Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HISTÓRIA DE JOAB DE TIRO / Zé Rodrix
A HISTÓRIA DE JOAB DE TIRO / Zé Rodrix

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A HISTÓRIA DE JOAB DE TIRO

Primeira Parte

 

Nasci no mês de Nisan durante o vigésimo segundo ano de reinado de Abchal, pai de Hiram, sobre a cidade de Tiro. Nossa cidade, mesmo vencendo a guerra em que tínhamos sido aliados dos hebreus contra os filisteus, tinha perdido grande parte de seus homens, tornando-se a cidade das viúvas, no dizer de seus invejosos detratores. A estas mulheres sem marido, que tinham a responsabilidade de criar seus filhos e cuidar de suas famílias, pouca coisa restava a fazer. Sendo Tiro um porto comercial de grande importância, vivíamos literalmente invadidos por gente de todos os cantos do mundo, e minha mãe decidiu transformar nossa confortável casa em uma hospedaria. Não estávamos assim tão perto do porto: em verdade ficávamos no continente e não na ilha de Tiro, mas o que poderia ser um fator prejudicial acabou se convertendo em uma vantagem. Nunca éramos procurados pela escória que sempre é a maior parte dos navegantes de todo o mundo. Nosso estabelecimento, nunca ficando superlotado como os mais próximos ao porto, era freqüentado por gente de melhor qualidade, que procurava descanso e bom tratamento. Minha mãe Tirzah, ajudada por minhas quatro irmãs mais velhas e por mim, controlava os negócios com mão de ferro, sem perder a afabilidade e a boa educação que tinham sido o ponto de maior interesse nas negociações de casamento entre ela e meu pai. A razão da boa freqüência, que se tornou a marca da hospedaria de minha mãe, é o começo da vida que eu vim a viver no estrangeiro, a qual nem sonhava pudesse ser possível. Mas para que isso fique claro, é preciso que eu conte histórias das quais só ouvi falar, já que se deram antes que eu visse a luz do sol nesse lado do mundo conhecido.

Minha mãe tinha vindo de uma família de abastados negociantes de tecidos e seu casamento com meu pai, importante oficial do exército de Tiro, sempre fora feliz e produtivo, mesmo estando nosso pai mais ausente de casa que presente, por força de sua profissão. Tiveram quatro filhas, nascidas sempre nove meses depois do estabelecimento da paz entre Tiro e seu último inimigo vencido. Quando eu nasci, minha irmã mais nova, Sibat, já tinha doze anos de idade. Meu nascimento ocorreu em um raro período de paz continuada e de excelentes negócios, e minha infância foi excepcionalmente calma e bem organizada. Em homenagem ao comandante-em-chefe dos exércitos dos israelitas, a quem meu pai admirava incondicionalmente, ganhei o sonoro nome hebraico de Joab. Quando completei dez anos de idade, Tiro novamente foi forçada a entrar em guerra contra os filisteus. O esforço de guerra do rei Abchal, em apoio ao rei David, demonstrava seu desejo de que essa guerra fosse definitiva, destroçando qualquer inimigo que pudesse pensar em combatê-lo, reafirmando de uma vez por todas a superioridade dos homens de Tiro sobre qualquer outro reino, excetuando-se o do rei David.

Recordo com muita precisão o dia em que meu pai, com sua farda de combate, foi acordado por seus soldados a cavalo para que assumisse seu lugar à frente da tropa. Nós nos despedimos dele com a mesma solenidade com que Tiro se despediu de seu rei, que pela primeira vez iria participar de uma grande batalha. Eu, ainda inconsciente dos funestos resultados que essa despedida traria para mim e minha família, estava fascinado pelo ruído dos cascos e das armas, e me recordo vivamente de ter imitado a saudação militar enquanto os soldados desciam nossa rua em direção ao porto. Alguns meses depois, enquanto Tiro comemorava uma vitória absoluta contra os inimigos de seu aliado, o rei David, nossa casa se fechava em luto. Meu pai tinha morrido em combate franco contra os filisteus naquela que seria a última batalha da mais sangrenta guerra já lutada. A notícia de sua morte se confundiu com os festejos de vitória, e eu, na inconsciência dos meus quase dez anos, não entendia muito bem que meu pai, dessa vez, fosse demorar mais que das outras vezes.

A família de minha mãe, como bons negociantes que eram, ainda tentou casá-la com um de meus tios, irmãos de meu pai, como reza a tradição. Mas todos eram soldados, com exceção de Jubal, o coxo, e minha mãe fez valer sua vontade, contrariando todos os seus parentes:

— Já sou uma velha, cheia de filhos. Ninguém vai me querer, e isso é muito bom. Minhas meninas breve estarão se casando, e eu prefiro cuidar de meu único filho, para que nunca venha a ser um soldado como o pai.

Muita gente se ofendeu com isso, e tanto a família de minha mãe quanto a de meu pai cortaram relações conosco. Então esta louca se recusava a seguir a tradição? Não sabia que a herança de seu marido se perderia, já que mulheres não podem herdar? Mas minha mãe insistiu em sua posição, baseada unicamente em minha existência. Durante muitos anos, enquanto teve minhas quatro irmãs, foi conhecida apenas como a filha de Mair, seu pai. Meu nascimento tinha dado a ela o novo e respeitável título de mãe de Joab, e era em minha existência e sobrevivência que ela se apoiava para manter uma vida independente, coisa inaceitável pelo pensamento tacanho da época. Seus parentes exigiam que ela voltasse a ser responsabilidade da família, já que não desejava casar-se com nenhum de seus cunhados. Mas ela fez pé firme e recusou-se a ouvir qualquer outra palavra sobre o assunto, e ainda ameaçou recorrer ao próprio rei Abchal se acaso algum de seus parentes tentasse apossar-se dos bens de seu marido morto. O único a manter seus laços com minha mãe e mesmo a ampliá-los foi meu tio Jubal, escriba de profissão. Numa época de grandes embates pela supremacia desse lado do mundo, nove em cada dez homens abraçavam a carreira militar, e a meu tio só restara o trabalho intelectual, essencial nos períodos de paz, quando os negócios florescem. Sua banca de escriba era a mais procurada no porto de Tiro, e a partir de certa data sua assinatura tomou força de selo oficial, tamanha a procura que havia por seus serviços. O próprio rei Abchal já fizera uso de suas capacidades mais de uma vez, e isso como que oficializara meu tio, transformando-o em um grande sucesso entre seus pares. Não havia negócio que não passasse por sua mão, e o comentário geral era de que Jubal, o coxo, devia ser mais rico que um Faraó do Egito.

Ao saber da opinião de minha mãe sobre o casamento e a profissão de militar, meu tio veio nos visitar. Minha mãe o recebeu de cara fechada, mas a afabilidade e a simplicidade de meu tio foram lentamente conquistando a todos. Confesso que, quando o vi apeando de seu dromedário à porta de nossa casa, não pensei nada de bom. Ao saber que era meu riquíssimo tio coxo, esperei que debaixo de sua túnica branca saltassem riquíssimos presentes. Depois da conversa dele com minha mãe, tive a nítida impressão de que nossa vida iria mudar. E realmente mudou, mas eu só pude ter certeza disso alguns anos depois, quando comecei a compreender as diferenças entre nossa vida e as vidas de tantos outros compatriotas.

Anos mais tarde eu tomei conhecimento da proposta que meu tio Jubal viera fazer a minha mãe, a louca Tirzah, como vinha sendo chamada por seus parentes de ambos os lados. Para que nada de mau acontecesse, e em honra a meu pai, seu irmão recém-falecido, meu tio Jubal propôs à minha mãe um casamento de conveniência. Casar-se-iam oficialmente, e ela passaria a ser sua esposa de direito, mas não de fato, pois era desejo de ambos, meu tio e minha mãe, manter a vida exatamente como era até esta data, sem mudanças bruscas de qualquer tipo, mais inaceitáveis ainda a partir do fato de que não havia laços afetivos a unir os dois. Minha mãe a princípio recusou com veemência a estranha idéia de seu cunhado coxo, mas seus poderes de persuasão eram quase infinitos, e ela finalmente concordou.Todas as condições que minha mãe impôs para que o enlace se fizesse meu tio Jubal aceitou. Seu interesse, como mais tarde todos viemos a descobrir, não era material. Suas posses como escriba oficial do porto de Tiro estavam infinitamente acima das nossas. Não era também carnal, pois meu tio, desde muito cedo consciente de seu defeito físico, aparentemente abrira mão de qualquer desejo mundano. Refugiava-se dos prazeres do mundo em sua impressionante biblioteca, que mais tarde vim a conhecer. Quando os desejos da carne se faziam mais fortes do que ele mesmo, visitava uma sua casa na aldeia de Abel-beit-Maaca, voltando depois de alguns dias, pacificado e satisfeito.

O casamento, por assim dizer, de minha mãe e meu tio veio a satisfazer as tradições de suas duas famílias, que mesmo desconfiando do que haveria por trás de tão inesperada aliança, e irritados por ter perdido o controle sobre os bens de minha mãe, deram suas bênçãos aos dois. Meu tio transferiu uma parte de seus arquivos pessoais para uma sala no segundo andar de nossa casa, e aquele ficou sendo conhecido como o seu quarto. Ele passou a nos visitar com regularidade, depois de um certo tempo começou a receber determinados parceiros de negócios que requeriam um pouco mais de privacidade, chegando mesmo a passar conosco o dia de descanso, assumindo publicamente o papel de marido de sua cunhada e de pai de seus sobrinhos.

Num momento difícil como o que estávamos por viver, a presença quase que oficial de meu tio Jubal se revelou uma bênção. A hospedaria que minha mãe começava a fazer funcionar se beneficiou muito da existência de meu tio como aparente chefe da casa. Se era minha mãe quem verdadeiramente controlava e gerenciava a hospedaria e a casa, cuidando também das vidas de seus filhos, a fama e a presença de nosso tio e padrasto faziam com que a freqüência de hóspedes necessária ao bom andamento dos negócios fosse constante e de muito boa qualidade, como já mencionei antes. A extrema discrição de minha mãe, aliada ao excelente serviço que ela e minhas irmãs prestavam aos usuários do lugar, correu rapidamente, e quem fazia questão de um serviço de qualidade vinha invariavelmente hospedar-se conosco.

Houve, no início, quem se enganasse. Uma casa comandada por uma mulher, com quatro filhas em idade núbil dispostas a um serviço de qualidade, fez com que alguns homens se enganassem quanto ao verdadeiro objetivo de nossa hospedaria. Me recordo de uma noite em que quatro marujos, um deles um cabeludo grego de sobrancelhas hirsutas que parecia ser o piloto de seu navio, entraram em nosso estabelecimento desejando vinho e diversão. O vinho seria possível, já que meu tio tinha cuidado para que nossa adega incluísse o que de melhor e mais caro havia. Mas a diversão que o grego desejava incluía algumas horas de luxúria desenfreada sobre a cama de uma de minhas quatro irmãs. Eu entrei rapidamente na sala ao ouvir o primeiro grito de minha irmã Sibat, a mais nova, e notei com estranheza que meu tio coxo, que em condições normais se movia com a lentidão de um cágado, tinha descido a escada e chegado à sala mais depressa do que eu. Sua bengala de madeira de roseira descreveu um arco muito largo e acertou os nós dos dedos do grego, enquanto sua outra mão afastava minha irmã da mesa, pondo-a atrás de si. O grego, fulo de ódio, arrancou de dentro de sua curta túnica uma faca curta e começou a brandi-la na direção de meu tio:

— Aleijado dos demônios! Vou te arruinar o outro pé!

Não sei se foram os vapores do álcool que lhe envolviam a cabeça ou o inesperado da situação, mas o grego não foi feliz. A bengala de meu tio ergueu-se pelo outro lado e, com um movimento curto, acertou a têmpora esquerda do grego, que arregalou os olhos, balançou sobre os pés e caiu para trás, com um ronco surdo. Seus amigos tentaram reagir, mas a bengala de meu tio começou a descrever meios-arcos muito rápidos no ar. Nesse momento outros hóspedes da casa, irritados com os acontecimentos, avançaram na direção do grupo. Os outros três homens, vendo que a situação não lhes era favorável, viraram as costas e saíram em desabalada carreira.

Meu tio Jubal, novamente coxeando, e com um esgar de dor no rosto, pediu ajuda a dois fregueses mais fortes e arrastou o corpo inerte do grego para fora da casa, jogando-o em um monturo. Depois de algum tempo os três voltaram para dentro, com uma expressão séria na face, e meu tio se encarregou de tentar tranqüilizar minhas irmãs e minha mãe:                      - Fiquem calmas. Não foi nada sério. Se pensarmos com correção veremos que, na verdade, isso foi a melhor coisa que poderia ter nos acontecido. Duvido que a partir de hoje qualquer embarcado que venha a essa hospedaria confunda as coisas.

Meu tio agradeceu com gravidade aos hóspedes que o tinham ajudado e subiu para seu quarto, acompanhado por minha mãe, que ainda tremia de medo e ódio, e os dois conversaram longamente. No dia seguinte tudo estava de volta ao normal, e depois de alguns dias o incidente ficou como que esquecido. Mas o que nunca me saiu da memória é o seguinte fato: eu acordei no meio da noite, ouvindo ruídos do lado de fora da casa. Arrastei-me, ainda sonolento, até uma janela, e vi no beco atrás de meu quarto os três marujos remanescentes da noite anterior carregando o que me pareceu ser o corpo do grego cabeludo. Achei estranho o seu silêncio e a maneira como carregavam o corpo. Só muitos anos mais tarde, ao me recordar do fato, é que percebi que o corpo do grego não tinha cabeça. Não soube na época como essa cabeça se perdeu e nem compreendi os motivos e os meios pelos quais isso possa ter acontecido. O que posso garantir é que aquilo que tio Jubal dissera efetivamente aconteceu: nunca mais houve nenhum tipo de incidente desagradável em nossa casa, pelo menos no tempo em que ainda permaneci ao lado de minha mãe e minhas irmãs.

Minha vida correu tranqüila nos poucos anos que se seguiram à morte de meu pai. Por ser o filho mais moço, e único varão em uma casa de mulheres, acabei sendo tratado como um pequeno rei. Poderia ter me transformado em um pequeno tirano, se não fosse a rigidez de minha mãe. Ela me mantinha em um imutável círculo de tarefas braçais que se repetia todos os dias, sem exceção. Era meu dever transportar água em dois baldes de madeira do poço para as grandes bilhas na cozinha, com as quais se cozinhava e se enchiam as tigelas dos hóspedes. Eu também tinha de alimentar as aves da capoeira no fundo da casa e cuidar do pequeno rebanho de cabras que forneciam o leite, ajudando também a queijeira que vinha de semana em semana para transformar o leite talhado em frescas bolas brancas de queijo, que eram imediatamente postas a conservar dentro de azeite perfumado com alecrim e estragão. Por mais cansativas que fossem essas tarefas, acabaram ocupando de forma quase que absoluta o meu tempo, incutindo em meu espírito o hábito da disciplina férrea. Com tanto a fazer, não me restava sequer um instante para conviver com os meninos de minha idade, que passavam o dia em uma interminável e constante brincadeira de guerra. Minha mãe me mantinha o mais longe possível deles e exigia de mim uma obediência estrita a seus desejos. Eu acordava cedo, quando o sol ainda tingia de rosa-escuro o horizonte, e executava minhas obrigações de forma contínua, parando apenas para comer e descansar. O período diurno de descanso sempre se dava logo depois do meio-dia, quando tudo como que se interrompe e um silêncio sepulcral toma a natureza. Nessa hora eu me deitava debaixo de uma velha e nodosa oliveira que ficava perto do grande poço que meu tio mandara escavar, e ficava olhando o céu azul, os formatos das raras nuvens, ouvindo os cantos longínquos dos pássaros e às vezes os ruídos das equipagens lá longe no porto de Tiro, sentindo os perfumes que se elevavam das casas à nossa volta: coentro, cardamomo, canela.

Um dia, já no segundo ano dessa nova vida de hospedeiros e sob a proteção de meu tio, a minha rotina de todos os dias foi interrompida por minha mãe que me chamava da cozinha. Entrei correndo e ela, cercada por minhas quatro irmãs, me olhou com seriedade:

— Joab, seu tio precisa que você vá vê-lo. Coloque suas sandálias e vá procurá-lo no porto.

Minha alegria foi flagrante. O porto! O centro da vida da cidade de Tiro! O lugar onde tudo acontecia, tão importante para nossa cidade que o próprio rei Abchal era encontrado lá com mais facilidade do que em seu palácio real. Nós, fenícios, já tínhamos sido senhores absolutos de toda a costa da Palestina, por conta de nossa infinita capacidade marítima. Mas o tempo e os combates nos reduziram à condição de vassalos dos israelitas. Se éramos guardiãs da estrada do mar e uma espécie de tampão entre os egípcios e os filisteus, quando o rei David os venceu em definitivo, seu filho Salomão mais tarde manteve o respeito à nossa supremacia nas águas. Éramos vassalos respeitados, de primeira qualidade, e o próprio David, e mais tarde seu filho Salomão, mesmo dispondo de portos exclusivamente israelitas, não faziam negócio sem contar com a participação fenícia. O porto de Tiro, centro do poderio fenício, era a jóia desse litoral, com seu golfo natural extremamente confortável e seguro.

Eu tinha ido ao porto apenas uma vez, montado nos ombros de meu pai, que pretendia me exibir a seus companheiros de farda, e a memória desse dia se esvaíra como um sonho antigo. Logo após ele morreu e minha mãe, que tinha lá suas razões para isso, me manteve à parte da cidade de Tiro, preso à barra de sua saia e sempre ao alcance de sua voz. Essa oportunidade eu não podia perder. Calcei minhas sandálias e, montando um jumentinho da casa, desci a encosta do nosso bairro, atravessando a cidade de Tiro em direção ao porto. Minha vida era tão regrada e comum que essa simples mudança, esse passeio sobre o lombo de um jumento pelas ruas calçadas de pedras da velha Tiro, me enchia o coração de alegria. Desci a pequena colina do meu bairro e, na planície ocupada por plantações de oliveiras e uvas, segui uma trilha que se alargava cada vez mais, transformando-se em uma estrada. O tráfego também crescia na mesma proporção: eram carroças, caravanas, filas de carregadores, que chegavam e saíam da região do porto. O cheiro de mar, que em nossa casa era apenas um eflúvio delicado e refrescante que se sentia em certas horas do dia, ficava cada vez mais forte, penetrando minhas narinas como se fosse o odor das azeitonas que esmagávamos no lagar, ao fundo de nossa casa, quando da época de colheita dos frutos e fabricação do azeite. O tráfego crescia cada vez mais, e eu cheguei a pensar que talvez fosse essa a razão do alargamento progressivo da estrada, que agora já era larga o suficiente para que pelo menos uma dúzia de carroças carregadas andassem por ela lado a lado sem ao menos roçarem umas nas outras.

Na última volta da larga estrada, que encimava o porto a cavaleiro, descendo até o molhe num suave declive, eu já pude ver os navios ancorados, tanto os da frota do rei Hiram, os tipos para viagens de grande distância, como os navios do rei David, bojudos e curtos, com suas velas quadradas. Se antes David e Baahiram tinham sido senhor e vassalo, o tempo e a convivência os haviam transformado em parceiros sócios igualitários em todos os empreendimentos possíveis, beneficiando tanto o reino dos israelitas quanto o nosso. David, ao contrário de Saul, elevara Israel a um lugar nunca dantes ocupado, e mais tarde seu filho Salomão, estando muito bem colocado entre o Egito e a Anatólia, transformou-se no maior exportador de carros e de cavalos de todos os tempos. Os carros eram comprados de seus fornecedores egípcios, às ordens do Faraó, e os cavalos dos capadócios, reconhecidos em todo o mundo civilizado, como os melhores, a eles eram atrelados, formando um produto combinado de grande demanda. Salomão percebera que os leves e ágeis carros de combate dos egípcios, aliados aos nervosos e explosivos cavalos capadócios, formavam uma arma de guerra imbatível, e vagarosamente estabeleceu para seu reino o monopólio dessa combinação de grande sucesso. Até mesmo as cidades da Grécia andavam comprando carros de combate nas mãos do rei de Israel, dada a fama que esses veículos tinham alcançado. E a fortuna do rei Salomão, que já era grande quando ele recebeu o reino das mãos de seu pai, aumentou mais e mais a cada dia, fazendo com que ele ficasse conhecido como o homem mais rico do mundo, quem sabe mesmo mais rico que o mais rico dos Faraós do Egito. Quando fui até o porto, no entanto, ainda era o tempo do rei David, que mesmo velho e alquebrado era o mais importante de nossa região.

O molhe, construído com pedras das montanhas de Tiro, aproveitava o desenho natural da costa, que tinha criado uma baía profunda e ovalada, com uma grande abertura voltada para o norte. Por questões da própria natureza, essa baía era o abrigo mais seguro que havia para navios de qualquer porte. Uma vez atravessada a barra desse porto natural, não importa o estado em que o oceano estivesse, o navegador encontrava mar calmo e estável, quase que um espelho, pois as colinas e montanhas que cercavam essa baía a protegiam de ventos de terra e de mar. Um grande trapiche de pedra, da mesma largura da estrada, ligava o continente à ilha de Tiro, onde estava o centro de poder da nossa cidade. Lá ficavam o palácio do rei Hiram e os grandes armazéns de sua frota mercante, todas essas construções a curta distância umas das outras, para que tanto as funções políticas quanto as administrativas pudessem ser realizadas sem dificuldade. Meu jumentinho tropicava nas pedras do caminho, e eu nem percebia. As imagens, os cheiros e os sons do porto de Tiro tinham toda a minha atenção neste momento. Entre gritos de carregadores, camelos e elefantes, ruídos contínuos das rodas de carroça e das polias que elevavam grandes cargas até quase o céu, descendo-as cuidadosamente no porão de um navio, o ranger do madeirame de navios de todos os tamanhos, os passos inseguros de meu jumentinho não eram nada. Fui passando no meio dessa confusão organizada, que se movia em volta das grandes tendas usadas como armazéns provisórios, até chegar aos edifícios de estoque onde meu tio Jubal, o coxo, tinha sua oficina. Eu não sabia que este seria o último dia de minha primeira vida, e que o que se apresentava para o meu futuro me levaria ao mais profundo da terra e de mim mesmo, transformando-me de criança em homem e de homem em alguma coisa mais próxima do deus que me havia criado, e de cuja existência eu nem sequer suspeitava.

 

Os edifícios dos armazéns no porto de Tiro tinham a altura de dois andares normais de uma casa, e suas salas sucessivas eram separadas por grandes arcos de sustentação construídos com a resistente madeira de cedro que nossa terra produzia em grande quantidade, preenchidos com os tijolos de barro endurecido ao sol que os israelitas tinham aprendido a fazer no tempo em que ainda eram escravos do Egito, e que depois ensinaram a todos os seus vizinhos. Uma trama de vigas de madeira encaixadas umas nas outras permitia que alguns desses prédios, entre o teto e o chão, exibissem grandes jiraus também de madeira, sobre os quais grandes tendas de pano claro eram erguidas. O escritório de meu tio Jubal era assim, e quando eu cheguei à porta do grande armazém, que não era mais que uma sucessão de salões cheios de mercadorias as mais diversas, os cortinados de sua grande tenda suspensa estavam abertos, e ele se debruçava na balaustrada de pau e corda, gritando com um de seus carregadores núbios:

— No armazém do fundo, N'Gumbo! Tudo o que vem do outro lado da Anatólia tem de ficar no armazém do fundo!

Nesse momento meu tio me viu, parado de boca aberta à porta do armazém, e ergueu os braços no ar:

— Filho! Bem-vindo ao meu humilde escritório!

Eu dei dois passos para dentro, saindo do sol, e meus olhos começaram a se acostumar com a relativa penumbra dos salões. O que mais me chamou a atenção não foram as pilhas gigantescas de grandes fardos embalados em lona, madeira, palha e corda, nem a luz muito branca que entrava pelas aberturas articuladas do teto, mas sim a grande quantidade de homens de todas as cores, tamanhos e raças. Eu nunca tinha visto tanta gente diferente junta, e sua variedade quase me tonteou. Mais tarde vim a conseguir reconhecê-los e às suas diferenças, mas isso tomou um bom tempo da educação para a minha segunda vida. Eram cananeus e sidônios, moabitas e amalecitas; núbios de pele retinta como o piche; escravos filisteus e qanaanitas emaciados pela fome e maus-tratos; egípcios de todos os tipos, sempre exiguamente vestidos de saiote e sandálias, sempre com a cabeça coberta; também de cabeça coberta, israelitas de branco e azul, sérios e silenciosos, que só trabalhavam seis dias por semana; e mais carregadores assalariados arrebanhados em nossa própria cidade, além de uma miríade de jovens espadaúdos e homens feitos, cada qual servindo a seu próprio senhor quando serviam a meu tio Jubal, que, aparentemente feliz em me ver, bateu várias vezes com sua bengala no chão do jirau, conseguindo silenciar seus funcionários:

— Este é meu filho Joab, meu herdeiro escolhido. Hoje é seu primeiro dia aqui, e portanto deve ser tratado com as honras que meu filho e meu herdeiro merece. Mas a partir de amanhã, esqueçam seu parentesco comigo: ele será mais um de vocês, e deverá sobreviver por seus próprios méritos. Essa é a lei do mundo: quem não aprende a viver, não sobrevive.

Houve uma pausa muito curta, e imediatamente, como que seguindo uma ordem que eu não pudesse ouvir, todos retomaram suas atividades, circulando à minha volta como se já fosse o dia seguinte e eu já tivesse me tornado um seu igual. O burburinho era intenso, e meu tio, com um aceno, me convidou para que galgasse a estreita escada de madeira que se projetava em ângulo pelo lado do jirau. Eu o fiz e terminei por entrar na tenda de meu tio, completamente perdido. Ele percebeu meu desassossego e me indicou uma almofada bordada, aos pés da mesa baixa onde se acumulavam diversas tabuinhas de cerâmica, gravadas com sua letra perfeita:

— Entendeste por que eu te chamei aqui?

Uma vontade infinita de chorar me apertava a garganta, mas eu consegui me controlar e acenei que sim. Meu tio me pôs nas mãos um cacho de douradas tâmaras secas, amarradas com uma cordinha de palha à maneira egípcia, indicando que eu as comesse. Bendita sensibilidade de meu tio Jubal, que, certamente percebendo a minha emoção, fez com que eu ocupasse as mãos e a boca, em vez de cair no choro sentido que se avizinhava. E meu tio, com um sorriso suave e franco, começou a me contar como eu iria viver, de agora em diante:  __ Meu filho, nada te foi dito a pedido de tua mãe, que temia tua cão ao que preparamos para o teu futuro. Ou tu pensavas que a vida A aguadeiro de uma hospedaria era tudo o que estava no teu caminho? Tua mãe traçou por negação o rumo da tua vida, quando impediu tu de todas as maneiras, te tornasses um soldado como teu pai. E a vida de soldado, meu filho, francamente te digo: não vale nada. Tua mãe tinha carradas de razão em sua decisão, e foi por concordar com ela que eu tenho feito o que posso para ajudar. Minha opinião sobre a vida militar é mais terrível que a dela. Quando um homem decide ser soldado, isso indica que o seu caráter é mau e sua índole pior ainda. Eu admirei a posição franca de tua mãe, e passei a admirá-la mais quando vi o quanto ela te protegeu das estúpidas brincadeiras infantis que transformam todos os meninos em pequenas cópias sanguinárias de seus pais. O núbio chamado N'Gumbo subiu as escadas, trazendo dois copos de vidro egípcio colorido, de formato cônico. Dentro deles estava um líquido amarelado, com forte cheiro de cevada. N'Gumbo colocou os copos à nossa frente e desceu as escadas de costas, sempre com a cabeça curvada. Meu tio me fez um sinal para que bebesse:

— Isso se chama cerveja. É uma bebida egípcia feita de cevada e lúpulo. Existe quem goste dela mais fraca, mas eu prefiro assim, quando a fermentação faz criar espuma nos tonéis. Prova, meu filho. De hoje em diante o mundo vai te apresentar muitas coisas novas todos os dias. Esta é apenas a primeira delas.

Eu provei aquela bebida tão nova e seu sabor forte me fez engasgar. Meu tio riu: eu, querendo provar o meu valor, controlei-me e, imitando tantos marinheiros que tinha visto tomando vinho na hospedaria de minha mãe, bebi o que restava no copo em três grandes goles. Meu tio riu mais ainda, e bateu com carinho em minha face:

— Pareces não ter feito outra coisa na vida. Calma, meu filho: o mundo está cheio de coisas boas, e no devido tempo virás a conhecê-las todas. E aprenderás que nada deve ser sorvido assim, em três grandes goles. É preciso aprender a saborear com lentidão as boas coisas que a vida nos proporciona.

Eu me sentia no céu. Pressentia que a minha nova vida, em pleno Porto de Tiro, o centro do mundo, seria feita de enormes prazeres. Por isso apanhei a mão de meu tio e beijei, com sentimento, dizendo:

— Meu pai! Quando Melqart levou meu primeiro pai para sua cidade subterrânea, deixou-me sozinho no mundo. Que deus de bondade vos trouxe a mim?

Meu tio franziu o rosto com meu gesto de carinho, mas uma estranha luz de felicidade brilhou em seus olhos:

— Disseste-o bem, meu filho, disseste-o bem. Os deuses velam pelos homens e, por terem sido homens e mulheres eles mesmos, recebem com grande prazer as recompensas materiais que lhes damos. Cada templo que existe no mundo está consagrado a um desses deuses, e a cada um deles devemos a obediência e a satisfação de seus desejos. A deusa que me trouxe até tu, colocando-me numa posição tal que tudo possa fazer por tua família, foi Atargatis, a deusa da vingança. A ela devotei toda a minha vida, pois minha vida inteira é dedicada à vingança que devo realizar contra quem fez de mim o aleijado que sou. E tu e tua família, que o poder de Atargatis houve por bem colocar em meu caminho, são tudo de que eu preciso para realizar o meu objetivo de vida. Queres auxiliar-me nesta tarefa, meu filho?

Meus olhos se encheram d'água, junto com os de meu tio. Então ainda pisava a terra deste mundo aquele que transformara meu benfazejo tio, meu pai misericordioso, em um aleijado digno de pena? O mínimo que deveríamos fazer a ele seria aleijá-lo também. A deusa de que meu tio falava devia ser a mais poderosa de todas as deusas, pois lhe dera riqueza e importância suficientes para poder vingar-se de seus algozes. Naquele momento eu pude sentir, em meu coração de criança, a dor e o desespero de meu tio, e também o doce sabor da vingança que ele vinha lentamente construindo em seu pobre e magoado coração. Pus-me de pé e, olhando-o nos olhos, disse:

— Meu pai, sou vosso servo. Minha voz é a vossa voz, meu coração é o vosso coração, minhas mãos e pernas são vossas para o que desejardes. Basta que vós digais, o vosso menor desejo, e eu serei o primeiro a realizá-lo.

Meu tio ficou muito feliz. Tentou erguer-se, e eu o apoiei, suportando o seu peso em meus ombros jovens pela primeira de muitas vezes. Ele bateu com sua bengala no chão, gritando:

— N'Gumbo? Manassés? Vinde!

O núbio N'Gumbo e um israelita de grandes ombros colocaram suas cabeças no alto da escada, olhando para meu tio, que me abraçou com força, gritando:

Segui à frente!. Ide avisar a todo o porto de Tiro que meu filho herdeiro está junto comigo, e que estou indo apresentá-lo a todos!. Hoje é um dia de grande orgulho para mim!.

Os dois, imediatamente, saíram correndo do armazém, enquanto eu e meu tio, num passo bem mais lento, começamos a trilhar o minho de pedras do porto de Tiro, passando pela porta de tantos outros armazéns e tendas (nenhum tão grande nem tão cheio quanto o nosso) e sendo saudados com respeito e grandes efusões de alegria por todos os que ali estavam. Mercantes patrícios de todos os tamanhos, vestidos com as roupas vermelho-escuras que só em nossa terra se produzem, comerciantes israelitas com negócios em toda a costa entre a ilha de Chipre e a embocadura do Nilo, gregos e sírios, egípcios cor de bronze com saiotes brancos e olhos pintados de khol, a mesma chusma que eu tinha atravessado ainda desconhecido havia poucos momentos, e que agora me saudava efusivamente como se eu fosse o próprio Abchal, rei de Tiro. E eu assim me sentia, trilhando as pedras gastas do porto, ouvindo os gritos e as saudações das equipagens dos navios, nas mais diversas línguas, e sentindo dentro do meu coração a certeza de que este mundo era todo meu.

Assim começou a minha segunda vida. Olhando para trás, depois de tantos anos, vejo que pude usufruir aquilo que de melhor existia no mundo até então conhecido, graças ao desejo de meu tio de transformar-me em seu sucessor nos negócios. Voltei acompanhado de N'Gumbo e Manassés à casa de minha mãe, para despedir-me dela. Minhas irmãs choraram, e minha mãe, como sempre, manteve-se impassível. Só fui informado de que minha irmã mais velha, Iamin, estava de casamento marcado com um rico mercador grego, amigo de meu tio Jubal, e que breve eu a encontraria no porto de Tiro, quando ela estivesse embarcando para a cidade de Creta, onde iria morar. Nossa família estava destinada a espalhar-se pelo mundo. Eu gostei da idéia de ter sobrinhos cretenses, e depois, quem sabe, de todos os outros lugares onde Tiro, e por conseqüência meu tio, tinha suas posses e seus poderes. O mundo se me apresentava risonho e franco, cheio de alegrias por vir, e eu tive a certeza absoluta de que desse momento em diante a minha vida seria feita apenas de felicidades.

O passeio com meu tio pelo molhe do porto me fez ter a primeira visão da riqueza imensa que Tiro vinha acumulando sob a esperta mão do rei Abchal. De vassalos a sócios dos hebreus em menos de vinte anos, e tudo conseguido através da colaboração. Os outros povos nos consideravam mal: mesmo os gregos, famosos por seu apetite de conquistadores, nos chamavam de salteadores, dizendo que em nossos barcos de três cores só transportávamos mercadorias de valor duvidoso. O exagero negativo está, sem dúvida nenhuma, na palavra salteadores. O peso que os gregos inculcam à palavra quase nos transforma de salteadores em piratas, coisa de que os gregos entendem muito bem, sendo grandes piratas eles mesmos. Talvez o fato de sermos gente muito mais voltada ao comércio do que às artes faça com que os mais preocupados com a beleza do mundo nos torçam o nariz. Não há problema: nós, fenícios, somos gente prática. Mesmo nossos exércitos, aliados incontestes dos israelitas, só existem como apoio a nossas incursões comerciais. Todo navio fenício leva em sua coberta um grande número de soldados, prontos a bater-se com fúria sanguinária caso o oponente não deseje comerciar, ou imponha obstáculos à nossa necessidade de traficar. Meu falecido pai foi um desses soldados, morto na verdade em uma batalha pela supremacia comercial de uma determinada região. E foi só após os acordos entre a Judéia e Tiro que os soldados fenícios começaram a ter atividades exclusivamente militares, pois antes eram apenas agentes de uma forma agressiva de convencimento na hora de fazer negócios.

Meu primeiro dia nos armazéns de meu tio me deu a certeza de que ele não era apenas um escriba, como sempre se apresentava. Durante todos os anos que passei em sua companhia eu o vi realizar qualquer tipo de transação comercial, envolvendo as centenas de produtos que nós, fenícios, colocávamos à disposição do mundo conhecido. Seus armazéns não eram simples locais de depósito de mercadoria, como outros na mesma situação geográfica, pois meu tio era o mais famoso e procurado intermediário entre negociantes de todos os quadrantes do Universo. Representava de forma quase que exclusiva a empresa em que os reis Abchal e David eram parceiros: tinha seus próprios sub-representantes em todas as cidades mediterrâneas em que os fenícios aportavam e criavam feitorias, e sem sombra de dúvida abocanhava pelo menos um siclo de prata em cada talento negociado no porto de Tiro.

Os fenícios eram negociantes absolutos, meu tio era o negociante fenício por excelência: vendia o que fabricava, o que não fabricava comprava, o que não comprava trocava, o que não trocava acumulava para mais tarde comprar, trocar ou usar como isca em outro negócio. Tinha tentáculos em todas as fábricas de vidro e metal de Tiro e Sídon: trocava esses produtos por cereais e vinho, que levava para mais longe, por exemplo até o mar Negro, onde adquiria chumbo ou ferro ou ouro, ou Chipre, de onde trazia o cobre grego e a olorosa madeira de cipreste, ou as costas da África, de onde trazia o marfim, ou mesmo algumas ilhas inóspitas e desconhecidas já no meio do oceano Atlântico, aonde ia buscar o estanho. Comerciava também com uma mercadoria de grande valor: gente. Desde o Egito até a Anatólia se precisava de mão-de-obra barata, e os escravos eram uma grande solução para essa demanda. Arrebanhava-se gente, a mando de meu tio, em qualquer lugar que fosse possível. Nossos armazéns eram prova disso: as cores e línguas mais diversas se cruzavam pelo ar, e meu tio a todos entendia, tratando a todos com o mesmo interesse e da mesma maneira. Mulheres também eram apanhadas, e mais tarde negociadas nos haréns de toda a região. Meu tio era o mais fenício de todos os fenícios, pois para ele os negócios vinham antes de tudo.

Arranjei um canto em um jirau no último dos armazéns, onde se acumulavam fardos e mais fardos de um tecido fino e brilhante, que a equipagem de uma caravana perdida tinha roubado de um outro navio feito de bambu nos mares bravios que ficam depois da Anatólia. Meu tio guardava com extrema avareza esses fardos, pois pareciam coisa muito melhor que o afamado pano púrpura que produzíamos em Tiro. Que eu tivesse visto, apenas um desses fardos saiu de nossos armazéns durante o tempo que lá passei, indo direto para as mãos do rei Abchal, que o fez chegar sem demora às mãos de David. Era um tecido suave, que diziam ser produzido por lagartas, com um cheiro peculiar de amoras, e além do nome meshi, esse cheiro ficou gravado indelevelmente em minha memória como o cheiro de meu aposento na casa de meu tio. Foi atrás de uma parede desses fardos que arrumei o meu cantinho, o qual aproveitava muito bem, já que lá eu só fazia mesmo dormir, pelo menos nos primeiros tempos.

Meu tio mandou que fizessem para mim um barrete cônico de couro, idêntico ao que ele usava sobre os negros cabelos ondulados, e eu gravei nele de memória, fazendo uso de um estilete avermelhado no fogo, os mesmos desenhos que adornavam o barrete de meu tio No caso dele, os desenhos eram feitos com fios de ouro e prata, mas a minha cópia saiu bastante boa, tanto que meu tio, na primeira vez que viu minha obra, se admirou e, comparando os dois barretes, chegou à conclusão de que a minha cópia feita de memória nada deixava a desejar. Mas o que mais lhe chamou a atenção foi a firmeza de minha mão e meus olhos e a capacidade de observação de minha mente, decidindo que finalmente eu deveria aprender a escrever.

Foi uma decisão interessante, que pôs a meu dispor uma enorme soma de conhecimentos. Meu tio, homem extremamente versado nas línguas do mundo, e meus companheiros de trabalho, aquela verdadeira Babel de línguas e comportamentos, deram-me tudo o que podiam. No caso de meus companheiros, cada um dava o pouco que sabia, e com a soma desses poucos pude transformar-me em um poliglota bastante razoável, além de amealhar uma visão bastante ampla do mundo conhecido, pois o assunto de meus companheiros sempre era a excelência de sua terra natal sobre qualquer outra. Já com meu tio o método era diferente: pôs-me à disposição tudo o que tinha em seus arquivos e sua biblioteca. Os métodos de notação que meu tio usava eram variados como seus negócios, e os suportes sobre os quais traçava sua escrita eram tantos quanto os existentes até então. Meu tio usava plaquinhas de cerâmica sobre as quais riscava com um estilete, deixando traços de uma cor mais clara que o fundo, para recibos. Contratos eram gravados em placas de argila dúctil com um estilete triangular, através das pancadinhas de um pequeno malhete de marfim, e essas placas depois iam ao sol, tornando-se duras, sendo depois armazenadas em grandes armários de cedro, umas sobre as outras. Para projetos e planos que poderiam mudar, meu tio usava um novo material que os egípcios lhe tinham apresentado. Chamava-se papiro, e era uma série de placas lisas e claras feitas de uma planta que nascia à beira do rio Nilo, e sobre a qual se escrevia com uma série de calamos cortados enviesadamente, com os quais se recolhia uma tinta muito escura, feita com carvão misturado à água com um pouco de óleo, ou então a partir da tinta preta das lulas que infestavam o porto de Tiro. Alguns desses papiros, organizados segundo um mesmo assunto, eram costurados de um lado e reunidos dentro de uma capa de couro duro, formando um volume que se podia olhar página por página. Esse objeto tão prático tinha sido criado em nossa vizinha Biblos, e os gregos, os primeiros a fazerem uso desse formato, mantiveram o nome da cidade no objeto. Havia ainda plaquinhas de madeira com uma fina camada de cera, como as que os gregos usavam, para riscar com um estilete, e grandes placas de couro de cabra, muito raspado e escovado pelo lado interno, ficando finas e quase transparentes, sobre as quais se escrevia com as mesmas tintas que se usava nos papiros, enrolando-os depois.

Durante meus primeiros dias no armazém de meu tio, perdi quase todas as horas depois do pôr-do-sol olhando um a um esses objetos, comparando-os e aos sinais neles inscritos. As diferenças eram grandes, mas pude perceber grandes semelhanças entre eles. Desde os belos desenhos que os egípcios usavam até os risquinhos traçados sobre os caquinhos de cerâmica, vários formatos se repetiam, como a cabeça de um boi, o punho fechado, a mão aberta, o olho que tudo vê, e tantos outros que nem consigo contar. De todos esses alfabetos o mais interessante era o que nós, fenícios, vínhamos usando desde a ascensão do rei Ahiram ao trono de Tiro, cem anos antes. Com a praticidade típica de nosso povo, este alfabeto, em vez de tentar estabelecer um sinal para cada coisa, idéia ou sentimento, preferiu estabelecer um sinal para cada som que nossa boca pudesse proferir. Isso nos levou à soma mágica de vinte e dois sinais, com os quais não só nossa língua, mas também qualquer outra língua conhecida podia ser escrita. Os gregos, cuja necessidade de assentar coisas sempre foi muito grande, estavam usando nosso alfabeto havia alguns anos, mas se ressentiam da ausência de vogais, e, só para contrariar, escreviam usando nossas letras da esquerda para a direita.

Durante algum tempo, ajudado por meu tio, observei e comparei esses sinais sem que coisa alguma dentro deles falasse comigo. Admirava suas formas e as longas trancas que formavam, mas era uma admiração puramente estética: eu não conseguia perceber o que é que significavam. Passava grande parte de meu tempo de descanso em meu cubículo de pano, olhando todos os escritos em que pudesse pôr as mãos, à luz de uma lâmpada de azeite. A luz dessa mesma lâmpada eu copiava essas figuras, de maneira aleatória, tentando decifrar seu segredo. Meu tio estava a ponto de desistir, achando que eu era incapacitado para as artes da escrita e da leitura, mas eu insistia, porque sentia que nesses belos desenhos estava oculto algum conhecimento essencial à minha vida. E um belo dia, em que Manassés se curvava sobre mim, olhando minhas mãos que traçavam incontáveis carreiras de letras, apontou um pequeno grupo delas com o dedo e me perguntou:

— O que será que isso aqui quer dizer?

Olhei os três sinais e, de repente, como em um relâmpago inesperado, as três letras falaram comigo: Even. Manassés sorriu e repetiu a palavra. Eu tinha lido pela primeira vez, e a palavra even significava pedra tanto em minha língua quanto na dele. Esse momento, a pedra fundamental de tudo o que pude fazer e compreender, ficou suspenso no espaço entre nós, enquanto as sombras da noite começavam a cobrir o céu pelo lado do Oriente. Manassés percebeu a minha alegria e compartilhou dela, como mais tarde ambos compartilhamos o pão, a cerveja, o azeite, o queijo de cabra e os peixes salgados e secos. Essa identidade pela pedra que tínhamos em comum fundamentou nossa amizade, que floresceu longamente a partir desse dia.

 

A compreensão do que as letras queriam dizer foi imediata, absoluta e definitiva. Desse momento em diante eu lia com a maior facilidade qualquer coisa que se me apresentasse. Demorava um pouco mais para decifrar os escritos egípcios, não tanto pelo excesso de idéias que cada hieróglifo trazia dentro de si, mas principalmente pela beleza de cada um deles, o que desviava minha atenção e me punha quase em estado de contemplação. Mesmo assim, dentro de algum tempo eu estava lendo e escrevendo tão bem quanto meu tio, que tinha a seu favor a larga experiência de escriba, profissão da qual tirara seu sustento durante muitos anos, e através da qual desenvolvera sua grande fortuna.

Minha florescente carreira de escriba-auxiliar não me eximia de todo o resto que eu tinha como obrigação: varrer o escritório, auxiliar os estocadores na conferência de tudo o que estava armazenado, controlar as chegadas e partidas dos navios de meu tio e de outras frotas. Era também minha obrigação anotar as idas e vindas dos carregadores, funcionários e escravos de meu tio, e várias vezes ao dia preparar o essencial chá de hortelã perfumado com cravo, que ele consumia em quantidades verdadeiramente assustadoras. Dentro de alguns meses eu também tinha desenvolvido o hábito desse chá, que tomava principalmente quando o calor se tornava insuportável, pois tinha percebido que ao esquentar o interior de meu corpo este se refrescava de dentro para fora. Eu trabalhava, acredito, mais do que todos os outros, e era tratado igual a qualquer um deles, ou mesmo um pouco pior, segundo as ordens de meu tio, que achava que um bom comerciante deve conhecer cada pequena faceta de seu negócio. Tudo isso eu fazia com grande alegria, pois sabia que estava me preparando para assumir todos os negócios quando meu tio fosse substituído por mim. E em todo o porto de Tiro eu já estava ficando conhecido como o pequeno Joab, herdeiro de Jubal, o coxo.

A amizade se consolidava entre mim e Manassés, o judeu de ombros largos, que crescia mais rapidamente que eu, apesar de termos a mesma idade. A minha chegada o livrara de uma série de coisas que era obrigado a fazer, e ele se mostrava verdadeiramente agradecido pela minha presença. Com ele eu percorri todos os desvãos do porto, e chegamos a conhecer cada pedra dos grandes molhes com todos os detalhes. Conversávamos muito, pois éramos as únicas crianças, e mais tarde os únicos adolescentes do escritório de meu tio. Essa semelhança nos unia, apesar de nossa formação ser rigorosamente diferente. Manassés era descendente de uma família de edomitas que viviam nos vales perto de Jerusalém. Os edomitas tinham sido absorvidos pela Judéia ainda nos tempos do rei David, trazendo grande influência sobre as idéias e principalmente a religião que vinha se estabelecendo oficialmente na região. A família de Manassés era toda de pastores, cujas raízes se perdiam no tempo dos hicsos nas terras do Egito, e se orgulhavam de ainda manter costumes e crenças do pai comum de todos nós, Abraão. Como o rei David havia estabelecido a lei que dizia que todo homem deveria doar ao rei um mês de trabalho em cada três, a família de Manassés o escolhera como representante de toda a família, e o entregara pelo prazo de sete anos ao rei, para que pudessem permanecer em paz cuidando de seu rebanho, enquanto Manassés trabalhava de graça por todos eles. Numa grande leva de escravos e assalariados que viera da Judéia alguns anos antes, Manassés acabou por tornar-se empregado vitalício de meu tio, que sempre lhe acenava com uma futura liberação, na medida em que sua semi-escravidão fosse efetiva.

Nossa pouca idade nos uniu, mas nossa identidade de afastados do lar de origem nos manteve unidos. Nos tornamos unha e carne, e eu admirava a seriedade com que Manassés, ao fim do sexto dia, todas as semanas, interrompia o que quer que estivesse fazendo, dedicando as vinte e quatro horas seguintes às orações de agradecimento a seu deus, numa imitação perfeita de seus parentes homens, ainda em sua terra natal. Passaria este tempo sem mover-se de seu lugar, nem mesmo para comer, se eu não lhe trouxesse de vez em quando alguma coisa. Cobria a cabeça com seu manto branco de listras azuis e, balançando-se para a frente e para trás, proferia em voz suave e chorada cantigas plangentes em sua língua natal. Não dormia, nem mesmo se levantava de onde estava sentado. Ao findarem as vinte e quatro horas de oração, erguia-se como se nada tivesse acontecido e retomava a sua vida cotidiana, sem um comentário sequer sobre o que se passara, para mim, que tinha sido criado como um animalzinho, com quem nada se discute, esta dedicação a um deus me soava estranha. Perguntei um dia a Manassés o nome de seu deus, e ele respondeu:

- É Yahweh, o Senhor das tempestades, o Deus dos hebreus.

Eu, na santa ignorância de meus doze anos de idade, estava pronto para perguntar a Manassés se o seu deus poderia ser o meu deus. Quando ele disse que o tal Yahweh era o deus dos hebreus, desisti. Eu nasci em Tiro, e meu povo não era o povo hebreu. Assim sendo, eu teria de descobrir quem era o deus de Tiro, e a ele prestar homenagens tão dedicadas quanto Manassés prestava ao seu Senhor das tempestades. Manassés notou meu desapontamento:

— O que houve, Joab? Está triste?

— Eu te invejo, Manassés, porque tens um deus a quem prestar homenagens. Eu não tenho, nunca me disseram nem mesmo que eu precisava de um. Queria ter o teu deus, mas ele é só dos hebreus. Tu achas que é possível?

Manassés fez uma cara triste:

— Joab, meu amigo, não basta querer. Olhando para as tuas feições, para a tua pele, acho que bem poderias passar por hebreu, se fosse preciso. Mas só enganarias aos homens e mulheres. Yahweh saberia que não és um dos seus, pois não tens a marca do pacto que ele fez com o seu povo escolhido.

Eu fiquei curiosíssimo sobre que marca seria esta, e Manassés, com toda a seriedade, levantou seu saiote e me mostrou seu pênis. Era diferente do meu, pois a pele que cobria a glande não existia. Eu fiquei admirado, e perguntei:

— E esta a marca? Os hebreus já nascem assim?

— Não, Joab, nascemos iguais a todos. Com oito dias de nascido um sacerdote vem e corta a pele.

Um arrepio percorreu meu corpo. Só de imaginar a pele desse lugar tão sensível sendo cortada era o bastante para me dar engulhos. E Manassés continuou:

— Não te preocupes, Joab. Aos oito dias de idade, uma criança nada sente. E se sentir, logo esquece. Por isso tu não podes ter o meu deus. Vais ter de escolher outro.

Era o momento de descanso depois da refeição do meio do dia, e o porto estava como que paralisado. Estávamos por nossa conta, pois só eram esperados novos embarques e desembarques para o dia seguinte. Nem uma brisa soprava, e nós dois estávamos modorrando sobre grandes fardos de figos secos de Esmirna, imersos no perfume e no sabor das frutas cor de palha. Começamos a pensar nas alternativas que restavam a mim, um nativo de Tiro, para que eu tivesse o melhor deus possível. Manassés, com alguma experiência a mais da cidade, tendo chegado a Tiro pelo menos um ano antes de mim, sabia da existência nela de três deuses: Melqart, o deus da cidade subterrânea, Moloq, a quem nas épocas de grande catástrofes se sacrificavam crianças, e Ishtar, a deusa da fecundidade, para quem as virgens doavam seus cabelos e sua virgindade. Lembro bem que nós não sabíamos o que era isso, e decidimos que deveria ser algum outro tipo de cabelo que só as mulheres tinham. Eu não me interessei por nenhum dos três, porque Melqart tinha levado meu pai. Sendo jovem como era, ainda corria o risco de tornar-me holocausto a Moloq. E além disso me faltava um ingrediente essencial para ser devoto de Ishtar: eu era homem. Ficamos sérios, olhando para o horizonte, tentando achar uma solução. E eu me lembrei da deusa que meu tio havia mencionado quando de minha chegada ao porto, para ficar. Lembrei-me de seu nome: Atargatis, a deusa da vingança, falei disso a Manassés, e ele perdeu a cor:, — Pelo Deus de Abraão, nosso pai em comum! Tu falas nesse nome com essa tranqüilidade, Joab? Tens medo de Melqart e falas com suavidade dessa sanguinária deusa? Tu entendes muito pouco de deuses, Joab. Esta é a pior de todas!

Manassés estava mesmo muito abalado, mas eu, com um poder de persuasão que nem sabia que tinha, defendi Atargatis como a minha última oportunidade. Não me restava mais nada: ou Manassés esperava que eu terminasse por render homenagens aos deuses dos egípcios, aquela desagradável mistura de animais e de gente? Manassés, ainda assustado, acabou concordando comigo que Atargatis era o que me restava. Eu me levantei e disse:

Então, vamos.

Manassés tremeu:

— Vamos, aonde?

— Procurar o templo de Atargatis. Se meu tio é devoto, deve haver um templo aqui.

— Acho que você só vai encontrar templo dessa... deusa em Sídon...

— Não sejas turrão, Manassés! Qual é o teu problema? Medo de que Atargatis seja maior que o teu deus das tempestades?

— Ninguém é maior que Yahweh — Isso é o que se diz de todo e qualquer deus! Vamos. Devíamos formar uma dupla muito interessante, eu e Manassés, caminhando pelo molhe do porto de Tiro em direção ao lado sul da ilha, à procura do templo de uma deusa a quem eu pudesse devotar tanta dedicação quanto meu amigo devotava a seu Yahweh. Saímos da área do porto e, de pergunta em pergunta, acabamos sabendo que havia, sim, um templo de Atargatis em Tiro, e que ficava mesmo ao sul da ilha, logo após o bairro dos tintureiros. Nos dirigimos para esse bairro, que de longe já anunciava sua existência pelo forte cheiro parecido com alho, que era a sua marca.

Imaginem grandes depósitos de conchas, acumuladas umas sobre as outras durante incontáveis anos de trabalho da natureza, e solidificadas umas às outras como que ligadas pela mais dura argamassa. Esses eram os grandes bancos de moluscos púrpura, eternamente renovados pelo grande manancial de vida marinha que cercava as costas da ilha de Tiro. Por um desses mistérios inexplicáveis, apenas esses moluscos produziam o pigmento purpúreo, e de todo o mundo conhecido só nos contrafortes de nossa pequena ilha eram encontrados. Essa peculiaridade da natureza, aliada à conhecida engenhosidade de meus patrícios, gerou com exclusividade a púrpura de Tiro, um tecido de finíssima lã, leve como o mais fino algodão, que posteriormente era tingida. Não havia rei, soberano ou poderoso em nenhuma parte do mundo, inclusive o Egito, que não tivesse em seu guarda-roupa pelo menos um manto feito com a púrpura de Tiro, por isso chamada de púrpura real.

Atravessamos com rapidez o bairro dos tintureiros. O cheiro de matéria em decomposição era forte demais. A aparência suja e descuidada das pessoas, aliada aos vapores malcheirosos que se evolavam, nos dava a sensação de estar entrando nos domínios do próprio Melqart, senhor da cidade subterrânea. Pescadores de conchas, carregando o produto de sua colheita nos mesmos cestos de vime que usavam para pescar, atravessavam as ruas estreitas desse bairro, descarregando o que traziam em grandes montes à porta das tinturarias. Mulheres, crianças, velhos passavam o dia de cócoras abrindo as cascas dos moluscos ainda vivos e arrancando o pedúnculo, que estava sempre cheio de um líquido escuro e turvo. Essas glandes arrancadas eram jogadas em grandes vasos de chumbo, esquentados por um fogo muito fraco, e lá ficavam, clarificando e se condensando. Mais ou menos depois de uns dez dias, quando o líquido no fundo dos vasos já tinha virado uma fétida calda muito espessa, se bem que transparente, os tecidos de lã, que chegavam até o bairro nas costas de escravos, eram nela mergulhados. Os vapores que eram gerados subiam por toda a vizinhança, tão fortes que faziam arder os olhos. Os tintureiros então pegavam os panos agora de um violeta profundo, quase negro, e os punham a secar ao sol. E o sol, esse ingrediente universal, fazia com que ocorresse a transmutação essencial que pretendiam, fixando a cor definitiva: o violeta-escuro brilhante, com reflexos vermelhos, apanágio da elegância e símbolo do poder em todo o mar Mediterrâneo. Era fascinante que, do meio de toda essa mixórdia malcheirosa, nascesse tal beleza e tão valiosa, como tal reconhecida aonde quer que chegasse o engenho do povo de Tiro. Para mim, impressionado com a sujeira e a pestilência necessárias para que se gerasse tamanha riqueza, a púrpura de Tiro tinha apenas a cor do sangue coagulado.

O bairro dos tintureiros foi ficando para trás e, de uma depressão do terreno, ergueu-se à nossa frente o templo de Atargatis, uma construção piramidal em degraus, feita de blocos avermelhados, com uma escadaria exatamente no centro, que ia até mais ou menos o meio da face que enxergávamos. No alto dessa escadaria abria-se uma porta escura, da qual saía um leve rolo de fumaça cinzenta. Não havia nenhum sinal exterior de riqueza ou fausto, e os degraus da escadaria estavam cobertos de pétalas de flores, a maioria delas secas. Mesmo assim, o templo da deusa era uma construção impressionante, pelo tamanho e imponência. O formato de ziggurat babilônio, usado indiscriminadamente por todos os povos em toda a região, devido à praticidade com que permitia o soerguimento de construções altas, era o preferido dos edifícios que se pretendessem imponentes, principalmente os que tivessem algo a ver com culto aos deuses. Essa forma de construção, em que cada andar era menor do que aquele em que se apoiava, criava possibilidades excepcionais para o uso dos espaços internos e, no caso de templos, facilitava a existência de labirintos e desvãos, essenciais à geração das experiências fora do natural com as quais sacerdotes costumam impressionar seus fiéis.

Preparei-me para subir o primeiro degrau, quando Manassés me pegou pelo braço:

— Estás mesmo disposto a galgar esses degraus, Joab?

— Por que esta pergunta, meu amigo? Não foi para isso que viemos aqui?

— Tu vieste aqui para isso. Eu apenas te acompanhei, para que não enfrentasses sozinho uma vizinhança desconhecida. Mas espero que não penses que vou entrar aí dentro contigo.

— Não estou te entendendo, Manassés. Ou pretendes me impedir de entrar no templo de Atargatis?

Manassés sentou-se no primeiro degrau, branco como um papiro. Estava verdadeiramente abalado, e seus lábios não tinham uma pinga de sangue:

— Para mim, Joab, que sou filho de Yahweh, o senhor das tempestades, essa deusa é uma abominação. Sabes que nome ela tem em minha terra? Ashtaret, mistura de seu nome grego Astarte, com boshet, na nossa língua. Entendeste?

Eu tinha entendido, pois boshet, em hebraico, quer dizer vergonha. E eu compreendia o ar abalado de Manassés: seu deus, o poderoso Yahweh, senhor de todas as tempestades, e deus de um povo que a cada dia era mais numeroso, os hebreus, não parecia aceitar a convivência com outros deuses de forma pacífica. Os hebreus acreditavam cada vez mais fortemente na existência de um deus único, e este Yahweh, seu deus e senhor, era muito ciumento. Surgido séculos antes nas areias escaldantes do deserto, demonstrara em diversas ocasiões todo o seu valor, e seus seguidores iam lentamente aumentando de número, ampliando com isso o seu já grande poder. Os hebreus, por esse mesmo Yahweh denominados o povo escolhido, já se sentiam em pleno direito de encarar a voluptuosa Astarte grega como uma vergonha aos olhos de quem os ungira.

Realmente, a reação física de Manassés era reflexo imediato do estado de sua alma. Se para mim, movido apenas pela necessidade de encontrar meu próprio deus e amedrontado como qualquer menino de doze anos de idade nas mesmas condições, já era difícil começar a subida dos degraus, para Manassés, acostumado a suas crenças por anos e anos de ensinamentos familiares, seria impossível. Eu o tranqüilizei, dizendo que não era necessário que entrasse comigo no templo. Eu estava disposto a fazer das tripas coração, e entraria sozinho se preciso fosse. Manassés ainda tentou me prender ao rés-do-chão, mas foi inútil: desvencilhei-me de seu aperto e pus-me a subir os degraus.

Quando cheguei ao alto da escadaria, o leve rolo de fumaça que saía das entranhas do templo era mais espesso do que parecia visto de longe. Atravessá-lo foi como atravessar uma cortina muito escura e pesada, e ao me encontrar do outro lado, dentro do templo, senti como se tivesse atravessado um portal para uma outra realidade, rigorosamente diversa do mundo de todos os dias.

Debrucei-me na balaustrada e olhei para um abismo insondável que tinha mais de quinhentas vezes a minha altura. O prédio era por dentro uma pirâmide invertida e oca, com estreitas platibandas protegidas por balaustradas como esta em que eu me apoiava, descendo em espiral quadrada até embaixo. O chão, abaixo de mim, era um buraco escuro, iluminado aqui e ali por archotes de nafta. O que estava no centro era um grande altar de pedra, em cujo meio estava escavado um grande caldeirão cheio de brasas, do qual se evolava a fumaça que eu atravessara. Na parede inclinada à minha frente, estava uma grande estátua de Atargatis, feita de pedra com um pouco mais de riqueza de detalhes que outras estátuas de deuses que eu já tivesse visto, com as mãos espalmadas, seios bojudos e uma lua crescente presa sobre a testa, formando um par de chifres que lhe davam um ar assustador. Dois leões de pedra, com as fauces escancaradas, ladeavam essa deusa, que tinha rubis no lugar dos olhos, o que, à luz bruxuleante do interior de seu templo, lhe dava uma aparência ainda mais aterrorizante. Minha vontade de encontrar em Atargatis um deus a quem pudesse prestar homenagens começou a enfraquecer-se, e eu estava recuando, sem tirar os olhos da estátua, quando uma mão segurou meu ombro. Gelado de susto, olhei para trás, e vi Manassés, que vencendo tudo o que seu deus lhe impusera como certeza da abominação de Atargatis, além de seu medo incontrolável, viera me apoiar com sua presença.

Manassés foi comigo testemunha de fatos que, contados por um só

homem, certamente seriam tomados como mentira ou exagero.;

Um som surdo de tambores e címbalos começou a subir das profundezas do templo, junto com o som gutural e contínuo de vozes. Nosso medo foi aumentando enquanto os sons se aproximavam, saindo de uma escura abertura que ficava por trás da deusa. Os sons se adiantaram à entrada de muitas mulheres, altas, vestidas de vermelho vivo, com longos cabelos e véus semitransparentes que lhes cobriam o rosto. Tinham cabelos de todas as cores, com enfeites de marfim que imitavam o crescente lunar da cabeça de Atargatis. Podíamos ver, mesmo à distância, que seus olhos eram arregalados e avermelhados, e um cheiro forte e adocicado começou a se aproximar de nossas narinas. Manassés, falando dentro de meu ouvido, sussurrou:

— Hashish!.

Só dois anos mais tarde eu vim a saber a que erva Manassés se referia, por conhecê-la em pessoa, e saber que, como o vinho ou qualquer outra bebida alcoólica, só tira das pessoas exatamente aquilo que elas têm dentro de si. Qualquer pessoa que usasse do hashish era identicamente capaz de cometer os atos que cometia tanto sob a influência da planta quanto sem ela. O que o hashish fazia era apenas liberar essa censura interna e natural que todos temos dentro de nós, permitindo-nos ser exatamente aquilo que somos e estamos capacitados a ser, sem peias nem amarras morais de nenhuma espécie.

O cheiro era forte, e junto à fumaça que se evolava das brasas ao centro do templo, fazia com que me ardessem os olhos. Uma palavra era repetida mais do que as outras, mais até mesmo que Atargatis: galli. Uma das sacerdotisas, aparentemente a mais importante delas, com uma máscara que fazia com que parecesse uma versão de carne da estátua que estava por sobre a procissão, ergueu seu cajado e tudo parou, como que por encanto. Apenas o soar de pequenos címbalos, ao longe, se manteve continuadamente, acompanhando uma série de gemidos baixos que não posso precisar de onde vinham. A sacerdotisa de máscara jogou alguma coisa nas brasas, que ergueram chamas quase que até onde nós estávamos, fazendo com que recuássemos para as sombras que nos semi-ocultavam. A um sinal dessa mulher, as outras tiraram seus véus, e eu e Manassés pudemos ver, com horror, que eram todos homens, pintados de forma grotesca, num arremedo das prostitutas de última classe que eu mais tarde viria a conhecer. E todos começaram a rebolar e agitar-se, como que tomados por fúria sensual, em volta do altar central, gritando de forma obsessiva:

— Gallil. Somos gallil. Não somos de Atargatis por acaso, e sim por nossa própria escolha! O deus que nos criou cometeu um terrível engano, mas a bondade de Atargatis nos permitiu corrigi-lo a tempo! Gallil. Somos gallil. O círculo de corpos masculinos vestidos como seu oposto girava cada vez mais célere em volta do grande braseiro, atirando as pernas e os braços para o ar, movendo a pélvis de forma brusca, num arremedo do ato sexual. Alguns que possuíam bigodes e barbas, revirando os olhos no paroxismo de seu transe, pareciam ainda mais assustadores, e eu e Manassés, transidos de medo, nos ocultamos ainda mais nas sombras, presos pela estranheza daquela visão, de que não conseguíamos desviar os olhos.

A sacerdotisa mascarada ergueu novamente seu cajado, e os devotos de Atargatis caíram ao chão, alguns deles espumando pela boca, como cães raivosos. Um gongo muito grave se ouviu, e do fundo da parede surgiram dois núbios muito fortes, trazendo em seus braços a figura pálida e nua de um adolescente, não maior nem mais velho do que eu e Manassés, de olhos arregalados e com um sorriso de estupor na face. Os núbios deitaram o adolescente sobre a pedra da beira do altar, e a sacerdotisa aproximou-se dele, passando-lhe a mão pela face perolada de suor. O olhar da vítima nem percebeu a existência de outras pessoas a seu redor, toldada que tinha a visão pela droga que o obnubilava. A um gesto da sacerdotisa, os núbios agarraram o adolescente, abrindo-lhe braços e pernas, e mantendo-os abertos com a força de suas mãos fortes. A sacerdotisa tirou de dentro de seu manto uma estranha lâmina recurva, de um metal escuro com reflexos azulados, e aproximou-se da vítima.

O que aconteceu daí em diante foi muito rápido para que eu pudesse compreender racionalmente. A sacerdotisa dirigiu sua lâmina para o meio das pernas do adolescente e, com um golpe rápido, decepou-lhe o escroto e o pênis, segurando-os com a mão esquerda. A vítima apenas arregalou os olhos, nada percebendo do que lhe havia sido feito, enquanto o sangue corria aos borbotões da escura ferida no meio de suas pernas. Dos outros membros desse festim macabro ergueu-se um grande grito de prazer e vitória:

— Gallil. E essas pessoas, erguendo as saias de suas roupas, exibiram seus baixos-ventres masculinos, raspados, onde em vez do membro viril o que se podiam ver eram grandes e monstruosas cicatrizes, costuradas para de sua maneira distorcida criar a aparência de uma vulva. Os gallí concediam à sua deusa Atargatis o cerne de sua masculinidade, emasculando-se por devoção e transformando-se em alguma coisa que naquele momento eu não conseguia entender o que fosse. Dois outros galli aproximaram-se do adolescente recém-mutilado e aplicaram-lhe sobre o horrível corte uma compressa feita com uma massa de folhas verde-escuras, que fez com que o sangue, lentamente, fosse parando de correr, até coagular-se em uma mancha negra. A sacerdotisa mascarada ergueu os despojos de sua brutal cirurgia e, com um grito muito alto, atirou-os ao fogo, onde imediatamente começaram a fritar, exalando um horrível cheiro de carne e sangue queimados.

Foi demais para mim. Os engulhos que me subiam pela garganta se transformaram em um engasgo que me fez tossir. Todos os olhos no templo de Atargatis se voltaram para cima, em nossa direção. Fôramos descobertos, e Manassés, em pânico, começou a puxar-me para a saída. Quase que imediatamente surgiram ao nosso lado outros dois núbios, que nos seguraram com as mãos atrás das costas, debruçando-nos sobre a frágil balaustrada. Eu me senti cair, e minha cabeça rodava. A sacerdotisa mascarada ergueu sua cabeça, olhou-nos fixamente e, num repente, ergueu a mão que segurava o cajado. Tudo silenciou: eu e Manassés, sem nenhuma esperança em nossas almas, aguardávamos apenas a ordem para sermos jogados em pleno braseiro de Atargatis.

Estranhamente como possa parecer, a sacerdotisa mascarada, após nos olhar longamente, como se nos estudasse, ou tentasse decorar nossas feições para nunca mais esquecer, gritou uma longa frase em uma língua estranha, que me pareceu o babilônio antigo, e fez um gesto como que nos mandando retirar dali com presteza. Os dois núbios nos arrastaram para fora do templo que havíamos profanado com nossa presença, e atravessamos aos trambolhões a cortina de fumaça atrás da qual estava o mundo solar de todos os dias. Iríamos com certeza ser mortos ao ar livre, à vista de toda Tiro, no alto daquele templo, e de lá de cima atirados à sanha das multidões enraivecidas.

Fomos atirados, sim, mas com muito menos violência do que esperávamos. Eu e Manassés rolamos a grande escadaria embolados um no outro, o que talvez nos tenha poupado de maiores ferimentos, já que de uma certa maneira nos protegemos um ao outro. Quando chegamos ao chão, depois de uma eternidade, estávamos empoeirados, arroxeados, com uma série de arranhões e galos pela cabeça e corpo, mas vivos e íntegros. Olhamos para o alto e, inexplicavelmente, os núbios não nos seguiram. Estavam no alto da escadaria e, ao nos verem levantar, viraram as costas e entraram no templo, sumindo de nossa vista.

A rua onde o templo se localizava estava deserta, e ninguém nos veio olhar, nem indagar de nosso estado. Levantamos, ainda zonzos, e fugimos com a maior rapidez que nossas pernas conseguiam. Pouco tempo depois estávamos de volta a nosso território, no porto de Tiro, jurando nunca mencionar os acontecidos daquele dia a ninguém, nem mesmo comentá-los entre nós.

Permaneci abalado com as imagens desse dia durante longo tempo, e com elas sonhei várias vezes, acordando banhado em suor. Mas, de tudo, o que mais me intrigava era o fato de havermos sido libertados com muita facilidade. Que motivo havia para sairmos ilesos de uma profanação? Nossos corpos adolescentes logo esqueceram os ferimentos e arranhões, mas essa dúvida permaneceu em nossas cabeças durante muito tempo. Para mim ainda havia algo pior: como meu tio, o educado e compassivo Jubal, poderia partilhar uma mesma crença com aqueles seres auto-mutilados? Eu não conseguia em hipótese alguma imaginá-lo em meio àquelas aberrações da natureza. Só pude naquele momento acreditar que, no mundo em que vivemos, não existe na verdade força maior nem mais poderosa do que a vingança.

 

Aparentemente ninguém ficou sabendo de minha incursão junto com Manassés ao templo de Atargatis, nem de nossa expulsão. Nós mantivemos nosso compromisso de nunca mais falar no assunto, e esses fatos, que voltavam à nossa mente de cada vez que nos cruzávamos, foram vagarosamente se esvanecendo de nossa memória, não deixando mais resíduos que as sombras sem substância de que os pesadelos são feitos. Retomamos nossos afazeres diários, que nos ocupavam bastante tempo, com toda a dedicação possível. Nossos momentos de descanso acabaram sendo ocupados com coisas mais importantes: Manassés, num tácito pedido de desculpas a seu deus, passou a orar mais veementemente ainda, inclusive em seus períodos de descanso, e eu me apliquei no aprendizado da escrita e da leitura, iniciando minhas atividades matemáticas de conferente com menos brilho, mas com a mesma precisão.

Meu tio, a quem continuava admirando, era o mesmo homem de sempre. Não sei se a culpa que se produzira dentro de mim com minha visita ao famigerado templo de Atargatis tinha deixado suas marcas, mas passei a sentir que seu olhar me seguia com muito mais presteza do que antes. No entanto, quando eu o olhava, estava sempre sorrindo para mim como um querido mestre. Jubal agora me guiava pelos meandros do cálculo, os mistérios dos pesos e das medidas, os segredos das estrelas com as quais nossos navios singravam mares desconhecidos em busca de mais e mais riquezas a comerciar. E me repetia a cada dia, quando por acaso eu hesitava em vista de algum novo conceito:

— Aprende, Joab: tudo é número, e o número é tudo. Com cada coisa se pode fazer uma quantidade, que se pode amealhar sob a forma de número, e com a qual se acrescenta mais um número à infinidade que é nossa riqueza. Esta é a lei do mundo: somar a nossos ganhos aquilo que se diminui de nossos concorrentes, dividir seu poder e multiplicar nossa capacidade. Tudo é número, e o número em tudo está.

Acabei aprendendo tudo isso, e me tornei um grande conhecedor das maneiras sem fim pelas quais se valoriza nossa riqueza em detrimento da de outrem. Eduquei a tal ponto meus olhos para os negócios que podia, como diziam de meu tio, descobrir quantas ovelhas havia em um rebanho simplesmente contando suas pernas e dividindo o número encontrado por quatro. E passei a ter grande prazer em negociar, principalmente segundo o padrão fenício estabelecido desde tempos imemoriais, pelo qual se deve ganhar sempre, não importa o meio. Tornei-me um prodígio em pouco menos de um ano, e minha dedicação à causa de meu tio aumentou-lhe os lucros em muito. Nas reuniões que constantemente aconteciam entre meu tio Jubal e seus companheiros de profissão, os negociantes do porto de Tiro, meu nome começou a ser dito cada vez mais, e cada vez mais ligado a histórias de grandes lucros e espertezas. Comecei a cuidar dos negócios mais simples, depois ampliei minha penetração nas transações que ocorriam por intermédio de nosso escritório e armazéns, e logo acabei por ocupar o lugar de honra do negociador em diversas ocasiões, enquanto meu tio fazia o mesmo em outro ponto da cidade, multiplicando por dois nossas chances de ganho. Para a minha juventude, essas transações eram a mais deliciosa brincadeira que eu poderia ter, e eu comecei a procurá-las com mais sofreguidão, como se nelas estivesse viciado.

Um belo dia me vi, em pleno escritório, tomando o quente chá de hortelã, sentado à mesa de escriba de meu tio, que estava em Sídon, e iniciando discussões com um grupo de negociantes de linho que havia chegado do Egito, carregando uma grande partida de sua mercadoria. Os três navios egípcios, aptos tanto para a guerra quanto para o transporte, tinham ancorado inesperadamente em nosso porto havia três dias, e eu, seguindo o costume de meu tio, esperara todo esse tempo que a ansiedade dos súditos do Faraó os fizesse perder o controle sobre seus sentimentos, aumentando minhas chances de lucro em uma transação com eles. Não me interessavam seus rostos nem seus nomes: para mim os vendedores com quem negociava não eram pessoas verdadeiras, mas sim pequenos peões em um jogo de poder onde eu só poderia ser o vencedor. E eu o seria, pois aprendera a não me emocionar com a riqueza enquanto ela não estivesse integralmente em minha posse. Aprendera com meu tio a permanecer isento das influências da mente e do coração em matéria de negócios, tornando-me mais perfeito em meu ofício a cada transação realizada com sucesso.

Os navios dos egípcios, com dezoito remos laterais e dois grandes lemes à popa, tinham velas retangulares de um vermelho escuro e uma branca cabeça da deusa Bast, com seus olhos de gato e seus dentes pontudos, no esporão de proa. O mastro se erguia quase tão alto quanto os mastros fenícios e trazia no alto uma representação das coroas do Alto e do Baixo Egito, sobre quem o Faraó reinava por ser a encarnação do deus Hórus. A equipagem era de gente pequena e tisnada, com seus cabelos raspados e transformados em perucas, que usavam sobre seus crânios lisos, chovesse ou fizesse sol. Seu sistema de negociação era interessante: por serem muitos, revezavam-se nas conversações comigo, esperando cansar-me e conseguir vencer-me, para que eu lhes desse o melhor preço possível. Mas a minha honra de negociante estava em jogo, mormente nesse momento em que meu tio tinha deixado tudo a meu cargo, e eu decidira vencê-los a qualquer custo. Permaneci sentado confortavelmente em minhas almofadas, tomando pequenos goles do chá que meu amigo Manassés mantinha sempre quente em minha taça de vidro com alça de madeira, e esperando que se cansassem. Se fosse preciso, eu ali permaneceria até que Baal engolisse o mundo e o regurgitasse, ou até que meu tio realizasse sua vingança, o que viesse primeiro. O mundo era meu, e o tempo também. Enquanto não chegassem aonde eu queria, minha posição seria aquela, e minha palavra uma só: não.

Na tarde do terceiro dia a notícia já tinha corrido todo o porto: Joab de Tiro, o filho de Jubal, estava enfrentando uma barganha com os egípcios, e ninguém sabia quem ganharia. Os egípcios conversavam entre si mais e mais vezes, o que eu achava ótimo, pois se sua língua escrita me enchia de distrações, sua palavra falada era precisa e muito clara. Eles não presumiam que aquele menino arrogante sentado no lugar do patrão conhecesse o egípcio, e eu fiz desse meu conhecimento oculto uma excelente arma para descobrir os seus segredos. Consegui descobrir que sua idéia original era seguir viagem de volta com muitas posses, pois só um grande ganho faria com que seu dono, o sacerdote do templo de Bast, os perdoasse e os deixasse morrer como filhos da verdadeira luz, mumificando-os e enterrando-os, em vez de deixar seus corpos deteriorados à mercê dos chacais do deserto. A preocupação com a outra vida supera qualquer outro interesse de um egípcio, e eu urdi um plano que fizesse uso dessa sua característica. A viagem comercial que tinham iniciado havia três semanas tinha saído de seu controle, e dos oito navios só esses três tinham sobrevivido a uma tempestade mediterrânea da qual nem mesmo a poderosa Bast os pudera proteger. Portanto só restavam três oitavos da carga original com que fazer a fortuna que seu senhor aguardava, e mesmo assim não iria ser fácil, pois o linho estava em grande parte molhado, e a maior parte das equipagens se mantinha no porto colocando os fardos para secar nos conveses dos navios, enquanto nossas negociações se arrastavam. Eu fazia o que podia para que isso continuasse ainda por mais tempo, pois sabia que o tempo era meu aliado e inimigo mortal dos egípcios, desesperados a partir de um determinado momento mais por uma solução rápida do que por uma solução proveitosa.

Quando os egípcios finalmente decidiram aceitar qualquer proposta que eu lhes fizesse, eu lhes informei que não queria mais o linho, aparentemente mofado e malcheiroso. A consternação foi geral entre meus adversários, que se sentiram perdidos em um mundo hostil, como tinha sido a minha intenção desde o início. Para fazer negócio é preciso ter alguma coisa com a qual negociar, e os egípcios já não tinham mais nada. Eu propus então, e apenas como ajuda a bons cidadãos egípcios em necessidade, ficar com um dos navios, se o linho dos outros dois me fosse vendido com um desconto substancial. Os egípcios aceitaram, enquanto a platéia ria. O preço que eu pagara por uma partida de finíssimas peças de linho era pelo menos dez vezes abaixo do preço justo. Mas eu ainda não estava satisfeito: quando os egípcios se preparavam para desembarcar o linho dos três navios, dois oficiais do porto, quer dizer, meus empregados, retiveram os dois navios que ainda lhes pertenciam por ausência de pagamento das taxas de abordagem e uso de nossos molhes. Não houve quem os pudesse ajudar. As portas de outros armazéns, outros escritórios, e mesmo das hospedarias do porto de Tiro, se fechavam às suas necessidades e apelos. Os egípcios, já agora em desespero, voltaram a mim e pediram que eu os ajudasse. E eu, sob os aplausos de aprovação de uma platéia cada vez mais numerosa, disse nada poder fazer. Os egípcios se atiraram ao solo, num pedido sincero, e eu fui magnânimo: disse que, apenas para ajudá-los nesse transe tão difícil, aceitaria outro navio como parte de pagamento. Os egípcios me agradeceram e voltaram ao cais. O navio restante era o menor dos três, e nem um quarto dos egípcios cabia dentro dele, nem mesmo se ocupassem a coberta. Dava pena ver aquele grande grupo de homens tristes, deitados no chão do porto, sem nenhuma esperança, enquanto eu era parabenizado pelos meus pares. O pouco dinheiro que eu lhes tinha pago pelo linho de nada valia, conforme eu tinha combinado com meus pares. Não havia possibilidade de voltarem à sua terra, e grande parte deles teria de ficar em Tiro, por sua própria conta. E na cidade meu nome corria como o de um grande vitorioso.

Mas minha vitória ainda não estava completa: eu queria mais. Sabia que no dia seguinte eles voltariam a me procurar, pois estavam com fome e já não lhes restava nem mesmo a possibilidade de ser bem recebidos em sua terra natal, quando voltassem. O mais velho deles, arrojando-se ao solo, cobriu a face com terra e arranhou o rosto com as unhas, entregando seu destino a mim. Queriam trabalho, comida, um lugar para viver. Se isso não fosse possível, pelo menos um lugar para morrer. O que é que eu poderia fazer, sendo homem compassivo? Aceitei-os como meus escravos e, para poder cuidar dignamente de suas vidas e suas mortes, fiquei com o último navio, pois o dinheiro que conseguiria com ele seria usado para esse fim. Os egípcios aceitaram minha proposta e assinaram em minhas plaquinhas de cerâmica com seus sinais decorativos. Foram levados para os alojamentos, em ruas paralelas às do porto, onde seria sua morada desse dia em diante até o dia de sua morte. Os fardos de linho, o mais fino que eu já encontrara, estavam sendo lavados e reenrolados, e depois seriam embarcados em meus reaparelhados navios egípcios, para venda em toda a costa do Mediterrâneo. Mercadorias, navios, escravos, o dinheiro que eu tinha desembolsado e que agora voltava a meu poder, já que tudo o que escravos possuem pertence a seu senhor, tudo era meu, e isso sem despender mais do que o chá de hortelã que tomara durante cinco dias. Um lucro líquido de mais de 15.000 talentos de ouro em apenas cinco dias de paciência e esperteza.

Quando meu tio retornou de sua viagem, eu lhe apresentei as contas da semana. Ele tinha ouvido falar na história, que era tudo o que lhe contavam desde que desembarcara em Tiro, mas queria ouvi-la de minha própria boca. E eu contei, com todos os detalhes, uma, duas, três vezes, e meu tio se deliciava com minhas atitudes:

— Tu te tornaste um verdadeiro homem de negócios: frio, implacável, prático. Assim é a vida. Os homens estão no mundo para tirar proveito uns dos outros, segundo a lei imemorial do olho por olho, dente por dente. Se tem de ser assim, que sejamos nós os que se aproveitam, e que os outros sejam os aproveitados. Um homem nada vale se não tem em seu poder o maior número de riquezas possível. Veja o meu caso: sou fenício, feio e aleijado. De onde vem meu poder? Daquilo que diligentemente amealhei e hoje possuo. Quanto mais possuo mais poder tenho, quanto mais poder tenho mais venho a possuir.

Eu me sentia no paraíso, em companhia dos bem-aventurados. Sentia-me finalmente um homem. E indaguei a ele:

— Meu pai, tive em mente todo o tempo a necessidade de ter e acumular, e nada me demoveu de meu objetivo. Mas confesso que, por vezes, senti em meu coração uma pena infinita dos egípcios, que se colocavam mais e mais à minha mercê, a cada momento que passava.

Meu tio sorriu:

— Esse é o impulso da magnanimidade, que a tantos empobreceu. O próprio rei Salomão, agora rei da Judéia, ungido por seu deus com a capacidade de comandar a terra mais importante de nossos tempos, usa essa capacidade para enriquecer cada vez mais, acumulando tesouros incontáveis. O que não faríamos nós, então, nós, pobres mortais filhos de deuses menores? Fizeste o que devias com esses egípcios. Com riquezas na mão se tornam incontroláveis. Pois se sua própria deusa naufragou a maior parte de sua frota, e os colocou em nossas mãos, que outra coisa nos restava fazer? Dar-lhes um objetivo na vida, que estava sem sentido desde que se viram longe de sua terra e de seu senhor. Reconhece isto, Joab: há quem nasça para mandar e quem nasça para obedecer. A escravidão é uma conseqüência da ordem natural do Universo, pois não somos todos escravos de nossos deuses, que jogam com nossas vidas a seu bel-prazer? O que fizeste foi corrigir algo que estava por mudar para pior: quem sabe o que esses egípcios teriam feito com todas as riquezas que possuíam em mãos? Tens certeza de que voltariam dóceis ao convívio de seu legítimo senhor, ou se tornariam piratas, singrando o mar em busca de novas riquezas? Nasceram escravos e morrerão escravos. No mundo nada deve mudar.

Dentro de meu coração, é verdade, doía uma dor surda, apagada e sufocada pela alegria de ter vencido e agradado tanto assim a meu tio, mas nem por isso morta e esquecida. O olhar dos egípcios cheios de cansaço, fome e desespero não se apagava de minhas retinas, e em meus sonhos se juntava ao olhar esgazeado do adolescente mutilado no templo de Atargatis. Mas os sonhos duram apenas o instante em que ocupam nossa noite, e logo se esvanecem, dando lugar a outros. Minha cabeça, orgulhosa de minhas vitórias, não deixava lugar para esses rostos. Se ainda permaneciam em meu coração, era apenas pelo ínfimo espaço de um sonho, do qual eu acordava sobressaltado, mas que imediatamente se apagava, escorrendo de volta para as regiões imponderáveis da noite. Eu voltava a adormecer e os dias iam seguindo.

Logo após essa vitória, que fez de mim o mais jovem negociante de sucesso no porto de Tiro, voltei à casa de minha mãe, montado em um dromedário ricamente ajaezado e carregado de presentes para todos de minha casa, pois meu tio me havia aberto a totalidade de seus armazéns para que deles eu tirasse o que bem entendesse. Minha mãe, um pouco mais velha, mas ainda forte e rija, pouco falou durante minha estada em meu antigo lar: permanecia no entanto com seu olhar enevoado fixo em mim, que me pavoneava como um grande senhor. Minhas três irmãs restantes, agora mais mulheres que alguma vez tivessem sido, me trataram com alegria, deliraram de prazer com os belos presentes que eu lhes trouxera, e sentaram-se a meus pés por uma noite inteira, enquanto eu lhes narrava a minha vida e os meus sucessos.

Minha família continuava sob a proteção benfazeja de meu poderoso tio Jubal, cuja maior preocupação era arranjar bons casamentos para minhas irmãs. Adasa, minha segunda irmã, agora a mais velha das três, já estava prometida a um rico mercador de cavalos da Anatólia, e certamente seria tão feliz quanto Iamin, a que se tinha casado com um mercador grego, e que com certeza vivia muito bem, já que as notícias, mesmo raras, eram sempre boas, pois os negócios de meu tio e do marido de minha irmã continuavam a florescer. Adasa, a atual prometida, estava impaciente por ir, e eu lhe dei como presente de núpcias um enorme fardo de cortes do tecido com o qual tinha feito meu primeiro aposento, desejando-lhe mil felicidades. Na manhã seguinte, ao sair do lar materno mais uma vez, tive a sensação nítida de que nada mais me ligava àquele lugar, e que a minha família agora eram meu tio e os outros negociantes de Tiro, meus iguais.

Ao retornar dessa visita eu ainda era um grande sucesso. No porto de Tiro só se falava de meu soberbo tino comercial, e os novos escravos egípcios, ao caminharem pelo porto na realização de seus afazeres, reforçavam o grande valor de minha vitória. Meu tio, nos píncaros da alegria pelos acontecimentos dos últimos dias, resolveu dar-me um presente especial. Eu já tinha mais de treze anos de idade, era alto e a cada dia crescia mais, e uma penugem muito escura já cobria meu lábio superior. Por isso meu tio, observando meu progressivo amadurecimento, houve por bem possibilitar-me o conhecimento dos prazeres carnais deste mundo:

— Sabe, meu filho, que o mundo não é só feito de trabalhos e cansaços sem fim. Os deuses puseram no mundo aquelas que nos dão a recompensa por nossos desgastes: as mulheres. Nunca olhaste essas jóias da Criação com olhos de homem, até hoje. Melhor assim: ganhaste por teus próprios méritos o direito aos prazeres infinitos que elas nos podem proporcionar, e hoje os conhecerás em sua totalidade. Prepara-te. Assim que o sol começar a se pôr, tua vida de homem feito se inicia.

O assunto me deixou curioso, afinal eu já conhecia as mulheres. Tinha mãe, tinha irmãs carinhosas, com quem sempre conversara e que sempre me deram o melhor de suas vidas. Tinha sido criado por elas, longe da influência do mundo cosmopolita que Tiro era, e mesmo quando fui projetado dentro dele mantive guardado dentro de mim tudo aquilo que com elas aprendera. Não fazia, por isso, a menor idéia do que seriam estes prazeres infinitos de que meu tio falava, mas tinha a ansiedade de quem vai buscar uma coisa nova e já sente sua proximidade.

Em todo este tempo eu só abrira o meu coração a meu amigo Manassés, e sua semelhança de idade e de ambiente comigo o tornava perfeito para a troca de experiências e de aprendizado. É bem verdade que, depois dos acontecimentos desagradáveis no templo de Atargatis, nós tivéssemos ficado um pouco mais cerimoniosos um com o outro. Minhas atividades tinham ganhado uma importância que eu não esperava, e Manassés teve de voltar a cumprir uma série de obrigações que se tinham tornado minhas. Mas a amizade sincera que entre nós dois

tinha nascido ainda permanecia viva, e eu pedi a meu tio o excelso favor de deixar que eu levasse Manassés comigo a este lugar maravilhoso em que as mulheres realizam sua mágica. Meu tio não ficou muito satisfeito, mas enfim, eu era o seu herdeiro dileto e o assunto do dia, motivo de glória para seus escritórios e armazéns: terminou por dar permissão para que Manassés me acompanhasse.

Fiquei muito mais tranqüilo com a licença dada por meu tio. Eu me sentia responsável pelos momentos difíceis no templo ao sul da ilha, e devia a Manassés uma recompensa por ter vencido todas as suas barreiras e ido comigo até o fim. Também era verdade que a presença dele me deixava muito mais à vontade para enfrentar essa coisa tão nova e tão maravilhosa que meu tio me queria proporcionar. Quando eu fui procurá-lo, ele estava terminando suas orações semanais, pois era fim da tarde do sétimo dia, e esperei que ele tirasse seu manto de pôr sobre a cabeça. Manassés me olhou com alegria, e quando eu lhe dei a notícia, seus olhos escureceram:

— Não sei, Joab, não sei se devo... temos tantas leis sobre as relações com mulheres que nem mesmo consegui decorá-las todas. Essa mulher que vamos visitar é uma qedeshah ou é uma zonahl. Uma prostituta sagrada no templo de algum deus, ou só uma dessas que ganha seu sustento dessa maneira?

Eu não fazia a menor idéia, e Manassés, que só tinha sobre o assunto o conhecimento teórico que a mim faltava, aprendido através do rigor das leis de seu Deus, deu-me um curso relâmpago de relações sexuais, baseado principalmente em tudo o que seu Deus lhe proibia. Segundo Manassés, qualquer uma dessas prostitutas é um anátema aos olhos de Deus, mas mesmo assim são suportadas, por causa da necessidade que os homens sem mulher sentem de sua companhia especial. Contou-me outras particularidades sobre o assunto, e eu duvidei da maioria delas. Certas coisas é preciso ver para crer.

Meu tio mandou que uma carroça puxada a bois nos levasse até o lugar onde já éramos esperados. Eu e Manassés ficamos hirtos quando a carroça tomou a direção do sul de nossa ilha, por causa da lembrança do templo de Atargatis, mas logo o cocheiro virou para oeste e chegou conosco a uma casa de dois andares, muito iluminada, de dentro da qual se ouvia música e risos em um volume considerável. Quando a nossa carroça parou na frente da casa, dois criados portando archotes vieram nos receber, e quatro meninas de muito pouca idade jogaram pétalas de rosas em nosso caminho, enquanto trilhávamos as pedras redondas que nos levavam ao interior da casa.

Até aquele momento eu não tinha conhecido lugar mais lindo nem mais interessante. Uma ampla sala com suas paredes cobertas de grandes tapeçarias e véus, que serviam para ocultar a argamassa e as aberturas que existiam nelas, cercada por degraus circulares em toda a volta, descendo para um grande centro de pedra clara, coberto de tapetes muito coloridos. Muitos archotes e lamparinas de óleo perfumado iluminavam o ambiente, e sua luz era refletida por centenas de pratos de cobre e prata que ladeavam as paredes, além de uma miríade de peças de vidro, que subdividiam a luz e a espargiam por todo o lugar, pintando com uma cálida e sensual tintura vermelho-amarelada tudo e todos que ali estavam. Ao redor das paredes, derramando-se para o exterior da casa, viam-se grandes braseiros e fornos, com uns tantos cozinheiros à volta, assando e trinchando roliças peças de carne, cabritos e ovelhas inteiros, pães de todos os formatos e cores. Mas o que mais se via eram grandes botijas de vinho: as de metal cinzento que os gregos traziam, as de barro com o fundo pontudo para que ficassem de pé na areia das praias, vindas de Jerusalém, algumas trazendo o selo do próprio rei Salomão. O vinho corria como água das nascentes de uma montanha, e as vozes e os risos eram altos e cada vez mais prolongados.

Mas de todos os excessos que ali se viam, o que mais chamava a atenção eram as mulheres: de todos os tipos, tamanhos e cores, numa impressionante exibição da beleza que há no mundo. Havia de tudo: dedanitas de véu e olhos pintados; cipriotas de seios desnudos e anéis nos dedos dos pés; etíopes e núbias de cabelos elevados sobre a cabeça e pele de todos os tons, do marrom do barro cozido ao sol até o negro retinto e brilhante, com reflexos azulados; assírias de sobrancelhas muito grossas e braços cobertos de pêlos; egípcias esguias e nuas, exibindo seus encantos da forma mais lasciva: persas de nariz adunco, seios pontudos e olhos penetrantes; isso tudo envolto em perfumes cada qual mais excitante que o outro, misturados e ao mesmo tempo absolutamente separados, como que pertencentes a mundos rigorosamente estanques. As roupas serviam mais para emoldurar do que para cobrir, e cada uma dessas belas mulheres tinha seus ademanes e particularidades, que usavam para negacear e atrair os homens que lá estavam.

Eu e Manassés permanecemos boquiabertos até que a primeira taça de vinho escuro e doce nos foi posta nas mãos. A seguinte, um vinho de Creta cortado com água do mar, já nos encontrou em estado de satisfação. E as taças foram se seguindo uma à outra, sem interrupção. Um enorme cachimbo de cobre cheio de água, através da qual se aspirava uma erva adocicada, foi passado para nós. Ao provar da fumaça, recordei-me do templo de Atargatis, mas nem eu nem Manassés, envoltos no turbilhão dos sentidos que aquela noite nos trazia, soubemos parar de fumar o hashish que nos apresentavam. E a noite seguiu em frente, enquanto nós perdíamos o controle de nossos corpos, as nossas inibições, até mesmo o nosso respeito próprio. Tudo serviu para nos entontecer e enredar, e cada píncaro de prazer prometia um próximo ainda maior. Comemos, bebemos, chafurdamos na satisfação dos mais primitivos desejos de nossa carne, sem sequer um momento de cogitação. Aquilo era a delícia das delícias, a perfeição das perfeições, o paraíso dos paraísos. E nós nos entregamos de corpo e alma à primeira manifestação do animal que morava dentro de nós.

Na manhã seguinte, ao acordarmos, o sol já ia alto. A casa, que na noite anterior era o mais belo dos templos, agora se mostrava suja e acanhada, coalhada com a imundície que tínhamos criado em nosso festim. Corpos jogados pelo chão, entre restos de comida, bebida, copos e pratos quebrados, ressonavam de boca aberta, na névoa sem sabor das bebedeiras. Os corpos nus tresandavam a podridão, na incapacidade de se recuperar com rapidez de todos os excessos a que tinham sido submetidos. As mulheres, que antes me tinham parecido as jóias principais da Criação, verdadeiros presentes do céu, agora se mostravam como eram: cansadas, sujas, de rostos borrados e formas exageradas. Manassés demorou mais do que eu para levantar-se dos tapetes onde estava enredado com duas egípcias, pequenas e frágeis, adolescentes como nós, ainda com as gordurinhas da infância permeando suas formas de mulher impúbere. Saímos para o lado de fora, e o cheiro dos braseiros frios, onde restos de carne mal-assada tresandavam um bafio de morte, nos fez apoiar nossos corpos um no outro e vomitarmos até a beira do desfalecimento, devolvendo à terra tudo o que estava dentro de nós, nosso espírito inclusive. O carroceiro nos colocou deitados dentro da carroça e, resmungando sem parar, nos trouxe de volta a meu armazém no porto de Tiro.

Passamos o resto do dia envoltos em uma névoa de mal-estar e dores de cabeça, jurando nunca mais participar de nada sequer semelhante ao que tínhamos vivido. Mas na semana seguinte, quando a noite do sétimo dia chegou ao fim, tomei o mesmo caminho de antes e novamente me entreguei à dissipação de meus sentidos, na ânsia de reviver alguma coisa que eu não sabia bem o que era. Eu me viciara inapelavelmente em meu próprio prazer, e agora que tinha o mundo e suas riquezas a meus pés, iria usufruí-los até o fim, sem peso nem medida. Meu amigo Manassés me acompanhava sempre, e nossa vida, durante um longo tempo, oscilou entre a crueldade de nossas manobras comerciais e as noites de prazer sem conta sob o efeito de tudo que nos excitasse os sentidos e aplacasse as dúvidas naturais de nossa alma. De tudo me esqueci e a tudo abandonei nessa busca incessante pelos prazeres a que minha vida se tinha reduzido, e de prazer em prazer fui afundando lentamente na armadilha que o destino, por minhas próprias mãos, fechava lenta e implacavelmente sobre minha cabeça.

 

Olhando com honestidade para este trecho de minha segunda vida, acho difícil compreender como não vim a morrer de forma vergonhosa, com os asquerosos costumes a que habituei meu corpo. Minha vida era como um portal que se apoiasse sobre duas colunas: a da sagacidade nos negócios e a da destemperança nos prazeres. E eu, a partir de certo momento, perdi completamente a capacidade de discernir as coisas. Aquela voz que falava silenciosamente dentro de mim, e que na maioria das vezes tinha o rosto de minha mãe, foi como que se apagando, até desaparecer completamente. Nada mais me impedia de ser o grande homem que meu tio me preparava para ser: a cobiça com que perseguia os grandes lucros, preferencialmente quando meu orgulho era insuflado pela destruição ou falência de algum concorrente, só se comparava à vida que levava em meio aos desregrados que passaram a formar meu círculo de relações sociais. Em público eu era um grande e respeitado negociante, sagaz e ungido pelos deuses da sorte, que diariamente aumentavam a fortuna que eu herdaria de meu tio, colocando em meu caminho as melhores e mais perfeitas oportunidades de exercer meu poder e minha isenção. Não tinha amigos, com exceção de Manassés, mas se os tivesse e eles acaso fossem forçados a negociar comigo, não hesitaria nem por um segundo em passar por cima deles, na busca da riqueza e da vitória. Já em particular, tornei-me, mesmo sendo vários anos mais jovem que o mais jovem de meus companheiros de devassidão, um fescenino para quem só existe prazer na permissividade absoluta, um debochado para quem os desejos do corpo são a mola mestra da vida. Por ser jovem, minha resistência aos excessos era maior que a dos outros, e a luz do dia, que sempre vinha encontrar meus camaradas tomados por um cansaço irresistível, invariavelmente me iluminava na busca sem cessar por mais um pouco de prazer, ainda mais um pouco, só mais um pouco ainda, um pouco mais até que não restasse mais ninguém com quem perseguir essa meta ilusória, e me visse forçado a um sono agitado e mórbido, do qual me erguia ainda mais ansioso, pronto para recomeçar tudo outra vez. Meu amigo Manassés, agora quase um irmão, era o único que conseguia me acompanhar nessa corrida contra mim mesmo. Por diversas vezes viu-se obrigado a acordar estremunhado quando eu exigia dos destroçados companheiros de orgia companhia para a satisfação de quaisquer desejos que eu engendrasse. Na verdade, foram dias muito agradáveis, cheios de agitação e movimento, e Manassés, tão repleto com os acontecimentos dessa nova vida quanto eu, abandonou seus antigos hábitos, tornando-se quase tão frio e calculista quanto eu, para maior glória do comércio de Tiro. Passou a vestir-se como um de nós, fenícios, com barrete cônico de couro inclusive, e foi abandonando gradativamente suas orações a seu Deus, até que de seu antigo e devoto eu só restasse o manto branco e azul pendurado em um prego na parede de seus aposentos novos. Os sete anos regulamentares em que permaneceria escravo estavam por terminar, e teria de decidir se voltaria ao convívio dos seus ou abriria mão de sua liberdade. Se tal fizesse permaneceria escravo para sempre, e para que isso se desse eu teria apenas de furar-lhe a orelha contra o batente da porta de minha casa.

Sim, eu agora era senhor de minha própria casa. Com tantos e tão variados ganhos, crescendo de forma inacreditável, meu tio houvera por bem premiar-me com meu próprio lar, quase um palácio, dando-me acesso a tudo o que havia de bom em suas riquezas, e presenteando-me com criados, escravos, carros, equipagens, cavalos da Anatólia, dromedários da Assíria e até grandes elefantes marrons vindos da Etiópia. Grandes obras de arte de todos os portos onde navios de Tiro porventura tocassem sua proa decoravam cada aposento de minha casa, e em minha despensa e adega descansavam os melhores vinhos e os mais saborosos alimentos.

Claro está que, sendo agora o mais jovem poderoso de Tiro, e dono de um verdadeiro palácio no lugar mais rico da ilha, à distância de uma pedrada do palácio do rei Hiram, que tinha sucedido a seu pai Abchal um ano depois da subida de Salomão ao trono da Judéia, não havia mais

Por que enfrentar as estradas em horário noturno para a satisfação de meus desejos carnais. As diversões e prazeres que eu antes ia procurar agora vinham sem hesitação até minha presença, e minha casa se tornou palco de uma festa contínua, onde a nata da sociedade de Tiro ia viver prazeres inesquecíveis, graças à magnanimidade do herdeiro do grande Jubal, o jovem Joab de Tiro, mago dos negócios. Eu vivia em constante agitação vencendo constantemente em meus afazeres, crescendo em meio à minha também crescente herança, e experimentando a mais absoluta auto-indulgência na minha vida social entre meus pares.

Lembro-me especialmente da festa em comemoração ao duocentésimo barco equipado por nossos armazéns, durante a qual eu fizera questão de homenagear meu tio, que por mim era tratado com o respeito e a adoração com que os filhos certamente tratam um pai de benevolência e amor infinitos. Era assim que eu me sentia em relação a meu tio Jubal: sua bondade me concedera a graça de uma nova vida, e por mais que eu gerasse riquezas para seu erário, pouco valeriam perto de tudo que ele me dera. Nessa festa eu desejava deixar claro a todos os que me conheciam que eu nada seria sem meu segundo pai. Não medi despesas, nem era necessário: nossa fortuna parecia sair de um cofre sem fundo onde habitasse toda a riqueza do mundo. Quanto mais se gastava, mais havia para gastar, quanto mais se exibia a riqueza, mais ela progredia e se ampliava. Meu tio Jubal, em sua satisfação infinita com meus sucessos constantes, não fazia nenhuma objeção a meus gastos. Nossa riqueza era a mais exuberante de todo o Mediterrâneo. E isto era a tal ponto flagrante que o próprio Hiram, rei de Tiro, que em seus primeiros três anos de reinado também enriquecia com nossas transações comerciais, aproveitou a ocasião para dignar-se visitar minha casa, desejando conhecer de perto o jovem feiticeiro dos negócios que fazia crescer o poder e a riqueza de seu reino.

Foi uma noite inesquecível, que deveria ter ficado perpetuada em algo mais que as plaquinhas de cerâmica onde se anotou o gigantesco rol de despesas. Depois de três anos, minhas festas já se haviam tornado parâmetro e exigência para quem quer que se considerasse importante em nosso trecho de costa, da foz do Nilo até as ilhas da Grécia, e eu decidi comemorar meus grandes e vultosos lucros usando o lançamento do navio como pretexto para a comemoração de meu décimo sétimo aniversário, data que para nós da Fenícia indicava a maioridade absoluta. Avessos a anotações históricas como sempre fomos, talvez por reconhecer que a história sempre é muito cruel para com quem se serve da humanidade apenas em busca de lucros, não encontrei nenhum registro ou explicação para que essa fosse a idade da maioridade fenícia, a não ser o nosso amor inato por todos os números primos, dos quais o dezessete é sem dúvida o mais estranho. Mas a visita de Hiram, rei de Tiro, a meu nada humilde palácio, multiplicou por dez a minha importância, dada a importância de que se revestiria, sem que disso eu soubesse.

Hiram, rei de Tiro, apesar de ser um dos homens mais importantes de toda a região banhada pelo Mediterrâneo, tinha para com seus súditos um comportamento muito normal e comum, abrindo mão das filigranas do comportamento cortesão de que tantos pequenos e grandes soberanos fazem a mais absoluta questão. Vivia de forma muito simples em seu palácio, uma casa tão grande quanto as casas dos comerciantes de Tiro, sem sinais exteriores de riqueza que indicassem que ali morava o rei e não um negociante. Seu dia-a-dia também era muito simples: devido às necessidades do comércio de Tiro, que se confundiam quase que totalmente com os negócios de Estado, chegando mesmo a substituí-los em diversas ocasiões, o rei Hiram acabou sendo uma espécie de gerente-geral da grande associação de comerciantes e donos de navios que formava a aristocracia de Tiro. Caminhava pelo meio de seu povo como se fosse mais um deles, sendo extremamente respeitado por todos exatamente por essa faceta de seu caráter. Sua extrema honestidade e vigor em defesa dos interesses dos negociantes fenícios marcaram época, pois outros reis de Tiro e Sídon antes dele só se interessavam pelos tributos que recebiam, sem mover um dedo por sua cidade. Hiram, pelo contrário, era membro ativo de nossa comunidade, e com seu esforço pessoal e sua visão comercial tinha gerado grandes oportunidades de negócios para todos. Sagaz como poucos, honrava seus compromissos de forma absoluta, pois era incapaz de aceitar qualquer negócio que mais tarde lhe fosse prejudicial. E participava com a maior naturalidade dos acontecimentos sociais, como essa festa a que estou me referindo.

Cada convidado, ao entrar em minha casa, pisando em pétalas de flores perfumadas desde o portão de entrada, recebia uma taça do mais fino ouro, polido à exaustão pelos ourives de Sídon, e cada uma delas lavrada de forma exclusiva com desenhos tão intrincados que grande parte do tempo era gasta pelos convivas na comparação entre seu presente e o de seu vizinho mais próximo. Mas na maior parte do tempo essas taças eram mantidas cheias dos mais finos vinhos de Smirna, enquanto os convidados iam ocupando, à moda de Babilônia, as camas em torno do salão, cercadas de pequenas mesas cobertas de iguarias e de grandes narghillas fumegantes. Minhas festas eram famosas por terem de tudo: das mais finas e exóticas iguarias aos vinhos e licores mais estranhos, passando pelo hashish mais forte que se pudesse encontrar. A freqüência também era a mais variada possível: ia desde a alta aristocracia de Tiro, Sídon e Biblos até as mais famosas prostitutas de todo o Mediterrâneo, grande parte das quais já vivia como escrava de minha propriedade. Tudo o que existia em termos de prazer estava disponível em minhas festas, e em tal quantidade que o próprio rei Hiram, neste dia em especial, admirou-se, falando com intimidade a meu tio Jubal, seu sócio:

— Verdade seja dita, meu amigo: nem mesmo Salomão, em toda a sua glória e fortuna na cidade de Jerusalém, tem essa riqueza que aqui vejo. Fizemos uma grande fortuna juntos, em nossos negócios, mas nada que se compare ao que estamos construindo desde que esse abençoado pelos deuses tomou a frente do teu escritório.

Com estas palavras o rei Hiram ergueu sua taça em minha direção, no que foi imitado por todos os meus convidados, inclusive meu tio, que se ergueu, apoiado em seu cajado, e estendeu as duas mãos em minha direção:

— Não há dia em que eu não agradeça à grande deusa Atargatis pela grande bênção que me concedeu, colocando esse filho em meu caminho. Ensinei-lhe tudo o que sei, e o discípulo superou o mestre em menos de cinco anos, deixando-o pronto a ensinar-me de volta tudo o que já descobriu e que eu ainda não aprendi. E hoje que ele alcança a maioridade, está pronto para ser o dono e senhor de toda a minha fortuna, que ele já duplicou, e que sem dúvida triplicará no decorrer dos próximos anos. Bendito o dia em que ganhei este filho! Bendita a grande Atargatis!

Todos os convivas novamente ergueram suas taças em direção a mim e também à grande estátua de Atargatis que eu tinha feito entronizar no lugar de maior destaque, para melhor homenagear a meu tio. Era quase tão grande quanto a que eu e Manassés tínhamos visto cinco anos antes, no templo do bairro dos tintureiros. Cada vez que eu olhava essa estátua, com seus chifres de lua e seus olhos de rubi, o menino que eu fora tremia de medo, escondido lá no fundo de mim. Mas era preciso agradar meu tio, então o homem em que eu me estava transformando pela vida adquirida ergueu a taça e saudou a deusa, bebendo de um só gole o vinho que lá estava, em regozijo absoluto pela fortuna que em tão pouco tempo tinha conseguido construir.

Hiram, rei de Tiro, estava reclinado em um leito de cedro e ouro colocado no centro do patamar de destaque de minha casa, na pequena saleta aberta cercada por colunas de alabastro que meu tio tinha mandado trazer de Nicosia. De cada lado de seu leito, dois outros, um pouco menores mas não menos suntuosos, estavam reservados para mim e meu tio, que os ocupávamos da forma mais natural possível, sendo servidos por meus empregados e servas de todas as cores e feitios, à disposição de qualquer conviva para realizar-lhes absolutamente todos os desejos. Os outros convidados ocupavam camas do mesmo estilo, fazendo uso de tudo o que minha casa poderia lhes dar para que seus corpos experimentassem o prazer. A liberdade de provar sem medidas tudo o que existisse nesse sentido era uma marca de meus festins, de tal forma abertos ao gozo que em minha casa o único pecado digno deste nome era a abstinência. Ninguém estava isento de divertir-se em minha companhia, nem mesmo meu rei.

Hiram era o que se pode chamar de o fenício típico: pele avermelhada, nariz adunco, olhos penetrantes, pêlos escuros e cerrados espalhados por todo o corpo. Vestia um traje feito com uma púrpura tão escura que parecia negra, bordado com fios de ouro em desenhos triangulares. Na cabeça trazia sua coroa cônica de ouro, uma recriação em metal precioso do chapéu que permitia aos fenícios serem reconhecidos à distância. Transpirava uma majestade natural, com seu olhar penetrante, que fixou em mim, enquanto todos os presentes lhe davam sua atenção:

— Algum motivo existe para que os homens estejam juntos em um determinado tempo e lugar. Ou vós credes que é o acaso que nos coloca lado a lado em nossos empreendimentos? Algum deus muito poderoso sabe o que faz, quando põe Joab nas mãos de seu tio. Provavelmente é o mesmo deus que colocou a ti, Jubal, em meu caminho e que também me pôs no caminho de meu amigo e aliado, Salomão da Judéia.

- Atargatis, com certeza, meu rei — retrucou meu tio, com uma vênia.

De vários cantos da sala surgiram gritos bem-humorados: "Baall Foi Baal!" "Agradecei a Astarte!" "Não vos esqueçais do poderoso Melqart!", que encheram o ar de alarido, misturando-se aos risos e à música. Mas Hiram ergueu seu braço, com tranqüilidade:

— Vede, meus filhos, a verdadeira riqueza de Tiro. Em que outro lugar do mundo se pode ter o deus que se escolher, sem medo de ferir as suscetibilidades de ninguém? Aprendemos em nossas viagens pelo mundo o valor da verdadeira liberdade. Não fazemos como os gregos e os egípcios, que têm um deus para cada coisa que exista no mundo, nem como os negros ao sul do rio Nilo, que adoram plantas e animais em estado bruto. Sabemos desde os tempos em que éramos os verdadeiros donos das terras de Qanaan que um deus e só um deus criou tudo o que existe. Mas, se cada um que encontramos em nosso caminho pensa diferente, ou dá um nome diferente a esse seu deus, qual é realmente o grande dano que isso causa? Nossas viagens sem conta pelos mais remotos recantos do mundo não só nos ensinaram que tudo é diferente de tudo em todos os lugares, mas principalmente a aceitar isso como a mais absoluta das verdades. Porventura devemos deixar de nos relacionar com a maior parte do mundo só porque dão oferendas em holocausto a um deus que tem um nome diferente do nosso?

Meu tio comentou, alto o suficiente para ser ouvido por todos:

— Se agíssemos assim, não teríamos negociado com ninguém, nem mesmo entre nós! E estaríamos muito, muito mais pobres!

E Hiram, também rindo, continuou, entre os risos dos presentes:

— Quem somos nós, de Tiro, de Sídon, de Biblos, de toda essa costa em que nascem os mariscos da púrpura, e em cujas montanhas crescem as árvores do mais perfumado e belo cedro? Eu vos digo: somos os primeiros homens que surgiram sobre a terra. Há muitos anos, éramos os senhores da terra de Qanaan, onde hoje reina Salomão. Um cobiçoso Faraó do Egito, por nome Usermaatre-Setepenre, tomou nossas terras e nos expulsou em direção ao norte, não nos deixando descansar senão quando ultrapassamos as colinas que nos separam de Safad. Estávamos acabados, transformados em peregrinos famintos que buscavam um esconderijo. Encontramos onde nos assentar na costa desértica desta terra. O que nos restava fazer, senão nos transformarmos nos melhores homens que podiam viver nela?

Hiram olhou para longe, como que enxergando algo que nenhum de nós via:

— Os gregos falam de uma ave vermelha que, após cumprir o tempo de sua vida, arde em chamas, até consumir-se. E que renasce das próprias cinzas, mais bela ainda. Com seu gosto pelos símbolos, e não desejando reconhecer claramente o nosso valor, quero crer que os gregos falam disfarçadamente de nós quando falam dessa ave. Que outro povo existe que pode se orgulhar de renascer das cinzas de seu próprio holocausto e transformar-se no que hoje somos? Será por acaso que o nome dessa ave e o nosso sejam o mesmo, fênix? Existe um deus que nos criou por esse motivo?

Os murmúrios se espalharam, e o rei Hiram ponderou por alguns instantes, antes de virar-se para mim:

— Diga-me então, jovem Joab: crês no poder de um deus que una os homens do mundo? E se isto for verdade, com que objetivo?

Todos os olhos se voltaram para mim, que tomei um grande gole do vinho de minha taça, enquanto pensava no que dizer. Levantei-me e ergui a taça em direção a Hiram, sendo imitado por todos:

— Grande Hiram, rei de Tiro, senhor de Sídon, Biblos e Tarabulus, essa não é uma pergunta fácil de responder, principalmente para quem, como eu, ainda não tem nenhuma experiência do mundo.

Gritos de "Não é verdade!" encheram o salão, e eu continuei:

— Mas pelo exercício do pensamento, que pratico o tempo todo sem parar, enquanto calculo a infinidade de nossas fortunas, e as leituras de manuscritos nas mais diversas línguas, que perfazem a grandeza da biblioteca de meu tio, pude chegar a algumas conclusões. Os homens, grande rei, nasceram com seu destino já traçado. Vivemos nosso tempo neste mundo apenas para cumprir aquilo a que somos destinados, sem nenhum poder de acelerar os acontecimentos nem de mudar o rumo de nossa vida. Vede meu caso, como exemplo: o tempo que passei como aguadeiro em casa de minha mãe era apenas a primeira parte de meu percurso. Já estava escrito que encontraria meu tio em meu caminho, para que ele fizesse de mim o homem mais feliz do mundo. Não há nada que possa mudar essa realidade, pois a minha felicidade vem do fato de que eu cumpro o meu dever para com ele, enriquecendo-o, cumprindo dessa forma o dever de ser feliz que os deuses me impuseram. Isso me faz cada dia mais feliz, e os prazeres que me são concedidos em meu tempo de descanso são a recompensa justa que o destino me dá pelas minhas boas obras. Seria impossível para qualquer um que exista desfazer o que tenho construído, como seria impossível recusar os prazeres que passam à minha frente. Tudo é dado pelos deuses, e é por isso que nada podemos recusar. A vossa saúde, meu rei!

Todos beberam de suas taças, menos o rei Hiram, que me olhava com curiosidade, e meu tio, que tentou disfarçar, mas que me observou por alguns instantes com um olhar sério e penetrante. O rei Hiram fez sinal para que eu me sentasse: eu obedeci, e ele continuou:

— Interessante a tua visão da existência, jovem Joab. Crês então que o mundo é feito de felicidade sem fim? E os pobres, os doentes, os escravos, os que nada têm?

— São felizes à sua maneira, meu rei. Cada um de nós faz a sua parte, e ao fazê-la, cumpre o seu dever. E se não fossem os escravos, os doentes, os pobres, como poderíamos nós saber o tamanho de nossa felicidade? Somos homens especiais, a quem os deuses concedem seus melhores favores. Está escrito que é assim: tudo permanece o mesmo e nada muda.

Hiram, rei de Tiro, riu gostosamente:

— Ainda tens muito que viver, é verdade, jovem Joab. Que o deus que te deu esta felicidade sem fim, qualquer que seja ele, tenha se lembrado de fazê-la permanente e imutável, como tu a crês. De qualquer maneira, se estamos nas mãos de algum deus, que isso seja para o melhor. Nesse momento quase que consigo te dar a mais completa razão.

Erguendo sua taça, bebeu um profundo gole, enquanto meu tio me olhava por sobre a borda de sua taça ainda cheia. Eu estava seguro de minhas opiniões. Nesse momento de felicidade e reconhecimento absolutos, eu me sentia o rei de meu próprio Universo, como se tudo o que existe tivesse sido criado exclusivamente para me fazer feliz. Não restava nenhuma dúvida em meu coração nem em minha mente: o mundo era meu, o tempo e a vida eram meus, e eu era senhor absoluto de minha própria existência.

Foi então que, para aumentar em mil vezes a perfeição de uma vida que não tinha nenhum defeito, a minha própria, o rei Hiram de Tiro pediu silêncio e bradou, com a forte e majestosa voz que o destacava dentre seus pares:

— Prepara-te então, jovem Joab, para viver o mais belo momento das vidas de todos nós, fenícios que somos, reis do oceano, criadores e mestres do comércio, geradores de riqueza para todos os mares, terras e povos, conhecidos e desconhecidos. O momento que eu e meu povo esperamos desde minha subida ao trono, o momento para o qual a Fenícia e a Judéia se reuniram há quase quarenta anos, o dia de nosso renascimento das cinzas, chegou. Hoje recebi em palácio uma embaixada oficial do rei Salomão, estabelecendo a data de início do que será a maior e mais majestosa obra erguida pelos homens sobre a face da terra. Estaremos nós, os antigos canaanitas, de volta ao nosso território original, colaborando no erguimento do que pode existir de mais belo: uma casa para deus. Este dia é esperado há muitos anos. Dentro de um mês, vinte e oito dias e noites, sem faltar nem sobrar nenhum, começa finalmente a construção do Templo de Jerusalém!

 

A grande notícia, dada desta maneira tão direta por nosso próprio rei, subverteu completamente a grande festa que estava em andamento, transformando-a na primeira de uma grande série de reuniões nas quais nós, os fenícios, sob o comando de Hiram de Tiro, organizamos nossos esforços de maneira conjunta, para melhor servir à causa da construção do grande Templo de Jerusalém. Os aspectos exteriores da festa continuavam lá, mas a essência das coisas tinha mudado. Estávamos todos dispostos a servir nosso rei e senhor, pois sabíamos que o empreendimento da construção do Templo de Yahweh significava sem sombra de dúvida o soerguimento de uma nova e mais suntuosa Jerusalém, oportunidade única para que todo um povo de comerciantes, como nós, enriquecesse além dos sonhos mais delirantes.

As comidas e os vinhos ficaram esquecidos, as prostitutas e dançarinas requisitadas para nos entreter foram abandonadas, enquanto nos reuníamos em volta de um grande mapa do mar Mediterrâneo e terras por ele banhadas, traçado em uma grande pele de elefante, curtida e raspada até alcançar a maciez de uma caríssima flanela de lã. Essa pele ficava normalmente em uma parede de meu quarto de dormir, onde a qualquer momento eu pudesse olhar o movimento de nossa frota e regozijar-me com as riquezas que geravam. Mas pedi a seis de meus servos que a tirassem com todo o cuidado de onde estava, e que abrissem espaço no centro do salão de minha casa para que o mapa, posto sobre o chão de mármore, ficasse às vistas de todos, e pudéssemos estudar a estratégia de nosso comércio, como se guerra fosse.

Para refrescar nossa memória, fiz com que meu amigo Manassés viesse até nós, pois era o único que conhecia, por tê-las ouvido ainda no lar paterno, as histórias desse templo que estávamos por construir, e cuja história se confundia com a história do próprio povo da Judéia. A audiência aplaudiu minha idéia, pois era preciso que medíssemos nossos conhecimentos sobre o assunto, ampliando nossas oportunidades de vislumbrar novos negócios. Manassés, sentindo-se extremamente honrado por meu convite, foi até seus aposentos, ao lado dos meus, e envolveu-se em seu manto branco listrado de azul, que via de novo o ar fresco depois de alguns anos de esquecimento. O que ele contou, valorizado pela emoção com que reencontrava as histórias de sua infância nas terras ao sul de Jerusalém, foi a história de um povo e um deus que pretendem ser uma e a mesma coisa. Manassés sentou-se entre nós, tendo antes coberto sua cabeça por alguns instantes com o manto, ocultando-se completamente de todos, como se estivesse entrando em comunhão com sua divindade. Ao descobrir a face, coberta por uma barba incipiente, seus olhos tinham uma luz cujo brilho aumentava à medida que ele redescobria algumas de suas verdades, de certa maneira perdidas ao me acompanhar sem hesitação nos últimos anos de negócios e prazeres sem limite.

O que nós, comerciantes de Tiro, pretendíamos era apenas um rascunho pintado em grandes pinceladas, que, pela compreensão do valor que o empreendimento tinha para os hebreus, nos possibilitasse estabelecer um preço justo para cada participação fenícia no processo, por menor que fosse. Mas Manassés, tomado de grande responsabilidade, nos fez ver que a idéia de um templo para Yahweh começava na criação do mundo. Isso já era demais, e a platéia resmungou. Para que nada se perdesse, argumentei que conhecimento nunca é excessivo mas no momento era melhor resumirmos a história, e pedi a Manassés que começasse pelo lugar certo, por caridade. E Manassés, calmamente, nos contou o seguinte:

— Quando Moisés subiu as encostas do Sinai para se encontrar com Yahweh, passou vários dias longe de seu povo, que peregrinava pelo deserto em busca da terra prometida. Enquanto Moisés recebia a lei de Yahweh, seu povo, nas planícies abaixo do Sinai, caía de novo na idolatria, chegando mesmo a fundir um bezerro de ouro para adorar. Yahweh traçou ele mesmo as letras de sua lei em duas placas de pedra, que Moisés, quando desceu da montanha, trouxe para seu povo. Ao ver a maior parte dos peregrinos adorando um ídolo, Yahweh encheu-se de fúria, e das placas de pedra projetou todo o seu poder, destruindo os ídolos e sepultando os idolatras em meio a um cataclismo.

O rei Hiram, que conhecia muito bem a maneira de pensar dos hebreus, devido à sua longa associação com eles, comentou:

— Esta é a verdade: Yahweh é um deus muito ciumento. E Manassés, com todo o respeito, completou:

— Seu povo é ainda mais ciumento do que Ele, meu Rei. O que nos leva a ser quem somos é a certeza de que nosso deus é único e só nosso. Mas permiti que eu continue: o castigo aos idolatras foi não só a prova do poder de Yahweh, concretizado nas duas placas de pedra, talhadas por Sua própria mão, mas também o símbolo visível do pacto entre Yahweh e seu povo. Eram a prova da existência de Yahweh, quase que a configuração palpável de Sua existência, a Sua corporificação em pedra, garantindo por Sua existência a existência da aliança entre os hebreus e seu deus. E Moisés mandou que os artífices entre os peregrinos criassem um recipiente à altura de Yahweh para que ele pudesse estar sempre com Seu povo. Esses artífices construíram então a Arca da Aliança, em cedro e ouro, encimada por dois querubins, que passou a ser carregada por eles aonde quer que fossem. Mas o poder de Yahweh, contido nas duas placas de pedra, é muito maior do que se possa imaginar, tão grande que um desavisado que encostar sua mão no lado de fora da Arca é fulminado. Isto aconteceu quando o rei David trazia a arca de Cariat-Iarim para Shiloh, em cima de um carro novo puxado por bois. Em uma depressão do terreno o carro vacilou, a Arca ameaçou cair, e um homem chamado Oza, um dos condutores do carro, a segurou, tentando mantê-la em seu lugar, sendo imediatamente fulminado pela ira de Yahweh.

Jubal, meu tio, comentou:

— Grande poder! Deuses com um poder assim têm longa vida, e dão longa vida a seus seguidores.

O rei Hiram cofiou a barba encaracolada, com os olhos pensativos, enquanto Manassés continuava sua narrativa:

— A Arca passou a ser carregada de um lado para outro por meio de duas traves, e ia junto com os hebreus para todos os lugares. Mas nos momentos de descanso, onde guardar semelhante prova da existência de Deus? Criou-se então um Tabernáculo móvel, feito de madeira e pano, que pudesse ser montado e desmontado sem grande dificuldade, dentro do qual pudesse estar a Arca em toda a segurança, garantindo a segurança de quem estivesse em contato com ela.

Hiram, rei de Tiro, sentou-se melhor em seu leito:

— Eu conheço essa tenda, por tê-la visto em duas de minhas visitas a Salomão, na cidade de Jerusalém. Por não ser hebreu, só pude ultrapassar a primeira linha de cortinados. E apenas Salomão pode entrar no espaço mais interno, feito de madeira e lona, aquele onde fica a Arca. Amarram-lhe uma corda à cintura, para que, se acaso sofrer algum mal súbito quando estiver já dentro, possa ser puxado para fora sem que ninguém precise estar em contato com a Arca.

Eu achei estranho:

— Mas, meu rei, e o povo obedece a esses preceitos? Não há ninguém que se disponha a invadir esse espaço?

— Não, Joab. O mais impressionante é o respeito que os hebreus têm por seu deus. Mesmo nos momentos de maior discórdia, como quando da luta entre David e seu filho Absalão, em que parecia que o povo hebreu iria dizimar-se, não houve ninguém que desrespeitasse o preceito de Yahweh. Um espaço feito de cortinas se mostra mais inexpugnável do que a mais defendida fortaleza. Mas isto são apenas comentários. Continue, Manassés.

Manassés estava como que imbuído de seu deus, e balançava o corpo para a frente e para trás, falando com os olhos semicerrados:

— Yahweh disse a David que, por ser um homem de guerra e não de paz, não teria permissão para construir seu templo. Isso ficaria para seu filho, Salomão, que foi ungido rei da Judéia no leito de morte de seu pai. Durante quatro anos Salomão vem estabelecendo seu poder sobre toda a Palestina, e agora que já é o homem mais rico do mundo, pode transformar em realidade o sonho de seu pai.

— E o fará, com nossa ajuda! — disse o rei Hiram, levantando-se de seu leito e começando a trilhar, em grandes e lentas passadas, o chão de mármore à volta do grande mapa. — A obra de Salomão é a coisa mais importante que já se ergueu em nosso mundo! Agora compreendo o esforço feito por ele em quatro anos para acumular fortuna, a maior fortuna de todos os tempos. Salomão tem agido com extrema competência, aumentando sua riqueza dia a dia, tudo para a maior glória de seu deus, que certamente o tem auxiliado nesse enriquecimento. E hoje eu posso ver que nós, fenícios, também temos um papel a cumprir, e que somos essenciais a essa obra, porque ela também é nossa.

A audiência resmungou, sem compreender aonde Hiram pretendia chegar, e ele, com toda a majestade que seu cargo lhe permitia, ergueu a mão direita, silenciando-nos:

— Quem sou eu, de onde venho, para onde vou? Cada um de vocês já deve ter se feito esta pergunta, na tentativa de descobrir o objetivo de sua vida sobre a face da terra. Mas eu, rei de Tiro, senhor dos fenícios, quando faço essa pergunta, tenho de fazê-la em nome de meu povo: quem somos, de onde viemos, para onde vamos? Hoje as respostas para estas dúvidas estão claras em minha mente. Nós somos fenícios, um povo de marinheiros e mercadores, senhores do mar. Viemos de Canaã, terras ao sul de onde hoje vivemos, sendo de lá expulsos pela cobiça de um Faraó insensível, abandonando essas mesmas terras que os egípcios acabaram perdendo para os hebreus e que hoje são o reino da Judéia. Mas pensem comigo: se o Faraó não tivesse voltado seus olhos cúpidos para nós, onde estaríamos hoje? Em Canaã, em Jerusalém? Seríamos nós hoje o povo prometido que Salomão menciona quando se dirige a seu povo?

Hiram olhou à distância, como se enxergasse o futuro:

— Que reviravolta do destino, tirando-nos de uma terra e nos entregando outra, nos transformando de camponeses em marinheiros! Por que mudar assim o destino de um povo? Apenas um grande objetivo pode explicar isso. Acho que David e Salomão, que têm sua sabedoria reconhecida aonde quer que seus nomes tenham chegado, souberam ver nos fenícios que dominaram os parceiros essenciais para sua obra. Para alcançar seu objetivo, faltava ao povo hebreu o domínio dos mares. Ao nos conhecer, David e Salomão certamente perceberam que nós éramos a parte que lhes faltava, e nos transformaram em seus parceiros. Nos últimos vinte anos, graças aos acordos feitos entre Abchal, meu pai, e o rei David, pai de Salomão, nós e os hebreus nos complementamos, tornando-nos uma coisa tão ajustada que não existe quem nos possa derrotar, e nossas fortunas crescem incomensuravelmente. Por quê? Porque Salomão precisa dessa fortuna para erguer o templo de seu deus. E nós? Por que estamos tão ricos?

Eu, meu tio Jubal, meu amigo Manassés e todos os nossos convidados ficamos em respeitoso silêncio, esperando a palavra de nosso rei. Sentimos que o momento era de grande importância, e foi com uma sensação de grandeza que ouvimos as palavras de Hiram:

— Nossa riqueza tem um objetivo que talvez não estejamos conseguindo compreender. O que eu sinto é que, quer queiramos ou não, fomos escolhidos para colaborar no erguimento desse templo. Por isso, decido: todos os esforços necessários que a Fenícia puder fazer, fará, não importa o custo nem o tempo que leve. Se nossa fortuna tiver de ser gasta para que isso aconteça, que seja: a recompensa virá no decorrer dos tempos.

A frase final de nosso rei caiu sobre nós como um cântaro de água fria, e a reação foi imediata. Os ricos e ativos comerciantes de Tiro e Sídon, que compunham a companhia de convidados deste dia, tiveram como primeiro impulso rejeitar a idéia de seu rei, conforme foi dito por meu tio Jubal:

Meu rei Hiram, somos sócios desde o tempo de vosso pai, o saudoso rei Abchal de Tiro. Ainda no tempo do rei David fizemos grandes negócios, fornecendo-lhe madeira da mais alta qualidade, para que erguesse seu palácio. O povo da Judéia já era rico desde então, e desde esse tempo nós lhes temos fornecido o que existe de melhor, em troca do pagamento justo. Mas agora esse povo se tornou infinitamente mais rico, e vai necessitar de materiais infinitamente mais nobres, madeiras, mármores, metais de brilho quase excessivo, tecidos de finura incomparável, e escravos, e alimentação para esses escravos, e todo um cabedal de coisas que só nós poderemos lhes fornecer. Essa é a oportunidade para que venhamos a ser mais ricos do que alguma vez imaginamos, e não parece certo que nossos lucros venham a ser prejudicados, beneficiando um povo que não somos nós, na construção de um templo para um deus que não é o nosso!

Os murmúrios de aprovação encheram a sala. Meu tio era verdadeiramente o homem mais importante entre os comerciantes de Tiro, e a sua opinião tinha um peso quase tão grande quanto a do rei Hiram, que chegou até ele e  pôs-lhe fraternalmente a mão no ombro:

— Jubal, meu parceiro de tantos anos, pensa comigo: Yahweh não é o nosso deus, mas bem poderia ter sido, se nós o tivéssemos encontrado, em vez dos hebreus. Ou tu te esqueces de que a terra que hoje ocupam é a terra na qual nosso povo nasceu e cresceu? Um de nós, fenícios, poderia ter sido o salvador de todo um povo, subindo até o monte do Sinai e lá encontrando este Senhor das Tempestades, como Yahweh gosta de ser chamado. Tal não ocorreu, mas fomos mantidos bem próximos, e isto indica claramente que temos um papel importante a cumprir nessa história de construção do templo. Yahweh finalmente se estabelecerá definitivamente em uma terra, ocupando seu lugar de direito e lá permanecendo para sempre. Tu não percebes o poder deste Yahweh? Tu não vês que nossa riqueza também tem vindo dele, de uma maneira ou de outra? Tu não sentes o chamado para que cumpramos nosso papel nesta hora?

Hiram estava como que tomado por algo mais forte do que ele, e Manassés, olhando-o nos olhos, sentiu-se como que reconhecendo um seu irmão e, cobrindo novamente a cabeça com seu manto, pôs-se a orar em voz alta, na sua língua materna, um agradecimento e um regozijo a seu deus. Hiram encarou toda a assembléia, que o olhava boquiaberta:

Nada temais, meus irmãos fenícios. A verdadeira riqueza de Tiro está em nossas mãos: é a nossa infinita capacidade de sobreviver às desditas, transformando cada desgraça em fonte de fortuna e felicidade. Faremos o possível e o impossível pela construção do Templo de Yahweh em Jerusalém. Não haverá prejuízo: nossos preços serão mantidos, e podem ter certeza de que nossos negócios serão pelo menos dez vezes maiores do que têm sido, pois um Templo como esse presume a construção de uma cidade gigantesca à sua volta, e só nós temos condição de fornecer os materiais necessários à sua realização. Se isso ainda não é o bastante, então ouçam minhas palavras finais. Eu, Hiram de Tiro, vosso rei, me coloco neste momento como fiador de meu parceiro Salomão, e garanto a cada comerciante fenício que desse empreendimento participar um prêmio em ouro, que minha casa real dará a cada navio e cada caravana que daqui saírem no esforço de construção do Templo. Eu, Hiram de Tiro, vosso rei, garanto com minha própria riqueza a riqueza de meus súditos, pois sei, como nunca soube antes na vida, que este é o fim para o qual temos sido preparados desde nossa expulsão de Qanaan pelos soldados do Faraó.

Isto era outra conversa, e eu imediatamente fiz um sinal aos criados para que circulassem pelo salão com novas ânforas de vinho, e que os músicos voltassem a ferir seus instrumentos, e que as dançarinas e prostitutas voltassem a ocupar seus lugares a nosso lado, pois estávamos novamente, felizes. Nosso rei garantia lucros ainda maiores a todos nós, e eu previa um aumento gigantesco em nossas fortunas. O povo da Judéia dependia de nós, e nós, como bons comerciantes que éramos, não poderíamos recusar o chamado. Este é o verdadeiro valor de um comerciante: servir sem hesitação a seus fregueses. Quando o Templo finalmente estivesse erguido, poderia ser olhado por nós com o orgulho de um criador. Nós, os fenícios, nunca nos tínhamos preocupado em anotar nossos feitos e conquistas, considerando perda de tempo a preocupação com um tempo que já tinha passado. Desta maneira, nada deixávamos sobre nossa história, e tudo o que construíamos era um futuro que nunca durava mais que um só dia, e que virava pó a cada pôr-do-sol. Mas agora poderíamos deixar a nossa marca sobre a terra, como um Faraó cobiçoso tinha deixado a sua às margens do Nilo, sob a forma de pirâmide. Cada vez que Yahweh acordasse em sua nova casa, lembrar-se-ia de nós, fenícios, lado a lado com seu povo escolhido, e por certo faria aumentar em muito a nossa fortuna, como forma de agradecimento.

Isto tudo passou por minha cabeça, enquanto as comemorações e brindes ao negócio que se avizinhava se sucediam. O rei Hiram retirou-se logo após, sendo saudado por todos com cada vez mais alegria, à medida que o álcool aumentava os lucros que ainda estavam por ser ganhos, e cada um de nós se sentia o mais rico entre os mais ricos. Notei também que meu tio Jubal não parecia muito satisfeito: mas a alegria de nossos pares logo me distraiu, e sequer percebi o momento em que meu tio se retirou de minha casa. A festa continuou sem descanso, e o nascer do sol veio nos encontrar ainda em pleno exercício de nossos prazeres.

Na manhã seguinte, ainda com a cabeça um pouco anuviada pelos vapores do álcool consumido na noite anterior, caminhei acompanhado por Manassés até nossos escritórios no porto de Tiro. Fui saudado com alegria pelos que me conheciam, e os que não me conheciam me olhavam com admiração e inveja, estranhando aquele adolescente tão arrogante que era o maior entre os maiores. Manassés estava estranhamente calado nessa manhã, e quando eu o interroguei, só me respondeu:

— Estive longe de mim mesmo durante muito tempo, Joab. Ontem pude provar novamente o maná da palavra de Yahweh, e seu gosto em minha boca revelou-se maravilhoso. Hoje, ao acordar, era de novo o mesmo Manassés de sempre, e tenho saudades do tempo em que vivia de acordo comigo mesmo.

Eu ri, e o censurei:

— O que é isso, Manassés? Então o sabor da palavra de Yahweh te fez sentir saudades do tempo em que eras o menor dos escravos de meu tio, e nada fazias de bom em teu dia que não fosse servi-lo sem descanso? Hoje vives tão bem quanto eu, que sou menos teu patrão que teu amigo, e podes experimentar os prazeres de que os deuses encheram este mundo, para te satisfazer. Sentes falta de quê?

— Joab, sinto falta de mim mesmo, como já disse. Este que eu hoje sou é muito diferente daquele que um dia eu fui, e sinto no fundo de minha alma que o outro Manassés era um homem melhor do que este. Infelizmente, é tarde para voltar atrás. A infância terminou, e com ela a inocência. Sigamos nosso caminho. Se eu permanecer calado, será só por algum tempo. Já estou quase me esquecendo de quem eu fui. E não vale a pena chorar pelo que não pode mais voltar.

Manassés demorou algumas horas para voltar a seu normal, mas depois foi como se nada tivesse acontecido. Iniciamos nosso trabalho no porto, pois havia dois navios chegando, um com cobre das ilhas gregas e outro com cevada do Egito. Quando se aproximava a hora do almoço, vi N'Gumbo, o criado de meu tio, se aproximando com rapidez, batendo seus grandes pés negros no chão de tijolo, e gesticulando para que eu o acompanhasse. Larguei o que estava fazendo, pois uma ordem de meu tio devia ser obedecida a qualquer custo, e acompanhei N'Gumbo até a hospedaria do porto, onde todos costumávamos almoçar ou nos reunir para fazer negócios e decidir nossa participação nos lucros do dia. Quando entrei, levei um tempo para me acostumar com a passagem do sol para a penumbra, mas ao começar a enxergar vi numa mesa do fundo meu tio Jubal, acompanhado por seis ou sete dos notáveis do porto de Tiro. Meu tio se ergueu da mesa com os braços abertos e um estranho sorriso na face e dirigiu-se a Mimf — Meu filho: tempos muito interessantes se aproximam. É verdade que o rei Hiram nos prometeu um prêmio em ouro a cada navio ou caravana que daqui sair para Jerusalém, mas também é verdade que os reis costumam esquecer suas promessas quando em dificuldades. Ainda mais quando resolve fazer isso por um encantamento inexplicável com um deus que não é o seu. Quando isso acabar, será que Hiram de Tiro se lembrará do que prometeu enquanto estava obnubilado por Yahweh?

Todos resmungaram, em assentimento, e meu tio continuou:

— O que nos interessa é mesmo o nosso negócio: vender, comprar, ganhar, ter lucro. O resto, se vier, que seja encarado como um presente. Mas temos de garantir o essencial. Por isso estamos começando hoje uma associação específica apenas para garantir os suprimentos do templo de Jerusalém, sem prejuízo de nossos outros negócios. Se nada der certo, e nem mesmo o prêmio do rei Hiram puder ser contabilizado a nosso favor, isso não terá grande importância. Nossa vida continuará como sempre.

Considerei de extrema cautela e sabedoria a decisão de meu tio, pois a minha opinião sobre os negócios era a de que nada era mais importante do que eles, e não via nada de mais em nos assegurarmos de que nossos lucros não cessariam caso essa aventura do Templo de Jerusalém viesse a fracassar. Parabenizei meu tio pela decisão, no que fui acompanhado pelos outros companheiros de mesa. Mas eu não esperava o que meu tio me disse depois:

— Joab, é preciso um homem de grande poder e conhecimento para controlar da melhor forma possível essa nova associação. Nós somos muitos, e muito versados nos assuntos de nosso comércio, mas também somos velhos e cansados, sem energia para enfrentar as exigências que tal empreendimento exigirá. Por isso, mesmo correndo o risco de prejudicar meus negócios aqui em Tiro, resolvi dispensar teus serviços. Prepara-te, Joab, que hoje começa uma nova fase em tua vida de homem de negócios: tu serás nosso representante, escolhido por tua capacidade e teus méritos, e o mais rápido possível partirás para Jerusalém.

Todos me aplaudiram e eu, absolutamente inconsciente do que o futuro me reservava, enxergando apenas o lucro e o poder incomensuráveis de que a decisão de meu tio me revestia, agradeci e me regozijei com eles, prestes que estava a iniciar a minha terceira vida.

 

Os acontecimentos se precipitaram com a rapidez de uma voragem de inverno, daquelas que de geração em geração, por obras da natureza desgostosa, sopram com violência seus rodamoinhos por sobre nós, fazendo com que a temperatura caia vertiginosamente, enchendo de neve nossos campos constantemente desérticos. A associação dos comerciantes de Tiro para a construção do Templo de Jerusalém cresceu e se firmou num espaço de tempo muito curto, gerando uma série de novas ocupações para o povo da Fenícia, que antes mesmo dos hebreus viu o início da grande obra. Explico: como os comerciantes e armadores de Tiro haviam decidido não interromper nem prejudicar seus negócios normais, todo o esforço em direção ao Templo de Jerusalém podia ser encarado como um algo a mais, um adicional de trabalho que certamente traria um grande adicional de ganho, e fez com que a Fenícia como um todo desse início aos trabalhos de construção um bom tempo antes que o primeiro pedreiro pusesse pé no local escolhido para o erguimento do Templo.

E eu, que meu tio tinha removido dos afazeres cotidianos no porto de Tiro para cuidar exclusivamente dos negócios ligados à construção em Jerusalém, não experimentei nenhuma redução em meu trabalho. Pelo contrário: a quantidade de material necessária à construção era tamanha que tivemos de rapidamente ampliar o molhe de pedra do porto, ocupando o litoral oeste da ilha de forma exclusiva, cortando nela uma avenida mais larga que as ruas estreitas que a atravessavam de um lado a outro. Esse trabalho foi feito em duas semanas, porque na realidade consistia na derrubada integral de todo um bairro, composto de casas de barro muito humildes, habitadas por gente quase sem a importância. Por mim essas pessoas teriam mais é que sair da frente ir cuidar de suas próprias vidas longe dali, enquanto o progresso de nossa cidade rasgava a continuação da avenida que ligava a ilha ao continente. Mas Hiram, movido por uma bondade infinita, cedeu alguns terrenos ao  .sul da ilha, nos charcos além do bairro dos tintureiros, para que a mesma quantidade de casas a serem derrubadas fosse erguida e abrigasse as famílias despejadas. E a grande avenida ficou pronta, com uma qualidade bem inferior àquela da qual era continuação, pois o tempo não nos permitiu calçá-la como à outra, restando-nos apenas a possibilidade de passar sobre ela grandes rolos de pedra puxados por parelhas de elefantes etíopes, que se encarregaram de assentar a terra solta, transformando-a em alguma coisa parecida com a dureza dos tijolos cozidos ao sol que os hebreus nos tinham ensinado a produzir.

Minha vida começou, dessa maneira, a girar exclusivamente em torno do futuro Templo de Jerusalém. As notícias que chegavam do rei Salomão davam conta das necessidades materiais de sua obra máxima, projetada ainda no tempo de seu pai, a qual pretendia erguer sem modificar uma coluna sequer, facilitando um cálculo que de outra forma seria quase impossível. Isso me permitiu fazer uso de minhas capacidades de previsão material, começando imediatamente a calcular e estocar em nossos novos armazéns a olorosa madeira de cedro que fluía incessantemente das montanhas da Fenícia, sendo cortada e aparelhada segundo as minhas especificações.

O projeto, dando-se crédito a uma das lendas que acompanhavam o empreendimento, era de autoria do próprio Yahweh, que tinha determinado a David todos os detalhes da construção, ao exigir dele um templo onde pudesse habitar para sempre. Pelo que pude perceber em conversas com os emissários do rei que vinham a meu encontro, na maior parte levitas que necessitavam determinar a qualidade dos materiais a serem usados, o rei David mandara construir uma miniatura do Templo em todos os seus detalhes, e essa miniatura, mesmo destruída por ele durante uma crise de raiva quando Yahweh lhe comunicou que não seria mais o construtor de Seu Templo, tinha sido recuperada por Salomão, que se reportava a ela sempre que tinha alguma dúvida sobre algum detalhe da obra. Era, pelo que eu pude perceber, a configuração em pedra e madeira do mesmo Tabernáculo de pano que Hiram havia visitado e pretendia ser o ponto máximo da nova Jerusalém que Salomão estava em vias de construir para seu povo como símbolo máximo de seu poder e do poder de seu deus sobre toda aquela região.

Os acordos entre Tiro e os hebreus, feitos por intermédio de seus dois soberanos, iam um pouco mais longe que os acordos comerciais entre as pessoas de Salomão e Hiram, que de forma absolutamente particular tinham construído em quatro anos a mais forte aliança comercial de todos os tempos, tão sólida que afetava até os poderosos egípcios. Hiram, em sucessivas reuniões com a associação criada entre nós de Tiro para o esforço da construção do Templo de Jerusalém, foi vagarosamente esclarecendo os termos do acordo entre eles. Todo o material necessário para a grande obra seria fornecido pela cidade de Tiro, a ser paga em alimentos, segundo as taxas de câmbio normais. O rei Hiram repassaria em sua totalidade esses alimentos para os fornecedores, que os comercializariam, segundo nossos velhos costumes, em toda a região do Mediterrâneo, indo até mesmo além das colunas de Héracles. Isso, somado ao prêmio em ouro que Hiram de Tiro havia prometido a cada navio ou caravana que se dirigisse a Jerusalém, fazia com que nosso lucro fosse considerado excepcional para essa época. Nós, comerciantes de Tiro, estávamos rindo com todos os dentes, mas no fundo de minha mente restava uma dúvida: o que é que o rei Hiram iria ganhar em troca dessa dedicação tão extremada a uma causa estrangeira? Numa conversa reservada comigo e meu tio, Hiram esclareceu os termos do acordo:

— Salomão me concederá, quando o Templo já estiver em fase de acabamento, vinte cidades ao norte da Judéia, fazendo com que nós possamos ampliar nossas fronteiras, ganhando inclusive algumas planícies muito férteis, coisa que a nós tem feito muita falta. Nossa produção de trigo, uvas e olivas aumentará, decerto, e dominaremos novas trilhas de caravanas que vêm do interior, aumentando nossa arrecadação de tributos, isso sem falar na ampliação dos negócios. Somos um povo de marinheiros, é certo, mas aparelhar uma caravana não é muito diferente de lançar um navio.

— Por certo! — ajuntou meu tio Jubal, por sobre a taça de cerveja que tomava. — E nem estamos falando do balanço dos dromedários e elefantes, que lembram em muito o movimento dos navios!

Jubal e Hiram riram, e eu os acompanhei por educação, pois não

fazia a menor idéia daquilo a que se referiam. O mar ainda era uma incógnita para mim: aquela grande extensão de água, de cor e aparência tão variáveis, só entrava na minha vida na medida em que banhava nossa cidade. Na minha mente o mar se misturava com o vinho de Chipre, que costumávamos cortar com a água salgada em estado puro, alegando que era para que saísse com mais facilidade das ânforas de barro estanhado em que vinha. Diziam os mais antigos que o vinho de Chipre assim tratado não causava mal-estar na manhã seguinte. Para mim não fazia diferença: minha constituição era de tal forma forte que eu nunca tinha sabido até então o que significava qualquer problema digestivo causado pelos excessos. Meu tio notou meu sorriso e comentou:

— Meu filho ainda não conhece os caminhos de água, mas brevemente experimentará seu poder. A primeira flotilha carregando cedro, cipreste e sândalo para Jerusalém estará pronta para partir em mais quatro semanas, e ele terá a responsabilidade sobre ela. E irá finalmente conhecer a nova Jerusalém, a cidade que nós estamos construindo para Salomão.

O rei Hiram chegou mais para a frente, olhando meu tio nos olhos:

Jubal, Salomão me fez mais um pedido que acho que deveríamos conceder, já que em nada onerará nossos cofres e só nos valorizará. Depois de tantos anos, cinqüenta para ser exato, o projeto do Templo e da nova cidade à sua volta deve forçosamente estar ultrapassado. Os hebreus ainda são partidários da simples vida campestre a que tinham se acostumado desde sua saída do Egito, não têm gosto apurado nem capacidade de reconhecer o valor de alguma coisa bela e rica, como nós, que viajamos o mundo inteiro e aprendemos o que é bom. Sua vida urbana nada tem em comum com a vida em outras cidades do mesmo porte: é por demais frugal, simples, quase mesquinha. Salomão tem feito um esforço enorme para guindá-los a uma nova condição, dando-lhes uma coisa muito nova: o orgulho de serem o povo de Yahweh. Falando com honestidade, o Templo de Jerusalém, que nas nossas imaginações é algo de incomensurável, vai acabar por ser coisa sem nenhum atrativo, longe das necessidades do próprio Yahweh. E Salomão, que quer dar o melhor a seu deus, me pediu que lhe indicasse alguns artesãos em madeira, metais, pedra, para que a decoração do Templo seja feita de acordo com sua vontade.

Meu tio franziu o cenho, tentando elaborar uma lista de trabalhadores que pudesse satisfazer a seu rei. Enquanto pensava, surgiu uma idéia em minha mente, e eu a proferi:

— Meu Rei? Quando estivestes em minha casa, o que achastes da arquitetura e dos detalhes decorativos?

— Achei-os no mínimo magníficos, Joab, dignos de um palácio real. Por que esta pergunta?

— Porque toda a minha casa, com tudo o que tem dentro, o trabalho de polimento das madeiras, do alabastro vindo das terras próximas aos portais de Tartessos, a fundição dos metais, o aparelhamento das pedras, tudo o que meu rei viu, foi obra exclusiva de um só homem.

Meu tio me olhava muito sério, e eu, querendo servir a meu rei da melhor forma possível, continuei:

— Por uma dessas coincidências do destino, é um de nossos compatriotas que tem o mesmo nome de meu rei, mas usa-o acompanhado do nome Abiff, pois, sendo seu pai um antigo operário de Tiro, sua mãe é uma mulher da tribo de Neftali. Ele é meio fenício e meio hebreu, e o sol que ilumina essa terra nunca fez cair seus raios sobre talento maior. Contam os que o conhecem que é versado desde muito jovem em todas as artes decorativas, e que passou grande parte de sua juventude trabalhando entre os egípcios e os assírios, com quem aprendeu as melhores técnicas de construção. Faz poucos anos que se assentou na Fenícia, e mora em uma aldeia perto de Sídon, pois sua mãe não consegue viver em Tiro, cidade que lhe traz muitas saudades de seu falecido marido. É um homem muito sério, cumpridor rigoroso dos compromissos assumidos, e o maior artista de que já se teve notícia.

Hiram, rei de Tiro, animou-se com a notícia e, enquanto eu enviava dois portadores a cavalo para buscar Hiram-Abiff, requisitou-me um escriba. Eu me pus à sua disposição, e ele ditou-me uma carta a seu parceiro Salomão, que eu anotei em fenício e mais tarde traduzi para o hebraico, com a inestimável ajuda de Manassés, que não o escrevia mas o falava com perfeição:

"Salomão, rei da Judéia, é porque ama o seu povo que Yahweh te fez reinar sobre ele! Bendito seja Yahweh, deus de todos os hebreus! Ele fez os céus e a terra, e deu ao rei David um filho sábio, sensato e prudente que vai construir uma casa para Yahweh e um palácio para si próprio”.

Com este objetivo, e procurando realizar o que vós me pedistes em vossa última carta, enviar-vos-ei, junto com a primeira partida de madeiras para vossas obras, um homem prudente como vós e muito hábil, por nome Hiram-Abiff, filho de um homem de Tiro e de uma hebréia da tribo de Neftali.”

As informações que Hiram colocava na carta eram todas de oitiva, mas ele demonstrava plena confiança em mim. Meu tio, sentado ao fundo da sala, logo pediu licença para retirar-se, alegando outros afazeres, e saiu com um ar bastante irritado, por razões com as quais não pude atinar naquele momento. O rei Hiram me questionou muito sobre as capacidades de meu recomendado, e demonstrando grande satisfação, continuou seu ditado:

"Este Hiram-Abiff, sendo filho de um construtor de Tiro, e tendo vivido longo tempo entre os egípcios e os assírios, sabe trabalhar o ouro, a prata, o bronze, o ferro, a madeira, a púrpura, o linho fino, bem como qualquer tecido que puserdes em suas mãos, e sabe fazer qualquer espécie de gravura e projetar qualquer plano. Demonstra grande capacidade de liderança e fará trabalhar como ninguém os vossos artífices, desde que tenha todas as condições possíveis para executar seu mister.”

Após este parágrafo, meu rei voltou-se para mim, querendo que eu lhe desse minha opinião sobre a carta que me estava ditando, e eu lhe respondi:

— Meu rei Hiram, é exatamente por conhecer este homem Hiram-Abiff que eu vo-lo recomendei. Creio que Salomão ficará plenamente satisfeito com ele, pois além de tudo é pessoa de excelente caráter, admirado por todos que com ele convivem.

— Disso não duvido, Joab. Mas agora é preciso que eu decida o outro lado das questões. Conto com sua discrição.

— Meu rei, aqui sou apenas um escriba. Minhas atribuições de comerciante não estão presentes. Se quiserdes continuar, continuo a vossas ordens.

Hiram sorriu, satisfeito, e continuou seu ditado:

"Salomão: quase toda a madeira de que tereis necessidade já está no porto de Tiro, aguardando o retorno de um de nossos navios grandes, que servirá para puxar até o porto de Jope as balsas onde está embarcada. Vós as encontrareis em Jope e de lá fareis subir esta carga até Jerusalém, da maneira que vos for mais conveniente. Aguardo no retorno das balsas a carga de vinte mil coros de trigo e vinte mil batos de azeite, além da mesma quantidade de cevada e vinho, como pagamento pelo primeiro ano de fornecimento de materiais. Os dez mil homens que me enviareis para trabalhar no corte e aparelhamento da madeira devem também vir para Tiro nesta mesma época, mas considero que devido ao grande número é melhor que estabeleçamos um número possível para cada navio que faça o percurso entre Jope e Tiro, sem prejuízo das cargas que são muito mais importantes.”

Hiram encerrou a carta com as fórmulas de praxe e eu me encarreguei de enviá-la por um de nossos hipos mais rápidos, tão logo estivesse traduzida e selada. Hiram, tendo deixado às claras seu acordo com Salomão, ainda discutiu comigo, já que meu tio estava ausente, a melhor forma de comerciarmos com grande lucro a enorme quantidade de alimentos que Salomão estaria descarregando em nosso porto. Em Tiro, como no resto do mundo, os alimentos disponíveis em grande quantidade têm seu preço aviltado, razão pela qual recomendei a Hiram de Tiro que mandasse construir no continente, perto das estradas que nos ligavam a Jerusalém, uma série de grandes celeiros, nos quais poderíamos estocar o que recebêssemos, para colocar no mercado gradativamente segundo nossa conveniência. A localização, além de afastada dos olhares curiosos de tantos interessados, simplificava o transporte, que poderia ser feito por terra, com mais lentidão mas também com muito mais segurança. Hiram, muito satisfeito, só teve elogios à minha pessoa, e retirou-se, deixando-me com Manassés, no esforço de tradução de sua carta.

A noite, por um desses acasos do destino, cheguei muito tarde de meus afazeres no porto, e por falta de qualquer previsão, encontrei-me a sós em minha grande casa. Como era o sexto dia da semana, Manassés estava às voltas com suas orações, tendo retomado os contatos com seu deus depois de todo aquele tempo, e eu me encontrei sem disposição nenhuma para perseguir os prazeres da carne. Dispensei os criados e duas mulheres cretenses que tinham sido mandadas ao meu encontro em busca de diversão, pedi uma refeição bastante frugal, composta de pão, olivas, cebolas, muito vinho e algumas bolotas de queijo de cabra, que nunca deixavam de me reportar à minha infância em casa de minha mãe. Isso sempre me acontecia, quando não estava envolvido, seja na voragem cotidiana dos negócios e dos lucros, seja no rodamoinho sem fim dos festins a que eu acostumara meu corpo e minha alma. Meus olhos internos então se voltavam para um tempo em que não havia preocupações de espécie alguma em minha vida, a não ser com o poço que minava a água de que necessitávamos, e com as cabras, com cujo leite coalhado era feito o ácido e saboroso queijo em bolotas que eu estava comendo agora. Desde a última vez em que me dispusera a trilhar as poucas milhas que separavam minha grande mansão na ilha da hospedaria de minha mãe no continente, muita coisa nova tinha acontecido: minhas duas irmãs restantes, a alta Sarsit e a caçula Sibat, tinham conseguido casar-se com um par de negociantes cipriotas, que negociavam em nossas minas de cobre em Chipre, e que tinham vindo receber de meu tio notícias sobre a abertura de uma nova frente de extração de ciprestes, de que sua ilha abundava. Os dois vieram a conhecer minhas duas irmãs e meu tio, notando-lhes o interesse, rapidamente elaborou os dois contratos de casamento. Os contratos de casamento de minhas irmãs, aliás, meu tio sempre fazia questão de elaborar pessoalmente, sem que eu participasse de nada, alegando que esta era sua única obrigação como nosso pai, oficialmente falando. As duas embarcaram com seus maridos para Chipre em um grande navio de nossa propriedade, levando um enorme dote que eu fiz questão absoluta de lhes conceder, e partiram com lágrimas nos olhos. Fui visitar minha mãe, que estava cada vez mais calada, mas ainda rija, numa idade em que as mulheres já se podem considerar velhas. Tínhamos tão pouco em comum, minha mãe e eu: ela certamente não reconhecia naquele jovem de face raspada, cabelos frisados e roupas caras, com um ar cosmopolita e entediado, o menino que montara em seu jumentinho para ir até Tiro começar uma nova vida, e eu, acostumado com a sofisticação e os hábitos das mulheres que viera a conhecer, não sabia nunca o que lhe dizer. A hospedaria tinha agora uma vida mais calma, o que era bom para ela, e minha mãe, enredando-se cada vez mais em seu mutismo natural, pareceu-me ir se desvanecendo. A dolorosa verdade é que nada tínhamos em comum, e nossas conversas refletiam isso, quando se reduziam a muxoxos e murmúrios que enchiam o ar de uma tensão insuportável, que só se rompia quando eu decidia partir, e que se criava novamente na próxima e cada vez mais afastada visita. Voltei para minha casa com a firme decisão de não mais ir à casa materna: nada havia que nos ligasse um ao outro. O que eu poderia fazer por ela já era feito, pois eu lhe concedia as benesses de que minha riqueza podia se gabar, na tentativa de dar-lhe uma vida cheia de bens materiais, dos quais ela não fazia a menor questão. Nessa noite em que me vi sozinho depois de muitos meses, deitei-me em minha cama de peles, as mais suaves que pudera encontrar, e permaneci com as mãos atrás da cabeça, fitando o teto e pensando no quanto era feliz. Tinha cumprido a minha maioridade e não conhecia nenhum fenício, com exceção de meu tio e do rei Hiram de Tiro, que pudesse se gabar de viver em tão perfeita felicidade. Era jovem e forte, gozando de perfeita saúde. Vivia em meio a uma sociedade de comerciantes de sucesso, dos quais eu era exemplo e ídolo, em virtude de meus méritos e minha juventude. Tinha uma vida social intensa, sendo adorado pelos notívagos e sensuais freqüentadores das casas da noite, das quais fizera a minha própria casa o melhor exemplar. Estava subitamente posto responsável pela maior obra de todos os tempos, o Templo de Jerusalém, e nada que pudesse gerar riqueza neste processo deixaria de aliviar-se de uma boa parte em meu benefício, enchendo meus cofres mais ainda. Se havia três homens importantes em nossa terra neste momento, sendo os outros dois o meu rei Hiram e seu parceiro Salomão, o terceiro sem sombra de dúvidas era eu. Imerso nesses pensamentos, adormeci, e tive de novo o maldito pesadelo em que me via novamente dentro do templo de Atargatis, sendo emasculado, só que dessa vez por meu próprio tio, sob os olhares de deboche de minha mãe e de minhas quatro irmãs. Acordei aos gritos, e pelas frestas da janela notei que a manhã já vinha chegando, e já decidira levantar-me de uma vez quando escutei os dois cavaleiros que havia mandado buscar Hiram-Abiff em Sídon chegando a meu pátio. Desci para recebê-los e encontrei-me cara a cara com Hiram-Abiff, um homem alto, de feições alongadas e tristes, emolduradas por uma barba negra, que ele trazia aparada à moda grega. Seus cabelos não podiam ser vistos, cobertos que estavam por um casquete de couro à egípcia. Calçava sandálias e vestia sobre sua túnica um avental de couro de carneiro, muito branco, no alto do qual havia uma aba, que ele trazia abaixada. Na verdade esse avental era uma espécie de bolsa, dentro da qual ele levava, para onde quer que fosse, os instrumentos de seu ofício: esquadro, compasso, régua, lápis, um rolo de fio, um malhete e um cinzel. Hiram me saudou como de costume entre os fenícios, e eu o fiz entrar para a minha sala, onde meus criados estavam preparando os leitos para o meu desjejum; convidei-o a dividir comigo a refeição, e ele aceitou depois de alguma hesitação. Comeu frugalmente: um Pouco de pão e queijo, um copo de água, algumas azeitonas. Eu, por minha vez, com a fome canina que se apossava de mim pelas manhãs, dei cabo de quase tudo o que meus criados haviam trazido. Enquanto isso, pusemo-nos a conversar, já que Hiram-Abiff não sabia para que tinha sido chamado:

— Precisa de um palácio novo, Bar-Joab?

— Não, Hiram-Abiff, mas o rei de Jerusalém, Salomão, está iniciando a construção de uma casa para seu deus Yahweh, Ao ouvir esse nome Hiram-Abiff cobriu o rosto com as mãos, mantendo-se em silêncio por um tempo bastante razoável Eu respeitei sua atitude, e ele finalmente ergueu os olhos marejados de lágrimas em minha direção:

— O Templo de Yahweh,? Ouço falar nele desde o tempo em que morávamos em Magdalel, à beira do mar da Galiléia. Quando meu pai soube que David ia iniciar essa construção, abandonou sua família aqui em Tiro e desceu para o sul, buscando trabalho. Lá foi acometido por uma febre e acabou estacionando na aldeia de minha mãe, com quem terminou por casar-se. Depois David desistiu da construção, e meu pai e minha mãe, comigo a tiracolo, voltaram à vida nômade de nossos antepassados, pois meu pai buscava onde fossei necessários seus serviços como construtor o sustento de nossa família. O Templo de Yahweh. Custo a crer que finalmente se erguerá!

— Pois creia, Hiram-Abiff. E teu nome foi por mim indicado ao rei Hiram, que quer que tu estejas o mais breve possível em Jerusalém, para poder comandar o grande exército de construtores que ele está organizando para isso.

Hiram-Abiff ficou boquiaberto:

— Bar-Joab, como pode ser? Eu não sou mais que um artesão itinerante, e o grande rei Salomão por certo dispõe dos melhores artistas do Mediterrâneo. Como fizeste para que eu recebesse tão subida honra?

— Eu simplesmente informei ao meu rei Hiram Quem tinha sido o criador deste meu belíssimo lar, e ele sem hesitar indicou o teu nome a Salomão. Os mensageiros já partiram com a carta de Hiram  em que teu nome é declarado. Dentro de mais algumas horas Salomão já terá conhecimento de tua existência, e de que serás o seu arquiteto. Hiram-Abiff, verdadeiramente emocionado, me corrigiu:

— Perdão, Bar-Joab, mas eu poderei ser, no máximo, o mestra construtor de Salomão. O arquiteto é aquele que traçou com perfeição os planos do templo a ser construído, e que é o deus dos hebreus. Aprendi com minha mãe o verdadeiro poder de Yahweh, e sei tudo sobre essa construção. Perdão mais uma vez, Bar-Joab, mas tens a certeza de que eu seja o homem indicado para isto? Sou um tipo de hebreu que os próprios hebreus rejeitam, pois meu pai não era hebreu. Salomão não me aceitará para trabalho tão santo.

— Tranqüiliza-te, Hiram-Abiff. O deus de Salomão precisa do» melhor construtor de todos, e tu és esse homem. Tens teus negócios; arranjados? Dentro de dois dias deveremos estar em Jope, para subir até Jerusalém com a caravana que leva o primeiro dos carregamentos de madeira para o Templo.

Hiram-Abiff cobriu novamente os olhos com as mãos. Estava sinceramente emocionado:

— Bar-Joab, é com dor no coração que te digo que aceito, pois foi para isto que fui posto no mundo. Desde muito jovem sabia que alguma coisa assim estava por acontecer. Meu pai, durante toda a sua vida, falou deste Templo, conhecia todos os seus detalhes, tendo trabalhado na realização da miniatura para o rei David. Nossa família, uma longa linhagem de construtores que se perde no tempo, conhece e guarda tudo o que se sabe sobre o soerguimento de templos. Vivo e respiro este templo desde criança, e minhas viagens ao Egito e à Assíria só tiveram um objetivo: preparar-me para a obra de minha vida. E agora tu me entregas o comando dela, coisa que eu não esperava. Ao sair de minha casa em Sídon, ontem à noite, minha mãe me disse: "Hiram, a partir de hoje tua vida mudará da água para o vinho". Minha mãe nunca se enganou. E eu sinto que minha vida, que sempre esteve intimamente ligada a essa construção, terá de ser totalmente entregue a ela. Tenho medo, pois sei que ao final de tudo acabarei dando minha vida para maior glória de Yahweh. Mas devo seguir o meu destino.

Levantou-se e ergueu os dois braços para o alto, olhando para o céu. Depois, deixou-os cair ao longo do corpo, erguendo a cabeça e me fitando. Seus olhos já eram outros: mais tristes do que antes, e infinitamente mais velhos. Estendeu-me a mão calejada, que eu apertei, selando nosso acordo de trabalho, e me disse:

— Estou pronto para partir.

A grande diferença entre mim e Hiram-Abiff é que estávamos ambos prontos para partir, mas eu não sabia, como ele, que o faríamos em direção a uma existência totalmente nova.

 

O hilpos, reservado e aparelhado para nos levar até Jope estava pronto no novo porto de Tiro, exibindo ao sol mediterrâneo a pujança de seu casco de três cores e sua grande vela retangular, sob cujo peso a retranca e a grande carangueja ao alto se envergavam. Este hipos era o orgulho de nossa frota mercante: sua capacidade de carga era quase o dobro da de um hipos comum, sendo longo o suficiente para comportar dezoito pares de remos em vez dos dez usuais, e seu calado era um tanto mais profundo, permitindo a existência de uma cabine entre o convés e o porão de carga. No alto do mastro fora construída uma cestinha de gávea maior que as outras, e a quilha afiada do casco subia pela proa, formando uma cabeça de cavalo dourada, de narinas abertas, crina alongada e dentes à mostra, como se estivesse correndo em alta velocidade, trabalho de um de nossos excepcionais artesãos na madeira. Esta embarcação tinha o nome Ahiram primeiro rei de nossa terra, cujo túmulo ainda hoje existe, e era verdadeiramente veloz: o trajeto entre Tiro e Jope, ao sul, que levava em média seis horas, podia ser feito em cinco horas em condições normais, e às vezes, em dias de vento excepcionalmente a favor, quatro horas.

Mas dessa vez o Ahiram tinha uma grande tarefa a cumprir, que iria requerer dele uma grande força, mais do que sua velocidade. As doze balsas tinham cada uma delas cinqüenta côvados de comprimento, e dez côvados de largura, para que pudessem receber sem problemas as grandes toras de cedro e cipreste que, limpas de toda a impureza externa, brilhavam ao sol, ainda descobertas. Das doze balsas, quatro levavam exclusivamente tábuas já aparelhadas de sândalo, cujo perfume enchia o ar do porto, pois as serragens do aparelhamento estavam embaladas em grandes caixas, amarradas por sobre elas, sendo tão valiosas para os conhecedores quanto a melhor das tábuas. No centro de cada uma dessas balsas havia sido erguido um mastro simples, de retrancas pequenas, apenas para auxiliar o esforço de tiragem que o Ahiram teria de fazer, e seis marujos em cada uma delas cuidavam dos cabos que as ligavam umas às outras e ao navio-mestre, caminhando rapidamente por sobre a carga como se estivessem em terra firme.

Apenas o vento, que nesse dia soprava forte e firmemente sobre as águas muito azuis do mar, não seria suficiente para fazer com que o Ahiram puxasse toda essa carga extra, mais de cem talentos bem pesados por balsa. A força inicial teria de ser feita também pelos trinta e seis remadores cipriotas, engajados em nosso serviço por sua capacidade física e resistência acima do normal, e deles se exigiria pelo menos uma hora inteira de remadas vigorosas, para vencer a resistência inicial da água e, ganhando impulso, colocar a estranha flotilha a caminho. Mas, uma vez vencida essa etapa, a previsão era de pelo menos sete horas seguras e contínuas em pleno mar, até chegar ao porto de Jope.

Este era o início de um esforço que duraria vários anos, e esta viagem seria feita pelo menos uma vez a cada dois meses, para descarregar nas costas hebréias a madeira de que necessitavam. Os operários especializados que Salomão nos enviaria ficariam nas encostas de nossa terra, trabalhando no corte e aparelhamento do cedro durante cinqüenta e seis dias, findos os quais retornariam à sua terra para vinte e oito dias de descanso. A madeira de cipreste vinha em navios de Chipre, sendo aparelhada em nossas instalações no continente, perto de Tiro.

Na noite anterior, ao preparar-me para a viagem, disse a meu tio que Manassés iria comigo, e ele demonstrou claramente sua desaprovação: achava demasiada nossa amizade, e temia que Manassés, como devoto de Yahweh, acabasse me convertendo à crença de seu deus, afastando-me de meus deveres para com ele, nosso rei Hiram e nossa cidade, Tiro. Fiz ver a meu tio que Manassés era essencial nessa viagem, pois falava o hebraico com perfeição, coisa que eu ainda estava longe de fazer. Meus talentos de lingüista eram flagrantes quando escrevia, mas ainda deixavam muito a desejar quando precisava conversar em voz alta, talvez por causa de uma timidez muito natural em, quem como eu, pretendia ser perfeito e disso se orgulhava. A mínima falha era para mim uma mácula sem tamanho, e eu mergulhava em um mutismo azedo, que durava até a próxima vitória, quando eu novamente tivesse certeza de minha perfeição. Por isso, nessas questões de línguas estrangeiras, preferia ficar na posição de nobre senhor, que tem tradutores à mão para qualquer eventualidade, a  tartamudear e ser alvo dos risos e da chacota de meus interlocutores.

Meu tio finalmente compreendeu e, ainda que de má vontade, permitiu que Manassés me acompanhasse a Jerusalém. Preparamo-nos com parcimônia, pois o Ahiram, além de mim, Manassés e Hiram-Abiff, levaria tripulação de oitenta homens e um pequeno destacamento de mais quarenta, armados até os dentes, prontos para defender com a vida não só a carga que Hiram enviava a Salomão, mas principalmente os alimentos que Salomão enviaria de volta a Hiram. Um dos novos carros de perfil muito leve que Salomão estava  comprando dos egípcios e revendendo atrelados a cavalos da Anatólia nos esperava à porta de minha casa. O sol que nascia tingia a sua fachada de vermelho-escuro, e eu, nervoso e impressionado pela novidade de minha primeira viagem por mar, pensei enxergar manchas de sangue no granito bem polido. Mas foi uma impressão passageira, que se desvaneceu com o primeiro tranco dos cavalos, avançando pela rua em direção ao porto.

Manassés e eu saltamos em frente ao Ahiram, que balouçava molemente, enquanto as balsas mais ao largo a ele eram atadas, ao longo da amurada. Em meio ao bulício do embarque, duas figuras se destacavam: Hiram-Abiff, alto e espigado, coberto com um manto de pano cru que só lhe deixava os pés de fora, e uma mulher pequena, de cabelos brancos, envolta nos panejamentos que identificavam as mulheres hebréias. O capitão, um sidônio de má catadura, ao me ver começou a berrar que aquilo era um desacerto, que isso não se fazia, que queríamos que o barco tivesse um destino fatal. Toda a movimentação se interrompeu, no porto, e todos voltaram seus olhos para mim, que, afinal de contas, era o amo e senhor daquela viagem. Hiram-Abiff aproximou-se de mim, falando com voz grave e preocupada:

— Bar-Joab, não sou homem que deixa de cumprir compromissos assumidos, mas minha mãe não me permite que parta sem ela. Diz que Jerusalém marca o destino de nossa família, reduzida a apenas nós dois, e quer me acompanhar. O capitão se recusa a deixar que ela entre no hipos. Diz que mulheres a bordo trazem má sorte. Infelizmente, Bar-Joab, é minha mãe: a ela devo tudo, inclusive a obediência. Se ela me disser que não vá, desobedecerei até mesmo a Yahweh e ao seu lado ficarei.

Estávamos num impasse: o sangue me subiu à cabeça e eu já ia começar a ter um de meus raros e por isso mesmo assustadores ataques de cólera, quando a viúva pousou seus olhos quase cegos e de um azul muito desmaiado sobre mim. Eram idênticos aos de minha mãe, em sua tristeza e cansaço infinitos, e deles uma mensagem muda de amor e preocupação com o único filho que lhe restava gritava em minha direção. Olhei-a longamente e subi ao navio, chamando o capitão para o outro lado da amurada, que faceava o mar aberto. Antes que ele reiniciasse sua diatribe contra as mulheres em geral, escorreguei para sua mão nodosa um saquinho de couro com mais ou menos uma mina de moedas de ouro. Sentindo o peso considerável do suborno, o capitão engoliu em seco e, fechando a cara, começou a gritar ordens aos marujos, que imediatamente iniciaram o processo de desatracação do hipos. Eu desci ao molhe e, com uma gentileza de que não me considerava mais capaz, tomei o braço da velhinha e a fiz galgar a prancha de embarque. Manassés e Hiram-Abiff subiram atrás de nós, e procuramos nos acomodar da melhor maneira possível, pois o hipos já iniciava suas manobras, balançando doidamente. A viúva pôs suas duas mãos sobre a minha cabeça e disse em hebraico: "Ievarechecha Adonai veyismerecha", descendo logo após para a cabine, pois eu ordenara a Manassés que a mantivesse longe dos olhares da tripulação e de seu supersticioso capitão. No molhe, os meus companheiros de ofício, os negociantes de Tiro, me saudavam com gritos de vitória a que ajuntavam meu nome, transformando-me em seu emissário, e se aproximando de minha sorte, que todos desejavam ter. Ao fundo, saltando de seu dromedário, sempre acompanhado pelo negro MGumbo, pude ver meu tio, que nem um gesto fez em minha direção. Mas a distância que aumentava gradativamente ainda me permitiu ver em sua boca o que me pareceu ser um largo sorriso. E eu me alegrei por mim mesmo, que neste momento era o homem mais poderoso de Tiro, ou melhor, do mundo inteiro. Muitos gritos, remadas compassadas que se aceleravam, e fomos deixando para trás o porto de Tiro, de águas calmas e paradas como um espelho. A torre do grande farol de fogo grego, a mais alta construção de nosso porto, foi a última coisa que sumiu de minha visão, enquanto nos dirigíamos ao mar aberto, direcionados para o canal de navegação que nos levaria com bom vento até Jope.

Se até esse dia tinha tido certeza de minha forte e resistente compleição física, nessa viagem esta certeza caiu por terra, ou melhor, por água abaixo. O balanço do navio, aliado a uma severa crise de insegurança sobre as direções das coisas, fez com que minha cabeça girasse estonteantemente, que minhas pernas amolecessem como se feitas de cera de abelhas ao sol, e que o meu estômago, do qual me orgulhava em definitivo, devolvesse para fora de mim todo o meu desjejum. Manassés, preocupado, segurou-me pela testa, levando-me até a amurada do hipos, de onde comecei a alimentar os peixes com o que tinha e o que não tinha comido. As câimbras que me torciam o estômago eram intensas e me causavam grande dor, que só não era maior do que a vergonha que sentia pela minha fraqueza, atestada pelos risos e comentários jocosos dos marinheiros. Recomendaram-me que comesse coisas salgadas, e o gosto do peixe que me puseram boca adentro e que imediatamente devolvi a seus companheiros do fundo das águas é algo que nunca mais esquecerei, tal a ruindade com que se apresentou a meu paladar. Deram-me vinho, que devolvi. Deram-me leite, que também devolvi, completamente talhado, parecendo o mais nauseabundo dos queijos. Deram-me água, e tinha o sabor do alcatrão. Deram-me chá de hortelã, e este ficou dentro de mim mais tempo: duas respirações, indo imediatamente fazer companhia a todo o resto, no fundo do oceano. Finalmente molharam-me a testa e deixaram-me largado sobre a coberta, enquanto a viagem prosseguia rumo ao sul.

Devo ter levado umas duas horas para dar acordo de mim mesmo. Ergui-me, apoiado na amurada, e o balanço lateral do navio não me incomodava mais. Só o frontal, que fazia com que sua quilha batesse com força nas ondas que vinham a seu encontro, ressoando surdamente por todo o madeirame, como num presságio de morte. A náusea tinha sido substituída por um medo incontrolável da natureza, do mar e dos ventos, e eu tive a certeza absoluta de que o maldito navio estava por afundar a qualquer momento, tudo por causa da mulher que eu insistira em fazer subir a bordo. Mas a tripulação, aparentemente, nem se lembrava mais disso, porque o hipos singrava as águas com velocidade bem acima do normal, e com algumas horas a mais o capitão, alertado pelos gritos dos gáveas, virou o leme para a esquerda, embicando no rumo de Jope.

Quem já viu um porto, viu todos. Jope era, se não idêntico, pelo menos muito parecido com Tiro, a tal ponto que, em meio a meu incontrolável mal-estar, tive a impressão de que ainda estávamos em casa e que a viagem ainda estava por começar. Ia cair no choro quando o capitão de mim se aproximou, batendo-me com familiaridade nas costas e gritando:

— Bar-Joab, que maravilhosa viagem! Seis horas sem transtorno de Tiro até Jope! As doze balsas estão intactas, e meu navio nunca se comportou tão bem! Nunca tive uma viagem melhor!

Neste momento a viúva surgiu da cabine, amparada no braço de seu filho Hiram-Abiff, e eu me vinguei do capitão, dizendo:

— Porque foi a tua primeira viagem com uma mulher a bordo, capitão! Eu, se fosse tu, de agora em diante teria sempre uma mulher a bordo! Não viste que dá sorte?

O capitão concordou, rindo:

— Ah, Bar-Joab, quem dera isso fosse verdade! Eu teria uma tripulação só de mulheres, e seria o capitão mais feliz de todos os mares.

Eu, muito irritado, arranquei-me dele com um repelão e rosnei:

— Faze isso, capitão. E desejo que todas elas sejam tão bons marujos quanto eu!

As gargalhadas dos marujos me acompanharam até aborda da grande esplanada onde uma caravana de bois de canga estava estacionada, com a tranqüilidade que só os nômades têm, esperando a chegada do material que eu trazia. Os levitas eram comandados por um sacerdote de longas barbas cinzentas e olhar penetrante, que me tratava com certa ironia, certamente duvidando do poder de um jovem como eu. Mas a minha cólera, severamente aumentada pelas longas horas de sofrimento a bordo do hipos, serviu para que eu descarregasse sobre ele, sem precisar do auxílio de Manassés, toda a peçonha de minha língua ferina, que em poucos instantes colocou ativos sobre os próprios pés todos aqueles que eu, entre outras coisas, chamei de "hebreus mais indolentes que os sacerdotes egípcios", com as palavras sujas que tinha aprendido em minhas longas e numerosas noites de orgia. A agitação tomou conta de todos, e os carregadores imediatamente começaram a puxar para a borda do molhe as balsas carregadas, encostando-as às pedras e amarrando-as com firmeza, para descarregar as enormes árvores e colocá-las sobre as grandes carroças de madeira com rodas maciças, que eram puxadas por grupos de dez ou doze bois de canga. Ao ver o processo iniciar-se, e sentindo que eu não seria útil por pelo menos um dia inteiro, pedi a Manassés que me levasse até a mais próxima hospedaria, para que eu pudesse descansar.

A hospedaria ficava perto do centro velho de Jope e, ao contrário da casa de minha mãe, tinha apenas um andar, com os quartos de dormir, que eram pequenas construções de alvenaria ao fundo do terreno, isolados da casa principal por um pequeno mas denso bosque de oliveiras. Hiram-Abiff e sua mãe, que eram de minha responsabilidade até que chegássemos a Jerusalém, ocuparam dois desses quartos, e eu e Manassés ficamos com um outro, um pouco maior. As latrinas ficavam separadas tanto do corpo principal da hospedaria quanto dos quartos, e eram pelo menos as mais infectas do mundo. Ao sentir o cheiro de matéria fecal e urina, cujo teor de amônia era insuportável, as náuseas da viagem voltaram, e eu tive dois ou três engulhos secos, que deflagraram em mim uma dor de cabeça insuportável. Recuei para meu quarto e caí praticamente desmaiado sobre um leito fedorento, onde davam cria todas as pulgas e percevejos deste lado do Mediterrâneo.

Acordei na manhã seguinte com um horrível gosto de mar em minha boca, que me recordava muito as grandes fossas onde os restos dos mariscos da púrpura eram deixados para apodrecer. Manassés, extremamente solícito, me trouxe um púcaro de barro com chá de hortelã quente, que gradativamente acalmou meu estômago abalado, permitindo até  que, umas duas horas mais tarde, eu comesse um pouco de pão e algumas bolotas de queijo de cabra. Dirigimo-nos ao porto e a carga já estava quase toda colocada e amarrada sobre as grandes carroças, faltando apenas terminar de carregar as grandes caixas com aparas de sândalo. Salomão, sabendo de minha iminente chegada, enviara de Jerusalém seus dois melhores cocheiros, comandando carros de combate puxados por belíssimos cavalos brancos de suas estrebarias particulares, para que eu e Hiram-Abiff pudéssemos chegar mais rapidamente a seu encontro. Sábia decisão: a lentidão das carroças faria com que a viagem durasse dois dias de Jope a Jerusalém, com paradas para descanso e alimentação, enquanto nós, sobre os velozes carros de combate construídos no Egito, lá chegaríamos em menos de três horas de marcha acelerada.

Eu estava por entrar na cidade que tinha sido o sonho de um deus e de seu povo escolhido, e que seria, da maneira mais inesperada possível, o lugar onde eu viveria minha terceira vida, a mais longa de todas, dando sentido à minha existência sobre a face da terra.

 

Em nossa corrida pelas colinas que separam a planície de Saron da planície do Jordão, indo em direção a Jerusalém, passamos por várias pequenas aldeias, incrustadas no solo seco dessa região, feitas de casas da mesma cor do chão de onde se erguiam. Essas aldeias surgiam preferencialmente nos desfiladeiros, onde uma espécie de oásis se cria pela presença do riacho ou da fonte, gerando uma mancha de vegetação luxuriante, pela fertilidade do solo. Cada pequena casinha de teto chato se via cercada por uma parreira de uvas, algumas figueiras, uma árvore de romãs. E quanto mais nos aproximávamos de Jerusalém, mais e mais aldeias encontrávamos, sucedendo-se umas às outras a distâncias cada vez menores. O povo que víamos era sempre composto de mulheres e crianças: as mulheres carregando água, fazendo o pão, lavando roupa, cuidando de suas famílias, e as crianças brincando, na alacridade sem medidas de quem ainda não está imerso nas responsabilidades da vida adulta, mas que mesmo brincando para ela se prepara, pois os folguedos escolhidos são sempre uma imitação incipiente das formas de viver de seus pais. Não vi riqueza: os trajes eram usados, remendados, com suas cores originais bastante desbotadas pelo uso e pelo contato com a terra, principalmente os das crianças, que pareciam estar usando as roupas que seus pais houvessem abandonado. Mas tudo tinha um componente de alegria que eu raramente encontrara em Tiro, com sua vida tão citadina e voltada para o lucro. As povoações em volta de Jerusalém eram todas compostas pelo mesmo tipo de gente mediterrânea, e as diferenças entre nós, só nós mesmos sabíamos reconhecer: para um visitante que nada conhecesse sobre nós, a impressão certamente seria a de um só povo, que ocupasse toda essa costa gigantesca e se aprofundasse para o interior, até o encontro de outro mar.

Nesse dia tão especial, em que meu corpo combalido afetava pela primeira vez o funcionamento de minha mente, e eu me encontrava a caminho do maior de todos os meus sucessos, a alegria que eu podia reconhecer como parte essencial de todos a quem encontrei acabou por incomodar-me. E eu exortei o cocheiro a fustigar mais e mais os seus cavalos, que já estavam cobertos da espuma amarronzada em que o esforço continuado transformava seu suor. Eu não desejava essa alegria, que para mim era um corpo estranho, pela sua simplicidade, a quem eu não dava nenhum valor. Meu desejo era estar novamente em meio a uma cidade digna deste nome, exercendo as funções para as quais estava perfeitamente preparado, vendendo e comprando, negociando e ganhando, gerando riqueza, para depois poder ter a recompensa de meu desgaste em meio às diversões de que só uma cidade dispõe. íamos à frente eu e Manassés, e no carro de trás, que nos seguia sem diminuir nem aumentar uma braça sequer a distância entre nós, Hiram-Abiff e sua mãe viúva, como nós cobertos pelo pó. Passamos como um raio por Gazer, Sorec, Aialon e Cariat-Iarim, a cidade onde a Arca de Yahweh descansou durante vinte anos, antes que o rei David conquistasse as terras dos jebusitas e lá começasse a erguer sua Jerusalém mui amada. Atravessamos mais rapidamente ainda os topos das colinas coalhadas de acácias, e subitamente, no alto da encosta que desce até o vale do Jordão, pude ver Jerusalém, iluminada pelo sol direto do meio do dia. Pedi ao cocheiro que parasse por alguns instantes, para que nos refrescássemos e limpássemos pelo menos o grosso do pó de estrada que nos cobria, antes de entrar na grande cidade que nos esperava. Os cavalos bufavam, como que agradecendo este pequeno descanso, e enquanto Manassés, Hiram-Abiff e a sua mãe refrescavam a fronte com um pouco de água dos pequenos odres que estavam dentro dos carros, eu avancei para a beira do despenhadeiro ao lado da estrada e observei com os olhos apertados, a cidade de Jerusalém.

Estávamos em um morro elevado, coberto de oliveiras que fica a cavaleiro da cidade, para quem se aproxima pelo oeste. A cidade de Jerusalém não parecia tão grande quanto a idéia que fazíamos dela antes de conhecê-la, e quando surgiu repentinamente atrás dos morros sucessivos que a defendiam da melhor forma possível de seus possíveis inimigos, o sol às nossas costas, quase a ponto de se pôr, dava a suas construções baixas e de teto abobadado um tom dourado. Mais ao longe, à nossa direita, a sudeste da cidade, ficava a Jerusalém de David, que Salomão vinha lentamente ampliando para criar o que seria a jóia da Judéia nos anos que estavam por vir.

A Jerusalém de David nada mais era que um acampamento ampliado, em que as construções grandes eram feitas de madeira, destacando-se entre as casas de alvenaria à moda da terra, uma mistura de paredes egípcias com tetos cananitas, tudo já coberto por uma patina escura. A ampliação proposta por Salomão tinha um ar mais provisório ainda, pois as obras de preparação do terreno para as obras já tinham começado. A técnica egípcia para isso consistia em traçar no solo, em tamanho natural, a planta dos prédios que estavam por ser erguidos, preparando-lhes os alicerces, fundações e piso com muita precisão. Valas feitas de pedras brutas marcavam esses alicerces, e em volta da região que estava por ser a Jerusalém de Salomão uma linha mais grossa traçava de forma muito livre um quadrado, envolvendo o grande canteiro de obras, marcando o que mais tarde seria a muralha que protegeria a grande cidade. O movimento era intenso, mas visto dessa distância parecia grandemente desordenado.

Hiram-Abiff, ao lado de sua mãe, estava com os olhos voltados para o céu, e eram duas figuras impressionantes, cobertos de poeira da viagem, regozijando-se de todo o coração pela visão da cidade de Yahweh. Manassés orava em voz alta, e até mesmo os dois cocheiros que nos tinham ido apanhar no porto de Jope demonstravam sua emoção. Eu, por outro lado, tinha a cabeça a ponto de estalar, tomada por uma enxaqueca monumental, agravada pelo calor, o sol brilhante, a viagem em desabalada carreira. Olhava a cidade-por-ser com olhos exclusivamente comerciantes, e nem conseguia me integrar ao momento de emoção que meus companheiros de jornada pareciam estar vivendo. Incomodado sobremaneira com as manifestações de sentimentos dos outros, decidi interromper aquele fluxo de inutilidades e propor a continuação da jornada. Que nos dirigíssemos imediatamente para a esplanada do templo que estávamos por erguer, onde, ansioso por nos conhecer, nos esperava o rei Salomão.

Descemos as colinas em direção ao leste, aproximando-nos pouco a pouco da cidade, que a cada momento se transformava, mostrando-se em seus detalhes mais significativos: as pessoas que nela moravam. Acostumado a viver cercado por gente de todas as terras, tive dificuldade em entender um lugar habitado por um e um só povo, que partilhava hábitos, tradições e crenças. É claro que, sendo a cidade importante que pretendia, Jerusalém também tinha sua cota de estrangeiros, muito pequena em relação à grande massa de hebreus. O cocheiro de Hiram-Abiff adiantou-se a nós com seu carro, e eu, um pouco mais atrás deles, pude notar a semelhança entre o mestre construtor que eu trazia para aquele lugar e os homens que cruzavam as ruas, envolvidos em seus afazeres. A mãe de Hiram-Abiff também era muito semelhante a tantas outras mulheres que surgiam por entre as casas, mas mais do que isso, me recordava uma outra viúva que eu deixara em Tiro no comando de uma hospedaria e de quem, subitamente, sem nenhum motivo, sentia uma enorme saudade. Era a primeira vez depois de muitos anos em que eu pensava em minha mãe por razões puramente sentimentais. Simples: eu estava só. Todos os que me cercavam tinham vidas que se articulavam umas com as outras, nesse momento, e uma identidade comum no deus de seus pais. Eu, não: estava longe de minha terra natal e, mesmo sendo nesse momento o homem mais importante dela, não tinha com quem dividir coisa nenhuma.

O que eu sentia estava, muito provavelmente, ligado ao mal-estar físico que se instalara sobre mim, e do qual eu ia melhorando tão lentamente que tinha a impressão de que me sentiria assim desse momento em diante e para todo o sempre. Mas os cocheiros subiram de novo em seus carros, e nós quatro, sentindo a premência do momento, subimos junto com eles, e nos pusemos em marcha célere, indo ao encontro do rei Salomão. Este encontro era a minha única esperança de alegria, pois sabia que minha fama me havia precedido, e que Salomão esperava ansiosamente a minha chegada, para cumular-me das honrarias devidas à minha importância. Eu me aproximava do ápice de minha carreira como negociante, e pensava comigo mesmo que, após isso, nada poderia empanar a glória de minhas conquistas, e que desse dia em diante meu nome estaria para sempre gravado na pedra dos grandes monumentos, atestando para os que viessem após mim o meu valor.

Atravessamos primeiro um mar de pequenas casas construídas umas ao lado das outras, tão juntas que era quase impossível individualizá-las, e depois a linha de alicerces das muralhas da Jerusalém de Salomão, seguindo a trilha que era a continuação natural da estrada que tínhamos percorrido desde o mar, e dirigimo-nos para um grande outeiro um pouco mais à frente, atravessando uma horda desordenada de trabalhadores que carregavam pedras e as assentavam entre poeira e alarido insuportáveis. Eu cuidava que fôssemos encontrar Salomão da Judéia em seu palácio, mas os dois cocheiros se dirigiram para o alto desse outeiro, onde era maior ainda a azáfama dos obreiros, e lá, em um carro de combate puxado por quatro belíssimos cavalos negros, enfeitados de estrelas de seis pontas fundidas em prata, estava Salomão, um homem de meia altura, cabelos anelados, barba incipiente mas muito cerrada, trajando uma curta túnica de pano branco, que se completava com um manto colorido e um turbante de pano enrolado na cabeça, cuja parte de cima era um capacete oval de metal amarelo. Seu peito era protegido por uma couraça de couro grosso incrustada em prata com as mesmas estrelas de seis pontas que ajaezavam seus cavalos. A sua volta estavam muitos outros hebreus de todas as idades, alguns mais atléticos que outros, mas todos, fossem operários, soldados ou sacerdotes, ouviam suas palavras com respeito e tratavam-no com uma deferência toda especial.

Quando nossos carros se aproximaram, os que cercavam Salomão abriram passagem para nós, e nossos cocheiros pararam lado a lado em frente ao carro do rei, que olhava para todos nós como se procurasse alguém em especial. Meu coração se acelerou, antegozando o momento de honras que estava por experimentar. Salomão, com a rapidez de um jovem, saltou de seu carro e dirigiu-se a nós, e eu me adiantei:

— Meu rei, eis-me aqui representando vosso amigo Hiram de Tiro, de quem trago os votos de mais profunda estima e consideração.

Mas Salomão, com um gesto impaciente, afastou-me de seu campo de visão, dirigindo-se diretamente a Hiram-Abiff, que estava um pouco atrás de mim, amparando sua mãe, ambos cobertos de pó:

És tu o construtor que Hiram de Tiro me enviou? Hiram-Abiff acenou que sim, e Salomão, num gesto inesperado, aproximou-se dele e, tomando-lhe a mão direita, apertou-a, de uma forma que não me pareceu comum. Hiram-Abiff arregalou os olhos e devolveu o aperto, e os dois, o rei e o construtor, uniram-se repentinamente num longo abraço que culminou com um beijo que ambos deram nas respectivas faces esquerdas. A maioria de nós estávamos boquiabertos com a intimidade a que Salomão se tinha disposto, menos alguns outros hebreus, que vestiam aventais de couro idênticos ao que Uiram-Abiff usava, e que sorriam como se soubessem de algo que mais ninguém conhecia. Hiram-Abiff, atônito, dirigiu-se diretamente a Salomão:

- Meu rei, não creio que vós sejais construtor como eu. Como sabeis nossos sinais de reconhecimento?

Salomão, rindo com alegria genuína, explicou:

— A vida e o valor dos construtores são de meu conhecimento, pois existem desde que o primeiro homem buscou um abrigo para si e sua companheira. Mas os sinais de reconhecimento me foram ensinados por meu pai, David, que os aprendeu ainda jovem, quando se decidiu a proteger os construtores e a uni-los em volta de si, para melhor e mais alto erguer o Templo de Yahweh. E essa proteção, em nome de Yahweh e de meu pai David, eu a estendo a todos os construtores que porventura venham a viver em meu reino e que se identifiquem a mim como tal. Mas tua fama, Hiram-Abiff, te precedeu com voz muito alta: vários obreiros que aqui vivem já tinham ouvido falar de teus talentos e de tua dedicação. Sede bem-vindo: estás em casa.

Os outros construtores aproximaram-se de Hiram e o abraçaram com alegria, estendendo sua efusividade à sua velha mãe, que chorava ao ver reconhecido o valor de seu único filho. Todos se abraçavam e beijavam como se fossem verdadeiros irmãos há muito separados e que finalmente se tivessem reconhecido, e Hiram-Abiff, no centro de uma roda de seus iguais, exultava. Salomão avançou até a mãe de Hiram-Abiff e saudou-a com extrema delicadeza e cavalheirismo, abraçando-a com a familiaridade de um filho.

Após esse momento de efusividade, o rei Salomão voltou-se para mim e saudou-me como se eu fosse o próprio Hiram de Tiro, a quem eu estava representando na ocasião, e tratou-me com a maior fidalguia possível. Os que o cercavam me olhavam com respeito e admiração, pela importância de meu cargo e pela minha flagrante pouca idade. Em outras condições eu ficaria totalmente desvanecido pelo tratamento da parte do rei Salomão. Mas o mal já estava feito: a forma tão especial pela qual um simples construtor tinha sido recebido, passando inclusive à minha frente na ordem de interesses do rei, deixara um gosto amargo em minha boca, e a sensação cada vez mais forte da inadequação absoluta. Mantive a cabeça erguida e certo ar de superioridade, mas dentro de mim uma pergunta apenas girava e girava, sem encontrar resposta nem descanso: "O que estou fazendo aqui?", e permaneci educadamente calado, esperando que Salomão, rei da Judéia, desse o próximo passo.

Na verdade foram muitos passos, pois Salomão fez absoluta questão de exibir para seus visitantes o traçado geral dos prédios que pretendia erguer, formando assim a nova Jerusalém de seus sonhos, e nos guiou a pé por toda a área que incluiria, além do Templo de Yahweh, um palácio real, um palácio de julgamentos, palácios de moradia de juizes e sacerdotes, além de todas as facilidades necessárias para os que ocupassem cargos em cada um desses prédios. Havia grandes áreas em claro, pois Salomão pretendia a criação de uma nova e monumental cidade, que nada deixasse a desejar a qualquer outra do mesmo tipo, como Abidos ou Babilônia, e aquilo que fosse necessário erguer não careceria de espaço no interior do que estava por ser a maior cidade cercada do mundo. Eu estava profundamente deprimido, pois a imagem que tinha de Jerusalém dentro de mim era infinitamente superior e mais bela do que este desorganizado canteiro de obras que estava vendo. Na sofreguidão da minha juventude, eu esperava enxergar naquele dia a Jerusalém que ainda estava por ser erguida, e portanto só tinha críticas a fazer àquilo que eu considerava um engodo. Por mais que Salomão descrevesse com detalhes tudo o que seria construído, eu só conseguia enxergar as pedras no chão, o pó, a azáfama desordenada dos operários, e comecei a olhá-los como se olha a um bando de loucos visionários sem nenhuma fundamentação na realidade. Mantive-me, portanto, calado, desejando ansiosamente que ninguém me pedisse uma opinião sobre o que estávamos vendo. Minha incapacidade de vislumbrar o futuro de beleza em um mero amontoado de pedras certamente me faria ser uma voz discordante naquela assembléia de otimistas.

Hiram-Abiff conversava de forma muito particular com os outros construtores que nos acompanhavam, tratando de assuntos específicos da obra, aos quais ele prestava uma atenção imensa, chegando por diversas vezes a parar para traçar desenhos no chão, os quais eram recebidos com extrema satisfação pelos outros. A fama de Hiram-Abiff, que eu julgava limitada à cidade de Tiro, estava enormemente espalhada entre seus iguais, e eu vim a saber que em todo lugar onde houvesse um construtor, lá tinha chegado o seu nome, pois além de grande arquiteto era um artista completo, como nunca antes existira.

Salomão estava muito feliz, e o tratamento que estendeu a todos nós foi da maior delicadeza. Após esse passeio um tanto longo, ordenou que novamente subíssemos aos carros, para que fôssemos levados ao seu palácio provisório, a mesma construção de cedros doados por bchal que o rei David habitara durante a maior parte de seu reinado sobre Jerusalém. Era uma construção imponente, não muito alta, mas ancha sobre o terreno, com um primeiro andar de pedra sobre o qual se erguia o palácio propriamente dito, composto de dois andares de madeira lavrada e polida, quase sem paredes, defendido dos olhares externos por grandes cortinas brancas esvoaçantes. Ficava à beira de um rio chamado Gihon, nem muito largo nem muito profundo, mas de enorme beleza, com suas margens férteis. Do outro lado desse rio ficava um grande monte, coberto de oliveiras muito antigas que lhe davam o nome, à beira da estrada que se dirigia a Jericó.

Depois que nos refrescamos o suficiente, fomos introduzidos à sala de audiências de Salomão, que nos recepcionou com a mesma bonomia e naturalidade que já havia demonstrado. Como a noite caía rapidamente, os servos do palácio real trouxeram uma infinidade de lâmpadas de azeite, que ornaram as paredes dessa câmara como as estrelas ornam o céu. Salomão guiou-nos então até uma câmara ao lado desta sala, onde ficava a miniatura do Templo que seu pai David, na fúria de saber que não mais seria o seu construtor, estilhaçara a golpes de espada, e que os artesãos de Salomão diligentemente tinham reconstruído, para que nada fosse diferente do anteriormente planejado. Demos voltas e voltas em torno da miniatura, que era perfeita, mas à qual faltavam muitos detalhes, os quais Hiram-Abiff anotou em uma tabuinha grega com um estilete. A mim chamou atenção o fato de a construção ser tão parecida com as nossas, em Tiro, mas presumi que a região e os materiais comuns a todos nós, além da proximidade entre todos os nossos países, tivessem igualado as diferenças e criado uma forma de se fazer as coisas verdadeiramente mediterrânea, já que este mar sempre fora o mais completo fator de união entre todos nós. Chamou-me a atenção também a exigüidade das medidas do que deveria ser a grande casa do maior de todos os deuses, Yahweh, segundo o desejo expresso do mesmo: sessenta côvados de comprimento e vinte de largura, sendo sua altura não muito maior que vinte e oito côvados. Ao tirarmos o teto da miniatura, podíamos ver que o espaço interno era dividido em duas seções, sendo a mais interna, aquela onde a Arca da Aliança habitaria para sempre, protegida por um grande véu. Hiram-Abiff prometeu a Salomão uma avaliação desse projeto, para que a construção fosse, antes de tudo, agradável aos olhos do deus dos hebreus.

Eu continuava presente a esta conversa, mas apenas fisicamente. Minha mente vagava por regiões escuras e desagradáveis, nas quais eu me sentia desprestigiado, esquecido e vilipendiado, certamente por causa de minha frustração quanto à Jerusalém com que tinha sonhado. Até mesmo quando Salomão me questionou sobre o fornecimento de madeiras, que seria de minha inteira responsabilidade, como representante da associação de comerciantes de Tiro, minhas respostas foram simplesmente informativas, muito frias. Na realidade eu tinha perdido completamente o interesse por este templo, que eu esperava fosse um edifício de enorme majestade, mas que quando finalizado não estaria muito maior que as pequenas capelas votivas de Baal que ainda infestam as estradas do interior da Fenícia. A partir da exibição da miniatura eu tinha certeza de que toda a madeira de excelente qualidade, e os metais, e os tecidos que estávamos negociando para Salomão seriam desperdiçados em um prediozinho miquelino, de pouco brilho. Comecei a cogitar ali, durante a audiência, se Yahweh seria verdadeiramente capaz de derrotar todos os outros deuses existentes no mundo e se transformar em deus único de toda a humanidade. Pelo templo que ele próprio desenhara, segundo a tradição, parecia mais um desses deuses menores, sem representatividade nenhuma. A cidade que Salomão estava por erguer em volta de seu templo talvez viesse a ser uma obra grandiosa, mas o templo em si não iria chamar nenhuma atenção dos fiéis de Yahweh, que só poderiam estar em uma grande esplanada em frente a ele, e nunca entrar em seu interior, quanto mais enxergar a Arca da Aliança.

Salomão demonstrava uma crescente confiança em Hiram-Abiff, não só por suas opiniões abalizadas sobre a construção, mas principalmente porque os construtores que já estavam em Jerusalém para a grande obra exibiam uma admiração sem limites por seu companheiro de ofício, tratando-o com o mesmo respeito que tratavam a Salomão, seu rei. Verdade seja dita: Hiram-Abiff, com sua modéstia natural, em nenhum momento modificou seu comportamento por causa disso, mantendo-se tranqüilo e interessado como sempre. E eu, que já não compreendia mais nada, seja sobre o mundo em  que vivia, seja sobre as relações entre os homens, os reis e os deuses, pedi licença e, alegando um cansaço enorme, retirei-me. Salomão, pretendendo valorizar minha pessoa, acompanhou-me por alguns metros no corredor de acesso aos aposentos internos do palácio, informando-me da alegria que tinha em poder contar com minha colaboração como representante de seu amigo e parceiro Hiram de Tiro, e também dizendo que a carga de alimentos que deveria ser entregue ao meu rei quando da minha volta já estava sendo carregada nas balsas que o Ahiram estava pronto para puxar de volta à Fenícia. Mas seu interesse em mim logo se desvaneceu, curioso que estava sobre as opiniões de Hiram-Abiff sobre a construção que logo se iniciaria, e deixou-me em pleno corredor, retornando para a sala de audiências.

Eu me vi sozinho naquele palácio envolto em sombras, e me encaminhava para os meus aposentos, onde pretendia dormir uma longa noite de sono reparador antes de enfrentar novamente o pesadelo do mar, quando um guarda se aproximou de mim, escoltando uma grande e negra figura, que era minha conhecida: N'Gumbo, o escravo núbio de meu tio Jubal, que trazia um grande salvo-conduto com a marca de Hiram, rei de Tiro. Fiz com que entrasse em meus aposentos e ele, em silêncio como sempre, me entregou um rolo de pergaminho onde pude ler, quando aberto, uma mensagem de meu tio, escrita em fenício na sua caligrafia mais apressada:

Filho: acontecimentos imprevistos exigem tua presença imediata em nossa terra. Grandes problemas políticos nos ameaçam, e estou homiziado em Abel-beit-Maaca, aldeota nas imediações de Dã, a seis horas de cavalo em passo acelerado daí de Jerusalém, onde estás. Meu fiel N'Gumbo tem ordens para trazer-te imediatamente à minha presença, para que eu possa finalmente realizar a vingança para a qual me preparei e te preparei durante todos esses anos. Não voltes por mar: é preciso que ninguém saiba que vieste a meu encontro, para nossa própria segurança e de nossos negócios. A Rota pelo vale do Jordão é muito usada, e ninguém estranhará a presença de mais dois cavaleiros, principalmente à noite. N'Gumbo conhece o caminho que te trará a mim de forma segura. Obedece a ele sem hesitação, pois disto depende a perda ou o aumento de nossa fortuna. E principalmente não informes a ninguém de tua partida, nem mesmo a teu escravo Manassés, em quem tenho razões de sobra para não confiar, neste transe definitivo que ora se avizinha. A hora de minha vingança se aproxima, e a tua colaboração é indispensável para que isso se dê. É preciso que partas imediatamente, sob qualquer alegação, e que estejas em Abel-beit-Maaca antes do meio-dia. E sobretudo, oculta-te bem para que ninguém que porventura te conheça venha a te descobrir por aqui. É essencial que ninguém saiba de tua presença fora de Jerusalém até que tudo esteja resolvido e minha vingança finalmente realizada. Se obedeceres a todas as minhas ordens tudo sairá a contento. Destrói este papiro no fogo e sai daí imediatamente. Faz isto por teu tio e teu pai e não te arrependerás.”

O papiro estava assinado por Bar-Jubal, o coxo de Tiro, como ele muitas vezes assinara até que eu tomasse a frente de grande parte dos negócios. Isto, somado aos estranhos pedidos da carta e à silenciosa e assustadora presença de N'Gumbo em meus aposentos, apressando-me sem proferir uma palavra sequer, me causava um mal-estar indizível, desta vez mais emocional que físico. Quando Manassés retornou aos aposentos, trazendo-me um pouco de chá de hortelã, já me encontrou pronto para partir, enrolando a parte de cima de meu manto sobre a cabeça e prendendo-a firmemente sob meu chapéu cônico, para que pudesse ocultar o rosto sob as dobras que normalmente me cobririam o braço esquerdo. Manassés não compreendeu nada do que estava acontecendo:

— Bar-Joab, aonde vai a esta hora da noite?

Eu não tive outra alternativa senão mentir, ocultando o papiro às minhas costas, preso a meu cinto, entre a túnica e o manto:

— N'Gumbo veio para levar-me até certos negociantes de Jerusalém que pretendem participar dos lucros da construção do Templo. Parece que isto não é permitido pelo rei Salomão, por isso temos de fazer um acordo secreto. Estou indo a seu encontro por ordem de meu tio, e voltarei tão logo o assunto esteja resolvido.

— Eu te acompanharei, então, Bar-Joab.

— Não é preciso! — meu grito foi exagerado, e Manassés o estranhou. — N'Gumbo está à minha disposição para qualquer eventualidade.

Manassés, sinceramente preocupado, falou-me rapidamente em hebraico, língua que N'Gumbo aparentemente não dominava:

— Vais arriscar-te com esse núbio, senhor? Eu temo por tua vida, Bar-Joab. Algo me diz que estás por enfrentar um inimigo muito poderoso. Permite que te acompanhe, meu irmão!

— São ordens de meu tio, Manassés, a que ambos devemos obedecer! Aguarda por mim a bordo do Ahiram, que logo estarei contigo para que retornemos à nossa amada Tiro.

Minha voz se confrangeu em lágrimas à menção de minha cidade. Eu, que já estava estranhando muito as inesperadas ordens de meu tio, tinha ficado muito mais inseguro com a reação de Manassés. Abracei-o com força e dele me separei, deixando-o boquiaberto em pleno escuro do aposento, enquanto saía pelo corredor e junto a N'Gumbo, que se mantinha firme em meus calcanhares, desci ao rés-do-chão, saindo para o pátio interno, onde dois negros cavalos capadócios de grande beleza nos aguardavam. N'Gumbo passou às mãos de dois sentinelas hebreus alguma coisa que presumi ser dinheiro, e os dois nos abriram um portão de madeira que nos deixou em plena estrada para Jericó. N'Gumbo chicoteou meu cavalo, que saiu em desabalada carreira, acompanhado de muito perto por ele. A noite era um breu, pois a lua estava minguante, e só o brilho das muitas estrelas, depois que nossos olhos se acostumaram, é que deixava entrever os detalhes do caminho. Os cavalos deviam conhecê-lo bem, pois seguiam em frente com toda a segurança, correndo cada vez mais, e eu, que raras vezes tinha cavalgado em minha vida, achei melhor agarrar-me ao pescoço do meu animal com todas as minhas forças, para não cair. Só muito mais tarde é que me recordei do papiro que deveria ter jogado ao fogo. Tirei uma das mãos do pescoço do cavalo e tateei por debaixo do manto. Nada encontrei, e presumi que tivesse caído ao chão em qualquer parte do caminho escuro que tínhamos percorrido até então. E continuamos cavalgando cada vez mais para dentro da noite, enquanto meu coração fazia eco às patas dos cavalos em disparada.

 

A corrida até Abel-beit-Maaca nos tomou toda a noite. Saímos de Jericó quase que imediatamente depois de nela entrarmos, pois não era mais que uma aldeiazinha adormecida, e a seguir atravessamos Macmas, entrando logo após numa grande extensão de terreno fértil abaixo das montanhas a norte de Jerusalém, com o rio Jordão sempre à nossa direita. Meu tio falara a verdade ao escrever que esta rota era muito usada, pois de tempos em tempos passávamos por caravanas acampadas e adormecidas, cujas sentinelas mal tinham tempo de reagir à nossa presença, tal a rapidez de nossas montarias. Tínhamos muito terreno a percorrer, e eu me mantive em estado de tensão absoluta, agarrado como um carrapato ao lombo de meu animal, enquanto suas patas comiam a grande extensão de terra escura e silenciosa que não cessava de surgir à nossa frente. O sono, a fome, o cansaço, tudo tinha ficado para trás, e meu único objetivo era manter-me sobre meu cavalo, não cair, sobreviver a essa corrida sem sentido pela escuridão da noite.

Algum tempo depois nos encontramos na cidade de Betsã, um pouco maior que Jericó, e à beira da estrada paramos em uma estalagem iluminada por archotes, onde certamente já estávamos sendo esperados para a troca de montarias, pois tão logo paramos me apearam de meu cavalo, que resfolegava a ponto de explodir, pelo esforço contínuo que fizera desde Jerusalém. Enquanto novas montarias eram seladas, tive tempo apenas de beber um pouco de água, e logo N'Gumbo, com gestos bruscos, me fez novamente subir para a sela, e partimos, seguindo rumo norte. N'Gumbo, uma grande mancha silenciosa e escura na noite mais escura ainda, açulava o seu e o meu cavalo ao ponto do desespero.

As primeiras cores da aurora nos encontraram à beira do mar de Quineret onde fica a aldeia de pescadores do mesmo nome, e nós os pudemos ver colocando seus barcos e suas redes na água. Mas foi uma imagem passageira, que logo se apagou, enquanto seguíamos rumo à cidade de Hasor, sempre com o rio Jordão à nossa direita. Mais algum tempo e passamos entre Hasor e o rio Jordão, seguindo em direção a Cades, que só vimos à nossa esquerda, iluminada pelo dourado avermelhado que aparece no céu antes que surja o sol da manhã, enquanto nossos narizes se enchiam com o cheiro forte da poeira levantada. Nossa rota nos levou primeiro pelas águas de Merom, e depois através das nascentes do rio Jordão, ao sul de Tel-Dã, a antiga Leshem, onde fizemos um desvio para a esquerda, em direção à casa de meu tio Jubal em Abel-beit-Maaca, depois de quase seis horas aterrorizantes de cavalgada sem trégua.

Eu não fazia a menor idéia do que estava por acontecer. Tonto de sono, fome e cansaço, mas educado por anos de obediência a cumprir sem hesitar as ordens de meu tio, me preparei da melhor forma possível para finalmente encontrá-lo, depois do grande estirão de toda uma noite. A casa em Abel-beit-Maaca era isolada em meio a um luxuriante oásis de tâmaras e videiras, e tinha três andares de tijolos avermelhados, erguidos uns sobre os outros à maneira dos babilônios. O único acesso era uma porta quadrada cortada na parede norte do rés-do-chão, para a qual N'Gumbo me dirigiu, empurrando-me pelas costas com impaciência. Atravessei a soleira da porta e, quando meus olhos se acostumaram à escuridão do interior, um grito de aflição saiu de minha garganta. Tentei recuar, mas as grandes e pesadas mãos de N'Gumbo me arrojaram ao solo, e o núbio colocou um joelho em minhas costas, encurtando a minha respiração, enquanto amarrava meus braços atrás de mim com uma corda muito áspera.

Ergui meus olhos com dificuldade, olhando para cima, sem acreditar no que via, mas com um aperto no coração que ampliava meu terror mais de mil vezes. O interior da casa de meu tio era uma réplica em tamanho menor do apavorante templo de Atargatis que eu e Manassés tínhamos invadido anos antes, e do qual havíamos escapado sem saber como. Tudo estava lá: o cheiro de hashish, a fumaça pesada e oleosa, o altar de pedra cheio de brasas, a estátua suspensa da monstruosa Atargatis com olhos vermelhos de rubi e ladeada por dois leões com as fauces escancaradas, tudo isso iluminado apenas pelo brilho bruxuleante das brasas e pela pouca luz do sol nascente, que descia muito fraca por uma abertura ao alto da construção.

Meu rosto estava iluminado por esta luz, que me ofuscava a visão, até que uma sombra interrompeu seu percurso, debruçando-se sobre mim. Quando reconheci a face de meu tio Jubal, uma esperança de libertação surgiu em meu coração, e eu balbuciei:

— Pai! Manda que N'Gumbo me solte!

— Cala-te! Não sou teu pai!

O esgar de maldade que contraiu a face de meu tio ao responder a meu apelo arrancou de mim toda a esperança que havia surgido, substituindo-a por um terror infinito, nascido do absoluto desconhecimento das coisas. Por que esse tratamento, quando da parte de meu tio eu sempre tivera o melhor? Nesse momento meu tio, colocando seu pé coxo sobre meu pescoço, apertou-o contra o chão, fazendo-me tossir. A tosse fez com que eu aspirasse a poeira do chão, que me engasgou mais ainda e fez com que eu tivesse a sensação de estar sufocando. Meus olhos se encheram de lágrimas, e meu tio sorriu, ironicamente:

— Não começa a chorar ainda, filho de um cão! Guarda tuas lágrimas, pois irás precisar delas quando te deres conta de tudo o que já perdeste e do que ainda estás por perder!

Eu nada compreendia, e isto era o que mais me doía. Tentei fazer dentro de mim uma revisão de meus atos, e nada encontrei que me pudesse levar a este momento que estava vivendo, a não ser minha invasão do templo de Atargatis, em cuja réplica me encontrava. Mas não haveria de ser isso: se acaso essa invasão tivesse sido a causa de minha desgraça, eu deveria ter sido justiçado no momento em que fui descoberto, e não agora, tantos anos depois.

Meu tio, erguendo-me pelos ombros com uma força que eu não presumia que ele possuísse, colocou-me de joelhos, e N'Gumbo puxou meus cabelos, forçando minha face para cima, obrigando-me a mirar diretamente a face de meu tio, deformada por um ódio com cuja causa eu não atinava. Jubal pegou minhas faces pelo queixo, apertando-me as bochechas com tanta força que até meus dentes doíam. O que ele me falou, destilando o veneno de sua ira sobre a minha absoluta inocência, instalou-se em meu peito como a maior de todas as dores possíveis, pois eu não tinha a quem recorrer para livrar-me dele, e sabia com certeza absoluta que dali não sairia vivo:

— Estás morto, cão, filho de um cão! Tu não existes mais! A esta hora, no porto de Tiro, os negociantes que tanto te admiravam estão chorando a tua morte. Mas daqui a três dias nem se lembrarão mais de ti, e teu nome se apagará na poeira do tempo! Estás morto, mas ainda assim viverás durante muitos anos mais para ver que a tua morte de nada valeu e nada deixou, nenhuma conquista, nenhuma lembrança, nada! Estás morto, animal sem valor!

Jubal, com fúria, jogou-me para trás. N'Gumbo já havia me soltado, e eu caí de costas, ainda ajoelhado, ferindo os tendões das pernas e as mãos, que estavam fortemente amarradas às minhas costas. N'Gumbo trouxe para meu tio um escabelo de ébano, e ele se sentou à minha frente, mostrando os dentes amarelos entre os lábios descorados:

— Ainda não compreendestes nada, não é verdade? Ainda esperas que isso seja apenas um jogo que teu tio esteja fazendo contigo, e que logo estejas de volta à tua antiga vida, não é mesmo? Acredita, animal: tua vida se acabou. E é maravilhoso olhar para a tua cara de imbecil e antegozar o prazer de ver-te tremer ao ouvir minhas revelações.

Jubal recostou-se para trás em seu escabelo, apoiando as costas na pedra do altar central, e me olhando com um divertido ar de superioridade:

— Lembra-te quando te disse que tu e tua família eram essenciais para a minha vingança? Eu não menti: eram essenciais porque é de ti e de tua família que busco vingar-me, desde que fui transformado naquilo que hoje sou. Jubal, o coxo de Tiro, como muitas vezes me assinei, só existe por causa de um homem, um maldito que me transformou nesse arremedo de ser humano que eu hoje sou: teu pai!

Eu cada vez compreendia menos: mas se meu pai e Jubal eram irmãos, como poderia ser isto que Jubal me narrava com tanto ódio? Minha dúvida deve ter surgido em minha face, por entre as lágrimas de dor, pois Jubal continuou, elevando seu pé deformado até que estivesse quase que em meu nariz:

Olha este pé, animal, e fica sabendo que foi teu pai, meu próprio irmão, que o fez dessa maneira! O ódio por soldados que tua mãe sentia não é nada perto do meu! Pois foi um soldado, um maldito soldado, que me transformou nessa coisa que se arrasta pelo mundo, obrigando-me sempre a deixar um rastro que marca o meu caminho aonde quer que eu vá! E eu desejava apenas ser um bravo como ele, meu irmão, teu pai. Um dia, antes ainda que ele casasse com tua mãe, eu comecei a brincar com sua espada de bronze, que tinha ficado posta sobre uma mesa. Eu era pequeno e a espada caiu ao chão. Teu pai, meu irmão, irritado com o barulho, veio em minha direção pronto para esganar-me, e eu corri, tentando salvar-me. Então o maldito, sem nada que pudesse fazer contra mim, atirou-me a primeira coisa em que pôde pôr a mão: a espada. O gume acertou-me aqui, vê, em pleno tendão, deixando meu pé pendurado enquanto eu me esvaía em sangue! Todos acorreram em meu auxílio, menos ele, que se manteve em sua posição de homem duro, rindo do desespero de todos. Um cirurgião do exército que morava ao nosso lado, ouvindo os gritos, veio em nosso auxílio, e meu irmão lhe disse: "Não foi nada. Foi um cachorrinho da casa a quem cortei o tendão do pé. Melhor amputar, ou então deixar que morra.”

Jubal cobriu os olhos com as mãos, como se a lembrança desse dia fosse demais para ele. Eu estava boquiaberto com as revelações, e Jubal, olhando-me com cada vez mais fúria, continuou:

— O cirurgião, penalizado, fez uso de suas linhas de tripa de carneiro e com extrema dificuldade costurou-me o tendão, enquanto ainda estava quente, prensando-me a ferida com panos de linho embebidos em ervas maceradas. Mas era apenas um cirurgião militar, não podendo me tratar senão com a grosseria comum aos de sua profissão.Tive febre durante cinco dias, e algumas semanas depois, quando levantei, estava assim, com o pé curto e deformado, podendo pisar no chão apenas com as pontas dos dedos. Cresci em meio à pena de todos, mas como a família tinha posses, pude levar uma vida mais ou menos normal. Todos tinham pena de mim, e eu odiava isso! Eu queria ser um homem ágil, bravo e destemido, que abrisse caminho pelo mundo a golpes de meus braços fortes, mas, ao contrário disso, transformei-me no coxo que hoje sou. Meu pé ferido não se desenvolveu como o outro, e eu me arrastei pelo mundo apoiado em um cajado. No primeiro dia em que vi como era diferente de todos os outros, jurei que um dia me vingaria de meu algoz! E enquanto crescia, grande parte de meu tempo era ocupada com o planejamento detalhado desta vingança, que se transformou no motivo pelo qual eu ainda vivo e respiro!

Meu tio ergueu-se e, em toda a sua fúria, começou a traçar passos à minha frente, sem apoiar-se no cajado, o que ampliava o defeito de seu pé, tornando sua visão uma horrenda exibição de ritmo sem sentido:

— A cada passo que dei em minha vida, lembrei-me de teu pai. Vingar-me dele se transformou na razão de minha existência. Mas o que era eu, senão um aleijadinho de quem só se sentia pena? O tempo foi passando e eu aprendi certas artes às quais ninguém dava muito valor: a escrita, a leitura, os números, fonte de toda a sabedoria. Não me restava outra coisa a fazer, e com isso que eu aprendi fui lentamente construindo um império de riqueza, descobrindo por fim que o verdadeiro poder não reside na força, mas sim na inteligência e na sagacidade. Teu pai só ia às lutas porque homens de inteligência como eu para lá o mandavam, e os idiotas como teu pai acreditam todo o tempo que são senhores de seus destinos. Não são, não eram, não foram, nunca o serão! A mente é mais forte que o corpo. Levanta este traste, N'Gumbo, e amarra-o sobre a pedra!

N'Gumbo me ergueu de qualquer maneira, pelos cabelos e pelos braços amarrados, arrastando-me pelo chão, onde escalavrei meus joelhos e artelhos, e jogou-me de bruços por sobre o altar, onde as brasas fumegavam com um cheiro horrível de matéria em decomposição. Eu estava desesperado, mas não ousava proferir uma palavra sequer, aterrorizado com a transformação pela qual meu tio acabava de passar, segundo suas próprias palavras:

— Mas mais forte que a mente, animal sem serventia, é a dissimulação! Aprendi a ocultar em meu íntimo os meus mais fortes desejos, e me transformei em um respeitável homem de negócios, a quem só se admira. Os atributos que exibo aos outros, como a esperteza, a rapidez de raciocínio, o senso de oportunidade, servem para que oculte do mundo o meu verdadeiro ser: uma fera sedenta de vingança, mas que sabe aguardar a hora certa para dilacerar seus inimigos! Vira-o de frente, N'Gumbo!

O núbio me ergueu da pedra e desamarrou meus braços, virando-me de frente para o teto. Pela abertura pude ver uma nesga de céu azul, com certeza a última de toda a minha vida, e me debati, aos prantos, aos berros. Meu tio esbofeteou-me duas, três vezes, calando-me à força, enquanto N'Gumbo amarrava minhas pernas à pedra. Eu, nas mãos de meu tio, voltava sempre a ser o menino a quem ele tudo ensinara, e que o temia sobre todas as coisas. Seus olhos injetados se fixaram nos meus, ocultando aquilo que eu tinha certeza seria o meu último pedaço de céu, e ele continuou a falar, desta vez tão baixo que eu só o ouvia por estar quase que colado a seu rosto:

— Teu pai, ao morrer repentinamente, roubou-me a melhor parte de minha vida. Não poderia mais matá-lo lentamente, como durante anos planejei. Não poderia mais extirpar-lhe a vida pêlo a pêlo, osso a osso, órgão a órgão, como tantas vezes tinha sonhado e como tantas vezes havia treinado, primeiro com animais e depois com os escravos que me caíam nas mãos. Esses anos de preparação fizeram de mim o que eu sou. Tornei-me tão capacitado nessa arte que sou capaz de manter um ser humano vivo até que não lhe reste nem mais uma pinga de sangue nas veias, até mesmo depois que o seu coração pára. Arranco as unhas, depois os dedos, depois a pele, os órgãos internos, mas sempre deixo que reste um olho, para que a cabeça quase morta enxergue a minha face vitoriosa adejando sobre ela. Quando conheci o rito de Atargatis foi como se os céus me tivessem mandado uma revelação, pois perto dela mesmo o sangrento Moloch é apenas uma estatuazinha de um deus de brinquedo. Então a mutilação podia ser um ritual? Então existia uma deusa que abençoa os mutilados e os mutiladores? Quando entre os atributos de Atargatis eu descobri a vingança, tive a certeza de que meu destino estava traçado. A troco de muito dinheiro pude tornar-me devoto de minha deusa, pois minha perícia na ablação de órgãos me conseguiu uma posição muito mais importante do que simplesmente a de galli. Sabes, animalzinho, por que é que escapaste com vida da tua invasão ao templo de minha deusa?

Jubal sabia! Eu estava certo: isto era a punição tardia pelo crime que eu cometera. Mas meu tio não cessava de me surpreender:

— Eu estava lá! Não me reconheceste? Olha bem para mim! Quando meu tio começou a entoar um cântico gutural em babilônio, não pude conter um grito de terror. Era horrível demais: meu tio era a sacerdotisa que eu vira comandando o rito da deusa sanguinária, a quem eu estava prestes a ser imolado. As imagens grotescas daquele dia fatídico se misturaram, nesse momento, com as imagens de meus pesadelos mais vividos, pois minha mente compreendera a verdade antes de mim. Meu tio havia descoberto uma fonte inesgotável para o seu estranho prazer, e sua mente tão deformada quanto seu pé se alimentava do sangue e da dor infligidas a outrem:

— Tu te adiantaste ao teu destino, animalzinho idiota! Caíste em minhas garras muito antes do tempo previsto! Ainda não estavas no ponto para ser colhido pela foice de minha vingança, e por mais que a vontade de brincar contigo crescesse em meu peito, me obriguei a esperar o momento certo. Eu tinha de fazer de ti a vítima perfeita. Naquele dia tu eras uma criança, sem ter ainda experimentado os grandes prazeres da vida. Se eu te pegasse e te justiçasse, o que perderias? Nada! Tinhas apenas abandonado a casa materna, nada conhecias do mundo. Para que minha vingança fosse verdadeiramente a obra de minha vida, tu tinhas de ter muito, tinhas de ser dono de tudo, tinhas de se transformar em um verdadeiro rei. Eu não podia fazer de ti o rei de Tiro, então decidi fazer de ti a coisa mais parecida com isso: um homem rico e poderoso. Eu te treinei bem, animal, eu te treinei bem. Consegui em poucos anos te transformar em uma cópia fiel de mim mesmo: esperto, ágil, com uma infinita capacidade de manobrar os outros, e um desejo enorme de ganhar, ganhar, ganhar sempre! E o que não ganhaste eu te dei, de mão beijada, para que experimentasses o sabor delicioso da felicidade absoluta. Conheceste apenas o que a vida tem de bom, e a isto te acostumaste. E eu aguardei ansiosamente o dia em que estivesses pronto para cumprir o teu papel na grande obra da minha vingança!

Chegou seu rosto, deformado pela insanidade que o movia, a meio palmo do meu, e falou em voz pausada, escandindo as sílabas:

— Sabes tua mãe? Pois morreu, esta madrugada, de desgosto, enquanto eu lhe contava o teu futuro...

Um urro de desespero escapou de minha garganta. Minha mãe, de quem eu tanto me lembrara e cuja falta tanto sentira nos dois últimos dias, estava morta. Quis perguntar como, onde, mas Jubal, ampliando os limites de sua crueldade, continuou:

Tuas irmãs? Se ainda não morreram continuam trabalhando como escravas nos bordéis para os quais eu as vendi, na Grécia, em Chipre, desperdiçando sua vida e sua juventude em dissipação e deboche. Não devem hoje ser nem uma pálida sombra do que um dia foram...

Minhas irmãs, de quem eu tinha as mais agradáveis lembranças, onde estavam? Que deus cruel havia colocado a todos nós no caminho deste ser insano, que agora me tinha em seu poder? O monstro que fora meu tio e que um dia eu me orgulhara de chamar de pai prosseguiu:

— Minha ida à tua casa depois da morte de teu pai foi providencial, assim como a vontade que tua mãe externou de transformar-se em hospedeira. A tua casa se tornou local de exibição dos talentos de tuas irmãs, que vendi pelo melhor preço aos piores homens que pude encontrar na face da terra. Te recordas do grego que eu derrotei com meu cajado? Era um desses compradores, escolhido por mim não pelo preço que podia pagar, mas sim pelos maus-tratos que podia infligir à fêmea que eu lhe vendesse. Infelizmente, não soube controlar-se ante a visão da juventude, e eu tive de rapidamente o justiçar, antes que pusesse a boca no mundo e desvendasse todo o meu plano. Mais tarde, na calada da noite, fui até o monturo do fundo e cortei-lhe a cabeça, tão rapidamente que ele só acordou depois que ela já estava separada do corpo, corpo que eu fiz questão de mostrar a ele, enquanto o sangue escorria pelas veias abertas de seu pescoço cortado, esvaziando gradativamente seu cérebro. O animal ainda deu um grito, antes que a vida abandonasse a sede de sua existência. Meus marujos levaram o corpo para jogar ao mar, e a cabeça eu ainda a conservo comigo, como lembrança e aviso...

Que ser insensível e perverso era este em que meu tio se transformava, assim ante meus olhos, exibindo com enorme prazer o pior lado de seu caráter? E minhas irmãs, como pôde ter feito o que fez com elas? Atirando-as nos piores dos piores antros de depravação, onde uma mulher vale menos que uma cadela, meu tio destroçara as suas chances de uma vida. Eu sabia bem disso, pois conhecia esses lugares melhor do que ninguém, e a maneira como as pobres mulheres eram tratadas. E minha mãe, como teria morrido? Meu tio começou a vestir um manto negro e vermelho, enquanto falava comigo:

— A paciência é a minha maior qualidade. Esperei que estivesses em boa idade, e te trouxe para junto de mim, aguardando que crescesses o suficiente para que pudesses entender o teu fim. Esperei que amadurecesses e que te transformasses em um prodígio de sabedoria e riqueza, pondo em tuas mãos ávidas tudo o que podia. Eu sempre soube que quanto mais te desse, mais terias a perder. Mas os acontecimentos se precipitaram. Tua mãe, como teu pai antes dela, apressou-se a deixar o mundo dos vivos, antes que eu pudesse dispor de seu corpo, sangue e vísceras. Quando cheguei, ela estava em seus últimos suspiros, mas ainda pôde ouvir a minha história e o fim que sua família teria em minhas mãos. Mas havia pessoas por perto, e eu não pude brincar com ela, como tinha sido o meu desejo. Paciência: a morte dela foi como um sinal. E eu de repente percebi que tudo estava em conformidade com meus planos e que o momento era perfeito para realizar minha vingança: a tua presença em Jerusalém, onde por certo serias tratado como um rei, a tua ausência de Tiro, onde eras admirado por todos os que te conheceram, e principalmente a idade. Tens hoje a idade exata que teu pai tinha quando fez de mim este aleijão. Nada mais justo que neste momento de nossas vidas eu te devolva com juros a herança que ele me deu. Amarra-o, N'Gumbo, com as pernas abertas!

Eu finalmente entendera: meu tio, esse monstro de crueldade, iria matar-me ritualmente sob os olhos sanguinolentos de Atargatis. Não me envergonho de confessar que chorei, gritei, supliquei por misericórdia. Mas as mãos de N'Gumbo, cumprindo as ordens de seu amo e senhor, eram tão fortes quanto era dura a maldade de meu tio Jubal, que continuava falando:

— Os sinais surgiram antes, quando te decidiste a colaborar com a construção desse templo inútil de Jerusalém! Pretendias dar o melhor de ti a esse deus sem sentido e sem poder, cuja força não chega a um décimo da força da poderosa Atargatis? É a ela que devias ter entregue a tua inteligência, é a serviço dela que devias ter indicado o teu grande artesão, e não a essa tolice sem cara chamada Yahweh! Quando fizeste isso, eu soube que a tua hora estava próxima!

— Mas meu tio, tudo o que fiz foi para o aumento de nossa riqueza!

— De minha riqueza, animal, de minha riqueza! Os animais nada possuem, porque de nada valem! Trabalhaste para mim como o boi de carga puxa o carro a serviço de seu amo! Tudo o que sempre tive, e que fizeste crescer com o talento que eu eduquei, hoje volta a meu poder! Tudo o que foi de meu irmão também, pois eu sou o herdeiro de tua mãe, na tua ausência, e como já estás morto, tudo agora é somente meu! E a riqueza deste pusilânime Hiram, rei de Tiro, que cede o melhor de si a um deus estrangeiro, o deus de Salomão, também é minha! Piratas a meu soldo a esta hora já devem estar de posse de toda a carga que estava sendo trazida pelo Ahiram, e que agora é só minha! O navio? Afundado, depois que todos os seus tripulantes estiverem mortos. As notícias chegarão truncadas, mas por elas saberemos que morreste afogado. Não fazes mais parte do mundo dos vivos. És agora apenas um pedaço de carne do qual eu hei de dispor segundo a minha vontade. Atargatis me concedeu a vingança, e faz cair sobre mim a benesse de sua justiça!

Quando meu tio puxou de dentro de seu manto a espada recurva de brilhante metal azulado, eu finalmente compreendi tudo. Ele pretendia transformar-me em um galli, uma daquelas aberrações que habitavam o templo da maldita deusa. Os meus mais terríveis pesadelos estavam em vias de se tornar realidade! Meu tio experimentou o fio da lâmina com seu polegar e fez um ar de satisfação, olhando-me com alegria:

— Regozija-te, meu filho, pois hoje verdadeiramente me darás a maior de todas as alegrias! Hoje em teu corpo se cumprirá a minha vingança tão desejada! Tudo te dei, e tudo te tirarei. Podia matar-te, mas isso seria pouco. Se teu pai me tivesse matado... mas eu fiquei vivo, um pedaço de homem a arrastar-me pelo mundo, observando à minha volta tudo o que poderia ter sido e não fui. Contigo também será assim: apesar de morto, estarás vivo, e também serás um pedaço de bicho a arrastar-se pelo mundo, sem valor nem serventia. Nem a possibilidade de ter descendentes que um dia possam tentar vingar-se de mim eu te deixarei. Perderás a utilidade, e por minha obra e graça te unirás a tantos outros devotos de Atargatis, a quem queimarei em holocausto a raiz da tua masculinidade. Segura-o com força, N'Gumbo! Não deixe que se debata! O corte tem de ser preciso, para que ele sobreviva! Tua dor será o apanágio de minha vingança! Entrega-te a Atargatis, tua ama e senhora deste dia em diante!

Meu tio ergueu a lâmina e avançou para mim, segurando-me o pênis com mão firme e esticando-o em sua direção. Meus olhos não abandonavam a lâmina, e eu gritava como o animal em que meu tio me transformara, enquanto a ferramenta de meu destino começava a traçar o arco que a levaria, inapelavelmente, à ablação de mim mesmo. Na face de meu tio o esgar de satisfação espelhava sua loucura absoluta, e eu urrei aos céus, sentindo por antecipação a insuportável dor que estava por tomar-me o baixo-ventre.

Subitamente, às minhas costas, um barulho surdo e um baque forte interromperam meu tio, que parou o arco de descida de sua lâmina. As mãos de NGumbo, que me prendiam firmemente os braços, soltaram-se de mim. Deitado de ventre para cima, como estava, não pude ver o que acontecia. Ouvia ruídos de briga, e meu tio, soltando-me o pênis, bradou com voz cheia de ódio:

Manasses!

 

Ergui-me sobre um braço, virando a cabeça para trás, e pude vislumbrar N'Gumbo e Manassés embolados em luta corporal, rolando pelo chão de pedra. Os dois derrubaram um dos tocheiros, que espalhou brasas pelo chão, e N'Gumbo, caindo por cima delas, queimou as costas. O núbio levantou-se bruscamente, com um grito de dor, e soltou Manassés que, afastando-se de costas, derrubou meu tio ao chão. Jubal soltou a espada recurva de metal azulado, e foi com ela que Manassés se defendeu do ataque de N'Gumbo, superada a dor das queimaduras. N'Gumbo avançou sobre Manassés que, num reflexo instantâneo de defesa, enfiou-lhe a espada no ventre. N'Gumbo estacou como se tivesse sido interrompido por uma parede de pedra, e a ponta da espada que atravessou seu ventre surgiu às suas costas. Um forte cheiro de sangue e matéria fecal tomou a sala, e N'Gumbo, usando a extrema força que sempre fora a sua qualidade mais flagrante, caiu ao solo de joelhos, com as mãos estendidas para a frente, tentando manter-se vivo. Durante alguns instantes o tempo como que parou, enquanto N'Gumbo olhava com ar de incredulidade o estrago que a lâmina tinha feito em sua barriga. Depois, erguendo os olhos, empurrou Manassés para trás. Manassés, que durante todo esse tempo não havia soltado o punho da lâmina, a trouxe consigo, extraindo-a do ventre de N'Gumbo com um nojento ruído de sucção, e o núbio, com os olhos arregalados, caiu de cara no chão, enquanto o cheiro de podridão que escapava de seu corpo perfurado aumentava mais e mais.

Eu fui o primeiro a me mexer: sentando-me sobre a pedra, comecei a desamarrar as cordas que prendiam meus tornozelos. Quando tinha acabado de soltar a primeira perna, meu tio, com ódio mortal exalando de todo o seu ser, avançou em minha direção, com as mãos crispadas como garras mirando o meu pescoço. Mas Manassés foi mais rápido e, com um golpe da espada sobre a pedra, levantou faíscas, mantendo a lâmina à minha frente, interrompendo o avanço de meu tio. Eu aproveitei sua hesitação para soltar o outro pé e pular da pedra, ocultando-me atrás de Manassés. Meu tio avançou novamente, e novamente Manassés bateu a espada contra a pedra, só que dessa vez com tanta força que a lâmina se partiu, caindo ao chão em dois pedaços.

Meu tio, com um sorriso de maldade absoluta, pulou sobre Manassés, gritando:

— Maldito hebreu Escravo sem valor, tua vida é minha!

Manassés caiu de costas ao chão, e meu tio por cima dele começou a apertar-lhe a garganta com força descomunal. Manassés tentava se libertar, mas o ódio incomensurável de meu tio aumentava o poder de suas mãos. E eu vi os olhos de Manassés começarem a ficar vidrados e a girar para trás das pálpebras, enquanto sua boca aberta tentava puxar ar para os pulmões. Agarrei meu tio pelo pescoço e comecei a puxá-lo para trás, mas a loucura e a ira lhe davam uma força tão grande que eu nem consegui mexê-lo de onde estava. Procurei alguma coisa para tirá-lo de cima de Manassés, o irmão que tinha salvado a minha vida, e vi o escabelo de ébano e bronze. Ao pegá-lo vi que era pesado: com um ódio que eu não sabia que tinha dentro de mim, desci-o com toda a força sobre a cabeça de meu tio. O sangue espirrou para o alto, manchando a minha cara, e meu tio caiu imóvel sobre Manassés.

Quando vi Manassés mexendo a cabeça com dificuldade e tossindo para conseguir colocar ar dentro dos pulmões, deitado em meio ao sangue misturado de meu tio e de N'Gumbo, o ódio que ainda sentis se transformou. Ainda era ódio, porém agora se misturava a uma pena imensa que eu sentia de mim mesmo. O choro sentido que eu sempre prendera dentro de mim, e que por diversas vezes me ferira a garganta, saiu aos borbotões, e eu me entreguei ao desespero, gritando e chutando o corpo inerte de meu tio:

— Maldito! Mil vezes maldito! Tu me destruíste! Por que tinha que ser assim? Por que minha mãe, minhas irmãs e eu tínhamos que pagar pelo crime de meu pai? Monstro sem coração! Melhor seria se me tivesses deixado viver a vida de aguadeiro na casa de minha mãe! Nada teria a perder, porque nada teria ganhado! Por que fizeste de mim o que eu não era, se pretendias apenas tirar-me o que eu sou? E ainda me transformaste em assassino! Por que tinha de ser assim?

No meu frenesi de emoção acumulada que finalmente via a luz do dia, continuei chutando as costelas do corpo de meu tio, sem perceber que Manassés, já recuperado da tentativa de sufocamento, se erguera e me pegava pelos ombros. Cego de ódio, eu não o via: à minha frente tudo o que havia era o monstruoso corpo de Jubal, que como um deus cruel me fizera e desfizera, e em quem eu precisava descarregar o manancial de fel que me envenenava o coração e a alma. Continuei gritando, sem o menor controle de mim mesmo, enquanto Manassés me tomava nos braços e me aninhava de encontro a seu peito, como se faz com as crianças feridas.

Não sei quanto tempo depois eu voltei a um estado de racionalidade. Quando dei acordo de mim, as moscas já esvoaçavam, pousando sobre o sangue e as feridas, banqueteando-se no festim de morte e podridão. Manassés, ainda rouco pelo sufocamento que lhe deixara duas enormes manchas roxas no pescoço, ergueu-se do chão e me apoiou para que eu fizesse o mesmo, dizendo:

— Temos de sair daqui imediatamente, Joab! Ninguém pode nos encontrar ao lado desses cadáveres! A pena para os assassinos é pesada em Tiro, principalmente quando quem mata é um parente ou um escravo da vítima. Não te salvei de teu tio para que venhas a ser esquartejado em praça pública! E nem me interessa sofrer a mesma pena! É preciso que partamos imediatamente! Vamos!

Saímos cambaleando daquele lugar insuportável, e Manassés me colocou dentro de um carro puxado por dois cavalos. Não vi por onde passamos: só sei que algum tempo mais tarde estávamos em um oásis, que depois vim a saber ficar ao norte de Cades, exatamente onde o Jordão brota das entranhas da terra e inicia seu percurso até o mar salgado de Arabá. Manassés, com um pano úmido, limpava as manchas de sangue que ainda estavam grudadas a meus cabelos e face, enquanto me contava como chegou a Abel-beit-Maaca a ponto de salvar-me de um destino tão grotesco quanto horrível:

— Saíste do palácio de Salomão com tanta pressa que eu, por um momento, fiquei paralisado. Quando corri atrás de ti, só pude ver a sombra dos cavalos desaparecendo na primeira curva da estrada para Jericó. As sentinelas, amedrontadas por terem sido vistas sendo subornadas, me trataram com a maior truculência, e eu fui obrigado a retornar para dentro do palácio. No corredor superior, alguma coisa caída ao chão me chamou a atenção: era o pergaminho que teu tio te mandou. Não leio muito bem o fenício, mas pude perceber palavras como "problemas políticos", "vem sozinho", "não confies em Manassés", que me causaram grande estranheza. Voltei às sentinelas e, com toda a força das ameaças que pude conjurar, consegui que me dessem acesso às cocheiras de Salomão. Ali, à custa de dinheiro, consegui esse carro com dois cavalos e parti atrás de ti. Quando saíste de Betsã, eu me aproximei do estalajadeiro e, mentindo ser parte da mesma comitiva, consegui saber que eras esperado em Abel-beit-Maaca o mais rápido possível. Eu tinha conhecimento da casa de teu tio neste lugar, e me recordava de diversos escravos jovens que, tendo sido lá chamados, nunca mais haviam retornado. Cheio de medo em meu coração, te segui a uma distância segura, e pude ver quando vossos cavalos entraram no oásis onde fica a casa de Jubal. Quando cheguei, estranhei a solidão e o silêncio, mas logo os teus gritos de terror me chamaram a atenção. Olhei pela porta, e o que vi quase me paralisou: era uma cópia do que tínhamos desvendado, há muitos anos, no templo da aberração em Tiro. Só que desta vez tu eras a vítima. Pedi forças a Yahweh, meu deus dos exércitos e das batalhas, e avancei sobre N'Gumbo, contando com a surpresa. Não sei bem como vencemos, e nem me recordo com detalhes de tudo o que aconteceu. N'Gumbo era um homem cruel, e se tivesse tido a chance teria eventrado a nós dois. Tu és testemunha de que eu não queria matá-lo: ele se arrojou sobre a espada que eu segurava. Mas te salvei, meu irmão, e isto é o que importa.

A narrativa de Manassés fez cair sobre mim todo o horror dos acontecimentos que tínhamos vivido. Só neste momento, horas depois do acontecido, é que eu senti realmente o peso do que se passara, e mais pesada ainda a carga que agora eu e meu irmão Manassés carregávamos sobre nossos ombros ainda tão jovens. Tínhamos nos tornado assassinos. Manassés matara por um acaso, em defesa de si e de mim, seu amigo e irmão, mas eu fora movido pelo ódio incontrolável, que me fizera agir completamente em desacordo com tudo aquilo que eu acreditava ser: um homem de valor e importância, que vivia exatamente como lhe ensinaram a viver, e que nunca desceria abaixo de seu patamar.

Há dores que enlouquecem e fazem delirar. A minha dor me emudeceu. Por mais que Manassés tentasse me animar, tirando-me do mutismo em que caíra, em mim alguma coisa se quebrara, levando consigo a minha capacidade de me comunicar com meus iguais. Tudo me era possível, menos falar: a voz que eu usara desde criança desaparecera de minha garganta. Manassés, com extrema delicadeza, tentou levar-me a dizer alguma coisa. Tempo perdido: os maxilares trancavam-se, os dentes se cerravam uns sobre os outros de tal maneira que a cabeça me doía, a língua só se movia para deglutir saliva, e a garganta estava morta.

Mas esta não era nem a maior nem a mais flagrante de nossas preocupações: o que realmente tomava toda a atenção de Manassés era decidir o que faríamos desse momento em diante. Tiro se tornara terreno proibido para nós, pois tão certo como a morte de meu tio a esta altura já teria sido descoberta, assim seria o castigo que se imporia a nós dois. Não seria possível convencer a ninguém que Jubal, o benfazejo tio que me dera mais do que aquilo que se dá a um filho carnal, na verdade era um monstro de crueldade, cujo prazer sempre fora o assassinato e o esquartejamento de suas vítimas indefesas. E se acaso eu o provasse, quem ousaria maldizer ações feitas em honra de Atargatis, deusa de Tiro? Ninguém creria que o que meu tio fizera por mim fosse parte de um plano muito bem urdido de vingança: não havia nenhuma prova possível de convencer aos juizes do rei Hiram.

O plano de meu tio, afinal de contas, tinha sido coroado de êxito. Em menos de vinte e quatro horas eu havia passado de importante cidadão de Tiro a um pária sem lar nem família, sem nem mesmo um nome do qual pudesse dizer: "É o meu." Nada mais me restava, pois meu tio tudo me havia tirado, com apenas um golpe de seu cajado. No porto de Tiro, a esta altura, todos certamente acreditavam em minha morte, o que era de certa maneira uma bênção, pois se eu acaso surgisse vivo e respirando seria exclusivamente para responder com minha própria vida pela morte de meu tio e de seu escravo. Nada animava mais os habitantes de Tiro do que o justiçamento de um condenado por assassinato, principalmente quando os fatos envolviam fortunas que trocavam de mãos. Certamente me acusariam de cobiça incontrolável, movido pela qual eu teria assassinado meu tio quando prestava suas devoções à sua deusa protetora, pobrezinho. Eu seria amaldiçoado mais de mil vezes, por não ter compreendido a lei básica de sobrevivência da sociedade fenícia. Mil anos antes, quando o rei Ahiram tomou o poder sobre a comunidade cananita que se homiziava onde depois se ergueu a Fenícia, não existia herança. O direito de herdar foi criado para garantir a sobrevivência de filhos e netos no trono de Tiro, passando o grupamento reduzido da família, por imitação da realeza fenícia, a ser mais importante do que a tribo. Por isso sempre se dizia, em Tiro, que antes da herança não havia família, preceito pelo qual todas as nossas relações de sobrevivência eram regidas. Meu tio conseguira: eu estava morto.

Por maior que fosse o meu desespero, por mais baixo que eu estivesse me sentindo, o meu instinto de sobrevivência ainda era aguçado. Apesar de não ter completado dezoito anos, estava mais velho que o mais velho dos homens, e o amargor instalado em mim se enraizava de tal maneira que não restava lugar para mais nada, a não ser um ódio incondicional e indeterminado por tudo e todos. E este ódio, que eu antes não sabia ser possível, fervilhava dentro de mim, como vermes sobre a carne podre, fazendo-me urdir incontáveis planos de vingança. Mas para isso era necessário que eu sobrevivesse, e para que eu sobrevivesse era preciso que nós dois, eu e Manassés, estivéssemos verdadeiramente mortos.

Tínhamos de nos transformar em outras pessoas, isso era claro. Nenhum de nós dois poderia mais sequer recordar-se de sua vida passada. Teríamos de recomeçar do início, mudando de nome, profissão, lugar de nascimento e até mesmo de cara, se isso fosse necessário. Nossas roupas, nossas faces raspadas, nossos cabelos, nossa língua comum, tudo isto teria de ser abandonado em definitivo, para que dois novos homens surgissem. O objetivo de Manassés era a sobrevivência pura e simples, pois ele só desejava escapar do castigo pela morte de um valioso escravo, como N'Gumbo era. O meu, não: o que me movia antes de tudo era um desejo imenso de vingança contra tudo.

Meu tio tinha feito um excelente trabalho, pois me envenenara de tal forma com sua personalidade que até mesmo a mola mestra de sua desgraçada vida era agora também a minha. E eu aproveitei muito bem o mutismo que parecia ser a minha nova condição natural: dentro de minha cabeça, enquanto minha boca permanecia silenciosa, se foi formando um plano de sobrevivência, que tinha como fim último vingar-me de tudo o que me acontecera. Contra quem eu executaria esta vingança, eu ainda não sabia: mas que eu me vingaria, isto era tão líquido e certo quanto as mortes de N'Gumbo e de Jubal, meu tio e algoz.

Manassés continuava sendo da maior fidelidade a mim. Lavou com água das nascentes as minhas feridas dos pés e joelhos, enquanto eu fitava o nada. No meio do dia a fome nos assaltou, e ele colheu à nossa volta alguns melões selvagens que serviram para enganar nossos estômagos. Tínhamos de sair das imediações de Abel-beit-Maaca o mais rapidamente que pudéssemos, antes que alguém nos encontrasse. Precisávamos colocar entre nós e o local do crime a maior distância possível, e para isso o transporte era essencial. Mas o carro e os cavalos de que dispúnhamos traziam as marcas das cocheiras do rei Salomão, o que chamaria atenção demais sobre nós. Era necessário, portanto, que nos livrássemos deles o mais depressa possível e que enfrentássemos a pé qualquer caminho que estivesse à nossa disposição.

Tínhamos vindo, e estávamos voltando, pela trilha de caravanas que liga Jerusalém a Tiro pelo lado oeste do vale do Jordão, caminho mais percorrido e portanto mais conhecido. Pela outra margem do rio, o vale era mais estreito, usado apenas pelas grandes caravanas que vinham do outro mar, passando pela grande cidade de Damash, centro de distribuição de tudo que vinha da Pérsia e mais além. As caravanas que usavam essa rota eram maiores, e muito mais lentas, pela sua própria natureza, ficando às vezes mais de dois anos fora de sua cidade de origem. A rota, portanto, era muito menos ocupada, ideal para quem, como nós, precisava se deslocar sem chamar a atenção.

Com um grande esforço, tomei as rédeas das mãos de meu salvador e direcionei os cavalos para outro lado. Manassés, mesmo não entendendo o que estava me acontecendo, terminou por compreender que eu queria que saíssemos dali o mais depressa possível. Subimos no carro e açulamos os cavalos para o sul, e depois para leste, passando pela margem norte do lago Hula, e afastando-nos na direção do sudeste, tentando chegar à cidade de Edrai, onde negociaríamos nossas posses e nos transformaríamos em viajantes comuns tentando alcançar Asion-Gaber. Só que na verdade estaríamos indo para Jerusalém, pois sendo o centro de nosso mundo, e estando na mira de todos os trabalhadores da região, certamente teria as portas abertas para mais dois, sem perguntas nem suspeitas. E eu, que tinha entrado nesta cidade pela primeira vez como um grande e poderoso chefe, nela teria de me esconder, para ganhar a minha vida da maneira menos conspícua possível, ficando pelo maior tempo que pudesse no mais oculto de todos os lugares de Jerusalém, preparando o meu retorno e a minha vingança.

Vivemos um momento de grande tensão quando atravessamos a pequena aldeia de Astarot, um pequeno grupamento de devotos da deusa Astarte remanescente nesta região. Imagens da deusa estavam em todos os cantos da aldeia, que atravessamos em passo acelerado, pois Astarot e Atargatis eram, pelo menos em imagem, uma e a mesma deusa. Nossa velocidade foi tanta que os moradores das casas que ladeavam a estrada, quando saíram para ver quem passava por ali, só puderam enxergar a poeira deixada por nossas rodas. Poucas horas depois, cruzamos o rio Jamuc e logo depois atravessamos os muros de Edrai, nos dirigindo a seu mercado. Nossos cavalos, sujos pela poeira, estavam irreconhecíveis como os belos exemplares da criação de Salomão que eram, mas isso para nós era uma grande vantagem: o preço que por eles conseguiríamos não seria grande coisa, mas ninguém faria muitas perguntas sobre sua origem. E foi o que aconteceu: um comerciante na praça de Edrai acabou arrematando o carro e os cavalos, e também nossas finas roupas, emporcalhadas pelo uso. Este mesmo comerciante incluiu, no preço irrisório pago por nossas posses, duas roupas muito usadas, constando de túnica, manto e dois pares de sandálias extremamente gastas. Entramos nos banhos públicos e nos lavamos durante algum tempo, tentando nos livrar do pó que se entranhara em nós desde a noite anterior. O sol nos queimara a pele e estávamos mais tisnados do que alguma outra vez em nossa vida. Minha barba estava crescendo, e meus cabelos, sempre tratados e frisados, estavam maltratados e caídos ao lado de meu rosto. Manassés também já não tinha a mesma aparência de sempre. Os últimos acontecimentos tinham nos amadurecido à força, e de tudo o que se modificara o que mais chamava a atenção eram os nossos olhos: envelhecidos e atemorizados, como os dos animais que, depois de maltratados em cativeiro, conseguem escapar, defendendo sua liberdade a qualquer preço.

Neste momento, em minha mente destroçada pelas frustrações sucessivas das últimas horas, pelo terror sem nome que eu havia vivido nas mãos malfazejas de meu tio, e pelo ódio que me corroía as entranhas, eu só pensava no lugar em que nos deveríamos ocultar. Com gestos decididos, fui empurrando Manassés para o caminho que nos levaria até Jerusalém. Quebramos, com algum esforço, dois galhos de oliveira para que nos servissem de cajados e, enrolando nossos mantos por sobre nossas cabeças à moda dos nômades do deserto como proteção do sol inclemente, seguimos nosso caminho a pé, em direção à cidade onde Salomão estava por erguer o Templo de seu deus, Yahweh.

Os dias seguintes foram dias de sofrimento e cansaço, enquanto nossos pés desacostumados trilhavam os caminhos da margem esquerda do Jordão. Manassés ainda tinha um certo costume do trabalho pesado, mas eu, acostumado à boa vida que meu tio me proporcionara para seus inconfessáveis fins, comecei a me arrastar mais do que andar, pedindo descanso a intervalos cada vez menores. O sol castigava nossa pele, e meus lábios rapidamente estouraram em bolhas, que ressecavam e repuxavam a comissura de minha boca, causando-me um incômodo desmedido, menor apenas que o causado pelas bolhas muito maiores que cresciam, estouravam e renasciam em nossos pés. A comida que trouxéramos acabou no segundo dia de caminhada. Estávamos desse momento em diante ao sabor da caridade do mundo, mas como tínhamos escolhido o caminho menos percorrido, passamos fome até a travessia do rio Jaboc, que aconteceu na manhã do terceiro dia. Manassés, preocupado comigo, falou-me, em um de nossos cada vez mais constantes períodos de descanso:

— Joab, meu irmão, assim não vamos bem. Nossa comida acabou, a água que resta nos odres é pouca, e nenhum de nós está preparado para enfrentar nem mais um dia de calor nesse vale. As duas caravanas que encontramos nos escorraçaram como se fôssemos bandidos. Nosso estado físico é muito ruim, e a viagem fica a cada momento mais penosa. Se não pudermos descansar condignamente nem nos alimentarmos direito, acabaremos por morrer, e nossos ossos embranquecerão no meio dessas areias.

A um gesto meu de desalento, Manassés continuou:

— Não enfrentamos o que enfrentamos para desistir! A sentinela da última caravana que encontramos mencionou uma série de aldeias que ficam no alto dessas montanhas a leste do Jordão, nas quais poderemos pelo menos ter um tratamento de seres humanos, com os três siclos que ainda nos restam. Vamos, meu irmão, é a nossa última oportunidade! Galguemos imediatamente as encostas desses montes!

Ergui-me com dificuldade e segui Manassés, que começou a subir a encosta à nossa esquerda. Algumas horas depois, já caminhando pelo alto dos montes, pudemos notar a mudança na paisagem: plantações, pastos de cevada, rebanhos, todos os sinais do que para nós parecia uma prosperidade infinita, e que não eram mais que a condição natural da vida simples do povo desses lugares. Eram terras dos galaaditas, agora sob controle de Salomão: a integração desses povos ao reino dos hebreus não foi difícil, pois partilhavam uma herança comum de hábitos e costumes herdados de seus tempos nômades. Nosso primeiro descanso foi na aldeia de Tesbi, onde enchemos nossos odres e compramos com um siclo de prata alguns pães sem levedura, bolas de queijo de cabra e azeitonas ainda meio verdes, mas cheias de óleo. Debaixo de uma grande oliveira que ficava na praça central da aldeia, nos abrigamos do sol, e passamos algumas horas em modorra absoluta, recuperando as forças que tínhamos perdido caminhando.

Manassés ergueu-se, pretendendo reiniciar a jornada, mas eu o segurei e apontei para o sol, sinalizando que deveríamos esperar que descesse. Era preferível caminhar durante a noite, quando as montanhas ficam frias e o ar é mais leve e perfumado, do que continuar andando de dia e sofrendo os rigores do calor inclemente. Manassés, acostumado a me obedecer, não insistiu muito, e assim que o sol se ocultou no horizonte, manchando os céus de rosa e púrpura, erguemo-nos e partimos, descansadamente.

Minha aparência calma nem de longe deixava entrever o turbilhão que corria dentro de meu espírito. Por trás de minha face absolutamente inexpressiva e de meu raciocínio prático e lógico, estava uma criança magoada e muito ferida, que pretendia com todas as suas forças vingar-se de quem a colocara na posição em que estava. Minha sensação era a de que o Universo, do qual tinha sido amo e senhor, tinha tirado de meu alcance tudo aquilo que me era devido, e agora tinha para comigo uma dívida insolúvel. O instinto de sobrevivência me levava adiante, aceitava a presença de Manassés a meu lado porque ele ainda me podia ser útil, e não me deixava enxergar à minha frente mais do que a cobrança que eu fazia a quem me tinha criado para viver esse momento de degradação. Eu queria de volta tudo aquilo que me era devido, e gastaria toda a minha vida, se preciso fosse, para conseguir retomar o fausto em que vivera enquanto fora o prodigioso Joab de Tiro. E se acaso o que eu ansiava não me fosse concedido, preferencialmente com juros, havia sempre a possibilidade de me transformar no flagelo de meus semelhantes, ofuscando com meu ímpeto de destruição até mesmo a figura criminosa de meu tio. Nada mais tinha a perder: já era um assassino, marcado pelo estigma da crueldade, e seguir um caminho de destruição seria para mim a coisa mais natural.

O caminho das montanhas passava por outras aldeias, nas quais paramos a cada manhã, e em cada uma fomos recebidos de forma diferente. Em Carít, ao lado das corredeiras do rio do mesmo nome, fomos tratados como mendigos: deram-nos pão velho, não nos deixaram beber da água do poço para não contaminá-la com nossa sujeira, e um bando de homens armados de forcados e porretes nos escoltou ameaçadoramente até fora da cidade. Manassés pensou em reagir, mas eu o acalmei. Não havia motivo para que nos arriscássemos ainda tão longe de nosso objetivo, e seguimos em nossa jornada noturna, à luz do luar. Em Sucot uma mulher que fiava mandou seus filhos, que nos olhavam com desconfiança por trás de suas vestes, trazerem dois pedaços de um pão amarelo muito doce, ordem a que as crianças obedeceram com medo, mas que depois, ouvindo Manassés agradecer-lhes na língua de seus pais, acabaram brincando a nosso lado. O caminho daí em diante descia a encosta, e a cidade que encontramos ao sopé dos montes, Adama, razoavelmente maior que as anteriores, nem notou nossa presença. Acreditávamos estar em segurança, quando fomos atacados por salteadores de estrada que esperavam vítimas logo à saída da cidade, e que mesmo notando nossa extrema pobreza, nos aliviaram de nossos odres e dos dois siclos de prata restantes, deixando-nos apenas com as roupas e as sandálias, que de tão velhas e furadas não tinham serventia nenhuma para mais ninguém.

Seguimos caminho aos trancos e barrancos, e quando alcançamos a margem do Jordão que fica exatamente oposta a Jericó, interrompi a marcha de Manassés, que pretendia pedir a um dos barqueiros que infestavam as margens para nos atravessar. Dirigi meus passos novamente para as montanhas, e Manassés me seguiu, sem nada compreender. Meu passo estava novamente firme, e eu fui galgando as encostas em direção ao grande pico do Monte Nebo, que se destacava no céu, recortado pelo sol. Devemos ter subido bastante, pois quando Manassés me segurou e impediu que continuasse, podíamos ver, no claro ar da manhã, o rio Jordão a nossos pés, e duas cidades ao longe: Jericó a oeste e Setim, ao norte. Manassés indagou:

— O que procuras, meu irmão? Não temos mais forças, nem comida nem água. Devemos usar o nada que nos resta para alcançar Jerusalém! O que estás buscando aqui, nesta montanha inóspita?

Meus olhos, apertados por causa do sol, giravam em todas as direções, e finalmente percebi, atrás de alguns espinheiros, a abertura de uma caverna, e para lá me dirigi, com Manassés em meu encalço. O chão dessa caverna, muito pequena e baixa, era de areia branca, e não parecia ser ocupada nem por homem nem por animal. Curvando a cabeça, entrei, e Manassés me seguiu. Sentei-me ao chão, trêmulo de medo pelo que teria de fazer, mas decidido a fazê-lo de qualquer forma. Olhei à minha volta: junto às paredes do buraco em que estávamos havia várias pedras, dos mais diversos formatos. Uma delas me pareceu ter uma aresta mais afiada, e foi esta que eu estendi para Manassés, dizendo com enorme esforço:

— Hebreu... tenho de ser hebreu.

Manassés custou a perceber o meu desejo, mas quando o compreendeu atirou a pedra o mais longe que pôde.  Levantei-me e busquei a pedra, entregando-a a ele, que a atirou mais longe ainda. Isso aconteceu mais quatro vezes, até que minha decisão provou ser mais forte. Com lágrimas nos olhos, Manassés se aproximou de mim, disposto a fazer o que era preciso. E eu para poder sobreviver em Jerusalém sem que ninguém descobrisse minha verdadeira identidade, e também para nunca me esquecer do que o maldito Jubal de Tiro pretendera fazer comigo desde o dia em que pela primeira vez pusera seus olhos sobre mim, arranquei minha túnica, ajoelhei-me, e segurei a pele de meu pênis por sobre uma pedra grande e chata que também apanhei junto à parede do fundo, trincando os dentes com fúria. Manassés aproximou-se de mim vagarosamente e de repente, sem que eu pudesse perceber, começou a cortar o meu prepúcio. A dor era tremenda, e minha vontade de recuar maior ainda. A pedra não era afiada o suficiente, e a ablação do prepúcio levou o que me pareceu toda uma vida. O sangue escorria descontroladamente enquanto Manassés me circuncidava, e quando o trabalho terminou, descobri que tinha gritado durante todo o tempo. Minha garganta estava ferida, e eu havia mordido minha língua. Havia sangue entre minhas pernas, e sangue em minha boca. Caí para trás, e Manassés ficou me olhando, com extrema preocupação: mas logo o sangue diminuiu seu fluxo, e o corte brutal começou a criar um coágulo, e dentro de alguns instantes eu me ergui e tentei andar. Não consegui, pois minhas pernas dobraram e eu caí ajoelhado ao chão. Rasguei um pedaço de minha túnica e amarrei meu pênis fortemente, deixando uma pequena abertura para que a urina pudesse sair.

Eu passara por uma mutilação que me era mais cara que qualquer marca moral que tivesse restado em mim, depois de tudo o que me acontecera. Eu tinha consciência absoluta de que uma nova vida se iniciava, e como tinha abandonado a casa de minha pobre mãe para ser o prodigioso Joab de Tiro, agora abandonava um pedaço de minha própria carne, como holocausto e rito de passagem para uma nova vida. Uma ligeira febre começou a tomar meu corpo, mas eu, rilhando os dentes, ergui-me e comecei a descer a encosta da montanha, acompanhado por Manassés, que me deteve, com preocupação:

Não era melhor que passássemos o resto do dia aqui, nesta caverna, para que pudesses descansar? Tens certeza de que podes andar, meu irmão Joab?

Eu me virei para ele e proferi, com mais clareza que em qualquer tempo, as primeiras palavras de minha terceira vida:

— Joab está morto, Manassés. A partir de agora, só existe Johaben.

 

História de Johaben

Entramos em Jerusalém nas primeiras horas do dia seguinte, pela porta de David, perto do monte Sião, depois de termos atravessado o Jordão no lugar onde ele se derrama no mar de Arabá, e daí descendo até a aldeia de Beth-l-hem, tentando disfarçar nosso lugar de origem. A descida das montanhas fora árdua, pois a febre que me assomara depois da circuncisão que Manassés primitivamente executara aumentava e abaixava a intervalos de mais ou menos duas horas. Meu pênis, dentro do pano em que eu o enrolara, latejava fortemente, e nas poucas vezes em que parei para urinar, senti que uma grande crosta de sangue seco tinha se formado, unindo o pedaço de pano à pele. A travessia da foz do Jordão também foi difícil, pois a iniciamos a pé, buscando um vau onde pudéssemos passar com segurança, mas logo tivemos de pedir auxílio a um barqueiro que por ali estava. O barqueiro a princípio tentou nos cobrar alguma coisa, mas notando que nossa extrema pobreza não era o maior de nossos problemas, pois eu estava em uma forte crise da febre que me fazia bater os dentes, descobriu no fundo de seu coração um pingo de misericórdia e nos atravessou, aos resmungos.

Cruzamos alguns campos ressecados até encontrar a estrada que liga Beth-1-hem a Jerusalém, e aí nos unimos a uma grande massa de viajantes que vinha do sul para a grande cidade. No meio de todas essas pessoas, peregrinos, comerciantes, nômades, todo tipo de gente, nós éramos apenas mais dois andarilhos sem nenhuma importância. A febre começou a se manifestar a intervalos maiores, e mesmo esgotado como estava podia sentir que meu estado geral ia melhorando lentamente. Mas andar pela estrada poeirenta não era das melhores coisas a se fazer, em meio a veículos de toda espécie, gritos e imprecações de cameleiros e soldados, famílias inteiras que vinham a Jerusalém em busca de trabalho, mercadores dos mais variados artigos, pastores nômades do Moab e do Negueb com seus rebanhos muito sujos, em suma, uma mixórdia bastante representativa da vida naquele território.

Hoje percebo que a febre foi, de certa maneira, uma bênção, pois não me permitiu atentar como devia naquilo em que eu e Manassés estávamos nos transformando. Teríamos de descobrir uma maneira de ganhar nosso sustento, para não passarmos a integrar de maneira definitiva a horda de famintos e desabrigados que começava a inundar a cidade. Quando o sol estava rigorosamente a pino, grande parte dos viajantes parou para descansar, tomar algum alimento e cuidar de sua higiene, pois ao lado da estrada havia um grande bosque de acácias, que apesar de baixas ofereciam sombra e abrigo. Manassés conseguiu deitar-me à sombra de uma dessas pequenas árvores, e deixou-me para ir em busca de algum alimento.

Minha cabeça, nesse momento sem febre, estava leve como uma nuvem, por causa do estado de debilidade em que me encontrava. Não tomávamos nenhum alimento desde o dia anterior, apenas água do rio, e eu me sentia como se flutuasse alguns centímetros acima de mim mesmo. O céu azul sem nuvens era uma placa de esmalte como as de uma jóia egípcia, e quando alguém nas proximidades começou a torrar ao fogo as especiarias para fazer sua comida, o cheiro de cravo, canela e cardamomo me levou de volta à casa de minha mãe em Tiro. Era como se eu estivesse de novo com dez anos de idade, descansando dos meus afazeres de aguadeiro, no período de repouso que começava logo após o almoço. Eu estava tão imerso nas recordações que, por alguns instantes, tornei-me verdadeiramente a criança que fora antes de minha segunda vida no porto de Tiro, esquecendo tudo o que acontecera depois, e enchendo meu coração com a inocência perdida. O novo nome que eu escolhera, como depois vim a perceber, indicava com acurada precisão o verdadeiro estado de meu ser, pois os nomes em hebraico mostram não só de quem se é filho, como também a tribo à qual se pertence. E eu, que de Joab de Tiro passara a ser Johaben, usava agora um nome que significava literalmente Joab filho de ninguém, já que a palavrinha ben, que quer dizer filho, não vinha acompanhada do nome de meu pai, quanto menos da tribo a que eu pertenceria. Eu era exatamente isto: um filho de ninguém, pois meu pai carnal já morto era o causador de minha desgraça nas mãos de meu segundo pai, o monstro a quem terminei por matar, num momento de ódio incontrolável. Manassés retornou e me encontrou chorando de fome, exaustão e tristeza. Com a compaixão natural que demonstrara desde a primeira vez que nos vimos, abraçou-me e acalentou-me, pois eu estava de novo chafurdando no pântano venenoso das boas recordações. Não creio que tivesse sobrevivido a estes momentos se não fosse a figura de Manassés, sempre presente e sempre disposto a me animar:

— Vamos, meu irmão Johaben! Come estes figos e este queijo que consegui para nós! Toma a água, meu irmão! E ouve as boas notícias: já sei para onde vamos, pois é o melhor lugar para que nos ocultemos de nosso passado.

— Manassés, onde está teu manto?

— Para que é que eu preciso de um manto, nesta terra onde nunca chove, e onde existem tantas árvores para nos dar sombra? Para esconder a minha cara? Não é necessário: aqui somos todos judeus, e no meio de meus compatriotas eu desapareço como uma agulha em um palheiro. Tu, não, meu irmão: tu ainda não tens cara de judeu, pois tua barba é muito aparada e bem tratada, ainda. Até que cresça, é melhor que mantenhas a cabeça coberta...

— Manassés, onde está o teu manto?

— Tu o estás comendo. Tranqüiliza-te: o homem que me comprou o manto me pagou em comida e bebida. E no lugar para onde vamos, um manto não tem a menor utilidade. Vamos, meu irmão, come tudo: a minha parte do manto já está aqui, dentro da minha barriga.

Ergui-me, ainda com os figos e os queijos na mão, e abracei meu irmão, que me devolveu o abraço, falando com alegria:

— Quem pergunta sempre encontra resposta. Essa minha negociação do manto por comida trouxe informações muito valiosas, que me deram a inspiração para solucionar nossos problemas de uma vez por todas. Raciocina comigo, meu irmão: dois jovens de Tiro trabalhavam para o maior negociante fenício, tendo negócios inclusive com o rei de Tiro ele mesmo. Esses dois jovens estavam envolvidos na construção do Templo de Jerusalém, tendo sido vistos pela última vez quando traziam uma grande partida de madeira para a dita construção. Desapareceram sem deixar vestígios, após sair em desabalada corrida a cavalo em direção à Fenícia. O amo e senhor desses dois jovens, junto com seu criado de confiança, apareceu morto em sua casa de veraneio, uma cópia de um templo de Atargatis. As opiniões sobre os jovens são controvertidas: estarão vivos ou mortos? É provável que estejam mortos mas e se estiverem vivos, e portanto forem responsáveis pelo assassinato do tio e patrão, por onde andarão? Mal sabem os que perguntam que os dois jovens, na tentativa de se ocultar do castigo, estão em Jerusalém. Se disso soubessem, por certo comentariam: mas logo em Jerusalém, de onde fugiram sem motivo, e onde são conhecidos? Não, deve ser engano, pois eles foram vistos fugindo para longe de Jerusalém! Eu, se fosse eles, nunca me esconderia em Jerusalém! Pois este é o truque: esconder-se onde ninguém pensaria em procurá-los. Mas ainda assim não basta: os dois precisam comer, beber, vestir-se, sobreviver, e para isso terão de trabalhar. Conhecem a escrita, os negócios de importação, o comércio de madeiras. Mas como trabalhar fazendo aquilo que sabem fazer, se tudo o que sabem fazer imediatamente os denunciará? Simples: têm de começar a fazer aquilo que nunca fizeram. E o que é que existe na grande cidade que os dois podem fazer, pois não requer prática nem habilidade, e além de tudo dá aos jovens o esconderijo perfeito, por quanto tempo desejarem?

Eu estava boquiaberto com o fluxo de raciocínio de Manassés, pois nunca tinha ouvido semelhante arrazoado proferido por ele. Meu ar de curiosidade o satisfez, pois continuou, apertando-me o braço vivamente:

— As pedreiras de Salomão!

Confesso que, por alguns instantes, duvidei da sanidade mental de Manassés. Será que ele pretendia que nós, acostumados à fina vida de negociantes da Fenícia, começássemos a quebrar pedras em uma pedreira qualquer? Eu sacudi a cabeça várias vezes, e já ia tentar refutar os argumentos de meu irmão de infortúnio, quando o mesmo me sacudiu, rindo da maneira mais natural:

— Pensa, Johaben! E exatamente por ser trabalho de gente sem valor que as pedreiras nos oferecem o esconderijo perfeito! Tu achas que qualquer um dos que nos conhece será capaz de ir até o lugar onde se quebram pedras? Tu achas que alguém por um momento sequer cogitará de nos procurar em meio ao pó e ao barulho? Pois tu não vês que esse é o lugar perfeito? Pensa comigo: a maioria dos operários será de escravos cananitas, mas existirá também um grande contingente de voluntários hebreus, dispostos a dar seu quinhão de trabalho a Salomão. Eu já me informei e sei que é um trabalho grandemente desclassificado, mas que garante duas refeições fartas por dia. E isto não é tudo: sabes onde ficam as pedreiras de Salomão? Debaixo de Jerusalém! Onde o sol não chega dificilmente chega a curiosidade dos homens. Viveremos em segurança debaixo da superfície, escavando a pedra, enquanto acima de nossas cabeças o mundo gira e se deteriora! Tu não pretendias te esconder? Pois achei-te o lugar certo! Vamos, meu irmão, partamos! Já estão iniciando a seleção de operários para as pedreiras! Chegou a nossa hora! Debaixo da terra teremos tempo e oportunidade para mudar nossas caras e nossa aparência. Viveremos algum tempo em segurança até que tenham se esquecido de nós, e então sairemos daqui em direção a qualquer lugar a que nosso espírito nos guiar!

Por mais que minha alma rejeitasse as coisas de que Manassés falava, minha mente racional as reconhecia como verdadeiras. Assassinos fugitivos, como éramos nesse momento, não tínhamos tantas opções assim. A idéia de viver sob a terra, como o faz a vérmina mais asquerosa, não me causava nada a não ser calafrios. Mas existem momentos na vida em que nada se pode escolher, pois as escolhas já foram feitas à nossa revelia. Com um suspiro de cansaço, ergui-me do chão onde estava sentado e segui Manassés, com seu passo mais célere avançando em direção à porta de David, que já podíamos vislumbrar na distância. O que os passos de Manassés tinham de seguros, confiantes e decididos, os meus tinham de bambos, frouxos, indecisos. Eu literalmente me arrastei atrás de meu companheiro até a cidade de Jerusalém, sentindo-me o mais baixo dos seres humanos. O raciocínio de Manassés era bastante correto, mas eu estava aceitando seus resultados extremamente contrariado. Não era essa a vida que eu esperava ter, e lágrimas quentes de ódio escorriam-me pela face abaixo, enquanto atravessávamos a cidade em direção ao norte das obras, onde ficava a entrada para as escavações das quais sairiam todas as pedras que ergueriam a nova cidade.

A cidade me pareceu ainda mais suja e desorganizada do que à primeira vez que a vira, talvez porque meu estado de espírito fosse ainda mais negativo que antes. Como toda grande metrópole, Jerusalém atraía de tudo: os bons e os não tão bons, misturados em uma grande onda de gritos e maus odores, tomavam cada braça de suas ruas estreitas, numa alaúza desmedida. Eu seguia muito junto a Manassés, às vezes colocando minha mão sobre seu ombro direito, para que nada nos separasse. Deixando a cidadela do rei David à nossa esquerda, cruzamos um labirinto de ruelas e vielas, nas quais becos sem definição maior que o tamanho de uma porta derramavam no fluxo geral uma infinidade de pessoas, cargas, animais e barulho, muito barulho, enquanto seguíamos o caminho de nosso destino, em direção ao norte de Jerusalém. Logo após uma abertura maior nas fundações dos novos muros, à direita da estrada que se dirigia para Damash, um grande ajuntamento se formava em frente a uma grande abertura, como uma boca escura à borda do outeiro, na frente do qual estavam vários sacerdotes e levitas, comandando o processo de escolha dos que deveriam assumir a extração das pedras.

Eu experimentava, pela primeira vez em minha vida, o que era ser apenas mais um no meio da multidão.Tinha sido criado na solidão dos filhos únicos, e muito cedo me fora dado tal papel de destaque que minha sensação sempre fora a de que o mundo que me cercava se movia a meu comando, exclusivamente para me satisfazer. Fora, até três dias antes, como um príncipe protegido dos desacertos do mundo, para quem só existe o verbo mandar. Enquanto me espremia com Manassés, lutando por uma colocação que garantisse nosso ingresso no torpe serviço de quebrador de pedras, tentando romper a grande barreira dos corpos suados e fedorentos para chegar à porta da caverna, só conseguia sentir mais e mais ódio de meu tio, que tudo me dera e tudo me tomara, na realização de sua cruel vingança. Chegava mesmo a pensar se a morte que passara tão próxima a mim não teria sido uma bênção, pois com certeza só morto estaria livre do desespero de ser quem eu não podia ser, porque nunca aprendera a sê-lo. A multidão se movia em ondas concêntricas, espremendo contra a mesa dos levitas os que porventura estivessem à frente, e gritos de exasperação cresciam de tempos em tempos, quando a paciência dos que esperavam por sua oportunidade se esgotava um pouco mais. Os sacerdotes, vestindo roupas rituais, tentavam dar ao acontecimento a importância devida, mas a massa era incontrolável, exigindo imediatamente a satisfação de seus desejos mais prementes, e eu, perdido em meio a todos os outros, sofria em dobro, no físico e na alma, a sensação absoluta de perda que tinha se tornado o normal de minha existência.

De repente um grito mais alto tomou conta da massa incontrolável, que se abriu à força, deixando um largo caminho. Olhando por sobre os ombros dos que estavam à minha frente, pude ver um grande contingente de soldados israelitas, com seus capacetes ornados arrematados por turbantes de pano branco e carregando espadas de lâmina larga, conduzindo à porta das pedreiras de Salomão um grande número de escravos cananitas, que iriam pagar o preço de sua derrota em meio às asperezas das minas subterrâneas. Passavam por nós alquebrados e doentes, famintos e sem forças, sendo engolidos pela escura abertura com o comportamento depressivo de quem já aceitou seu destino, e sumiam um após o outro nas profundezas da terra. Eram verdadeiramente muitos, e enquanto passavam, enchendo o ar à nossa volta com sua transformação de homens em bestas de carga, a massa agora silenciosa foi lentamente minguando. Uma hora depois, quando os escravos ainda passavam à nossa frente, a massa de candidatos ao ofício de quebrador de pedras já tinha se reduzido à metade mais silenciosa. Os curiosos, os oportunistas, os de pouco caráter, os que ainda tinham alguma coisa a perder, foram tocados de alguma forma pela aparência e pelo destino dos cananitas, e decidiram que quebrar pedras, mesmo que fosse para Yahweh, não era um ofício assim tão interessante. Os que restamos à frente dos levitas permanecemos em silêncio, de olhos baixos, no que parecia ser uma razoável atitude de respeito para com os escravos, mas que na realidade era a constatação de que, como eles, tínhamos chegado a um degrau bastante baixo de nossa existência. Quando já podíamos ver o final da longa fila de escravos, um carro de combate puxado por dois cavalos se aproximou de nós, vindo do canteiro de obras principal, e aproveitando o espaço deixado pelos cananitas, chegou até nossa frente. A essa altura, devido ao movimento do povo e das desistências dos pouco dispostos ao trabalho duro das pedreiras, eu e Manassés estávamos na terceira fila, logo atrás dos que ficavam à borda da multidão.

Manassés, subitamente, pôs-se à minha frente, cobrindo minha visão dos ocupantes do carro. Eu tentei mover-me para a direita, mas ele, pressentindo meus movimentos, mexeu-se junto comigo, falando pelo canto da boca, de forma a que apenas eu o ouvisse:

Cobre tua cabeça com o manto, Johaben! Não olha para ninguém!

Eu, naturalmente curioso, tentei saber o que estava se passando mas Manassés empurrou-me para trás, sussurrando:

— É Hiram-Abiff!

Em meu peito se instalou uma faca de aço frio feita de medo, e eu curvei minha cabeça para o chão, enquanto todos olhavam o alto e moreno mestre-de-obras fenício, que graças a mim ocupava agora o mais importante cargo de toda a obra do Templo. Por entre as frestas de meus olhos semicerrados, ocultos pelas dobras de meu manto, vislumbrei sua face de traços marcados e seus olhos tristes, que por sorte nunca se viraram para meu lado. Hiram-Abiff, ainda com seu avental de couro branco à cintura, estava vestindo uma túnica hebraica de pano marrom, e na cabeça não usava mais o casquete de couro à moda egípcia, e sim o chapéu cilíndrico que era de uso comum entre os habitantes de Jerusalém. Meu antigo mestre-de-obras parecia perfeitamente integrado não só à grande estrutura da obra de Salomão, mas principalmente à sociedade hebréia, da qual sua mãe era parte, e à qual com toda certeza ele sempre sonhara pertencer. Ao seu lado estavam dois outros hebreus de aparência primitiva, em tudo uma cópia fiel de Hiram-Abiff, até na maneira como apoiavam os dois polegares na borda do avental, como se fosse um cinto. Entre eles havia alguma coisa a mais que o simples fato de trabalharem na mesma construção: sua atitude geral era a de que partilhavam algum segredo que os tornava melhores que todos nós, os escravos voluntários de seu rei.

Hiram-Abiff subiu à mesa dos levitas para que pudesse ser visto e Duvido por nós, que, não sendo mais a grande massa descontrolada que éramos antes da chegada dos cananitas, ainda perfazíamos um grande número, enchendo com tranqüilidade a esplanada à frente do outeiro.

Os sacerdotes paramentados, vendo o seu poder vulnerado pela presença desse meio-fenício, demonstraram seu desagrado com muxoxos esgares de irritação. Um dos levitas ficou o tempo todo puxando a barra da túnica de Hiram-Abiff, tentando fazer com que ele descesse a mesa, mas o mestre-de-obras pouca atenção lhe deu, enquanto proferia seu discurso:

— Homens: cada um de vós viu o ingresso dos escravos cananitas na caverna onde trabalharão até que não sejam mais necessários. Entrara por esta abertura oitenta mil homens, que por mais que possam parecer ainda não são suficientes para que extraiamos das entranhas da terra toda a pedra de que necessitaremos. Por isso é que vamos precisar de outros homens, dispostos ao trabalho, que desejem colaborar com a obra máxima do rei Salomão. Os que não tiverem receio do trabalho duro devem registrar-se nessa bancada de onde vos falo, para que depois de concluído seu tempo nas pedreiras possam vir a receber a devida recompensa. O rei Salomão precisa de homens que lhe dêem, segundo a lei, um quarto de seu tempo e de seu esforço. Os homens livres que a isto se dispuserem viverão nos alojamentos das pedreiras, onde trabalharão, se alimentarão e descansarão. Como não temos maneira de separar os escravos dos homens livres, serão todos mantidos no território das pedreiras, permanentemente, sem sair de seus limites. Formaremos uma nova sociedade de homens, que trabalhará embaixo da terra quebrando as pedras para a construção da casa do senhor Yahweh. Um de nós gritou, exprimindo a dúvida de todos:

— Mas por que é que não poderemos trabalhar ao ar livre? Por que não poderemos fazer pelo menos parte do trabalho longe das cavernas?

A turba assentiu, e Hiram-Abiff ergueu sua mão direita:

— Porque a casa do senhor deve ser erguida em respeitoso silêncio. Durante sua construção não pode ser ouvido o barulho de nenhuma ferramenta de metal.

Alguns riram, e um hebreu gordo gritou:

— Como é que se constrói com pedra sem fazer barulho? É impossível!

A turba riu alto, e os sacerdotes se irritaram. Um deles ergueu a voz, rispidamente:

— Como podes rir dos desejos de teu deus, animal? Yahweh é tua força, e cada um de seus desígnios deve ser cumprido à risca, sob pena de perdermos sua proteção!

Os levitas concordaram ruidosamente com seus sacerdotes, e durante um instante enfrentaram a turba. Mas Hiram-Abiff, calmamente, ergueu sua mão direita, e imediatamente a massa silenciou para ouvi-lo dizer:

— Da mesma forma que Yahweh traçou os planos do Templo, estabeleceu certas condições para sua execução. As pedras que o formarão terão de ajustar-se com perfeição, para que não seja necessário nem mesmo o uso de qualquer tipo de argamassa. Por isso é que o trabalho que vós executareis é o mais importante de todos. Cada pedra que sair destas cavernas tem de estar perfeitamente aparelhada e nas medidas exatas para que, uma vez ao ar livre, se ajuste perfeitamente às outras pedras, e o Templo se erga em silêncio, perfeição e esplendor.

A turba, incrédula como todas as turbas quando a incredulidade serve a seus desígnios, reagiu com desprezo a esta fala de Hiram-Abiff O mesmo hebreu gordo, cujas faces escorriam o óleo com que sua cabeça tinha sido untada, riu alto:

— Isso é impossível! Não existe ninguém vivo que seja capaz de semelhante façanha. Ninguém sabe aparelhar um pedaço de pedra com esta perfeição!

Hiram-Abiff sorriu, mansamente, como era seu costume, e respondeu diretamente ao hebreu gordo, com a voz alta o suficiente para que todos nós o ouvíssemos:

— Tu te enganas, meu irmão. Muitos de nós conhecemos a maneira de trabalhar a pedra com perfeição, desde o tempo em que éramos escravos dos egípcios, e mesmo antes disso, quando os primeiros homens da terra ergueram a torre que pretendia chegar ao céu. Construir de maneira justa e perfeita não só é possível, como também é a maneira pela qual todos os que nos antecederam ergueram templos para seus deuses.

— Que façam bom proveito de seus deuses pagãos, esses outros! — retorquiu o hebreu, sob os sorrisos de aprovação dos sacerdotes e levitas. — Por que é que nós, o povo escolhido, temos de imitar os egípcios?

Aproveitando o clima de rebelião, um outro sacerdote continuou:

— O rei Salomão deve ter lá suas razões para erguer o templo do jeito que pretende. Por isso é que vai fazer uso dos escravos qanaanitas. Quanto a vós, hebreus livres, se quiserdes dar vossa contribuição ao soerguimento da casa de Deus, assinai os documentos que estão à vossa frente, e sereis tratados como reis, ainda que trabalhando debaixo da terra. Vamos, homens de Jerusalém, dai sentido à vossa vida!

A turba avançou em direção à mesa, mas desta vez eu e Manassés éramos parte dos primeiros, e logo estávamos com nossas barrigas encostadas às tábuas rústicas, sendo empurrados pelos que atrás de nós pretendiam também alistar-se no rol dos trabalhadores das pedreiras. Manassés passou o braço em torno de meus ombros, e ao me ser indagado meu nome, respondeu por mim:

- O meu amigo se chama Johaben.

- Filho de quem? — questionou o sacerdote, e Manassés continuou com a cara lavada de quem fala a mais absoluta verdade:

- Isso eu acho que nem ele mesmo sabe. Tomou uma pancada na cabeça durante nossa viagem para cá e está um pouco desmemoriado. mas é bom trabalhador na pedra, e...

- Pancada? — questionou o sacerdote que nos registrava, vivamente interessado. — Foi alguma briga?

- Pior, meu pai, foram salteadores de estrada que nos atacaram quando vínhamos de Asion-Gaber para cá...

E emendou uma história de caravanas e riquezas perdidas na mão de salteadores de estrada tão complicada que me admirei de que chegasse ao meio recordando-se do que dissera no início. Com isso, entretanto, conseguiu seu objetivo: as atenções se desviaram de mim e, enquanto a história prosseguia, tanto eu quanto ele fomos registrados em tabuinhas de argila, nas quais escreveram nossos nomes em caracteres hebraicos. Quando Manassés já estava registrado, deu um final mirabolante ao que contava e, empurrando-me pelas espáduas, desceu junto comigo a rampa de pedra áspera que penetrava no coração da terra. Nós dois, mais uma vez, enfrentamos a cortina de escuridão que nos separava de um outro mundo, e eu dei os meus primeiros passos no que seriam os piores e os melhores tempos que eu viria a conhecer: minha terceira vida.

 

As pedreiras subterrâneas de Salomão eram uma caverna natural que, à força de vir sendo escavada na rocha pelos incontáveis povos que por ali labutaram, se foi ampliando e aprofundando em si mesma, transformando-se em um grande espaço vazio que agora seria ocupado por quase cento e dez mil homens, entre eles eu. Em determinados lugares, principalmente na entrada e nas laterais, a caverna tinha o teto baixo, mas em seu centro a altura era de mais ou menos trinta braças, formando um salão abobadado que, iluminado pelas incontáveis lamparinas de azeite que se penduravam em cada lugar disponível, era feito de luz difusa e ambarina, dissipando sombras e linhas marcantes, numa espécie de eterno alvorecer. Desse grande salão central espalhavam-se radialmente vários corredores cavados na pedra, que levavam a cavernas menores, em tal número que delas não cheguei a conhecer nem a metade, nos três anos ininterruptos que por lá passei. Cada grande ou pequena obra que necessitasse de pedras acabava criando uma nova sala, que depois de aberta seria ocupada por nós, em uma de nossas atividades, fosse ela a higiene, a alimentação ou qualquer outra coisa ligada ao trabalho da pedra.

A técnica de se usar de forma absolutamente rendosa um grande número de trabalhadores escravos, nascida naquela região entre o Tigre e o Eufrates onde o mundo tivera seu início, fora mais tarde desenvolvida à perfeição pelos egípcios, que dela fizeram uso na construção de seus túmulos e templos. Mas no caso do Templo de Jerusalém havia duas agravantes que poderiam desestruturar a melhor das organizações. Em primeiro lugar estaríamos todos confinados em um lugar fechado que, apesar da temperatura aparentemente amena e da constante renovação de ar, colocava sobre nossas cabeças milhas e milhas cúbicas de pedra viva, transformando o próprio ambiente em uma carga muito pesada, quase insuportável na medida em que o tempo fosse a ela adicionando o peso de nossa permanência. E em segundo lugar não éramos todos homens da mesma qualidade: diferente de outras obras grandiosas de que se tinha notícia, dessa vez existia ao lado dos oitenta mil escravos um contingente inesperado de quase trinta mil homens livres, dedicados a esse trabalho por sua livre e espontânea vontade, e como tal propensos a se achar merecedores de tratamento diferenciado.

Debaixo da terra, no meio da pedra viva, executando cada uma das pequenas e essenciais tarefas de todo o dia, como diferenciar escravos de homens livres, principalmente quando nada existe que os destaque, nem as roupas, nem a língua, nem mesmo a aparência? O pó da pedra a todos iguala, em sua plenitude infinita, e para todos nós esse pó se tornou a roupa sobre a roupa, a pele que cobria todas as peles, entrando por nossos poros, narinas, olhos e ouvidos, colorindo nossos cabelos com o mesmo tom acinzentado, dando a cada um que lá estivesse essa aparência de estátua viva, de múmia egípcia renascida. Por maior que fosse a intimidade de quem quisesse destacar um homem específico entre todos os que estivessem nas pedreiras subterrâneas, a partir de certo momento todos nós éramos um só homem, multiplicado ao infinito pela cor de pedra e pelo lusco-fusco artificial do ambiente, iguais, sempre iguais, torturantemente iguais e indefinidos.

A decisão de Hiram-Abiff a respeito das diferenças entre escravos e homens livres e de como tratá-los foi em tudo e por tudo uma conseqüência natural de sua maneira de pensar, pois acreditava piamente que cada homem deve respeito idêntico a seu Deus e a seu semelhante. Em virtude disso, quando de nossa primeira refeição, na noite de nosso primeiro dia, na praça do acampamento à boca das pedreiras, enfrentou a ira dos sacerdotes e de seus acólitos levitas, que pretendiam alimentar trinta mil hebreus enquanto oitenta mil cananitas aguardavam as sobras, se sobras houvesse. Fazendo uso de toda a sua calma, ponderou com eles da maneira mais branda, tentando fazer com que sua capacidade de raciocínio superasse o preconceito que traziam de berço:

Meus irmãos, não compreendeis então que aqui nas pedreiras cada um de nós é idêntico a todos os outros, e que não existem diferenças entre nenhum de nós? E não percebeis também que o trabalho é igual para todos, e portanto o alimento deve ser repartido também igualmente entre todos?

Os levitas gritavam, tomados por santa ira:

— Não! Um escravo é um escravo! Não pode comer o mesmo que come um homem livre! Os cananitas são a escória do mundo! Quando eram livres nos matavam sem contemplação! Separai-os de nós! Que comam as sobras!

Entre nós muitos homens livres, tomados pela fome que era o principal motivo de seu alistamento nesse trabalho, secundavam esses gritos com mais gritos de concordância, gerando um barulho tal que faria vibrar até mesmo as paredes de pedra. Hiram-Abiff, mesmo assim, mantinha sua serenidade, e esperou que as manifestações chegassem a um fim, quando então retorquiu:

— Meus irmãos, vós vos esquecestes de quando éramos todos escravos do Faraó, e que ele e seus sacerdotes só nos davam restos para comer? Nós, os cananitas, os moabitas, nós todos que habitamos estas terras já fomos iguais na nossa escravidão ao Egito, há tantos anos. Teremos nos tornado assim tão diferentes, que agora tenhamos de agir para com nossos antigos irmãos da mesma forma que o Faraó agiu para conosco? O que é melhor, ser igual a um cananita ou a um Faraó do Egito?

A lembrança desses fatos fundamentais na sociedade dos hebreus calou fundo em todos, calando também suas vozes iradas, e antes que algum levita ou sacerdote erguesse de novo sua palavra a favor da discriminação dos escravos, Hiram-Abiff prosseguiu:

— Tenho ordens de nosso rei Salomão para conseguir o melhor, e sei que para isso não terei de agir da forma cruel com que agiam os Faraós do Egito. O templo que vamos erguer é o templo de Yahweh, o deus verdadeiro, não o túmulo de um simples mortal a quem se concede todo o poder. Aqui nas pedreiras somos todos iguais, e dessa maneira nos trataremos: comeremos o mesmo pão e o mesmo azeite, beberemos da mesma água e do mesmo vinho, trabalharemos a pedra viva da terra para que com ela se possa erguer o templo vivo do Criador dos mundos. Soldados!

Os soldados destacados para o serviço das pedreiras, seguindo ordens expressas de Salomão, deviam obediência absoluta a Hiram-Abiff, por mais que os sacerdotes e os levitas à nossa volta tentassem insuflar em nossas almas o preconceito e o erro, deram passagem aos cozinheiros que se aproximaram por entre as cabanas de madeira carregando grandes bandejas de pão recém-assado coberto de gergelim, cujo cheiro afastou de todas as cabeças qualquer outro pensamento que não fosse o de tomar o alimento e comer. Durante algum tempo, irmanados pelos movimentos comuns de satisfação das necessidades físicas, fomos pela primeira vez uma massa organizada e absolutamente disciplinada. Hiram-Abiff, em sua sensibilidade ímpar, tinha percebido que o alimento era nesse momento a primeira de todas as preocupações, e não exigira nem mesmo que nós nos abluíssemos ritualmente antes de nos dessedentarmos. Os pães passaram de mão em mão embebidos em oloroso óleo de olivas: azeitonas, laranjas e figos frescos espalharam suas cores e perfumes, e à medida que o jantar prosseguia, uma sensação de cansaço e silêncio ia gradativamente tomando conta dos corpos cada vez mais saciados. Sorrisos e olhares de satisfação se entrecruzavam, e todos nós, de forma regular, fomos nos erguendo para assumir nossos lugares de descanso, em alguma das cabanas à nossa disposição.

Creio que, de todos os cento e dez mil homens que lá se encontravam, eu fosse o único a quem nada disso interessou. O escuro e conturbado mundo de sofrimento, perdas e vingança em que eu estava vivendo era mais forte do que minha vontade ou meus desejos. Comi um pouco de pão e um figo, e levantei-me à procura de um lugar discreto o suficiente para que eu pudesse satisfazer minhas necessidades de higiene sem chamar a atenção de ninguém. Meu pênis já não doía, mas latejava demais, e como eu sabia que a manhã seguinte se iniciaria com um banho na grande cisterna alimentada pelas nascentes subterrâneas de que a grande caverna era pródiga, pretendia examinar minha circuncisão para que, caso ainda não estivesse em condições de enfrentar a nudez coletiva, encontrasse uma solução que não chamasse a atenção de ninguém para o meu estado. É verdade que dentro da pedreira subterrânea éramos todos iguais, mas nem por isso os guardas hebreus, fortemente armados, deixavam de nos vigiar com todo o cuidado, para que por um descuido seu não viesse a escapar da sentença um cananita sequer.

Com a cabeça baixa, e oculta pelo manto, dirigi-me ao ponto onde a mina de pedra continuava descendo para as profundezas, sentindo, em minha alma, que também descia para essa terra dos mortos onde apodrecem todos os nossos sonhos de juventude, nossos desejos e vontades, nossas conquistas e vitórias, igualadas pela decomposição e transformadas no que sempre tinham sido: nada. Por uma condição natural, a grande e escura caverna que nos serviria de latrina era lavada constantemente por uma corrente de água gelada, que descia através de gargantas de pedra para algum lugar mais profundo ainda, aonde nenhum de nós tentava chegar, pela dificuldade e pela ausência de luz. Acocorei-me de costas para a porta e, erguendo minha túnica, examinei a atadura rústica que envolvia meu pênis. Estava seca, e não exalava nenhum cheiro que não fosse o de urina, que certamente se tinha acumulado no pano de cada vez que me livrara dela. Desatei o nó com cuidado, desenrolando o pano preso por uma crosta de sangue seco, e fui lentamente puxando por ele, testando os limites de resistência, com extremo medo da dor que poderia vir a sentir. Em dado momento o pano parou de desenrolar-se, e eu hesitei: sabia que qualquer movimento além desse ponto me causaria uma dor infinita, que me faria gritar e atrairia, por certo, a atenção dos guardas. A pouca iluminação me fazia tatear meu próprio corpo, e qualquer decisão que eu tomasse teria de ser baseada exclusivamente em minha sensibilidade. Mas era uma decisão fácil, perto da que me levara a pedir que Manassés me mutilasse a frio naquela caverna dos montes. Eu precisava assumir, na manhã seguinte, minha existência como o hebreu Johaben, e me esvanecer da melhor forma possível entre cento e dez mil operários das pedreiras, nenhum deles com razões como as minhas para lá estar. Por mais que minha face estivesse séria e composta, dentro de mim uma voz desesperada gritava e chorava a morte do que eu fora, debatendo-se cada vez mais e mais forte. Minha mão direita se paralisou na iminência de desenrolar a última volta da atadura, e enquanto eu naufragava no mar encapelado de mim mesmo, toda a minha vida se desenrolou ante meus olhos. Cada imagem da bem-aventurança passada que se sucedia em minha mente me mostrava, como única certeza, que eu estava recebendo o mais injusto dos castigos, para o qual não havia perdão, e que não existiam no Universo nem justiça, nem misericórdia, nem mesmo um deus que fosse misericordioso ou justo. Eu estava só em mim mesmo, enterrado no mais fundo de minha sepultura pessoal, de onde não sairia nunca. Consciente de meu nulo valor, desejando uma prova definitiva de que eu ainda estava vivo, puxei a atadura com toda a força, descolando-a de uma vez da pele de meu pênis. O grito de dor que escapou de minha boca se transformou, no meio do caminho, em um soluço de alívio, pois a dor não viera. A pele na borda de meu prepúcio cortado estava lisa e suave, e eu senti pelo cheiro e pelo tato que algumas gotículas de sangue porejavam para a superfície, mas nada aconteceu de pior que isso: a dor não veio e eu pude, pela primeira vez em tantos dias, chorar apenas de alívio. Após alguns instantes subi a trilha de pedra, voltando para o acampamento ao ar livre, encontrando pelo caminho muitos que, como eu, tinham vindo aliviar sua bexiga e seus intestinos. A luz da lua e das estrelas era tudo o que iluminava o grande acampamento cercado, e no mesmo lugar onde havia comido o jantar logo enxerguei Manassés, que, fazendo uso de sua altura, me procurava por todos os lados. Cheguei até ele e o abracei, num agradecimento mudo, e logo fomos os dois procurar um canto em uma das cabanas-dormitório. Grandes barracões de madeira tinham sido erguidos junto aos contrafortes do monte, onde, aproveitando cada pequeno desvão como espaço a ser usado, e sobre degraus de tábuas, se espalhavam colchões de crina e grãos, sobre os quais deveríamos dormir. Eu me deitei sobre um deles e imediatamente caí num abençoado sono sem sonhos de nenhuma espécie: apenas uma redonda e aconchegante escuridão me tomou de dentro para fora e me envolveu sem hesitação.

As trombetas das sentinelas nos acordaram a todos muito cedo na manhã seguinte, e todos nós descemos de nossos leitos nos andaimes com a rapidez dos que conhecem o seu dever. O que nos levava a isso, na verdade, era apenas a necessidade física, e logo os caminhos que desciam até a caverna das latrinas se encompridaram. A princípio os escravos se mantinham isolados dos outros, mas com o correr do tempo esta separação se tornou impossível de manter: nós nos misturamos uns aos outros da forma mais natural possível, e quando saímos das latrinas em direção aos lavatórios a mistura se tornou ainda maior. As cascatas subterrâneas de água fresca que corriam pela seção leste das cavernas faziam dela uma sala de banhos perfeita, e a água servida não só enchia uma grande bacia natural de pedra, que era usada como piscina comunitária, mas também percorria em cortina uma platibanda de pedra afiada, formando uma cachoeira estreita, indo depois aumentar o fluxo da corrente de águas servidas que penetrava nas profundezas da terra. Estávamos todos nus, lavando nossos corpos cansados e suados na piscina e na cascata, sob o olhar atento dos guardas. Foi nessa hora que eu pude me felicitar pela minha sabedoria em me transformar em hebreu: por todo lugar que se olhasse, não se via nenhum pênis que não estivesse circuncidado. Lavando-me, pude perceber que mesmo sem conhecimento de causa, Manassés tinha feito um bom trabalho. Não havia nenhum sinal de que a minha circuncisão tivesse sido feita apenas dois dias antes, e na aparência eu era igual a todos os outros.

Só na aparência. Em minha alma o amargor purgava lentamente, envenenando cada um de meus momentos de vida, e eu não cessava de me questionar em silêncio. Eu não sabia verdadeiramente o que é que estava fazendo ali, não reconhecia em nenhuma daquelas pessoas que me cercavam alguém com quem pudesse me relacionar, e odiava com todas as minhas forças a azáfama da retirada das pedras de sua matriz. O cheiro de gente, de poeira, a simples visão das pedras que me cercavam por todos os lados eram suficientes para me dar engulhos, e eu quase gritei quando fomos carreados até uma sala mais longínqua, onde nos ensinaram a quebrar a pedra viva das paredes. Nossas ferramentas de ferro abriam pequenas fendas na direção do veio natural de formação da pedreira, nas quais colocávamos pequenas cunhas de madeira, que eram molhadas para que inchassem e, por sua lenta expansão, começassem a rachar os grandes blocos de pedra, separando-os de onde estavam. Era um trabalho sujo e estafante, feito de grandes períodos de força e períodos maiores ainda de espera, enquanto as cunhas inchavam e venciam com sua persistência a dureza estratificada da pedra viva. Após a colocação das cunhas nós nos sentávamos e esperávamos pela natureza, uma, duas, três horas, até que de repente um estalo surdo anunciava que um grande trecho da rocha estava rachando. Nós nos aproximávamos da fenda mais larga que tínhamos produzido e a forçávamos com nossas alavancas, alargando-a mais ainda, por vezes enchendo-a de cunhas ainda maiores que, encharcadas de água, repetiam o serviço de suas irmãs menores. Na maioria das vezes o bloco de pedra precisava de quase um dia para separar-se da parede, e depois tinha de ser quebrado em pedaços menores, para que os carregadores, na sua maioria escravos cananitas, os pudessem levar a outra parte das pedreiras, onde seriam trabalhados por outros de nós.

Eu odiava aquilo, porque não sabia trabalhar junto com ninguém. Minha vida sempre fora feita de trabalhos solitários, seja quando era Joab, o aguadeiro de minha pobre mãezinha, seja quando era Joab, o prodígio de Tiro. Nunca aprendera a fazer nada junto com outra pessoa: carreguei água sozinho, depois escrevi sozinho, calculei sozinho, decidi sozinho, mandei sozinho e fui rei de meu pequeno império completamente sozinho. Quem estava a meu lado ou era meu subordinado ou então meu competidor nos negócios, e a qualquer um deles eu sempre me senti superior, pois o maldito Jubal me dera todo o treinamento para isso. Eu odiava ser desimportante, agora que era igual a tantos outros como eu. Viciado em destacar-me, nunca soube entender quando se dizia, como fazia Hiram-Abiff, que ali éramos todos iguais. Eu não era igual a ninguém, eu não queria ser igual, eu não sabia ser igual. E achava insuportável ter de viver em meio a tanta gente sem valor, quando dentro de mim eu só conseguia reconhecer uma verdade: eu era infinitamente superior a qualquer um deles. Por isso me era tão difícil o trabalho conjunto, forçando as alavancas na mesma direção, mantendo a força constante até que os outros tivessem terminado a colocação das cunhas, ou então a atenção redobrada até que o estalo indicativo da separação se ouvisse, e nos fizesse pular a todos como um só, às vezes na direção do bloco de pedra, às vezes para longe dele, quando se separava com fragor de sua rocha-mãe, caindo com estrondo a nossos pés. Percebo hoje que a mágoa que me cobria a alma e o espírito fora construída durante alguns anos pela negra vontade de meu tio Jubal, que do menino que um dia eu fora erguera o templo de egoísmo e orgulho que sempre desejara erguer, pois apenas isto conhecia e considerava valioso. Eu, que nunca soubera sequer da existência de outra coisa, só podia ser assim, e sentia vergonha extrema de estar em meio aos trabalhadores braçais, lado a lado com eles, escalavrando mãos e joelhos para tentar retirar inúteis pedaços de pedra de onde eles tinham nascido. Isso não era a minha função: eu fazia parte dos que usufruem as construções magníficas, não daqueles que as erguem, e isso me feria profundamente. Mas não me restava outra alternativa, e eu segui durante meses a fio a minha rotina diária: banho pela manhã, trabalho pesado até o meio-dia, quando parávamos todos para a primeira refeição, mais trabalho pesado até o entardecer, a segunda refeição do dia ao ar livre do entardecer e depois o descanso nas cabanas, que para os outros era certamente o sono reparador, mas que para mim era apenas o momento ominoso em que ficava forçosamente a sós comigo mesmo. Minha alma insatisfeita se debatia na prisão de meu corpo, desejando sair dali, fugir, retornar a algum momento de felicidade anterior ao transe em que estava vivendo, e eu rolava em meu colchão até desmaiar de cansaço, sem enxergar sequer uma luz pela qual pudesse me guiar no caminho de trevas em que me encontrava.

O pequeno grupo em que eu estava alistado trabalhava sob a supervisão de um hebreu por nome Nehemias, que usava o mesmo avental de Hiram-Abiff e tinha, como ele, o mesmo ar de tranqüilidade e decisão. Era Nehemias que marcava com cal branca o veio principal da rocha, delimitando com precisão a fenda que alargaríamos com nossas alavancas, e depois com as cunhas Essa marcação era responsável por cada grande bloco de pedra que extraíamos, e eu não conseguia compreender por meio de que artes divinatórias ele conseguia enxergar em uma parede de pedra sem falhas a linha pela qual ela se partiria. A cada dia que passava crescia dentro de mim a irritação com esse poder inexplicável, que dava a Nehemias uma importância que eu próprio desejava ter. Cada vez que Nehemias se aproximava da rocha, eu me colocava atrás dele, olhando na mesma direção, tentando com desespero enxergar as linhas invisíveis que só ele parecia ver. Ele observava a pedra com atenção, e subitamente se aproximava dela com uma cuia de cal, da qual tirava um cabo de madeira com uma bola de pano na ponta, encharcado de cal, e marcava uma linha que apenas ele enxergava na rocha, pela qual todos nos guiaríamos para criar as fendas onde colocaríamos as cunhas. Eu nada percebia, e minha irritação e mau humor cresciam a cada dia, levando-me a um ponto de exaustão que nem mesmo Manassés conseguia entender. Isso tudo, aliado ao fato de que eu me mantinha calado a maior parte do tempo, para dar veracidade à história fantasiosa que Manassés tinha contado durante nosso alistamento, ampliava meu estado nervoso a um ponto tal que eu sentia como se meus ossos tremessem continuamente dentro de minha carne, sentindo dores no corpo inteiro. E o mutismo a que eu me obrigara por necessidade acabou se tornando o meu estado natural e corriqueiro. Imagino como devia ser ridícula a minha figura: a barba desordenada

crescendo como podia em meu rosto enevoado, e meio oculto pelo manto que eu nunca afastava de minha cabeça, as mãos e as pernas permanentemente arranhadas e cortadas pelo trabalho da pedra, os pés cobertos de calosidades causadas pelo uso das sandálias tão velhas. Para meu disfarce contribuía o fato de que todos nós usávamos a boca e o nariz tampados com pano fino, para impedir que o excesso de pó de pedra entrasse por nossas narinas adentro, e eu raramente tirava este pano da boca, levantando-o apenas quando queria beber água ou me alimentar.

O dia de descanso dos hebreus era respeitado por todos, que aproveitavam suas vinte e quatro horas para orar para seu deus ou mesmo cuidar de seus afazeres pessoais da forma mais discreta possível. Nesses momentos éramos vigiados com mais atenção ainda pelos soldados, não fosse um dos escravos cananitas aproveitar um descuido criado pela devoção para escapar de seu castigo determinado. Os soldados detestavam esses momentos, pois sendo a maioria deles tão religiosa quanto os sacerdotes e os levitas que circulavam à nossa volta, se ressentiam por estar trabalhando no dia sagrado de descanso, mesmo tendo para isso permissão expressa de seu rei e de seus sacerdotes. Isso criava entre os soldados e nós uma certa animosidade, que Manassés, com sua praticidade tão especial, conseguiu resolver quando nosso grupo era pela décima vez consecutiva vigiado com extrema atenção por dois soldados:

— Irmãos hebreus, aproximai-vos: vinde conosco passar o tempo em oração a nosso deus Yahweh. Já está começando o Shabbath, e nós, que estamos longe de nossas casas, devemos nos unir, como uma vez fizemos no Egito do Faraó.

— Então sois todos hebreus, neste grupo? — retrucou o soldado, ainda desconfiado.

— Todos os cinqüenta, irmão soldado. E estamos começando nossas orações. Quereis acompanhar-nos?

— Não podemos. Temos de continuar vos vigiando.

— Isso é um contra-senso, irmão soldado. Somos todos hebreus, e estamos todos em pleno Shabbath. Por que deveriam nossos dois irmãos nos vigiar, se somos todos iguais?

A volta sem motivo dessa noção de igualdade entre todos, que me parecia cada vez mais e mais espúria, na medida em que feria meu orgulho, fez com que eu me levantasse de repente e me afastasse do grupo. Ainda ouvi o soldado, indeciso, comentar:

— E este? Não é hebreu como nós?

— Sim, é hebreu. Mas, coitado, foi ferido no caminho para cá, pelos salteadores, que lhe roubaram tudo, inclusive a capacidade de falar Afastei-me com rapidez, pois não suportava mais ouvir aquela que me parecia ser a menos misericordiosa de todas as mentiras. E no entanto, quão verdadeira ela se mostrava, pois eu tinha sido aliviado de tudo o que um dia possuíra, pelos salteadores que atacaram a minha própria vida. Abandonando o acampamento, desci a trilha de pedra caverna adentro e embrenhei-me pelos corredores desertos das pedreiras, acabando por chegar à sala onde meu grupo trabalhava, e na qual o dia seguinte veria nossa atividade frenética. Sentei-me absolutamente só no chão, com as costas apoiadas na parede, abraçando os joelhos, e fixei meu olhar na rocha viva à minha frente.Tentei mais uma vez, apertando as têmporas com as mãos, enxergar as linhas da rocha que somente Nehemias parecia ver, mas nada aconteceu. Eu era absolutamente cego para o que realmente importava, e tomado por um ódio incontrolável, comecei a chutar e a socar a pedra à minha frente, enquanto as ondas de ódio mortal subiam pelo meu peito acima, e eu urrava como fera selvagem, destruindo meus dedos e pés na agressão à pedra. O sangue começou a manchar a rocha, e depois de um tempo interminável a dor e os ferimentos venceram meu ódio, e eu caí para trás, urrando menos pela dor do que por estar completamente destruído. Eu tinha finalmente chegado ao fundo de mim mesmo, e não sabia mais quem era, de onde vinha, nem para onde estava indo. O Joab criança que eu fora se transformara no Joab que meu tio construíra, e pelos mais torpes motivos este Joab se transformara no Johaben que eu agora tentava ser, mas não conseguia, pois não tinha mais forças para nada. Por mais que eu recusasse, por mais que aquele que eu fora gritasse dentro de mim que eu merecia mais, que eu era especial, que eu era diferente, que eu era melhor que todos, que eu devia ocupar uma posição superior, a verdade mais verdadeira me cobriu com seu manto de absoluta transparência, limpando de minhas vistas as tinturas e névoas que até esse dia me impediam de verdadeiramente enxergar, e eu finalmente compreendi que não havia, nunca tinha havido nem nunca haveria nenhuma diferença entre mim e a pedra. Eu não tinha mais porque lutar: meu sangue sobre a pedra já estava acinzentado como ela, e eu mesmo, como podia ver pelas feridas que os golpes na rocha tinham me causado, ia lentamente tomando a cor e o aspecto da rocha em que estava encostado. O mundo à minha volta era A pedra, eu era de pedra, o ar que me cercava ia lentamente se transformando em pedra, penetrando meus pulmões com sua infinita platitude. Eu não era nada além da pedra, e com um suspiro me deixei escorregar para dentro dela, buscando a paz da integração final com o que nunca soubera, mas que sempre fora e finalmente aceitava ser: um pedaço de pedra cinzenta, sem nome nem destaque, nem marcas, nem segredos. Um frio intenso explodiu dentro de meu coração e eu caí ao chão, aceitando pacificamente a minha morte definitiva. Desisti de viver e me entreguei.

Por algum motivo, no entanto, a morte passou por sobre mim e me deixou, inerme, caído ao chão da caverna. Alguma coisa dentro de mim pulsava com regularidade, e eu acabei percebendo que era o meu coração, batendo em meu peito, marcando cada momento seguinte de minha vida. Meu coração não tinha se enrijecido como pedra. Uma enorme sensação de alívio se instalou em mim, como que me dizendo que a provação pela qual eu vinha passando já se acabara. Deixei que o ar entrasse em meus pulmões, e me permiti sentir a mim mesmo: eu estava limpo, eu me sentia limpo, pois morrera e fora ao meu próprio fundo buscar-me. De algum lugar lá embaixo, na escuridão do meu íntimo, onde eu nem mesmo desconfiava que existisse alguma coisa, eu conseguira roubar o sopro necessário para reiniciar minha existência. Eu agora podia existir, pois o jugo que meu passado tinha algemado à minha vida havia finalmente sido quebrado. Não havia mais nada que me prendesse a nada: tudo se apagava como que por encanto, e os fantasmas e desgraças de meus dias passados tomavam finalmente seu tamanho verdadeiro, um tamanho infinitamente pequeno. Em mim, no fundo de mim, estava a força de que eu precisava para quebrar essas cadeias. Compreendi, então, que ao aceitar o meu próprio fim e abandonar pela exaustão o leme de minha vida, ele tinha sido tomado por alguma força superior que sempre estivera dentro de mim, mesmo quando eu não sabia disso. Essa força é que me arrancava a cada momento mais uma respiração, mais uma batida de coração, essa força é que me sustentou quando a carga se mostrou quase excessiva, mas que também nunca permitiu que a ela se adicionasse a pluma que me quebraria a espinha. E em minha mente renascida surgiu com todos os detalhes, como se eu lá estivesse, o grande céu estrelado que nos cobria, e eu via em cada uma dessas estrelas a mesma força que pulsava dentro de mim, renovando meu compromisso com a vida. Por quanto tempo eu andara enganado, ora achando que o Universo tinha sido criado para tudo me conceder, ora sofrendo porque o Universo tinha se transformado em um plano sinistro contra mim... Nada disso: o Universo nunca tinha sido nem meu serviçal nem meu inimigo: nada me devia e nada me cobrava. A força que o iluminava era a mesma que fazia com que eu me movesse, e quanto mais eu me movesse em consonância com ele, mais perfeito seria o nosso movimento em comum. Abri meus olhos, molhados por meu primeiro pranto de alívio verdadeiro, e uma grande onda de alguma coisa que eu só posso chamar de amor cresceu dentro de mim, porque a caverna em que eu me encontrava, inesperada e maravilhosamente iluminada por uma estranha luz dourada, pulsava no mesmo ritmo do meu coração e, sem perder a cor cinzenta que era a sua natureza, ia ficando mais e mais transparente. Eu podia enxergar dentro das paredes de pedra as veias pelas quais corria a seiva viva da rocha, vinda de todos os cantos do mundo, numa fabulosa exibição de vida para todo o sempre. Nesse momento inesquecível entre tantos outros que eu vivera e ainda viveria, eu tive então a certeza plena de que a pedra e eu éramos uma coisa só.

 

Não sei quanto tempo fiquei estirado no chão da caverna olhando o espetáculo incomparável da vida circulando dentro da pedra, no mesmo ritmo de meu coração, enquanto uma paz acolhedora me envolvia, enchendo de alegria o que até esse dia fora apenas vazio. Sei apenas que depois de algum tempo a luz dourada foi se esmaecendo, enquanto a parede de pedra à minha frente ia deixando de ser transparente. Ergui-me e toquei a pedra com as minhas mãos, cujos nós esfolados sangravam: mesmo estando de volta a seu estado de sempre, eu ainda podia sentir que pulsávamos em sintonia e que esse entendimento entre a pedra e mim nunca mais se perderia. A minha mente acorreu, por motivos óbvios, o momento em que eu conseguira ler a palavra even em caracteres egípcios. Nesse dia eu também aprendera algo de que nunca mais esqueceria, porque uma vez alcançado não Podia mais ser perdido. Eu não intuíra, na ocasião, que a palavra que significava pedra em três línguas diversas era o ponto focal para o qual a minha vida tinha acabado por se dirigir. Naquele dia eu poderia ter ido o prenuncio do que estava por me acontecer, mas minha imaturidade não permitira que eu lesse o que estava escrito por trás do que estava escrito. Uma pedra não é apenas a coisa palpável de que nosso mundo é feito: é mais, muito mais, e no instante em que a tocava e percebia nossa identidade mútua eu podia sentir que nesse relacionamento havia uma infinidade de significados que eu ainda estava por descobrir.

Saí da caverna e, com o passo alegremente acelerado dos dias de minha juventude, subi os corredores, saindo para o exterior em direção ao lugar onde meus companheiros mais chegados cumpriam seu dever de devoção para com seu deus. Minha chegada intempestiva, movida a alegria e excitação, interrompeu o fluxo de orações a que estavam dedicados, aí incluídos os dois soldados que se tinham integrado ao grupo da forma mais natural, e que ao me ver aproximar-me correndo, ergueram-se em posição de defesa, retomando a função para a qual tinham sido treinados. Manassés, ao me reconhecer, os acalmou:

— Calma, irmãos soldados! É nosso irmão Johaben, que saiu daqui há pouco tempo! Mas... Johaben, meu irmão, o que houve com tuas mãos? Como te feriste assim?

Eu não devia ser uma figura das mais tranqüilizadoras, com meus cabelos desgrenhados, o manto pendurado e esvoaçando às minhas costas, minha túnica, como mais tarde vim a perceber, respingada de meu próprio sangue, que também manchava vivamente minhas mãos e pés, e principalmente o meu olhar esgazeado. Manassés, verdadeiramente preocupado comigo, veio até mim, exatamente a tempo de me amparar, quando meus joelhos se dobraram e eu caí para a frente. Os outros companheiros, entre eles Nehemias, avançaram em minha direção, enquanto todos os meses de mutismo compulsório se rompiam, e de dentro de mim saía um arrazoado quase sem sentido, em que eu tentei explicar que a pedra me libertara, e que tinha morrido e renascido, e que a pedra tinha ficado transparente e que eu vira a seiva da vida correndo em suas veias. Ninguém entendeu uma palavra sequer do que eu dizia: a rapidez com que eu falei e a tentativa de tudo dizer ao mesmo tempo fizeram com que meu discurso fosse totalmente incompreensível, a tal ponto que só restou a meus ouvintes começar a rir. Os risos cresceram e nos contagiaram a todos, inclusive a mim, que experimentava uma alegria genuína por estar livre da carga apodrecida que me vinha envenenando a existência. Meu irmão Manassés, mesmo sem compreender o que me tinha acontecido, regozijou-se por minha alegria, e me abraçou, exortando os outros a que me abraçassem também. Ficamos todos unidos, formando um grande corpo único, feito de gente e de alegria comum. Manassés disse:

— Nosso irmão está de volta! Foi curado de seus males em pleno Shabbath] Grande é o poder de Yahweh!

Quando a primeira grande onda de emoção se assentou entre nós, os membros do grupo retomaram suas orações, agradecendo a Yahweh por minha cura. Manassés se afastou para um lado da cabana em minha companhia, e sussurrando, me alertou:

- Por Yahweh, Johaben, cuidado com o que falas! Agora que tua língua se destravou, como os outros pensam, todo o cuidado é pouco. Seria melhor que tivesses continuado mudo e desmemoriado, mas já que falastes, continua fingindo que estás desmemoriado, para nossa segurança.

— Manasses! — eu disse, ainda muito emocionado. — Só tu poderás acreditar no que me aconteceu, porque tu sabes que eu nem estou fora de mim nem te mentiria. Mas eu morri, e renasci, e a pedra me mostrou a sua verdade!

— O que é que me dizes, meu irmão Johaben? Creio que alguma coisa muito séria te aconteceu, pois estás flagrantemente mudado, mas não consigo te entender. Dizes que a pedra te mostrou a sua verdade? Como assim? Que outra verdade pode ter uma pedra para mostrar senão sua dureza?

Eu contei a Manassés a minha experiência na caverna, mas as palavras, em sua fragilidade, pouco informaram sobre a transformação pela qual eu tinha passado. Eu mesmo, com o correr do tempo, já estava enfrentando uma certa dificuldade para me recordar de todos os detalhes do que ocorrera, e só com grande esforço de minha parte pude chegar ao fim de minha narrativa. Como um sonho do qual acordamos, e que vai se esvanecendo gradativamente, assim foi com o que me acontecera. Os detalhes se perderam dentro de mim, e só me restou a emoção verdadeira que eu tinha experimentado, junto com a visão maravilhosa da pedra translúcida exibindo a seiva de sua vida. Manassés me olhava com um sorriso sem graça no rosto, pois eu não conseguira lhe transmitir quase nada do que me ocorrera. Finalmente desisti e voltei com ele para a sala onde estavam todos os outros, que nos receberam com o ar sério de quem está cumprindo suas obrigações para com seu deus, e não pretende deixar de fazê-lo nem mesmo se esse deus aparecer em carne e osso à sua frente. Depois de muito tempo eu sentia fome verdadeira, apetite real por comida, mas infelizmente só poderíamos nos alimentar quando o sol estivesse no zênite, e os farneleiros entrassem na caverna com suas bandejas de pão, seus jarros de azeite, suas cestas de frutas, seus potes cheios até a borda de queijo de cabra e azeitonas, e de quando em quando um peixe salgado. Eu, que ultimamente sentia engulhos por todo e qualquer tipo de alimento, principalmente o peixe salgado de que me lembrava muito bem quando de minha viagem por mar, estava tomado por um apetite avassalador, e não me restou nada a fazer senão encolher-me debaixo de meu manto e adormecer, enquanto os meus companheiros rezavam suas orações continuadamente, me embalando com o monótono e repetitivo som de suas vozes.

Na manhã seguinte acordei antes dos outros, com uma fome dez vezes maior. Meu corpo tremia de excitação, ansiando por um pouco de movimento que me fizesse sentir claramente que estava vivo. Desci para as cavernas e, enquanto perambulava pelos corredores, acabei encontrando um dos soldados que também andava na mesma direção, e que me saudou:

— É o irmão que falou com a pedra! Como estão tuas mãos, ainda doem muito?

Olhei para os nós dos meus dedos, cobertos por uma grande crosta de sangue seco, e os acontecimentos da noite passada voltaram a mim como num relâmpago. Eu mal conseguia dobrar os dedos, que estavam inchados pelos golpes que eu dera na pedra. Não havia muita dor, só quando eu tentava mover os dedos: por isso me seria muito difícil nesse dia de trabalho usar as alavancas e as marretas. O soldado viu meu aborrecimento, pois mais do que tudo eu desejava gastar toda a minha energia física no trabalho pesado, e não tinha condições para isso. Colocando de lado sua espada e escudo, ele enfiou a mão numa bolsa de pano que trazia a tiracolo, por debaixo de sua couraça, e dela tirou duas romãs, que imediatamente passou a dividir comigo, com extrema naturalidade. O suco das romãs imediatamente começou a tingir nossos rostos e dedos com sua cor brilhante, e nós nos sentíamos como crianças que estivessem se apossando das mais belas jóias da natureza. O soldado se chamava Adonias, e era tão jovem quanto Manassés e eu, apesar de ter quase o dobro de nossa altura e outro tanto de envergadura. Vinha de Jericó, e sua compleição de gigante o levara quase que automaticamente à profissão de soldado: mas era uma alma sensível, como pude depreender pelas suas observações sobre a romã:

— Vês, Johaben, a romã? A verdadeira romã é a soma de cada um desses pequenos bagos cor de rubi, que se juntam, formando a romã de dentro para fora. Se não fosse assim, não sobreviveriam, pois são muito frágeis. A casca grossa existe apenas para proteger os frutos. Assim somos nós, o povo hebreu: sozinhos, somos muito frágeis. Mas juntos, protegidos pela majestade de Yahweh, somos indestrutíveis!

— Se tu assim o dizes, Adonias... mas na verdade basta que apareçam dois famintos como nós para que as romãs se partam e deixem cair cada um de seus bagos!

- Assim será com Israel, se romper a casca de proteção que mantém unidos os frutos. À nossa volta estão outros deuses, famintos pelo poder de que Yahweh dispõe, e ávidos por romper sua proteção e se apossar de cada um dos filhos de Israel.

Esse assunto de deuses famintos era ainda muito incômodo para mim, e a imagem grotesca da sangrenta Atargatis voltou à minha mente com todos os detalhes. Tentando afastar a sensação má, perguntei:

— Mas como pode ser isso?

— Yahweh depende do povo hebreu tanto quanto o povo hebreu depende Dele. Somos uma romã que não se pode nem se deve desmanchar. Por isso é que Yahweh ordenou que se erguesse um templo onde ele venha a morar, exatamente aqui, no centro do mundo, lugar onde Yahweh iniciou a criação do Universo. E os outros deuses, invejosos de seu poder, sabendo que lhes será impossível ter o poder de que Yahweh é possuidor, circulam à volta de Jerusalém, tentando encontrar uma brecha pela qual consigam ferir e diminuir esse poder.

Adonias era uma figura muito interessante. Comemos as duas romãs enquanto ele comentava, com sua estranha linguagem poética, um pouco da vida e da história do povo hebreu, de quem eu sabia muito pouco. As romãs se foram e eu continuei ouvindo Adonias, cujas palavras pareciam carregar dentro de si um significado maior do que aquele que era aparente à primeira vista. Ele também me questionou sobre minha vida passada e eu, sem nenhuma noção do que lhe dizer, segui os conselhos de Manassés e insisti em minha perda de memória. Pela primeira vez me entristeci com o artifício de que estava fazendo uso: apagar meu passado sem colocar em seu lugar alguma outra coisa fazia com que eu me sentisse completamente desligado de mim mesmo, ou do mundo em que vivia. Era como se eu estivesse tomando de Adonias aquilo que ele era, sem nada lhe dar em troca, pois nada tinha para trocar. A verdade não poderia ser dita, e a mentira me era uma impossibilidade: eu era um pedaço de homem, nascido no momento em que me auto-batizara Johaben, sem nenhuma história que a dos poucos meses que vivera debaixo da terra, quebrando pedras para a maior glória de Yahweh. Adonias percebeu minha tristeza e me questionou:

— Tens o ar carregado, Johaben. Seria por causa do que te aconteceu ontem?

Comecei a me sentir mais à vontade. Este era um assunto sobre o qual eu achava que poderia falar durante toda uma vida. Comecei novamente a narrar minha experiência na caverna de pedra, e dessa vez as imagens e sensações estavam mais apagadas ainda dentro de mim. Só me restava como lembrança vivida a cor dourada da luz que banhava as paredes de pedra, e a transparência da pedra, com seus veios brilhantes onde circulava alguma coisa que eu não podia nem mesmo nominar. Adonias me olhava com grande interesse, enquanto eu tentava, indo muito além de minha capacidade, fazer com que ele sentisse um pouco do que eu sentira, e ele, estranhamente, me interrompeu:

— Um instante, Johaben, existe algo que eu ainda não compreendi: por que foste até a caverna ontem à noite? O que te levou ao embate físico com a pedra? O que querias dela?

Hesitei. Quanto poderia eu abrir o coração a Adonias, sem desvendar o meu segredo? Suspirei profundamente e, tateando entre a verdade e a mentira, contei-lhe o seguinte:

— Como podes ver por minhas mãos e pés, não devo ter sido habituado a trabalhos braçais. Lidar com a pedra bruta tem sido fazer uso de uma força que não possuo. Aqui dentro de mim eu penso se não existe coisa que eu possa fazer melhor do que isso. Desesperado de cansaço, eu ontem decidi perguntar à própria pedra o que ela desejava de mim.

Adonias segurou-me a mão, com os olhos rasos d'água. Parecia sinceramente emocionado ao falar, e eu percebi que ele também ocultava seu verdadeiro eu por trás do conhecimento e das palavras bonitas. Como eu, Adonias não revelava seus desejos mais íntimos, mas a minha confissão o tocara de tal forma que se decidiu a abrir também o seu coração:

— Pois escuta, Johaben: eu, aqui onde me vês, garboso em minha farda de combate, tenho o sonho mais simples do mundo. Queria poder abandonar as fileiras e me integrar ao trabalho que vós operários fazeis, aqui debaixo da terra. Para mim, nada existe de mais belo nem mais importante que o trabalho na pedra. E eu vos tenho invejado durante todos esses meses, em que apenas vos posso vigiar, enquanto vós trabalhais a pedra. Sei que essas minhas mãos desajeitadas podem tirar da pedra alguma coisa a mais, mas essa oportunidade nunca me é dada. Permaneço em posição de alerta, observando o trabalho que vós fazeis, e secretamente invejando vossa felicidade. Quando me disseste que perguntaste à pedra o que ela desejava de ti, descobri não estar sozinho: durante todos esses meses eu tenho perguntado à pedra o que fazer para poder ser um de seus trabalhadores. E se a pedra te respondeu, então ainda me resta uma esperança. Quem sabe a pedra não me dirá, através de ti, o que eu devo fazer?

Sentindo a emoção que se avolumava dentro de Adonias, preocupei-me: eu já estava encontrando alguma dificuldade para acreditar nas coisas que me tinham acontecido na noite anterior, e começava mesmo a pensar se tudo não passara de um sonho, um delírio causado pela fome ou cansaço. A idéia de que a pedra tinha falado comigo era sem dúvida um exagero criado pela mente de Adonias, e eu esperava sinceramente que ele não dividisse essa idéia com ninguém: não pretendia ser o centro das atenções, pois sabia que minha sobrevivência dependia totalmente de que eu nunca estivesse Em evidência. A possibilidade que Adonias aventava, de que eu fosse o porta-voz das palavras da pedra, me soava a cada instante mais e mais ridícula, sobrepujando mesmo a emoção remanescente dos acontecimentos da noite anterior. Já me via sacerdote de um culto da pedra, e essa idéia me aterrorizava: tudo o que eu pretendia era sumir em meio à multidão, pois destacar-me significava revelar-me, e eu não queria isso. Recusei com todas as minhas forças:

— Por Yahweh, Adonias, por que me pedir isso? Queres tu que me transforme em que, no profeta de outro poder que não nosso deus?

Adonias, no entanto, estava convencido:

— Escuta, Johaben: todo o poder vem de Yahweh, até mesmo o que os deuses menores se arrogam como o seu próprio. O que a pedra te diz é o que Yahweh manda que ela diga. Faz-me este favor, Johaben, pergunta à pedra o que é que Yahweh deseja de mim, através dela!

Não pude resistir muito tempo ao que Adonias me pedia, até porque, no fundo de mim, começava a crescer sub-repticiamente a idéia de que talvez não fosse de todo mau ser porta-voz do poder da pedra.

Quem sabe não seria esta a saída para a minha necessidade de algo mais importante? Com um ar de cansaço, confesso que comumente falso, ergui-me e, deixando Adonias uns dois ou três passos atrás de mim, me encaminhei celeremente para a sala onde nosso grupo trabalhava. Os cinqüenta, comandados por Nehemias, já estavam se encaminhando para a sala quando chegamos até ela, e nos olharam com curiosidade. Afinal, um trabalhador sendo seguido por um soldado nunca significou nada de bom. Estavam todos preparando suas ferramentas para iniciar seu serviço tão logo tocassem as trombetas que marcavam o início de mais um dia, e os corredores já se enchiam de pessoas que, se dirigindo a seus postos de trabalho, iniciariam a faina do dia tão logo o sinal fosse dado. Essa ansiedade tinha uma explicação: afinal, pouco ou nada nos restava a fazer além do trabalho e das orações, que se transformaram nos poucos meses em que lá estávamos tanto em obrigação quanto em diversão.

Nehemias, cercado por alguns de seus trabalhadores mais chegados, preparava sua jarra de cal para marcar a pedra, pois nesse dia teríamos de enviar para os outros canteiros um grande bloco de pedra, cumprindo nossa cota da semana. Reconheço que aproveitei da melhor maneira possível a minha chegada, andando com passo firme e o olhar fixo na parede de pedra à minha frente. No meu encalço vinha Adonias, informando aos que o podiam ouvir que a pedra ia falar comigo. Isso causou uma certa comoção entre os que lá estavam, interrompendo o fluxo de energia voltada para o trabalho que Nehemias fazia questão de manter, desde o primeiro dia. Os homens pararam o que estavam fazendo, e eu, aproximando-me da parede de pedra com os olhos fixos nela, podia sentir os seus olhares em minhas costas, como que me empurrando para um momento de profecia.

Se fosse outro o povo do qual éramos formados, talvez houvesse estranheza quanto ao que Adonias prometia que eu iria fazer. Mas o povo hebreu sempre foi acostumado com a presença de profetas, que faziam parte de seu dia-a-dia como transmissores da palavra de seu deus, e mesmo sabendo que Ele podia falar diretamente com cada um, admiravam e respeitavam os que profetizavam, pois na pior das hipóteses acrescentavam um pouco de novidade inesperada às suas vidas tão comezinhas. E era esse respeito o que eu sentia às minhas costas enquanto me aproximava da pedra e colocava minhas mãos sobre ela. A superfície áspera espetou com leveza a palma de minha mão, e eu cerrei meus olhos, tentando fazer com que acontecesse novamente a sensação indescritível da noite anterior, e desejando ardentemente que, ao abrir os olhos, enxergasse outra vez a translucidez da pedra, com suas veias pulsantes.

Passou-se um tempo razoavelmente longo, que eu pude perceber porque o silêncio às minhas costas começo ou a ser quebrado por sussurros de impaciência. Em minha mão nada acontecia a não ser o tato natural da pedra fria, e quando abri os olhos tinham à minha frente o mesmo paredão cinzento de sempre. Nenhuma luz, nenhuma translucidez, nenhum sentido do sagrado a me envolver. O que a pedra me dava era rigorosa e absolutamente nada, como se nada do que eu me recordava tivesse acontecido, reafirmando ser impossível que uma pedra fosse algo mais que apenas uma pedra. Minhas faces ficaram quentes de vergonha, e meu primeiro impulso foi o de fingir que alguma coisa estava acontecendo, inventar uma mensagem da pedra e colher os louros do meu sucesso fictício.

Mas não, isso agora me era impossível.. Depois de ter experimentado o lado bom e o lado podre da vida, apreendera que tudo o que vivera até então era baseado apenas em uma série de mentiras sem fundamento, que à força de se repetirem tomavam com o tempo foros de verdade. Se tivesse um pouco menos de vergonha a me queimar as faces poderia, naquele instante, iniciar até mesmo uma nova seita e acumular seguidores e poder. Mas não podia: aprendera da forma mais dura que a vida não tem nenhum sentido, e me recusava a inventar-lhe um sentido apenas para alcançar um poder que também de nada valia.

Afastei-me da parede, lentamente, tirando a minha mão, e as imagens da noite anterior restaram dentro de mim como um sonho sem detalhes. Eu nada era, eu nunca fora nada! A pedra era apenas a pedra, e se eu nada tinha a dizer de importante ou essencial, muito menos ela. Atrás de mim alguns resmungos de alívio e desprezo se fizeram ouvir, enquanto meus companheiros tiravam meu momento de ridículo da frente de suas vidas e voltavam seu interesse imediato para suas ferramentas e para o dia de trabalho que lhes esperava, daí a poucas horas. Eu estava de volta ao limbo de onde nunca deveria ter saído, e me recolhi à insignificância de minha existência como operário de uma pedreira.

Nesse momento Manassés, meu irmão de todas as horas difíceis, e Adonias, a quem mal tinha conhecido e com quem havia falhado fragorosamente, aproximaram-se de mim e me deram o benefício de sua amizade, sem que eu precisasse pedir por ela, abraçando-me e reconfortando-me enquanto à nossa volta cresciam os ruídos do mundo sem descanso, em sua caminhada célere para lugar nenhum. E eu pude perceber, como nunca tinha percebido antes, ser a amizade sem dúvida a mais importante de todas as coisas, pois a vergonha e o senso de inadequação que me assomavam por inteiro foram se transformando em uma dor surda e perfeitamente suportável, dando-me a certeza de que qualquer coisa pode ser enfrentada quando ao nosso lado está um amigo desinteressado, a quem só importa o nosso bem-estar. Eu olhei o mundo com outros olhos através dos olhos de meus dois amigos, percebendo-o cheio de gente, igual a mim ainda que diferente de mim, descobrindo um sentido para a vida quando se permitiam sentir amizade uns pelos outros. Não vale a pena enganar, distorcer, vencer, alcançar os mais excelsos patamares de reconhecimento público, se dentro do coração não brilha a chama segura e clara da amizade. E eu, que nunca pertencera a nada nem ninguém a não ser a mim mesmo, senti o calor reconfortante da amizade invadindo meu coração, e por um momento apenas, inesquecível em sua beleza, superando inclusive a lembrança da emoção que o delírio da noite anterior me tinha causado, amizade absoluta e total por cada um que estava comigo, cada homem das pedreiras, cada habitante de Jerusalém, cada ser humano que estivesse caminhando em cada canto do mundo, e que tivesse vivido, e que ainda fosse viver. Pude sentir, amparado por meus amigos Manassés e Adonias, um fluxo interminável de igualdade entre todos nós, e percebi que a verdade tem muitas facetas, sendo esta apenas a primeira delas, e que muitas outras me restavam a descobrir.

Nesse instante, porque nada acontece por acaso, mesmo quando temos a oportunidade de escolher os caminhos, eu enxerguei na parede de pedra à minha frente os exatos lugares nos quais deveríamos aplicar nossas alavancas e cunhas, para produzir não um grande e desajeitado pedregulho, mas sim vários pedaços de pedra mais ou menos iguais, na medida para serem aparelhados por nós. A pedra me contava mais um segredo, desta vez partilhando comigo um aspecto essencial de sua natureza, pois a extração da pedra em pedaços menores simplificava de forma inacreditável o nosso trabalho, acelerando a nossa produção de pedras cúbicas para o soerguimento do Templo. E isso só se tornara possível porque eu percebera que cada ser humano é uma parte da grande pedra do Universo, todos unidos pela amizade e individuados pelo conhecimento. Eu era sem dúvida um daqueles blocos mal  arelhados, e brotaria da parede para ser trabalhado e polido por mim mesmo até que me transformasse no mais perfeito de todos, por meu próprio esforço e com o apoio da amizade de meus companheiros, meus irmãos na pedra.

Tirei delicadamente das mãos de Nehemias o marcador coberto de cal e, aproximando-me da parede de rocha compacta, marquei os lugares onde deveríamos trabalhar para extrair dezessete blocos quadrados de tamanho quase idêntico. O silêncio que nos cobriu foi diferente desta vez, e mais tarde, quando os dezessete blocos mostraram a pureza de seus veios e a riqueza de seus ângulos, transformou-se em compreensão muda do que finalmente seria nosso papel na construção da casa onde habitaria para todo o sempre um poderoso deus.

 

O meu talento recém-descoberto passou a ser muito útil, principalmente porque as necessidades de material para a construção do Templo e de seus edifícios circunvizinhos aumentavam gradativamente, com o passar do tempo. Nehemias olhou longamente as minhas marcações na parede de rocha, e deu aos dez cortadores a permissão para que abrissem fendas onde eu havia deixado as minhas marcas. Quando após alguns instantes de esforço a rocha rachou exatamente onde eu previra, e dezessete blocos de formato mais ou menos cúbico se desprenderam, ficou provada a excelência do meu método, que ninguém verdadeiramente compreendia qual fosse, e nosso serviço passou a realizar-se mais rapidamente que o de outras salas como a nossa. Isso chamou a atenção de outros chefes de equipe, que vieram até nós estudar o novo sistema, perdendo longas horas a observar-me, sem todavia chegar a nenhuma conclusão sobre como eu conseguia aquilo. Como o trabalho me tomava razoavelmente pouco tempo, eu acabei por fazer durante o dia o périplo das salas de extração de rocha, marcando por vezes mais de quarenta sítios de onde sairiam as pedras brutas. Só que isso não me eximia de meus serviços em minha sala, junto a meus companheiros, que me agradeciam a cada dia pelo fato de ter-lhes tornado mais fácil o trabalho. Nehemias também passou a me tratar com um certo interesse a mais, incluindo-me no rol de seus mais próximos colaboradores. Isso criou, entre os trabalhadores, uma lacuna que eu, movido por um impulso de gratidão incontrolável, preenchi indicando os serviços de meu mais novo amigo, o soldado Adonias.

Quando Nehemias chamou meu amigo soldado à sua presença, e o informou que seu comandante o havia liberado para exercer o ofício de pedreiro, eu pude perceber que a felicidade é superior a tudo, quando se instala em um coração desejoso por ela. Adonias saltou de alegria por todo o espaço da sala, retirando depois com todo o cuidado as suas vestes de soldado, entregando-as a seu companheiro de armas, a outra sentinela de nossa sala, que se mostrava estupefato. Como, então, pode um soldado abandonar as armas e vestes de seu glorioso ofício para tornar-se um operário e trabalhar a pedra? Mas Adonias passou a usar com muito mais orgulho a túnica simples que todos vestíamos, e entregou-se à sua nova faina com redobrado ardor. Várias vezes, durante seus primeiros dias, tive de untar-lhe as mãos com óleo de olivas que ia buscar nas cozinhas do acampamento, pois a palma de suas mãos e de seus dedos rachava, criando grandes feridas que certamente o incomodavam muito. Mas ele nem por um momento reclamou, nem se arrependeu de sua sorte: sendo muito devoto, agradecia diariamente a seu deus pela benção que lhe fora concedida, enrolava as mãos sangrentas com um pano e enfrentava a lida com redobrada alegria.

Meu amigo Manassés, a princípio um tanto enciumado pela minha crescente amizade com Adonias, logo compreendeu a bela alma que o antigo soldado era, e uniu-se a ele em uma dessas amizades perfeitas, porque complementares, já que um tinha o que ao outro faltava, partilhando com absoluta prodigalidade tudo aquilo de que necessitassem. Nós três, apesar de minhas novas atribuições me manterem fora da sala durante mais tempo do que o previsto, formávamos um grupo muito coeso, e perdíamos pelo menos uma hora todas as noites, logo após o jantar, trocando impressões sobre nosso trabalho em geral e nossos desejos e vontades em particular. Eu sonhava com o dia em que pudesse abrir por completo o meu coração a Adonias, mas um certo receio ainda me fazia calar: sua antiga disciplina de soldado me amedrontava, e temia que, por motivos fora de meu conhecimento, achasse melhor denunciar-me como um não-judeu a nossos superiores. Mas eu ansiava, assim como Manassés, pelo dia em que eu poderia dar a Adonias o maior préstimo de minha amizade, dividindo com ele a minha verdade mais oculta.

Nos meses que se seguiram, e logo se transformaram em um ano, nosso trabalho aumentou muito, pois a construção do Templo não se limitava a ele. A cada momento surgiam novas necessidades, com as quais os arquitetos do rei, comandados por  Hiram-Abiff, precisavam lidar rápida e decididamente. Eram novos prédios que se somariam aos já planejados na esplanada do Templo, muros de altura considerável para envolver essa esplanada, retraçado das ruas circunvizinhas e até mesmo uma outra linha de muralhas extremamente defendidas que cercaria a cidade de Jerusalém propriamente dita, separando-a dos bairros caóticos que iam se formando em sua periferia, com a chegada contínua de mais e mais pessoas em busca de ocupação e sustento.

Confinados à região das pedreiras como estávamos, vendo o sol apenas quando nascia ou quando se punha, ansiávamos por notícias da construção, da cidade, do mundo que continuava a se mover à nossa volta. A azáfama dos carregadores que como correição de formigas carregavam as pedras já aparelhadas para a região onde se ergueria o Templo não se interrompia nunca. Longas filas de homens, escravos cananitas em sua totalidade, iam e voltavam do sítio da construção, vigiados intensamente pelos soldados fortemente armados. E nós, que não tínhamos mais o direito de sair de nosso confinamento voluntário, esperávamos ansiosamente a noite, quando as novidades da cidade tão próxima e tão fora de nosso alcance chegavam até nós. Os arquitetos comandados por Hiram-Abiff visitavam constantemente o grande acampamento, onde tinham reuniões com chefes de turma como Nehemias, explicitando com desenhos e discussões o material de que necessitariam. O projeto original, que incluía apenas o templo de Yahweh, se ampliava a cada dia, pois Salomão decidira que o fausto e a monu-mentalidade seriam essenciais à entronização de Yahweh como deus único de um povo unido.

Recordo-me de uma das tantas visitas que o rei Salomão fez às pedreiras, acompanhado de seus acólitos e de Hiram-Abiff, recepcionando o rei Hiram de Tiro, que vinha a nova Jerusalém pela primeira vez. Estar tão próximo assim não só dos dois homens a quem um dia me igualara, como também daquele que um dia fora o arquiteto de meu palácio, e nem sequer suspeitava de minha presença, foi um momento de grande tensão e ansiedade para mim. Nehemias, chefe de nosso grupo, era sobrinho de Nathan, poderoso profeta que Salomão respeitava como se fosse o grande sacerdote de seu deus, e que escolheu a caverna onde trabalhávamos como exemplo de uma das etapas da grande obra. Ao perceber que o grande grupo se dirigia para nossa vizinhança, Manassés começou a empurrar-me para o fundo da caverna tentando fazer com que minha presença se apagasse em meio a outros trabalhadores como eu. Mas Nehemias, satisfeitíssimo por ter no meio de seu grupo um trabalhador com talentos tão excepcionais fez questão de apresentar-me à comitiva de Salomão. Um frio de terror tomou-me a alma: eu estava por ser descoberto, entregue à justiça, transformado em alguma coisa pior que um escravo. O esgar de preocupação na boca de Manassés contrastava com o sorriso de felicidade de Adonias que, inconsciente do que estava acontecendo, só tinha motivos de orgulho em relação à honra que estava sendo prestada a mim, seu melhor e mais novo amigo. Mantive a cabeça baixa, o mais oculta possível nas dobras de meu manto, enquanto Nehemias me empurrava para a frente, deixando-me exposto perante os reis Salomão e Hiram e seu arquiteto que um dia fora meu, Hiram-Abiff. Nehemias me apresentou como um grande conhecedor das particularidades da rocha, conhecimento esse que parecia ser natural. Senti os olhos de toda a comitiva sobre mim, e antes que eu tomasse qualquer atitude completamente sem sentido, Nehemias sem o saber veio em meu socorro, dizendo meu nome e esclarecendo que tinha dificuldades em me expressar devido a meu acidente. Isso fez com que os excelsos visitantes me olhassem com outros olhos, encarando-me como uma dessas aberrações da natureza capazes de coisas inesperadas enquanto dão provas cabais e definitivas de sua loucura e incapacidade. Quando Nehemias exibiu as pedras de tamanho médio que eu conseguira marcar nas paredes de rocha, o interesse de Salomão e do rei Hiram se transferiu para a qualidade do material extraído. Os dois eram sócios em tudo, até na capacidade de perceber uma grande oportunidade comercial como a produção de pedras para uso por todos os povos em construções de todos os tipos. Nessa época os edifícios mais simples eram erguidos fazendo uso dos tijolos de barro cozidos ao sol que os hebreus tinham aprendido a moldar quando ainda escravos do cruel Faraó em terras do Egito, e como os egípcios também reservavam a melhor pedra para construções que se pretendiam eternas, como templos e palácios. Os dois reis e sócios imediatamente iniciaram uma conversa cheia de cifras e cálculos de cubagem naval, pretendendo exportar para todo o mundo conhecido a magnífica pedra de Jerusalém, e com isso foram se afastando de nós, seguindo seu roteiro de visitação às pedreiras, enquanto nós, trabalhadores braçais, resumíamos nossas atividades voltando a quebrar pedras. O meu suspiro de alívio pouco durou, pois Hiram-Abiff não acompanhara a comitiva, ficando para trás, com seus escuros e penetrantes olhos fixados em mim. Tive a certeza de ter sido descoberto, mas ele, com um leve sorriso, afastou-se em direção à saída da caverna, deixando-me mais preocupado que temeroso, mas ainda assim atento aos desdobramentos do que poderia ser o primeiro passo para que se desvendasse a minha verdadeira identidade.

Nos meses que se seguiram em nossas cavernas debaixo da terra, a vida era definitivamente igual, a um tal ponto que eu, normalmente preocupado com as datas e as estações em geral, acabei por perder todo o meu senso de tempo, vivendo um dia após o outro em constante faina. Mas vim a descobrir várias coisas interessantes nesse meu trabalho, a primeira das quais foi que cavernas diferentes, pela formação de suas rochas, produziam pedras de tamanhos e formatos diferentes, e como as necessidades da construção acima de nossas cabeças fossem cada vez mais variadas, isso se tornou um fator essencial para que o trabalho prosseguisse de forma coerente. Eu começava meu dia de trabalho fazendo o périplo de mais de quarenta cavernas, riscando com cal sobre a rocha viva o traçado em formato de grade que deveria guiar os cortadores, isso depois que o chefe daquela caverna me dissesse do que é que estavam precisando. Meu talento ocupava a maior parte da manhã, e depois do almoço eu retomava meu trabalho de alavanqueiro na minha sala, lado a lado com todos os meus camaradas, entre os quais Manassés e Adonias. O que produzíamos aí eram as pedras de formato toscamente cúbico com as quais se erguiam as partes menos espessas das paredes: eram como que tijolos de pedra com seis faces quadradas, e um requisito essencial era conseguir que fossem idênticos uns aos outros, tanto quanto nos fosse possível produzi-los. Não era um trabalho suave, longe disso, mas depois de todo esse tempo já tinha se transformado em nossa condição natural, a tal ponto que o dia de descanso era carregado de ansiedade, e os trabalhadores em toda a pedreira subterrânea, por mais devotos que fossem, não viam a hora de reiniciar sua lida com a pedra.

É como se nela estivessem viciados. Eu percebia isso mais nos outros operários, os que trabalhavam com maço e cinzel na finalização dos blocos de pedra, do que em nós, que estávamos a meio caminho entre eles e os carregadores cananitas. Entre nós, na grande pedreira havia se criado uma espécie de hierarquia sem regras, mas que era respeitada por todos: como depois de quase um ano já haviam se destacado os melhores de cada função, deixou de importar se o operário era escravo cananita ou voluntário hebreu, e passou a ter significado a função que ele exercia, essa sim com seu lugar determinado e sua importância claramente definida. Havia salas, como a nossa, em que os melhores cortadores de pedra eram hebreus, e outras onde os melhores artesãos da pedra em seus diversos formatos eram cananitas, tratados da mesma maneira que nós por seus chefes, em raros casos também cananitas, guindados a isso por sua capacidade.

A segunda coisa interessante foi mais estranha, criando uma dúvida que até hoje permanece comigo, por insolúvel. Determinada ocasião, logo após meu aniversário, de que Manassés não se esqueceu, pois era no mesmo dia em que se comemorava o Pessach, eu precisei marcar uma sala que produzia, pelas características de sua rocha, pedras grandes e de formato quadrangular, com mais ou menos dez braças de comprimento. Esse tamanho de pedra era pouco pedido, agora que as fundações da cidade e de seus muros já estavam praticamente construídas, segundo notícias que vinham de fora, e as tentativas de cortar blocos pequenos se mostravam inviáveis. O grande paralelogramo se estilhaçava na diagonal, transformando-se em aparas serrilhadas sem nenhuma serventia, desperdiçando horas de esforço e de trabalho. O chefe-cortador dessa sala, um cananita de nome Joel, dividiu comigo o seu problema, e eu usei grande parte de meu tempo livre nos próximos cinco dias estudando a pedra e seus veios. Sentava-me ao chão e fixava o olhar na parede de pedra à minha frente, com os olhos semicerrados, maneira pela qual conseguia enxergar com muito mais precisão as linhas invisíveis pelas quais deveríamos aplicar nossas alavancas e cunhas. Apalpei a superfície dessa rocha por diversas vezes, tentando fazer com que ela me indicasse a melhor solução, e nada: apesar de ser rocha de grande dureza e resistência, ideal para erguimentos importantes, ia acabar tendo de ser deixada de lado, e só tocada quando fosse eventualmente necessário um bloco do tipo que dela se produzia. Eu considerava isso um desperdício, e me irritava cada vez mais com a teimosia da pedra.

No final do quinto dia, quando os operários já iniciavam o processo de armazenamento de ferramentas, eu fiquei em meio a eles, sequer percebendo a sua presença, de tal forma me achava concentrado em meu problema. Enquanto olhava pela milésima vez a parede de rocha comecei a pensar no quanto a minha vida havia se transformado no espaço de um ano. Já não havia nenhuma possibilidade de que vissem no Johaben que eu era o fenício que eu tinha sido: meus cabelos, minha barba, o hebreu que eu agora falava com perfeição à custa de ouvi-lo constantemente, tudo servia para concretizar minha transformação. Eu mesmo, após a indescritível experiência por que tinha passado na caverna, quando a luz dourada vinda de lugar nenhum me mostrara as veias da rocha pulsando e dirigindo sua energia, guardara em um lugar muito profundo dentro de mim o que eu tinha sido. Não doía mais, como na travessia do vale do Jordão até Jerusalém, não era mais relembrado nem amargava a minha existência, e se transformara em um sonho menos vivido até que o da pedra transparente. Fiquei só na caverna, e nem o percebi.

Pensei que, ao me ser dada a oportunidade de renascer, só me restava fazer bom uso dela, pois a muito poucos é concedida esta graça. Após meu renascimento, algo me levara a este momento neste lugar determinado, onde eu havia descoberto um talento que não sabia possuir, e que dava novo sentido à minha vida. Se um ano antes me tivessem dito que fosse para as pedreiras de Jerusalém procurar meu objetivo, eu teria rido e, por certo, mandaria que jogassem aos peixes o temerário que me dizia isso. Durante longo tempo eu renegara a nova vida que se me apresentava, e que finalmente se mostrara como a melhor possível. Estava em paz comigo mesmo, e disposto a aceitar o que quer que estivesse em meu caminho, como aceitara que minha vida como Joab tinha terminado. Se algum dia fosse necessário tudo abandonar e começar de novo em outro lugar, de uma nova maneira, eu o faria com a mesma tranqüilidade. O Universo e eu continuaríamos pulsando no mesmo ritmo, apenas sendo, e meus dias seriam vividos um de cada vez. Como não me era possível conhecer o meu futuro, aceitava o dia que estava vivendo, e disse para mim mesmo: só por hoje eu sou feliz.

Então a parede à minha frente, repentinamente, mudou o traçado de seus veios, e um novo desenho se apresentou a meus olhos, deixando claro que daquele bloco de rocha poderiam sair as pedras pequenas e perfeitamente cúbicas que daquela sala até agora tinham sido impossíveis de extrair. Explico-me melhor: em um momento os veios da pedra eram os mesmos de sempre, e no momento seguinte, sem lampejos de luz ou qualquer outro sinal, se tornaram completamente diferentes, como se nunca tivessem sido outra coisa. Fiquei boquiaberto, e tracei com cal a grade que guiaria o corte da pedra rapidamente, temendo que o estado da pedra se modificasse mais uma vez. Quando os operários que chegaram no dia seguinte encontraram esse traçado e o seguiram, extraíram dessa caverna, no primeiro dia, uma centena de blocos de pedra quase que completamente aparelhados, tal a precisão com que a pedra se rachava. Mudaria a pedra ou mudei eu? Teriam os veios da pedra modificado seu desenho milenar para satisfazer minha vontade, ou meus olhos é que de repente souberam enxergar a verdade que nela se ocultava? Percebi que, a cada momento em que tomava consciência de meu próprio eu, o mundo à minha volta se movia em equilíbrio comigo, e coisas fascinantes como essa aconteciam, mostrando que minha vida dependia exclusivamente daquilo que eu fosse compreendendo sobre mim mesmo.

Tivemos notícias de que o rei Salomão, querendo agradar seu sócio Hiram de Tiro, se decidira por construir na mesma esplanada onde se ergueriam gradativamente o templo de Yahweh, seu novo palácio real, sua esplanada dos julgamentos e o palácio do sumo sacerdote, um outro palácio de beleza extrema, chamado de Casa das Florestas do Líbano, na qual o rei dos fenícios se sentisse como que em casa. Pelo que ficamos sabendo em nossas conversas noturnas, o projeto de Hiram-Abiff era incomensuravelmente belo, pois num espaço menor que o do templo de Yahweh, que a mim já me parecia canhestro, recriar-se-ia pela arte da arquitetura uma floresta de madeiras olorosas, de forma que tudo o que se encontra na natureza também lá existisse, apenas redesenhado e reconstruído com o máximo de arte. A sala principal deste palácio, que Hiram de Tiro usaria quando de suas visitas a Jerusalém, seria um grande labirinto de colunas altíssimas, feitas de olíbano, cedro e sândalo, com incrustações de metais preciosos, num arremedo extremamente rico da aparência das árvores que se encontram nas encostas de nossas montanhas. Seus capitéis, unidos uns aos outros, seriam feitos do cobre recortado mais puro, trabalhado a martelo e incrustado de jaspe, imitando com a maior precisão a copa das árvores. Nas paredes ver-se-iam grandes cenas campestres construídas com pedras de revestimento das mais diversas procedências, criando em quem entrasse no grande salão a impressão exata de estar nas florestas a oeste de Tiro no exato momento em que o sol nascia. Uma obra portentosa, que Salomão sentia dever a seu parceiro fenício, por sua grande e rendosa ligação, sem a qual a obra de sua vida não teria tido nem mesmo início.

Lembro-me também do sobressalto pelo qual passei quando Hiram-Abiff surgiu sozinho numa determinada manhã, e entrou em nossa caverna, dirigindo-se a Nehemias, falando alto o suficiente para ser ouvido por todos nós:

— Irmão Nehemias, tens conhecimento de algum de teus trabalhadores que conheça a cidade de Tiro ou tenha vivido nela?

Fiz o impossível para não olhar para Manassés, em vão: ele me observava de longe, com a cara branca como cal. Durante um momento eu tive a certeza de que Hiram-Abiff estava interessado em me desmascarar na frente de todos os meus camaradas, denunciando-me como falso hebreu e assassino. O suor gelado do medo começou a escorrer pelo meio de minhas costas, enquanto eu continuava meu trabalho com a alavanca. Nehemias disse não saber de nenhum, e Hiram-Abiff continuou:

— Eu precisava de uma informação essencial a respeito da distância entre as grandes árvores nas florestas perto de lá, para que o palácio das Florestas que estamos erguendo seja o mais verdadeiro possível. Eu nunca estive nas florestas, e não consigo ninguém que me dê esta informação. É pena, pois seria de grande ajuda. Obrigado, irmão Nehemias.

Com estas palavras Hiram-Abiff, o todo-poderoso arquiteto do rei Salomão, retirou-se, decerto indo buscar auxílio em outro lugar. E eu, que fora Joab de Tiro, recordei-me vivamente dos caminhos entre as grandes árvores nas florestas das encostas, ao fundo da hospedaria de minha pobre mãezinha, de quem a essa hora nem os ossos deviam restar. Eu poderia dar-lhe a informação, mas fazê-lo significaria entregar-me à sanha dos algozes da justiça. Após um pequeno período de hesitação, pois sentia que devia algo a meu antigo arquiteto, decidi calar-me para sempre, e deixar que o cadáver insepulto do antigo Joab de Tiro se desmanchasse no turbilhão das horas que passam sem parar, caindo no esquecimento mais completo para que eu pudesse, a cada manhã, renascer em paz.

 

Duas coisas me incomodavam nesse novo momento de minha terceira vida: uma delas era o fato de ainda ser parte do estrato menos importante da hierarquia das pedreiras de Salomão, e a outra era não conseguir mais esconder a verdade sobre mim de meu amigo Adonias, cuja amizade me dava provas de grandeza a cada dia. Falei sobre o assunto com Manassés, que ainda sentia mais medo do que eu de revelar sua verdadeira identidade, mas ao mesmo tempo também tinha o impulso profundo de abrir o mais íntimo de si para os olhos de seu mais novo amigo. Para mim estava decidido: eu precisava pôr à prova a minha confiança em meu novo amigo, correndo quaisquer riscos que dessa prova pudessem advir. Não era a amizade de Adonias por mim que estava em jogo, mas sim a minha amizade por ele, e eu precisava testar a certeza de que nele meu coração aberto sempre encontraria um ouvinte compassivo. Portanto esperei que chegasse o próximo Shabbath e chamei tanto a Adonias quanto a Manassés para que junto comigo viessem prestar suas devoções em lugar mais reservado. Para isso escolhi a sala onde nosso grupo trabalhava, e que por estarmos no nosso dia de descanso permanecia vazia. A grande caverna estava deserta, pois todos os trabalhadores preferiam passar seu dia de descanso ao ar livre, nas proximidades de suas cabanas.

Aguardei com paciência o momento perfeito para contar a verdade, e por diversas vezes esse momento veio e se foi. Manassés e Adonias faziam suas orações em voz alta, e eu me mantinha resmungando em voz quase inaudível, para que Adonias não viesse a perceber que eu desconhecia totalmente as rezas milenares na língua hebraica. Os três tínhamos a cabeça coberta por nossos mantos, mas o que se ocultava debaixo do meu não era esse lugar de beleza onde Yahweh fala a seus filhos. Eu estava literalmente transido de medo e hesitava profundamente, pensando mesmo em desistir da empreitada. Adonias e Manassés interromperam por instantes suas orações, e eu também me calei, enquanto Manassés apanhava um odre de água, oferecendo-o a Adonias, que imediatamente, sem pensar, o estendeu em minha direção. Num relance prendi-lhe a nodosa e escalavrada mão entre as minhas, abrindo as comportas de meu coração para que a inundação do que estava oculto dentro de mim o cobrisse:

— Adonias, meu irmão, é preciso que saibas toda a verdade sobre mim.

Enquanto os olhos de Manassés se arregalavam de susto, contei a Adonias a história de quando eu era Joab e minha transformação no Johaben que ele conhecia. Sua grande mão por diversas vezes tremeu dentro da minha, como um pássaro assustado, e por outras me fez sentir seu peso, como se estivesse morta. Mas em nenhum momento, nem mesmo nos trechos mais escabrosos, tentou livrar-se da minha. Permaneceu em contato comigo na sua inteireza, e quando meu relato terminou, suas lágrimas se misturaram às minhas e às de Manassés, como se também tivesse vivido os trágicos acontecimentos de nosso passado oculto. Depois, estendendo seus braços, envolveu-nos a ambos no mesmo forte abraço, erguendo os olhos para o céu:

— Oh, senhor Deus de Israel! Este é meu irmão muito amado, que andava perdido e que eu finalmente reencontrei!.

Percebi, então, que o meu medo não era o de alguém que temia ser descoberto, mas sim o de quem teme perder o mais precioso dos bens: a amizade. A reação de Adonias veio em boa hora, reforçando os elos que nos uniam cada vez com mais força, e passamos eu e Manassés, a partir desse dia, a tê-lo como aliado em nossos esforços de sobrevivência sob a terra.

Nos dias que se seguiram, o volume de trabalho aumentou muito, e os chefes de turma passaram a exigir muito mais de cada um de nós, pois Salomão, em toda a sua sabedoria, ansiava por ver erguida sua obra maior, e começava a perder a paciência com um serviço que leva grande tempo para exibir seus frutos, como o do erguimento de grandes prédios. Inda que trabalhássemos com madeira, como se fizera ao erguer o grande palácio que fora de seu pai David antes dele, Salomão teria passado pelo mesmo surto de impaciência, desejando ver concretizado imediatamente o objeto de seus desejos. Mas para os que vivíamos a vida confinada de prisioneiros voluntários, a ansiedade e a pressa de Salomão pouco importavam. A vida era sempre a mesma, e o tempo passava de forma indiferente: a infinita lida braçal parecia que ia acomodando a todos, esgotando a maioria dos desejos, das ansiedades, dos rompantes de vontade. Tudo acontecia em seu tempo certo, pois não havia outra maneira de ser, e hoje eu penso que até mesmo Salomão, em toda a sua glória, teria aproveitado muito mais de sua brilhante vida se tivesse tido a oportunidade de passar alguns meses que fosse em nossa companhia. A disciplina da pedra criava uma disciplina da alma, e só com ela nos era possível continuar vivendo.

De maneira geral era esse o sentimento surdo que se respirava nas pedreiras, mas eu, Manassés e Adonias queríamos certamente coisa melhor. Estávamos cansados de estar na ponta menos importante do sistema de trabalho, alavancando a rocha viva e dela tirando as pedras brutas em que mais tarde os pedreiros iriam trabalhar, aplicando-lhes cinzel e maço, tirando-lhes as asperezas e transformando-as em pedras polidas. Havia verdadeiros artistas entre esses pedreiros, tão ou mais viciados em seu trabalho do que nós, buscando de forma obsessiva a perfeição em cada exemplar trabalhado. Nós, alavanqueiros e cunheiros, colocadores de bucha e traçadores de corte, só conseguíamos ser mais importantes que os carregadores, que com suas liteiras de todos os tamanhos carregavam a pedra bruta para o grande salão, onde se juntavam mais de vinte mil pedreiros. Eram uma companhia viva e compenetrada, e o barulho de seus cinzéis mordendo a pedra impulsionados pelos maços de madeira se tomara tão comum como o pó de pedra que pairava constantemente no ar. Tornaram-se capazes de realizar milagres com seus cinzéis, e preparavam pedras dos mais diversos feitios com um nível de acabamento que nunca tinha sido visto. No primeiro dia de trabalho depois do Shalbath eram os primeiros a reiniciar sua lida, trabalhando cada um em seu ritmo pessoal, perfeitamente integrado ao total de todos os vinte mil ritmos, pois sem nenhuma preocupação nesse sentido acabavam todos buscando uma música em comum, e essa se perpetuava, ecoando pelos longos corredores que saíam do grande salão em direção às outras cavernas. Essa harmonia tão particular soava constantemente, e já era acompanhamento instrumental para várias canções de trabalho que haviam nascido em nosso meio, suavizando e enfeitando o que era apenas trabalho duro em um ambiente inóspito.

Fomos os três falar com Nehemias, em um momento de espera, enquanto aguardávamos que algumas cunhas e buchas molhadas cumprissem sua função dentro da rocha. Enquanto defendíamos nossa promoção para um nível mais importante de trabalho, ele nos olhava com maior tranqüilidade. Ao terminarmos nossa diatribe, ele simplesmente disse:

— Não.

Voltou-nos as costas e continuou o que estava fazendo, desarmando nossos planos de maneira definitiva. Manassés e Adonias, cheios de respeito, aceitaram sem pestanejar a decisão de Nehemias, e já iam se recolhendo a seu lugar de sempre. Mas eu não tinha esse espírito assim tão obediente, mesmo depois da grande mudança pela qual havia passado. Um lampejo da arrogância do falecido Joab de Tiro espocou dentro de mim, e eu gritei o nome de Nehemias, fazendo-o voltar a cabeça em minha direção, com um ar de incredulidade na face. Argumentei com tudo o que podia inventar em defesa de nossa pretensão: éramos bons operários, de inegável competência em nosso labor, merecedores de respeito por parte de nossos companheiros, tementes a Yahweh, e acima de tudo absolutamente seguros de que o nosso lugar era entre os pedreiros. Nehemias me olhou longamente, e repetiu a palavra de sempre:

— Não.

E dessa vez saiu em direção aos lavatórios. Pensei em correr atrás dele, agarrá-lo pelo gasnete e enfiar-lhe nosso desejo goela abaixo, mas me controlei. Estava com muita raiva, e para me livrar dela apanhei uma marreta pesada e comecei a transformar em cascalho uns restos de rocha que descansavam a um canto. Devo ter quebrado pedra por uma boa meia hora, enquanto purgava o veneno de minha própria ira, pois quando dei acordo de mim estava coberto de suor, com a musculatura das costas e dos braços esticada como uma corda de harpa, e à minha frente só restava um monte de areia grossa. Pousei a marreta no chão, extremamente cansado, sem conseguir perceber o que fazer para alcançar para mim e para meus irmãos aquilo que desejávamos, quando percebi um movimento com o canto do olho. Virei-me rapidamente e lá estava Nehemias, olhando-me com o mesmo ar de tranqüilidade que sempre fora a sua marca. Eu fiquei envergonhado por ter sido apanhado em flagrante delito de ira, mesmo sentindo que ela já não era tão grande assim, pois eu a tinha gastado completamente. Nehemias continuava olhando para mim com a mesma expressão vazia, como que esperando meu próximo movimento. Eu nada tinha a dizer, e continuei calado: Nehemias aproximou-se de mim e, pegando a marreta que eu tinha largado no chão, sopesou-a com admiração, enquanto falava, aparentemente para si mesmo:

— Tu desistes facilmente, Johaben. Tu te deixas tomar pela ira e te abandonas ao que crês seja o fim de tudo. Não sabes verdadeiramente lutar pelo que desejas?

Eu o encarei, sem compreender do que é que ele estava falando. Nehemias, lentamente, relaxou os músculos de sua face e começou a produzir algo que eu nunca vira: um sorriso. Eu entendia cada vez menos o que estava acontecendo, e cheguei mesmo a pensar que ele tinha ido me procurar para fazer pouco de mim, mas seu sorriso era tão verdadeiro, tão fraterno, que mesmo essa impressão se apagou. Nehemias, então, sentando-se a meu lado, disse:

— Vim atrás de ti por estar indeciso, e te encontrei descarregando tua ira contra o cascalho, usando uma força que nunca pensei que possuísses. Agora estou aqui te olhando e pensando: o que é que Johaben verdadeiramente deseja?

Levantou-se decididamente, fazendo com que eu também me erguesse e, olhando-me no fundo dos olhos, perguntou:

— O que é que tu desejas, Johaben?

A tranqüilidade de Nehemias tornou-se patente à minha vista, e eu percebi que ele me estava dando a terceira oportunidade para que defendesse a vida e o futuro, meu e de meus irmãos Manassés e Adonias. Respirei fundo e, apoiando-me nas dívidas de amizade que tinha contraído com os dois, defendi nosso direito ao trabalho com o maço e o cinzel na pedra. Nehemias continuou impassível, como antes, dando-me a impressão de que eu nada estava conseguindo. Eu não poderia desperdiçar esse momento: meus dois irmãos, a quem eu confiaria minha vida se preciso fosse, mereciam mais do que tinham nesse momento. Com a satisfação de quem pode fazer alguma coisa importante por alguém a quem muito ama, lancei meu último argumento, sabendo que depois dele nada mais me restaria dizer:

— Nehemias, se ainda assim não me considerares merecedor da honra de trabalhar a pedra com maço e cinzel, então que pelo menos meus dois irmãos Manassés e Adonias tenham esse direito. Eu posso continuar fazendo o que faço, o que já é muito. Mas os dois merecem crescer, aprender, contribuir com mais do que têm feito para a maior glória do Templo de Yahweh. Faze com que sejam promovidos, irmão Nehemias, eles o merecem mais do que eu.

Eu tinha gastado minhas últimas forças, e estava seco como um peixe salgado, mas ainda assim me sentia melhor do que nunca. Nehemias cerrou os olhos, colocando as duas mãos sobre meus ombros. Depois olhando-me com mais profundidade do que até então, sorriu novamente e disse:

— Johaben, obrigado. Se tivesses vindo a mim pedir que te promovesse, eu não teria nem mesmo te ouvido, pois nada existe de pior que aquele que só pensa em si mesmo. Tu sempre me pareceste ser do tipo que espera que o mundo gire à sua volta, exigindo tudo em troca de nada. Quando te aproximastes de mim, hoje, pensei que desejava alcançar alguma vantagem em troca de teus serviços de marcador. Confesso que a inclusão de teus amigos em teu pedido me pegou de surpresa, mas reagi como pretendia. Tua insistência acendeu uma luz de esperança em minha alma, e se te respondi negativamente pela segunda vez foi apenas para medir tua decisão e tua vontade. Só que tu desististe tão completamente que acabei sem saber o que pensar. Mas agora o medo que eu tinha se dissipou. Não existe egoísmo em tua alma Se és capaz de dar a vida por teus irmãos, nada mais te será exigido Dirigiu-se para a porta da caverna, e ao chegar nela virou-se e minha direção, dando-me a resposta pela qual eu esperara e lutara com todas as minhas forças:

— Sim.

Oh, doida alegria que me encheu a alma! Eu e meus irmãos finalmente teríamos a oportunidade de ascender no trabalho da pedra, transformando-nos em pedreiros, livres para usar o maço e o cinzel e esculpir as mais belas pedras cúbicas para o serviço do senhor Yahweh. Quando dei a notícia a meus dois amigos, meus dois irmãos mais próximos, pude sentir o elo de emoção que nos ligava uns aos outros, pois sentíamos que essa era nossa oportunidade de crescer juntos, participando de forma mais destacada daquilo que se tornara o objetivo de tantos milhares de vidas, e que prometia ser um marco essencial, não só para o mundo conhecido, mas principalmente para cada um que dela participasse. Nessa noite deitamos cedo, cobrindo a cabeça com nossos mantos para criar uma noite escura que superasse os raios róseos do poente que tingiam a parede à nossa frente. Não sei quanto a meus dois amigos, mas eu tive um sono tranqüilo, livre de sobressaltos, pois o sonho que tive, e do qual me lembro tão vivamente, foi belo e acalentador. Nele eu me encontrava na estrada para Jerusalém, e ainda era Joab de Tiro, mas com alguma coisa a mais, pois tinha a alma cheia de felicidade. Por trás de um oásis, que eu sabia ser o de Abel-beit-Maaca, de tão triste memória, vi surgir à beira da fonte uma mulher, que tanto tinha o rosto de minha mãe quanto o da mãe de Hiram-Abiff, apanhando água em dois cântaros de barro, um pintado de azul índigo e o outro feito de barro muito vermelho. Ao ver-me, a mulher, cujo rosto mudava permanentemente, sorriu para mim, e começou a derramar a água do jarro azul no jarro vermelho, sem que este se enchesse nem aquele se esvaziasse. Seu manto negro estufou-se às suas costas e se abriu, deixando que brilhassem ao sol do deserto duas asas de brancura incomparável, que adejavam levemente, enquanto do fundo da fonte subia à superfície uma pedra branca de perfeição indescritível. Acordei repentinamente, sem susto de espécie alguma, e olhando a parede à minha frente espantei-me com a cor rosada com que o sol a tingia, levando-me a crer que ainda fosse o entardecer e que eu tivesse dormido por apenas alguns minutos. Mas o aumento da luz e dos ruídos externos à nossa cabana me fez crer que o dia já nascia, e que mais uma jornada de trabalho nos aguardava, dessa vez recheada com a promessa de nossa transformação em pedreiros.

Na manhã seguinte, quando se aproximava a hora do almoço, Nehemias pediu que eu, Manassés e Adonias o acompanhássemos. No caminho, encontramos os farneleiros, com suas bandejas carregadas, e apanhamos nossa ração: pão ainda quente, azeite puro e perfumado, duas bolas de queijo para cada um e um figo muito fresco. Dirigimo-nos para o outro lado do grande salão, onde o grupo de cananitas comandado por Joel estava sentado em círculo, iniciando sua refeição, No centro desse círculo estavam algumas bilhas d'água com as quais os quase sessenta homens se dessedentavam, comendo em completo silêncio, Joel era um cananita de cabelos muito crespos e grisalhos, e de seu rosto pouco se podia ver, devido à longa e hirsuta barba que usava. Vestia uma túnica como as nossas, mas usava seu manto à moda cananita, traspassado pelo ombro esquerdo, deixando o braço direito inteiramente livre, e em sua cintura estava um avental como o de Nehemias, feito de pele de carneiro branca, com uma aba que o fechava pela parte de cima. Nehemias aproximou-se da roda, liderando nosso pequeno grupo, e Joel ergueu-se ao vê-lo, dando alguns passos em nossa direção. Os dois, Nehemias e Joel, após erguerem uma das mãos para o alto, enquanto a outra pousava sobre o coração, se abraçaram longamente, saudando-se com um beijo na face esquerda. Joel, silenciosamente, fez um gesto para que Nehemias tomasse assento a seu lado, e Nehemias nos indicou com outro gesto. Joel, sem compreender nada, estendeu sua hospitalidade a nós outros, e os quatro encontramos lugar entre os trabalhadores cananitas.

Comemos em silêncio durante quase meia hora, enquanto meus nervos tremiam pela ansiedade que me tomava. O grupo era inteiramente formado por cananitas, entre os quais nenhum de nós destoava, pois éramos todos, com pequenas diferenças, do mesmo tipo moreno. As bilhas d'água que passaram de mão em mão depois que o alimento já tinha sido comido circularam diretamente, sem que nada indicasse haver qualquer diferença entre nós. Mas mesmo sentindo que estávamos integrados a este grupo, minha mente fervia de curiosidade: o que Nehemias preparava para nós? Por que estávamos aqui, entre cananitas? Seria por acaso entre eles que aprenderíamos a trabalhar com maço e cinzel? Por que, se havia tantos hebreus exímios na arte, teríamos de cumprir nossa tarefa tão afastados de nosso grupo original? Se esta era a intenção de Nehemias, seríamos aceitos entre o grupo de Joel? A comida travava em minha garganta, que se fechava pela minha ansiedade.

Quando a refeição estava completamente terminada, Nehemias afastou-se do grupo com Joel, e começaram a conversar com intimidade, a alguns passos de nós, olhando em nossa direção por diversas vezes. Todo o grupo de cananitas, sem mesmo o perceber, foi se afastando de nós, abrindo um grande claro à nossa volta e nos deixando sós e isolados, sem saber onde meter a cara e as mãos. Nehemias insistiu muito, pude perceber, e Joel por diversas vezes sacudiu a cabeça em negativa, mas afinal, depois de algum tempo, os dois se abraçaram e beijaram como sinal de que estavam em acordo um com o outro. Voltaram-se em nossa direção, e Nehemias, aproximando-se de nós, disse:

— De agora em diante os três estão por conta de Joel, o cananita. Com ele poderão aprender tudo sobre o trabalho do cinzel. No teu caso, Johaben, isso não te eximirá da marcação da rocha: teu talento tão único não pode ser desperdiçado. Enquanto não encontrarmos outros marcadores tão bons quanto tu, continuarás a marcar a rocha quando for necessário. A disciplina entre os cananitas é muito mais estrita do que entre nós, e a palavra desnecessária é considerada como grande desonra. Deveis vos acostumar com o silêncio quase que absoluto, pois é requisito indispensável para estar entre eles. Vossa vida não mudará tanto assim: continuareis juntos, ocupareis o mesmo dormitório de antes, e podereis juntar-vos a nós quando das vossas orações de Shabbath. Mas trabalhareis, vos alimentareis e aprendereis a arte aqui com os cananitas, sob o comando de Joel, que tudo sabe sobre ela e é por isso muito mais estrito que todos os seus trabalhadores juntos. Boa sorte, e que a bênção de Yahweh esteja convosco.

Nehemias afastou-se de nós sem sequer um olhar para trás. Voltamo-nos ansiosos para Joel, que com um simples aceno de cabeça nos levou até nosso novo lugar de trabalho. Era a caverna na qual eu tinha visto a rocha mudar o desenho de seus veios, e da qual saíam agora os blocos que melhor se transformavam em pedras cúbicas. Todos entraram na caverna e iniciaram a retomada de seus afazeres, mas Joel nos reteve antes do umbral. Mandou que nos sentássemos à porta da caverna e dirigiu-se ao fundo da mesma, enquanto eu e meus dois amigos nos sentíamos com grande vontade de desistir, tal a diferença de tratamento que estávamos encontrando em nosso novo grupo. Éramos três jovens, e a sensação geral de impedimento que vigorava entre os cananitas soava como a morte de nossas almas. Mas desejávamos mais do que tudo aprender a arte do pedreiro, e com o ágil e cortante cinzel transformar rochas disformes em belas pedras para a casa de Yahweh. Por este motivo tudo aceitaríamos, já que desejávamos muito mais do que tínhamos ou éramos: Adonias, o soldado de linguagem poética, desejava mais do que nunca ver a rocha bruta transformar-se em suas grandes mãos delicadas; Manassés pretendia produzir as pedras mais perfeitas em honra a seu deus Yahweh; e eu precisava criar alguma beleza, para limpar minha vida do bafio de destruição que a marcava. Não me interessava mais apenas rasgar a rocha e extrair dela os blocos de pedra, pois isso era nada mais nada menos que a destruição das paredes da caverna, tão belas e íntegras em sua antiguidade imutável, e eu de destruição já vivera mais do que a minha parte. Mas criar novas pedras de perfeição absoluta, para com elas erguer as novas e belas cavernas inventadas pelo homem, nas quais se prestaria devoção a um deus, igualando-nos de certa forma a ele, isto era criar um novo mundo. E eu, absolutamente cansado de todas as formas pelas quais o mundo velho se mostrava a mim, desejava ardentemente renascer nesse novo mundo de pedra que ajudaria a erguer, pela força de meus punhos e pela beleza de minhas obras.

 

Joel voltou do fundo da sala acompanhado por três qanaanitas um pouco mais velhos que nós, carregando três pedras em estado bruto, de aparência grosseira e pesada, ainda soltando o pó de sua extração, que foram jogadas a nossos pés. Os três se afastaram e Joel, acocorando-se à nossa frente, falou em voz mansa e pausada, sem tirar os olhos de nossos olhos:

— O silêncio, para nós, vale mais do que tudo, pois as palavras, de tanto serem ditas impensadamente, perderam seu valor. O silêncio da pedra, portanto, tornou-se o símbolo daquilo que buscamos: nossa integridade. Cada um desses blocos é como se fosse um de nós. Precisa ser trabalhado em silêncio, para que possa perder tudo o que é supérfluo e desordenado, e transformar-se na mais perfeita pedra cúbica que possa existir. Dentro de cada uma dessas rochas disformes existe uma pedra cúbica polida e perfeita, esperando que o homem certo a extraia de sua prisão. Aproveitai bem o tempo que vos é dado de contato com a pedra, sabendo que de cada vez que o cinzel a fere, extirpando dela o que nela está sobrando, ela se torna mais perfeita. Aprendei a reconhecer que enquanto cada um de vós trabalha a pedra, a pedra também trabalha cada um de vós. Deixai que o cinzel e o maço da pedra firam o que existe de supérfluo em vós, transformando-vos.

Estendendo as mãos para a frente, Joel entregou um cinzel e um maço de madeira a cada um de nós, enquanto os três qanaanitas voltavam carregando três aventais brancos como o que ele usava. Eram feitos também de pele de carneiro, e a abeta levantada mostrava uma bolsa vazia, que era o avental propriamente dito. Joel continuou falando com sua voz pausada e grave:

- Estas são as ferramentas que usareis. Deveis devolvê-las no fim de cada dia para recebê-las de volta a cada manhã. Vossos aventais devem ser usados apenas para proteger-vos, e nunca como bolsa para guardar o que quer que seja. Por isso é que as abetas que os fecham devem estar permanentemente erguidas, exibindo sua vaziez. Nada podeis possuir, pois não tendes ainda o domínio de vosso ofício. Sois ainda aprendizes de pedreiro, e até demonstrardes capacidade maior que esta que naturalmente tendes, como tal sereis tratados. Lembrai-vos: deveis viver silenciosos como a pedra na qual estareis trabalhando. Dito isso, Joel se retirou para o fundo de sua sala, onde começou a exercer suas funções do dia, e lentamente todos os qanaanitas se voltaram para seus afazeres, deixando a mim e a meus amigos sozinhos sob o umbral, sem saber por onde começar. Cada pedaço de rocha à nossa frente parecia intocável, indestrutível, em sua natureza desordenada e rija, mas nós sabíamos que, trabalhado do jeito certo, cada um daqueles blocos seria dútil e maleável. O cinzel que nos deram era de ferro, com uma ponta em aresta de corte, dentada e aparentemente pouco precisa, e a outra ponta rombuda e grossa, feita para ser atingida pelo maço de madeira escura, quase uma bola de tão arredondado. Já tínhamos visto isso: o pedreiro colocava a ponta de corte do cinzel na pedra, batia na outra ponta com o maço e recortava da pedra tudo aquilo de que não tinha mais necessidade. Não devia ser muito difícil: Manassés foi de nós três o primeiro a experimentar seu novo ofício, colocando o cinzel sobre o bloco e batendo nele com o maço. Nada aconteceu. Ele bateu com mais força e o cinzel resvalou, escapando da pedra e quase acertando sua coxa esquerda, deixando um risco esbranquiçado na superfície. Adonias, vendo aquilo, decidiu-se também a experimentar suas ferramentas: colocou o cinzel bem no meio do bloco, em posição rigorosamente vertical, e acertou-lhe uma pancada tão forte com o maço que o bloco rachou em quatro pedaços sem serventia. Os dois olharam para mim, que me senti na obrigação de também experimentar. Coloquei o cinzel na borda da pedra, segurando-o com a mão bem firme, e ataquei-o com o maço. Infelizmente o maço resvalou, o cinzel saiu de posição e eu acertei meu dedo polegar, esmagando-o contra a pedra. O grito que eu dei não foi nada agradável de ouvir, mas as risadas dos outros operários da caverna, que mesmo sem olhar sabiam o que tinha acontecido, como se já estivessem esperando por isso, foi muito pior. No meio da forte dor, segurando meu polegar que latejava, minha vontade era exclusivamente jogar tudo para o lado e sair dali. Mas a face de Nehemias veio à minha mente, dizendo que eu desistia muito facilmente das coisas, e eu me senti na obrigação de insistir, quanto mais não fosse para contrariá-lo.

Olhei para os operários da caverna, que ainda tinham um sorriso de mofa no rosto, e entre eles vi Joel, que ergueu seu braço direito e colocou um dedo na frente dos lábios, claramente me relembrando da exigência de silêncio que me fizera. Uma onda de raiva cresceu dentro de mim: como fazer silêncio quando a dor da pancada é quase insuportável? Enfiei o dedo ferido na boca, tentando acalmar a dor, e o gosto de pó de pedra quase me sufocou. Após algum tempo a dor começou a amainar, e eu tirei o dedo da boca para olhá-lo. Estava inchado e avermelhado, e debaixo da unha uma mancha roxa começava a se espalhar. Um dos trabalhadores de Joel trouxe um novo bloco para Adonias, e nós ficamos novamente a sós, tentando descobrir a maneira de trabalhar a pedra.

Os blocos de pedra saíam da mesma parede que eu conhecia, pois ela me tinha mostrado sua conformação interna, seus veios, suas linhas de corte. Mas os blocos eram rigorosamente inertes: nada diziam, nada exibiam, parecendo apenas pedra, matéria sem nenhuma vida. Não era possível que, uma vez separadas de sua rocha-mãe, as pedras perdessem qualquer resquício daquele tipo de fluxo que me permitiram conhecer. Fixei meu olhar nas pedras à nossa frente, com os olhos semicerrados, tentando desvendar sua estrutura, mas o castanho amarelado rajado de marrom mais escuro parecia definitivamente morto, acabado, impossível de abrir. Se as grandes rochas ainda intocadas tinham uma alma, onde estava a alma dessas pedras menores?

Tal pensamento me levou a mim mesmo, pois se a noção de identidade entre mim e a pedra tinha sido clara, no dia da luz dourada, essa noção viera lentamente se apagando e sendo substituída por outras questões mais práticas, como o corte das pedras e a descoberta de que cada rocha produziria pedras diferentes. Mas eu sentira verdadeiramente que a pedra e eu éramos uma só coisa, e essa identidade mútua era a fonte de meu talento inexplicável de marcador. O que havia mudado em mim depois desse dia? Se eu realmente mudara, o quanto teria mudado em relação ao Joab que tinha sido, ou melhor, ao homem que era, o que havia se transformado para que eu me tornasse o homem i hoje? Era preciso que eu me afastasse igualmente tanto de Joab quanto de Johaben, para poder enxergar de maneira correta a realidade dos fatos.

Entre Joab e Johaben havia um abismo quase intransponível de diferenças. Se Joab vivera o período mais fértil de sua jovem vida em meio ao luxo e à riqueza, fazendo uso de seus talentos de financista para aumentar sua fortuna, mesmo que para isso tivesse de prejudicar quem quer que dele se aproximasse, Johaben hoje se encontrava forçosamente igualado a todos os outros com quem convivia, na frugalidade e na pobreza, dividindo de si com os outros e aprendendo a duras penas o valor do trabalho. Mas seria verdadeiramente riqueza aquilo que Joab possuía, quando seu mundo era feito de coisas materiais? Eu achava que não, porque dentro de mim, agora que eu era Johaben, os sentimentos e emoções eram outros, e deles só eu podia falar, porque só eu é que os sentia. O maior símbolo dessa mudança era sem dúvida meu sono, que agora era direto, profundo, constante, livre dos pesadelos que me tinham assombrado durante todos os meus anos no porto de Tiro. A sensação de perigo iminente que era o meu natural durante esse tempo, quando meu corpo e minha mente estavam sempre alertas e amedrontados, esperando a qualquer momento uma mudança dos ventos para pior, não existia mais. Mesmo agora, quando tinha muito mais a ocultar e com que me preocupar, eu estava limpo e claro por dentro, e creio que a época em que eu escondia e abafava minhas emoções e sentimentos em nome do sucesso e do ganho material não existiam mais. Joab estava verdadeiramente morto, e um homem novo estava nascendo das cinzas dele, como na lenda grega do pássaro dera nome ao povo de Joab, se bem me lembrava da história que Hiram, rei de Tiro, um dia contara em minha presença. Em paz comigo mesmo, suspirei profundamente e abri os olhos, olhando a pedra.

De forma muito estranha, como se estivesse com a visão dobrada, eu comecei a enxergar uma pedra dentro desta pedra, as duas ao mesmo tempo. Só sei que não estava vesgo porque as pedras que eu via, uma dentro da outra, eram completamente diferentes: a de fora era a mesma que o trabalhador de Joel pousara à minha frente, só que exibindo desta vez uma qualidade translúcida que desvendava a pedra de dentro dela, um cubo de acabamento impecável, arestas perfeitas, polimento sem nenhuma falha, como a que eu vira erguer-se do lago em meu sonho. Eu via o presente e o futuro ao mesmo tempo, enxergando a pedra que era e a pedra que viria a ser. Esta era a pedra perfeita que eu buscaria desse dia em diante, e não descansaria enquanto não conseguisse realizá-la. Manassés e Adonias olhavam cada um a sua própria pedra, e eu tive a certeza, antes que nossos olhares se encontrassem, de que me diriam o que me disseram:

— Johaben, olhai! exclamou Manassés, tomado de encantamento. Há uma pedra dentro desta pedra!

— Eu também a vejo! — completou Adonias, sem dúvida o mais emocionado dos três. — Joel tinha razão, basta livrar a pedra bruta de todas as suas impurezas para que dela surja a verdadeira pedra que é!

Partilhar uma visão tão forte e esclarecedora com meus melhores amigos foi tocante demais para mim. O Johaben que agora eu era, como a pedra dentro da pedra, nascera de um Joab que estava oculto sob as impurezas da vida desregrada e sem sentido nenhum a não ser o ganho indiscriminado. Nossas mãos se uniram por sobre a matéria de nosso destino, e enquanto um riso de contentamento nos assomava, reiniciamos nossa tentativa de trabalhar a pedra disforme à nossa frente. Inexplicavelmente ou não, desta vez nossos esforços foram coroados de êxito, cada um à sua maneira. Manassés conseguiu marcar, da melhor forma possível, o caminho que seu cinzel percorreria para produzir uma das faces da pedra cúbica que desejava fazer, e Adonias, cheio de confiança, começou a tirar grandes lascas de pedra das faces do bloco, o som de seu cinzel mordendo a pedra e superando todos os outros. Eu, por minha vez, tentei enxergar na pedra ainda translúcida o que era supérfluo para a sua transformação, antes de feri-la com meus instrumentos. Durante muito tempo estivemos por conta desse trabalho, até que nossas mãos desacostumadas às posições exigidas pelo maço e cinzel exigiram um descanso. Joel, percebendo que tínhamos parado, veio em nossa direção, para examinar o progresso de nossos esforços, e diversos de seus trabalhadores o acompanharam até nós.

O bloco de pedra de Manassés mostrava apenas meia face razoavelmente lisa, pois trabalhara com grande cuidado, temendo errar. Adonias, que embarcara em seu trabalho com grande confiança, exibia um início de pedra cúbica muito promissor, com um grande defeito: era pequeno demais, pois em seu contentamento ele havia extirpado mais do que devia, produzindo um bloco que não teria nem a metade do tamanho que se esperava. E eu, com minhas mãos quase sangrando, ainda pretendendo perseguir a visão da pedra interna, tudo o que conseguira tirar de supérfluo vinha acompanhado de pedaços a mais, fazendo com que meu bloco não tivesse nem de longe o formato cúbico que deveria ter. Segundo meu ponto de vista, aparentemente o mesmo dos seguidores de Joel, que riam de nós, éramos um fracasso. Além de tudo, meu dedo polegar estava mais inchado ainda, e a mancha de sangue pisado era agora negra debaixo da unha, que parecia solta da carne, e com certeza cairia nos próximos dias.

Joel, no entanto, foi extremamente gentil para conosco. Explicou-nos que o trabalho na pedra tem de ser feito tanto com cuidado quanto com decisão. Pedindo que usássemos nosso bom senso na observação de nosso trabalho, ponderou com a seguinte frase, da qual nunca mais me esqueci:

— É preciso refrear-se quando se está entre duas quantidades contrárias. Para encontrar o equilíbrio entre elas, é preciso multiplicar a menor ao mesmo tempo que se reduz a maior.

A frase caiu entre nós definitivamente, e um tempo de silêncio correu, enquanto tentávamos aplicá-la à nossa experiência. Eu, ansioso por resultados, questionei:

— Joel de Qanaan, é difícil comandar as ferramentas com mãos tão destreinadas. Se ao menos houvesse alguma ferramenta mais precisa, que nos permitisse medir a retidão do que esculpimos...

— Estas ferramentas existem, mas antes de pordes as mãos nelas é preciso que demonstreis de maneira absoluta vossa capacidade de criar uma pedra cúbica digna deste nome. Se não o fizerdes, tudo permanecerá como sempre. Se o fizerdes, trabalhareis como pedreiros na grande sala central.

Joel interrompeu sua frase, deixando em mim a certeza de que tinha mais para dizer, e voltei a questioná-lo:

— É só isso o que poderemos ser? Joel olhou-nos com seriedade:

— Se não fordes capazes de ser mais que um trabalhador das pedreiras, de que adianta falar nisso? Mas, se fordes capazes, quando a hora chegar, sabereis do que existe além desta caverna, e podereis tomar vossa decisão. Cada coisa a seu tempo. Tomai vossos cinzéis e reencetai vosso trabalho: pretendo ver três pedras cúbicas de qualidade em vossas mãos no fim do dia de amanhã.

Afastando-se de nós, Joel voltou para seus trabalhadores, que não tinham interrompido seus esforços nem por um segundo, numa impressionante disciplina. Eu, Manassés e Adonias, emudecidos pela responsabilidade que nos havia sido posta sobre os ombros, trememos de susto quando ouvimos as trombetas que marcavam o final do dia de trabalho. Só teríamos o dia seguinte para executar nossa tarefa, que com toda certeza exigiria muito mais que o tempo disponível para ser realizada. Uma nuvem de negatividade nos cobriu durante um tempo e foi muito a custo que nos levantamos de nosso lugar para sair das pedreiras e tomar assento no jantar à porta de nosso alojamento.

Sob a luz da lua, tocados pelo vento quente do deserto, promessa de noite bastante fria, eu, Manassés e Adonias permanecemos à porta de nosso alojamento, buscando uma solução para nossos problemas mesmo quando todos os outros já ressonavam em seus leitos. Eu me sentia tão incapaz, com o meu polegar esquerdo completamente roxo e latejante, que por diversas vezes estive a ponto de desistir. Sei que, se tivesse aventado tal hipótese, teria sido seguido de perto por Adonias: mas Manassés, cheio daquele otimismo que eu nunca soube onde ele encontrava, ergueu-se sobre os dois pés e, falando o mais alto que podia, disse:

— Desistir, a essa altura dos acontecimentos? Isso nunca! Recuar seria desperdiçar tudo o que conseguimos até agora! Vamos insistir: prefiro que me digam que eu não sou capaz a ficar para o resto da vida pensando no que teria acontecido se eu tivesse feito o que devia.

— Mas, Manassés — replicou Adonias, cheio de sono —, por mais que trabalhemos, por mais que nos esforcemos, nem mesmo se formos ajudados por um anjo do Senhor, conseguiremos terminar as três pedras até o pôr-do-sol de amanhã! Não vim até aqui, abandonando a carreira de soldado, para falhar. Aprendi que minha única obrigação é cumprir o meu dever, e agora meu dever é este: fazer a pedra. E eu farei, nem que seja para que me digam que está malfeita, cometendo um crime pelo qual deverei abandonar Jerusalém para todo o sempre! Se pelo menos tivéssemos mais tempo...

Manassés saltou, como que mordido por uma brilhante e repentina idéia:

Pois temos! Quem foi que disse que é proibido trabalhar à noite?

fiquei preocupado:

Manassés, isso é uma loucura! Tu pensas que nos deixarão entrar nas pedreiras a esta hora? Deves estar fora de ti! Pois se nem ferramentas temos, como poderemos trabalhar a pedra?

Manassés, puxando-nos pelas túnicas, foi nos levando para fora do alojamento, caminhando em direção à boca da caverna, enquanto defendia sua idéia com argumentos irrefutáveis:

- As cavernas ficam desertas à noite. É só acendermos algumas lamparinas de azeite e teremos tempo suficiente para trabalhar nossos blocos de rocha. Além do mais, eu sei onde Joel guarda as ferramentas de nosso grupo: em uma fissura na parede norte de nossa sala, coberta por um bloco de pedra quase negra. Se as sentinelas estiverem por perto, Adonias pode usar seus conhecimentos do tempo em que era soldado e lhes dizer a senha.

— Não sei se a senha ainda é a mesma — retrucou Adonias, entre amedrontado e excitado —, mas, se for, com toda certeza conseguiremos passar. Não sei é se valerá a pena perder uma noite de sono, ainda mais sabendo que o dia de amanhã vai ter de nos encontrar espertos e prontos para o trabalho duro. Tu achas mesmo que poderemos adiantar nosso serviço, Manassés?

— Sem sombra de dúvida!

Manassés, quase maníaco, nos empurrava para a porta da caverna. Para nossa sorte, não havia nenhuma sentinela à vista. Depois de mais de um ano de trabalho nas pedreiras, já não havia mais por que manter a estrita vigilância dos primeiros dias: todos nós, os escravos qanaanitas inclusive, estávamos completamente integrados e acostumados à vida de trabalho sem descanso, não encontrando razão nem mesmo para nos rebelarmos. Éramos alimentados e vestidos com razoável fartura, não havendo diferença de tratamento entre nenhum de nós, como propusera Hiram-Abiff.

Já nos transformáramos em uma sociedade da pedra, com regras particulares naturalmente obedecidas e que destacavam apenas os melhores artesãos, os quais recebiam como vantagem apenas o respeito e a admiração de seus iguais, sem honrarias nem prêmios materiais de nenhuma espécie.

Chegamos à nossa sala rapidamente, e Manassés, ajudado pelo forte Adonias, afastou a pedra quase negra que ocultava as ferramentas de nosso grupo, entregando em nossas mãos três cinzéis acompanhados de seus respectivos maços, e imediatamente nos pusemos ao trabalho, ferindo os blocos de pedra que Joel havia posto à nossa frente no dia anterior, depois de substituir a pequena pedra de Adonias por um bloco de bom tamanho. Se a princípio falamos uns com os outros a concentração no esculpir da pedra acabou exigindo toda a nossa atenção, criando finalmente um silêncio completo, quebrado pelos toques do maço sobre o cinzel e do ranger da pedra quando os dentes da ferramenta lhe mordiam a carne rija. Essa concentração, que nos fazia de novo vislumbrar a pedra que desejávamos extrair perfeitamente definida dentro da pedra que tínhamos, se tornou percepção cada vez mais aguçada de nosso trabalho, e nossos golpes toscos foram se tornando mais e mais precisos. Nossos enganos e erros faziam com que nossa própria carne doesse, como se entre as pedras e nós não existisse nenhuma diferença, e por isso nossos golpes ficaram cada vez mais cuidadosos, até que a pedra passou a nos obedecer sem reservas, tornando-se maleável em nossas mãos. Cada pedaço de pedra que tirávamos do bloco nos dava tanto prazer quanto se estivéssemos tirando de nós mesmos os defeitos e os excessos acumulados durante a vida, e quanto mais nossos blocos se mostravam cúbicos, mais perto da perfeição nos sentíamos.

Não percebemos a passagem do tempo. Quando começamos a ouvir os primeiros ruídos dentro das cavernas, sinal de que o dia já estava nascendo, percebemos encantados que nosso trabalho estava feito. A nossa frente estavam três blocos de duas braças de lado, cúbicos e de arestas perfeitamente definidas e aparadas, semelhantes em tudo e ainda assim diferentes um do outro, com personalidades tão claramente particulares quanto as nossas. Curiosamente estávamos descansados como se tivéssemos passado a melhor das noites de sono. Satisfeitos com nossa realização, aguardamos confiantes que Joel entrasse na sala, para mostrar-lhe nossas obras.

Nosso esforço noturno foi plenamente recompensado. Joel, que a princípio estranhou nossa presença tão cedo no local de trabalho, quando percebeu que passáramos toda a noite trabalhando, encheu-se de justa ira contra nosso excesso, exprobando-nos termos posto as mãos nas ferramentas sem sua ordem expressa. Mas, quando lhe mostramos o produto de nossa noite de dedicação, seu semblante sempre sério se desanuviou, e a sombra de um sorriso de satisfação riscou seus lábios sempre apertados. Mandou que um de seus comandados fosse buscar Nehemias, que chegou logo após. Os dois se saudaram como sempre, e Joel, sem dizer uma palavra sequer, mostrou a Nehemias as três pedras que havíamos produzido. Nehemias, ajoelhando-se no chão, encarou-nos um por um, enquanto apalpava com suas mãos experientes as faces e arestas de nossas obras, como se em nossos semblantes estivesse refletido nosso trabalho. Satisfeito, ergueu-se, cumprimentou Joel e saiu da sala. Joel, indo até a fissura da pedra onde as ferramentas eram guardadas, passou a distribuir com o auxílio de mais quatro irmãos as ferramentas para o trabalho do dia. Passando por nós, fez com que o acompanhássemos, e nos dirigimos para a grande sala central, onde Joel nos colocou junto a vários outros de seus qanaanitas, que já estavam trabalhando a pedra.

Estendendo-nos nossos aventais, que um seu seguidor trouxera consigo, disse-nos:

— Nunca mais deixeis de usar vossos aventais. São o vosso traje, de agora em diante. Ficareis entre este grupo a partir de hoje. Observai, imitai, trabalhai a pedra, obedecei a vossos superiores e tirai vossas próprias conclusões sobre o que significa vosso labor.

Deu um beijo na face esquerda de cada um de nós e afastou-se pelo corredor de pedra sem mesmo olhar para trás. Manassés e Adonias me abraçaram com alegria. Tínhamos conseguido alcançar nosso objetivo, oculto de maneiras diferentes dentro de cada um de nossos corações. O prazer que sentíramos trabalhando a pedra era a partir de agora o nosso dever diário, pelo qual tanto ansiáramos. Admirei-me pelos outros tantos como nós, fazendo uso de seus maços e cinzéis contra a pedra, não estarem em beatífico estado de bem-aventurança. O hábito atenua as coisas, sem dúvida, mas eu podia dizer por mim que a plenitude que eu sentia nesse momento nunca mais se apagaria em mim, não importa quantos anos vivesse ou quantas coisas me acontecessem.

Nossos novos irmãos continuavam trabalhando a pedra, sem prestar muita atenção a nós, e era quase palpável o prazer que sentiam nesse trabalho. Isolados entre a massa de trabalhadores, nós três fomos tomando assento junto a eles, no lugar onde Joel nos deixara, tentando nos integrar ao todo sem causar nenhuma consternação. Mas nesse momento um irmão trabalhador na pedra virou seus olhos para mim e sorriu, com a familiaridade de quem partilha uma verdade experimentada, e meu coração deu um salto. Finalmente eu, Johaben filho de ninguém, nascido das cinzas do que um dia fora o poderoso Joab de Tiro, estava entre meus iguais, cheio de contentamento por essa identidade. Olhei para dentro de mim, naquele lugar onde habitavam todas as minhas dúvidas e questionamentos, e encontrei uma pequena luz que bruxuleava, trêmula mas constante, iluminando uma espécie diferente de orgulho que começava a vicejar dentro de mim.

Finalmente, o que eu tanto desejara se realizava; eu era pedreiro. Mas muito mais do que isso, eu era um só comigo mesmo

 

                                                                                            CONTINUA

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades