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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HISTÓRIA DE UM GALANTE / Karen Blixen
A HISTÓRIA DE UM GALANTE / Karen Blixen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "VT"

 

 

 

Sete Contos Góticos / Isak Dinesen

 

 

Meu pai tinha um amigo, o velho barão Von Brackel, que nos seus tempos foi grande viajante e conheceu muitos homens e cidades. Em nada mais se assemelhava a Odisseus, e dele não poderia de facto dizer-se que fosse engenhoso, pois demonstrou fraquíssima habilidade em gerir os seus negócios. Provavelmente por sentir-se um fracasso sob esse aspecto, cuidadosamente evitava discutir assuntos da vida prática com a nova e mais eficiente geração, os apaixonados por uma carreira e pelo sucesso. Mas de teo-logia, de ópera, de moral, e de outros improfícuos temas falava, e era ouvido, com prazer.

 

Fora na juventude singularmente belo, de uma sorte de beleza ideal, e embora o seu rosto não conservasse agora um só traço dessa be-leza, a história dela podia reconhecer-se na dignidade optimista, na segurança de si, que são o produto de uma carreira de formosura e que, inexplicavelmente, se podem encontrar no porte dessas ruínas trémulas que costumavam olhar os espelhos do século passado com delícia. Assim se poderia apontar, numa danse macabre, os esqueletos dos que foram realmente as flores do seu tempo.

 

Uma noite em que conversávamos, veio à baila um ve-lho tema a que fez jus a li-teratura do passado: só se pode colher um benefício verdadeiro, obter uma satisfação moral duradoura, renunciando a uma inclinação por amor a um princípio. E foi no decurso dessa conversa que ele me contou esta história:

 

Numa noite de chuva do Inverno de 1874, numa avenida de Paris, uma jovem embriagada acercou-se de mim e falou-me. Eu, nessa altu-ra, era, como compreende, muito novo. Estava comple tamente desnorteado, muito infeliz, e sentei-me, sem um chapéu, à chuva, num banco de avenida porque tinha rompido com uma senhora que eu, como nós dizíamos então, idolatrava, e que passara aquela última hora tentando envenenar-me.

 

O caso, conquanto nada tenha a ver com o que ia contar-lhe, foi também uma história curiosa. Durante muitos anos não pensei nele, até que uma noite, da última vez que estive em Paris, vi essa senhora num camarote da Ópera, muito velha agora, acompanhada de duas encantadoras meninas vestidas de cor-de-rosa e que eram, segundo me disseram, suas bisnetas. Ela havia perdido a beleza mas nunca, em todo o tempo que a conheci, eu a vira tão contente. Depois tive pena de não ter ido cumprimentá-la ao seu camarote, pois se o nosso velho romance pouca felicidade nos trouxe aos dois, creio bem que ela havia de ficar tão satisfeita por lhe recordarem a formosa jovem que ela fora, e que tantos homens fizera infelizes, como eu fiquei ao lembrar, vagamente que fosse, o rapaz que em tempos tão infeliz fora por causa dela.

 

A sua grande beleza, a menos que um raro artista tenha podido preservá-la na cor ou no barro, só existirá hoje, talvez, na memória de alguns velhos como eu. Nesse tempo era algo de maravilhoso. Ela era loura, a mais loura mulher, creio, que alguma vez eu vi, mas não era uma destas vossas beldades brancas e rosas. Ela era toda pálida, descolorida, como um velho desenho a pastel ou uma imagem de mulher num espelho baço. Naquele corpo frágil e distante albergava-se uma energia ímpar, e uma distinção que as mulheres de hoje não têm, ou já não querem ter. Vira-a e apaixonara-me por ela no Outono, no château de um amigo que nos acolhera, como aos outros desse imenso grupo de jovens descuidados que estarão hoje, se é que ainda vivem, fanados, corcundas e surdos. Estávamos ali para caçar, e creio que lembrarei até ao fim dos meus dias a sua imagem sobre um grande cavalo baio que ela tinha, e essa brisa de Outono com prenúncios de geada, quando voltávamos ao cair da tarde, quentes nas roupas frias, cansados, atravessando lado a lado uma velha ponte de pedra. O meu amor era a um tempo humilde e audacioso, como o de um pajem pela sua senhora, porque ela era tão admirada, a sua beleza tinha um tal quê de desdém, que chegaria a dar sonhos tristes a um rapaz de 20 anos, pobre e estrangeiro no seu círculo. Por isso cada hora que passávamos juntos, cavalgando, dançando, ou com pondo tableaux vivants, era exuberante de dor e de êxtase, aquilo que você saberá por si: toda uma orquestra a vibrar no coração. Quando ela me fazia feliz, como se costuma dizer, eu pensava que o era de facto. Lembro-me de estar fumando um charuto no terraço, uma manhã, sobranceiro à larga paisagem de colinas baixas e azuis de arvoredo, e fornecer a Deus uma sorte de receita para a felicidade a que alguma vez me julgasse com direito na vida. Acontecesse o que acontecesse então, tinha vivido a parte que me cabia, e declarava-me satisfeito.

 

O amor, nos muito jovens, não tem coração. Bebemos nessa idade porque temos sede, ou porque nos queremos embriagar; só anos mais tarde nos ocupamos da individualidade do nosso vinho. Um jovem apaixonado vive essencialmente arrebatado pelas forças que possui dentro de si. Há quem volte a esse tipo de amor numa segunda adolescência. Um velho russo, conheci eu em Paris, imensamente rico, que mantinha as dançarinas mais jovens, as mais bonitas, e que, perguntando-lhe alguém se tinha, ou precisava ter, algumas ilusões a respeito do que elas sentiriam por ele, reflectiu na pergunta e respondeu: "Acho que, se o meu cozinheiro me apresenta uma soberba omele ta, não me preocupo muito em saber se ele gosta de mim ou não.» Um jovem não responderia com estas palavras, mas diria talvez que não se importava que o homem que lhe vendia o vinho fosse ou não da sua religião, imaginando estar assim aproximando-se da verdade das coisas. Na meia-idade, porém, chegados a uma humildade mais profunda, começamos a considerar importante que a pessoa que nos vende ou que produz o nosso vinho seja da nossa religião. Neste meu caso, que lhe estou contando, a minha vaidade juvenil, se a tinha em excesso, iria ser em breve castigada. Pois nos meses desse Inverno, enquanto estivemos ambos a viver em Paris, onde a sua casa era o ponto de encontro de muitos bel-esprits e ela a diletante admirada nas artes e na música, comecei a pensar que ela se servia de mim, ou do seu amor por mim, se assim se pode dizer, para fazer ciúmes ao marido. Isto mesmo aconteceu, suponho, a muitos jovens em todos os tempos, sem que a soma das suas experiências sirva de alguma coisa ao jovem que, hoje em dia, se ache na mes-ma posição. Comecei a interrogar-me sobre a relação que existiria entre esses dois, e a força estranha que haveria nela, ou nele, que me fazia assim o joguete de um e do outro, e acho que principiei a ter medo. Ela tinha ciúmes de mim, aliás, e ralhava-me com uma sorte de indignação moral, como se eu fora um cavalariço descuidoso dos seus deveres. Eu pensava que não podia viver sem ela, e que ela também não quereria viver sem mim, mas exactamente o que ela queria de mim eu não sabia. O seu contacto doía-me como dói tocar o ferro num dia de Inverno: não se sabe se a dor é provocada pelo calor se pelo frio.

 

Antes ainda de a conhecer tinha lido que, na sua família, cujo nome percorre séculos da história de França, costumava haver lobisomens, e por vezes achava que me teria dado maior fe licidade vê-la fincar-se em quatro patas e rosnar para mim, porque então saberia o que pensar. E mesmo até ao fim vivemos horas, os dois, de singular encanto, pelas quais sempre lhe serei grato. No primeiro ano que passei em Paris, antes de conhecer alguém ali, dediquei-me a estudar a história dos velhos hôtels da cidade, e este meu passatempo agradou-lhe tanto a ela, que costumávamos mergulhar nos velhos bairros de Paris e no seu passado, longamente falando da época de Abelar do ou de Molière, e enquanto assim brincávamos ela era cheia de seriedade e de gen-tileza como uma rapariguinha. Mas de outras vezes eu pensava que não aguentaria mais, e tentava afastar-me dela, e a mínima suspeita disso bastava-lhe, imagino eu, para a fazer ficar acordada pela noite fora, magi cando novas maneiras de me castigar. A nossa ligação era o velho jogo do gato e do rato - provavelmente o modelo original de todos os jogos que há no mundo. Mas, como o gato põe nesse jogo mais paixão, e o rato apenas o raso interesse pela sobre vivência, este último por força se cansará primeiro. Para o fim, pensei que ela desejava que fôssemos descobertos, tão negligente se mostrava nesta nossa liaison; e nesses dias um romance tinha de ser conduzido com prudência.

 

Lembro-me que, durante este período, fui ao seu hôtel, na noite de um baile a que ela ia, e para o qual eu não fora convidado, disfarçado de cabeleireiro. Nos anos 70 as senhoras usavam grandes chignons, e o trabalho de um coiffeur demorava o seu tempo. E toda essa noite a lembrança do marido me perseguiu como, pensei eu, a sombra gigantesca, sobre um pano de fundo branco, de um polichinelo absurdamente pequeno. Comecei a sentir-me tão cansado - não dela, exactamente, mas na realidade exausto em mim mesmo - que tentava convencer-me a fazer-lhe uma cena de explicações, mesmo correndo o risco de a perder assim, quando subitamente, na noite que lhe estava con tando, ela própria me fez a cena e me pediu as explicações num tal furacão como eu nunca voltei a conhecer igual; e exactamente com as mesmas armas que eu tinha preparado para mim próprio: a acusação de que eu estimava mais o marido do que a estimava a ela. E quando ela me disse isto, naquele seu boudoir azul pálido que eu conhecia tão bem - a caixinha forrada e estofada a seda, muito perfumada, onde as senhoras desse tempo gostavam de ficar, lembro-me ainda, com alguns quadros de flores nas paredes e almofadas maciíssimas espalhadas por todo o lado, e uma pro-fusão de lilases no canto atrás de mim, a luz suavizada por um grande abat-jour vermelho - eu não fui capaz de responder-lhe, pois sabia que ela tinha razão.

 

Se eu lhe dissesse o nome dele havia de o reconhecer, pois ainda hoje se fala desse homem, que morreu há tantos anos. Ou encontrá-lo-ia em qualquer livro de memórias daqueles tempos, porque ele era o ídolo da nossa geração. Mais tarde foi vítima de um grande infortúnio, mas nesse tempo - creio que tinha então 33 anos - o seu passo era tranquilo e banhado por todo o esplendor do seu estranho poder. Ouvi uma vez, por essa altura, dois velhos conversarem sobre a mãe dele, que tinha sido uma das beldades da Restauração, e um deles dizia que ela se carregava de todas as suas famosas jóias com a leveza e a graça com que uma outra jovem se enfeitaria de grinaldas de flores campestres. «Sim - disse o outro depois de reflectir por um momento - e espalhou-as à sua volta, por fim, como flores, á la Ofélia.» Por conseguinte, acho que essa rara leveza que ele tinha, bem como a sua fraqueza, seriam um traço de família. Mesmo os seus mais extravagantes caprichos, e esse maneirismo a que então chamávamos fin de siècle, e que nos enchia de orgulho, tinham o seu quê de grand siècle: uma nobreza pura que era apanágio da velha França.

 

Desde então tenho olhado para esses grandiosos edifícios do século XVII, que parecem tão inadequados à vida diária dos seres humanos, e pensando que devem ter sido construídos para ele - e para sua mãe, talvez - ali viverem. Ele tinha fé na vida, independentemente do sucesso que todos lhe invejávamos, como se soubesse que podia, querendo, conjurar forças maio-res, desconhecidas para nós. Muito pensei sobre o humano fado quando, anos mais tarde, soube que este jovem, perto já do fim do seu trágico destino, respondera, aos amigos que lhe imploravam em nome de Deus, com as palavras do Ajáx de Sófo cles: «Importunas-me, mu-lher. Não sabes tu que eu já nada devo aos deuses?»

 

Vejo que não devia ter começado a falar dele, mesmo à distância de tantos anos; mas o ideal da nossa juventude será sempre um marco entre os acontecimentos e as emoções mortas há muito. Ele em si próprio nada tem a ver com esta história.

 

Disse-lhe já que eu próprio sentia como verdade que os meus sentimentos por essa linda mulher, que eu idolatrava, pouco peso teriam realmente, se comparados ao que eu sentia por aquele homem. Se ele a acompanhara quando eu a conheci, ou se o tivera conhecido a ele primeiro, penso que nem sequer sonharia em apaixonar-me por essa mulher.

 

Mas o amor da mulher por ele, e os seus ciúmes, eram, de facto, de uma estranha natureza. Que ela estava apaixonada pelo marido soube-o desde o momento em que principiou a falar dele. Provavelmente já eu o sabia há muito. E ela era ciumen ta. Sofria, chorava - era, como lhe disse, capaz de matar, se outro expediente não tivesse - e essa luta, que naturalmente seria a única realidade da sua vida, era sempre, não um combate pela sua posse, mas uma competição. Invejava o marido como a mulher inveja uma outra elegante, uma rival, ou se como ela própria fosse também um homem com ciúmes dos seus triunfos. Creio que, dentro de si, ela estava sempre só com ele num mundo que desprezava. Quando cavalgava desenfreadamente, quando se rodeava de admiradores, ela sempre o observava, como um corredor de quadriga tem sempre os olhos postos no adversário que corre a seu lado. Quanto a nós outros, só existíamos na medida em que estávamos destinados a pertencer-lhe a ela ou ao marido, e a sua atitude para com um amante media-se pela atitude da amazona que toma o obstáculo: apenas para acumular mais conquistas do que o homem por quem estava apaixonada.

 

Não posso evidentemente saber como tudo começou entre eles. Posteriormente esforcei-me por acreditar que se ficara a dever a um desejo de vingança por parte dela, em consequência de alguma coisa que ele lhe fizera no passado. Mas eu sentia que esta paixão estéril era o que lhe estava consumindo toda a cor.

 

Agora já percebeu que tudo isto se passou nos pri-meiros tempos dessa era a que chamávamos a da «emancipação feminina». Muitas coisas singulares aconteceram então. Não creio que, ao tempo, o movimento tenha atingido todas as camadas sociais, mas estas jovens da mais alta inteligência, e as mais ousadas e engenhosas de entre elas, saíram do chiaroscuro de milhares de anos, os olhos cegos de luz, loucas do desejo de experimentarem as novas asas. Acredito que algumas delas colo caram a armadura e a auréola de Joana d'Arc, que, ela própria, foi uma virgem emancipada, e se tornaram anjos violentos. Mas a maioria das mulheres, quando se sentem livres de experi mentar com a vida, enfiam-se imediatamente num Sabat de bruxas. Eu até as respeito por isso, e penso que não seria capaz de amar realmente uma mulher que não tivesse tido, uma vez ou outra, o diabo no corpo.

 

Sempre pensei que é uma injustiça para a mulher não ter estado nunca sozinha no mundo. Adão pôde, por um tempo, muito ou pouco, caminhar sobre uma terra jovem e serena, entre os animais, na posse inteira da sua alma, e a maioria dos homens nasce ainda com a memória desse tempo. Mas a pobre Eva, essa, já o encontrou a ele, reclamando-a para si, no momento em que abriu os olhos para o mundo. E isto nunca a mulher perdoou ao Criador: ela sente-se com direito a reaver para si própria esse tempo no Paraíso. Só que, para sua pouca sorte, ao perseguir-se um tempo já passado, sempre o apanhamos de raspão e pelo avesso. Assim estas jovens bruxas alcançavam tudo o que queriam como uma imagem catóptrica.

 

As velhas desses tempos, as defensoras do lar e da Igreja, diziam que a emancipação estava a dar volta à cabeça das raparigas. Provavelmente outras mulheres havia, além da minha amante, que usavam cavalgar os ares, e tinham o rosto implantado na nuca à maneira do caçador maravilhoso da história. E no ar andava também a teoria, logo abraçada por elas, que o ciúme do amante era uma coisa ignóbil, e que nenhuma mulher deveria deixar-se possuir por outro macho que não o diabo. A caminho da união com ele, orgulhavam-se de levar ao homem, segundo se diz no Fausto, sempre mil passos de avanço. Mas o ciúme da competição era, como entre Adão e Lilith, uma nobre contenda. E então via-se não só as velhas bruxas do Macbeth, de quem se podia esperá-lo, mas até as jovens mulheres de faces macias como flores, enlouquecidas, furiosas de inveja do bigode dos amantes. Tudo isto elas aprenderam lendo - à maneira das bruxas ortodoxas - o livro do Génesis de trás para a frente. Por si mesmas, talvez tivessem aproveitado bastante. Foram os pregadores masculinos, servis, medíocres - que faziam, como todos os bruxos homens, tristíssima figura nos Sabats - que lhe destruíram o estilo e o rasgo ao trazê-lo à terra e à alçada das leis da razão terrena. Creio, porém, que as coisas estão mudadas e que, nos dias de hoje, era da emancipação masculina, se achará o jovem amante seguindo o rasto que a sombra da feiticeira deixou marcado e, com uma inventiva infinitamente menor, misturando à lareira a mortal poção que lhe dará, cheio de inveja dos seus seios.

 

O papel que me coube na história da minha jovem bruxa emancipada não foi nada lisonjeiro. Não obstante, creio que ela gostava desesperadamente de mim, provavelmente com esse tipo de paixão que a menina sente pela sua boneca favorita. E, sob esse prisma, eu fui realmente a figura central do nosso drama. Se ela fora Otelo, seria eu, e não o seu marido, quem deveria aceitar o papel de Desdémona, e posso perfeitamente imaginá-la a suspirar, «Ah, que dor, fazê-lo, Iago», por este caso infeliz, querendo até dar-me um beijo e outro ainda, antes de acabar com tudo. Só que ela não queria matar-me por justiça ou por vingança. Ela queria destruir-me para que não tivesse de perder-me e ver alguém que lhe pertencia e que lhe era muito querido passar para o seu rival, à maneira de um resoluto general que prefere fazer explodir a fortaleza que não pode defender a vê-la cair nas mãos do inimigo.

 

Foi quase no fim da nos-sa entrevista que ela tentou envenenar-me. Creio bem que o seu plano era outro, que tencionava dizer-me o que pensava de mim quando eu já tivesse ingerido o veneno, mas que foi incapaz de controlar-se por tanto tempo. Como há-de compreender, ha-via qualquer coisa de artificial em tomar um café na-quela altura do nosso diálogo. A maneira como ela in-sistiu para que o tomássemos, e o seu súbito silêncio de morte quando ergui a chá-vena para a levar aos lábios, traíram-na. Ainda me lembro, embora apenas lhe tenha tocado, do gosto insípido e letal do ópio e, se tivesse esvaziado a chávena, não sentiria o estômago revolver-se mais ou a medula dos ossos desfazer-se tanto como à convicção abrupta e fatal de que ela queria ver-me morto. Deixei cair a chávena, desfalecido como um homem prestes a afogar-se, e ali fiquei a olhar para ela, e ela teve um movimento incontrolado, como se quisesse ainda atirar-se a mim. Ficámos então imóveis por um minuto, ambos sabendo que tudo estava perdido. E, instantes depois, ela vacilava, soluçando, as mãos tapando a boca, subitamente transformada numa mulher muito velha. Por minha parte, eu não conseguia articular um som, e creio que fugi daquela casa mal tive forças para mexer-me. O ar, a chu-va, e a própria rua vieram ao meu encontro como velhos amigos esquecidos, leais ainda nessa hora de aflição.

 

E fui então sentar-me num banco da Avenue Montaigne, com todo o edifício do meu orgulho e felicidade jazendo a meus pés em ruínas, num enjoo mortal de horror e humilhação, quando essa rapariga, de quem eu lhe falava, se dirigiu para mim.

 

Creio que fiquei ali sentado durante algum tempo, e ela ficou a observar-me até reunir coragem para se aproximar. Provavelmente sentia uma qualquer afinidade entre nós, julgando que também eu estava embriagado, já que ninguém no seu juízo se vai sentar à chuva sem um chapéu, e talvez também porque a minha idade era tão próxima da sua. Não ouvi o que ela disse, nem da primeira nem da segunda vez. Não estava com disposição para conversas com raparigas da vida. Creio que foi por puro instinto de conservação que finalmente a olhei e a ouvi. Tinha de fugir aos meus próprios pensamentos, e qualquer ser humano seria bem-vindo se me ajudasse a fazê-lo. Mas ao mesmo tempo havia uma graciosidade, uma expressividade extraordinárias na rapariga, que talvez me tenham despertado a atenção. Ela estava parada à chuva, as faces cobertas de rouge, os olhos radiosos como estrelas, muito direita embora mal se firmasse nas pernas. Como eu continuasse a fitá-la, ela riu-se, num riso baixo e claro. Era muito jovem. Segurava o vestido com uma das mãos - nesses tempos as mulheres usavam vestidos de cauda na rua. Na cabeça tinha um chapéu preto com plumas de avestruz, que a chuva fazia pender tristemente, e que lhe sombreava a testa e os olhos. A curva suave e fir-me do seu queixo e o pescoço redondo e jovem brilhavam à luz do gás. É assim que ainda a vejo, embora dela guarde uma outra imagem também.

 

O que nela me impressionou foi o parecer toda fremente de um estranho alvoroço, como embriagada pela si-tuação. O seu modo de abordar-me não foi o convencional. Parecia alguém embarcado numa grande aventura, ou alguém que calasse um se-gredo. Creio que, ao olhá-la, comecei a sorrir, com um sorriso feito de amargura e turbulência que só os jo-vens conhecem, e que isso lhe deu coragem. Aproximou-se mais. Remexi o bolso à procura de algum dinheiro para lhe dar, mas não trazia dinheiro comigo. Levantei-me e principiei a andar, e ela seguiu-me, caminhando a meu lado. Lembro-me de sentir um certo conforto em tê-la perto de mim, porque eu não queria estar sozinho. Foi assim que aconteceu eu deixá-la acompanhar-me.

 

Perguntei-lhe o nome. Disse que se chamava Nathalie.

 

Nesta época eu tinha um emprego na Legação, e habitava um apartamento na Pla-ce François I, de modo que não tivemos de andar muito. Estava preparado para voltar tarde a casa, e nesses tempos, em que voltava a de-soras, costumava ter um lume aceso e uma ceia fria à minha espera. Quando entrámos o aposento estava quente e iluminado, e a mesa estava posta para mim em frente à lareira. Havia uma garrafa de champanhe no gelo. Eu costumava ter sempre uma garrafa de champanhe para quando voltava das minhas heures du berger.

 

A rapariga olhava em volta com uma expressão contente. Aqui, à luz do candeeiro, pude ver realmente como ela era. Os caracóis sedosos eram castanhos, e os olhos azuis. O rosto era redondo, de larga fronte. Era maravilhosamente bonita e graciosa. Creio que ela me maravilhava como alguém se maravilha ao encontrar um ramo de rosas frescas na sarjeta, nada mais. Se estivesse no meu estado normal, suponho que teria procurado extrair-lhe uma explicação do mistério que ela era, mas penso que tal nem me ocorreu.

 

A verdade é que ambos devíamos estar numa disposição de espírito bem singu-lar, e que talvez nunca se tenha repetido nela ou em mim. Eu sabia tão pouco do que a comovia, como ela sa-beria do meu estado de ânimo, mas, extremamente agitados e tensos ambos, encontrávamo-nos numa especial harmonia. Eu, em parte atordoado e em parte anormalmente sensível e desperto, tomei-a em todo o meu egoísmo, sem dedicar um pensamento ao lugar de onde ela viera, e onde voltaria a de-saparecer, como se ela fos-se uma dádiva, e a sua presença um acaso bom e amistoso do destino, nesse momento em que eu não podia ficar só. Parecia-me que ela tinha surgido, como um pequeno espírito travesso, da grande cidade que se estendia lá fora - Paris, que a todo o momento pode prestar-nos fa-vores inesperados - e que a tinha mandado a ela no momento exacto. Do que ela pensava de mim ou do que sentia por mim, nada poderei dizer. Nesse momento eu não pensava nisso, mas agora, olhando para trás, creio que também eu devo ter simbolizado alguma coisa para ela, fraca existência tendo como indivíduo.

 

Senti que era como uma grande felicidade, um calor que me avivasse, que ela fosse tão jovem e bonita. Fez-me rir de novo, depois daquelas horas sombrias e sinistras. Tirei-lhe o chapéu, ergui-lhe o rosto e beijei-a. Então me dei conta de como ela estava encharcada. Deve ter andado durante horas à chuva, pelas ruas, porque as suas roupas eram como as penas de uma galinha molhada. Fui até à mesa e abri a garrafa, enchi um copo e estendi-lho. Ela bebeu de pé em frente ao lu-me, os caracóis molhados e soltos tombando sobre a testa. Com as faces vermelhas e os olhos brilhantes, ela parecia uma criança que tivesse acordado, ou uma boneca. Bebeu metade do vinho, muito lentamente, os olhos postos em mim, e, como se esse meio copo de champanhe a tivesse levado a um ponto em que já não podia manter-se calada, ela principiou a cantar numa voz baixa, sua-ve, mal movendo os lábios, os primeiros versos de uma canção - uma valsa - que então se cantava em todos os teatros de variedades. Interrompeu-se, esvaziou o copo e entregou-mo. Á votre santé, disse ela.

 

A sua voz era tão alegre, tão pura, como o canto de um pássaro no ramo, e de todas as coisas a música era a que nesse momento me ia direita ao coração. O seu canto aumentou a impressão que eu já sentia de que alguma coisa de especial e de sobrenatural me tinha sido enviada. Voltei a encher-lhe o copo, rodeei-lhe o pescoço roliço e branco e afastei-lhe as madeixas molhadas da face. «Como diabo é que se foi encharcar assim, Nathalie? - disse eu, como se fosse sua avó. - É preciso tirar essas roupas molhadas e aquecer-se.» Ao falar a minha voz mudou. Voltei a rir. Ela fixou as estrelas dos seus olhos em mim. O seu rosto estremeceu por um momento. Depois principiou a desabotoar a capa, e deixou-a cair no chão. Sob a capa de renda preta, imprópria para a estação e coçada nas orlas até um tom castanho de ferrugem, ela trazia um vestido de seda preta, apertado no busto, na cintura e nas ancas, e depois pregueado e drapeado, com os folhos e os tufos que as senhoras usavam nesse tempo, nos primeiros dias da tournure. As dobras da saia brilhavam à luz da lareira. Comecei a despi-la, como teria despido uma boneca, muito lentamente, muito sem jeito, e ela permaneceu de pé, direita, deixando-me actuar. A frescura do seu rosto tinha uma expressão grave e infantil. Uma ou duas vezes se ruborizou sob as minhas mãos, mas quando lhe desapertei o justo corpete e lhe toquei os ombros frios e o seio, o rosto suavizou-se num largo sorriso e ela ergueu a mão para tocar nos meus dedos.

 

O velho barão Von Brackel fez uma longa pausa.

 

«Acho que lhe devo explicar - disse ele - para que possa entender bem esta história, que despir uma mu-lher era então muito diferente do que será hoje. Que roupas usam as senhoras hoje em dia? Para já, as menos possíveis - algumas linhas perpendiculares, logo decepadas antes que tenham tempo de se desenvolverem com algum sentido. Não obedecem a um plano. Existem em função do corpo, não têm uma carreira própria, ou, se alguma missão elas têm, é a de revelar.

 

Mas nesses tempos o corpo de uma mulher era um segredo que as roupas tudo faziam para preservar. Nós íamos passear para as ruas nos dias de mau tempo, só para entrever um tornozelo, visão que deve ser tão banal para um jovem de hoje como os pés desses copos para vinho que vocês usam. As roupas, nesse tempo, tinham uma existência, ideias próprias. Com uma serenidade que não era fácil penetrar, elas chamavam a si a transformação do corpo que envolviam, na criação de uma si-lhueta tão diferente da forma real da mulher, até fazer dela esse mistério que era um privilégio divino desvendar. As longas fitas do espartilho, as barbas-de-baleia, as saias e os saiotes, as tournures e os drapea-dos, toda essa massa de te-cido em que as mulheres do meu tempo se sepultavam, a que se enlaçavam, tão apertadas quanto podiam suportar - tudo isso visava uma só coisa: dissimular.

 

De uma tremenda espuma de caudas, pregueados, rendas e folhos, que ondeavam e ondulavam secundum artem a cada movimento, emergia a cintura como o cálice de uma flor, sustentando o busto, alto e redondo como uma ro-sa, mas prisioneiro das bar bas-de-baleia até aos ombros. Imagine agora quão diferente deve ter parecido a vida, quão diferente a de-vem ter sentido as criaturas que viviam dentro desses espartilhos apertados, nos quais apenas podiam respi-rar, e dentro desses abismos de roupa que elas arrastavam consigo onde quer que fossem ou se sentassem, e que nem sequer sonhavam que podia ser de outro modo, comparada com a existência das jovens de hoje, cujas roupas mal lhes tocam e nem espaço ocupam. A mulher era então uma obra de arte, o produto de séculos de civilização, e falava-se da sua figura como se falava do seu salão, com a mesma admiração que se vo-ta à obra de um talentoso e infatigável artista.

 

E sob tudo isto era a própria Eva que se movia e respirava, para verdadeiramente se nos revelar quando despisse a sua máscara, a cintura delicadamente marcada ainda do espartilho como de uma cinta de pétalas de rosa.

 

E vocês, jovens que riem das ideias e das tournures dos anos 70, e que me dizem que, apesar de toda a nossa artificialidade, pouco mistério nos deve ter restado, permitam-me que vos diga que não compreendem talvez o significado do mundo. Nada é mistério se não simbolizar alguma coisa. Até o pão da Igreja terá de ser cozido, e o vinho santo engarrafado, suponho. As mulheres desse tempo eram mais do que um conjunto de indivíduos. Elas simbolizavam, ou re presentavam, a Mulher. Quer-me parecer que até a palavra, nesse sentido, caiu em desuso. Enquanto nós fa-lávamos da mulher - e com cinismo, como nos agradava supor - vocês falam das mu-lheres, e toda a diferença está aí.

 

Lembra-se dos doutores da Idade Média, que discutiam o que tinha sido criado primeiro, se a ideia de cão ou um cão individual? Para vocês, que aprendem estatística antes de aprenderem a ler, não devem subsistir quaisquer dúvidas. E é de justiça dizer-se que o mundo, na realidade, parece ter sido feito em jeito de experiência. Mas, para nós, até as ideias do velho Darwin eram novas e estranhas. As nossas ideias provinham de empresas tais como sinfonias e cerimoniais da corte, e fôramos educados na marcada distinção entre um nascimento legítimo e outro ilegítimo. Tínhamos fé numa fina lidade. A ideia de Mulher - ou das ewig weibliche, a que nem vocês serão capazes de negar um certo mistério - tinha para nós sido criada no Princípio, e as nossas mulheres fizeram sua a missão de representá-la condignamente, como suponho que sempre foi missão do cão individual representar condignamente a ideia de cão para o Criador.

 

Poder-se-ia seguir, então, o desenvolvimento desta ideia numa rapariguinha, à medida que ia crescendo e, gradualmente, sem dúvida de acordo com antiquíssimas leis, se ia iniciando nos ritos do culto em que por fim era ordenada. Lentamente o centro de gravidade do seu ser se mudava do individual para o simbólico, e achar-se-ia então nela esse particular orgulho mesclado de modéstia que caracteriza o representante dos grandes poderes - o mesmo que se pode encontrar num artista de verdadeiro génio. Com efeito, a altivez da menina bonita, ou a majestade da velha senhora, não eram fruto da vaidade pessoal, ou de qualquer outro sentimento pessoal, como o não era o orgulho de Miguel Ângelo ou do Embaixador espanhol em França. Por acolhido que fosse, nas margens do Estige, pela grande indignação das suas vítimas individuais, de cabelos revoltos e peitos nus, Don Giovanni nunca seria condenado por um tribunal das mulheres do meu tempo, e a razão seria que ele teve grande fé na ideia de Mulher. Mas elas teriam concordado com os lentes de Oxford e condenado Shelley por ateu; e conseguiram dominar o próprio Cristo unicamente por representá-Lo como eterna criança, dependente, nos braços da Virgem.

 

A mole de gente que se aglomera fora das portas do templo do mistério não é muito interessante. O verdadeiro interesse está no sacerdote junto ao tabernáculo. A multidão que espera no adro que se cumpra o milagre do sangue fervente de São Pantaleão - isso já eu vi muitas vezes e em muitos lugares. Mas muito raramente tenho tido acesso à frescura das naves, ou a oportunidade de ver os sacerdotes, velhos e jovens, do mais alto aos meninos do coro - que se sentem as pessoas mais importantes na cerimónia, e são a um tempo sagrados e impudentes - ocupando-se, num ritmo muito seu, com as preparações, guardiães de um mistério de que eles tudo conhecem. Que é o cinismo de Lord Byron, ou de Baudelaire, que líamos então com um frisson nouveau, comparado ao cinismo dessas pequenas sacerdotisas, áugures todas elas, cumprindo com o maior escrúpulo todos os ritos de uma religião sobre a qual tudo conheciam e na qual não acreditavam, sustentando, tenho a certeza, a doutrina do seu mistério entre elas. Os poetas desse tempo dir-nos-iam como um grupo de jovens beldades, atrás da cortina de uma cabina de banhos, coravam em risos ao pôr os lírios na água.

 

Não sei se se lembra da história da rapariga que salva o navio amotinado ao sentar-se no barril de pólvora com um archote aceso, ameaçando largar-lhe fogo, sabendo porém que o barril está vazio? Esta história sempre me pareceu uma encantadora imagem das mulheres do meu tempo. Ali estavam elas, mantendo a ordem do mundo, guardando o seu equilíbrio e o seu ritmo, ao sentarem-se sobre o mistério da vida, e sabendo sempre que não existia qualquer mistério. Já ouvi vocês, os jovens, dizer que as mulheres de outrora não tinham sentido de humor. Pensando no rosto da minha jovem sentada no barril, os olhos se veramente baixos, tenho-me interrogado se o nosso famoso humor masculino não será um tanto insípido, comparado com o dela. Se nós estávamos mais gratos a elas por existirem do que hoje vocês estão gratos às vossas mu-lheres, acho que tínhamos boas razões para isso.

 

Espero que não se importará - disse ele -, que um velho se demore a contemplar estas imagens de um tempo já perdido. Será, suponho eu, como se alguém lhe detivesse o passo num museu, em frente a uma vitrine mostrando as modas passadas. Pode rir-se delas, se quiser.»

 

E o galante de outras eras retomou a sua história:

 

«Enquanto eu assim despia aquela criaturinha, e as sucessivas peças de roupa, que tão severamente a dominavam e escondiam, uma a uma iam caindo ali em frente ao lume, à luz do meu grande candeeiro, ele também envolvido em sucessivos panos de seda - tudo, meu caro, tudo se embrulhava nesses tempos, e as minhas fundas poltronas tinham, bem me lembro, longas franjas de seda a toda a volta, encimadas por pequeninos pompons de veludo, que de outro modo não seriam realmente bonitas - até que ela ficou nua, e eu vi perante mim a maior obra-prima da natureza que os meus olhos jamais tiveram o privilégio de contemplar, um corpo de cortar a respiração. Sei que as pequenas imperfeições das formas femininas podem ser de todo amoráveis, e eu próprio prestei culto a uma Vénus de pernas tortas, mas este corpo jovem era patético, era tocante, por ser absolutamente perfeito. Ela era tão nova que eu senti, em meio à profunda admiração, antecipações de uma perfeição ainda maior, e nada mais posso acrescentar.

 

Todo o seu corpo brilhava à luz, delicadamente redondo e macio como o mármore. Uma linha descia recta do colo aos tornozelos. Como a coluna de uma jovem árvore que aspirasse ao céu. O mesmo carácter se expressava no alto peito do pé, quando ela se descalçou, sacudindo os sapatos velhos, como na curva do queixo, como no brilho franco e suave dos seus olhos, e nas linhas firmes e delicadas dos ombros e dos pulsos.

 

O conforto do calor do lume sobre a pele, depois do contacto pegadiço e molhado das roupas em desordem, fê-la suspirar de prazer e voltar-se levemente, como uma gata. Ria de mansinho, como criança que deixa a porta da escola a caminho das férias; os caracóis molhados caíam sobre a testa, e ela não procurou afastá-los; as faces brilhantes e pintadas pareciam-se ainda mais com as de uma boneca, encimando o belo corpo nu.

 

Creio que toda a minha alma estava nos meus olhos. A realidade viera ao meu encontro, havia tão pouco tempo, vestida de tão feias formas, que eu não queria entrar em contacto com ela de novo. Dentro de mim um negro medo ainda se albergava, e procurei refúgio no fantástico, como a criança aflita no seu livro de con-tos de fadas. Não queria olhar o futuro, nem queria, de modo algum, olhar para o passado. Senti o momento fechar-se sobre mim como uma onda. Bebi, olhando-a, um bom copo de vinho para lhe fazer companhia.

 

Eu nesse tempo era tão novo que não podia, como os jovens não podem, abandonar a fé profunda na minha boa estrela, num poder que me amava e protegia, preferindo-me entre todos os seres humanos. Nenhum milagre era inacreditável, conquanto me acontecesse a mim. É quando esta fé começa a desvanecer-se, e se concebe a possibilidade de estarmos na mesma posição dos outros, que a juventude verdadeiramente se acaba. Esta graça dos deuses não me causava surpresa nem suspeita, e creio que o meu coração estava cheio de uma dulcíssima gratidão para com eles. Achava, afinal, sobremaneira razoável, sobremaneira lógico, que esse grande poder do Universo se manifestasse de novo e me enviasse, benévolo, saindo das trevas da noite, como ajuda e consolo, esta jovem nua e embriagada, um milagre de graciosidade.

 

Sentámo-nos a cear, Nathalie e eu, no alcandor do meu quarto quente e sossegado, com a grande cidade a nossos pés e os meus pesados reposteiros de seda corridos sobre a noite chuvosa, como dois mochos numa torre em ruínas no mais profundo da floresta, e ninguém no mundo sabia que existíamos. Ela pousou na mesa um braço e descansou sobre ele a cabeça. Acho que estava cheia de fome, enfeitiçada pela comida. Havia caviar, lembro-me bem, e uma ave fria. Os seus olhos sorriam-me, ela ria, falava comigo, escutava o que eu lhe dizia.

 

Não me lembro do que falámos. Creio que fomos muito francos, e que lhe contei, coisas que a mais ninguém teria dito, como estivera quase a ser envenenado pouco antes de a encontrar. Creio também que lhe devo ter falado do meu país, porque sei que, pouco tempo depois, me veio a ideia que ela talvez me escrevesse para lá, ou fosse visitar-me, até. Lembro-me que ela me contou, muito triste a princípio, a história de um ma caco sábio que pertencera a um arménio tocador de rea-lejo. O dono morrera, e agora o macaco queria fazer as suas habilidades e estava sempre à espera da sua deixa, mas ninguém a conhecia. No decurso da história ela imitou o macaco da maneira mais engraçada, mais graciosa, mais inspirada que ima ginar se possa. Mas lembro-me sobretudo dos seus movimentos. Às vezes penso que a compreensão de algumas peças para violino e piano me veio da contemplação do contraste, ou da harmonia, entre a sua longa e fina mão e o seu queixo redondo e pequeno, quando ela levava o copo à boca.

 

Em nenhuma outra ligação - se é que pode chamar-se a isto uma ligação - senti essa liberdade e essa segurança. Na minha última aventura passei todo o tempo tentando desesperadamente descobrir o que a minha amante realmente pensava de mim, e que papel eu desempenhava aos olhos do mundo. Mas essas dúvidas e medos não podiam sequer penetrar no nosso quartinho. Creio que é esta sensação de segurança e perfeita liberdade que os casais felizes devem sentir, quando falam de serem uma só carne. Não sei se esse entendimento será tão possível no casamento como entre estranhos; mas isto será, por certo, uma questão de gosto.

 

Alguma coisa nos tocava a ambos, embora dela não ti-véssemos consciência. O mundo lá fora era mau, era horrível. A vida tinha sido cruel para mim, e mais cruel ainda o fora com certeza pa-ra ela. Mas este quarto e esta noite pertenciam-nos, e eram-nos fiéis. Embora não pensássemos nisso, a nossa ceia era na realidade uma ceia dos Girondinos.

 

Ajudou-nos o vinho. Eu não bebera muito, mas antes do primeiro trago eu já sentia a cabeça leve. O champanhe é coisa boa e gentil numa noite de chuva. Lembro-me que um velho bispo dinamarquês me disse que há muitas maneiras de reconhecer a verdade, e que um Borgonha é uma delas. E é muito bom, eu sei, para um velho, dentro do seu gabinete apainelado. Mas os jo vens que viram o rosto do demónio precisam de uma mão amiga que seja mais forte. Os nossos copos, que mansamente chiavam, levaram-nos a ver-nos a nós mesmos e à nossa noite com os olhos de um artista que tudo visse, digno do génio de um deus.

 

Eu tinha uma guitarra sobre o sofá, pois havia de fazer uma serenata, num tableau vivant, a uma beldade romântica - na vida real uma americana da Embaixada, que nem sequer responderia com um eco, fosse qual fosse o ângulo donde se lhe gritasse. Nathalie estendeu a mão para ela, a dada altura da ceia. Um pequeno arrepio me percorreu ao primeiro som, pois eu não tivera tempo ou disposição para tocar, e cruzando as pernas, sentada na minha cadeira baixa, começou a afiná-la. Depois cantou para mim duas pequenas canções. No sossego do meu quarto a sua voz grave, um pouco rouca, era límpida como o cristal, levemente tonta de felicidade, como a voz de uma abelha pousada numa flor. Cantou primeiro uma canção das variedades, melodia alegre e com um ritmo cativante. Depois ficou pensativa um momento e passou a uma cançãozinha es tranha, lamentosa, numa língua que eu não compreendi. Ela tinha o dom da música. A personalidade forte e delicada que se manifestava em todo o seu corpo surgiu ainda na sua voz. O timbre dela, ligeiramente metálico, franco e natural, correspondia aos seus olhos, aos joelhos, aos dedos. Era porém um pouco mais rica e mais cheia, como se tivesse crescido mais depressa que o corpo, ou tivesse logrado antecipar-se a ele. A sua voz era mais sábia do que ela própria, tal como o arco de Mischa Elman quando ele tocava, ainda um Wunderkind.

 

Todo o meu equilíbrio, que eu conseguira manter enquanto olhei para ela, me abandonou ao som da sua voz. Essas palavras que eu não compreendia pareceram-me cheias de um sentido mais directo que as outras que sempre reconhecera. Sentei-me na outra cadeira baixa à sua frente. Lembro-me do silêncio que se seguiu a essa canção, e que desviei a mesa, e que lentamente dobrei o joelho perante ela. Olhou para mim com uma ex-pressão tão clara, tão severa e feroz como penso que seria o olhar de um falcão quando se lhe tira o capuz. Dobrei o outro joelho e abracei as suas pernas. Não sei o que havia no meu rosto que a convencesse, mas o rosto dela transformou-se, sossegou numa expressão de suavidade heróica. Desde o primeiro momento que toda ela tinha algo de heróico. Foi isso, penso eu, que a levou a suportar esse jovem imbecil que eu era. Pois du ridicule jusqu'au sublime, realmente, il n'y a qu'un pas.

 

Meu amigo, ela era a inocente que aparentava ser. Foi a primeira rapariguinha que eu possuí. Há uma teoria, segundo a qual um homem muito novo não deve amar uma virgem, mas preferir uma parceira mais velha. Isto não é verdade; e contraria a natureza.

 

Foi talvez uma ou duas horas mais tarde que eu acordei sentindo que qualquer coisa tinha sucedido, algum perigo se instalara. Costumamos dizer, ao sentir um calafrio súbito, que alguém está a andar sobre o nosso túmulo - o futuro faz-se memória. E como l'on meurt en plain bonheur de ses malheurs passés, assim nós deixamos fu-gir a felicidade presente por uma infelicidade futura. Não foi só um caso de omne animal; foi uma desconfiança no futuro, como se ouvisse a minha própria voz perguntando: «Vou ter de pagar por isto; qual será o preço?« Mas nessa altura talvez tenha acreditado que sentia apenas medo que ela se fosse embora.

 

Uma vez ela tinha-se levantado e feito menção de me deixar, e eu tinha-a obrigado a ficar. Agora ela dizia: «Tenho de voltar«, e levantava-se. O gás luzia ainda, o lume ardia lento. Parecia-me a mim natural que ela fosse levada de mim pelas mesmas forças misteriosas que a tinham trazido, como a Cinderela, ou um geniozinho das Mil e Uma Noites. Esperava que ela se aproximasse e me dissesse quando voltaria para mim, e o que eu teria de fazer. No entanto, eu estava agora mais calado.

 

Ela vestiu-se e voltou a colocar o seu negro e coçado disfarce. Pôs o chapéu e ficou de pé, tal como eu a vira pela primeira vez à chuva, na avenida. Então aproximou-se do braço da cadeira onde eu me sentara, e disse: «E vai dar-me 20 francos, não vai?« Como eu não respondesse, ela repetiu a pergunta e acrescentou: «A Marie disse que''' disse que eu devia pedir 20 francos.«

 

Eu não falava. Fiquei a olhar para ela. Os seus olhos límpidos e alegres procuraram os meus.

 

Uma grande claridade desceu então sobre mim, como se todas as artes e ilusões com que tentamos transformar o mundo, as cores, a música e os sonhos, se afastassem e a realidade me fosse mostrada, em ruínas, como a casa destruída pelo incêndio. Era o fim da peça. Não havia lugar para qualquer pa lavra supérflua.

 

Foi este o primeiro momento, penso eu, desde que a encontrara, havia tão poucas horas, em que eu a vi como um ser humano, nos limites de uma existência própria, e não como uma dádiva que me fosse feita. Creio que todos os pensamentos que em mim se haviam concentrado desapareceram ao vê-la; mas agora era tarde.

 

Tínhamos representado os dois. Uma rara zombaria me tinha sido oferecida, e eu aceitara-a; competia-me agora manter o espírito do nosso jogo até ao fim. A exigência dela estava perfeitamente dentro do espírito daquela noite. Pelo palácio que constrói, pelos quatrocentos escravos negros e quatrocentos escravos brancos, todos recobertos de jóias, o djinn pede uma velha lâmpada de cobre; e a bruxa da floresta, que desloca três cidades e cria para o filho do lenhador um exército de cavaleiros, pede para si o coração de uma lebre. A rapariga pedia-me a sua paga com a voz e os modos do djinn e da bruxa da floresta, e se eu lhe desse os 20 francos talvez ela se conservasse a salvo, no círculo mágico do seu espírito livre, gracioso e desafiante. Eu é que não estava à altura do jogo, ali sentado em silêncio, suportando o peso do mundo frio e real, sabendo muito bem que teria de responder-lhe sob pena de, nesses escassos minutos, lhe passar a jogada.

 

Mais tarde reflecti que eu talvez tivesse tido o poder de inventar alguma coisa que a pusesse a salvo e no entanto me permitisse conservá-la. Pensei então que teria bastado dar-lhe os 20 francos e dizer-lhe: «E se quer outros 20, volte amanhã à noite.« Se ela fosse menos bela aos meus olhos, se ela não fosse tão jovem e tão inocente, eu talvez o tivesse feito. Mas esta criaturinha, durante as nossas breves horas juntos, tinha apelado para toda a galanteria que havia em mim. E a galanteria, penso eu, é isto: amar, ou querer ao orgulho do nosso parceiro, ou do nosso inimigo, como o quiser definir, tanto ou mais do que ao nosso próprio orgulho. Ou, se o meu coração fosse tão inocente como o dela, talvez tivesse pensado nisso, mas eu rodeara-me desse mundo fatal da realidade. Tinha prática das suas leis e corriam-me no sangue os bacilos dos seus costumes. Nem me passava pela cabeça alterar por uma vez as minhas respostas na igreja. Quando o sacerdote diz: «Senhor, purifica os nossos corações«, eu nunca pensei em dizer-lhe que não é preciso, ou responder-lhe outra coisa que não seja, «E que o Teu Espírito não nos abandone«.

 

E assim, como se fosse a coisa mais natural e sensata a fazer, puxei de 20 francos e entreguei-lhos.

 

Antes de sair, ela fez uma coisa que eu jamais esquecerei. Com a nota na mão esquerda, ela permaneceu junto de mim. Não me beijou, não tocou na minha mão para se despedir, mas com três dedos da sua mão direita ergueu um pouco o meu queixo e olhou para mim, lançou-me um olhar como a desejar-me coragem e consolação, tal como a irmã faria a seu irmão na despedida. E saiu.

 

Nos dias que se seguiram - não os primeiros, mas mais tarde - tentei construir uma teoria e uma explicação da minha aventura.

 

Isto aconteceu a curto espaço apenas da queda do Segundo Império, esse estranho simulacro de milénio, e da Comuna de Paris. A atmosfera andava carregada de catástrofe. Um mundo tinha soçobrado. Até a Imperatriz, que, durante uma sua visita a Paris, ainda criança, eu imaginara uma deusa repousando sobre nuvens, conduzindo com um sorriso os assuntos de toda a humanidade, tinha fugido, pela noite, numa carruagem, com o seu dentista americano, na miséria de não levar um lenço. A sua corte apertava-se em boletos de Bruxelas e de Londres, enquanto as suas casas de campo serviam de estábulos à cava laria dos Prussianos. Seguiu-se a Comuna, e os massacres de Paris pelo exército de Versalhes. Todo um mundo deve ter-se desmoronado nesses meses de desgraça.

 

Foi também o tempo do niilismo na Rússia, quando os revolucionários perderam tudo e debandaram para o exílio. Pensei neles por causa da canção que Nathalie tinha cantado para mim, e cujas palavras eu não percebi.

 

Fosse o que fosse que lhe sucedera, deve ter sido uma catástrofe de uma extraordinária violência. Deve ter-se afundado com uma sin-gular rapidez, pois de contrário havia de experimentar a resignação, essa terrível reconciliação com o destino que a vida opera em nós quando nos vai afectando gota a gota.

 

E ainda, pensei eu, deve ter estado ligada a alguém que a arrastou para o abismo, pois se fosse sozinha tal não havia de suceder-lhe. Deve ter sido, reflecti eu, alguém a quem es tivesse unida mas que não pudera ajudá-la, ou alguém muito velho, no abandono do choque ou da ruína, ou muito jovem, crianças, uma criança, um irmãozinho, uma irmãzinha. Ela por si haveria de flutuar, ou seria salva, junto à superfície, por alguém que desse valor aos seus raros dons de graça, de encanto e formosura, e se congratulasse por obtê-los; ou, mais abaixo, por alguém que podia não os compreender, mas que mesmo assim sofresse uma forte impressão. Ou, perto do fundo, por gente que pensasse tirar proveito deles. Mas ela deve ter ido a pique, de um mundo de beleza e harmonia onde aprendera essa confiança, essa luz, onde lhe ensinaram a cantar, a mover-se e a rir como ela o fazia, para um mundo onde a beleza e a graça não contam, e onde a rudeza dos factos nos olha de frente, e soçobrado na ruína, na desolação e fome. E aí, no último degrau da escada, estava a Marie, quem quer que ela fosse, uma amiga que no seu conhecimento do mundo, estreito e de treva, lhe emprestara as roupas miseráveis, a forçara a beber uma zurrapa qualquer para lhe dar coragem.

 

Sobre tudo isto eu pensei muito, e por longo tempo; mas, evidentemente, nada sabia. Assim que ela se foi e eu me vi sozinho - tão estranhos são os movimentos automáticos que fazemos nas mãos do destino - em nada mais pensei do que em segui-la e trazê-la de volta. Acho que, nesses minutos, passei pela exacta experiência, até na sensação de su-foco, de um enterrado vivo. Mas eu estava nu. Quando enfiei umas roupas e desci, a rua estava deserta. Vagueei pelas ruas durante muito tempo. Voltei, era já madrugada, ao banco onde me sentava quando a vi, e ao hôtel da minha antiga amante. Pensei em como era estranho que um rapaz corresse, na mesmíssima noite, arrastado pela louca paixão e pela perda de duas mulheres. As palavras de Mercúrio a Romeu soaram nos meus ouvidos e, como se me houvessem mostrado uma brilhante caricatura de mim pró prio, ou de todos os jovens, ri-me. Quando o sol despontou voltei para o meu quarto, e ali estava o candeeiro, aceso ainda, e a mesa posta para a ceia.

 

Este estado de espírito durou algum tempo. Os primeiros dias não foram os piores, pois vivia na esperança de descer, à mesma hora, ao mesmo lugar onde a encontrara. Pensava que ela poderia lá voltar. E depositei grandes esperanças nessa ideia, que só lentamente me morreram.

 

Tentei várias coisas para que essa esperança se mantivesse viva. Uma noite fui à Ópera, porque ouvi outros dizerem que iriam. Estava na moda, evidentemente, e talvez valesse a pena. Levavam o Orfeu. Lembra-se da música com que ele implora às sombras do Hades, e aquela em que Eurídice lhe é devolvida por um tão breve tempo? Eu ali estava, na luz brilhante dos entr'actes, um jovem de gravata branca e luvas cor de alfazema, com gente alegre que à minha volta sorria e conversava, alguns cumprimentando-me de longe, esmagado e envolto nas negras asas enormes das Euménides.

 

Nessa altura desenvolvi uma outra teoria. Pensei na deusa Nemésis, e acreditei que, se não tivesse tido aquele momento de dúvida e receio naquela noite, talvez tivesse sentido, pela manhã, a força e o direito de mudar o seu destino e o meu. Diz-se que os salteadores que outrora pululavam nas florestas da Dinamarca, costumavam esticar um arame sobre a estrada, a que prendiam um sino. As carruagens ao passar tocavam no fio e o sino soava no covil, chamando os ladrões, eu tocara o fio e um sino soara algures. A rapariga não tivera medo, eu sim. Perguntara: «Que preço terei de pagar pelo que recebo agora?« E a própria deusa me respondera: «Vinte francos«, e com ela não se pode regatear. Pensa-se em muita coisa quando se é novo.

 

Tudo isto se passou há muito tempo. As Euménides, se elas me permitirem que o diga, são como as pulgas, que tanto me afligiram em pequeno. Gostam de sangue jovem, e deixam-nos em paz quando somos velhos. Tive, porém, a honra de que viessem sobre mim mais uma vez, e não há muitos anos. Tinha vendido um pedaço de terra a um vizinho, e quando voltei a vê-lo, a floresta que ali havia tinha sido cortada. Onde estavam agora as sombras verdejantes, as clareiras e as ocultas veredas? E quando ouvi de novo o assobio das suas asas no ar, senti, misturada à dor, uma sensação estranha de esperança e de força - era, afinal, a música da minha juventude.»

 

- E voltou a vê-la? - perguntei-lhe.

 

«Não - disse ele ao fim de algum tempo - mas tive uma fantasia com ela, uma fantasie macabre, se quiser.

 

Quinze anos mais tarde, em 1889, passei por Paris a caminho de Roma, e demorei-me alguns dias para ver a Exposição e a Torre Eiffel, que tinha sido acabada de construir. Uma tarde fui visitar um amigo, um pintor. Ele fora na mocidade um artista revoltado, mas depois transformara-se por completo, e estava nessa altura a estudar anatomia com grande fervor, seguindo o exemplo de Leonardo. Passei com ele o serão, e depois de termos discutido os seus quadros e a arte em geral, ele disse-me que ia mostrar-me a coisa mais bonita que tinha no atelier. Era uma caveira que ele estava esboçando. Deleitou-se a explicar-me a sua beleza. «É realmente - disse ele - a caveira de uma mulher jovem, mas a caveira de Antínoo deve ter sido assim, se alguém pudesse encontrá-la«.

 

Eu tinha-a na minha mão, e ao olhar a fronte larga e baixa, a linha clara e nobre do maxilar, e as órbitas fundas e limpas dos olhos, a caveira subitamente me pareceu familiar. Os ossos polidos e brancos brilhavam puros à luz do candeeiro. A salvo. Nesses poucos minutos regressei ao meu quarto da Place François I, com as suas franjas de seda, os pesados reposteiros, a uma noite de chuva quinze anos atrás.

 

- Interrogou o seu amigo sobre essa caveira? - disse eu.

 

- Não - respondeu o velho - de que serviria? Ele não saberia nada.

 

                                                                                Karen Blixen  

 

                      

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