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A HONRA DO SILÊNCIO / Roger Allyn Lee
A HONRA DO SILÊNCIO / Roger Allyn Lee

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A HONRA DO SILÊNCIO

 

Há cinco anos que a família procurava uma noiva apropriada para Masao Takashimaya, desde que ele atingira os vinte um. Contudo, apesar de todos os esforços feitos para encontrar jovens que lhe conviessem, ele rejeitava-as, mal as conhecia. Masao queria uma rapariga muito especial, que não só o servisse e respeitasse, como o intermediário garantia em relação a cada uma delas, mas uma mulher com quem pudesse conversar. Alguém que não se limitasse a ouvi-lo e a obedecer, mas uma companheira com quem pudesse partilhar ideias.

 

E nenhuma das jovens que conhecera nos últimos cinco anos se aproximara sequer das suas pretensões. Até surgir Hidemi. Ela tinha apenas dezanove quando se encontraram e vivia num buraku, uma minúscula comunidade agrícola, próximo de Ayabe. Era uma jovem bonita, elegante, pequena e extremamente graciosa. O rosto parecia talhado no mais fino mármore e os olhos pretos assemelhavam-se a ónix brilhante. E mal falou a Masao quando o conheceu.

 

De início, Masao achou-a demasiado tímida, demasiado receosa dele, igual a tantas outras que lhe haviam sido apresentadas antes. Queixava-se de que eram todas muito antiquadas, que não queria uma mulher que o seguisse como um cão e o olhasse aterrorizada.

 

No entanto, as mulheres que conhecia na universidade também não lhe agradavam. Havia, na realidade, muito poucas. Em 1920, quando começara a ensinar, apenas contactava com as filhas e as mulheres dos outros professores, ou com estrangeiras. À maioria faltava, porém, a total pureza e doçura de uma jovem como Hidemi. Masao queria tudo numa mulher, tradições antigas aliadas a sonhos de futuro. Não esperava que soubesse muitas coisas, mas que tivesse uma ânsia de aprendizagem semelhante à dele.

 

E, aos vinte e seis anos, depois de haver ensinado dois anos na Universidade de Quioto, tinha-a descoberto. Achara-a perfeita. Era suave e tímida, mas mostrara-se fascinada pelas coisas que ele dizia. Servira-se do intermediário para lhe fazer perguntas interessantes sobre o seu trabalho e a sua família e até mesmo sobre Quioto. Raras vezes erguera o rosto na sua direcção. Mas uma vez apanhara-a a fitá-lo timidamente e achara-a de uma extraordinária beleza.

 

Decorridos seis meses após o dia em que se haviam conhecido, Hidemi encontrava-se agora ao seu lado, de olhos baixos, vestida com o pesado quimono branco que a avó usara, com a mesma elaborada faixa de brocado dourado à cintura. Uma pequena adaga pendia da mesma para lhe permitir suicidar-se, caso Masao decidisse que não a desejava.

 

No cabelo cuidadosamente penteado usava o tsunokakushi, que lhe tapava a cabeça mas não o rosto e fazia com que lhe parecesse ainda mais frágil, ao olhá-la. E logo abaixo do tsunokakushi, ostentava os kan zashi, os finos enfeites de cabelo que haviam pertencido à mãe. A mãe também lhe oferecera um enorme rolo, feito de fios de seda, e tecido ao longo da vida de Hidemi. Começara-o quando esta tinha nascido e aumentara-o ao longo dos anos, nunca deixando de rezar para que ela fosse graciosa, nobre e sábia. Tratava-se do presente mais valioso que a mãe podia oferecer-lhe, um requintado símbolo do seu amor, das suas preces e esperanças de futuro.

 

Masao vestia o tradicional quimono preto com um casaco por cima, ostentando o brasão da família, mantendo-se orgulhosamente ao lado dela. Cada um bebeu três goles de saque de três taças diferentes e a cerimónia prosseguiu. Já tinham estado no santuário xintoísta nesse dia para um ritual particular e aquele era o casamento público e formal que os uniria para sempre, diante da família e dos amigos, enquanto o mestre-de-cerimónias contava histórias sobre os parentes de ambos, e a sua importância.

 

As duas famílias encontravam-se presentes e também alguns dos professores, que eram colegas de Masao em Quioto. Apenas o seu primo Takeo estava ausente. Era cinco anos mais velho do que Masao e também o seu melhor amigo; gostaria imenso de se encontrar ali. Contudo, Takeo fora para os EUA no ano anterior, a fim de ensinar na Universidade Stanford, na Califórnia. Uma grande oportunidade que se lhe deparara e Masao desejava tê-lo acompanhado.

 

A cerimónia foi extremamente solene e muito demorada e Hidemi nunca ergueu os olhos para o fitar ou sorrir, enquanto se tornavam marido e mulher, segundo as mais respeitadas tradições xintoístas. Depois da cerimónia, ela olhou-o hesitante e um pequeno sorriso iluminou-lhe as feições, quando se curvou diante do seu novo marido. Masao retribuiu a vénia, e depois a mãe e as irmãs levaram-na para que trocasse o quimono branco por um vermelho, destinado à recepção Nas famílias urbanas abastadas, a noiva mudava de quimono seis ou sete vezes durante o casamento, mas no buraku, dois quimonos tinham parecido suficientes para Hidemi

 

Foi um dia perfeito para ambos. Estava um maravilhoso tempo de Verão e os campos de Ayabe exibiam um tom de esmeralda. Passaram a tarde a cumprimentar os amigos e a receber os muitos presentes. As dádivas em dinheiro eram cuidadosamente embrulhadas e entregues a Masao.

 

Houve música, e estavam presentes muitos amigos e dúzias de primos e parentes afastados. Um primo de Hidemi, de Fukuoka, tocou koto, e alguns bailarrinos executaram um lento e gracioso bugaku. Havia também imensa comida. Sobretudo a tradicional tempura, bolas de arroz, kun shwyaki, galinha, sashimt, arroz vermelho com nasu, imshoga e narazuki E também sobremesas que tinham sido preparadas muitos dias antes pelas tias e a mãe de Hidemi

 

A avó, a obaachan, supervisionara todos os preparativos, sentia-se satisfeita com o casamento da sua querida neta. Estava na idade certa e aprendera bem as lições. Daria uma boa esposa para qualquer um e a família gostava da união com Masao, apesar de este ter a fama de homem demasiado fascinado pelos conceitos modernos

 

O pai de Hidemi apreciava a companhia dele. Masao gostava de discutir política internacional e de falar de assuntos mundanos, mas respeitando as mais veneradas tradições xintoistas. No entanto, era igualmente versado em todas as tradições importantes. Pertencia a uma boa família, era um jovem honrado e todos tinham a certeza de que daria um excelente marido

 

1 Instrumento de cordas japonês de treze longas cordas de seda (N da T)


Masao e Hidemi passaram a primeira noite de casados com a família e partiram para Quioto no dia seguinte. Ela vestia um bonito quimono em tons de vermelho e rosa que a mãe lhe oferecera e estava particularmente bonita quando Masao a levou no descapotável Modelo T de 1922, novinho em folha, que pedira emprestado para a ocasião. Pertencia a um professor americano, seu colega na universidade.

 

Quando regressaram a Quioto, instalaram-se no pequeno apartamento de solteiro de Masao, e Hidemi provou ser tudo o que ele pensara a partir do momento em que a conhecera. Mantinha a casa impecável e seguia todas as tradições familiares. Ia regularmente ao santuário mais próximo e mostrava-se delicada e hospitaleira para todos os colegas dele, quando eram convidados para jantar. Manifestava sempre o mais profundo respeito por Masao. Por vezes, ao sentir-se particularmente feliz, ria, sobretudo quando ele insistia em falar-lhe em inglês. Masao achava muito importante que ela aprendesse outra língua e falava-lhe de muitos assuntos: o domínio dos Ingleses na Palestina, de Gandhi na índia e mesmo de Mussolini.

 

Segundo ele, havia muitos acontecimentos no mundo de que ela devia estar ao corrente, e a sua insistência divertia-a. Masao mostrava-se bom, generoso e respeitoso e dizia-lhe muitas vezes que esperava que tivessem muitos filhos. Ela ficava muito embaraçada quando o marido abordava esses assuntos, mas, quando se atrevia, sussurrava-lhe que esperava dar-lhe muitos rapazes e ter muita honra nisso.

 

As filhas também são uma honra, Hidemi-san dizia-lhe ele num tom suave, e ela fitava-o, surpreendida. Ter-se-ia sentido muito envergonhada se lhe desse apenas filhas. Conhecia a importância de dar à luz filhos machos, sobretudo sendo natural de uma comunidade agrícola como Ayabe. Hidemi era uma rapariga terna, e nos meses seguintes tornaram-se bons amigos, ao mesmo tempo que aprendiam a amar-se. Ele era delicado e atencioso e reagia com profunda emoção aos seus múltiplos gestos de ternura. Hidemi tinha sempre maravilhosas refeições à sua espera e arranjos de flores perfeitos, sobretudo na tokonoma, a alcova onde se mantinha o pergaminho pintado, a mais importante e honrosa decoração da casa.

 

Hidemi tomou conhecimento do que ele gostava e do que lhe desagradava e tinha o cuidado de o proteger do mínimo aborrecimento. Era a mulher perfeita e, à medida que os meses passavam, ele sentia-se cada vez mais satisfeito por tê-la conhecido. Mantinha a timidez de sempre, mas Masao sentia que Hidemi ia ficando mais à vontade com ele e o seu mundo.

 

Chegara mesmo a aprender algumas frases em inglês para lhe agradar. Ele continuava a falar-lhe apenas em inglês à noite, ao jantar. E referia-lhe frequentemente o primo Takeo, que se encontrava na Califórnia. Este sentia-se feliz com o seu emprego na universidade e casara com uma kibei, uma rapariga que nascera nos EUA, oriunda de uma família japonesa, mas fora mandada para o Japão, a fim de completar a sua educação. Takeo dissera nas cartas que ela era enfermeira, chamava-se Reiko, e a família era de Tóquio. Mais do que uma vez, Masao sonhara em levar Hidemi até à Califórnia para os conhecer, mas de momento eram apenas sonhos. Masao tinha as suas responsabilidades na universidade e, embora pudesse orgulhar-se de uma respeitável carreira, o dinheiro escasseava.

 

Hidemi não informou o marido quando ficou à espera do primeiro filho e, segundo a tradição e as instruções que recebera, ligou a barriga a partir do momento em que a gravidez se tornou visível. Começou a Primavera, antes de Masao o saber. Descobriu um dia, quando estavam a fazer amor, muito discretamente como era hábito. Hidemi não perdera a timidez. E, mal suspeitou do que se passava, Masao interrogou-a. Ela não conseguiu pronunciar palavra. Desviou o rosto, corou e assentiu com um aceno de cabeça.

 

Sim, pequenina?... Sim? Pegou-lhe meigamente no queixo de forma a que o olhasse e sorriu-lhe. Porque não me disseste? Mas ela não conseguia responder. Limitava-se a fitá-lo e a rezar para não se desgraçar, oferecendo-lhe uma filha.

 

Eu... eu rezo todos os dias, Masao-san, para que seja um rapaz sussurrou, emocionada pela delicadeza e a bondade do marido.

 

Ficaria igualmente feliz com uma filha retorquiu ele, sinceramente, deitado ao seu lado, sonhando com o futuro. Adorava a ideia de ter filhos, sobretudo os filhos dela. Era tão bonita e tão terna, que não conseguia imaginar nada de mais encantador do que uma menina que se parecesse com a mãe. Contudo, Hidemi pareceu chocada com as palavras do marido.

 

Não deves falar assim, Masao-san! exclamou, receosa de que o próprio pensamento de terem uma filha pudesse fazer com que isso acontecesse. Tens de ter um filho!

 

Hidemi parecia tão inflexível que o divertiu. Contudo, ele era um homem raro no Japão. Pouco lhe interessava que tivessem um filho ou uma filha. Achava que a obsessão tradicional de se desejar somente filhos era um profundo disparate. Agradava-lhe, de facto, a ideia de ter uma filha, que pudesse educar com novas ideias e novas perspectivas, livre do peso e cadeias das antigas tradições.

 

Adorava os suaves e antiquados modos de Hidemi, mas também a apreciava quando ela parecia divertida com as suas ideias modernas. Era uma das coisas que o atraía. Felizmente que ela tolerava o seu fascínio pela evolução moderna e política de todo o mundo. A mulher não se envolvia, mas escutava sempre com interesse as coisas que ele lhe dizia. A ideia de transmitir esses mesmos conceitos a um filho ou uma filha, e de os criar nesse ambiente, entusiasmava-o.

 

Teremos uma criança verdadeiramente moderna, Hidemi-san. Sorriu-lhe e ela desviou o olhar, corando de embaraço.

 

Por vezes, quando ele era demasiado directo, fazia com que voltasse a sentir-se tímida; porém, mais do que seria capaz de expressar por palavras, amava-o profundamente. Achava-o fascinante, inteligente e mais requintado do que alguma vez imaginara. Continuava a apreciá-lo, mesmo quando lhe falava em inglês e ela pouco compreendia. Sentia-se verdadeiramente encantada com o marido.

 

Quando nascerá o bebé? perguntou Masao, dando-se conta de que não fazia ideia. O ano já começara de maneira interessante, sobretudo na Europa, onde o Exército francês ocupara a região do Ruhr, como represália pelo atraso de pagamentos devidos pelos Alemães. Contudo, as notícias do mundo pareciam agora menos importantes, em comparação com a chegada do primeiro filho.

 

No início do Verão respondeu-lhe suavemente. Penso que em Julho. Faria exactamente um ano desde que haviam casado. Era uma excelente altura do ano para o nascimento de um bebé.

 

Quero que o tenhas no hospital declarou ele, fitando-a e detectando de imediato um olhar obstinado.

 

Conhecia-a bem, ainda que só estivessem casados há oito meses. Embora as suas ideias mais modernas parecessem diverti-la, havia coisas em que ela não fazia tenção de recuar um único passo em relação a invenções mais modernas. E, sempre que estavam em causa assuntos de família, a jovem agarrava-se com determinação às antigas tradições.

 

Não preciso de hospital ripostou. A minha mãe e a minha irmã virão ajudar-me. O bebé nascerá aqui. Chamaremos um padre, se for preciso.

 

Não precisas de um padre, pequenina, mas de um médico.

 

Hidemi não lhe respondeu. Não queria faltar-lhe ao respeito, nem dar-lhe ouvidos. Verteu lágrimas amargas quando ele discutiu com ela. A mãe e a irmã mais velha chegaram em Junho, segundo o planeado, e ficaram lá em casa.

 

Masao não se importou, mas continuava a querer que ela consultasse um médico e tivesse o filho no hospital de Quioto. Contudo, era óbvio que Hidemi tinha medo. Não queria ir para o hospital, nem consultar um médico. Foi em vão que Masao tentou sensibilizá-la a convencer a mãe de que seria o melhor para ela.

 

A mãe de Hidemi limitou-se a sorrir e a tratá-lo como se ele fosse um excêntrico. Ela própria dera à luz seis vezes, mas apenas quatro dos filhos haviam sobrevivido. Um morrera à nascença e outro de difteria, ainda em bebé. Percebia, contudo, daquelas coisas e a irmã de Hidemi também. Tinha dois filhos e ajudara muitas mulheres quando chegara a altura.

 

À medida que os dias passavam, Masao apercebeu-se de que não convenceria nenhuma delas e observava, tristemente, enquanto Hidemi aumentava de tamanho e ficava mais cansada sob o calor do Verão. A mãe obrigava-a diariamente a seguir as tradições que facilitariam o parto. Iam ao santuário e rezavam. Comiam refeições de acordo com os rituais. E, à tarde, Hidemi dava longos passeios com a irmã.

 

Quando Masao regressava a casa à noite, encontrava a mulher à sua espera, com uma saborosa comida, sempre ansiosa pela sua companhia e por lhe satisfazer as necessidades e ouvir as notícias que lhe trazia. Contudo, as únicas notícias que agora lhe interessavam eram a respeito dela. Parecia tão estreita e o bebé tão grande. Era muito jovem e frágil e Masao preocupava-se desesperadamente com ela.

 

Sentira-se tão ansioso por ter filhos dela, mas, agora que a altura chegara, invadia-o o terror de que ela pudesse morrer por causa do bebé. Falou nessa eventualidade à mãe, mas a sogra garantiu-lhe que as mulheres estavam preparadas para essa tarefa e que tinha a certeza de que Hidemi se sairia bem, mesmo sem o auxílio de um hospital moderno ou de um médico. A maior parte das mulheres do mundo continuava a dar à luz em casa, embora Masao insistisse nas vantagens de uma outra forma.

 

No entanto, sentia-se cada vez mais inquieto de dia para dia, até que, por fim, no final de Julho, chegou a casa à tarde e esta pareceu-lhe deserta. Hidemi não o esperava lá fora, como habitualmente, nem se encontrava no quarto de casal, ou junto ao pequeno fogão da cozinha. Não se ouvia um único ruído; bateu ao de leve no quarto ocupado pela sogra e pela cunhada, onde as encontrou. Há horas que Hidemi se encontrava em trabalho de parto e permanecia deitada em silêncio e agonia, com um pau entre os dentes, torcendo-se de dor enquanto a mãe e a irmã a agarravam. No quarto, pairava vapor e um cheiro a incenso. Havia uma larga bacia com água e a irmã de Hidemi tentava limpar-lhe a testa; Masao olhou de relance para o quarto e depois recuou, com medo de entrar.

 

Fez uma vénia e virou-se, receando ofendê-las; inteirou-se delicadamente do estado da mulher. Informaram-no de que tudo estava a correr bem, e a sogra aproximou-se rapidamente da porta de rede shoji, inclinou-se diante dele e fechou-a. Hidemi não emitira um único som, mas o pouco que vira dela mostrara-lhe que tinha um aspecto horrível.

 

Ao afastar-se, sentiu-se atormentado por mil terrores. E se ela tivesse dores excessivas? E se morresse? E se a criança fosse grande de mais? Ou se sobrevivesse e nunca lhe perdoasse? Talvez não voltasse a falar-lhe. Ou se o odiasse devido àquilo por que passara? Essa simples ideia desmoralizava-o. Estava tão apaixonado por ela, tão ansioso por voltar a ver o seu doce rosto de feições perfeitas, que quase desejou poder entrar no quarto e ajudá-la. Sabia, porém, que todas ficariam histéricas ante a ideia de algo tão ultrajante. No parto, não havia lugar para um homem. Em qualquer lugar do mundo, uma mulher em trabalho de parto não devia ser vista pelo marido, e muito menos no mundo deles.

 

Passeou devagar pelo jardim e sentou-se à espera de notícias, esquecendo-se por completo de comer ou fazer o que quer que fosse. Já escurecera quando a cunhada se aproximou e esboçou uma vénia. Preparara-lhe sashimi e arroz; sobressaltou-se quando ela lhe apresentou a comida. Não entendia como deixara Hidemi para cuidar dele e a própria ideia de comer repugnava-lhe. Retribuiu a vénia, agradeceu-lhe a gentileza e depois inteirou-se sobre o estado de Hidemi.

 

Está muito bem, Masao-san. Terá um belo filho antes da manhã. Faltavam ainda dez horas para que a manhã surgisse, e não conseguia suportar a ideia de ela ter dores durante todo esse tempo.

 

Mas como está ela? insistiu.

 

Muito bem. Cheia de alegria por lhe dar o filho que deseja, Masao-san. É uma alegria para ela. Contudo, ele não conseguia suportar aquelas palavras. Imaginava a dor insuportável sentida por Hidemi e esse pensamento enlouquecia-o.

 

É melhor voltar para junto dela. Diga-lhe, por favor, que me sinto honrado com o que ela está a fazer.

 

A irmã de Hidemi sorriu, fez uma vénia e desapareceu de regresso ao quarto, enquanto Masao se punha a passear nervoso pelo jardim e se esquecia completamente do jantar que ela lhe trouxera. Nada havia no mundo que pudesse levá-lo a comer. E o recado que desejava dar-lhe e, obviamente não dera, era que dissesse a Hidemi que a amava.

 

Ficou sentado no jardim durante toda a noite, pensando nela e no ano que haviam partilhado, o quanto ela significava aos seus olhos, como era terna e bondosa e a que ponto a amava. Nessa noite, bebeu bastante saque e fumou mas, contrariamente aos seus iguais, não saiu com os amigos nem foi para a cama, mantendo Hidemi sempre nos seus pensamentos.

 

A maioria dos homens teria saído e tomado conhecimento, com agrado, das notícias pela manhã. Em vez disso, ele manteve-se sentado, andando ocasionalmente de um lado para o outro; a certa altura, esgueirou-se até junto do quarto onde ela se encontrava, julgando ouvi-la gritar. Essa ideia era-lhe insuportável e quando, mais tarde, viu de relance a irmã de Hidemi, perguntou-lhe se devia chamar um médico. Claro que não retorquiu ela, fazendo uma vénia e voltando a desaparecer. Parecia distante e ocupada.

 

Amanheceu, antes de a sogra vir procurá-lo. Nessa altura, tinha bebido bastante, estava um pouco desgrenhado e fumava um cigarro, enquanto observava o Sol a nascer devagar no horizonte. Contudo, assustou-se logo ao avistar a expressão no rosto da sogra. Notou-lhe tristeza e desilusão e sentiu o coração parar-lhe ao observá-la. De súbito, tudo pareceu desenrolar-se em câmara lenta. Desejou perguntar pela mulher, mas o rosto da sogra deu-lhe a entender que não podia. Limitou-se a esperar.

 

Não são boas notícias, Masao-san. Lamento dar-lhas.

 

Fechou momentaneamente os olhos, controlando-se. O momento de alegria transformara-se num pesadelo. Perdera-os a ambos. A mulher e o filho. Sabia-o.

 

A Hidemi está bem. Masao abriu os olhos e fitou-a, incapaz de acreditar naquela felicidade, ao mesmo tempo que sentia um nó na garganta e os olhos se lhe enchiam de lágrimas, de que muitos homens se envergonhariam.

 

Mas... e o bebé? Desta vez tinha de lhe perguntar. Hidemi estava viva. Nem tudo se encontrava perdido. E como a amava.

 

É uma menina informou a sogra, baixando os olhos e sentindo-se triste pelo facto de a filha haver falhado daquela forma.

É uma menina? indagou, excitado. Está bem? Está viva?

 

Claro respondeu a mãe de Hidemi, sobressaltada com a pergunta. Mas, lamento muito... Começou a desculpar-se e Masao levantou-se e fez-lhe uma vénia, doido de alegria.

 

Eu não lamento nada. Estou muito feliz. Diga, por favor, à Hidemi... começou, após o que pensou melhor. Correu apressadamente pelo jardim, enquanto o céu mudava de um tom pêssego para uma luz flamejante e o sol explodia no céu como fogo-de-artifício.

 

Onde vai, Masao-san? Não pode... Mas nada havia que ele não pudesse fazer. Era a sua casa, a sua mulher e a sua filha. Ele representava a lei ali. Embora ver a mulher nessa altura fosse inconveniente, Masao nem pensou em semelhante coisa quando subiu os degraus a dois e dois e bateu ao de leve na porta de rede shoji que o separava dela. A irmã abriu-a e Masao sorriu-lhe quando ela o fitou com um olhar cheio de perguntas.

 

Gostaria de ver a minha mulher.

 

Ela não pode... Ela está... Eu... Bem, Masao-san... balbuciou, esboçando uma vénia e afastando-se para o lado, depois de um momento de hesitação. O cunhado assumia um comportamento invulgar, mas conhecia o seu lugar na casa. Desapareceu e foi até à cozinha, a fim de lhe preparar um chá e juntar-se à mãe.

 

Hidemi? perguntou baixinho ao entrar no quarto; depois viu-as.

 

Ela estava deitada tranquilamente, enrolada em edredões e tremendo um pouco. Mostrava-se pálida, tinha o cabelo afastado do rosto e parecia excepcionalmente bonita. E, nos braços, com tanta roupa que só se via a cara, encontrava-se a criança mais bela que lhe fora dado ver. Parecia talhada em mármore, uma pequena estátua. Embora parecida com a mãe, era, se possível, ainda mais bonita e ele fitou-a com um olhar de admiração.

 

Oh... ela é tão bonita, Hidemi-san... É tão perfeita!... Depois, fitou a mulher e apercebeu-se facilmente do quanto ela havia sofrido. Sentes-te bem? acrescentou, preocupado.

 

Estou óptima respondeu ela, de súbito com um ar muito mais experiente e mais velha. Nessa noite, atravessara as montanhas da juventude para a maturidade e a viagem fora mais árdua do que julgara.

 

Devias ter deixado que te levasse para o hospital replicou, ansioso, mas ela limitou-se a abanar a cabeça como resposta. Sentia-se feliz ali em casa, com a mãe e a irmã, e o marido à espera no jardim.

 

Lamento que seja... apenas uma rapariga, Masao-san desculpou-se Hidemi com uma genuína emoção e os olhos cheios de lágrimas, ao fitá-lo. A mãe tinha razão. Ela havia falhado.

 

Não tenho pena nenhuma. Disse-te que queria uma filha.

 

És doido redarguiu, ousando por uma vez mostrar-se desrespeitosa.

 

E tu também, caso não aches que uma filha é uma grande dádiva... talvez ainda maior do que um filho. Um dia fará com que nos sintamos orgulhosos. Verás, Hidemi-san. Fará coisas importantes, falará muitas línguas e viajará até outros países. Pode ser o que quiser, ir para onde desejar.

 

Hidemi soltou uma risada. Por vezes, ele mostrava-se um pouco louco, e tudo havia sido muito mais difícil do que julgara, mas amava-o profundamente. Ele estendeu a mão, agarrou a dela e inclinou-se para a beijar na testa. Depois, sentou-se um longo momento, mirando a filha com uma expressão de orgulho. Sentia cada palavra que pronunciara. Não se importava mesmo nada que tivessem tido uma menina.

 

Ela é bonita... como tu... afirmou. Que nome vamos dar-lhe?

 

Hiroko Hidemi sorriu. Aquele nome sempre lhe agradara e era como se chamava a sua falecida irmã.

 

Hiroko-san proferiu ele, feliz, desviando o olhar da mulher para a filha e envolvendo-as no amor que sentia. Será uma mulher totalmente moderna.

 

Hidemi riu, começando a esquecer a dor e depois esboçou um sorriso que fez com que parecesse subitamente muito mais velha.

 

Em breve, terá um irmão prometeu-lhe. Queria tentar de novo, não o desapontar na próxima vez.

 

Independentemente do que ele dizia ou das suas ideias avançadas, sabia que lhe devia mais do que aquela menina e não havia nada mais importante na vida do que dar um filho varão ao marido. E, um dia, ele teria um.

 

Agora, tens de dormir, pequenina ordenou ternamente, enquanto a cunhada trazia um tabuleiro com chá para ambos. Hidemi ainda estava debilitada com a perda de sangue e o choque de tudo por que passara.

 

A irmã de Hidemi serviu chá aos dois e depois deixou-os novamente a sós. Contudo, Masao saiu do quarto uns minutos depois. Hidemi estava muito cansada e a irmã precisava de cuidar da bebé, que se mexia muito.

 

A sogra regressou também e baixou a rede fusama, a fim de dividir o quarto e dar um pouco de privacidade a Hidemi. Masao passeou no jardim, sorrindo de si para si, mais orgulhoso do que alguma vez se sentira na vida. Tinha uma filha, uma bela rapariguinha. Ela viria a ser brilhante, um dia. Falaria inglês na perfeição, talvez até francês e alemão. Estaria a par das questões internacionais. Aprenderia muitas coisas. Seria a realização de todos os seus sonhos e, tal como dissera a Hidemi, uma mulher totalmente moderna.

 

Quando o Sol se ergueu no céu, sorriu-lhe, reflectindo em como era um homem de sorte. Tinha tudo o que desejava na vida. Uma bonita mulher, e agora uma filhinha encantadora. Talvez um dia tivesse um filho, mas, naquele momento, era aquilo que desejava. Ao voltar finalmente ao quarto para dormir, deitou-se nofuton e sorriu, pensando nelas... Hidemi... e a sua pequenina filha... Hiroko...

 

O terramoto que arrasou Tóquio e Yokohama na primeira semana de Setembro, nesse ano, também afectou Quioto, mas sem a mesma gravidade. Hiroko tinha então sete semanas e Hidemi agarrou-se a ela, aterrorizada, quando o terramoto se deu.

 

Masao dirigiu-se apressadamente para casa ao encontro delas. Tinham-se verificado consideráveis prejuízos na cidade, mas a casa deles resistiu bastante bem à catástrofe. Só mais tarde se inteirou da total destruição de Tóquio. A maior parte da cidade fora arrasada, haviam-se declarado incêndios e as pessoas vagueavam pelas ruas, esfomeadas e desesperadas com sede.

 

Foi o pior terramoto da história do Japão, e nas semanas seguintes Masao falou em deixar o Japão e mudar-se para a Califórnia, tal como o seu primo Takeo.

 

Também há terramotos na Califórnia lembrara-lhe calmamente Hidemi.

 

Não queria abandonar o Japão, por maior que fosse o risco. Além disso, Masao acabara de ser promovido. Contudo, ele não queria pôr a família em risco, agora que a possuía. Aos seus olhos, ela era muito mais importante.

 

Não são tão frequentes como aqui ripostara Masao, enervado por tudo o que acontecera.

 

Sentia-se atemorizado por ela e pela filha. E, durante semanas, escutaram, horrorizados, os relatos do que acontecera a parentes e amigos em Tóquio e Yokohama e nas cidades circundantes. Reiko, a mulher do seu primo Takeo, perdera os pais em Tóquio, e outros amigos também haviam perdido os parentes. Dava a sensação de que todos no Japão haviam sido afectados.

 

Contudo, depois de a excitação inicial se ter diluído, Masao voltou a ficar atento às questões internacionais e esqueceu os planos de mudança para a Califórnia. A guerra na China continuava. Verificavam-se problemas na Alemanha, em Outubro e Novembro, que também o interessaram. Em Novembro, o jovem líder nacional-socialista Adolf Hitler tentara realizar um golpe contra o Governo alemão, falhou e foi preso. Masao sentia-se muito intrigado com ele e, nas turmas mais avançadas de Ciências Políticas, referiu o-jovem radical alemão, que, na sua opinião, em breve mudaria o curso da Alemanha

 

Em Janeiro, a morte de Lenine forneceu mais matéria para discussão entre os analistas políticos E, em Fevereiro, Masao descobriu que Hidemi estava novamente grávida. Desta vez, o bebé deveria nascer em Junho e Hidemi ia diariamente ao santuário rezar para que fosse um filho, embora Masao voltasse a insistir que ficaria igualmente feliz com outra menina

 

Hiroko tinha então sete meses e, quando não estava presa às costas da mãe, gatinhava por todo o lado, rindo à gargalhada e encantando o pai. Este dirigia-se-lhe em inglês e embora Masao cometesse ainda alguns erros, falava com bastante fluência, e até mesmo Hidemi conseguia já levar a cabo um diálogo simples em inglês

 

Masao orgulhava-se dela. Era uma boa esposa, uma amiga maravilhosa e uma mãe encantadora. Era tudo o que esperara e, nas cartas para o seu primo na América, contava pequenas histórias a seu respeito e elogiava-a E enviava fotografias da filha. Era uma bonita menina, pequena para a idade e ainda mais frágil do que a mãe Mas o que lhe faltava em tamanho, ganhava em energia E começou a andar aos nove meses

 

Hidemi estava grávida de sete meses quando Hiroko deu os primeiros passos E Hidemi exibia uma barriga maior do que da primeira vez. Masao insistiu novamente para que ela fosse para o hospital e não tentasse ter a criança em casa, sem o recurso de um médico

 

Correu tudo muito bem da última vez, Masao-san. Manteve-se firme. A irmã também se encontrava novamente grávida, portanto não poderia vir ajudá-la, mas a mãe tencionava estar presente

 

As pessoas já não agem assim, Hidemi-san insistiu. Estamos em mil novecentos e vinte e quatro e não nas trevas do século passado. Estarás mais segura num hospital e o bebé também. Masao adorava ler publicações médicas, bem como tudo o que se relacionasse com ciências políticas, adquirindo conhecimentos para as suas aulas. Depois de ter lido vários relatos sobre complicações no campo da obstetrícia, a ideia de um parto em casa atemorizava-o. Contudo, Hidemi era muito mais antiquada do que ele e extremamente obstinada.

 

Tal como o programado, a mãe dela chegou no começo de Junho, planeando ficar durante três ou quatro semanas, antes do nascimento do bebé. Ajudava Hidemi a tratar de Hiroko todos os dias e deixava-lhe assim um pouco mais de tempo livre para estar com o marido. Conseguiram mesmo passar um dia e uma noite em Tóquio, o que para eles foi uma alegria, sentindo-se fascinados por toda a reconstrução operada após o terramoto.

 

Cinco dias depois de voltarem, Masao e Hidemi estavam deitados nos futons já a noite ia adiantada, e Masao reparou que a mulher se mexia agitadamente, tendo acabado por se levantar e ir até ao jardim. Foi juntar-se-lhe pouco depois e perguntou-lhe se chegara a altura do parto. Por fim, depois de hesitar, assentiu com um aceno de cabeça. Um ano antes, não lhe teria dito nada, mas, após dois anos de casamento, sentia-se menos tímida e um pouco mais à vontade com o marido.

 

Há muito que Masao perdera a batalha relativamente ao hospital e, ao observá-la, perguntou se queria que fosse chamar a mãe. Por um estranho momento, ela abanou a cabeça e depois pegou-lhe na mão, como se quisesse dizer-lhe algo.

 

Passa-se alguma coisa, Hidemi? Tens de me contar. Preocupava-o sempre o facto de que, por uma questão de decoro, ela lhe ocultasse que estava doente ou que qualquer coisa corresse mal com ela ou o bebé. Não deves desobedecer-me acrescentou, detestando as palavras, mas sabendo que eram a chave para a levar a contar-lhe, se houvesse algum problema. Passa-se alguma coisa?

 

Ela olhou-o e abanou a cabeça, após o que virou costas com uma expressão emocionada.

 

O que é, Hidemi-san?

 

Voltou-se e encarou-o com aqueles grandes olhos negros que ele tanto amava e lhe recordavam a filha.

 

Tenho medo, Masao-san confessou.

 

De ter o bebé? Sentiu pena dela, momentaneamente aborrecido por ter contribuído para o estado dela. O mesmo sentimento invadira-o da última vez, ao aperceber-se do sofrimento por que ela passara. Esperava que agora fosse mais fácil.

 

Contudo, ela abanou a cabeça e fitou-o com uma imensa tristeza. Tinha vinte e um anos e havia alturas em que parecia uma rapariguinha e outras uma mulher de corpo inteiro. Masao era sete anos mais velho e na maior parte do tempo sentia-se como um protector e quase com idade suficiente para ser pai dela.

 

Temo que não seja um filho... outra vez... Talvez tenhamos muitas filhas. Olhou-o com desespero e ele abraçou-a ternamente e apertou-a contra si.

 

Então, teremos muitas filhas... Não tenho medo disso, Hidemi-San. Apenas quero que estejas bem e não sofras... Ficarei feliz com filhos ou filhas... Não deves voltar a fazer isto por mim, se não quiseres. Havia momentos em que achava que ela engravidara tão cedo só para lhe agradar e dar-lhe o filho que achava que o honraria. Um filho era a coisa mais importante que ela podia dar-lhe.

 

Quando a mãe veio buscá-la, Hidemi olhou-o, hesitante. Gostava de estar com ele e, por estranho que parecesse, não queria afastar-se do marido para ter o bebé. Sabia que, em alguns aspectos, a sua relação era diferente da da maioria dos casais japoneses. Masao gostava da sua companhia e de ajudá-la, e adorava estar com ela e com Hiroko. Mesmo naquele momento de dor, queria que ele estivesse perto, embora soubesse que a mãe ficaria chocada ao ouvi-la dizer tal coisa. Contudo, jamais o diria a quem quer que fosse. Nunca compreenderiam os seus sentimentos ou a forma como Masao a tratava. Ele mostrava-se sempre bondoso, compreensivo e atento.

 

Deixou-se ficar durante horas no quarto da mãe a pensar nele e, desta vez, sabia pelo intervalo das dores que o bebé nasceria antes da manhã. Sentira dores a tarde inteira, mas preferira não dizer nada. Não queria deixar Masao e gostava de ficar deitada ao lado dele, próximo dele, e de passar aquele dia com Hiroko. Porém, já sabia que o momento chegara e deixou-se ficar deitada em silêncio, enquanto a mãe lhe dava algo que morder, a fim de não produzir um som. Nada faria que deixasse ficar mal o marido.

 

No entanto, à medida que o tempo passava, o bebé não dava a sensação de se mexer e quando a mãe decidiu, por fim, olhar, não viu nada. Nem sinal da cabeça, do cabelo, ou de movimento. Existia apenas uma dor infinda, sentindo-se Hidemi quase louca de dor quando a manhã surgiu.

 

Como que pressentindo que algo desta vez corria mal, Masao aproximou-se várias vezes das portas de rede shoji e inteirou-se do seu estado. A sogra fazia sempre uma vénia delicada e garantia-lhe que Hidemi estava bem, mas, ao alvorecer, reparou que a própria sogra parecia assustada.

 

Como está ela agora? perguntou com um ar abatido. Estivera preocupado com ela toda a noite sem saber bem porquê, mas agora sentia que era diferente. Na última vez, reinara uma atmosfera de tranquilidade, com as duas mulheres a entrar e sair do quarto onde ocorria o parto. Agora, havia apenas a mãe de Hidemi e apercebeu-se, durante toda a noite, que ela não estava satisfeita com os progressos da filha.

 

A criança não nasce? indagou. Ela hesitou, abanou a cabeça e depois mostrou-se horrorizada com a pergunta seguinte: Posso vê-la?

 

Esteve quase a recusar, mas Masao parecia tão determinado que não se atreveu. Hesitou um momento na ombreira da porta, depois afastou-se, e o que ele viu no quarto por detrás dela aterrorizou-o, ao mesmo tempo que se precipitava para Hidemi.

 

A mulher estava apenas semiconsciente e gemia baixinho. Tinha o rosto cor de cinza e mordera com tanta força o pau, que a mãe lhe dera, que se notava a marca dos dentes. Tirou-lho da boca e sentiu o ventre retesar-se sob a sua mão, quando tentou fazer-lhe algumas perguntas. Contudo, ela nem o ouvia. E quando olhou com mais atenção, decorrido um ou dois minutos, verificou que ela perdera totalmente os sentidos e mal respirava. Não tinha nenhum diploma de Medicina e nunca assistira a um parto, mas, ao observá-la, teve a certeza de que ela estava a morrer.

 

Porque não me chamou? exclamou, zangado com a sogra e aterrorizado com o que via. Os lábios e os dedos de Hidemi tinham um tom levemente arroxeado e imterrogou-se sobre se o bebé que tinha dentro dela ainda estaria vivo. Há horas que se encontrava em trabalho de parto e a situação apresentava-se extremamente grave

 

É jovem e conseguirá vencer - explicou a mãe, mas nem ela parecia convencida, quando Masao se precipitou para fora e correu em direcção à casa dos vizinhos

 

Estes tinham telefone. Há muito que ele quisera arranjar um, mas Hidemi sempre insistira que não precisavam e, em caso de emergência, podiam servir-se do dos vizinhos. Correu até lá e telefonou para o hospital, para onde sabia que devia tê-la levado apesar de todos os seus protestos. Prometeram mandar uma ambulância logo que possível e Masao censurou-se por não ter imposto a sua vontade

 

De regresso a casa, seguiu-se uma espera interminável até à chegada da ambulância e Masao sentou-se no chão, embalando-a nos braços como a um bebé. Sentia que estava a perdê-la No meio de tudo aquilo, o ventre continuava terrivelmente retesado. Até a mãe parecia impotente; agora Todos os pequenos truques antigos de nada haviam servido. Quando a ambulância chegou, Hidemi tinha os olhos fechados, o rosto cor de cinza e a respiração nada mais era que um débil fio a ligá-la à vida. O médico que viera buscá-la ficou surpreendido por ela ter aguentado tanto

 

Enfiaram-na rapidamente na ambulância e Masao pediu à sogra que ficasse com Hiroko Sem mesmo ter tido tempo para uma vénia, saiu com Hidemi e o médico. Este poucas palavras pronunciou durante o percurso, mas verificava constantemente o pulso de Hidemi e, pouco antes de chegarem ao hospital, ergueu a cabeça e abanou-a

 

A sua mulher está muito doente declarou, confirmando os piores receios de Masao. Não sei se podemos salvá-la. Perdeu uma grande quantidade de sangue e encontra-se em estado de choque. Penso que o bebé está na posição errada e ela passou muitas horas em trabalho de parto. Encontra-se muito debilitada. Nenhuma destas palavras o surpreendeu, mas soavam a uma condenação à morte

 

Tem de salvá-la pronunciou num tom selvagem, mais parecendo um samurai do que o homem delicado que era. Tem de salvá-la! Recusava-se a perdê-la.

 

Faremos tudo o que pudermos replicou o médico, tentando acalmá-lo. Masao parecia meio enlouquecido, com o cabelo desgrenhado e os olhos cheios de uma tristeza imensa por causa de Hidemi.

 

E o bebé? Agora, queria saber tudo. Tinham sido tão estúpidos em ficar em casa. Era tudo tão antiquado e primitivo e ignorava por que razão deixara que ela o convencesse. Agora, acontecera aquilo. Estava mais do que nunca certo de que os conceitos antigos eram perigosos, mesmo fatais.

 

Ainda ouço uma pulsação explicou o médico, mas muito fraca. Tem mais filhos? i

 

Uma filha respondeu Masao, distraído e fitando Hidemi de olhos muito abertos e desesperados. Lamento.

 

Não pode fazer nada? indagou Masao.

 

A respiração de Hidemi parecia agora ainda mais fraca do que quando o médico chegara. Perdia lentamente as amarras à vida e Masao nada podia fazer para a segurar. Sentiu-se invadido por uma onda de raiva e desespero quando o médico respondeu:

 

Temos de esperar até chegarmos ao hospital. ”Se conseguir aguentar-se”, pensou o jovem médico. Duvidava que sobrevivesse à operação necessária para salvar a vida e a do bebé. Era uma situação quase desesperada.

 

Percorreram velozmente as ruas na ambulância e chegaram por fim ao hospital, após o que parecera uma viagem interminável; levaram Hidemi para longe dele, ainda inconsciente, numa maca. Interrogou-se sobre se ainda voltaria a vê-la com vida e esperou sozinho durante o que lhe pareceu horas, enquanto pensava nos dois breves anos do seu casamento. Fora tão boa, tão encantadora das mais variadas formas. Era incapaz de acreditar que tudo acabaria agora num único momento e odiou-se por tê-la engravidado.

 

Aguardou duas horas, antes de uma enfermeira vir ter com ele. A mulher fez uma vénia antes de falar e Masao sentiu um repentino impulso de a estrangular. Não queria delicadezas, queria saber como estava Hidemi.

 

É pai de um filho, Takashimaya-san disse-lhe a enfermeira num tom obsequioso. É grande e saudável. Nascera com um tom levemente arroxeado, mas tinha recuperado logo, ao contrário da mãe, que ainda continuava em estado grave, na sala de operações. Não havia muita esperança.

 

E a minha mulher? indagou Masao, sustendo a respiração numa prece silenciosa.

 

Está ainda bastante mal respondeu a enfermeira, esboçando uma nova vénia. Ainda se encontra na sala de operações, mas o médico quis que fosse informado sobre o seu filho.

 

Vai ficar bem? A enfermeira hesitou e depois acenou com a cabeça, sem querer ser ela a informá-lo que era pouco provável.

 

O médico virá falar-lhe dentro em pouco, Takashimaya-san disse com uma nova vénia, depois do que se foi embora, deixando Masao sozinho, a olhar pela janela. Tinha um filho, um rapazinho, mas toda a excitação e toda a alegria foram dissipadas pelo terror de perder a mãe do bebé.

 

Pareceu-lhe uma eternidade até que o médico viesse ter com ele. Na verdade, era quase meio-dia, mas Masao não sabia. Tinha perdido por completo a noção do tempo. O bebé nascera às nove da manhã, mas os médicos tinham levado três horas a salvar a vida da mãe. Haviam, porém, conseguido. Ela perdera uma assustadora quantidade de sangue e o médico explicou num tom pesaroso que este seria o seu último filho. Não havia sequer a mais remota possibilidade de ter outro. Mas estava viva. Haviam-na salvo, embora por pouco. Explicou ainda que ela teria de repousar longamente, mas tinha a certeza de que, por ser tão jovem, conseguiria recuperar.

 

Obrigado agradeceu Masao sinceramente, esboçando uma vénia, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe humedeciam os olhos e subiam na garganta. Obrigado sussurrou de novo ao médico e a todos os deuses, a quem rezara. Ficaria perdido sem ela.

 

Masao não saiu do hospital durante todo o dia, embora telefonasse aos vizinhos para informar a sogra de que Hidemi estava fora de perigo e que eram pais de um menino. Em seguida, foi ver o filho. Era um pequeno querubim rechonchudo, e Hidemi já lhe dissera, uns meses antes, que queria chamar-lhe Yuji. Desta vez, nem sequer escolhera um nome de menina, com receio de que tal significasse que precisaria dele.

 

Por fim, deixaram-no visitar Hidemi ao fim do dia. Nunca vira uma mulher viva tão pálida e continuavam a dar-lhe transfusões e medicamentos por via intravenosa. Mostrava-se atordoada por causa dos analgésicos que tomara, mas reconheceu Masao mal o viu, e sorriu quando ele se inclinou para a beijar. Quase desejou que ficasse afogueada para voltar a ver alguma cor nas faces, mas, pelo menos, estava viva, o bebé deles também, e sorria.

 

Tens um filho exclamou, num tom vitorioso. ”A que preço, céus!”

 

Eu sei disse, sorrindo-lhe. Também tenho uma mulher. Aos seus olhos era muito mais importante. Pregaste-me um grande susto, pequenina. Vamos pôr de parte as tuas ideias antiquadas. É demasiado perigoso ser assim. Nesse dia, apercebera-se mais do que nunca do quanto a amava.

 

Teremos o próximo aqui replicou docemente, e ele não a contrariou. Era demasiado cedo para lhe explicar tudo o que acontecera. Contudo, ter apenas dois filhos não era nenhuma tragédia para ele. Eram pais de um rapaz e de uma rapariga, ela cumprira o seu dever e podia retirar-se com honra.

 

Bastas-me tu, a Hiroko e o Yuji. Sabia-lhe bem pronunciar o nome do filho. Era uma novidade, mas dava-lhe um prazer enorme.

 

Com quem se parece? inquiriu Hidemi num tom terno, prendendo a mão de Masao e ignorando o quanto estivera próximo da morte. Contudo, ele tinha consciência disso e sabia que jamais esqueceria o terror da noite anterior e dessa manhã.

 

Parece um pequeno samurai, como o meu pai respondeu Masao, novamente grato por terem escapado os dois.

 

Tem de ser bonito e inteligente como tu, Masao-san pronunciou Hidemi, deixando-se arrastar pela sonolência e sem o largar

 

E meigo e generoso como a mãe murmurou Masao, sorrrindo-lhe, consciente de que a amaria para sempre

 

Tens de ensinar-lhe inglês sussurrou ela, e Masao sorriu, troçando, por uma vez, de si próprio. Vamos levá-lo à Califórnia para visitar o primo concluiu, atordoada pelas drogas, mas planeando o futuro do filho

 

Talvez ainda frequente lá a universidade sugeriu ele, entrando no jogo Ou talvez a Hiroko. Vamos mandá-la para casa do Takeo, para estudar em Stanford Contudo, desta vez Hidemi fez um ligeiro sorriso, tentando manter os olhos abertos

 

Mas ela é apenas uma rapariga corrigiu-o Hidemi. Agora, tens um filho

 

É uma rapariga moderna sussurrou, inclinando-se mais sobre a mulher. Fará tudo o que o Yuji fizer acrescentou com os olhos cheios de sonhos. Ela riu. Achava-o louco, com aqueles planos e ideias tão modernas e inovadoras, mas tinha consciência de quanto o amava

 

Muito agradecida, Masao-san; expressou-se Hidemi num inglês desajeitado, enquanto se deixava adormecer, sem largar a mão do marido.

 

De nada, pequenina respondeu-lhe ele num inglês mais fluente. Sentou-se numa cadeira, ficando a vigiá-la

 

Não! recusou Hidemi num tom firme. Era uma velha discussão entre os dois e em que ela se recusava absolutamente a ceder. Ela é uma rapariga e não um homem. O lugar dela é entre nós. De que servirá mandá-la para a Califórnia? Hidemi opunha-se inexoravelmente a enviar a filha para a universidade.

 

Ela tem quase dezoito anos explicou Masao pacientemente e pela milésima vez num ano. Fala muito bem inglês, mas beneficiará muito se ficar pelo menos um ano nos Estados Unidos, se não mais tempo. Queria que a filha concluísse o curso de quatro anos, mas sabia que, de momento, Hidemi não estava preparada para tal. Servirá para melhorar a sua educação, abrir ideias, alargar horizontes. E o meu primo e a mulher tomarão conta dela. Tinham três filhos e viviam em Paio Alto. Contudo, Hidemi sabia tudo isso, mas não estava disposta a concordar.

 

Manda o Yuji no próximo ano sugeriu ela teimosamente, enquanto ele a fitava, interrogando-se sobre se havia ganho a discussão.

 

Tratava-se, na verdade, de algo que ele queria para Hiroko. A filha era muito tímida e muito tradicional, apesar das ideias revolucionárias do pai, e ele achava que lhe faria bem abandonar o Japão durante uns tempos. Era Yuji que queria, de facto, ir, que ansiava por abrir as asas e tanto se parecia com ele.

 

Também podemos mandar o Yuji, mas esta seria uma experiência inesquecível para a Hiroko. Lá estaria a salvo, em boas mãos. E pensa em tudo o que aprenderia.

 

Uma série de selváticos costumes americanos retorquiu Hidemi num tom de censura e Masao suspirou, desesperado.

 

Ela era uma mulher maravilhosa, mas tinha ideias muito definidas e muito tradicionais, ideias sobre os filhos, em especial a filha. Hiroko fora educada segundo todas as tradições antigas antes de a avó ter morrido um ano antes, e a própria Hidemi continuara a incutir-lhas com um rigor meticuloso Eram, sem dúvida, importantes, mas havia outras coisas que Masao queria que Hiroko aprendesse, que achava muito mais importantes, sobretudo para uma mulher. Queria que ela tivesse as mesmas oportunidades do que Yuji e, no Japão, era muito difícil.

 

Ela pode aprender inglês aqui. Eu aprendi insistiu Hidemi num tom firme e Masao sorriu-lhe

 

Desisto. Manda-a ser uma freira budista Ou então encontra-lhe marido. Não vais deixar que faça nada de novo com a vida dela, não é verdade?

 

Claro que sim Pode frequentar a universidade daqui. Não precisa de ir para a Califórnia

 

Pensa naquilo de que estás a privá-la, Hidemi. Falo a sério. Consegues realmente sentir-te bem, fazendo-lhe isso? Pensa na experiência que ela teria lá. De acordo. Esquece os quatro anos de formação. Manda-a só por um ano. Seria um ano de que se lembraria para o resto da vida. Fará amigos, conhecerá outras pessoas, receberá novas ideias e depois pode voltar e frequentar a universidade aqui. Contudo, nunca será a mesma pessoa, se for ou se não for.

 

Porque queres tornar-me responsável por a privar de uma oportunidade? Porque é que tem de ser culpa minha? insurgiu-se Hidemi

 

Porque queres mantê-la aqui. Queres mantê-la confortável, debaixo das tuas saias, segura no nosso pequeno mundo, tímida, antiquada, e totalmente submissa às inúteis tradições que a tua mãe lhe ensinou. Liberta-a, como se ela fosse uma bela avezinha. Voltará até nós Mas não lhe cortes as asas só porque é uma rapariga, Hidemi O mundo já é suficientemente difícil para as mulheres

 

Tratava-se de uma luta que há muito liderava e com que a mulher não concordava em pleno. Sentia-se muito feliz com a sua vida e, na verdade, como sua mulher, usufruía de muitas liberdades. No entanto, também o sabia e não se mostrava totalmente surda ao que ele dizia ou à voz da sua consciência

 

Levou mais um mês de debates e argumentações, mas Hidemi finalmente cedeu Um ano ou mais, se Hiroko, na verdade, gostasse, mas só tinha de ir um ano para São Francisco. Takeo inscrevera-a numa pequena instituição feminina mas academicamente excelente, em Berkeley, chamada St. Andrews, e Masao jurou que ela estaria a salvo lá. Era muito tempo para ficar longe, mas Hidemi concordara, embora com relutância, que se tratava de uma oportunidade fantástica embora a ultrapassasse o facto de as mulheres terem de frequentar a universidade e ainda por cima tão longe. Nunca o fizera e levava uma vida maravilhosa junto do marido e dos filhos.

 

O próprio Yuji achou fantástico e mal conseguia esperar pelo ano seguinte, em que contava candidatar-se a Stanford. Entretanto, achava que a irmã tinha mesmo sorte em ir para a Califórnia. A única que não partilhava do mesmo entusiasmo, além de Hidemi, era Hiroko.

 

Não ficas contente por a tua mãe ter concordado? inquiriu Masao em tom de confidência, encantado pela sua vitória quando Hidemi acabou por capitular e concordou em deixar que Hiroko fosse para São Francisco.

 

Fora uma batalha de um ano. No entanto, Hiroko mostrou-se silenciosa e hesitante, embora lhe garantisse que se sentia muito grata. Parecia uma bonequinha, de traços frágeis e modos graciosos. Era ainda mais encantadora e delicada do que a mãe. No entanto, também mais tímida, e, contrariamente ao pai, com todas as suas ideias modernas, Hiroko manifestava uma atitude antiquada. Tinha uma genuína preferência por todos os velhos princípios e tradições. A avó incutira-lhe um grande respeito por eles, mas, além disso, sentia-se muito à vontade no meio dos objectivos domésticos e velhos hábitos. Era uma japonesa tradicional de alma e coração, muito mais do que a própria mãe.

 

Ao longo dos anos, Hidemi desenvolvera um profundo respeito por uma série dos modernos conceitos de Masao. No entanto, Hiroko não denotava qualquer interesse pelos mesmos. Era uma mera jovem antiquada sem o mínimo desejo de passar um ano na Califórnia. Apenas concordara para agradar ao pai. E tratava-se de um preço terrivelmente alto a pagar para lhe demonstrar respeito, mas jamais teria coragem de o enfrentar.

 

Não estás entusiasmada? voltou ele a perguntar-lhe e ela acenou com a cabeça, tentando parecer satisfeita, sem conseguir. Masao sentiu um aperto no coração, ao olhá-la. Conhecia bem a filha, amava-a muito e teria preferido morrer a torná-la infeliz.

 

Não queres ir? inquiriu num tom triste. Podes ser sincera comigo. Longe de nós querer castigar-te. Queremos fazer algo importante pelo teu futuro. Estava igualmente em causa um grande sacrifício financeiro, mas que achavam digno dos filhos.

 

Eu... Receava parecer desobediente, ao baixar os olhos num enfrentar de emoções. Gostava tanto deles e do irmão e odiava ter de os deixar. Não quero abandonarvos respondeu com os grandes olhos cheios de lágrimas. A América é tão longe. Porque é que não posso ir para Tóquio? Ergueu os olhos na sua direcção, quase o fazendo chorar também.

 

Porque nada aprenderás lá que não possas aprender aqui. Na verdade, é melhor para ti aqui do que na grande cidade. No entanto, a América... replicou Masao com os olhos cheios de lágrimas.

 

Nunca viajara até lá, mas fora o seu desejo de toda uma vida. Durante vinte anos, tinha lido as cartas do seu primo Takeo e desejado poder estar lá. Agora, era um presente que queria dar aos filhos, o maior presente, o único que desejaria.

 

Só tens de ir um ano, Hiroko insistiu. Um ano de estudos, é tudo. Se detestares, podes voltar. Um ano não é assim tanto tempo. Podes fazê-lo. E talvez gostes. O Yuji pode mesmo acompanhar-te no segundo ano, se ficares. Estarão juntos.

 

Mas tu não estarás... nem a mamã... O que farei sem vocês? perguntou com os olhos rasos de lágrimas e os lábios a tremerem, baixando o rosto em sinal de respeito.

 

O pai apertou-a de encontro a si, eternamente surpreendido com a sua fragilidade, que mal cabia num abraço.

 

Também sentiremos a tua falta, mas vamos escrever-te e terás a companhia do tio Tak e da tia Reiko.

 

Mas não os conheço.

 

São umas pessoas fantásticas. Takeo fizera-lhes uma visita nove anos atrás, mas Hiroko mal se lembrava dele e a tia Reiko não o acompanhara, pois estava grávida da sua última filha, Tamiko. Vais gostar deles e sei que te tratarão como se lhes pertencesses. Por favor, Hiroko, por favor, não quero que percas esta oportunidade. Há anos que andava a poupar dinheiro, levara-lhe quase tanto tempo a convencer a mulher e agora Hiroko dava-lhe a sensação de que o punia, quando, afinal, era apenas o desejo de a ajudar. Se, ao menos, ela o compreendesse.

 

Vou fazê-lo, papá. Por ti acedeu ela com uma vénia. Masao sentiu vontade de a abanar. Queria que a filha abdicasse dos velhos costumes. Era demasiado nova para ficar encurralada.

 

Quero que o faças por ti replicou. Quero que te sintas feliz lá.

 

Tentarei, papá sussurrou, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe corriam pelo rosto e ele a abraçava. Sentia-se um monstro ao forçá-la a partir e, no entanto, estava certo de que quando a filha chegasse à Califórnia iria adorar.

 

Contudo, na manhã em que ela partia, abateu-se uma nuvem de tristeza sobre todos e, quando saíram de casa, Hiroko conservou-se no exterior a chorar ante a ideia de deixar a casa, os pais e o irmão. Parou um momento no pequeno santuário, fez uma pequena vénia, seguiu a mãe até ao carro e deslizou para o banco de trás, ao lado dela, a fim de iniciar a viagem rumo a Kobe.

 

Yuji e o pai conversavam tranquilamente na frente e Hiroko não pronunciava uma palavra. Limitava-se a olhar pela janela, enquanto a mãe a observava. Hidemi queria dizer-lhe algo, que fosse corajosa, que lamentava se haviam errado, mas ignorava como o fazer e, por isso, mantinha-se calada.

 

Ao observá-las de vez em quando pelo espelho retrovisor, Masao sentiu-se entristecido pelo terrível silêncio atrás de si. Não se ouvia qualquer som de entusiasmo ou surpresa. A filha não se referia ao barco, aos Estados Unidos, ou aos primos. Não pronunciava palavra.

 

Conservava-se sentada, de coração despedaçado ao ser arrancada à sua terra natal. E cada casa, cada árvore, cada erva que avistava só lhe aumentava a angústia.

 

A mãe metera-lhe todas as coisas numa arca que tinham mandado antes dela para a companhia de navegação NYK, em Kobe E agora, aquela curta viagem de uma hora e meia até ao cais parecia infindável Até mesmo as tentativas de Yuki para aligeirar o ambiente mal lhe tinham provocado um sorriso

 

Ela era uma jovem muito séria, que raras vezes participava no tipo de brincadeiras do irmão Contudo e apesar das diferenças que os separavam, eram muito chegados e gostavam muito um do outro Yuji falava-lhe em inglês, que dominava muito bem, melhor do que ela Tinha um dom natural para as línguas, como para muitas coisas, sobretudo música e desporto e, embora adorasse divertir-se, era um óptimo estudante

 

Hiroko mostrava-se mais lenta e séria perante a vida Não se entusiasmava com novos projectos, amizades e novas ideias como ele. Media tudo com cuidado, reflexão e precisão. Contudo, era perfeita no que fazia. Tocava piano e violino, que praticava a toda a hora. Esforçara-se menos com o inglês e, embora falasse sem dificuldade, sentia-se pouco à vontade Contrariamente a Yuji

 

- Vais aprender a dançar o swing na Califórnia disse-lhe, orgulhoso pelo seu conhecimento da cultura americana. Sabia igualmente o nome de todas as vedetas do basebol e adorava aprender calão americano. Estava ansioso por ir para Stanford. Terás de me ensinar quando lá chegar acrescentou, e Hiroko não conseguiu suster um sorriso

 

O irmão era tão pateta Mas isso não impedia que fossem bons amigos. Tinham menos de um ano de diferença e não imaginava como conseguiria viver sem ele. Sabia que os primos também tinham um filho quase da idade de Yuji, dezasseis anos, e que se chamava Kenji E havia também duas filhas mais novas Todavia, estava certa de que nenhum ocuparia o lugar de Yuji no seu coração e, ao chegarem à doca, Hiroko sentiu as pernas a tremerem-lhe e um baque no coração

 

Localizaram facilmente o cais da Companhia de Navegação NYK e o Nagoya Mam mantinha-se à espera, à medida que os passageiros chegavam e os amigos subiam a bordo para visitar os camarotes. As pessoas riam e falavam, quando eles subiram para o navio, a fim de procurar o camarote de Hiroko.

 

A jovem tinha um camarote na segunda classe e os pais ficaram contentes ao verem que o partilharia com uma mulher muito mais velha. Era americana, há uns anos que estudava a arte do Japão e agora regressava a Chicago. Trocou algumas palavras simpáticas com eles e depois foi até ao convés à procura de amigos e deixou Hiroko a sós com os pais. Pressentira que não se tratava de um momento fácil. E, quando Hiroko os olhou, empalideceu, e o pai pressentiu que estava prestes a entrar em pânico.

 

Tens de ser muito corajosa, miúda disse ternamente, enquanto Yuji deslocava a arca e a mãe lhe indicava onde a arrumar. Sê forte. Apenas estarás só no navio e depois terás os nossos primos.

 

Masao escolhera propositadamente um navio que seguisse directamente para São Francisco. Faria um longo percurso, mas achavam que seria mais seguro do que se parasse em Honolulu. Ela não queria ir a terra sozinha e sentia-se nervosa de estar no navio sem eles. Era a sua primeira viagem sem companhia, nunca saíra de casa e aggora ia afastar-se de tudo o que lhe era familiar.

 

Não tardarás a estar em casa garantiu-lhe o pai num tom terno, olhando à volta do camarote, que era pequeno e um tanto claustrofóbico. O ano passará rapidamente.

 

Sim, pai anuiu ela, fazendo uma vénia e pedindo-lhe silenciosamente que não a enviasse.

 

Só acedia aos desejos dele por uma questão de respeito. Teria dado tudo para não ir para a Califórnia. À semelhança da mãe, não compreendia qual a vantagem. Sabia que era importante conhecer o mundo, mas não tinha certezas quanto ao motivo. Parecia-lhe muito melhor ficar em casa, entre pessoas e lugares familiares. Na verdade, jamais se tornara a jovem mulher moderna com que o pai sonhara. Masao tinha a certeza de que aquela viagem marcaria a diferença.

 

A sirene tocou e soou o gongo para que os acompanhantes abandonassem o navio, pouco antes de Hiroko se ter instalado, e Masao achou bem. Sabia, só de a olhar, que se ficassem muito mais tempo, nunca a deixariam partir. A filha parecia tão assustada e pálida e as mãos tremiam-lhe, quando estendeu à mãe uma flor do pequeno ramo que a NYK lhe enviara. A mãe pegou-lhe com mãos igualmente trémulas e depois estendeu os braços para acolher a filha. Não pronunciaram palavra e quando o gongo soou novamente, Masao tocou ao de leve no ombro da mulher. Chegara o momento de se afastarem. Tinham de a deixar.

 

Hiroko seguiu-os em silêncio até ao exterior, vestida com o quimono azul-claro que a mãe lhe dera. Masao insistira para que ela também levasse roupas ocidentais, certo de que lamentaria o facto na universidade, se não as tivesse. Nunca usara roupas ocidentais. Tal como a mãe, preferia usar o quimono. Contudo, metera na bagagem as outras roupas, porque o pai assim quisera.

 

A família deteve-se no convés e a atmosfera estava quente e fragrante. Era um dia ideal para navegar, e a maioria dos passageiros mostrava-se excitada. A música tocava e balões pairavam no ar. Contudo, Hiroko assemelhava-se a uma órfã abandonada no convés, quando a deixaram.

 

Porta-te bem aconselhou-a Hidemi com uma expressão solene. Ajuda os teus primos, sempre que estiveres com eles. Mas à medida que dava instruções à filha mais velha, os olhos enchiam-se-lhe de lágrimas e a ideia de a deixar parecia-lhe insuportável. Escreve-nos... Queria dizer-lhe que não os esquecesse, não se apaixonasse lá longe, nem ficasse em São Francisco, mas apenas conseguiu fitá-la, lembrando-se de quando ela era uma rapariguinha, na segurança de Quioto. E Hiroko limitava-se a chorar, de olhos postos na mãe.

 

Tem cuidado contigo, mana disse-lhe Yuji em inglês e ela sorriu por entre as lágrimas. Dá cumprimentos ao Clark Gable.

 

Não andes atrás de muitas raparigas troçou Hiroko em japonês e depois abraçou-o e virou-se para o pai. Contudo, deixá-lo era o que mais lhe custava, pois sabia quanto esperava dela e como queria que ela seguisse aquele intento.

 

Aproveita, Hiroko. Aprende muitas coisas. Abre os olhos e vê tudo. Depois regressa a casa e conta-nos.

 

- Assim farei, pai - garantiu, fazendo uma vénia e prometendo em silêncio que faria tudo o que ele desejasse. Seria corajosa, sensata e interessada. Aprenderia muitas coisas e regressaria depois, falando um inglês perfeito.

 

No entanto, quando se levantou e voltou a olhá-lo, ficou surpreendida ao verificar que também ele tinha lágrimas nos olhos. Apertou-a com muita força durante um momento e depois recuou, agarrou-lhe as mãos uma última vez, virou-se e conduziu a mulher e o filho para terra, enquanto Hiroko os observava, atemorizada.

 

Ficou junto ao varandim, acenando-lhes, sentindo-se mais só do que alguma vez em toda a sua vida e terrivelmente receosa do que a aguardava na Califórnia.

 

Enquanto os via desaparecer à distância, pensava em cada um deles, quanto significavam aos seus olhos, e rezava para que o ano seguinte passasse rapidamente. Ficou a ver as montanhas do Japão a desvanecerem-se lentamente e conservou-se, horas a fio, no convés, de olhos postos na pátria que se afundava no horizonte.

 

Quando Yuji e os pais regressaram a casa, esta pareceu-lhes dolorosamente vazia sem Hiroko. A jovem sempre se movimentara entre eles de uma forma tranquila e eficiente, enquanto se ocupava das tarefas domésticas e ajudava a mãe sem pronunciar uma palavra; no entanto, marcava presença. Agora, sem ela, Yuji apercebeu-se do peso iminente da solidão e foi encontrar-se com uns amigos para não ter de pensar no assunto.

 

Masao e Hidemi entreolharam-se, interrogando-Se sobre se teriam procedido mal, se ela seria jovem de mais, se haviam cometido um erro terrível ao mandá-la para a Califórnia. Masao era o mais preocupado e, naquele momento, se pudesse, tê-la-ia trazido de volta a casa e dito que esquecesse St. Andrew’s. Desta vez, porém, era Hidemi quem tinha as certezas, quem sabia que o que haviam feito era o melhor para ela. Hiroko só tinha menos um ano do que quando ela casara com Masao. Hiroko aprenderia muitas coisas, faria muitos amigos e depois regressaria a casa, sonhando com aquele ano que passara na Califórnia.

 

Masao tinha razão. Era um mundo diferente, um mundo em que se tornava necessário conhecer mais do que velhas tradições, um mundo em que saber dispor flores numa jarra e servir chá não seria importante. Era um mundo que, algum dia, pertenceria aos jovens, a gente como Hiroko e Yuji. Tinha de estar preparada, saber as lições de que precisaria quando voltasse a casa. Seria um ano bem passado e, ao pensar nisso, Hidemi fitou o marido e sorriu.

 

Agiste bem elogiou generosamente, sabendo que ele necessitava de ser tranquilizado. Sentia-se muito mal. Só conseguia lembrar-se da tristeza nos olhos da filha, quando a deixara no navio e descera apressadamente a prancha de desembarque.

 

Como podes estar certa? perguntou Masao, infeliz, mas agradecido pelas palavras.

 

Porque és muito sensato, Masao-san respondeu Hidemi, com uma vénia; estendeu-lhe a mão e atraiu-o de encontro a si.

 

Tinham partilhado dezanove anos de felicidade. Respeitavam-se mutuamente e amavam-se muito. Era um amor que se consolidara com o tempo e suplantara tempestades. Durante a sua vivência em comum tinham partilhado muitas decisões diferentes, mas nenhuma como aquela.

 

Ela será feliz afirmou Hidemi, desejosa de certezas e acreditando em tudo o que Masao lhe dissera.

 

E se não for? ripostou ele, sentindo-se velho e subitamente muito só. Mas não mais, do que a filha.

 

Ganhará força. Será bom para ela.

 

Assim espero replicou num tom terno, enquanto Hidemi lhe pegava na mão e caminhavam até ao jardim.

 

Não podiam ver o mar de onde se encontravam, mas mantiveram-se voltados na direcção em que sabiam que ele estava e, enquanto pensavam na filha, Hiroko conservava-se no convés do Nagoya Maru, esboçando uma vénia para o horizonte.

 

O Nagoya Maru atracou em São Francisco no primeiro dia de Agosto, depois de uma viagem de duas semanas. O mar apresentara-se calmo, fizera bom tempo e para a maioria dos passageiros a viagem processara-se sem novidade.

 

O Nagoya Maru transportara sobretudo famílias e uma série de pessoas idosas que não gostavam do percurso mais agitado via Honolulu. Os passageiros eram principalmente japoneses e muitos dirigiam-se ao Peru e ao Brasil.

 

Havia, porém, bastantes americanos, como a mulher que partilhara o camarote com Hiroko. Era muito fechada e falava muito pouco com os outros passageiros e, com Hiroko, apenas quando se vestiam ou se cruzavam a caminho da casa de banho. Hiroko nada tinha a dizer-lhe. Nada tinha a dizer a quem quer que fosse. Manteve-se tristíssima e cheia de saudades durante toda a viagem até São Francisco e enjoara. Vários jovens haviam tentado falar-lhe, na sua maioria japoneses, e ela mostrara-se muito delicada, mas cortando todas as tentativas de conversa. Quando chegaram aos Estados Unidos, não falara com ninguém desde que haviam saído de Kobe, além de um breve ”bom dia” ou ”boa noite”. Comera as suas refeições na sala de jantar e nem mesmo então trocara impressões com os seus companheiros de mesa. Mantinha os olhos baixos e parecia inabordável, limitando-se a usar os mais escuros e sóbrios quimonos.

 

Antes de chegarem ao porto, trancou a arca, fechou a pequena mala à chave e deixou-se ficar uns momentos olhando pela vigia. Avistava a nova ponte Golden Gate na frente deles e a cidade encarrapitada nas colinas, brilhando ao sol. Parecia muito bonita, mas, aos seus olhos, mesmo dali, causava-lhe uma sensação de estranheza. Interrogava-se sobre o que encontraria. Ia ter com primos que não conhecia, mas de que ouvira falar durante os seus dezoito anos. Só esperava que fossem tão bondosos quanto o pai acreditava e se recordava. Os funcionários da imigração apareceram no rebocador, examinaram-lhe o passaporte e carimbaram-no, enquanto outros passageiros se mantinham em fila na sala de jantar pelo mesmo motivo. Saiu depois até ao convés e alisou o cabelo longo e negro. Usava-o num rolo apanhado e vestia um quimono azul-claro. Era o mais bonito que pusera desde que tinham saído de Kobe e assemelhava-se a um pedaço de céu de Verão, enquanto se mantinha junto à amurada, parecendo muito pequena e encantadora.

 

O navio fez soar a sirene e o rebocador acolheu-os, enquanto o Nagoya Maru atracava junto ao Cais 39. Um momento depois, os passageiros que já tinham passado pelos funcionários da imigração começaram a desembarcar. A maioria parecia ansiosa por sair, encontrar-se com amigos e parentes, terminar aquela viagem de duas semanas.

 

No entanto, Hiroko percorreu a prancha de desembarque muito lentamente. Movia-se com graciosidade, mal parecendo tocar com os pés no chão e não tinha a certeza se reconheceria os parentes, nem onde os encontrar. Era aterrorizador estar ali.

 

E se eles se tivessem esquecido de vir? Se não a reconhecessem, ou, mesmo que assim fosse, não gostassem dela? Milhares de ideias parecidas ocorreram-lhe ao chegar ao cais e ao deparar com mil rostos desconhecidos. As pessoas acotovelavam-se e apressavam-se por todo o lado, identificando a bagagem, procurando sacos e chamando táxis.

 

Hiroko sentia-se perdida no meio de toda aquela excitação. A atmosfera era praticamente de festa e havia um navio turístico, de onde saía música a jorros. Quase não se ouvia nada no meio de toda a gritaria e barulho, com os acordes do Deep in the Heart of Texas a envolvê-los. No momento em que quase desesperava de encontrar alguém, deparou subitamente com um rosto que lhe recordava o pai. Era alguém mais velho e mais baixo, mas com algo de vagamente familiar.

 

Hiroko? perguntou ele, fitando-a; no entanto, tinha a certeza.

 

A jovem era igual à da fotografia que o primo lhes mandara e, quando ergueu os olhos, detectou uma timidez e suavidade que o emocionou. Ela limitou-se a acenar com a cabeça em resposta à pergunta. Sentia-se totalmente aturdida por tudo o que acontecia à sua volta e invadira-a um tal receio de não os encontrar, que nem sequer conseguia expressar o quanto estava aliviada por ele a ter descoberto.

 

Sou Takeo Tanaka. O teu tio Tak acrescentou. Ela esboçou um novo aceno de cabeça, surpreendida por ele lhe falar em inglês. Expressava-se na perfeição, sem qualquer sotaque.

 

A tua tia Reiko está no carro com os miúdos. Mas enquanto ele dava esta explicação, Hiroko fez-lhe uma enorme vénia, a fim de lhe demonstrar todo o seu respeito e o do pai. E ele ficou tão surpreendido quanto ela, ao ouvi-lo falar inglês. Hesitou um instante e depois correspondeu ligeiramente à vénia, consciente de que, se não o fizesse, seria uma ofensa não só para ela, mas para o pai. Contudo, apenas se inclinava diante de pessoas mais velhas e nunca gente nova ou da sua idade. Conhecendo Masao como conhecia, esperara que ela estivesse menos ligada à tradição. Lembrava-se, porém, que no seu breve encontro com Hidemi, ela se mostrara muito formal.

 

Sabes onde está a tua bagagem? perguntou tranquilamente, uma voz calma no meio da tempestade que os rodeava.

 

As malas estavam a ser entregues por ordem alfabética no cais, onde os funcionários da alfândega examinavam o conteúdo, e ela apontou para o rebocador, ao mesmo tempo que ele começava a interrogar-se sobre se a jovem falaria inglês. Até essa altura, não pronunciara uma palavra, limitara-se a fazer uma vénia e a fitá-lo de relance uma vez, embora depois desviasse timidamente o olhar.

 

Acho que estarão ali afirmou, respondendo à pergunta não formulada sobre o inglês dela. Expressou-se deliberadamente e com clareza, embora fosse óbvio que não se sentia muito à vontade com a língua. Só tenho uma mala acrescentou, parecendo-se muito com Hidemi, até mesmo aos seus ouvidos. O pai e Yuji não tinham dificuldade com as línguas e falavam inglês como se o fizessem a toda a hora. O inglês de Hidemi era muito menos fluente, como o de Hiroko.

 

Que tal correu a viagem? perguntou Takeo, enquanto se dirigiam ao sítio que ela indicara e descobriram a mala. Um funcionário da alfândega estava perto e despachou-os com uma surpreendente rapidez.

 

Depois, Takeo fez sinal a um carregador e indicou onde estava o carro, ao mesmo tempo que conduzia Hiroko ao encontro dos novos primos. Chegara numa carrinha Chevrolet que comprara nesse ano. Era verde-escura e transportava comodamente toda a família, até mesmo a cadela, que os acompanhava para todo o lado. Contudo, desta vez tinham-na deixado em casa para poderem arrumar as malas de Hiroko na parte de trás e regressar a Palo Alto. Mas todos os filhos tinham ido e estavam excitados com a ideia de a conhecerem.

 

A viagem foi muito amena proferiu Hiroko numa resposta estudada. Obrigada. Continuava sem entender porque é que ele lhe falava em inglês. Era, afinal, japonês. Imaginava que o pai lhe pedira que a obrigasse a praticar inglês. Ansiava, porém, por falar japonês com ele. Parecia-lhe idiota estar a conversar em inglês. Ele era tão japonês quanto ela, mas há vinte anos que vivia nos Estados Unidos e a mulher e os filhos tinham nascido ali.

 

Abria caminho diante dela por entre a multidão aglomerada no cais e o carregador seguia-os com a mala. Demoraram uns escassos minutos a chegarem ao carro, onde Reiko e as crianças aguardavam. Reiko, com um vestido vermelho, apressou-se a saltar do carro e abraçou carinhosamente Hiroko, enquanto Takeo ajudava a meter a mala nas traseiras do Chevy.

 

Oh! És tão bonita! exclamou Reiko, sorrindo.

 

Era uma bela mulher mais ou menos da idade de Hidemi, mas com um corte de cabelo curto. Estava maquilhada e Hiroko gostou imenso do vestido vermelho. A sobrinha fez-lhe uma vénia em sinal de respeito, como, pouco antes, diante do tio Takeo.

 

Não precisas de o fazer aqui sorriu Reiko, pegando-lhe na mão, quando se virou para os filhos e os apresentou.

 

Tratou-os por Ken, Sally e Tami. Hiroko sempre ouvira falar deles como Kenji, Sachiko e Tamiko. Ken tinha dezasseis anos e era espantosamente alto para um japonês e Sally tinha catorze, mas parecia muito crescida com sapatos de cunha, uma saia cinzenta e uma camisola rosa de caxemira. Era uma bonita rapariga e parecia-se muito com a mãe. Tami era adorável. Tinha oito anos, era uma miúda muito alegre e, antes de Hiroko pronunciar uma palavra, rodeou-lhe o pescoço com os braços e beijou-a.

 

Bem-vinda, Hiroko! saudou-a Tami com um sorriso e depois comentou como Hiroko era pequena. Sou quase da tua altura! Hiroko riu, fez-lhe uma vénia e eles fitaram-na, interessados.

 

Aqui não usamos isso! explicou-lhe Tami. Só as avós fazem essas coisas. E também não precisas de usar quimono. Mas o teu é muito bonito.

 

Aos olhos deles, Hiroko parecia uma bonequinha japonesa e Tami insistiu em sentar-se no banco de trás com ela e Ken, enquanto Sally ocupou o banco da frente com os pais. Minutos depois iam a caminho, e Hiroko simpatizou de imediato com todos, enquanto conversavam, riam e os miúdos lhe explicavam tudo sobre as escolas e os amigos, e Tami lhe falava da sua casa de bonecas. Reiko tentou acalmá-los, mas eles estavam demasiado excitados com a chegada da prima para lhe darem ouvidos. Hiroko era bonita e tão pequena, tinha um cabelo lindíssimo e Sally disse que ela parecia uma boneca que o pai lhe dera uma vez e quis saber se ela trouxera roupas ocidentais.

 

Algumas explicou. O meu pai achou que precisaria delas para a universidade.

 

Boa ideia aprovou Reiko. E a Sally pode emprestar-te tudo o que necessitares, Hiroko.

 

Hiroko sentia-se fascinada por ela. A tia Rei, como queria que lhe chamassem, embora fossem primas, parecia totalmente americana; não tinha sotaque e, de facto, nascera em Fresno. Uns primos do pai possuíam lá um próspero negócio e os pais dela tinham vindo juntar-se-lhes, antes do seu nascimento. Nascera nos Estados Unidos e haviam-na mandado estudar vários anos no Japão, o que a tornava uma kibei. Contudo, nunca se sentira à vontade no Japão. Era americana dos pés à cabeça e regressara aos Estados Unidos, tendo conseguido uma bolsa para Stanford, onde conhecera Tak, e um ano mais tarde estavam casados. Passado outro ano, os pais haviam-se reformado e voltado ao Japão e ambos tinham morrido no terrível terramoto, pouco depois de Hiroko ter nascido. O negócio de família em Fresno continuava a ser dirigido pelos primos. Eram os únicos parentes vivos de Reiko, à excepção de Takeo e dos filhos.

 

Sei como te sentes, Hiroko explicou. Quando os meus pais me mandaram estudar para o Japão, pareceu-me que me tinham enviado para outro planeta. Era tudo tão diferente daquilo a que estava habituada. Nessa altura, o meu japonês não era grande coisa e nenhum dos meus parentes falava inglês. Pareciam-me todos estranhos e antiquados.

 

Tal como tu interrompeu Sally, virando-se para Ken, e todos riram.

 

Mas sei que não é fácil. Provavelmente todos te parecemos bastante estranhos prosseguiu Reiko, sorrindo a Hiroko.

 

Hiroko fixou o regaço e esboçou um sorriso tímido. Mal tinha coragem de os fitar e, sempre que lhe falavam, baixava os olhos e parecia profundamente embaraçada. Era a pessoa mais tímida que Sally conhecera na vida. Mas o mais embaraçoso era a sua incapacidade de perceber como todos eram tão americanos. Se não fossem as feições, jamais saberia que eram japoneses. Não falavam como verdadeiros japoneses, não agiam nem se movimentavam como eles. Era como se não tivessem qualquer ligação com os modos e a cultura japonesa.

 

Gostas de comida americana? perguntou Sally, curiosa. Iam partilhar o quarto e Sally ansiava por saber se ela tinha namorado. Ken perguntava o mesmo a si próprio. Andava a sair com Peggy, a vizinha do lado.

 

Nunca as comi disse Hiroko hesitante e Tami riu.

 

A, não... Queres dizer que nunca provaste hambúrgueres, nem batidos? surpreendeu-se Tami, fitando-a como se ela fosse uma extraterrestre.

 

Nunca. Li sobre elas. São saborosas? Tami voltou apensar que tinham de dar uma volta ao inglês dela.

 

São óptimos garantiu Tami. Vais gostar. Haviam planeado um verdadeiro jantar americano para ela, um churrasco no jardim, tendo convidado alguns vizinhos, americanos e japoneses, para que conhecessem a prima. Takeo era o orientador do churrasco e tencionava preparar hambúrgueres, cachorros, bifes e frango. Reiko planeava fazer puré e salada. E Sally fazia um óptimo pão com alho. Tami passara a manhã a ajudar a mãe com os bolinhos de chocolate e o gelado.

 

A viagem até Paio Alto demorou uma hora e o tio Tak passou pela universidade, para que ela pudesse ficar com uma ideia. Era bonita e não muito diferente do que esperara. A arquitectura parecia espanhola ou mexicana e os relvados eram verdes e muito cuidados. Há anos que Hiroko ouvia falar dela e era excitante vê-la finalmente ao vivo.

 

O Yuji quer vir no próximo ano disse Hiroko, deslizando inconscientemente para o japonês, e os primos mais novos ficaram surpreendidos. Apercebeu-se pelas expressões de que não a compreendiam. Não falam japonês? perguntou em inglês, fitando-os, espantada. Como era possível que os pais não lhes ensinassem japonês?

 

Já não falo explicou a tia Reiko. E temo que, agora que os meus pais morreram há tanto tempo, esteja um pouco emperrada. Continuo a prometer a mim própria que tentarei falar com o Tak, mas nunca o fazemos. E os miúdos só falam inglês acrescentou; Hiroko acenou com a cabeça, tentando disfarçar o choque.

 

Eles nada tinham de japonês, nem mesmo o tio Tak. Era incapaz de imaginar-se a perder a sua cultura até àquele ponto; ele nascera no Japão. Pelo menos, Reiko e as crianças tinham nascido na Califórnia. Mesmo assim, parecia estranho abandonar toda uma cultura. Levava-a a sentir-se ainda mais afastada de casa e interrogou-se sobre o que diriam os pais, se os pudessem ter visto. Os primos eram obviamente encantadores, mas em nada japoneses. Eram americanos da cabeça aos pés. E Hiroko sentia-se completamente desfasada.

 

Falas muito bem inglês elogiou o tio Tak e, embora Tami não estivesse totalmente de acordo, calou-se. Deve ter sido o teu pai. Sorriu. Sabia que Masao sempre tivera uma paixão pela língua e cultura americanas. Há anos que Takeo insistia para que viesse, mas Masao nunca quisera pôr em risco o emprego na universidade; o tempo passara e nunca tal acontecera.

 

O meu irmão fala muito melhor do que eu disse-lhes Hiroko, e todos sorriram.

 

Ela estava a portar-se muito bem, só que parecia uma estrangeira. Tal como seria o caso deles, com excepção de Tak, caso tentassem falar japonês. No entanto, para Hiroko, a convivência tornava-se mais difícil. Não lhe restava alternativa. Tinha de falar inglês com eles.

 

Quando deixaram para trás a Universidade Stanford, Tak levou-os até uma bonita rua ladeada de árvores e ao chegarem Hiroko ficou surpreendida com o tamanho da casa. De início fora mais pequena, mas, quando Tami nascera, tinham-na aumentado. Adoravam a casa e a localização. Takeo ensinava na universidade e, tal como o primo, era professor de Ciências Políticas. E, no caso dele, director de departamento. Reiko trabalhava no hospital universitário. Era enfermeira, embora agora só em part-time.

 

A casa tinha um grande e cuidado relvado na frente e, nas traseiras, uma série de árvores frondosas e um pátio que haviam acrescentado no Verão anterior. Não faltaria espaço para os amigos convidados para que conhecessem Hiroko. E quando Sally lhe mostrou o quarto delas, Hiroko ficou impressionada com a cama de dossel e os folhos rosa e branco. Parecia-lhe uma coisa de revista de decoração. Sally não dava a sensação de se importar em partilhar a grande cama com ela e já esvaziara uma pequena parte do roupeiro.

 

Não tenho muitas coisas explicou Hiroko, apontando para a arca, que não só continha a roupa para a universidade, como os quimonos. Escolheu um de flores rosas e vermelhas para usar nessa noite, no preciso momento em que Tami entrou apressadamente no quarto e lhe pediu que fosse ver a sua casa de bonecas.

 

Queres que te empreste qualquer coisa para esta noite? gritou-lhe Sally, quando ela se afastava pelo corredor. Sally não queria ser incorrecta, mas achava que ela faria uma triste figura se aparecesse no churrasco de quimono. E foi o que disse à mãe, quando desceu as escadas, um pouco depois. Reiko estava ocupada a preparar o puré para o jantar.

 

Dá-lhe uma oportunidade replicou Reiko num tom compreensivo. Ela acabou de chegar. Provavelmente nunca usou mais nada além de quimonos. Não podes esperar que calce sapatos de cunha e vista uma saia de pregas cinco minutos depois de estar aqui.

 

Mas as pessoas não vão achar estranho se ela passar o tempo vestida de quimono? insistiu Sally.

 

Claro que não. É uma bela rapariga e do Japão. Porque é que não lhe dás uma oportunidade, Sally? Deixa que se habitue a nós, antes de esperares que troque as antigas tradições por novos costumes.

 

Oh, céus! exclamou Ken, que, ao entrar, ouvira as últimas palavras da conversa. O que queres dela, Sally? Rolos no cabelo e um concurso de swing amanhã? Dá tempo à miúda. Ela acabou de chegar.

 

Era exactamente o que estava a dizer à tua irmã. Ken preparou uma sanduíche de manteiga de amendoim, enquanto ouvia a mãe e a irmã.

 

Só acho que vai parecer estranha esta noite no churrasco, vestida de quimono persistiu Sally. Aos catorze anos, a aparência era algo muito importante para ela.

 

Não parecerá tão estranha quanto tu, idiota. Ken sorriu-lhe e serviu-se de um copo de leite para beber com a sanduíche. E depois fitou a mãe com um ar preocupado. Acabara de pensar no jantar. A comida era muito importante para ele, sobretudo em largas quantidades e coberta de ketchup. Não vais fazer comida japonesa esta noite, pois não? Parecia mesmo inquieto e a mãe riu-se.

 

Acho que não me lembraria confessou. A tua avó morreu há dezoito anos. E nunca fui grande conhecedora.

 

Óptimo. Odeio isso. Peixe cru e coisas que se contorcem.

 

O que é que se contorce? quis saber Tak que regressava das traseiras, a fim de vir buscar carvão para o churrasco dessa noite, tendo ficado intrigado com a conversa. Alguém que conhecemos? Reiko sorriu-lhe e ergueu o sobrolho. Eram um casal feliz. Ela ainda continuava muito bonita aos trinta e oito anos e ele um homem elegante de cinquenta.

 

Falávamos de peixe cru explicou Reiko ao marido. O Ken estava com medo que eu fosse cozinhar alguns pratos japoneses para a Hiroko.

 

Nem pensar disse o pai, abrindo um armário de onde tirou um saco de carvão. Ela é a pior cozinheira japonesa que conheço. Quanto a hambúrgueres e assados é a melhor. Inclinou-se e beijou a mulher, enquanto Ken terminava a segunda sanduíche e Tami e Hiroko apareciam vindas da sala de diversões, na cave.

 

Tami estivera a mostrar a Hiroko a casa de bonecas que o pai lhe construíra. Reiko fizera todos os tapetes e cortinas em croché. Haviam mesmo utilizado pedacinhos de papel de parede. Tak pintara pequenos quadros e tinham mandado vir de Inglaterra um lustre em miniatura, que funcionava a sério.

 

É tão bonita! exclamou Hiroko, ao mesmo tempo que os observava de volta das suas tarefas na cozinha. Tratava-se de uma casa fantástica e com espaço para todos. E a sala de diversões na cave era enorme. Nunca vi uma casa de bonecas assim. É digna de um museu comentou Hiroko. Ken ofereceu-lhe a outra metade da sua segunda sanduíche e ela mostrou-se receosa de aceitar.

 

Manteiga de amendoim explicou ele. Com compota de uva.

 

Nunca comi confessou, prudente, e Tami assegurou-lhe que devia experimentar. Porém, quando o fez, esboçou uma expressão delicada, mas surpreendida. Não era visivelmente o sabor que esperava.

 

Bom, não é? perguntou Tami, enquanto Hiroko se interrogava sobre se os lábios ficariam colados para sempre. Sally apercebeu-se do que estava a acontecer e estendeu-lhe um copo de leite, mas o primeiro Contacto de Hiroko com a comida americana não a impressionara.

 

Depois, Takeo regressou ao jardim com o seu carvão e, nesse momento, a cadela entrou aos saltos na cozinha. Hiroko sorriu. Tratava-se, pelo menos, de algo familiar. Era uma raça de cão japonesa chamada shiba e, obviamente, um animal muito terno.

 

Chama-se Lassie elucidou Tami. Adorei o livro.

 

Não se parece com ela. A verdadeira Lassie era uma collie interferiu Ken, fazendo com que Hiroko se recordasse de Yuji. Era o tipo de comentário que o irmão faria. Ken lembrava-lhe muito Yuji, o que em alguns aspectos era reconfortante, mas noutros lhe provocava ainda mais saudades de casa.

 

Nessa tarde, Ken foi até à casa dos vizinhos para se encontrar com a sua namorada Peggy, e Sally desapareceu também para ir a casa de uma amiga, que morava na mesma rua. Apeteceu-lhe convidar Hiroko, mas receava que ela contasse à mãe. Ainda não a conhecia bem. Sally queria visitar a amiga porque ela tinha um irmão muito bonito de dezasseis anos, com quem ela gostava de namoriscar.

 

Só Tami ficou em casa, mas mantinha-se ocupada no jardim com o pai, e Hiroko ficou na cozinha a ajudar a tia Reiko. Reiko sentia-se impressionada com a rapidez e competência de Hiroko. Falava muito pouco e não esperava elogios, mas movia-se bem na cozinha, preparando tudo com a máxima eficiência.

 

Compreendeu logo como se fazia o puré e ajudou a preparar a salada. E quando Tak pediu à mulher que temperasse a salada, Hiroko não tardou a aprender também e foi até lá fora com Reiko para a ajudar a pôr a enorme mesa do bufete. Era a jovem mais calma e eficiente que Reiko conhecera em toda a vida e, apesar da sua óbvia timidez, sabia perfeitamente o que fazia.

 

Obrigada por toda a ajuda agradeceu-lhe Reiko, quando subiram aos quartos para trocar de roupa.

 

Hiroko era uma jovem encantadora e Reiko sabia que iriam dar-se bem. Só esperava que também ela se sentisse feliz na companhia deles. Pareceu-lhe mais à vontade nessa tarde, quando se mantivera ocupada. E só agora quando subiam as escadas é que tinha um ar triste e Reiko pressentiu, sem que Hiroko lhe dissesse, que ela sentia a falta dos pais.

 

Obrigada mesmo repetiu num tom terno. Estamos contentes por te ter aqui, Hiroko.

 

Também eu estou disse a jovem, com uma ligeira vénia diante da prima mais velha.

 

Não precisas de fazer isso aqui replicou Reiko, pousando-lhe a mão no ombro.

 

Desconheço outra forma de mostrar respeito e agradecer toda a bondade redarguiu, enquanto Reiko a conduzia até ao quarto de Sally. As coisas de Hiroko estavam todas arrumadas e a única desarrumação visível era a de Sally.

 

Não precisas de nos mostrar respeito. Compreendemos como te sentes. Aqui podes ser menos formal. Hiroko ia a fazer nova vénia, mas deteve-se com um pequeno sorriso.

 

Aqui é tudo muito diferente admitiu Hiroko. Terei muito que aprender, de muitas maneiras. Começava a entender o que o pai pretendera insinuar, quando lhe dissera que queria que ela visse o mundo e aprendesse novos hábitos. Nem por um minuto imaginara que tudo fosse tão diferente, sobretudo na casa dos primos.

 

Aprenderás rapidamente tranquilizou-a Reiko.

 

Contudo, nessa noite, no churrasco, Hiroko não tinha assim tanta certeza. Via-se rodeada de um mar de estranhos muito faladores. Vieram ao seu encontro, apertaram-lhe a mão, ela fez uma vénia e todos disseram como era adorável e como era bonito o seu quimono. No entanto, embora muitos dos rostos fossem japoneses, todos falavam inglês e eram nisei ou sansei, americanos de primeira ou segunda geração.

 

Há muito que a maioria deles perdera os costumes e tradições japoneses e só os avós teriam parecido familiares a Hiroko. Também havia muitas pessoas na festa que não eram japonesas. E sentiu-se perdida no meio delas. Mal conhecia os primos. E depois de ter ajudado a levantar a mesa do bufete, permaneceu sozinha no jardim durante muito tempo, a olhar o céu e a pensar nos pais.

 

Como o lar está longe, não? soou uma voz calma atrás dela; virou-se, surpreendida, para olhar o homem que lhe falara. Era alto, jovem, tinha cabelo preto e era muito bonito, segundo os padrões ocidentais. E, com a mesma rapidez com que erguera os olhos, baixou-os para que ele não lhe visse as lágrimas. Tinha saudades de casa e sentia-se muito só.

 

Manteve-se de olhos baixos e num profundo silêncio, enquanto ele se apresentava.

 

Chamo-me Peter Jenkins disse, estendendo-lhe a mão e ela apertou-a.

 

Depois, levantou o rosto devagar e fitou-o. Era ainda mais alto do que Kenji. Muito alto e magro, de cabelo castanho, olhos azuis e uma aparência firme. Parecia muito novo, mas tinha na realidade vinte e sete anos e era assistente de Tak. Assistente de Ciências Políticas, em Stanford.

 

Viajei uma vez até ao Japão. Foi o país mais bonito que conheci. Gostei sobretudo de Quioto. Sabia que era de onde ela vinha e estava a falar verdade. Tudo isto lhe deve parecer tão estranho prosseguiu com suavidade. Regressar do Japão foi um choque para mim. Nem sequer imagino o que pode sentir, sem nunca ter estado aqui. A percepção da sua cultura através dos olhos da jovem fazia com que tudo parecesse estranho mesmo para ele, e sorriu-lhe, caloroso. Tinha um rosto simpático e olhos bondosos e Hiroko gostou dele, mesmo sem o conhecer.

 

No entanto, a jovem voltou a baixar os olhos, embaraçada, e sorriu hesitante. Ele tinha razão. Era um choque. Tentara combater todas as novas impressões e experiências que a haviam assaltado, desde essa manhã. Até mesmo os primos eram diferentes do que imaginara. E, segundo parecia, não havia ali ninguém com quem pudesse falar, pelo menos de momento.

 

Gosto muito de tudo afirmou suavemente, de olhos baixos e sentindo que deveria ter-lhe feito uma vénia, só que Reiko não parecia estar de acordo. Tenho muita sorte sussurrou, tentando fitá-lo, mas incapaz de o fazer. Hiroko era simplesmente tímida de mais para voltar a fitá-lo, mas ele compreendia. Era uma rapariguinha e, no entanto, muito mulher. Apesar da idade, não se parecia com nenhuma das suas alunas. Era muito mais delicada e reservada e, em simultâneo, deixando transparecer uma enorme força. Uma jovem interessante, que parecia inteligente, emanando toda a requintada delicadeza da sua cultura; ao olhá-la ali no jardim, Peter Jenkins sentiu uma enorme atracção. Ela personificava tudo o que lhe agradara nas mulheres japonesas, quando visitara o Japão. E apenas conseguia fitá-la, enquanto ela permanecia trémula, diante dele.

 

Vamos para dentro? perguntou suavemente, sentindo que a prendera ali e que ela estava demasiado embaraçada para se afastar. A jovem assentiu com a cabeça e olhou-o de relance através das pestanas negras. Soube pelo Tak que vai para St. Andrew’s em Setembro prosseguiu, enquanto caminhavam de volta a casa e admirou em silêncio o seu quimono. Era encantador. Um momento depois, encontrou Reiko a falar com duas amigas e deixou Hiroko na companhia da prima, que lhe sorriu e a apresentou às duas mulheres.

 

Hiroko esboçou uma vénia, denotando respeito pelas amigas dos Tanaka e as mulheres pareceram um tanto divertidas. Do outro lado do pátio, Peter dizia a Tak que acabara de conhecer a sua prima.

 

É uma querida, uma coisinha delicada. Deve sentir-se tão perdida aqui declarou Peter, compreensivo. Havia algo nela que fazia com que sentisse vontade de a proteger.

 

Vai habituar-se retorquiu Tak, a sorrir, com um copo de vinho na mão. O churrasco correra bem e todos pareciam divertir-se. Eu habituei-me acrescentou, sorrindo. Ficaste fascinado com o Japão desde aquela tua viagem. Era verdade. Peter enamorara-se completamente por aquele país distante.

 

Não consigo entender como é que não tens saudades.

 

Contudo, Tak dizia sempre que adorava os Estados Unidos e era óbvio que teria optado pela nacionalidade americana, se fosse possível. Embora vivesse há vinte anos nos Estados Unidos e fosse casado com uma americana, a lei não permitia que se tornasse um cidadão americano.

 

Lá, sentia-me abafado. Olha para ela disse Takeo, observando a sua jovem prima. Aos olhos dele, ela personificava tudo o que odiava no Japão e de que fugira. Sente-se constrangida e limitada; tem medo de nos olhar. Veste a mesma roupa que usavam há quinhentos anos. Ataria os seios se os tivesse, e, se engravidar, ligará a barriga e nem sequer dirá ao marido que espera um filho. Quando tiver idade suficiente, os pais vão descobrir-lhe um marido que nunca conheceu. E nunca terão uma conversa a sério. Passarão a vida inteira a fazer vénias e a ocultar sentimentos. E é exactamente o mesmo no negócio, ainda pior. Tudo é regido pela tradição, tudo se resume a aparências, respeito e hábitos.

 

Jamais se pode dizer o que se sente ou ir atrás de uma mulher simplesmente por amor.

 

”Provavelmente, nunca teria conseguido casar com a Reiko no Japão, se nos tivéssemos conhecido lá prosseguiu. Teria de me casar com a mulher que os meus pais escolhessem. Seria incapaz de viver assim Hoje, ao ver a Hiroko, tudo isso me veio à memória. Ela assemelha-se a um pássaro numa gaiola, demasiado assustada até mesmo para cantar. Não, não tenho saudades do Japão garantiu num tom calmo, mas estou certo de que ela sim. O pai é um bom homem e conseguiu de certa forma conservar a mente desperta, mau grado toda a repressão. Tem uma mulher encantadora e acho que gostam realmente um do outro. Contudo, ao ver a Hiroko, recordo tudo de novo. Nada muda por lá. É opressivo, concluiu, e Peter acenou com a cabeça. Observara essa tal repressão por lá e também as tradições. Contudo, vira muito mais. Não conseguia simplesmente compreender por que razão Takeo não tinha o mesmo gosto que ele.

 

Tem-se um sentido histórico no Japão, só de estar lá, sabendo que nada mudou nos últimos mil anos e esperando que nada mude nos próximos mil. Adorei E gosto de a observar. Gosto de tudo o que ela representa afirmou simplesmente Peter, e Tak olhou-o, surpreendido.

 

Não fales assim diante da Reiko. Ela acha que as mulheres japonesas não têm liberdade e são totalmente dominadas pelos maridos. É uma americana dos pés à cabeça. Odiou ter estudado lá.

 

Acho que vocês são doidos disse Peter a sorrir; depois foi arrastado por dois outros professores de Stanford e não voltou a falar com Hiroko.

 

No entanto, viu-a fazer uma vénia ao despedir-se de alguns dos amigos dos Tanaka e, apesar das palavras de Tak, Peter achou que ela tinha um ar digno e era graciosa. Um hábito que lhe parecia tocante e que, de forma alguma, correspondia a humilhação. Quando se dispôs a ir embora, os olhos de ambos cruzaram-se por um instante e ia jurar que ela o fitara de frente, mas, numa fracção de segundo, Hiroko voltou a baixá-los e pôs-se a falar com uma das primas.

 

Ninguém lhe falara japonês nessa noite e sorriu quando Peter fez uma pequena vénia antes de sair e proferiu a palavra Sayonara. Ergueu o rosto para ver se não estaria a troçar. Contudo, os olhos dele eram ternos e sorria-lhe. Esboçou uma vénia formal e conservou os olhos baixos, enquanto lhe dizia que fora uma honra conhecê-lo. Peter respondeu da mesma maneira e saiu na companhia da atractiva loura com quem viera. Hiroko deteve-se a observá-lo um momento e depois levou Tami até ao quarto dela, no andar superior. Bocejava e era tarde, mas tinha-se divertido. Todos tinham. Até mesmo Hiroko gostara, embora não conhecesse ninguém, parecia-lhe que tudo em que tocara, provara ou encontrara, era diferente do que conhecia e de tudo o que imaginara. Divertiste-te? perguntou Reiko quando Hiroko voltou a descer à cozinha para a ajudar, depois de meter Tami na cama. Tinham convidado vários estudantes da idade dela, mas era demasiado tímida para lhes falar. Passara a maior parte do tempo sozinha ou com Tami. Peter Jenkins era o único convidado adulto com quem, na verdade, falara. Contudo, a iniciativa partira dele. Fora-lhe difícil falar com as pessoas, até mesmo com ele Era extremamente tímida, mas achara a noite interessante e os convidados simpáticos. Diverti-me confirmou e Reiko sorriu-lhe. Sabia que Tami se encarregaria de aperfeiçoar o inglês de Hiroko. Lassie estava deitada no chão, abanando a cauda enquanto elas falavam e à espera dos restos da festa. Ken e Tak tinham ficado lá fora a limpar tudo depois do churrasco e recolhendo alguns copos abandonados. Sally era a única que parecia não ajudar. Estava ao telefone com uma amiga e há meia hora que prometera que ia desligar, mas havia algo que ela tinha de lhe dizer

 

Fizeste um enorme sucesso referiu Reiko num tom sincero. Todos gostaram de te conhecer, Hiroko E tenho a certeza de que não foi fácil. A jovem corou e continuou a lavar a louça em silêncio. Era tão tímida que continuava a surpreender todos e, no entanto, Reiko vira-a a falar com Peter. Ele viera à festa nessa noite acompanhado da sua nova namorada. Tratava-se de um modelo de São Francisco e reparara que Ken a avaliara com o olhar

 

Passaram todos um bom bocado? inquiriu Tak, quando voltou do pátio com uma bandeja cheia de copos. Achei que foi uma noite muito agradável acrescentou, elogiando a mulher e sorrindo a Hiroko.

 

Eu também concordou Hiroko num tom suave. Os hambúrgueres são óptimos disse, parafraseando Tami, e todos riram, enquanto Ken se servia de um bocado de frango que sobrara. Estava sempre a comer, o que era normal para um jovem da sua idade, e iria fazer parte da equipa escolar de futebol, no final de Agosto. Obrigada por uma festa tão bonita acrescentou Hiroko.

 

Um pouco mais tarde todos subiram ao andar de cima e recolheram aos quartos.

 

Sally e Hiroko despiram-se, enfiaram as camisas de noite e meteram-se na cama. E, ali deitada, Hiroko pensava na longa viagem que fizera, nas pessoas que conhecera e no caloroso acolhimento por parte dos primos. Embora já não fossem japoneses, gostava de todos. Gostava de Ken, das suas travessuras, braços e pernas enormes, do seu insaciável apetite; de Sally, do seu fascínio por roupas, rapazes, telefone e segredos; e, em especial da pequena Tami, com a sua fantástica casa de bonecas e a determinação de transformar Hiroko numa americana. Apreciara sobretudo o casal, que a tinha tratado tão bem e mesmo organizado uma festa em sua honra. Também gostava dos amigos deles... e mesmo de Lassie. Ali deitada e pensando em tudo isto e na aventura que vivera, só desejava que os pais e Yuji também pudessem ter estado com ela. Talvez assim não sentisse tantas saudades.

 

Virou-se de lado com os longos cabelos pretos espalhados sobre a almofada e apercebeu-se do leve ressonar de Sally. Hiroko, porém, não conseguia dormir. Haviam-lhe acontecido demasiadas coisas. Passara o seu primeiro dia nos Estados Unidos. E ainda tinha mais de onze meses pela frente, antes de poder regressar a casa, para junto dos pais.

 

Enquanto se deixava adormecer, contou primeiro os meses e depois as semanas... e, por fim, os momentos... Contava em japonês e começou a sonhar, pensando que estava de novo em casa junto deles... ”Em breve”, sussurrou.... ”Em breve... casa...” E à distância ouviu a voz de um homem novo a dizer sayonara... Ignorava quem ele era ou o que o momento significava, mas suspirou, virou-se e pôs um braço por cima de Sally.

 

Hiroko passou o seu segundo dia nos Estados Unidos na agradável companhia dos primos. À tarde, foram na carrinha até São Francisco. Passearam no Parque Golden Gate, tomaram chá na casa de chá japonesa e visitaram a Academia das Ciências. Levaram-na até à baixa da cidade e ainda teve tempo de avistar de relance Magnin, da carrinha, antes de regressarem a Paio Alto.

 

Lassie aguardava-os em casa, no pátio, e pôs-se a abanar a cauda ao ver Hiroko.

 

Mal chegaram, Sally voltou a desaparecer, Ken também, e Hiroko foi ajudar a tia Reiko a preparar o jantar. Depois de ter posto a mesa, viu Tami a descer as escadas a correr para ir brincar com a sua casa de bonecas. Reiko dissera-lhe que pusesse a mesa para sete e Hiroko interrogou-se sobre quem viria jantar. Pensou que talvez se tratasse de algum amigo dos miúdos, mas Reiko disse casualmente que se tratava do assistente de Tak.

 

Acho que o conheceste na noite passada, no churrasco. Chama-se Peter Jenkins.

 

Hiroko anuiu com a cabeça e baixou os olhos. Era o jovem que lhe falara no pátio e lhe dissera quanto gostava de Quioto.

 

Quando Peter apareceu, com uma garrafa de vinho para Tak e um ramo de flores para Reiko, mostrou-se muito simpático e Hiroko tão tímida como o fora na noite passada.

 

Perguntou como tinham passado a tarde, sentou-se à vontade na sala de estar e Hiroko desapareceu de imediato para ir até à cozinha, deitar uma vista de olhos ao jantar. Como na outra noite, fizera-lhe uma vénia e ele correspondera, o que divertiu Tak.

 

Ela é extremamente tímida, coitada comentou Tak quando Hiroko saiu da sala. Nunca mais vira as mulheres a comportarem-se assim, desde que deixara o Japão, vinte anos antes. Esperava que ela modificasse aquela atitude durante o ano passado na Califórnia. Mesmo na sua qualidade de parente, ela mal se atrevia a olhá-lo e, frente a um homem como Peter, quase não pronunciava uma palavra.

 

Nessa noite, Hiroko mostrou-se muito calma ao jantar, parecendo seguir as conversas. Ken e Sally discutiam um filme que tinham visto e Tami sonhava acordada. Contudo, Peter, Tak e Reiko conversavam seriamente sobre a guerra na Europa. A tensão adensava-se, e os Ingleses estavam a ser derrotados, para nem falar da situação assustadora entre os Alemães e os Russos.

 

Acho que eventualmente teremos de interferir declarou Takeo num tom calmo. Parece que o Roosevelt o admitiu em privado. Não há outra saída.

 

Mas não é isso o que diz ao povo americano retorquiu Reiko firmemente, com uma expressão preocupada. O marido já tinha uma idade demasiado avançada para ser convocado, se os Estados Unidos entrassem na guerra, mas Ken podia ser chamado dali a dois anos, se a situação continuasse. Tal perspectiva assustava Tak e Reiko.

 

Pensei em oferecer-me como voluntário para a RAF, no ano passado confessou Peter com uma expressão séria e Hiroko fitou-o cautelosamente, sob as pestanas baixas. Nenhum deles estava a prestar-lhe atenção e tornava-se fácil observá-lo e concentrar-se no que diziam. Não quis, porém, deixar a universidade. Há um grande risco de não conseguir recuperar o emprego.

 

Peter desempenhava um importante cargo no departamento de Ciências Políticas como assistente de Tak. Não queria abdicar dele nem mesmo por uma causa digna, mas sabia que eventualmente teria de acabar por fazê-lo. Contudo, de momento, continuava a pensar no futuro. Aos vinte e sete anos, não sentia vontade de desistir de tudo para participar na batalha de outros.

 

- Acho que só deves ir, se entrarmos no conflito aconselhou Takeo, pensativo, embora soubesse que poderia sentir-se tentado, caso fosse mais novo.

 

À medida que a refeição foi avançando, a conversa desviou-se para outras questões, a conferência que Tak estava a preparar com a ajuda de Peter, e algumas mudanças que queria fazer no departamento. Só nessa altura é que Peter se apercebeu de que Hiroko seguia atentamente cada palavra.

 

Interessas-te por política, Hiroko? indagou. Estava sentado na frente dela e Hiroko voltou a baixar os olhos e corou antes de responder.

 

De vez em quando. O meu pai também fala dessas coisas. Mas nem sempre as compreendo.

 

Nem eu retorquiu ele a sorrir, desejando que ela o fitasse novamente. Tinha uns olhos pretos, semelhantes a um poço sem fundo. O teu pai ensina na universidade de Quioto, não é? perguntou Peter. Ela assentiu com a cabeça e depois foi ajudar Reiko a lavar a louça. Quase não se atrevia a dirigir-lhe a palavra, embora ele parecesse muito simpático e achasse a sua conversa com Takeo interessante e esclarecedora.

 

Peter e Takeo foram até ao escritório para trabalhar um pouco e, quando a louça ficou lavada, Hiroko desceu as escadas e foi ter com Tami para a ajudar a enfeitar a casa de bonecas. Fizera algumas pequenas flores e pássaros de origami para ela pôr no interior e também desenhos em miniatura para pendurar nas paredes, inclusive um das montanhas ao pôr do Sol. Reiko ficou surpreendida quando foi ao andar de baixo e viu a sua obra. Não só era uma jovem delicada, como talentosa.

 

Foi a tua mãe que te ensinou? quis saber Reiko, fascinada com os minúsculos pássaros de origami que ela fizera para Tami.

 

A minha avó respondeu com um sorriso. Estava sentada no chão, vestida com um quimono azul e verde, um obi azul-claro e era lindíssima. Ensinou-me muitas coisas... sobre flores e animais e como cuidar de uma casa e tecer esteiras de palha. O meu pai pensa que estas coisas são muito antiquadas e inúteis acrescentou com tristeza.

 

Aquela constituía uma das razões por que ele quisera mandá-la para ali. Achava que ela se parecia demasiado com a avó, muito antiquada e não moderna, como ele. Contudo, no íntimo, era isso o que ela apreciava, os velhos costumes e tradições. Adorava ajudar a mãe a governar a casa, a cozinhar e a cuidar do jardim. E gostava da companhia das crianças. Um dia, daria uma boa mulher, embora talvez não muito actualizada. Ou talvez nos Estados Unidos, aprendesse todas aquelas coisas que o pai achava que lhe faltavam. Assim o esperava para poder regressar a casa e estar com eles. Depois de dois dias nos Estados Unidos, gostava de estar ali, mas sentia umas terríveis saudades.

 

Tami mostrou à mãe os desenhos que Hiroko fizera e as duas mulheres acabaram por subir as escadas, meter Tami na cama e ir ao encontro de Takeo e Peter. Nessa altura, tinham acabado o trabalho e estavam sentados na sala, com Ken e Sally. Jogavam monopólio e Hiroko sorriu ao observá-los. Riam e Ken acusou Sally de fazer batota.

 

Não tinhas um hotel em Park Place. Apanhei-te a agarrá-lo.

 

Mentira! negou a irmã num timbre agudo e depois acusou-o de roubar o Boardwalk.

 

A discussão prosseguiu enquanto todos riam e Hiroko tentava compreender o jogo. Parecia engraçado, sobretudo por se mostrarem tão divertidos, e Peter jogava com eles, como se também fosse criança. Ofereceu-lhe o lugar, mas ela recusou. Era demasiado tímida para participar, embora a fizesse recordar os momentos em que jogava shogi com o irmão. Também ele fazia frequentemente batota e tinham discussões intermináveis sobre quem ganhara, sem que nunca chegassem a um acordo definitivo.

 

Passava das dez quando Peter se foi embora e Reiko prometeu voltar a convidá-lo para jantar nessa semana. Queriam conhecer a sua nova namorada. Contudo, Takeo lembrou-lhe que iriam passar o próximo fim-de-semana ao lago Tahoe. Estariam ausentes quinze dias. Tinham alugado uma cabana, como era hábito todos os anos. Takeo e Ken adoravam pescar e Sally praticava esqui aquático, embora todos concordassem que o lago estava gelado.

 

Telefono quando chegarmos disse Reiko, e Peter acenou à saída e agradeceu-lhe a noite. Ele e Tak tinham uma semana de trabalho pela frente, a fim de elaborar o programa do próximo período. Ambos queriam terminá-lo antes que Takeo fosse de férias.

 

Ao sair, os olhos de Peter pousaram uma fracção de segundo no rosto de Hiroko. Houve um instante de compreensão mútua e depois ele desapareceu. A jovem mal lhe falara durante toda a noite. Não se atrevera. Achava-o, porém, muito inteligente e interessante. Sentia-se intrigada com as ideias dele, mas jamais ousaria participar na conversa. Mau grado os esforços do pai ao longo dos anos para a tornar mais extrovertida, era incapaz de falar com estranhos.

 

Os dias passados no lago foram mais fáceis para ela. As actividades a que se dedicavam eram as mesmas da família, quando viajavam até às montanhas no Japão. Durante muitos anos, iam sempre passar as férias de Verão a um ryokan, no lago Biwa. Hiroko também gostava de praia, mas havia uma enorme tranquilidade nas montanhas. Escrevia diariamente aos pais e brincava com as primas. Jogava ténis com Ken e ele ensinou-a a pescar, embora sempre se tivesse recusado a fazê-lo com Yuji. Espicaçou o irmão a esse respeito e, quando lhe escreveu uma carta, disse-lhe que apanhara um peixe enorme.

 

Também experimentou fazer esqui aquático com Sally, mas a água estava tão gelada que as pernas lhe adormeciam constantemente e nunca conseguiu endireitar os braços o suficiente para se manter acima da água. Deu provas de grande coragem, mas caiu pelo menos umas cem vezes, antes de desistir. Contudo, voltou a experimentar no dia seguinte e, no fim das férias, conseguiu efectuar uma breve corrida, e todos no barco cantaram vitória, enquanto o tio Tak ria, orgulhoso dela.

 

Graças a Deus! Julguei que ia afogar-se e que teria de o comunicar ao pai! Concluiu que gostava mesmo da jovem, que ela tinha muita garra e era inteligente. Só era pena que fosse tão tímida; porém, quando abandonaram o lago, parecia mais à vontade com eles. Falava sem que lhe dirigissem primeiro a palavra, trocava ditos espirituosos com Ken e uma vez chegara a vestir uma saia e uma camisola, apenas para agradar a Sally. Na maioria das vezes, continuava, porém, a usar os quimonos, e Reiko teve de confessar que lhe assentavam muito bem e teria pena de a ver com roupas ocidentais quando fosse para a universidade.

 

Todavia, a verdadeira mudança notou-se quando Peter apareceu de novo para jantar. Prometera trazer a nova namorada mas ela tivera uma passagem de modelos em Los Angeles e não pudera acompanhá-lo, o que era óptimo para todos. A noite decorria de uma forma mais descontraída sem ela. Peter era como se fosse da família e as crianças saudaram-no com abraços, guinchos e ditos trocistas quando ele apareceu para jantar no domingo a seguir a terem regressado do lago Tahoe.

 

Hiroko fez-lhe a vénia habitual e estava vestida com um quimono laranja de tom vivo com florezinhas rosas que formavam um contraste fantástico com o seu bronzeado. Usava o cabelo solto e brilhante como cetim preto pelas costas, mas desta vez fitou-o e sorriu. Tornara-se muito mais descontraída durante aquelas duas breves semanas nas montanhas.

 

Boa noite, Peter-san saudou delicadamente, ao pegar nas flores que ele trouxera para Reiko. Está bem? perguntou e depois voltou a baixar os olhos. Contudo fora um passo muito ousado para ela.

 

Estou muito bem, obrigado, Hiroko-san disse, correspondendo com uma vénia formal e um sorriso quando os olhos se encontraram de novo. Gostaste do lago Tahoe?

 

Muito. Apanhei muitos peixes e aprendi a esquiar na água.

 

Ela é uma mentirosa observou Ken casualmente ao passar por perto. Eram agora como irmão e irmã, depois de duas semanas na cabana das montanhas. Apanhou dois e eram os mais pequenos que alguma vez vi. Mas aprendeu esqui.

 

Apanhei sete peixes corrigiu-o ela, parecendo-se muito com uma irmã mais velha, sem se rir, e Peter soltou uma gargalhada. Desenvolvera-se muito nas duas semanas que tinham passado fora e ele sentiu-se emocionado. Abria-se como uma flor rara e o rosto resplandecia ao contar-lhe tudo sobre o esqui aquático e a pesca.

 

Dá-me a sensação de que todos se divertiram muito.

 

É verdade confirmou Reiko, beijando-o e agradecendo-lhe as flores. Faz-nos sempre muito bem ir até lá. Devias vir connosco no próximo ano.

 

Adoraria... Quer dizer... Hesitou, olhando para o chefe com um sorriso triste... se o teu marido não me deixar de novo com a reorganização do curso. Na verdade não o fizera; tinham realizado a maioria das tarefas antes de ele ir de férias, mas Peter concluíra o trabalho e saíra-se bem. Takeo estava muito satisfeito com o que Peter levara a cabo na sua ausência.

 

Peter pô-lo ao corrente dos progressos na universidade enquanto ele estivera fora e, ao jantar, voltaram a discutir a situação na Rússia. A certa altura, Peter virou-se e perguntou a Hiroko se recebera notícias dos pais. A jovem ainda se sentia surpresa pela forma como todos expressavam as suas opiniões, sobretudo Reiko. Parecia-lhe espantoso que uma mulher pudesse falar tão livremente. Baixando os olhos com timidez, respondeu a Peter que os pais lhe tinham escrito e depois, como que num esforço, ergueu os olhos, sorriu e agradeceu-lhe por ter perguntado. Falou-lhe numa tempestade que os pais haviam referido, mas além disso estava tudo bem. E o mero facto de falar sobre eles fez com que voltasse a sentir saudades de Quioto.

 

Quando começam as aulas? inquiriu ele num tom calmo. Encarava-a sempre como se ela fosse uma espécie de corça, prestes a escapar-se para a floresta e tivesse de se mover devagar e falar ternamente. Quase desejava estender a mão para lhe mostrar que não lhe faria mal.

 

Daqui a duas semanas respondeu, corajosa, forçando-se a reprimir o medo. Queria ser delicada, ser americana, e não desviar os olhos, como o faria uma jovem japonesa. No mais fundo de si, queria ser como Sally, ou a tia Reiko. No entanto, não era nada fácil.

 

Sentes-te entusiasmada? insistiu, verdadeiramente satisfeito por estar, de facto, a conversar com ela. Era muito importante que ela estivesse à vontade. Não sabia porquê, mas era. Queria que ela se sentisse bem com ele e conhecê-la melhor.

 

Talvez tenha receio, Peter-san respondeu, surpreendendo-o com a sua franqueza. Embora fosse tímida, era por vezes muito directa, mas ele ainda não apreendera essa sua faceta. Talvez não gostem de mim, por ser tão diferente. Fitou-o com um olhar inteligente. Era encantadora com os seus modos graciosos e delicados. Peter não conseguia imaginar que alguém não gostasse dela, sobretudo um grupo de raparigas de dezoito anos, e sorriu perante a ideia.

 

Acho que gostarão muito de ti retorquiu, mal dissimulando a sua própria admiração, enquanto Takeo os observava. Por um momento, interrogou-se sobre se Peter estaria a interessar-se de uma forma especial por ela e depois concluiu que estava a ser idiota.

 

Ela vai usar roupas normais quando for para a escola disse Tami, e Hiroko riu. Sabia que Tami continuava preocupada com o facto de a prima poder ir para a faculdade com os seus quimonos. Não é verdade, Hiroko?

 

Verdade, Tami-san. Vou usar roupas iguais às da Sally. No entanto, tinha agora consciência de que as roupas ocidentais que trouxera pareciam antiquadas e um tanto fora de moda. Nem ela nem a mãe sabiam o que escolher quando haviam ido às compras em Quioto. Ao ver as roupas que Sally e Reiko usavam, apercebia-se de como as dela eram feias.

 

Gosto dos teus quimonos, Hiroko-san declarou Peter num tom calmo. Ficam-te bem.

 

Contudo, Hiroko ficou tão embaraçada com as suas palavras que voltou a baixar os olhos e não respondeu.

 

Depois do jantar, jogaram novamente monopólio e, desta vez, Hiroko juntou-se-lhes. Praticara com eles no lago e mostrara-se à altura. Compreendera as regras e sempre que Sally ou Ken faziam batota apanhava-os, como nessa noite aconteceu. Seguiram-se muitos guinchos e gargalhadas, e Takeo e Peter foram buscar café à cozinha. Reiko ainda estava a arrumar a louça. Sorriu-lhes e serviu uma chávena de café a cada um e os três adultos fixaram os olhos na sala e detiveram-se a observar as crianças. Não que Hiroko ou Ken fossem realmente crianças, mas emanavam uma maravilhosa inocência.

 

É uma jovem encantadora comentou Peter, e Takeo anuiu com a cabeça.

 

Não conseguia esquecer-se das recomendações do primo Masao antes de ela vir, quanto a evitar que a filha se envolvesse romanticamente com alguém durante aquele ano na Universidade St. Andrew’s, e havia algo nos olhos de Peter sugerindo a Tak que ela lhe agradava. Contudo, por outro lado, Peter tinha uma namorada e Takeo disse de si para si que estava a ser demasiado protector. Hiroko era quase uma criança, embora sem dúvida muito bonita e a sua suavidade e inocência atraíam e muito.

 

É encantadora concordou Tak tranquilamente. Mas é uma criança.

 

Contudo, ao pronunciar as palavras, apercebeu-se de que Hiroko tinha a mesma idade de Reiko, quando a conhecera. Ele andava pelos trinta e Reiko era uma das suas alunas. Não era impensável que o mesmo pudesse acontecer a Peter. Tak e Reiko tinham casado seis meses depois de se conhecerem, mas Hiroko parecia tão infantil em comparação à jovem que fora Reiko, que Takeo se sentiu idiota com aqueles pensamentos. Havia, porém, aquela expressão nos olhos de Peter sempre que a fitava se bem que este o teria negado, caso Tak o interrogasse. No entanto, fosse o que fosse, tudo se manteve por expressar entre ambos. Takeo fitou a mulher e sorriu. Tinham sido felizes durante duas décadas. Depois, pousou o olhar na sua jovem prima, que brincava com os seus filhos.

 

Hiroko era muito japonesa em inúmeros aspectos. Regressaria ao Japão dali a um ano. Embora o pai tivesse ideias modernas, o casamento da filha com um americano não seria certamente uma delas. De momento, Masao não queria que ela saísse com ninguém, nem mesmo com um jovem japonês. Queria-a de volta ao Japão, muito antes de os seus pensamentos se centrarem em qualquer espécie de romance, ou até casamento.

 

Gosto muito da Carole afirmou Peter subitamente, como que a tentar convencer-se a si próprio, mas nem mesmo aos seus ouvidos parecia sincero.

 

Sentia-se muito mais impressionado pela beleza e graciosidade de Hiroko, do que pela aparatosa namorada loura, com a carreira de manequim. Era bonita, mas também superficial, e ele sabia. Estranhamente, a comparação entre as duas mulheres provocava-lhe um certo desconforto.

 

Quando regressaram à sala para observar novamente o jogo de monopólio, recordou a si próprio como Hiroko era jovem, considerando-se um idiota por estar tão encantado com ela. Só que a jovem parecia uma boneca e ele adorava os seus modos discretos, de fascinantes tradições. Ao observá-la, não conseguiu deixar de notar a sua graciosidade e como era bonita ao rir. Troçava de Ken e o seu riso assemelhava-se a pequenos sininhos. Sentiu-se perturbado ao tomar consciência de que, à medida que o jogo prosseguia, não conseguia deixar de a fitar. Esperava que ninguém reparasse e consolou-se com o facto de que, fosse o que fosse que sentisse por ela, podia ser detido antes de começar. Peter não fazia tenção de se apaixonar por uma jovem da idade dela, nem de lhe causar problemas ou à família.

 

Nessa noite, quando finalmente regressou a casa, parecia calmo. Apesar de todo o riso anterior, Hiroko fez-lhe uma vénia e ele correspondeu. Contudo, desta vez, nada disse ao deixá-los. E ao conduzir, de regresso à sua casa no Parque Menlo, seguia imerso nos seus pensamentos. Sentia-se como se houvesse sido arrastado por marés tão subtis, que nem sequer as notara. Mas pelo menos estava consciente de que assim era. Não permitiria que ela o levasse, por mais bonita que fosse. Absolutamente nada iria acontecer entre ele e Hiroko.

 

Depois de Peter se ir embora, Hiroko perguntou à prima se Peter-san estava zangado. Reparara na sua calma e no facto de quase nada lhes dizer ao sair.

 

Zangado? Não. Porquê? Reiko parecia surpreendida, mas Takeo compreendeu a pergunta. Também ele reparara e sentia-se preocupado. Algo perturbava Peter e Takeo vira-o a observar atentamente Hiroko. Iria parecer inoportuno e, no entanto, desejara avisar Peter de que não se deixasse levar pelas emoções.

 

Tinha um ar muito sério quando se despediu explicou Hiroko e o tio Takeo assentiu com a cabeça.

 

Tem muito trabalho em que pensar, Hiroko. E tu também. Dentro em pouco começam as aulas.

 

Ao ouvir aquelas palavras, ela interrogou-se sobre se também ele estaria zangado com ela, se de qualquer maneira agira indelicadamente com Peter. Contudo, a tia sorria-lhe, parecia à vontade e talvez o tom do tio nada significasse. Mas nessa noite, quando se foi deitar, sentia-se preocupada. Fizera algo de errado? Ofendera-o? Achavam-na demasiado moderna ou antiquada? Aquele seu novo mundo era tão confuso. De manhã, todas as preocupações pareciam esquecidas e decidiu que fora idiota. O tio dera uma explicação satisfatória quanto ao silêncio de Peter. Tinha muito trabalho a fazer. Tanto que não voltou para jantar nas duas semanas seguintes e, a sete de Setembro, a família inteira levou-a à Universidade St. Andrew’s, na carrinha Chevy verde.

 

Era um belo estabelecimento. Os terrenos apresentavam-se muito cuidados e havia mais de novecentos estudantes. A maioria vinha de São Francisco, Los Angeles, ou outros lugares da Califórnia, e alguns eram de outros estados, ou do Havai. Havia uma rapariga de França e uma outra de Inglaterra, a qual fora enviada pelos pais para os Estados Unidos a fim de a afastar do clima de guerra iminente.

 

Uma estudante mais velha cumprimentou-a à chegada e, destinaram-lhe um quarto com mais duas estudantes. Viu os nomes no quadro: Sharon Williams, de Los Angeles, e Anne Spencer, de São Francisco; porém, nenhuma delas havia chegado.

 

Reiko e Sally ajudaram-na a desfazer as malas, enquanto Ken e Tak esperavam lá em baixo com Tami. Esta sentira-se triste durante todo o dia. Não queria que a prima Hiroko os deixasse.

 

Não sejas tonta dissera Reiko. Ela virá passar todos os fins-de-semana que puder e as férias.

 

Mas eu quero que ela fique connosco retorquira Tami, pesarosa. Porque é que não pode ir para Stanford com o papá? Os pais tinham pensado nisso, mas St. Andrew’s era uma pequena instituição só para raparigas e provavelmente um lugar melhor para uma jovem que levara uma vida reservada como era o caso de Hiroko. Comparativamente, Stanford parecia enorme e era mista, o que levara Hidemi a uma recusa inabalável. Esta parecera a perfeita solução de compromisso.

 

Contudo, agora até Hiroko tinha as suas dúvidas, ao arrumarem as suas coisas num dos três minúsculos roupeiros do quarto. Sentiu-se repentinamente como se estivesse de novo a perder a família e estava tão triste como Tami, quando regressou até junto deles. Não queria deixá-los.

 

Vestia uma saia castanha, que a mãe lhe comprara, e uma camisola bege; pusera o pequeno fio de pérolas que os pais lhe haviam dado quando fizera dezoito anos. Calçara meias de vidro, sapatos de salto alto e tinha um chapeuzinho castanho posto de viés. Sally ajudara-a e achava que ela estava óptima, muito melhor do que de quimono, mas Hiroko sentia a falta das roupas habituais e das sedas que usara durante toda a vida. Era como se estivesse nua com aquelas roupas.

 

Outra estudante mais velha acompanhou-os pelos terrenos universitários, mostrou-lhes a sala de jantar, a biblioteca e o ginásio. Nada havia que os primos pudessem fazer e Tak disse que tinham de voltar a Palo Alto. Peter e a sua namorada Carole iriam jantar com eles. Hiroko sentiu um peso no coração só de ouvir aquela notícia. Era como se todos a abandonassem. Há dois meses que a sua vida se resumira a despedidas e esta era quase tão difícil como a última.

 

Tami chorou quando se foram embora e Sally abraçou fortemente Hiroko e fê-la prometer que telefonaria sempre que pudesse. Queria saber tudo sobre as companheiras de quarto de Hiroko e os rapazes que viesse a conhecer. Ken disse-lhe que se precisasse de bater em alguém, o informasse, que ele viria logo. A tia Reiko lembrou-lhe que telefonasse se necessitasse de algo e, ao olhar para o tio Tak, Hiroko só se lembrava do pai e sentiu um nó tão grande na garganta que nem conseguiu falar, quando a deixaram. Limitou-se a acenar enquanto a carrinha se afastava e regressou devagar ao quarto, a fim de esperar pelas companheiras.

 

Eram cinco horas quando chegou a primeira. Viera de Los Angeles de comboio, tinha cabelo ruivo e uma personalidade a condizer. Era muito alegre e tirou da mala fotografias de uma dúzia de estrelas de cinema, que começou a colar à volta do espelho. Até Hiroko sabia quem eram e ficou muito impressionada quando Sharon lhe mencionou casualmente que o pai era produtor. Afirmou que as conhecia a todas e indicou a Hiroko as de que gostava e as que lhe desagradavam.

 

A tua mãe é uma estrela de cinema? quis saber Hiroko, de olhos muito abertos e extremamente impressionada pelas pessoas que Sharon afirmava serem velhos amigos dos pais. Era, sem dúvida, alguém muito importante. Hiroko sabia que os pais teriam gostado de tudo aquilo.

 

A minha mãe é casada com um francês e vivem na Europa. Agora está em Genebra por causa da guerra respondeu num tom despreocupado, ocultando o facto de que o divórcio dos pais fora quase um escândalo público em Los Angeles, assim como algo muito penoso.

 

Há três anos que não via a mãe, embora ela nunca deixasse de mandar belos presentes a Sharon por altura do Natal e no aniversário.

 

Como é o Japão? perguntou, instalando-se em cima da cama, após ter desfeito as malas. Sentia-se obviamente intrigada com Hiroko. Os únicos japoneses que conhecera tinham sido jardineiros e criadas, mas Hiroko dissera que o pai era professor em Quioto. O que faz a tua mãe? acrescentou, curiosa. Faz alguma coisa?

 

Hiroko pareceu um tanto surpreendida com todas aquelas perguntas. Reiko era enfermeira, mas ali nos Estados Unidos. No Japão, a maior parte das mulheres não tinha profissão.

 

É apenas uma mulher elucidou, esperando que a resposta servisse.

 

Sharon levantou-se, olhou através da janela e assobiou.

 

Uau! exclamou num tom admirativo, enquanto ambas se detinham a observar uma bonita jovem que saía de uma limusina, ajudada por um motorista fardado. Tinha umas pernas longas e elegantes, cabelo louro e usava um chapéu de palha e um vestido de seda brancos, que pareciam haver sido feitos à sua medida em Paris. Quem temos ali? A Carole Lombard?

 

Uma estrela de cinema? surpreendeu-se Hiroko, de olhos arregalados, e Sharon soltou uma gargalhada.

 

Não me parece. Provavelmente apenas uma de nós. O meu pai tem um carro daqueles. Mas não quis trazer-me. Ele e a namorada foram passar o fim-de-semana a Palm Springs.

 

Sharon não queria confessar a Hiroko como era solitária a sua vida. Para todos os efeitos e dada a posição dos pais, levava uma existência que todos invejariam. Contudo, a verdade era bem diferente da que descrevia a Hiroko. E esta era demasiado ingénua para entender as implicações das palavras de Sharon.

 

Enquanto especulavam sobre quem poderia ser a recém-chegada, ouviu-se uma pancada na porta, e o motorista fardado, que tinham acabado de ver, entrou no quarto com uma mala, uns dois passos à frente de Miss Anne Spencer. Era uma rapariga muito alta e distante. Tinha um cabelo louro cor de palha, olhos azul-claros, e fitou-as, sem hesitar.

 

Anne Spencer? inquiriu Sharon num tom ousado. Ao ver que ela respondia com um aceno de cabeça, Sharon indicou o roupeiro ao motorista.

 

Sim? Não pareceu impressionada com nenhuma delas e colocou Hiroko à distância, mal lhe pôs a vista em cima.

 

Somos as tuas companheiras de quarto indicou Sharon, como se ela e Hiroko fossem amigas de longa data. Sou a Sharon e esta é a Hiroko.

 

Disseram-me que teria um quarto só para mim retorquiu friamente, como se a culpa pertencesse a Sharon ou Hiroko.

 

Só para o próximo ano. Fiz o mesmo pedido. Os caloiros dormem em quartos de três ou quatro. Os duplos e de pessoa só ficam para os mais adiantados.

 

Não, se me prometeram um redarguiu, e apressou-se a sair, enquanto as duas jovens e o motorista se quedavam a observá-la. Ele manteve-se discretamente do lado de fora, à espera. Sharon encolheu os ombros, desejando que ela arranjasse um quarto só para ela. Parecia muito desagradável a nível de convivência. E Hiroko ignorava como reagir. Ambas faziam parte de uma nova e misteriosa raça aos olhos de Hiroko.

 

Anne Spencer regressou vinte minutos depois, com um ar de poucos amigos. Deu ríspidas instruções ao motorista para que abrisse a mala e a deixasse junto ao roupeiro. Pensara em trazer a criada para lhe desfazer a bagagem, mas decidira que talvez não fosse boa ideia. Também quisera que os pais a acompanhassem, mas eles estavam em Nova Iorque, de visita à irmã, que acabara de ter o primeiro filho.

 

Atirou o chapéu para cima de uma cadeira e depois pousou o olhar no espelho onde Sharon colara as suas fotografias das estrelas de cinema; era óbvio que lhe desagradavam.

 

De quem é isto? Dirigiu-se num tom acusador a Hiroko, ainda sem acreditar que estavam a obrigá-la a partilhar um quarto com qualquer filha de um jardineiro. Fora directa ao assunto, na recepção, mas a funcionária de serviço respondera-lhe que teria de discuti-lo com o deão na próxima segunda-feira e que, de momento, só lhe restava instalar-se com as companheiras. São tuas? insistiu Anne, furiosa e num tom que indicava a opinião que tinha sobre a sua colega japonesa.

 

São minhas respondeu Sharon, orgulhosa. O meu pai é produtor.

 

Anne limitou-se a erguer o sobrolho. Tanto quanto lhe dizia respeito e à família, a gente ligada ao cinema encontrava-se ao mesmo nível das pessoas de origem oriental. Sentia-se incapaz de acreditar que, no meio de todas as raparigas que sabia virem para ali, lhe tinham calhado duas idiotas chapadas como companheiras de quarto.

 

Mandou embora o motorista e acabou por desfazer a bagagem em silêncio, enquanto Hiroko tentava não perturbar qualquer delas e se sentava à secretária para escrever uma carta. Tornava-se, contudo, fácil detectar a tensão no quarto e a falta de harmonia entre as residentes.

 

Pelo menos, Sharon mostrou-se simpática, mas depois de uma leve tentativa para a impressionar, dirigiu-se a outros quartos, a fim de conhecer outras jovens e falar-lhes do seu pai, o produtor de cinema. Ao vê-la sair, Anne sentiu vontade de fazer um comentário desdenhoso, só que, na sua opinião, Hiroko era ainda pior e não merecia que perdesse tempo a falar com ela.

 

”Minha querida mamã, meu querido papá e meu adorado Yuji. Gosto muito de aqui estar”, escreveu nos bonitos caracteres que aprendera no Japão, em criança. ”St. Andrew’s é muito bonito e tenho duas companheiras de quarto muito simpáticas.”

 

Sabia que era aquilo o que eles queriam ler e teria sido impossível explicar o tom exacto da voz de Anne ou a natureza dos seus preconceitos contra Hiroko. Tratava-se de algo que nunca enfrentara até então, mas sentia que nem mesmo Sharon estava contente por partilhar o quarto com uma japonesa.

 

Tratava-se de algo que queria discutir com Reiko ou Tak, mas jamais preocuparia os pais com semelhante assunto.

 

”Uma delas é de Los Angeles”, prosseguiu. ”O pai trabalha em Hollywood e a outra é muito bonita. Chama-se Anne e é de São Francisco.” E, à medida que ia avançando com a escrita, Anne lançou-lhe um olhar de desprezo e bateu com a porta quando saiu para ir jantar.

 

No dia seguinte, as tentativas de Anne para mudar de quarto revelaram-se infrutíferas. A administração lamentou saber que ela não gostava do quarto e que estava obviamente a par dos donativos da sua família e que a mãe se formara em St. Andrew’s em 1917, mas não havia simplesmente outro quarto disponível.

 

Em vão insistiu que lhe haviam prometido um quarto particular, sem companheiras. Quando lhe falaram da impossibilidade de mudança, irrompeu pelo dormitório adentro e Hiroko foi encontrá-la a andar de um lado para o outro, ao entrar para ir buscar uma camisola.

 

Tinha sempre frio com as roupas ocidentais e elas faziam com que se sentisse despida.

 

O que queres? perguntou Anne Spencer, furiosa por se terem recusado a mudá-la de quarto.

 

Nada, Anne-san desculpou-se, esboçando uma vénia involuntária. Desculpa se te incomodei.

 

Não acredito que nos tenham posto no mesmo quarto declarou Anne, fitando-a, sem consciência do quanto estava a ser indelicada, e sem se dar conta de que não tinha o direito de falar assim com Hiroko. Conseguia ser encantadora quando queria, mas não achava que ela fosse digna do esforço. O que estás a fazer nesta escola? inquiriu, sentando-se na cama e totalmente frustrada.

 

Vim para cá do Japão, porque o meu pai assim quis explicou Hiroko com simplicidade e sem perceber o motivo por que Anne se sentia tão irritada por terem de partilhar o mesmo quarto.

 

Também eu. No entanto, imagino que ele não fazia ideia de quem seriam as minhas colegas comentou, maldosa. Era bonita, mas mimada, e nutria todos os preconceitos da sua classe contra os Orientais. Na sua mente, os Japoneses eram todos criados e situavam-se muito abaixo dela.

 

Para Hiroko, tudo aquilo era novidade e não entendia. Contudo, nesse mesmo dia sentira o mesmo frio acolhimento por parte de outras companheiras e ninguém parecia ansioso em dar-se com ela. A própria Sharon, que de início se mostrara efusiva, não ia comer com ela, nem se oferecia para se sentar ao seu lado, embora frequentassem muitas das mesmas aulas. Contrariamente a Anne, mostrava-lhe simpatia quando se encontravam juntas no quarto, mas, fora dele, comportava-se como se não a conhecesse. Anne era mais fiel aos seus sentimentos e nunca lhe falava. Contudo, de certa maneira, a sua permanente frieza magoava-a menos do que a hipocrisia de Sharon e a sua repentina antipatia, quando estavam no meio das outras.

 

Não entendo confessou tristemente à tia Reiko, quando foi passar o fim-de-semana seguinte a Palo Alto. Era esquisito. Todas pareciam manter-se à distância, e Anne e as amigas chegavam a tratá-la com indelicadeza. Porque é que estão zangadas comigo, Reiko-san? O que lhes fiz?

 

Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas ao formular a pergunta, pois não fazia ideia de como remediar a situação. E Reiko emitiu um suspiro triste. Sabia que Hiroko teria tido o mesmo problema em qualquer parte, mas pelo menos Stanford era maior e menos exclusivista. St. Andrew’s constituía um mundo muito pequeno para se viver, embora fosse um esplêndido estabelecimento de ensino, e Reiko sabia que ela ficaria com uma excelente educação. Interrogava-se, porém, sobre se Tak deveria escrever a Masao e sugerir-lhe que Hiroko fosse transferida para Stanford, ou mesmo para a Universidade da Califórnia, em Berkeley.

 

É uma questão de preconceito declarou Reiko tristemente. Não tem nada a ver com a tua escola. Estamos na Califórnia. As coisas são diferentes aqui. Há pensamentos negativos quanto aos Japoneses, que são difíceis de superar acrescentou, odiando-se pelo que estava a dizer e pelo facto de se ver obrigada a explicar. Contudo, a pobre rapariga parecia perturbada e completamente desfeita pela rejeição das colegas e companheiras de quarto. Tudo acabará por se resolver. Se tiveres sorte, virão a conhecer-te como és e esquecerão os preconceitos. É impossível que sejam todas assim.

 

Fitou Hiroko e estendeu os braços para a receber. Ela parecia uma criança de coração despedaçado e, ao olhá-la, Reiko lembrava-se de Tami.

 

Por que razão elas me odeiam tanto, Reiko-San? Só porque sou japonesa?

 

Era incrível mas Reiko esboçou um aceno de cabeça e explicou:

 

Snobismo, racismo, preconceito. Dá a sensação que essa tal Spencer se acha demasiado importante para partilhar o mesmo quarto contigo e a outra pensa provavelmente da mesma forma, só que não o admite. Há mais estudantes estrangeiras? Seria óptimo que houvesse mais alguma jovem japonesa, mas tal era esperar de mais.

 

Uma de Inglaterra e uma de França, mas não as conheço. São as duas do penúltimo ano.

 

O ano adivinhava-se difícil, ao lado de Anne Spencer e sendo excluída pelas outras.

 

Disseste alguma coisa a alguém? Talvez devesses queixar-te a uma das tuas conselheiras.

 

Temo que ainda fiquem mais furiosas. Talvez a... Hesitou em busca da palavra exacta e depois decidiu-se. Talvez a responsabilidade seja minha por não gostarem de mim.

 

Queria dizer culpa, mas Reiko achava pouco provável. Passara pelo mesmo quando tinha estudado em Fresno e não parecia terem ocorrido grandes mudanças. Quando se encontravam numa vasta comunidade japonesa, sentiam-se a salvo e seguros, mas ao mudarem-se para outros mundos, havia sempre gente que se sentia ameaçada. Era incrível verificar que, apesar de todas as modificações ocorridas no mundo e apesar de toda a evolução moderna, o casamento de alguém japonês com um indivíduo de raça branca continuasse a ser ilegal na Califórnia. Era, porém, uma maldade dar esta explicação a uma jovem de dezoito anos de Quioto.

 

Tanto pior para elas, Hiroko. Acabarás por fazer amigas. Tem paciência. E tenta afastar-te das que sabes que não gostam de ti.

 

Dera este mesmo conselho a Sally e a Ken. Ambos frequentavam instituições onde havia ocidentais e japoneses e de vez em quando tinham enfrentado preconceitos por parte dos colegas, ou dos pais dos amigos, ou dos professores. Reiko sentia-se sempre muito magoada ao confrontar-se com esse facto. E, em certos aspectos, parecia-lhe mais simples quando os filhos tinham amigos japoneses, sobretudo agora que eram mais velhos e os namoros começavam a surgir, Reiko apenas ignorava que o rapaz da rua onde moravam, e por quem Sally estava tão apaixonada, era meio irlandês, meio polaco.

 

Podes vir todos os fins-de-semana, se quiseres propôs a Hiroko.

 

Tratava-se, porém, de uma triste lição a aprender, e Hiroko decidiu que devia de enfrentar tudo com gambare, suportar paciente e corajosamente. Prometera continuar, fosse qual fosse a forma como as raparigas se comportassem em St. Andrew’s. No entanto, apesar da determinação de Hiroko, Reiko ainda estava preocupada quando nessa noite mencionou o assunto a Tak, depois do jantar.

 

Ela podia ter passado pelo mesmo em Stanford comentou Tak honestamente, quando Reiko insistiu para que escrevesse a Masao e pedisse que autorizasse a transferência. O problema não é, de forma alguma, exclusivo de St. Andrew’s, Rei. Afinal, estamos na Califórnia.

 

E isso justifica tudo? retorquiu, furiosa por ele aceitar aquele facto tão naturalmente.

 

Querem segregar-nos. Querem acreditar que somos diferentes. E todas as diferenças na nossa cultura, todas as coisas a que os nossos pais e avós se agarram, assustam-nos. Faz tudo parte do que nos torna diferentes.

 

Nada daquilo era novidade para ele, mas fazia com que sentisse pena de Hiroko. Ela era uma jovem muito meiga e aquela reacção chocara-a. Contudo, tal como Reiko, Tak sabia que nada podiam fazer para mudar a situação.

 

Ela não tem usado os quimonos lá, pois não? indagou. Tal não contribuiria para que fosse aceite, mas, mesmo com roupas ocidentais, era tão japonesa e tão obviamente diferente das outras alunas!

 

Duvido. Acho que os deixou todos aqui.

 

Óptimo. É melhor assim.

 

No entanto, prometeu falar-lhe e assim o fez no dia seguinte. Porém não tinha a propor-lhe qualquer conselho melhor do que Reiko. Ela teria simplesmente de viver com os preconceitos e tentar encontrar algumas amigas que não partilhassem dessa opinião. Acabaria por descobrir raparigas que sentiam de uma outra forma e, entretanto, seria sempre bem recebida em Paio Alto.

 

Contudo, decorrido um mês, tornou-se óbvio que a situação não melhorara, pois ela continuava a vir passar todos os fins-de-semana a casa. À sexta-feira à tarde, apanhava o comboio de regresso à casa dos primos, tal como, todas as sextas-feiras, aparecia o motorista que vinha buscar Anne Spencer. Nas últimas três semanas, falara uma única vez com Hiroko e apenas para lhe dizer que afastasse a mala.

 

É insultuoso pronunciou-se Peter, quando Tak o pôs a par da situação.

 

Não é a escola. São as raparigas e provavelmente apenas algumas delas, mas acho que chegam para a tornar infeliz e ela é tão tímida que não me parece que saiba gerir a situação. Obtém notas elevadas, mas é impossível que esteja a divertir-se. E vem passar todos os fins-de-semana connosco. Não que nos importemos, como é óbvio, apenas lamentamos por ela.

 

Todavia, Hiroko sentia-se feliz em regressar a casa nos fins-de-semana. Já conseguia estar completamente à vontade. Brincava horas a fio com Tami, conhecia todos os amigos de Ken, e Sally fora ao ponto de lhe fazer confidências sobre o seu namorado de dezasseis anos. Hiroko sentia-se ansiosa. Achava que o jovem tinha idade a mais, preocupava-a que ele não fosse japonês e a situação era por de mais clandestina, mas, de momento, prometera não contar nada à tia Reiko.

 

Achas que a Hiroko vai transferir-se? inquiriu Peter.

 

Não a vira desde que ela se tinha ido embora para o estabelecimento de ensino. Aos domingos, quando jantava com eles, Hiroko já havia regressado a St. Andrew’s. Portanto, deixaram de se ver até ao final de Outubro.

 

Num sábado à tarde, esbarrou com ela numa lavandaria em Palo Alto. Ken ensinara-a a conduzir a carrinha e Hiroko fazia alguns recados a Reiko. Avançava hesitante, sob uma pilha de roupa, vestida com um quimono cor de alfazema e uns tamancos de madeira. Peter soube logo de quem se tratava, embora mal a visse por trás da roupa.

 

Hiroko? perguntou.

 

Ao voltar-se para o fitar, esboçou um pequeno e furtivo sorriso.

 

Deixa-me ajudar-te.

 

Agarrou na roupa e sorriu quando ela esboçou uma vénia. A jovem ficara feliz ao vê-lo. E, desta vez, contrariamente às outras em que se haviam encontrado, fitou-o bem nos olhos. Ganhara coragem em St. Andrew’s e Peter interrogou-se sobre se tudo lhe corria melhor, desde que falara com Takeo a respeito dela.

 

Como estás? inteirou-se num tom meigo, enquanto se dirigiam à carrinha e a ajudava a arrumar a roupa na parte de trás. Surpreendeu-se com o que sentia ao vê-la. Apenas desejava ficar ali sentado a falar-lhe e a admirá-la com o quimono cor de alfazema. Como vão os estudos? perguntou, apercebendo-se de uma expressão triste e de um brilho de lágrimas.

 

Corre tudo muito bem. Como está, Peter-san? disse por sua vez com voz meiga. Ocupado. Estamos com frequências. Hiroko também andara a preparar-se para os testes e, ao baixar os olhos na sua direcção, ele viu-se a desejar que ela fosse uma das suas alunas. Queria perguntar-lhe quais eram os seus problemas com as colegas, mas não desejava perturbá-la, nem admitir que Takeo lhe contara. Constou-me que vens a casa passar os fins-de-semana, mas não te tenho visto aos domingos.

 

Hiroko sorriu e baixou os olhos. Continuava a sentir-se intimidada ao falar-lhe, sobretudo a sós, mas gostava da sua companhia. Apesar da diferença de idades, ele era acessível e simpático.

 

Gostas de St. Andrew’s? indagou interessado, tentando prolongar a conversa; ela hesitou uns momentos, antes de responder.

 

Talvez venha a gostar mais dentro em pouco respondeu honestamente. Na verdade, detestava o regresso à escola todos os domingos. Faltavam-lhe apenas sete meses e meio e contava cada momento.

 

Não me pareces muito contente observou, fitando-a.

 

Apetecia-lhe levá-la a qualquer lado, falar com ela, passear pelos bosques ou na cidade universitária. Ignorava porquê, mas gostaria de estar a sós com ela. E, ao observá-la, recordou-se do olhar de Tak quando lhe recordara de como ela era jovem, ingénua e diferente das jovens americanas. Hiroko não era uma rapariga como as outras, provinha de um mundo totalmente diverso e era muito especial.

 

É muito difícil ser de outro lugar confessou tristemente. Ignorava que seria assim na Califórnia. Esperara gostar da universidade e fazer amizades. Não contava com o facto de ser marginalizada.

 

Senti-me assim no Japão disse-lhe Peter num tom meigo e um olhar que traduzia uma silenciosa compaixão. O meu aspecto, a forma como me vestia e andava, tudo me punha de lado. Senti-me totalmente deslocado durante todo o tempo que lá passei, mas gostei. Decorrido algum tempo, era tudo tão belo e fascinante que não me importava de ser diferente. Sorriu ante as recordações que ainda o invadiam. Por vezes, as crianças seguiam-me. Erguiam o rosto e fitavam-me... Dava-lhes rebuçados e elas adoravam. Tirei montes de fotografias.

 

Hiroko sorriu, lembrando-se de outros estrangeiros que vira com pequenos exércitos de crianças atrás. Talvez se os pais a deixassem, também o tivesse feito, mas era óbvio que não.

 

Ignorava, Peter-san, que seria uma dessas pessoas... alguém de estranho a ser observado. Na universidade, todos me acham muito estranha... É muito solitário confessou, fitando-o com uns enormes olhos negros que expressavam muita da solidão sentida desde que deixara Quioto.

 

Lamento retorquiu ele num tom triste. Desejava mudar as coisas, protegê-la do sofrimento, ajudá-la a voltar para casa. Era-lhe insuportável a dor que lia nos seus olhos.

 

Talvez tenhas razão acrescentou, sem saber o que mais dizer. Talvez tudo melhore. Contudo, não havia forma de mudar Anne, Sharon ou as outras E Hiroko sabia-o

 

Sinto-me feliz aqui declarou filosoficamente. Junto do tio Tak e da tia Rei. Tratam-me muito bem. Sou muito feliz em tê-los

 

E eles a ti redarguiu Peter, após o que, para sua tristeza, ela lhe fez uma vénia e disse que tinha de voltar para ajudar Reiko. Espero que as coisas melhorem em breve na universidade encorajou-a, desejando que ela estivesse presente no domingo, quando aparecesse para jantar

 

Contudo, talvez fosse melhor que tal não acontecesse. Sentia algo de muito forte por ela, sempre que a via E essa sensação continuava a persegui-lo, quando se afastava, havia como que uma força irresistível a atraí-lo para ela. Não compreendia porquê ou como acontecera. Ela era muito jovem e viera até ali para estudar E ele era um homem com a sua vida própria, os seus hábitos, e uma namorada do seu género, que o envolvia e ocupava. Para que necessitava daquela jovem, meio rapariga, meio mulher, de olhos aveludados e cujo rosto o perseguia sempre que pensava nela? O que poderia resultar dessa afeição

 

Sentia-se aborrecido consigo próprio quando se meteu no carro e se afastou. Era o momento de parar, antes de começar. Nada se assemelhava à altura em que Takeo se apaixonara por Reiko quando ela era uma jovem estudante e ele um jovem professor. Não corria o ano de 1922, ele não era Takeo, nem ela Reiko

 

Ele era americano e ela japonesa. Tinha uma vida, um emprego e uma namorada. Por mais que Peter se sentisse atraído por Hiroko ou por mais fantástica que ela fosse, ou mesmo que um dia se apaixonasse por ela, não tinham futuro. Carregou no acelerador e afastou-se, prometendo a si próprio que a esqueceria. Não valia a pena sonhar com ela Portanto não o faria, disse de si para si, enquanto o pensamento se focava no quimono cor de alfazema

 

Novembro foi um pouco mais fácil para Hiroko. Sharon começou a ter problemas com os estudos e Hiroko ofereceu-se para a ajudar. Ela hesitou, mas acabou por se sentir agradecida, e, enquanto se sentaram horas a fio à noite, debruçadas sobre o trabalho, Hiroko teve a ilusão de uma amizade.

 

Anne não escondia a sua antipatia pelas duas. Continuava furiosa por partilhar o quarto com Hiroko e infeliz relativamente a Sharon. A gente do espectáculo não fazia o seu género, afirmara sem rodeios ao deão dos estudantes, nem tão-pouco os orientais. Acrescentou que a tinham posto com o que de pior havia naquele estabelecimento de ensino e, com todo o dinheiro que os pais haviam doado, achava honestamente que merecia bastante melhor.

 

Sentia-se ofendida e os pais tinham chegado a aparecer para discutir o assunto com o deão e a directora do comité de alojamento. Haviam-lhes prometido que na primeira oportunidade Anne receberia um quarto de pessoa só, mas não possuíam nenhum disponível de momento e seria injusto para as outras raparigas fazerem excepções e esforços heróicos por ela. Recordaram ainda aos Spencer, tal como tinham feito com Anne, que Hiroko era uma jovem encantadora de uma respeitada família no Japão.

 

Embora os Spencer anuíssem que talvez ela fosse, de facto, uma boa rapariga, vincaram que ali era a Califórnia, não o Japão, e que os Japoneses não eram muito considerados. Charles Spencer garantira-lhes que não haveria mais donativos até Anne ser mudada, mas a administração não arredou pé da decisão. Abominavam a chantagem.

 

Para marcar bem a sua infelicidade, Anne regressou a casa dois dias antes das férias do Dia de Acção de Graças. Ameaçara mudar-se para outra instituição e o deão respondera-lhe que pensasse bem antes de tomar uma resolução apressada.

 

Tudo isto por causa da pobre Hiroko. A jovem não falou a ninguém daqueles constantes problemas. Já passara por uma humilhação bastante quando se queixara. Agora, pelo menos Sharon tratava-a com civismo. Desde que Hiroko lhe fazia a maior parte dos trabalhos, Sharon andava muito melhor. Não fazia demonstrações públicas de amizade, mas tratava-a com simpatia quando regressavam ao quarto e foi mesmo ao ponto de lhe comprar uma caixa de bombons para lhe agradecer.

 

Hiroko era uma aluna excelente em Física e Química, lidava facilmente com a Matemática e estava sempre bem preparada em Latim. Sharon não era boa em nenhuma dessas disciplinas. O espanhol era a única matéria em que parecia à vontade. Contudo, Hiroko não o escolheu e, portanto, Sharon pouco tinha a oferecer.

 

Iria passar o Dia de Acção de Graças a Palm Springs com o pai, e Anne já dissera que viajariam de avião até Nova Iorque para estarem com a irmã. Perderia uma semana de aulas, mas, ao olhar pela janela, observando-a a entrar na limusina, Hiroko não sentiu pena. Levaria uma vida muito mais fácil sem a presença de Anne.

 

Dessa vez e por causa das férias, foi Ken quem apareceu para vir buscar Hiroko e a jovem acompanhou-o, entusiasmada, até Paio Alto. Ninguém lhe dissera uma palavra quando se fora embora. A própria Sharon esquecera-se de se despedir, de tão apressada que estava por apanhar o comboio para Los Angeles, que a levaria ao encontro do pai. Dissera a Hiroko que talvez Clark Gable e Carole Lombard passassem o Dia de Acção de Graças com eles, mas Hiroko não pareceu muito disposta a acreditar.

 

Que tal a escola? perguntou Ken num tom franco, e ela olhou pela janela antes de responder, depois do que o fitou.

 

Uma porra respondeu em calão e ele desatou a rir.

 

Estás a melhorar!

 

Hiroko riu também, pensando como o achava parecido com o irmão.

 

O Yuji vai ficar contente redarguiu. Conhece muito bem o calão americano. Eu ainda tenho muito que aprender.

 

Na minha opinião, estás a aprender disse Ken com admiração, mas sem nenhuma surpresa ante as palavras dela. Ouvira os pais a abordarem o assunto. Sentia pena. Ela era tão tímida e achava injusto que as companheiras lhe dificultassem tanto a vida. Nem sequer conseguia imaginar o que seria viver com Anne Spencer.

 

Depois, falaram do Dia de Acção de Graças e dos projectos para o fim-de-semana. Ambos queriam ver Relíquia Macabra com Humphrey Bogart e Sydney Greenstreet e ele prometera levar Tami a patinar. Ken também imaginava com quem Sally passava tanto tempo e, embora não aprovasse totalmente, acedera a uma saída em conjunto, se os pais deixassem que Sally os acompanhasse. Na verdade, ela tinha só catorze anos, e Ken e o outro jovem apenas mais dois anos. Para complicar tudo, o namorado de Sally não era japonês e Ken ignorava o que pensariam os pais.

 

E tu? Já conheceste rapazes? Sabia que de vez em quando havia bailes no estabelecimento de ensino, com a presença de rapazes da Universidade Berkeley, mas ela nunca dissera que fora, e ele achava que tal nunca acontecera. Era demasiado tímida e parecia não ter interesse em sair com o sexo oposto.

 

Não tenho tempo, Kenji-san respondeu, tratando-o pelo seu nome japonês. Ando muito ocupada com os meus estudos. E os de Sharon. Na semana anterior, fizera igualmente todos os trabalhos de Sharon para a poupar durante as férias do Dia de Acção de Graças. Hiroko chegara a ficar sentada na casa de banho com uma lanterna acesa, a fim de os completar.

 

Não gostas de rapazes? espicaçou-a Ken. Ela tinha quase idade de casar. Algumas raparigas casavam-se na idade dela, sobretudo se não frequentassem a universidade.

 

A minha mãe diz que quando eu regressar ao Japão, se servirão de um intermediário para me encontrar um marido respondeu num tom despreocupado, como se achasse não só aceitável mas muito mais cómodo não ter de escolher um marido; o primo fitou-a, surpreendido.

 

Falas a sério? Mas isso não é civilizado! Mais parece a Idade Média! retorquiu, horrorizado, sem acreditar que ela o fizesse.

 

Os meus pais casaram assim proferiu, divertida com a reacção dele. Em nada lhe parecia chocante. A avó dissera que era melhor assim e ela acreditava. Confiava plenamente na opinião dos pais.

 

E os meus avós também acrescentou ele, enquanto prosseguiam caminho, mas os meus pais conheceram-se, apaixonaram-se e casaram.

 

Talvez tivessem tido muita sorte. Se calhar nos Estados Unidos era diferente. Tudo o mais era, porque não também o casamento? Contudo, ela gostava das velhas tradições e preferia deixar que fossem os pais a escolher-lhe marido, quando chegasse a altura.

 

Serias realmente capaz de casar com alguém que não conhecemos? perguntou Ken, surpreendido com o que ela contava. Já ouvira falar, mas não conseguia imaginar alguém a fazê-lo e muito menos a prima. Era uma rapariga encantadora e poderia ter qualquer um que desejasse.

 

Conhecê-lo-ia, Kenji-San. Conhece-se e decide-se se se gosta. O meu pai conheceu assim a minha mãe. O pai dela também não achava que devessem servir-se de um intermediário, mas Hidemi sempre dissera a Hiroko que o convenceria.

 

Acho que és louca comentou, abanando a cabeça quando se aproximaram de San Mateo.

 

Não sou louca, Kenji-san. Não como manteiga de amendoim, que pode calar-me a boca para sempre. Ele riu-se perante as suas palavras. Sabia como ela detestava aquele tipo de comida e como ficara horrorizada quando lha dera a provar. Mais tarde dissera que receara não conseguir voltar a abrir a boca. Tu é que és louco, Ken-san. Ouves música de loucos. Ele adorava as grandes bandas, mas também gostava de jazz e de boogie-woogie, e Sally era doida por Frank Sinatra. Hiroko também gostava dele, mas preferia a música japonesa. E, quando a punha, Ken troçava e Tami tapava os ouvidos com as mãos e gritava. Achava um horror.

 

No entanto, Hiroko adorava ir ter com eles. Sentia-se à vontade e tornara-se menos tímida. Abraçou calorosamente o tio Tak quando chegaram e foi direita à cozinha para ajudar Reiko. A festa de Acção de Graças era no dia seguinte, mas esta já estava a preparar as tartes de maçã e o empadão de carne picada, ocupada com os preparativos. Sally ajudara-a um pouco, mas, depois de passar uma hora a enrolar massa, fora encontrar-se com umas amigas.

 

Olá, Hiroko. Que tal os estudos? perguntou Reiko, erguendo o rosto. Ken passou o frigorífico em revista e acabou por se decidir por uma costeleta de borrego.

 

Ela diz que ”é uma porra” respondeu Ken em seu lugar. Diria que o inglês da nossa prima está a melhorar. Riram os três e Tami desceu as escadas para vir mostrar a Hiroko o anúncio de uma revista sobre a nova boneca que ela queria para o Natal.

 

Planeava fazer o pedido ao Pai Natal e Reiko já a tinha escondida numa caixa dentro do roupeiro.

 

Terás de te portar muito bem incitou-a Reiko.

 

Então, bem podes esquecê-la disse Ken, a rir-se, espicaçando a irmã, ao mesmo tempo que se servia de um copo de leite.

 

Tami fulminou-o com o olhar e Hiroko apertou-a de encontro ao corpo e beijou-a. Sabia-lhe bem voltar, adorava estar com eles e gostava do calor da família. Aos seus olhos eram verdadeiros americanos e pessoas maravilhosas.

 

Nessa noite, depois do jantar, Ken e Sally saíram, mas Hiroko decidiu ficar em casa com Tak e Reiko. Ouviram as notícias durante um bocado e Tak mostrou-se sobretudo interessado nas conversações entre os Estados Unidos e o Japão, que haviam resultado no fim de alguns acordos comerciais entre ambos. As relações entre os dois países tinham vindo a deteriorar-se e as notícias provenientes da Europa eram as piores de sempre.

 

O mundo está um verdadeiro inferno, Rei comentou sem erguer a voz e muito preocupado com o que ouvia. Roosevelt continuava a prometer que não entraria na guerra, mas há meses que Takeo não acreditava nisso e sabia que havia pessoas em Washington que receavam que o Japão pudesse transformar-se num sério agressor. Tak achava improvável, mas tudo era possível naquela situação mundial. Ainda uma semana antes, um porta-aviões inglês fora afundado por um torpedeiro italiano. Estou realmente preocupado com o que se passa no Japão e a guerra na Europa. E os pobres ingleses não podem aguentar eternamente. É incrível como suportaram tanta coisa.

 

Reiko anuiu com a cabeça, igualmente aflita, embora sempre se tivesse mantido muito mais afastada da política do que Takeo. No entanto, as ciências políticas eram a área dele. Competia-lhe analisar o que estava a acontecer no mundo e nessa altura nada tinha de muito animador.

 

No dia seguinte, porém, a política mundial foi esquecida ao celebrarem dois feriados num só: o Dia de Acção de Graças e o feriado japonês Kinro Kansha-no-Hi, que nesse ano coincidia no mesmo dia. No Japão, era a oportunidade de agradecer uma colheita abundante.

 

Acho, portanto, que este ano estamos duplamente agradecidos brindou Takeo num tom despreocupado e começando a trinchar o peru. Triplamente agradecidos acrescentou, baixando os olhos. Devemos agradecer a presença da Hiroko. Um novo e maravilhoso acréscimo à nossa família. Voltou a erguer o copo e Peter Jenkins imitou-o. Festejava o Dia de Acção de Graças com eles, como todos os anos, e sentia-se aliviado por Carole ter ido passar o fim-de-semana prolongado com a família, em Milwaukee. Gostava de aparecer só na casa dos Tanaka, especialmente quando sabia que ia ver Hiroko.

 

Apesar de tudo, fizera um terrível esforço para se sentar bem longe de Hiroko. A jovem estava no extremo oposto, entre Ken e Tami. Há um mês que não a via, mas da última vez ficara perturbado. Parecia que sempre que se encontravam, algo nela o confundia e dava consigo a pensar na jovem durante dias. Agora, prometera a si próprio não deixar que tal acontecesse. Ela não passava de uma rapariguinha e era ridículo sentir-se atraído. Concluiu que era talvez a sua timidez que o prendia, juntamente com o romantismo e todo o mistério do seu quimono. O mero facto de o reconhecer pareceu difundir o sentimento.

 

Nessa tarde, Hiroko vestira um quimono vermelho-vivo com um fundo de folhas outonais. Era uma peça espectacular, com um belo obi de pesado brocado vermelho, e ela movia-se com graciosidade. Estava especialmente bonita e o cabelo preto brilhava, solto pelas costas. Parecia alheia à beleza emanada, enquanto ajudava Reiko a servir o jantar.

 

O peru e o recheio estavam deliciosos e as tartes que Reiko cozinhara excepcionalmente apetitosas. O próprio Peter concordou que fora o melhor jantar do Dia de Acção de Graças que ela alguma vez preparara. Reiko sorriu e respondeu que fora devido à ajuda que Hiroko lhe dera nesse ano; a jovem baixou os olhos, embaraçada, e depois esboçou um sorriso para todos.

 

Apesar da sua timidez natural, parecia completamente à vontade entre eles e foi mesmo ao ponto de olhar várias vezes para Peter e conversar com ele, sempre que Tami não a interrompia. Tal atitude dificultou ainda mais o plano de Peter em relação ao seu intuito de ignorá-la, e no fim do jantar parecia noutro mundo.

 

Queria tão desesperadamente alhear-se do modo como ela se movimentava, ou da sensação de proximidade da mão dela quando lhe levantava o prato, ou do roçar do seu longo cabelo junto à sua face, quando passava apressadamente. Quase se tornava insuportável olhar para ela, e o mero facto de a ver ao seu lado fazia com que desejasse envolvê-la num abraço. Lamentava realmente ter ido jantar nesse ano. A proximidade da jovem, com toda a sua graciosidade, era um tormento.

 

Tak tomou consciência do que estava a acontecer e sentiu pena dele. Era óbvio que o amigo se sentia completamente rendido a Hiroko.

 

Só ela não se apercebia do efeito que produzia nele. Continuava a mover-se à sua volta como uma brisa de Verão, mal lhe tocando e, no entanto, provocando-lhe calor e arrepios, para lá de qualquer controlo suportável.

 

Mais alguma coisa, Peter-san? perguntou-lhe, atenciosa.

 

Ele parecia muito sério e ansioso nessa tarde e ela não sabia bem porquê. Quase se interrogou sobre se se passara algo desagradável com a namorada. Mas a única coisa que acontecera era que ele estava a apaixonar-se por Hiroko e não tinha ideia do que fazer. Hiroko era demasiado jovem e totalmente inacessível, mas o coração não parecia acompanhar o raciocínio.

 

Não... obrigado, Hiroko-San... Está tudo bem...

 

No entanto, mais tarde, Peter deixou que Reiko lhe oferecesse uma chávena de café, e Hiroko leu-lhe o olhar e interpretou erradamente os seus sentimentos. Julgou que estava zangado com ela e, na verdade, Peter sentia uma verdadeira agonia com a sua proximidade ou quando ela se inclinava e lhe oferecia o suave perfume que usava, sempre que passava por ele. Julgou enlouquecer.

 

Depois de ajudar Reiko a levar os pratos, Hiroko fitou-a com um olhar triste.

 

Passa-se alguma coisa? perguntou Reiko. O rosto de Hiroko era tão transparente nas suas emoções.

 

Ofendi Peter-san. Ele está muito zangado comigo, tia Rei.

 

Não me parece que esteja zangado contrapôs Rei num tom calmo. Também ela detectara o olhar dele, só que o interpretara melhor do que Hiroko. Confuso será a palavra mais exacta. Não sabia muito bem o que dizer. A atitude competia a Peter. E, de certa maneira, Reiko queria alhear-se dos acontecimentos. Era mais fácil.

 

Confuso? repetiu Hiroko, que obviamente não a compreendia. Acho que tem muita coisa em mente explicou Reiko, bondosa.

 

Hiroko abanou a cabeça, não só tranquilizada mas aliviada por Reiko desconhecer, aparentemente, qualquer ofensa imperdoável que ela tivesse cometido frente a Peter.

 

Hiroko levou café acabado de fazer ao escritório, onde Tak e Peter conversavam a propósito dos Ingleses e dos Alemães. Levara igualmente um pequeno tabuleiro com bolinhos e Peter lançou-lhe um olhar triste, enquanto ela os servia. Depois de lhes oferecer os bolos, pousou o tabuleiro, e inclinou-se frente aos dois, enquanto Peter tentava controlar-se e ouvir o que Tak dizia.

 

Contudo, o homem mais velho deitou-lhe um olhar perspicaz quando ela saiu.

 

Não ouviste uma única palavra do que te disse, não é verdade? perguntou, consciente da inevitabilidade da situação.

 

Claro que ouvi. Estava apenas a reflectir mentiu,
Tak esboçou um sorriso compreensivo. À sua maneira, Peter também era uma criança e estava tão apaixonado por Hiroko que não conseguia raciocinar. Tak não desejara que isso acontecesse e, no entanto, reconhecia que havia ocasiões em que os planos e avisos de nada serviam. Havia alturas em que os acontecimentos eram ditados pelo destino e não pelas palavras de primos ou pais.

 

Disse que o Churchill e o Hitler se casariam no sábado e se ias ao casamento.

 

Peter esboçou um sorriso tímido. Tak apanhara-o.

 

Okay. Estou fora de mim. E agora? inquiriu num tom desesperado, denotando toda a mágoa e a tentativa de se controlar. Lutara corajosamente contra os seus sentimentos, mas em vão, e, naquele momento em que Peter fitava ansiosamente Takeo, ambos o sabiam. Peter não queria aborrecê-lo, ser insultuoso, ou criar uma situação familiar difícil de resolver, e, no entanto, à luz das suas emoções por Hiroko, sentia-se impotente.

 

Falaste-lhe de alguma coisa? inquiriu Takeo cauteloso.

 

Tinha a sensação de que Hiroko não fazia ideia do que estava a acontecer. Parecia ignorar tudo o que avassalava Peter.

 

Não quis assustá-la confessou Peter. Não sei o que lhe dizer. É injusto, Tak. Não tenho o direito de fazer isto. Peter estava plenamente consciente da realidade e recordara isso a si próprio mais de mil vezes, desde que a tinha conhecido.

 

Suponho que tentaste evitá-lo sondou Tak, e Peter concordou com um aceno de cabeça.

 

Fiz tudo o que podia, excepto tratá-la indelicadamente. Até evitei aparecer nas alturas em que sabia que ela viria passar o fim-de-semana. Mas de nada parece servir. Sempre que a vejo, piora... ou melhora... Sorriu. Penso que é esse o problema.

 

Tak fitou-o com uma expressão compreensiva. Era fácil perceber tudo o que ele sentia. Estava perdidamente apaixonado por Hiroko.

 

Suponho que o teu primo, o pai dela, não ficaria nada satisfeito pronunciou Peter quase num sussurro.

 

Tak observou-o, desejando ter uma resposta simples, que tudo se passasse há vinte anos e as coisas fossem tão simples para os dois como o tinham sido para ele e Reiko. No entanto, o mundo era agora mais complicado e o seu primo do Japão confiara-lhe a sua filha única.

 

Acho que não concordou Takeo, com honestidade. No, entanto, por outro lado, trata-se de um homem muito inteligente e invulgarmente moderno para um japonês. É curioso, mas penso que lhe agradarias. Tal não significa que eu aprove apressou-se a acrescentar com toda a franqueza, mas também incapaz de condenar o que se passava.

 

Takeo gostava demasiado de Peter e respeitava-o de alma e coração. Era um homem inteligente, íntegro e digno em todos os aspectos susceptíveis de agradar a Masao. Mas não era japonês e tinha quase mais dez anos do que Hiroko. Não era, de facto, um caso de fácil solução.

 

Vais dizer alguma coisa à Hiroko? quis saber Takeo, com um ar preocupado.

 

Ainda não sei. Provavelmente ficaria horrorizada e deixaria de me falar. Não me parece que esteja preparada para isto, Tak. Nem eu tenho a certeza de estar. A ideia de avançar aterrorizava-o. E se ficasse furiosa e nunca mais quisesse vê-lo à sua frente? Sabia que não conseguiria suportar. Para já nem falar da Carole. Tenho umas coisas a resolver. Há uns tempos que tenciono fazê-lo. Andamos um bocado distantes. Fiquei, de facto, aliviado quando ela me disse que ia passar o Dia de Acção de Graças a Milwaukee.

 

Então? insistiu Takeo, sem o condenar pelo que sentia, sem o proibir de levar a questão por diante, embora achasse que devia fazê-lo. Porém, mais do que tudo, sentia-se preocupado por ambos e o que podia esperá-los no futuro.

 

Não sei, Tak. Sinto-me assustado de mais para fazer o que quer que seja. Contudo, pareceu aliviado ao detectar a expressão do amigo. Tudo o que leu foi compreensão e não raiva. Tivera um medo horrível do modo como Tak reagiria.

 

Nunca te achei um cobarde afirmou Takeo calmamente. Não se tratava de uma aprovação, mas era um indício de que não impediria Peter de avançar, e este sentiu-se aliviado ao escutá-lo. Penso que deves avançar com cuidado e reflectir seriamente nos teus actos. Ela não é alguém que se trate com leviandade e o que quer que faças pode afectar as vossas vidas para sempre. Todavia, o respeito que sentia pelo homem mais novo impedia-o de esboçar qualquer tipo de proibição.

 

Eu sei anuiu Peter num tom solene. É o que tenho andado a dizer a mim próprio desde o Verão passado.

 

Sei que não farás nada que a magoe vincou Takeo, e Peter anuiu com a cabeça.

 

Afloraram um pouco mais a questão e depois regressaram à política para desanuviar, antes de voltarem à sala para se juntarem aos outros. Hiroko mal o olhou e não suspeitou do que os dois homens tinham estado a conversar. Ficaria extremamente chocada se lhe dissessem, o que, como era óbvio, não fizeram. Pareciam calmos e descontraídos quando se sentaram e prestaram atenção ao debate sobre se os jovens queriam ou não ir ao cinema.

 

Por fim, Ken e Sally foram ver O Homem Lobo, com Lon Chaney, Jr. Desejavam a companhia de Hiroko, mas ela disse que estava muito cansada. Ajudara Reiko durante toda a tarde e apetecia-lhe ficar em casa, bordar e conversar com Peter. Estava a fazer meia dúzia de pequenos tapetes para a casa de bonecas de Tami e queria acabá-los antes do Natal.

 

Mal Tami se foi deitar, Hiroko pegou-lhes e pôs-se a trabalhar, enquanto Tak ia atrás de Reiko até à cozinha. A mulher anunciou que ia preparar mais café e Takeo foi fazer-lhe companhia, além de que havia algo que queria dizer-lhe. Sentia-se preocupado com a conversa que tivera com Peter, mas por outro lado apoiava-o e queria saber a opinião de Reiko sobre o assunto. Ela era uma mulher muito perspicaz. E não ficou nada surpreendida quando falaram em sussurro, enquanto preparava o café. Todavia, o que mais preocupava Tak era sentir que quase dera permissão tácita a Peter de conquistar Hiroko e achava que não o devia ter feito.

 

Não te diz respeito, Tak comentou Reiko calmamente, olhando o marido com uma expressão terna. É com eles acrescentou com meiguice e ele assentiu com a cabeça, interrogando-se sobre se falhara em relação a Masao, ao não proteger Hiroko de Peter. Sabia, porém, que não podia. Na sala, Peter observava os pontos cuidadosos de Hiroko. Conservaram-se em silêncio durante algum tempo e depois a jovem sobressaltou-o ao perguntar:

 

Ofendi-o, Peter-san? Apesar das palavras tranquilizadoras de Reiko, era algo que a perturbara durante toda a noite.

 

Não, Hiroko. Jamais me ofenderias respondeu, sentando-se ao lado dela e sentindo que todo o corpo lhe tremia devido à proximidade. A jovem desconhecia totalmente o que lhe provocava e o que sentia por ela desde o dia em que a conhecera. Não fizeste nada. Só que eu... eu tenho sido muito idiota...

 

Não sabia o que lhe dizer. Manteve-se sentado a olhá-la e interrogando-se sobre se ela alguma vez lhe perdoaria.

 

Não posso voltar cá a casa acrescentou, e Hiroko pareceu aterrorizada.

 

Na mente da jovem, ele fazia parte da família e sentiria horrivelmente a sua falta. Não fazia ideia do que se passava no íntimo dele, mas também ela tremia perante aquela proximidade masculina. Baixou os olhos, enquanto o ouvia, sabendo que os primos ficariam muito zangados por ela afastar o seu maior amigo e assistente de Tak.

 

Portei-me muito mal, Peter-san, declarou, sem o fitar. Mostrei-me muito ousada acrescentou suavemente e erguendo os olhos. Considero-o como... como um primo. No entanto, ele limitou-se a abanar a cabeça perante aquelas palavras.

 

Não fizeste nada de mal, Hiroko... nada... O único problema é que eu não penso em ti como prima.

 

Lamento muito retorquiu ela, baixando tanto a cabeça que ele não conseguia ver-lhe o rosto. Portei-me muito mal e fui muito presunçosa e indelicada. Fitou-o com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces e Peter desejou chorar ao vê-la assim. Perdoe-me...;

 

Oh, Hiroko, minha tontinha... Sorriu, atraindo-a a si e ficando com a sensação de agarrar asas de borboleta, tal a fragilidade da jovem. Não foste indelicada nem presunçosa... Não penso em ti como prima acrescentou de um fôlego, interrogando-se sobre se seria capaz de pronunciar as palavras e sabendo que tinha de o fazer. Penso em ti como alguém muito, muito mais importante... Talvez seja errado da minha parte prosseguiu num tom ansioso. Eu... tentei controlar-me, mas, Hiroko, de cada vez que te vejo...

 

Hesitou e sem mais uma palavra, abraçou-a com mais força e beijou-a. Os lábios dela assemelhavam-se a seda e nem queria acreditar em todas as emoções que o invadiam. Desejava pegar-lhe ao colo e fugirem para um lugar onde ambos estivessem a salvo para sempre.

 

Posso estar doido afirmou quando finalmente se afastou dela, embriagado pelo néctar inebriante dos seus beijos. Ela também o beijara. Nunca beijara ninguém, mas sentira o mesmo que ele. Posso estar doido repetiu num sussurro, mas... amo-te... Voltou a beijá-la e esqueceu completamente onde estavam, quando ela correspondeu.

 

És doido, Peter-san disse ela por fim. Não podemos fazer isto.

 

Eu sei concordou Peter, infeliz. Torturei-me. Prometi a mim próprio que não regressaria aqui, mas, sempre que o faço, volto a aperceber-me do que sinto por ti. Como pode ser assim tão errado? Responde. Mas ambos sabiam que era, e ele teria preferido morrer a magoá-la. Quero-te junto a mim para sempre. Quero tomar conta de ti... Voltarei contigo para o Japão, se assim tiver de ser.

 

Oh, Peter! exclamou, arrebatada pelo que ele dizia. Não fazia ideia do que o pai acharia. Não o imaginava aaprovar aquela relação e, contudo, toda a sua vida a aconselhara a ser moderna. Apaixonar-se por um americano era, sem dúvida, muito moderno. Sabia que a mãe ficaria horrorizada com o seu comportamento. Até os primos teriam um choque, mas Peter leu-lhe os pensamentos, quando lhe pegou na mão e a beijou.

 

Acho que o Tak se apercebeu disto antes de mim. Falei-lhe do que sentia esta noite confessou francamente.

 

Ele ficou muito zangado? inquiriu ela, parecendo preocupada e em pânico com a hipótese de Takeo poder contar ao pai.

 

Zangado, não. Preocupado. Não posso censurá-lo. Mas não pareceu surpreendido. Penso que há uns tempos que já o sabia. No começo, julgo que te comparou à Reiko. Ela era uma estudante quando se conheceram e ele um jovem professor e também mais velho do que ela. Mas o nosso caso é diferente, Hiroko. Penso que o sabes rematou tristemente.

 

A jovem já tivera oportunidade de ver, na universidade, a forma como as pessoas reagiam aos japoneses, quanto mais a mulheres japonesas envolvidas com americanos. No estado da Califórnia, nem sequer poderiam casar. Teriam de ir para um outro estado, não que estivessem já a planear casar-se. No entanto, servia-lhes para se aperceberem da hostilidade com que os outros poderiam encarar o seu inocente romance.

 

Não quero que te sintas magoada, Hiroko. Muito menos com algo que eu faça. É a última coisa que quero para ti vincou, voltando a beijá-la e sentindo-se estonteado ao fazê-lo.

 

Nenhuma mulher alguma vez lhe provocara aquele tipo de emoções, e ela era apenas uma jovenzinha e os seus beijos meros sussurros, de tão tímidos. Tornava-se impossível esquecer os desafios que enfrentavam. O que fariam agora? Ou poderiam agir exactamente como os outros, deixarem-se levar pelo destino e desfrutar da felicidade enquanto podiam? Não faziam ideia de até onde tudo aquilo os levaria, mas o que ambos sentiam era tão forte que os arrebatava numa onda de ternura e desejo.

 

Temos de pensar nisto muito seriamente, Peter-san pronunciou-se Hiroko, parecendo, nesse momento, mais velha e experiente do que ele. Peter sentia-se como uma criança nos seus braços e em simultâneo um homem apaixonado. Ter-se-ia casado com ela ali e agora, se fosse possível. Temos de ser muito sensatos, Peter-san... e talvez... Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas ao dizer as palavras. Talvez tenhamos de ser fortes e desistir do que mais desejamos... Não podemos magoar ninguém, Peter-san... Seria incapaz As lágrimas rolavam-lhe devagar pelas faces, mas, quando ele voltou a abraçá-la, soube quanto o amava.

 

Estão bem os dois? perguntou Takeo da cozinha e i a voz denotava preocupação.

 

Nenhum deles sabia o que dizer. Peter tomou coragem, respondeu que estavam bem, e Reiko anunciou que levaria o café dentro de minutos. Continuava a falar com Tak a respeito deles, na cozinha. Reiko achava que deviam deixá-los ser jovens e seguir as emoções. E Tak tentava em vão convencer-se de que a situação era inofensiva.

 

Queres passear comigo amanhã à tarde? perguntou Peter, nervoso. Talvez possamos conversar mais sobre este assunto... Talvez pudéssemos mesmo ir ao cinema.

 

Hiroko fitou-o, incapaz de acreditar no que estava a acontecer-lhes, e anuiu com a cabeça. Nem sequer conseguia imaginar ir ao cinema com ele, e encontrarem-se a sós assustava-a. Contudo, embora nunca tivesse estado sozinha com um homem, à excepção do pai no Japão, sabia que podia confiar em Peter Jenkins.

 

Reiko apareceu finalmente com o café. Os quatro falaram durante algum tempo sobre os planos de Natal e a universidade e, pouco depois, Peter foi-se embora. Agradeceu a Reiko mais um jantar maravilhoso. Fora um ano especial para ele. Sabia que algo acontecera ali que lhe mudaria a vida para sempre.

 

Hiroko fez-lhe uma vénia como era seu hábito, mas desta vez pareceu ainda mais solene. Peter prometera aparecer na tarde seguinte para darem um passeio. Havia repentinamente tanto de que falar e tanto a resolver. Contudo, ela manteve-se silenciosa depois de partir. Não disse nada aos primos, quando Peter saiu. Limitou-se a subir as escadas, pensando nele, enquanto o casal a observava. Não fazia ideia do que lhes aconteceria a partir daquele momento, nem tão-pouco Peter, quando se meteu no carro e foi para casa; porém, ambos sabiam que, sem o planearem, tinham abandonado um porto seguro e rumado em direcção a uma viagem extraordinária.

 

Peter veio buscá-la na tarde seguinte e ninguém mais estava em casa. Hiroko vestira um quimono verde-escuro, uma cor que para ela significava seriedade, e manteve uma expressão séria, enquanto caminhavam devagar, lado a lado. Peter voltou a explicar-lhe o que sentia por ela e quando se dera conta de que a amava. Com ela acontecera o mesmo. Tentara esquecer e ainda estava um pouco abalada pelas suas emoções e pelo facto de ser correspondida. Contudo, sempre que o via, tinha-se sentido irresistivelmente atraída por ele. E agora ambos haviam cedido a forças irreversíveis.

 

O que vamos fazer, Peter-san? inquiriu, parecendo muito perturbada. Não queria magoar ninguém, nem atraiçoar os seus antepassados. Não viera para os Estados Unidos para pôr em causa ou prejudicar a honra da família. Contudo, uma parte dela dizia-lhe que viera até ali para o encontrar e já não podia virar costas ao que acontecera.

 

Temos de ser muito sensatos, Hiroko-san. Estarás aqui até Julho. Muitas coisas podem suceder nesse espaço de tempo. Talvez me seja possível viajar até ao Japão para me encontrar com o teu pai no próximo Verão.

 

O facto de ele mal a conhecer era a única coisa que não a preocupava. Estaria preparada para se casar com um homem encontrado por um intermediário e ainda o conheceria menos do que a Peter Jenkins. O problema residia em que ele não era japonês, o que constituía provavelmente algo insuperável.

 

O que achas que dirá o teu pai? perguntou ele, parecendo ansioso.

 

Não sei, Peter-san respondeu honestamente. Sofrerá um grande choque. Talvez o tio Takeo possa igualmente falar-lhe no próximo Verão. E até lá? acrescentou com um sorriso de mulher que o surpreendeu.

 

Veremos onde nos leva a vida. Talvez no próximo Verão, não queiras voltar a ver-me. Sorriu, mas ante o que os dois sentiam, parecia pouco provável.

 

Peter conduziu-a até junto de um pequeno lago, depois de terem andado a passear, e sentaram-se durante algum tempo num banco, beijando-se. Ele tirava-lhe o fôlego e ela nunca conhecera algo tão excitante.

 

Amo-te sussurrou Peter, encostando os lábios aos cabelos de Hiroko, completamente inebriado. Era a mulher mais maravilhosa que encontrara, a melhor coisa que lhe acontecera. E, de súbito, nem sequer desejava contar aos primos dela o que sucedera entre ambos. Até mesmo partilhar aquele facto com Tak e Reiko poderia estragar tudo.

 

Todavia, no caminho para casa discutiram se haviam ou não de pôr os primos dela a par dos seus planos e sentimentos. Por fim, resolveram esperar algum tempo e manter apenas entre eles a importância de tudo o que estava a acontecer. Havia algo de delicioso em conservarem aquele precioso segredo. Takeo já sabia o que se passava com Peter; contudo, o que ninguém sabia, à excepção de Peter, era o que Hiroko sentia por ele.

 

Acho que de qualquer maneira já sabem afirmou Peter honestamente, sorrindo-lhe lá de cima, pois era muito mais alto do que ela. Mas os teus priminhos iriam dar-nos cabo da cabeça. Hiroko riu ante a ideia e depois interrogou-se sobre o que pensaria o próprio irmão. Gostava de tudo o que fosse da América, mas jamais ocorrera a ambos que ela se apaixonasse por alguém daquele país. Era um pensamento que nem sequer lhe ocorrera quando subira a bordo do Nagoya Maru, em Kobe. E sabia que nunca a teriam deixado vir, se por um único momento suspeitassem que tal coisa iria acontecer.

 

Peter deixou-a à esquina da rua, depois do percurso de carro até casa, porque queriam ser discretos. Ficou a vê-la percorrer a curta distância que a separava de casa e depois voltou a ligar o motor, sem nunca deixar de pensar nela. Também não conseguia afastar o pensamento de Tak e rezava para que ele fosse capaz de aceitar o que acontecera. Ele e Hiroko sentiam-se irremediavelmente atraídos um pelo outro. Não queriam magoar ninguém, quebrar regras ou desafiar a família deles. Apenas queriam estar juntos e esperavam que todos acabassem por aceitar a situação. Contudo, de momento, iria ser difícil, em mais do que um aspecto.

 

Ele tinha ainda de falar com Carole e romper a ligação que mantinham. Sabia que ela não ficaria de coração despedaçado, mas também não se sentiria feliz. E apesar das boas intenções de ir à cidade no dia seguinte, depois do trabalho, foi em vez disso visitar Hiroko e deixou-se ficar até Reiko o convidar para jantar. Ela sabia o que se passava, mas não pronunciou uma palavra. A atracção entre os dois era, de certa forma, muito comovedora. Peter mostrava-se tão solícito para com Hiroko e ela tão respeitosa. Parecia dar-lhe ainda maior atenção e fazer vénias mais prolongadas.

 

Contudo, ao observá-los, Takeo quase desejava não ter de testemunhar tudo aquilo. Não que desaprovasse, mas ficava numa posição incómoda frente ao seu primo Masao. Como é que iria explicar-lhe que Hiroko se apaixonara pelo seu assistente? E, no entanto, era-lhe impossível reprimir um sorriso ao observá-los. Eram tão jovens e vulneráveis. O coração de Tak sofria só de olhar para eles.

 

Nessa noite, depois do jantar, foram todos ao cinema e Takeo convidou Peter a acompanhá-los. E Tak sorriu de si para si ao detectar o olhar de cumplicidade entre Hiroko e Peter. Julgavam que ninguém se dava conta do que sentiam e Peter achava que eram muito discretos a encobrir aquele segredo, o que levou Takeo a virar as costas, dissimulando um sorriso. Nada havia de secreto quanto aos sentimentos dos dois jovens. Quem quer que os conhecesse, logo se aperceberia.

 

Foram ver Suspeita com Gary Grant e Joan Fontaine e todos gostaram do filme. Regressaram a casa para beberem um chocolate quente e Peter teve finalmente de se separar dela à meia-noite. Os olhos de ambos fixaram-se durante um longo momento, antes de ele se ir embora. No dia seguinte, Hiroko tinha de regressar à universidade e, ao saírem do cinema, Peter prometeu que lhe telefonaria para lá. Ken iria levá-la como sempre o fizera, ou podia apanhar o comboio, mas ambos achavam que não seria sensato que fosse Peter a acompanhá-la.

 

No dia seguinte, ao partir, vestida com o conjunto de saia preta e camisola branca, a tia Reiko fitou-a e trocaram um olhar de cumplicidade feminina.

 

Não faças nada de que te arrependas, minha pequenina dissera Reiko, abraçando-a como o faria a uma filha. É fácil deixarmo-nos entusiasmar avisou, e Hiroko anuiu com a cabeça. Não era versada naqueles assuntos, mas há muito que a mãe a aconselhara a manter-se afastada dos homens. E até mesmo ao beijar Peter, como o fazia, apercebia-se de como podia acontecer algo de terrível.

 

Não te desrespeitarei, Reiko-san prometeu, correspondendo ao abraço e sentindo saudades da mãe.

 

Tem cuidado contigo acrescentou Reiko e Hiroko sabia o que ela queria dizer. Não queria que fizesse algum disparate que a pudesse comprometer.

 

Voltarei em breve, tia Reiko. Ficaria na universidade durante os próximos fins-de-semana, pois tinha de estudar para os exames; depois, viria passar três semanas no Natal. Ansiava por essa ocasião, sobretudo naquele momento. E devido ao seu cargo na universidade, Peter estaria ausente durante o mesmo período de tempo.

 

Mostrou-se muito sossegada durante a viagem de volta à universidade e Ken supôs que ela se sentia apenas infeliz por ter de regressar para lá.

 

Não será assim tão mau tentou ele encorajá-la. Só faltam algumas semanas até às férias do Natal. Ela mal conseguia esperar e sorriu só de pensar nisso. Ken levou-lhe a mala até ao dormitório e depois regressou à casa de Paio Alto.

 

Hiroko subiu as escadas até ao seu quarto, onde foi encontrar Sharon. A jovem parecia deprimida e contou que tivera um Dia de Acção de Graças para esquecer em Palm Springs, com o pai. Ocultou que ele estivera bêbedo durante quatro dias e que tinha uma namorada nova. Sharon detestava encontrar-se com ele quando o pai se portava daquela maneira, mas ainda detestava mais regressar às aulas. Tivera óptimas notas e odiava estar à mercê de Hiroko para que lhe fizesse os trabalhos de casa. Fazia com que se sentisse pouco à vontade, além de que estava cansada da universidade. Pensava desistir no final do semestre e tentar seguir a carreira de actriz.

 

Tiveste umas férias más, Sharon-san? inquiriu Hiroko num tom compreensivo, e a ruiva encolheu os ombros. Vestia umas calças e uma camisola, e toda a gente lhe dizia que se assemelhava à Katharine Hepburn.

 

Acho que sim anuiu, acendendo um cigarro. Estavam estritamente proibidas de fumar onde quer que fosse na cidade universitária, mas pouco lhe importava. Ser expulsa tornaria tudo mais simples.

 

Não deves fazer isso avisou Hiroko. Era fácil alguém aperceber-se do cheiro a tabaco e ambas se veriam metidas em sarilhos.

 

Meia hora mais tarde, quando outra rapariga entrou para falar com Sharon e viu as pontas de cigarro, foi ter com os monitores e disse-lhes que a japonesa do quarto de Sharon estivera a fumar. Foi só na tarde seguinte que interrogaram Hiroko e ela não quis causar problemas a Sharon. Também interrogaram Sharon e ela não confessou nem lhes disse que não fora Hiroko. Aos olhos de Hiroko, restava-lhe aceitar a culpa, o que lhe parecia a única atitude honrosa, e depois sentou-se no quarto, chorando por ter sido suspensa.

 

Nessa noite, Peter telefonou-lhe e ficou horrorizado com o que ela lhe contou.

 

Diz-lhes a verdade, céus! Não fiques com as culpas. Por que hás-de estar suspensa?

 

Mas elas iriam odiar-me ainda mais, Peter-san sussurrou ao telefone, sentindo-se como se tivesse desiludido alguém e profundamente infeliz. Ele ficara furioso com a atitude da outra rapariga ao denunciá-la e ainda mais com Sharon por deixar que Hiroko fosse acusada e não confessar.

 

Mas que bando de meninas mimadas são essas? Acertara em cheio e sentiu mais pena do que nunca por ela não estar em Stanford.

 

Prontificou-se a visitá-la na semana seguinte se ela não regressasse a Paio Alto, mas Hiroko discordou. Se ele aparecesse decerto causaria um burburinho na cidade universitária e era a última coisa que desejava. Em vez disso, ele prometeu telefonar-lhe.

 

Anne Spencer voltou no final da semana a tempo dos exames, e nada tinha a dizer a Sharon, ou Hiroko.

 

No dia seguinte, Sharon ficou fora depois da hora de recolher, voltou embriagada e discutiu com os monitores, acabando por ser suspensa, também, apesar da tentativa de Hiroko para a salvar do incidente com o cigarro, na segunda-feira anterior. Por esse motivo, não a preparou para o exame de História e ela queixou-se amargamente a Hiroko por ter reprovado.

 

Contudo, Anne não prestou atenção a qualquer delas. Pouco lhe interessavam os problemas de ambas e as suas conversas. Ouvira falar do incidente com os cigarros e recusara envolver-se. Se queriam fumar e ser suspensas, era lá com elas. Sabia que Sharon fumava, mas ficou surpreendida ao constar-lhe que Hiroko se lhe juntara.

 

Manteve-se como sempre afastada, estudava com as amigas, obtinha notas altas e fazia os trabalhos. Tinha já muitas amigas e nos últimos tempos ficava a dormir nos quartos delas. Fazia o possível por não pernoitar no mesmo quarto de Sharon e Hiroko. Os monitores que a encontravam nos outros dormitórios sabiam por que razão ela ali ficava, e fechavam sempre os olhos.

 

Foi uma longa semana para Hiroko depois da excitação das férias, e na sexta-feira à noite lamentou a sua decisão de não ir a Paio Alto. Voltara a falar com Peter e pensara constantemente em tudo o que ele lhe dissera no Dia de Acção de Graças. Ainda não conseguia acreditar em todas as suas palavras, nem que o beijara. Pensara nele durante todo o fim-de-semana na universidade, quando escreveu uma carta aos pais. Considerou a possibilidade de lhe fazer referência, mas depois decidiu que era ridículo. Só iria preocupá-los e nada havia a dizer de momento. De qualquer maneira seria tão difícil explicar-lhes que nem ela própria ainda compreendia. A milhares de quilómetros de distância ainda ficariam mais confusos e, portanto, só lhes falou do Dia de Acção de Graças passado com os Tanaka.

 

No sábado, deitou-se cedo. Anne não estava como era seu hábito e Sharon encontrava-se noutro quarto a fumar e a beber gim às escondidas com uma rapariga que Hiroko conhecia, mas de quem não gostava. Hiroko sentiu-se aliviada por não o fazerem ali no quarto. Ainda continuava de castigo devido à última vez em que Sharon tinha fumado.

 

No domingo de manhã, Hiroko foi jogar ténis com três jovens que se haviam inscrito. Mostraram-se delicadas e simpáticas, embora uma delas desse a sensação de hesitar quando chegou. Todavia, decorridos uns minutos, não pareceu ter qualquer objecção a jogar com Hiroko.

 

Era o que acontecia frequentemente. De começo, as pessoas reagiam à sua presença, pouco à vontade por ela ser estrangeira e japonesa, mas, em geral, descontraíam-se um pouco depois de a conhecerem. Algumas delas eram pura e simplesmente incapazes de superar os preconceitos, sobretudo as jovens de São Francisco. Eram conhecidas por antipatizar com os japoneses, considerando que estes provinham de lugares não civilizados. Na verdade, a família de Hiroko era mais culta e muito mais antiga do que a maioria da das outras estudantes. A árvore genealógica do pai remontava ao século catorze e a da mãe ainda mais atrás, mas não tinham uma fortuna nem pertenciam à aristocracia, como os Spencer.

 

Hiroko e a parceira ganharam o jogo de pares e as jovens tomaram limonada na cantina e conversaram amistosamente sobre o jogo. Disseram a Hiroko que gostariam de voltar a jogar com ela e foi a primeira vez em três meses que sentiu ter feito amizade com alguém e que talvez a sorte não a houvesse favorecido com as companheiras de dormitório.

 

Pouco passava das onze quando regressou ao quarto para mudar de roupa e, ao sair do duche, meia hora mais tarde, ouviu alguém gritar. Julgou que se dera qualquer acidente e, sem hesitar, pegou no roupão, atou-o na cintura, sem mesmo se secar e apressou-se a sair para o corredor. Havia pequenos grupos de jovens reunidos ao longo do corredor, várias pessoas tinham o rádio ligado e a maioria das raparigas chorava, sobretudo as que ocupavam os quartos três portas à frente e eram do Havai.

 

O que sucedeu? inquiriu Hiroko, ansiosa. Não fazia ideia do que acontecera, mas todos pareciam assustados e frenéticos, e alguém, num outro andar, descia as escadas a gritar. Hiroko esforçou-se por compreender o que diziam. Ninguém parecia ter ouvido a sua pergunta.

 

Fomos bombardeados! respondeu uma voz. Fomos bombardeados!

 

Alguém mais gritou, e Hiroko olhou inconscientemente através da janela, mas não viu nada. Outra rapariga virou-se para ela desfeita em lágrimas e só conseguiu dizer:

 

Bombardearam Pearl Harbor. Não fazia ideia de onde era, nem tão-pouco a maioria das raparigas, mas a que era do Havai exibia uma palidez de morte. Ela sabia exactamente onde ficava.

 

É no Havai declarou, em resposta à pergunta de alguém.

 

Em seguida, alguém deu mais explicações:

 

Os Japoneses acabaram de bombardear Pearl Harbor. Hiroko sentiu uma pedra no coração, quando outra pessoa acrescentou:

 

É impossível.

 

E se chegam aqui? gritou alguém e, de súbito, todos se puseram a chorar, a gritar e a correr de um lado para o outro. Gerou-se um verdadeiro pandemónio nos corredores da universidade e Hiroko esforçava-se por compreender o que acontecera.

 

Ninguém sabia ainda muito bem. Parecia, porém, que os Japoneses tinham bombardeado duas bases militares dos Estados Unidos, nas ilhas do Havai. Segundo parecia, todos os aviões americanos no terreno haviam sido destruídos, uma quantidade por revelar de barcos afundada, enquanto outros ardiam. Inúmeros homens tinham sido mortos e feridos e, embora ainda se desconhecessem os pormenores, tratava-se, sem dúvida, de um ataque muito grave em solo americano, e era inevitável que dentro de umas horas seria declarada a guerra, se não o fora já. Os piores receios daquelas jovens, assim como os de todos os habitantes da costa oeste, eram que esses mesmos aviões se dirigissem à Califórnia.

 

As jovens continuavam a gritar pelos corredores e, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces, Hiroko esquivou-se devagar para o seu quarto, interrogando-se sobre o que tudo aquilo poderia, de facto, significar. O que acontecera realmente? Estavam mesmo em guerra? Os pais estariam em segurança? Teria de voltar para casa? Seria presa pela polícia? Seria mandada para a prisão e depois deportada? Yuji fora obrigado a ir para a guerra?

 

Tudo ultrapassava a sua imaginação, e recordou-se subitamente do que ouvira durante meses a fio sobre conferências com o Japão, quebra de tratados na Europa, e Hitler, Mussolini e Estaline. O mundo estava em guerra e ela fazia parte dela agora. Mais horrível era o facto de ser a inimiga num país estrangeiro, e estar a seis mil quilómetros dos pais. Passou mais uma hora, antes de se aventurar a pisar o corredor, depois de se ter vestido. Muitas das raparigas haviam voltado aos quartos, mas algumas continuavam ali a falar e a chorar, ouvindo os rádios das companheiras, da ombreira das portas. Quase tinha medo de passar no meio delas e, de repente, avistou uma das jovens com quem tinha jogado ténis. Também ela era do Havai e estava a chorar. Há duas horas fora uma das novas amigas de Hiroko e agora, devido à guerra, eram inimigas e ela virou-se para Hiroko com uma expressão de ódio.

 

Tu! Como é que podes atrever-te a olhar para nós! Os meus pais podem estar mortos... e és tu a culpada!

 

Era uma acusação totalmente ilógica, mas as emoções mostravam-se descontroladas nesse dia, e a outra jovem do Havai saiu para o corredor aos berros com ela e Hiroko regressou, horrorizada, ao quarto.

 

Manteve-se lá durante toda a tarde a ouvir rádio e as terríveis notícias que continuavam a surgir, mas, pelo menos, não houvera ataques aéreos à Califórnia. Gerara-se pânico nas ruas e no ar e todos eram avisados para estarem atentos aos aviões do inimigo. Marinheiros e soldados haviam sido recrutados e os civis tinham-se apresentado a tarde inteira na polícia e nos bombeiros, oferecendo-se como voluntários para trabalhos de defesa civil. Tratava-se da primeira vez em que os Estados Unidos eram atacados, e ninguém alguma vez presenciara uma tal catástrofe.

 

Tak e Reiko tentaram falar-lhe durante a tarde inteira, mas ninguém lhes passou a chamada. Respondiam que só tinham as linhas abertas para telefonemas de emergência e Tak não se atreveu a insistir. Receava que ela estivesse a viver um péssimo momento, o que, de facto, acontecia e preocupara-se todo o dia com ela, mas não queria ir até lá de carro e abandonar a mulher e os filhos.

 

Todos eles estavam perturbados e tinham os Estados Unidos como única preocupação. Nada os ligava ao Japão, exceptuando o pai de Hiroko. Foi em vão que Takeo tentou igualmente contactá-lo e decidiu-se, finalmente, por um telegrama, pedindo-lhe que confirmasse que tudo estava bem com eles e o que queria que fizesse com a filha.

 

Se os Estados Unidos declarassem guerra ao Japão, o que agora parecia inevitável, supunha que Masao a desejaria em segurança ali, mas, por outro lado, Takeo não sabia se as autoridades a deixariam ficar. Era um dilema a resolver quando estivessem de posse de mais informação.

 

Passava das seis horas quando Tak conseguiu, por fim, falar com Hiroko e, nessa altura, ela estava histérica. Passara o dia inteiro no quarto, com medo de sair e de ser atacada pelo que o seu país fizera a Pearl Harbor. E ninguém entrara no quarto. Preocupara-se com a falta de notícias de casa. Não tinha contacto com ninguém, enquanto se conservava ali sentada a chorar e, por fim, um dos monitores viera dizer-lhe que o tio estava ao telefone e acompanhara-a até lá abaixo. Hiroko só conseguia soluçar e expressava-se em japonês, dizendo-lhe como tudo aquilo era horrível, quanto se preocupava com todos eles, os pais, Reiko, Tak e as crianças. Nem sequer se lembrava de falar inglês.

 

Era uma jovem de dezoito anos, sozinha num país estrangeiro, entre inimigos e desconhecidos. E recordou-se, em silêncio, que tinha Peter. Ou talvez agora ele a odiasse. Talvez ninguém voltasse a falar-lhe. Esperara todo o dia que a polícia viesse buscá-la e ficou surpreendida quando tal não acontecera. Também esperara que alguém da universidade a mandasse embora, mas talvez tudo isso se passasse na segunda-feira próxima, comunicou ela ao primo.

 

Calma disse-lhe Takeo ao telefone. Nada disso vai acontecer. E tu não tens culpa. Vejamos o que o Presidente diz amanhã acrescentou, embora também estivesse certo da iminência da guerra. E quero contactar com o teu pai. Não estou nada certo de que te mandem embora. És uma estudante, foste apanhada aqui e ou te arranjam passagem de volta ao Japão, ou te deixam ficar. Ninguém vai meter-te na prisão, Hiroko, por amor de Deus. Não és uma espia estrangeira. Talvez o teu pai queira que fiques aqui, se possível... pode ser mais seguro. Falava com toda a sensatez, mas ele não era uma jovem de dezoito anos nem ficara só no quarto o dia inteiro, como ela, rodeada por companheiras hostis.

 

E o papá, a mamã e o Yuji? Se houver uma guerra com o Japão, também eles não estarão seguros.

 

Farão o melhor que conseguirem. Mas tu ficarás melhor connosco, aqui. Tentarei descobrir tudo o que se passa e, amanhã, telefono-te. Acalma-te e não entres em pânico.

 

Tranquilizara-a falar com ele e, mais tarde, nessa mesma noite, recebeu um telefonema de Peter. Ele queria saber se ela estava bem e se ficaria na universidade ou regressaria a Paio Alto. Passara uma tarde de loucos a tentar telefonar sem sucesso. Não quisera contactar os primos para saber se lhe haviam falado, pois não queria admitir até que ponto estava envolvido com ela, embora eles decerto o suspeitassem.

 

Estás bem? inquiriu, nervoso.

 

Por tudo o que ela lhe dissera, suspeitava que a tratassem de uma forma horrível e temia que algo lhe acontecesse, caso permanecesse ali.

 

Estou óptima, Peter-san garantiu, corajosa.

 

Voltas para casa? Para os Tanaka, quero dizer.

 

Não sei. O tio Tak quer que fique aqui. Amanhã vai falar com umas pessoas e saber qual a minha situação, se tenho de me ir embora... e quer tentar contactar com o meu pai.

 

É bom que se apresse redarguiu Peter num tom tenso. Suspeito que, a partir de amanhã, não possamos contactá-los durante muito tempo. Não tinha a certeza do que tal significava para ela. E a universidade? Consegues ficar aí, se for seguro?

 

Estou bem. O tio Tak acha que devo ficar e ver o que acontece. Peter não tinha a mesma opinião, mas longe dele preocupá-la. Depois da fria recepção que tivera, duvidava que a situação melhorasse e achava que ela devia regressar a Paio Alto. O que se passa aí, Peter-san? inquiriu, sentindo-se afastada de tudo o que acontecia em Berkeley.

 

As pessoas andam doidas. Todos entraram em pânico.

 

Acham que os Japoneses vão bombardear a costa oeste e talvez seja o caso, mas ainda não o fizeram, o que já é alguma coisa. Fora um longo dia e ninguém fazia ideia do que se seguiria.

 

O que nenhum deles sabia era que o FBI começara nessa mesma noite a prender pessoas que suspeitavam ser espiões e pretendiam interrogar. Muitas delas eram pescadores comerciais com rádios de ondas curtas nos barcos, ou gente que andavam a vigiar há semanas ou desconfiavam pertencerem a agências inimigas.

 

De qualquer maneira, voltarei a Palo Alto no final da semana garantiu-lhe. Na sexta-feira seguinte, começavam as férias do Natal.

 

Falo-te antes disso. E, Hiroko... Hesitou, sem querer assustá-la, mas desejando vincar que tomaria conta dela, em qualquer circunstância. Se acontecer algo, tenta manter-te calma e ficar aí. Irei buscar-te. Parecia tão decidido e firme. Foi a primeira vez que sorriu nesse dia, enquanto o escutava.

 

Obrigada, Peter-san.

 

Regressou ao quarto num passo vagaroso e nessa noite dormiu só. Nenhuma das companheiras quis partilhar o quarto com ela. E ninguém lhe disse uma palavra, quando se dirigiu ao quarto e fechou a porta. Sentou-se na cama, pensando em Peter. Na manhã seguinte, todas tinham a resposta.

 

Às nove e meia, hora de São Francisco, o presidente Roosevelt dirigiu-se ao Congresso. Demorou seis minutos a pedir-lhe que declarasse guerra ao Japão. Os Japoneses não só tinham optado por ignorar ”conversas com o seu governo e o imperador sobre a manutenção da paz no Pacífico, mas haviam deliberadamente planeado e bombardeado não só as nossas instalações militares nas ilhas do Havai, como ainda a península Malaia, as Filipinas, a ilha de Wake, Guam, Midway e Hong Kong”.

 

O ataque no Pacífico fora devastador e prolongado. Na realidade, a guerra tinha sido declarada no dia anterior e Roosevelt apenas queria que o Congresso a confirmasse. Votaram unanimemente com excepção de um voto e os documentos foram assinados à uma da tarde. Como retaliação, no fim do dia, os Japoneses haviam declarado guerra aos Estados Unidos e à Inglaterra.

 

Todavia, antes de as comunicações serem oficializadas, um dos últimos actos do cônsul de São Francisco foi telefonar a Tak com uma mensagem de Masao. Dissera que ele queria que Hiroko ficasse em São Francisco, caso os Estados Unidos e o Japão declarassem guerra entre si. Ficava mais descansado se a soubesse lá e incitava Tak a que o fizesse. Enviou também a mensagem de que Yuji ingressara na força aérea e que todos mandavam saudades aos primos.

 

Os Estados Unidos viveram não só um dia de infâmia, como Roosevelt afirmara, mas também de caos. Os bancos, os negócios, jornais e estações de rádio de origem japonesa foram assaltados. Barcos de pesca foram confiscados e pequenos negócios fechados. Alguns alemães e italianos foram interrogados e detidos, mas sobretudo japoneses.

 

Encerraram-se as fronteiras e nenhum japonês nacionalizado podia comprar bilhete de avião para qualquer sítio. Portanto, Hiroko teria de qualquer maneira ficado detida. A costa oeste encontrava-se em estado de alerta, e às seis e quarenta dessa noite verificou-se um ataque aéreo.

 

Surgiu um aviso não confirmado da aproximação de aviões inimigos. Gerou-se a dispersão, mulheres gritavam e as pessoas, metidas nas casas, caves e abrigos antiaéreos, esperaram em vão por um ataque que não se deu, até as sirenes se calarem. Todas as estações de rádio haviam saído do ar e, apesar das precauções tomadas na cidade, todos se aperceberam de que a ilha prisional de Alcatraz se mantivera iluminada.

 

Nessa noite, uma segunda sirene de ataque aéreo disparou e as estações de rádio voltaram a silenciar-se. E, mais uma vez, depois de um terror generalizado, nada aconteceu.

 

A terceira ouviu-se à uma e meia da manhã; as estações de rádio calaram-se e uma vez mais todos buscaram segurança, agora de camisa de noite e roupão, com os filhos nos braços, e animais de estimação atrás.

 

Às duas da manhã foi ordenado mais um blackout e às três registou-se o barulho dos motores de dois esquadrões de aviões inimigos. Não voltaram a ser vistos nem ouvidos e, no dia seguinte, o general-de-divisão John De Witt insistiu que provinham de um porta-aviões, mas não se descobriu qualquer sinal do mesmo. O porta-aviões nunca chegou a ser visto, só os aviões fantasmas foram ouvidos mas nunca detectados e, no dia seguinte, os cabeçalhos dos jornais referiam-se a ameaças de ataques do inimigo e vestígios imaginários. A nove de Dezembro, toda a cidade estava exausta.

 

Contudo, o mesmo circo voltou a ser montado nessa noite, desta vez não só em São Francisco, mas também em Nova Iorque e Boston. As pessoas sentiam-se aterrorizadas e a ameaça dos Japoneses era esmagadora. Ninguém conseguia enfrentar o pânico constante de ataques aéreos e os títulos dos jornais. Sobretudo na costa oeste, o general De Witt espalhava um frémito de terror.

 

Dois dias depois, na quinta-feira, a Alemanha declarou guerra aos Estados Unidos, quando Guam caiu em poder dos Japoneses. E, em Berkeley, o Ministério das Finanças americano ordenou que todos os negócios com proprietários japoneses, que haviam sido confiscados na segunda-feira anterior, fossem encerrados. Os negócios dirigidos por japoneses nos Estados Unidos terminaram.

 

Foi igualmente uma época difícil para Hiroko. Quase nunca saía do quarto desde que tudo começara e as companheiras evitavam-na ainda mais.

 

A onze de Dezembro, teve uma importante reunião com o deão dos estudantes. Hiroko tinha a certeza de que, ante tudo o que ouvira nos noticiários, lhe pediriam que abandonasse a universidade e ficou surpreendida quando não o fizeram. O deão, uma mulher, mostrou-se muito compreensiva, disse-lhe que sabia que Hiroko não fazia parte de nada daquilo, mas que, à semelhança dos americanos que haviam sido bombardeados, ela era uma vítima inocente. Sabia que aquela era uma época de fortes emoções para todas, que ouvira rumores da indelicadeza de que Hiroko fora alvo, mas esta não lhe contou os pecadilhos de Sharon Williams, nem a extraordinária rudeza de Anne Spencer.

 

Sugeriu que Hiroko partisse em férias de Natal como as outras estudantes no dia seguinte e regressasse a St. Andrew’s depois do Natal.

 

Tenho a certeza de que nessa altura tudo estará um pouco mais calmo e poderás voltar às tuas tarefas escolares.

 

Durante toda a semana, Hiroko apenas saíra do quarto para ir fazer os exames. Levara mesmo a comida da sala de jantar para comer sozinha, a fim de não ter de enfrentar as outras estudantes. Contudo, nunca deixara de estudar. Era uma aluna aplicada.

 

É uma ocasião difícil para todos sobretudo para as raparigas do Havai prosseguiu a deã. Eram apenas duas e haviam sabido que nenhum membro das suas famílias fora atingido, mas uma delas dava a sensação de se ir atirar a Hiroko, sempre que a via. Soubeste alguma coisa da tua família? acrescentou discretamente.

 

Apenas que querem que eu fique aqui respondeu Hiroko num fio de voz. O meu pai não quer que eu volte ao Japão por agora.

 

Os meses e as semanas que havia contado revelavam-se inúteis, e só na noite anterior se apercebera de que podiam passar anos antes de lhe ser permitido regressar à pátria. Esse pensamento encheu-lhe os olhos de lágrimas e fitou a deã agradecida por ter a bondade de a deixar voltar depois do Natal. Ela era, afinal, uma estrangeira inimiga, e podiam ter-lhe pedido que se retirasse, mas não o haviam feito. Durante a semana inteira, lera os títulos dos jornais sobre os ”traiçoeiros japoneses” e sentira-se muito triste.

 

Será um Natal muito triste para nós prosseguiu a deã, num tom solene. Todas tinham entes amados e parentes que se alistariam. Poucas seriam poupadas aos acontecimentos. Mas podes começar de novo no próximo ano, Hiroko. Ficaremos felizes em receber-te.

 

Levantou-se e apertou a mão a Hiroko. A jovem saiu do gabinete, regressou ao quarto e verificou que ainda tremia. Podia continuar a estudar. Não fora expulsa por ser japonesa e ficou surpreendida ao dar-se conta do enorme alívio que sentia. Ao contrário das companheiras, a direcção não a tratava como se ela tivesse atacado pessoalmente Pearl Harbor.

 

Nessa noite, fez as malas para regressar a Palo Alto no dia seguinte. E, pela primeira vez em quatro dias, Sharon e Anne também regressaram ao quarto para fazer o mesmo. E, também pela primeira vez desde Pearl Harbor, dormiram lá.

 

Contudo, duas vezes nessa mesma noite, todas tiveram de descer as escadas por causa dos ataques aéreos. Agora, todas as noites, havia relatos de aviões inimigos que se dirigiam à costa, ou de submarinos, prontos a torpedear navios ancorados. Mas os aviões e os porta-aviões nunca se materializavam, nem tão-pouco os submarinos ou os torpedeiros. A única coisa que se materializava de uma forma quase palpável era o pânico.

 

Desta vez, foi o próprio Takeo que apareceu para a levar para casa. Veio acompanhado da tia Rei, e Hiroko ficou muito aliviada ao vê-los. Passara uma semana horrível e nenhuma das colegas se despedira ou desejara um feliz Natal. Mal se meteu no carro com os parentes, Hiroko pôs-se a chorar. Era um alívio tão grande vê-los.

 

Foi horrível disse em japonês. Agora, sempre que lhes falava, esquecia-se de o fazer em inglês. Por norma não se importavam, mas desta vez, ao afastarem-se, Reiko disse-lhe num tom brusco que tinha de falar em inglês.

 

Porquê? inquiriu, surpreendida. Sabia que ela a compreendia e o inglês representava um esforço tão grande, sobretudo com tudo o que acontecera.

 

Não interessa que te seja difícil, Hiroko. Estamos em guerra com o Japão explodiu. Podes ser presa como agente do inimigo.

 

Acho um tanto exagerado retorquiu o tio Tak a sorrir, achando que a mulher fora um pouco longe de mais daquela vez, mas concordou que seria sem dúvida mais diplomático falar inglês. Penso, contudo, que agora deves fazer um esforço. As pessoas andam muito nervosas. Havia cabeçalhos incríveis sobre ameaças japonesas, aviões japoneses e bombas japonesas. O comandante da Força de Defesa Ocidental, o general-de-divisão De Witt, fornecia uma verdadeira onda de terror à imprensa.

 

No sábado a seguir, a Itália, a Alemanha e o Japão, bem como a Roménia e a Bulgária haviam declarado guerra aos Aliados. Hiroko sentia-se como se tivesse sido pessoalmente bombardeada durante toda a semana e estava exausta. Dormiu quase todo o sábado e só se levantou a tempo de ajudar Reiko a preparar o jantar. Tami estava muito preocupada com ela. Contudo, a mãe aconselhou-a a deixá-la sossegada. Só esperava que não houvesse um ataque aéreo.

 

Foi só no domingo que Hiroko viu Peter. Apareceu para fazer uma visita oficial a Tak, mas sabia que ela estava lá e sentia-se ansioso por vê-la. A jovem desceu vagarosamente as escadas com um quimono cinzento-escuro e um ar sério, e parecia mais triste com aquela cor do que alguma vez a vira. Fez-lhe uma vénia, como era hábito, e desta vez o primo estendeu a mão e tocou-lhe no ombro.

 

Não voltes a fazer isso, Hiroko. Agora, é importante que não chames a atenção, nem mesmo aqui. É melhor que deixes de te curvar. A jovem pareceu chocada com as palavras. Já não podia ser diferente. Tudo estava a mudar. Depois, deixou-os sós e foi procurar uns papéis, esboçando um pequeno sorriso cúmplice a Peter.

 

Estás bem? inquiriu Peter com cautela. Receara perguntar por ela frequentemente a Tak, mas andara preocupadíssimo durante toda a semana e sentia-se aliviado ao vê-la. A jovem mostrava-se cansada e pálida e perdera visivelmente peso. Ainda parecia mais pequena.

 

Estou óptima, Peter-san respondeu e ia a fazer mais uma vénia quando se deteve, lembrando-se das palavras do primo.

 

O Tak tem razão afirmou Peter ternamente. Um dos meus amigos sansei contou-me que a avó queimou a sua pequena bandeira japonesa na segunda-feira à noite, com medo de arranjar sarilhos.

 

Que estupidez! comentou Hiroko, soando aos seus próprios ouvidos como se fosse o pai.

 

Talvez não. As pessoas cometem loucuras em tempo de guerra. Vais voltar? quis saber, preocupado. A St. Andrew’s, quero dizer. Já sabia através de Tak que o pai queria que ela ficasse na Califórnia, mesmo que pudesse ter voltado ao Japão, o que duvidava. O que te disseram?

 

Que podia regressar à universidade e que lamentavam muito que as pessoas me tivessem tratado rudemente.

 

Peter ficou surpreendido perante o facto de ela lhes ter contado, mas não fora esse o caso. Haviam sido outras a fazê-lo e assim lho explicou, enquanto ele acenava com a cabeça.

 

O que te leva a pensar que não voltarão a fazê-lo?

 

Talvez o façam. Mas não posso viver com chizoku.

 

Preciso ter bushido, regressar e enfrentá-las. Sorriu e olhou-o. Emanava dela uma força extraordinária. Sabia que tinha de ser forte e não deixar mal a família. Mostrar-se-ia digna e orgulhosa. Não viveria com a vergonha, chizoku. E o bushido de que falava, já ele ouvira antes. Era a coragem do samurai de entrar na batalha. Voltarei, Peter-san. Não estou em guerra com eles. Não estou em guerra com ninguém. Parecia resplandecente e calma e Peter sentiu-se tão atraído por ela como antes, como se um íman no mais íntimo de si o puxasse naquela direcção.

 

Fico contente declarou. Também não estou em guerra com ninguém.

 

Pelo menos naquele momento, era essa a realidade. Já falara com os quadros de recrutamento. A não ser que as coisas se alterassem, terminaria o ano escolar e depois ingressaria no exército. Stanford fizera um pedido especial a seu respeito, a fim de não se verem obrigados a encerrar o departamento.

 

É uma vergonha que não te deixem ficar mais tempo comentou tristemente. Será difícil para o tio Tak quando partires, para todos nós prosseguiu, acariciando-o com o olhar, enquanto ele lhe tocava nos dedos. Será perigoso para ti, Peter-san. Depois, contou-lhe que Yuji ingressara na força aérea. Era uma época estranha e apercebeu-se de que haveria pessoas que amava, nos dois lados da guerra. Tratava-se de uma posição bem triste.

 

Conversaram mais um pouco, os outros acabaram por se lhes juntar e Peter ficou para jantar. Depois, foram dar um pequeno passeio e levaram a cadela. A alegre Lassie seguiu-os pela rua, junto às casas familiares dos vizinhos dos Tanaka.

 

Contudo, até mesmo ali, segundo Reiko, tinham-se verificado mudanças subtis. Dois dos vizinhos haviam-se mostrado repentinamente gélidos. Os filhos tinham-se alistado no exército, tal como os irmãos mais velhos de todos os amigos de Ken. E um dos doentes de que se ocupava no hospital, nessa semana, pedira-lhe que saísse do quarto. Afirmou que não queria ser tratado por uma malvada japonesa, que ela podia matá-lo. Era muito velho e estava bastante doente, pelo que atribuíra tudo a esses factores, só que outra das enfermeiras nisei passara pela mesma experiência com uma mulher jovem do Havai.

 

Não vai ser fácil para eles disse Peter, referindo-se aos primos dela. É natural que as pessoas reajam. Acho que acabarão por se acalmar. É impossível que a situação se mantenha, mas também é natural que as pessoas estejam perturbadas. Fomos atacados e, perante um rosto japonês, recordam-se dos acontecimentos.

 

Mas os meus primos são americanos! contrapôs ela.

 

Claro, só que algumas pessoas desconhecem que assim é. E acho que outras estão demasiado perturbadas para pensar nisso. Os teus primos são tão americanos quanto eu.

 

Sou a única inimiga aqui declarou Hiroko tristemente, fitando-o.

 

Sem uma palavra, Peter atraiu-a a si e beijou-a.

 

Não és minha inimiga, Hiroko-san, nunca o serás vincou.

 

A jovem atraía-o como nenhuma mulher antes dela. Nessa semana, rompera finalmente com Carole, só que a última discussão com ela não tomara o rumo esperado. Convidara-a para jantar, tencionando explicar-lhe que o seu afecto tomara um novo rumo. Mas antes mesmo de lho comunicar, ela dissera achar que ele devia pedir uma transferência de Stanford.

 

Para onde? Biologia? perguntara, divertido. Porquê? Sentiu-se completamente apanhado de surpresa. Contudo, ela fora ao ponto de afirmar que, na sua opinião, a atitude americana deveria ser a de recusar trabalhar com Takeo, ou melhor ainda, fazer com que ele fosse despedido. Estás doida? perguntara de olhos arregalados e incapaz de acreditar que ela pronunciara aquelas palavras. Takeo Tanaka constituía um orgulho para a universidade, um homem brilhante.

 

Talvez, mas é o inimigo respondera ela sem papas na língua. Devia ser deportado.

 

Para onde? Há vinte anos que vive aqui, com os diabos! Podia ter-se nacionalizado, se quisesse.

 

Peter ficara enraivecido com os seus comentários. E ela acabou por dizer que Hiroko devia ser presa, talvez mesmo fuzilada, como retaliação pelos homens e mulheres que tinham morrido em Pearl Harbor. Era a afirmação mais louca que alguma vez ouvira. Mas quando ela mencionou Hiroko, não aguentou mais.

 

Como podes dizer tal coisa? exclamou, estupefacto. Como podes reagir a toda essa treta que publicaram nos jornais? Não acredito um minuto que seja que houvesse porta-aviões ao largo da costa todas as noites, na última semana. Se assim fosse, não hesitariam em bombardear-nos. Acho que as pessoas entraram em histeria e esse maldito general De Witt com elas. Mas ultrapassa-me o facto de ouvir essas afirmações da tua boca, Carole.

 

Todavia, ela mostrara-se inflexível e não encontrara forma de a convencer de que a sua opinião sobre os japoneses nascidos nos Estados Unidos era uma loucura. Sabia que não valia a pena discutir, mas fê-lo por lealdade frente aos amigos e vincou que, devido às opiniões dela e por outros motivos morosos de debater, não queria continuar a vê-la.

 

Carole quase pareceu aliviada e acentuou que, tanto quanto lhe dizia respeito, todos os que simpatizavam com os Japoneses eram obviamente inimigos. Peter não acreditava no que ouvia, riu-se mesmo ao regressar ao carro e contou uma versão suavizada a Tak na manhã seguinte. Contudo, Tak não se mostrou tão divertido ou furioso como Peter ficara. Encarava a perspectiva de Carole como a ponta do icebergue.

 

Acho que será essa a opinião de muitas pessoas. Haverá uma reacção inevitável ao pânico.

 

Mas é ridículo. Já não és japonês, e o facto de trabalhar para ti não faz de mim um espião. É divertido, Tak, tens de concordar.

 

Não acho nada divertido. Acho que todos precisamos de ter muito cuidado.

 

Transmitira essa mesma opinião a Reiko e todos haviam voltado a discutir o assunto, durante o jantar no domingo. Peter achava que Takeo se preocupava em demasia. Aconselhar Hiroko a deixar de fazer vénias era provavelmente sensato. Não valia a pena chamar a atenção para o facto de ela ser estrangeira. Porém, quanto aos nisei, sansei e todos os que tinham nascido nos Estados Unidos, não havia motivo de preocupação. Aquela era a sua pátria.

 

Depois do jantar, Peter e Hiroko levaram Lassie a dar um passeio e prosseguiram a discussão.

 

O tio Tak anda muito nervoso dirigiu-se ela cautelosamente a Peter, quando regressavam a casa com Lassie. Suponho que está preocupado com a guerra. Estamos todos. Todos temos de nos esforçar muito para darmos um bom exemplo.

 

Alguém mais fizera a mesma afirmação e, ao ouvi-la falar assim, Peter deu-se conta, surpreendido, de que todos os japoneses nascidos nos Estados Unidos pareciam sentir a mesma necessidade de provar que eram boas pessoas e não tinham qualquer culpa.

 

Contudo, todos os japoneses estavam a ser considerados, aos olhos da maior parte das pessoas, como estrangeiros inimigos, onde quer que tivessem nascido. Tratava-se de uma grande injustiça. E podia até ser perigoso para Hiroko, que era, na verdade, uma cidadã japonesa. Sentia-se preocupado com o regresso dela à universidade. À medida que as emoções cresciam e os irmãos e namorados das colegas começassem a ir para a guerra, era provável que se enfurecessem cada vez mais com Hiroko.

 

Não quero que voltes, se correres perigo declarou num tom firme, antes de ela se ir embora.

 

Mostrava-se muito protector, e a jovem ficou surpreendida, ao verificar, pela expressão do rosto, que ele falava a sério.

 

São apenas raparigas retorquiu Hiroko, a sorrir. Nada mais podiam fazer-lhe, excepto o que tinham feito antes, ou seja, ofendê-la.

 

Pensa nisso, Hiroko. Não és obrigada a voltar.

 

Preocupas-te em demasia acrescentou, com um novo sorriso. Tal como o tio Tak, sou forte. Mas era igualmente jovem e muito delicada. E jamais desonraria o pai, desistindo de estudar ou abandonando a universidade.

 

Eu sei, bushido espicaçou-a, enquanto Lassie ladrava a um cão qualquer. Talvez tenha bushido a mais para seu próprio bem, Miss Takashimaya.

 

Hiroko riu-se. Era tão fácil estar com ele. Sentia-se à vontade e não existiam diferenças de nações. Os países de ambos encontravam-se em guerra, mas tal não os afectava a nível pessoal. Eram apenas duas pessoas. Hiroko comentou que era uma pena que o mundo não se parecesse mais com eles.

 

Peter concordou e percorreram vagarosamente o caminho de regresso à casa dos Tanaka. Foi então que avistou uma das vizinhas a espreitar da janela, fitando-os com uma expressão furiosa. Não imaginou qual era o problema, à excepção talvez de que o cão ladrara. Depois, ao fitá-la, percebeu o que todos viam. Uma japonesa com um americano. A situação chegara a esse ponto. Na verdade, há muito que assim fora, mas agora tudo parecia duplamente óbvio. Ao avançarem, interrogou-se sobre se as coisas se manteriam nesse pé, se as pessoas com amigos japoneses seriam ostracizadas ou insultadas. Era difícil de acreditar que a rapariga com quem acabara de romper ecoasse algo mais do que as suas próprias opiniões. Porém, mesmo que as pessoas o marginalizassem pela sua amizade com eles, nada lhe interessava. A sua relação com Takeo era preciosa de mais para que a sacrificasse e correria qualquer risco para estar próximo de Hiroko.

 

Em que pensas, Peter-san? perguntou ela meigamente, ao passarem junto à casa do último vizinho. Estás com um ar muito sério. O inglês dela melhorara, apesar de todos os problemas vividos na universidade.

 

As pessoas andam loucas. É perigoso quando se gera este tipo de pânico. Precisas ter cuidado. Não saias sozinha, certifica-te de que estás sempre com a Reiko, o Tak, o Ken ou comigo respondeu com um enorme sorriso a que ela correspondeu.

 

Proteger-me-ás, Peter-san.

 

Só se fizeres tudo o que te disser redarguiu, sentindo-se novamente um jovem, enquanto caminhavam sob a brisa fresca até ao jardim em frente da casa dos Tanaka.

 

E o que me dirás que faça? quis saber, espicaçando-o, o que ele adorou.

 

É isto o que te direi sussurrou, atraindo-a aos seus braços na ombreira da porta e beijando-a.

 

Ninguém os observava e ali estavam a salvo. E, tal como anteriormente, os dois ficaram sem fôlego e entraram na cozinha com um ar um tanto desalinhado.

 

Contudo, Reiko e Takeo não pareceram encará-los com a mesma compreensão, e, ao olhá-los, Tak limitou-se a comentar que deviam ter muito cuidado. Peter sabia o que ele queria dizer, anuiu com a cabeça e foi-se embora uns minutos depois. Hiroko notou que os primos não lhe disseram nada, mas sentiu-os preocupados quando subiu as escadas para ir dormir com Sally.

 

Agora, já todos estavam a par da sua relação com Peter Por mais discretos que tivessem sido, era óbvio que algo mudara entre eles e tinham-se tornado muito próximos, sobretudo desde que a guerra rebentara. Tak e Reiko não haviam ainda reconhecido a situação, mas sabiam e não desaprovavam Peter, só que temiam por Hiroko.

 

E foi pelo mesmo motivo que no dia seguinte lhe disseram que guardasse os quimonos. Não era a altura de chamar as atenções sobre si própria, nem de recordar aos outros que era uma nisei, Hiroko não discutiu, mas sentiu-se triste por ter de obedecer. Os seus quimonos eram tão bonitos e ficava tão pouco à vontade com as roupas ocidentais. Achava-as horríveis, com muito poucas excepções.

 

Contudo, Sally ficou satisfeitíssima ao vê-la com roupas ocidentais e ofereceu-lhe uns sapatos de cunha no Natal. Nesse ano, passaram um Natal tranquilo. Takeo levou Ken a cortar o seu pinheiro, como sempre fazia, e toda a comunidade japonesa parecia manter-se muito calma. À medida que os dias passavam, as notícias iam piorando. Dois dias antes do Natal, os Japoneses apoderaram-se da ilha de Wake. No dia de Natal, os Japoneses tomaram Hong Kong.

 

Até mesmo para os Tanaka foi um dia muito sossegado e Takeo ergueu uma sobrancelha quando Peter apareceu. Apreciava a sua amizade, mas achava que ele estava a meter-se em sarilhos. Mesmo na universidade, nas duas últimas semanas, Tak tentara manter-se à distância de Peter para bem deste.

 

Não te exponhas por nossa causa proferiu Tak tranquilamente nessa tarde. É inútil. As pessoas acabarão eventualmente por se habituar aos acontecimentos, mas, de momento, os ânimos estão exaltados.

 

No entanto, a atitude de Peter tinha a ver com algo mais do que ele próprio e Tak sabia-o. Aparecia constantemente em casa dos Tanaka para poder estar próximo de Hiroko. E por mais desagradável ou mesmo perigosa que a situação pudesse ser para Peter, Takeo sabia que o amigo era sincero e a amava.

 

Na noite de Natal, depois de os outros se terem ido deitar, Peter enfiou um pequeno anel de prata no dedo de Hiroko. Era apenas um símbolo do que sentiam. Comprara-lhe um bonito xaile de seda, alguns livros antigos de poesia que encontrara em japonês e escrevera-lhe um haicu. Mas também quisera oferecer-lhe o anel como símbolo do que tinham agora e do que esperavam partilhar algum dia. Era muito delicado, com dois corações entrelaçados. Um anel vitoriano; descobrira-o numa loja de antiguidades e, além disso, tão pequeno que achava que ninguém iria reparar.

 

És tão bom para mim, Peter-san disse de um fôlego e ele beijou-lhe os dedos.

 

Deves deixar de me tratar assim. O Tak tem razão. A jovem perdera os quimonos e o privilégio de lhe fazer uma vénia e agora tinha igualmente de perder mais um sinal de respeito por ele, mas não objectou.

 

Por que razão todos têm tanto medo de roupas, de palavras e até mesmo de jovens como nós? Nesse mesmo dia, ela e Tami tinham ido a uma loja e alguém fizera um comentário desagradável. Ambas haviam saído a toda a pressa. Uma das amigas de Reiko contara-lhe que numa loja mais abaixo na rua, onde sempre se haviam mostrado cordiais para com os japoneses, tinham recusado atendê-los.

 

Somos americanos e não japs dissera Tami, com os olhos cheios de lágrimas, enquanto Hiroko se dirigia apressadamente com ela para a saída; Tami pedira uma explicação à prima, mas Hiroko não tinha nenhuma. Ficara chocada com a indelicadeza do homem em magoar uma criança e também muito irritada.

 

É porque estás comigo e eu sou japonesa acabara por lhe responder, mas até mesmo essa parecia uma explicação nada credível. Ela própria pouco mais era do que uma

 

Diminutivo pejorativo para japoneses. (N. do t.)

 

criança e também apenas uma mulher e não um soldado, ou um exército.

 

As pessoas vão manter-se assustadas durante uns tempos, até se esquecerem um pouco e as coisas melhorarem Entretanto, tens de mostrar-te muito sensata e muito cuidadosa avisara-a Peter.

 

E quando as pessoas voltarem a ser sensatas, posso usar os meus quimonos? perguntou, momentaneamente divertida com o absurdo de toda a situação e ele riu.

 

Um dia iremos para o Japão e poderás voltar a usá-los No entanto, o seu sonho de ir visitar o pai dela no próximo Verão e conhecer a família fora desfeito pelas chamas em Pearl Harbor. Hiroko não fazia ideia de quando poderia regressar novamente a casa e esse pensamento deprimia-a. Por vezes, sentia uma enorme saudade e ignorava quando reencontraria a família.

 

Tudo isso a levava a apegar-se mais ainda a Peter e, quando ele a beijou nessa noite, interrogou-se sobre o que aconteceria. Em Junho, ele partiria para a guerra. Mas, até lá, devia agarrar cada precioso instante. Haveria muitos e ia desfiá-los como contas, até ele regressar. Rezou para que ele voltasse quando a beijou de novo, tocou no anel e prometeu a si própria que um dia ele visitaria os seus pais. Entretanto, apenas lhes restava agarrarem-se ao presente e esperarem juntos pelo futuro.

 

A vinte e nove de Dezembro, todos os ”estrangeiros inimigos” nos Estados Unidos receberam ordens de entregar o seu ”contrabando”, que incluía rádios de ondas curtas, máquinas fotográficas de qualquer tipo ou tamanho, binóculos ou armas.

 

A única confusão residia no termo ”estrangeiros inimigos” que pareceria referir-se às pessas de nacionalidade japonesa mas, decorridas umas horas, tornou-se óbvio que abrangia todos os de ascendência japonesa, naturalizados ou estrangeiros.

 

Mas é impossível! exclamou Reiko, ao ouvir a explicação de Takeo. Somos americanos e não estrangeiros! Parecia confusa.

 

Já não ripostou o marido com uma expressão sombria.

 

Até então, o facto de ser um estrangeiro residente nunca o incomodara. Nem sequer lhe causara problemas em Stanford.

 

Contudo e subitamente tudo mudara e, tal como Hiroko, também ele era um estrangeiro inimigo. Mais chocante ainda, também a sua mulher e filhos o eram, todos eles nascidos na Califórnia.

 

Reuniram todas as máquinas fotográficas da família e ele tinha um par de binóculos, que utilizava no lago Tahoe, quando iam andar de barco. Entregaram-nos no posto da polícia local, onde ele encontrou vários vizinhos e o agente que recebeu os objectos parecia extremamente embaraçado.

 

Para Takeo e a família, foi este o primeiro contacto com a realidade. Hiroko começou a ficar preocupada com o facto de a sua presença poder causar-lhes problemas. Decidiu de si para si ficar o máximo de tempo possível em St. Andrew’s. Talvez ainda fosse mais perigoso para eles terem um ”inimigo” em casa. E talvez ainda mais para Peter amar um deles.

 

No entanto, apesar dos seus crescentes medos de represálias na área e pânico de ataques por ar ou mar, Peter pediu a Tak se podia levar Hiroko a sair na véspera de Ano Novo.

 

Seria o seu primeiro encontro oficial e Peter tinha um ar extremamente formal e um pouco nervoso quando formulou o pedido.

 

É mesmo a sério, não é? inquiriu finalmente Tak, parecendo preocupado. Sabia que não podia adiar a pergunta por mais tempo. Há muito que Peter admitira os seus sentimentos, mas nunca os de Hiroko. Chegara a altura.

 

É mesmo, Tak admitiu quase orgulhosamente e sem hesitar. Tentei fugir... mas não consegui... Sempre que a via, ficava a pensar nela dias a fio... A sua imagem perseguia-me. Nunca conheci ninguém como ela.

 

Os olhos dele falavam e os de Takeo também. Este sentia-se profundamente preocupado com ambos. Quanto mais não fosse, viviam a maldição de um tempo errado.

 

Ela é uma jovem muito terna, mas vocês vogam em águas perigosas avisou. Só haviam passado três semanas desde Pearl Harbor, e os sentimentos antijaponeses aumentavam de intensidade. Takeo já ouvira falar de investigações pelo FBI e de interrogatórios feitos a pessoas conhecidas. Não queria que nada disso acontecesse a Peter. Precisam ter muito cuidado. Pelo que via, era óbvio que nada os deteria.

 

Eu sei. Não estava a sugerir que fôssemos dançar ao Fairmont. Um dos assistentes de Psicologia dá uma pequena festa na véspera de Ano Novo; convidou-me e a mais alguns assistentes do nosso departamento. Serei muito circunspecto e reservado.

 

Takeo assentiu com a cabeça ao escutar aquelas palavras. De certa forma, o reconhecimento oficial da relação era um alívio para todos e, embora Takeo começasse por ter tido sérias dúvidas, já não estava assim tão certo agora. Achara pouco sensato que ela se envolvesse com um americano e sentira-se muito consciente das suas responsabilidades frente ao pai dela. Contudo, já não era capaz de levantar objecções. Tantas coisas haviam mudado, tanta dor fora causada. O seu envolvimento era agora mais perigoso do que quando ela chegara; no entanto, tinham direito a alguma esperança nas suas vidas e Takeo sentia até que ponto Peter estava ansioso por tomar conta de Hiroko. Que direito tinha de os separar? Sentia, porém, a responsabilidade de os avisar dos perigos. Takeo estava assustado não só por eles, mas também pela sua mulher e filhos.

 

Limita-te a ter cuidado por ambos repetiu Takeo, fitando Peter intensamente. Se as coisas não correrem bem quando saírem, volta imediatamente para casa. Evitem situações desagradáveis. Só Deus sabia do que as pessoas eram capazes, quando impelidas por um frenesim de medo e emoção nacionalista.

 

Assim farei garantiu-lhe Peter com um olhar triste. A política está de fora para qualquer um de nós, Tak. É ela que interessa. Sou americano. Amo o meu país. Estou disposto a morrer por ele. Não se trata de simpatias, mas só dela, de mim... e das pessoas... Amo-a. Ficarei ao seu lado.

 

Eu sei anuiu Takeo, pensando tristemente no futuro. As suas duas nações estavam em guerra, o que ia afectar todo o mundo e não apenas duas pessoas. Mas tudo pode complicar-se rapidamente.

 

Espero que não. Para bem dela. Deve ser-lhe muito difícil. Está dividida entre duas lealdades. Ama a família, o seu país, mas também gosta disto e sente lealdade para convosco. Deve custar-lhe estar aqui.

 

No entanto e felizmente, apesar do interesse do pai e dos primos pela política, ela encarava essas questões um pouco à distância. À semelhança da maioria das raparigas da sua idade, estava preocupada com os que conhecia e amava e não com as consequências de decisões tomadas pelos governos. Nesse ponto, tinha uma visão limitada, como a da maior parte das pessoas.

 

De qualquer maneira, posso levá-la a sair? concluiu.

 

Takeo respondeu com um aceno de cabeça e repetiu:

 

Apenas peço que tenhas cuidado.

 

Contudo, na véspera de Ano Novo, a política era uma realidade longínqua de todos os espíritos. Hiroko pusera um vestido de tafetá preto que Reiko não usava há anos e colocou por cima um casaquinho de veludo de Sally. Estava muito bonita, com um colar de pérolas, o rosto de olhos enormes e o comprido cabelo preto que lhe chegava à cintura.

 

Sally obrigara-a a aprender a andar com uns sapatos de salto alto da mãe. Segundo Hiroko, eram muito mais difíceis de usar do que o seu calçado habitual.

 

Peter arregalou os olhos de espanto quando veio buscá-la e, desta vez, ela não fez uma vénia. Limitou-se a ficar de pé, tímida e encantadora. Era como se tivesse repentinamente crescido e tudo o que lhe havia sido escondido se revelasse agora diante dele.

 

Estás fantástica elogiou, convicto. Nunca vira ninguém tão belo e sentiu-se tímido, enquanto Takeo lhes servia uma pequena chávena de saque.

 

Nem mais uma gota depois disto declarou, cauteloso, mas ele e Reiko brindaram ao Ano Novo com eles.

 

Hiroko recordou-se de outras ocasiões familiares importantes em Quioto, junto ao pai. E voltou a sentir saudades, Não tivera mais notícias desde que ele lhe comunicara, através do consulado, que queria que ela ficasse na Califórnia.

 

Kampai! brindou Takeo, e Reiko sorriu-lhes. Pareciam tão jovens e cheios de esperança. Lembravam-lhe os primeiros dias com Takeo, quando era uma das suas alunas e se apaixonara por ele. Tornava-se irresistível observá-los. As faces de Hiroko estavam afogueadas do saque.

 

Onde irão esta noite? inquiriu Takeo num tom coloquial.

 

Não longe daqui. O assistente de Psicologia tem uma casa a uns quarteirões da cidade universitária. Vamos jantar lá e dançar um bocado. Sorriu a Hiroko. Ainda o chocava a percepção de que ia sair com uma caloira. Ela era muito menos sofisticada do que a maioria das raparigas com quem saíra nos últimos cinco anos, mas, em muitos aspectos, bastante mais sensata. E vocês os dois? perguntou por sua vez.

 

Reiko pusera o vestido de seda vermelha que Tak lhe comprara para o Natal e que era muito bonito.

 

Vamos jantar num destes restaurantes por aqui explicou Reiko.

 

Sally ia jantar com amigos do outro lado da rua, Ken ia até à casa de Peggy e Tami ficaria em casa com uma baby-sitter. Quando saíram, Peter prometeu que não regressariam muito tarde. Contudo, Tak não indicou qualquer hora obrigatória de recolher.

 

Hiroko soltou uma risada e Peter dirigiu-lhe um sorriso de admiração. Era impossível não o fazer. Ela estava deslumbrada e sabia que os amigos ficariam muito impressionados. Tratava-se do primeiro encontro oficial e estavam ambos muito excitados.

 

Pareces muito crescida troçou e ela riu de novo, enquanto corriam para o carro dele. A noite estava muito fria.

 

Obrigada, Peter agradeceu, eliminando deliberadamente o san depois do nome dele. Escutara com cuidado todos os avisos do primo. Nada de quimonos, de vénias, termos estrangeiros, nada de falar japonês em público. Agora, tinha de fazer um esforço para ser diferente. Ele sentia que era importante para o seu bem-estar e segurança.

 

Tratava-se do seu primeiro encontro com um homem e quase tremia de excitação quando seguiram no carro ao longo da cidade universitária. A casa onde se dirigiram era pequena, mas ouvia-se música e muito barulho. Estava cheia de estudantes já formados e jovens professores.

 

Ninguém pareceu dar pela sua chegada, embora, quando ela despiu o casaco e entrou, Peter tivesse reparado em alguns olhares, mas sem que ninguém fizesse comentários. Também havia um par de jovens nisei. Peter conhecia-os vagamente e sabia que ela ensinava biologia e ele estava no departamento de línguas. Contudo, Peter nunca chegou a aproximar-se o suficiente deles para os apresentar a Hiroko.

 

Havia imensa comida, vinho tinto e branco, espumante, e alguns dos convidados tinham trazido garrafas de gim, uísque e vodca. Vários já estavam bastante embriagados, mas a maioria conversava, ria ou dançava numa divisão das traseiras que fora limpa e enfeitada com balões e serpentinas para a ocasião. E, à distância, ouviam a voz de Frank Sinatra.

 

Peter apresentou-a a todos os que conhecia e ajudou-a a servir-se de rosbife e de um pouco de peru. Depois de pousarem os pratos, dançaram na divisão das traseiras ao som de um disco da orquestra de Tommy Dorsey, com a voz de Frank Sinatra em fundo.

 

Peter apertou-a de encontro ao seu corpo ao som da música; era quase meia-noite. Sentia-lhe o calor e uma tal fragilidade que receava magoá-la. Não havia palavras para expressar as suas emoções. Era como se estivessem sós num mundo deserto, sem ninguém à volta.

 

Era a melhor passagem do ano que alguma vez tivera, dançando e abraçando-a, e, quando alguém anunciou a chegada da meia noite, beijou-a. Hiroko ergueu o rosto, terrivelmente embaraçada por ele a ter beijado em público. Viu, porém, que os outros também faziam o mesmo, e Peter sussurrou-lhe com um sorriso que se tratava de um hábito.

 

Oh! exclamou com um aceno de cabeça e ele voltou a beijá-la, enquanto dançavam devagar pela sala e entravam no ano de 1942, com sonhos de esperança e liberdade.

 

Amo-te, Hiroko-san sussurrou-lhe de forma a que só ela pudesse ouvi-lo, e Hiroko brindou-o com um olhar maravilhado e assentiu com a cabeça. Não se atrevia a responder com tantas pessoas à volta.

 

Continuavam a dançar, nos braços um do outro, quando a sirene de ataque aéreo disparou e se ouviu um queixume colectivo. Ninguém queria que lhes estragassem a noite e seguiu-se uma vontade momentânea de ignorar tudo, mas o anfitrião insistiu que tinham de descer até à adega.

 

Alguém desligou todas as luzes à medida que o barulho aumentava, as pessoas desceram apressadamente as escadas, levando garrafas de champanhe e de vinho e Peter apercebeu-se de que a maioria estava já embriagada. De súbito, a cave ficou a abarrotar de gente. Fora construída para uma pequena família e agora continha, pelo menos, cinquenta pessoas.

 

O jovem casal nisei desaparecera e vários dos outros conhecidos de Peter tinham saído, mas reinou a alegria até as pessoas começarem a sentir-se com calor e desconfortáveis e algumas das raparigas se queixarem de que não conseguiam respirar e havia imenso pó. As sirenes não se calavam e todos sabiam que tinham de ficar ali, embora as janelas do andar de cima possuíssem persianas de protecção contra os ataques aéreos. Os Tanaka também as haviam instalado, à semelhança de toda a gente, desde o ataque a Pearl Harbor.

 

Nem na passagem do ano esses malditos japoneses nos deixam em paz, céus! queixou-se alguém ao fundo.

 

Estava escuro e só tinham lanternas de bolso. A um canto, um casal beijava-se, mas Peter conservava-se de pé, com o braço à volta da cintura de Hiroko e a cave parecia-lhe tudo menos romântica. Apenas desejavam subir as escadas e ir para casa, um desejo que era comum a todos. Meia hora depois, a situação não progredira e todos estavam fartos. Contudo, o som da sirene prolongou-se durante uma hora. Por fim, à uma e trinta, regressaram ao andar de cima, cheios de poeira e cansados, sem vestígio da anterior alegria. Um dos homens olhou para Hiroko e precipitou-se na sua direcção.

 

São os japs como tu que nos estragam a vida acusou, furioso. Para a semana, irei combater, por causa de ti. E, a propósito, muito obrigado por Pearl Harbor.

 

Dava a sensação de que se preparava para a atacar, e Peter puxou-a rapidamente para trás dele.

 

Basta, Madison retorquiu. O homem estava embriagado, mas tal não desculpava as suas palavras e Hiroko mantinha-se pálida e a tremer, por detrás de Peter.

 

Vai-te lixar, Jenkins reagiu o bêbedo. Estás tão apaixonado por uma japonesa que não consegues ver onde está a razão. Quando é que vais ser esperto e deixar de andar atrás dos Tanaka? Um destes dias, o FBI deita-te a mão. E talvez também à tua namorada rematou, afastando-se.

 

Peter seguiu-o com um olhar furioso, sem querer desencadear uma briga, na passagem do ano, nem enervar Hiroko ainda mais. Viu que ela se esforçava por conter as lágrimas e acompanhou-a para irem buscar o casaco da jovem. A alegria da noite fora destruída.

 

Lamento desculpou-se, enquanto a ajudava a vestir o casaco. Ele está embriagado e não sabe o que diz.

 

A situação era, todavia, embaraçosa para ambos. Agradeceram ao dono da casa e dirigiram-se apressadamente ao carro, seguidos pelos olhares dos restantes. Ninguém disse uma só palavra a Madison, e Peter interrogou-se sobre se o que ele expressara não seria afinal apoiado em silêncio pelos outros.

 

Será que todos o achavam um idiota? Estariam dispostos a atacar todos os japoneses que conheciam? Contudo, à excepção de Hiroko, nenhuma dessas pessoas eram verdadeiros japoneses. Depois de vinte anos nos Estados Unidos, Takeo era tão americano como qualquer outro cidadão e Reiko e os filhos haviam nascido ali. Que conversa era, então, aquela? Até mesmo Hiroko, que responsabilidade tinha ela quanto a Pearl Harbor? Porquê atacá-la daquela maneira? O que tinham em mente? Mas, os ânimos andavam exaltados naqueles dias, tal como Takeo havia previsto.

 

No caminho de volta a casa, ela começou a chorar e a desculpar-se por lhe ter estragado a noite.

 

Devias ter levado outra pessoa, Peter-san disse, voltando aos hábitos antigos, sem se dar conta. Uma rapariga americana. Não foi sensato levares-me a mim. Talvez não concordou, com uma expressão grave.

 

Mas não estou apaixonado por uma rapariga americana.

 

Fitou-a e parou o carro, de forma a poder falar-lhe. Abraçou-a e apertou o seu corpo trémulo. Estou apaixonado por ti, Hiroko. E tens de mostrar-te forte. Isto pode voltar a acontecer. O Takeo diz que levará algum tempo até as coisas se acalmarem, sobretudo com todo este disparate do ”estrangeiro inimigo”, de andarem a tirar as máquinas fotográficas aos estudantes e com o exército a anunciar, de cinco em cinco minutos, que estamos prestes a ser atacados.

 

Apesar de todos os raides aéreos das últimas três semanas e meia, não se verificara um único ataque. Contudo, os jornais mencionavam, sem cessar, navios misteriosos que se encontravam supostamente ao largo, aviões fantasmas que uns viam e outros não, e prisões diárias de espiões.

 

Tens de ignorar gente como esse idiota da festa. Sabes quem és. Escuta o teu coração, Hiroko, e o meu, e não o das pessoas que te insultam ou tentam responsabilizar-te por algo a que és totalmente alheia.

 

Mas o Japão é o meu país. Sou responsável pelos seus actos.

 

Isso é um fardo demasiado pesado para pores aos ombros redarguiu, parecendo subitamente cansado. Fora uma longa noite na cave e ainda estavam os dois cobertos de pó, És responsável por ti e por mais ninguém. Não podes controlar o que faz o Japão.

 

Peço-te desculpa, a ti saiu-lhe desajeitadamente, e Peter sentiu-se enternecido pelo seu ar digno e suave. Desculpa que o meu país tenha feito algo tão terrível. É muito feio acrescentou, envergonhada, ao mesmo tempo que ele se inclinava e a beijava.

 

É feio, mas não tens culpa. E tu não és feia. És bonita. Tem paciência, Hiroko. Tudo vai melhorar.

 

Todavia, ao chegarem a casa, verificaram que não haviam sido os únicos a passar uma noite difícil. Os pais da melhor amiga de Sally tinham-lhe pedido que não voltasse a visitá-los. Conheciam a sua atracção pelo filho, não a apoiavam e o filho mais velho acabara de ingressar na marinha. Foram encontrar Sally debulhada em lágrimas, no quarto. Despira o vestido, pusera o roupão da mãe e, quando a incitaram a descer, contou-lhes o que acontecera, enquanto comiam biscoitos feitos por Reiko. Sally soluçava ao fazer o relato.

 

Foram tão maus para mim. Disseram-me que não podia voltar a casa deles. Conheci a Kathy toda a minha vida. É como se fosse minha irmã. E ela não pronunciou uma única palavra, só parecia embaraçada e chorou quando saí. O irmão nem mesmo estava em casa esta noite. Não o deixaram ver-me. A mãe disse que eu era uma ”estrangeira”, de acordo com o que o governo diz. Não sou uma ”estrangeira”, mamã prosseguiu, chorando ainda mais ao pronunciar o termo.

 

Sou apenas uma miúda... Sou americana. Nasci aqui. Nessa altura, Ken regressou também e ouviu o que ela dissera. A namorada dele era sansei, o que significava que os próprios pais haviam nascido nos Estados Unidos, mas tivera problemas na escola, antes das férias do Natal. E ele brigara por causa dela. As pessoas estavam positivamente a enlouquecer.

 

Como é que as pessoas podem ser tão estúpidas? disse Ken, olhando furioso para a irmã. Tinham conhecido os Jordan desde sempre. Como é que podiam fazer-lhe uma coisa daquelas? E a irmã tinha razão. Era apenas uma miúda. Porquê puni-la por algo que ela não fizera?

 

Depois, Peter contou-lhes o que acontecera a Hiroko e todos concordaram que esperavam que o novo ano fosse melhor do que o anterior. Mas concordaram também que tinham de ser mais cuidadosos. As emoções públicas aumentavam de intensidade e as pessoas viam-se envoltas num frenesim.

 

Não me agrada esta coisa do ”estrangeiro inimigo” declarou Peter honestamente. O facto de as pessoas parecerem japonesas não as torna estrangeiras. É como se de repente deixasse de se reconhecer esta diferença.

 

Talvez não queiram reconhecê-la sugeriu Reiko num tom triste.

 

Também ela tivera de enfrentar dificuldades no hospital. Várias pessoas haviam feito comentários desagradáveis a seu respeito ou recusado trabalhar ao seu lado, pessoas que conhecia há anos. Era muito penoso.

 

Sally acabou por se acalmar, Peter ainda ficou a conversar muito tempo com os outros e, por fim, deixou-os. Hiroko acompanhou-o até à porta e ele beijou-a e disse-lhe quanto lamentava aquela noite estragada.

 

Não foi estragada, Peter-san vincou, esquecendo-se novamente dela. Foi muito boa. Estive contigo. E só isso é importante declarou ternamente.

 

Também para mim só isso é importante proferiu Peter, beijando-a uma última vez antes de se ir embora.

 

Depois de Hiroko ter dado as boas-noites a Tak e Reiko, ambos se sentiram mais preocupados do que nunca com o facto de ela namorar com Peter numa tal atmosfera. Contudo e à semelhança de um comboio expresso, avançando no escuro da noite, era tarde de mais para os proibir.

 

No dia seguinte, Sally andava à toa pela casa. Ken tentou convencê-la a sair com ele e Peggy, mas a irmã recusou. Ainda sentia mais a falta de Kathy do que a do irmão. Desde sempre que haviam sido as melhores amigas e agora estava mesmo proibida de lhe telefonar.

 

Tak e Reiko foram fazer algumas compras. Peter levou Hiroko e Tami a passear de carro e observaram, fascinados, as filas intermináveis de rapazes que se juntavam à marinha, em Paio Alto. Alguns pareciam de ressaca, outros ainda estavam bêbedos, mas a maioria mostrava-se consciente do seu acto. Nas últimas semanas, as pessoas tinham-se alistado em grupo. E entre elas, havia uma grande quantidade de nisei.

 

No dia seguinte, Manila caiu nas mãos dos Japoneses e depois disso o número de jovens que se alistavam aumentou ainda mais. No entanto, três dias mais tarde, o Serviço de Selecção reclassificou todos os nisei e os sansei. Foram colocados numa classe designada por IV-C e informados de que seriam despedidos dos empregos ou apenas autorizados a desempenhar tarefas menores, como as da cozinha.

 

Cidadãos de segunda categoria declarou Peter por entre dentes.

 

Só pergunto quem ficará aqui a dar aulas interrogou-se Tak tristemente. Provavelmente não serei eu, nem ninguém como eu. Terás de o fazer, Peter.

 

Não sejas estúpido, Tak redarguiu, sem querer ouvi-lo.

 

Não sou. Olha à tua volta. Lê os jornais.

 

Os ânimos exaltavam-se cada vez mais contra os japoneses, mesmo contra os nascidos nos Estados Unidos, como Reiko. As pessoas pareciam incapazes de diferenciar entre os seus inimigos e os amigos, os aliados e os ”estrangeiros inimigos”, como lhes chamavam.

 

Hiroko regressou a St. Andrew’s no meio de todas as preocupações e más novas e foi mais fácil do que esperava. Apesar dos protestos de Peter, apanhou o comboio para lá.

 

Os Tanaka andavam demasiado ocupados para a irem levar, e a única surpresa que teve foi a de não conseguir arranjar um táxi na estação. Assim, percorreu a pé o resto do caminho, levando a mala. Passaram alguns autocarros, mas também não pararam para a recolher. Todavia, com mais calor e mais cansada do que tinha previsto, conseguiu mesmo assim chegar, sã e salva, a St. Andrew’s.

 

Quando chegou à universidade, a directora do dormitório disse-lhe que haviam feito uma pequena mudança. Tinham a certeza de que, nas actuais circunstâncias, ela iria preferir um quarto particular e tudo haviam feito para lhe arranjar um. Contudo e embora a ideia muito lhe agradasse, Hiroko sentia-se culpada. Sabia até que ponto Anne Spencer desejara um quarto particular e não lhe parecia justo privá-la dele. Explicou a situação à directora do dormitório e disse que poderia passar sem ele.

 

É muito generoso da tua parte, Hiroko respondeu a mulher, nervosa. A Anne concordou em partilhar o quarto com outras raparigas durante este semestre. E a Sharon terá uma nova companheira. Portanto, esperamos que todas se sintam felizes.

 

Contudo, o quarto ”particular” que lhe haviam conseguido arranjar era, na verdade, apenas um quarto de arrumações no sótão. Tinha de subir as escadas das traseiras para lá chegar e não havia outras raparigas por perto. Precisava de descer três lanços de escada para ir à casa de banho. E ao entrar, verificou, de olhos arregalados, que estava gelado. Não havia aquecimento, nem vista. Nem sequer tinha uma janela.

 

É este o meu quarto? perguntou, surpreendida; a mulher anuiu com a cabeça, esperando que ela não levantasse objecções, nem fizesse qualquer comentário.

 

Sim. Claro que é pequeno. Mas demos-te alguns cobertores a mais.

 

Eram dois e mesmo ali, de pé, Hiroko sentia um frio gelado. E, no tempo mais quente, sob o telhado e sem ventilação, seria sufocante. Tinha como iluminação uma lâmpada pendurada de um fio no tecto e, como mobiliário, uma cama, uma cadeira e uma cómoda. Nem sequer havia uma secretária onde pudesse fazer os trabalhos, nem um armário onde pendurar a roupa. E tudo o que deixara no último quarto havia sido metido no novo, em caixas.

 

Obrigada agradeceu Hiroko num fio de voz, contendo as lágrimas e rezando para conseguir fazê-lo até a directora do dormitório se ir embora e não a ver chorar.

 

Ainda bem que gostas disse, agradecida por a jovem anuir, sem levantar problemas. Não lhes restara alternativa. Os Spencer e vários outros pais tinham exigido que o fizessem. Haviam ficado furiosos pelo facto de ela voltar. Contudo, a universidade recusara mandá-la embora. Era uma jovem meiga, uma óptima estudante e, além do incidente com o cigarro que lhe valera um castigo, nunca tivera qualquer problema disciplinar. Haviam recusado expulsá-la por motivos políticos. Diz-nos, se precisares de alguma coisa acrescentou, e depois fechou a porta, deixando Hiroko sozinha, sentada na cama e a chorar. Agora era mais do que uma estrangeira inimiga, era uma pária.

 

Nessa tarde, estudou na biblioteca, mas nem sequer se deu ao trabalho de descer para ir jantar. Não queria ver nenhuma das colegas. Avistara de relance Anne Spencer quando ela regressava das aulas de golfe e ouvira Sharon a gabar-se a alguém de que passara o Natal com o Gary Cooper. Provavelmente era tudo mentira, mas quem queria saber? De qualquer maneira, o lugar que lhe tinham destinado magoara-a demasiado para que conseguisse ouvir mais histórias de Sharon. Nem sequer telefonou aos primos para lhes falar do quarto. Era algo demasiado doloroso.

 

Em vez disso, deitou-se cedo sem comer nada e no dia seguinte apareceu nas aulas muito pálida e vestida com uma camisola grossa. No quarto, fizera um frio de gelar a noite toda e, na quinta-feira, começara a espirrar. Contudo, não disse uma palavra a quem quer que fosse; não falou com ninguém durante toda a semana. E, sempre que entrava numa sala, era como se ninguém a visse.

 

Em princípio, devia regressar a casa na sexta-feira, mas nessa altura estava muito constipada e não se sentia com coragem. Mesmo assim, ainda não falara aos primos do ”quarto particular”; limitou-se a telefonar e a dizer-lhes que não iria. Na sexta-feira, quando foi buscar uma chávena de chá à sala de jantar, a enfermeira encontrou-a casualmente e viu logo que ela estava com febre.

 

Sentes-te bem? perguntou com ar bondoso; Hiroko tentou sorrir, mas os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

 

Fora uma semana horrível e sentia-se muito mal. Tinha uma dor no peito, os olhos congestionados e não parava de espirrar. Por fim, a enfermeira insistiu para que ela fosse à enfermaria e, ao tirar-lhe a temperatura, verificou que estava com muita febre.

 

Não vai a parte alguma, minha menina insistiu com firmeza, excepto para a cama. Aqui mesmo. E, de manhã, vamos chamar o médico.

 

Hiroko sentia-se tão mal que nem sequer ripostou e deixou que a enfermeira a metesse na cama, agradecida por ter um quarto quente e cobertores.

 

De manhã, a febre baixara um pouco, mas a enfermeira insistiu em chamar o médico. Ele apareceu ao fim da tarde e disse que ela tinha bronquite e uma gripe, mas que no domingo podia regressar ao quarto. O que ela fez, sentindo-se ainda doente, mas de qualquer maneira um pouco melhor.

 

Subiu as escadas devagar, levando as suas coisas. Tinha muito que estudar, e desceria à biblioteca, assim que mudasse de roupa. Contudo, ao chegar ao quarto, verificou que a porta não abria. Parecia trancada, embora não houvesse fechadura. Quando Hiroko a empurrou com toda a força, veio-lhe um fedor que a deixou enojada e, ao abri-la toda, um balde de tinta vermelha caiu-lhe em cima e salpicou tudo.

 

Ofegava, chorava e tentava recuperar o fôlego. Verificou que os seus poucos pertences haviam sido espalhados por todo o lado e alguém se servira do resto da tinta vermelha para escrever a palavra JAP nas paredes e, em letras mais pequenas: ”Vai-te embora.” Contudo, o pior foi o gato morto que haviam colocado em cima da cama. Dava a sensação de que morrera há várias semanas e encontrava-se cheio de larvas.

 

Hiroko abandonou o quarto, histérica e aos gritos, e desceu as escadas a correr, salpicando tudo de tinta. Tinha tinta na roupa, nos sapatos, nos olhos, nas mãos, enquanto voava pelas escadas, tocando nas paredes e corrimãos. Nem sequer sabia para onde ia. Algumas jovens pareceram surpreendidas ao vê-la descer e outras desapareceram perante os gritos aterrorizados de Hiroko. Não sabia o que dizer ou fazer; apenas se lembrava do fedor do gato, da tinta a escorrer-lhe pelos cabelos e do horror pelo que haviam feito ao seu único porto de abrigo.

 

Hiroko! A directora do dormitório e a assistente acorreram de imediato e ficaram horrorizadas ante aquele espectáculo. Oh, meu Deus... oh, meu Deus! A mais nova das duas mulheres pôs-se a chorar ao olhá-la e Hiroko também. Recebeu Hiroko nos braços, sem querer saber da tinta que a cobria e apertou-a com força.

 

Quem fez isto?

 

Hiroko era incapaz de falar, mas de qualquer forma não fazia ideia e não teria dito, mesmo que soubesse. Quando as duas mulheres subiram as escadas depois de a deixarem na enfermaria, ficaram boquiabertas diante do que viram no quarto dela. Era perverso. E, nessa noite, duas enfermeiras ocuparam-se a lavar-lhe a tinta do cabelo, a pôr-lhe gotas nos olhos e a metê-la na cama. A administração ficou horrorizada com o que lhe haviam feito e era possível que se tratasse de um incidente isolado, mas, para bem das duas partes, achou que era necessário tomar uma decisão.

 

Nessa noite, os primos foram chamados. No dia seguinte, Tak e Reiko vieram buscá-la na carrinha. Ficaram assustados ao receberem o telefonema, pensando que ela fora magoada. E assim era, embora de forma diferente da que esperavam.

 

Ficaram pasmados ao ver o quarto. O gato já fora retirado, mas contaram-lhes a história e, embora os funcionários estivessem a tentar limpar as paredes, os responsáveis da universidade tinham querido que os Tanaka vissem a cena. Queriam que eles entendessem a situação da jovem ali e o motivo da decisão tomada.

 

Lamentamos dizer-lhes isto admitiram na reunião com os Tanaka. E todos partilhamos a vergonha do que aconteceu. Contudo, por esse motivo, dado o clima político de momento, e a forma como as jovens parecem reagir, a Hiroko não se encontra em segurança aqui. Não podemos responsabilizar-nos por ela, face a este tipo de acontecimentos. Não podemos deixar que fique aqui, para bem dela.

 

Mostraram uma enorme pena e pronunciaram as palavras exactas, mas não queriam qualquer responsabilidade pelo que pudesse acontecer-lhe numa próxima vez. Podia ter ficado cega com a tinta ou ser morta, se a lata a houvesse atingido. Era demasiado perigoso e sugeriram que o melhor seria que ela se retirasse durante um semestre, para ver se a opinião pública se alterava. Seria bem recebida na altura exacta; sempre fora uma óptima aluna.

 

Os Tanaka ouviram tudo, com uma expressão triste, interrogando-se sobre quanto tempo decorreria antes que coisas do género começassem a passar-se em Stanford.

 

Já disseram alguma coisa à Hiroko? perguntou Takeo com um ar triste. Estava de acordo e, de certa maneira, queria que ela os acompanhasse. Mas sabia que a jovem ficaria desapontada.

 

Quisemos primeiro falar convosco foi a resposta, após o que a chamaram e puseram a par da situação. E, apesar de todos os esforços para conter as lágrimas, Hiroko chorou

 

Tenho de me ir embora? inquiriu, mostrando-se profundamente embaraçada, quando acenaram com a cabeça numa atitude de assentimento. Baixou os olhos, e parecia realmente japonesa. Na sua opinião, falhara por completo. Era tudo culpa dela.

 

Depois, ergueu os olhos para o primo e disse em inglês, ansiando por falar em japonês, mas sabendo que não podia fazê-lo:

 

O meu pai ficará tão envergonhado!

 

O teu pai compreenderá retorquiu a deã num tom bondoso. Esta situação é incontrolável e nada abona a favor das nossas jovens. São elas que deviam ter vergonha e não tu, Hiroko. Fazemos isto para teu bem. Primeiro haviam sido obrigadas a metê-la num quarto de arrumações, agora despejavam-lhe latas de tinta na cabeça e tinham-lhe posto um gato morto no quarto. Se era assim que as companheiras a encaravam, não pertencia decididamente ali. Talvez voltes algum dia.

 

Gostaria disse. Tenho de frequentar uma universidade nos Estados Unidos. Prometi ao meu pai acrescentou, honrando a promessa.

 

Talvez pudesses pedir a transferência para a Universidade da Califórnia, ou Stanford, e viver com os teus primos. Era uma hipótese, mas, com a sua nacionalidade japonesa, tornava-se pouco provável que a aceitassem.

 

Podes ficar uns meses em casa comigo sugeriu Reiko com um sorriso e de coração despedaçado perante o que acontecera. Tratava-se de uma experiência por que ninguém devia passar, e Hiroko era tão meiga e bondosa que a ideia de a maltratarem revirava o estômago de Reiko.

 

Lamentamos muito repetiram os membros da administração e, pouco depois, Hiroko subiu ao andar de cima, a fim de embalar as suas coisas com Reiko. Algumas haviam sido roubadas e a maioria fora destruída. A tinta vermelha salpicara tudo; ainda permanecia no seu cabelo, mau grado os esforços das duas enfermeiras. Levaria semanas a fazê-la desaparecer. Tinham-lhe até retirado tinta das sobrancelhas e das pestanas.

 

Reiko levou-lhe o saco até ao carro, enquanto Hiroko desfazia a cama e dobrava os lençóis. E, nesse momento, sentiu alguém atrás dela e virou-se, aterrorizada. Talvez desta vez a atacassem. Mas a única pessoa que viu atrás dela com uma expressão hesitante foi Anne Spencer. Hiroko não lhe disse uma palavra. Limitou-se a esperar, certa de que aquela loura alta e aristocrata viera regozijar-se ou talvez magoá-la. No entanto, havia tristeza nos olhos de Anne, que se encheram de lágrimas ao estender a mão a Hiroko.

 

Vim despedir-me sussurrou. Lamento o que te fizeram. Soube na noite passada.

 

Ainda via alguma tinta nos cabelos e à volta dos olhos de Hiroko e sentiu uma enorme pena. Não quisera partilhar o quarto com ela, mas não desejara que nada daquilo acontecesse. Passara a noite toda acordada, pensando no assunto, depois de alguém lhe ter contado.

 

Tratava-se de uma atitude doentia e queria que Hiroko soubesse o que ela pensava. Estava furiosa. Anne sabia que lhe cabia o direito de não querer partilhar o quarto com ela. Mas também achava que ninguém podia fazer aquilo a outro ser humano.

 

E, japonesa ou não, Hiroko era uma pessoa digna. Anne sabia pelo que vira dela e, à sua maneira, respeitava-a. Não queria ser sua amiga nem companheira de quarto: mantinha a convicção de que, simplesmente por Hiroko ser japonesa, se encontrava abaixo dela. No seu mundo, os japoneses apenas eram amas, jardineiros e criados. Todavia, independentemente das suas ideias, Anne não lhe desejava qualquer mal. E sentia-se muito revoltada com o que as outras jovens haviam feito.

 

Vais voltar ao Japão? inquiriu Anne com uma súbita curiosidade. Agora, era tarde de mais, mas pelo menos quisera despedir-se e dizer-lhe que lamentava o sucedido. Desejava que ela soubesse que não participara no ataque que lhe fora dirigido pelas outras.

 

O meu pai quer que eu fique aqui e, de qualquer maneira, não posso voltar. Não há barcos. Encontrava-se apanhada numa armadilha, com pessoas que a odiavam tanto como as que lhe haviam vandalizado o quarto, e outras como Anne Spencer, que a desprezavam abertamente.

 

Hiroko não compreendia a simpatia de Anne, nem tão-pouco confiava nela. Contudo, sentiu algo de honesto e recto na jovem.

 

Boa sorte desejou Anne num tom triste, detendo-se um momento, antes de desaparecer.

 

Quando Hiroko desceu as escadas, ia a pensar nela. Depositara tanta esperança em St. Andrew’s. E, à saída, também avistou Sharon. Ela olhou para Hiroko como se nunca a tivesse visto antes, depois virou costas e percorreu o corredor, rindo-se na companhia de outras jovens e contando-lhes o dia que passara com Greer Garson.

 

Alguns dos membros da administração despediram-se de Hiroko com um aperto de mão, mas nenhuma das colegas disse fosse o que fosse. E, apesar das palavras delicadas dos directores, Hiroko não tinha dúvidas. Desgraçara a família e falhara as expectativas.

 

Deslizou calmamente para as traseiras da carrinha, de cabeça baixa e, sem saber porquê, olhou para trás, quando se afastaram. O último rosto que avistou em St. Andrew’s foi o de Anne Spencer, observando-a de uma janela, no andar de cima.

 

Durante as semanas seguintes, Hiroko moveu-se pela casa dos Tanaka como um remoinho de vento. Reiko andava ocupada no hospital e Hiroko fazia tudo em seu lugar. Cozinhava, limpava, cuidava de Tami durante a tarde. Ajudou mesmo a menina a fazer todo um conjunto de lençóis e colchas para a casa de bonecas. E quando Reiko regressava a casa, encontrava tudo imaculadamente limpo e em ordem.

 

É embaraçoso disse a Tak. Há três semanas que não limpo a casa. Sinto-me uma mulher ociosa.

 

Acho que ela está a tentar compensar-nos por ter tido de deixar St. Andrew’s. Não estou assim tão certo de que compreenda que não tem culpa comentou tristemente. Aos seus olhos, isto foi uma grande desonra. Veio para aqui para estudar, honrar o pai e agora não pode. Para ela, o motivo não interessa. É como se estivesse a cumprir uma penitência.

 

Hiroko não se pronunciara sobre o que tinha acontecido depois de abandonar St. Andrew’s, e Tak avisara os filhos para não a aborrecerem a esse respeito. A jovem sentia-se mal e estava a tentar tirar o melhor partido de uma situação difícil.

 

Tinham falado quanto a Hiroko candidatar-se a Stanford, mas Tak duvidava seriamente que estivessem dispostos a aceitar uma estrangeira naquela altura. Haviam sido muito generosos para com Tak, mas Hiroko não queria arriscar-se a causar embaraços a ambos, candidatando-se.

 

Assim e em vez disso, tornava-se útil a todos os membros da família. A principal tarefa a que aparentemente se dedicava consistia em ser o mais americana possível. Há quase dois meses que não vestia um quimono, não fazia vénias, nem tratava ninguém por san, e, sempre que tinha um minuto, lia ou ouvia rádio e começara a melhorar verdadeiramente o inglês.

 

Peter também passava muito tempo com ela. Ficara devastado pelo que lhe acontecera em St. Andrew’s, mas também se dava conta da mudança nela. Embora de início se tivesse sentido envergonhada, também parecia decidida a não se deixar vencer pelos acontecimentos.

 

Contudo, as notícias não eram nada boas. Os Japoneses tinham invadido as índias Holandesas Orientais dois dias antes dela abandonar a universidade e, duas semanas depois, o Estado decidira votar a proibição de todos os japoneses residentes quanto a candidatarem-se ou exercerem cargos civis. A situação não melhorava. E Tak ouvia coisas desagradáveis em Stanford. Havia uma certa inquietação quanto a permitirem que ele continuasse a dirigir o departamento.

 

Todavia, ninguém estava preparado para que o exército declarasse ”áreas restritas” ao longo da costa oeste e declarasse o recolher obrigatório para os ”estrangeiros inimigos”. E Tak ainda ficou mais chocado quando lhes comunicaram que apenas podiam fazer a viagem de ida e volta para o emprego e manter-se a uma distância de oito quilómetros da residência. Mais do que isso exigiria uma licença especial.

 

É como estar num gueto queixara-se a Peter, ao | ouvir falar no assunto. Quando informou a família, Sally ficou horrorizada. Aos seus olhos, significava que não podia ir a uma sessão de cinema nocturna. Significa muito mais do que isso disse Tak à mulher nessa noite, quando estavam a sós no quarto.

 

Contudo, nenhum deles estava preparado, quando o reitor da universidade se desculpou profundamente, mas informou que Peter fora nomeado director do departamento e Takeo seria o seu assistente. Tal significava uma redução considerável no salário, mas também uma perda de prestígio. Não que Takeo quisesse mal a Peter. A pouco e pouco, retiravam-lhe todos os seus direitos e privilégios. E uma semana depois, o hospital comunicou a Reiko que dispensava os seus serviços. Demasiados doentes haviam-se queixado que eram tratados por uma ”estrangeira inimiga”, por mais cuidadosa que fosse como enfermeira ou carinhosa com os doentes.

 

Acho que temos sorte em não nos obrigarem a usar estrelas, como aos judeus na Alemanha comentou Takeo amargamente a Peter quando almoçavam um dia no gabinete que Tak lhe cedera, mas ainda sentia como se lhe pertencesse. Mas, no nosso caso, é desnecessário. Podem ver quem somos, ou, pelo menos, quem julgam que somos. Para eles, somos todos iguais, issei, nisei, sansei. Qual é a diferença?

 

No seu caso, nascera no Japão, o que o tornava um issei. Contudo, os seus filhos, tendo nascido nos Estados Unidos, eram nisei. E os filhos deles seriam sansei. A única ”estrangeira inimiga”, se é que poderia dar-se-lhe tal designação tecnicamente falando, era Hi~roko, pois fora apanhada naquela ratoeira.

 

Na verdade, surgira um novo termo, e bastante confuso. Os japoneses eram referidos como estrangeiros e não estrangeiros. Estes últimos eram, na verdade, pessoas de ascendência japonesa que haviam nascido nos Estados Unidos. Os nisei. Mas os dois grupos viam-se unidos pelo facto de serem japoneses. A designação de ”não estrangeiros” fazia, porém, com que se sentissem menos aceites. Reiko deixara de ser, na verdade, uma cidadã e transformara-se numa não estrangeira, uma variante do inimigo e alguém que não era digno de confiança.

 

Sinto-me um médico com uma doença fascinante confessou Tak pensativamente a Peter. Tenho este impulso permanente de colocar as células doentes sob o microscópio e estudá-las, enquanto morro. Não tinha ilusões de que as coisas iam de mal a pior. A pergunta residia em até onde iriam. E nenhuma das respostas se mostrava tranquilizadora.

 

Não morrerás disto, Tak respondeu Peter, tentando confortar o amigo, mas sentindo-se culpado por ter ocupado tanto o seu cargo como o gabinete. Contudo, pelo menos, Tak não fora despedido como tantos outros. E Peter sentia-se agradecido por esse facto.

 

No Dia de São Valentim, um jornal publicou um editorial incitando à evacuação de todos os japoneses, independentemente do seu estado de cidadania. No dia seguinte, Singapura caiu nas mãos dos japoneses. Logo a seguir, o Comité de Imigração concordou com o editorial que incitava o afastamento de todos os japoneses, enquanto o FBI continuava a fazer prisões em massa, esperando apanhar espiões na Califórnia. Mas, até então, nem uma só pessoa fora acusada ou condenada por actos de traição.

 

A dezanove de Fevereiro, a Lei Executiva 9066 foi assinada pelo Presidente, concedendo aos militares o poder de designar áreas de onde ”qualquer e todas as pessoas” podiam ser excluídas. Permitia, de facto, aos militares pedirem aos japoneses que abandonassem qualquer área, de onde os desejassem afastar. Tratava-se de um documento muito importante. E a Lei Pública 77-503 transformou em ofensa federal a recusa de abandonar uma área militar, quando recebida ordem para tal. Uma tal desobediência constituía um crime passível de prisão.

 

Alguns achavam que aquelas leis pouco serviriam para mudar na prática, mas outros, como Tak e Peter, receavam que se tratasse apenas do primeiro rufar dos tambores e que o verdadeiro terror ainda estivesse para chegar. Já tinham recolher obrigatório, restrições, precisavam de licenças especiais para se deslocarem, eram referidos como estrangeiros independentemente do seu historial, e agora o exército tinha poderes para os excluir. Nos dias seguintes, pediu-se aos japoneses que evacuassem voluntariamente, vendessem as casas e negócios e fossem para outro lado.

 

Para piorar a situação, verificou-se por fim um verdadeiro ataque à costa, quando um submarino japonês disparou contra um campo petrolífero de Santa Barbara, a vinte e três de Fevereiro. Não houve mortes nem baixas, mas a histeria causada foi o rastilho final e aquilo que o general De Witt precisava. Agora, havia provas. O país encontrava-se sob a mira dos Japoneses e todos os homens, mulheres e crianças de origem japonesa eram suspeitos.

 

Contudo, mesmo os poucos que optaram por se mudar voluntariamente, não tiveram recepções calorosas noutros lugares. Os governadores de outros estados mostraram-se alvoroçados, quando eles começaram a surgir. Mas a maioria dos japoneses da Califórnia optou por permanecer ali. Tinham casas, negócios e uma existência naquele local e ninguém queria seguir uma exclusão voluntária.

 

Aquela época assemelhava-se a uma onda crescente de desespero, enquanto Takeo ouvia o noticiário e o discutia; com Reiko. Ela mostrava-se aterrorizada ante a ideia de ter de se mudar ”voluntariamente” para onde quer que fosse. Vivera toda a sua vida na Califórnia e os filhos também. Nunca tinham ido mais além do que Los Angeles. A perspectiva de viajarem para o leste, Midwest, ou qualquer outro sítio, perturbava-a profundamente.

 

Não quero, Tak. Tinham escutado várias histórias de pessoas que haviam tentado mudar-se e encontrado uma tão feroz oposição onde quer que fossem, que regressavam a San Francisco. Não vou.

 

Tak não queria dizer-lhe que um dia talvez tivesse de o fazer. Contudo, ele e Peter discutiam frequentemente o assunto. E se lhes dissessem pura e simplesmente que tinham de abandonar o estado? Muita da histeria era causada pela existência de tantos japoneses na região costeira. E o pensamento predominante era o de que, quanto mais distantes estivessem, menos problemas criariam.

 

No final de Março, soldados armados apareceram nas comunidades japonesas do estado de Washington e deram-lhes seis dias para vender as casas e os negócios, apresentarem-se num recinto local e ficarem encarcerados, até ao ”realojamento”. Só que ninguém sabia ainda ”para onde”. O exército falava na construção de campos de internamento, mas ninguém sabia onde, nem se era verdade. Tudo se resumia a boatos. A comunidade japonesa mantinha-se num silêncio atemorizado.

 

Achas que pode acontecer aqui? perguntou Reiko nessa noite ao marido, quando estavam deitados.

 

Parecia incrível, se o que ouviam era verdade. Ainda não tinha bem a certeza se devia acreditar. Mas, as fotografias nos jornais confirmaram-no. Havia imagens de crianças ao lado de malas, com etiquetas nos casacos, idosos, mulheres a chorar e orgulhosos habitantes locais com tabuletas que diziam FORA COM os JAPS. NÃO os QUEREMOS AQUI. Era um pesadelo.

 

Não sei respondeu Tak, desejando ter a coragem de lhe mentir, mas incapaz de o fazer. Acho que sim, Rei. Acho que temos de estar preparados para tudo. Mas nunca ninguém está preparado e eles não eram diferentes.

 

Apesar do que tinham ouvido, continuaram a levar a mesma vida de sempre As crianças iam à escola e Reiko e Hiroko cuidavam da casa. Takeo ia para a universidade e fingia trabalhar para Peter. Ken dedicava algum tempo à namorada depois de cumprir as suas tarefas.

 

Nessa Primavera, Peter passou muito tempo junto de Hiroko. Ela aplicava-se a estudar em todos os momentos livres de que dispunha, para não desiludir ainda mais o pai. Lia tudo o que podia sobre política, arte e história americana, sempre em inglês. O seu inglês melhorara consideravelmente e ela crescera bastante. A experiência porque passara em St. Andrew’s magoara-a muito, mas também lhe ensinara algo

 

Não voltara a ter notícias das colegas, nem da universidade, à excepção de uma carta formal dizendo-lhe que lamentavam o seu afastamento, mas compreendiam os motivos. Tivera ”incompleto” em tudo e, do ponto de vista académico, o tempo e o dinheiro do pai haviam sido desperdiçados. Também era sensível ao facto e, um dia, planeava pagar-lhe o tempo perdido e reembolsá-lo. Tentou explicar tudo isto a Peter uma ou duas vezes e ele mostrou-se intrigado com a sua maneira de pensar. Tinha intenção de o compensar pela vergonha de não acabar o ano na universidade, mas no mais íntimo de si considerava que fora ela a falhar.

 

Nessa Primavera, plantou um jardim encantador e mantinha a casa impecável. Sempre que conseguia os ingredientes, preparava-lhes pratos tradicionais japoneses. Embora as crianças odiassem comida japonesa, Takeo e Peter adoravam. Servia-se de toda a arte e perícia que aprendera com a avó e gostava de ensinar a Peter tudo o que podia sobre a sua cultura. Ele sentia-se cada vez mais fascinado e ainda mais pela mulher meiga e eficaz em que ela se ia tornando. Em contrapartida, Hiroko também se interessava pela sua maneira de ser, gostava de discutir o trabalho dele e as coisas que ensinava na universidade. Sentavam-se durante horas a fio, imersos na conversa.

 

O que achas que vais fazer? perguntou-lhe Takeo num dia de Abril.

 

Era óbvio que Peter estava profundamente apaixonado por Hiroko, mas, nas actuais circunstâncias e talvez mesmo depois, havia pouco que pudessem fazer. Não se assemelhava de forma alguma ao que o próprio Takeo vivera com Reiko. Eles tinham-se casado em seis meses, mas não havia qualquer esperança de Hiroko poder casar com Peter na Califórnia.

 

Não sei respondeu Peter, com a maior franqueza. Pensara em pedir-lhe que saísse do estado com ele e se casassem, mas não tinha a mínima certeza de que ela aceitasse. A aprovação do pai era muito importante para Hiroko e o pai nada sabia a respeito de Peter. Agora, nem sequer podia escrever ao pai e, por vezes, dava-se conta de que ela ainda sentia umas imensas saudades dos pais. Tencionava ir ao Japão visitar o pai dela este Verão e falar-lhe para ver se tem ideias tão modernas como vocês todos parecem pensar. Contudo, esses planos ficaram destruídos com o ataque a Pearl Harbor.

 

Podem passar anos antes que isto termine comentou Tak tristemente.

 

Ela jamais concordará em se casar sem o conhecimento e aprovação dos pais disse Peter, pensativo.

 

Ele ingressaria no exército em Junho. O Serviço de Recrutamento concordara em aguardar até essa altura, de forma a que pudesse acabar o período, sobretudo agora que ocupava o cargo de chefia. Mas, além disso, não tinha poderes especiais. E não lhe agradava deixá-la sem qualquer protecção, embora tivesse, obviamente, os Tanaka. Mesmo sem a guerra, queria casar-se com ela. Contudo, Hiroko insistia que tinham de esperar pela aprovação do pai.

 

Não te parece que vão evacuar ninguém daqui, pois não, Tak? acrescentou. Tinham seguido de perto os acontecimentos de Seattle. Era um estado diferente, embora não fosse um exército diferente.

 

Já não sei o que pensar. Acho que tudo é possível. O país inteiro encontra-se à beira da loucura quanto aos japoneses. E, em certos aspectos, não posso criticá-los. Estamos em guerra com o Japão e eles têm todos os motivos para suspeitar dos estrangeiros. Só não consigo entender como podem imaginar que os cidadãos nascidos nos Estados Unidos sejam subitamente estrangeiros. É essa a loucura.

 

Todos os jovens japoneses, que se haviam oferecido como voluntários tinham ido parar às cozinhas ou sido enviados para casa. Nenhum deles fora destacado para as unidades de combate. O país nutria uma incomensurável desconfiança sobre a lealdade dos nisei e, de momento, nada podia convencê-los a terem outra opinião.

 

Gostaria de ter as respostas prosseguiu Tak. Penso que se acreditasse realmente que iam evacuar-nos, estaria a fazer as malas para New Hampshire. Mas continuo a pensar que tudo se vai acalmar, que recuperaremos os empregos... Rematou com um sorriso sem malícia para o seu jovem amigo. E que nos pedirão desculpa. No entanto, há uma parte de mim a dizer-me que sou estúpido.

 

Não acho que sejas estúpido. Faz sentido. O resto não declarou Peter, que só conseguia pensar em Hiroko.

 

Queria casar com ela, protegê-la de tudo aquilo, do medo, do preconceito e da incerteza. Todavia, mesmo quando a levava a jantar fora ou a um cinema, não podia protegê-la. Havia sempre o medo de que alguém viesse ao encontro deles, cuspisse nela, dissesse algo ou gritasse alguma obscenidade. Já lhe sucedera isso e a outros também. Acontecera-lhe na mercearia ainda nessa semana, e Tak aconselhara-a a frequentar apenas lojas nisei para que não tivesse problemas. Quando Peter soube do sucedido, disse-lhe como estava preocupado em deixá-la na altura em que iria ingressar no exército. Desta vez, trouxe à baila o casamento, mas para ela só seria possível quando entrasse em contacto com a família e, mesmo assim, eles podiam discordar. No entanto, a ideia de que ela pudesse casar com outro quase o matava. Odiava o pensamento de a deixar, de não lhe ver o rosto, o cabelo preto e brilhante, ou os movimentos esguios e graciosos. Hiroko parecia esvoaçar à sua volta, trazendo-lhe coisas, preparando o chá, contando-lhe qualquer história engraçada de Tami. Adorava a menina e as crianças em geral. Peter cada vez sonhava mais com uma vida ao seu lado e em ter filhos dela. Queria ficar eternamente ao seu lado e não havia uma lei executiva capaz de alterar esse desejo.

 

Hiroko denotava uma enorme coragem face aos acontecimentos. Mostrava-se sempre forte e tranquila. Nunca demonstrava o seu sofrimento e tentava acalmar Peter e os outros.

 

Tak lamentava o destino de Peter e Hiroko, sempre que os observava. Achava que teriam de percorrer uma longa e tortuosa estrada rumo ao futuro.

 

Contudo, na semana seguinte, receberam más notícias da família de Reiko. As suas primas em São Francisco tinham sido enviadas para Terminal Island. Duas semanas depois, foram outra vez notificadas e mandadas para um centro em Los Angeles. Quando deixaram Fresno, haviam-lhes dado três dias para venderem as coisas e tinham perdido tudo. Venderam a casa por cem dólares, deixaram o carro, e a sua enorme plantação de flores tivera de ser abandonada.

 

Mas é impossível exclamara Reiko, lavada em lágrimas, enquanto lia a carta a Tak. Três dias? Como puderam fazer uma coisa dessas?

 

Haviam sido evacuadas com centenas de outros e encontravam-se num determinado recinto. As notícias tinham algo de irreal e nenhum apreendera por completo o significado até quando, três semanas depois, foi enviada uma ordem de exclusão para a área onde habitavam, em Paio Alto. Dispunham de dez dias para vender as casas, os negócios, os carros, empacotar as coisas mais pequenas e evacuar o local. Um ”membro responsável” da família tinha de se dirigir ao Posto de Controlo Civil mais próximo, que no caso deles era um velho templo budista, para receber mais instruções. De momento, nada mais sabiam.

 

Takeo tomou conhecimento da notícia nesse dia na universidade e avistou alguns dos cartazes no caminho para casa. Parou a fim de ler cuidadosamente um deles, sentindo o coração a bater com força e, na manhã seguinte, vinha tudo nos jornais.

 

Peter aparecera para lhes oferecer os seus préstimos e dirigiu-se com Tak ao Posto de Controlo Civil. Tentou descobrir o que se passava, mas não lhe disseram mais do que diriam a Takeo. Dentro de dez dias a partir da ordem, agora nove dias, toda a família teria de se apresentar no centro, na Pista de Corridas Tanforan, em San Bruno.

 

Cada adulto podia transportar setenta e cinco quilos de haveres, incluindo roupa de cama, artigos de toilete e roupas para qualquer clima. As crianças podiam levar trinta e sete quilos e meio cada. Todavia, cada pessoa deveria ser capaz de transportar as suas coisas, o que tornava a permissão de peso ridícula. Uma criança com vinte e cinco quilos de peso não podia transportar trinta e sete quilos e meio de caixas ou malas. Tão pouco Reiko, Hiroko, ou mesmo Ken, poderiam carregar setenta e cinco quilos. Portanto, as licenças de peso nada significavam.

 

Tak recebeu etiquetas para cada um deles. Perguntaram-lhe se havia alguém idoso ou doente na família e, nesse caso, ter-lhe-iam dado etiquetas maiores, que eram especiais. Ouviu-os sem prestar atenção e fitou as etiquetas quando as recebeu. Havia vinte etiquetas para cada pessoa e cada mala. E o número deles era o 70917. Já não tinham um nome, mas apenas um número. Disseram-lhe que não eram permitidos animais de estimação, nem mesmo pequenos. E que não deviam levar dinheiro, jóias, máquinas fotográficas, rádios, armas, ou qualquer objecto metálico. O Governo dos Estados Unidos oferecia-se para guardar electrodomésticos maiores, como frigoríficos e máquinas de lavar, mobiliário pesado ou pianos, em armazéns, só que sem se responsabilizar por quaisquer danos.

 

Nem sequer conseguia pensar quando deixou a fila, agarrando nas etiquetas com o número deles. Acompanhado por Peter, abandonou o pequeno templo, sentindo-se atordoado. Haviam sido proibidos de sair da área. Agora, era tarde de mais para fugirem.

 

Tinham nove dias para se apresentar em Tanforan, nove dias para vender tudo. Recebera a informação de que seriam realojados, mas ninguém parecia saber onde, nem disposta a informá-los. Nem sequer podia dizer a Reiko que tipo de roupa devia levar, se para tempo frio ou quente. Não sabia nada. Nem mesmo se ficariam todos juntos, ou se iriam para um lugar seguro. Tal ideia provocava-lhe calafrios.

 

Na fila, chegara-lhe aos ouvidos o rumor de que os homens seriam executados, que seriam todos fuzilados, que as crianças seriam vendidas como escravas e os maridos e mulheres enviados para sítios separados. Tudo lhe parecia boatos, mas não havia forma de saber. Nada podia prometer a Reiko.

 

Contudo, o homem que lhe dera as etiquetas perguntara se eram família próxima ou chegada. Takeo respondera que uma das etiquetas se destinava a uma prima. Não mencionara que se tratava de uma japonesa e que estava ali a estudar, mas eles acabariam por descobrir quando vissem o passaporte.

O homem limitou-se a responder que não havia certeza de que seriam realojados juntos. Apercebeu-se de que continuava a ser um estrangeiro e existia sempre a possibilidade de que o seu destino fosse diferente do da mulher, ou acabasse por ser preso.

 

Peter parecia muito preocupado quando seguiram no carro para casa.

 

Ele disse que vocês podiam ficar separados? perguntou a Takeo.

 

Takeo esboçou um aceno de assentimento silencioso, e Peter tentou não entrar em pânico.

 

Não podes deixar que isso aconteça, Tak. Não podes abandoná-la. Só Deus sabe o que lhe acontecerá.

 

Erguera a voz e fixava o amigo, enquanto as abomináveis etiquetas permaneciam no assento entre os dois. Tak virou-se para ele, de lágrimas nos olhos, quando pararam num sinal.

 

Achas que posso mudar o que quer que seja? retorquiu. Achas que quero que partamos, juntos ou separados? O que achas realmente que posso fazer? As lágrimas corriam-lhe pelas faces e Peter tocou-lhe no braço, atordoado com tudo o que sucedera.

 

Lamento desculpou-se, igualmente com os olhos cheios de lágrimas, e os dois homens regressaram a casa em silêncio, interrogando-se sobre o que diriam às mulheres.

 

Peter desejava acompanhá-los. No posto de controlo tinham-lhe dito que podia ajudá-los quando se dirigissem ao centro em Tanforan e também visitá-los. Era, porém, impossível ficar com eles e teria de deixar o carro a alguma distância de Tanforan e não levar contrabando.

 

Sentia-se, contudo, aterrorizado com a ideia de deixar Hiroko ali. Era como se a metesse na prisão. E, se ela ficasse separada dos primos, estaria desprotegida. Nem sequer conseguia imaginar o que poderia acontecer.

 

Takeo parou o carro junto à casa, emitiu um sonoro suspiro e fitou Peter. Sabia que o esperavam, mas não suportava a ideia de lhes comunicar o seu destino. Os piores pesadelos tinham-se transformado em realidade e só agora percebia que devia ter partido para outro lugar vários meses antes. Nada seria pior do que aquilo que acontecia agora: estavam proibidos de deixar a área, até se apresentarem no centro de Tanforan para realojamento.

 

Havia pequenas e misteriosas palavras como centro, e realojamento e estrangeiro, todas com um significado diferente do que o implícito. Tratava-se de palavras vulgares onde se escondiam monstros, prontos a devorá-los.

 

O que vais dizer-lhes, Tak? perguntou Peter, com um ar angustiado e enquanto os dois se assoavam. Era como se alguém tivesse morrido, deixando-os sem vida, carreira ou futuro.

 

Não faço ideia respondeu Tak tristemente, após o que acrescentou com um sorriso doloroso: Queres comprar uma casa, ou um carro?!

 

Era impossível saber por onde começar. Havia tanto de que desistir, afastar-se e desfazer-se.

 

Farei tudo o que puder, Tak. Sabes isso.

 

Falo a sério relativamente à casa ou ao carro. Ouvira histórias de outras pessoas que tinham vendido hotéis por cem dólares, carros por quinze. Não podiam levar nada daquilo, e não se imaginava a guardar coisas como a máquina de lavar, só Deus sabia por quantos anos, num armazém federal. Ia vender tudo o que pudesse e desfazer-se do resto.

 

Acho que é melhor entrarmos prosseguiu, desejando não ter de lhes ver os rostos, sobretudo o de Reiko.

 

Os miúdos ficariam horrorizados, mas eram jovens e sobreviveriam a tudo, desde que as suas vidas e segurança não fossem afectadas. Os bens materiais não eram assim tão importantes, embora ele e Reiko tivessem passado dezanove anos a construir uma vida e lhes restassem nove dias para se desfazer de tudo.

 

Peter pôs-lhe o braço por cima do ombro quando entraram e os dois homens quase choraram ao avistar Reiko e Hiroko. Hiroko ainda não fizera dezanove anos, mas tinha um ar calmo e digno, sentada ao lado da prima e vestida com uma saia e camisola pretas. Fixou imediatamente Peter e este precisou de toda a coragem para não se desviar das perguntas que lhe lia no olhar. Takeo dirigiu-se de imediato à mulher, abraçou-a e ela começou a chorar, antes mesmo de ouvir uma palavra. Mantinha as etiquetas escondidas no bolso.

 

Temos mesmo de ir, Tak? perguntou, esperando que ele tivesse sido capaz de os dissuadir por qualquer milagre ou viragem do destino. Queria que alguém lhes dissesse que tudo fora um erro e podiam ficar em Paio Alto.

 

Sim, querida. Temos. Temos de ir para o Centro de Tanforan e esperar por realojamento.

 

Quando?

 

Dentro de nove dias respondeu, sentindo um peso no peito, mas sem hesitar. Temos de vender a casa e o que nos for possível. Podemos guardar o resto em armazéns do governo, se quisermos.

 

Reiko não conseguia acreditar nos seus ouvidos. Nesse momento, ele tirou as etiquetas dos bolsos e Reiko pôs-se a chorar, enquanto Hiroko os fitava boquiaberta. Não emitira um único som e limitou-se a lançar um olhar aterrorizado a Peter.

 

Irei com vocês, Takeo-san? inquiriu, voltando aos velhos modos. Agora pouco interessava, pois ninguém os ouvia.

 

Sim mentiu ele. Não tinha a certeza, mas era demasiado cedo para lhe dizer. Não queria assustá-la mais do que o necessário.

 

Nessa altura, os miúdos juntaram-se-lhes e disse-lhes tudo, ou, de qualquer maneira, tudo o que sabia; todos choraram, até mesmo Peter. Foi uma manhã horrível e Tami pôs-se a soluçar quando lhe disseram que não podiam levar Lassie, a sua pequena cadela.

 

O que lhe faremos? gritou. Não vão matá-la, pois não?

 

Claro que não respondeu Takeo, passando-lhe a mão pelos cabelos, e sentindo uma enorme tristeza por ser incapaz de proteger a filha mais nova, ou qualquer deles, do que acontecera. Só que não havia milagres, mas apenas tristeza. Daremos a Lassie a amigos, pessoas que sabemos que a tratarão bem acrescentou, tentando acalmá-la.


Ao Peter? Fitou-o, esperançada de que um dia ele pudesse devolver-lha, mas Peter pegou-lhe suavemente na pequena mão e beijou-a.

 

Vou-me embora dentro em breve. Vou para o exército.

 

E a minha casa de bonecas? perguntou Tami, virando-se, horrorizada, para Hiroko.

 

Embrulhamo-la com todo o cuidado e levamo-la connosco prometeu Hiroko, mas Takeo voltou a abanar a cabeça.

 

Não podemos disse. Só podemos levar o que conseguirmos transportar.

 

Posso levar a minha boneca? perguntou então Tami e, desta vez, ele esboçou um aceno afirmativo.

 

As duas raparigas mais novas saíram da sala a chorar e Ken limpava os olhos, mas mantinha-se muito direito e obstinado; por fim, o pai fitou-o, consciente de que havia mais um problema.

 

O que se passa, Ken? Era uma pergunta estranha para fazer naquele momento, mas o jovem dava a sensação de que ia explodir a qualquer instante. O que se passa... é este país, se quer saber a minha opinião. Pode não ser um cidadão americano, pai, mas eu sou. Nasci aqui. Podia ser recrutado no próximo ano. Podia morrer por eles, mas entretanto vão mandar-me sei lá para onde por causa dos meus antepassados japoneses, ”de qualquer grau”.

 

Era o critério que utilizavam. Linhagem japonesa, de qualquer grau. A cidadania ou país de origem nada significavam. Durante toda a vida declarara lealdade à bandeira e entoara The Star-Spangled Banner, fora escuteiro, comera milho verde e tarte de maçã no Quatro de Julho e agora era um estrangeiro” e tinha de ser evacuado como se fosse um crininoso ou um espião. Era a pior coisa que já lhe acontecera. Enquanto os ouvia, todas as suas crenças e valores caíam por terra.

 

Eu sei, filho. Não é justo. Mas é o que querem de nós. Não nos resta escolha. E se nos recusarmos a ir? Outros tinham-no feito, mas não muitos. Apenas um punhado de gente.

 

Metem-te provavelmente na prisão.

 

Talvez preferisse declarou num tom firme, mas Tak abanou a cabeça e Reiko chorou ainda mais. Já lhe bastava perder a casa, mas os filhos, não.

 

Não queremos que isso aconteça, Ken. Queremos que venhas connosco.

 

Vão manter-nos juntos, Tak? perguntou Reiko com um ar assustado, enquanto Ken irrompia pela cozinha.

 

O jovem queria ir falar com Peggy, mas estava a acontecer o mesmo à família dela. Estava a acontecer a todos. E ninguém compreendia.

 

Tak fitou a mulher, incapaz de lhe mentir. Nunca o fizera e não começaria agora. Não queria prometer-lhe uma coisa dessas.

 

Ainda não tenho a certeza optou por responder. Correm muitos boatos. Talvez me conservem à parte, dado eu ser um cidadão japonês, mas estou apenas a deitar-me a adivinhar. Ninguém disse nada e temos todos o mesmo número.

 

No entanto, quando Peter e Hiroko foram até ao jardim, Reiko voltou a questioná-lo:

 

E a Hiroko?

 

Também não sei. Ela é, de facto, uma estrangeira inimiga aos olhos deles e vocês não. Pode haver problema. Não sei, Reiko. Teremos de esperar e ver o que acontece.

 

Eram as palavras mais duras que alguma vez lhe dirigira e, ao abraçá-la, começou a chorar. Sentia que falhara por completo. Tudo correra mal, estavam a perder tudo e só Deus sabia para onde iriam ou o que aconteceria. Talvez a verdade ainda fosse pior do que os boatos. Talvez fossem todos abatidos a tiro. Podia acontecer. Mas, de momento, tinham de fazer o que pudessem e acreditar que ficariam juntos.

 

Lamento muito, Reiko repetia constantemente. Ela abraçou-o, consolou-o e disse-lhe que nenhum deles podia ter adivinhado. Nada daquilo era culpa dele mas, ao olhá-lo, sabia que ele não acreditava nela.

 

Ao olhar pela janela na direcção de Peter e Hiroko, ela perguntou a Tak:

 

Achas que deviam casar-se?

 

Contudo Takeo limitou-se a abanar a cabeça. Trocara impressões com Peter sobre o assunto, nessa manhã.

 

Agora, não podem. Não podem casar-se neste estado e ela não pode ir a lado nenhum. Estamos todos presos aqui. Terão de esperar até que ele regresse, supondo que, nessa altura, ela possa movimentar-se de novo.

 

Mas quem podia saber quando tal se daria? E, lá fora no jardim, Peter dizia o mesmo a Hiroko. Queria que ela lhe prometesse que, quando voltasse e ela fosse livre, se casariam.

 

Não posso prometer-te isso, sem falar com o meu pai respondeu tristemente, fitando-o e ansiando por ele, desejando que tudo fosse diferente.

 

Frustrara as expectativas do pai uma vez ao abandonar os estudos e não podia voltar a fazê-lo, casando sem o consentimento dele.

 

Quero casar contigo, Peter... Quero tomar conta de ti garantiu com um sorriso e ele sentou-a no regaço, num canto do jardim.

 

Quero tomar conta de ti para sempre também. Desejaria poder ficar mais tempo e estar contigo em Tanforan. Irei tantas vezes quantas me deixarem.

 

Hiroko anuiu com a cabeça, ainda incapaz de apreender o que sucedera. E embora tentasse compor uma expressão corajosa, ele via que estava muito assustada. Abraçou-a durante muito tempo e apercebeu-se de que tremia.

 

Sinto tanta pena do tio Tak e da tia Reiko. É tão difícil para eles.

 

Sei que é. Quero fazer tudo o que puder garantiu. Não havia, porém, muito que pudesse fazer. Prometera depositar no banco o pouco dinheiro que Takeo economizara. E oferecera-se para comprar tudo o que Takeo não conseguisse vender. Mas não era assim tão simples resolver uma vida em nove dias. Outros tinham-se visto obrigados a vender negócios e colheitas ou simplesmente abandonar as posses e partir para o local de realojamento.

 

Tomarei conta das crianças, quando lá chegarmos explicou Hiroko, mas Peter interrogava-se sobre se ela estaria com eles, desgostoso face à incapacidade de a proteger. O Kenji está muito zangado.

 

Tem toda a razão. O que ele disse é verdade. É tão americano como eu. Não têm qualquer direito de o tratarem como um inimigo; não o é.

 

É errado o que eles estão a fazer, não é?

 

Hiroko tinha essa certeza, mas permanecia confusa sobre as implicações e os motivos. Os jornais falavam tanto da iminência de ataques dos japoneses e ameaças por toda a costa, que por vezes acreditava. Era a justificação deles para realojarem os japoneses dali, juntamente com a acusação de duvidarem da sua lealdade. Mas por que haviam de ser leais ao Japão, quando a maioria nem sequer tinha parentes lá ou visitara o país? Era impossível encontrar uma explicação lógica e Hiroko abanava a cabeça, ao escutar tudo aquilo.

 

Pobre do tio Tak... repetiu. Pobres deles todos.

 

Nem sequer pensava nela e acrescentou: Tenho de me desfazer dos quimonos. São muito pesados e não posso levá-los. E agora talvez seja preferível não os usar.

 

Eu guardo-tos prometeu ele tristemente, pensando que seria melhor mantê-la a salvo do que pudesse acontecer.

 

Estaremos juntos quando tudo isto acabar, Hiroko. Independentemente do que possa acontecer-nos. Tens de te lembrar sempre disso, onde quer que tudo isto nos leve. Vais lembrar-te?

 

Ela assentiu com a cabeça e Peter beijou-a.

 

Esperarei por ti, Peter disse meigamente.

 

Voltarei afirmou com uma expressão determinada, rezando para que os deuses o mantivessem vivo.

 

Regressaram tristemente a casa, e a partir de então não tiveram um momento de descanso.

 

Takeo abandonou o emprego na universidade e Peter pediu uma semana de licença para os ajudar. Em comparação com muitos dos seus amigos, Takeo obteve um bom preço pela casa: recebeu mais de mil dólares. Muitos dos outros haviam vendido a deles por cem ou menos, se tinham vizinhos gananciosos. Havia pessoas à espreita de se aproveitar da situação. Souberam ainda que outras pessoas apenas haviam disposto de três ou quatro dias para se apresentarem em Tanforan. Nove dias era um verdadeiro bónus.

 

Contudo, apenas obteve cinquenta dólares pelo carro e cinco dólares por um conjunto novo de tacos de golfe. De boa vontade os teria oferecido a Peter, mas também ele estava de partida. Iria armazenar as suas coisas, quando ingressasse no exército.

 

Fizeram uma enorme venda no pátio com tudo o que não podiam levar. E Reiko chorou ao vender o vestido de casamento a uma bonita jovem, por três dólares. Hiroko embalou cuidadosamente a casa de bonecas de Tami numa caixa, com todo o mobiliário e acessórios em miniatura e escreveu o nome de Takeo para que fosse guardada no armazém do governo.

 

Não armazenaram muitas coisas, pois Tak achou que era inútil. Apenas caixas com fotografias, a casa de bonecas e algumas recordações especiais. Todos os objectos maiores foram vendidos no relvado da frente, enquanto Peter se ocupava do dinheiro. No fim da venda, haviam conseguido uns três mil dólares.

 

Parecia-lhes muito, mas não era, se considerassem que haviam vendido tudo o que possuíam. E o pior momento foi quando a secretária de Tak na universidade veio buscar a cadela Lassie. Tami pegava-lhe, chorava e negava-se a separar-se dela. Por fim, Hiroko agarrou a miúda. A pobre mulher, debulhada em lágrimas, levou a cadela, e Lassie ladrou e ganiu pela janela do carro até ao dobrar da esquina. Era como se soubesse o que estava a acontecer.

 

Foi um dia terrível para todos. Cada um perdera algo importante. Ken vendera a sua colecção de tacos de basebol assinados e Sally abdicara da cama de dossel de que tanto gostava. Haviam mesmo vendido todas as camas e, segundo a sugestão de Hiroko, dormiriam nos futons até se irem embora

 

É horrível lamuriou-se Sally, quando a mãe a informou. Desistia de tudo, das roupas, das amigas, da escola, até mesmo da cama e agora tinha de dormir no chão, como um cão.

 

Dormirias assim, se estivesses no Japão lembrou a mãe, sorrindo para Hiroko, mas Sally enfureceu-se ainda mais.

 

Não sou japonesa! Sou americana! gritou-lhes, após o que correu para dentro de casa, batendo com a porta

 

Foi difícil para todos, sobretudo para Tami que chorava a perda de Lassie e da sua casa de bonecas.

 

Faremos uma nova quando lá chegarmos prometeu Hiroko.

 

Não serás capaz, e o papá não vai querer.

 

Os pais andavam de muito mau humor naqueles dias, e a única pessoa que brincava com ela era a prima.

 

Claro que vai. Pode ensinar-me. E nós as duas conseguiremos.

 

Okay anuiu Tami, mais reconfortada.

 

A miúda tinha nove anos. Sally acabara de fazer quinze, mas esse facto em nada contribuíra para a alegrar. A única boa notícia residia em que Peggy, a namorada de Ken, e a família partiam para Tanforan no mesmo dia que eles.

 

Kathy, a amiga de Sally, não tinha voltado a falar-lhe. Nessa tarde, passara devagar no carro com o irmão, junto ao jardim, mas não haviam parado nem acenado, e Sally virou-lhes as costas ao avistá-los.

 

Restavam-lhes dois dias na casa depois da venda e ainda havia muito que fazer. Por sorte, os novos proprietários tinham comprado algum do mobiliário, mas não muito. Possuíam as suas coisas próprias. Hiroko trabalhou de dia e de noite, ajudando Reiko a embalar e a desfazer-se de tudo, deixando as coisas aos amigos ou doando-as a obras de caridade. O difícil consistia em saber o que levar para o realojamento. Ignoravam se precisavam de roupas de campo ou de cidade, leves ou pesadas, e não queriam peso a mais, já que podiam transportar tão pouco.

 

Eram quase dez horas da última noite quando acabaram de embalar tudo, e Peter continuava ao lado deles. Tak ofereceu-lhe uma cerveja e dirigiu-se ao andar de cima para ajudar Reiko. Peter e Hiroko sentaram-se nos degraus da frente. Estava uma bela noite de Abril e tornava-se difícil acreditar que algo de mau ia acontecer.

 

Obrigada pela tua ajuda, Peter. Sorriu e ele inclinou-se sem cerimónias e beijou-a.

 

Hiroko sentiu o sabor gelado da cerveja nos seus lábios, sorriu e beijou-o novamente.

 

Trabalhaste tanto elogiou-a Peter com ternura, atraindo-a a si.

 

A jovem mostrara-se incansável e Reiko estava tão inconsolável e distante que fora Hiroko a encarregar-se praticamente de tudo.

 

Trabalhaste tanto como eu retorquiu calmamente. Era verdade. Tak dissera mais do que uma vez que nunca conseguiriam ter feito tudo aquilo sem ele. Transportara as coisas, embalara tudo o que pudera, deslocara o mobiliário e levara os poucos caixotes para o armazém do governo. Pusera também algumas coisas na sua própria casa, a fim de as guardar com as dele e, como prometera, os quimonos de Hiroko.

 

Um dia faremos um bom casal. Ambos trabalhamos arduamente. Sorriu-lhe, com uma expressão maliciosa.

 

Adorava falar em casar algum dia e fazê-la corar. A jovem ainda era muito tradicional em alguns aspectos e ele adorava.

 

Quantos filhos teremos? perguntou, e riu com gosto ao vê-la enrubescer.

 

Os que quiseres, Peter-san respondeu, parecendo uma autêntica japonesa, mas ninguém podia ouvi-los. A minha mãe queria muitas crianças, muitos filhos, mas ficou muito doente quando o meu irmão nasceu e quase morreu. Quis tê-lo em casa e o meu pai queria que ela fosse para o hospital. O meu pai é muito moderno, mas a minha mãe gosta de tudo à maneira antiga... como eu acrescentou com um sorriso tímido.

 

Como nós corrigiu. Quero que tomes o máximo cuidado contigo, em Tanforan. As condições podem não ser as melhores. Tem cuidado, Hiroko. Receava adiantar mais, mas sentia-se aterrorizado com o que pudessem fazer-lhe ali e rezava para que a deixassem ficar junto dos Tanakas e não a mandassem para qualquer outro lugar. Nada podia fazer agora para a proteger.

 

Serei sensata... e tu também... vincou, fixando-o intensamente.

 

Peter ia para a guerra e ela não. Havia uma calma tão grande ali no jardim. Nenhum deles tinha consciência de quando a recuperariam de novo. Hiroko viveria num centro de realojamento com milhares de pessoas à volta e ele estaria no exército. Tratava-se de um momento a agarrar e partilhar, algo de que se lembrariam para sempre.

 

Terás cuidado? repetiu Peter, fitando-a com uma expressão triste.

 

Terei. Prometo.

 

Ele olhou-a intensamente e pousou a cerveja. Depois abraçou-a com força e beijou-a. Agarrá-la daquela maneira tirava-lhe, por vezes, o fôlego, e era difícil controlar-se, mas felizmente não tinham oportunidade de perder o sentido da responsabilidade. Contudo, a tentação era sempre grande ao beijá-la.

 

É melhor ir-me embora declarou, querendo devorá-la com as mãos e os lábios, mas sempre receoso de a assustar ou magoar.

 

Amo-te, Peter-san sussurrou ela, quando Peter a beijou novamente. Amo-te muito... Ele soltou um gemido involuntário ao agarrá-la e Hiroko sorriu. Havia uma parte da vida deles que a jovem nem sequer imaginava e uma parte nela que ansiava por isso.

 

Também te amo, pequenina... Vejo-te amanhã. Deixou-a junto ao portão com mais um beijo e afastou-se no carro, após o que ela regressou devagar até casa, interrogando-se sobre o que lhes iria acontecer. Contudo, o destino apenas tem perguntas e nunca respostas.

 

Acabara de chegar à porta, quando ouviu alguém a chamá-la pelo nome. Virou-se, surpreendida, e avistou Anne Spencer, que avançava lentamente na sua direcção. De início, Hiroko nem sequer a reconheceu. Apanhara o cabelo atrás, vestia uma camisola velha e tinha um cesto na mão.

 

Hiroko chamou novamente e, desta vez, Hiroko caminhou ao seu encontro.

 

Vira-a pela última vez no dia em que deixara St. Andrew’s, quando Anne viera despedir-se dela e depois ficara a observá-la da janela.

 

Nunca haviam sido amigas e, contudo, desde esse dia que se estabelecera uma ténue linha de respeito entre ambas. Hiroko compreendera até que ponto Anne havia desaprovado que as outras a tivessem atormentado e vandalizado o quarto. Mas nunca existira afecto entre elas.

 

Anne Spencer? perguntou Hiroko cautelosamente.

 

Constou-me que te ias embora. Aquelas palavras surpreenderam Hiroko.

 

Como soubeste?

 

Uma amiga estava na aula do teu primo em Stanford explicou. Lamento. Era a segunda vez que expressava desculpas a Hiroko por algo que não fizera e com que nada tinha a ver. Sabes para onde vais?

 

Para o Centro de Tanforan. Depois, não sabemos para onde.

 

Anne acenou com a cabeça.

 

Trouxe-te isto disse, estendendo-lhe o cesto.

 

Estava cheio de boa comida como presunto, algum queijo, latas de sopa e carnes, coisas que os fortaleceriam. Hiroko ficou surpreendida ao examiná-lo, não só pela quantidade de coisas, mas pela generosidade de Anne. Mal a conhecia.

 

Obrigada agradeceu Hiroko pegando no cesto e detendo-se a olhá-la, interrogando-se uma vez mais sobre o que a levara a tomar aquela atitude.

 

Quero que saibas que não acredito no que eles estão a fazer. Acho horrível e lamento repetiu com os olhos cheios de lágrimas.

 

As duas mulheres fitaram-se durante um longo momento e Hiroko esboçou-lhe uma vénia num gesto honroso, sem largar o cesto.

 

Obrigada, Anne-san.

 

Que Deus esteja contigo sussurrou ela e depois virou-se e saiu a correr do jardim.

 

Hiroko ouviu o ruído de um carro a arrancar e a afastar-se e voltou devagar a casa, com o cesto no braço.

 

O dia em que abandonaram a casa foi o mais triste que haviam vivido e que jamais esqueceriam.

 

A cadela já fora embora, o carro tivera igual destino e a casa estava praticamente vazia. Imperava um sentimento de desolação. Os novos proprietários começariam a fazer a mudança nessa tarde e Tak deixara as chaves com um vizinho.

 

Haviam deitado fora a maior parte da comida, o que parecia um desperdício, e oferecido o resto a Peter.

 

Contudo, o mais doloroso foi deixarem a casa onde tinham vivido durante quase dezoito anos. Reiko e Tak tinham-na comprado quando ela estava grávida de Ken. Era a casa onde os seus três filhos haviam vivido desde que nasceram, a casa que todos tinham conhecido e amado e em que haviam sido felizes durante a maior parte do seu casamento. Reiko percorreu-a com o olhar uma última vez, pensando nos tempos felizes e Tak veio ter com ela e pôs-lhe o braço à volta dos ombros.

 

Voltaremos, Rei disse num tom triste.

 

Mas será de outra pessoa redarguiu ela, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.

 

Compraremos outra casa. Havia ainda muitos obstáculos a superar, antes que pudessem regressar para o fazer. Prometo.

 

Eu sei anuiu, tentando parecer corajosa.

 

Ao sair devagar, pegando-lhe na mão, fez uma pequena oração, rezando para que todos estivessem de novo brevemente em casa, juntos e a salvo.

 

Peter levou-os no carro até ao posto de controlo com as magras posses. Tudo levava as etiquetas que lhes tinham sido dadas. Tami pusera a dela no botão da camisola, Sally colocara-a no pulso e Reiko, Tak e Ken haviam optado pelos casacos. Peter prendeu cuidadosamente a de Hiroko no primeiro botão da camisola. 70917.

 

Hiroko sentou-se no carro com o cesto de Anne Spencer ao colo. Reiko ficara satisfeita com o presente e certa de que viria a ser útil, mas ninguém pensava nisso agora, enquanto prosseguiam caminho.

 

O percurso até ao posto de controlo foi breve e silencioso. Quando dobraram a esquina e avistaram o posto, pareceu-lhes um pandemónio feito de gente, bagagens e autocarros.

 

Deus do céu! exclamou Tak, chocado com o espectáculo. Vão mandar embora toda a gente de Paio Alto?

 

Assim parece, não? disse Peter, tentando esquivar-se à multidão de pessoas que atravessava a rua para lá chegar.

 

Todos levavam malas e caixas, tentavam agarrar na mão das crianças e guiar os velhos. Havia, pelo menos, uma dúzia de autocarros à espera deles. Era a confusão total e a Tak não lhe agradava juntar-se à multidão.

 

As autoridades haviam declarado que Peter não podia levá-los no carro até Tanforan. Não tinham permissão de chegar num veículo particular. Deviam seguir com os outros no autocarro que partia do posto de controlo. Contudo, Peter prometera ir até Tanforan no carro depois de os deixar e tentar encontrá-los lá. Mas primeiro estacionou. Iria ficar o máximo de tempo possível com eles no posto de controlo.

 

Que confusão! exclamou Tak, ao mesmo tempo que saíam relutantemente do carro com os seus haveres e se juntavam à multidão.

 

Foram empurrados imediatamente para um grupo maior e, minutos depois, Peter foi informado de que tinha de os abandonar. Perguntou se havia qualquer ponto de encontro onde pudesse reunir-se aos seus amigos em Tanforan, mas aparentemente ninguém sabia e Tak acenou-lhe por entre a multidão, quando Peter desapareceu, e Hiroko tentou dominar uma onda de pânico.

 

De súbito, tudo aquilo era real. Estavam prestes a ser encarcerados, realojados, evacuados, ou o que quer que quisessem chamar-lhe. No entanto, deixara de ser livre, Peter já não estava ao seu lado e não podia estender-lhe os braços, sempre que o desejasse. E se não voltasse a vê-lo... se ele não conseguisse encontrá-los... se...

 

Como que sentindo os receios da prima e de todos os restantes, Tami pôs-se a chorar. Apertava de encontro ao corpo a boneca que também tinha uma etiqueta pregada e Hiroko agarrou com força na mão de Tami para não a perderem.

A tia Rei tinha uma expressão sombria. E Ken procurava a sua namorada Peggy, enquanto Tak os incitava sem cessar a que se mantivessem juntos. Acabaram por lhes entregar uns papéis, disseram-lhes que pusessem as coisas no autocarro e entrassem, sem mais explicações. Depois, passaram ali uma hora sentados; era quase meio-dia e transpiravam abundantemente quando os autocarros arrancaram, por fim, para Tanfòran. A viagem só demorou meia hora. Todavia, quando chegaram a Tanforan, o caos era ainda maior. Havia filas de gente até onde o olhar alcançava, milhares de pessoas, velhos com etiquetas enormes, doentes sentados em bancos, pilhas de malas, caixas de comida, crianças a chorar. Existia uma tenda onde estavam a preparar comida e, a pouca distância, uma longa fila de lavabos abertos.

 

Hiroko jamais esqueceria aquela experiência. No dia anterior chovera e a lama chegava-lhes aos tornozelos, enquanto se mantinham numa longa fila, entre mais de seis mil pessoas. Ao olhá-las, desistiu de qualquer esperança de ver Peter.

 

Ele nunca nos descobrirá declarou num tom triste.

 

Talvez não concordou Tak, olhando em volta, horrorizado.

 

Os seus sapatos novos tinham sido destruídos pela lama. Sally dizia que precisava de ir à casa de banho, mas preferia morrer a usar aquele lavabo aberto. Hiroko e a mãe já haviam prometido segurar um cobertor aberto na sua frente, mas ela recusava-se sequer a tentar. Contudo, Hiroko e Reiko sabiam que, mais cedo ou mais tarde, todos teriam de o usar, por mais que lhes custasse.

 

Há três horas que se mantinham em fila e o cesto de comida de Anne veio mesmo a calhar. Nenhum deles podia abandonar as filas de ingresso e meter-se nas filas da comida e Tami chorava a bom chorar, enquanto se encontravam ali na lama e se encarrapitavam nas malas, sempre que o cansaço os vencia.

 

Ao chegarem ao início da fila de ingresso, fizeram-lhes exames individuais à garganta. Observaram também a pele das mãos e dos braços, embora nem mesmo Reiko tivesse ideia do que faziam. Depois, todos foram apanhados de surpresa, ao serem vacinados por outros ”companheiros”.

 

Reiko nem sequer tinha a certeza de que fossem enfermeiras. Tratava-se apenas de civis que davam uma ajuda E reparou que as pessoas da tenda da cozinha também pareciam voluntários. Vestiam roupas estranhíssimas. Fatos castanhos, casacos azuis e chapeuzinhos com bonitas penas. Perguntou se havia uma enfermaria e alguém apontou vagamente para um ponto distante.

 

Talvez precisem de ajuda disse Reiko meigamente a Tak.

 

Mas quem sabia quanto tempo iriam ficar? E ao chegarem à fila seguinte, os braços doíam-lhes das vacinas, e a pobre Tami estava tão cansada que disse que lhe apetecia vomitar. Contudo, Hiroko segurou-lhe na mão, pôs-se a fazer-lhe festas na cabeça e a contar uma história sobre um duende e uma fada. Passado algum tempo, Tami agarrou a boneca e deixou de chorar, prestando atenção.

 

Também Ken se sentia melhor. Acabara de descobrir a namorada, o que era um autêntico milagre no meio de toda aquela multidão. Não havia, porém, sinal de Peter. Nessa altura, eram cinco da tarde, há horas que ali estavam e ainda não os tinham instalado.

 

Mantiveram-se na fila horas a fio e, mesmo quando viram pessoas a alinharem-se para jantar, não podiam voltar a deixar a fila. Por fim, deram-lhes um número e disseram-lhes que procurassem as instalações.

 

Estavam no 22P. Pegaram nas malas e dirigiram-se para onde lhes indicaram. De momento, estavam quase a chegar. Ainda não lhes tinham dito quanto tempo ficariam, nem para onde iriam depois. As longas extensões de barracas eram muito confusas. Andaram às voltas e, por fim, Ken avistou o número deles. Não passava de um estábulo. Anteriormente, servira para alojar um puro-sangue, mas agora estava vazio. Mal havia espaço para um cavalo, quanto mais para uma família de seis pessoas. Era aberto e tinha uma meia porta, apropriada para manter o cavalo lá dentro.

 

Ao examinarem o interior, verificaram que tinha sido caiada, mas não limpa. Havia estrume e palha por todo o lado e o cheiro era horrível.

 

Desta vez, Reiko não aguentou. Encostou-se à parede e vomitou tudo o que havia comido desde manhã.

 

Oh, céus, Tak queixou-se, mais triste do que nunca. Não consigo aguentar.

 

Consegues, sim, Rei. Tem de ser retorquiu meigamente. Os filhos fitavam-nos, à espera de directivas. Senta-te junto das meninas. A Hiroko vai buscar-te água. O Ken e eu encontraremos umas pás e vamos limpar tudo. Talvez devesses pôr-te numa fila com os miúdos para arranjares comida. Podes trazer-nos alguma.

 

Todavia, a última coisa que ela queria no mundo era pôr-se numa fila para o jantar e os miúdos também não tinham fome. Em vez disso, sentaram-se, como ele lhes dissera, em cima das malas e voltaram a servir-se do cesto de Anne. Provara ser uma dádiva de Deus.

 

Reiko continuava pálida, mas melhorara um pouco. Estavam sentados a alguma distância do estábulo e Hiroko descobrira alguns sacos de serapilheira para comida que, ajudada por Sally, enchia de palha para servirem de colchões, quando tudo estivesse limpo.

 

Contudo, Ken e Tak só tinham conseguido descobrir duas velhas latas de café e estavam a limpar o estrume em quantidades lamentavelmente pequenas quando Peter apareceu, acalorado e desgrenhado. Ao vê-lo, Hiroko julgou tratar-se de uma visão. Correu para ele e abraçou-o, incapaz de acreditar que ele realmente os encontrara.

 

Desde o meio-dia que me encontro no edifício da administração explicou num tom cansado. Quase tive de vender a alma para chegar aqui. Parecem não entender porque é que alguém quer visitar este sítio. Fizeram tudo o que puderam para me impedir.

 

Beijou-a com ternura, extremamente aliviado por ter conseguido encontrá-los. Procurara sistematicamente em toda a sucessão de divisórias e nas filas de comida e, ao olhar por cima do ombro, deu-se conta do trabalho de Tak e de Ken.

 

Parece divertido comentou, e Tak ergueu os olhos e esboçou um sorriso. Não perdera na totalidade o sentido de humor e o facto de ver Peter operara um milagre em todos. Haviam deixado de se sentir tão abandonados.

 

Espera até experimentares.

 

De acordo disse Peter, atirando o casaco para cima do monte de palha de que Hiroko se servia para encher os sacos.

 

Enrolando as mangas, Peter sacrificou os seus sapatos preferidos e pisou o estrume para trabalhar ao lado de Ken e de Tak. Descobriram mais uma lata de café e, minutos depois, estava tão sujo como eles. Tratava-se de uma tarefa pesadíssima e dava a sensação de que o estábulo não fora limpo há | anos, o que era provavelmente verdade. Não me surpreende que o cavalo se tenha ido embora resmungou Peter entre dentes, enquanto atirava mais uma lata de estrume lá para fora. Assemelhava-se a esvaziar o oceano com uma chávena de chá. Este sítio não lembra ao diabo.

 

Simpático, hem? retorquiu Tak, e Ken manteve-se silencioso.

 

O jovem odiava estar aqui, odiava o significado de tudo aquilo e o que lhe haviam feito. Nesse momento, teria dado a vida para ajustar contas com as pessoas que lhes provocam aquele horror. Gostava de dizer que já tinha visto pior queixou-se Peter, enquanto trabalhavam lado a lado, cada vez mais sujos e sem terem conseguido grande coisa. Mas acho que não é o caso. Espera até chegares à Europa com o Exército americano. É bem provável que tenhas de fazer trabalhos do género.

 

Pelo menos, estou a ganhar prática.; Muito depois de haver escurecido, Reiko e as raparigas estavam deitadas nos colchões de palha que Hiroko preparara e os três homens continuavam a trabalhar. De vez em quando Hiroko ia buscar chávenas de chá, trazia-as e oferecia-se para ajudar os homens, mas todos recusavam. Era demasiado pesado para uma mulher.

 

Tens de ir embora a uma hora certa? perguntou Tak a Peter, enquanto descansavam um pouco, mas ele limitou-se a encolher os ombros e sorriu a Hiroko.

 

Não me disseram nada. Acho que vou ficar, até me porem fora.

 

Uns minutos depois, voltaram ao trabalho. Acabaram de limpar o estábulo às duas da manhã. Ken lavou-o com uma mangueira de alto a baixo e Peter ajudou-os a esfregar as paredes. O estrume desaparecera e apenas restavam alguns resquícios de lama, que também limparam com água.

 

É possível que tenham de o deixar secar durante uns dias declarou Peter com um ar pensativo. Só espero que não volte a chover.

 

Depois de a lama secar, espalhariam palha e colocariam os colchões em cima. Agora, só podiam sentar-se no exterior nos sacos de palha, que Hiroko lhes preparara. Ken instalou-se, exausto, num deles e Takeo juntou-se-lhe. Peter deixou-se cair lentamente no que Hiroko ocupara. A jovem ficara à espera que acabassem e queria estar com Peter. Reiko e as duas miúdas já tinham adormecido.

 

Não me parece que este lugar seja grande coisa disse-lhe Peter. Doía-lhe todo o corpo e os outros tinham trabalhado tanto como ele.

 

É horrível confirmou Hiroko. Não conseguia imaginar ficar aqui, e muito menos passar um dia como aquele, a limpar sessenta centímetros de altura de estrume de um estábulo. Obrigada por tudo o que fizeste. Pobre tio Tak sussurrou. Ele parecia exausto.

 

Lamento que tenham de estar aqui.

 

Shikata ga nai disse-lhe ela meigamente e ele ergueu o sobrolho, à espera da tradução. Significa que não pode ser evitado. Tem simplesmente de ser assim.

 

Peter anuiu com a cabeça, mas desejava exactamente o contrário.

 

Odeio deixar-te aqui, pequenina. Rodeou-lhe o ombro com o braço e apertou-a mais de encontro ao corpo. Preocupava-o causar-lhe problemas, mas que mais problemas havia agora? Já estavam ali e ninguém os observava naquele momento. Havia famílias por toda a parte, idosos e crianças. Ele distinguia-se por não ser japonês, mas ninguém parecia

especialmente interessado na sua presença. Desejava levar-te comigo, pequenina. Sorriu, beijando-a com cuidado e sem querer tocar-lhe com as mãos sujas.

 

Também eu queria que me levasses disse ela tristemente.

 

Apercebia-se agora do que tinham tido e poderiam ter um dia e do que haviam perdido nessa mesma ocasião. Ela perdera a sua liberdade e, de súbito, cada momento com ele parecia ainda mais precioso e interrogou-se sobre se não fora idiota ao responder que não queria casar sem a aprovação do pai.

 

Talvez devesse tê-lo acompanhado até outro estado quando Peter lhe pedira e casado com ele. Agora era tarde de mais, mas não deixou de pensar no assunto, enquanto ele foi lavar-se com Ken e Tak e se serviu das latrinas abertas, que lhe pareciam tão humilhantes. Do sítio onde estava não podia vê-los, mas sabia que estavam lá. Ela, a tia Rei e as raparigas tinham segurado cobertores na frente, para os tapar à vez.

 

Peter regressou com os outros uns minutos depois e disse-lhe que ela devia tentar dormir um pouco. Prometeu que voltaria no dia seguinte, à tarde. Só tinha de dar aulas de manhã. Mas não parecia capaz de se ir embora e ela também não queria. Passou mais uma meia hora, antes que ele finalmente se decidisse a partir, e Hiroko ficou a vê-lo afastar-se, sentindo-se como se o seu único amigo no mundo tivesse desaparecido, enquanto o primo a observava.

 

Vai dormir um pouco incitou Takeo, estendendo-lhe um cobertor e desejando que ela nunca tivesse vindo para os Estados Unidos, para seu próprio bem.

 

Hiroko iria ficar magoada. Não havia simplesmente outra saída. Era tarde de mais para eles e estavam a viver uma paixão num mundo errado que nada faria para os ajudar, bem pelo contrário.

 

A jovem enroscou-se no seu saco de palha, coberta com um casaco e um fino cobertor que tinham trazido, pensando em Peter e interrogando-se sobre onde a vida os levaria.

 

No dia seguinte acordaram com o sol, ao toque dos clarins, e foram pôr-se em fila numa das onze cantinas do campo de internamento, a fim de conseguirem o pequeno-almoço.

 

Tiveram de usar cartões de identificação de cores e comer por turnos e a comida parecia tudo menos agradável. Havia uma papa rala, fruta, ovos e uns pãezinhos que davam a sensação de estarem ali desde o Ano Novo. Todos se limitaram a comer cereais.

 

Depois, foram dar um passeio e observaram as pessoas a tentarem instalar-se e a fazer o que eles tinham feito na noite anterior, limpando o estrume, sentando-se nas malas, enchendo sacos de palha e tentando encontrar rostos familiares. Por seu lado, encontraram alguns. Vários professores que Tak conhecera e uma amiga de Reiko. Ken verificou, aliviado, que o estábulo de Peggy se situava muito perto. Era muito importante para todos verem pessoas que conheciam. Sally descobriu duas amigas da antiga escola e ficou encantada. A pequena Tami falava com todos e fez amigos entre as crianças.

 

Por todo o lado se notava uma atmosfera de determinação quanto a tentarem tirar o máximo proveito de tudo, e uma mulher da fila de estábulos a seguir pôs-se a plantar sementes e mostrava-se decidida a dar início a um jardim.

 

Espero que não fiquemos assim tanto tempo declarou Reiko, nervosa.

 

Ainda ninguém lhes tinha dito para onde iriam, mas Reiko não conseguia imaginar-se a plantar o que quer que fosse ou a fixar raízes ali. Tratava-se apenas de uma questão de sobrevivência.

 

Nessa tarde, foi verificar a enfermaria que era bastante sombria. Já lá se encontrava uma série de pessoas, na sua maioria com dores de estômago e disenteria. Duas das enfermeiras aconselharam-na a que tivesse cuidado com a comida, pois muitas coisas estavam estragadas, e que se mantivesse atenta à água. E ela foi passando a informação, quando regressou junto dos outros. Prometera voltar no dia seguinte à enfermaria e dar uma ajuda.

 

Nessa tarde, o solo do estábulo estava quase seco. Ken e Hiroko espalharam palha por cima, depois do que mudaram os colchões e as malas para o interior. Sabiam que tudo estava limpo agora, mas o cheiro a cavalo não desaparecera. Mal tinham acabado de arrumar as poucas coisas no estábulo, Peter apareceu, e o rosto de Hiroko iluminou-se como sob um raio de sol. Deu notícias da universidade a Tak; trouxera-lhes tabletes de chocolate, bolos e fruta. Não tinha muitas certezas sobre o que os guardas permitiriam que levasse e não queria aborrecê-los. Tami estendeu de imediato a mão para os chocolates e Sally pegou numa maçã e agradeceu-lhe.

 

Peter sentou-se algum tempo com eles e ficou com Hiroko no estábulo, enquanto os outros iam pôr-se na fila para o jantar. A jovem insistiu que não tinha fome e lhe bastaria o chocolate e uns biscoitos. Enquanto estava ali sentado a conversar com ela, parecia-lhe incrível que famílias inteiras vivessem, ali, amontoadas, em cada uma das divisórias. Era tudo o que lhes fora concedido. E, por todo o estado, famílias japonesas eram levadas para campos de internamento como aquele, enquanto aguardavam o realojamento.

 

Correu tudo bem hoje? perguntou com uma expressão preocupada, quando os outros se afastaram.

 

Takeo parecia muito deprimido, mas Reiko estava um pouco mais animada do que no dia anterior e os miúdos davam a sensação de se adaptarem. Tami não chorava tanto, Sally estava contente por ter descoberto uma amiga e Ken parecia menos furioso.

 

Estamos bem respondeu Hiroko com uma expressão calma e ele estendeu o braço e pegou-lhe na mão.

 

Peter sentia a falta deles. Passara junto à casa e ficara chocado ao avistar crianças que não conhecia e um outro cão. Já estavam a mudar-se e, aos seus olhos eram intrusos, o que o levou a afastar-se rapidamente.

 

Não sei o que fazer sem ti declarou, fixando-a nos olhos, onde encontrava tanto conforto. Continuarei a vir até aqui. Gostava que me deixassem ficar contigo. É o único sítio onde quero estar.

 

Hiroko ficou aliviada ao ouvi-lo, mas em certos aspectos não era justo para ele. Era esse o problema. Peter não pertencia àquele lugar, e apenas prolongaria a sua agonia. Partiria dentro de sete semanas. Não tinha, porém, coragem de lhe dizer que deixasse de aparecer. Não conseguia.

 

Estou contente retorquiu, animada.

 

Precisava dele. E esperara todo o dia pelo momento em que ele apareceria. Vivia agora para cada um desses preciosos momentos. Enquanto davam uma volta por perto, contou-lhe o que vira nesse dia e falou-lhe mesmo da mulher que estava a plantar o minúsculo jardim.

 

Graças a Deus que não é fácil derrotar esta gente comentou, olhando em volta.

 

Todos estavam a limpar os estábulos, a organizar a sua vida, lavando as paredes à mangueira e caiando-as. Havia grupos de homens a jogarem às cartas ou ao xadrez japonês e algumas mulheres de idade conversavam e tricotavam, rodeados de crianças por todo o lado.

 

Mau grado as circunstâncias em que viviam, havia uma atmosfera de esperança e camaradagem de que até ele se tinha dado conta no pouco tempo que ali passava. Ouviam-se poucas queixas e reinava mesmo um clima de boa disposição. Escutavam-se risos e apenas os homens mais velhos pareciam por vezes desgostosos ante a sua incapacidade de poupar as famílias àquela situação, ao passo que os jovens pareciam enraivecidos, como Kenji. Mas, na maioria, as pessoas apenas tentavam prosseguir com a sua vida.

 

Hiroko sorriu e ergueu o rosto para Peter. Ele era agora a sua vida. Ele e os primos haviam-se tornado ainda mais importantes, desde que perdera o contacto com a família. Sentia a falta de notícias e de saber se estavam bem. Apenas sabia que Yuji estava na força aérea, mas nada mais. E também que tinha de conviver com o silêncio, até a guerra acabar. Por vezes, pensava e rezava por eles, mas não havia qualquer outra hipótese de contacto. Nem sequer sabia que relação poderia manter com Peter, depois de este partir. Ele prometeu que escreveria, mas esperava que a deixassem receber as cartas e vice-versa.

 

És uma mulher fantástica elogiou calmamente, enquanto a observava a comer uma maçã com um olhar franco e bondoso. Agradava-lhe observá-la, sempre a tomar conta de tudo, mas sem se pronunciar muito. E adorava vê-la com Tami.

 

Sou apenas uma jovem tonta... Sorriu-lhe, consciente da sua categoria de segunda entre o seu povo, embora o pai lhe tivesse ensinado outras coisas. Dissera-lhe que podia fazer o que desejasse e que um dia talvez se dedicasse a algo importante.

 

És bem mais do que uma jovem tonta retorquiu Peter.

 

Inclinou-se e beijou-a, ao mesmo tempo que uma mulher idosa que passava com um rapazinho ao lado virava a cara com uma expressão de desagrado. Ele era, afinal, americano.

 

Queres ir dar um passeio? perguntou, e ela anuiu com a cabeça e pôs o que restava da maçã na lata de café, que usavam para o lixo. Tinham encontrado três à chegada e haviam-nas conservado.

 

Havia campos abertos nas traseiras, onde os cavalos tinham sido treinados, mas estavam rodeados de arame farpado e sebes e com uma casa da guarda junto ao portão. Contudo, ninguém os incomodou enquanto caminhavam pela erva alta e falavam do passado e do futuro. O presente parecia pairar na frente deles, sem rumo, mas viam muito para lá do mesmo, viam o lugar onde um dia queriam estar juntos.

 

Enquanto andavam, a mente de Hiroko recuou até aos sítios onde estivera outrora, em Quioto com a família, e nas montanhas a visitar os amigos do pai. Era um lugar bonito e confortava-a pensar nele, ao passear de mão dada com Peter e em silêncio.

 

Ao chegarem ao lado oposto do campo, pararam. E, sem pronunciar palavra, ele rodeou-a com os braços e apertou-a de encontro ao seu corpo. Um dia, não haveria fronteiras nem limites para eles, nem um lugar onde teriam de parar. Ansiava por partilhar esse dia com ela e entretanto tinham-se apenas um ao outro.

 

Gostava de poder levar-te daqui, Hiroko afirmou tristemente. Nunca me apercebi de como éramos felizes antes. Gostava... Baixou os olhos para o rosto da jovem, que compreendeu o seu desejo. Também era o dela. Gostava de te ter levado daqui e casado contigo, quando era possível.

 

Continuaria aqui redarguiu, sensata, e não te deixariam ficar. Precisaríamos de ter ido para longe, muito longe, para escapar a tudo isto.

 

Peter sabia que ela tinha razão. Teria sido necessário desistir do emprego na universidade e ir para longe com ela. Nenhum deles compreendera como o preço seria elevado por não o fazerem. Todos haviam esperado que os problemas desaparecessem e a atitude das pessoas melhorasse. Contudo, agora nada iria melhorar durante muito tempo. E tinham perdido a oportunidade de fugirem. Só lhes restava aguentarem.

 

Um dia, tudo isto ficará para trás, Hiroko. Casaremos... disse-lhe sorrindo, sentindo-se muito jovem e um tanto idiota...e teremos muitos filhos.

 

Quantos?

 

Hiroko adorava entregar-se àquele jogo com ele, embora ainda a embaraçasse um pouco. Era estranho falarem dos filhos.

 

Seis ou sete respondeu, atraindo-a a si e beijando-a.

 

Desta vez, beijou-a com sofreguidão, desejando-a desesperadamente. Conservaram-se à sombra de uma pequena barraca enquanto o sol se punha e Peter sentiu-lhe o corpo macio, ao inclinar-se sobre ela.

 

Queria tê-la bem próximo, queria todo o seu corpo ao beijar-lhe os lábios, os olhos e o pescoço; as mãos pousaram nos seios e ela não o deteve, até que, por fim, se libertou suavemente. Mal conseguia respirar tal a excitação e ele ainda estava mais excitado do que ela.

 

Oh, céus, Hiroko! Quero-te tanto! exclamou, invadido por uma dor imensa perante tudo o que lhes acontecera.

 

Desejava melhorar a situação dela e não podia. Recomeçaram a caminhar vagarosamente e antes de chegarem junto dos outros, Peter parou e beijou-a uma vez mais nos campos abertos. Ficou apenas parado, abraçando-a. Sentia-lhe a respiração e as ancas estreitas coladas ao seu corpo. Nos últimos dias aproximavam-se da chama, mas algo os atraía de tal forma que nenhum deles tentava parar

 

Temos de voltar disse ela, por fim, sentindo partes do corpo de Peter de que nunca se atrevera a tomar consciência, mas erguendo os olhos na sua direcção, cheios de amor e confiança. Não sentia qualquer pena ou receio

 

Hiroko desejava-o tanto como ele a desejava. Apenas haviam perdido a única oportunidade de agarrar o momento

 

Regressaram até junto dos outros, de mão dada, sem pronunciarem uma palavra e, ao chegarem, tanto Reiko como Tak se aperceberam de algo diferente nela. Nos últimos dias, parecia ter-se tornado mais adulta, muito feminina e segura quando estava junto de Peter Era como se já lhe pertencesse e não receasse que o soubessem. Assumira um compromisso para com ele, em silêncio, e nunca tirava do dedo o pequeno anel de prata com dois corações que ele lhe dera no Natal

 

Que tal o jantar? perguntou, e todos fizeram caretas, à excepção de Tami, que parecia satisfeita

 

Na verdade, haviam tido direito a sobremesa, gelatina verde, e Tami disse que gostava Ao ouvir falar da sobremesa, Hiroko soltou uma gargalhada. Lembrava-se da última vez em que vira gelatina na casa e não fazia ideia de como a comer. Andara inutilmente às voltas com a gelatina no prato e observara que Tami a comia com natas batidas, o que ainda lhe desagradara mais

 

Todos riram ao ouvi-la falar disso e depois Tak contou algumas histórias engraçadas de quando viera para os Estados Unidos e sobre as experiências vividas Reiko disse como se tinha sentido estranha no Japão, quando os pais a haviam mandado estudar lá Enquanto conversavam, chegou-lhes a voz de alguém que cantava numa divisória mais à frente. Sons suaves enchiam a atmosfera e o Sol pôs-se sobre as suas cabeças, como uma bênção

 

Nessa noite, Peter ficou com eles até tarde, sentado em caixas de madeira do lado de fora do estábulo. Reiko e as raparigas deitaram-se e Ken foi fazer uma visita à namorada Tak e Peter ficaram a conversar. De vez em quando, Hiroko aparecia para saber se precisavam de alguma coisa. Trouxe os cigarros a Tak e ofereceu a ambos o que restava da comida do cesto de Anne. Depois, deixou-os a conversar e voltou até junto de Reiko.

 

Há meses que devia ter casado com ela lamentou Peter tristemente ao vê-la desaparecer como um espírito no interior do estábulo.

 

Um dia casarás disse Tak num tom calmo. Agora já não tinha dúvidas e deixara de levantar objecções. Eles tinham o direito a ser felizes, se era isso o que queriam. Sentia que não lhe cabia impedi-los. Andara a observá-los. Em essência, estavam casados de alma e pensamento. O resto viria mais tarde.

 

Tem cuidado quando partires acrescentou. Achas que vão mandar-te para o Japão?

 

Talvez respondeu Peter. Devo apresentar-me em Fort Ord, mas tenho a sensação de que vão enviar-me para a Europa. Há muito que fazer por lá. E preferia não lutar contra os Japoneses. Não quero ter muitas desculpas a apresentar ao pai dela.

 

Vais gostar dele garantiu Takeo com um sorriso. É um homem a sério. Tem uma personalidade marcada. Esteve sempre à frente dos outros com as suas ideias modernas e a sua forma de ensinar. Surpreende-me que nunca tenha vindo para os Estados Unidos. Acho que lhe faltou o dinheiro. A mulher também tem um ar muito suave, muito tradicional. Parece-se muito com a Hiroko.

 

No entanto, Hiroko mudara muito nos últimos meses e todos tinham reparado. Tornara-se mais arrojada, menos ligada à tradição. O incidente de St. Andrew’s despertara muito da sua personalidade; ficara mais forte e mais independente. Além disso, a relação com Peter tornara-a mais madura.

 

Tenho a certeza de que um dia irás conhecê-los a todos prosseguiu Takeo com um ar pensativo. Se sobreviverem à guerra. Espero que sim. O irmão dela tem mais ou menos a idade do Ken. Acho que é um ano mais velho.

 

Tak também andava preocupado com Ken. Ultimamente, o filho mostrava-se tão furioso, tão desiludido com o seu país. Juntara-se a um grupo de adolescentes igualmente enraivecidos. Achavam que o país os tinha atraiçoado e que pô-los em campos de internamento fora violar a Constituição.

 

Talvez venha a ser advogado encorajou-o Peter, e Tak sorriu.

 

Espero que sim.

 

À meia-noite, Peter pôs-se de pé e espreguiçou-se. Era desconfortável estar sentado em caixotes de madeira. Dirigiu-se sem fazer ruído ao estábulo para se despedir de Hiroko, mas, quando bateu à porta e espreitou, viu-a a dormir profundamente num dos colchões improvisados, tapada com um cobertor. Tinha um ar tão tranquilo, que se quedou um longo momento a observá-la, após o que recuou e voltou para junto de Takeo.

 

Voltarei amanhã depois das aulas prometeu a Tak, ao ir embora.

 

E assim fez, todos os dias, passando o dia e a noite com eles nos fins-de-semana. Agora, não possuía outra vida, nem outro lugar onde quisesse estar. Conseguiu mesmo ocultar uma série de papéis aos olhos dos guardas e Tak ajudou-o a corrigir os testes. Era a única distracção que Tak tivera desde que chegara e sentiu-se-lhe grato. E o facto de Tak lhe fazer o trabalho, deixava-lhe mais tempo disponível para Hiroko.

 

Nessa altura, Reiko trabalhava todos os dias na enfermaria. Há duas semanas que estavam no campo e vários milhares de evacuados tinham chegado. Havia agora mais de oito mil pessoas e cada vez se tornava mais difícil ter um momento de solidão, um lugar onde dúzias de outros não tivessem chegado primeiro, ou um sítio onde estar sentado sem ser obrigado a ouvir dez ou doze conversas diferentes.

 

A única paz de que Hiroko e Peter desfrutavam era quando passeavam pelos campos, rodeados pela relva alta, sem que ninguém parecesse dar atenção ou importar-se. Iam até lá todos os dias. Era uma forma de ela fazer exercício, mas mais do que tudo dava-lhe paz e um momento de tranquilidade com Peter.

 

Depois de passearem durante algum tempo, sentavam-se na relva alta, junto à sebe e desapareciam por completo. Instalavam-se como crianças, escondidas ali, rindo e conversando, como pessoas esquecidas.

 

Tratava-se quase de um jogo para eles e Peter ficou surpreendido pelo facto de os guardas não montarem uma vigilância mais apertada e ninguém reparar, mas ainda bem que assim era. Não faziam nada que não devessem fazer, mas era maravilhoso não ser observado, nem estar rodeado por milhares de estranhos.

 

Deitado de lado, Peter falava-lhe durante horas a fio enquanto ouviam o canto dos grilos e as flores silvestres cresciam em seu redor. Durante um breve espaço de tempo, olhando para o céu, podiam fingir que estavam livres e que a vida era diferente, como deveria ser, numa outra situação.

 

Com que sonhas, Peter-san? perguntou-lhe Hiroko um dia, quando estavam deitados lado a lado, observando as nuvens que passavam; era domingo.

 

Há duas semanas que ela chegara ao campo, encontravam-se em meados de Maio e o tempo estava quente.

 

Contigo respondeu ele sem hesitar. E tu? Com que sonhas, meu amor, além de mim, obviamente? acrescentou, trocista, fazendo-a rir.

 

Por vezes com Quioto... e os lugares onde ia em criança. Quero levar-te um dia a todos esses sítios.

 

E depois ele fez-lhe uma pergunta que nunca lhe fizera até então:

 

Achas que podias ser feliz a viver neste país? Talvez fosse impossível depois do que passara, mas anuiu com a cabeça pensativamente. Não era a primeira vez que pensava no assunto. Queria voltar a ver os pais, mas queria estar com ele onde quer que fosse.

 

Acho respondeu prudentemente. Se me deixarem. Será difícil viver aqui depois desta guerra acrescentou, pensando em St. Andrew’s e nas companheiras de estudos.

 

Podíamos ir para leste. No ano passado, tive uma proposta para ensinar em Harvard. Mas não quis deixar o Tak. Sorriu, voltando a olhar para Hiroko, deitada ao seu lado na relva, como uma pequena borboleta, descansando. Ainda bem que não fui.

 

Talvez devesse ser assim, Peter afirmou num tom grave. Talvez estejamos destinados um ao outro.

 

As palavras pareciam um tanto ridículas pronunciadas em voz alta, mas acreditava nelas. Peter inclinou-se e beijou-a. Acariciou-lhe o rosto ao de leve com as mãos, depois o pescoço, e fez algo que nunca se atrevera antes e sabia que não deveria fazer.

 

Todavia, ninguém podia vê-los e ela estava tão próximo dele que era insuportável. Tinham tão pouco agora, tão pouca esperança, tão pouco tempo, tão pouco futuro, que o levava a tentar agarrar o que possuíam, sem perder um único instante. Desabotoou-lhe o vestido com gestos vagarosos. Era de seda cor de alfazema, com pequenos botões a todo o comprimento, lembrando-lhe um dos quimonos.

 

Tencionava desabotoá-lo apenas um pouco, mas continuou, sem deixar de a beijar. Ela aproximou-se mais e Peter apercebeu-se subitamente de que a despira. Hiroko vestia umas cuecas de cetim cor de pêssego, sentiu a seda sob os dedos e, tal como o vestido, deslizaram facilmente sob o sol quente.

 

A jovem ficou subitamente exposta em toda a sua nudez e Peter apercebeu-se de que ela não o detivera. Nem sequer pensara nisso, enquanto ele se conservava deitado, a beijava e a apertava de encontro ao corpo. E depois deu-se conta de que ela lhe desabotoava a camisa com os dedos pequenos e suaves, sentindo-os na carne, e gemeu, enquanto a beijava com mais intensidade e a abraçava.

 

Sabia que devia parar, assim o queria, prometera a si próprio, mas depois não conseguiu e ela nada fez para o afastar. Desejava-o ao lado dele. Desejava pertencer-lhe. Era dele de alma e coração, e oferecia-lhe tudo o mais, enquanto estavam ali, sob o céu azul.

 

Era um momento perfeito que lhes pertencia e nenhum deles podia resistir; ele soltou-lhe os longos cabelos negros e aproximou-se mais até ficar por cima dela. Hiroko não emitiu qualquer som quando ele a penetrou e sentiu a alma voar com a dela até ao céu.

 

Tiveram a sensação de permanecer horas a fio no espaço, enquanto ele a devorava com os lábios, as mãos e o corpo e ela correspondia da mesma maneira. Pareceu decorrer uma vida até se quedarem exaustos e ele abraçou-a em silêncio, interrogando-se sobre se seriam loucos, ou as únicas pessoas sensatas ao cimo da Terra.

 

Amo-te tanto sussurrou, ouvindo uma ave cantar algures e ela sorriu-lhe. A rapariguinha desaparecera e dera lugar à mulher. Oh, minha querida! exclamou, abraçando-a como se ela fosse uma criança e receando que se arrependesse.

 

Contudo, ao baixar o rosto na sua direcção, não viu censura, mas apenas prazer.

 

Agora sou tua murmurou Hiroko.

 

Nem sequer lhe ocorreu o que sucederia se ela engravidasse. Contudo, nada podiam fazer a esse respeito, pois ele não trouxera preservativo. Sabia que ela era virgem e nem por um momento pensara que pudesse fazer amor com ela.

 

Estás zangada comigo? quis saber, preocupado com o que ela pensaria mais tarde. Sentia-se atemorizado, nada queria fazer para a magoar ou perder. Lamento. Contudo, só lamentaria se fosse esse o caso dela. No íntimo, estava bem longe desse sentimento.

 

Não, meu amor. Sorriu-lhe tranquilamente e inclinou-se para o beijar. Estou muito feliz. Não havia outra forma disse. Nos nossos corações, sei que estamos casados.

 

Peter queria fazer algo mais por ela, especialmente devido ao facto de ter de partir, mas não sabia o quê. Quando ficaram deitados a conversar e ele lhe voltou a abotoar lentamente o vestido, ocorreu-lhe uma ideia e partilhou-a com ela. Queria que ela se informasse. Decerto haveria alguém ali que pudesse fazê-lo.

 

Não vão aceitar declarou Hiroko, referindo-se às autoridades que agora controlavam a sua vida.

 

Nós aceitaremos retorquiu ele num tom solene. É isso que interessa.

 

Pediu-lhe que visse o que podia descobrir e ajudou-a a pôr em pé, depois de a beijar mais uma vez. Hiroko estava preocupada que pudesse notar-se o que haviam feito, mas, embora tivesse sido a sua primeira vez, parecia extremamente digna quando regressaram devagar através da alta relva. Pararam várias vezes e beijaram-se de novo. Peter sabia que nunca na vida fora tão feliz.

 

Takeo esperava-os quando regressaram e acabara de corrigir todos os testes de Peter. Parecia satisfeito e queria falar-lhe. Peter sentou-se e Hiroko desapareceu durante algum tempo. Quando voltou, estava animada, penteada e com uma expressão luminosa. Os olhos de ambos cruzaram-se de relance sobre a cabeça de Tak e assemelhou-se a uma explosão de prazer.

 

Peter regressou no dia seguinte e passearam pela relva alta, desaparecendo nos mistérios dos braços um do outro. Agora, não conseguiam ficar separados, não lhes chegava o amor que partilhavam, nem que passassem mil anos. Contudo, Hiroko arquitectara um plano. Na semana seguinte, encontrara o que queria. Ouvira falar de alguém na enfermaria, por coincidência através de Reiko. E quando pôde, foi ter com ele.

 

Obteve como resposta que não significava nada, excepto aos olhos de Deus e não do homem. Mas ela respondeu-lhe que era o que queriam. O resto teria de ficar para mais tarde. E ele não se mostrou surpreendido, quando ela lhe levou Peter na tarde seguinte. Não pareceu nada admirado por Peter ser americano.

 

E o velho padre budista realizou a cerimónia e casou-os, segurando as contas de oração numa das mãos e entoando as mesmas palavras que um dia haviam unido os pais dela, vinte anos antes, e também Takeo e Reiko. Conhecia as palavras, e a cerimónia foi breve. O padre declarou-os marido e mulher aos olhos de Deus e do homem. Quando acabou, esboçou uma vénia e desejou-lhes que tivessem muitos filhos.

 

Hiroko correspondeu à vénia e agradeceu-lhe. Peter imitou-a e sentiu-se desgostoso ao perceber que não podiam dar-lhe nada. Dinheiro ou qualquer presente só poderiam complicar-lhe a vida. Peter pediu a Hiroko que lhe desse a explicação em japonês, pois ele não falava inglês. Ela obedeceu e a resposta foi que compreendia e apenas desejava a bênção de ambos.

 

Fizeram uma vénia, e ele voltou a abençoá-los. Peter surpreendeu-a ao tirar do bolso uma fina aliança em ouro. Era tão fina que mal se via, e coube-lhe perfeitamente no dedo, tendo o tamanho exacto.

 

Um dia, oficializaremos a situação prometeu ele, muito comovido com o que acabara de se passar.

 

Já o está disse Hiroko, fazendo-lhe uma vénia e pronunciando, em japonês, as palavras que lhe garantiam que o honraria para sempre.

 

Agradeceram ao velho padre e pediram-lhe que guardasse segredo. Ele acedeu com um sorriso e, um momento depois, afastaram-se. Peter exibia um sorriso de orelha a orelha e Hiroko aconchegou-se-lhe, sentindo-se parte dele. Ambos achavam incrível que o resto do campo não percebesse o que se passava.

 

Espera um minuto disse-lhe ele, quando passavam junto a uma fila de estábulos. Esqueci-me de uma coisa.

 

Do quê? inquiriu com uma súbita preocupação.

 

Sem mais uma palavra, Peter pegou-lhe ao colo e beijou-a à vista de todos e ela ouviu os gritinhos e risadas das crianças.

 

Tinha de beijar a noiva para oficializar o acto explicou, e ela riu e continuaram a andar.

 

Até os velhos lhes sorriam. Eram jovens, apaixonados e insensatos. E, embora ele não fosse japonês, viam que era boa pessoa e que os dois pareciam muito felizes juntos.

 

Contudo, apesar da despreocupação, tratava-se de um momento sério para ambos e conversaram demoradamente nessa noite sobre o que significava e a seriedade com que encaravam o futuro. Aos olhos de ambos, estavam casados. Hiroko pusera o anel de prata à frente da aliança e interrogava-se sobre se alguém notaria. Mas a aliança era tão fina que passava facilmente despercebida atrás da outra.

 

Continuaram a dar longos passeios todos os dias e a fazer o que parecia tão fácil ali e ninguém dava a sensação de desconfiar, nem mesmo os primos. A única coisa que preocupava seriamente Peter era o receio de que ela engravidasse. Contudo ao longo dos meses, ambos se deixavam arrebatar e a paixão levava sempre a melhor, apesar das boas intenções.

 

Devíamos ter mais cuidado disse ele um dia, censurando-se.

 

Hiroko era tão bonita, tão sensual, que ele perdia a cabeça sempre que estava ao seu lado.

 

Não me importo respondeu a jovem, sem tomar quaisquer precauções, após o que baixou os olhos e se mostrou tímida pela primeira vez. Quero um filho teu sussurrou.

 

Mas não aqui, minha querida repreendeu-a. Mais tarde.

 

Todavia, as suas boas intenções eram, por norma, rapidamente esquecidas. Deitava-se na relva com ela e apenas se lembrava do seu insaciável desejo, do seu amor infindo e do corpo maravilhoso da jovem.

 

Sou pior do que uma criança afirmou a rir, enquanto caminhavam de volta ao estábulo.

 

Este era, porém, o único momento do dia em que ambos se sentiam transportados para lá da realidade, para lá dos medos e horríveis boatos sobre o que viria. Peter ia partir dali a três semanas e falava-se, sem cessar de para onde seriam enviados, quem iria para que lugar, e se estariam a salvo ali.

 

Uma semana depois da sua pequena cerimónia, quando Peter chegou ao campo de internamento, detiveram-no no portão e pediram-lhe que passasse pelo edifício da administração. Decerto o velho padre contara algo aos guardas. Tentou aparentar calma quando entrou e perguntou se havia qualquer problema. Queriam saber porque é que fazia visitas tão frequentes, com quem se dava e porquê. Queriam conhecer as suas opiniões políticas e pediram para ver a sua identificação.

 

Peter mostrou-lhes tudo o que tinha, a sua identificação da universidade, comprovativa de que era professor. Explicou que Takeo Tanaka trabalhara com ele, primeiro como superior e depois como assistente. Explicou também que em breve ingressaria no exército e que era importante que finalizassem o programa juntos.

 

Acrescentou que precisava da ajuda de Tak para completar tudo segundo as pretensões da universidade, antes de ir para o exército dali a três semanas. Apesar da solidez da justificação, detiveram-no durante três horas, explicando e descrevendo-lhes o programa.

 

Ficaram, obviamente, impressionados com Stanford, mas interessava-lhes sobretudo que ele ensinasse Ciências Políticas.


Por fim, achou que a única coisa que o salvou foi o facto de partir daí a duas semanas para servir no Exército. Ainda que representasse qualquer ameaça ou aborrecimento, não ficaria ali muito mais tempo.

 

Nessa tarde, antes de sair do edifício da administração, tentou descobrir para onde e quando Hiroko e os primos seriam enviados. O homem com quem falara não tinha a mínima ideia, informou que uma dúzia de campos de internamento estavam a ser montados em todos os estados a ocidente, mas ainda não estavam prontos. Os evacuados ainda permaneceriam ali algum tempo. Infelizmente, não era esse o caso de Peter.

 

Não se preocupe com eles disse-lhe o tenente num tom confidencial. São apenas um bando de japoneses. Talvez o seu conhecido seja inteligente, mas a maioria não o é. Metade nem sequer fala inglês.

 

Peter acenou com a cabeça, fingindo anuir, mas respondeu que lhe constara que a maioria era americana. Se é que se lhes pode chamar assim. Há toda essa treta dos issei, nisei, os que nasceram aqui. Mas a verdade é que são japoneses e não se pode confiar que sejam leais a este país. Esteja atento avisou, e ao seu conhecido também. Acho que vai ficar contente em se juntar ao exército. Sorriu, sem a mínima consciência de quanto estava errado. Peter sentiu-se extremamente aliviado quando o deixaram ir ter com os Tanaka e Hiroko, que estivera preocupada com ele toda a tarde. Mas, quando os pôs a par da situação, percebeu pelo olhar de Hiroko que ela se assustara e tranquilizou-a com um imperceptível aceno de cabeça. Os guardas desconheciam a sua ligação.

 

Nessa noite, quando se esquivou com ela, a relva estava húmida e o chão frio, mas nunca se amaram tão apaixonadamente. Unia-os o medo de se perderem um ao outro. Nessa tarde, chegara a pensar que iriam proibir-lhe as visitas. Nunca se tinha sentido tão grato na vida, como quando saíra da sala dos guardas.

 

E, ao apertá-la ofegante nos braços, sentindo que Hiroko o devorava, soube que também ela tivera um medo igual.

 

Como poderei deixar-te? indagou, tristemente.

 

Agora, mal conseguia manter-se afastado dela mais do que uma noite. Seria um pesadelo quando se fosse embora. E o exército acabara de mudar as ordens. Apenas faria uma breve paragem em Ford Ord e depois iria para Fort Dix, Nova Jérsia, para se exercitar. Tivera toda a razão: seguiria para a Europa e não voltaria à Califórnia antes de partir. Só lhes restavam as próximas duas semanas juntos e depois uma vida de preces, até que tudo terminasse.

 

Nessa noite, ela não conseguia deixá-lo, nem ele a ela. Tinham apanhado um susto de morte nessa tarde e, desta vez, quando por fim regressaram ao estábulo, Tak achou-os esgotados e preocupados. Sabia como seria difícil para Peter deixá-la, mas ninguém podia fazer o que quer que fosse para os ajudar. Voltaram a abraçar-se em silêncio e Tak virou costas e foi deitar-se, oferecendo os últimos momentos de privacidade a Peter e Hiroko.

 

Na semana seguinte, o general De Witt anunciou orgulhosamente que o afastamento de cem mil pessoas de origem japonesa da Área Militar Número Um estava completo. Dez mil encontravam-se em Tanforan e continuavam sem saber para onde iriam.

 

Nessa altura, Peter já saíra de Stanford e apenas conseguia pensar em Hiroko. Restava-lhe uma semana e queria passar todos os minutos possíveis ao lado dela. E, felizmente para eles, ninguém os interrogou ou voltou a deter. Deixava o carro afastado do portão e aparecia sempre a pé, com um ar simples e despreocupado. Não chamava as atenções e o tenente passara a considerá-lo seu amigo. Peter conseguia passar dezoito horas por dia com Hiroko, e, às vezes, vinte.

 

Sempre que não a observavam, Hiroko apalpava a aliança e pensava no dia do casamento. Mas por mais que se sentissem juntos ou ele dissesse que a amava ou ela a ele, chegou o momento. O último dia, a última noite, a última hora. Hiroko conservou-se horas a fio nos seus braços, contemplando as estrelas, pensando onde ele iria estar e nas lembranças a que iria agarrar-se.

 

Peter partia para Fort Ord de manhã. Tinham-se esgotado as palavras, quando ele a acompanhou de volta ao estábulo, onde vivia com os primos. Os outros já se haviam deitado mas Tak esperava-os. Queria despedir-se dele. Peter fora como que um irmão.

 

Toma conta de ti dirigiu-se Peter num tom rouco a Takeo, quase incapaz de se despedir, quando se abraçaram naquele momento por de mais doloroso. Tudo acabará em breve. Dir-te-ei como me escreveres acrescentou, desejando encorajá-lo e sem saber como o fazer.

 

Naquele último mês, o desânimo de Takeo tornara-se bem visível. Se não fosse a família, não teria aguentado.

 

Tu também, Peter. Por todos nós.

 

Peter baixou os olhos para Hiroko, que gemia baixinho. Chorara durante toda a tarde e a noite inteira. Tentara mostrar-se forte diante dele, mas não conseguira. Os esforços de Peter também haviam sido infrutíferos. Os dois abraçavam-se e choravam. Todos se tinham ido deitar e ninguém os observava. Hiroko soluçava baixinho.

 

Voltarei, Hiroko. Quero que o saibas. Independentemente do que acontecer e onde quer que estejas. Estarei contigo, quando tudo isto acabar.

 

Também eu garantiu, ciente de que, mau grado a sua juventude, era aquele o homem que alguma vez amaria. E agora pertencia-lhe. Sou tua para sempre, Peter-San pronunciou, repetindo as palavras do casamento.

 

Toma conta de ti, por favor, meu Deus... toma conta de ti. Amo-te disse, abraçando-a uma última vez e beijando-a, ao mesmo tempo que as lágrimas dos dois se misturavam nas faces.

 

Genki de gambatte acrescentou ela, recompondo-se. Fica bem e sê forte. Peter ouvira muitas vezes a frase nos últimos tempos e sabia o que ela queria dizer.

 

Também tu, pequenina. Lembra-te apenas do quanto te amo.

 

Também te amo, Peter-san retorquiu ela e esboçou uma vénia, enquanto ele se afastava.

 

Quando Peter transpôs o portão, Hiroko deteve-se a observá-lo. Permaneceu naquele lugar, até o perder de vista. Depois regressou devagar ao estábulo, onde se deitou vestida, deitada em cima da palha, pensando em Peter e em cada momento que haviam partilhado.

 

Parecia-lhe impossível que ele se tivesse ido embora, que se encontrasse ali, que aquilo fosse o final e não o começo. Esperava que não o fosse... Ele tinha de voltar para ela... Tinha de viver... Murmurou as palavras de uma oração budista, ali deitada, e Takeo tentou fechar os ouvidos às palavras.

 

As duas primeiras semanas a seguir à partida de Peter foram extremamente dolorosas para Hiroko. Não abandonou, porém, a rotina do dia a dia. Tomava o seu lugar na fila, mas raramente comia. Ajudava a carregar incontáveis baldes de água. Tomava duche quando a água estava quente e Reiko lhe dizia que o fizesse. E brincava com Tami.

 

No entanto, o seu espírito partira, a sua alma, a sua vida, o seu marido. E ninguém sabia que ele o era. Julgavam que se tratava de um amigo, do namorado. Apenas Reiko suspeitara de que ele fora algo mais.

 

Observara-os durante as semanas antecedentes e receava agora que Hiroko adoecesse de saudade. Todo o seu ser parecia entrelaçado no de Peter. Pediu-lhe que trabalhasse com ela na enfermaria para a manter ocupada. E precisavam mesmo de ajuda.

 

Dez mil pessoas tinham, pelo menos, outros tantos problemas. Havia gargantas inflamadas, constipações, problemas de estômago e novos casos de sarampo. Havia tosse convulsa, pessoas com doenças do coração, pleuresia e operações de urgência várias vezes por semana. Existia, porém, um número reduzidíssimo de equipamento e de medicamentos, mas possuíam os melhores médicos e enfermeiras de São Francisco, também evacuados com eles. Todos tinham ficado submetidos às mesmas regras e só lhes restava exercer com aquilo de que dispunham. Contudo e pelo menos, a enfermaria contribuía para que Hiroko se mantivesse ocupada.

 

Teve notícias de Peter várias vezes. Estava a treinar em Fort Dix, mas pouco mais soube. Duas das suas cartas chegaram totalmente riscadas pelos censores. Só conseguiu ler ”minha querida” e no fim ”amo-te, Peter”. Tudo o mais desaparecera e nem sequer conseguia adivinhar o que ele lhe contara. Também lhe escreveu e interrogou-se sobre se aconteceria o mesmo com as suas cartas.

 

O seu aniversário chegou e partiu em Julho, bem como o aniversário da data em que chegara aos Estados Unidos.

 

O pequeno jardim que a mulher plantara ali perto começara a crescer e alguém dera início a um clube de tricô e um coro.

 

Agora, havia boxe, combates de sumo e vários grupos de basebol; desenvolveram-se inúmeras actividades para as crianças e grupos religiosos, sobretudo para as mulheres. Uma vez, Hiroko esbarrara com o velho padre budista que a casara em segredo com Peter. Sorrira-lhe e ele esboçara uma vénia, mas não haviam trocado uma palavra.

 

Continuavam sem saber quando partiriam. Sabiam apenas que várias pessoas tinham sido mandadas para um campo de internamento chamado Manzanar, no Norte da Califórnia, mas a maioria dos evacuados para Tanforan mantinha-se no mesmo sítio.

 

No final de Agosto, os Alemães cercaram Leninegrado; nessa altura, Hiroko apanhara a disenteria que afectara quase todos. Trabalhava na enfermaria, mas nunca havia medicamentos suficientes e ela emagrecia de semana para semana. Reiko andava preocupada, mas Hiroko garantia que se sentia bem, e os problemas de estômago eram tão frequentes ali que os médicos não lhe prestaram atenção. De qualquer maneira, Reiko continuava preocupada com a sua palidez e óbvio mal-estar, só que nada podiam fazer.

 

Takeo também andava doente. De vez em quando, sentia dores no peito. Na maior parte das vezes, nada dissera, mas um dia tivera de se deitar no estábulo. E depois da partida de Peter, parecia distante e desanimado. Sentia-se sobretudo muito só e sem ninguém com quem conversar. Não mostrava interesse em se juntar a nenhum dos clubes que começavam a proliferar. Mantinha-se muito fechado e, além da mulher, apenas falava com Hiroko.

 

Tens muitas saudades dele, não é, miúda? perguntou-lhe um dia e ela anuiu com a cabeça.

 

Desde Junho que representava para ela um esforço gigantesco colocar um pé à frente do outro. Sem Peter, não tinha razão para existir. Apenas lhe restava ouvir os ecos das recordações e sonhar com o futuro. O presente nada tinha para lhe oferecer; apenas um vazio imenso.

 

Em Setembro, Peter escreveu-lhe, disse-lhe que estava em Inglaterra, que corriam boatos de algo importante muito em breve e que a informaria, mal fosse transferido. Só tinha o correio militar e, nas semanas seguintes, as suas cartas para Hiroko tornaram-se cada vez menos frequentes. A jovem interrogava-se, horrorizada, sobre se continuaria a receber as cartas dele, caso a transferissem de lugar.

 

Ia diariamente para a enfermaria e a combinação da monotonia e do medo eram desesperantes. Continuavam sem saber se seriam separados das famílias, ou mesmo dos filhos. Mas, pelo menos enquanto esperavam, tudo parecia calmo. Reiko conseguira mesmo que ela ajudasse nas pequenas cirurgias. Era muito eficaz e os médicos gostavam dela. A única tragédia aconteceu quando não conseguiram salvar um miúdo de dez anos durante uma extracção do apêndice, apenas por lhes faltarem os instrumentos e a medicação necessários.

 

Reiko e Hiroko tinham ficado muito deprimidas e, na manhã seguinte, à hora de ir para o trabalho, Hiroko sentia-se tão incomodada com problemas de estômago que não conseguiu fazê-lo. Acima de tudo, era incapaz de suportar a ideia da morte de outra criança ou de assistir a qualquer operação.

 

Em vez disso, passou a manhã a ajudar Tami na construção de uma nova casa de bonecas. Há muito que andavam ocupadas com a tarefa, mas tornava-se difícil sem o material ou as ferramentas e parecia prolongar-se eternamente. E recordavam outra que tinham em casa e que era tão bonita. Tami parecia sempre tristonha quando as comparava.

 

Nessa tarde, Takeo concordou em tomar conta de Tami e, por uma questão de responsabilidade, Hiroko regressou à enfermaria a fim de ajudar Reiko. E a prima ficou satisfeita ao vê-la.

 

Julguei que te tínhamos perdido para sempre disse a sorrir. Sabia que o dia anterior fora duro para Hiroko.

 

Não seria capaz de passar pelo mesmo.

 

A jovem parecia, de facto, doente. Aquilo que comiam estava estragado e todos adoeciam frequentemente, na maioria das vezes com intoxicações alimentares ou úlceras.

 

Acalma-te. Porque é que não enrolas ligaduras, hoje? sugeriu Reiko, dando-lhe muito que fazer, e Hiroko sentia-se contente por não ter de se ocupar com algo mais perturbador

 

No final do dia, regressaram lentamente ao estábulo, sem terem tirado as toucas e os aventais. Não usavam fardas, pois não as havia, mas as toucas ajudavam a identificá-las como pessoal médico ou enfermeiras. Quando chegaram, Takeo parecia ainda mais doente do que Hiroko se mostrara nessa manhã

 

O que se passa? Sentes-te mal? apressou-se Reiko a perguntar, receosa de que fosse de novo alguma coisa relacionada com o coração. O marido ainda era demasiado novo para sofrer de problemas do género, mas haviam passado por muito nos últimos meses, desde Abril

 

Estamos de partida informou ele com um olhar desesperado

 

Era o final de Setembro e há quase cinco meses que se encontravam ali

 

Quando?

 

Algures nos próximos dias, talvez antes

 

Como sabes? inquiriu Reiko bruscamente. Corriam tantos boatos, que era difícil descobrir onde estava a verdade E depois de cinco meses ali, quase tinha medo de se ir embora. O lugar era desconfortável e desagradável, mas tornara-se, pelo menos, familiar

 

Takeo estendeu-lhe um pedaço de papel, sem pronunciar palavra. O mesmo mencionava o nome dela e o dos três filhos

 

Não compreendo disse. O teu nome não vem aqui

 

Fitou-o com uma expressão assustada e ele acenou com a cabeça e entregou-lhe outra folha de papel. Continha o nome dele, mas mencionava um dia e uma hora diferentes para a partida. Ele ir-se-ia embora um dia mais tarde

 

O que significa isto? perguntou Sabes?

 

O homem que mo entregou, disse que devia significar que tínhamos destinos diferentes, se não, viríamos no mesmo papel respondeu

 

Reiko fitou-o e pôs-se a chorar em silêncio, ao mesmo tempo que estendia os braços e o apertava de encontro ao corpo. Havia outros com notícias semelhantes e que choravam também. Filhos casados estavam a ser enviados para destinos diferentes do dos pais e dos irmãos mais novos, tios e tias. A administração não se preocupava sobre quem iria para onde. E depois apercebeu-se subitamente de que não havia qualquer papel para Hiroko.

 

Não recebi nenhum para ela explicou Takeo, ainda sem ter recuperado.

 

Hiroko passou toda a noite aterrorizada, certa de que partiriam sem ela e ficaria sozinha em qualquer campo de internamento para onde a mandassem, sem nenhum parente, amigo ou marido. Só de pensar nisso, voltou a ficar com vómitos na manhã seguinte. Pouco depois, quando se preparava para ir para a enfermaria, vieram procurá-la. Ela partiria mais tarde do que os outros, sem dúvida para outro lugar, no dia a seguir a Takeo. Nem sequer tinham tempo de pensar. Reiko e os miúdos viajariam de manhã, sem eles.

 

Nessa tarde, Takeo dirigiu-se ao edifício da administração com muitos outros, e nada mudara, segundo lhes explicaram. Ele continuava a ser um nacional japonês e um grande risco a nível de segurança, o que não era o caso da mulher e dos filhos. Eles eram os chamados ”não-estrangeiros”, a nova palavra para cidadão. E ele representava o inimigo, tal como Hiroko.

 

Além disso, o seu trabalho como professor de Ciências Políticas preocupava-os muito e teria de ser interrogado com uma série de outras pessoas, que levantavam um problema igual ou semelhante. Iria para um campo de alta segurança, segundo lhe explicaram, para onde seriam enviados os evacuados de maior risco. A mulher seria mandada para outro lugar, com menos segurança. Quando perguntou se eventualmente acabaria por se lhe juntar, responderam que dependeria de muitas coisas e não faziam ideia do que podia acontecer.

 

Quanto a Hiroko, ela era, sem sombra de dúvida, uma estrangeira inimiga, confessara-lhes que tinha família no Japão e um irmão na força aérea. A sua classificação era de alto risco, declararam sem meias-palavras. Além disso, tinham conhecimento, através do FBI, de que ela andava romanticamente envolvida com um americano de grande importância política.

 

Ele não está nada envolvido na política argumentou Takeo a favor dela. Era meu assistente, em Stanford.

 

Teremos o maior prazer em discutir o assunto consigo durante o interrogatório declararam, sem hesitar. E com ela. Tempo é o que não nos falta.

 

Porém, quando falou com Reiko nessa noite, estava certo de que o meteriam na prisão. E, possivelmente, também Hiroko. Estavam em causa as ligações dela com o Japão. Tratava-se de uma rapariga de dezanove anos, estudante, apaixonada por um americano. Parecia algo que não justificava a morte, mas ambos estavam convencidos de que os abateriam como espiões. Hiroko também. Enquanto o escutava, e a outros mais, nessa noite, a jovem ficou com a certeza de que seria presa na qualidade de espia e talvez fuzilada. Embora se sentisse aterrorizada, tentou obrigar-se a aceitar a situação.

 

Quando ela e Takeo se despediram de Reiko e dos miúdos no dia seguinte, fizeram-no com a certeza de que nunca mais voltariam a encontrar-se. E apesar de todos os anos passados a ouvir falar dos samurai e da sua dignidade, Hiroko não conseguiu disfarçar a tristeza ao dizer adeus a Tami.

 

Tens de vir connosco protestou a miúda, que voltara a pôr a etiqueta com o número no casaco. Não podemos deixar-te aqui, Hiroko.

 

Irei para outro lugar, Tami-san, e talvez um dia vá ter contigo.

 

Contudo, mostrava-se pálida e doente quando abraçou Reiko, pensando na sua própria mãe e certa de que não voltaria a ver nenhum deles. Tinham-lhes dito que iriam para um campo com menores medidas de segurança do que o destinado a Takeo e Hiroko; portanto, talvez ficassem a salvo por lá.

 

Os amigos vieram dizer-lhes adeus antes de o autocarro partir, de estores corridos para não verem o caminho. Takeo e Reiko abraçaram-se longamente, chorando sob o olhar dos filhos. Ele beijou cada um deles, certo de que não voltaria a vê-los e disse-lhes que tratassem bem da mãe. Seguiu-se um momento de tristeza quando se despediu do filho mais velho. Houve poucas palavras, mas muitas emoções. Estavam rodeados por cenas do mesmo género. Era a segunda despedida dolorosa para Ken nesse dia. Peggy e a família haviam sido enviadas para Manzanar, ao começo da manhã.

 

Por fim, Reiko e as crianças subiram, envoltas em tristeza, para o autocarro. Desceram os estores, os seus rostos assustados desapareceram e o autocarro arrancou rumo a um destino desconhecido, para norte, sob os olhares desesperados de Takeo e Hiroko.

 

O dia seguinte não foi melhor. Desta vez, Hiroko despediu-se a sós de Takeo. Ele parecia velho e cansado para um homem de cinquenta e um anos, que alguns meses antes ostentava um aspecto tão jovem. Contudo, os últimos meses tinham sido muito pesados. E, à semelhança de Reiko, também Hiroko achou que o via pela última vez.

 

Toma conta de ti aconselhou-a meigamente, morto por dentro por haver perdido os entes amados no dia anterior, mas sentindo-se também muito ligado a ela.

 

Hiroko tinha uma vida pela frente, um futuro, se não a matassem ali, o que era uma hipótese. Esperava para bem dela que Peter viesse buscá-la. Eram dignos um do outro.

 

Deus te abençoe acrescentou, depois do que entrou no autocarro, sem olhar para ela.

 

Hiroko deixou-se ficar o máximo de tempo que pôde, observando o autocarro que se afastava numa nuvem de poeira, após o que regressou ao estábulo deserto, a fim de esperar pela manhã.

 

Nessa noite, passeou pelos campos onde fizera amor com Peter. Sentou-se tranquilamente na relva alta e interrogou-se sobre o que aconteceria se não voltasse, se se deixasse ficar ali sentada até morrer, ou a descobrirem. E se decidisse não partir no autocarro, na manhã seguinte? No entanto, agora tinham o nome dela. E o número. Sabiam coisas acerca de Peter. Segundo parecia, o FBI possuía um dossiê completo sobre ele, por causa da sua relação com ela e do trabalho que desempenhava em Stanford. Além disso, falara-lhes do irmão que ingressara na força aérea japonesa. Viriam procurá-la, se não aparecesse para apanhar o autocarro. Podiam vingar-se em Peter, ou nos outros, se não cooperasse e, portanto, não o faria.

 

Deixou-se ficar muito tempo sentada, pensando em Peter, rezando por ele, desejando a sua presença e depois regressou com passos vagarosos, como anteriormente o haviam feito juntos. E, semelhante a uma visão do passado, deparou com o velho padre budista no caminho e sorriu-lhe, interrogando-se sobre se ele a reconheceria. O padre fez-lhe uma vénia e deteve-a.

 

Tenho rezado muito por ti e pelo teu marido afirmou ele num murmúrio. Caminha devagar e sempre com Deus ao teu lado.

 

Esboçou mais uma vénia e afastou-se, como se os seus pensamentos divagassem para outro assunto. Contudo, o facto de o ter visto nessa noite assemelhava-se a uma bênção, e Hiroko sentiu-se mais forte.

 

No dia seguinte, de manhã cedo, tomou duche, meteu as últimas coisas na pequena mala e encontrou um dos pássaros origami que fizera para Tami na palha, ao lado do colchão. Pegou na avezinha de papel que, aos seus olhos, surgia como um sinal, a recordação de um rosto amigo e de alguém que amava, agarrou na mala com a outra mão e encaminhou-se, silenciosa, para o autocarro.

 

Avistou uma das amigas de Sally, mas a jovem não a reconheceu, e ainda um dos médicos com quem Reiko havia trabalhado. Estremeceu ao entrar no autocarro, receosa do que pudessem fazer-lhe no lugar para onde se dirigia. Não havia, porém, forma de mudar a situação, e os outros tinham partido. Takeo e Reiko, os miúdos... Peter...

 

Nada lhe restava, à excepção do que o velho padre lhe dissera na noite anterior. Caminhar com Deus ao seu lado... caminhar devagar... e esperar por Peter. E se morresse agora, às mãos deles, o que achava possível e aceitava, ele ficaria, pelo menos, a saber quanto o amava.

 

Desta vez o autocarro encheu-se rapidamente e guardas armados subiram também. Só havia mulheres no autocarro e invadiram-na pensamentos horríveis, mas ninguém se aproximou dela. Os estores estavam descidos, a fim de não saberem para onde as levavam e os guardas ocuparam os lugares, de armas apontadas na direcção delas. Com um arranhar das mudanças, o autocarro arrancou para um destino desconhecido.

 

A viagem do autocarro que partira de Tanforan foi surpreendentemente breve. Decorrido pouco mais de meia hora, o veículo parou e os guardas mandaram-nas sair em grupo. Hiroko não conseguia imaginar onde estavam, mas disseram-lhe que pegasse na mala e saísse do autocarro com as outras mulheres.

 

Mal desceram, apercebeu-se de que estavam na estação de caminho-de-ferro de San Bruno. Um comboio aguardava-as e outros grupos estavam a ser impelidos sob a mira das armas.

 

A situação era séria. Não havia sorrisos, nem palavras bondosas, ou explicações e nenhum dos guardas parecia amistoso. Ninguém olhou para ela quando a empurraram para dentro do comboio, à frente de dúzias de mulheres. Todavia, no comboio, encontravam-se homens noutras carruagens, desta vez segregados, e Hiroko reparou que havia mais homens do que mulheres. Quando ocupou o seu lugar num duro banco de madeira, agarrando a mala com as duas) mãos, tinha a certeza de que a levavam de regresso a São Francisco para a deportarem.

 

Os comboios eram muito antigos e pouco confortáveis e as janelas estavam tapadas com tábuas para que não pudessem ver o caminho. Ouviam-se sussurros e pequenos gritos; desta vez, não havia crianças, e a maioria das mulheres achava que iam para a prisão ou qualquer outro campo, onde as executariam.

 

Hiroko deixou-se ficar ali sentada, de olhos fechados, pensando em Peter, tentando afastar a ideia da morte. Não tinha medo de morrer, mas entristecia-a a ideia de nunca mais o ver, nunca mais estar nos seus braços, nem voltar a dizer-lhe quanto o amava.

 

Talvez, pensou, enquanto o comboio arrancava e algumas mulheres se desequilibravam, talvez fosse preferível morrer a não voltar a vê-lo. Em seguida, recordou-se de algo que a avó lhe ensinara em miúda. Aquilo a que se dava o nome de gin, a obrigação de honrar o nome. Era essa honra que agora devia ao pai; mostrar-se digna, forte e sensata, caminhar voluntariamente para a morte, com orgulho. Pensou também no on, a obrigação que devia ao seu país e aos pais, independentemente do medo ou tristeza que pudesse sentir, jurou em silêncio não os desonrar.

 

Passado algum tempo, começou a sentir-se um calor terrível no comboio devido a todas as pessoas que ali seguiam,

apertadas umas contra as outras. Veio a saber que não havia carruagens de passageiros que chegassem e portanto se tinham servido de carruagens de mercadorias para os transportar. Algumas mulheres enjoaram, mas Hiroko estava demasiado entorpecida para sentir o que quer que fosse à excepção da tristeza.

 

Quando a noite caiu, voltou a arrefecer, e a viagem prosseguiu. Apercebeu-se de que talvez não a enviassem de barco

de São Francisco, mas do estado de Washington ou de Los Angeles. Sabia que, antes da guerra, partiam barcos para o Japão desses dois locais.

 

Ou talvez os outros tivessem razão e se dirigissem pura e simplesmente para a morte. A execução era mais simples do que a deportação. A mulher sentada ao lado dela chorou a noite toda, soluçando pelo marido e pelos filhos. Era de nacionalidade japonesa, como Hiroko, e só estava há seis meses nos Estados Unidos. Ela e o marido tinham vindo viver com os primos, enquanto ele trabalhava num projecto de construção. Era engenheiro e haviam-no levado no dia anterior, tal como a Takeo. Os dois filhos pequenos tinham partido antes, com os primos dela e os filhos. Tal como no caso de Reiko, os primos dela eram nisei.

 

Hiroko não fora à casa de banho durante todo o dia e sentia-se muito aflita, quando, por fim, pararam, à meia-noite. Estava escuro lá fora e não se viam casas em parte alguma. Fizeram-nas descer mais uma vez do comboio à força de armas apontadas, e disseram-lhes que podiam ir à casa de banho.

 

Não havia latrinas, nem árvores, nem qualquer abrigo e estavam sob o olhar de homens. Um mês antes, o seu pudor faria com que morresse, de preferência a ceder, mas agora não se importou. Tal como os outros, fez o que tinha a fazer. Sentindo uma extrema vergonha, voltou a subir para o comboio e enroscou-se a um canto, sem largar a mala. E interrogou-se sobre a razão que a levava a guardá-la. Se ia morrer, não precisaria das calças que Reiko lhe embalara, nem das camisolas quentes ou da fotografia dos pais. Possuía igualmente uma fotografia de Peter. Takeo tirara-a aos dois, antes de serem obrigados a devolver as máquinas fotográficas, como contrabando. Peter estava ao seu lado e ela ainda exibia um ar extremamente tímido, vestida de quimono.

 

Tudo lhe parecia à distância de uma vida, e tornava-se difícil compreender que só tinham decorrido três meses desde a última vez que o vira. E ainda mais difícil acreditar que a vida já fora normal, vivendo em casas autênticas e conduzindo carros, com amigos e empregos, ideais e sonhos. Agora, nada lhes restava, à excepção do pedaço infinitesimal de tempo que era o presente. Estava a dormitar quando o comboio voltou a parar. Não fazia ideia de que horas eram, mas o céu estava cinzento quando as portas deslizaram e ela respirou o ar gelado.

 

Acordou subitamente e puseram-se todos de pé. Ouviam-se gritos lá fora e havia mais homens brandindo armas na sua direcção, ordenando-lhes que descessem do comboio, o que se apressaram a fazer. Hiroko cambaleou ao saltar e outra mulher ajudou-a com um pequeno sorriso. Assemelhou-se a um raio de sol na noite escura, um sinal de que alguém estava ali com ela.;

 

Deus te abençoe! sussurrou-lhe a mulher num inglês perfeito.

 

Deus nos abençoe a todos! acrescentou alguém, e, perante aquelas palavras, as baionetas viraram-se na sua direcção e apressaram-se a obedecer.

 

Hiroko avistou de novo os prisioneiros masculinos e divisou edifícios ao longe. Era difícil saber do que se tratava, mas ouviu um homem falar em aquartelamento. Caminharam depois uns três quilómetros, transportando os poucos pertences e com os soldados ao lado. Não se viam civis, apenas soldados; nuvens de vapor escapavam-se-lhes da boca, enquanto avançavam sob o ar gelado. Parecia Inverno, embora corresse o mês de Setembro.

 

Sente-se bem? perguntou a uma mulher de idade que parecia doente.

Apercebeu-se pelo olhar que ela não falava inglês e repetiu a pergunta em japonês. A mulher limitou-se a assentir com a cabeça, respirando com dificuldade. Explicou que ha via dois filhos seus no exército, no Japão, mas tinha um filho médico ali. Ele já partira para Manzanar na semana anterior, mas, por qualquer motivo, não a tinham levado com ele. Não estava com bom aspecto, mas não se queixava. Hiroko pegou-lhe meigamente na mala e levou-a.

 

Por fim, chegaram a um grande edifício. O percurso demorara uma hora e meia. Algumas das mulheres usavam, absurdamente, saltos altos, outras eram de idade e nenhuma conseguia andar depressa. Há algum tempo que os homens as tinham ultrapassado, uma longa coluna, obrigados a marchar a passo rápido pelos jovens soldados. E apenas alguns velhos caminhavam atrás, de baionetas apontadas às costas.

 

Contudo, não havia vestígio dos homens quando as mulheres foram empurradas para o interior do edifício e informadas de que as tinham trazido até ali para as interrogar. Por qualquer motivo, haviam sido designadas como de ”alto risco” e seriam mantidas ali até se determinar a sua futura situação.

 

O discurso do tenente foi breve e seco e enfiaram-nas em celas. Puseram números nas malas e levaram-nas. Hiroko ficou chocada quando lhe estenderam roupa de presidiária e lhe disseram que despisse a dela.

 

Não existia uma vez mais privacidade e teve pura e simplesmente de trocar de roupa, enquanto os soldados as observavam. Voltou a sentir-se atormentada quando vestiu o horrível pijama que lhe deram. Era grande de mais para ela e parecia uma rapariguinha ao ser conduzida para uma cela com mais duas mulheres.

 

Havia três tarimbas de aço na divisão, com colchões de palha, e, no canto um buraco. Tinham-lhes destinado uma prisão. Hiroko pôs-se em pé e olhou desesperada através da janela, quando o Sol se ergueu. Era difícil acreditar que alguma vez teria outra vida, que seria livre ou veria novamente Peter.

 

Ao afastar-se da janela, apercebeu-se de que as outras duas mulheres estavam a chorar. Não lhes disse nada; instalou-se tranquilamente no seu catre e fixou as montanhas que avistava ao longe. Não fazia a mínima ideia de onde estariam, ou para onde iriam, se é que iriam para algum lugar. Era agora este o seu destino.

 

Nas três semanas após a chegada, recebiam três pequenas refeições por dia. A comida era escassa, mas, pelo menos fresca, e ninguém sofreu os devastadores problemas de estômago ocorridos em Tanforan. Também Hiroko se sentia melhor, dormia muito e teceu tapetes com a palha dos colchões. Quase sem pensar, começara a fazer tatami. De vez em quando, sempre que encontrava pedaços de papel, transformava-os em avezinhas. Quando uma das mulheres descobriu um pedaço de fio, penduraram os pequenos pássaros de Hiroko na janela.

 

Era Outubro e não tinham notícias do seu destino, nem do dos outros. Hiroko ouvira falar de vários casos de suicídio entre os homens. As mulheres pareciam aceitar mais facilmente o destino e a maioria não fazia a mínima ideia da razão por que as haviam metido na prisão. Por fim, Hiroko foi chamada para interrogatório.

 

Queriam saber algo acerca do seu irmão no Japão, se tivera notícias dele, se ele lhe enviara mensagens desde o começo da guerra e o que sabia da sua posição na força aérea. Foi fácil responder-lhes. Não tinha ideia de onde ele estava ou o que fazia. A única mensagem que recebera fora a do pai, pela via do consulado, logo após o ataque a Pearl Harbor, quando ele lhe dissera que queria que ela ficasse e prosseguisse os estudos e mencionara que Yuji estava na força aérea.

 

Não sabia mais nada. Indicou-lhes o nome e a idade de Yuji e esperava que não lhe causassem problemas. Contudo, era-lhe impossível imaginar como poderiam fazê-lo. As duas nações estavam em guerra e um jovem na força aérea do Japão constituía um verdadeiro inimigo.

 

Interrogaram-na sobre o pai, o que ele ensinava na universidade, se tivera ideias radicais ou se se encontrava de qualquer maneira relacionado com o governo. Hiroko esboçou um sorriso tranquilo ao responder. O pai era um sonhador, cheio de ideias novas, consideradas demasiado modernas pelos próprios colegas. Não era, porém, radical, nem pertencia a nenhuma força política. Descreveu-o como um homem pacífico, fascinado pela História, tanto a moderna como a antiga, o que constituía um retrato bastante exacto do pai. Pressionaram-na depois acerca de Takeo e o que sabia dele, as suas actividades, associações e política, e a jovem garantiu-lhes que, tanto quanto sabia, ele era apenas um bom professor e uma boa pessoa. Era dedicado à família e nunca o ouvira expressar uma palavra de deslealdade face aos Estados Unidos. Fez questão de vincar que sempre desejara tornar-se um cidadão americano e se sentia como se assim fosse.

 

Por fim, depois de vários dias de interrogatório, e como já previa, chegaram a Peter. O seu único receio era o de que alguém pudesse ter ouvido ou visto a pequena cerimónia executada pelo padre budista, em Tanforan. Sabia que aquela cerimónia religiosa simbólica, não reconhecida pelo Estado, poderia causar-lhe problemas.

 

Respondeu que eram amigos, que o conhecia porque ele era assistente de Tak, mas não adiantou mais nada e eles não insistiram. Perguntaram se tivera notícias dele e sabiam que fora esse o caso. Haviam mantido um cuidadoso registo das cartas de Peter e ela confessou que ele, de facto, lhe escrevera, mas que todas as cartas haviam sido censuradas.

 

Quando a interrogaram, disse que a última vez em que tivera notícias fora quando ele deixara Fort Dix, em Nova Jérsia, encontrando-se em Inglaterra, ao serviço do general Eisenhower. Desde essa altura, nada sabia, nem tinha a certeza se receberia mais notícias.

 

Quer regressar ao Japão? inquiriram, esperando a sua resposta.

 

Estava a ser interrogada por dois jovens oficiais, que, por várias vezes, conferenciavam entre si, sem que conseguisse escutá-los. Respondeu-lhes, porém, honestamente, sem artifícios, e olhando-os de frente.

 

O meu pai quer que eu fique nos Estados Unidos explicou, voltando a interrogar-se sobre se a mandariam de volta para o Japão ou muito simplesmente a abateriam.


Deixara de se interessar, desde que não desonrasse a família, nem prejudicasse Peter com qualquer afirmação. Mostrou-se muito cautelosa.

 

Por que razão ele quer que fique aqui? perguntaram num tom insistente, de súbito muito interessados nas suas palavras e seguros de estarem a aproximar-se do alvo

 

Mandou uma mensagem ao meu primo, dizendo que achava mais seguro e que queria que eu continuasse a estudar.

 

Onde estudava? indagaram, surpreendidos, como se achassem que ela não passava de uma criada ou empregada de uma quinta.

 

Contudo, ela já estava habituada.

 

Na Universidade de St. Andrew’s respondeu, e eles anotaram.

 

Mas quer voltar para o Japão? Dava a sensação de que a enviariam de regresso ao seu país, se ela quisesse, mas não era com o seu caso.

 

Ofereciam o regresso ao Japão para os que o queriam e permitiam que os que usufruíam do direito de cidadania desistissem deste e voltassem para lá, mesmo que nunca lá tivessem estado. A Autoridade de Realojamento de Guerra propunha-lhes igualmente trabalho relacionado com a guerra nas fábricas de leste, mas a maioria das pessoas receava ser enviada para lugares desconhecidos, onde temia ser torturada. Quase se tornava mais fácil permanecer nos campos de internamento com gente conhecida ou a quem as pessoas estavam ligadas.

 

Quero ficar aqui pronunciou num tom calmo. Não quero regressar ao Japão vincou firmemente.

 

Porquê? insistiram.

 

Os indivíduos continuavam a suspeitar dela, embora os homens trocassem comentários maliciosos sobre a sua beleza. Irradiava uma luminosidade e uma paz que os teria tocado profundamente, caso o permitissem.

 

Quero ajudar os meus primos, se puder. Também desejava ficar nos Estados Unidos por causa de Peter, mas não o mencionou. Disse, porém, que gostava da América, o que era verdade por uma série de razões, mau grado a questão do realojamento. Jamais se esqueceu de que o pai queria que ela permanecesse ali e tinha, portanto, de o fazer. Não podia desobedecer-lhe.

 

Voltaram a insistir nas perguntas sobre Peter e queriam saber por que razão ele fora visitá-los tantas vezes a Tanforan. Haviam anotado todos os dias, quantas vezes fora, quanto tempo lá passara. Só ignoravam, por sorte, o que fizera com Hiroko nesses momentos. No entanto, o FBI interrogara-o insistentemente, tanto no campo, como quando ingressara no exército. Pareciam ter ficado satisfeitos com as respostas e Hiroko deu-lhes praticamente as mesmas.

 

Ele estava a tentar finalizar o trabalho do meu primo, antes de partir para o exército. Tinha muitos testes para corrigir, muitas coisas para fazer. Era director do departamento em Stanford e o meu primo fora director, antes... antes... Sabiam o que ela pretendia dizer e anuíram com a cabeça. Portanto, tinha muitas coisas a ensinar-lhe.

 

Também ia lá para a visitar? Hiroko não negou, mas ficou por ali.

 

Talvez. Mas passávamos muito pouco tempo juntos. Ele tinha muito trabalho a fazer com o meu primo.

 

Esboçaram um gesto de assentimento com a cabeça. No entanto, voltaram ao assunto várias e repetidas vezes, durante aquela semana, perguntando-lhe se ela era leal aos Estados Unidos ou ao Japão. Hiroko respondeu que não tinha opiniões políticas e apenas se sentia muito triste por os dois países estarem em guerra. Aos seus olhos, não existia, de facto, uma verdadeira divisão de lealdades. Amava o seu país, mas também amava a sua família ali e, como mulher, não tinha escolhas a fazer nem um exército a servir.

 

Enfrentou todas as perguntas com tranquilidade e calma, dando respostas simples e directas. Uma semana depois de começarem, voltaram a colocar-lhe uma etiqueta, devolveram-lhe a roupa e entregaram-lhe a mala. Não fazia ideia do local para onde ia, se tinha passado ou chumbado no exame, se aquilo significava deportação ou execução. Decerto nada a conduziria à liberdade.

 

Passava simplesmente à fase seguinte, deixando o lugar onde se encontrava. Despediu-se com breves palavras das mulheres que haviam partilhado a sua cela, desejou-lhes felicidades e foi conduzida para o exterior, vestida com as suas roupas. Estava extremamente pálida, mas não tão magra, como um mês antes. Permanecera trinta dias na prisão e continuava sem notícias dos primos.

 

Levaram-na para o exterior com meia dúzia de outras mulheres e um grupo grande de homens, e ouviu alguém referir-se-lhes como os ”leais”, não sabendo o que isso significaria. Foram conduzidos em passo de marcha sob o frio gelado, por um longo e estreito caminho até um abarracamento em mau estado.

 

Parecia tratar-se de um campo de internamento diferente daquele onde estivera, ou talvez fosse o mesmo, mas havia uma grande distância a separá-los. Desta vez, quando ultrapassaram o arame farpado e avistou os guardas a observá-los de torres, deu-se igualmente conta de actividade e da presença de crianças. Ouvia-as a brincar algures e viu pessoas de braço dado, que caminhavam pelo sujo caminho entre os edifícios.

 

Existia ali um ambiente mais agradável e uma actividade, normal. Assemelhava-se mais a Tanforan e havia o dobro das pessoas. Contudo, parecia tudo mais organizado e, quando Hiroko olhou em volta, aliviada por voltar a ver pessoas a sorrir e crianças a brincar, um dos guardas estendeu-lhe um pedaço de papel com o seu número escrito e também o número do seu edifício. Desta vez estava no 14C e não fazia ideia de com quem iria viver.

 

É na terceira fila à direita, junto ao edifício da escola indicou o guarda com um ar simpático; interrogou-se, subitamente, sobre se passara qualquer teste e subira a um nível diferente.

 

Talvez não fossem mandá-la de volta, nem matá-la. Viu que também as outras mulheres sorriam; era um alívio tão grande, depois do que tinham passado. Os homens pareciam encarar a mudança mais seriamente e trocavam impressões em voz baixa, fazendo perguntas para as quais nenhum deles tinha respostas. iTudo era um mistério ali, de um momento para o outro, como havia sido para todos, desde Pearl Harbor.

 

Deixou os outros e percorreu o caminho indicado, sem um guarda, sem companhia. Era a primeira vez que se encontrava sozinha no último mês, e sentia-se muito bem, andando sem ter de falar com ninguém, ou responder a perguntas. Sabia que os guardas na torre a observavam e havia arame farpado por todo o lado, mas, em comparação com o que tinham vivido nos últimos seis meses, aquilo era a liberdade.

 

Encontrou facilmente o edifício, depois de perceber onde se situava o edifício da escola. Tratava-se de longas filas de prédios impessoais, com números a indicar os ”apartamentos”, como lhes chamavam, onde viviam famílias inteiras, independentemente do número de membros, mas havia pequenas tabuletas nas portas e campainhas de fabrico pessoal.

 

Viviam em divisões fechadas e não em estábulos como em Tanforan. Ao continuar o percurso, avistou uma tabuleta com os dizeres BEM-VINDO A TULE LAKE, e foi a primeira vez num mês que soube o nome do sítio onde se encontrava, embora não lhe interessasse.

 

Contudo, de certa forma interessava; fazia com que voltasse a sentir-se quase humana. Sorriu ao avistar uma miúda sentada num degrau, agarrada a uma boneca. A criança tinha um chapéu de malha e uma camisola grossa, mas mantinha-se sentada com um ar desanimado e cantarolando baixinho. Parecia tão triste que Hiroko sentiu um aperto no coração, ao aproximar-se. Depois, Hiroko soltou uma exclamação abafada quando a miúda ergueu os olhos e a fitou. Era Tami.

 

Hiroko! gritou a garota, acolhendo-se nos braços da prima, ao mesmo tempo que a rapariga mais velha desatava a chorar. Hiroko! Mãezinha! gritou, e a mãe veio a correr, vestida com uma bata castanha coçada e um avental. Andara a limpar a ”casa” durante um intervalo, na enfermaria. Era a hora do almoço.

 

Oh, meu Deus! exclamou Reiko, correndo na sua direcção; as duas mulheres abraçaram-se longamente e com uma comoção extrema. Depois, Reiko afastou-se e inquiriu com um olhar preocupado: Viste o Tak? Onde estiveste?

 

Estive aqui próximo na prisão explicou, abanando a cabeça quanto ao paradeiro de Tak e apontando na direcção de onde viera.

 

Reiko ouvira dizer que, ali perto, havia outro campo para pessoas de alto risco, onde os detinham para interrogatório. Porém, não fizera a mínima ideia de que Hiroko se encontrava lá e também desconhecia o que sucedera a Takeo.

 

Estás bem? O que te fizeram? perguntou-lhe Reiko, ansiosa.

 

Fizeram muitas perguntas. Nunca vi o Takeo respondeu num tom firme, mas ele partiu no mesmo tipo de autocarro que nós e, portanto, talvez estivesse lá.

 

Havia uma dúzia de possibilidades, como ambas sabiam. Takeo poderia ter estado em Manzanar, ou no campo que haviam aberto em Minidoka no mês anterior, ou fora do estado, em qualquer dos outros campos de internamento, Gila River ou Poston, no Arizona; Grenada, no Colorado; Heart Mountain, no Wyoming; ou Topaz, no Utah. Poderia mesmo ter sido levado para o Arkansas, em Rohwer.

 

No último mês, cinco novos campos de internamento haviam sido criados e estavam a instalar mais um, no Arkansas, chamado Jerome, que começaria a receber prisioneiros a qualquer momento. Existia alguma comunicação entre os campos, mas era limitada e censurada, e Reiko não tinha forma de contactar ninguém para indagar sobre Takeo.

 

Conhecia, sem dúvida, pessoas em campos diferentes, mas não tinha forma de saber quem estava onde ou como obter notícias. E, todos os dias, era uma surpresa ver quem aparecia e quem conheciam, mesmo em Tule Lake, onde as pessoas continuavam a chegar.

 

Hiroko apercebeu-se pelo seu número de que a haviam designado para ficar com Reiko e os miúdos. Conduziram-na, pois, até ao interior e viu que tinham duas pequenas divisões, uma onde Reiko dormia com Sally e Tami, em catres estreitos, e outra que servia de sala de estar, onde Ken dormia à noite, e Takeo também, se viesse juntar-se-lhes.

 

Quase não restava espaço para acolher Hiroko, mas havia outras famílias muito maiores e conseguiam sempre arranjar uma maneira. Fazia-se o que se tinha a fazer e não havia escolha. Era aquele o seu destino.

 

Como estão a Sally e o Ken? quis saber Hiroko, com uma expressão ansiosa, procurando o olhar de Reiko e apercebendo-se novamente da magreza e ar preocupado da prima.

 

Reiko andava desesperada por notícias de Tak e também de Hiroko.

 

Estão bem. O Ken anda a trabalhar nos campos. Não que possa fazer muito nesta época do ano, mas há provisões armazenadas e têm de se preocupar com elas. Podia ter ido para a escola acrescentou com um suspiro, mas recusou.

 

O filho continuava irado devido ao tratamento recebido e não se calava com a violação da Constituição. Não estava só, pois havia outros rapazes com a mesma fúria, e adultos também.

Alguns dos adultos falavam em renunciar à sua cidadania e regressar ao Japão, embora nunca lá tivessem estado. Era a única opção, se não quisessem permanecer nos campos, ou trabalhar nas fábricas, em lugares distantes.

 

Não desejavam voltar ao Japão, mas a vergonha e a ignomínia de estarem em campos de internamento eram demasiadas e preferiam tentar a sorte na pátria dos antepassados. Reiko, porém, nunca pensara nisso e sabia que Takeo também não o faria. Eram americanos de alma e coração e tinham apenas de esperar até que tudo aquilo terminasse.

 

A Sally anda na escola e já fez amizades acrescentou Reiko.

 

Havia várias organizações femininas, um clube de amizades, grupos de música, aulas de arte e de jardinagem. Já existiam projectos para dar vida a uma orquestra e falava-se de um recital por altura do Natal. Era inacreditável que, no pequeno mundo que partilhavam, as pessoas se mostrassem decididas a não se queixar, a manter-se de cabeça bem erguida e a construir um ambiente agradável.

 

Hiroko sentiu que as lágrimas lhe subiam aos olhos quando Reiko lhe expôs a situação. Aquelas pessoas eram tão corajosas, que não tinha o direito de se queixar, nem mesmo de chorar por Peter. Reiko fitou-a e voltou a beijá-la, sentindo-se como se tivesse encontrado uma das filhas, e Tami agarrou-as, com a boneca, feliz por ter Hiroko de novo.

 

Agora, podemos construir a minha casa de bonecas? perguntou, voltando a parecer uma miúda de nove anos e não uma garota sensata e profundamente triste, como há uns minutos, quando Hiroko a vira pela primeira vez.

 

Se encontrarmos as coisas necessárias... Sorriu à prima, agarrando-lhe firmemente na mão, enquanto Reiko mirava Hiroko de alto a baixo.

 

A jovem estava, na realidade, com melhor aspecto do que em Tanforan. Andara tão doente com problemas de estômago e disenteria, que Reiko acabara por se preocupar.

 

Que tal vai o teu estômago? interessou-se Reiko com um ar de enfermeira, e Hiroko sobressaltou-se.

 

Muito melhor respondeu com um sorriso tímido.

 

Há meses que ninguém lhe perguntava pela saúde; aquele interesse de Reiko fez com que se sentisse tão vulnerável e amada por ter alguém que se preocupasse com ela e não lhe fizesse apenas perguntas, aguardando respostas.

 

Sente-se bem, tia Rei?

 

Óptima.

 

Só que não conseguia dormir de noite, preocupada com o marido. E sabia pela sua própria experiência como enfermeira que ele estava a desenvolver uma úlcera gástrica. Contudo, além disso, lá iam vivendo.

 

As condições eram aceitáveis, os guardas tratavam-nos com decência e as outras pessoas do campo eram, na sua maioria, fantásticas. Havia uma ou outra que ocasionalmente se queixava, mas a maior parte das pessoas da sua idade estava decidida a tirar o melhor partido, sobretudo as mulheres.

 

Alguns dos homens estavam a atravessar uma fase dura: sentiam-se responsáveis e culpados por não terem sido capazes de salvar as famílias e os negócios, por não terem previsto o que iria suceder. Consideravam-se uns inúteis a cumprir tarefas domésticas, como descascar batatas, ou a cavar buracos no solo gelado. Não se comparava com as profissões anteriores de arquitectos, engenheiros, professores, ou mesmo agricultores. Estavam profundamente envergonhados com a sua presença ali.

 

Os velhos sentavam-se a conversar sobre os tempos idos, aflorando o passado com mãos antigas, a fim de não serem tocados pelo presente. Só as crianças pareciam relativamente intocáveis. A maioria tinha-se adaptado sem problemas, à excepção das que estavam doentes ou fragilizadas. Os adolescentes quase que apreciavam a situação, pensava, por vezes, Reiko. Havia muitos, estavam sempre juntos e reuniam-se para cantar, tocar música ou apenas conversar e rir, endoidecendo os mais velhos.

 

Trabalho na enfermaria explicou Reiko. Como é natural. Temos muitas crianças doentes aqui. Umas gripes horríveis, nestas semanas, e sarampo.

 

O sarampo era o que lhes envenenava a vida. As crianças ficavam doentíssimas e os adultos ainda mais. De vez em quando, alguns dos idosos eram atacados e sucumbiam. Já se tinham verificado várias mortes naquele breve mês que Reiko passara em Tule Lake, na sua maioria devido a problemas que seriam insignificantes noutro lugar. Detestava assistir a cirurgias ali. As condições eram horríveis e o éter escasseava. Cá nos vamos arranjando prosseguiu com um sorriso resignado.

 

A vida teria sido tão mais fácil se estivessem com Takeo. Não conseguia imaginar-se a passar toda a guerra sem ele, mas, de momento, parecia ser essa a situação. Rezava para que ele estivesse vivo e assim permanecesse até voltarem a encontrar-se. Não gostara do seu aspecto, em Tanforan, antes de partirem, mas nada podia fazer a esse respeito, à excepção de rezar e preocupar-se.

 

Faz um favor a ti própria e não adoeças aqui dirigiu-se ela a Hiroko. Mantém-te quente, come o que puderes e tenta afastar-te das crianças doentes. Pagam-me doze dólares por mês na enfermaria. Sorriu ao ajudar Hiroko a arrumar as suas coisas e olhou, desaprovadora, o casaco da jovem, que não parecia suficientemente quente para Tule Lake. Acho bem que te juntes a um desses clubes de tricô e faças umas camisolas acrescentou.

 

Era difícil arranjar lã, mas algumas estavam a desfazer camisolas velhas para fazerem outras, sobretudo para as crianças ou mulheres grávidas. Reiko instalara uma espécie de maternidade, mas não podiam desperdiçar éter nem medicamentos com elas. Precisavam das duas coisas para cirurgias graves. Era como nos velhos tempos da medicina.

 

Regressaram então ao sol de Inverno e Tami disse-lhe que, na escola, estavam a fazer decorações para a Noite das Bruxas. Reiko e Hiroko deixavam-na na escola depois do almoço, no caminho de volta para a enfermaria.

 

Mau grado os avisos de Reiko, Hiroko quis oferecer-se como voluntária, para trabalhar com ela ali. Achava que parecia interessante e útil, muito mais do que ir para a cozinha.

 

Quando Reiko a apresentou aos médicos com quem trabalhava, eles mostraram-se encantados por dispor de mais ajuda. Deram-lhe um avental e uma touca e começaram por pô-la a fazer camas, lavar lençóis e trapos ensopados de sangue e bacias cheias de vomitado. Ela própria vomitava lá fora, quando Reiko foi ter com ela mais tarde e lhe sorriu compreensivamente.

 

Lamento, mas este trabalho não é nada agradável.

 

Não há problema sussurrou Hiroko num fio de voz, agradecida por se ver livre da prisão e disposta a fazer tudo o que fosse necessário.

 

Nas duas semanas seguintes, quase se habituou. Executava as piores tarefas, mas, a pouco e pouco, começaram a deixá-la falar com os doentes. Era tão meiga e tinha modos tão suaves que despertava a simpatia geral. E o seu japonês fluente constituía uma ajuda para todos os doentes idosos da enfermaria. Apreciavam especialmente o seu enorme conhecimento das tradições.

 

Ken também ficou feliz por vê-la de novo, pois podia falar-lhe de algumas das coisas que o preocupavam e ela escutava-o atentamente. Chegou a confessar que ouvira alguns dos nisei falar em renunciarem à cidadania americana para partir para o Japão e se libertar do campo, tendo ele próprio pensado nisso muitas vezes.

 

O jovem sabia que a mãe ficaria com o coração despedaçado, mas todas as fibras do seu ser se revoltavam perante a ideia de ficar prisioneiro num campo de internamento, enquanto outros americanos, semelhantes a ele, lutavam pelo seu país.

 

Hiroko suplicou-lhe, porém, que nunca pusesse em causa desistir da sua cidadania, nem falasse desse assunto à mãe. Acima de tudo, ele desejava ingressar no Exército americano, mas isso estava fora de questão. Todos os que o haviam tentado, antes da evacuação, encontravam-se agora nas cozinhas dos campos.

 

Nos últimos tempos, os quadros de recrutamento haviam classificado os nisei como ”estrangeiros incapazes de servir” e, portanto, o exército estava fora de questão para Ken e todos os jovens como ele.

 

Hiroko sentia-se satisfeita por, na maioria das vezes, conseguir chamá-lo à razão. No entanto, a sua fúria aumentava, quando falava com os seus jovens companheiros. Tivera uma ou duas vezes notícias de Peggy, em Manzanar, mas a comunicação entre os campos era difícil e parecia que cada vez se distanciavam mais. Cada um tinha os seus próprios problemas.

 

Sally também passava por algumas dificuldades. Aos quinze anos, sentia-se adulta e ansiava por mais liberdade. Queria andar com os jovens, muitos dos quais não tinham uma educação como a dela. Reiko queria mantê-la sob vigilância e nem sempre era fácil. Hiroko conversava bastante com ela, quanto a obedecer a regras e a dar ouvidos à mãe, mas Sally não gostava quando ela tentava fazer o papel de irmã mais velha.

 

Só tens mais quatro anos do que eu queixou-se. Como podes ser tão estúpida?

 

Não queremos que te metas em sarilhos disse Hiroko num tom firme, e incitou-a a que se juntasse a um dos clubes de raparigas.

 

Contudo, Sally achava-os estúpidos. Hiroko juntou-se ao grupo sinfónico, tocando alternadamente piano e violino. Nos tempos livres, dedicava-se a trabalho artístico com as crianças, na maior parte das vezes origami, e prometera fazer arranjos de flores com o clube de mulheres de Reiko, quando houvesse flores depois do Inverno.

 

As notícias da guerra também suscitavam interesse. Várias pessoas recebiam jornais, embora nem sempre fossem actuais. No entanto, Hiroko conseguiu saber que Eisenhower e os seus homens tinham desembarcado em Casablanca, Orão e Argel com tropas inglesas, e os franceses de Vichy, no Norte de África, haviam-se rendido. Tratava-se de um golpe importante e a Hiroko só lhe restava orar para que Peter estivesse bem e vivo.

 

E, quatro dias depois, as tropas alemãs avançavam sobre a França ocupada, segundo parecia, sobretudo para dominar a resistência francesa. No entanto, foram estas as únicas notícias que tiveram antes do Dia de Acção de Graças.

 

Nesse ano, a refeição festiva foi escassa; ninguém conseguiu comer peru. Algumas pessoas tinham recebido encomendas de amigos. Outras usavam os salários para comprar artigos de catálogos que lhes eram enviados para os campos.

 

No entanto, era difícil obter comida suficiente para cozinhar um verdadeiro jantar de Acção de Graças. Contentaram-se com frango, hambúrgueres e, em alguns casos, só conversa. Mas sentiam-se, como habitualmente, gratos por estarem vivos e as crianças mostravam-se muito alegres na noite antes do feriado.

 

Nesse dia, chegou de comboio um novo grupo do outro lado do campo que era utilizado como prisão. Um número cada vez maior de pessoas estava a ser libertado depois de haverem sido interrogadas quanto à lealdade e consideradas como aptas para serem postas no campo, junto das outras.

 

Na quarta-feira, à tarde, Reiko acabara de voltar do trabalho e estava a ajudar Tami a fazer os trabalhos escolares, quando alguém bateu à porta. Sally foi abrir e ficou ali, especada.

 

Ouviu-se subitamente um grito, quando Reiko o viu e correu para ele. Era Takeo. Parecia cansado, estava muito magro e tinha o cabelo muito mais grisalho, mas estava salvo, era ”leal” e, além de mais de dois meses de prisão numa pequena cela, não o haviam maltratado.

 

Graças a Deus! Graças a Deus! repetia Reiko, enquanto ele a beijava e envolvia os filhos num abraço, observados por Hiroko, muito comovida.

 

Nenhum deles conseguia acreditar na felicidade de o terem de volta após aquela prolongada ausência.

 

Reiko continuava a fitá-lo, como uma mãe olha um filho pequeno, abraçava-o, tocava-lhe no rosto e no cabelo, querendo certificar-se de que ele era real e não imaginário.

 

Porém, quando Takeo se sentou, viu que ele quase sucumbira com o que lhe sucedera. Não se tratava do que lhe haviam feito, mas do que não lhe tinham feito. Não fora digno nem de liberdade nem de respeito, nem reconhecido como um cidadão americano, ou mesmo um homem com direito a receber o que lhe era devido.

 

Em dois meses, tivera muito tempo para reflectir e, tal como todos os outros, pensara no regresso ao Japão, mas sabia que não poderia fazê-lo. Não queria ir para lá. Já não era japonês. Sentia-se completamente americano, por adopção. A tristeza sobreveio quando percebeu que o seu país adoptivo não o queria.

 

Contudo, nada dissera disto a Reiko quando se sentou ao lado dela ou se dirigiram lentamente à cantina para jantar. Parecia caminhar muito devagar e Reiko estava mais preocupada do que nunca. Quis saber se ele estivera doente, mas Takeo limitou-se a responder que estava cansado e ela reparou que lhe custava respirar. Estava exausto e ofegante, quando chegaram à cantina.

 

Depois, deu a sensação de se recompor, e nessa noite Ken dormiu no quarto com os outros, a fim de que Tak e Reiko pudessem ficar a sós. Dormiram no único catre na sala, com a palha a espreitá-los, mas contentíssimos por estarem juntos.

 

E a festa de Acção de Graças do dia seguinte foi uma verdadeira comemoração. Jantaram na cantina com todos os outros e depois voltaram, jogaram às charadas e comeram uns biscoitos que Reiko conseguira arranjar.

 

Estavam todos muito bem-dispostos e dava a sensação de que Tak recuperara um pouco da sua antiga personalidade. Ria e, ao olhar em volta, espicaçou a mulher, dizendo-lhe que a casa parecia uma lixeira. Já tomara conhecimento de uns homens que faziam móveis e combinara ir falar com eles. Serviam-se de restos de tábuas e tudo o que conseguiam encontrar. Havia muitas coisas que Takeo queria oferecer-lhe.

 

Tornava-se difícil acreditar que alguma vez teriam uma verdadeira casa, com mobiliário e objectos bonitos, antiguidades e cortinas que fossem algo mais do que bocados de vestidos velhos.

 

No entanto, prometeu a Reiko que faria o que pudesse por eles. Sentia-se melhor ao tomar conta da família de todas as formas possíveis e Reiko teve mesmo a impressão de que respirava com mais facilidade. Tentou dissuadi-lo de fumar, mas ele riu e Reiko fitou-o e viu que havia algo diferente no seu olhar. Não estava furioso como Ken, mas tornara-se amargo.

 

Não resta muito mais, pois não? retorquiu, quando ela se queixou do fumo.

 

Resta, sim contrapôs ela suavemente. Nós e os miúdos. Um dia, voltaremos a casa. Esta situação não vai durar eternamente.

 

A casa, onde? A casa desapareceu e estarei velho de mais para recuperar o emprego.

 

Não, não estarás declarou ela com uma expressão determinada. Não se deixaria derrotar. Tomara essa resolução, mais firmemente do que nunca, no mês anterior, como muitos outros. Arranjaremos outra casa, melhor do que esta. O Peter tem o nosso dinheiro na conta dele. Ainda temos idade para ganhar mais, quando sairmos daqui. Fitou-o com um olhar que Takeo nunca lhe vira antes e que o fez sentir-se tão orgulhoso que quase chorou. Não permitirei que isto nos derrote.

 

Nem eu prometeu ele.

 

No dia seguinte, Reiko sentiu-se feliz quando ele a informou de que falara com vários dos homens sobre as eleições que teriam para escolher os representantes da comunidade. Todos com mais de dezoito anos podiam votar, o que para ele constituía uma estreia. Era a primeira vez desde que viviam nos Estados Unidos que os issei podiam participar num processo eleitoral. Tinham nascido no Japão e, até essa altura, não lhes fora permitido participar em eleições.

 

Ficou, porém, irritado ao descobrir que o director do campo anunciara que só os nisei e os sansei, que eram americanos de nascimento, podiam exercer funções. Os nisei e os sansei não levantaram objecções, satisfeitos com o poder que poderiam deter.

 

Tak tinha a sensação de que ninguém queria os que haviam nascido no Japão. Nem os Americanos, nem os da sua estirpe. Não havia lugar para eles.

 

Não leves isso tão a peito disse-lhe Reiko. Os jovens também querem a sua oportunidade.

 

No entanto, Tak sentia-se humilhado com aquilo e tudo o mais que acontecera e ela já não sabia o que fazer para lhe sarar as feridas. Mostrava-se mais calmo do que o habitual e muito desanimado.

 

Não falou, porém, das suas preocupações a Hiroko, quando trabalhavam lado a lado na enfermaria. Hiroko andava a aprender muitas coisas novas e mostrava um sorriso aberto, nessa segunda-feira, Dia de Acção de Graças.

 

Recebera, finalmente, notícias de Peter. A carta demorara semanas a chegar e fora riscada pelos censores dos dois lados. Não fazia ideia do que ele lhe dizia, pelo menos não de tudo. Sabia apenas que ele estava em Orão quando lhe escrevera e lutava contra Rommel.

 

Peter dizia que sentia umas saudades tremendas e que recebera as cartas dela.

 

As suas cartas haviam sido enviadas de Tanforan para Tule Lake e ela já lhe escrevera da nova morada, só que, obviamente, ele ainda nada recebera. Sorriu durante dias a fio depois de ler a carta e trabalhou o dobro para Reiko.

 

Na primeira semana de Dezembro voltou a haver um terrível surto de gripe, quando as temperaturas desceram abaixo de zero.

 

Verificaram-se igualmente alguns casos de pneumonia, e duas pessoas de idade morreram, o que deprimiu Hiroko. Esforçara-se tanto por os manter vivos, lendo-lhes em japonês, dando-lhes banho, conservando-os quentes e contando-lhes histórias. Contudo, tudo fora inútil. E ficou ainda mais triste quando trouxeram uma rapariguinha, uma das amigas de Tami, também em estado desesperado.

 

Os médicos tinham a certeza de que ela não sobreviveria àquela noite, mas Hiroko sentou-se, incansável, ao lado dela e negou-se a ir para casa. Aos seus olhos, era quase como se se tratasse de Tami. Reiko observou-a a tentar que a criança não morresse, ao mesmo tempo que a mãe dela se mantinha por perto e chorava. Hiroko ocupou-se dela durante três dias e, por fim, a febre baixou e os médicos disseram que ela iria recuperar.

 

Hiroko quase desmaiou ao ouvir as notícias. Estava tão cansada, que mal conseguia manter-se de pé. Não abandonara a criança, nem sequer para ir comer.

 

Reiko trouxera-lhe comida da cantina. No entanto, salvara a miúda, fizera o que eles não podiam, sem medicamentos nem um hospital. Fizera-o com amor e determinação. A mãe da criança voltou a agradecer-lhe, quando Hiroko sorriu e saiu da enfermaria. Deu dois passos fora da porta, com o avental no braço e, ao fitar o céu, tudo começou a girar à volta dela e desmaiou.

 

Uma mulher de idade, do outro lado da estrada, assistiu à cena e deteve-se a observar uns momentos, para ver se a jovem caíra. Hiroko mantinha-se no chão e não esboçava um único movimento quando a mulher de idade se inclinou sobre ela. Observou-a rapidamente e precipitou-se para o interior, a fim de chamar um médico. Reiko, que ainda se encontrava na enfermaria, correu até ao exterior para ver o que se passara, e Hiroko continuava pálida de morte, sem se mexer, e inconsciente.

 

Um médico apareceu cá fora chamado por Reiko e duas das enfermeiras acorreram igualmente. Ele tomou-lhe o pulso e abriu os olhos para examinar as pupilas, mas ela manteve-se imóvel. Transportaram-na para o interior do hospital e a amiguinha de Tami pôs-se a chorar ao vê-la.

 

Está morta? Morreu? perguntou a miúda, sem parar de chorar.

 

Ainda há uns minutos se mostrara tão viva, embora todos se apercebessem do seu estado de exaustão. Contudo, a mãe da menina apressou-se a sossegá-la, dizendo-lhe que Hiroko estava somente a dormir.

 

O médico levou-a para uma área isolada, tapada com cobertores, e voltou a tomar-lhe o pulso. O quadro clínico não lhe agradava. A jovem mal respirava.

 

O que se passa? inquiriu Reiko, ofegante, sentindo-se mais no papel de mãe do que de enfermeira.

 

Ainda não sei respondeu ele em inglês, com a maior franqueza.

 

Era sansei, americano de segunda geração, e estudara em Stanford. Quando a ordem de evacuação chegara, podia ter ido para leste, ao encontro de parentes, mas não o fizera. E, por fim, decidira ficar ali e ajudar o seu povo.

 

A tensão arterial está muito baixa e mal respira acrescentou, virando-se para olhar Reiko por cima do ombro. É a primeira vez que isto lhe acontece?

 

Tanto quanto sei, é.

 

Hiroko estava muito pálida e os sais de amoníaco revelavam-se inúteis. Parecia piorar. Reiko interrogou-se sobre se se trataria de qualquer gripe, ou talvez poliomielite. Escarlatina... Era incapaz de tirar conclusões. Não estava quente, mas fria, como se a circulação baixasse a um nível desesperante.

 

O médico deu-lhe uma bofetada, abanou-a levemente, depois olhou para a enfermeira que estava ao seu lado e deu-lhe uma ordem breve.

 

Dispa-a!

 

Queria examinar-lhe o abdómen e o peito, queria saber por que razão ela quase não respirava. Reiko ajudou as duas outras raparigas a desabotoarem-lhe o grosso vestido de lã. Era comprido e solto, e os pequenos botões na parte da frente pareciam levar uma eternidade a desabotoar. Ouviu-se mesmo o som de um rasgão, quando o médico afastou o vestido, lhe puxou as cuecas e todos viram. Hiroko estava atada dos seios às coxas com ligaduras enormes, tão apertadas que lhe impediam literalmente a circulação.

 

Céus! O que é que ela fez a si própria?

 

Não fazia ideia do que significavam aquelas ligaduras, nunca as vira e interrogou-se sobre o que ocultavam, mas Reiko sabia. Há anos que não as via, mas soube de imediato, mal as cortou rapidamente. E quase nesse mesmo instante, observaram que o sangue voltava a circular e ela ganhava cor. Apertara-as tanto, que não só impedira a circulação, mas a respiração.

 

Continuava imóvel, mas quando o médico desapertou o círculo infindo de ligaduras, o corpo dela aumentou de volume sob as suas mãos, e até mesmo ele compreendeu o que a jovem fizera, embora nunca tivesse visto tal coisa antes.

 

Pobre rapariga! exclamou, erguendo os olhos para Reiko e voltando a pousá-los em Hiroko.

 

Ligara-se a ponto de quase se matar a si e ao bebé. Mal lhe desapertou as ligaduras, perceberam que ela se encontrava num adiantado estado de gravidez. Fora uma loucura, mas a avó falara-lhe nisso e a mãe fizera o mesmo quando estivera grávida dela e de Yuji.

 

Hiroko não quisera que ninguém soubesse do bebé, nem sequer Peter. Nunca lhe dissera. Só descobrira depois de ele se ter ido embora, em Junho. E apenas tivera a certeza em Julho. Tanto quanto podia supor, o bebé nasceria entre o fim de Fevereiro e o princípio de Março. Estava grávida de seis meses.

 

Decorreram uns cinco minutos antes de se mexer, enquanto Reiko e as outras enfermeiras lhe massajavam suavemente a pele e sentiam que o bebé dava um enorme pontapé, em sinal de protesto. Seria muito mais feliz agora, sem as restrições que a mãe lhe impusera, mas Reiko raciocinava, incansável, ao observá-la.

 

Não conseguia imaginar quando ou como acontecera aquilo. Desde Abril que se encontravam no campo de internamento e o único homem com quem a tinha visto fora Peter. E decerto ele não havia sido assim tão idiota para fazer uma coisa daquelas. Mas alguém o fizera. Hiroko ia ter um filho.

 

Passados mais uns minutos, a jovem abriu os olhos e fitou-os, sentindo-se muito longe e um tanto tonta. Ainda não se apercebera de que lhe tinham aberto o vestido e cortado as ligaduras. Reiko tapara-a discretamente com um cobertor e o médico fitou-a com uma expressão de alguma censura

 

Foi uma patetice o que fizeste! declarou, pegando-lhe na mão e sem deixar de a olhar.

 

Eu sei respondeu ela com um sorriso. Mas não queria deixá-la. Sabia que, se ficasse ao seu lado, a ajudaria. Julgava que ele se referia à miúda doente que Hiroko não abandonara um único momento durante três dias.

 

Não me referia a ela. Referia-me a ti... É muito mau, muito mau o que tens estado a fazer ao teu bebé. Surpreende-me o que fizeste. Quase te estrangulaste... a ti e a ele.

 

Há dias que Hiroko não tirava as ligaduras e o médico interrogou-se sobre se o bebé crescera desde que ela se encontrava ali, fazendo com que as ligaduras ficassem ainda mais apertadas e ela desmaiasse. Não conseguia compreender como a jovem fora capaz de aguentar.

 

Não quero que voltes a fazer o mesmo acrescentou, e Hiroko virou o rosto muito corada. Vou deixar-te com a tua tia disse, com um aceno de cabeça na direcção de Reiko. Mas, durante uns tempos, não quero que trabalhes tanto. Tens outra pessoa em quem pensar, Hiroko. Deu-lhe uma palmadinha no braço e sussurrou à prima: Hoje e amanhã, não a deixe sair da cama. Depois, pode regressar ao trabalho. Estará óptima.

 

Sorriu e saiu do cubículo na companhia das duas outras enfermeiras. Hiroko ficou a sós com a prima. Virou lentamente o rosto para a enfrentar e chorava.

 

Lamento tanto, tia Rei. Não por causa das ligaduras, mas da gravidez. Lamento tanto. Desgraçara-os a todos e, contudo, desejara tanto que aquilo acontecesse e ainda o desejava. Por maior que fosse o infortúnio, queria o filho de Peter.

 

Porque é que não me contaste?

 

Não podia.

 

Havia muita coisa que não podia contar-lhes e não queria arranjar sarilhos a Peter. Achava que, se lhes dissesse, talvez não a deixassem voltar a vê-lo. Se alguém descobrisse e informasse o FBI, ele podia ser castigado. Hiroko imaginara todo esse tipo de terrores.

 

Reiko hesitou um momento antes de lhe fazer a pergunta.

 

É do Peter, não é?

 

Contudo, Hiroko não lhe respondeu, pelos mesmos motivos. Receava por ele e pelo bebé. E se lho tirassem depois de ele nascer? Contudo, não o fariam. Um antepassado japonês, fosse em que grau fosse, era causa de detenção. Aquele bebé seria um prisioneiro, como ela o era. Ninguém lho tiraria. Era o seu único conforto.

 

Porque não me respondes? insistiu Reiko.

 

Não posso, tia Rei declarou ternamente, decidida a protegê-lo, independentemente do que pudesse custar-lhe.

 

De certa maneira, também estava a proteger Reiko, ao não lhe dar a confirmação. Reiko tinha consciência do facto e não voltou a pressioná-la, mas, no íntimo, sabia que era de Peter.

 

Ajudou Hiroko a abotoar novamente o vestido e a levantar-se quando se achou capaz de o fazer, embora quase tivesse voltado a desmaiar. Contudo, Reiko obrigou-a a sentar-se, trouxe-lhe um copo de água e ela livrou-se das horríveis ligaduras.

 

Não voltes a fazer uma coisa dessas! repreendeu-a. Nem mesmo a minha mãe o fez e era bastante antiquada.

 

Todavia, sorriu-lhe. Que segredo difícil ela mantivera durante todo aquele tempo, mesmo na prisão! Interrogou-se sobre se Peter saberia, mas, mesmo que fosse esse o caso, em nada poderia ajudá-la agora.

 

Regressaram devagar ao pequeno quarto, de braço dado, enquanto Reiko lhe falava meigamente sobre não trabalhar em demasia, comer o melhor que pudesse e tomar conta de si e do bebé. Contudo, ao olhá-la, ficou surpreendida por verificar o seu adiantado estado de gravidez. Num só momento, e liberta das ligaduras que usava, a barriga de Hiroko parecia enorme. Formava um acentuado contraste com a sua frágil constituição e Reiko preocupou-se subitamente que pudesse ter problemas em dar à luz. Aquele não era propriamente o lugar mais adequado para ter problemas médicos ou complicações.

 

Entraram com passos vagarosos, e Hiroko foi deitar-se. Takeo ergueu os olhos ao vê-las entrar. Acabara de fazer uma peça de mobiliário que lhe agradara particularmente e, nessa tarde, ia trabalhar na messe. Tencionava começar a ensinar em breve na escola. Mas, ao ver Hiroko, ficou boquiaberto e conseguiu manter-se em silêncio, até uns minutos depois, quando regressou ao exterior com Reiko.

 

Passou-me qualquer coisa ao lado? Sou completamente cego? disse com um ar de extrema surpresa. Da última vez que a vi, há dois dias, estava normal. Agora, volta com um aspecto de estar grávida de seis ou sete meses, se a memória não me falha. O que é que fazem, afinal, nessa enfermaria? Milagres? Ou será que perdi o juízo?

 

Não, não propriamente acalmou-o Reiko com um sorriso e aceitando o cigarro que ele lhe oferecia.

 

Era tão bom ter Takeo de volta, partilhar coisas com ele e ter alguém com quem falar. Por muito desiludido que estivesse, era o homem que ela amava há vinte anos, o seu melhor amigo e companheiro. Sentia pena que Hiroko não pudesse partilhar o mesmo tipo de relação com o pai do bebé.

 

Ela tem andado a esconder-nos isto, Tak explicou a mulher, ainda incapaz de acreditar no que a jovem fizera a si própria. Apertou-se tanto, que quase se estrangulou. Só Deus sabe o que isso fez ao bebé. Estava completamente inconsciente e só descobrimos o motivo quando a despimos. Quase deixara de respirar.

 

Pobre miúda! Suponho que sei quem é o pai, não? Falhou-me alguma coisa?

 

Talvez tivesse havido outra pessoa, pois ela era tão discreta que nunca se sabia, mas Reiko achava que não.

 

Deve ser o Peter anuiu, mas nunca mo dirá. Acho que tem medo. Talvez tenha medo que lhe façam algo ou lhe tirem o bebé. Ou talvez esteja a proteger-nos. Não sei.

 

Achas que ele sabe? inquiriu Takeo, fumando pensativamente o cigarro. Era um dos poucos prazeres que ainda lhe restava.

 

Não faço ideia, mas duvido. Não me parece que tenha tido coragem de lhe escrever, mesmo que o desejasse. Não, se até a nós tem medo de confessar.

 

Depois, pensou em algo mais que a preocupava. Não se tratava de uma situação fácil, sobretudo para Hiroko.

 

O que achas que devemos dizer às crianças? acrescentou.

 

Não temos muito que dizer. Ela vai ter um bebé, nós amamo-la e vamos amar o bebé. É tudo respondeu ele num tom despreocupado.

 

Vou recordar-te essas palavras, se isto alguma vez acontecer à Sally. Reiko sorriu, um tanto divertida ante a simplicidade da afirmação.

 

É diferente observou Tak com uma gargalhada, abanando a cabeça e fitando a mulher com um ar de admiração e afecto. Reiko via sempre o lado divertido das situações e ajudava-o a fazê-lo. Ele adorava essa sua faceta, juntamente com muitas outras coisas, como a sua bondade. Se se tratasse da Sally, matava-a. A Hiroko não é minha filha. No entanto, mal pronunciara a frase, reflectiu melhor: Pobre miúda. Passou por tanta coisa má e agora isto. Acho que era esse o motivo porque estava sempre tão doente do estômago, em Tanforan. Mas nunca desconfiei da verdade.

 

Nem eu admitiu Reiko, depois do que acrescentou, virando-se para o marido: Achas que o Peter casa com ela, se for o pai do filho?

 

Casaria de qualquer maneira, Rei respondeu Takeo, sem hesitar. É doido por ela. E provavelmente o filho é dele. Curioso! Notei algo diferente nos dois. Costumavam ir dar aqueles longos passeios todas as tardes, mas nunca imaginei que pudessem meter-se em sarilhos. Mas estavam sempre tão unidos, tão próximos um do outro, como as pessoas casadas. Surpreende-me que não tenha casado com ela, antes de partir.

 

Não me parece que ela o quisesse, sem consentimento do pai adivinhou Reiko, no preciso momento em que Hiroko saía devagar da casa, ficando diante deles.

 

Lamento muito declarou de cabeça baixa e triste por tê-los envergonhado.

 

A jovem achara que conseguiria de qualquer maneira guardar segredo, o que era infantil.

 

Nós amamos-te afirmou Reiko, rodeando-lhe a cintura com o braço e esboçando um sorriso ao baixar os olhos para o volume da barriga.

 

Lembrava-lhe os próprios filhos, quando tinham nascido. Fora uma boa altura para ela e Tak. Apenas lamentava que não se passasse o mesmo com Hiroko, e a jovem só os tivesse a eles e não um marido.

 

Quando é que vai nascer? inquiriu Takeo, virando-se para a olhar, e ela corou.

 

Ainda lutava contra o embaraço da situação e, ao mesmo tempo, sentia-se orgulhosa e feliz por ir ter um filho de Peter.

 

Em Fevereiro respondeu baixinho. Talvez Março. Takeo esboçou um aceno de cabeça e olhou para o céu,

 

pensando em muita coisa, na sua vida, no seu casamento, nos filhos... e em Peter. Depois sorriu-lhe e também a envolveu num abraço.

 

É uma boa altura para ter um bebé afirmou. Será Primavera... um novo começo, uma nova vida.. Talvez um novo mundo para nós todos, então.

 

Obrigada, tio Tak agradeceu e beijou-o na face, enquanto fechava os olhos, pensando em Peter e rezando para que ele estivesse a salvo nessa altura.

 

As reacções das crianças à gravidez de Hiroko foram diferentes. Tami ficou encantada, Ken surpreendido e protector e Sally mostrou-se pouco compreensiva. Sentia-se aborrecida que todos se mostrassem repentinamente tão solícitos, apesar do que ela fizera e discutiu mais do que uma vez com a mãe por causa desse assunto.

 

Se eu tivesse feito tal coisa, tu e o pai matavam-me. Reiko sorriu, lembrando-se de que Tak pronunciara aquelas mesmas palavras e concordou com ela.

 

Provavelmente disse, só que é um bocado diferente. Ela tem dezanove anos, quase vinte, está numa outra situação e não é nossa filha.

 

Continua a ser um nojo que todos a tratem como se ela fosse a Virgem Maria à espera de Jesus.

 

Ora, por amor de Deus, Sally. Não sejas tão má para ela. A pobrezinha está só e esta é uma situação terrível para qualquer rapariga.

 

Ela sabe quem é o pai? perguntou Sally rudemente e a mãe deitou-lhe um olhar furioso.

 

Não é isso o que está em causa. Apenas estou a dizer que devemos ser simpáticos e ajudá-la a tomar conta do bebé.

 

Não contem comigo para fazer de baby-sitter. Pensem no que diriam as minhas amigas.

 

Estava humilhada, mas Reiko não partilhava o seu sentimento. Acontecera a muitas raparigas ao longo dos anos e não cabia a Sally atirar pedras à prima.

 

Tudo dependerá de como lhes explicares retorquiu a mãe num tom firme.

 

Não preciso, mãe. Toda a gente vê.

 

Viam, realmente, mas pouca gente comentava. Na vida difícil que haviam levado, o facto quase passava despercebido. E alguns viam que fornecia um sinal de esperança e nova vida e achavam também que ela era feliz. Ninguém a marginalizou, nem fez comentários. Vários perguntaram quando nasceria a criança, mas a maioria manteve-se em silêncio. E nem uma única pessoa indagou sobre quem era o pai. Reiko e Tak insistiram mais vezes a este respeito, mas Hiroko recusou confirmar as suas suspeitas e nem sequer pronunciou uma palavra. Em Dezembro, recebeu mais cartas de Peter. Continuava no Norte de África e estava bem. Não fazia a mínima ideia do que se passava com Hiroko e as cartas estavam cheias de declarações de amor, tal como as que ela lhe escrevia.

Hiroko deu-lhe novas de Reiko, de Tak e dos miúdos e pouco contou sobre o que se passara no campo e nada sobre o bebé. Ele pedira-lhe uma fotografia, mas a jovem só possuía a que Peter lhe dera dos dois e ninguém ali tinha permissão de ter máquina fotográfica; portanto, foi-lhe fácil ignorar o pedido de fotografias.

 

O aniversário de Pearl Harbor foi um dia tranquilo para todos, excepto em Manzanar, onde, segundo ouviram dizer mais tarde, os ânimos haviam ficado exaltados e se verificara um motim relacionado com a administração da cantina. Houve dois mortos e dez pessoas ficaram feridas, o que ainda entristeceu mais todos em Tule Lake. Os guardas tornaram-se subitamente mais severos.

 

Em seguida, as atenções viraram-se para o Natal. Nessa altura, Takeo ensinava na escola e Reiko andava ocupada na enfermaria, ajudando os poucos médicos existentes a cuidar de constipações, casos ocasionais de apendicite e gripe.

 

Hiroko voltara ao trabalho depois de dois dias de descanso e agora sentia-se bem. Todas as noites, ela e Tak participavam num projecto secreto. O primo estava a ajudá-la a construir uma casa de bonecas para Tami. Erguera a estrutura e construíra a mobília, enquanto Hiroko se encarregava das decorações de parede, carpetes, cortinados e pequenas pinturas. Em alguns aspectos, embora não fosse tão luxuosa, era ainda mais elaborada do que a antiga. E tinham sido muito criativos na substituição dos materiais.

 

Takeo também estava a construir um jogo de monopólio para ela e divertia-se imenso com Reiko a montá-lo. Andava igualmente ocupado com um jogo de xadrez para Ken. E Reiko tricotava uma bonita camisola de angorá para Sally, tendo encomendado a lã na ala de Montgomery, pelo que pagara a maior parte do seu salário.

 

Reiko também tricotara uma camisola para Tak e mandara-lhe vir um casaco quente com o resto do dinheiro. Tanto ela como o clube de tricô haviam confeccionado pequenos presentes para oferecer numa festa a Hiroko, depois do Natal. Tak estava igualmente a fazer-lhe um bercinho.

 

No dia de Natal, todos ficaram surpreendidos com os presentes que haviam preparado entre si. Takeo comprara um belo vestido para Rei, a partir do catálogo da Sears, com o seu magro salário e Hiroko dera a ambos um poema que escrevera sobre o que eles significavam aos seus olhos, chamado Tempestades de Inverno, Arcos-Iris de Verão. E todos adoraram os presentes.

 

Contudo, nesse ano, o que eles mais desejavam era a liberdade. O dia revelou-se maravilhoso, independentemente de onde estavam, e quase todas as pessoas no campo tentaram pensar onde se encontravam no ano anterior, ou com quem.

 

Os velhos jogaram xadrez, as mulheres conversaram e bordaram, as pessoas comeram, falaram e sonharam, visitaram-se nos minúsculos apartamentos, enfeitados com decorações feitas à mão. Haviam estado presas e fechadas, quase tudo lhes fora tirado, mas era impossível roubar-lhes a alma. Estavam decididas a manter-se vivas e determinadas. Hiroko acalentava esse mesmo pensamento, enquanto tocava com a orquestra no concerto do Natal.

 

Na passagem do ano, realizou-se um baile no edifício de recreio e uma banda de swing, a que Ken se unira, tocou. Hiroko foi assistir e um jovem convidou-a para dançar. Ela corou e disse que não podia. Ele não se apercebera da gravidez, por baixo do casaco.

 

Em Janeiro, os Alemães renderam-se em Estalinegrado, o que foi uma vitória importante para os Aliados. Tule Lake viveu um mês tranquilo, exceptuando mais uma vaga de gripe que atingiu as pessoas e se revelou pior do que as outras. Durou quase um mês, alguns dos idosos morreram e outros ficaram em grave risco.

 

No fim de Janeiro, e para surpresa geral, o Serviço de Selecção voltou a oferecer aos homens e aos rapazes japoneses o ”privilégio” de se apresentarem como voluntários a nível de serviço militar. Contudo, Ken deixara de querer ingressar no exército, pois não via qualquer sentido em servir um país que o tinha atraiçoado. A maioria dos outros jovens era da mesma opinião, e ainda se encontravam nesse estado de revolta, quando os oficiais do campo pediram a todos que assinassem um juramento de lealdade, na primeira semana de Fevereiro.

 

Para a maioria dos presos, o juramento de lealdade não constituía problema. Eram todos leais aos Estados Unidos, mas, para Ken e muitos jovens como ele, ainda se sentiam mais atraiçoados pelas perguntas que lhes faziam e as respostas exigidas.

 

Havia sobretudo duas perguntas que os irritavam, uma sobre se estariam dispostos a servir nas Forças Armadas dos Estados Unidos em combate, sempre que necessário, e a outra sobre se prestariam lealdade ao Japão ou ao imperador, o que estava longe de fazer sentido para eles, pois muitos eram americanos ou sempre haviam vivido nos Estados Unidos.

 

Todavia, a maioria dos jovens como Ken sentia-se enraivecida por os terem privado de todos os direitos e agora lhes perguntarem se estavam dispostos a morrerem por um país que os tratara tão mal. Há mais de um ano que Ken ansiava por ingressar no exército, mas, depois de ter sido atraiçoado e encarcerado durante meses, deixara de querer servir ou fazer o que quer que fosse pelo seu país.

 

E, tal como ele, muitos dos jovens negaram-se a responder positivamente a essas duas perguntas e, como resultado, foram rotulados como sendo os ”rapazes não-não”, devido às duas perguntas a que se haviam negado a responder; foram segregados na área de alto risco em Tule Lake, para mais interrogatório.

 

Gerou-se uma enorme agitação nos campos, e Ken continuava sem assinar o juramento, dois dias depois de lhe ter sido entregue. Todos na família o haviam feito e Ken e o pai discutiram acaloradamente sobre a questão.

 

Takeo compreendia como ele se sentia, bem como os outros jovens na sua situação. Haviam sido humilhados e postos de lado, e negando-lhes os seus direitos como cidadãos americanos. Contudo, fora-lhes devolvida a possibilidade de servirem e, para além do trabalho de guerra ou de renunciarem à cidadania, não lhes restava outra forma de abandonarem os campos.

 

Surgira aquela oportunidade de se mostrarem americanos, de obterem a devolução dos seus direitos, de provarem que eram cidadãos leais e Tak não queria que Ken deixasse de o fazer. Tinha de assinar o juramento de lealdade, para não cair em desgraça.

 

Já nem sequer me sinto americano, pai redarguira Ken, irritado. Não me sinto americano. Não me sinto japonês. Não me sinto o que quer que seja. E o pai não soubera o que lhe responder.

 

Não tens alternativa, filho. Compreendo. Respeito o que sentes. Aconselho-te, porém, a que assines o juramento de lealdade. Caso contrário, metem-te na prisão e causam-te um monte de sarilhos. Tens de o fazer, Ken.

 

Discutiram durante dias e, finalmente, a fim de lhes poupar problemas, Ken assinou, mas muitos dos seus amigos não o fizeram, porque era a única oportunidade de objectarem contra aquilo a que haviam sido sujeitos; ficaram logo sob suspeita e alguns foram considerados perigosos. Muitos renunciaram de imediato à sua cidadania e optaram por ir para o Japão, o que vinham a ameaçar fazer há meses. Ken também ameaçara fazer o mesmo, mas desistira.

 

Os que não assinaram acabaram na área de segregação em Tule Lake. Fora, na realidade, construída num outro campo de internamento para pessoas consideradas desleais aos Estados Unidos, e aumentaram a segurança para lidar com esse problema.

 

Tak sentiu-se profundamente grato por Ken ter, por fim, concordado em assinar o juramento de lealdade, embora tal significasse vê-lo ir para a guerra e arriscar a vida pelo país. Pelo menos, a sua lealdade como americano jamais seria posta em causa.

 

A assinatura do juramento de lealdade libertou-os de uma enorme pressão e a própria Hiroko sentiu-se aliviada quando regressou ao trabalho na enfermaria, durante um novo surto de gripe. Para Hiroko, como verdadeira estrangeira, o juramento de lealdade dera-lhe uma verdadeira oportunidade de se mostrar fiel aos Estados Unidos, o que era algo que desejava, embora no seu caso, a pergunta vinte e sete não lhe dissesse respeito, dado não poder alistar-se.

 

Depois, uma nova epidemia de sarampo manteve-os ocupados durante duas semanas e, no final da segunda semana, Hiroko ficou até bastante tarde, a fim de ajudar Reiko. E, nesse dia, Reiko tinha mesmo um ar cansado. Há dias que Hiroko trabalhava incansavelmente, mas queria dar-lhes toda a ajuda que pudesse, antes de o bebé nascer. Sabia que, dentro de uma ou duas semanas, teria de ficar em casa, pelo menos durante algum tempo, com o bebé.

 

Nessa altura, o clube de tricô já lhe dera o enxoval e tudo estava pronto. Tami era a mais excitada de todas e a própria Sally amansara um pouco, embora não deixasse de exprimir a sua desaprovação.

 

Contudo, nessa noite, Hiroko pensava noutras coisas, enquanto cuidava de dois homens e de uma mulher de idade, que estavam cobertos de manchas devido ao sarampo. Sabia que tivera a doença em criança e não receava o contágio. No entanto, eles tinham umas tosses cavernosas, além de febre.

 

Como estão eles? perguntou Reiko em voz baixa, quando veio saber como iam as coisas.

 

Hiroko tinha um verdadeiro talento para a enfermagem. Fazia tudo o que estava ao seu alcance para que eles se sentissem confortáveis e não denotava sinais de fadiga, embora fosse a sua segunda vela sem dormir. Reiko tencionara mandá-la para casa mais cedo, mas a jovem insistira em permanecer na enfermaria com ela.

 

Na mesma respondeu Hiroko no mesmo tom, voltando a humedecer-lhes as fontes e erguendo o rosto para a prima.

 

E tu?

 

A pergunta era inútil, pois há horas que ela estava de pé. E, mais tarde, ao observá-la, Reiko viu-a massajar a nuca algumas vezes. Regressou por volta da meia-noite e disse-lhe que ela devia ir para casa, mas Hiroko parecia muito desperta e cheia de energia. Reiko sorriu-lhe e saiu apressadamente para ir auxiliar um médico com o que parecia uma úlcera perfurada.

 

Eram duas da manhã quando voltou e, dessa vez, Hiroko parecia exausta. Os doentes tinham, finalmente, adormecido e ela estava a ajudar outra enfermeira a mudar as ligaduras a um miúdo com queimaduras. Brincava com fósforos quando o colchão de palha se incendiara; continuava a chorar, enquanto Hiroko lhe pegava ao colo.

 

Reiko viu-a mudar várias vezes de expressão com pena da criança e quando ela o pousou e, finalmente, se levantou, reparou que Hiroko se agarrava à mesa. Soube, então, ainda antes de Hiroko, que a jovem iniciara o trabalho de parto.

 

Estás bem? inquiriu, e Hiroko voltou a fazer novo trejeito e tentou sorrir.

 

- Estou. Apenas com dores nas costas respondeu, mas parecia distante, e Reiko sorriu-lhe.

 

Chegara o tempo. Era o dia um de Março e a altura de o bebé nascer.

 

Porque não te sentas uns minutos? sugeriu Reiko e percebeu, mal Hiroko obedeceu, que ela tinha provavelmente mais dores do que estava disposta a admitir.

 

Reiko preparou-lhe uma chávena de chá e as duas mulheres conversaram, sob a luz difusa do posto de enfermeiras improvisado. No exterior, estava um frio de gelar, e o vento infiltrava-se pelas barracas onde trabalhavam, mas gerara-se um sentimento de calor entre as duas mulheres. O rosto de Hiroko tornou-se cada vez mais tenso e parecia muito preocupada.

 

Tens muitas dores? inquiriu, finalmente, Reiko e, desta vez, Hiroko fitou-a com os olhos cheios de lágrimas e anuiu com a cabeça.

 

Tentara lidar com a dor durante horas, esperando que desaparecesse, que não tivesse chegado a altura. De súbito, sentiu-se aterrorizada e incapaz de a enfrentar. Sentada ali, as dores tornavam-se insuportáveis e agarrou, repentinamente, a mão de Reiko, soltando uma exclamação abafada.

 

Ninguém a preparara para aquilo. Reiko sentou-se calmamente ao seu lado, rodeou-lhe a cintura com o braço e ajudou-a a pôr-se em pé, ao mesmo tempo que duas enfermeiras apareciam. Nessa altura, Reiko explicou que Hiroko se encontrava em trabalho de parto.

 

Boas notícias comentou Sandra, a mais velha das enfermeiras, com um sorriso. Era uma mulher baixa, gordinha e sorridente, uma nisei, com quem Reiko trabalhara há anos atrás, em Stanford. Estava a precisar de boas notícias esta noite prosseguiu.

 

Sandra sentia-se cansada de ver pessoas idosas a morrerem com sarampo. Contudo, Hiroko era uma jovenzinha de olhos arregalados, que as fitava, sem saber o que esperar.

 

Está tudo bem acalmou-a a mulher mais velha, ciente do que estava a acontecer-lhe.

 

Era normal que as jovens entrassem em pânico. Hiroko tinha apenas dezanove anos, a mãe não estava junto dela e tratava-se do primeiro filho. Contudo, as enfermeiras tomaram conta da jovem e, juntamente com Reiko, conduziram-na devagar até um cubículo que haviam destinado para partos, com uma divisória feita de lençóis velhos. Uma delas saiu de imediato para comunicar ao médico que precisariam dele nessa noite.

 

Quis o destino que fosse o mesmo médico que estava de serviço na manhã em que ela desmaiara; sorriu bondosamente ao ver de novo Hiroko, embora ela tivesse dificuldade em corresponder, quando ele chegou.

 

O médico perguntou-lhe quando tinham começado as dores e ela olhou timidamente para Reiko e admitiu que sentira as primeiras contracções nessa manhã, antes do romper do dia. Haviam passado vinte e quatro horas e as dores aumentavam a cada momento.

 

Mal conseguia falar quando sobreveio a seguinte, e as enfermeiras deitaram-na com cuidado e ajudaram-na a despir a roupa. Reiko mantinha-se junto à sua cabeceira, pegando-lhe numa das mãos, enquanto o médico a examinava sob um lençol de pano cru e Hiroko desviava o rosto, mortificada. Nunca ninguém a examinara assim, excepto exteriormente e de uma forma muito superficial, depois de ter desmaiado. Nunca ninguém a vira ou lhe tocara, à excepção de Peter.

 

Está tudo bem tranquilizou-a Reiko, e Sandra agarrou-lhe na outra mão.

 

O médico ficou satisfeito, mas admirado por ela ter aguentado tanto tempo de pé. Fizera praticamente toda a dilatação e já avistava o cabelo do bebé. Olhou-a com uma expressão animadora e disse-lhe que não demoraria muito.

 

Contudo, ao sair do cubículo, fez um sinal a Reiko e ela foi juntar-se-lhe. Hiroko contorceu-se com mais uma dor, mas esforçava-se por não fazer barulho, de forma a que ninguém a ouvisse para lá das divisórias feitas de lençóis. A divisão estava cheia de pacientes adormecidas e Hiroko ficaria infelicíssima se produzisse um som que as acordasse.

 

O bebé parece-me grande disse o médico a Reiko. Não quero fazer-lhe uma cesariana aqui. Terá de dar o seu melhor para expulsar a criança. Pouco me interessa se se virem obrigadas a porem-se em cima da barriga dela, Rei. Não quero realizar esse tipo de cirurgia aqui, excepto se for obrigado. É demasiado arriscado para ela e para o bebé.

 

Reiko assentiu com a cabeça, preocupada com Hiroko, que ainda não lhe confirmara que Peter era o pai da criança. Se assim acontecesse uma hipótese altamente viável, ele era um homem alto e entroncado e o bebé podia ser grande de mais para que Hiroko o desse à luz, sem ajuda. Contudo, não falou ao médico no pai da criança, enquanto ele se afastava para ir observar outros doentes.

 

A outra enfermeira ajudava Hiroko a respirar e tentava acalmá-la, quando Reiko regressou para junto da cama. As duas mulheres trocaram um olhar experiente, quando Hiroko voltou a agarrar-lhes nas mãos e, desta vez, gritou, apesar dos finos lençóis que a rodeavam e das doentes que podiam ouvi-la.

 

Vá. Não te importes encorajou-a Sandra. Não te preocupes. Se não gostarem, podem ir para outro hospital.

 

Sorriu e Hiroko tentou suster os gritos, mas perdeu a batalha ao ser atacada pela próxima dor.

 

Tia Rei pronunciou num tom rouco. Isto é horrível... Há um remédio?... Qualquer coisa...

 

Haviam já dado tudo o que tinham como analgésicos, e precisavam das anestesias para operações e não para partos; além disso, Reiko sabia que não podia dar-lhe nada sem ordem do médico. E ele não o sugerira quando viera observá-la.

 

Voltou várias vezes nas próximas duas horas e, às quatro e meia, ordenou-lhe que começasse a fazer força. Mas o bebé era tão grande, que nem se mexia. Mantinha-se preso, incapaz de recuar e sem querer avançar.

 

Coisinha teimosa! exclamou o médico, depois de batalhar com um fórceps, o que deixou Hiroko ofegante de dor, enquanto as três enfermeiras a agarravam.

 

Eram seis horas e tudo continuava na mesma. De vez em quando, o médico olhava para Reiko e ela lembrava-se do aviso dele, mas nada podiam fazer para ajudar Hiroko a mover o bebé.

 

Tenta, Hiroko. Vá lá incitava-a Sandy. Faz toda a força que puderes.

 

A jovem obedeceu, mas passava-se exactamente o que a mãe vivera com Yuji. O bebé era grande de mais e a mãe demasiado estreita. Só que ali não era Quioto, nem havia um hospital, a que recorrer. Apenas aquelas mulheres a ajudá-la e um mínimo de equipamento e de opções.

 

O médico voltou a tentar com o fórceps e depois ordenou a Sandy que fizesse o máximo de força possível sobre o estômago de Hiroko, mesmo acima do bebé. Iam tentar forçar a expulsão. Hiroko gritou ao ter a sensação de que as costelas se lhe partiam e o bebé avançou um pouco, ao mesmo tempo que as três enfermeiras que a ajudavam davam largas à sua satisfação. Contudo, Hiroko nem sequer sorriu. Tinha demasiadas dores e cada vez perdia mais as forças.

 

Mais! incitou o médico, experimentando de novo o fórceps.

 

Sandy fez mais força e a outra enfermeira também exerceu pressão. Hiroko gritou novamente e lançou um olhar suplicante a Reiko. Mas a prima nada podia fazer por ela.

 

Não... não... não posso... não...! arquejou Hiroko, debatendo-se.

 

E, de súbito, só conseguia pensar em Peter e nas promessas que haviam feito um ao outro. Invadiu-a a repentina percepção de que se não fizesse aquilo por ele, morreria e o bebé também. As agonias por que passara nessa noite eram por ele e não podia desistir nem parar até fazer o que tinha de ser feito, dar à luz o filho e estar à sua espera, quando ele voltasse. Não podia desistir, acontecesse o que acontecesse.

 

Este pensamento deu-lhe uma força até então desconhecida. Tentou corajosamente ajudar a trazer a criança ao mundo, mas o bebé continuava a recusar mover-se. Parecia uma situação desesperada para ela e todos que a observavam.

 

Passada mais uma hora, as suas pulsações enfraqueciam lentamente. O médico sabia que não lhe restava alternativa. Tinha de o fazer, independentemente do risco. Hiroko também estava a perder muito sangue e, na semana anterior, duas mulheres haviam tido hemorragias e morrido ao dar à luz. Queria fazer o possível por controlar o dano enquanto ainda lhe era possível, e salvar, se não Hiroko, pelo menos a vida do bebé.

 

Levem-na para a sala de operações ordenou a Sandy, num tom de sombria resignação. Ela já não aguenta mais.

 

Contudo, Hiroko ouviu-o e agarrou-lhe na mão com uma palidez de morte e um ar muito assustado.

 

Não!

 

Sabia que fora assim que Yuji nascera e que tanto a mãe como a criança quase haviam morrido. O pai contara-lhe a história para lhe provar quanto eram perigosos os métodos tradicionais, mas ali não tinham hipótese. Ou usavam os métodos tradicionais, ou era a morte, caso eles falhassem.

 

Sentindo demónios por detrás dela, lutou contra as forças da natureza com renovado fervor, consciente de que podia perder a vida ou a do bebé. Combateu contra todo o terror do que sabia poder acontecer, se não conseguisse dar à luz a criança.

 

O médico voltou a tentar com o fórceps e avançou até mais do que devia. Sentira, porém, a forma como Hiroko se debatia pela vida. As duas enfermeiras fizeram novamente pressão, enquanto a jovem lutava com todas as forças que lhe restavam e, durante mais um momento, tudo pareceu novamente em vão.

 

Depois, começou a mover-se, primeiro devagar, depois avançando ao ritmo das dores e subitamente ouviu-se um grito horrível e um uivo fino e prolongado, seguido de uma exclamação de fúria. Tinha um pequeno rosto muito vermelho, cabelo castanho macio e olhos azul-escuros e amendoados.

 

À excepção de um pequeno toque japonês, era a cara do pai, quando Hiroko o fitou, completamente exausta e incapaz de acreditar que conseguira.

 

Oh... exclamou Hiroko, quase demasiado fraca para falar e fitando-o, maravilhada.

 

O bebé era muito bonito, perfeito e grande, tal como o médico dissera. Pesaram-no numa pequena balança.

 

Cinco quilogramas certos anunciou o médico, fitando o bebé que o desafiara durante horas e sorrindo à mãe, que recusara desistir. És uma heroína, Hiroko. É fantástico.

 

Se alguém lhe perguntasse, teria jurado que ia fazer uma cesariana, mas ainda bem que assim não fora. Nas condições em que Hiroko se encontrava, tinha quase a certeza de que ambos morreriam. Contudo e por qualquer milagre, salvara-os. E Hiroko surpreendera-o ao recusar desistir e ao lutar.

 

O Sol erguia-se no horizonte e as enfermeiras limparam Hiroko, enquanto a jovem se conservava tranquila, pegando no bebé. Todos se sentiam comovidos pelo que haviam observado naquela noite.

 

Lamento que tivesse sido tão difícil disse-lhe Reiko meigamente.

 

A jovem mostrara-se muito corajosa e extremamente forte e, dado o tamanho do bebé, tornava-se difícil acreditar que o tivesse conseguido. Mas Hiroko era uma rapariga excepcional.

 

A nova mãe sussurrou, orgulhosa, à prima, fitando o bebé com uma expressão de felicidade:

 

É parecido com o Peter, não é?

 

Ao olhá-lo, achava que valera a pena. Durante algum tempo, fora como um comboio expresso a rasgar-lhe a alma, arrastando-a aos solavancos, e, no preciso momento em que julgou que morreria, ele nascera. Agora, só desejava que Peter o visse e Reiko tomou consciência de que era a primeira vez que ela admitia quem era o pai.

 

Tens de dizer-lhe declarou Reiko num tom firme, e Hiroko abanou a cabeça.

 

Só servirá para o preocupar. Digo-lhe quando ele voltar.

 

Há muito que tomara a decisão. E se ele não quisesse voltar para ela? Nunca o forçaria. Assim, ele seria livre como o vento e, se decidisse voltar, ia encontrá-los à sua espera, como acontecera desde o momento em que havia partido. Fitou Reiko, resolvida a partilhar com ela uma parte do segredo. Tinham passado por tanta coisa nessa noite e Reiko e as outras haviam sido tão boas para ela.

 

Um padre budista casou-nos, em Tanforan confessou. Tive medo que alguém viesse a saber e castigassem o Peter por esse motivo, mas tal não aconteceu.

 

Pegou na mão de Reiko, mostrou-lhe a fina aliança e a prima nem conseguia acreditar.

 

És muito boa a guardar segredos.. e a ter bebés Beijou-a, disse-lhe que dormisse um pouco e quando Hiroko e o bebé dormiam a bom dormir, foi para casa ter com Takeo e dar-lhe a novidade. Ele estava a preparar-se para ir dar aulas e Reiko ficou surpreendida ao ver que eram nove horas. A noite como que havia voado.

 

Imaginei que fora isso o que acontecera, ao ver que nenhuma de vocês voltava, mas achei que mandariam recado se precisassem de mim. Acertei?

 

Ela agora está bem, mas pregou-nos um susto de morte, até mesmo ao médico respondeu Reiko, ainda surpreendida. O bebé pesava cinco quilogramas. E é uma beleza, Tak. Depois, esboçou um sorriso triste pensando em Hiroko e Peter, e no longo e difícil percurso que tinham pela frente. Parece-se com o Peter acrescentou.

 

Contudo, até mesmo isso representaria problemas para Hiroko e a criança.

 

Bem sabia. Não podia ser outra pessoa e ambos tinham consciência disso. Ele sentiu-se contente por ambos. Existia um elo a uni-los. Conhecendo Peter como conhecia, sabia que também aos olhos dele significava muito

 

Ela não quer dizer-lhe. Acha que ele ficará muito preocupado explicou Reiko, sentando-se com um suspiro de cansaço.

 

O Peter deve saber que tem um filho afirmou Tak com um sorriso, recordando a importância que o nascimento de Ken e das filhas tivera para ambos. Era triste para Hiroko aquela ausência de Peter. Mas sentia-se satisfeito por a criança ter nascido. Talvez fosse o presságio de uma nova vida, de alguma esperança.

 

A Hiroko confessou-me que foram casados por um padre budista, em Tanforan prosseguiu Reiko, tirando os sapatos, depois daquela longa noite. Segundo parece, desde Maio que usa aliança e eu nunca a vi. Usa-a com outro anel e passou-me despercebida.

 

Não é muito vulgar em ti comentou, beijando-a mais uma vez mas sabendo que tinha de ir para as aulas. Lá estarei esta tarde.

 

Fez menção de se dirigir à porta e depois deteve-se, fitando a mulher com um sorriso caloroso. Aquele também era um momento feliz para ambos. Um bebé era uma bênção para todos eles, sobretudo ali, em Tule Lake.

 

Parabéns acrescentou com os olhos brilhantes.

 

Amo-te respondeu Reiko, e Tak saiu apressado, com um ar de felicidade que não exibia há muito e a mulher ficou a vê-lo afastar-se com um sorriso, pensando no bebé de Hiroko.

 

Hiroko ficou uma semana na enfermaria e depois ela e o bebé regressaram à família, que os aguardava, ansiosa. Chamaram Toyo ao menino e o próprio Ken passava horas a brincar com ele, pegando-lhe ao colo e só cedendo o lugar quando era preciso mudar as fraldas.

 

Contudo, Tak era o campeão. Sentia-se feliz em tomar conta dele, sempre que Hiroko precisava de descansar ou queria dormir. Adorava fazê-lo e o bebé mostrava-se completamente à vontade. Nunca chorava. Adormecia feliz nos braços dele, até decidir que tinha fome e precisava da mãe.

 

Duas semanas depois de o filho nascer, Hiroko sentiu-se culpada por não fazer qualquer trabalho, regressou à enfermaria e levou Toyo com ela, amarrado com correias às costas. Uma das mulheres mais velhas do campo fizera-lhe o tipo de faixas que a mãe usava, o chamado obuhimo, para segurar o bebé nas costas, e ele parecia muito contente por dormir assim com a mãe, enquanto ela se movia.

 

Hiroko recuperara as forças e voltou a enrolar ligaduras. Começou a fazê-lo e, no início, afastou-se das pessoas mais doentes, pois nunca abandonava o filho. Todos os que viam Toyo gostavam logo dele. Era grande, rechonchudo e bem-disposto e parecia-se um pouco com um pequeno Buda; porém, ao olhar para ele, sabiam logo que não era cem por cento japonês. Depois de nascer, parecia-se mais do que nunca com Peter. E, fiel à sua palavra, Hiroko escrevia-lhe, mas nunca mencionou o bebé.

 

O exército mandara recrutadores ao campo e muitos tinham-se alistado, mas os ”rapazes não-não” conservavam-se maioritariamente firmes. Foram mesmo ao ponto de ameaçar os rapazes que se alistavam.

 

No entanto, Ken surpreendeu-os a todos com as suas notícias, três semanas depois de Hiroko ter o bebé. Nessa tarde, fora ao edifício da administração. Fizera dezoito anos dois dias antes, e, sem mesmo abordar o assunto com os pais, alistara-se no exército.

 

Tu... o quê? A mãe fitava-o, incapaz de acreditar no que ele lhes dissera. Julguei que não te interessava defender este país protestou, desejando que ele houvesse mantido a posição.

 

Reiko adorava o seu país, mas não queria sacrificar o filho. Já houvera demasiados sacrifícios.

 

Ofereci-me como voluntário para o exército repetiu, enquanto os pais o fitavam com uma expressão sombria.

 

Mau grado todos os seus anteriores protestos e a sensação de ter sido traído, parecia que os conflitos haviam acabado. Ken mostrava-se tão subitamente orgulhoso de si. Ia sair do campo de internamento, o que desejava mais do que tudo.

 

Porque é que não abordaste o assunto connosco antes? inquiriu Tak com um ar magoado.

 

Ken sempre expressara bem alto a sua raiva e sensação de traição, e agora juntava-se, de súbito, ao exército. No entanto, essa era uma das poucas formas de escapar ao campo e a única que agradava a Ken. Não conseguia aguentar mais tempo ali. Nessa tarde, três deles haviam tomado a decisão e os outros dois estavam, nesse momento, a ter a mesma conversa com os pais.

 

Não era que Tak deixasse de sentir orgulho no filho ou um menor espírito de patriotismo. Apenas nenhuma das suas palavras fizera prever a sua intenção de se alistar. A maioria dos pais não estava preparada, embora se sentissem orgulhosos.

 

Muitos dos rapazes partiram nesse mês. Mal se alistavam, iam-se embora no prazo de uma semana, e a última noite que passou com eles foi triste e confrangedora. Partilharam uma série de recordações e tentaram não chorar.

 

Nesse dia, foram despedir-se dele ao autocarro e Tak não susteve as lágrimas. Era incapaz de acreditar que Ken os deixava, mas, de certa maneira, sentia-se aliviado em saber que, pelo menos, um deles ia agora ficar livre.

 

Toma conta de ti pediu com uma voz estrangulada. Não te esqueças do quanto a mãe e eu te amamos.

 

Eram americanos que ofereciam o filho ao país e, todavia, ali permaneciam, por trás de arame farpado, como autênticos prisioneiros.

 

Amo-vos a todos gritou Ken nos degraus do autocarro e depois fitou-os, embaraçado.

 

Sally e Tami choravam quando ele partiu e Hiroko tentava suster as lágrimas, enquanto agarrava no bebé. Nessa altura, já se despedira de muita gente. Todos eles o tinham feito. Alguns voltariam um dia, mas outros não.

 

À medida que o autocarro se afastava levando Ken, Hiroko rezava pela segurança dele, chorando pelo jovem e pelos pais. Quando regressaram à pequena casa, Takeo chorou de novo, enquanto pendurava uma estrela na janela para que todos a vissem. Mantiveram-se imóveis depois de ele a pendurar e dirigiram os seus pensamentos para Kenji. Foi um momento doloroso. Um momento de esperança, orgulho e de temor

 

Receberam uma carta de Ken pouco depois. Estava em Camp Shelby, no Mississipi, e informava-os de que se juntaria ao 442.° Regimento de Combate. Eram um batalhão nesei e a maioria deles proveniente do Havai. Curiosamente e, embora estivessem mais próximos do Japão, não havia campos de realojamento no Havai.

 

Nas suas cartas, Ken parecia feliz e entusiasmado. Tinham realizado uma grande cerimómia em Honolulu antes da partida em honra deles, no lolani Palace. Pelas suas palavras nas cartas, que leram repetidamente, parecia encantado por estar longe do campo. Mostrava-se igualmente entusiasmado por sentir que cumpria o seu dever patriótico.

 

Apesar da sua resistência inicial, acalmara-se e enviou aos pais uma fotografia sua, de uniforme, com um ar muito elegante. Reiko pousou-a cuidadosamente numa mesinha que Tak fizera e mostrou a fotografia a todos os seus amigos. Parecia um santuário e, por vezes, Hiroko sentia-se nervosa ao olhá-la. Desejava que ele estivesse ali com eles, e não fosse apenas uma pessoa de quem falavam. Compreendia, porém, o seu fervor em ir para a guerra e servir a pátria.

 

Recebeu mais notícias de Peter. Continuava no Norte de África e, infelizmente, os Alemães também. Tanto quanto lhe era dado perceber, mau grado os esforços do censor para o ocultar, o combate travava-se com ferocidade. Mas, pelo menos, em Junho, sabia que ele continuava em segurança e Ken também.

 

Em Julho, um grave surto de meningite atingiu o campo. Vários idosos morreram e uma série de crianças foi atingida e ficou em situação crítica. Foi terrível, e as mães sentavam-se noite e dia com elas, de quarentena, mas muitas morreram.

 

Havia vários funerais com pequenos caixões colocados em sepulturas, no chão poeirento. Estava acima das forças de Hiroko, sobretudo agora com Toyo para se preocupar, ainda um bebé. Tinha apenas quatro meses. Contudo, não foi Toyo quem manifestou a doença, numa quente noite de Verão. Foi Tami. Parecia com febre quando se foi deitar nessa noite, mas, mais tarde, Hiroko ouviu-a chorar baixinho, quando foi dar de mamar a Toyo. Continuava a fazê-lo e ele tinha sempre fome. Havia noites em que se levantava duas e três vezes.

 

Foi, porém, a pobre Tami a atingida por uma febre horrível. Tinha o pescoço rígido e, na manhã seguinte, estava quase em delírio, quando Tak a levou para a enfermaria, onde a deixou com Reiko.

 

A batalha prolongou-se durante dias e Tami parecia não saber onde se encontrava. Hiroko deixou Toyo com Tak e revezou-se com Reiko ao lado dela; por vezes, Takeo vinha passar a noite com a filha, colocando-lhe panos húmidos na cabeça e cantando-lhe o que ela gostava de ouvir quando era miúda. Tak estava com pior aspecto do que alguma vez estivera. Sentiam-se ligados por um elo especial, e Reiko sabia que ele morreria, se a perdessem.

 

Não deixes que ela morra... Hiroko, por favor, não a deixes morrer pediu uma noite, a soluçar, e a jovem abraçou-o meigamente.

 

Ela está nas mãos de Deus, Tak. É Ele quem toma conta dela. Tens de confiar.

 

Porém, no próprio momento em que a jovem acabara de pronunciar as palavras, Takeo virou-se na sua direcção e surpreendeu-a com a veemência da sua pergunta.

 

Como quando tomou conta de nós e nos pôs aqui? retorquiu, lamentando as palavras, logo após as ter pronunciado.

 

A jovem pareceu surpreendida perante tão grande raiva.

 

Lamento desculpou-se num tom rouco. Lamento...

 

Todos lamentavam e, mau grado os esforços de tirarem o melhor partido da vida, sabiam que tudo era terrível.

 

Durante um tempo as coisas foram de mal a pior, e Hiroko não abandonou Tami uma noite que fosse, na esperança de aliviar os pais. Só ia a casa para dar de mamar a Toyo e, depois, regressava para substituir Tak ou Reiko e mandá-los descansar para casa. Ambos estavam com um aspecto horrível e as perspectivas para Tami não se adivinhavam as melhores.

 

Hiroko mostrou-se incansável, dando banho à criança, vigiando-a, obrigando-a a ingerir líquidos, e um jovem paramédico, que já vira antes, deu-lhe a máxima ajuda. Chamava-se Tadashi e viera para o campo com a família quando Tanforan fechara.

 

Coxeava, usava braçadeira e Hiroko sabia, mediante algumas das suas palavras, que ele tivera poliomielite. Sentira-se atraída pela sua meiguice e pela forma incansável como tratava dos doentes. Formara-se em Berkeley no ano anterior e assinara de imediato o juramento de fidelidade.

 

Todavia, o exército recusara aceitá-lo devido ao seu defeito físico. Era um dos poucos jovens que restavam à excepção dos ”rapazes não-não” e dos manifestantes, que haviam optado por marchar, todas as manhãs, em estilo militar, de T-shirt e corte de cabelo bozu como símbolo de revolta.

 

Nessa altura, todos os outros, em condições físicas aceitáveis, tinham sido alistados no exército. Todavia, Tadashi ficara e trabalhava como paramédico. Era igualmente um homem muito talentoso. Hiroko tocara com ele na orquestra do campo e ele sempre se mostrara muito simpático. Trabalharam algumas vezes em conjunto e Hiroko gostava dele. Era inteligente e consciencioso e, curiosamente, lembrava-lhe Yuji.

 

Mostrou-se, porém, especialmente bondoso, quando Tami ficou doente e fez tudo o que podia para os ajudar. Tinha um ar elegante, um sorriso caloroso e Hiroko ouvira dizer, algures, que pertencia a uma família distinta. Era kibei, nascera nos Estados Unidos, mas fora estudar para o Japão, antes de ir para Berkeley.

 

Como está a Tami? perguntou uma noite.

 

Era a oitava noite da doença da miúda. Outras crianças tinham morrido ou recuperado em menos tempo e ela recomeçara a entrar em delírio quando Tak se fora embora, lavado em lágrimas, com Reiko.

 

Não sei respondeu Hiroko com um suspiro, recusando admitir que estavam a perdê-la aos poucos.

 

Ele sentou-se tranquilamente junto a Hiroko e estendeu-lhe uma chávena de chá. A jovem parecia exausta.

 

Obrigada agradeceu com um sorriso.

 

Tadashi parecia simpático, mas muito jovem, embora só tivesse mais quatro anos do que ela. O facto de Hiroko ter dado à luz Toyo, amadurecera-a e havia alturas em que se sentia muito acima da sua idade.

 

Como está o teu rapazinho?

 

Óptimo, graças a Deus respondeu ela com um sorriso, pensando em Toyo, mas horrorizada ante a perspectiva do que poderia acontecer a Tami.

 

Até mesmo Sally fora uma série de vezes ao hospital, embora ela e Hiroko tivessem tido algumas divergências ultimamente. Parecia que eram incapazes de se dar bem, desde que o bebé nascera.

 

Sally passava a maior parte do tempo com os ”rapazes não-não” e Hiroko censurava-a muitas vezes e chamava-lhe a atenção para o quanto preocupava os pais. Sally respondia invariavelmente que Hiroko não era mãe dela, nem devia meter-se na sua vida.

 

A jovem tinha dezasseis anos e dava muitos problemas a Reiko. O facto de ter vindo para ali não lhe fizera bem, os estudos haviam sido afectados e andava com rapazes que mais valia nunca ter conhecido. Não se mostrava interessada na companhia de raparigas que formavam clubes de amizade, bandas ou coros.

 

E recusava-se igualmente a ouvir a opinião de Hiroko sobre esse assunto. Quando Hiroko tentara dizer-lhe que era nova de mais para sair com rapazes, Sally respondera, num tom acintoso, que, pelo menos, não tivera a estupidez de se ver com um filho ilegítimo nos braços.

 

Desde essa discussão no mês anterior, Hiroko e Sally mal se tinham falado. Contudo, Hiroko sentia pena dela, sabia que a prima se sentia profundamente infeliz e temia pelo futuro de todos. Sally tinha igualmente consciência de que o pai não andava bem, o que também a assustava. E agora, com a doença de Tami, ela parecia em pânico.

 

Tudo aquilo em que assentara a sua vida estava a desaparecer. Até mesmo o irmão conseguira sair do campo, alistando-se no exército. Sally tinha a sensação de que não lhe restava ninguém com quem falar ou em quem confiar, à excepção de um punhado de amigos pouco aconselháveis, incluindo um dos mais jovens ”rapazes não-não”, que a acompanhara numa das vezes em que fora visitar Tami ao hospital.

 

A tua prima Sally é muito bonita comentou Tad depois de ela se ir embora; Hiroko sorriu-lhe, enquanto bebia o chá.

 

A minha tia diz que é uma idade difícil. Deve ser anuiu, compreensiva, sem desviar os olhos do corpo calmo de Tami, que nem sequer se mexera na última hora. Acho que sou feliz por ter um rapazinho acrescentou.

 

Porém, ele não conseguia deixar de se interrogar sobre essa felicidade. Todos no campo sabiam que ela não era casada, e o facto de ter um bebé sem marido que tomasse conta dela parecia tudo, menos felicidade. Jamais se atreveria, porém, a fazer-lhe qualquer pergunta sobre o pai do bebé e o que acontecera. As poucas vezes que vira a criança chegavam para saber que o pai era americano. Contudo, ela não recebia visitas nem tinha, aparentemente, planos de casamento.

 

Enquanto conversavam tranquilamente sobre as suas famílias no Japão, Tami mexeu-se e começou a chorar. Acabou por parecer tão doente, que decidiram mandar chamar Tak e Reiko. E, dado que ainda ali se encontrava, Tadashi ofereceu-se para os ir buscar.

 

Chegaram a correr à enfermaria e sentaram-se, durante horas, vendo Tami a escapar-se-lhes. No entanto, de manhã, ela caiu num sono profundo e a febre desceu inesperadamente. Não havia explicação. Estava doente há mais tempo do que qualquer outra pessoa do campo, mas sobrevivera.

 

O pai deixou-se ficar ao seu lado. Soluçava, olhava-a e beijava-lhe a mão, grato por ela haver sido poupada e a tragédia não se ter abatido sobre eles. Estava tão desfeito que Hiroko o levou para casa, deixando Reiko com Tami.

 

No entanto, mal chegou a casa e ajudou Tak a deitar-se, apercebeu-se de que algo se passava com o bebé. Deixara-o com Sally, mas ele tinha febre, chorava e parecia muito agitado. Quando tentou dar-lhe de mamar, em vez de beber avidamente o leite, como sempre acontecia, recusou-o. Sempre que lhe mexia, Toyo chorava, como se tivesse qualquer dor.

 

Há quanto tempo é que ele está assim? perguntou a Sally com um ar preocupado, mas a adolescente limitou-se a encolher os ombros e respondeu que ele lhe parecera bem na noite anterior.

 

De certeza? insistiu Hiroko, e Sally confessou que não, que julgara que ele estava a dormir e nem sequer se dera ao trabalho de verificar.

 

Hiroko controlou-se para não esbofetear a prima. Em vez disso, pegou no bebé e levou-o à enfermaria para que o médico o observasse. Toyo tinha apenas quatro meses e era provavelmente pequeno de mais para sobreviver, se apanhasse meningite.

 

Contudo, mal o médico o examinou, Hiroko sentiu um baque no coração ao ouvir as suas palavras. Toyo contraíra a receada meningite. Puseram-no no isolamento, como haviam feito a Tami, e Hiroko permaneceu sentada ao lado dele, sem o abandonar um só instante.

 

A febre piorou e o bebé chorava sem parar. Ao tocar-lhe, percebeu que o pescoço se encontrava rígido e todos os membros lhe doíam. E os seios de Hiroko estavam tumefactos e duros como pedras, pois ele recusava mamar. A jovem mantinha-se sentada, debulhada em lágrimas, agarrando-o e rezando para que o filho sobrevivesse.

 

Interrogava-se pela milésima vez sobre se deveria ter falado do bebé a Peter. E se Toyo morresse e ele não o conhecesse, nem sequer soubesse da sua existência? Só essa ideia era por si insuportável.

 

Reiko fez-lhe companhia noite após noite. Nessa altura, Tami já estava muito melhor. Comia, falava e brincava. Disseram que ela iria para casa dali a dias, mas o pobre Toyo piorava, enquanto Hiroko chorava, sem o tirar do colo.

 

Nunca o deixou um instante, nem permitia que outra pessoa lhe tocasse. E quando já não aguentava mais, deitava-se no chão, ao lado do berço, e dormia no tatami que alguém lhe trouxera de casa.

 

Não podes continuar assim, Hiroko. Tens de ir para casa e dormir um pouco insistia Reiko em vão.

 

Sandra, a velha enfermeira que estivera presente na noite em que o bebé nascera, viera vê-lo por várias vezes e tentara igualmente convencer Hiroko a ir descansar. Mas ninguém conseguia demovê-la.

 

O médico vinha visitá-lo várias vezes durante o dia, mas ninguém podia mudar o curso do destino ou deter a doença que o minava. Só podiam esperar para ver o que aconteceria.

 

Tadashi também fez várias visitas. Trazia-lhe chá, água ou uma peça de fruta. Uma vez, trouxe-lhe uma flor, mas via bem quanto ela estava ausente e destruída pela dor.

 

Hiroko sabia que não viveria nem mais um dia, se o seu bebé morresse. E sentou-se a rezar dia após dia, falando silenciosamente com Peter.

 

Como está ele? sussurrou Tadashi uma tarde, quando apareceu na enfermaria para a ver.

 

Lá fora estava calor e pó como habitualmente e tinha surgido uma série de queixas no campo de internamento. Tule Lake fora oficialmente designado como um centro de ”segregação” e seis mil ”leais” iam ser transferidos nos próximos dois meses e enviados para outros campos, enquanto nove mil ”desleais” ou de alto risco iriam entrar, o que significava que o campo ficaria mais apinhado do que nunca.

 

Iriam além disso vigorar medidas de segurança mais estritas. Já haviam sido colocados tanques para lá da vedação e tinham trazido soldados. As pessoas não reagiram com bons olhos à construção de vedações mais elevadas, com mais arame farpado. A ilusão de liberdade há muito que desaparecera e agora piorava. Hiroko nada sabia disto, enquanto se mantinha sentada ao lado do bebé.

 

Acho que ele está pior afirmou Hiroko muito infeliz e erguendo os olhos para Tadashi, ao mesmo tempo que recusava uma maçã.

 

Só conseguia comer em caso de extrema necessidade para conseguir alimentar o bebé, que de vez em quando ainda mamava, mas muito pouco. Contudo, os médicos nada podiam fazer por ele, nem mesmo a mãe.

 

Ele ficará bem consolou-a Tadashi, pousando-lhe uma mão suave no ombro, depois do que voltou a desaparecer; nessa noite, ela ficou sozinha, a chorar e a soluçar, convencida de que o bebé iria morrer.

 

Hiroko continuava sozinha no cubículo do isolamento, quando Tadeshi regressou, detendo-se a observá-la. Receava intrometer-se na sua tristeza, mas também não queria abandoná-la. Tivera uma irmã casada, da idade de Hiroko, que morrera dois meses antes devido a um aborto e sentia a falta dela. Em alguns aspectos, fazia com que se sentisse mais próximo de Hiroko.

 

Por fim, sentou-se ao lado dela e deixou-se ficar ali a observar Toyo, sem falar. Era um bebé adorável, e começaram a aperceber-se de que a respiração se tornava cada vez mais difícil. Fazia um esforço enorme para inspirar por entre os lábios arroxeados, e não possuíam nem tubos, nem oxigénio, nada que o pudesse auxiliar.

 

Não existia qualquer ajuda possível. Hiroko limitou-se a pegar-lhe ao colo e a falar-lhe baixinho, enquanto chorava e tentava mantê-lo direito. Tadashi humedeceu-lhe suavemente o pequeno rosto com água fria. Nos últimos dias, perdera peso e já nem sequer parecia o pequeno Buda que havia sido.

 

De súbito, enquanto o agarrava, Toyo deixou de respirar completamente. De início, fez uma expressão de surpresa, como se algo o sufocasse e, um instante depois, o corpo afrouxou nos braços da mãe, que o fitava num pânico total.

 

Porém, antes que ela pudesse pronunciar uma palavra, Tadashi tirou-lho dos braços, deitou-o em cima do tatami e pôs-se a massajar-lhe o pequeno coração. O bebé estava roxo e Tadashi ajoelhou-se por cima dele, começando a fazer-lhe respiração boca-a-boca. Respirava metodicamente por ele, enquanto Hiroko se mantinha ajoelhada ao lado, ansiosa pelo estado do filho.

 

Decorrido um momento, ouviu-se um som, um choro e um gorgolejar. A cor do bebé melhorou um pouco e voltaram a humedecer-lhe a testa. Depois, Tad foi buscar uma pequena bacia com água fria e deram-lhe banho.

 

De manhã, a febre baixara. Toyo estava com muito melhor aspecto e Hiroko exibia uma palidez de cinza. Sabia que quase o tinham perdido e que Tad o salvara.

 

O que posso dizer para te agradecer? perguntou-lhe em japonês, com os olhos cheios de lágrimas e de gratidão. Sem ele, Toyo teria morrido e ela sabia-o perfeitamente. Salvaste o meu filho.

 

Foi Deus que salvou o teu filho, Hiroko. Eu só ajudei. E tu também. É tudo o que podemos fazer aqui. Só ajudamos.

 

Contudo, sem ele, Toyo teria morrido.

 

Agora, devias ir dormir um pouco. Eu zelarei por ele acrescentou, mas, como habitualmente, ela recusou deixar o filho.

 

Tad foi para casa descansar e voltou para o turno das cinco, com Reiko. Ela ouvira contar o que acontecera na noite anterior pela boca de algumas enfermeiras e agradeceu-lhe. Um pouco mais tarde, ele voltou a ver o que se passava com Hiroko. Possuía agora um ligeiro sentido de posse em relação a Toyo, e ficou satisfeito ao ver que o bebé parecia mais rosado e até pairava.

 

Fizeste um milagre! exclamou Hiroko com um sorriso cansado.

 

A jovem tinha, porém, o cabelo em desalinho e pegado à testa. Fazia calor no pequeno cubículo, ela abanava-se sem cessar e Tad apercebeu-se de que os olhos brilhavam e ela parecia muito nervosa.

 

Precisas de te deitar pronunciou num tom de médico. Vais ficar doente, se não descansares um pouco.

 

Tad falava a sério. Hiroko sentia-se emocionada e divertida quando ele se lhe dirigia num tom firme. Embora tivessem trabalhado juntos antes, haviam-se tornado amigos durante a doença de Tami e de Toyo. Ela ainda nem sequer vira a miúda desde que Toyo ficara doente. Nunca o deixara.

 

Quando Tad regressou nessa noite, Hiroko parecia pior e muito agitada e ele dirigiu-se a Reiko, ao vê-la:

 

Acho que ela está exausta. Precisa de ir para casa, antes que desmaie aqui.

 

Algumas sugestões? Bater-lhe com uma vassoura? respondeu Reiko, com um sorriso cansado. Tinham-se debatido com muitas crianças doentes e mesmo um caso de poliomielite, nessa manhã. Uma epidemia dessa terrível doença teria devastado o campo de internamento e a criança fora levada para outro edifício. Ela não deixará o filho.

 

És prima dela. Diz-lhe que terá de o fazer insistiu, parecendo jovem e determinado, mas Reiko abanou a cabeça.

 

Não conheces a Hiroko. É muito teimosa.

 

Eu sei. Também a minha irmã o era replicou ele num tom triste.

 

Eram tão parecidas em alguns aspectos. Havia vezes em que Hiroko se lhe assemelhava fisicamente.

 

Vou falar-lhe prometeu Reiko, tentando tranquilizá-lo.

 

Porém, quando os dois regressaram ao cubículo de Toyo, encontraram Hiroko, de blusa aberta, dando a sensação de estar a arder de calor, abanando-se e conversando com alguém que não estava presente.

 

Reiko apercebeu-se de imediato que Hiroko falava com Peter. Hiroko fitou-os e pôs-se a falar-lhes em japonês, julgando que eles eram os pais. Continuou a falar sobre Yuji. Reiko examinou-a e apressou-se a ir chamar o médico.

 

Tadashi dirigiu-lhe calmamente a palavra em japonês, ao mesmo tempo que ela se levantava e se punha a andar à volta dele. Parecia muito bonita, mas confusa quando começou a falar em inglês, dizendo que lamentava o facto de não lhe ter falado do bebé. E, -nesse preciso momento, Tad só teve tempo de a agarrar, impedindo-a que deslizasse para o chão. Hiroko desmaiou e, mal o médico apareceu e viu Tadashi ajoelhado ao lado dela, embalando-lhe a cabeça, examinou-a e declarou que ela tinha meningite.

 

Contudo, desta vez, o milagre demorou mais tempo a realizar-se. Toyo teve de ser desmamado e sentiu-se infeliz, mas continuava a recuperar à medida que a mãe piorava de dia para dia, acabando por passar da inconsciência a algo que parecia um estado de coma.

 

Deram-lhe todos os medicamentos de que dispunham, mas a febre não descia e nunca recuperou os sentidos. Passada uma semana, o médico disse a Reiko que se tratava de um caso desesperado. Nada podiam fazer por ela. Hiroko manteve-se assim durante mais uma semana e eles cada vez se convenciam mais de que ela iria morrer.

 

Na verdade, sempre que o médico a examinava, surpreendia-o o facto de ela ainda estar viva. Tadashi parecia tristíssimo, sempre que a visitava, e a própria Sally chorava, lamentando todas as coisas horríveis que lhe dissera e as discussões que haviam tido. Tami ficara tão abatida que Reiko temia que ela tivesse qualquer recaída. Nem sequer comia, desde que soubera como Hiroko estava doente. Apenas o bebé não tinha consciência do que acontecera.

 

Hiroko parecia ter desaparecido; perdera imenso peso, naquele tempo passado no catre, ali na enfermaria. Tad fizera turnos seguidos durante as duas últimas semanas com a esperança de lhe ser útil. Mal a conhecia, mas não queria que ela morresse, como acontecera à irmã.

 

Por favor, Hiroko sussurrou, enquanto se mantinha sentado a olhá-la, por vezes muito tarde, quando já ninguém se encontrava por perto. Por favor, pelo Toyo.

 

Não se atrevia a dizer ”por mim”. Seria demasiado presunçoso. Por fim, uma noite, ela mexeu-se e começou novamente a falar durante o sono. Chamava por Peter e depois pôs-se a chorar e a falar no bebé.

 

Foi tão difícil... repetia. Não consegui... lamento... Não sei onde ele está agora.

 

Contudo, Tadashi sabia ao que ela se referia. Compreendeu, pegou-lhe ternamente na mão e agarrou-a.

 

O bebé está bem, Hiroko. Está óptimo. Precisa de ti. Todos precisamos.

 

Apaixonara-se por uma mulher que mal conhecia, de início só porque ela se parecia com a irmã. Estavam todos tão sós, tão confusos e exaustos. E também se sentia cansado devido às facções em luta. Odiava a sua incapacidade de se ter alistado no exército. Estava farto das queixas e sarilhos causados pelos ”rapazes não-não” e das queixas dos outros acerca deles.

 

Sentia-se sobretudo cansado de viver atrás de arame farpado num país que adorava. Também ela não merecia estar ali. Nenhum deles merecia. Ela dera-lhe um rasgo de esperança. Parecera tão pura, viva e terna, até adoecer e ele quase a perder.

 

Hiroko sussurrou, mas ela não voltou a falar nessa noite e quando regressou, de manhã, estava pior.

 

Era irreversível. Tad sabia que os médicos tinham razão. Ela estava a morrer.

 

Reiko e Tak encontravam-se com ela nessa noite quando voltou à enfermaria e tinham a companhia de um padre budista. Ele falava-lhes, abanava a cabeça e dizia que lamentava. Ao vê-lo, Tadashi julgou que ela tinha morrido e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, mas Sandra avistou-o.

 

Ainda não disse-lhe suavemente.

 

Os outros saíram pouco depois e ele regressou ao cubículo para a ver. Queria despedir-se, embora mal a conhecesse. Pelo menos, salvara-lhe o filho. Era alguma coisa. Contudo, agora desejava tê-la salvo, mas sabia que era impossível.

 

Lamento que isto esteja a acontecer-te pronunciou num tom triste, enquanto a observava.

 

Mantinha-se ajoelhado junto à cama, e os olhos dela assemelhavam-se a buracos cavados no rosto; não produziu qualquer som ou movimento.

 

Gostava que ficasses prosseguiu ele. Precisamos de um pouco de sol aqui.

 

Sorriu. Precisavam de uma série de coisas e ela era uma delas. Deixou-se ficar sentado algum tempo, já sentindo a sua falta e, pouco depois, ela abriu os olhos, fitou-o sem o reconhecer e perguntou por Peter.

 

Ele não está aqui, Hiroko...

 

Quando ela voltou a fechar os olhos, desejou agarrá-la. E se fosse aquela a última vez? E se ela partisse naquele momento?

 

Hiroko chamou. Não vás... Volta aqui. Ela abriu novamente os olhos e fitou-o.

 

Onde está o Peter? inquiriu num tom que parecia mais firme.

 

Não sei. Mas estamos aqui nós. Queremos que fiques. A jovem anuiu com a cabeça e voltou a fechar os olhos, confusa, como se se tivesse subitamente recordado de quem ele era e que estava a afastá-la de algo importante.

 

Onde está o Toyo? - perguntou suavemente, decorrido algum tempo.

 

Está aqui. Queres vê-lo? Ela assentiu com a cabeça, e Tadashi apressou-se a ir buscar o bebé. Uma das enfermeiras interrogou-o e ele pô-la a par do que fazia. Ela achou uma loucura, mas nenhum mal podia acontecer, dado ambos terem estado com meningite

 

Hiroko encontrava-se novamente a dormir quando voltou até junto dela; abanou-a ao de leve. Toyo emitia pequenos arrulhos, enquanto lhe pegava ao colo. Abriu os olhos, parecendo novamente confusa, e ele pousou o bebé ao lado dela, de forma a que o rosto ficasse junto ao da mãe. Reconheceu-a logo e produziu pequenos sons, ao mesmo tempo que Tad o amparava. Ao sentir a proximidade do corpo, Hiroko abriu os olhos e avistou o bebé.

 

Toyo! pronunciou com os olhos cheios de lágrimas; e depois, fitou Tadashi. Ele está bem? sussurrou, de novo preocupada com o filho, mas Tadashi anuiu com a cabeça.

 

Está óptimo e agora és tu que precisas de melhorar. Todos precisamos de ti.

 

Hiroko sorriu como se ele tivesse dito um disparate, agarrou nos dedinhos de Toyo, rolou um pouco até junto dele e beijou-o.

 

Amo-te disse ao bebé, e Tadashi desejou que as palavras lhe tivessem sido dirigidas.

 

Contudo, apenas desejava que ela não morresse. Não era pedir-lhe de mais a ela, mas era muito a pedir a Deus nesse momento.

 

Deixou ficar o bebé com ela e, quando uma das enfermeiras veio buscá-lo, Hiroko estava acordada e a falar baixinho com Tadashi. Ele passou a noite ao seu lado e, de manhã, Hiroko ainda continuava muito doente, mas a febre baixara. Fora uma longa, longa noite e tinham falado de muitas coisas, dos pais e do irmão dela, do Japão, dos primos, da Califórnia e de St. Andrew’s, mas nunca de Peter. Quando Tadashi, finalmente, se foi embora, estava certo, tal como as enfermeiras, de que ela não os abandonaria.

 

Se não tiveres cuidado, vais arranjar uma reputação de curandeiro, Tadashi Watanabe troçou Sandra, quando ele saiu da enfermaria.

 

Mais tarde, nesse mesmo dia, Reiko fez questão de o procurar para lhe agradecer.

 

Haviam-se realizado três milagres na família. Os três tinham sobrevivido à terrível doença que matara tanta gente no campo. Mas, uma semana mais tarde, quando Hiroko estava sentada na cama do hospital com o bebé no regaço, soube que pedir mais um milagre seria de mais.

 

Takeo veio visitá-la, depois de ter passado a noite anterior a falar no assunto com Reiko. Tratando-se de algo que ocorrera dois meses antes, que diferença faria se esperasse mais alguns dias? Contudo, não parecia justo ocultar-lho durante mais tempo. E as circunstâncias em que soubera as notícias haviam sido tão invulgares, que de certa forma sentia como se fossem destinadas a chegar-lhes.

 

Recebera uma carta de um diplomata espanhol com quem trabalhara uns anos antes, em Stanford, quando o colega se encontrava a gozar um ano de licença concedido pela Universidade de Madrid. O indivíduo também conhecia o pai de Hiroko, que encontrara em Quioto. Masao dera-lhe a notícia de que Yuji fora morto em Maio na Nova Guiné e achava que Hiroko e os primos deviam sabê-lo, se Don Alfonso pudesse contactá-los.

 

Hiroko ficou chocada ao ouvir a notícia e uma das enfermeiras levou-lhe a criança, enquanto ela chorava nos braços da prima. Yuji fora-lhe sempre tão querido. Em pequeno, tratava-o como o seu bebé. Era quase como perder Toyo. Mas, pelo menos ainda tinha o filho, como lhe recordou Tak ao vê-la tão desgostosa.

 

No entanto, a jovem estava inconsolável e, nessa noite, ao vê-la deitada na cama, Tadashi lembrou-se do que tinha experimentado ao perder a irmã. Era tudo tão sem sentido.

 

Sou incapaz de imaginar que não vou encontrá-lo quando regressar a casa declarou Hiroko e recomeçou a chorar, com Toyo a dormir ao lado dela.

 

Sinto-me assim em relação à Mary. A irmã também tinha um nome japonês, mas nunca o usara. O marido alistou-se pouco depois. Acho que ficou louco de desgosto devido a tê-la perdido, a ela e ao bebé. Haviam acabado de casar-se, antes da evacuação.

 

Tanta coisa acontecera. Peter e Ken continuavam a lutar pelo país. Já era tão duro sobreviver ali, com todos os problemas, a doença e as dificuldades, quanto mais no combate com o inimigo. Pensar nisso ainda a assustava mais.

 

O difícil aqui prosseguiu, dando voz ao que todos sentiam é que não nos restam muitas opções.

 

Nesse momento, Hiroko pensou em algo que ainda não lhe ocorrera.

 

Com a morte do irmão, os pais não teriam quem tomasse conta deles. Haviam perdido o filho e agora devia-lhes algo como filha. Era a primeira vez, desde que lhe tinha sido dada a opção, que pensava seriamente em regressar ao Japão para os ajudar. Comunicou a ideia a Tadashi, mas ele pareceu chocado. Nunca teria voltado a meio da guerra. Não era, porém, o seu país.

 

Mas é o meu replicou Hiroko, persistente. Devo-lhes muito. Não posso deixá-los sozinhos acrescentou, reflectindo nas penosas escolhas que todos tinham de fazer.

 

E os teus primos?

 

Aqui, não posso ajudá-los. Não posso ajudar ninguém.

 

Não estou muito certo de que morrer num bombardeamento aéreo no Japão seja, de facto, ajudar os teus pais ou o teu filho protestou ele num tom firme, tentando dissuadi-la.

 

Terei de pensar no assunto disse ela, e Tad voltou ao trabalho, rezando para que não o fizesse.

 

Havia tantas coisas pelas quais deviam rezar, tantas coisas que todos esperavam que não voltassem a acontecer. Era difícil recordar como fora a vida na altura em que não havia nem tristeza, nem traição, nem terror.

 

Em seguida, todos viveram situações muito difíceis no campo de internamento. Durante o Verão inteiro, os ”rapazes não-não”, que haviam recusado assinar o juramento de lealdade em Fevereiro, causaram problemas. Intimidavam todos os que tinham assinado o juramento e ainda se encontravam no campo, sobretudo os jovens que estavam perto da idade de se alistarem.

 

Os ”não-não” apareciam do escuro da noite, faziam ameaças e mantinham-se pelas esquinas, insultando as pessoas e aterrorizando os que se davam ao trabalho de os ouvir. O termo, inu, ou cão, era usado por todos eles como etiqueta para os que haviam assinado o juramento, quais cães que não mereciam viver o bastante para se juntarem ao exército.

 

Sempre que possível, organizavam greves e paralisações de trabalho e incitavam à revolta muitos dos jovens infelizes. Os que sentiam que haviam sido atraiçoados, maltratados pelo país onde tinham nascido e estavam agora a ser oferecidos como carne para canhão, constituíam uma presa fácil para os ”não-não”, sempre que atravessavam o campo em busca de sarilhos.

 

Espancavam os que consideravam demasiado cooperativos com os administradores do campo e faziam manifestações ruidosas, destinadas a impressionar todos com a sua dureza, o que apenas contribuía para aumentar a tensão no campo.

 

Enfureciam, sobretudo, os ”leais”, pois o comportamento dos ”rapazes não-não” só servia para provar ao público que eles pertenciam aos campos de internamento, enquanto os jornais aproveitavam todos os momentos de distúrbio naqueles locais para darem uma má imagem dos que ali se encontravam.

 

Como resultado dos sarilhos causados, a raiva entre os ”leais” e os ”rapazes não-não” não parava de aumentar e atingiu o auge em Setembro, quando nove mil dissidentes e ”desleais” de outros campos foram enviados para Tule Lake. Dada a elevada quantidade dos mesmos, seis mil pessoas pacíficas tiveram de se mudar para lhes dar espaço.

 

De súbito, famílias que haviam sobrevivido a Tanforan, e depois a Tule Lake, tiveram de se deslocar novamente, verificando-se uma infinita tristeza à medida que se viam forçados a deixar amigos, ou mesmo irmãos e irmãs. Algumas chegaram mesmo a recusar partir, causando ainda mais problemas no campo, sobretudo devido às suas atitudes e à sobrelotação.

 

Os Tanaka receavam que também os mandassem embora, pois nenhum deles implicava alto risco, mas Takeo e Reiko não sabiam se a família conseguiria sobreviver a mais uma mudança.

 

Estavam habituados àquele lugar, haviam feito amigos, ambos tinham empregos decentes na escola e na enfermaria. Não queriam ser enviados para outro campo, mesmo que as condições pudessem ser um pouco mais agradáveis do que em Tule Lake, com tantos dissidentes e agitadores por perto. No final e por mera sorte, deixaram-nos ficar. Mas muitos outros partiram, e a vida deles era feita de constantes despedidas e tristeza.

 

Mal os novos ”desleais” chegaram, o nome do campo passou a ser Centro de Segregação de Tule Lake. Por questões de segurança e de controlo, o governo pretendia todos os de alto risco num único lugar. Os outros residentes do campo sabiam o que lhes estava reservado, só que se revelou pior do que haviam imaginado.

 

Agora, o campo tinha um excedente de três mil pessoas. Havia mais de oitenta mil residentes e as condições pioraram visivelmente. Tudo estava a abarrotar e as filas para tudo eram intermináveis. Nunca havia comida nem medicamentos suficientes. E tal significava, obviamente, mais tensão.

 

Hiroko tinha dificuldade em acreditar que já ali se encontravam há um ano. Era um aniversário que ninguém desejava celebrar e não se avistava o final, embora as notícias sobre a guerra continuassem a chegar.

 

Mussolini fora deposto em Julho e a Itália rendera-se incondicionalmente depois do Dia do Trabalhador, mas os Alemães não haviam arredado pé, nem tão-pouco Peter. Lutava agora em Itália, onde os Aliados avançavam devagar para norte, tentando empurrar os Alemães de volta ao seu país. O combate prosseguia nas aldeias e pequenas cidades.

 

Em Agosto, o avião do almirante Yamamoto foi abatido pelos Americanos. Fora ele o cérebro de Pearl Harbor e tratou-se de uma grande perda para os Japoneses. Tinham publicado a notícia no jornal do campo, e todos aplaudiram ao lê-la. Contudo, nem mesmo aquela reacção convenceu as autoridades do campo de que eles eram verdadeiros americanos e não simpatizantes dos Japoneses.

 

Os residentes japoneses tinham poucos aliados. Até então, as únicas entidades oficiais importantes que haviam comunicado ao Presidente que consideravam os campos de internamento um escândalo eram o secretário do Ministério do Interior, Harold Ickes, e o procurador-geral Francis Biddle. Contudo e apesar disso, ninguém esboçou um único movimento oficial para os libertar.

 

Os problemas em Tule Lake pioraram com o avançar do tempo: a impaciência reinava, as condições eram más e os ”desleais” faziam tudo ao seu alcance para semear a agitação e exacerbar os problemas.

 

Em Outubro, as greves atingiram o auge. Os ”rapazes não-não” fizeram tudo o que podiam para convencer as pessoas a não se apresentarem nos empregos, nem cooperarem em nada com a administração. Muitos dos residentes mais velhos não queriam envolver-se, mas acabou por se tornar perigoso de mais enfrentar aqueles jovens e, semanas depois, o campo estava em grande alvoroço.

 

Em Novembro, o exército acabou por controlar todo o campo de Tule Lake, e trouxe tropas para os dominar e obrigar a trabalhar. Nessa altura, cinco mil pessoas haviam participado em manifestações e verificavam-se greves constantes.

 

Alguns dos administradores negavam-se a deixar que as suas áreas parassem por completo, entre eles o director americano da enfermaria. Negou-se a permitir que o seu pessoal se unisse aos raivosos manifestantes. Precisava que eles tratassem dos doentes e moribundos do campo.

 

Porém, quando os manifestantes se aperceberam da sua resistência, invadiram a enfermaria e espancaram-no quase até à morte. O pessoal e os auxiliares, todos eles japoneses, fizeram o que puderam para o defender e vários ficaram feridos no motim.

 

Tratou-se de um incidente vergonhoso e a lei marcial foi, por fim, declarada no campo a treze de Novembro. Não havia actividades, clubes, bailes, nem crianças a brincarem. Apenas existia o silêncio.

 

Fora decretado o recolher obrigatório, havia soldados por todo o lado a reforçarem as leis e a prenderem os dissidentes, ou os que pareciam suspeitos ou revoltosos. Verificou-se uma greve geral de trabalho e muitos dos mais velhos tiveram medo de sair.

 

Os ”desleais”, como ainda oficialmente lhes chamavam, eram demasiado numerosos no campo e haviam contribuído para os problemas. O resto do campo estava furioso com eles. Os ”leais” tinham assinado os juramentos, mandado os seus filhos para o exército, a marinha e a força aérea.

 

Havia estrelas em quase todas as janelas e muitos já tinham morrido ao serviço da pátria. Aqueles jovens que estavam tão enraivecidos por se encontrarem ali, negando-se a reconhecer lealdade a quem quer que fosse, transformavam a vida de todos num verdadeiro inferno. E os ”leais” achavam que não lhes cabia esse direito.

 

O desânimo atingiu o auge quando no Dia de Acção de Graças não havia comida no campo. Por fim, a maré começou a mudar, quando os ”leais” perderam a paciência e ameaçaram fisicamente os ”rapazes não-não”. Tinham a sua conta. A intimidação e a violência haviam ido longe de mais e, durante algum tempo, todo o campo pareceu estar à beira da revolução.

 

Todavia, aos poucos, em Dezembro, os ânimos acalmaram. Verificou-se ainda uma série de baixas à enfermaria causadas por rixas e manifestações.

 

Tadashi, Hiroko e os seus auxiliares continuavam abalados pelos acontecimentos da noite em que a enfermaria fora invadida e o director do hospital espancado pelos ”rapazes não-não”. Tadashi salvara Hiroko e duas enfermeiras de serem atacadas, empurrando-as para dentro de um armário e fechando a porta à chave. Passaram horas antes de as deixar sair, e depois haviam troçado de Tad, mas ele não estava disposto a permitir que as ferissem. Teria morto alguém primeiro, sobretudo devido ao seu afecto por Hiroko.

 

Nessa noite, chegara a vias de facto com um dos amigos de Sally, um rapaz chamado Jiro e que desagradava a toda a família.

 

Tinha dezoito anos e era um jovem inteligente, bem-parecido e de uma família respeitável, mas, desde que viera para ali, desenvolvera todas as características de um duro e insensível rapaz da rua. Recusara assinar o juramento de lealdade, embora tivesse nascido nos Estados Unidos, e era um dos jovens mais exacerbados.

 

Gostava de fazer desfilar o seu batalhão ”não-não” diante da casa de Sally e mostrar como eram duros, para horror e raiva de Takeo. Há muito que proibira Sally de se dar com ele, embora os Tanaka conhecessem e gostassem dos pais. Estes haviam admitido que nada podiam fazer para controlar Jiro. No entanto, ele e Sally tinham-se conhecido através de amigos, passaram a conversar e ela sentia-se impressionada pela inteligência de Jiro e a sua personalidade, sempre que não desfilava, não insultava um dos ”leais”, nem lutava. Era um rapaz inteligente e espirituoso, mas com as atitudes de um delinquente juvenil.

 

Ele é esperto, mãe, e talvez tenha razão atrevera-se a dizer um dia a Reiko, o que lhe valera uma das raras bofetadas da mãe.

 

Não voltes a repetir tal coisa! avisara Reiko, trémula de raiva. O teu irmão está a combater por ti e por ele. Nós somos americanos! Esse rapaz e os da laia dele são traidores.

 

Reiko não manifestara qualquer ambiguidade nas palavras pronunciadas, mas Sally continuou a encontrar-se às escondidas com ele. Não estava apaixonada, mas gostava de Jiro e, de certa forma, excitava-a desafiar os pais.

 

Jiro participara no ataque à enfermaria dessa noite. Tadashi vira-o lá e ele aproximara-se de Tad e chamara-lhe raivosamente um mu. Depois, como que por respeito à relação que sabia que os Tanaka mantinham com Tad, fugiu e contentara-se em derrubar carrinhos de instrumentos cirúrgicos e bacios.

 

Hiroko viu-o abandonar o edifício mais tarde, e sentira-se furiosa com a sua atitude e a destruição que ele deixava à sua passagem, mas Sally recusara ouvir o que a prima lhe contou.

 

Ele não faz coisas dessas. É demasiado inteligente afirmou Sally, defendendo-o, o que apenas contribuiu para enraivecer ainda mais Hiroko.

 

Sally parecia mais atrevida de hora para hora e o seu círculo de amigos era cada vez pior. Tratava-se de algo que os preocupava a todos, sobretudo Reiko. Não sabia o que fazer com ela; os campos de internamento não eram o sítio indicado para uma jovem adolescente, especialmente Tule Lake, com tantos rapazes ”desleais” por perto e em busca de sarilhos.

 

Os verdadeiramente perigosos estavam sob segregação de qualquer tipo, ou mesmo na prisão, mas havia muitos outros de que os Tanaka não gostavam e se mantinham junto de jovens como Sally. Era difícil não ser influenciado por eles, devido às queixas convincentes de como haviam sido menosprezados e atraiçoados pelos Estados Unidos. E, nos últimos tempos, Sally parecia disposta a dar-lhes crédito.

 

Reiko falou no assunto a Tak, mas pouco podiam fazer. Havia tantos problemas ali, de saúde, segurança, desânimo, abastecimento, medo do futuro. A única coisa a fazer para sobreviver consistia em viver o momento presente e fazer o melhor que se podia. Para muitos dos residentes do campo, a união das famílias, os amigos e mesmo os empregos eram uma dádiva de Deus.

 

Trabalhar na enfermaria impedia Hiroko de pensar incessantemente em Peter. Embora ele estivesse muitas vezes presente no seu espírito, os seus dias e noites eram preenchidos com Toyo e as pessoas que ajudava.

 

Voltara a fazer turnos seguidos na enfermaria, muito antes do Dia da Acção de Graças. E, aos nove meses, Toyo era um pequeno e adorável terror, que começara a dar os primeiros passos.

 

Tadashi aparecia muitas vezes para brincar com ele e trazer-lhe coisas que fizera. Era delicado para todos, mas mostrava-se sobretudo atencioso para com as crianças. Em miúdo, fora atormentado na escola por causa da sua perna, sobretudo no Japão, o que lhe dera uma compreensão muito especial para com os problemas dos outros. Tinha também um arguto sentido de humor, e Hiroko lembrava-lhe repetidamente a figura ridícula que haviam feito quando ele as empurrara para dentro do armário, a fim de as salvar

 

Acho que fiz bem tê-las mesmo fechado à chave dizia ele com uma expressão pensativa e atirando Toyo ao ar

 

Apesar da poliomielite de que fora vítima, era jovem, forte, saudável e muito bem-parecido, como Reiko não se cansava de observar

 

Não interessa comentava Hiroko, insistindo em que eram só amigos

 

Mantinha-se totalmente fiel a Peter e à recordação do seu casamento budista. No entanto, Tak e Reiko achavam que Tadashi era um jovem simpático e, de forma alguma, uma hipótese a rejeitar. Era, afinal, um kibei, nascera nos Estados Unidos e estudara no Japão. Conhecia a cultura e a linguagem dela, eram da mesma raça e seriam iguais face a qualquer preconceito que, mais tarde, pudesse surgir-lhes no caminho

 

Os casamentos mistos não só eram ilegais na Califórnia, segundo lhe salientara Tak quando um dia estavam a discutir o assunto, mas muito difíceis e potencialmente perigosos para os filhos

 

É mesmo isso o que pensas? perguntou ela, olhando tristemente para o primo; É o que achas que acontecerá ao Toyo, quando o pai voltar. Que o nosso amor será perigoso para ele? Parecia chocada com a opinião de Tak

 

Não o vosso amor redarguiu este, num tom infeliz, mas a atitude dos que vos rodeiam. Foram essas atitudes que nos puseram aqui. Olha para onde estás. As pessoas que acreditam nestas coisas, que somos diferentes, que somos desleais, que somos perigosos, não se deterão com nada E, um dia, atingirão o teu filho, como o fizeram contigo. Ele não ficará a salvo. Estarás melhor com um homem da tua raça, Hiroko, que te aceite como és e mesmo ao Toyo

 

A jovem sentiu-se horrorizada com as suas palavras, não só pela tristeza e o preconceito que pareciam tê-lo derrotado, mas pelo facto de ele não achar que ela devia esperar por Peter. Tadashi estava ali. Porque não casar com ele? O problema residia em que, embora fossem amigos, não o amava. Não queria ninguém, à excepção de Peter Tadashi perguntara-lhe, casualmente, por várias vezes, quais os seus planos para ”depois” e o que ia acontecer-lhe, a ela e a Toyo. Sabia o que ele pretendia dizer e sempre se mostrara reservada nas respostas. Não discutia os seus planos com ninguém, mas deu-lhe a entender que, tanto quanto lhe dizia respeito, estava ”comprometida”.

 

Falara com ele sobre o regresso ao Japão depois da morte de Yuji para ajudar os pais. Contudo, agora era quase impossível voltar e sabia que os Estados Unidos eram um lugar mais seguro para ela e para Toyo. Sabia que ficaria nos Estados Unidos e regressaria após o final da guerra; restava-lhe apenas esperar que os pais estivessem bem.

 

O aniversário de Pearl Harbor chegou e passou num ambiente sombrio, mas, pelo menos, sem violência ou problemas. E, nesse ano, quando veio o Natal, e apesar da lei marcial, as autoridades tentaram encorajar uma atmosfera mais pacífica.

 

O recolher obrigatório abrandou nas noites especiais, acabando por permitir-lhes que tivessem bailes e encontros promovidos pelos clubes de amizades. Eram fantásticos os grupos de carácter positivo existentes no campo, todos formados por pessoas que tentavam superar a tristeza, os receios, os problemas. Estavam decididas a tirar o melhor partido de uma má situação e na maioria das vezes conseguiam.

 

Houve mesmo uma peça de teatro kabuki a que Hiroko e Tami assistiram e um teatro de fantoches de bunraku a que Tadashi a levou com Toyo. Hiroko e Tad tocaram juntos, não faltando os cânticos de Natal e, mau grado todos os seus esforços, não conseguiram que Sally se lhes juntasse.

 

Não. O que me interessa o Natal? exclamara Sally, deitada na cama, quando Hiroko lhe pedira que fosse com ela e Tadashi. E, afinal, porque o levas contigo? Se está assim tão doido por ti, por que não se casam?

 

Não me parece que seja da tua conta respondeu Hiroko friamente.

 

Estava farta da miúda. Sally mostrava-se rude para todos. Passava o tempo a discutir com Tami e também com a mãe. E enfurecia-se com cada palavra de Hiroko. O único ser humano para quem se mostrava civilizada, e mesmo afectuosa, era Takeo, o pai. Continuava a idolatrá-lo e Tak adorava-a.

 

Deixa-a disse Reiko, e Hiroko levou Tami e passaram uns momentos encantadores, entoando todas as suas canções favoritas, sob o ar frio e áspero das montanhas.

 

Embora Tule Lake fosse quente e poeirento no Verão, era um gelo no Inverno.

 

Apesar do sítio onde se encontravam e as inevitáveis restrições, foi uma noite fantástica e, mais tarde, Tadashi apareceu para conversar um pouco. Sally estava sentada numa cadeira, amuada. Observou-o a falar com os pais e com Hiroko e esgueirou-se para o quarto, mas ninguém prestou atenção.

 

Tad e Hiroko estavam demasiado ocupados a rir sobre o baile a que todo o grupo da enfermaria tinha ido na outra noite. A banda tocara Don’t Fence Me In e outras canções como Harvest Moon, String of Pearls, In The Mood e muitos arranjos de Glenn Miller.

 

Tadashi só dançara com ela uma vez por causa da perna, mas Hiroko dançara com o tio Tak e um dos médicos com quem trabalhara. Não havia muita opção de homens novos no campo, pelo menos interessantes, mas era-lhe indiferente. Apenas desejava Peter e todos os que a conheciam sabiam que ela queria fazer amigos, mas não andar com ninguém.

 

Nessa noite, quando Tad saiu, acompanhou-o até ao exterior e sentaram-se nos degraus, sob o frio gélido, durante um minuto, a falarem do Natal, do Pai Natal, das coisas de que gostavam quando eram miúdos.

 

Tad havia-lhes cortado um pinheiro pequeno e tinham feito as decorações, só que em nada se assemelhava ao ”verdadeiro”, uma árvore enorme com decorações compradas na loja.

 

Um dia... proferiu Tadashi com um sorriso caloroso e preparando-se para se ir embora. Voltaremos a ter tudo isso um dia prometeu com um ar de quem acredita mesmo.

 

Contudo, apesar do fascínio de Toyo, que espreitava tudo sobre as frágeis pernitas, o Natal foi mais calmo nesse ano. Há quase três anos que não via a família, o irmão estava morto, Ken partira e não tinha notícias de Peter desde o fim de Novembro. Ficava sempre assustada quando não sabia dele, pois ignorava se tal significava que ele estava em marcha, ferido, ou pior. Sabia que, se alguma coisa lhe acontecesse, passaria muito tempo antes que as notícias lhe chegassem. Pusera Tak na sua lista de pessoas a notificar, mas, mesmo assim, podia ter morrido um mês antes de ela o saber

 

Boa noite despediu-se Tadashi, olhando-a, ao mesmo tempo que a respiração gelada de ambos pairava sobre as suas cabeças. Natal feliz desejou. A véspera de Natal era no dia seguinte e ambos estariam a trabalhar Até amanhã

 

Quando na noite de Natal se encontraram na enfermaria, ele estendeu-lhe um pacotinho. Era uma medalha, que ele talhara em madeira, com as iniciais dela, pendurado num fio de ouro que a mãe dele conseguira salvar

 

É muito bonito, Tad, exclamou, dando-lhe o cachecol que lhe tricotara, embrulhado num papel vermelho

 

Ele abriu, pô-lo imediatamente ao pescoço com um sorriso enorme e disse-lhe que gostava imenso. Era vermelho, ficava-lhe bem e fingiu não notar os defeitos da malha

 

Não ganhei nenhum prémio no clube de tricô desculpou-se ela e voltou a agradecer-lhe a medalha

 

Depois, ambos se dirigiram apressadamente aos respectivos trabalhos e estiveram ocupados durante o resto da noite

 

Tad acompanhou-a a casa e voltou a desejar-lhe um feliz Natal. Hiroko mostrava-se pensativa, quando entrou no quarto e beijou o filho adormecido. Tad era um homem simpático e gostava dele, mas não queria encorajá-lo. Seria injusto, por melhor que sempre tivesse sido para ela

 

Convenceu-se, porém, de que ele compreenderia e esqueceu-o até de manhã. Em vez disso, sonhou que Peter regressava até junto deles, e Ken, e muito, muito ao longe, pareceu-lhe ver Yuji

 

Onde arranjaste isso? perguntou Sally no dia seguinte, e Hiroko baixou os olhos para ver ao que ela estava a referir-se e lembrou-se da medalha que Tad lhe fizera

 

Foi o Tadashi que ma deu respondeu com um sorriso a Sally

 

Também lhe tricotara uma camisola e comprara-lhe umas luvas do catálogo da Sears. Todos precisavam tanto dessas coisas agora, em Tule Lake. Contudo, Sally mostrou-se novamente furiosa e fez um comentário sobre como algumas raparigas passavam de uns homens para outros

 

O que queres dizer perguntou Hiroko sem rodeios, magoada com as palavras dela e as implicações óbvias

 

Sabes muito bem respondeu com uma expressão furiosa e um tom de voz brusco

 

Talvez saiba admitiu Hiroko Mas não me agrada. Não passo de um homem para outro. Não se passou nada com o Tadashi

 

Aposto retorquiu Sally e saiu do quarto, enquanto Hiroko tentava controlar-se

 

Sally não só se mostrou maldosa, como malcriada, quase não dirigindo a palavra a Tadashi, quando ele veio desejar-lhes um feliz Natal, um pouco mais tarde Trouxe-lhes uma aguarela que a mãe fizera para eles e era, de facto, muito bonita. Mostrava um pôr do Sol de Verão, nas montanhas

 

A Sally está muito bem-disposta disse Tadashi a brincar, e Hiroko soltou uma exclamação entre dentes

 

Esta manhã quase lhe bati confessou

 

Talvez devesses fazê-lo Ficaria, sem dúvida, surpreendida

 

Hiroko riu com a ideia e depois foram dar um longo passeio. Quando saíram, Reiko ergueu uma sobrancelha

 

Estes passeios têm um toque familiar gracejou para Tak. Achas que devo preocupar-me? O marido sorriu como resposta

 

Acho que ela já tem idade para cuidar de si, não te parece. Ele é muito simpático acrescentou, depois, num tom mais sério. Falei com ela no outro dia, mas não me quis ouvir. É uma escolha muito mais sensata do que o Peter

 

O que te leva a afirmares isso surpreendeu-se Reiko, e ele enumerou tudo o que dissera a Hiroko

 

Talvez tenhas razão, Tak Mas ela ainda ama o Peter. Era uma confissão que a jovem fizera repetidas vezes a Reiko ao longo dos meses

 

Talvez possa amar também o Tad sugeriu ele num tom prático. O rapaz é fantástico para o Toyo

 

Hiroko tinha quase vinte e um anos e era mãe de um filho. Em certos aspectos, seria muito melhor para ela casar E não encontraria qualquer objecção de nenhum dos lados. Reiko já conhecera a mãe e ela dissera quanto gostava de Hiroko Mas, quando Sally atravessou a sala e ouviu uma parte da conversa, foi para o quarto e voltou a bater com a porta

 

O que é que ela tem? perguntou Takeo, primeiro sobressaltado e depois preocupado

 

Esperava que a filha não se tivesse encontrado outra vez com Jiro. Parecia portar-se pior, sempre que isso acontecia. Depois, lembrou-se de que lhe constara que haviam posto Jiro no isolamento na semana anterior, e Sally dizia que ele tinha namorada

 

Sally estivera toda a semana de péssimo humor e parecia mesmo revoltada contra a prima Nos últimos tempos, mais do que nunca

 

O seu pior problema é que tem dezasseis anos afirmou Reiko em resposta à pergunta de Tak

 

Sally tinha quase dezassete e o facto de crescer em Tule Lake não era nada bom para a sua adolescência. Apesar de todos os esforços para tornarem a vida suportável ali, eram obrigados a enfrentar uma constante privação E, no caso dos jovens, faltavam-lhes todas as frivolidades que os amigos americanos ainda tinham e com que os pais e os irmãos mais velhos se haviam habituado

 

Não podia ir a bailes, nem ter vestidos bonitos, ir a jogos de futebol ou mesmo ao cinema, ou frequentar uma escola vulgar. Não podia ir a nenhum sítio, nem ter nada. Estava na prisão, tal como os outros. Tinha sempre frio, usava roupas horríveis, vivia atrás de arame farpado, dispunha de poucos medicamentos se adoecesse e, na maior parte do tempo, sentia fome

 

Temos de a mandar embora daqui no próximo Verão disse Tak com o primeiro acesso de bom humor que mostrava desde há meses

 

Estivera bem-disposto nos feriados e chegara a levar Reiko a dançar a um dos bailes organizados para a passagem do ano, ambos concordando que a música era fantástica

 

Nessa noite, Hiroko optara por trabalhar, a fim de dar oportunidade aos outros de festejarem, pois não tinha ninguém com quem encontrar-se. E Tadashi também se inscrevera para trabalhar com ela.

 

À meia-noite, ambos ajudavam um miúdo doente que estava com vómitos horríveis devido a um caso grave de gripe. Tadashi sorriu-lhe por cima da cabeça dele e murmurou as palavras ”Feliz Ano Novo”. Depois, quando a criança já estava novamente a dormir e tinham limpo tudo, riram sobre a forma como decorrera a passagem do ano de ambos.

 

Teremos algo para lembrar disse ele a rir. Quando os nossos filhos nos perguntarem o que fizemos na nossa primeira passagem do ano, podes contar-lhes esta história.

 

Contudo, Hiroko não pareceu nada satisfeita com aquelas palavras, mas antes preocupada. Não havia mais ninguém por perto e eles estavam sentados a beber duas chávenas de café que Tad preparara.

 

Não digas essas coisas, Tad.

 

Porque não? Era a primeira vez que se sentia com coragem, pois na maior parte das vezes receava ir longe de mais. Mas agora decidira agarrar a oportunidade. Todos precisamos de um pouco de esperança nas nossas vidas para nos aguentarmos. És minha, Hiroko. Era a coisa mais honesta que dissera a alguém e, fosse qual fosse a resposta dela, não o lamentava.

 

Não quero ser isso vincou ela com igual honestidade. És um amigo maravilhoso, Tad, mas não posso dar-te mais do que amizade. Há outra pessoa.

 

Ainda estás assim tão apaixonada por ele? Ambos sabiam de quem falavam.

 

Estou assegurou baixinho, rezando para que ele estivesse vivo.

 

Haviam passado muitas semanas desde a sua última carta.

 

E se as coisas forem diferentes quando ele voltar? Se ele tiver mudado, ou tu? Isso acontece, sobretudo na nossa idade. Não sabia a idade de Peter, mas supunha que estivesse algures na casa dos vinte.

 

Não me parece que tal aconteça.

 

Nem sequer tens vinte e um anos, Hiroko. Deve ter-te acontecido muita coisa, antes de chegares aqui. Vieste para este país e, cinco meses mais tarde, estávamos em guerra, tiveste de abandonar os estudos, os teus primos perderam tudo e, de um momento para o outro, viste-te aqui. E agora, tens um filho. É um turbilhão. Como podes sequer imaginar o que vais fazer a partir de agora? Depois, Tad acrescentou algo que a magoou realmente: Se estivesses assim tão certa, terias casado com ele, antes de o Toyo nascer. Ou estou completamente errado?

 

Não estás errado disse pensativamente, interrogando-se por que razão ainda tentava explicar-lhe. Não lhe devia qualquer explicação, mas ele salvara-lhe a vida do filho e a dela e suspeitava que lhe despertava um profundo interesse. E, à sua maneira, como amigo, amava-o. Julguei que fosse complicado de mais e errado. Queria voltar ao Japão e obter primeiro a permissão do meu pai. Depois, veio a guerra e tornou-se tarde de mais. Não conseguia imaginar-me a fugir deste estado para me casar. Mas... de qualquer maneira, as coisas aconteceram. Acrescentou, então, algo que ele não sabia, mas o chocou profundamente. Ele nada sabe do Toyo.

 

Falas a sério? Nunca lhe disseste? Era incapaz de imaginar a situação. Devia ser uma enorme responsabilidade para ela ter tudo apenas sobre os seus ombros.

 

Pareceu-me injusto. Não queria que sentisse que tinha de voltar, se não o quisesse.

 

Portanto, nem certezas tens a esse respeito? Sentia-se surpreendido, mas satisfeito. As coisas eram melhores do que imaginara em alguns aspectos e piores noutros.

 

A minha única certeza é o quanto o amo pronunciou Hiroko meigamente.

 

É um homem feliz exclamou Tadashi, olhando-a e desejando que ela lhe pertencesse e que fosse ele próprio o pai de Toyo. Que sorte tinha o indivíduo e nem sequer o sabia. Talvez ele não o mereça aventurou-se.

 

Merece, sim garantiu ela.

 

Tadashi agarrou-lhe na mão e fitou-a. Não havia outra altura ou outra forma de o dizer.

 

Amo-te declarou com sinceridade. Amo-te, desde o primeiro dia em que te vi.

 

Lamento disse ela, abanando tristemente a cabeça. Não posso... Também te amo, mas não assim... Não posso...

 

E se ele não existisse? Não queria dizer ”não voltasse”, mas ambos sabiam ao que se referia, e Hiroko limitou-se a fitá-lo, incapaz de responder.

 

Não sei. Dissera que o amava e era verdade, como amigo, ou mesmo como irmão.

 

Posso esperar. Temos uma vida inteira pela frente... esperemos que longe daqui. Sorriu, ansioso por a beijar, mas seguro de que seria errado tentar e estava certo. Iria perturbá-la.

 

Não é muito justo para ti. Não tenho o direito de te prender, Tad. Não sou livre.

 

Não te peço nada declarou ele sincero. Sinto-me satisfeito com as coisas como estão. Podemos tocar juntos na orquestra.

 

Hiroko riu. Parecia tão ridiculamente antiquado. Levavam uma vida tão louca.

 

És um bom desportista elogiou, usando uma das suas expressões americanas favoritas.

 

E tu és bonita e amo-te muito respondeu e ela corou, mas Tad sentiu-se feliz por ver que a jovem pusera a medalha.

 

Nessa noite acompanhou-a a casa e ambos pareciam satisfeitos. Tinham atingido uma plataforma de entendimento. Ele estava apaixonado por ela e iam esperar para ver o que acontecia. Deixarem por completo de se verem quando não estavam a trabalhar teria sido terrível para os dois, privando-os de uma amizade que muito prezavam.

 

Depois, embora tivesse prometido a si próprio que não o faria, Tad inclinou-se e beijou-a ao de leve nos lábios, afastando depois o rosto sem lhe dar tempo a reagir. Ela abraçou-o e ficaram ali ao frio, interrogando-se sobre onde a vida os levaria. Depois, Hiroko disse-lhe que o veria no trabalho no dia seguinte e foi para dentro. De momento, era tudo o que podia oferecer-lhe.

 

Quando se levantou, um soldado estava no exterior a falar com Tak e interrogou-se sobre se haveria problemas. Ele parecia muito sério, Tak acenava repetidamente com a cabeça, e quando o soldado se foi embora, Tak não voltou para dentro, limitando-se a ficar ali parado. A tia Rei também estivera a observá-lo e, passado um minuto, saiu e deteve-se na ombreira.

 

O que aconteceu? perguntou, ficando ao ar gelado sem casaco, mas Tak parecia estranhíssimo e fitava-a como se não tivesse a certeza de quem ela era ou o que lhe perguntara. Tak? Sentes-te bem, amor? Desceu apressadamente os dois degraus ao encontro dele e Tak acenou com a cabeça.

 

O Ken foi morto em Itália declarou, olhando-a com uma expressão ausente. De início, julgavam que andava em combate, mas encontraram o corpo acrescentou, como se lhe falasse de uma encomenda que fora entregue. Está morto proferiu, como se não a visse, e ela fez uma expressão horrorizada. O Ken, o Ken. O Ken morreu.

 

Continuava a repetir o nome de Ken, como se não o compreendesse e, nessa altura, Hiroko observava-os e soube instintivamente que algo de terrível acontecera. Desceu os degraus a correr para ajudar o primo.

 

Takeo andava de um lado para o outro, repetindo as mesmas palavras, enquanto as pessoas das outras casas olhavam para ele. A mulher nem conseguia chorar. Também ela estava demasiado assustada e preocupada com o marido.

 

Vem para dentro, Tak. Está frio aqui disse-lhe com voz meiga, mas ele não fez qualquer menção de a seguir. Tak... por favor... Tinha os olhos cheios de lágrimas, ouvira a notícia, mas só podia reagir quando se ocupasse dele. Vamos para dentro, querido. Ela e Hiroko rodearam-lhe os ombros com o braço e ajudaram-no a subir as escadas devagar, até à pequena sala de estar, sentando-o numa cadeira e trocando olhares.

 

O Ken morreu repetiu-lhes.

 

Era o dia de Ano Novo de 1944, e Sally acabara de entrar na sala e ouviu-o.

 

O quê? gritou, e Tami acorreu, pegando em Toyo ao colo.

 

Viviam um pesadelo, mas agora não havia forma de recuar. Sally entrou num repentino histerismo e Hiroko foi ocupar-se dela, enquanto Reiko tentava tratar de Takeo. Depois, Tami desatou também a chorar, e Toyo, ao ver que todos choravam sem entender nada, juntou-se-lhes.

 

Hiroko conseguiu levar todas as crianças de volta ao quarto e deixou Reiko a falar calmamente com Takeo. Sally chorou durante uma hora nos braços de Hiroko, apesar da permanente raiva com que a tratava, e Tami sentou-se do outro lado, agarrando-se a ela.

 

Eram notícias terríveis e Hiroko sabia bem até que ponto. Ficara devastada quando havia perdido Yuji, no Verão anterior. E, agora, Ken. A guerra levava-lhes todos os seus jovens e, em alguns casos, os velhos. Havia tantos homens como Tak, abalados, amargurados, profundamente envergonhados com o que lhes acontecera, quando, na verdade, estavam inocentes, só que não o sabiam. Sentiam que, de certa maneira, eram responsáveis.

 

Agora, Tak entrara em desespero, mas, quando Hiroko foi ver como ele estava, havia recuperado o juízo e soluçava nos braços da mulher, como uma criança. O seu primogénito morrera, o seu filho, o bebé de ambos. A mesinha onde estava a sua fotografia de uniforme parecia mais do que nunca um santuário, só que agora a um herói morto.

 

Nesse dia, Hiroko ficou em casa com eles, tomou conta das miúdas e Reiko e Tak dirigiram-se ao templo budista, a fim de conseguirem uma missa fúnebre. Não lhes devolveriam o corpo. Não havia nada que pudessem agarrar, tocar ou voltar a beijar. Havia somente recordações e a percepção de que ele servira o país que todos haviam amado, mas os atraiçoara.

 

Tak parecia mil anos mais velho quando regressaram do templo, e Hiroko apercebeu-se, da mesma forma que Reiko, que voltara a ter problemas respiratórios. Ninguém acreditaria que ele tinha cinquenta e dois anos. Parecia e sentia-se como se tivesse noventa.

 

O serviço fúnebre que tinham organizado foi celebrado no dia seguinte, em honra de Kenji Jirohei Tanaka. Tinha dezoito anos, e, independentemente do que se pensasse sobre a guerra, fora uma terrível perda de juventude e promessas.

 

Tadashi acompanhou-os ao templo e sentou-se entre Hiroko e Sally E, pela primeira vez, a jovem não despejou a sua raiva em ninguém. Estava desesperada e depois agarrou-se ao pai, chorando pelo irmão Mas ele não tinha força para partilhar a dor com quem quer que fosse. Mal conseguiu sair do templo com a ajuda de Reiko e, ao ver o estado em que ele se encontrava, Tadasi auxiliou-a. Lamentava profundamente o que lhes acontecera e, nessa noite, ajudou-a mesmo a meter o marido na cama. Tak atravessava um momento horrível, e Hiroko sentiu o coração despedaçado

 

A única coisa que a alegrou no dia seguinte foi, finalmente, uma carta de Peter

 

Estava vivo, de saúde, e em Arezzo. Contudo, nem sequer pôde partilhar as notícias com Tak. Ele estava demasiado perturbado com Ken para suportar a notícia de que outra pessoa sobrevivera aos combates

 

Nessa tarde, Tadasi voltou a visitá-los e falou calmamente com Hiroko no exterior. Não queria entrar nem incomodar ninguém, e ela informou-o de que Tak permanecera todo o dia na cama a chorar, mas Reiko estava ao lado dele. Era como se a perda de Ken fosse a última gota que derramara o copo de água. Não conseguira aguentar

 

Contudo, havia outros homens no campo, que também estavam como ele. Haviam perdido filhos, alguns deles vários, bem como negócios, casas e vidas E não conseguiam adaptar-se ao que acontecera. Sentiam-se como que incapazes de voltar a enfrentar o mundo. Tinham-nos envergonhado demasiado fundo

 

Reiko também sentia um enorme desgosto por causa de Ken, mas nem podia dar-se ao luxo de pensar nisso e entregar-se ao luto, ocupada como estava a tomar conta de Takeo. Não foi trabalhar durante a semana inteira e todos compreenderam

 

Hiroko fez alguns turnos extras em seu lugar. Duas semanas mais tarde, Tak melhorou, mas ainda não estava bem. Parecia cansado, velho e ofegante e Hiroko apercebeu-se subitamente de que o cabelo lhe embranquecera por completo e ela nem sequer notara

 

A lei marcial no campo findou a meio de Janeiro e formou-se um comité de não extremistas para controlar os ”não-não”. O comité intitulou-se Sociedade Patriótica Nipónica e as greves terminaram quase de imediato após a constituição do comité.

 

A calma pareceu voltar a reinar, mas não para os Tanaka. Sally comportava-se pior do que o habitual, como reacção ao desgosto do pai, Tami não parava de chorar e Toyo mantivera Hiroko três noites acordada, quando lhe nasceram novos dentes. Tinha agora dez meses e meio, mas nem isso animava Takeo. Ele dava a sensação de não reparar em nada. Estava completamente ausente.

 

Uma tarde, Hiroko deixou Toyo com Tak, quando foi trabalhar. Sally costumava voltar a casa para tomar conta dele, mas desta vez, não o fez. E Takeo encontrava-se em casa, pois fora dispensado da escola por causa da morte de Ken e iam-se aguentando sem ele, embora com dificuldade. Com tantos jovens no campo, precisavam de todos os professores, bem como de todos os médicos e enfermeiras. Mas ele não se sentia bem e concordaram que seria preferível que ficasse um mês em casa a recuperar.

 

Ao sair de casa, Hiroko achou que poderia ser bom para Tak encarregar-se uns minutos de Toyo. Poderia afastar-lhe o pensamento do desgosto. Ia todos os dias ao templo e acendia velas na mesa onde conservavam a fotografia de Ken.

 

A Sally estará em casa dentro em pouco, Tak recordou-lhe antes de ir para o trabalho, e percorreu, apressada, o longo e árido caminho até à enfermaria.

 

Avistou Sally que regressava da escola e disse-lhe que o pai a esperava com Toyo.

 

Vou já respondeu, sem discutir com Hiroko. Faria tudo pelo pai e quando Hiroko chegou ao trabalho, encontrou Reiko a tratar de uns papéis.

 

Como está ele? perguntou, e Hiroko acenou com a cabeça. Não estava muito bem, mas ia um pouco melhor. Pelo menos, acedera a fazer de baby-sitter de Toyo, o que não era mau.

 

Deixei o bebé com ele. Acabei de ver a Sally, que ia para casa. Disse-lhe que ele estava à espera.

 

Sally fora imediatamente para casa, como prometera.

 

Subira os degraus a correr, entrara e viu o pai sentado na cadeira, com Toyo ao colo. O miúdo brincava com um pião de madeira que Tak lhe dera, feito por ele, e o rapazinho mordia a madeira, feliz. Tak dormia calmamente. Devia ter adormecido pouco depois de Hiroko sair, e Sally sorriu, ao pegar no miúdo.

 

Inclinou-se para beijar o pai na testa, mas, no momento em que o fez, a cabeça dele descaiu para trás. Embora tivesse os olhos fechados, a filha soube logo o que se passava. Sem largar Toyo, percorreu a correr a distância que a separava da enfermaria, à procura da mãe.

 

É o papá disse, ofegante, mal chegou, e Hiroko tirou-lhe o bebé dos braços e entregou-o a Tadashi. Está doente.

 

No fundo do coração, sabia que não era essa a verdade. Não estava doente quando o deixara. Estava morto, e ela sabia, mas era incapaz de enfrentar a verdade.

 

Reiko e Hiroko voaram pela estrada ao encontro dele, seguidas por Sally e Tadashi, avançando o mais rapidamente possível, com o bebé ao colo. Tapou-o com o casaco para que não apanhasse frio. Quando chegou a casa, Reiko tentou reanimar Tak, mas era tarde de mais e ela sabia-o. O coração cedera e a alma muito antes ainda. Não conseguira aguentar mais. Tinham-lhe faltado as forças. E, calmamente, sem um murmúrio ou um som, ou uma despedida, deixara-os.

 

Oh, Tak! gemeu Reiko, caindo de joelhos ao lado dele. Oh, Tak... por favor... não me deixes...

 

Era tão injusto. Tudo ficaria tão só sem ele. E tinham acabado de perder Ken. De que servia a vida sem eles? Mas sabia a resposta. Tinha de continuar, por Tami e por Sally. O seu destino não lhe permitia dar-se ao luxo de desistir, ou mesmo morrer. Tinha de continuar, por elas. Aos quarenta anos, era viúva. Ajoelhou-se, ocultando o rosto entre as mãos, chorando o marido que tanto amara e perdera para sempre.

 

Hiroko abraçou-a e ajudou-a a levantar-se, enquanto Sally se conservava de pé, soluçando e observando-as, consciente de que não podia viver sem o pai.

 

Papá sussurrou, e Tad entregou Toyo à mãe e acolheu-a suavemente nos braços.

 

Limitou-se a apertá-la de encontro ao corpo e a deixá-la chorar, enquanto Hiroko vestiu um casaco a Toyo e foi para o exterior esperar Tami. Decorridos uns minutos, ela voltou da escola e Hiroko fechou a porta do lado de fora, mal a viu chegar. Levou-a a dar um passeio e deu-lhe a notícia da morte do pai o mais suavemente possível.

 

Morreu assim? surpreendeu-se, fitando a prima, de olhos muito abertos. Ninguém o matou? Mas ele não era velho.

 

Não lhes era fácil aceitar a realidade, e ela e Hiroko choravam, enquanto passeavam e falavam no assunto. Quando voltaram, os outros esperavam-nas no exterior, e Tadashi conservava-se ao lado de Sally. Ao olhá-los, Hiroko compreendeu algo que até ali lhe falhara totalmente. Explicava tudo e acenou com a cabeça.

 

Reiko foi dar um passeio com as miúdas, enquanto Tad e Hiroko voltavam ao hospital, a fim de requisitar dois carregadores e um caixão para Takeo. Não queriam que as crianças assistissem, mas era uma cena que já haviam presenciado com outros. Só que era demasiado doloroso, tratando-se do pai. Uma hora mais tarde, tinham-no transportado para a morgue e Tadashi regressou. Nessa noite, todos ficaram sentados na pequena sala de estar, falando sobre ele de vez em quando, mas conservando-se na maior parte do tempo em silêncio.

 

Hiroko acabou por regressar ao trabalho com Tad. Há muito que o turno de Reiko terminara, e voltaram ao hospital, falando sobre o que acontecera. Ele era ainda muito novo para ter morrido, mas havia outros nas mesmas condições, que se tinham deixado abater. Sobretudo entre os homens. Apesar da sua fragilidade física, as mulheres pareciam mais fortes e mais capazes de aguentar os desgostos.

 

Pobre Reiko! murmurou Tad, realmente emocionado.

 

O seu próprio pai morrera quando ele era jovem e sabia bem quanto fora difícil para a mãe. Depois, Hiroko disse algo estranho naquelas circunstâncias, mas estavam tão à vontade um com o outro, que o tratava como um irmão.

 

A minha prima está apaixonada por ti afirmou num tom calmo e ele fitou-a, horrorizado.

 

A Reiko?

 

Não, parvo! retorquiu ela, contrariada por ser incapaz de suster o riso, o que, porém, aliviou a tristeza do momento. A Sally. Esta tarde, estive a observá-la, ao teu lado. Apercebi-me, finalmente, de que está louca por ti. É talvez por isso que me trata tão mal. Acha que estou a tentar roubar-te. Era, de facto, uma explicação para os antipáticos comentários sobre ”passar de um homem para outro”.

 

Acho que estás enganada disse Tadashi, parecendo embaraçado.

 

Também ele notara e sempre apreciara a rapariga. Contudo, nunca lhe ocorrera que ela pudesse gostar dele daquela maneira. Além disso, andara demasiado ocupado com os seus sentimentos por Hiroko. O que ela lhe dissera agora sobressaltava-o, mas não lhe desagradava. Sally era, porém, muito jovem, tinha apenas dezassete anos, e ele era sete anos mais velho. Não lhe parecia uma união conveniente e tinha a certeza de que Reiko não aprovaria.

 

Julguei que soubesses comentou Hiroko e ele anuiu com a cabeça.

 

Não voltaram a mencionar o assunto, mas ela quisera que ele soubesse. Mais do que nunca tinha consciência, sobretudo desde que Ken e Takeo haviam morrido, do quanto a vida era preciosa e cada momento valioso. Sabia também que jamais deixaria de amar Peter, acontecesse o que acontecesse.

 

Parecia-lhe muito injusto deixar Tadashi à espera de qualquer coisa que nunca aconteceria. Ele era jovem, tinha direito a algo mais do que às migalhas de alguém, ou à mulher e ao filho de outra pessoa. Chegara a altura de começar a pensar no assunto. E ela achava que ele seria perfeito para Sally.

 

Nessa noite, depois de regressar a casa, Hiroko sentou-se durante muito tempo com Reiko, confortando-a, deixando-a chorar, ouvindo memórias e sonhos desfeitos. Depois, escreveu uma longa carta a Peter. Ele e Tak haviam sido muito bons amigos e sabia que a notícia o afectaria, mas decidira contar-lhe.

 

Passou muito tempo antes de voltar a ter notícias de Peter, mas, quando isso aconteceu, ele mostrava-se devastado com a morte de Tak. Nessa altura, já decorrera o funeral, e ele estava enterrado no cemitério que se apresentava demasiado cheio com tantas perdas inúteis, pessoas que podiam ter sido salvas com melhores medicamentos, anestesias, melhores condições de vida.

 

Talvez um pouco de esperança também houvesse contribuído para as salvar. Como no caso de Tak, que pura e simplesmente desistira. Limitara-se a ficar sentado e a morrer, em vez de sobreviver. Recordou-se do que Peter lhe dissera antes de partir, que ela tinha de sobreviver, e Hiroko prometera-lho.

 

O primeiro aniversário de Toyo ocorreu seis semanas mais tarde, e uma das enfermeiras preparou-lhe um pequeno bolo na cozinha da enfermaria. Deram-lho nessa noite, depois do trabalho, e ele atirou-se-lhe com gula e sujou-se dos pés à cabeça sob o olhar das mulheres da família.

 

Hiroko gostava de ter tirado fotografias, mas não havia máquinas fotográficas. Tadashi também viera partilhar o bolo e trouxera-lhe um bonito carrinho de madeira, com um pato a puxar um ovo, e Toyo adorou.

 

Tadashi parecia ter aceite o conselho de Hiroko e ela sabia que se encontrara várias vezes com Sally e, numa delas, a levara mesmo à sua aula de arte. Contudo, a jovem ainda não estava preparada para saídas românticas. Sentia um profundo desgosto com a morte do pai. Mas, pelo menos, Tadashi era alguém com quem podia falar. E desde a morte do pai que se mostrava muito mais calorosa para com Hiroko.

 

Em alguns aspectos, a morte de Tak contribuíra para os unir mais a todos. Essa união prolongou-se e até aumentou, durante mais um longo, quente e poeirento Verão. Se os Invernos eram duros, os Verões ainda o eram mais. Para lá do arame farpado que os mantinha em cativeiro, o mundo mudava.

 

Os Aliados estavam a ganhar. Os Ingleses e os Americanos lançaram uma chuva de bombas sobre a Alemanha com bastante sucesso, os Americanos tinham desembarcado em Anzio e os Russos invadido a Polónia, enquanto MacArthur liderava as suas tropas através das ilhas do Pacífico.

 

Em Abril, aviões americanos bombardearam Berlim pela primeira vez e causaram enormes danos Em Junho, os Aliados não só invadiram Roma, como puseram pé em território francês e dirigiram-se para o interior, a partir da Normandia. Peter estava com eles Nessa altura, encontrava-se em França e Hiroko foi tendo notícias regulares até Agosto

 

Estivera numa cidade chamada Lessay com o general Hodges e avançavam rumo a Paris. Na última carta, ele dizia que haviam conseguido, que Paris era a cidade mais bonita que vira alguma vez e que desejava que ela estivesse ao seu lado. Contudo, depois, não recebeu mais notícias. Não fazia ideia do que acontecera

 

Nesse Outono, o ambiente ficou de novo tenso. A Sociedade Patriótica Nipónica pareceu perder o controlo dos ”rapazes não-não” e os extremistas surgiram outra vez da clandestinidade. Em Outubro, voltaram a ser notícia constante na imprensa, através de manifestações e represálias. Continuavam a mostrar a mesma fúria por estarem encarcerados. Agora, talvez com mais intensidade e violência, causando muitos problemas

 

Para as famílias leais, como os Tanaka e muitas outras, a inquietação provocada era uma fonte constante de terror e agravamento da situação. Os leais não queriam ser apanhados no meio das várias facções. As pessoas eram feridas no exterior dos lares, em greves e manifestações

 

Agora que não havia homens na família que as protegessem, Reiko andava sempre preocupada. Nos últimos tempos, sentia-se cada vez mais agradecida pelo tempo que Tadashi Watanabe passava com a família e com Sally. Era um jovem bem formado e simpático e fazia o que podia por eles. Hiroko sorria ao vê-los juntos. Desde o Verão que Tad se tornara inseparável de Sally e ambos pareciam andar nas nuvens

 

Acho que tinha razão, não, espicaçou-o Hiroko um dia, quando estavam a trabalhar

 

Tad fingiu não perceber ao que ela se referia, mas Hiroko não o largou. Eram, na realidade, como dois irmãos ou, no mínimo, primos

 

Não sei o que queres dizer respondeu ele vagamente, esforçando-se por não sorrir, mas cedendo por fim

 

Claro que não, Tadashi-san Adorava meter-se com ele. Agora, havia alturas em que parecia completamente americana e falava um inglês perfeito. Refiro-me à Sally.

 

Eu sei. Subtileza é o que te falta comentou, fitando-a, exasperado e divertido ao mesmo tempo.

 

Há muito que entendera até que ponto ela estava ligada a Peter. Sentia-se grato pela honestidade que lhe demonstrara e ainda mais pelas palavras em relação a Sally. Ela era jovem e, por vezes imatura, mas sob essa aparência existia uma rapariga meiga e suave que desejava o mesmo tipo de forte elo que os pais tinham partilhado.

 

Nos meses que se seguiram à morte do pai, ela e Tadashi tinham-se apaixonado perdidamente. Contudo, era cedo de mais para se casarem, pois Sally tinha apenas dezassete anos e meio. No entanto, ele exercera uma óptima influência sobre a jovem. Deixara de andar com os jovens extremistas e os seus amigos desordeiros, voltando a ser a miúda de que Reiko se lembrava.

 

Nesse ano, Tadashi concordou em passar o Dia de Acção de Graças com eles.

 

Ia ser uma época muito triste para todos, pois, desde a última celebração, haviam perdido Ken e Tak. Hiroko também se sentia nervosa. Continuava sem receber notícias de Peter, desde que ele chegara a Paris, em Agosto.

 

Talvez tenha fugido com uma francesa gira troçou Tad, mas apercebeu-se de que Hiroko não estava de maré de brincadeiras.

 

A jovem não falava muito do assunto, mas andava profundamente preocupada. Três meses era muito tempo e as pessoas continuavam a ser mortas na Europa. A guerra no Japão também ainda não terminara. MacArthur regressara às Filipinas, em Outubro.

 

No entanto, pelo menos o Dia de Acção de Graças passou-se sem notícias, más ou boas. Levaram a vida de sempre, suspensos naquele isolamento irreal do campo. Pelo menos, naquele ano, tinham peru. Todos recordaram o ano anterior sem nada, bem como as horríveis greves e manifestações. Mas não havia muito motivo de alegria. Parecia que a situação se prolongaria eternamente. Franklin Roosevelt tinha sido reeleito e dava a sensação de ignorar tudo o que Ickes e Biddle lhe haviam dito. Ou, assim pareceu até Dezembro.

 

Hiroko descia o caminho a partir da ”casa” deles, de mão dada com Toyo, quando dois velhos passaram por ela, gritando em japonês:

 

Acabou... Acabou... Estamos livres.

 

A guerra? gritou-lhes em inglês.

 

Não! respondeu-lhe um deles. O campo! Depois desapareceram e ela foi à procura de alguém a quem pudesse perguntar. Havia gente por todo o lado, trocando impressões, e uma das pessoas falava mesmo com um soldado.

 

Os guardas continuavam no local, observando-os das torres e, por vezes, esqueciam-se, embora não por muito tempo, que lhes apontavam armas. Para Hiroko, fora uma das coisas a que mais lhe custara habituar-se, mas agora deixara de prestar atenção.

 

Contudo, naquele caso, o soldado estava a explicar que o presidente Roosevelt assinara um decreto, e o general-de-divisão Pratt, que substituíra De Witt, publicara a Proclamação Pública Número 21, que devolvia aos evacuados o direito de regressarem a suas casas ou viverem onde quisessem. E o contrabando estava fora de questão. Podiam ter consigo todas as máquinas fotográficas, jóias e armas que quisessem.

 

Porém, mais importante ainda, significava que podiam voltar a casa. Os campos de internamento seriam encerrados no final de 1945. E a Autoridade de Realojamento de Guerra incitava todos a partirem com a maior brevidade possível, o que em muitos casos se revelava mais difícil do que o esperado.

 

Todavia, o importante era que os japoneses podiam abandonar os campos de internamento, quando o desejassem. E, dado Hiroko ter assinado o juramento de lealdade, podia partir também, embora fosse estrangeira.

 

Agora? perguntou, incapaz de acreditar nas suas palavras. Neste mesmo minuto? Podia ir-me embora agora mesmo, se quisesse?

 

Se assinaste ”sim, sim”... anuiu o soldado. Acabou. Depois, lançou-lhe um olhar estranho e fez-lhe uma pergunta para que ela não tinha resposta. Para onde irás? Há meses que a admirava. Ela era uma rapariga encantadora.

 

Não sei disse ela, parecendo sobressaltada.

 

Para onde iria? A guerra continuava e não podia regressar ao Japão, para junto dos pais. Peter ainda não voltara à pátria. Tentou não pensar no silêncio de mais de três meses e, nessa noite, ela e Reiko falaram sobre a decisão a tomar.

 

Tinham poupado muito pouco dinheiro e o de Tak, ou o que restava do mesmo, encontrava-se na conta bancária de Peter, a que não tinham acesso. Ele dera-lhes documentos comprovativos, mas, sem ele, seria quase impossível obtê-lo. Enquanto ele estivesse vivo, e Hiroko rezava para que assim fosse, a família dele também não lhe poderia tocar. Era uma situação horrível. E não existiam mais parentes na Califórnia. Reiko disse que tinha uma prima em Nova Iorque e outra em Nova Jérsia. Era tudo. Nenhum sítio para onde ir, ninguém que os pudesse recolher.

 

Depois de todo aquele tempo e de desejarem tanto a liberdade, não havia nenhum sítio. Os restantes debatiam-se com o mesmo problema. Os parentes estavam no Japão ou na sua companhia. Poucos tinham parentes noutro local e a Autoridade de Realojamento de Guerra continuava disposta a arranjar-lhes empregos em fábricas, mas nenhum deles queria ir para leste, sem terem ninguém quando lá chegassem.

 

O que vamos fazer? inquiriu Reiko com uma expressão grave, ao ponderarem a situação. Nada lhes restava em Paio Alto.

 

Por que não escreves às tuas primas em Nova Iorque e Nova Jérsia? sugeriu Hiroko.

 

Reiko obedeceu e responderam-lhe que adorariam recebê-la. A prima de Nova Jérsia também era enfermeira e disse que tinha a certeza de conseguir arranjar um emprego a Reiko. Tudo parecia tão fácil que a fez interrogar-se sobre a razão por que não tinham ido logo para lá. Mas, na altura em que haviam compreendido que precisavam, de facto, de partir, já não podiam fazê-lo. De início, o ”realojamento voluntário” parecera tão inútil. Três anos mais tarde, com tudo o que sabiam e por que haviam passado, já não era assim tão estúpido.

 

A dezoito de Dezembro, a decisão do Supremo Tribunal no caso Endo foi publicada, declarando que era ilegal manter cidadãos leais contra sua vontade. No entanto, o governo já o fizera durante dois anos e meio. Era difícil voltar atrás e pedir desculpa. A maioria das pessoas não sabia o que fazer à sua vida. Não tinham sítio para onde ir, nem forma de lá chegar, à excepção dos vinte e cinco dólares que a Autoridade de Realojamento lhes dava para o transporte. Todos tinham os mesmos ou piores problemas do que os Tanaka.

 

Contudo, na semana anterior ao Natal, Reiko e as filhas sentaram-se a discutir o que haviam de fazer. Iam para Nova Jérsia e queriam, obviamente, que Hiroko as acompanhasse.

 

A jovem ficou a pensar no assunto dois dias e reparou que também Sally estava abatida. Todos tinham decisões a tomar. Depois de passarem momentos de grande tristeza, era com um desgosto enorme que iriam separar-se. Mas, pelo menos, ela partiria com Toyo; ele era uma grande alegria na sua vida, o seu menino.

 

Por fim, após ter meditado seriamente, falou com Reiko. Iria ficar, não no campo de internamento, mas na costa oeste, se arranjasse trabalho lá. Ignorava o que poderia fazer. Não tinha qualquer diploma e, embora tivesse trabalhado como ajudante de enfermagem durante dois anos, nenhum hospital a aceitaria sem alguma prática. Teria de procurar algo diferente.

 

Mas porque não vens connosco? perguntou Reiko, parecendo muito triste quando Hiroko a pôs a par da sua decisão.

 

Quero ficar aqui para o caso de o Peter voltar respondeu calmamente. Além disso, quando a guerra acabar, tenho de regressar o mais rapidamente possível ao Japão para ver os meus pais.

 

Há quatro meses que não tinha notícias de Peter e ela própria sabia que algo devia ter acontecido. Raramente falava disso a alguém, mas pensava nele sem cessar, e rezava para que estivesse vivo, algures. Tinha de acreditar que assim era, não só para seu bem, mas pelo de Toyo.

 

Se algo correr mal, se não encontrares trabalho ou... Reiko não queria pronunciar a frase ”se o Peter tiver morrido”, mas pensou. Aconteça o que acontecer, se precisares, quero que venhas para Nova Jérsia. Eles farão muito gosto em te aceitar e, mal arranjes emprego, poderemos alugar um pequeno apartamento.

 

Reiko só precisava de um quarto para ela e as miúdas e conseguiriam sempre espaço para Hiroko e Toyo.

 

Obrigada, tia Rei agradeceu num fio de voz, e as duas mulheres abraçaram-se e beijaram-se, deixando correr as lágrimas.

 

Haviam enfrentado tanta coisa juntas. Ela viera para os Estados Unidos para passar um ano a estudar na universidade... e aprendera muito mais do que alguma vez sonhara nos três anos e meio que haviam decorrido. O passado surgia-lhe com a dimensão de uma vida.

 

As raparigas ficaram inconsoláveis ao ouvir dizer que ela não as acompanharia e passaram o Natal a tentar convencê-la. Só iriam depois do Ano Novo. Algumas pessoas já haviam partido, mas muitas delas negavam-se a fazê-lo. Os velhos diziam que não lhes restava para onde ir, muitos deles não tinham família e o campo era agora a sua única casa. E, a pouco e pouco, ouviam histórias terríveis de pessoas que haviam partido, sobre bens que não tinham sido armazenados, automóveis desaparecidos da reserva federal onde os guardavam e armazéns do governo que haviam sido saqueados.

 

A maioria dos evacuados perdera todas as suas coisas. E, ao ouvir contar as primeiras histórias, Hiroko pensou na casa de bonecas de Tami. Quase com doze anos, também já ultrapassara a idade de brincar com ela, mas seria de qualquer maneira uma bonita recordação de infância.

 

Reiko voltou a chorar, pensando em todas as suas fotografias e objectos que teriam ainda mais significado agora, que Ken e Tak haviam desaparecido. Entre elas estavam as fotografias de casamento e todas as de Ken. As lágrimas corriam-lhe ao pensar que tinha uma única fotografia do filho. A que lhe fora tirada, de uniforme, no Havai.

 

Não penses nisso disse-lhe Hiroko.

 

Só que nos dias que corriam, era_ impossível.

 

Na noite de Natal, depois de lhe ter dado o anel que ele próprio fizera com um aro de ouro e uma pedrinha turquesa que encontrara nas montanhas próximas, Tadashi sentou-se e teve uma conversa séria com Sally. Queria saber o que a jovem tencionava fazer do futuro.

 

O que queres dizer? perguntou ela com um ar muito infantil, que o fez sorrir.

 

Há um ano que ”andavam juntos”, desde a morte do pai dela, e, se não fossem os seus vinte e cinco anos, diria que ”namoravam”.

 

Referes-te à escola? acrescentou, nervosa e infeliz por o deixar.

 

Há semanas que andava muito confusa. Sentia-se alegre por estarem quase em liberdade, mas não queria separar-se de Tadashi.

 

Refiro-me a nós e não à escola disse ele a sorrir, pegando-lhe na mão. A jovem estava quase a fazer dezoito anos e tinha acabado o liceu. Era sénior na escola do campo e iria formar-se em Nova Jérsia. O que queres fazer, Sally? Ir para a faculdade em Nova Jérsia?

 

Ela nem sequer ponderara essa hipótese. Todos os seus pensamentos centravam-se na liberdade.

 

Não sei. Ainda não sei bem se estou muito interessada em estudar respondeu com honestidade, como sempre o fazia com ele. Podia dizer tudo a Tadashi. Ele era assim e amava-o por isso. Sei que o meu pai desejava que eu fosse e provavelmente também a minha mãe... logo que sairmos daqui. Não sei o que quero...

 

Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas ao fitá-lo e sentiu-se muito triste. Voltou a recordar-se de tudo, da perda de Ken, da perda do pai e agora da iminência de perder Tadashi. Por que razão perdia todos os homens da sua vida? E todos a abandonavam de uma forma ou de outra? Mal conseguia respirar, tal o desgosto de pensar em afastar-se de Tule Lake sem ele.

 

Só quero estar contigo acrescentou, chorando, e ele pareceu muito aliviado.

 

Também eu disse Tad.

 

Sally era muito jovem, mas já tinha idade bastante para decidir. Outras tinham-no feito com a sua idade.

 

O que pensas que a tua mãe acharia, se lhe pedisse para ir contigo?

 

Engoliu em seco e avançou mais um passo, que a deixou boquiaberta.

 

Podíamos casar, quando lá chegássemos sugeriu.

 

Falas a sério? retorquiu, com um ar de criança que recebe um presente de Natal.

 

Talvez não tivesse perdido tudo e rodeou-lhe o pescoço com os braços. Tadashi fora fantástico durante todo o ano e ela tornara-se sensata e madura, desde que andava com ele. Achava que a mãe ia concordar. Se assim não fosse, talvez ele pudesse ir depois.

 

Gostava de casar já prosseguiu ele, mas queria que acabasses os estudos concluiu num tom firme, e ela soltou uma gargalhada. Depois de terminares o liceu, falaremos no que queres fazer.

 

No entanto, esperava que nessa altura já tivessem um filho. Podiam esperar, pelo menos, até Junho. Mas todos haviam perdido tanto nos últimos três anos, que ele queria tudo agora. Uma mulher, família, filhos, refeições decentes, roupas quentes e um apartamento com aquecimento central.

 

Também devo conseguir encontrar trabalho em Nova Jérsia. Pelo menos, assim o espero disse ainda. Tinha uma licenciatura universitária e, contrariamente a Hiroko, prática como paramédico. Falarei com a tua mãe prometeu.

 

Assim o fez no dia seguinte. De início, Reiko ficou surpreendida. Achava que Sally era ainda nova de mais, mas vía-se obrigada a concordar que tudo se acelerara nos campos de internamento, que as pessoas cresciam mais rapidamente e morriam novas, como no caso de Tak.

 

Agora, a sua filhinha queria casar-se. No entanto, gostava de Tad, achava que ele daria um bom marido para a filha e consentiu em que ele as acompanhasse.

 

Nesse dia, Tad também falara com a mãe sobre os seus planos e ela compreendeu. De qualquer maneira, ela queria ir para o Ohio, ao encontro da irmã. Não tinha qualquer objecção a que ele se juntasse aos Tanaka em Nova Jérsia e se casasse com a filha mais velha. De início, julgou que ele se referia a Hiroko e não lhe agradara muito. Desaprovava o facto de ser mãe solteira, mas ficou feliz ao perceber que se tratava de Sally e desejou-lhe felicidades. Quando disseram aos outros, ele e Sally ficaram felicíssimos. A única que não os acompanharia era Hiroko. A jovem continuava a insistir que queria voltar a São Francisco.

 

Posso ir mais tarde voltou a garantir.

 

No entanto, havia uma tristeza em tudo, um certo sentimento agridoce frente às pessoas que viam, os lugares onde iam. Sempre que Hiroko via algo ou alguém, recordava-se logo de que deixaria de os ver, o que a fazia chorar e abraçar Toyo. Dentro em breve, o filho seria o único rosto familiar, a única pessoa que ela amava e amaria. E ele jamais se lembraria do sítio onde nascera, ou das lições que tinham aprendido ali.

 

No dia de Ano Novo foram ao templo e celebraram o aniversário da morte de Tak. Depois, dirigiram-se à sua sepultura no cemitério. Reiko odiava deixá-lo ali e, no entanto, só podia levá-lo no coração e na memória. Ficaram durante muito tempo, e as crianças deixaram-na sozinha com ele para que pudesse despedir-se. O solo à volta deles apresentava-se duro e gelado, como no ano anterior, quando o haviam enterrado. Desta vez, quando regressaram aos quartos diminutos, começaram a emalar os poucos pertences.

 

Levou-lhes apenas dois dias. Deixaram a maioria das coisas. Muitas eram inúteis. Havia tão pouco que queriam levar. Alguém descobrira uma velha arca em qualquer lado, onde Reiko enfiou a maior parte dos seus haveres. Ela e Hiroko ainda guardaram mais uma casa de bonecas para Tami como recordação, se ela alguma vez quisesse dar-se ao trabalho de a desembrulhar.

 

Todas as coisas de Hiroko e de Toyo cabiam num único saco, o mesmo que ela trouxera quando haviam chegado. Tinha tão pouco para o filho até mesmo agora, que pouco espaço ocupava na bagagem. Reiko dera-lhe duzentos dólares para que ela se aguentasse até arranjar emprego, e ela guardara o dinheiro na mala de mão.

 

As primas de Nova Jérsia haviam enviado quinhentos dólares para a viagem de regresso e disseram-lhes que teriam todo o gosto em mandar mais, se precisassem. Contudo, eles só precisavam de bilhetes de comboio. Haviam decidido apanhar o comboio para Nova Jérsia a partir de Sacramento.

 

Viajariam todos no dia seguinte. De manhã, Tad apareceu com as suas coisas e ajudaram-no nos preparativos finais. Reiko ofereceu o seu pequeno hibachi aos vizinhos do lado.

 

Comprara-o a uma família que regressara ao Japão no início da estada em Tule Lake e tinha ainda brinquedos velhos que deu a outra família, que vivia mais abaixo. A fotografia de Ken estava na sua mala de mão, as recordações dele no seu coração, juntamente com as do marido.

 

Por fim, viram-se a olhar em volta nas duas pequenas divisões onde haviam vivido. Os colchões de palha tinham sido retirados, os catres de aço apresentavam-se nus, os tapetes de tatami que Hiroko fizera haviam desaparecido, os utensílios de cozinha tinham sido dados ou deitados fora. A arca e as malas estavam na estrada e a casa vazia.

 

É engraçado comentou Sally, fitando a mãe. Agora que estamos a viver as coisas, tudo parece tão triste. Nunca julguei que me sentisse assim quando nos fôssemos embora.

 

É difícil abandonar o lar... e este foi o nosso lar durante um tempo...

 

Durante muito tempo, na sua vida. E todos sentiam o mesmo. Hiroko chorara quando se despedira das enfermeiras, sobretudo de Sandra. O seu filho nascera ali e, mau grado os anos de dor, vivera momentos especiais. Houvera alegria e amigos, até mesmo música e riso por detrás do arame farpado, enquanto os guardas os observavam.

 

Pronta? perguntou Tad calmamente.

 

Já se tinha despedido da mãe, que partira para o Ohio no dia anterior. Fora uma despedida triste, mas Tad sabia que ela queria estar com a irmã.

 

A Autoridade de Realojamento da Guerra dera-lhes bilhetes de comboio grátis para Sacramento e cinquenta dólares por família para despesas. Depois, ficavam entregues a si próprios. Tad e os Tanaka iam apanhar o comboio. Hiroko seguiria de autocarro para São Francisco. Reiko sentia-se nervosa por a deixar só, mas Hiroko insistiu que ficaria bem. Não tinha ninguém em São Francisco, mas prometera inúmeras vezes que, se algo acontecesse, se não arranjasse emprego, apanharia um comboio para Nova Jérsia, antes que terminasse o dinheiro. Ficara com o número de telefone, a morada e tudo o que precisava para os contactar.

 

Um a um, pegaram nas malas, e Tad e Sally levaram a pequena arca entre eles. Estava sobretudo cheia de recordações e Reiko suspeitava de que talvez nunca mais a abrisse. Mas, mesmo assim, queria levá-la. Transbordava de pequenas memórias de Tule Lake.

 

O autocarro esperava-os junto ao portão e havia mais gente à espera. Os soldados montavam sentinela como sempre, mas agora mais para manter a paz no interior, do que para impedir alguém de partir. Eram mais uma força policial do que guardas da prisão e ajudaram Hiroko a pôr a mala no autocarro, depois do que apertaram a mão a todos e lhes desejaram sorte.

 

Curiosamente, nenhum dos lados guardava rancor. Agora, o que quer que tivesse sido bom ou mau havia terminado. O assunto fora encerrado. Estava-se em Janeiro de 1945, e em breve Tule Lake, Manzanar e todos os outros campos do mesmo tipo seriam apenas lembranças, lugares sobre os quais podiam conversar e recordar.

 

Quando o autocarro arrancou, Hiroko deixou-se ficar sentada a olhar para o campo, gravando na memória o aquartelamento, a poeira, o frio, os rostos, as pessoas que amara, as crianças que tratara, os que tinham morrido, os que se haviam mudado e jamais seriam vistos, mas sempre recordados.

 

Toyo mantinha-se sentado ao seu colo, a brincar com o cabelo dela, e ela abraçou-o e beijou-o. Um dia iria falar-lhe de tudo, do sítio onde ele nascera, mas ele nunca compreenderia, nunca saberia. Ao fitar os rostos que a cercavam, detectou o mesmo amor, a mesma dor, a mesma agonia, depois de passado tanto tempo. Algures, atrás dela, uma única voz cortou o silêncio:

 

Estamos livres.

 

O autocarro afastou-se, rumo a Sacramento.

 

Para Hiroko, deixar Tad e os primos no comboio foi um dos momentos mais difíceis da sua vida. Todos choraram copiosamente e as emoções que não haviam extravasado ao deixarem o campo de internamento, vinham agora à tona. O próprio Tad chorou ao despedir-se dela e Hiroko ainda soluçava quando o comboio arrancou e ela e Toyo continuavam a acenar.

 

Beijara cada um deles e eles tinham-na beijado a ela e ao filho, até quase perderem o comboio. Quando partiram, pensou que nunca se sentira tão vazia, ao percorrer os dez quarteirões que a separavam da estação de autocarros, levando Toyo e a mala.

 

Algumas pessoas olharam para ela, mas ninguém pareceu surpreendido ao ver uma mulher japonesa. Não soaram gritos de ”jap”, nem gracejos desagradáveis e, contudo, a guerra não acabara. Interrogou-se sobre o que acontecera enquanto se haviam mantido afastados, se alguém esquecera ou perdera o interesse.

 

Eram, então, cinco da tarde e comprou uma sanduíche para cada um, antes de entrar no autocarro. Este partiu às cinco e meia em ponto e dirigiu-se a São Francisco.

 

A viagem decorreu normalmente; Toyo passou a maior parte do tempo a dormir e, quando atravessaram a Bay Bridge, Hiroko surpreendeu-se ante a beleza da ponte. Assemelhava-se a diamantes espalhados sobre a baía. Tudo parecia tão limpo e perfeito. Não havia arame farpado à vista, nem armas, ninguém recolhendo-se apressadamente nos refúgios, com os casacos forrados de papel de jornal por causa do frio a fim de dormir em colchões de palha, que provocavam comichões durante toda a noite.

 

Nem conseguia sequer imaginar como seria uma cama a sério, ou mesmo umfuton confortável. Sorriu ao aperceber-se de como se tornara americana nos últimos três anos e meio, desde que viera de Quioto. Havia sido um longo percurso.

 

Nessa noite, dormiu num pequeno hotel do centro e pensou nos outros, que iam no comboio. Seria uma grande aventura para eles e sorriu ao pensar em Tad e Sally. Iria sentir saudades de todos, mas continuava a pensar que tomara a decisão certa.

 

No dia seguinte, levou Toyo a tomar o pequeno-almoço e depois procurou uma cabina telefónica. Agarrava na mão do filho enquanto folheava a lista telefónica e, ao ler o nome familiar, começou a tremer. Talvez estivesse a proceder mal. Poderia recorrer a uma agência. Não tinha de fazer isso e, contudo, desejava-o. Algo lhe segredava que devia ser assim.

 

Hiroko telefonou, pediu para lhe falar e ela atendeu rapidamente. Não indicara o nome e limitara-se a dizer ”uma amiga da faculdade”, e quem atendeu foi chamá-la.

 

Sim? perguntou uma voz simpática.

 

Anne? disse Hiroko, enquanto o auscultador lhe tremia na mão e tentava manter a voz calma, agarrando Toyo com a outra.

 

No entanto, o miúdo estava farto e pôs-se a choramingar. Ainda não fizera dois anos, não percebia onde estava, nem para onde tinham ido os outros. Para ele, tratava-se de uma aventura incompreensível. Murmurava sem cessar o nome de Tami, e Hiroko explicara-lhe que ela partira num comboio. Mas Toyo nem sequer sabia o que era um comboio.

 

Sim. É a Anne respondeu Anne Spencer, no tom aristocrata de sempre. Ia regressar à faculdade no dia seguinte. Ainda estavam nas férias de Natal e formava-se em Junho, mas St. Andrew’s era uma recordação distante para Hiroko. Quem fala?

 

A Hiroko disse simplesmente. A Hiroko Takashimaya.

 

Desde St. Andrew’s e Tanforan... e Tule Lake... Talvez ela se tivesse esquecido, mas Hiroko não acreditava que assim fosse.

 

Seguiu-se uma breve pausa e uma exclamação abafada.

 

O teu cesto serviu para nos aguentarmos durante vários dias pronunciou Hiroko num tom triste.

 

Onde estás? inquiriu Anne baixinho.

 

Era difícil saber se estava contente ou apenas surpreendida.

 

Saí ontem do campo de internamento. Os meus primos foram para Nova Jérsia.

 

E tu, Hiroko? quis saber, delicadamente. Tinham sido companheiras de quarto e nunca amigas. Contudo, por duas vezes, viera pedir-lhe desculpa. Onde estás? insistiu.

 

Aqui, em São Francisco hesitou Hiroko, depois do que baixou os olhos para Toyo, a fim de ganhar coragem. Preciso de emprego. Parecia tão patético agora que pronunciara a frase e lamentou ter telefonado, mas era tarde de mais. Interroguei-me sobre se conhecerias alguém... ou se mesmo os teus pais, ou amigos... se precisarias de uma criada, alguém para limpar a casa... qualquer coisa... Há dois anos que tenho trabalhado no hospital. Posso tomar conta de uma criança ou de uma pessoa de idade.

 

Tens a minha morada? perguntou-lhe Anne e ela assentiu com a cabeça, reduzida ao silêncio.

 

Está na lista telefónica. Sim. Tenho.

 

Porque é que não vens já? Apanha um táxi, que eu pago. Interrogava-se sobre se Hiroko teria roupas decentes, se estava com fome ou lhe restava dinheiro.

 

Hiroko saiu da cabina telefónica e fez sinal a um táxi, mas pagou a corrida e ficou surpreendida ao ver Anne à sua espera, no exterior da casa. Contudo, Anne mostrou-se ainda mais surpreendida do que ela, ao ver Toyo.

 

É teu? perguntou, e Hiroko sorriu e anuiu com a cabeça.

 

Enquanto Anne se ocupara a jogar ténis e a aprender francês, passando as férias de Verão no lago Tahoe, Hiroko tivera um filho.

 

É respondeu, baixando orgulhosamente os olhos para o filho. Chama-se Toyo.

 

Anne não perguntou o apelido, nem se Hiroko era casada. Ao fitá-la, suspeitava que não era esse o caso e o vestido de Hiroko não só era demasiado feio e grande, como antigo e no fio.

 

Falei com a minha mãe explicou, enquanto se mantinham no passeio da Upper Broadway. Ela dá-te emprego. Receio que não seja lá muito bom. Precisam de alguém que ajude na cozinha. Fixou Toyo, mas sabia que não era importante. Podes mantê-lo contigo, enquanto trabalhas lá em baixo acrescentou, abrindo-lhe a porta e perguntando-lhe se estava com fome.

 

Contudo, Hiroko sorriu e respondeu-lhe que haviam tomado o pequeno-almoço.

 

Anne levou-a ao andar de baixo para lhe mostrar o quarto. Era pequeno, limpo e sem enfeites, mas muito melhor do que aquilo que vira em quase três anos. Sentiu-se grata pelo emprego e disse-lho no quarto que seria de ambos.

 

Não tenho palavras que cheguem para te agradecer, Anne. Não me deves nada.

 

Achei que o que te fizeram foi errado. Teria sido preferível mandarem-te para casa, se não confiavam em ti. Tu, pelo menos, eras japonesa. Mas os outros, os americanos, não pertenciam ali; e tu, de facto, também não. O que poderias ter-lhes feito? Não eras espia.

 

A mulher que tomara conta dela quando criança, morrera no ano anterior em Manzanar, durante uma operação de urgência. Anne pensava nela como uma parente querida e jamais lhes perdoaria por a terem levado e deixado morrer lá. Estava a fazer aquilo por ela e pelos outros. Era uma compensação ao seu alcance pelo que sucedera.

 

Explicou que Hiroko teria de usar uma farda preta, um avental de laços brancos e uma touca, com colarinho e punhos a condizer, sapatos e meias pretas. Contudo, isso não tinha importância aos seus olhos.

 

O que vais fazer depois disto? quis saber Anne. Não lhe passava sequer pela cabeça que aquele fosse o futuro de Hiroko. Todavia, a guerra continuava, os primos dela haviam partido e ela ainda não podia regressar ao Japão.

 

Gostava de ficar aqui contigo, se possível, até voltar novamente a casa. O meu irmão foi morto e tenho de regressar para junto dos meus pais.

 

Omitiu que dois dos seus primos, Ken e Tak, também haviam morrido. E não tinha notícias de Peter. Contudo, Anne baixou os olhos para Toyo com uma expressão interrogativa.

 

O pai dele vai voltar? inquiriu, cautelosa, sem muitas certezas da situação.

 

O pai da criança era obviamente americano, mas Hiroko limitou-se a fitá-la, preocupada. Queria pedir-lhe mais um favor.

 

Preciso de descobrir se aconteceu alguma coisa. Não sei dele, desde Agosto. Está com o exército, em França. Mas, depois de chegarem a Paris, nunca mais tive notícias. Perguntava a mim própria se, de qualquer maneira... alguém que conheças... talvez possam telefonar a alguém e ver se sabem...

 

Anne compreendeu e assentiu com a cabeça.

 

Pedirei ao meu pai.

 

As duas entreolharam-se. Era um momento estranho entre duas mulheres que nunca tinham sido amigas e, contudo, ela fizera algo por Hiroko, mais do que outra pessoa teria feito.

 

Hiroko partiu uns minutos depois a fim de ir buscar as suas coisas ao hotel, e depois regressou noutro táxi, com Toyo. Era uma bonita casa, um edifício de tijolo, grande e imponente, e um dos maiores da Broadway.

 

Mal voltou, dirigiu-se ao quarto com Toyo. Vestiu a farda e apareceu na cozinha, com Toyo pela mão. Todos se mostraram muito simpáticos, indicaram-lhe quais as suas responsabilidades e duas das criadas prometeram ajudá-la a cuidar de Toyo.

 

A cozinheira apaixonou-se logo pelo miúdo; deu-lhe uma enorme tigela de sopa para o almoço, e um édair de chocolate, o que ele adorou. Para uma criança que nascera com tanto peso, emagrecera devido à comida inadequada que lhe tinham dado no campo e Hiroko sentiu-se aliviada ao vê-lo comer.

 

Nessa tarde, Anne voltou a descer as escadas e apresentou Hiroko à mãe. Mrs. Spencer era uma mulher muito bonita e muito distinta. Usava um fato de lã cinzento com um colar de pérolas enormes e brincos a condizer. Devia ter cerca de cinquenta anos.

 

Anne era a mais nova de três filhas e um filho. Mrs. Spencer não foi muito calorosa, mas mostrou-se delicada para com Hiroko. Sabia em que situação se encontrava a jovem, pois Anne até lhe falara de Toyo, e Margaret Spencer tinha tanta pena dela quanto Anne. Dera ordens a todo o pessoal para que os tratassem e alimentassem bem.

 

E propusera um bom salário, pensou Hiroko. Oferecera-lhe trezentos dólares por mês, o que era mais caridade do que propriamente um ordenado, mas não se importou. De uma forma que ninguém poderia imaginar, achava que o ganhara e precisaria de poupar até ao último tostão para regressar ao Japão, quando a guerra finalmente acabasse. Continuava sem ter notícias de Peter, mas tinha de sustentar Toyo. Sentia-se muito agradecida pelo elevado salário.

 

Quando Anne se foi embora, Hiroko teve a impressão de ser um pouco como a Cinderela. Todos a tratavam muito bem, mas também sabiam que Hiroko andara com Anne em St. Andrew’s, conheciam o motivo por que se fora embora e onde estivera nos últimos três anos. Contudo, ninguém lhe fez perguntas. Indicaram-lhe o trabalho a fazer, deixaram-na à vontade e cuidavam de Toyo, quando ela estava ocupada.

 

Hiroko mostrava-se delicada e prestável para todos. Trabalhava arduamente e mantinha-se reservada. Nos dias de folga, levava Toyo ao parque, ia ao jardim de chá japonês que se lembrava de ter visitado no Parque Golden Gate com os Tanaka, quando havia chegado. Era actualmente dirigido por uma família chinesa e chamava-se Casa de Chá Oriental. A jovem recordou-se mais do que uma vez das visitas que fizera à cidade com os primos.

 

Pouco tempo depois, recebeu notícias deles. Estavam bem e felizes. Reiko trabalhava no hospital, as duas raparigas estavam a estudar e, no Dia de São Valentim, Sally e Tadashi casaram-se. Foi um dia depois de receber um telegrama deles que Mr. Spencer teve, finalmente, novidades para ela, que recebera através de um amigo em Washington. Levara mais de um mês a conseguir informações. E não eram famosas. Hiroko estremeceu, ao ouvi-las.

 

Depois de Paris, tinham seguido para a Alemanha. Desde uma escaramuça próximo de Antuérpia que Peter desaparecera em combate. Ninguém assistira à sua morte e nunca haviam recuperado o corpo, mas também não voltara a aparecer. Era impossível dizer o que acontecera. Talvez, depois da guerra, encontrassem registos ou descobrissem que fora feito prisioneiro pelos Alemães.

 

De momento, tudo o que sabia era o que já soubera antes, que ele desaparecera. O seu silêncio havia sido tão agoirento quanto receara, talvez mais.

 

Agradeceu ao pai de Anne pela informação obtida e regressou em silêncio à cozinha para se ocupar de Toyo.

 

Tenho pena dela confessou Charles Spencer à mulher, depois de lhe ter falado. Ela está casada com o pai da criança? perguntou, curioso.

 

Não sei respondeu a mulher. Não me parece. A Anne diz que ela era uma aluna brilhante, uma das melhores.

 

A mãe de Anne acabara por gostar verdadeiramente de Hiroko e percebia o interesse da filha por ela.

 

Não acho que ela queira voltar redarguiu Charles, pensativo. Um dos seus jardineiros também estivera nos campos e ele tivera de mover céus e terra para o tirar de lá e mandá-lo para casa de parentes, no Wisconsin.

 

A Anne diz que ela quer regressar ao Japão para ver os pais.

 

Faz o que puderes por ela, enquanto estiver aqui. Para te falar francamente, pelo que me disseram sobre o... o amigo dela... acho que deve ter morrido.

 

Não haviam sido capazes de provar que estava morto, embora quase tivessem a certeza. Era um desses mistérios que apenas seriam resolvidos depois da guerra, quando tivessem todas as informações. Mas, o que quer que tivesse acontecido, não interessava agora. O homem desaparecera. E o miúdo não tinha pai. Charles sentia muita pena dela, mas Hiroko sentia-se feliz com os Spencer. Nunca deixava de pensar em Peter e, apesar do que o pai de Anne lhe dissera, recusava aceitar que ele estivesse morto. Lá no fundo, era incapaz de acreditar.

 

A guerra prosseguiu sem ele. Em Fevereiro, os Aliados destruíram Dresda e, em Março, Manila caiu em poder dos Americanos. Tóquio era incessantemente bombardeada, bem como outras cidades do Japão. Oitenta mil pessoas foram mortas e mais de um milhão ficou desalojada.

 

Hiroko sentia-se extremamente preocupada com os pais. Falava no assunto com os Tanaka por telefone e eles mostravam-se compreensivos, mas a vida de Hiroko parecia agora muito afastada da deles. Escutava constantemente as notícias da guerra, esperando saber algo sobre Peter ou os pais. Era essa a sua única preocupação de momento.

 

Em Abril, Roosevelt morreu e Hitler suicidou-se. No mês seguinte, os campos de concentração foram abertos, para horror de muitos. Fez com que Tule Lake se assemelhasse a um paraíso por comparação e sentiu-se embaraçada por se haver queixado das pequenas desgraças que sofrera. Comparativamente às pessoas que haviam sofrido às mãos dos nazis, os japoneses tinham tido imensa sorte em Tule Lake e noutros lugares.

 

Por fim, a Alemanha rendeu-se em Maio. Todavia, o Japão continuou a lutar. E, em Junho, travaram a sangrenta batalha de Okinawa. Dava a sensação de que a guerra no Japão jamais terminaria e ela seria incapaz de regressar à pátria. Mas só lhe restava esperar e, um mês depois de a guerra ter acabado na Europa, continuava sem notícias de Peter.

 

Charles Spencer tentou informar-se novamente, mas a situação mantinha-se. Desaparecido em combate. Mesmo assim, Hiroko recusava-se a acreditar que ela e Toyo o tinham perdido para sempre.

 

No fim de Junho, os Spencer foram passar o Verão ao lago Tahoe. De início, planeavam deixá-la na cidade e depois pediram-lhe que se lhes juntasse na casa do lago e, ao pensar no caso, apercebeu-se de como seria maravilhoso para Toyo.

 

Anne diplomou-se por St. Andrew’s pouco antes de partirem e Hiroko pensou nela com um sorriso, nessa manhã. Há meses que quase não a via. Era raro vir a casa nos fins-de-semana. Na maioria das vezes ia para fora ou ficava para os bailes. Passava as férias em Santa Barbara, Palm Springs ou Nova Iorque, para visitar a irmã, que tivera mais um filho.

 

Porém sempre que Hiroko se encontrava com Anne, ela mostrava-se muito simpática. Tinham uma relação curiosa. Não era amizade, mas as duas reconheciam que existia um elo a ligá-las.

 

No lago Tahoe, Anne estava sempre rodeada de amigos que vinham visitá-la, sobretudo nos fins-de-semana. Ficavam, faziam esqui aquático, jogavam ténis, andavam de barco.

 

Hiroko recordava-se da ocasião em que fora até ao lago com os Tanaka, ao chegar do Japão. Tinham passado quatro anos, quatro anos de guerra e agonia no mundo. No entanto, ali as pessoas continuavam a jogar ténis e a andar de barco. Sentia-se estranha ao observá-las e, contudo, mesmo que eles tivessem abdicado desses prazeres, a guerra continuaria.

 

Toyo adorava estar ali e, tal como quando se encontravam na cidade, o pessoal tratava-o muito bem. Em Tahoe, Hiroko servia muitas vezes o jantar, sobretudo quando tinham visitas ou festas. Uma noite, um dos convidados dos Spencer perguntou como tinham conseguido mantê-la, apontando para Hiroko.

 

Os nossos foram todos para Topaz. Uma vergonha incrível. Os melhores criados que alguma vez tivemos. O que fizeste, Charles? Estava a brincar, mas Charles não parecia divertido. Escondeste-a?

 

Acho que ela esteve no campo de internamento de Tule Lake proferiu Charles Spencer num tom sério. Só veio para nossa casa em Janeiro deste ano. Segundo me parece, passou muito por lá.

 

As palavras e a expressão com que as pronunciou silenciaram completamente o interlocutor. Contudo, houve outros que a olhavam, observaram e não hesitaram em fazer comentários.

 

Não sei como consegues tê-la aqui e comer com ela atrás das tuas costas comentou um dia uma das amigas de Margaret, quando estavam a almoçar. Quando penso no que essa gente está a fazer aos nossos rapazes, fico sem apetite. Deves ter um estômago de ferro, Margaret.

 

Margaret Spencer não respondeu, mas fitou Hiroko, os olhos de ambas cruzaram-se, e Hiroko baixou rapidamente os seus. Ouvira tudo e compreendera. Em certos aspectos, os Spencer eram diferentes dos amigos. Tinham ficado horrorizados com os campos de internamento e tristes quando os empregados haviam sido enviados para lá. Contudo, não houvera maneira de o impedir.

 

Num jantar, um amigo de Charles levantara-se da mesa, porque perdera um filho em Okinawa, e recusou-se a ser servido por Hiroko. Depois do incidente, ela dirigira-se calmamente para o quarto e os Spencer deixaram-na em paz. Também tinha a lamentar as suas perdas, Yuji, Ken, Peter, Tak. Tantos se haviam perdido e existia tanta dor e tristeza por cicatrizar.

 

Porém, em Agosto, quando os Aliados dividiram o reich, os Americanos acertaram contas em Hiroxima. Todos os que haviam odiado os Japoneses por um momento que fosse sentiram-se vingados e, mais uma vez, depois do bombardeamento de Nagasáqui. Por fim, a guerra acabou. E exactamente quatro semanas depois, os Japoneses renderam-se no fim-de-semana do Dia do Trabalho. Foi o último fim-de-semana dos Spencer no lago Tahoe, antes de regressarem à cidade.

 

Agora, o que vais fazer? perguntou-lhe Anne, quando estavam sós na sala de jantar, na manhã seguinte.

 

Gostava de voltar para casa quando puder.

 

Não me parece que as coisas acalmem nos próximos tempos retorquiu Anne, acenando com a cabeça.

 

Hiroko parecia cansada. Há semanas que seguia os noticiários. Sentia-se profundamente desesperada por causa dos pais. Parecia difícil acreditar que alguém tivesse sobrevivido aos infindáveis bombardeamentos. E, no entanto, havia sido o caso de alguns. A jovem só rezava para que os pais estivessem entre essas pessoas. Continuava sem notícias de Peter. Mas não podia ir nas duas direcções e não fazia ideia de como encontrá-lo na Europa.

 

A tua família tem sido muito boa para mim disse Hiroko, antes de sair novamente da sala, sem querer interferir no pequeno-almoço de Anne.

 

Também foste boa para nós Sorriu-lhe. Como está o Toyo?

 

A crescer e a engordar na cozinha disse Hiroko a rir-se.

 

O miúdo estava a compensar o tempo perdido e a má alimentação de Tule Lake. Tinha dois anos e meio e era o menino querido de todo o pessoal dos Spencer.

 

Anne não lhe perguntou se tivera notícias dos pais. Sabia que não. Além de que o seu próprio pai afirmara que o amigo de Hiroko estava, obviamente, morto. Era uma vergonha e lamentava muito.

 

Hiroko esperou mais um mês, regressou com eles à cidade e depois informou-os do que tencionava fazer. Anne ia viver um ano para Nova Iorque, a fim de estar perto da irmã, ir a festas e conhecer gente nova. E Hiroko soubera que conseguiria arranjar passagem no navio americano General W. P. Richardson para Cobe, a meio de Outubro.

 

Nem mesmo ela tinha ilusões nessa altura. Há catorze meses que não recebia notícias de Peter. E há cinco que a guerra na Europa acabara. Era impossível que não o tivessem descoberto, se estivesse vivo. Foi exactamente o que disse a Reiko quando ela telefonou e acrescentou que tencionava viajar até ao Japão para ver os pais.

 

É difícil acreditar que perdemos os três, não é? O Ken, o Tak... e o Peter.

 

E ela também perdera o irmão. Era tão injusto. Tinham perdido tanto e outros tão pouco. Não conseguiu deixar de pensar nos Spencer, apesar da bondade que lhe haviam demonstrado. Contudo, mal tinham dado pela guerra, à excepção de melhorarem alguns dos investimentos.

 

O filho ficara em casa, o genro conservara-se em Washington durante toda a guerra e nenhuma das filhas perdera maridos, ou mesmo namorados. Anne fora debutante durante a guerra e diplomara-se em Junho, logo após a rendição da Alemanha.

 

Tudo belo e simples. Talvez a vida fosse assim por vezes. Havia os que pagavam e os outros. No entanto, Hiroko tinha de admitir que gostava deles. Os Spencer eram boas pessoas e haviam sido maravilhosos para ela e para Toyo.

 

Contudo, Reiko estava preocupada com a ida dela ao Japão, especialmente sozinha com Toyo, mas não havia ninguém que pudesse acompanhá-la.

 

Tudo correrá bem, tia Rei. Os americanos estão lá. As coisas estarão sob controlo antes da minha chegada.

 

Talvez menos do que pensas. Por que razão não vens antes até aqui e esperas até teres notícias dos teus pais?

 

No entanto, Hiroko já tentara contactá-los por telegrama. Era impossível. Todos lhe tinham dito que não havia hipótese de contactar ninguém lá. E ela queria ir vê-los. Chegara a altura de regressar a casa. Também haviam sofrido perdas e apesar do choque que podia causar-lhes, queria que eles conhecessem Toyo. Era o neto deles e decerto os confortaria um pouco após a perda do irmão dela.

 

Quando Sally veio ao telefone, deu as novidades a Hiroko. Ela e Tad esperavam um filho.

 

Não perdeste um minuto disse Hiroko, e Sally soltou uma risada tímida, parecendo muito jovem e feliz.

 

Nem tu atreveu-se a retorquir a cinco mil quilómetros de distância e assemelhando-se à ”velha” Sally que Hiroko amava e odiava alternadamente.

 

Acho que tens razão respondeu, porém, desta vez, num tom bem-humorado.

 

Contudo, a mãe de Sally já a avisara de que não fizesse perguntas a Hiroko sobre Peter. A situação era desesperada.

 

Falou com Tad e felicitou-o também. O bebé devia nascer em Abril.

 

No dia antes de partir para o Japão, voltou a telefonar-lhes e, desta vez, teve uma longa e séria conversa com Reiko. Esta estava preocupada com o que aconteceria a Hiroko no Japão, se as coisas corressem mal e não houvesse ninguém que a ajudasse.

 

Prometo que irei ter com os americanos e pedirei ajuda, tia Rei. Não se preocupe.

 

E se não te ajudarem? És japonesa e não americana. Na verdade, ela estava sempre, algures, do lado errado.

 

Aos olhos de Hiroko parecia irónico, mas aterrorizava Reiko.

 

Arranjarei uma maneira prometeu. Tudo correrá bem.

 

És jovem de mais para ires sozinha insistiu Reiko.

 

É a minha pátria, tia Reiko. Tenho de voltar. Preciso de ver os meus pais.

 

Reiko não se atreveu a sugerir que também eles podiam estar mortos, mas Hiroko tinha essa perfeita noção. Precisava de saber o que acontecera, tal como em relação a Peter.

 

Contudo, neste caso, tinha de aceitar o que pudesse descobrir por si própria. No caso deles era diferente. Tinham parentes e amigos. Ela viera do Japão e alguém devia saber onde se encontravam os pais.

 

Quero que me contactes, assim que puderes obrigou-a Reiko a prometer.

 

Claro, embora deva haver uma grande confusão por lá.

 

Não duvides.

 

As histórias sobre Hiroxima eram inacreditáveis e terríveis. Contudo, Hiroko não iria para essa zona, ou Reiko teria levantado maiores objecções.

 

Depois, Hiroko despediu-se dos primos e, nessa noite, fez as malas no quartinho, sentindo-se triste. Custava-lhe deixar os Spencer.

 

De manhã, o pai de Anne surpreendeu-a. Deu-lhe mil dólares em dinheiro como bónus, além do salário. Para Hiroko era uma fortuna.

 

Vai precisar para o miúdo disse com ar bondoso e ela aceitou, sabendo que era verdade e sentindo-se muito grata.

 

Fez tanto por nós! Agradeceu-lhe, a ele e à mulher.

 

Anne insistiu em levá-la no carro com o motorista até ao barco.

 

Posso apanhar um táxi, Anne retorquiu Hiroko a sorrir. Não é preciso.

 

Mas eu quero. De certa maneira, perdemos o barco disse-lhe, sorrindo ante o gracejo. Talvez se fossemos um pouco mais espertas nessa altura, ou mais vividas e crescidas, nos tivéssemos tornado amigas. Mas eu não era.

 

Fizeste tanto por mim retorquiu Hiroko, incapaz de imaginar quanto mais teria feito, se houvesse amizade.

 

Não se importava, porém, de ter trabalhado para eles. O emprego fora de criada, mas servira um objectivo: dera-lhe uma casa e comida para ela e Toyo. Valera a pena, e os Spencer haviam-nos tratado com muita bondade e simpatia, bem como o seu pessoal.

 

Tentou levantar novamente objecções, mas Anne insistiu em levá-la no carro com o motorista até ao barco. Todos os outros vieram despedir-se, e os pais acenaram de uma janela do andar superior. Toyo olhou-os a todos com uma carinha triste, enquanto se afastavam, com as suas coisas arrumadas no porta-bagagens do Lincoln. Não fazia ideia de para onde iam e era novo de mais para poder entender.

 

Vamos para o Japão à procura dos teus avós dissera-lhe Hiroko, mas ele ainda não sabia o que isso era.

 

Ficarás bem por lá? indagou Anne com uma expressão preocupada, quando se dirigiam ao cais de embarque.

 

Não será pior do que os sítios em que estive nos últimos quatro anos.

 

Há vários anos que a sua vida consistia uma verdadeira aventura.

 

O que farás, se não os encontrares? Era uma pergunta cruel, mas Anne sentia que tinha de a formular.

 

Ainda não sei. Hiroko não conseguia sequer imaginar. Ainda era incapaz de aceitar a ideia de que Peter desaparecera. Dizia que sim aos que lhe perguntavam, sobretudo para que não abordassem o assunto com ela, como Charles Spencer ou Tadashi, mas, de facto, não acreditava. Sou incapaz de imaginar que não estejam lá respondeu a Anne. Quando penso no Japão, penso nos meus pais. Vejo-os acrescentou, fechando os olhos, como que a demonstrar-lho.

 

Nesse momento, chegaram ao cais e o carro parou.

 

Conseguirei encontrá-los acrescentou num tom firme, para se tranquilizar, a ela e a Anne. Tenho de conseguir. Agora, não lhe restava mais ninguém, excepto Toyo.

 

Volta, se precisares disse Anne, mas ambas sabiam que ela não o faria.

 

Se voltasse aos Estados Unidos, era mais do que provável que fosse juntar-se aos primos, em Nova Jérsia. Mas, agora, também não queria estar com eles. Tinham as suas vidas e ela precisava de encontrar um rumo próprio. E queria regressar a casa. Para Hiroko, fecharia um círculo importante.

 

Ela e Anne fitaram-se demoradamente, com o navio em fundo. Toyo agarrava na mão de Hiroko e o motorista cuidava das malas, pronto a encontrar um carregador.

 

Pareces estar sempre por perto quando me vou embora afirmou Hiroko, tentando encontrar as palavras de agradecimento por tudo o que ela havia feito e sem conseguir.

 

Gostaria de ter estado no início redarguiu Anne num tom terno e, desta vez, abraçou-a e apertou-a de encontro a si.

 

Obrigada agradeceu Hiroko com lágrimas nos olhos e, ao afastar-se de Anne, viu que também ela chorava.

 

Espero que os encontres desejou Anne com voz rouca; depois virou-se para Toyo. E tu, sê um homenzinho e cuida da tua mãe disse, beijando-o, após o que se endireitou e fitou novamente Hiroko. Se precisares de mim, telefona-me... escreve-me... manda um telegrama... faz qualquer coisa.

 

Prometo. Hiroko sorriu. Toma conta de ti, Anne desejou sinceramente.

 

Tu também, Hiroko. Vai ser perigoso por lá.

 

Era o que Reiko e Tadashi lhe haviam dito e ela sabia que tinham razão. Todo o país estava um caos. As pessoas teriam movido montanhas para saírem de lá nesse momento e, em vez disso, ela regressava. Mas sabia que tinha de o fazer.

 

Obrigada agradeceu Hiroko e apertou-lhe a mão. Depois, afastou-se e acenou. Toyo também. O motorista arranjara-lhe um carregador e Hiroko atravessou a prancha de embarque, agarrando na mão de Toyo, sem deixar de acenar.

 

Um pouco mais tarde, encontrou o seu camarote. Era pequeno e tinha uma única vigia. Pelo menos, ar não lhes faltaria naquela viagem de duas semanas. Voltou ao convés com o filho, para que Toyo pudesse assistir à largada do navio, com toda a excitação que provocava. Soltaram balões, ouviu-se música e reinava uma atmosfera festiva, embora não fossem para um lugar feliz. Era, porém, o primeiro navio que partia para o Japão, desde Pearl Harbor.

 

Quando Hiroko olhou para o cais, pegando no filho, viu-a, de pé, tão bonita como no primeiro dia em que a conhecera, a sair da limusina em St. Andrew’s, e descobrira que eram companheiras de quarto. Nessa altura, pensara que seriam amigas e, durante algum tempo, enganara-se, mas, por fim, não. Hiroko ergueu a mão, acenou e indicou-a a Toyo. O miúdo acenou também, soprou um beijo e Hiroko e Anne riram, acenando com mais força ainda.

 

Adeus gritou-lhe Anne à medida que o navio se afastava lentamente; Toyo observava tudo, fascinado.

 

Obrigada formulou Hiroko com os lábios e as duas mulheres continuaram a acenar, enquanto os rebocadores se afastavam do cais.

 

Já não ouviam as palavras. Mas Hiroko continuava a vê-la, de pé, a acenar, enquanto o navio deu a curva e navegou devagar através do porto.

 

Onde vamos, mamã? perguntou Toyo pela milésima vez nesse dia, enquanto ela o pousava no chão com uma expressão triste.

 

Para casa respondeu. Era tudo o que lhes restava.

 

O General W. P. Richardson demorou duas semanas e um dia a atravessar o oceano Pacífico. E aportou a Cobe, à hora prevista, de manhã. Pareceu a Hiroko uma viagem interminável, e, tal como quando viera, tinham-se desviado do Havai. Toyo adorara e todos o haviam tratado maravilhosamente. Era a única criança a bordo e tornara-se o companheiro de folguedos e mascote de todos.

 

Contudo, na manhã em que chegaram, Hiroko mantinha-se estranhamente silenciosa. Era curioso recordar-se de como tudo estava quando se fora embora e da aterradora sinfonia de emoções. Entristecera-a deixar os pais, mas tinha ido apenas para não desapontar o pai... apenas um ano, dissera... apenas um, prometera ele... e já haviam passado quatro anos e meio e tanta coisa acontecera.

 

Observou toda a actividade no cais ao chegarem e escutou em silêncio os trabalhadores, os pássaros, as pessoas a chamarem-se umas às outras e a gritarem. Reinava a confusão no porto e ainda se viam vestígios da guerra. Mas, por todo o cais, avistou soldados americanos, o que, mesmo na sua pátria, achava estranhamente tranquilizador. Deixara de ter certezas sobre quem eram os inimigos e os amigos. Ao longo de quatro anos, a vida fora demasiado confusa.

 

Agarrou cuidadosamente na mão de Toyo quando desembarcaram e levou as malas. Havia táxis no cais; pediu a um deles que a levasse à estação de comboios, e o motorista perguntou-lhe para onde ia. Ao responder Quioto, o homem propôs levá-la até lá por cinquenta dólares. Dado o país em que se encontrava, a oferta era boa e aceitou.

 

Quanto tempo esteve fora? inquiriu ao seguirem por estradas que ela nunca tinha visto ou já não se lembrava. Estavam todas em reparação e cheias de buracos.

 

Mais de quatro anos. Exactamente quatro anos e três meses.

 

Tem sorte comentou. A guerra foi dura por estes lados. Deve ter sido bom estar nos Estados Unidos.

 

Hiroko não podia explicar-lhe o que eram os campos de internamento, mas talvez ele tivesse razão. Fora provavelmente pior ali.

 

E agora? perguntou de chofre, apertando Toyo de encontro ao corpo.

 

O miúdo ouvia-os falar japonês. Tal já acontecera nos campos, mas esquecera muita coisa no último ano. E Hiroko falava-lhe sempre em inglês, por isso não compreendia o que diziam.

 

Difícil nuns sítios, horrível noutros. Em alguns, não é assim tão mau. Em Quioto, mais ou menos. Houve uns danos, mas em nenhum dos templos. - Não eram, porém, os templos que a preocupavam, mas os pais. Não recebera notícias desde a mensagem sobre a morte do irmão, desde Pearl Harbor. Os americanos estão por todo o lado. Tem de estar atenta. Eles acham que todas as japonesas são gueixas.

 

Hiroko riu perante aquelas palavras, mas nesse preciso momento verificou que estavam mesmo em todos os sítios e pareciam observar as mulheres.

 

Tenha cuidado avisou-a, depois do que prosseguiram caminho devagar.

 

Demoraram duas horas a chegar a Quioto. Por norma, devia ter sido mais rápido, mas havia barragens na estrada, buracos e muito trânsito.

 

Sentiu um nó na garganta ao ver a morada familiar. Dava a sensação de que nada mudara. Era tudo tão igual ao que se recordava, que lhe parecia um sonho ou uma lembrança o facto de estar naquele local. Agradeceu ao motorista, pagou-lhe com o dinheiro que Charles Spencer lhe dera e, depois, pegou na mão de Toyo e ficou ali, de pé, com a mala.

 

Quer que espere? perguntou, num tom bondoso, o motorista, mas ela abanou a cabeça, fascinada pela casa com que sonhara mil vezes e pela qual tanto ansiara. A casa onde havia crescido.

 

Não. Estamos bem. Acenou num corajoso gesto de despedida e ele afastou-se, de regresso a Cobe.

 

Conservou-se muito tempo sem se mexer, enquanto Toyo a observava. Depois, empurrou cuidadosamente o portão. Rangeu nos gonzos como sempre e a erva em redor parecia um pouco crescida. Contudo, nada dava a sensação de estar destruído ou danificado e, quando avançou devagar até à casa, tocou a sineta.

 

Todavia, nada se moveu, nem ninguém respondeu. Bateu ao de leve nas portas de rede shoji, mas ninguém apareceu e interrogou-se sobre se teriam saído. Desejara avisá-los da sua chegada, mas não havia forma de os contactar.

 

Abriu cautelosamente os shojis e o que viu tirou-lhe a respiração. Nem uma única coisa mudara na casa. O próprio tokonoma continuava no mesmo sítio, onde estava quando ela era criança e a avó lhe ensinava a pôr as flores lá. Ainda havia flores, embora estivessem secas. Era óbvio que os pais tinham procurado um outro sítio mais seguro.

 

Quem vive aqui, mamã?

 

Os teus avós, Toyo. Ficarão muito felizes por te ver.

 

Quem são?

 

A minha mãe e o meu pai explicou, e ele pareceu intrigado e surpreendido que ela os tivesse.

 

Percorreu devagar a casa com o filho. As roupas da mãe estavam lá, bem como todo o mobiliário e utensílios de cozinha. Havia várias fotografias dela e de Yuji e deteve-se a observá-las, desejando estender a mão e tocar-lhes. Depois, saíram para o jardim. Parou junto ao pequeno santuário, inclinou-se e pareceu-lhe estranho fazê-lo de novo. Há muito que não esboçava uma vénia.

 

O que estás a fazer, mamã?

 

Uma vénia diante do nosso santuário, para honrar os teus avós.

 

Toyo vira os velhos do campo fazerem vénias, mas era demasiado novo para que pudesse lembrar-se.

 

Onde estão a tua mãe e o teu pai? perguntou, interessado.

 

Acho que se foram embora explicou, e depois percorreu devagar o caminho até à casa dos vizinhos.

 

Estes encontravam-se em casa e pareceram muito surpreendidos ao vê-la e ainda mais ao verem Toyo. Fez-lhes uma vénia formal, e eles disseram-lhe que os pais tinham ido para as montanhas por uma questão de segurança, antes do Verão. Não sabiam bem para onde, mas haviam pensado no seu velho buraku, próximo de Ayabe.

 

Tratava-se da comunidade agrícola de onde Hiroko era natural, e fazia todo o sentido. Haviam provavelmente receado que Quioto fosse bombardeada, como exemplo, tal como Dresda.

 

Contudo, ela sabia que levaria dias a chegar a Ayabe. Era habitualmente inacessível, mas, nas condições vigentes, seria quase impossível. Decidiu perguntar aos vizinhos se tinham um carro que ela pudesse alugar ou pedir de empréstimo. Responderam negativamente e sugeriram que apanhasse o comboio, o que era uma solução sensata. Pouco depois, percorreu a pé com Toyo o caminho até à estação de caminho-de-ferro. Levou a mala por precaução e comprou fruta a uma criança que vendia maçãs.

 

Informaram-na, então, de que não havia comboio até à manhã seguinte. Comprou comida para ela e para Toyo, regressaram à casa dos pais e ocuparam o segundo quarto. Era o quarto onde ela viera ao mundo, e recordava-se da história do pai sobre o facto de nascer ali e não no hospital, por a mãe ser tão teimosa. Fê-la sorrir e contou a Toyo que nascera naquele quarto, o que o intrigou. Nessa noite, enquanto o filho dormia, vagueou por todas as divisões, sentindo o calor de estar próximo deles.

 

Havia soldados a patrulhar a rua, mas não os incomodaram. Na manhã seguinte, às sete, ela e Toyo foram apanhar o comboio. Devido aos atrasos e escombros nos carris, os quais tinham de ser removidos, levou-lhes catorze horas a chegar a Ayabe. Eram já nove da noite. Enroscou-se com Toyo na estação de comboios, debaixo de um pequeno cobertor que trouxera, mas Toyo disse que não gostava de estar ali.

 

Nem eu, querido, mas só conseguiremos encontrar a casa, amanhã.

 

Acordou ao romper do dia e comprou mais comida para o filho a um vendedor de rua, depois do que pagou a um homem com um carro para os levar a casa dos avós, no campo. Há muito que os avós tinham morrido, mas a mãe conservara a casa para irem para lá no Verão.

 

O homem com o carro fez mil desvios para lá chegar. Levou-lhes bem mais do que uma hora e, ao chegarem, percebeu porquê. A casa e uma série de outras haviam sido arrasadas.

 

O que aconteceu? perguntou com um ar horrorizado e receosa que Toyo também ficasse assustado.

 

Dava a sensação de que todo aquele lado da montanha se incendiara, o que fora verdade. Em Agosto.

 

Uma bomba informou o homem com um ar triste Lançaram uma série delas. Pouco antes de Hiroxima.

 

Nem sequer havia vizinhos com quem pudessem falar do assunto e, por fim, ele levou-a até um pequeno santuário xintoísta, onde ela se lembrava de ter ido uma vez com a avó, vários anos antes. Encontraram um padre.

 

O padre fitou-a como se ela fosse um fantasma quando se identificou e abanou a cabeça. Sim, conhecia os pais.

 

Sabia para onde tinham ido? Ele hesitou demoradamente, antes de responder.

 

Para o céu, com os seus antepassados respondeu com um ar de desculpa.

 

Os pais dela tinham decerto morrido no bombardeamento com vários amigos, parentes e todos os vizinhos. Acontecera há três meses. Há três meses, eles ainda estavam vivos, quando ela se encontrava no lago Tahoe; no entanto, não poderia ter vindo nessa altura.

 

Lamento desculpou-se o padre novamente, e ela deu-lhe algum dinheiro e encaminhou-se para o exterior com Toyo, sentindo-se devastada pela dor.

 

Todos tinham morrido. Não lhe restava ninguém... Yuji, os pais... Ken... Takeo... até mesmo o pobre Peter... Não era justo. Eram todos pessoas tão boas.

 

Onde quer ir agora? perguntou o homem do carro e, durante um minuto, ela limitou-se a ficar ali parada.

 

Não tinha sítio para onde ir. À excepção de Quioto. Mas, a seguir, não fazia ideia. Viajara seis mil quilómetros e não encontrara ninguém, nada.

 

Regressou ao carro e percorreram vagarosamente o caminho de regresso até à estação de caminho-de-ferro; não havia comboio durante os próximos dois dias, não havia sítio onde ficarem em Ayabe e, agora que sabia o que acontecera, também não queria. Apenas desejava ir de novo para casa, onde quer que fosse. Pressentindo o seu estado de espírito, Toyo pôs-se a chorar e o motorista mostrou-se infeliz.

 

Por fim, Hiroko ofereceu-lhe cem dólares para os levar de regresso a Quioto. Ele aceitou agradecido, mas a viagem foi um pesadelo. Havia obstáculos, áreas bombardeadas, desvios e animais mortos na estrada. Havia soldados e barragens, pessoas por todo o lado, algumas sem sítio para onde irem e outras obviamente enlouquecidas por tudo o que lhes acontecera.

 

Levaram quase dois dias a regressar, e ela deu-lhe mais cinquenta dólares, quando os deixou na casa, em Quioto. Convidou-o a entrar, ofereceu-lhe comida e água e ele pôs-se de novo a caminho. Ela e Toyo ficaram sós. Hiroko apenas conseguia pensar que haviam percorrido toda aquela distância para nada.

 

Onde estão eles, mamã? perguntava Toyo insistentemente. Também não estão aqui. O miúdo parecia desapontado, mas não tanto como ela. Tentou a todo o custo combater as lágrimas, enquanto lhe explicava.

 

Eles não vão voltar, Toyo disse tristemente.

 

Não querem ver-nos? - perguntou, desanimado.

 

Querem muito respondeu com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces, mas tiveram de ir para o céu para estarem com todas as pessoas que amamos.

 

No entanto, por muito que se esforçasse, não conseguia dizer ”como o teu pai”. Era-lhe pura e simplesmente impossível pronunciar as palavras. Mas ao ver-lhe a expressão, o filho chorou também. Detestava ver a mãe infeliz. Hiroko sentou-se no chão abraçada a ele e choraram os dois, até que ouviu uma pancada na porta e interrogou-se sobre quem seria.

 

Hesitou, depois foi até ao exterior e viu um polícia militar diante do portão da casa dos pais. Ele disse que era a nova sentinela da rua e queria saber se precisavam de ajuda. Tinham-no informado de que a casa estava vazia e ele vira-a entrar com Toyo. Respondeu que estavam bem e explicou que aquela era a casa dos pais.

 

O polícia era um homem simpático, de olhos bondosos e deu um chocolate a Toyo, que ficou encantado. No entanto, Hiroko mostrou-se muito fria. Recordava-se do que todos lhe haviam dito. Todos a tinham avisado quanto aos soldados.

 

Está só aqui? perguntou ele, fitando-a, interessado. Era um rapaz bem-parecido com o sotaque arrastado do Sul, mas ela não queria soldados a incomodarem-na. Não sabia muito bem o que responder.

 

Eu... sim... não... o meu marido voltará mais tarde. O soldado olhou, então, para Toyo. Era fácil imaginar o resto. E, ali, as consequências eram piores do que em São Francisco. Fazia com que parecesse que andara a dormir com o inimigo.

 

Vejamos se há alguma coisa que possa fazer por si, minha senhora disse ele.

 

Durante os próximos dias, ela e Toyo esconderam-se na casa e no jardim. Informou os vizinhos de que estavam de volta, para não se sentirem assustados ao detectarem movimento na casa; contou-lhes o que acontecera aos pais e eles mostraram-se desolados. Chegaram mesmo a convidá-la e a Toyo para jantar. Na noite em que foram, a sentinela avistou-os de novo e aproximou-se para falar com Toyo. Deu-lhe outro chocolate e Hiroko agradeceu-lhe friamente.

 

Fala muito bem inglês. Onde aprendeu? perguntou, tentando entabular conversa.

 

Hiroko era uma das mulheres mais bonitas que alguma vez vira e ainda não pusera os olhos no marido. Duvidava que ele existisse.

 

Na Califórnia respondeu num tom vago.

 

Esteve lá recentemente? surpreendeu-se.

 

Voltei na semana passada disse, contrariada por estar ali a falar com ele.

 

Hiroko não queria que as coisas tomassem esse rumo. Não tinha ideia do que ela e Toyo iriam fazer. Ignorava se deviam ficar ali ou regressar aos Estados Unidos. E, mesmo que quisesse voltar aos Estados Unidos, parecia-lhe disparatado ir já a correr.

 

Tinha de decidir o que faria com a casa dos pais, em Quioto, e não era uma boa altura para vender. O mais sensato seria ficar ali um ou dois meses e depois regressar aos Estados Unidos, ou talvez não lhe restasse nenhum motivo para o fazer agora. Sentia-se extremamente confusa, mas ter soldados junto ao portão não lhe facilitaria a vida, caso ficassem ali. Contudo, o homem parecia encantado com Toyo.

 

Esteve lá durante a guerra? prosseguiu a sentinela, relutante em deixá-los.

 

Sim. Estive respondeu, voltando a agradecer-lhe o chocolate.

 

Entrou apressadamente no jardim e fechou o portão, lamentando que não houvesse fechadura. Fez uma vénia apressada diante do santuário e regressou a casa com Toyo.

 

Nos dias seguintes, o soldado voltou a passar uma ou duas vezes, e Hiroko nunca foi até ao portão, esperando desencorajá-lo. Depois, ela e Toyo viajaram até Tóquio, a fim de tentarem encontrar uns parentes do pai. Contudo, não tardou a saber que todos os seus parentes estavam mortos e Tóquio era a imagem da destruição. Os efeitos dos bombardeamentos ainda se faziam sentir e havia ainda mais soldados, na maioria embriagados, e todos à procura de mulher. Hiroko apenas desejava voltar à segurança da casa dos seus pais em Quioto, o que não tardaram a fazer.

 

Nessa altura, encontrava-se há duas semanas no Japão, e tudo parecia indicar que se tornaria demasiado complicado permanecer. Ela era agora uma mulher moderna e independente, mas também sensata bastante para saber que, se ficasse no Japão, sozinha com o filho, correria um perigo enorme. Já tinha os horários de vários navios que regressavam aos Estados Unidos. Havia um que partia no dia de Natal e começava a pensar em seguir nele.

 

Quando voltou à casa dos pais depois da breve viagem, os vizinhos contaram-lhe que um soldado viera procurá-la várias vezes, e Hiroko pediu-lhes que, se ele voltasse, o informassem de que regressara aos Estados Unidos ou desaparecera, ou o que quisessem.

 

Ao pronunciar as palavras, parecia assustada. Caso se tratasse do mesmo soldado que estava interessado nela, sentia como que um presságio quanto a uma tal insistência, o que apenas servia para confirmar que deviam regressar aos Estados Unidos, logo que possível.

 

Quando a noite já caíra e Toyo estava a dormir no futon do seu quarto, voltou a ouvir o som da sineta no portão e não respondeu. Mas, no dia seguinte, Toyo estava a brincar no jardim e ouviu o som antes dela. E, tal como ele, também Hiroko tinha a certeza de que se tratava do amigo dos chocolates.

 

Correu para fora de casa, esperando deter Toyo antes que ele abrisse o portão, mas era tarde de mais. O filho já estava a falar com o soldado. Ao aproximar-se, viu que se tratava de outro e chamou o miúdo. Contudo, ele não lhe obedeceu, e Hiroko viu que o homem se pusera de cócoras para falar melhor com o garoto.

 

Toyo! chamou com insistência, mas ele não se mexeu e soube que teria de ir buscá-lo.

 

Detestava, porém, aquele enervante tipo de contacto com os americanos. Detectara a expressão dos olhos da sentinela e de outros que vira em Tóquio, e assustavam-na. Não queria problemas.

 

Toyo! voltou a chamar e, desta vez, ambos a fitaram, o mesmo rosto, os dois, de mão dada.

 

Era Peter. Estava vivo e ela não fazia ideia de como a encontrara. Ficou parada e começou a chorar. Sem largar a mão de Toyo, ele aproximou-se rapidamente e, sem esperar um momento ou um som da boca dela, beijou-a.

 

Hiroko tremia quando ele parou de a beijar e ergueu o rosto na sua direcção, incapaz de acreditar que ele estava ali e pegava na mão de Toyo.

 

Onde estiveste? perguntou, como se se dirigisse a uma criança perdida, que encontrara finalmente os pais.

 

Estive uns tempos num hospital na Alemanha... Antes disso escondi-me numa pocilga... Esboçou-lhe um sorriso, que o fez parecer-se com o rapazinho que outrora fora; depois, ficou sério e baixou os olhos para Toyo.

 

Porque não me disseste? Parecia exactamente como ela se lembrava dele, como sonhara durante três anos, desde a última vez que o vira.

 

Não queria que sentisses que tinhas de voltar, se não quisesses... Riu por entre as lágrimas.

 

Agora parecia tão estúpido, mas na altura fizera sentido; depois fitou-o, novamente confusa, e perguntou:

 

Como chegaste aqui?

 

Da mesma maneira que tu. Andei semanas atrasado em relação a ti respondeu com um olhar exasperado, ao mesmo tempo que a prendia nos braços com uma das mãos e não largava a de Toyo com a outra.

 

Não ia voltar a perder nenhum deles. Viera até ali e tinha todas as certezas.

 

Fui ao meu banco e vi que tinhas deixado lá uma mensagem prosseguiu. E ela deixara outra em Stanford. Cheguei a casa dos Spencer no dia a seguir a teres partido. Apanhei o próximo navio que saiu, depois de falar com a Reiko. Demorei imenso tempo a encontrá-la, mas os Spencer tinham o número. Fora um excelente detective. Ela deu-me a morada daqui, mas, sempre que vim, nunca estavas. Fartei-me de perguntar aos vizinhos.

 

Nessa altura, Hiroko apercebeu-se de que era ele o soldado que os vizinhos tinham mencionado.

 

Julguei que eras a sentinela que andava atrás de nós... Acho que eles andam à procura de gueixas. Sorriu-lhe.

 

Não era o que eu tinha em mente comentou, devorando-a com os olhos, lembrando-se de Tanforan. Ou talvez fosse... acrescentou meigamente. Foi então que Toyo lhe puxou pela mão, no momento exacto em que se preparava para beijar a mãe.

 

Tens chocolates? perguntou, e Peter abanou a cabeça.

 

Não, não tenho. Desculpa, Toyo.

 

O outro tinha declarou a criança com um ar aborrecido, e Peter fitou novamente Hiroko, esquecendo o filho por um momento.

 

Desculpa... pediu. Por tudo... por tudo o que tiveste de passar... por não estar aqui contigo... por não estar com ele... Fitou Toyo. Pelos teus pais, Hiroko. Lamento tanto...

 

Tinha os olhos cheios de amor e ternura por ela, esquecido do seu próprio sofrimento. Sentia-se tão feliz por tê-la encontrado.

 

Shikata ga nai proferiu ela e fez-lhe uma vénia, recordando-lhe a frase que há tanto tempo pronunciara na casa de Takeo. Não pode ser evitado... Shikata ga nai... Talvez não. Contudo, fora tão difícil para todos e custara-lhes tanta coisa.

 

Amo-te disse ele, abraçando-a e beijando-a com todo o desejo que o possuíra durante três anos e meio.

 

Era difícil acreditar que tinham estado separados tanto tempo e juntos apenas uns momentos, antes disso. Ela recordou a vida em Tanforan, as horas que ele passara ao seu lado a conversar e os momentos na relva alta, às escondidas de todos... o padre budista que os ”casara” na breve cerimónia de que só eles eram testemunhas. Haviam passado por tanta coisa e, por fim, os dias de humilhação e tristeza tinham terminado.

 

Peter sorriu-lhe, baixou os olhos para o filho e até mesmo ele via como eram parecidos. Depois, Peter inclinou-se na sua frente, como o pai dela fizera a Hidemi, anos antes. E ela correspondeu e sorriu, enquanto Peter se lembrava da ocasião em que acontecera.

 

O que estás a fazer, mamã? sussurrou Toyo.

 

A honrar o teu pai respondeu num tom solene, ao mesmo tempo que Peter lhe agarrava na mão, depois na do filho, e se encaminhavam para a casa dos pais.

 

Hiroko sabia que, em qualquer lugar, eles, Ken, Tak e Yuji estavam a vê-los.

 

Arígato pronunciou suavemente, agradecendo a Peter e a todos por tudo o que haviam partilhado, enquanto fechava as portas de rede shoji atrás dela.

 

                                                                                Roger Allyn Lee  

 

                      

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