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Ela sabia muito bem que tinha inteligência e eloquência, mas com Henri sempre fora muda e absurda. Queria dizer, como sempre, coisas brilhantes e sutis, que lhe inspirassem admiração. Mas as palavras que lhe acudiam eram sempre tolas e sem vitalidade. Ela o amava terrivelmente, e o temia ainda mais. Apenas podia contemplá-lo com os lustrosos e brilhantes olhos tão azuis, e desejar desesperadamente poder aproximar-se dele, que ele lhe dissesse tudo que o atormentava nesses dias terríveis. Estava certa de que ele ficaria espantado com a extensão de seus conhecimentos.
Embora Henri não fosse um homem sutil, era astuto e penetrante. Sabia muito o que sua esposa estava pensando. Annette estava completamente enganada: ele não a considerava uma tola. Sob muitos aspectos, achava que ela era superior a Celeste; sua mente era translúcida, mais madura, mais civilizada. Com frequência a lamentava, e se zangava consigo mesmo por sua própria brutalidade, pois ninguém, ele sabia, devia ferir essa pobre criaturinha linda sem sofrer algum dano em si mesmo. Não era dado à compaixão, mas sentira mais piedade por Annette do que jamais sentira por outro ser humano.
......
Embora seu olhar ainda estivesse curiosamente pensativo e alerta, enquanto a fitava, permitiu-se relaxar um pouco. Quando foram trazidos os coquetéis, ele lhes deu uma olhadela de desgosto, levou o copo aos lábios e bebeu apressadamente. Fez uma careta, limpou a boca com o lenço. Annette bebericou o dela vagarosamente, esperando e orando para que a rigidez em seu corpo diminuísse, e que ela fosse capaz de falar com ele em tom casual. Toda a sua vida de casada sonhara com uma hora em que ela e Henri conversassem facilmente, pudessem chegar a amizade e intimidade, pudessem rir juntos à luz da lareira. Seria esta a hora? Nunca antes estivera com ele quando estava tão pensativo, tão disposto. O coquetel criou nela uma radiante e ardente excitação, e o tenso tremor de seus músculos relaxou. Poderia ser sua imaginação, mas Henri parecia menos duro agora, e suas mãos largas e fortes pousavam relaxadas nos braços da poltrona. Seu coração se tornou uma enorme e trêmula massa informe no peito, e houve de repente lágrimas em seus olhos.
— Estava bom? — perguntou, num tom meio tremido. — Quero dizer: a cápsula?
— Sim — disse ele, amigavelmente. — Nada mau. Exceto pelo sabor. Por que não inventam bebidas que não repugnem ao paladar? Isso seria uma dádiva de Deus. Sinto-me aquecido agora. Estive gelado o dia todo.
"Que posso dizer que o interesse?" — pensou Annette, desesperadamente. Mas nada achou para dizer. Ouviu-se falando:
— Ouvi de papai há uma hora. Está doente outra vez. E terrivelmente assustado. Ganhou vários quilos, o que é muito mau.
Por que estaria ele interessado em Armand? Mas, para sua surpresa, ele estava interessado:
— Ele come demais — comentou. — E quanto à Lista? Está se descuidando?
— Não sei. Acho que ele está apenas infeliz — disse Annette, baixando a voz tristemente.
— Por que estaria infeliz, Annette? Ele jamais gostou do negócio. Tem sido um alívio para ele não estar mais na ativa. Está solitário? Nunca se importou muito com companhia.
Annette falou, sem premeditação, e com sofrimento:
— Ele está doente da alma, Henri. Acho que ele nem sabe por quê.
Henri ficou silencioso. Mas seus olhos permaneceram nos dela, pensativamente. Disse, depois de um longo momento:
— Sim. Sim, percebo isso. É tarde demais para ele. Sempre foi tarde demais.
Estava menos pálido. Havia mesmo certa vermelhidão em seus olhos enquanto o álcool ia fazendo efeito em seu estômago não acostumado a ele. Falou:
— Por vezes penso que é sempre tarde demais para todos nós. Talvez eu seja um sentimental. Mas você sabe o que dizem os chineses: "Cada homem vive uma vida de quieto desespero" — Sorriu um pouco.
O álcool fez Annette dizer impulsivamente, inclinando-se para ele:
— Henri, você vive uma vida assim? Ninguém jamais soube nada a seu respeito. Vive? Vive, Henri?
Ele não respondeu por um momento, ficando apenas a fitá-la. Depois disse, com estranha quietude:
— Sim, vivo.
Ela apertou as mãos juntas, e gritou:
— Deixe-me ajudá-lo, Henri! Sempre desejei fazê-lo, você sabe!
Ele ergueu a mão e cobriu a meio a boca. Por cima da mão olhou-a com estranha intensidade:
— Por quê? — perguntou.
As lágrimas engrossaram em suas pestanas douradas. Ela falou, com triste humildade, baixando a cabeça:
— Porque eu o amo.
Houve um silêncio súbito e espesso na sala. Henri viu essa linda cabeça inclinada, o tremor do peito imaturo, as mãos brancas e tensas nos joelhos infantis. Viu-lhe a desolação, tristeza e desesperança. Franziu o sobrolho, e seus lábios se juntaram numa linha dura, como se ele estivesse muito envergonhado e embaraçado, e intoleravelmente comovido. Suspirou. Ela nunca o ouvira suspirar, e o som lhe trespassou o coração. Olhou-o e exclamou, a voz trêmula:
— Oh! Henri, Henri!
E agora ele lhe via o rosto comovente, sua dor, fadiga e solidão.
— Não! — ele disse, rápida e abruptamente, e afastou-se.
Pôs-se de pé. Começou a caminhar de um lado para outro na sala, as mãos juntas e apertadas atrás, nas costas. Seus passos se aceleraram. Parecia tê-la esquecido. Ela o observava através de um véu de lágrimas.
Então ele principiou a falar, em voz baixa:
— Você não devia ter casado comigo, bem sabe. Foi há muito tempo, não adianta falar nisso agora. Tinha minhas razões. Pensei que pudesse achar tempo de ser bom para você. Não encontrei o tempo ou, talvez, a inclinação. Você sabe o que eu era. Nunca houve tempo em minha vida para nada a não ser...
Deteve-se. Ela se levantou involuntariamente, e ficou de pé junto à sua cadeira, agarrando-se ao seu encosto. Gritou:
— Sim, sei de tudo a esse respeito, meu querido! Mas sempre o amei tão terrivelmente! Não se censure. Você me fez muito feliz, verdade mesmo, só de estar casada com você.
Ele voltou a cabeça sobre o ombro e a fitou incredulamente. Estava de pé, agora, embaixo do retrato do bisavô: eram dois rostos idênticos que a olhavam com descrença total. Uma onda de confusão a envolveu. Seu coração palpitava loucamente.
Ele estava sorrindo novamente: voltou à sua cadeira e sentou-se.
— Sente-se, minha cara. Não fique tão tensa. É muito romântica, sabe. Não posso imaginar que só o estar casada comigo lhe tenha dado muito...
— Oh, deu sim! — ela sussurrou.
Sentou-se na beirada da cadeira. Os olhos estavam cheios de luz. Sua humildade, sua sinceridade, o tornaram muito embaraçado. Ergueu a mão e mordeu o dedo indicador, evitando olhá-la de frente.
O embaraço e a inquietação dele aumentaram. E novamente sentiu repulsa por ela. Era como se ela lhe houvesse tocado a carne com dedos amorosos — e todo o seu corpo tremia em repúdio. Lamentava essa involuntária sensação, mas não podia evitá-la. Se ao menos ela não o olhasse assim, se não fosse tão intensa, se ao menos pudesse ser casual! Porém ela nunca seria como ele queria, de modo que, durante todos esses anos, ele a repelira por medo de sua intimidade.
O álcool havia amolecido suas reações normais, no entanto; assim, após um momento, pôde controlar o embaraço e a piedade. Disse, sem olhá-la:
— Você me perguntou, Annette, se poderia ajudar-me. Acho que pode.
— Sim? — ela gritou. — Por favor, diga-me como.
Não podia acreditar ter ouvido direito. Inclinou-se para ele. Suas mãozinhas esvoaçaram como se fossem tocá-lo. Novamente, os músculos dele se retesaram, e ele se envergonhou disso.
— Sabe o que está acontecendo hoje... na América? — perguntou, quietamente, furtando-se à avidez e intensidade dela. — Você vive tão reclusa, minha querida! Muitas vezes tenho cogitado se está cônscia do que está acontecendo e do que tudo isso significa para nós.
Ela corou. Mas fez sua voz tão quieta e impessoal quanto a dele:
— Não sou inteiramente idiota, Henri. Leio e ouço. Sim, eu sei. E me sinto tremendamente impotente e apavorada com tudo isso. — Acrescentou: — Frequento as reuniões públicas da American Freedom Association. — Hesitou: — Por favor, não se zangue, mas sou membro. E um dos maiores contribuintes.
— Não! — ele exclamou, surpreso. Mas não havia aborrecimento em seu olhar, só interesse. — Não sabia disso. Não estou zangado, querida. Na verdade, estou satisfeito. Sabe — hesitou só um pouquinho — eu sou o maior contribuinte. Também financio Gilbert Small, o locutor de rádio.
Inundou-a uma onda de delícia e excitação. Isso era intimidade além de todas as suas esperanças. Estava metida numa conspiração com ele. Mal podia controlar-se. Começou a rir incoerentemente.
— Sabe algo a respeito do que estou tentando fazer — ele perguntou, quando ela se acalmou. Inclinou-se para ela sobre o braço de sua poltrona, e estava muito grave. — Não sabe nada, nada?
— Não. Pode contar-me alguma coisa?
Ele ficou silencioso. Olhou-a penetrantemente. Depois falou breve e rapidamente. Ela ouvia, mal respirando, a luz brotando em seus olhos, o rostinho muito pálido e atento, esquecendo tudo, menos o que estava ouvindo. Só uma vez murmurou, como se não pudesse controlar-se:
— Eu não sabia!
Ele estalou a mão pesadamente no braço da poltrona e deu de ombros:
— Bem, agora sabe — falou, categoricamente.
Depois calou-se, contemplando o fogo. Ela o observava.
— E agora — ele continuou, depois de um longo momento — eis como poderá ajudar-me. Isso se está disposta a fazê-lo, sem perguntas. As coisas estão pretas: encaminham-se para uma crise. Eu lhe dei apenas um esboço do que se está passando. Agora, preciso de sua ajuda.
— Sim? — ela sussurrou. — Qualquer coisa, Henri. Tem só de pedir-me.
— Pode não ser fácil... Você julgará — ele preveniu. Calou-se um momento, e agora só olhava para o fogo. — Gosta muito de seu irmão, Antoine?
— Gosto muito dele — disse ela, com simplicidade.
— Eu temia isso. Naturalmente você não sabe que ele é o cabeça da facção que se opõe a mim?
Ela estava emudecida de espanto. Ante o silêncio dela, ele virou a grande cabeça e a olhou com tensa severidade:
— Sim — disse, lentamente — é isso mesmo. Por isso é que ainda desejo saber se quer mesmo ajudar-me. E, ao ajudar-me, ajudar a destruir seu irmão e os que o acompanham. Por isso é que provavelmente fecharei minha boca e nada mais direi.
Ela não podia falar. Fora-se toda a sua alegria, deixando atrás apenas terror e angústia. Porém ela o olhou resolutamente.
— Seu pai sabe — falou ele, astutamente. — Sabe tudo a esse respeito.
Viu como a moça lutava para respirar. Ela ergueu o queixinho. Ela era muito clara e os brilhantes anéis de cabelos eram como um topete lustroso, curiosamente forte, mas também curiosamente comovedor e vulnerável.
— Diga-me o que fazer — ela falou, em voz baixa e firme. Ele viu o pulsar de sua pequena garganta branca, tão macia, e sentiu um novo respeito por ela.
— Eu lhe direi então — ele falou lentamente, observando-a. — Amanhã, visite Antoine e Mary. Só uma visitinha casual, sabe como é. Você imaginou como iriam passando, e queria ver seu pai. Depois, expresse pena por que Christopher e eu estejamos brigados. Fale impulsivamente, como se estivesse triste e confusa. Conte a Antoine, muito casualmente, e aflita, que Chris e eu tivemos uma disputa violenta. Naturalmente, você não sabe por quê. Mas isso a preocupa. Tudo a preocupa.
Parou um pouco. Annette o olhava, em silêncio. A luz do fogo tremeluzia na cabecinha erguida, com seus cachos indomáveis.
Então ela disse:
— Christopher está...?
— Sim — ele explicou, impaciente. — Mas você havia prometido não fazer perguntas. Só lhe posso dizer que Antoine suspeita de algo, e ele não deve suspeitar. Se o fizer, então não saberemos nada mais do que ele está fazendo à socapa, por Christopher. Mas olhe, estou perdendo tempo.
"Depois, você deve confessar que tenho andado lhe pedindo dinheiro emprestado. Muito dinheiro. Que eu pareço muito preocupado. Que fui a Nova York para ver o velho Regan, e voltei muito deprimido. Você está muito preocupada comigo. Você está cogitando o que poderá ser tudo isso. Você gostaria que eu me abrisse com você. — Ele se deteve e sorriu rigidamente: — Tudo isso lhe parece muito idiota, não?
— Não — ela retorquiu com firmeza.
— Bem, então você deduziu que o velho Regan não quis receber-me ou algo assim. Você dirá que reuniu tudo isso. Depois, acrescentará que eu briguei com Emile, Nick e Francis a respeito de alguma coisa. Muito violentamente. Você está espantada. Não sabe o porquê de tudo isso. Gostaria de saber. Quer ajudar-me?
— Sim — disse ela, simplesmente.
— E há outra coisa — falou ele, com intensidade. — Antes de falar assim com Antoine, que ficará muito interessado e simpático, a propósito, você deve ir ver seu pai. Deve dizer-lhe isto: que ele deve fingir que eu tentei tornar cinco milhões de dólares emprestados dele, com minhas ações como garantia, E que ele recusou. Aí então leve-o para baixo, para Antoine. Faça-o falar nisso de mau humor e dizer a Antoine que recusou. Seu pai compreenderá. Na presença de Antoine, você lhe pedirá que me empreste esse dinheiro. Ele recusará, zangado. E se queixará de mim, que eu pareço estar perdendo a "garra", e que ele está começando a ter dúvidas a meu respeito. Ele dirá coisas desagradáveis. Não há dúvida de que ele as pensará no calor do momento — e Henri sorriu severamente, divertido.
Mas Annette não sorriu. Havia uma estranha brancura em seus lábios, que estavam rígidos.
Depois de muito tempo, ela perguntou com firmeza:
— Tudo isto finalmente ferirá Antoine? Muito?
— Sim — ele disse cruelmente, observando-a. — Realmente muito. Isto o arruinará.
Ela não falou. Apenas o olhou, angustiada.
— Se você o fizer, isso encorajará Antoine a ser um pouco menos cauteloso. Ele se moverá mais rápida e abertamente. É o que queremos. Ele está escondendo muitas coisas. O tempo é curto. Não podemos esperar. Ele tem de expor-se.
Ela estava silenciosa. Estranhamente, ele se odiou pelo que disse a seguir:
— Olhe, querida, não preciso dizer-lhe o que o meu êxito significa para a América, para o mundo, para todos nós. Você pode imaginar isso. Reduzindo tudo a uma simples declaração, significa isto: ou eu falho, ou falha seu irmão. Agora você compreende. Terá de decidir entre nós.
Ela sentiu a enorme implicação das coisas que ele deixara por dizer. Pareceu-lhe que a grande sala acolhedora estava cheia de significado, terrivelmente importante. E em meio a essa vasta complicação, essa severidade e fúria universais, ela tornou a ouvir as palavras dele: "Ou eu falho, ou falha seu irmão."
Sentiu tão grande dor que momentaneamente, e com abstração, cogitou se poderia suportar isso e viver. Ela estava muito rígida. Viu o rosto de Antoine diante de si. Uma vida inteira passou diante do seu olho interno. Lembrou-se de si mesma e de Antoine quando crianças. Ele fora tão alegre, brilhante e cheio de modos engraçados... Ela fora muito negligenciada, e só Armand e o irmão dela a tinham cuidado. Armand já muito velho: não podia entender muito. Mas Antoine compreendera. Muitas vezes ele se arrancara de seus casos deliciosos para distraí-la e animá-la, e fazê-la rir. Ela via as alegres coisinhas que ele lhe trazia para fazê-la sorrir, em suas muitas doenças: um macaco num bastão, que gritava agudamente e corria acima e abaixo com um meneio da cauda; um cão mecânico que ladrava e se virava da maneira mais absurda; uma caixinha de música que tilintava, e se abria para mostrar pequeninos dançarinos; um livrinho que não tinha folhas dentro, mas explodia quando aberto; um homenzinho mecânico que se empertigava quando se virava uma chave, e apresentava armas. Quando ela estivera demasiado cansada para ler, ele se sentara ao seu lado durante horas, pacientemente mergulhando em romances clássicos, pacientemente ajudando-a com seu francês, e contando-lhe anedotas impróprias, mas faiscantes naquele idioma. Ela nunca o viu, mesmo agora, sem sorrir a tais lembranças. Ele sempre a fizera rir. Ele nunca se compadecera dela: sempre fingira que ela estava "tapeando". Quando ela se obrigava a sair da cama e sentar-se em sua poltrona, Antoine não lhe trazia flores, mas apenas as mais tolas das revistas cômicas cheias dos cartoons mais impróprios. Quando ela ia a bailes e festinhas, ele sempre estava lá para acompanhá-la, trazia-lhe buquês para o vestido, dizia-lhe que era a garota mais bonita da festa. Comprou-lhe discos com as suas árias favoritas, e as cantava com os grandes cantores, numa voz notável pela profundidade e sentimento. Podia vê-lo agora vividamente, seu sorriso faiscante, seus gestos extravagantes, seus olhos que dançavam; podia ouvir-lhe a voz, ressonante de real beleza e sentimento.
Fechou os olhos, num espasmo. Sabia que Antoine era um homem perigoso. Mas sempre lhe perdoara isso. Porque o tinha amado, e ele a tinha amado. Ela "fingira" que o mal não podia realmente existir num jovem tão risonho e vivaz, que o que ele fazia, fazia-o por diabrura e alegria do espírito. Agora ela o via.
Abriu os olhos vagarosamente para ver Henri a observá-la atentamente, com um sorriso triste e cínico:
— Não importa. Vejo que é pedir-lhe demais. Mas quero que esqueça o que lhe disse. Você me deve isso.
Estirou-se pesadamente, como se fosse levantar-se. Porém ela foi mais rápida que ele. Ajoelhou-se ao lado dele. Agarrou-lhe a braço com mãos desesperadas.
— Não! — gritou. — Farei o que você quer, Henri! Não importa. Tenho de fazê-lo. Não é só por você...
Não pôde dizer mais nada. Toda a força lhe fugiu. Deixou cair a cabeça no braço dele, menos como rendição ou amor do que por total prostração.
Henri olhou a cabecinha em seu braço, e seu rosto tremeu de compaixão e tristeza. Ergueu a mão e a colocou gentilmente nessa cabeça. Ela não se moveu: parecia haver desmaiado. Ele sentiu a macieza dos cachos sob seus dedos, tão infantil e indefesa era ela, e tudo isso lhe abalou os nervos e comoveu seu coração com uma tristeza pungente.
Capítulo 37
Como quando o jovem Henri Bouchard se encaminhou para ele através dos ricos e escuros carpetes de seu escritório, e o velho Jay Regan tivera o espantoso e confuso pensamento de que Ernest Barbour (morto há muito) voltara à vida e se aproximava dele — assim agora o velho financista tinha impressão similar e igualmente confusa de que esse jovem era Jules Bouchard, ressurreto, sutilmente vistoso, brilhante e sorridente.
Ele vira Antoine Bouchard passageiramente em muitas ocasiões, mas apenas a distância, e mal trocara meia dúzia de palavras com ele. Ficara perturbado com a semelhança do jovem com o falecido avô, Jules, mas nunca tão espantado, tão instantaneamente atemorizado e deprimido como estava agora.
"Meu Deus! — pensou — não é possível!" Mas lá estava Jules novamente, suave, gracioso, ágil e sutil com o bem lembrado crânio pequeno no qual o cabelo parecia o de uma foca lustrosa, o rosto estreito, moreno e um pouco franzido, os lábios secos e velhacos, sorridentes agora para formar o brilhante sorriso que era uma réplica do de Jules, as sobrancelhas maquiavélicas, inclinadas e esquisitas, as orelhas pequenas grudadas à cabeça, o andar leve e ligeiro, e toda a aparência de zombeteiro agrado. E, mais que tudo, os vividos olhos demoníacos, tão cheios de riso, alegria, e cruel requinte.
Jay Regan não tinha a hábito de levantar-se para receber seus hóspedes, pois já estava muito velho, e sempre fora por demais formidável para conferir tal honra a gigantes menores. Porém agora sua surpresa, e seu estranho e reprimido terror, fizeram-no erguer-se involuntariamente. Era como se um fantasma houvesse invadido os limites catedralescos de seu escritório. Ali ficou de pé, apoiado à polida escrivaninha, imóvel como imóvel é uma montanha. Era ao mesmo tempo um homem mais jovem e um ancião, sentindo sua idade, sua fadiga, seu desgosto e medo, tudo através de sua carne, que despertara para uma idade intermediária.
Ele e seu pai tinham sido tão intimamente ligados à família Bouchard que ele começou sem formalidades:
— É Antoine, não? — hesitou. Depois ergueu a mão grande e sólida, toda cheia de veias grossas, e a estendeu a Antoine.
Antoine era todo deferência, todo graça à antiga, e admiração:
— Eu realmente nunca o conheci, Sr. Regan. Apenas o vi poucas vezes, casualmente. Há já muito tempo que nos encontramos, pois não?
Regan silenciou por um momento. Seus olhos protegidos e à espreita estudaram sombriamente o jovem:
— Sim — falou, com estranha lentidão e ênfase — muito tempo.
Tornou a sentar-se. Colocou as mãos, palmas para baixo, pesada e chatamente na escrivaninha. Uma aura, como de calor e suor, se espalhou em torno delas, na face escura e muito polida da mesa. O vulto avantajado do homem surgiu, pesado. Seu peito e a barriga se tornaram um grande monte arredondado, e a grande cabeça abobadada estava colocada sobre esse monte como a cabeça de algum Buda arruinado e infinitamente antigo, superado pelos séculos, superado pelo mal.
Antoine, sentou-se. Espalhava uma atmosfera de elegante, porém mortal vitalidade e delicada exuberância. Tudo nele parecia crepitar.
"Um dia desses ele explodirá" — o pensamento irrelevante acudiu ao velho Regan.
O jovem era cheio de graça e deferência. Permitiu que um olhar pensativo de admiração e respeito aumentasse o fulgor de seus olhos. Vendo isso, Regan sorriu intimamente. Que quereria o demônio? Pela primeira vez em muito tempo sentiu pruridos de precaução e vigor; seu velho sangue vagaroso acelerou-se, seus instintos de antigo pirata voltaram a agitar-se, refrescados.
— Serei franco, senhor — disse Antoine — muito franco. Devo-lhe isto, pois sei que não tem tempo a perder com preâmbulos elaborados. De modo que estou preparado para ser sincero.
"Ah! — pensou Regan, feliz. — ‘Serei sincero’ era uma das mais perigosas expressões de Jules, calculada para fazer a serpente enrolar-se sobre si mesma em cautelosa expectativa." Regan disse, abruptamente:
— Seu avô e eu éramos grandes... amigos. Você o lembra muito. Fizemos muitos negócios juntos.
Satisfeito com esta abertura, Antoine falou rapidamente:
— Sim. Sei disso. Portanto espero que possamos fazer... negócios... tal como fez com meu avô. Negócios muito sérios.
Deteve-se, delicadamente. Assumiu uma expressão de embaraço. Regan se inclinou para ele, deliciado, sentindo-se jovem outra vez.
Exibiu aquele grande aspecto de paternal benevolência que era considerado encantador:
— E como vai a pequena Mary, Antoine? Almocei com o pai dela na semana passada, e ele falou do feliz acontecimento que está para vir.
Antoine tomou uns ares de indulgência marital:
— Mary está esplêndida, Sr. Regan. Esperamos o acontecimento para junho. Ainda não decidi por menino ou menina. Francamente, prefiro menina.
— Quê? Não tem ambições de dinastia?
— Estou pensando na inteligência do moleque — falou Antoine, com outro de seus alegres sorrisos. — Por vezes os varões Bouchard não são lá muito brilhantes, sabe.
Regan esperou. Porém todo o seu velho rosto estava riscado de mil linhas de um riso secreto, como se uma rede jovial tivesse sido espalhada sobre ele.
— Tal como — ele sugeriu, gentilmente — Robert Bouchard?
Apesar de sua despreocupação, Antoine estava espantado.
Traiu isso apenas estreitando os olhos negros, e por um tremor na boca — só por um instante. Logo depois estava sorrindo:
— O senhor é tão onisciente como onipotente, Sr. Regan.
Regan espalmou as mãos em gentil negação:
— Para ambas as afirmativas, a minha completa negação. Sou apenas digamos, apenas... observador e afeiçoado. Os Bouchards e os Regans têm sido sempre muito unidos.
Mas Antoine estava muito pensativo. Estudou o imenso velho em frente a ele. Sua despreocupação foi abalada, e por um momento sentiu-se desajeitado. Então o velho demônio não estava senil, nem desastrado nem frouxo, como Antoine esperava. O poder de Wall Street era ainda um terrível poder. Antoine se deu conta de que sua campanha planejada teria de ser consideravelmente revisada e ajustada ao verdadeiro Jay Regan. Em sua mente repassou tudo rapidamente. Nesse ínterim, Regan, que compreendia tantas coisas, compreendeu também isso.
— Bob e eu somos grandes amigos, apesar de parentes... — falou Antoine, e se desprezou imediatamente por tão ingênua "gracinha". Entretanto, também imediatamente viu que essa aparente ingenuidade podia decepcionar Regan e torná-lo menos cauteloso. De modo que acrescentou, com ar animado: — Afinal de contas, a geração mais jovem está emergindo. Eventualmente herdaremos Bouchard, sabe, e devemos escolher com antecedência nossos companheiros.
— E seus partidários, e subordinados, e aliados, também — acrescentou Regan, com o ar mais afeiçoado e amigável, como se tivesse os melhores sentimentos pelo jovem.
Antoine riu:
— Ora, claro! Creio e espero não ser impertinente ao sugerir que gostaria de ter alguma garantia de que o grande Sr. Regan poderá ser um aliado, futuramente?
Regan ficou silencioso. Lentamente, buscou um charuto na caixa de prata perto de sua mão. Cortou-lhe a extremidade, pôs o charuto na boca. Antoine, sem pressa, ergueu-se e acendeu o isqueiro para o velho. Por alguns momentos Regan fumou com concentração. Através da fumaça seus olhos de Buda fixaram Antoine com sabedoria intemporal e aguda fixidez.
— Acho melhor ir direto ao assunto — disse o tortuoso Antoine. — Assim, o melhor é dizer-lhe logo, Sr. Regan, que acabei de saber que o senhor recusou a meu cunhado, Henri Bouchard, um empréstimo considerável.
Recostou-se na cadeira, e sorriu elegantemente. Regan tirou o charuto da boca abruptamente. Ficou a segurá-lo, enquanto as volutas da fumaça se lhe enroscavam aos lados da cabeça como incenso. Estava imóvel. Os pequenos olhos reluziram um instante sob as sobrancelhas. "Que demônio!" — pensou. Não se mexeu, mas uma súbita tensão em seu corpo que ficou rígido. Perguntou.
— Posso perguntar quem lhe deu esta... informação?
Antoine ergueu a mão afetadamente:
— Isso seria violar uma confidência, senhor! Por favor, perdoe-me, mas não lhe posso dizer. Só que a recebi. Posso perguntar-lhe, sem impertinência, se isto é verdade?
Porém Regan estava calado. Em sua cadeira, parecia de granito. Sua mente dardejava, conjeturava, cogitava. Henri teria espalhado tal mentira, e, se o fez, para que fim? Disse, finalmente:
— Não é impertinente que você pergunte, Antoine, mas seria indiscreto de minha parte dar-lhe uma resposta definida, não é? Suponha, então, que você continue a partir deste ponto.
Antoine inclinou-se para ele com súbita seriedade:
— O senhor conhece minha situação, Sr. Regan. Sou secretário de Bouchard. Meu pai, embora retirado da participação ativa, ainda é o poder da Companhia. Pode ver, então, o quanto isso me preocupa. Se existe algo de... errado, é vital para mim sabê-lo.
— Então receio — disse Regan, suavemente — não ser a pessoa a quem deve perguntar. Realmente acreditou que eu lhe contaria, Antoine? Ora vamos, você não podia realmente acreditar que eu lhe diria quem negociou um empréstimo comigo, ou por que, podia?
Continuou, sorrindo ironicamente:
— Por que não pergunta a Henri? Afinal, é marido de sua irmã. Suponho que estejam em boas relações...
— Oh, excelentes, certamente! — replicou Antoine, sentindo-se picado em todo o corpo e se amaldiçoando por sua inabilidade. — Mas é uma questão delicada. Como lhe disse, no entanto, é uma questão de vital importância para mim, e se fui tão estúpido a ponto de fazer-lhe tal pergunta, espero que compreenda que é só devido a minha natural ansiedade.
— Muito natural — acedeu Regan. Esperou um momento; depois, cautelosamente abrindo caminho na mais completa escuridão, acrescentou: — Se existe algum modo de acudir-lhe, Antoine... Se existe algo que lhe está causando tanta ansiedade, teria prazer em ajudar. Naturalmente, estou interessado em... todos os aspectos da questão.
E então se permitiu parecer perturbado. Deixou a mão cair e mostrar um leve tremor. Permitiu que uma aparência de desintegração lhe arrepiasse as feições. Falou, lentamente:
— Sempre tive a mais profunda admiração por Henri. Quando eu era muito jovem, vi o bisavô dele, Ernest Barbour, no escritório de meu pai. Pensei que ele se parecia com Ernest. Por vezes já não estou tão certo. A semelhança física existe, mas...
O "mas" ficou boiando no ar com tremendo significado. "Então — pensou Antoine, exultante — é verdade!"
Riu, levemente:
— Não conheci o velho Ernest Barbour. Mas, a julgar pelas histórias que ouvi dele, qualquer semelhança entre ele e Henri é só coincidente. Ora, eu deveria dizer, física. Parece-me que o plano puro e simples do velho Ernest era beneficiar o velho Ernest, e para o inferno o resto do mundo. Ele não tinha patriotismos senis, nem sentimentalismos, nada de medo ou escrúpulos, ou obscuros idealismos. Sabia o que queria, partia sem medo para consegui-lo, e sempre o conseguia. Que o diabo fique com o homem inferior. Mas Henri, infelizmente, não é assim, embora ocasionalmente dê essa impressão.
— Quer dizer, Antoine, que ele respeita o inferior? Bem, cá por mim jamais soube de uma ocasião em que o homem inferior jamais beneficiasse o homem superior, ou lhe demonstrasse a menor gratidão. Ora, vamos: não acredito isso de Henri. Ele não se tornou sentimental.
O moral e a esperteza de Antoine estavam se elevando. "Agora Jules — pensou Regan — começaria a sentir alguma prudência, e principiaria a pensar." Mas esse jovem patife tinha um traço de sangue latino mais forte, que o levava a crer que praticamente todos eram tolos. Ou seria um traço teutônico?
— Sentimental não — disse Antoine. — Não posso acusá-lo disso. Diria que estava apavorado de morte. Ele foi um dos grandes investigadores da conspiração para rearmar a Alemanha, violando o Tratado de Versalhes. Através de cartéis internacionais, através de sua associação com a I. G. Farbenindustrie. Mas sei que compreende tudo isso. Ele pensou, e corretamente, que era necessário construir uma Alemanha forte e ditatorialmente controlada contra a expansão do bolchevismo, e Hitler era o seu homem. Ele era, e ainda é, o homem para nós, e em breve atacará a Rússia. Isso nos livrará da ameaça comunista. Mais tarde lidaremos com o trabalhismo, especialmente depois que Roosevelt der fim a ele limpamente.
"Tenho certeza de que conhece nossos planos. O negócio do mundo, e o mundo é negócio, está inevitavelmente nas mãos dos grandes industriais e corporações. Por isso é que o trabalhismo não deve, e não pode, ter voz no futuro. Hitler vencerá esta guerra, deve ser ajudado a vencê-la. Nós lhe fizemos promessas, e ele nos fez suas próprias promessas.
Parou, delicadamente:
— Concorda comigo, Sr. Regan?
Regan assumiu uma expressão de embaraçada preocupação. Fitou Antoine com relutante e furtiva admiração.
— Não estou me comprometendo, meu rapaz. Continue. — Disse para si mesmo: "Jules saberia."
— Uma democracia controlada pelo trabalhismo simplesmente não pode existir mais — comentou Antoine. — Depois que Hitler assinar uma paz negociada com a Inglaterra, depois de haver atacado a Rússia e a conquistado, entraremos em certos conchavos com ele. Nesse ínterim, já teremos controlado o trabalhismo, eleito um Presidente de nossa escolha, e escolhido um governo fascista em que o trabalhismo não terá parte, e será obrigado a obedecer a nossas ordens. Este é o nosso plano. Mas já há algum tempo que o senhor o conhece.
— Sim — disse Regan, pensativamente. — Mas já vivi muito, e estive pensando. Existe algo de imponderável na vida humana. E se a Inglaterra recusar assinar uma paz negociada, não importa o que aconteça? E se Hitler atolar-se na Rússia? E se entrarmos na guerra? Você bem sabe: há grande número de "provocadores de guerra" aqui. Tudo isto, claro, não passa de especulações.
Antoine sorriu levemente:
— Não pense que omitimos os imponderáveis, Sr. Regan. Supõe, então, que a Inglaterra não assinará a paz, e que Hitler encontrará extremas dificuldades na Rússia? Supõe que entremos na guerra, sob a pressão de políticos irresponsáveis, ou de alguma outra maneira? Temos nossos planos, também. Por exemplo: na I Guerra Mundial, Bouchard & Sons tiveram um lucro líquido de duzentos e cinquenta milhões de dólares. Então compramos doze milhões de cotas de certa corporação de motores, que agora dominamos completamente. Temos uma grande ramificação na Alemanha atualmente, e estamos fornecendo motores a Hitler... excelentes motores.
"Agora, meu sogro, como sabe, controla um dos maiores cartéis de petróleo do mundo, suprindo a Alemanha de petróleo no presente momento. Também controla certa patente de borracha sintética extremamente boa. Incidentalmente, respondendo a parte de sua pergunta: a América terá grande dificuldade para obter o controle dessa patente para fazer borracha sintética, caso o suprimento da Índia nos seja cortado. Meu sogro quer ter certeza de que não o conseguiremos, sob o pretexto ético, de início, de que foi concedida à Alemanha. Guerra ou não guerra, essa patente permanecerá em poder da Alemanha, e nosso ramo de motores também continuará a fabricar motores para Hitler, mesmo que ocorra a remota possibilidade de que nós mesmos entremos na guerra. Meu sogro planeja uma ação de retardamento na América, o que não nos permitirá fabricar borracha sintética por muito tempo. Tudo isso terá péssimo efeito em nossos preparativos para combater Hitler.
Regan assentia de cabeça, lentamente. Dava a impressão de esforçar-se para não demonstrar muito interesse, mas de estar na verdade extremamente excitado. Antoine notou isso com satisfação.
— Então — falou Antoine — meu sogro é um dos diretores dessa companhia de alumínio que tem compromisso de cartel com a Alemanha. Esse arranjo permitirá à Alemanha adquirir todo o alumínio de que precisar para aviões, mas limitará enormemente o suprimento para a América. Novamente, isso terá mau efeito em nossos preparativos para a guerra. Por fim: haverá uma ação protelatória enquanto os estonteados professores do Sr. Roosevelt se preparam.
Regan girou o charuto lentamente nos dedos, mirando-o fixamente.
— Onde entra Henri em tudo isso? — perguntou.
Antoine riu:
— Henri estava em tudo isso. A princípio. Depois, de repente mudou de opinião. Parece que não confia em Hitler. Ora, e quem confia? Porém Hitler, e nós, sabemos que é nossa mútua vantagem trabalharmos juntos. Ele ganhará a guerra, com nossa ajuda, e a ajuda das grandes corporações inglesas, francesas e outras, e, em consulta conosco, terá marcada esfera de influência. Então, na América, poderemos levar a cabo com êxito uma forma fascista de governo, com todos os enfeites para satisfazer os fátuos e os imbecis. Isso será o fim da democracia, que não pode coexistir conosco.
"Henri foi muito favorável. Na verdade, ele pensou em quase tudo. Depois, mudou de ideia: não confiava em Hitler. Acreditava que Hitler partiria para a conquista da América. O que é totalmente verdadeiro. Planejamos isso, também. Depois que Hitler tivesse conquistado a América, assumiríamos o seu controle industrial. Aí é que houve a cisão com Henri. Ele acredita que Hitler não nos deixará tomar o controle. E não consegue ver-se dominado por Hitler. Nós conseguimos.
Regan recostou-se na cadeira e relanceou para Antoine uns olhos estranhamente vazios:
— Todo o plano é corajoso, só um pouco terrível. Planos têm o hábito de sair pela culatra, sabe. Você censura o povo americano. Não vou entrar em nenhuma discussão com você a respeito da inteligência dele. A propósito, deixe-me perguntar-lhe isto: você e seus associados ainda estão fornecendo a Hitler petróleo, motores e outros materiais? Creio que Henri havia mandado parar com isso.
— Henri — falou Antoine delicadamente — não sabe de tudo.
E então, enquanto Regan ouvia com a mais dolorosa atenção, Antoine contou o que tinha sido feito para frustrar as ordens dadas por Henri Bouchard. Enquanto Regan ouvia, permitiu que lhe aparecesse na boca um sorriso, meio de incredulidade, meio de espantada admiração. Uma ou duas vezes disse a si mesmo: "Jules não contaria a ninguém neste mundo de Deus!" Passou-se meia hora, e a voz macia de Antoine continuava. Então, quando terminou, houve um longo silêncio nas imensas e obscuras distâncias do salão.
Regan começou a falar, e fez a voz tremer:
— Percebo. Percebo tudo. Estou velho, e tive minhas mãos em muitas conspirações, mas agora estou pasmo! Esta é a maior e a mais incrível. Posso entender seu ponto de vista: esta guerra já não é uma luta entre nações, mas uma luta entre uma ideia e outra. A luta do povo, em qualquer nação, contra aqueles que estão determinados a dominá-lo, controlá-lo e governá-lo. Sim, posso ver isso. Francamente, como você diria, a ideia me ocorreu muitas vezes no passado, mas desisti dela como fantástica. Agora, vejo que tem possibilidades...
E agora ele se permitiu parecer enormemente excitado. Balançava-se para trás e para a frente na cadeira. Esfregou a boca várias vezes com a mão que, obviamente, não tremeu demais. Dava a impressão de que estava tentando controlar-se, de que não queria deixar Antoine discernir o quanto ele estava agitado, ou quão sombriamente exultante.
Também, muito convincentemente, deu a Antoine a impressão de que ele, um velho, se tornara cauteloso e cuidadoso. Disse:
— Devo voltar ao povo americano. Que há com ele? Pode mantê-lo subjugado, enquanto Hitler vence, e desarmado, até que Hitler se volte para ele?
Antoine tornou a rir:
— Não é muito difícil. Conseguimos Jaeckle, muito poderoso aqui, e que tem uma multidão de seguidores. Temos o America Only Committee e uma dúzia de comitês subsidiários, nos quais a orla dos mais violentos fanáticos pode ter suas pequenas excitações. Temos a Igreja, com seus gritos histéricos a respeito dos "comunistas judeus internacionais" e "banqueiros judeus internacionais". Falar em banqueiro foi um "toque" de talento, não foi? Acha por demais óbvio? Receio, Sr. Regan, que nunca haja investigado completamente a estupidez abissal do povo americano. Acredita em tudo, contanto que lhe dê oportunidade de odiar algo. Temos nossos planos para tumultos raciais, para linchamentos de negros, e estamos organizando fortes organizações pacifistas em conjunção com outras. Temos locutores para atrair a timorata e econômica classe média, que de todo jeito odeia o trabalhismo. Temos nossos colunistas de jornais que repisam sobre as iniquidades dos sindicatos trabalhistas, nossos comentaristas de rádio, nossos senadores, nossos deputados. Temos nossos planos para confusão e desunião em nível nacional, se o povo começar a mostrar alguma tendência para interferir com Hitler. Não será difícil desmoralizar Roosevelt: já temos excelente trabalho feito neste sentido. Ele nunca será reeleito. Já temos nosso homem escolhido...
— Ouvi falar de Willkie, Wendell Willkie, mencionado como possível candidato — disse Regan, abstrato.
— Willkie? — Antoine riu com extrema alegria. — Também ouvi esse boato. Ele nunca será aceito pelo partido. Cuidaremos disso, garanto-lhe. Não que eu tenha nada contra ele, pessoalmente, mas é um fator desconhecido, ao passo que o nosso homem sabe o que queremos e o que planejamos. Pode estar tranquilo sobre esse ponto, senhor.
Novamente houve silêncio na sala. Depois de um longo momento, Regan disse pensativamente:
— Sabe, não posso deixar de recordar que foram as massas britânicas, contra a vontade de seu governo, que insistiram sobre a guerra com Hitler. E se isso acontecer aqui? Sabe, realmente existe uma consciência vasta, muda e amorfa nos povos... e isso é o maior dos imponderáveis.
— Nada na América, Sr. Regan. Não há consciência nacional ou racial. Apenas quarenta por cento das pessoas são de origem britânica. As outras odeiam a Inglaterra. Mais: o povo geralmente é muito estúpido para pensar logicamente. Mais ainda que o próprio povo germânico, são acessíveis a mentiras e à propaganda hábil. Não falaremos delas por um momento.
Deteve-se, depois continuou:
— Não há possibilidade de falharmos, agora ou no mundo de pós-guerra. Por isso vim ao senhor hoje.
Regan não afastou do jovem aqueles olhos penetrantes, embora movesse e rearrumasse objetos na polida superfície da escrivaninha.
— Sim? — falou, maciamente.
— Foi boa notícia para nós, Sr. Regan, quando soubemos que havia, recusado um empréstimo a Henri. Pode interessar-lhe saber, também, que ele tem tomado de empréstimo grandes quantias à minha pobre irmã, e tentou com meu pai, que igualmente recusou. Ele precisa de enorme quantidade de dinheiro para lograr-nos. Não terá esse dinheiro. Queremos sua garantia de que ele continuará a não o obter do senhor.
Regan ergueu a mão e tornou a massagear os lábios. Surgiu-lhe nos olhos um olhar agudo e curioso. Disse:
— Não financio causas perdidas.
Antoine sorriu, e o escuro brilho desse sorriso invadiu-lhe todo o rosto:
— Obrigado — falou, no mais gentil dos tons.
Com uma graciosa inclinação de cabeça, calorosa e deferente, acendeu um cigarro, e os dois homens fumaram em quieta cordialidade por algum tempo.
— E agora, chego a outra pequena questão — disse Antoine. — James, irmão de Lorde Ramsdall, é, como o senhor sabe, diretor de Logan Hollister, o correspondente londrino do seu Banco. James é um demônio cauteloso, mas o velho Georgie fez-me saber, discretamente, que James o está vigiando estreitamente, para saber seu próximo movimento; e que ele próprio está retendo as licenças que permitem à Venezuelan Oil Products Company embarcar petróleo para Hitler através dos portos sul-americanos. Como o senhor sabe, ele controla a Venezuelan Oil Products e também é diretor da Argentina Property & Industries, da Argentine South-Eastern Railroad, da Buenos Aires Waterways Dock Company, da Uruguay Railroad Systems Company, e uma ou duas outras. Justamente agora necessitamos da total cooperação delas, urgentemente, na questão de suprir equipamento de guerra para Hitler. James, como todos os Tories britânicos, está determinado a que Hitler não seja derrotado na Europa; ou, se a guerra se virar contra ele, o que não é muito provável, que uma paz negociada seja assinada com ele e na qual ele retenha o poder político na Europa. Os Tories britânicos, tal como nós mesmos, não ousam deixar que sobrevivam ideias democráticas ou liberais. Entretanto, James está observando o senhor, aguardando o seu próximo passo. Se o senhor puder dar-lhe o sinal apropriado, a marcha da guerra será imensamente acelerada, e a conquista da Europa por Hitler completada a breve prazo. Os Tories britânicos estão muito mais apavorados do que nós sobre o que chamamos os "imponderáveis".
— Os imponderáveis da consciência dos povos — murmurou Regan, de modo quase inaudível.
— Como disse? — perguntou Antoine.
— Nada. Apenas observei para mim mesmo sobre o que possivelmente não será absolutamente nada — respondeu Regan. — Então, James espera uma palavra minha, não? Ele a terá. Garanto-lhe.
Abriu uma gaveta da secretária e dali retirou uma garrafa de cristal e dois pequenos copos. Encheu-os delicadamente. Antoine observava o licor dourado a escorrer nos copos. Perguntou:
— Napoleão?
— Napoleão — concordou Regan. — Sempre o uso para selar um acordo.
Sorriu agora, amigavelmente, e de modo encantador. Observava Antoine enquanto o jovem bebericava apreciativamente.
— Eu disse — comentou Regan, poucos momentos depois — que nunca financio ou me associo a causas perdidas. Gostaria de saber os nomes dos poucos homens que estão nisso com você, os cabeças das corporações. Compreendo, naturalmente, que têm de mover-se cuidadosamente, mas ninguém veio procurar-me. Quem são eles?
Quando Antoine saiu do escritório, após o mais caloroso aperto de mãos, Regan fez uma ligação para Henri Bouchard, em Windsor. Falou rápida e concisamente:
— Olhe aqui: daqui por diante, quando tiver de fazer uma pequena e importante mentira, por que não me informa com antecedência? Há mais de uma hora vim passando maus pedaços com seu parente, nosso pequeno Antoine, que veio visitar-me. Mas peguei a intenção. A propósito, é muito importante que venha ver-me amanhã, seja o que for que tenha de deixar aí. Ah, sim: ele não é como Jules absolutamente. — Acrescentou, irado: — Ele pensa que já estou senil.
Após o telefonema a Henri, falou para certo grande homem da política britânica, e durante a conversa muito foi dito a respeito de James Gordon, irmão de Lorde Ramsdall, o poderoso proprietário de jornais.
Capítulo 38
Richard Morse, presidente do Morse National Bank, girou sua maciça cadeira de couro com um grunhido de satisfação, depois de haver estudado atentamente os boletins de notícias que lhe haviam chegado por intermédio de seu serviço particular de informações. Sentado, suas pernas eram tão curtas que os pés balançavam alguns centímetros acima do chão. Ele sorriu de má vontade para Antoine:
— Bem, talvez você não tenha feito mal nenhum em abrir a boca desse jeito para o velho Regan. Nossos amigos não poderiam ter-se movido tão depressa sem aquele petróleo venezuelano. Adiantou um pouco o horário deles. No entanto, o fato é que eu poderia matá-lo a sangue-frio! Você não tem a menor garantia de que Regan não o estava sondando, para distribuir a informação onde nos poderia prejudicar mais.
Mas Antoine apenas riu:
— Conheço o bastante a respeito da querida raça humana para compreender que um velho pirata como Regan não se torna religioso, suave e penitente da noite para o dia. Isso leva tempo... e indigestão, gota ou úlceras. Ele não deve ter nada disso, assim, não se apresse tanto para salvar-lhe a alma. Que fez ele durante os últimos cinco anos que nos faça duvidar dele? Financiou Mussolini em 1927; tornou possível a Hitler obter crédito nos lugares mais improváveis; pressionou o Banco da Inglaterra e o Banco da França; estendeu créditos ao Japão e adiantou dinheiro para explorar a Manchúria. Ele e o Dr. Schacht são velhos amigos. Em novembro de 1938 encontrou-se com Schacht em Berna, onde foram feitos proveitosos arranjos para créditos alemães em todo o mundo.
— Muito bem, muito bem. Mas o que tem ele feito ultimamente? Nada! Durante seus preciosos cinco anos tem estado carrancudo, sentado em seu traseiro gordo lá no seu escritório. Sempre teve uma queda pela Inglaterra. Sim, sim, lembro-me da reunião com Schacht em novembro de 1938, mas isso foi só para salvaguardar seus próprios investimentos. Você se arriscou, Tony, arriscou-se muito...
— Mas o senhor deve confessar que foi uma boa jogada. Ele prometeu dar o sinal a James Gordon. Evidentemente o sinal foi dado: o petróleo se moveu da Venezuela quase imediatamente. E agora — e Antoine fez um gesto expressivo com as estreitas mãos morenas — Noruega, Dinamarca, Holanda. Nada poderia ser feito sem esse enorme suprimento de petróleo.
Richard Morse grunhiu, chupou seu charuto. Era um homenzinho baixo e gordo com um enorme rosto vermelho, de expressão decepcionantemente benigna e amável — a não ser pelos penetrantes olhinhos azuis. Os cabelos brancos eram aparados rentes à cabeça redonda, mas no topo havia uma porção de cachos nevados. Tinha mãos pequenas e brancas, caprichosamente cuidadas, e usava um grande diamante na mão esquerda, ostentosa peça de joalheria que, entretanto, não lhe prejudicava a sólida aparência. Achava que o cinza-claro era a cor que mais lhe assentava, e era exigente até o último detalhe.
Os dois homens se sentaram em pensativo silêncio, por algum tempo, um silêncio rico e satisfeito. Então o Sr. Morse falou, e sua expressão se tornara menos satisfeita:
— Qual será a reação do país a essas novas invasões? Senti-me inquieto. Todo o país pode danar-se, você sabe. Talvez se apavore com isso. Especialmente após as constantes garantias de Hitler de que não planejava mais conquistas na Europa. Quantas pessoas pensa você que engolirão essa história que ele anda espalhando, que tem de "defender" a Noruega, a Dinamarca e a Holanda contra à agressão britânica... quando até o mais cretino dos americanos sabe que a Inglaterra não tem aviões, tanques nem homens para proteger a si mesma, e assim como poderá invadir qualquer outro país no Continente?
— Já lhe disse vezes sem conta, senhor, que o povo americano não pensa. Posso garantir-lhe que a única reação verdadeira dos americanos será um impulso mais medroso para o isolacionismo. Meter-se num buraco e fechá-lo atrás de si. Foi dada ordem a nossas organizações para aumentar as atividades. Por exemplo: o Bispo Halliday fará uma irradiação esta noite instando ainda mais violentamente para que cuidemos de nossa própria vida, que Hitler não tem más intenções a nosso respeito, que todos os avisos e boatos apavorantes dos "fazedores de guerra" são inspirados pelos banqueiros judeus internacionais.
Parou, pois o Sr. Morse erguera a mão abruptamente, e estava carrancudo:
— Sabe, jamais gostei de misturar as coisas com religião desse modo. "Deixe a religião fora dos negócios" tem sido sempre minha regra de ouro. Não se pode depender de religião. É explosivo. É uma insanidade. É uma droga, uma moléstia. Não é seguro. Você aceitá-la num minuto, e não a aceitar no minuto seguinte. É... é o grande imponderável nos casos humanos, e eu me tenho mantido limpo a tal respeito. Oh! Concedo-lhe que tem servido muito bem a nossos propósitos ultimamente, e até agora não deu sinais de que não continuará a servir. Mas não confio nisso. Uma terrível confusão pode ser instigada aqui na América. Fora alguns ministros protestantes que odeiam a Inglaterra, os judeus e a democracia, a grande maioria do povo americano, que é de protestantes, não esqueceu a bênção que o Papa conferiu ao Exército italiano quando saía para esmagar a Etiópia, e não esqueceu a Concordata entre Hitler e o Papa, e não deixou passar o fato de que os países satélites e aliados de Hitler eram católicos. E agora, os países que ele invadiu são países protestantes. As vibrações protestantes em toda a América vão estar desconfortavelmente excitadas, sabe. Vão examinar Halliday e seu bando um pouco mais estreitamente, assim como os líderes do America Only Committee, e o resto deles.
— Jaeckle, nosso melhor homem, é um protestante — lembrou Antoine maciamente. — E um dos líderes do America Only Committee é um judeu. Mantivemos os líderes católicos ativos ao fundo da cena exatamente pela probabilidade dessa emergência.
O Sr. Morse bateu na mesa com a palma da mão:
— Não gosto dessa história de se misturar com religião. Olhe aqui: os protestantes na América vão pensar um pouco. Nunca aprovei essa sua teoria de que todos os americanos são asnos e mentecaptos. Alguns pensam, e quando pensam ficam furiosos. Vão fazer a si mesmos uma porção de perguntas: como é que os aliados e satélites de Hitler são católicos? E o que pensar do papel desempenhado pelo Papa na Europa durante o último ano? Não demorará muito para convencê-los de que esta é na verdade uma guerra religiosa, sob a superfície, uma luta mortalmente final entre as forças da reação católica e o progresso liberal protestante. Você dirá que isso é fantástico? Meu rapaz: o elemento fantástico é que sempre surge inconvenientemente, quando menos se espera.
— Mas isso é um absurdo, senhor! Apesar de idiota como é, o povo americano não chegará a tal conclusão! Não é verdade, e o senhor sabe disso. Os três líderes mais poderosos da American Freedom Association, nosso pior inimigo, são católicos romanos. O Arcebispo Mueller denunciou Halliday cem vezes, e instou conosco não só para que nos preparássemos para defender-nos como para declarar guerra a Hitler. Os católicos estão tão divididos nesta guerra como estão os protestantes...
— Não obstante — disse Morse, alta e rudemente — a propaganda pode ser espalhada. E se tivermos lutas religiosas neste país? Na confusão o povo começará a pensar, de modo rudimentar. Isso não serve a nossos propósitos, é o que lhe digo. Precisamos de uma nação determinada e resolvida a ter paz: que o inferno estoure em qualquer outro lugar. É péssimo, isso de misturar as coisas com a religião.
Acrescentou, com súbita explosão de raiva:
— E lá está a esposa de meu filho, aquela miserável... organizando as Mães Católicas da América, que está imprimindo aos milhões propaganda antissemita, antidemocrática pró-Alemanha. Fino punhado de parentes você tem, em alguns lugares! O que você acha que a maioria dos americanos, a maioria que é protestante, irá pensar a respeito das Mães Católicas da América e sua viagem quando, finalmente, chegar a pensar?
— Quando isso se espalhar, se chegar a espalhar-se... será tarde demais — respondeu Antoine.
Morse balançou-se violentamente em sua cadeira, e ficou carrancudo:
— Digo-lhe que não gosto disto. Católico pra cá, católico para lá... todos odiando alguma coisa. Tornando-se malditamente arrojados, eles estão esquecendo que são realmente odiados e temidos sob a superfície, esquecendo que são ainda menos de um quinto do povo americano. Que Deus os maldiga, eu os odeio! Arrastando meus quatro netos para a Igreja, apesar do que eu disse e fiz bem claro. Meu filho é um... — e expressou a sua opinião a respeito do filho, fraco e tímido, em tais palavras que Antoine, a despeito de seu alarma, teve de sorrir.
— Phyllis tem boas intenções — disse Antoine, reservadamente, pois detestava essa parenta, e desprezava seu assustado marido.
— Ela representa um perigo danado para nós! — gritou Morse, ficando quase roxo. — Um de meus ancestrais lutou com Cromwell, e fez um bom trabalho, empurrando esse suíno irlandês até o mar. Maldito seja, eu não me importaria de ter alguns tumultos anticatólicos na América, e se eles não pararem logo de falar, irão tê-los!
Lutava para respirar:
— Olhe aqui: precisamos ter a nação unificada para a paz, até que Hitler esteja em condições de ajudar-nos. Nada mais de malditas sociedades católicas para estragar tudo. Fui bem claro?
Antoine acenou afirmativamente:
— Claro. Mas isso não está exatamente dentro das minhas atribuições, Sr. Morse.
Morse socou a mesa com ambos os punhos
— Ela é sua maldita prima, não é? Essa Phyllis? Diga-lhe que se cale. A esposa de meu filho não vai arruinar as coisas para nós. Esta é minha palavra final.
Antoine estava divertido:
— Não pode censurar a Igreja Católica, nem os Bouchards, por causa de Phyllis.
Não obstante, estava extremamente inquieto, apesar de sua expressão afável. Era a coisa mais abominável! Sempre tivera o mais alto respeito pelo implacável e venal Richard Morse, que se podia ter certeza de ser avarento e oportuno, sem emoções perigosas ou duvidosas. Ainda assim, expressara o ódio mais primitivo, e explodira contra uma Igreja que, paradoxalmente, muito fizera para promover seus interesses. Na selvagem hora final, então, não havia razão, não havia sequer vantagem pessoal, que fizessem as decisões que abalassem o mundo: era emoção, paixões primordiais, e a profunda e inexplicável pulsação do amorfo coração humano.
Jay Regan murmurara algo que julgara inaudível, mas o ouvido de Antoine havia captado: "Os imponderáveis da consciência dos povos". (No caso de Morse fora o imponderável do ódio instintivo pelo estrangeiro.) Os imponderáveis da consciência dos povos! Pela primeira vez em sua vida, Antoine sentiu apreensão e dúvida. E se, na selvagem hora final, a consciência do povo americano explodisse em vida terrível? E se começasse por seus leitos, suas escrivaninhas, suas máquinas, suas mesas, com um alto e terrível grito de raiva e indignação? Que aconteceria, então, a seus inimigos, os homens secretamente jurados para traí-lo, escravizá-lo e despojá-lo?
"Inacreditável" — pensou Antoine. Entretanto, sua apreensão se tornou profunda inquietação. Essa raça híbrida chamada "americanos", esse produto das sarjetas da Europa, essa horda confusa, estúpida, ignorante, atormentada pela Igreja, pelo ódio e por mentiras, jamais poderia ter uma voz unificada, poderia forçar suas diversas pulsações a bater em uníssono. Seus senhores, seus traidores eram fortes demais, frios demais, cruéis demais, espertos demais para ela.
A máquina de notícias começou a tiquetaquear furiosamente. Resmungando obscenidades, Morse se arrancou de sua cadeira, alcançou a máquina, ergueu a longa e fina fita branca vomitada em rapidez frenética. Leu rapidamente. E então o rosto vermelho ficou da cor de um bolo velho de farinha, e a boca aberta. Ficou de pé com a fita na mão, e não se moveu.
Antoine se levantou rapidamente e foi até ele. Morse não podia falar. Antoine lhe tirou a fita de papel da mão imóvel:
"O Honorável James Gordon, da firma de banqueiros britânicos Logan Hollister, acaba de ser preso sob a acusação de traição ao Império..."
Os dois homens se olharam num silêncio enorme. A máquina aumentou o ritmo de seu tique-taque. Entorpecido, Morse tornou a erguer a fita, e leu:
"Informação em conexão com o Sr. Gordon foi fornecida a Washington, na crença de que os associados americanos do Sr. Gordon..."
Antoine disse:
— Então? Muito bem, ainda somos neutros. Mau para Gordon, porém ele nada pode fazer-nos.
Morse falou densamente, lábios rígidos:
— Exceto que o equipamento e o petróleo serão cortados na América do Sul, para Hitler. — Começou a proferir maldições em voz baixa, entorpecido e incoerente.
A máquina tornou a estalar. Estupefatos, leram:
"O irmão do Sr. Gordon, George, Lorde Ramsdall, proprietário de jornais em Londres, também está sob custódia para investigação em conexão com certos artigos subversivos que apareceram em suas publicações, e que, conforme a acusação, têm o propósito de dificultar o esforço de guerra britânica. Espera-se que acusações mais sérias serão proferidas pela Scotland Yard contra Lord Ramsdall. "
— Malditos! — gritou Morse. — Então não sabem que estão acabados? Não sabem que o Império está no fim? Não sabem que Hitler os invadirá numa questão de meses, e os esmagará? Malditos loucos!
Antoine nada disse. Ficou de pé junto de Morse, o rosto moreno muito pálido. Por fim disse:
— Não sei. Eles estarão acabados? Não sei! — Tornou a ouvir, com medo súbito e agudo: "Os imponderáveis da consciência dos povos."
Jay Regan estava rindo à socapa quando se sentou à secretária e telefonou para Henri Bouchard em Windsor:
— Bem, pegaram Gordon e Ramsdall. Nossa pequena manobra teve grande êxito. Ah! Ah! Ah!
Capítulo 39
Por toda a América, imediatamente após a invasão da Noruega, da Holanda e da Dinamarca, passou um som curioso — como um fôlego gigantesco, aspirado e mantido. Era como se um homem se sentasse a uma pacífica mesa, preguiçosamente observando a luz do sol e as sombras sobre campos não ameaçados do lado de fora da sua janela, e então se tornasse cônscio do som longínquo, mas terrível, destrutivo e sinistro. Não era trovão, pois o céu ainda estava sereno, o azul aéreo ainda suave e brilhante, as sombras e a luz ainda imóveis na paz tranquila. Os pratos cheios continuavam a fumegar fragrantemente sobre a branca toalha da mesa, a prataria a luzir, e os pássaros nas árvores a trinar e roçar nas folhas. Nada havia mudado depois que havia passado aquele som terrível, só que o silêncio era, de alguma forma, mais profundo, mais intenso, e mais expectante. O homem podia ouvir aquela espera: lembrava-lhe, com súbita e pavorosa inquietação, um animal agachado entocando-se no chão silenciosamente, contraindo-se, depois que a sombra das asas de uma águia circulando passara vagarosamente, indagadoramente sobre ele. As asas se foram, mas permaneceram o terror e a espera do animal, e seu coração continuou a pulsar aceleradamente de terror.
Essa era a espera e o medo que fez a América recolher o fôlego numa convulsão universal, e prendê-lo. Ela forçava os ouvidos. O som não voltou. Seu coração ainda pulsava; ela sentia sua inquietação, sua rapidez, através de todo o seu corpo. Do espaço de onde viera o som, agora havia apenas silêncio. Mas já não o silêncio sereno e cheio da luz do sol. A luz pacífica sobre seus campos aparecia esbraseada ao ocaso; os espaços azuis do céu pareciam menos tranquilos do que agourentos. Quando os pássaros cantam sua última canção do entardecer há um estranho som penetrante nas notas, acentuado com o medo inominável. E as próprias árvores, tão imóveis nos gramados, parecem menos sonhadoras ao resplendor da tarde do que silenciosas no silêncio oco e desolado do coração de um furacão.
Foi alguns dias antes que uma centena de vozes, reduzidas ao mutismo por algum tempo, começou sua selvagem gritaria, seus guinchos histéricos novamente. Tornavam a gritar que mesmo isso não era da conta da América, que o que a América tinha ouvido era apenas o eco de uma tempestade que passara inofensivamente bem longe dela.
Porém agora, milhões de americanos outrora entorpecidos, outrora por demais ansiosamente amedrontados, outrora muito indiferentes, por demais cruéis, estúpidos e ignorantes, impaciente e distraidamente, ignoraram essas vozes perigosas e inimigas como se ignoram nuvens de mosquitos espantando-os com um movimento do braço. E esses americanos olharam para o brilhante espaço nos céus de onde viera aquele som terrível e sinistro, e seus rostos ficaram pálidos, os olhos fixos, à luz demasiado brilhante do ocaso metálico. Pois estavam ouvindo.
A verde neblina das frágeis vestimentas de abril agarrava-se a milhares de árvores em Placid Heights, perto de Windsor. No vale, o rio parecia de prata, correndo livre e rapidamente através de novos campos. Brilhavam as ladeiras das colinas. O céu tinha uma claridade fraca, mas transparente que tocava o coração com esperança misteriosa, e do solo subia o forte bafo da terra jovem.
Operários se azafamavam na casa que Peter e Celeste haviam construído. Haviam despojado o rico solo escuro dos arbustos e plantas rasteiras, e nesse solo semeavam grama. Já haviam sido plantadas novas mudas. Montículos baixos de vários formatos em breve seriam canteiros. Sempre-vivas eram amontoadas onde apenas ervas daninhas e madeiras esparsas cresciam antes. Cobriam de cascalho os caminhos; havia no límpido ar frio um cheiro pungente de piche, pois as entradas para carros estavam sendo asfaltadas. No ar havia também o odor de serragem limpa, o som de muitas vozes. Construíam a estufa, atrás da casa. As vozes ecoavam de volta das colmas. Os ventos da primavera curvavam as árvores, gemiam gentilmente nos pinheiros das ladeiras que se afastavam da casa.
De sua janela Peter observava a atividade. Estivera novamente bem doente. Sentava-se agora numa cadeira de rodas, pois só alguns dias antes lhe fora permitido sair da cama. Fora avisado: muitas semanas se passariam antes que lhe fosse permitido passear fora de casa. Para si mesmo ele completara: "Será nunca!"
"Quantos dias ainda me restam?" — perguntara a si mesmo, ansiosamente. Fora-lhe ordenado não trabalhar, pelo menos não durante muitas horas. Porém sua mesa fora empurrada para perto das janelas, com papel e seus utensílios de escrever. Os médicos não objetaram mais. Inatividade forçada, disseram, poderá matá-lo mais depressa do que trabalho. Por alguma razão que não podiam discernir, ele devia trabalhar.
Escreveu programas de rádio. Sob um nome suposto, escreveu artigos, encaixando as informações recebidas de Henri, que revistas obscuras e "radicais" publicavam sem recompensa. Algumas vezes, a pressão de uma mão ignorada obrigava revistas mais importantes a publicar-lhe os artigos. Seu livro estava terminado, em breve seria publicado. Ele sabia não poder começar outro. Ele não tinha mais tempo. O que fizesse agora devia ser rápido, pungente, impressionante, como um grito de advertência na escuridão: devia ser agudo e bem alto, para que os adormecidos acordassem.
Estava agora escrevendo um artigo intitulado: "Qual é Nossa Hora?"
Porém sentia estar lutando cegamente contra um muro onde não havia uma saída, embora atrás do muro estivesse uma cidade ameaçada. Sua voz era tão fraca... Poderia atravessar aquele muro?
Ele foi uma das primeiras vozes a gritar que o Japão, como um grande pássaro que se alimenta de carniça, já estava circulando sobre a cidade. Seus artigos, sob a pressão daquela mão desconhecida, tinham sido publicados relutantemente em duas ou três preeminentes revistas. Como resultado, "William Conrad" estava agora sendo vigorosamente atacado não só em jornais inimigos e pelos locutores públicos como em pleno Congresso. Exigia-se sua identidade. Foi denunciado como um provocador de guerra, um mentiroso, um encrenqueiro, provavelmente a soldo de fabricantes de armamentos e de "banqueiros internacionais". Foi acusado de esforçar-se por criar relações tensas entre a América e o Japão, "nosso bom amigo e excelente freguês."
Não obstante, foi colocado um embargo sobre embarques de petróleo e sucata para o Japão.
Ele continuava a trabalhar. Contava cada hora que lhe restava de vida. Sentia a morte em toda parte de seu corpo. Não pensava senão no trabalho. Isso era tudo que importava. Celeste, ele próprio, sua vida nada eram agora. A última palha do ego ardia na fogueira de seu terror pela América.
Celeste, compreendendo tudo isso, já não instava com ele para conservar suas derradeiras forças. Apenas o confortava quando sua dor era grande demais, e o ninava. Via o quão terrível era sua agonia. Nada podia fazer para minimizá-la. Quando Henri chegava, levava-o a Peter e deixava os dois homens a sós.
Raramente viu Henri nesses dias, embora ele viesse com frequência, às vezes sozinho, às vezes com Annette. Sua consciência estava afastada dele. E de si própria. Não ousava pensar em si mesma pois, se o fizesse, temia enlouquecer. Pois a mais terrível contingência estava sobre ela, na qual não ousava pensar, mesmo quando estava só. Peter, ela sabia, devia morrer em breve. E nessa morte estava a sua própria salvação. Mesmo assim não pensava nisso com frequência. Toda a sua vida e seus esforços se concentravam no marido.
Quando Henri chegou, e ela o encontrou, olhou para ele como se de muito longe, não o vendo. Ele era sempre cortês e frio, e indiferente, passando-lhe à frente no limiar da porta de Peter como se ela fosse uma criada. Por vezes, porém só muito raramente, havia nela um fraco tremor, como a memória entorpecida de uma dor reprimida sob um narcótico. Porém mesmo ele não importava. Quanto a ele, se viu que havia agora alguns fios brancos entre os cabelos pretos dela, nem sequer a olhou diretamente. Se percebeu o quão confuso e descarnado estava agora o seu rosto, e pálidos os seus lábios, e a sombra azulada em torno dos seus olhos — não deu sinais disso.
Foi Christopher quem viu, naturalmente, e quem sofreu, apesar de toda a sua maldade. A todos os demais parentes se pedira, delicadamente, para não visitar Peter e Celeste durante esses últimos dias de vida de Peter. Eles telefonavam, convidavam Celeste para jantar, mas era tudo. Christopher e Edith vinham, e Henri com Annette.
Foi Christopher que soube, mesmo antes de sua esposa saber, ou Annette. E certamente antes de Henri. Apesar de tudo que Christopher era, sua afeição por Celeste sempre fora algo de grande e de puro em sua vida. Assim, aconteceu que num dia de abril, particularmente brilhante e suave, ele veio visitá-la, e só a ela.
Capítulo 40
Celeste descansava em seu quarto, depois de uma manhã de atendimento a Peter. Estava quase adormecendo, de pura exaustão, quando uma criada, entrando de mansinho, avisou que Christopher havia chegado, e queria falar-lhe, a sós.
Celeste estirou-se preguiçosamente, saindo das profundezas de seu sofrimento anestesiante e de sua fadiga. Estava deitada numa chaise-longue de veludo amarelo, e puxou um pouco mais para cima a coberta de seda antes que Christopher entrasse. Ele fechou a porta atrás de si, e depois foi até ela. Ela o olhou e sorriu languidamente, estendendo-lhe a mão. Ele olhou aquela mão como se fosse algum objeto curioso; depois, com o mais estranho e convulsivo dos suspiros, pegou-a e a apertou tão estreitamente que ela sentiu dor. Dor que ela esqueceu imediatamente, pois seu coração começou a latejar com um mau pressentimento.
Até então ele não pronunciara uma só palavra. Sentou-se na, beira da chaise-longue perto dos joelhos dela, e olhou-a. Ainda lhe segurava a mão. Podia sentir-lhe a fria fragilidade, a magreza. Olhou-a, e automaticamente começou a esfregá-la nas palmas das suas mãos, que eram mais quentes que as dela.
Ela sempre o amara tanto... — pensou ela, vagamente. Ele sempre fora irmão e pai para ela, mesmo quando mais o temera, e mais o odiara. O perfil estreito e agudo, os olhos frios e enigmáticos, os lábios apertados e sem cor, ao mesmo tempo tão velhacos, e tão sutis, eram imutáveis para ela. Ele ainda era para ela o jovem irmão e protetor, e seu amigo. Se seus cabelos finos estavam grisalhos agora, tendo apenas algumas mechas do primitivo castanho, isso nada significava para ela.
Havia algo em sua quieta atitude, em sua calma e silêncio, agora, que parecia aliviar a tensão angustiosa nela, que sussurrou:
— Christopher!
E ele suspirou, repetidas vezes, como se algo se agitasse em seu coração com alivio incomparável, mas também com insuportável sofrimento. Ele estava muito grave. Lentamente, inclinou-se para ela e beijou-lhe a face.
— Pobre Celeste! — disse, gentilmente. — Pobre criança!
Ela corou a essas palavras, como se ele tivesse proferido algo de embaraçosamente indecente, ou sem tato, ou absurdo. Afastou a mão, baixou os olhos, e respondeu:
— Por quê?
Quando ele não falou, ela lhe relanceou os olhos rapidamente, e viu que ele estava sorrindo só um pouquinho. Mas os olhos argênteos não sorriam: estavam muito gentis, e doces. Ela não vira essa doçura desde que era criança e ficou muito emocionada. Sua respiração contida era quase um soluço. Tornou a corar.
— Celeste — disse ele — muito tempo se passou desde que lhe pedi que confiasse em mim, não é? E da última vez você não tinha razões para confiar... Mas vou pedir-lhe que o faça agora. Olhe, sei de muita coisa a seu respeito que você julga ignorada por todos. Nada disso é ignorado por mim, querida.
Ela ouvira desde as suas primeiras palavras numa atitude de retraimento; mas às suas últimas palavras ela tremeu, olhou-o rapidamente, branca de medo. Mas disse, bem calmamente:
— Não sei do que está falando, Christopher.
Ele ficou silencioso por um momento, depois disse, pesadamente:
— Sim, minha querida, você sabe.
Aguardou. Ela não falou. Seu rosto estava mais branco que nunca. Quando ergueu a mão para afastar da testa uma mecha de cabelos, ele viu que a mão dela tremia.
— Não sou uma criança, Kit — disse ela, inconscientemente usando o apelido dele que não usava desde a infância. E quando o usou, ele estremeceu um pouco, como se doesse. — Tenho minhas preocupações, sabe disso. Mas o mesmo acontece a muitas outras pessoas. Eu me queixei?
— Não — ele respondeu, distraidamente. Suspirou: — Então, não vai confiar em mim, não é, querida? Não sei como ajudá-la. Agora. Mas, pensei que poderia representar algum alívio...
Ficou surpreso quando ela subitamente explodiu apaixonadamente:
— Nada poderá jamais ajudar-me! Ninguém jamais poderá ajudar-me! Oh, Deus! Gostaria que me deixasse em paz, Kit! — E apertou subitamente as palmas das mãos de encontro ao rosto, mexendo-se violentamente na chaise-longue.
Ele esperou, sem tocá-la. Após longos momentos, ela deixou cair as mãos e mostrou-lhe o rosto, totalmente, e ele estava desfigurado e convulso.
— Vá embora, por favor, Kit! — murmurou.
Ele se levantou, como para ir-se, mas ao invés caminhou vagarosamente de um lado para outro pelo quarto, cabeça abaixada, como se pensasse. Ela o observava, aspirando e expirando convulsivamente, como se chorasse. Mas seus olhos sofredores estavam enxutos e vigilantes. As mãos estavam enclavinhadas, as unhas branqueando sob a pressão.
Então ele parou ao lado dela, e ficou subitamente severo:
— Tem de confiar em mim, Celeste. Tem de falar a alguém. Quem mais você tem, além de mim? Lembra-se como recorria a mim para tudo...
Ele se deteve, pois que ela começara a sorrir com amargura, e os olhos fixos nele estavam brilhantes e duros.
— Teria sido melhor — disse ele, quietamente — se eu tivesse sido bem-sucedido há quinze anos atrás, quando tentei fazê-la casar com Henri, não é verdade? Olhe, sei que está pensando agora que eu quase tive êxito em impedi-la de casar com Peter...
O que ele dizia era brutal, mas a resposta de Celeste foi amarga, e implacável:
— Se me tivesse casado com Henri então, tudo teria acabado para mim. Você sabia disso. Se mamãe não tivesse interferido, você poderia ter tido êxito. Você não pensou em mim.
Sua natural crueldade acendeu-se nele, que proferiu violentamente contra ela:
— Tudo isso é requentar o velho lixo, não? Mas quero lembrar-lhe, minha querida, que "não acabou tudo para você" desde que voltou. Acabou? — Acrescentou, quando ela apenas o fitou com terror: — Olhe, sei muito, queridinha. Sei que não pensou que estaria pondo em perigo a sua alma imortal, ou coisa assim, ao cabriolar por aí com Henri por algum tempo...
Ela sentou-se, rigidamente, o rosto desfigurado por um pavor tremendo. Não podia falar. As mãos lhe caíram, flácidas, nos joelhos. Ele não pôde aguentar vê-la assim, e sentou-se rapidamente ao lado dela. Pegou uma de suas mãos, frias e rígidas. Porém ela apenas olhou para ele, sem poder falar.
— Celeste, tem de confiar em mim, querida — ele instou. — Pois não vê que não há ninguém mais? Realmente acredita que eu a trairia, agora?
Esperou. Porém ela ainda não podia falar. Ele a sentia tremer.
Com a mais gentil das vozes, ele continuou:
— Olhe, eu soube de você e Henri há muito tempo, desde o começo...
Ela o interrompeu em voz alta e áspera:
— O que eu gostaria de saber é: quem não sabe a este respeito?
Ele franziu a testa, espantado:
— Acho que ninguém sabe, a não ser você, eu e Henri.
— Pois perca as suas ilusões, Christopher — disse ela, nesse tom de voz fora do natural, alta e brilhante: — Parece que, praticamente, todos sabem.
Ele deixou que ela puxasse a mão que estava na dele. Estava enormemente perturbado:
— Não, Celeste, está enganada! Sei disso. As pessoas mais interessadas, por exemplo: Annette e Peter, não sabem. Isso é tudo que importa, não é?
— Então, quem lhe disse?
Ele esperou um momento, depois disse, calmamente:
— Henri.
Ela o fitou, totalmente incrédula. Então, forçando a voz através dos lábios ainda rígidos, gritou:
— Não creio em você! Ele não... Você está mentindo!
— Ele o fez! — afirmou Christopher, inexoravelmente. — Desde o princípio. Discutimos isso.
Agora seu rosto perturbado ficou carmesim e os olhos estavam nublados:
— Você... você discutiu isso! — ela repetiu, numa voz abafada. — Você, meu irmão...
— Deixe de ser uma idiota romântica e sentimental! — ele exclamou. — Claro que discuti o caso com ele! Quando descobri. Afinal de contas, você é minha irmã, sabe? Se você fosse vagabundear por aí, eu quereria descobrir por que, e desejaria evitar que sofresse. Eu sabia o que era ele; sempre soube. Sempre soube, também, que as mulheres não eram importantes para ele, apesar de que sempre a quis. Sei que ele é vingativo e que seduzi-la... eta palavrinha vitoriana!... o faria sentir-se completamente satisfeito, depois de você ter-lhe dado um pontapé há alguns anos. Eu não ia ficar por perto para vê-la sofrer... não se pudesse evitá-lo. De modo que... discutimos o assunto.
Uma vergonha horrível a percorreu toda! Pôs as mãos na garganta, e desviou a cabeça. Ele estendeu a mão para tocá-la, depois retirou-a.
— Sejamos sensatos, minha querida — ele disse, mais gentilmente. — Sem dúvida você sabe que ele sempre odiou a todos nós. Até você, provavelmente. Voltou para esmagar-nos. Ele queria você, e vi que se você casasse com ele eu teria um aliado de qualidade, embora seja um maldito suíno traidor. Você estragou os meus planos, e casou com Peter. Depois voltou. Vi logo que havia algo entre vocês. Talvez você tivesse crescido, e visse que na verdade o desejava. Não a estou censurando. Mas sabia que provavelmente você sofreria. Por isso o obriguei a discutir o caso comigo.
— Você o obrigou... — repetiu Celeste, e agora ele viu que ela estava sorrindo desdenhosamente. E ante o sorriso dela seu rosto sombreou-se malignamente. — Você não está me dizendo a verdade — acrescentou Celeste. Quando ele não replicou, ela se voltou para ele e seu sorriso era muito malévolo: — Não está mesmo, não é?
E então ele percebeu que devia ser sincero com ela, se queria aliviar-lhe a agonia e garantir a sua confiança. Apertou os lábios, depois olhou para ela diretamente:
— Não, não completamente — falou. — Isto é: não lhe estou contando tudo. Mas o que não lhe estou contando, não importa. Digamos, por exemplo, que eu descobri, e falei com ele a esse respeito.
Ela ficou parcialmente desarmada pelas palavras dele. Voltou-lhe o rosto novamente:
— Que lhe disse ele? — ela perguntou de modo quase inaudível.
— Disse — continuou Christopher, com renovada gentileza — que pretendia divorciar-se de Annette, após a morte de Armand, e casar com você. E tenho razões para acreditar que estava falando a verdade. — Acrescentou: — Ele quer filhos: não é só você, minha cara!
Ela estava silenciosa. Mas agora toda a amargura e dureza haviam desaparecido de sua expressão, que estava pesarosa. Suspirou, pressionou os olhos com os dedos, deixou-os cair, e olhou fixamente para as janelas que se abriam ao ar de abril.
— E depois -— ele continuou — descobri que você não o tem visto desde janeiro. Não, ele não me contou. É um diabo fechado! Mas descobri, talvez por intuição. Por que, Celeste? Sei que não é por culpa dele, e sim sua. É por causa de Peter?
— Não — ela disse claramente. — Não foi por causa de... Peter. Sei que me acha histérica, mas não começo algo para terminá-lo emocionalmente, sem uma razão. Se tivesse sido... Peter, eu nunca teria começado.
— Por que então, querida? Você não estava cansada do "caso", estava? — Quando ela não respondeu, ele disse: — Eu realmente não tenho meios de saber, mas tenho uma ideia de que você também não disse a ele por quê. Não tem muito boa opinião dele, o bastante para dizer-lhe?
Ela ainda não o olhou, porém, seu perfil se tornou rígido e muito pálido. Torceu os dedos, e disse calmamente:
— Não ousei. Havia muitas outras coisas a considerar, coisas mais importantes do que nós.
Ele ficou perplexo, abriu a boca para mais perguntas, mas não falou. Fixou a atenção no perfil dela, e seu próprio rosto se contraiu, tomou-se extremamente pensativo. Ele era sutil e excessivamente intuitivo. À medida que suas deduções progrediam tornou-se incrédulo, sacudiu a cabeça uma ou duas vezes como se discutindo consigo mesmo; depois, como "lia" no rosto da irmã com crescente nitidez, sua incredulidade desapareceu.
Disse, reflexivamente:
— Não creio que alguém haja tentado injuriá-lo. Ninguém ousaria.
Contudo, mesmo ao dizer isso, dúvida e alarma se avivaram nele. Levantou-se e começou a caminhar de um lado para outro novamente, a passos acelerados. Finalmente, parou aos pés da chaise-longue e disse:
— Talvez tenha razão. Posso ver isso. Mas, por que não lhe disse, ao invés de acabar com tudo deste jeito?
Ela falou, em voz surda:
— Quem jamais lhe pôde dizer algo? Ele é demasiado brutal, egotista demais. Quem jamais ousou erguer a mão contra o poderoso Henri Bouchard? Sim, ele pensaria isto. Sempre pensou assim. Esquece que todo homem é vulnerável, especialmente aquele que só pensa em destruir seus inimigos.
Christopher sentou-se rapidamente perto dela outra vez:
— Celeste — falou, com insistência — quanto ele lhe disse?...
Ela deu de ombros, impaciente:
— Muito! Isso importa? Sei que se lhe disse, não adiantaria nada. Ele não ouviria. Tem tamanha presunção! Assim, tive de fazê-lo por mim mesma. — Então teve uma expressão de dor enorme, e suspirou repetidamente: — E agora, suponho, para ele está tudo acabado. Mesmo que eu explicasse, após certo tempo, quando fosse seguro, ele não se importaria.
Mas Christopher apenas ficou ali sentado, a esquadrinhá-la.
A precaução dela, seu controle, tinham acabado. Ela continuou, em voz mais alta e rápida, esfregando as mãos, encolhendo-se como se estivesse gelada:
— Eu sabia que não poderíamos... voltar... a ver-nos, enquanto Armand vivesse. Seria fatal para ele. Eu não poderia vê-lo até que se divorciasse de Annette. E, tudo considerado, ele não poderia fazer isso até que Armand morresse. Havia tantas coisas... As pessoas são tão perversas
Ela falava incoerentemente. Depois não pôde dizer nada mais, e ficou silenciosa. Sentindo sua impotência, estendeu as mãos num gesto de desolação.
Finalmente, murmurou:
— Eu lhe direi, algum dia, quando for seguro. Mas aí ele já não se importará. Escrevi-lhe: nunca tentou ver-me novamente. Outrora me dissera que, se eu o mandasse embora, ele nunca voltaria. Assim, ele nunca voltará.
Christopher estava cheio de piedade por ela. Pôs a mão na dela:
— Sim, ele voltará. Tudo que você tem a fazer é mandar chamá-lo. Sei disso.
Porém ela balançou a cabeça, com profunda convicção:
— Não, não voltará. — Acrescentou: — Mesmo quando eu explicar, ele não voltará. Estará furioso. Sentirá que eu o insultei ao sugerir que era vulnerável. Como vê, conheço tudo a seu respeito.
Christopher começou a falar, depois calou-se. Seu rosto estreito e descolorido subitamente corou um pouco. Balançou a cabeça levemente, para si mesmo. Depois, com resolução, pôs as mãos nos ombros da irmã e a forçou a voltar-se para ele. Olhou bem dentro dos seus olhos desolados. Disse, maciamente:
— Acha que ele não voltará... quando for seguro, claro... por causa da criança?
Agora o embotamento dos olhos dela se diluiu num súbito relâmpago de terror. Ela tentou arrancar-se das mãos dele, porém ele a segurava firmemente. Sua boca se abriu completamente, de surpresa, e ele lhe viu o reluzir dos dentes.
— Celeste! — falou, agudamente, aterrorizado por ela.
Porém agora tinha uma força frenética. Livrou-se dele. Pôs-se de pé, tremendo como se tivesse sido golpeada. Gritou:
— Como é que sabe? Alguém sabe?
Ele se levantou. Sabia que tinha de acalmá-la, pois parecia prestes a uma fuga selvagem, e só Deus sabe a que excessos, em seu terror. Agarrou-lhe os braços e a manteve segura, com mãos que eram gentis, porém firmes. Mas não podia suportar ver-lhe a expressão demente.
— Não, estou certo de que ninguém sabe, exceto eu. Afinal de contas, quem vem aqui? Você não tem estado com Annette há mais de um mês, e tanto quanto sei, Henri nem olha para você, quando os visita. Edith não vem aqui já faz tempo, também. De modo que eu sou o único. E eu não teria sabido, no que se refere a algum sinal externo. Chame a isto: minha intuição. — E ele sorriu ligeiramente, um sorriso que pretendia tranquilizá-la. — Sente-se, querida. Cairá, se não o fizer. Assim, deixe-me ajuda-la.
Porém ela subitamente virou-se para ele e agarrou-se a ele em desespero, pondo a cabeça em seu ombro. Começou a soluçar, loucamente e sem controle. Ele a rodeou com os braços, deixando-a chorar, sabendo ser este o seu único consolo. Pressionou-lhe a cabeça de encontro ao seu ombro, murmurando palavras de ternura, compaixão e compreensão como nem a esposa nem ninguém jamais ouvira. E pela primeira vez em muitos anos sentiu o velho enternecimento de seu coração pela irmã, a antiga emoção protetora.
Passou-se muito tempo até que ela relaxasse o suficiente para que ele a pusesse de novo na chaise-longue. O céu havia escurecido de modo geral, mas para os lados do oeste ainda estava estático, de um azul profundo, com uma pequena nuvem fixada nele e orlado de um fogo pálido. Celeste tremia tão violentamente que Christopher fechou a janela e lhe cobriu os ombros com a coberta do divã. Ela sentou, cabeça baixa. Então, uma vez mais ele sentou junto dela, e a estudou com grave piedade:
— Por que não faz algo a respeito disso... antes? — perguntou.
Ela falou, em tom dificilmente audível, e sem levantar a cabeça:
— Poderia tê-lo feito. Mas Peter adoeceu logo depois... logo depois que mandei Henri embora. Ficou muito mal por perto de três meses. Quase morreu, como você sabe. Não tive tempo... para pensar. Tive uma vaga ideia de que algo estava errado... em março. Mas tudo estava tão confuso... Houve muitas noites em que pensamos que Peter morreria. E eu andava exausta! Não tinha tempo para pensar, em absoluto. E, quando tive, não podia deixá-lo, mesmo para... isso. Continuei a esperar, pensando a cada dia poder deixá-lo um pouco, três ou quatro dias, pelo menos. Porém ele continuava a piorar. Não podia mesmo deixá-lo. — Tomou uma respiração funda. — Então, na semana passada, quando pude deixá-lo por algumas horas, fui a um médico em Filadélfia. — Fez uma pausa. Sua cabeça abaixou mais. Murmurou: — Disse-me que era muito tarde. Nada podia fazer por mim. Ninguém podia.
Christopher não pôde deixar de dizer, alarmado:
— O médico a conhece?
— Não. Escolhi-o ao acaso. E, claro, não lhe dei meu nome.
— Há quanto tempo?... — perguntou Christopher.
— Mais de quatro meses, agora — ela murmurou.
Agora que tudo havia sido dito, Christopher estava aterrorizado. Procurou um cigarro, acendeu-o, fitou-o cegamente. Depois, ofereceu-o a Celeste. Ela o tomou, ele acendeu-o para ela. As lágrimas lhe corriam pelas faces pálidas. Porém ele viu que ela agora estava mais calma.
— Você deve ter alguns planos, Celeste, não tem? Como para explicar isto... a Peter? — acrescentou, hesitante.
Ela replicou numa voz completamente inexpressiva:
— O médico de Peter afirma que ele morrerá a qualquer minuto.
Apesar do que era, ele se sentiu mal a estas palavras. Involuntariamente franziu as sobrancelhas.
— E depois disso? Depois que Peter morrer? Como irá você...
— Não posso ir-me — disse ela, com a calma do desespero. — Logo todo mundo virá a saber. Assim, todos hão de pensar que é filho de Peter.
Ele não pôde deixar de exclamar:
— Espera que acreditem, Celeste?
Quando ela deu de ombros, pesadamente, ele viu o quanto ela estava aniquilada:
— Não importa. Não ousarão negar isso na minha presença. Se eu me for, terão razões para falar disso abertamente. Se eu ficar, e o farei, não ousarão...
— Mas todos sabemos que você e Peter...
Ela ergueu a cabeça e lhe sorriu triste e completamente:
— "Todos vocês sabem." Mas nenhum de vocês ousará dizê-lo abertamente.
Olhou-o duramente e seu frio sorriso era produto de extremo desespero. Ele sentiu uma compaixão dolorida e intensa por ela.
— Você é corajosa, minha bichinha! — disse ele, olhando-a com admiração triste e incrédula. — Sim, percebo o que quer dizer. Ninguém, a não ser a família, duvidará. Mas não falará disso, a não ser em cochichos. Há o orgulho de família, sabe, e embora nos odiemos uns aos outros, apresentamos uma sólida fachada a qualquer estranho. E depois de certo tempo, se você mantiver a boca fechada e a cabeça erguida, todos fingirão com você. Uma espécie de pervertida lealdade de família. Sim, você pode escapar impunemente, se suportar a coisa e olhá-los de frente.
E ele lhe sorriu afetuosamente:
— E Edith e eu, naturalmente, estaremos ao seu lado. Você e Peter têm tão poucos amigos que ninguém sabe de nada a respeito de seus negócios.
Então teve um pensamento alarmante:
— E se Peter não...
Ela falou, calmamente:
— Em tal caso, claro que terei de ir-me daqui antes que se torne demasiado óbvio para ele. Tenho de poupá-lo a isso, você bem sabe. Nada de confissões, e tudo isso, embora ele me desse todo o apoio moral, estou bem certa.
Houve entre eles um longo silêncio. Celeste terminou seu cigarro na pesada serenidade do desespero e da resolução. Mas o de Christopher ardeu sozinho até o fim, em seus dedos descarnados. Depois ele disse:
— Há outra coisa: eventualmente, Henri saberá. Já pensou nisso? Que acha que ele fará?
— Esta é outra razão para que eu permaneça aqui, e enfrente tudo. Quando todos virem que espero que acreditem tratar-se do filho de Peter, ele não ousará dizer nada. Até mesmo ele não ousará dizer nada. Você realmente pensa que ele esboçará uma atitude e anunciará ao mundo que o filho é dele? Não, se é que conheço Henri!
— Sei, sei. Claro, você tem razão. Mas há outra coisa: você não acha que ele poderia precipitar as coisas, então, e divorciar-se de Annette?
Ela o olhou, assustada; depois sacudiu a cabeça:
— Não. Não sob as presentes condições. Não. Ele saberá que não deverá fazer isso enquanto Armand está vivo. Enquanto não for seguro para ele fazê-lo.
Depois disse, tristemente:
— Acho que ficará muito satisfeito em estar fora disso tudo...
Subitamente, pôs-se a chorar de novo, beicinho tremendo infantilmente:
— De qualquer maneira, terei a criança — comentou, com simplicidade. — Já é alguma coisa...
Por algum tempo Christopher se divertiu com certos pensamentos maliciosos. Depois tornou-se cônscio de Celeste novamente, com renovada compaixão e amor. Tomou-a nos braços e a manteve bem junto de si:
— Pobre querida! Você é um valente diabinho, sabe... Sempre foi. Deus a ajude!
Ela se afastou dele um pouco:
— Não tão valente — disse, imperturbavelmente. — Várias vezes pensei em matar-me.
Naquela noite, em Endur, Christopher contou a Edith sem emoção, e com um ar de indiferença. Conhecia sua força e ausência de perturbações emocionais. Ouviu-o consternada, embora nada dissesse até que ele terminasse.
— Meu Deus, que terrível! — E, caracteristicamente: — Quão terrível para Henri!
Christopher sorriu desagradavelmente:
— Você quer dizer: quão terrível para Celeste, não é? Ou ainda tem aquela fixação por seu irmão, doçura?
Ela o fitou, os olhos castanhos cheios de uma expressão que ele jamais percebera neles, tão implacável, tão ameaçadora era.
— Não estará enganado, Christopher? — ela indagou, calmamente. — Está falando de sua própria fixação por sua irmã, não está? Não se incomode. Disputando não iremos a parte alguma. —- Olhou-o plenamente, e agora seus olhos estavam turvos. — Você nunca me amou realmente, não é, Christopher?
Ele estava a ponto de dizer alguma coisa, com a virulência de sua natureza, mas ficou quieto. Depois disse, reflexivamente:
— Creio que amei, sim. Sim, creio que amei.
Ela engoliu com dificuldade. Sentou-se diante dele em sua pungente franqueza, cruzadas as longas pernas. O cabelo castanho estava estriado de linhas prateadas, mas o perfil moreno ainda era magro, firme e jovem:
— Você é um bruto, sabe... Mas já lhe disse isso muitas vezes. Como é mesmo que o chamam? "A serpente branca". Nunca pensei isso a seu respeito. Algumas vezes pensei que você me amava...
Ele repetiu, ainda pensativo:
— Sim, creio que amei.
— Acredito que esteja me dizendo a verdade. Sabe, sempre odiei um pouco a Celeste, por sua causa. Não creio que a odeie agora. Estou contente de que me haja dito que me ama, Christopher — acrescentou, com simplicidade. — Nunca me disse antes, não com tantas palavras.
Ele ficou emocionado. Foi até ela, pegou-lhe a mão, depois inclinou-se e a beijou:
— É uma tolinha, Edith. Mas é a única mulher brilhante que já conheci, também. Gosto de mulheres brilhantes.
Ela ergueu os braços e os passou em torno do pescoço dele, puxando-lhe a cabeça de modo a poder beijar-lhe os lábios. O sorriso dela era suave e trêmulo, a despeito das habituais linhas duras em volta de sua boca:
— Você me magoa o tempo todo, seu suíno. Mas não pode deixar de ferir alguém... Compreendo-o, sabe... Bem, obrigada por pequenas gentilezas, queridinho. Sei que nunca disse a qualquer outra mulher que a amava.
Afastou-o dela, com uma risadinha, de que ele compartilhou. Então ela franziu as sobrancelhas pensativamente:
— Sua querida irmãzinha tem coragem! — ela confessou, resmungando. — Nunca havia notado isso. Então, estamos numa conspiração de silêncio, hem? Você não acha que haverá dificuldades com Henri?
— Não. Óbvio que não. E quando Peter morrer, e praza a Deus que seja logo!, Celeste será tratada ternamente pela família, pelo menos em público. Com você na vanguarda, como a mais terna. A família a teme um pouco, meu doce anjo. Não ousarão rir-lhe no rosto.
Capítulo 41
Peter sabia: cada dia que vivia era um dia tomado de empréstimo à morte. Soubera disso com a mente, porém não com a plena consciência de seu corpo e espírito juntos. Era como um fato estabelecido pelo frio intelecto, mas nunca aceito pelos sentidos e as emoções.
Porém nesse dia de maio acordou de manhã cedinho, antes da aurora. Embora ainda estivesse muito escuro, a obscuridade tinha essa penetrante qualidade da terra que precede imediatamente o nascer do sol. Era uma animação, uma consciência de tudo, essa qualidade, como se ele estivesse de pé numa escura antecâmara olhando para uma porta maciça e fechada atrás da qual fervilhasse muita vida e grande movimento, invisível e despercebido. Havia acordado, e embora estivesse cônscio de um imenso cansaço e torpor em seu corpo, sua mente estava anormalmente clara, vivida e alerta. Quando movia as mãos, mal sentia o movimento, tão entorpecida estava a sua carne; e estava muito espantado por descobrir que a pressão do leito sob ele mal era percebida por seu corpo. Prestou ouvidos à escuridão, à sua substância clara e oca. Não podiam ser vistas as janelas de seu quarto. Tudo era impenetrável, e cheio de paz.
Então, àquela paz vasta e vazia, imóvel e sem fôlego, chegou o primeiro fraco murmúrio das brisas da aurora, macias, sussurrantes como as notas dos instrumentos de madeira de uma orquestra. Murmuravam solenemente, mal se movendo. Lentamente se aprofundaram, tornaram-se mais fortes. As árvores recentemente cobertas de folhas se moviam e erguiam seus ramos e suas vozes, tornando mais fortes as leves notas distantes. Agora, em toda a volta, vindas das escuras colinas imóveis, do vale distante e do rio longínquo outras vozes se erguiam. O tremolo dos pássaros começou a canção, até que todo o ar vibrou, atravessado por notas douradas...
Peter se ergueu pesadamente na cama e afastou uma cortina. A terra ainda estava sob um mar escuro e ventoso, porém por trás das colinas a leste havia uma linha de fogo brilhante, moldando a silhueta das colinas. Esse fogo corria eletricamente pelas orlas, e acima o céu vibrava lentamente num rosa trêmulo, estriado de fina flama. Agora o coro de mil vozes se intensificava, exultante; o vento aumentou o tempo de suas notas de violoncelo; a doce flauta dos pássaros se tornou de uma tal pungência cristalina que Peter sentiu que lágrimas lhe assomavam aos olhos.
Nunca lamentara a necessidade da morte. Sempre estivera tão ocupado, tão ansioso, tão atormentado, que nunca sentira que a morte podia alcançá-lo, pessoalmente. Pelo menos, nunca sentira isto com suas emoções. Sentia agora. Estava cheio de ativo pesar, com tristeza imensurável, e uma nostalgia que era como uma dor insuportável em seu coração.
Preocupado sempre com as agonias dos homens, com injustiça, crueldade, loucura e fúria, estivera por demais absorvido para concentrar-se em contemplação. Raramente pensara em Deus. Quando certos homens lhe haviam falado de Deus, ouvira com íntima impaciência. Que tinha "Deus" a ver com os problemas terríveis e imediatos da humanidade? Era uma apoteose a ser tolerada apenas por metafísicos, por aqueles que não tinham real consideração por seus irmãos. Na pior das hipóteses, "Deus" tinha sido o abracadabra dos pecaminosos, dos loucos e dos tiranos. Se Peter pensara em Deus agudamente em sua vida, particularmente nos últimos anos, fora com raiva e ódio, detestando-o. Se havia "Deus", como fora Ele capaz de ficar em complacente silêncio todos esses anos, através da última década, vendo o que havia para ser visto? Como podia Ele ter observado a degradação e violência da raça humana, a tortura de inocentes, mortes, lágrimas e desespero dos indefesos, as multidões que morreram de mãos erguidas para os céus mudos — e não se haver comovido em Seu poder eterno e destruído seus inimigos? Quantas preces incontáveis devem ter-se elevado dos guetos da convulsa Polônia para Deus silencioso e desatento! Quantos gritos angustiados de socorro devem ter partido das celas ensanguentadas dos campos de concentração, das paredes calcinadas de igrejas e sinagogas, das túrgidas sarjetas onde crianças morriam em tormento, de casas arruinadas e campos destruídos!
Mas os céus permaneceram mudos. Nem o menor sinal d’Ele, que declarara ser melhor que uma pedra de moinho fosse atada ao pescoço de um homem e ele fosse atirado ao mar do que infligisse ele sofrimentos a um desses "pequeninos". Milhares e milhares desses "pequeninos" pereceram, as bocas entupidas com seu próprio sangue, braços estendidos para mães que não estavam lá... e Deus dormia, ou não se importava. Os inocentes morreram sem socorro e sem consolo, em agonia, separados pelo homem, abandonados por Deus.
Então, por causa de seus pensamentos, devido à sua angústia pelos desamparados com quem ninguém se importa — houve em Peter um ódio profundo e aversão por qualquer "Deus" que pudesse existir. Sentia seu espírito nu e solitário no topo de uma montanha desolada, amaldiçoando Deus pelo horror que infligira aos homens. Não havia justificativa; as desculpas e explicações dos sacerdotes era idiota e ultrajante loquacidade, resmungos de imbecis que deviam ter sua mágica idiota mesmo em face da agonia desesperada do mundo. Havia quem declarasse que Deus estava "testando" a humanidade por meio desse horrível espetáculo de depravação humana e humano sofrimento. Havia os que prometiam que aqueles que morressem desamparados, e em tortura, entrariam num "mundo melhor".
Contudo, para Peter nenhum "mundo melhor" justificava o último estertor na garganta de uma criancinha. Que eras de bem-aventurança eterna poderiam jamais apagar a lembrança final dessa morte, daquela desesperança? Se o inimigo pagasse e pagasse através da eternidade por sua crueldade e sua loucura, não seria o suficiente para tirar dos registros do tempo o vidrado dos olhos confusos e sofredores de uma criança, enquanto morria em solidão e dor. Simplesmente não havia explicação, nem desculpa para•o derradeiro patético erguer da mão de uma criança moribunda, para o último grito selvagem da mãe a buscar em meio a ruínas o corpinho brutalmente assassinado, para o último gemido de um homem num campo de concentração. Não havia perdão para os homens que fizeram tais coisas. Não havia perdão para o Deus que as permitiu.
O ódio e a aversão de Peter por "Deus" se estendiam às vis criaturas que Ele criara, a todo o mundo.
Agora, enquanto observava a amanhã surgir por sobre as colinas, estava dominado por sua dor. Um sofrimento universal o invadia. Ele sentia a tristeza universal da Terra. E por fim, nele, o ódio se foi deixando apenas lágrimas e tristeza. Viu que o atormentador sofria igual à sua vítima, que no fim morria em igual angústia. Assim a tristeza de Peter, muito funda para o desespero, profunda demais para palavras. Sentiu a dor universal através de seu espírito, sentiu um sofrimento enorme demais para algo que não fosse a prece, para nada além da compaixão.
E com isso ele soube, com todas as suas emoções, que estava para morrer.
A ideia, assim de repente, trouxe-lhe uma paz solene e infinita. Observou a aurora brilhando, ouviu as vozes triunfantes da Terra. Mas não sentiu alegria com sua paz, nem realização. Não pôde enganar a si mesmo que "compreendia". Apenas aceitou. Sentia-se contente por estar a ponto de morrer. Esperava apenas que não houvesse lembrança. Quão pavoroso seria carregar para a eternidade a lembrança do horror dos homens, da indiferença de Deus, da misteriosa desesperança do mundo!
Quando Celeste entrou maciamente no quarto dele às sete e meia, pensou que Peter estivesse dormindo. Porém quando se aproximou da cama, viu que seu rosto estava voltado mudamente para a janela, onde ele podia ver o sol da manhã nos topos das árvores. Virou-se para ela, quando teve consciência de sua presença, e sorriu.
Ela disse para si mesma:
"Está morrendo!"
E então lhe pareceu que havia em seu coração uma dor dilacerante, sufocante, despedaçadora. Ajoelhou-se ao lado da cama e tocou a mão dele. Sentiu-lhe a frialdade, a dureza esquelética dos dedos. Ela não pôde falar. Fitou-lhe os olhos, e permaneceram assim por longo tempo, olhando-se profunda e mutuamente na alma e no pensamento.
Finalmente Celeste deitou a cabeça no travesseiro, ao lado da do marido, e continuou ajoelhada, mal respirando, não pensando.
Por fim sentiu a mão dele em sua cabeça, acariciando-a gentil e lentamente. Quando ela ergueu os olhos, eles estavam secos e ardendo: viu que ele sorria novamente. Sua voz, calma e fraca, veio de seus quietos lábios:
— Minha querida, parece tão cansada... tão exausta... Faria algo por mim? Saia hoje. Vá a algum lugar. Dê um passeio. Olhe, o sol está brilhando, depois de uma semana de chuvas.
— Não.
— Você deve querida! — disse ele, com grande premência. — Isso me agradaria muito. Estou muito melhor, você bem sabe. Daqui a pouco vou levantar-me e trabalhar um pouco.
— Não, Peter, não deve trabalhar hoje. Parece... tão cansado... Não dormiu muito, dormiu?
Ele não respondeu por um momento, depois disse, virando um pouco a cabeça no travesseiro:
— Não, não muito. Mas não faço exercício... Aqui deitado, ou sentado... isso não é muito.
Ela olhou seu perfil, tão emaciado, tão delicado e tenso com qualquer emoção, qualquer ânsia ou saudade. Mesmo assim, não era um perfil pacífico. Era, sim, de profunda resignação e paciência exausta. Era tão forte a dor em seu coração que ela apertou as mãos no peito, e estava cega de sofrimento.
Viu, por fim, que ele tornara a voltar a cabeça para ela e a contemplava com profundo e penetrante amor e compaixão.
— Celeste!
— Sim, querido! — ela sussurrou.
As mãos dele se moveram, inquietas, sobre o leve cobertor que o cobria:
— Você sabe, querida, e eu sei, que não me resta muito a viver. Gostaria de saber que, quando for livre, será feliz, que encontrará felicidade. Em algum lugar. — Sua voz era muito gentil e muito calma.
— Peter — ela começou. E não pôde dizer mais nada. Mas as lágrimas chegaram, muito lentamente, a correr-lhe pelas faces. Ele levantou a mão e, com um sorriso e um fraco suspiro, e com ternura infinita, limpou-lhe as lágrimas.
— Que é isso, querida! Não chore. Por que deveria chorar? De muitas maneiras fomos bem felizes juntos! Gosto de recordar quão felizes... Não foi vida para você. Gostaria de pensar que você pode ser feliz realmente outra vez.
E novamente se olharam em profundo silêncio.
Celeste sentia-se morrer de dor. Pegou a mão dele e apertou de encontro a seu rosto.
— Ainda é jovem, minha querida! — ele disse, agora mais fracamente. — A vida não terminará para você. Sofreu muito em minha companhia! Espero que esqueça tudo isso, e relembre as coisas agradáveis... as coisas que vimos juntos, as conversas que tivemos, os passeios, as vezes que rimos, os novos lugares que visitamos, os amigos...
— Se relembrar tudo isso, não serei capaz de viver... — ela disse, de modo quase inaudível.
E então lhe pareceu que seu coração se quebrava e dividia num imenso e atormentado grito. Apertou o rosto no leito. E desatou em soluços.
— Perdoe-me, Peter! — gemeu. — Perdoe-me!
Suas mãos agarraram os lençóis e cobertores; puxaram-nos e se contorceram entre eles. Seus soluços estremeciam a cama. Esqueceu tudo que não fosse sua angústia, desespero e remorso.
Só algum tempo depois se deu conta de que Peter não se havia movido nem falado, nem lhe respondera. Quando por fim ergueu o rosto desfigurado, viu que ele a olhava com gentileza grave e firme, e com triste e apaixonada compreensão. Então ele levantou a mão e apertou os dedos na longa mecha branca que mergulhava em sua cabeleira, a partir da testa. Levantou essa mecha e a moveu entre os dedos:
— Nunca vi isto antes, minha querida.
Ela abriu os lábios trêmulos para acusar-se novamente, porém ele sacudiu a cabeça. Repetiu:
— Nunca vi isto antes. Tenho estado tão cego, tão imperdoavelmente cego...
E então moveu a cabeça para poder beijar a branca marca do longo sofrimento dela. Ela sentiu a pressão dos lábios dele e fechou os olhos num espasmo de agonia que lhe golpeou a consciência e fez com que tudo se desvanecesse em torno dela.
Quando o médico terminou sua visita diária a Peter, desceu para ver Celeste, que o esperava. Disse, gravemente:
— Ele está muito fraco. Naturalmente sabe, Sra. Bouchard, que ele pode ir-se a qualquer momento. Está descansando agora. Pediu-me particularmente que lhe dissesse que fosse passar o dia fora. — Parou, parecia querer dizer algo, hesitou, e nada disse.
— Ele disse por quê? — perguntou Celeste.
— Há algumas pessoas — replicou o doutor — que desejam estar sozinhas quando... se dão conta. Querem pensar a respeito. Sabe, acho que ele não se deu conta de tudo completamente antes... Mas agora, sim. Quer pensar. Não está sofrendo por isso. Parece muito melhor, mentalmente, do que tem estado há já algum tempo. Fisicamente, claro, está muito mais fraco. — Estudou-a atentamente. Lembrou-se do que dissera Peter por fim: "Sinto que está chegando. Quero poupá-la. Desejo ficar só. Ela não deve ficar aqui." Naturalmente, isso era um absurdo. Homens doentes frequentemente sentem assim, dizia o doutor para si mesmo. — Voltarei daqui a cerca de duas ou três horas. A enfermeira está com ele agora. Acho que agradaria a ele se a senhora saísse por algum tempo.
Continuou, quando viu que ela não falava:
— O Sr. Bouchard tem razão, naturalmente. A senhora parece muito cansada e doente.
Com mais compaixão do que usualmente sentia por aqueles a quem servia, viu o quão transtornada ela estava. As pálpebras estavam vermelhas e inchadas, os lábios brancos e ressecados. Ela ainda era jovem, mas parecia velha, especialmente agora, quando a mecha de cabelos brancos caía em desordem pela testa.
— Iria fazer-lhe bem — instou. — Não faz bem nenhum, adoecer e tratar de um inválido. Este é o primeiro dia bonito em muito tempo. Por que não sai por algumas horas, Sra. Bouchard?
Celeste acenou que não, porém ao afastar-se ele cogitou se o teria ouvido. Algo lhe chegou à consciência, a consciência de um médico. Havia algo a respeito dela a que não dera atenção, em sua preocupação por Peter. Balançou a cabeça, impaciente, admirado.
Então, por fim, se deu conta do que era, e ficou profundamente espantado. Sim, ela estava com os seios muito cheios, a silhueta mais pesada. Estranho que não houvesse notado tudo isso antes! Quão trágico, então, para a pobre jovem senhora! Imaginou quando... Lembrou, com a maior perplexidade, que estivera atendendo ao Sr. Bouchard havia mais de seis meses. Durante esse tempo seu paciente estivera muito doente, completamente acamado.
O doutor se deteve de chofre, sacudiu a cabeça, aborrecido. Não se deve pensar uma coisa assim. Um médico, especialmente, não deve pensar coisas assim, e mais especialmente não de patrões ricos e poderosos!
"Bem podia ter acontecido! — exclamou para si mesmo. — Que outra explicação existe? Afinal de contas, ele não estava tão terrivelmente doente, no princípio. Estranhas coisas acontecem! Ora, houve o caso do senhor Jonathan, que esteve acamado por dois anos com um coração fraco, e sem poder levantar a cabeça do travesseiro. Mesmo assim sua esposa produziu um vigoroso bebê dois dias depois da morte do marido! Assim, não era inconcebível...
Capítulo 42
Às duas horas, Celeste, usando um conjuntinho de lã preta e peles, e um pequeno chapéu preto com uma alegre pena vermelha, entrou para comunicar a Peter que estava seguindo seu conselho e saindo para uma volta de carro. Fizera uma maquilagem cuidadosa e tinha muito boa aparência. Peter olhou-a, suspirou intimamente, e lhe devolveu o beijo quando ela se inclinou sobre ele. A enfermeira sorriu bondosamente.
— Não se apresse em voltar — disse ele, apertando-lhe a mão enluvada. — Você mesma vai dirigir?
— Vou. Gostaria de estar só, no campo, meu querido. Tem certeza de que não vai precisar de mim?
— Absolutamente não! — ele respondeu, com imensa alegria. — A Srta. Broder está aqui. Vai ler um pouco para mim. Depois, talvez mais tarde, vou escrever alguma coisa. Amanhã é dia de irradiação, você sabe.
Ela relanceou o olhar para ele e pensou:
"Certamente ele está melhor. Parece mais descansado. Está até levemente corado."
Tornou a beijá-lo e saiu. Ele ficou a ouvir atentamente até o carro dar a partida. Então se ergueu ligeiramente e observou o pequeno carro vermelho a descer rapidamente a longa entrada para carros. Ao fim do declive, deu a volta, rodando para o vale, e se perdeu entre as árvores meio amareladas e as capoeiras. Depois tornou a recostar-se nos travesseiros, e suspirou repetidas vezes. Uma sombra acinzentada lhe cobriu o rosto, e os olhos azuis-claros mergulharam fundo nas órbitas.
A enfermeira lhe trouxe a correspondência da manhã, sentando-se ao lado dele e abrindo as cartas, que lhe ia passando. Ele as lia indiferentemente, deixando as folhas cair da mão, como se fossem demasiado pesadas para segurar.
— Ora, aqui está uma carta do estrangeiro! — ela exclamou. Espiou o selo: — Vem da França!
Ele ergueu a cabeça ansiosamente e lhe tomou o envelope da mão, examinando-o:
— É de Israel — disse. — Há dois meses não tenho notícias dele. É tão teimoso! Suponho que aqui esteja a resposta à minha carta pedindo-lhe que obtenha um visto e venha para cá.
Rasgou o envelope com dedos trêmulos, recusando a ajuda da enfermeira. Caiu uma fina folha de papel, coberta com delicada escrita em tinta azul. Peter começou a ler. Dizia:
"Meu querido, querido amigo: quando receber esta já não estarei na França. Estarei na Alemanha. Ouvi dizer que o Governo alemão tomou em custódia dois caros amigos meus, como reféns contra meu retorno — para julgamento, dizem, por nefandos crimes contra o Reich. Meus queridos amigos são pessoas boas e inocentes. Um deles era professor de ciências físicas na Universidade de Berlim. É um querido e bondoso velho, que jamais fez mal a ninguém, que viveu num gigantesco e místico mundo próprio, no qual se movia com Deus. Desgraçadamente seu Deus não foi capaz de protegê-lo, pois ele é judeu.
O outro amigo é o escritor Emil Meyer, que escreveu aqueles deliciosos e fantásticos semi-contos de fadas dos antigos deuses teutônicos. Parece que não tinha direito de tecer suas histórias daqueles deuses porque ele, também, é judeu. Ambos os meus amigos estão em Dachau. Prometeram-me que os soltarão, quando eu voltar. Não sei se essas promessas serão mantidas, pois não há mais homens na Alemanha, mas apenas feras loucas. Entretanto, isso não importa. Sem dúvida, serei confinado em Dachau também, mas lá poderei ver os meus queridos amigos e confortá-los — pelo tempo que nos restar para viver.
"Eu não devia ter saído da Alemanha. Não devia ter deixado meus amigos que sofriam. A humanidade tem obrigação de sofrer com seus irmãos, não fugir, não desertá-los em suas aflições. A agonia de um é a agonia de todos.
"Não se entristeça por mim, meu amigo querido. Fiquei satisfeito. Sou um velho, e não posso viver vendo as coisas que estão sendo feitas agora. Fique feliz com a minha morte. Deixe-me citar as palavras de Fausto:
"Eh bienl puiesque la mort me fuit,
Pourquoi n’trais-je pas vers elle?
Salutf O mon dernier matinl
J’arrive sans terreur au terme du voyage;
Et je suis, avec ce breuvage,
Le seul mmtre de mon destin!"
"Pois bem! já que a morte me foge,
por que não ir ao seu encontro?
Salve! minha última manhã!
Chego sem terror ao fim desta viagem;
E sou, com esta beberagem,
O único senhor de meu destino!"
(N. da T.)
A enfermeira, que estivera observando o seu paciente com aquela bondade afetada e adorável reservada quase exclusivamente para os ricos, ficou alarmadíssima com o acinzentado funéreo que de súbito apareceu no rosto de Peter. Suas feições se tornaram atormentadas, e os lábios azulados. O susto da enfermeira foi grandemente aumentado quando Peter a olhou com uma expressão vazia e entorpecida, o papel escorregando-lhe da mão para a cama. E, quando se inclinou sobre ele, o rapaz falou, bem quietamente:
— Srta. Broder, gostaria de ficar só por algum tempo, por favor.
— Sente-se mal, Sr. Bouchard? — perguntou, ansiosa, sua mão quente estendendo-se para tocar-lhe a testa. Porém ele afastou a cabeça e repetiu, muito gentilmente:
— Por favor, gostaria de ficar só.
Então ela o deixou, demorando-se, com grandes olhares de ansiedade. Fechou a porta ao passar, mas ficou de pé junto dela. Finalmente, foi telefonar para o médico.
Peter observou a enfermeira sair. Depois que a porta se fechou, pegou a carta do Barão Opperheim e tornou a lê-la, cada palavra, lenta e cuidadosamente. Por fim sua mão caiu; a carta flutuou até o chão.
Peter voltou a cabeça e olhou o brilhante sol de maio a jorrar pelas janelas, tocando o tapete, as colunas da cama, o lado da cômoda, as alegres lombadas dos livros em uma pequena estante perto da lareira. Olhou o intenso e quente azul do céu, e o desenho das folhas verdes que tremulavam contra as janelas. Tudo estava silencioso, a não ser pelo leve sussurro das árvores, o sonolento zumbido da máquina de cortar grama nos amplos gramados perto da casa.
Não sentia dor no coração. Sentia apenas um completo desalento, total e pesada desolação que era como o peso esmagador de grandes pedras em cima dele. Sob esse peso ele não podia respirar nem mover-se. Tristeza era palavra muito insignificante para o que estava suportando. Era como se a última frágil esperança, a derradeira sensação de paz se tivesse ido para sempre, deixando-o por fim face a face com a mágoa profunda e a agonia muda da eternidade... "Salve! minha última manhã! Chego sem terror ao fim desta viagem!" — dissera Fausto, e Israel o citara. "E sou, com esta beberagem, o único senhor de meu destino!"
Mas Peter não podia sentir a nobreza e a grandiosidade das palavras. Sentia apenas o mortal desperdício, a angústia pavorosa e inútil, a imortal desesperança!
De repente não pôde mais suportar isso. Ergueu-se nos travesseiros e gritou furiosamente, e em agonia moribunda, para a luz do sol, para o céu infinitamente azul:
— Israel! Israel!
Seu corpo se contorceu de ódio contra o céu e o sol, contra o Deus que não erguera a mão para evitar a tragédia de todas as eras. Vasto caos tombava diante de seus olhos ofuscados. Vastas montanhas se erguiam em existência tumultuosa, desmoronavam numa névoa vermelha; milhares de fragmentos brilhantes explodiam ante sua visão. Perdeu toda sensação de integração; era uma centelha de ardente maldição a rodopiar num espaço pesado e ilimitado, uma centelha que pranteava e maldizia, e implorava numa furiosa ventania de imprecações e agonizante desespero...
De alguma forma, nessa imensa confusão ele sentiu na boca um gosto de sal quente, que aumentou para uma inundação sufocante. Sentiu-se cair no vácuo, numa escuridão enorme, cheia de dor...
Abriu os olhos lentamente, como se tivesse pesadas pedras sobre as pálpebras. A luz do sol ainda enchia o quarto. Não havia sensação em seu corpo. Estava apenas fracamente consciente.
Então se deu conta de que Annette estava sentada ao seu lado, a segurar-lhe a mão. Seus cabelos brilhantes formavam uma auréola luminosa e suave em torno do seu rosto. Os grandes olhos azuis se fixavam nele, seus lábios tremiam. Ele a via através de um nevoeiro. Atrás dela havia formas confusas. Não sentia curiosidade a respeito delas, embora vagamente compreendesse que eram dois de seus irmãos: o cinzento frígido Francis, de olhos azuis-gelo, o pequeno e moreno Jean. Emile, o "inchado rato preto", e Armand, e Christopher, irmãos de Celeste, também lá estavam, e Agnes, esposa de Emile. Atrás da porta, esperando e preocupada, Estelle, esposa de Francis, e Alexa, a pobre gorda estúpida, esposa de Jean, e outros parentes e vários amigos.
O médico se achava lá, também, e a enfermeira. Peter a ninguém via claramente: só Annette. Como a olhasse, ela lhe sorriu docemente, apertou-lhe a mão, e curvou-se para ele:
— Meu querido — disse, suavemente — é Annette.
— Sim — ele sussurrou. Olhou-a, e houve em seu olhar uma súbita intensidade.
— Estamos procurando Celeste — falou Annette, apertando-lhe mais a mão. — Logo será encontrada.
Porém ele ainda a mirava com aquela brilhante intensidade que parecia sob o cintilar de seus olhos.
Não sentia dores agora, nem tristeza, ou sequer desespero. Estava apenas supremamente consciente.
Relanceou os olhos para Annette e viu, com conhecimento súbito e profundo, que ali estava outra igual a ele, vulnerável, gentil, compadecida e desprezada. O derradeiro forte fluxo de seu espírito partiu para ela em reconhecimento e fraternidade. E ela o contemplou também, os enormes olhos azuis se alargando e aprofundando, com a compreensão de seu reconhecimento. Chegou ainda mais perto dele. Curvou-se sobre ele. Comunicaram-se em silêncio, em tristeza, e ternura.
— Sim — murmurou Annette. — Sim, meu querido!
Tocou-lhe com os lábios as frias faces descarnadas. Lágrimas lhe inundaram o rosto. Quando conseguiu enxergá-lo novamente, viu que ele lhe sorria.
... Suas pálpebras estavam tão pesadas... "Vou dormir um pouco" — ele pensou. Surpreendia-o, vagamente, que não houvesse sensação em sua carne...
A escuridão por trás de suas pálpebras era suave e espessa, mas cheia de vida expectante, como a hora antes do amanhecer. Rendeu-se à escuridão. Um estranho conforto se insinuava lentamente através dele, a mais doce das consolações, como se um amigo tivesse sorrido e falado. Ouviu uma voz, fraca como se viesse de longe, mas perfeitamente clara. Chamava por seu nome. Ele tentou responder, e ouviu sua própria voz ecoando de volta para si mesmo na noite, como se viesse de mil lugares ressoantes. Subitamente ficou apavorado, cheio de horror. Então o chamado se repetiu, mais perto, mais forte, tranquilizante. Havia agora uma vaga luminosidade, o som de passos que se aproximavam. Alguém, na penumbra, que era agora um nevoeiro prateado, pegou-lhe a mão, segurou-a firme e calorosamente — e ele sentiu a presença de alguém amado!
Ele sabia, agora! Sentia-se inundado de luz, alegria e paz! Agarrou-se à mão que segurava a sua. E lá se foi pelo espaço, espiando através da névoa as feições do amigo.
— Israel! — disse.
Ao longe, da escuridão que havia deixado, ouviu o som de choro. Hesitou, recuou da força poderosa da mão do amigo. O choro lhe dilacerava o coração.
— Venha — disse o amigo, com urgência... — Venha! A manhã chegou!
Capítulo 43
Cornell Hawkins olhou longa e pensativamente para seu visitante. Então, este era o mais formidável e o mais terrível dos Bourchads, este homem forte e atarracado, com um topete de cabelos grisalhos a partir da testa ampla e brutal, e os descorados olhos implacáveis que eram tão opacos como pedra polida... Há muito Hawkins desejava conhecer esse homem em pessoa; tivera muita curiosidade a seu respeito. Esse rosto largo e de feições pesadas raramente aparecia nos jornais, como raramente se mencionava sua vida particular. Havia-se movido invisível e obscuramente, como fazem os deuses, percebendo-se apenas seus prodígios, apenas a mais vaga das sombras gigantescas atiradas no vasto horizonte dos acontecimentos.
Por sua vez, Henri Bouchard contemplava o Sr. Hawkins Com igual curiosidade, oculta e impassível. Porém pensava:
"Calculo o quanto aquele pobre coitado lhe terá dito, a meu respeito, a respeito da família?"
Ao seu primeiro olhar ao Sr. Hawkins, soube que ali estava um homem que seria inútil tentar interrogar, examinar, embora habilmente isso fosse feito. Henri conhecia os nativos da Nova Inglaterra, sua reserva clássica, sua fria aristocracia, constrangimento e gelada sutileza. Qualquer pergunta, não importando o quão delicada, encontraria uma glacial atitude evasiva ou um silêncio de censura. Por isso Henri admirava o Sr. Hawkins, e seu rosto se animou com amável interesse. Acima de tudo, admirava aquela aristocracia de espírito que o outro homem personificava, uma aristocracia nunca venal, nunca insignificante ou desprezível, nunca maldosa ou mesquinha.
— Naturalmente, eu sabia que Peter estava muito doente — falou Hawkins, em voz baixa. — Disse-me, certa vez, que não viveria muito. Mas nunca se sabe... Já vi muitas pessoas viverem até uma vigorosa idade avançada, sempre "morrendo", e fazendo testamentos e últimas vontades. E convocando os parentes para o seu leito de morte. Eu... esperei que fosse este o caso com Peter.
Sorriu de leve, mas sua expressão era triste.
— Se soubéssemos que o senhor e ele eram tão amigos o teríamos convidado para o enterro — disse Henri. — Porém pensamos que o relacionamento entre vocês fosse puramente o que existe entre autor e editor. E os editores nem sempre são amigos dos autores que editam, não é mesmo?
— Não — replicou Hawkins.
Seu sorriso era um tanto severo, ao pensar em alguns dos seus autores. Pensou também que bem gostaria de comparecer ao funeral de alguns deles — contanto, claro, que primeiro tivessem feito entrega de um ou dois últimos lucrativos manuscritos para serem publicados postumamente. Via alguns deles agora, com seu olho interno. Miseráveis, presunçosos, e canalhas exigentes! Quem inventou, algum dia, a lenda de que os autores se movimentavam sonhadoramente muito além dos domínios repulsivos das finanças? Alguém, evidentemente irritado por encontros recentes com autores, observara que o autor médio podia exceder em esperteza e superar no regateio o maior barbaça de um bazar levantino. Hawkins apenas conhecera um ou dois grandes autores em sua vida, e tinham sido homens bondosos e modestos, sem afetação, pose ou ganância. Mas o autor médio, que apenas a si mesmo considerava grande, era uma espécie perniciosa de voz peculiarmente penetrante e exigente, com uma enorme vaidade, e deliberadamente fingindo ser temperamental. Ou por vezes era um animal gordo e relaxado, de expressão arrogante, grande predileção por bares e mulheres desordeiras. Esses eram bastante maus, pensou Hawkins. Eram superados em aborrecimentos apenas por autoras. Disse:
— Peter e eu éramos muito bons amigos. — E novamente sua expressão entristeceu. — Onde está enterrado?
— No cemitério da família, em Windsor. Perto da mãe dele. O pai, o senhor deve saber, morreu no Lusitânia. Há apenas um monumento a ele. Peter era louco pelo pai.
— Eu sei. Peter me falou a respeito dele.
Hawkins olhou para além de Henri. O céu de junho estava cinzento, com espessas nuvens de chuva, porém por entre algumas de suas dobras um fraco resplendor tremulava em longas e largas faixas.
Agora havia silêncio no escritório. Hawkins tinha alguma ideia do que trouxera Henri Bouchard até ele, mas não pretendia tornar a aproximação mais fácil para esse homem inflexível.
Henri estava colocando um envelope na mesa de Hawkins:
— Encontramos esta carta, endereçada ao senhor, entre a papelada de Peter. Eu a teria trazido mais cedo, mas fui nomeado testamenteiro dos bens de Peter, e houve algumas questões a que atender.
— Obrigado, Sr. Bouchard. Mas, poderia tê-la enviado, sabe. — Hawkins tocou gentilmente o envelope.
— Sim. Mas queria falar-lhe a respeito do livro de Peter — disse Henri, após ligeira pausa. — Pelo que sei, está para sair na próxima semana.
Hawkins acenou que sim. Observava Henri acuradamente.
— Vi as provas — continuou Henri. Sorriu indulgente. — Ele tem ali uma porção de excelentes informações, de fontes seguras. Porém escreve melodramaticamente.
Os olhos de Hawkins se tornaram reservados e retraídos.
— Sabe, existe uma ideia errônea — falou, secamente — de que uma coisa só é verdadeira quando seca e dura como uma crosta bolorenta. Quando toda vida se evaporou dela. E, perversamente, se uma coisa é colorida, forte e veemente, a tendência é julgá-la ficção. Por quê? Apenas as coisas mortas são verdadeiras, e mentiras as vivas e brilhantes?
— Então o senhor aprova seu estilo flamejante? — o olhar de Henri era um tanto irônico.
O Sr. Hawkins estava aborrecido:
— Nunca achei necessário vestir a verdade em roupas lutuosas. Poderia até dizer que as coisas mortas não são verdadeiras. Se o fossem, estariam ainda vivas. E a verdade, como a mulher bonita, merece cor e paixão.
Agora também o sorriso de Henri era irônico. Porém Hawkins percebeu que não passava de pose. Disse, abruptamente:
— Temos as melhores intenções do mundo de dar a este livro, The Fateful Lightning, todas as possibilidades de êxito. Isto é o que deseja saber, não é, Sr. Bouchard?
Henri ficou surpreso ante tanta agudeza. Como todos os homens de sua espécie, ele subestimava a inteligência e a percepção de outros homens. Disse:
— Sim. Isto é o que eu desejava saber. Quero que esse livro seja bem-sucedido, Sr. Hawkins. Quero que tenha toda a publicidade que é possível obter. Quero que seja ampla e persistentemente anunciado. Quero que todos os jornais tragam anúncios grandes e chamativos, todos os dias, durante meses. Talvez durante anos.
Hawkins estava silencioso. Aguardava. Deliberadamente, então, Henri puxou seu talão de cheques. Hawkins ainda esperava, observava enquanto Henri pegou a caneta e lentamente a destampou. Hawkins começou a sorrir. Perguntou calmo:
— Por quê?
Henri não fingiu não o entender:
— Não conheço bem a respeito de publicidade — respondeu sorrindo. — Não estamos nesse negócio. Mas sei que custa muito dinheiro para lançar um livro. A propósito: há grande pagamento antecipado sobre as vendas?
— Não conversei com o Sr. Dalton, nosso gerente de vendas, ultimamente — disse Hawkins, ainda a observá-lo. Sentiu-se muito maldoso: — Entretanto, creio que anda por volta dos dez mil... embora possa ser mais ou menos.
— Isso não é suficiente — interrompeu Henri, testa franzida.
Hawkins não falou. Henri pôs a pena sobre um cheque e olhou firmemente para o outro homem, olhos atentos:
— Quanto, Sr. Hawkins?
— Para quê?
— Para dar a este livro um lançamento apropriado e larga publicidade — suas claras e espessas sobrancelhas se juntaram outra vez.
Hawkins recostou-se na poltrona, que estalou. Acendeu um cigarro e deu uma tragada. Através da fumaça, seus gelados olhos azuis cintilaram, mas Henri não tinha certeza se de diversão ou raiva.
— Sr. Bouchard — começou o editor, após longo silêncio — disse que não conhece muito a respeito do negócio de publicidade. Concordo com o senhor. Suponho que nunca lhe ocorreu que, algumas vezes, os editores publicam livros só porque esses livros têm valor intrínseco, sem pensar nas vendas, já?
— Não — disse Henri, sorrindo — não me ocorreu. Isso acontece com frequência?
— Muita frequência. A coisa o surpreenderia. Digamos que o fazemos, talvez, pelo bem de nossas almas. Mesmo que percamos dinheiro nisso... o que frequentemente acontece. Por vezes, sabe, nos sentimos mal por ter de publicar escória, mesmo quando essa escória chega a trezentos mil exemplares, e o cinema a compra. Não pensou que alguns de nós possuem integridade, pensou?
— Não — repetiu Henri, francamente, e com um amplo sorriso. — Quem tem?
A raiva revolveu o peito de Hawkins. Levantou-se, abruptamente:
— Não precisamos do seu dinheiro, Sr. Bouchard. Faremos tudo que pudermos pelo livro de Peter. Temos uma grande verba para isso.
Henri afastou a caneta e o talão de cheques. Olhou sombriamente para Hawkins:
— Receio que não haja entendido. É muito importante para mim que esse livro seja amplamente anunciado, e largamente comprado. Não creio necessário dizer-lhe por quê. Isso diz respeito só a mim. Eu não estava tentando suborná-lo. Estava só tentando garantir grande número de leitores para o livro.
Deteve-se. Mas Hawkins não falou.
— Suponho que não fará objeções se eu cuidar para que o livro seja comentado por certos preeminentes locutores de rádio — disse, sardonicamente.
— Nenhuma — replicou Hawkins, friamente.
— E se críticos o puserem em destaque?
— Acha que pode comprar os críticos, Sr. Bouchard?
— Posso tentar — Henri sorria outra vez, desagradavelmente. — Ora, não me diga que eles também têm "almas". Talvez alguns deles tenham. E talvez ainda mais não tenham. Ultimamente andei lendo críticas de livros. Alguns dos críticos ficaram extáticos diante da maldita escória amor-sexo escrita por mulheres sórdidas, ou por homens que deveriam ser mulheres. Cheguei a ler alguns dos livros tão calorosamente recomendados. A literatura americana vai mal, não, Sr. Hawkins?
— A literatura americana, Sr. Bouchard, é principalmente lida por mulheres — disse o editor, agora também sorrindo.
— Acha seja esta a explicação para a ênfase sobre mulheres?
— Mulheres gostam de ler a respeito de mulheres, confesso — disse Hawkins. — Também gostam de acreditar que os homens estão interessados em mulheres. Por vezes se apressam para voltar para as mulheres. Quando os homens começarem a ler bastante, talvez venhamos a ter melhor literatura na América, algo que se preocupe com as coisas da vida. Um Thomas Mann, um Feucht-wanger, um Wassermann, não serão populares na América até que os homens leiam. Talvez possa sugerir como fazer para que os homens leiam.
Quando Henri não respondeu, Hawkins continuou:
— Quando os homens americanos deixarem de pensar que fazer dinheiro é a única coisa para a qual nasceram, então as artes na América terão nova força sobre a vida, outra vitalidade, e real imortalidade. Então teremos uma literatura vital e válida, e verdadeira grandeza em livros. Mas enquanto os homens não lerem na América, nossa literatura se limitará a ser o reflexo das bobagens que aparecem nas revistas femininas, com ênfase sobre "o amor das mulheres e problemas do casamento", e as cabriolas e escaramuças de adolescentes... livros que tratam de encontros sexuais romantizados. E pior. Temos algumas grandes escritoras, mas não são muito populares. Escritores populares são como estes — e ele ergueu um volume da escrivaninha e o passou a Henri. — Este já vendeu trezentos e cinquenta mil exemplares. Hollywood pagou, ontem, duzentos mil dólares pelos direitos de filmagem. Será também uma peça de teatro.
Henri examinou o livro com desagrado. Intitulava-se: The Angry Four. De Ralph Coniston.
— É a respeito de problemas de amor e de sexo de quatro mulheres — explicou Hawkins, com um sorriso desagradável. — Nós o publicamos. Os poucos homens da história são frívolos bonecos de papelão, em duas dimensões. Como bonecos de papel para recortar. Criaturas absolutamente sem importância, sem vida própria exceto quando vão a violentos encontros amorosos com as quatro atraentes mulheres. As mulheres gostam disso.
E acrescentou:
— Os homens americanos não gostam disso. Não leem isso. Pelo menos, temos de creditar-lhes algum bom gosto. Mas posso dizer-lhe isto, que é muito encorajador: os homens estão começando a comprar livros que não são de ficção, a respeito da Europa, e da guerra, em quantidades regularmente crescentes. Publicamos outro livro recentemente, chamado Thirty Days in Germany. Um aviador da RAF o escreveu. Foi derrubado sobre território germânico e alguns simples e obscuros camponeses germânicos o ajudaram a escapar dos nazis. É muito popular, entre os homens. Os homens americanos estão tornando novo interesse pelo mundo, além das preocupações americanas. Isto é muito encorajador.
Continuou:
— O senhor não poderá comprar todos os críticos, Sr. Bouchard. Estranho dizer: muitos deles têm integridade. O que é uma boa coisa para o futuro da literatura americana.
Disse, então, Henri:
— Bem, vejamos, então. Farei com que grande número de importantes comentaristas de rádio mencione o livro de Peter. E farei com que grande número de jornalistas o mencione editorialmente, e por outros meios. Nenhuma objeção?
— Nenhuma — confirmou o Sr. Hawkins. — Também gostamos de vender livros, sabe. E eu gostaria particularmente de ver este livro extremamente popular, e não por uma questão de dinheiro.
Henri ignorou isto, e os finos lábios de Hawkins se apertaram.
— Quero mil exemplares — disse Henri. — Para distribuição pessoal, discretamente, claro!
Levantou-se e sorriu:
— Quer almoçar comigo, Sr. Hawkins? Ficarei muito satisfeito.
Hawkins hesitou. Depois, de repente, sentiu a urgente necessidade de uma bebida. Pôs na cabeça o chapéu gasto e se levantou devagar.
— Que me diz do Ritz? — perguntou Henri.
Porém Hawkins sacudiu negativamente a cabeça. Era sentimental, sem dúvida, mas não podia sentar-se com Henri Bouchard onde se sentara com Peter. Se o fizesse, estaria vendo claramente as feições de Peter...
Capítulo 44
Annette entrou no frio e obscuro vestíbulo da casa de Placid Heights: foi recebida por Edith Bouchard, esposa de Christopher, que a cumprimentou com mais afeição e calor do que usualmente empregava para com os membros da família.
— Querida, não devia ter vindo, especialmente depois de ter estado tão doente! — falou Edith. — Como está agora?
— Foi apenas uma gripe, realmente, Edith, e me atacou os nervos — replicou Annette, tirando as luvas brancas e o pequeno chapéu. O dia de junho estava quente, com uma insinuação de tempestade no ar. Annette sorriu. Seu pequeno rosto triangular estava abatido, mas os enormes olhos azuis eram firmes e brilhantes. — Como está Celeste?
Edith hesitou. Sua expressão se tornou reservada:
— Bem, ela ainda não quer ver ninguém ou ir a nenhum lugar, exceto ao cemitério. Tentamos dizer-lhe que isto é mórbido, porém ela não se importa. Há dias não sai de casa: só vai até o jardim de manhã cedo e antes do anoitecer. Muitos amigos têm vindo visitá-la, porém ela se esconde deles. Naturalmente, ela acabará por superar isto, mas agora não adianta pressioná-la. Por isso digo que não devia ter vindo, querida. Duvido que mesmo a você ela queira receber.
Encaminhou-se para o salão tranquilo, cujas janelas francesas se abriam para os verdes gramados. Rosas enchiam todos os vasos. Salpicos e faixas de luz do sol faziam manchas brilhantes e pequenas poças nos tapetes e nos móveis, e luziam nos tampos das mesas polidas. As duas mulheres se sentaram, encarando-se, e se olharam em grave silêncio. Então Edith falou:
— Christopher e eu estamos com ela, até sentirmos que é seguro para ela ficar só.
— Seguro?... — murmurou Annette, angustiada.
— Bem, eu deveria dizer: até que ela volte ao normal. Mal fala, sabe? Parece confusa e abstrata. Ela não sofre da maneira usual, a pobrezinha! Não a vi chorar uma só lágrima, nem no enterro nem depois. Só caminha por aí em silêncio, e temos de falar duas vezes antes que ela nos responda. O médico está muito preocupado com ela, e sugere que vá viajar por uns tempos. Porém ela não quer, claro! — E agora o rosto moreno de Edith estava mais taciturno que nunca.
— Pobre, pobre querida! — suspirou Annette. Seus lindos olhos se encheram de lágrimas, e ela engoliu em seco. — Sempre a amei tanto, e acho que também ela me ama. Está certa de que não me quer ver?
Os lábios de Edith se apertaram pensativamente: seus olhos castanhos estudaram Annette. "Ora, dane-se! a coisa tem de vir à tona, mesmo, e pode muito bem ser Annette quem espalhe a notícia! Sim, ninguém melhor do que a pobre Annette. Não ousarão rir na cara da pobre criaturinha, e ela tem tão delicada coragem..."
— Celeste poderá receber você — disse Edith. — Vou pedir-lhe. Naturalmente, as coisas já estava bastante más sem esse outro...
Annette ergueu a cabeça, alarmada:
— Que quer dizer, Edith?
Edith a fitou, erguendo as sobrancelhas:
— Meu Deus! Annette! Você não sabe?...
— Por favor, diga-me! — gritou Annette, erguendo-se a meio de sua cadeira em sua aflição. — Ela está doente? Oh! Eu já sabia! Algo me dizia!
— Você quer dizer — falou Edith, incrédula — que ela não lhe contou? Pensei que fossem muito amigas, minha querida! Não lhe contou que vai ter um bebê?
— Um bebê! — repetiu Annette, perturbada. Tornou a sentar-se na poltrona. Era uma poltrona enorme, e ali ela parecia uma menininha, os pezinhos balançando a alguns centímetros do chão. As mãos, tão frágeis, brancas e pequeninas, descansavam nos braços da poltrona. Sua clara e brilhante cabecinha ficava a meio caminho do topo do encosto.
Mas não era o rosto de uma criança que fitava Edith. Mas sim o de uma mulher sofredora, quieta e imóvel. E estava em sombras, esse rosto, e translúcido. Mas os olhos se alargaram, brilhavam na sombra como um luzeiro azul. A boca entreabriu-se um pouco, e foi tudo.
Edith queria afastar o olhar dessa dor esmagadora, desse choque. Mas não podia! Forçou-se a olhar Annette, com espanto:
— Isso é mesmo coisa de Celeste! — observou, irritada. — Mas, naturalmente, temos de desculpá-la: Peter estava passando muito mal e ela cuidava dele sem cessar. No entanto, ela me contou desde o início, antes que ele piorasse tanto.
Annette estava silenciosa. Parecia uma figura de cera. Seus olhos se fixavam em Edith, sem pestanejar. Linhas de sofrimento se delinearam em torno de sua boca, e apareceram sombras azuladas sob os olhos.
— Há quanto tempo? — murmurou.
Edith deu de ombros:
— Cerca de seis meses agora, creio. O bebê é para setembro. É terrível para ela, você pode imaginar... — Falou casualmente, mas devagar, mirando Annette com calma deliberação: — Lembra-se, no princípio do inverno Peter parecia muito melhor. Ele e Celeste foram a Nova York várias vezes e todos tínhamos esperanças de que ele se recuperasse de todo, apesar do veredicto do médico. Pelo menos, ele parecia muito mais feliz e mais forte, então. Isso talvez porque o bebê já tivesse começado, e ele tivesse acabado o livro, e o futuro lhes parecesse mais brilhante, pobrezinhos!
Sua voz era fria, indiferentemente compadecida. Porém para ela era um esforço tremendo continuar olhando para Annette, ali -sentada tão rígida, como uma boneca. Repetiu com ar de surpresa:
— Ela realmente não lhe contou, Annette?
Os pálidos lábios de Annette mal se abriram, e disse quase inaudivelmente:
— Não, não contou. Não nos víamos muito, naquela ocasião, e depois, em fevereiro, Peter ficou tão mal...
— É verdade... E ela nem teve tempo para pensar em si mesma, depois daquilo. Tentamos animá-la — continuou Edith, num tom vivo que até a ela mesmo parecia fingido. — Tentamos dizer-lhe que, pelo menos, teria o bebê de Peter para consolá-la. Já é alguma coisa, sabe, após todos esses anos. Por vezes — acrescentou, com uma ponta de tristeza — penso que a pobre pequena morreria, não fosse o bebê! Subconscientemente ela se dá conta disto, e toma algum cuidado consigo mesma.
— Sim... — sussurrou Annette. E agora seus olhos se afastaram lentamente de Edith e se fixaram cegamente na luz fulgurante que vinha da janela perto dela. Edith viu-lhe o perfil, contraído e transido de angústia, porém muito quieto. Quando tornou a falar, sua voz era forte e clara, em notável contraste com o rosto: — Pobre Celeste! Porém agora tem algo por que viver! Estou muito magoada porque ela não me contou...
Suas mãozinhas frágeis se mexeram súbita e violentamente nos braços da poltrona, como numa contração. Ergueram-se, palmas para cima, rígidas e esticadas. Depois caíram, lenta e pesadamente, os dedos a esticar-se para a frente nos braços adamascados da poltrona, e agarrando-os como numa convulsão de agonia. Mas seu perfil continuou calmo, como uma máscara. Os leves anéis de seu cabelo se ergueram e ondularam gentilmente à brisa quente que vinha pela janela e, de alguma forma, essa visão foi como um sopro quente no gelado coração de Edith. "Que Deus te ajude, minha querida!" — pensou ela, com rara compaixão e tristeza.
Annette tornou a voltar o rosto para Edith. Sorriu, gentilmente:
— Estou tão contente, Edith! — disse com doçura. — Tão contente por Celeste! Quando o bebê nascer, ela se dará conta de quão maravilhoso isto é. Mal posso esperar.
Edith tentou falar, mas sua garganta estava seca. Apertou as mãos. Baixou os olhos. "Havia um limite para o que mesmo ela podia aguentar" — pensou.
— Gostaria de ver Celeste — disse Annette, e sua voz clara estava perfeitamente controlada. — Acha que ela me receberia?
Edith levantou-se, aliviada ante a esperança de fugir àquilo:
— Vou falar com ela. Está no quarto. Tentarei trazê-la para baixo. — Hesitou, depois acrescentou: — Seja branda com ela, se consentir em vê-la, Annette. Afinal de contas, não é coisa muito feliz para ela que se lembrem que Peter nunca verá seu filho.
— Terei cuidado, querida — prometeu Annette, suavemente. Como estavam azuis e firmes os seus olhos, e quão brilhantes!
Edith virou-se para a porta e parou, abruptamente: Celeste estava de pé no umbral, quieta e silenciosa como uma pedra. Ao vê-la, Annette ergueu-se involuntariamente. E seu gentil coração se contraiu num espasmo de dor. Era Celeste realmente quem estava ali, aquela mulher esquelética e esgotada, de expressão gelada e cabelos relaxados? Annette deu um grito abafado. Segurou as mãos dela, e então as lágrimas transbordaram de seus olhos.
— Celeste! — gritou francamente. — Oh! Celeste, minha querida!
"Espero em Deus que ela tenha ouvido o que eu disse!" — pensou Edith.
Celeste não se moveu, nem mesmo quando Annette veio ao seu encontro e lhe pegou a mão fria. Seu vestido completamente negro mais acentuava sua palidez espectral. A mecha branca lhe caía na testa. Mesmo seus olhos de um azul-escuro estavam menos azuis, sem profundidade, vítreos.
Fitou Annette como se não a visse. Annette começou a chorar, apertando a mão de sua jovem tia. Por fim Celeste a olhou. E murmurou, em voz baixa e triste:
— Annette...
— Sim, querida. Eu tinha de vê-la, apesar de você não querer receber nenhum de nós. — Agora Annette sorria, embora as lágrimas ainda corressem. — Importa-se muito se a forcei deste jeito?
— Não — disse Celeste, ainda a fitá-la com aquele olhar distante. Aspirou profundamente: — Estou contente. Queria ver você.
"Oh! meu Deus!" — pensou Edith, alarmada. E falou, em tom firme e lento:
— Annette acaba de dizer-me que você não lhe contou a respeito do bebê, Celeste. Ficou muito magoada com isso, não ficou, Annette?
Annette olhou firmemente nos olhos de Celeste:
— Sim, querida, fiquei muito magoada. Deveria ter-me dito, sabe? — Acrescentou, clara e fortemente: — Sempre a amei tanto, Celeste, e pensei que também me amasse. Devia ter-me dito. Mas, não importa. Estou tão feliz por você, meu bem! Agora você tem algo por que viver: tem o filho de Peter!
E seu olhar, mais firme que nunca, mais constrangedor, se fixava lealmente em Celeste. Os lábios de Celeste se afastaram convulsivamente; sua mão tremeu na de Annette.
Annette falou, ainda mais alta e claramente:
— Não deve sofrer por que Peter não conhecerá o filho, querida. Deve é pensar como será maravilhoso! Agora, nada mais importa a não ser o bebê. Nada importa, Celeste. Só deve pensar no bebê.
Sua voz, forte e penetrante, finalmente alcançou a consciência de Celeste. A loucura se desvaneceu em seu rosto. Contemplou Annette em angustiado silêncio, como se suplicasse.
— Nada importa a não ser o bebê — repetiu Annette. — Não existe nada mais.
O coração de Edith, que havia disparado, começou a aquietar-se. Encaminhou-se para Celeste e pôs a mão em seu braço:
— Annette está certa, Celeste: você deve pensar só no bebê, em nada mais. Não seria bom para o bebê. Você... não importa. O pobre Peter não importa. Ninguém importa. A criança tem direito à vida, bem sabe. E você não tem direito de interferir com isso.
Automaticamente, tristemente, Celeste virou a cabeça e olhou para Edith. Olhou-a por muito tempo. Depois tomou a voltar-se para Annette, que sorria.
— Sim, entendo — falou Celeste. — Nada mais importa.
Sorriu, sombria e pesarosamente, ergueu a mão e afastou os cabelos do rosto.
— A família ficará muito surpresa — disse Annette, em tom animador e amigo. — E provavelmente tão magoada como fiquei porque não me contou. Importa-se se eu lhe disser, querida?
Celeste ficou silenciosa por algum tempo. Olhou Annette longa e sombriamente:
— Por favor, faça-o, Annette. Ficarei contente se o fizer.
Algum pensamento a feriu, e no rosto pálido houve um súbito rubor; afastou-se:
— Estou cansada — murmurou — Acho que vou deitar-me um pouco, se me dão licença.
Afastou-se, movendo-se de modo lento e hesitante, como se fosse cega. Em silêncio, Annette e Edith a viram ir-se.
— Terrível, não é? — murmurou Edith, depois que Celeste desapareceu. Levou Annette até sua poltrona, e sentou-se perto dela. Tomou fôlego: — Mas penso que lhe fez bem ver você. Daqui a alguns dias convidarei Agnes e Estelle para um chá, e você também, querida. Celeste simplesmente tem de voltar à vida normal.
— Sim — concordou Annette.
Edith tocou a sineta para mandar servir o chá. Estava profundamente aliviada. Mas ainda não podia olhar diretamente para Annette, sentada ali tão resolutamente, e sorrindo tão gentilmente.
Quando Annette se foi, Edith subiu para ver Celeste. Achou-a sentada ao pé da janela, olhando vagamente os jardins e as árvores.
— Celeste — falou, abruptamente — assim não vai, não, aqui só meditando e se aborrecendo, como uma prisioneira. Convidei Agnes e Estelle, e Annette, para um chá, na terça-feira. Você precisa de companhia. Precisa de alguma diversão. Vou levá-la a Nova York na próxima sexta-feira, para ver algumas peças e fazer compras.
Celeste virou para ela a face convulsa e gritou, violentamente:
— Não! Não quero! Por que não me deixam em paz, todos vocês?
Mas Edith colocou uma cadeira junto da cunhada:
— Não seja tola, Celeste. Ouviu o que disse Annette: tem de pensar na criança. Peter já se foi. Você sabia que ele iria cedo. Foi uma bênção para ele: sofreria muito. Há muito tempo você sabia que ele não poderia viver. Pensa que o faria feliz saber que você está deliberadamente tentando matar-se?
Celeste cobriu o rosto com as mãos.
Edith continuou, implacável:
— Não sei o que tem em mente, se é que tem alguma coisa... Mas agora nada significa. A vida continua. Não acaba para você no túmulo de Peter. Celeste, pensei que tivesse alguma coragem, alguma resistência, e orgulho. Mas não tem. Está procedendo como uma histérica vitoriana. Está cometendo um refinado tipo de suttee ((sati): costume hindu de queimar a viúva com os restos mortais do marido. — (N. da T.))
Aguardou. Celeste não falou. Seus dedos finos e transparentes lhe ocultaram o rosto.
Edith continuou, em tom mais baixo:
— Imagino o que a família irá pensar, com você a esconder-se deste jeito, como uma criminosa ou coisa assim.
Celeste deixou cair as mãos abruptamente, e fitou Edith com olhar perturbado:
— Que quer dizer? — perguntou roucamente.
Edith deu de ombros. Olhou a distância, pela janela:
— Fico imaginando se não pensarão que você está biruta. E cogitarão...
Só depois de algum tempo tornou a voltar-se para Celeste: estava sentada quieta, mãos no colo. Mas perfeitamente composta:
— Tem razão, Edith. Convide quem quiser. Desculpe-me. Isto tem sido difícil para você, não é mesmo?
Dando graças intimamente, Edith falou, vivaz:
— Danado de difícil! Não gosto de viver reclusa. Tive a sensação de ser uma enfermeira particular cuidando de uma paciente mental. Também não tem sido nenhuma delícia para Christopher. Deveria estar agora em Detroit, ao invés de procurar aliviar-me de meus deveres de enfermeira.
Mal podia acreditar quando ouviu Celeste rir. Era apenas uma pequena risada, mas não sem jovialidade. E agora os olhos azuis-escuros brilhavam com as primeiras lágrimas desde a morte de Peter. Muito comovida, Edith se levantou e pôs os braços em volta dos ombros da jovem mulher.
— Ora vamos! Por que não chora de verdade? Iria fazer-lhe um grande bem, tenho certeza. E sei que ainda não se recuperou por não estar aqui quando Peter morreu. Ele é que a mandou afastar-se: sabia que a hora estava chegando, e queria poupá-la. Isso, chore! Chore bastante, querida! Mais forte!
Mais tarde, quando Celeste dormia pacificamente — como não o fizera desde que Peter morrera — Edith foi ao telefone e chamou Christopher que ela sabia em conferência com Henri.
— Olhe, filhinho, Annette esteve aqui. Já sabe. E acho ser uma boa ideia contar a Henri, antes que vá para casa. Não, está tudo bem. Celeste dorme como um bebê. Olhe, esse tom ultra preocupado me fere! Lembre-se: sou sua esposa...
Capítulo 45
Christopher voltou a Henri. Haviam estado discutindo, com gravidade e compreensão, o colapso da França. Havia livros abertos na mesa de Henri, que ambos consultavam. Quando Christopher se sentou, Henri disse:
— Tudo se está passando de acordo com o previsto, embora um pouco mais cedo do que Hitler esperava. Tudo, agora, está indo mais depressa. Quais as últimas?
— Acabei de ver o relatório — disse Christopher. — Os britânicos se estão retirando para o litoral. Tudo está em desordem. Francamente, não sei que diabos vamos fazer. Você vai a Washington amanhã?
— Sim. Falei a Hugo esta manhã. Está tremendo como uma maldita folha. Por vezes penso que ele arderá com a pressão que estamos pondo nele. Não pode assentar a cabeça em nada desde que Alice fugiu com Charlie, e casou com ele. Não que isto seja mau para nós. — E sorriu, tristemente: — Já repisei bastante sobre a semelhança de Hilary com nosso queridinho Antoine. E, como sabe, foi Hilary quem maquinou a fuga da irmã com o namorado.
— Continuamos a manter nossas mulheres misturadas em nossas preocupações — disse Christopher, impaciente. Começou a tamborilar na secretária com os dedos descarnados.
Henri deu uma risada curta e áspera:
— Sim, sei disso. Você mesmo era mestre nisso. Só que não adiantou...
Christopher sorriu friamente:
— Não foi por minha culpa. — Parecia abstrato. Havia agora um tosco rubor em suas faces. — Tem razão. É mesmo uma coisa mesquinha, misturar nossas mulheres conosco. E também humilhante. Por que precisamos de mulheres? É como um filme barato. Gostaria que pudéssemos mantê-las fora das coisas.
Henri o observava. Disse, abruptamente:
— Que há, Chris?
Christopher deu de ombros, voltou-se para o cunhado:
— Era Edith me chamando. A respeito de Celeste.
Henri nada disse. Recostou-se na cadeira. Seus olhos descorados eram inescrutáveis. Finalmente, disse:
— Bem, o que há com Celeste? Ainda chorando Peter?
Christopher acendeu um cigarro, depois o fitou gravemente:
— Não é só isso. Também está doente fisicamente. Algumas mulheres são assim, quando estão grávidas.
Continuou a fitar o cigarro. Depois, casualmente, ergueu os olhos. Henri não fizera o menor gesto. Estava recostado na cadeira, com olhos fixos em Christopher. Não havia expressão no rosto largo e pálido, exceto um curioso tremor na boca.
— Grávida? — perguntou, sem a menor inflexão na voz. — Não sabia disso. Há quanto tempo?
— Seis meses — disse Christopher, indiferente. — Não sabia? Pensei que todos soubessem. Um filho póstumo habitualmente desperta algum interesse, e simpatia.
Olharam-se num silêncio intenso. A mão de Henri levantou um objeto em sua mesa, deixou-o cair maciamente.
Depois Henri disse:
— Peter, está claro, não sabia?
— Não. Acho que a própria Celeste mal sabia. Havia coisas mais importantes. Ele estava muito doente, como deve lembrar-se. Esperava-se que morresse, quase diariamente. Ela cuidava dele todo o tempo. De outro modo poderia ter feito alguma coisa a esse respeito. Não é a coisa mais agradável para uma mulher, suponho, ter um filho póstumo. — E continuou, olhando calmamente para Henri: — Não que não estejamos todos prontos e ajudá-la, e a dar-lhe todo o consolo que pudermos.
Henri mudou de lugar o objeto que levantara. Olhava-o absorto.
— Annette visitou Celeste hoje — disse Christopher, com expressão de simpatia. — Ficou muito transtornada porque Celeste não lhe havia contado. Pode-se contar com Annette.
Henri girou sua cadeira para ficar de frente para as janelas.
— Sim — disse, em tom neutro — sempre se pode contar com Annette. — Continuou, sem a menor mudança na voz: — Eu não sabia. Há algum tempo não via Celeste. A sós.
— Sim, sei disso.
— Isso explica uma porção de coisas — comentou Henri, pensativo.
Christopher esteve a ponto de falar, depois nada disse.
Então Henri falou:
— Imagina quanto tempo passará antes que o maldito do Armand morra?
Christopher riu desagradavelmente:
— Ouvi dizer que está ficando descuidado. Empanturrando-se. Não deve demorar muito.
Mas Henri falou, distraidamente:
— A família. Quantos sabem a respeito de Celeste?
— Você agora, e Annette. Francamente, mesmo Edith e eu não sabíamos até recentemente. Mas já era tempo. Claro, pode-se compreender. Celeste estava por demais preocupada com Peter para cuidar de qualquer outra coisa.
Henri voltou-se para ele. O velho olhar implacável pesava em suas feições:
— Agora compreendo uma porção de coisas... Celeste é uma tola, você sabe. Creio que sempre concordamos nisso.
Christopher respondeu, um brilho maligno nos olhos:
— Não estou bem certo de que seja assim tão tola. Pense nisso um pouco, por um minuto.
Henri pensou, sentado como uma pedra em sua cadeira. E disse.
— Sim, percebo. — Sua expressão mudou levemente.
— E não seria muito seguro, digamos, para você vê-la a sós a qualquer tempo. — Christopher observou. — De todo jeito, não agora.
Henri levantou-se abruptamente, e pôs-se a caminhar. Christopher o observava com uma satisfação maldosa que não podia controlar. Depois Henri perguntou:
— Por quanto tempo Edith vai ficar com ela?
— Tenho de voltar a Detroit. Sabe disso. Edith ficará o tempo que seja necessário. Porém ela é minha esposa. Acabou de recordar-me isso...
— E também é minha irmã. Se eu lhe pedir que fique, ela ficará,
O rosto estreito de Christopher corou:
— Acho que preciso lembrar-lhe, também, que ela é minha esposa.
— E Celeste é sua irmã — subitamente Henri sorriu. — Ora, vamos! Estamos brigando! Importa-se se Edith ficar?
— Ficarei furioso se ela não ficar — assegurou Christopher.
Henri tornou a sentar-se. Apertou as mãos, sobre a mesa, e os dois homens se fitaram atentamente, em silêncio.
Capítulo 46
Antoine observava o pai, Armand, enquanto ele sub-repticiamente limpava o espesso molho de carne do seu prato com grandes pedaços de pão. Curvado desajeitadamente sobre o prato. Armand, cujo encaracolado cabelo grisalho luzia fracamente à luz dos candelabros, não se julgava observado. Todos os seus movimentos eram ávidos. Comeu, como sempre, com pressa voraz, quase devorando. O traço camponês, tão forte e profundo nele, assegurava-lhe com seu instinto irracional que um homem deve comer, e comer depressa, se quiser nutrir-se e encher a barriga adequadamente. Três gerações de poder e riqueza na família não extinguiram aquele instinto animal, tão cobiçoso, tão bestial, tão enormemente esfomeado por sustento contínuo contra um tempo de penúria. Armand não tinha consciência do instintivo impulso que fizera dele um glutão, um ansioso devorador de provisões. Sempre tivera — ele diria — apetite vigoroso. Nos anos da maturidade esse instinto tinha sido seu único conforto, sua única defesa contra um mundo que se tornara horrível, ameaçador e cheio de dor espiritual.
Cedo descobriu que os parentes achavam repugnante esse seu empanturramento. Tentava aprender melhores maneiras. A si mesmo prevenira, repetidas vezes, que não devia "avançar" na comida como um chinês esfomeado, ou um lobo. Mas só aprendera a ser furtivo, a comer um pouco mais devagar — enquanto intimamente tremia de pânico primordial por essa forçada contenção.
Durante os últimos meses, quando cada dia lhe trazia novo terror e novo desespero, havia freneticamente abandonado a Lista. O impacto de acontecimentos o forçara a abandonar a Lista, e ele mais uma vez voara para a mesa num medo irracional e no apaixonado desejo de consolo. Os avisos dos médicos agora nada eram para ele. Nada restara a não ser sua fome, ao mesmo tempo física e espiritual, e comia como um moribundo no deserto engole a água que sabe envenenada, mas que lhe oferece momentânea pausa de seu tormento antes que a morte tome conta dele.
Nessa necessidade, nesse desespero, lançara um ultimato à pequena Mary, a esposa de Antoine: não comeria mais espinafre, nada mais de fígado, nada de vegetais sem tempero e pães de glúten. Se não podia ter a comida "correta" em sua própria casa, iria a qualquer outro lugar, declarara, mesmo à vista das lágrimas de Mary. A própria Mary, então chegando ao fim da gravidez, sentia-se por demais enervada para lutar com o sogro, e finalmente rendeu-se. Os pratos ricos e saborosos tornaram a aparecer na mesa, e Armand lhes caía em cima com tal avidez, tal delícia e louca pressa, a fronte suada e lustrosa, que Antoine, o delicado, estava revoltado. Entretanto, com sua usual sutileza, ele compreendia.
Assim nessa noite, como sempre, Antoine observava o pai. Mary não estava: continuava no hospital, onde uma semana antes dera à luz um garotão, que seria batizado de Stuart. ("Nada mais .de malditos nomes franceses na família, pelo que me diz respeito" — declarara Antoine.) Antoine observara o pai atenta e curiosamente durante toda a elaborada refeição, de que nenhum dos itens fora calculado para contribuir para a saúde de Armand. Este engordara muito: agora estava inchado, coberto de carne que mais parecia massa de pão. Sua vermelhidão se fora permanentemente. Gordurosas e pesadas dobras de adiposidade lhe haviam distorcido e minimizado as feições, de modo que tinha a expressão de um velho varão diabético, cheio de medo crônico. Havia três papadas abaixo do queixo natural, que tinha uma aparência oleosa. À medida que declinavam sua saúde e sua vida, e à proporção que aumentavam a circunferência e o peso, ele perdia os últimos vestígios de capricho pessoal. Com frequência, ficava sem barbear-se por dois ou três dias a seguir, de modo que sempre havia uma sombra cinza-avermelhada nos queixos e nas faces. Suas roupas eram deploráveis, manchadas e amarrotadas. Sua desintegração era quase completa. Porque não podia forçar os pés inchados em sapatos, usava chinelos constantemente, e andava com eles pela casa como um enorme e inquieto fantasma, procurando com desespero algo que não podia encontrar. Nunca tendo sido de boa conversa, agora ficava por vezes dias sem falar, nem mesmo ao filho.
Enquanto Antoine o observava atentamente, seus olhos negros reluziram, em um débil sorriso lhe assomou à boca satírica. "Já não demora muito..." — pensou, com satisfação. Enquanto pensava isso, o pai subitamente deixou cair o talher no prato, respirou com dificuldade, ficou de repente arroxeado, e lutou por levantar-se. Alarmado, Antoine levantou-se e foi até Armand, que sacudiu no ar as mãos gordas, lutando por respirar. Seus olhos, mergulhados em dobras de gordura, se fixaram no filho em agonia.
Foram precisos dois criados, além de Antoine, para levar Armand para a cama. Seu médico chegou prontamente e lhe aplicou uma injeção.
— Sem dúvida sabe, Sr. Bouchard, que seu pai se está matando?
— Sim, doutor, estou cônscio disso. Porém ele prefere morrer à sua maneira, ao que parece. Acho que prefere morrer após uma esplêndida refeição do que "morrer de fome com comida de vaca", como diz. Já descobrimos ser inútil tentar fazer seja o que for com ele.
— Então, deve ir para um hospital por algum tempo — disse o médico. — Onde sua dieta seja observada estritamente e planejada. De outro modo, não viverá. Posso afirmar com segurança: ele pode morrer a qualquer momento, desse modo.
Antoine considerou o caso, e finalmente disse:
— Falarei com minha irmã; é a única a ter alguma influência com ele.
Antoine telefonou a Annette e lhe pediu que fosse imediatamente à casa do pai. Nesse ínterim, o doutor indicou três enfermeiras para cuidar do velho doente e desesperado, arquejando em sua cama, lutando por cada golfada de vida.
Annette chegou depressa, sozinha, sem fôlego e perturbada. Fora, uma tempestade caía com estrépito, violentamente, raios invadindo com relâmpagos sinistros os escuros salões. Havia gotas de suor no rosto de Annette, muito pálido, e lágrimas em seus olhos lindos e dolorosos.
Quando Antoine a levou para cima, para o quarto do pai, encontraram Armand adormecido por fim, uma montanha de carne empilhada em ondas de travesseiros. A enfermeira murmurou-lhes que ele "estava muito melhor", e não devia ser perturbado. Annette desceu com o irmão para um dos salões, onde se sentou e chorou silenciosamente.
Pensativo, Antoine acendeu um cigarro. Depois sentou-se junto da irmã e lhe pegou a mão.
— Não, querida! — disse, gentil — sabe como papai é. Não adianta. Esperamos que você consiga convencê-lo a ir para um hospital particular para tratamento e cuidados. Enquanto estiver em casa não haverá esperança para ele, você sabe.
— Mas por que desejará morrer? — implorou Annette, olhando o irmão com os olhos tristes e úmidos. —- Ele deve querer morrer, Antoine. Está cometendo suicídio.
Antoine estava silencioso. Estreitou as pálpebras e observou a fumaça que expelia para o teto.
— Talvez as coisas sejam demasiadas para ele — murmurou.
— Sim, sei — gritou Annette — sei tanto a respeito de papai que ninguém parece saber.
— Uma das coisas que são demasiadas para ele são você e Henri — falou Antoine, como se não tivesse ouvido a irmã.
Annette afastou o lencinho dos olhos, deixou as mãos caírem no regaço e as apertou rigidamente no pedacinho de linho rendado.
— Que quer dizer, Antoine? — perguntou, em voz trêmula. — Que há de errado com Henri e comigo?
Ele se virou para ela. Ela estava muito pálida. Porém seus olhos encontraram os dele com grande coragem e bastante calma.
Ele hesitou. Depois pôs sua mão sobre os dedos dela e os pressionou gentilmente:
— Querida, sei que isto é terrível para você. Mas, realmente engoliu a ficção a respeito do "bebê de Peter"?
As narinas de Annette se dilataram, e o lábio superior se ergueu, tenso. Mas seus olhos não deixaram os do irmão. Demonstravam um medo profundo, embora a coragem brilhasse neles. Ela respondeu, muito calma.
— Não sei o que quer dizer, Antoine.
Antoine não falou, embora a olhasse de modo penetrante. Depois simulou fraqueza e desgosto. Afastou-se da irmã, como se o vê-la o enchesse de insuportável compaixão. Disse, com raiva contida:
— Minha querida! Minha querida!
Annette nada disse. Ele esperou. Dela não vinha o menor som.
Então ele fingiu uma grande raiva reprimida, e virou-se para ela outra vez:
— Annette, deve saber, claro, que aquele não é filho de Peter.
Annette estava imóvel. Ele podia ver-lhe o brilho dos olhos, tão corajosos, tão firmes.
— Antoine, que coisa horrível e cruel para dizer a respeito de Celeste, irmã de seu próprio pai! E quão insultuosa e covarde! Você não ousaria dizer isto a ninguém mais.
Ele riu brevemente:
— Minha doce maninha, todos na família falam disto... aos cochichos, claro. Orgulho de família, e tudo o mais. Você deve ter ouvido — ele acrescentou, incrédulo.
— Nunca dou ouvidos a mentiras, especialmente a mentiras, vulgares e cruéis — ela respondeu, em voz firme. Seus olhos estavam cheios de indignação. — E estou horrorizada, Antoine, de que você ajude a espalhá-las.
Ele lhe sorriu, com elaborada descrença, abanando a cabeça lentamente:
— Não se incomode — falou, calmo.
Os lábios de Annette estavam frios como gelo. Disse:
— Continue, Antoine. Quero ouvir o resto da mentira:
Ele deu de ombros fatalisticamente:
— Muito bem! Eu lhe contarei. Todos sabemos que o filho é de Henri, seu querido esposo.
Annette não falou, apenas olhou para ele fixamente.
— Deve saber, minha querida, que ele andou se encontrando com ela durante meses, em pequenos rendez-vous em Nova York e em outros lugares. Não sabia, querida? — ele continuou, com avivada compaixão, que não era inteiramente simulada agora.
— Não sabia — ela afirmou. — Nem ninguém mais. Porque não é verdade. Os inimigos de Henri estão apenas tentando injuriá-lo.
Antoine a estudou com meditativa piedade. O rosto poderia estar murcho, a boca gentil azulada de dor, mas o olhar permanecia claro e firme. Então ele franziu a testa:
— Os inimigos dele? Que quer dizer, querida? Pois ele não é o Homem de Ferro, o Rosto de Pedra Bouchard? Quem poderia feri-lo? Pois não declarou abertamente que Gibraltar era uma insignificante pedrinha comparada com ele, ou palavras que quisessem dizer o mesmo? — Sua boca se contraiu num desdém divertido, mas os olhos de súbito ficaram alerta.
A mente de Annette sobrepujou seu dolorido coração, e estudou o irmão atentamente antes de responder:
— Homens como Henri sempre têm inimigos. Você sabe disso, Antoine. Assim, quando algo difamatório é dito a respeito de tal homem, sempre se imagina quem espera ganhar com isso, ou que inimigo está tentando arruiná-lo.
— Realmente pensa que sou inimigo de Henri? — perguntou Antoine, com afetuoso desdém e divertida indulgência. — Que lhe deu esta ideia?
Ela já não podia aguentar olhá-lo, aquele rosto moreno que ela amava. Lágrimas pesadas e salgadas como sangue lhe encheram os olhos e sua garganta palpitava. Porém ela disse, maciamente:
— Não quero pensar que você é inimigo de Henri, querido. Só acredito que alguém tem estado mentindo para você, por malícia ou perversidade, e que você está tentando evitar que eu sofra.
Quando voltou a olhar para ele, viu que sua cabeça escura estava curvada e ele examinava um anel em seu dedo com imensa concentração. Não pôde ver-lhe o rosto.
Então ele disse, a voz mudada, e sem a olhar:
— Sim, meu bem, estou tentando evitar que sofra. Sempre foi a minha queridinha. Não quereria mentir-lhe, ou passar-lhe boatos maliciosos. Por isso investiguei primeiro a coisa toda. Lembra-se quando voltaram na última primavera, Peter e Celeste? Foi pouco tempo depois que começou o pequeno caso dele. Ele sempre a quis, não é? Chegaram a ficar noivos. Lembro-me disso. Depois houve a separação. Ela e Peter foram para a Europa, você e Henri se casaram. Você era bem feliz então, não era?
A branca garganta de Annette se contraiu, porém, ela ergueu o queixinho, bem alto:
— Sim, eu era muito feliz.
— Porém ela e ele não tiveram escrúpulos absolutamente em destruir sua felicidade, minha querida. Nenhum escrúpulo. Não sei quando começou o "caso", mas não creio tenha sido muito depois da volta deles. Não importa quem me contou. Disseram-me. Investiguei. Queria, primeiro, ter certeza.
A cabeça de Annette ainda estava erguida, e seu sorriso corajoso, gentilmente incrédulo.
Ele suspirou, e o suspiro não era de todo hipocrisia:
— Seus encontros eram muito frequentes. Sabe, o Homem de Ferro é completamente louco se pensou poder ocultar-se permanentemente. Nunca teve o retrato nos jornais, de modo que se julgou a salvo. Celeste, também, esteve fora por muito tempo, de modo que não foi facilmente reconhecida. Mas tais coisas, como assassinatos, acabam vindo à tona.
Annette respirou fundo:
— Segundo seus informantes, Antoine, eles ainda se encontram?
Ele franziu a testa, relanceou-lhe um olhar ferino:
— Creio que pararam de encontrar-se em janeiro último. Pelo menos foi o que me disseram. Por que, não sei, só que Peter adoeceu, e suponho que ela tenha querido representar a esposa devotada... para consumo público.
Annette perguntou calmamente:
— Você teve certa dificuldade em dizer-me essas mentiras, Tony. Que espera que eu faça agora?
Ele ficou aliviado. Mais uma vez tornou-se alerta e vital, pegando-lhe a mão fortemente:
— Quero que se divorcie dele, Annette, ou, melhor ainda: requeira o divórcio neste Estado, sob pretexto de adultério. — Ele a observava com intensa avidez.
Mas Annette não estava abalada:
— Por adultério — repetiu. Seus olhos estavam estranhamente brilhantes ao pousar nele: — Citando Celeste como corresponsável?
Os olhos de Antoine se estreitaram sobre ela, fixamente. De súbito, viu o rosto de Christopher diante dele, mau, violento, implacável. Hesitou:
— Talvez não. O escândalo seria muito grande. Mas quando você lhe comunicar que vai divorciar-se, pode ameaçá-lo de trazer Celeste à baila se ele tentar discutir o processo. Isso o deterá.
— Mas você disse que Henri e Celeste não se encontram desde janeiro. Não poderia provar nada agora, Poderia?
Ele estava espantado, mesmo em sua excitação íntima, pela nota aguda na voz dela, sua intensidade:
— Não — admitiu relutante, e com sombria inquietação. — Nisso você tem razão. Não poderíamos, agora, usar Celeste com muita facilidade. Mas são culpados da mesma forma, e o filho é de Henri. Mas você não precisa deixá-lo saber que não pode usar Celeste. Se o ameaçar com ela, ameaçar arrastá-la, assim como a ele, a um tribunal de divórcio, ele não lhe causará o menor transtorno. Garanto-lhe.
Ele lhe ouviu a respiração funda e lenta, viu como relaxava na poltrona. Ela começou a falar, muito firme e suave:
— Antoine, nunca pensei que fosse realmente cruel, ou desapiedado, ou malvado. Não quero pensar isto agora, apesar de você estar tentando fazer-me crer nisso. Parece haver esquecido que os Bouchards não são parentes apenas pelo casamento, mas sim parentes de sangue. Celeste é nossa tia, irmã de nosso pai. Henri é meu marido, seu cunhado, mas também é nosso parente pelo sangue. O pai dele era nosso tio-avô; nosso avô, Jules, era tio de Henri. Papai é primo de Henri em primeiro grau; Henri é nosso primo em segundo grau.
"Espere — disse, quando Antoine começou a sorrir com malícia. — Você dirá que nada disso importa. Mas importa, sim. E acredito que saiba disso. Mesmo que não o faça, eu acredito. Tenho orgulho da família. E afeição por ela. Mesmo que o que me disse fosse verdade, e não acredito que o seja, eu primeiramente me lembraria o quão ligados somos todos à família. Acredito que você também se lembrasse... a menos que tenha algum motivo mais importante.
Deteve-se. Subitamente Antoine estava bem junto dela, olhos alerta sobre ela:
— Que motivo poderia eu ter, minha querida, a não ser querer vê-la protegida?
"Cuidado!" — ela pensou. Obrigou-se a sorrir, a deixar a mão na dele:
— Querido, você e eu sempre fomos os maiores amigos do mundo, não? Sou muito grata, Tony. Mas pensa, honestamente, que me faria feliz ser arrastada a um tribunal de divórcio, ver meus parentes emporcalhados, e dar aos inimigos de Henri a oportunidade de feri-lo? Mesmo se Celeste não fosse magoada? Sabe, querido — acrescentou, e então sua voz tremeu um pouco — amo muito Henri. Não faria a menor coisa para feri-lo.
Ele estava calado. Seu rosto moreno e fino mostrava tristeza, e havia em sua boca uma expressão malévola, como se tivesse ficado furiosamente desapontado e frustrado.
Pôs de lado a mão dela, levantou-se, afastou-se dela, e disse com firmeza:
— Muito bem, Annette. Se não está interessada em proteger-se, terei de fazer isso sem você. Tenho algum orgulho de família, também eu, e orgulho de você como minha irmã. Contarei a meu pai o que sei a respeito do seu Henri e da irmã dele.
Annette pulou de pé. Agarrou o irmão pelos braços e o segurou com espantosa firmeza e força. Seus olhos, mais brilhantes que nunca, o fitaram com poder invencível:
— Antoine, se fizer isso, direi a papai que você está mentindo, que tem algum outro motivo. E sei que tem: deve ter. Não é sua irmã que o fez querer levar isso a cabo. Direi a papai para investigar suas razões. Eu mesma as investigarei. Direi a Henri que, de algum modo até agora desconhecido para mim, você está tentando prejudicá-lo. Sabe o que pedirei a Henri para fazer? Dir-lhe-ei que o processe por difamação, e peça um montão de dinheiro. E lhe direi o que me falou hoje. Henri não tem o orgulho de família que temos. Ele não gosta de você, Antoine, posso garantir-lhe. Não se deterá um só minuto em consideração por você ser meu irmão.
"E sabe que mais? Papai me ouvirá. Sempre me amou muito. Gosta de Henri e o admira. Acha que ele preferirá ficar com você, e suas mentiras, contra minha fé em Henri e meu amor por ele? Acha que ele fará seja o que for para romper-me o coração? Só conseguirá, Antoine, é arruinar a si mesmo. Papai o mandará embora. Henri o processará por difamação. O que fará então?
Ele a olhou com ódio sem disfarce. Empurrou as mãos dela. Agora ela via toda a sua maldade, a sua ferocidade. Mas a voz dele era calma:
— Não seja melodramática, Annette. Não irei a meu pai sem provas de que Henri e Celeste se encontraram durante meses, antes do misterioso janeiro quando cortaram relações diplomáticas. Meu pai tem orgulho, embora você não tenha. Ele fará alguma coisa, garanto-lhe.
— Não se isso me fizer sofrer, ou romper meu coração — ela respondeu, tão calma quanto ele. — Não se eu lhe disser que sei que você está mentindo, e Henri afirmar o mesmo. E nós o faremos. Ele antes acreditará em nós que em você. Suas provas nada significam. Mesmo que signifiquem, de nada valerão.
O ódio dele era terrível de ver.
— Acho que você é uma prostituta tão sórdida como sua amada tia. Deve ser, para protegê-la deste jeito.
Annette não falou. Mas começou a sorrir, um corajoso sorriso imperturbável.
Então o controle dele estourou de vez!
— Por que deseja protegê-la, e a ele? Você não tem um pingo de decência, Annette. Nem respeito próprio, nem orgulho. Sabe que ele a despreza, que ficaria contente se você estivesse morta, ou que morra assim que seu papai morrer, para não lhe atrapalhar a vida. Tem tido uma dúzia de mulheres desde que vocês se casaram. E as tem empurrado em sua cara. Pensa que ele jamais se importou com você, pouco que fosse? Casou com você para obter de volta o poder dos Bouchards. Já o observei olhando para você, e desejei dar-lhe um soco que o esmagasse...
— Por que não o fez, Antoine? Porque sabe que ele é que o esmagaria se ousasse levantar a mão para ele... E deixe-me dizer-lhe algo mais: se eu for a Henri e lhe contar o que acabou de dizer-me, essas mentiras, e o que propôs que eu fizesse, isso seria o seu fim. Não seria? Henri não se deteria diante de coisa alguma para destruí-lo. Iria a papai comigo. E então papai também se mexeria, se Henri lhe pedisse.
Ele não podia falar! Só podia olhar para ela, com a expressão de um estranho demônio, odiento, terrível em sua raiva. Seus olhos negros faiscavam, e sob a sua pele morena havia um baço palor doentio.
Annette esperava. Seu coração cheio de angústia transparecia em seu olhar. Um leve suor frio surgiu acima do seu lábio superior. Mas sua resistência contra o desfalecimento do corpo continuava intacta. Entretanto sua voz estava mais fraca quando voltou a falar:
— Não sou tão cruel como você, Antoine. Sabe, eu também o amo. Não contarei a Henri o que você me falou hoje. Ambos podemos esquecer o que foi dito. Você ainda esqueceu Christopher. Ele se juntaria a Henri e papai para destruí-lo para sempre. Tentarei esquecer tudo.
Pegou as luvas e a bolsa e se encaminhou para a porta. Ele a via ir-se. Uma figurinha tão frágil com uma cabeça tão forte e tanta coragem!
Estava louco de raiva e desapontamento. Fora destruído seu plano de meses. Apertou os punhos. Chegando à porta, Annette virou a cabeça e lhe sorriu, gentil, comovente. Ergueu a mão num gesto suave e se foi.
Ele podia ver o brilho azul de seus olhos muito depois que ela se fora, e a mais curiosa constrição lhe apertou o peito.
Capítulo 47
No bruxuleante estágio trivial, turbulento, das preocupações e ansiedades americanas explodiu o grande e desordenado drama da queda da França. Por toda parte se espalhavam pequenos e berradores homens e mulheres, a mobília sem valor de uma barata comédia de erros, lâmpadas enfeitadas de fitas e vasos de flores artificiais. A orquestra, que estivera em clarinadas de jovial dissonância, guinchos e golpes surdos, foi abafada pelo súbito estrondear da morte de uma nação, enquanto as rochas de seus imensos alicerces caíam ao mar. Então as luzes coloridas desapareceram nos raios, e mostraram as tolas criaturas humanas empurradas contra seu pano de fundo, ostentoso e sem consistência, bocas abertas, olhos estatelados de terror. Sentiram o tremor da terra, suas longas e trêmulas vibrações que lentamente se afastavam. O trovão que rugira fortemente nos serenos céus de outono na Noruega, na Dinamarca, e na Holanda, chocara e amedrontara. Passara rapidamente, deixando apenas um fraco ribombo a distância, que também logo morrera.
Porém esse trovão sacudiu as muralhas da América; essa ventania bateu contra todas as suas janelas; esses relâmpagos encheram todos os quartos, todas as salas, mostrando os rostos covardes, os estúpidos, os ignorantes, os amedrontados, ou os traidores. Aqui e ali o lampejo batia num rosto triste e amedrontado, num rosto austero, num rosto acautelado. Mas esses eram poucos.
"É uma boa coisa — observou Antoine Bouchard, cinicamente — que tenhamos uma Convenção Republicana surgindo para desviar da França a atenção da populaça ou Deus sabe o que poderia acontecer. Podem até obrigar o Congresso a declarar guerra à Alemanha!
Esta circunstância fortuita e as febris e renovadas atividades das infames organizações apoiadas ou inventadas pelos Bouchards e seus associados serviram para distrair as amedrontadas e trêmulas almas do povo americano. Apesar da heroica epopeia da evacuação de Dunquerque, apesar da triunfante e maligna perfídia dos franceses que detinham o poder (que há muito haviam conspirado essa terrível débâclè) — perfídia que foi às escâncaras e espantosa em seu cinismo — a despeito do último desesperado apelo aos homens de compaixão e justiça feito por alguns nobres franceses — bem cedo as organizações Bouchard tiveram êxito, através de seus agentes, seus jornais e locutores, em convencer o povo americano de que de alguma forma misteriosa tudo isso era "propaganda" destinada a fazer da América uma vítima do "imperialismo" britânico, ou para enriquecer "provocadores de guerras e banqueiros internacionais". Certos sacerdotes ignoraram completamente a tremenda tragédia que enchia a atmosfera do mundo com seus gritos, sua dissolução, seus muros desabando; e com uma destreza espantosa em sua audaz impudência, imputaram a morte da França ao imperialismo "britânico", e mesmo obscuramente sugeriram que a sorte da França fora tramada com o único propósito de "pôr os rapazes americanos nos campos de batalha estrangeiros".
Nada era demasiado vulgar, estúpido demais, ou por demais fantástico para certos clérigos e seus irmãos conspiradores imputar ou declarar abertamente. Nada era demasiado idiota, obsceno, degenerado, selvagem ou insano para certos jornais, locutores, congressistas, comentaristas de rádio — para irradiar nos trêmulos ares da América. Alguns, como o Sr. Cornell Hawkins, declararam que a verdadeira enormidade das mentiras dos traidores e dos loucos faria o povo americano estourar numa risada indignada e de purificação.
Mas o povo americano não riu. A maioria avidamente absorveu as mentiras. Mais especialmente agora, porque as organizações mantidas pelos Bouchards audazmente desfraldaram a bandeira negra do antissemitismo. Eis uma vítima que podia ser atormentada e destruída sem derramamento do sangue de um só "rapaz americano". Eis um bode expiatório sobre o qual a populaça americana podia empregar seu terror, seu medo, sua profunda agitação de espírito — desperta ante o espetáculo do colapso da Europa — e ser distraída da verdade assustadora.
Enquanto milhares de jovens bretões lutavam, afogavam-se e morriam nas praias de Dunquerque, enquanto as esteiras de ferro de milhares de tanques germânicos rolavam sobre os cadáveres dos traídos, o nobre August Jaeckle — sua mecha de cabelos claros a cair-lhe sobre os loucos e superficiais olhos azuis — delirava de uma plataforma pública em Chicago:
"Não podemos apagar de nossos ouvidos o trovão do futuro! A Alemanha é invencível na Europa! Muito em breve a Inglaterra cairá! Hitler não planeja apoderar-se da América. Já afirmou isso vezes sem conta. Três mil milhas de água nos separam dos velhos campos de batalha ensanguentados da Europa. Não permitam que nossos banqueiros internacionais, agitadores estrangeiros e provocadores de guerras nos arrastem a uma guerra que só pode terminar num beco sem saída, em ruína e bancarrota, e custar-nos as vidas de um milhão de rapazes americanos!"
Havia alguns homens, como o Sr. Hawkins, calados de vergonha ante o espetáculo de um vasto público americano espojando-se e contorcendo-se num orgasmo de medo e ódio, berrando, não contra Hitler, mas contra os poucos americanos corajosos que estavam heroicamente tentando levantar seus compatriotas para enfrentar o inimigo audaz e resolutamente. Em Nova York, e outras grandes cidades, jovens comunistas esqueléticos desfilavam com signos onde estava impresso: "Nada de guerras estrangeiras! Os ianques não estão chegando!"
"Os imponderáveis da consciência dos povos!" — disse Antoine Bouchard.
Sua facção, seus amigos e associados confiavam em que o "seu homem" seria designado como candidato republicano para Presidente dos Estados Unidos. A Convenção Republicana foi realizada em Filadélfia em junho de 1940.
Alguns membros da facção de Antoine haviam inquietamente observado que muito se havia falado de "Willkie para Presidente" desde a última parte de 1939. Inesperadamente apareceram artigos em importantes revistas nos últimos meses, nos quais o Sr. Willkie, sua carreira, sua luta corajosa contra a sufocante TVA (Tennessee Valley Autority. N. da T.), sua inteligente defesa da propriedade privada e da empresa privada, e sua brilhante e admirável atuação como presidente de Commonwealth & Southern, foram louvadas e discutidas. Embora o Sr. Willkie reconhecesse que os excessos de Big Business (Grandes Negócios, N. da T.) no século dezenove- vinte não merecessem defesa, argumentou que só a indústria privada tinha inspiração, iniciativa e invenção espontânea para superar períodos de depressão e garantir a prosperidade e a estabilidade do futuro. Seus argumentos para o caso da empresa privada apareceram em muitas publicações — especialmente nas revistas e periódicos comprados e lidos pelo segmento mais inteligente e solvente do público. Mas "retratos sem ornatos" apareceram nos periódicos comprados por aqueles indiferentemente designados pelos desatentos como "trabalhistas".
Mesmo tudo isso não teria perturbado o partido de Antoine, ou nele despertado a mais leve consciência, não fosse por outra coisa.
Willkie já fora um Democrata, e firme esteio de Roosevelt mas, como disse estranhamente, "o partido o deixara". Era honesto demais, demasiado honesto intelectualmente, para aguardar cegamente pelas decisões de um grupo de homens que ele julgara haver traído os verdadeiros princípios pelos quais fora elevado ao poder. Não considerava virtuoso, ou leal, declarar: "Meu partido: possa estar sempre certo, mas certo ou errado, meu partido!" Tal atitude, acreditava, era excessivamente perigosa, e hostil ao bem-estar da América. Sua estupidez estava fora de dúvida.
Escritor penetrante e vigoroso, recusou que lhe escrevessem os artigos: escreveu ele mesmo uma série deles, para as principais revistas, nos quais argumentava que um inimigo mais ameaçador que Big Business ameaçava a América, e que esse inimigo era o Big Government. Esses artigos atraíram a atenção dos cuidadosos e dos inteligentes, os que se preocupavam com governo constitucional e a manutenção da integridade americana e sua firmeza de caráter. Também redigiu um artigo para um importante e sólido periódico, intitulado Nós, o Povo, que despertou tremenda discussão sobre as possibilidades de sua designação como candidato para Presidente dos Estados Unidos.
Willkie, no entanto, declarou, com algum espanto, que lhe parecia estar "frente a uma tendência". Muito perturbado, tentou localizar os começos e o esboço da estranha, obscura "tendência" que o ia empurrando diante de si. Lá estava, enorme, porém amorfa, aparentemente impelida por uma força irresistível, invisível, mas inexorável. Willkie aceitara a primeira rajada da tendência como apenas o interesse que excitara ao defender a empresa privada. Prosseguiu, levemente incrédulo e vagamente perturbado, na onda do que nem ele nem seus patrocinadores até agora viam como uma determinação definida e gigantesca. A tendência evoluíra para uma inundação enorme, alimentada por mil riachos — antes que os políticos republicanos se dessem conta disso, e quando o fizeram foi com espanto. O editor-gerente de um estimado e brilhante magazine resolveu devotar todas as suas energias ao movimento Willkie. Tivesse alguém observado a coisa na ocasião, veria que longos e entusiásticos comentários a respeito de Willkie estavam aparecendo em todo o país, em número e importância crescentes — e que parecia haver algum plano predeterminado por trás de tudo isso, algum padrão.
Anúncios de fontes não políticas apareciam em jornais por todo o país, e circulavam petições instando por sua designação, também de fontes não políticas.
A maioria do partido de Antoine, embora observando esse misterioso fenômeno, apenas ria dele. The Barberless Hoosier, como o chamavam, há muito os aborrecia com sua sincera e simples honestidade e teimosa integridade. Outrora o tinha julgado vivo e poderoso, quando se engajara na batalha David-e-Golias contra o Governo (sem, entretanto, o fim feliz da Bíblia), porém o tinham observado com cínico desinteresse e fatalismo. Também o haviam admirado por sua capacidade em arrancar do Governo 30 milhões de dólares mais do que o preço original oferecido pela subsidiária da Commonwealth & Southern, a Tennessee Electric Power Company. Mas como candidato à Presidência dos Estados Unidos — em oposições ao "homem" já escolhido como candidato pelos poderosos Bouchards e seus amigos — o Sr. Willkie não era sequer levado a sério. Antoine declarou-o um "impudente labrego, um Dom Quixote caipira, Diógenes procurando a Casa Branca com uma lanterna a óleo, o alívio cômico". Antoine estava aborrecido ante o súbito brotar, aparentemente sem fonte certa, do nome de Willkie em jornais e discussões públicas, e certo instinto começou a insinuar-se em seus nervos, prevenindo-o.
O "homem" escolhido pela facção de Antoine, e que esperavam confiantemente pudesse obter a designação, era um baixote gordo com estúpido rosto de querubim, sorriso ainda mais estúpido, e claros olhos fixos. Tivera ampla carreira política, e em cada posto se distinguira pelo incessante antagonismo a qualquer ideia liberal, o ódio infinito pelo "elemento alienígena", e especialmente aquelas doutrinas progressistas a que ele acreditava estivessem ligados aqueles elementos, sua aversão pelo trabalhismo, sua adoração dos poderosos, seu culto da tradição, e seu registro realmente notável de economia em despesas públicas. Só isso deveria fazê-lo benquisto para os Bouchards e seus amigos. Mas quando a tudo isso se acrescentava a atração de uma antiga e firme ascendência ilustre, uma honestidade obstinada e ruidosa, maneiras rudes e truculentas (tão ao gosto do povo), uma conexão com a Legião Americana que o adorava, ódio gritante por "ideias estrangeiras antagônicas ao americanismo cem por cento", aversão pelos "desperdícios do New Deal" e uma confessada paixão pelo "modo de viver americano, cada americano sendo um lutador com os dois punhos" — sentiram os Bouchards que os céus os estavam tratando muito bem. O homem tinha a afeição do povo; já era um títere nas mãos dos seus senhores. Nada poderia ser mais satisfatório.
Durante meses eles o haviam formado cuidadosamente. Tivera no país uma reputação de terceira classe, mas subitamente foi guindado a uma posição de primeira classe na atenção pública. Os Bouchards e seus amigos eram bastante inteligentes para não o deixar gabar nenhum isolacionismo ou sentimento antibritânico, pois já haviam discernido um movimento inquieto no povo americano. Permitiram-lhe falar com gravidade em reprovação ao nazismo, em voz que expressasse mais tristeza e desdém do que raiva. Sua frase favorita era: "Entre o bolchevismo pardo e o bolchevismo vermelho nós, na América, não vemos diferença" Isso resolvia nitidamente os temores das almas tímidas que odiavam qualquer "bolchevismo". Mas em um ponto era muito firme esse candidato à designação: nenhum rapaz americano jamais morreria em solo estrangeiro!
Quando algum provocador perguntava o que diria o estimado cavalheiro no caso de um ataque à América, o candidato ria friamente: "Realmente acredita que alguma nação, qualquer nação do mundo, teria audácia ou a loucura de atacar-nos?! Esquece, caro senhor, as três milhas de água por um lado, e as seis mil milhas de água pelo outro! Não importa o que aconteça ao resto do mundo: ninguém ousaria atacar-nos, pois saberia que isso significaria morte e derrota certas. Portanto, não há necessidade de treinamento militar em tempo de paz de nossos jovens, como instado pelos elementos mais excitáveis de nosso país. Não há necessidade de formar uma grande reserva de armamentos, como nossos provocadores de guerra e fabricantes de armamentos gostariam que fizéssemos. Temos mais que suficientes couraçados de batalha e aviões de combate. Entretanto, insisto numa atitude de vigilante espera e preparação cuidadosa." Isto, então, resolvia de vez os que fossem de tendências firmemente pacifistas, e aqueles que desejassem "adequados meios de defesa."
O candidato recebeu o apoio apaixonado do America Only Committee. Seus discursos a respeito dos "rapazes americanos" provocaram êxtase nas mães americanas. Estavam convencidas de que ele se colocava como uma trincheira entre seus filhos e a guerra.
Nesse ínterim, como Willkie estivesse observando, com espanto considerável, a enorme e irresistível tendência que o empurrava para aquele junho em Filadélfia, Henri Bouchard e seu partido o vigiavam, atentos. "Wendell será designado" — Regan garantira a Henri. — "Pare de roer as unhas. Aquele peixe balofo estofado dele não tem possibilidades."
Mas o "peixe balofo", agora representado como o mais vigoroso exemplo dos filhos da América, estava indo muito bem. Se suas frases pomposas eram vazias e sem substância, o povo não sabia disso. O pequeno burguês, o modesto balconista, o contribuinte comum o olhavam com delícia através de suas lentes de míope. "Tradições americanas de individualismo, ódio americano ao imperalismo, sanidade da política americana, economia americana no governo, aversão americana pela burocracia, crença americana nos princípios de independência pessoal e firmeza de caráter" lhe caíam dos lábios como pepitas de ouro. Que nada significavam de tangível — só era percebido por alguns. Se pedissem ao cavalheiro que definisse um só termo, ficaria bem embaraçado, e se refugiaria em maior ambiguidade.
Não obstante, ganhou 310 votos no segundo escrutínio durante a Convenção Republicana. Willkie tinha poucos delegados; nenhum dos políticos experimentados acreditou por um só instante que ele tivesse possibilidades de designação.
Willkie era um lutador. Podia ter apenas uma ideia confusa de como tudo isso começara, e nenhuma ideia das forças poderosas que estavam realmente por trás dele; mas agora que via, incredulamente, que tinha uma possibilidade de vencer, atirou-se à batalha com gosto e alegria. Foi a todos os lugares; meteu-se em debates em vestíbulos de hotel; trocou apertos de mão com milhares de pessoas. Certa vez, falando na Convenção, gritou:
"A Democracia e nosso modo de vida estão enfrentado o teste mais crucial de toda a sua longa história. Espero empenhar-me numa vigorosa e agressiva cruzada, para fazer unidade à América, trazer a unidade do trabalho e do capital, agricultura e indústria, agricultor e operário e todas as classes para esta grande causa da preservação da liberdade!"
Seu rosto apaixonado, cabelos desordenados, olhos vivos e lutadores apareciam enormemente nos jornais nacionais.
O partido de Antoine estava apreensivo ante esta súbita e impudente invasão em seus planos.
— Isso já passa de piada! — disse Jean Bouchard. — Há alguém por trás disto: vamos desmascará-lo. Digo-lhes que não estou gostando desta história...
Porém por mais que procurassem, nada encontraram por trás de Willkie, nenhum eco de uma voz portentosa, nenhuma sombra.
Não havia de quem suspeitar. Quanto ao seu "homem", todos os Bouchards, de ambos os partidos, estavam aparentemente no mais cordial dos entendimentos. Christopher relatara a Antoine que Henri ia contribuir com uma quantia enorme para a designação do candidato preferido. Henri e sua facção financiavam os anúncios em todos os jornais do país a favor desse homem. Se, nos mesmos jornais, apareciam fotografias ainda maiores e artigos mais inteligentes a respeito de Willkie, o fato era lamentável, mas não despertava suspeitas. Se os comentaristas de rádio no interesse de Wilkie pareciam ter mais tempo para falar dele, seus patrocinadores não puderam ser descobertos. Se uma barulhenta multidão na galeria da Convenção subitamente se ergueu como um só homem aos gritos de: "Queremos Wilkie!" nem mesmo o sutil Antoine poderia haver suspeitado por um só momento do poder por trás de tudo isto. Se revistas e periódicos andavam cheios de histórias, fotografias e elogios a Willkie, ninguém parecia ter uma explicação.
Willkie venceu firmemente em todos os escrutínios. Foi quando Antoine e seu grupo ficaram alarmados. No quinto escrutínio estavam desesperados, raivosos e espantados. Quando foram conhecidos os resultados do sexto escrutínio, ficaram sem fala. Willkie foi designado como candidato Republicano.
Quando Antoine e os outros Bouchards se reuniram em Windsor, ali ficaram por muitas negras horas a encarar-se, caminhar pelo salão, praguejar, conspirar, suspeitar, odiar. Mas não havia nada que pudessem fazer. Algo mais forte que eles, ou mais sutil, ou mais determinado vencera.
Tudo que podiam fazer agora era tentar salvar das ruínas o que pudessem.
— Pelo menos — comentou Antoine, com amargo sarcasmo — estaremos apoiando um homem honesto, para variar... Vejam o que podem fazer com ele.
— Ele tem alguma cor e vitalidade, o que é mais do que se pode dizer desse nosso velho "garganta" — comentou Jean.
Foi aí que a incrível enormidade da coisa golpeou Antoine. Como é que isso foi acontecer, quando ele e os amigos haviam esperado em Windsor, tão satisfeitos consigo mesmos, pelo resultado final da votação? Nem por um momento haviam duvidado do resultado final! Nada fora omitido, mal planejado ou negligenciado.
Inútil chamar os administradores e censurá-los ou ameaçá-los, ou exigir-lhe uma explicação. Pois a explicação fugia a todos eles. Os delegados tiveram suas instruções. Durante horas ouviram os discursos dos vários candidatos à designação. Mas no fim, uma espécie de frenesi se apossara deles, um frenesi meio loucura, meio exaustão. E no vendaval de delírio, Wendell Willkie recebera a designação.
De súbito, fantasticamente, Antoine tornou a ver o enorme e saturnino rosto do velho Jay Regan. "Os imponderáveis da consciência dos povos!" Absurdo, insano! Não fora o povo asinino que jogara fora o candidato-escolha dos Bouchards. Fora algum monstruoso acidente, alguma piada acidental e louca, hipnotismo, algo que não podia ser explicado em palavras razoáveis de homens razoáveis.
Disse, com raiva fria e venenosa:
— Digo-lhes que nada podemos fazer com esse Willkie! O melhor por que podemos esperar é que derrote Roosevelt. Depois disso, só Deus sabe! — Fixou o pessoal ali reunido, os olhos negros virulentos: — Não sei! Não sei! Mas existe algo de muito estranho em tudo isto...
— Se ele derrotar Roosevelt, realmente existe algo de muito estranho em tudo isto — confirmou Nicholas Bouchard acidamente. — Comecem então a preocupar-se. Qualquer que concorre a um terceiro mandato apesar de estar entre a cruz e a caldeirinha não pode ser derrotado pelo próprio Arcanjo Miguel.
Todos os Bouchards estavam nessa conferência na escura biblioteca da casa de Armand. Todos menos Armand, meio inconsciente em seu empoeirado quarto, lá em cima. Antoine olhou lentamente um a um, o rosto moreno contraído. Finalmente olhou para Henri, com expressão branda, mas de feições endurecidas. E Henri lhe devolveu o olhar, com aqueles olhos pálidos, descoloridos, que não traíam absolutamente nada.
Então percorreu a espinha de Antoine uma sensação gelada de medo. Ali estava! Ali estava a resposta, pensou ele, contra toda razão, contra toda lógica.
— Willkie vencerá — disse Henri — a menos que vocês e seus amigos lhe deem abertamente "o beijo da morte"; em outras palavras; se não deixarem o trabalhismo compreender que vocês esperam que Willkie seja sua clava para derrubá-lo.
Capítulo 48
Christopher preparava-se para sair de Endur para uma de suas frequentes viagens de negócios a Detroit, quando anunciaram a visita de Antoine.
Era uma quente manhã de domingo em julho; enquanto Christopher escolhia as roupas que precisava, para que o criado as arrumasse, Edith lhe fazia companhia, divertindo-o, como sempre, com seus ditos engraçados e gracejos levemente maliciosos.
— Quando espera estar de volta, desta vez? — ela perguntou, abanando-se com uma revista, e preguiçosamente dando uma olhadela, através das janelas sem cortinas, ao brilho do gramado e do céu.
— Oh, dentro de uma ou duas semanas. A Eagle se está pondo a caminho depressa, agora. Os britânicos, como sabe, estão financiando a construção da nova fábrica. Estão financiando fábricas de munições e de aviões por todo o país, o que é excelente! Quando a guerra estourar em cima de nós, se isso acontecer... estaremos em ótimas condições para fabricar armamentos, tanques e aeronaves assim que formos notificados.
— Meu Deus! É horrível pensar nisto! — exclamou Edith amargamente. — É uma loucura, um pesadelo! — Calou-se. — A propósito: ouvi dizer que o livro de Peter está agora em trezentos mil, e melhorando as vendas a cada dia.
Christopher riu brevemente:
— Suas duas observações não têm alguma conexão oculta, não é?
— Poderiam — respondeu Edith, tristemente. Voltou para o marido os olhos castanhos: — Sabe, acho que não gosto desta família. — Levantou-se e pôs os braços em torno de Christopher, mergulhando o rosto em seu pescoço e apertando os braços convulsamente. — E também não gosto de você — acrescentou, em voz abafada.
Por um momento ele ficou sem movimento, depois a apertou fortemente:
— Francamente, odeio todos os Bouchards — disse, beijando-lhe os macios cabelos escuros. Gentilmente livrou-se dela, depois hesitou: — Você tomará conta de Celeste?
Os lábios finos e pálidos dela se apertaram de súbito:
— Não poderei beijá-lo ao menos uma vez sem que você imediatamente mencione sua irmã? — perguntou. Depois deu de ombros: — Diabos! Isso não importa. Claro que tomarei conta de seu precioso cordeirinho. Porém ela está indo muito bem, obrigada. Perfeitamente calma e tranquila. Fazendo um lindo enxovalzinho. Todos vocês estão enganados quanto a Celeste. Ela não é porcelana: é ferro. — Sorriu. — Tenho de estar com ela, não por ela, mas por Henri. Espero que ele apareça qualquer dia destes, quando menos se espere. E não deve vê-la a sós.
Nesse momento é que Antoine foi anunciado. Christopher ficou silencioso por um ou dois minutos, franzindo o rosto pálido. Depois, com um aceno de cabeça, despachou Edith, que imediatamente deslizou para um quarto pegado. Antoine, tão polido, obscuramente brilhante, e alegre como sempre, apareceu, cumprimentando afavelmente:
— Ah! A caminho novamente! Eagle, suponho?
— Sim. A nova fábrica está em andamento, a que é financiada por capital britânico. Esperamos estar em produção em cerca de cinco semanas mais ou menos. Cigarro?
Antoine aceitou um cigarro, depois sentou-se graciosamente no largo peitoril da janela. Com seu aspecto elegante, fumou vagarosamente, olhando para fora, para a ampla e brilhante extensão dos relvados. Christopher continuou a separar roupas. Os primeiros gafanhotos estridulavam violentamente no ar parado e quente.
— O que este lugar precisa — comentou Antoine — é uma estacada ao fim dos gramados.
— Não pode vê-la? Existe uma, lá embaixo — replicou Christopher, como um leve sorriso.
Antoine também sorriu, sem virar a cabeça:
— Nunca se sabe a quantas se anda com você, Chris...
— Ah! Você me conhece — falou Christopher. — Sempre a reserva bem-educada, a delicada reticência. Que é que quer fazer por mim agora? Ou tirar de mim?
Antoine se voltou para ele, lentamente. "Uma boa posição!" — pensou Christopher. "Seu rosto está na sombra, com a janela por trás dele, enquanto eu estou exposto à luz". — Começou a rir:
— Tony, sente-se aqui, onde eu possa ver-lhe as feições. Sabe, para um substituto, você não é muito sutil. Além disso, está me obstruindo a luz.
Antoine riu com grande divertimento. Atirou-se numa confortável poltrona, onde se espalhou na mais preguiçosa atitude:
— Não podemos parar de esgrimir magistralmente e falar de verdade?
— Estou lhe fazendo a mesma pergunta — replicou Christopher. Esperou. Porém Antoine não falou: observava o tio, sorrindo largamente, como se estivesse muito divertido. — Se pensa que pode pôr-me na defensiva, meu filho, devo observar que homens mais brilhantes que você já tentaram isso. Assim, vá em frente — acrescentou Christopher.
— Realmente vim apenas em visita de cortesia — começou Antoine.
— Ora vamos! — disse Christopher, maciamente. — Bem, estou ouvindo. De que escândalo quer falar agora? Você é um fofoqueiro danado, sabe.
Ergueu três gravatas e as estudou criticamente:
— Sirva-se de uma bebida — sugeriu.
Antoine encaminhou-se ao pequeno bar portátil ao fim do quarto e se serviu um uísque com soda. Voltou para sua poltrona, onde começou a bebericar com satisfação.
— Que pensa das possibilidades de Willkie? — perguntou.
— Excelentes. Se você obedecer ao conselho de Henri, e não trouxer a artilharia pesada sob a forma dos Big Business Boys e começar a bombardear o trabalhismo. Não creio que Willkie apreciasse isso, de qualquer maneira. Ele não é anti-trabalhista. Nunca foi. Você o aniquilará se apresentar a falange dos rapazes da barra pesada. Outra coisa: interrompa essa coisa de antissemitismo que suas queridas organizações estão começando a papaguear. É um excelente meio de assassinar Willkie. Ainda na semana passada, lembra-se, ele disse não querer o apoio de lunáticos.
— Antissemitismo — observou Antoine — é sempre uma boa coisa para alimentar as tropas. Gostam disso. Dê ao populacho algo que odiar.
— Você encontrará o ódio onde menos gostaria de vê-lo — avisou Christopher. Sentou-se e olhou friamente o sobrinho: — Já notou, meu Maquiavel precoce, que ambos os candidatos à Presidência se estão portando como cavalheiros decentes, civilizados, e que só os seus adeptos é que procedem como cães e porcos? Ponha dignidade e decência em nossa própria campanha e venceremos. Ah, sim, soube que Wendell recusou seu convite para jantar há alguns dias atrás. Isso deveria ser uma boa indicação para você.
Antoine deu de ombros. Começou a franzir a testa:
— Muito bem. Muito bem. A propósito, ainda não descobri como esse caipira de Indiana conseguiu a designação.
— Os desígnios de Deus são muito misteriosos — observou Christopher, com aspecto aborrecido. — Outra coisa: não foi uma "tacada" muito brilhante por parte dos Guardiães da América sair-se com a luminosa ideia de que o nome de Roosevelt é realmente Rosenfeld. De todas as malditas...
— Não seja vulgar — riu Antoine. — Eu achei isso inteligente! Você superestima a inteligência da populaça americana.
Mas Christopher não riu:
— Eu lhe farei uma profecia: se Willkie perder, será por causa de vocês, jovens brilhantes. Mas vocês nunca aprendem... — Relanceou o olhar para o relógio: — Se tem algo a dizer, faça-o depressa. Só tenho hora e meia para pegar o meu avião.
Antoine continuou a bebericar vagarosamente. Sacudiu o líquido amarelo em seu copo.
— Na verdade, não é importante. Só queria dizer que, quando você voltar, convocarei outra reunião. Meu sogro, Boland, lá estará também. Encontrei-me com ele há dois dias, em Nova York. Estava perguntando a respeito do meu próprio pai. Disse-lhe que esperávamos que papai se juntasse aos demais da família nessa conspiração, momentaneamente. — Agora ele olhava para Christopher: — Você não tem a menor pista a respeito do testamento dele?
— Nada, nada! Armand e eu nunca fomos confidentes, você sabe. Por que se preocupa?
— Por nada. Nada, mesmo. Apenas curiosidade. Entretanto, gostaria de saber se minha irmã fica adequadamente protegida.
Christopher deu de ombros, sem comentários.
Antoine o observava atentamente:
— A propósito: ainda não tomou nenhuma decisão a respeito de sua patente de chumbo tetraetílico para gasolina de alto índice de octana?
— Não — respondeu Christopher maciamente. — Pelo menos não mudei de opinião. Henri está nos vigiando estreitamente, sabe. Não podemos deixar a Alemanha usar a patente, nas atuais circunstâncias.
— Porém a Eagle controla a Consolidated Tetra-Ethyl Corporation. Você pode tomar suas próprias decisões, Henri ou não Henri. Que é que ele tem a ver com isso? E por que tem de impedir que você deixe nossa associação de motores na Alemanha usar a patente?
— Nossa associação de motores está fabricando motores para Hitler, caso você tenha esquecido — disse Christopher, casualmente. Acendeu um cigarro, com aparência de aborrecimento.
— A Consolidated Tetra-Ethyl Corporation está de parceria com a I. G. Farbenindustrie, caso você haja esquecido — disse Antoine. — Que haveria de mais natural do que passar a patente para uso de Hitler? Maldição! Ele precisa da alta octaria!
— Outra coisa que lhe saiu da mente, Tony! Henri ainda tem voto de controle na Eagle. Você sabe disso; então, por que toda essa conversa mole?
Antoine depositou o copo, levantou-se e começou a palmilhar o quarto de um lado a outro.
— Já lhe disse: vi o pai de Mary em Nova York, há uns dois dias. Ele gostaria de possuir essa patente, ou alguma pista do processo. Hitler está ficando impaciente conosco. O Papai Boland terá tudo arranjado para embarque de gasolina de alto índice de octana através da Argentina. Os navios-tanque já estão organizados em fila no porto. Porém ajudaria mais a Hitler se o petróleo pudesse ser transformado lá mesmo, na Alemanha. I. G. Farbenindustrie está preparada para iniciar o processo. Você é que está resistindo, desde que Henri anunciou que o processo não seria dado a Hitler em hipótese alguma.
— Que posso fazer a esse respeito? — perguntou Christopher, em tom neutro.
Antoine parou abrupto diante dele. Falou, maciamente:
— Você conhece o processo. Você o desenvolveu aqui na Flórida. Ele lhe pertence. Um de seus químicos na Flórida, ainda ligado a Duval-Bonnet, pode ir trabalhar para Papai Boland. Se você mandar.
Christopher estava silencioso. Observava a fumaça de cigarro a espiralar-se entre seus dedos.
— Podemos pagar o Exército, O.K. — continuou Antoine. — Estive com o General-Brigadeiro Henderson semana passada em Washington. O Exército não atrapalhará quanto ao processo ser dado à Alemanha.
Christopher não demonstrou o súbito alerta que lhe percorreu os nervos. Falou, com indiferença:
— Henderson não é uma das mais brilhantes luzes por trás do America Only Committee?
Antoine sorriu:
— Sim. A propósito: nossa companhia de motores na Alemanha não perderia com a transação. E Henderson possui grande quantidade de ações de nossa companhia de motores na Alemanha. — E riu.
— Assim — falou Christopher, reflexivamente — nosso nobre general é completamente favorável a que Hitler tenha sua patente. Conhecemos uma razão: as ações que possui de nossa companhia germânica. Mas penso que exista outra, não?
— Que acha? — replicou Antoine, gentilmente.
Ficou de pé diante de Christopher e esperou. Houve um longo silêncio. O trilar dos gafanhotos estava mais estridente no ar quente. Antoine não podia decifrar a expressão de Christopher.
Antoine quase sussurrou, a voz pesada de urgência:
— Hitler necessita desse processo. Imediatamente. Para bombardear a Inglaterra, que explodirá numa escala sem precedentes neste outono. Ouvi dizer que ele vai tentar bombardeá-la fora da guerra. Assim, a questão é extremamente urgente.
Christopher recostou-se na cadeira:
— Sabe — disse, com crescente indiferença — não vejo como poderemos manter-nos fora desta guerra. Estaremos nela, eventualmente, apesar de todos os seus esforços, Tony.
— Sim, eu sei. — Tony sorria. — Por isso é tão importante que Hitler tenha a patente imediatamente. Boland ainda pode embarcar petróleo para Hitler através da Argentina, mesmo que estejamos em guerra. Ele tem cartéis na América do Sul, como sabe, e Hitler terá o petróleo mesmo que o suprimento esteja encerrado aqui na América. Roosevelt não conseguirá nada na Argentina com sua política de Boa Vizinhança, embora ele possa ser capaz de arrastar os outros países sul-americanos a um acordo com ele. Lembre-se, os agentes e padres de Franco têm realizado bom trabalho na Argentina; eles têm homens no Gabinete, lá. A Argentina fará negócios com Hitler, por nós e por ela mesma, quer sejamos empurrados para a guerra ou não. Nossos agentes estão trabalhando juntamente com os agentes de Franco. Temos a Igreja conosco. Aconteça o que acontecer, a Argentina não declarará guerra a Hitler, mesmo que o façamos, e que o façam as demais nações sul-americanas. Assim, teremos lá nossos postos de escuta, e nossas saídas, nossas estações de propaganda, e nossos refúgios para agentes germânicos.
Houve, novamente, um silêncio profundo. O cigarro de Christopher ardeu até o fim entre seus dedos descarnados. Seu rosto era uma máscara de pergaminho. Depois disse, pensativamente:
— Muito bem. Deixarei que Boland tenha um dos meus homens, o mais familiarizado com o processo.
Levantou-se e foi ao telefone, onde fez uma chamada para a Flórida. Antoine esperou, exultantes os olhos negros. Christopher acrescentou:
— Uma pequena mudança no processo, bem pequena, e não haverá pretextos para um processo por infração de patente.
Depois que Antoine se foi, Christopher telefonou a Henri:
— Estarei no aeroporto em quinze minutos. Isto é muito importante. Tenho de falar-lhe. Vá até lá o mais depressa que possa.
Capítulo 49
Francis Bouchard (o "gelado Frank", como os parentes o chamavam) olhou a filha Rosemarie num silêncio terrível. Pálido, louro, frígido, parecia eterno, tão brilhantemente azuis eram seus olhos, tão esbelta sua silhueta. Em volta da boca, fina e angular, havia dobras atenuadas de mau humor que sempre acrescentavam uma expressão cativante a todo o rosto magro. Era um Bouchard "anglo-saxão"; e embora fosse muito mais alto e mais atlético do que Christopher Bouchard, e notável por suas mãos estreitas e grandes e pés longos e estreitos também, tinha uma curiosa semelhança com Christopher, e com seu próprio irmão falecido, Peter. Despertava atenção na família por sua capacidade mental, suas exigências, e um tipo especial de integridade que nada tinha a ver com seus negócios. Sempre tivera por Peter um desdém apiedado, mas também uma afeição impessoal. Sentiu muito a morte de Peter.
Era do partido de Henri, pois não só era sagaz como também tinha preferência por ele. Determinadamente desinteressado e afável, mantinha relações amigáveis com toda a família — em parte por ser demasiado egoísta para se permitir ser perturbado por animosidades, e em parte porque achava os parentes divertidos. Se não se fizesse intimidade demais com nenhum deles — ele diria. Além disso, acreditava em ter amigos, e era muito popular.
Presidente da Kinsolving Arms Company, subsidiária de Bouchard & Sons, era enormemente rico, e pelo menos tão avarento como outros membros de sua família. Mas nunca permitiu que essa avareza se tornasse óbvia. Parecia ser muito generoso, com uma benevolência austera que praticamente decepcionava a todos, mesmo a sua esposa. Era amado por ambas as filhas — Rosemarie e Phyllis Morse — e pela esposa, e amava a todas. Mas Rosemarie era a favorita.
Sentou-se só com ela em seu pequeno salão. Para ali sempre convocava as meninas quando tinha coisas de importância a discutir com elas, tais como seus "delitos", suas perturbações particulares, E outros problemas. Sua casa era grotescamente enorme, localizada no meio de jardins de uma beleza incrível. Era famosa a sua biblioteca, e ele também possuía uma fina galeria de quadros originais — o que fazia a aguda inveja de Christopher, seu amigo particular.
As filhas sempre o haviam olhado com o maior respeito; Rosemarie, exaltada como era, e cheia de violência, não podia curar-se do hábito de toda a vida. Chegou agitada: queria gritar delirantemente. Mas o pai sentou-se em frente a ela, as longas pernas cruzadas, atitude negligente e calma, e a fitou com os faiscantes olhos azuis que pareciam fragmentos de um espelho.
— Não! — ela disse, por fim, batendo nos joelhos com as mãos fechadas. — Não! Terá de bater em outra porta para a informação que quer!
— Vim a você, Rosy — disse Francis. — Porque você pode dar-me essa informação. Quero que pense nisto. Fui sincero com você; não pode repetir nada do que lhe disse sem me trair. E penso que nunca fará isso, hein, Rosy?
Ele sorria de leve. Ela voltou para ele os olhos negros e vividos, entreaberta a boca vermelha. E então ficou silenciosa, respirando com dificuldade, como se o coração lhe palpitasse forte demais. A garganta ficou apertada em turbulenta paixão. Depois disse, roucamente:
— Papai, não lhe posso contar nada. Não é que particularmente eu me importe, por razões éticas. As mulheres das organizações que ajudei a formar são loucas e desprezíveis. Maníacas, perversas, imbecis. Sim, são tudo isso. Espero que algum dia teremos meio adequado de lidar com elas, seja com clorofórmio ou esterilização. — Sorriu friamente. — Mas acontece que eu concordo com os princípios dessas organizações. Precisamos de mulheres assim para promovê-las, fomentar esses princípios.
— Parece-me um fino comentário sobre os princípios de suas organizações que sejam necessárias mulheres insanas, e potenciais assassinas e perversas, para fomentá-las — comentou Francis. — Olhe, minha querida, talvez eu não tenha tornado as coisas claras para você. Estou nisso com Henri. Kinsolving é uma subsidiária de Bouchard & Sons. Só por essa razão eu estaria nisso com Henri. Mas também acontece que estou com ele por muitas outras razões, algumas delas pessoais.
— Para não mencionar o fato de que a esposa de seu falecido irmão vai presentear Henri com um filho? — O sorriso de Rosemarie era virulento. Os olhos do pai diminuíram para um pontinho brilhante.
— Talvez — concordou, calmamente. — Céus! Vocês, mulheres! Não podem afastar-se da cama, não é mesmo?
Para sua surpresa, sua exaltada filha enrijeceu subitamente:
— Não. Não podemos.
Cuidadosamente, Francis acendeu um cigarro, com gestos precisos. Girou para trás a cadeira e olhou o teto pensativo.
— Sempre me pareceu humilhante ter algo a ver com mulheres ... pelo menos nos negócios. Antigamente as mulheres não se misturavam aos negócios. Agora, estão por toda parte, fuçando e embaralhando tudo, complicando as coisas. As filhas eram manipuladas, é verdade, para trazer melhores relações comerciais através do casamento. Tudo muito correto. Mas agora vocês, mulheres, têm-se comportado sem controle através dos negócios, como um bando de éguas no cio. Vocês estão em toda parte, fuçando na política, incitando trapalhadas incríveis na vida pública, chiando a toda força dos pulmões mesmo em Wall Street. Não gosto de tê-la aí sentada recusando fazer algo por mim... e que é da maior importância para mim como presidente da Kinsolving Arms.
Ele continuou, quando Rosemarie não respondeu, embora ela fixasse furiosamente olhos ardentes nele.
— Christopher misturou a irmã em seus negócios, com o lindo resultado que sabemos. Annette está enredada com Henri. Antoine manipula Burglar Boland através de sua pequena Mary. E a coisa vai em frente, o tempo todo. E você, por exemplo, continua inventando as mais sujas organizações para vingar-se de Henri, que tem outra namorada. Arre! Isso fede! Eu poderia citar dúzias de outros casos.
O rosto moreno de Rosemarie estava rubro! Os lábios mal se moviam quando disse:
— Ele sempre deu a entender que, assim que pudesse, se divorciaria de Annette e casaria comigo. Mentiu. Sempre foi um mentiroso. Eu o amava, pai! — e então sua voz áspera tremeu.
— Sim — falou Francis, pensativamente — suponho que sim. E eu sempre esperei que você casasse com ele. Mas nunca houve ninguém para ele, a não ser Celeste. Lembre-se disso. Minha querida — acrescentou, com afeição — tudo isto realmente não importa. O que importa é que faço parte da facção de Henri, e se ele afundar, eu também afundo. Por isso tenho de saber, completa e acuradamente, os nomes de todos os partidários influentes de suas organizações, quais os planos deles, a lista completa de seus membros, e se e como estão ligados às organizações germânicas, e que dinheiro alemão ajuda a apoiá-los.
Os lábios de Rosemarie se torceram num sorriso sardônico:
— Ficaria surpreso, pai! A propósito: Henri lhe pediu para obter de mim estas informações?
— Pediu — concordou Francis, gravemente. — De fato, quando ele me disse que você era a eminência parda por trás desses nojentos, não acreditei. Porém ele finalmente me convenceu. Contou-me, naturalmente, que Antoine é um dos anjos guardiães de duas das mais perigosas organizações. Isto é verdade?
As negras sobrancelhas de Rosemarie se juntaram, porém, ela nada disse. Entretanto, um olhar de surpresa lhe cruzou o rosto.
— Henri parece um tanto onisciente... — ela observou, zombeteiramente, daí a um momento.
— Henri — comentou o pai — conhece muita coisa. — Deteve-se: — Rosemarie, minha querida, esqueçamos Henri. Peço-lhe que faça isso por mim. E por si mesma. Se não o fizer, querida, eu a deserdarei. — E então, embora sorrisse para ela com a mais profunda compreensão e afeição, ela viu a desapiedada agudeza de seus olhos penetrantes. — Você só teria a perder se eu a deserdasse — ele continuou. — Pois se Henri afundar, e eu afundar, no desastre geral, que poderia ser deixado para você? Pense em si mesma, querida.
Ela estava profundamente perturbada. A secura e raridade das palavras do pai tiveram o maior efeito sobre ela. Sua avareza, enorme como a avareza de todos os Bouchards, despertou fortemente. Vendo-lhe a perturbação, o pai tirou da secretária uma caixa de cigarros e a estendeu para ela, que retirou um cigarro, com dedos que tremiam visivelmente. Ele o acendeu para ela, depois recostou-se e aguardou que ela falasse.
— Você não pode sentir lealdade para com aquela canalha — comentou Francis. — Não pode, realmente, sentir qualquer simpatia por seus objetivos. Como poderia? Assim, está resolvido. A lista completa, Rosy. Nomes, os que os apoiam, vínculos com a Embaixada germânica, com a Inteligência germânica, e com o Consulado germânico. Nada deve ser omitido. — E acrescentou: — Eu não mencionaria a Antoine nada desta nossa conversa. Não seria bom para você. Nós vamos agir rapidamente e, minha querida, o fato de ser minha filha não me causaria o mais leve e efêmero remorso.
— Pai — falou Rosemarie, voz trêmula — você é um suíno.
Porém ele replicou, calma e pesadamente:
— Sou um homem lutando por sua própria vida. Nunca lhe ocorreu, Rosy, o que suas sórdidas intrigas significariam para mim?
— Eu não sabia que você estava nisso... com ele! — gritou Rosemarie. — Tem de acreditar-me!
— Você, na realidade, nunca pensou na questão — disse o pai, duramente. — Estava tão malditamente interessada em seus próprios imundos odiozinhos e ciúmes, e em sua maldade natural... Prejudicou-me muito, Rosy, fez-me muito mal. Tem de desfazê-lo. E antes de sair desta casa.
Indicou a escrivaninha, e um grosso maço de papel em branco em cima dela.
— Que bem isso faria a alguém, mesmo que eu lhe dê a informação? — perguntou Rosemarie. — Você não poderia deter as organizações, e sabe disso. Mesmo revelá-las não adiantaria nada. Continuariam subterraneamente. — Sua voz estava aguda de desespero.
Francis a fitou inexpressivamente:
— O Bureau Federal de Investigações gostaria da informação — ele lhe disse, implacavelmente. — Não pule, Rosy. Sim, pretendemos transferir as listas completas quando chegar a ocasião. E essa ocasião está chegando rápido...
O desespero dela aumentou para um medo pessoal terrível:
— Pai, não poderia manter meu nome fora disto... no fim? — e agora ela implorava, perturbada.
— Não. Talvez não. Sei disso, Rosy — falou Francis. — Mas o fato de que você nos deu esta informação abrandará as coisas em seu favor. É tudo que lhe posso prometer. De qualquer maneira, você é uma Bouchard. Duvido que seja... molestada. Vamos, Rosy. Descobriremos sem você. Embora leve muito tempo. E quando descobrirmos, você estará em má posição, não terá nenhuma defesa. Deste modo você pode salvar a sua pele. Enquanto salva a minha também.
Ela torceu os dedos, em sua funda agitação e sofrimento. Depois olhou diretamente para o pai, o medo a arder-lhe nos olhos:
— Pai, Antoine está nisso, você sabe. E muito do dinheiro dele. Ele tem estado apoiando Jaeckle. E o America Only Committee. Ele, Nicholas, Jean e Alexander. Não me importo com os outros. Mas importo-me com Antoine.
Uma sensação de total repugnância golpeou o coração de Francis. Que vileza havia agora nas mulheres! As filhas e esposas das "melhores" pessoas tomavam amantes tão casualmente como as mais sujas prostitutas e vagabundas das ruas! Não havia decência nas mulheres, nem honra, nem respeito por seus miseráveis corpos... Levantou-se abruptamente. Não seria aconselhável ou oportuno, justamente agora, esbofetear a filha violentamente.
— Aí estão papel e pena, Rosy — disse, em voz cansada; e caminhou rapidamente para fora da sala.
Capítulo 50
Relutantemente, Edith confessava a si mesma: Celeste tinha a resistência e a firmeza do ferro. Com dignidade, de cabeça erguida, com calma e equilíbrio, enfrentara a família, a todos olhara resolutamente nos olhos, silenciara — pelo menos em sua proximidade — qualquer observação maliciosa ou ambígua, forçara-os a tratá-la com respeito. Mesmo se o venenoso Christopher e a decidida Edith ou a doce e confiante Annette não estivessem por trás dela ou a seu lado, sua própria atitude indomável e direta, bem como o olhar firme, obrigaria a uma forte admiração e a constantes demonstrações de aceitação. Apesar dos seus anos de casamento, para a família sempre fora a "pequena Celeste", e não com carinho, mas sim com zombaria, por causa de Christopher. Também lhe faltavam muitos traços de caráter dos Bouchards, e nunca fora conhecida por conversa interessante ou maneiras agradáveis — duas características que a maioria dos Bouchards acreditava serem atributos de sua gente. Na infância tinha medo dos parentes, era tímida, silenciosa, e de temperamento não cativante. A família logo percebera que ela não era verdadeiramente uma Bouchard, mas uma amedrontada estranha que instintivamente lhe tinha aversão.
Como não admirassem ou respeitassem Peter, por motivos similares, Celeste e o marido haviam recuado bem para longe na consciência da família, que, durante as peregrinações e residências europeias deles, quase totalmente esqueceu, por anos a fio, que eles existiam. Sua volta, a curiosidade e a risota a respeito da "obra" de Peter, e depois a súbita e enorme irrupção de Henri no que os Bouchards consideravam o pequeno e insignificante quadro de duas criaturas insignificantes e impopulares, haviam trazido os exilados ao foco forte e brilhante da visão da família. Haviam esquecido quase inteiramente a devoção de Christopher pela irmã, e o próprio Christopher fora virtualmente exilado para a Flórida pelo formidável Henri. A saída de Christopher da obscuridade aumentara a vivida luz agora lançada sobre o retratinho no canto.
A família, por uma espécie de comunicação secreta, sabia de muitas, muitas coisas que Henri obtusamente acreditava não ousariam conhecer, ou que fossem muito estúpidos para saber. A sombra imensa desse homem, assomando por trás de Celeste, é que silenciava línguas por natureza malignas e cruéis.
Os Bouchards, então, nunca haviam admirado Celeste pelo que ela era. Haviam-na considerado desmiolada e ridiculamente ingênua. Agora, quando chegava entre eles, orgulhosa, calada, corajosa e amargurada, cheia de dor, mas valente — olhavam-na com novo respeito e mesmo ternura. A simpatia que lhe ofereciam, como viúva jovem, bela e rica, não era inteiramente hipócrita. Eles, especialmente as Bouchards mulheres, começaram a falar do "pobre filho de Peter" com crescente firmeza. As que assim falavam, com olhos frios e desafiadores, eram lideradas por Agnes Bouchard, para surpresa de quase todo mundo, pois Agnes estivera na vanguarda das que, no passado, haviam divertidamente escarnecido de Peter e Celeste. Depois, claro, havia Annette, frágil, mas galante, e em sua doce e gentil presença nem mesmo o mais vulgar ou brutal ousava pronunciar uma palavra maldosa.
Também a solidariedade de família ("lealdade de velhacos", como Jules a chamara) os fazia cerrar fileiras contra possíveis murmuradores estranhos. Podiam rir furtivamente entre si, porém nunca entre seus amigos e associados.
Last, but not least estava o medo mortal que tinham de Henri Bouchard.
De modo que, após a primeira surpresa divertida e secreta risada, quase todos os Bouchards, mesmo entre eles, só falavam do "filho de Peter que está para chegar". Para sua fúria, Antoine nada podia fazer. Era olhado de alto abaixo mesmo por seus conspiradores imediatos. Certa vez o pomposo Alexander, o pio e ponderoso, lhe dissera:
— Não sei o que você está deduzindo, Antoine, mas posso dizer-lhe isto: é de um extremo mau gosto, se não calunioso.
Não fora fácil para Celeste, ante a firme incitação de Edith e Agnes, e a gentil insistência de Annette, enfrentar completamente a família, forçar-se a andar entre eles, e a aceitar — após os primeiros sorrisos maliciosos — suas condolências e simpatia. Ficara de olhos vítreos, e corara fortemente. Mas não se retraiu, não tentou esconder-se, após as primeiras semanas quando ficara quase fora de si de vergonha, tristeza, remorso e desespero. Foi a jantares dados em sua homenagem, jantares calmos e cheios de afeição. Também ofereceu pequenos jantares, só para as mulheres da família. Sua nova e forte dignidade, sua nova segurança despertavam a admiração geral. Só em certas ocasiões, quando via Annette, é que suas pálpebras tremiam um pouco, e também a boca.
Até fora a Nova York, sozinha, para falar ao Sr. Hawkins, e combinar com ele a distribuição dos direitos autorais do The Fatefull Lighting para vários refugiados e organizações de ajuda estrangeira em que Peter estivera tão desesperadamente interessado.
Então sua vida adotara uma pesada serenidade e calma, sem alegria ou esperanças, porém controlada e cheia de dignidade. Considerava a criança, prestes a nascer, com sombria indiferença e aborrecimento, como teria considerado qualquer outra catástrofe na longa série de catástrofes em sua vida. Quando os parentes falavam da criança, ela replicava com fastio e desinteresse: para ela, não tinha realidade, nem calor. Não fazia planos para ela e, incrivelmente, jamais cogitou em seu sexo.
Pois vivia, agora, numa completa suspensão de emoções, numa espécie de inércia e apatia. Sempre fora considerada fleumática pela família, e essa qualidade parecia intensificada nesses tempos de espera. Não que ela se movesse num entorpecido estoicismo: dava, antes, uma impressão de controle neutro e impassível. E não se tratava apenas de manifestação externa. Seu controle se estendia aos pensamentos disciplinados, aos movimentos, às palavras. Lia muito, observava o progresso da guerra com absorta aflição e intensidade, caminhava, labutava, escrevia cartas para amigos distantes na Inglaterra e na França não ocupada, e evidenciava sincero interesse nas próximas eleições presidenciais. Dormia calmamente, nunca se entregava a lágrimas ou a angústias, nunca tinha sonhos agitados. Obrigara-se além de tudo isto.
Edith tinha uma palavra para tudo isso: fortaleza. Apenas parcialmente estava certa, como Christopher suspeitava. Pois Christopher sabia que Celeste decidira não ousar pensar, nem se permitiria sentir.
Quando Christopher se ausentava, Edith passava os dias com Celeste. Sabia ser ridícula a preocupação nervosa de Christopher pela irmã. Celeste não ficava perturbada em absoluto em estar só. Agradava-lhe a presença de Edith, pois as duas se haviam tornado boas amigas; porém não expressava nenhuma tristeza quando Edith voltava a Endur para estar com Christopher. Edith tinha de lutar para conter seu natural aborrecimento e ciúme quando Christopher, imediatamente após sua volta, insistia em visitar a irmã: "Sozinha naquelas malditas montanhas, só Deus sabe o que lhe pode acontecer!"
Era perda de tempo salientar que Celeste tinha uma casa cheia de criados, duas enfermeiras, e um médico que ia vê-la pelo menos uma vez ao dia. Impaciente, ele não tomava conhecimento da observação de Edith de que não se passava um dia sem que todas as mulheres Bouchards telefonassem para a grande casa solitária de Placid Heights para indagar da saúde da futura mãe, e que pelo menos três vezes por semana uma delegação lhe fizesse breves visitas. No que se referia a Christopher, sua irmãzinha vivia num isolamento precário e selvagem no topo de uma montanha abandonada, onde só olhos muito penetrantes no vale abaixo poderiam captar algum sinal de perigo sob a forma de um lenço a flutuar em um alto bastião. Tentara levar Celeste a passar o tempo de espera em Endur, porém quando ela involuntariamente deu de ombros, ele disse irritadamente, antes que ela falasse:
— Muito bem, muito bem! Sei que você jamais gostou do lugar.
Num quente domingo pela manhã, nos fins de agosto, Edith subiu ao quarto de Celeste, seguindo a bandeja matinal carregada pela risonha enfermeira.
— Bem, queridinha, Christopher deve chegar de Nova York ao meio-dia, de avião, de modo que estou indo para casa. Há alguma coisa que possa fazer por você antes de ir-me?
Celeste estava sentada na cama, escorada por travesseiros, e parecia emocionalmente jovem e indefesa, com os cabelos negros e lustrosos caídos nos ombros. O rosto semelhava marfim polido, e a boca florescia de frescor. Se habitualmente era tensa, e os olhos azuis-escuros estavam sempre fixos, só um observador perspicaz poderia descobrir. Sorriu para Edith, e olhou indiferentemente para a bandeja sendo colocada à sua frente:
— Não, querida, e obrigada por ficar comigo. Odeio aproveitar-me da sua bondade.
— Nada disso — falou Edith, endireitando uma rosa num vaso.
Relanceou um olhar ao quente declive das colinas. Embora ainda fosse agosto, uma névoa obscurecia a distância, e o ar quente e calmo estava pesado com odores fecundos do outono próximo. Árvores sussurravam às janelas; as folhas reluziam à deslumbrante luz do sol. Por todo o campo o silêncio fulgurava. Edith podia ver o distante e ofuscante brilho do rio lá embaixo, no vale. Tudo estava em torpor. Embora ainda fosse manhã cedo, os gafanhotos já lançavam estridentemente seus sons agudos e penetrantes, curiosamente enfatizando o silêncio.
Quando Edith se foi, Celeste tomou sem pressa o seu desjejum. Por vezes olhava através das janelas, sentindo a pesada e imóvel irrealidade e inércia em que agora passava a vida. Nada tinha significado para ela. Passava os olhos pelos jornais da manhã e, ante o seu relatório de morte, fúria e destruição na Europa, ela tremia. Atirava longe o jornal. Algo se agitava em seu coração com essas histórias, algo lancinante e que agonizava, e que, se ela o permitisse, a despertaria para uma vida desesperada.
Permitiu que a enfermeira a banhasse e vestisse. O calor do dia subia fortemente. Mesmo as penumbrosas e frescas salas estavam insuportáveis. Em seu vestido branco folgado Celeste saiu para os jardins, um grande chapéu branco de abas largas a proteger-lhe a cabeça. De mãos enluvadas, cortou flores, e respondeu gentilmente aos cumprimentos dos jardineiros. Não encorajou a enfermeira a acompanhá-la, recusando com firmeza a sugestão da moça. Caminhou vagarosamente pelo declive atrás da mansão, e penetrou na fresca sombra verde das árvores entrelaçadas. Bancos e cadeiras brancos espalhavam-se pela grama úmida: ela sentou-se e tirou o chapéu. Pequenos lampejos de luz solar atravessavam as frondes e dançavam em seus cabelos negros e rosto imóvel, inexpressivo.
Sentou-se e ficou imóvel, as mãos no colo, a olhar sem ver diante de si. Acima dela, via o reluzir das janelas superiores da casa que ela e Peter haviam construído havia menos de um ano, e a cor quente dos telhados vermelhos. Ninguém estava ali, no pequeno recanto natural da mata: só ela. Ouvia o esvoaçar de pássaros nos escuros ramos acima dela, e podia perceber retalhos do céu por entre as folhas. Aqui era muito calmo e apaziguante, e bem fresco. Um esquilo correu perto de seus pés, e ela observou preguiçosamente suas vivas correrias. Ele virou a cabecinha e a mirou com olhos penetrantes, sentando-se como uma criança nervosa. Ela lambeu os lábios e assobiou suavemente para o animalzinho, depois sorriu. Subitamente um pássaro voou através da quente obscuridade verde, um súbito raio de luz em suas asas ansiosas.
Houve um movimento forte e vital em seu corpo, e Celeste lhe pôs a mão em cima, como para acalmá-lo. O movimento aumentou: agora ela estava ansiosamente consciente de uma dor surda, porém insistente em suas costas. Apreensiva, esperou. A dor se fora tão rapidamente como viera. Mas sua testa ficou subitamente úmida, e ela estava cônscia de uma fraqueza esquisita.
Seu período de gravidez já quase passara, mas a criança só era esperada daí a umas três semanas, segundo os cálculos do médico. Celeste firmemente dominou as novas pulsações de seu coração, respirou fundo, recostou-se no banco.
Mas não podia controlar os pensamentos que agora saltavam insistentemente em sua mente perturbada de um modo novo. Pela primeira vez pensou com atenção na criança que se movia com tamanha urgência em seu corpo, chamando-lhe a atenção enfaticamente para sua própria vida. Pela primeira vez, percebeu-a como um indivíduo, uma criatura humana dotada de consciência, caráter e espírito em potencial— e não, como de costume, como uma massa informe de carne viva sem a menor relação com ela. Ela estava enormemente abalada. Que faria com essa criatura, como recebê-la, como considerá-la? Estaria ali, naquela casa, a casa de Peter, uma presença insistente, exigente, dia a dia mais consciente. Quando seu corpo se aliviasse dela, sua mente e sua alma não se aliviariam. Estaria com ela sempre, até o dia de sua morte.
De súbito, sentiu-se aterrada! Havia fantasiado vagamente que a criança, uma vez separada dela, desapareceria nas névoas do passado, e não mais seria parte dela. Em seu estado confuso, pensara poder esquecê-la quando nascesse. Mas agora sua presença se fazia sentir bem junto dela, suas vidas bem ligadas...
Pensou, pela primeira vez: "Será menino ou menina?" Sua mente recém-despertada lhe aguçava os pensamentos, fazia-os mais nítidos e brilhantes. Disse a si mesma: "Espero que seja uma menina ..." E ao pensamento de uma filha, uma filha que viveria com ela nesta casa, cuja voz ouviria, que bem cedo estaria a correr nesses bosques... seu coração se moveu estranha e profundamente, e os olhos se lhe encheram de lágrimas! E então a pesada apatia a deixou, e ela se sentiu leve, impetuosa e muito vivida com uma espécie de alegria doce e trêmula.
Não se permitira pensar em Henri durante os últimos meses. Não pensava nele agora. Só pensava em seu filho, e na forte e delirante doçura que o pensamento dessa criança lhe trazia. Criança que era toda sua: não pertencia a ninguém mais. Não vira Henri desde o enterro de Peter, nem, em sua profunda angústia, desejara vê-lo. (Annette, na presença de Celeste e de toda a família, certa vez observava pesarosamente: "Henri tem-se ausentado tanto estes últimos tempos, indo a Nova York e Washington, que dificilmente posso vê-lo".) Contudo, Annette trazia mensagens amigas dele, esperando que Celeste estivesse bem; e ela repetira esses recados firmemente na presença das demais mulheres Bouchards, olhando-as com aqueles adoráveis olhos azuis, de modo que não ousaram relancear para os lados.
Agora, interessada nos pensamentos de seu filho, Celeste nem pensou em Henri. Construíra um muro intransponível entre sua consciência e qualquer lembrança dele. Henri nada tinha a ver com essa criatura que agora se movia tão forte e determinadamente sob o coração de Celeste. Bateu as mãos sobre o corpo inchado, e um brilhante e lindo sorriso lhe veio aos lábios.
De repente, estava impaciente pelo nascimento, por ver a filha, por sentir-lhe o corpinho. Suas mãos se ergueram um pouco, como que para segurar o bebê, tocar-lhe a pele macia, acariciar-lhe a cabecinha e a carne. Seu medo, sua aversão, seu terror e agonia, se haviam ido para sempre.
E agora tudo que via à sua volta — a terra escura e úmida, os troncos das árvores, os reluzentes fragmentos de luz solar que se derramavam sobre seus joelhos e mãos, a incandescência dos telhados vermelhos muito acima dela — parecia muito emocionante, demasiado belo, para ter nascido. Ela emergira do mundo sem cor e sem forma em que vivera, e penetrara em odores penetrantes, sadios e encantadores, coração palpitando braviamente e com profunda alegria. Estava como quem emerge das cinzentas cavernas da morte para uma vida plena e ardente!
As lágrimas lhe corriam: provou-as aos cantos da boca sorridente. Sua salinidade era aguda e forte para sua nova consciência. Os pulsos palpitavam, como se tivessem tirado um transe de cima deles. Quando outro esquilo correu perto dela e a espiou indagadoramente, ela riu alto, e estalou os dedos para ele, tornando a rir.
E agora todo o seu espírito estava como uma cidade que fora congelada e abafada sob um nevoeiro escuro e glacial, e por fim toma a sentir a delícia e o sol da vida. Uma a uma, as torres proibidas em sua mente se erguiam da névoa. Percorreu todas elas, escancarando portas e janelas, deixando entrar a luz, não mais com apreensão, medo, desesperança ou tristeza. Olhava em toda parte, destemidamente, por vezes com uma ponta de tristeza, mas sempre com coragem.
Pensou em Peter, em sua quieta sepultura, e em todos os anos de amor e compreensão, dor e gentileza, que tivera com ele. Nestes meses, desde que ele morrera, só pensara nele com angústia e confusão, fechando uma porta sobre o rosto que lembrava dele — quando lembrava... Parecia-lhe que ele não havia realmente morrido, mas que a esperava, triste, solitário, na escuridão, e que ela se afastara dele em sua dor e seu remorso. Agora ela abria a porta e o olhava em cheio, sorrindo, lágrimas a correr-lhe. E lhe parecia que ele também lhe sorria e oferecia sua mão, sorrindo gentil e indulgentemente e com amor, como se ela se tivesse amedrontado por coisas tão pequenas e insignificantes que nem o atingiram. Por que ele devia ter sabido, sempre — ela se dizia, maravilhada e com humildade. Lembrava-se como havia explodido com ele no último dia, gritando histericamente contra si mesma, e como ele a silenciara, e apenas tocara a sua mecha branca em meio aos negros cabelos. Ele compreendera muito; quisera que ela tivesse alguma felicidade, já que ele mesmo não lhe pudera proporcionar isso. "Como falar em perdão, entre mim e você?" — ouviu-o dizer, quando tornou a olhá-lo francamente. Como falar em perdão num universo tão imenso, onde há tanta dor e tanto que fazer? Quando o deixou para ir a outra parte nas torres proibidas, sentiu-o a olhá-la, de rosto tão radiante como o próprio sol...
Tanto que fazer! Havia toda uma vida diante dela, talvez não uma vida de alegria delirante, mas de serenidade, força e paz. Havia uma criança para amar e para conhecer, e um lugar a ser feito no mundo para essa criança. De repente, sentia-se cheia de pressa, de impaciência, do desejo de voltar a viver! Nunca vivera realmente, exceto por aqueles breves dias e noites em que estivera com Henri, e depois tinham sido desgraçados dias e noites, cerceados, não livres.
Levantou-se, respirando rápida e levemente, como respira um prisioneiro libertado. Com mãos rápidas empurrou os cabelos para trás, pegou o chapéu, e voltou-se para o caminho que a levaria de volta para casa.
Foi quando viu Henri na arcada das árvores, a olhá-la.
Capítulo 51
Ela o viu sem choque, surpresa ou medo. Ficou de pé, na verde penumbra das árvores, imóvel, o chapéu a dançar-lhe na mão, o folgado vestido branco a mover-se fracamente; ele a olhava calmo, a luz intensa do sol desenhando-lhe a silhueta.
Começou a andar lentamente em direção a ela, que o esperava. Ele viu a brilhante luz azul dos olhos dela, a firme delicadeza do rosto, tão palidamente luminoso na sombra.
— Alô, Celeste! — disse, suavemente. E ergueu as mãos.
Ela não se moveu. Mas sentiu o coração a arder-lhe no peito, e um nó na garganta, e um longo tremor por todo o corpo. Ela sentiu a terra úmida escorregar sob seus pés, e a longa expansão ascendente de alegria que lhe correu pelas veias. Ergueu os braços e esperou, murmurando sons fracos e suaves.
Ele pôs os braços gentilmente em torno dela, que lhe apertou o ombro, os dedos contraídos no tecido do seu casaco. A paz e a felicidade que experimentara alguns momentos antes chegaram ao arrebatamento, ao êxtase, e à ruptura de uma doce aflição. Ela não sabia que estava chorando, ou que soluçava coisas incoerentes: agarrou-se a ele como o faria uma criança que tivesse estado perdida.
— Tolinha! — disse ele, afrouxando os braços dela; e enxugou-lhe os olhos e as faces molhadas. Mas as mãos dela continuavam a agarrá-lo inconsciente, e ela começou a rir um pouco, meio sem fôlego, murmurante...
— Pensei que você jamais voltaria...
Ele tornou a pôr-lhe os braços em torno e sentou-se com ela, no banco branco de madeira que ela acabara de deixar. Manteve-a bem apertada:
— Eu não fui embora: você me deixou, pequena imbecil!
Ela só podia olhá-lo devoradoramente, e então, muito devagar, a alegria começou a abandonar seus olhos, que se tornaram tensos e tristes.
— Tinha de fazê-lo — ela sussurrou. — Você não devia ter voltado. Não devia ter voltado...
Porém ele apenas sorria para ela. Disse, por fim:
— Sei. Sei tudo a esse respeito.
Ela falou, fracamente, apertando as mãos:
— Então, sabe por que não devia ter vindo.
— Você sempre foi meio boba, e muito romântica — ele replicou. — Assim que ouvi falar na criança, por Christopher, soube por que você se havia afastado de mim. Mas agora, que as circunstâncias mudaram, já não importa, não é mesmo?
Com um triste choque, ela viu que ele ainda não havia compreendido, que estava em perigo mais grave que nunca. Gritou:
— Você não deve voltar, não sozinho, nunca outra vez! Tem de entender isto, Henri!
— Bom Deus! — disse ele, impaciente. — Você realmente pensa que pretendo proclamar que este é meu filho? Por que não pode ser sensata, Celeste...
Porém ela o interrompeu, num medo apaixonado:
— Todos sabem, todos eles! Se você vier sozinho, se tentarmos continuar como antes, não haverá como ocultar nada, apesar do que todos tentem fazer!
Ele franziu a testa, perplexo, tentando compreendê-la:
— Bem, então se todos sabem, na família, que importa? Eu nunca perderia tempo em cogitar se eles sabem, ou se sabem, que diabo importa isso, de qualquer maneira. No que se refere a quem quer que seja, fora da família, isso não me incomoda em absoluto.
O medo dela tornou-se frenesi:
— Henri, você tem de dar-se conta de que, enquanto for casado com Annette, não pode vir aqui... sozinho! Não podemos ver-nos... a sós!
Ele a fitou, subitamente frio e hostil:
— Olhe aqui, tenho certeza de que Annette compreende tudo a este respeito. Assim...
Ela ficou silenciosa, muito branca, e trêmula. Sentia o férreo egotismo dele, e sua formidável cegueira. Por fim disse, fracamente:
— Não posso explicar-lhe o que desejo dizer-lhe, Henri. Ainda não. Mas deve confiar em mim. O que todos sabem, fora da família, é que se trata do filho de Peter. — E pôs a mão no próprio corpo. — Mas se outros jamais souberam...
— Não saberão — ele afirmou. — Nunca souberam nada, antes. Além disso, não estou certo se me incomodarei com isso...
Como à luz de um relâmpago, Celeste viu a fisionomia de Antoine. Levantou-se, levada por um senso de pressa desesperada. Ele também se ergueu, e pôs o braço firmemente em torno dela. Ela lhe viu o rosto, transtornado agora como nunca o vira antes, e muito comovido. Ele disse, rouco:
— Que pensa que tive de sofrer, todo esse tempo, sabendo-a aqui sozinha após a morte do pobre Peter, sabendo que estava apavorada e doente? Mantive-me afastado: sabia que não queria que eu viesse. Sabia que tudo era um absurdo, mas o fiz pensando era você, bobinha. Suponho que não teve um simples pensamento para o que tudo isso significava para mim, teve?
Ela se arrancou de seu braço:
— Claro que tive! Por isso eu sabia que você não devia vir aqui! Pois não percebe? Se não, eu não posso dizer-lhe, Henri.
Olhou-o, em agonia. Ele lhe relanceou o olhar, os olhos descorados reluzindo:
— Não sei ao que vem tudo isto. Sei é que tinha de vê-la, apesar dos seus disparates. Fiz Edith prometer que estaria aqui com você, e eu pretendia afastar-me, por algum tempo. Mas tive de vir hoje.
Ela implorou, com ansiedade patética:
— Você pode vir sempre, com Annette, com Edith, ou com Christopher. Mas nunca sozinho, nunca mais.
— E suponho — ele disse, rigidamente — que, quando meu filho nascer, terei de ficar a distância, e deixá-la passar por tudo isso sozinha? E depois visitá-la, bonitinho, com minha esposa, como um parente afeiçoado? — Acrescentou, com crescente rudeza: — Já pensou no que significará para mim ter todo mundo a falar-me do "filho do pobre Peter"? E saber que será sempre assim... o "filho do pobre Peter"?
Estava prestes a dizer muito mais coisas brutais e violentas, mas não o fez, em face do medo e do desespero dela. Mas disse:
— Mais tarde, as coisas serão diferentes. Dentro de quanto tempo, não sei. Sempre lhe disse que não poderia casar com você enquanto Armand viver. Você já sabia disso. Mas quando ele morrer, Annette me dará o divórcio e poderemos casar-nos. Não imediatamente: seria por demais óbvio. Porém mesmo então, durante anos, para sempre, meu filho ainda terá de ser o "filho do pobre Peter"!
"Meu Deus! — ele pensou. — Mesmo que eu adote o menino, para salvar as aparências, ele sempre pensará ser filho daquele pobre enfermo! Hão de dizer-lhe isso... e terei de deixar de que o façam!"
Algo do que pensava se comunicou a Celeste: seu medo diminuiu ao surgir de sua compaixão. Jamais sentira compaixão por Henri, e estava muito espantada. O rosto dele, pálido e rude, lhe flutuava diante dos olhos. Estendeu-se as mãos e, quando ele não as pegou, agarrou-lhe os braços. O amor lhe dava uma rara agudeza.
— Pois não vê, Henri — implorou — por que não pode vir aqui, agora? Ou nunca estar só comigo, até... até que esteja em condições de casar comigo? Temos de pensar no bebê. Não... não deve haver qualquer tipo de escândalo quanto a ela...
— Ele — corrigiu ele, automaticamente. Depois riu um pouco. Puxou-a para ele, gentilmente: — Muito bem! Percebo o que tem estado em sua mente todo o tempo: fui um idiota em não saber disso. Era tudo pelo bem do bebê, não era?
— Sim — disse ela, em voz abafada, os lábios apertados contra o pescoço dele, cujos braços a estreitaram fortemente.
— Isto é o diabo! — ele disse, suavemente. — Pare de choramingar, agora: não é bom para você.
Então segurou-lhe o rosto com ambas as mãos e a olhou com tal paixão, tão comovida, como nunca antes lhe demonstrara:
— Minha querida, diga-me que está bem, que não se sente muito infeliz.
— Oh, não, Henri! Não me sinto infeliz! Ao contrário, estou feliz! Antes que você chegasse, eu estava justamente sentada aqui, pensando em como sou feliz! — Ria agora, mas também chorava; virou a cabeça e beijou-lhe a mão.
— Seremos felizes novamente, minha querida. Talvez não demore muito. Não será muito ruim esperar?
— Eu poderia esperar para sempre, se você continuar a amar-me — ela respondeu com simplicidade. — Nada mais importa realmente.
Sorriu para ele, o rosto molhado brilhando de ternura e uma nova alegria. E então seu rosto se transformou, e ela gritou, agudamente. Ele agarrou-lhe o braço:
— Mas o que é isso, Celeste?
Ela se esforçava por falar, apesar da súbita onda de dor em seu corpo. Respirou com dificuldade, enquanto ele a segurava. Ele viu o suor surgindo em sua testa e no lábio superior. Seus olhos azuis estavam dilatados de medo e sofrimento.
Então ele a ergueu nos braços, depressa, levando-a para fora do pequeno bosque, e pelo caminho que levava à casa.
Christopher e Edith, que haviam entrado pelos jardins atrás da casa para visitar Celeste, ficaram aturdidos ao ver Henri subindo rapidamente o declive em direção a eles, carregando-a nos braços. Christopher se recuperou primeiro: correu para Henri e sua irmã. Henri, esquecido de tudo que não fosse Celeste e sua situação aflitiva, olhou para Christopher com alarma e raiva:
— Não fique aí parado! — gritou. — Chame alguém!
— Bem, diabos me mordam! — falou Christopher.
Capítulo 52
A criança, prematura por três semanas, nasceu duas horas depois. Era um menino, de corpo forte e comprido, mas extremamente magro, "como uma enguia" — observou Christopher, para indignação de Edith. O bebê não era absolutamente vermelho ou enrugado. Tinha muito cabelo claro, e mãos fortes, feições bem marcadas, e não se parecia com a mãe em absoluto.
— E se alguém achar que se parece com Peter, isso será um triunfo da imaginação — comentou Christopher. (Mais tarde Edith lhe trouxe uma desbotada fotografia dela mesma e Henri, quando crianças. Ela, uma garotinha solene, de rosto franco e carrancudo, de pé ao lado de uma cadeira de espaldar alto; seu vestido, com renda na bainha, chegava até o cano das botas com borlas. Na cadeira de alto espaldar sentava-se Henri, um menino de rosto quadrado e belicoso, com um topete de cabelos fofos, pálidos olhos fixos, olhar pesado. Ao ver a fotografia, Christopher desatou numa risada:
— Esconda essa coisa... enterre-a! —- preveniu.
Celeste esteve muito doente. Os meses de medo, sofrimento e desespero, de coragem forçada e íntima angústia, agora cobravam seu preço de fraqueza e lassitude. Só às seis horas daquela tarde é que permitiram que Henri, o irmão dela e Edith a vissem. Dormira o dia inteiro, respirando inquietamente, resmungando um pouco. Ao abrir os olhos, viu à luz da lâmpada o rosto de Henri inclinado sobre ela. A expressão dele era tensa: quando tentou sorrir, só conseguiu produzir uma careta convulsiva. Ela tentou falar, porém ele pôs-lhe gentilmente a mão nos lábios. Ele lhe sentiu a quentura e a secura da pele quando ela lhe beijou a mão fracamente: a seu toque ele estremeceu e suas narinas se alargaram como se fosse colhido por uma dor aguda e repentina. Ela voltou a dormir, a mão quente e trêmula na dele, e ele sentou-se a seu lado, imóvel, apenas olhando-a, curvado sobre o leito. Os médicos e enfermeiras estavam ali, porém ele não os via. Seus olhos permaneciam fixos nela; a cada vez que Edith e Christopher espiavam no quarto, parecia-lhes que ele não movera um músculo. Uma ou duas vezes os médicos tentaram persuadi-lo a deixá-la, porém ele não dava sinais de tê-los ouvido.
Edith estava inquieta:
— Imagino o que hão de pensar — comentou com Christopher. Estava com o marido no terraço fresco, recostada em sua cadeira, exausta: — O Dr. Morton já está com um olhar esquisito. Todos têm um medo de morte de Henri: ele sempre atemoriza as pessoas. De qualquer jeito, já os vi trocando olhares, olhares muito especiais.
Christopher deu de ombros:
— Pode contar em que nada dirão. As enfermeiras... aí o caso é outro.
— A família tem telefonado regularmente durante horas — informou Edith, desesperançadamente. — Sempre digo que ninguém pode ver o bebê ou Celeste por muitos dias, mas amanhã pela manhã, ou à noite, haverá por aqui uma delegação. Temos de tirar Henri daqui.
— Então, mande chamar, um guindaste — replicou Christopher.
Sua voz estava tão grosseira que Edith o olhou bruscamente.
Aquele pálido rosto cuneiforme, com sua fina pele enrugada como um pergaminho, envelhecera, ficara encovado e sem vida. "Não adianta!" — pensou Edith, desanimada, mas com a velha raiva a arder-lhe no coração.
— Acho — falou Christopher — que preciso de uma bebida. Muita bebida! Quer trazer-me uma, querida?
Edith entrou na casa. Voltou com o copo gelado, e Christopher bebeu rapidamente. Odiava uísque, mas mostrava uma espécie de avidez ao beber. A noite estava muito escura e silenciosa, exceto pelo estridular de grilos nos gramados quentes e secos, e pelo espasmódico farfalhar de árvores que se não viam. No vale abaixo, luzes piscavam como estrelas distantes, e uma ou duas vezes um avião trovejou acima de suas cabeças, suas luzes, verdes e vermelhas de navegação a mover-se como planetas coloridos através do céu sem luta. De repente houve uma aceleração do vento, e da terra e dos gramados calcinados pelo sol subiu um odor forte e apaixonado.
— Ele ainda não viu o bebê — falou Edith. — Pensei que estivesse mais interessado...
— Há horas... — respondeu Christopher, quase num murmúrio. — Por que não tenta tirá-lo de lá agora? Diga-lhe, se necessário, que há algo de errado com a criança.
Edith considerou a ideia por um momento:
— Pois vou fazê-lo — disse, indiferentemente. Suspirou: — Com todas essas encrencas... eu sabia que ia ser ruim, mas não tanto. Vai ser muito difícil para Henri. Sempre será difícil. Mesmo se ele e Celeste se casarem, o jovem sempre será conhecido como filho de Peter. Isso não será justo para Henri. Conheço-o muito bem.
Foi uma felicidade que não pudesse ver o súbito sorriso maligno de Christopher, nem sua súbita expressão de prazer. Mas sentiu-lhe a malignidade e disse, numa voz que se elevava:
— Você sempre o odiou, Kit. Terá satisfação em penca observando-o durante os próximos anos...
— Absurdo... — murmurou ele, languidamente. — De qualquer maneira, você não pode esperar que eu goste dele, não é? Ninguém jamais o fez, a não ser uma porção de mulheres. Sempre fiquei cogitando qual o segredo de seu encanto com as mulheres...
— Ele é um homem, não um bárbaro polido — ela disse, com muita amargura.
— As mulheres são atávicas — observou Christopher, bocejando. — Preferem clavas a mãos beijadas.
Edith tornou a subir. Espiou no amplo e bonito quarto de Celeste, com as macias cortinas que se enfunavam gentilmente à brisa noturna. Ao fundo ardiam luzes sombreadas; em volta do leito branco havia um largo círculo de sombra. Henri continuava sentado ali, ao lado de Celeste, a mão descansando junto do rosto dela. Celeste dormia, e era evidente que Henri, também, caíra num cochilo. As duas enfermeiras cochichavam ao fundo, enquanto preparavam várias coisas na mesa. Edith podia ver a negra massa lustrosa dos cabelos de Celeste no travesseiro, e seu quieto e branco perfil. Respirava facilmente, agora, e não se mexia.
Edith hesitou. Deu uma olhada nas jovens enfermeiras: sorriam. "Absurdo!" — pensou Edith irritada. — "Provavelmente estão apenas se divertindo com algumas das suas piadas obscenas: as enfermeiras são afamadas por isso. Não estão pensando em nós absolutamente." Foi em pontas de pés até o irmão. Ao leve som que fez, as enfermeiras se voltaram rapidamente, com respeito. Vieram em sua direção, e ela lhes sorriu com certa reserva. Sob o franco olhar das moças ela se curvou sobre Henri e o sacudiu. Ele abriu os olhos e a fitou inexpressivamente. Ela sussurrou:
— Henri, queremos que vá ver o bebê. Pode haver algo de errado...
Então os olhos dele relampejaram subitamente. Moveu-se firme em sua cadeira, depois olhou depressa para Celeste. Levantou-se e se inclinou sobre ela: dormia pacificamente. Olhando pelo canto dos olhos, Edith viu as enfermeiras trocando olhares significativos, ou, pelo menos, assim imaginou. Cresceram e se aceleraram sua ansiedade e sua raiva. Gostaria de agarrar Henri pelo braço para apressá-lo, porém ele permaneceu, inclinando-se sobre Celeste, por vários momentos mais — enquanto ela forçava suas feições numa expressão de funda indiferença.
Finalmente Henri se endireitou, e seguiu a irmã até o quieto corredor. Edith fechou a porta ao passar. Henri voltou-se para ela:
— De que se trata?
— É o bebê. Há um bebê, sabe. — respondeu a irmã, irônica.
Então a expressão de Henri mudou:
— Sim? Que há de errado? — perguntou, asperamente.
— Nada. — Edith suspirou e deu de ombros: — Porém eu tinha de tirá-lo de lá, Henri. Quero que pense um pouco, bichinho. Sabe há quanto tempo estava aqui? Annette sabe onde você está?
Não disponho de muito tempo, meu querido, mas quero que compreenda que não deve voltar aqui sozinho. Venha com Annette...
A pele em torno dos olhos de Henri se encolheu e enrugou. Então afastou-se dela. E disse, abruptamente:
— Quero ver a criança.
Rezando para que uma das enfermeiras não os seguisse imediatamente, Edith abriu caminho pelo vestíbulo até o quarto claro e arejado que fora preparado para berçário. Henri nada viu das paredes pintadas ou do branco mobiliário. Só viu o berço, a um canto, longe da lamparina que ardia numa mesa distante. Foi diretamente ao berço e, em profundo silêncio, contemplou seu filho.
Edith não era dada a compaixão fácil, mas, quando viu o irmão, as grandes mãos quadradas apertando a grade do berço, cabeça e ombros curvados sobre o bebê, ela desviou o olhar, com um aperto na garganta. Afastou-se uns dois passos, olhos nublados, ofuscados à luz fraca. Henri ali ficou por muito tempo. O bebê acordou e mexeu os lábios. Um pequeno punho se ergueu espasmodicamente, depois tombou num movimento inquieto. A luz ondulava suave sobre a grande cabeça redonda.
Edith ouviu Henri mover-se. Afastaram-se do berço e sorria:
— Medonho, não? E não é muito pequenino, ou coisa assim?
A irmã riu suavemente:
— Não, ele é bonito, querido. E bem grandinho, embora seja um tanto prematuro. Está magrinho agora, mas daqui a um mês você nem o reconhecerá!
Abriu-se a porta e uma das enfermeiras entrou, os grandes olhos castanhos ávidos de curiosidade. Apressou-se até o berço e olhou bem o bebê:
— Mas é lindo, não é, Sra. Bouchard? — arriscou, num sussurro. — Um bebê normal e sadio, embora um pouco prematuro. Diz o doutor que ele vai indo muito bem.
Henri estava a ponto de falar, mas encontrou o olhar firme e de advertência de Edith. Acompanhou-a para fora do quarto. Só com ela, relaxou um pouco, e passou a mão na cabeça.
— Vá para casa, Henri — falou Edith. — Tudo está bem agora. — Hesitou: — Em breve as coisas melhorarão muito, sei disso.
Porém ele se afastou dela sem uma palavra, e se dirigiu à escadaria.
Capítulo 53
Inspirados pelo mesmo sadismo que animou o populacho romano a lutar por assentos bem à frente nos circos, para observar todas as expressões nos rostos dos atormentados nas arenas, os Bouchards afluíram em grosso ao casarão de Placid Heights para visitar Celeste. Ficariam extremamente desapontados se Henri não estivesse lá quando chegassem. Quase como um só homem, eles o odiavam e o temiam. Queriam observar-lhe a expressão quando falassem do bebê, ou de Celeste, ou do "pobre Peter, que jamais conheceria o filho".
Mas Henri nunca possuíra uma compostura "vivida". Ninguém, jamais, fora capaz de adivinhar-lhe os pensamentos. Mesmo suas raras violências tinham sido tristes, ou atenuadas, como um pesado dia de novembro. Nunca mostrara qualquer alegria notável, entusiasmo ou prazer ao observador casual, e se um pouco disse quebrara sua reserva, só Celeste percebera. Portanto, sua impassibilidade natural o protegia contra a furtiva malícia da família, como o protegera em intrigas, conspirações, e múltiplas maquinações. Essa impassibilidade é que lhe proporcionara uma espécie de terribilidade, uma violência potencial que ninguém jamais desejava evocar.
Ele veio com Annette, agora uma figura tão galante como patética para os parentes, que com frequência a fitavam com a vigilante especulação que passava como admiração com os Bouchards. Ele veio como um parente interessado, permanecendo ao lado da esposa enquanto ela ria e murmurava coisinhas para o bebê, tocando-o gentilmente. Mas, para sua surpresa, Edith viu que ele olhava para a mulher com uma curiosa intensidade, mais do que para o bebê, e parecia estranhamente fascinado por sua doce e radiante expressão; e que, quando ela se voltava para ele, sorrindo, os olhos cheios de lágrimas brilhantes, as feições dele tomavam uma expressão comovedora. Estava muito delicado com ela, estudando-a abertamente, e, quando ela lhe relanceava o olhar, com alguma observação a respeito do bebê, ele respondia com gentileza e lentidão. Edith observou que ele sentara ao lado dela — coisa que nunca fizera, quando não obrigado — e que frequentemente lhe buscava a mão, para segurá-la. E Annette, sem olhá-lo, sentava-se muito direita, como uma criança em sua cadeira, olhos brilhantes de alegria e êxtase. Sua voz, sempre tímida e suave, tinha agora um tom mais confiante e alegre, e os parentes, espantados, se admiravam ante sua inteligência viva e sua verbosidade.
Edith, que sempre sentira alguma antipatia pela cunhada, agora estava exausta de piedade e admiração. "Ele lhe é grato" — pensou. Embora essa gratidão parecesse um insulto à terna e valente Annette, pois sua coragem possuía uma nobre grandeza sublime demais para merecer compaixão. Também notou que Annette nunca visitava Celeste a sós, e Edith, que passava a admirá-la, agora se sentia complemente humilde pela compreensão dela. Porém ela estava dominada pelo espanto: como podia Annette suportar isto? Como podia contemplar sua infelicidade, e traição que lhe faziam, sua solidão e tristeza, com olhos tão firmes, tamanha fortaleza, e sorrir com tal firmeza como o fazia? Claro, ela amava tanto a Henri quanto a Celeste: Edith compreendia isso. Ela pretendia protegê-los, e à criança. Mas — pensou amargamente — há alturas às quais o amor pode elevar-se e que são proibidas para olhos mais egoístas.
Comparada a tão nobre conduta, a coragem de Celeste parecia densa e até sombria, como deve ser toda coragem defensiva. Recebeu as congratulações dos parentes com seu sorriso leve e fixo, e ouviu os elogios à criança em silêncio. Parecia interessada nos próprios pensamentos, e Edith, perversamente, desejou-lhe boa sorte com eles. Pois Edith, nesses dias, era movida por uma dúzia de diferentes emoções, e sentia-se exausta e irascível por esses conflitos. Por vezes ficava exasperada com o irmão, e odiava Celeste, porque ambos eram um dreno em sua compaixão. Mas sempre olhou Annette com humildade e ternura.
Henri, que devia ter compreendido representar um perigo para o filho, nunca vinha sozinho, embora tivesse muitas oportunidades de não ser observado. Entretanto, escrevia constantemente para Celeste. Edith sabia disso. Viu como Celeste buscava ansiosamente entre a correspondência, e como corava à vista de certo envelope quadrado, e como queria estar só para abri-lo. À noite, sentava-se na cama, escrevendo copiosamente, agradecendo aos amigos os presentes e as cartas. Mais tarde, Edith vinha apanhar a correspondência, para selar. Celeste sabia, claro, que Edith veria o grosso envelope endereçado a Henri no escritório, mas, quando as duas voltavam a encontrar-se, não se falava no assunto.
Muitas vezes Henri estava afastado de Windsor, fazendo curtas e frequentes viagens a Nova York e Washington. Parecia muito preocupado após essas jornadas, e o sulco entre suas sobrancelhas ficava mais pronunciado, bem como mais tristes que nunca as rugas em torno de sua boca. Christopher contou a Edith que Henri tinha outro amor em Washington, uma jovem viúva vivaz e feliz, proprietária de um dos mais importantes jornais de Washington; mas, aparentemente, ele não tinha lá muito prazer ou descanso no convívio com a moça. Após sua volta, visitava Placid Heights com Annette, e sentava-se em abstrato silêncio enquanto Annette conversava alegremente com Celeste, ou admirava o bebê.
Havia muitas coisas a perturbá-lo nesses dias, e nem todas estavam relacionadas com Placid Heights, Edith sabia. A temível blitz irrompera de súbito na Batalha da Inglaterra: os jornais traziam histórias espantosas sobre a terrível devastação das cidades inglesas.
Edith não amava a Inglaterra. Mas, como a Inglaterra permanecia só, num mundo terrífico, odioso e indiferente, de cabeça erguida, sangrando por feridas incontáveis, de olhos abertos, forte e cheia de coragem desesperada e inabalável — despertou, em inimigos e amigos indiferentes, a admiração que só pode ser dispensada aos nobres e heroicos. "Ela aguentará?" — perguntava o mundo. "Aguentarei!" — afirmou a Inglaterra — "Quero aguentar! Não com a ajuda de Deus, não com a ajuda de amigos temerosos, não pela graça dos céus! Mas apenas com a ajuda e o socorro de meu valoroso coração, meu sangue intrépido, a virtude de meu povo inabalável! Aguentarei sozinha, mas destemida, e nem a fúria dos homens nem a deserção de Deus podem derrubar-me!"
Não se tratava da epopeia de reis, de capitães ou de gente da alta sociedade. Mas sim do zé-povinho, dos pequenos lojistas, dos lavradores esfomeados, dos camponeses de feitorias e moinhos, da prostituta e da balconista, da velha vendedora de flores e do entregador de jornais, da mãe modesta e desarrumada nas moradias, dos carreteiros, do mecânico esfarrapado e das crianças em suas escolas devastadas. Era a epopeia até mesmo dos desesperados ladrões e ratos de esgoto, dos miseráveis pequenos salafrários e bêbedos, dos limpa-chaminés e dos lavadores de vidraças. Assim, como das pessoas anônimas, traídas e confusas. Os heróis troianos, os "posudos" wagnerianos, os capitães com suas espadas — onde estavam agora? O coro grego do povo, erguendo suas vozes sombrias em um longo crescendo de tragédia, abafava as vozes vistosas, mas sem valor, dos inúteis e dos ricos. Era a agonia de todo um povo, e possuía uma grandeza e sublimidade além da de qualquer rei em tormento, ou qualquer exército em retirada sem esperança, ou de qualquer Napoleão em Santa Helena. Era a agonia de um mundo, traído, abandonado e atacado por uma centena de homens — acomodados em cada grande capital do mundo — a comungar secretamente, em crescente consternação e espanto.
Pois lentamente se tornava evidente que o povo da Inglaterra não morreria, que a Inglaterra não cairia. Possivelmente seu rei procuraria refúgio em outro país, seu Parlamento talvez se dispersasse em desordem, e seus navios se evaporassem na noite com seu carregamento de traidores, apavorados e covardes. Mas a Inglaterra permaneceria. O povo não morreria.
Por algum tempo, mesmo os loucos inimigos do povo do mundo ficaram silenciosos. As irradiações traiçoeiras através do rádio americano foram temporariamente silenciadas. Só se ouvia a voz de Winston Churchill, alta, forte voz solitária, na escuridão e na fúria, erguendo-se sobre os telhados e torres de milhares de cidade, soando clara e firme acima do crepitar das chamas e do escarlate de cem fogos, acima do estrondo destruidor de paredes desabando, e do pranto de um povo a sangrar. E o mundo ouviu aquela voz de resolução heroica, de fé apaixonada e orgulho triste, mas exultante!
"Aguentaremos sozinhos" — disse ele.
"Não — pensou Edith — Vocês não estão sós. Existe um poder invisível na paixão do povo obscuro, existe um poder invisível nas preces da multidão, fluindo de cada obscura fronteira de cada país obscuro."
Henri voltou de Washington, e telefonou a Christopher que viesse de Detroit ao seu encontro. Estava esgotado, mas satisfeito. Disse:
— Bem, conseguimos fazê-lo aprovar, com a ajuda de nossos amigos. O Presidente assinará a Lei do Serviço Militar Obrigatório, amanhã. Nossa próxima tarefa será conseguir ajuda maior e mais eficaz para a Inglaterra, uma espécie de empréstimo, ou leasing, de equipamento de guerra. Sem isso ela não poderá continuar a resistir. Por isso teremos de enfrentar uma tremenda luta no Congresso, para evitar qualquer ajuda assim. Os rapazes certamente estão decididos a que o fascismo vença, especialmente no Departamento de Estado. Porém Hugo está trabalhando arduamente a tal respeito.
"A propósito, existe um amigo dele, o Senador Anthrusters. Lembra-se dele? Seus programas de rádio, sua reunião das Mães contra o Recrutamento, suas denúncias contra "os banqueiros internacionais e os comunistas, os provocadores de guerra, e os judeus, e o imperialismo britânico", e todas as outras contrassenhas e slogans, tudo isso deverá ser lembrado mais tarde. Hugo já lhe incutiu o temor de Deus. Hugo há muito suspeitava de suas ligações com a Inteligência germânica. De qualquer forma, ele enriqueceu subitamente, e é contra qualquer tipo de rearmamento americano, recrutamento, apoio à Inglaterra, e assim por diante. Agora, alguma coisa o aterrorizou: acho que Hugo ajudou. Ele vem de avião, de sua cidade natal até Washington, hoje, para uma entrevista com J. Edgar Hoover. Hugo está lhe dando quarenta e oito horas, e depois revelação pública se ele não ceder. Hoover enviou três homens para guardá-lo durante a viagem, embora eu ache que isso dificilmente será necessário. Bem, as coisas estão em andamento, embora eu não possa ver muita luz ou esperança, ainda.
Duas horas depois, escutando o jornal falado, Henri ouviu um noticioso que o pôs ereto em sua cadeira, com uma exclamação veemente: o avião em que voava para Washington o pusilânime e subversivo Senador Anthrusters se espatifara misteriosamente a apenas duas horas de voo da capital. Com ele haviam perecido vários outros passageiros, inclusive três agentes do Bureau Federal de Investigações. Não fora ainda descoberta a causa do desastre.
Capítulo 54
Em fins de setembro o livro de Peter conseguira vender perto de quatrocentos mil exemplares, vendagem que ia aumentando rapidamente. Enquanto todos os críticos tinham sido unânimes em que era um trabalho "surpreendente e sensacional", a maioria estava incrédula; alguns foram vulgares e cheios de ridículo em seus comentários.
Crítica típica da última espécie:
"Na Terceira Parte o escritor ultrapassa os limites da credulidade pública. A essa parte denomina Conspiração Contra a América. Deveria tê-la chamado Conspiração Contra o Bom Senso. Quem são esses Brouelles, esses Maynards, esses Uptons e esses Crawfords, supostamente envolvidos numa conspiração internacional com outros iguais a eles, em Paris, Londres, Roma, Berlim, Budapeste, Varsóvia, Viena, e Nova York, para garantir o êxito de Adolf Hitler em seu alegado sonho de conquista mundial? Quem são esses financistas fantásticos, esses grandes industriais, esses banqueiros empolados, esse clero dourado-e-escarlate, esses loucos congressistas e políticos, mentirosos e conspiradores, esses aludidos membros de nosso próprio Departamento de Estado e de nosso Congresso? Diz o autor que todos esses nomes são fictícios, mas que os fatos são verdadeiros e espantosos. Só se tem de observar a decidida e apaixonada resistência do povo britânico, dirigido pelas chamadas classes superiores, para sentir apenas descrença nas alegações deste livro: que a Inglaterra é parte de um imenso conluio internacional para fazer de Hitler o supremo ditador do mundo inteiro. Tem-se apenas de olhar a furiosa resistência dos conquistados, mas inconquistáveis camponeses e operários e pequenos lojistas e fazendeiros franceses — que não querem aceitar as amedrontadas imposições do Marechal Pétain — para saber que a França nunca esteve em conspiração para tornar-se vassala de Hitler. Embora Mussolini haja apunhalado pelas costas a França caída, pode-se ter certeza de que o povo italiano não tomou parte nisso.
"Depois o ataque do autor ao clero é covarde, injusto e escandaloso. A Igreja sempre se opôs a Mussolini e Hitler, a despeito da Concordata. Milhares de padres já pereceram às mãos dos loucos de Hitler, milhares de humildes padres tentando proteger e salvar seus rebanhos, na Polônia, na Noruega, na Bélgica ou na França. Estes ataques maldosos sobre um obscuro, mas valoroso grupo de homens dedicados é uma das coisas mais horríveis que este crítico encontrou em vinte anos.
"Afirma o autor que a conspiração continua na América do Sul, onde muitos falangistas vivem agora, e para onde Franco, confessadamente, enviou muitos padres espanhóis. Exatamente no momento em que nosso Presidente tenta consolidar a América do Sul em um bloco Pan-americano, este livro ataca o povo capaz de realizar esse bloco. É atacada particularmente a Argentina. É uma infelicidade que o autor haja cometido erro tão clamoroso. Pois as últimas notícias declaram, bem definidamente, que a Argentina liderará todas as demais nações sul-americanas em um acordo com os Estados Unidos, e que, no caso de um inacreditável ataque contra nós, a Argentina será a primeira das nações nossas irmãs a declarar guerra à nosso atacante.
"Continua o autor, dizendo que em breve a Rússia se alinhará com a Inglaterra e alguns outros aliados democráticos contra os assassinos nazistas. Seria interessante, a esta altura, saber o quão embaraçado ele se sente agora em face do Pacto de Não-Agressão Germano-Russo de agosto.
"Os nomes dos grandes industriais, banqueiros, proprietários de jornais, fabricantes e políticos americanos são confessadamente fictícios, afirma ele. Mas será que ele realmente acredita que qualquer americano são de espírito pode suspeitar que a famosa família Bouchard, Sr. Hiram Mitchell de Mitchell Motors, Sr. Morse do Morse National Bank, Sr. Jay Regan de Walt Street, e todos os outros homens famosos e vigorosos que fizeram avançar o progresso americano, estão realmente numa conspiração para entregar-nos a Hitler, por seus próprios objetivos? Os Bouchards estão agora produzindo enormes quantidades de armamentos, produtos químicos, motores e outros equipamentos de guerra para uso da Inglaterra e nosso. Isso dá a impressão de estarem conspirando com Hitler para a conquista da América?
"Gostaria de examinar as ‘fontes de fatos’ do autor, que ele menciona tão apaixonadamente. Não acredito que existam. E não acredito, também, que qualquer americano inteligente lhe dê crédito."
Era raro que um crítico respondesse ou atacasse um crítico. Mas um homem corajoso escreveu em réplica:
"O famoso crítico de The New York Times destacou a heroica resistência dos britânicos, franceses, poloneses, belgas, holandeses e noruegueses como definitiva negação dos fatos em The Fateful Lightning. Elogia, e muito corretamente, os atos dedicados, humildes, mas intrépidos, do obscuro clero nas metrópoles, aldeias e cidades. Mas omitiu o fato óbvio e insistente de que essa epopeia da selvagem resistência está sendo escrita pelo povo anônimo, obscuro, desamparado — não por seus líderes, não pelos poderosos, os senhores. O pequeno camponês lutando até à morte com seu forcado, o sabotador esfomeado abatendo soldados nazistas nas escuras ruas de Paris, Bruxelas, Copenhagen ou Varsóvia, o humilde padre faminto, de pé tão valorosamente no altar nu de sua miserável igrejinha e sem medo denunciando o invasor sanguinário: essas são as pessoas desarticuladas e sem voz ativa, tão vilmente traídas pelos poderosos de suas próprias nações. Quando expulsarem os assassinos, e os destruírem, então será a sua epopeia. Seus traidores terão morrido, ou fugido para o exílio..."
Outro dizia:
"Desaponta ver uma firma antiga e respeitável como Thomas Ingham’s Sons publicar fantasias inacreditáveis como The Fateful Lightning, e outros mistérios de morte. De uma editora assim só poderíamos esperar o mais fino em literatura contemporânea. É uma desilusão para este crítico vê-la descer a farolagens e a espetaculares mentiras baratas apenas pelo amor do sensacionalismo. Por amor ao dinheiro não pode ser. Acho que The Fateful Lightning será o pior fracasso do ano."
Hawkins leu essas críticas com um sorriso de esguelha. Suas consultas com o gerente de vendas da companhia eram confortadoras. Críticos ou não, os pedidos chegavam por carta, telefone e telégrafo para The Fateful Lightning. Viu o rosto de Peter e, involuntariamente, sorriu seu encorajamento à visão, como se tivesse ouvido uma pergunta.
— Não se pode processar um morto por difamação — disse Antoine, indulgente.
Mas Robert Bouchard, seu primo (filho de Emile e Agnes), replicou histericamente:
— Mas podemos processar Ingham’s! Santo Deus! A família vai ficar parada e deixá-los publicar toda essa coisa a nosso respeito?
— Se processarmos, estaremos a identificar-nos com os "Bròuelles", Bob.
— Mas todo mundo sabe a quem se referia o miserável! — gritou Robert.
Antoine deu de ombros, acendeu um cigarro, olhando-o com interesse:
— Lembre-se: "Se a carapuça lhe serve, use-a"? Nossa única atitude deve ser a de ignorar a coisa. Um silêncio digno, e tudo mais. Ficar acima dos assobios da macacada. Os jornais não ousarão identificar-nos como os "Bròuelles". Teriam de sujeitar-se a um processo, e sabem disso. Quanto ao povo: quem se importa? De qualquer maneira, quem lê livros? Algumas centenas de milhares de simplórios impotentes, de óculos e caspa nos ombros. Mas o povo americano nada lê além da página de esportes e das notícias financeiras, crimes e histórias em quadrinhos. O único modo de focalizar sobre nós o interesse desta nação de retardados mentais seria processarmos alguém, de modo a que houvesse grandes manchetes nos jornais. Se ficarmos calados, os simplórios podem ler, respirar fundo de medo, reverência e indignação, mas a massa do povo permanecerá brilhantemente inocente e ignorante de tudo.
Sorriu:
— Tremo só ao pensar o que aconteceria a todos nós se o povo americano jamais adquirisse a inteligência de um cão superior! Mas, felizmente, não há este perigo...
Mas Robert o olhou, com aqueles pequenos e inquietos olhos de porco.
— Bem, diz aqui no Times que o livro foi comprado por um editor inglês, um editor sueco, e um editor de Buenos Aires. E toda •essa gente lê, mesmo que os americanos não o façam.
Antoine tornou a dar de ombros:
— Não precisamos preocupar-nos com os ingleses... tão cedo! Nem com os suecos. Quanto aos sul-americanos: os padres cuidarão de que o livro não tenha muita receptividade. Que há com você,
Bob? Está sempre espiando embaixo das camas e nos armários, procurando fantasmas...
— Oh, diabo! — exclamou Robert, lamuriento. — E não acho que a Inglaterra esteja acabada. Estão se aguentando danadamente bem! E agora temos esse maldito Empréstimo e Arrendamento com que nos preocupar. Por que vocês não dão um paradeiro nisso?
— Tentamos — a voz de Antoine ainda estava macia, mas havia em seus olhos um fulgor venenoso. — Gastamos meio milhão de dólares em propaganda combatendo isso. Temos três centenas de gorduchos de meia-idade em desfile em frente à Casa Branca, carregando cartazes contra isso. "Mães da América" estão contra o Empréstimo e Arrendamento. Costumava ser: Mães da América" contra o Recrutamento, querendo manter em casa os filhos rapazes. Só ao Jaeckle demos dez mil dólares e o incitamos a um verdadeiro frenesi. Distribuímos trezentos mil dólares a vários cavalheiros em Washington, onde seria mais lucrativo para nós. Colocamos anúncios de página inteira em todo jornal importante do país. Subornamos colunistas de jornais e comentaristas de rádio. Temos centenas de milhares de homens e mulheres escrevendo a seus congressistas. Temos patriotas profissionais berrando a ponto de estourarem os pulmões. Temos padres e ministros falando contra isso como instrumento para arrastar-nos a "uma guerra estrangeira". — E acrescentou: — Nada foi omitido em matéria de coerção, suborno, inclusive de políticos para derrotar a medida. Que eu seja maldito se sei como passou...
— Existe algo de encoberto que não consigo compreender — falou o obtuso e moroso Robert, com energia incomum.
Antoine já não sorria. Esfregou o queixo, pensativamente, dizendo:
— Sim, está-se passando algo... Desconfio que vem diretamente do âmago, mesmo, desta família. Acho que sinto um mau cheiro vindo das bandas de Robin’s Nest. Sim, é isso mesmo...
Robert o fitou, aterrorizado:
— Você quer dizer: Henri? — e sua voz era quase um soluço de medo. O rosto largo enrubesceu com sangue entorpecido e medo, e virou-se para Antoine com aguda apreensão. E então, quando viu o sorriso fixo de Antoine, tão sinistro, tão cheio de repulsa e de ódio por sua pusilanimidade, seu medo chegou às culminâncias do terror. Ergueu as mãozinhas gorduchas, cobertas de pelos pretos, como para defender-se daquele olhar letal.
Desde a mais tenra infância Antoine o fascinara, conduzira-o, subjugara-o com brutalidade refinada e graciosa, dissera-lhe o que pensar e o que fazer, e até escolhera, por sugestão, a esposa para ele. Por Antoine ele sempre nutrira a mais espessa adoração, uma espécie de paixão muda, e aquela impassível e um tanto histérica lealdade só encontrada no homem estúpido. Não importava o quanto Antoine maldosamente o tomasse a risota dos outros quando eram crianças, não importava o quanto Antoine o ridicularizasse, negligenciasse, ou o insultasse levemente — Robert continuava em seus calcanhares como um gordo cachorrinho, considerando o cúmulo da alegria se Antoine condescendesse em se dar conta da sua presença ou falar-lhe. A graça de Antoine, inteligência viva, brilhante sorriso, e ar de segurança e de savoir-faire encantavam Robert, que não tinha graça, que fora amaldiçoado por uma estatura anormalmente baixa e uma largura anormalmente ampla, e que já nascera com um medo natural — uma de suas principais características.
Eram primos: seus pais, Armand e Emile, eram irmãos. Frequentaram as mesmas escolas e universidades, onde Antoine sempre fora o alegre líder e malicioso planejador de escapadas. Lembrara-se, por vezes, de incluir Robert em algumas das escapadas e acontecimentos menos dúbios. Não fora isso e Robert, tão parado, tão impassível, tão fleumático e obtuso teria sido objeto de zombaria de toda a escola, se não completamente deixado de lado. Pois não possuía a menor imaginação, originalidade ou colorido. Arrastava-se penosamente pelas classes, e só sua própria tenaz persistência, sua própria obstinada insipidez que nunca podia imaginar uma derrota, e o irritado treinamento de Antoine, o preservaram de um fracasso total. Diplomou-se com notas sofríveis; mesmo isso espantou seus pais: Emile, que o detestava, e Agnes, que sentia por ele apenas uma piedade indulgente e desdenhosa.
Seu raciocínio lento se refletia nos pequenos olhos castanhos rajados de vermelho, afundados em anéis de carne frouxa, no pequeno nariz gorduroso achatado contra o rosto, e na boca bamba e mal-humorada. Emile às vezes declarava que seu filho se parecia com Armand, seu tio; porém Robert não tinha o olhar de Armand de cautelosa astúcia, e o ocasional lampejo esperto e atento de seus olhos, nem a mente vivaz e astuciosa que fora parte da juventude de Armand. Assim como não possuía aquela terrível intuição, aquela percepção dolorosa e consciência inquieta que tanto atormentara o jovem Armand. Além disso, Armand fora ruivo. Robert tinha cabelos de um castanho turvo. Verdade que tinha as pernas curtas e tortas de Armand e também pés pequenos, mas o corpo que esses suportavam era enormemente amplo e pesado, sólido como pedra mais do que gordo, com ombros fantasticamente largos. Oscilava fortemente ao andar. Mesmo na infância não fora ligeiro nem resistente. Seu cabelo acastanhado era áspero, caindo à frente como uma prateleira sobre as sobrancelhas baixas, o que de certa forma lhe dava uma aparência simiesca, enfatizada por par de orelhas grandes e salientes.
O caráter de Robert, embora confiante em Antoine e escravizado ao cintilante primo, era furtivamente virulento e secretamente vingativo. Sabia não possuir qualidades físicas atraentes. Sabia ser uma figura vagamente ridícula, com seu corpo grande e largo e pernas curtas, sua falta de pescoço, o que fazia com a cabeça grande como uma bola pousasse diretamente nos ombros. Devido a esses traços físicos, que ele por vezes julgava verdadeiras deformidades, odiava todos os bem-formados, graciosos e adoráveis do mundo, à exceção de Antoine. Finalmente, por volta dos trinta, seu ódio se estendera a todos e a tudo, outra vez com exceção de Antoine e, às vezes, de sua pequena e estúpida esposa. Porém o ódio nunca foi violento ou explosivo, ou mesmo ocasionalmente articulado. Jazia nele como um espesso, negro e viscoso poço, um poço de piche quente.
Tristemente, ele deve ter sabido que era um louco e um pateta, desprezado por todos. Em consequência, tornou-se arrogante e vão, dogmático, cruel e com tendência a resistir a tudo. Sua obstinação tornou-se proverbial na família. Só Antoine, e nem sempre, podia influenciá-lo e afastá-lo de noções ou planos preconcebidos. Todos os seus atributos eram animalescos e obtusos. Deliciava-se na brutalidade, especialmente naqueles seus aspectos mais grosseiros e óbvios. Finalmente convenceu-se de que era muito esperto, um sujeito profundo com pensamentos profundos, e extremamente sutil e consciente. "Jamais conseguirão enganar-me" — era seu pensamento constante. — "Não falo muito... mas cuidado!" Via a si mesmo como um daqueles homens silenciosos da História, incompreendido pelos contemporâneos, mas reverenciado pela posteridade! Além dessas encantadoras qualidades, ele também possuía a avareza e a voracidade dos Bouchards. Era obstinadamente violento, sua expressão era quase constantemente carrancuda, e tinha um coração covarde, medrosamente bajulando aqueles a quem suspeitava poder feri-lo, e arrogante para com os inferiores e os que ficavam à sua mercê.
Era patético. Tinha a capacidade para uma adoração escrava — atributo comum aos estúpidos e secretamente histéricos. Nunca ninguém descobrira isso, a não ser Antoine. Embora tivesse desposado Elsie Mitchell, neta do maligno e pio velho magnata dos motores, Hiram Mitchell, nunca sentira por ela mais que uma vaga afeição. Recentemente Elsie o presenteara com uma filhinha com olhos feito botões de sapato, mas com os mais lindos cachinhos ruivos, e Robert, muito furtivamente, estava começando a mostrar à criança os primeiros sinais de uma inquieta adoração.
Robert era secretário do pai e, para surpresa de Emile, exibira uma tenacidade, uma devoção a detalhes, uma falta de imaginação que o garantiam contra dúvidas e hesitações, certa incômoda integridade e persistência, que o tornavam completamente inestimável para o pai, que era vice-presidente de Bouchard & Sons. Sentava-se em seu escritório como um sapo gordo e sorumbático, pondo em ordem diária a montanhosa massa de detalhes tediosos, ditando incansavelmente a batalhões de estenógrafos, atendendo a uma rotina sem fim de chamados e encomendas telefônicos, jamais dando indicações de fadiga ou exaustão. Era como uma toupeira, a escavar incansavelmente. Emile estava, de fato, felizmente surpreso e, embora não desprezasse menos o filho, apreciava-lhe os peculiares talentos. Mais ainda: podia-se confiar nele, característica absolutamente invulgar entre os Bouchards. Porém mesmo Emile não sabia que Robert só era digno de confiança quando não adorava. E ele adorava Antoine.
Robert odiava praticamente todo mundo, porém mais que a ninguém na família odiava Henri Bouchard. Como todos os rejeitados, Robert tinha um egotismo quase insano, a crença apaixonada de que era rejeitado por ser superior e incompreendido. Acolhia bem mesmo a antipatia aberta. Mas nunca pôde aturar a omissão completa. Henri não o omitia: simplesmente esquecia a existência do jovem. Nunca viu Robert sem fitá-lo vagamente, antes de reconhecê-lo. Parecia ter dificuldades em localizá-lo. Isso não era de todo sincero: em parte era desprezo deliberado. Robert poderia deixar passar o último, mas nunca o primeiro e súbito franzir de sobrancelhas de Henri, antes de reconhecê-lo.
Robert temia Henri mais do que jamais temera outro ser humano. Nunca tivera com Henri qualquer encontro tingido ao menos de leve com violência, mas bastava Henri entrar no escritório, relancear os olhos em sua direção, passar por ele — para encher o jovem de um terror irracional. Na presença de Henri ficava completamente tolhido.
Antoine, então, achou em Robert um servidor ansioso e dedicado no trabalho de destruir Henri. O só pensamento disto enchia Robert do mais selvagem terror e da mais exaltada alegria misturada ao sentimento de vingança.
Devido a seus muitos atributos perigosos, era Robert o grande favorito do avô de sua esposa. Sua natural inclinação para o ódio maldoso, sua esperteza, seu espírito vingativo, sua obstinada tenacidade e brutalidade inata e profunda o tornavam benquisto ao cantor de salmos, o piedoso e profundamente religioso velho magnata dos motores. A inclinação para a crueldade sádica e inclemente, e a temível maldade que parecem parte do caráter dos fanáticos eram muito fortes no Sr. Mitchell, que obrigava os seus milhares de empregados a assinar um compromisso de frequentar a igreja pelo menos uma vez por semana, a jurar que nunca haviam cometido adultério ou fornicação, e a prometer que nunca beberiam, fumariam em excesso, praguejariam ou praticariam controle de natalidade. Segue-se, naturalmente, que o Sr. Mitchell odiava a humanidade. Gostava de ter homens religiosos — especialmente sacerdotes — perto dele. Tentara obter a amizade do bispo católico de sua diocese, mas esse bispo, infortunadamente para o Sr. Mitchell, era um homem honesto e brilhante. Rejeitou as tentativas de Mitchell com tal firmeza que este mais tarde importou dois sacerdotes Ku Klux Klan do extremo sul para dirigir as duas mais importantes e fanáticas igrejas metodistas e batistas em sua cidade. Em consequência, o Sr. Mitchell tornou-se um violento anticatólico reacionário; e mesmo a assistência de certo sacerdote católico venal no próprio trabalho de Mitchell de destruir a democracia americana pouco adiantou para aliviar seu ódio à Igreja Católica. Usaria esses homens violentos e extraviados, sim; mas conspirava para destruir a organização a que pertenciam, quando chegasse o momento conveniente. Quando o bispo, suspeitando das maquinações de Mitchell, removeu um dos padres para uma paróquia menos vulnerável (repreendendo-o duramente, em particular), o ódio de Mitchell pela Igreja Católica chegou ao clímax. Particularmente ele financiava duas das mais fantásticas, das mais sádicas e odiosas publicações anticatólicas da América.
O Sr. Mitchell era também um dos mais generosos partidários do America Only Committee. Através de Robert, conheceu Antoine.
Capítulo 55
Havia momentos em que Antoine, espantado, se encontrava à beira da fantasia. Apesar dos esforços prodigiosos de seu partido, e das enormes quantias gastas com senadores traidores e outros da vida pública — inclusive August Jaeckler, o Bispo Halliday e muitas organizações subversivas — a despeito dos jornais venais assim como revistas importantes, apesar dos preeminentes locutores anti-britânicos, que em número crescente circulavam pela América, e dos colunistas do rádio e dos jornais que denunciavam os "provocadores de guerra", o "imperialismo britânico", e os "banqueiros judeus internacionais", a despeito dos muitos membros do Departamento de Estado que adoravam Pétain e o Vaticano e que incapacitavam todos os esforços da Administração para levar Pétain a uma compreensão decente do que poderia significar sua covarde perfídia para a França — o povo americano mostrava os mais alarmantes sintomas de começar a pensar por si mesmo.
Certa votação pública revelou o fato de que setenta e cinco por cento do povo americano ajudariam a Inglaterra a derrotar Hitler. Considerável porção dessa porcentagem era de católicos romanos, fato que desconcertou os conspiradores contra a América, que haviam acreditado piamente que, no cômputo final, a Igreja Romana estaria ao lado dos destruidores da democracia americana. Na verdade, muitos preeminentes membros da Igreja Católica denunciaram Hitler e Mussolini com amargura e ódio apaixonados, e vários conhecidos leigos católicos publicaram livros e panfletos instando com a América não só para ajudar totalmente a sitiada Inglaterra, como para declarar guerra à Alemanha. A: desunião da América, cuidadosamente planejada, traía os mais angustiosos sinais de não atingir uma situação crítica. Mesmo o antissemitismo, tão meticulosamente organizado, nada fizera a não ser provocar mau cheiro na política. Parecia que o povo americano não queria saber disso, e que pequenos bandos fanáticos de agitadores, apenas despertaram aversão e desagrado — mesmo nos que se inclinavam ao antissemitismo. Só os lunáticos subscreveram a doutrina suicida e suscitaram risos.
O "problema do negro", laboriosamente agitado no Sul pelos inimigos da América, encontrou poucos deles para ouvir. Nos Estados do Norte é que o problema perigoso foi mais debatido. Inimigos agitadores tiveram êxito, até certo ponto, no criar ressentimentos nos Estados sulinos contra a presença de tropas negras em certos, departamentos.
Mas, de modo geral, para completo espanto de Antoine, o povo americano permaneceu em ótima saúde mental. Mais: não houve o ressentimento universal e a raiva que se esperava contra a Lei do Serviço Militar Obrigatório. Centenas de milhares de jovens americanos entraram para o Exército e a Marinha com singular calma e interesse, e até boa vontade. As grandes fábricas de armamentos — parcialmente financiadas por dinheiro britânico — obtiveram o melhor em matéria de operários mecânicos.
Por toda a América houve uma estranha, mas determinada expectativa, austeridade e sadia prontidão para o pior.
"Os imponderáveis da consciência dos povos." A frase voltou a incomodar Antoine e seu partido com crescente ameaça. Havia claros sinais de advertência de que católicos, protestantes e judeus já não se consideravam como campos separados, mas como americanos, confrontados com a hora final e desesperada da escolha entre as coisas pelas quais os homens morrem e as coisas pelas quais vivem.
Imprevisivelmente, a "macacada" começava a agir como seres humanos inteligentes, incomodados por mentirosos, ladrões e embusteiros, por malfeitores e charlatães por todos os lados, apenas ocasionalmente confusos e aborrecidos, mas sempre firmes. Era de enfurecer. Certos padres venais, certos loucos ministros protestantes podiam arengar a seus fiéis com histeria e ódio crescente. Certos escritores e jornalistas podiam guinchar bem alto contra a Inglaterra, contra os "provocadores de guerra", e chorar copiosamente pelas "mães da América". Mas o povo permanecia calmo e expectante, e diariamente se tornava mais austero. Mais e mais diatribes apareceram em determinados jornais contra "os comunistas que diligenciavam forçar-nos a entrar na guerra, e agentes estrangeiros que desejavam levar-nos a um conflito que só ruína traria à América". Porém suas palavras só chegavam aos olhos dos insanos e dos rancorosos, e pouco dano produziam.
Como um sonho aterrorizador, isso começou a infiltrar-se na consciência de Antoine Bouchard. Pela primeira vez, começou a duvidar.
"Os imponderáveis da consciência dos povos!" Seria realmente possível que houvesse tais coisas, que realmente houvesse marés de sentimento intenso e apaixonado entre os povos da Terra, que poderiam levá-los a levantar-se como um só homem e destruir o inimigo universal? Seria instintivo tal sentimento, ou eram as forças da contrapropaganda mais poderosa do que a propaganda espalhada por Antoine e os da sua laia?
Antoine preferia acreditar que fosse a última. Era contra todos os seus aristocráticos instintos crer que o povo tinha, realmente, coração e alma, que poderia inspirar-se por justa raiva e nobre indignação contra os assassinos. Tinha alguma prova para sua crença determinada, embora não pudesse ver a face do inimigo na sombra que se lhe opunha. Os contrapropagandistas estavam fazendo excelente trabalho em Washington e no país inteiro. Fácil de constatar isso. Mas, poderiam ter feito tão bom trabalho se o povo não tivesse sido preparado, e não estivesse ansioso por ouvi-los e acompanhá-los?
Havia organização entre os adversários que se opunham a Antoine, e dinheiro, e poder. Ele via isso. Porém, novamente, tudo isso teria dado em nada não fossem os "imponderáveis da consciência dos povos"!
Aparentemente, o povo estava obscura, mas fortemente começando a discernir e a sentir a presença daqueles que queriam escravizá-lo, assassiná-lo e explorá-lo. Em sua simplicidade, não podia citar nomes, ou perceber os rostos dos que o odiavam, mas sentia-lhes a presença, ouvia o murmúrio secreto de suas vozes, via-lhes a sombra fugaz nos muros do mundo.
Antoine começou a duvidar dos próprios colegas. Nunca estivera inteiramente certo sobre Christopher Bouchard, seu tio. Nunca estivera inteiramente seguro a respeito de Hugo Bouchard. De sua família, só estava certo de Jean Bouchard, irmão de Hugo, Alexander Bouchard, Robert e Nicholas. Jay Regan, com todas as suas amáveis promessas, e interesse profundamente amigável no crescente movimento dos planos, ainda não fizera nada de importante. Só Hiram Mitchell, o Sr. Morse, o Sr. Boland, e Joseph Stoessel da Schmidt Steel Company, e alguns outros poderosos eram dignos de confiança. Havia, claro, Joseph Bryan, Junior — o mais forte rival de Regan — e certos senadores e membros do Departamento do Estado. Mas na própria família de Antoine, só Jean, Alexander, Nicholas e Robert estavam fora de questão. Emile e Francis eram, definitivamente, do partido de Henri. Seria possível que Christopher andasse fazendo jogo duplo, e que Hugo trabalhasse em segredo entre seus colegas do Departamento de Estado?
Se assim fosse, a que risco horrível o próprio Antoine expusera o seu partido!
Esses os pensamentos que tanto o atormentavam. Ele mesmo era impotente até que o pai morresse, e conhecia o conteúdo de seu testamento. Pouco receava que Armand o abandonasse. Pois não fora o próprio Armand quem metera o filho em Bouchard & Sons, e literalmente obrigara Henri a aceitá-lo? Afinal de contas, Armand era seu pai. Nada dissera que levasse alguém a crer que trairia seu filho.
Antoine nunca fora como Henri, acreditando em sua boa estrela, em seu próprio poder. Pois Antoine era demasiado sutil, por demais intelectual, para não saber que existem certos imponderáveis que trabalham pró ou contra um homem. Nem sentia aquela enorme ânsia de poder que gira tão gigantescamente nas vidas de Ernest Barbour e de seu bisneto, Henri Bouchard. Havia ocasião em que Antoine simplesmente cogitava por que importar-se com as coisas... Sempre ficara intrigado com a lenda do avô, Jules, e tinha, conscientemente, sido um verdadeiro "substituto". Porém havia vezes em que se sentia enfarado por completo pelos esforços que estava fazendo para tornar-se o "poder" dos Bouchards.
Apenas tinha um leve e divertido amor pela intriga para mantê-lo ativo em suas conspirações. A intriga era o seu forte. Mesmo isso por vezes o aborrecia. Possuía a alma de um "galante" do século dezessete, e achava os enfadonhos e nada atraentes conspiradores do século vinte demasiado desagradáveis e desinteressantes de suportar. Não tinham coração, nem alegria, nem toque leve e delicado. Acima de tudo, não tinham humor nem sabor. Só queriam dinheiro.
Dinheiro, em si mesmo, não possuía encanto peculiar para Antoine. Verdade que era dotado da avareza dos Bouchards mas, na melhor das hipóteses, apenas artificial. Ele o queria por ser o sinal visível de poder, porque aparentemente parecia valioso para outros. Sua fortuna pessoal era tão grande que ele não precisava de mais.
Por vezes ele suspeitava ser um romântico.
Gostava do espetáculo da humanidade por si mesma. Era o eterno diletante. Era o irrequieto manipulador. Sabia que outros, mesmo os estúpidos, suspeitavam disto, e não tinham confiança nele. Henri o chamara "ator de araque" e, embora outros rissem ante a observação, Antoine não rira. Na verdade, com surpresa olhara para Henri com mais respeito do que em qualquer outra vez. Quem teria suspeitado que o Homem de Ferro possuía tal sutileza?
Em resumo: Antoine era um conspirador por amor à conspiração em si mesma. Estava começando a perder todo o prazer em uma conspiração cujos protagonistas eram tão estúpidos e insípidos. Não havia um só com vitalidade e poder, exceto Henri, e mesmo esse não tinha paixão. Era uma geleira, e as geleiras eram, notoriamente, sem cores brilhantes.
Antoine sempre se sentira um simples forasteiro no mundo. Sentia isso mais que nunca nesse ano de 1941. Tinha apenas seu infinito interesse pela humanidade, em suas emoções menos desejáveis, e seu ódio natural a Henri — para evitar que se tornasse um vasto bocejo.
E então, quase de repente, Armand morreu.
Capítulo 56
"Quando os Bouchards morrem, levam anos a decidir-se" — alguém disse um dia.
No caso de Armand isso fora particularmente verdade. Sofrera de diabete por mais de dez anos. A insulina lhe salvara a vida, preservara-o da morte rápida que de outra maneira o teria colhido. Mais: possuía a pesada constituição camponesa, que pode sobreviver a inacreditáveis investidas, e a obstinação rústica que frequentemente subtrai à morte uma presa imediata. Também o terror da morte o mantivera vivo em meio a comas crescentes (das quais enormes doses de insulina podiam salvá-lo), de cujos escuros portões um terror teimoso e resoluto o arrancara, erguera-o novamente acima das sombras e o deixara, soluçante, sobre o fino recife da vida. Agarrava-se desesperadamente à existência. Nos confusos recessos de sua mente chegara a acreditar que a resolução de não morrer derrotaria a morte indefinidamente. No seu caso, estranhamente, demonstrara isso durante anos e anos.
Soubera que só a mais cuidadosa dieta e constantes injeções de insulina poderiam mantê-lo vivo. Mas não tivera coragem de resistir à boa mesa e, frequentemente, esquecia a insulina. Quando lhe acontecia isso, era presa do terror. Nunca soube o que o fazia esquecer. Tristemente, lembrava-se de que um homem esquece coisas que deseja esquecer. Por que queria esquecer de empregar a insulina, o medicamento que o capacitava a esquivar-se à fatal inimiga do homem? Finalmente, com espanto e medo, chegou a pensar em si mesmo como seu próprio inimigo e, por fim, a acreditar que ele era duas pessoas: uma com inclinações para a morte, outra com inclinações para a vida.
Por vezes a batalha o deixava exausto, enchia-lhe a mente com vagas formas de pesadelo. Descobriu-se pensando as coisas mais terríveis e estranhas. Por vezes sentia-se de uma clara transparência, era consciência pousada sobre escuros abismos, sobre caos turbilhonantes. Nessas ocasiões saía da cama, cambaleava até o banheiro, e engolia um brometo com pressa desesperada.
Então voltava ao lugar onde não ousava mais pensar. Sofria enorme, mas também obscuramente. Esquecia por completo a insulina. Fazia copiosas refeições, depois ia para cama, ofegante, rosto arroxeado, coração trabalhando penosamente, e sua mente nada mais era uma confusão amorfa, na qual estava vagamente cônscio de um sofrimento que era mais do que o sofrimento de um corpo a morrer.
E então, em meio à sua agonia, abria os olhos enevoados e ficava espantado ao descobrir que era dia, que a luz do sol chegava até seu leito. Como! Acabara de ir para a cama... não dormira um só momento!... Num piscar de olhos, o tempo passara de meia-noite a meio-dia. Via o rosto de sua enfermeira, e às vezes o do seu médico, ficando imensamente surpreso. Tentava falar, expressar sua incredulidade. E então, subitamente, via Annette sentada a seu lado, muito branca, mas sorrindo, sua mão na dele, ou por vezes era o filho, Antoine. Só podia maravilhar-se.
Meditava durante horas em todas essas estranhezas. Realmente existiria o tempo? Realmente haveria a realidade? A sagaz e exigente mente do camponês se retraía intimidada ante essa charada. Mas agora já não estava muito apavorado. Sentia-se satisfeito consigo mesmo a tal respeito. "O medo — pensou — só vem com a consciência de que a morte está por perto." Seu medo tendo ido embora, ele derrotara a morte mais uma vez. Se estava agora fraco demais para deixar o leito, se estava demasiado fraco para protestar contra os alimentos leves que lhe trazia a enfermeira, pelo menos não estava preocupado. Certamente estava melhorando.
Sentia-se absolutamente certo disso. Ouvia quando a enfermeira lia as manchetes para ele, manchetes que dia a dia iam ficando mais assustadoras. Tentava acenar gravemente, meio deliciado de que as notícias já não o enchessem de misterioso terror. E então, enquanto contemplava este feliz pensamento, olhava em volta e descobria que estava escuro, as lâmpadas apagadas, a enfermeira se fora. Muito estranho! Havia apenas um momento eram as quatro da tarde, e a enfermeira lia o jornal para ele. Podia até ouvir-lhe as últimas palavras. Enquanto, novamente assustado, estudava tal fenômeno, sentia luz em seus olhos, e a enfermeira lá estava de novo, em plena luz do dia, de bacia e toalha nas mãos...
Nessa determinada manhã seu medo voltou, e com ele suas forças. Disse à enfermeira:
— Senhorita Concord, para onde foi a noite? — Ouviu a própria voz, frágil como vidro.
— Dormiu esplendidamente, Sr. Bouchard — ela replicou, em voz cordial, enquanto se preparava para barbeá-lo.
Ele estava animado. Sorriu para ela, fechou os olhos cansados. Sentiu-a a barbeá-lo. Então, abrindo os olhos para agradecer-lhe, viu que o quarto estava escuro, uma simples lâmpada acesa em mesa distante.
Agora, a medonha e opressiva lembrança de um sonho lhe voltou. Não havia recordado esse sonho por muitos anos. Voltou-lhe com todo o seu horror. Mas não fora um sonho mau, somente estranho, e ele sabia, de modo confuso, que lhe trouxera conforto.
Era muito jovem quando tivera tal sonho. Não tinha havido nenhum acontecimento perturbador para encorajá-lo, ou explicá-lo. Acabara de voltar de Harvard para os feriados natalinos. Podia sentir o perfume da árvore resinosa no imenso salão antigo, e entre as portas dobradiças podia ver os ornamentos nela, dourados, azuis, prateados, carmesins. Fora um Natal totalmente satisfatório. Jules, seu pai, estivera em uma de suas mais benevolentes disposições, não levemente zombeteiro como de hábito. Adelaide, sua mãe, com seus gentis olhos castanhos, parecia mais feliz. Isso foi muito antes da Primeira Guerra Mundial. Era ainda naqueles primeiros anos calmos do século vinte, quando se sentia o grande e forte crescimento da América, e a esperança estava no ar. Ele se sentia feliz por estar em casa. Nunca fora feliz na escola, pois sua obesidade, sua reserva e suspeita rústicas, sua cautela inábil e oculta vulnerabilidade o tornaram impopular entre os companheiros. Sentia-se feliz até por ver o gordo, jovial e grande Emile, vindo de Groton, e o pequeno e argênteo Christopher com aqueles venenosos olhos "egípcios". Celeste era pouco mais que um bebê, então, com lustrosos cachinhos negros e enormes olhos azuis, sempre tímida embora resoluta. Fora um período desagradável em Harvard, e o lar lhe parecia muito agradável e seguro. Havia indícios de que o novo automóvel por que ele tanto ansiava seria o presente de Natal do pai para ele. De qualquer maneira, não lhe fora permitido entrar nas enormes cocheiras atrás da casa, só recentemente convertidas em garagem. Podia ver o automóvel com os olhos da mente: seria muito vermelho e brilhante, com assentos de couro carmesim. Ele tremia de alegria. Seria praticamente o único estudante em Harvard a possuir tamanha magnificência.
Foi na primeira noite que ele teve aquele sonho espantoso. Sonhou que adormecera, não por muito tempo: na verdade, apenas por momentos. Mas quando acordou não estava em sua cama: jazia num comprido e branco vestíbulo, como um corredor, cujas longínquas extremidades se perdiam numa vaga névoa azulada. Em ambos os lados desse corredor havia largas prateleiras de mármore que iam do chão de mármore ao teto de mármore, que se perdia em um nevoeiro flutuante. E em cada prateleira de mármore havia uma forma adormecida, enrolada no que parecia uma branca mortalha. Ele não podia ver os rostos dessas formas, embora vagamente soubesse que algumas eram de homens, outras de mulheres, e algumas de crianças. Dormiam como se estivessem mortos. A claridade que atravessava o corredor não era constante. Era muito fraca, e por vezes Armand nada enxergava em volta dele. E então houve uma aceleração da claridade — como o luar visto sob as águas — e houve um fluxo de iluminação nebulosa em todo o comprimento do corredor, uma claridade crepuscular que lhe permitiu ver, por breves momentos, os calmos rostos adormecidos de seus companheiros. Era o calor luminoso de um sonho. Então ele pôde calcular que os adormecidos eram incontáveis, estendendo-se até o infinito.
Não ficou apavorado: apenas cheio de espanto. Mas havia uma estranha familiaridade na cena, como se ele tivesse estado ali muitas vezes antes, tivesse dormido, tivesse acordado. Lembrou-se, vagamente, que alguma vez, em algum lugar, estivera muito cansado, tão exausto que não podia aguentar, e que adormecera, para despertar pouco depois, descansado, alerta, e muito calmo, nesse lugar misterioso embora familiar.
Então sentiu, mais do que ouviu, que alguém se aproximava por trás dele pelo corredor. Viu a forma leve de uma jovem mulher, em flutuantes roupas brancas, o cabelo louro enrolado no alto da cabecinha. Trazia na mão uma vela dourada acesa. Toda a névoa que flutuava em torno dela transformou-se numa aura de luz dourada. Parou ao lado dele. Seu rosto mostrava uma calma indiferença, estava imóvel, embora não insensível. A vela tremeu um pouco em sua mão tão branca e sem vida como mármore. Ele lhe ouviu a voz, sem eco e indiferente:
"Está acordado? Então, é tempo de levantar e recomeçar. Você dormiu demais, desta vez."
"Mas adormeci há apenas um momento..." — ele murmurou.
Viu o sorriso dela, irreal, sereno e retraído, e, ao vê-lo, ficou cheio de um terror esmagador. Sentiu a palpitação de vida renovada em todo o corpo, mas aquele sorriso pétreo e impessoal o repudiava, desprezava seu medo. Sentiu nela algo de hostil, embora não fosse uma hostilidade pessoal, porém antes a inimizade de um universo sem vida. Ela repetiu:
"Você dormiu demais, desta vez. Vá, é esperado."
Ele não sabia onde estava, quem o esperava, ou para onde iria. Mas não queria ir. Com toda a sua consciência, sabia que dor e sofrimento esperavam por ele em algum lugar nos confins de um espaço enorme; que calor, tormento e morte o espreitavam lá, bem como exaustiva confusão. Tornou a protestar. E a jovem mulher apenas aguardava, agora uma estática forma de mármore, imóvel como uma estátua, a vela dourada na mão. Ele pôde ver-lhe os olhos, descoloridos e fixos, brilhando como uma gema branca, implacáveis, e seu sorriso imóvel e gelado, e a infinidade de prateleiras em torno dele, com seus adormecidos.
Despertou desse sonho, encharcado com o suor do mais completo terror. Literalmente caiu da cama, soluçante. Viu o frio luar no chão do seu quarto, e vislumbrou a neve no peitoril da janela. Tateou por uma cadeira, deixou-se cair nela, ainda soluçante. Disse a si mesmo: "Que significa isto?" Mas sua alma trêmula sabia, e sabia bem demais...
Não esqueceu logo este sonho. Lembrou-se dele durante anos. Não ficou mais embaçado com o passar do tempo. Por vezes, em plena classe, ou entre amigos até, via a branca fixidez dos olhos brilhantes daquela mulher, iluminada pela vela dourada. Começou a odiá-la, selvagemente, desesperadamente. Considerava-a um horror, que o despertara da paz e do nada. Era sua inimiga.
Depois, com o tempo, o sonho se apagou, quase subitamente, e se foi. Não se lembrara dele novamente até esta noite.
E então, enquanto o recordava, ele lhe voltou com toda a força. O calmo quarto penumbroso com sua única lâmpada acesa se encolheu, embora ainda estivesse em torno dele. Porém mais perto do que o quarto estava o corredor com suas prateleiras infindáveis, e a mulher que esperava, e a presciência da dor, do tormento, e da exaustão que o aguardavam.
"Desta vez — ele pensou, em seu terror insondável — adormecerei e não despertarei. Fecharei os olhos, ela não saberá que estou acordado."
Então lhe veio o mais estranho pensamento, como uma voz calma:
"Mas nada fiz para merecer paz. Certamente eu recomeçarei, e recomeçarei, e recomeçarei até já não estar apavorado e doente, e coberto de sujeira."
Ele considerou seu julgamento, e uma estranha resolução, calma e resignação lhe vieram. Sentiu-se humilde e cheio de tristeza. Suspirou do mais profundo do seu coração.
Quando tornou a abrir os olhos o quarto continuava escuro, a lamparina ainda ardia. Porém a enfermeira estava a seu lado, com a mão em seu pulso, a fitá-lo ansiosamente. Ele conseguiu mover os lábios frios e murmurou:
— Quero meu filho. Por favor, chame meu filho.
Ela era uma mancha branca ao sair do quarto. Ele a viu ir. Estava certo de não haver tirado os olhos da porta, mas, estranhamente, a próxima coisa que viu foi o médico a seu lado, e Antoine.
— Muito estranho!... — ele murmurou, e sorriu. Seus músculos faciais estavam rijos e frios também, o que o espantou. Sentia o lento movimento deles.
E depois o doutor desapareceu completamente ou, pelo menos, Armand não mais o viu. Antoine estava sentado ao lado da sua cama, o rosto moreno e inescrutável brilhando à luz da lâmpada. Armand nada mais viu no quarto. Ele e o filho estavam num círculo indistinto à meia-luz, e nada mais existia. A chuva de abril murmurava nas janelas. Houve um súbito hausto de ar fresco e suave, e úmido, através da penumbrosa quietude.
Armand só podia fitar seu filho. Sua última ânsia de vida residia em seus olhos enfraquecidos. Por sua vez, Antoine viu a expressão moribunda do pai. Bem poucas coisas jamais o perturbaram, ou desconcertaram; mas, por alguma razão, a expressão de Armand, seu olhar longo e firme, o puseram pouco à vontade. Jamais vira tal olhar em Armand — sombrio, pensativo, completamente consciente, e muito triste. Era um olhar amadurecido, limpo de toda dúvida, todo medo, todo alarma inútil.
Então Armand falou, a voz laboriosa e sibilante, muito meditativa:
— Foi há muito tempo... Meu pai mandou-me chamar. Esta era a sua cama. Tinha muito orgulho dela. Diziam que outrora fora a cama de Robespierre. — Moveu a mão fracamente sobre o cobertor a seu lado.
Antoine inclinou a cabeça gentilmente. Armand podia ver o brilho negro e pensativo de seus olhos enviesados. O jovem aguardava.
— Agora, eu vou morrer nela — continuou Armand, a voz tão baixa que Antoine teve de inclinar-se para ouvi-la. — Na cama de Robespierre. Nunca pensei o quão apropriado era, meu pai morrendo nela. Ele também, como Robespierre, foi guilhotinado. Ele soube disso, no fim.
E agora seu olhar era grave e pesaroso. "Que estará ele tentando dizer-me?" — pensou Antoine. Estivesse o pai sendo sentimental, ou aterrorizado nessa hora suprema de sua morte, Antoine se sentiria muito mais à vontade e bastante cínico. Sabia que homens venais frequentemente experimentavam pontadas de agudo terror em face da morte. Julgara que o pai demonstrasse isso, e que seria muito interessante observá-lo, o que teria uma qualidade divertida e macabra. Mas o rosto nos travesseiros, embora informe e relaxado com a aproximação da morte, possuía olhos mais vivos, mais potentes, mais pungentes e obstinados do que jamais o tinham sido no apogeu da vida. Mais: neles não havia medo, só uma profunda compreensão e pesada tristeza. Neles não havia sinal daquele almejado arrependimento, daquele remorso envergonhado, que tão frequentemente assalta os moribundos. Também, nessa hora, Armand possuía uma estranha dignidade, uma coerência de personalidade que nunca revelara antes.
Agora um brilho pálido lhe passava pelas feições. Moveu um pouco a cabeça. Não havia afastado de Antoine seu olhar fixo.
— Meu pai mandou chamar-me antes de morrer. Tal como agora: jazia nesta cama, e sentei-me a seu lado, como você está fazendo, Antoine. Disse-me algumas coisas. Não creio que fossem as que queria dizer. Não eram importantes. O que não disse é que tinha importância. — Deteve-se: — Um homem estranho, meu pai! Foi um homem mau. Porém muito divertido. E superior. Nenhum dos filhos pôde igualar-se a ele. Era o homem mais sensato que já conheci. — E então a voz de Armand assumiu uma qualidade mais forte e mais firme, e havia nele uma renovada vitalidade.
"Não tinha medo de morrer. Na verdade, nunca teve medo de nada. Por isso era tão fascinante. Jamais confiou em alguém, exceto, talvez, em minha mãe. Nos filhos, nunca. Tinha razão para isso. Acho que nos odiava. Sim, estou certo disso. Exatamente antes de morrer, mandou buscar-me, e me sentei junto dele. Falou-me a respeito do seu testamento, e se divertia. Isso porque sabia que o odiávamos. Ou ele assim pensava. Talvez tivesse razão. Acho que ele estava pensando no que faríamos com o que nos deixara, e isso o divertia.
E então Armand começou a falar no patoá francês de sua primeira juventude, a linguagem que o pai usara com tanta elegância, tanta graça que o dialeto fora pura música. Entretanto, nos lábios de Armand, lábios de camponês, as palavras eram rudes e desgraciosas, porém, estranhamente, muito mais sinceras.
Antoine, cujo francês era fluente, rico e aristocrático, sentiu um obscuro desagrado por essa pronúncia bravia, mas reconheceu que tinha certa dignidade rude, e até grandeza, nesses lábios de camponês, bem como certa propriedade. E chegou a haver uma sutil transformação no rosto de Armand. Nunca fora de perfil delicado, ou de expressão refinada. Mas agora assumiu força e vulgaridade, resolução rústica e nobreza simples.
— E enquanto meu pai me falava, divertindo-se ao dar-me pistas sobre seu testamento, havia em mim uma estranha emoção. Eu sempre o temera, pois tinha a mente arguta e um cruel espírito inventivo de epigrama. Eu sempre fora um jovem e pesado varão, e muito frequentemente devo tê-lo divertido, embora, sem dúvida, me desprezasse. Entretanto, quem lhe restava, a não ser eu? Desconfiava dos outros filhos. Eu, pelo menos, não tinha a necessária esperteza, é o que ele julgava, para ser malévolo ou conspirador.
E Armand sorriu pesarosamente. Suas mãos, curtas e gordas, cobertas de pelos ruivos, ergueram-se um pouquinho, depois caíram na cama.
— Sim — disse, reflexivamente — havia a mais estranha emoção em mim enquanto me falava de seu testamento. Fitei-o. Esqueci o que ele estava dizendo. Subitamente, pareceu-me horrível que ele estivesse morrendo. Não sei por quê. Nunca o amara. Sempre o temera e o evitara. Mesmo assim, era horrível que estivesse morrendo. Jamais compreendi. De repente gritei-lhe: "Mas eu não quero que você morra!"
Antoine estava silencioso. Novamente Armand virou a cabeça para ele e nele fixou aqueles olhos singularmente firmes e calmos.
— Meu pai ficou muito surpreso. Jamais esquecerei o olhar que lhe iluminou as feições, como se estivesse enormemente perplexo e admirado. Até se ergueu em seus travesseiros, para fitar-me mais de perto. Acho que morreu ainda espantado. Nunca lhe ocorrera que alguém pudesse querer que vivesse. Amor... ele não esperava. Confiança... era demasiado inteligente para acreditar que pudesse existir. Mas soube que eu era sincero. Soube que eu estava muito triste. Isso foi o que tanto o surpreendeu.
Armand se deteve. Seu olhar era mais penetrante, e completamente humilde:
— Gostaria, meu filho, que você ficasse triste. Não sei por que o deveria, assim como não estou certo por que me entristeci quando meu pai morreu. No entanto, gostaria que fosse assim.
Antoine sorriu intimamente. Pensou, com cinismo: "Mas você conhecia o testamento de seu pai!" Entretanto, a despeito de si mesmo, sua voz tinha uma gentileza peculiar quando disse:
— Mas eu estou triste! Creia-me, eu estou triste!
Armand sorriu. Um sombrio e triste sorriso. Falou:
— Não sei por que, mas acredito em você. Neste momento, você está triste. Não sabe por que; eu não sei por quê. É porque você está triste que eu devo enfrentar a morte, ou é triste que eu não vá viver? É muito confuso. Penso que, talvez, você esteja triste porque eu tenha sofrido e ainda sofra. Preferiria acreditar nisso, de preferência a acreditar que sente a mesma tristeza que teria se lhe morresse um cão, ou quem lhe fosse indiferente. Sim, gostaria de acreditar nisso. Acho que acredito. Pois só acreditando nisso posso dizer-lhe o que devo.
Subitamente, ficou sufocado. Gemeu:
— Levante-me!
Mãos invisíveis o ergueram e o puseram mais alto em seus travesseiros. Ele nem cogitou de quem seriam as mãos, embora Antoine não se tivesse movido na cadeira. Todas as íntimas energias de Armand, sua insistência desesperada, se concentravam no filho. Antoine, por sua vez, estava sinceramente satisfeito de que o pai estivesse falando no seu dialeto francês, pois desejava que ninguém entendesse o que dizia o moribundo.
Então Armand se esticou, e sua mão pegajosa, com a textura e a umidade do barro, agarrou a mão de Antoine. O jovem sentiu-lhe a força premente. De sua posição mais alta, Armand estava também mais perto do filho.
— Que houve entre nós? — perguntou. —- Menos, talvez, do que houve entre mim e meu pai. E talvez a mesma coisa, ainda que de maneira diferente. Então, eu fui filho de um homem igual a você; um igual a você era meu pai. Entretanto, embora com frequência veja meu pai em seu rosto, e ouça a voz dele na sua, e observe os próprios gestos dele nos seus... falta-lhe alguma coisa, meu filho, que havia em meu pai, Jules Bouchard. Você sempre me julgou estúpido e sem discernimento. Mas eu sempre soube o que lhe faltava, embora não tivesse, então, palavras para isso. Talvez eu não tenha palavras agora embora lute por elas.
Antoine estava chocado. Franziu as sobrancelhas, delicadamente. Alguma obscura vaidade, nele, estava molestada. No entanto, ouviu mais atentamente quando o pai prosseguiu:
— O que devo dizer-lhe agora nunca poderia ser dito a meu pai, nunca, em toda a sua vida. Pois para ele teria sido falso. Você tem sua capacidade e sua graça, seu gênio para a intriga, sua inexaurível conspiração. Mas aqui termina a semelhança. — Deteve-se, depois acrescentou em voz mais forte, surpreendente: — Eu sabia disso com meu instinto, mas não com minha mente, até agora! — Em seu rosto relampejou um raro e brilhante sorriso, como se tivesse ouvido notícias alegres: — Dá-me muita felicidade, meu filho, saber tudo isso com meu coração e minha mente!
"Que estará o pobre coitado tentando dizer-me?" — pensou Antoine. Mas fez uma expressão atenta. Novamente, a seu pesar, havia um peso estranho em seu peito. A espantosa força de Armand, sua resolução de falar, sua determinação de resistir à morte enchiam Antoine de um espanto vagamente supersticioso.
— Todos os atributos de meu pai inclinavam-se para um único objetivo: poder — continuou Armand, e agora sua voz estava perfeitamente normal, não mais ofegante, mas cheia de energia. — Ele devia ter poder. Tinha de tomar esse poder de Paul Barbour, o genro de Ernest Barbour, meu tio-avô. É muito estranho para mim lembrar isto: que, indiretamente, o sangue de Ernest Barbour corre em mim, e em você. Mal sangue, esse, o sangue de Ernest Barbour. Era forte, em meu pai. Pensei que fosse forte em mim. Fiquei satisfeito ao saber, por fim, que não o era. Fiquei ainda mais feliz ao saber que aquele sangue não é forte em você, meu filho, embora eu outrora acreditasse que era. Havia ânsia de poder naquele sangue, uma ânsia perigosa.
"Meu pai tinha essa ânsia. Você não. Tem agido como se a possuísse, mas tem fingido. Era, talvez, tradição de família desejar poder: isto é o que você tem acreditado. Era-lhe intolerável, você pensou, não ter essa ânsia. Sempre admirou seu avô; lisonjeava-o o fato de parecer-se com ele, e eu o vi contemplando o retrato dele quando se julgava sozinho. Apavorava-me essa parecença. Mas já não fiquei tão apavorado quando me dei conta de que havia nele um ultimato final que você não possui.
Voltou os olhos para o retrato acima da lamparina distante, e instintivamente Antoine também olhou. Todo o retrato estava mergulhado numa sombra difusa, exceto os alegres e satânicos olhos negros que fitavam tão decididamente da moldura. Armand acenou com a cabeça, e sorriu:
— Falta em você o que ele possuía. Por isso é que, agora, estou tão satisfeito. Por isso é que lhe estou falando assim.
Antoine franziu os sobrolhos levemente. Olhou o pai com certa surpresa inquieta.
Armand continuou a falar. Sua voz estava agora muito mais fraca, mas tinha nitidez e penetração:
— Apesar de todos os atributos de meu pai, e graças, vivacidade e intelecto, ele era um plebeu. Tinha a brutal ânsia de posse do plebeu. Ele pegava e agarrava. Essa era a sua natureza. Devia triunfar, na variedade e riqueza de suas posses, sobre aqueles a quem odiava. E odiava todo mundo. Esta a marca do plebeu: sua avareza e seu ódio. No fim, talvez sejam a mesma coisa.
"Dá-me muita alegria, meu filho, o saber que nunca foi avarento. Fingiu ser. Tem fingido, até para si mesmo, que a ânsia pelo poder, atributo plebeu, e o desejo de posses viviam em você. Porém tais marcas do homem estúpido e brutal não estão em você. Você é um aristocrata. Pode até ser um grande homem, se puder livrar-se de suas pretensões, e da fealdade, da morte e da fadiga que inevitavelmente as acompanham. Como me acompanharam.
Antoine não falou. Recuou sua cadeira, só um pouquinho. Mas o gesto era significativo. Era o desejo instintivo de afastar-se do fraco círculo de claridade que encerrava seu pai e a si mesmo; era o desejo instintivo de recuar, fugir aos olhos sutis e misteriosos do pai, que, nessa hora da sua morte, tudo viam. O jovem sentia-se desnudo, e se enchia de uma raiva embaraçada.
— A tantos da família você odiou! — gritou Armand, e apertou as mãos, sacudindo-as com uma última veemência. — Você realmente não sabia por que odiava. Mas eu sabia. Você os odiava porque eram parvenus e plebeus. Você negará isto, mesmo a si próprio. Mas algum dia o reconhecerá. Quero que o reconheça logo, pois, de outra maneira, você pode ser destruído. Como eu fui destruído.
Pressionou as mãos apertadas, cobertas agora de suor frio, sobre o peito, e os olhos ardentes imploravam desesperadamente ao filho. Antoine descansava o cotovelo no joelho; ergueu a estreita mão morena e com ela cobriu a boca. Por cima dessa mão os olhos escuros vigiavam o pai atentamente.
Armand tornou a falar, e em sua voz havia amarga súplica e humildade:
— Estou rezando para que não seja tarde demais. Tivesse eu sabido mais cedo, quando você era uma criança, um adolescente, que você não possui aqueles atributos de meu pai, e eu poderia ter feito muito! Mas sua fisionomia, sua voz, seus gestos me enganaram que você era outro idêntico a ele. Só há bem pouco tempo comecei a duvidar. Não acreditei. Havia muitas provas em contrário. Agora sei que a minha dúvida representava a verdade.
"Eu podia tê-lo poupado tanto, se fosse capaz de falar com franqueza... Eu devia ter sido capaz de falar-lhe de meu asco por mim mesmo e outros, minha exaustão, minha aversão pelo que eu era e pelo que tinha feito. Todos vocês devem ter pensado que eu era um covarde. É verdade. Mas você não sabe o que me fazia temer. Você pensou que eu era fraco, mas não sabe por que eu era fraco. Você pensou que isso talvez fosse algum delicado sentimento de culpa que me atormentasse em meio ao que eu estivesse fazendo. Talvez, de certa forma, isso fosse ligeiramente verdadeiro. Porém, meu filho, sabe, era porque eu sabia o que era certo e o que era errado, e mesmo assim não tivera coragem de resistir ao que era errado. Porque eu, também, era um plebeu, e tinha ânsia de posses, e avareza, e desejo de poder. E quando, ao ficar velho e doente, essas ânsias desapareceram, descobri que eu era impotente. Outros me haviam arrebatado o poder, o poder para desfazer o mal que eu fizera, e que agora eles é que faziam. Isto foi o que realmente me matou — acrescentou, com profunda e comovedora simplicidade.
Antoine não falou. Os olhos cobertos acima da proteção da mão ficaram um pouco mais brilhantes, e um pouco mais estreitos. Armand os fitou com desesperada esperança, perscrutando, ansioso: não conseguiu decifrá-los.
— Não queira as coisas que o matarão, meu filho — murmurou, roucamente. — Nada são. Apenas pedras cobertas de poeira. Você tem bastante. Vá embora.
E então os dois homens se olharam no mais profundo silêncio. Antoine não se moveu; só um dedo se ergueu um pouco, como se para esconder os olhos. À luz da lamparina Armand podia ver claramente o filho, sua cabeça pequena e estreita, os ombros elegantes, as linhas do seu corpo sólido e gracioso. E podia ver seus olhos fixos e indecifráveis.
E então o moribundo gritou, frenético:
— Você deve dizer-me que é verdade o que acreditei em você! Deve dizer-me! Não posso morrer em paz a menos que me diga que é verdade!
A boca mole ficou aberta enquanto ele ofegava... Uma sombra acinzentada escorreu feito água sobre seu rosto molhado. Seus olhos se dilataram, flamejaram e se imobilizaram. Ergueu as mãos num gesto abrupto — o gesto de um homem sendo arrastado e afundando sob ondas asfixiantes.
Antoine agitou-se. Olhou para o lado. Disse:
— É verdade.
Levantou-se. A enfermeira e o médico, que tinham estado ali todo esse tempo, sem compreender, curvaram-se sobre Armand. Ele não lhes sentiu a ajuda. Ainda fitava o filho, toda a última ansiedade de sua vida nos seus olhos, implorante, desesperado.
— É verdade — repetiu Antoine.
Afastou-se lentamente da cama. Ficou de pé sob o retrato do avô, cujos olhos o contemplavam, seus próprios olhos, cínicos, brilhantes, cheios de riso e com um alegre e infinito desdém. Por muito tempo Antoine ficou ali, contemplando Jules — e era como se se mirasse num espelho.
Quando tornou a voltar-se, a enfermeira, suspirando pesadamente, estava puxando o lençol sobre os olhos fechados de Armand, seu sorriso estranho e solitário, de indecifrável tristeza, resignação, e sabedoria amarga.
Capítulo 57
Ninguém chorou no enterro de Armand, exceto a pequena Mary, esposa de Antoine, que, a seu modo infantil, gostara muito dele. Chorava nos braços de Antoine:
— Se ao menos eu o tivesse obrigado a obedecer à sua Lista! Mas não o fiz! Deixei-o comer o que queria, e realmente fui eu que o matei!
— Não, querida! — disse Antoine, com gentileza fora do comum. — Ele mesmo se matou.
Ela o fitou, olhos úmidos, enquanto os outros da família os olhavam silenciosamente.
— Você quer dizer que ele se matou porque desejava comer as coisas que não deveria desejar?
Antoine hesitou. Depois disse:
— Sim, sim, é verdade.
Annette não chorou. Estava muito quieta, e seu rostinho definhado mostrava um olhar profundamente meditativo. Ela, só ela, amara o pai. Contemplava-o deitado em seu ataúde de bronze, e sentia-se feliz porque estava morto. Embora Henri fizesse um gesto como para impedi-la, ela se curvou sobre Armand e docemente beijou-lhe a face pétrea. Sussurrou-lhe:
— Adeus, querido! Não se esqueça de mim!
Celeste olhou o irmão, majestoso na morte, e pensou:
"Mas... eu jamais o conheci! "
Emile, grandão, corpulento, disforme e de olhos negros, fitou Armand: não sabia que Armand, morto, se parecia demais com ele. Christopher também olhava o irmão. Pensou:
"Ele nunca pôde suportar-nos!"
Henri nada disse. Ficou de pé junto do ataúde e pensou:
"Não pelas razões que você queria, mas pelas minhas razões, foi melhor que você morresse. Farei como queria que eu fizesse, mas não pelas suas razões. Só pelas minhas. No fim, dá tudo na mesma."
Os outros parentes estavam profundamente curiosos a respeito do testamento de Armand. Sempre o haviam desprezado, sentiam apenas um divertido desdém por ele. Recordavam sua covardia. Sentiam sua morte, claro. Porém eles também julgavam melhor que tivesse morrido. Olhavam com curiosidade para Annette e Antoine. A maior das fortunas Bouchards passara agora às mãos deles.
Armand foi enterrado junto à sua família no cemitério particular originalmente adquirido por Ernest Barbour. Ele ficou perto de seu pai e de sua mãe. Todos em volta deles, Bouchards e Barbours, dormiam sob grandes salgueiros curvados e coníferas. O cemitério era como um parque imenso e bem-cuidado, com canteiros e sinuosas veredas de cascalho. A família jamais gostara de mausoléus. Todos preferiam a terra, a terra forte, de onde tinham vindo seus corpos de camponeses, e que instintivamente amavam. Aqui, num canto calmo e adorável, dormia Gertrude Barbour, amada filha de Ernest, avó de Henri e Edith, que morrera em sua patética juventude. A seu lado jazia o marido, Paul, e à sua esquerda, a filha, Alice Bouchard. Não longe dormiam os irmãos: Godfrey Sessions Barbour, trazido de sua amada França (Godfrey, o grande compositor americano, e sua esposa, Renée Bouchard), e Reginald, arrancado da posse dos Menonitas em sua morte, e Guy, assassinado nas colinas da Pensilvânia, e Charles, o estúpido e obscuro, que morrera de febre tifóide havia tanto tempo. Perto deles, num lugar alto, dominando todo o cemitério como um rei domina o seu reinado, mesmo na morte, jazia Ernest Barbour, tendo a cada lado uma de suas esposas — May Sessions e Amy Drumhill. Os filhos de Amy jaziam abaixo dela, à esquerda da linda e solitária eminência: Elsa Barbour e Lucy Van Eyck, e John Charles. (O filho dela, Paul, é que jazia junto de Gertrude, sua esposa.)
Espalhados em redor, em todo o cemitério, estavam inúmeros outros, parte desse império de família e poder que Ernest fundara. Seus nomes estavam esculpidos em simples lápides de mármore ou de granito. Jules Bouchard, em um círculo de veredas de cascalho, flores e árvores, jazia ao lado da esposa, Adelaide, no túmulo dela que ainda não fora cavado, e do pobre Peter. Também seus irmãos lá estavam, François e Leon, e a esposa de Leon. E muitos, muitos outros.
Poucos jamais visitaram aqueles túmulos quietos e mais humildes perto dos altos muros de pedra: os de Armand Bouchard, e sua esposa Antoinette (avôs de Jules), e seu amado filho, Jacques, o aleijado, que se matara. (Jacques fora removido do lado externo dos muros do cemitério católico, e Armand e Antoinette tinham sido retirados do lado interno daqueles muros, e todos enterrados aqui por ordem de Ernest Barbour.) Aqui, neste local distante, também jaziam os pais de Ernest, Joseph e Hilda — que nunca voltaram à sua amada Inglaterra — e suas filhas, Dorcas e Florabelle. Havia colunas, também, em memória de Martin Barbour, que morrera na Guerra Civil, e de Honoré Barbour, muito amado primo de Jules. Porém Martin estava enterrado em algum túmulo perdido no Sul, e Honoré ficara no mar.
Maridos jaziam ao lado de esposas e pais, e os filhos também estavam lá. Nos portões de bronze do cemitério estava soldada a placa: Barbour-Bouchard. Havia jardineiros, constantemente cuidando, regando, podando, plantando. Acima dos altos muros apareciam os topos de grandes árvores, onde pássaros cantavam no ensolarado silêncio do verão. Não muito longe ficava a pequena, mas linda capela que Ernest Barbour construíra.
A nova terra em estado natural perto de Jules e Adelaide foi novamente perturbada por Armand. Puseram-no ali, e os torrões vermelhos caíram sobre seu ataúde. Seus muitos parentes e inúmeros conhecidos o deixaram a seu sono, e as portas de bronze se fecharam após sua passagem. A chuva de abril caiu em seu túmulo. Um ou dois pássaros escolhiam minhocas expulsas da terra, acima do lugar onde jazia seu silencioso coração. Sua cabeça estava junto às raízes de uma enorme conífera — que um dia penetraria em seu corpo e seu crânio, e os reivindicaria.
Os parentes voltaram para a mansão que ele construíra, para ouvir a leitura do testamento. Mas ficaram abalados de surpresa e confusão. Pois os advogados comunicaram, gravemente, haver uma exigência em relação ao testamento: não seria aberto por um ano, ou até que a América tivesse declarado guerra à Alemanha, ou até que Henri Bouchard desse a ordem. Se a América não fosse envolvida pela guerra, ou Henri não desse a ordem, então, ao fim de um ano após a morte de Armand, o testamento seria aberto.
Capítulo 58
Celeste dera ao filho o nome de Land Burgeon Bouchard. Land Burgeon fora o pai de sua mãe, velho durão e obsceno de grande integridade e de boca bem suja. Mas valentão e, como a maioria dos homens de seu temperamento, bondoso, justo e compassivo. Morrera muito antes do nascimento de Celeste, porém ela possuía, como legado de sua mãe, um escuro retrato dele.
Era um retrato feio, mas cheio de vida e vitalidade. O velho baixo e rijo foi retratado em uma enorme poltrona lavrada, com a grande e arredondada cabeça calva inclinada para o peito, como se fosse deformada, as mãos nodosas agarradas ao castão de sua bengala, o queixo agressivamente empurrado para fora. Tinha um rosto enrugado e irascível, muito feio, grande nariz romano, boca fina e larga, toda tensão, austeridade e cinismo, e olhinhos coléricos e desdenhosos. Porém sua ampla fronte calva tinha uma fria nobreza; e sua expressão, embora amarga e maliciosa, não tinha astúcia nem crueldade. Os largos pontos brancos de sua gola surgiam em volta das bochechas amareladas; o grande plastrão era atado abaixo delas como a laçada de um carrasco. Era o retrato de um grande cavalheiro, obsceno, feroz, mas todo honra.
"Gostaria de tê-lo conhecido!" — pensou Celeste, de pé abaixo do retrato, com o filho nos braços. Ele não era um mentiroso, dissera-lhe a mãe. Também jamais gostara dos Bouchards, acrescentara Adelaide, com um sorriso triste. Denominara Jules "aquele francês arrogante com cara de padre". Nunca chamara os Bouchards por esse nome; ele usava a tradução inglesa: Butcher! (Butcher — açougueiro. (N. da T.)) Celeste sorriu, lembrando as histórias que a mãe lhe contava a respeito dele, como usava a bengala prodigamente quando enfurecido, como sua língua fora famosa pela linguagem obscena, epigramas cáusticos e insolência. Mas fora íntegro — e nunca pudera suportar os Bouchards. Nenhum dos netos herdara qualquer das suas características faciais, embora Adelaide frequentemente declarasse que os olhos de Celeste, diretos e firmes, tinham algo da expressão do avô. "Sim — pensou Celeste — gostaria de tê-lo conhecido!"
Ela vivia muito quietamente com seu garotinho em Placid Heights. Ele estava agora com oito meses e, pelo menos para sua mãe, era muito precoce. Possuía uma quantidade de cabelos claros e viris, olhos acinzentados de olhar destemido, nariz curto e grosso, e queixo forte. Mas a boca era terna, embora firme, e quando sorria fazia covinhas. Ao sorrir assim, sua espantosa semelhança com o pai desaparecia numa expressão de grande doçura. Era um bebê quieto, bom, silencioso, muito apegado à sua mãe. Raramente chorava, e brincava sozinho durante horas com uma multidão de brinquedos. Quando Celeste o estreitava junto ao peito, ele mergulhava as mãozinhas em seus cabelos, porém gentilmente, e os olhos acinzentados ficavam luminosos. Celeste sentia o peso das lágrimas por trás das pálpebras, e um nó de sofrimento e de amor na garganta.
Ela o guardava zelosamente, com uma espécie de ferocidade. Ele tinha, já, vários dentes, e podia pôr-se de pé em seu berço. Ela estava certa de que ele podia pronunciar algumas palavras, embora as enfermeiras não concordassem. Celeste o levava para os jardins e o deixava rolar no quente gramado de maio, rindo e gritando de alegria. Expunha-o ao sol, regozijando-se com a fortaleza de seu pequeno corpo. Bouchard: Butcher! Não, esse pequenino não seria um açougueiro. Sua mãe cuidaria disso, até o fim de sua vida. Algum dia o levaria para longe, para que não fosse corrompido.
Agora, toda a sua vida estava nessa criança. Falava com ele, cantava para ele, brincava com ele. E enquanto assim fazia, a rigidez de suas feições começava a relaxar, bem como a amaciar a dureza de sua boca, e a abrandar a sua dura expressão de dor.
Quando os parentes a visitavam, relutava em deixá-los ver o menino. Dissimuladamente, pensavam que era por ser tão notável sua semelhança com Henri. Mas não era essa a razão: ela temia o contágio deles. Dava desculpas: ele estava dormindo, ou sendo alimentado, ou saíra com uma das babás. Quando a guerra acabasse, ela disse, achava que levaria o menino para a Inglaterra, ou talvez para a França, depois que as pegadas do javali tivessem sido eliminadas pelo seu próprio sangue.
Por vezes os parentes cochichavam entre si:
"Ela parece haver esquecido Henri inteiramente. Ótimo para ele!"
Nunca podiam saber o que Henri estava pensando. Aparentemente, não vira o menino desde o dia em que nascera. Annette ia muitas vezes a Placid Heights, sozinha. Só ela via o menino com frequência. Celeste a deixava brincar com ele no gramado: ela ria alegremente quando ele lhe puxava os cachos macios e lustrosos. Beijava-o apaixonadamente, meio rindo meio chorando, apertando-o de encontro ao peito. Depois olhava para Celeste, que a observava meditativamente, e seus imensos olhos azuis-claros se enchiam de lágrimas radiantes.
Foram uma delicada agonia para Celeste as primeiras vezes em que Annette a visitara e vira o pequeno Land. Porém mesmo isso acabara. Ela parecia grata à gentil companhia de Annette; contudo, quando Annette quis acarinhar e beijar o bebê, algo de áspero, duro e sombrio apertou o coração de Celeste. Dificilmente pôde evitar arrancá-lo dos braços de Annette numa espécie de ciúme cego — inexplicável até para ela. Mais tarde, sentiu a maior compaixão por Annette, e uma tristeza imensa. Não queria pensar se Annette conhecia ou não a verdade, e, com o tempo, chegou a acreditar que não suspeitava de nada.
De fato, à medida que aumentava sua feroz proteção, ela se persuadia de que a família de nada suspeitava, ou, se o fazia, havia começado a esquecer.
Em 10 de abril de 1941, o Sr. Hull declarou que fora assinado um acordo com o ministro dinamarquês para uso da Groenlândia como base americana.
Em 27 de maio de 1941, o Presidente, num discurso pelo rádio, declarou uma emergência nacional ilimitada. Anunciou que a Batalha do Atlântico agora se estendia das águas geladas do Polo Norte ao gelado continente antártico.
As organizações subversivas da América entraram num frenesi, em renovada e febril atividade. O Presidente "provocador de guerra" estava apressando a América para entrar nessa "terrível guerra estrangeira". Jornais subversivos, locutores, senadores, deputados, políticos, líderes trabalhistas, figuras preeminentes e públicas, e muitos outros, guinchavam que "em breve os rapazes americanos estariam morrendo em solo estrangeiro".
Porém o povo estava calmo, expectante e austero. O povo é que estava silencioso em meio ao enorme e frenético tumulto. Os "imponderáveis da consciência dos povos" eram sentidos por toda a América, vigilante, desiludida, não ludibriada, e atenta. A alma da América foi reconhecida, ficando mais forte a cada hora, a alma simples e ainda não corrompida de um povo esclarecido.
Quando a Alemanha invadiu a Rússia, em 22 de junho, houve um murmúrio em toda a América como um profundo, mas resoluto suspiro de alívio, e um som como se um exército gigantesco se pusesse de pé e apertasse o cinturão.
"Ainda não perdemos" — disse Antoine a seus partidários.
Esses partidários, essa facção, através de seus jornais, sabia que o Presidente seria acusado. A facção também sentiu grande alívio com a invasão da Rússia pela Alemanha. Seus jornais subornados tomaram fôlego, depois exultantemente gritaram que Hitler agora destruiria o "bolchevismo" na Europa, como há muito havia prometido. Os jornais também festejaram a consternação e confusão dos comunistas americanos, agora que Hitler rompera o Pacto entre a Alemanha e a Rússia. Não apenas os jornais estavam alegres: o povo americano, mesmo nessa hora terrível, pôde rir sinceramente ante esse dilema dos tímidos e pálidos comunistas americanos, que haviam arengado tão gravemente sobre o "imperialismo britânico" e "guerras estrangeiras nas quais não temos interesse", e "fazedores de guerra que querem precipitar-nos num conflito que não nos diz respeito". O American Only Committee tivera seus membros infiltrados no Partido Comunista Americano, e sua retirada em confusão e completo pânico aumentou enormemente a hilaridade americana. Só mais tarde a hilaridade se tornou apenas raiva. Era aparente — disse o povo americano — que os comunistas não sabiam o que era lealdade à América, mas apenas à linha do partido na Rússia. Não eram melhores que os fascistas, afinal de contas. Durante os últimos dois anos, os comunistas americanos haviam atacado o Presidente tão maldosamente como os fascistas nativos o fizeram, e houvera uma similaridade suspeita entre a propaganda deles e o veneno nazista. Com a estupidez de sua espécie, a sua obtusidade, os comunistas logo atrevidamente pediram a intervenção da América na guerra, ignorando a raiva e a risada ultrajada do povo.
— No fim das contas, provavelmente foi uma boa coisa que a Alemanha atacasse a Rússia — comentou Antoine. — Receava que isso consolidasse a opinião americana contra Hitler. Mas as excentricidades dos comunistas americanos enraiveceram o país, e estou deliciado por ver que a opinião pública se recolheu à sua precaução original de 1939.
Porém ele falou sem sua original vivacidade e alegria. Falou com melancolia e opressão, estranhas manifestações para o elegante e despreocupado Antoine.
"É o danado e misterioso testamento de Armand que o está aborrecendo" — comentou a família, alegremente vendo seu rosto moreno, pálido, e a expressão sorumbática e encoberta de seus olhos.
O prazo da Rússia — anunciara Hitler — era de seis semanas. Fantasticamente, o mundo acreditou nele! Os alemães arremeteram através da Ucrânia, uma horda sangrenta. Cidades fumegavam nos trigais! Os rios vomitavam corpos nas praias dilaceradas. As aldeias se desagregavam e dissolviam sob os trovões e relâmpagos de aço e explosivos. Das grandes superfícies planas da Ucrânia sangrando veio um longo gemido de agonia e morte.
Contudo, passaram-se as seis semanas, e embora os alemães estivessem às portas de Moscou, Stalingrado e Leningrado, e o sangue russo se derramasse sobre a terra sedenta, a Rússia não desmoronou, não se rendeu! O mundo observava, espantado e incrédulo. Os russos retrocediam, morriam. O céu da Rússia se tornou vermelho com o fogo de incontáveis aldeias e cidades. Mas a Rússia não caiu.
Capítulo 59
— Em breve poderemos golpear — disse Henri a Christopher, em agosto de 1941.
— Quando? — perguntou Christopher. — Está esperando guerra?
Estava muito curioso a respeito de Henri. Será que o suíno conhecia o conteúdo do testamento de Armand? Se conhecia, nada disse que pudesse fornecer a mais leve pista. Nunca se sabia nada dele, seus pensamentos ou seus planos. Mesmo assim, Christopher começou a acreditar que Henri sabia o que continha o testamento.
Como se adivinhasse os pensamentos de Christopher, um lívido relâmpago passou pelos descoloridos olhos de Henri. Ele sorriu um pouco:
— Se você quer dizer: estou esperando até que o testamento de Armand possa ser aberto?, a resposta é não. Deixe o resto por minha conta.
Christopher inclinou a cabeça ironicamente. Mas não se sentia irônico. Sua vaidade foi novamente ferida, humilhada. Se Henri conhecia o conteúdo do testamento, por que, então, não se mexia em consideração a Celeste? A menos — e agora Christopher sentia uma pontada dolorosa — que o testamento proibisse Henri expressamente de casar com Celeste, ou divorciar-se de Annette. Se assim fosse, então o que seria de Celeste e seu filho? Seria possível que o obtuso e estúpido Armand soubesse do caso, e tivesse providenciado contra ele? Seria possível que Antoine tivesse contado ao pai? Se isso houvesse acontecido, então tudo estaria perdido...
Tornou a erguer os olhos e viu Henri a observá-lo com frio cinismo. E foi quando o ódio acumulado de anos rebentou em Christopher. Apertou as mãos. Henri se levantou e caminhou até a janela do seu escritório: não desejava que Christopher visse o seu sorriso agora. "Que se preocupe!" pensou.
— Em breve poderemos golpear — disse, de costas para Christopher.
Nunca falavam em Celeste nesses dias, embora seu nome estivesse sempre entre eles, ameaçadoramente.
Nessa noite de agosto, quando Land Burgeon Bouchard estava com exatamente um ano de idade, Henri voltou a casa para jantar, e foi recebido gentil e docemente, como sempre, pela esposa, Annette. Estava tão preocupado por seus próprios pensamentos que não dava para ver que ela estava ainda mais pálida que habitualmente, e que seus olhos tinham um brilho estranho. Fizeram em silêncio a refeição, silêncio quebrado apenas por um ocasional comentário de Anette sobre o calor úmido do dia, e suas sugestões de que estava iminente uma tempestade.
Henri olhou ociosamente pelas janelas francesas, abertas. O oeste era uma opressiva chama carmesim. No alto, amontoavam-se nuvens tempestuosas em massas purpúreas. Fazia muito calor. Até gafanhotos e grilos estavam silenciosos. As árvores se inclinavam pesadamente, os topos tingidos de escarlate. No ar brilhantemente claro, embora espectral, do ocaso a grama tinha um verde peculiarmente vívido. Enquanto Henri observava, finas lanças de fogo pálido trespassaram as nuvens tempestuosas, e foram seguidas por um estrondo distante. De repente as árvores imóveis se mexeram inquietas, e um hálito frio e sulfuroso passou pela sala calma. A atmosfera estava opressiva com a tempestade se aproximando.
— Sim — disse Henri — estamos numa pior. Bem, precisamos disso.
Concluída a refeição, e Henri a ponto de levantar-se da mesa, Annette falou. Tinha havido silêncio por algum tempo. Ela falou bem calmamente, o olhar fixo em Henri, as mãozinhas juntas e apertadas em cima da mesa.
— Henri, gostaria de falar-lhe, se não se importa.
Havia algo em sua doce voz que impediu que se impacientasse. Olhou-a penetrantemente. Ela estava tão imóvel... Até sorria, embora ele pudesse ver gotinhas de suor em seu lábio superior. Mas seus olhos azuis estavam hesitantes e muito brilhantes. Ele tornou a puxar sua cadeira para a mesa, e esperou:
— E então? — falou, em sua voz monótona.
O instinto, nele, que sempre despertava a qualquer sinal de perigo, ergueu-se agora. Até sua pele estava desperta, formigando estranhamente. Porém ele não dava sinais disso. Sentou-se e esperou.
Viu o movimento de sua garganta branca e frágil, enquanto ela engolia com dificuldade. E viu que ela tremia levemente. Ainda o olhou de frente, e sorriu. Mas o sorriso era dolorido.
— Por favor, não se zangue comigo, querido — disse. (Quão clara e firme a sua voz, mas como estava tensa!) — Mas pensei nisso por muito tempo.
— Quê? — ele falou, pesadamente.
Viu os pálidos dedinhos dela contraírem-se. Ela ergueu o queixo um pouco mais e o mirou valentemente:
— Primeiro, quero fazer-lhe uma pergunta, Henri. Por favor, seja honesto comigo. Por favor me responda, se sabe. Conhece o testamento de papai... o que contém?
Ele ficou silencioso. Fitou-a sombriamente. Depois, de repente, apertou as mãos na mesa, empurrou a cadeira e levantou-se. Foi até as janelas e ficou de pé diante delas, olhando para fora vagamente, para as nuvens tempestuosas contra o ocaso carmesim. Ouviu um movimento macio a seu lado: Annette lá estava, encarando-o. E pôs a mão em seu braço. Porém ele não quis olhá-la, embora seus músculos se contraíssem a seu toque.
— Henri — ela murmurou, com insistência — devo saber!
— Por quê? — Ele resmungou, sem olhá-la. Porém ela lhe via o perfil sombrio, perturbado.
Ela suspirou fundo:
— Por favor, acredite-me: eu tenho de saber. É importantíssimo para mim. Henri, se você sabe, deve dizer-me. — E sua voz falhou: — Henri, tenho de saber! Não me pergunte por quê. Só lhe posso dizer isto: não posso suportar não saber.
Por um momento ele não falou. Agora o seu rude perfil estava obstinado e rígido. Disse:
— Sim, eu sei.
Ela deixou cair a mão. Ficou de pé ao lado dele, esperando, nos olhos toda a sua súplica apaixonada. Lentamente, ele a olhou, e depois subitamente tornou a afastar-se.
— Por favor, diga-me — ela instou.
Ele ficou silencioso uma vez mais. Porém ele a sentia esperando, gentilmente obstinada, fortemente determinada. Então ele falou:
— Você conhece a cláusula: guerra, ou dentro de um ano, ou quando eu der a ordem. Condições expressas de seu pai.
Ela disse, sem fôlego, implorando:
— Diga-me, Henri.
Ele se virou de novo para ela, já abrindo a boca para palavras impacientes. E então lhe viu o rosto. Sentiu uma rara compaixão por ela. Ficou quase gentil:
— Apesar de seu pai não querer isso, Annette?
Porém ela disse, olhando-o nos olhos:
— Diga-me, Henri.
Ele hesitou. Depois lhe contou. Ele a observava atentamente enquanto o fazia. Ela não se movia. Mas seus olhos se tornaram vívidos, de um azul brilhante. Quando ele terminou, ela sorriu um pouco, e suspirou, repetidas vezes.
— Caro papai... — murmurou. Afastou-se um ou dois passos. Depois seu rosto entristeceu: — Mas pobre Antoine! Será terrível para ele! Só posso esperar que papai soubesse bem o que fazia.
De repente ela parecia exausta, quebrada. Afastou-se, às cegas, tateando em busca da cadeira, onde se deixou cair. A cabeça lhe descaiu para o peito. As mãos lhe penderam frouxamente. A claridade da tempestade, caindo em feixes de luz através das janelas, aureolava seus cabelos claros. Henri não lhe podia ver o rosto. Ele se voltara para vê-la afastar-se, mas não se movera de sua posição.
— Acredite-me: seu pai sabia o que fazia — disse ele, com gentileza fora do comum.
Porém ela não falou.
— Naturalmente, você não contará isto a ninguém? — acrescentou ele.
Contudo, ela não parecia ter ouvido. Ele franziu a testa. Começou a mover-se em direção a ela quando a moça falou, e o som da voz dela, estranhamente forte e sem emoção, o fez parar abruptamente. Era ainda mais estranho ouvir essa voz porquanto ela não se mexera na cadeira nem erguera a cabeça. Era como se a voz viesse de perto dela, e não de seus lábios. O coração de Henri começou a palpitar pesadamente, ante as palavras dela:
— Estou satisfeita porque me disse. Isso resolve muitas coisas. Sabe, Henri, quero o divórcio. Não podia pedir-lhe até que soubesse.
E agora só havia silêncio na sala, quebrado pelo ronco do trovão e o movimento das árvores agitadas. Henri estava de pé junto à janela, as mãos apertando os pulsos. Seu rosto permanecia na sombra.
— Por quê? — perguntou afinal.
A silhueta da moça era agora apenas uma mancha, na luz espectral, os cabelos um brilho difuso. Sua cabeça descaíra um pouco mais, porém isso era tudo.
— Não podia pedir-lhe antes — disse ela, e sua voz era um sussurro sibilante — mas agora posso. Esperei o divórcio por muito tempo. Eu... tenho querido ficar só. Nunca fui feliz.
E então sentiu o marido a seu lado: pusera a mão no ombro dela. Ao seu toque, ela suspirou, suspirou muito, e tremeu um pouco. Ele sentiu o seu longo tremor.
— Não — ele falou, gentilmente — você nunca foi feliz. Sei disso. Eu nunca a fiz feliz, nunca tentei. Sinto muito, querida. Sinto de verdade. Mas... foi o que aconteceu. Não creio que jamais pudesse fazer a felicidade de alguém.
Ela não ergueu a cabeça. Mas sua mão segurou os dedos dele, que ainda estavam em seu ombro. Ele lhe sentiu o toque trêmulo e gelado, e algo se contraiu dolorosamente em seu peito.
— Não foi culpa sua — ela continuou, fracamente. — Não devíamos ter-nos casado, para começo de conversa. Na verdade, a culpa foi minha. Eu... não pude ser coisa alguma para você, meu querido. Não pude dar-lhe filhos. Quando... soube... foi quando devia tê-lo deixado ir-se. Mas fui egoísta...
Ele disse, numa estranha voz, alta, estranha mesma para seus próprios ouvidos:
— Você nunca foi egoísta, Annette! Não estava na sua natureza o ser egoísta. — Acrescentou, e sua voz vacilou: — Eu não combinava com você, não era digno de você. Ninguém era. Sempre foi tudo que há de bom, gentil, doce e leal. Nunca a esquecerei, Annette! Nunca!
Ela respirou fundo. Então, muito gentilmente, afastou-lhe a mão. Pôs-se de pé e o encarou, frágil e pequena, mas corajosa. Até sorria, embora sua cor, na escuridão que aumentava, fosse tão espectral que era o rosto de um fantasma que o encarava.
— Mas quero que esqueça, querido! — disse ela, suavemente. — Olhe, vou para longe. Talvez nunca mais volte. Não quero que se lembre de mim, absolutamente. Exceto, talvez, se algum dia gostou de mim, só um pouquinho.
Ele respondeu, voz trêmula:
— Gostei muito, muito, de você, Annette. Creio que só eu realmente sabia quem você é.
Ela ergueu as mãos involuntariamente e ele as pegou depressa, segurando-as com força. Estavam tão frias, tão sem vida... Disse, sem pensar:
— Annette, não quer mudar de opinião?
Sentiu que os dedinhos dela endureciam. Ela recuou a cabeça e seus claros olhos azuis se fixaram nele, firmemente:
— Não, Henri. Pensei nisto por muito tempo. Realmente, quero o divórcio. Isso me faria mais... mais satisfeita. Mas estou tão contente porque me pediu! Nem lhe sei dizer o quão contente! Não sei, mesmo, dizer como isso me faz feliz!
Ele deixou cair as mãos dela, que continuou, com firmeza:
— Eu queria saber, antes de qualquer outra pessoa, a respeito do testamento de papai. Era melhor, não era?
E então, com profunda gratidão e humildade, ele compreendeu. Ficou tão atordoado que sua visão rodopiou diante dele com faíscas e clarões de luz.
— Era melhor para você... — ela murmurou.
Ele a tomou nos braços e lhe apertou a cabecinha em seu ombro. Não podia falar. Podia apenas segurá-la, os dedos metidos em seus macios cabelos. Ela podia sentir o palpitar do coração dele, sua respiração profunda. Ela abraçou-se a ele, não fortemente, mas com doçura. Quando ele lhe voltou o rosto para cima, e lhe beijou os lábios, ela ficou sem fôlego, seus olhos se fecharam.
Capítulo 60
Uma tarde Annette telefonou ao irmão, Antoine, e lhe pediu que viesse a Robin’s Nest, sozinho. Henri estava em Washington outra vez, ela disse, e havia algo que desejava comunicar a Antoine.
Seu tom de voz e suas palavras, embora calmos, até indiferentes, causaram uma íntima excitação ao sutil Antoine. Foi imediatamente. A irmã, de luto, pareceu-lhe mais frágil que nunca, embora perfeitamente tranquila. Notou que cia o olhava atenta e tristemente, e que havia algo de pessoal em seu olhar. Beijou-a com verdadeiro carinho e sentou perto dela, segurando-lhe a mão:
— Bem, minha bichinha, o que a aborrece agora — perguntou.
Adiantou a mão para arranjar um dos macios cachinhos atrás da orelha. Seu toque, sua voz, seus modos afetuosos, quase lhe romperam o coração. Pela primeira vez sentiu uma amargura absurda contra o pai. Mordeu o lábio para evitar um tremor traiçoeiro. Talvez papai e Henri estivessem errados... Olhou o estreito rosto moreno e os cintilantes olhos negros do irmão, e novamente a amargura lhe trouxe à boca um gosto de fel.
Retirou sua mão da dele, mas sua expressão era toda amor. Hesitou, afastou dele o olhar. Murmurou:
— Quero dizer-lhe, antes de mais nada... Você é meu irmão, e assim pensei melhor. Sabe, está tudo tão confuso... mas sei que compreenderá, Tony querido.
— Bem, Nita — disse ele, vendo-a hesitar. — De que se trata? É realmente tão importante? — Porém ele pressentia ser importante, e se dirigiu para ela, alerta.
Ela respirou fundo, depois disse, firmemente:
— Dentro de uma ou duas semanas estarei indo para Reno, querido. Vou divorciar-me de Henri.
Ele a fitou inexpressivamente. Havia-se afastado dela um pouco. Suas mãos se agarravam aos braços da poltrona. Começou a sorrir: havia um brilho a dançar-lhe nos olhos:
— É mesmo? E por quê?
Quando ela não respondeu, ele disse:
— Agora? Lembre-se: eu a avisei para fazer isso há mais de um ano. Por que agora? Por que a súbita mudança de opinião?
Ela o olhou resolutamente:
— Pensei melhor — respondeu, com calma.
Ele se levantou, incapaz de permanecer sentado. Caminhou rapidamente pela sala, de mãos nos bolsos. Sua expressão era inescrutável, porém exaltada. Depois virou-se para ela:
— Reno? Por que Reno? Por que não aqui, na Pensilvânia? E sob que pretexto?
Antes que ela pudesse responder, ele continuou, rapidamente:
— Adultério?
— Adultério? — ela murmurou, franzindo as sobrancelhas e olhando o irmão com uma mistura de censura e afronta. — Isso é um absurdo, Tony! Sabe disso. Pedirei o divórcio sob alegação de incompatibilidade, naturalmente.
Então a expressão dele se transformou. Ficou de pé ao lado dela, examinando-a quase selvagemente. Seus olhos se estreitaram, tornaram-se malignos. Disse, maciamente:
— Então, ele por fim a está jogando fora, hein? Para que possa desposar aquela cadela?
Ela se pôs de pé rápida, tremendo violentamente, com chispas nos olhos:
— Tony! Mas que coisa horrível está dizendo!
Porém, arrastado por seus próprios pensamentos tumultuosos, ele exclamou:
— Ele não podia fazer isso enquanto nosso pai estava vivo, não! Como pode agora? Que sabe ele do testamento de nosso pai? Deus! Gostaria de saber disso!
Recomeçou a caminhar de um lado para outro, com crescente rapidez. Passava e repassava pela irmã, parada em desesperado silêncio, a observá-lo. Ele parou diante dela, olhando-a fixamente. Porém ela sabia que ele não a via.
— Ele deve saber a respeito do testamento, ou não ousaria pedir o divórcio! Deve saber que está garantido! Meu Deus! Por que está ele garantido? Que haverá nesse maldito testamento?
Ela se adiantou e pegou-o pelo braço. Sacudiu-o um pouco:
— Tony, você não compreende! Ele não me pediu o divórcio. Eu é que pedi. — Deteve-se. Sua voz tremeu, e ela engoliu em seco. — Por favor, acredite em mim. Estou-lhe dizendo a verdade. Nunca lhe menti, não é, Tony? Quando lhe pedi o divórcio, ele me pediu para mudar de ideia.
Antoine parou, rigidamente, no exato momento em que ia arrancar-se dela. Agora estava sorrindo de novo, maldosamente:
— Então — falou, suave — ele lhe pediu que mudasse de ideia, não? Imagino por quê! Realmente fico imaginando por que...
Jogou a cabeça para trás e riu, silenciosamente. Depois empurrou a irmã de volta à sua cadeira e sentou-se a seu lado:
— Conte-me mais alguma coisa.
Ela não pôde aguentar ver a satisfação maligna dele, seu sorriso sombrio e a risada: baixou as pálpebras convulsivamente. Quando ele tentou tomar-lhe a mão de novo, ela a retirou com um estremecimento. "Papai tinha razão" — pensou. Porém o amor pelo irmão era como uma dor terrível em seu coração.
Falava tão baixo que ele mal podia ouvi-la: inclinou a cabeça para ela.
— Está enganado, Tony. Ele me pediu que mudasse de ideia porque estava com pena de mim. — Agora ele via as lágrimas prateadas a correr-lhe sob as pestanas. — Ele estava triste por minha causa. Mas também estava satisfeito, satisfeito por livrar-se de mim. Não posso censurá-lo. Eu nunca devia ter casado com ele. Ele nunca me quis.
Desapareceu a exaltação dele. Olhou zangado aquele rosto tão branco. Depois tomou-lhe de novo a mão, e a esfregou entre as suas: estava gelada. Agora ele era todo aflição e presságio.
— Está me dizendo a verdade, Nita? — perguntou, insistente. — Pediu o divórcio? Você se importaria de me dizer por quê?
Ela não abriu os olhos. Respondeu, debilmente:
— Porque posso ver, por fim, como foi errado casar-me com ele. Faz quase dezesseis anos. Todo esse tempo... eu o tenho segurado. Isso foi iníquo. Sim, agora percebo isso. Só espero que não seja demasiado tarde para ele.
Suas palavras, baixas e vacilantes, o golpearam como pedradas. Ele já não estava exultante. Henri não teria concordado com o divórcio se não fosse seguro, se não tivesse alguma garantia de estar a salvo. Então, não havia nada no testamento que destruísse Henri se se divorciasse de Annette. Antoine umedeceu os lábios ressecados. Mas não pôde deixar de insistir em perguntar:
— Mas não compreendo! Ele concordou com o divórcio?
— Sim — ela sussurrou. — Está tudo combinado. Os advogados dele estão redigindo os documentos de pensão e doações. Mas vou recusar... tudo. Tenho mais do que preciso. Não... não sei o que está no testamento de papai, mas sei que não me esqueceria. Além disso, tenho parte do dinheiro da mamãe também.
Ele viu que ela estava sofrendo terrivelmente, e sem forças, apesar de sua coragem. Olhou-a atento, e pela primeira vez pensou no sofrimento da irmã. Baixou uma sombra escura em suas feições.
— Annette — disse, asperamente — você é uma tola. Você o está liberando para que ele possa desposar aquela... aquela vagabunda. Não sabe disso?
Ela se voltou para ele rapidamente, e ele lhe viu nos olhos um brilhante fogo azul. Porém seu tom de voz era calmo:
— Não sei do que está falando, Tony. Não sei se Henri pretende tornar a casar. Espero que sim. Espero que ainda haja tempo suficiente para... para endireitar as coisas. Para ele. Não me importa com quem ele case, contanto que seja feliz. Isso é tudo que importa.
Ele a fitou, triste:
— Annette, sabe que pode arruiná-lo mesmo agora, não sabe? Não acha que deve alguma coisa a si mesma? Não acha que devia haver justiça para você? Você sabe que todos esses anos ele lhe tem sido infiel, que as coisas que tem feito com outras mulheres têm sido um escândalo. Não tem um pingo de orgulho? Não há nada que eu possa dizer para fazê-la mudar de ideia a desistir desse divórcio?
Ele pensava: "Se casar com Celeste, ele terá Christopher e outros."
Ela disse, claramente:
— Não creio que Henri tenha sido infiel. Se isso aconteceu, então ainda foi minha a culpa. Que tinha eu para dar-lhe? Eu nada era para ele. Poderia ter-se divorciado de mim muitas vezes, mas não o fez. Tem sido... bom... para mim.
— Bom! — Ele estourou numa risada velhaca. — Só por causa de nosso pai! Nem mesmo disso você sabe?
Porém ela respondeu com grave firmeza:
— Sim.
Ele ia falar, mas ficou silencioso. Estudou-a num exame penetrante: ela não se desviou dele. Depois, dando de ombros levemente, ele foi até as janelas e ali ficou, de costas para ela. Brincou com uma borla das cortinas. Ela viu a mão morena e fina a mover-se impaciente e com pequenos puxões distraídos. De repente ela ficou vagamente surpresa. Percebeu haver algo de muito estranho com o irmão. Olhou séria para ele, para sua magra e elegante figura, e a silhueta de sua cabeça pequena. Que é que estava tão mudado em Antoine? Não saberia dizer. Mas involuntariamente deu um passo em direção a ele e falou, suave:
— Tony?
Por alguns momentos ele não se virou; fê-lo depois, relutante. Porém ela não lhe podia ver o rosto, que ele havia desviado a um lado. Porém ela teve a impressão de introspecção e melancolia.
Ela fez um pequeno e esvoaçante gesto com as mãos:
— Tony? Algo errado? Você não parece o mesmo, querido.
Ele ergueu a cabeça e a olhou.
"Ele está cansado, exausto!" — ela pensou, todo o seu amor por ele invadindo seu coração. Existe algo de errado! Falou, impulsivamente:
— Tony, é algo em que eu possa ajudar?
— Não — ele respondeu, com indiferença. Depois voltou-se e ficou de pé diante dela, e de novo Annette teve a impressão de estranheza, de fatigada imobilidade. Porém quando ele tornou a falar, foi com gentileza: — Nita, o que vai fazer?
Ela apertou as mãos, palma contra palma, e embora o ar da tarde estivesse quente, ele percebeu que ela tremia um pouco. Mas sorria:
— Você quer dizer: depois do divórcio? Não sei, querido. Que fazer? Não posso ficar aqui. Só sei isso.
— Então?... — ele disse, experimentalmente, quando ela hesitou.
Ela caminhou pelo quarto, e agora era ela que lhe voltava as costas. Ficou de pé, segurando-se a uma cadeira. Começou a falar, como para si mesma:
— Que poderei fazer? Toda a minha vida tem sido vivida inutilmente, devorando os proventos que poderiam ter sido usados com mais benefício por outros. Comi alimentos que jamais ganhei, e usei roupas compradas com dinheiro de outros. Está começando exatamente a ocorrer-me que sou uma parasita, que não tenho razão para viver. Se eu tivesse tido filhos, poderia ter havido alguma desculpa para a minha existência.
A voz da moça era macia e firme. Mas, de alguma forma, Antoine sentiu uma aguda contração no peito.
— Sim, havia uma razão — ele disse — nosso pai a amava. Você lhe proporcionou toda a felicidade que ele jamais teve. Que teria ele feito sem você, Nita? E penso que eu também tenho amado você.
Porém ela continuou, como se ele não tivesse falado:
— Uma vida inútil, idiota. Pior que tudo: ainda não acabou. Deve haver algo que eu possa fazer — ela continuou, com doce veemência, e ele viu que ela havia apertado as brancas mãozinhas, e com elas socava silenciosamente as costas da cadeira. — Uma vez cheguei a pensar que poderia fazer alguma coisa com minha música. Mas parecia não haver razão. Talvez eu não tivesse bastante ambição, ou talento bastante. Se fôssemos pobres, talvez algo pudesse ter sido feito. Nunca tive suficiente energia física, e ninguém jamais me disse que isso não importava. Fui mimada e afagada toda a minha vida, até chegar a crer que era realmente algo de precioso!
E então ela riu, suave e tristemente. Curvou a cabeça mais e mais, como se dominada por sua lamentável jovialidade.
— Ninguém é superior ao seu semelhante — ela continuou, enquanto ele a observava, cheio de dor. — Ninguém merece nada que não tenha ganho. Jamais ganhei alguma coisa. Jamais dei alguma coisa. Estou começando a ver... Ora, eu sou uma fracassada. E a culpa é inteiramente minha.
— Não, querida, não é sua culpa. — Ele se dirigiu até ela, mas não a tocou. — Você teve a saúde delicada toda a sua vida. Depois casou com.... ele... que nada fez para torná-la feliz.
— Feliz? — voltou-se para ele com tal rapidez que o deixou tonto. — Por que deveria alguém fazer outro "feliz"? Como se a felicidade fosse algo a ser dado, como uma joia ou um presente de Natal! Ninguém pode dar felicidade a outro. É algo que se adquire por si só, com sua própria energia e seu próprio desejo. Como ousamos dizer a alguém: "Por favor, por favor! Faça-me feliz! Sou fraca e estúpida, não tenho recursos em mim mesma, nem valor, bondade ou abnegação, que possam fazer-me feliz!" Que presunção! Quão revoltante! Quão egoísta!
Ela estava inflamada de paixão e raiva, e tremia violentamente. Ele a olhou, espantado.
Ela continuou, quase incoerente:
— Censuramos outros por nossa infelicidade, desespero e impotência. Se somos desgraçados, jamais confessamos a nós mesmos que fomos fracos, cruéis ou desprezíveis. Se fracassamos, nunca é por nossa culpa, não! Talvez não possamos aguentar contemplar nossa própria mediocridade e esterilidade, ou indagar a nós mesmos se jamais, sem qualquer tempo, tivemos algo para dar. É muito mais fácil, e muito, muito mais confortável, lançar a culpa nos pais, maridos, esposas, circunstâncias, ou falta de oportunidades. Então nosso ego não ficará ferido. Podemos pensar em nós como mártires insultados, a quem ninguém jamais amou, ou socorreu, mas apenas negligenciou.
Ele disse, raivosamente:
— Você acha que mereceu o tratamento que recebeu dele?
— Sim! — ela gritou. — Eu não tinha o direito de casar com ele! Sabia que se casava comigo porque papai o subornara, e que, de certa forma, ele também era fraco, pondo o poder acima da felicidade. Eu sabia estar favorecendo a fraqueza dele. Sabia que estava sendo comprado por papai, para mim. Ainda assim, fui imoral o bastante para aceitar o ajuste. Mas não tive a coragem, ou o orgulho, de aceitar todas as condições do ajuste, e contentar-me em, por fim, ter casado com ele. Não! Quis que ele me amasse, também! Tinha de começar a esperar que ele podia achar-me suportável, podia até chegar a querer-me por mim mesma! — Novamente explodiu numa risada amarga: — Não fui iludida por Henri: eu mesma me iludi.
Afastou-se dele, distraidamente:
— Nunca me fale do que ele "me deve", ou de como "me traiu"! Ele nada me deve. Nunca me traiu, porque nunca me quis, nunca me prometeu coisa alguma. Nunca fingiu. Pelo menos, foi honesto.
Ficou de pé junto da janela já escura. Pôs as mãos no rosto e assim ficou, em silêncio, sem chorar.
Lentamente, Antoine sentou-se. Descansou o cotovelo no braço de poltrona e com a mão cobriu a boca. Contemplou a irmã. As palavras se repetiam e repetiam em sua mente, como ecos doentios. Sentiu uma tremenda esterilidade e desintegração, que nada tinham a ver com ela, e nada absolutamente a ver com piedade. De repente, sentia-se enormemente cansado, e havia uma chocante secura em sua boca.
Ele disse, mecanicamente:
— Ainda penso que você não deveria divorciar-se. Acho que a parte dele nisso deveria ser tornada pública.
Ela se voltou para ele, inflamada, apaixonada:
— Tornar pública? Que quer dizer, Tony?
Quando ele não respondeu, ela veio até ele rapidamente e ficou de pé diante dele, as mãozinhas apertadas, os olhos azuis altivos:
— Tony, que quer dizer? Tony, pensei que se importasse um pouco comigo! Mas você faria isso comigo? Com sua irmã?
— Não fale como uma idiota, Annette. Que tem você a ver com isso?
Porém ela falou, em tom ainda mais selvagem:
— Eu quero paz! Quero esquecer tudo! Mas, se você algum dia tentar feri-lo, tentar molestá-lo, Tony, terei de defendê-lo, de negar tudo que você diga! Pensa que não o farei? Farei sim, Tony. Esteja eu onde estiver, voltarei para ajudá-lo. Não acha que devo isso a ele?
Agora sua raiva profunda e volátil subiu à superfície:
— "Deve a ele"? Que é que você lhe deve? Você conhece o testamento de nosso pai? Nunca imaginou o quanto ele deve ter influenciado nosso pai? Nunca suspeitou que ele pode estar nos roubando?
— Roubando-nos? — Ela parou e sorriu palidamente. — Estamos sem recursos? Há apenas uma semana Henri me disse que, só pela minha parte, sou uma das mulheres mais ricas da América. E sei que mamãe lhe deixou dois terços de seus bens, para chegar-lhe às mãos após a morte de papai. Que mais podemos querer, Tony? Que é que você quer mais? Você é casado com uma mulher muito rica, Tony. Quer mais?
Ele ficou silencioso. Porém muito lentamente, as negras e faiscantes brasas da raiva morreram em seus olhos. Disse, pesadamente:
— Inútil explicar-lhe, Annette. Nunca entenderia.
Levantou-se. Olharam-se mudos.
Então, com um gemido surdo, ela se encaminhou para ele, e descansou a cabeça em seu peito.
— Tony — sussurrou — seja bom para mim... Ame-me um pouco... Sempre o amei tanto... Não esqueça que sou sua irmã. Ajude-me, Tony, você é tudo que eu tenho!
Instintivamente ele a rodeou com os braços, e a aconchegou ao peito, sua compaixão parecendo um punhal quente em seu coração.
Capítulo 61
Jay Regan disse a Henri Bouchard num dos primeiros dias de setembro:
— Não mais de três meses, eu diria. E não diretamente de Hitler. Estou considerando o Japão.
Henri abanou a cabeça, tristemente:
— Sim. Mas quem, além de nós, sabe disso, ou enxergará isso?
O velho sorriu delicadamente:
— Meu caro Henri, você quer dizer: quem acreditaria em nós?
Henri riu brevemente:
— Bem, apresente as coisas desse modo, se quer: "Quem acreditaria em nós?"
— Francamente, não os censuro. Se eu fosse a Washington, à Casa Branca, e dissesse: "Sr. Presidente, pare de olhar para o Leste. O perigo está lá, sim, esperando. Mas o primeiro golpe virá do Oeste". Qual seria o resultado? O Sr. Roosevelt me olharia longa e fixamente, daquela maneira desconcertante que ele tem, e depois sorriria um pouco. Seria tudo. Dobraria sua atenção sobre o Leste, mais firmemente convencido que nunca de que o perigo reside ali. Não, meu caro Henri, um ladrão regenerado está sempre sob a suspeita de não estar realmente regenerado, ou de que a qualquer tempo poderá ter um motivo oculto.
— Temos — observou Henri, rigidamente. — Mas também acontece que nosso próprio motivo oculto está coincidentemente ligado à segurança e à sobrevivência da América. Não poderia convencer disso o Presidente?
Regan sacudiu a cabeça, e agora seu sorriso era cáustico:
— Quando me viu, acidentalmente, em Washington há cerca de um ano, disse: "Bem, Jay, como vão os seus golpes?" Eu diria que sua expressão não era exatamente amável, embora a observação fosse bastante ambígua. O Sr. Roosevelt é homem muito sutil, Henri. Ele também me perguntou por você.
Riram juntos por um momento. Depois Regan disse:
— Além de nós, os únicos que sabem são os nossos inimigos. E pode estar certo de que não estão falando demais. Muito pouco podemos fazer, a não ser preparar nossos planos para o dia inevitável em que a América será apanhada desprevenida. Sabe, Henri, nunca fui de consultar militares. Agora eu gostaria de conhecer alguns almirantes: Poderia persuadi-los a vigiar as Filipinas e o Havaí.
Henri ficou pensando na questão, enquanto Regan o observava atentamente. Depois o velho falou:
— Meu rapaz, você trabalhou bem. Tem os explosivos prontos, e o arsenal bem provido. Quando pretende mexer-se?
— Não até que a guerra seja declarada. Ou haja passado um ano da morte de Armand. Não sei por que ele acrescentou isto. A menos — e seu sorriso era triste — que não tivesse confiança em mim. Embora tenha dito que eu podia dar a ordem.
Ele traiu um pensamento inquieto pelo tremor dos lábios grossos e pesados. "Assim — pensou Regan — você está cogitando que reflexões tardias, astuciosas e humilhantes, estão também incluídas no testamento, e a respeito das quais você não foi informado... Defuntos frequentemente tornam as vinganças mais cruéis e traiçoeiras... que foram impotentes para tomar em vida."
— Não sei por que ele não confiaria em você, em tudo, como você parece implicar — disse Regan.
Esperou, mas Henri não fez comentários. Sua mão forte e quadrada tamborilava com apenas uma leve inquietação na secretária do outro.
Então Regan falou:
— Ouvi um boato, Henri. Que a Sra. Henri vai divorciar-se de você.
Henri ergueu o olhar, alerta, franzindo a testa:
— Onde ouviu isto?
Regan deu de ombros:
— Francamente, não me lembro. Era um boato superficial. Alguma verdade nisso?
Henri hesitou. Depois replicou, os olhos descoloridos totalmente inexpressivos:
— Sim. Vejo que já não é segredo. Não foi dito a ninguém: ficou inteiramente entre mim e minha esposa. E estou certo de que ela ainda não falou disso a ninguém. — Acrescentou: — Se já é sabido, qual a reação geral?
Regan tornou a dar de ombros:
— Uma pequena incerteza, entre os grandes acionistas. Sabe o quão temperamental é a Bolsa. Naturalmente, se o testamento de Armand fosse conhecido, poderia influenciar muito; particularmente, posso acrescentar, se o conteúdo fosse favorável a você.
Quando Henri não falou, e apenas fitou de modo penetrante o velho amigo, Regan continuou:
— Se, por exemplo, a presidência de Bouchard & Sons passasse para Antoine, com os cinquenta e um por cento de ações de Armand, e sua esposa recebesse vários grandes blocos de ações das subsidiárias, somando seu peso ao do irmão, isso teria, pelo menos, um efeito perturbador na Bolsa, e particularmente em nossos amigos, que conhecem as... simpatias de Antoine.
Henri não falou, embora seus olhos faiscassem. Disse Regan:
— Tem certeza de que o que me disse a respeito do testamento está correto?
— Sim — respondeu Henri, com impaciência que traía sua inquietação. — Eu estava lá, quando ele foi redigido. Sei de tudo a respeito dos fundos de fideicomisso. Conheço as testemunhas. Os advogados são meus amigos. Garantiram-me que, da redação original, nada foi mudado. Porém — disse, após um momento de sombria reflexão — não me disseram se algo foi acrescentado...
— Bom. Em geral, tudo está como você disse. Passarei isto adiante, com cautela. Qualquer coisa que possa ter sido acrescentada será, naturalmente, sem importância?
— Não sei — replicou Henri, com aborrecimento. — Poderia apenas ser de importância pessoal.
— Mas, por Deus!, homem, por que não manda que o abram então? E vê?
Henri mordeu o lábio. Replicou:
— Não sei. Penso que, por nossa própria segurança, abri-lo agora seria prematuro. Estou esperando pela guerra. Armand era de opinião que, se passasse um ano após sua morte, e não estivéssemos metidos na confusão, então haveria probabilidades de que nunca o estaríamos. Daí aquela outra condição. Assim, estou dividido entre esperar para ver o que o infernal testamento teve acrescentado, se é que teve alguma coisa, e a necessidade de esperar.
Regan esfregou o queixo:
— Suponha que haja algum codicilo a respeito de divórcio, liem? Como ficaria então, se sua esposa já se tivesse divorciado de você?
Henri voltou-se para ele diretamente:
— Convenci-a a esperar, até que fosse aberto o testamento. Persuadi-a de que devia isso à memória do pai. — E ele sorriu, um sorriso odioso.
Após um momento Regan falou, vagaroso:
— Pode haver alguma disposição a respeito de que você não torne a casar, na hipótese de um divórcio ou da morte de sua esposa.
— Então — disse Henri, calmo — não haverá divórcio, nem haverá novo casamento.
Regan ficou a fitá-lo por muito tempo.
— Sabe — disse, finalmente — você é realmente maravilhoso! Realmente maravilhoso, Henri.
Pensou na filha de Jules Bouchard, esperando em solidão, obscuridade e vergonha em Placid Heights, e sorriu intimamente. A amada filha de Jules, que deve esperar a vontade de um homem morto, que deve esperar a palavra de um homem vivo que a amava muito menos do que ao poder.
"Espero — pensou Regan — que Jules esteja apreciando isto..." Ele odiara Jules demais.
Capítulo 62
Em agosto é que Agnes Bouchard informara a Celeste de que Annette pretendia divorciar-se de Henri. Celeste não fizera observações. Apenas olhara Agnes, em silêncio; depois disse, após alguns momentos:
— Mal posso acreditar nisso... Por quê? Não parece haver razão...
Mas quando Agnes ia cinicamente entrar em pormenores, Celeste mudou de assunto. Perguntou a Agnes se gostaria de ver o pequeno Land, que já dava alguns passos por si mesmo. Agnes a acompanhou ao berçário onde o bebê, forte e sério, estava no berço, e chamando a mãe impaciente. Fitou Agnes com aqueles olhos brilhantes, e sorriu um pouco. Agnes não se importava particularmente com crianças; no entanto, gostou de Land como uma pessoa, não como uma criança. Dizia que seus próprios netos não passavam de uns "bolhas", "protoplasma". Mas essa criança, com sua gravidade, a determinada inclinação do queixo, e o olhar firme, a enchia de respeito. Disse:
— Alô! — como se falasse a um seu igual, e ele sorriu logo em resposta.
Celeste o olhou terna. Ergueu-o nos braços e o beijou com súbita paixão. Enterrou o rosto em seu pescoço quentinho, de modo que Agnes não pudesse ver as lágrimas que não pôde evitar. Porém Agnes, que era astuta e sutil, estava perfeitamente cônscia delas.
Celeste sofrera na vida; mas nada fora muito pior que o longo período morto de espera que agora se seguiria para ela. Não permitia a si mesma reconhecer por que esperava, ou por que vigiava todos os caminhos que levavam a Placid Heights. Quando seu coração pulava ao som de um carro galgando os caminhos de cascalho, quando uma porta se abria e ela ouvia uma voz masculina — tentava controlar-se com rigor desesperado. Quando os parentes a visitavam, tentava ver através do véu de amizade que os mascarava. Ninguém falava de um divórcio pendente. Ela não ousava perguntar. Apenas podia esperar e observar. Se fosse verdade, pensou, ele teria vindo. Teria sido o primeiro a comunicar-lhe. E então, com súbita frieza, pensava: "Se é verdade, por que ele não vem? Será que nunca mais virá?"
Não vira Annette desde que Agnes lhe falara do boato. Annette lhe telefonava com frequência, mas Celeste, por mais que tentasse, nada podia adivinhar por sua voz. Como de costume, Annette era sempre adorável e serena, perguntando pelo bebê, repetindo seus infindáveis convites, que Celeste nunca aceitava, e prometendo visitá-la em breve. Mas, por alguma razão, quando Celeste depositava o fone, descobria que sua mão estava fria, úmida e trêmula.
Dentro de muito pouco tempo, suas novas cores, sua nova vitalidade, sua nova silhueta roliça, começaram a desaparecer. Aprofundava-se em seus olhos uma expressão tensa e confusa; os lábios empalideciam. Gostava muito de dirigir pelo campo nesse começo de outono, em passeios com o pequeno Land. Agora, mandava-o com uma das babás e ficava sentada sob as árvores perto da casa, de modo a poder vigiar as estradas que subiam a colina. Quando via a poeira de um carro que se aproximava, seu coração inchava ao ponto de sufocação. Porém quando podia identificá-lo, ficava de boca seca, e ardendo com o ácido amargo do desapontamento.
Lentamente, à medida que o tempo passava, um pesado e abrasador núcleo de sofrimento se estabeleceu em seu peito, núcleo também da raiva mais profunda e selvagem, e de vergonha. Tentou raciocinar consigo mesma que o boato provavelmente era falso, que não havia nenhum divórcio à vista — pelo menos não até que fosse aberto o testamento de Armand. Mas Agnes, ela sabia, não era dada a esse tipo de comentários: nunca repetia nada que fosse inteiramente sem base. Agora Celeste censurava amarga sua "maldita" reserva. Por que não permitira que Agnes entrasse em maiores detalhes sobre o assunto? Por que se levantara tão precipitadamente e a fizera subir logo as escadas até o berçário? Lembrava o súbito rugido e a tontura de seus sentidos após ter ouvido o boato. Sentira o aperto de todas as suas veias, o tremor de seu corpo. O fato de levantar-se fora, na verdade, uma fuga. Mas por quê? Odiava-se pelo instinto que a fizera fugir da sala, com Agnes a segui-la de perto.
"Sempre fui covarde, realmente! — ela pensou, com ódio e desdém por si mesma. — Sim, Agnes tinha razão, naquele dia. Disse que eu era covarde. Sou mesmo. Sempre fui. Se eu tivesse tido alguma coragem, a qualquer tempo, muito do que aconteceu jamais teria acontecido, e assim muito sofrimento teria sido poupado a mim e a outros..."
Novamente, como um vivido pesadelo, lembrou aquele dia, há tanto tempo, quando vira Henri deixá-la pela última vez, antes de seu casamento com Peter. Podia ver-se, novamente, à sua janela, e o modo por que a sua sombra o seguia sob os álamos. E então, sentindo seus tristes olhos de criança a acompanhá-lo, ele se voltara e erguera a mão numa saudação final, a sorrir-lhe. Foi então que o mais bravio da paixão a dominara. Quisera, com todas as pulsações de seu coração, todos os seus instintos, escancarar a grande janela francesa, correr para ele através do gramado, gritando-lhe que esperasse, que não a deixasse. Mas permanecera ali enraizada, dura e gelada, como uma pedra, enquanto seu espírito o seguia, chamando-o desesperadamente.
"Porém — pensou — não tive a coragem de declarar abertamente que cometera um erro. Tive medo do ridículo. Tive medo dos jornais, que fariam um escândalo do meu rompimento com Henri e noivado com Peter. Tinha medo de coisas tão inconsequentes, tão sem importância! Assim, deixei que minha vida se arruinasse, e as vidas de outros também, porque tinha medo de um ridículo passageiro, e uma humilhação passageira..."
Ao lembrar tudo isso ela pensou:
"Talvez ele tenha razão em não voltar. Como confiaria em mim novamente? Sabe que sou covarde, que eu corro quando desejaria ficar, e fico quando gostaria de fugir. Se ele jamais voltar, eu mereço isso."
Porém houve outras ocasiões em que sua vergonha lhe parecia demais para suportar, quando tinha os sonhos mais loucos de abordá-lo publicamente e criticá-lo. Ficava aterrorizada nessas ocasiões, e queria correr para o seu quarto e trancar-se a chave, assustada.
Sentia-se completamente desamparada. O irmão ficava ausente de Windsor cada vez mais. A princípio pensara em perguntar-lhe, em seu crescente desespero e suspense, mas nas poucas ocasiões em que o via, sua língua paralisava.
Entretanto, chegou uma noite em que ela não pôde aguentar mais sua agonia. Telefonou para Christopher, em Endur. Edith informou que era esperado às oito da noite. Agora eram nove. Christopher ficou alarmado com a voz dela, tão rouca e baixa, e repetidas vezes perguntou se estava bem. Ele não havia entrado em casa quando lhe chegou o chamado de Celeste, e Edith, em tom acerbo, expressou sua opinião a respeito dessa saída.
Christopher achou a irmã à sua espera. Esperava encontrá-la histérica, abatida por alguma calamidade ainda não explicada. A criança, talvez. Mas ficou zangadíssimo ao vê-la completamente calma, embora um tanto pálida e tensa, e, ao cumprimentá-lo, fez-lhe alguma pergunta ridícula a respeito da sua recente viagem.
— Olhe aqui, minha querida, que vem a ser isto? Acabei de chegar de Los Angeles, e antes disso estive em constante movimento. Já não sou muito jovem. Estou cansadíssimo. Você me chama como se sua casa estivesse incendiada, ou seu bebê tivesse sido raptado, ou a casa cheia de ladrões. Isso não poderia ter esperado até amanhã?
Ela o olhou, sem falar. E então ele viu que ela estava com um olhar vítreo, como se tivesse sofrido uma dor longa e chocante, e que estava calma só por não ousar estar de outro jeito. Pegou-lhe a mão e a estreitou fortemente:
— Muito bem, querida — falou, calma — que se passa?
Pô-la numa cadeira e sentou-se perto dela. Ela apertou as mãos rigidamente nos braços da poltrona e se voltou para ele:
— Christopher, tenho de saber! Henri está realmente se divorciando de Annette?
— Divorciando? — ele exclamou, espantado. — O que lhe deu esta ideia? Quem lhe contou?
— Agnes — ela disse, com simplicidade. — Há mais de um mês. E Agnes nunca repete boatos sem base.
Olhava implorante para o irmão. Ficou espantada ao ver quão pálido ele ficou, e quão imóvel. Seus olhos claros faiscaram malévolos. Falou, como para si mesmo:
— E ele nunca me contou...
Voltou-se para a irmã, porém ela sabia que ele não a via. Estava realmente vendo o homem a quem odiava mais do que jamais odiara alguém.
— Por que ele não me disse? — perguntou.
— Não sei! — sussurrou Celeste — Não sei! — E depois, em tom mais forte: — Mas isso pode não ser verdade. O testamento de Armand ainda não foi aberto. Talvez não haja nada definitivo até...
A expressão de Christopher mudou:
— Sim. Naturalmente. Mas por que ele não me disse? Ou a você? — Ele sentiu sua mortificação como uma doença. — Ele não esteve aqui?
— Não. Nunca vem. Pedi-lhe que não o fizesse. Porém ele poderia ter vindo, apesar disso.
Christopher começou a rir. Levantou-se: c
— Maldito dissimulador. Bem, por fim está demonstrando discrição. — Acrescentou, examinando a irmã: — Você poderia, claro, pedir-lhe que viesse.
— Não. Nunca! Se ele nunca vier, eu nunca mandarei chamá-lo, Kit.
Sua voz era apaixonada, veemente. Ele se afastou:
— Então, só podemos esperar. Até que o testamento de Armand seja aberto. Embora, francamente, fosse mais decente, e menos sujeito a falatórios, se ele permitisse que Annette se divorciasse dele antes que ele conhecesse o conteúdo do testamento.
Ele teve um pensamento que o fez franzir a testa, mas não o comunicou à irmã.
— Não posso suportar a espera! — ela disse, de súbito. — Kit, tenho de ir-me daqui!
— Você não fará nada disso! As fofocas pararam. Sua fuga apenas as estimulará.
— Então, devo esperar, apenas esperar? Não suporto isso!
Ele a olhou tristemente:
— Você deve. Não há outra coisa a fazer. Quer que mande Edith para que lhe faça companhia durante algum tempo?
— Não.
Ele a sentiu distraída, quando a deixou. Uma ou duas vezes chegou a pensar em ir a Henri, mas a lembrança daquele homem rude e implacável o fez desanimar.
Foi na noite seguinte — uma noite de chuva pesada e céu plúmbeo — que Annette veio visitar Celeste e o bebê. Como sempre, estava calorosa e terna, porém Celeste, nunca à vontade com a sobrinha, estava muito calada. Em seus últimos limites, perdera todo o senso de qualquer culpa em relação a Annette. Havia até vezes em que a olhava com amargura e ressentimento. Sabia ser isto cruel, mas o sentimento voltava com maior força a cada vez.
Annette brincou com o menino no berçário. Só depois de algum tempo Celeste notou certa mudança em Annette. Não que parecesse mais frágil, ou mais fatigada, ou mais docemente triste. Antes havia nela um senso de delicada força, contentamento, e serena quietude. Celeste esqueceu seu gelado ressentimento, em sua inquieta curiosidade.
Foram para o pequeno salão de Celeste, para o chá. Foi então, enquanto mexia o chá e se servia de um bolinho, que Annette falou, no tom mais casual e pensativo:
—- Celeste, será que a chocaria terrivelmente se lhe dissesse que me estou divorciando de Henri? Divórcios, eu sei, não são comuns em nossa família. Talvez pela herança católica.
Continuou a mexer seu chá. Por alguns momentos não olhou para Celeste. Quando o fez, erguendo lentamente os olhos, viu que a cabeça de Celeste estava abaixada. Mas não havia nela qualquer outra manifestação.
Os olhos de Annette se encheram de lágrimas apiedadas. Bebericou um pouco do chá. A xícara tiniu no pires:
— Você não acha que é horrível de minha parte, acha, querida?
Celeste ergueu a cabeça. Mesmo na penumbra da sala, Annette pôde ver que ela estava pálida e rígida.
— Annette — e sua voz estava tensa — que fará, depois?
Annette deu de ombros, suspirou e sorriu:
— Só recentemente me acudiu que sou muito inútil, Celeste. Passei por um exame físico completo. É verdade que não sou exatamente uma atleta, nem tenho músculos. — Riu maciamente. — Porém os meus médicos me garantem, como sempre o fizeram, que tenho ótima constituição. Algumas cicatrizes nos pulmões, mas tudo isso é passado. Não tenho muito corpo, mas um excelente sistema nervoso. Preciso de um interesse na vida, disseram-me. De modo que pensei em realizar algum trabalho de assistência. Lembra-se de Lucille Wanamaker? Está organizando um serviço de assistência britânico, para operar na Inglaterra. Já recolheu uma quantia enorme, para ser empregada em roupas e alimentos; e, em cooperação com a Cruz Vermelha, pretende distribuir essas coisas com os refugiados, vítimas de bombardeios. Precisa de voluntários. Posso dirigir uma ambulância e ajudar na distribuição.
Celeste, esquecendo-se de si mesma em sua súbita preocupação por Annette, exclamou:
— Mas você não pode! Nunca foi forte! Isso a matará!
Cuidadosamente Annette depositou xícara e pires antes de responder. E então bateu as mãos nos joelhos e ficou a olhá-las por algum tempo. Começou a falar, em tom muito baixo:
— Acho que a maioria das doenças das mulheres americanas e suas duradouras neuroses provêm de nunca ter nada de significativo ou de importante para fazer. Você não pode adoecer, não pode imaginar coisas horrorosas e incoerentes, se alguém precisa de você. Eu, eu mesma, nunca fiz nada em minha vida a não ser aceitar afeição e cuidados, e pensar na obtenção de meus próprios desejos.
Deteve-se. Celeste olhou para ela, olhos nublados de lágrimas. Esquecendo tudo, dirigiu-se à outra mulher e pôs a mão em seus joelhos:
— Não, querida, está enganada. Você nunca pensou em si mesma. Sempre ajudou outros, e tem sido tão compreensiva. Nenhum de nós jamais a mereceu...
Annette sorriu. Pôs a mãozinha sobre a de Celeste:
— Que bondade a sua, querida, dizer isto! Mas não é verdade. Que foi que eu já fiz? Dei dinheiro para caridades. Mas nunca vi aqueles que se beneficiavam desse dinheiro. Francamente, penso que nunca me importei em vê-los. Eram algo de nebuloso, e irreal. Gostaria de ver aqueles a quem ajudo, a quem posso ajudar. Gostaria de falar-lhes, e ajudá-los em seus problemas. Em algum lugar sei que há miséria e sofrimento que podem ser aliviados, não apenas por dinheiro, mas por simpatia e bondade. Sinto que devo fazer isso. Pela minha própria alma talvez. — E ela riu um tanto trêmula.
— Um mundo inteiro agonizando, Celeste, e milhões de mulheres idiotas bebericando chá e jogando cartas, e choramingando de medo de que sejamos envolvidos pela guerra... E, naturalmente, seremos. É inevitável. Não quero ser uma das choramingas, Celeste.
Celeste empurrou os cabelos para trás, num gesto incerto. Fitou Annette, com um olhar comovido e triste:
— Antigamente, quando Peter estava vivo, eu realmente vivia, Annette. Agora, não. Nada me importa muito. Tornei-me egoísta e mesquinha. Tudo é irreal, além de mim. — Parou abruptamente, pois sua voz foi interrompida pelas lágrimas.
— Você tem um filho, Celeste — falou Annette, docemente, e com dor. — Você realizou alguma coisa.
Mas Celeste levantou-se, em grande inquietação. Começou a falar, depois parou. Após alguns momentos pungentes, perguntou:
— Annette, por que está se divorciando de Henri?
Annette também se levantou. Obrigou-se a olhar para Celeste diretamente, mas com desinteresse. Sentiu a acelerada e dolorosa palpitação de seu próprio coração, embora o dissimulasse com um sorriso:
— Porque a coisa já foi longe demais, Celeste. Ele nunca se importou comigo, embora por vezes eu tenha tido a ideia de que me tinha alguma afeição. Tem demorado terrivelmente. Não é muito agradável saber que o marido de alguém casou... por alguma vantagem. Porém eu mesma me enganei todos estes anos. Agora sei que não adianta. Piora, à medida que o tempo passa. Não é justo... para nenhum de nós. Não sou uma criança, Celeste, embora tivesse continuado a pensar que era, por tempo demasiado. Vejo agora que tenho minha própria vida para viver, e que posso vivê-la, se tiver coragem. É agora ou nunca!
Celeste a fitou num silêncio em que havia uma espécie de severidade. Afastou-se um pouco, e começou a arrumar um jarro de flores na mesa do chá. Disse, de modo quase inaudível:
— Ele é que estava errado. Não tinha direito de tratá-la como o tem feito, Annette. Ele é um homem cruel.
— Não! — gritou Annette. Caminhou até Celeste e pegou-a pelo braço. — Eu é que fui cruel. Creia-me. Casei com ele, sabendo que não me queria a não ser por uma vantagem pessoal. Eu deveria ter tido mais orgulho.
— Ele foi cruel — repetiu Celeste, e agora estava sem fôlego, numa súbita paixão. — Se ele não fosse cruel e maldoso não se teria casado com você, sabendo que nada lhe poderia dar. Nunca tentou fazê-la feliz, Annette! Era o mínimo que poderia ter feito. Seria apenas honrado. Porém ele nunca tentou; nunca lhe dispensou senão indiferença. Pior que tudo: humilhou-a constantemente!
Seus olhos de um azul-escuro brilharam na obscuridade. Recuou, afastando-se da sobrinha. Respirava com grande dificuldade.
Annette estava alarmada. Sua cor delicada desapareceu:
— Está enganada, Celeste! Frequentemente ele era muito bondoso para mim. Você não sabe! Como poderia? Quando lhe pedi o divórcio, ele me pediu que mudasse de ideia...
— Ele... — começou Celeste; depois ficou de boca seca, e petrificada.
— Sim, querida. Ele me pediu que mudasse de ideia. Finalmente, convenceu-me a esperar até que as coisas estejam esclarecidas, e seja aberto o testamento de papai.
Ficou a cogitar, em sua imensa aflição e espanto, por que Celeste subitamente parecia tão sombria, tão desfigurada, e por que seus olhos brilhavam tão selvagemente. "Que foi que eu disse que a transtornou assim?" — ela pensou, confusa.
— Por que ele lhe teria pedido para esperar? — perguntou Celeste: falava como se sua língua tivesse inchado enormemente.
Annette começou a tremer. Algo tinha dado horrivelmente errado. Tateou em busca de palavras:
— Eu... eu não sei, Celeste! Eu, pessoalmente, achava melhor não esperar. Estava certa de que papai fizera tudo correto para Henri, no testamento, e que um divórcio não importaria.
Celeste começara a sorrir, sombria, e com crescente violência:
— Então não compreende, Annette? Ele receia que haja mais alguma coisa no testamento. Receia que, se houver um codicilo que o proíba de divorciar-se de você, ele perca tudo pelo que cometeu perjúrio. Não percebe?
— Não! — exclamou Annette.
Retirou a mão da de Celeste e então, pela primeira vez, Celeste viu a raiva e a indignação de Annette dirigidas para ela. Porém estava, muito desatenta para importar-se.
— E, Annette — ela continuou, em voz muito alta — se houver tal condicilo, que fará você? Irá divorciar-se dele, mesmo assim?
Annette ficou silenciosa. Afastou-se de Celeste a passos trôpegos, tão aflita e atordoada que receou desmaiar.
A voz veemente de Celeste a perseguiu:
— Por que ele não abre agora o testamento, Annette, e se assegura? Ele pode dar a ordem.
Annette virou-se para ela, rapidamente, o rostinho branco em fogo:
— Já lhe ocorreu, Celeste, que é demasiado cedo para abri-lo, que Henri tem trabalho que deve fazer antes que ele seja aberto? Que abri-lo prematuramente pode estragar todos os planos dele? Não sabe em absoluto que tem algo mais importante em que pensar do que apenas em mulheres? — Ela perdeu o controle de si mesma em tais extremos: — Não sabe que mesmo você não é tão importante para ele como o trabalho que tem de fazer?
E agora as palavras que dissera impensadamente, em sua veemência, jaziam entre elas como uma espada que jamais poderia tomar a ser embainhada. Fitaram-se por sobre ela, mal respirando, olhos secos. Uma súbita frieza envolvia todo o corpo de Annette; sua garganta estava cerrada de angústia e desespero. Ela tornou a falar, enquanto Celeste, pálida e gelada, aguardava:
— Celeste, eu não devia ter falado. Esperei nunca precisar falar. Não pedirei desculpas: é tarde demais! Mas posso dizer-lhe isto: se. houver tal codicilo no testamento, não me divorciarei de Henri. Ele ainda é mais importante para mim que qualquer pessoa no mundo, inclusive eu mesma.
Celeste nunca vira sua sobrinha assim. Embora a sala obscura ondulasse e girasse em torno dela, apesar de seu coração estar flamejante de vergonha e agonia, embora tivesse experimentado a mais terrível desolação, náusea e horror de sua vida — ainda estava cônscia dos enormes olhos azuis de Annette, firmes, destemidos, e claros como água transparente.
Por momentos mudos e terríveis elas se enfrentaram. Então Annette começou a suspirar. Baixou a cabeça e se afastou. Saiu da sala. Celeste a viu ir-se. Incapaz de mover-se, ouvia agudamente. Ouviu o som do carro de Annette descendo o caminho. Correu à janela e a escancarou. O carro chegara à primeira curva.
Então Celeste gritou, embora soubesse que Annette não podia ouvir:
— Adeus, Annette! Adeus, minha querida! Adeus, adeus!
Caiu de joelhos diante da janela. Apertou o rosto distraidamente contra sua fria escuridão. As mãos lhe caíram aos lados do corpo. Começou a chorar, mas sem lágrimas.
Capítulo 63
Embora Henri tivesse visto Celeste uma dúzia de vezes no último ano, seus encontros haviam sido casuais e muito de longe em longe, em casa de parentes. Entretanto, ficara agradavelmente surpreendido ante a melhora de sua aparência, seu olhar de serenidade e de saúde, e suas boas cores. Ela sempre o cumprimentava com indiferença cortês e logo dirigia suas atenções para Annette e os outros.
A primeira impressão de Henri, ao entrar no salão de Celeste naquela noite de princípios de outubro e vê-la levantar-se de diante do fogo para encará-lo em silêncio austero, foi que ela havia perdido toda a frescura e toda a cor adquiridas no ano que passara, e que era uma mulher amargurada e endurecida que o encarava. Não fez nenhuma observação banal como: "Por que veio?" Apenas disse, por fim:
— Por favor, sente-se, sim?
Ele o fez. Ela sentou-se a alguma distância dele, e aguardou, toda frieza e retraimento. Depois de um silêncio difícil, ele disse:
— Parece doente, Celeste. Que há de errado com você? — Sua voz estava impaciente.
— Pareço? — ela perguntou, e se moveu um pouco, de modo a ficar ligeiramente desviada dele. — É o tempo, suponho. Odeio o inverno. Por isso é que estou indo passar algum tempo na Califórnia.
— Sim. Ouvi falar nisso. Foi por este motivo que vim hoje.
Ela se virou para ele, rapidamente, e sorriu de modo desagradável:
— Então arriscou-se, sendo indiscreto, suponho. Mas o que tem você com isto, de qualquer maneira?
O som que ele fez era ainda mais impaciente e rude:
— Quanto mais vivo, mais cogito por que tratamos as mulheres como se elas importassem. Os orientais são muito mais sensatos do que os babosos ocidentais, ou melhor: americanos. Não gosto de mulheres. Jamais gostei. São um maldito aborrecimento necessário. — Depois começou a sorrir: — Muito necessário, por vezes.
Ela corou, zangada, mas nada disse.
— Acontece que eu a acho necessária, Celeste — Ele continuou. — Por alguma razão, você sempre me foi necessária. Jamais gostei muito de você, como pessoa. Pensei que, à medida que ficasse mais velho, diminuiria minha necessidade por você. Isso não aconteceu, para minha grande surpresa.
Ele esperou algum comentário dela, porém ela erguera a cabeça e agora o olhava com flamejante desprezo, mesclado de humilhação.
— Por vezes — ele continuou — pensei que você possuía mais que um cérebro de passarinho, como a maioria das mulheres. Você voltou da Europa uma verdadeira mulher. Eu tivera um forte sentimento por você quando mocinha; tive muito mais forte, quando mulher. Não que eu jamais tenha esperado que qualquer mulher pudesse ser uma "companheira" para mim, por Deus!
Ele riu desdenhosamente:
— Entretanto, sempre pude conversar com você com algum estímulo, entre seus ataques de amuo e de virtuosa indignação, e suas atitudes. Embora, a cada vez que eu voltasse para você, você estivesse com os olhos em brasa e cheia de observações desagradáveis. Certa vez Agnes comentou que você era uma vitoriana. Estou começando a acreditar nisso.
Celeste nada disse. Ele viu que sua garganta pulsava com considerável violência, e que os lábios estavam separados como se ela estivesse encontrando dificuldade em respirar. Tinha os olhos vítreos numa fúria extrema.
Henri levantou-se, foi até à lareira e ficou olhando o fogo, com agrado:
— Naturalmente, você não irá para a Califórnia — disse.
A raiva reprimida de Celeste era tão grande que ela sentiu uma impotência voluptuosa. Enquanto o olhava, convenceu-se de que o odiava como jamais odiara em sua vida.
— Está enganado — disse, intensamente. — Vou sim.
Ele virou para ela aquela grande cabeça e perguntou casualmente:
— Por quê?
Mas sua raiva era demasiada: nem podia falar.
Ele foi adiante, perfeitamente à vontade, sempre falando casualmente:
— Nunca lhe fiz quaisquer promessas. Isso ficou entendido desde o início. — Ele se deteve para observar, com curiosidade, o fluxo de vermelhidão em seu rosto e sua testa. — Disse que, quando certas circunstâncias o permitissem, pensaríamos em casamento. Ou melhor: quando eu achasse conveniente. Você era muito agradável, lembro-me bem.
Ela se pôs de pé, sufocada de vergonha, algo agonizando em seu peito.
— Vá embora! — gritou-lhe.
Subitamente ele mudou, tornando-se implacável e grosseiro. Fitou-a, e ela viu-lhe os olhos implacáveis.
— Não gosto de dramas — ele disse, glacialmente, olhando-a como se ela fosse uma criatura asquerosa. — São sempre falsos, ou histéricos, ou armados para determinados efeitos. Comporte-se, Celeste.
Ela gritou, incoerente, perdida para tudo que não fosse seu vergonhoso sofrimento:
— Você disse que, quando Armand... morresse...
A impassibilidade dele aumentava à medida que ela perdia o domínio sobre si mesma. Viu-a deitar a cabeça nos braços, que apoiara na cornija da ladeira. Ouviu-a chorar. Os dois sulcos fundos entre seus olhos mais se aprofundaram.
— Sim, lembro-me disso — falou ele. Deu um passo para ela, e então parou. — É perfeitamente verdadeira. Mas aconteceu algo. Não posso abrir o testamento de Armand... não posso divorciar-me de Annette... até que os acontecimentos provem ser seguro fazê-lo. Não demorará muito. Talvez um mês... dois meses...
Ela ergueu a cabeça, e se virou para ele braviamente:
— Você é um mentiroso, Henri! Sabe que Annette esteve aqui, e que me disse que pretende divorciar-se de você?
Ele ficou chocado. Sua expressão foi a princípio ameaçadora; depois mudou, tornou-se pensativa:
— Sim? E então?
Celeste apertou as mãos de encontro ao peito, como para controlar a dor que lhe palpitava no coração. Ela o olhou nos olhos:
— Ela disse, no entanto, que se o testamento especificar que você... perderá se houver um divórcio, então nada a fará deixá-lo ir-se.
As grossas sobrancelhas de Henri se juntaram de forma que os olhos eram apenas pontinhos sob tal saliência. Ele observava Celeste curiosamente, enquanto ela esperava, e ele ouvia o rouco arquejar da sua voz.
Ele falou, calmo:
— Disse-lhe, certa vez, que não poderia desposá-la até que Armand morresse, que eu não ousava arriscar um divórcio. Pensei que você compreendesse que as coisas que eu estava tentando realizar eram mais importantes que nós mesmos. Após a morte de Armand, eu disse, e que tivesse passado o perigo para o meu trabalho, então consideraríamos a questão. Lembra-se?
— Sim, sim! — ela exclamou, com impaciência férvida e incontrolável. — Lembro-me de tudo isso! Mas você poderia abrir o testamento agora, se quisesse!
Ele sacudiu a cabeça com impassibilidade granítica:
— Não. É cedo demais. Eu lhe disse: dentro de um mês, dois meses...
Subitamente ela recuperou o controle sobre si mesma, porém seu rosto continuou muito branco. Pôde dizer, calma:
— E depois que o testamento for aberto, e que você tenha realizado o que é necessário, o que eu sei que é necessário, e que haja ainda algum codicilo que possa ocasionar sua perda pessoal se se divorciar de Annette... — Ela engoliu convulsivamente: — ...uma perda que nada tenha a ver com o trabalho que você já terá concluído, porém é pessoal...
Ele deixou cair a mão que se apoiava na cornija da lareira e a encarou em cheio. Disse, vagarosamente e com ênfase:
— Então, não me divorciarei de Annette.
O choque que ela teve foi tão grande que ela pareceu diminuir, encolher, desintegrar-se. Olhou-o com olhos arregalados;
— Pensei — murmurou, debilmente — que tudo era adiado apenas por causa das coisas que você estava fazendo, pelo bem da América, e por si mesmo, e que quando tudo isso estivesse seguro você... você... — A voz lhe faltou.
— Eu abandonaria tudo, hein — ele terminou, com um sorriso tão medonho que ela se sentiu mal. — Eu abandonaria toda uma vida de esforços, de esquematizar, planejar, lutar, toda ambição... por você? Por uma mulher? — Começou a sacudir a cabeça, seu sorriso se ampliou e se tornou ainda mais feio: — Por que pensa que voltei à América? Que sabe a meu respeito? Realmente pensa, mesmo após todos estes anos, que sou o tipo de homem que desistiria de tudo por uma mulher? Pensa que sou um dos seus heróis cinematográficos? — E agora ele parecia possuído por uma raiva fria e violenta: — Vocês, mulheres americanas, não podem compreender que para os homens vocês não passam de meras cópias masculinas, que uma mulher é sempre secundária, apenas secundária? E que o tipo de homem que teriam, servilmente atrás de vocês, abandonando toda ambição, orgulho e realizações só para poderem dormir com vocês, seria apenas uma caricatura, nojenta, desprezível e repugnante? Mesmo assim, como vocês, malditas mulheres, os amam!
Nas profundezas de seu terrível sofrimento e vergonha, Celeste só podia murmurar: "Oh! Deus! Oh! Deus!" Já não enxergava Henri: ele era apenas uma forma esbranquiçada em meio a um nevoeiro. Em algum lugar, tinha consciência de um núcleo ardente a queimá-la.
Seus lábios, que sentia enormes e inchados, moveram-se a custo e ela falou, roucamente:
— E o bebê? E quanto ao bebê?
Pôde ouvir-lhe a voz, que lhe chegava de alguma distância imensa, porém muito nítida e fria:
— Desde o início você compreendeu que as coisas seriam sob as minhas condições e não sob as suas. Não lhe fiz promessas, mas pensei que compreendesse que estaríamos sempre juntos, casados ou não casados. Armand está morto. O trabalho que eu devia realizar estará terminado em breve. Se for possível divorciar-me de Annette sem danos para mim, eu me divorciarei. Poderemos casar-nos então. Se não puder divorciar-me dela sem prejuízo para mim, então não poderemos casar-nos. Entretanto, dentro de dois meses, talvez menos, será seguro para você e para mim estarmos juntos novamente. Será seguro para mim visitá-la quando eu queira, e ver meu filho a qualquer tempo.
Seus sentidos lhe voltaram numa vívida investida ante as palavras dele: pareceram-lhe tão infames, tão terríveis, que ela ficou chocada em sua plena consciência. Mal podia acreditar no que ouvia! Começou a tremer, encolhendo-se como se tocada por gelo. Não podia falar: sua garganta estava fechada.
Ele a observava com aquela curiosidade indiferente e cruel que era uma de suas mais fortes características. Observou:
— Você está pensando no menino. Não sabe que somos bastante ricos de modo que nada mais importa? Além disso, quem ousaria dizer alguma coisa a ele? Quem ousaria caluniar todo esse dinheiro? — E ele riu um pouco.
Ela o olhou do abismo de seu indescritível sofrimento e disse, simplesmente:
—Não o compreendo. Jamais compreendi. Você é um mentiroso. Pensei que você... se importasse com o que acontecesse ao... ao bebê, se não a mim. Mas não. Você só se preocupa consigo mesmo. — Tomou uma respiração profunda, depois a exalou, num longo e quebrado suspiro de dor externa e exausta. — Você nem o viu desde o dia em que nasceu. Nunca procurou vê-lo.
Ele sorriu, estranhamente:
— Está novamente enganada, minha querida. Eu o vejo com frequência. Tenho feito questão disso. Não nesta casa, naturalmente. E agora suponho — acrescentou, com desdenhosa impaciência — que ficará muito enraivecida com a pobre Edith, com quem você tem deixado o bebê frequentemente, a pedido dela. Gritará com ela, suponho. Isso seria muito seu, Celeste. E, sem dúvida, porá um paradeiro a isto...
Porém, para sua grande surpresa, ela não estava raivosa. Em vez disso, o rosto dela mudou. De súbito, vieram-lhe lágrimas aos olhos, que lhe inundaram as faces. Virou a cabeça:
— Não — falou, suavemente — não farei isso. Surpreende-se, não, Henri? — Depois de um momento, acrescentou: — Posso aceitar não ser o que haja de mais importante para você, mas não posso aceitar que o bebê não o seja.
Ele chegou bem perto dela então, e disse, olhando-a com indulgência:
— Talvez, de certa forma, ele o seja. Não lhe faria mal nenhum se outro sobrenome Bouchard não fosse acrescentado ao que ele já tem, mas lhe fará um bem enorme se eu lhe puder deixar uma das maiores fortunas do mundo, e uma posição de poder.
Ela se levantou, sua emotividade se fora, e podia olhá-lo agora diretamente, com sombria calma:
— Acho que agora compreendo tudo, Henri. Não afastarei o bebê. Poderá vê-lo com maior frequência ainda, se quiser. Arranjarei isso com Edith, que o ama imensamente. Porém eu não quero tornar a vê-lo. Você pensará que sou uma egotista, e talvez seja mesmo. Mas sei disto: não importa o que aconteça, não importa se não houver nada no testamento de Armand que proíba o divórcio para você e um posterior casamento comigo: não quero que você volte. Não o quero seja em que termos for, seus ou meus. De alguma forma, nada mais existe em mim agora.
Ele ficou a falar, impaciente, e então parou. Nunca vira Celeste assim, tão forte, contida e resoluta. A mecha branca em meio a seus cabelos negros não era mais branca que seu rosto.
Os olhos estavam intensamente azuis, e severos. Viu que ela o olhava sem paixão, sem raiva, sem ultraje, sem dor.
— Quer dizer — ele falou calmamente — que não pode suportar a verdade?
Ela deu de ombros; estava muito cansada:
— Talvez. Posso até admitir isso. Mas não, acho que é porque você é cruel. Eu sempre soube que você era cruel e brutal. Mas sabia disso em minha mente. Não o sabia com meu coração. Agora sei disso de todas as maneiras, e não posso suportar tê-lo perto de mim novamente.
Enquanto ele a observava com grande intensidade, ela continuou, muito calma:
— Quando jovem, estava sempre com medo das pessoas cruéis. Ultimamente venho tentando descobrir por que fugi de você e casei com Peter, embora amasse você todo o tempo. Sei agora. Era porque eu, instintivamente, sentia que você era cruel, e não apenas cruel de um modo inflexível e impessoal, um modo ambicioso, mas de modo pessoal, também. Isso é algo que não posso perdoar. Acreditei, todos esses anos, que sua crueldade era coisa essencial, necessária, para o domínio de um mundo tão desonesto e violento. Mas não pensei que ela poderia estender-se àqueles que se poderia pensar que você amava, que você poderia golpear, por pura perversidade, aqueles sem defesa contra você. Isso é covardia, Henri. Não é covardia golpear inimigos que querem destruí-lo. Mas é terrível abater aqueles que o amam, ou são mais fracos do que você, sem outra razão que um profundo sadismo. Você é um sádico, Henri.
Ele estava silencioso. Com o cotovelo apoiado na cornija da lareira, gentilmente mordia o dedo índice enquanto a observava, pensativamente.
Ela suspirou, ergueu as mãos, e as deixou cair:
— É tudo, Henri.
Voltou-se e se afastou dele. Ele lhe viu as costas eretas, as linhas finas e delicadas de seu vulto esguio. Ela não hesitou: num momento atravessara o umbral, e ele pôde ouvir-lhe os passos macios e sem pressa a subir a escadaria.
Já em seu quarto, sentou-se na borda da cama na escuridão, fitando cegamente diante de si, lábios e olhos secos como poeira. Não sentia dor; só uma desolação profunda do espírito, além de tudo que já experimentara na vida — e era como a morte, para ela.
Capítulo 64
Annette escreveu a Celeste:
"Poderá algum dia perdoar minha rudeza, grosseria e mau gênio, querida? Sei que lhe disse coisas realmente imperdoáveis, mas tenho a esperança de que você as deixará passar e recordará o quanto sempre nos amamos, e como éramos amigas. Poderá chegar a esquecer aquela infeliz tarde, e continuar como se nada tivesse sido dito?"
Celeste respondeu imediatamente:
"Já esqueci. Nada foi dito, realmente. Mesmo que tivesse sido, como poderia eu contrapor isso a toda a nossa vida? Há limites para desacordos e desentendimentos em todo relacionamento humano, mas estes não tiveram a menor importância, querida."
Contudo, ela sabia que nada voltaria, jamais, a ser o mesmo entre ela e Annette, e, a seu modo, isto era para ela uma circunstância tão terrível como sua ruptura final com Henri. De fato, como Celeste deixava implícito em sua carta, nada havia mudado. Fundamentalmente, era verdade. Porém Annette quebrara a frágil simulação entre elas de que o caso de Celeste com Henri era ignorado por ela. No fundo do seu coração, Celeste acreditava que Annette sempre soubera, porém se recusara a pensar nisto. Henri, desde o começo, quisera que sua mulher não fosse iludida. Porém o silêncio de Annette fora como uma peça de roupa a ocultar uma nudez de que todos tinham conhecimento. Ela havia rasgado essa roupa e revelara a nudez. Nem ela nem Celeste jamais esqueceriam o terrível momento da revelação.
A seu modo, Annette era tão sem amigos quanto Celeste. Porém o desamparo de Annette era-lhe ainda mais doloroso, pois havia nela uma profunda e vulnerável necessidade de amor. Sua vida não a havia curado disso. Seu apego a Celeste era muito mais forte que o de Celeste a ela, pois Celeste possuía um núcleo de dureza que resistia ao choque final. Assim que se via privada da presença de Henri, mesmo ocasional, sentia-se arrasada, agora que havia destruído o relacionamento dolorosamente envenenado entre ela e Celeste. Só tinha o irmão, mas não confiava nele.
Nos longos dias e noites de seu crescente sofrimento, ela confessou a si mesma a angustiosa verdade, repetidas vezes: que ninguém está a salvo dos assaltos da vida já que não é, por si mesmo, uma fortaleza, enquanto tiver de confiar em outra criatura para amor, compreensão ou mesmo companheirismo. Se sua própria companhia não é a mais desejável, se a dor de outrem deve também ser a sua própria dor, então ela abriu alguns dos portões de sua fortaleza, e tornou-se vulnerável a ataques. A si mesma privou daquela inexpugnabilidade necessária à paz.
"Ai! todos os meus portões estão abertos! " — disse a si mesma, com tristeza. Mas, revoltada, também pensou: — "Mas se alguém se retrai completamente, é como um caracol, um caracol hermafrodita, procriando nos estreitos limites de uma concha e produzindo apenas sua própria imagem, fugindo sempre, sempre emboscado, e nunca admitindo que exista algo além dele mesmo."
Como sempre, suas tristes reflexões chegavam a uma só conclusão: deveria tornar-se necessária, em algum lugar, de alguma forma; deveria tomar-se útil. Os hábitos de uma vida inteira retrocediam diante disso. "Porém — ela pensou, com desacostumada severidade — tenho uma alma a salvar: a minha."
Recusou ouvir as queixas de seu corpo frágil quando começou a tomar parte ativa na Organização de Assistência local. Aprendeu a tricotar; aprendeu a enrolar ataduras. Foi a organizadora do banco de sangue local associado à Cruz Vermelha. Remendava roupas, e aprendeu a fazer roupinhas simples. Contribuiu com grandes quantias para a American Freedom Association, e para ajudar sociedades que enviavam grandes quantidades de roupas e suprimentos médicos para a Inglaterra e para a Rússia. Mais tarde, após o divórcio, pretendia tomar parte nos serviços assistenciais na Inglaterra. Se à noite estava exausta, também experimentava o analgésico da fadiga. "Estou mesmo trabalhando!" — dizia a si mesma, com irônica surpresa, enquanto a camareira a preparava para dormir.
A família a observava com espanto, e com uma compaixão relutante. O irmão protestou. Contudo, ela apenas sorriu e declarou sentir-se muitíssimo bem. E, estranho: sua frágil saúde não declinou. De fato, sua fragilidade se tornou essa apaixonada resistência tão frequentemente encontrada em pessoas pequenas e ativas. Não fosse aquela dor terrível em seu coração e ela estaria mais feliz que em qualquer outro tempo em sua vida.
Aproximava-se o Dia de Ação de Graças de 1941. Havia muitas semanas que Annette e Celeste não se encontravam. Porém toda a família em Windsor e alguns dos Chandlers de Nova York foram convidados a jantar na mansão de Emile Bouchard. O primeiro impulso de Celeste foi recusar. Depois, viu o ridículo da situação. Só ela estaria ausente. Haveria muitos comentários maliciosos. Pior: Annette acreditaria que Celeste não lhe havia "perdoado".
Fora bem difícil para Celeste, nos últimos dois anos, encontrar Henri e Annette em público, casual e equilibradamente, sempre cônscia de olhos hostis e curiosos. Agora seria muito mais terrível. Informada, naturalmente, por seus próprios e peculiares boatos, a família devia com certeza saber de seu rompimento com Henri, e sua disputa com Annette. Irracionalmente ela acreditava nisso. Ela agora estaria só, exposta ao desdém e à risota. Entretanto, devia ir àquele jantar. Cada membro da família tinha a sua vez de receber o resto da família nos feriados, e isso se tornara tradição — embora nunca tivesse acontecido que qualquer membro estivesse em bons termos de amizade com todos ao mesmo tempo. Esta senhora e aquela vinham-se evitando há muitas semanas; este cavalheiro e aquele se odiavam e não se encontravam desde o último Dia de Graças. Inimizade, intriga e conspiração ferviam entre partidos e subpartidos. Apesar disso, no Dia de Graças, ou no Natal, encontravam-se com franca jovialidade, apertavam-se as mãos, bebiam juntos, trocavam piadas e fofocas, e riam cordialmente.
Peter e Armand estavam mortos. Estariam mais presentes, em sua ausência, do que o estariam realmente em vida. Peter quase sempre sentava junto de Annette: Jean estaria ali agora. Armand, que se empanturrava junto à cunhada, Agnes, teria seu lugar ocupado por Henri. "De certo modo" — pensou Agnes, colocando os cartões para marcar os lugares — "havia muita ironia nesta situação."
Agnes, mulher sutil, sentia uma espécie de fatalidade no ar, neste Dia de Graças. Como quase todos, ela acreditava que a América estaria em breve envolvida na trovejante conflagração que enviava suas longas labaredas através do Atlântico. Quanto tempo se passaria antes que as mesas carregadas do Dia de Graças ficassem mais leves, e certas cadeiras ficassem vazias? Enquanto enchia os vasos de flores por toda a rica mansão que ela e Emile haviam construído juntos (roubando à Europa muitos de seus tesouros), sentia um mal-estar profundo. Sentia também não estar sozinha nisto. Milhões de mulheres americanas olhavam suas mesas, pensando, com tristeza, o mesmo que ela pensava agora. Os centros de flores ou frutos estremeciam continuamente aos frios temporais que varriam os oceanos, e nem paredes espessas nem portas aferrolhadas poderiam manter a distância seu hálito mortal. As janelas, tão pesadamente cobertas com ricas cortinas, estremeciam com as reverberações sem precedentes que chegavam à América providas dos grandes canhões na Rússia.
Pela primeira vez Agnes sentiu uma tristeza lutuosa pelos Bouchards. Alguma simpatia por sua condição de membros da humanidade. Alguma afeição mesmo pelo pior deles. Examinou sua mesa superabundante com mais ansiedade e rigor que o habitual.
Porém ela também sabia que terríveis coisas não terminariam quando a guerra acabasse. O mal fora profundamente entranhado na terra viva do mundo inteiro. Crueldades e abominações se haviam tornado um hábito para milhões de homens. Obsessões e tristezas tinham invadido muitos, muitos cérebros, ferido e aleijado muitas almas. O que principiara em uma só década continuaria por muitas décadas, talvez por séculos. Não se poderia dizer, quando a guerra acabasse: "Está terminada, e acabada. Esqueçamos. Aconteceu ontem. Existe um amanhã diante de nós."
Nunca terminaria, nunca estaria acabada de vez. Não podia ser esquecido. Aconteceria hoje, e amanhã, e depois de amanhã, enquanto o homem recordasse sua história. O mal fora profundamente entranhado. O sangue fluíra com demasiada abundância para que a terra pudesse absorvê-lo rapidamente. O ódio tivera uma floração demasiado forte para que suas sementes morressem. Essa coisa horrível seria contemporânea quando as mesas onde a paz era negociada fossem já poeira, e se tivessem dissolvido na terra os diplomatas que tivessem assinado a paz... E permaneceria, como uma montanha pestilenta, entre os eventos do homem, por tempos imemoriais.
Celeste acabara de pôr o filho na cama e de apagar a luz, quando foi chamada ao telefone: chamado de Nova York.
— Alô! — disse uma animada voz masculina. — Celeste, aqui é Godfrey.
— Godfrey? — repetiu Celeste, rapidamente buscando na mente.
— Godfrey Barbour. Lembra-se de mim? Em Paris, e Cannes, e meia dúzia de outros lugares.
— Ora, certamente, Godfrey! — exclamou Celeste, um tanto perturbada. — Onde está você? Pensei que estivesse em Londres. Que está fazendo aqui?
O jovem riu. Tinha uma voz muito agradável, levemente britânica.
— Complicações! Complicações — disse. — Mas lhe contarei depois. — A voz mudou: — Estou muito sentido a respeito de Peter, Celeste. Não tinha ouvido falar nisso até ontem, em Nova York. Que estou fazendo aqui? Ora, menina, no momento estou morando com um amigo, Alfred Milch, o produtor cinematográfico. Nunca ouviu falar nele? Somos velhos amigos. Costuma voar da Inglaterra para produzir filmes em Paris e na Alemanha... mas não desde Hitler. Ótimo rapaz judeu. Estamos discutindo minha ida para Hollywood, onde ele vai produzir três thrillers, e está tentando me convencer a ir junto. Minha "arte" Poderia ser apreciada lá.
Celeste ainda estava perturbada, mas também divertida e animada. Godfrey Barbour — o próprio cavalheiro a esclareceu — chegara a Nova York havia menos de uma semana. Sim, disse, poderia ser persuadido, sem grandes esforços, a ir a Windsor nessa mesma noite, de avião, e reunir-se aos parentes no dia seguinte.
— Da família você é a única a quem realmente conheço — disse. — São realmente tão amedrontadores como dizem?
— Na verdade, não! — riu Celeste. Começara a deliciar-se, lembrando Godfrey. — Telefonarei a Agnes imediatamente, depois que desligarmos. Agnes? É a esposa de meu irmão Emile. Você ficará completamente tonto para distinguir os parentescos. Terei um carro esperando por você no aeroporto. Naturalmente, ficará em minha casa. É uma casa enorme. E — hesitou um pouco — também tenho um bebê. Pouco mais de um ano de idade: quinze meses, na verdade.
Sentiu-se reanimada e esperançosa ao concluir sua conversa. Sentou-se perto do telefone, sorrindo para si mesma. Como se aparentava Godfrey com a família? Tentou desemaranhar os parentescos. Godfrey era neto de Godfrey Sessions Barbour, filho mais velho de Ernest Barbour. Também ele podia reivindicar o lendário Ernest como seu bisavô, como Henri. A avó de Henri fora Gertrude Barbour, irmã de Godfrey. Esse Godfrey, em seu ódio pelo pai, Ernest, adotara o nome de solteira da mãe, Sessions; mas depois do nascimento do filho, Aristide, voltara ao verdadeiro nome. Esse filho, Aristide (cuja mãe fora Renée Bouchard), é que fora o pai do atual Godfrey, jovem mais ou menos da idade de Celeste. A mãe de Godfrey era inglesa. Seus pais haviam morrido.
Os Bouchards não demonstraram qualquer interesse pelo falecido Aristide ou por seu filho Godfrey. Na verdade, não haviam esquecido que Ernest Barbour fora o pai do grande compositor americano Godfrey Sessions. Mas o filho de Godfrey, Aristide, não lhes despertara curiosidade ou interesse familiar. Alguns dos Bouchards mais velhos lembravam-se dele como um homenzinho gordo, "escuro e gordurento" como dissera Armand, não se parecendo absolutamente com o magro e louro Godfrey. Sua aparência e seu temperamento vinham dos primeiros Bouchards. (Era neto do Armand Bouchard original.) Ouviram o boato de que vivera a maior parte da sua vida na Inglaterra, onde desposara uma obscura moça inglesa, que ninguém jamais conheceu. O jovem Godfrey nascera na Inglaterra, mas vivera a maior parte de sua vida em Paris.
Após sua morte, descobriu-se que Ernest Barbour provera generosamente em favor do filho, o primeiro Godfrey, mas de maneira cautelosa: não confiando em sua natureza artística, criara um fundo financeiro francês para Godfrey. Eugene Bouchard, grande amigo e cunhado de Ernest (desposara Dorcas, irmã de Ernest), fora o pai de Renée, esposa de Godfrey, e ele também, por sugestão de Ernest, estabeleceu um fundo financeiro francês para a filha. Durante muitos anos esses fundos proporcionaram subsistência muito confortável para o primeiro Godfrey e esposa; contudo, em subsequentes décadas, várias circunstâncias reduziram consideravelmente a renda. Após a morte da mãe do primeiro Godfrey — May Sessions Barbour, esposa de Ernest — descobriu-se que deixara para seu filho predileto mais de setecentos mil dólares. Godfrey, mostrando uma perspicácia completamente discordante com seu caráter geral, havia fundado um fundo financeiro britânico para o filho Aristide, por fora da herança, fundo de proporções respeitáveis. Usou o saldo para aumentar sua própria renda diminuída.
O primeiro Godfrey fora compositor de quatro excelentes sinfonias, mas somente uma delas era ainda executada com certa regularidade. Também compusera inúmeras sonatas, serenatas e concertos. Apenas uns poucos desses foram bem conhecidos. Seu filho, Aristide, após a morte de Godfrey (a quem havia adorado, naquele seu modo taciturno), tentara reviver as composições do pai em todas as capitais européias. Financiara várias orquestras. Em consequência, sua renda, já diminuída através das vicissitudes dos anos, foi quase completamente devorada. Após sua morte, verificou-se que deixara ao filho, o jovem Godfrey, menos de vinte mil dólares.
O jovem Godfrey, um pouco à maneira de Antoine Bouchard, fora um diletante. Mostrou facilidade para o piano, possuía excelente voz de barítono, podia pintar muito bem, e escreveu dois pequenos volumes de poesia. Porém nenhum de seus talentos era notável. Tendo muita inteligência e perspicácia, cedo viu que devia ganhar a vida. Investira metade de sua herança num negócio de filmes franceses, de que mais tarde teve de assumir o comando. Podia obter os serviços de atrizes francesas de terceira categoria, apenas, e dos que contracenavam com elas; mas como ele mesmo redigia os scripts, e mostrava muita capacidade na direção e na produção, começara a adquirir fama considerável como produtor de filmes pequenos, mas de boa qualidade, quando estourou a guerra.
Peter e Celeste cruzaram com ele acidentalmente. A primeira vez em que moraram em Cannes, compareceram a uma festa dada por uma vizinha, bonita senhora que era uma atriz famosa e aposentada. A esse tempo, Peter reagia maravilhosamente aos ares de Cannes, e frequentemente aceitava convites antes que sua doença voltasse a tornar-se incômoda. Havia lá muitos convidados, e Peter e Celeste se moviam, sorridentes, de um grupo a outro, quando foram abordados por um jovem muito agradável.
— Olhem — dissera, com um sorriso — acho que somos parentes. São aparentados com os afamados, ou mal-afamados, Bouchards, da América, os grandes fabricantes de armas?
Peter rira. Gostara de Godfrey à primeira vista. Confessou que era realmente um dos "grandes fabricantes de armas". Então Godfrey fora em frente, para explicar o parentesco. Tinha a mais espirituosa maneira de falar, e livres gestos expressivos herdados da avó francesa, e ele era tão afável, tão alegre, tão gentilmente inteligente, que Peter e Celeste ficaram encantados. Viram não haver malícia nele, apenas humor brilhante, e que suas piadas eram sobre ele mesmo, nunca sobre outros. Falava com volubilidade, mas de modo tão fascinante que o ouvinte nunca se impacientava. Era evidente que tinha enorme prazer na vida, e que achava quase tudo divertido, delicioso e cheio de interesse. Não se poderia imaginá-lo sendo aborrecido, cruel, zangado ou vingativo. Na ocasião, vivia com a neta da atriz. Ambas as mulheres — avó e neta — o adoravam. Ele e a amante eram hóspedes permanentes na villa.
Nessa noite ele falara quase que exclusivamente com Celeste e Peter, enquanto sua linda amantezinha ficava amuada a um canto. Confessou sua condição de falta de recursos, mas com tal jovialidade que fazia isso parecer uma das mais deliciosas condições do mundo, e para ser invejada. Mas quando Peter inevitavelmente falou de Hitler e nazismo, a fisionomia do jovem mudou, tornou-se estranhamente sombria, firme e preocupada. Mais ainda: ele pareceu singularmente angustiado. Mais tarde, Peter soube que a mulher mais velha, a rica atriz, era uma das grandes admiradoras de Hitler, e que ela e seus amigos estavam a servi-lo como uma espécie de serviço aristocrático de espionagem entre os decadentes e depravados membros dos salões internacionais. Quando Peter soube disso, já não se surpreendeu pelo súbito desaparecimento de Godfrey umas seis semanas antes. Ouviu dizer que Godfrey fora para a Inglaterra e lá sumiu, deixando a amante e sua avó espantadas e desoladas. Peter e Celeste não mais o viram.
Ao recordar todas essas coisas, Celeste se lembrava de Godfrey claramente. Antes do desaparecimento, muitas vezes ele viera à villa que ocupavam, e Peter apreciara sua companhia com bastante prazer. Como se estivesse agora diante dela, Celeste podia ver a silhueta leve e ativa de Godfrey, cheia de forte resistência e vivida saúde. Recordava seu extraordinário cabelo louro, tão pálido que era quase branco, e os olhos castanho-escuros sempre cintilantes e alegres. Tinha pele morena, o que punha seu cabelo em notável contraste. Tinha o nariz curto e largo dos Barbours, de contorno forte e narinas amplas; e o queixo quadrado dos Barbours, de covinha funda. Porém a boca, embora firme e de nítido contorno, era também bondosa, e muitas vezes, gentil. Cinco anos não haviam toldado a lembrança dele em Celeste. Ela o via com os olhos da mente, não turbadas as suas feições.
Telefonou a Agnes e explicou a situação. Agnes divertiu-se com o caso:
— Um Barbour de verdade? Esquecemos, parece, que o patriarca era um Barbour. Alguma parecença com o resto da família?
Celeste hesitou:
— Bem, não. Ele é moreno e claro. E muito espirituoso e muito encantador. Peter e eu éramos loucos por ele.
— E ele vai ficar com você, minha querida?
— Sim — falou Celeste. — Estou ficando uma viúva idosa. Acha que pode haver escândalo?
— Acho que não — respondeu Agnes.
Perguntou, pouco depois:
— Ele é rico? O avô era Godfrey Barbour, filho do velho Ernest. Deve haver dinheiro ali.
Celeste respondeu, com considerável frieza:
— Se sua fortuna não melhorou nos últimos cinco anos, e tenho a impressão que não, então está praticamente sem vintém. Falou algo a respeito de ir para Hollywood com um produtor seu amigo. Godfrey está interessado em cinema, sabe?
— Oh, meu Deus! Então ele é desse tipo, hein?
Por alguma razão, Celeste estava aborrecida. Mas sabia que qualquer coisa que dissesse em defesa de Godfrey apenas distorceria a imagem dele.
Esperou sua chegada com prazer e animação. Godfrey fora seu amigo. Deu-se conta do quão falida em amigos estava, para esperar com tal ansiedade a chegada de uma simples criatura.
Capítulo 65
A neve, fina e leve, começou a cair ao entardecer, de modo que a terra escura cintilava como se salpicada de sequins. Estava um frio agudo, e pela primeira vez em muitos anos Celeste sentiu-se festiva de repente. A dor fixa e ardente em seu coração parecia menos intolerável esta noite. Vestiu-se cuidadosamente, num vestido branco e preto, e depois, hesitando e sorrindo, colocou uma rosa branca nos cabelos. O rosto que viu no espelho podia ser duro e pálido, com a boca vermelha cujos contornos podiam ser nitidamente recortados e firmes, porém era também um rosto bonito.
Quando ouviu o som do carro que voltava, correu escadas abaixo, e estava esperando no vestíbulo, ao pé da escadaria, quando Godfrey Barbour entrou. Celeste viu a porta aberta; do escuro de fora a neve entrou turbilhonando, e ela ouviu a voz do motorista, a falar encorajadoramente:
— Agora cuidado, senhor, outro degrau, cuidado. Aqui estamos.
A mão de Celeste se estendeu tateante e agarrou o corrimão, enquanto ela permanecia de pé, esperando, figura esbelta, de linhas adoráveis em seu vestido preto enfeitado de branco. Porém suas novas cores subitamente desapareceram, e havia uma estranha e dolorosa palpitação em seu peito. Pois ouviu passos hesitantes e incertos, umas duras batidas, e depois a voz alegre e bem lembrada de Godfrey:
— Não posso me acostumar com essas malditas coisas!
Agora a nuvem de partículas de neve fora aspirada de volta à noite, e Godfrey ia entrando, o motorista compadecido a apoiá-lo. Celeste ficou de olhos arregalados. Ergueu a mão e a comprimiu de encontro ao coração. Pois o jovem que ela via agora usava o uniforme de capitão da Real Força Aérea, e se balançava desajeitadamente num par de muletas. Sua perna direita fora amputada acima do joelho.
Porém nada da alegria, da vida e do prazer e do brilhante humor havia desaparecido do rosto moreno, agora tão emaciado e crestado pelo sofrimento. Os olhos castanho-escuros faiscaram ao dar com Celeste. O garboso casquete empoleirava-se em ângulo jovial e precário sobre os cabelos extraordinariamente louros. Ondulando perigosamente nas muletas, ergueu a mão e cumprimentou Celeste, rindo com prazer ao vê-la. Ignorou totalmente o motorista, que literalmente o tomou nos braços fortes e lhe garantia o equilíbrio enquanto ele completava a saudação.
— Celeste! — gritou o jovem, alegremente. — Mas é mesmo a querida menina, em pessoa!
Mas a visão de Celeste havia escurecido, de modo que ela nada via senão turbilhonantes arco-íris. Estirou os braços, correu para Godfrey e pôs esses braços bem apertados em torno dele, estreitando-o numa espécie de frenético desespero e tristeza. Apertou a cabeça no ombro dele, e depois beijou-lhe a face, soluçando a mais não poder.
— Ei! O que é isto? — gritou o jovem, afinal, gentilmente segurando-lhe o queixo e buscando-lhe a face. — Esta é uma recepção apropriada, pergunto-lhe? Por que as lágrimas, minha bichinha? Deixe-me olhá-la...
Mas Celeste agarrou-se a ele, soluçando:
— Oh! Godfrey, que terrível, que terrível! Você não me disse!
E Godfrey disse:
— Que há de errado, querida? — Seus bondosos olhos castanhos, habitualmente tão alegres, estavam agora cheios de sutil piedade e preocupação: — Você mudou, Celeste.
Ela ficou ofendida porque ele pensou nela. Segurou um dos braços dele com ambas as mãos. Estremeceu à vista das muletas:
— Venha para a sala... onde possa sentar e descansar.
Contudo, ele resistiu gentilmente. Agora ele já não sorria, embora sua expressão ainda fosse bondosa:
— Celeste, meu amor, eu não sou um aleijado, realmente. Posso arranjar-me muito bem com estas malditas coisas: é só questão de aprender um novo equilíbrio. E daqui a alguns meses terei uma ótima perna de madeira, e apenas coxearei um pouco. Você não saberia a diferença. E agora, seja uma boa menina e observe como manipulo isto com a costumada destreza.
Ela deixou cair as mãos. Observou-o afastar-se dela a oscilar desajeitadamente, balançando. Viu seu costado forte torcendo o uniforme em patéticas rugas, e a dolorosa inclinação de seus ombros. A parte de trás da cabeça loura parecia valente, intrépida e determinada, inclinando-se para trás enquanto ele impulsionava o corpo para a frente com as muletas. Pescoço e orelhas avermelharam, com o esforço e a tensão. De súbito Celeste fechou os olhos, num espasmo de piedade e dor. Seguiu-o. Não o ajudou, embora quisesse fazê-lo. Sentou-se quietamente, observando-o enquanto ele manobrava para sentar-se também. Depois, com um suspiro e uma pequena risada, ele colocou as muletas cuidadosamente lado a lado apoiadas a uma mesinha, e voltou sua atenção para Celeste. Seu rosto estava úmido e brilhoso, o sorriso um pouco fixo:
— Bem, agora diga-me tudo. — Serviu-se de um cigarro, da mesa, e acendeu-o. Ela viu que suas mãos tremiam.
Disse, em voz muito baixa:
— Godfrey, por quê?
O fogo com que acendia o cigarro a deixou ver um momento o rosto dele, duro, feroz e cheio de frio ódio. Logo essa expressão se foi e ele pareceu pensativamente indiferente:
— Por quê? Acontece, doçura, que odeio alemães. Não apenas nazis; não hitleristas; não junkers, soldados ou estudantes duelistas. Apenas alemães. Os adoráveis, pequeno-burgueses alemães enganando uns aos outros nas lojas, nos escritórios e nos modestos negócios; a doce mädchen alemã que é traiçoeira, sórdida e gananciosa; o belo jovem de faces frescas que ainda não é sequer um bárbaro, apenas um covarde assassino; o homem alemão na rua, a mulher alemã nos mercados, o fazendeiro alemão e a alemã hausfrau. Odeio a todos, Celeste. Quisera vê-los morrer.
Falou com tal desinteresse, até indiferença, que suas palavras eram aumentadas em sua ferocidade, em vez de diminuídas. Ele pusera o cigarro nos lábios; ela viu o súbito queimar forte de sua ponta como se ele tivesse sugado num fôlego selvagem: estavam olhando sem ver, diante de si.
— Não foi amor pela Inglaterra, doçurinha, que me pôs na Força Aérea. Não foi ternura pela velha França depravada, mentirosa, velhaca e gananciosa. Foi unicamente ódio. Sabe, conheço muito a respeito de alemães. Vivi na Alemanha vários anos.
Ela nunca vira Godfrey assim, e mesmo quando deu de ombros, tornou a sorrir, os olhos dançando como outrora — ela ainda estava horrorizada ante o olhar frio e mortal que lhe vira por um ou dois minutos e pelo som retumbante de sua voz calma. Pensou: "Que coisa terrível para os alemães ter isso em sua consciência: que tenham feito com que os odeiem tanto que homens possam esquecer todos os instintos civilizados de gentileza e compaixão, e odeiem com ferocidade ainda maior!"
— Não é Hitler. Nunca foi Hitler — disse Godfrey. — Foi, e é, sempre o povo germânico. Hitler apenas polarizou seus instintos, e teve capacidade de obter a ajuda de seus simpatizantes na Europa. E na América, provavelmente.
— Uma bebida? — perguntou Celeste, após um momento de silêncio.
— Sim — respondeu ele, a sorrir-lhe carinhosamente. Ficou a observá-la: — Ora vamos! Um pouco mais desse uísque, bichinha. Muito mais. E bem pouca soda.
Sentaram-se diante do fogo, copos e gelo cintilando numa mesinha perto deles. Celeste entregou um copo a Godfrey. Olhava-o enquanto ele o virava de um trago, como se estivesse sedento.
— Mais? — perguntou, quando ele afastou o copo dos lábios.
Não ficou surpresa, apenas triste, quando ele acenou afirmativamente. Ele a viu tornar a servir o líquido dourado, adicionando soda, que chiou no quente silêncio. Desta vez ele não emborcou o copo. Bebericou, com o cotovelo apoiado no joelho esquerdo. Ela tentou não olhar para o coto, embrulhado na calça azul. Fixou a atenção em Godfrey, e lhe parecia que, à medida que passavam os momentos, a dor comprimida em seu coração se tornava insuportável.
A máscara de Godfrey Barbour lá estava, sorridente e atenta como sempre, até mesmo alegre, leve e agradável. Contudo, havia momentos — ela percebia — em que a velha máscara escorregava e revelava o novo rosto, real e terrível.
— Quer falar-me a esse respeito, Frey?
Ele ainda sorriu, embora desse a impressão de também estar carrancudo. Sacudiu a cabeça:
— Não, Celeste, não quero. Mas lhe contarei a este respeito — e bateu no coto. — Aconteceu sobre Berlim. Antes de partirmos nos foram determinados alvos industriais. Sempre alvos industriais! São provavelmente mais necessários, admito. Mas eu queria algo mais! Eu mais queria matar alemães do que explodir fábricas de aviões ou de tanques. Só queria matar alemães, machos ou fêmeas, grandes ou pequenos. Sabe, queria evitar que procriassem mais alemães para atormentar o mundo daqui a uns vinte e cinco anos. Desviei-me do plano de voo. Levei o avião por sobre os distritos residenciais por alguns segundos. — Deteve-se. Bebericou novamente, tirou o copo dos lábios, e olhou para o fogo. Havia um brilho vermelho refletido nas órbitas de seus olhos, o que lhe dava um olhar terrível. — Todas as bombas chegaram lá, do meu Thunderbolt. Todas elas. Direto sobre as casas, as ruas, os abrigos. Eu estava matando alemães. Não pode saber que alegria isso traz a um homem realista, Celeste.
Olhou o seu coto, longa e fixamente:
— Foi quando isto aconteceu. Mas a troca foi mais que justa. Eu provavelmente matei grande número de alemães. Paguei por isso com meia perna. Foi bem pouco.
Automaticamente ergueu o copo para ela, que tornou a enchê-lo.
— E agora — disse ele, em seu antigo tom de voz, leve e caloroso com afeição — que tem feito você, Celeste? Sabe, ouvi falar a respeito de Peter. Sofreu muito, pobre rapaz! E o bebê? Suponho que posso vê-lo?
Celeste relanceou de soslaio, e ele cogitou, fugazmente, sobre a expressão fechada e inquieta de sua boca. Ela respondeu:
— Oh, claro! Mas amanhã, Frey. Jantaremos cedo, quando você quiser. Seu quarto está pronto. — Parou, depois disse, em voz mais rápida e animada: — Você nem sabe o quanto é bom revê-lo! Peter e eu gostávamos tanto de você, Frey... Frequentemente falávamos em você, depois que voltamos para casa.
— Bom amigo Peter! — ele murmurou, e havia genuína tristeza em sua voz. — Suponho que eu deveria ter escrito, depois que fui para a Inglaterra. Mas não podia pensar em ninguém lá, em Cannes, na Riviera, sem me sentir mal. É verdade que vocês estavam lá... Eu queria decepar-me, simplesmente.
— Compreendo — falou Celeste, suavemente.
Olhou para ele com ternura. Uma velha rigidez dolorosa, nela, estava relaxando uma antiga prudência e aflição.
Conversavam agora sobre a guerra, a probabilidade do envolvimento da América, a família que ele nunca vira. Estava particularmente interessado na última. Mas riu em protesto enquanto Celeste tentava desemaranhar as complexidades do parentesco:
— Chega! Você faz isso parecer incesto!
Celeste ficou subitamente pálida e rígida outra vez:
— E é! — murmurou. — Incesto espiritual. Você não conhece os Bouchards, Godfrey.
— Aposto que os acharei interessantes!
Celeste perguntou se se havia casado, o que ele negou, rindo:
— Não. Nunca me apaixonei. Não mesmo. Exceto, talvez, uma vez.
— E não pôde desposá-la, Frey?
Ele se inclinou para a frente para colocar o copo vazio cuidadosamente na mesa. Todos os seus movimentos eram lentos e precisos. Ela lhe via o perfil, e já não era aberto e descuidado, como o relembrava, mas secreto e controlado. Embora sua boca sorrisse.
— Não — disse, com indiferença. — Ela já era casada. Uma infelicidade. Não havia nada a fazer. O marido era meu amigo.
Voltou-se então para ela, e em seu olhar havia uma branda suavidade, opaca e indecifrável, que dolorosamente lhe lembrava Henri. Ela o fitou, e a seus sentidos entorpecidos pareceu que havia algo nele que sugeria poderosamente o homem ausente. Empurrou sua cadeira um pouco mais para trás.
Ele viu isso e se aborreceu consigo mesmo. Ele a teria assustado, ou lhe teria despertado suspeitas? "Minha querida! — pensou — por que diabos acha que estou aqui?"
Foram jantar. O salão de jantar já não estava frio e vazio para Celeste, nem cheio de sombras lúgubres. As velas ardiam calorosamente, lançando-lhe ao rosto macia luz bruxuleante. Godfrey ficou deliciado e exuberante quando viu o jantar:
— Você não sabe o que isto significa depois do racionamento! — gritou. — Todo o rosbife que eu queria, por Deus! E manteiga! E açúcar! É um milagre!
Comeu com apetite. Estava alegre, agradável e simplesmente feliz. Seus agudos epigramas e observações mantiveram Celeste sem forças de tanto rir. Havia muito tempo que esta sala lhe ouvira o riso, ou sua voz viva e animada como agora. Esqueceu a mutilação dele. Seu rosto resplandecia... os olhos eram luzes azuis dançantes... Ele não observou sua faixa de cabelos brancos, nem lhe lançou sequer um olhar. Mas sabia que estava ali: estava completamente cônscio dela. Por vezes, nos intervalos de seu riso, ele via as marcas da dor em volta de sua boca, e as sombras escuras sob seus olhos.
Ficaram à mesa durante horas. Quando finalmente voltaram à lareira para o café, Celeste se sentia novamente jovem e livre, leve e atordoada. E ficaram ao pé do fogo até os últimos carvões se transformarem em cinzas, e a meia-noite ter passado há muito...
Pela primeira vez em muitas semanas, Celeste caiu no sono assim que sua cabeça tocou no travesseiro, e sorria um pouco, ao dormir. A casa, antes tão deserta e desolada para ela, tão pobre de vida humana e de alegria, se fechava em torno dela cordialmente como as paredes amigas de um lar.
Capítulo 66
Sempre parecera a Celeste que a dor lhe era familiar desde o mais longe que se lembrava. Acostumara-se tanto a ela que nas poucas e dispersas ocasiões em que tivera felicidade tinha havido uma espécie de histeria em sua alegria, uma desorientação, como se estivesse bêbada. Por vezes pensara: "Acho que posso suportar qualquer coisa tranquilamente, exceto a felicidade." Pois a felicidade sempre criara nela uma tensão selvagem, um espasmo emocionante que lhe fazia o coração palpitar rápido demais.
Porém a dor que sua separação final de Henri produzira fora demasiada mesmo para alguém tão habituada a sofrer. Em seu sofrimento, abandonara toda a ideia de viver normalmente, de revelar ao mundo exterior mesmo a sombra de uma existência tranquila. Mesmo seu filho não fora capaz de aliviar-lhe a mente da esmagadora negrura e desolação, da longa e fria miséria da desesperança e da tristeza. Começara a vagar, como o fizera Armand, através das salas vazias de sua enorme casa, a olhar cegamente pelas janelas a paisagem outonal, sem sentir reação a nenhum estímulo, nem preocupação nem desejos. Milhares de vezes disse a si mesma: "Mas eu sempre soube o que ele era!"
Sem embargo, a razão era impotente contra essa fria bola de ferro a pesar-lhe na garganta e no peito. Jamais gritou de desespero, pois o desespero é irmão da esperança. Não tinha esperanças! Houve ocasiões em que se perguntou: "Que será de mim?" Porém mesmo o silêncio que respondia à sua pergunta não tinha força para agitá-la e torturá-la. Espessa estagnação começara a estabelecer-se em seu rosto, a ecoar em sua voz, a tornar todos os seus gestos lânguidos e pesados. Não se importava que outros soubessem. Quando Christopher a visitava e conversava com ela, quando outros parentes literalmente a obrigavam a frequentar-lhes as casas, ela lhes respondia, olhava para eles, com infinito cansaço e vacuidade. Ouvia-os como se de longa distância, e haviam começado a perder dimensões para ela, de modo que lhe pareciam tediosas e irritantes sombras das quais devia tratar de livrar-se logo.
Suas manhãs eram o que havia de pior, pois durante o sono esquecia sua desolação. Por alguns segundos ficava pacificamente nos travesseiros, vagamente fitando as janelas e pensando no filho. Depois a dor inicial, por apenas alguns instantes, voltava como agonia mortal, e ela enterrava o rosto nos travesseiros como se para afastar sua lembrança num convulsivo ato de sufocação.
Não pensava em Henri com sofrimento. Ele era apenas o símbolo de sua dor. Não ansiava por ele, sequer desejava que ele voltasse para ela. Seu sofrimento era como uma moléstia, que só entorpecida ela podia aturar. Houve uma ocasião em que ela descobriu já não poder respirar com conforto, e que o mais leve esforço lhe provocara falta de ar e dor aguda. Então ficou assustada. Se morresse, que seria de seu filho? Fora ao médico, e ele, após algumas perguntas inteligentes, e um bom exame, deu de ombros e lhe receitou sedativos. Os sedativos embotaram a violência de sua angústia, e a deixaram sem as palpitações. Também lhe embotaram os pensamentos. Certo dia ficou espantada ao descobrir que estava em meados de novembro. O tempo paralisara para ela.
Não era, pois, de espantar que ao acordar na manhã seguinte à chegada de Godfrey Barbour, e não sentir o odioso mergulho na agonia, ficasse admirada. Sentou na cama e esperou. Mas nada sentiu, a não ser um curioso senso de consolo e tranquilidade. Tudo adquirira claridade e já não era delineado pelo nevoeiro opaco da letargia causada pelas drogas. Viu uma orla de neve brilhante nos peitoris das janelas, e os ramos de cristal da árvore que dava pancadinhas na vidraça brilhante. Viu o pálido azul do céu de novembro, riscado aqui e ali por véus brancos. Ela pulou da cama e olhou as montanhas escuras, resplandecendo com a geada, e a vitalidade das coníferas que rodeavam a casa. O quarto estava cheio de ar frio, porém ela continuava de camisola, as mãos e o rosto apertados contra a vidraça, a luz clara e brilhante em seu rosto pálido e olhos fixos.
A camareira, entrando discretamente, surpreendeu-se ao ver a patroa de pé, e mais surpresa quando Celeste se voltou, sorridente. O Sr. Barbour já se havia levantado?, ela perguntou, e quando ouviu que sim, apressou-se com o banho, e depois estudou o vestido que desejava usar. Finalmente escolheu um de lã carmesim. Descobriu que suas mãos tremiam, e que havia uma pulsação excitada em sua garganta. Ao sair do quarto, passou por um jarrão cheio de rosas vermelhas. Sorrindo, pegou uma flor e a colocou nos cabelos.
Desceu as escadas a correr para a sala de almoço, cuja parede sul de janelas estava cheia de plantas floridas. Godfrey lá estava em suas muletas, olhando as colinas e a planura de neve brilhante entre elas e a casa. Voltou-se quando ela entrou, e estendeu a mão, rindo:
— Alô! Lindo lugar, minha querida! E como está bonita esta manhã!
Ela lhe segurou a mão impulsivamente entre as suas, e exclamou:
— Oh! Frey, não imagina como estou contente por estar aqui!
Ele a olhou e ficou silencioso, embora seu sorriso fosse amplo.
Mas seus olhos se estreitaram um pouquinho, indagadoramente:
— Tem certeza, Celeste? Está realmente contente?
— Oh, claro! Muito contente. Tenho estado tão só, Frey!
Suas palavras, sua voz, seu olhar eram simples e comovedores como os de uma criança; e porque ele era sutil e intuitivo, adivinhou que ela havia estado sofrendo durante muito tempo por alguma razão que ele desconhecia. Seria pelo pobre Peter? Certamente: era isso. Lembrou do devotamento dela a Peter, e uma pontada de algo agudo como ciúme o trespassou. Na verdade, como devia ter estado solitária em sua dor! A família, então, não era consolo para ela, nem alegria. Nem a criança, evidentemente... De repente seu coração se ergueu irrefletido ao ver quão fresca ela aparecia esta manhã, e como o azul profundo de seus olhos estava vivo e cintilante. Possuía uma simplicidade tão pura, essa pobre e querida criaturinha, tal candor e sinceridade... Baixou os olhos para as mãos dela que seguravam a dele, e impulsivamente ergueu uma delas e a beijou.
Cogitou como aceitaria ela esse gesto. Mas ao erguer os olhos viu-a sorrindo, e suas faces brilhavam. Puxou uma cadeira para ela, que o deixou fazer — para sua gratidão — e pareceu não notar como ele oscilava em suas muletas. Sentou-se perto dela, e observou a linda mesa, com suas pratas e cristais, com franca admiração:
— Eu havia realmente esquecido como a paz é agradável! E como é lindo a neve, e o país, e as casas iluminadas! Acho que vou gostar da América. Quando se pensa na coisa, afinal de contas eu sou americano! Não sou? — parou, com o copo de suco de laranja junto aos lábios.
Ela fingiu levar a pergunta a sério: era toda leveza e alegria infantil. Abanou a cabeça:
— Receio que não. Você nasceu na Inglaterra, não? Seu pai nasceu na França. Que diz seu passaporte?
— Tenho um passaporte britânico. Mas, na verdade, sou americano. A propósito: em Manchester descobri uma família de Barbours que acredito nos pertença. Lojistas. Havia um camarada que era um de nossos mecânicos. Um jovem e vigoroso bruto, de pálidos olhos cinzentos como pedra. Notável semelhança com um parente nosso, Henri Bouchard. — Parou, surpreendido, pois de repente desvaneceu-se toda a cor de Celeste, e seus lábios mudaram. Ela baixara os olhos; sua mão ficou parada na prataria da mesa. — Eu disse algo de errado? — perguntou.
Ela ergueu os olhos rapidamente. Sua expressão estava completamente morta:
— Não, absolutamente. Mas é muito interessante a respeito desses Barbours. Conte-me mais, Frey.
— Não há muito que contar — disse ele, observando-a com furtiva perspicácia — conheci a família. Classe operária, porém boa e saudável. Sim, eram nossos Barbours. O bisavô daquele jovem camarada fora um George Barbour, que tivera seus começos na América e depois fora roubado pelo filho de seu irmão, nosso bom velho Ernest Barbour. George voltou para a Inglaterra e abriu uma loja de cortinas e panos em geral. Esse jovem camarada, Edward, entretanto, era um bom mecânico. Disse que ia patentear uma invenção sua. Algo a respeito de um radiodetector, ou qualquer coisa igualmente misteriosa. Disse que tinha alguns sujeitos muito interessados. Há alguma coisa nele... Quando eu lhe disse que estava acabado, e me mandando para a América, quis saber se eu poderia interessar algumas pessoas aqui. Tenho um projeto em minha bagagem, e talvez, se tiver tempo, eu o tirarei de lá e o farei circular entre os rapazes, para saber a opinião deles.
Celeste ouvia com interesse. Suas cores iam voltando, mas lentamente. Quando falou, foi com esforço:
— Isso seria bom para... como disse que era o nome dele?
— Edward. Edward Barbour.
Depois do café da manhã, mandou que trouxessem o bebê. Godfrey insistiu em pô-lo no joelho e balançá-lo. O garotinho brincou com seus botões, e apalpou a fita e a medalha em seu peito. Olhou para Godfrey sem timidez, e até com um sorriso.
— Lindo diabinho! — comentou Godfrey. — E acredite ou não, tem os olhos de Ed Barbour. Essa curiosa cor cinza-pálido. Deve ser de família. Surge aqui e ali nas gerações.
Celeste mandou vir um carro, e saíram a passeio à luz brilhante de novembro. A animação de Celeste voltara. Risonhamente fez a vontade a Godfrey quando ele insistiu em sair do carro e permanecer na fina camada de neve.
— Vou gostar da América! — exclamou ele.
O carro havia parado perto de um bosque denso, e Godfrey via com prazer a altura das árvores. Um faisão sussurrou perto deles. A distância, a chaminé de uma casa de fazenda fumegou contra o pálido e puro azul do céu gelado. Um cão ladrou, e o eco do seu latido chegava de trás do bosque nitidamente. Setas de radiante luz solar e sombras de nuvens tocadas pelo vento corriam sobre o vale ondulante. Godfrey tirou o casquete azul da RAF, e o vento fresco soprou através de seus louros cabelos. Um pouco de cor apareceu em seu rosto magro. Quando estavam de volta ao carro, a caminho de casa, ele começou a cantar. Segurou a mão de Celeste, e o calor da sua mão penetrou através de sua luva. Logo ela estava rindo com ele, e cantando canções populares. Seu rosto estava rosado, lindamente enquadrado pela orla de peles que lhe guarnecia o capuz de lã. Esquecera a perna perdida de Godfrey, e quando suas muletas lhe caíram aos pés, isso aumentou a sua alegria ruidosa, e ela fingiu ficar chocada com tal irreverência. Seus corpos estavam quentes e bem próximos sob o manto de peles.
Ela nem tentou analisar o leve delírio de seus sentidos quando se preparou para ir ao jantar da família. Não era exatamente alegria ou delícia, ela sabia. Era, antes, a liberação de uma tensão insuportável. Usou um vestido branco e prateado, e flores prateadas nos cabelos. Nunca usara esse vestido. Observou-se ao espelho com prazer, boca sorridente e macia.
Foi Godfrey quem pôs a capa branca de peles em seus ombros nus. Ela estava muito estonteada para notar como as mãos dele se demoraram um ou dois minutos, ou como seus dedos lhe roçaram a carne macia. Contudo, ao voltar a cabeça e olhá-lo, o coração dela parou estranhamente, por um momento: pois ele estava muito pálido, boca seca, e com os olhos cheios de uma luz peculiar.
Ela sabia que Henri e Annette estariam no jantar de Agnes. Mas nem uma só vez, durante a ida para a casa de Emile, pensou em Henri. Era como se sua consciência tivesse encerrado o pensamento dele numa cápsula espessa que não podia ser penetrada. Entretanto, na ocasião em que o carro fazia a curva na comprida avenida que levava à casa, ela estava cônscia de uma vaga insensibilidade, e uma obscuridade em sua mente.
Capítulo 67
Mesmo a cruel expectativa da família de observar o encontro de Henri e Celeste passara a segundo plano ante sua curiosidade quanto a Godfrey Barbour. Há tanto tempo não havia um Barbour ativo na família! Especularam sobre sua pobre condição financeira, suas razões para vir para a América, e sua aparência. Seria um musicista como o avô, o primeiro Godfrey? Talvez até escrevesse livros, Deus não permita! Estaria em busca da caridade da família? Se assim fosse, tinha vindo ao lugar errado. Estavam aborrecidos por Celeste ter dado tão poucas informações a Agnes, e Agnes ficava exasperada quando lhe faziam as mesmas perguntas repetidamente.
— Já lhes disse, não sei! Ele chegou noite passada. É tudo que sei. Mas Celeste parecia animada e contente. Ela e Peter foram grandes amigos de Godfrey, na França.
— Oh, provavelmente é um desses malditos refugiados... — comentou a vitriólica Rosemarie com sua morena e afetada irmã Phyllis. — Ou em busca de dinheiro para uma porção de piolhentos franceses livres, ou poloneses, ou Deus sabe o quê.
— O país está assolado com essas criaturas — disse Phyllis. — Viveremos o bastante para lamentar isso: é influência comunista, claro. Todos são comunistas.
Celeste e Godfrey chegaram um pouco atrasados. Quando foram anunciados, correu um sussurro pela família, reunida em torno do fogo em um dos enormes salões de Emile. Mal enxergaram Celeste em seu radioso vestido prateado. Pois, quando viram Godfrey em seu uniforme, oscilando em suas muletas, um sorriso divertido e observador, toda a família tomou um longo fôlego e o prendeu. Caiu sobre eles um estranho e pesado silêncio; ficaram todos parados, como que paralisados. As luzes da lareira relampejavam nas joias e brilhantes longos das senhoras, mas era como se esses vestidos tivessem sido modelados sobre bonecas imóveis, e os rostos voltados para Celeste e Godfrey pareciam máscaras.
Por timidez, Celeste não era pessoa que tivesse muita presença, mas esta súbita confusão de seus parentes lhe deu vantagem. Com grande serenidade, e sorrindo um pouco, apresentou seu hóspede. Levou-o de um grupo a outro, e ele os olhava com atento interesse, olhar brilhando agudamente sobre cada rosto. À medida que se ia adiantando no salão, os já apresentados ficavam a fitá-lo sem expressão.
Conheceu o pequeno e moreno Jean, que não aparentava idade em sua modesta obesidade e grande afabilidade, e sua esposa, a grande, loura e estúpida Alexa. Deduziu que Jean era irmão de Peter, falecido marido de Celeste, e presidente da Sessions Steel Company, subsidiária de Bouchard & Sons. Ele viu o encanto real desse homenzinho vivaz, que para ele — que não era um ingênuo — compensava muito da natural vilania que cintilava em seus olhinhos dançantes. Seus filhos olharam Godfrey com a curiosidade permitida pela moderna falta de maneiras.
Depois foi a vez do bacharel Nicholas Bouchard, de cinquenta e três anos, filho de Leon Bouchard, irmão de Jules, presidente do Windsor National Bank, e diretor tanto da Manhattan Merchants Trust Company quanto do internacionalmente poderoso Morse National Bank, controlado por Jay Regan. Godfrey não foi atraído por Nicholas, "aquele sujo", pois Nicholas era curto e tosco, obstinado e avarento até ante o olhar mais casual, de expressão tenaz e truculenta e habilmente astuta. Sua tez era esverdeada; e seu cabelo curto e eriçado, outrora de um matiz esverdeado também, compunha-se agora de desordenadas manchas de um grisalho desalinhado. Resistira com êxito às tentativas das cunhadas para casá-lo, e agora, que tinham falhado, elas o contemplavam e diziam, abertamente: "Ora, foi uma bênção para alguma mulher que ele nunca se casasse." Ele não era apenas malvestido, mas dava a impressão de roupas de baixo sujas e roupas sem passar a ferro. Rosnou quando Godfrey lhe foi apresentado, não lhe estendeu a mão, e fitou o jovem com aqueles apertados olhinhos verdes cruéis e sórdidos.
Alexander, o "Diácono", de compleição avermelhada, barriga enorme, pernas compridas, grande rosto liso, e cabelo grisalho encaracolado, inspirou aversão a Godfrey, assim como sua mulher, pequena, de sorriso afetado. Ele era vice-presidente da Sessions. Cumprimentou Godfrey em voz estrondosa, inserindo um chavão como "o sangue é mais espesso que água", afinal de contas, e Godfrey sentiu que pouco seria preciso para que se lançasse a um sonoro sermão. Era evidente que se julgava o pilar virtuoso da família.
Havia o fulvo Hugo, e sua gentil e bonita Christine, e uma de suas filhas. Hugo, o político, nunca esquecia que todo homem era um votante em potencial e, embora soubesse que Godfrey era súdito britânico, não pôde deixar de fazer um discurso brilhante. Apertou-lhe a mão calorosamente.
E havia Christopher, suave e crestado, com seus prateados olhos "egípcios", que recebeu a apresentação com polida cordialidade. "Perigo!" — pensou Godfrey. Gostou da morena Edith, simples e inteligente, que o olhava diretamente com lindos olhos castanhos, e cogitou como podia aturar o marido. Francis lá estava, com sua graciosa Estelle, e embora Godfrey reconhecesse o velhaco, também confessou a si mesmo que de muitas maneiras Francis podia ser considerado um "bom" homem. Sobre o baixo, moreno e gordo Robert ele passou com indiferença, com repulsa por suas feições grosseiras e estúpidas, mas sorriu simpaticamente para sua linda esposa.
Emile, o anfitrião, grande, moreno, muito amável, lhe causou uma aversão instantânea, e ele tivera consciência de uma retraída repulsão por ele, não obstante grande compreensão. Agnes, ele admirou como uma mulher honesta.
Olhou para Rosemarie, filha de Francis, e admirou-lhe a ardente e perigosa perfeição: instantaneamente pensou que ali estava uma libertina natural e uma mulher fatal. Ficou aborrecido com o modo satírico de observá-lo e a argúcia de seus lábios pintados. Ele estava apenas interessado nas evidências de sua crueldade, ganância e oportunismo. Phyllis Morse, irmã dela, ele considerou uma tola, com seus modos piegas e os mesquinhos e acanhados olhos escuros. Era vulgar — ele decidiu. Seu marido, filho do poderoso Richard Morse do Morse National Bank, ele descartou como um robô, medroso, intolerante e estúpido. A mais velha de suas filhas estava lá, Bernardette, e ele ficou admirado ante a beleza loura da menina de dezesseis anos de radiantes olhos azuis. A sensibilidade dele não fora realmente afetada por ninguém, porém ele demorou-se analisando essa criança, cônscio de um sentimento de estranha tristeza nele mesmo. Mais tarde, ao saber que Phyllis a destinava a um convento de freiras, sentiu-se tão chocado como se tivesse sido informado de que ela iria ser sacrificada a Moloch num altar fumegante. De algum modo — decidiu — essa criança deveria ser salva dos planos da mãe monstruosa, e ficou a imaginar se a própria beleza dela não teria inspirado a pouco atraente Phyllis em sua determinação de enclausurá-la.
A esse tempo Godfrey estava um pouco estonteado com o número de seus parentes, e seu parentesco mútuo e com ele mesmo. Celeste, muito divertida, tentava esclarecê-lo após cada apresentação, mas depois de algum tempo, ele começou a sacudir a cabeça enfadonhamente, e a cumprimentar cada novo estranho com uma risada.
Estavam lá alguns dos grandes, louros e silenciosos Norwoods: compreendeu vagamente que eram um ramo colateral da família devido ao casamento da mãe de Jules, Florabelle, com um Major Norwood há muito tempo, antes da Guerra Civil. Ele não tentou memorizar-lhes os nomes. Viu que, a despeito da fortuna e da posição, eram pessoas sem importância. Concluiu que certo vigoroso rapagão se chamava Ernest Barbour Norwood, e quando viu o grande rosto rubicundo e os olhos azuis vazios, mal pôde conter uma risada meio debochada. Esse rapaz era um pouco menos silencioso que os parentes imediatos, e de repente perguntou a Godfrey se estava muito interessado no próximo jogo entre Notre Dame e Yale.
Enquanto aconteciam essas apresentações, chegaram Antoine e Mary. Henri e Annette ainda estavam ausentes. Ao ver Antoine, o interesse de Godfrey reviveu e se sentiu estimulado. Reconheceu nele um camarada, um europeu de bom gosto, polidez e intelecto, um homem de classe, graça e educação. "Decadente como o diabo, como todos nós!", pensou Godfrey, apertando as mãos de Antoine com real cordialidade e prazer. E Antoine, olhando atentamente para o outro, sentiu o mesmo instantâneo magnetismo de reconhecimento e, embora tivesse planejado divertir-se, sentiu, antes, amizade e camaradagem.
— Vi-o uma vez em Paris! — exclamou Godfrey com entusiasmo — embora nunca nos tenhamos encontrado. Foi no salão da Marquesa de Durand. Você estava combinando muito bem com a pequena protegida dela, Eloise, e apesar de que eu tivesse suspeitado de que éramos parentes, achei que não seria delicado interromper.
— Ah, a Marquesa! — exclamou Antoine, em francês, com aquele sorriso cintilante, e acrescentando algo altamente impróprio, porém muito mordaz.
— Ah! Eloise! — disse Godfrey, também acrescentando uma observação no mesmo idioma. Riram juntos. Se Antoine ficara curioso à vista desse jovem com suas muletas e seu uniforme, e se preparara para ser humorístico a tal respeito, esqueceu isso instantaneamente. Disse:
— Vejamos se temos uma oportunidade de ir para um canto e conversar...
A pequena Mary ficou a olhar, sem jeito, de um para outro, as bonitas sobrancelhas juntas como se ela ruminasse a respeito dessas mútuas observações e tentasse entendê-las com seu limitado francês. Achou a alegria deles muito esquisita, na verdade. Havia muito tempo não via Antoine tão contente.
Justo nesse momento Henri e Annette foram anunciados, e embora Godfrey estivesse deliciosamente absorto em sua diversão com Antoine, não pôde deixar de dar-se conta de que se seguira um silêncio estranho, como à chegada de alguma alta personalidade temida e odiada. Pensou:
"Ora, é como se tivesse soado uma fanfarra, e as fileiras se abrissem para dar-lhe passagem!"
Celeste estava de pé ao seu lado, suave e bela em seu vestido prateado — e novamente a aguda sensibilidade de Godfrey o tornou cônscio de uma súbita rigidez nela, uma palidez e frieza. Olhou para a arcada, com a mais intensa curiosidade.
Quando Henri entrou, com Annette, ele compreendeu imediatamente. Ali estava a imagem de Ernest Barbour, dos pés a cabeça! Eram os olhos pálidos de Ernest Barbour, e os lábios grossos e pesados. Godfrey olhou o parente, e soube que era a antítese de tudo que ele e Antoine representavam, tudo que era alegre, caloroso, vital e suave, e tudo que era decadente. Antoine lhe murmurava ao ouvido:
— Aí está o Poder dos Bouchards. O Velho Cara de Pedra. O Homem de Ferro. E isso não é pose: ele é tão repulsivo como parece. A dama com ele é minha irmã. — E a voz de Antoine se suavizou. Godfrey o olhou, surpreso. Antoine fitava Annette com carinho e uma tristeza peculiar.
Por alguma razão, Celeste parecia não poder mexer-se. Godfrey lhe deu uma olhadela surpresa e deixou-se guiar por Antoine até aos recém-chegados. Antoine não tentou ajudar Godfrey, a oscilar desajeitadamente em suas muletas, mas diminuiu os passos, e uma vez, numa rápida olhada ao outro homem, seu rosto moreno se contraiu de pena e simpatia.
Godfrey emocionou-se com Annette, e sentiu imediata afeição pela adorável criaturinha de imensos olhos azuis. Nela só via bondade, doçura e compreensão. Viu também, quando ela o observava a aproximar-se, que aqueles olhos se enchiam de lágrimas. De certa forma, isso não o aborreceu, como aborrecera em Celeste. Com sua sutileza, discerniu que não era piedade que a inspirava, mas tristeza e pesar. Pegou sua mãozinha e a beijou.
E, ao fazê-lo, sentiu na própria carne a força impassível e o poder do homem que esperava ao lado dela. Trocou um aperto de mãos com Henri. A mão de Henri era seca, rija e larga, e sem a menor pressão na palma. A vivacidade natural e a alegria de Godfrey foram momentaneamente dominadas. Porém ele olhou para Henri e os olhos de ambos de prenderam em instantânea e devastadora antipatia e repulsa.
— Acho — disse Godfrey com reservas — que temos o mesmo bisavô. Meu avô e sua avó eram irmão e irmã. Que é que isso faz de nós?
— Uma espécie de primos distantes, creio — disse Henri, com a mais completa indiferença. Acrescentou: — Estranho que eu nunca tenha ouvido falar de você...
— Oh! Eu ouvi a seu respeito! — replicou Godfrey. Agora o brilho voltara a seus olhos castanhos.
Os largos ombros de Henri se mexeram numa dúvida. Com franqueza brutal olhou o coto de Godfrey e seu uniforme, dizendo:
— Onde arranjou isso?
Godfrey olhou para o coto, e cuidadosa e lentamente deixou que seus olhos percorressem o uniforme. Assumiu uma expressão de grande surpresa. Vendo isso, Antoine sorriu deliciado, recuou um pouco e aguardou.
— Oh, isto! — exclamou Godfrey, numa voz fresca e ingênua. — Realmente eu nunca havia notado isto antes! Engraçado, não? Podem acontecer coisas à gente e nunca as notamos. Nunca se deu isso com você, Henri?
O rosto pálido de Henri se transformou: manchas de vermelhidão lhe apareceram nas faces. Olhou hostil para o outro. Alguns dos parentes que estavam mais perto, sentindo que ia acontecer algo de interessante, se aproximaram deles lentamente. Incerta e confusa, Annette olhava humildemente de um para o outro.
Godfrey firmou-se nas muletas. O rosto moreno e cheio de mobilidade brilhava com entusiasmo juvenil:
— Olhe, consegui uma comissão na Real Força Aérea. Acidentalmente, sabe. Na verdade, eu mesmo fiquei surpreso ao ver-me de uniforme. Uma completa reação "Alice-no-País-das-Maravilhas". Foi como um sonho. E depois aconteceu uma coisa engraçada: eu não parecia absolutamente grotesco, mas sim muito natural.
— Natural? — repetiu Henri. Sua voz era surda, mas Antoine sabia que ele estava irritado com esse engodo. Apareceram sorrisos nos rostos dos parentes reunidos.
— Bem, sim — disse Godfrey, baixando a voz confidencialmente. — Não a princípio. É como se eu me tivesse metido na toca do coelho, como Alice, e topasse com todo tipo de lugares esquisitos. Como sabe, sou cidadão britânico, mas, como vários de minha classe, não me preocupo particularmente com a Inglaterra. Você ficaria realmente surpreso se descobrisse quantos como eu não se importam com a velha Inglaterra. Aborrecido, sabe. Lá só tem frio e pudim de ameixa. Toda esta espécie de coisas. E então, lá estava eu de uniforme. Deve ter sido trabalho de minha mente subconsciente. "Mente subconsciente", disse eu, quando me vi nessa situação, "que diabo veio fazer aqui?" E então me ocorreu, nitidamente. Eu odiava alemães. Todos os alemães. E tudo que fosse alemão. Todo e qualquer varrão, porca e leitão. "Então, disse eu, é muito simples: entrei nesta pantomima, assim terei oportunidade de matar porcos humanos. Montões de porcos. Simples!"
Henri estava silencioso. Godfrey o olhou com seus olhos risonhos. E então, com uma inclinação de cabeça, voltou-se para Antoine, que se afastou. Godfrey foi com ele. Antoine enfiou a mão no braço de Godfrey, não como ajuda, mas como camaradagem.
— Sabe — disse Antoine — gosto muito de você. Realmente, gosto demais!
Godfrey viu Celeste, isolada. Em seu fulgurante vestido prateado era como um esbelto pilar de gelo.
Godfrey, de olhos contemplativos em Celeste, disse a Antoine:
— Todos vocês se odeiam radicalmente, não? Por quê?
— Tradição de família — explicou Antoine, sorrindo. — Construímos isso cuidadosamente, através dos tempos. Se começássemos a amar-nos mutuamente, isso daria cabo da lenda. E onde estaríamos nós?
Capítulo 68
Foram todos para o imenso salão de jantar. "Galeria de horrores" — pensou Godfrey. Há muito se acostumara à melancolia e decadência dos salões de jantar europeus, mas neles não havia pretensão, nem artificialidade. Mas aqui havia pretensão, afetação autoconsciente e determinada a ser natural.
O pretensioso castelo de Emile, com seus terraços bem arranjados, tinha um ar falso e desorientado nas melhores ocasiões. O salão de jantar enfatizava esse ar. Era cheio de uma luz incerta e cambiante, provinda de um gigantesco candelabro que, embora resplandecente com enorme quantidade de velas altas e finas, era incapaz de iluminar a atmosfera espectral. As paredes eram distantes, sombrias e frias, encobertas por tapeçarias e estandartes conquistados com o tempo. Por toda parte, Godfrey tinha consciência do crepúsculo frio, e de lanças distantes e armaduras manchadas. Os da família tomaram seus lugares em volta da imensa mesa do refeitório, coberta de renda e sobrecarregada de cristais e prataria brilhando delicadamente sob as pálidas luzes das velas. Esta sala medieval era grotesca na robusta e fulgurante América, e Godfrey lhe lançou um olhar cínico polidamente dissimulado. Seu olhar disfarçado abarcou os graves retratos sombrios entre os estandartes, e cogitou onde Emile os teria conseguido. Sorriu à complacente sugestão de que esses longínquos rostos pintados seriam de ilustres ancestrais. Era um insulto a esses rostos e sua antiga tradição. Chegou a uma conclusão cruel a respeito de seus parentes: "Bastardos vulgares com ilusões de grandeza" — pensou. Não se pode apagar inteiramente a marca do camponês — a marca do animal, assim a denominava Godfrey, felizmente observando para si mesmo que também ele provavelmente portava essa marca.
Divertindo-se com esses pensamentos secretos, olhou em torno da mesa. Antoine ali, tão moreno e tão elegantemente sofisticado, não possuía marcas visíveis do animal. Os olhos de Godfrey foram de rosto em rosto, rubicundo ou fino, grave ou insípido, selvagem ou rabugento, vigilante ou estúpido — e sua delícia aumentou. Por fim seu olhar tocou em Celeste, e parou abruptamente. Sentava-se do lado oposto ao seu, silenciosa e imóvel, sua linda mão apenas tocando um copo de vinho. A essa luz incerta e crepuscular, ele absorveu inteiramente o firme e delicado desenho de seu rosto alvo, seu vigor de raça. A mecha cor de neve de seus cabelos estava alisada para trás. A boca, de brilhante colorido, era rigidamente esculpida, e os olhos azuis, raramente erguidos, traíam uma perturbada e inerte abstração que assegurava a Godfrey que sua mente voara para bem longe do corpo. Não olhava para ninguém. À sua direita sentava-se o avermelhado Alexander, e à sua esquerda estava o cunhado, o pequeno e efervescente Jean. Não falava a ninguém. E eles, por sua vez, a ignoravam como se não estivesse ali. Por que isto? — ruminou Godfrey, zangado. Teria ela caído em desgraça diante da Família? Se assim era, ela parecia não ligar.
À direita dele sentava-se Annette, e a cada vez que se virava para ela, ela o olhava com um rápido e brilhante sorriso, tímido e caloroso. Coisinha adorável! Sentia ímpetos de beijá-la ternamente. À sua esquerda ficava a grande e estúpida Alexa que, embora cinquentona, era loura como manteiga!
"Belo pessoal!" — pensou Godfrey. Já não se sentia relacionado com nenhum deles, exceto Antoine, sentado a pequena distância. Ao encontrar o alegre e significativo olhar de Antoine soube que seus pensamentos tinham sido lidos. Sorriu em resposta. Antoine estava demasiado longe para uma conversa sussurrada. Mais tarde, talvez.
Estudou-os a todos, refletindo acerca deles, cinicamente. Não eram sequer decadentes, à exceção de Antoine. A decadência tinha um perfume — mesmo que fosse o perfume da morte. Havia graça na decadência, um esmalte maduro, uma consciência adulta. Tinha a beleza de algo delicado que já morrera. Mesmo na morte, era muito mais pungente, muito mais nobre e sublime que a vida aqui: sórdida, avarenta e brutal. Os bárbaros haviam assumido o comando — ele observou intimamente. Vive le barbare!
Emile — observou ele gratamente — tinha um chef francês. Não esperara por isso. Comeu com satisfação. Os vinhos estavam uma perfeição! Notou que os Bouchards, aparentemente, não davam importância a vinhos. Antes do jantar se haviam enchido de horríveis coquetéis e uísque acre. Sabiam que se esperava deles que fossem juízes de vinhos, e o divertia enormemente vê-los provar, bebericar, olhos semicerrados, lábios franzidos, como se estivessem examinando rigorosamente. Porém, após o primeiro golinho ostentoso, os copos permaneciam quase cheios.
Godfrey se sentiu flutuante. Também ele se havia "enchido" antes do jantar. Precisa-se de uma anestesia, diria, para poder aturar um universo onde não havia o menor indício de importância. Aristóteles estava enganado: nada leva a lugar nenhum.
Polidamente Jean indagou quais os planos de Godfrey. Quando ele os informou francamente de seu trabalho em Hollywood, viu o divertido e superior esgar de suas bocas. Mas Alexander franziu a testa:
— Coisa ordinária! — observou, ficando mais avermelhado que nunca. — Coisa depravada. Imoral. Temos o Hays Office, e a Legião da Decência, mas a imundície se insinua em tudo. Além disso, ações de cinema não têm pago dividendos ultimamente.
— Al Milch — disse Godfrey — vai fazer curtas-metragens para o Governo dos Estados Unidos. Talvez vocês chamassem a isso propaganda.
Mas o grande louro Norwood interrompeu:
— Você precisará de muito dinheiro para esse tipo de coisa...
Godfrey viu a súbita e intensa curiosidade nos rostos que o rodeavam. Riu intimamente. Sabia que estavam morrendo por saber se ele tinha dinheiro. Sacudiu a mão alegremente:
— Dinheiro! — disse, com sublime desdém. Os rostos ficaram descontentes, e inseguros. Ele não os esclarecera.
Continuou:
— Esperamos fazer também alguns filmes de guerra. Tentar mostrar os suínos alemães em perspectiva. Adorarei fazer isso.
— Propaganda! — explodiu Alexander, mexendo-se pesadamente em sua cadeira, como se o seu traseiro tivesse sido espetado. — Então é a isso que Hollywood está disposta! Montes de judeus determinados a meter-nos na guerra! Mas não queremos. Por Deus, não queremos! — E socou a mesa tão pesadamente que a prataria dançou. — Não conseguirão meter-nos nesta guerra!
O sorriso de Godfrey permaneceu. Mas agora era perigoso, e fixo. Olhou atentamente para Alexander, como se o estudasse:
— Não? — falou, maciamente. — Receio que esteja enganado. A América estará nesta guerra em breve. Um par de anos atrasada, como de costume. Você não poderá fazer nada a este respeito. Será feita por vocês.
Esperara muxoxos divertidos e indiferença, e ficou surpreso ao ver o quão subitamente atento e preocupado parecia cada rosto, menos o de Celeste, que permanecera pétreo e branco como o de uma imagem. Henri até se inclinou um pouco para a frente, os olhos descorados sem piscar. Nicholas resmungou desagradavelmente. Francis ergueu a mão e ocultou a boca com os longos dedos ossudos. As negras sobrancelhas de Emile se franziram. Christopher virou-se em sua cadeira para encarar Godfrey. Todos os demais fitaram Godfrey como se ele fosse uma criatura bizarra.
Ele olhou-os a todos, e uma enorme repulsa e aversão por eles lhe encheram o espírito.
— Vocês não poderão fazer nada a este respeito — repetiu, na mesma voz macia. — Serão atacados. E em breve. Oh, sei tudo a respeito de suas seis mil milhas de água a oeste, e três mil milhas de água a leste. Ouvimos tudo sobre isso na Europa. Porém eu dificilmente julguei possível que os americanos fossem tão estúpidos. Fazia mais alta opinião de vocês. Sinto que não seja justificada.
Nicholas se recostou na cadeira, e meteu os polegares no colete. Olhou furioso para Godfrey:
— Então entraremos na guerra, hein? Maldito absurdo! Não ousariam atacar-nos. Isso é propaganda! Não podem amedrontar-nos! E quem nos atacaria? Hein? Hein?
— O Japão — disse Godfrey.
Um silêncio estupefato encheu o salão. Até os muitos criados pararam no ato de retirar os pratos. Os candelabros bruxuleavam sobre aquelas estátuas. Mas Henri começara a sorrir inescrutavelmente. Esfregou o lábio com o indicador.
Então Hugo gritou, atirando para trás a massa de cabelos nevados:
— Japão! Droga! Ora, justamente agora temos a Missão Japonesa em Washington, e, como membro do Departamento de Estado, posso garantir-lhe, jovem, que quaisquer leves diferenças que tenhamos tido com o Japão no passado estão agora sendo resolvidas amigável e satisfatoriamente.
— Não obstante — disse Godfrey, amável — será o Japão. Amanhã? Na próxima semana? No próximo mês? Não sei. Mas será o Japão. Vocês verão. É realmente possível que você, especialmente, seja tão obtuso? Ou é do seu interesse fingir que é?
Então Phyllis disse, em voz alta e ácida:
— Oh! Você é mesmo um inglês! Gostaria de meter-nos nesta guerra comunista! Tudo é apenas imperialismo britânico, e propaganda russa. Nosso sacerdote, o Padre O’Connell, nos disse isso, e ele é uma autoridade em casos internacionais.
Sua observação banal atraiu sobre ela olhares zangados do resto da família, que nunca aceitara o seu catolicismo.
— Guarde esse refugo romano para si mesma — disse-lhe a amável irmã, Rosemarie.
Porém a família, embora olhasse carrancuda automaticamente para ela, ouvira claramente as últimas observações de Godfrey.
— Nosso interesse? — repetiu Jean, erguendo as sobrancelhas. Ele sorriu, aparecendo-lhe todas as covinhas. — Segundo a lenda, nós, os Bouchards, a Dinastia da Morte, devemos oferecer sacrifícios aos Quatro Cavaleiros do Apocalipse, ou algo assim, ante a probabilidade da guerra. Temos tido lucros com guerras: logo, guerra, de todo jeito. Apesar disso, não queremos guerra; não a teremos.
Godfrey apoiou os cotovelos na mesa e inclinou-se para Jean. Estudou-o atentamente:
— Sim, compreendo. Isso é o que me preocupa. Por quê?
Jean sorriu radiante. Mas os seus buliçosos olhos negros estavam ameaçadores. Não respondeu.
Godfrey balançou a cabeça reflexivo:
— Aqui há coisa! — observou. — Definitivamente, isto me cheira mal. Sim, definitivamente.
Nicholas e Alexander trocaram rápidos olhares. Nicholas tossiu, fazendo ruídos grosseiros. Disse:
— Absurdo! Não fique procurando fantasmas. Ridículo! Você é débil mental? Viveu na Europa muito tempo! Aqui temos um ponto de vista mais limpo e mais claro. Japão! Inferno! Por que o Japão nos atacaria? Por quê?, pergunto-lhe.
— E eu — disse Godfrey — estou perguntando a vocês. Sabem a resposta, não sabem?
Quando Nicholas, furioso, não respondeu, Godfrey se voltou com amplo e relaxante sorriso para os demais. Inclinou a cabeça ante Agnes, que estivera ouvindo com tenso interesse:
— Estou estragando o seu jantar, querida?
— Não, meu bem — ela replicou, rindo. — Você o está tornando interessante. Não faz ideia de quão estúpidos são esses Bouchards em jantares... Comem, deixam a mesa, e logo vão dormir de olhos abertos. Vá em frente.
— Então — falou Godfrey, expansivo — começarei imediatamente a fazer-me ainda mais desagradável, no interesse do estímulo! Minha querida família, não gosto de vocês. Mesmo quando não os conhecia não gostava de vocês. Ouvi de tudo a respeito de vocês. Acompanhei suas carreiras com o mais lisonjeiro interesse.
Robert, o grosseiro, interrompeu rudemente, com um brilho naqueles olhos de peixe:
— Falemos a seu respeito, está bem? Talvez você seja mais interessante.
— Oh! Eu sou, sou mesmo! — gritou Godfrey — Vocês não fazem ideia de como sou absorvente! Poderiam ler a meu respeito durante semanas com paixão inquebrantável. Vivi em toda a Europa. Vi as marionetes e aqueles que as manipulavam. Muito divertido. Para algumas pessoas. De certo modo, isso não era divertido para mim. Talvez eu seja, por natureza, mais asseado.
Olhou novamente para Celeste. Sentiu-se gratificado ao ver que sua insensibilidade se havia abrandado. Seus olhos azuis se haviam voltado para ele firmemente. Havia uma linha trêmula em torno de sua boca. "Minha muito querida! — ele pensou — aqui existe algo ou alguém que a atormenta. Não sei quem é ele, mas o estrangularia. Continue apenas a olhar-me assim e ficará surpresa com os dragões que posso enfrentar!"
— Viajar tanto não custa dinheiro, muito dinheiro? — continuou Robert.
A família parecia contente por deixar esse boi desse rapaz molestar o recém-chegado, pois todos sorriam. Menos Henri. Dobrara os braços solidamente apoiando-os à mesa, e sua grande cabeça taurina se curvava para Godfrey com um interesse que o rapaz preferiu considerar lisonjeiro.
— Dinheiro! — gritou Godfrey. — Tive dinheiro, meu filho! Não demais. Papai foi infeliz em seus investimentos. Foi envolvido no escândalo da corretagem de penhores, e creio que perdeu muito dinheiro com isso. O nome dos dois velhacos me escapa justamente agora. Mas não importa. Eu sou mais cuidadoso. Consigo manter-me à tona. Com a ajuda de amigos.
Encontrou os olhos de Antoine, que o ouvia deliciado. Antoine o saudou quando o olhar de Godfrey tocou o dele. Estimulado, o jovem se preparou para lanços mais arrojados, ante a saudação de um amigo.
—- Provavelmente você obteve uma pensão do Governo britânico — sugeriu Robert.
— Sim — admitiu Godfrey. — Porém muito pequena. Na verdade, eu não queria pensão em absoluto, só por ter perdido uma perna na alegria de matar alemães.
Phyllis interrompeu, com um gritinho:
— Como pode ser tão sanguinário! Nunca ouvi nada parecido! Acho que os alemães são muito caluniados. O Padre O’Connell...
— Que se dane o Padre O’Connell, que provavelmente esconde literatura nazista sob o hábito negro! — disse Godfrey, alegremente.
Foi uma risada geral em torno da mesa. Godfrey estava lisonjeado. Aparentemente pouca agudeza era preciso para despertar a hilaridade de estábulo de seus parentes. Phyllis o olhou com ódio. Ele se afastou dela, com momentâneo endurecimento da boca.
Francis falou, com seriedade:
— Agora, falando sério. Estou realmente interessado nesse seu negócio de filmagens. Suponho que se precisa de muito dinheiro para produzir filmes. Como pretende arranjar-se?
— Bem, você tem uma boa história, então vai ao banco, ou a outros interessados, e diz: "Olha aqui, meu camarada, tenho aqui algo de valor. Você gostará disto. Já tenho as estrelas escolhidas. Que me diz?" Então aqueles mascam um pouco, franzem a testa, cospem, vão ao barbeiro, tiram uma ou duas horas de folga para visitar uma amiguinha particular, e voltam todos refrescados e cheios de energia. Então estudam os fatos, e tentam roubá-lo. Se você é esperto, é você que os rouba. Ou, pelo menos, você transige. Eu não sou muito disso. Deixo tudo com Al Milch, que há anos vem lutando com essa gentalha. Quando o dinheiro está garantido, ponho-me ao trabalho. Acho que teremos êxito em Hollywood. Al já tem boa reputação, e eu estou modestamente navegando nas suas águas.
Então Henri falou:
— Você disse algo a respeito de filmes de guerra e filmes de propaganda para o Governo. Gostaria de saber mais a respeito.
Godfrey o olhou bem nos olhos, em dúvida. Depois começou a explicar. A família, não muito interessada, começou a bocejar, a olhar com fastio para seus pratos. Mas Celeste, que voltara à vida como uma estátua transformada em carne, ouvia com a maior atenção.
Bem no meio de sua exposição Godfrey se deu conta de algo: enquanto Henri parecia olhar só para ele, frequentemente olhava para Celeste, sem a menor mudança de expressão, entretanto. Era um duro olhar masculino. A boca de Godfrey continuou a mover-se, porém, sua mente rápida se retraíra. Não gostou daquele olhar, dirigido tão penetrantemente e com tanta frequência, para Celeste. Indicava posse arrogante e desdenhosa. Encontrou oportunidade de relancear-lhe os olhos. Porém ela olhava só para ele, e quando seus olhos se encontraram, ela sorriu rápida, os olhos brilhando.
"Haverá algo por aqui?" — pensou Godfrey, com zangada inquietação, e alguma coisa que muito se parecia com alarma e apreensão. Mas quando tornou a ver Celeste, ela ainda olhava somente para ele.
Henri se mexeu, moveu um pouquinho os braços dobrados, depois que Godfrey concluiu, e disse de modo distraído:
— Muito interessante. Vou pensar a respeito.
Alexander, vendo o interesse de Henri, também se interessou:
— Tenho um lote de ações de Cordon-Imson-Blaine — disse. — Conhece algo a respeito? Não pegaram um dividendo decente desde o Crash (Crash = Colapso financeiro de 1929. (N. da T.)). Godfrey respondeu com a maior gravidade:
— Pode ficar tranquilo. — Cuidarei pessoalmente do seu caso com o Sr. Cordon quando chegar lá.
— Hum! — resmungou Alexander. — Muita gentileza sua.
A família tornou a cair na gargalhada. Alexander, confuso e indignado, tirou o charuto da boca e os olhou furioso. Até Celeste riu. Para um homem, pelo menos, o som daquele riso foi surpreendente. Foi o som que ouviu acima da hilaridade geral, e era claro, límpido e fresco como o de um regato liberto do gelo hibernal. Voltou para ela os lentos olhos implacáveis e estudou suas novas cores, e a gentil jovialidade de seu rosto corado. E depois de lhe ver o rosto, voltou-se novamente para Godfrey e o contemplou em silêncio, imóvel.
— Eu, também, tenho um bloco de ações de Cordon-Imson-Blaine — disse Christopher. — Filmes de guerra, foi o que disse? Pelo que sei, o povo anda farto deles, e só quer algo mais apropriado à sua mente ignorante. Tal como pernas de prostitutas louras em atitudes provocantes, e belos traseiros redondos.
Godfrey passou a dar atenção a Christopher, examinando-o com a maior candura:
— Então pensa que isso é o que todos querem, não? — perguntou, pensativo. — Acha que é o nosso moderno substituto para pão e circo? Bem, não concordo com você. Naturalmente, existe uma boa quantidade de imbecis entre a massa do povo, admito. Mas realmente acho que também há uma boa quantidade de imbecis na nossa classe. Ou, perdão — e inclinou a cabeça, com ironia — deveria dizer: sua classe. Ainda não alcancei o nível de vocês. De toda maneira, talvez nenhum de vocês precise procurar muito longe para encontrar débeis mentais entre seus conhecidos. Ou mesmo entre a família. Ao que sei, ainda não conheço a todos.
Christopher sorriu. Tirou o cigarro da boca e observou Godfrey com interesse:
— Pelo que deve dar graças a Deus...
Porém agora Godfrey estava grave e sério de verdade. Vagarosamente, deixou seu olhar ir de um a outro rosto: a cada um deles se detinha, como se em exame concentrado. Depois começou a falar, com muita calma:
— Sabem, refleti acerca de todos vocês. Se eram o que eu havia ouvido. Ouvi em Paris, em Moscou, em Berlim, em Roma e em Londres. Por vezes, a distância, eu dava umas olhadas em alguns de vocês. Quando reuni tudo, a coisa era terrível.
— Verdade? — perguntou Rosemarie, com faceira inclinação de cabeça e um exagerado sorriso afetado. — Você nos lisonjeia.
Mas Godfrey disse, com tal indiferença por ela no rosto subitamente pálido que a deixou furiosa:
— Sim, é terrível que tão poderoso grupo e família de homens, de influência internacional, pudesse ser tão estúpido, tão obtuso, tão grosseiro, ganancioso e animalesco, e tão completamente inconsciente do mundo de homens que o rodeia. Se, por exemplo, vocês fossem elegantes cavalheiros, como nosso querido Antoine — e seu rigor relaxou um momento enquanto ele e Antoine faziam mútua reverência cerimoniosa — não seria tão repreensível. Aristocratas são realmente muito inocentes: são completamente inconscientes seja do que for. Mas vocês são camponeses; são na verdade animais vulgares, e sabem disso. E tão óbvios como sujos. Vocês são tão vulgares como o povo, as pessoas comuns. Isto é o que me surpreende: que sejam tão totalmente inconscientes dos da sua própria espécie, e do que eles pensam. E que não sintam com eles.
Phyllis bateu palmas:
— Eu sabia que ele era comunista, sabia todo o tempo! Ou pelo menos, um radical! — guinchou.
Mas todos a ignoraram. Todos, todos mesmo, olhavam Godfrey fixamente, e só no rosto de Antoine não havia aquela expressão odienta, selvagem. Alguns haviam corado ante seus honestos insultos. Outros apenas franziram as sobrancelhas sobre os olhos à espreita, e esperaram que ele acabasse. Agnes, no entanto, formou um silencioso "bravo!" com os lábios carmesins, e recostou-se para apreciar o espetáculo.
— Talvez — disse Jean, gentilmente — você pudesse esclarecer-nos quanto ao que nossa... espécie... está pensando? E onde conseguiu toda essa intrigante informação?
Mas Godfrey disse, como se o outro não tivesse falado:
— Descobri esta estranha forma nova de pensar, não nas capitais da Europa, mas nas aldeias espalhadas da Rússia, nos distritos operários britânicos, entre operários, mecânicos e carreteiros, nas cidades subjugadas e desesperadas da França. Parecia-me que antigamente eu não podia respirar numa pequena aldeia ou vila sem que os alemães explodissem por ali, e lá estava eu fugindo às pressas, lembrando que sou um inglês. Mas isso não vem ao caso. Falei ao povo, ou melhor: com o povo durante anos. Por natureza, não sou amante da populaça. Mas você encontrará a plebe em toda parte, não apenas na choupana do operário, mas na classe média, nos salões internacionais, e entre os grandes de toda a Europa. Assim, quando digo "o povo", quero significar aqueles seres humanos que ainda têm mentes não corrompidas, e corações que sentem e compreendem.
Deteve-se. Era intenso o silêncio no salão de jantar. Num impulso inexplicável, Godfrey olhou para Celeste: havia em seu rosto um cego e deslumbrado fervor, uma espécie de luminosidade emocionante, que impressionava. Outro homem olhou para ela e sentiu um ímpeto de fúria a apertar-lhe o peito. Lembrou-se de um dia, havia muito tempo, em que Celeste se sentara a esta mesma mesa, em frente a Peter Bouchard que acabava de chegar da Europa, e que ela ouvira assim, com o mesmo olhar pleno e radiante, os mesmos lábios separados. Embora seus braços ainda estivessem dobrados na mesa, seus punhos se apertaram.
Disse Godfrey, com penetrante calma que voltava, como eco, das paredes de pedra:
— Se tivesse encontrado esse modo de pensar apenas em poucos casos, eu teria admirado, lamentado que não fosse mais comum, e o teria esquecido. Porém era universal! Universalmente, entre as mais diferentes espécies de pessoas, existe uma crescente e realmente séria preocupação com o bem-estar humano e com o progresso humano... não apenas em coisas materiais, mas também no campo ético. Essa profunda e hesitante preocupação é por vezes inarticulada, mas sempre apaixonada e dinâmica. Se eu fosse um místico — e ele sorriu brevemente — diria que o povo fora penetrado por alguma imensa e desconhecida força cósmica. Não tem nada a ver com religião. Na verdade, o clero, como classe, tem estado totalmente inconsciente disso, e não tenho dúvidas de que, quando o descobrirem, invocarão o fogo do inferno sobre ela. É algo de mais profundo. É parte do fluxo e refluxo universais do despertar do espírito humano.
Ninguém se moveu ou falou. Sua voz tinha sido tão penetrante, tão calma e ainda assim tão sinceramente enfática, que lançara sobre eles uma espécie de encantamento, mesmo sobre os mais grosseiros e mais cínicos e depravados. Estavam hipnotizados pela pálida firmeza de suas feições, pelo brilho dos olhos escuros. O olhar velado de Antoine não se afastara dele, e um cigarro ardeu em sua mão sem que o percebesse.
Godfrey respirou profundamente:
— Herbert Spencer acreditava, não apenas na evolução física, mas na evolução do espírito humano. Se ainda fosse vivo, sentiria justificada sua crença. A evolução está trabalhando nas mentes dos homens, há tanto submersos no pântano da ganância e da irresponsabilidade, do ódio e da lascívia.
Deteve-se. Agora todos podiam perceber o esforço e a exaustão que temporariamente haviam estado ocultos sob sua exuberância e jovialidade. Era um homem doente, lembrando sofrimentos. Porém, a seu modo, era tão indomável quanto Henri. Sua testa estava úmida de suor: ele simplesmente pegou o lenço e a enxugou.
Celeste ainda o contemplava, com aquela luminosidade a brilhar em seu rosto. Seus lábios tremiam. Era como se estivesse ouvindo palavras de vida após longo sepultamento.
— Bonito, bonito! — disse a impudente Rosemarie, em voz lírica. — Mas ainda soa como o palavrório dos caixeiros-viajantes.
Godfrey a olhou com um brilho amargo nos olhos:
— Acho que anda lisonjeando demais o comunismo. Parece que toda a alusão de que o povo está despertando para a ideia da responsabilidade moral de uns para com os outros é chamada comunismo. — Balançou a cabeça: — Acontece que conheço o comunismo, minha cara.
— Confesso que tudo isso está além dos meus conhecimentos — disse Hugo, com condescendência. — Mas eu sou apenas um membro do Departamento de Estado... O Departamento ainda não ouviu nada a respeito desse "novo espírito". Não chegou em mala postal nenhuma.
— Sei disso — falou Godfrey, lentamente. — E nunca chegará.
— Dirigiu a atenção para Agnes: — Minha querida, perdoe-me! Tenho monopolizado a conversa em sua mesa, e isso não é muito polido, não é mesmo?
Agnes disse, rindo:
— Peço-lhe que não pare. É a primeira conversa inteligente que já ouvi nesta mesa em muitos anos.
Godfrey pegou um cigarro de uma cigarreira de prata. Um criado, que ouvia ao fundo da sala, correu a acendê-lo para ele. Godfrey ergueu o olhar; o homem, de libré, tinha uma expressão estranha no rosto triste: resplandecia! Por um momento os olhos deles se encontraram em profunda compreensão.
Godfrey tornou a falar, como se pensando alto:
— Sei que a Bíblia fala de certo homem como sendo "o flagelo de Deus". Talvez Hitler seja esse flagelo, hoje. Pois se não fosse por Hitler e sua sanguinária violência, duvido que tivéssemos despertado desta vez para o conhecimento de nossa apatia moral e indiferença. Foi preciso Hitler para fazer-nos compreender o que o homem pode suportar com dignidade e coragem, compaixão e abnegação em face da morte e da destruição. E acredito, sei que as pessoas veem agora a que apavorantes níveis podemos descer quando a responsabilidade moral está perdida, e quando cada homem apenas se preocupa com sua própria barriga. Os alemães permanecerão, espero, um eterno lembrete para todos nós da capacidade do homem para a degradação; eles nos deram um panorama completo da outra face de todos nós... a face que habitualmente mantemos voltada para a escuridão. Se os alemães apenas permanecerem como símbolo da completa desgraça e infâmia do homem terão servido a seu espantoso propósito.
Esperou que alguém falasse. Mas ninguém o fez. Antoine brincou com a piteira; Christopher sorriu de leve, por trás dos dedos magros com que cobria a boca; Henri apoiou-se solidamente à mesa e fitou um ponto perto da cabeça de Godfrey; Annette olhava para Godfrey com uma gentil e radiante humildade; Celeste parecia trêmula de vida e avidez; Agnes sorria aprovadoramente para seu estranho hóspede; Francis estava grave e pensativo; e Edith, também pensativa. Porém os outros apenas olhavam seus pratos, carrancudos, desviando dele os olhos.
Godfrey suspirou. Estava exausto. Pôs na mesa as mãos magras como se para empurrar-se dali:
— Vocês têm de aprender, todos vocês, que há uma coisa que, daqui em diante, devem levar em consideração sempre: a consciência do povo. Se não o fizerem... — e ele espalhou as mãos significativamente — estarão acabados. Completamente.
Antoine caminhou ao lado dele quando todos saíram do salão de jantar:
— A propósito: conhece Jay Regan... sabe, o financista de Wall Street?
— Não — respondeu Godfrey, rindo. — Por quê?
— Estava só imaginando... — murmurou Antoine.
— Não me importaria em conhecê-lo — disse Godfrey, com uma careta.
Antoine lançou-lhe um curioso olhar. Mas nada disse.
Capítulo 69
O fogo rugia alegremente no living-room abobadado quando voltaram para ali. Agnes chegou até Godfrey e falou, com um sorriso afetuoso:
— Sabe, você é realmente um membro da família; é tão rude como o resto deles. Fui criada para ter boas maneiras. Os Bouchards nunca as adquiriram. Não são cavalheiros. Nem você, querido.
— Mas sou um homem honesto! — protestou Godfrey, rindo. — Pelo menos, comparativamente honesto. Pode dizer o mesmo do resto deles?
— Alguns são, à sua própria e misteriosa maneira. — Agnes olhou para Henri, de pé a distância falando a Francis. — E um ou dois são cavalheiros. Antoine, por exemplo, é totalmente autêntico. Também não estou bem certa de gostar de cavalheiros. Lembram-me inquisidores.
Godfrey ficou de repente muito agitado, bem como exausto. Olhou em torno, em busca de Celeste: sentava-se a certa distância do fogo, e o irmão estava sentado a seu lado. Christopher passara o braço no encosto da cadeira da irmã, e inclinava a cabeça em sua direção. A atitude dela expressava cansaço, e estava novamente pálida, seus pequenos gestos sem animação. O salão se achava agora cheio de conversas ruidosas e risadas barulhentas. Antoine ficara de pé ao lado de Godfrey, mas não se falavam.
Finalmente Godfrey, sem tirar os olhos de Celeste, disse a Antoine:
— Conheci Celeste há muito tempo, Tony. Ela parece ter sofrido demais com a morte de Peter. Eram muito chegados, sabe. Há sinais de que se esteja recuperando?
Sentiu Antoine fazer um leve movimento a seu lado. E então a voz zombeteira de Antoine disse ligeiramente:
— Celeste já se consolou há muito tempo...
Godfrey virou-se para ele tão depressa que oscilou nas muletas. Pareceu perturbado e trêmulo:
— Sim? Espera casar-se de novo, em breve? Não me disse nada.
Antoine o estudou com cínica perspicácia. "Hum, hum!" pensou.
E disse com a voz zombeteira:
— Casar? Acho que não. Talvez não seja possível. Por vezes existem compromissos anteriores, sabe.
Godfrey o olhou em silêncio, e as linhas fluidas de seu rosto endureceram. E Antoine olhou para trás, sorrindo. Então Godfrey, sem uma palavra, afastou-se.
Dirigiu-se por entre grupos de Bouchards, que automaticamente se afastaram para deixá-lo passar. Ele sentiu-lhes os olhos divertidos e desdenhosos ou hostis a segui-lo. Não se importou. Eles não eram realmente sua família, sentiu. Embora em certa medida partilhasse o seu sangue, era um estranho. Eles sabiam disso. Ele jamais seria parte deles. Subitamente sentiu-se triste por ter vindo.
Encaminhava-se para Celeste quando subitamente parou: aparentemente sem mover-se, Henri aparecera diante de Celeste e Christopher. Olhava para ambos e sorria. Godfrey lhe ouviu a voz através de todo o ruído:
— Chris, surgiu algo importante. Vá ver-me amanhã. É realmente importante.
— Naturalmente — replicou Christopher.
Houve uma pausa. Mas Godfrey viu o rosto de Celeste, frio e tão sem expressão como se fosse de gesso. Ela baixara os olhos. As mãos, imóveis no regaço. E Godfrey também viu o rosto de Henri quando a olhava — duro e brutal.
— Sente-se melhor, Celeste? — Henri perguntou, irritado. — Não a temos visto muito, ultimamente.
Celeste ergueu a cabeça e o olhou, lenta e deliberadamente:
— Eu não estava doente — disse. Sua voz era clara, sem inflexões.
Levantou-se, e o irmão com ela. Sua atitude era calma e composta, porém ao olhar em torno, Godfrey viu o relampejar azul de seus olhos. Ele ergueu a mão e lhe fez sinal de que estava chegando. Ela sorriu, então, e novamente a imobilidade de sua expressão se rompeu em delicados planos de luz. Ele foi até ela rapidamente.
— Estou realmente muito cansada, Godfrey — disse. Pôs a mão no braço dele. — E o bebê está com um resfriadinho. Quer levar-me para casa?
Ele pôs a mão sobre a dela e a apertou:
— Claro, minha querida. Imediatamente. Também estou cansado.
Voltou-se para Christopher e Henri, que o olhava com aquela dureza e inflexível crueldade, agora enormemente aumentadas. Christopher sorria, mas com um ar especulativo, nada agradável.
— Poderão desculpar-nos? — disse Godfrey, cortesmente.
Henri nada disse; Christopher inclinou a cabeça, dizendo:
— Você nos proporcionou um serão muito interessante. Obrigado.
Viu os olhos da irmã, fixos em Godfrey. Estavam radiantes e suaves, e os lábios entreabertos sorriam -— como se se preparassem para uma boa risada. As sobrancelhas de Christopher se juntaram, numa inquietação.
— Boa-noite. Espero que nos tornemos a ver em breve — disse Godfrey.
Henri não replicou. Christopher respondeu cordialmente. Os dois homens ficaram lado a lado, observando Godfrey e Celeste que se dirigiam a Agnes para despedir-se. Finalmente, foram-se.
"Existe realmente algo de muito agradável nisto" — pensou Christopher. Porém algo de danadamente familiar, também. Henri falava, sem a menor ênfase:
— Ele está hospedado em casa de Celeste, não?
— Sim — respondeu Christopher. — Acho bastante apropriado. Ela já não é nenhuma jovenzinha, não é mesmo? É uma viúva. — E acrescentou, inocentemente: — E penso que o bebê é um perfeito acompanhante. — Voltou-se para Henri e ofereceu a cigarreira de platina: — Cigarro?
Henri olhou aborrecido a cigarreira e tirou um cigarro. Christopher o acendeu para ele. Henri o segurou, como todos os amadores, entre as pontas do polegar e do indicador. Segurou-o também a uma boa distância como se fosse odioso.
Virou-se um pouco e contemplou o fogo. Tornou a falar, com indiferença, e com uma inflexão monótona:
— Ponha-o fora daquela casa. O mais cedo possível.
Christopher nada disse. Olhou para aquela cabeça enorme, por trás, e subitamente sentiu gosto de sal na boca, e uma fúria a expandir-se em seu coração. Todos os anos de humilhação, de subserviência, de medo e conciliação, de esperança, auto-repugnância e ódio o dominaram. Todos esses anos fora tão cauteloso, considerando se cada coisa grande ou pequena poderia feri-lo. Todos esses anos pensara apenas em si mesmo. Que lhe valera isso? Traíra a irmã; observara a última traição que ela sofrera. Tornara-se um alcoviteiro, um lacaio. E no fim, vira partir-se o coração dela, vira a desesperada angústia em seus olhos. Se agora tinha uma oportunidade de felicidade, devia aproveitá-la.
Disse, quase sussurrando:
— Não. Não.
Afastou-se de Henri. Sentia uma alegria selvagem. Sua cabeça girava. Caminhava como se o fizesse sobre nuvens. Chegou-se a Edith e pegou-lhe o braço: ela ficou espantada com o olhar dele, animado, móvel como azougue:
— Minha querida, acho que estou bêbedo!
— Bêbedo? — repetiu Edith. Examinou-o: — Absurdo! Você não está bêbedo. Aconteceu alguma coisa.
— Oh! Aconteceu, aconteceu mesmo! — ele exclamou, e lhe beliscou o braço gentilmente. — Coisa maravilhosa é ser livre! Eu deveria haver tentado isso antes. Não fique tão confusa, bichinha! Está tudo ótimo!
Capítulo 70
Fossem quais fossem as dolorosas suspeitas que Godfrey agora tivesse, foram lentamente dispersadas e meio esquecidas nos dias que se seguiram. Pois Celeste, com uma sinceridade e patética ânsia de que ele não podia duvidar, instou com ele para que prolongasse sua estada.
— Você não sabe o quão solitária tenho andado — expôs, com simplicidade.
De modo que ele telefonou ao amigo, Alfred Milch, e o convenceu de que "questões importantes de família" faziam impossível sua volta a Nova York agora, mas que se encontrariam em Hollywood em duas semanas.
Dias felizes, brilhantes de sol e de neve, se sucediam. Godfrey era convidado pelos parentes, com Celeste, que invariavelmente recusava. Quando explicou a Godfrey, ele teve certeza de que ela não estava sendo franca: suas palavras eram evasivas. Porém instava com ele para ir:
— Não fará mal nenhum — dizia, melancólica. Por polidez, ele aceitava.
Quando voltava, fosse a que hora fosse, encontrava Celeste à sua espera, lendo ao pé do fogo; à sua entrada, levantava-se, sorrindo, de mãos estendidas.
— Sabe, eles realmente me odeiam. Suspeitam de mim. Sou um estranho. Querem estudar-me mais de perto, para verificar se existe em mim alguma ameaça. Creio que, agora, já consegui convencê-los que sou completamente inofensivo e paupérrimo, de modo que seu interesse está diminuindo. Como tem podido aturá-los todos esses anos, minha querida?
— Na verdade, não tenho — ela lhe garantiu, rindo.
Sentava-se perto dela, acendia um cigarro, e punha-se a fumar pensativamente:
— As mulheres são muito melhores... digo, algumas delas. Edith, especialmente, e essa querida Annette.
Voltou-se para Celeste, em busca de concordância, porém mais uma vez aquela máscara desconcertante de espessa frieza lhe encobria as feições, e novamente ele sentiu aquela acauteladora inquietação — tão ameaçadora para si mesmo.
Falava-lhe de suas ambições com tão prístino entusiasmo que também ela se contagiava. Quando ela disse: "Godfrey, sou tão enormemente rica... Permita-me ter um ou dois quadros" — ele foi bastante realista, honesto e sem hipocrisia, para protestar, ou fingir recusar. Ao invés, expressou-lhe alegremente sua gratidão, e de imediato telefonou ao amigo, Al Milch. Ao voltar do telefone, balançava-se numa das muletas e jovialmente acenava com a outra. Celeste correu para ele, com exclamações de medo de que ele caísse, e se abraçaram deliciados, beijando-se livremente com o maior entusiasmo.
Em Godfrey havia uma qualidade de eterna juventude que Celeste não encontrara em ninguém mais — o que despertava sua própria juventude enterrada. Passeavam pela região. Foram à aldeia e compraram imensas quantidades de gêneros alimentícios. Godfrey gabava-se de suas façanhas culinárias, e invadiu a cozinha; e era tão encantador, tão alegre, que o cozinheiro não pôde deixar de ficar encantado. Brincavam com o bebê, que rolava na neve, e cambaleava nas perninhas fortes como um casulo de lã. Às vezes apareciam amigos de Celeste, e por vezes alguns da família — e tudo era informal, bem-humorado e descuidado.
Pela primeira vez Celeste se divertia. A reserva de assuntos a serem discutidos entre ela e Godfrey era inesgotável. Conversavam durante horas depois do jantar. Por vezes falavam quase até raiar o dia. Não importava o quão batido fosse o assunto: Godfrey dava-lhe singularidade, frescor e vitalidade especiais. Ele agora raramente era grave: Celeste fora triste por demasiado tempo, ele observara com perspicácia. Gostava de ver a risonha chispa em seus olhos, a vermelhidão dos lábios risonhos, e sua jovialidade era o som mais doce e embriagador do mundo, para ele. Ela acompanhava algumas de suas mais sutis argumentações com lisonjeira atenção. Ele lhe ensinara a tomar um ou dois coquetéis antes do jantar, e o brilhante estímulo que isso lhe dava afrouxava as algemas em sua mente, de modo que uma insuspeitada alegria e um júbilo infantil eram liberados, graciosos e inteligentes.
Visitando-os, Christopher se deu conta disto. Edith também. Disse uma noite, bem casualmente:
— Sabe, acho que Celeste devia apaixonar-se pelo nosso galante aventureiro.
E Christopher:
— Devia. Devia mesmo. Espero que o faça.
Então Edith se voltara e o fitara, porém ele havia apanhado um livro e começara a ler. Edith franziu a testa.
Para Celeste, havia um doce delírio nos dias... Voltavam-lhe a saúde e a vitalidade. A casa, não mais vazia e triste e cheia de melancolia reprimida, tornou-se alegre também. Havia flores por toda parte. As lareiras rugiam. A voz feliz de Celeste, a risada de Godfrey e os gritos do pequeno Land vinham de todas as salas, de todos os quartos. Havia uma gentil despreocupação em torno deles, era como um feriado. Nesse ínterim novembro se fora e dezembro chegara, calmo e nevoso dezembro cheio de brilhante luminosidade azul.
Godfrey começara a ter esperanças. Já agora se convencera que o que vira tão obscura e fugazmente naquele jantar no Dia de Ação de Graças fora fruto de sua própria imaginação. Embora tivesse visitado Antoine na casa dele, Antoine nada dissera, apenas observando com muita simpatia que era muito bom que Godfrey tivesse vindo, pois Celeste estivera "abstrata" por muito tempo.
— Ela devia tornar a casar — ele disse, casualmente. — Alguém que lhe pudesse ensinar a divertir-se e a gozar a vida. Já teve muita tristeza.
Godfrey era demasiado inteligente e muito realista para refletir que era pobre e Celeste muito rica. Teve um momento de dúvida a respeito da perna perdida, mas novamente seu realismo fê-lo dar de ombros:
"Ainda sou um homem, com a maioria de meus membros" — pensou, sorrindo.
Amava Celeste. Amara-a quase desde o momento em que a conhecera. (Também gostava de Peter, ao ponto de uma grande afeição.) Mais ainda: compreendia as mulheres inteiramente. Sabia o que lhes agradava, em geral, e o que lhes desagradava. Elas o interessavam muito, como seres humanos, além de sua feminilidade. Gostava delas. Apreciava-lhes a companhia, mesmo quando eram tolas. Se fossem bonitas o deliciavam; se inteligentes, o intrigavam. Apiedava-se de suas fraquezas, e lhes admirava a grande e insuspeita fortaleza de ânimo. Acreditava que as gerações as haviam difamado muito. Era uma frase sua favorita: se os homens aprendessem a compreender melhor as mulheres, e a adquirir a arte de agradar-lhes, eles próprios lucrariam, com o esforço, imensos benefícios. Godfrey acreditava firmemente que, embora muitas coisas fossem valiosas na vida, as relações humanas e a delícia e doçura que elas podem proporcionar eram as mais valiosas.
Celeste o amaria agora? — ele se perguntava. Nunca tivera tais dúvidas a respeito de nenhuma outra mulher. Sempre soubera, e se valera do conhecimento. Mas com Celeste não podia saber completamente. Sabia que era doida por ele, que era só vê-lo para ficar radiante, que sua voz era uma doçura quando falava com ele. Mas quanto disso se devia a uma solidão patética que ele aliviara? Quanto era gratidão por haver encontrado um amigo e companheiro, cheio de simpatia e afeição? Quanto era mera afinidade, gostos idênticos, e mútua compreensão? E depois pensou, ligeiramente: afinal de contas, o que é amar? Paixão havia, naturalmente, e veemência, porém todos dois já haviam visto muito desses dois aspectos, e agora os preferiam mais gentis e de maneira mais madura. Mesmo se, no que se referia a Celeste, eles pudessem estar ausentes, não importava: as outras coisas eram muito mais duráveis.
Ficou preocupado com seus pensamentos, e mais grave e pensativo. Observando isso, Celeste ficou amedrontada e perplexa: teria começado a aborrecê-lo? Estaria cansado de estar aqui em Placid Heights, com ela e seu filho? Talvez sua conversa fosse por demais leve e inconsequente. "Mas, ó Deus!" pensava — "já tive tantos anos de ser séria e carregar o mundo nos ombros! Gostaria de um descanso, agora! Gostaria de rir, ainda que por pouco tempo, e fingir, só um pouquinho, que nada é de trágica importância..."
Estava agora com trinta e cinco anos, já não era jovem, porém ainda tinha a ingenuidade pura e facilmente espantada de uma criança. Ficava acordada à noite, pensando em Godfrey, com o pensamento tão ocupado com ele, tão humilde quanto a suas incapacidades, que a velha dor monstruosa, enorme e negra, se tornava uma sinistra montanha a distância, em sua consciência. Quando o encontrava pela manhã, espiava-o ansiosamente. E quando ele a olhava, e sorria, e sugeria um passeio, uma folia na neve com o bebê, seu rosto se erguia e os olhos dançavam de prazer. Enquanto os arranjos finais estavam sendo feitos com seus advogados e Godfrey, no seu agradável living-room, ela ouviu com avidez as discussões técnicas da feitura de um filme — e esta era uma brilhante qualidade sua. Quando ela declarou, rapidamente, que não queria lucros, não notou o sorriso ácido de seus advogados, e só olhava para Godfrey, que riu e lhe deu pancadinhas na mão, garantindo-lhe que ela não era mulher de negócios.
Portanto, tinha muitas coisas para fazê-lo esperar. E na manhã em que Milch, irritado, telefonou de Hollywood comentando que já tivera muita folga, Godfrey decidiu descobrir que fundamento havia para essa esperança.
Tinha havido uma tempestade de gelo durante a noite. O sol da manhã, esbraseado e incandescente, brilhou sobre um mundo de cristal, onde cada galhinho, cada tronco de árvore, cada fronde de conífera, cada beiral e cada sebe e linha de telefone estava revestido de vidro brilhante. Godfrey e Celeste saíram para olhar isso. Viram as colinas distantes, agora arroxeadas como jacintos àquela luz pungente e purificada, e um céu também de cristal e puro como gelo. Quando falaram, suas vozes saíram como ecos cristalinos. Tudo estava tão silente, tão luminoso, tão lancinante que eles finalmente não mais falaram: apenas ficaram de pé, lado a lado, de mãos dadas. As casas no vale abaixo pareciam casas de bonecas; colunas de fumaça azulada subiam em linha reta de suas chaminés. A claridade na neve reverberava o sol até que ficaram ofuscados.
Voltaram a casa e sentaram-se ao pé do fogo. As faces de Celeste estavam muito vermelhas. Estendeu as mãos para o fogo e sorriu para Godfrey, que fumava em silêncio. Ela descobriu que ele estivera a observá-la atentamente — e ela não se podia explicar o súbito tremor de seu coração.
Ele atirou o cigarro ao fogo e falou com gentil brusquidão:
— Celeste, minha querida, devo ir para Hollywood não mais -tarde que depois de amanhã. Não quero ir, mas devo. Tenho de ganhar a vida.
Todo o brilho desapareceu do rosto dela; tornou-se pálido e inexpressivo. Ela voltou-se novamente para o fogo e, após um momento, falou com dificuldade:
— Sim, claro. Compreendo. — Suspirou: — Ficarei terrivelmente triste. Nem faz ideia de quão triste...
Ele inclinou-se para ela e tomou-lhe a mão:
— Querida, olhe para mim.
Ela o fez. Sua boca tremia. Tentou sorrir. Ele beijou-lhe a mão:
— Quero perguntar-lhe algo, minha querida — disse, maciamente. — Talvez seja um pouco cedo. Mas tenho de saber. Terei alguma chance?
Sabia que ela era ingênua, que talvez conservasse essa pura virtude até uma idade avançada, até o fim da vida. Porém mal podia acreditar quando viu seu espanto; e quando ela puxou rapidamente sua mão da dele, e depois o fitou em silêncio, ele próprio ficou espantado. Ela seria realmente tão cega? E então sentiu uma dor peculiar no peito.
— Amo-a, Celeste querida — disse, as palavras saindo dolorosamente de uma garganta subitamente ressecada. — Pensei que soubesse.
Ela não falou. Seus olhos se encheram de lágrimas, lentamente. Ela ergueu a mão, descansou-a no braço da poltrona, e escondeu dele o rosto.
E houve silêncio na sala. O sol se derramava através das janelas em uma longa esteira de profunda radiância. O fogo crepitava na lareira. Do lado de fora estalavam árvores. Não havia qualquer outro som. Godfrey se inclinava para Celeste, aguardando, as mãos caídas e apertadas diante dele.
— Acho que temos sido felizes aqui, juntos — ele murmurou. — Talvez eu tenha contado demais com isso. — Olhou o fogo, reflexivamente. — E talvez seja cedo demais...
Ela abaixou a mão, e ele lhe viu as faces tocantemente úmidas, e a boca trêmula. Tentou falar, mas teve de fazer vários esforços antes de ser bem-sucedida:
— Sim, querido, cedo demais... — Sua voz tremia.
Imediatamente ele se tomou compassivo, a dor em seu peito diminuindo um pouco:
— Sim, naturalmente! Compreendo. Pobre Peter...
Mas viu, então, que ela ficara rigidamente grave, e friamente áspera:
— Godfrey, não se trata de Peter — disse, com firmeza.
Ele a olhou, mudamente, cabeça abaixada. E esperou.
Ela apertava as mãos, duros os dedos e as palmas: começou a tremer.
— Não posso ser hipócrita com você, Godfrey — disse, ainda a olhá-lo, corajosamente. — Amei Peter. Honestamente, amei-o. Desde que o vi pela primeira vez. Amei-o até sua morte. Sempre o amarei. Mas não do modo que você pensa. Nunca... nunca foi assim.
Ele a fixava firmemente e estava silencioso, embora nada perdesse de sua muda angústia. Depois disse, com a maior gentileza:
— Então, é alguém mais?
Ela não replicou. Mas curvou a cabeça um pouco.
Ele olhou suas muletas, como se quisesse pegá-las e caminhar pela sala. Mas apenas ficou sentado ali, a olhá-las, como se não houvesse mais nada em sua mente.
— Naturalmente, seria impertinência perguntar...
Ficou surpreso ante a aguda e amarga nitidez da sua voz, e sua sonoridade — como se ela falasse com repugnância de si mesma e incontrolável auto desdém:
— Você pode muito bem saber, Frey. Todo mundo sabe. Pensei que talvez alguém da família tivesse tido a bondade de esclarecê-lo! Pensei que você sabia e não se importava! Era-lhe grata por isso. Sabe, é Henri.
Ele ainda olhava para as muletas. Sua boca jovial agora parecia severa com o choque. "Mas acho que sempre soube" — pensou. Disse, sem erguer os olhos para ela:
— Porém ele é casado. Com a pequena Annette. Assim...
Mas as palavras dela jorravam sobre ele, rapidamente, como bolinhas de gelo arremessadas, e ele não reconhecia essa voz, tão frágil, tão aguda, tão amargurada e cheia de esmagadora agonia, como se todo o seu controle tivesse desabado e ela devesse falar por total incapacidade de proceder de outro jeito. Contou-lhe sobre seu antigo compromisso com Henri, que ela havia rompido, e seu casamento com Peter. Contou-lhe — em tom sem emoção, alto e duro — dos catorze anos de exílio quase completo. Disse-lhe que nunca esquecera Henri, que desejara não voltar jamais por sentir que não ousaria fazê-lo, por causa de Peter. Não hesitou nem se atrapalhou ao contar-lhe tudo, sua volta, o encontro com Henri, o caso subsequente.
E Godfrey ouvia, entorpecido, nunca afastando dela os olhos. Uma ou duas vezes ouviu a tensa angústia do seu riso breve, triste e sufocado.
— Fiz uma confusão tremenda! Eu parecia não me importar. Nada importava. Eu não tinha orgulho, nem vergonha. Ele vinha e ia quando lhe agradava. Eu fazia fosse o que fosse que ele mandasse. — Subitamente levou as mãos à garganta, como se uma dor insuportável a tivesse golpeado ali. — Ele me disse, repetidas vezes, que não fazia promessas. Apenas garantia que se e quando fosse seguro, e possível divorciar-se de Annette ele o faria, e poderíamos casar-nos. Ao que parece nada poderia ser feito até que Armand morresse e seu testamento fosse conhecido.
Ela lhe contou do testamento, e as condições. E ele ouvia, não movendo um músculo, apenas observando sua perturbada veemência, seus gestos incertos e convulsivos. Se estava chocado e horrorizado, não havia sinais disso.
— Então — ela continuou, ainda naquela voz precipitada, alta e dura — Peter ficou muito doente. Não pensei em nada mais. Sinto certo consolo, pensando nisso. Depois, ele morreu. — Deteve-se por um momento, e ele lhe viu a rigidez da branca garganta, e sua dificuldade em engolir. — Também descobri que ia ter um filho, e que era tarde demais para fazer algo a tal respeito.
Então Godfrey fez um movimento incontrolável. Seus lábios pálidos se entreabriram. Suas mãos, tremendo um pouco, tatearam por um cigarro. Acendeu-o, fitou às cegas o fósforo que ainda ardia (como se não soubesse o que era aquilo...) e depois atirou-o ao fogo. Disse, calmo:
— Filho de Henri, naturalmente?
— Oh, sim, sim! — O sorriso dela era ainda mais selvagem, mais escarnecedor. — A família sabia. Devo-lhes alguma gratidão. Nunca falaram nisso. Sempre se referiram ao "garotinho de Peter". Orgulho de família, suponho. Sim, eu lhes sou grata.
Godfrey fumava lentamente. Disse, em tom casual:
— E Henri não fez nada?
— Já lhe disse: é o testamento! Ele deve esperar até decidir ter chegado o momento apropriado para abrir o testamento! Tentei compreender. Realmente, compreendi — e sua voz agora se quebrou rapidamente, numa trêmula compaixão. — Eu compreendi. Havia coisas a serem consideradas além de mim. Eu não era irracional. Estava disposta a esperar. Não queria que ele abrisse prematuramente o testamento apenas para satisfazer-me. Não foi isso que me fez romper com ele.
Sua voz estava rouca e ofegante, e ela esperou um pouco, respirando pesadamente, antes de poder continuar:
— Rompi com ele porque é cruel, e brutal. Porque é um sádico. Porque, embora eu saiba que ele me ama, não pode deixar de atormentar-me. É um homem mau, Frey. Um homem muito mau. Eu sempre soube disso. Tentei fazer vista grossa. Mas chegou o dia em que não pude mais.
Godfrey atirou o cigarro ao fogo. Viu-o ser tragado pelas chamas. Disse:
— Então você rompeu com ele?
— Sim. — Ela sussurrou isto, como se já não tivesse forças para falar alto. A cabeça lhe tombou sobre o peito.
Ficaram assim sentados por muito tempo, o silêncio quebrado apenas pelo crepitar do fogo e o estalar das árvores lá fora. Parecia a Godfrey que o salão iluminado pelo sol ficara muito frio. Olhou a cabeça caída de Celeste, e seu coração se apertou com a mais profunda compaixão e amor que jamais sentira em toda a vida.
Então ele disse, com a maior gentileza:
— Mas não o esqueceu, não é, querida?
Ela pôs as mãos no rosto. Sua voz chegou a ele abafada, quebrada:
— Não. Não. Tentei. Mas não adiantou. Nunca adiantará. Não há nenhuma esperança. Ele acabou comigo, não importa o que o testamento contenha. Ele jamais voltará. Esqueceu tudo. Não se importa.
Godfrey suspirou. Esfregou as mãos frias. Não havia calor para ele no fogo trovejante.
— Está enganada, minha querida, pobre criança! Ele não esqueceu. Vi isso imediatamente, naquele Dia de Ação de Graças. Vi como olhava para você.
Ela apertou os dedos no rosto. Um murmúrio como um riso, áspero e quebrado, passou através deles:
— Não se o testamento o proibir! Não se ele perder alguma coisa, ao vir! Ele me disse isso. Francamente. — Deixou cair as mãos e se voltou para ele, que lhe viu o rosto branco e transtornado, os olhos enxutos cheios de uma luz amarga e sardônica. Depois sua expressão mudou e ela disse, quase incoerente: — Que quer dizer, Godfrey? A respeito dele ainda lembrar! A respeito de não haver esquecido!
E ele tornou a suspirar, sabendo finalmente não haver a mínima esperança para ele. Viu isso nos olhos dela, subitamente pungentes, subitamente desesperados e fixos. Desviou a cabeça:
— É verdade. Ele não esqueceu. E voltará. Talvez muito breve.
— Não quero vê-lo! Não quero falar com ele! — ela gritou, selvagemente. Fechou a mão e socou o joelho com ela: — Não quero vê-lo!
Porém ele apenas a olhou e sorriu tristemente. Tateou em busca das muletas. Nada disse.
Ela viu seu gesto. De repente, rebentou em lágrimas. Levantou-se e caiu de joelhos diante dele, pôs-lhe os braços no pescoço e pousou a cabeça no ombro dele. Agarrou-se a ele loucamente. Depois de hesitar um pouco, ele pôs os braços em torno dela e a estreitou como se ela fosse uma criança de coração partido, e gentilmente lhe beijou as faces e o topo da cabeça. Consolou-a em silêncio.
Depois de muito tempo ela se acalmou. Ergueu a cabeça e o deixou ver o rosto úmido, agora relaxado e exausto.
— Godfrey querido — disse, humildemente — peça-me novamente. Daqui a seis meses. Daqui a um ano.
Ele lhe alisou os cabelos desordenados, e suspirou:
— Não, querida — disse, ternamente. — Não lhe pedirei novamente. Compreenda: não adiantará nada.
Capítulo 71
Christopher acabara de chegar de Detroit, nessa manhã de um domingo terrivelmente frio de dezembro, quando foi chamado ao telefone. Era Henri.
— Estou só aqui — disse Henri, em voz baixa e monótona.
— Annette está em Nova York. Quero falar com você. É muito importante. — Deteve-se: — Acabo de voltar de Nova York. Abri o testamento.
A pulsação de Christopher deu um salto. Mas respondeu com indiferença:
— Estarei aí dentro de uma hora.
A linha zumbia no silêncio. Christopher sabia que a comunicação ainda não fora cortada. Após um longo momento, ouviu o clique do fone quando Henri o desligava. Christopher sorriu maliciosamente. Voltou a Edith, que o esperava impacientemente na saleta do café. Falou-lhe da conversa.
— Ele queria que eu perguntasse, trêmulo, sem fôlego e ansioso, sobre o conteúdo do testamento — comentou, com satisfação.
— Mas não o fiz.
— Como pôde conter-se? — ela perguntou, zombeteira. Porém ele viu que ela estava alerta e preocupada.
Christopher começou a rir:
— Tenho uma ideia. Ele não teria telefonado assim se o testamento não contivesse tudo que queria. Mas há algo que deseja saber, também. Imagino que o fato de Godfrey hospedar-se em Placid Heights lhe tenha proporcionado alguns maus momentos. Afinal de contas, ele é humano, por Deus! Espero que tenha sofrido um bocado! — acrescentou, com prazer.
— Disse-lhe que Godfrey foi para Hollywood ontem, meu adorável querido? — Certo olhar de tensão desaparecera do rosto de Edith desde a véspera.
— Claro que não! Se eu fosse uma pessoa realmente vulgar, podia haver sugerido que poderíamos esperar novas excitantes de Placid Heights em breve. Bem gostaria que isso fosse verdade... — A expressão de Christopher era pensativa agora, e um pouco triste. — Realmente gostaria que fosse verdade. Não que me importe, pessoalmente, por nosso alegre aventureiro, mas porque ele me parece a coisa adequada para a pequena Celeste.
Edith o olhou estranhamente. Mas não fez comentários. Viu que, apesar de sua torpeza, ele estava enormemente excitado e esperançoso.
"Não conte muito em ter influência sobre Henri, depois que soarem os sinos matrimoniais... — pensou. — Ninguém jamais terá muita influência sobre o meu querido irmão. Mas você nunca aprenderá..."
Ao chegar a Robin’s Nest, Christopher viu que Henri acabara de fazer uma refeição copiosa diante do fogo no living-room. Henri nunca se importara muito com comida, exceto como sustento. Mas Christopher notou que este havia sido um senhor café da manhã. Ainda se distraiu mais quando Henri lhe ofereceu um excelente charuto, servindo-se também. Um criado carregava uma batelada de pratos e travessas servidos. O largo rosto pálido de Henri estava realmente amável, relaxado. Quando sorriu para o cunhado, o sorriso lhe alcançou os olhos pela primeira vez, na lembrança de Christopher.
— Não há nada no testamento que me impeça de divorciar-me de Annette — disse Henri, calmamente. — Tivemos uma conversa em Nova York. Ela nem voltará aqui. Está indo diretamente para Reno. A camareira está fazendo suas malas agora.
Christopher estava surpreso. Não era do feitio de Henri ir falando assim, sem observações preliminares que nada tinham a ver com o caso. Ficou ainda mais divertido quando Henri disse, com a mais cordial franqueza:
— Espero que aquele papagaio falador haja saído de Placid Heights.
Christopher meditou. Deveria sugerir que talvez Celeste e Godfrey tivessem chegado a algum acordo? Mas sua própria agitação íntima e exultação eram demais, mesmo para ele. Informou:
— Saiu. Ontem. Ninguém me fez qualquer confidência, mas acho que Celeste tem algo a ver com isso.
Henri tornou a sorrir, com satisfação. Quando olhou para seu charuto fumegante, foi sem desagrado. Realmente parecia cordial e humano, mesmo um pouco pueril. Christopher o contemplava cinicamente.
— Não é um mau sujeito — comentou Henri. — Fiz alguns arranjos diretamente com o amigo dele, Milch. Depois de cuidadosa investigação, naturalmente. Deverão produzir algo de bom. Acho que Godfrey tem talento considerável. Estou interessado nos planos de Milch.
"Então, ele não está mostrando mesmo malícia alguma!" — pensou Christopher. E ficou espantado ante o alívio que sentia.
E depois ficou outra vez surpreso, pois Henri parecia genuinamente reflexivo e grave.
— Naquele jantar — comentou Henri, olhando atentamente o charuto — pensei que ele aparecia com vantagem. Pensei, de início que era um idealista... como Peter. Depois vi que era um realista. Havia nele algo de bravo, também, e nenhum absurdo. — Sorriu um pouco: — Apesar da sua aparência enganadora, pensei que parecia muito com o velho — e deu uma olhadela ao retrato de Ernest Barbour acima dele. Não afastou o olhar por vários momentos, e se tornou ainda mais grave: — Sim, há considerável semelhança. Percebo que, eventualmente, posso vir a gostar dele. Mais tarde, pretendo vê-lo muito, aqui e ali. Suspeito que, aparecendo a ocasião, ele pode ser mentiroso, velhaco e inescrupuloso. Mas quando tudo isso foi defeito para nós?
Christopher riu, sem comentários. Mas observava Henri atentamente.
— Porém ele tem outras coisas também — continuou Henri, pensativamente. — Deu uma perna, não por ser um idealista, mas por desejar matar algo que achava detestável. Para ele, foi uma troca justa. Gosto de homens que pagam o preço... e nada de heroísmos, posteriormente. Sim, gosto dele. Falei com Milch, eu próprio, semana passada.
"Assim — pensou Christopher — foi isso que precipitou as coisas, e o motivo do apressado chamado de Milch a Godfrey..." Sorriu intimamente. Então Henri, realmente, torcera as coisas a seu jeito... Quanto teria oferecido a Milch para tirar Godfrey de lá? Naturalmente, não manejara o assunto assim tão cruamente! Naturalmente, tudo era negócio! Christopher estava deliciado.
— Informou a Milch sobre o tipo de filmes que prefere? — perguntou.
Henri sorriu, e novamente o sorriso lhe chegava aos olhos:
— Nunca interfiro com os negócios de outro homem, especialmente se deles nada entendo. Mas, numa oferta de apoio ilimitado, tenho algumas sugestões.
Acrescentou:
— E, a propósito, acho que não seremos mais incomodados pelo nosso amiguinho de olhos cândidos: August Jaeckle. Foi completada a investigação. Duas investigações, na verdade. A mais importante demonstrou que ele recebeu mais de cinquenta mil dólares durante os últimos seis meses, diretamente de Berlim. A outra, que ele tem o que os franceses chamam de petite amie em Pitsburgo. Naturalmente, a Sra. Jaeckle não precisa saber disso, mas uma pequena sugestão a August o convenceu de que seria melhor parar com a sua propaganda.
— Excelente! — exclamou Christopher. — E... outras questões?
Henri se recostou na cadeira:
— Vou convocar uma reunião para terça-feira, aqui mesmo. Todo o pessoal. Nosso... e de Antoine. A propósito: Antoine receberá uma cópia do testamento de Armand esta manhã... por mensageiro especial. — Olhou a distância, murmurando gentil: — Não sou naturalmente um homem curioso. Mas gostaria de estar lá quando ele a recebesse...
Christopher não falou de imediato. Depois disse, estranhamente:
— Sempre me considerei uma pessoa intuitiva. Não sei o que está por trás disso, mas tenho observado uma mudança em nosso vivaz dançarino ultimamente. Uma espécie de meditação. Seja como for, não estou muito certo de que o testamento será um choque esmagador para ele.
Henri franziu a testa, acidamente:
— Espero que esteja enganado.
Continuou:
— Há algo mais que queria comunicar-lhe. O Bispo Halliday não fará mais irradiações. Descobrimos, acidentalmente, claro, que possui um bonito bloco de ações da pequena siderurgia do Marechal Goering, na Alemanha. Alguém lhe explicou que o Governo dos Estados Unidos podia fazer uma pequena e impertinente investigação dos fatos se lhe fossem apresentados.
Depois, abruptamente, ergueu-se, de costas para o fogo. Disse, com súbita calma:
— Nova York está amedrontada. Washington está amedrontada. É o Japão.
— Japão — repetiu Christopher, sem ênfase.
— A Missão japonesa está em consulta com o Departamento de Estado exatamente agora. Espera-se um acordo satisfatório. Os otimistas esperam. Mas não os outros com quem falei.
— Acha que o ataque virá do Japão?
— Não tenho a menor dúvida. Quando, não posso dizer. Não sei. Mas Hitler já deu suas ordens ao Governo japonês, que não tem escolha. A ordem foi dada há umas duas semanas. Não creio que a Missão saiba disso. Ainda.
— Isso pode acalmar.
Henri deu de ombros:
— Talvez. Mas não acredito.
Ele disse:
— Tudo está pronto. Por isso estou convocando a reunião para terça-feira. Entre outras coisas, vou falar sobre o Japão.
Ficou de pé diante do fogo, imóvel feito uma rocha:
— Acabei de descobrir, também, que apesar das minhas ordens, um grande carregamento de platina, grãos, petróleo e maquinaria saiu da Argentina há dois dias. Para Franco, naturalmente! Mas destinado à Alemanha. Informei o Governo britânico. Esse carregamento nunca chegará à Espanha.
Continuou:
— O responsável por isso não vai gostar do resultado. — Sem mudança de tom, falou: — Hugo estará aqui na terça-feira. Espero que esteja em estado de choque.
Christopher se recostou na cadeira e disse, divertido:
— Parece-me farejar muita chantagem no ar... Espero que você tenha à mão um suprimento de reconstituintes para os rapazes.
Henri sorriu brevemente, mas nada disse. No entanto, olhou atento para Christopher.
Depois sentou-se e delineou resumidamente os seus planos, e o que pretendia fazer. Christopher ouvia com a maior atenção. Ao fim, Henri comunicou:
— Viajarei para a América do Sul daqui a cerca de oito semanas, com certa Comissão.
Um criado chegou à porta e disse que o Sr. Bouchard tinha um chamado interurbano, de Washington.
— Hoje?... — falou Henri, franzindo a testa. Desculpou-se e foi à sua cabina particular à prova de som, no segundo andar.
Christopher se sentia muito contente. Seus pensamentos lhe traziam prazer. Ocasionalmente, ao sentar-se diante do fogo, esperando, sorriu. Fumava sem parar. De súbito, deu-se conta de que Henri se fora havia muito tempo. Por alguma razão, isso lhe causou inquietação. Levantou-se e começou a caminhar pela sala, silenciosamente. Por vezes se detinha, para contemplar a paisagem hibernal. Não havia o menor barulho na casa. Tudo estava quieto e brilhante.
Voltou-se da janela para ver Henri de pé no umbral, muito pálido.
— Pearl Harbor acaba de ser atacada — disse, e sua voz era calma e controlada.
Capítulo 72
Celeste estava fora, brincando na neve com o pequeno Land. Ela o observava a cambalear, gritando, pegando punhados de neve com as mãozinhas enluvadas e atirando-os para o ar — de modo que caíam como chuva de diamantes. Colocou-o no trenó e foi puxando, ambos rindo às gargalhadas no ar cristalino quando ele caiu deliberadamente. As peles de Celeste estavam polvilhadas de branco. O vento lhe trouxe alguma cor ao rosto pálido e cansado. Ela tomou nos braços o garotinho e o beijou apaixonadamente. Ele lutou por um momento; depois, de súbito ficou anormalmente grave, olhando seu rosto, onde apareciam algumas gotas prateadas. Pensativo ele limpou uma delas, com a luva:
— Mamãe chora... Dor de barriguinha?
— Sim, querido. Uma dor muito forte. Mas não no lugar habitual. Estamos em guerra, meu docinho. E você ainda não sabe o que é isso, graças a Deus!
Tornou a sentá-lo no trenó e novamente ele saiu gingando nas perninhas fortes. Achou um raminho escuro, bifurcado e brilhante de gelo. Pô-lo na boca. Celeste protestou. Ele a olhou com aqueles olhos cinza-claro, que se haviam tornado sem expressão. "Não!" — gritou Celeste, com paixão. A criança, espantada, deixou cair o raminho, e franziu a testa para ela.
— Não olhe para mim assim! — gritou Celeste, ainda mais apaixonadamente. Depois, para completo espanto do garotinho, correu para ele, ajoelhou na neve, e o apertou nos braços, beijando-lhe o pescocinho quente. — Não se importe comigo, querido — sussurrou, incoerente. — Mas, por favor, não olhe assim para mim, nunca! Não posso suportar!
Deixou-o ir mais uma vez, e ele se mandou. Ela continuava ajoelhada na neve, a observá-lo. Não ouviu o ruído de um carro, que subia o longo caminho, vindo do vale. Mas a criança ouviu e viu. Gritou, deliciado:
— Papai!
Correu caminho abaixo. Caiu uma ou duas vezes, levantando-se sozinho e continuando. Espantada e tonta, Celeste lentamente se pôs de pé. Era o carro negro de Henri parando em frente à casa, e era Henri, sobretudo e chapéu cinzentos, que serenamente saía dele. Celeste ficou gelada! Não podia mover-se, ou sequer pensar.
Henri a ignorou, de pé na subida nevada, aparecendo em silhueta com suas peles contra o ardente azul do céu. Ele bateu as mãos enluvadas com um som alto. Curvou-se, estendendo os braços. O pequeno Land aumentou a cambaleante velocidade. E atirou-se nos braços de Henri, que o ergueu e o beijou calorosamente: o garoto o estreitou, em êxtase.
— Muito bem, velho amigo! — gritou Henri. — Você está danadamente úmido, sabe. Tire essa pata do meu rosto!
Diante de Celeste a cena se estilhaçou em mil ofuscantes e vertiginosos fragmentos. Sua respiração estava sufocada na garganta. Começou a ofegar ruidosamente, em soluços secos e dilacerantes. Mas ainda não podia mover-se — com toda aquela dor ardente em seu coração, e com a cabeça rodopiando.
Como num sonho brilhante e inacreditável via Henri subindo em direção a ela, ainda carregando o rosado e feliz garotinho. Henri continuou a lutar contra as luvas molhadas que queriam acariciar-lhe o rosto. Ria como Celeste jamais o ouvira rir. Agora estava a olhá-la, e seus olhos realmente dançavam!
— Alô! Você não poderia manter este moleque enxuto?
Mas Celeste ouvia Land, gritando repetidas vezes: "Papai! Papai!" Ouvia isso entorpecida, atordoada.
Henri estava diante dela agora, o menino nos ombros:
— Edith e eu passamos momentos difíceis ensinando o garoto a dizer isso claramente — ele observou, em tom confidencial e caloroso. — Só na semana passada é que pôde fazê-lo. Ora, droga! — acrescentou, empurrando a luva que novamente o acariciava. — Olhe aqui: pare de passar-me essas mãozinhas úmidas ou você vai já para o chão.
— Bala! — pediu Land, curvando-se para apertar o rostinho rosado no de Henri. E depois, como se pensasse melhor, beijou o pai "molhadamente", com entusiasmo.
A neve em torno dela não era mais branca e imóvel do que Celeste. Os olhos azuis-escuros estavam esgazeados com o choque. Henri ignorou isso.
— Espero — disse, casualmente, olhando-a bem de frente — que suas babás sejam de confiança. Estaremos nos afastando do menino em cerca de oito semanas, e não estaremos de volta por dois meses pelo menos. Pode confiar nelas?
— Confiar nelas? — ela murmurou, estupidamente.
Henri pôs o menino no chão. Land prontamente se agarrou a suas pernas, quase o derrubando. Henri se libertou, e Celeste viu o seu perfil risonho sob a aba do chapéu. Ele conseguiu tirar do bolso um pacote de caramelos, que pôs nas mãozinhas ávidas do garotinho.
— Vá para algum lugar e pode comê-los, quietinho — ele disse.
Celeste murmurou, debilmente:
— Ele não deve! Está quase na hora do seu jantar.
— Não se importe com a hora de jantar — disse Henri, ligeiramente. — Você não conhece nada a respeito de meninos. Podem empanturrar-se de meia em meia hora. — Deteve-se, e lhe sorriu: — Será verão, na América do Sul, quando chegarmos lá.
Ela não falou. Seus lábios começaram a tremer. Então ele a segurou pelos braços, com firmeza, e a olhou bem. Ela também o olhou, em silêncio, os olhos se enchendo de lágrimas.
— Ah, Celeste! — ele disse, suavemente.
Ela não podia dar uma palavra. Ele a puxou para si e lhe beijou os lábios, muitas, muitas vezes: estavam frios e rígidos como gelo. Depois, lentamente, eles se aqueceram e amaciaram. Ela emitiu um grito abafado e agarrou-se a ele. Começou a chorar; ele a manteve bem abraçada, gentilmente, e deixou-a chorar.
Ela estava consciente apenas de que a dor imensa e monstruosa em seu peito a deixara, que algo se derretia e lhe aquecia a carne. Ouviu a voz dele, às vezes perto, às vezes de longe, e era grave agora, e firme:
— Não tem ouvido o noticiário, Celeste? Estamos em guerra. O Japão nos atacou. Guerra, Celeste! E tenho trabalho a fazer. Quero-a comigo. Daqui a sete semanas podemos estar casados: Annette já foi para Reno.
Porém ela só pensava que os braços dele a rodeavam, fortes e firmes, e que sua dor se fora...
O pequeno Land se sentara em seu trenó. Retirara o celofane de todos os caramelos e, em êxtase, estava provando todos eles, pela ordem.
Capítulo 73
Lá estavam eles, sentados num grande círculo diante dele no amplo e aquecido salão de Robin’s Nest. Caía uma neve espessa de dezembro, sinistra e silente, fundo adequado para a atmosfera do salão, também sinistra e silente, ameaçadora e vigilante, cheia de gigantesca suspeita e animosidade. Um fogaréu ardia na lareira enorme, enchendo a obscuridade desse interior de lanças e labaredas de luz rosada e irrequieta. Ainda era de tarde, mas o céu era todo dobras cinzentas, intumescendo com a tempestade; um vento forte batia contra as janelas com um som de gemido. A fumaça se enroscava languidamente, fumaça de charutos e cigarros. Junto de cada cotovelo havia uma mesa com altos copos de cristal cheios de um líquido ambarino. Aqui e ali a luz do fogo punha em destaque um polido sapato preto, o cintilar de uns óculos, o brilho de uma cabeça calva, o vislumbre de um anel de sinete, o súbito brilho mortal do olho de um adversário.
Henri ficou de pé sob o retrato de Ernest Barbour. Fosse ele outro homem, aqueles reunidos ali o suspeitariam de teatralidade, de esforçar-se por um efeito melodramático. Contudo, nem mesmo seus inimigos suspeitariam disso. Alguns deles, com uma inquietação ridiculamente supersticiosa, sentiam que dois rostos idênticos os contemplavam, e que esses rostos curiosamente conferiam poder um ao outro. Então, eles enfrentavam dois homens, à espera, dois homens frios, perigosos e implacáveis, com pálidos olhos de basilisco e grandes bocas formadas de pedra cinzenta.
Henri olhou o círculo de rostos a sua volta — sua Família. Aí estava o poder dos Bouchards, parte do poder da América. E pensou: "Entre eles não há um só em quem eu possa confiar. Cães, fuinhas, serpentes e lobos!" Cresceu nele um enorme desprezo, uma selvagem, porém gelada onda de força tal como poderia saturar um homem que secretamente sabia poder destruí-los a seu bel-prazer. Não sentia pesar por não poder confiar neles. Estava apenas satisfeito por ter poder sobre eles, poder destruí-los, e que eles devessem obedecer-lhe. Mexeu os largos ombros dentro do casaco: sentiu a flexão dos músculos. Eles não sabiam o que pensava, mas viram o súbito brilho gelado de seus olhos descoloridos, o súbito dilatar das narinas. Embora ele estivesse à vontade, mãos nos bolsos, sentiram tudo que ele era, e todos sentiram o ferrão do presságio como um vento frio em sua carne.
Ele os chamara, eles tinham vindo. Nem um ousara não comparecer. Ele esperara até que todos se tivessem instalado confortavelmente com charutos, cigarros e uísque. Olhou para um em especial: Antoine, branco como gesso, com olhos que pareciam buracos chamejantes no rosto — Antoine, que fora tão prejudicado pelo testamento do pai. No dia anterior recebera uma cópia do testamento: fora-lhe enviada, sem comentários, pelos advogados de Henri. Por um momento, enquanto ali de pé, Henri lhe relanceou o olhar algumas vezes com secreta curiosidade e com secreto e duro divertimento. A César o que é de César: o frívolo Antoine, graciosamente avarento, não demonstrou sinais de perturbação ou fúria.
Nem sequer parecia ter sido atingido. Henri esperara muito mais que essa calma, essa elegante e silenciosa compostura. Henri se permitiu um momento de curiosa especulação e alguma surpresa. Também estava aborrecido. Gostava de pensar que compreendia completamente todos os homens, que poderia predizer-lhes as reações. Era irritante que Antoine pudesse sentar-se ali, tão silencioso, tão imóvel, que sua mão não tremesse, e que sua atitude fosse de atenção cortês e de interesse. Antoine podia haver sentido o mundo estremecer sob seus sapatos polidos; podia ter visto os muros de sua cidade particular ruir com um grande trovão. Porém ele inspecionava as ruínas com calma, e com uma espécie de civilizada grandeza de desinteresse, um cinismo de Petrônio e uma leve indiferença. Talvez, até, com certa diversão.
Henri pensou, com ódio e crescente amargura: "Ele é um cavalheiro, esse maldito dançarino e poseur." E, com súbita nitidez: "Eu o odiava antes, mas agora odeio mais! Nunca pretendi ser um cavalheiro. Este não é um mundo para cortesãos, para élegants, para homem civilizado. Ainda é um mundo de dinossauros e tiranossauros."
Deu-se conta do silêncio imenso com que o observavam. Sorriu. Sua consciência do poder dentro dele fê-lo aprumar-se. Começou a falar, naquela sua voz monótona e penetrante:
— Não vou ficar com rodeios. Estive em Washington, como todos sabem. E voltei para explicar as coisas tão simplesmente como puder.
Antoine falou, numa voz grave:
— Seja bem simples. Nossos intelectos não são bastante sutis para compreender insinuações.
Uma excitação passou pelos outros, e sorrisos aborrecidos ou furtivos apareceram momentaneamente. Henri olhou duro para Antoine:
— Não estou lidando com sutilezas, embora suspeite que você as preferiria.
Antoine deu de ombros, indiferente. Por um instante Henri sentiu raiva, quando a vantagem momentânea passou fugazmente para Antoine. Esperançoso suspeitara que a compostura de Antoine podia ser apenas pose. Porém essa indiferença, primorosamente apresentada, mas primorosamente reprimida, o convenceu do contrário. Aparentemente, havia em Antoine alguma fadiga profunda, a fadiga do homem civilizado confrontado com a força bruta que não só molestava seu enfado como o aborrecia. Henri afastou-se dele. Se devia expor seu caso, calmamente e com brutal eficácia, não devia olhar muito para Antoine. Porém, embora não olhasse para o outro, sentia seu olhar calmo e cínico, seu delicado exame, seu curioso interesse.
Em consequência, a voz de Henri estava mais dura e mais áspera que antes quando prosseguiu:
— Não vou dizer-lhes o nome do homem com quem estive em conferência durante dois dias em Washington. Talvez vocês logo adivinhem.
"Isto foi o que me disse: que desde o início da depressão de 1929, capital e indústria se mostraram falidos no que se refere à liderança nacional. Entretanto, vocês podem, ou não, concordar com isso. Disse depois que tivemos oportunidade de perpetuar nossa liderança nos Estados Unidos, mas que, ao nos tornarmos tão indiferentes, tão mergulhados em nós mesmos e em nossa ganância que permitimos que veteranos de guerra americanos vendessem maçãs nas ruas, e outros pequenos e sórdidos acontecimentos do começo da década de trinta, quando nada fizemos para aliviar a fome e as aflições do povo, e insistimos em que o Presidente em exercício use métodos ditatoriais para subjugar o pânico crescente de um a outro extremo do país, a ponto de completo caos, moralmente, falimos aos olhos da nação. Perdemos a confiança do povo, e nada despertamos nele a não ser ódio e suspeita.
Deteve-se. Christopher levou o cigarro aos lábios e aspirou, languidamente, murmurando:
— Parece que ouvi tudo isto antes, em algum lugar. Acho que a imprensa comunista tratou disso extensamente.
De novo, para sua raiva fria, Henri sentiu o leve equilíbrio do poder passar momentaneamente dele para outro. Mas não replicou. Observou Christopher, carrancudo. "Então — pensou, selvagemente — já se sente bem a salvo, não, serpente branca?"
Esperou até diminuir o malévolo murmúrio de divertimento pelas palavras de Christopher, e haver novamente um silêncio atento. Agora sabia que na verdade não tinha um partido absolutamente: cada homem naquela sala o odiava.
Prosseguiu, sem a menor mudança no tom de voz:
— Devemos admitir certos fatos básicos. Não é sentimentalismo de minha parte quando digo que no passado nunca assumimos qualquer responsabilidade pelo bem-estar do povo americano. Nós, e nossos associados e irmãos de armas, formamos uma egoística organização protetora para nossa própria vantagem. Nós nos tornamos uma hierarquia fechada e gananciosa com total desconsideração pelo povo à custa do qual, em última análise, vivemos. Temos dependido, e devemos depender, da boa vontade do povo para nossa própria existência... embora pareça havermos esquecido esse fato fundamental na escalada geral por lucros. Esquecemos que não podemos existir, na América, como democracia-industrial-capitalista próspera e bem-ordenada sem essa boa vontade, sem o bem-estar e a confiança do povo.
Tornou a deter-se. Olhou a facção de Antoine: o "mortal pequeno Jean" com suas amáveis covinhas e doce atenção, e o verde e sujo Nicholas; o calado e confuso Robert Bouchard; Alexander, de rosto purpúreo e grande ventre. Eles haviam começado a sorrir maliciosamente, erguendo as mãos para ocultar os sorrisos: os olhos deles o vigiavam com perigoso interesse.
Jean falou, maciamente e com ar de surpresa:
— Para o bisneto de Ernest Barbour, e com a prova de seu próprio notável recorde, sua defesa da "democracia" é espantosa! Mas continue. Eu realmente não queria interromper.
Involuntariamente Henri relanceou os olhos para sua própria facção. Christopher, "a serpente prateada", parecia envolto em seus próprios pensamentos agradáveis. Emile, "o inchado rato preto", olhava Henri com opaca amabilidade. Hugo, ruivo e enorme, parecia cautelosamente inquieto. Só Francis, de olhos azuis gelados, estudava Henri com cuidadosa simpatia e atenção.
A boca de Henri, de traços pesados, tomou uma expressão indomável. Ele repetiu, com ênfase:
— Só numa sociedade democrática, com sua religião da livre empresa e competição aberta, podemos nós, os Bouchards, e nossa classe, sobreviver. Não necessito apelar para as memórias meio obtusas de vocês para o que aconteceu aos grandes industriais e capitalistas sob Hitler e Mussolini, e que pagamento sangrento receberam de seus senhores quando já haviam servido aos propósitos deles. Devo enfatizar-lhes a verdade de que nosso bem-estar e nossa existência estão ligados inextricavelmente ao bem-estar do povo americano. Quando esse bem-estar é posto em perigo por nossa própria cegueira... estamos prontos para a destruição. Alguns de vocês aqui, aparentemente, são demasiado cegos, estúpidos demais e gananciosos além da medida para captar tal fato.
— Não há dúvida — disse Antoine, com um gesto gracioso e uma elegante inclinação de cabeça — de que somos cegos, estúpidos e gananciosos. Assim, concordamos com você em toda a linha.
Novamente se ergueu um murmúrio divertido, mas Henri, que agora estava de pé, dominou-o instantaneamente com um olhar ameaçador. Cada homem sentiu esse olhar literalmente na própria carne, e então um rígido alerta era aparente entre eles, uma espécie de medo. Henri "intuiu" esse medo. Sorriu severamente. Disse:
— Pode ser um pensamento novo para todos vocês que o Sr. Roosevelt nos salvou da destruição quando subiu ao Governo em 1933. Sua memória será tão curta? A própria ARN que todos nós combatemos tão vigorosamente, na verdade levantou os preços e salvou nosso sistema capitalista-industrial. Realmente esqueceram as condições do país naquela época? Se me lembro corretamente, não havia um só dentre vocês que não tremesse e começasse a pensar em retirar ouro do país para o Canadá ou a Europa. Éramos a classe mais apavorada da América. — Deu uma olhada em Nicholas: — Se não me falha a memória você foi tratado de uma doença embaraçosa por uma completa bateria de médicos... até que Roosevelt decretou um feriado bancário.
Como se aliviada de uma tensão realmente insuportável, toda a sala estourou de riso à custa de Nicholas. Ele estava sentado na beira da cadeira, e olhava de um para outro dos homens em convulsões de riso — verde de ódio e de fúria. Henri ouvia a risadaria, sorrindo sombriamente. Deixou que se divertissem. Ergueu a mão e gentilmente mordeu o dedo indicador.
Francis exclamou:
— Fizemos uma injustiça com o Henri! Ele tem realmente senso de humor!
Agora o olhavam, se não com simpatia, pelo menos com mais cordialidade. Ele continuou:
— Sim, eu me lembro do nosso pânico. Estávamos condenados. Torcíamos as mãos. Corríamos em volta como formigas cegas, choramingando. Roosevelt nos salvou. Nós lhe devemos pelo menos gratidão. Mas em vez disso, nós o acusamos, em nossa imprensa, de ser um comunista, um visionário. Aparentemente não nos damos conta de que se não fosse pela lenta e dolorosa melhora da sorte do povo americano, após 1933, poderíamos ter tido uma revolução, ou a completa anarquia.
— Poderíamos — disse Antoine, pensativamente, olhando para diante como na mais casual das conversas — ter chamado a polícia e o exército. Vocês nunca pensaram nisso.
Henri deu uma curta risada:
— Você viveu por muito tempo na Europa, Antoine. Realmente acredita que o povo americano poderia ter sido dominado por bastões da polícia e armas do nosso exército, que era então uma organização muito fraca? E você realmente acredita que esses mesmos policiais e soldados teriam atirado sobre seus patrícios americanos? Lembre-se: mesmo o homem mais estúpido absorveu em nossas escolas públicas os princípios fundamentais da democracia. Pensa que os americanos são dóceis como os alemães, ou cansados e degradados como franceses, ou famintos como os italianos? Esqueça nossas cidades do Norte. Tente lembrar nossos Estados sulinos, e nosso Sul, onde vivem os descendentes dos bretões que herdaram recordações de liberdade e decência. Alguns de vocês negarão que as pessoas comuns possuam mesmo o vago cérebro de uma ameba. Já fui culpado dessa estupidez, faz tempo. Daí para cá recebi alguns esclarecimentos.
Ninguém respondeu. Ele continuou:
— Você viveu por muito tempo em seu Vaticano gigantesco, entre seus cardeais e bispos da indústria. Você tem vivido numa espécie de crença mística em sua própria onipotência, esquecendo que não tem Fuehrer para proteger seus interesses, nem exército-robô para reforçar seus decretos com metralhadoras. Você é vulnerável. Está coberto por dezenas de fraquezas. E não creia que o povo americano também não saiba disto.
Depois disse:
— Jamais convencemos o povo americano do direito divino dos capitalistas. Nunca o conseguiremos.
Permitiu que o silêncio se tornasse profundo. Permitiu que todos pensassem. E os observava atentamente. Viu os odientos rostos dos partidários de Antoine na defensiva. Viu os rostos interessados, mas cuidadosos dos seus próprios seguidores.
Então Antoine disse, macia, quase carinhosamente:
— Que o povo se dane! Seja danado para sempre!
Henri sorriu. Seu senso de poder cresceu dentro dele. Mas sentiu pequena surpresa à sugestão de impotência nas palavras de Antoine. Estranho que esse homem elegante e perigoso sentisse impotência. Isto sugeria a mais curiosa e inexplicável exaustão, até mesmo capitulação.
— Espera que eu defenda o povo? O que lhe disse são fatos, apenas. Sou realista. Firmo meus negócios sobre fatos. O que pessoalmente sinto a respeito de "povo" nada tem a ver com o fato de que devo lidar com ele. Só sei que tenho de adaptar-me ao que existe, e partir daí.
Tornou a deter-se. E sua voz se tornou mais forte, mais rápida:
— Estamos em guerra. Penso que nenhum de vocês me desmentirá quando digo que fizemos tudo que pudemos: suborno, mentiras, corrupções de funcionários públicos, compra de certos partidários no rádio, calúnias sobre o trabalhismo, subvenção de certos sacerdotes, e de nossos jornais, poderosa propaganda subversiva, acordos secretos com certos associados da Europa Central, formação de poderosos Comitês subversivos, intrigas na América do Sul, sujando a Rússia, avalanches de panfletos e pequenos folhetos, e só Deus sabe o que mais para manter a América fora desta guerra. Tivemos nossos cartéis que forneceram a Hitler tudo que precisava para conquistar o mundo. Até lhe fizemos promessas.
Parou. Agora todos estavam bem atentos. Os rostos do pessoal de Antoine estavam rígidos e sem expressão. Olhavam-no de modo tão letal e perfurante que ele só lhes podia devolver o olhar se momentaneamente hipnotizado. Disse:
— Alguns de nós chegaram a tentar o antissemitismo para desviar a atenção do povo americano de nosso propósito real. Zombamos da Inglaterra e a emporcalhamos. Tentamos despertar a indignação do povo contra o Empréstimo e Arrendamento. Alguns de nós trabalharam de todos os modos, com energia incansável, para garantir a vitória de Hitler sobre o mundo todo, e a eventual escravidão de nosso próprio povo americano. Posso apenas dizer, e com satisfação pessoal, que, até agora, os que fizeram tudo isso fracassaram. É meu propósito, e o propósito de muitos outros homens poderosos que estão comigo, providenciar para que vocês continuem a fracassar. Vocês não podem vencer. Não agora.
Sua voz se ergueu, tornou-se irresistível de poder, de triunfo e exultação:
— Talvez alguns de vocês acreditem ainda poder destruir a América, poder ainda garantir a conquista de Hitler. Mas, chamo-lhes a atenção para certos fatos: vocês não podem, apesar de seus esforços, evitar o alistamento nacional, evitar o Empréstimo e Arrendamento, nem corromper o sentimento do povo contra Hitler. Vocês não podem destruir a decente indignação de setenta e cinco por cento do povo americano contra Hitler, e seu ódio por ele. Com todos os seus jornais, e os seus mentirosos assalariados, e seus congressistas subornados, vocês não puderam esmagar a admiração do povo americano pelo valor da Inglaterra, nem puderam despertar suas esmagadoras suspeitas contra a Rússia. Vocês tentaram. Tentaram esforçadamente. Mas falharam. Esqueceram uma coisa: os imponderáveis da consciência do povo.
Antoine levantou a cabeça e se endireitou na cadeira. Regan dissera isso. Dissera isso a Henri, provavelmente. "Então, estamos perdidos!", pensou Antoine. E não sentiu absolutamente nada.
No enorme silêncio contido da sala, Henri continuou:
— Vocês tinham seus isolacionistas no Congresso. Tinham suas promessas. Mas não puderam evitar, no fim, que eles votassem unanimemente pela guerra contra o Japão e a Alemanha. Isto devia significar algo para vocês.
Esperou. Mas ninguém falou. Ele olhou um a um, lentamente. Eles o odiavam. Eles o temiam. Uma escura sombra de incerteza furiosa e frustração apareceu nos olhos da facção de Antoine.
E então Henri disse:
— Alguns de vocês estão fazendo reservas mentais, mesmo agora. Vocês pensam que ainda podem arranjar um meio de garantir a conquista de Hitler. Ou, na melhor das hipóteses, pensam poder negociar uma paz que ofereça vantagem a Hitler. Não o façam. Vocês não podem vencer. Não estou falando só por mim. Tenho comigo outros como eu. Tenho o povo americano.
Caminhou alguns passos pela sala. Eles sentiam seu júbilo, sua enorme e desdenhosa aversão e ódio por eles. Então, voltou-se rapidamente e disse:
— Existem mais alguns fatos que desejo trazer à sua atenção. A Legião Americana e outras poderosas organizações têm defendido, nas duas últimas décadas, que no caso de uma emergência nacional, tal como uma guerra, quando for necessário alistar seres humanos para o serviço da nação, capital e indústria sejam apreendidos pelo Governo, e que a indústria seja operada pelo Governo, não pelo lucro, mas pelo bem-estar da nação como um todo.
"Esta ideia penetrou na consciência do povo americano. E assim, neste momento de crise nacional, ou vocês cooperam, com toda lealdade, e produzem material de guerra até o máximo, sem reservas mentais, sem ambições pessoais e internacionais, esquecendo suas conspirações, suas mentiras e seus compromissos com Hitler, ou o Presidente comparecerá ao Congresso, que está agora na disposição adequada, e esse Congresso passará uma lei para se apoderar da indústria até o fim da guerra.
Uma onda de terror, de incredulidade, passou por todos eles. Diferenças partidárias eram agora esquecidas. Todos se olhavam profundamente alarmados, buscando segurança em outros rostos. Mas não havia segurança ali.
Henri os observava. Esperou um pouco. Depois disse, lenta, maciamente:
— Não estou especulando. Digo-lhes que isto pode acontecer, acontecerá. A menos que vocês cooperem. Mas isto não é o fim. Se permitirmos que o Governo recrute a indústria agora, e elimine inteiramente os lucros, o Governo e o povo podem ter a ideia de que isso não é mau absolutamente, e esse controle poderia continuar permanentemente, mesmo depois de assinarem a paz. Assim, teremos o socialismo. E nós, nós mesmos, seremos responsáveis por essa catástrofe.
Nicholas disse, roucamente, depois de proferir uma porção de obscenidades:
— Maldição! O Governo não ousará!
Henri replicou calmo, sacudindo a cabeça:
— Garanto-lhes que ousará. Já foi traçado um plano. O eminente cavalheiro que me falou do plano informou-me que será posto em ação no exato momento em que vocês mostrem sinais de continuar o que vinham fazendo. Tive a mais interessante discussão com aquele cavalheiro. À sombra da Casa Branca. Ele me convenceu, completamente, que o que temos considerado um estado molenga do povo americano é realmente uma avalancha muito sólida, que pode rolar sobre nós e destruir-nos, sem deixar rastros sequer.
Então uma completa e súbita desordem estourou na sala. Nicholas, Jean, Alexander, e Robert Bouchard puseram-se de pé e começaram a movimentar-se rapidamente, por ali. Mesmo Hugo e Emile foram contagiados. Também eles se puseram de pé e começaram a caminhar de um lado para outro, em total distração. Do partido de Antoine, só ele permanecia sentado. E observava os amigos, com aquela elegante e composta indiferença tão curiosa para Henri, que se virava quietamente em sua cadeira para seguir-lhes os movimentos frenéticos. Ele era como um cavalheiro civilizado languidamente observando os perturbados trejeitos de animais inferiores.
E então ele virou a cabeça lustrosa e estreita para Henri, e em seu rosto moreno apareceu o mais estranho e radiante sorriso de maligna diversão. Descansou o cotovelo no braço de sua poltrona, e pôs o queixo pontudo na palma da mão. Ficou sentado assim, sem se mover, o sorriso se aprofundando.
Christopher e Francis por sua vez trocaram longos olhares significativos, inescrutáveis, mas satisfeitos.
Depois o pequeno Jean, desaparecida toda a sua graciosa amabilidade, virou-se virulentamente para Henri:
— Está mentindo. Sabemos o que você quer. Pensa que nos engana com palavras?
Henri encostou-se à parede. Fixou no parente os olhos descorados e disse calmamente:
— Eu ficaria triste se os visse tentar alguma coisa. Pois estive metido nisso com vocês. Espero, para meu próprio bem, que vocês vejam a luz.
Jean estava a pique de dizer algo desdenhoso. Sua pequena mão até se ergueu num gesto aborrecido e de repúdio. Mas ao olhar para Henri, sua expressão mudou. Sua mão caiu. E então ele ficou silencioso.
Depois foi Antoine que se voltou graciosamente em sua cadeira e disse, bem no meio da barulhenta desordem da sala, olhando diretamente para Christopher:
— Você estava nisto desde o princípio, não estava?
Christopher sorriu, e inclinou a cabeça:
— Sim. Sempre. Mas você sabia, não é verdade?
Antoine riu maciamente. Parecia deliciado:
— Sim, creio que sim. Parabéns.
Então Antoine se levantou, sem pressa, todos os seus movimentos elegantes e lânguidos. Olhou para o seu partido, os negros olhos enviesados faiscando, sorriso brilhante. Chamou a atenção deles embora sem dizer palavra ou fazer qualquer gesto. Todos pararam em meio ao desordenado caminhar, e o fitaram.
— Rapazes — disse ele, gentilmente — acho que estamos acabados. Sim, realmente acho que estamos acabados.
Completa desmoralização dominou a todos. Fitaram-no, pálidos, confusos, piscando e engolindo visivelmente. Depois devagar, um a um, voltaram para suas cadeiras e deixaram-se cair nelas. A cabeça lhes descaiu para o peito. Ficaram a fitar diante deles, estupidamente.
Graciosamente Antoine virou-se para Henri, ali de pé como se fosse de pedra:
— Posso fazer-lhe uma pergunta? — perguntou, com uma ligeira inclinação que enfureceu o outro homem. Mas Henri apenas inclinou a cabeça.
— É verdade que não sou muito brilhante — disse Antoine. — E minha mente parece um pouco confusa. Com toda humildade, quero saber disto: se cooperarmos, como você sugeriu com tanta tática, produzindo material de guerra com lucro razoável, que garantia teremos de que o Governo relaxará seu controle após a guerra, e nos permitirá reconstruir nossos recursos para retirar um reajustamento posterior?
Henri informou, observando-o atentamente:
— Isso dependerá de sua cooperação agora e, acima de tudo, da confiança e respeito que inspirarmos ao povo. Se assumirmos nossa posição correta e mostrarmos lealdade e desinteresse, poderemos até ganhar um lugar à mesa da paz. E isso será muito valioso na distribuição de esferas da reconstrução industrial nos devastados países da Europa. Estou certo de que (você é imaginativo o bastante para saber que isso contém possibilidades ilimitadas.
Ele olhou para Antoine de modo agressivo. Seu rosto ficou congestionado. Custou-lhe um profundo esforço, porém ele disse:
— Espero também que você continue com Bouchard & Sons. Tenho em mente algo de muito interessante.
Antoine o olhou com a maior amabilidade. Pareceu meditar, como se lhe acudisse algum doce pensamento. Seus olhos brilharam, mas se foi com intenso deleite Henri não podia saber. Então Antoine se curvou profundamente, como um bailarino:
— Você despertou a minha curiosidade — ele disse. — Poderemos ter uma conversa amanhã, a sós?
Henri ficou embaraçado por alguns momentos. Fitou sombriamente o jovem. Não podia compreender essa graciosa e civilizada capitulação, essa admiração por um adversário bem-sucedido que brilhava nos olhos de Antoine. De modo que ele apenas acedeu de cabeça, e quando Antoine se afastou dele, ele esfregou a orelha, numa incerta especulação. De certa forma, seu triunfo foi um pouco diminuído. Em sua derrota, Antoine ainda estava tranquilo, ainda completamente contido.
Henri esperou até que todos estivessem novamente sentados em suas cadeiras, a facção de Antoine ainda fitando estupidamente diante deles, a facção de Henri partilhando com satisfação o próprio triunfo. E depois ele tornou a falar, mais alto, mais claramente, com muita ênfase:
— A menos que, finalmente, cheguemos ao ponto onde nos demos conta, não só os Bouchards, mas todos os poderosos da América, de que já não somos uma dinastia governando de cima, mas que deve depender da boa vontade não só de nosso próprio povo, mas de todos os outros povos com quem eventualmente entremos em contato numa esfera de atividade em constante ampliação... todos pereceremos. E outros homens, mais sábios que nós, tomarão nossos lugares. Isso é inevitável. Essa a rigorosa realidade que devemos encarar.
"Essa é nossa hora final."
E então, como se impulsionado por irresistível compulsão, virou a cabeça para olhar, lá em cima, o rosto de Ernest Barbour. O retrato o contemplava atentamente, tão impassível, tão implacável como ele mesmo.
E então Henri se voltou para seus parentes silenciosos, cada um dos quais imerso em seus próprios e profundos pensamentos. Disse, com leveza:
— Há apenas mais uma coisinha, e trazê-la à baila me embaraça. Estarei trabalhando o tempo todo. Vou saber de tudo. Vocês irão dizer-me tudo. Porque, se algum de vocês se mostrar refratário a qualquer tempo, e continuar com algumas de suas atividades, digamos, extracurriculares, como aquelas em que têm estado empenhados, e das quais estou plenamente ciente, com gravações e tudo mais... então entregarei todo esse material a certas agências de investigação do Governo, o que pode tornar as coisas bem pouco confortáveis para vocês. Fiz a certo cavalheiro de Washington algumas alusões sobre o que armazenei, aqui e ali. E me magoaria muito entregar-lhe essas gravações. Porém ele me fez prometer que o faria. Em tal caso, posso garantir-lhes que lamentarão o dia em que não seguiram meus conselhos.
"Já lhes disse que não gostaria de fazer isso. Afinal de contas, isso envolveria a família. Mas não terei escolha. Pois, compreendam: será o único meio de salvar-me de positiva vingança do Governo, medidas punitivas e completo aniquilamento.
Acrescentou, depois que deixou a facção de Antoine meditar sobre isso, com medo e fúria, silenciosos e impotentes:
— Sei que informarão seus associados a este respeito: isso pode economizar-lhes muitas coisas desagradáveis, no final das contas. E, para alguns de vocês, na família: se as coisas piorarem muito, tenho meios de esmagá-los a todos. Há meses venho planejando esses meios.
A pequena Annette, solitária e silenciosa, olhava pelas janelinhas do avião transcontinental: seu rostinho estava calmo. Não se sentia abandonada, ou perdida, ou mesmo de coração partido. Sua tristeza era calma, parte de sua vida, e agora por fim se dava conta de que sempre tinha sido e provavelmente sempre o seria.
Mas nela não havia fraqueza, nem desesperança. Olhava as imensas massas de nuvens brancas, parecidas com um oceano, com escuras torres de névoa a atravessá-las, como enormes ruínas. E então, enquanto olhava, o sol subitamente apareceu — e tudo se transformou em ouro!
Ela sorriu. Disse em voz alta, suavemente: "Sim, existe um lugar para mim. Em alguma parte, certamente existe um lugar... "
EPÍLOGO
Cornell Hawkins estava de pé junto à sua empoeirada janela e olhava sem ver a Quinta Avenida, girando num turbilhão de neve.
Talvez fosse sua imaginação, mas parecia-lhe haver mais pressa nos que passavam pela rua lá embaixo. O céu escuro e baixo se pendurava ameaçadoramente sobre todos, um céu que olhava para um mundo completamente em guerra, completamente mergulhado em tragédia, completamente face a face com sua hora final.
Ele muitas vezes cogitara como a América reagiria a seu inevitável destino de longa agonia, sofrimento, morte e tristeza. Lembrava-se da última guerra, quando tinha havido certo júbilo, um senso de aventura, entre o povo. Tinha havido bandas, e canções, e marchas, e o alegre esvoaçar de bandeiras. Tinha havido a alegre libertação da monotonia, germinando a crença em coisas poderosas e gloriosas que viriam após essa guerra — que era apenas um turbulento, estrondoso limiar que se abria para o brilhante país do futuro.
Ele não acreditava que o povo americano fosse agora tão ingênuo, tão pueril. Acreditava não haver alegria ou jovialidade nele. Julgava haver apenas tristeza e raiva, e pleno conhecimento do que estava por vir. A América havia amadurecido; em sangue, amargura e ódio ela erguera sua espada à luz vermelha da guerra.
Ele já vivera muito, era bastante sábio para acreditar que alguma grande esperança e êxtase esperavam o mundo após sua angustiada luta com as forças do mal que vivia em si mesmo, e seu domínio dessas forças. Dor e perdas, exaustão e desespero, é o que provavelmente lhe viria. Ele sentiria que não podia continuar. Descansaria, arquejante, entre suas ruínas, e olharia em torno de si com olhos confusos onde não haveria sequer um horror frenético. Ele não seria sequer sem esperança. E sim apenas muito cansado, e muito frio, e tremeria.
Quanto demoraria antes que pudesse tornar a levantar-se, e com mãos sangrando começar a construir uma vez mais? Quanto de sua amargura, ódio e lembranças poderia apagar de si mesmo? Quanto de sua morte profunda, e sua escuridão?
O choque do conflito relembrado estaria em toda a sua carne. Por muitos anos ele ainda veria as cidades arruinadas, e a multidão de rostos mortos e chorosos. Os túmulos não desapareceriam tão cedo: a terra saturada tão cedo não seria novamente agradável e tranquila. Onde batesse o arado, bateria em ossos.
Muito depois que as brancas muralhas do mundo estivessem novamente intactas, e o comércio outra vez fluísse através de oceanos não ameaçados — os ventos ainda transportariam os gritos daqueles que haviam morrido tão inocentemente, dos que haviam sido traídos, dos que haviam sido torturados. Pois esta não fora uma guerra de governos. E sim uma guerra de povos. Fora uma guerra dos espíritos dos homens. Cada folha de grama se lembraria de ter sido tingida de vermelho; cada raiz de cada árvore sentiria a morte entrelaçada nela.
O mal viera, e o homem se erguera para enfrentá-lo — amedrontado, sim, desesperado certamente. Ele o dominaria, como já o dominara antes. "Devia-se acreditar nisso" — pensou Hawkins. Não se devia ousar não crer.
Suspirou. Via o rosto de Peter. Ouvia a voz de Peter uma vez mais, agora forte, clara e triunfante:
"Não importa o que venha, não importa que homens morram e sofram: a terra permanecerá. A terra continuará, para sempre. E, com ela, continuará a esperança dos homens, agora e sempre, revivendo em seus filhos, reafirmando sua fé de que este é o seu destino, entre eles e com Deus!"
Taylor Caldwell
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