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Em Nova Iorque está a nevar. Olho, pela janela do meu apartamento na Rua 59, para o prédio defronte, onde está instalada a escola de bailado que dirijo. Por detrás da vidraça, as alunas estão agora em repouso, tendo acabado os exercícios de pontas e de saltos de dança clássica. A minha filha, que trabalha comigo como assistente, faz uma pequena demonstração de bailado com música de jazz, para as meninas relaxarem depois dos exercícios.
Daqui a pouco irei ter com elas.
De entre essas alunas, há uma menina que usa óculos. Pousou-os em cima de uma cadeira antes de começar a aula de bailado, exatamente como eu fazia, quando tinha a idade dela, na escola de dança da senhora Dismai-lova. Não se deve dançar com óculos. Lembro-me de que, nessa altura, exercitava-me durante todo o dia para tentar conseguir não usar óculos. Os contornos das pessoas e das coisas perdiam a nitidez, tudo se tornava impreciso, vago, suave, os próprios sons se tornavam cada vez mais abafados. O mundo, quando eu o via sem óculos, deixava de ter asperezas, tornava-se tão suave e tão macio como o grande travesseiro em que pousava a cabeça, acabando por adormecer.
Estás a sonhar com quê, Catherine? - perguntava o meu pai. - Devias pôr os óculos.
Obedecia-lhe, e então voltava a sentir a aspereza e os contornos precisos do costume. Com os óculos via o mundo tal e qual ele é. Não podia continuar a sonhar.
Aqui, em Nova Iorque, fiz parte de uma companhia de bailado durante alguns anos. Em seguida, dirigi com a minha mãe um curso de dança. Depois, a minha mãe reformou-se
e continuei sem ela. Agora trabalho com a minha filha. O meu pai também devia passar à reforma, mas ainda não se decidiu a isso. Na verdade, reformar-se de quê?
Nunca soube exatamente qual é a profissão do meu pai. Ele e a minha mãe estão agora instalados num pequeno apartamento em Greenwich Village. Em suma, não há grande
coisa a dizer sobre nós. Somos nova-iorqui-nos como tantos outros. A única coisa um pouco estranha é esta: antes de termos vindo para os Estados Unidos, passei a
minha infância no X.º bairro de Paris. Já lá vão quase trinta anos.
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*
Vamos por cima de uma espécie de armazém com um taipal de ferro, que o meu pai baixava, ao fim do
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dia, por volta das sete horas. Parecia-se com aqueles recintos das estações de comboio da província onde se guardam e de onde se despacham as bagagens. Havia sempre
caixas e pacotes empilhados uns em cima dos outros. E uma balança grande, com uma plataforma onde se podiam colocar coisas muito pesadas, indo até trezentos quilos.
Nunca vi nada a ser pesado. Exceto o meu pai. Nas raras ocasiões em que o senhor Casterade, o seu sócio, estava ausente, ele punha-se, imóvel e silencioso, no meio
da plataforma da balança, de mãos nos bolsos, o rosto inclinado. Olhava fixamente, com um ar pensativo, para o mostrador da balança, cujo ponteiro marcava - lembro--me
bem - sessenta e sete quilos. Por vezes, o meu pai, de cima da balança, perguntava-me:
- Queres subir, Catherine?
E eu punha-me com ele em cima da plataforma da balança. Ficávamos ali, os dois, e eu sentia as mãos do meu pai nos meus ombros, segurando-me. Não nos mexíamos. Parecia
que estávamos a fazer pose diante da objetiva de um fotógrafo. Eu tinha tirado os óculos e o meu pai também. Tudo ficava suave e enevoado à nossa volta. O tempo
tinha parado. Sentíamo-nos bem.
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*
Um dia, o senhor Casterade, sócio do meu pai, surpreendeu-nos em cima da balança.
- O que estão aí a fazer? - perguntou.
O encanto foi quebrado. Tudo voltou à realidade. Eu e o meu pai voltámos a pôr os óculos.
- Como vê, estamos a pesar-nos - disse o meu pai.
Sem se dignar responder-nos, o senhor Casterade desapareceu, afastando-se rapidamente num passo nervoso, indo para o fundo do armazém, por detrás de um tabique envidraçado,
onde estavam duas grandes secretárias em madeira de nogueira, uma diante da outra, com cadeiras giratórias: a secretária do meu pai e a do senhor Casterade.
Foi depois de a minha mãe se ter ido embora que o senhor Casterade começou a trabalhar com o meu pai. A minha mãe é americana. Aos vinte anos, integrava uma companhia
de bailarinas que tinha vindo em digressão a Paris. Foi então que conheceu o meu pai. Casaram e a minha mãe continuou a atuar em Paris, em várias casas de espetáculos
de variedades:
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L'Empire, Le Tabarin, L'Alhambra, etc. Guardei como recordação todos os programas desses espetáculos. Mas a minha mãe sentia saudades do seu país natal. Ao fim de
alguns anos, decidiu voltar para a América. O meu pai prometeu-lhe que iríamos ter com ela, logo que resolvesse os seus "assuntos comerciais". Foram essas, pelo
menos, as explicações que ele me deu. Mas, mais tarde, percebi que havia outras razões para a minha mãe se ter ido embora.
Todas as semanas, o meu pai e eu recebíamos, cada um, uma carta da minha mãe, vinda da América, cartas com o envelope rodeado de pequenas barras coloridas a vermelho
e a azul.
A carta da minha mãe acabava sempre assim: "Muitos beijinhos para tu, querida Catherine. A tua mãe, que nunca te esquece."
Por vezes, a minha mãe dava erros de ortografia.
*
Quando o meu pai me falava do seu sócio Raymond Casterade, chamava-lhe "o chato".
- Querida Catherine, tenho muita pena mas não posso ir buscar-te à escola esta tarde. Tenho de trabalhar até à noite com aquele "chato".
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O senhor Casterade era um homem moreno, com olhos negros, troncudo. O seu tronco grosso, alto e rígido, ocultava o movimento das suas pernas. Dir-se-ia que ele deslizava
pelo chão em patins de rodinhas ou até que patinava no gelo.
Mais tarde, soube que, inicialmente, o meu pai o tinha contratado como seu secretário. Queria um homem que escrevesse bem, sem erros de ortografia, e o senhor Casterade,
em novo, tirara uma licenciatura em Letras. E depois, o "chato" do senhor Casterade tornara-se seu sócio.
Tinha a mania de dar lições de moral sem mais nem menos.
Gostava também de anunciar catástrofes. De manhã, sentava-se à secretária e punha-se a ler o jornal, com toda a lentidão. O meu pai ficava sentado diante dele. Frequentemente,
tirava os óculos, como que para se distanciar. Então, o senhor Casterade, com a sua pronúncia do Sul, lia em voz alta todas as notícias sobre catástrofes e crimes.
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- Não está a ouvir-me, Georges - dizia o senhor Cas-terade ao meu pai. - Anda sempre nas nuvens... Não tem a coragem de ver o mundo tal e qual ele é... Devia
voltar a pôr os seus óculos...
- Será mesmo necessário? - replicava o meu pai.
O "chato" tinha uma outra mania: a de ditar as cartas, encurvando-se e falando alto. Foram inúmeras as vezes em que vi o meu pai a escrever à máquina cartas que
tratavam de negócios ditadas pelo senhor Casterade, e isso sem ousar dizer-lhe, por uma questão de delicadeza, que essas cartas não serviam para nada... O senhor
Casterade soletrava as palavras, indicava a pontuação e nunca se esquecia de referir os acentos, sobretudo o acento circunflexo.
Mal o seu sócio voltava costas, o meu pai rasgava, com frequência, as cartas e deitava-as para o cesto de papéis.
*
-Aquele senhor "chato" também me chateava, a mim, querendo ditar-me a redação, intervindo nos meus trabalhos de casa, e não havia outro remédio senão aguentá-lo.
Eu tinha às vezes uma boa nota, mas, em geral, o professor, depois de corrigir a redação que eu tinha feito com a colaboração do senhor Casterade, escrevia à margem:
"fora do tema proposto".
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Então, o meu pai dizia-me:
- Se vires que estás a ir mal, que estás "fora do tema", que não abordas exatamente o tema que te foi proposto, rasga o que ele te mandou escrever. E recomeça
tudo sozinha.
Quando o senhor Casterade estava ausente, o meu pai imitava-o, brincando comigo:
- Ponto e vírgula, abrir aspas, vírgula, dois pontos, abrir parênteses, parágrafo, fechar os parênteses e as aspas...
E como ele, dizia isto com a pronúncia castiça do Sul de França, que era a pronúncia do senhor Casterade, eu ria a bandeiras despregadas.
- Vejamos, porte-se bem, menina - dizia o meu pai, continuando a imitar o senhor Casterade. - Não se esqueça de pôr um acento circunflexo no e... E volte
a pôr os seus óculos para ver o mundo tal como ele é...
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Certa tarde, quando voltava da escola com o meu pai, o senhor Casterade quis que eu lhe mostrasse a minha caderneta. Pôs-se a lê-la enquanto mordiscava a sua boquilha.
Depois, olhou-me com um ar severo, fixando os seus olhos negros nos meus:
- Minha menina - disse-me -, estou muito desiludido. Esperava melhores resultados, sobretudo em ortografia... O que constato, ao examinar esta sua caderneta,
é que...
Mas eu já tinha, entretanto, tirado os óculos e não ouvia sequer o que ele dizia.
- Cale-se lá, Casterade - disse o meu pai. - Está a começar a chatear-me a sério! Deixe a rapariga sossegada.
- Muito bem - respondeu ele.
O senhor Casterade levantou-se, com um ar de desdém, e encaminhou-se, como se deslizasse pelo chão, para a porta do escritório.
Desapareceu, muito direito, muito digno, como se andasse em patins de rodinhas invisíveis, e o meu pai e eu olhámos um para o outro, sorrindo por cima dos óculos.
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Mais tarde, já na América, o armazém da Rua de Hauteville e o senhor Casterade pareciam-nos, a mim e ao meu pai, tão longínquos que acabávamos por nos interrogar
sobre se eles tinham verdadeiramente existido. Um dia, no decorrer de um passeio pelo Central Park, perguntei ao meu pai qual fora a razão de ele ter permitido que
o senhor Casterade tivesse tanta importância na sua vida profissional e na nossa vida familiar, ao ponto de o ter deixado ditar-lhe cartas e dar-lhe lições de moral
sem que ele ousasse interrompê-lo.
- Não podia fazer de outra maneira - confessou o meu pai. - O Casterade salvou-me de uma situação muito má.
Nunca quis revelar-me mais detalhes. Mas um dia em que o senhor Casterade estava muito zangado, lembro-me de o ter ouvido dizer ao meu pai:
- Devia lembrar-se, Georges, que os verdadeiros amigos são aqueles que nos livram das garras da Justiça.
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Quando o meu pai conheceu Casterade, este acabara de abandonar o seu lugar de professor de francês numa escola dos arredores de Paris. Merecera a estima e a admiração
do meu pai por aqueles que escrevem livros: o senhor Casterade já tinha publicado vários livros de poesia. Tenho aqui, na biblioteca do meu apartamento de Nova Iorque,
uma das suas obras, que o meu pai trouxe consigo na mala quando partimos de França, certamente a fim de guardar recordações do passado. O livro intitula-se Cantilenas
e é edição de autor, tendo como lugar de edição o endereço de 15, Rua de 1'Aqueduc, no X.º bairro de Paris. Há uma indicação biográfica na contracapa do livro que
diz o seguinte: "Raymond Casterade. Vencedor dos Jogos Florais de Poesia da região de Languedoc, dos Poetas Populares de Bordéus e da Federação Literária Gasconha-África
do Norte."
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No cimo da fachada do armazém, num grande vidro fosco que passava despercebido aos transeuntes da Rua de Hauteville, estava escrito em carateres azul-marinho: "CAS-TERADE
& CERTITUDE - Exp. - Trans.". Certitude é o nosso nome de família, do meu pai e meu. Aqui, na América, pronunciam Sar-tetiu-de, com dificuldade, mas em Paris o nome
soava de maneira clara e em bom francês. O meu pai explicou-me, mais tarde, que o nosso verdadeiro nome de família era muito mais complicado. Qualquer coisa como
Tscerstistscekvadze ou Chertchetitudjvili. Certa tarde de verão, mesmo antes da guerra, quando o meu pai era jovem, necessitara de uma certidão de nascimento e para
isso tinha ido à repartição da administração municipal do IX.º bairro de Paris, onde o pai dele o registara com o nome de Tscerstistscekvadze ou Chertchetitudjvili.
Na secção, deserta e ensolarada, do registo civil, havia apenas um funcionário.
Na altura de transcrever para uma ficha o nome tão complicado do meu pai, o funcionário bufava de impaciência,
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furioso por ver um nome que ninguém percebia e que ninguém conseguia pronunciar. Com um movimento mecânico, enxotara esse enxame de abelhas invisíveis, de mosquitos,
como se todos esses Czer, esses Tser, esses Tits e esses Tce do nome do meu pai lhe parecessem o zumbido de centenas de insetos à volta dele.
- O senhor tem um nome que ninguém entende, irritante - dissera ele ao meu pai, enxugando o suor da testa. - E se o simplificássemos? Que tal... Certitude?
Acha bem?
- Como queira, não há problema - respondeu o meu pai.
- Pronto, então vamos pôr Certitude.
E foi assim que na tabuleta do armazém da Rua de Hauteville ficou inscrito: "CASTERADE & CERTITUDE - Exp. - Trans.". O que significava "Exp. - Trans."? O meu pai
nunca esclareceu bem.
Seria: Expedições? Exportações? Trânsito, isto é, mercadorias em trânsito? Transportes?
A maior parte da atividade da empresa decorria durante a noite. Frequentemente, acordei com o barulho da chegada e da partida dos camiões, que paravam deixando o
motor a funcionar. Pela janela do meu quarto via homens a entrar e a sair do armazém, transportando caixas. O meu pai e o senhor Casterade, no meio da rua, dirigiam
estas
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atividades noturnas de carga e descarga. O meu pai tinha um pequeno caderno aberto na mão e, à medida em que as caixas eram descarregadas de um camião ou eram carregadas
para outro camião, tomava notas. Encontrei, em papéis antigos que tinha guardado, uma das páginas desses registos:
Horas Saída Horas xhegada
10h30 material rádio e porcas 10h30 botas militares,
11h camisas, parafusos e pulôveres 11h 15 impremiáveis 30 garrafas de rim
11h30 dínamos, frigoríficos, refrigeradores
0h15 cabos e tendas 01h30 fresadoras, motores elétricos
A palavra "Frigoríficos" está riscada e é substituída pela palavra "refrigeradores" com a letra do senhor Casterade, e, em baixo, reconheço a assinatura ilegível
do meu pai.
Eu ia à escola que ficava na Rua des Petits-Hôtels, muito perto de nossa casa. O meu pai acompanhava-me, depois de ter levantado o taipal de ferro do armazém.
Todas as manhãs, cruzávamo-nos no caminho com o senhor Casterade, que descia a Rua de Hauteville para ir para o seu escritório da firma "CASTERADE & CERTITUDE -
Exp. - Trans.".
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- Até já, Raymond - dizia-lhe o meu pai.
- Até já, Georges.
E o seu tronco alto bamboleava e parecia deslizar cada vez mais depressa pela rua abaixo, isto porque a rua era em declive.
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Quando chegávamos à escola, o meu pai dava-me uma pancadinha no ombro, a encorajar-me, e dizia:
- Coragem, Catherine... Bom trabalho. E não te preocupes: não tem nenhuma importância se deres um ou outro erro de ortografia, como o teu papá.
Agora, tantos anos mais tarde, compreendo a razão pela qual ele dizia isto. Não era por ficar indiferente quanto à educação da filha. Era, sim, porque ele sabia
que o senhor Casterade me metia medo, com as suas eternas lições de moral e de ortografia, e ele, o meu pai, procurava, pelo contrário, dar-me confiança, confiança
em mim mesma.
Duas vezes por semana, eu comia na cantina da escola e nos outros dias comia com o meu pai num restaurante do bairro, na Rua de Chabrol: o Picardie. O senhor Casterade
também almoçava lá. Ficávamos a espiá-lo, na esquina da rua, e esperávamos uns dez minutos depois de ele ter entrado no restaurante para não termos de nos sentar
à mesma mesa.
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O meu pai queria estar sozinho comigo e receava que Casterade falasse mais uma vez de catástrofes ou pregasse lições de moral e de caligrafia. Suponho que o meu
pai tinha combinado com o dono do restaurante que nos arranjasse a mesa que ficasse mais afastada de todas da mesa do senhor Casterade.
Quando chegávamos à porta do Picardie, o meu pai dizia-me:
- Vamos tirar os óculos, Catherine... Assim, temos uma desculpa para não vermos o Casterade...
Muitas vezes, aqueles com quem o meu pai tratava de negócios vinham ter connosco no final da refeição e sentavam-se à nossa mesa.
Eu ficava à escuta, mas não compreendia grande coisa do que estavam a falar. Eram homens morenos, com bigodes e sobretudo velhos. Havia também, entre eles, um ruivo,
de óculos com aros de ouro, que ouvia o meu pai atentamente, de boca aberta. Lembro-me de que esse se chamava Chevreau. Certo dia, o meu pai disse-lhe:
- Então, Chevreau, interessa-lhe o negócio das cinquenta cadeiras do avião Constellation?
Chevreau arregalou os olhos.
- Cadeiras de quê?
- Do Constellation. É um avião, como sabe...
- O que quer que eu faça com elas?
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- Olhe, pode, por exemplo, transformá-las em cadeiras de cinema.
Chevreau continuava a olhar fixamente para o meu pai, de boca aberta, como era seu hábito.
- Oh, que imaginação!... Fico espantado, Certitude... De acordo... Vou comprá-las... Estou verdadeiramente espantado!
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Vi no olhar do senhor Chevreau tanta admiração pelo meu pai que eu própria fiquei espantada. Qual seria, afinal, a profissão do meu pai? Certa tarde, perguntei-lhe.
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- Como poderei explicar-te, minha querida? - disse ele. - Para facilitar o tráfico das mercadorias através da Europa, existem, em todos os países europeus,
empresas ou agências que se encarregam do transporte de encomendas, e essas empresas são dirigidas... Enfim, digamos, para simplificar, que as pessoas me mandam
caixas e pacotes com coisas dentro. Eu guardo-os no armazém e mando-os para outras pessoas. Depois, recebo outros pacotes... E assim por diante...
O meu pai deu uma grande fumaça de cigarro e depois acrescentou:
- Digamos que o meu trabalho é tratar de pacotes.
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A partir do mês de abril, todos os fins de tarde, o meu pai ia comigo ao pequeno jardim que ficava defronte da igreja de São Vicente de Paulo. Encontrava-me aí com
alguns dos meus colegas de escola e brincávamos até às seis horas. O meu pai sentava-se num banco e ficava a vigiar-me, embora a sua atenção estivesse fixada nos
homens morenos de grandes bigodes e velhos sobretudos - os mesmos que iam ter com ele ao restaurante - e em Chevreau que, como os outros, se sentava no banco ao
lado dele, cada qual por sua vez. Falavam, falavam, e o meu pai tomava notas num caderno de apontamentos.
Quando a noite caía, descíamos, de mão dada, a Rua de Hauteville.
O meu pai dizia para mim:
- O Casterade vai ficar de mau humor. Não compreende que eu marque encontro no banco do jardim. Que idiotice! Com este tempo magnífico de primavera, trabalha-se
muito melhor ao ar livre.
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E o meu pai ficava, então, à espera, no fundo do armazém, sentado à sua secretária. Quando o senhor Casterade chegava, via-se que estava de muito mau humor.
- Trabalhou bem, Raymond? - perguntava ironicamente o meu pai.
- Alguém tem de trabalhar nesta casa...
Dizendo isto, o senhor Casterade punha-se todo direito, rígido, olhando de alto, com uma expressão zangada.
- E a menina Catherine - dizia ele para mim, com uma voz ainda mais seca -, diga-me lá: que poetas franceses estudou esta tarde na escola?
- Victor Hugo e Verlaine.
- Sempre os mesmos. Mas há outros... Há muitos poetas em França... Por exemplo...
Quando estava assim, ninguém devia contrariá-lo.
O meu pai continuava sentado na sua secretária. E eu ficava em pé, de braços cruzados. O senhor Casterade tirava do bolso interior do casaco uma das coletâneas de
poemas de que era autor.
- Vou dar-lhe um exemplo da boa métrica francesa... a verdadeira... - dizia.
Então, o senhor Casterade punha-se a ler para nós os seus poemas, com uma voz monocórdica, marcando com a mão a métrica dos versos. Lembro-me ainda do princípio
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de um desses poemas, pelo qual o senhor Casterade parecia sentir uma ternura especial:
Betty com o seu pescoço de alabastro e tu, Marie-Josée,
Lembrem-se sempre das juras de amor que jlzemos,
Em Castelnaudary, nas noites de outono...
Eu sentava-me ao colo do meu pai e acabava por adormecer. Bastante mais tarde, o meu pai acordava-me. Já era noite.
- Já se foi embora - dizia o meu pai, com um ar cansado. - Podes voltar a pôr os óculos...
Então, eu ajudava-o a baixar o taipal de ferro do armazém.
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De manhã, o meu pai acordava-me. Tinha já preparado o pequeno-almoço, que esperava por nós na mesa da sala de jantar, a qual servia ao mesmo tempo de sala de estar.
O meu pai abria as persianas e eu via-o de costas, no parapeito da janela. Ficava a olhar a paisagem: os telhados e, lá ao fundo, a entrada envidraçada da Gare de
l'Est. E depois dizia, ao fazer o nó da gravata, com um ar pensativo e, por vezes, resoluto:
- Vamos lá a isso, Senhora Vida!
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Quando o meu pai estava a barbear-se, era sempre o mesmo ritual de brincadeira: ele corria atrás de mim brandindo o pincel de barba por todo o apartamento, tentando
encher-me a cara de creme de barbear.
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Depois da correria, tínhamos de limpar cuidadosamente os nossos óculos, cujas lentes ficavam todas cheias de sabão de barbear.
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Num domingo, quando estávamos a tomar o pequeno-almoço, tocou a campainha do armazém. Ajudei o meu pai a levantar o taipal de ferro. Um enorme camião coberto com
um toldo, que tinha matrícula espanhola, estava estacionado diante do armazém e três homens começaram a descarregar a mercadoria, pousando as caixas no passeio.
O meu pai disse-lhes que levassem as caixas para dentro do armazém e telefonou para a pensão onde estava hospedado o senhor Casterade. Os três homens entregaram
um recibo ao meu pai. Ele assinou-o e o camião foi-se embora, fazendo um grande ruído de motor.
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O meu pai e o senhor Casterade abriram as caixas. Continham estatuetas de bailarinas de dança clássica.
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Em algumas das caixas, as estatuetas estavam partidas e guardámos os bocados partidos em cima das prateleiras do armazém. Depois, o meu pai voltou a fechar as outras
caixas e foi telefonar. Falava numa língua estrangeira. Quando desligou, o senhor Casterade disse:
- Tenha cuidado, Georges: é perigoso, está a meter--se num grande sarilho... O recibo que assinou não pode ser tomado em conta pela alfândega francesa. Lembre-se
daquele negócio do equipamento de esqui vindo da Áustria e que conseguiu que passasse na alfândega clandestinamente... Quase o levaram à cadeia! Se não fosse eu,
você ainda lá estava, por detrás das grades...
O meu pai tinha tirado os óculos e ficado em silêncio. A noite, um outro camião veio buscar as caixas com as estatuetas das bailarinas que não estavam partidas.
Só ficaram as outras. Todas as noites, eu e o meu pai passávamos horas a colar os fragmentos partidos e a pôr as estatuetas que íamos arranjando em cima das prateleiras,
todas alinhadas. E ficávamos a olhar para essas filas de bailarinas.
- Querida Catherine - perguntou o meu pai -, também gostarias de ser bailarina? Como a tua mãe?
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Lembro-me bem da minha primeira aula de dança clássica. Foi o meu pai que escolheu a escola de dança, no próprio bairro onde vivíamos, na Rua de Maubeuge. A nossa
professora, que se chamava Galina Dismailova, dirigiu--se a mim dizendo:
- Tens de dançar sem óculos.
Ao princípio, sentia inveja das colegas que não precisavam de usar óculos. Para elas, tudo era simples. Mas, pensando bem, cheguei à conclusão de que tinha uma vantagem:
viver em dois mundos diferentes, conforme punha ou não os meus óculos. E, na verdade, o mundo da dança não fazia parte da vida real, era um mundo em que se andava
aos saltos ou nas pontas dos pés, em vez de simplesmente caminhar. Sim, era um mundo de sonho, vago e suave, que eu via sem os óculos. À saída, depois dessa primeira
aula, disse ao meu pai:
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- Não me incomoda nada dançar sem óculos.
O meu pai ficou um tanto admirado pelo tom firme com que falei.
- Se visse normalmente sem óculos, acho que dançaria pior - acrescentei. - É uma vantagem.
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- Tens razão - disse o meu pai. - Eu também sentia isso quando era novo... Os outros descobrirão no teu olhar, quando estiveres sem os óculos, uma espécie de leveza
vaporosa e de doçura... A isso chama-se encanto...
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As aulas realizavam-se todas as quintas-feiras, ao fim da tarde, e o meu pai ia sempre levar-me. A grande sala envidraçada do estúdio de dança dava para a Gare du
Nord.
As mães das alunas sentavam-se à espera num longo banco estofado de tecido vermelho. O meu pai, que era o único homem no meio de todas essas mulheres, ficava num
extremo do banco, distanciado das mulheres, e de vez em quando olhava através da vidraça para a Gare du Nord, para os cais iluminados, os comboios que partiam para
destinos longínquos - até à Rússia, segundo me tinham dito, a Rússia que era a pátria da nossa professora, a senhora Dismailova.
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Ela conservava uma forte pronúncia russa. Dizia: - Catrine, Certitude... Isticado... Passo de cavalo... Dêvágar... Abram segunda... Fechar quíneta... Pié na man...
Alonegar... Mudar de lado... Áté àpróxima quineta-Jiera, meninas...
*
Numa dessas quintas-feiras, esqueci-me dos meus óculos na escola de dança e, como o meu pai estava no trabalho, eu própria fui sozinha buscá-los à Rua de Mau-beuge.
Bati à porta, mas ninguém atendeu. Toquei à campainha da porteira e ela deu-me um duplicado da chave do estúdio para ir lá buscar os óculos. Quando entrei, acendi
a luz. A lâmpada espalhava uma luz velada, incidindo sobre o piano e deixando zonas de penumbra. Achei engraçado ver o grande estúdio deserto e o piano, ao fundo,
com o tamborete vazio. Os meus óculos estavam em cima do banco. Através da vidraça via-se uma luz esbranquiçada, que vinha da Gare du Nord.
Então, de repente, deu-me vontade de dançar sozinha. Bastou-me um pouco de imaginação para ouvir no silêncio a música do piano e a voz da senhora Dismailova:
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- Abram segunda... Fechar quíneta... Pié na man... Alonegar... Mudar de lado... Passo de cavalo... Áté à próxima quíneta-feira...
E depois parei e o silêncio voltou. Pus os óculos. Antes de deixar o estúdio, fiquei por alguns instantes a ver, através da grande vidraça, os cais da Gare du Nord.
*
Encontrei uma fotografia tirada nessa altura por Chevreau, aquele senhor ruivo de óculos com aros de ouro que trabalhava com o meu pai. Lembro-me: foi numa tarde,
antes de ir para a aula de dança. Aí estou eu, diante da porta do armazém, entre o meu pai e o senhor Caste-rade. Este, excecionalmente, estava de bom humor nesse
dia e até esboçou um passo de dança para me imitar.
A direita, na fotografia, está uma mulher que, pouco a pouco, despertou em mim uma vaga recordação. Certo dia, quase à noite, deparei com ela no escritório do meu
pai e ouvi-a dizer, ao ir-se embora:
- Até daqui a pouco, Georges.
Perguntei ao meu pai quem era ela exatamente. Ele pareceu-me ter ficado um tanto atrapalhado.
- Oh, não é ninguém de especial... - respondeu. - É uma hospedeira de bordo...
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E vinte anos depois, quando lhe mostrei essa fotografia e apontei para a mulher que estava ao nosso lado, o meu pai repetiu, desta vez olhando para o teto, a disfarçar:
- Oh... bem, era uma hospedeira de bordo...
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A minha única amiga, nesse curso de dança, era uma menina que ia às aulas de bailado da senhora Dismailova, todas as quintas-feiras, sempre sozinha, nunca acompanhada
pela mãe. Foi ela quem meteu conversa comigo:
- Tens sorte em usar óculos. Eu sempre quis usar óculos... Posso experimentar?
Pôs os meus óculos e olhou-se ao espelho, diante do qual a senhora Dismailova nos obrigava a corrigir as posições.
No final da aula, ela pediu-nos, a mim e ao meu pai, que a acompanhássemos até à estação de metro mais próxima, a de Anvers.
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Estava uma senhora à espera da minha amiga junto da entrada do metro, diante de um quiosque de jornais da Avenida Rochechouart. Estava a ler revistas. Usava uma
gabardina, sapatos rasos e tinha um ar severo. Disse para a minha amiga:
- Sempre atrasada, Odile...
- Peço desculpa, senhora Sergent.
Odile explicou-me depois que esta senhora Sergent (de facto, Menina, como então se dizia, porque, apesar de não ser nova, nunca casara) era a sua governanta.
Certo dia, antes de apanhar o metro, Odile deu-me um envelope que tinha um cartão dentro. No cartão estavam gravadas em carateres azul-céu as seguintes palavras:
O Senhor e a Senhora Ralph-B. Ancorena convidam
Georges e Catherine Certitude
a assistir a um cocktail de primavera
sexta-feira, 22 de abril
em Neuillly, 21 Bulevar de la Saussaye a partir das cinco horas.
R.S.VJP.
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Os nossos nomes, o do meu pai e o meu, tinham sido escritos no cartão de convite pela própria Odile e espanta-me que o meu pai não tenha percebido que a Odile fizera
isso provavelmente sem autorização dos pais.
- É preciso responder imediatamente a aceitar o convite - disse o meu pai. - Sexta-feira é amanhã...
Pediu conselho ao senhor Casterade, que lhe disse:
- Vou ditar-lhe uma carta...
O meu pai sentou-se à sua secretária, diante da máquina de escrever, e o senhor Casterade, todo empertigado, começou a ditar a carta:
"Caros amigos,
É com grande prazer... que nos propomos... a minha filha e eu... honrar o vosso... tão amável... convite... Estaremos, por conseguinte... amanhã... no Bulevar de
la Saussaye... e, desde já, apresentamos os nossos mais respeitosos cumprimentos.
Georges Certitude e filha.
- E filha? - disse o meu pai, surpreendido.
- Exatamente: e filha - repetiu o senhor Casterade, num tom inflexível, que não permitia réplica. - É uma velha fórmula francesa.
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- Eles têm de receber a carta ainda esta noite - disse o meu pai.
Pediu por telefone ao senhor Chevreau que viesse ao armazém. Tratava-se de um assunto urgente, disse.
Chevreau veio logo.
- Poderia, por favor, levar esta carta imediatamente a esta morada de Neuilly, Bulevar de la Saussaye? - disse o meu pai.
- Já? - perguntou Chevreau.
- Sim, por favor. E precisava que, amanhã, viesse buscar-nos, a mim e à minha filha, para nos levar a essa morada na sua camioneta.
- Apanha-me de surpresa, Certitude.
- Ouça, Chevreau - disse o meu pai. - Cedo-lhe as quatro primeiras filas de cadeiras do Constellation de graça. Portanto, em troca, posso pedir-lhe esse favor?
- De acordo - disse o senhor Chevreau, um tanto impressionado pela oferta.
O meu pai ficou muito ansioso e muito impaciente por causa do convite para o cocktail de primavera em casa dos pais da Odile.
- São pessoas da alta sociedade, esses Ancorena - disse-me, repetidamente, com um tom mundano que me era desconhecido nele.
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Depois do almoço, ficámos sentados num banco do pequeno jardim da igreja de São Vicente de Paulo e o meu pai começou a falar-me de projetos para o futuro.
- Sabes, minha querida Catherine... Não é preciso grande coisa para que a vida se torne melhor, mais agradável... Basta pouca coisa... É uma questão de meio
social, de conviver com certas pessoas que estão bem na vida, que têm muito dinheiro... Estou ansioso por conhecer esses Ancorena...
*
Depois de muito ter hesitado, o meu pai decidiu vestir um fato castanho às riscas. Primeiro, tinha experimentado vestir o fato azul, mas achara que era demasiadamente
solene para esse cocktail de primavera. Levava na mão o seu melhor chapéu de feltro, que usava habitualmente ao domingo. E também luvas. O senhor Chevreau estava
à nossa espera na camioneta, em frente ao armazém.
- Para Neuilly, Chevreau, junto ao número 21 do Bulevar de la Saussaye.
E foi como se tivesse dado ordens ao seu motorista. O senhor Chevreau conduziu devagar até Neuilly, com a sua camioneta aos solavancos.
Logo que chegámos ao início do Bulevar de la Saussaye o meu pai disse:
- Pare, por favor, Chevreau, deixe-nos aqui.
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- Mas porquê? Posso deixá-los no número 21...
- Prefiro que nos deixe aqui. Vamos a pé até ao número 21.
O senhor Chevreau ficou visivelmente surpreendido. Descemos da camioneta.
- Espere por nós aqui, por favor. Não diante do número 21. Aqui - disse o meu pai. - Percebeu? Voltaremos dentro de uma ou duas horas.
- Como quiser, Certitude - respondeu o senhor Chevreau.
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*
Fomos a pé ate ao número 21. Era um palacete, com um grande jardim à frente, de relva bem cuidada. À esquerda, num pátio coberto de cascalho, viam-se vários automóveis
de luxo estacionados.
Odile estava à nossa espera à entrada do palacete.
- Estava com receio de que não viessem...
Agarrou-me pelo braço.
- Estou muito contente por teres vindo...
Indicou-nos o caminho através do grande átrio de entrada da mansão e foi à nossa frente até um elevador forrado a veludo vermelho.
- É muito bonito, este elevador - disse o meu pai. - Tenho de mandar instalar um assim entre o meu escritório e o meu apartamento.
Exibia-se, comportava-se como um fanfarrão, mas eu via bem que ele não estava à vontade. Durante a subida de elevador, viu-se ao espelho, ajeitou melhor o nó da
gravata e o chapéu.
Chegámos assim ao terraço. Criados de libré andavam de um lado para outro, por entre os convidados, a servir
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sumos de frutos e várias bebidas que transportavam em bandejas. As mulheres usavam vestidos chiques mas simples, vaporosos, e os homens tinham todos um à-vontade,
uma desenvoltura desportiva. Alguns dos convidados estavam de pé, de copo na mão, outros sentados debaixo de guarda--sóis. O Sol brilhava e sentia-se a brisa da
primavera.
O ar ali parecia muito mais leve do que noutros lugares. No meio de toda aquela multidão, nós éramos as únicascrianças, a Odile e eu.
O meu pai, como se estivesse bêbedo, curvava-se diante de toda a gente e cumprimentava todos com um aperto de mão, repetindo sempre o mesmo:
- Georges Certitude. Muito prazer. Georges Certitude. Muito prazer.
Acabámos por nos encontrar, na beira do terraço, entre um grupo de mulheres e de homens muito elegantes.
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- Ouve, Catherine - disse-me o meu pai, ao ouvido, ajeitando o chapéu. - Esse senhor louro e magro, que está encostado ao parapeito do terraço, é um grande
costureiro de moda... E, ao lado dele, o senhor que está com calças de cavaleiro, é um jogador de pólo da Ilha de Saint-Do-mingue... Deve ter voltado agora de um
jogo em Paris, na Bagatelle... E essa senhora, que tem um ar tão fino, era a mulher de Sacha Guitry... Olha... Esse senhor, que está a falar com ela, é dono de uma
marca de aperitivos famosa... O seu nome está escrito em todo o lado no metro: DUBO... DUBON... DUBONNET...
O meu pai estava cada vez mais excitado e falava cada vez mais depressa.
- E esse senhor moreno, é o príncipe Ali Khan... Ou pelo menos parece-se com ele... É mesmo o príncipe Ali Khan, Odile?
- É sim - respondeu Odile, sem muita convicção, como se não quisesse contrariá-lo.
O meu pai tentava participar nas conversas. O seu fato castanho-escuro contrastava com os fatos e os vestidos claros e estivais de todos os convidados.
- Quase ia morrendo num desastre com o meu Talbot, ontem - dizia o costureiro célebre, indicando com o dedo o seu automóvel, estacionado lá em baixo. - E,
no entanto, nunca deixarei de ter um fraquinho pelos Talbot.
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- E eu pelos Delahaye - disse o jogador de pólo. - Parece mentira, mas eles agradam-me porque nunca se sabe se os seus travões funcionam bem.
O meu pai apertou com força a minha mão. Percebi que queria ganhar coragem.
- Eu - disse ele, esforçando-se por manter um tom desenvolto -, confesso, mantenho-me fiel à tração à frente.
E apontava com o dedo para um Citroen que estava estacionado numa esquina da rua, em frente ao palacete.
Aparentemente, ninguém tinha ouvido a observação do meu pai. Exceto um dos criados de libré que andavam de um lado para outro com bandejas.
- Mas, repare, senhor: estão a roubar o seu carro - disse ele ao meu pai, apontando para a rua.
De facto, o Citroën, o tal com tração à frente, fora posto em andamento por alguém e desapareceu rapidamente ao virar da esquina.
- Nada disso - disse o meu pai. - É o meu motorista, que foi comprar cigarros...
Depois, voltando-se de novo para o grupo de pessoas elegantes, retomou a conversa que tinha sido interrompida, insistindo:
- A vantagem da tração à frente, é que o carro arranca logo - disse.
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Mas esta frase deixada no ar, assim como a precedente, caiu na indiferença geral. Para tentar descontrair--se, o meu pai bebeu vários cocktails. A Odile continuava
ao nosso lado.
- Odile, gostava muito que me apresentasses aos teus pais, que ainda não tive o prazer de conhecer - disse o meu pai ao fim de algumas bebidas.
A Odile corou, atrapalhada.
- Sabe - disse -, eles estão sempre muito ocupados.
Com um ar embaraçado, a Odile levou-nos, através
da multidão de convidados, até ao outro extremo do terraço.
Uma mulher loura, de óculos de sol e com um vestido azul-pálido, e um homem de cabelos escuros sedosos estavam rodeados por algumas pessoas de aparência tão elegante,
tão sofisticada, como a daquelas cujos nomes o meu pai me tinha revelado há pouco. A Odile disse baixinho para a senhora loira:
- Mamã, queria apresentar-lhe o senhor Certitude.
- Como? - disse a mãe, com um ar distraído.
O meu pai colocou-se diante dela.
- Tenho imenso prazer em conhecê-la - disse, inclinando-se e baixando a cabeça.
Mas a mãe da Odile mal olhou para ele, por detrás dos óculos de sol.
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- Papá... Este é o senhor Certitude - disse Odile, tentando chamar a atenção do homem de cabelos escuros -... E esta é a Catherine Certitude... Sabe... é
minha amiga do curso de dança...
- Muito prazer - disse o meu pai, estendendo a mão.
- Olá - disse o pai da Odile, estendendo-lhe a mão maquinalmente, mal olhando para ele.
E logo depois, o pai e a mãe da Odile retomaram a conversa com os amigos, voltando-nos as costas.
O meu pai ficou imóvel e um tanto desamparado, embora não tivesse perdido totalmente o seu fôlego. Insistiu, declarando:
- Viemos num automóvel... de... tração à frente.
Era uma daquelas frases sem sentido que se lançam no ar sem refletir, só para meter conversa, para chamar a atenção.
O senhor Ancorena franziu levemente o sobrolho, olhando para o meu pai com um ar de quem não está a perceber nada. A senhora Ancorena nem sequer o ouviu por trás
dos óculos de sol.
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*
A Odile fez questão de ir mostrar-me o seu quarto e, quando voltámos ao terraço, o meu pai estava a conversar com um homem corpulento que usava bigode. Falavam numa
língua misteriosa para mim, não percebia nada do que diziam. Depois, o homem foi-se embora, fazendo um gesto como se estivesse a telefonar - o que significava "depois
telefonamos".
- Quem é aquele senhor? - perguntei ao meu pai.
- Alguém muito importante, que vai ajudar-me nos negócios.
Eu e o meu pai dirigimo-nos para a saída. O meu pai olhou para a camioneta, estacionada lá ao fundo, no início da rua. O senhor Chevreau, tendo baixado o vidro da
camioneta do lado do condutor, fazia-nos sinais com o braço, parecendo muito agitado. O meu pai voltou-se e lançou um olhar rápido para o terraço do palacete, de
onde vinham vozes animadas e risos.
- Não foi nada fácil, mas era preciso arriscar - disse o meu pai.
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Dirigimo-nos à camioneta. Odile, que veio a correr atrás de nós, alcançou-nos.
- Porque é que se foram embora sem me dizer adeus?
Sorriu timidamente ao dizer isto, como se pedisse desculpa por ter feito a pergunta.
- Não se aborreceram na festa? - perguntou ainda.
- Não, de maneira nenhuma - afirmou o meu pai. - Pelo contrário, conheci pessoas muito importantes para mim e volto a agradecer-te pelo convite. Querida Odile
- o tom da sua voz tornou-se mais solene -, acho que tu me deste muita sorte. Graças a ti e a ter vindo a este cocktail, a esta festa da primavera, os meus negócios
irão de vento em popa...
Odile não percebeu nada, franziu o sobrolho, e ficou ainda mais surpreendida quando parámos diante da velha camioneta.
- E o seu automóvel? - perguntou.
- Roubaram-no mesmo agora - respondeu o meu pai, muito seguro de si.
Voltou-se para o senhor Chevreau, que esperava impacientemente ao volante da camioneta, e disse-lhe:
- Obrigado por ter vindo, meu amigo. Peço-lhe que tenha a amabilidade de nos levar à esquadra de polícia mais próxima para participar o roubo do meu automóvel.
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A Odile ouviu o que o meu pai disse com extrema atenção e os nossos olhares cruzaram-se. Ela ficou muito corada.
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*
Nas semanas seguintes, nunca mais vi a minha amiga nas aulas do curso de dança. Fiquei muito triste e perguntei à senhora Dismailova se sabia qual o motivo da ausência
da Odile.
- Tudo o que sei - respondeu-me - é que os pais me devem um mês de lições...
O meu pai e eu procurámos saber o seu número de telefone. Na lista telefónica não encontrámos nenhum Anco-rena e o prédio do número 21 do Bulevar de la Saussaye
não constava da lista. Do número 19 passava diretamente para o número 23. Então, decidi escrever uma carta à Odile.
- Seja como for - disse o meu pai -, conto com o Tabélion para me dar o número de telefone dos pais da Odile. Não fiques triste, minha querida... Mais tarde
ou mais cedo, entraremos em contacto com o Tabélion... E então terás notícias da Odile...
Tabélion... Mais um nome que ressoa na minha memória e o seu eco provoca em mim uma grande emoção. Esse
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senhor Tabélion deve ter impressionado muito a imaginação do meu pai: passados trinta anos, ainda guarda o seu cartão de visita na carteira. Mostrou-mo há dias.
Estava um pouco amarelecido pelo tempo:
René Tabélion S. E. F. I. C.
1, Rua Lord Byron (8.º bairro)
Campos Elísios 83-50
O senhor Tabélion tinha sido o único convidado da festa da Odile que dirigira a palavra ao meu pai.
- Ainda te lembras do Tabélion, Catherine?
Sim, lembrava-me bem desse homem corpulento, de bigode, com uma camisa de colarinho aberto, sem gravata, e um cinto de pele de crocodilo, com quem o meu pai falara
numa língua estranha, misteriosa, que eu desconhecia totalmente. Quando voltávamos de Neuilly, na camioneta do senhor Chevreau, o meu pai disse-me:
- Ficarei eternamente grato à tua amiga Odile por nos ter convidado. Falei durante muito tempo com um homem que se chama Tabélion... Fixa bem este nome, Catherine:
Tabélion. Graças a ele, os meus negócios vão melhorar muito. Vai ser uma maravilha!...
E, a partir desse dia, vi o meu pai telefonar frequentemente para os Campos Elísios 83-50. Mas
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ninguém respondia e o meu pai, dececionado, desligava o telefone. Ou então ouvia-o a dizer:
- Posso falar com o senhor René Tabélion, por favor? É da parte do senhor Georges Certitude.... Ah... não está? Diga-lhe, por favor, que me telefone...
Esse tal Tabélion nunca telefonou. E, no entanto, o meu pai acreditou nele, acreditou com uma fé inabalável. Dizia muitas vezes ao senhor Chevreau:
- Sabe, indivíduos como Tabélion não se contentam com cadeiras para passageiros de avião... Querem mais, muito mais, coisas em grande... É aí que está a diferença...
E o senhor Casterade perguntava-lhe com um ar irónico:
- Então, o seu Tabélion? Não dá notícias? O meu pai encolhia os ombros, replicando:
- Você é totalmente incapaz de compreender um homem com a envergadura de Tabélion.
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*
Num fim de tarde de inverno, quando voltávamos a pé da aula de dança, seguindo pela Rua Mabeuge, o meu pai disse-me:
- Catherine, sabes, o meu pai tinha razão. Um dia, ele chegou a Paris, pela Gare du Nord, e decidiu ficar neste bairro. Foi ele que inaugurou o nosso armazém da
Rua de Hauteville. Achou que devia estabelecer-se neste local porque era um bairro com uma estação de caminho de ferro. E assim, se quiséssemos viajar para qualquer
lado, era mais prático... E se nós fôssemos fazer uma viagem, Catherine? Não tens vontade de viajar? Ver novos horizontes, novas terras?
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*
A última vez que fomos à escola de dança, o meu pai disse-me:
- Catherine, sabes, é engraçado... Conheci, há muitos anos, a tua professora, a senhora Dismailova. Ela não me reconheceu, porque, claro, já não sou o jovem que
era nessa altura... Ela também mudou muito. Sabes, nem sempre trabalhei no comércio... Nesse tempo, Catherine, eu era um jovem bem constituído e bonitão e, para
ganhar algum dinheiro, quis ser figurante nos espetáculos do Casino de Paris... Certa noite, pediram-me para substituir um dos "carregadores". "Carregadores", querida
Catherine, são os homens jovens e bem constituídos que devem "carregar", ou seja, levar nos seus braços, as bailarinas do espetáculo. E a bailarina que eu devia
"carregar" era, imagina, a tua mãe! Agarrei-a nos meus braços da maneira que me tinham dito para fazer... Entrei assim em cena, cambaleando, sem óculos... E pumba!...
Caí por terra, em pleno palco! Caímos os dois, aliás! A tua mãe, em vez de ficar
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aflita, teve um acesso de riso nervoso... Tiveram de baixar a cortina do palco à pressa. Ela achou que eu era muito simpático... E foi também aí, no Casino de Paris,
que conheci a tua professora, a senhora Dismailova. Ela atuava nesse espetáculo...
*
E então o meu pai, como se receasse que alguém estivesse a seguir-nos e ouvisse a nossa conversa, caminhou mais lentamente, quase parou, e inclinou-se para mim,
falando-me ao ouvido:
- Sabes, querida Catherine - disse, num tom de voz muito baixo, quase a cochichar -, nesse tempo, a senhora Galina Dismailova não se chamava assim, chamava-se simplesmente
Odette Marchai... E ela não era russa, mas sim originária de Saint-Mandé, no Val-de-Marne, perto de Paris. Os pais dela, ótimas pessoas, eram lá proprietários de
um café-restaurante. Ela convidava-nos muitas vezes para lá irmos, a tua mãe e eu, quando estávamos de folga. Era uma boa colega. Mas, sabes, nessa altura, ela não
tinha nenhuma pronúncia russa, absolutamente nenhuma...
Depois, o meu pai sentou-se, juntamente com as mães das outras alunas, no banco comprido forrado de tecido vermelho, e a aula começou.
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Enquanto fazia os exercícios, ouvia a voz da senhora Dismailova, que na realidade se chamava Odette Marchai, a dizer com pronúncia russa:
- Alonegar... Mudar de lado... Passo de cavalo... Abrir... segunda... Fechar quíneta...
E pus-me a pensar que gostaria de conhecer a sua verdadeira voz...
A aula de dança acabou por volta das sete horas da tarde. A senhora Dismailova disse-nos, despedindo-se:
- Áté aproxima quíneta-fiera, meninas...
Na escada, eu disse baixinho para o meu pai:
- O pai devia falar-lhe e chamá-la pelo seu verdadeiro nome...
Ele deu uma gargalhada e disse:
- Achas que devia dizer-lhe: "Olá, Odette... Então, como vão os nossos amigos de Saint-Mandé?"
Ficou por momentos silencioso e depois acrescentou:
- Não, nada disso... Não podia pregar-lhe uma partida dessas... Ia magoá-la. É melhor deixá-la sonhar, ela e as suas alunas...
77
*
Certa manhã, fui buscar o correio, como habitualmente, para o levar ao meu pai, ansiando por saber se havia cartas vindas da América, da minha mãe, uma para o meu
pai e outra para mim. A carta para o meu pai era muito volumosa e na que era para mim a minha mãe dizia:
"Querida Catherine,
Creio que em breve vamos estar novamente juntos, os três.
Mando-te muitos beijinhos. Com todo o carinho,
A tua mamã."
O meu pai pôs-se a ler a carta que a minha mãe lhe enviou sentado à secretária, com toda a atenção. Quando íamos a caminho da escola, disse-me:
- As notícias que recebi da América são ótimas.
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*
Nesse mesmo dia, o senhor Casterade quis ler-nos um poema seu e nós ficámos a ouvi-lo no escritório. A sua voz monótona e o gesto que fazia com a mão para marcar
a cadência métrica provocavam-me sono, como se estivesse a ouvir uma canção de embalar. Eu mal conseguia manter os olhos abertos.
- ... "Em Castelnaudary, nas noites de outono..."
Tinha tirado os óculos e estava mesmo a adormecer.
De repente, o meu pai interrompeu-o:
- Desculpe lá, Raymond, mas são sete horas e meia e tenho de levar a minha filha a jantar no restaurante Charlot, o Rei do Marisco.
O senhor Casterade ficou todo rígido, hirto, olhou para nós com um olhar de profundo desprezo e fechou, com um gesto lento e solene, a sua coletânea de poemas.
- Que mundo este! - exclamou ele -, um mundo horrível, em que Charlot, o Rei do Marisco, é mais importante do que um poeta francês! E em que se prefere uma
dúzia de ostras a um belo alexandrino! Pois bem: desejo--vos bom apetite.
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O meu pai pigarreou. Depois, declarou com uma voz solene:
- Raymond, tenho uma coisa importante a dizer-lhe: eu e a minha filha vamos para a América.
Fiquei tão estupefacta com o que o meu pai acabara de anunciar que pus logo os óculos, como se quisesse cer-tificar-me de que não tinha sonhado. O senhor Casterade
ficou imóvel, como que petrificado, diante da porta do escritório.
- Para a América?! - exclamou. - Vão partir para a América?
- Sim, Raymond, ouviu bem.
O senhor Casterade voltou para trás e deixou-se cair na cadeira giratória da sua secretária.
- E eu? - perguntou, com um tom de voz cavo, sumido. - Será que pensou em mim?
- Sim, Raymond, claro que pensei em si. É muito simples. Vou deixar-lhe o armazém. Falaremos disso amanhã, com calma.
O meu pai agarrou-me pelo braço e levou-me com ele para fora do armazém, deixando o senhor Casterade sentado à secretária, repetindo maquinalmente, como se ainda
não pudesse acreditar no que tinha ouvido:
- Para a América... a América!... Mas como é possível fazerem-me uma coisa destas?
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*
- Se te convidei hoje para jantar - disse o meu pai, já no restaurante -, foi para te falar da nossa viagem... É verdade, minha querida Catherine, vamos partir
para a América... Para a América, onde vamos ter com a mamã...
O meu pai chamou o empregado do restaurante Charlot, Rei do Marisco, pediu os nossos pratos e mandou vir para mim, como sobremesa, um pêssego chamado "Mel-ba", um
pêssego em calda de framboesa, com gelado de baunilha e natas. Depois, acendeu um cigarro e disse:
- Sabes, Catherine, quando a tua mamã voltou para a América, há três anos, fiquei muito triste, mas ela queria ir para lá viver, era a sua terra... Prometi-lhe
que iríamos ter com ela logo que possível, logo que resolvesse todos os meus negócios que estavam pendentes, aqui, em França. Chegou a hora... Vamos ficar novamente
juntos os três, na América... Aliás, a tua mãe já tinha previsto isso, logo que nos conhecemos, muito antes de tu teres nascido, quando fazia parte da companhia
de bailado de Miss
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Maekers... Costumava dizer-me: "Albert (nesse tempo, chamava-me Albert): vamos casar, teremos uma menina e viveremos os três na América..." A tua mamã tinha razão...
Mas não te distraias... come o teu pêssego... O gelado vai derreter... Queres que te dê a tua primeira lição de inglês?
E então, o meu pai, articulando muito bem as sílabas, disse-me:
- Em inglês, "pêssego Melba" diz-se como em francês, "pêche Melba" (sabes, a receita é de um cozinheiro francês do Hotel Savoy, em Londres, no século XIX, dedicada
a uma famosa cantora de ópera australiana que se chamava Melba), mas diz-se com pronúncia inglesa... E "gelado" é "ice cream"...
Quando saímos do restaurante ainda havia luz do Sol. Era verão. Nesse tempo, havia autocarros com plataforma traseira e táxis pretos e vermelhos, que esperavam na
Praça Clichy. E havia o cinema Gaumont-Palace. E castanheiros por todo o lado.
- Que tal se fôssemos para casa a pé? - disse o meu pai. - Está um tempo tão agradável, tão ameno, que poderíamos ainda passar por Montmartre...
Seguimos pela Rua Caulaincourt e o meu pai passou--me o braço em volta dos ombros.
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- Vou reservar bilhetes de barco para o próximo mês, Catherine. A mamã irá esperar por nós no porto de Nova Iorque...
Pensei na minha mãe. Ficaria contente por voltar a vê--la, depois de todos esses anos de separação.
- Em Nova Iorque, irás para uma escola onde aprenderás inglês. E será a tua própria mãe que te dará aulas de bailado. Sabes, ela dança muito melhor do que
a senhora Dismailova... Quando conheci a tua mãe, ela já era estrela da companhia de Miss Maekers... E eu, como já te contei, quase consegui ser "carregador" profissional...
Tínhamos descido as escadas da colina de Montmartre e o meu pai, de repente, pegou em mim, ergueu-me no ar e carregou comigo ao longo da Avenida Trudaine, como fazia
dantes no Casino de Paris.
- Não tenhas medo, Catherine - disse ele. - Não deixo que caias. Fiz progressos desde a última vez...
86
*
No decorrer da semana seguinte, o meu pai, o senhor Casterade e o senhor Chevreau reuniram-se várias vezes no armazém. Vi-os a assinar uma grande quantidade de documentos.
O senhor Casterade falava com um tom de voz cada vez mais autoritário.
- Assine aqui, Chevreau... E você, Georges, aqui... Não se esqueçam de escrever: "Estou de acordo"...
Certa noite, quando iam a sair do armazém, estando o meu pai ainda no escritório, sentado à sua secretária, ouvi o senhor Casterade dizer para o senhor Chevreau:
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- E a partir de agora quero que tudo se passe às claras, que tudo seja transparente... Nada de trapalhices... Nada de combinações feitas às escondidas e à
última hora... Quero que tudo seja estritamente legal. Está a perceber, Chevreau? A partir do momento em que formos os dois, oficialmente, proprietários do armazém,
será necessário cumprir sempre a lei, para vivermos sossegados.
- Claro, claro - disse Chevreau.
E o senhor Chevreau abanava a cabeça, com um ar ausente, como se, ao mesmo tempo, pensasse noutra coisa e tivesse nostalgia do passado.
O meu pai veio buscar-me à saída da escola, como habitualmente, e seguimos pela Rua de Hauteville fora até à nossa casa. Para minha grande surpresa, um operário,
numa escada, tinha acabado de mudar a tabuleta do armazém. As letras já não eram, em azul-marinho, " C ASTER A-DE & CERTITUDE - Exp. - Trans.", mas sim "CASTE-RADE
& CHEVREAU, sucessor". Os carateres vermelhos de CASTERADE brilhavam ao sol e ocultavam os carateres mais pequenos, minúsculos, de Chevreau. O senhor Caste-rade
estava, muito direito, emproado, diante da porta do armazém, de braços cruzados e com um ar todo contente de proprietário.
- Podia ao menos ter esperado um pouco - disse o meu pai. - É como se nós já nos tivéssemos ido embora...
89
*
O senhor Casterade quis reunir-nos para um jantar de despedida, no restaurante Picardie, na Rua de Chabrol. Chevreau também veio. No início da refeição, o senhor
Casterade levantou-se da cadeira com uma folha de papel na mão. Era um poema, que tinha escrito para celebrar a nossa partida para a América.
"Na proa do navio que voga pelos mares a caminho da América,
Não vos esqueçais dos vossos amigos de Paris, Pois, se Nova Iorque é bela e a Broadway feérica, Não devem desprezar o nosso Parque Montsouris." Aplaudimos, o meu
pai, o senhor Chevreau e eu. Estava muito emocionada. Pela primeira vez tinha realmente ouvido um poema do senhor Casterade até ao fim. E com os óculos postos.
Depois do jantar, caminhámos, o meu pai e eu, em direção à igreja São Vicente de Paulo. Sentámo-nos num banco do pequeno jardim.
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- Vais ver, Catherine - disse o meu pai -, vamos ser muito felizes na América...
Acendeu um cigarro, revirou a cabeça e fez um círculo com o fumo do cigarro.
- Em breve estaremos no Novo Mundo... The New World... Mas como diz Casterade, não devemos esquecer a velha França...
No momento, não prestei grande atenção àquela observação do meu pai.
Só agora, passados tantos anos, julgo ouvi-la claramente e compreendê-la, como se voltasse a ser a criança daquela noite, sentada no banco do pequeno jardim de São
Vicente de Paulo.
Penso muitas vezes na minha escola, na Rua des Petits--Hôtels, nesse pequeno jardim onde brincava com os meus colegas, nas tardes poeirentas de verão, no nosso armazém
e na balança em que eu e o meu pai nos pesávamos. Penso no senhor Casterade a ler-nos os seus poemas. E também na senhora Dismailova, cuja verdadeira voz nunca ouvi.
Afinal, somos sempre os mesmos, e aquilo que fomos no passado permanece connosco até ao fim. Por isso, haverá sempre uma rapariguinha chamada Catherine Certi-tude
que continuará a passear com o seu pai pelas ruas do X.º bairro, em Paris.
91
*
Ontem, domingo, fui com a minha filha visitar os meus pais, em Greenwich Village. Desta vez, ficarão juntos até morrer, apesar de a minha mãe por várias vezes ter
ameaçado separar-se, pois está farta das "trapalhadas do teu pai" - como ela diz, no seu francês com pronúncia americana. O senhor Smith, o novo sócio do meu pai,
que é tão miudinho como era o senhor Casterade, partilha totalmente da opinião da minha mãe.
O táxi deixou-nos junto do grande prédio de tijolo onde vivem. Lá em cima, numa das janelas do apartamento, vi a silhueta do meu pai. Pareceu-me que estava a ajeitar
o nó da gravata. Talvez dissesse ainda: - Vamos lá a isso, Senhora Vida!
Patrick Modiano
O melhor da literatura para todos os gostos e idades