouro, matando a golpes de baionetas os trabalhadores Ibos do bar, metralhando-os nos corredores, arrancando passageiros Ibos dos aviões para alinhá-los na pista e fuzilá-los.
Do aeroporto, os soldados seguiram para o centro de Kano, caçando Ibos nos bares, nos hotéis e nas ruas. Um contingente seguiu em seus Landrovers para a estação ferroviária, onde mais de cem Ibos estavam esperando um trem. Foram chacinados por disparos de metralhadoras.
Os soldados não precisaram se encarregar de toda a chacina. Não demorou muito para que a eles se juntassem milhares de civis Hausas, que se espalharam pela cidade armados de pedras, facões, machados e armas de fabricação doméstica, na base de metal e vidro quebrado. Gritando "Pagãos!" e "Alá!", as turbas e os soldados invadiram o Sabon Garis (bairro dos estrangeiros), saqueando e queimando as casas e lojas de Ibos, assassinando os proprietários.
O massacre se prolongou durante toda a noite e continuou pela manhã. Depois, cansados mas satisfeitos, os Hausas voltaram para suas casas e para o quartel, a fim de comer alguma coisa r dormir. Os caminhões de lixo municipais foram despachados para recolher os cadáveres e jogá-los em covas coletivas fora da cidade. O número de mortos jamais será conhecido com certeza, mas não foi certamente inferior a mil.
De alguma forma, vários milhares de Ibos conseguiram sobreviver à chacina e todos tinham o mesmo pensamento: sair do norte o mais depressa possível.
O Sr. Walter Partington, do Daily Express, de Londres, publicou o seguinte relato a 6 de outubro:
Pelo que me contaram, na viagem em avião fretado que fiz pelas cidades onde a companhia aérea civil do norte costuma voar, o horror do massacre nesta terra desolada parece ter igualado o Congo. Não sei se ainda existem Ibos na região setentrional... pois se não estão mortos, certamente estão escondidos nos matagais desta terra que é tão grande quanto a Inglaterra e a França juntas.
Vi abutres e cachorros devorando os cadáveres de Ibos, vi mulheres e crianças brandindo machados, porretes e armas de fogo.
Conversei em Kaduna com um piloto de avião fretado, que na semana passada levou centenas de Ibos para a segurança em seu avião. E ele me disse:
— O número de mortos deve ter passado e muito dos três mil...
Uma jovem inglesa declarou:
— Os Hausas estavam levando Ibos feridos para o hospital, a fim de matá-los lá.
Conversei com três famílias que fugiram da cidadezinha de Nguru, 280 quilômetros ao norte daqui (o despacho era enviado de Lagos). Conseguiram escapar da cidade em três Landrovers, enquanto cerca de 50 Ibos eram ali assassinados por multidões embriagadas com cerveja vendida em estabelecimentos de europeus. Um inglês que fugiu da cidade contou ter visto dois padres católicos correndo desesperadamente, perseguidos pela multidão enlouquecida.
— Não sei se eles escaparam. Não esperei para verificar. Os Ibos massacrados são geralmente enterrados em covas coletivas além dos muros das cidades muçulmanas.
Em Jos, os pilotos de aviões fretados que têm transportado Ibos para a segurança do leste falam que houve ali pelo menos 8OO mortos.
Em Zaria, a 70 quilômetros de Kaduna, conversei com um Hausa que me disse:
— Matamos cerca de 250 Ibos aqui. Talvez tenha sido essa a vontade de Alá.
Um europeu presenciou uma mulher e a filha serem assassinados no jardim da frente de sua casa, depois de ter sido forçado a entregá-las.
O Sr. Colin Legum, do Observer, de Londres, publicou o seguinte a 16 de outubro de 1966:
Embora os Hausas em cada cidade e aldeia do norte saibam o que aconteceu em suas respectivas localidades, somente os Ibos tomaram conhecimento de toda a história, do relato terrível dos 600 mil refugiados que fugiram para a segurança da região leste, espancados, feridos, torturados, roubados de todas as suas posses. Foram os Ibos que ouviram as histórias desesperadas das viúvas, órfãos e traumatizados. Uma mulher, atordoada e emudecida, chegou de volta a sua aldeia depois de viajar por cinco dias, levando consigo apenas uma tigela. Lá dentro, estava a cabeça de seu filho, cortada diante de seus olhos.
Homens, mulheres e crianças chegaram com braços e pernas quebrados, as mão mutiladas, bocas cortadas. Mulheres grávidas foram retalhadas, os filhos por nascer foram mortos. O total de baixas é desconhecido. O número de feridos que retornaram ao leste eleva-se a milhares. Depois de duas semanas, as cenas na região oriental recordam a chegada de exilados a Israel, ao término da última guerra. O paralelo não é fantasioso.
Continuar com descrições desse tipo e dessa escala das atrocidades cometidas durante aquelas semanas do verão de 1966 seria convidar a críticas de estar glorificando a bestialidade dos acontecimentos. As descrições das testemunhas de vista, independente dos relatos das vítimas, estendem-se por vários milhares de páginas. Há trechos em que a natureza das atrocidades cometidas ultrapassa a compreensão humana. O mesmo se pode dizer das descrições feitas por médicos europeus que trataram dos feridos no aeroporto e na estação ferroviária de Enugu e, mais tarde, dos refugiados que conseguiram voltar ao leste.
Mas não menos impressionante foi a subseqüente tentativa dos governos nigeriano e britânico de varrer todos esses acontecimentos para baixo do tapete, como se a ausência de qualquer menção pudesse apagar a recordação da tragédia. Para o governo nigeriano, o assunto é tabu. Nos círculos de Whitehall, é o melhor meio de se encerrar uma conversa, desde Burgess e Maclean.
Muitos correspondentes sofisticados parecem também ter concordado tacitamente em não fazer qualquer alusão aos massacres de 1966, ao comentarem a separação da Nigéria Oriental da Federação e as causas da guerra atual. É uma atitude totalmente irrealista. Não se pode explicar a atitude atual dos biafrenses em relação aos nigerianos sem qualquer referencia a esses acontecimentos, assim como não se pode explicar as posições contemporâneas dos judeus em relação aos alemães sem referencia as experiências dos judeus nas mãos dos nazistas, entre 1933 e 1945.
7. Aburi, a Última Chance da Nigéria
Não resta a menor dúvida de que o objetivo do pogrom de 1966 era expulsar os orientais do norte, talvez mesmo da Nigéria. Em ambos os casos, o sucesso foi extraordinário. Na esteira dos massacres, os orientais voltaram para sua terra, convencidos de lima vez por todas que a Nigéria não podia nem queria oferecer-lhes as garantias mínimas de segurança de vida e propriedade, que são habitualmente os direitos inalienáveis dos cidadãos em seu próprio país.
Desde então, têm sido acusados de exagerarem as proporções e os efeitos dos massacres. Ironicamente, não era necessário exagerar qualquer coisa. Os fatos falavam por si mesmos e foram testemunhados por muitas pessoas independentes para poderem ser negados. O Sr. Schwarz, que dificilmente pode ser acusado de sensacionalismo, refere-se aos massacres como "um pogrom de proporções genocidas".
É preciso também esclarecer que os massacres não foram dirigidos exclusivamente contra os Ibos. A palavra "ibo" é apenas um termo genérico no norte, designando todos os orientais, independente do grupo racial. Na verdade, a palavra Hausa é nyamtri, que é ao mesmo tempo depreciativa e descritiva. Não foram apenas os Ibos que sofreram, embora eles estivessem em maioria. Também foram mortos efiks, ibibios, ogojas e ijaws.
Ao voltarem para sua terra e contarem as histórias dos massacres, uma onda de raiva varreu o leste, misturada também com desespero e desilusão. Não houve praticamente nenhuma aldeia ou cidade, nenhuma família que não abrigasse um refugiado e ouvisse o seu relato. Milhares de refugiados ficaram aleijados pelo resto da vida pelo que tinham passado, física ou mentalmente. Quase todos estavam sem dinheiro, pois o oriental tradicionalmente investe o que ganha em seu negócio ou em propriedades. Poucos tinham podido trazer, ao fugirem, mais que uma pequena valise.
Casas, negócios, lucros em perspectiva, salários, economias, móveis, carros, concessões, para muitas pessoas a soma dos esforços da vida inteira, tudo fora deixado no norte. Não eram apenas refugiados, mas também não tinham qualquer meio de sustento ao chegarem ao leste, para muitos uma terra que jamais tinham conhecido.
Naturalmente, houve uma reação. Enquanto prosseguiam as matanças no norte, houve atos de violência retaliatórios esporádicos contra os nortistas que viviam na região leste. Expatriados falaram de Hausas atacados em Port Harcourt, Aba e Onitsha. Mas as mesmas testemunhas ressaltam que foram atos ocasionais, nascidos de fúria momentânea. Nunca houve mais que uns poucos milhares de nortistas vivendo no leste. Além do mais, a reação do Coronel Ojukwu às notícias de violência contra os nortistas foi imediata e enérgica. À medida que o número de mortos no norte ia aumentando e continuavam a chegar notícias dos acontecimentos trágicos, ficou evidente que o futuro dos nortistas na região leste era problemático, para usar um termo suave.
O Governador Militar determinou que os nortistas vivendo no leste deveriam ser levados até a fronteira, sob escolta policiai para protegê-los, ao longo de todo o caminho. A capacidade de Ojukwu de comandar seu próprio povo contrastou com a impotência de Gowon e Katsina. Como seres humanos, os policiais da região leste talvez odiassem a missão, mas trataram de cumpri-la. Somente em uma ocasião, quando um trem foi detido por amotinados na ponte sobre o rio Imo, é que se cometeu alguma violência contra nortistas protegidos pela polícia. A esmagadora maioria, no entanto, deixou o leste ilesa.
Em relação aos totais de vítimas, uma questão das mais controvertidas, o Sr. Legum definiu muito bem o problema com a seguinte declaração:
— Somente os Ibos conhecem toda a terrível história.
Diante da relutância óbvia do governo federal em realizar um inquérito, o leste tomou a decisão de fazê-lo, por sua própria iniciativa. O inquérito foi presidido pelo Sr. Gabriel Onyiuke, o antigo Procurador-Geral nigeriano, que também fugira da Nigéria. Foi necessário muito tempo para concluir o inquérito. Muitos refugiados haviam se dispersado por toda a região leste e foi difícil encontrá-los. Outros não atenderam ao apelo para se apresentarem e prestarem depoimento. Além disso, o fluxo de refugiados prolongou-se por muitos meses, enquanto a aura de violência e medo se espalhava do norte para o oeste e para Lagos.
Seguindo o exemplo de seus companheiros no norte, soldados nortistas no oeste começaram também a percorrer as ruas, caçando orientais. Eram o terror das ruas de Lagos à noite. Pegavam todos os orientais que encontravam e levavam para a estrada de Agege, onde os executavam sumariamente. Alguns dos homens mais eminentes da Nigéria deixaram suas casas e apartamentos às pressas, levando nos carros tudo o que podiam carregar, num esforço para atravessar o Níger e chegar a lugar seguro.
Em janeiro, a comissão de inquérito oriental já chegara a um total de 10 mil mortos no norte. Mas esse número ainda era provisório, pois incluía apenas os que tinham sido mortos nas grandes cidades. Havia centenas de pequenas colônias orientais espalhadas pelo norte, às vezes não mais de 10 ou 12 pessoas numa aldeia que, fora elas, era habitada exclusivamente por Hausas ou Tivs. Depois que se conferiu o destino dessas pequenas colônias acrescentando-se os que morreram em Lagos e no oeste, o total de mortes ultrapassou 30.000. Havia ainda muitos outros milhares de aleijados e mutilados, sem falar nos que ficaram dementes pelo resto da vida.
Até mesmo a população oriental do norte excedia os dados conhecidos. Quando todos já tinham voltado, o total foi estimado em 1.300.000, enquanto os que vieram das outras regiões não chegavam a 500.000.
Como não podia deixar de ser, havia um elemento de estimativa nos cálculos, já que muitos refugiados falavam de uma família que vivia em determinado lugar e da qual não mais tinham ouvido falar, sem qualquer confirmação do que acontecera. A tabulação das informações para determinar o destino daqueles que não tinham voltado exigiria os serviços de um computador.
Quem visitasse o leste três meses depois desse enorme fluxo de refugiados certamente esperaria encontrar imensos campos de pessoas deslocadas, vivendo da caridade pública. Teria sido perfeitamente normal que se fizessem apelos ao Fundo de Refugiados da ONU na esperança de se obter ajuda externa para impedir que os refugiados morressem de fome. Ironicamente, se tivesse sido essa a reação do leste, o problema dos refugiados teria despertado a consciência mundial, como aconteceu na Faixa de Gaza. A simpatia assim recebida poderia permitir aos orientais declarar a sua independência em separado, com a bênção do resto do mundo. Se tivessem optado pelo rompimento com a Nigéria naquele momento, certamente teriam recebido o apoio imediato de um vasto círculo de simpatizantes.
Mas os nigerianos orientais não eram como os árabes. Não podiam tolerar uma ferida supurada em sua terra, como o da Faixa de Gaza. Naquele momento de crise, foi posto em prática o sistema de família prolongada, a estrutura tradicional pela qual cada um é obrigado a ajudar qualquer parente em desgraça, por mais distante que seja. Os refugiados desapareceram quase milagrosamente, encontrando abrigo com avós, tios, primos e parentes afins que há muito não viam. Em cada caso, o arrimo da família simplesmente assumia o encargo de mais algumas bocas para alimentar. Foi por esse motivo que, pelo menos na superfície, o problema pareceu ser resolvido tão depressa.
Mas, sob a superfície, o problema continuava a existir e era de grandes proporções. O fluxo de refugiados causara um problema de desemprego de proporções dificilmente controláveis. Os serviços sanitários e sociais não tinham condições de enfrentar a crise. Os serviços educacionais descobriram-se subitamente com mais centenas de milhares de crianças em idade escolar precisando de escolas e professores. Na maioria dos países do mundo, o governo central sentir-se-ia na obrigação de lançar um programa de ajuda maciço, através de uma rápida expansão dos serviços ou através de um amplo esquema de ajuda fiscal. Tendo em vista que os danos haviam sido causados por outros nigerianos, inevitavelmente se pensaria em amplas compensações. Mas estando a Nigéria sob o comando do Coronel Gowon, nada disso aconteceu.
Não houve qualquer manifestação de pesar. Não houve qualquer exigência do governo central de que o norte apresentasse algum pedido de desculpas, uma declaração de pesar e remorso. Não houve qualquer compensação, não houve qualquer punição, não houve sequer uma proposta de reparar os danos, na medida em que podiam ser reparados. Pelo que se sabe, nem um único soldado sequer foi punido pelo menos com um dia de detenção no quartel, nenhum oficial foi levado à corte marcial, nenhum policial foi excluído da polícia, nenhum civil jamais foi levado à justiça, pelos crimes cometidos. E, diga-se de passagem, muitos deles poderiam ter sido facilmente identificados.
A atitude do Governo Gowon, em Lagos, respondeu às indagações dos orientais sobre a imparcialidade do centro com uma clareza desanimadora. A esta altura, a tensão era imensa. A exigência de um rompimento completo e imediato com a Nigéria, que começou como um pequeno murmúrio, transformou-se rapidamente num terrível furacão.
Das três regiões originais, o leste foi a última a sequer mencionar a palavra. Há 20 anos que o norte periodicamente fazia ameaças de secessão. Em 1953, por ocasião das conversações em Londres que deram origem à Constituição de 1954, o Chefe Awolowo, que liderava o Grupo de Ação, fez a ameaça de separação do oeste, se Lagos fosse transformada em Território Federal, “m vez de continuar como parte integrante da região ocidental. §6 desistiu de suas ameaças depois de uma áspera advertência do Secretário Colonial, Sr. Oliver Lyttleton, mais tarde Lord Chandos.
Agora, porém, a maioria dos orientais estava convencida de que a antiga Nigéria, da qual tinham participado com tanto empenho, estava irrevogavelmente morta. Isto é, o espírito estava morto. Somente a forma permanecia. Mas sem o espírito, a forma era um invólucro vazio... e que estava caindo aos pedaços.
O Coronel Ojukwu, no entanto, achava que ainda havia uma possibilidade de salvar a Nigéria. Opôs-se às exigências separatistas com toda a sua autoridade, mesmo sabendo que, no processo, poderia perder a autoridade. Podia chegar a esse ponto, mas não podia ir mais longe. Estava convencido de que, com base exclusivamente na realidade, o melhor para a Nigéria naquele momento era uma estrutura temporariamente frouxa dos vínculos regionais existentes, dando tempo a que as tensões se atenuassem. Mais tarde, numa atmosfera menos exaltada, seriam realizadas novas discussões para se determinar o curso futuro.
Mas, em Lagos, Gowon aparentemente estava sendo aconselhado por homens que não tinham estado no leste desde os massacres no norte e presumiam que os protestos orientais não passavam de um acesso passageiro, que podiam ser ignorados ou pelo menos seriam facilmente dominados, caso a situação se agravasse. Essa capacidade de subestimar a extensão dos danos causados e a reação no leste parece ter contagiado também a Alta Comissão Britânica, cuja conselho subseqüente a Whitehall foi o de não levar a crise a sério, pois era mero fogo de palha.
Apesar de tudo, o Coronel Ojukwu sentiu-se na obrigação de tomar pelo menos uma providência: a de importar algumas armas. A partida da guarnição de Enugu com quase todos os armamentos e o retorno dos soldados orientais desarmados deixara o leste praticamente indefeso. Além disso, o Coronel Ojukwu recebeu um documento, enviado por um diplomata Ibo de Roma, comprovando que um major nortista, Sule Apollo, estava comprando grandes quantidades de armas na Itália.
Enquanto isso, os nortistas propuseram o reinicio das conversações constitucionais. Tendo em vista a violência com que os soldados nortistas ainda ameaçavam os orientais nas ruas de Lagos. Ojukwu achou que o convite para ir à capital era um tanto irrealista, a menos que fossem oferecidas salvaguardas adequadas. Mas nenhuma garantia foi oferecida. Como as três outras regiões e a capital federal estavam sob o controle absoluto dos soldados nortistas, Ojukwu decidiu que não poderia pedir aos delegados orientais que arriscassem suas vidas com o retorno a Lagos. A reação de Gowon foi cancelar as conversações constitucionais, considerando-as inúteis. Ao mesmo tempo, anunciou que um comitê iria elaborar uma nova constituição, baseada numa Nigéria composta por diversos estados, devendo o total situar-se entre oito e quatorze.
Ojukwu ficou consternado, mas conhecia bastante bem o seu antigo colega para saber que o Comandante Supremo era um homem fraco e certamente caíra em outras mãos, sendo manipulado por um novo grupo de conselheiros. Não acontecera outra coisa.
Antes dos massacres do outono, alguns dos postos mais elevados do serviço civil em Lagos eram ocupados por orientais, que tinham conquistado as posições por seus próprios méritos. O Secretário Permanente — isto é, o mais graduado funcionário civil de um Ministério — é um homem poderoso, mesmo numa sociedade democrática. Muitas vezes, conhece o Ministério e as atividades do Ministério melhor até do que o próprio Ministro. Aconselhando o Ministro de uma maneira ou de outra, freqüentemente consegue influenciar a política ou até mesmo criá-la, indiretamente. Num governo militar de oficiais jovens e não muito brilhantes, felizes atrás de uma arma, mas aturdidos e desconcertados quando as balas finalmente levaram-nos ao poder e têm que enfrentar as complexidades do governo, o Secretário Permanente torna-se ainda mais influente. Quando o líder da facção militar no poder é uma nulidade, quem realmente dirige o espetáculo é o funcionário civil.
Depois das matanças, os íbos e outros orientais fugiram de Lagos, deixando os postos vagos. Não havia nortistas suficientes para preenchê-los. Além do mais, um servidor civil nortista talentoso era valioso demais no norte, onde teria maiores oportunidades que em Lagos. Os Iorubás, do oeste, sempre tiveram a tendência a cuidar apenas de seus próprios problemas. Os homens que assumiram os postos vagos quando os orientais foram embora, no outono e início do inverno de 1966, pertenciam na maior parte a tribos minoritárias. Como já foi explicado antes, tinham fortes motivos para não desejar o retorno à situação de regiões poderosas e com grande grau de autonomia. Enquanto a Nigéria permanecesse um complexo de muitos estados de regiões fracas, com o centro poderoso, e enquanto controlassem o governo central, teriam o poder nas mãos pela primeira vez na história. Era uma oportunidade que não podia ser desperdiçada.
No início do inverno de 1966, o Coronel Gowon assumira, aos olhos dos orientais, a aparência de um homem altamente suspeito, que não podia ou não queria cumprir o que prometera. Essa impressão foi posteriormente acentuada a tal ponto que hoje se constitui num dos principais obstáculos à paz na Nigéria. Não é difícil determinar as causas dessa desconfiança.
O acordo unânime dos representantes dos Governadores Militares, a 9 de agosto, fora pela repatriação de todos os soldados para as suas regiões de origem, levando armas e munições. Mas tal acordo não fora cumprido. Gowon prometera que a matança de orientais iria cessar, mas tal não acontecera. Garantira que a investigação dos massacres de maio, iniciada pelo General Ironsi, iria "continuar conforme o que estava programado". Nunca mais se ouviu falar a respeito.
No início de setembro, soldados nortistas de Ibadan, capital do oeste, atacaram Benin, no meio-oeste, seqüestrando diversos oficiais que ali estavam presos, pela participação no golpe de janeiro. Os prisioneiros nortistas foram soltos, enquanto os orientais eram assassinados. Gowon prometeu imediatamente que os responsáveis seriam punidos, mas tal promessa também caiu no esquecimento.
Finalmente, a dissolução da Comissão Constitucional Ad Hoc, a 30 de novembro, sob a alegação de que os delegados orientais não compareciam desde a suspensão original das reuniões, a 3 de outubro, também foi encarada no leste como uma prepotência, já que o motivo para o não comparecimento era o temor genuíno de violência nas mãos dos soldados nortistas em Lagos. A declaração brusca de que um comitê iria elaborar uma nova constituição, com base numa Nigéria de 10 a 14 estados, foi encarada da mesma maneira. No mesmo discurso pelo rádio a 30 de novembro, Gowon já se sentia forte o bastante para, pela primeira vez, ameaçar com o uso da força, "se as circunstâncias assim o exigirem*.
As semanas foram passando sem que houvesse qualquer oferta espontânea de ajuda do governo central para atenuar os problemas sociais causados pelo fluxo de refugiados no leste. No início de dezembro, o Coronel Ojukwu declarou a um jornalista:
— Não posso ficar esperando por Lagos indefinidamente. Por isso, vou ter que providenciar acordos em outras partes.[West África, 24 de dezembro de 1966.]
Havia uma crescente pressão popular para que os Governadores Militares Regionais se reunissem, a fim de tentar resolver os problemas mais urgentes e prementes. O Coronel Ojukwu achava também que essa reunião era indispensável. Mas, como não havia em toda a Nigéria, fora da região leste, qualquer lugar onde pudesse ir com garantias totais de segurança pessoal, acertou-se que a reunião seria realizada em Aburi, Gana, sob os auspícios do General Ankrah.
E foi nesse lugar, uma suntuosa residência campestre construída pelo ex-Presidente Nkrumah, nas colinas próximas de Acra, que o Conselho Militar Supremo da Nigéria se reuniu, a 4 e 5 de janeiro de 1967. Estavam presentes o Tenente-Coronel Gowon, os quatro Governadores Militares Regionais (Coronel Robert Adebayo, que sucedera o falecido Coronel Fajuyi e os Tenentes-Coronéis Katsina, Ojukwu e Ejoor), dois representantes da Polícia Federal, um da Marinha e outro do Território de Lagos. Mas, basicamente, as conversações importantes foram conduzidas pelos cinco coronéis.
Intelectualmente, Ojukwu estava muito acima dos outros, que aparentemente sabiam disso. Para que não houvesse a menor possibilidade de interpretações errôneas posteriores, providenciou-se o registro taquigráfico e a gravação de todas as conversações. Mais tarde, quando Gowon renegou os acordos, Ojukwu divulgou as gravações dos dias de conversações, numa coleção de seis discos.
Um estudo dessas gravações não deixa a menor dúvida de que somente um homem tinha uma noção clara e definida da única maneira pela qual se poderia preservar a Nigéria como uma entidade política. E esse homem era justamente o Governador Militar do Leste. A participação de Gowon revela que ele desejava que a Federação fosse preservada. Afora isso, porém, tinha poucas ou nenhuma idéia. Os outros três não demoraram a concordar com a lógica compulsiva dos argumentos de Ojukwu.
Sobre a questão da repatriação dos soldados, Gowon explicou insatisfatoriamente, confrontado com seu fracasso no cumprimento do acordo, que a medida só atingia os orientais que estavam no norte e os nortistas que estavam no leste. Embora os ocidentais da Conferência dos Líderes do Pensamento[1] tivessem concordado por unanimidade com a posição firme do leste sobre a repatriação também dos soldados nortistas no oeste, Gowon disse que tal providência era impossível, já que praticamente não havia soldados Iorubás. Adebayo protestou imediatamente.
Mas a principal questão era a forma da Nigéria e de seu exército, o futuro imediato. Ojukwu assim argumentou:
Enquanto persistir a situação atual, os homens da Nigéria Oriental achariam totalmente impossível dormir nos mesmos alojamentos, comer nos mesmos ranchos e lutar nas mesmas trincheiras com os homens da Nigéria Setentrional. ... Por essas razões básicas, a separação das forças armadas, a separação da população são exigências da situação atual, para evitar novos atritos, novas matanças.
Katsina concordou prontamente, assim como Adebayo e Ejoor. Sobre o seu não-reconhecimento de Gowon como Comandante Supremo, Ojukwu argumentou que ainda não era conhecido o destino exato do General Ironsi e, portanto, ninguém poderia sucedê-lo de direito. Além do mais, na ausência dele, havia pelo menos meia dúzia de oficiais superiores a Gowon e que o mais antigo deveria assumir o governo provisoriamente. Em terceiro, alegou Ojukwu, o leste não participara da escolha de Gowon. Foi nessa altura que Gowon explicou o que acontecera ao General Ironsi, dizendo que julgara "conveniente" não anunciar antes a morte do antigo líder, embora certamente já soubesse dos detalhes, desde que o Tenente Walbe se apresentara a ele, na noite de 29 de julho do ano anterior.
A questão foi finalmente resolvida com a decisão de submeter o Exército ao Conselho Militar Supremo, cujo presidente seria também o Comandante Supremo das Forças Armadas e o Chefe do Governo Militar Federal.
No lado constitucional, ficou acertado que a Conferência Ad Hoc voltaria a se reunir assim que fosse exeqüível, recomeçando as conversações do ponto em que tinham sido interrompidas.
Sobre o grande problema do leste no momento, os refugiados, ficou acertado que os Secretários Permanentes de Finanças iriam se reunir dentro de duas semanas, a fim de apresentar suas recomendações a respeito da maneira de ajudar a recuperação dos que haviam perdido tudo. Os servidores civis e empregados das empresas públicas (inclusive os contratados) expulsos do norte receberiam os salários integrais até o final do ano financeiro, a 31 de março, a menos que fossem antes empregados em outras atividades. Os Comissários de Polícia Regionais deveriam se reunir para discutir o problema da recuperação dos bens deixados para trás pelos refugiados. Foram essas as decisões que Ojukwu levou de volta para seu povo. Eram elementos vitais para acalmar a população. Afinal, a situação era grave. Para dar um exemplo, só de ferroviários havia 12.000 entre os refugiados chegados ao leste.
Ficou ainda acertado que novas reuniões deveriam ser realizadas na Nigéria, em locais a serem escolhidos de comum acordo. Além disso, os meios de informação do governo central deveriam se abster de divulgar quaisquer documentos ou declarações inflamadas ou embaraçosas.
A reunião se encerrou com brindes de champanhe e num clima de boa vontade e camaradagem. De volta ao leste, Ojukwu deu uma entrevista coletiva para assegurar aos orientais (muitos dos quais eram a favor da secessão imediata e contra quaisquer conversações) que a reunião de Aburi valera a pena. Contanto que os acordos fossem cumpridos, declarou Ojukwu, seria possível aliviar consideravelmente a tensão e banir o medo do pais.
Aburi foi a última chance da Nigéria. Já se comentou desde então que houve alguma "injustiça* no fato de Ojukwu ser mais hábil e capaz que os outros quatro coronéis, como se ele tivesse tirado disso uma vantagem indevida. Já se disse também, um argumento apresentado especialmente por ingleses, que Ojukwu não se comportou como um verdadeiro gentleman porque foi para Aburi com uma noção nítida do que desejava, com uma argumentação convincente preparada, enquanto os outros seguiram na pressuposição de que a reunião era apenas um encontro amistoso de colegas oficiais.
É um tanto capcioso alegar que os outros quatro coronéis imaginavam que a primeira reunião do Conselho Militar Supremo depois do holocausto do verão seria apenas uma conversa amigável. Não podia deixar de ser óbvio para todos que Aburi era uma ocasião histórica. Os outros coronéis poderiam ter comparecido devidamente preparados, se assim o desejassem... e o Coronel Ojukwu assim • o desejava. Afinal, também contavam com conselheiros e servidores civis para assessorá-los.
Alguns dias depois do retorno de Gowon a Lagos, os acordos de Aburi começaram a ser torpedeados. Os servidores civis das tribos minoritárias, anteriormente mencionados, compreenderam que seu chefe estouvado fora muito além do que desejavam. A separação das forças armadas e da população, para o período de "esfriamento", daria uma excessiva autonomia às regiões, assim enfraquecendo a autoridade deles. Os Secretários Permanentes começaram imediatamente a pressionar Gowon, a fim de fazê-lo voltar atrás.
Dez dias depois, o Governo Federal distribuiu um opúsculo intitulado Nigéria 1966, que apresentava a versão federal — ou seja, a nortista — de tudo o que acontecera desde o golpe de janeiro. Até hoje, esse trabalho é um admirável exercício de distorção. Na ocasião, causou a maior revolta no leste. Quando o Coronel Ojukwu protestou pelo telefone, lembrando que ficara combinado que não mais seriam divulgadas versões oficiais, Gowon explicou, depois de alguma confusão, que fora apenas uma ação imprevista, não autorizada oficialmente. Posteriormente, Ojukwu soube que o opúsculo fora lançado simultaneamente em Londres, Nova York e diversas outras capitais, com o estardalhaço dos grandes lançamentos editoriais, inclusive coquetéis nas Embaixadas. Ao ser novamente censurado pelo telefone, Gowon ensaiou algumas desculpas, mas acabou perdendo controle e bateu com o telefone bruscamente. (Essas conversas foram gravadas em Enugu.) O Coronel Ojukwu estava dominado por um pressentimento funesta ao desligar. É que sabia que sua própria posição no leste não lhe permitiria transigir com os acordos de Aburi.
A 26 de janeiro, Gowon deu uma entrevista coletiva em Lagos, supostamente para revelar os acordos de Aburi. Suas declarações nessa entrevista parecem estar baseadas não nas atas e nos acordos finais de Aburi, mas sim nas críticas dos Secretários Permanentes a esses documentos. Lendo-se ao mesmo tempo, comparativamente, as declarações de Gowon na entrevista e as atas de Aburi, qualquer um fica em dúvida sobre a presença do coronel nortista ao encontro em Gana.
Para começar, ele discordou da sujeição do Exército ao Comando Militar Supremo, alegando que isso tiraria o controle do Exército de suas mãos, entregando-o ao organismo coletivo que "era o Conselho. Acrescentou que os Comandos Militares de Áreas (as áreas indicadas eram justamente as regiões existentes) continuariam sob o controle do Alto Comando, "que está diretamente subordinado a mim como o Comandante Supremo das Forças Armadas". [Nigerian Crisis, (Crise Nigeriana), Vol. 6, págs. 11-15.] Na reunião em Aburi, não ficara absolutamente acertado o esquema declarado por Gowon.
Declarou que, no encontro dos Secretários de Finanças, "não seriam discutidos os princípios de distribuição de renda", embora isso fosse vital, especialmente sob a forma de alívio fiscal, para permitir ao leste enfrentar o problema dos 1.800.000 refugiados.
Sobre pagamento de salários, Gowon disse:
— A decisão de continuar a pagar salários até o final de março não leva em consideração fatores econômicos... além do mais, não há qualquer sentido em incluir os contratados entre aqueles que devem continuar a ser pagos. Assim sendo, a decisão deve ser reconsiderada.
Advertiu que as empresas federais teriam "muitas dificuldades" para continuar a pagar os empregados que haviam voltado para o leste, expulsos pela violência.
Sobre o problema constitucional, Gowon largou outra bomba. Os Secretários Permanentes haviam-no aconselhado a "se ater às recomendações e conselho anteriores, com a suspensão indefinida dos trabalhos da Conferência Constitucional Ad Hoc e a execução do programa político anunciado à nação a 30 de novembro (isto é, uma Nigéria com 10 a 14 estados) pelo Comandante Supremo".
Ao término da entrevista coletiva, restava bem pouca coisa de Aburi. Gowon podia perfeitamente discordar do que assinara. Poderia haver muitas razões para reconsiderar Aburi. Mas não se pode negar que tanto Gowon como os outros coronéis assinaram voluntariamente os acordos, depois de dois dias de conversações, sem qualquer coação. Ao renegar dessa forma muitos dos parágrafos mais importantes, especialmente aqueles que o leste mais desejava, Gowon estava na verdade desfechando um rude golpe na Nigéria... e um golpe do qual o país jamais iria se recuperar.
Em Enugu, o Coronel Ojukwu ficou aturdido ao ler a transcrição da entrevista coletiva. Muitos autores já disseram desde então que "o Coronel Ojukwu fez isso" ou "o Coronel Ojukwu recusou-se a fazer aquilo". Mas, aparentemente, ninguém faz a menor tentativa de compreender as pressões a que ele estava submetido. Desde os massacres do outono anterior que o clamor público para a separação da Nigéria estava se tornando cada vez maior. Mais e mais segmentos da população iam se juntando ao movimento separatista. O problema dos refugiados, rapidamente esquecido ou simplesmente ignorado em Lagos, ainda era uma realidade supurada. A questão do pagamento dos salários para milhares de servidores civis e empregados das empresas federais equivalia a determinar se milhares de famílias teriam ou não como comer. Ojukwu opôs-se e combateu o clamor separatista com todo empenho e até o máximo que lhe foi possível.
"Ficamos com Aburi" tornou-se o slogan do leste. O Coronel Ojukwu recusou-se a comparecer a novas reuniões do Conselho Militar Supremo, até que os acordos de Aburi fossem cumpridos. Sabia que seu povo não aceitaria mais nenhuma concessão. Além do mais, o novo encontro deveria se realizar em Benin, uma cidade praticamente dominada pelos soldados nortistas. Falando pelo rádio, ao final de fevereiro, ele declarou:
— Se os acordos de Aburi não forem plenamente cumpridos até 31 de março, não terei alternativa que não adotar as medidas que se tornem necessárias para pô-los em prática nesta região.
E quando o dia 31 de março chegou todos esperavam que fosse anunciada a separação da Nigéria Oriental. Os jornalistas que seguiram para Enugu, a fim de comparecer à entrevista coletiva de Ojukwu, já haviam preparado suas manchetes. Em vez disso, ainda se atendo à última chance de manter a Nigéria unida, o Coronel Ojukwu anunciou que estava emitindo um Édito de Renda, confiscando todos os recursos federais no leste para o pagamento do programa de recuperação, nos termos dos acordos de Aburi. A medida não afetou os rendimentos do petróleo, já que estes eram pagos em Lagos. Os repórteres ficaram desconcertados. Estavam esperando fogo e ferro, mas foram confrontados apenas com medidas de ordem fiscal. Ojukwu declarou que o leste só iria se separar da Nigéria se fosse atacado ou houvesse um bloqueio.
O Governo Federal reagiu com o Decreto Oito, que aparentemente confirmava todos os pontos principais dos acordos constitucionais de Aburi, se não os acordos fiscais. O decreto, assim como Aburi, conferia todos os poderes legislativos e executivos ao Conselho Militar Supremo. As decisões sobre questões vitais só poderiam ser tomadas com a concordância de todos os Governadores Militares. Dentro de suas próprias regiões, os Governadores teriam virtual autonomia.
Parecia a providência acertada e foi aclamada como tal, embora a mesma coisa já tivesse sido combinada em Aburi quatro meses antes. O problema eram as cláusulas constantes do decreto. Estavam formuladas tão habilmente que pareciam inteiramente inofensivas à primeira vista. Mas um exame mais atento mostrava que essas cláusulas adicionais praticamente anulavam os parágrafos principais.
Uma dessas cláusulas era a de que os Governadores Regionais não poderiam exercer seus poderes de maneira "a estorvar ou prejudicar a autoridade da Federação ou pôr em risco a atuação do Governo Federal". Embora pareça uma cláusula inofensiva, deixava claramente na competência do Governo Federal, isto é, Gowon, decidir o que iria "estorvar ou prejudicar a autoridade*. Outra cláusula possibilitava, ao Governo Federal assumir a autoridade sobre um governo regional que estivesse ameaçando a sua continuação. Novamente, o critério para determinar a ameaça era da competência exclusiva de Lagos.
Para os orientais, a cláusula mais perigosa era a que permitia a declaração de estado de emergência em qualquer região, com a concordância de apenas três dos Governadores Militares. Como a declaração de estado de emergência geralmente implica o envio de tropas e como as outras regiões eram controladas pelos nortistas, o Coronel Ojukwu considerou que essa cláusula era especificamente anti-oriental. Assim, rejeitou o decreto.
A crescente impopularidade do regime de Gowon estava começando a se manifestar em outros pontos do sul. No oeste, havia um ressentimento cada vez mais generalizado pela não-repatriação dos soldados nortistas, uma medida que ficara acertada em Aburi.
O Chefe Awolowo liderou a revolta. Tradicionalmente, seus partidários encontravam-se entre os setores proletários e radicais do oeste. Eram justamente esses setores que mais se ressentiam da presença dos soldados nortistas. Numa reunião dos Líderes do Pensamento do oeste, em Ibadan, ao final de abril, Awolowo renunciou à sua função de delegado ocidental à Conferência Constitucional Ad Hoc, que supostamente seria reiniciada em breve, declarando em sua carta: "Estou convencido de que, embora algumas exigências do leste sejam excessivas, no contexto da unidade nigeriana a maioria não apenas é procedente, mas também visa a promover uma associação funcional e saudável entre as diversas unidades nacionais da Nigéria." [Schwarz, op. cit., pág. 227.]
O Chefe Awolowo acabara de voltar de uma visita ao Coronel Ojukwu, em Enugu. Pudera assim testemunhar pessoalmente (o que outros escrupulosamente se abstiveram de fazer) a profundidade dos sentimentos no leste. Segundo o Coronel Ojukwu” Awolowo perguntou-lhe se o leste iria se separar da Nigéria. A resposta foi de que isso não aconteceria, até e a menos que não houvesse absolutamente qualquer alternativa.
Depois de verificar pessoalmente a situação, Awolowo não pôde deixar de compadecer-se com os sofrimentos do povo oriental. Pediu que, se o leste tomasse a decisão de separar-se, lhe fosse dado um aviso com 24 horas de antecedência, a fim de que pudesse tomar a mesma providência no oeste. Ojukwu prometeu-lhe. Na ocasião devida, Awolowo foi informado de antemão. Mas, a esta altura, Awolowo já se desviara para outras atrações e não fez mais o que tencionava anteriormente. Do ponto de vista dos próprios Iorubás, foi uma pena que ele não o tivesse feito. Se Awolowo se decidisse por empunhar as armas, o Governo Federal não teria condições de enfrentar duas dissidências simultâneas. Assim, seria obrigado a cumprir os acordos de Aburi integralmente.
A Nigéria provavelmente estaria hoje em paz, não como um estado unitário de doze províncias, mas como uma Confederação de estados semi-autônomos, vivendo em harmonia. Os servidores civis do governo teriam perdido a maior parte do seu poder, mas milhares de pessoas ainda estariam vivas hoje, inclusive incontáveis Iorubás, já que o oeste continua ocupado por soldados nortistas, enquanto Iorubás recrutados às pressas são usados como bucha de canhão contra as metralhadoras biafrenses. Não se sabe exatamente o total das baixas Iorubás na atual guerra, pois o Exército Federal se recusa a informar. Mas o serviço secreto militar biafrense está convencido de que, entre todos os grupos étnicos do Exército Federal, os Iorubás têm sido os mais atingidos.
Em Ibadan, ao final de abril de 1967, Awolowo acrescentou, em seu pedido de renúncia, que se o leste por acaso se separasse da Nigéria, o oeste deveria se sentir livre para adotar a mesma providência, se assim julgasse conveniente. O Coronel Ejoor, do meio-oeste, uma região em que havia mais de um milhão de Ibos, não tardou a fazer uma declaração semelhante. Mas como desejava evitar qualquer envolvimento numa guerra futura, pediu que a sua região fosse declarada zona desmilitarizada.
Nessa ocasião, veio outro raio do norte. Os emires nortistas, que há décadas pregavam abertamente o seu próprio domínio sobre toda a Nigéria, lançaram subitamente uma proclamação para que "o norte se comprometa irrevogavelmente com a criação de novos estados, quer a providência seja ou não adotada em outras regiões, como base para a estabilidade não apenas em nossa região, mas também em toda a Federação; e o norte deve também insistir junto ao governo federal para que ponha em movimento as engrenagens necessárias à criação desses estados". [West África, 13 de maio de 1967]
Como a volte-face da Conferência Ad Hoc, a decisão era totalmente inesperada. Uma das conclusões a que se pode chegar é de que as tribos minoritárias na infantaria haviam novamente se manifestado. A outra é a de que os emires acharam que poderiam utilizar o recurso da criação de novos estados como um meio de romper a crescente solidariedade do sul, enquanto eles próprios permaneciam unidos^por trás da fachada e através das fronteiras estaduais.
A decisão consolidou definitivamente o regime de Gowon e rompeu a solidariedade das três regiões sulistas. Awolowo, antigo defensor da criação de novos estados, como um meio de romper o poderio do norte, aproveitou imediatamente a oportunidade de mudar de lado. A mudança de disposição coincidiu com sua indicação para Comissário das Finanças e vice-presidente do Conselho Supremo, num governo agora reformulado, com a participação de militares e civis. O Chefe Enahoro, líder de uma tribo minoritária do meio-oeste, e Joseph Tarka, o líder dos Tivs, também foram designados para o ministério. Ejoor perdeu toda a sua força anterior.
Contando novamente com um amplo apoio, Gowon sentiu-se forte o bastante para uma confrontação com o leste. Ao que tudo indica, Gowon estava nessa ocasião convencido de que, se houvesse alguma luta, iria terminar rapidamente e a seu favor. É bem possível que, se ele tivesse previsto a guerra prolongada e terrível que iria se seguir, talvez tivesse se contido e não adotasse a posição irredutível que assumiu. Mas havia vozes nos bastidores persuadindo-o de que, no caso de uma confrontação militar, poderia se impor uma solução militar. Isso deve ter atraído a sua mente simplista de militar.
Nó início de maio, Gowon impôs um bloqueio parcial ao leste, abrangendo os serviços postais, telegráficos, telefônicos, de telex e outras formas de comunicações que eram centralizadas em Lagos. Com isso, o leste ficou efetivamente isolado do mundo exterior, ainda mais porque os vôos da empresa aérea nigeriana também foram suspensos.
Em Enugu, o Coronel Ojukwu declarou à Reuters:
— Acho que estamos agora rolando pela encosta abaixo. Não será fácil deter o impulso cada vez maior. Estamos perto, bem perto mesmo, da crise final.
Houve ainda uma última tentativa de manter a paz. Um grupo que se intitulou de Comitê Nacional de Conciliação, liderado pelo novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Sir Adetokunboh Ademola, um Iorubá, e integrado inclusive pelo Chefe Awolowo, visitou o Coronel Ojukwu a 7 de maio. Escutaram seus pontos de vista, aceitaram suas exigências e recomendaram ao governo federal que as atendesse. Tais exigências limitavam-se praticamente ao cumprimento do acordo de 9 de agosto, que previa a repatriação de todos os soldados para suas regiões de origem, e o cancelamento das sanções econômicas.
A 20 de maio, Gowon aceitou publicamente as recomendações. Mas era apenas outra esperança ilusória. Ele anunciou que a proibição de vôos ao leste estava suspensa e que as outras sanções também estavam canceladas. Mas o diretor da empresa aérea nigeriana admitiu em particular que não recebera qualquer ordem para recomeçar os vôos. O Coronel Katsina foi de avião de Kaduna para ibadan, a fim de comunicar às tropas nortistas que seriam removidas.. . mas tão-somente até Ilorin, a pouca distância da fronteira entre o norte e o oeste, na estrada principal para Lagos. Levá-las de volta não seria problema.
O clamor no leste pela separação imediata da Nigéria tornou-se tão forte que nem mesmo o Coronel Ojukwu podia resistir. A 26 de maio, os 335 membros da Assembléia Consultiva de Chefes e Anciãos deu-lhe autorização, por unanimidade e depois de uma tumultuada sessão, para decretar a separação do leste da falecida Federação da Nigéria, como todos os orientais a esta altura já a consideravam. Tal providência seria adotada "no primeiro momento oportuno". A região leste iria se tornar "um estado livre, soberano e independente, com o nome e título de República de Biafra".
Um dos erros capitais do governo federal foi a ameaça de usar a força. Uma interpretação caridosa é a de que os homens em Lagos não estavam realmente a par da profundidade dos sentimentos no leste. Sabendo que o Exército Federal era integrado basicamente pelos mesmos nortistas que oito meses antes haviam massacrado seus irmãos, os orientais concluíram que a ameaça parecia (e ainda parece hoje) ser a de mandar as tropas completarem o trabalho de extermínio que ficara pela metade no ano anterior.
A autorização da Assembleia Consultiva do leste não implicava necessariamente a secessão, mas Gowon tratou de pôr seus planos em execução no dia seguinte. Declarou um estado de emergência e emitiu um decreto dividindo a Nigéria em 12 novos estados, abolindo ao mesmo tempo as regiões existentes. Sua atuação não poderia ter sido mais provocante. Antes de mais nada, não houvera qualquer consulta prévia, o que por si só contrariava os termos da Constituição. Era uma quebra flagrante de todas as promessas anteriores, pelas quais cada região seria chamada a se manifestar sobre qualquer forma futura de associação. Mais importante do que isso era a divisão do leste em três pequenos estados, cada um se tornando impotente isoladamente. Outro problema grave era o deslocamento de Port Harcourt do Estado Ibo, para se tornar a capital do Estado dos Rios. Tal atitude do governo federal tem sido descrita como "um desafio aberto à secessão". No mesmo discurso pelo rádio em que anunciou tais providências, Gowon anunciou a reimposição do bloqueio ao leste, a revogação do Decreto Oito e a concessão de plenos poderes a si mesmo "pelo curto período necessário para executar as medidas que se tornaram urgentemente indispensáveis".
Na madrugada de 30 de maio, diplomatas e jornalistas foram convocados ao Palácio Estadual, que em breve iria se chamar Palácio de Biafra, para ouvirem o Coronel Ojukwu ler a Declaração de Independência. O texto era o seguinte:
Meus conterrâneos, homens e mulheres da Nigéria Oriental, é a vocês que me dirijo:
Consciente da suprema autoridade de Deus Todo-Poderoso sobre toda a Humanidade; do dever que têm para com vocês mesmos e para com a posteridade;
Consciente de que não mais podem ser protegidos, em suas vidas e propriedades, por qualquer governo baseado fora da Nigéria Oriental;
Consciente de que nasceram livres e possuem certos direito” inalienáveis que devem preservar mais e melhor do que quaisquer outros;
Não querendo que sejamos associados subjugados em qualquer associação de natureza política ou econômica;
Rejeitando a autoridade de qualquer pessoa ou pessoas que não o Governo Militar da Nigéria Oriental, a única entidade em condições de fazer-lhes qualquer imposição, de qualquer natureza;
Determinado a dissolver todos os. vínculos políticos ou de qualquer outra natureza com a antiga República Federal da Nigéria;
Disposto a aceitar qualquer associação, tratado ou aliança com qualquer estado soberano da antiga República Federal da Nigéria e outros, em termos e condições que melhor sirvam ao bem comum;
Reconhecendo a confiança que em mim depositaram; Nos termos da autorização que me foi conferida, proclamo aqui e agora, por sua conta e em seu nome, que a Nigéria Oriental passa a ser uma república soberana independente;
NESTE MOMENTO, EU, TENENTE-CORONEL CHUKWUEMEKA ODUMEGWU OJUKWU, GOVERNADOR MILITAR DA NIGÉRIA ORIENTAL, EM VIRTUDE DO PODER QUE ME FOI CONFERIDO E EM CONFORMIDADE COM OS PRINCÍPIOS ACIMA EXPOSTOS, PROCLAMO SOLENEMENTE QUE O TERRITÓRIO E REGIÃO CONHECIDOS E CHAMADOS DE NIGÉRIA ORIENTAL, ASSIM COMO SUA PRATELEIRA CONTINENTAL E MAR TERRITORIAL, SERÃO DAQUI POR DIANTE UM ESTADO SOBERANO INDEPENDENTE, COM O NOME E TÍTULO DE REPÚBLICA DE BIAFRA.
Com essas palavras, a região leste da Nigéria autoproclamou-se um estado independente e a palavra Biafra entrou para o vocabulário político contemporâneo... apenas temporariamente, na opinião da maioria dos observadores políticos na ocasião.
Três sentimentos dominavam o povo de Biafra naquele momento. Em primeiro lugar, havia um sentimento não de rebelião, mas de rejeição, que perdura até hoje. Os biafrenses consideram que não deixaram a Nigéria, mas que foram expulsos. Estão absolutamente convencidos de que o impulso para a secessão partiu do lado nigeriano. Para a maioria, tal desfecho foi a destruição das ilusões da vida inteira, de todo o empenho em prol da união da Nigéria. Ao final, descobriram que eles é que não eram desejados na Nigéria. A tentativa subseqüente da Nigéria de fazê-los retomar à federação sempre pareceu-lhes ilógica... entre outras coisas. Estão convencidos de que não há lugar para eles na Nigéria, como cidadãos em pé de igualdade com os demais nigerianos. Estão convencidos de que estes não os querem como um povo, mas apenas por suas terras, pelo petróleo que contêm e pelas riquezas que podem produzir. Estão convencidos de que foram os nigerianos e não eles que romperam o vínculo pelo qual os, cidadãos têm um dever de lealdade para com o governo, que em troca oferece a garantia de proteção da vida, liberdade e propriedade. E continuam convencidos de que o único papel que teriam a desempenhar numa Nigéria unida seria primeiro o de vítimas e depois o de trabalhadores-escravos. Ironicamente, apesar dos protestos em contrário do General Gowon (que se promovera a Major-General), o comportamento do Exército Nigeriano, diversas declarações de altas autoridades de Lagos e a propaganda de Kaduna têm confirmado esse temor, ao invés de dissipá-lo.
Em segundo lugar, os biafrenses sentiam e ainda sentem uma desconfiança total por qualquer coisa que o governo de Lagos possa dizer ou prometer. Novamente os precedentes reforçam a convicção, pois o General Gowon tem demonstrado repetidamente, ao longo dos últimos 18 meses, que não tem condições de impor sua vontade aos comandantes do Exército ou da Força Aérea, nem estes às tropas em combate. Em conseqüência, todas as propostas de paz do governo federal, baseadas na promessa de "larguem as armas e seremos bonzinhos com vocês", têm sido recebidas com total descrença. Quanto às futuras garantias constitucionais de segurança, recentemente apresentadas por Gowon com o apoio da Inglaterra, os biafrenses acham que tais garantias já existiam antes na Constituição da Nigéria, mas não impediram o que aconteceu em 1966. Tal desconfiança torna extremamente difícil a aceitação de qualquer fórmula de paz proposta pelo atual regime da Nigéria.
Em terceiro lugar, os biafrenses ficaram absolutamente convencidos de que a entrada do Exército Nigeriano em seu território significaria a execução de outro pogrom, de proporções tão grandes que se constituiria num verdadeiro genocídio. Achavam que, nos planos dos dirigentes nortistas (e, por conseguinte, do governo de Lagos), estava prevista a extinção dos biafrenses de uma vez por todas. O norte, ávido pelos royalties do petróleo da costa, iria cumprir a promessa de Balewa, retomando a "marcha para o mar interrompido" por cima de seus cadáveres. No mundo exterior, especialmente nos círculos do governo britânico, esse temor foi desdenhosamente classificado de "propaganda de Ojukwu". Os meses subseqüentes, ao invés de eliminarem esse temor, contribuíram para consolidá-lo ainda mais, sem que o Coronel Ojukwu precisasse dizer qualquer coisa.
Diversas explicações foram imediatamente formuladas para explicar o rompimento de Biafra com a Nigéria, sendo apresentadas ao mundo por Lagos, Londres e pelos correspondentes do que se poderia chamar de "imprensa do establishment". Uma dessas explicações foi a de que Biafra não passava da "revolta de Ojukwu", a tentativa de um único homem, apoiada por uma pequena facção de militares e servidores civis, de criar um estado rebelde, motivado pela ambição e ganância pessoal. Os fatos não demoraram a destruir tal explicação, embora ainda persista em alguns setores. É que os líderes biafrenses compreenderam a magnitude do que se estava fazendo e dos riscos envolvidos. A maioria renunciou a posições de poder, voltando para sua terra a fim de viver em condições extremamente árduas e penosas, a serviço de Biafra. Era evidente para todos eles que o caminho para o luxo e o bem-estar, para o poder e o prestígio, estava na cooperação com o poder constituído, isto é, o governo de Lagos. Se o Coronel Ojukwu tivesse decidido cooperar com Gowon, contra a vontade do povo oriental, poderia manter sua vasta fortuna pessoal, ter desfrutado uma elevada posição na Nigéria e provavelmente manter seu cargo de Governador Militar do Leste, não como um líder popular, mas como um traidor cercado por soldados do Exército Federal. Se o poder fosse a sua motivação principal, Ojukwu poderia ter procurado ganhar tempo, conspirando com outros líderes do sul junto aos quais tinha considerável prestígio e influência, até criar um exército sulista, a fim de desfechar o golpe posteriormente com plenas condições de sucesso. Com sua argúcia, seria provavelmente um líder golpista mais bem-sucedido que os responsáveis pelos dois golpes anteriores.
Não se pode esquecer também que a unanimidade do apoio a Biafra por parte dos homens eminentes de origem oriental indicava claramente que eles acreditavam na justiça da causa. Centenas de orientais que haviam galgado posições de destaque em diversas profissões, na Nigéria e no exterior, ofereceram seus serviços. Não teriam feito isso se Ojukwu fosse de fato um coronel ambicioso, disposto a arriscar a ruína de seu povo para atingir seus próprios fins. Mais tarde, quando Gowon escolheu governadores para os três estados que criara na antiga região leste, não conseguiu encontrar um único homem de renome que aceitasse a função. Assim, para o Estado Centro-Leste, teve que se contentar com um obscuro professor de Estudos Sociais da Universidade de Ibadan, Sr. Ukpabi Asika, que foi repudiado por toda a sua família (a suprema vergonha na África). Para o Estado dos Rios, Gowon teve que promover um oficial de Marinha de 25 anos, Alfred Spiff, ao posto de capitão-de-corveta. Ele também foi repudiado pelos Spiffs de Port Harcourt. Para o Estado Sudeste, Gowon escolheu um oficial subalterno inteiramente desconhecido, um certo Sr. Essuene, de Lagos, que há muitos anos não ia à sua terra natal.
Outro fator a se levar em consideração é o desempenho do povo biafrense na defesa de sua terra. Até mesmo os adversários mais renitentes de Biafra reconhecem que a resistência obstinada do povo biafrense tem sido admirável, o que parece indicar que todos acreditam no que estão fazendo. Um único oficial ou um grupo de oficiais, levando um povo relutante e um tanto indiferente à rebelião, jamais conseguiria manter o controle, na medida em que os sofrimentos desse mesmo povo ultrapassaram todos os níveis conhecidos na África. Tal potentado há muito que já teria visto seu reinado ser destruído pelo Exército Federal, com os defensores relutantes largando suas armas e fugindo. É bem provável até que tal homem já tivesse sido vítima de um golpe, baseado no ressentimento popular contra as dificuldades a que levara seu povo. Isso não aconteceu. Os biafrenses têm lutado com unhas e dentes por cada palmo de sua terra. Não ocorreu um só distúrbio interno contra o governo, algo que teria sido impossível impedir se o povo estivesse realmente descontente. Como os ingleses descobriram ao final da década de 1920, os biafrenses jamais deixam de manifestar seus sentimentos quando estão descontentes.
Outra alegação para se explicar a obstinação biafrense tem sido a de que o povo está dominado pela "propaganda de Ojukwu". Ainda se acredita nessa alegação em muitos setores. É perfeitamente possível, através de uma manipulação hábil e astuciosa dos meios de comunicação, influenciar e dominar as chamadas massas populares (pelo menos por algum tempo). Mas é difícil imaginar que essa propaganda tenha enganado também os homens cultos e eminentes que ofereceram voluntariamente seus serviços a Biafra, em condições muito inferiores às que haviam desfrutado anteriormente. Entre esses homens, podemos citar o antigo Presidente da Nigéria, Dr. Nnamdi Azikiwe, o antigo Primeiro-Ministro Dr. Michael Okpara, o antigo governador civil do leste Dr. Francis Ibiam, o antigo juiz do Tribunal Mundial Sir Louis Mbanero, o antigo Vice-Reitor da Universidade de Ibadan Professor Kenneth Dike e homens como o Professor Eni Njoku, provavelmente um dos melhores cérebros acadêmicos da África. Acrescente-se incontáveis outros professores, advogados, médicos, administradores, homens de negócios, engenheiros e servidores civis. O General Gowon teria adorado exibir para o mundo um único desertor de Biafra entre os homens acima relacionados.
Poucos meses depois da declaração de independência, forcas consideráveis já se tinham reunido para esmagar o novo país. O General Gowon acionou o Exército Federal, com o slogan de que "para manter a Nigéria unida, esse é um trabalho que tem de ser feito". Não demorou muito para que estivessem circulando frases como "Nigéria unida", "preservar a integridade territorial da Nigéria" e "esmagar a revolta a qualquer preço". Mas, aparentemente, não havia qualquer pensamento construtivo por trás desses slogans, pois ninguém sequer cogitava procurar uma solução permanente para propiciar a paz. Foram feitas insinuações de que poderia ocorrer uma balcanização imediata da África. Ninguém se lembrou do rompimento da República da Irlanda com a Grã-Bretanha, ocorrido em meio a crises extremas, mas sem que isso provocasse uma balcanização da Europa. A "secessão" era categoricamente condenada, embora ninguém se desse ao trabalho de mencionar que a divisão era há anos uma fórmula política aceitável, quando ficava comprovado que duas populações distintas eram incompatíveis.
A Nigéria recebeu prontamente o apoio de diversos países, inclusive da Inglaterra "socialista", da Espanha fascista e da Rússia comunista. Esses três países ainda proporcionam os meios militares para a execução da maior carnificina da história da África.
Mas, a 30 de maio de 1967, tudo isso ainda era parte de um futuro desconhecido. Vendo que a guerra era iminente, os dois lados iniciaram preparativos febris, os biafrenses para se defenderem, os nigerianos para terminarem rapidamente o que consideravam uma tarefa fácil, mera brincadeira de criança. As primeiras balas foram disparadas sobre a fronteira norte de Biafra na madrugada de 6 de julho.
[1] Os Líderes do Pensamento haviam sido convocados pela primeira vez sob o regime de Ironsi, a fim de aconselharem cada Governador Militar sobre os assuntos e sentimentos locais. Incluíam os homens mais destacados das principais profissões liberais, da indústria, comércio e administração, assim como os chefes e os anciãos. Mas eram escolhidos pelos Governadores. Por isso, Ojukwu preferia ouvir os membros da Assembléia Consultiva, que tinham um mandato popular. Não acontecia o mesmo nas outras três regiões.
II. A luta pela sobrevivência
8. O Caráter de Biafra
Biafra não possui uma área grande. Seu território ocupa cerra de 75 mil quilômetros quadrados. A população, no entanto, é a mais densa da África, com cerca de 270 habitantes por quilómetro quadrado. Sob todos os aspectos, é o país mais desenvolvido do continente, com mais indústrias, renda per capita mais elevada, maior poder aquisitivo, maior densidade de estradas, escolas e hospitais.
Pelo seu potencial, já foi descrita como o Japão, Israel, Manchester ou Kuwait do continente africano. Cada uma dessas classificações se refere a um aspecto determinado de Biafra que surpreende o visitante, sempre pensando que toda a África era uniformemente atrasada. Anos de sub-exploração, enquanto fábricas, investimentos e serviços públicos eram concentrados em outras regiões da Nigéria, muitas vezes sob a direção dos orientais, impediram que Biafra alcançasse o seu pleno desenvolvimento. Até mesmo as grandes companhias petrolíferas não extraíram o petróleo em plena capacidade, preferindo manter os poços com uma pequena produção, como uma reserva útil enquanto os campos petrolíferos árabes eram exauridos.
A comparação com o Japão normalmente se refere à população. Raramente, entre os africanos, encontra-se um povo com a disposição para o trabalho incessante e esforçado. Nas fábricas, a produtividade dos operários biafrenses é maior que em qualquer outro país africano. Nas fazendas, os camponeses conseguem uma produção maior por acre. É possível que as necessidades naturais tenham gerado essas características. Mas também não resta a menor dúvida de que se baseiam nas antigas tradições do povo. Em Biafra, o sucesso pessoal sempre foi considerado meritório; um homem bem-sucedido é admirado e respeitado. Não há cargo ou título hereditário. Quando um homem morre, seu sucesso na vida, honrarias, prestígio e autoridade são enterrados com ele. Os filhos devem subir na vida por si mesmos, numa base de competição em pé de igualdade com os outros jovens da sociedade.
Os biafrenses são ávidos por educação, especialmente pelos cursos das profissões técnicas. Não é raro encontrar-se a situação seguinte: um carpinteiro de aldeia tem cinco filhos; trabalha de sol a sol; a mãe tem uma barraca no mercado; os quatro filhos mais moços vendem fósforos, jornais, pimentas vermelhas, todos se empenham para que o filho mais velho possa fazer um curso superior. Depois que se forma e começa a trabalhar, o filho mais velho tem a obrigação de ajudar o segundo filho a também fazer um curso superior. Depois, os dois ajudam a pagar a educação do terceiro filho e assim por diante. O carpinteiro pode morrer carpinteiro, mas deixará cinco filhos com curso superior. Para a maioria dos biafrenses, nenhum sacrifício é demais para se proporcionar educação aos filhos.
Os camponeses de uma aldeia reúnem seus esforços para construir uma estrutura comunitária. Jamais é um centro de recreação, uma piscina ou um estádio, mas sim uma escola. Uma aldeia que tem uma escola possui grande prestígio.
Porque estão convencidos de que "nada neste mundo é permanente" (uma divisa Ibo), os biafrenses são extremamente flexíveis e estão sempre dispostos a aprender novas coisas. Enquanto outros povos, especialmente as comunidades muçulmanas da África, contentam-se em aceitar a pobreza e o atraso como a vontade de Alá, os biafrenses encaram as duas coisas como um desafio aos talentos que Deus lhes conferiu. A diferença de atitude é fundamental, porque explica a diferença entre uma sociedade na qual a influência ocidental jamais irá realmente se enraizar, e onde o capital investido raramente produzirá frutos, e uma sociedade fadada a prosperar.
Ironicamente, foi o trabalho árduo e o sucesso que contribuíram para tornar os biafrenses tão impopulares na Nigéria, especialmente no norte. Outras características são mencionadas para se explicar a antipatia que os biafrenses despertam. São presunçosos, arrogantes e agressivos, dizem os detratores; são ambiciosos e ativos, dizem os defensores. São gananciosos e mercenários, argumentam alguns; são prudentes e parcimoniosos, argumentam outros. São inescrupulosos e facciosos na hora de tirar vantagens, dizem alguns; são unidos e inteligentes o bastante para perceberem as vantagens da educação, alegam outros.
A referência a Manchester é uma alusão ao dom biafrense para o comércio. Para não ter que passar a vida inteira trabalhando para um patrão, como assalariado, o biafrense economiza por anos a fio, até reunir dinheiro suficiente para comprar sua tendinha. Irá mantê-la aberta durante todas as horas do dia e da noite, enquanto houver uma possibilidade de ter um freguês. Irá investir os lucros no empreendimento, construindo uma loja de alvenaria, comprando depois uma loja maior e finalmente uma cadeia de lojas. Mesmo depois que já tem muito dinheiro no banco, ainda se poderá encontrá-lo todas as manhãs indo para o trabalho de bicicleta. Por toda a África, encontram-se comerciantes árabes (libaneses ou sírios) ou indianos. Esses povos vagueiam pelo mundo com seu talento para o comércio, suplantando inteiramente os comerciantes locais. Mas jamais são encontrados nas regiões em que os biafrenses atuam.
A comparação com Israel refere-se obviamente às perseguições de que os biafrenses são vítimas, mais cedo ou mais tarde, sempre que se instalam em outra comunidade. A alusão do Sr. Legum à reunião dos exilados em Israel depois da última Grande Guerra estava mais próxima da realidade do que ele provavelmente imaginava na ocasião. Encurralados, os biafrenses já não têm mais para onde ir. É por isso que preferem morrer em sua pátria do que ceder e viver (isto é, os sobreviventes) como o Judeu Errante. O Coronel Ojukwu disse certa ocasião a correspondentes:
— O que estão vendo aqui é o fim de uma longa caminhada, que começou lá no norte e veio terminar no coração da terra dos Ibos. É a caminhada para o matadouro. [Entrevista do Coronel Ojukwu a James Wilde e ao autor, em Umuahia, a 17 de agosto de 1968.]
A comparação com Kuwait é uma referência ao petróleo de Biafra. Já se disse muitas vezes que se a terra dos biafrenses fosse uma região árida, semidesértica, teriam podido se separar da Nigéria sem quaisquer problemas, com gritos de "Boa viagem" e "Já vão tarde!" Um empresário estrangeiro comentou laconicamente, numa discussão a respeito da guerra atual:
— É uma guerra do petróleo.
E achou que não havia necessidade de dizer mais nada. Por baixo de Biafra, há um oceano de petróleo, o mais puro do mundo. Pode-se pôr o petróleo bruto biafrense diretamente num caminhão a diesel e o motor funcionará. Cerca de um décimo desse campo petrolífero fica na vizinha Camarões e há três décimos em território nigeriano. Os restantes seis décimos estão em Biafra.
O governo de Biafra é um desapontamento para aqueles que vão até lá esperando encontrar uma ditadura militar totalitária. O Coronel Ojukwu governa o país com mão surpreendentemente leve, o que é indispensável para qualquer um que deseje governar os biafrenses. É que eles não aceitam facilmente um governo que não os consulte. Pouco depois de assumir o poder em janeiro de 1966, como Governador Militar, Ojukwu compreendeu que teria de manter uma comunicação ampla e constante com o povo. E isso aconteceu, não apenas pelas características dos biafrenses, mas também pelas próprias predileções e tendências pessoais de Ojukwu.
Não podia restabelecer a desacreditada Assembléia dos antigos políticos, e o General Ironsi era contrário (no momento) a qualquer outra forma de assembléia, achando ser necessário que o regime militar se consolidasse primeiro. Mas isso não impediu que Ojukwu começasse a planejar um retorno eventual ao governo civil ou pelo menos a formação de um organismo consultivo misto, através do qual o povo pudesse manifestar seus desejos ao Governador Militar, através do qual ele pudesse tomar conhecimento dos desejos do povo.
Depois do golpe de julho, Ojukwu teve a oportunidade que esperava e tratou de pôr em prática os planos formulados. Pediu a cada uma das 29 divisões da região que apresentasse quatro representantes nomeados e seis delegados populares. Os representantes nomeados eram escolhidos ex officio, como no caso do Secretário Divisional, Administrador Divisional etc. Os seis delegados populares eram indicados pelo povo, através dos chefes de aldeia e de clã e das conferências dos "Líderes do Pensamento". Com isso, havia 290 pessoas. Ojukwu pediu que se acrescentassem mais 45 delegados a essa assembléia, de representantes das profissões. Foram escolhidos delegados dos principais sindicatos, das associações de professores, advogados e fazendeiros. Havia também delegados da Associação dos Comerciantes, a mesma organização que enfrentara os ingleses em 1929, por ocasião dos motins de Aba.
Esse grupo formou a Assembléia Consultiva, que passou a ser considerada, juntamente com o Conselho Consultivo de Chefes e Anciãos, o parlamento de Biafra. Desde então, Ojukwu não tem tomado quaisquer decisões importantes sem consultá-los e invariavelmente acata seus desejos nas questões de política nacional. Para a administração imediata, o órgão mais alto é o Conselho Executivo. Além do Coronel Ojukwu, só há mais um representante das Forças Armadas nesse Conselho.
Desde a sua primeira reunião, a 31 de agosto de 1966, 33 dias depois do golpe de Gowon, a Assembléia foi consultada era todas as etapas do caminho para a separação. Tendo em vista as alegações subseqüentes de que os Ibos arrastaram as minorias não-ibos contra a vontade para a separação, cabe ressaltar que, dos 335 membros da Assembléia, 165 não são Ibos. Isso proporciona às minorias uma representação proporcional na Assembléia bem maior que as respectivas populações em Biafra.
A decisão de autorizar o Coronel Ojukwu a promover a separação da Nigéria, nove meses depois da primeira reunião, foi unânime. Ao invés de serem vítimas involuntárias do domínio Ibo e de terem sido coagidos à separação contra a vontade, os representantes tribais das minorias tiveram toda oportunidade de dizer o que pensavam e foram participantes ativos da política de secessão. Não resta a menor dúvida de que havia alguns que não concordavam com as decisões que foram tomadas. Desde então, eles têm sido usados pelos nigerianos como arautos da opressão infligida pelos Ibos contra as minorias. Mas aqueles que viajaram ou viveram entre os grupos minoritários, na ocasião, não apenas constataram que a oposição parecia ser relativamente pequena, mas também observaram a mesma efervescência que predominava nos territórios dos Ibos.
As regiões das tribos minoritárias caíram primeiro no avanço do Exército Federal, já que estavam situadas na periferia de Biafra. Houve muita gente trocando de lado. Isso é perfeitamente natural, quando territórios são ocupados por exércitos em guerra. Para a maioria das pessoas, a partir do momento em que as tropas biafrenses se retiraram e os nigerianos avançaram, levantar a mão direita e gritar "Nigéria unida" era mais um gesto de autopreservaçâo que de convicção política.
Também não foi difícil encontrar colaboracionistas. De um modo geral, os líderes dos grupos minoritários, que haviam dado sua lealdade a Biafra, foram obrigados a fugir, para escapar a perseguições, com a chegada das tropas federais. Deixaram vagos bons cargos, casas, escritórios, carros, privilégios. Não foi difícil para os nigerianos encontrar outros habitantes locais para preencher os cargos vagos, sob a condição de colaboração total com as forças de ocupação. Mas uma verificação dos homens que aceitaram esses postos, sob o domínio nigeriano, irá revelar que não passam da chamada arraia-miúda, pois os mais capazes fugiram para Biafra.
Imeditamente depois da conquista, muitos habitantes locais nas áreas minoritárias permaneceram em suas casas, convertidos pela propaganda federal de que Biafra não passara de um erro e a cooperação com o Exército Nigeriano seria o melhor que poderiam fazer. Alguns dignitários locais acreditavam sinceramente nisso, enquanto outros viam a possibilidade de enriquecimento rápido eu promoções imediatas, à custa dos bens e cargos deixados pelos líderes que tinham fugido ou morrido. Mas, desde meados do verão de 1968, começaram a transpirar informações de uma crescente insatisfação com as condições de vida sob os conquistadores.
Freqüentemente, a maior onda de refugiados para a Biafra não ocupada não ocorre imediatamente depois da queda de uma província, mas sim algumas semanas mais tarde, quando os habitantes locais já experimentaram os métodos do Exército Nigeriano. Mais tarde ainda, outros refugiados continuam a chegar, à medida que os soldados federais vão matando cabras, galinhas, gado e porcos para sua própria alimentação; arrancam as colheitas ainda não maduras de inhame e mandioca; arrebanham as moças locais e usam-nas à vontade, acabando com os protestos por esse comportamento com ataques punitivos contra os manifestantes; obrigam os aldeões a assistir às execuções públicas de chefes e anciãos locais respeitados e amados; fecham escolas e transformam-nas em alojamentos; enriquecem no mercado negro com os aumentos enviados pelas organizações internacionais de ajuda supostamente para os necessitados; apoderam-se de todos os bens desejáveis e mandam-nos para o norte; e dão a entender que ali estão para ficar e tencionam viver e viver bem... à custa do trabalho dos habitantes locais.
Antes do verão, um número crescente de chefes estava enviando emissários através das linhas para Ojukwu; a esta altura, estavam convencidos de que o domínio dele era muito melhor que o dos nigerianos. Um dos motivos pelos quais o domínio do Coronel Ojukwu era apreciado foi o fato de ele haver mudado a situação das minorias existentes anteriormente, quando os políticos mandavam. Naquela época, os grupos de língua Ibo dominavam inteiramente a Assembléia e as minorias sentiam-se prejudicadas na distribuição de recursos públicos. O Coronel Ojukwu alterou tal situação.
Uma das primeiras propostas da Assembléia Consultiva foi a abolição das 29 divisões fixadas pelos ingleses e a substituição por 20 províncias, cujas fronteiras seriam fixadas por limites tribais e lingüísticos. A proposta foi apresentada pelo Sr. Okoi Arikpo, um dos representantes de Ugep, uma área minoritária habitada por um dos menores grupos, os ekois. Se existia um "domínio Ibo", como tanto disse a propaganda federal desde o início da guerra, teria sido praticamente eliminado, já que a proposta previa uma autonomia considerável para cada província, sendo que oito das vinte eram controladas por maiorias não-ibos. A proposta foi imediatamente aprovada pela Assembléia (que tinha uma maioria Ibo), sancionada por Ojukwu e convertida em lei.
Por causa disso, Arikpo disse a Ojukwu que merecia um posto ministerial. Mas Ojukwu não concordou. Em conseqüência, Arikpo foi para Lagos, onde é agora o Comissário para Assuntos Estrangeiros.
Mas não se deve pensar que Ojukwu tenha alguma coisa contra os representantes minoritários em altos postos. Ao contrário, os líderes minoritários possuem mais influências no governo que em qualquer outra época anterior da história da região oriental. O chefe do Estado-Maior do Exército e Chefe de Estado substituto, na ausência do Coronel Ojukwu, é o Major-General Philip Effiong, um efik. O chefe do Serviço Civil, Sr. N.U. Akpan, é um ibibio. O Comissário para Assuntos Especiais, um dos principais confidentes de Ojukwu, é o Dr. S.J. Cookey, um representante dos povos dos Rios. O mesmo acontece com o representante biafrense em Londres, Sr. Ignatius Kogbara. O Conselho Executivo, as missões no exterior, os postos ministeriais, o serviço civil e as delegações que participam das negociações de paz estão repletos de representantes dos grupos minoritários.
Ironicamente, os massacres de 1966 e o tratamento igualmente brutal dispensado pelo Exército Nigeriano às populações Ibos e não-ibos durante a guerra atual contribuíram muito mais que qualquer outra coisa para transformar Biafra numa única nação. O deslocamento de milhões de refugiados, a mistura, os sofrimentos comuns e o empobrecimento coletivo conseguiram realizar o que os líderes africanos há anos vêm tentando: criar uma nação pela união de uma diversidade de povos.
9. Trinta Meses de Combates
Nunca antes, na história moderna, foi travada uma guerra entre exércitos com tamanha disparidade de forças e poder de fogo quanto o conflito entre Nigéria e Biafra. De um lado, está o Exército Nigeriano, um monstruoso aglomerado de mais de 85 mil homens, armados até os dentes com armas modernas, com um acesso irrestrito aos arsenais de pelo menos duas grandes potências e de diversas outras menores, contando com suprimentos ilimitados de balas, morteiros, metralhadoras, rifles, granadas, bazucas, canhões e veículos blindados. Tudo isso é apoiado por numerosos conselheiros técnicos estrangeiros, que cuidam da eficiência das comunicações pelo rádio, transporte, manutenção dos veículos, armas de apoio, programas de treinamento, informações militares, técnicas de combate e serviços gerais. Acrescente-se a tais conselheiros técnicos várias dezenas de mercenários profissionais. Técnicos soviéticos cuidam das armas de apoio e há um reabastecimento permanente e amplo de caminhões, jipes, aviões de transporte e embarcações, equipamentos de engenharia e construção de pontes, geradores e embarcações fluviais. O esforço de guerra dessa máquina gigantesca tem sido apoiado por implacáveis caças e bombardeiros a jato, equipados com metralhadoras, foguetes e bombas. A Marinha conta com fragatas, canhoneiras, embarcações de escolta, lanchas de desembarque, .barcaças e rebocadores. Os soldados são amplamente abastecidos com botas, cintos, uniformes, capacetes, pás, mochilas, alimentos, cerveja e cigarros.
Do outro lado está o Exército Biafrense, uma força voluntária representando menos de um em cada dez homens que se apresentaram nos postos de recrutamento. Os recursos humanos não constituem o menor problema. O grande problema é o de armar os homens dispostos a lutar. Totalmente bloqueado há mais de 18 meses, o Exército Biafrense tem conseguido continuar a luta com uma média, pelo menos nos primeiros 16 meses, de dois aviões por semana, às vezes apenas um, carregados com dez toneladas de armas e munições. Á arma mais comum da infantaria é o rifle Mauser de ferrolho, recondicionado, havendo ainda pequenas quantidades de pistolas automáticas, metralhadoras de mão, metralhadoras leves e pesadas e pistolas. As peças de artilharia e os. morteiros são bem poucos. As bazucas são praticamente inexistentes.
Quarenta por cento dos combatentes usam equipamentos nigerianos capturados, inclusive alguns veículos blindados, altamente valorizados. Foram capturados quando as tripulações nigerianas foram atacadas de surpresa e fugiram. Contribuindo também para o poder de fogo, há diversos equipamentos de fabricação interna, como foguetes, minas antitanques, minas pessoais, alguns canhões e coquetéis Molotov. No esforço de defesa, recorre-se ainda às mais diversas medidas, como covas para deter tanques, troncos de árvores e estacas ponteagudas.
Sem receberem um veículo novo há um ano e meio, os biafrenses têm sido obrigados a consertar, remendar e fundir dois ou mais num só, utilizando agora o petróleo refinado internamente. As peças sobressalentes são tiradas de veículos avariados ou fabricadas individualmente, nas condições mais precárias possíveis.
Quanto à ajuda dos estrangeiros, apesar de tudo o que se tem falado a respeito de centenas de mercenários, não houve muita nos primeiros 18 meses de guerra. Em novembro de 1967 chegaram 40 franceses, que foram embora às pressas seis semanas depois, ao chegarem à conclusão de que a luta era por demais desigual. Outro grupo de 16 franceses chegou em setembro de 1968 e ficou por quatro semanas, antes de chegar à mesma conclusão. Há poucos estrangeiros realmente lutando com as forças biafrenses: um alemão, um escocês, um sul-africano, um italiano, um inglês, um rodesiano, um americano, dois flamengos e dois franceses. Outros aventureiros têm combatido também ao lado dos biafrenses, em períodos diversos, variando de um dia a três semanas. Com raras exceções, as dificuldades nas condições de combate, a enorme desvantagem e a convicção de que deve haver meios mais fáceis de ganhar a vida têm mantido as visitas limitadas a curtos períodos. Os únicos dois homens que chegaram a completar contratos de seis meses-foram o alemão Rolf Steiner, que sofreu um colapso nervoso no décimo mês e teve de ser repatriado, e o sul-africano Taffy Williams, que concluiu dois contratos e partiu de licença nos primeiros dias de 1969.
Ironicamente, a história da Guerra de Biafra não tem consolidado a posição dos mercenários na África. Ao contrário, tem destruído cada vez mais o mito dos "Gigantes Brancos" do Congo. Em última análise, a contribuição do homem branco, no lado biafrense, não chega a um por cento.
A maioria tem-se revelado pouco mais que assassinos de uniforme. O rebotalho do Congo nem mesmo se deu ao trabalho de se oferecer como voluntário para a luta em Biafra. Aqueles que chegaram a combater, lutaram com um pouco mais de conhecimentos técnicos que os oficiais biafrenses, mas não os superaram em bravura e tenacidade. A ausência de contraste entre os dois é ressaltada pelo Major Williams, o único branco que permaneceu ao lado dos biafrenses por 12 meses de combates e o único que emerge como um mercenário que vale a pena ser contratado. Ele declarou:
— Já vi muitos africanos em combate e posso assegurar que nenhum se compara com essa gente. Se me derem dez mil biafrenses para treinar durante seis meses, faremos um exército que será invencível neste continente. Nesta guerra, já vi muitos homens morrerem que teriam merecido a Victoria Cross, se fossem outras as condições. Por Deus, alguns deles são combatentes excepcionais.[Entrevista ao autor, a 25 de agosto de 1968.]
Sua avaliação da maioria dos mercenários, especialmente dos franceses, é impublicável.
A guerra começou com extrema confiança nos dois lados. O General Gowon anunciou a seu povo e ao mundo que iniciara uma "ação policial rápida e eficaz"[Citado na revisto Time, a 1 de setembro de l967]. A vitória foi prevista para uma questão de dias, não de semanas. No norte, o Coronel Katsina escarneceu do "exército de burocratas" de Biafra e previu uma vitória rápida e esmagadora, quando a infantaria nigeriana avançasse. Os biafrenses, confiantes em sua maior capacidade de deslocamento, engenhosidade e superioridade de planejamento tático, estavam convencidos de que, se conseguissem resistir por alguns meses, os nigerianos acabariam compreendendo a loucura da guerra e voltariam para sua terra ou iniciariam negociações. Mas os dois lados estavam enganados.
Os combates começaram efetivamente a 6 de julho de 1967, com uma barragem de artilharia contra a pequena cidade de Ogoja, perto da fronteira com o norte, no extremo nordeste de Biafra. Dois batalhões federais estavam concentrados naquele setor. O Coronel Ojukwu percebeu imediatamente que se tratava de uma manobra diversória. O ataque principal foi desfechado mais a oeste, no setor de Nsukka, uma próspera cidade comercial, na qual estava situada a Universidade de Nsukka, que recentemente passara a ser chamada de Universidade de Biafra.
Ali se concentraram os outros seis batalhões nigerianos, iniciando o ataque no dia 8 de julho. Avançaram por pouco mais de seis quilômetros e depois pararam. Os biafrenses, com cerca de três mil homens armados no setor contra os seis mil nigerianos, resistiram tenazmente, com os 303 rifles da Polícia da Nigéria Oriental, uma variedade de metralhadoras alemãs, italianas e tchecas e diversas espingardas, que não são tão inofensivas quanto podem parecer, em combates no mato cerrado. Os nigerianos capturaram Nsukka, que destruíram inteiramente, inclusive a universidade. Mas não conseguiram avançar mais. Na província de Ogoja, capturaram Nyonya e Gakem e levaram sua artilharia ao alcance da cidade de Ogoja, obrigando os biafrenses a recuar, formando uma nova linha de defesa num rio mais ao sul. Ali também houve uma paralisação no avanço nigeriano e a situação parecia e poderia ter permanecido estacionária.
Depois de duas semanas, desconcertado com a imobilidade de sua temível infantaria, o governo federal de Lagos começou a anunciar a queda de diversas localidades biafrenses, que teriam sido capturadas pelo Exército Nigeriano. Para os que viviam em Enugu, inclusive os expatriados, parecia que alguém em Lagos estava espetando alfinetes ao acaso num mapa. No Hotel Presidencial, continuava-se a cumprir o ritual do chá no terraço, os membros do Conselho Britânico não deixavam de jogar seu pólo aquático e de se vestir a rigor para o jantar.
Depois de três semanas, os nigerianos descobriram-se em dificuldades quando dois dos seus batalhões, isolados dos demais, foram cercados e inteiramente derrotados, a leste de Nsukka, entre a estrada e as linhas de trem. Os nigerianos aprontaram às pressas outros dois batalhões, integrados por oficiais instrutores e soldados em treinamento, despachando-os para o setor de Nsukka.
No ar, as atividades estavam limitadas às façanhas de um solitário B-26 biafrense, um bombardeiro de fabricação americana da 2ª Guerra Mundial, pilotado por um taciturno polonês, que gostava de ser chamado de Kamikaze Brown, e por seis helicópteros Alouettes, de fabricação francesa, pilotados por biafrenses, que lançavam granadas de mão e bombas de fabricação interna contra os nigerianos.
A 25 de julho, os nigerianos desfecharam um inesperado ataque pelo mar contra a ilha de Bonny, o ultimo pedaço de terra antes do mar aberto, ao sul de Port Harcourt. Em termos de prestígio, foi um golpe espetacular, numa guerra que cada vez mais carecia de notícias, porque Bonny era o terminal de petróleo do oleoduto da Shell, que vinha de Port Harcourt.
Mas, militarmente, a conquista não teve maiores conseqüências, porque os biafrenses, uma vez alertados, passaram a patrulhar incessantemente as águas ao norte de Bonny. As subseqüentes tentativas nigerianas de desfechar novos ataques pelo mar, na região de Port Harcourt, mais ao norte, foram sistematicamente repelidas.
A 9 de agosto, os biafrenses desfecharam um ataque que abalou os observadores desprevenidos, tanto em Biafra come em Lagos. Começando de madrugada, uma brigada móvel de três mil homens, que fora cuidadosamente preparada em segredo, atravessou a Ponte de Onitsha e avançou pela região meio-oeste. Dez horas depois, todo o meio-oeste caíra e as cidades de Warri, Sapele, o centro petrolífero de Ughelli, Agbor, Uromi, Ubiaja e Benin estavam ocupadas. Praticamente não se teve notícias de resistência do pequeno exército estacionado na região. Nove em cada onze oficiais superiores desse exército eram ica-ibos, primos dos Ibos de Biafra. Ao invés de lutarem, saudaram efusivamente as tropas biafrenses.
A captura do meio-oeste alterou o equilíbrio da guerra, deixando todos os recursos petrolíferos da Nigéria sob o controle de Biafra. Embora tivesse perdido cerca de 1.300 quilômetros quadrados de seu próprio território, em três pequenos setores no perímetro externo, Biafra conseguira capturar 50.000 quilômetros quadrados da Nigéria. Mais importante do que isso era o fato de~~que toda a infantaria nigeriana estava a quilômetros de distância, no setor de Nsukka, com o largo Níger a separá-la da estrada de retorno à capital federal, estando assim incapaz de intervir. Para os biafrenses, a estrada para Lagos estava aberta e indefesa.
O Coronel Ojukwu teve dificuldade em apaziguar a maioria não-ibo do meio-oeste, assegurando que suas intenções eram as melhores possíveis. Durante uma semana, delegações de chefes tribais, banqueiros, comerciantes, líderes 'da câmara de Comércio, oficiais militares e dignitários da igreja seguiram para Enugu, a convite, a fim de serem tranqüilizados pelo líder biafrense. O Coronel Ojukwu esperava que uma aliança de duas das três regiões sulistas pudesse também atrair o oeste, forçando o governo federal a negociar a paz.
Depois de uma semana, tudo indicava que isso iria acontecer. Assim, o Coronel Ojukwu deu ordens para que fosse reiniciada a investida, na direção oeste. A 16 de agosto, os biafrenses chegaram à ponte sobre o rio Ofusu, que assinala a fronteira com a região ocidental. Ali, houve uma breve escaramuça com tropas nigerianas, que em seguida bateram em retirada. Verificando os mortos nigerianos, os biafrenses ficaram exultantes. Os soldados nigerianos eram da Guarda Federal, a própria guarda pessoal de Gowon, integrada por 500 Tivs, normalmente baseados em Lagos. Se Gowon precisara recorrer à sua guarda pessoal, era porque não devia ter quaisquer outras tropas disponíveis.
A 20 de agosto, os biafrenses atacaram Ore, uma pequena cidade que era um entroncamento rodoviário a 55 quilômetros da fronteira da região ocidental, a 210 quilômetros de Lagos e a 370 quilômetros de Enugu. Os Tivs que defendiam a cidade sofreram uma derrota ainda mais fragorosa e tiveram que bater em retirada na maior desordem. Para os observadores, parecia na ocasião que, menos da dez semanas depois da guerra árabe-israelense, outro fenômeno militar estava prestes a ser consumado, com a pequena Biafra derrubando o governo da poderosa Nigéria. Naquele momento, um avanço motorizado por uma das três estradas disponíveis teria levado as forças biafrenses ao coração do território Iorubá e às portas de Lagos. E foi justamente essa a ordem dada pelo Coronel Ojukwu.
Soube-se mais tarde, de fontes da própria Embaixada americana, que a 20 de agosto os ocidentais estavam prestes a se lançar a uma política de apaziguamento dos biafrenses, a fim de salvarem a s própria pele. Gowon ordenara que aprontassem seu avião particular para levantar vôo a qualquer momento, devendo seguir para Zaria, no norte. O Alto Comissário Britânico, Sir David Hunt, e o Embaixador americano, Sr. James Matthews, tiveram na ocasião uma longa conversa com Gowon, no quartel de Dodan. Em decorrência dessa conversa, o apreensivo Supremo Comandante nigeriano concordou em prosseguir na luta.
Notícias dessa intervenção, se é que houve mesmo intervenção (embora as fontes que deram a informação sejam dignas de crédito), chegaram ao Coronel Ojukwu uma semana depois e causaram a maior irritação entre os cidadãos britânicos e americanos que estavam em Biafra. É que se as notícias transpirassem para o povo biafrense, a reação poderia ter sido extremamente violenta.
A decisão de Gowon de permanecer em Lagos salvou seu governo de um colapso total e possibilitou a continuação da guerra. Se ele tivesse fugido naquele momento, não resta a menor dúvida de que o oeste mudaria de lado e haveria na Nigéria uma confederação de três estados. Os biafrenses desconfiam, desde essa época, que Gowon e seus companheiros que representavam as minorias foram persuadidos a permanecer no poder pela promessa de ajuda britânica e americana. Por coincidência ou não, foi justamente a partir dessa data que os nigerianos começaram a receber uma ajuda externa maciça.
A captura do meio-oeste teve outra conseqüência: despertou a Nigéria para o fato inequívoco de que estava empenhada numa guerra. Desde o início, os nigerianos haviam subestimado Biafra, que disso se aproveitara para desfechar aquele ataque fulminante, ficando com a vitória final ao seu alcance. Mas essa vitória lhe escapou bruscamente. Na verdade, Ore foi o ponto máximo a que as forças biafrenses conseguiram chegar, pois ocorrera outra súbita e inesperada reviravolta. Sem que ninguém soubesse, o comandante das forças biafrenses no meio-oeste tornara-se um traidor.
Victor Banjo era Iorubá e fora major do Exército Nigeriano, sendo encarcerado pelo General Ironsi, sob a acusação de estar envolvido numa conspiração para derrubá-lo. A prisão em que o meteram ficava no leste. No início da guerra, o Coronel Ojukwu libertara-o e oferecera-lhe um posto no Exército de Biafra. Banjo aceitara, preferindo ficar em Biafra do que voltar para a região oeste e enfrentar a possibilidade de vingança dos nortistas que ali estavam. O Coronel Ojukwu jamais revelou por que escolheu um oficial Iorubá para comandar as tropas que deveriam investir pela região ocidental. Mas sabe-se que os dois eram amigos íntimos e que o Coronel Ojukwu depositava grande confiança em Banjo. Promovido a General-de-Brigada, Banjo comandou a Brigada "S" no avanço contra a região meio-oeste.
Segundo a sua própria confissão, quando foi posteriormente desmascarado, Banjo decidiu, logo depois de 9 de agosto, entrar em conversações com os líderes do oeste, especialmente o Chefe Awolowo. Descobriu o esconderijo em Benin do Governador Militar do Oeste, Coronel Ejoor. Não transmitiu a informação a Ojukwu, que desejava conversar o mais depressa possível com Ejoor. Em vez disso, pediu a Ejoor que servisse de intermediário para um contato seu com Awolowo. Ejoor, no entanto, recusou-se a assumir o risco.
Banjo declarou mais tarde que transmitiu mensagens através da faixa lateral do rádio do representante em Benin do Alto Comissário Britânico. Um funcionário britânico transmitia as mensagens em alemão para outro funcionário da representação em Lagos. O Chefe Awolowo foi imediatamente avisado. A conspiração que Banjo mais tarde revelou era tipicamente Iorubá em sua complexidade. Juntamente com dois outros oficiais superiores do Exército Biafrense, ambos com ambições políticas, Banjo deveria anular o esforço de guerra de Biafra, fazendo as tropas se retirarem do meio-oeste sob diversos pretextos, prendendo e assassinando Ojukwu, para depois proclamar "o fim da revolta". Como um herói nigeriano, ele voltaria para sua terra, a região ocidental, o passado perdoado e esquecido.
Banjo acrescentou que a segunda parte da conspiração, a ser executada posteriormente, seria a utilização do recém-formado Exército Iorubá para depor Gowon. Banjo ocuparia a presidência e o Chefe Awolowo ficaria com o cargo de primeiro-ministro, que há tanto tempo desejava. Parece improvável que Gowon estivesse a par dessa segunda parte do plano.
Banjo conseguiu ainda recrutar a colaboração do Coronel Ifeajuana, também libertado da prisão recentemente; de um oficial comunista treinado em Moscou, Major Philip Alale; de um funcionário do Ministério do Exterior biafrense, Sam Agbam, que conduziu algumas das negociações entre os dois lados, quando estava em missão no exterior; e de diversos outros oficiais inferiores e servidores civis.
Em meados de setembro, ele estava pronto para entrar em ação. Em Enugu, o Coronel Ojukwu, embora frustrado com a falta de ação no oeste, continuava a confiar em Banjo, aceitando as suas desculpas de que a ofensiva não prosseguia por causa de dificuldades administrativas, deficiência de homens, carência de armas e munições e assim por diante. Durante aquelas três semanas de paralisação da ofensiva, os nigerianos tinham conseguido reforçar as defesas. Com um programa de recrutamento de emergência, pondo em uniforme os elementos mais diversos, como estudantes universitários e condenados tirados da prisão, depois de uma semana de treinamento intensivo, formaram rapidamente uma nova brigada e depois outra. Essas tropas, constituindo a Segunda Divisão, sob o comando do Coronel Murtela Mohammed, já estavam lutando na região ocidental. Utilizando colunas motorizadas rápidas, os biafrenses ainda poderiam consolidar a sua posição de domínio no oeste, até a primeira semana de setembro. Mas, a 12 de setembro, Banjo deu ordens, sem estai autorizado a isso, para evacuar Benin, sem que fosse disparado um único tiro. Mohammed só entrou em Benin a 21 de setembro.
Banjo também deu ordens para evacuar Warri, Sapele, Auchi, Igueben e outra posições importantes, sem qualquer luta. Aturdidos e surpresos, os oficiais inferiores obedeceram às ordens. Na mesma ocasião, as defesas biafrenses ao sul de Nsukka finalmente cederam e as tropas federais avançaram por vários quilômetros na estrada para Enugu, a 72 quilômetros de Nsukka.
Neste momento, Banjo decidiu atacar diretamente o Coronel Ojukwu. Conferenciou no meio-oeste com Ifeajuana e Alale e os três definiram as providências finais para o assassinato, que deveria ocorrer por ocasião da presença de Banjo em Enugu, a 19 de setembro. Banjo fora chamado à capital para explicar o que estava fazendo no meio-oeste.
Ele levou uma porção de explicações convincentes, mas os fatos estavam começando a falar por si mesmos. Ifeajuana e Alale foram convocados separadamente. Ojukwu interrogou-os friamente e depois ordenou que fossem presos. Banjo chegou a Enugu com uma forte escolta de homens que lhe eram leais. Queria entrar com os seus homens na sede do governo. Foi persuadido a deixar os homens nos portões, ao alcance de um chamado seu, entrando sozinho, fortemente armado. Banjo concordou com a sugestão. Enquanto Banjo esperava na ante-sala, o assessor policial do Coronel Ojukwu, um jovem e astuto inspetor, saiu para conversar com a escolta dele, levando uma garrafa de gim. Depois de passá-la de mão em mão, convidou os homens de Banjo a beberem mais um pouco, em sua casa, que ficava ali perto. Todos concordaram e se afastaram.
Dentro da sede do governo, observadores constataram o afastamento da escolta e imediatamente apontaram suas armas para Banjo. Ele foi desarmado e levado à presença do Chefe de Estado. Faltavam seis horas para o momento em que o Coronel Ojukwu deveria ser assassinado, já que era quase meia-noite de 18 de setembro.
Foi impossível abafar o escândalo, enquanto os principais culpados confessavam francamente a sua participação na conspiração e a chamada arraia-miúda era presa. O efeito nas tropas foi traumático e seguiu-se um período de desmoralização. Todo o corpo de oficiais ficou desacreditado aos olhos dos soldados, que eram resolutamente leais ao Coronel Ojukwu. Embora angustiado por causa de sua antiga amizade com Banjo e de um parentesco com Alale através do casamento, o Coronel Ojukwu acabou cedendo às pressões de seus colegas do Exército de que era indispensável punir severamente os culpados, a fim de evitar que surgissem novas conspirações.
Os quatro líderes da conspiração foram julgados por um tribunal especial, considerados culpados de alta traição e condenados à morte. Foram fuzilados ao amanhecer de 22 de setembro.
O grau exato de cumplicidade ou conhecimento de algumas autoridades britânicas na Nigéria ainda continua a ser uma questão de especulação em Biafra. Banjo, em sua confissão (confirmada por provas documentais que lhe foram tiradas e que Ojukwu mostrou ao autor), incriminou o Vice-Comissário britânico em Benin e a representação em Lagos, que teriam constituído a sua ligação com Awolowo e Gowon. Correspondentes em Lagos comentaram mais tarde que perceberam uma súbita animação entre as autoridades britânicas em meados de setembro, com garantias suaves de que "tudo estará acabado dentro de mais alguns dias". Era um tremendo contraste com o quase pânico de 20 de agosto e uma profecia que parecia estar em desacordo com a situação militar.
Seja como for, a malograda conspiração alterou consideravelmente a situação. Os danos em Biafra foram enormes. A 25 de setembro, os biafrenses já tinham se retirado de Agbor, no meio-oeste, na metade do caminho entre Benin e o rio Níger. No dia 30, já estavam de volta a um pequeno perímetro defensivo em torno de Asaba, de costas para o rio. Ao norte de Enugu, a infantaria desmoralizada batia em retirada desconsoladamente, enquanto os nigerianos avançavam para o sul, de Nsukka. Ao final do mês, Enugu ficou ao alcance do bombardeio dos nigerianos. A 6 de outubro, os biafrenses em Asaba atravessaram o Níger e foram se concentrar em Onitsha, explodindo a ponte recém-concluída e que valia seis milhões de libras, para impedir que Mohammed atravessasse também. Estavam profundamente desiludidos. Dois dias antes, a 4 de outubro, os nigerianos haviam entrado em Enugu.
No exterior, todos imaginaram que o colapso total de Biafra era iminente. Duas coisas salvaram o país da desintegração: a personalidade do Coronel Ojukwu, que assumiu pessoalmente o comando das tropas, com extrema firmeza, dando um novo ânimo aos oficiais e soldados; o comportamento do povo biafrense, que deixou bem claro que não pretendia se entregar sem luta. Como os soldados eram e sempre foram o povo de uniforme, o Exército recebeu a mensagem e compreendeu qual era o seu dever.
O Coronel Ojukwu sentiu-se na obrigação de apresentar o seu pedido de renúncia, que a Assembléia Consultiva recusou por unanimidade. Com isso, encerrou-se o desastroso episódio da conspiração de Banjo. Biafra preparou-se para continuar a luta. A guerra longa e árdua, combatida palmo a palmo, começara.
A esta altura, o tremendo poder de fogo importado pela Nigéria, principalmente da Inglaterra, Bélgica, Holanda, Itália e Espanha, estava se tornando esmagador. Um novo programa de recrutamento permitira aos nigerianos aumentar os efetivos do Exército Federal para mais de 40 mil homens. As tropas no norte de Biafra formavam agora a Primeira Divisão, enquanto as que estavam do outro lado do Níger, sob o comando de Mohammed, constituíam a Segunda Divisão. A Primeira era comandada de Makurdi, a quilômetros de distância, na região norte, pelo Coronel Mohammed Shuwa. O chefe do Estado-Maior das Forças Armadas era o Coronel Ekpo e o chefe do Estado-Maior do Exército era o Coronel Bissalla. Assim, quatro Hausas controlavam o Exército Federal. O antecessor de Bissalla, Coronel Akahan, um tiv, morrera num acidente de helicóptero, em circunstâncias tão estranhas que se suspeitou que fora plantada uma bomba no aparelho.
O final do outono e o inverno não foram um período dos mais tranqüilos para Biafra. No norte, Enugu caiu. Mais ao leste, no setor de Ogaja, as tropas federais avançaram pela estrada principal até Ikom, perto da fronteira com Camarões. A 18 de outubro, a recém-formada Terceira Divisão Federal de Comando Marítimo, sob o comando do Coronel Benjamin Adekunle, desembarcou em Calabar, no sudeste. Com Bonny ainda dominada pelos nigerianos e com Mohammed tentando atravessar o Níger, os biafrenses tinham que lutar em cinco frentes.
Apesar de violentos contra-ataques, não foi possível desalojar os nigerianos de Calabar. Com um apoio maciço, a cabeça-de-ponte foi-se tornando cada vez mais forte, até que Adekunle sentiu-se em condições de avançar, para o norte, pela margem oriental do rio Cross, numa tentativa de estabelecer contato com a Primeira Divisão, em Ikom. Ao fecharem a segunda estrada para Camarões, a que saía de Calabar, os nigerianos isolaram Biafra, impedindo o seu acesso por terra ao mundo exterior.
O único contato aéreo que ainda restava fora transferido para Port Harcourt. O solitário B-26 de Enugu, metralhado quando estava no solo, foi substituído por um B-25 igualmente solitário, pilotado por um antigo oficial da Luftwaffe, conhecido como Fred Herz.
Ao longo de todo o outono, os correspondentes estrangeiros previram em seus despachos que Biafra estava liquidada. Era uma previsão que já se fizera muitas vezes antes e que seria feita muitas vezes mais desde então. Mas os biafrenses não lhe deram muita importância.
Durante os meses de outubro e novembro de 1967, o Coronel Mohammed tentou cruzar o Níger de barco três vezes, partindo de Asaba para capturar Onitsha.
Na primeira vez, a 12 de outubro, ele atravessou o rio com dois batalhões. Um dos comandantes operacionais em Onitsha era o Coronel Joe Achuzie, um homem do meio-oeste, rude e obstinado, que passara a 2ª Guerra Mundial no Exército Britânico e depois lutara na Coréia. Estava trabalhando como engenheiro em Port Harcourt quando a guerra começara e imediatamente se alistara na Milícia. Fora em seguida transferido para o Exército Biafrense. Ao ver Mohammed cruzando o rio com suas tropas, decidira emboscá-lo.
As embarcações atracaram e os nigerianos desembarcaram, com seus carros blindados. Achuzie ficou observando o avanço dos nigerianos, de seu posto no depósito de madeiras do Ministério das Obras Públicas. Viu os soldados Hausas incendiarem o mercado de Onitsha, o maior da África Ocidental, com um estoque outrora avaliado em três milhões de libras. Depois dessa destruição desnecessária e sem sentido, os nigerianos avançaram em fila pela cidade abandonada. Os biafrenses contra-atacaram um quilômetro e meio além da cidade. Perdendo seus dois veículos blindados, os nigerianos foram repelidos de volta ao rio, onde foram finalmente destroçados, perto do local de desembarque.
Os nigerianos ainda fizeram mais duas tentativas de atravessar o Níger em embarcações. Mas, nas duas ocasiões, as embarcações foram alvejadas e afundadas, ocorrendo muitas baixas, a maioria por afogamento. Os soldados Iorubás é que sofreram as baixas mais pesadas, até que seu comandante protestou contra novas tentativas de travessia do rio. Deixando os Iorubás da Segunda Divisão em Asaba, Mohammed levou seus Hausas mais para o norte e penetrou no território de Biafra. Tencionava atacar e capturar Onitsha pelo outro lado, por terra.
Em Lagos, o General Gowon previra que a guerra já teria terminado ao final do ano. Mas quando se verificou que isso seria impossível, Gowon fez outra previsão para a destruição total de Biafra: até 31 de março de 1968. Ao final do ano, a situação ao sul e a leste de Enugu estava estabilizada. A leste, as tropas nigerianas tinham conseguido avançar cerca de 30 quilômetros além da cidade. Ao sul, os biafrenses enfrentavam os nigerianos quase que nos arredores da cidade.
No nordeste, as tropas federais dominavam toda a Província de Ogoja e estavam postadas diante dos biafrenses do outro lado do rio Anyim, um tributário do Cross. Mais ao sul, as tropas de Adekunle estavam na metade do caminho de Calabar para Ikom. No setor de Bonny, a situação permanecia a mesma que cinco meses antes. Todas as tentativas de uma investida para o norte com as tropas transportadas em embarcações, haviam terminado em desastre.
Com a Nigéria recebendo um suprimento de armas cada vez maior, enquanto o suprimento de Biafra permanecia reduzido a dois aviões por semana, a luta foi-se tornando mais e mais difícil. O poder de fogo dos nigerianos, especialmente em artilharia e morteiros, tornava-se cada vez mais mortífero. Os nigerianos receberam também novos veículos blindados da Inglaterra, não apenas para substituir os que tinham sido perdidos em combate, mas para expandir consideravelmente os contingentes blindados. E normalmente eram esses veículos blindados que efetuavam os avanços, já que os biafrenses nada tinham com que enfrentá-los.
Ao final de dezembro, à frente de sua Divisão agora ampliada para 14 mil homens, o Coronel Mohammed iniciou a marcha de 110 quilômetros pela estrada principal, na direção de Onitsha. Levava enormes suprimentos. Um documento encontrado no bolso de um major morto dessa Divisão revelou posteriormente que somente o batalhão dele possuía uma reserva de 20 mil granadas de artilharia de 105 mm. A alguma distância de Enugu, perto de Udi, a Segunda Divisão deparou com os biafrenses e travou-se uma das maiores batalhas da guerra.
De acordo com a melhor tradição Hausa, Mohammed concentrou suas tropas em sólidas falanges e foi assim que avançaram pela estrada. Em meados de fevereiro, os nigerianos chegaram a Awka, ainda a 50 quilômetros de Onitsha. As baixas da Segunda Divisão eram imensas. Os soldados federais não gostavam de se afastar da estrada, pois sabiam que seus equipamentos pesados não poderiam acompanhá-los pelo mato. Assim, em formações cerradas, eles se tornavam alvos fáceis para os biafrenses.
Quando ensinara táticas militares em Teshie, Gana, o Coronel Ojukwu tivera entre seus alunos o jovem Tenente Murtela Mohammed. Sentado em seu gabinete, em Umuahia, Ojukwu começou a planejar uma maneira de contornar a imensa superioridade do adversário. Não tinha alternativa. Os biafrenses, com armas leves mas extremamente móveis, não podiam atacar Mohammed de frente. Por isso, concentraram-se em atacar as forças nigerianas pelos flancos e pela retaguarda, causando elevadas baixas. Sem se preocupar com as baixas, Mohammed prosseguiu obstinadamente em seu avanço. Em Awka, ele perdeu a sua grande oportunidade. As forças biafrenses eram extremamente fracas à sua frente, mas fortes na retaguarda e nos flancos. Se Mohammed tivesse avançado rapidamente em Awka, poderia ter chegado a Onitsha. O Coronel Ojukwu percebeu o perigo e deslocou forças extras para o eixo principal da investida. Mas precisava de 48 horas para completar o deslocamento das tropas. Mohammed deu-lhe o tempo de que tanto necessitava. Os nortistas perderam três dias a destruir totalmente a pequena cidade de Awka.
Quando acabaram, os biafrenses já tinham se reagrupado. Mais ao norte, à frente de seu veterano 29.° Batalhão, Achuzie estava se movimentando por conta própria. Depois de marchar 150 quilômetros, atacou pela retaguarda e capturou a cidade de Adoru, na região norte. De lá, reconquistou Nsukka. também atacando pela retaguarda, depois de inspecionar as defesas da cidade. Apresentando-se como um fazendeiro idoso, ansioso em cooperar com os nigerianos, Achuzie entrou sozinho na cidade e foi inclusive cumprimentado pelo comandante nigeriano da guarnição de Nsukka. Dez horas depois, novamente de uniforme e no comando do 29.° Batalhão, Achuzie voltou a entrar na cidade, atacando pelo lado indefeso.
De Nsukka, Achuzie marchou para o sul, na direção de Enugu, estabelecendo contato em Ukehe, uma pequena cidade na metade do caminho entre Nsukka e Enugu, com o Coronel Mike Ivenso, que avançara pelo mato. O episódio reanimou consideravelmente os biafrenses e transtornou os nigerianos que estavam em Enugu, pois aquela estrada era a sua principal rota de abastecimento. Mas a necessidade de deter Mohammed era premente demais. Relutantemente, Ojukwu ordenou que os dois coronéis seguissem para o sul, a fim de ajudar nos combates que se travavam entre Awka e Abagana. Mohammed conseguiu chegar a Abagana, a 26 quilômetros de Onitsha, na primeira semana de março.
Os combates se tornaram ainda mais encarniçados com a chegada dos batalhões de Achuzie e Ivenso. Mohammed, percebendo que estava numa situação quase desesperadora, pediu reforços urgentes e recebeu seis mil homens que estavam estacionados em Enugu. A cidade ficou praticamente indefesa. Se Ojukwu dispusesse de um batalhão de reserva, poderia ter retomado Enugu sem maiores dificuldades. Mas Mohammed continuava a avançar, até Ogidi, a 13 quilômetros de Onitsha, deixando o grosso de suas tropas em Abagana.
A vanguarda dos dois melhores batalhões Hausas, o 102. e o 105., comandados pessoalmente por Mohammed, entrou em Onitsha a 25 de março. Achuzie compreendeu que seria impossível deter os nigerianos, mas decidiu segui-los até Onitsha, tão de perto que não lhes daria tempo para se entricheirarem. Sua esperança era empurrar o inimigo até o rio Níger. O plano poderia ter dado certo, pois os dois batalhões nigerianos estavam exaustos. Mas, na estrada, outro batalhão biafrense pensou que os homens de Achuzie fossem nigerianos. Depois de esclarecido o equívoco, Achuzie seguiu em frente. Na Igreja Apostólica, ele e seus homens depararam com os cadáveres dos 300 membros da congregação, que tinham ficado para trás, rezando, enquanto os demais habitantes da cidade tratavam de escapar. Tinham sido arrastados para fora da igreja e sumariamente executados pelos Hausas. Os soldados biafrenses ficaram tão aturdidos que se recusaram a seguir em frente. Foram os oficiais que tiveram de assumir a tarefa extremamente desagradável de remover os cadáveres da estrada.
Achuzie voltou a avançar, mas houvera um atraso de 18 horas. Os nigerianos já tinham se entrincheirado. Achuzie tinha duas opções: tentar desalojar o inimigo de suas posições ou voltar para Abagana. A primeira opção deixaria seus homens esgotados e iria reduzir consideravelmente as reservas de munição. Assim, não ficariam em boas condições para enfrentar a força principal nigeriana, que já devia estar avançando pela estrada, procedente de Abagana. Houve uma violenta discussão entre Achuzie e os outros comandantes biafrenses, que afirmavam não existir qualquer outra força nigeriana. Achuzie conseguiu impor sua posição e armou-se uma imensa emboscada nos arredores de Abagana. Na manhã seguinte, ali apareceu a força principal nigeriana, um comboio de 102 caminhões, com seis mil homens a bordo e 350 toneladas de equipamentos.
A emboscada de Abagana foi a maior da guerra. Um morteiro atingiu o caminhão-tanque de oito mil galões. O caminhão explodiu e uma língua de fogo estendeu-se por 400 metros da estrada, atingindo 60 caminhões que iam atrás e que imediatamente se incendiaram. Os soldados sobreviventes entraram em pânico, pularam dos caminhões e correram. A infantaria biafrense estava à espera. Bem poucos escaparam com vida.
Mohammed conquistara Onitsha. Mas, dos seus vinte mil homens, levara dois mil para a cidade e perdera quase todos os outros no caminho. Lagos não ficou nada satisfeita. Mohammed atravessou o Níger numa pequena lancha e foi de carro até Lagos, apresentando-se ao QG. Desde então, não tem comandado mais nenhuma Divisão. O 102. e o 105, entrincheirados em Onitsha, foram substituídos pouco depois por tropas que atravessaram o Níger procedentes de Asaba. Não demorou muito para que houvesse cinco mil nigerianos em Onitsha. Apesar dos repetidos esforços biafrenses para reconquistar a cidade, Onitsha permaneceu sob o controle das forças federais e sua guarnição já tinha subido para oito mil homens, em novembro de 1968.
Abril de 1968 foi um mês desastroso para Biafra. No mês de fevereiro anterior, um grande número de assistentes técnicos, que os biafrenses julgavam ser sargentos britânicos enviados "em missão de treinamento", o que foi confirmado por fontes em Londres, tinha chegado à Nigéria. O efeito foi sentido em abril. As comunicações nigerianas pelo rádio melhoraram consideravelmente e os monitores biafrenses puderam ouvir vozes inglesas transmitindo instruções pelo éter. Manobras complexas e bem coordenadas, anteriormente além do alcance dos nigerianos, tornaram-se comuns. A manutenção de veículos do lado nigeriano também melhorou e a escassez de transporte verificada algumas semanas antes foi definitivamente resolvida. E o que era ainda mais importante: em abril, os nigerianos estavam construindo pontes Bailey para cruzar os rios, uma tarefa que não tinham conseguido realizar muito bem durante todos os meses anteriores da guerra. O Corpo de Engenharia do Exército Nigeriano, antes da guerra, era constituído quase que totalmente por orientais. Os biafrenses sabiam perfeitamente que a construção de pontes Bailey, no ritmo observado em abril, estava muito além da capacidade dos nigerianos. Não restava a menor dúvida de que eles estavam contando . com a ajuda de estrangeiros.
A leste de Enugu, os nigerianos atravessaram um desfiladeiro íngreme e estreito em Ezulu e • seus veículos blindados avançaram rapidamente por 20 quilômetros, indo capturar Abakaliki. Com isso, os biafrenses que estavam a leste de Abakaliki, enfrentando os nigerianos do outro lado do Anyim, ficaram isolados. Tiveram que recuar, indo formar uma nova linha de defesa ao sul de Abakaliki. Poucos dias depois, os nigerianos que estavam na província de Ogoja cruzaram o Anyim em outra ponte Bailey e estabeleceram contato com Abakaliki. Pela primeira vez, as duas alas da Primeira Divisão nigeriana faziam contato, dominando uma faixa que se estendia de leste para oeste, ao longo de todo o norte de Biafra.
A Terceira Divisão, de Adekunle, utilizando dois batalhões de mercenários negros do Chade, chamados gwodo-gwodo, subira pelo vale do rio Cross, na margem leste, até Obubra, a última grande cidade no território dos ekois. E ali ficaram paralisados durante 12 semanas, pela presença temível, na outra margem, do Major Williams, com cem comandos que ele treinara pessoalmente e mais sete mil franco-atiradores voluntários do clã Ibo da região, cujo chefe se tornara amigo pessoal do sul-africano. Esses guerreiros do rio Cross, fervorosamente pró-Biafra, patrulhavam permanentemente 110 quilômetros de rio, armados de bacamartes e facões.
Mas o afastamento de Williams no início de abril, para ir treinar outras tropas biafrenses, deu aos chadianos do outro lado do rio a oportunidade que estavam esperando. Em fins de abril, eles atravessaram o rio em dois pontos e capturaram Afikpo, a principal cidade daquele setor no lado oeste.
Foi mais ao sul que Adekunle obteve a principal brecha para avançar. Nos últimos dias de março, com a ajuda de especialistas britânicos em operações anfíbias, Adekunle efetuou dois desembarques através do rio Cross, no seu trecho mais largo, em torno de um quilômetro e meio. Capturando Oron e Itu em poucos dias, as suas colunas extremamente rápidas, lideradas por mercenários, se espalharam pelo território dos ibibios, capturando em uma semana, em rápida sucessão, Uyo, Ikot Ekpene, Abak, Eket e Opobo. O avanço foi facilitado pela disponibilidade de guias que conheciam as trilhas pelo mato, pela relativa dureza do solo depois do sol de inverno e por alguma colaboração de diversos chefes locais. Posteriormente, depois de várias semanas e finalmente meses de ocupação pelos homens de Adekunle, esses chefes começaram a fazer apelos patéticos ao Coronel Ojukwu. Nenhum contingente populacional de Biafra sofreu maiores brutalidades sob a ocupação nigeriana que os ibibios e os annangs.
No norte do território ibibio, onde começa a terra dos Ibos, a cerca de 50 quilômetros de Umuahia, os nigerianos foram detidos. De qualquer forma, o objetivo principal de Adekunle não ficava ao norte, mas sim a oeste: o grande prêmio que era Port Harcourt..
De abril em diante, a Primeira e a Segunda Divisões reduziram consideravelmente suas atividades e as atenções foram se deslocando cada vez mais para Adekunle, ao sul. A Segunda Divisão fez repetidas tentativas de dominar o caminho entre Onitsha e Abagana. Enquanto isso, a Primeira Divisão fortificava as diversas localidades ao longo da estrada principal Enugu-Onitsha. Os nigerianos podiam seguir em seus veículos até Abagana, mas não conseguiam chegar a Onitsha. Tal fracasso impediu quaisquer movimentos de maior envergadura para o sul, embora a Primeira Divisão desfechasse um ataque nessa direção em junho, capturando Awgu no dia 15.
Durante todo o verão de 1968, Adekunle tornou-se o mais importante dos comandantes nigerianos, sendo contemplado por Lagos com o maior dos novos suprimentos de armas e munições. Embora os efetivos da Primeira Divisão permanecessem estabilizados em 15 mil homens e os da Segunda Divisão em 13 mil homens," a Terceira Divisão, de Adekunle, responsável por todas as operações no sul, passou a contar com 25 mil homens, ao final de 1968.
Apoiando-se basicamente em especialistas estrangeiros em operações anfíbias, as unidades avançadas de Adekunle cruzaram o rio Imo, a última barreira antes de Port Harcourt, na segunda quinzena de abril. Adekunle precisava apenas percorrer 65 quilômetros para alcançar a maior cidade de Biafra.
No ponto em que Adekunle fez a travessia, o Imo corre para o sul, de Umu Abayi até seu estuário, em Opobo. Acima de Umu Abayi, o rio corre na direção oeste-leste, a 65 quilómetros de Azawa. Esse território oblongo, com 65 quilômetros de comprimento e 48 quilômetros de largura de norte para sul, é limitado a oeste pelo rio Bonny, no qual está Port Harcourt, e a sul por diversos riachos e uma região pantanosa, que vão terminar no mar aberto. Nesta área, separada de Port Harcourt, é que fica a estação geradora de energia elétrica de Afam, acionada por gás natural, responsável pela iluminação de todo o sul de Biafra, do centro petrolífero de Bori, da refinaria de 10 milhões de libras da Shell em Okrika e de numerosos poços de petróleo. Embora Port Harcourt seja basicamente uma cidade Ibo, a região ao redor é a terra dos ofionis, jkwerres e okrikans. O chamado povo dos Rios vive nos riachos e ao longo da margem oeste do rio Bonny.
Nessa ocasião, Biafra já estava abrigando cerca de quatro milhões de refugiados de outras áreas ocupadas. Havia aproximadamente um milhão e meio de Ibos e dois e meio milhões de minorias. Port Harcourt e a fértil região ao redor era a área principal , em que se concentravam os refugiados. A população anterior à guerra, que era de meio milhão, chegava naquele momento a quase um milhão.
Depois de um rápido acumulo de forças na margem oeste do Imo, repelindo os contra-ataques que visavam a eliminar as cabeças-de-ponte, a Terceira Divisão iniciou finalmente a marcha para Port Harcourt ao final de abril. As tropas biafrenses sofreram bastante com a vanguarda nigeriana habitual, formada por veículos blindados, que lançaram uma terrível barragem de granadas e morteiros. Atrás dos veículos blindados, veio a infantaria nigeriana. Numa última tentativa solitária de se opor ao avanço nigeriano, o combatente italiano que lutava com os biafrenses, Major Georgio Norbiatto, já praticamente sem munição, acabou desaparecendo em ação, presumivelmente morto.
Em meados de maio, Afam, Bori e Okrika já tinham caído. As defesas biafrenses eram prejudicadas pelos milhares de refugiados, enquanto o avanço nigeriano era ajudado por tropas locais, guias e voluntários. Alguns haviam sido trazidos de Lagos, inclusive o antigo estudante rebelde, Isaac Boro. que nessa ocasião apareceu como major do Exército Federal. Ele foi morto nos arredores de Bori.
Com um rápido movimento em gancho para a direita, os nigerianos cortaram a estrada que seguia de Port Harcourt para o norte, na direção de Aba. A 18 de maio, unidades nigerianas avançadas ocuparam os subúrbios orientais de Port Harcourt. Há dias que vinha ocorrendo um bombardeio maciço e a estrada que saía da cidade para noroeste, na direção de Owerri, estava atulhada com quase um milhão de refugiados, fugindo em busca de segurança. Essa maré humana imobilizou o Coronel Achuzie, recentemente designado para comandante do setor. Quando o caminho finalmente ficou desobstruído, os nigerianos já tinham se entrincheirado em Port Harcourt e ocupavam um dos lados do aeroporto, com os biafrenses no outro. Nessas posições, os dois lados ficaram praticamente paralisados durante um mês, a fim de recuperarem o fôlego.
No início de abril, o Major Steiner, o alemão que fora sargento da Legião Estrangeira e que era o mais graduado dos quatro mercenários brancos lutando por Biafra (o quarto era um inglês, que estava operando no setor do rio Cross como Williams, mas fora embora pouco antes), recebeu ordens do Coronel Ojukwu para formar e treinar uma brigada de choque, dentro do mesmo sistema e métodos dos pequenos grupos de combatentes que os quatro brancos estavam comandando separadamente na ocasião. Steiner, que tinha o seu próprio bando de guerrilheiros operando em torno do aeroporto de Enugu, causando a maior confusão e derrotas fragorosas aos nigerianos, levantou acampamento e ordenou a Williams que se juntasse a ele. Os dois começaram a preparar a Quarta Brigada de Comandos Biafrenses, uma unidade das mais controvertidas, que iria desempenhar um papel amplamente divulgado nas operações biafrenses contra o Exército Federal.
Williams queria permanecer no setor do rio Cross, mas foi transferido contra a vontade. Duas semanas depois que ele partiu, os gwodo-gwodo atravessaram o rio. Williams estava convencido de que sua permanência no setor teria evitado tal movimento. Com seu contrato expirando e desolado com o esmagamento de seus amados Ibos, Williams seguiu para Londres no início de maio. Mas, uma semana depois, já estava pedindo para voltar a Biafra. Voltou para cumprir um segundo contrato a 7 de julho. A esta altura, Steiner já treinara três mil homens, divididos em seis pequenos batalhões ou grupos de ataque. Estava pronto para entrar em ação. Quando lhe disseram que poderia escolher um setor para agir, optou pela estrada Enugu-Onitsha. Voltou para o norte, onde Williams foi ao seu encontro, ao retornar de Londres.
Durante o mês de julho, os comandos atacaram diversas posições da Segunda Divisão ao longo dessa estrada, com algum sucesso. Mais tarde, quando lhe foi perguntado por que não se juntara com a Primeira e a Terceira Divisões no "ataque final a Ibolândia", o Coronel Haruna, comandante da Segunda Divisão, reconheceu que todos os seus preparativos haviam sido anulados por esses ataques de comandos, que o obrigavam a manter grandes unidades deslocando-se de um lado para outro. As atividades dos comandos em Amansee, Uku e Amieni comprovaram a validade das teorias de Steiner, segundo as quais grupos pequenos e de extrema mobilidade são muito mais eficazes no território africano do que sólidas falanges de infantaria. Embora concordasse com o princípio, o Coronel Ojukwu foi posteriormente obrigado pelas circunstâncias a fazer com que os comandos voltassem a desempenhar um papel de infantaria ortodoxa.
Em junho, o Coronel Adekunle desfechou uma ofensiva ao sul de Port Harcourt, com ordens para capturar a parte ainda não ocupada do Estado dos Rios de Gowon, a oeste do Bonny. Nesse momento, o Coronel Ojukwu pediu que os chefes tribais das duas províncias meridionais, Yenagoa e Degema, fossem vê-lo. Disse-lhes que a natureza do território em que viviam era tão inconveniente para a defesa que não havia muita esperança de que o Exército Biafrense pudesse impedir o avanço dos nigerianos. Por isso, ofereceu aos chefes a oportunidade de optarem pela Nigéria, salvando-se assim de eventuais represálias. Neste caso, Ojukwu retiraria as tropas da linha defensiva ao norte das duas províncias, cedendo o restante da região à Nigéria.
Os chefes queriam dar uma resposta imediatamente, mas Ojukwu disse-lhes que voltassem para suas terras e conversassem sobre a proposta com os respectivos conselhos. No dia seguinte, chegou um mensageiro com a resposta dos povos dos Rios. Queriam permanecer como parte integrante de Biafra. Esperavam que Ojukwu providenciasse toda a defesa possível e iriam colaborar ao máximo. Compreendiam que isso poderia provocar represálias, mas estavam dispostos a assumir o risco.
Adekunle fez os povos dos Rios pagarem um alto preço por sua lealdade a Biafra. Como Ojukwu previra, era impossível defender o território contra uma força equipada com navios e pequenas embarcações. As unidades defensivas tinham que ser divididas em pequenos grupos, a fim de defenderem cada ilha e língua de terra. Os nigerianos podiam escolher à vontade o ponto de ataque e investirem do mar. Em meados de julho, já haviam ocorrido desembarques em Degema, Yenagoa, Brass e uma vintena de outros pontos. Por terra, as tropas de infantaria nigerianas avançaram através de Igritta, Elele e Ahoada, capturando o restante do "Estado dos Rios".
Até aquele momento, o Coronel Adekunle jamais operara fora dos territórios minoritários. Nunca operara na terra dos Ibos, ao contrário das outras duas divisões nigerianas, que só tinham enfrentado os íbos, à exceção da campanha da Primeira Divisão para capturar a província de Ogoja. Portanto, sob alguns aspectos, Adekunle não encontrara maiores. dificuldades, mesmo levando-se em consideração a sua enorme superioridade.
Não se pode dizer que os combates tenham sido menos encarniçados fora do que dentro do território Ibo ou que a maioria dos chefes dos grupos minoritários não tenha permanecido leal a Biafra. Mas, nas áreas minoritárias, era mais fácil encontrar dissidentes dispostos a colaborar, por convicção genuína ou desejo de tirar proveito da situação. Esses homens tinham prestado um serviço inestimável aos nigerianos, guiando as tropas federais através de atalhos que só eram conhecidos pelos habitantes locais.
Fora também mais fácil introduzir nas áreas minoritárias, algumas semanas antes de um ataque planejado, dezenas de agentes trazidos das comunidades minoritárias orientais de Lagos. Alguns desses agentes acabaram desertando e mudando de lado, assim que se viram novamente entre seu povo. Falaram de quantias fabulosas que estavam sendo distribuídas nas áreas minoritárias para a compra dos chefes locais, de agents provocateurs pregando o ódio aos Ibos e de ameaças de violentas represálias contra os habitantes locais que permanecessem leais a Biafra por ocasião do ataque iminente.
As técnicas nigerianas tiveram sucesso em algumas partes. É verdade que as promessas originais jamais foram cumpridas e o comportamento dos soldados nigerianos nas áreas conquistadas geralmente provocou uma rápida desilusão. A violência normalmente vinha em duas ondas. As tropas federais de combate avançavam primeiro, disparando contra todo e qualquer homem que aparecesse, independente da tribo a que pertencesse, destruindo e saqueando propriedades, independente de quem fossem. A violência dos soldados geralmente estava em proporção com as baixas que tinham sofrido a fim de capturarem uma posição. Assim, quando uma localidade caía facilmente, sem que fosse disparado um tiro sequer, quando a população mudava rapidamente para uma atitude pró-Nigéria, podia ocorrer períodos de amizade entre a infantaria e os habitantes locais. Isso jamais acontecia em território Ibo, mas cabe ressaltar que nenhum Ibo jamais teve qualquer dúvida a respeito do destino que o aguardava nas mãos dos nigerianos.
Depois que a infantaria de choque seguia adiante, chegavam as tropas de segunda classe, que iriam formar a guarnição local. Semanas depois, os habitantes locais descobriam que "Nigéria Unida" era um lindo slogan, mas uma terrível realidade, quando envolvia uma ocupação aparentemente indefinida por soldados que haviam sido encorajados a pensar que tudo em Biafra estava ao dispor deles, para fazerem o que bem entendessem. Era por isso que, ao final de 1968, algumas das áreas mais propícias à ação dos guerrilheiros biafrenses eram justamente as minoritárias que já estavam há algum tempo sofrendo a ocupação nigeriana.
Em julho, Adekunle preparou-se para a sua primeira ofensiva em território Ibo, começando a avançar na direção de Owerri. Formulara o "plano no O.A.U.", que previa a captura, em rápida sucessão, de Owerri, Aba e Umuahia. Um tanto inebriado pela sensação de sua própria importância e dominado por imensas ilusões a respeito de sua própria competência, Adekunle gabou-se de suas intenções de conquistar rapidamente o resto de Biafra. Seu comportamento extravagante começou a provocar inúmeras queixas e o General Gowon foi obrigado, por diversas vezes, a pedir desculpas em nome de Adekunle. Mas era óbvio que Adekunle podia dobrar Gowon quando queria alguma coisa e permaneceu assim no comando da Terceira Divisão.
Ao final de julho, suas tropas haviam avançado pela estrada de Port Harcourt para Owerri até Umuakpu. Estavam 37 quilômetros ao sul de Owerri. O Coronel Ojukwu, precisando ir a Adis Abeba, mas não querendo que Owerri caísse durante a sua ausência, ordenou a Steiner e seus comandos que deixassem Awka e fossem para lá.
A esta altura, já ficara evidente que Steiner contentava-se em comandar a Brigada e fazer o planejamento operacional, no que era muito bom, deixando os combates reais para Williams. Esse sul-africano magro, de origem galesa, reconhecia para qualquer um, jovialmente, que era meio doido. Tinha o hábito de provar que era à prova de balas ficando parado em meio a uma rajada de fogo, enquanto os homens ao seu redor eram atingidos, brandindo uma bengala e gritando obscenidades para os metralhadores nigerianos, que ficavam frenéticos de raiva. Mas os comandos biafrenses reagiam a essa bravata com a imitação e, assim, os "homens de Taffy" acabaram adquirindo a reputação de combatentes excepcionais. Os prisioneiros nigerianos confessavam que a infantaria federal não gostava de deparar com os comandos, o que deixava Steiner e Williams extremamente satisfeitos. A esta altura, eles já contavam com a companhia de outros três brancos, um corpulento escocês, um corso magro e de fala macia, mas extremamente perigoso, e um jovem rodesiano chamado Johnny Erasmus, que não era nenhum intelectual, mas sim um verdadeiro mago com explosivos.
Ao sul de Owerri, à frente de Umuakpu, Steiner determinou a Erasmus que preparasse uma sucessão de obstáculos no caminho dos nigerianos. Depois de três dias de trabalho, tendo derrubado mais de 200 árvores, escavado covas, plantado minas, preparado armadilhas individuais, improvisado arcos de fogo e semeado granadas sem os pinos, prontas para explodir a qualquer movimento, Erasmus anunciou que os nigerianos teriam de ficar em Umuakpu ou então usar pára-quedistas para poderem seguir adiante. Na verdade, os nigerianos jamais conseguiram superar os obstáculos que posteriormente foram contornados pelos flancos e destruídos pela retaguarda.
Deixando a infantaria biafrense entrincheirada por trás dessa Linha Maginot, Steiner mandou Williams e 500 comandos contornarem as forcas nigerianas pelo flanco. Eles atacaram no dia 4 de agosto, não em Umuakpu, mas na aldeia seguinte, Amu Nelu, que era o QG de um batalhão nigeriano. Uma hora depois, Williams e seus homens haviam destruído o QG, capturado uma grande quantidade de equipamentos, armas e munições e deixado cem nigerianos mortos na estrada. Voltaram a tempo de fazer a primeira refeição do dia. O efeito do ataque a Amu Nelu foi quase que imediato. Os nigerianos enviaram um emissário através das linhas, pedindo uma trégua local à infantaria biafrense.
Uma semana depois, os comandos tiveram que ser novamente transferidos, desta vez para Okpuala, na metade do caminho da estrada de Owerri para Aba. Os nigerianos estavam avançando do sul na direção desse entroncamento rodoviário. O escocês e o corso foram incumbidos de deter o avanço. Houve uma série de combates encarniçados e os dois acabaram sendo feridos. Mas uma força mista de infantaria e comandos deteve os nigerianos a alguma distância de Okpuala, até a queda de Aba.
Aba, protegida a sul e oeste por uma curva do rio Imo, era considerada a salvo de qualquer ataque. Era a maior cidade que ainda estava em poder dos biafrenses e estava agora apinhada de refugiados, não apenas os originais, mas também os que tinham chegado de Port Harcourt. Era também o centro administrativo de Biafra. Havia duas pontes através do Imo, uma na localidade de Imo, na estrada principal de Aba para Port Harcourt, a outra mais a oeste, em Awaza. A primeira ponte fora explodida. A segunda ainda estava intacta, mas toda minada. Foi a ponte de Awaza que os nigerianos escolheram para tentar a travessia. Quando os nigerianos apareceram na outra margem, os biafrenses explodiram as cargas. Mas tinham sido mal colocadas, num dos piores erros da guerra. A ponte desabou, mas um encanamento de gás, a poucos metros de distância, escapou à explosão. Havia um passadiço por cima desse cano. Sem munição, os biafrenses ficaram observando, impotentes, os nigerianos iniciarem a travessia do rio a pé, em fila indiana, por cima desse passadiço. Isso aconteceu a 17 de agosto. Williams foi imediatamente despachado para o setor com 700 homens, mas só pôde chegar na manhã do dia 19. A esta altura, os nigerianos já tinham transferido três batalhões de uma margem para outra.
Os comandos lutaram durante dois dias, tentando recuperai a cabeça-de-ponte. Mas enquanto dois batalhões federais mantinham os comandos a um quilômetro e meio da margem, o outro batalhão marchava para o sul e capturava a extremidade norte de outra ponte que ali havia. Compreendendo que era inútil continuar a luta naquele ponto, Williams recuou para a estrada Aba—Port Harcourt. Durante seis dias, a 12. Divisão biafrense, ajudada pelos homens de Williams, agora num total de mil, resistiram encarniçadamente à maré crescente de nigerianos que atravessavam o Imo a pé. Ao mesmo tempo, os nigerianos trabalhavam febrilmente, ao que se informa sob a supervisão de engenheiros militares russos, para reconstruir a ponte sobre o rio Imo, a fim de poderem transportar os equipamentos pesados para a outra margem.
Williams sustentando o eixo da linha de defesa, achava que os nigerianos não eram muito perigosos, enquanto não contassem com artilharia e veículos blindados, apesar de superarem os biafrenses em poder de fogo, inclusive na quantidade de morteiros. A ponte foi concluída a 24 de agosto e a coluna blindada nigeriana começou a avançar. A batalha que se seguiu foi a mais sangrenta de toda a guerra. Williams lançou os seus mil comandos ao ataque, ao invés de ficar esperando numa posição defensiva. Essa ousadia pegou os nigerianos desprevenidos. Três brigadas federais haviam sido destacadas para formar a coluna principal. A intenção era marchar rapidamente para Aba pela estrada principal, eliminando qualquer resistência sem maiores dificuldades e depois seguindo para Umuahia.
Durante três dias, Williams e Erasmus comandaram menos de mil biafrenses, armados com rifles de ferrolho, contra o orgulho do Exército Nigeriano. Não dispunham de bazucas, não tinham artilharia, contavam apenas com uns poucos morteiros. Os nigerianos lançaram uma chuva de granadas e morteiros e uma barragem de foguetes de bazucas contra as posições biafrenses, investindo com cinco carros blindados. Suas metralhadoras e rifles de repetição não pararam de disparar durante 72 horas. A base da defesa era a ogbunigwe, uma mina fantástica inventada pelos biafrenses. Parecia uma pirâmide com dinamite na extremidade mais estreita e o resto atulhado de bilhas, pregos, pedras, raspas de ferro e lascas de metal. A base da ogbunigwe era encostada contra um tronco, a fim de absorver o choque. A extremidade mais larga, coberta por madeira compensada, ficava voltada na direção da estrada por onde vinham as tropas atacantes. Á ogbunigwe era disparada por um fio e os técnicos aconselhavam a que o responsável ficasse o mais distante possível. Ao explodir, a ogbunigwe disparava a sua carga num arco de 90.° à frente, com um alcance mortífero máximo de 200 metros. Explodida a curta distância, a ogbunigwe pode destruir toda uma companhia e deter instantaneamente um ataque.
Os nigerianos avançaram pela estrada erectos, sem fazer qualquer tentativa de se abrigar, entoando seu grito de guerra, "Osbe-bey". Balançavam de um lado para outro, estranhamente. Williams, que lutara no Gongo, comentou imediatamente:
— Eles estão inteiramente drogados.
Erasmus começou a disparar as ogbunigwes quase à queima-roupa. Os nigerianos foram ceifados como pés de milho. Os sobreviventes continuaram a avançar, sempre balançando de um lado para outro. Um dos carros blindados Saladin teve os pneus destroçados e bateu em retirada. A munição biafrense acabou, mas a Brigada Nigeriana da vanguarda havia sido praticamente eliminada.
Impedidos de continuar a avançar pelas valas anti-tanque, os nigerianos empunharam suas pás e começaram a enchê-las de terra. À medida que uma turma era destruída pelos biafrenses, outra imediatamente avançava para continuar o serviço. Troncos derrubados, pesando muitas toneladas, eram removidos pelos nigerianos com os braços. As turmas que iniciavam a remoção dos troncos eram destroçadas pelos fragmentos das minas que havia por baixo e explodiam automaticamente.
No momento em que se iniciou a mudança da brigada nigeriana da vanguarda, Williams insistiu para que seus homens, apesar de exaustos, tratassem de tirar proveito da confusão, atacando rapidamente. Assim, os biafrenses recuperaram os cinco quilômetros de estrada que haviam perdido durante o dia e retornaram a suas posições originais. Esperando pelos combates do dia seguinte, os soldados trataram de dormir, enquanto Erasmus preparava novas armadilhas e Williams voltava a Aba, para buscar mais munição. Mas os aviões de munições não estavam chegando. Steiner, que fora promovido a tenente-coronel e transferira seu QG para Aba, apelou ao Supremo Comandante do Exército e depois ao próprio Coronel Ojukwu. Mas não havia mesmo qualquer munição disponível. Williams retornou ao front. Para o domingo, 25 de agosto, cada um de seus homens dispunha de apenas duas balas.
O domingo foi uma repetição do que acontecera no sábado e o mesmo aconteceu na segunda-feira. Depois, houve uma calma relativa durante seis dias. Comentou-se mais tarde que Adekunle lotara os hospitais de Calabar, Port Harcourt, Benin e até mesmo Lagos com os feridos da coluna de Aba. Jamais se divulgou quantos nigerianos realmente morreram naquela estrada, mas Williams calcula que devem ter sido quase 2.500.
Depois de se recuperar por um momento das terríveis baixas, a Terceira Divisão desfechou outro ataque contra Aba, mas desta vez não pela estrada principal. Os nigerianos contornaram os comandos pelo flanco direito, que não pôde resistir ao avanço dos carros blindados. Aba caiu a 4 de setembro, mas não sob um ataque frontal e sim pelo lado. Steiner conseguiu sair da cidade à frente de alguns cozinheiros armados de metralhadoras. O Coronel Achuzie quase sofreu uma colisão de frente com um Saladin nigeriano, ao contornar uma curva da estrada. Williams ainda estava dez quilômetros ao sul da cidade, resistindo tenazmente, quando Aba caiu. Ele se retirou com seus homens pelo mato.
O Coronel Ojukwu ordenou aos comandos que retornassem à sua base, a fim de serem recrutados mais homens, treinados e preparados para o combate. Dos dois setores em que os comandos estavam operando, Aba e Okpuala, voltaram mil homens, dos três mil que tinham sido transferidos para Awka nove semanas antes. Em meados de setembro, Steiner entrou de licença por duas semanas e Williams assumiu o comando interinamente.
O ataque a Aba, a 24 de agosto, tinha sido o sinal para "a ofensiva final contra o território Ibo", algo que jamais iria acontecer, conforme o comunicado oficial ao Parlamento Britânico. Todos os setores se incendiaram. No sul, os combates se estenderam de Ikot Ekpene, que já mudara de mãos seis vezes, até Owerri; e no norte, Haruna realizou uma vigorosa tentativa de romper o cerco em Onitsha e estabelecer contato com seus homens em Abagana, ao mesmo tempo que a Primeira Divisão atacava violentamente o aeroporto desmilitarizado da Cruz Vermelha, em Obikgu. O aeroporto caiu a 23 de setembro.
A 11 de setembro, os nigerianos desfecharam um rápido ataque pelo rio Orashi, avançando em barcos na direção de Oguta, uma pequena cidade à beira do lago, não muito longe do aeroporto de Uli. Os barcos atravessaram o lago sem serem vistos e os nigerianos desembarcaram tranqüilamente. Oguta ainda estava repleta de habitantes e refugiados e houve uma terrível matança. Depois da fuga dos habitantes, Oguta foi sistematicamente saqueada. Mais nigerianos atravessaram o rio Níger até a cidade, procedentes da região meio-oeste. Furioso, o Coronel Ojukwu reuniu seus comandantes e ordenou-lhes que retomassem Oguta em 48 horas. O próprio Ojukwu dirigiu as operações, tendo Achuzie como comandante operacional. Os biafrenses retornaram a cidade e os nigerianos fugiram para o rio, deixando para trás várias centenas de mortos, inclusive o seu próprio comandante.
Mas Oguta teve uma conseqüência. Algumas das tropas biafrenses utilizadas para a reconquista da cidade haviam sido retiradas do flanco direito de Umuakpu. A 13 de setembro, uma patrulha nigeriana, sondando os flancos, acabou descobrindo o ponto fraco. Foi desfechado um ataque que contornou as defesas pelo flanco e levou os nigerianos até Obinze, 16 quilômetros ao sul de Owerri. E dali, a 18 de setembro, os nigerianos partiram para Owerri, tendo à frente uma coluna de carros blindados.
No norte, a Primeira Divisão avançou de Obilagu e capturou a pequena cidade de Okigwi, também indefesa, já que era o centro distribuidor dos alimentos que a Cruz Vermelha recebia através do aeroporto de Obilagu. Ali, os nigerianos se distinguiram com o fuzilamento de um idoso casal de missionários ingleses, Sr. e Sra. Savory, e dois suecos que trabalhavam para a Cruz Vermelha. Isso aconteceu a 1º de outubro.
Dessa data em diante, a situação começou a mudar. O transportador de armamentos que falhara aos biafrenses em Aba e Owerri foi substituído, formando-se uma nova ponte aérea, que decolava de Libreville, no Gabão. Pilotos de nacionalidade britânica, sul-africana, rodesiana e francesa é que comandavam os aviões. Obtendo mais recursos, o Coronel Ojukwu teve acesso a um mercado europeu de armas bem mais amplo. Maiores quantidades te armas e munições começaram a chegar. Os biafrenses lançaram-se ao contra-ataque.
Steiner voltou da licença, mas ainda era um homem cansado. Nomeado comandante da recém-formada Divisão de Comandos, era evidente que não estava à altura da missão. Sofrendo de esgotamento nervoso, voltou a ser atacado pela doença mental que já o acometera algum tempo antes. Tinha ilusões de grandeza, juntamente com mania de perseguição. Seu comportamento tornou-se cada vez mais indisciplinado, até que deu ordens a seus homens para que roubassem três jipes da Cruz Vermelha para o seu uso pessoal.
Convocado a dar explicações, Steiner resolveu advertir o Coronel Ojukwu. O Chefe de Estado biafrense não teve alternativa que não dispensar seus serviços e mandar que se retirasse do país. Seis outros oficiais que Steiner trouxera ao voltar da licença também foram embora. Williams assumiu o comando interinamente, entregando-o posteriormente a um general-de-brigada biafrense. Mas ainda travou duas outras batalhas durante o período em que esteve no comando. Entre 10 e 12 de novembro, uma das três brigadas da Divisão desfechou uma série de ataques contra Onitsha. Não conseguiu retomar a cidade, mas reduziu o perímetro nigeriano à metade do tamanho anterior e atenuou consideravelmente o perigo de os nigerianos romperem o cerco.
Os ataques poderiam ter continuado se os nigerianos aquartelados em Awka não tivessem desfechado uma ofensiva para o sul, a fim de capturar as aldeias de Agolo e Adazi. A investida ameaçava o coração do território biafrense. Os comandos no setor contra-atacaram, ajudados por dois batalhões de infantaria. Os nigerianos foram novamente derrotados e voltaram para Awka.
Em toda parte estava se verificando a mesma coisa em novembro e dezembro. Os biafrenses contra-atacaram na maioria dos setores, especialmente em Aba e Owerri. Em Aba, o Coronel Timothy Onuatuegwu repeliu as tropas federais de volta aos arredores da cidade e depois deslocou seus homens para os flancos direito e esquerdo. Em Owerri, o Coronel John Kalu recuperou quase 400 quilômetros quadrados de terreno em torno da cidade e cercou inteiramente os nigerianos.
Esse relato seco dos acontecimentos de 18 meses podem dar a impressão de que os avanços nigerianos em Biafra foram fáceis e constantes. Mas não foi o que aconteceu. Além de uma ou outra ocasião em que avançaram sem qualquer resistência, as tropas nigerianas tiveram que lutar arduamente por cada palmo de terreno conquistado. Muitas vezes, os objetivos só eram capturados na terceira ou quarta tentativa. Em muitas ocasiões, os nigerianos ficaram bloqueados durante meses a fio. Os gastos de munição, numa estimativa moderada, podem ser avaliados em várias centenas de milhões de cartuchos. As baixas se elevaram a várias dezenas de milhares de homens.
Os nigerianos também não conseguiram controlar e administrar os territórios que conquistaram. Permanecendo nas proximidades das estradas principais e das cidades, evitando o matagal que cobre mais de 90 por cento da região, os nigerianos traçaram linhas nos mapas que tinham pouca relação com as realidades da situação. Seus administradores ficavam nas cidades e competiam por autoridade com os administradores biafrenses, que se estabeleciam no mato, nas áreas conquistadas. Freqüentemente, a autoridade do administrador biafrense é que prevalecia na maior parte da terra e abrangia o grosso da população, basicamente rural.
O segredo da sobrevivência de Biafra está em parte na liderança do Coronel Ojukwu. Muito mais importante, porém, é o comportamento do povo. Nem o líder nem o Exército poderiam ter lutado sem o total apoio da população. Esse apoio é indispensável para que um exército possa oferecer mais que uma resistência simbólica. O povo contribuiu para o esforço de guerra com tudo o que tinha. As aldeias pobres fizeram coletas, os homens ricos esvaziaram suas contas no exterior, doando dólares e libras. Os alfaiates faziam uniformes com tecido para cortinas, os sapateiros fabricavam botas com peças de lona. Os fazendeiros doavam inhame, mandioca, arroz, cabras, galinhas e ovos. Os habitantes do sertão apresentavam-se para combater com bacamartes e facões. Os motoristas de táxis e os donos de furgões de entrega transportavam os comboios de tropas, os padres e os professores primários cediam suas bicicletas.
Houve alguns traidores e trapaceiros, desertores, aproveitadores, exploradores do mercado negro. Mas homens assim sempre aparecem em todas as guerras. Mas o povo propriamente dito não realizou qualquer manifestação de protesto contra a guerra, não se amotinou, não se rebelou. Vendo sua terra devastada e contemplando seus conterrâneos serem mortos impiedosamente, os biafrenses sentiram duas coisas despertarem em meio aos destroços: um sentimento de nação e um ódio profundo contra os nigerianos. O que começara como uma crença, transformou-se numa convicção total: a de que nunca mais poderiam voltar a viver com os nigerianos. É disso que deriva a realidade política básica da atual situação. Biafra não pode ser eliminada, a menos que se providencie a total erradicação do povo que a constitui. Mesmo sob a ocupação total, com ou sem o Coronel Ojukwu, Biafra haveria de se levantar novamente, mais cedo ou mais tarde. Ao longo do ano de 1969, ocorreram bem poucas alterações territoriais de monta. Ao final do ano, a guerra estava num impasse. O novo ano começou com uma ordem do Coronel Ojukwu, a 3 de janeiro, para que duas brigadas da Divisão "S" fossem transferidas da frente de Aba, sob o comando do Coronel Onuatuegwu, para a frente de Owerri, a fim de ajudarem o Coronel Kalu e a 14. Divisão no assédio à cidade.
Durante o resto do mês, com suas unidades avançadas dentro dos subúrbios ao norte da cidade, os dois comandantes biafrenses atacaram frontalmente a guarnição federal. Sofreram baixas pesadas, sem conquistarem muito terreno, já que os nigerianos estavam bem entrincheirados e eram muito bem abastecidos com todas as armas e munições de que precisavam, através da estrada ao sul da cidade e que levava a Port Harcourt. Ao final de janeiro, numa conferência com o Coronel Ojukwu e com o Coronel Kalu, Onuatuegwu propôs que a tática de ataque frontal fosse mudada e que o poder de fogo biafrense fosse usado para tentar limpar os flancos de Owerri e fechar a linha de abastecimento nigeriana. Era a mesma tática que ele vinha aplicando em Aba, antes de ser transferido.
O plano foi aceito. Ao longo do mês de fevereiro, os dois comandantes dominaram as aldeias ocupadas pelos nigerianos, a leste e oeste de Owerri, até finalmente atacarem a cidade pelo sul, com toda força. A conclusão do cerco e a interrupção da última linha de abastecimento nigeriana ocorreu a 28 de fevereiro. O cerco se manteve durante todo o mês de março, apesar das repetidas tentativas das forças federais de o romperem e irem ajudar a brigada sitiada em Owerri. A Força Aérea nigeriana teve que abastecer as tropas federais sitiadas pelo ar, lançando munições de pára-quedas. Como eram inexperientes nesse tipo de operação, cerca de 70 por cento dos suprimentos caíram além do perímetro defensivo nigeriano, nas mãos dos biafrenses. Entre os suprimentos havia grandes quantidades de armas russas, como o Kalashnikov AK-47, canhão autopropulsado, e a munição adequada.
No início de abril, até mesmo esses suprimentos cessaram. Os biafrenses, compreendendo que não poderiam mais contar com esse maná caído do céu, reiniciaram os ataques contra a guarnição federal, cada vez mais desmoralizada, utilizando freqüentemente os armamentos federais que lhes tinham sido involuntariamente lançados.
Durante o mês de março, uma força de socorro relativamente forte fora despachada de Port Harcourt, com a missão de reabrir o caminho para Owerri. Mas acabara se desviando da estrada principal, quase intransitável, indo finalmente parar em Ohuba, cerca de 14 quilômetros ao sul de Owerri. Ali permaneceu até o final de 1969.
Depois de 20 dias de incessantes ataques dos biafrenses e com uma tremenda escassez de alimentos e munições, o comandante nigeriano em Owerri, Coronel Utuk, reuniu seus comandantes de batalhões na noite de 22 de abril. Decidiram que desafiariam as ordens do Coronel Adekunle, que estava em Port Harcourt e determinara que resistissem em Owerri até o fim, tentando sair da cidade. Durante a noite, toda a guarnição, inclusive os feridos que embarcaram nos caminhões, se alinhou numa coluna dentro da cidade, virada para o sul. As patrulhas nos arredores meridionais da cidade haviam constatado que o batalhão biafrense que guardava a estrada para o sul era relativamente fraco. Não era a estrada principal, bastante avariada, mas sim uma estrada secundária, de terra, um pouco a leste da outra. Na manhã de 23 de abril, tendo à frente dois carros blindados Saladin, a coluna atacou o batalhão biafrense e conseguiu romper o cerco. Saindo da cidade, a coluna seguiu na direção da parte principal da Terceira Divisão nigeriana, cujas unidades avançadas estavam em Umuakpu e Amu Nelu, onde Taffy Williams as detivera, dez meses antes.
Ao ser informado que a guarnição federal de Owerri conseguira romper o cerco e sair da cidade, o Coronel Onuatuegwu despachou às pressas dois batalhões para persegui-la. Os dois batalhões alcançaram a retaguarda da coluna federal oito quilômetros ao sul de Owerri. Batendo em retirada para o sul, os nigerianos foram obrigados a travar combates de retaguarda encarniçados. Atacada pela retaguarda e pelos flancos, constantemente emboscada, a coluna federal foi praticamente destroçada. Somente algumas dezenas de homens extenuados é que conseguiram alcançar a segurança das posições avançadas nigerianas, em Amu Nelu, 37 quilômetros ao sul de Owerri. A maior parte do equipamento se perdera e as baixas haviam atingido mais da metade dos efetivos.
Os biafrenses reocuparam Owerri no mesmo dia, 23 de abril, começando a recuperar a cidade destruída e espoliada. Duas semanas depois da perda de Owerri, que abalou terrivelmente o moral nigeriano, o Coronel Adekunle perdeu o seu comando e foi transferido de volta para Lagos, a fim de assumir um posto de treinamento de novas tropas. Até o final de novembro de 1969, apesar das repetidas tentativas de avançar, as tropas federais ficaram detidas em Chuba e Umuakpu. Owerri tornou-se a nova capital do governo biafrense.
A alegria dos biafrenses pela retomada dessa cidade importante e estratégica foi prejudicada pela perda recente de sua capital anterior, Umuahia. Enquanto a retomada de Owerri foi longa e árdua, a captura de Umuahia pelas tropas federais foi o resultado de outro ataque rápido e total, apoiado num tremendo poder de fogo. Durante os três meses da primavera, enquanto a estação das chuvas se aproximava, a preocupação do governo federal não fora a de reforçar a prestigiosa Terceira Divisão, ao sul, mas sim a de aumentar o poderio da menos conhecida Primeira Divisão, ao norte. Ao longo dos três últimos meses de 1968 e dos três primeiros de 1969, grandes quantidades de armamentos russos recém-chegados foram entregues à Primeira Divisão. No dia 26 de março, para coincidir com a chegada à Nigéria do Sr. Harold Wilson, a Primeira Divisão iniciou sua ofensiva, partindo simultaneamente de Okigwi e Afikpo.
As duas vanguardas contavam com meia dúzia de carros blindados e eram apoiadas por morteiros e uma forte artilharia. A 1º de abril, foram alcançadas as cidades de Bende e Uzoakoli, travando-se combates encarniçados nos dois setores. A perda de Uzoakoli era terrivelmente desastrosa para os biafrenses, pois lá estava a refinaria de petróleo que haviam construído, depois de perderem Port Harcourt, em maio do ano anterior. A refinaria estava produzindo cerca de 30.000 galões de petróleo refinado por dia, funcionando em plena capacidade. Estava prestes a resolver o problema de escassez de combustível que atormentava os biafrenses desde que haviam esgotado suas reservas, em novembro do ano anterior.
Por alguns dias, parecia que as tropas federais poderiam ser contidas nessas duas cidades. Bende era também muito importante, porque dominava uma sucessão de colinas por onde se poderia chegar facilmente a Umuahia. Mas, a 7 de abril, uma coluna nigeriana atravessando os campos capturou a cidadezinha de Ovim, na linha ferroviária que ia para Umuahia. A 10 de abril, as granadas nigerianas começaram a cair nos arredores de Umuahia. Providenciou-se rapidamente a evacuação da população civil.
Umuahia caiu no dia 15 de abril, embora continuasse a haver combates esporádicos por mais alguns dias. O último homem a deixar a cidade foi o Coronel Ojukwu, que dirigira muitos combates pessoalmente, de sua casa ao final da estrada de Okpara.
Apesar da captura, o domínio nigeriano sobre a cidade era bastante débil. Como sempre acontece em casos assim, os biafrenses se desorganizaram quando a cidade caiu, mas voltaram rapidamente a se reagrupar e contra-atacaram uma semana depois. As linhas federais de abastecimento para Umuahia, passando por quilômetros e quilômetros de região montanhosa ao norte e nordeste da cidade, eram altamente vulneráveis. Por diversas vezes, no início do verão, a guarnição teve que pedir um abastecimento pelo ar para conseguir se sustentar. Ao final do ano, Umuahia, como Aba, estava cercada por três lados, um posto avançado na extremidade de um corredor longo e extremamente vulnerável em meio a território hostil.
Além dessas duas grandes campanhas, todas as outras frentes permaneceram relativamente estabilizadas. No início de março, a Segunda Divisão federal, baseada em Onitsha, iniciou uma ofensiva, partindo simultaneamente de Onitsha para Awka e de Awka para Onitsha, num esforço para capturar os dez quilômetros de estrada que ainda estavam em poder dos biafrenses e separavam as duas metades da divisão. Conseguiram dominar toda a estrada, estabelecendo um contato rodoviário durante duas semanas.. Os biafrenses contra-atacaram e recuperaram o trecho da estrada. Em junho, penetraram nos subúrbios orientais de Onitsha.
Tirando esses movimentos, não aconteceu praticamente coisa alguma no norte durante todo o ano de 1969. No sul, pela primeira vez, os biafrenses é que tomaram a iniciativa, em quase todos os setores. Tendo aprendido a lição das novas táticas usadas em Owerri, não lançaram ataques frontais maciços em parte alguma. Preferiram se concentrar na retomada, uma a uma, das pequenas aldeias capturadas pelos nigerianos. Assim, ao final do ano, era possível percorrer toda a estrada de Owerri para Aba, que anteriormente estivera nas mãos das tropas federais, chegando-se a oito quilômetros de Aba. A guarnição federal fora expulsa de Okpuala e o Padre Kevin Doheny pôde reabrir o seminário que ali funcionava. Owerri também foi retomada e as forças federais tiveram que recuar para Amala, oito quilômetros ao sul da estrada em que os mercenários escocês e corso, à frente de um destacamento de comandos, tinham travado uma batalha encarniçada em agosto de 1968. No total, cerca de 2.600 quilômetros quadrados de território foram recuperados pelos biafrenses, no setor meridional, durante o ano de 1969.
Podem-se apontar cinco motivos para essas vitórias, um tanto limitadas. Em primeiro lugar, foram devidas à mudança de táticas, abandonando-se os ataques frontais a um inimigo melhor armado e passando-se a tirar maior proveito dos ataques pelos flancos, emboscadas e táticas de guerrilhas. Em suma, a adoção das táticas que Williams, que partira em fevereiro sem que seu contrato fosse renovado para um terceiro termo, sempre defendera em vão. Em segundo lugar, foram devidas a uma queda constante no moral da infantaria federal. Ao longo do ano, as chuvas de verão caíram abundantemente e a terrível logística do Exército Nigeriano fez com que os homens da linha de frente ficassem carentes de alimentos e munições. Os prisioneiros nigerianos diziam que quase todos os seus companheiros estavam cansados da guerra e queriam voltar para casa, não estavam dispostos a correr o risco de morrer em algum ataque suicida ordenado por oficiais superiores que não saíam da segurança da retaguarda. Em ambos os lados, havia um cansaço da guerra generalizado, mas os soldados biafrenses pelo menos estavam em sua terra, contavam com o apoio da população e estavam melhor armados que em qualquer outra ocasião anterior.
Os outros três motivos para a mudança de situação envolvem os armamentos. Em primeiro lugar, a principal vantagem federal em todos os ataques, até o final da primavera de 1969, tinha sido os carros blindados, que os biafrenses não tinham condições de enfrentar. Mas, em 1969, os biafrenses adquiriram uma quantidade substancial de bazucas de boa qualidade e um grande suprimento de foguetes. Algumas eram do tipo soviético, uma bazuca extremamente leve e eficiente, acurada até 300 metros de distância e de fácil manutenção. Outras eram mais complexas, do tipo francês LRAC, fabricadas no mundo ocidental. Em 1968, o treinamento para uso dessas armas fora por demais rudimentar. Mas, em 1969, dois oficiais europeus treinaram as equipes biafrenses de bazucas para utilizarem as armas de maneira apropria da. Assim, a infantaria biafrense não demorou a perder o temor que sempre tivera dos Saladins e Ferrets. Esses veículos blindados foram-se tornando cada vez mais escassos, à medida que sua expectativa de vida foi-se tornando cada vez mais curta.
Em segundo lugar, o nível geral das armas e poder de fogo dos biafrenses foi melhorando cada vez mais, durante 1969. Numa entrevista coletiva, a 4 de novembro, em Owerri, o General Ojukwu (ele aceitara a promoção ao posto de general que lhe fora concedida pela Assembléia Consultiva em março de 1969) declarou:
— Estamos infinitamente melhores em poder de fogo do que <m qualquer outra ocasião, desde que a guerra começou.
Ojukwu acrescentou que o aumento principal fora em armas de apoio, isto é, bazucas, artilharia, morteiros e metralhadoras pesadas. O treinamento para o uso dessas armas também fora melhor em 1969 do que em 1968. O efeito dessas mudanças, na situação biafrense, foi o de quase anular as vantagens que o Exército Federal desfrutara por tanto tempo que praticamente passara a encarar como normais.
Finalmente, a diferença foi causada também pela nova Força Aérea Biafrense, que desfechou seu primeiro ataque a 22 de maio de 1969 e foi-se tornando cada vez mais forte pelo resto do ano. A história da Força Aérea Biafrense não pode ser devidamente contada, já que uma grande parte ainda é desconhecida. Mas suas atividades e seus sucessos são conseqüência em larga escala da atuação e personalidade de um extraordinário piloto veterano sueco, o Conde Cari Gustav von Rosen.
Esse aviador (ver referência no Capítulo 11) era o principal piloto do sistema de socorro a Biafra da Ajuda das Igrejas Nórdicas. A 10 de agosto de 1968, decolara de São Tomé e fizera um vôo rasante até Biafra, à luz do dia, para mostrar que o monopólio de ajuda da Wharton podia ser quebrado. Ao final de setembro, depois de muitas divergências com seus empregadores, a empresa Transair, e com a organização que a contratara, a Nord Church, Von Rosen renunciou a seu posto em São Tomé e voltou para a Suécia.
No Natal de 1968 apareceu em Umuahia, Biafra, levando uma carta do Imperador Hailé Selassié, que era amigo pessoal do Coronel Ojukwu. No dia de Natal, ele se encontrou com o autor, em Umuahia. Estava quase em lágrimas, depois de testemunhar a devastação e carnificina de três ataques aéreos desfechados pela Força Aérea Nigeriana contra Umuahia, naquele dia. Algumas das bombas haviam atingido uma casa repleta de crianças e o espetáculo deixou o Conde von Rosen profundamente transtornado, como já acontecera antes com diversos jornalistas, que tinham presenciado espetáculos similares.
Posteriormente, enquanto tomava café, o idoso piloto sueco, que estava a um ano da aposentadoria na Transair, falou de sua determinação em voltar a Biafra e destruir a Força Aérea Nigeriana, cujos aviões eram pilotados principalmente por egípcios. À medida que as horas foram se arrastando, Von Rosen elaborou um plano detalhado, resolvendo todos os problemas no momento mesmo em que os imaginava, para comprar aviões leves, de um tipo extremamente flexível, equipado com foguetes ou bombas e a serem utilizados em vôos rasantes, por cima das copas das árvores, para destruir os MIGs e Ilyushins no solo. Von Rosen estava convencido de que a fuga depois do ataque seria perfeitamente possível, por causa do elemento surpresa e do vôo em baixa altitude. Pintados de verde por cima e de azul por baixo, voando um pouco acima das copas das árvores, os aviões dificilmente seriam percebidos até o momento em que atacassem e seria praticamente impossível segui-los depois.
Na ocasião, parecia apenas uma dessas conversas sem conseqüências que os pilotos tanto apreciam. Mas Von Rosen fez exatamente o que dissera naquela dia. Â 22 de maio, o Conde von Rosen desfechou o seu primeiro ataque contra o aeroporto de Port Harcourt, disparando foguetes de monoplanos leves MFI Minicod, de fabricação sueca, e destruindo um Ilyushin e dois MIGs que estavam parados na pista. Cinco Minicons foram utilizados nesse ataque, três pilotados por suecos e dois por biafrenses que Von Rosen treinara no Gabão.
Nos meses subseqüentes, os Minicons atacaram incessante mente os aeroportos federais. Ao final do ano, haviam destruído cerca de 30 aviões de combate e de transporte, inclusive três dos bombardeiros que quase todas as noites atacavam o aeroporto de Uli, quando chegavam os aparelhos com os suprimentos que Biafra precisava tão desesperadamente. Depois de atacarem bastante os aeroportos, os Minicons, agora pilotados tão-somente por biafrenses, começaram em meados de junho a atacar também as instalações petrolíferas, que proporcionavam à Nigéria a maior parte das divisas estrangeiras e do crédito para comprar armamentos.
Ao final do ano, essa pequena força aérea já causara danos suficientes para convencer a Shell de que era melhor suspender temporariamente suas operações no território continental da Nigéria. À medida que outras companhias seguiram o exemplo da Shell, depois de verem suas instalações destruídas por foguetes, o petróleo que fluía da Nigéria reduziu-se a um meio filete. Pela primeira vez, desde que a guerra começara, os círculos comerciais britânicos começaram a ter dúvidas em relação à atitude que haviam assumido.
Em meados do verão, o Conde von Rosen entregou totalmente o encargo de pilotar os aviões a jovens e entusiastas biafrenses, treinados por seus dois colegas suecos no Gabão, e passou a dedicar-se mais a um trabalho de organização. E esse trabalho começou a produzir resultados a 2 de novembro de 1969, quando dois Harvards pousaram no aeroporto de Uli, a fim de se juntarem aos Minicons na pista camuflada, no meio do mato, onde estavam baseados. A esta altura, já havia 15 Minicons em operação. Os Harvards de dois lugares, monoplanos de asas baixas, haviam sido originalmente projetados como aparelhos de treinamento, para a Força Aérea Canadense. Mas verificou-se posteriormente que eram extremamente eficazes e flexíveis nas operações contra os simbas, no Congo. Equipados com bombas, foguetes ou metralhadoras, constituíam uma plataforma ideal para operações ar-terra no estilo de guerra africano, bem melhores que caças a jato.
Os dois pilotos eram alemães. Um deles era Fred Herz, que pilotara o velho B-25 de Biafra, em janeiro de 1968. A 10 de novembro, os dois Harvards, acompanhados por três Minicons que cuidariam do fogo antiaéreo, realizaram seu primeiro ataque a Port Harcourt, destruindo três novos MIGs que ali estavam, três aviões de carga, o último dos bombardeiros que atacavam Uli, o hangar principal, o depósito de combustível e a torre de controle. Ao final do ano, dois caças-bombardeiros a jato British Meteor iriam se juntar ao que o General Ojukwu costumava chamar de mini-Força Aérea.
Os ataques contra as instalações petrolíferas, que representaram o esforço máximo de Ojukwu a fim de exercer pressão sobre os governos nigeriano e britânico para obter um cessar-fogo, foram efetuados apenas em parte pelos Minicons. Eram complementados por operações ao estilo de comandos, contra instalações solitárias no mato.
Pensando em parte nessa tática, o General Ojukwu incumbiu o Coronel Joe Achuzie, em março de 1969, de retornar à sua região natal, o meio-oeste, com uma força de comandos, a fim de fomentar um movimento de insurreição entre os ica-ibos, que levavam uma existência precária desde a retirada dos biafrenses, em outubro de 1967, escondendo-se quase o tempo todo no mato denso ou refugiando-se na margem ocidental do Níger. Pouco se ouviu falar de Achuzie, a não ser em rumores ocasionais em Lagos sobre a crescente atividade de guerrilheiros nas áreas de língua Ibo do meio-oeste, até 9 de maio.
Nesse dia, pouco antes do amanhecer, uma unidade de Achuzie atacou e capturou uma instalação petrolífera em Kwale. A companhia do Exército Nigeriano que deveria proteger a instalação fugiu precipitadamente, deixando entregues à própria sorte os 29 brancos que ali trabalhavam. Onze brancos, dez italianos e um jordaniano, foram mortos na confusão. Os outros 18, 14 italianos, três alemães e um libanês, foram capturados e despachados para o outro lado do Níger.
Alguns desses prisioneiros, que supostamente estavam armados, foram julgados como mercenários, considerados culpados e condenados a morte. Quando a notícia se divulgou, a imprensa européia ficou quase histérica. É altamente duvidoso que o General Ojukwu pretendesse realmente executar esses prisioneiros. Tudo indica que não era essa a sua intenção. A sentença, no entanto, provocou a maior revolta, abalou os reis do petróleo e levou os diretores da Agip, a corporação petrolífera italiana, que contratara os homens, a entrar em negociações com Ojukwu. E Biafra sofreu a pior publicidade que se podia imaginar.
Apesar disso, Ojukwu ficou relativamente satisfeito com os resultados do episódio. Conseguira o que desejava, que era despertar alguma reação direta dos donos do petróleo. Todos ficaram convencidos de que o Exército Nigeriano, apesar de suas promessas, não tinha condições de proteger os empregados das companhias petrolíferas. Não foi por acaso que, logo depois, todas as companhias petrolíferas retiraram boa parte dos seus homens que trabalhavam em instalações nas áreas de Biafra ocupadas pelos nigerianos. Mas ainda restava decidir o que fazer com os 18 brancos condenados.
Ao final, Ojukwu cedeu a um apelo de clemência do Papa. No dia 6 de junho, numa cerimônia diante da cadeia de Owerri, onde estavam os 18 homens, eles foram entregues a uma delegação da Caritas, o Conselho Mundial de Igrejas, e a representantes do Gabão e da Costa do Marfim. Na mesma noite, os homens foram levados de avião para o Gabão e de lá transportados para suas pátrias.
A única outra pessoa branca a cair prisioneira dos biafrenses, em circunstâncias incomuns, foi uma enfermeira britânica, Miss Sally Goatcher, que estava trabalhando para o Fundo Salvem as Crianças, no lado nigeriano da linha de frente. Acidentalmente, ela atravessou as linhas de carro, ao sul de Uli, no dia 29 de maio. Foi prontamente capturada. Ficou presa até 16 de junho, quando foi libertada e repatriada de avião, através de Libreville, Gabão. Nem ela nem os trabalhadores petrolíferos manifestaram qualquer ressentimento contra os biafrenses e todos concordaram que tinham sido bem tratados durante o cativeiro.
Ao longo do outono, continuaram a transpirar informações da Nigéria de que o Exército Federal estava lentamente se preparando para outra "ofensiva final". Apesar da credibilidade de alguns repórteres, que se contentaram em informar a seus leitores que os seis meses de relativa inatividade do Exército Nigeriano, de abril a outubro, eram uma decorrência da bondade do General Gowon, que se recusava a dar ordem de avançar e esmagar o que ainda restava de Biafra, os que desejavam ou eram capazes de perceber alguma coisa sob a superfície da propaganda encontravam dois motivos para a suspensão temporária de quase todos os combates. Não apenas as trilhas pelo mato haviam sido reduzidas a um lodaçal, sobre o qual nada de roda podia avançar, mas também grandes trechos das estradas pavimentadas haviam sido praticamente destruídos. O outro motivo era que a logística e a situação do abastecimento do Exército Federal, não muito eficientes mesmo nos melhores momentos, haviam se deteriorado consideravelmente ao longo do verão, chegando a um ponto insustentável. Isso se devia em parte às chuvas intensas, que tornavam muito difícil para os comboios se deslocarem por longas distâncias. Mas era devido também ao péssimo estado dos caminhões, que passavam a maior parte do tempo imobilizados, depois de quase dois anos sem qualquer manutenção. Além disso, havia também as crescentes emboscadas de guerrilheiros, que exigiam grandes escoltas de tropas federais para acompanhar os comboios.
Não obstante, as tropas federais ficaram finalmente prontas para entrar em ação e desfecharam a ofensiva em meados de outubro. E foi um fracasso ainda mais fragoroso que todos os anteriores.
Era comum, antes de qualquer "ofensiva final", que fossem irradiadas de Lagos exortações aos soldados, complementadas por discursos dos comandantes de divisões e brigadas. Nessa ocasião, falando através da rede de rádio das forças armadas, o General Gowon exortou seus homens a um último e final ataque contra os biafrenses. Deu-se ao trabalho de repetir várias vezes que teria de ser o último ataque, que para as tropas era agora ou nunca. Gowon nunca fizera isso antes.
O fracasso da ofensiva foi decorrência em parte da falta de entusiasmo dos homens que estavam nas linhas de frente, em parte da melhoria dos armamentos biafrenses e em parte da péssima estratégia. A ofensiva começou com a Primeira Divisão, no norte, agora sob o comando do Coronel Bissalla, que despachou as suas duas melhores brigadas de Okigwi, a 22 de outubro. Travou-se uma batalha encarniçada, que se prolongou por 10 dias. Em determinado momento, tudo indicava que os nigerianos conseguiriam romper a linha defensiva e abririam assim a estrada na direção de Orlu e do importantíssimo aeroporto de Uli. Ironicamente, o fato decisivo na batalha foi a Força Aérea Nigeriana.
Segundo os relatos de europeus que testemunharam os acontecimentos, os pilotos alemães orientais, que agora pilotavam os MIGs nigerianos com extrema perícia, pensaram que as tropas federais avançando fossem os biafrenses e atacaram-nas brutalmente por duas vezes, em três dias. A destruição foi tão terrível que o moral dos nigerianos ficou abalado e eles acabaram recuando para as linhas originais. Houve ainda outros dois fatores, além do nível superior do poder de fogo dos biafrenses. Um deles foi uma nova mina. projetada e construída pelos biafrenses. Era chamada de "ogbunigwe voadora" e tinha a forma de um foguete de 13 polegadas, com cerca de dois metros de comprimento, tendo na extremidade uma mina de terra do tipo já descrito anteriormente.
Essa engenhoca era disparada por combustível de foguete a uma distância aproximada de 600 metros, para explodir no ar, 15 metros acima das tropas que atacavam, virada para baixo. Semeava a morte e a destruição por uma ampla área. Como sempre acontecia, a Primeira Divisão, sendo integrada em sua maior parte por Hausas e outros nortistas, estava avançando* em falanges sólidas e compactas. Um americano que examinou posteriormente o local da batalha, calculou que, dos seis mil homens que iniciaram o ataque, cerca de quatro mil não voltaram.
O outro fator importante no fracasso da ofensiva nigeriana foi a nova Força Aérea Biafrense, cujos Minicons sempre encontravam os caminhões de abastecimento federais alinhados em colunas, nas estradas além da linha de frente. Os caminhões eram atingidos por foguetes e metralhados. Alguns escapavam intactos, mas eram abandonados pelos motoristas, que corriam para o mato e deixavam-nos imobilizados nas estradas. Depois de dez dias a enfrentar um fogo cerrado de metralhadoras pesadas que não esperavam encontrar, a sofrer os lançamentos das ogbunigwes voadoras e serem finalmente atacadas por sua própria força aérea, as duas brigadas destroçadas bateram em retirada no dia 2 de novembro, retornando a suas posições anteriores.
Se os diversos ataques nigerianos tivessem sido desfechados simultaneamente, poderiam ter causado algum efeito. Mas, como sempre, os comandantes de divisões recusavam-se à cooperação mútua. Pouco depois do malogrado ataque da Primeira Divisão, a Terceira Divisão, no sul, agora sob o comando do Coronel Obassi (Adekunle fora retirado do comando logo após a perda de Owerri), também iniciou uma ofensiva. Em Ohuba, a oeste da estrada principal Owerri—Port Harcourt, ocorreram combates encarniçados na primeira semana de novembro. Os biafrenses não apenas conseguiram conter o ataque, como também, .quando a 1ª ofensiva malogrou em meados de novembro, repelir as tropas federais para fora da maior parte do complexo de aldeias conhecido como Ohuba.
Mais ao leste, ao longo da estrada pavimentada principal, as forças federais avançaram por seis quilômetros na direção de Owerri, partindo da aldeia de Umuakpu, em meio a violentos combates. Mesmo depois desses seis quilômetros, quando foram finalmente contidos, ainda estavam a 26 quilômetros ao sul de Owerri.
Em meados de novembro, foi desfechada outra grande investida, na direção de Okpuala. Neste setor, a Terceira Divisão conseguiu obter algum sucesso. As tropas federais avançaram por 14 quilômetros, indo descansar na aldeia de Amala, cerca de oito quilômetros ao sul da estrada principal Aba—Owerri. Mas o avanço custou muito caro, em homens e equipamentos. Simultaneamente com o ataque em Okpuala, a Segunda Divisão, em Onitsha, desfechou outra ofensiva. Foi a única ocasião em que houve alguma coordenação nos ataques nos diversos setores. Avançando de Onitsha na direção leste, a Segunda Divisão conseguiu fechar a brecha em poder dos biafrenses e fazer contato com a aldeia de Ogidi. Nesse momento, o comandante biafrense no setor, General-de-Brigada Amadi, foi ferido no estômago por um estilhaço de granada. A remoção de seu comandante pareceu dar novo ânimo à 11.* Divisão biafrense. Na última semana de novembro, os biafrenses contra-atacaram e recuperaram não apenas os dez quilômetros de estrada pavimentada entre os arredores a leste de Onitsha e a aldeia de Ogidi, como também mais algum terreno.
O único ponto crítico foi no último dos ataques nigerianos. Ocorreu em Ikot Ekpene, no território ibibio, no sudeste. Ikot Ekpene era um setor praticamente tranqüilo há mais de um ano. Mas na última semana de novembro, as tropas nigerianas ali estacionadas lançaram-se em peso numa ofensiva para o norte, numa tentativa de estabelecer contato com Umuahia e assim isolar o enclave biafrense onde ficavam as cidades de Ohafia e Arochukwu, assim como suas posições nas duas margens do rio Cross, em Ikot Okpora.
Levadas de roldão pela violência da investida, as tropas do General Ojukwu tiveram que recuar por dez quilômetros pela estrada para Umuahia, até Ito-Ndan, o mesmo local de onde tinham iniciado seus contra-ataques na direção de Ikot Ekpene, em maio de 1968. Os missionários que trabalhavam em programas de socorro entre os famintos ibibios foram obrigados a evacuar Urho-Akpan, a nordeste de Ikot Ekpene. A batalha ainda prosseguia, encarniçada, ao final de novembro. No dia 29 de novembro, o General Ojukwu disse ao autor que, com um novo carregamento de armas que chegara na noite anterior, esperava conter o ataque nesse setor ao final da primeira semana de dezembro. E foi justamente o que aconteceu.
Em meados de dezembro, a quinta investida final nigeriana contra o perímetro interior biafrense fracassara. As tropas federais não tinham conseguido superar a resistência. Ao mesmo tempo, as importações de armamentos pelos biafrenses está longe de diminuir, como muitos esperavam. Ao contrário, está aumentando cada vez mais.
Ao terminar o ano de 1969, parecia evidente para os correspondentes nos dois lados da linha de frente que era altamente improvável um resultado decisivo, em termos militares. Nenhum dos dois lados parecia dispor de meios substanciais e suficientes para efetuar grandes avanços, o que lançava de volta à esfera diplomática o problema de um eventual acordo de paz. Era nessa esfera que a questão deveria ter ficado, desde o primeiro cisma entre Lagos e Enugu, em 1967. Infelizmente, nos 30 meses que se passaram desde então, morreram um milhão e meio de pessoas.
10. O Papel do Governo Wilson
Como já se comentou, o tradicional interesse da Inglaterra pela Nigéria nada tem a ver com o bem-estar do povo desse país. Sob esse aspecto, nada mudou. O interesse que existia foi acalentado por um pequeno grupo de políticos, servidores civis e empresários britânicos, sendo exclusivamente imperialista. A política visava à manutenção da lei e da ordem, ao aumento dos impostos para pagar pela administração da colônia, ao estímulo à produção de matérias-primas para a indústria britânica e à criação de um mercado consumidor para adquirir os bens manufaturados da indústria britânica. Com a independência, as duas primeiras funções foram entregues a nativos devidamente escolhidos e convenientemente amistosos, enquanto as outras duas permaneciam, como antes, nas mãos dos britânicos. Para os que viviam na Inglaterra e tinham algo a ver com a Nigéria, esse país representava, assim como as outras antigas colônias, apenas um mercado e não uma terra com uma população de pessoas de carne e osso. Quaisquer tendências na Nigéria que pudessem se tornar prejudiciais ao mercado deviam ser desencorajadas. O desejo de Biafra de separar-se do resto da Nigéria foi incluído nessa categoria.
Ao se avaliar a política do governo britânico em relação à guerra Nigéria-Biafra, emergem logo de saída duas escolas de pensamento. A primeira argumenta que a política britânica foi na verdade uma ausência de qualquer política, o resultado irremediável de uma terrível mistura de estupidez, apatia, indiferença, insensibilidade e ignorância nos altos escalões. A outra sustenta que houve uma política coerente desde o início, de apoio total não ao povo nigeriano, mas sim ao regime que está atualmente no poder em Lagos. Tal política foi oculta da opinião pública por tanto tempo quanto foi possível. A estupidez dos políticos e a ignorância e apatia do público em geral e dos homens que controlam os meios de comunicação de massa, em especial, foram usadas para amparar ou dissimular essa política. À medida que se aprofundam as pesquisas na pilha cada vez maior de documentos disponíveis, vai ficando cada vez mais evidente que a segunda posição é a mais provável.
Não se pode censurar o fato da liderança britânica desejar, particularmente, ver uma Nigéria única e unificada, enquanto isso fosse exeqüível na prática. Mas o que acabou acontecendo foi que, em sua total determinação de ver uma única unidade econômica, não importando qual o custo em sofrimento para o povo do país, decorrente de sua intervenção indesculpável na política interna nigeriana, o governo britânico decidiu aliar-se não ao povo ou a suas aspirações, mas a uma pequena súcia de amotinados militares. Verificou-se posteriormente que essa súcia não representava absolutamente a opinião pública nigeriana. Mas isso não alterou a política de "apoio" do governo britânico. Ao contrário, reforçou-a ainda mais, a tal ponto que essa política está agora irremediavelmente vinculada à sobrevivência do atual regime nigeriano, comprometida publicamente, numa cumplicidade total, com qualquer coisa que esse regime possa fazer.
Na manhã seguinte ao golpe de Gowon, a 29 de julho de 1966, ficou patente que os conselheiros do governo britânico consideravam que a legitimidade do novo regime era suficientemente duvidosa para exigir uma decisão de alto nível sobre o seu reconhecimento. Era uma situação muito diferente do primeiro golpe, de janeiro de 1966, que acabara fracassando, mas levara o que restara do Gabinete a pedir ao General Ironsi que assumisse o poder. A 25 de janeiro, o Secretário da Commonwealth britânica, Sr. Arthur Bottomley, declarou na Câmara dos Comuns que o governo britânico estava convencido de que não havia nem mesmo necessidade de um reconhecimento formal do regime do General Ironsi [ Hansard (atas oficiais taquigrafadas dos debates parlamentares britânicos, que têm esse nome por causa de uma antiga família de compiladores), 25 de janeiro de 1966, col. 21.]
Mas em julho, quando não havia o menor arremedo de legalidade no governo de Gowon, quando os amotinados parcialmente vitoriosos só controlavam a capital e duas das quatro regiões, a situação era muito diferente. Ainda não ficou esclarecido em que momento e por que raciocínio o governo britânico decidiu reconhecer Gowon. Seja como for, foi somente em novembro de 1966 que o escolhido por Gowon para Alto Comissário Nigeriano em Londres, o volúvel General-de-Brigada Ogundipe, apresentou suas credenciais à Corte de St. James. Estranhamente, foi somente a 20 de dezembro que a Câmara dos Comuns foi informada que a Inglaterra decidira conceder pleno reconhecimento ao regime de Gowon [Hansard, 20 de dezembro de 1966, col. 263]. Em fevereiro de 1967, Sir David Hunt assumiu o posto de Alto Comissário para a Nigéria, na representação britânica em Lagos. Gradativamente, ele foi ampliando a política decidida anteriormente de apoio irrestrito a Gowon.
Parece não haver a- menor dúvida de que a força motivadora por trás da formulação da política britânica na Nigéria não foi proporcionada por políticos, mas sim pelos servidores civis do Alto Comissariado em Lagos e pelo Departamento da Commonwealth em Londres. O Secretário da Commonwealth na ocasião, Sr. Bottomley, embora fosse considerado um homem afável e simpático por aqueles que o conheciam, aparentemente sabia muito pouco a respeito da situação. Seu sucessor, o Sr. Herbert Bowden, não conseguiu se destacar como um homem capaz de compreender plenamente todos os aspectos da questão. E o Secretário seguinte, Sr. George Thomson, demonstrou claramente, em diversas ocasiões, tanto em público como particularmente, que seu interesse maior era resolver o problema da Rodésia, muito mais divulgado. Nenhum dos três, em nenhuma ocasião, contou com a assessoria de um parlamentar enfronhado na questão, quer da Câmara dos Comuns como da Câmara dos Lordes. Todos os que estavam a par do que acontecia nos bastidores de "Whitehall não se surpreendiam ao descobrir que a formulação da política britânica sobre a Nigéria e as respostas escritas dos ministros às questões do Parlamento e às informações aos repórteres acreditados cabiam inteiramente aos servidores civis. Tal situação não desagradava absolutamente aos servidores civis, muitos dos quais sustentavam que as complexidades de qualquer problema mais difícil que pegar um ônibus estavam acima do nível intelectual dos políticos profissionais. Infelizmente, os servidores civis demonstraram, na seqüência dos acontecimentos, que eram incapazes de analisar a situação nigeriana com algo mais que uma mistura de ignorância, desinformação, preconceito, cinismo e o tradicional desprezo da classe superior britânica aos africanos em geral e aos roais agressivos em particular. Foi desse potpourri de estupidez, ao qual se acrescentou posteriormente toques de rancor e mau caráter, que derivou o apoio britânico a uma junta militar africana e depois à política de guerra, impondo a cumplicidade da Inglaterra no mais sangrento episódio da história da Commonwealth.
A Inglaterra foi lançada no caminho para apoiar Gowon pelo Alto Comissário Britânico em Lagos na ocasião, Sir Francis Cunning-Bruce. Ele contou posteriormente ao Professor Eni Njoku, reitor da Universidade de Nsukka e chefe da delegação oriental à Conferência Constitucional Ad Hoc, que ao perceber que Gowon tencionava anunciar pelo rádio, a 1º de agosto de 1966, a dissolução da Federação Nigeriana, empenhara-se em persuadi-lo a eliminar as palavras de tal comunicação e substituí-las por outras. Ele tinha assim, disse ao professor, salvo a unidade da Nigéria. Um mês depois, Sir Francis deixou o posto. Contudo, parece mais do que provável que a sua atitude lançou a Inglaterra num curso do qual tornou-se cada vez mais difícil desviar-se, embora também não se fizesse qualquer esforço para tanto.
Nos meses subseqüentes, houve pelo menos duas ocasiões em que o Alto Comissário Britânico, se estivesse preparado e disposto a usar a incontestável influência de seu posto, poderia ter ajudado a evitar o desastre. A primeira ocasião foi logo depois que a Conferência Constitucional iniciou seus trabalhos, quando ficou patente que a maioria dos nigerianos, dos que habitavam as florestas aos que estavam nos mais altos escalões, era favorável a uma confederação frouxa, com um governo central fraco. A segunda ocasião foi o encontro dos Governadores Militares Regionais em Aburi, quando se chegou à mesma conclusão e todos assinaram uma resolução nesse sentido.
Não há absolutamente o menor indício de que o representante do governo britânico tenha sugerido, em qualquer dessas ocasiões, que era realmente esse o caminho que deveria ser seguido. Ao contrário, há indicações de que os ingleses, nas duas ocasiões, ao invés de aconselharem Gowon a atender aos anseios populares, encorajaram-no a ameaçar com o uso da força caso não pudesse obter a concordância dos outros para a política que se desejava estabelecer. Ironicamente, uma confederação frouxa na Nigéria teria proporcionado à Inglaterra todas as vantagens do mercado único que tanto desejava. É que as quatro Comissões Comerciais Regionais, que já existiam na ocasião, eram tão autônomas que poderiam constituir uma espécie de confederação no campo econômico, independente do político. Em decorrência dos acontecimentos provocados pela política britânica a Inglaterra perdeu boa parte do seu movimento comercial anual de 170 milhões de libras com a Nigéria e pode ainda perder muito mais.
A interpretação mais caridosa que se pode dar à decisão do Alto Comissariado Britânico, de apoiar Gowon contra todos os oponentes, inclusive o seu próprio povo, e de persuadir Whitehall a fazer o mesmo, é a de que os representantes britânicos no pais. partilhavam a opinião do próprio Gowon de que o Exército Nigeriano poderia esmagar rapidamente qualquer dissidência. Sendo assim, qualquer oposição ao novo regime não precisava ser levado a sério. Na melhor das hipóteses, esse otimismo era desinformado; na pior, era cínico.
Qualquer embaixador tem basicamente três funções: manter as relações mais amistosas possíveis entre o país que representa e o país no qual está credenciado, tanto no nível oficial como no popular; velar pelas vidas, segurança, propriedades e interesses de seus próprios conterrâneos no país em que está credenciado; e fornecer informações contínuas e seguras a seu próprio governo sobre todos os aspectos da situação no país em que está servindo. Ao que parece, jamais foi definida uma ordem de prioridade para essas três funções. Mas não resta a menor dúvida de que as duas primeiras podem ser profundamente afetadas pela política adotada pelo governo que o embaixador representa em relação ao país no qual ele está servindo; e também não resta a menor dúvida de que essa política será influenciada pelas informações que o diplomata enviar a seu governo. Um diplomata pode não formular a política oficial de seu país, mas freqüentemente os seus conselhos têm uma influência decisiva na formulação dessa política.
No caso de uma revisão política, o embaixador é normalmente chamado a seu país para consultas. Seu relato da situação política, econômica e social no país em que está credenciado é geralmente ouvido com grande interesse, muitas vezes pode ser até decisivo. Por tudo isso, a função de "informar" de um embaixador pode ser considerada como a mais importante. Informações deficientes e distorcidas não apenas revelam um mau diplomata, mas podem também influenciar a política do país que ele representa, levando-o à trilha do desastre.
No caso do Alto Comissário Britânico na Nigéria, não deveria ser difícil fazer um relato preciso do que estava acontecendo em todo o país. Afinal, havia na Nigéria uma abundância de súditos britânicos, empresários, servidores civis, pequenos comerciantes, jornalistas, viajantes, missionários, médicos, professores e engenheiros, que dispunham coletivamente de séculos de experiência e profunda compreensão da situação africana. Havia também um representaste direto do Alto Comissário em cada uma das quatro regiões em que o país estava dividido.
A julgar pelos comentários de Gowon antes da guerra, a respeito de uma "rápida ação policial", ele realmente acreditava que o Exército Nigeriano poderia acabar com a dissidência da região oriental numa questão de dias. Não é de surpreender que ele estivesse tão desinformado. Afinal, todos os potentados africanos estão cercados por sicofantas, aduladores e oportunistas, que consideram do seu interesse dizer ao homem no poder apenas o que sabem que ele gostaria de ouvir. No entanto, tudo indica que o Alto Comissariado Britânico partilhou a mesma euforia. Em conversas particulares com jornalistas em Lagos, na ocasião, as autoridades britânicas deixaram bem claro que estavam absolutamente convencidas de que a luta, se irrompesse, seria muito rápida e quase sem derramamento de sangue, que o Coronel Ojukwu seria facilmente derrotado e o leste seria reincorporado à Nigéria em poucas semanas, no máximo.
Autoridades, jornalistas e gente de sociedade, estimulando as ilusões uns dos outros na sodomia social da ronda de coquetéis diplomáticos, conseguiram se convencer disso, sem darem a menor atenção ao que estava realmente acontecendo na região oriental.
O fato de Gowon e seus conselheiros estarem equivocados foi perfeitamente compreensível. Mas é imperdoável que o Alto Comissário Britânico também tivesse se enganado. Afinal, Sir David Hunt tinha a sorte de contar com um homem inteligente e bem informado a representá-lo na região oriental, o Sr. James Parker. Ele tinha amplos contatos com pessoas de todas as nacionalidades e de todas as camadas sociais, espalhadas por toda a região oriental. Seu equivalente americano, o Cônsul Robert Barbard, comentou certa ocasião:
— Jim sabe como tomar o pulso de tudo o que acontece por aqui.[Declarações ao autor, em Enugu, em julho de 1967.]
O Sr. Parker conhecia profundamente a região e sua população, o suficiente para perceber quão intenso era o ressentimento popular e a capacidade e determinação dos orientais de se defenderem, caso fosse necessário. Assim, não tinha a menor dúvida de que a situação era muito mais perigosa do que os homens em Lagos pareciam dispostos a aceitar.
Outras fontes da representação britânica em Enugu confirmaram que o Sr. Parker transmitiu essas informações e advertências .ao Alto Comissário em Lagos, por diversas vezes. Os jornalistas em Lagos contaram mais tarde que essas advertências do leste foram simplesmente suprimidas nos relatórios enviados pelo Alto Comissariado Britânico para Londres. Nas poucas ocasiões em que foram transmitidas também, eram acompanhadas por comentários escarninhos. Além disso, Sír David Hunt escarneceu publicamente de seu subordinado em Enugu, no circuito social, comentando mais de uma vez que o Sr. Parker era "um Ibo branco".
(O escárnio de qualquer um, até mesmo dos repórteres imparciais que ressaltassem os equívocos da avaliação oficial da situação nigeriana, tornou-se uma das bases da tática adotada pelo Alto Comissariado e pelo Departamento da Commonwealth para desviar as atenções da crise Nigéria-Biafra.)
No momento em que a guerra começou, como agora ficou evidente ao se reconstituirem os acontecimentos, pelo menos os servidores civis britânicos já haviam decidido que a política a ser adotada seria de apoio irrestrito ao regime de Gowon. Se esse apoio não teve uma natureza mais prática nas primeiras semanas da guerra, foi apenas porque todos estavam convencidos de que a Nigéria não precisaria de qualquer ajuda para esmagar Biafra. Quando ficou patente que essa ajuda seria necessária, houve um breve período de hesitação, enquanto os políticos, embora não muito interessados numa obscura guerra africana "no mato* perguntavam a seus sucessores "Tem certeza?"
Os servidores civis não tiveram a menor dificuldade em fazer prevalecer seus pontos de vista. Desse momento em diante, Gowon passou a receber a ajuda britânica em quantidade cada vez maior e sob as formas mais diversas. Um reflexo da atitude do povo britânico em relação à "sua" Commonwealth, um reflexo que se estende à imprensa e ao Parlamento, é o fato dessa política ter permanecido incontestada durante quase um ano. Ou seja, até que os efeitos dessa política possibilitaram a Gowon provocar as mortes de quase 200 mil cidadãos da Commonwealth. Foi somente quando essa política começou a ser firmemente contestada que a máscara oficial escapuliu por um momento e foi possível vislumbrar fugazmente o que estava sendo feito em nome do governo britânico. Nesse momento, o público reagiu violentamente. Mas já era tarde demais. A esta altura, a política governamental já estava tão fossilizada que, embora as bases na qual se assentara e as justificativas subseqüentes tivessem caído no descrédito, as reputações dos políticos, especialmente do Primeiro-Ministro, estavam irremediavelmente vinculadas à necessidade de esmagar Biafra, não importando qual fosse o custo.
- Não foi exatamente o apoio do governo britânico ao regime de Gowon o que mais revoltou os biafrenses. Foi a maneira hipócrita pela qual se processou esse apoio. Durante 12 meses, foram envidados todos os esforços possíveis para disfarçar a verdade, ocultá-la ao Parlamento Britânico, à imprensa e ao povo. As respostas às questões parlamentares eram formuladas em termos evasivos, enganava-se deliberadamente. Porta-vozes do governo britânico anunciavam na Câmara dos Comuns a neutralidade oficial, só para mais tarde reconhecerem que isso não era verdade, nunca fora. Faziam-se negativas impassíveis de que os embarques de armamentos para a Nigéria tivessem ultrapassado os níveis anteriores à guerra, quando na ocasião esses níveis há muito que já tinham ficado para trás, multiplicados várias vezes. Os ministros se contradiziam, mudavam de posição, vacilavam, se esquivavam. E, durante 10 meses, uma crédula Câmara dos Comuns limitou-se a assentir e declararse satisfeita com as explicações.
Enquanto tudo isso acontecia, os embarques de armamentos continuavam incessantemente. O sigilo de que se revestiam essas remessas serve para indicar a falta de confiança dos responsáveis na reação do público, se algum dia os fatos transpirassem.
Carregamentos de granadas e balas atravessavam a noite em caminhões fechados, até o Aeroporto de Gatwick, onde recebiam permissão para contornar a pista de taxiagem (um fato quase sem precedentes num aeroporto internacional), a fim de carregarem os aviões num lugar secreto, na extremidade mais distante do campo. A história acabou sendo descoberta por um repórter em Malta, onde um dos aviões parou para reabastecimento. Uma parcela considerável das compras em nome do governo nigeriano era feita por intermédio dos Agentes da Coroa, em Millbank, Londres. E, diga-se de passagem, nem todas as encomendas de armamentos encaminhadas por essa tradicional agência compradora para os países da Commonwealth vieram das Ilhas Britânicas.
Na compra de armas, o documento mais importante é a licença de exportação, que geralmente só é concedida depois da apresentação do "certificado de consumidor final", o qual declara o destino da carga, evitando assim a possibilidade da encomenda ir cair em mãos erradas. Assim, um certificado assinado num país pode muito bem ser válido para compras em outro, mesmo que o navio transportando os armamentos não pare em nenhum porto do país que emitiu a licença. Contanto que se mostre ao vendedor a licença de exportação e o certificado de consumidor final e contanto que o respectivo governo não faça qualquer objeção, a transação pode ser efetuada sem a menor dificuldade. Dessa forma, foram despachados para a Nigéria armamentos que estavam nos arsenais do Exército Brtânico do Reno, baseado em Antuérpia, na Bélgica, especialmente morteiros, granadas de artilharia e veículos blindados.
O objetivo deste capítulo é relacionar todas as remessas de armamentos conhecidas para a Nigéria, diretamente da Inglaterra ou através de órgãos do governo britânico [Referências a esses embarques podem ser encontradas no Financial Times, 9 de agosto de 1967: Birmingham Post, 15 de agosto de 1967; The Times, 3 de janeiro de 1968;]. As remessas conhecidas foram devidamente registradas e podem ser facilmente verificadas, inclusive nos arquivos dos jornais. As informações sobre um fornecimento de armas contínuo e clandestino do governo britânico para o regime nigeriano, geralmente durante a noite e sob a classificação de "ultra-secreto", surgiram pela primeira vez a 9 de agosto de 1967, 33 dias depois do início da guerra. Os rumores continuaram desde então, cada vez mais intensos e francos, até que deixaram de ser novidade. A explicação do governo britânico é extremamente interessante.
Durante os seis primeiros meses, o governo britânico não teve maiores dificuldades. Poucas perguntas eram apresentadas e ainda menos interrogadores eram plenamente informados sobre o assunto. Mas a 29 de janeiro de 1968, Lord Brockway formulou uma pergunta, na Câmara dos Lordes, ao Ministro de Estado para a Commonwealth Lord Shepherd. Depois da resposta habitual, de que a política do governo era a de não revelar as remessas de armamentos para governos estrangeiros, Lord Brockway recordou a Shepherd que o governo britânico afirmara anteriormente que "somente os contratos anteriores e peças sobressalentes" seriam fornecidos à Nigéria. Shepherd respondeu que nada sabia a respeito disso e acrescentou:
— Embora lamentemos a trágica e triste guerra civil na Nigéria, estamos fornecendo ao governo desse país praticamente todos os seus equipamentos militares.[Hansard, 29 de janeiro de 1968, cols. 599 e 600]
Isso aconteceu 100 dias depois que o comandante nigeriano em Asaba utilizou a sua parte desses "equipamentos militares" para ordenar a execução sumária de todos os Ibos do sexo masculino com mais de 10 anos de idade.
A máscara em Londres caíra bruscamente, com a resposta despreparada de Shepherd. A partir desse momento, o governo britânico concentrou-se cada vez mais em justificar as remessas de armas para Lagos, ao invés de negá-las. Mas continuaram as fraudes em relação às quantidades. O Parlamento foi repetidamente informado que somente "os fornecimentos tradicionais de armas, tanto no tipo como na quantidade" é que estavam sendo despachados. Contudo, a 16 da maio de 1968, o Sr. Harold Wilson declarou na Câmara dos Comuns:
— Temos continuado com o fornecimento de armas. Isto é, não o governo diretamente. O que estou querendo dizer é que permitimos a continuação do fornecimento de armas por fabricantes particulares deste país, exatamente nas bases do passado. Mas não tem havido qualquer fornecimento especial para atender às necessidades da guerra. [Hansard, 16 de maio de 1968, cob. 1397 e 1398]
Foi uma declaração extraordinária, tendo em vista que, na mesma ocasião, a Nigéria anunciava orgulhosamente que fora capaz de aumentar o seu exército, de oito mil homens no início da guerra, para quase 80 mil homens. Além das armas, o gasto de munição pelos nigerianos era tão pródigo que até mesmo os correspondentes que tinham estado no Vietnam ficavam impressionados. Os soldados nigerianos estavam precisando constantemente de um reabastecimento de balas, em níveis muito acima dos que poderiam ser atendidos pelos fornecimentos britânicos antes do início da guerra. Há também que se considerar a questão dos "fabricantes particulares" mencionados pelo Sr. Wilson. O autor verificou pessoalmente, durante toda a primavera de 1968, centenas de caixas de granadas nigerianas. Podia-se ler nitidamente: "U.K. Government explosives — War Departament/Arm" (Governo do Reino Unido, explosivos — Departamento de Guerra/Exército). A data da fabricação também estava escrita nas caixas: novembro de 1967.
Finalmente, o governo britânico admitiu que o fornecimento de armas à Nigéria tivera uma escalada, "porque também houve uma escalada na guerra". Contudo, mesmo enquanto os políticos, quando devidamente pressionados e acuados, iam pouco a pouco permitindo que o Parlamento, a imprensa e a opinião pública compreendessem que as remessas de armas atingiam proporções fantásticas, o governo britânico ainda procurou manter as aparências, alegando as mais diversas justificativas para tal fornecimento. Vale a pena analisar as justificativas apresentadas, procurando enquadrá-las dentro de uma perspectiva.
A principal razão alegada foi de que a Inglaterra sempre fora a fornecedora tradicional de armas para a Nigéria e a interrupção dos fornecimentos representaria uma atitude não-neutra a favor de Biafra. Isso não era verdade. O Coronel Ojukwu, como primeiro nativo a ocupar o cargo de diretor de intendência do Exército Nigeriano, sabia perfeitamente quais as encomendas que fizera à Inglaterra e quais as que cancelara durante a sua permanência nessas funções. Sabia com toda precisão, até a data da independência de Biafra, quais as compras que estavam sendo efetuadas ou pendentes. Numa entrevista coletiva, a 28 de abril de 1968, Ojukwu revelou qual era a situação exata. Significativamente, suas declarações jamais foram contestadas por Lagos ou desmentidas por um dos diretores de intendência subseqüentes do Exército Nigeriano. Segundo Ojukwu, entre 1964 e 1966, "os únicos equipamentos militares que chegaram à Nigéria (da Inglaterra) foram doze carros Ferrets e dois Saladins, com uma encomenda adicional de mais quatro veículos, para serem entregues até o final de 1966".
Disse também que "A Nigéria suspendeu a compra de rifles e metralhadoras da Inglaterra, ao assinar um contrato com a firma alemã de Fritz Werner, em 1964, para a construção de uma fábrica de armamentos em Kaduna". (Werner fechou a fábrica no início da guerra para não ter que produzir balas para uma guerra civil.) Declarou ainda que a Nigéria comprava rifles sem recuo dos Estados Unidos, metralhadoras de mão e rifles da Itália, metralhadoras da Alemanha, obuses de 105 mm da Itália, morteiros de 81 mm de Israel e botas e outros equipamentos da Alemanha.
Em julho de 1966, quando o General Ironsi foi assassinado, a Inglaterra já fora quase que totalmente substituída como a tradicional fornecedora de armas para a Nigéria. Nessa ocasião, a Nigéria só dependia da Inglaterra para o fornecimento de uniformes de gala e veículos blindados.
Há uma cifra disponível sobre a ajuda militar britânica à Nigéria durante .o ano financeiro de 1965-66. O Sr. Arthur Bottomley declarou na Câmara dos Comuns, a 2 de março de 1966, que tinha sido de 68.000 libras.[Hansard. 2 de março de 1966, col. 316] Contudo, a 12 de junho de 1968, o Secretário do Exterior, Sr. Michael Stewart, declarou, também na Câmara dos Comuns:
— De qualquer forma, seria errado, no começo da secessão, se interrompêssemos completamente os fornecimentos ao governo federal... Na ocasião, os fornecimentos britânicos eram responsáveis por 75 por cento das importações de armamentos nigerianos, de todas as fontes.[Ibid., 12 de junho de 1968, col.290]
Anteriormente, no mesmo debate, Stewart dissera que, até a subida ao poder do general Gowon em Lagos, a Nigéria "era consideravelmente dependente de nós... em todas as medidas de defesa".[Ibid., 12 de junho de 1968, col. 289 e 290]
Na verdade, as principais aquisições da Nigéria para a defesa, em 1966, foram uma fragata da Holanda e o embrião de sua força aérea, que estava sendo treinada em Dorniers por alemães ocidentais. A porcentagem do Sr. Stewart torna-se ainda mais estranha quando se recorda que a Nigéria anunciou ter recebido, em maio de 1967, 50 carros blindados franceses Panhards. Se as compras da fragata, dos aviões e dos 50 Panhards faziam parte dos 25 por cento comprados em outras fontes além da Inglaterra, então os 75 por cento britânicos deviam constituir uma quantidade maciça de armamentos. Contudo, a convicção de Gowon de que poderia liquidar Biafra em poucos dias torna extremamente improvável que ele tenha feito encomendas tão gigantescas. É claro que os dados apresentados se referiam à situação anterior à guerra.
A 22 de julho de 1968, o Sr. George Thomson declarou na Câmara dos Comuns que a porcentagem da Inglaterra nas vendas de armamentos à Nigéria era na ocasião, 12 meses depois do início da guerra, de apenas 15 por cento do total.[Hansard, 22 de julho de 1968, col. 106.] É um dado enganador, pois refere-se apenas ao valor. Nessa ocasião, a Nigéria adquirira dispendiosos caças e bombardeiros a jato da União Soviética, contratando também técnicos soviéticos para a manutenção e pilotos egípcios para tripular os aparelhos, posteriormente substituídos por alemães orientais. A informação também não esclarece se se refere exclusivamente a armamentos saídos das Ilhas Britânicas diretamente ou se estão incluídos os armamentos do arsenal do Exército no Reno, em Antuérpia. Também não esclarece se o dinheiro representava o valor total dos armamentos ou apenas o pagamento de um sinal.
Mesmo que o Sr. Thomson tenha declarado a verdade, foi desmentido por seus próprios colegas. Lord Shepherd dissera seis meses antes que a Inglaterra estava fornecendo "praticamente todos os equipamentos militares", enquanto o inefável Alto Comissário, Sir David Hunt, dizia a um auditório em Kaduna, a 22 de janeiro de 1968, que "a maior parte dos armamentos das forças federais veio da Inglaterra".[BBC, Sumário das Notícias Internacionais, Parte 4B, África Não Arabe, ME/2677/B/2.]
E assim continuou, interminavelmente. O argumento de "fornecedora tradicional" foi repetido vezes sem conta, embora ficasse comprovado, sem a menor sombra de dúvida, que a Inglaterra não era a fornecedora tradicional e que as quantidades envolvidas teriam acabado em poucas horas, se mantidas nos níveis anteriores à guerra. A "manutenção dos fornecimentos" anteriores, tanto no tipo como na quantidade, era realmente uma inverdade.
Essa foi a primeira justificativa. A segunda foi a de que a Inglaterra tinha a obrigação de apoiar o governo de um país amigo. Era outra distorção. Não existe e nunca existiu qualquer obrigação moral ou legal de fornecer armas a quem quer que seja, em tempo de guerra. Normalmente, antes de vender armamentos bélicos a um país em guerra, qualquer país decide primeiro duas coisas: se está de pleno acordo com a política do país que deseja comprar os armamentos e que o levou ao estado de guerra; se está razoavelmente certo do uso que terão esses armamentos se por acaso forem fornecidos.
Pelos dois aspectos da questão, o fornecimento de armamentos à Nigéria, para continuar a guerra contra os biafrenses, não poderia deixar de causar apreensões a qualquer um. Os antecedentes da guerra Nigéria-Biafra já foram descritos nos capítulos anteriores. Algumas semanas depois do início da guerra, o comportamento da infantaria nigeriana no meio-oeste, amplamente testemunhado, já indicara claramente que quaisquer armas fornecidas seriam provavelmente usadas, sem a menor hesitação, contra populações civis.
Além disso, os países mais escrupulosos freqüentemente se recusam a vender armamentos, até mesmo os que são necessários para propósitos defensivos em tempo de paz, a outro país cuja política interna desaprova. Assim, quando um governo conservador britânico estava prestes a vender navios de guerra para a Espanha, o Sr. Harold Wilson levantou-se no Parlamento e protestou:
- — Nenhuma fragata para os fascistas!
Quando ficou patente a eleição do Sr. Wilson, a transação com a Espanha foi cancelada.
Posteriormente, o governo trabalhista vetou uma venda de armas à África do Sul. Embora poucos gostem do apartheid, nem mesmo os baluartes do Partido Trabalhista são capazes de insinuar que navios de guerra e bombardeiros Bucaneers poderiam ser usados contra africanos amotinados. O argumento — procedente, diga-se de passagem — era o de que o fornecimento de armas a um país fortalece e reforça o regime que está no poder, mesmo em tempo de paz. Quando se desaprova esse regime e as políticas internas que adota, não se deve fortalecê-lo. A única conclusão lógica que se pode tirar da continuação de vendas de armamentos à Nigéria é a de que o Governo Wilson aprova tudo o que o regime de Gowon está fazendo. Ás práticas do atual governo nigeriano, com base nos relatos de testemunhas, estão descritas num capítulo posterior.
A terceira justificativa foi de que, se a Inglaterra não vendesse armamentos à Nigéria, algum outro país certamente o faria. Na prática, não é provável que isso tivesse acontecido. Um a um, os vendedores de armamentos para a Nigéria foram suspendendo seus fornecimentos, ao verificarem como tais armamentos estavam sendo usados. Tchecoslováquia, Holanda, Itália e Bélgica suspenderam os fornecimentos. A Bélgica promulgou uma lei especial proibindo até mesmo o atendimento das encomendas que já tinham sido feitas. A idéia de que os russos iriam automaticamente fornecer todos os armamentos que a Inglaterra deixasse de vender é facilmente destruída por qualquer especialista em equipamento bélico. Os soviéticos usam calibres diferentes, em todos os tipos de armas, dos que são usados pela Inglaterra e pela OTAN. Normalmente, os calibres soviéticos são um milímetro maiores que os da OTAN. Dessa forma, suas tropas podem usar munições ocidentais capturadas, enquanto as tropas da OTAN não podem usar munição do Pacto de Varsóvia. Por isso, os soviéticos não poderiam fornecer munição para uso em armamento padronizado da OTAN. Uma mudança de munição exigiria uma troca ou adaptação de todos os armamentos de um exército de 80 mil homens, uma tarefa proibitivamente dispendiosa. Na verdade, diante da perspectiva de se abastecer no mercado negro de armas, como os biafrenses, no caso de uma suspensão dos fornecimentos britânicos, era bem possível que a Nigéria fosse forçada a ir para a mesa de negociações, tencionando realmente chegar a um acordo de paz. No momento em que a Inglaterra e a Rússia se tornaram os dois únicos fornecedores de Gowon, seria bem possível que um acordo entre as duas pudesse ser a base de uma proibição total de venda de armas, com a qual o Coronel Ojukwu já concordara antecipadamente. Mas isso nem mesmo foi tentado, talvez porque a intenção jamais tenha existido, a não ser como uma justificativa para os crédulos.
Em relação às implicações morais da justificativa, o Conde de Cork and Orrery declarou na Câmara dos Lordes, a 27 de agosto de 1968:
É a mesma coisa que dizer: se alguém mais, de qualquer maneira, vai tirar proveito da venda de armas, por que não tiramos nós primeiro? Mas a menos que se possa afirmar que o propósito em que serão usadas não é absolutamente funesto — e não vejo como se possa fazer tal alegação — então esse não é argumento passível de ser apresentado por um governo honrado. Afinal, é auto-justificativa clássica de quem negocia no mercado negro, do saqueador, do traficante de tóxicos... Uma rajada de balas de 9 mm num estômago africano é algo terrível, qualquer que seja o aspecto pelo qual se encare o problema. Se enviamos essas balas da Inglaterra sabendo que poderão ser usadas dessa maneira, então temos também a nossa parcela de culpa. E essa parcela de culpa não é absolutamente diminuída ou aumentada pela alegação de que, se não vendêssemos as balas, algum outro país certamente as venderia. [Hansard, 27 de agosto de 1968, cols. 754 e 752]
A quarta e última justificativa apresentada para o fornecimento de armas foi a de que a interrupção poderia acabar com a influência britânica em Lagos. Essa desculpa só foi apresentada no debate na Câmara dos Comuns a 12 de junho de 1968. Desse momento em diante, porém, passou a ser usada cada vez com maior freqüência. Era uma desculpa tão rota e esfarrapada quanto as três anteriores. Durante o debate, o Sr. Stewart assegurou que, se o Exército Nigeriano desfechasse algum ataque final ao coração do território Ibo ou se houvesse "mortes desnecessárias", a Inglaterra seria forçada a "reconsiderar sua política".
As alegações não tinham o menor sentido. A influência que a Inglaterra supostamente teria adquirido com o fornecimento de armas nunca foi usada ou, o que é mais provável, nunca existiu. Seja como for, o regime de Gowon não se desviou um milímetro sequer de sua política de esmagar totalmente Biafra e seu povo. Também não houve qualquer tentativa britânica séria de persuadir os nigerianos a mudarem tal orientação.
 23 de agosto de 1968, foi desfechado um ataque final contra o coração do território Ibo, com os nigerianos avançando em todas as frentes e exibindo um tremendo poder de fogo. Testemunhas estrangeiras na bacia do rio Imo relataram a chacina brutal e desenfreada de milhares de aldeões Ibos, em cumprimento das ordens do Coronel Ádekunle para que os soldados nigerianos atirassem em tudo o que se mexesse. Não houve qualquer "reconsideração" da política britânica. Uma Câmara dos Comuns apática recebeu outra explicação desdenhosa de um governo que, a esta altura, aparentemente chegara à conclusão de que as duas casas do Parlamento, a dos Lordes e a dos Comuns, só existiam para serem enganadas.
Era essa a situação em relação ao tráfico de armas até o debate parlamentar de 27 de agosto de 1968. Esse debate mudou a situação até certo ponto, na medida em que o Governo Wilson finalmente deixou cair a máscara de preocupação que ainda restava e revelou qual fora realmente a sua política desde o início.
Mesmo nessa ocasião, já se tornara patente que o governo britânico não tinha a menor intenção de desencorajar a política de guerra do regime de Gowon. Ás consequências dessa política, ao final de dezembro de 1968, haviam se tornado tão graves, em termos de vidas humanas, que qualquer que seja o julgamento da história aos crimes do regime nigeriano, o governo britânico irá certamente partilhar o banco dos réus como co-responsável, por sua total cumplicidade.
Ás remessas de armamento foram apenas uma das maneiras pelas quais o governo britânico demonstrou o seu apoio irrestrito ao regime de Gowon. Todos os órgãos do governo britânico transformaram-se numa poderosa organização de relações públicas a favor da Nigéria. Os diplomatas estrangeiros recebiam informações distorcidas e muitos acreditavam que eram acuradas e imparciais. Os repórteres eram diariamente informados de acordo com o ponto de vista nigeriano. Mentiras selecionadas eram persistentemente implantadas. Rumores deliberados, de mitos como a "maciça ajuda francesa" à Biafra, foram semeados entre os jornalistas que já tinham demonstrado a sua incapacidade de procurar verificar os fatos independentemente.
Os parlamentares e outras figuras eminentes que desejavam ir a Biafra, para verificar pessoalmente o que estava de fato acontecendo, eram devidamente desencorajados, enquanto os que queriam ir à Nigéria recebiam toda a ajuda possível. Nos bares e nos clubes, salas de reuniões e nos coquetéis, a "posição de Lagos" era vigorosamente defendida. Não se poupava esforço para defender a posição nigeriana como a única válida e denegrir a versão biafrense de todas as maneiras possíveis. A campanha não deixou de produzir efeitos. Muitas pessoas influentes mas desinformadas (pelo menos neste caso) foram persuadidas a aceitar a propaganda de Lagos, sem se dar ao trabalho de investigar mais a fundo os antecedentes da crise nigeriana. Essas pessoas passaram a propagar o que provavelmente acreditavam ser a verdade.
Em termos de assistência técnica oferecida aos nigerianos, o governo britânico não foi menos condescendente ou mais imparcial que na questão das armas. Embora houvesse reiteradas negativas de que não havia qualquer pessoal militar britânico combatendo pelos nigerianos, não demorou a ficar patente que havia elementos técnicos britânicos trabalhando para o governo nigeriano, com "objetivos de treinamento". É possível que esses homens não mais estivessem integrados nas forças armadas britânicas por ocasião de sua ligação ao regime nigeriano, tendo deixado untes o serviço ativo. Mas não resta a menor dúvida de que foram contratados com o pleno conhecimento e aprovação do governo britânico. A contratação de ex-especialistas do Exército ou da Marinha por governos estrangeiros da Commonwealth ou não, para propósitos de treinamento em tempo de paz, é uma prática habitual. Mas sempre se faz uma revisão dos acordos em tempo de guerra.
É um fato conhecido, e não houve qualquer tentativa de negá-lo, que antigos oficiais da Marinha Real Britânica estão orientando as operações de bloqueio da Marinha Nigeriana. Contam com o apoio total do governo britânico. É justamente o bloqueio naval que tem causado a fome disseminada em Biafra. Calcula-se que, em decorrência da fome, morreram um milhão de pessoas em Biafra nos 12 meses de 1968. O bloqueio é total, embora não houvesse necessidade. Um bloqueio seletivo, com a exclusão de carregamentos de alimentos para as crianças, sob inspeção neutra, serviria igualmente aos objetivos militares da Nigéria. Contudo, o bloqueio total e a fome resultante não estão sendo usados como um subproduto inevitável da guerra, mas como uma arma deliberada contra a população civil.
Sir David Hunt, entre muitas declarações que confirmam seu apoio total e incondicional ao regime de Gowon e sua indisfarçável hostilidade pessoal contra Biafra e Ojukwu, tem admitido por diversas vezes que, desde o início da guerra, "as relações íntimas entre os Exércitos e Marinhas britânicos e nigerianos têm sido mantidas e mesmo fortalecidas". [Discurso em Kaduna, a 24 de novembro de 1967; BBC, Sumário de Noticias Internacionais, África Não Árabe, ME/2631/b/2.]
Apesar de tudo isso, o principal apoio que o Governo Wilson tem proporcionado a Gowon é no campo político e diplomático. Por ocasião da independência autodeclarada de Biafra, a Inglaterra tinha três opções à sua frente. A primeira seria reconhecer o novo estado. Isso significaria, na realidade, formalizar a separação de facto, que já existia desde 1º de agosto de 1966, quando Gowon assumiu a liderança de um grupo de oficiais amotinados parcialmente vitoriosos e Ojukwu recusou-se a reconhecer a supremacia dele. Mas tal opção não foi sequer considerada como uma política viável e não se pode culpar o governo britânico por isso.
A segunda opção era anunciar e ater-se a uma posição de neutralidade, em pensamentos, palavras e ações. Na ocasião, tal decisão não iria provocar antagonismos de qualquer dos lados do iminente conflito, porque Ojukwu teria aceitado a imparcialidade como uma posição honesta (ele chegou mesmo a apegar-se ao mito da anunciada neutralidade britânica pelo máximo que pôde, pois nela desejava acreditar) e Gowon estava convencido de que conquistaria uma rápida vitória.
A terceira opção era anunciar e adotar uma política total de apoio a Gowon, moral, política e militar. Ojukwu teria lamentado a decisão, mas pelo menos saberia de que lado estava a Inglaterra.
O Governo Wilson, na realidade, adotou a terceira opção, mas anunciou a segunda. Ao fazê-lo e manter o mito durante um ano, enganou o Parlamento e o povo da Inglaterra, além de diversos governos estrangeiros, especialmente os do Canadá, Estados Unidos e países escandinavos, os quais ficaram posteriormente tão preocupados com a situação que se empenharam em promover a paz através de um mediador mutuamente aceitável e imparcial.
Ainda é difícil determinar as razões precisas para a decisão do governo britânico de conceder apoio total a Lagos. É preciso conhecer os antecedentes do conflito. Mesmo num sentido essencialmente pró-federal, os porquês do caso indicam que moralmente tanto fazia assumir uma posição como outra. Afinal, as guerras civis são sempre confusas, sangrentas e raramente solucionadas por meios militares.
As razões apresentadas posteriormente foram variadas, mas nenhuma resiste a uma análise objetiva. Uma delas foi a de que a Inglaterra deve, em quaisquer circunstâncias, apoiar um governo da Commonwealth que enfrenta uma revolta, rebelião ou secessão. Isso não é verdade. A Inglaterra tem o direito de examinar cada caso por seus” próprios méritos. Embora a África do Sul pertencesse à Commonwealth na ocasião, é improvável que a Inglaterra fosse apoiar um governo sul-africano sob qualquer aspecto, no caso de uma revolta da população bantu, depois de ter fechado os olhos a um massacre racial em que morreram 30 mil bantus.
Outra razão, extraída diretamente da propaganda nigeriana, foi a de que os Ibos de Biafra obrigaram as relutantes minorias não-ibos a aceitar a separação da Nigéria, a fim de se apoderarem das riquezas petrolíferas da região oriental. Mas todas as evidências indicam que os grupos minoritários participaram plenamente do processo de tomada da decisão de saírem da Nigéria, mostrando-se tão entusiasmados quanto os próprios Ibos. Em relação ao petróleo, a propaganda nigeriana afirmou que 97,3 por cento da produção da Nigéria provinham de áreas não-ibos.[George Knapp. Aspects of the Biafran Affair, (Aspectos do Biafrense), Londres, 1968, pags. 27, 28. 53 e 54] Felizmente, as estatísticas do petróleo, tanto das grandes companhias petrolíferas como do próprio governo nigeriano, estão disponíveis para quem quiser examiná-las.* Durante o mês de dezembro de 1966, 36,5 por cento da produção total da Nigéria saíram do meio-oeste, que não era parte de Biafra. Da produção biafrense nesse mês, as próprias estatísticas de Lagos indicam que 50 por cento vieram da Província de Aba (uma área totalmente Ibo), 20 por cento da Divisão Ahoada (área de maioria Ibo) e 30 por cento da Divisão Ogoni e de Oloibiri (área ogoni/ijaw). Além do mais, todas as testemunhas estrangeiras que estavam em Biafra durante os meses que antecederam a decisão de separar-se da Nigéria foram unânimes em declarar que o petróleo não fora o principal motivo.
A razão mais comumente citada e a que conta com apoio mais amplo é a de que qualquer secessão é nociva por si mesma, já que inevitavelmente iria desencadear uma reação em cadeia, com outros movimentos separatistas espocando por toda a África. Os espectros da "balcanização", "desintegração" e "reversão ao tribalismo" são devidamente apresentados e até mesmo pessoas que habitualmente raciocinam de maneira objetiva se deixam impressionar.
O Sr. David Williams, editor da revista West África e um dos mais conhecidos autores de assuntos africanos, escreveu o seguinte a 27 de outubro de 1968, no Sunday Mirror: "Contudo, ao final, as forças federais acabarão vencendo. E é necessário mesmo que vençam, para que toda essa parte do mundo não se transforme num mosaico de minúsculos estados, falidos e permanentemente em guerra." Embora essa opinião tenha sido freqüentemente apresentada e represente a posição oficial do Governo Wilson, aparentemente nunca foi contestada. E também jamais foi justificada. A pressuposição é apresentada como óbvia e inegavelmente verdadeira. Mas a verdade é que os fatos não confirmam a tese.
Por um lado, o caso de Biafra é realmente excepcional. Até mesmo o Presidente Mobutu, do Congo, já declarou categoricamente que não existe a menor semelhança entre o caso de Biafra e o de Katanga. Essa posição é partilhada pelo Dr. Conor Cruise O'Brien, um diplomata da ONU, que dificilmente poderia ser considerado como um partidário da secessão.
Por outro lado, ao se manifestar contra o recurso à força na Rodésia, o Sr. Wilson sugeriu que a violência na África Meridional poderia desencadear uma onda de violência por todo o continente. Na verdade, o perigo de violência contagiosa é muito maior que o de secessão contagiosa. Apesar disso, a guerra Nigéria-Biafra prossegue sem qualquer tentativa séria de detê-la.
Em terceiro lugar, a separação com base na incompatibilidade é uma solução política reconhecida para situações em que dois povos demonstraram que há pouca probabilidade de viverem juntos em paz. Foi usada no caso da separação da Irlanda do Reino Unido. Mais recentemente, o governo britânico aceitou a secessão da Niasalândia da Federação Centro-Africana, Camarões Ocidental da Nigéria (com um plebiscito supervisionado pela ONU), as Ilhas Cayman da Federação das Índias Ocidentais, a Jamaica também da Federação das índias Ocidentais (mesmo depois que o Primeiro-Ministro da Jamaica admitiu que não havia qualquer direito legal para a secessão). Aceitou também a exigência da Liga Muçulmana para a separação da Índia, em 1947, quando ficou patente que a unidade indiana só poderia ser obtida ao preço de uma sangrenta guerra civil.
No passado, o governo britânico aceitou, sem o menor murmúrio, a "balcanização" da Federação das Índias Ocidentais, da Federação Centro-Africana e da Federação Malásia. Em cada caso, não houve uma conseqüente onda de secessões nessas partes do mundo. Alguns dos estados independentes das índias Ocidentais são tão pequenos que se tornam quase que completamente inviáveis. Contudo, Biafra independente teria a terceira maior população da África e o mais elevado potencial de prosperidade.
Há que se procurar em outras partes para se encontrar as verdadeiras razões. Somente duas parecem discerníveis. Uma é a de que Whitehall recebeu a informação, no início da guerra, do seu Alto Comissário em Lagos, de que a luta seria rápida, esmagadora e suave e que se devia apoiar o vencedor inevitável. Politicamente, não é uma posição excepcional. Ninguém costuma apoiar causas que vão sumir do mapa dentro de uma ou duas semanas. No entanto, quando ficou evidente que a situação fora mal interpretada pelo representante plenipotenciário de Sua Majestade e sua equipe, quando ficou patente que a "revolta de Ojukwu" era na verdade um movimento popular forte e disseminado, quando se tornou claro que a guerra iria se arrastar por meses e talvez anos com uma terrível escalada de mortes, quando não restou a menor dúvida de que o comportamento das tropas nigerianas em relação aos civis biafrenses era motivo de considerável alarma, o governo britânico passou a merecer todas as críticas possíveis, pois sua política não foi reconsiderada. Ao contrário, houve até uma escalada nessa política.
Poder-se-ia dizer que, até o final de 1967, o governo britânico não sabia o que se estava fazendo com suas armas e seu apoio diplomático. Mas, ao longo de 1968, houve evidências demais, incontáveis relatos de testemunhas imparciais, muitos filmes noticiosos. Era impossível que alguém continuasse a manter alguma dúvida justificada.
A outra razão discernível para o Governo Wilson ter continuado a apoiar e estimular o regime de Gowon, em termos políticos, diplomáticos e militares, mesmo depois que os fatos se tornaram conhecidos, é que a Inglaterra chegou à conclusão, embora ninguém jamais tenha explicado com base em que raciocínio, que o mercado nigeriano deveria permanecer intacto, não importando qual fosse o preço.
Mas tudo isso só se tornou conhecido depois de reiteradas indagações dos poucos que estavam suficientemente interessados para perguntarem. Durante 12 meses, a máscara da neutralidade foi mantida, só escapulindo numa ocasião e deixando à mostra o sectarismo que havia por trás.
A 20 de junho de 1967, 16 dias antes da guerra começar, Lord Walston declarou na Câmara dos Lordes que o governo não tinha a menor intenção de intervir nos assuntos internos da Nigéria e que deixara isso "bem claro para todos os lideres nigerianos".[Hansard, 20 de junho de 1967, col. 1376.]
Oito semanas depois, os jornalistas que indagavam a respeito dos embarques de armas pelo Aeroporto de Gatwick foram informados que não passavam do final do atendimento de encomendas anteriores. Á fraude da "neutralidade" continuou incólume até que começaram a surgir murmúrios de perplexidade, em janeiro de 1968. No dia 25 de janeiro, quando Lord Conesford lhe pediu que esclarecesse a situação, Lord Shepherd declarou:
— Somos neutros em relação aos dois lados, mas há evidentemente um governo reconhecido na Nigéria... não estamos, com toda certeza, ajudando nem um lado nem outro. [ Hansard, 25 de janeiro de 1968, cols. 437-8]
Quatro dias depois, o próprio Shepherd estava admitindo que a Inglaterra fornecia "praticamente todo o equipamento militar" à Nigéria. A 13 de fevereiro, Shepherd ainda estava sustentando a farsa, embora ligeiramente modificada. Declarou na Câmara dos Lordes:
— Interromper todos os fornecimentos (de armas) seria encarado por eles (Lagos) como um ato unilateral e não-neutro, iria de encontro à nossa política declarada de apoio a uma Nigéria única e unida. [Hansard. 13 de fevereiro de 1968. cols. 90 e 91.] As indagações foram se tornando cada vez mais insistentes e a manutenção da fraude tornou-se extremamente difícil. A 21 de maio, o Sr. George Thomson desenvolveu o tema de Shepherd. Respondendo a uma pergunta na Ornara dos Comuns, ele alegou que a neutralidade significaria apoiar a rebelião. [Hansard, 21 de maio de 1968, col. 266.] A farsa foi mantida até o importante debate de 27 de agosto, quando o Governo Wilson finalmente revelou que não fizera outra coisa, desde o início, que não ajudar e apoiar o regime de Gowon, com tudo o que estava ao seu alcance.
No cenário diplomático internacional, a enormidade das conseqüências dessa distorção só se tornou patente mais tarde. Ao longo do ano de 1968, a maioria dos governos estrangeiros aceitou a alegação de que a Inglaterra era pelo menos politicamente neutra; sendo assim, poderia se tornar uma mediadora imparcial, se por acaso houvesse necessidade de seus bons ofícios. Na verdade, a Inglaterra estava simultaneamente assegurando a Lagos que as remessas de armas continuariam, encorajando assim o governo federal nigeriano a prosseguir na luta até o fim amargo e sangrento; clamando perante a opinião pública mundial que estava fazendo tudo ao seu alcance, através da diplomacia secreta, para promover um cessar-fogo e conversações de paz; recorrendo a toda a sua capacidade persuasiva diplomática para impedir que outros países seguissem o exemplo da Tanzânia, Zâmbia, Costa do Marfim e Gabão, que já tinham reconhecido Biafra; e tornando-se, quando as conversações de paz foram finalmente impingidas à Nigéria pela pressão da opinião publica mundial, a porta-voz e defensora dos bastidores da causa nigeriana. Foi um embuste que se prolongou por 12 meses. Quando outros governos ficavam apreensivos e manifestavam o desejo de assumir alguma iniciativa, eram prontamente repelidos com um argumento convincente: "Estamos na melhor posição possível para promover a paz. Qualquer interferência externa, por mais bem-intencionada que possa ser, poderia prejudicar tudo. Deixem conosco, pois estamos fazendo tudo o que é possível.
Á Inglaterra estava de fato fazendo tudo o que era possível. .. para assegurar a vitória militar total da Nigéria, com o esmagamento impiedoso de Biafra. Á recusa do Coronel Ojukwu em aceitar o Governo Wilson como mediador, enquanto continuasse a ser o principal fornecedor de armas ao inimigo, foi punida como outra incidência daquela intransigência insensível de que sempre o acusavam, quando não se deixava envolver pelos ardis mais óbvios da Nigéria ou Inglaterra.
Apesar de tudo, a máscara da "neutralidade" quase que deu certo, até mesmo com os biafrenses. Muitas pessoas altamente situadas no regime de Biafra queriam acreditar nessa suposta neutralidade, muito embora todas as informações que recebiam a desmentisse. Sir Louis Mbanefo, presidente do Supremo Tribunal de Biafra e principal negociador em Kampala, conversou posteriormente, por várias semanas, com autoridades do governo britânico, inclusive Lord Shepherd, na esperança de que as garantias de neutralidade e desejo de paz fossem sinceras.
Se a farsa quase enganou aos biafrenses, que tinham um interesse profundo e direto na situação, não podia deixar de enganar outros governos, cujos interesses eram bem menos profundos. A 9 de setembro de 1968, o Sr. Richard Nixon, então em campanha presidencial, deu uma indicação involuntária da atitude mundial de hesitação em relação à guerra Nigéria-Biafra, ao declarar:
Até agora, os esforços para socorrer o povo biafrense foram frustrados pelo desejo do governo central da Nigéria de obter uma vitória total e incondicional e pelo temor dos Ibos de que a rendição implique terríveis atrocidades e genocídios. Mas é justamente o genocídio o que está ocorrendo neste momento... e a fome é a sinistra ceifadeira. Não é o momento de se ficar com cerimônia, agir pelos "canais competentes" ou respeitar as amenidades diplomáticas. A destruição de um povo inteiro é um objetivo imoral, mesmo na mais moral das guerras. Nunca pode ser justificada, jamais pode ser tolerada.
Contudo, ao longo de todo o ano de 1968, o que o mundo fez foi justamente ficar com cerimónias, recorrer aos "canais competentes", respeitar as amenidades diplomáticas. A rigor, não se pode dizer que uma declaração franca de sectarismo por parte dá Inglaterra teria provocado iniciativas de outros líderes mundiais: também não se pode dizer que tais iniciativas teriam levado à paz. Mas é certo que a advertência britânica para que os outros governos não se intrometessem e o monopólio do papel de mediadora garantiram que nenhuma outra iniciativa tivesse sequer a oportunidade de ser tentada.
Vale a pena fazer uma breve descrição do debate na Câmara dos Comuns a 27 de agosto, já que proporcionou o que os jornalistas descreveram no dia seguinte como "uma das mais extraordinárias demonstrações de hostilidade (contra o governo) já vista em muitos e muitos anos na Câmara dos Comuns" (Financial Times); "uma sessão extremamente vulgar" (The Guardian); e "uma desordem fantástica" (The Times).
Houve dois debates nesse dia, um na Câmara dos Comuns e o outro na Câmara dos Lordes. Ambos foram sobre a guerra Nigéria-Biafra. Poucas horas depois que o Conde de Cork and Orrery descreveu o uso que se estava fazendo na Nigéria das armas fornecidas pela Inglaterra, o Sr. Thomson situou o governo britânico em seu verdadeiro papel. Referindo-se ao início da guerra, 13 meses antes, ele declarou à Câmara dos Comuns:
— A neutralização não era uma opção possível para o Governo de Sua Majestade na ocasião. [Hansard, 27 de agosto de 1968, col. 144].
A seguir, ele e seus colegas defenderam a causa nigeriana com mais devoção, mais paixão, mais parcialidade e até mesmo mais violentamente que os próprios nigerianos poderiam ter feito.
O Sr. Thomson começou por deixar bem claro que a Inglaterra sempre tomara partido, inequivocamente, nas mais sangrentas guerras locais, há muitas décadas. Fora justamente essa a posição que adotara ao longo dos últimos 13 anos. Declarou que o governo de Lagos estava disposto a fazer concessões sobre a forma constitucional da unidade nigeriana, até mesmo aceitaria a confederação. (Isso jamais foi confirmado por Lagos, que sempre afirmou justamente o contrário.) O Sr. Thomson descreveu as negociações entre os regimes de Gowon e de Ojukwu antes da guerra. Mas não mencionou uma vez sequer que o Coronel Ojukwu sistematicamente defendera a tese da confederação, como um meio de preservar a unidade nigeriana sem recorrer à guerra.
Se ainda havia alguma dúvida entre os parlamentares a respeito do facciosismo total do governo britânico, foi prontamente dissipada pelo Ministro de Estado, Sr. William Whitlock. Lendo, palavra por palavra, as anotações preparadas no Departamento da Commonwealth por um servidor civil, o Ministro apresentou o que muitas testemunhas consideraram posteriormente como a mais distorcida versão da propaganda de um governo estrangeiro já ouvida na Câmara dos Comuns.
Lançou-se a um ataque vigoroso contra Biafra, denegrindo a sua posição. Escolheu como alvo especial o seu Overseas Press Service e a pequena firma de agentes de relações públicas, sediada em Genebra, que transmitia as notícias biafrenses para a imprensa internacional. Acusou os parlamentares que acreditavam em qualquer notícia procedente de Biafra de serem ingênuos e tolos. Recorrendo a um estranho raciocínio, assegurou à Câmara dos Comuns que a ofensiva final nigeriana contra o coração do território Ibo, anunciada pessoalmente pelo General Gowon nas telas de TV britânicas na noite anterior, não era realmente, apesar do que dissera o líder nigeriano, o avanço final, mas apenas a continuação dos preparativos para esse avanço final.
Em seguida, leu quase que literalmente as alegações da propaganda de guerra nigeriana, que há muito já eram consideradas, pelo trabalho de investigadores independentes, como distorções da realidade ou totalmente inverídicas.
A missão de Whitlock era a de "ocupar" com seu discurso os últimos 32 minutos da sessão, que seria assim suspensa às 10 horas sem que houvesse uma votação. As regras do debate haviam sido acertadas no dia anterior. Mas, à medida que a verdadeira posição do governo britânico foi-se tornando cada vez mais evidente, para uma Câmara dos Comuns primeiro aturdida e depois ultrajada, o pandemônio finalmente irrompeu, desenfreado. Whitlock foi interrompido 19 vezes pelos parlamentares, que desejavam manifestar sua indignação. Dame Joan Vickers, que normalmente não é dada a explosões impulsivas, não conseguiu se conter e gritou:
— No início de sua declaração, o Secretário de Estado (Thomson) disse que o governo britânico seria neutro. Será que o Honourable Gentleman acha que seu discurso está coerente com a orientação indicada por seu Right Honourable amigo? [Hansard, 27 de agosto de 1968, col. 1527.]
Whitlock tratou de esclarecer a questão. Recordou a Dame Joan que o Sr. Thomson dissera que o governo, em tal situação, não podia permanecer neutro. E seguiu adiante.
A esta altura, a Câmara dos Comuns estava querendo uma oportunidade para votar. Mas já era tarde demais. Não adiantou Sir Douglas Glover protestar que os parlamentares, ao concordarem no dia anterior que não haveria uma votação, não tinham a menor idéia da linha de argumentação que o governo adotaria. A sessão foi suspensa. E enquanto continuava a ocorrer entre seis e dez mil mortes diárias em Biafra, os parlamentares britânicos foram para suas casas, a fim de desfrutarem as férias regimentais. Ironicamente, a questão que provocou a interrupção do recesso parlamentar não foi Biafra, mas sim o avanço soviético na Tchecoslováquia, uma agressão em que morreram menos de cem pessoas.
Depois de 27 de agosto, a posição britânica tornou-se mais clara. Á máscara caíra, as cartas estavam na mesa. Para os partidários da Nigéria, dentro e fora de Whitehall, não havia mais sentido em continuar a manter as aparências. Á ordenado dia não era mais a dissimulação e sim a justificação. Começou uma intensa campanha a favor de Gowon. Os líderes da opinião pública, dentro e fora do Parlamento, eram abordados em bares e clubes meticulosamente impregnados com os argumentos já cediços da iminente balconização da África, a absoluta necessidade de preservar não apenas a Nigéria mas também a Nigéria de Gowon, o mal latente que podia derivar dos astutos Ibos e o horror pessoal do Coronel Ojukwu.
Os jornalistas que compareciam às sessões diárias de informações no Departamento da Commonwealth eram municiados de notícias "fidedignas" de uma maciça ajuda francesa a Biafra, através do Gabão, o que obviamente tornava necessário o envio de mais armas, balas e Saladins da Inglaterra para a Nigéria. O latente sentimento antífrancês ou pelo menos anti-De Gaulle, em alguns setores da imprensa, na direita do Partido Conservador e na esquerda do Partido Trabalhista, foi devidamente estimulado.
De volta à Câmara dos Comuns, no dia 22 de outubro, o Sr. Michael Stewart, o Secretário do Exterior agora também no comando da Commonwealth, desde a fusão dos dois departamentos, novamente atribuiu ao Coronel Ojukwu toda a culpa pela morte iminente de seu próprio povo, "confirmando" que jamais ocorrera qualquer genocídio e insistindo que a Inglaterra deveria continuar o fornecimento de armas à Nigéria. [Yesterday in Parliament (Ontem no Parlamento), Daily Telegraph, 23 de outubro de 1968.]
Foi desfechada uma vigorosa campanha, em todos os níveis, para desacreditar não apenas a propaganda biafrense, mas até mesmo os relatos de fontes da Cruz Vermelha e da imprensa internacional, sobre as mortes pela fome, a matança de civis pelo Exército Nigeriano e o destino dos biafrenses caso fossem finalmente conquistados.
Uma análise meticulosa dessa campanha desperta uma campainha sinistra nas mentes daqueles que se recordam do grupo pequeno mas ruidoso de cavalheiros um tanto suspeitos que se empenharam em 1938 em bancar os advogados do diabo a favor da Alemanha Nazista, afirmando que todas as notícias de maus-tratos aos judeus não passavam de uma propaganda provocadora,,, que não devia ser levada em consideração. O desenvolvimento das táticas, os argumentos apresentados, a insidiosa pressuposição de distorção congênita imputada a quem quer que alegasse ter visto pessoalmente o que estava acontecendo e o fervor quase pessoal com que se denegria os bem informados constituem fatores da extraordinária semelhança entre as duas situações.
Não apenas os argumentos são extremamente similares, mas o mesmo acontece com as fontes e com aqueles que se permitem ser veículos para a disseminação da mensagem. De um modo geral, são parlamentares estúpidos e outras pessoas de destaque na vida pública, suscetíveis à inoculação de idéias que são transmitidas através da rede da "panelinha". São também pessoas com escusos interesses pessoais, políticos ou financeiros e com uma reputação duvidosa. Há os que passaram alguns anos felizes num país e posteriormente não podem admitir que se fale mal dele. Não se podem esquecer os jornalistas da chamada variedade obtusa, cujas máquinas de escrever podem ser compradas por uma viagem paga pelo governo e a companhia e hospitalidade total de uma encantadora guia do Ministério da Informação. Muitos jornalistas deixam-se usar como veículos de propaganda ingenuamente, embora provavelmente pudessem obter altos dividendos se perdessem alguns dias a verificar a veracidade das informações que lhes são transmitidas.
Mas, como aconteceu no caso dos defensores da Alemanha Nazista antes da 2ª Guerra Mundial, há sempre um pequeno grupo cuja orientação está baseada num ódio puramente pessoal e muitas vezes irracional contra toda e qualquer minoria racial, que deseja ver sofrer de qualquer maneira. No caso de Biafra, infelizmente o quartel-general espiritual desse núcleo está no Alto Comissariado Britânico em Lagos e no Departamento da Commonwealth em Londres.
PETRÓLEO E ALTAS FINANÇAS
Não tendo que explicar a sua política no Parlamento, as altas finanças puderam manter mais discretamente que o governo britânico a sua verdadeira atitude e participação na guerra Nigéria-Biafra. Até este momento, o papel desempenhado pelos grandes interesses financeiros, especialmente petrolíferos, permanece praticamente um mistério, sujeito às mais diversas interpretações.
Os investimentos estrangeiros na Nigéria, antes da guerra, eram predominantemente britânicos. A soma total foi calculada em 600 milhões de libras, sendo que um terço na região oriental. A maior parte dos investimentos nessa região era em petróleo.
Havia uma diferença significativa entre os interesses petrolíferos e todos os demais interesses financeiros e comerciais da Inglaterra na Nigéria. A maior parte dos investimentos petrolíferos era no leste, havendo apenas uma pequena parcela no resto da Nigéria. Mas a maior parte dos outros interesses britânicos se concentrava no resto da Federação, havendo apenas uma pequena parcela no leste. Calcula-se que, dos investimentos totais, cerca de 200 milhões de libras estavam aplicados no petróleo.
Embora tenham sido posteriormente acusadas pelos biafrenses de apoiar Lagos desde o início, parece mais provável que as companhias petrolíferas, por seus próprios interesses, não se envolveram realmente no conflito, pelo menos inicialmente, e assim desejavam permanecer. Ironicamente, com suas oportunidades de ganhar dinheiro prejudicadas em ambos os lados pela guerra prolongada, com parte considerável de suas instalações danificadas, destruídas ou requisitadas por ambos os lados, os altos interesses financeiros têm sofrido bastante e ainda são acusados pelos dois lados muito mais que os diplomatas que foram os arquitetos da "política de apoio a Gowon" adotada pelo governo britânico.
Qualquer participação das grandes empresas, direta ou indireta, a favor da Nigéria, permanece envolta em mistério. Contudo, sabemos que o conglomerado de todos os interesses britânicos na África Ocidental é o influente Comitê da África Ocidental, sediado em Londres. Já é axiomático que esse Comitê seguirá sempre a política do governo britânico na África Ocidental, a partir do momento em que essa política tenha sido definitivamente fixada.
Basicamente, os interesses das grandes empresas são explorar, comerciar e auferir lucros. Por esse motivo, deviam querer que a guerra fosse a mais curta possível. Mas dizer que os interesses petrolíferos ou os demais exigiam o esmagamento de Biafra é um tanto exagerado. Empresários entrevistados no início da guerra disseram, particularmente, que não se importavam absolutamente com o lado que vencesse. Não teriam que gastar muito dinheiro para pôr em funcionamento duas operações comerciais separadas, uma na Nigéria e outra em Biafra. Contanto que os dois países convivessem em paz, os negócios teriam prosseguido normalmente. A única coisa que não desejavam era uma guerra prolongada.
Isso era de extrema importância para os interesses petrolíferos. O petróleo extraído da região meio-oeste da Nigéria não é exportado através da costa do meio-oeste. É canalizado através do delta do Níger até Port Harcourt, em Biafra, onde se junta ao petróleo que flui dos poços biafrenses, seguindo por outro oleoduto até o terminal de embarque na ilha Bonny. Quando Biafra separou-se da Nigéria e foi bloqueada, interrompeu-se o fluxo tanto do petróleo do meio-oeste como do biafrense. A principal empresa afetada foi a Shell, um consórcio anglo-holandês que possuía a maioria das concessões nas duas regiões.
Em agosto de 1967, os biafrenses enviaram uma comissão a Londres, integrados por Sir Louis Mbanefo e pelo Professor Eni Njoku, com a missão de tentar persuadir o governo britânico a inverter sua política de apoio à Nigéria. Durante três semanas, os dois ficaram hospedados no Royal Garden Hotel e conversaram com incontáveis servidores civis e empresários do Comitê da África Ocidental. Em conseqüência, houve uma visível indecisão no Departamento da Commonwealth. Soube-se mais tarde que o Comitê pressionou o governo britânico a assumir pelo menos uma posição de rigorosa neutralidade. Mas a situação mudou brusca e surpreendentemente nos dez primeiros dias de setembro. Soube-se posteriormente que foi nessa época que entrou em execução a conspiração dé Banjo para matar Ojukwu. Na primeira semana de setembro, segundo um dos ingleses envolvidos no caso, chegou alguma informação de Lagos que levou Whitehall a retomar às pressas a sua política anterior de apoio total ao General Gowon. Os empresários britânicos foram devidamente informados da decisão. Os dois biafrenses descobriram-se falando no vazio e foram embora. Desse momento em diante, o Departamento da Commonwealth e Londres parecem ter caminhado de mãos dadas, apesar das crescentes apreensões dos empresários na segunda metade de 1968. Não obstante, pouco depois de setembro de 1967 as grandes empresas pagaram sete milhões de libras em royalties do petróleo, quantia devida antes do início da guerra, ao governo do General Gowon, apesar dos protestos de Biafra que o pagamento lhe era devido por direito.
Muito antes do final de 1968, todos os interesses comerciais britânicos já estavam cansados da guerra e descrentes das garantias do governo de que tudo estaria acabado dentro de mais umas poucas semanas. Diversas pessoas que trabalharam para as grandes companhias na África Ocidental durante muitos anos, tendo servido na região leste da Nigéria e que advertiram, como o Sr. Parker, que não se devia pré-julgar a situação, estão agora sendo novamente ouvidas. Nos primeiros tempos, suas predições foram ignoradas em Londres, sendo atribuídas exclusivamente a uma simpatia pessoal pelo povo oriental. Além disso, estava ficando cada vez mais evidente que, mesmo ocorrendo uma completa vitória militar nigeriana, são bem poucas as probabilidades de um retorno à normalidade econômica em Biafra, em decorrência dos ressentimentos pela luta sangrenta e impiedosa, da fuga inevitável dos técnicos biafrenses, da quase total destruição da economia e da escalada das guerrilhas.
A única exceção possível é a do petróleo. Esse produto precisa relativamente de pouca supervisão para ser exportado sob a forma bruta. Ao final de 1968, já se havia inclusive reiniciado a produção de alguns poços em áreas firmemente dominadas pelos nigerianos. Mas quer as companhias petrolíferas acreditem ou não, as possibilidades de um fluxo ininterrupto de petróleo, com a perspectiva de uma encarniçada guerra de guerrilhas, são tão remotas quanto as do florescimento do comércio de outros produtos.
Mas o petróleo é um produto diferente. Possui valor estratégico. Com o Oriente Médio aparentemente fadado a permanecer num período de instabilidade por tempo indefinido, as fontes alternativas do petróleo despertam o maior interesse. Biafra representa uma importante fonte alternativa. Para França, Portugal e África do Sul (citando apenas três países), o petróleo é um fator estratégico de extrema importância. Além do fato de nem todas as concessões para exploração do petróleo de Biafra estarem comprometidas, os biafrenses já advertiram repetidas vezes que o preço da política do governo britânico no transcorrer da guerra pode ser uma renegociação das concessões existentes, que poderiam ser entregues a outros.Há razões para se acreditar que as altas finanças, assim como o governo britânico, apostaram em um cavalo com a garantia de que iria ganhar facilmente. Agora, foram tão longe que têm de ajudar esse cavalo a vencer de qualquer maneira, não importando o preço. Ou seja, estão comprometidas com uma política que gostariam de inverter, particularmente, embora não vejam a menor possibilidade de fazê-lo. Se assim é, as companhias petrolíferas e outras empresas têm a irritação adicional de saberem que não foram elas que formularam essa política.
O PUBLICO BRITÂNICO
O público britânico levou um ano inteiro, depois do início da guerra Nigéria-Biafra, para adquirir mesmo uma noção vaga e consideravelmente desinformada do que estava realmente acontecendo. Mas vendo através da imprensa e da TV que havia pessoas sofrendo terrivelmente, o público britânico prontamente reagiu. Nos seis meses seguintes, fez tudo o que podia, dentro dos limites constitucionais, para mudar a política do governo de apoio à Nigéria e prestar toda assistência possível a Biafra.
Houve comícios, comitês, protestos, manifestações, distúrbios, pressões, jejuns coletivos, vigílias, coletas, faixas, marchas, cartas enviadas a todas as personalidades da vida pública capazes de influenciar a opinião governamental, sermões, conferências, exibições de filmes, campanhas de donativos. Jovens se ofereceram para ir a Biafra a fim de ajudar no que fosse possível, médicos e enfermeiras se apresentaram numa tentativa de aliviar os sofrimentos dos biafrenses. Houve quem se oferecesse para abrigar bebês biafrenses em sua casa até o término da guerra. Muitos se ofereceram para combater por Biafra. Os que se propunham ajudar iam de velhas pensionistas a rapazes do Eton College. Algumas das ofertas eram impraticáveis, outras insensatas, mas todas eram bem-intencionadas.
Embora houvesse uma mobilização muito menor, os parlamentares, imprensa e opinião pública da Bélgica e Holanda conseguiram persuadir os respectivos governos a alterar a política de vendas de armas para Lagos. Mas os esforços da opinião pública britânica foram em vão, pois não conseguiram absolutamente demover o governo de sua posição. Essa constatação não representa uma condenação da opinião pública britânica, mas sim do Governo Wilson.
Normalmente, uma manifestação tão maciça e ampla da vontade popular sempre surte algum efeito sobre o governo britânico. Embora a Inglaterra não tenha uma Constituição escrita, há um acordo tácito de que qualquer política do governo britânico, a não ser em questões fundamentais de defesa ou compromissos externos, ao ser condenada e combatida pelo Parlamento, pela Executiva do Partido no poder, pelas igrejas e pelos sindicatos, pela imprensa e pelo público em geral, deve ser alterada pelo Primeiro-Ministro, que estará assim atendendo aos desejos da grande maioria do eleitorado.
Ê preciso que um governo tenha uma arrogância única e sem precedentes para inicialmente enganar os representantes do povo durante um ano e depois desdenhar a vontade expressa do Parlamento e do povo, através de suas instituições. Um governo de arrogância única e sem precedentes e uma oposição apática e desfibrada é justamente o que tem a Inglaterra, desde outubro de 1964.
O ENVOLVIMENTO RUSSO
A partir de dezembro de 1968, o crescente e constante envolvimento soviético na Nigéria tornou-se um motivo de intensa preocupação para os observadores à margem do conflito. Embora a primeira remessa de caças MIG e bombardeiros Uyushin soviéticos tenha chegado à Nigéria Setentrional em fins de agosto de 1967, ocorrendo ao longo dos 15 meses subseqüentes outras remessas para substituir as perdas em combate, acompanhadas por 200 ou 300 técnicos soviéticos, foi somente depois da assinatura do pacto soviético-nigeriano de novembro de 1968 que as portas realmente se escancararam para a infiltração russa.
O pacto já provocara apreensões entre os diplomatas ocidentais enquanto ainda estava no estágio de discussão entre as duas partes. Os diplomatas britânicos fizeram três tentativas de dissuadir os nigerianos. Todas provocaram um adiamento, mas o pacto foi finalmente assinado a 21 de novembro, na presença de uma delegação vinda de Moscou inusitadamente numerosa e prestigiosa.
Nas semanas seguintes, a presença russa tornou-se cada vez maior, para inquietação não apenas dos ingleses e americanos, mas também de muitos nigerianos moderados.
O pacto especificava certos setores cm que a Rússia ajudaria a Nigéria, como a criação de uma indústria de ferro e aço. Mas, ao que tudo indica, a assinatura do pacto estava vinculada a outras atividades. Pouco depois, começaram a transpirar notícias, da Nigéria Setentrional, de uma ponte aérea noturna para trazer grandes quantidades de armas de infantaria soviéticas. As armas eram levadas de aeroportos do sul do Saara para Kaduna e de lá transferidas para a Primeira Divisão nigeriana, em Enugu. O equipamento militar soviético enviado à Nigéria consistira anteriormente de caças, bombardeiros, bombas, foguetes e barcos de patrulha naval. Para a infantaria, ficara praticamente limitado a bazucas e granadas de mão. Na segunda metade de 1968, começaram a aparecer caminhões, jipes, instrumentos para trincheiras e sargentos soviéticos incumbidos de operar as armas de apoio. Não foi difícil constatar a presença dos equipamentos militares, por amostras capturadas. A presença dos técnicos russos foi denunciada por prisioneiros, especialmente por um comandante de companhia Iorubá, o qual afirmou que os soviéticos não faziam qualquer segredo de sua nacionalidade e ordenavam aos oficiais inferiores nigerianos que comparecessem a preleções nas quais eram louvadas as virtudes ao modo de vida da União Soviética.
Depois da assinatura do pacto, a Primeira Divisão foi basicamente reequipada, para a ofensiva de janeiro de 1969 contra os biafrenses, com armas de infantaria soviética, inclusive milhares de metralhadoras de mão RK 49, a arma de infantaria padrão do Pacto de Varsóvia, e metralhadoras Kalashnikov.
Por todos os lados da Nigéria, os correspondentes estrangeiros começaram a encontrar equipes de especialistas soviéticos nos mais diversos campos. Alguns eram apresentados como mineralogistas, geólogos, engenheiros agrícolas e assim por diante. Começou a haver receios de que a extrema esquerda nigeriana, já firmemente instalada no movimento sindical, pudesse se tornar ainda mais forte. Ao final do ano, ocorreram diversas manifestações antiocidentais. Em Ibadan, as bandeiras inglesas e americanas foram rasgadas, queimadas e pisoteadas por uma multidão delirante de estudantes e operários.
Ao final do ano de 1968, o objetivo soviético a longo prazo na Nigéria ainda era um tema para especulações. Alguns acham que o objetivo soviético não é apressar o fim da guerra, mas sim prolongá-la, indefinidamente, até a Nigéria se tornar tão endividada que ficará suficientemente dócil para fazer concessões aos russos muito além de uma cooperação mútua. Outros consideram que o objetivo é obter, a longo prazo, um virtual monopólio das colheitas comerciáveis nigerianas, como amendoim, cacau, algodão e óleo de palmeira, que seriam concedidas ao invés de dinheiro como pagamento pelos armamentos e o resto da ajuda soviética. O efeito sobre a independência nigeriana seria o mesmo, sujeitando o pais às pressões soviéticas durante toda a década de 1970. Há também quem esteja convencido de que o objetivo final é estratégico: a obtenção de bases aéreas no norte da Nigéria e talvez de uma base marítima na costa ao sul. Esses observadores relembram a cadeia de bases aéreas da Inglaterra, em Gibraltar, Malta, Líbia, Chipre, Aden, Ilhas Maldivas e Singapura, que permitiu a opção, na década de 1960, de uma rápida intervenção britânica a leste de Suez. O raciocínio era o de que a Rússia, com acesso da Criméia a Damasco, Port Said, Egito Superior e Sudão, precisava apenas de Kaduna e Calabar para ter uma cadeia de bases aéreas até a África Meridional. Com efeito, ao final de 1968, técnicos russos estabeleceram uma base em Kaduna. Ao mesmo tempo, começaram a melhorar os aeroportos de Kaduna e Calabar, que passaram de pequenas pistas locais para modernos aeroportos, capazes de receber os bombardeiros Ilyushin e os cargueiros Antonov, com todas as instalações para pousos e decolagens noturnos e em mau tempo.
Citar detalhadamente, com todas as datas, nomes, lugares e referendas, as ações e pronunciamentos do governo britânico durante o ano de 1969, na execução de sua política declarada de apoio à Nigéria na guerra, seria monótono, tendo em vista tudo o que já está descrito neste capítulo.
Basta dizer que, mesmo se excetuando os terríveis sofrimentos do povo biafrense causados em grande parte pela posição oficial britânica e levando-se em consideração apenas as realidades objetivas da situação, a política do governo de Sua Majestade era na melhor das hipóteses desastrosa e incompetente. Contudo, essa política permaneceu inalterável. Ao longo do ano, as declarações oficiais continuaram a deturpar e distorcer os fatos, muito embora esses fatos fossem disponíveis em muitos registros públicos contemporâneos. Em diversas ocasiões, a imprensa, o Parlamento e o público em geral receberam mentiras deliberadas, num esforço para garantir o apoio popular à política do governo britânico a favor do regime de Gowon e de seus objetivos, que eram os de vencer a guerra por todos os meios possíveis, inclusive matando de fome a população civil.
Nas raras ocasiões em que o governo britânico aparentemente se empenhou num esforço para promover a paz, sempre foi quando havia necessidade de atenuar e engambelar a imprensa e a opinião pública. Analisadas em retrospectiva, cada aparente iniciativa não passou de um exercício de propaganda, a ser elogiada pelos ingênuos, mas sem jamais alcançar, deliberadamente, quaisquer resultados concretos. v
A primeira dessas iniciativas ocorreu na esteira da tempestade de protestos na imprensa e no Parlamento, provocada pelos artigos do Sr. Winston Churchill em The Times, em março. Um dos resultados da preocupação na Inglaterra com os artigos do Sr. Churchill foi a crescente pressão dentro do Parlamento, que culminou em outro debate parlamentar, a 20 de março. Foi outro exercício de inutilidade. O principal argumento contra a política do governo de remessas de armas em apoio a uma guerra que resultava em sofrimentos humanos na escala em que ocorria em Biafra, foi devidamente evitado. O Partido Conservador, a julgar pela desinformação de seus porta-vozes, parecia não ter qualquer política construtiva a oferecer nem estar preparado para uma oposição inteligente ao governo sobre a questão realmente importante, que poderia atrair o apoio do Partido Liberal e até mesmo de representantes do Partido Trabalhista do Sr. Wilson.
Mas, na esteira do debate, o Sr. Wilson anunciou que iria pessoalmente à Nigéria. Na imprensa e na Câmara dos Comuns manifestou-se o ceticismo quanto ao valor e utilidade prática dessa visita pessoal. Pareceu desde o início e mais tarde se confirmou que não passava de mais um exemplo do arsenal de truques pessoais que o público esperava do Primeiro-Minístro trabalhista. Mas como o Secretário do Exterior, Sr. Michael Stewart, declarou na Câmara dos Comuns, na véspera da viagem do Sr. Wilson, que "o Primeiro-Ministro não exclui a possibilidade de visitar Biafra também" e como os repórteres políticos estavam insinuando que já haviam sido tomadas providências nesse sentido, os otimistas começaram a acalentar a esperança de que, talvez, finalmente, o governo britânico estivesse disposto a analisar os dois lados da crise e não apenas os argumentos que se ajustavam a seus preconceitos.
Aparentemente com essa esperança, o General Ojukwu formulou um convite para que o Sr. Wilson visitasse Biafra, o que lhe exigiu muito esforço para superar a oposição interna à idéia de receber um homem tão odiado pelo povo biafrense.
O otimismo foi tão prematuro quanto o convite de Ojukwu fora desconcertante para as autoridades britânicas. Sabia-se que o Sr. Wilson tencionava retornar a Londres e apresentar-se na Câmara dos Comuns, fazendo um relato de suas impressões de testemunha ocular. Diante do convite de Ojukwu, ficou difícil imaginar como o Sr. Wilson poderia ir a Biafra, ver o que havia para ser visto e depois informar o que vira, ao mesmo tempo em que enquadrava suas palavras nos termos da política que adotara anteriormente e dos pronunciamentos de seus colegas de Gabinete. O problema era complicado, mas foi rapidamente resolvido.
No Sunday Telegraph de 30 de março, o Sr. H. B. Boyne, que acompanhava o grupo do Primeiro-Ministro britânico na visita à Nigéria, deixou os leitores aturdidos e apreensivos, escrevendo: "A propósito, o Sr. Wilson jamais teve a menor intenção de ir a qualquer parte do território separatista."
No Sunday Times da mesma data, o Sr. Nicholas Carroll ofereceu a seus leitores o que podia ser interpretado como explicação para o comentário casual de seu colega: "Apesar das visitas do Sr. Wilson terem sido superficiais, como não podia deixar de acontecer, ele viu o bastante para confirmar o que já ouvira, tanto dos seus anfitriões como dos seus próprios assessores."
Nada mais foi dito. Provavelmente, era justamente esse o objetivo do comentário insinuante.
Um fato paralelo estranho e revelador da visita do Sr. Wilson à Nigéria veio à luz alguns meses depois, quando o Capitão Leonard Cheshire, que estivera em Biafra e conversara com o General Ojukwu uma semana antes da chegada a Lagos do Primeiro-Ministro britânico, revelou o que andara fazendo. Num artigo da revista semanal Guardian, a 22 de novembro, o antigo piloto de bombardeiro e herói da guerra, declarou pela primeira vez que fora a Biafra como emissário do Foreign Office, apesar de ser um amador.
Os biafrenses estavam perfeitamente a par da visita de Cheshire e dos seus motivos. Mas o segredo foi tão bem guardado que o público britânico só veio a tomar conhecimento em novembro.
O capitão Cheshire declarou que um amigo pessoal no Foreign Office lhe pedira que fosse a Biafra e tentasse falar com o General Ojukwu, para sondar quais os sentimentos dele em relação às perspectivas de paz. Foi-lhe pedido também que fizesse uma avaliação pessoal da situação e depois informasse tudo ao Sr. Wilson, pessoalmente, em Lagos.
E foi justamente o que Cheshire fez. Desconcertando aqueles que o incumbiram da missão, suas conclusões foram as seguintes:
Sempre me lembrarei da entrevista com Ojukwu por uma impressão de extrema sinceridade... Em Lagos, onde cheguei no dia anterior à visita do Primeiro-Ministro, apresentei um relatório completo a um alto membro da delegação britânica. Depois, concederam-me cerca de 15 minutos de conversa com o Sr. Wilson. Disse-lhe que Biafra era um país que estava lutando desesperadamente por uma convicção profunda, que o povo não estava sendo enganado por seus lideres políticos... Ressaltei a minha completa convicção da boa fé de Ojukwu e supliquei que não deixasse de visitar Biafra, argumentando que era a única esperança de paz. O Sr. Wilson respondeu que tal visita era inteiramente impossível ...
Ao final do artigo, o Capitão Cheshire relatou como foi posteriormente entrevistado em Londres, no Foreign Office, por um alto funcionário visivelmente cético, que comentou, assim que ele terminou o relato de suas observações e conclusões:
— É curioso como todas as pessoas que vão a Biafra parecem cair na esparrela.
A condescendência indulgente com a qual foi tratado o Capitão Cheshire, escolhido pelo próprio Foreign Office para a missão, demonstra cabalmente a atitude das autoridades britânicas em relação a todas as pessoas que retornavam de Biafra depois de uma missão de avaliação da situação no local. A relação dos que foram assim tratados é interminável, indo de Lordes e Membros do Parlamento, passando por clérigos e profissionais liberais e chegando a repórteres e fotógrafos. Para esse grupo de assessores, responsáveis pela formulação da política britânica, todos estão errados, menos eles próprios, que estiveram bem poucas vezes na Nigéria e nunca foram a Biafra.
E a situação assim continuou até o final do ano de 1969. Em outubro de 1968, houve uma fusão do Departamento da Commonwealth, cujos assessores haviam sido os responsáveis pelo envolvimento da Inglaterra na crise Nigéria-Biafra, e o Foreign Office, tradicionalmente considerado pelos observadores políticos de Londres como uma instituição mais profissional. Se assim era, ninguém conseguiu perceber a menor diferença.
Não obstante, houve algumas esperanças de que, com o Foreign Office agora no comando da situação e com muitos fósseis do Departamento da Commonwealth aposentados compulsoriamente na fusão, pudesse ser adotada uma atitude mais realista em relação à questão Nigéria-Biafra, em 1969. Mas tal não aconteceu.
O fato de não haver qualquer mudança na política britânica em 1969, mesmo com base no pragmatismo, foi devido em grande parte à ação do Secretário do Exterior, Sr. Michael Stewart, um político cuja flexibilidade mental é remanescente das leis dos medos e persas. Antes de se tornar o único e exclusivo responsável por todos os assuntos externos da Inglaterra, o Sr. Stewart já havia deixado bem claro, através de pronunciamentos públicos e particulares, que era um homem que detestava ser confundido pelos fatos, a partir do momento em que tomava uma decisão a respeito de qualquer questão. E em relação à Nigéria ele já tinha formado uma opinião, inabalável por qualquer coisa a menos que fosse o recurso a explosivos, muito antes de ocorrer a fusão do Foreign Office com o Departamento da Commonwealth. Assim, por exemplo, em relação ao socorro às populações famintas de Biafra, ele deixou bem claro em diversas ocasiões, na Câmara dos Comuns e outros lugares, que o malogro para se chegar a um acordo sobre o transporte de alimentos pela Cruz Vermelha Internacional, depois que esta fora obrigada a interromper seus vôos noturnos em junho, era culpa exclusiva do General Ojukwu e de ninguém mais. Nenhum relato passo a passo da seqüência de acontecimentos, revelando que a oferta federal de vôos à luz do dia não passava de um cínico embuste, será capaz de abalar a crença do Sr. Stewart de que os membros do regime federal de Lagos podem ser comparados a anjos de misericórdia.
A fim de tentar persuadir os seus colegas na Câmara dos Comuns, a imprensa e a opinião pública, o Sr. Stewart lançou-se a explicações exaustivas e prolongadas, até mesmo para um político. Quando a Cruz Vermelha Internacional, pressionada por Lagos, entregou a sua operação de socorro, avaliada em muitos milhões de dólares, ao Comitê Nigeriano de Reabilitação, suspendendo ao mesmo tempo os seus vôos noturnos para Biafra e com isso reduzindo em 50 por cento os fornecimentos de alimentos e medicamentos para a população biafrense, a medida foi abertamente apoiada pela Inglaterra. Defendendo a medida na Câmara dos Comuns, em junho, o Sr. Stewart declarou que a ação da Cruz Vermelha Internacional contava com o apoio de todas as operações de socorro. Era uma mentira gritante e foi pronta e vigorosamente negada por todas as igrejas que participavam da Organização de Ajuda Conjunta das Igrejas. [Walter Schwarz, "Mr. Wilson and Biafran Starvation" (O Sr. Wilson e a Fome em Biafra), revista Guardian, 22 de novembro de 1969.] A 17 de novembro, na Câmara dos Comuns, depois do fracasso de uma tentativa de se promover um acordo entre Lagos e Biafra sobre os vôos de socorro à luz do dia, o Sr. Stewart empenhou-se ao máximo em menosprezar as razões militares do General Ojukwu para se recusar a abrir o aeroporto de Uli durante o dia. O Sr. Stewart declarou que, se fossem permitidos os vôos à luz do dia, os americanos estavam preparados para garantir que o regime federal não procuraria tirar qualquer proveito de tal situação. Na verdade, essa garantia americana jamais foi oferecida. Significativamente, absolutamente nenhuma potência se ofereceu para garantir que a Força Aérea Nigeriana iria respeitar a inviolabilidade dos aviões e do aeroporto, no caso de um acordo para os vôos de socorro à luz do dia. [Brítain's Role in Nigéria, (O Papel da Inglaterra na Nigéria), comentário editorial, ibid.]
Comentando esse desempenho do Secretário do Exterior na Câmara dos Comuns, a revista semanal Guardian observou, no sábado seguinte: "Mais uma vez, o Sr. Stewart esteve vergonhosamente deturpando os fatos em relação ao papel da Inglaterra na guerra nigeriana. [Ibid.] É lamentável ter que dizer que, durante o período em que o Sr. Stewart foi o Secretário para Assuntos Estrangeiros de Sua Majestade, distorções e inverdades, que dificilmente podem ter sido simplesmente a decorrência de más informações, tornaram-se tão freqüentes, pelo menos neste caso, que acabaram nem mais provocando qualquer comentário editorial
11. Refugiados, Fome e Ajuda Internacional
Foi a fome em Biafra que realmente despertou a consciência do mundo para o que estava acontecendo. A opinião pública em geral, não apenas da Inglaterra, mas de toda a Europa Ocidental e da América, embora geralmente incapaz de discernir as complexidades políticas por trás das notícias da guerra, pôde pelo menos perceber que alguma coisa estava errada na fotografia de uma criança faminta e esquelética. Foi com base nessa imagem que se desfechou uma campanha de imprensa que abalou o mundo ocidental, levou governos a mudarem sua política e proporcionou a Biafra a chance de sobreviver ou pelo menos de não morrer despercebida.
Mas até mesmo essa questão foi comprometida pela propaganda contrária, insinuando que os próprios biafrenses estavam "exagerando o problema", utilizando a fome de seu povo pata conquistar a simpatia mundial para suas aspirações políticas. Não houve um único sacerdote, médico, assistente social ou administrador dos países europeus que trabalharam em Biafra, na última metade de 1968, vendo centenas de milhares de crianças morrerem em meio a sofrimentos atrozes, que tivesse insinuado alguma vez que o problema precisava ser "exagerado". Os fatos simplesmente existiam, os fotógrafos e cinegrafistas os gravavam para a posteridade. A inanição das crianças de Biafra tornou-se um escândalo mundial.
A acusação mais grave é a de que os biafrenses, especialmente o Coronel Ojukwu, utilizaram a situação e até mesmo impediram que fosse atenuada, a fim de angariar apoio e simpatia. É uma acusação tão grave, tanto da lama ficou grudada, que não seria possível escrever a história de Biafra sem explicar o que realmente aconteceu.
Já foi explicado em outra parte deste livro que a fome dos biafrenses não foi um acidente, um infortúnio ou até mesmo uma conseqüência necessária mas lamentável da guerra. Foi uma parte da política de guerra nigeriana, deliberadamente executada. Os líderes nigerianos, que possuem uma elogiosa franqueza muito maior que os ingleses jamais terão de seus líderes, jamais se deram ao trabalho de ocultar suas verdadeiras intenções.
Em vista disso, a conclusão inevitável é a de que nenhuma concessão do Coronel Ojukwu poderia possibilitar que os alimentos de socorro chegassem a Biafra mais depressa e em maiores quantidades, a não ser as concessões que a Nigéria e a Inglaterra exigiam e que teriam acarretado a extinção sumária do país.
Todas as "ofertas" apresentadas pelo governo nigeriano, freqüentemente depois de consultas ao Alto Comissariado Britânico e geralmente aceitas de boa fé pelos ingênuos do Parlamento, imprensa e público da Inglaterra, continham na verdade imensas perspectivas táticas e estratégicas favorecendo o Exército Nigeriano.
Todas as propostas apresentadas pelo Coronel Ojukwu e outras partes envolvidas, como a Cruz Vermelha Internacional, a Igreja Católica Romana e alguns jornais, não continham qualquer perspectiva implícita de vantagem militar para qualquer dos lados. Por isso, foram categoricamente rejeitadas pelos nigerianos, com as. bênçãos de Whitehall.
Contarei aqui a história completa. Biafra possui um formato aproximadamente quadrado. Correndo pela faixa leste, por um terço do território, está o rio Cross, com seus vales e campinas férteis. Ao longo da faixa sul, pouco acima dos riachos e pântanos, há uma outra área abundantemente irrigada por numerosos rios pequenos, que nascem nas terras altas e correm para o mar. O resto do país, representando o canto superior esquerdo do quadrado, é um platô, a terra dos Ibos.
Antes da guerra, era nesse platô que se concentrava a maior parte da população da região oriental, embora fosse nas áreas minoritárias do leste e do sul que se cultivava a maior parte dos alimentos. A região, como um todo, era relativamente auto-suficiente na produção de alimentos, sendo capaz de proporcionar todos os carboidratos e frutas necessárias. Mas importava carne das áreas de criação de gado ao norte da Nigéria, assim como sal e bacalhau da Escandinávia. A carne e o peixe representavam a parte de proteínas da dieta. Embora se criassem cabras e galinhas na região, não eram suficientes para fornecer as proteínas necessárias para a boa saúde de uma população superior a 13 milhões de habitantes.
Com o bloqueio e a guerra, o suprimento importado de proteínas foi suspenso. Embora os adultos possam continuar a gozar de boa saúde por um longo tempo mesmo sem as proteínas necessárias, as crianças exigem um suprimento constante.
Os biafrenses instituíram um programa intensivo de aumento da produção de ovos e galinhas de corte, a fim de contar com mais alimentos ricos em proteínas. Poderiam ter resolvido o problema, pelo menos por dois anos, se não fosse pela redução do território sob seu controle, a perda das férteis províncias periféricas e o fluxo de mais de cinco milhões de refugiados dessas províncias.
Em meados de abril, os biafrenses já tinham perdido o vale do rio Cross quase inteiro, assim como uma parte do sul, a terra dos ibibios, nas províncias de Uyo, Ánnang e Eket. Nessa ocasião, os comunicados do representante da Cruz Vermelha Internacional em Biafra, o empresário suíço Heinrich Jaggi, dos líderes católicos da Caritas, do Conselho Mundial de Igrejas, da Cruz Vermelha Biafrense e de médicos de diversas nacionalidades, que haviam permanecido no país, indicavam que o problema estava se tornando cada vez mais grave. Os especialistas estavam constatando uma crescente incidência de kwashiokor, uma doença que deriva da deficiência de proteínas e afeta principalmente as crianças. Os sintomas são o avermelhamento dos cabelos, o empalidecimento da pele, inchamento das articulações e estofamento da carne, à medida que é distendida pela água. Além de kwashiokor, havia anemia, pelagra e simples inanição. Os efeitos do kwashiokor, que era a maior praga, são lesão dos tecidos cerebrais, letargia, coma e finalmente morte.
Ao final de janeiro, o Sr. Jaggi apelara à Cruz Vermelha em Genebra para que tentasse obter permissão de ambos os lados para que se fizesse um pedido limitado de ajuda internacional, sob a forma de medicamentos, alimentos e roupas. O Coronel Ojukwu concordou assim que foi consultado, a 10 de janeiro. Lagos também concordou, no final de abril. Enquanto isso, o problema dos refugiados estava se tornando cada vez maior. É verdade que o problema dos refugiados é quase inevitável quando ocorrem quaisquer hostilidades e não se possa necessariamente culpar os governos envolvidos, contanto que eles tomem as medidas cabíveis para aliviar os sofrimentos das pessoas deslocadas, até que estas se sintam seguras o bastante para retornarem a suas casas.
Mas não foi essa a atitude assumida pelo governo e autoridades militares nigerianas. Jornalistas e assistentes sociais, operando por trás das linhas de frente no lado nigeriano, revelaram mais tarde que as autoridades militares sistematicamente frustravam as operações baseadas em recursos estrangeiros para aliviar os sofrimentos da população civil biafrense, estorvavam o transporte dos materiais de socorro, confiscavam os meios de transporte pagos por doações estrangeiras, proibiam o acesso a áreas em que os sofrimentos eram maiores e os riscos mínimos. O comandante da Terceira Divisão nigeriana, General-de-Brigada Benjamin Ádekunle, jamais escondeu dos muitos repórteres que o visitaram e escutaram os seus discursos que não tinha a menor intenção de permitir que os assistentes sociais operassem para salvar vidas, muito menos pretendia ajudá-los. Essa atitude, que foi constatada em todos os níveis, era ainda mais estranha tendo em vista que, segundo os nigerianos, a população civil que tanto sofria era constituída por conterrâneos.
A grande maioria da população civil fugiu das zonas de combate não para as áreas além da zona conflagrada e sim para parte de Biafra não ocupada. De um modo geral, não eram Ibos, mas as populações minoritárias. O sistema de família extensa, que ajudara os orientais a absorver os refugiados do norte e do oeste 18 meses antes, não podia funcionar agora, já que a maioria dos refugiados não tinha parentes com os quais se abrigar. Á maioria se amontoou em abrigos construídos nos arredores das aldeias, enquanto as autoridades biafrenses,. com ajuda da Cruz Vermelha e das igrejas, construía às pressas diversos campos de refugiados, nos quais os desabrigados poderiam pelo menos partilhar um teto e uma refeição por dia. Muitos desses campos foram instalados em escolas vazias, nas áreas em que todas as habitações já estavam in situ. Mais tarde, esses campos de refugiados proporcionaram excelentes alvos para os pilotos egípcios dos MIGs e Ilyushins soviéticos.
Ao final de abril, por razões militares já explicadas anteriormente, o fluxo de refugiados aumentara de maneira alarmante, chegando aproximadamente a três e meio milhões de pessoas.
A Caritas e o Conselho Mundial de Igrejas, como organizações que não operavam no lado nigeriano da frente de combate e não estavam obrigadas pela exigência do Sr. Jaggi a recorrer aos chamados canais competentes antes de trazerem qualquer socorro, decidiram agir por conta própria. Do início desse ano em diante, passaram a comprar no exterior grande quantidade de medicamentos e alimentos, trazendo tudo de avião para Biafra. Como não tinham aviões nem pilotos, fizeram um acordo com o Sr. Hank Wharton, um freelance americano que transportava carregamentos de armas de Lisboa para Biafra duas vezes por semana, comprando algum espaço em seu avião. Mas as quantidades que podiam ser trazidas dessa maneira eram mínimas.
A partir de 8 de abril, a Cruz Vermelha começou também a enviar pequenas quantidades de ajuda pelo avião de Wharton. Resolvendo comprar ou obter por doação seu próprio avião e contratar seus próprias pilotos, a Cruz Vermelha enviou de Genebra insistentes apelos ao governo nigeriano, para que fornecesse um salvo-conduto a um avião com a sua marca característica, garantindo que não seria derrubado ao voar para Biafra à luz do dia. Esses apelos foram sistematicamente rejeitados.
Foram feitas tentativas para superar o receio nigeriano de que Wharton pudesse transportar armas à luz do dia, aproveitando os vôos da Cruz Vermelha. Propôs-se inicialmente que uma equipe da Cruz Vermelha Suíça ficasse encarregada de fiscalizar a permanência no solo do avião de Wharton, durante o dia. Não. Temia-se que o avião de socorro pudesse também transportar armas. Sugeriu-se que o pessoal da Cruz Vermelha fiscalizasse o embarque. Não. Neste caso, o pessoal da Cruz Vermelha Nigeriana poderia fiscalizar o embarque. Não. Ojukwu concordou que a Cruz Vermelha Nigeriana enviasse representantes para acompanhar cada vôo de socorro até o aeroporto em Biafra. Não.
Na ocasião, nem mesmo os biafrenses suspeitavam que o regime de Gowon não tinha e nunca teria a menor intenção de permitir os vôos de socorro. Enquanto tudo isso acontecia, as Igrejas continuavam a trabalhar, alheias às marchas e contra-marchas, enviando tudo o que podiam, sempre que havia algum espaço disponível.
O Coronel Ojukwu compreendeu, ao estudar os relatórios sobre a deficiência de proteínas, em meados de abril, que o tempo era cada vez menor, se se queria evitar um desastre de grandes proporções. O problema, conforme lhe disseram os representantes das organizações internacionais de socorro, não era o de comprar alimentos (tinham certeza que isso não apresentaria a menor dificuldade), mas sim o de transportar os carregamentos para Biafra através do bloqueio. Obviamente, era um problema mais técnico do que médico. O Coronel Ojukwu determinou a uma comissão de técnicos que estudasse o problema e apresentasse o mais depressa possível um relatório sobre as diversas maneiras pelas quais os alimentos poderiam ser trazidos a Biafra.
No início de maio, esses técnicos apresentaram suas conclusões. Havia três maneiras de trazer alimentos para Biafra: pelo ar, pelo mar e por terra. A ponte aérea, se fosse trazer quantidades suficientes para resolver o problema, teria que ser muito maior do que era possível com os três aviões com que Wharton agora contava. Seria também extremamente dispendiosa. Mas era também o meio mais rápido. O transporte pelo mar, através de Port Harcourt ou subindo o rio Níger, seria mais lento. Mas assim que entrasse em funcionamento rotineiro, poderia trazer uma tonelagem de alimentos muito maior, a um custo bem menor. O transporte por terra, levando-se em consideração que os alimentos teriam primeiro que ser levados de navio até Nigéria, atravessar centenas de quilômetros da Nigéria até chegar à parte de Biafra ocupada pelos nigerianos, passar em seguida por estradas quase intransitáveis por pontes destruídas e apinhadas de tráfego militar nigeriano, seria lento, difícil e dispendioso. Não oferecia as vantagens da rapidez da ponte aérea nem as vantagens de custo/eficiência do corredor marítimo.
Impressionado com os apelos de urgência dos médicos. Ojukwu optou por uma ponte aérea como um recurso temporário, deixando o transporte marítimo a ser adotado posteriormente, se fosse possível, para trazer o grosso dos suprimentos. O Sr. Jaggi e os outros líderes das organizações de socorro foram informados das conclusões dos técnicos e não fizeram quaisquer objeções.
Em meados de maio, Biafra perdeu Port Harcourt e ganhou aproximadamente mais um milhão de refugiados. Uma parte era de naturais da cidade e dos arredores, outra de refugiados de diversas regiões que tinham ido para Port Harcourt. Mas a perda do porto não alterou as opções de transporte do socorro internacional. O aeroporto de Uli, apelidado de Annabelle, entrou em funcionamento, para substituir a perda do aeroporto de Port Harcourt. O acesso pelo mar ao rio Níger e ao porto de Oguta continuava aberto, se os nigerianos concordassem em ordenar a seus navios de guerra que permitissem a passagem de navios da Cruz Vermelha.
Áo final de maio, a Cruz Vermelha Internacional, sediada em Genebra, fez um segundo apelo, desta vez especificamente a Biafra, já que a Nigéria se recusava a concordar com o que quer que fosse.
Mas, durante todo esse tempo, o problema permanecera ignorado pela opinião pública mundial. Á história ainda não transpirara. Em meados de junho, o Sr. Leslie Kirkley, diretor da Oxfam, visitou Biafra durante 15 dias. E ficou profundamente abalado com o que viu. Na mesma ocasião, Michael Leapman, do Sun, e Brian Dixon, do Daily Sketch, estavam mandando notícias para seus respectivos jornais do interior de Biafra. Juntamente com seus fotógrafos, eram homens que se atinham aos fatos. Nos últimos dias de junho, as primeiras fotografias de crianças reduzidas a esqueletos vivos apareceram nas primeiras páginas dos jornais londrinos.
Ao longo desse mês, os únicos alimentos que vieram do exterior foram as pequenas quantidades que cabiam nos espaços vagos dos Super Constellations de Wharton, que decolavam de Lisboa. Mas com três organizações disputando agora os espaços nos aviões, havia mais alimentos do que podiam ser transportados. Nas semanas subseqüentes, todas as três organizações obtiveram seus próprios aviões. Mas Wharton insistiu em cuidar da manutenção e pôr seus pilotos a voá-los. Durante essas semanas, começaram a chegar alimentos à ilha atlântica portuguesa de São Tomé, de navio. Até esse momento, a ilha fora utilizada apenas como um ponto de reabastecimento. Dessa forma, haveria uma ponte aérea mais curta e mais rápida, da ilha para Biafra. As armas continuariam a ser transportadas diretamente de Lisboa. Assim, os carregamentos de leite em pó e de balas voltaram a ser separados nas operações de Wharton.
Antes de deixar Biafra, o Sr. Kirkley deu uma entrevista coletiva, na qual declarou que, a menos que quantidades substanciais de alimentos chegassem ao país nas seis semanas seguintes, cerca de 400 mil crianças iriam entrar no período "sem esperanças" e acabariam morrendo de kwashiokor. Quando lhe perguntaram que citasse a tonelagem necessária imediatamente para evitar uma catástrofe, o Sr. Kirkley falou em 300 toneladas por dia (ou por noite).
Em Londres, essa notícia foi publicada a 2 de julho pelo Evening Standard. Mas muitos acharam que não passava de "propaganda biafrense" até que, no dia seguinte, o Sr. Kirkley compareceu pessoalmente a um programa de notícias internacionais da televisão da B. B. C, "Vinte e quatro horas por dia", repetindo as suas estimativas. Enquanto isso, a opinião pública estava sendo lentamente despertada pelas fotografias que apareciam na imprensa britânica. Antes de deixar Biafra, o Sr. Kirkley tivera uma reunião com o Sr. Jaggi e com o Coronel Ojukwu, na qual o líder biafrense se oferecera para colocar o seu melhor aeroporto à disposição das organizações internacionais de socorro. Isso iria separar definitivamente a ponte aérea de armas da ponte aérea de alimentos, aumentando as possibilidades da Nigéria conceder salvo-conduto para os os vôos à luz do dia dos aviões de socorro. O Sr. Jaggi e o Sr. Kirkley aceitaram prontamente a oferta.
A 1º de julho, em Londres, o Sr. Kirkley encontrou-se com Lord Shepherd. A 3 de julho, teve uma reunião com o Sr. George Thomson. Nas duas reuniões, fez um relato completo da gravidade e extensão do problema, falou sobre a necessidade de urgência, discorreu sobre os méritos relativos dos três meios de transporte possíveis e revelou a oferta de um aeroporto exclusivo para o desembarque de alimentos e medicamentos. Como o Sr. Kirkley chegara e partira pelo aeroporto de Annabelle, estava em condições de garantir que a pista era capaz de receber aparelhos de grande porte, como os Super Constellations. Os observadores acharam que esse era um momento apropriado para a Inglaterra usar sua influência na capital nigeriana, que o governo trabalhista julgava ter obtido com as vendas de armas a Lagos, a fim de minorar os sofrimentos do povo biafrense. Foi encaminhado oficialmente ao general Gowon um pedido para que permitisse os vôos à luz do dia dos aviões da Cruz Vermelha para Biafra. A resposta de Gowon, que chegou na tarde de 5 de julho e foi publicada pelos jornais vespertinos, foi breve e direta. Daria ordens para que fossem abatidos todos os aviões da Cruz Vermelha que sobrevoassem o território nigeriano.
O Sr. Harold Wilson aparentemente já tinha uma desculpa à mão. Num telegrama ao Sr. Leslie Kirkley, que chefiara a delegação que lhe fora pedir que usasse sua influência em Lagos, explicou que o General Gowon estava apenas querendo dizer que mandaria derrubar todos os vôos para Biafra não-autorizados. Como não havia quaisquer vôos autorizados por Gowon, a questão tornou-se acadêmica e assim permaneceu desde então.
O governo britânico levara um tapa na cara, da Nigéria, e era preciso fazer alguma coisa para restaurar a harmonia e associação. Foi justamente o que aconteceu. A 8 de julho, o Ministro do Exterior da Nigéria Sr. Okoi Arikpo, deu uma entrevista coletiva em Lagos, propondo a criação de um corredor por terra. Os alimentos seriam levados de navio até Lagos. De lá, seriam levados de avião para Enugu, que estava seguramente em -poder dos nigerianos. Em seguida, seriam transportados em comboios de caminhões até um ponto ao sul de Awgu, que fora capturada pelas tropas federais no mês anterior. Ali, os aumentos seriam deixados na estrada, na esperança de que os "rebeldes" aparecessem para buscá-los.
A proposta foi aclamada pelo govemo britânico e por quase toda a imprensa como um gesto extremamente magnânimo. Ninguém se deu ao trabalho de ressaltar que era tão dispendioso levar um navio a Lagos quanto a São Tomé, Fernando Pó ou o rio Níger; que uma ponte aérea de Lagos para Enugu era tão dispendiosa quanto uma ponte aérea de São Tomé para Annabelle; que os nigerianos haviam declarado anteriormente que uma ponte aérea era inexequível por causa das condições climáticas e da carência de aviões e pilotos; que eles não dispunham de caminhões suficientes para transportar 300 toneladas de alimentos por dia de Enugu para Awgu; ou que combates encarniçados ainda estavam sendo travados na região ?o redor de Awgu.
Na verdade, não era necessário que ninguém concordasse com o plano apresentado pelo Sr. Arikpo, já que não era exigida a cooperação dos biafrenses. Nenhum pacote de leite em pó foi jamais levado a Awgu para ser usado na parte de Biafra que não estava ocupada, jamais foi deixado na estrada para que os "rebeldes" fossem buscar. Até onde se pode saber, nunca houve tal intenção.
Seja como for, para os biafrenses a questão já não era mais simplesmente um problema técnico. Havia uma crescente oposição dentro do país, não do Coronel Ojukwu, mas do povo em geral, que não gostava da idéia de aceitar alimentos como uma cortesia do Exército Nigeriano. Muitos declararam que preferiam ficar sem os alimentos a aceitar migalhas dos seus algozes. Havia também a questão de um possível envenenamento. Recentemente, várias pessoas haviam morrido misteriosamente, depois de comerem alimentos trazidos do meio-oeste, através do Níger, por contrabandistas. Uma análise de amostras desses alimentos, feitas no laboratório do hospital de Ihiala, revelou a presença de arsênico e outras substâncias tóxicas.
Tal notícia foi ridicularizada no exterior. Mas muitos estrangeiros não-envolvidos que estavam em Biafra, especialmente o jornalista Anthony Hayden-Guest, investigaram o problema e chegaram à conclusão de que as notícias não eram propaganda.[Daily Telegraph, 8 de julho de 1968.] Os danos em termos físicos foram pequenos, mas em termos psicológicos foram enormes. Para muitas pessoas, os alimentos que provinham da Nigéria passaram a ser comida envenenada. Diga-se de passagem que nem todas as pessoas que assim pensavam eram biafrenses. Um padre irlandês comentou:
— Não posso dar a um bebê uma xícara de leite que sei ter vindo da Nigéria. Por menor que seja a possibilidade de envenenamento, o risco é muito grande.
Mas a questão predominante foi a militar. Os chefes militares do Coronel Ojukwu informaram que estava ocorrendo uma grande concentração de equipamentos militares, sendo levados de Enugu para Awgu. Se suspendessem as defesas, para deixar passar os comboios de alimentos e medicamentos, estariam simplesmente abrindo uma avenida indefesa para o coração do território biafrense. Poderiam confiar que o Exército Nigeriano não iria tirar proveito da situação para passar carros blindados, homens e armas? A resposta fora negativa na experiência anterior.
Numa entrevista coletiva em Aba, a 17 de julho, o Coronel Ojukwu deixou bem clara a sua posição. Queria uma ponte aérea a curto prazo, como o meio mais rápido de acelerar a solução do problema. Propôs uma rota fluvial neutra, subindo o Níger, ou um corredor por terra desmilitarizado, indo de Port Harcourt até a linha de frente, para o transporte do grosso dos suprimentos. Não podia concordar com suprimentos que passassem por mãos nigerianas sem serem observados e escoltados por pessoal estrangeiro neutro, nem também com um corredor por terra que ficasse exclusivamente sob o controle do Exército Nigeriano. Naquela noite, Ojukwu seguiu de avião para Niamey, capital da República do Níger, a convite do Comitê da Nigéria da Organização da Unidade Africana. Ali, expôs novamente todas as opções, para o caso de haver realmente uma intenção de resolver o problema e não apenas a de fazer política à custa dos sofrimentos do povo biafrense.
Na Inglaterra, o plano Enugu-Awgu foi vigorosamente apoiado pelo governo britânico, com todas as forças de que dispunha. As propostas alternativas foram impacientemente repelidas. Cada vez mais consciente do clamor público, o governo ofereceu 250 mil libras à Nigéria para ajudar na solução do problema. Embora todas as questões em foco, as opções possíveis e os depoimentos técnicos dos especialistas fossem conhecidos ou estivessem disponíveis, o governo britânico resolveu mandar Lord Hunt numa visita à Nigéria e Biafra, com a missão de determinar qual a melhor maneira para administrar a doação britânica.
O Coronel Ojukwu declarou que seu povo não desejava aceitar dinheiro nem ajuda do governo do Sr. Wilson, alegando que a soma envolvida era menos de um por cento das vendas de armas que tinham sido as responsáveis diretas pelo desastre. Enquanto continuassem as remessas de armas britânicas para o regime de Gowon, os biafrenses considerariam intragáveis as doações de leite em pó do governo da Inglaterra. Na mesma ocasião, Ojukwu deixou bem claro que a ajuda do povo britânico seria recebida com profunda gratidão. £ como a missão de Lord Hunt visava justamente a determinar a melhor maneira de administrar a doação do governo britânico, não havia o menor sentido em sua ida a Biafra.
Alguns observadores em Biafra acharam que essa decisão foi precipitada. Afinal, Lord Hunt e seus companheiros poderiam verificar, se fossem a Biafra, como era muito roais prática a ponte aérea para Annabelle. Mas o Coronel Ojukwu sabia que seu povo era contrário à visita de Hunt. Esteve a pique de mudar de idéia. Mas uma declaração leviana do Sr. Thomson, de que a opinião pública mundial iria condená-lo a menos que aceitasse o corredor de Awgu, tornou impossível para Ojukwu alterar sua decisão original.
Assim, durante duas semanas Lord Hunt visitou diversas frentes de combate, sempre no lado nigeriano. Mas não teve oportunidade de ouvir os argumentos de outros que não os defensores do corredor de Awgu. Diga-se de passagem que o governo britânico anunciara, durante a ausência de Hunt, que pretendia apoiar o corredor de Awgu de qualquer maneira. Ainda não se sabe qual foi a utilidade do relatório subseqüente de Lord Hunt. Nas semanas e meses que se seguiram, tornou-se um tanto duvidoso se as 250 mil libras de alimentos jamais seriam entregues aos biafrenses famintos além das linhas nigerianas, se chegariam mesmo a passar por elas.
Na Inglaterra, algumas pessoas compreenderam as apreensões dos biafrenses. A 22 de julho, na Câmara dos Comuns, protestando contra a continuação do fornecimento de armas, o Sr. Hugh Praser declarou:
— Em nome da humanidade, seria absurdo remeter instrumentos de guerra que converteriam os corredores de misericórdia em avenidas de massacre.[Hansard, 22 de julho de 1968, col. 68.]
Para tornar mais plausível o plano do corredor de Awgu, era necessário resolver a questão da ponte aérea, constatando-se as condições do aeroporto de Annabelle, que já estava agora sendo conhecido pelo seu verdadeiro nome de Uli. O que foi devidamente feito. O Sr. George Thomson referiu-se a Uli como "uma faixa de grama esburacada", afirmando que não poderia suportar o movimento de uma ponte aérea. Além do Sr. Kirkley, havia pelo menos uma vintena de jornalistas, num raio de um quilômetro de Whitehall, capazes de testemunhar que não era uma "faixa de grama esburacada" e que poderia receber aviões de grande porte. Mas não se procurou ouvir os depoimentos deles. E quando o Departamento da Commonwealth apresentou as especificações precisas do aeroporto de Uli, o relatório foi simplesmente ignorado.
A pista de Uli tem 1.800 metros de comprimento. Ou seja, é duas vezes maior que a pista de Enugu e quase tão grande quanto a de Port Harcourt. Tem 23 metros de largura, um pouco menos do que os pilotos apreciam, mas larga o bastante para suportar os trens de aterrissagem da maioria dos aviões e ainda sobrar espaço. Pode suportar um carregamento de até 75 toneladas. Foi construída pelo mesmo engenheiro biafrense que, antes da guerra, projetara as pistas principais dos aeroportos internacionais de Lagos e Kano, na Nigéria.
Não obstante, a campanha do governo britânico surtiu efeito e milhões de pessoas na Inglaterra se deixaram enganar, achando que o Coronel Ojukwu estava recusando um corredor por terra sob quaisquer circunstâncias e, por isso, passava a ser o responsável por todas as mortes por fome que pudessem ocorrer entre b povo biafrense.
Na verdade, Ojukwu nunca recebeu dos nigerianos, direta ou indiretamente, qualquer proposta formal para o corredor de Awgu. Depois da entrevista coletiva do Sr. Arikpo, quando o embuste pegou, o assunto foi rapidamente esquecido. Foi novamente levantado pelos biafrenses, ao se encontrarem com os nigerianos em Niamey. Mas quando se analisaram os respectivos argumentos sobre as diversas propostas alternativas, os nigerianos compreenderam que, na base da exeqüibilidade, as propostas biafrenses eram muito melhores. Por isso, trataram de bater em retirada a disseram aos biafrenses que tencionavam deixá-los morrer de fome. O episódio está descrito em maiores detalhes num capitulo posterior.
Pouco antes de deixar Niamey para voltar a Lagos, o principal negociador da delegação nigeriana, Sr. Allison Ayida, foi entrevistado pelo Observer, que publicou o seguinte em sua edição de 28 de julho de 1968:
Segundo o Sr. Ayida, os biafrenses estavam dispostos a aceitar um corredor por terra, mesmo que não fosse posta em prática . a exigência deles de um corredor aéreo à luz do dia para Biafra, contanto que o referido corredor por terra fosse patrulhado por uma força policial internacional armada.
Depois que o porta-voz nigeriano em Niamey, Sr. Allison Ayida, deixou bem clara, de uma vez por todas, qual era a verdadeira intenção de Lagos, acabou-se inteiramente toda e qualquer esperança de que se pudesse chegar a um acordo sobre o transporte de alimentos para Biafra, por via aérea, terrestre ou marítima. É difícil compreender por que houve tanto rebuliço a respeito de um acordo. A única maneira de transportar alimentos para Biafra era através de vôos noturnos. Dessa forma, de qualquer maneira, pelo menos em termos estritamente técnicos, estava-se rompendo o bloqueio. Somente as igrejas compreenderam isso e continuaram a transportar o máximo de alimentos possível, discretamente, sem qualquer publicidade. A esta altura, cada uma das duas organizações de igrejas já comprara os seus próprios aviões. Mas Wharton ainda os controlava e as igrejas queriam instituir as suas próprias operações.
A dificuldade era a oposição do próprio Wharton à perspectiva de perder seu monopólio dos vôos para dentro e para fora de Biafra. As igrejas não podiam contratar os seus próprios pilotos e equipes técnicas e de manutenção, para operarem independentemente, porque somente os pilotos de Wharton conheciam os códigos vitais de pouso, pelos quais um aparelho amigo se identificava para a torre de controle em Uli.
Além da igreja, até mesmo os próprios biafrenses relutavam em desafiar Wharton acabando com seu monopólio. É que dependiam dele para o transporte de armamentos. Mas, finalmente, decidiram ceder os códigos à Cruz Vermelha e às igrejas. Não foi fácil. Um emissário biafrense a caminho de São Tomé teve o acesso ao avião em Uli proibido, porque o piloto de Wharton desconfiou (e estava certo) que levava os códigos no bolso. Os códigos foram finalmente contrabandeados por intermédio de um delegado biafrense que foi a Adis Abeba, via Gabão, a fim de participar da • Conferência de Paz. Na capital etíope, os códigos foram entregues a um representante da Cruz Vermelha, que posteriormente os transmitiu também às igrejas.
Somente o próprio Wharton poderá confirmar se o fim de seu monopólio teve ou não algo a ver com as suas atitudes posteriores, ao não entregar as munições que os biafrenses precisavam desesperadamente, ao final de agosto, quando já fora desfechada a "ofensiva final" nigeriana.
A 15 de julho, os nigerianos começaram a pôr em funcionamento baterias antiaéreas, instaladas em embarcações estacionadas nos córregos ao sul de Biafra. Os pilotos de Wharton acharam que a situação estava se tornando perigosa demais. Interromperam os vôos e durante dez dias nenhum avião pousou em Uli. Voltaram a operar a 25 de julho, depois de certas garantias, envolvendo inclusive quantias vultosas.
A 31 de julho, a Cruz Vermelha finalmente iniciou as suas próprias operações, de Fernando Pó, uma ilha que era na ocasião uma colônia espanhola e ficava muito mais próxima de Biafra do que São Tomé. Estava situada a apenas 65 quilômetros da costa, enquanto a ilha portuguesa ficava a 290 quilômetros. Mas Fernando Pó deveria se tornar independente no dia 12 de outubro e não se sabia qual era a disposição do futuro governo africano. Caso as eleições fossem vencidas por um grupo político adverso, a situação poderia posteriormente se tornar crítica, inclusive pelas pressões do cônsul nigeriano na ilha.
Muitas criticas foram feitas à Cruz Vermelha Internacional, pelos dois lados e por jornalistas. Á organização foi acusada de não ter feito bastante, de gastar mais dinheiro em administração do que na missão propriamente dita, de estar excessivamente preocupada em não ferir os melindres políticos de ninguém ao invés de se concentrar exclusivamente na prestação de ajuda à população civil biafrense.
Mas a posição da Cruz Vermelha não era nada fácil. Por seus próprios estatutos, está obrigada a permanecer totalmente neutra em qualquer conflito. Essa neutralidade não apenas deve ser mantida, como também é necessário que todos dela tomem conhecimento. A Cruz Vermelha tinha que operar nos dois lados da linha de frente. Certamente poderia ter sido mais eficiente e cometido menos erros. Mas era a primeira vez que empreendia uma operação naquelas proporções e extensão. Havia equipes de várias nações agregadas à Cruz Vermelha Internacional. Outras equipes, das mesmas nações, trabalhavam sob as bandeiras de suas respectivas organizações da Cruz Vermelha. Assim, por exemplo, havia em Biafra duas equipes francesas, uma trabalhando para a Cruz Vermelha Internacional e a outra para a Cruz Vermelha Francesa. O esforço era freqüentemente disperso e sem qualquer coordenação. Foi para pôr alguma ordem na situação que o Sr. August Lindt, embaixador suíço em Moscou e anteriormente um alto funcionário da ONU para questões de refugiados e fome, foi convidado pela Cruz Vermelha Internacional para assumir o comando de toda a operação
Uma das acusações mais comuns é a de que a Cruz Vermelha Internacional não tem se empenhado a fundo para superar os obstáculos. A respeito, um cansado porta-voz da organização comentou:
— Aqui em Biafra dispomos de toda a cooperação que precisamos. Mas, no outro lado, já deixaram bem claro que não nos querem. Não gostam do que estamos fazendo, que é salvar vidas que muitos deles gostariam secretamente, que se perdessem. Não apreciam a nossa presença porque os impede de fazer algumas coisas que gostariam de fazer com a população civil. Mas se começarmos a pressionar, eles podem simplesmente nos mandar embora. Com isso, ganharíamos um dia nas manchetes do mundo inteiro. E daí? O que aconteceria com mais de um milhão de pessoas que estão conseguindo sobreviver, por trás das unhas nigerianas, graças exclusivamente a nossos suprimentos?
Mas há uma crítica que se pode fazer, com toda procedência: a de que a Cruz Vermelha Internacional, em Genebra, demorou um tempo desastrosamente longo para despertar e entrar em ação. Embora estivesse informada pelo Sr. Jaggi da gravidade e urgência da situação desde o início da crise, apesar do dinheiro que fluiu de todas as fontes durante o mês de julho elevar-se a muitos milhões de dólares, foi somente no último dia do mês que o primeiro avião totalmente da Cruz Vermelha pousou em Uli. Mesmo em agosto, com a sua própria operação aérea, a Cruz Vermelha levou para Biafra apenas 219 toneladas de alimentos, enquanto as igrejas, com muito menos dinheiro e ainda dependendo do transporte de Wharton, levaram mais de 1.000 toneladas. Mas como a necessidade prevista era de 300 toneladas por noite, isso significava que o total do mês deveria ter chegado de quatro em quatro dias. Assim sendo, a sombria predição do Sr. Kirkley converteu-se em realidade.
O objetivo deste capítulo não é fazer descrições lúgubres de sofrimento humano; é mais uma crônica de acontecimentos, para explicar ao leitor aturdido o que realmente aconteceu. Além do mais, as imagens já foram vistas em jornais e revistas e pela televisão, dezenas de jornalistas e escritores já descreveram, em tons altamente emocionais, o que viram. Assim, basta um breve resumo.
Em julho, já estavam instalados 650 acampamentos de refugiados e abrigavam cerca de 700 mil destroços humanos, doentes e encovados, aguardando uma refeição por dia. Fora dos acampamentos, espalhados pelo mato, estavam os demais refugiados, cujo total era calculado entre quatro e meio e cinco milhões de pessoas. À medida que os preços dos alimentos disponíveis foram subindo, não apenas os refugiados sofreram, mas também as pessoas que já habitavam anteriormente as áreas de Biafra não ocupadas.
Os dados sobre os índices de morte variam consideravelmente. O autor tentou encontrar um denominador comum entre os cálculos das fontes mais bem informadas, como a Cruz Vermelha Internacional, o Conselho Mundial de Igrejas, a Caritas Internacional e as ordens de freiras e padres que se encarregavam da maior parte do trabalho de campo para a distribuição dos alimentos nas aldeias do interior.
Ao longo dos meses de julho e agosto, os políticos posaram e os diplomatas prevaricaram. Um corredor por terra, mesmo que tivesse sido instituído naquele momento, provavelmente não poderia estar em funcionamento a tempo. As doações de cidadãos particulares da Inglaterra e da Europa Ocidental chegavam aos borbotões. Diversos governos, especialmente os da Escandinávia, indicaram em particular que não rejeitariam um pedido da Cruz Vermelha para o empréstimo de um navio cargueiro e de tripulações para aviões. A Cruz Vermelha de Genebra preferiu negociar com uma firma particular, cujos pilotos declararam que só voariam para Biafra se a Nigéria lhes concedesse uma garantia de salvo-conduto. A garantia foi pedida a Lagos. E, como sempre acontecia, foi recusada
O número de mortes subiu de maneira alarmante. Começando com uma estimativa de 400 mortes por dia, a cifra atingiu no auge da catástrofe, segundo os cálculos das quatro principais organizações internacionais de socorro que atuavam em Biafra, a 10.000 mortes por dia. As importações de alimentos, ao longo dos meses de julho e agosto, foram lamentavelmente pequenas. Embora algumas das mortes ocorressem nos acampamentos e pudessem assim ser constatadas, muitas mais ocorreram nas aldeias, nas quais não chegava o socorro internacional. Como acontece freqüentemente, as tarefas mais dolorosas e as missões mais desagradáveis couberam aos católicos romanos.
Não há frases nem palavras para expressar o admirável heroísmo dos padres da Ordem do Espírito Santo e das freiras da Ordem do Santo Rosário, ambas da Irlanda. Ter que cuidar de 20 crianças em estado adiantado de kwashiokor, sabendo-se que só há alimentos suficientes para proporcionar a dez uma chance de viver, enquanto as demais estão irremediavelmente perdidas; ter que enfrentar tais situações permanentemente, um dia depois do outro; envelhecer dez aios em dez meses, em decorrência da tensão; ser bombardeado e metralhado diariamente, ficar sujo, exausto e faminto e mesmo assim continuar a trabalhar... Para fazer tudo isso, é necessário um tipo de coragem que não é possuída pela maioria dos homens que podem exibir um peito cheio de condecorações.
Ao final de 1968, a estimativa de mortes na Biafra desocupada era de três quartos de milhão. Os cálculos mais moderados ficavam na casa de meio milhão. A Cruz Vermelha, que tinha equipes trabalhando no outro lado da linha de combate, informou que houve aproximadamente meio milhão de mortos nas áreas ocupadas pelos nigerianos.
É preciso ressaltar que uma parte considerável dos aumentos comprados com o dinheiro doado pelos povos da Inglaterra, Europa Ocidental e América do Norte e que não foi diretamente para Biafra nem chegou a alcançar os famintos. Enquanto repórteres como o Sr. Stanford e o Sr. Noyes Thomas, do News of the World, relatavam em junho e julho as cenas de degradação humana que testemunhavam em Ikot Ekpene, uma cidade ibibio que Lagos afirmava estar seguramente em seu poder há 12 semanas, outros repórteres em Lagos informavam que pilhas e mais pilhas de alimentos doados estavam apodrecendo no porto. Agentes da Cruz Vermelha queixavam-se constantemente que seus esforços para providenciar o transporte desses alimentos eram sistematicamente frustrados, em todos os níveis.
Apesar disso, fontes da Cruz Vermelha informaram também, posteriormente, que houve esforços da diplomacia britânica, em agosto e setembro, para persuadir a organização a suspender sua ajuda direta a Biafra, sob a alegação de que Biafra estava de qualquer forma liquidada. A ajuda no lado nigeriano deveria ser entregue à Cruz Vermelha Nigeriana, que era "mais eficiente", segundo os diplomatas britânicos.
Na primeira semana de agosto de 1968, as duas organizações de socorro das igrejas, recebendo os códigos vitais de pouso da Cruz Vermelha, também se separaram de Wharton e iniciaram as suas operações próprias, mas ainda com base em São Tomé. A 10 de agosto, contra todas as opiniões, o Conde Carl Gustav von Rosen, um piloto veterano sueco da Transair, realizou um vôo de socorro à luz do dia, para provar que poderia ser feito. Foi também o primeiro vôo de outra organização internacional de socorro, a Ajuda das Igrejas Nórdicas, uma associação de igrejas protestantes da Escandinávia e da Alemanha Ocidental. Posteriormente, as três organizações de igrejas se fundiram em São Tomé, passando a constituir a Ajuda Conjunta das Igrejas.
Enquanto isso, a proposta biafrense de um aeroporto separado fora ressuscitada, já que haviam acabado definitivamente as esperanças de obter a permissão nigeriana para os vôos de socorro à luz do dia para Uli. Havia um aeroporto disponível em Obilagu, mas não dispunha de instalações elétricas nem de uma torre de controle apropriada- A Cruz Vermelha concordou em providenciar o que faltava por sua própria conta. Os trabalhos começaram no dia 4 de agosto. A 13 de agosto foi assinado um acordo entre o Coronel Ojukwu, pelo governo biafrense, e o Sr. Jaggi, pela Cruz Vermelha. Previa que qualquer dos lados podia rescindir o acordo unilateralmente. Mas enquanto estivesse em vigor, o aeroporto seria desmilitarizado.
O Sr. Jean Kriller, um arquiteto de Genebra, tornou-se o comandante do aeroporto, pela Cruz Vermelha. Sua primeira providência foi insistir para que fossem retiradas todas as tropas e equipamentos militares, inclusive as baterias antiaéreas, para além de um raio de oito quilômetros a partir do centro da pista. O Exército Biafrense protestou, alegando que, com as posições avançadas do Exército Nigeriano a apenas 21 quilômetros de distância, tal providência iria prejudicar consideravelmente a posição defensiva. O Coronel Ojukwu apoiou Kriller e as tropas biafrenses recuaram. A providência seguinte de Kriller foi pintar três discos brancos, com 18 metros de largura, a intervalos equidistantes, ao longo da pista, com uma grande cruz vermelha no meio. Assim protegido, ele se instalou numa tenda, ao lado da pista. Nos dias 20, 24 e 31 de agosto o aeroporto foi bombardeado, com as bombas acertando em cheio no alvo. Meia dúzia de biafrenses que trabalhavam ao carregamento dos alimentos foram mortos e outros vinte ficaram feridos.
O primeiro vôo simbólico para o novo aeroporto, partindo de Fernando Pó, ocorreu a 1º de setembro de 1968. A Cruz Vermelha Internacional ainda estava tentando obter permissão de Lagos para os vôos à luz do dia, convencida de que sua reivindicação estava consideravelmente fortalecida, agora que possuía seu próprio aeroporto. Mas a resposta continuou a ser Não. A 3 de setembro, Lagos mudou de idéia ou pelo menos foi essa a impressão que se teve. Os vôos à luz do dia seriam permitidos, mas não para Obilagu e sim apenas para Uli.
A Cruz Vermelha lembrou polidamente que os aviões de socorro não mais estavam pousando em Uli e sim em Obilagu. Se o objetivo era trazer o máximo de alimentos possível para salvar vidas humanas, então era em Obilagu que deveriam pousar os vôos à luz do dia. Os assessores do Coronel Ojukwu, no entanto, encararam essa súbita e surpreendente decisão da Nigéria por outro ângulo.
Por que Uli e somente Uli? Depois de analisarem o problema sob todos os aspectos, acabaram chegando a uma conclusão. Embora Uli tivesse sido freqüentemente atacado durante o dia, quando não estava em uso, a artilharia antiaérea biafrense, embora não fosse muito acurada, era boa o bastante para obrigar os bombardeiros nigerianos a voar a grandes altitudes e assim prejudicar a eficácia dos bombardeios. Em decorrência, a pista atual ainda não havia sido atingida por uma única bomba. Ás pequenas crateras abertas por foguetes dos caças MIG em mergulho podiam ser facilmente enchidas. Mas se as baterias antiaéreas fossem silenciadas para permitir o pouso durante o dia dos gigantescos DC-7s vindos de São Tomé e Fernando Pó trazendo alimentos, um dos aviões-cargueiros nigerianos de fabricação soviética, os Antonovs, poderia se aproximar tranqüilamente e lançar uma bomba de cinco mil libras, fechando o aeroporto pelo menos por duas semanas. Com os nigerianos atacando Aba e se preparando para a ofensiva contra Owerri, com os biafrenses desesperadamente carentes de munição e permanentemente esquadrinhando os céus à espera do próximo carregamento aéreo, o Coronel Ojukwu não podia se arriscar à destruição do seu principal aeroporto militar.
A 10 de setembro os nigerianos fizeram uma investida contra Oguta e tomaram a cidade. Se bem que tivessem sido expulsos quarenta e oito horas depois, Ojukwu teve de rescindir seu acordo quanto à exclusividade de Obilagu. Quando Oguta foi ocupada, estando perigosamente perto do aeroporto de Uli, este foi evacuado. Abriu novamente a 14 de setembro; mas durante três dias, com os aviões de munições chegando finalmente, Ojukwu teve de dar permissão para que aterrissassem em Obilagu. Daí em diante, tanto os aviões de armamentos quanto os de socorro chegavam aos dois aeroportos sem discriminação. Não que isso importasse muito, pois não havia na ocasião atividades de bombardeiros nigerianos à noite e nenhuma indicação de se obter permissão para os vôos de socorro à luz do dia para o aeroporto a isso destinado. A 23 de setembro, Obilagu caiu sob uma arremetida da Primeira Divisão Nigeriana e Uli tornou-se novamente o único aeroporto operacional.
Desde essa época, Lagos já propôs novamente permitir os vôos de socorro à luz do dia. Ojukwu tem sido vigorosamente atacado por recusar, alegando-se que, em conseqüência, tornou-se o único responsável pela fome dos biafrenses. Mas ninguém jamais se deu ao trabalho de ressaltar que Ojukwu declarou que concordaria com vôos à luz do dia para qualquer outro aeroporto que não o de Uli, pois não pode correr o risco de um ataque de precisão com bombas de grande potência.
Pelo resto do ano, de 1º de outubro a 31 de dezembro, continuaram os vôos noturnos para Uli. Em outubro, o Canadá emprestou à Cruz Vermelha um avião-cargueíro Hércules, com capacidade para transportar 28 toneladas de carga por vôo. Baseada na estimativa de dois vôos por noite desse aparelho, a Cruz Vermelha preparou um plano esperançoso para novembro. Mas depois de apenas 11 vôos, o Hércules suspendeu as missões por ordens de Ottawa e posteriormente foi retirado. Em dezembro, o governo americano ofereceu oito aviões de transporte Globemaster, cada um com uma capacidade superior a 30 toneladas, sendo quatro para a Cruz Vermelha e quatro para as igrejas. A chegada desses aparelhos, que deveriam entrar em operação logo depois do Ano Novo, provocou grandes esperanças de se aliviar rapidamente a situação crítica.
Mas foi também em dezembro que o governo da Guiné Equatorial, que agora tinha o poder sobre Fernando Pó, comunicou à Cruz Vermelha que não poderia mais transportar óleo diesel para os caminhões de distribuição nem tanques de oxigênio para as intervenções cirúrgicas. Ao que tudo indica, essa mudança de política decorreu de um incidente noturno, quando o Ministro do Interior da Guiné apareceu no aeroporto completamente embriagado em companhia do cônsul nigeriano, e provocou um tumulto durante o qual um dos pilotos disse-lhe tudo o que pensava.
Em outubro, começou também o bombardeio noturno do aeroporto de Uli. O bombardeio era efetuado por um avião-cargueiro da Força Aérea Nigeriana que sobrevoava a área durante duas ou três horas todas as noites, lançando bombas de grande potência a intervalos irregulares. As bombas não eram particularmente perigosas, já que todas as luzes do aeroporto ficavam apagadas e o avião não podia localizar o alvo na escuridão. Mas era extremamente desagradável ficar deitado de barriga para baixo no salão de espera do terminal durante horas a fio, aguardando ansiosamente pelo zumbido da próxima bomba a cair no mato ali perto. Tinha-se a impressão de se estar participando, involuntariamente, de um jogo de roleta russa.
Ao final de novembro, o kwashiokor foi finalmente controlado, apesar de não ter sido inteiramente erradicado. A maioria das crianças que sobrevivera à doença, embora a caminho da recuperação, poderia sofrer uma recaída a qualquer momento, se a tênue linha de abastecimento fosse subitamente interrompida. Em dezembro, surgiu uma nova ameaça: o sarampo. Ao longo da costa da África Ocidental, o sarampo epidêmico entre as crianças ocorre regularmente e geralmente apresenta um índice de mortalidade de cinco por cento. Mas um pediatra britânico, que trabalhou por muito tempo na África Ocidental, calculou que, num estado de guerra, o índice de mortalidade provavelmente subiria para 20 por cento.
Era provável que um milhão e meio de crianças biafrenses contraíssem sarampo durante o mês de janeiro. Assim, o número de mortes se elevaria a 300.000. Com a ajuda da UNICEF e de outras organizações internacionais de socorro à infância, as vacinas necessárias foram levadas de avião, acondicionadas nas caixas especiais para mantê-las nas temperaturas baixas indispensáveis e iniciou-se um amplo programa de vacinação em massa.
À medida que o novo ano se aproximava, ficou evidente que o novo problema seria a carência dos alimentos ricos em carboidratos, como inhame, mandioca e arroz. Já se previra que a colheita de janeiro seria pequena, em parte porque em algumas áreas as sementes de inhame haviam sido comidas na colheita anterior, em parte porque muitas plantações ainda não maduras haviam sido colhidas prematuramente e consumidas. Envidaram-se todos os esforços para trazer também alimentos desse tipo. Mas por causa do seu peso maior, o problema de transporte de uma tonelagem superior exigia mais e maiores aviões ou então que se conseguisse persuadir os nigerianos a permitir que navios carregados de alimentos pudessem subir o Níger.
No todo, o esforço para salvar as crianças de Biafra foi alternadamente heróico e espantoso. Apesar de todos os esforços, nenhum pacote de alimentos jamais entrou em Biafra "legalmente". Tudo o que chegou foi através de um processo de romper o bloqueio nigeriano. Nos seis meses depois que o Sr. Kirkley fixou seu prazo fatal de seis semanas, afirmando que seriam necessárias 300 toneladas de alimentos por noite, a Cruz Vermelha levou para Biafra 6.847 toneladas, enquanto as igrejas transportavam 7.500 toneladas. Em 180 noites de vôos possíveis, essas 14.347 toneladas de alimentos corresponderam a uma média de apenas 80 toneladas por noite. Mas mesmo essa média é enganadora. No momento em que os alimentos eram mais necessários, quando poderiam salvar as vidas de 200 ou 300 mil crianças, durante os primeiros 50 dias depois de 1º de julho, não chegou praticamente nada a Biafra.
Mais que os pogroms de 1966, mais que as baixas da guerra, mais que os bombardeios de terror, foi a experiência de contemplar, impotente, suas crianças definharem e morrerem o que provocou no povo biafrense um ódio profundo e implacável aos nigerianos, ao seu governo e ao governo da Inglaterra. É um sentimento que um dia ainda irá desabrochar numa colheita amarga, a menos que os dois povos sejam mantidos separados pelo rio Níger.
O governo britânico, por trás da fachada de alegações de que estava envidando todos os esforços possíveis para minorar o problema, passou a concordar integralmente com os desejos da Nigéria, depois da rejeição de 5 de julho. Ao invés de fazer tudo o que podia para persuadir Lagos a permitir que os alimentos fossem levados para Biafra, o governo britânico fez justamente o oposto. O Sr. Van Walsum, um homem altamente respeitável, antigo prefeito de Rotterdam, ex-deputado e senador em seu país, atualmente presidente do Comitê Nacional Holandês para Ajuda a Biafra, já declarou publicamente que está disposto a testemunhar que são procedentes as notícias de que o governo britânico e o Departamento de Estado americano exerceram, nos meses de agosto e setembro, uma "pressão política maciça" sobre a Cruz Vermelha Internacional, em Genebra, procurando persuadir a organização a não enviar absolutamente nenhuma ajuda para Biafra [Declaração ao Sr. Peter Gatacre, citada por este numa carta a The Times, em 2 de dezembro de 1968]. Jornalistas britânicos, em contato com a sede da Cruz Vermelha Internacional, em Genebra, têm confirmado a declaração de Van Walsum.
Pode ser que estudos posteriores mais amplos acabem revelando que, em meio a uma política sistematicamente indigna na crise Nigéria-Biafra, a tentativa de interferência do governo britânico para impedir o fornecimento de alimentos a desamparadas crianças africanas tenha sido o ato mais escabroso.
A narrativa dos problemas enfrentados pelas operações de socorro de emergência para as crianças famintas de Biafra, na segunda metade do ano de 1969, constitui uma lição clássica e objetiva do que pode fazer uma ditadura impiedosa e arrogante diante de um mundo civilizado despreparado para resistir ou defender aqueles padrões de comportamento que considera invioláveis.
De janeiro até o final de maio, os vôos de socorro da Ajuda Conjunta de Igrejas (a organização decorrente da fusão das operações da Caritas, Conselho Mundial de Igrejas e Ajuda das Igrejas Nórdicas) e da Cruz Vermelha Internacional transcorreram sem incidentes. Com o acréscimo de oito aviões extras vendidos a preços simbólicos pelo governo dos Estados Unidos para a Ajuda Conjunta de Igrejas e para Cruz Vermelha, a tonelagem de alimentos transportados aumentou consideravelmente.
Durante os meses de maior movimento, março e abril, passaram a chegar a Biafra cerca de 400 toneladas de alimentos por noite, bem mais que as 300 toneladas previstas pelos técnicos como o mínimo necessário para dominar o kwashiokor e a desnutrição. Com essas quantidades, não apenas o objetivo estava alcançado, mas também os espectros da fome e das doenças decorrentes começaram a retroceder.
Nessa ocasião, a maior parte das operações da Cruz Vermelha Internacional partia de Cotonou, a capital do Daomé, o vizinho ocidental da Nigéria. Uns poucos aviões haviam recomeçado a operar também de Fernando Pó, com a permissão pessoal do Presidente Enrico Macias, que interviera para superar a crise. Os aviões da Ajuda Conjunta das Igrejas ainda continuavam a decolar de São Tomé.
Em Biafra, as perspectivas decorrentes do aumento dos alimentos de socorro eram as mais animadoras possíveis. Mais de dois milhões de crianças e meio milhão de adultos tinham agora um acesso regular a aumentos ricos em proteínas, de que tanto precisavam. Onde alguns meses antes os viajantes deparavam com uma paisagem silenciosa e aldeias desertas, com os habitantes deitados no interior de suas cabanas, exaustos e esperando apenas pela morte, podiam-se ver agora crianças brincando ao sol, correndo ao lado das estradas e acenando alegremente para os carros que passavam. A visão de fileiras intermináveis de catres toscos, em centenas de enfermarias espalhadas pelo país, atulhadas com os vultos esqueléticos de crianças agonizantes, foi-se tornando cada vez mais rara. Podia-se constatar que até mesmo as crianças que entravam nas filas imensas dos três mil centros de distribuição de alimentos administrados pelas duas organizações internacionais de socorro estavam a caminho de uma recuperação quase total. Se nada acontecesse, as perspectivas de maio de 1969 eram de que, qualquer que fosse o resultado militar do conflito, milhões de crianças continuariam vivas para enfrentar o que quer que a vida lhes reservasse; sem a operação internacional de socorro, teriam inevitavelmente morrido.
Apesar das alegações de que esses alimentos de socorro para as crianças estava indo para os soldados biafrenses, os administradores das duas organizações de ajuda internacionais, que fiscalizavam todos os carregamentos que entravam no país e a sua posterior distribuição, estavam convencidos de que somente uma parcela "aceitável* da tonelagem, em torno de cinco por cento, estava sendo desviada ou roubada em trânsito. Tendo em vista as circunstâncias extraordinárias da ponte aérea, a ausência total de equipamentos mecanizados para a manipulação da carga em Uli, o fato de que os aviões eram descarregados na escuridão e diversos outros fatores, essa cifra era tão baixa quanto o esforço humano podia reduzi-la.
Os administradores da Cruz Vermelha, a única organização que estava também realizando uma operação de socorro em larga escala entre os famintos no lado nigeriano da linha de frente, calcularam que as perdas e desvios eram bem maiores na Nigéria do que em Biafra. Isso se devia em parte à maior eficiência do sistema de distribuição em Biafra e em parte porque as distâncias entre os pontos de chegada e de consumo dos suprimentos eram bem menores.
As operações da Ajuda Conjunta das Igrejas contavam com a vantagem de uma ampla infraestrutura já existente de missionários europeus. Havia 80 padres e 50 freiras, todos irlandeses, trabalhando para a Caritas e 27 missionários e 20 voluntários importados trabalhando para o Conselho Mundial de Igrejas. Esses europeus, a maioria dos quais possuía um conhecimento profundo do país e do povo, podiam proporcionar uma supervisão pessoal em todos os níveis e impedir assim os desvios, a não ser uns poucos, ocasionais. A Cruz Vermelha, embora tendo que formar eu nada o seu sistema de .distribuição, também importou voluntários suficientes para uma ampla supervisão. A Ajuda das Igrejas Nórdicas, a terceira organização do consórcio da Ajuda Conjunta das Igrejas, não possuía qualquer estrutura de distribuição e sensatamente não tentou competir com as igrejas católica e protestante na criação de uma rede em Biafra. Em vez disso, contentou-se em operar a ponte aérea, com uma eficiência excepcional.
Durante esses cinco meses, a única coisa a prejudicar a importação de alimentos foi a atividade noturna de um avião-cargueiro Dakota nigeriano, convertido em bombardeiro e pilotado por um mercenário sul-africano. Esse bombardeiro sobrevoava Uli regularmente, durante a noite, lançando bombas ao acaso, enquanto o piloto escarnecia das equipes de socorro em terra, chamando-se de " Genocida" e ameaçando exterminá-las se tentassem descarregar os aviões de socorro que estavam pousados.
As bombas, no entanto, jamais atingiram um avião de socorro ou qualquer das equipes. Mas constituíam um tremendo incômodo. Como Uli ainda era o aeroporto pelo qual eram trazidos armamentos para Biafra, ninguém podia dizer que não fosse um alvo militar. Por isso, as organizações internacionais de socorro jamais protestaram oficialmente.
Em fins de maio, os Minicons do Conde von Rosen entraram em operação. Em quatro ataques sucessivos aos aeroportos de Enugu, Benin, Calabar e Port Harcourt, em poder dos federais, destruíram a maioria dos MIGs e Ilyushins da Força Aérea Nigeriana. O bombardeiro do "Sr. Genocida" foi também destruído, no solo. A reação da Rússia foi imediata.
Na segunda-feira, 2 de junho, quando estava pousado em Uli, um piloto australiano de socorro, Capitão Vernon Polley, trabalhando para a Ajuda Conjunta das Igrejas, foi metralhado por dois MIGs voando, em formação cerrada. Os dois caças soviéticos apareceram no céu noturno à sua frente, no momento em que as luzes do aeroporto estavam acesas, cada um disparando uma rápida rajada. No instante seguinte, os dois caças haviam sumido na escuridão. O DC-6 do Capitão Polley ficou crivado de balas da proa à popa, mas felizmente ninguém foi ferido.
Uma equipe de manutenção foi trazida de avião de São Tomé na mesma noite. Trabalharam incansavelmente durante todo o dia seguinte, sob camuflagem, para colocarem o avíão-cargueiro novamente em condições de voar. Na noite de terça-feira o Capitão Polley, voando sozinho, levou o avariado DC-6 de volta a São Tomé. Os pilotos das organizações de socorro compreenderam perfeitamente qual era a lição da noite de segunda-feira. Metralhar um alvo iluminado ao sair de um vôo na escuridão não exige um caça noturno plenamente equipado, mas exige um piloto de considerável perícia.
Pilotar um caça diurno à noite é uma prática comum, já que todos os caças estão equipados com instrumentos de vôo noturno e de orientação. Mas a habilidade nos disparos indicava que os pilotos eram bem superiores aos ineptos egípcios que até aquele momento haviam voado para os nigerianos, sem jamais terem realizado qualquer missão notuma.
Ao mergulhar à noite na direção de um alvo iluminado, um piloto de caça perde temporariamente uma parcela considerável de sua visão noturna, mesmo com óculos de proteção, ao se fixar na área iluminada. Mergulhar até 25 metros do solo e disparar com precisão, fazê-lo em formação com outro caça ao lado, a mais de 800 quilômetros horários, correndo o risco de ficar subitamente cego se as luzes se apagarem... tudo isso exige pilotos de uma perícia excepcional, comum conhecimento profundo dos aparelhos, com ampla experiência de vôo. Não se pode aprender tamanha perícia em poucas horas e os pilotos egípcios jamais a tinham possuído. Portanto, havia novos pilotos voando para os nigerianos.
O Sunday Telegraph deu a notícia no dia 22 de junho: os novos pilotos eram meia dúzia de alemães orientais, enviados à Nigéria por ordem dos russos. Dez dias depois, um porta-voz do governo da Alemanha Ocidental, Herr Konrad Ahlers, declarou que o serviço secreto de seu país confirmara que havia alemães orientais voando para a Nigéria. Contudo, o fato da chamada "Força Aérea Federal" ser uma mistura de russos, alemães orientais, egípcios e mercenários não despertou muito interesse dos governos do Ocidente. E todos continuaram a chamá-la de "Força Aérea Nigeriana".
Antes disso, os aviões propriamente ditos, voando durante o dia, já haviam sido identificados nos céus de Biafra. Eram MIGs 19, muito mais modernos que os anteriores MIGs 15 e 17, até então pilotados pelos egípcios.
Apesar do risco crescente de serem atingidos no solo, os pilotos da Cruz Vermelha Internacional e da Ajuda Conjunta das Igrejas decidiram continuar a voar as missões de socorro. Determinaram que as luzes do aeroporto só deveriam ser acesas para o pouso no último instante, a fim de abreviar o tempo em que a pista ficaria iluminada. Deveriam ser apagadas a uma ordem do piloto que estivesse pousando, quando a velocidade dele na pista fosse lenta o bastante para permitir-lhe parar na escuridão sem qualquer acidente. As decolagens seriam feitas apenas com os faróis do próprio avião.
A idéia deu certo. Os MIGs 19 continuaram a metralhar o aeroporto sempre que conseguiam encontrá-lo na escuridão, mas jamais voltaram a atingir outro avião de socorro. Os homens na torre de controle esperavam até que o zumbido dos jatos estivesse longe, depois acendiam as luzes da pista para o piloto que se aproximava. Os jatos lá no alto voltavam e mergulhavam. Mas antes que se aproximassem demais, as luzes eram novamente apagadas e tinham que tornar a subir, para evitar um acidente na escuridão. Os jatos continuaram a metralhar o local em que julgavam estar a pista, mas eram disparos a esmo.
Na quinta-feira, 5 de junho, a Força Aérea Federal se excedeu. Um MIG 17 derrubou em plena luz do dia, impiedosamente, um avião de socorro que tinha a marca da Cruz Vermelha, bem visível. Em termos das leis escritas das Convenções de Guerra de Genebra e das leis não escritas do mundo da aviação, era um ato injustificável e inaceitável para qualquer Força Aérea. O piloto do DC-6 da Cruz Vermelha era um americano, Capitão David Brown, veterano da 2ª Guerra Mundial e da Coreia.
Por mais incrível que possa parecer, alguns jornalistas britânicos tentaram justificar ou atenuar o ato. Um deles, escrevendo num jornal dominical, alguns dias depois, informou que o piloto do caça, em conversa pelo rádio com o Capitão Brown, insistira para que ele pousasse num aeroporto nigeriano, só o derrubando depois que o americano se recusara obstinadamente. Era um total absurdo, por três razões:
1. Um caça MIG 17 comunica-se com a sua própria base no solo ou com outros caças no ar através de uma série de ondas disponíveis em seu próprio seletor de canais. Não pode "mudar de faixa", como um operador de rádio de um avião-cargueiro, que tem à sua disposição um aparelho de rádio muito mais versátil. Os pilotos da Cruz Vermelha e da Ajuda Conjunta tinham o hábito de mudar diariamente as suas ondas de rádio operacionais, acertadas de antemão com a torre de controle. Em nenhuma ocasião conhecida os pilotos dos aviões de socorro operaram na mesma faixa que os pilotos dos caças nigerianos. Além do mais, não existe nenhum código conhecido de sinais com as mãos pelos quais um piloto voando ao encontro de outro aparelho possa instruir o piloto do avião interceptado a mudar para a sua própria faixa de rádio, a fim de se comunicarem. Mesmo que houvesse esse sistema de sinais, seria extremamente improvável que o operador de rádio do avião cargueiro conseguisse encontrar a faixa operacional do MIG.
2. Existe um sistema de sinais com as mãos internacionalmente conhecido pelo qual um piloto pode comunicar a outro que foi interceptado e deve fazer o que lhe for ordenado. Esse sistema é ocasionalmente usado quando um aparelho levanta vôo para conduzir à segurança outro aparelho que perdeu o rádio. O sistema também já foi usado por caças para exigir que um avião de transporte interceptado aterrisse num aeroporto indicado pelo piloto do caça. Aconteceu, por exemplo, no caso de aviões de transporte que se desviaram da rota nos corredores aéreos para Berlim e foram interceptados por MIGs soviéticos. Um avião-cargueiro que é interceptado e avisado para se desviar para outro aeroporto, recusando-se a fazê-lo, particularmente quando o interceptador é um caça armado, só poderia estar sendo pilotado por um lunático ou um suicida. O Capitão Brown não era nenhuma das duas coisas. Há um adágio no mundo da aviação: "Existem pilotos velhos e pilotos ousados, mas não existem pilotos velhos e ousados." O Capitão Brown era um velho piloto, com um quarto de século de vôo. Conhecia o seu ofício, estava a par de todos os procedimentos usuais. Se o mandassem pousar em Fort Harcourt, por exemplo, iriam descobrir que sua carga era inofensiva, apenas dez toneladas de leite em pó e bacalhau. Depois de um curto período de detenção, seria certamente libertado pela intervenção de seu próprio governo ou da Cruz Vermelha Internacional. Ele sabia disso.
3. É inconcebível que um piloto com a experiência do Capitão Brown fosse interceptado e ordenado a pousar num aeroporto indicado pelo piloto do caça sem transmitir à sua torre de controle nenhuma informação sobre o que estava acontecendo. Para um piloto, é tão claro quanto a luz do dia que, quando ocorre uma interceptação desse gênero, a sua primeira providência deve ser informar o que está acontecendo à sua torre de controle. Ao que se sabe, o Capitão Brown em nenhum momento deixou a freqüência de rádio que o ligava com a torre de controle em Fernando Pó.
O que realmente aconteceu foi outra coisa. Às 5:38 horas daquela tarde de quinta-feira o Capitão Brown decolou de Fernando Pó. Estava acompanhado por sua tripulação de dois suecos, o copiloto e o engenheiro de vôo, e um norueguês, que era o respoasável pela carga. O aparelho era um DC-6, pintado de branco de um lado a outro. Nas superfícies inferior e superior de cada asa estavam pintadas imensas cruzes vermelhas, cada uma com 2,5 metros de largura. Havia outras cruzes vermelhas, nos lados da fuselagem, no meio do aparelho, e nos dois lados da cauda. Seria praticamente impossível marcar um avião de maneira mais visível.
Se o Capitão Brown cometeu algum erro, foi o de partir muito cedo para Biafra. O céu estava muito azul, sem uma nuvem sequer, o sol ainda brilhava acima do horizonte. Os aviões que partiam de São Tomé geralmente decolavam a essa hora, pois o percurso era mais longo e só alcançavam a costa biafrense por volta das sete horas da noite, depois que escurecia. O crepúsculo é muito rápido na África. No mês de junho, a claridade do dia começa a diminuir por volta das seis e meia e às sete horas já está inteiramente escuro. Mas como o percurso era muito menor quando se decolava de Fernando Pó (cerca de 95 quilômetros), o Capitão Brown chegou à costa biafrense por volta das seis horas da tarde, quando o dia ainda estava bem claro.
Foi um erro, embora seja fácil dizê-lo depois do acontecido. A preocupação do Capitão Brown, como a de todos os pilotos, era a de fazer o máximo de viagens possível para e de Uli. Três outros aviões de socorro baseados em Fernando Pó estavam voando na mesma ocasião.
Às 6:03 horas, a voz do Capitão Brown foi ouvida na torre de controle em Fernando Pó e pelos outros pilotos da Cruz Vermelha que também estavam voando. Ele não deu qualquer sinal de chamada e a voz era estridente, alarmada. Disse o seguinte:
— Estou sendo atacado... estou sendo atacado...
O rádio do Capitão Brown emudeceu no instante seguinte. Houve um momento de silêncio e depois Fernando Pó pediu a identificação do piloto que estava chamando. Trinta segundos mais tarde, a voz do Capitão Brown tornou a soar:
— Meu motor está em chamas... Estou caindo...
Houve silêncio novamente. E nunca mais se ouviu a voz do Capitão Brown.
O avião dele caiu em chamas nos pântanos dos arredores de Opobo, na costa. A princípio, falou-se que três dos quatro tripulantes estavam vivos, em seguida que todos tinham morrido. Os governos dos Estados Unidos e da Suécia protestaram vigorosamente e pediram que lhes fossem entregues os corpos de seus cidadãos. Mas o assunto foi logo esquecido, e os protestos não foram reiterados.
Para todos os pilotos de socorro havia algo evidente, devidamente confirmado por suas próprias investigações: o americano, os dois suecos e o norueguês tinham sido assassinados. A questão seguinte era descobrir a identidade do homem que cometera o assassinato. A princípio, achou-se que devia ser um alemão oriental, mas depois circulou o rumor de que era um nigeriano que estava pilotando o MIG.
O mundo da aviação é estranho. Possui as suas próprias leis^ o seu próprio código de conduta, a sua própria rede de informações. Existe uma espécie de fraternidade entre os pilotos, assim como há entre os marinheiros. Os pilotos que lutaram entre si podem se encontrar anos depois e conversar sobre os velhos tempos, sem qualquer ressentimento, de maneira improvável em qualquer outro ramo das forças armadas. Seria perfeitamente possível que os pilotos dos aviões de socorro se encontrassem hoje com o piloto mercenário do bombardeiro nigeriano que sobrevoava o aeroporto de Uli todas as noites, conversando em torno de uma cerveja. O piloto mercenário estava fazendo o seu trabalho, os pilotos de socorro estavam fazendo o trabalho deles. Isso é tudo, não há mais nada. No mundo da aviação de frete, habitado por homens que já voaram muitas cargas e passageiros estranhos para aeroportos bizarros pelo preço certo, não há praticamente qualquer ressentimento por "missões" passadas, nas quais competiram entre si. Há também muito pouco que permanece ignorado. É muito raro mencionar-se o nome de um veterano dos vôos mercenários num grupo de pilotos, do ofício sem que alguém não o conheça.
Duas semanas depois, os pilotos da Cruz Vermelha e da Ajuda Conjunta já sabiam o nome do piloto que derrubara o Capitão Brown. Era um mercenário australiano. Diversos colegas de Brown juraram que algum dia, em algum lugar, ainda iriam "ajustar contas" com ele. É que o australiano infringira uma das poucas regras num mundo extraordinariamente tolerante. Abatera um colega piloto sem lhe dar a menor oportunidade, o que era imperdoável.
Tudo isso, é claro, estava acontecendo no clube fechado dos aviadores. No mundo exterior os observadores se limitavam a esperar a reação a essa última e terrível demonstração de brutalidade da Força Aérea Nigeriana, já responsável por tantos crimes. Será que os Estados Unidos iriam protestar ainda mais veementemente, achando que os nigerianos já tinham ido longe demais e ofereceriam proteção para os aviões de socorro, caso houvesse qualquer nova interferência? Isso não iria acontecer. Será que os suecos protestariam em termos similares? A idéia chegou a ser seriamente cogitada na Suécia, mas o governo de Estocolmo acabou se contentando com um protesto formal e depois deixou o assunto cair no esquecimento.
Ninguém ficou observando a reação mundial mais atentamente que o governo nigeriano. Como todos os tiranos, os líderes nigerianos estavam querendo saber até que ponto poderiam ir. São africanos... e o africano, como muitos outros, sempre observa com grande interesse até que ponto um "cara duro" pode ir. Se tem certeza que pode escapar impune apesar de tudo o que fizer, não terá a menor hesitação. Por outro lado, se alguém resiste e se opõe, dispõe de força suficiente e deixa bem claro que não vai permitir que ele vá mais longe, geralmente consegue prevalecer e o "cara duro” bate em retirada. Nessa altura dos acontecimentos, o africano irá respeitar quem está se opondo e repudiará o tirano. Em suma, essa é a reação humana no mundo inteiro, como ficou dolorosamente comprovado na Europa, nos anos 1935-39.
O General Charles de Gaulle compreendia tudo isso perfeitamente. Por isso é que se dava muito bem com os africanos e era imensamente respeitado. Os governos britânico e americano jamais compreenderam isso e é esse o motivo pelo qual sempre foram encarados com desprezo em toda a África. Nenhuma quantidade de ajuda em dólares ou libras jamais irá conquistar o respeito que o africano tem por um homem que é capaz de resistir, de se mostrar irredutível quando vê os seus valores e padrões ameaçados.
Seis dias depois do incidente, o governo nigeriano já chegara à conclusão de que escaparia impune ao ultraje de 5 de junho e que poderia continuar a agir livremente sem que ninguém o incomodasse. Assim estimulados, os nigerianos continuaram a humilhar a Cruz Vermelha Internacional e a destruir suas operações de socorro. Foram ajudados nisso pela Embaixada Americana em Lagos.
No dia seguinte à derrubada do seu avião, a Cruz Vermelha Internacional suspendeu, por ordem do Comitê Central em Genebra, as operações em Biafra, pelo menos temporariamente. O que se seguiu foi um exemplo clássico de uma campanha psicológica visando a solapar o moral de um grupo de homens que tentava realizar uma missão determinada. A campanha acabou dando certo.
Depois do incidente, a Cruz Vermelha em Genebra esperava — e tinha todo o direito de assim esperar — receber o apoio moral dos governos do mundo ocidental. Mas não recebeu qualquer apoio. Em Cotonou, o coordenador das operações da Cruz Vermelha, Dr. Lindt, recomendou que a ponte aérea fosse reiniciada. Ressaltou que não havia necessidade de voar à luz do dia, como o Capitão Brown fizera. Os vôos na escuridão poderiam continuar como antes, assim como a Ajuda Conjunta das Igrejas estava prosseguindo em seus vôos.
Na verdade, a Ajuda Conjunta das Igrejas reduzia seus vôos a três ou quatro por noite, depois de 5 de junho, e os pilotos estavam ficando cada vez mais apreensivos, não por causa da derrubada do Capitão Brown, mais sim porque os MIGs estavam metralhando o aeroporto de Uli durante a noite intensamente. O que venceu a batalha da indecisão para a Ajuda Conjunta das Igrejas foi a vontade férrea do Pastor Vigo Mollerup, um dinamarquês, de uma paróquia pobre de Copenhague, que dirigia a Ajuda das Igrejas Nórdicas e era o responsável pela ponte aérea baseada em São Tomé e a personalidade extraordinária de um oficial da Força Aérea Dinamarquesa, Coronel Denis Wiechmann, o chefe das operações em São Tomé. O Pastor Mollerup, conversando com sua própria gente em Copenhague e com seus colegas da Caritas e do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, conseguiu persuadir a todos que a ponte aérea não deveria ser suspensa por causa de um único incidente. Nos alojamentos das tripulações aéreas em São Tomé, o Coronel Wiechmann conseguiu persuadir os pilotos a voltarem a voar. A 10 de junho, os pilotos já tinham quase retornado ao esquema anterior, de duas viagens por noite de oito ou dez aviões.
A 10 de junho, o Dr. Lindt voltou a Moscou, onde já estivera como embaixador suíço, a fim de buscar seus móveis e pertences pessoais, que lá estavam há 11 meses, desde a sua partida às pressas para atender à convocação da Cruz Vermelha Internacional, no mês de julho do ano anterior. Deixou instruções com o chefe de operações em Cotonou, Nils Wachtmeister, para que realizasse uma série de vôos experimentais com um ou dois aviões e depois reiniciasse com plena capacidade a ponte aérea da Cruz Vermelha. Fez diversas recomendações: os aviões só deveriam decolar depois do escurecer, mesmo que isso implicasse eliminar uma das viagens, deveriam ser tomadas todas as precauções possíveis para o pouso e decolagem em Uli, reduzindo-se ao mínimo o período em que as luzes do aeroporto ficariam acesas.
A 10 de junho, o Capitão Lofto Johanssen, um piloto islandês que voava para a Cruz Vermelha em seu próprio aparelho, partindo de Cotonou, voou duas missões para Uli na mesma noite e voltou ileso de ambas. Faria mais duas missões experimentais na noite do dia 12 e depois o programa de vôos seria reiniciado na íntegra.
No dia 12 de junho, os dirigentes da Ajuda Conjunta das Igrejas, que estavam reunidos em Lucerna, na Suíça, receberam um telefonema misterioso. Era da Embaixada Americana, em Genebra (foi dado logo em seguida um telefonema de verificação, para se ter certeza de que não era um logro), recomendando aos dirigentes da organização, com uma demonstração de preocupação óbvia, que cancelassem todos os seus vôos programados para aquela noite. Segundo a mensagem, os motivos para essa recomendação eram extremamente graves, mas não podiam ser revelados.
Depois de consultas apressadas, os quatro dirigentes da Ajuda Conjunta das Igrejas concordaram em enviar uma mensagem para São Tomé, cancelando todos os vôos noturnos. Mas insistiram também que os americanos informassem, dentro de 12 horas, os motivos para a surpreendente recomendação.
A Ajuda das Igrejas Nórdicas enviou um telex de alta prioridade através do Serviço de Torres de Controle da Aviação Internacional. Inevitavelmente, parecia uma mensagem de pânico, ao ser recebida pelo Coronel Wiechmann. Sete aviões já estavam no ar e enviou-se uma mensagem urgente para que voltassem imediatamente. A esta altura, porém, um deles já aterrissara em Uli e outros dois já estavam sobrevoando o aeroporto biafrense. Concluíram que era tarde demais para voltarem e decidiram pousar de qualquer maneira. Os outros quatro aparelhos retornaram à base. A segunda missão noturna foi suspensa. Poucos incidentes poderiam abalar tanto o moral já tenso dos pilotos.
Na manhã seguinte, os americanos disseram, à guisa de explicação para o pânico da noite anterior, que houvera "alguns problemas políticos em Cotonou". O Pastor Mollerup respondeu, com alguma rispidez, que isso nada tinha a ver com a ponte aérea da Ajuda Conjunta das Igrejas, que partia de São Tomé.
Mais uma vez, o Coronel Wiechmann conseguiu persuadir seus pilotos a reiniciarem a ponte aérea. A mesma mensagem de pânico fora transmitida à Cruz Vermelha pela Embaixada dos Estados Unidos, na noite de 12 de junho. Os dirigentes da organização também ordenaram que seus vôos daquela noite fossem cancelados. Assim, Lofto Johanssen permaneceu no solo. A Cruz Vermelha nunca mais voltou a enviar aviões carregados de alimentos para Biafra. Fez apenas mais alguns vôos, transportando medicamentos, vários meses depois.
Em Genebra, na esteira dos acontecimentos de 12 de junho, houve inúmeras confabulações, para se determinar se a ponte aérea deveria ou não ser reiniciada. Nas semanas subseqüentes, intrigadas com os acontecimentos de 12 de junho, as duas organizações de socorro efetuaram investigações particulares para verificar de onde partira a estranha mensagem sobre perigos não especificados se continuassem a realizar os vôos para Biafra. Independentemente, chegaram à conclusão de que a fonte fora uma só: a Embaixada Americana em Lagos.
Enquanto isso, a Cruz Vermelha fora atingida por outro golpe. Retornando à África Ocidental no dia 14 de junho, para tentar recompor os fragmentos da operação que tão diligentemente organizara ao longo dos meses precedentes, o Dr. Lindt foi preso no aeroporto de Lagos, acusado de aterrissar com seu Beechcraft particular sem estar devidamente autorizado. (Na verdade, todos os
documentos do Dr. Lindt estavam perfeitamente em ordem.) Depois de ficar detido por muitas horas, o Dr. Lindt foi finalmente expulso da Nigéria e declarado persona non grata.
Foi a humilhação final e liquidou com a vontade de Genebra de continuar na operação. Desse momento em diante, os dirigentes da Cruz Vermelha Internacional decidiram negociar com o governo nigeriano o reinicio de suas operações de socorro, o que constituía um exercício de inutilidade, como lhes poderia dizer qualquer pessoa que estivesse a par da situação. Conversando com o autor, meses depois, um alto dirigente da Cruz Vermelha, que participou diretamente de tudo, comentou:
— Não tenho a menor dúvida de que fomos o alvo de uma conspiração premeditada, tramada em Lagos entre os nigerianos e a Embaixada Americana... e que acabou dando certo.
A mesma fonte acrescentou, no entanto, que a partida do Dr. Lindt teria sido suficiente para encerrar a operação da Cruz Vermelha em Nigéria-Biafra, mesmo que o avião do Capitão Brown não fosse derrubado a 5 de junho. Esse homem extraordinário é que montara toda a operação, superando as muitas dificuldades com seu excepcional poder de persuasão. A aparência austera e o comportamento brusco ocultavam uma preocupação profunda e sincera pelos sofrimentos que testemunhara nos dois lados da linha de frente. Apesar de já estar começando a passar do período que costumamos chamar de meia-idade, empenhava mais energia na missão do que a maioria dos jovens é capaz de demonstrar em qualquer coisa. Fez muitos inimigos acirrados na Nigéria. Recusando-se a permitir qualquer desvio dos suprimentos por exploradores do mercado negro e as requisições dos meios de transporte da operação de socorro para fins militares, o Dr. Lindt contrariou os oportunistas e aproveitadores, garantindo que o máximo de alimentos de socorro chegasse às crianças famintas e refugiados no lado nigeriano da linha de frente.
Provavelmente o regime nigeriano não teria se atrevido a humilhar e expulsar o chefe das operações da Cruz Vermelha Internacional e não teria ordenado que a organização entregasse todo o sistema de ajuda a seus próprios designados corruptos se não tivesse escapado impune à derrubada do avião do Capitão Brown.
Já se comentou muitas vezes desde então que, ao suspender suas operações na Nigéria e Biafra, a Cruz Vermelha Internacional traiu as duas partes a que devia responsabilidade: os sofredores nos dois lados da linha de frente e os doadores do dinheiro, que esperavam ver suas doações ajudando a salvar vidas, ao invés de apodrecerem em depósitos. Mas deve-se ressaltar que, na hora da necessidade, a Cruz Vermelha Internacional também foi traída, pelos dois governos ocidentais de quem tinha todos os motivos para esperar um apoio inabalável em quaisquer circunstâncias, como a mais destacada e totalmente neutra organização de caridade do mundo. Estou me referindo aos governos britânico e americano.
Ao longo de todo o episódio, não saiu de Whitehall ou de Washington uma só palavra de apoio à missão de socorro da Cruz Vermelha Internacional na Nigéria-Biafra. O governo britânico, que não levantara um dedo sequer para obter a libertação de Miss Sally Goatcher no momento em que a prenderam em Biafra (ela foi libertada graças à intervenção das igrejas e da Cruz Vermelha), limitando-se a fazer ameaças vagas e não especificadas caso ela morresse, não foi capaz de pronunciar uma só palavra de condenação ao assassinato do Capitão Brown e de seus três tripulantes.
Talvez o clímax da hipocrisia tenha ficado com o Daily Telegraph. A 8 de julho, em editorial, esse jornal disse: "A Força Aérea Federal, cada vez mais eficiente, tentando deter os vôos de transporte de armas, abateu por equívoco o que se verificou ser posteriormente um avião de socorro, um infortúnio que a propaganda biafrense explorou ao máximo." Era de se perguntar de quem era o infortúnio: se dos quatro aviadores mortos em seus túmulos nos pântanos de Biafra ou do mercenário que os assassinou.
A 17 de junho, foi realizado um último esforço para suspender a ponte aérea da Ajuda Conjunta das Igrejas. Circularam rumores em Genebra, começando de fontes americanas, que a Nigéria acabara de adquirir dois caças noturnos Sukhoi-7, equipados com radar, cuja função seria interceptar os aviões de socorro durante a noite e derrubá-los. Os rumores foram também amplamente divulgados pela imprensa. O quartel-general da organização, em Genebra, investigou os rumores e verificou que também se haviam originado da Embaixada Americana em Lagos. A esta altura, Vigo Mollerup já estava cansado dos boatos espalhados pelos americanos e disse ao Coronel Wiechmann que prosseguisse com a ponte aérea. Os rumores eram falsos. Nunca houve quaisquer caças noturnos Sukhoi na Nigéria, um fato que a Embaixada Americana, graças à vasta rede de espionagem montada pela CIA no país, certamente sabia.
Em Biafra, o efeito da suspensão da ponte aérea da Cruz Vermelha Internacional foi rápido e desastroso. As duas principais organizações de socorro dispunham, no total, de suprimentos para cerca de dez dias. Proporcionavam ajuda, sob uma ou outra forma, a quase três milhões de pessoas por dia. Bruscamente, tudo isso foi reduzido à metade, com a suspensão das operações da Cruz Vermelha. A ajuda disponível tornou-se ainda menor com a redução dos vôos da Ajuda Conjunta das Igrejas.
A maioria das crianças, sustentada diariamente pelos alimentos de socorro, já estava no nível mínimo de subsistência, sem quaisquer reservas físicas para suportar outro prolongado período de inanição ou deficiência de proteínas. Uma semana depois, o índice de mortalidade recomeçou a subir.
Pela segunda vez, os missionários católicos e protestantes enfrentaram o dilema angustiante: deveriam cortar a ajuda às crianças que já estavam tão doentes e debilitadas que suas chances de sobrevivência eram remotas, a fim de garantir as que não estavam tão ruins, ou deveriam dar preferência às que precisavam mais, sabendo que as outras em breve chegariam ao mesmo estágio? Todas as organizações de igrejas chegaram à mesma conclusão: os alimentos deveriam ser usados curativamente primeiro e preventivamente em segundo lugar. O resultado, com os estoques chegando a níveis mínimos e pouco reabastecimento chegando, foi o de disseminar os alimentos disponíveis de maneira tão rarefeita que não demorou a haver uma debilitação geral de toda a população infantil e juvenil.
A partir desse momento, não mais houve, praticamente, qualquer distinção entre refugiados e não-refugiados, como ainda se pudera discernir no outono de 1968. Em agosto de 1969, quase todas as crianças biafrenses estavam sofrendo de desnutrição, sob uma forma ou outra, assim como a maioria dos adultos. A apatia e inércia que acompanha a fome e a anemia reapareceram em larga escala. O índice de mortalidade começou novamente a subir. Em fins de julho, calculava-se que estavam ocorrendo mais de mil mortes por dia. Ao final do ano, o reinicio da ponte aérea da Ajuda Conjunta das Igrejas ajudara a conter outra vez a maré. Apesar disso, em novembro, os cálculos eram de que o índice de mortalidade situava-se entre 500 e 700 por dia.
Lentamente, de 20 de junho em diante, a ponte aérea da Ajuda Conjunta das Igrejas foi retornando aos níveis de maio, desta vez sem a menor publicidade. As tonelagens jamais eram mencionadas pelos dirigentes da organização, com receio de provocar ainda mais represálias do governo de Lagos. Mas foi somente depois de outubro que os transportes de alimentos da organização começaram a superar os níveis de maio. Em comparação com os níveis totais da Cruz Vermelha e da Ajuda Conjunta, era um pouco mais da metade do que era levado anteriormente para Biafra e muito abaixo dos mínimos necessários.
Dois fatores, além da atuação de Vigo Mollerup e do Coronel Wiechmann, foram fundamentais para levar os pilotos e tripulações desmoralizados a voarem novamente. Um deles foi o exemplo dos pilotos da Associação da África e da Cruz Vermelha Francesa, voando para Uli a partir de Libreville. A Associação da África, uma organização particular fundada em 1968 pelo Padre Raymond Kennedy e baseada em Dublin, representava a contribuição do povo irlandês ao movimento de socorro a Biafra. Tinha uma operação independente, com um solitário DC-6 que partia da capital do Gabão. A Cruz Vermelha Francesa, que tinha uma equipe agregada à Cruz Vermelha Internacional, também realizava a sua própria operação, igualmente com um único avião, decolando de Libreville. Tanto a tripulação belga que voava para a Associação da África como o Comandante Morencey, que voava para a Cruz Vermelha Francesa, continuaram a realizar os vôos de socorro, imperturbáveis, ao longo de toda a crise. Vendo que eles continuavam a voar para Uli, a reação dos pilotos em São Tomé foi: "Se eles podem fazê-lo, por que nós também não podemos?"
O outro fator foi provavelmente o mesmo que proporcionou tanta confiança ao piloto francês. Na Baía de Biafra, um pouco ao largo da costa, havia sempre cinco " traineiras" soviéticas, na verdade navios-espiões, repletos de antenas de rádio e torres de radar. Fora provavelmente uma dessas embarcações que dera informações sobre o vôo do Capitão Brown, duas semanas antes, a tempo de permitir que o MIG se apresentasse para a interceptação. Ao sobrevoarem essa flotilha ao anoitecer, os pilotos de São Tomé viram também, bem no meio, um porta-aviões francês, cheio de caças a jato no convés.
O porta-aviões estava numa visita de cortesia rotineira a Libreville quando a crise começara. Sem qualquer aviso, zarpou de Libreville e ancorou durante duas semanas entre São Tomé e Biafra. A visão do porta-aviões ali parado, esperando (pelo quê?), era imensamente tranquilizadora para "os pilotos dos aviões de socorro. Depois, a 20 de junho, os MIGs cessaram subitamente de voar à noite e metralhar o aeroporto de Uli. Nunca mais tornaram a voar contra a ponte aérea da Ajuda Conjunta das Igrejas.
Enquanto as igrejas continuavam a realizar discretamente o seu trabalho de salvar vidas, as manchetes haviam-se deslocado para os problemas da Cruz Vermelha Internacional. Tendo vencido o seu conflito com a Cruz Vermelha, o regime nigeriano estava em posição de impor condições. E foi justamente o que fez. Uma dessas condições era a entrega de toda a operação de socorro na Nigéria à Comissão Nigeriana de Reabilitação. Nessa ocasião, havia cerca de 1.400 voluntários estrangeiros trabalhando para a Cruz Vermelha no lado nigeriano da linha de frente.
A Cruz Vermelha, sem contar com o apoio da Inglaterra nem dos Estados Unidos, foi obrigada a ceder. Posteriormente, como já era de se prever, as doações para as operações de socorro sob os auspícios nigerianos caíram verticalmente. Enquanto isso, a Cruz Vermelha tentou, timidamente, negociar uma autorização federal para o reinicio de sua ponte aérea para Uli.
Na quarta-feira, 25 de junho, o Chefe Awolowo comentou que a fome era uma arma legítima e que se opunha à remessa de alimentos para os secessionistas. [The Times, editorial, 28 de junho de 1969] No dia seguinte, o chefe do Estado-Maior do Exército, General-de-Brigada Usman Katsina, teria declarado:
— Pessoalmente, eu não daria qualquer alimento a alguém contra quem estou combatendo. [Ibid.] É bastante significativo que as declarações desses dois homens, sendo que o segundo tinha mais poder para influenciar os acontecimentos na Nigéria do que vinte Generais Gowons, tenham sido totalmente ignoradas pelo governo britânico e por quase toda a imprensa. A 6 de julho, depois de uma reunião no Foreign Office, em Londres, entre o Sr. Maurice Foley, Ministro de Estado para a Commonwealth, Sr. Okoi Arikpo, Ministro do Exterior da Nigéria e Professor Jacques Freymond, presidente em exercício da Cruz Vermelha Internacional, o governo britânico emitiu um comunicado afirmando que se chegara a um "acordo completo" para uma nova ponte aérea da organização internacional de ajuda, durante o dia, para levar alimentos a Biafra. Pelo acordo, os aviões da Cruz Vermelha deveriam decolar de Lagos, para onde seriam levados os alimentos de socorro.
Era uma farsa especialmente tola. O Professor Freymond voltara de avião para Genebra ao final da tarde de 6 de julho e só soubera do propalado acordo pelas manchetes dos jornais britânicos do dia seguinte, que chegaram à Suíça por volta das nove horas da manhã. Não houvera qualquer comunicado conjunto na tarde anterior e o Foreign Office agira exclusivamente por conta própria. De Genebra, a Cruz Vermelha Internacional distribuiu uma negativa veemente, contestando que tivesse havido qualquer acordo na reunião.
Na verdade, havia apenas um plano anglo-nigeriano, que a Cruz Vermelha concordara em transmitir ao General Ojukwu e ao governo biafrense. A afirmação de que, sem qualquer consulta aos biafrenses, a Cruz Vermelha concordara com o plano comprometia consideravelmente a organização.
Isso não impediu que o Sr. Michael Stewart, falando na Câmara dos Comuns a 7 de julho, atribuísse toda a culpa da inanição das crianças biafrenses ao General Ojukwu, um recurso que a esta altura já se tornara comum. Os biafrenses analisaram o plano que lhes foi transmitido pela Cruz Vermelha e rejeitaram-no. O plano poria toda a operação de socorro sob o controle exclusivo de Lagos, sem que houvesse qualquer proibição a tirar proveito da abertura de Uli durante o dia. Os nigerianos poderiam perfeitamente atacar o aeroporto, sob a cobertura dos vôos de socorro.
A Cruz Vermelha largou as negociações e resolveu recomeçar tudo por conta própria. A 19 de junho, o Dr. Lindt renunciou, a fim de proporcionar uma chance maior de sucesso à organização.
A 1º de julho, o novo presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha assumiu o cargo. Era o Sr. Mareei Naville, um banqueiro que já pertencia ao Comitê há vários anos e fora eleito presidente poucos meses antes, mas só assumiu o cargo a 1º de julho. No dia de sua posse, em Genebra, ele deu uma entrevista coletiva excepcionalmente franca e violenta. Criticou o regime nigeriano, classificando-o de "insolente... mostrando a porta de saída aos gestos humanitários como se fossem um criado infiel". Censurou asperamente os mercadores de armas, cujos fornecimentos mantinham a guerra sempre encarniçada. Sem citar nomes, disse que não havia na Nigéria petróleo suficiente para fabricar detergentes capazes de limpar as mãos dos responsáveis. Os observadores acharam que o Sr. Naville era um homem por demais irrefletido ou contava com algum poderoso apoio diplomático que lhe permitiria ter uma confrontação decisiva com Lagos, de uma vez por todas.
O primeiro julgamento era o correto. E além de irrefletido e precipitado, o Sr. Naville demonstrou também que não tinha muita firmeza de caráter. Nos debates subseqüentes no comitê, os espíritos mais assustadiços prevaleceram. O resultado foi o comunicado de que a Cruz Vermelha prosseguiria no caminho da "mais estrita legalidade. O que, nas circunstâncias, significava a inércia completa.
Começaram negociações prolongadas e árduas, enquanto a leste do Níger as crianças continuavam a morrer. A 8 de julho, o Sr. Naville chefiou pessoalmente a delegação da Cruz Vermelha que foi a Lagos, cancelando para isso, expressivamente, uma reunião em Londres. Não demorou a voltar, sem nada ter conseguido. As conversações ficaram a cargo do Sr. Enrico Beniami, o mais graduado delegado da Cruz Vermelha em Lagos. As conversações se prolongaram por várias semanas, sem qualquer resultado concreto.
A 4 de agosto, a Cruz Vermelha finalmente resolveu fazer o que deveria ter feito desde o início. Apresentou o seu próprio plano. Os aviões da Cruz Vermelha decolariam de Cotonou, no Daomé, voariam pela Nigéria através de um corredor aéreo previamente determinado, deixariam as cargas de alimentos em Uli e voltariam por outro corredor aéreo. Os vôos seriam realizados entre nove horas da manhã e seis horas da tarde, devidamente protegidos. As cargas seriam fiscalizadas pouco antes da decolagem por uma comissão mista. Os nigerianos estariam representados nessa comissão e, se quisessem, poderiam acompanhar cada vôo, para terem certeza de que não haveria qualquer desvio.
A idéia de representantes nigerianos acompanharem cada vôo, a fim de comprovarem que não havia nada de sequer remotamente militar nas missões (ostensivamente, a principal queixa de Lagos), havia sido proposta por Ojukwu, em julho de 1968.
O plano foi apresentado primeiro a Ojukwu. Continha alguns riscos, como os assessores de segurança dele imediatamente ressaltaram. Em primeiro, com vôos à luz do dia, a pressão sobre a Ajuda Conjunta das Igrejas, para suspender seus vôos noturnos "ilegais", seria imensa. Se a ponte aérea noturna fosse cancelada e a Ajuda Conjunta das Igrejas aderisse aos vôos à luz do dia, o que aconteceria se o governo de Lagos decidisse rescindir o acordo unilateralmente? Os biafrenses passariam a não receber mais nenhum socorro. Em segundo lugar, embora o acordo especificasse que os vôos e a pista seriam invioláveis entre nove horas da manhã e seis horas da tarde, alguém poderia garantir que a Força Aérea Federal não desfecharia nenhum ataque, em desrespeito ao acordo? Um ataque nessas condições, se desfechado de um avião-cargueiro com uma bomba de grande potência, poderia causar tremendos danos à pista. Significativamente, nenhuma potência, muito menos as que proclamavam a integridade do regime federal, estava disposta a oferecer tal garantia.
Não obstante, e apesar da oposição de seu próprio Gabinete, Ojukwu resolveu correr o risco. A 29 de agosto, Biafra finalmente concordou com o plano. Satisfeita, a Cruz Vermelha levou o plano para Lagos. Nesta altura dos acontecimentos um pequeno apoio internacional à Cruz Vermelha poderia promover a aprovação total do plano. Mas não houve qualquer apoio. O regime federal recusou-se a aprovar o plano, a menos que fossem feitas algumas alterações. Foi nesse ponto que a Cruz Vermelha cometeu outro dos seus grandes erros. Deveria ter insistido para que o plano permanecesse inalterado, sem aceitar modificações sugeridas por nenhum dos lados. A 5 de setembro, Lagos concordou com o plano "em princípio", contanto que se pudesse ajustar uns poucos detalhes técnicos. A 14 de setembro, Lagos assinou o acordo, com as alterações no texto. O acordo foi então levado de volta a Ojukwu.
Qualquer organização de consumidores sempre ressalta para seus associados a importância das cláusulas escritas em letras minúsculas num documento legal. O novo acordo para os vôos à luz do dia continha cinco parágrafos extras, em letras minúsculas, que alteravam substancialmente o espírito e a letra do original. Vamos mencionar três desses parágrafos.
Um deles reduzia o término do horário dos vôos para cinco horas da tarde. Com isso, cada avião poderia realizar apenas um vôo por dia, ao invés de dois. Outro especificava que a torre de controle de Lagos poderia, a qualquer momento, ordenar a descida de qualquer avião de socorro que estivesse sobrevoando a Nigéria para uma inspeção adicional; depois disso, o avião teria que voltar para Cotonou, ainda carregado. O terceiro parágrafo especificava que o acordo não deveria "em nenhuma circunstância prejudicar as operações militares" contra Uli.
Os outros dois parágrafos impunham condições que praticamente anulavam o acordo. O primeiro deixava a decisão de continuar as operações de socorro ao critério exclusivo do governo federal; o segundo excluía o aeroporto de Uli de inviolabilidade de ataque durante o período dos vôos de socorro. É difícil imaginar como os aviões de socorro poderiam aterrissar em Uli sob os ataques dos caças a jato.
A 11 de setembro, outro documento, ainda mais sinistro, chegou às mãos da Cruz Vermelha Internacional, em Genebra. Era uma cópia fotostática de uma ordem do comandante da Força Aérea Federal, Coronel Shittu Alão, determinando aos seus comandantes de base em Enugu, Port Harcourt, Calabar e Benin que pusessem seus MIGs a "patrulhar" Uli durante o dia; se por acaso fossem alvejados, deveriam atacar imediatamente. O documento provocou um calafrio nos membros do Comitê.
Era preciso muito pouca imaginação para prever que os jatos sobrevoando Uli acabariam inevitavelmente sendo o alvo dos disparos de algum artilheiro nervoso. E o que os jatos avistariam no solo? Longas e convidativas colunas de caminhões da Cruz Vermelha, aguardando os suprimentos; aviões parados na pista; dezenas de europeus que trabalhavam para a Cruz Vermelha em Biafra. Um dos assessores, com experiência de Biafra, declarou que os MIGs não hesitariam em atacar um alvo assim, à luz do dia. Além do mais, os biafrenses ficariam furiosos e poderiam também descarregar sua amargura no pessoal da Cruz Vermelha. Se isso acontecesse, disse o assessor ao Comitê, toda a responsabilidade seria de Genebra.
Foi quase com um suspiro de alívio que o Comitê soube, ao final de setembro, que os biafrenses haviam recusado o acordo, por causa das cláusulas extras. £ o caso ficou nisso mesmo, até o final de 1969. Enquanto isso, as igrejas prosseguiram em seus vôos noturnos. Ao final de 1969, sua ponte aérea fora consideravelmente ampliada e a organização estava esperando mais aparelhos ainda. As 150 toneladas de alimentos por noite, em julho, estavam quase beirando as 200 toneladas em dezembro.
No fundo, todo o plano dos vôos à luz do dia, seu sucesso ou fracasso total e possivelmente sangrento, não dependia propriamente das garantias de Lagos, mas sim da honestidade da Força Aérea Federal. Era a mesma força aérea que há dois anos vinha chocando e enfurecendo o mundo pela brutalidade de seus ataques contra mercados, hospitais, enfermarias, acampamentos de refugiados e aldeias indefesas, a mesma força aérea que repetidamente quebrara as tréguas determinadas pelo próprio General Gowon, a mesma força aérea que finalmente superara todos os seus crimes ao derrubar a sangue-frio um avião-cargueiro desarmado da Cruz Vermelha. *
O General Ojukwu foi novamente acusado de fazer política à custa das vidas do seu povo, uma acusação já gasta, mas que ainda era usada por Whitehall e Washington. Mas a acusação não resiste à menor análise. Ao se recusar a aceitar o esquema da ponte aérea à luz do dia, o General Ojukwu tornou-se novamente o alvo da publicidade mais desfavorável possível. Um homem preocupado em fazer política teria agido da maneira justamente inversa, procurando conquistar as boas graças do mundo, ao invés da repulsa geral. Para Ojukwu, havia não apenas uma, mas duas considerações a serem levadas em conta. A primeira era a segurança de Biafra, algo primordial para os biafrenses e que dependia principalmente do aeroporto de Uli. O socorro vinha em segundo lugar e a grande maioria dos biafrenses concordava plenamente com essa ordem de prioridade.
A tragédia da Cruz Vermelha, durante o ano de 1969, foi a de não compreender os dois fatores imutáveis da crise Nigéria-Biafra. O primeiro era que Ojukwu não podia arriscar a segurança da nação, mesmo por causa dos alimentos de socorro. O outro eram os comandantes das forças armadas nigerianas, que dominavam o governo de Lagos e jamais permitiriam que fosse levada qualquer ajuda a Biafra.a não ser em condições que lhes proporcionassem substanciais vantagens militares.
A CONTRIBUIÇÃO AMERICANA
Seria difícil, se não mesmo impossível, imaginar um povo de coração mais generoso ou compassivo que o dos Estados Unidos da América. Assim, não foi por coincidência que, a partir do momento em que a imprensa americana começou a noticiar a trágica situação das crianças nos dois lados da guerra Nigéria-Biafra, o povo americano tenha superado todos os demais em contribuição, mesmo numa base pro rata de população.
Contudo, o governo dos Estados Unidos, sob a direção do Departamento de Estado, permaneceu intransigente em seu apoio à Nigéria, independente do custo em vidas envolvido na guerra. A razão para essa estranha dicotomia está num único fato: quase que até o último dólar oferecido pelo governo americano para ajudar a aliviar os sofrimentos humanos nos dois lados da linha de frente foi literalmente arrancado das autoridades pela pressão popular.
No momento em que suspendeu as operações, a Cruz Vermelha Internacional já tinha recebido de Washington contribuições em dinheiro e mercadorias num valor superior a 19 milhões de dólares. Ao final de 1969, a Ajuda Conjunta das Igrejas recebera cerca de 60 milhões de dólares em ajuda. A contribuição dos Estados Unidos às operações de socorro foi pouco mais da metade do total.
Uma parcela considerável da ajuda foi enviada sob a forma de mercadorias. Houve imensas doações de Milho-Soja-Leite, um alimento de socorro urgente conhecido como Fórmula Dois, fabricado exclusivamente pelos Estados Unidos. O governo americano pagou o custo do transporte através do Atlântico. Quatro C-97 Stratofreighters (originalmente foram anunciados Globemasters, mas verificou-se posteriormente que eram pesados demais) foram vendidos à Cruz Vermelha e às igrejas, por um preço simbólico de 3.800 dólares cada. Os custos de operação desses aviões foram pagos também pelos Estados Unidos. Mais tarde, os custos da ponte aérea de outros carregamentos americanos, mesmo quando transportados por aviões que não eram americanos, foram também reembolsados pelos Estados Unidos.
Era extremamente alentador observar todo esse imenso esforço, sabendo-se que cada saco e cada dólar significava que mais algumas crianças, que morreriam inevitavelmente sem esse socorro, teriam uma oportunidade de sobreviver. Contudo, ao longo de toda o operação, o Departamento de Estado empenhou-se em estorvar e retardar todas as providências.
Tudo o que se mandou para Biafra não foi na base da necessidade envolvida ou das proporções da emergência, mas simplesmente na base do que seria suficiente para satisfazer a pressão interna nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que se evitava contrariar o regime de Lagos. Provavelmente será para sempre um mistério os motivos pelos quais o imensamente poderoso Departamento de Estado sentia-se obrigado a não contrariar em hipótese alguma os insignificantes demagogos nigerianos.
Apesar de suas louváveis palavras em setembro de 1968, o Presidente Richard Nixon, depois que subiu ao poder, foi pessoalmente responsável por não se mandar mais nada para Nigéria-Biafra. As doações foram decorrentes da pressão da imprensa, deputados e senadores e muitas outras personalidades públicas que estavam em posição de exercer alguma influência. Até mesmo a venda dos oito aviões-cargueiros foi uma das últimas medidas da Administração Johnson, que estava de saída.
No início de 1969, o Dr. Clarence Clyde Ferguson, um negro que era professor de Direito da Universidade Rutger, foi nomeado Coordenador Especial do Socorro à Nigéria. Pelo resto do ano, o Dr. Ferguson e sua equipe, de um modo geral, desperdiçaram o seu próprio tempo e o de todo mundo, fazendo muito pouco. Pouco depois que o avião do Capitão Brown foi derrubado, a 5 de junho, quando era vital uma expansão da ponte aérea da Ajuda Conjunta das Igrejas (uma organização que podia não estar atuando de maneira perfeita, mas pelo menos estava realizando o trabalho), o Dr. Ferguson preferiu reduzir o transporte aéreo. Gastou suas energias tentando impor seu próprio projeto de estimação: o de despachar duas barcaças de desembarque, carregadas de suprimentos, pelo rio Cross até Biafra.
Tecnicamente, o plano poderia funcionar. Duas embarcações desse tipo, a Donna Mercedes e a Donna Maria, foram enviadas através do Atlântico até Lagos. Como o General Ojukwu tinha concordado com o plano, os nigerianos o vetaram, usando o governo-títere que instalara em Calabar, ao sul do rio Cross, para criar obstáculos. As barcaças de desembarque acabaram realizando missões incertas em Port Harcourt, uma cidade ocupada pelos nigerianos. Quanto ao resto, o Dr. Ferguson praticamente limitou-se a zaranzar pela África Ocidental, a ir constantemente da Nigéria para Biafrat a voar para Washington e para a Europa. Numa dessas ocasiões, tentou aprovar o seu próprio plano para vôos à luz do dia. Mas esqueceu de avisar a Cruz Vermelha, que já estava negociando a mesma idéia.
As pessoas que realmente fizeram alguma coisa foram os americanos da Ajuda Conjunta das Igrejas. A ajuda do governo americano foi enviada principalmente através de três entidades: a USAID, do Departamento de Estado, a UNICEF, da ONU, e a Ajuda Conjunta das Igrejas. A última foi a que manipulou e transportou a maior parte da ajuda.
Os membros dessa organização, que tiveram de lidar com o Departamento de Estado tratando da distribuição da ajuda, não esconderam posteriormente, para quem quer que abordasse o assunto, que se o governo americano pudesse fazer prevalecer a sua vontade teria cancelado inteiramente todas as operações. Felizmente, não puderam fazê-lo. Já falamos antes, em termos ríspidos, sobre alguns representantes do povo americano pelo que fizeram em Lagos e Genebra. Não pode haver a menor dúvida de que essas atitudes ignóbeis não eram conhecidas do-povo americano e não teriam contado com seu apoio se fossem reveladas.
No Departamento de Estado propriamente dito chegou a haver três organismos separados lidando com a crise Nigéria-Biafra. Um deles era a Seção da Nigéria, uma ramificação da Seção da África Ocidental, dominada por antigos colegas do ex-Secretário de Estado Assistente para a África, Sr. Joseph Palmer. Antigo embaixador americano em Lagos, o Sr. Palmer era um partidário intransigente da Nigéria, apesar do país ter-se deteriorado consideravelmente desde a época em que lá estivera e ser agora dominado por uma ditadura. A Seção da Nigéria, mesmo na ausência do Sr. Palmer (ele foi designado para embaixador americano na Líbia em 1969), era fortemente pró-Nigéria e anti-Biafra. Essa posição estava em plena harmonia com os relatórios enviados pelo Sr. Elbert Mattews, embaixador americano em Lagos, que só foi substituído ao final de 1969. Havia ainda a USAID e o escritório especial do Dr. Ferguson. Para espanto de toda a equipe da seção americana da Ajuda Conjunta das Igrejas, que tinha de lidar com representantes do* três organismos, nenhum deles parecia saber o que os outros estavam fazendo ou apresentando como a "linha oficial". O resultado era uma confusão considerável.
Assim, a maior parte do trabalho coube à seção americana da Ajuda Conjunta das Igrejas. Era formada basicamente pelos Serviços Católicos de Ajuda, a gigantesca organização que é a maior exportadora dos Estados Unidos depois do governo americano, enviando anualmente mais de um milhão de toneladas de suprimentos diversos para 72 países; pelo Serviço Mundial da Igreja, representando 30 igrejas protestantes americanas e proporcionando ajuda a 42 países; e pelo Comitê Judeu Americano, representando 22 organizações judaicas. Essas três associações eram apoiadas por uma pletora de outras menores.
Constantemente agitando, clamando, pressionando, reclamando, os dirigentes dessas organizações arrancaram do Departamento de Estado o dinheiro e os meios necessários para se manterem as operações de socorro às crianças famintas e doentes nos dois lados da Unha de frente. Entre esses homens, podemos mencionar o Bispo Swanstrom e Ed Kinney, pelas SCA, James McCracken e Jan von Hoostraten, pelo SMI, e o Rabino James Rudin e Marcus H. Tannembaum, pelo CJA.
Sozinhos, eles não teriam conseguido realizar tudo o que fizeram. Mas contaram com o apoio de numerosos homens na vida pública, que ficaram falando incessantemente, até que se fizessem alguma coisa. A variedade de apoio que essa causa humanitária recebeu nos Estados Unidos, de diversos grupos de pressão, foi tão grande quanto é diversificada a vida na América. Houve pressão da extrema direita e da extrema esquerda, de liberais e conservadores, de republicanos e democratas, de sindicatos trabalhistas e grandes corporações, de todos os 50 estados da União. Também houve um considerável apoio da imprensa americana, que jamais deixou o assunto cair no esquecimento, a maneira mais certa de matar uma idéia no mundo moderno.
Um dos que mais fizeram, se não mesmo o que mais fez, usando todo o seu prestígio e influência para que se enviasse ajuda às crianças de Biafra, foi o Senador Edward Kennedy. Como presidente do Subcomitê de Refugiados do Senado americano, o Senador Kennedy podia efetivamente promover diversas audiências sobre o assunto. Autoridades embaraçadas foram obrigadas a comparecer e explicar por que não estava sendo feito mais. Dessa maneira, o subcomitê senatorial manteve o relutante Departamento de Estado em permanente atividade.
Em termos de riqueza americana, as quantias envolvidas não foram tão fabulosas. Cerca de três dias do custo de acabar com vidas no Vietnam daria para cobrir o custo de salvar vidas em Biafra durante 18 meses. Foi também o equivalente a cerca de 20 minutos de vôo da Apoio XI. Mas o efeito foi proporcionar uma chance de viver a milhões de crianças que estavam à beira da extinção.
O verdadeiro herói da contribuição americana não foi nenhuma das personalidades públicas ou dos líderes das igrejas que se postaram na linha de frente da luta. Foi o cidadão comum americano, os milhões de joões-ninguéns espalhados pelos 50 estados, os quais os manipuladores profissionais do poder no governo adorariam poder esquecer. Mas eles simplesmente se recusaram a ser esquecidos. Num único dia, o Departamento de Estado recebeu 25 mil cartas a respeito de Biafra e as autoridades ficaram profundamente preocupadas. É a esses milhões de americanos anônimos, que continuaram a clamar quando os donos do poder queriam que se calassem, assim como outros na Alemanha, Holanda, Noruega, Inglaterra, Suíça, Suécia, Canadá, Dinamarca e Irlanda, que se deve o mérito pela maior operação humanitária de ajuda a um povo sofredor da história moderna.
12. As Conferências de Paz
Os 18 meses da guerra, entre julho de 1967 e dezembro de 1968, foram entremeados por três conferências de paz, todas malogradas. Tal fracasso não surpreendeu ninguém, muito menos aos biafrenses. O requisito de qualquer conferência de paz, quando se deseja vê-la bem-sucedida, é as duas partes estarem ipso facto persuadidas de que o conflito não mais poderá ter uma solução militar e que uma solução negociada não apenas é desejável mas também inevitável em última análise.
Os que estão por fora do conflito, desejando que a conferência seja bem-sucedida, devem recorrer a toda a sua influência para convencerem as duas partes dessa posição, a fim de que seu papel não seja um mero sofisma. É hipocrisia qualquer potência fora do conflito manifestar o seu desejo de uma solução pacífica e negociada, ao mesmo tempo em que proporciona a uma das partes uma razão para não partilhar essa opinião.
No caso das três conferências de paz entre nigerianos e biafrenses, a Inglaterra e os Estados Unidos agiram diplomaticamente — e a Inglaterra também através de medidas práticas — para manter a Nigéria apegada à sua convicção original de que uma solução militar total era exeqüível e estava ao seu alcance, que uma solução negociada não era absolutamente inevitável no fim das contas. Á conseqüência é que os nigerianos deixaram bem claro, poucas horas depois do início de cada conferência, que a presença de sua delegação era exclusivamente para discutir os termos da rendição biafrense. Não havendo uma aceitação dessa base para as negociações, a guerra tinha inevitavelmente que continuar. O que aconteceu. Parte da responsabilidade por isso cabe às duas grandes potências e à inércia dos demais países africanos, que se deixaram persuadir a aceitar uma política de alienação na crise, que já se tornara um estigma para todo o continente.
A primeira conferência foi resultado de alguma atividade diplomática do Secretário da Commonwealth, Sr. Ârnold Smith, um canadense afável, dotado de muita boa vontade e pouca sagacidade. Depois de diversos contatos com Lagos, no inicio da primavera de 1968, o Sr. Smith disse aos biafrenses que os nigerianos estavam querendo iniciar conversações de paz. Como desejavam justamente isso desde o início da guerra, os biafrenses prontamente concordaram. Foram acertados todos os detalhes para conversações preliminares em Marlborough House, Londres, quando seria debatida a fórmula para a conferência.
Na ocasião, a Nigéria estava sob considerável pressão. Repetidas tentativas de capturar a grande cidade biafrense de Port Harcourt, com ataques pelo mar, haviam fracassado. Mas o comandante da Terceira Divisão garantira que poderia capturar a cidade ao final de maio.
Enquanto a Terceira Divisão prosseguia em seu árduo avanço pelos pântanos na direção de Port Harcourt, a situação mudava de maneira alarmante no lado diplomático. A 13 de abril, a Tanzânia reconheceu Biafra como um estado independente e soberano. O fato animou os biafrenses, enquanto abatia o moral dos nigerianos, até mesmo ao nível da infantaria. Foi nessa ocasião, com a Costa do Marfim e o Gabão pensando em seguir o exemplo da Tanzânia, que os nigerianos comunicaram ao Sr. Smith que estavam querendo iniciar conversações de paz. No lado biafrense, houve quem achasse que os nigerianos estavam simplesmente querendo ganhar tempo, pois a queda de Port Harcourt iria provavelmente inverter as .tendências diplomáticas na África. £ foi realmente o que aconteceu.
As conversações preliminares em Londres foram iniciadas no dia 2 de maio. A delegação biafrense era chefiada por Sir Louis Mbanefo, enquanto a delegação nigeriana estava sob o comando do Chefe Anthony Enahoro. Os pontos a serem discutidos eram o local da conferência, o presidente e observadores internacionais (se algum) e a agenda. As suspeitas biafrenses de que as conversações não passavam de uma manobra para ganhar tempo foram reforçadas desde o início. Sir Louis disse ao Sr. Smith que estava convencido de que as conversações não levariam a nada. Por um lado, os ingleses haviam se recusado a suspender os fornecimentos de armas a Lagos mesmo enquanto se realizavam as conversações, uma atitude que os nigerianos não interpretaram erroneamente; por outro lado, por causa da composição da delegação nigeriana.
Além do Chefe Enahoro, participavam da delegação o Alhaji Amino Kano, um nortista que não pertencia ao sistema dominante e que não podia falar pela Nigéria Setentrional, e três colaboracionistas biafrenses: Ásika, o Ibo indicado por Lagos para ser o administrador do território Ibo, o General-de-Brigada George Kurubo, um homem dos Rios renegado que fora repudiado por seu próprio povo, antigo oficial do Exército Biafrense antes de desertar para Lagos quando lhe fora oferecido o posto de embaixador nigeriano em Moscou, e o Sr, Ikpeme, um efik de Calabar, que representara Lagos em Calabar durante as represálias contra os efiks, em fins de novembro e dezembro.
Era como a delegação sul-vietnàmita aparecendo em Paris com três desertores vietcongs como seu porta-vozes. Pode-se perfeitamente imaginar a reação das delegações vietcong e norte-vietnamita.
Apesar de saber que aqueles homens não podiam, sob quaisquer circunstâncias, ser considerados legítimos representantes do povo da Nigéria, Sir Louis resolveu prosseguir nas conversações. Como local para a conferência, os biafrenses sugeriram Dakar. Enahoro recusou, mas não ofereceu qualquer lugar alternativo. Depois de três dias de protelações, Sir Louis pediu a Enahoro que apresentasse uma relação de locais convenientes para Lagos, acrescentando que a esperança nigeriana pela escolha de Londres era impossível, enquanto a Inglaterra continuasse a fornecer armas para a Nigéria.
Enahoro apresentou uma relação de 17 capitais da Commonwealth. Sir Louis optou por Kampala, que fora a sua segunda proposta. Só que não a revelara. Desconcertado mas encurralado, Enahoro não teve outro jeito que não concordar com Kampala, a capital de Uganda. Biafra queria que a conferência tivesse um presidente e três observadores estrangeiros, consciente da necessidade da presença de testemunhas, depois de Aburi. Enahoro era contra e sugeriu que o assunto fosse discutido em Kampala. Sir Louis concordou. Depois de alguns outros dias de protelações, a agenda finalmente começou a ser discutida.
Sir Louis queria uma agenda de dois pontos: acordo sobre o cessar-fogo e conversações mais prolongadas sobre os termos da natureza da futura associação entre as duas partes, que era no fundo a solução política para o conflito. Enahoro reagiu com uma agenda de sete pontos, que equivaliam a se discutir os meios e modos de organizar a rendição total e incondicional de Biafra. Sir Louis protestou, alegando que o cessar-fogo devia ser o principal objetivo das conversações; sem o cessar-fogo, as conversações estariam irremediavelmente fadadas ao fracasso. Além disso, ressaltou Sir Louis, a oferta original de Smith fora a de conversações sobre o cessar-fogo, sem quaisquer pré-condições. A agenda de dois pontos acabou sendo aceita.
A conferência principal começou em,, Kampala numa quinta-feira, 23 de maio de 1968. A esta altura, as patrulhas avançadas nigerianas já tinham entrado em Port Harcourt e a conferência tornou-se um exercício acadêmico. Foram necessários dois dias para se acertar que não deveria haver nenhum presidente, mas haveria um observador. Os biafrenses pediram que o observador fosse o Presidente Milton Obote, o anfitrião. Os nigerianos ficaram numa situação difícil: tinham que ceder ou então repudiar o anfitrião. Acabaram concordando. O Dr. Obote indicou o seu Ministro do Exterior, Simon Odaka, para acompanhar as conversações. No sábado, os nigerianos queixaram-se que um dos seus secretários, Sr. Johnson Banjo, estava desaparecido. Não poderiam reiniciar as conversações até que o estenógrafo sumido fosse encontrado.
A esta altura, as conversações mais pareciam uma comédia de pastelão. Em Umuahia, o Coronel Ojukwu, furioso, classificou a conferência de "uma tremenda farsa". Enahoro não pôde reiniciar as conversações na manhã de domingo porque tinha de ir à igreja. Apresentou mais duas desculpas para a tarde e noite de domingo. Pediu para falar com o Presidente Obote e depois solicitou uma conversa particular com Sir Louis. Os dois encontros não levaram a parte alguma. Na terça-feira, Enahoro apresentou uma proposta de doze pontos discutindo em detalhes a rendição de Biafra, o desarmamento de suas forças armadas, a' administração do território pelos nigerianos e o destino da liderança biafrense. Sir Louis recordou-lhe que estavam em Kampala para discutir um cessar-fogo, o primeiro item da agenda, e depois uma solução política. Mas Enahoro apegou-se a suas propostas, que representavam na realidade uma inversão da ordem da agenda. Nessa ocasião, os detalhes da captura de Port Harcourt já tinham sido divulgados e não mais restava qualquer esperança de que o governo de Lagos pudesse aderir a uma política de paz.
Enquanto se realizavam as conversações de Londres e Kampala, mais países haviam reconhecido Biafra: Costa do Marfim a 8 de maio, Gabão a 14 de maio e Zâmbia a 20 de maio. Mas á notícia da captura de Port Harcourt, chegando a Kampala entre 23 e 27 de maio, afastou qualquer possibilidade de que esses reconhecimentos pudessem alterar a política nigeriana.
Todos achavam, nessa ocasião, que a perda do aeroporto de Port Harcourt, que só caiu vários dias depois da cidade, iria isolar Biafra do mundo exterior e impedir os fornecimentos de armas e munições. Assim, imaginavam todos, a resistência biafrense não poderia durar por mais que duas semanas.
Mas os reconhecimentos, embora subestimados pelos exuberantes nigerianos, perturbou os governos britânico e americano. Houve intensa atividade diplomática nos bastidores, os dois governos tentando dissuadir quaisquer outros países que se sentissem tentados a também reconhecer Biafra. O Sr. Alfred Palmer, Secretário de Estado Assistente para a África, antigo embaixador americano na Nigéria, percorreu os países da África Ocidental, manifestando-se veementemente, em conversas particulares e publicamente, contra Biafra e a favor da Nigéria. A ação conjunta não deixou de ter seus efeitos. A onda de reconhecimentos cessou bruscamente. Três outros países africanos, que já tinham particularmente informado ao Coronel Ojukwu que estavam pensando em reconhecer Biafra, mas cujas economias dependiam da ajuda •em dólar, tiveram que se refrear.
Na sexta-feira, 31 de maio, Sir Louis disse ao Dr. Obote primeiro e depois à imprensa que seu país estava convencido de que a Nigéria desejava e achava possível uma solução militar total, que estava simplesmente perdendo tempo e tencionava se retirar. A julgar pelo que escreviam, quase todos os correspondentes internacionais já tinham chegado à mesma conclusão.
Desapontado, mas ainda esperançoso, Sir Louis não voltou para Biafra, preferindo ir primeiro a Londres, onde passou sete dias a conversar com as autoridades britânicas e finalmente solicitou uma entrevista com o Sr. Harold Wilson. Em vez disso, foi-lhe sugerido que se encontrasse com Lord Shepherd, o Ministro de Estado do Departamento da Commonwealth. Sir Louis concordou e os dois se encontraram na casa do Sr. Arnold Smith. Lord Shepherd iniciou a conversa com uma tremenda descortesia.
Deixou bem claro que até aquele momento sempre pensara que os biafrenses não passavam de uma tribo de algumas milhares de pessoas, vivendo em estado semi-selvagem no meio do mato. Até mesmo veteranos calejados, como Sir Morrice James, SubSecretárío Permanente, ficaram olhando pela janela, totalmente constrangidos. Era a primeira manifestação de Lord Shepherd no cenário diplomático.
Sir Louis e Lord Shepherd tiveram três reuniões. Lord Shepherd fez questão de ressaltar que o governo britânico desejava ver um cessar-fogo e mais conversações de paz. Perguntou se Biafra aceitaria a mediação britânica. Perplexo ao constatar que Shepherd ainda não apreendera todos os fatores da situação, Sir Louis respondeu que seu governo achava que a mediação britânica era impossível, enquanto a Inglaterra continuasse a fornecer armas a Lagos. O noticiário da imprensa revelava que as remessas de armas estavam aumentando cada vez mais. O ponto de vista biafrense pareceu surpreender o inefável Lord Shepherd.
De qualquer forma, Lord Shepherd acabou apresentando um plano para o cessar-fogo. Sir Louis pediu que o plano fosse posto no papel e seu pedido foi devidamente atendido. Comparando-se o plano britânico com o plano biafrense, não se via a princípio quaisquer diferenças significativas. O cessar-fogo, a necessidade de uma força internacional para a manutenção da paz, negociações subseqüentes para uma solução política... tudo combinava. Lord Shepherd pareceu ficar satisfeito e declarou que iria a Lagos tentar uma aprovação daquela fórmula básica, já aceita em princípio por ingleses e biafrenses. Pediu a Sir Louis que permanecesse em Londres até seu retorno de Lagos. Mas Sir Louis preferiu voltar a Biafra, prometendo que voltaria imediatamente a Londres, caso a missão de Lord Shepherd apresentasse resultados favoráveis. Lord Shepherd partiu para Lagos no dia 13 de junho e Sir Louis foi embora no dia seguinte.
O que se seguiu deixou os observadores aturdidos. O plano de Lord Shepherd, se é que chegou a ser realmente examinado em Lagos, foi rejeitado categoricamente. Para Lagos, a solução política, sob a forma da rendição biafrense, devia ser uma pré-condição para o cessar-fogo. Impávido, Lord Shepherd voou para Calabar, que estava agora em poder dos nigerianos. Ali, comportou-se de maneira extraordinária para um suposto mediador, fazendo discursos e comentários que mostravam que, em poucos dias, ele se tornara um partidário entusiasmado da Nigéria.
Confrontado pelos dois correspondentes do News of the World, Srs. Noyes Thomas e Graham Stanford, que lhe relataram com extrema paixão as cenas de miséria e degradação humanas que haviam testemunhado no território ibibio ocupado pelos nigerianos, especialmente em Ikot Ekpene, Lord Shepherd manifestou alguma surpresa e choque. Mas não demorou muito para que, tornando-se novamente o alvo de todas as atenções, Lord Shepherd estivesse acenando, deliciado, para a multidão (agentes biafrenses na cidade informaram posteriormente que boa parte da multidão era formada por soldados Iorubás à paisana). Mais tarde, ouviu um coro a lhe fazer uma serenata, entoando o salmo "O Senhor é o meu Pastor" (Shepherd, em inglês). As comparações com a missão de Lord Runciman na Tchecoslováquia, em 1938, e do ridículo comportamento desse conde em Petrovice foram inevitáveis. Em lagos, Lord Shepherd fez mais algumas declarações veementes a favor da Nigéria e depois foi embora, liquidando de vez qualquer possibilidade de um acordo negociado através de sua mediação.
A eficácia da diplomacia britânica na crise estava irremediavelmente comprometida. Apesar das afirmações subseqüentes de grandes vitórias conquistadas nos corredores de Lagos, de concessões obtidas e acordos iniciais, o governo britânico nunca mais teve qualquer possibilidade de afetar as chances de paz na Nigéria. Se alguma influência teve, foi a de contribuir para prolongar a guerra indefinidamente, graças a seu comportamento. Os observadores jamais compreenderam por que a Inglaterra, entre todos os países, dispondo de excelentes diplomatas do calibre de um Sir Humphrey Trevelyan, que tio bem soube contornar a situação em Aden, tenha limitado os seus esforços para resolver uma situação extremamente delicada como a guerra Nigéria-Biafra aos serviços de Lord Shepherd, que nem mesmo é um diplomata profissional.
O próximo passo na direção da paz partiu da África. O Imperador Hailé Selassié, da Etiópia, há meses que presidia o Comitê para a Nigéria, da Organização da Unidade Africana, integrado por representantes de seis países. O Comitê estava praticamente inativo desde o inverno anterior, quando anunciara a sua intenção de visitar Biafra e fora advertido para não fazê-lo pelo General Gowon, cedendo vergonhosamente às exigências nigerianas. Depois de entrar em contato com os outros cinco chefes de Estado representados no Comitê, os da Libéria, Congo Kinshasa, Camarões, Gana e República do Níger, o Imperador Selassié combinou uma conferência na capital do último desses países, Niamey. O anfitrião foi o presidente da República do Níger, Hamani Diori. A reunião foi iniciada numa segunda-feira, 15 de julho. O General Gowon compareceu, no dia seguinte. Mal ele tinha voltado de avião para Lagos, no final da tarde, quando o Comitê convidou o Coronel Ojukwu a comparecer a Niamey e apresentar seus argumentos.
A notícia chegou a Biafra pelo rádio primeiro, mas o convite oficial demorou mais tempo, sendo entregue naquela noite, através do Presidente Bongo, do Gabão. No dia seguinte, quarta-feira, o Coronel Ojukwu deu uma entrevista coletiva há muito prometida em Aba, na qual propôs dois meios de enviar alimentos a Biafra, a fim de minorar os sofrimentos humanos causados pela fome no país. Um desses meios seria uma rota marítima e fluvial, as embarcações subindo pelo rio Níger até o porto de Oguta, ainda em 'poder dos biafrenses. O outro seria a internacionalização de Port Harcourt, sob controle neutro, os carregamentos seguindo a partir dali por um corredor com 15 quilômetros de largura, até as posições na linha de frente, onde a Cruz Vermelha Biafrense assumiria o controle. Perguntaram-lhe se iria a Niamey. Ojukwu sacudiu a cabeça com uma expressão pesarosa e respondeu que, embora o desejasse intensamente, a situação militar não lhe permitiria a viagem.
Mas Ojukwu mudou de idéia ainda no mesmo dia. Recebeu uma mensagem urgente, colocando à sua disposição meios de transporte extremamente rápidos. Depois de uma reunião com o Conselho Executivo, Ojukwu e um pequeno grupo de delegados partiram de avião para Niamey, na madrugada de 18 de julho. O avião pousou em Libreville antes do amanhecer, sendo avistado pelo Sr. Bruce Oudes, um conhecido correspondente canadense, especialista em assuntos africanos, que imediatamente divulgou a notícia. Depois de tomar o café da manhã com o Presidente Bongo, o Coronel Ojukwu voou para o norte no jato particular do Presidente Houphouet-Boigny, da Costa do Marfim, que colocara o aparelho à sua disposição.
Falando para o Comitê, o Coronel Ojukwu exibiu toda a força de sua argumentação e personalidade. Foram reiteradas as propostas para um ou dois corredores de socorro para a população civil, por terra ou por mar. Os argumentos biafrenses foram apresentados. O Comitê, do qual três membros representavam governos anteriormente hostis a Biafra, achou que eram procedentes, o que deixou desolada a delegação nigeriana.
Na sexta-feira, o Coronel Ojukwu deixou Niamey e voou para Abidjan, para se encontrar com o Presidente HouphouetBoigny. Os dois tiveram uma conversa particular. No sábado, Ojukwu voltou a Biafra, deixando o Professor Eni Njoku em Niamey, na chefia da delegação biafrense. No domingo, Ojukwu deu outra entrevista coletiva, desta vez menos tensa, num jardim em Owerri. Manifestou um otimismo cauteloso, declarando que a iminente conferência de paz em Adis Abeba, Etiópia, a conseqüência mais importante de sua visita a Niamey, poderia proporcionar resultados positivos.
Enquanto isso, em Niamey, as duas delegações discutiam o programa de ajuda à população civil de Biafra, um assunto que se tornara uma grande preocupação para o mundo em geral, desde o início de julho. Foram definidos diversos critérios para o corredor de socorro. Quando esses critérios foram aplicados às diversas propostas apresentadas, ficou evidente que a proposta biafrense de uma rota pelo rio Níger era a mais exeqüível, a mais barata, podia propiciar o transporte de uma tonelagem maior em tempo menor, continha menos desvantagens estratégicas para qualquer dos lados e apresentava uma variedade maior de salvaguardas contra abusos. Era, sob todos os aspectos, muito superior à proposta nigeriana de um corredor por terra, no norte, indo de Enugu para Awgu. No momento em que isso ficou patente, a delegação nigeriana bateu em retirada apressadamente. Foi ao explicar por que, subitamente, todos os critérios anteriormente acertados haviam se tornado inaceitáveis que o chefe da delegação nigeriana, Allison Ayida, apresentou o seu ponto de vista sobre as crianças famintas, citado no próximo capítulo:
— A fome é uma arma de guerra legítima e tencionamos usá-la contra os rebeldes.
A partir desse momento, a Nigéria recuou totalmente na questão de permitir o envio para Biafra de alimentos e medicamentos. As pequenas concessões subseqüentes tiveram que ser praticameni te arrancadas, mas não por pressão ou intervenção do governo britânico e sim por uma crescente onda de hostilidade da opinião pública mundial, derivada das pessoas comuns. Não obstante, foi combinada uma agenda para Adis Abeba, com a ordem invertida, para atender aos desejos dos nigerianos: primeiro a solução política e depois o cessar-fogo.
A conferência de Adis Abeba começou numa segunda-feira, 29 de julho. O Coronel Ojukwu tinha deixado Biafra na noite anterior, voando diretamente para a capital etíope, desta vez com uma delegação maior e também num jato maior, igualmente cedido pelo Presidente da Costa do Marfim. Como já era de se esperar, o General Gowon recusou-se a comparecer ou foi impedido por seus assessores, conscientes que o contraste não seria dos mais lisonjeiros.
A primeira reunião, para se ouvirem os discursos iniciais dos chefes das duas delegações, foi pública, com representantes de todos os chefes de Estado africanos e até mesmo alguns deles pessoalmente, todo o corpo diplomático de Adis Abeba, dezenas de observadores e um pequeno exército de jornalistas. O Chefe Enahoro procurou excluir a presença da imprensa, especialmente as câmaras de televisão. Mas seu recurso foi rejeitado e ele limitou-se a fazer um discurso de 12 minutos.
O Coronel Ojukwu levantou-se. Começou a falar pelo que parecia ser uma súplica a favor do povo biafrense, por motivos humanitários. Depois de quatro parágrafos, revelou que estava citando literalmente trechos do discurso que Hailé Selassié fizera na Liga das Nações em 1936, quando a Abissínia fora brutalmente invadida pelos fascistas. Sua intenção não foi ignorada. Ojukwu falou por uma hora e dez minutos, descrevendo a história do povo biafrense desde as suas origens, as perseguições, rejeição, separação e subseqüente sofrimento. Ao sentar-se, tornou-se um dos poucos homens do mundo a receber uma ovação de pé de um auditório predominantemente diplomático. Naqueles 70 minutos, Biafra deixara de pertencer à Nigéria, à África, aos ingleses ou à Commonwealth. Tornara-se um problema do mundo inteiro. Aos 34 anos, o Coronel Ojukwu passava a ser uma personalidade mundial, um reconhecimento que foi traduzido pela imprensa, inclusive quando, 24 dias depois, seu rosto tornou-se a capa da revista Time.
Mas a conferência de Adis Abeba se atolou em detalhes depois que se desvaneceu o brilho da publicidade. Como as conversações anteriores, perdeu-se num lodaçal de protelações, desculpas, intransigências e má vontade. A conferência prolongou-se por cinco semanas. Mas a atenção mundial, a única coisa que poderia estimulá-la, desviara-se inteiramente para a invasão da Tchecoslováquia pelos russos.
A delegação nigeriana tinha novamente um objetivo ao tentar ganhar tempo. O cessar-fogo deixou de ser uma questão primordial quando, a 17 de agosto, a Terceira Divisão nigeriana atravessou o rio Imo e passou a ameaçar Aba, a maior cidade que ainda estava em poder dos biafrenses. Nessa ocasião, a atitude de Wharton, o americano que contrabandeava armas para Biafra, parecia ter mudado inteiramente. Ao sul de Aba, os soldados biafrenses defendiam suas posições com apenas duas balas por dia. Os aviões de munições sofreram misteriosas avarias no ar e voltaram antes de pousar em Biafra, lançando as cargas no mar. Apesar das tremendas baixas nigerianas, Aba acabou caindo, a 4 de setembro de 1968.
Foi nessa ocasião que todos os olhos se voltaram, ansiosamente, para a conferência de chefes de Estado da Organização da Unidade Africana, marcada para 14 de setembro, em Argel. Lagos despachou mensagens frenéticas para o comandante da Terceira Divisão, insistindo que Owerri ou o aeroporto de Uli deveriam ser capturados antes do início da conferência. Os Estados africanos favoráveis a Biafra informaram que, em preparativos para a conferência de Argel, as diplomacias britânica e americana estavam se empenhando ao máximo, nos bastidores, para persuadir, a África que Biafra estava liquidada. Pressões consideráveis, inclusive financeiras, estavam sendo aplicadas. E o esquema acabou dando certo.
O comitê da agenda para a Conferência de Cúpula, reunindo-se em Argel a partir de 8 de setembro, decidiu deixar de fora a guerra Nigéria-Biafra. A conferência começou a 14 de setembro.
Depois de um esforço fracassado para capturar o aeroporto de Uli, a Terceira Divisão desfechou uma ofensiva na direção de Owerri, a 12 de setembro. Ainda carentes de armas e munições (o americano Wharton fora dispensado, mas a rota alternativa ainda não fora devidamente consolidada), os biafrenses lutaram com as suas poucas balas habituais contra a vanguarda de Saladins, os carros blindados britânicos do Exército Nigeriano. Owerri caiu a 16 de setembro. No dia seguinte, a conferência de Argel aprovou, por 32 votos contra quatro, uma resolução decidida às pressas recomendando aos biafrenses cooperarem com os nigerianos na restauração da integridade territorial da Federação: em outras palavras, a rendição.
Ao tomar tal decisão, a organização, que se orgulha de ser o repositório da consciência da África, lavou as mãos diante do maior problema de consciência do continente. Foi o ponto mais baixo de Biafra, tanto no setor militar como no diplomático. Na ocasião, e nas semanas subseqüentes, era difícil encontrar uma única pessoa que estivesse disposta a dizer que Biafra ainda não estava completamente liquidada. Só cem dias depois é que o mundo compreendeu que Biafra ainda estava viva, ainda estava lutando.
A esta altura a situação já se modificara consideravelmente sob quase todos os aspectos. Em Biafra houvera um ressurgimento da confiança, do moral alto das tropas, um aumento expressivo na quantidade de ajuda que estava chegando ou sendo aguardada. As tropas biafrenses estavam contra-atacando vigorosamente, pela primeira vez na guerra. Diversas nações, passando por cima da Inglaterra, haviam anunciado a intenção de procurar meios para promover a paz. Na Nigéria, acabara de ser assinado um acordo com a Rússia, que escancarava as portas do país à infiltração soviética em todos os níveis da vida nigeriana. No norte, havia crescentes rumores de descontentamento dos emires insatisfeitos com o governo, dominado pelos servidores civis das minorias tribais, que não era capaz de cumprir suas promessas. No oeste, haviam ocorrido distúrbios, protestos, fuzilamentos, prisões em massa. Nos Estados Unidos, o Sr. Nixon acabara de ser eleito.
O fracasso da diplomacia não se deve exclusivamente aos homens das delegações nigerianas, cuja preocupação em preservar as próprias carreiras era compreensível. Foi mais o fracasso daqueles que podiam exercer pressão para promover a paz e não o fizeram. Em nenhum momento, as delegações nigerianas deram qualquer indicação de que sua convicção básica, a de que a solução militar era exeqüível e possível, estivesse abalada. Em nenhum momento, os partidários da Nigéria procuraram dissuadi-la dessa convicção. Havia uma oportunidade de promover a paz, mas foi inteiramente desperdiçada.
O ano de 1969 não se caracterizou por qualquer avanço nas tentativas de se chegar a uma paz negociada, da mesma forma que o ano de 1968 e também pelas mesmas razões já enunciadas anteriormente. Além dos numerosos contatos entre diplomatas de diversos países e as autoridades nigerianas e biafrenses, houve apenas uma única conferência de paz em larga escala em 1969. Foi realizada em Monróvia, Libéria, a 18 e 19 de abril, convertendo-se numa farsa tão grande quanto as três conferências anteriores de 1968.
O primeiro passo foi dado no início de abril, quando o governo biafrense recebeu uma carta do Presidente William Tubman, da Libéria, convidando Biafra a enviar uma delegação a Monróvia, a fim de discutir a paz sem quaisquer condições prévias. A delegação biafrense foi formada por Sir Louis Mbanefo, Sr. Christopher Mojekwu, Comissário de Assuntos Internos, Chefe E. Bassey, Comissário de Terras, Sr. Ignatius Kogbara, Representante Especial de Biafra em Londres, e mais dois assessores. Deixou Biafra a 14 de abril e chegou à capital liberiana no dia 16, sendo recebida com toda a cortesia.
As conversações eram mais uma tentativa do Comitê dos Seis da Organização da Unidade Africana para promover um acordo que pudesse levar à paz. Os seis mediadores da OUA eram o Presidente Tubman, o anfitrião, o Imperador Hailé Selassié, da Etiópia, o Presidente Hamani Diori, da República do Níger, o Presidente Ahmadu Ahidjo, de Camarões, o Presidente Joseph Mobutu, do Congo Kinshasa, e o Sr. Charles Harley, vice-presidente do Conselho Nacional de Libertação, de Gana. A delegação nigeriana era chefiada pelo Comissário de Obras Públicas, Sr. Femi Okunu, e pelo Sr. Allison Ayida.
O discurso de abertura foi feito pelo Presidente Tubman e o Imperador Selassié falou em seguida. Logo depois, a conferência iniciou os debates. Era a noite de 18 de abril.
O sistema adotado na conferência foi excepcional. Primeiro, os Seis convocaram a delegação nigeriana para uma reunião a portas fechadas, que durou 45 minutos. Depois, a delegação biafrense foi convocada. Sir Louis leu uma declaração escrita e anunciou que desejava apresentar algumas propostas a respeito do cessar-fogo. E foi o que fez. Um dos Seis indagou se Biafra estava disposta a aceitar uma força de fiscalização entre os dois lados em conflito. Sir Louis respondeu que sim, contanto que houvesse uma trégua ou um cessar-fogo para fiscalizar.
Mais tarde, naquela mesma noite, Sir Louis foi convidado a se reunir com dois dos Seis, também a portas fechadas. Os dois eram o Presidente Tubman e o Presidente Diori. Pediram a Sir Louis que expusesse a posição biafrense e foram devidamente atendidos. Ele explicou que a preocupação primordial de Biafra era com a sua segurança e com as vidas e propriedades de seus cidadãos. Os biafrenses estavam dispostos a discutir a possibilidade de "Uma Só Nigéria", mas queriam primeiro saber precisamente o que isso significava.
Os dois presidentes demonstraram aparentemente que compreendiam a posição de Biafra. O Presidente Diori propôs uma fórmula com base para as conversações de paz, incluindo a segurança interna e externa de Biafra, com uma presença internacional no local, para garanti-la. A proposta foi apresentada verbalmente em francês e Sir Louis pediu que fosse formulada por escrito, em inglês. O Presidente Diori concordou e pediu ao Secretário-Geral da OUA, Sr. Diallo Telli, que estava sentado ao seu lado, para se retirar e pôr no papel o que acabara de ser dito.
O Sr. Telli saiu. Voltou cinco minutos depois, falando rapidamente em francês com o presidente da República do Níger. Hamani Diori repetiu-lhe duas ou três vezes as palavras francesas securité interne et externe. Telli retirou-se novamente. Mas, aparentemente, não cumpriu a missão de que fora incumbido pelo Presidente Diori. Voltou dez minutos depois, para informar que os outros presidentes estavam querendo conversar com seus colegas. Os dois presidentes ficaram ausentes durante 40 minutos. Ao voltar, o Presidente Diori apresentou um documento em inglês que falava apenas em conversações de paz na base de "Uma Só Nigéria". Não havia qualquer referência à segurança interna e externa de Biafra.
Sir Louis declarou novamente que estava disposto a discutir a tese de "Uma Só Nigéria", mas não na base de sua aceitação prévia da expressão ainda não explicada. Aceitaria o documento, se fossem suprimidas as palavras que implicavam a aceitação prévia, biafrense de "Uma Só Nigéria", como condição para as conversações. E, com isso, a reunião noturna foi suspensa.
Na manhã seguinte, o Presidente Tubman perguntou a Sir Louis se já lera o New York Times. O chefe da delegação biafrense respondeu que ainda não. Tubman informou então que o jornal publicava um despacho de Lagos, segundo o qual o General Gowon teria declarado que, se os biafrenses aceitassem o princípio de "Uma Só Nigéria", tudo o mais seria negociável. O Presidente Tubman achava que isso poderia constituir a resposta. Sir Louis respondeu que conhecia o repórter responsável pela notícia, que a declaração de Gowon não era nenhuma novidade e que dificilmente poderia aceitar que grandes iniciativas diplomáticas pudessem ser desencadeadas com base numa notícia de jornal.
O dia transcorreu com mais conversas infrutíferas, as duas delegações ainda separadas e o Sr. Telli servindo prestativamente como mensageiro entre as salas de reuniões. Sir Louis chegou até o fim do dia com a nítida impressão de que o Sr. Telli era um intransigente partidário da causa federal. Naquela noite, as duas delegações foram finalmente convocadas para uma reunião plenária, com a presença dos Seis. O Imperador Hailé Selassié entregou a Sir Louis um documento em inglês, já apresentado anteriormente à delegação nigeriana, pedindo aos biafrenses que aceitassem os termos ali expostos.
Sir Louis ficou espantado ao constatar que o documento ainda era pior do que aquele apresentado pelo Sr. Telli na noite anterior. Deixava bem claro que quaisquer conversações posteriores deveriam ser na base da aceitação prévia biafrense da expressão "Uma Só Nigéria". Sir Louis rejeitou o documento e explicou novamente os motivos para a sua atitude. Declarou que fora convidado a comparecer a Monróvia para conversar sobre a paz, sem quaisquer condições prévias. Mas ele e seus colegas haviam verificado que continuavam a existir as mesmas condições prévias impostas pelos nigerianos, aparentemente com o apoio dos mediadores putativos.
Numa entrevista coletiva posterior, Sir Louis manifestou a opinião de que a Organização da Unidade Africana não tinha a vontade nem a capacidade de superar o impasse das conversações. Não houve qualquer tentativa mais séria posterior de promover negociações de paz objetivas entre os dois lados.
A 31 de julho, no entanto, o Papa fez uma visita de quatro dias a Kampala, Uganda, para canonizar postumamente diversos mártires ugandenses do cristianismo. Esperava-se que a presença do Sumo Pontífice no continente africano pudesse proporcionar uma oportunidade para renovados esforços de paz entre Nigéria e Biafra. O General Ojukwu propôs uma trégua pela duração da estadia do Sumo Pontífice em solo africano. Mas tal proposta foi rejeitada por Lagos. Embora o Papa Paulo VI tivesse se encontrado separadamente com representantes dos regimes de Biafra e da Nigéria, enquanto estava em Kampala, nada de positivo resultou dessas reuniões.
Ao final de 1969, os observadores estavam novamente acalentando débeis esperanças de que, com a inércia de ambos os exércitos no estágio atual da guerra e com os crescentes distúrbios civis contra a guerra na Nigéria Ocidental, o Ano Novo pudesse trazer alguma iniciativa pela paz, mais firme e bem-intencionada.
Dois fatores, no entanto, praticamente anularam essa possibilidade. Um deles era a ausência de um mediador que merecesse o respeito dos dois lados por sua força e fosse aceito por ambos por sua integridade. O outro fator era a determinação do regime federal de se ater à sua convicção original, de que a solução decisiva para o conflito Nigéria-Biafra poderia ser alcançada através da continuação das hostilidades. Nessa convicção, o grande incentivador e principal apoio do regime nigeriano tem sido sempre o governo britânico, cujos pronunciamentos oficiais, nos últimos meses de 1969, deixaram bem claro para todos os observadores que Londres continuará a manter e ajudar Lagos a conquistar uma vitória militar total sobre Biafra, a ser alcançada inclusive matando-se de fome a população civil biafrense, na ausência de uma vitória pela força das armas.
13 A Questão do Genocídio
Genocídio é uma palavra terrível. É o nome que se dá ao maior crime de que o homem é capaz. O que constitui genocídio no mundo moderno? Qual o grau de violência contra um povo que justifica o uso dessa palavra? Qual o grau de intenção necessário para justificar a descrição? Depois de anos de estudos, os melhores cérebros jurídicos do mundo conseguiram elaborar uma definição, que consta da Convenção sobre Genocídio das Nações Unidas, adotada a 9 de dezembro de 1948. O Artigo Dois especifica:
Na presente Convenção, genocídio significa qualquer dos atos seguintes, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, a saber:
a) Assassinar membros do grupo;
b) Causar graves danos físicos ou mentais a membros do grupo;
c) Deliberadamente impor ao grupo condições de vida visando a promover sua destruição física, no todo ou em parte;
d) Impor medidas visando a impedir os nascimentos dentro do grupo;
e) Transferir pela força crianças do grupo para outro grupo. .
O Artigo Um declara que o genocídio, quer cometido em tempo de paz ou de guerra, constitui um crime pelas leis internacionais. O Artigo Quatro deixa bem claro que os governantes constituídos, autoridades públicas ou indivíduos particulares podem ser responsabilizados pelo crime de genocídio.
Obviamente, em tempo de guerra os homens são mortos. Como inevitavelmente pertencem a um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, esse parágrafo talvez seja amplo demais para ser viável. É o uso da expressão "com a intenção" que diferencia as baixas casuais infligidas durante a guerra do crime de genocídio. A parte responsável pelas mortes deve demonstrar que teve ou tem a intenção de destruir e as vítimas devem constituir um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
Há dois outros pontos em relação ao genocídio que se tornaram juridicamente aceitos. O primeiro é o de que não precisa ser comprovada a intenção do Chefe de Estado da parte responsável. Um general pode tomar a iniciativa de ordenar a suas tropas que cometam genocídio; o Comandante Supremo é que é o responsável, se não pode controlar as suas forças armadas. Em segundo lugar, a dizimação dos quadros de liderança de um grupo racial, visando a deixá-lo sem a nata de sua força humana instruída, pode também constituir genocídio, mesmo que a maioria da população permaneça viva, como uma massa amorfa e desamparada de camponeses semi-analfabetos. Pode-se então presumir que a sociedade foi emasculada como um grupo.
Ás acusações biafrenses contra o governo e as forças armadas nigerianas estão baseadas em cinco pontos: os pogroms no norte, no oeste e em Lagos, em 1966; o comportamento do Exército Nigeriano em relação à população civil que encontrou no decurso da guerra; o comportamento da Força Aérea Nigeriana na seleção dos alvos; as matanças seletivas em diversas áreas ocupadas de chefes, líderes, administradores, professores e técnicos; e a imposição alegadamente deliberada da fome, que foi prevista antecipadamente pelos técnicos estrangeiros e que, durante o ano de 1968, matou aproximadamente 500 mil crianças, entre um e dez anos da idade.
Já falamos muito a respeito dos massacres de 1966. De um modo geral, todos reconhecem que as proporções e extensão das matanças eram de fato "genocidas" e existem muitas provas de que foram planejadas, orientadas e organizadas por homens que sabiam exatamente o que estavam fazendo. O governo central não instituiu nenhum inquérito, não fez punições nem concedeu reparações ou restituições, o que poderia ser presumido juridicamente como um reconhecimento de culpa.
A matança disseminada de cidadãos biafrenses e de Ibos que habitavam o meio-oeste é igualmente incontestável. Depois da retirada das tropas biafrenses do meio-oeste, em fins de setembro de 1967, após seis semanas de ocupação, começaram sucessivos massacres dos residentes Ibos. A explicação de que era impossível distinguir entre soldados e civis não resiste à menor análise. Afinal, como já explicamos anteriormente, as tropas biafrenses foram retiradas antes mesmo que a Segunda Divisão do Exército Federal chegasse a uma distância de tiro. Esses massacres foram testemunhados por numerosos residentes estrangeiros das diversas cidades do meio-oeste em que ocorreram e foram amplamente divulgados pela imprensa internacional. Assim, é suficiente citar alguns exemplos.
New York Review, 21 de dezembro de 1967: "Em algumas áreas fora do leste, que foram dominadas temporariamente por tropas biafrenses, assim como Benin e a região meio-oeste, os Ibos foram assassinados pelos habitantes locais, pelo menos com a aquiescência das tropas federais. Cerca de mil civis morreram somente em Benin dessa maneira."
Washington Morning Post, 27 de setembro de 1967: "Depois que capturaram Benin, as tropas nortistas mataram cerca de 500 civis Ibos, numa busca de casa em casa."
Observer, de Londres, 21 de janeiro de 1968: "O massacre maior ocorreu na cidade Ibo de Asaba, na qual 700 homens Ibos foram alinhados e fuzilados."
New York Times, 10 de janeiro de 1968: "O código (o Código de Comportamento de Gowon) desapareceu inteiramente, a não ser na propaganda federal. Ao remover as forças biafrenses do Estado do Meio-Oeste, as tropas federais mataram ou ficaram de braços cruzados enquanto as multidões matavam mais de cinco mil Ibos, em Benin, Warri, Sapele, Agbor e Asaba."
Asaba, a cidade referida na notícia do Observer, fica na margem ocidental do rio Níger e é integralmente Ibo. O massacre ali ocorreu assim que as tropas biafrenses atravessaram a ponte, voltando a Biafra. Mais tarde, Monsignor Georges Rocheau, enviado pelo Papa numa missão de levantamento dos fatos, visitou tanto Biafra como a Nigéria. Em Asaba, então em poder dos nigerianos, conversou com padres que lá estavam por ocasião dos massacres. A 5 de abril de 1968, Monsignor Rocheau foi entrevistado pelo jornal francês Le Mande e declarou: "Houve genocídio, por exemplo, por ocasião dos massacres de 1966... Duas áreas sofreram terrivelmente (dos combates). A primeira é a região entre as cidades de Benin e Asaba, onde só restam viúvas e órfãos, pois as tropas 'federais, por razões desconhecidas, massacraram todos os homens."
Segundo testemunhas dos massacres, o comandante nigeriano ordenou a execução de todos os Ibos do sexo masculino com mais de dez anos de idade.
As matanças do meio-oeste nada tiveram a ver com o prosseguimento do esforço de guerra nigeriano. Para os biafrenses, representaram o que era amplamente considerado como um ensaio do que estava para acontecer. O fato da esmagadora maioria da população Ibo ter ficado para trás, depois que as tropas biafrenses se retiraram do meio-oeste por ordens de Banjo, indicava claramente que estava convencida de que nada fizera que merecesse represálias. Se tivessem tirado proveito da presença das tropas armadas biafrenses para infligirem qualquer sofrimento aos outros habitantes, os Ibos do meio-oeste certamente teriam partido apressadamente, junto com os soldados.
Mais tarde, em Calabar, já no território de Biafra, ocorreram novos massacres. O Sr. Alfred Friendly noticiou no New York Times, a 18 de janeiro: "Recentemente, em Calabar, um porto na região separatista capturado por tropas federais, os soldados teriam fuzilado pelo menos mil e talvez dois mil Ibos, quase todos civis... Entre os mortos, havia muitos membros da tribo efik, um dos grupos minoritários que, segundo afirma Lagos, apoia o federalismo e não a secessão.'
Essas notícias mal descem além da superfície do que realmente aconteceu. Deliberadamente, limitei os relatos às notícias dos correspondentes estrangeiros. Mas os depoimentos dos refugiados já se estendem agora a milhares de páginas de transcrição. Desde o outono de 1967, a população Ibo do meio-oeste foi drasticamente reduzida. Calabar foi a última cidade em que os Ibos ficaram para trás, pensando que nenhum mal lhes aconteceria. Desde então, todos têm fugido, quase sem exceção; uns poucos voltaram meses mais tarde, timidamente. Mas todas as cidades de Biafra que estão agora em poder dos nigerianos permanecem como cidades-fantasmas, em comparação com o que foram no passado.
Seria possível continuar a citar interminavelmente os relatos de repórteres de jornais sobre o que viram ou ouviram. Não teria muito sentido. Em incursões por trás das linhas nigerianas, com os comandos biafrenses, vi aldeias desoladas, fazendas em ruínas, prédios saqueados, casas incendiadas e os corpos de camponeses executados jogados ao lado dos caminhos, homens que foram tolos demais ou excessivamente lentos para serem surpreendidos pelo Exército Federal. Os massacres de civis não se restringiram ao território Ibo. Os efiks, calabares, ibibios e ogonis também sofreram intensamente, conforme os relatos de seus emissários ao Coronel Ojukwu. Também não se pode dizer que o processo de matança tenha sido apenas momentâneo, a reação inicial de um exército sob a exultação inebriante da vitória ou dominado pela depressão vingativa da derrota. A prática tem sido sistemática, o processo é metódico demais para isso.
Os massacres continuaram mesmo depois que a Terceira Divisão nigeriana do Coronel "Atirem em tudo o que se mexer" Adekunle atravessou o Imo e começou a subir pela bacia desse rio” Em Awku, acompanhando batedores biafrenses, vi os cadáveres dos ocupantes do acampamento de refugiados que ali havia, cerca de 500 pessoas, que em vida já tinham fugido do terror federal mais ao sul. Haviam sido surpreendidos e exterminados sumariamente. Ao sul de Aba, nas aldeias de Ubute e Uzata, em companhia de uma pequena tropa de choque, deparei com mais dois exemplos de comunidade surpreendidas antes de terem tempo de escapar. Amarraram as mãos dos homens antes de fuzilá-los; a julgar pelas aparências, as mulheres haviam sido submetidas aos mais torpes suplícios, antes ou depois da morte. Os corpos crivados de balas das crianças estavam espalhados pela relva alta, como bonecos quebrados.
Em Unitsha, em março de 1968, eu estava acompanhando o 29.° Batalhão biafrense, que perseguia a vanguarda da Segunda Divisão nigeriana, através da estrada principal para a cidade. Cerca de 300 membros da Igreja Apostólica que tinham ficado para trás a fim de rezarem, enquanto os demais habitantes fugiam, haviam sido sumariamente executados. Uma muíher conseguiu sobreviver, fingindo que estava morta. Mais tarde, foi tratada por um médico inglês, Dr. Ian Hyde.
Numa guerra, há inevitavelmente vítimas inocentes, excessos ocasionais, de vez em quando uma brutalidade desumana, cometida por soldados de baixo nível. Mas raramente tem havido um padrão de bestialidade sobre um território tão amplo, cometido por tantas unidades militares.
Os depoimentos dos sobreviventes biafrenses continuam a se acumular e a ser desprezados fora de Biafra, como parte de algo diabólico, a máquina de propaganda de Ojukwu. Um grupo de observadores estrangeiros, reunidos por sugestão do governo britânico, acompanhou os soldados federais em diversos setores e depois apresentou um relatório em que declarava não ter encontrado provas de genocídio. A iniciativa foi uma operação de lavar as mãos e deu certo, pois as conclusões foram amplamente divulgadas e desde então tornou-se a base de vários pronunciamentos complacentes na Câmara dos Comuns da Inglaterra.
Mas a missão foi também irrelevante. Não encontrar as provas de um crime, quando se está sendo levado ao local desse crime pelos que são acusados de sua autoria, é um processo cuja eficácia não convenceria nem mesmo o cadete de polícia. Em termos de provas num tribunal, quando um homem é acusado de homicídio, de nada adianta a defesa apresentar testemunhas que declarem nada ter visto, especialmente quando tais testemunhas são orientadas pelo acusado. Os depoimentos daqueles que viram alguma coisa continuam a ser praticamente ignorados por um mundo que prefere não tomar conhecimento de tão terríveis atrocidades.
Mas os depoimentos dos Ibos, efiks e calabares que viram e sobreviveram não podem ser ignorados com tanta facilidade. As provas que levaram à forca os criminosos de guerra nazistas não foram apresentadas por alguns observadores que acompanharam a Wehrmacht. Noventa por cento dos depoimentos foram prestados por sobreviventes entre as vítimas, judeus, russos, poloneses e assim por diante. Os depoimentos desses sobreviventes não foram ignorados em Nuremberg sob a alegação de que não passavam de propaganda sionista. Outros nove por cento das provas vieram dos próprios documentos nazistas e apenas um por cento de confissões alemãs.
Em regiões como o meio-oeste e Biafra, intensamente povoadas por europeus empenhados em vários projetos, seria improvável que muita coisa ocorresse sem que eles tomassem conhecimento. Pode-se perguntar por que, excetuando-se alguns médicos e sacerdotes, esses europeus praticamente não têm denunciado as atrocidades. A resposta é a mesma que se pode encontrar em todos os casos nos quais as testemunhas relutam em falar, uma experiência comum às polícias de todos os países do mundo. Há uma forte tendência para as pessoas não se envolverem, especialmente quando esse envolvimento pode provocar sanções. De um modo geral, a população europeia nas duas áreas pode ser enquadrada em três categorias:
Os homens de negócios podem freqüentemente contar, enquanto tomam um drinque, tudo o que viram, mas depois apressadamente acrescentam:
— Mas não é para publicar, meu caro. Minha firma ficaria em dificuldades se isso fosse divulgado.
A maioria dos homens de negócios nas duas áreas é contratada por firmas que têm interesses em outras regiões da Nigéria e temem represálias, caso seus funcionários comecem a contar histórias injuriosas a respeito do governo ou do exército federal.
Os servidores civis geralmente estão em contato permanente e intenso com tudo o que ocorre em suas áreas de atuação, pouco se lhes escapa. Mas tendem a se retrair, porque são homens de poucos recursos e contam com a pensão na aposentadoria, receando a demissão no meio da carreira pública e o cancelamento de um contrato de trabalho, por causa de alguns parágrafos de denúncia num jornal.
O terceiro grupo é o dos sacerdotes. Esses homens provavelmente conhecem suas paroquias mais que qualquer outras pessoas. Mesmo depois de fugirem, os paroquianos geralmente ainda continuam a procurá-los, secretamente, para informar o que está acontecendo na área recentemente conquistada. Em Biafra, os sacerdotes estão sempre dispostos a contar tudo o que sabem, particularmente. Mas, raramente, concordam que suas declarações sejam publicadas. O instinto de um sacerdote é o de proteger seu rebanho. Assim não pode deixar de pensar: o que aconteceria ao rebanho com sua expulsão? Qual é o seu verdadeiro dever, para com os paroquianos que sobreviveram ou para com os mortos? Se denunciar as atrocidades, pode pôr em risco a própria Ordem que representa, provocando a sua expulsão do país. Possivelmente, o sacerdote acaba chegando à conclusão de que servirá melhor aos seus paroquianos se ficar, muito embora isso signifique que tenha de se calar.
Mesmo os que estão em Biafra têm em seu poder cartas de outros sacerdotes que levam uma existência missionária precária sob o controle do Exército Nigeriano, pedindo-lhes que não falem demais. Os sacerdotes, especialmente os católicos, formam uma rede nacional de informações que está a par de tudo o que acontece. A atitude do Vaticano tem surpreendido e preocupado o governo nigeriano. Aparentemente, o regime de Lagos ainda não compreendeu que o Vaticano possui agora a história mais bem documentada das atrocidades cometidas nas áreas capturadas de Biafra.
Talvez seja o momento de abordar as acusações no sentido inverso. À medida que várias áreas de povos minoritários foram caindo em poder do Exército Nigeriano, diversos indivíduos apresentaram-se para declarar que os Ibos, haviam realizado pogroms atrozes contra as minorias. Esses relatos provocaram alguma confusão no mundo ocidental e deliciaram os partidários do governo federal. Houve histórias de várias centenas de representantes de tribos minoritárias sendo obrigados a entrar em fila e cavar as próprias covas, antes de serem fuzilados. Isso lembra um pouco o sistema adotado pelos Einsatzgruppen nazistas na Europa Oriental. Padres (europeus) da Igreja Católica Romana de algumas das paróquias em que esses supostos massacres teriam ocorrido estão atualmente na área não-ocupada de Biafra. Um deles me declarou:
— Eu estava lá na ocasião alegada. Teria sido inteiramente impossível que tal fato tivesse ocorrido sem que nenhum dos meus paroquianos tomasse conhecimento. Não tenho a menor dúvida de que teriam me informado imediatamente, se soubessem. Estou certo que nada disso aconteceu.
Um velho sacerdote da mesma ordem acrescentou:
— Neste país, nada pode acontecer sem que os padres das paróquias logo sejam informados. Todos os dias vamos ouvir confissões nas áreas mais remotas e acabamos ouvindo também todos os boatos locais. Não apenas os padres das paróquias teriam tomado conhecimento de tudo, mas também toda a Ordem estaria a par dos detalhes. Se algo assim tivesse acontecido, pode estar certo de que eu procuraria imediatamente o Coronel Ojukwu para protestar, nos termos mais veementes.
É difícil imaginar por que dois irlandeses de meia-idade iriam dar cobertura a fatos assim, se tivessem ocorrido, a menos que temessem represálias. Mas aqueles que conhecem o Coronel Ojukwu e Biafra sabem perfeitamente que o líder biafrense não é um tirano capaz de exercer represálias contra sacerdotes e que qualquer tentativa de castigar a Igreja Católica Romana no país representaria o fim do déspota.
Sobre o assassinato seletivo dos líderes de comunidades, as provas até agora são exclusivamente de testemunhas biafrenses. As notícias sobre execuções de professores, chefes e anciãos provêm de diversas áreas, predominantemente as minoritárias, em parte porque constituem a parcela maior dos territórios capturados, em parte porque os Ibos não mais ficam para trás esperando misericórdia. Informações sobre essas emasculações de comunidades civis vieram de Ikot Ekpene, Uyo e Annang (áreas ibibio); Degema, Brass e Bonny (áreas dos povos dos Rios; os reis de Bonny, Opobo e Kalabari estão atualmente refugiados com o Coronel Ojukwu); Calabar (áreas efik e calabar); Ugep, Itigide e Ndiba (áreas ekoi, igbo e ogoja meridional); e Ogoni e Ikwerra, nas áreas habitadas pelos povos dos mesmos nomes. Em muitos casos, as execuções teriam sido públicas, os aldeões sendo obrigados a assistir o assassinato de seus líderes. Significativamente, a maioria dos refugiados das áreas minoritárias passou pelas Unhas de frente para se refugiar na parte não-ocupada de Biafra depois de vários dias ou semanas de ocupação.
A guerra aérea é inevitavelmente controvertida. Os civis sempre acabam se tornando vítimas de bombardeiros e caças utilizados contra o objetivos em terra. De Guernica em diante, o mundo passou a conviver com os ataques punitivos de bombardeiros contra objetivos civis. Na 2ª Guerra Mundial, bombardeiros dos dois lados destruíram inteiramente cidades inimigas, martelando-as de dia e de noite; é verdade que se pode alegar que, de um modo geral, essas cidades eram também centros industriais. Seja como for, os bombardeios não podem ser acurados a ponto de poupar a rua ao lado, mesmo quando se utilizam os mecanismos mais modernos. Mas o comportamento da Força Aérea Nigeriana, equipada pela Rússia e freqüentemente operada por egípcios, conseguiu jogar por terra as poucas regras que ainda existiam. Raramente os aviões têm sido usados em operações conjuntas com as forças nigerianas de terra ou contra tropas biafrenses. Nos poucos casos em que isso aconteceu, os bombardeiros nigerianos preferiram voar a grandes altitudes, longe do alcance das armas biafrenses, e lançar suas bombas ao acaso, o que equivale a dizer que a maioria caiu em pleno mato. Os objetivos de natureza estratégica que estão defendidos em Biafra, como pontes, ferrovias, quartéis, raramente têm sido atingidos ou sequer atacados com intensidade e determinação, pois geralmente contam com um Bofors ou uma metralhadora pesada nas proximidades.
A maior parte da guerra aérea foi desfechada contra a população civil. Vezes demais, bombardeiros e caças nigerianos fizeram vôos rasantes para despejar suas bombas sobre grupos compactos de civis, a tal ponto que não se pode considerar como viável qualquer desculpa de acidente ou equívoco. Os objetivos mais procurados parecem ser hospitais (ou qualquer coisa com uma Cruz Vermelha, como o Aeroporto de Socorro de Obilagu), pequenas cidades apinhadas, igrejas aos domingos e mercados ao meio-dia. Em toda a África, os mercados são geralmente um território reservado às mulheres, que lá vão com os filhos pequenos amarrados às costas. No mercado de Awgu, a 17 de fevereiro de 1968, um bombardeiro nigeriano conseguiu matar 103 pessoas em menos de um minuto; no mercado de Aguleri, em outubro, 510 pessoas morreram num ataque aéreo. O número de ataques aéreos é agora incontável. O número de mortos já ultrapassou cinco mil e há mais diversos milhares de pessoas que ficaram mutiladas pelo resto de suas vidas.
As reiteradas alegações do General Gowon, de que somente objetivos militares estão sendo atacados, mostra que ele não tem nenhum controle sobre a sua força aérea, assim como não o tem sobre o exército. Apesar de pausas periódicas na intensidade, os ataques aéreos têm ocorrido ao longo de toda a guerra. Enquanto este livro estava sendo escrito, em Umuahia, MIGs 17 e Ilyushins 28 realizaram seis ataques, na semana de Natal, rompendo uma trégua que fora oferecida pelo próprio General Gowon, matando mais de 100 pessoas e ferindo outras 300, com bombas, foguetes e metralhadoras.
Mas os cérebros jurídicos ainda estão discutindo se o uso da aviação e de bombas potentes contra civis impotentes, para causar baixas indiscriminadas, atulhar os hospitais e inspirar o terror pode ser considerado como parte do crime de genocídio.
— Alguns podem dizer que isso (a tome em massa) é um aspecto legítimo da guerra — declarou o Comissário para Informações da Nigéria, Chefe Anthony Enahoro, geralmente considerado como o político mais eminente de Lagos, numa entrevista coletiva em Nova York, em julho de 1968.
Nas conversações de paz em Niamey, capital da República do Níger, duas semanas depois, o chefe da delegação nigeriana recusou-se a considerar a possibilidade de um corredor por terra para levar alimentos a Biafra, declarando:
— A fome é uma arma de guerra legítima e temos intenção de usá-la contra os rebeldes.
Essas duas declarações, feitas por homens altamente situados, podem ser consideradas como uma expressão da política do governo nigeriano A segunda representa uma declaração de filosofia e intenção. O que aconteceu depois não pode ser explicado simplesmente como uma lamentável mas inevitável conseqüência da guerra. E o que aconteceu depois foi que, apesar da presença próxima a Biafra de suprimentos de alimentos adequados e dos meios de transporte necessários para levá-los às pessoas necessitadas, mais de 500 mil crianças, mulheres grávidas e mulheres amamentando morreram de desnutrição, inanição e doenças decorrentes. Isso já foi descrito em outro capítulo.
Jamais houve qualquer dúvida sobre a exeqüibilidade técnica de transportar os alimentos disponíveis para além dos postos avançados das tropas federais. As organizações internacionais de socorro tinham à sua disposição navios, aviões, helicópteros, caminhões e o pessoal técnico necessário. Não demorou muito para que o pessoal técnico estivesse se queixando amargamente da impossibilidade de trabalhar, diante da atitude do Exército Nigeriano. Um navio era requisitado, um avião era obrigado a pousar longe de seu destino, os caminhões eram detidos e descarregados, para dar lugar a armas, homens e munições. Os sacos, com os alimentos de socorro iam terminar nas trincheiras federais ou eram vendidos no mercado negro. Em protesto, muitos voluntários das organizações de socorro acabaram renunciando.
Ironicamente, na última semana de outubro de 1968, quando a ponte aérea noturna para as áreas em poder dos biafrenses, ainda tecnicamente ilegal, conseguira finalmente controlar o problema da desnutrição e salvara, pelo menos por algum tempo, o restante da população infantil de Biafra, o Sr. Harold Wilson reconheceu que a dificuldade de se levar alimentos de socorro, até mesmo para as áreas em poder dos nigerianos, era decorrente do obstrucionismo federal.
Em relação às demais frases da Convenção sobre Genocídio das Nações Unidas, há que se analisar a referência a "grupo nacional, étnico, racial ou religioso". Não resta a menor dúvida de que os biafrenses, quer considerados como uma nação ou um grupo racial separado, se enquadram nessa categoria. Em relação à "intenção", mencionada no Artigo Dois, a posição é mais complexa. Não é fácil prová-la, já que envolve o que acontece no interior do cérebro humano, a menos que a própria pessoa ponha tudo no papel.
Não obstante, a intenção pode ser comprovada pela ausência de qualquer outra explicação plausível. Um juiz pode dizer a um prisioneiro que está prestes a ser condenado: "Não posso acreditar que estivesse inconsciente... há amplos indícios para sugerir que estava a par de quais seriam as conseqüências de seus atos... apesar das advertências, nada fez para impedir ou deter..." E assim por diante. Frases assim são freqüentemente pronunciadas nos tribunais e, juridicamente, é dessa forma que se pode provar a intenção. Não é defesa para um incendiário criminoso, por exemplo, depois de atear fogo a um prédio deliberadamente e matar os que estavam lá dentro, alegar que não pretendia causar nenhum mal aos ocupantes. É mais ou menos essa a situação do General Gowon, que alega nada ter contra os Ibos, nem contra os seus líderes, nem contra o povo em geral, mas aparentemente não foi capaz de tomar medidas positivas para impedir um comportamento de suas forças armadas que tanto abalou o mundo.
Ocasionalmente, no entanto, as provas da intenção aparecem, não de agitadores individuais, mas de eminentes políticos, autoridades ou dos meios de propaganda controlados pelo governo federal.
Dr. Conor Cruise O‘Brien, 21 de dezembro de 1967: "Infelizmente, esse esclarecimento (de Gowon) em alto nível não penetra muito fundo; no mês passado, uma autoridade policial de Lagos declarou que os Ibos devem ser consideravelmente reduzidos em números." [New York Review.]
George T. Orick, em The World Game of Patronizalion: "Os civis biafrenses sabem que mais de dez mil não-combatentes foram recentemente massacrados por tropas federais nas áreas de combate; por isso sentem alguma confusão quando comparam as transmissões de rádio federais, de Lagos, prometendo segurança, com as transmissões mais realistas da Rádio Kaduna, da capital nortista, comentando a solução final do problema Ibo e enunciando os líderes Ibos que estão marcados para morrer. Se os truculentos biafrenses não dão o menor sinal de que pretendem desistir da guerra, é porque sabem que estão, literalmente, lutando por suas vidas."
A música-tema da Rádio Kaduna, controlada pelo governo, é um canto em Hausa que diz: "Vamos esmagá-los. Vamos saquear suas propriedades, estuprar suas mulheres, matar seus homens e deixá-los chorando inutilmente. Vamos concluir o pogrom de 1966."
Edmund C. Schwarzenbach escreveu, na Swiss Review of África, em fevereiro de 1968:
Uma conversa com um dos mais destacados ministros proporcionou uma ampla visão dos objetivos políticos do governo federal. ... O ministro discorreu sobre a reintegração dos Ibos no futuro estado. ... O objetivo da guerra e a solução de todo o problema, disse ele, era "discriminar contra os Ibos no futuro, no próprio interesse deles". Tal discriminação incluiria, acima de tudo, o desligamento da região oriental de todos os territórios ricos em petróleo que não eram habitados por Ibos no início do período colonial (1900), de acordo com o plano já apresentado de divisão do país em doze estados. Além disso, a liberdade de movimentos dos Ibos seria limitada, a fim de impedir que novamente se infiltrassem em outras partes do país. ... O ministro declarou ainda que não havia a menor possibilidade de se deixar aos Ibos qualquer acesso ao mar.
A referência ao plano de doze estados indica que essa entrevista deve ter ocorrido antes da região oriental separar-se da Nigéria. Depois do início da guerra, um veterano correspondente canadense declarou ao autor:
— Conversei com Enahoro na semana passada e perguntei-lhe se os Ibos teriam permissão para se deslocar através da Nigéria, depois da guerra. E ele respondeu: "A turma do Exército diz que não pretende deixar mais que 50 mil Ibos vivendo fora do Estado Central do Leste."
Pode-se fazer uma interessante comparação com o tratamento dispensado pelos alemães aos judeus, durante o período de Hitler. O plano nazista para os judeus da Alemanha não era de um único estágio, mas sim a ser desenvolvido em três etapas: primeiro, a legislação discriminatória, a negativa de oportunidades de emprego e direitos civis, acompanhada pelas perseguições em larga escala, as pilhagens e atrocidades; segundo, a extinção dos guetos e de todas as comunidades judias, com a transferência para áreas orientais do Reich; terceiro, a Solução Final, através dos trabalhos forçados para os que eram capazes e da extinção pura e simples dos que não eram.
Na experiência biafrense, as duas primeiras etapas desse tipo de plano já foram concluídas, com a transferência dos Ibos para as terras orientais, a terra dos Ibos e seus associados. A diferença, do ponto de vista dos Ibos, é que eles importaram armas e começaram a se defender, deixando seus algozes aturdidos e ultrajados. Mas até mesmo os estrangeiros mais imparciais e desinteressados que estão em Biafra já perderam há muito tempo quaisquer dúvidas que ainda pudessem ter quanto à sobrevivência dos Ibos como um grupo étnico distinto, sob ocupação militar nigeriana.
Seria muita presunção para um escritor atribuir-se as funções de um inquérito ou de um tribunal. Todas as provas citadas anteriormente, todas as provas disponíveis, não passam na verdade da ponta do iceberg. Para que se possa ter um panorama completo da situação, seria necessário uma equipe de investigadores profissionais, trabalhando na estrutura de um tribunal independente: em seguida, as pilhas e mais pilhas de documentações teriam que ser analisadas por juristas, antes que se pudesse fazer um julgamento realmente válido.
Mas, mesmo neste estágio, algumas coisas podem ser afirmadas com absoluta certeza. Em primeiro lugar, o que quer que tenha sido feito, não pode haver a menor dúvida de que o Governo Militar da Nigéria e seu Chefe, o Comandante Supremo, não podem escapar à responsabilidade perante a lei.
Em segundo lugar, já existem casos prima jacte contra determinados comandantes do Exército Nigeriano, por cuja instigação ou sob cuja responsabilidade ocorreram numerosos casos de assassinato em massa, acima e além das necessidades da guerra.
Em terceiro lugar, a acusação de genocídio é grande demais para que a comunidade mundial, conferida pelas nações signatárias da Convenção à ONU, tenha que esperar por um inquérito post factum ou até por nenhum. Se a Convenção deve ser encarada como algo mais que um pedaço de papel inútil, uma razoável suspeita de genocídio deve ser suficiente para.provocar uma investigação. Essa suspeita razoável já foi estabelecida há alguns meses. A Organização das Nações Unidas está faltando à sua própria palavra empenhada, através do Artigo Um da Convenção sobre Genocídio, enquanto continuar a se recusar a efetuar qualquer investigação.
Finalmente, é preciso ressaltar que, o que quer que tenham feito os nigerianos, o governo britânico do Sr. Harold Wilson tornou-se voluntariamente em cúmplice total. A partir de dezembro de 1968, não pode haver mais qualquer dúvida sobre neutralidade, neutralidade ativa, ignorância ou pequena ajuda a um governo amigo. O envolvimento do governo britânico é absoluto e total.
A revista Spectator, que normalmente não é dada a hipérboles, disse em editorial, a 31 de maio de 1968: "Pela primeira vez em nossa história, a Inglaterra tornou-se uma cúmplice ativa no massacre deliberado de centenas de milhares de homens, mulheres e crianças, cujo único crime é o de pertencer a uma nação proscrita. Em suma, a Inglaterra é cúmplice de genocídio. E o povo britânico, juntamente com uma Oposição apática, tem desviado os olhos e deixado que o governo prossiga em sua política vergonhosa, sem o menor obstáculo.”
14. O Papel da Imprensa
A imprensa do mundo inteiro, de um modo geral, tem dado ampla cobertura à guerra Nigéria-Biafra. Mas levou algum tempo para que a história, em termos jornalísticos, finalmente merecesse destaque.
No início da guerra, houve uma atividade intensa, com muitos jornalistas indo passar uma semana em Biafra. Mas, na ocasião, a guerra era considerada como uma história que não resistiria a mais de uma semana nas manchetes. Além do mais, as guerras na África não eram um assunto fácil de "vender" aos editores internacionais, os quais sabiam que os leitores já estavam saciados de violência naquele continente. A esmagadora maioria dos meios de comunicação de massa do mundo é dominada pelas raças brancas. São elas que produzem a maior parte dos jornais, revistas, programas de rádio e televisão, que são essencialmente produzidos para o consumo das raças brancas.
A imprensa na Ásia e na América do Sul ainda é provinciana, recorrendo aos serviços das agências noticiosas internacionais para as relativamente poucas notícias estrangeiras que publicam. Na África, praticamente não existem jornais como são conhecidos na Europa e América do Norte. A divulgação das notícias depende em grande parte do rádio, com as emissoras de grande potência da Inglaterra, América, Egito, Rússia e China dominando o éter. Cada uma dessas emissoras apresenta a versão dos acontecimentos do respectivo governo.
Na primavera de 1968, a guerra ainda era, para a maioria das pessoas na Europa Ocidental e na América do Norte, um assunto praticamente esquecido. Houvera alguns artigos, umas poucas avaliações em profundidade da situação, a publicação ocasional de uma série de reportagens num único jornal durante uma semana, indício seguro de que um correspondente fora enviado ao cenário da guerra e o jornal não queria perder as despesas com a viagem. Mas o noticiário não chegava a atingir a consciência nacional e não despertava qualquer reação fora da Nigéria.
Em meados de abril, entretanto quatro repórteres dos principais jornais da Inglaterra foram ao local da guerra. Eram William Norris, de The Times, Walter Partington, do Daily Express, Richard Hall, do Guardian, e Norman Kirkham, do Daily Telegraph. Presenciaram o bombardeio de Aba por um Ilyushin 28 da Força Aérea Nigeriana, um ataque em que morreram mais de 80 pessoas e quase 100 ficaram feridas. A violência súbita e brutal, na hora quente e pacífica do almoço, a visão de uma rua comum transformada em matadouro numa questão de segundos, a contemplação de corpos despedaçados, tudo isso impressionou profundamente os repórteres ingleses. Todos os quatro escreveram relatos bastante expressivos do ataque aéreo, sendo que dois não deixaram a menor dúvida, pelo tom de seus despachos, do que pensavam a respeito. Na Inglaterra, esses relatos foram responsáveis pela primeira onda de consciência pública a respeito da guerra.
Em meados de maio, uma reportagem minha apareceu no Sunday Times e despertou algum interesse. Era o resultado de dez semanas acompanhando o Exército Biafrense, freqüentemente com unidades de comandos, que operavam além das linhas nigerianas, em ataques de surpresa. A experiência proporcionou-me a oportunidade de verificar pessoalmente o tipo de tratamento que o Exército Nigeriano estava dispensando à população civil Ibo. A descrição do que vi foi posteriormente contestada com toda veemência pelo General Gowon em Lagos. Mas, desde então, tornou-se apenas um dos muitos relatos pessoais de estrangeiros sobre o que estava realmente acontecendo.
Mas a grande mudança ocorreu em junho. Nesse mês, o correspondente do Sun para a Commonwealth, Sr. Michael Leapman, estava fazendo uma visita a Biafra. Os primeiros indícios de inanição e desnutrição entre a população infantil estavam começando a se tornar visíveis. O Sr. Leapman percebeu a notícia e fez o levantamento da história. O Sun publicou diversas reportagens a respeito, em dias sucessivos. Biafra estava finalmente nas manchetes. E todo o resto se seguiu. Subitamente, os biafrenses que estavam em Londres procurando apoio para Biafra começaram a ser ouvidos. Perguntas mais insistentes foram formuladas no Parlamento, não apenas a respeito da possibilidade de enviar ajuda em alimentos e medicamentos para Biafra, mas também sobre as remessas de armas britânicas para a Nigéria.
O vento passou a soprar mais forte. Jornalistas começaram a seguir para Biafra, em parte para noticiar a tragédia das crianças, em parte para procurar outros "ângulos". E o que escreveram conseguiu abalar a consciência do mundo. A Europa Ocidental passou a se interessar por Biafra cerca de dois meses depois da Inglaterra. Os principais órgãos formadores da opinião pública protestaram veementemente, da Cortina de Ferro ao extremo ocidental da Irlanda.
No outono, milhares de britânicos e europeus estavam trabalhando por Biafra, um país que nunca tinham visitado e cujos habitantes provavelmente nunca haviam encontrado. Coletavam dinheiro, faziam manifestações, desfiles, greves de fome, pagavam anúncios de página inteira nos jornais, pronunciavam conferências por toda parte, promoviam comícios, solicitavam auxílios, pressionavam os parlamentares, exigiam uma ação imediata.
O governo britânico viu-se obrigado a responder a perguntas cada vez mais hostis, por duas vezes teve que debater o assunto na Câmara dos Comuns, apresentou negativas, promessas, explicações, ofereceu donativos. Apesar das garantias iniciais de que, no caso de outra grande ofensiva ou mais "mortes desnecessárias" em Biafra, a Inglaterra adotaria medidas mais efetivas do que apenas "reconsiderar sua política" e mais tarde de que o interesse dos biafrenses era realmente o de se tornarem vitimas de uma "matança rápida", o Parlamento não se deixou convencer pela atitude do governo britânico.
A Tchecoslováquia, Bélgica e Holanda anunciaram que não mais enviariam armas para a Nigéria e cancelariam as encomendas já existentes. A Itália simplesmente suspendeu os fornecimentos sem qualquer comentário. Os Estados Unidos declararam que jamais tinham enviado armas para a Nigéria (o que era mentira), o mesmo anunciando a França e a Alemanha Ocidental (o que era verdade).
Em Basle, Suíça, os protestos contra o governo britânico obrigaram o cancelamento da Semana Britânica. Em Downing Street, sede do governo da Inglaterra, janelas toram quebradas por manifestantes. A cobertura da imprensa continuava intensa. Reconstituindo os acontecimentos, é difícil imaginar que, apesar de todos os esforços dos homens de relações públicas biafrenses, essa brusca transformação do caso de Biafra de uma guerra na selva esquecida para uma questão internacional tenha sido basicamente causada por um máquina de escrever e uma tira de celulóide. Serve para demonstrar o enorme poder da imprensa para influenciar a opinião pública, quando seus órgãos são acionados simultaneamente. A cobertura foi realmente ampla. Muitas reportagens eram por demais exageradas, outras inacuradas em questões de fatos, algumas melodramáticas, outras injuriosas. Á maioria dos repórteres se limitava a apresentar os fatos e deixava que os editorialistas cuidassem dos superlativos, como sempre deve acontecer.
As empresas de rádio que cobriam a África, a maioria de propriedade dos governos e empenhadas em apresentar o ponto de vista governamental, tendiam a dar maior cobertura à Nigéria. Estranhamente, os "especialistas" em África Ocidental erraram em todas as suas predições. As melhores coberturas foram as dos repórteres comuns, que se limitavam a descrever o que viam. A maioria dos veteranos do "circuito" da África Ocidental anunciou logo no início uma rápida vitória de Lagos, um crasso engano. Reler os despachos desses correspondentes pode ser extremamente divertido. Nos primeiros dias, os poucos repórteres, bem poucos mesmos, que sugeriam a possibilidade da guerra Nigéria-Biafra ser longa e sangrenta, sem levar a uma conclusão definitiva e repleta das mais perigosas perspectivas de intervenção internacional e subseqüente escalada eram desdenhosamente considerados como tolos ingênuos ou apaixonados pelos Ibos.
Nos meses subseqüentes, os veteranos da África Ocidental tiveram muitas vezes que recorrer a uma verdadeira ginástica para explicar o fracasso da Nigéria em não conseguir uma vitória rápida. Jornalistas normalmente sóbrios começaram a deixar transparecer em seus despachos alguma hostilidade contra o povo arrogante que continuava a resistir ao destino que lhe fora decretado.
É que os correspondentes veteranos da imprensa orientada pelo establishment tendem a se tornar intimamente aliados a quem está no poder, de onde colhem a maioria de suas informações. O establishment de Londres e Lagos apoiavam maciçamente a Nigéria. Os correspondentes, circulando entre o Departamento da Commonwealth e as festas certas de um lado e entre o escritório do Chefe Anthony Enahoro e o bar do Hotel Ikoyi de outro, tendiam a acreditar no que lhes era dito, ao invés de se esforçarem para tentar verificar o que estava realmente acontecendo. Como são criaturas do status quo e não desejam largar a existência cômoda nas margens da galáxia diplomática, esses cavalheiros apresentavam notícias tão unilaterais que mais parecia estarem procurando uma autojustificativa, ao invés de uma avaliação realista da situação. Duas notáveis exceções são o Sr. Walter Schwarz, correspondente do "Guardian para a África Ocidental, e o Sr. Michael Leapman, correspondente do Sun para a Commonwealth. Os dois demonstraram que era possível escrever notícias equilibradas e objetivas. Embora nenhum dos dois tenha se colocado integralmente em qualquer dos lados, escreveram coisas que certamente não agradaram simultaneamente às duas partes em conflito. Ironicamente, tendo em vista o facciosismo dos outros, esses dois correspondentes ainda são persona grata em ambos os países.
Um órgão que se destacou por sua estranha atuação foi o Serviço Exterior da BBC, especialmente o Serviço da África. Ao longo de toda a guerra, os ouvintes e alguns colaboradores do Serviço da África ficaram atônitos pela quantidade e variedade de distorções da situação, apresentadas nos programas da BBC. Comentários em estilo editorial eram profusamente entremeados com notícias de fatos transmitidos de Lagos. Não demorou muito para que todos os que viviam em Biafra e sintonizavam a BBC todas as noites, tanto brancos como pretos, ficassem convencidos de que havia fortes distorções a favor da Nigéria na cobertura da guerra.
A BBC transmitia notícias de acontecimentos em Biafra que não haviam absolutamente ocorrido. Informava que cidades biafrenses tinham caído em poder das tropas federais, muito antes dos soldados nigerianos sequer se aproximarem delas. Havia sempre muita especulação exagerada, baseada aparentemente em simples boatos ou nas esperanças excessivamente otimistas das autoridades nigerianas. Por exemplo: quando o Coronel Ojukwu, um católico devoto, fez um retiro na semana da Páscoa de 1968, a BBC especulou que ele teria fugido de Biafra ou fora vítima de um golpe. Em outra ocasião, foi noticiada uma manifestação popular em Umuahia a favor de Chou En-lai. Tais notícias não tinham o menor fundamento.
O efeito global era o de insinuar ao ouvinte desinformado que os nigerianos estavam absolutamente certos, enquanto Biafra estava totalmente errada. Mais do que isso, o ouvinte era levado a pensar que Biafra estava permanentemente à beira de um colapso iminente. Durante todo esse tempo, a cobertura da guerra Nigéria-Biafra ficou muito aquém do padrão de jornalismo que se espera da BBC e que a própria organização afirma possuir.
- O noticiário da BBC causou revolta entre os biafrenses e uma profunda decepção entre os ingleses que viviam em Biafra. Mas "podia-se compreender: afinal, o orçamento anual do Serviço Exterior da BBC não é coberto pelo contribuinte britânico diretamente, mas sim por uma verba especial do Tesouro, através do Foreign Office e do Departamento da Commonwealth.
Uma notável exceção eram os despachos enviados da Nigéria pelo Sr. John Osman, o correspondente da BBC para a Commonwealth. Um repórter experiente e consciencioso, o Sr. Osman sempre apresentou notícias objetivas e equilibradas. Mais tarde, acabou sendo expulso de Port Harcourt pelo Coronel Adekunle, numa demonstração do temperamento violento do comandante da Terceira Divisão nigeriana.
De todos os jornais britânicos, provavelmente de todos os jornais do mundo, o que apresentou uma cobertura mais coerente, mais completa, mais objetiva e mais equilibrada dos dois lados em conflito foi The Times, de Londres. Foi o único jornal que conseguiu manter sistematicamente um padrão elevado de noticiário, procurando as notícias onde quer que estivessem acontecendo, complementando-as com reportagens informativas especiais. Um dos repórteres de The Times, Sr. Michael Wolfers, demonstrou, pelo contraste, a incapacidade de alguns de seus colegas de enviarem notícias de Lagos sem se tornarem intérpretes de algum porta-voz nigeriano ou do Alto Comissariado Britânico a anunciar absurdos. Limitando o seu noticiário aos acontecimentos que presenciava na capital nigeriana e abstendo-se de tentar adivinhar o que estava ocorrendo a 650 quilômetros de distância, o Sr. Wolfers mostrou, durante suas estadias em Lagos, em 1969, como deve trabalhar um correspondente estrangeiro que se preza.
Nos meses de fevereiro e março, houve outra das ondas periódicas de interesse parlamentar, público e da imprensa por Biafra, em Londres. Desta vez, a causa direta foi uma série de artigos encomendada por The Times ao Sr. Winston Churchill.
O Sr. Churchill foi primeiro à Nigéria e depois a Biafra. Ao voltar a Londres, disse ao autor que, depois da visita à Nigéria, ficara totalmente convencido de que os centros civis biafrenses não estavam sendo bombardeados e que os dados sobre as vítimas da fome estavam sendo por demais exagerados. Essas convicções, explicou o Sr. Churchill, haviam sido basicamente induzidas por garantias do Alto Comissário Britânico em Lagos, Sir David Hunt, e do Adido Militar Britânico, Coronel Bob Scott. Uns poucos dias em Biafra foram um tremendo choque.
O Sr. Churchill, depois de presenciar pessoalmente a extensão da fome causada pelo bloqueio e testemunhar as táticas de terror da Força Aérea Nigeriana, chegou à conclusão de que ninguém, nos círculos oficiais britânicos, tinha a menor idéia do que estava realmente acontecendo. Foi o primeiro jornalista a ter a coragem de confessar (logo em seu primeiro artigo) que estava "envergonhado" por ter caído na rede de informações deturpadas e distorcidas com que o envolveram em Lagos.
Embora não houve.;se nenhuma novidade substancial nos artigos do Sr. Churchill — a fome e os bombardeios de terror há meses que vinham ocorrendo e já tinham sido noticiados, passando despercebidos ou não merecendo credibilidade — pelo menos desencadearam uma inundação de artigos, cartas e preocupação pública em Londres, proporcionando um crédito adicional à opinião sustentada até então apenas por um pequeno punhado de jornalistas de que a guerra não era uma solução viável para o problema Nigéria-Biafra. Também desencadearam a primeira reação da Fleet Street (a rua onde estão os principais jornais ingleses) à difamação, por parte do Alto Comissariado Britânico em Lagos, do Foreign Office e do Departamento da Commonwealth em Londres dos jornalistas que informavam de Biafra o que viam e apresentavam as conclusões a que tinham chegado, juntamente com os correspondentes de outros países.
Na esteira dos artigos do Sr. Churchill, a mesma tática foi tentada contra ele. Em editorial a 12 de março, The Times queixou-se de uma "campanha mesquinha" contra o Sr. Churchill e concluiu condenando a "tentativa de encobrir os fatos da fome, dos bombardeios e das mortes, recorrendo-se a insinuações injuriosas". No dia seguinte, em carta ao redator-chefe de The Times, o Sr. Michael Leapman relatou como um alto funcionário do Departamento da Commonwealth telefonara para o editor de um jornal de província, advertindo-o a não acreditar no que o jornalista tinha a dizer, depois de três visitas a Biafra e uma à Nigéria. O Sr. Leapman revelou também que já lhe fora insinuado que recebera dinheiro do Coronel Ojukwu para escrever como estava fazendo.
Depois disso, a difamação do caráter dos jornalistas britânicos parece ter sido abandonada pelas autoridades anteriormente responsáveis. Á imprensa britânica foi deixada em paz para continuar a noticiar a guerra Nigéria-Biafra da maneira como achasse apropriada e que era, de um modo geral, a de ater-se aos fatos.
A 28 de junho, The Times publicou um editorial intitulado "Uma Política de Fome". Era um editorial veemente, condenando a política do governo britânico em relação ao conflito. Não foi respondido por nenhum porta-voz do governo, inclusive porque era irrespondível. Ao final do ano, todos os grandes jornais britânicos, com a única exceção do Daily Telegraph, estavam condenando a política do governo britânico de remeter armas para Lagos e assim ajudar a continuar a guerra. Mas a opinião em peso da imprensa britânica não teve qualquer efeito sobre o Sr. Wilson e o Sr. Stewart, assim como também não tiveram as opiniões da Igreja e da Conferência do Partido Trabalhista. Não obstante, pode-se dizer, com toda justiça, que qualquer que tenha sido o ódio que a Inglaterra atraiu por sua política, não foi por culpa da imprensa britânica, que cumpriu o seu dever e fez tudo o mais que estava ao seu alcance.
15. Conclusão
Finalmente, as proporções da guerra Nigéria-Biafra despertaram a apreensão não apenas de grupos humanitários, mas também a de governos poderosos, que tardiamente perceberam as possíveis perspectivas perigosas. Estão começando a compreender que a situação contém elementos de perigo não apenas para Biafra, mas igualmente para a Nigéria e para o resto da África Ocidental.
Agora, todos falam na busca de uma solução pacífica. Aqueles que anteriormente se empenhavam ao máximo no apoio a uma solução exclusivamente militar estão começando a afirmar, sem convencerem ninguém, que sempre foram a favor de uma paz negociada.
A posição de Biafra nada tem de complexa. Os líderes biafrenses têm declarado, desde o começo da guerra, que consideram o problema como sendo humano; portanto, não é passível de solução militar, mas sim política. Suas propostas de cessar-fogo têm sido incessantes, provavelmente porque estão no lado mais atingido pela guerra. Mas quaisquer que sejam as motivações, é inegável que os líderes biafrenses estão a favor do término das hostilidades e de uma paz negociada.
É na disposição do povo biafrense que se encontra a maior dificuldade. Eles se separaram da Nigéria dominados por três sentimentos: o de rejeição, desconfiança do governo de Lagos e medo de extermínio. A esses três sentimentos, acrescentou-se agora uma quarta emoção, mais profunda, mais obstinada e, conseqüentemente, mais perigosa. É uma emoção de ódio, intenso, incontrolável, vingativo.
Alguns dos que estão agora falando em paz, especialmente em Whitehall, parecem ter a impressão de que nada mudou ao longo dos últimos 18 meses. Ao contrário, tudo mudou. Não porque o "exército de burocratas" transformou-se numa temível máquina de guerra, não porque os biafrenses tenham agora um acesso mais amplo a melhores armamentos. O que mudou foi o ânimo do povo, que viu seu país ser assolado e espoliado, suas crianças definharem e morrerem, seus jovens serem dizimados aos milhares. As concessões que se poderiam obter no início da guerra, se se tivesse assumido uma posição firme e se oferecido uma mediação sincera, não mais são possíveis. E possível que, em meados do verão de 1967, se pudesse pelo menos salvar uma Confederação da Nigéria, com suficiente cooperação econômica entre as partes concordantes para proporcionar todas as vantagens da Federação. É duvidoso que isso seja agora possível, pelo menos a curto prazo. É inteiramente inútil os homens de terno cinza falarem nos benefícios de uma Nigéria unificada e harmoniosa e depois ficarem perplexos ao descobrir que Biafra não está querendo isso. Já correu sangue demais, já houve muito sofrimento causado e sentido, muitas vidas já se perderam inutilmente, muitas lágrimas já foram derramadas, muita amargura já se consolidou.
Ninguém em Biafra tem mais quaisquer ilusões a respeito do comportamento dos biafrenses se algum dia voltarem a ter uma superioridade militar sobre os seus atuais algozes. Assim como ninguém acredita que um nigeriano possa andar desarmado e sem uma escolta entre os biafrenses, pelo menos por muito tempo. A única conseqüência possível de uma "unidade" imposta pela força das armas seria a total ocupação militar, aparentemente em caráter permanente, com o resultado inevitável de revolta e represália, derramamento de sangue, fuga para as florestas, fome. A incompatibilidade entre os dois povos é agora total.
A voz do povo biafrense é a Assembléia Consultiva e o Conselho Consultivo de Chefes e Anciãos. As duas instituições têm uma posição unânime. O Coronel Ojukwu não pode ir de encontro aos desejos — ou exigências — das duas instituições, não importa o quanto seja injuriado e acusado de obstinação, intransigência e teimosia.
No lado nigeriano, a situação é mais complexa. É que o povo nigeriano não tem quem o represente legitimamente, não tem quem possa expressar seus anseios. Os jornais e emissoras de rádio e televisão são controlados pelo governo ou dirigidos por homens que sabem que as críticas à política do governo podem ser fatais para a saúde. Os intelectuais dissidentes, como Pete Enahoro e Tais Solarin, estão no exílio ou, como Wole Soyinka, na prisão. Os Chefes, geralmente os melhores arautos da opinião popular do interior, não são consultados.
Seria interessante especular o que aconteceria se o General Gowon fosse obrigado a adotar as recomendações de uma Assembléia Consultiva à sua política de guerra, se nela houvesse uma representação popular das comunidades rurais, da comunidade acadêmica, dos sindicatos, dos interesses comerciais e das mulheres. É que todos esses grupos estão demonstrando uma inquietação cada vez maior em relação à política de guerra. Mas o General Gowon pode perfeitamente dispensar qualquer consulta à opinião pública interna. Recentemente, ele se sentiu inclusive capaz de usar armas de fogo para dispersar uma manifestação de plantadores de cacau em Ibadan.
O resultado é que o povo da Nigéria está mudo e suas verdadeiras opiniões não podem ser conhecidas pelos mediadores da paz, que devem se contentar em conversar apenas com uns poucos homens, mais interessados em suas carreiras pessoais que no bem-estar público. O recente convite aos russos para desempenharem um papel relevante no futuro da Nigéria indica que tal situação pode bem ser a real.
Até agora, o regime de Gowon tem mantido a sua posição de que uma solução militar não apenas é exeqüível mas também iminente, que um retorno à normalidade está logo além da esquina, depois da vitória final. Mas o registro do que acontece em Enugu, capturada há mais de um ano e ainda uma cidade-fantasma, não empresta qualquer credibilidade a essa teoria. A partir dessa posição, o governo nigeriano tem estipulado que o término das hostilidades depende da aceitação prévia pelos biafrenses de uma série de condições, como base para as negociações. Mas as condições são tão exageradas que representam na verdade todos os pontos que as negociações deveriam tratar, ou seja, a natureza futura de Biafra, os termos da associação com a Nigéria, a permissão para um mínimo de efetivos militares para a autodefesa e assim por diante.
Os termos dos nigerianos para o cessar-fogo equivalem na prática à rendição total e incondicional de Biafra, que se entregaria de mãos e pés amarrados ao governo nigeriano, para este então fazer o que bem lhe aprouvesse. Deve-se presumir que o regime de Gowon não abandonou a sua política de acreditar que uma solução totalmente militar possa oferecer a resposta final.
Mas é justamente nisso que está o grande perigo. Nenhuma das políticas até agora adotadas pelos governos do mundo ocidental foi capaz de promover a paz. A maioria dos governos parece ter aceitado os pedidos britânicos de que os outros países não se intrometessem, sob a alegação de que a Commonwealth está na esfera de influência britânica e com as garantias de que tudo iria terminar em breve.
Mas a política do governo britânico está agora inteiramente destroçada. Comprovou-se que as explicações e justificativas estavam baseadas em falsas premissas. Até mesmo a garantia de que a política britânica proporcionaria uma grande influência junto ao governo nigeriano, a qual seria então usada para promover a paz, já foi cabalmente desmentida. Longe de ver a sua influência aumentada, a Inglaterra, que já foi outrora uma poderosa conselheira nos assuntos nigerianos, descobriu que está agora praticamente impotente. Ironicamente, os falcões da guerra, que se tornaram poderosos graças às armas britânicas, sentem-se agora poderosos o bastante para procurar novos amigos, enquanto o Governo Wilson, recusando-se a admiti-lo, não tem coragem para fazer algo de positivo nem para retirar o seu embargo à atuação das outras grandes potências.
Somente os russos ganharam com a atual situação, estando agora em condições de se tornarem ainda mais fortes na Nigéria. Não se pode presumir que os russos estejam pensando exclusivamente nos interesses do povo da Nigéria. Ao contrário, estão mais empenhados na continuação da guerra, o que deixará o regime nigeriano ainda mais endividado para com a União Soviética.
Em suma, não há a menor perpectiva de se superar o impasse atual, até que o governo nigeriano chegue à conclusão de que os seus próprios interesses e um cessar-fogo imediato são sinônimos. Essa mudança de opinião só pode ser induzida pelas iniciativas diplomáticas de que só as grandes potências são capazes.
No caso em que o desejo de um cessar-fogo imediato se torne mútuo, seria provavelmente necessária a fiscalização de uma força de manutenção da paz, de composição internacional ou a representação de uma Potência Protetora aceitável por ambas as partes. Somente nessa base é que uma ajuda humanitária suficientemente ampla poderá resolver os problemas prementes e trágicos provocados pela guerra.
A partir do momento em que começasse o retorno à normalidade, seriam necessárias negociações prolongadas para se encontrar uma fórmula capaz de proporcionar uma paz permanente. No momento, parece impossível que qualquer fórmula tenha alguma chance de sucesso, se não estiver baseada na vontade do povo. Isso implica alguma forma de plebiscito, pelo menos entre os grupos minoritários, cujo destino tornou-se um dos pontos mais importantes da guerra.
São bem poucos os que estão realmente convencidos de que um estado biafrense, confinado ao território Ibo que a Nigéria chama atualmente de Estado Centro-Leste, isolado do mar e cercado pela Nigéria por todos os lados, possa ter alguma possibilidade de ser viável. Os nigerianos sempre defenderam a tese de que os grupos não-ibos, habitando as áreas que a Nigéria chama atualmente de Estados Sudeste e dos Rios, foram arrastados pelos Ibos à separação, contra a sua vontade. A questão tornou-se tão crucial que não pode deixar de ser verificada.
Até agora, o General Gowon é o único que se recusa a essa verificação, embora se deva reconhecer que, no momento, as circunstâncias não são muito apropriadas para a realização de um plebiscito. Contudo, se o plebiscito fosse realizado agora, as vantagens estariam inegavelmente com a Nigéria. Afinal, seu exército ocupa essas áreas e milhões de pessoas que nelas viviam e eram partidárias de Biafra estão agora na zona não-ocupada. Seja como for, teriam que ser criadas as melhores condições possíveis para um plebiscito, a fim de reduzir ao máximo os possíveis protestos de qualquer dos lados. Idealmente, tal plebiscito teria que ser fiscalizado por uma Potência Protetora, com as guarnições do Exército Federal confinadas a seus quartéis, durante as horas necessárias.
Quaisquer que sejam as combinações que se possam imaginar no momento, não passam de especulações e continuam dependendo de um cessar-fogo. Mas não é especulação assegurar que, nos termos da situação ao final de 1968, o grau de incompatibilidade entre os povos a leste e a oeste do Níger tornou-se tão absoluta que, para o futuro imediato pelo menos, alguma forma de separação será necessária, para impedir mais derramamento de sangue.
Quanto mais tempo a solução for protelada, mais grave se tornará a situação, mais profundo será o ódio, mais intransigentes se tornarão os ânimos, mais sombrios serão os presságios.
Epílogo
O capítulo anterior, a Conclusão, é o único que data de janeiro de 1969. Todos os outros capítulos da segunda parte foram atualizados até dezembro de 1969.
Foi mantido porque, mesmo em dezembro, sem qualquer perspectiva de término da guerra, os pontos que apresentava continuavam parcialmente válidos. Ao final de dezembro, a quarta "ofensiva final" dos nigerianos não conseguira efetuar grandes avanços. Lord Carrington, o porta-voz do Partido Conservador britânico (na oposição) em questões de defesa, passara uma semana em Biafra. Foi o primeiro investigador do Partido Conservador a ir até lá, em dois anos e meio. De volta a Londres, declarou, a 22 de dezembro, que não havia qualquer perspectiva de término da guerra.
Mas, na segunda semana de janeiro de 1970, Biafra desmoronou subitamente. Uma unidade na frente meridional, sem munição e exausta a ponto de não mais se importar com coisa alguma, tirou os uniformes e desapareceu no mato. Não houve qualquer reação dos nigerianos e um comandante competente poderia ter impedido maiores conseqüências. Mas o oficial biafrense no comando do setor era incompetente e não percebeu a falha na linha defensiva. Unidades nos dois lados dos homens desaparecidos ficaram apavorados e seguiram o exemplo deles. Não demorou muito para que houvesse uma vasta brecha na linha defensiva, da cidade de Aba até a ponte de OkpuaJa.
Uma patrulha blindada nigeriana, explorando o terreno para o norte, não encontrou qualquer oposição e foi avançando. Um dia depois, toda a linha defensiva estava rompida. O restante da 12." Divisão biafrense também correu para o mato. A Terceira Divisão nigeriana, sob o comando do Coronel Ohasanjo, foi avançando pelo coração do enclave biafrense, na direção do aeroporto de Uli.
Chegando ali, não encontrou qualquer oposição. Homens que há semanas não comiam estavam sem forças para continuar a lutar.
Numa ultima reunião de Gabinete, a 10 de janeiro, o General Ojukwu (promovido ao posto em 1969) escutou seus assessores pela derradeira vez. O conselho deles foi praticamente unanime. Ficar e morrer seria inútil; ficar e ser caçado pelo mato iria atrair sofrimentos ainda maiores para toda a população.
Naquela noite, depois do escurecer, Ojukwu seguiu de carro para Uli, enquanto os canhões nigerianos troavam na frente sul. Com um pequeno grupo de companheiros, embarcou no Super Constelation biafrense, o "Fantasma Cinzento", e partiu para um exílio solitário. O General-de-Brigada Effiong, assumindo como chefe de Estado interino, aceitou os termos de rendição 24 horas depois. A longa luta finalmente terminara.
O leste do Níger, a antiga Região Oriental, Biafra, foi dividida em três estados, nos termos do decreto de Gowon de maio de 1967, responsável direto pela secessão. No sul, formou-se o Estado dos Rios, sob um governador militar chamado Diete-Spiff. No extremo sudeste, passou a existir o Estado Sudeste, sob o controle de um tal Coronel Essuene. Os Ibos, a força predominante de Biafra, ficaram confinados ao minúsculo Estado Centro-Leste. O Ibo Ukpabi Asika tornou-se o governador, à frente de um governo que se tornou sinônimo de corrupção. Ele foi finalmente demitido e recebeu ordem de ficar à disposição de um inquérito oficial, em agosto de 1975.
Depois da guerra, a Nigéria pareceu prosperar, pelo menos na superfície. Os rendimentos do petróleo foram aumentando ano a ano. Em 1973, o preço mundial do petróleo dobrou duas vezes, quando a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) impôs seus termos ao Ocidente consumidor de petróleo. O regime nigeriano, pelo fato de ser produtor de petróleo e de gastar imensas quantias na Inglaterra, tornou-se extremamente popular em Londres. A imprensa britânica, eternamente se conformando com o pensamento do establishment londrino, quase que elevou Yakubu Gowon à santidade. Não se podia escrever nem dizer uma única palavra contrária a Gowon ou à Nigéria.
Ao final do reinado de Gowon, a malversação dos recursos públicos finalmente veio à tona. O porto de Lagos ficou atulhado com mais de 400 navios, incapazes de descarregar; os telefones deixaram de funcionar; os serviços públicos estavam no caos; as estradas estavam sem conservação há anos; as comunicações se tornaram praticamente impossíveis. Até mesmo a imprensa britânica começou a publicar artigos criticando o regime de Gowon.
A 29 de junho de 1975, nove anos depois que subiu ao poder sobre o cadáver de Ironsi, Gowon estava numa conferência de cúpula da Organização da Unidade Africana, em Kampala, Uganda, quando foi derrubado. O homem que subiu ao poder, com a promessa de acabar com a corrupção, foi o General Murtala Mohammed, que imediatamente demitiu os 12 governadores estaduais e nomeou outros em substituição. Gowon foi para o exílio na Inglaterra e logo juntou-se aos estudantes da Universidade de Warwick, anunciando que tencionava estudar política, porque achava que estava na hora de aprender alguma coisa a respeito.
No início de fevereiro de 1976, um oficial inferior aproximou-se calmamente do carro do General Mohammed, parado num engarrafamento de trânsito, e disparou dois pentes de munição de uma metralhadora de mão. Mohammed teve morte instantânea. Apesar disso, a tentativa de golpe fracassou. O General Obasanjo, antigo comandante da Terceira Divisão nigeriana durante a guerra, em substituição a Adekunle, assumiu o poder.
Enquanto isso, o General Emeka Ojukwu permanecia no exílio, na Costa do Marfim. Chegara lá com apenas uma nota de cem dólares no bolso.
Talvez tenha sido o único homem que já esteve no poder na África Ocidental e que saiu sem ter uma fortuna particular, desviada dos recursos públicos. Ojukwu não apenas deixara de enriquecer à custa dos dinheiros públicos, como também gastara com seu povo até o último vintém de sua vasta fortuna pessoal. Estava inteiramente sem dinheiro.
Partindo do nada, obtendo um pequeno empréstimo de um amigo, montou uma companhia de transporte, com dois caminhões. Ao final de 1975, possuía diversas empresas, de transporte, construção, exploração de pedreiras e distribuição.
Ao longo desses seis anos, inúmeras delegações de Ibos e de outros grupos atravessaram as fronteiras da Nigéria para visitá-lo. No Estado Centro-Leste, o regime de Gowon tentou desesperadamente encontrar um Ibo que pudesse quebrar o carisma de Ojukwu sobre o seu próprio povo. O fracasso foi total. Na verdade, ocorreu justamente o inverso. Em comparação com a corrupção pública que reinava por toda parte, a integridade do regime de Ojukwu começou a parecer cada vez mais admirável para os nigerianos e não apenas para os Ibos. Delegações de Iorubás e Tivs começaram também a visitar Ojukwu no exílio."
Levou anos para que os naturais da Costa do Marfim e os servidores civis e homens de negócio franceses, que abundam no país, conseguissem acreditar que Ojukwu não possuía um tesouro secreto de dinheiro público biafrense depositado seguramente na Suíça. Quando finalmente acreditaram, alguns acharam que o fato era admirável, outros que não passava de uma loucura.
No coração do território Ibo, a nata dos Ibos instruídos, talvez um total de dez mil pessoas, foi trabalhar para os nigerianos. Para as grandes massas de Ibos, lavradores e pequenos comerciantes, operários e pequenos funcionários, o caminho foi árduo. Mas eles conseguiram superar as dificuldades, trabalhando todas as horas do dia e por metade da noite, voltando a construir uma vida com um mínimo de dignidade. Silenciosamente, rejeitaram os Ibos que lhes foram impostos por Lagos. Rabiscavam nas paredes e nos lados dos caminhões: "Akareja (aquele que foi embora) deve voltar"
Só os deuses podem dizer se Ojukwu algum dia voltará à Nigéria. Mas os Ibos têm um ditado: "Nenhuma condição humana neste mundo é permanente." Talvez se acabe chegando à conclusão de que os acontecimentos do passado devem ser esquecidos, ainda mais agora que Gowon já não está mais em Lagos. Talvez Ojukwu finalmente receba permissão para retornar à Nigéria.
Ele foi e é um homem extraordinário. Poderia ter tudo, se se curvasse diante de Gowon. Em vez disso, perdeu muitas coisas, sua fortuna, sua pátria, seu passaporte. Mas jamais perdeu a lealdade de seu povo; e nunca perdeu o respeito de todos os homens. Até mesmo os seus piores inimigos o respeitam. Conhecendo-o, posso imaginar que Ojukwu é capaz de dizer que, apesar de tudo, ainda ficou com a melhor parte na barganha.
Frederick Forsyth
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