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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HORA DO MOCHO - P.2 / Mary Higgins Clark
A HORA DO MOCHO - P.2 / Mary Higgins Clark

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

                                   

CAPÍTULO CINQUENTA E CINCO

 

Craig Michaelson, de rosto contraído pela preocupação, ficou a observar da janela da frente do gabinete enquanto Jean Sheridan se precipitava para o carro.

 

Ela é honesta, pensou. Não se trata de nenhuma mulher obcecada em encontrar afilha, que forjou uma história disparatada. Devo avisar o Charles e a Gano? Se acontecer alguma coisa a Meredith, isso irá destroçá-los.

 

Não ia, nem podia, revelar-lhes a identidade de Jean Sheridan mas, pelo menos, podia dar conhecimento a Charles das ameaças contra a filha adoptiva. Caberia a este a decisão de contar a Meredith ou tentar protegê-la. Se a história a respeito da escova fosse verídica, talvez Meredith se lembrasse onde se encontrava quando a deixara esquecida em algum lado ou a perdera. Podia constituir uma forma de tentar localizar o autor dos faxes.

 

 

 

 

Jean Sheridan declarou que se acontecesse alguma coisa a filha, algo que eu podia ter evitado, não seria responsável pelos seus actos contra mim, ocorreu-lhe. O Charles e a Gano teriam uma reacção idêntica.

 

Tendo tomado a decisão, Craig Michaelson dirigiu-se para a secretária e levantou o auscultador. Nem precisava de verificar o número.

 

Que coincidência mais estranha., pensou enquanto discava o número. Jean Sheridan não mora longe do Charles e da Gano. Ela vive em Alexandria e eles em Chevy Chase.

 

Ao primeiro toque, atenderam.

 

- Gabinete do general Buckley - anunciou uma voz decidida.

 

- Daqui fala Craig Michaelson, um amigo chegado do general Buckley. Preciso de lhe falar por causa de um assunto de extrema importância. Ele está?

 

- Lamento, cavalheiro. O senhor general encontra-se no estrangeiro em viagem de negócios. Há mais alguém que possa ajudá-lo?

 

- Não, infelizmente não. Vai estar em contacto com o senhor general?

 

- Sim, cavalheiro. O gabinete mantém um contacto regular com ele.

 

- Então diga-lhe que é da máxima urgência que ele entre em contacto comigo, assim que lhe seja possível. - Craig soletrou o nome e indicou o número do telemóvel, assim como o do escritório. Hesitou, mas depois resolveu omitir que era algo relacionado com Meredith. Charles, mal recebesse a mensagem urgente, entraria em contacto com ele; estava certo disso.

 

De qualquer modo, reflectiu Craig enquanto pousava o auscultador, Meredith está mais segura em West Point do que em qualquer outro lado.

 

Ocorreu-lhe então o desagradável pensamento de que nem sequer o facto de se encontrar em West Point fora o suficiente para evitar a morte do cadete Carroll Reed Thornton Jr., o pai biológico de Meredith.

 

 

                         CAPÍTULO CINQUENTA E SEIS

 

A primeira pessoa que Cárter Stewart avistou quando às três e trinta entrou na Casa Glen-Ridge foi Jake Perkins que, como era habitual, se encontrava esparramado numa cadeira do átrio.

 

Mas este fedelho não tem casa?, interrogou-se Stewart, dirigindo-se para o telefone que havia na extremidade do balcão da recepção e ligando para o quarto de Robby Brent.

 

Ninguém atendeu.

 

- Robby, julguei que combináramos encontrar-nos às três e meia - disse Stewart ao convite computarizado para deixar mensagem. - Espero mais uns quinze minutos no átrio.

 

Ao desligar, avistou o investigador Sam Deegan que se encontrava sentado à secretária que havia por trás do balcão da recepção. Os olhos de ambos cruzaram-se e Deegan levantou-se, dando mostras evidentes de lhe querer falar. Algo na forma peremptória como Deegan se moveu deu a entender a Stewart que não ia ser uma conversa de salão.

 

Ficaram em frente um do outro, com o balcão da recepção a separá-los.

 

- Sr. Stewart - declarou Sam. - Que prazer em vê-lo. Enviei-lhe uma mensagem para o seu hotel e esperava receber notícias suas.

 

- Estive a trabalhar com o meu director no guião para a minha nova peça - replicou Cárter Stewart, em tom abrupto.

 

- Vi que se dirigia para o telefone. Vai encontrar-se com alguém?

Stewart ficou ofendido com a pergunta de Sam Deegan. Apeteceu-lhe responder: Não tens nada com isso, mas algo na atitude de Sam fê-lo mudar de ideias.

 

- Combinei encontrar-me às três e meia com Robby Brent. E antes que me pergunte por que motivo o venho ver, que obviamente seria a pergunta que me faria a seguir, permita que me antecipe e lhe satisfaça a curiosidade. Brent concordou em apresentar uma nova comédia. Já viu os primeiros guiões e considerou-os aquém das expectativas... na verdade, achou-os sem graça nenhuma... e pediu-me para lhes dar uma olhadela e comunicar-lhe a minha opinião de profissional quanto ao poderem ou não ser recuperados.

 

- Sr. Stewart, já o compararam com dramaturgos famosos como Tennessee Williams e Edward Albee - respondeu Sam em tom contundente. - Eu não passo de um tipo vulgaríssimo, mas acontece que a maioria dessas comédias de costumes constituem um insulto à inteligência. Surpreende-me que se mostre interessado em analisar uma delas.

 

- A opção não foi minha - disse Stewart com um tom de voz gélido. - Depois do jantar da noite passada, Robby Brent pediu-me para dar uma olhadela aos guiões. Ofereceu-se para os levar ao hotel onde me encontro, mas como deve compreender, depois de ter examinado o material, eu ver-me-ia obrigado a pô-lo fora da minha suite. De modo que considerei ser muito mais prático eu passar por aqui quando regressasse da casa do meu director. E embora não escreva comédias, sou muito bom a avaliar qualquertipo de escrita. Sabe se Robby se demora?

 

- Não faço a mínima ideia quanto aos planos dele - replicou Sam. - Também estou aqui para lhe falar. Quando lhe telefonei não obtive resposta e depois vim a saber que em todo o dia ninguém o vira, pelo que mandei a empregada ao quarto dele. A cama não foi desmanchada. Parece que o Sr. Brent desapareceu.

 

Sam hesitara em facultar a Cárter Stewart tantas informações, mas o instinto disse-lhe para lhas dar enquanto observava a reacção do outro. Verificou que eram mais significativas do que previra.

 

- Desaparecido? Ora, com franqueza, Sr. Deegan! Não acha que toda esta palhaçada já foi longe de mais? Permita-me que lhe explique.

 

Na série que foi proposta há um papel para uma loura sexy, não muito diferente da desaparecida Laura Wilcox. Há dias em West Point, mais precisamente ao almoço, Brent estava a dizer a Laura que talvez o papel lhe assentasse às maravilhas. Começo a desconfiar que todo este folclore à volta do desaparecimento dela não passa de uma manobra publicitária. E agora, se me dá licença, não desejo perder mais tempo aqui pendurado à espera de Robby.

 

Não posso com este tipo, pensou Sam enquanto ficava a ver Cárter Stewart afastar-se. Este vestia um camisolão cinzento-escuro algo andrajoso e calçava ténis sujos, uma fatiota à mendigo que Sam calculou ter custado uma fortuna.

 

Embirrações aparte, será que acertou no que se estava a passar?, interrogou-se Sam. Nas mais de três horas em que permanecera sentado na recepção, reflectira bastante e a sua irritação aumentara.

 

Sabemos que Brent fez um telefonema a imitar Laura, raciocinou. Comprou um telemóvel e parece que a chamada para jean proveio deste. O empregado que lho vendeu surpreendeu-o a marcar um número precisamente na mesma altura em que jean pensou que Laura estava a falar com ela. Começo a desconfiar que se calhar Steiwart tem razão, que tudo isto não passa de uma manobra publicitária. Se assim for, por que motivo estou para aqui a perder o meu tempo quando no Condado de Orange anda a monte o assassino que arrastou uma mulher inocente para dentro de um carro e a esfaqueou até à morte?

 

Quando chegara à Casa Glen-Ridge, Eddie Zarro já lá se encontrava à sua espera, mas Sam mandara-o de volta para o escritório, afirmando-lhe que não havia necessidade de os dois ficarem ali pendurados no átrio aguardando que Brent aparecesse. Depois de meditar, Sam concluiu que precisava agora que Zarro o rendesse a fim de lhe permitir que fosse para casa.

 

Tenho de dormir umas horas decentes, concluiu. Estou tão cansado que nem consigo pensar como deve ser.

 

Quando levantou a tampa do telemóvel para ligar para o escritório reparou que Amy Sachs, a recepcionista se encontrava ao seu lado.

 

- Sr. Deegan - declarou esta, falando quase num sussurro -, encontra-se aqui desde o princípio da tarde e sei que não comeu absolutamente nada desde essa altura. Posso mandar-lhe vir um café e uma sanduíche?

 

- É muito simpático da sua parte, mas daqui a pouco já me vou embora - respondeu Sam, que enquanto falava se interrogou se ela estaria por perto durante a conversa com Stewart. Quando andava, parecia não fazer o mínimo ruído e quando abria a boca era para falar quase num sussurro.

 

Porque é que eu ia apostar que possui um ouvido apurado?, interrogou-se Sam com ironia, reparando que ela trocara um olhar com Jake Perkins. E porque é que ia apostar que mal me veja pelas costas, vai logo a correr informar Jake de que Brent desapareceu e que aquele Stewart acha que todo este alvoroço não passa de uma manobra publicitária?

 

Sam voltou a sentar-se à secretária por detrás do balcão da recepção. Dali conseguira uma boa perspectiva do átrio de entrada. Decorridos minutos viu Gordon Amory entrar e apressou-se a ir-lhe no encalço antes que o outro se metesse no elevador.

 

Tornou-se evidente que Amory não estava com disposição para conversas acerca de Robby Brent.

 

- Já não falo com ele desde a zaragata ordinária da noite passada - declarou. - Para lhe ser franco, e dado que também a presenciou, Sr. Deegan, e ouviu Robby atacar Jack Emerson, acho bem que saiba que desde as dez horas desta manhã tenho andado por fora com Emerson, a ver terrenos. Ele é o agente exclusivo de algumas excelentes parcelas e também me mostrou os imóveis que por consideração pretendia vender a Robby. Devo dizer-lhe que o preço dos mesmos é bastante razoável e, na minha opinião, constituem excelentes investimentos a longo prazo... o que equivale a afirmar que nada do que Robby Brent insinua, declara, ou faz devia ser examinado à luz de outras motivações que não as óbvias. Agora se me dá licença, preciso de fazer uns telefonemas.

 

A porta do elevador começava a abrir-se. Mas antes que Amory pudesse entrar, Sam interveio:

 

- Sr. Amory, agradeço-lhe que me conceda mais um minuto. Com um sorriso resignado que mais parecia um esgar de escárnio, Amory virou-se para o detective.

 

- Sr. Amory, a noite passada Robby Brent não dormiu no quarto. Acreditamos que foi ele quem ligou para Jean Sheridan a imitar Laura Wilcox. O Sr. Stewart, seu colega, acha que o Brent e a Wilcox andam a causar toda esta confusão como campanha de publicidade para a nova série televisiva do Sr. Brent. Qual é a sua opinião?

 

Gordon Amory arqueou o sobrolho e por um instante pareceu ficar estupefacto; depois o rosto dele assumiu uma expressão de júbilo.

 

- Um furo publicitário! É claro que faz sentido. Com efeito, se ler a página seis do Neiv York Posí, já andam a insinuar precisamente o mesmo a respeito do desaparecimento de Laura. Agora Robby evapora-se e o senhor afirma-me que foi ele quem na noite passada ligou para Jean. E durante todo este tempo andámos por aí raladíssimos com eles.

 

- Acha então que talvez fosse uma perda de tempo preocuparmo-nos com o que aconteceu a Laura?

 

- Au contraire, não foi perda nenhuma, Sr. Deegan. O único facto positivo é o alegado desaparecimento de Laura me ter provado que o leite da bondade humana ainda me jorra do peito. Fiquei tão ralado por causa dela que tencionava oferecer-lhe um papel na minha nova série. Aposto que o senhor tem razão. A adorável menina já anda a deitar o anzol a outro peixe, com grande êxito diga-se. E agora tenho de ir

 

- Presumo que em breve vai confirmar junto da recepção a sua saída - aventou Sam.

 

- Não, ainda ando à procura de propriedades. Mas acho que já não terei oportunidade de o ver, pois agora já pode regressar à sua missão de resolver crimes a sério. Passe bem.

 

Sam ficou a observá-lo, enquanto Amory entrava no elevador.

 

Mais um que se considera intelectualmente superior a um investigador, pensou. Bom, vamos esperar para ver. Ao cruzar o átrio, Sam sentiu os nervos em franja. Independentemente do desaparecimento de Laura constituir ou não uma manobra publicitária, o facto era que cinco das mulheres que costumavam sentar-se ao almoço à mesma mesa

 

estavam mortas.

 

Estava com esperança de que Jean voltasse antes de ele se ir embora, de modo que ficou encantado ao avistá-la junto do balcão da recepção. Apressou-se a ir ter com ela, ansioso por saber como decorrera o encontro com o advogado.

 

Ouviu-a perguntar se havia algum recado.

 

Sempre com medo de receber outro fax acerca de lily, pensou Sam. E quem a podia censurar? Pousou-lhe a mão no braço e quando ela se virou, era evidente que estivera a chorar.

 

- Vai uma chávena de café? - convidou ele.

 

- Calhava bem.

 

- Sr.a Sachs, quando o Sr. Zarro voltar, diga-lhe por favor para ir ter connosco à cafetaria - pediu Sam à recepcionista.

 

Quando se sentaram na cafetaria, o detective aguardou que lhes servissem o café dele e o chá de Jean antes de voltar a falar. Pareceu-lhe que ela ainda tentava recuperar a compostura. Por fim, declarou:

 

- Desconfio que a conversa com o tal advogado, o Craig Michaelson, não correu lá muito bem.

 

- Correu e não correu - replicou Jean em tom pausado. - Sam, ponho as mãos no fogo em como foi aquele Michaelson que tratou da adopção e que se calhar até sabe onde é que Lily se encontra agora. Mostrei-me indelicada para com ele, quase o ameacei. No regresso, encostei o carro à berma da estrada e liguei-lhe a pedir-lhe desculpa. Também, lhe salientei que se ele soubesse do paradeiro da minha filha, esta devia lembrar-se onde perdera a escova, e que essa talvez pudesse ser uma ligação directa a quem a anda a ameaçar.

 

- Que é que o Michaelson respondeu?

 

- Foi esquisito. Disse-me que também lhe ocorrera. Sam, estou a afirmar-lhe que ele sabe do paradeiro de Lily, ou pelo menos, de como a localizar. Afirmou, usando as palavras ”Insisto com veemência para que o faça”, que você ou pelo menos o gabinete do delegado distrital, deviam endereçar um pedido a um juiz no sentido de disponibilizar quanto antes os ficheiros, e alertar os pais para esta situação.

 

- Então eu diria que levou muito a sério o que você lhe contou. Jean anuiu concordando.

 

- Enquanto me encontrava no escritório dele, não pensei assim, mas quem sabe se o meu ataque de fúria... estive quase para lhe atirar com uma coisa à cabeça... o persuadiu. Quando passados vinte minutos falei com ele ao telefone, a sua atitude mudara de maneira radical. - Levantando a cabeça, acrescentou: - Olhe, vem aí Mark.

 

Mark Fleischman encaminhava-se para a mesa deles.

 

- Contei a Mark a existência de Lily - avisou Jean precipitadamente - de modo que pode falar do assunto à frente dele.

 

- Contou, Jean? Porquê? - replicou Sam consternado.

 

- Ele é psiquiatra, e achei que talvez nos esclarecesse se os faxes eram ou não ameaças reais.

 

Sam reparou que à aproximação de Mark Fleischman o sorriso de Jean se tornava radioso.

 

Jeannie, tenha cuidado, desejou adverti-la. Cá para mim este sujeito não é o que parece. Sob aquela aparência, esconde um vulcão prestes a explodir e um polícia como eu consegue detectá-lo.

 

Também não passou despercebido a Sam o facto de Fleischman afagar por um instante a mão de Jean quando esta o convidou a juntar-se-lhes à mesa.

 

- Não venho interromper nada? - inquiriu Mark, olhando para Sam à espera de confirmação.

 

- Para lhe ser franco, estou contente por ter aparecido - respondeu Sam. - Preparava-me para perguntar a Jean se hoje teve notícias de Robby Brent. Assim posso perguntá-lo a ambos.

 

- Eu não tive - replicou Jean, sacudindo a cabeça.

 

- Felizmente eu também não - acrescentou Fleischman. - Há algum motivo que o leve a pensar que deveríamos saber algo a respeito dele?

 

- Era o que eu me dispunha a contar-lhe, Jean. Na noite passada depois do jantar, Robby Brent deve ter saído do hotel e até agora ainda não voltou. Temos quase a certeza de que o telefonema que você recebeu a pensar que se tratava de Laura foi feito a partir de um telemóvel com um cartão já carregado que Brent acabara de comprar, e temos quase a certeza de que a voz que ouviu na realidade era a dele. Como sabem, o sujeito é um imitador soberbo.

 

Jean fitou Sam, com uma expressão de espanto e de inquietação estampada no rosto.

 

- Mas porquê? - quis saber.

 

- Na quarta-feira por ocasião do almoço em West Point, ouviu Brent referir a Laura que talvez a incluísse na nova série televisiva dele?

 

- Eu ouvi - interveio Mark Fleischman. - Mas fiquei sem saber se estava a gozar ou não.

 

- Tanto Cárter Stewart como Gordon Amory acham que o Brent e a Laura nos andam a intrujar. Que é que vocês acham? - inquiriu Sam, semicerrando os olhos ao fitar Mark Fleischman.

 

Por detrás dos óculos, os olhos de Mark Fleischman ficaram pensativos. Desviou o olhar e depois fitando Sam de frente, replicou:

 

- Acho que é inteiramente possível.

 

- Não concordo - interveio Jean em tom categórico. - Discordo por completo. Laura está metida em apuros... sinto-o; sei que sim. - Hesitou e depois optou por não lhes contar que julgara ouvir Laura rogando-lhe por socorro. - Sam, por favor, não pense uma coisa dessas - suplicou. - Não desista de tentar encontrar Laura! Ignoro o que é que Robby Brent anda a tramar, mas talvez queira apenas despistar-nos fazendo-se passar por ela afirmando que Laura se encontra bem. Ela não se encontra bem. Juro-lhe, ela não se encontra bem.

 

- Jeannie, acalma-te - disse Mark em tom meigo. Sam levantou-se.

 

- Jean - declarou -, a primeira coisa que faremos amanhã de manhã é conversarmos de novo. Quero que vá ao meu escritório para falarmos daquele outro assunto que estávamos a discutir.

 

Passados dez minutos, já com Eddie Zarro presente para o caso de Robby Brent regressar ao hotel, Sam dirigiu-se cansado para o carro. Ligou o motor, hesitou, reflectiu por um instante e depois ligou para Alice Sommers. Quando ela atendeu, impressionou-o o tom cristalino da sua voz.

 

- Por acaso não arranja para aí um cálice de xerez para um detective cansado? - perguntou Sam.

 

Decorrida meia hora encontrava-se na sala de Alice Sommers, instalado numa funda poltrona de cabedal, com os pés sobre um otomano e virado para a lareira acesa. Bebeu o último gole de xerez e pousou o copo na mesa a seu lado. Alice não precisara de ser muito persuasiva para o convencer a dormir um pouco, enquanto preparava o jantar.

 

- Precisa de comer - insistira. - Depois pode ir directamente para casa e dormir um sono decente.

 

Quando os olhos lhe começaram a fechar, Sam olhou com ar entorpecido o armário dos bibelôs que havia junto à lareira. Mas adormeceu antes de uma das miniaturas lhe transmitir um sinal de alarme ao subconsciente.

 

 

                         CAPÍTULO CINQUENTA E SETE

 

O turno de Amy Sachs terminara às quatro horas, pouco depois de Sam Deegan ter saído da Casa Glen-Ridge. Ela e Jake Perkins tinham combinado ir ao McDonalds que ficava a cerca de um quilómetro de distância. Enquanto saboreava o hambúrguer, Amy ia fazendo ao jovem o relato das movimentações de Sam, e a conversa que conseguira escutar entre este e, segundo ela, ”aquele peneirento do dramaturgo, Cárter Stewart”.

 

- O Sr. Deegan apareceu no hotel à procura do Sr. Brent explicou. - Eddie Zarro, o outro detective, aguardava-o. Ambos pareciam um bocado furiosos. Como o Sr. Deegan não conseguia contactar Brent pelo telefone, obrigou Pete, o paquete, a conduzi-los ao quarto de Brent. E como este não abria a porta, o Sr. Deegan ordenou a Pete que a abrisse. Foi então que descobriram que o Sr. Brent não passara a noite no hotel.

 

Jake ia mordiscando o hambúrguer e tomando notas no bloco.

 

- Julguei que depois da reunião, Cárter Stewart se tinha ido embora do hotel - observou. - O que o fez voltar esta tarde? Ia encontrar-se com quem?

 

- Stewart contou ao Sr. Deegan que concordara em ler os guiões para o novo espectáculo televisivo de Robby Brent. Depois começaram a falar de um telemóvel. Não consegui entender lá muito bem, porque o Sr. Deegan fala baixo. O Sr. Stewart também não fala lá muito alto, mas a sua voz ouve-se bem e eu fui abençoada com uma boa audição. Na verdade, Jake, diziam que a minha avó, mesmo com noventa anos, conseguia ouvir uma lagarta a rastejar pela erva.

 

- A minha avó está sempre a dizer-me que eu resmungo - observou Jake.

 

- Com efeito, resmunga - sussurrou Amy Sachs. - Adiante, Jake, quando o Sr. Deegan perguntou ao Sr. Stewart se achava que tudo aquilo não passava de um truque publicitário por parte de Laura Wilcox e de Robby Brent, o outro respondeu que julgava que sim. Talvez me tenha escapado alguma coisa, mas na noite passada a Dr.a Sheridan não recebeu um telefonema de Laura Wilcox?

 

Jake estava quase a babar-se perante a catadupa inesperada de informações. Durante toda a tarde parecera-lhe estar a assistir a um filme mudo. Sentara-se no átrio do hotel a observar todas aquelas movimentações, mas sem se atrever a rondar o balcão da recepção nem tentar ouvir as conversas.

 

- Sim, a Dr.a Sheridan recebeu um telefonema de Laura Wilcox. Por acaso, eu estava perto da pequena sala de jantar quando falaram do assunto.

 

-Jake, acho que não entendi lá muito bem toda esta confusão. Sabe como é... ouvimos uma coisa aqui, outra ali. Não podemos chegar muito perto das pessoas senão julgam que andamos a bisbilhotar, mas fiquei com a impressão de que na noite passada foi Robby Brent quem fez o tal telefonema e se fez passar pela Laura Wilcox.

 

A mão de Jake deteve-se a meio, segurando com firmeza a garfada de hambúrguer que se preparava para comer. Depois pousou-a devagar no prato. Era óbvio que digeria mentalmente o que Amy acabara de lhe contar.

 

- Robby Brent fez a tal chamada, agora não aparece, e eles acham que tudo isto não passa de uma manobra publicitária para uma nova série televisiva?

 

Amy aquiesceu animada, os óculos enormes balançando-lhe no nariz.

 

- Parece um episódio de um reality show, não parece? - comentou. - Achas que agora montaram câmaras escondidas no hotel?

 

- Dá que pensar - concordou Jake. - Amy, você é uma mulher perspicaz. Quando eu fundar o meu jornal, vou fazer de si uma colunista. Reparou em mais alguma coisa?

 

Franzindo os lábios, ela replicou:

 

- Só num pormenorzinho. Mark Fleischman... sabe quem é, o homenageado amoroso que é psiquiatra...

 

- Claro que o conheço. O que é que tem?

 

-Juro que tem um fraquinho pela Dr.a Sheridan. Esta manhã saiu cedo e quando voltou, a primeira coisa que fez foi precipitar-se para o balcão da recepção e telefonar à Dr.a Sheridan. Eu ouvi-o.

 

- É evidente - replicou Jake, com um sorriso rasgado.

 

- Eu disse-lhe que ela estava na cafetaria. Agradeceu-me, mas antes de entrar como um furacão no café, perguntou-me se hoje a Dr.a Sheridan recebera mais faxes. Quando lhe respondi que não, pareceu quase desapontado e inquiriu-me se eu tinha mesmo a certeza de que ela não recebera nenhum. Lá porque anda pelo beicinho por ela, penso que é um bocadinho de descaramento da sua parte querer saber do correio dela, não acha?

 

- De certo modo acho que sim.

 

- Mas como é simpático, perguntei-lhe em tom casual se tivera um bom dia. Respondeu-me que sim, que andava à procura de uns amigos de longa data que viviam em West Point.

 

 

                     CAPÍTULO CINQUENTA E OITO

 

Depois de Sam Deegan se ir embora, Jean Sheridan e Mark Fleischman ficaram sentados à mesa do café durante quase uma hora. Ele pegara-lhe na mão enquanto a ouvia relatar o encontro com Craig Michaelson, o facto de estar convencida de que fora o advogado quem tratara da adopção de Lily, e também de que o agredira verbalmente ao achar que Michaelson se obstinava em não compreender que Lily podia estar verdadeiramente em perigo.

 

- Telefonei-lhe a pedir desculpa - explicou. - E quando o fiz, realcei que era bem possível que Lily se lembrasse do sítio onde se encontrava quando desapareceu a escova. Que podia haver uma ligação directa com a pessoa que a roubara, a menos, é evidente, que sejam os pais adoptivos a estar por detrás de tudo isto.

 

- É uma possibilidade real a ser tomada em consideração - concordou Mark. - Estás a pensar em seguir o conselho do Michaelson e solicitar junto do tribunal que abram o ficheiro?

 

- Em absoluto. Amanhã de manhã encontro-me com Sam Deegan no escritório dele.

 

- Acho que é uma medida inteligente. E quanto a Laura, Jean? Tu não acreditas que se trata de uma manobra publicitária, pois não?

 

- Não, não acredito. -Jean hesitou. Eram quase quatro e meia, e o crepúsculo ia derramando sombras oblíquas pelo café quase deserto. Olhou para Mark, sentado à sua frente. Vestia camisa desportiva e uma camisola verde-escura. É daqueles homens que nunca deixam de ter um ar de rapazinho... à excepção dos olhos. - Quem era o professor que te chamava ”alma de velho”? - perguntou.

 

- Era o Dr. Hastings. Porque é que te lembraste disso?

 

- Ele afirmava que possuías uma sabedoria maior que a tua idade.

 

- Não estou bem certo de que pretendesse ser um elogio. Mas há outro motivo qualquer para teres referido isso, Jean.

 

- Acho que sim. A meu ver, as pessoas idosas possuem um profundo discernimento. Depois de sair do escritório de Craig Michaelson, quando me meti no carro sentia-me transtornada. Já to contei. Mas foi então, Mark, que ouvi Laura com tanta nitidez como se estivesse ali no carro comigo. Escutei a voz dela dizer: ”Jean, ajuda-me. Jean, por favor, ajuda-me.”

 

Perscrutando-lhe o rosto, acrescentou na defensiva:

 

- Não acreditas em mim, ou então achas que estou doida.

 

-Jeannie, não é verdade. Se há alguém que acredita no poder de comunicação da mente, sou eu. Mas se na verdade Laura está metida em sarilhos, onde é que Robby Brent se encaixa?

 

- Não faço a mínima ideia. - Jean ergueu o braço num gesto de impotência e depois baixou-o, relanceando simultaneamente o olhar pela sala. - É melhor sairmos daqui. Já estão a pôr as mesas para o jantar.

 

Mark fez um sinal para pedir a conta.

 

- Gostava de te convidar para jantares comigo, mas esta noite tenho o privilégio único de jantar com o meu pai.

 

Jean fitou-o demoradamente, sem saber o que responder. O rosto dele mostrava-se inescrutável. Até que por fim declarou:

 

- Sei que andavam de relações cortadas. Ele telefonou-te?

 

- Hoje passei pela casa dele e vi o carro estacionado. Num gesto impulsivo, até muito impulsivo, toquei à campainha. Tivemos uma longa conversa... porém, não foi o suficiente para pôr tudo em dia e, então, perguntou-me se queria jantar com ele. Respondi-lhe que sim, na condição de ele estar preparado para me responder a umas quantas perguntas que tencionava fazer-lhe.

 

- E o teu pai concordou?

 

- Concordou, sim. Esperemos que cumpra a palavra.

 

- Só desejo que resolvam as vossas divergências.

 

- Também eu, Jean, mas não estou a contar com isso. Entraram juntos no elevador e Mark carregou nos botões para o quarto e o sexto piso.

 

- Faço votos para que a tua vista seja melhor que a minha - observou Jean. - O meu quarto dá para o parque de estacionamento.

 

- Então é melhor - concordou ele. - O meu fica do lado da frente e quando estou no quarto na altura certa, consigo ver o pôr do Sol.

 

- E se por acaso estou acordada, consigo ver quem entra de madrugada - replicou Jean quando o elevador parou no quarto piso. - Até logo, Mark.

 

O sinal de mensagens do atendedor de chamadas do quarto estava a piscar. A chamada era de Peggy Kimball, e fora recebida há cinco minutos.

 

”Jean, estou no hospital, no meu intervalo, de modo que vou ser breve. Depois de nos despedirmos, ocorreu-me que mais ou menos na mesma época em que você recorria ao Dr. Connors, Jack Emerson fazia parte da equipa que efectuava a limpeza do prédio onde ficava o consultório. Contei-lhe que o Dr. Connors guardava sempre na algibeira as chaves dos ficheiros, mas devia ter algum esconderijo porque lembro-me que um dia se esqueceu de trazer o porta-chaves para o consultório e, no entanto, conseguiu abrir o armário dos arquivos. De modo que talvez Jack Emerson ou outra pessoa da laia dele pudesse ter espiolhado a sua ficha. Seja como for, achei que devia saber. Boa sorte.”

 

Jack Emerson, pensou Jean pousando o auscultador e afundando-se na cama. Será ele quem me anda a molestar? Viveu sempre nesta cidade e se as pessoas que adoptaram Lily morarem cá talvez as conheça.

 

Ouviu um ruído e virou-se a tempo de ver enfiarem um envelope castanho por baixo da porta. Atravessando o quarto a correr, abriu-a de rompante.

 

Avistou o paquete que, com ar comprometido, tentava endireitar-se.

 

- Dr.a Sheridan, veio um monte de faxes para um dos nossos hóspedes e enviaram logo a seguir este para si. Devem-no ter misturado com os outros e quando o hóspede reparou, entregou-o na recepção.

 

- Não faz mal - replicou Jean baixinho, com o medo quase a embargar-lhe a voz. Fechou a porta e apanhou o envelope. Com as mãos trémulas, rasgou-o e retirou o conteúdo.

 

Deve ser a respeito de Lily, pensou.

 

Era a respeito de Lily. Dizia:

 

Jean, sinto-me tão envergonhada. Sempre soube da existência de Lily e conheço as pessoas que a adoptaram. É uma miúda encantadora. É esperta, anda no primeiro ano da faculdade e vive muito feliz. Não foi minha intenção levar-te a pensar que andava a ameaçá-la. Estou desesperada com falta de dinheiro e julguei que o conseguia arranjar deste modo. Por favor, não te preocupes por causa de Lily. Ela está óptima. Em breve, dou notícias. Perdoa-me e por favor comunica aos outros que me encontro bem. A ideia da manobra publicitária partiu de Robby Brent, mas ele vai tentar esclarecer as coisas. Pretende falar com os seus produtores antes de se ver obrigado a dar uma conferência de imprensa.

 

Laura

 

Sentindo os joelhos vergar, Jean afundou-se na cama. Depois, chorando de alívio e de alegria, ligou para o telemóvel de Sam.

 

A chamada de Jean arrancou o detective da aprazível sesta que estava a dormir, enquanto Alice Sommers se atarefava na cozinha.

 

- Outro fax, Jean? Acalme-se e leia-mo. - Ouviu com atenção e exclamou: - Santo Deus! Mal posso acreditar que aquela mulher lhe fizesse tal coisa!

 

- É Jean ao telefone? Ela está bem? - perguntou Alice, assomando à soleira da porta.

 

- Sim. Era Laura Wilcox que andava a enviar-lhe os faxes a respeito de Lily. Pediu-lhe desculpa e afirmou-lhe que nunca pretendera magoar Lily.

 

Tirando-lhe o telefone, Alice interveio:

 

- Jean, ficaste tão transtornada que não consegues guiar? - Depois de ouvir a resposta, acrescentou: - Então vem até cá...

 

Quando Jean chegou, Alice fitou-a e viu-lhe estampada no rosto a alegria radiosa que ela própria teria experimentado se anos atrás não tivessem roubado a vida a Karen.

 

- Oh, Jean, rezei tanto, tanto!

 

Jean apertou-a com força contra o peito.

 

- Bem sei - replicou. - Mal posso acreditar que Laura fosse capaz de me fazer isto, mas estou certa de que nunca magoaria Lily. E afinal, foi tudo por causa do dinheiro, Sam. Deus do céu, se Laura andava tão desesperada, porque é que não foi sincera comigo e não me pediu ajuda? Há meia hora, eu estaria disposta a declarar-vos que achava que era Jack Emerson que sabia da existência de Lily.

 

- Jean, entra, senta-te e acalma-te. Bebe um cálice de xerez e conta-nos o que queres dizer com isso. Que tem Jack Emerson a ver com o assunto?

 

- Acabei de saber algo que me levou a crer que estava por trás de tudo - replicou Jean. Obedecendo, despiu o casaco, entrou na sala, instalou-se na cadeira mais próxima da lareira e tentando manter a voz calma, relatou-lhes o telefonema de Peggy Kimball. -Jack trabalhava no consultório quando eu era doente do Dr. Connors. Foi ele quem planeou a reunião e nos juntou a todos cá. Na sala dele tem a tal fotografia de Laura que Robby Brent mencionou. Parecia que tudo se encaixava... até me entregarem o fax. Oh, não vos contei. O fax chegou por volta do meio-dia, mas misturaram-no com a correspondência de outra pessoa.

 

- Devia tê-lo recebido ao meio-dia? - inquiriu Sam precipitadamente.

 

- Sim, e se assim fosse eu não me teria encontrado com Craig Michaelson. Logo que mo entregaram tentei ligar-lhe, pois se se desse o caso de ele tencionar entrar em contacto com os pais adoptivos de Lily, eu avisava-o para não o fazer até que Laura me desse mais notícias. Agora é escusado alarmá-los, ou à minha filha.

 

- Contou a mais alguém sobre este fax de Laura? - perguntou Sam baixinho.

 

- Não. Recebi-o assim que entrei no quarto. Depois de se ir embora, eu e Mark estivemos pelo menos uma hora a conversar. Oh, devia ligar-lhe agora antes de sair para jantar com o pai, vai ficar muito contente quando souber. Ele sabe tão bem quanto vocês como eu andava consumida de aflição.

 

Aposto a minha cabeça em como Jean referiu a Fleischman a possibilidade da escova nos poder conduzir ao local onde Lily a perdeu ou à pessoa com quem estava quando a perdeu, pensou Sam com ar soturno, vendo Jean pegar no telemóvel.

 

Ele e Alice entreolharam-se, e repararam que partilhavam da mesma apreensão. O fax era realmente de Laura ou tratava-se de mais uma reviravolta bizarra no desenrolar daquele pesadelo?

 

Assim sendo, então o caso muda de figura, reflectiu Sam. Se Jean estiver correcta e se CraigMichaelson tratou mesmo da adopção, é possível que o advogado já tenha contactado os pais adoptivos de Lily e lhes tenha referido a escova.

 

E a menos que a mensagem de Laura fosse genuína, então Lily tornara-se um perigo para quem andava a enviar os faxes. E podia ter ocorrido a esse alguém a hipótese da escova denunciar a sua identidade.

 

Não consigo convencer-me de que os faxes vieram de Laura, reflectiu Sam. Pelo menos por agora. Jack Emerson trabalhou no consultório do Dr. Connors, viveu sempre na cidade e pode ter facilmente travado amizade com o casal de Cornwall que talvez tenha adoptado Lily.

 

Mark Fleischman bem pode ter conquistado a confiança de Jean, mas a mim não me convence. Há qualquer coisa no íntimo do sujeito que nada tem a ver com o aparecer na televisão a dar conselhos às famílias disfuncionais, concluiu.

 

Jean enviava uma mensagem a Fleischman.

 

-Já saiu - explicou. Depois fungou e virou-se para Alice, com um sorriso a iluminar-lhe o rosto. - Estou a sentir um cheiro maravilhoso. Se não me convida para o jantar, convido-me eu. Oh, Deus do céu, sinto-me tão feliz, sinto-me tão feliz!

 

 

                          CAPÍTULO CINQUENTA E NOVE

 

A noite é a minha hora, pensou o Mocho enquanto aguardava com ansiedade a chegada da escuridão nocturna. Fora tolo da sua parte arriscar voltar em pleno dia à casa - podiam tê-lo visto. Mas invadira-o a sensação inquietante de que Robby Brent afinal não morrera, de que, sendo ele o comediante que era, tivesse fingido que perdera os sentidos. Imaginara-o a rastejar para fora do carro e a encaminhar-se para a rua - ou, quem sabe?, até a subir as escadas à procura de Laura e telefonar para o 112.

 

A imagem de Robby com vida e em condições de procurar auxílio tornara-se tão nítida que não restara outra alternativa ao Mocho senão voltar para trás e confirmar com os próprios olhos que, na verdade, o outro morrera e se encontrava no sítio exacto onde o deixara, no porta-bagagem do carro.

 

Foi quase como naquela primeira noite em casa de Laura, quando ceifei uma vida, pensou o Mocho. Envolta em névoa, veio-lhe a recordação de ter subido em bicos dos pés as escadas das traseiras, e ter-se dirigido ao quarto onde supunha que Laura se encontrava. Tinham-se passado vinte anos.

 

Na noite anterior, sabendo que Robby Brent o seguia, não lhe fora difícil enganá-lo. Mas depois tivera de lhe vasculhar as algibeiras à procura das chaves de modo a poder estacionar o carro de Robby na garagem... uma parte desta era ocupada pelo seu primeiro carro alugado, o dos pneus com lama. Colocara o carro de Robby Brent no espaço que restava, e em seguida arrastara o corpo desde as escadas onde o matara e enfiara-o lá dentro.

 

Alguma coisa o denunciara a Robby Brent e este, sabe-se lá como, adivinhara. E quanto aos outros? Estaria o círculo a fechar-se cedo de mais, impedindo-o por mais tempo de se refugiar na noite? Desagradava-lhe aquela incerteza, necessitava de segurança - a segurança que apenas obtinha quando realizava a proeza que reafirmava o poder que exercia sobre a vida e a morte.

 

Às onze horas começou a percorrer de carro o Condado de Orange. Não te aproximes demasiado de Cornwall, pensou. Nem tão-pouco de Washingtonville, onde foi descoberto o corpo de Helen Whelan. Talvez Highland Falis constituísse uma boa opção. Quem sabe se valeria a pena dar uma vista de olhos pelos arredores do motel onde Jean Sheridan e o cadete tinham pernoitado.

 

Quem sabe se numa das ruas laterais junto ao motel o destino lhe marcara encontro com a próxima vítima.

 

Às onze e meia, ao percorrer uma rua ladeada de árvores, pôs-se a observar duas mulheres que se encontravam num alpendre, com um candeeiro por cima a iluminá-las. Uma delas começou a descer os degraus do alpendre. O Mocho encostou na curva, desligou os faróis e aguardou que ela atravessasse o relvado para chegar ao passeio.

 

Ia cabisbaixa e com passo apressado, e não o ouviu sair do carro nem esconder-se no recesso escuro da árvore. Quando a mulher ia a passar por ele, emergiu da sombra. Sentiu o Mocho saltar da gaiola ao tapar-lhe a boca, e com um gesto rápido enrolou-lhe uma corda à volta do pescoço.

 

- Lamento por ti - sussurrou -, mas foste eleita.

 

 

                                          CAPÍTULO SESSENTA

 

O corpo de Yvonne Tepper foi descoberto às seis horas da manhã por Bessie Koch, uma viúva de setenta anos que complementava a reforma da Segurança Social distribuindo o jornal The New York Times pelos clientes da área Highland Falis do Condado de Orange.

 

Preparava-se para virar o carro e meter pela rampa de Yvonne. Uma das máximas que defendia era a ”política dos pés não descalços”. ”As pessoas escusam de descer as rampas com os pés descalços para apanharem o jornal”, explicava nos seus folhetos. ”Mal abrem a porta deparam logo com o jornal.” A campanha fora um tributo de amor ao falecido marido, que costumava ir descalço recolher o matutino no ponto onde o distribuidor o largara, por regra junto à curva e não nos degraus da frente.

 

A primeira reacção de Bessie foi recusar-se a acreditar no que os seus olhos viam. Durante a noite caíra geada, e Yvonne jazia entre dois arbustos, na relva ainda coberta das camadas cintilantes de humidade gelada. Tinha as pernas dobradas e as mãos metidas nas algibeiras do casaco azul. Revelava um ar tão composto, tão arranjadinho que à primeira vista Bessie julgou tratar-se apenas de uma queda.

 

Quando a realidade se abateu sobre si, carregou a fundo nos travões provocando um chiar estrepitoso e parou o carro. Escancarando a porta, atravessou a correr os poucos metros que a separavam do corpo de Yvonne. Ficou por uns instantes ali especada, atordoada e em estado de choque, a contemplar os olhos esbugalhados da mulher, a boca flácida e a corda enrolada à volta do pescoço.

 

Bessie tentou gritar por socorro, mas não conseguiu que a garganta embargada e os lábios contraídos emitissem um som. Depois virou-se, dirigiu-se aos tombos para o carro, sentou-se ao volante e pôs-se a buzinar. Nas casas vizinhas, as luzes começaram a acender-se e os residentes com ar carrancudo assomaram às janelas. Vários homens saíram a correr para indagarem o motivo de tanta algazarra - todos eles, ironicamente, de pés descalços.

 

O marido da vizinha que Yvonne Tepper visitara quando fora atacada pelo Mocho saltou para o assento do passageiro do carro de Bessie, e com um gesto firme afastou-lhe as mãos da buzina.

 

Foi quando Bessie conseguiu finalmente gritar.

 

 

                             CAPÍTULO SESSENTA E UM

 

Sam Deegan estava tão esgotado que se dispunha a dormir o sono dos justos, embora o instinto que fizera dele o excelente polícia que era lhe dissesse que o último fax que Jean recebera não podia ser genuíno.

 

Às seis da manhã, quando acordou com o alarme do despertador, permaneceu por uns breves instantes na cama, de olhos fechados. O fax constituiu o primeiro pensamento consciente que lhe veio à mente.

 

Demasiado perfeito, voltou a reflectir. Não houve um pormenor que escapasse. Mas agora é duvidoso que alguém vá a correr mandar desbloquear a ficha de Lily, concluiu.

 

Talvez fosse esse o objectivo do fax. Talvez alguém entrasse em pânico, receoso de que se algum juiz permitisse a abertura do ficheiro e Lily fosse interrogada a respeito da escova, que essa situação o pudesse eventualmente implicar.

 

Tal perspectiva encheu Sam de preocupação. Abriu os olhos, soergueu-se e afastou a roupa da cama.

 

Por outro lado, reflectiu, desempenhando mentalmente o papel de advogado do diabo. Faz sentido que anos atrás Laura tenha tido conhecimento de que Jean estava grávida. Ao jantar, esta contara-lhe e a Alice que, antes de desaparecer, Laura se referira a Reed Thornton.

 

- Não estou bem certa se mencionou o nome dele - afirmara Jean. - Mas fiquei surpreendida por verificar que até ela soubera que eu namorava com um cadete.

Aquele fax não me inspira confiança e continuo a achar que é coincidência a mais cinco mulheres terem morrido pela sequência dos lugares que ocupavam à mesa, pensou Sam enquanto se arrastava penosamente até à cozinha, ligava a máquina do café, entrava na casa de banho e abria o chuveiro.

 

Quando regressou à cozinha já vestido com o casaco e calças para ir trabalhar, o café estava pronto. Deitou sumo de laranja num copo e enfiou um brioche na torradeira. Quando Kate era viva, comia sempre flocos de aveia ao pequeno-almoço. Embora tentasse convencer-se de que era fácil - deitar um terço de flocos numa tigela, juntar uma chávena de leite magro e enfiar a tigela no microondas durante dois minutos -, nunca lhe saíra bem. Os flocos que Kate fazia eram muito melhores. Ao fim de algumas tentativas, desistira de os confeccionar.

 

Há já quase três anos que Kate perdera a batalha contra o cancro. Felizmente, a casa não era assim tão grande que se visse obrigado a vendê-la, agora que os rapazes já eram crescidos e não moravam lá. O ordenado de detective não dá para comprar uma casa grande, pensou Sam. A maioria das outras mulheres queixar-se-ia disso, mas Kate nunca. Adorava esta casa. Convertera-a num lar e por mais difícil que tivesse sido o dia, ao regressar à noite ele sentia-se feliz e grato.

 

A casa continua a ser a mesma, reflectiu Sam, enquanto ia apanhar o jornal que se encontrava no exterior da porta da cozinha, e se sentava à mesa para tomar o pequeno-almoço. Mas sem Kate parecia diferente. Na noite anterior, enquanto dormitava na salinha de Alice, experimentara a mesma sensação. De conforto. De calor. Os ruídos que Alice fazia enquanto preparava o jantar. O cheiro da carne a assar, que pairava na sala de estar, fazia crescer água na boca.

 

Ocorreu-lhe então que, quando mergulhara na sonolência, algo lhe despertara a atenção. Que fora? Teria a ver com o armário de bibelôs de Alice? Quando lá fosse outra vez, pretendia dar uma vista de olhos. Talvez se tratasse das chávenas em miniatura que ela coleccionava. A sua mãe também era louca por aquelas coisinhas. Ainda guardava algumas no armário das porcelanas.

 

Devo barrar o brioche com manteiga ou comê-lo sem nada? - interrogou-se.

 

Relutante, optou por não comer manteiga.

 

Ontem à noite abusei, recordou-se. O empadão de carne que Alice fez estava uma delícia. Jean apreciou-o tanto como eu. Quase teve um colapso nervoso por causa de tantas preocupações com Lily. Foi bom vê-la descontrair-se. Parecia que carregava o peso do mundo aos ombros.

 

Esperemos que o fax seja genuíno e que em breve Laura dê notícias.

 

Quando se preparava para abrir o jornal, tocou o telefone. Era Eddie Zarro.

 

- Sam, o chefe da Polícia de Highland Falis acabou de nos telefonar. Uma mulher foi encontrada estrangulada no relvado dianteiro da sua casa. O delegado distrital convocou-nos para nos apresentarmos no gabinete dele.

 

Sam desconfiou que Eddie lhe estava a ocultar algo.

 

- E que mais? - questionou.

 

- Descobriram na algibeira do casaco da senhora um daqueles mochos em miniatura. Sam, estamos a lidar com um tarado. Também preciso de te avisar que esta manhã, informaram na rádio que o desaparecimento de Laura Wilcox foi uma manobra publicitária que a mulher engendrou com esse tal comediante, Robby Brent. Rich Stevens queixou-se que andámos a perder o nosso rico tempo com a tal Wilcox e o ignorámos quando ele desconfiou haver um maníaco homicida a monte no Estado de Orange. Faz um favor a ti mesmo, e nunca mais lhe menciones o nome da mulher.

 

 

                         CAPÍTULO SESSENTA E DOIS

 

Quando Jean acordou, ficou espantada ao reparar que eram nove horas. Ao sair da cama sentiu um calafrio, pois a janela encontrava-se entreaberta e uma brisa gelada penetrara no quarto. Apressou-se a fechá-la e subiu as persianas. No exterior, o Sol tentava penetrar as nuvens que o toldavam, e ao pensar nisso concluiu que correspondia ao seu estado de espírito. O Sol penetrava as nuvens que lhe toldavam a vida e ela começava a sentir-se eufórica.

 

Foi Laura quem andou a contactar comigo por causa de Lily, reflectiu, e se há coisa em relação à qual ponho as mãos no fogo, é que ela seria incapaz de fazer mal à minha filha. Tudo isto aconteceu porque ela está desesperada com falta de dinheiro.

 

Mas espero que em breve me volte a dar notícias, pensou. Devia desprezá-la pelas aflições que me causou, mas agora entendo o quão desesperada se sentia. Na noite de sábado parecia um pouco delirante. Lembro-me como reagiu quando tentei falar com ela antes do jantar de homenagem. Perguntei-lhe se vira alguém depositar uma rosa no cemitério e ela sempre a esquivar-se, até que por fim quase me pôs fora do quarto. Seria porque me viu preocupada e sentiu remorsos pelo que me andava afazer?, interrogou-se. Apostava qualquer coisa em como foi ela que depositou a rosa na campa. Deve ter calculado que eu visitaria o túmulo de Reed.

 

Na noite anterior, o último pensamento consciente de Jean fora de que precisava de informar Craig Michaelson a respeito do fax enviado por Laura. Se ele tomara a iniciativa de contactar os pais adoptivos de Lily, não era justo mantê-los preocupados.

 

Vestiu o roupão, dirigiu-se à secretária, procurou o cartão de Michaelson que guardara na agenda e ligou para o escritório deste. O advogado atendeu de imediato, e Jean sentiu o coração dar-lhe um baque quando lhe contou o sucedido e ouviu a sua reacção.

 

- Dr.a Sheridan - replicou Craig Michaelson -, confirmou se esse último fax provinha mesmo de Laura Wilcox?

 

- Não, e é-me impossível fazê-lo. Mas pergunta-me se acredito que foi ela quem o enviou? Em absoluto. Confesso que fiquei chocada por saber que Laura estava a par da existência de Lily e devia saber que eu namorava Reed. Garanto-lhe que na época nunca o deixou transparecer. Seja como for, pelo facto de Robby Brent ter comprado o telemóvel e eu receber a chamada que supunha ser de Laura sensivelmente na mesma altura, calculamos também que deve ter sido Robby, imitando a voz dela, o autor do telefonema. De modo que acho que nos confrontamos aqui com duas situações. Laura sabe quem é Lily, está falida e desesperada com falta de dinheiro. Então Robby engendrou o desaparecimento dela, porque a tenciona contratar para a sua nova comédia e com esta manobra gerou publicidade. Se conhecesse Robby Brent, compreenderia que o sujeito é bem capaz destas fantochadas... que são no mínimo indecentes.

 

De novo, ficou à espera que a voz de Craig Michaelson a tranquilizasse.

 

- Dr.a Sheridan - replicou este por fim -, entendo o seu alívio. Conforme realçou e muito bem, quando apareceu ontem no meu escritório, não pus de parte a hipótese da senhora ter inventado toda aquela história, tal a obsessão em localizar o paradeiro da sua filha. Aqui para nós, foi o seu assomo de cólera que me persuadiu da sua total honestidade. De modo que agora sou eu que vou ser honesto consigo.

 

Foi ele quem tratou da adopção, pensou Jean. Sabe quem é Lily e onde se encontra.

 

- Dado considerar bastante grave o perigo que a sua filha pode eventualmente correr, contactei o pai adoptivo dela. Neste momento, encontra-se no estrangeiro, mas estou certo de que muito em breve me dará notícias. Vou informá-lo de tudo o que me contou, inclusive quem a senhora é. Como deve perceber, nós os dois não temos o privilégio de uma relação advogado-cliente, porém sinto-me na obrigação de comunicar aos pais adoptivos da sua filha que se trata de uma pessoa fidedigna e responsável.

 

- Por mim, não há nenhum inconveniente - replicou Jean. Mas não desejo que esse casal passe pelo inferno que se abateu sobre mim nos últimos dias. Neste momento não desejo que fiquem com a impressão de que Lily corre perigo, dado achar que devemos pôr essa hipótese de lado.

 

- Espero bem que não, Dr.a Sheridan, mas considero que enquanto a Sr.a Wilcox não aparecer, seria uma leviandade da nossa parte considerar que a situação pode não ser grave. Mostrou o fax ao detective que me referiu?

 

- A Sam Deegan? Mostrei, sim. Na verdade, até lho entreguei.

 

- Pode dar-me o número de telefone do senhor?

 

- Claro. -Jean sabia de cor o número de Sam, mas detectando o tom de preocupação na voz de Craig Michaelson, ficou tão perturbada que até se esqueceu. Consultou a agenda, indicou-lho e acrescentou: - Dr. Michaelson, parece que as nossas posições se inverteram. Porque é que está tão preocupado e eu tão aliviada?

 

- É aquela escova, Dr.a Sheridan. Se Lily se recordar de algum pormenor de como a perdeu... onde se encontrava, com quem estava... trata-se então de um vínculo directo com a pessoa que enviou a mensagem. Se se lembrar da presença de Laura Wilcox, então podemos acreditar que o teor do fax é genuíno. Mas conhecendo eu os pais adoptivos e o estilo de vida tão publicitado da Sr.a Wilcox, considero rebuscado de mais a sua filha tê-la alguma vez conhecido.

 

- Estou a perceber - replicou Jean, sentindo-se gelada até ao tutano dos ossos com a lógica do advogado.

 

Depois de combinar manter-se em contacto com ele, despediu-se de Michaelson e ligou de imediato para o telemóvel de Sam, porém, não obteve resposta.

 

Em seguida, telefonou para Alice Sommers.

 

- Alice - declarou, inspirando fundo -, por favor, seja franca comigo. Acha que há alguma hipótese de o fax de Laura, ou alegadamente de Laura, ter sido uma manobra para nos despistar, para me impedir de contactar com os pais adoptivos de Lily e questioná-los a respeito da escova?

 

A resposta foi a que receava e que sabia por instinto que ia receber.

 

- Não punha as minhas mãos no fogo que não fosse assim, Jeannie - replicou Alice, relutante. - Não me perguntes porquê, mas o fax soou-me a aldrabice, e posso garantir-te que Sam pensa exactamente o mesmo.

 

 

                               CAPÍTULO SESSENTA E TRÊS

 

Tal como Eddie Zarro avisara, o delegado distrital Rich Stevens estava incomodado e furioso.

 

- Esses actores de meia-tigela vêm para aqui com manobras publicitárias a fazer-nos perder tempo, quando afinal anda um maníaco à solta - ganiu. - Vou fazer um comunicado à imprensa a informar que tanto Laura Wilcox como Robby Brent se arriscam a apanhar com um processo-crime por gerarem toda esta confusão. Laura Wilcox admitiu ter sido ela quem mandou os faxes a ameaçar a filha da Dr.a Sheridan. Não quero saber se ela anda ou não em maré de perdoar ao próximo. Eu cá não ando. É um crime enviar cartas ameaçadoras e Laura Wilcox vai responder por isso.

 

Sam, alarmado, apressou-se a acalmar Stevens.

 

- Calma aí, Rich - disse. - A imprensa desconhece a existência da filha da Dr.a Sheridan e as ameaças contra ela. Neste momento, não podemos divulgá-lo.

 

- Estou ciente disso, Sam - replicou Rich Stevens. - Mencionaremos apenas a manobra publicitária cuja autoria Wilcox confessou no último fax. - Entregou então a Sam uma pasta de arquivo que se encontrava em cima da secretária - Fotografias da cena do crime - explicou. - Analise-as bem. Depois de recebido o telefonema, Joy foi a primeira a lá chegar. Bem sei que todos vocês estão ao corrente mas, Joy, conte lá a Sam o que foi que soube a respeito da vítima e o que a vizinha desta lhe declarou.

 

No gabinete do delegado distrital, além de Eddie Zarro e de Sam, encontravam-se mais quatro detectives. Joy Lacko, a única mulher do grupo, trabalhava como investigadora há menos de um ano, mas Sam nutria pela colega um respeito enorme por esta ser tão inteligente e capaz de sacar informações a testemunhas em estado de choque ou avassaladas pelo desgosto.

 

- Yvonne Tepper, a vítima, era uma mulher de sessenta e três anos, divorciada, com dois filhos adultos, ambos casados e a viverem na Califórnia. -Joy segurava o bloco de notas, mas ia fazendo o ponto da situação sem o consultar, de olhos fixos em Sam. - Era dona de um salão de cabeleireiro, muito estimada e ao que parece não tinha inimigos. O ex-marido voltou a casar-se e vive em Illinois. - Fez uma pausa e acrescentou: - Atendendo a que encontraram um mocho em miniatura na algibeira de Tepper, se calhar tudo isto é irrelevante.

 

- Presumo que não existam impressões digitais? - inquiriu este.

 

- Nada de impressões digitais. Sabemos que foi o mesmo tipo que na noite de sexta-feira atacou Helen Whelan.

 

- Com que vizinha é que falou?

 

- Para ser mais correcta, com todas as pessoas do quarteirão. Mas a que está a par de tudo é a vizinha que Yvonne acabara de visitar. É provável que esta tivesse acabado de sair de sua casa quando foi estrangulada. Chama-se Rita Hall. Ela e a Sr.a Tepper eram amigas chegadas. A Sr.a Tepper trouxera do cabeleireiro alguns cosméticos para a vizinha e na noite passada quando chegou a casa, perto das dez horas, foi entregar-lhos. As duas mulheres visitavam-se com assiduidade e assistiam juntas ao noticiário das onze. Matthew, o marido da Sr.a Hall, já se fora deitar. A propósito, esta manhã foi ele a primeira pessoa a chegar junto de Bessie Koch, a mulher que encontrou o corpo e se enfiou no carro a buzinar a fim de pedir socorro. O homem teve o discernimento suficiente para avisar os outros vizinhos para que se mantivessem longe do corpo e chamou o 112.

 

- Depois do noticiário acabar, Yvonne Tepper saiu logo de casa da Sr.a Hall?

 

- Sim. A Sr.a Hall conduziu-a à porta e deteve-se a falar com ela no alpendre. Lembra-se que queria contar à Sr.a Tepper qualquer coisa que ouvira a respeito de um antigo vizinho. Afirmou que ficaram mais de um minuto ali e que o candeeiro por cima delas estava aceso, de modo que qualquer pessoa as podia ver. Disse que se apercebeu de um carro que abrandou e estacionou junto à curva, mas que não lhe ligou importância. Parece que os vizinhos do outro lado da rua têm filhos adolescentes que andam sempre a entrar e a sair.

 

- A Sr.a Hall lembrou-se de algum pormenor a respeito do carro? - inquiriu Sam.

 

- Apenas que era um utilitário azul-escuro ou preto de tamanho médio. Depois voltou a entrar em casa, fechou a porta, e a Sr.a Tepper atravessou o relvado em direcção ao passeio.

 

- O meu palpite é que foi morta passado menos de um minuto - interveio Rich Stevens. - O móbil não foi roubo, pois a mala de mão encontrava-se no passeio. Tinha duzentos dólares na carteira, usava um anel e brincos, tudo de diamantes. A única coisa que o tipo quis foi matá-la. Agarrou-a, atirou-a para cima do relvado, estrangulou-a, arrastou o corpo para trás de um arbusto e arrancou com o carro.

 

- Mas demorou-se o tempo suficiente para enfiar o mocho na algibeira - observou Sam.

 

Rich Stevens passeou o olhar pelos restantes investigadores.

 

- Tenho dado voltas à cabeça para ver se me decido se devo ou não divulgar à imprensa a informação a respeito do mocho. Quem sabe se há alguém que conheça algum sujeito obcecado por mochos ou que, talvez, os coleccione por passatempo.

 

- Vocês já imaginaram o furo jornalístico que seria para a imprensa saberem que o indivíduo deixa um mocho na algibeira das vítimas? - apressou-se Sam a declarar. - Se o tipo anda armado em existencialista, e julgo que sim, estávamos a dar-lhe de mão beijada o que queria, já para não falar da possibilidade de aparecer por aí outro assassino maluco a imitá-lo.

 

- E revelar tal informação não ia pôr as mulheres de prevenção - salientou Joy -, pois o tipo deixa o mocho depois de matar a vítima e não antes,

 

No final da reunião, ficou acordado que a melhor acção a tomar seria avisar as mulheres para não andarem sozinhas na rua depois de escurecer e serem informadas de que as provas apontavam para o facto de tanto Helen Whelan como Yvonne Tepper terem sido assassinadas pela mesma pessoa ou grupo de pessoas.

 

Quando se levantaram para sair, Joy Lacko comentou baixinho:

 

- O que me assusta é que neste preciso instante anda por aí uma mulher completamente inocente, atarefada com a sua vida que não percebe que nos próximos dias, só porque tem a pouca sorte de se encontrar no sítio errado à hora errada quando o sujeito se cruzar com ela, a sua vida chegará ao fim.

 

- Presumo que tal não irá acontecer - replicou Rich Stevens com aspereza.

 

Pois eu acho que sim, pensou Sam, acho que vai acontecer.

 

 

                     CAPÍTULO SESSENTA E QUATRO

 

Na quarta-feira de manhã, Jake Perkins compareceu às aulas constantes do horário e apenas faltou ao seminário de Escrita Criativa, pois considerava-se mais bem habilitado do que o actual formador. Mesmo antes do intervalo para o almoço, dirigiu-se, na qualidade de repórter do Stonecroft Gazette, ao gabinete do reitor Downes, a fim de levar a cabo a entrevista agendada, durante a qual Downes ia em princípio tecer os seus comentários a respeito do retumbante êxito da reunião.

 

Porém tornou-se evidente que Alfred Downes não se encontrava de bom humor.

 

-Jake, bem sei que te prometi conceder estes minutos, mas para te ser franco, não me dava jeito nenhum que fosse agora.

 

- Compreendo, Doutor - replicou Jake suavemente. - Calculo que viu no noticiário que o delegado distrital é capaz de mover um processo-crime contra dois dos homenageados da nossa Stonecroft por causa de toda esta confusão publicitária.

 

- Pois é - replicou Downes, com voz gélida.

 

Se Jake reparou no tom de frieza, não deu mostras de tal.

 

- Acha que toda esta publicidade vai ter um efeito nefasto no bom nome da academia de Stonecroft? - inquiriu.

 

- Penso que é óbvio, Jake - replicou Downes. - Se me vais fazer desperdiçar tempo com perguntas estúpidas, então põe-te já a mexer.

 

- Não é minha intenção fazer-lhe perguntas estúpidas - apressou-se Jake a responder, em tom de quem pede desculpa. - Ao que eu queria chegar era ao seguinte. No jantar de homenagem, Robby Brent doou um cheque de dez mil dólares a favor da nossa escola. Atendendo aos actos que praticou nos últimos dias, está a considerar restituir-lhe o dinheiro?

 

Tratava-se de uma pergunta que - poderia apostá-lo - faria o reitor Downes amarinhar pelas paredes. Sabia o quanto o reitor desejava poder mandar construir um anexo à escola durante o seu mandato. Era do conhecimento geral que embora fosse Jack Emerson quem tivesse arquitectado a reunião e a história dos homenageados, a perspectiva fizera de Alfred Downes um homem felicíssimo. Significava publicidade para a escola, a oportunidade de exibir os finalistas com êxito na vida - sendo a mensagem subjacente, é claro, a de que tinham aprendido tudo o que precisavam de saber na velha e boa Stonecroft - e significava também a hipótese de lhes sacar donativos assim como a outros alunos presentes na reunião.

 

Agora que a imprensa andava a especular quanto à coincidência fantástica de cinco das mulheres que costumavam almoçar à mesma mesa terem sido mortas desde a sua formatura em Stonecroft, Jake sabia que tal facto dissuadiria qualquer pessoa de enviar os filhos para esse estabelecimento de ensino. E a manobra publicitária de Laura Wilcox e Robby Brent constituía mais um golpe desferido contra o prestígio da academia. Com o rosto todo enrugado num ar de intensa expectativa e o cabelo ruivo mais espetado do que o habitual, o rapaz declarou:

 

- Dr. Downes, como sabe o meu contrato com o Gazette está a chegar ao fim. De si só pretendo um comentário a respeito da reunião.

 

Alfred Downes fitou o aluno com uma expressão que raiava a repugnância.

 

- Jake, estou a preparar uma declaração e amanhã de manhã receberás uma cópia.

 

- Oh, obrigado, Doutor - replicou o jovem, sentindo uma onda de comiseração pelo homem que se encontrava sentado à sua frente. Está preocupado com o cargo dele, pensou. Os membros do conselho de administração são capazes de o pôr na ma. Sabem que foi jack Emerson o principal responsável pelo fiasco da reunião porque é o proprietário do terreno que terão de comprar para o novo anexo, e que Downes alinhou nisso. - Doutor, estava aqui a pensar...

 

- Não penses, Jake. Põe-te mas é a andar.

 

- Daqui a nada, Doutor, mas agradecia-lhe que ouvisse esta sugestão. Por acaso sei que a Dr.a Sheridan, o Dr. Fleischman e Gordon Amory continuam alojados no Glen-Ridge, e que Cárter Stewart se encontra hospedado no Hudson Valley, que fica no outro lado da cidade. Se os convidasse para um jantar e tirasse algumas fotografias com eles, talvez fosse uma maneira de redimir o bom-nome de Stonecroft. Ninguém poria em dúvida os êxitos profissionais deles, e realçá-los iria contrabalançar os efeitos nefastos da conduta lamentável dos outros dois homenageados.

 

Alfred Downes fitou Jake demoradamente, enquanto pensava que em trinta e cinco anos a leccionar nunca conhecera um aluno tão descarado nem tão espertalhão como aquele. Recostando-se na cadeira, aguardou um longo minuto antes de responder:

 

- Jake, quando é que acabas o secundário?

 

- Perto do final deste ano já tinha notas suficientes para o concluir, Doutor. Como sabe, todos os semestres fico assoberbado com aulas extra. Mas os meus colegas acham que ainda não estou preparado para no próximo ano ir para a faculdade, de modo que terei muito prazer em ficar cá e fazer a minha graduação juntamente com a minha turma.

 

Jake olhou para o Dr. Downes e reparou que este não parecia comungar da sua felicidade.

 

- Tenho outra ideia para um artigo que talvez o Doutor goste

- prosseguiu. - Andei a fazer uma série de pesquisas a respeito de Laura Wilcox. Ou seja, analisei exemplares antigos do Gazette e do Cornwall Times relativos à época em que viveu cá e, conforme declarou o Times, em que foi sempre a rainha do baile. A família possuía dinheiro e os pais concederam-lhe um dote. Vou fazer para o Gazette um artigo importante a mostrar que apesar de todos os privilégios que beneficiou, Laura Wilcox é a única que agora está a passar por um mau bocado.

 

Jake, pressentindo que o outro se dispunha a interrompê-lo, apressou-se a acrescentar:

 

- Acho que um artigo nesses moldes vai ao encontro de dois objectivos, Doutor. Mostra aos miúdos de Stonecroft que o facto de se beneficiar de todas as vantagens não é sinónimo de êxito, e também demonstra que os outros homenageados que tiveram de subir a pulso foram os mais bem sucedidos. Quero com isto dizer que Stonecroft tem alunos bolseiros e miúdos que trabalham depois das aulas para custear os estudos. Talvez lhes sirva de motivação e, além disso, parece-me um bom furo jornalístico. Os grandes meios de comunicação andam à procura de histórias com um enredo e uma continuação, e talvez se interessem por esta.

 

Olhando para a sua própria fotografia que se encontrava pendurada na parede por detrás da cabeça de Jake, Alfred Downes pôs-se a meditar na argumentação do rapaz.

 

- É possível - admitiu com relutância.

 

- Vou tirar fotografias das casas em Cornwall onde Laura viveu quando era pequena. A primeira encontra-se neste momento desabitada, mas foi restaurada há pouco tempo, e ficou mesmo com bom aspecto. A segunda, na Concord Avenue, para onde a família se mudou, é o que eu designo por uma mansão de folheto.

 

- Uma mansão de folheto? - perguntou Downes, desconcertado.

 

- É uma que se destaca entre um magote de casas no mesmo quarteirão por ser demasiado grande ou pomposa. Às vezes também lhes chamam McMansões.

 

- Nunca ouvi tal expressão - replicou Downes, dirigindo-se mais a si próprio do que a Jake.

 

Levantando-se de um pulo, o rapaz declarou:

 

- Doutor, não é nada de importante, mas não posso deixar de lhe afirmar que quanto mais penso nela, mais me agrada a ideia de escrever uma reportagem sobre Laura nas casas onde viveu em pequena, e de tirar fotografias dela quando andava aqui em Stonecroft e mais tarde quando se tornou famosa. Agora já não o empato mais, Dr. Downes. Mas antes permita-me que lhe dê outro conselho. Se for avante com o tal jantar, sugeria-lhe que não convidasse o Sr. Emerson. Tenho a impressão de que nenhum dos outros homenageados o suporta.

 

 

                           CAPÍTULO SESSENTA E CINCO

 

Às dez horas Craig Michaelson recebeu o tão ansiado telefonema.

 

- O general Buckley está na linha - anunciou-lhe a secretária. Craig levantou o auscultador.

 

- Charles, como vai? - indagou.

 

- Estou óptimo, Craig - respondeu uma voz preocupada. Mas que assunto de extrema urgência é esse? Que se passa?

 

Craig Michaelson inspirou fundo. Já devia saber que com Charles é escusado pôr-me com rodeios, pensou. Não foi por acaso que chegou a general de três estrelas.

 

- Antes de mais, talvez não seja tão alarmante como eu julgava replicou -, mas considero haver motivos sólidos para nos preocuparmos. Já deve ter calculado que diz respeito a Meredith. Ontem, a Dr.a Sheridan veio falar comigo. Já ouviu falar dela?

 

- A historiadora? Já. O primeiro livro dela referia-se a West Point. Apreciei-o bastante e creio que não falhei um único dos seus livros posteriores. É uma boa escritora.

 

- É mais do que isso - replicou Craig Michaelson sem rodeios.

- É a mãe biológica de Meredith, e telefonei-lhe por causa de um assunto para o qual ela me alertou.

 

- Jean Sheridan é a mãe de Meredith!

 

O general Buckley escutou com ávido interesse Michaelson relatar-lhe o que sabia a respeito da história de Jean Sheridan, da reunião em Stonecroft e da alegada ameaça contra Meredith, interrompendo-o de vez em quando para esclarecer bem o que ouvia. De seguida, declarou:

 

- Craig, como sabe, Meredith tem conhecimento de que foi adoptada. Quando chegou à adolescência, manifestou interesse em conhecer a mãe biológica. Quando você e o Dr. Connors trataram da adopção, o médico contou-me que o pai dela morrera num acidente pouco antes de se licenciar, e que a mãe era uma rapariga de dezoito anos que recebera uma bolsa de estudo e ia ingressar na faculdade. Meredith está ao corrente de tudo.

 

-Jean Sheridan foi informada de que eu tencionava revelar-lhe a sua identidade. O que lhe omiti há vinte anos foi que o pai biológico de Meredith era um cadete que morreu atropelado no recinto de West Point, por um condutor que se pôs em fuga. Na altura, abstive-me de lho dizer porque sabia que facilmente depreenderia de quem se tratava.

 

- Um cadete! Não, não me contou isso.

 

- Chamava-se Carroll Reed Thornton, Jr.

 

- Conheço o pai dele - replicou Charles Buckley baixinho.

- Carroll nunca recuperou da morte do filho. Mal posso acreditar que é o avô de Meredith.

 

- Charles, pode crer que é. Agora Jean Sheridan sente-se tão aliviada por julgar que foi Laura Wilcox quem lhe enviou os faxes a respeito de Lily, como ela chama a Meredith, que pretende aceitar o último em que alegadamente a outra pedia desculpa como uma bênção do céu. Mas eu não acredito.

 

- De modo nenhum estou a ver Meredith travar conhecimento com Laura Wilcox - replicou Charles Buckley em tom pausado.

 

- Foi justamente essa a minha reacção. E há mais uma coisa. Se na realidade é Laura Wilcox quem está por trás das ameaças, posso desde já afirmar-lhe que o delegado distrital deste condado tenciona mover-lhe um processo.

 

-Jean Sheridan ainda se encontra em Cornwall?

 

- Encontra-se, sim. Vai continuar hospedada na Casa Glen-Ridge até receber de novo notícias de Laura.

 

- Vou telefonar a Meredith e perguntar-lhe se alguma vez esteve com Laura Wilcox, e se se recorda onde deixou a tal escova.

 

Hoje tenho umas reuniões no Pentágono às quais não me posso esquivar, mas amanhã de manhã eu e Gano apanhamos um avião para Cornwall. Pode fazer-me o favor de contactar Jean Sheridan e informá-la de que os pais adoptivos da sua filha gostavam de jantar amanhã com ela?

 

- Claro.

 

- Não quero alarmar Meredith, mas posso pedir-lhe que me garanta que não sairá do recinto de West Point até a irmos buscar na sexta-feira.

 

- É capaz de asseverar de que ela manterá a promessa?

 

Pela primeira vez desde o início da conversa pareceu a Craig Michaelson que o seu bom amigo, o general Charles Buckley, falava em tom mais descontraído.

 

- Claro que sou capaz. Posso ser o pai dela, mas também me encontro aqui no poleiro a comandar. Agora ficámos a saber que Meredith é um rebento do exército, tanto por parte da família biológica como da adoptiva, mas também não se esqueça de que é cadete de West Point. Nunca falta à palavra dada a um oficial superior.

 

Espero que tenha razão, pensou Craig Michaelson, que em voz alta respondeu:

 

- Charles, depois conte-me o que ela disse.

 

- Claro.

 

Passada uma hora o general Charles Buckley voltou a ligar.

 

- Craig - declarou com uma entoação preocupada -, receio que tenha razão em mostrar-se céptico quanto ao fax. Meredith foi categórica quando me respondeu que nunca viu Laura Wilcox, nem faz a mínima ideia onde perdeu a tal escova. Estive para insistir, mas hoje ela vai ter um teste importante e está muito preocupada com ele, de modo que não é boa altura para a alarmar. Mostrou-se felicíssima por eu e a mãe... - hesitou e prosseguiu em tom firme - por eu e a mãe a irmos buscar. Se tudo correr bem, durante o fim-de-semana contamos-lhe a respeito de Jean Sheridan, e faremos de modo a que se conheçam. Pedi a Meredith para permanecer em West Point até irmos buscá-la e ela riu-se de mim. Declarou que na sexta-feira tem outro teste e tanta coisa para estudar que até à manhã de sábado não verá a luz do dia. Mas prometeu-me.

 

Parece-me tudo em ordem, pensou Craig Michaelson ao pousar o auscultador. Mas a verdade nua e crua é que não foi Laura Wilcox quem mandou o fax e Jean Sheridan precisa de ser informada.

 

Para o poder consultar com facilidade, colocara o cartão de Jean debaixo do telefone da secretária. Pegou nele, levantou o auscultador e começou a marcar o número dela. Depois interrompeu a ligação. Não é à Jean que eu quero telefonar, decidiu. Esta dera-lhe o número do investigador que trabalhava para o delegado distrital.

 

Onde é que opus? Como se chamava ele?, interrogou-se.

 

Depois de vasculhar o tampo da secretária, avistou a anotação que escrevera, ”Sam Deegan”, seguida de um número de telefone.

 

Era isto que eu queria, pensou Michaelson.

 

 

                                 CAPÍTULO SESSENTA E SEIS

 

Na noite passada... ou foi esta manhã?, interrogou-se, atirou-me com um cobertor para a cama. ”Estás com frio, Laura”, disse. ”Não há necessidade disso. Foi distracção minha.”

 

Mostrou-se bondoso, pensou Laura apática. Ele até se lembrara de lhe barrar o brioche com compota e de que ela gostava de leite magro com o café. Vira-o tão calmo que chegara a sentir-se desanuviada.

 

Era isso que queria recordar, e não o que ele lhe dissera quando estava sentada na cadeira a beberricar o café, com as pernas ainda amarradas mas com as mãos livres.

 

- Laura, quem me dera que compreendesses a sensação que experimentei quando conduzia pelas ruas silenciosas em busca da minha presa. Fazê-lo é uma arte, Laura. Nunca devemos ser demasiado lentos a conduzir. O carro-patrulha de prevenção aos infractores tanto pode cair em cima do carro que se move demasiado devagar como daquele que segue em excesso de velocidade. Vêem-se pessoas que sabem que beberam de mais cometer a asneira de avançar aos solavancos pela estrada, um indício seguro de que já não confiam nas próprias faculdades e também um indício seguro para a Polícia.

 

Laura, na noite passada andei à caça de uma presa. Como tributo a Jean, decidi ir até Highland Falis. Era aí que tinha os arranjinhos com o cadete. Estavas ao corrente disso, Laura?

 

Como resposta, Laura sacudira a cabeça. Ele zangara-se.

 

- Fala, Laura! Sabias que Jean tinha um arranjinho com um cadete?

 

- Vi-os uma vez juntos quando fui a um concerto em West Point, mas não liguei - respondera-lhe. - Jeannie nunca falou dele a nenhuma de nós - explicara. - Todas sabíamos que ia muito a Point porque já nessa altura planeava escrever um livro sobre a academia.

 

O Mocho, satisfeito com a resposta, aquiescera com a cabeça.

 

- Eu sabia que aos domingos Jean ia até lá com frequência munida do bloco de apontamentos e que se sentava num dos bancos que davam para o rio - replicara. - Um domingo, fui à sua procura e vi-o aproximar-se dela. Quando foram dar um passeio segui-os, e julgando que se encontravam sozinhos, ele beijou-a. Depois dessa ocasião continuei a segui-los, Laura. Oh, as manigâncias que faziam para que ninguém desconfiasse do arranjinho. Ela nem ia aos bailes com o namoradito. Naquela Primavera, observei Jean com todo o cuidado. Quem me dera que pudesses ter visto a expressão do rosto dela quando se encontravam juntos e longe das outras pessoas! Era radiosa. Jean, a querida e sossegadinha Jean, que eu considerava uma sofredora como eu, atendendo à vida tumultuosa que tinha em casa, a minha alma gémea... andava a viver uma existência da qual me excluíra.

 

Julguei que tinha um fraquinho por mim, reflectira Laura, e que me detestava por troçar dele. Mas na verdade amava Jean. Ainda lhe latejava na consciência o sentimento de horror que o que ele dissera a seguir lhe inspirara.

 

- Laura, a morte de Reed Thornton não foi um acidente - declarara. - Fez vinte anos, naquele último domingo de Maio, eu seguia de carro pelo recinto, na esperança de conseguir avistá-los. O bem-parecido Reed de cabelo cor de ouro seguia sozinho pela estrada que conduz à área dos piqueniques. Talvez tivessem um encontro. Se eu tencionava matá-lo? É evidente que sim. O tipo possuía tudo o que eu não tinha... bom aspecto, família de categoria e um futuro promissor. E o amor de Jeannie ainda por cima. Não era justo. Concorda comigo, Laura. Não era justo!

 

Ela gaguejara uma resposta, ansiosa por concordar com ele e esquivar-se-lhe à fúria. Depois o Mocho fizera-lhe o relato pormenorizado da mulher que matara na noite anterior. Afirmara que lhe pedira desculpa, mas que quando chegasse a vez de Laura e de Jean morrerem, não haveria desculpas.

 

Declarara que Meredith seria a última presa, acrescentando que esta constituiria a sua derradeira necessidade - ou que esperava, pelo menos, que ela constituísse a sua derradeira necessidade.

 

Quem será Meredith? - interrogou-se Laura, sentindo-se invadida pelo torpor. Mergulhara num sono entrecortado de imagens de mochos que empoleirados nos ramos investiam contra ela soltando pios macabros, agitando ao de leve as asas, enquanto ela lhes tentava fugir. Mas as pernas não lhe obedeciam.

 

 

                                 CAPÍTULO SESSENTA E SETE

 

Jean, ajuda-me! Jean, ajuda-me, por favor! A voz suplicante de Laura, que no dia anterior quando se encontrava no carro junto ao escritório de Craig Michaelson lhe parecera tão real, começou de novo a ecoar na mente de Jean, como se fosse o eco das dúvidas expressadas por Alice a respeito da autenticidade do fax.

 

Depois de se despedir da amiga, Jean sentara-se longos minutos à secretária com a voz de Laura a latejar-lhe na cabeça, tentando ser racional e decidir se Alice e Sam tinham razão. Talvez a prontidão com que aceitara o fax como genuíno se devesse à necessidade de acreditar que Lily se encontrava em segurança.

 

Por fim levantou-se, entrou na casa de banho e permaneceu tempos infindos debaixo do chuveiro, deixando que a água lhe escorresse pelo cabelo e rosto. Deitou champô na cabeça e pôs-se a massajá-la, como se a pressão dos dedos lhe desenvencilhasse os nós de confusão que se lhe emaranhavam no espírito.

 

Preciso de dar um longo passeio, reflectiu enquanto envolvia o corpo com o roupão turco e ligava o secador. Talvez seja a única maneira de conseguir desanuviar o espírito. Quando fizera a mala para o fim-de-semana, num gesto impulsivo enfiara lá dentro o fato de treino encarnado favorito. Agora sentia-se contente por o ter feito, mas ao lembrar-se do frio devido à janela aberta, tomou a precaução de vestir uma camisola por baixo do blusão.

 

Ao colocar o relógio, reparou que eram dez e um quarto e que ainda não bebera nenhuma chávena de café.

 

Não admira que o meu cérebro esteja embotado, reflectiu pesarosa. Vou pedir um termo na cafetaria e bebo-o enquanto passeio. Não estou com fome e parece que as paredes deste quarto me provocam claustrofobia.

 

Quando subiu o fecho do blusão, um pensamento inquietador atravessou-lhe o espírito.

 

Sempre que saio deste quarto, corro o risco de não atender um telefonema de Laura. Não posso permanecer aqui dia e noite. Mas espera lá! E se eu deixasse uma mensagem no telefone do quarto?

 

Leu as instruções do telefone, levantou o auscultador e premiu a tecla de gravação de chamadas. Tomando o cuidado de falar de maneira audível e alteando um pouco a voz, declarou: ”Daqui fala Jean Sheridan. Se for algum assunto importante, agradeço que ligue para o meu telemóvel, 202-555-5314. Vou repetir. É o 202-555-5314.” Hesitou e depois as palavras jorraram-lhe dos lábios: ”Laura, quero ajudar-te. Por favor, liga-me!”

 

Jean, com uma das mãos pousou o auscultador, e com a outra deu pancadinhas leves nos olhos. Esfumara-se toda a euforia inicial de julgar que Lily se encontrava completamente a salvo, mas no íntimo obstinava-se em não querer acreditar que o fax não fora da autoria de Laura. A recepcionista que atendeu a primeira chamada dela afirmou que Laura parecia nervosa, ocorreu a Jean. Sam disse-me que Jake Perkins, que conseguiu escutar a conversa, também concordou. O telefonema que Robby Erent me fez a imitar a Laura e a dizer que estava tudo bem foi mais um dos truques dele. Se calhar convenceu Laura a alinhar nessa manobra publicitária e ela agora receia as consequências. E acredito que se não foi ela a ameaçar-me a respeito de Lily, sabe quem o fez. Por isso é que preciso de dar-lhe aperceber que a quero ajudar.

 

Jean levantou-se, pegou na mala, mas depois optou por não a levar para não ter de andar carregada. Em vez disso, enfiou um lenço, o telemóvel e a chave do quarto numa algibeira. Pensou melhor e retirou da carteira uma nota de vinte dólares.

 

Assim, enquanto andarno passeio, se quiser parar em algum lado para comer um croissant, vou prevenida, reflectiu.

 

Fez menção de sair do quarto, mas depois reparou que se esquecera de qualquer coisa. Os óculos escuros, era evidente. Aborrecida por não conseguir concentrar-se, encaminhou-se de novo para o toucador, retirou os óculos da mala, dirigiu-se com passadas rápidas para a porta, abriu-a e com um gesto decidido fechou-a atrás de si.

 

Quando o elevador parou no andar dela, estava vazio.

 

Durante o fim-de-semana passou-se o contrário, pensou, sempre que eu entrava esbarrava com alguém que não encontrava há vinte anos.

 

No átrio, andavam a afixar cartazes de boas-vindas aos Cem Melhores Vendedores da empresa Starbright Electrical Fixtures por cima do balcão da recepção e nas portas da sala de jantar.

 

De Stonecroft passaram para Starbright, reflectiu Jean. Com quantos homenageados contarão eles? Serão todos cem homenageados?

 

No balcão da recepção avistou a empregada de óculos enormes e falinhas mansas.

 

Tenho a certeza de que foi ela quem atendeu o telefonema de Laura, pensou. Vou falar com ela.

 

Encaminhou-se para o balcão e leu a placa de identificação que o uniforme da empregada ostentava e no qual se lia ”Amy Sachs”.

 

- Amy - declarou com um sorriso amistoso -, sou uma grande amiga de Laura Wilcox e, como todos os outros, ando bastante preocupada por causa dela. Disseram-me que foi a senhora e Jake Perkins que na noite de domingo falaram com Laura.

 

-Jake, quando me ouviu dizer o nome da Sr.a Wilcox, tirou-me o telefone da mão. - O tom desconfiado de Amy fez com que subisse a voz a um nível quase normal.

 

- Compreendo - replicou Jean, apaziguadora. -Já travei conhecimento com Jake e sei como é que actua. Amy, fiquei contente por ele ouvir a voz de Laura, pois é um rapaz esperto e confio no seu discernimento. Sei que a senhora mal conhece a Sr.a Wilcox, mas acredita piamente que foi ela quem falou consigo?

 

- Oh, acredito, Dr.a Sheridan-replicou Amy em voz solene. - Não se esqueça de que costumava vê-la na série Henderson County e habituei-me à sua voz. Durante três anos nunca falhei um programa. Eu e a minha mãe parecíamos que estávamos cronometradas, todas as terças-feiras às oito da noite, lá nos íamos nós sentar diante do televisor a vê-la. - Fez uma pausa e acrescentou: - A menos, é claro, que estivesse de turno, mas tentava sempre que não coincidisse com as noites de terça-feira. Mas às vezes pediam-me para vir substituir um colega que adoecera, e então a minha mãe gravava-me o episódio.

 

- Sendo assim, estou certa de que ficou a conhecer a voz de Laura. Amy, é capaz de me explicar como é que ela soava quando você atendeu a chamada?

 

- Dr.a Sheridan, vejo-me forçada a responder-lhe que parecia esquisita. Esquisita no sentido de diferente, quero eu dizer. Aqui entre nós, ao princípio fiquei com a impressão de que estava bêbeda, porque li na People que há alguns anos ela teve problemas de alcoolismo. Mas agora acho mesmo que Jake tinha razão. A Sr.a Wilcox não parecia que emborcara copos a mais, mas sim que estava nervosa... muito, muito nervosa.

 

A voz de Amy sumira-se, retomando o habitual tom sussurrante.

 

- Na verdade, no domingo à noite, depois de falar com a Sr.a Wilcox, fui para casa e contei à minha mãe que a entoação da voz dela me fazia lembrar eu mesma, quando a professora de dicção do secundário tentava obrigar-me a falar mais alto. Tinha tanto medo dela que com o esforço de me conter para não chorar, a minha voz começava a tremer. É a melhor forma que me ocorre para conseguir descrever como me soou a voz da Sr.a Wilcox!

 

- Entendo.

 

”Jean, ajuda-me! Por favor, Jean, ajuda-me!” ocorreu-lhe. Eu bem tinha razão. Não se tratou de um golpe publicitário.

 

O sorriso triunfante de Amy por ser capaz de descrever a reacção que tivera à voz de Laura, desvaneceu-se quase de imediato.

 

- E, Dr.a Sheridan - acrescentou -, quero pedir-lhe desculpa por o seu fax de ontem se ter misturado com a correspondência do Sr. Cullen. Orgulhamo-nos da rapidez e cuidado com que entregamos os faxes que chegam para os nossos hóspedes. Tenho que ver se não me esqueço de o explicar ao Dr. Fleischman quando o vir.

 

- Ao Dr. Fleischman? - inquiriu Jean, com uma pontinha de curiosidade. - Há algum motivo que a leve a prestar-lhe satisfações quanto a isso?

 

- Pois há. Ontem à tarde quando regressou do passeio, ele deteve-se aqui ao balcão e telefonou para o seu quarto. Como eu sabia que se encontrava na cafetaria, disse-lhe que fosse lá ter consigo. Então perguntou-me se a doutora recebera mais faxes e pareceu admirado quando lhe respondi que não. Fiquei mesmo com a impressão de que ele sabia que a doutora estava à espera de algum.

 

- Entendo. Amy, obrigada. -Jean tentou não deixar transparecer o choque que os comentários da empregada lhe tinham causado.

 

Porque é que Mark se pôs com aquelas perguntas?, interrogou-se. E esquecendo-se de que tencionava ir buscar um termo de café, encaminhou-se atordoada para o átrio e saiu pela porta da frente.

 

No exterior ainda estava mais frio do que julgava, mas o Sol estava quente e não havia vento, de modo que achou que se encontrava em condições de dar o passeio. Colocou os óculos escuros e começou a afastar-se do hotel, sem rumo definido. O seu espírito considerava uma hipótese que ela se recusava a aceitar. Seria Mark a pessoa que enviara os faxes a respeito de Lily? Fora ele quem mandara a escova de Lily? Mark, que a reconfortara tanto quando lhe revelara a sua angústia, que lhe cobrira a mão com a dele e a levara a pensar que partilhava a sua dor?

 

Mark sabia que eu namorava com Reed, pensou Jean. Foi ele próprio que me disse que nos vira em West Point quando andava a correr. Terá de alguma forma descoberto a existência de Lily? A menos que fosse ele a enviar-me os faxes, porque ficou a meio da tarde de ontem tão preocupado por eu não receber nenhum? Será ele que está por trás de tudo isto e se for, será pessoa capaz de magoar a minha filha?

 

Recuso-me apensar nisso, cismou, sentindo-se de rastos face à perspectiva. Não posso acreditar nisso! Mas por que motivo perguntou à recepcionista se eu recebera algum fax? Porque não me perguntou?

 

Jean começou a percorrer ruas que tão bem conhecera em criança, caminhando à toa. Passou pela câmara municipal sem a ver, seguiu pela Angola Street até chegar ao desvio que desembocava na auto-estrada, voltou para trás e passada uma hora avistou por fim uma cafetaria que também servia comida para fora, e que se localizava no extremo da Mountain Road. Sentou-se ao balcão e mandou vir um café. Deprimida e de novo profundamente abalada, reparou que nem o ar frio nem o demorado passeio a tinham ajudado a clarificar os pensamentos.

 

Estou pior do que dantes, meditou. Agora não sei em quem confiar nem acreditar.

 

Segundo a enorme placa encarnada que ostentava no casaco, Duke Mackenzie era o nome do homem magricela e de cabelo grisalho que se encontrava do outro lado do balcão. Via-se bem que estava ansioso por meter conversa.

 

- A menina é nova por estas bandas? - inquiriu, servindo-lhe café.

 

- Não, eu cresci cá.

 

- Por acaso não pertence ao grupo de antigos alunos que há vinte anos frequentaram Stonecroft e promoveram um encontro?

 

- Pertenço, sim - replicou Jean, sem poder esquivar-se à pergunta.

 

- Em que ponto da cidade é que viveu?

 

Esboçando um gesto em direcção às traseiras do estabelecimento, Jean replicou:

 

- Mesmo ali, na Mountain Road.

 

- Está a brincar! Nessa altura o nosso negócio não era este, mas tínhamos uma lavandaria na localidade.

 

- Eu lembro-me - respondeu Jean, começando a beberricar o café e não se importando que estivesse quente de mais.

 

- Eu e a minha mulher gostámos da cidade e há dez anos comprámos este estabelecimento. Teve de ser todo restaurado. Eu e Sue trabalhamos que nem uns escravos, mas até apreciamos. Abrimos às seis e só fechamos às nove da noite. Sue voltou mesmo agora para a cozinha, para fazer as saladas e pôr a comida no forno. Ao balcão só aviamos coisas rápidas, mas ficaria surpreendida se visse a quantidade de pessoas que param para beber um café e comer uma sanduíche.

 

Durante o fim-de-semana alguns dos antigos alunos de Stonecroft pararam aqui enquanto andavam a passear pela cidade - prosseguiu Duke. - Nem queriam acreditar que o valor dos bens imobiliários tivesse subido tanto. Em que número da Mountain Road é que disse que morava?

 

Relutante, Jean indicou-lhe a morada da casa da sua infância. Depois, ansiosa por se ir embora, bebeu quase de um trago o resto do café, embora este lhe queimasse a boca. Levantou-se, depositou a nota de vinte dólares no balcão e perguntou quanto era.

 

- A segunda chávena é de graça - declarou Duke, obviamente ansioso por continuar a conversa.

 

- Não, deixe estar, obrigada. Já estou atrasada.

 

Quando Duke se dirigiu à caixa registadora para fazer o troco, o telemóvel de Jean tocou. Era Craig Michaelson.

 

- Ainda bem que deixou um contacto, Dr.a Sheridan - afirmou.

- Pode conversar sem que a ouçam?

 

- Sim - replicou Jean, afastando-se do balcão.

 

- Acabei de falar com o pai adoptivo da sua filha. Ele e a mulher vêm amanhã para estas bandas e gostavam de jantar consigo. Lily, como chama à sua filha, sabe que foi adoptada e mostrou sempre interesse em conhecer a mãe biológica. Os pais querem que isso se concretize. Não pretendo estar com muitos pormenores ao telefone, mas para já afirmo-lhe isto: é praticamente impossível que Lily alguma vez se tenha encontrado com Laura Wilcox, de modo que acho que deve presumir que o último fax é um embuste. Mas atendendo ao sítio onde ela se acha actualmente, pode estar certa de que se encontra em segurança.

 

Por um instante, Jean ficou tão estupefacta que nem conseguiu pronunciar uma palavra.

 

- Dr.a Sheridan?

 

- Sim, Dr. Michaelson? - sussurrou ela.

 

- Está disponível para jantar amanhã?

 

- Sim, claro.

 

- Vou buscá-la às sete horas. Sugeri que o jantar decorresse em minha casa a fim de vocês os três ficarem à vontade. E, em breve, quem sabe se já neste fim-de-semana, vai conhecer Meredith.

 

- Meredith? É assim que ela se chama? É o nome da minha filha? - Jean percebeu que de súbito começara a falar com voz estridente, mas foi incapaz de se dominar.

 

Não tarda irei vê-la. Vou poder fitá-la nos olhos e àpertá-la nos braços, pensou, sem se importar que as lágrimas lhe rolassem pelas faces ou que Duke a observasse intensamente, bebendo cada uma das palavras que ela proferia.

 

- É, sim. Não pretendia dizer-lho já, mas agora não interessa replicou Craig Michaelson em tom bondoso. - Posso imaginar como se deve sentir. Amanhã às sete da tarde vou buscá-la ao hotel.

 

- Amanhã às sete da tarde - repetiu Jean. Desligou e por um instante manteve-se imóvel. Depois, limpou com as costas da mão as lágrimas que lhe deslizavam em catadupa pelas faces.

 

Meredith, Meredith, Meredith!, pensou.

 

- Parece que recebeu boas notícias - insinuou Duke.

 

- Recebi, sim. Oh, Deus do céu, recebi, sim!

 

Jean pegou no troco, deixou um dólar em cima do balcão e, mergulhada num transe de júbilo, saiu do restaurante.

 

Duke Mackenzie contemplou demoradamente Jean a sair do estabelecimento.

 

Quando entrou parecia tão macambúzia, pensou, mas depois do telefonema até parece que lhe saiu a lotaria. Que raio queria ela dizer quando perguntou qual era o nome da filha?

 

Da janela observou Jean a dirigir-se para a Mountain Road. Se não tivesse saído tão à pressa, ter-lhe-ia perguntado quem era o sujeito de óculos escuros e gorro que ultimamente aparecia todas as manhãs assim que abriam, às seis. Encomendava sempre a mesma coisa - sumo, um pãozinho com manteiga e café. Depois saía, entrava no carro e seguia para a Mountain Road. Na noite anterior, dispunham-se a fechar, entrara de novo e mandara embrulhar uma sanduíche e um café.

 

Que sujeito castiço, pensou Duke enquanto limpava o balcão imaculado. Perguntei-lhe se fazia parte da reunião de Stonecroft e deu-me uma resposta à espertalhaço, dizendo: ”Eu sou a reunião.”

 

Duke passou a esponja por água quente e espremeu-a.

 

Talvez amanhã, se o sujeito aparecer, eu diga a Sue para o empatar, meto-me no carro e sigo-o para ver quem é que ele vai visitar à Mountain Road, reflectiu. Será Margaret Mills? Divorciou-se há alguns anos e toda agente sabe que anda à procura de namorado. Não faz mal eu confirmar.

 

Duke serviu-se de uma chávena de café.

 

Desde que na semana passada o grupo da reunião apareceu, isto por aqui tem andado animado, pensou. Se esta noite o sujeito calado aparecer por aqui para levar a sanduíche e o café, pergunto-lhe se conhece a rapariga que esteve mesmo agora aqui. Sendo ela tão atraente e pertencendo ao grupo, o tipo deve pelo menos saber quem é. Que esquisito ter perguntado qual o nome da própria filha. Talvez o outro me esclareça quanto ao que se pássa com ela.

 

Enquanto despachava outra chávena de café, Duke soltou uma risadinha abafada. Sue estava sempre a afirmar-lhe que a curiosidade matara o gato.

 

Não sou curioso, tranquilizou-se. Só gosto de estar a par dos acontecimentos.

 

 

                           CAPÍTULO SESSENTA E OITO

 

Ao meio-dia, Sam bateu à porta do gabinete do delegado distrital e sem aguardar resposta entrou.

 

Rich Stevens, que examinava atentamente diversos papéis que se encontravam em cima da secretária, levantou a cabeça, mostrando-se irritado com a interrupção abrupta.

 

- Rich, desculpe esta minha entrada intempestiva, mas é importante - declarou-lhe Sam. - Se não levamos muito a sério as ameaças contra a filha de Jean Sheridan, estamos a cometer um grave erro. Recebi uma mensagem a pedir para ligar ao Dr. Craig Michaelson, o advogado que tratou da adopção. Acabámos de falar um com o outro. Michaelson entrou em contacto com os pais adoptivos. O pai é um general de três estrelas ligado ao Pentágono. A rapariga é cadete do segundo ano da Academia Militar de West Point. O general ligou-lhe a perguntar se alguma vez se encontrara com Laura Wilcox. A resposta foi um rotundo não. E também não se lembra onde perdeu a escova.

 

Quando Rich Stevens se recostou na cadeira e entrelaçou os dedos, o seu rosto já não deixava transparecer a mínima irritação e para os que privavam com ele isso era indício de que se sentia extremamente preocupado.

 

- Era só o que nos faltava - declarou - a filha de um general de três estrelas andar a ser ameaçada por um tarado qualquer. Na academia já trataram de arranjar um guarda-costas para a rapariga?

 

- Pelo que Michaelson me contou, ela vai fazer dois testes importantes, um amanhã e o outro na sexta-feira. Quando o pai lhe pediu para não sair do recinto de West Point, riu-se. O general não quis alarmá-la e não lhe referiu as ameaças. Amanhã ele e a mulher apanham um avião e vêm cá para conhecer Jean Sheridan. O general deseja que o chefe o receba sexta-feira de manhã aqui no escritório.

 

- Quem é ele?

 

- Michaelson não me quis facultar essa informação por telefone. A rapariga sabe que foi adoptada, mas até hoje de manhã nem o general nem a mulher dele faziam a mínima ideia quanto à identidade dos pais biológicos. Jean Sheridan jurou que até começar a receber os faxes nunca revelou a ninguém a existência da bebé. Eu diria que quem o descobriu e soube que a menina era adoptada, teve conhecimento do facto quando ela nasceu. Michaelson garantiu que os ficheiros dele estiveram sempre vedados a quem quer que fosse. Jean Sheridan desconfia que a fuga partiu do consultório do médico que lhe prestou assistência durante a gravidez e o parto, o que pelo menos constitui para nós um ponto de referência para tentarmos apurar quem poderia ter acesso aos ficheiros.

 

- Então se Laura Wilcox não está implicada nas ameaças e não enviou aquele fax a pedir desculpa por as fazer, eu meti o pé na argola quando declarei que o desaparecimento dela não passava de uma manobra publicitária - afirmou Rich Stevens com azedume.

 

- Quanto a esse ponto, ainda não podemos asseverar nada, Rich, mas garantimos sem margem para dúvidas que não é ela quem anda a ameaçar a rapariga. O que dá azo à pergunta: se não foi Laura quem enviou o tal fax, será que o fizeram para nos levar a desistir da investigação?

 

- Foi o que eu lhe disse para fazer. Muito bem, Sam. Vou tirá-lo dos homicídios. Quem me dera que soubéssemos o nome da cadete. Mais uma vez lhe pergunto: o general tem a certeza absoluta de que ela se encontra em segurança?

 

- De acordo com Michaelson, por causa dos testes encontra-se. Afirmou ele que a rapariga, quando não está nas aulas enfia-se no quarto a estudar. Garantiu ao pai que não saía do recinto de West Point.

 

- Então, e atendendo a todos os dispositivos de segurança que existem em West Point, nada de mal lhe deve acontecer, pelo menos por ora. Mas que alívio.

 

- Não estou assim tão certo. O facto de se encontrar no recinto de West Point não salvou a vida do pai biológico - replicou Sam num tom soturno. - Também era cadete. Duas semanas antes de jurar bandeira, foi vítima de atropelamento mortal por parte de um condutor que se pôs em fuga. Nunca descobriram a pessoa que o matou.

 

- Houve dúvidas quanto ao facto de se tratar de um acidente? - inquiriu Stevens em tom cáustico.

 

- Pelo que Jean Sheridan me contou, nunca ocorreu a ninguém que Reed Thornton... era o nome dele... tivesse sido atropelado de propósito. Acharam que o condutor entrou em pânico e ficou com medo de se entregar. Mas atendendo a tudo o que aconteceu, não seria má ideia dar uma vista de olhos ao ficheiro relativo à ocorrência.

 

- Força, Sam. Virgem Santíssima, já imaginou o que farão os meios de comunicação se deitarem as garras a isto? Filha de general de três estrelas, cadete de West Point, ameaçada. O pai biológico, também cadete, morreu no recinto de West Point, vítima de acidente misterioso. A mãe biológica é uma reputada historiadora e autora de um best-seller.

 

- Ainda há mais - replicou Sam. - O pai de Reed Thornton é general-de-brigada na reforma. Desconhece ainda que tem uma neta.

 

- Sam, de novo lhe pergunto. Tem mesmo a certeza absoluta de que essa rapariga se encontra a salvo?

 

- Sou obrigado a aceitar o facto do pai adoptivo considerar que ela se encontra a salvo.

 

Ao levantar-se, Sam reparou no monte de mensagens empilhadas em cima da secretária de Rich Stevens.

 

- Mais informações sobre os homicídios? - inquiriu.

 

- Sam, nas escassas horas em que não esteve cá, perdi a conta aos telefonemas que se sucederam em catadupa referentes a homens com aspecto suspeito. Um deles era de uma mulher que jurou que foi seguida quando saiu do supermercado. Conseguiu anotar o número da matrícula do carro do tipo. Veio a verificar-se que o suspeito era um agente do FBI de visita à mãe. Recebemos duas chamadas sobre a presença de carros suspeitos à porta de recintos escolares. Afinal, em ambos os casos eram pais à espera dos filhos. Temos um tarado que confessou a autoria dos homicídios. O único problema é que desde o mês passado se encontra atrás das grades.

 

- Já ligou algum médium?

 

- Oh, claro. Foram três.

 

O telefone que se encontrava na secretária de Stevens começou a tocar. O delegado distrital atendeu, escutou o que lhe diziam e tapou o bucal com a mão.

 

- Estou à espera que me façam a ligação ao governador - disse, arqueando o sobrolho.

 

Quando Sam saiu do gabinete, ouviu-o dizer:

 

- Bom-dia, senhor governador. Sim, é um problema muito bicudo, mas estamos a trabalhar a contra-relógio para...

 

Encontrar o homicida e levá-lo à justiça, pensou Sam. Esperemos que tal ocorra antes que coloquem mais mochos em miniatura junto de mulheres mortas.

 

Incluindo uma cadete de West Point de dezanove anos...

 

Tal hipótese aterradora atravessou-lhe o espírito enquanto percorria o corredor em direcção ao seu gabinete.

 

 

                                 CAPÍTULO SESSENTA E NOVE

 

- Lily... Meredith... Lily... Meredith - sussurrou Jean vezes sem conta enquanto percorria a Mountain Road, de mãos enfiadas nas algibeiras, com os óculos escuros a ocultar-lhe as lágrimas de felicidade que ia derramando e não conseguia evitar.

 

Não estava bem certa quanto ao motivo por que deambulava por aquela rua, mas quando saíra precipitada da cafetaria, sentira que não estava ainda em condições de regressar ao hotel. Passou por casas que anos atrás tinham pertencido a vizinhos seus.

 

Quantos estarão agora vivos? - interrogou-se. Só espero não esbarrar com ninguém conhecido.

 

Ao aproximar-se da casa onde vivera, abrandou o passo. Na manhã de domingo, quando passara por ali de carro, não tivera oportunidade de reparar bem nas alterações efectuadas pelos actuais proprietários. Não avistou ninguém na rua a observá-la. Deteve-se por um instante e pousou a mão no gradeamento que circundava agora a propriedade.

 

Quando fizeram obras devem pelo menos ter acrescentado dois quartos de dormir, concluiu enquanto examinava a casa. Quando vivíamos cá, apenas havia três, um para cada um de nós... para mim, para a minha mãe e para o meu pai. Em crianças, Laura costumava perguntar-me: ”A tua mãe e o teu pai não dormem juntos? Não gostam um do outro?”

 

Eu lera numa coluna para leitores que as revistas femininas costumavam dizer que nenhuma mulher devia ser obrigada a dormir no mesmo quarto que o marido, caso este ressonasse muito. Então contei a Laura que o meu pai ressonava bastante, ao que ela me respondeu: ”O meu também, mas no entanto dormem juntos.”

 

E eu respondi: ”Ora, às vezes os meus também.” Mas não dormiam.

 

Jean contemplava agora as duas janelas do meio que havia no segundo andar e as recordações avassalaram-na.

 

Eram as janelas do meu quarto, reflectiu. Deus do céu, como eu detestava o papel de parede às flores! Era tão berrante. Quando fiz quinze anos, supliquei ao meu pai que revestisse as paredes com prateleiras. Tinha mesmo jeito para esse tipo de coisas. A minha mãe refilou, mas ele fê-las à mesma. Depois disso, passei a designar o quarto por a biblioteca.

 

Lembro-me do primeiro dia em que fiquei com a certeza de que o período se atrasara e de nos dias seguintes rezar para que aparecesse. Prometi a Deus que se não estivesse grávida faria tudo o que Ele quisesse.

 

Bom, agora sinto-me feliz porque estava, reflectiu Jean sentindo um arroubo de felicidade. Lily... Meredith. O mais tardar no fim-de-semana vou conhecê-la. Sou capaz de me distrair e chamar-lhe Lily, e depois tenho de explicar porquê, mas talvez ela então compreenda. Será alta? Reed tinha cerca de 1,90 m e afirmou-me que o pai e o avô eram ainda mais altos que ele.

 

Lily encontra-se em segurança... e isso é sem dúvida a coisa mais importante do mundo. Mas Craig Michaelson garante que ela nunca conheceu Laura. Então como é que esta sabia dos faxes?

 

Embora Jean tencionasse voltar para trás e regressar ao Glen-Ridge, sentiu o impulso de prosseguir até à antiga casa de Laura. Quando lá chegou, deteve-se e ficou especada diante dela.

 

Quando no domingo de manhã a observara do carro, esta e os jardins que a circundavam pareciam bem cuidados. A casa fora pintada de novo, as flores de Outono bordeavam a vereda de lajes e o relvado encontrava-se limpo de folhas. Apesar disso a casa, com as sombras a toldarem cada janela, revelava um ar desabitado e pouco hospitaleiro.

 

Porque será que embora a tenham comprado, restaurado e mantido, ninguém lá vive?, interrogou-se Jean. Ouvira dizer que Jack Emerson era o actual proprietário. Dizem que é umpinga-amor. Será que a transformou num ninho para receber as amantes? Se for ele o dono, agora que a mulher se mudou para Connecticut, era interessante ver se continua a precisar dela.

 

Não que me interesse, Deus me livre, reflectiu Jean voltando para trás e encaminhando-se para o hotel. Fazendo um esforço consciente tentou não se sentir ansiosa face à perspectiva de ir conhecer Lily, e em vez disso concentrar-se em Laura e no novo cenário que começava a adquirir contornos no seu espírito.

 

Robby Brent.

 

Será Robby Brent que está por trás dos faxes a respeito de Lily? - interrogou-se, tentando enquadrar-se nessa hipótese. Talvez fosse ele que descobriu que eu estava grávida. Talvez percebesse que podia ser processado por enviar aquelas ameaças e queira agora responsabilizar Laura por desconfiar que sinto pena dela.

 

É possível, concluiu Jean ao passar pelo pronto-a-comer e dirigindo uma saudação relutante a Duke, que estava a tamborilar na janela e a acenar-lhe. Robert Brent é um tipo sem escrúpulos e bem capaz de ter descoberto a existência de Lily e depois, quando decorreu a reunião, ter enviado os faxes por brincadeira e crueldade. Ouvi dizer que faz uma data de espectáculos por ano. Quem sabe se foi assim que conheceu a família de Lily. Não me consigo esquecer como se mostrou indecente ao jantar quando pôs a ridículo o Dr. Downes e a Dr.a Render. Até a maneira como doou o cheque a Stonecroft constituiu um insulto.

 

Tratava-se de um cenário que para ela fazia sentido.

 

Se foi Robby a enviar os faxes e a escova, deve estar preocupado com a hipótese de lhe colocarem uma acção judicial, raciocinou. Se planeou o golpe publicitário com Laura, então o tiro saiu-lhe pela culatra e nesse caso foi capaz de entrar em contacto com os directores de produção dele para que engendrassem uma história. Os meios de comunicação vão cair em cima deles exigindo-lhes uma explicação.

 

Por outro lado, Jack Emerson trabalhou umas tardes no consultório do Dr. Connors e talvez tivesse conseguido acesso aos ficheiros. Para além disso, tenho de indagar por que foi que Mark perguntou à recepcionista se eu não recebera nenhum fax e ficou desiludido quando esta lhe respondeu que não. Bom, pelo menos isso não devo tardar em saber, pensou Jean, contornando a vereda que desembocava no Glen-Ridge.

 

Ao entrar no átrio, sentiu-se envolta numa lufada de calor e só então percebeu que tremia.

 

Preciso de subir ao quarto e tomar um banho de imersão, reflectiu. Mas em vez disso, encaminhou-se para a recepção onde uma Amy Sachs agora toda atarefada confirmava a reserva de quartos para os primeiros participantes da conferência da empresa Starbright Electrical Fixtures. Pegou no auscultador do telefone interno, mas aproveitando o facto de Amy aguardar que um dos hóspedes vasculhasse a mala à procura da carteira, conseguiu captar a atenção da empregada e inquirir-lhe:

 

- Há correio para mim?

 

- Absolutamente nada - sussurrou Amy. - Dr.a Sheridan, pode confiar em mim. Não vai haver mais confusões com os seus faxes.

 

Jean aquiesceu com a cabeça ao mesmo tempo que indicava o nome de Mark à telefonista. Este atendeu ao primeiro toque. -Jean, estava preocupado contigo - declarou.

 

- Também me deixaste preocupada - replicou ela num tom neutro. - É quase uma hora e em todo este tempo apenas bebi metade de uma chávena de café. Vou à cafetaria e gostava que lá fosses ter comigo, mas não te preocupes em perguntar na recepção se me enviaram mais faxes. A resposta é não.

 

 

                                           CAPÍTULO SETENTA

 

Jake Perkins, fiel à palavra dada quando saíra do gabinete do reitor Downes, foi directo à sala de aula que se convertera na sede do jornal. Aí pôs-se a vasculhar os ficheiros das fotografias tiradas para o Gazette durante os quatro anos em que Laura estudara em Stonecroft. Ao coligir elementos para a reunião, examinara os anuários e descobrira retratos dela, mas agora queria arranjar mais, talvez alguns em que ela revelasse um aspecto mais ingénuo do que nos instantâneos dos anuários.

 

Durante a hora que se seguiu, encontrou algumas fotografias que eram exactamente o que pretendia. Laura participara em inúmeras peças da escola, entre as quais um musical e descobriu uma fotografia dela incluída num coro, em grande plano no meio de um grupo que lembrava os Pequenos Cantores de Viena, toda exuberante e com um sorriso arrasador.

 

Não há dúvida de que era uma brasa, pensou Jake. Se andasse agora na escola, todos os tipos meus conhecidos tentavam chamar-lhe a atenção.

 

Resfolegou de si para si ao pensar como seria que na época um rapaz tentava conquistar os favores de uma rapariga. Talvez oferecendo-se para lhe levar os livros.

 

Se fosse hoje, oferecia-me para a levar a casa no meu Corvette, pensou.

 

Quando chegou à fotografia do dia de formatura da turma de Laura, os olhos de Jake arregalaram-se. Utilizou uma lupa para examinar os rostos dos finalistas. Laura, como era óbvio, estava linda, com os longos cabelos espalhando-se-lhe pelos ombros. Mesmo usando aquele barrete estúpido conseguia ser atraente. Foi a fotografia de Jean Sheridan que o deixou chocado. Mostrava-a de mãos crispadas uma na outra e com os olhos marejados de lágrimas.

 

Parecia triste, cismou Jake, triste a valer. Quem diria que ia conquistar a medalha de História e conseguir uma bolsa de estudo para Bryn Mawr. A avaliar pela expressão do seu rosto, até se podia julgar que tinham acabado de lhe comunicar que lhe restavam apenas dois dias de vida. Talvez se sentisse triste por deixar este sítio. Vá lá adivinhar-se.

 

Com a lupa percorreu os finalistas, à procura dos homenageados e detectou-os um a um.

 

Todos mudaram imenso, reflectiu. Já na época alguns deles pareciam mesmo uns falhados. Gordon Amory, por exemplo. Caramba, que feio que era! Cárter Stewart estava a precisar de cortar o cabelo... não, de uma maquilhagem completa. Robby Brent não tinha pescoço e já começava a ficar careca. Mark Fleischman parecia um palito com cabeça. Olha o Joel Nieman ao pé do Fleischman. Mas que Romeu me saiu. Se eu fosse ajulieta, só de pensar que tinha de me agarrar a ele até me suicidava.

 

Foi quando reparou em algo. A maioria dos finalistas exibia um sorriso rasgado e vazio, daqueles que as pessoas reservam para as fotografias em grupo. Porém o que sorria mais era um tipo que não olhava directamente para objectiva, mas sim para Jean Sheridan.

 

Por falar em contrastes, reflectiu Jake. Ela parecia que perdera o melhor amigo e ele exibia um sorriso de orelha a orelha.

 

Ao ver o monte de fotografias que se empilhavam sobre a mesa à sua frente, Jake sacudiu a cabeça.

 

Já tenho que chegue, pensou.

 

O passo seguinte era falar com Jill Ferris, a professora responsável pelo Gazette.

 

Ela é porreira, pensou Jake. Vou convencê-la a deixar-me utilizar na primeira página do próximo número a fotografia de Laura a dançar e na última página, a do dia da formatura. Entre estas desenvolverei o tema da história - a rapariga que está agora na penúria e os palermóides que venceram na vida.

 

A seguir, dirigiu-se ao estúdio onde era guardado o equipamento fotográfico. Depois ligou para a Dr.a Ferris, e esta consentiu que utilizasse a pesada e antiquada máquina fotográfica que ele adorava manejar quando fazia sessões fotográficas. Na sua opinião, esta pôssuía uma nitidez que nenhuma máquina fotográfica digital conseguia reproduzir. Quando se tratava de uma missão importante, sobretudo alguma com a qual sonhava, nem o peso da máquina e o ter de a carregar chegavam para o desmoralizar.

 

Admitiu para consigo que a recém-adquirida carta de condução e o Subaru com dez anos que os pais lhe haviam comprado lhe facilitavam muito mais os giros pela cidade do que quando viajava de bicicleta armado em repórter.

 

De máquina fotográfica a tiracolo, bloco de apontamentos e caneta numa das algibeiras e gravador na outra, não fosse dar-se o caso de deparar com alguém que valesse a pena entrevistar, Jake pôs-se a caminho.

 

Estou ansioso por tirar fotografias à casa onde cresceu ÍMura Wilcox. Vou incluir aparte da frente e as traseiras. No fim de contas, trata-se da casa onde Karen Sommers, a estudante de Medicina, foi assassinada, e a Polícia tem a certeza de que o homicida entrou pela porta dos fundos. Assim a reportagem fica mais interessante do ponto de vista humano, concluiu.

 

 

                               CAPÍTULO SETENTA E UM

 

Cárter Stewart passou grande parte da manhã de quarta-feira na suite do Hotel Hudson Valley. Combinara encontrar-se à tarde com Pierce Ellison, o director da sua nova peça, em casa deste. Tinham planeado discutir certas arestas por limar, mas antes disso Stewart pretendia introduzir no guião algumas modificações de sua autoria.

 

Obrigado, Laura, pensou, sorrindo com malícia ao mesmo tempo que ia acrescentando subtis alterações à personagem da loura desmiolada que era assassinada no segundo acto. Era mesmo isto que faltava... o desespero. Por fora é toda deslumbrante, mas precisamos de sentir o quão desesperada e assustada se sente no íntimo, tanto que tudo fará para salvar apele.

 

Cárter, quando se embrenhava na escrita, detestava interrupções, um facto com o qual Tim Davis, o agente, estava bem familiarizado. Por volta das onze horas o som estridente do telefone veio interromper-lhe a concentração. Era Tim.

 

Este começou por se desfazer em desculpas.

 

- Cárter, bem sei que te apanhei a trabalhar e que prometi não te incomodar a menos que fosse um caso de absoluta necessidade, mas...

 

- Espero bem que o seja, Tim - interrompeu-o Cárter.

 

- Acontece que acabei de receber uma chamada do Angus Schell. É o agente de Robby Brent e começa a dar em doido. Robby prometeu que lhe enviava ontem à tarde a revisão dos guiões para o seu novo espectáculo televisivo, e ainda não a recebeu. Angus deixou doze mensagens a Robby, mas não obteve resposta. O patrocinador anda furioso por causa do golpe publicitário que, dizem por aí, Robby engendrou com Laura Wilcox e ameaçou que vai desistir do patrocínio da peça.

 

- E o que é que isso contribui para a minha felicidade? - ripostou Cárter Stewart, em tom gélido.

 

- Cárter, eu informei-te há alguns dias que Robby pretende mostrar-te as alterações que efectuou. Já as viste?

 

- Não, não vi. Na verdade, quando me dei ao trabalho de me deslocar ao hotel dele a fim de verificar a revisão, não se encontrava lá e desde essa altura que nunca mais recebi notícias. Agora, se não te importas, até me teres interrompido eu estava aqui embrenhado no meu trabalho.

 

- Cárter, por favor. Vamos lá esclarecer as coisas. Achas que Robby fez a revisão que prometeu ao patrocinador?

 

- Tim, que isto fique também esclarecido. Sim. Acho que Robby fez a revisão, pois disse-me que a fez. Pediu-me para lhe dar uma vista de olhos. Respondi-lhe que ia dar uma vista de olhos. Quando fui ao hotel, não o encontrei lá. Vou repetir para que entendas bem o que digo, por outras palavras, ele procedeu à revisão e obrigou-me a perder tempo.

 

- Cárter, lamento, palavra de honra que sim - replicou Tim, desejoso de ver o cliente apaziguado. - Barbara Monroe e Joe Dean já foram contratados para desempenhar os papéis principais, e verem a série ir para o ar é para eles um caso de vida ou de morte. Pelo que li nos jornais, tanto Wilcox como Robby deixaram todos os seus objectos pessoais nos respectivos quartos de hotel. Eras capaz, suplico-te, eras capaz de confirmar se por acaso ele não se esqueceu lá dos guiões? Da última vez que falei com Robby, ele vangloriou-se dizendo que as alterações iam tornar os guiões hilariantes. Raramente emprega o termo e quando o faz, é porque está mesmo convencido disso. Se conseguirmos mandá-los por correio expresso, é possível que consigamos salvar o espectáculo. O patrocinador pretende uma comédia cem por cento garantida e todos nós sabemos que Robby é capaz de o fazer.

 

Cárter Stewart manteve-se em silêncio.

 

- Cárter, não gosto de te atirar nada à cara, mas há doze anos, quando ainda andavas a percorrer as capelinhas, apostei em ti e produzi a tua primeira peça. Não me interpretes mal. Desde então tem sido óptimo para mim, mas se neste preciso instante te telefono a incomodar, não o faço por mim mas por Barbara e Joe. Dei-te uma hipótese e agora quero que tu lhes proporciones o mesmo.

 

- Tim, a tua eloquência foi tão vibrante que quase me fez derramar lágrimas - replicou Cárter Stewart, num tom que deixava transparecer o gáudio que sentia. - Claro que tens muito a lucrar e não o fazes devido à amizade com o amigalhaço Angus e da sua ternura por jovens talentos. Qualquer dia hás-de-me explicar do que se trata. Porém, como arruinaste por completo a minha concentração criativa, vou agora ao hotel de Robby, ver se me consigo enfiar no quarto dele. Podes preparar-me o caminho e telefonares primeiro a declarares que és o agente dele e explicar que Robby te deu instruções para me incumbires de ir buscar os guiões...

 

- Cárter, não sei como...

 

- Agradecer-me? Estou certo que não. Adeus, Tim.

 

Cárter Stewart vestiu ajeans e um camisolão. O casaco e o gorro encontravam-se na cadeira para onde os atirara. Dando um suspiro de irritação, levantou-se, enfiou o casaco e estendeu a mão para o gorro. Quando se dispunha a sair do quarto, tocou o telefone. Era o reitor Downes, a convidá-lo para uma bebida e jantar na sua residência em Stonecroft.

 

Era só o que me faltava, pensou Cárter.

 

- Oh, lamento - replicou -, mas já tenho planos para esta noite.

 

Com a minha pessoa, acrescentou mentalmente.

 

- Então talvez consiga um tempinho para uma bebida - sugeriu, nervoso, o reitor Downes. - Cárter, considerá-lo-ia um grande favor. É que, veja se entende, encarreguei um fotógrafo de estar presente para tirar umas fotografias a si e aos outros homenageados que se encontram na cidade.

 

Os outros homenageados que se encontram na ciddade, pensou Cárter com sarcasmo.

 

- Receio que... - começou por afirmar.

 

- Cárter, por favor. Não o reterei por muito tempo e atendendo aos acontecimentos, preciso de arranjar fotografias dos quatro galardoados, que realmente se distinguiram, com as nossas placas de honra. Preciso delas para substituírem as fotografias em grupo que tirámos ao jantar. Deve compreender como é importante começarmos o nosso projecto de construção.

 

Cárter Stewart soltou uma gargalhada despojada de alegria e que soou como um latido.

 

- Parece que soou o dia de eu expiar os meus pecados - replicou. - A que horas me quer lá?

 

- O ideal seria às sete horas - respondeu o reitor Downes, com a voz transpirando gratidão.

 

- Muito bem.

 

Uma hora mais tarde, Cárter Stewart encontrava-se na Casa Glen-Ridge, no quarto de Robby Brent, na companhia de Justin Lewis, o gerente, e Jerome Warren, o assistente do gerente. Estes dois últimos mostravam-se francamente preocupados por o hotel ir assumir a responsabilidade de permitir a Stewart que retirasse objectos do quarto.

 

Stewart dirigiu-se à secretária, na qual se via um monte volumoso de guiões. Folheando algumas páginas, declarou:

 

- Cá estão. Conforme vos expliquei e como podem verificar, são estes os guiões que o Sr. Brent esteve a rever e que a empresa de produção precisa de receber de imediato. Nem por um instante lhes tocarei. - Apontando para Justin Lewis, prosseguiu: - O senhor é que lhes vai pegar. - E virando-se para Jerome Warren, acrescentou: - O senhor agarra no envelope expresso onde serão metidos. Depois, decidam entre vocês quem escreverá o endereço. Pronto, estão satisfeitos?

 

- É evidente, cavalheiro - replicou Lewis com nervosismo. Espero que compreenda a nossa posição e por que motivo precisamos de tomar tantas precauções.

 

Cárter Stewart não respondeu. Olhava fixamente para o papelinho que se encontrava junto ao telefone da secretária e no qual Robby Brent escrevera: ”Encontrar-me terça-feira às três da tarde com Howie para lhe mostrar os guiões.”

 

O gerente também reparara no bilhete.

 

- Sr. Stewart - interveio -, presumo que seja o senhor a pessoa com quem o Sr. Brent se ia encontrar para lhe entregar os guiões.

 

- É verdade.

 

- Posso então inquirir-lhe quem é Howie?

 

- O Sr. Brent referia-se a mim. Trata-se de uma graçola.

 

- Oh, entendo.

 

- Pois, estou certo que sim. Sr. Lewis, alguma vez ouviu falar do ditado: ”O último a rir é o que ri melhor”?

 

- Já, sim - respondeu Justin Lewis, balouçando a cabeça em sinal de aquiescência.

 

- Óptimo - retorquiu Cárter Stewart, soltando uma risadinha abafada. - Aplica-se a esta situação. Agora vou indicar-lhe a tal morada.

 

 

                               CAPÍTULO SETENTA E DOIS

 

Sam, depois de sair do gabinete de Rich Stevens, desceu até à cafetaria que havia no edifício, e mandou vir café e uma sanduíche de pão de centeio com presunto para levar.

 

- ”Take-away”, quer o senhor dizer - replicou, risonho, o novo empregado que atendia ao balcão. E reparando na expressão desconcertada de Sam, explicou: -Já não se diz ”para levar”. Agora é ”take-away”.

 

Poderia ter vivido o resto da minha vida sem ter essa informação, pensou o detective quando voltou para o gabinete dele e retirou a sanduíche da embalagem.

 

Colocou o almoço em cima da secretária e ligou o computador. Passada uma hora, já com a sanduíche ingerida e o último gole de café esquecido no termo, pôs-se a organizar todas as informações que coligira a respeito de Laura Wilcox.

 

Devo reconhecer que através da Internet se descobre imensa coisa, reflectiu, mas enquanto pesquisamos também perdemos muito tempo.

 

Procurava descobrir o tipo de antecedentes que não constavam da biografia oficial de Laura, mas até ao momento não detectara nada que fosse útil.

 

E dado a lista de referências a Laura Wilcox ser tão longa que chegava a exasperar, começou a abrir os ficheiros que considerou susceptíveis de revelarem alguma coisa. O primeiro casamento dela, aos vinte e quatro anos de idade, fora com Dominic Rubirosa, um cirurgião-estético de Hollywood. ”Laura é tão bonita que lá em casa verei o meu talento desperdiçado”, citavam parafraseando o que Rubirosa declarara após a cerimónia.

 

Sam esboçou uma careta.

 

Mas que tocante, sobretudo porque o casamento durou onze meses exactos. Que terá acontecido ao Rubirosa? Talvez ainda mantenha contacto com Laura.

 

Decidiu verificar e descobriu um artigo que mostrava a fotografia dele e da segunda mulher por ocasião das núpcias. A citação atribuída nesse dia a Rubirosa era: ”Monica é tão linda que nunca irá precisar dos meus serviços profissionais.”

 

- Salvo um pequeno retoque aqui e ali, vai dar ao mesmo. Mas que imbecil! - comentou Sam em voz alta, clicando no rato para recuar ao primeiro casamento de Laura.

 

Havia uma fotografia da cerimónia que mostrava os pais dela Evelyn e William Wilcox de Palm Beach. Na segunda-feira, após o desaparecimento de Laura, Eddie Zarro deixara uma mensagem no atendedor de chamadas deles, pedindo-lhes que entrassem em contacto com Sam. Este, como não recebera notícias, solicitara a um agente da Polícia de Palm Beach que passasse por casa deles. Uma vizinha bisbilhoteira declarara ao agente que o casal andava a fazer um cruzeiro, mas que não estava certa de qual. A mulher insinuara que eram muito metidos consigo mesmos, ”gente velha e excêntrica”, e que ficara com a impressão de que andavam furiosos por causa de uns ditos quaisquer relacionados com o turbulento segundo matrimónio da filha.

 

As notícias também chegam aos paquetes, reflectiu Sam. Com o alvoroço dos últimos dias gerado pelos meios de comunicação à volta de Laura, seria de prever que os pais quisessem saber mais pormenores. É estranho ainda não terem dado notícias. Vou ver se a Polícia de Palm Beach consegue apurar mais alguma coisa e descobrir em que paquete viajam em cruzeiro. Claro que há a possibilidade de Laura os ter avisado em segredo para não se preocuparem com o que ouvissem a respeito dela.

 

Levantou o olhar ao reparar que Joy Lacko entrara no gabinete.

 

- O chefe acabou de me tirar dos homicídios - declarou esta. Quer-me a trabalhar contigo e disse que depois me explicavas. - Pela expressão do rosto dela tornou-se óbvio para Sam que não ficara satisfeita por ser designada para outra missão.

 

Mas o rosto dela começou a desanuviar-se quando o detective lhe revelou o que sabia a respeito de Jean Sheridan e de Lily, a filha desta. Suscitou-lhe o interesse o facto do pai adoptivo da jovem ser um general de três estrelas e também capacitar-se de que parecia impossível Laura Wilcox ter enviado o último fax a Jean Sheridan, no qual afirmava estar por detrás de todas as ameaças.

 

- E ainda me custa a acreditar que cinco das mulheres que na Academia de Stonecroft se sentavam à mesma mesa para almoçar, morreram por ordem de lugares à mesa - concluiu ele. - Se não se tratar de um desses incríveis acasos do destino, tal significa que Laura está condenada a ser a próxima vítima mortal.

 

- Quer então dizer que tem entre mãos duas celebridades cujo desaparecimento pode ou não constituir uma manobra publicitária, um cadete de West Point, a filha adoptiva de um general que anda a ser ameaçada, e cinco mulheres que morreram por ordem dos lugares que ocupavam à mesa da escola. Não admira que Rich ache que você precisa de ajuda - replicou Joy com pragmatismo. - Preciso mesmo de ajuda - admitiu Sam. - A prioridade máxima é encontrar Laura Wilcox, porque se se conseguir provar que as cinco mortes foram homicídios, é óbvio que corre perigo e porque talvez se inteirasse da existência de Lily e o referisse a mais alguém.

- E a família de Laura? E os seus amigos íntimos? Falou com a agente dela? - Lacko segurava no bloco de notas. Com a caneta na mão, esperava pelas respostas de Sam.

 

- Você fez as perguntas correctas - replicou este. - Na segunda-feira, liguei para a agência e vim a saber que a agente era a própria Alison Kendall. Fez um mês que ela morreu, mas não foi designado ninguém da agência para a substituir.

 

- É esquisito - redarguiu Joy. -Julgava ser uma das primeiras coisas que fariam.

 

-Ao que parece o motivo prende-se com o facto de Laura lhes dever dinheiro, pois iam-lho dando em adiantado. Julgo que Alison pretendia continuar com o esquema, mas o novo chefe executivo não esteve pelos ajustes. Prometeram que nos contactavam se voltassem a ter notícias dela, mas não fiques entusiasmada. Fiquei com a nítida impressão de que na verdade a agência não está muito interessada em Laura.

 

- Desde a série Henderson County nunca mais fez nada de jeito, e há alguns anos que não aparece na televisão. Com esses borrachos todos de vinte anos que aparecem nos ecrãs, acho que segundo os padrões de Hollywood ela já deu o que tinha a dar - observou Joy com frieza.

 

- Acho que tens razão - concordou Sam. - Também estamos a ver se localizamos os pais para confirmar se falou com eles. Já contactei o tipo da Califórnia que investigou a morte de AHson Kendall, e ele afirmou não haver indícios de crime. Mas não fiquei convencido. Quando falei a Rich Stevens das raparigas que almoçavam à mesma mesa, ele emitiu uma ordem para que os polícias que trataram da investigação em cada um dos casos disponibilizassem os respectivos ficheiros. O mais antigo ocorreu há vinte anos, de modo que talvez demore o resto da semana a conseguir tudo. Depois examinaremos à lupa os ficheiros para ver se detectamos alguma coisa.

 

Aguardou que Joy fizesse as anotações no bloco e acrescentou:

 

- Pretendo ir ao Website dos jornais das localidades onde ocorreram os presumíveis três acidentes, e verificar se por altura dos óbitos houve dúvidas quanto aos mesmos. O primeiro sucedeu quando o carro se desviou da estrada e caiu ao Potomac; o segundo refere-se à mulher que desapareceu em Snowbird soterrada por uma avalanche; no terceiro, a mulher faleceu quando o avião que pilotava se despenhou. Alison é a quarta. Por último, quero ver o que foi redigido acerca do alegado suicídio da rapariga da tal mesa onde almoçavam.

 

Antecipando-se à pergunta seguinte de Joy, declarou:

 

- Tenho aqui registados os nomes delas, as datas e onde morreram - disse, apontando para uma folha dactilografada que se encontrava em cima da secretária. - Podes fotocopiá-la. Depois quero verificar aquilo que divulgam na Internet a respeito de Robby Brent e que possa ser útil. Joy, aviso-te já. Mesmo sendo nós dois a trabalhar no caso, vai demorar imenso tempo a resolvê-lo.

 

Levantou-se, espreguiçando-se.

 

- Depois disto tudo concluído, vou ligar à viúva de um tal Dr. Connors e informá-la de que preciso de lhe fazer uma visita. O sujeito foi o médico responsável pelo nascimento da filha de Jean Sheridan. Dias atrás, Jean encontrou-se com a Sr.a Connors e ficou com a nítida impressão de que a senhora estava a omitir informações, o que a pôs bastante nervosa. Talvez eu consiga sacar-lhas.

- Sam, tenho muito jeito para pesquisar na Internet e talvez seja cem vezes mais rápida que tu. Deixa-me ser eu a fazê-lo e enquanto isso tu vais visitar a mulher do médico.

 

- A viúva do médico - replicou Sam, interrogando-se por que achara necessário corrigir a rapariga.

 

Talvez porque durante todo o dia a imagem de Kate não me saiu da cabeça, pensou. Não sou o marido de Kate. Sou o viúvo dela. A diferença é do dia para a noite.

 

Se Joy ficara incomodada com a observação, ao retirar a lista da mesa não o deu a entender.

 

- Vou ver o que consigo descobrir - disse. - Até logo.

 

Dorothy sentira relutância em avistar-se com Jean, e quando Sam lhe telefonou, foi categórica em insistir que não possuía informações susceptíveis de o ajudarem. O detective, percebendo que teria de se mostrar firme com ela, disse por fim:

 

- Sr.a Connors, eu é que decido se a senhora pode ou não ajudar-me na investigação. Não pretendo roubar-lhe mais que quinze minutos do seu tempo.

 

Sempre renitente, ela acedera em recebê-lo nessa tarde, às três horas. Quando estava a arrumar a secretária, tocou o telefone. Era Tony Gomez, o chefe da Polícia de Cornwall e um grande amigo.

 

- Sam, conheces Jake Perkins, aquele fedelho? - inquiriu Tony. Se eu o conheço?, pensou Sam, fazendo rolar os olhos em direcção ao tecto.

 

- Conheço, sim, Tony - respondeu. - Que é que tem?

 

- Andou às voltas pela cidade a tirar fotografias de casas, e eu recebi uma queixa de um casal idoso que julgava que o rapaz estava a preparar um assalto.

 

- Esquece - respondeu Sam. - O miúdo é inofensivo. Tem a mania que é repórter de investigação.

 

- É mais do que mania. Afirmou que está a trabalhar no caso do desaparecimento de Laura Wilcox, na qualidade de teu assistente especial. Confirmas ou não?

 

- Meu assistente especial? Pelo amor de Deus! - exclamou Sam, desatando às gargalhadas. - Enfia-o na cadeia - sugeriu. - E depois vê se perdes a chave. Tony, ligo-te mais tarde.

 

 

                               CAPÍTULO SETENTA E TRÊS

 

- Jean, eu tinha bons motivos para perguntar à recepcionista se tinhas recebido ou não um fax - declarou Mark baixinho quando foi ter com ela à cafetaria.

 

- Então explica-mos, agradeço-te - disse ela, também em surdina.

 

O empregado conduzira-a à mesma mesa onde na véspera tinham estado várias horas a conversar. Mas naquele dia desvanecera-se todo o entusiasmo e a sensação de intimidade crescente que caracterizara o outro encontro. Mark deixava transparecer uma expressão perturbada, e Jean sabia que lhe transmitia a dúvida e desconfiança que o seu espírito começara a criar contra ele.

 

Lily... Meredith... está a salvo e em breve vou conhecê-la.

 

Era o principal, o alfa e o ómega do que interessava naquele preciso momento. Mas os incidentes que lhe tinham abalado a existência

- a escova que no mês anterior recebera pelo correio, depois os faxes contendo ameaças e o encontrar a rosa na campa de Reed - tinham-na deixado de rastos.

 

Eu devia ter recebido aquele fax por volta do meio da tarde de ontem, relembrou Jean, olhando de relance para Mark. Sentiu que estavam a avaliar-se um ao outro, vendo-se um ao outro por uma óptica diferente. Julguei que podia confiarem ti, Mark, pensou. Ontem foste tão solidário e tão compreensivo quando te revelei a existência de Lily. Estavas só a troçar de mim?

 

Mark, tal como ela, vestia um fato de treino. O dele era verde-escuro e parecia conferir-lhe aos olhos uma tonalidade mais avelã do que castanha. Estes deixavam transparecer a perturbação que o consumia.

 

- Jean, sou psiquiatra - disse. - A minha profissão consiste em tentar compreender os meandros da mente. Só Deus sabe as aflições por que passaste e a última coisa que pretendia era piorá-las. Para te ser franco, esperava que continuasses a receber notícias da pessoa que te enviou aquelas mensagens.

 

- Porquê?

 

- Porque era um indício de que esse alguém deseja manter o contacto. Agora já recebeste notícias de Laura e ficaste satisfeita por saber que ela não fará mal a Lily. Mas o facto relevante foi ter comunicado contigo. Era isso que ontem eu procurava indagar. Sim, fiquei aborrecido quando a recepcionista me informou de que não chegara nada para ti, pois sentia-me preocupado com a segurança de Lily.

 

Fitou-a e a sua expressão preocupada deu lugar a uma de espanto.

 

-Jean, pensaste que fui eu quem te mandou os faxes, que eu sabia que o último que te chegou ontem às mãos ao fim da tarde devia ter-te sido entregue mais cedo? Pensaste mesmo isso?

 

O silêncio dela forneceu-lhe a resposta.

 

Devo acreditar no que diz? - interrogou-se Jean. Sei lá.

 

O empregado especou-se junto à mesa e aguardou que fizessem o pedido.

 

- Eu só quero café - declarou Jean.

 

- Parece-me ter-te ouvido dizer ao telefone que em todo o dia não comeste nada - interveio Mark. - Quando andávamos em Stonecroft, apreciavas tostas de queijo com tomate. Ainda gostas?

 

Jean aquiesceu com a cabeça.

 

- Duas tostas com tomate e queijo, e duas chávenas de café indicou Mark, mandando vir o mesmo para ambos. Aguardou que o empregado se afastasse e acrescentou: - Jean, ainda não disseste uma palavra. Não sei se isso quer dizer que acreditas em mim, que não acreditas ou que não tens a certeza. Admito que te deves sentir bastante desiludida e que isso é compreensível. Responde-me só a isto: continuas a achar que foi Laura quem mandou os faxes e que Lily se encontra em segurança?

 

Não vou revelar-lhe o telefonema de Craig Michaelson, pensou Jean. Já não posso confiar em ninguém.

 

- Acho que Lily se encontra em segurança - respondeu, circunspecta.

 

Mark percebeu que ela estava a ser evasiva.

 

- Pobre Jean - declarou. - Não sabes em quem confiar, não é? Não posso censurar-te. Mas agora que pretendes fazer? Aguardar tempos infinitos até Laura aparecer?

 

- Pelo menos, durante os próximos dias - respondeu Jean, apostada em mostrar-se o mais dúbia possível. - E tu?

 

- Fico até sexta-feira de manhã, depois preciso de voltar, tenho doentes que preciso de examinar. Felizmente já gravei alguns programas, mas não posso protelar por mais tempo os novos. Seja como for, o meu quarto já foi reservado para sexta-feira por um dos participantes na convenção das lâmpadas, ou lá o que é.

 

- Vão ser homenageados cem vendedores campeões de vendas - declarou-lhe Jean.

 

- Mais homenageados - replicou Mark. - Espero que os cem regressem sãos e salvos a casa. Presumo que vais aceitar o pedido do reitor Downes para compareceres esta noite em casa dele para tomar umas bebidas e tirar fotografias.

 

- Desconhecia em absoluto - protestou Jean.

 

- Se calhar, deixou-te uma mensagem no telefone. Vai ser uma coisa rápida. Daquilo que Downes me disse, ele tencionava que fosse um jantar, mas Cárter e Gordon já tinham planos para a noite. Para te ser franco, eu também. O meu pai quer que eu volte a jantar com ele.

 

- Presumo então que o teu pai respondeu às perguntas que disseste que lhe ias fazer - redarguiu Jean.

 

- Respondeu, sim. Jeannie, tu sabes apenas metade da história e mereces que eu te conte o resto. Dennis, o meu irmão, morreu um mês depois de terminar o secundário em Stonecroft, e no Outono devia entrar para a faculdade de Yale.

 

- Soube do acidente - replicou Jean.

 

- Soubeste alguns pormenores do acidente - corrigiu-a Mark. Eu acabara de concluir o oitavo ano em St. Thomas, e em Setembro ia ingressar em Stonecroft. Como presente por ter acabado o secundário, os meus pais ofereceram um descapotável ao Dennis. É provável que não o conhecesses, mas era excelente em tudo. Era o número um da turma, o capitão da equipa de basebol, o presidente da associação de estudantes, bonito como um modelo, divertido e um tipo mesmo simpático. Depois de quatro abortos, a minha mãe conseguira gerar o menino de ouro.

 

- Eu diria que para ti se tornava difícil competir com tudo isso - observou Jean.

 

- Bem sei, era o que as pessoas julgavam, mas na realidade, para mim Dennis era o maior, o meu irmão mais velho, adorava-o como a um herói.

 

Pareceu a Jean que Mark estava a falar para si próprio e não com ela.

 

- Jogava ténis comigo. Ensinou-me a jogar golfe. Levava-me a passear no descapotável e depois de eu estar sempre a chateá-lo, ensinou-me a conduzi-lo.

 

- Mas na altura não tinhas mais que treze ou catorze anos - interveio Jean.

 

- Tinha treze. Oh, é claro que nunca conduzi na estrada e ele ia sempre ao meu lado. A nossa casa tem um grande terreno. Na tarde do acidente, andei o dia todo a moer a cabeça ao Dennis para darmos um passeio. Por fim, por volta das quatro horas, atirou-me as chaves e declarou: ”Pronto, pronto, mete-te no carro que já lá vou ter.”

 

”Fiquei sentado, à espera dele, a contar os minutos até o meu irmão aparecer e deixar-me conduzir o descapotável. Foi então que passaram por ali uns amigos dele e o Dennis avisou-me que ia dar umas boladas com eles. ”Prometo-te que daqui a uma hora ou isso, te deixo guiar, declarou. E quando se afastava, gritou-me: ”Desliga o motor e não te esqueças de meter o travão de mão.”

Senti-me tão desiludido e furioso que irrompi pela casa dentro. A minha mãe encontrava-se na cozinha e eu disse-lhe que ficaria muitíssimo satisfeito se o carro de Dennis deslizasse pela rampa abaixo e fosse embater contra a vedação. Passados quarenta minutos, vi-o resvalar pelo declive. O cesto de basquete ficava ao fundo deste. Os outros tipos conseguiram fugir, mas Dennis não.

 

- Mark, o psiquiatra és tu. Tens de saber que a culpa não foi tua.

 

O empregado voltou com as sanduíches e o café. Mark deu uma dentada na tosta e beberricou o café. Para Jean, tornou-se evidente o esforço que ele fazia para conter as emoções.

 

- Em teoria, sim, mas os meus pais não sentiam o mesmo por mim. Para a minha mãe, Dennis era o seu ai-jesus. Até entendo. Possuía tudo, era tão dotado! Ouvi-a afirmar ao meu pai que tinha a certeza de que eu destravara o travão de mão, não com o objectivo de magoar Dennis, mas na esperança de me vingar dele por me ter desiludido.

 

- E o que é que o teu pai respondeu?

 

- Foi o que ele não respondeu. Esperava que me defendesse, mas não o fez. Então houve um miúdo que me contou que a minha mãe afirmara que se Deus pretendia chamar a si um dos filhos, porque tivera de ser o Dennis?

 

- Ouvi essa história - admitiu Jean.

 

- Cresceste a querer afastar-te para bem longe dos teus pais, Jean, e o mesmo aconteceu comigo. Achei sempre que éramos almas gémeas. Entregámo-nos ambos aos estudos e da nossa boca não saiu um queixume. Vês com frequência os teus pais?

 

- O meu pai vive no Havai, fui visitá-lo no ano passado. Tem uma amiga que é muito amorosa, mas ele afirma aos quatro ventos que um casamento bastou para o curar da mania do altar. Perto do Natal passei alguns dias com a minha mãe, que parece agora genuinamente feliz. Ela e o marido visitaram-me umas quantas vezes. Confesso que quando me lembro de como ela se comportava com o meu pai, ainda me faz uma certa confusão ver os dois de mãos dadas e todos agarradinhos um ao outro. Acho que sinto despeito, mas não te esqueças que aos dezoito anos eu sabia que não podia contar com eles.

 

- A minha mãe faleceu quando eu andava na Escola Superior de Medicina - contou Mark. - Não me comunicaram que ela sofrera um enfarte e estava a morrer. Eu teria apanhado o primeiro avião e voltado para me despedir dela. Mas ela não perguntou por mim. Na verdade, nem me quis ver. Senti-o como se fosse a derradeira rejeição. Não compareci ao funeral. Depois disso nunca mais voltei a casa, e eu e o meu pai estivemos catorze anos de relações cortadas. - Encolhendo os ombros, acrescentou: - Talvez fosse por isso que decidi tornar-me psiquiatra. ”Médico, cura-te a ti mesmo.” Ainda continuo a tentar.

 

- Que perguntas eram essas que querias fazer ao teu pai? Afirmaste-me que ele deu a resposta.

 

- A primeira foi por que motivo não me mandou chamar quando a minha mãe estava a morrer.

 

Jean envolveu a chávena com as mãos e levou-a à boca.

 

- Qual foi a resposta? - perguntou.

 

- Disse-me que a minha mãe ficara paranóica. Pouco antes de sofrer o enfarte, fora a uma bruxa que lhe afirmara que o filho mais novo soltara o travão de propósito porque tinha ciúmes do irmão e desejava fazer-lhe mal. A minha mãe acreditara sempre na hipótese de eu pretender dar cabo do carro de Dennis, mas a bruxa deu-lhe volta à cabeça. Talvez fosse isso que lhe provocou o enfarte. Queres saber que mais perguntei ao meu pai?

 

Jean anuiu.

 

- A minha mãe não suportava nenhum tipo de bebida e ao fim da tarde, o meu pai gostava de beber o seu copito. Escapulia-se para a garagem onde guardava algumas garrafas, mantendo-as escondidas atrás da prateleira das latas de tinta, ou então fingia que ia limpar o carro por dentro, e fazia a festa e deitava os foguetes. Às vezes, instalava-se no carro de Dennis e dormia uma sesta. Eu sei que deixei o travão metido e também que Dennis não se aproximou do carro, pois estava a jogar basquete com os amigos. Também te posso garantir que a minha mãe não se meteu no descapotável. Perguntei ao meu pai se naquela tarde se sentara no carro de Dennis, e se depois de tomar uns quantos uísques não achava possível ter soltado por descuido o travão.

 

- Que respondeu ele?

 

- Confessou que estava dentro do carro e que só saiu de lá um ou dois minutos antes do veículo resvalar pela rampa íngreme. Nunca teve a coragem de contar à minha mãe, nem sequer quando aquela bruxa lhe envenenou a cabeça contra mim.

 

- Porque achas que agora confessou?

 

- Na noite passada, dei uma volta pela cidade, a pensar porque motivo as pessoas desperdiçam uma vida inteira debatendo-se com conflitos por resolver. A minha agenda está repleta de doentes que são um exemplo vivo disso. Quando avistei o carro do meu pai na rampa... a mesma do acidente, a propósito... decidi entrar e após catorze anos de silêncio, resolver as coisas com ele.

 

- A noite passada estiveste com o teu pai e hoje vais vê-lo de novo. Isso significa uma reconciliação?

 

- Jean, ele vai fazer oitenta anos e não se encontra bem. Durante vinte e cinco anos, viveu uma existência de mentira. É quase patético, quando me afirma que pretende compensar-me do mal que fez. É claro que não pode, mas estar com ele talvez me ajude a compreender e pôr tudo para trás das costas. Ele teve razão, se a minha mãe soubesse que estivera enfiado no carro a beber e que provocara o acidente, nesse mesmo dia punha-o a mexer.

 

- Em vez disso, em termos emocionais, foi a ti que ela pôs a mexer.

 

- O que, por seu turno, contribuiu para a total sensação de nulidade e fracasso que me lembro de experimentar em Stonecroft. Tentei ser como Dennis mas, isso posso-to garantir, não possuía o seu belo aspecto. Não era nem atleta nem revelava qualidades de chefia. A única vez que experimentei um certo ambiente de camaradagem foi no último ano do secundário, quando alguns de nós trabalhávamos umas tardes juntos na mesma empresa. Depois íamos comer uma piza. A única coisa positiva foi eu ter aprendido a ser condescendente para com os miúdos que passaram por maus bocados na vida, e tentar como adulto afastar-lhes os escolhos do caminho.

 

- Pelo que me tem chegado aos ouvidos, estás a desenvolver um óptimo trabalho.

 

- Assim espero. Os directores de produção querem transferir o programa para Nova Iorque e pediram-me para integrar a equipa do Hospital de Nova Iorque. Acho que me encontro em condições de efectuar a mudança.

 

- Um novo começo? - inquiriu Jean.

 

- Exacto... ao menos assim relego para o passado o que não pôde ser perdoado, nem esquecido. - Erguendo a chávena de café, Mark acrescentou: -Jeannie, vamos brindar a isso?

 

- É claro que sim.

 

Por muito que eu sofresse, para ti foi bem pior, Mark, pensou Jean. Os meus pais andavam demasiado ocupados a odiar-se um ao outro para compreenderem o mal que me faziam. Os teus deram-te a saber que te preferiam ver morto e o teu irmão poupado, e o teu pai permitiu de propósito que a tua mãe acreditasse na única coisa que julgava teres feito e que nunca te conseguiu perdoar. Que consequências teve isso para a tua alma?

 

O instinto disse-lhe para estender a mão e pousá-la na dele, o mesmo gesto que Mark esboçara no dia anterior para a reconfortar. Mas simplesmente não conseguia confiar nele. Depois apercebeu-se que pretendia insistir em algo que ele acabara de dizer.

 

- Mark, no último ano do secundário, em que trabalhavas tu umas tardes?

 

- Pertencia à equipa que efectuava a limpeza a um edifício que depois ardeu. O pai de Jack Emerson conseguiu arranjar-nos lá trabalho. Acho que na outra noite não estavas presente quando gracejámos a respeito disso. Todos os tipos que foram homenageados andaram de vassoura em punho ou a despejar caixotes do lixo.

 

- Todos vocês? - perguntou Jean. - Tu, Cárter, Gordon e Robby?

 

- Isso mesmo. Oh, e também Joel Nieman, dito o Romeu. Trabalhámos todos com Jake. Não te esqueças que éramos os únicos que não fazíamos treinos para jogos nem viajávamos com as equipas. Éramos perfeitos para a função. - Fez uma pausa e acrescentou:

- Espera lá. Deves conhecer o tal prédio, Jean, pois eras doente do Dr. Connors.

 

Jean sentiu o corpo gelar-se-lhe.

 

- Mark, nunca te contei isso.

 

- Contaste, de certeza. Como é que eu ia adivinhar?

 

Com efeito, como é que poderias adivinhar?, interrogou-se Jean, empurrando a cadeira para trás.

 

- Mark, preciso de retribuir alguns telefonemas. Não te importas de esperar pela conta?

 

 

                             CAPÍTULO SETENTA E QUATRO

 

Quando Jake regressou à escola, a Dr.a Ferris encontrava-se no edifício.

 

- Jake? - inquiriu, vendo-o debater-se para fechar a porta enquanto manejava com mil precauções a pesada máquina fotográfica, a retirava do ombro e a pousava em cima da secretária.

 

- Que aventura, Jill - confessou o rapaz. - Quer dizer, Dr.a Ferris - apressou-se a acrescentar. - Decidi efectuar um relato cronológico da Laura Wilcox desde o dia em que nasceu até hoje. Obtive um grande plano da igreja de St. Thomas of Canterbury e com tanta sorte que avistei à porta um carrinho de bebé. Quero dizer, um carrinho a sério, não daquelas geringonças que hoje em dia usam para enfiar os miúdos.

 

Retirou o gravador da algibeira e despiu o casaco.

 

- Lá fora está um gelo - lamentou-se -, mas pelo menos na esquadra havia aquecimento.

 

- Na esquadra, Jake? - inquiriu Jill Ferris, circunspecta.

 

- Sim, Doutora. Mas permita-me que lhe explique por ordem cronológica. Depois de tirar as fotografias à igreja, tirei mais algumas para servirem de pano de fundo e incutirem nas pessoas que não vivem cá um sentimento comunitário. Sei que estou a fazer esta reportagem para o Gazette, mas tenho grandes esperanças de atrair a atenção de jornais de maior tiragem e conseguir uma faixa mais ampla de leitores.

 

- Estou a ver. Jake, não pretendo livrar-me de ti, mas acontece que ia mesmo agora sair.

 

- Só mais um minuto. Depois fotografei a segunda casa da Laura, a McMansão. Quando se é apreciador daquele tipo de grandiosidade de novo-rico, até impressiona bastante. Do lado da frente, está rodeada por um jardim enorme e quem vive lá agora, espetou-lhe com algumas estátuas gregas no relvado. Na minha opinião, têm um ar pretensioso, mas assim os leitores vão compreender que Laura não teve uma infância com ”almoços-surpresa”.

 

- Uma infância com ”almoços-surpresa”? - inquiriu Jill Ferris, desconcertada.

 

- Eu explico. O meu avô contou-me a história de um comediante chamado Sam Levenson que afirmava que a família era tão pobre que a mãe ia com um carrinho de bebé comprar latas a dois cêntimos cada. Estas eram baratas porque as etiquetas se tinham descolado e ninguém sabia o que estava lá dentro. Então dizia aos filhos que iam comer um ”almoço-surpresa”. Nunca adivinhavam o que era. Adiante. As fotografias que tirei à segunda casa de Laura reflectem uma classe média sólida, embora com uma educação ligeiramente da classe média alta.

 

O rosto de Jake ensombrou-se.

 

- Depois de tirar as fotografias às casas que rodeavam a antiga moradia de Laura, atravessei a cidade até chegar à Mountain Road onde ela viveu os primeiros dezasseis anos de vida. É uma rua muito agradável e, sou sincero, a casa adapta-se mais ao meu gosto que aquela com as estátuas gregas. Bom, mal começara a tirar fotografias quando vi parar um carro-patrulha, e aproximar-se um polícia com um ar muito agressivo a perguntar-me o que pensava eu que estava a fazer. Quando lhe expliquei que exercia o meu direito de cidadão de tirar fotografias na via pública, convidou-me a entrar no carro e levou-me até à esquadra.

 

- Jake, ele prendeu-te! - exclamou Jill Ferris.

 

- Não, Doutora. Não foi bem isso. O capitão interrogou-me e dado que achei que prestara ao detective Deegan um serviço incalculável ao alertá-lo para o facto de Laura Wilcox parecer extremamente nervosa quando telefonara para o hotel a pedir que lhe mantivessem a reserva do quarto, achei que estava no direito de explicar ao capitão que eu era um assistente especial do Sr. Deegan na investigação do desaparecimento de Laura.

 

Quando este miúdo acabar o secundário, vou ter saudades, pensou Jill Ferris, concluindo que não lhe aconteceria nenhuma desgraça se chegasse uns minutos atrasada à consulta do dentista.

 

- Jake, o capitão acreditou em ti? - inquiriu.

 

- Telefonou ao Sr. Deegan, que não só não me apoiou como também sugeriu ao capitão que me enfiasse na cadeia e depois perdesse a chave. - Fitando a professora com uma expressão penetrante, Jake acrescentou: - Dr.a Ferris, o caso não é para rir. Para mim foi como se o Sr. Deegan tivesse faltado a uma promessa. Como mais tarde verifiquei, o capitão foi muito mais simpático. Até teve a gentileza de declarar que amanhã eu podia acabar as fotografias, pois as que tirei à casa da Mountain Road foram muito poucas. Mas avisou-me para não invadir a propriedade alheia. Agora vou revelar o rolo que tirei hoje e, se me der licença, amanhã levo outra vez a máquina e termino as fotografias.

 

- Tudo bem, Jake, mas não te esqueças de que já não fabricam estas máquinas fotográficas mais antigas. Tem cuidado para que nada lhe aconteça, caso contrário, sou eu que me vejo metida em sarilhos e não tu. Agora preciso de me despachar.

 

- Só por cima do meu cadáver é que lhe acontece alguma coisa! - gritou-lhe Jake quando ela se afastou.

 

Estava a falar a sério., pensou, começando a rebobinar o rolo e retirando-o da máquina. Mas embora o capitão me avisasse para não pôr o pé em propriedade alheia, para que a minha reportagem tenha a cobertura adequada, terei de ser forçado a cometer um acto de transgressão civil., disse para consigo. Pretendo tirar umas fotografias às traseiras da casa de Laura que fica na Mountain Road. Como ninguém vive lá, estou certo de que não vão dar por mim.

 

Entrou na câmara escura e iniciou a revelação das fotografias, uma das suas tarefas preferidas. Considerava um trabalho empolgante e criativo observar pessoas e objectos emergirem dos negativos. Com uma pinça retirou as provas uma a uma e depositou-as em cima de um pano de algodão para que secassem, em seguida foi buscar a lupa e examinou-as com minúcia. Estavam todas boas - e não teve pejo em afirmá-lo a si mesmo - porém, a mais interessante era a única que conseguira tirar à casa de Laura na Mountain Road antes do polícia chegar.

 

Há qualquer coisa de estranho naquela casa, pensou. Faz-me querer enfiar a cabeça debaixo dos cobertores e esconder-me. De que se trata? Está tudo no devido lugar. Talvez seja isso. Está arranjadinha de mais. Examinou-a mais de perto. São as sombras, pensou triunfante. As do quarto de dormir ao fundo da casa não são iguais às outras. Na fotografia aparecem muito mais escuras. Quando estava a tirar as fotografias não reparei, mas na altura fazia um Sol radioso. Deu um assobio. Mas espera lá. Quando vi a história de Karen Sommers na Internet, acho que me lembro de ler que ela foi assassinada no quarto de esquina, do lado direito da casa. lembro-me de uma fotografia da cena do crime em que essas janelas estavam assinaladas com um círculo.

 

Porque não mostrar na reportagem uma fotografia em separado que inclua apenas as tais janelas?, interrogou-se. Podia realçar que há uma aura escura à volta do quarto fatal onde a rapariga foi assassinada, e onde ao longo de desasseis anos Laura dormiu. Dava-lhe um toque macabro espectacular.

 

Para sua desilusão, a ampliação revelou que a diferença de cor talvez se devesse a sombras escuras interiores, ocultas atrás daquelas que se avistavam da rua.

 

Devo ficar desiludido?, interrogou-se Jake. Supõe tu que se encontra ali alguém que não quer que o vejam à luz? Dava um belo esconderijo. A casa foi restaurada. Há cadeiras no alpendre, imagino que esteja mobilada. Ninguém vive lá. E a propósito, quem é que a comprou? Já imaginaste o furo se fosse Laura a proprietária e se neste momento lá se encontrasse escondida com Robby Brent?

 

Este meu palpite não tem nada de estúpido, concluiu. Devo comunicá-lo ao Sr. Deegan?, interrogou-se.

 

O tanas é que comunico, decidiu. Se calhar não passa de uma ideia estapafúrdia, mas maluca ou não, a reportagem é minha. Deegan mandou o capitão enfiar-me na cadeia. Bem pode vir a arrastar-se de joelhos até mim que daqui não leva mais ajuda nenhuma.

 

 

                               CAPÍTULO SETENTA E CINCO

 

Sam entrou em casa de Dorothy Connors e a visita durou os quinze minutos exactos que ele lhe garantira que ia demorar. Quando viu que a senhora se mostrava inabalável, procedeu com tacto e depressa concluiu que a preocupação da idosa senhora se relacionava com a reputação do falecido marido. Ciente disso, foi-lhe mais fácil ir directo ao assunto.

 

- Sr.a Connors, a Dr.a Sheridan falou com Peggy Kimball, a enfermeira que em tempos trabalhou para o seu marido. Com o intuito de ajudar a Dr.a Sheridan a localizar a filha, a Sr.a Kimball afirmou que é possível que o Dr. Connors tivesse ocasionalmente transgredido as leis que regem as adopções. Se é isso que a preocupa, posso desde já informá-la que a filha da Dr.a Sheridan foi localizada e a sua adopção foi absolutamente legal. Na verdade, esta noite a Dr.a Sheridan vai jantar com os pais adoptivos e muito em breve irá conhecer a filha. Essa parte da investigação está concluída.

 

O alívio evidente que se estampou no rosto da mulher foi a confirmação das suspeitas de Sam.

 

- O meu marido era um homem tão maravilhoso - replicou ela. - Seria horrível que dez anos após a sua morte as pessoas começassem a pensar que cometera algo de ilegal ou de errado.

 

Cometeu, sim, pensou Sam, mas não é por isso que estou aqui.

 

- Sr.a Connors, garanto-lhe que nada do que me revelar poderá ser utilizado para denegrir a reputação do seu marido. Mas gostava que me respondesse à pergunta seguinte: sabe se alguém podia ter acesso à ficha de maternidade de Jean Sheridan que se encontrava no consultório do seu marido?

 

Quando Dorothy Connors fitou Sam nos olhos, a sua voz e modos não deixavam transparecer o mínimo nervosismo.

 

- Dou-lhe a minha palavra de honra em como não tenho conhecimento disso, mas se soubesse, dir-lho-ia.

 

Tinham-se sentado na salinha, e Sam desconfiou que era ali que a Sr.a Connors passava grande parte do tempo. Ela insistiu em acompanhá-lo à porta, mas ao abri-la, hesitou.

 

- Ao longo dos quarenta anos em que exerceu medicina, o meu marido tratou de dezenas de adopções - afirmou. - Depois do bebé nascer tirava-lhe sempre uma fotografia, anotava a data no verso de cada uma e sempre que a mãe atribuía um nome à criança antes de desistir da sua custódia, escrevia-o também.

 

Fechando a porta, acrescentou:

 

- Venha comigo até à biblioteca. - Sam seguiu-a através da sala de estar e atravessou duas portas que iam dar a um gabinete repleto de prateleiras com livros. - Os álbuns de fotografias encontram-se aqui - declarou. - Depois da Dr.a Sheridan sair, descobri o retrato da bebé dela com o nome Lily escrito no verso. Confesso que receei bastante que a adopção da filha fosse daquelas que não ficam registadas. Mas agora que a Dr.a Sheridan descobriu o paradeiro da menina e vai conhecê-la, estou certa de que gostaria de ter uma fotografia de Lily quando tinha três horas.

 

Uma secção inteira das prateleiras era ocupada por pilhas de álbuns de fotografias. A mesma estava catalogada com datas de há quarenta anos. O álbum que a Sr.a Connors foi buscar tinha um marcador no interior. Abriu-o nesse sítio, retirou uma fotografia da cobertura de celofane e estendeu-a a Sam.

 

- Agradeço que transmita à Dr.a Sheridan que me sinto muito feliz por ela - declarou.

 

Depois de se meter no carro, Sam guardou com todo o cuidado no bolso interior a fotografia de uma menina de olhos enormes, longas pestanas e madeixas de cabelo a emoldurar-lhe o rosto.

 

Que linda que é, pensou. Mal consigo imaginar como deve ter sido penoso para Jean desistir dela. Não estou muito longe da Gkn-Ridge. Se ela lá estiver, deixo-lha. Depois de falar comigo, Michaelson ia telefonar-lhe. Deve estar toda emocionada com a perspectiva de conhecer os pais adoptivos de Lily.

 

Quando Sam telefonou, Jean encontrava-se no quarto e concordou de imediato em ir ter com ele ao átrio.

 

- Dê-me só dez minutos - declarou. - Acabei de sair da banheira. - E acrescentou: - Sam, não é nada de mal, pois não?

 

- Não é nada de mal, Jean.

 

Pelo menos, por agora, pensou, sem no entanto conseguir libertar-se daquela pungente sensação de mal-estar.

 

Julgava que ia deparar com uma Jean radiosa de felicidade perante a perspectiva de conhecer Lily; no entanto, reparou que algo a perturbava.

 

- Por que não vamos para ali? - sugeriu, apontando com a cabeça na direcção de um recanto afastado do átrio onde havia um sofá e uma cadeira desocupados.

 

Jean não se fez rogada e confidenciou a Sam a preocupação que sentia.

 

- Sam, começo a acreditar que quem anda a mandar os faxes é Mark - declarou.

 

Reparando na expressão de sofrimento dos olhos dela, o detective perguntou em surdina:

 

- O que a leva a pensar assim?

 

- Descaiu-se e afirmou que sabia que eu era doente do Dr. Connors. Nunca lho contei. E há mais. Ontem andou a informar-se na recepção se eu recebera mais algum fax, e ao que parece ficou desapontado quando a empregada lhe respondeu que não. Foi aquele que juntaram por engano à correspondência de outro hóspede. Mark contou-me que na época em que eu era acompanhada pelo Dr. Connors, ele trabalhava umas tardes no consultório. Por último, admitiu que me vira em West Point com Reed. Até sabia o nome dele.

 

-Jean, garanto-lhe que vamos investigar a fundo Mark Fleischman. Vou ser-lhe franco. Desagradou-me que tivesse desabafado com ele. Espero que não lhe tenha comunicado nada do que Michaelson lhe contou esta manhã.

 

- Não, não contei.

- Não pretendo alarmá-la, mas acho que precisa de tomar precauções. Aposto como vamos descobrir que a pessoa que anda a enviar-lhe os faxes é alguém da sua turma de finalistas. Quem quer que venhamos a descobrir que é... Mark ou um dos outros que compareceram à reunião... já não acredito que o faça por dinheiro. Acho que nos encontramos perante um indivíduo psicótico e potencialmente perigoso.

 

Observou-a demoradamente e acrescentou:

 

- Estava a começar a gostar de Fleischman, não estava?

 

- Estava - admitiu Jean. - Por isso me é difícil acreditar que possa revelar-se uma pessoa tão diferente do que deixa transparecer à superfície.

 

- Ainda não o sabe. Agora tenho uma coisa que a vai animar. Retirou da algibeira a fotografia de Lily e antes de lha entregar explicou-lhe do que se tratava. Foi quando viu pelo canto do olho Gordon Amory e Jack Emerson entrarem pela porta da frente do hotel-Antes de a ver, é melhor ir para o quarto, Jean - sugeriu. - Amory e Emerson acabam de entrar, e se a vêm são capazes de vir ter consigo.

 

- Obrigada, Sam - respondeu Jean num murmúrio apressado. Depois tirou-lhe a fotografia da mão e precipitou-se para o elevador.

 

Sam percebeu que Gordon Amory a detectara e se preparava para a seguir.

 

- Sr. Amory - interveio -, já decidiu quanto mais tempo permanecerá por cá?

 

- O mais tardar vou-me embora no fim-de-semana. Porque pergunta?

 

- Porque se em breve não tivermos notícias da Sr.a Wilcox, vamos dá-la como desaparecida, e nesse caso precisamos de interrogar as pessoas que estiveram com ela antes de se evaporar.

 

Gordon Amory encolheu os ombros.

 

- Ela vai dar notícias - replicou em tom displicente. - Mas para que conste, se pretender contactar-me, mesmo depois de sair do hotel tenciono permanecer por estas bandas. Através de Jack Emerson, na qualidade de nosso agente, estamos a fazer uma oferta para uma vasta área de terreno onde projecto construir a sede da minha empresa. De modo que quando deixar o hotel, planeio ficar algumas semanas no meu apartamento de Manhattan.

 

Jack Emerson, que se detivera junto à recepção a falar com alguém, aproximou-se.

 

- Há notícias do asqueroso? - perguntou a Sam.

 

- O asqueroso? - replicou Sam, arqueando o sobrolho. Entendera perfeitamente que o outro se referia a Robby Brent, mas não pretendia dar-lhe confiança.

 

- Robby Brent, o nosso comediante residente. Ele não terá miolos suficientes para saber que todos os convivas, desaparecidos ou não, são como peixe, que ao fim de três dias cheiram mal? Quero dizer, aquele golpe publicitário já enjoa.

 

Emerson já se enfrascou em uísque ao almoço, reflectiu Sam, reparando no rosto afogueado do outro.

 

Ignorando a alusão a Brent, replicou:

 

- Sr. Emerson, dado que vive em Cornwall, presumo que estará disponível no caso de eu precisar de falar consigo a respeito de Laura Wilcox. Conforme acabei de explicar ao Sr. Amory, se em breve não tivermos notícias dela, vamos dá-la como desaparecida.

 

- Calma aí, Sr. Deegan - ripostou Emerson. - Assim que eu e Gordie... quero dizer, Gordon... despacharmos este negócio, vou pôr-me a mexer daqui. Chegou a altura de visitar uma casa que tenho em St. Bart. Deu-me muito trabalho organizar esta reunião. À noite, vamos a casa do reitor Downes tomar umas bebidas e tirar mais umas quantas fotografias, e depois a reunião terminou, ponto final. Quem é que se rala que Laura Wilcox e Robby Brent apareçam ou não? A comissão do projecto de construção para a Academia de Stonecroft dispensa esse tipo de publicidade.

 

Gordon Amory estivera a escutar com um sorriso divertido nos lábios.

 

- Sr. Deegan - interveio -, devo dizer-lhe que Jake me tirou as palavras da boca. Tentei apanhar Jean, mas ela já se tinha enfiado no elevador. Está ao corrente dos planos dela?

 

- Não - replicou Sam. - Agora se me dão licença, tenho de voltar para o meu escritório.

 

Nem uma palavra do que Jean tenciona fazer eu diria a estes tipos, cogitou enquanto atravessava o átrio, e espero que ela acate o meu conselho e não confie em nenhum deles.

 

Ao entrar no carro ouviu o telemóvel tocar. Era Joy Lacko.

 

- Sam, consegui uma pista - anunciou-lhe a investigadora. Tive um palpite e antes de começar a indagação das mortes acidentais verifiquei o relatório sobre Gloria Martin, a suicida. Por ocasião da sua morte, publicaram no jornal local de Bethlehem um grande artigo a respeito dela.

 

Sam aguardou que a colega prosseguisse.

 

- Gloria Martin matou-se enfiando um saco de plástico na cabeça. E, Sam, ouça isto: quando a encontraram, segurava na mão crispada um mocho de latão em miniatura.

 

 

                                 CAPÍTULO SETENTA E SEIS

 

Duke Mackenzie sentiu-se felicíssimo quando às nove e cinco daquela noite viu de novo entrar no estabelecimento o taciturno participante da reunião de Stonecroft. Este mandou vir uma tosta de queijo com bacon e café com leite magro. Enquanto a sanduíche torrava, Duke apressou-se a meter conversa.

 

- Esta manhã apareceu aqui uma senhora do vosso convívio anunciou. - Disse que em tempos viveu na Mountain Road.

 

Embora não conseguisse atravessar os óculos escuros do homem, Duke reparou que o corpo deste se retraíra, dando-lhe a certeza de que lhe despertara a atenção.

 

- Sabe o nome dela? - perguntou o forasteiro em tom casual.

 

- Não, amigo, não sei. Mas posso descrever-lha. Muito bonita, com cabelo castanho e olhos azuis. A filha chama-se Meredith.

 

- Foi ela quem lho disse?

 

- Não, amigo. Não me pergunte como aconteceu, mas a pessoa com quem falava ao telefone é que a informou. Bem vi como ficou emocionada, mas só não entendi como é que desconhecia o nome da filha.

 

- Será que estava a falar com alguém da reunião? - interrogou-se o forasteiro. - Por acaso não mencionou o nome da pessoa que lhe telefonou?

 

- Não. Afirmou que os ia ver... eles ou elas, não sei... amanhã às sete horas da tarde.

 

Duke virou-se de costas, pegou numa espátula e retirou a sanduíche da grelha. Não reparou no sorriso gélido estampado no rosto do cliente, nem o ouviu sozinho:

 

- Não vai não, Duke. Não, ela não vai vê-los.

 

- Ora aqui está, amigo - anunciou Duke todo risonho. -Já vi que gosta de leite magro com o café. Dizem que é mais saudável, mas eu cá gosto de fazer à moda antiga e deitar natas no meu. Não há motivos para me preocupar, dado que o meu pai já vai nos oitenta e sete e ainda faz umas belas jogadas de bowling.

 

O Mocho atirou o dinheiro para cima do balcão e mastigando um ”boa-noite” foi-se embora, sentindo os olhos de Duke cravados nele quando se dirigia para o carro.

 

Aposto que me vai seguir, pensou. É bisbilhoteiro o suficiente para o fazer. Não lhe escapa nada. Já não posso voltar aqui, mas também não interessa lá muito. Amanhã por esta altura, já está tudo terminado.

 

Seguiu lentamente em direcção à Mountain Road, mas decidiu não virar na rampa que desembocava na casa de Laura.

 

Engraçado, ainda lhe chamo assim, pensou.

 

Em vez disso, afastou-se uns bons metros da mesma e foi espreitando pelo espelho retrovisor até confirmar que ninguém o seguia. Efectuou então uma manobra em U e arrepiou caminho, sempre atento aos faróis dos outros carros. Quando chegou ao destino, desligou as luzes, guinou para a rampa e abrigou-se na segurança relativa do pátio das traseiras, que tinha uma vedação a toda a volta.

 

Só então se descontraiu e começou a reflectir no que acabara de ouvir.

 

Jean sabia o nome de Meredith!

 

As pessoas com quem ela se ia encontrar nesse dia à noite, sem dúvida que deviam ser os Buckley. Meredith não se lembrara onde perdera a escova, caso contrário aquele Sam Deegan, o detective, já lhe estaria a bater à porta. Significava isso que tinha de agir mais depressa do que planeara. No dia seguinte ver-se-ia forçado a entrar e sair diversas vezes daquela casa e em plena luz do dia. Estava fora de questão deixar o carro ao ar livre, simplesmente não podia fazê-lo. Mesmo sendo o pátio um recinto fechado, um vizinho que espreitasse pela janela de um segundo andar era capaz de reparar no veículo e telefonar à Polícia, pois toda a gente supunha que a casa de Laura se encontrava desabitada.

 

O carro de Robby com o corpo deste enfiado no porta-bagagem, ocupava metade da garagem. O primeiro carro alugado que possivelmente deixara marcas denunciadoras de pneus no local para onde arrastara o corpo de Helen Whelan, encontrava-se no restante espaço livre. Para ter acesso à garagem precisava de se livrar de um deles.

 

O carro alugado pode conduzi-los até mim, reflectiu. Preciso de o manter guardado até se tornar seguro devolvê-lo.

 

Já cheguei tão longe, pensou o Mocho, e o percurso foi tão comprido que agora é impossível eu parar. Preciso de chegar ao fim.

 

Olhou para a sanduíche e o café que comprara para Laura.

 

Nem me lembrei de jantar, reflectiu. Que diferença faz se esta noite Laura comer ou não? Amanhã já não sente fome.

 

Abriu o saco e comeu lentamente a sanduíche, ao mesmo tempo que beberricava o café e pensava que o preferia simples. Quando terminou, saiu da garagem, abriu a porta que dava para a cozinha e entrou. Em vez de subir as escadas e dirigir-se ao quarto de Laura, abriu a porta da cozinha que tinha acesso à garagem e deliberadamente bateu-a com estrondo atrás de si, ao mesmo tempo que enfiava as luvas de borracha que guardava sempre na algibeira do casaco.

 

Laura ia ouvir o barulho e pôr-se a tremer, presa pela dúvida, pois não sabia se chegara o momento de ele a matar. Mas por aquela altura também estaria com fome e ansiosa por ver o que ele lhe trouxera para comer. Depois, verificando que ele não subia as escadas, sentiria o medo e a expectativa a rastejarem-lhe no íntimo e a revolverem-na até a deixar de rastos, vergada e completamente submissa aos desejos e ordens dele.

 

De certo modo desejava poder assegurar-lhe que em breve tudo estaria consumado, porque fazê-lo equivalia a tranquilizar-se a si próprio. Percebeu que a dor que lhe latejava no braço o distraía. Parecera que as dentadas do cão tinham começado a cicatrizar, mas a pior de todas voltara a inflamar.

 

Deixara as chaves de Robby enfiadas na ignição do carro. Veio-lhe um assomo de repugnância ao lembrar-se do cadáver do outro, tapado com cobertores e estendido no porta-bagagem. Premiu o botão para abrir a porta da garagem, trepou para o carro de Robby e fez marcha-atrás para sair para o pátio. Decorridos alguns minutos que lhe pareceram uma eternidade, já escondera na garagem o segundo carro alugado.

 

Mantendo os faróis desligados até chegar a meio do quarteirão, o Mocho iniciou o trajecto de escassos metros que o levaram ao destino final no rio Hudson onde o veículo de Robby começou a afundar-se.

 

Decorridos quarenta minutos despachara a incumbência, afastara-se do local onde o carro mergulhara nas águas e encontrava-se agora na segurança do seu quarto. Reflectiu que no dia seguinte a missão seria traiçoeira, mas faria os possíveis para minimizar os riscos. Antes do dia nascer, iria a casa de Laura e talvez a obrigasse a telefonar a Meredith a afirmar-lhe que era a sua mãe biológica. Depois forçá-la-ia a pedir à rapariga que se encontrasse com ela fora do recinto de West Point durante uns breves minutos antes do pequeno-almoço.

 

Meredith sabe que foi adoptada, pensou o Mocho. Não fez segredo disso e até a mim o referiu.

 

Estava convicto de não haver uma única adolescente de dezanove anos que não aproveitasse logo a hipótese de conhecer a mãe biológica.

 

E quando tivesse Meredith em seu poder, obrigaria Laura a telefonar a Jean.

 

Sam Deegan não é parvo nenhum. Se calhar neste momento já anda a investigar as mortes das outras raparigas que se sentavam à mesma mesa a almoçar, a devassar os acidentes que não foram bem acidentes, pensou o Mocho. Foi só a partir da Gloria que comecei a deixar a minha assinatura, e o irónico é que a primeira miniatura foi a estúpida da mulher que a comprou.

 

- Como tu subiste na vida! E pensar que te costumávamos chamar o Mocho - afirmara ela soltando uma gargalhada, já um pouco ébria mas com o coração sempre empedernido. Depois mostrara-lhe o mocho em miniatura, ainda embrulhado no plástico. - Descobri-o por acaso num dos quiosques da avenida que vendem este tipo de bugigangas - explicara -, e quando me telefonaste a dizer que te encontravas na cidade, voltei lá e comprei um. Achei que ainda íamos soltar umas boas gargalhadas por causa disso.”

 

Havia um sem-número de motivos para se sentir agradecido a Gloria. Depois dela morrer, comprara uma dúzia daqueles mochos em miniatura que se vendiam por cinco dólares. Agora restavam três. Claro que podia comprar mais, mas depois de usar os que lhe sobravam, terminava a necessidade que sentia por eles. Jean, Laura e Meredith. Um mocho para cada uma delas.

 

O Mocho colocou o despertador para as cinco horas da manhã e foi-se deitar.

 

 

                                 CAPÍTULO SETENTA E SETE

 

Quem me dera adormecer e talvez sonhar, pensou Jean, revirando-se de lado e depois de costas, completamente insone. Por fim, acendeu a luz e saiu da cama. Estava muito abafado no quarto. Atravessou-o e escancarou a janela. Talvez agora consiga dormir, reflectiu.

 

A fotografia de Lily em bebé encontrava-se em cima da mesinha de cabeceira. Sentando-se à beira da cama, pegou-lhe.

 

Como fui capaz de desistir dela?, interrogou-se, açoitada pela angústia. Porque desisti dela?, meditou, sentindo-se revolvida por um turbilhão de emoções. Hoje à noite, vou conhecer o homem e a mulher a quem Lily foi confiada logo que nasceu. Que lhes vou dizer?, perguntou de si para si. Que lhes estou grata? Pois estou, mas também me envergonha confessar que também me causam ciúmes. Queria poder viver tudo o que viveram com ela. Supõe tu que mudam de ideias e decidem que ainda é prematuro eu conhecê-la?

 

Preciso de a encontrar e depois ir para casa. Quero afastar-me para bem longe de toda a gente de Stonecroft. Na noite passada, a atmosfera em casa do reitor Downes era de cortar a faca, pensou, apagando a luz e voltando a deitar-se. Pareciam todos tão nervosos, mas cada um à sua maneira. Mark... que é que lhe vai na alma? Esteve tão calado e afastou-se para me evitar. Cárter Stewart revelou um péssimo humor, sempre a resmungar que perdera um dia inteiro de trabalho à procura dos guiões de Robby. jack Emerson já o deitava pelos olhos e ia emborcando uísques duplos. Gordon parecia bem até o reitor Downes lhe tentar mostrar as plantas do potencial novo anexo. Nessa altura quase explodiu e fez questão de ressalvar que ao jantar doara um cheque de 100 000 dólares para o fundo do projecto de construção. Ainda me custa acreditar que subiu a voz e perguntou se algum de nós reparara que quanto mais damos mais as pessoas nos tentam sugar.

 

Como sempre, Cárter foi malcriado. Afirmou que visto que nunca doara nada para coisa nenhuma, não tinha esse problema. Seguiu-se Jack Emerson, que se vangloriou de ir doar a Stonecroft meio milhão de dólares para o novo centro de comunicações.

 

Só eu e Mark não dissemos nada, reflectiu. Vou fazer um donativo, mas destinar-se-á a bolsas de estudo e não a edifícios.

 

Não quis pensar mais em Mark.

 

Consultou o relógio. Eram cinco e um quarto.

 

Que hei-de vestir esta noite? Não trouxe assim tanta roupa. Ignoro que género de pessoas são os pais adoptivos de Lily. Devo vestir-me com simplicidade ou usar algo de mais cerimonioso? Talvez a melhor opção seja o casaco e calças castanhos de xadrez que usei para o passeio. É um fato que dá para tudo.

 

Sei que os retratos que o fotógrafo tirou em casa do reitor Downes vão ficar horríveis. Acho que não houve um único homem que se esforçasse ao menos por sorrir, e eu com a boca arreganhada até parecia um gato. Quando o descarado do Jake Perkins apareceu e pediu para nos tirar uma fotografia a todos para o Gazette, então é que julguei que o Dr. Downes ia sofrer um ataque cardíaco. Mas fiquei com pena do miúdo, o Dr. Downes quase o pôs na rua.

 

Espero que Jake não inclua na lista de universidades que pretende frequentar a de Georgetown, mas uma coisa é certa, o fedelho dá mais colorido à vida.

 

Um sorriso bailou nos lábios de Jean ao recordar-se de Jake e aligeirou a tensão que se ia acumulando dentro de si, desde que soubera que ia conhecer os pais adoptivos de Lily. Mas desvaneceu-se quase de imediato.

 

Onde é que Laura está?, pensou. Faz hoje cinco dias que desapareceu. Não posso permanecer cá por tempos indefinidos. Na semana que vem tenho aulas para dar. Porque teimo em acreditar que receberei notícias dela?

 

Agora é impossível conciliar o sono, concluiu por fim. Ainda é cedo para me levantar, mas pelo menos posso ler. Ontem quase não abri o jornal e ignoro o que se passa por esse mundo fora.

 

Voltou a atravessar o quarto em direcção à secretária, pegou no jornal e levou-o para a cama. Levantou a almofada e pôs-se a ler, mas os olhos começaram a fechar-se-lhe. Quando mergulhou por fim num sono profundo nem deu por o jornal lhe escorregar da mão.

 

Faltava um quarto para as sete quando tocou o telefone. Ao consultar as horas, Jean sentiu a garganta embargar-se-lhe.

 

São más notícias de certeza, pensou. Aconteceu alguma coisa a Laura... ou a Lily!

 

- Está? - inquiriu com ansiedade depois de levantar o auscultador.

 

- Jeannie... sou eu.

 

- Laura! - exclamou Jean. - Onde é que estás? Como te sentes? Laura soluçava de forma tão convulsiva que se tornava difícil compreender o que dizia.

 

-Jean... ajuda-me. Estou tão apavorada. Cometi... uma... loucura... Desculpa... Os faxes... sobre... sobre a Lily.

 

Jean ficou como que petrificada.

 

- Nunca conheceste Lily. Eu sei que não.

 

- Robby... foi... foi... foi... ele... que levou... a... escova... dela. A... a.... ideia... partiu... dele.

 

- Onde está o Robby?

 

- A... caminho... da Califórnia. A... atirou-me... com... as culpas. Jennie, vem ter comigo... por favor. Mas vem sozinha, apenas tu.

 

- Laura, onde é que estás?

 

- No... motel... Alguém... reconheceu-me. Tive de...

 

- Laura, onde é que me posso encontrar contigo?

 

- Jeannie... o Lookout.

 

- Estás a referir-te ao Storm King Lookout?

 

- Sim... sim.

 

Os soluços de Laura tornaram-se mais estridentes.

 

- Vou-me... matar...

 

- Laura, escuta o que te digo - replicou Jean quase em pânico.

- Daqui a vinte minutos estou lá. Vai correr tudo bem. Juro-te que vai correr tudo bem.

 

No outro extremo da linha, o Mocho apoderou-se do telefone e desligou.

 

- Ena, ena, Laura - observou em tom de aprovação. - Afinal és uma boa actriz. Merecias um Oscar pelo teu desempenho.

 

Laura afundara-se na almofada com a cara desviada dele, os soluços morrendo-lhe na boca e convertendo-se em suspiros entrecortados.

 

- Só o fiz porque prometeste que não ias fazer mal à filha de Jean.

 

- Pois disse - replicou o Mocho. - Laura, deves estar com fome. Desde a manhã de ontem que não comes nada. Não te posso arranjar café. O dono do estabelecimento ao fundo da colina estava a querer saber de mais, de modo que fui a outro sítio. Mas vê o que te trouxe.

 

Ela manteve-se calada.

 

- Vira a cabeça, Laura! Olha para mim!

 

Penosamente, ela obedeceu. Através de olhos inchados, viu que ele segurava três sacos de plástico. O Mocho desatou às gargalhadas.

 

- São presentes - explicou. - Um é para ti, o outro para Jean e o terceiro para Meredith. Laura, és capaz de adivinhar o que vou fazer com eles? Responde-me, Laura! És capaz de adivinhar o que vou fazer com eles?

 

 

                                   CAPÍTULO SETENTA E OITO

 

- Tenha paciência, Rich, mas ninguém me mete na cabeça que se tratou apenas de uma coincidência bizarra o facto de Gloria Martin, uma das raparigas de Stonecroft que se sentavam à mesma mesa do almoço, ter junto dela um mocho em miniatura quando morreu.

 

Fora mais uma noite insone. Depois do telefonema de Joy Lacko, seguira directamente para o escritório. O departamento da Polícia de Bethlehem já enviara o ficheiro relacionado com o suicídio de Gloria Martin, e juntos haviam-no dissecado palavra por palavra, assim como as reportagens que divulgavam a morte desta nos jornais.

 

Às oito horas da manhã ao chegar ao escritório, Rich Stevens convocou-os para uma reunião. Depois de escutar Sam, virou-se para Joy e perguntou-lhe:

 

- Que é que acha?

 

- No início pensei que se tratava de um ajuste de contas, que o tarado do Mocho que durante vinte anos andara a matar as raparigas de Stonecroft voltara a atacar nesta área - replicou Joy. - Agora já não tenho a certeza. Falei com Rudy Haverman, o polícia que há oito anos se encarregou do suicídio de Gloria Martin. A investigação dele foi bastante credível. Declarou-me que Martin era obcecada por miniaturas de animais e pássaros que comprava a muito baixo preço. Aquele que segurava na mão quando morreu ainda se encontrava embrulhado em plástico. Haverman descobriu o quiosque onde ela o comprou e a vendedora afirmou-lhe que se lembrava perfeitamente de Martin lhe dizer que o comprara por brincadeira.

 

- Você disse que o nível de alcoolemia revelava que ela estava embriagada quando morreu? - inquiriu Stevens.

 

- Estava, sim. Registava 0,20 mg. De acordo com Haverman, depois do divórcio começou a beber e foi ao ponto de declarar aos amigos que já não tinha motivos para viver.

 

-Joe, descobriu alguma coisa nos ficheiros das outras mulheres da mesa que apontasse para a descoberta, quando os corpos das vítimas foram examinados, de um desses mochos agarrado às roupas ou preso na mão?

 

- Até agora, não, chefe - admitiu Joy.

 

- Não quero saber se foi ou não Gloria Martin que comprou o mocho - insistiu Sam, inabalável. - O facto de o segurar na mão indica-me que foi assassinada. Ela contou aos amigos que se sentia deprimida, e depois? Depois de um divórcio as pessoas ficam quase sempre deprimidas, mesmo que tenham sido elas a solicitá-lo. Mas Martin era muito chegada à família e sabia que suicidando-se a deixava de rastos. Não deixou nenhuma nota de suicídio e atendendo à quantidade de álcool que ingeriu, foi um milagre conseguir enfiar o saco na cabeça e ainda por cima agarrar no mocho.

 

-Joy, concorda com este raciocínio? - quis Rich Stevens saber.

 

- Concordo, chefe. Rudy Haverman está convencido de que se tratou de suicídio, mas ele não viu os outros dois corpos que tinham mochos em miniatura nas algibeiras.

 

Rich Stevens recostou-se para trás e cruzou as mãos.

 

- Vamos lá ver se esclarecemos as coisas. Digamos que quem matou Helen Whelan e Yvonne Tepper W?... repito, pode... estar implicado na morte de, pelo menos, uma das raparigas de Stonecroft que se sentavam à mesma mesa para almoçar.

 

- Laura Wilcox, a sexta, desapareceu - observou Sam. - Resta-nos apenas Jean Sheridan. Ontem avisei-a para não confiar em ninguém, mas duvido que isso seja o suficiente. É possível que ela necessite mesmo de protecção.

 

- Neste momento, onde é que se encontra? - inquiriu Stevens.

 

- No hotel. A noite passada por volta das nove horas telefonou-me do quarto a agradecer-me uma coisa que lhe dei. Tinha ido ao beberete oferecido pelo reitor da Academia de Stonecroft e mandou que lhe servissem o jantar no quarto. Esta noite vai encontrar-se com os pais adoptivos da filha, e afirmou que ia tentar acalmar-se e ver se dormia bem.

 

Após um momento de hesitação, Sam acrescentou:

 

- Rich, às vezes precisa de confiar nos meus instintos. Joy anda a esmiuçar os ficheiros sobre as mortes de Stonecroft e está a desenvolver um trabalho excelente. Se eu sugerisse a Jean Sheridan para aceitar que eu lhe arranjasse um guarda-costas, ela dava-me um murro e aconteceria o mesmo consigo, caso o chefe lhe oferecesse protecção. Mas simpatiza comigo e se eu lhe disser que quero acompanhá-la sempre que sair do hotel, acho que vai concordar.

 

- Julgo que é boa ideia, Sam - concordou Stevens. - Era só o que nos faltava, acontecer alguma coisa à Dr.a Sheridan.

 

- Um último pormenor - acrescentou Sam. - Gostava que um dos tipos da reunião que ainda se encontra na cidade fosse colocado sob vigilância. Chama-se Mark Fleischman, Dr. Mark Fleischman. É psiquiatra.

 

Joy fitou Sam, arqueando o sobrolho com uma expressão atónita.

 

- O Dr. Fleischman! Sam, nunca vi ninguém como ele na televisão dar conselhos tão sensatos! Há poucas semanas deu um programa a advertir os pais em relação a miúdos que se sentem rejeitados em casa e na escola, e ao facto de alguns deles crescerem com traumas emocionais. É o que mais vemos por aí, não é?

 

- Pois é. Mas pelo que me constou, Mark Fleischman foi bastante maltratado tanto em casa como na escola - replicou Sam com ar soturno -, de modo que talvez se referisse a ele próprio.

 

- Veja quem está disponível para se encarregar da vigilância

- declarou Rich Stevens. - Só mais uma coisa... é melhor considerarmos Laura Wilcox como desaparecida. Há cinco dias que ninguém a vê.

 

-Acho que a bem da verdade nua e crua, devíamos dá-la como ”desaparecida e presumivelmente morta” - replicou Sam sem rodeios.

 

 

                                 CAPÍTULO SETENTA E NOVE

 

Depois de Laura desligar, Jean borrifou a cara com água, passou um pente pelo cabelo, vestiu o fato de treino, enfiou o telemóvel na algibeira, agarrou na agenda de bolso, saiu a correr do hotel e meteu-se no carro. Storm King Lookout na Via 218 ficava a quinze minutos do hotel. Ainda era cedo e havia pouco trânsito. Apesar de por norma ser uma condutora previdente, carregou no acelerador e viu o ponteiro do velocímetro subir para os 120 km/hora. O relógio indicava que passavam dois minutos das sete horas.

 

Laura está desesperada, pensou. Porque é que ela se quer encontrar comigo no miradouro? Será que tenciona suicidar-se?

 

O espírito de Jean foi trespassado pela imagem de Laura a chegar primeiro do que ela ao local de encontro, e tresloucada pelo desespero trepar para o parapeito e atirar-se do miradouro Lookout, que se situava a cem metros acima do Hudson.

 

Na última curva, o carro derrapou e por um momento alucinante Jean duvidou que conseguisse controlá-lo, mas quando as rodas se endireitaram avistou um veículo estacionado junto ao telescópio do miradouro.

 

Meu Deus, faz com que seja Laura, rezou. Faz com que ela esteja ali. Faz com que se encontre bem.

 

Com um chiar de pneus deteve-se no parque de estacionamento, desligou o motor, saiu, precipitou-se para o outro veículo e escancarou a porta do lado do passageiro.

 

- Laura...

 

O sorriso de alegria morreu-lhe nos lábios quando viu o homem ao volante. Este pusera uma máscara, uma máscara de borracha a imitar uma cabeça de mocho. Os olhos, com pupilas negras nadando nos dois lagos amarelos das íris, estavam rodeados por tufos de penugem branca que gradualmente ia mudando de cor e assumiam um tom de castanho à volta do bico e dos lábios.

 

O homem segurava uma pistola.

 

Aterrorizada, Jean dispunha-se a fugir quando ouviu uma voz familiar ordenar-lhe:

 

- Entra no carro, Jean, se não queres morrer. E não pronuncies o meu nome. Proíbo-to.

 

O carro dela encontrava-se a poucos metros de distância. E se arriscasse e corresse até lá? Iria ele disparar? Viu-o erguer a arma.

 

Tolhida pelo medo, hesitou; depois, lutando por ganhar tempo, colocou lentamente o pé dentro do carro.

 

Dou um salto para trás, pensou. Caio e ele é obrigado a sair para me dar um tiro. Talvez consiga voltar para o meu carro.

 

Mas com um gesto fulminante, ele agarrou-lhe no braço e puxou-a toda para dentro do veículo, inclinou-se por cima dela e fechou com estrondo a porta.

 

Endireitou-se num abrir e fechar de olhos, e virou para a Via 218 em direcção a Cornwall. Em seguida arrancou a máscara e esboçou-lhe um esgar sorridente.

 

- Eu sou o Mocho - declarou. - Eu sou o Mocho. Proíbo-te de me chamares pelo outro nome. Estás a compreender?

 

Endoideceu, pensou Jean ao mesmo tempo que aquiescia com a cabeça. Na estrada não se avistavam mais carros. Se algum aparecesse, será que conseguiria inclinar-se para a frente e tocar a buzina? Considerou mais acertado correr o risco ali na estrada do que permitir que ele a levasse para algum sítio ermo onde não pudesse obter ajuda.

 

- Eu sou... um... mo-mocho... e... e... vwiiivo... numa... - pôsse ele a cantarolar. - Jeannie, lembras-te?

 

- Lembro-me. - Os lábios dela começaram a esboçar o nome do homem, mas sem conseguirem pronunciá-lo.

 

Vai matar-me, pensou. Agarro no volante e tento provocar um acidente.

 

O sujeito virou-se e dirigiu-lhe um sorriso dengoso de orelha a orelha. As pupilas dos seus olhos eram negras.

 

O meu telemóvel, lembrou-se Jean. Está na algibeira.

 

Encostou-se ao banco e começou à procura. Conseguiu fazê-lo deslizar para fora e colocá-lo de modo a que ele não o visse, mas antes que pudesse tentar levantar a tampa e marcar o 112, a mão direita do Mocho abateu-se sobre ela.

 

- Vamos enfiar-nos no trânsito - declarou. Os seus dedos possantes e curvos como garras fincaram-se-lhe no pescoço.

 

Estrebuchando, tentou repeli-lo e num derradeiro gesto antes de perder os sentidos, enfiou o telemóvel debaixo da almofada do banco.

 

Quando voltou a si, encontrava-se amarrada a uma cadeira com a boca amordaçada. As trevas pesavam sobre o quarto, mas conseguiu entrever o vulto de uma mulher que jazia na cama, uma mulher com um vestido que cintilava e captava as miríades de luz que se escoavam por entre as sombras espessas.

 

Que aconteceu?, interrogou-se Jean. Dói-me a cabeça. Porque é que não me consigo mexer? Estarei a sonhar? Não, ia encontrar-me com Laura, meti-me no carro e...

 

- Jeannie, estás acordada, não estás?

 

Fez um esforço penoso para virar a cabeça e avistou-o especado junto à soleira da porta.

 

- Apanhei-te de surpresa, não foi, Jean? Lembras-te da peça de teatro do preparatório? Toda a gente se riu de mim. E tu também. Lembras-te?

 

Não, não me ri, pensou Jean. Senti pena de ti.

 

- Jean, responde-me.

 

A mordaça estava tão apertada que ela ficou sem saber se o indivíduo a conseguia ouvir.

 

- Lembro-me - replicou e para dar mais ênfase, aquiesceu vigorosamente com a cabeça.

 

- És mais esperta que Laura - retorquiu ele. - Agora tenho de ir. Vou-vos deixar à vontade. Mas não demoro. E quando voltar, trarei comigo alguém que andas mortinha por ver. Quem é? Quem é? Ora adivinha lá.

 

Depois foi-se embora. Chegou aos ouvidos de Jean um som lamuriento vindo da cama. Depois, com a voz abafada pela mordaça mas ainda audível, Laura começou a gemer:

 

- Jeannie... prometeu... que não fazia mal a Lily... mas vai... matá-la também.

 

 

                                           CAPÍTULO OITENTA

 

Às nove e um quarto, quando seguia a caminho da Casa Glen-Ridge, Sam achou que já eram horas decentes para ligar a Jean. Ao ver que ela não atendia o telefone do quarto, ficou desiludido mas não preocupado. Como na noite anterior jantara no quarto, se calhar fora tomar o pequeno-almoço à cafetaria. Ainda lhe ocorreu ligar-lhe para o telemóvel, porém, desistiu.

 

O tempo que demoro afazer a chamada é o que demoro a chegar lá, pensou.

 

Começou a invadi-lo a sensação de que algo não batia certo quando não a encontrou na cafetaria, nem atendeu o telefone do quarto. O recepcionista não tinha a certeza se ela fora dar um passeio. Era o homem com a cor de cabelo esquisita.

 

- Não estou a afirmar que ela não saiu - explicou. - De manhã cedo andamos sempre muito atarefados, pois é quando os hóspedes se vão embora.

 

Sam viu Gordon Amory sair do elevador. Vestia camisa, gravata e um fato cinzento-escuro de executivo, obviamente de marca. Ao avistar Sam, dirigiu-se para o detective.

 

- Por acaso falou esta manhã com Jean? - perguntou-lhe. Combinámos tomar juntos o pequeno-almoço, mas ela não apareceu. Ainda pensei que ficara a dormir, mas liguei-lhe para o quarto e ninguém atendeu.

 

- Ignoro onde possa estar - replicou Sam, tentando disfarçar a preocupação que começava a invadi-lo.

- Bom, na noite passada quando voltámos para o hotel, ela sentia-se cansada e se calhar esqueceu-se - respondeu Amory. - Encontro-me com ela mais tarde, pois disse-me que ficava cá até amanhã. - Dizendo isto, esboçou um breve sorriso, acenou com a mão e dirigiu-se para a entrada do hotel.

 

Sam tirou a carteira e procurou o número do telemóvel de Jean, mas não o conseguiu descobrir. Exasperado, concluiu que o devia ter deixado no bolso do casaco que usara na véspera. Mas havia uma pessoa que talvez o tivesse - Alice Sommers.

 

Ao marcar o número de Alice, percebeu o quanto ansiava ouvir-lhe de novo a voz.

 

Anteontem jantei com ela, pensou. Que pena não termos planos para esta noite.

 

Alice indicou-lhe o número.

 

- Sam, ontem Jean ligou-me a dizer que se sentia muito empolgada por ir conhecer os pais adoptivos de Lily. Também afirmou que no fim-de-semana terá hipóteses de se encontrar com a filha. Não é maravilhoso?

 

Um encontro com afilha que não vê há quase vinte anos. Alice está entusiasmada por causa de Jean, mas para ela também deve ser complicado recordar-se que foi por volta dessa altura que Karen morreu, pensou Sam. Sentiu-se desanimado ao reparar que sempre que ficava comovido disfarçava mostrando-se brusco.

 

- É uma coisa óptima para ela. Alice, estou com pressa. Se por acaso Jean lhe ligar e nesse entretanto eu não conseguir falar com ela, peça-lhe para me dar um toque, está bem? É importante.

 

- Sam, você não consegue enganar-me. Está preocupado com ela. Porquê?

 

- Estou um pouco preocupado. Anda a acontecer muita coisa. Escute, se calhar foi só dar um passeio.

 

- Assim que souber notícias dela, diga-me.

 

- Fá-lo-ei, Alice.

 

Com um gesto brusco, Sam desligou o telemóvel e encaminhou-se para a recepção.

 

- Gostava de saber se esta manhã a Dr.a Sheridan pediu que lhe servissem o pequeno-almoço no quarto.

 

- Não, não pediu - foi a resposta imediata.

 

Mark Fleischman abriu a porta principal e entrou no átrio. Ao avistar Sam, foi ao seu encontro.

 

- Sr. Deegan, gostava de falar consigo. Estou preocupado com Jean Sheridan.

 

Sam olhou-o com frieza.

 

- Porque diz isso, Dr. Fleischman?

 

- Porque na minha opinião, quem a anda a importunar por causa da filha é um indivíduo perigoso. Com Laura desaparecida, Jean é a única mulher das ditas raparigas da mesa do almoço que ainda está viva.

 

- Também já pensei nisso, Dr. Fleischman.

 

-Jean ficou zangada comigo e já não confia em mim. Interpretou mal o motivo por que questionei a empregada a respeito do fax. Agora já não dá ouvidos a nada do que eu lhe digo.

 

- Como sabia que ela era doente do Dr. Connors? - perguntou Sam de chofre.

 

- Jean também mo perguntou, e na altura respondi-lhe que o soube por ela. Mas depois estive a pensar e ocorreu-me. Quando os outros homenageados... refiro-me a mim, a Cárter, a Gordon e a Robby... se meteram com Jack Emerson por o pai o ter posto a trabalhar com a equipa que efectuava a limpeza do consultório, um deles referiu-o. Só que não me lembro qual deles foi.

 

Estará Fleischman a falar verdade?, interrogou-se Sam. Porque se assim for, andei a ladrar à árvore errada.

 

- Veja se se recorda - pediu-lhe. - É muito, muito importante.

 

- Esteja descansado. Como ontem, Jeannie foi dar um passeio, calculo que esta manhã fez o mesmo. Telefonei para o quarto dela a confirmar... não está... e não dei por ela na sala de jantar. Vou até à cidade ver se a encontro.

 

Sam sabia que era demasiado cedo para ter chegado o detective incumbido da vigilância de Fleischman.

 

- Por que é que não aguarda mais um pouco para ver se ela aparece? - sugeriu - Se andar por aí às voltas, ainda se desencontram.

 

- Não tenciono ficar para aqui de braços cruzados, pois estou preocupado por causa dela - replicou Fleischman em tom abrupto.

 

E estendendo a Sam o seu cartão de visita, acrescentou: - Logo que receber notícias de Jean, agradeço-lhe imenso que me informe.

 

Dizendo isto, atravessou rapidamente o átrio em direcção à entrada do hotel. Sam ficou a observá-lo, debatendo-se com sentimentos antagónicos em relação ao outro.

 

Será que quando andaste em Stonecroft recebeste alguma medalha de mérito teatral?, interrogou-se. Ou estás a ser sincero, ou és um actor do melhor que há, porque na aparência mostras-te tão preocupado como eu em relação a Jean Sheridan.

 

O detective semicerrou os olhos enquanto observava Fleischman a atravessar rapidamente a porta da entrada.

 

Vou aguardar um pouco mais, reflectiu. Talvez ela só tenha ido dar um passeio.

 

 

                                       CAPÍTULO OITENTA E UM

 

A cadeira à qual ele a amarrara encontrava-se próxima da janela, encostada à parede e virada para a cama. Algo no quarto parecia-lhe familiar. Cada vez mais horrorizada e sentindo-se como que no meio de um pesadelo, Jean esforçava-se por entender os lamentos abafados de Laura. A amiga não parava de murmurar e parecia mergulhar em lapsos intermitentes de torpor para em seguida despertar, ao mesmo tempo que tentava falar através da mordaça, que lhe conferia uma entoação cava e fantasmagórica à voz. Daí resultava um som que quase parecia um ronco.

 

Nunca o mencionou pelo nome próprio, referindo-se-lhe sempre como ”O Mocho”. Às vezes punha-se a recitar a deixa dele na peça de teatro do segundo ano do preparatório: ”Eu sou um mocho e vivo numa árvore.” Depois soçobrava num mutismo inquietante e apenas um trémulo soluço ocasional revelava a Jean que Laura ainda respirava.

 

Lily. Laura afirmara que ele ia matar Lily. Mas a filha encontrava-se em segurança, claro que sim. Craig Michaelson garantira-lhe que Lily estava a salvo. Seria Laura a delirar? Devia jazer ali na cama, pelo menos, desde sábado à noite. E não parava de dizer que tinha fome. Ter-lhe-ia ele dado comida? Por certo ingerira alguma coisa.

 

Oh, meu Deus, pensou Jean ao lembrar-se de Duke, o dono do pronto-a-comer que se localizava no sopé da colina. Ele falara-lhe de um homem da reunião que lá ia com regularidade abastecer-se de comida. Era dele que Duke falava!

 

Torceu as mãos esforçando-se por alargar as cordas, mas estavam demasiado apertadas.

 

Será possível que ele tenha matado Karen Sommers neste mesmo quarto? Será possível que em West Point atropelasse Reed de propósito? Terá ele assassinado Catherine, Cindy, Debra, Gloria eAlison, assim como as duas mulheres que esta semana apareceram mortas? Na madrugada de sábado, vi-o entrar com o carro no parque de estacionamento e vinha com as luzes apagadas, pensou Jean. Se eu informasse Sam, ele tê-lo-ia mandado investigar, tê-lo-ia detido.

 

O meu telemóvelficou no carro dele, ocorreu a Jean. Se o encontra, deita-o fora. Se não, e caso Sam o tente localizar tal como fez com o que Laura utilizou para me contactar, talvez nos reste uma hipótese. Por favor, meu Deus, faz com que ele não magoe a Lily, faz com que Sam se lembre de tentar localizar o meu telemóvel!

 

Laura começou a respirar aos arquejos e a pronunciar palavras que quase não se entendiam.

 

- Sacos do lixo... sacos do lixo... não... não... não.

 

Apesar das trevas espessas que pairavam sobre as janelas, uma ténue claridade conseguiu infiltrar-se no quarto e permitiu Jean entrever o contorno de uns sacos de plástico suspensos de cabides enganchados no pé do candeeiro, que havia junto à cama. Um estava mesmo virado para ela e tinha umas palavras escritas. Que seria? Um nome? Seria... Não conseguiu perceber.

 

O ombro dela aflorava o rebordo de um estore opaco. Arremessou o peso do corpo para um lado, depois para o outro, até a cadeira se deslocar uns milímetros. O estore bateu-lhe no ombro e desviou-se do caixilho da janela.

 

À ténue claridade que se seguiu, conseguiu então ler as palavras escritas com marcador preto grosso: LILY/MEREDITH.

 

 

                             CAPÍTULO OITENTA E DOIS

 

Jake não podia faltar à primeira aula que era às oito da manhã, mas assim que esta acabou, precipitou-se para o estúdio. Na sua opinião as provas das fotografias que tirara no dia anterior pareciam melhores à luz do dia do que ao lusco-fusco do entardecer. Enquanto as analisava congratulou-se.

 

A McMansão da Concord Avenue parece tão ”olha p’ra mim, que sou tão rica!”, pensou. A. casa da Mountain Road fazum contraste tão grande! Suburbana, confortável, de classe média, mas agora com um toque místico adicional.

 

Nessa noite em casa, efectuara pesquisas na Internet e confirmara que Karen Sommers fora assassinada no quarto de esquina do segundo andar direito.

 

Sei que em miúda a Dr.a Sheridan morou na casa ao lado, pensou Jake. Vou passar pelo hotel e verse me pode confirmar se era aquele o quarto de Laura. É provável que sim. De acordo com a planta da casa e o desenho do corpo no chão divulgados pela Internet quando ocorreu o assassínio de Karen, é o outro quarto grande do mesmo andar. Faz sentido que sendo Laura, filha única e menina dos papás, tenha sido ela a ficar com ele. A Dr.a Sheridan é capaz de mo confirmar, pois foi amorosa comigo... nada que se parecesse com o velho Deegan: ”Enfia-o na Cadeia.”

 

Jake meteu na mala as provas das fotografias da véspera assim como um rolo extra. Pretendia tê-las à mão enquanto fotografasse, para o caso de precisar de as comparar.

 

Às nove horas da manhã, aproximava-se da Mountain Road. Concluíra não ser uma medida inteligente estacionar na rua. As pessoas reparavam em carros desconhecidos e o tal polícia talvez reconhecesse o seu veículo. Em alturas como aquela arrependia-se de o ter pintado com listras brancas e pretas.

 

Bebo uma gasosa e como um bolo, deixo o carro junto ao pronto-a-comer e sigo a pé até à casa de Laura, decidiu. Pedira emprestado à mãe um dos sacos de compras formato gigante da Bloomingdale’s. Nem carro nem máquina fotográfica à vista.

 

Posso escapulir-me pela rampa da casa de Laura e tirar fotografias às traseiras da casa. Espero que as portas da garagem tenham janelas, pois assim sou capaz de confirmar se há algum carro lá dentro.

 

Às nove horas e dez minutos, encontrava-se sentado ao balcão do estabelecimento de pronto-a-comer que se localizava no início da Mountain Road, em amena cavaqueira com Duke, que já lhe contara que ele e Sue, a mulher, eram há dez anos os proprietários, que dantes o restaurante fora uma lavandaria a seco, que funcionavam das seis da manhã às nove horas da noite, e que gostavam de ali estar.

 

- Cornwall é uma cidade pacata - observou Duke, sacudindo uma migalha imaginária do balcão -, mas bonita. Diz você que anda na Academia de Stonecroft? Mas que fino. Alguns dos que estiveram na reunião apareceram por cá. Oh, lá vai ele.

 

Os olhos de Duke fixaram-se na janela que dava para a Mountain Road.

 

- Quem? - inquiriu Jake.

 

- O tipo que de manhã cedinho e por vezes ao cair da noite passa por aqui para levar um café e uma tosta, ou um café e uma sanduíche.

 

- Sabe quem é? - perguntou Jake só por perguntar.

 

- Não, mas é um dos da reunião e andou a manhã inteira para cá e para lá. Vi-o sair de carro, voltar um pouco mais tarde e lá partiu ele de novo.

 

- Hum-hum - replicou Jake, levantando-se e tirando da algibeira algumas notas de dólar todas amarrotadas. - Apetece-me esticar as pernas. Não se importa que eu deixe o carro aqui estacionado uns quinze minutos?

 

- Claro, mas mais do que isso, não. É que daqui a pouco o estabelecimento enche-se e não há lugares para estacionar.

 

- Não se preocupe, também estou com pressa.

 

Decorridos oito minutos, Jake encontrava-se no pátio das traseiras da antiga casa de Laura, a tirar fotografias. Conseguiu alguns instantâneos das traseiras da casa e, através da porta, outros da cozinha. A vidraça por cima da porta estava protegida com uma grade, mas quando espreitou para o interior, avistou grande parte da divisão.

 

Podia ser uma cozinha-modelo para uma revista da especialidade, pensou. Os balcões que entreviu encontravam-se vazios - nem sinais de torradeira, cafeteira, canecas, travessas, tabuleiros, rádio, nem sequer relógio. Nenhum indício de estar habitada.

 

Acho que foi a primeira vez na vida que me enganei, concluiu, relutante.

 

Observou as marcas de pneus que sulcavam a rampa.

 

Passaram por aqui vários carros, pensou. Mas podia ser o tipo que limpa as folhas do jardim. As portas da garagem estavam trancadas e não possuíam janelas, de modo que lhe foi impossível confirmar se no interior havia carros.

 

Regressou à rampa, atravessou a rua e tirou uma série de fotografias à parte da frente da casa.

 

Acho que já chega, pensou. Vou já revelá-las e depois telefono à Dr.a Sheridan a perguntar-lhe se se lembra qual dos quartos pertencia a Laura quando eram crianças.

 

”Tinha mais piada surpreender Laura Wilcox e Robby Brent ali escondidos, reflectiu, voltando a guardar a máquina fotográfica no saco e descendo a rampa. Mas que hei-de fazer? Podemos fazer a cobertura de uma história, só não podemos é inventá-la.

 

 

                             CAPÍTULO OITENTA E TRÊS

 

Terminada a primeira aula, a cadete Meredith Buckley da Academia Militar de West Point dirigiu-se a correr para o quarto a fim de fazer uma última revisão aos apontamentos para o teste de Álgebra Linear, a disciplina que se revelava a mais difícil do seu segundo ano em West Point.

 

Durante vinte minutos os apontamentos absorveram-na por completo. Quando se dispunha a guardá-los na pasta, tocou o telefone. Esteve tentada a não atender, mas ocorrendo-lhe que podia ser o pai a desejar-lhe boa sorte para o teste, levantou o auscultador e sorriu.

 

Sem lhe dar tempo a falar, uma voz risonha anunciou:

 

- Posso ter o prazer de convidar a cadete Buckley, filha do distinto general Charles Buckley, juntamente com os seus pais, para passarem mais um fim-de-semana na minha casa em Palm Beach?

 

- Nem imagina o bem que me faz ouvi-lo - respondeu Meredith com entusiasmo ao recordar o fim-de-semana maravilhoso que passara com o amigo dos pais. - Estou disponível em qualquer altura, excepto, é claro, quando West Point tem outros planos para mim, o que equivale a dizer quase sempre. Detesto parecer indelicada, mas já estava de saída porque vou fazer um teste.

 

- Preciso de cinco, vá lá, três minutos do teu tempo. Meredith, compareci a uma reunião de turma na Academia de Stonecroft, em Cornwall. Julgo ter-to referido.

 

- Referiu, sim. Lamento imenso, mas neste momento é-me de todo impossível falar consigo.

 

- Vou ser breve. Meredith, uma colega de turma que compareceu à reunião é amiga íntima de Jean, a tua mãe biológica, e escreveu-te uma mensagem a respeito dela. Prometi-lhe que te entregava pessoalmente o bilhete. Diz-me quando te convém que eu esteja no parque de estacionamento do museu, e lá te esperarei com ele na mão.

 

- A minha mãe biológica? Há alguém da reunião que a conhece?

- Meredith enclavinhou os dedos no telefone, sentindo o coração aos pulos. Depois consultou o relógio. Precisava mesmo de ir para a aula. - Acabo o teste às onze e quarenta e cinco - acrescentou precipitadamente. - Ao meio-dia e dez, posso encontrar-me consigo no parque de estacionamento.

 

- É uma boa hora para mim. Força para o teste, general.

 

A cadete Meredith Buckley teve de se socorrer de todo o treino que recebera para tomar consciência de que dali a pouco menos de uma hora iria saber algo de tangível a respeito da rapariga que aos dezoito anos a dera à luz. Até então as únicas informações de que dispunha a respeito da mãe eram de que ela estava quase a finalizar o secundário quando soubera que se encontrava grávida e que antes dela nascer o pai, a dias de fazer o juramento de bandeira, fora mortalmente atropelado por um condutor que se pusera em fuga.

 

Os pais adoptivos tinham-lhe falado a respeito da mãe biológica e prometido que assim que ela terminasse o curso em West Point tentariam descobrir a sua identidade e promover um encontro entre as duas.

 

- Não fazemos a mínima ideia de quem se trata, Meri - afirmara-lhe o pai. - Sabemos, porque foi o médico que assistiu o teu parto quem nos contou, que a tua mãe biológica te amava muito e que entregar-te para adopção constituiu talvez a decisão mais egoísta e penosa que teve de tomar na vida.

 

Tudo isto desfilou em tropel pelo espírito de Meredith, enquanto tentava concentrar-se no teste de Álgebra Linear. Porém não conseguiu abafar o sentimento de que cada segundo que os ponteiros do relógio avançavam, a aproximavam cada vez mais do momento em que iria conhecer pormenores da mãe que ela sabia agora chamar-se Jean.

 

Quando entregou o teste e se precipitou para Thayer Gate onde ficava o museu da academia militar, ocorreu-lhe que o amigo dos pais, ao referir-se a Palm Beach, respondera à pergunta que no dia anterior o pai lhe fizera ao telefone.

 

Foi lá que perdi a escova, lembrou-se de súbito.

 

 

                           CAPÍTULO OITENTA E QUATRO

 

Às dez horas quando Sam se encontrava sentado no átrio, Cárter Stewart, exibindo um rosto que parecia talhado em pedra, entrou no hotel. Sam foi-lhe no encalço e abordou-o na recepção.

 

- Sr. Stewart, se me permite gostava de trocar uma palavrinha consigo.

 

- Só um minuto, Sr. Deegan. - Quem atendia na recepção era o empregado com o cabelo pintado da cor da madeira. - Preciso de me avistar com o gerente e preciso de entrar de novo no quarto do Sr. Brent - ordenou Stewart, virando-se para o homem. - Os directores de produção receberam a encomenda enviada ontem. Ao que parece, falta um guião cuja importância é vital e pediram-me para fazer novamente de bom samaritano. Visto que o guião não se encontrava em cima da secretária, tal implica procurar dentro da mesma.

 

- Vou já chamar o Sr. Lewis, cavalheiro - replicou o empregado, todo nervoso.

 

Stewart virou-se então para Sam.

 

- Se não me for permitido vasculhar a secretária de Robby, estou-me nas tintas. Já paguei a dívida de gratidão que o meu agente teima em afirmar que tenho para com ele. O homem já concordou que a saldei na totalidade. O tipo ainda não sabe, mas isso dá-me o direito moral de o despedir que é o que tenciono fazer esta tarde.

 

E virando-se para o empregado, acrescentou:

 

- O gerente está, ou anda no campo a apanhar flores? Que ser humano mais desprezível!, pensou Sam.

 

- Sr. Stewart - declarou em tom gélido -, tenho uma pergunta a fazer-lhe e preciso de saber a resposta. Informaram-me que umas noites atrás, o senhor, o Sr. Amory, o Sr. Brent, o Sr. Emerson, o Dr. Fleischman e o Sr. Nieman referiram-se na brincadeira ao facto de em algumas tardes terem trabalhado juntos com a equipa que efectuava a limpeza de um edifício do qual o pai do Sr. Emerson era o proprietário.

 

- Sim, sim, mencionámos uma coisa do género. Foi na Primavera do nosso décimo segundo ano. Mais uma terna recordação do tempo maravilhoso que passei em Stonecroft.

 

- Sr. Stewart, é muito importante. Ouviu alguém afirmar que a Dr.a Sheridan era doente do Dr. Connors, que possuía um consultório nesse prédio?

 

- Não, não ouvi. Além disso, por que motivo havia Jean de ser doente do Dr. Connors, se este era obstetra? - Stewart arregalou os olhos e acrescentou: - Caramba! Sr. Deegan, não me diga que há para aí um segredinho! Jean era doente do Dr. Connors?

 

Sam fitou Stewart com uma expressão de repugnância. Desejou dar um pontapé a si mesmo pela maneira como formulara a pergunta e um soco a Stewart pela resposta lúbrica deste.

 

- Perguntei-lhe se ouvira alguém fazer tal afirmação - ripostou. - Nem por um instante insinuei que era verdade.

 

Justin Lewis, o gerente, apareceu atrás deles.

 

- Sr. Stewart, informaram-me que pretende ir ao quarto do Sr. Brent e remexer-lhe na secretária. Lamento, mas não posso permitir que o faça. Ontem depois de o ter deixado levar aqueles guiões, contactei com os nossos advogados e eles ficaram muito aborrecidos.

 

- Pronto, assim é que se fala - replicou Stewart, virando costas ao gerente. - O assunto que me trouxe aqui está bem encaminhado, Sr. Deegan - acrescentou, dirigindo-se a Sam. - Eu e o meu director já acertámos as alterações à minha peça sugeridas por ele, e já deito a vida de hotel pelos olhos. Regresso esta tarde a Manhattan e desejo-lhe boa sorte enquanto espera que Laura e Robby voltem à tona.

 

Sam e o gerente ficaram a observá-lo enquanto atravessava o átrio.

 

- Que sujeito mais desprezível - observou Justin Lewis a Sam.

 

- É óbvio que detesta o Sr. Brent.

 

- Porque diz isso? - inquiriu Sam de chofre.

 

- Por causa de um bilhete que o Sr. Brent deixou na secretária no qual se referia ao Sr. Stewart como ”Howie”. Reparei como ele ficou irritado, mas afirmou-me que se tratava de uma piada do Sr. Brent. Depois perguntou-me se eu conhecia aquele ditado que diz que ”o último a rir é o que ri melhor”.

 

Antes que Sam pudesse retorquir, ouviu o telemóvel tocar. Era Rich Stevens.

 

- Sam, recebemos uma chamada da Polícia de Cornwall. Localizaram um carro no Hudson. Está meio submerso porque ficou preso nas rochas, senão a corrente tinha-o arrastado. Há um corpo dentro do porta-bagagem. É de Robby Brent e parece que o mataram há já alguns dias. É melhor vir até cá.

 

- Vou a caminho, Rich - replicou Sam, fechando com um gesto brusco o telefone.

 

”O último a rir é o que ri melhor. Quando Laura e Roby aparecerem à tona.” A tona significa água?, interrogou-se.

 

Seria Cárter Stewart, outrora conhecido por ”Howie”, não só um reputado dramaturgo como também um homicida psicopata?

 

 

                                 CAPÍTULO OITENTA E CINCO

 

Às dez horas, Jake regressara à câmara escura da escola para revelar o último conjunto de fotografias. Decidiu que aquelas que tirara às traseiras da casa de Mountain Road não serviam de nada para a sua história. Até a porta com o seu gradeamento decorativo dava uma sensação aconchegante, à Norman Rockwell. A fotografia da cozinha não era má, mas quem queria ver bancadas vazias?

 

Jake decidiu que essa manhã fora um desperdício. Não me devia ter dado ao trabalho de faltar à segunda aula. Enquanto a fotografia que ele tirara da parte da frente da casa começava a surgir, ele conseguiu perceber que estava um pouco desfocada. Bem a podia deitar fora, já que nunca a iria usar no artigo.

 

Ouviu chamarem-no no exterior da câmara escura. Era Jill Ferris, e soava aborrecida. Ela não pode estar chateada comigo, pensou, não faltei à aula dela.

 

- Já saio, Dr.a Ferris - gritou ele.

 

Assim que abriu a porta conseguiu perceber pelo olhar dela que algo a abalara. Ela não se deu ao trabalho de o cumprimentar.

 

- Jake, calculei que podias estar aqui - disse. - Entrevistaste Robby Brent, não entrevistaste?

 

- Sim, entrevistei. E até foi uma excelente entrevista, se é que me posso gabar. - Ela não a vai cortar, pois não?, pensou Jake desanimado. Provavelmente, o velho Downes quer esquecer que Brent e Laura Wilcox frequentaram Stonecroft.

 

- Jake, acabaram de dar a notícia. O corpo de Robby Brent foi encontrado no porta-bagagens de um carro submerso, perto de Cornwall Landing.

 

Robby Brent morto! Jake agarrou na máquina fotográfica. Ainda me resta muito filme, pensou.

 

- Obrigado, Jill - gritou, ao correr para a porta.

 

 

                               CAPÍTULO OITENTA E SEIS

 

O carro com o corpo de Robby Brent fora arrastado pelo rio Hudson até Cornwall Landing. O parque habitualmente tranquilo, com os seus bancos e salgueiros-chorões, fervilhava agora de polícias. Num abrir e fechar de olhos, a área fora vedada aos mirones que, tal como os repórteres, começavam a afluir para lá.

 

Quando Sam chegou às dez e meia, o corpo do falecido Robby Brent já fora metido num saco mortuário e enfiado na carrinha da morgue. Cal Grey, o médico-legista, fez a Sam o ponto da situação.

 

- Há, pelo menos, dois dias que está morto. Esfaqueado no peito. A facada atravessou-lhe o coração. Tenho de fazer exames para o confirmar, mas devo-lhe afirmar, Sam, que parece ser o mesmo tipo de navalha de ponta saliente que matou Helen Whelan. Pelo que me foi dado verificar, quem assassinou Brent ou era bastante mais alto ou encontrava-se em cima de qualquer coisa, por exemplo uns degraus e portanto numa posição sobranceira em relação à vítima. A navalha penetrou num ângulo distinto.

 

Mark Fleischman é alto, reflectiu Sam.

 

Quando conversara com o psiquiatra, este parecera compreender porque é que Jean se esquivava a falar-lhe. Dera uma justificação plausível quanto ao motivo por que fizera perguntas respeitantes aos faxes e ao facto de saber que Jean fora doente do Dr. Connors. Estaria a ser honesto ou um pouco cínico? Sam não tinha a certeza.

 

Antes de chegar à cena do crime, o detective ligara para o telemóvel de Jean, porém, esta não atendera. Deixara uma mensagem urgente para que ela lhe ligasse e depois telefonara de novo a Alice Sommers.

 

Alice deixara-o um pouco mais tranquilizado.

 

- Sam, quando Jean se referiu ao encontro que vai ter com os pais adoptivos de Lily esta noite, mencionou-me que lamentava não ter trazido mais roupa para vestir. Woodbury Mall fica a pouco menos de uma hora de distância e não me admirava nada que tivesse simplesmente decidido ir até lá e fazer umas compras.

 

Tratava-se de uma suposição plausível e em parte ajudara a esconjurar os maus pressentimentos de Sam em relação a Jean. Mas a preocupação começava agora a aumentar, e o instinto advertia-o para não aguardar mais tempo e para se pôr de imediato em campo a fim de descobrir o seu paradeiro.

 

- O móbil não foi roubo - esclareceu Cal Grey. - Brent usava um relógio caro e tinha seiscentos dólares e meia dúzia de cartões de crédito na carteira. Há quanto tempo está dado como desaparecido?

 

- Depois do jantar de segunda-feira ninguém mais o viu - replicou Sam.

 

- O meu palpite é que depois disso não durou muito tempo observou Grey. - É claro que só a autópsia nos fornecerá com rigor a hora do óbito.

 

- Eu estive presente nesse jantar - redarguiu Sam. - Que vestia ele quando o retiraram do porta-bagagem?

 

- Casaco bege, calças castanhas-escuras e um camisolão de gola alta.

 

- Então, a menos que tenha dormido com essas roupas, morreu na noite de segunda-feira.

 

Sucedeu-se uma bateria de clarões enquanto os fotógrafos que se comprimiam atrás do cordão de segurança começavam a tirar fotografias ao carro que se convertera no caixão de Robby Brent. Um reboque içara-o do rio e agora, ainda preso ao cabo, balouçava-se sobre a margem, escorrendo água, enquanto os técnicos continuavam a fotografá-lo de todos os ângulos.

 

Um polícia da localidade forneceu a Sam alguns pormenores, se bem que imprecisos.

 

- Julgamos que o carro foi afundado por volta das dez horas da noite passada. Cerca das dez e um quarto, um casal de New Windsor que andava a correr passou pelo local. Declararam que viram um carro estacionado perto da via-férrea e que lá dentro se encontrava alguém. A cerca de meio quilómetro mais à frente, voltaram para trás e quando chegaram de novo ao local, o carro desaparecera. Mas avistaram um homem que caminhava apressado pela Shore Road.

 

- Conseguiram distingui-lo bem?

 

- Não.

 

- Mencionaram se era alto? Quer dizer, mesmo alto? - inquiriu Sam.

 

- Estavam em desacordo. O marido afirmou que o sujeito tinha uma estatura média; a mulher achou que era bastante alto. Ambos usavam óculos de ver ao longe e admitiram que quase não repararam no tipo, mas garantiram que havia um carro estacionado ali, que este desaparecera passados dez minutos e que alguém abandonava a área a pé e se afastava a toda a pressa.

 

Que Deus nos livre das testemunhas, pensou Sam.

 

Ao virar-se avistou Jake Perkins, que abria caminho por entre a multidão a fim de se aproximar do grupo que se encontrava por trás do cordão de segurança. Vinha carregado com uma máquina fotográfica que fez lembrar a Sam aquela que vira num livro dedicado ao grande fotógrafo da Segunda Guerra Mundial, Robert Capa.

 

Será que o fedelho tem o dom da ubiquidade?, interrogou-se. Não só parece encontrar-se em todo o lado, ele está em todo o lado. Os olhos dele cruzaram-se com os de Jake, mas o rapaz desviou-os de imediato. Está chateado por eu ter pedido a Tony que o enfiasse na cadeia depois de ter afirmado que era o meu assistente especial na investigação do desaparecimento de Laura, pensou Sam. Eu podia ter-lhe dado uma oportunidade e ter, pelo menos, dito que o rapaz tentava ser útil, pois tentava mesmo. No fim de contas, foi ele que me alertou para o facto de Laura parecer nervosa quando telefonou.

 

Perguntava-se se devia ou não ir falar com Jake quando ouviu o telemóvel tocar. Com um gesto brusco, tirou-o da algibeira, esperançado em que se tratasse de Jean. Mas era Joy Lacko.

 

- Sam, há poucos minutos o 112 recebeu uma chamada. Um descapotável BMW registado em nome da Dr.a Jean Sheridan encontrava-se estacionado já há algumas horas no Storm KingLookout no quilómetro 218. O telefonema partiu de um vendedor que passou por lá por volta das sete e quarenta e cinco, e que passados vinte minutos voltou a passar pelo local. Achou esquisito o carro encontrar-se ali há tanto tempo e decidiu confirmar se ocorrera algum problema. As chaves estão metidas na ignição e a agenda de bolso dela no assento do lado do passageiro. Parece-me estranho.

 

- Por isso é que não atendeu o telefone - replicou Sam com a voz a embargar-se-lhe. - Santo Deus, Joy! Porque não insisti eu em arranjar-lhe um guarda-costas? O carro ainda se encontra no miradouro?

 

- Sim. Rich sabia que quererias verificar o local antes de o removerem - respondeu Joy em tom condoído. - Ligo-te mais tarde, Sam.

 

O veículo que contivera o cadáver de Robby Brent começava a ser rebocado.

 

Em menos de uma semana três corpos a caminho da morgue, pensou Sam. Meu Deus, por favor não deixes que o próximo seja o de Jean. Por favor, não permitas que o próximo seja o de Jean.

 

 

                                   CAPÍTULO OITENTA E SETE

 

Quando os olhos de ambos se cruzaram, Jake Perkins arrependeu-se de imediato de não ter cumprimentado Sam Deegan. Uma coisa era não facultar ao detective informações que eventualmente conseguisse recolher, outra era cortar relações com ele. Nenhum repórter que se prezasse, por mais insultado que fosse, o faria.

 

Adoraria ter podido pedir a Deegan que lhe prestasse declarações a respeito do assassínio de Robby Brent, mas já calculava o que se seguiria. Estava ciente de que segundo a versão oficial, Brent fora vítima de homicídio perpetrado por um indivíduo ou indivíduos desconhecidos. Não tinham divulgado a causa da morte, mas ele tinha o pressentimento de que não se tratara de suicídio. Ninguém se enfia no porta-bagagem de um carro com este a resvalar para o rio.

 

Talvez Deegan conheça o paradeiro da Dr.a Sheridan, pensou Jack. Tentara ligar para o quarto desta, para lhe perguntar se o quarto de Laura Wilcox em Mountain Road fora o da ocorrência do homicídio, mas ninguém atendera.

 

Atrapalhado com a pesada máquina fotográfica, Jake abriu caminho por entre a multidão de repórteres e fotógrafos e conseguiu apanhar Sam quando este se dirigia para o carro.

 

- Sr. Deegan, tentei estabelecer contacto com a Dr.a Jean Sheridan. Sabe por acaso onde posso encontrá-la? Não me atendeu o telefone.

 

Sam, que se preparava para se enfiar no carro, perguntou-lhe com brusquidão:

 

- A que horas é que tentou?

 

- Por volta das nove e meia.

 

Foi ao mesmo tempo que eu, reflectiu Sam.

 

- Ignoro onde ela se encontra - respondeu, metendo-se no carro. Depois fechou com estrépito a porta e ligou a sirene.

 

Cheira-me a esturro, pensou Jake. Está preocupado com a Dr.a ”Jean Sheridan, mas não voltou para trás para fazer o percurso até ao hotel. Vai muito depressa e eu não consigo segui-lo. É melhor regressar à escola e limpara câmara escura. Depois sigo para o Glen-Ridge e vejo o que se está a passar.

 

 

                                       CAPÍTULO OITENTA E OITO

 

Durante o trajecto para o miradouro, Sam ligou para a Casa Glen-Ridge e exigiu falar de imediato com o gerente. Quando Justin Lewis atendeu, disse-lhe:

 

- Olhe, posso arranjar um mandato para examinar o vosso registo de chamadas, mas não tenho tempo a perder. Acabaram de localizar o carro da Dr.a Sheridan, e ela está dada como desaparecida. Quero que me faculte já a lista dos números de telefone de todas as chamadas recebidas pela Dr.a Sheridan entre as dez horas da noite passada e as nove horas desta manhã.

 

Estava à espera que o outro oferecesse resistência mas tal não aconteceu.

 

- Dê-me o seu número. Volto já a ligar-lhe - retorquiu o gerente em tom decidido.

 

Sam pousou o telemóvel no banco de passageiros e acelerou em direcção a Storm King Lookout. Ao contornar a curva, avistou o descapotável azul de Jean e um polícia parado junto ao veículo. Estacionou no lugar atrás deste, e tirava o bloco de apontamentos e um lápis quando Lewis voltou a ligar. Tornava-se evidente que o homem percebera o carácter urgente da situação.

 

- Esta manhã, a Dr.a Sheridan recebeu sete chamadas - declarou em tom decidido. - A primeira foi quando faltava um quarto para as sete!

 

- Um quarto para as sete? - interrompeu-o Sam.

 

- Sim, detective. Foi feita de um telemóvel desta zona. Desconheço o nome do subscritor. O número é...

 

Enquanto apontava o número, Sam reparou com estupefacção e incredulidade que se tratava do mesmo número do qual Robby Brent telefonara segunda-feira à noite a Jean, a imitar a voz de Laura.

 

- As outras chamadas foram identificadas como sendo provenientes da Sr.a Alice Sommers e do Sr. Jake Perkins. Ambos tentaram diversas vezes contactar com a Dr.a Sheridan. Há também duas feitas por si.

 

- Obrigado, foi-me muito útil - replicou Sam com brusquidão, desligando.

 

Robby Brent está morto há alguns dias, pensou, mas alguém utilizou o telemóvel que ele comprou na loja, com o intuito de atrair Jean para fora do hotel. Logo após o telefonema deve ter saído a correr. O carro dela foi localizado às sete e um quarto desta manhã. Quem seria que esperava encontrar aqui? Garantiu-me que ia ser cautelosa.

 

Havia apenas duas pessoas com quem ela se encontraria sem reflectir. E Sam tinha consciência disso.

 

Percebeu que o polícia parado junto ao carro de Jean o observava com curiosidade, mas ignorou-o.

 

Jean esperava encontrar ou afilha, Lily, ou Laura, pensou, olhando sem ver as montanhas que se erguiam na outra margem do rio.

 

Ter-lhe-iam apontado uma arma para a obrigar a sair do carro ou dirigira-se pelo seu próprio pé para o outro veículo?

 

Quem quer que seja, este psicopata tem Jean em seu poder. Será que afilha dela se encontra mesmo a salvo?, interrogou-se Sam de repente. Abriu a carteira, folheou os cartões que ali guardava, descobriu o que procurava, atirou os outros para o banco do passageiro e ligou para o telemóvel de Craig Michaelson. Decorridos cinco toques, ouviu a voz da gravação instrui-lo para deixar mensagem. Praguejando entredentes, ligou para o escritório do advogado.

 

- Lamento imenso - desculpou-se a secretária -, mas o Dr. Michaelson encontra-se em reunião no escritório de outro advogado e não pode ser interrompido.

 

- Vai ter de interrompê-lo - ripostou Sam. - Trata-se de um assunto de Polícia... uma questão de vida ou de morte.

 

- Oh, cavalheiro - guinchou a voz afectada -, lamento, mas...

 

- Escute, menina, e preste muita atenção. Vai imediatamente avisar Michaelson que telefonou Sam Deegan. Informe o seu patrão que Jean Sheridan desapareceu e que é urgente que ele contacte de imediato a academia de West Point para os avisar de que precisam de arranjar um guarda-costas para a filha dela. Estamos entendidos?

 

- Claro que sim. Vou tentar ver se me atende, mas...

 

- Nada de ”mas”! Avise-o já! - gritou Sam, fechando com um gesto brusco o telemóvel. Depois saiu do carro.

 

Preciso de localizar o telefone de Robby Brent, reflectiu, mas se calhar será em vão. Só há uma hipótese.

 

Passou apressado pelo polícia, que começara a explicar que conhecia o vendedor que os alertara para a presença do carro no local e afirmava que não podia haver ninguém de maior confiança. Avistou no banco do carro a mala de Jean.

 

- Não tiraram nada daqui? - perguntou em tom brusco.

 

- Claro que não, chefe - replicou o jovem polícia, obviamente ofendido com a insinuação.

 

Sam nem se deu ao trabalho do informar que a pergunta nada tinha de pessoal. Esvaziou sobre o banco do passageiro o conteúdo da mala de Jean, em seguida vasculhou o porta-luvas e todos os recantos do carro onde fosse possível guardarem-se coisas.

 

- Se não for demasiado tarde, talvez seja esta a hipótese por que ansiávamos - declarou. - É provável que ela tenha o telemóvel em seu poder. Não o encontro.

 

Eram onze e meia da manhã.

 

 

                                 CAPÍTULO OITENTA E NOVE

 

Craig Michaelson só ligou a Sam às onze e quarenta e cinco da manhã, altura em que este já se dirigia para a Casa Glen-Ridge.

 

- A minha secretária tentou encontrar-me, mas eu já tinha saído da reunião e esqueci-me de ligar o telemóvel - explicou atabalhoadamente. - Acabei de chegar ao escritório. Que se passa?

 

- Passa-se que Jean Sheridan foi raptada - replicou Sam em tom conciso. - Estou-me nas tintas para o facto da filha dela se encontrar em West Point e rodeada por um exército. Quero que confirme que lhe arranjam um corpo de guarda especial. Temos um psicopata à solta. Há algumas horas foi retirado do Hudson o corpo de outro dos homenageados de Stonecroft. Esfaquearam-no até à morte.

 

-Jean Sheridan desapareceu! Neste exacto momento, o general e a mulher viajam no voo doméstico que saiu de Washington, e dirigem-se para cá a fim de jantarem esta noite com ela. Enquanto se encontrarem a bordo não posso contactá-los.

 

A frustração e a preocupação que fora acumulando vieram à tona e Sam explodiu:

 

- Pode, sim! - gritou. - Pode enviar uma mensagem ao piloto através da companhia aérea, mas de qualquer modo já é tarde de mais para isso. Dê-me o nome da filha de Jean Sheridan e eu mesmo telefono para West Point. Quero que mo diga já.

 

- É a cadete Meredith Buckley. Anda no segundo ano. Mas o general garantiu-me que quinta-feira ou sexta-feira, Meredith não saía de West Point porque ia ter testes.

 

- Rezemos para que o general não se tenha enganado - ripostou Sam. - Dr. Michaelson, no caso improvável de quando eu ligar ao superintendente da academia deparar com alguma resistência, agradeço que esteja disponível para lhe telefonar sem demora.

 

- Estarei no meu escritório.

 

- Se não estiver, não se esqueça de manter o telemóvel ligado. Sam encontrava-se no gabinete por trás da recepção, precisamente onde iniciara a investigação relativa ao desaparecimento de Laura Wilcox. Eddie Zarro fora ter com ele.

 

- Quer que a linha do seu telemóvel se mantenha desocupada, não quer? - inquiriu este.

 

Sam aquiesceu com a cabeça e ficou a observar Eddie, que marcava o número de West Point. Enquanto aguardava que a ligação fosse estabelecida, procurou ansioso nos recantos da memória algo que talvez sugerisse outras medidas. Os técnicos estavam a efectuar a triangulação ao telemóvel de Jean e esperavam completá-la dali a alguns minutos. Quando tal acontecesse, seriam capazes de assinalar a localização exacta do telefone.

 

É uma ajuda... presumindo que não se encontre enfiado em algum saco do lixo, pensou Sam.

 

- Sam, estão a ligar para o gabinete do superintendente - avisou Eddie. Quando Sam pegou no auscultador, o seu tom de voz era ligeiramente menos imperioso do que quando falara com Craig Michaelson. Deixando-se de rodeios, anunciou à secretária do superintendente:

 

- Sou o detective Deegan do Gabinete do Delegado Distrital do Condado de Orange. A cadete Meredith Buckley pode encontrar-se em risco de vida às mãos de um maníaco homicida. Preciso de falar imediatamente com o superintendente.

 

Não teve de esperar mais de dez segundos até ouvir a voz do superintendente ao telefone. Depois de ouvir a breve explicação de Sam, replicou:

 

- É provável que neste preciso instante se encontre num teste. Vou pedir que a tragam de imediato ao meu gabinete.

 

- Confirme se ela anda mesmo por aí - pediu Sam. - Eu aguardo.

 

Esperou cinco minutos e quando o superintendente voltou a falar, a sua voz parecia muito agitada.

 

- Há pouco menos de cinco minutos, viram a cadete Buckley sair pelo Thayer Gate e dirigir-se para o parque de estacionamento do Museu Militar da Academia. Não voltou e não se encontra nem no parque de estacionamento nem no museu.

 

Sam mal podia acreditar no que ouvia.

 

Também ela! Por favor, meu Deus, uma rapariga de dezanove anos, não!, pensou.

 

- Informaram-me que ela prometera ao pai que não sairia de West Point - replicou. - Tem a certeza de que se dirigiu mesmo para o parque?

 

- A cadete não faltou à palavra dada - respondeu o superintendente. - O museu, embora esteja aberto ao público, é considerado propriedade de West Point.

 

 

                                           CAPÍTULO NOVENTA

 

Jill Ferris encontrava-se no estúdio quando Jake regressou a Stonecroft.

 

- Quando lá cheguei, já tinham metido o corpo de Robby Brent na carrinha funerária - anunciou -, mas estavam a retirar o carro da água. Descobriram o homem enfiado no porta-bagagem. Aposto que o reitor Downes está a ter um ataque cardíaco ou, pelo menos, uma úlcera. Já imaginou a publicidade que agora nos caiu em cima?

 

- O reitor está muito preocupado - concordou Jill Ferris. Jake, já não precisas da máquina fotográfica?

 

- Acho que não. Sabe, Jill... quer dizer, Dr.a Ferris... não me surpreenderia se descobrissem Laura Wilcox no porta-bagagem a fazer companhia a Robby Brent. Pense bem: que é que lhe aconteceu? Aposto o que quiser em como também está morta. E se assim for, a única da mesa do almoço ainda viva é a Dr.a Sheridan. Se eu fosse ela contratava um guarda-costas. O que quero dizer é, se pensarmos que há tanta gente por aí armada em celebridade, que não mexe uma palha, e que anda sempre com um bando de homens musculosos atrás, não acha que a Dr.a Sheridan, que tem motivos válidos para se preocupar, merecia protecção?

 

Tratava-se de uma pergunta retórica e como Jake já ia a caminho da câmara escura, não obteve resposta.

 

Não estava certo quanto ao que iria fazer com os instantâneos da cena do crime. Era improvável que no Stonecroft Academy Gaette chegassem a ser publicados. Porém ia jurar que um dia serviriam para alguma coisa, embora ainda não tivesse recebido nenhuma oferta para trabalhar como repórter itinerante para o New York Post.

 

Depois de reveladas as fotografias, ficou a admirá-las com um prazer desmedido. Captara de diversos ângulos a rigidez do carro com as partes laterais amolgadas por embater contra um pilar de rocha do rio, e o porta-bagagem aberto e escorrendo água. Também conseguira um bom instantâneo da carrinha funerária, com as luzes a piscar à medida que se afastava.

 

As fotografias que tirara de manhã à casa da Mountain Road ainda se encontravam suspensas por molas. O seu olhar deteve-se na última, a fotografia com sombras da parte da frente da casa. Ao examiná-la mais de perto, os seus olhos arregalaram-se.

 

Agarrou na lupa, observou a fotografia, retirou-a da corda e saiu precipitadamente da câmara escura. Jill Ferris ainda se encontrava ali a corrigir testes. Colocando-lhe a fotografia à frente, estendeu-lhe a lupa.

 

-Jake! - protestou a professora.

 

- É importante, é mesmo importante. Observe essa fotografia e diga-me se lhe parece que há qualquer coisa fora do sítio ou diferente. Por favor, Dr.a Ferris, olhe com atenção.

 

- Jake, estás a pôr-nos todos doidos - replicou ela com um suspiro, tirando-lhe a lupa para poder examinar a fotografia. -Julgo que te referes à sombra naquela janela de esquina do segundo andar, e que parece estar assimétrica. É isso?

 

- É exactamente isso! - exclamou Jake exultante. - Ontem não estava assimétrica. Estou-me nas tintas se a cozinha tem ar de vazia e desabitada... há alguém a morar na casa!

 

 

                               CAPÍTULO NOVENTA E UM

 

Sam optou por voltar à Casa Glen-Ridge em vez de seguir para o escritório em Goshen porque começava a invadi-lo a certeza de que um dos homenageados, ou talvez Jack Emerson oujoel Nieman, era o responsável pelas ameaças contra Lily. Todos tinham trabalhado no edifício onde se localizava o consultório do Dr. Connors. Durante o fim-de-semana, um deles referira a dada altura que Jean fora doente do obstetra, mas ainda não se lembrara de quem.

 

Fleischman teimou que ouviu um dos outros homens mencionar que Jean era doente do Dr. Connors. É claro que podia estar a mentir, pensou Sam. Stewart negou ter ouvido tal afirmação. Também pode estar a mentir.

 

Mas, pelo menos, em Glen-Ridge era-lhe possível manter Fleischman e Gordon Amory debaixo de olho, pois ainda se encontravam lá hospedados. Os repórteres iam inteirar-se do desaparecimento de Jean e divulgá-lo, e Sam apostava o pescoço em como as notícias fariam com que Jack Emerson emergisse da toca e viesse a correr.

 

Já solicitara a Rich Stevens que os pusesse a todos sob vigilância e a medida seria tomada muito em breve.

 

- Sam, já conseguimos localizar o telemóvel de Jean Sheridan.

 

- Onde é que está?

 

- Num carro em movimento.

 

- Pode indicar-me onde é que o carro se encontra?

 

- Perto de Storm King e segue na direcção da área de Cornwall.

 

- É porque se está a afastar de West Point - replicou Sam. Tem a cadete em seu poder! Não o percam! Não o percam!

 

- É o que tencionamos fazer.

 

 

                                 CAPÍTULO NOVENTA E DOIS

 

- Volte para trás, por favor - rogou Meredith. - Não estou autorizada a abandonar o recinto da academia. Quando me pediu para entrar no carro, julguei que era só para falarmos durante um minuto. Lamento que tenha deixado o bilhete sobre a minha mãe na algibeira do outro casaco, mas quando o tiver depois dá-mo. Por favor, preciso de voltar para trás, Senhor...

 

- Quase disseste o meu nome, Meredith. Não quero que o faças. Deves tratar-me por Mocho ou o Mocho.

 

A jovem fitou-o de olhos dilatados pelo medo que começava a apossar-se dela.

 

- Não entendo. Por favor, leve-me de volta - replicou, enclavinhando a mão na pega da porta do banco do passageiro.

 

Se ele parar num semáforo, salto, pensou. Está diferente. Até tem um aspecto diferente. Não, não é só diferente... parece que ficou tresloucado. As dúvidas sucediam-se-lhe em tropel no espírito. Por que motivo o meu pai me pediu para prometer que não saía do recinto? Por que motivo me fez perguntas a respeito da escova que perdi? O que é que isso tem a ver com a minha mãe biológica?

 

O carro avançava a alta velocidade pela Via 218 dirigindo-se para norte.

 

Está a exceder o limite de velocidade, pensou Meredith. Meu Deus, por favor, faz com que apareça um polícia da brigada de trânsito. Faz com que um polícia nos veja.

 

Ainda ponderou dar uma guinada ao volante, mas havia carros a vir na direcção oposta e ainda acabava por morrer alguém.

- Aonde é que me leva? - perguntou. Então sentiu algo duro a pressionar-lhe as costas. Moveu-se para a frente, mas o objecto continuava lá. Que seria?

 

- Meredith, menti quando te afirmei que estive com a amiga da tua mãe na reunião. Eu encontrei lá a tua mãe. Vou levar-te a vê-la.

 

- A minha mãe! Jean! Vai levar-me a vê-la?

 

- Vou, sim. E depois vocês duas irão para o céu fazer companhia ao teu pai biológico. Tenho a certeza de que será um encontro maravilhoso. Sabes? Pareces-te bastante com ele. Pelo menos, pareces-te com ele antes de eu o atropelar e o deixar transformado numa papa na estrada. Adivinha onde é que aconteceu, Meredith? Em West Point, na estrada junto à área dos piqueniques. Foi onde o teu pai verdadeiro morreu. Quem me dera que te restasse uma hipótese de visitar a campa dele. Tem o nome gravado e tudo: Carroll Reed Thornton, Jr. Uma semana mais tarde, iria jurar bandeira. Será que te enterram e à Jeannie ao pé dele? Seria mesmo bonito!

 

- O meu pai andou em West Point e você matou-o?

 

- Claro que matei. Achas justo ele e Jean serem tão felizes, e deixarem-me de fora? Achas que foi justo, Meredith?

 

O homem virou a cabeça e fitou-a com os olhos a faiscar. Contraíra tanto os lábios que parecia que a boca desaparecera sob as narinas palpitantes.

 

O homem é doido, pensou a jovem.

 

- Não, senhor, não parece justo - replicou, tentando manter a voz neutra.

 

Não posso deixar que veja como estou apavorada. Pareceu acalmar-se.

 

- Belo treino que recebeste em West Point. ”Sim, meu comandante. Não, meu comandante.” Não te pedi que me tratasses por ”Senhor”. Disse-te para me chamares ”Mocho”.

 

Tinham virado no atalho para a Storm King Mountain e encontravam-se nos arredores de Cornwall.

 

Aonde é que vamos?, interrogou-se Meredith. Será que me leva mesmo à minha mãe? Será verdade que matou o meu pai e que agora nos tenciona matar? Não entres em pânico, ordenou a si mesma. Olha à tua volta e procura objectos que pôssas usar para te defenderes. Talvez haja por aqui uma garrafa. Podia atingi-lo na cara. Dava-me tempo suficiente para alcançar a chave da ignição e parar o carro. Agora já há bastante trânsito a passar por nós e talvez alguém repare que estamos a lutar.

 

Mas ao olhar de relance pelo interior do carro, não viu absolutamente nada com que se pudesse defender.

 

- Meredith, eu leio-te os pensamentos. Nem sonhes em tentar atrair a atenção para a tua pessoa, porque se o fizeres, não sais com vida deste carro. Tenho uma arma, e se for preciso uso-a. Pelo menos, estou a dar-te uma hipótese de conheceres a tua mãe. Não sejas estúpida e não deites tudo a perder.

 

Meredith apertava as mãos. Que coisa dura seria aquela que tinha espetada contra as costas? Talvez, talvez fosse algo que lhe permitisse salvar-se e à mãe. Afastou as mãos com mil precauções e lentamente moveu a direita para o lado. Endireitou-se e fez deslizá-la por trás das costas. Os dedos afloraram o rebordo de um objecto estreito que lhe pareceu familiar.

 

Era um telemóvel. Para o soltar teve de dar um sacão, mas pareceu-lhe que o Mocho não reparara. Seguiam agora por Cornwall e o tipo relanceava o olhar de um lado para o outro, como se receasse que o mandassem parar.

 

Meredith deslocou lentamente a mão para trás, já com o telemóvel agarrado. Abriu-o, baixou a cabeça e com o dedo premiu 11...

 

Não reparou quando a mão dele fustigou o banco do carro, mas sentiu-o agarrar-lhe no pescoço. Tombou sem sentidos para a frente, enquanto o Mocho agarrava no telemóvel, baixava a janela e o atirava para a estrada.

 

Passados menos de dez segundos, um camião dos Correios passou-lhe trovejando por cima e reduziu-o a pedacinhos de plástico.

 

- Sam, perdemo-lo - declarou Eddie Zarro. - Está em Cornwall, mas já não recebemos sinais.

 

- Como é que o perderam? - gritou Sam. A pergunta era estúpida e inútil, pois sabia a resposta... o telemóvel fora descoberto e destruído.

 

- Que fazemos agora? - inquiriu Zarro.

 

- Rezamos - replicou Sam. - Rezamos.

 

 

                               CAPÍTULO NOVENTA E TRÊS

 

Jake pediu de novo a Duke para deixar o carro estacionado junto ao estabelecimento e mais uma vez, aquele permitiu-lho. No entanto, o homem roía-se de curiosidade.

 

- Diz-me lá, filho, a quem é que andas a tirar fotografias? - inquiriu.

 

- É só ao bairro. Como lhe contei, estou a fazer uma pequena reportagem para o Stonecroft Academy Gazette. Quando estiver pronta, dou-lhe um exemplar. - E tendo uma súbita inspiração, Jake acrescentou: - Melhor ainda, vou incluir o vosso nome.

 

- Mas que simpático. Duke e Sue Mackenzie. Sem k maiúsculo no Mackenzie.

 

- Percebido.

 

Quando Jake, de máquina fotográfica a tiracolo, se dirigia para a porta de saída, ouviu o telemóvel tocar. Era Amy Sachs, que se encontrava de turno no hotel.

 

- Jake - sussurrou -, é melhor vires até cá. Parece que o diabo anda à solta. A Dr.a Sheridan desapareceu e encontraram o carro dela em Storm King Lookout, abandonado. O Sr. Deegan está aqui no escritório. Acabei de o ouvir gritar acerca de qualquer coisa que se perdeu.

 

- Obrigado, Amy, vou já para aí - replicou Jake. Virando-se para Duke, acrescentou: - Afinal, não vou precisar de estacionar o carro, mas de qualquer modo, obrigado.

 

- Lá vai o tipo da reunião de que lhe falei - declarou Duke, apontando para a rua. - Parece cheio de pressa. Se não tem cuidado, ainda apanha uma multa.

 

Jake olhou para fora suficientemente depressa para ver e reconhecer o condutor.

 

- É habitual comprar aqui comida? - perguntou.

 

- Sim. Esta manhã não apareceu, mas costuma comprar café e uma tosta, e às vezes passa por aqui à noite para levar café e uma sanduíche.

 

Será possível que a comida se destine a Laura?, interrogou-se Jake. E agora a Dr.a Sheridan desapareceu. Preciso de ligar a Sam Deegan. Tenho a certeza de que vai querer verificar a antiga casa de Laura. Vou lá ter e espero por ele, decidiu.

 

Ligou o número do hotel e insistiu com a empregada:

 

- Amy, ponha-me em contacto com o Sr. Deegan. É importante. Passados poucos segundos, ouviu-lhe de novo a voz:

 

- O Sr. Deegan pediu-me para te dizer que fosses dar uma curva.

 

- Amy, informa o Sr. Deegan que acho que sei onde é que ele pode encontrar Laura Wilcox.

 

 

                         CAPÍTULO NOVENTA E QUATRO

 

Quando a porta do quarto foi escancarada de rompante, Jean levantou a cabeça e avistou o Mocho especado à entrada. Transportava nos braços um vulto esguio, vestido com o uniforme cinzento-escuro dos cadetes de West Point. Com um sorriso de regozijo, atravessou o quarto e depositou Meredith aos pés de Jean.

 

- Aleluia, é a tua filha! - exclamou com voz de triunfo. - Repara bem no rosto dela. Contempla as feições que te devem ser familiares. Não é linda? Não te sentes orgulhosa?

 

Reed, pensou Jean, é Reed! Lily é o Reed em carne e osso! O nariz estreito e aquilino, os olhos rasgados, as maçãs do rosto salientes, o cabelo dourado-pálido. Oh, meu Deus, será que a matou? Não, não... ela está a respirar!

 

- Não lhe faças mal! Ai de ti se lhe fazes mal! - exclamou. Tentou gritar por socorro, mas a voz embargou-se-lhe. Da cama, ouviram-se os soluços aterrorizados de Laura.

 

- Não vou fazer-lhe mal, Jeannie. Mas vou matá-la e tu vais assistir. Depois será a vez de Laura e a seguir a tua. Acho que por essa altura até te estou a fazer um favor, pois como é que podes desejar viver depois de presenciares a morte da tua filha, não é?

 

O Mocho atravessou o quarto com uma lentidão deliberada, retirou o cabide com o saco de plástico no qual escrevera ”Lily/Meredith”, ajoelhou-se ao pé do vulto inanimado da jovem e soltou o cabide do saco.

 

- Jean, não te apetece rezar? - perguntou. - Acho que é a ocasião apropriada para rezares o Salmo Trinta e Três. Vá, força... ”O Senhor é o meu pastor...”

 

Jean, estupefacta e horrorizada, viu o Mocho começar a enfiar o saco de plástico na cabeça de Lily.

 

- Não, não, não...

 

Antes que o plástico chegasse às narinas da filha, fez desequilibrar a cadeira, tombou para a frente e com o corpo protegeu Lily. A cadeira atingiu o Mocho no braço, imobilizando-o, e obrigando o homem a guinchar de dor. Enquanto estrebuchava para se soltar, ele ouviu no piso inferior o estrondo da porta da frente a ser arrombada.

 

 

                           CAPÍTULO NOVENTA E CINCO

 

Depois de Amy Sachs explicar a Sam Deegan que Jake julgava saber onde é que Laura era mantida prisioneira, o detective acedeu a falar com o rapaz, sem lhe dar hipóteses de pronunciar o discurso que preparara à pressa.

 

A intenção de Jake fora declarar: ”Sr. Deegan, apesar de ter publicamente desprezado o meu auxílio e expor-me ao ridículo, vou mostrar-me generoso e ajudá-lo na investigação, e faço-o sobretudo porque estou muito preocupado por causa da Dr.a Sheridan.”

 

Mas só conseguiu dizer ”Apesar de...” antes de Sam o interromper.

 

-Jake, escuta bem o que te digo. Jean Sheridan e Laura Wilcox encontram-se em poder de um homicida maníaco. Não me faças perder tempo. Sabes ou não sabes onde está Laura?

 

Confrontado com a pergunta, Jake quase se engasgou a relatar ao detective o que descobrira.

 

- Sr. Deegan, embora digam que não mora ninguém na antiga casa de Laura na Mountain Road, eu sei que está lá gente. Um dos homenageados da reunião foi quase todos os dias abastecer-se de comida ao restaurante, que fica ao fundo da rua. Acabou de passar por lá e acho que vai a caminho da casa.

 

Jake começara a pronunciar o nome do homem quando ouviu o clique do telefone de Sam.

 

Agora é que Deegan ficou mesmo interessado, pensou o rapaz enquanto aguardava na rua que ficava perto da antiga casa de Laura. Em menos de seis minutos, Deegan e Zarro, o outro detective, contornavam a curva com um chiar de pneus, seguidos de dois carros patrulha. Não tinham accionado as sirenes para não anunciarem a sua chegada, o que deixou Jake desiludido, embora calculasse que pretendiam apanhar o tipo de surpresa.

 

Afirmou a Sam estar certo de que os presumíveis ocupantes da casa se encontravam no quarto de esquina. Imediatamente a seguir, arrombaram a porta da frente e entraram. Sam gritou-lhe para permanecer no exterior.

 

Deve ser verdade, pensou Jake.

 

Calculou o tempo que levavam a chegar ao quarto, depois seguiu-os carregando a máquina fotográfica a tiracolo. Ao chegar ao cimo das escadas, ouviu uma porta fechar-se com estrondo.

 

O outro quarto da frente, pensou, istá lá alguém.

 

Sam, de arma em punho, assomou à entrada do quarto de esquina.

 

-Jake, vai lá para baixo! - ordenou. - Há por aqui um assassino escondido!

 

Apontando para o corredor, Jake replicou:

 

- Está ali.

 

Sam, Zarro e alguns polícias passaram por ele a correr. Jake precipitou-se para a porta do quarto da frente, olhou para o interior e, depois de recuperar do choque inicial ao deparar com a cena, focou a máquina fotográfica e começou a disparar os flashes.

 

Tirou uma fotografia a Laura Wilcox, que jazia na cama com o vestido todo amarrotado e o cabelo em desalinho. Um polícia amparava-lhe a cabeça e levava-lhe um copo de água aos lábios.

 

Jean Sheridan encontrava-se sentada no chão, apertando nos braços uma jovem vestida com o uniforme de cadete de West Point e murmurando repetidamente, ”Lily, Lily, Lily”. A princípio, Jake pensou que a rapariga estava morta, mas depois viu-a começar a mexer-se.

 

O rapaz apontou a máquina fotográfica e registou para a posteridade o momento em que Lily abriu os olhos e, pela primeira vez desde que nascera, contemplou a mãe biológica.

 

 

                             CAPÍTULO NOVENTA E SEIS

 

É uma questão de segundos até arrombarem aporta, pensou o Mocho. Estive quase a concluir a minha missão.

 

Os seus olhos detiveram-se nos mochos em miniatura que segurava na mão crispada, os que tencionara colocar junto dos corpos de Jean, Laura e Meredith.

 

Agora nunca teria essa oportunidade.

 

- Renda-se! - gritou Sam Deegan. - Acabou. Sabe que não pode escapar!

 

Ah, mas posso, pensou o Mocho. Dando um suspiro retirou a máscara da algibeira, colocou-a e viu-se ao espelho que havia por cima da cómoda, para verificar se estava bem posta. Em seguida pousou os mochos em miniatura em cima do toucador.

 

- Eu sou um mocho e vivo numa árvore - declarou em voz estridente.

 

Tirou a pistola que guardava na outra algibeira e encostou-a à têmpora.

 

- A noite é a minha hora - murmurou. Depois fechou os olhos e premiu o gatilho.

 

Sam, ao ouvir o disparo, abriu a porta a pontapé e precipitou-se para dentro do quarto, seguido de Zarro e dos outros polícias.

 

O corpo encontrava-se esparramado no chão, com a arma ao lado. Tombara de costas e a máscara estava ainda presa ao rosto, jorrando sangue.

 

Sam inclinou-se, retirou a máscara e contemplou o rosto do homem que ceifara a vida a tantos inocentes. A morte fizera ressaltar as cicatrizes da cirurgia estética e as feições que um cirurgião qualquer conseguira tornar tão atraentes pareciam agora retorcidas e grotescas.

 

- Engraçado - observou Sam. - Gordon Amory seria o último em quem eu teria pensado como sendo o Mocho.

 

 

                           CAPÍTULO NOVENTA E SETE

 

Jean foi nessa noite a casa de Craig Michaelson para jantar com Charles e Gano Buckley. Meredith já voltara para West Point.

 

- Depois de o médico a examinar, insistiu em regressar ainda hoje - afirmou o general Buckley. - Ainda estava preocupada com o teste de Física que vai ter amanhã de manhã. É uma miúda tão disciplinada! Vai tornar-se um óptimo soldado - acrescentou, tentando disfarçar o quanto ficara abalado por saber que a sua única filha estivera tão perto da morte.

 

- Tal como a deusa Minerva, nasceu adulta e completamente armada da cabeça do pai - replicou Jean. - Era isso mesmo que Reed faria - acrescentou, mergulhando no silêncio. Ainda sentia a alegria indizível do momento em que o polícia a desamarrara da cadeira, permitindo-lhe apertar Lily nos braços. Ainda conseguia sentir a beleza pungente do som da voz da filha, murmurando: ”Jean... Mãe.”

 

Tinham-nas transportado para o hospital para que fossem examinadas, e sentadas lado a lado, ela e Lily tinham conversado e começado a colmatar um hiato de quase vinte anos.

 

- Tentei sempre imaginar como é que a mãe seria - declarara Lily. - É tal qual o que pensei.

 

- E tu também. Vou ter de me habituar a chamar-te Meredith. É um nome lindo.

 

Ao dar-lhes alta, o médico afirmara:

 

- Depois do pesadelo que viveram, a maioria das mulheres necessita de ser tratada com tranquilizantes. Vocês duas são umas valentes.

 

Tinham ido ver Laura, que se encontrava nos cuidados intensivos, gravemente desidratada, dormindo profundamente em consequência dos sedativos que lhe tinham sido administrados.

 

Sam voltara ao hospital para as reconduzir ao hotel. Ao reunirem-se no átrio, viram os Buckley chegar.

 

- Mãe, pai! - exclamara Meredith e com uma certa tristeza, Jean vira-a precipitar-se para os braços deles.

 

-Jean, você deu-lhe a vida e salvou-lhe a vida - observara Gano baixinho. - A partir de agora, fará parte da vida dela para sempre.

 

Jean fitou o simpático casal sentado à sua frente. Pareciam ambos ter cerca de sessenta anos. Charles Buckley possuía cabelo grisalho com laivos metálicos, olhos penetrantes, feições vincadas, e um ar de autoridade atenuado pelos seus modos encantadores e o sorriso caloroso. Gano Buckley era uma mulher de uma beleza delicada e constituição frágil que usufruíra de uma breve carreira como pianista de concertos antes de se tornar a esposa de um militar.

 

- Meredith é maravilhosa a tocar - afirmou a Jean. - Estou desejosa que a ouça.

 

No sábado à tarde iam os três visitar Meredith à academia.

 

São a mãe e o pai dela, pensou Jean. Aqueles que a criaram, cuidaram dela, a amaram e fizeram dela a jovem maravilhosa que é hoje. Mas, pelo menos, agora faço parte da sua vida. No sábado levo-a a visitar a campa de Reed e falo-lhe dopai, pois tem de ficar a saber que se tratava de uma pessoa notável.

 

A noite deixou-lhe um travo profundamente agridoce e sentiu que os Buckley perceberam quando, alegando cansaço, se foi embora pouco depois de servirem o café.

 

Quando às dez horas Craig Michaelson a deixou no hotel, deparou com Alice Sommers e Sam Deegan, que a aguardavam no átrio.

 

- Calculámos que quisesse acompanhar-nos numa bebida antes de se ir deitar - declarou Sam. - Apesar de isto estar cheio do pessoal das lâmpadas, no bar conseguiram guardar-nos uma mesa.

 

Jean fitou-os com os olhos marejados de lágrimas de gratidão. Perceberam como esta noite foi penosa para mim, pensou. Foi então que avistou Jake Perkins junto ao balcão da recepção. Acenou-lhe com a mão e o rapaz precipitou-se para ela.

 

- Jake - declarou -, esta tarde andei tão desorientada que nem sei se cheguei a agradecer-te como deve ser. Se não fosses tu, eu, Laura e Meredith não estaríamos vivas neste momento. - Dizendo isto, rodeou-lhe o pescoço com os braços e beijou-o na face.

 

A comoção de Jake era notória.

 

- Dr.a Sheridan - replicou. - Só lamento não ter sido mais esperto. Quando reparei naqueles mochos em miniatura que se encontravam em cima do toucador junto ao corpo do Sr. Amory, contei ao Sr. Deegan que tinha encontrado um na campa de Alison Kendall. Se eu o tivesse informado da descoberta, talvez lhe arranjassem logo um guarda-costas.

 

- Não te preocupes com isso - interveio Sam. - Na altura, desconhecias que o mocho possuía um significado. A Dr.a Sheridan tem razão. Se não desconfiasses que Laura talvez se encontrasse naquela casa, morriam todas. Agora vamos para dentro antes que fiquemos sem mesa. - Reconsiderou por um instante e suspirando acrescentou: - Tu também, Jake.

 

Sam olhou para Alice, que se encontrava ao seu lado e reparou que as palavras de Jake a haviam sobressaltado.

 

- Sam, na semana anterior ao aniversário da morte de Karen, encontrei um mocho em miniatura na campa dela - disse baixinho.

- Guardei-a no armário das miniaturas da salinha.

 

- Então é isso - replicou Sam. - Dei voltas à cabeça tentando recordar-me que objecto do armário me incomodara, Alice. Agora já sei.

 

- Deve ter sido Gordon Amory quem a colocou lá - replicou Alice com tristeza.

 

Ao entrarem no bar, Sam apertou-a com o braço.

 

Para ela também foi um dia de inferno, pensou.

 

Contara a Alice que o Mocho admitira a Laura que matara Karen por engano. Alice ficara de rastos ao saber que ele lhe assassinara a filha simplesmente por ela ter aparecido de surpresa, nessa noite, na casa dos pais. Porém declarara que, pelo menos, fizera dissipar as suspeitas que recaíam sobre Cyrus Lindstrom, o namorado de Karen, e que agora podia esperar conseguir alguma paz de espírito.

 

- Esta noite quando a levar a casa tiro-lhe o mocho do armário - disse Sam. - Quero que nunca mais olhe para ele.

 

- Sam, para si também foi um capítulo que se encerrou? - perguntou-lhe Alice quando se sentaram à mesa. - Durante vinte anos, nunca desistiu de tentar resolver a morte de Karen.

 

- Nesse sentido encerrou-se, mas espero que não se importe que a visite de vez em quando.

 

- Ai de si se não o fizer, Sam, ai de si. Nos últimos vinte anos tornou-se parte da minha vida e agora não pode deixar-me.

 

Jake preparava-se para se sentar ao lado de Jean quando sentiu uma palmadinha no ombro.

 

- Não se importa?

 

Dizendo isto, Mark Fleischman ocupou a cadeira.

 

- Fui ao hospital ver Laura - prosseguiu, virando-se para Jean.

- Está melhor, mas é claro que em termos emocionais ficou um farrapo. Mas vai recuperar. - Esboçando um sorriso rasgado, acrescentou: - Afirmou que teria muito gosto em fazer terapia comigo.

 

Jake sentara-se na cadeira vaga do outro lado de Jean.

 

- Acredito que, pelo menos, esta experiência traumatizante revelar-se-á um ponto de viragem na carreira dela - declarou, entusiástico. - Com toda a publicidade que se gerou, aposto que vai receber imensas ofertas de trabalho. Isto é espectáculo.

 

Sam fitou-o.

 

Santo Deus, o miúdo é capaz de ter razão, pensou, e ao capacitar-se de tal, em vez do copo de vinho decidiu mandar vir um uísque duplo.

 

O detective contara a Jean que Mark percorrera todos os cantos da cidade tentando encontrá-la e que quando Sam lhe ligara, precipitara-se para o hospital para onde ela, Laura e Meredith tinham sido conduzidas. Fora-se embora sem chegar a vê-la, mas só depois de confirmar que em breve lhes dariam alta. Em todo o dia, Jean não o vira nem lhe falara. Fitou-o e a ternura que trespassava o olhar do psiquiatra fê-la sentir-se profundamente envergonhada por desconfiar dele. Ao mesmo tempo, comoveu-a até ao âmago.

 

- Durante uns tempos, acreditei realmente que talvez fosse Robby Brent quem matara as raparigas da vossa mesa do almoço prosseguiu. - Lembras-te de como em miúdo era mal-humorado?

 

E no jantar da reunião revelou-se maldoso, o suficiente para me levar a considerá-lo capaz de infligir danos emocionais e físicos. Pesquisei na Internet informações a respeito dele. Declarara numa entrevista que receava a pobreza e investira dinheiro em propriedades espalhadas por todo o país, embora as registasse com nomes fictícios. Havia uma citação que referia que ele afirmara ser o estúpido de uma família de inteligentes e que na escola o consideravam um palermóide. Acrescentara que aprendera a arte do ridículo por ele mesmo ser sempre alvo da chacota. Acabou por odiar toda a gente da cidade. Encolhendo os ombros, Mark acrescentou:

 

- Mas quando ia garantir que era ele o Mocho, como o viemos a conhecer, Robby desapareceu.

 

- Julgamos que desconfiou de Gordon e o seguiu até à casa - interveio Sam. - Havia manchas de sangue nas escadas.

 

- Cárter tem tanta raiva dentro dele que cheguei a julgá-lo capaz de matar - observou Jean.

 

- Não sei porquê, nunca considerei isso - redarguiu Mark, abanando a cabeça. - Com as suas atitudes maldosas e recorrendo às peças teatrais, Cárter andava sempre a extravasar a raiva que sentia. Um dia devias lê-las, ias rever pessoas tuas conhecidas em algumas das personagens. É a maneira de se desforrar contra os que considera que foram os seus carrascos. Não precisa de ultrapassar essa divisória.

 

Jean notou que Alice, Jake e Sam se mostravam empolgados com as palavras de Mark.

 

- No fim, só tu e Gordon Amory figuravam na lista dos suspeitos - disse.

 

Mark sorriu.

 

- Jeannie, não obstante as tuas dúvidas, sabia que não era eu o culpado. Quanto mais avaliava o Gordon mais desconfiado ficava. Uma coisa é fazer cirurgia de reconstrução a um nariz partido ou eliminar os papos dos olhos, mas sempre me pareceu um pouco bizarro uma pessoa alterar drasticamente a aparência externa. Não acreditei nele quando afirmou que ia dar um papel a Laura naquela série televisiva. Pareceu-me óbvio que ficou ofendido ao vê-la fazer-lhe olhinhos na reunião, quando sabia perfeitamente que ela só estava a tentar usá-lo. Mas esta manhã, quando vi Gordon no hotel mesmo depois de desapareceres, julguei que me enganara a seu respeito. Vou ser-te muito sincero, ao andar às voltas de carro pela cidade à tua procura, senti-me desvairado, pois tinha a certeza de que te acontecera algo de terrível. Jean virou-se para Sam.

 

- Sei que foi ao hospital e que falou com Laura. Ela contou-lhe se Gordon lhe revelou como conseguira fazer com que as quatro outras mortes parecessem acidentes e levar a pensar que em relação a Gloria se tratava de suicídio?

 

- Gordon vangloriou-se disso a Laura. Revelou-lhe que antes de matar as mulheres as seguira sem que dessem por ele. O carro de Catherine Kane caiu ao Potomac depois de lhe sabotar os travões. Cindy Lang não foi apanhada pela avalanche... Atacou-a na ladeira e atirou-a para uma fenda. Nessa tarde, ocorreu uma avalanche e toda a gente supôs que ela ficara soterrada. O corpo nunca foi encontrado.

 

Sam beberricou o uísque e prosseguiu:

 

- Telefonou a Gloria Martin e perguntou-lhe se podia visitá-la em casa para tomarem uma bebida. Na altura, como já lhe chegara aos ouvidos que Gordon se tornara um homem bem-parecido e cheio de sucesso, ela aceitou. Mas não resistiu a meter-se com ele e foi a correr comprar o tal mocho em miniatura. Amory embebedou-a e ao vê-la adormecida, asfixiou-a com um saco de plástico e enfiou-lhe o mocho na mão.

 

- Santo Deus, que sujeito mais diabólico! - exclamou Alice, arquejando.

 

- Era, sim - concordou Sam. - Debra Parker andava a receber lições de voo num pequeno aeródromo, onde havia pouca vigilância. Gordon também tinha breve, de modo que sabia como lhe sabotar o avião antes de ela descolar para o seu primeiro voo sozinha. E a morte de Alison foi simples... limitou-se a manter-lhe a cabeça debaixo de água, na piscina.

 

Fitando Jean com uma expressão condoída, acrescentou:

 

- E, Jean, fiquei a saber que ele lhe declarou e a Meredith que atropelou Reed Thornton.

 

Mark não desviara os olhos de Jean.

 

- Há pouco quando fui ao hospital visitar Laura, ela contou-me que o tipo arranjara três sacos de plástico, cada um com o vosso nome e que ia utilizá-los para asfixiar-te a ti, a Laura e a Meredith - interveio. - Santo Deus, Jeannie, quando penso nisso, dou em maluco. Se te acontecesse alguma coisa, não aguentava.

 

Com gestos lentos e deliberados, agarrou-lhe o rosto com as mãos e beijou-a, um beijo longo e terno que condensava tudo o que ainda não dissera por palavras.

 

De repente, um súbito clarão ofuscou-os e, sobressaltados, levantaram a cabeça. Viram Jake especado diante deles, com a máquina fotográfica ainda apontada para os dois.

 

- É só uma máquina digital - explicou o rapaz, transbordando de entusiasmo -, mas tenho faro para as boas fotografias.

 

 

                                         EPÍLOGO

 

West Point, Dia de Juramento de Bandeira

 

- Mal posso acreditar que já se passaram dois anos e meio desde que Meredith surgiu na minha vida - observou Jean a Mark. Com os olhos a reluzirem de orgulho, observava os aspirantes a oficial desfilarem pelo campo, esplêndidos nos seus uniformes de gala: jaquetas tipo fraque cinzentas com botões dourados e reluzentes, calças, luvas e chapéus brancos.

 

- Tanta coisa aconteceu nessa época - concordou ele. Naquele dia de Junho, a manhã nascera magnífica. O Estádio Michie estava repleto das orgulhosas famílias dos cadetes. Charles e Gano Buckley encontravam-se sentados à frente deles e instalados ao lado de Jean; o general reformado e a Sr.a Carroll Reed contemplavam a neta - que tinham começado a adorar - a desfilar perante eles. Tanto sofrimento para que brotasse tanta bem-aventurança, pensou Jean. Há pouco tempo ela e Mark tinham festejado o segundo aniversário de casamento e o primeiro ano de vida do filho, Mark Dennis. Cuidar do bebé e partilhar com ele todos os instantes maravilhosos que acompanhavam o seu desabrochar, atenuava a dor que sentira no passado por não reunir condições para cuidar de Meredith. Esta era doida pelo irmãozinho embora, conforme salientara toda risonha, não contassem muito com ela para fazer de ama. Quando a cerimónia chegasse ao fim, ocuparia o posto de alferes e pertenceria ao exército dos Estados Unidos.

 

Ela e Jake eram os padrinhos de baptismo do bebé Mark. Jake exprimia o quão honrado se sentia com tal responsabilidade, bombardeando-os de artigos sobre puericultura que estava sempre a enviar-lhes da Universidade de Columbia, onde agora estudava.

Numa bancada mais à frente, encontravam-se sentados Alice e Sam.

 

Sinto-me tão feliz por terem iniciado uma vida a dois, pensou Jean. Para ambos foi óptimo.

 

Jean era por vezes acossada por pesadelos que a faziam reviver a semana pavorosa da reunião. Mas cismava amiúde que haviam sido as circunstâncias fatídicas a determinarem o seu reencontro com Mark. E se não fossem os faxes, talvez nunca viesse a conhecer Meredith.

 

Começou tudo aqui em West Point, pensou, quando a banda fez ressoar os primeiros acordes de ”The Star Spangled Banner”.

 

Ao longo da cerimónia, o espírito recuou-lhe até àquela tarde de Primavera em que Reed se sentara ao seu lado e metera conversa.

 

Foi o meu primeiro amor, recordou com ternura. Guardá-lo-ei sempre no coração. Depois, quando chamaram o nome da cadete Meredith Buckley para lhe entregarem o diploma de West Point que Reed não vivera o tempo suficiente para receber, Jean ficou com a certeza de que naquele dia ele se encontrava presente em espírito.

 

                                                       Mary Higgins Clark

 

 

                      

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