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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ILHA DA ILUSÃO / Emily Rodda
A ILHA DA ILUSÃO / Emily Rodda

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Quando a flauta foi dividida em três partes pelas tribos rivais Plume, Auron e Keras, o Senhor das Sombras invadiu Pirra e as tribos foram obrigadas a fugir para ilhas separadas, em um mar secreto sob Deltora. Os companheiros têm certeza de que a magia da Flauta de Pirra é a única coisa que poderá ajudá-los a libertar os escravos Deltoranos presos nas Terras das Sombras.

Na ilha de Plume, eles conseguiram a primeira parte da flauta. Agora, eles avançam pelo mar subterrâneo em busca da ilha de Auron.

Lief e Barda não trocaram uma palavra enquanto atravessavam o mundo debaixo do mundo no frágil barco. Jasmine estava sentada na proa e levava Filli no ombro. Os seus olhos estavam fixos em Kree, que voava à frente deles. Ela segurava um pequeno mapa, que era o único guia para a próxima meta: a ilha de Auron.

Acima deles, o teto muito alto da imensa caverna cintilava com uma luz multicolorida, como a da opala. A água agitada que os cercava lembrava um arco-íris líquido.

— Quem diria que existe essa maravilha debaixo de Deltora! — Barda murmurou, finalmente conseguindo falar. — Ainda mal posso acreditar.

— Nem eu — Lief concordou. — As cavernas dos Plumes, o dourado, o escarlate... já eram muito bonitos. Mas este lugar...

Jasmine se mexeu inquieta.

— A beleza é uma coisa muito boa, mas não sabemos onde estamos! Ela ergueu o mapa amassado.

— Ranesh disse que apostaria a própria vida na autenticidade dos mapas de Doran, o amigo dos dragões. Mas não há nenhum ponto de referência aqui. Apenas quatro ilhas, uma linha pontilhada que talvez não signifique nada e as paredes de algumas cavernas.

Lief examinou o mapa e se lembrou do entusiasmo com que o copiara na biblioteca do palácio em Del.

 

 

 

 

 

Naquela época, ele não fazia idéia de que as ilhas de Pirra não se encontravam em mar aberto, mas, sim, escondidas sob a própria Deltora. Nunca teria imaginado que uma rápida viagem às colinas Os-Mine para encontrar Jasmine o conduziria a essa busca muito mais longa e perigosa.

Com angústia, ele se lembrou de casa. A sua longa ausência certamente estava causando muita ansiedade. Não para a maioria do povo, que acreditava que o seu rei ainda estava seguro em Tora, mas para aqueles que conheciam a verdade: sua mãe, Perdição, Josef, o velho bibliotecário, Ranesh, seu assistente, e Marilen.

Acima de todos, Marilen. O que ela estaria sentindo naquele momento? Medo? Solidão? Profundo arrependimento por ter concordado em sair de Tora?

Perdição tinha prometido ao pai dela que ela seria bem vigiada, mas Lief sabia muito bem que espiões, traidores e assassinos estavam em todos os lugares.

Ele se lembrou dos primeiros atentados à sua vida. Ambos aconteceram no grande saguão de entrada. Primeiro, uma mulher exaltada e tagarela tentara esfaqueá-lo. Quando o ataque falhou, ela usou a faca contra si mesma e morreu sem contar por que tinha feito aquilo.

Não muito tempo depois, um homem que só conseguia andar com a ajuda de muletas (Barda contou que ele se chamava Moss e tinha sido um confiável guarda do palácio antes da vinda do Senhor das Sombras) agarrou Lief pelo pescoço quando este se curvou sobre o cobertor em que o homem estava deitado.

O homem era muito forte e foram necessários três guardas para libertar Lief. E, então, enquanto Moss era levado prisioneiro, alguém na multidão agitada o apunhalou pelas costas. Essa pessoa nunca foi encontrada.

Depois disso, Lief passou a evitar as multidões, mas descobriu que nenhum lugar do palácio era realmente seguro, nem mesmo os seus aposentos.

“E por quê?”, Lief se perguntou, como já tinha feito centenas de vezes antes. “Por que qualquer pessoa em Deltora agiria como se fosse um servo do Senhor das Sombras?”

Com impaciência, fez força para esquecer o passado e pensar no presente.

— Doran não poderia desenhar pontos de referência se eles não existissem, Jasmine — declarou Barda, erguendo o remo da água e esticando as costas doloridas.

— Não acorde Fury — Jasmine avisou.

Barda olhou rapidamente para a gaiola pendurada em seu cinto, mas Fury, a aranha-de-briga, não tinha se movido.

— É mais importante não acordar Flash — comentou Lief, acenando para a segunda gaiola que se encontrava no fundo do barco. — Flash perdeu a última luta. É ela que está louca para se vingar.

— Tivemos sorte, porque o movimento do barco as embalou e as fez dormir — disse a moça.

— É verdade, pois nada mais resolve — Barda resmungou. — Se pelo menos tivesse sido possível deixá-las para trás! Este bote já está cheio o bastante sem duas aranhas engaioladas.

— Não culpo os Plumes por não aceitarem ficar com elas — tornou Jasmine. — Quem ia querer dois monstros que não pensam em outra coisa senão brigar?

Filli fungou, concordando. As enormes aranhas o deixavam nervoso.

O grupo ficou em silêncio outra vez, enquanto olhava ao redor.

A água os cercava por todos os lados. A parede da caverna por onde tinham passado para chegar àquele pedaço de mar cintilante tinha se perdido na distância envolta na neblina e não havia sinal de outra.

— Pelo menos sabemos que estamos em Deltora — Lief comentou finalmente. — Quando descemos pela primeira vez aos subterrâneos e subimos as colinas Os-Mine, as paredes e o teto da caverna tinham um brilho dourado, como o do topázio, o talismã da tribo de Del. Mas, quando chegamos à ilha de Plume, as paredes eram vermelhas.

— Então, é possível que Plume esteja debaixo da região nordeste de Deltora, as terras dos Ralad, cujo talismã é o rubi — deduziu Barda.

— E agora estamos no território da opala — Lief continuou, concordando. — Devemos estar indo para o oeste, abaixo das Planícies. E tenho certeza de que a ilha de Auron está próxima.

Ele parou de falar, pois uma música doce e aguda encheu sua mente: a música da Flauta de Pirra, chamando-o através do tempo. Ele já ouvira o seu som antes, mas, agora que o bocal da Flauta estava em seu poder, ele parecia mais envolvente.

O bocal encontrava-se pendurado ao redor de seu pescoço embrulhado em um tecido vermelho e escondido debaixo de suas roupas. Mesmo assim, Lief sentia o seu poder como antes tinha sentido a magia do Cinturão de Deltora.

Ele também podia sentir que o bocal tinha desejo de se unir às outras duas partes da Flauta, da qual tinha sido separado há tanto tempo.

— Lief! Barda!

Lief deu um pequeno salto quando a voz de Jasmine quebrou o encantamento da música. Ele a viu estender o braço para Kree, que voava em sua direção.

— Kree viu terra mais adiante! — Jasmine avisou animada. -Terra!

Terra... terra... terra... murmuraram os ecos. O coração de Lief bateu mais depressa quando ele e Barda mergulharam os remos na água cor de arco-íris, e o bote recomeçou a avançar.

Muito longe dali, no palácio de Del, Josef, o bibliotecário, suspirou. O dia ainda começava, mas comparar o catálogo oficial da biblioteca com os livros que realmente se encontravam nas prateleiras era uma tarefa desanimadora e cansativa.

Muitos livros estavam faltando. Alguns poderiam estar nas prateleiras erradas, mas Josef desconfiou que a maioria tinha sido secretamente tirada e destruída por conter fatos que o Senhor das Sombras queria que os deltoranos esquecessem.

“Pelo menos pude salvar Os Anais de Deltora”, pensou, olhando para os livros de capa azul-clara que ocupavam um lugar de honra perto das mesas de leitura da biblioteca. “Dessa forma, o rei Lief pôde ler o conto da Flauta de Pirra, a única coisa que poderá ajudá-lo a salvar os prisioneiros das Terras das Sombras. E pôde ver o mapa de Doran que o levará às três partes da Flauta, quando ele voltar das colinas de Os-Mine.”

Quando ele voltar... A expressão de Josef mostrava preocupação. Agora que pensava no assunto... onde estaria Lief? Ele já deveria ter voltado há muito tempo.

O velho bibliotecário foi invadido por um medo repentino, pois Lief e o Cinturão de Deltora eram a única defesa do reino contra o Senhor das Sombras. E se...

Uma risada aguda perturbou o silêncio da biblioteca. Perplexo e zangado, Josef virou-se, mas parou, ao perceber de onde o som tinha vindo.

O seu aprendiz, Ranesh, estava inclinado sobre a mesa à qual se sentara Marilen, a jovem visitante de Tora, que passava várias horas na biblioteca, até tarde da noite.

Marilen tinha vários livros abertos à sua frente, mas estava olhando para Ranesh com uma expressão alegre. Enquanto Josef observava, Ranesh murmurou algo e a garota riu novamente.

Josef hesitou muito preocupado. Ele não sabia muito sobre as coisas do mundo, mas já tinha sido jovem. Algo naquele riso e na expressão de Marilen o avisou de que havia algo errado naquela situação.

Lief havia pedido a Josef para deixar Marilen à vontade na biblioteca, mas ela não deveria falar de si mesma com as pessoas. Lief tinha dito que Marilen era uma visita muito especial, mas que a sua presença no palácio deveria ser mantida em segredo, pelo menos até ele voltar das colinas Os-Mine.

Josef havia sorrido discretamente. Ele não tinha estado no palácio por muito tempo, mas já tinha ouvido os boatos de que Lief tinha ido à Tora para escolher uma esposa. Ele não tinha dúvidas de que seria essa jovem linda e bem-nascida chamada Marilen.

Agora, essa mesma jovem ria com Ranesh de um jeito que parecia inconveniente. E, sem dúvida, Ranesh estava se aproximando demais da pessoa que seria a futura rainha de Deltora.

Josef sentiu o pânico crescer dentro dele. Aquela situação só poderia produzir prejuízos para a garota que tinha sido colocada sob seus cuidados e para Ranesh, a quem Josef amava como ao filho que nunca tivera, e para a garota que tinha sido colocada sob seus cuidados.

Josef se envolvera tanto no trabalho que não viu o que acontecia debaixo de seu nariz e se recriminou por isso. Ele não tinha prestado atenção ao tempo que os dois jovens passavam juntos.

“Preciso pôr um fim a essa situação imediatamente, antes que ela vá longe demais!”, pensou ele desesperado. “Preciso falar com Ranesh. Talvez tenha de mandá-lo embora. Só por algum tempo, até...”

Nesse momento, Ranesh ergueu os olhos e seu olhar encontrou o de Josef. O rosto do rapaz se abriu num sorriso que parecia natural, mas Josef o conhecia bem demais para se deixar enganar. Josef reconheceu o brilho naqueles olhos escuros.

Era o brilho do desafio. Josef lembrava-se dele dos dias em que o Senhor das Sombras reinava, quando muitas vezes o rapaz voltava ao porão da velha olaria com pão, queijo ou frutas debaixo do casaco.

Josef, fraco e esfomeado, sempre comeu o que ganhava, mas mesmo assim se mostrava inquieto. Ele sabia que Ranesh, antes um órfão sem lar que vivia sozinho nas ruas de Del, não pensaria duas vezes para roubar comida para eles.

— Nós perturbamos você, Josef? — Ranesh indagou. — Sinto muito, mas Marilen e eu acabamos de descobrir que nós dois somos do oeste. Ela é de Tora, e eu, de Onde as Águas se Encontram. Não é estranho?

— Vou até a cozinha para tomar algo quente, Ranesh — Josef respondeu, pouco à vontade. — Por favor, venha assim que puder. Quero falar com você sobre... sobre um assunto importante.

Ele se virou bruscamente e saiu mancando da biblioteca. Acenou para os guardas e começou a descer as escadas com cuidado.

Josef não tinha a menor vontade de tomar uma bebida quente. Os seus temores já o aqueciam o suficiente, mas ele sabia que a cozinha seria um lugar seguro para conversar com Ranesh, pois Marilen ficava somente no andar da biblioteca. As suas refeições eram levadas para ela em seus aposentos por Sharn, a mãe de Lief.

“Que vida solitária para uma garota”, Josef pensou. “Não é de surpreender que goste da companhia de Ranesh. E ele deve estar lisonjeado e feliz com a admiração de uma jovem tão bonita e bem-nascida. Mas isso não vai dar certo. Não vai, não.”

Segurando-se com firmeza no corrimão, começou a andar um pouco mais depressa e angustiado desejou que Lief estivesse em segurança e que voltasse logo. Assim, não teria de mandar Ranesh embora. A volta de Lief resolveria tudo!

 

Sem saber dos problemas que se armavam em Del, maiores do que Josef jamais imaginara, Lief remava o mais depressa que podia na direção da terra que viam adiante.

A ilha cintilava a distância. Algas de um rosa e amarelo vivos formavam um tapete espesso nos bancos de areia que a cercavam. Várias vezes Lief imaginou ter visto movimento na praia, mas era difícil ter certeza.

— Acho que estou vendo pequenas casas — avisou Jasmine, esforçando-se para enxergar em meio à névoa multicolorida. — São mais simples, diferentes das casas dos Plumes e têm forma de cones. Talvez sejam rochas...

— É, talvez. Provavelmente são mesmo — Barda resmungou. — Se o mapa estiver certo e se remamos em linha reta, essa ilha não é Auron, mas uma pequena ilha a leste. A que está marcada com uma cruz.

— De qualquer modo, precisamos prestar atenção — Jasmine aconselhou. — Lembrem-se do que Clef e Azan disseram.

Lief lembrava muito bem. O povo de Plume ficou feliz em ceder a sua parte da Flauta de Pirra, mas avisara os companheiros que os habitantes de Auron não fariam o mesmo com a haste da Flauta.

Os Plumes nada sentiam além de ódio por seus antigos inimigos. Eles queriam atacar Auron e tomar a segunda parte da Flauta à força e ficaram ainda mais zangados quando Lief discordou.

A líder dos Plumes, Nols, fez cara feia e os jovens, Clef e Azan em especial, discutiram violentamente.

— O povo de Auron irá usar a sua mágica contra vocês sem piedade! — Clef gritou. — Entrar desprotegidos no território deles é loucura. Eles são tão selvagens quantos os monstros que criam em seus mares.

— Os Aurons criam monstros? — Barda indagou, incrédulo.

— É verdade! Há muitas histórias a respeito — Clef insistiu. — Por muito tempo, acreditamos que o Medo, o monstro que vocês mataram, foi enviado pelos Aurons para acabar conosco.

Azan assentiu, concordando.

— E eles nunca vão entregar a sua parte da Flauta de Pirra, não enquanto viverem. Além disso, eles vão tomar a nossa parte da Flauta de vocês e ficar com ela.

— Não. Ela vai estar em segurança conosco — Lief garantiu com firmeza.

— As suas promessas são inúteis — Azan bradou. — Assim que os Aurons virem vocês em um de nossos barcos, eles vão matá-los com a mesma violência com que matariam três Plumes indefesos.

— Não somos indefesos! — Jasmine disparou. — E como vocês sabem o que os Aurons vão fazer? O caminho que separa os dois mares só foi aberto depois de centenas de anos. É possível que os sentimentos deles tenham mudado.

— Por que mudariam? — Clef retorquiu. — Os nossos sentimentos sobre eles não mudaram.

As discussões continuaram durante dias, mas finalmente os companheiros receberam permissão para partir sozinhos. Plume já estava muito longe naquele momento, mas as advertências dos amigos não foram esquecidas. Pelo contrário, elas se tornaram mais intensas.

Perdido em pensamentos, Lief deu um salto quando Jasmine se virou bruscamente e procurou a adaga.

— O que foi? — Barda indagou ansioso.

Jasmine apontou. Lief e Barda inclinaram-se para a frente e finalmente viram o que os olhos mais atentos da amiga tinham notado antes.

Uma sombra irregular, logo abaixo da superfície, avançava na direção deles.

O coração de Lief martelava no peito quando ele soltou o remo e empunhou a espada. O vulto que se aproximava deles era enorme, grande o bastante para virar o barco. Movia-se com uma rapidez impressionante, mudava de forma a cada momento e estendia os braços na direção deles...

Uma pequena cabeça lustrosa surgiu na superfície. E logo depois outra, e mais outra. Momentos depois, os três companheiros riam aliviados.

A sombra que tanto haviam temido não era um monstro afinal, mas sim um grupo de pequenas criaturas rechonchudas com olhos minúsculos e longos bigodes. Os pequenos animais brincavam ao redor do barco e emitiam leves sons agudos.

O corpo das criaturas era coberto de um pêlo macio, cinza-prateado e, em vez de braços e pernas, elas tinham nadadeiras. Pareciam poder respirar, mas estavam tão à vontade na água como qualquer peixe.

— Talvez eles vivam na ilha — Barda deduziu, apanhando o remo outra vez. — Puxa, como eu queria esticar as pernas. Estou todo dolorido neste barco.

Ele olhou ao redor.

— Os meus olhos estão me enganando ou a luz diminuiu um pouco? — ele perguntou.

Jasmine interrompeu a agradável tarefa de observar os animais.

— Eu não tinha percebido, mas você tem razão — ela concordou surpresa. — É como se o sol estivesse encoberto por uma nuvem. Mas não há nuvens aqui.

— Os Plumes nos avisaram de que a sua mágica não poderia iluminar as cavernas durante todo o trajeto para Auron — lembrou Lief.

Um calafrio o percorreu quando terminou de falar. Ele acreditava que a mágica dos Aurons substituiria a dos Plumes, quando esta perdesse o efeito.

E se estivesse enganado? E se a luz se apagasse de vez?

Lief e Barda recomeçaram a remar. As pequenas criaturas cinzentas os acompanharam por alguns minutos, mas, assim que o barco se aproximou da terra e finalmente cruzou a larga faixa de algas cor-de-rosa e amarelas, elas se afastaram. Quando olhou para trás outra vez, Lief se deu conta de que tinham desaparecido.

O aspecto da ilha não era convidativo. Era deserta e árida, e a terra estéril estava coberta de buracos semelhantes a cicatrizes.

A lama brilhante na estreita praia estava ondulada por sulcos formados pela maré. Além da praia, num terreno um pouco mais elevado, havia agrupamentos dos objetos em forma de cone que Jasmine tinha visto de longe. Eles pareciam feitos de lama seca, mas não eram grandes o bastante para servir de moradia.

Não havia sinal de vida.

“O movimento que pensei ter visto deve ter sido uma ilusão criada pela luz”, Lief disse para si mesmo.

Mas, mesmo assim, ele pressentia o perigo. O silêncio, rompido somente pelo suave bater da água na areia, parecia cheio de ameaças.

Jasmine também estava preocupada.

— Não gosto deste lugar — ela disse em voz baixa. — Filli e Kree também não. Acho que não devemos descer.

— Não vejo nada assustador — Barda replicou irritado. Ele mexeu as pernas doloridas, inquieto, e acabou derrubando a gaiola de Flash com o pé. A aranha despertou e no mesmo instante começou a saltar e a bater nas grades.

— Veja o que você fez, Barda! — censurou Jasmine. — Agora Fury também vai acordar e não vamos mais ter sossego.

— Acho melhor Fury não acordar ou vai ser pior para ela — Barda ameaçou. — Sou um homem paciente, mas a minha paciência está sendo seriamente testada no momento.

Lief não queria pôr os pés na ilha, mas queria ainda menos uma briga.

— Vamos descer só por alguns minutos — ele sugeriu. — Não precisamos nos afastar muito da água.

Jasmine olhou para ele furiosa.

— O meu braço machucado está doendo — Lief murmurou, contando uma pequena mentira. — Será que você poderia remar em meu lugar por algum tempo, Jasmine? Vai ser mais seguro mudar de lugar em terra firme.

— Por que não disse antes, Lief? Se é assim, é claro que vamos desembarcar.

“Estou ficando muito diplomático”, pensou Lief aborrecido, quando ele e Barda recomeçaram a remar. “Estou assimilando muito bem os hábitos do palácio.”

Esse pensamento fez com que a sua mente voasse para casa. Como gostaria de saber o que estava acontecendo por lá... Teria Marilen recebido notícias do pai? Será que estava bem e em segurança?

“Não tenho como saber isso!”, ele disse a si mesmo com impaciência. “É inútil me atormentar e, provavelmente, desnecessário. Se ninguém souber quem ela é ou que está no palácio, Marilen vai estar segura.”

Lief ergueu os olhos, franzindo a testa, e encontrou o olhar de Jasmine. Ele se obrigou a sorrir, mas o sorriso deve ter parecido forçado, pois ela não o retribuiu.

“Jasmine me conhece bem demais”, pensou Lief. “Ela sente que estou pensando em fatos que ela desconhece completamente e isso a aborrece. Mas esse é um segredo que não posso revelar a ninguém.”

Ao observar a expressão séria de Jasmine, uma imensa sensação de solidão tomou conta dele. Ele desejou, de todo coração, poder recuperar o alegre companheirismo que sentiam antes. Mas ele sabia que, enquanto tivesse de ficar calado e ocultar os seus pensamentos, isso não aconteceria.

“Espero que no seu devido tempo Jasmine e Barda fiquem sabendo de tudo. Eles certamente vão perdoar o meu silêncio e vão compreender que não se tratou de falta de confiança, pois eu colocaria a minha vida nas mãos deles.”

Os três amigos chegaram à praia e juntos puxaram o bote para fora da água. Flash ainda estava enfurecida, na gaiola, e decidiram deixá-la onde estava. Fury não havia acordado e eles ficaram muito agradecidos por isso.

Barda esticou os braços e as pernas com alívio.

— Ah, é bom estar em terra outra vez, mesmo num lugar horrível como este. — Ele olhou ao redor e começou a caminhar na direção das formas em cone que haviam visto do barco.

— Não vá muito longe — pediu Jasmine.

— Não tenha receio — Barda respondeu mais animado por causa da liberdade. — Só quero dar uma olhada nesses cones. Eles me interessam.

Entretanto, ele mal começara a nadar quando parou de repente. Em silêncio, sem se virar, ele acenou. Lief e Jasmine correram até ele.

— Ali — Barda sussurrou, apontando.

Podiam-se perceber movimentos nos buracos que marcavam a terra seca que cobria os cones. Enquanto os companheiros observavam, cabeças começaram a espiar para fora dos buracos com cuidado: cabeças lisas e redondas com enormes olhos piscantes e dois tubos finos no lugar da boca e do nariz.

— Que criaturas são essas? — Lief sussurrou fascinado.

— Parece que é algum tipo de verme ou lagarta — Barda deduziu, examinando os buracos. — Ei, olhem! Eles decidiram que não oferecemos perigo e estão saindo.

De fato, as criaturas saíram dos buracos devagar. Como Barda tinha imaginado, elas pareciam lagartas gigantescas, com corpos longos e claros divididos em segmentos roliços e seis pernas atarracadas que se arrastavam na lama, fazendo o animal avançar.

Filli chiava nervoso, e Kree grasnava.

— Eles não parecem perigosos — Jasmine disse, mas mesmo assim colocou a mão na adaga.

— É possível que a lenda sobre os monstros de Auron tenha nascido aqui — Barda murmurou. — Talvez o povo crie essas coisas para comer. Eles são bem gordos. E, se ficarem em pé, terão quase a altura de Nols.

Ao dizer isso, as criaturas perto dele realmente levantaram os corpos do chão e se equilibraram nas patas traseiras. As patas da frente e do centro balançavam no ar de modo engraçado e os olhos enormes piscavam como se não enxergassem bem.

— É melhor deixarmos os bichos sossegados, pois eles parecem agitados.

Ele olhou por sobre o ombro para verificar a que distância se encontrava o bote e teve um choque. Mais lagartas gigantes estavam se agrupando atrás dele, os corpos cobertos pela lama molhada. Buracos novos e enlameados na praia ondulada revelaram como eles se aproximaram sem ser vistos.

— Barda! Jasmine! — Lief sussurrou, estendendo a mão para a espada.

Uma lagarta inclinou-se para a frente. Um jato de uma névoa amarela e brilhante espirrou do tubo abaixo dos olhos.

Lief deu um salto para trás, mas era tarde demais. A névoa já tinha atingido os seus olhos e o nariz, fazendo-os queimar e arder.

Ele gritou assustado e dolorido e cambaleou. Por alguns instantes, viu muitas cores que faiscavam e se moviam.

E, depois, o vazio.

 

Se Josef soubesse o que estava acontecendo com o seu rei, estaria tomado de pavor. Naquele momento, quando finalmente entrou na cozinha do palácio, ele só estava preocupado com a conversa que teria com Ranesh.

Exceto pela presença de uma mulher magra e velha, o grande aposento aconchegante estava deserto. Ela estava parada perto do fogão, de costas para a porta, mexendo o cozido que fervia numa grande panela. No balcão ao lado, pilhas de tigelas aguardavam para ser enchidas e distribuídas para a multidão que esperava no saguão de entrada. A bandeja de Marilen encontrava-se separada em outro balcão, já com guardanapo, faca e garfo.

Desalentado, Josef foi mancando até a mesa e sentou-se para esperar Ranesh.

Ele ficou surpreso de a velha mulher não ter se virado para cumprimentá-lo, pois todas as pessoas que tinha conhecido no palácio haviam sido muito amigáveis.

Ele tossiu educadamente, mas mesmo assim a cozinheira não reagiu.

“Seja como quiser, velha mal-humorada”, Josef pensou, com irritação. “Tenho mais em que pensar do que me preocupar em conversar com você.”

Nesse momento, a mulher soltou a colher e virou-se. Ao ver Josef, deu um salto violento e gritou.

Josef pulou da cadeira, quase tão assustado quanto ela.

Então, quando ela começou a rir constrangida, pressionando a mão no peito a fim de acalmar o coração acelerado, ele teve outro susto.

Conhecia aquela mulher! Conhecia aquele riso, aquele rosto. Ele estava tristemente mudado desde a última vez em que a tinha visto, muito tempo atrás. Mas, debaixo das feias cicatrizes que lhe cobriam a face, a testa e os sinais de sofrimento e dor, ainda estava o mesmo rosto que ele tinha conhecido e amado.

Ele se firmou com dificuldade.

— Amarantz! — ele gritou. — Mas como... Amarantz, da olaria, é você! Não a reconheci.

Perplexa, a mulher olhou para ele por um momento. E então arregalou os olhos espantada.

— Josef! — ela exclamou, com um soluço, jogando-se nos braços dele. — Nunca pensei que o veria outra vez!

— Nem eu! — Josef balbuciou quase sufocado de alegria. — Como você fugiu? E os outros?

Mas Amarantz nada disse e, finalmente, Josef se afastou um pouco dela e examinou atentamente o seu rosto.

— Amarantz, por que não responde?

A velha mulher sorriu tristemente e sacudiu a cabeça.

— Sinto muito, Josef — ela disse. — Vejo os seus lábios se moverem, mas não posso ouvi-lo. Estou totalmente surda.

Do bolso do avental, ela tirou uma pequena lousa e um pedaço de giz que colocou nas mãos de Josef. Josef apanhou o giz e escreveu.

SURDA? COMO?

— Os Guardas Cinzentos nos levaram até a fronteira das Terras das Sombras — Amarantz começou a contar, dando de ombros. — Eu não conseguia andar tão depressa quanto eles queriam. Eles me chamaram de velha e inútil, disseram que eu os atrasaria no trajeto pelas montanhas e então me bateram até eu perder os sentidos e me deixaram no caminho para morrer.

Ela tocou as cicatrizes do rosto e a boca se retorceu ao se lembrar da dor.

— Eu era mais forte do que eles imaginaram. Sobrevivi, mas a surra me deixou surda. Não que isso fosse importante, pois eu já tinha perdido tudo que amava. Tenho vivido, ou simplesmente existido, vagueando pelo norte desde então. Voltei a Del somente há alguns dias.

Josef limpou a lousa com a manga e escreveu outra vez, com mão trêmula.

E OS OUTROS?

Uma sombra pareceu passar no rosto de Amarantz quando recomeçou a falar.

— Os outros... os meus filhos, suas esposas, meus netos... e nossos amigos da Resistência... — Os lábios dela tremeram. — Se eles ainda estiverem vivos, são escravos nas Terras das Sombras. Escravos maltratados e atormentados. Você e Ranesh tiveram sorte, Josef.

Ela parou de falar e curvou a cabeça.

Dominado por um sofrimento e uma pena impotentes, Josef deu tapinhas desajeitados no braço da amiga. Ele também sentia culpa por ele e Ranesh terem sido poupados, enquanto os amigos que lhes haviam dado abrigo eram atingidos pela tragédia.

Após um longo momento, Amarantz esfregou os olhos com o avental e endireitou os ombros.

— Não posso desistir agora — ela murmurou. — Tenho uma missão a cumprir aqui e ser fraca não vai me ajudar.

Percebendo a surpresa de Josef, ela ergueu o queixo.

— Por que você pensa que fiz essa longa jornada a Del depois de todos esses anos? — ela indagou. — Porque sabia que Sharn se lembraria de mim, dos velhos tempos. E talvez também Lief, embora ele fosse muito novo quando eu ia à ferraria para fazer ferraduras para Dolly, nossa velha égua. Você se lembra dela, Josef?

Josef assentiu, as lembranças fazendo o seu peito doer.

— Eu vi Sharn nesta manhã — Amarantz continuou. — Ela me ofereceu comida e dinheiro espontaneamente, é verdade, mas não é isso o que quero. Implorei para trabalhar no palácio. Preciso estar aqui, embora não tenha contado a ela o motivo.

Ela baixou o tom de voz.

— Vou falar com Lief, Josef. Encontrá-lo a sós e fazê-lo entender que ele precisa, a todo custo, conduzir um exército para as Terras das Sombras, por mais dúvidas que tenha. O povo está pedindo isso e ele não escuta. Mas ele certamente vai me ouvir! Uma velha amiga... que já teve tantas perdas.

Desanimado, Josef olhou para a mulher. Mas Amarantz pareceu não notar a sua expressão. O rosto dela estava radiante.

— Ora, Josef, agora eu me lembro — ela bradou entusiasmada. — Antigamente você era o bibliotecário do palácio! No norte, dizem que Lief passa os seus dias na biblioteca. Você pode me levar até ele.

Josef ficou desesperado. Ele não podia contar a verdade a ela. Mas, pelo menos, Amarantz tinha de saber que não poderia levá-la até Lief, que ele não se encontrava no palácio.

“Não há o que fazer”, ele pensou. “Vou ter de lhe contar a mentira na qual todos os demais acreditam.”

LIEF ESTÁ EM TORA

A velha mulher arregalou os olhos.

— O rei fugiu para Tora? — ela gritou. — Não ouvi falar disso. — A voz dela se transformou num lamento. — Essa maldita surdez! Eu não sabia. Tora!

Desnorteada, ela se afastou do fogão e foi até a porta de saída aos tropeços. Enquanto Josef observava impotente, ela estendeu a mão para a maçaneta, mas desistiu.

— O que estou pensando? Não posso ir até lá — ela murmurou. — Foi tudo em vão. Não há mais nenhuma esperança. — Ela cobriu o rosto com as mãos e começou a soluçar violentamente.

Josef não conseguiu suportar a cena. Ele mancou até ela, tocou-lhe o braço novamente a fim de chamar a sua atenção e rabiscou na lousa.

ELE VAI VOLTAR LOGO

— Não! — Amarantz gemeu. — Ele sabe que vai estar seguro em Tora. Por que voltaria?

Esquecendo-se de toda cautela, Josef escreveu novamente e colocou a lousa diante dos seus olhos lacrimejantes.

LIEF PRECISA VOLTAR. A SUA NOIVA DE TORA ESTÁ AQUI NO ANDAR DE CIMA. É SEGREDO. NÃO CONTE A NINGUÉM.

Amarantz olhou para ele e, lentamente, os terríveis soluços diminuíram e ela respirou fundo.

Contudo, antes que pudesse dizer algo, a porta atrás dela abriu-se bruscamente. Um vulto enorme vestindo roupas rústicas e um gorro de pele irrompeu no aposento, carregando outra figura, muito menor, atrás dele.

— Onde está Perdição? — o estranho indagou. — Mande-o vir aqui, agora!

Assustado, Josef passou a manga na lousa e apagou as palavras que tinha escrito.

Ele tremia e suava.

Quem eram aquelas pessoas? Será que tinham visto a mensagem na lousa? Era esse o motivo pelo qual queriam ver Perdição? Para relatar a sua traição? Para jogá-lo na prisão?

— O que está esperando, velho fóssil? — o estranho gigantesco bradou, arrancando o gorro de pele que revelou uma cabeça raspada na qual estavam pintados desenhos vermelhos em espiral. — Mova essas suas pernas finas! Diga a Perdição que Lindai, de Broome, está aqui e que ele precisa falar com ela. Já!

O estranho era uma mulher! Atordoado, Josef virou-se para obedecer. Mas, no mesmo instante, a porta que levava para o interior do palácio abriu-se um pouco, e o rosto moreno e vigilante de Ranesh apareceu na fresta.

Ao ver o recém-chegado, o pequeno estranho estendeu a mão de forma patética.

— Ajude-me, por favor, caro senhor! — ele balbuciou. — Um pouco de comida... um gole de cerveja...

Lindai empurrou-o para longe com um gesto de desprezo. Ele gritou e caiu no chão, rolando sobre as pedras e gemendo tristemente.

— Encontrei esse camarada insignificante e chorão na beira da estrada para o norte — a gigantesca mulher vociferou. — Ele tem notícias terríveis sobre o rei.

O coração de Josef pareceu saltar-lhe à boca. Ele viu os olhos de Ranesh brilharem com um brilho estranho.

— Tentei salvar Lief! — gemeu a figura rolando no chão. — Lutei como um demônio até o fim. Mas o que podia fazer um pobre acrobata morto de fome contra tantos Granous? O que o pobre Jinks podia fazer?

 

Enquanto Jinks contava mentiras sobre ele em Del, Lief lutava para se libertar de um terrível pesadelo. Ele estava preso num caixão e tentava bater em suas paredes, mas seus braços e pernas não se moviam. Ele tentava abrir os olhos, mas estes estavam selados. Ele procurava gritar, mas de sua boca não saía nenhum som.

Em algum lugar, Kree grasnava. E, muito mais perto, havia outros sons: rangidos e tapas que enchiam Lief de terror.

Desesperadamente, Lief procurou acordar e se livrar do horror que o envolvia. Mas, sempre que tentava recuperar a consciência, o sonho o aprisionava mais uma vez.

Então Kree grasnou novamente e, desta vez, o som era agudo e alto, alto o bastante para acordar Lief.

Lief se esforçou por abrir os olhos. Ele viu a ponta de uma asa preta quando Kree levantou vôo e desapareceu. E então, num instante de puro terror, ele percebeu que o sonho era real.

Ou quase real. Ele não se encontrava em um caixão. Estava em pé, mas as suas pernas estavam juntas e imobilizadas e os braços presos ao lado de seu corpo e ele não conseguia mover a cabeça. O cheiro de terra entrava em seu nariz e a lama que enchia sua boca o sufocava.

No início, ele não compreendeu o que acontecera. Então ele lembrou.

A ilha, com a praia de areia ondulada e as rochas com um estranho formato de cone. A criatura semelhante a uma lagarta inclinando-se sobre ele, os olhos imensos. O jato de névoa amarela...

A vista turva se concentrou em um cone alto que estava exatamente à sua frente. Lagartas gigantes rastejavam sobre o cone, movimentando-se ativamente para cima e para baixo.

Lief adivinhou que elas estavam construindo algo, pois traziam argila do chão, misturavam-na ao líquido que pingava das bocas semelhantes a tubos e aplicavam a lama resultante às laterais do cone.

O olhar de Lief foi até o topo do cone e sentiu o estômago revirar ao ver a cabeça e o rosto de Barda quase cobertos por um capacete de lama espessa e seca.

Uma das lagartas estava trabalhando ali. Com as pernas dianteiras atarracadas ela aplicava e alisava a mistura pegajosa de argila ao lado da boca do amigo. Ela esperou um momento; a lama secava com surpreendente rapidez. Em seguida, voltou apressada para o chão.

Lief tentou dominar o pânico ao perceber que estava aprisionado da mesma forma que Barda. Uma grossa capa de lama seca o envolvia dos pés à cabeça.

Ele ainda conseguia respirar e enxergar, mas sabia que não seria por muito tempo. Um arrepio percorreu a sua pele quando ouviu um som raspante perto do ouvido. Com o canto do olho, viu uma cabeça com olhos enormes curvar-se para ele e logo sentiu algo frio e úmido em sua face, quando uma nova porção de lama foi aplicada.

A lagarta que estava trabalhando na boca de Barda tornou a subir no cone e passou por um grupo de companheiras que estava cobrindo um montículo no centro do cone. Lief se deu conta de que era a gaiola de Fury.

Sons baixos e conhecidos vinham da saliência. Fury estava acordada e furiosa. O vapor amarelo não a tinha afetado; talvez funcionasse somente em criaturas de sangue quente.

“Mas até mesmo uma aranha-de-briga não pode viver sem ar por muito tempo”, Lief pensou. “Logo Fury morreria, como eles.”

Lief se deu conta de que Kree parara de grasnar. Será que ele tinha percebido que não podia atacar as lagartas sem se arriscar a ser paralisado pela névoa amarela? Ou tinha sido apanhado naquele último e desesperado vôo?

“Ou ainda”, pensou Lief apavorado, “será que ele fugiu desesperado por ter visto Jasmine e Filli serem aprisionados pela lama asfixiante?”

Os cones que conseguia ver eram pequenos demais para cobrirem o corpo de Jasmine. Alguns estavam quebrados e abertos.

O que se encontrava ao lado de Barda tinha vários buracos no centro. Pelas brechas cintilava um pêlo prateado. Lief imaginou que dentro do cone estava o corpo preservado de uma das pequenas criaturas que tinham visto no mar.

Certamente elas eram a presa habitual das lagartas. O bando que encontraram não os seguira até a ilha, porém outros não tinham sido tão espertos. E os jovens fracos, perdidos ou feridos eram levados à praia pelas ondas.

Uma lagarta subiu no cone coberto de marcas, ergueu as patas dianteiras do chão e segurou-se nele com firmeza. Em seguida, enfiou a boca em um dos buracos e o seu corpo ondulou, enquanto bebia.

Lief ficou enojado. Então era aquilo que ia acontecer com eles: morreriam fechados numa caixa de lama e depois, durante meses, serviriam de alimento às lagartas. Ele tentou com todas as forças esticar os braços, mover as pernas, virar o pescoço, enfim qualquer coisa que pudesse rachar as paredes que o aprisionavam.

Mas não conseguiu mover um músculo sequer. As pernas, assim como os braços, estavam apertados demais dentro de sua prisão. As lagartas haviam feito um excelente trabalho.

Com um estremecimento, Lief sentiu a volta da lagarta que estava cobrindo o seu rosto. Ele fechou os olhos a fim de não ver a cabeça oscilante, o olhar vazio, enquanto uma nova camada de lama era aplicada sobre sua face, ao lado do nariz.

Então, de repente, o movimento parou, como se o trabalho da lagarta tivesse sido perturbado.

Lief abriu os olhos. A lagarta não estava mais à sua frente e tinha deixado a tarefa inacabada.

Era evidente que algo incomum acontecera. As lagartas que trabalhavam no cone de Barda viravam as cabeças e se mexiam agitadas. A que estava se alimentando do animalzinho morto afastou-se rapidamente de sua refeição, deixando que um líquido marrom asqueroso pingasse de sua boca.

No momento seguinte, as lagartas do cone de Barda estavam se espalhando numa nuvem de vapor amarelo. Uma aranha feroz, de costas amarelas, havia saltado entre elas, as pinças atacando maldosamente.

Lief olhou sem acreditar. Flash! Como explicar aquilo? Flash estava presa na gaiola no fundo do bote.

Em algum ponto acima deles, Kree grasnava triunfante.

O coração de Lief deu um salto ao perceber o que acontecera. Kree abrira a gaiola, pois sabia que Flash, uma vez livre, teria somente uma coisa em mente: chegar até Fury, onde quer que ela estivesse.

Apesar de imensa, a aranha parecia minúscula comparada às lagartas, mas elas não possuíam nenhuma arma além do vapor amarelo, que não afetava Flash. E esta possuía enormes pinças, oito pernas peludas, uma força descomunal e uma enorme vontade de vencer.

As lagartas caíam ao chão, retorcendo-se, quando Flash as picava e rasgava, enquanto atacava a lama que cobria a gaiola de Fury. Algumas grades da gaiola já estavam à mostra, e a própria Fury, desesperada por ar, jogava-se contra elas, enfurecendo ainda mais a oponente.

Lief conseguia ver mais lagartas a cada momento. Era como se toda a colônia estivesse correndo para defender o cone em que Barda estava preso. A parte inferior do cone estava coberta por uma massa agitada de corpos. Flash foi envolvido numa nuvem amarela quando os recém-chegados a atacaram com a única arma que conheciam.

Felizmente, a névoa não subiu até Barda ou ele ficaria inconsciente outra vez, e todo o trabalho de Flash teria sido inútil.

Mas ele era mesmo útil, afinal? O buraco ao redor da gaiola de Fury não ajudaria Barda a escapar de sua prisão. A lama endurecida que cercava os braços e pernas do homenzarrão continuava intocada.

Então, Lief sentiu algo diferente. A lama que imobilizava a sua mão esquerda estava sendo atingida por algo duro e afiado.

Lief imaginou o que poderia ser, mas não se deixou convencer até que o bico de Kree atravessou o barro e atingiu o seu pulso.

Nunca ele tinha sentido uma dor tão agradável.

Mais duas bicadas e o barro que cobria a sua mão tinha se soltado totalmente. Com força, Lief trabalhou nas bordas do buraco, aumentando-o. Assim que Kree começou a dar atenção à outra mão, Lief sentiu novas trepidações: algo arranhava e raspava o barro perto de seu pé.

— Lief!

Com uma alegria incontrolável, Lief reconheceu a voz sussurrante. Jasmine estava agachada à sua direita. Ele não a via, mas podia sentir a adaga da amiga quebrando a dura crosta que o prendia.

Jasmine estava viva! Kree deve ter corrido para libertá-la assim que as lagartas a deixaram para cuidar do cone de Barda.

— Comece a chutar assim que você sentir a adaga na sua bota — Jasmine sussurrou. — Acho que não vamos ter muito tempo.

Lief sentiu um movimento próximo ao queixo e, ao espiar para baixo, viu um pequeno vulto cinzento. Com o pêlo salpicado de lama, Filli mordiscava e arranhava furiosamente o barro que envolvia o pescoço de Lief.

A adaga de Jasmine atingiu a ponta da bota de Lief, que começou a dar chutes, ajudando a crosta de barro a se desfazer e cair ao chão. Ele sentiu Jasmine começar a trabalhar do outro lado, o barro sobre a mão direita quebrar com o ataque violento do bico de Kree.

O seu braço esquerdo já estava livre até o cotovelo. E, graças a Filli, conseguia mover a cabeça de um lado a outro.

Lief se esforçava ao máximo, o olhar fixo na massa contorcida na base do cone de Barda. Concentrados na luta com Flash, as lagartas ainda não tinham percebido o que acontecia atrás delas.

Mas era evidente que, a qualquer momento, uma delas se viraria e daria o alarme. E dá tudo estaria perdido.

Lief fechou os olhos e respirou fundo, reunindo todas as suas forças. Ele imaginou o barro que o envolvia como a casca de um ovo. Então, usando todos os músculos do corpo, fez pressão para fora, a fim de quebrar a crosta.

 

Houve um prolongado momento de tensão. De repente, a casca de barro simplesmente se rompeu e caiu em grandes pedaços no chão.

As lagartas na base do cone de Barda se viraram com os imensos olhos arregalados. Elas ficaram totalmente imóveis por um segundo e então se ergueram e se viraram, as cabeças oscilando. Algumas começaram a se arrastar rapidamente na direção de Lief.

O rei cambaleou, sem equilíbrio, pois o seu pé esquerdo ainda estava preso. Ele chutou com violência, ao mesmo tempo que procurava a espada.

— Lief! Cubra o rosto! Elas vão tentar novamente borrifar o líquido em você — ele escutou Jasmine gritar.

Lief olhou ao redor, a espada na mão. Jasmine, com a boca e o nariz cobertos por um lenço, erguia Filli dos detritos. Coberto de poeira, chiando freneticamente, o animalzinho saltou no ombro dela e mergulhou sob a gola do casaco.

Jasmine então correu, sem olhar para trás, até onde Barda se encontrava. Três lagartas se ergueram, bloqueando-lhe a passagem. Ela se desviou para o lado, cobrindo o rosto. As lagartas espirraram a névoa amarela atrás dela, mas não tentaram persegui-la.

As lagartas que se aproximavam de Lief também pararam. Parecia que haviam decidido que todas as suas energias deveriam se concentrar em proteger Barda, agora o seu melhor e único prêmio.

Com a mão livre, Lief puxou a barra da capa e cobriu o rosto com o tecido empoeirado. Com um pontapé, livrou-se do resto do barro e cambaleou para a frente.

Flash não dava atenção ao pânico à sua volta. Ela tinha descoberto a gaiola de Fury por completo e as duas aranhas tentavam lutar através das barras. A gaiola balançava violentamente, soltando mais pedaços de barro a cada instante. Lief podia ver claramente o casaco de Barda, o fecho de seu cinturão e até o punho de sua espada.

As lagartas pararam de tentar fechar o buraco. Agora se concentravam no rosto de Barda, sem dúvida cientes de que, quanto mais rápido ele morresse, mais depressa elas seriam deixadas em paz.

Os olhos de Barda estavam abertos, e ele olhava diretamente para Lief.

Lief sabia o que ele tentava dizer.

Deixe-me. Pegue o bote e vá. Você não pode me ajudar.

Lief balançou a cabeça com força e se aproximou.

Perto demais. Uma lagarta se ergueu diante dele. Ele recuou, apertando a capa contra o rosto a fim de evitar a nuvem de vapor que faria dele um prisioneiro mais uma vez.

Armada com a adaga, Jasmine rodeava o cone de Barda com cuidado, ao mesmo tempo que mantinha uma distância segura das lagartas que o vigiavam. Lief correu para o lado dela.

— Kree e eu não podemos nos aproximar, Lief — Jasmine sussurrou. — Se a gente tentar, elas vão jogar o veneno. Se ao menos tivéssemos uma ferramenta de cabo longo... talvez pudéssemos quebrar o barro de longe. Mas não trouxemos nada parecido conosco, e os remos do barco são muito curtos e fracos.

Lief relembrou no conteúdo do bote e, com relutância, concluiu que Jasmine tinha razão. Não havia nada útil no barco. Nada além de comida, água, cobertores, baldes, cordas...

Baldes! Cordas! Uma idéia surgiu em sua mente como um raio.

— Há outra forma de romper o barro — ele disse, agarrando o braço de Jasmine. — Venha comigo.

Lief contou-lhe o seu plano enquanto corriam até o barco. Eles apanharam um rolo de corda e os baldes. Eles os encheram de água, correram de volta para onde Barda se encontrava e os atiraram na base do cone.

As lagartas recuaram e sibilaram, mas não se afastaram. Flash e Fury, com os corpos rijos e espinhentos molhados e cintilantes, continuaram a lutar como se nada tivesse acontecido. A água escorreu sobre o barro seco e penetrou rapidamente na terra fofa debaixo dele.

— Depressa! — Lief entregou uma das pontas da corda a Jasmine enquanto segurava a outra extremidade. Rapidamente, os dois partiram em direções opostas, os braços para cima, rodeando o cone uma, duas vezes, como crianças que jogavam um jogo. Várias voltas de corda se apertaram ao redor do cone, exatamente acima da gaiola de Fury. Confusas, as lagartas mostraram o seu descontentamento e começaram a correr para cima e para baixo, tentando cobrir a corda com barro.

Jasmine e Lief se encontraram na praia atrás do cone.

— Agora! — Lief sussurrou e puxou a sua ponta da corda com toda a força.

Ele ouviu Jasmine gemer, quando ela também puxou o máximo que podia. O coração saltava acelerado em seu peito, e Kree grasnava sobre as suas cabeças.

Então, finalmente, ouviu-se um som semelhante ao de passos na lama quando a terra encharcada sob o cone cedeu, fazendo com que ele se inclinasse na direção de Lief.

Lief gritou triunfante, juntamente com Jasmine, quando os dois recuaram com a corda esticada entre o cone e as suas mãos doloridas.

De repente, o cone veio abaixo. As lagartas se espalharam confusas e em pânico, ao mesmo tempo que Jasmine e Lief cambalearam para trás e caíram.

Lief levantou-se. Uma nuvem de poeira envolvia o que havia sido a prisão de Barda e os corpos das lagartas mortas e esmagadas. O próprio

Barda estava gemendo em meio aos detritos. Recuando e se retorcendo freneticamente, as lagartas sobreviventes saíam dos esconderijos e corriam na direção dele, o vapor amarelo saindo dos tubos sob os olhos.

Lief e Jasmine correram até o amigo e o levantaram com esforço. Atordoado e confuso, ele cambaleou entre os dois até o barco.

Surpreso, Lief viu que Flash ainda se agarrava à gaiola presa ao cinto de Barda. Coberta de pó, quase tão tonta quanto o próprio Barda, a aranha tinha parado de lutar com Fury e estava encolhida como um monte de gravetos de encontro às barras da gaiola.

— Depressa! — Jasmine disse, olhando para trás.

Lief olhou por sobre o ombro e viu que as lagartas tinham desaparecido, mas a área ao redor dos detritos estava repleta de buracos. Os monstros estavam cavando túneis para apanhá-los.

Os companheiros chegaram ao bote e Lief e Jasmine empurraram-no até a beira da água. Ao redor deles, a lama molhada começava a borbulhar à medida que as lagartas subiam à superfície.

— Para dentro, depressa! — Jasmine gritava, empurrando Barda, desesperada. Ele caiu no barco e lá ficou, resmungando e gemendo enquanto os companheiros chapinhavam na água puxando o barco para o fundo.

Em segundos, cabeças claras começaram a emergir da areia, mas Lief e Jasmine já entravam na embarcação, apanhavam os remos e se afastavam rapidamente da praia.

Eles olharam para trás somente quando cruzaram a faixa de algas brilhantes que cercava a ilha. A praia que haviam abandonado estava coberta por lagartas e por uma forte neblina amarela. E, ao fundo, viam-se os contornos claros dos cones retorcidos e encrespados, contrastando com o céu escuro.

Um céu muito diferente, ensolarado e azul, podia ser visto da janela do quarto do palácio em que Jinks, o acrobata, estava deitado.

Mas ele não estava interessado na vista. Ele só queria o delicioso caldo que Sharn lhe dava e contar a história de seus heróicos, embora inúteis, esforços para salvar Lief da morte.

— Mas é claro que eu nunca o teria abandonado se não o tivesse visto morrer. Eu teria dado a minha vida pelo rei! — ele se lamentou, revirando os olhos. — E por seu amigo, pobre e corajoso Barda, também, apesar da grande crueldade com que me tratou muitas vezes; que sua alma descanse em paz!

As mãos recém-banhadas do velho agarraram o lençol da cama macia para a qual tinha sido levado. As suas pálpebras estremeciam quando ele abria a boca para receber outra colherada de caldo que Sharn lhe oferecia. Ele engolia, suspirava e abria a boca outra vez.

Sharn lutou contra as lágrimas que teimavam em sair de seus olhos. Ela tentou se concentrar nas últimas palavras que Perdição dissera antes de partir para as colinas Os-Mine com a gigantesca mulher, Lindai, de Broome.

— Conheço Jinks há muito tempo, Sharn — Perdição tinha dito, apertando-lhe a mão. — Ele vai dizer e fazer qualquer coisa para conseguir o que quer. Partes de sua história são verdadeiras, sem dúvida, mas não todas. Lief pode estar em perigo, mas tenho certeza de que ele ainda está vivo. Nós vamos encontrá-lo, pode acreditar.

Sharn deu a última colherada de caldo a Jinks e balançou a cabeça levemente. Ela desejou ter a mesma certeza de Perdição.

“Certamente ele acredita que Lief está vivo porque o Senhor das Sombras não invadiu Deltora”, Sharn pensou. “Mas nem mesmo ele sabe de tudo o que acontece. Os seus espiões lhe contaram que Lief e o Cinturão estão a salvo em Tora, e ele acredita nisso. Ele não está prestando atenção em nós, por enquanto. Mas isso pode mudar a qualquer momento...”

Ela colocou o prato vazio de lado. Ao se virar novamente para a cama, notou que os olhos de seu paciente estavam fechados e que ele respirava devagar e tranqüilamente. Parecia que Jinks adormecera.

Sharn também fechou os olhos. A sua cabeça latejava.

Ela sabia que deveria se levantar e ir até o andar inferior. Havia tanto a fazer... Ainda havia multidões de pessoas no saguão de entrada e, naquele momento, Marilen a esperava em seu quarto para o almoço. A bandeja dela precisava ser apanhada na cozinha. E então ela teria de contar à pobre garota, da forma mais delicada possível, as notícias que Jinks havia trazido. Sharn tinha medo até de pensar nesse momento.

“Vou ficar aqui e descansar só um pouquinho”, ela disse a si mesma.

Jinks entreabriu os olhos, espiou por entre as pálpebras e viu Sharn sentada tranqüilamente ao seu lado, a cabeça abaixada. Ele quase praguejou em voz alta aborrecido.

“O que a mulher fazia, sentada ali? Ela não tinha trabalho a fazer?” Ele pensou que ela sairia do quarto assim que o visse dormindo, não que ela pegasse no sono.

Ele pensou em gemer para acordá-la, mas achou que não seria ajuizado fazer isso tão depressa pois, afinal, ele acabara de fingir que tinha adormecido.

“Seja paciente, Jinks, meu garoto”, ele disse a si mesmo. “Você não quer que ela desconfie de você, não é mesmo? Acorde-a mais tarde, se precisar, mas agora fique de olhos e boca fechados. Enquanto isso, use o seu cérebro poderoso para criar o plano perfeito.”

 

Cada nervo do corpo de Lief lhe dizia que as coisas não iam bem em Del. Remando na penumbra, com Jasmine atrás dele, as aranhas finalmente adormecidas em suas gaiolas e Barda repousando na popa, ele tentou relaxar. Contudo, a sensação de pavor vinha crescendo na última hora e não podia ser ignorada.

Ele tentara dizer a si mesmo que ela era causada pela escuridão que atravessavam com o pequeno bote. Onde antes havia arco-íris cintilantes, agora se via somente uma monotonia sombria.

Mas ele sabia que essa não era a única razão. As palavras “perigo” e “Del” continuavam a surgir juntas em sua mente, atormentando-o.

— Não gosto disso — Barda resmungou, quebrando o longo silêncio.

— Acho que os Aurons pressentiram a nossa presença e diminuíram a luz para nos pegar de surpresa.

Lief não respondeu, e Jasmine virou-se para olhar para ele. -Você parece que não está conosco, Lief — ela censurou com frieza.

— Você não quer contar em que está pensando, de uma vez por todas?

— Acho que há problemas em Del — Lief respondeu afinal, suspirando, não conseguindo mais esconder os seus pensamentos. — Eu daria tudo para dizer à minha mãe e a Perdição e... a outras pessoas no palácio que devem estar preocupadas onde é que estamos.

— É um pouco tarde para pensar nisso — Jasmine retrucou mal-humorada, pois sabia muito bem a quem Lief se referia quando dizia “outras pessoas”. Ele falava da garota com quem se casaria. A moça que havia escolhido “entre as melhores famílias de Tora”, como Jinks tinha dito, para ser a sua rainha.

“Como ele pode pensar que não sei da existência dela?”, Jasmine pensou ressentida. “Segundo Jinks, todo mundo está falando dos planos do casamento.”

De repente, então ela se deu conta, com um susto, que ele tinha falado de “outras pessoas no palácio”. Isso significava que a noiva já se encontrava em Del. Lief a levara com ele ao voltar de Tora.

E então a deixou quase que imediatamente para me procurar, Jasmine lembrou. E ainda não voltou. Ela deve me odiar por isso. Sharn e Perdição também devem me detestar por retardar o casamento que deve dar a Deltora um herdeiro e deixar o reino em segurança.

Pela primeira vez, ela encarou a possibilidade de que a sua apressada ida às colinas Os-Mine tinha provocado resultados desastrosos para Deltora.

“Lief está se arriscando por minha causa”, ela pensou. “E isso significa que Deltora também enfrenta um terrível perigo. Tenho excelentes motivos para ir às Terras das Sombras. Uma irmãzinha que não sabia que existia e que depende de mim para ser salva. Mas eu não queria que outras pessoas sofressem em conseqüência dos meus atos.”

Jasmine foi invadida por um sentimento culpa e essa culpa a deixou zangada.

— Não pedi que você e Barda viessem correndo atrás de mim, Lief! — ela disse com aspereza. — Se vocês não tivessem vindo, eu certamente estaria morta, mas Deltora estaria a salvo. E os seus... amigos... não teriam motivos para ter medo.

Lief franziu o cenho. A raiva de Jasmine pareceu-lhe irracional. Por que ela tinha se irritado tanto? Só porque ele tinha dito que gostaria de poder mandar uma mensagem para casa?

— Eu já disse muitas vezes que não censuro você. Pelo contrário, só tenho a agradecer! — ele exclamou. — Se não tivéssemos ido atrás de você, nunca teríamos encontrado as ilhas de Pirra.

Por não receber resposta, Lief ficou ainda mais irritado.

— Assim que você me disse que os prisioneiros das Terras das Sombras se encontravam em perigo, concordei em continuar imediatamente, não lembra? Mesmo sem voltar a Del para buscar ajuda. O que mais você quer de mim?

Jasmine estava quase chorando.

— Quando vocês dois terminarem de brigar — Barda resmungou da popa -, talvez queiram ver o que tem lá na frente.

Lief obedeceu preocupado. Muito perto, uma forma grande e baixa lentamente se tornava visível na penumbra. Eles tinham se aproximado dela sem perceber.

— Terra! — Lief sussurrou.

— Sim — concordou Barda. — E desta vez pode ser Auron. Nessa escuridão, poderíamos ter passado facilmente pelas paredes de uma caverna sem ver. É melhor estarmos preparados.

Nesse mesmo momento, em Del, Sharn foi acordada pelos gemidos de Jinks. Ela não tinha idéia de quanto tempo tinha cochilado, mas sabia muito bem que o barulho tinha o objetivo de chamar sua atenção.

Ela olhou para o acrobata.

— Você está sentindo dores? — ela quis saber, um pouco impaciente. — Talvez você precise de outra dose do meu remédio de ervas. Sei que o gosto não é bom, mas...

— Ah, não, senhora! — Jinks gritou depressa. — A dor quase passou, graças à senhora. Mas ainda estou fraco como uma criança e as lembranças me atormentam.

Sharn se mostrou preocupada. As pálpebras de Jinks estremeceram e ele suspirou.

— Por favor, não se sinta obrigada a me fazer companhia — ele sussurrou de modo patético. — Só preciso dormir bastante. Se a senhora puder me trazer uma caneca de cerveja hoje à noite, talvez eu me esforce para tomar um pouco. Isso talvez me acalme.

— Então vou deixá-lo — disse Sharn, erguendo-se. — Durma bem. Sharn não era boba. Ela sabia que Jinks fingia estar muito mais doente do que na realidade estava para garantir cama macia, bastante comida e cuidados especiais. Ele tinha alguns cortes, hematomas e havia bolhas em seus pés, mas isso era tudo.

No entanto, para ela era conveniente que o acrobata ficasse onde estava por enquanto. Era muito importante que as notícias que ele tinha trazido ao palácio não se espalhassem e chegassem aos ouvidos do Senhor das Sombras.

As outras pessoas que se encontravam na cozinha quando Jinks chegou não causariam problemas. Lindai estava com Perdição; Josef e Ranesh haviam jurado segredo e voltado à biblioteca. Eles não tinham permissão para descer até a volta de Perdição.

E Amarantz? Amarantz, completamente surda, não tinha ouvido nada do que Jinks dissera.

“Admito que sou grata por isso”, Sharn pensou. “Além de boa amiga, Amarantz cozinha bem e se dedica ao trabalho. Eu não me sentiria bem em escondê-la no andar superior.”

Ela colocou a mão na maçaneta do quarto, mas no mesmo instante a porta se abriu e Marilen entrou correndo.

— Ouvi a sua voz, Sharn — Marilen começou. — Eu a procurei em todos os lugares! Eu preciso...

— Marilen, por que está aqui? — Sharn bradou, tentando evitar que a garota fosse vista da cama. — Por favor, volte para o seu quarto. Você deve estar com fome, e vou levar a sua bandeja assim que puder.

Marilen não se moveu.

— Perdição levou a minha comida antes de partir — ela explicou rapidamente. — Preciso falar com você, Sharn. É muito urgente. Eu...

Ela se interrompeu quando viu Jinks, que conseguira sentar-se para vê-la melhor.

— Perdição me contou que um homem chamado Jinks disse que Lief está morto — ela falou bruscamente. — É verdade? Esse é Jinks?

— De fato, senhorita, para o meu grande pesar — Jinks choramingou. Gemendo, ele se deixou cair sobre o travesseiro com a mão na testa. Os seus olhos, vivos de curiosidade, cintilavam enquanto observava Marilen entre os dedos.

— Você é um mentiroso! — a garota disparou. — Por que inventou essa brincadeira? — Ela estava muito ereta. A sua voz mostrava o seu desprezo e o seu lindo rosto estava sério.

“Ela amadureceu depressa nas últimas semanas”, pensou Sharn admirada. “Como não tinha percebido? Ah, por que Perdição tinha dado a notícia para Marilen? Eu não sabia que ele a tinha procurado antes de partir.”

— Este homem ficou sozinho algum momento desde que chegou ao palácio, Sharn? — Marilen indagou. — Um minuto que seja?

Sharn balançou a cabeça.

— Marilen, por favor, saia — ela pediu em voz baixa. — Preciso descer agora, mas vou conversar com você assim que puder.

Marilen hesitou e então concordou.

— Por favor, venha logo. Vou estar na biblioteca — ela avisou. Com mais um olhar desdenhoso para Jinks, ela se virou e saiu com passos duros do quarto.

— Pobre moça — Jinks murmurou. — Parece que as notícias que eu trouxe a deixaram muito abalada.

— Todos os que temem o Senhor das Sombras devem estar muito abalados, Jinks — Sharn retrucou, lutando para manter a voz firme. Ela saiu do quarto e fechou a porta suavemente atrás de si.

Assim que ficou sozinho, Jinks jogou as cobertas para o lado e saiu com dificuldade da cama. Ele andou sem ruído até a porta e virou a maçaneta.

Estava trancada. Ele era um prisioneiro.

Jinks franziu o cenho. Não esperava aquilo. Sharn, apesar das palavras gentis, não confiava nele.

Aquela situação não era vantajosa para os seus planos.

— A senhora pensa que me tem onde deseja — ele murmurou em voz alta. — Mas vai descobrir que não se passa a perna em Jinks tão facilmente.

Rapidamente, ele começou a examinar o quarto.

 

Longe dali, no mar secreto, Jasmine se inclinou e espiou a terra à frente. Ela murmurou algo para Kree, que abriu as asas e voou. Os companheiros observaram o pássaro se aproximar rapidamente da massa escura e misteriosa.

De repente, algo saiu da água como um raio. Kree pareceu parar no ar e, logo em seguida, o bote balançou violentamente quando Jasmine se ergueu de um salto, gritando. Kree mergulhava no mar batendo as asas inutilmente.

— Jasmine! — Barda gritou. — Você vai virar o barco!

Luzes brilharam na escuridão. Houve um som de gritos e de algo batendo na água.

Jasmine se abaixou, apanhou o remo e o mergulhou na água.

— Lief, me ajude! — ela pediu aos gritos. — Depressa! Kree vai afundar.

— Não! — Barda protestou. — Vire o barco! Vamos embora!

Mas Lief não deu atenção a nenhum dos dois. Ele havia soltado o remo e pegava a espada. Dezenas de vultos compridos e pálidos saíam da água e se aproximavam deles como enormes lanças escondidas pela espuma.

— Cuidado! — ele gritou, sem tempo de dizer mais nada, pois em segundos os atacantes estavam sobre eles, surgindo da água em meio a jatos de espuma.

Lief agarrou a espada, mesmo sabendo que se a usasse seria o fim. O bote estava cercado por um círculo de enormes enguias prateadas de dentes afiados e bocas cruéis muito abertas, de onde escorria água. Em seus pescoços, estavam sentadas criaturas de olhar selvagem e cara de cachorro, vestidas com pele de animais. As mãos, com tatuagens do pulso até a ponta dos dedos, seguravam lanças feitas de ossos finas e afiadas, prontas para serem atiradas.

Um objeto negro e encharcado foi jogado com indiferença no bote. Era Kree. O pássaro se debatia tristemente aos pés de Jasmine e arrastava uma das asas. Com um grito, Jasmine se inclinou sobre ele.

Lief não sabe de onde as palavras saíram. É possível que o instinto o tenha obrigado a dizê-las.

— Somos do povo de Doran, o amigo dos dragões. Tribo de Auron, não nos faça mal — ele murmurou.

As enguias olharam para ele sem entender, mas os seres estranhos se voltaram e Lief sentiu quando os seus olhos claros o examinaram.

— Doran o mandou lá de cima? — uma mulher do grupo perguntou finalmente.

A sua voz melodiosa como a água que escorre sobre as pedras escondia um aviso.

Não minta.

Lief engoliu em seco, certo de que a qualquer momento uma lança poderia atingi-lo no coração.

— Doran morreu há muito tempo, como vocês devem saber — ele começou com cuidado. — As suas histórias, escritas num velho livro, nos trouxeram até vocês.

— O que querem aqui? — perguntou outro Auron, novamente com uma voz doce, mas cheia de ameaças.

Diga a verdade.

— Muitos dos descendentes de Doran são prisioneiros do Senhor das Sombras — Lief contou. — Para salvá-los, precisamos da Flauta de Pirra.

Um som suave e sussurrante deslizou como o vento sobre a água, e as lanças foram levemente abaixadas.

— A Flauta foi dividida em três partes — disse a criatura que tinha falado em primeiro lugar.

Não minta.

— Já temos uma parte — Lief confessou. — Estamos aqui para lhe implorar que nos entreguem a segunda, mas disseram que vocês não a dariam.

A mulher olhou para os companheiros e então se virou para Lief. As mãos tatuadas apertaram-se sobre a lança e ela virou sua ponta para baixo, devagar.

— Pois disseram a verdade. Venham conosco.

Enquanto o barco era rebocado para a praia, os companheiros perceberam surpresos que aquilo que imaginaram ser uma ilha eram, na realidade, muitas balsas amarradas umas às outras, que formavam uma ampla plataforma coberta de moradias feitas de tijolos de barro.

A beira da plataforma estava lotada de pessoas. Muitas seguravam tochas que fumegavam e cintilavam e exalavam um forte cheiro de óleo de peixe. Crianças pequenas, bocejando e esfregando os olhos, escondiam-se atrás das pernas dos adultos. Outras, mais velhas, reunidas em grupos, muito eretas e sérias, seguravam pequenas lanças de osso, prontas para atacar.

Atrás da multidão se erguia uma torre baixa, aberta de todos os lados. Em seu topo, estavam duas figuras sombrias. Uma delas usava longas túnicas e uma touca muito alta.

“O Flautista de Auron”, Lief imaginou. O guardião da haste central da Flauta de Pirra. Ele viu o flautista se virar para falar, viu seus camaradas hesitarem e, finalmente, se curvarem. Parecia que uma instrução fora dada e aceita.

— Isto é Auron? — Barda murmurou, enquanto saíam do bote. Lief olhou à sua volta e, em todos os lados, havia sinais de que pessoas tinham sido acordadas pelos intrusos: tochas recém-acesas, portas abertas, como se os habitantes das casas tivessem saído correndo assustados.

— Acho que é o lugar em que eles moram — ele respondeu. — Mas não pode ser Auron. O mapa mostra que Auron é uma ilha.

— Então, onde estamos? — Jasmine perguntou. Ela também saíra do barco e olhava ao redor, desconfiada com Kree em seus braços.

— Acho que esta plataforma é a linha pontilhada do mapa — Lief sussurrou. — Doran usou essa linha para indicar que a sua posição não é fixa. Agora ela está ancorada, mas com certeza se move de um lado para outro quando assim o desejam.

— Por que não vivem em sua ilha? — Jasmine perguntou, sem se preocupar em baixar a voz. — Será que eles são tão selvagens e descuidados que ficou impossível morar nela?

Lief deu-lhe um cutucão forte, mas era tarde demais. Muitos na multidão tinham ouvido e a olhavam com cara feia, murmurando entre eles.

— Não me importo com o que eles pensam — Jasmine protestou furiosa. — Eles derrubaram Kree sem motivo. Quem faria isso a uma criatura que não faz mal a ninguém?

— Quem não sabia que ele não faz mal — disse uma voz tranqüila perto de Lief. — Aqueles que nunca viram um pássaro na vida e que aprenderam através de experiências terríveis que o desconhecido pode ser mortal.

Lief se virou com um movimento brusco. Uma criatura de olhos inteligentes o observava. O instinto disse a Lief que era uma das figuras que estava na torre, companheira do flautista.

— Meu nome é Penn — disse a mulher. — Sou quem preserva a história dos Aurons. O Flautista pediu que fosse a sua anfitriã.

— Nossa carcereira, você quer dizer — disparou Jasmine.

Penn sorriu, mostrando duas fileiras de dentes pontiagudos e afiados.

— Seja lá o que eu for, sou tudo o que vocês tem — ela respondeu com simplicidade. — É melhor me seguirem para um lugar seguro, pois a multidão está ficando nervosa.

Enquanto Lief, Barda e Jasmine seguiam Penn pelos estreitos caminhos das balsas, Jinks corria na ponta dos pés pelos corredores do segundo andar do palácio.

O longo e forte grampo para cabelos que encontrara no fundo de uma gaveta o ajudou a escapar do quarto. Agora, havia chegado o momento de realizar seus planos.

Ele sabia que tinha muito tempo. Mesmo que Sharn subisse outra vez, ela não pararia no segundo andar, mas iria diretamente para a biblioteca para ver o que a agitada Marilen queria.

Jinks não tinha dúvidas de que a moça era a noiva de Lief. Tinha sido ótimo ver a mensagem no quadro que o velho idiota havia levantado na cozinha.

E agora ele mesmo tinha visto a garota. “E que atrevida ela é”, pensou Jinks ressentido. “Como ousava chamá-lo de mentiroso? Aliás, estou mentindo, mas para ela não estou falando nada mais do que a verdade.”

Jinks foi até a última porta do corredor e, com o grampo, começou a trabalhar na fechadura. “Afinal, é provável que Lief já esteja morto”, pensou. “De qualquer forma, a minha vida confortável no palácio terminou. É muito injusto, mas é a realidade.”

Ele fechou os olhos, remexendo na fechadura, enquanto os seus pensamentos passeavam em terreno conhecido. “Sim, Jinks”, ele disse a si mesmo, “você precisa enfrentar os fatos. Se Lief estiver vivo, ele vai voltar e contar a todos que você o abandonou. E você vai estar acabado.

Se estiver morto, o Senhor das Sombras vai voltar e vai ser o fim do palácio.”

Satisfeito, ouviu a fechadura se abrir com um leve clique. Jinks entrou no quarto e fechou a porta com cuidado.

Uma capa azul pendurada num canto mostrou a ele que o quarto era de Sharn. Ótimo! Com rapidez, ele começou a examinar prateleiras e gavetas.

“Vou procurar em todos os quartos e pegar o que me agradar”, ele pensou. “Quando descobrirem o sumiço dos objetos, estarei cavalgando para oeste num cavalo roubado e com as sacolas cheias de coisas valiosas. E no oeste vou encontrar um esconderijo agradável e seguro em que um acrobata rico, que não se importa com o tipo de amizades que faz, poderá apreciar uma merecida aposentadoria.”

Fechando a última gaveta, ele percebeu que a sua busca havia rendido somente algumas moedas, um broche de topázio e uma corrente de ouro na qual havia um medalhão com a fotografia do rei Endon, o pai de Lief, quando jovem.

Jinks resmungou aborrecido. Ora, a mãe do rei ainda vivia como a mulher de um ferreiro. Onde estavam as jóias, os anéis de ouro e os colares de pérolas que tinha esperado encontrar?

Balançando a cabeça, ele saiu apressado do quarto e passou à próxima porta.

“Não fique irritado, garotão”, ele disse a si mesmo, enfiando o grampo na fechadura. “O quarto de Marilen deve ser um destes.”

Diziam os boatos que Lief tinha escolhido as jóias reais mais finas para dar de presente à noiva. Mas Marilen não estava usando nada de valor quando a viu. Portanto, as jóias deviam estar escondidas no quarto dela. Seria uma bela descoberta!

A fechadura se abriu sob a pressão de seus dedos e ele entrou no segundo aposento.

Ele parecia tão vazio quanto o primeiro, mas numa mesa baixa havia uma bandeja com cozido, salada, um pouco de pão e, melhor de tudo, um pequeno bolo dourado embrulhado num papel brilhante.

Jinks correu até a mesa, estendeu a mão para apanhar o bolo, mas recuou. Havia um papel dobrado ao lado da bandeja. Estava claro que ainda não havia sido lido, pois o lacre de cera só estava parcialmente quebrado. Sem conter a curiosidade, Jinks o abriu.

 

Querida Marilen,

Aqui em Tora não sabemos mais o que está acontecendo com você. A distância que nos separa é muito grande, mas a sua última carta me deixou aflito, pois você não disse nada sobre os seus sentimentos ou sobre Lief.

Tenho medo de que algo a esteja preocupando — algo que você não pode ou não quer contar. Rezo para que tudo esteja bem.

Estou escrevendo para dizer que Zeen e eu iremos a Del nos próximos dias. Sei que essas notícias vão deixar você muito feliz, querida, e que vai contá-las a todos que precisarem saber delas.

Seu amado pai

 

Jinks sorriu satisfeito. Então ele achara o quarto de Marilen. Ele deveria ter percebido logo, por causa da bandeja. A garota mimada saíra correndo para encontrar Sharn sem tocar na refeição.

Ele apanhou o bolo e devorou-o com prazer.

Agora, era só encontrar as jóias! Ele olhou ao redor, apreciando o momento. Então, chocado e surpreso, sentiu uma terrível pontada de dor no estômago. Ofegante, dobrou o corpo e segurou a barriga quando a dor se repetiu. Ele tentou gritar, mas não conseguiu soltar mais do que um sussurro rouco.

A dor era insuportável e ele caiu no chão se retorcendo, os dedos agarrados ao tapete, os pés batendo na mesa.

A mesa virou e a bandeja escorregou para o lado. Quando ela atingiu o chão, Jinks estava morto.

 

Pensamentos sobre Del tinham começado a perturbar Lief outra vez, enquanto ele seguia Penn pelo labirinto de caminhos estreitos que corriam entre as moradias atulhadas das balsas. Mas eles foram afastados de sua mente assim que ele, Jasmine e Barda chegaram ao seu destino.

A cabana era pequena, mas agradável, apesar do forte cheiro de óleo de peixe que vinha do fogão aceso, no canto, e da lamparina suspensa na parede.

Uma rede coberta com uma colcha de retalhos de pele cinza pendia de ganchos presos ao teto baixo. Não havia outra mobília no aposento, e o chão estava coberto por uma linda esteira tecida nas suaves cores do mar.

De três paredes lisas e claras, pendiam cestos que guardavam rolos de pergaminho, roupas e outros pertences bem arrumados. A parede em que se encontrava a porta tinha somente um gancho no qual Penn convidou Lief a pendurar seu casaco, uma janela com cortinas e uma pequena tapeçaria com desenhos estranhos e fora do comum.

Abaixo da tapeçaria, havia uma grande tigela azul com água. Dentro dela, duas pequenas criaturas marinhas flutuavam entre algas prateadas. Elas se pareciam com cavalos-marinhos, mas tinham todas as cores do arco-íris.

— Meus companheiros, Tresk e Mesk — Penn informou, inclinando-se sobre a tigela. As pequenas criaturas deviam ser muito queridas, pois ela conversava e sorria para elas quando saltavam para beliscar a sua mão.

Penn pareceu ansiosa quando Filli saiu de baixo da gola do casaco de Jasmine e correu para a beira da tigela para investigar.

— Filli não faria mal a elas — Jasmine garantiu. Mas Penn não relaxou enquanto Filli não voltou para a segurança do ombro de sua dona, mordiscando uma fruta seca que encontrou no bolso de Jasmine.

Depois disso, Penn se ocupou em deixar os convidados à vontade e não poderia ter sido mais gentil ou agradável.

Ela retirou a rede e a guardou para criar mais espaço. Em seguida, deu a Jasmine tudo de que precisava para cuidar da asa ferida de Kree. Enquanto isso, fazia perguntas sobre Deltora e a jornada dos companheiros, ouvindo atentamente as suas respostas.

Finalmente, quando Kree já estava repousando confortavelmente, ela trouxe enormes conchas de caramujo cheias de uma sopa forte e oleosa para os convidados.

— Talvez vocês não gostem muito... — ela comentou ansiosa, observando-os comer.

— Ah, não, está muito bom — Lief garantiu, tentando não torcer o nariz. Ele sentiu algo duro sobre a língua e o removeu. Era uma garra seca. Ele olhou para ela um tanto enojado, imaginando de que criatura horrível teria sido tirada.

Penn tinha uma expressão séria no rosto.

— Vocês sempre devem dizer a verdade nas balsas — ela aconselhou com delicadeza. — Como preservadora da história, li muito sobre o que Doran ensinou aos nossos ancestrais e conheço os hábitos de seu povo. Nisso sou diferente da maioria. No mundo superior, as boas maneiras são consideradas como algo bom, mas aqui não são desculpa para mentir.

Ela apontou a tapeçaria que tinha fascinado Lief desde que entrara na cabana.

Lief, Barda e Jasmine olharam os símbolos incomuns e finalmente perceberam uma palavra escondida entre eles.

— Verdade — Lief murmurou. Penn assentiu.

— A beleza é importante para nós, como convém aos seguidores do Flautista Auron. Mas achamos que algo só pode ser belo ser for acompanhado da verdade. Mentiras e falsidades foram a ruína de nosso povo no passado. Hoje, as nossas crianças aprendem desde cedo que a verdade é mais importante que tudo e que mentir é o pior dos pecados.

Ela sorriu levemente.

— Então, me digam. Vocês estão mesmo gostando da refeição que lhes dei?

— Bem, se a senhora quer a verdade, embora eu esteja agradecido por sua gentileza, eu acho que ela é repulsiva! — Barda grunhiu, colocando a sua concha na mesa.

— E eu também — Jasmine concordou, imitando o amigo.

— Na verdade, é a pior sopa que já tomei — Lief concordou, suspirando.

— Está escrito que Doran sentiu a mesma coisa na primeira vez — Penn riu, limpando rapidamente a própria concha, mastigando os últimos pedaços com prazer.

— E agora — ela disse hesitante, pondo a concha de lado — é meu dever contar por que não podemos ajudar vocês.

— Não podemos falar com o seu flautista? — Lief perguntou. A nossa causa é justa e ficaríamos com a sua parte da Flauta de Pirra somente durante...

Penn ergueu o braço, que estava coberto por tatuagens complicadas até quase o cotovelo.

— Não perca o seu tempo com discussões — ela disse secamente. — O Flautista sabe por que estão aqui. Os guardas que não precisamos usar para rebocar o seu barco chegaram muito antes de vocês e o informaram.

Ela suspirou ao ver a expressão no rosto de Lief.

— O Flautista quer que saibam que daríamos qualquer coisa a vocês, se pudéssemos. Doran, o seu parente, passou muito tempo nas balsas, no passado. Ele deu muitos presentes aos nossos ancestrais e até nos ensinou a usar o fogo, sem o qual a nossa vida, hoje, seria terrivelmente infeliz.

— Mas então... — Barda começou.

— Vocês acham que viveríamos assim se tivéssemos a nossa parte da Flauta? — Penn suspirou. — Vocês acham que gostamos de vaguear pelos mares gastando metade de nossas vidas procurando materiais para consertar as balsas? Vocês acham que escolhemos viver na escuridão, quando as nossas almas só querem a luz?

Lief muito desapontado lutava com sentimentos confusos, sem acreditar no que ouvia. Ele sabia que a segunda parte da Flauta estava perto. Ele tinha certeza disso. Mesmo assim, também sabia que Penn, cujo povo valorizava a verdade acima de tudo, não estava mentindo.

— Então a haste da Flauta se perdeu? — ele perguntou com voz firme.

— Para nós, sim. Ela está na ilha de Auron, que também está perdida para nós.

— Perdida? — Jasmine repetiu impaciente. — Como assim? Ela caiu no mar? Ela foi roubada pelos monstros que vocês criam para...

— Monstros que criamos? — Penn gritou. Ela se ergueu de um salto, os olhos faiscando, esquecendo toda a pose. — Quem lhe contou essa mentira? — ela bradou, olhando zangada para Jasmine.

E então a expressão de seu rosto mudou. Os olhos se estreitaram e a boca grande endureceu.

— Ah, mas claro — ela murmurou. — Aqueles malditos Plumes, que não são capazes de falar a verdade mesmo se a vida deles depender disso, que fariam de tudo para manchar o nosso nome para os descendentes de Doran.

— Se os Plumes mentiram, não sabem disso — Jasmine respondeu atrevida, recusando-se a ser intimidada. — Eles nos contaram somente o que realmente acreditavam.

Penn olhou para ela por um momento e então, lentamente, a sua raiva pareceu diminuir e o seu rosto relaxou.

— Sinto por ter ficado zangada — ela se desculpou, indo até a janela, puxando a cortina e olhando para a escuridão. — Errei em culpar vocês. Os Plumes sabem como enganar as pessoas.

Jasmine abriu a boca para continuar a discussão, mas Lief falou depressa antes que ela pudesse dizer alguma coisa. A esperança enchia o seu coração outra vez. Se a segunda parte da Flauta estava em Auron, certamente poderia ser encontrada, não importava que perigos a cercassem.

— Diga, Penn, por favor, por que acha que Auron está perdida? — ele perguntou.

Sons altos e estranhos, cada vez mais fortes, começaram a entrar pela janela e a encher o aposento.

Penn se virou. O seu rosto estava triste e, talvez, desesperado.

— O Flautista está anunciando o nascer do dia — ela disse. — A hora de dormir acabou. Nenhum de nós conseguiu dormir bem nesta noite.

— Eu sinto muito... — Lief começou, mas Penn o interrompeu com um gesto e foi até os cestos pendurados na parede dos fundos. Ela escolheu dois rolos de pergaminho gastos e foi até a porta.

— Venham — ela convidou. — Agora o seu barco pode deixar as balsas em segurança.

— Não podemos partir! — Jasmine exclamou, olhando de modo protetor para Kree. — Kree precisa descansar mais. Ele ainda está fraco.

— O pássaro pode ficar onde está — Penn disse, a expressão um pouco mais suave ao notar a preocupação no rosto de Jasmine. — Ele não vai perturbar Tresk e Mesk, e vocês vão estar de volta antes que o Flautista anuncie a chegada da noite. Vocês chegariam mais depressa nadando, menos você, eu acho. — Vou levá-los até Auron.

O coração de Lief se encheu de entusiasmo. Ele olhou para Barda, cujo rosto mostrava um ar triunfante.

Os olhos inteligentes de Penn pareceram perder o brilho enquanto observava os companheiros.

— Não estou feliz com esta viagem — ela murmurou. — Esperava poder evitá-la. Mas vocês precisam ver a ilha e somente então vão compreender a verdade.

 

Penn não diria mais nenhuma palavra. Em silêncio, ela conduziu os companheiros pelos corredores. Quando eles passavam, as pessoas puxavam as cortinas e espiavam pelas janelas com os rostos cheios de curiosidade, medo ou ressentimento.

— Não somos bem-vindos aqui — murmurou Lief nervoso.

— E por que seriam? — Penn perguntou com calma. — Vocês invadiram as nossas águas em um barco dos Plumes carregando a parte da Flauta de Pirra pertencente a eles para zombar de nós. Vocês estão acompanhados de criaturas assustadoras e nos acusaram de transformar Auron num lugar onde é impossível viver. Além disso, vocês são muito grandes, feios e têm um cheiro desagradável.

— Uma ótima lista de qualidades — Barda replicou secamente. — Eu me pergunto como suportou a nossa presença em sua casa, Penn.

— Como eu disse, li sobre o seu povo — ela respondeu, dando de ombros. — É por isso que o Flautista me escolheu para realizar essa tarefa.

Atingiram a beirada da plataforma onde o barco deles ainda balançava suavemente, amarrado ao lado de outros barcos. A pedido de Penn, guardas com uma expressão dura abriram caminho para que eles pudessem passar.

A água parecia viva com as enormes enguias de olhar feroz, iguais às que os guardas tinham montado na véspera. Elas nadavam imediatamente abaixo da superfície, enroscando-se umas nas outras preguiçosamente.

Tentando não olhar para elas, Lief, Jasmine e Barda entraram no barco com cuidado, para não escorregar. Penn os seguiu tranqüila, quando viu Fury e Flash ainda adormecidas em suas gaiolas.

— Eu tinha me esquecido delas — ela murmurou nervosa. — Essas gaiolas são fortes?

— Muito fortes — Lief garantiu, apanhando o remo.

Penn estremeceu, soltou o barco e, ao mesmo tempo, voltou-se para observar as enguias que estavam bastante tranqüilas.

— Para lá — ela disse, apontando para o oeste. — Reme em linha reta. E, por favor, reme devagar. Não desconfio de você, mas prefiro que os seus dois monstros continuem dormindo.

O bote se afastou da plataforma. Adiante, estava o mar aberto e escuro. E Auron.

Num outro mundo, em Del, o sol desaparecia devagar no horizonte.

Sharn havia ficado no saguão de entrada muito mais tempo do que pretendia. Muitas pessoas esperavam para falar com ela.

Uma delas era um auxiliar de Barda, um combatente da Resistência chamado Mobley, que queria comunicar uma morte. Pieter, irmão de um dos ajudantes que ficavam na entrada do saguão, tinha tido uma morte cruel, quando dois escorpiões-das-planícies escaparam de uma caixa que ele levava escondida sob a camisa.

— Achamos que foi ele quem colocou o escorpião nos aposentos do rei, senhora — Mobley deduziu. — Ele costumava consertar telhados e poderia facilmente ter escalado até a janela e cortado as grades. Além disso, encontramos isto na caixa. Maria diz que a letra é do irmão dela.

Ele mostrou um pedaço de papel.

— Mas por que o irmão de Maria quereria a morte de Lief? — Sharn exclamou surpresa e aflita.

— Não tenho idéia — Mobley respondeu, dando de ombros. — Como muitas outras pessoas, ele e Maria perderam-se um do outro na noite em que o Senhor das Sombras invadiu a cidade. Eles só se encontraram por acaso, quando Pieter entrou no palácio, há algumas semanas. Ele estava muito magro, tinha perdido a memória e sofria de fortes dores de cabeça, que o incomodavam muito.

Ele fez uma pausa.

— O que Pieter fez foi terrível, senhora, mas quando o vi caído ali pensei que, se as coisas tivessem sido diferentes, o mesmo poderia ter acontecido comigo. Eu também perdi minha família no tumulto. Acho que a única coisa que me manteve lúcido foi a Resistência.

Finalmente, Sharn pôde subir e foi direto para a biblioteca. Ali encontrou Marilen sentada a uma das mesas. Josef, com ar perturbado e arrasado, verificava alguns livros enquanto Ranesh o ajudava em silêncio.

Marilen, muito pálida, ergueu-se imediatamente quando viu Sharn.

— Vamos conversar em meu quarto, se puder — pediu a moça muito séria.

Tensas e em silêncio, as duas desceram as grandes escadarias. Quando chegaram ao segundo andar e os guardas que vigiavam as escadas recuaram para o lado para que passassem, Marilen respirou fundo e pareceu fazer um grande esforço para se acalmar.

— Sharn, desculpe se estou agindo de modo estranho — ela sussurrou. — Fui até a biblioteca em busca de alívio, mas preciso falar com você em particular. Josef e Ranesh, principalmente Ranesh, não podem ouvir o que tenho a dizer. E acho que é perigoso falar em voz alta aqui.

Ela andou apressada para o corredor que levava ao seu quarto. Sharn a seguiu muito preocupada. O que fez Marilen pensar que os corredores não eram seguros? Aquele andar tinha sido examinado com muito cuidado.

Todavia, ainda mais estranha, era a determinação de Marilen de não falar na frente de Josef e Ranesh. Sharn tinha imaginado que a garota queria apenas discutir a notícia da morte de Lief. Mas Josef e Ranesh já conheciam esse fato.

“O que mais ela poderia querer contar?”, pensou Sharn. “E por que principalmente Ranesh não deve saber do que se trata?”

Marilen estava diante de sua porta e tirou a chave do bolso, mas recuou quando a colocou na fechadura.

— Já está destrancada — ela sussurrou.

Antes que Sharn pudesse impedir, ela girou a maçaneta e escancarou a porta. Seguiu-se um momento de silêncio aterrorizado. Então Marilen deixou escapar um grito agudo e enterrou o rosto nas mãos. Sharn simplesmente ficou olhando em silêncio assustada.

Jinks encontrava-se estendido em meio a uma confusão de louça partida e comida inutilizada, os olhos voltados para o teto. A boca estava torcida numa careta de agonia. Parte de uma fina corrente de ouro, da qual pendia um medalhão, caía de um de seus bolsos.

Sharn olhou para a jóia.

— É o meu medalhão — disse ela devagar, tentando compreender o que via. Então, recuperando o controle, ela passou por Marilen, ajoelhou-se ao lado de Jinks e sentiu o pulso dele.

— Ele está morto — ela afirmou, levantando-se. — É possível que ele estivesse muito mais ferido do que imaginamos. O seu coração...

— Não — disse Marilen. — Veneno. — Ela se abaixou e apanhou um pedaço de papel prateado do chão e, muito pálida, estendeu-o para Sharn.

— Veneno! — Sharn repetiu assustada.

— Era isso que eu ia lhe dizer, Sharn — Marilen contou, as palavras finalmente escapando de sua boca. — Assim que destampei a bandeja, eu soube que não deveria comer a comida.

— Mas... mas... — Sharn correu a mão trêmula pela testa. Havia muitas perguntas se formando em sua mente. — Marilen, como você adivinhou?

Marilen recuou, envolvendo o corpo com os braços como se quisesse se proteger de um ataque. Mas então ela pareceu encontrar forças para responder. Ela ergueu o queixo e deixou os braços caírem ao longo do corpo.

— Sou uma filha de Tora — ela explicou.

— Eu também — disse Sharn olhando para ela. — Ou, pelo menos, sempre me disseram que os meus descendentes eram de Tora. Mas a mágica torana pode sentir a presença de veneno?

— Eu só posso dizer que soube imediatamente que a comida estava envenenada — Marilen contou com calma.

Ela indicou o corpo rígido no chão.

— Jinks veio até aqui para roubar, e isso acabou sendo a sua morte. Mas eu era o alvo.

Sharn tentou demonstrar uma calma que não sentia. Ela estava muito confusa.

— Você quer partir, Marilen? — ela perguntou finalmente. — Você quer voltar para Tora?

Apreensiva, Sharn esperou pela resposta.

— Não — Marilen respondeu com firmeza. — Não vou ceder aos inimigos. É possível que quem tentou me matar não saiba exatamente quem eu sou, mas queira criar problemas entre o leste e o oeste. E quem poderia ser essa pessoa, senão um servo do Senhor das Sombras?

— Você tem razão — Sharn murmurou impressionada e comovida com a coragem da moça.

— Isso significa que há um espião entre nós — Marilen disse. — Um espião que conseguiu descobrir que estou aqui.

Ela fitou o corpo no chão.

— Pensei que era Jinks, mas está claro que me enganei — ela acrescentou com calma.

Sharn respirou fundo. Ela se sentiu intimidada diante da garota que parecia ter se transformado numa mulher forte em poucos dias.

— Você suspeita de Ranesh?

Marilen corou até a raiz dos cabelos como se, durante um momento, ela tivesse se tornado uma jovem garota outra vez.

— Ah, não! — ela murmurou. — Como pode dizer uma coisa dessas? Ranesh nunca me faria mal. Ao contrário, tenho certeza de que, se ele descobrisse que a minha vida foi ameaçada, ele... ele faria alguma bobagem. Portanto, ele não deve saber.

Ela se virou depressa e fingiu ajeitar o laço na cintura.

“Ah!”, pensou Sharn. “Então a situação está nesse pé. Bem, isso complica ainda mais as coisas.”

Uma onda de imensa tristeza a invadiu.

“Lief, onde está você?”, ela pensou. “Onde está você?”

 

Lief remava na direção da ilha de Auron, a mente dominada pela música. Os seus ombros doíam, mas ele não sentia mais a dor. Ele só conseguia pensar no som que ficava cada vez mais forte.

— O que está acontecendo, Lief? — Jasmine perguntou. Lief olhou para ela, e o seu rosto familiar flutuou diante de seus olhos como se fizesse parte de um sonho.

— Ele está sentindo a magia da Flauta de Pirra — Penn explicou.

— Ela se inclinou para a frente e deu um tapa forte no joelho de Lief.

— Lief! Acorde! — ordenou.

O toque e a voz aguda conseguiram, de algum modo, atravessar a névoa de sonho que tomava conta da mente de Lief. Ele piscou e murmurou algumas palavras. Penn apanhou um pouco de água com a mão em concha e jogou-a em seu rosto.

Lief susteve a respiração quando as gotas frias se espalharam sobre seu rosto. De repente, ele estava totalmente consciente outra vez. Consciente, mas confuso e muito zangado.

— Por que fez isso? — ele gritou, olhando para Penn e afastando a mão de Jasmine, que tentava acalmá-lo.

— Foi preciso — Penn respondeu com calma. — Não trouxe você até aqui para que perdesse a primeira vista de Auron.

Respirando fundo, Lief secou a água dos olhos. Lentamente, a sua raiva diminuiu. Ele percebeu onde estava e o que tinha acontecido.

— Desculpe-me — murmurou envergonhado.

— A culpa é minha — Penn replicou, ainda com a mesma voz calma. — Eu devia ter avisado você, mas fui surpreendida. Acho que, por causa do bocal que está com você, a magia da Flauta está mais poderosa do que nunca. Eu mesma estou lutando contra ela.

Somente então Lief percebeu que o rosto dela estava molhado e que ela tinha apertado tanto as unhas nas palmas das mãos tatuadas que elas sangravam.

— Tem alguma coisa lá adiante — Jasmine avisou, apontando. Houve um curto silêncio. E então Lief e Barda gritaram ao ver o que Jasmine tinha visto: um leve brilho em meio à escuridão.

— Aquela é Auron — Penn disse com a voz um pouco trêmula. — Vá devagar, agora. Não podemos cruzar a linha.

— A linha? — Lief gritou. — Mas não vamos poder desembarcar? Penn, precisamos desembarcar. Precisamos ver...

— Você vai ver o suficiente, não se preocupe — Penn murmurou. O barco avançou devagar. Um cheiro estranho e desagradável começou a entrar nas narinas dos amigos: um cheiro forte de material em decomposição que parecia grudar em suas roupas, penetrar em sua pele e seus cabelos.

E então eles começaram a ouvir o som suave das ondas, acompanhado de vários outros ruídos estranhos.

O brilho ficou um pouco mais forte e se espalhou até quase tomar conta da paisagem. Lief fechou um pouco os olhos e tentou enxergar a ilha através dele, mas só conseguiu ver um domo de luz, grande e alto. E, à esquerda da luz, exatamente onde esperava que estivesse, erguia-se a parede íngreme de uma caverna projetando-se para fora do mar.

— Essa é a linha — Penn sussurrou. — Pare.

Os companheiros afastaram os olhos da luz e olharam para a água à sua frente.

Uma larga faixa de algas cor-de-rosa e amarelas flutuava na frente do barco. A faixa se estendia para a direita e para a esquerda formando um círculo que envolvia o domo brilhante e o estranho mar leitoso que o cercava.

— Vocês plantam essas algas como um aviso? — Barda perguntou. -Ah, se tivéssemos sabido disso antes!

Mas Penn estava atenta a Jasmine e a Lief.

— Vire o barco para ficar com a lateral voltada para a ilha — ela ordenou. — E, se tem amor à vida, não deixe que ele flutue para dentro da linha de advertência.

O tom de sua voz era tão insistente que Lief nem ao menos pensou em desobedecer. E as cintilantes cores rosa e amarela das algas, claramente visíveis mesmo na penumbra, trouxeram de volta lembranças que por si só eram um aviso.

— E agora olhem — Penn disse com calma. — Olhem com cuidado e entendam.

Lief olhou com atenção e, à medida que os seus olhos se acostumavam à luz e os companheiros procuravam em vão o contorno das rochas, colinas ou qualquer forma que pudesse ser reconhecida, ele sentiu um calafrio na espinha.

Não havia nada para ver debaixo do domo. Ele era uma barreira de energia cintilante que escondia tudo debaixo dele.

Uma água oleosa, rasa, da qual saía um leve vapor, batia na base do domo onde montes de uma substância pegajosa se moviam preguiçosamente, e objetos invisíveis emitiam sons estranhos. Tudo parecia coberto por uma névoa leitosa como bolor. Ondas de cheiro desagradável atingiam Lief.

Lief ouviu Barda praguejar em voz baixa e Jasmine murmurar algo, sem acreditar no que via. O desespero tomou conta dele como uma nuvem cinzenta.

Ele se virou no banco para observar Penn. Ela olhava fixamente para as próprias mãos entrelaçadas no colo.

— O domo está selado por magia — ela murmurou com suavidade.

— Nós, que vivemos nas balsas, somos exilados. Nossos ancestrais foram expulsos do domo há muito tempo.

— Por quê? — Barda perguntou.

— Eles eram perigosos e dominados pelo fingimento — ela contou, falando devagar, como se cada palavra fosse arrancada de sua boca.

— Eles queriam viver no exterior, num lugar ao qual não estavam acostumados, mas que tinha a própria beleza selvagem.

Lief, Barda e Jasmine olharam ao redor hesitantes. Era difícil compreender como alguém podia enxergar beleza naquele brilho impressionante.

Penn também olhou à sua volta, a expressão triste.

— Quando as primeiras balsas foram construídas, as paredes da caverna brilhavam como estrelas de milhares de cores diferentes — ela sussurrou. — As enguias dançavam num mar cintilante com as cores do arco-íris. As histórias contam que tinham uma beleza indescritível.

O seu relato foi interrompido por um profundo suspiro.

— Mesmo quando eu era criança, ela já era uma sombra do que tinha sido. Eu me lembro bem das cores. Mas agora elas se foram.

Lief, Barda e Jasmine lembraram a delicada beleza das luzes cor de opala que haviam atravessado quando saíram do território dos Plumes. As cores atordoantes que desapareceram quando a luz dos Plumes falhou.

Então, eles tinham pensado que os Aurons tinham apagado a sua luz por pura maldade. Agora sabiam que não era bem assim.

— O que aconteceu? — Jasmine perguntou.

Devagar, quase contra a vontade, Penn apanhou os dois rolos de pergaminho que tinha trazido da cabana e os entregou a Lief, juntamente com a lamparina.

— Parte da história está aqui — ela murmurou. — Eu a escrevi de maneira simples para as crianças das balsas. Eu a trouxe porque sabia que vocês iriam fazer perguntas e seria doloroso para mim respondê-las.

Ela ficou olhando para as próprias mãos mais uma vez. O seu corpo estava rígido, e a sua boca formava uma linha reta.

Lief e Jasmine examinaram o primeiro pergaminho. Barda se inclinou para olhar sobre os ombros deles.

 

Quando as três tribos de Pirra fugiram de suas terras, depois da chegada do Senhor das Sombras, elas se refugiaram nas ilhas do mar subterrâneo. A ilha de Auron fica bem longe das ilhas inimigas de Plume e Keras. Ela era extensa, tinha água potável e estava coberta por árvores cuja madeira podia ser usada para construir casas e barcos. Quando a caverna era iluminada com a magia das pessoas, ela brilhava com todas as cores do arco-íris.

Alguns Aurons viram uma beleza estranha e selvagem na ilha e nas cavernas cintilantes. Mas a maioria enxergou apenas feiúra e imediatamente começou a criar ilusões das belezas perdidas de Pirra.

Após algum tempo, eles fizeram ainda mais. Usando um forte feitiço, eles formaram um domo que cobriu a ilha, prendendo a magia dentro e completando a ilusão.

Contudo, havia aqueles que não concordavam com o que tinha sido feito. Esses Aurons, nossos ancestrais, queriam viver em um mundo real, mesmo que estranho, e não num sonho criado por suas mentes.

Lief deixou o pergaminho de lado e apanhou o segundo.

Assim, nossos ancestrais ficaram sem sua magia e foram expulsos como traidores. Eeran, o Flautista daquela época, jurou que, se partissem em paz, para que não houvesse derramamento de sangue dentro do domo, as cavernas sempre ficariam cheias de luz. Nossos ancestrais acreditaram nele e partiram sem protestar.

Eles construíram balsas com pedaços de madeira flutuante amarradas com cordas feitas de algas secas. Construíram casas de barro, aprenderam a viver no mar brilhante que era o seu lar e foram felizes.

Durante muitos anos, a promessa de Eeran foi cumprida. Mas então, não muito tempo depois da vinda de Doran, que nos trouxe o fogo, a luz começou a se apagar muito devagar. Hoje, séculos depois, o nosso reino se transformou no que vocês estão vendo.

Os que vivem no domo continuam a se livrar de todas as coisas que ameaçam o seu ideal de beleza, até mesmo os seus mortos. É assim que eles alimentam as criaturas que nascem ao redor do domo. E essas criaturas são caçadas por Arachs, os monstros que antes ficavam escondidos no fundo das cavernas, longe da luz, e agora vivem no mar quente e escuro do interior do domo.

O domo é protegido pela magia dos Aurons que vivem dentro dele e pela haste da Flauta de Pirra. Nós, que não temos a magia, não podemos entrar nele. Muitos tentaram e morreram.

Precisamos nos preparar para a época em que não haverá mais luz. Precisamos aprender a nos movimentar nas águas escuras e saber pelo toque onde estão as linhas de advertência que nunca devem ser ultrapassadas. Precisamos continuar a guardar todos os pedaços de madeira para consertar as balsas e evitar o desperdício.

E então poderemos sobreviver.

Lief olhou para o rosto sério de Penn. Ele devolveu os pergaminhos sem dizer nada. O que poderia dizer?

— O que são esses Arachs? — Jasmine perguntou, de repente.

Ao ouvir esse nome, Penn ficou rígida e olhou de um lado para outro. Com um grito abafado, ela se ergueu do banco e logo voltou a se sentar.

— O que eu fiz? — ela murmurou. — Ah, Auron, perdoe-me! Em minha angústia, esqueci-me de olhar. Estamos flutuando sobre a linha!

Os companheiros olharam para baixo. Eles estavam cercados por todos os lados por algas cor-de-rosa e amarelas, fortes e espessas, que flutuavam abaixo da superfície da água. A proa do barco havia passado além da faixa de algas e entrado na água leitosa adiante, sem que eles percebessem.

E, no domo, algo se mexeu. Ouviram-se sons. Sons horripilantes que gelavam o sangue.

— Voltem! — Penn balbuciou, os olhos cheios de pavor. — Depressa, por favor, depressa!

Lief e Jasmine começaram a remar para trás, furiosamente. Os remos atingiam a água inutilmente, batendo no tapete irregular de algas. O bote balançava de um lado para outro de modo estranho, mas não saía do lugar.

Sem dizer mais nada, Penn se jogou na água e começou a arrancar as algas com a mão, tentando em vão abrir um caminho.

Duas sombras enormes, dois corpos imensos e encaroçados balançando sobre oito patas finas ergueram-se contra a luz do domo. Os olhos vermelhos dos monstros cintilaram quando eles saltaram adiante e começaram a correr na direção do barco, na superfície da água, com uma velocidade assustadora.

— Pulem na água! — Penn gritou. — Nadem. Nadem para salvar as suas vidas.

 

Sem hesitar, Lief pegou Jasmine nos braços e caiu na água coberta de algas.

Ao voltar para a superfície, escutou Barda saltando e gritando algo atrás dele. Lief respondeu e, então, segurando Jasmine junto do peito com firmeza, ele começou a nadar, afastando a capa que se enrolava em suas pernas e abrindo caminho em meio às algas.

Jasmine arquejava ofegante, tentando falar.

— Sei o que quer dizer, mas não perca o seu tempo — Lief disse com dificuldade. — Não vou soltar você.

Barda se aproximou. Segurando Jasmine, eles abriram caminho em meio à espessa cobertura de algas, esforçando-se para avançar, com dolorosa lentidão.

— O que vocês estão fazendo? Depressa! — Penn gritou da escuridão do outro lado da faixa de algas. Então, surpreendentemente, ela saiu do lugar seguro onde estava, mergulhou na direção deles e atravessou a água como um peixe.

Penn surgiu na superfície diante deles com os olhos claros aterrorizados e estendeu a mão para Jasmine.

— Onde ela está ferida?

— Não está ferida. Ela não sabe nadar! — Lief contou ofegante, deixando Penn surpresa.

Logo ela se afastou nadando, puxando Jasmine com habilidade. Lief e Barda a seguiram, o coração batendo forte, o peito dolorido em meio às algas e, finalmente, no mar aberto.

Então Penn parou e se voltou, segurando Jasmine com um braço, com facilidade.

— Por que parou? — Barda perguntou arquejante.

— Estamos seguros aqui — ela informou. — Os Arachs não atravessam as algas. As águas do domo são seu território. — O rosto dela se contorceu de tristeza. — Ah, não! — ela murmurou. — Que desperdício!

Ouviu-se um som parecido com o de folhas secas sendo amassadas. Ofegante, mal conseguindo respirar, Lief se voltou dentro da água.

Os Arachs tinham parado na margem da faixa de algas marinhas. Um deles tinha apanhado o bote e o erguia no ar, amassando-o como se fosse de papel. O outro brigava por um pedaço, puxando a embarcação frágil, procurando alguma presa em seu interior.

Lief só olhava confuso. Os Arachs pareciam enormes aranhas deformadas. Os seus corpos inchados estavam cobertos por uma casca negra e brilhante parecida com uma armadura. As patas compridas e finas pareciam fios de aço, cheias de pontas e pregos. As suas cabeças blindadas tinham olhos enormes, cruéis e vermelhos e pinças gotejantes.

Com um rugido baixo e furioso, o segundo Arach virou-se com violência e partiu o barco em dois. Provisões, baldes, lamparina e dois pequenos objetos que deveriam ser as gaiolas das aranhas-de-briga foram atirados para o ar, espalhando-se e caindo com ruídos surdos.

A gaiola de Fury mergulhou na água na frente de Lief. A aranha se debatia dentro dela desesperada. Lief agarrou a gaiola e a ergueu, engolindo água ao tentar se manter na superfície com uma só mão.

“Isto é uma loucura”, ele pensou. “Não posso me salvar, quanto mais a esta aranha.” Mas ele não conseguiu deixar a criatura afundar diante de seus olhos.

O mesmo acontecia com Barda, que não conseguia entregar Flash à sua própria sorte. O amigo nadava na direção da outra gaiola e tentava pegá-la como se a sua vida dependesse disso.

— Os Arachs estão satisfeitos — Penn balbuciou.

Lief olhou para cima e viu os monstros recuando para o domo. Os restos do barco destruído ficaram espalhados sobre o tapete de algas marinhas.

Sem avisar, Penn mergulhou de cabeça na água. Jasmine, ainda bem presa em seu braço, debateu-se apavorada. Bolhas subiram à superfície ao redor da cabeça de Penn, e Lief imaginou ouvir um grito estranho e abafado.

— O que ela está fazendo? — Jasmine gritou. Mas Penn já erguia a cabeça, sacudindo-a para tirar a água dos olhos.

Logo depois, um movimento agitado na água chamou a atenção deles. E então Lief, Barda e Jasmine gritaram assustados, quando quatro enguias gigantes surgiram das profundezas com suas horríveis bocas escancaradas.

— Segurem nos pescoços delas — Penn ordenou. — Fui eu quem as chamou. Elas vão nos levar para casa.

Eles voltaram às balsas muito mais depressa do que Lief imaginou ser possível. Ele nunca tinha viajado tão rapidamente e nunca esqueceria a jornada: a água batendo contra o seu rosto e a força desesperada com que se segurava ao pescoço escorregadio da enguia.

Para sua vergonha, ele teve de ser puxado para a plataforma pelos guardas. Ele nada pôde fazer para ajudar. As suas pernas e braços não se moviam e a cabeça girava. As crianças que mergulhavam e brincavam como peixes na água perto da plataforma olhavam e riam. Os trabalhadores que remendavam as redes e fabricavam cordas não puderam deixar de zombar.

Barda estava no mesmo estado e Jasmine um pouco melhor. Juntos, molhados, cambaleantes e deprimidos, eles seguiram Penn, arrastando os pés até a cabana, tentando ignorar a multidão silenciosa e curiosa que havia se reunido para observá-los.

A porta da cabana estava aberta. Dentro dela, uma figura curvada usando uma longa túnica e uma touca alta e prateada os esperava. Seu rosto era tão velho e enrugado que mal se podia dizer se era um homem ou uma mulher.

Penn conduziu os companheiros para o interior da cabana e fechou a porta.

— Não se incomodem com a água. Este piso já foi encharcado mais vezes do que vocês podem imaginar.

Jasmine correu para onde Kree estava, junto do fogão. Ela se ajoelhou e colocou Filli, trêmulo e assustado, ao lado dele para se aquecer. Lief e Barda levaram as gaiolas com as aranhas imóveis para junto dela e voltaram para perto de Penn, tentando endireitar as pernas que não paravam de tremer.

— E então? — perguntou o Flautista. Mesmo cansado como estava, Lief conseguiu ficar surpreso com o som de sua voz — macia, forte e doce como mel.

Penn cruzou os dedos e começou a falar como se apresentasse um relatório.

— Eles podem ser altos e corajosos, têm armas de aço, mas na água os homens, Lief e Barda, são tão desamparados quanto bebês recém-nascidos. E a mulher, Jasmine, não sabe nadar. Eles não teriam condições de pegar os Arachs de surpresa ou de afugentá-los.

Penn se voltou para o Flautista.

— Fiz tudo que me pediu, e isso me custou caro — ela murmurou. — Mas você deve abandonar as esperanças.

O Flautista fechou os olhos como se sentisse dor.

— Você contou a eles a minha opinião, Penn? — ele perguntou devagar.

Lief e Barda olharam um para o outro e depois para Penn. Do que estavam falando?

— Não — Penn respondeu depois de hesitar. — Quando vi que não sabiam nadar, achei que não havia necessidade de atormentá-los ainda mais.

— Pois conte agora — o Flautista ordenou. Penn moveu-se inquieta.

— O Flautista acredita que, se vocês pudessem chegar até o domo, o bocal da Flauta de Pirra permitiria que entrassem — ela disse, sem olhar para Lief ou Barda. — Ele acha que a haste da Flauta, que está lá dentro, atrairia o bocal através da barreira mágica. O Flautista tinha esperanças de que...

— Eu tinha muitas esperanças — disse o Flautista abrindo os olhos e observando Penn com frieza. — Parece que elas não serviram para nada.

Mas Lief tinha agarrado o braço de Barda. E Jasmine se levantara de um salto, e correra para o lado deles, o rosto iluminado pela esperança.

— Por que não nos disse isso antes, Penn? — ela perguntou. — Se nós conseguirmos entrar no domo, poderemos...

— Vocês não podem chegar até o domo! — Penn gritou. — Vocês viram os Arachs! E existem muitos mais. As teias deles cercam as águas de seu território. Eles sentem a sua presença no momento em que você entra e toca uma teia.

— Deve haver um jeito — Barda resmungou. — Sempre existe...

— Não existe jeito nenhum! — Penn gritou novamente, o olhar em fogo. — De barco, se fôssemos loucos e déssemos um a vocês, não durariam mais que alguns minutos. Para ter alguma esperança de chegar até o domo, vocês precisariam nadar até lá por baixo da água e das teias, coisa que não sabem fazer. Nada é mais certo do que isso.

— As enguias! — Jasmine exclamou. — Elas podem nos rebocar por debaixo das teias. Nós podemos prender a respiração durante esse tempo. Elas nadam muito depressa e...

Penn suspirou. O Flautista mostrou um leve sorriso.

— Poderia dar certo — ele admitiu — se as enguias pudessem ser convencidas a entrar no território dos Arachs. Mas é impossível. Já tentamos isso várias vezes. Elas não vão obedecer.

Ele balançou a cabeça desgostoso.

— Sabíamos que vocês não poderiam nadar como nós — ele murmurou. — Está escrito que Doran não conseguiu derrotar nem mesmo nossas crianças numa corrida. Mas nunca pensamos numa tal fraqueza!

Ele olhou para Jasmine.

— E um de vocês nem sabe nadar! É inacreditável!

— Eu cresci numa floresta, em que a única água existente vinha de um córrego muito raso — Jasmine respondeu irritada e cansada de ser criticada por algo de que não era culpada. — Como eu poderia aprender a nadar? Da mesma forma, você não poderia aprender a subir numa árvore, Flautista. Ou Penn aprender a balançar num cipó!

Lief deixou escapar uma exclamação. Jasmine voltou-se para ele mal-humorada.

— Não importa o que vai dizer, Lief — ela reclamou. — Boas maneiras podem combinar com você, mas não combinam comigo. Não vou mais ser bem-educada com essas pessoas.

Mas Lief parecia muito entusiasmado.

— Jasmine, você encontrou a solução! — ele exclamou. — Você não percebe? Você nos disse exatamente o que precisamos fazer.

 

Lief explicou rapidamente o plano que lhe viera à cabeça.

— Entenderam? — ele terminou com ar triunfante. — Não vamos usar nossas fraquezas, mas sim nossos pontos fortes.

— É incrível! — o Flautista exclamou, os olhos brilhando. — Nunca teria imaginado que tal coisa fosse possível.

— Não estou surpreso. Essa é a idéia mais absurda que já ouvi — Barda resmungou.

— Pode ser feito — Lief insistiu.

— Podemos tentar. Acho que vale a pena — Jasmine concordou. — A menos, é claro — ela acrescentou secamente —, que o Flautista esteja enganado e que o bocal da Flauta de Pirra não abra as portas do domo para nós.

Penn cobriu o rosto com as mãos. O Flautista segurou-lhe o braço.

— Você não pode fraquejar agora, Penn — Lief o escutou murmurando. — Eles podem fazer o que não podemos. Eles podem ser a nossa salvação!

Ele se voltou para Lief, o rosto duro e velho mostrando uma expressão suave que Lief não tinha visto antes.

— Vamos lhes dar toda a ajuda que pudermos — ele garantiu. — Se vocês conseguirem a haste da Flauta de Pirra, poderão ficar com ela enquanto precisarem. Tudo o que pedimos em troca é que se esforcem ao máximo para convencer os moradores do domo a devolverem a luz às cavernas.

Poderão ficar com ela enquanto precisarem...

“Essas palavras foram escolhidas com cuidado, Flautista”, pensou Lief, analisando seu semblante frio. “Sei que você fala a verdade. Mas por quanto tempo vamos precisar da haste depois que ela estiver fora do domo? Depois que ela estiver onde você puder pegá-la? Ninguém precisa de nada depois de morto. É esse o seu plano?”

Lief olhou para Penn, que estava de cabeça baixa. “O Flautista mandou que ela fizesse amizade conosco para que quiséssemos ajudar o seu povo também. E ela conseguiu o seu objetivo, apesar de tudo.”

Penn não tinha obedecido às suas ordens de boa vontade, isso ficou bem claro desde o início. Talvez ela achasse impossível entrar no domo com a ajuda do bocal da Flauta e teve medo de encorajar os visitantes a irem de encontro à morte.

Ou, talvez, Penn soubesse muito bem que eles seriam traídos depois de conseguir a haste.

— Por favor, não se culpe pela decisão que tomamos, Penn — ele disse em voz alta. — Só estamos fazendo o que é necessário.

Penn não ergueu a cabeça.

— Então, vocês aceitam os nossos termos? — o Flautista perguntou.

— Vamos fazer tudo que pudermos para ajudar vocês depois que entrarmos no domo. Não podemos garantir que teremos sucesso, mas juro que vou implorar aos seus moradores que devolvam a sua luz com o mesmo entusiasmo com que vou implorar pela haste da Flauta de Pirra.

O Flautista curvou a cabeça.

— Isso é tudo que peço a vocês — murmurou. Ele permaneceu em profundo silêncio por alguns momentos como se estivesse profundamente comovido. Então, ergueu os olhos, a expressão calma outra vez.

— Vocês precisam secar suas roupas e descansar — ele disse. — Vou mandar preparar um barco. Penn? Um momento, por favor.

Penn saiu apressada atrás dele quando este se dirigiu à porta. Do lado de fora, eles conversaram em voz baixa.

— Esse Flautista me deixa ansioso — disse Barda, indo até o fogão para aquecer as mãos frias. — Ele me faz lembrar de pessoas que conheci no palácio, nos velhos tempos. Ele é do tipo conspirador e está convencendo Penn a fazer o que ele quer.

— Acho que ele está nos usando para conseguir a haste da Flauta para si mesmo — disse Lief. — A magia dos moradores das balsas que, por direito, deve pertencer a todo o povo de Pirra, está presa dentro do domo. Mas a haste da Flauta tem o seu próprio poder... um poder que poderia iluminar as cavernas e muito mais.

Barda concordou com um gesto de cabeça.

— Acho que o Flautista pensa que o destino nos trouxe até aqui como antes trouxe Doran, quando ele era muito necessário.

— Eu concordo, mas... — Jasmine começou séria e pensativa — por que se incomodar em nos enganar quando certamente existe uma forma mais simples de obter essa magia? Por que não pegar a parte da Flauta que já temos?

Lief ergueu a mão quase sem querer e segurou o pedaço de madeira arredondada que estava debaixo de sua camisa.

— Desconfio de que a parte da Flauta de Pirra que pertence aos Plumes não tenha utilidade para os Aurons — ele disse. — Eles não se interessaram por ela e parece que o seu poder não os afeta. No entanto, quando nos aproximamos do domo e a parte da Flauta de Auron estava por perto, Penn ficou tão abalada quanto nós.

Cansado, ele tirou o casaco ensopado e se deixou cair ao lado de Kree.

— Precisamos fingir que confiamos neles, pelos menos por ora — ele murmurou. — Precisamos da ajuda deles. A nossa primeira tarefa deve ser recuperar a haste da Flauta. Pensaremos no futuro depois.

Penn logo voltou ao quarto carregada de pacotes e cestos. O seu rosto estava tenso, os lábios exibiam um sorriso forçado.

Aqui estão alguns tapetes para aquecê-los enquanto descansam — ela falou. — E pão fresquinho e empadas de peixe. Acho que estão com fome.

Ela colocou um cesto de pãezinhos salpicados e uma tigela fumegante com algo que parecia almôndegas verdes. Os companheiros se deram conta de que estavam famintos e se serviram.

Eles comeram com prazer. O pão tinha gosto de mar, mas estava quente e crocante. As empadas tinham um sabor delicado e derretiam na boca.

— Essa refeição está melhor do que a sopa? — Penn perguntou.

— Muito melhor — Barda concordou de boca cheia.

O sorriso de Penn tornou-se um pouco mais espontâneo.

— Está escrito que Doran também gostava das empadas — ela contou. — Elas são feitas em dias de festa. O Flautista mandou que fossem preparadas em sua honra. Fico feliz que possam prová-las agora, antes de...

Ela parou de falar e se retirou.

Lief, Barda e Jasmine olharam um para o outro, a comida deliciosa repentinamente seca em suas bocas. Estava claro que Penn acreditava que as empadas seriam a sua última refeição.

Enquanto isso, em Del, Sharn e Marilen observavam o pequeno corpo deitado na cama. Carregar Jinks de volta para o quarto tinha sido uma tarefa desagradável, mas elas tinham concordado que era necessária.

— Somente nós sabemos que ele não estava doente como dizia — tornou Sharn, cobrindo o rosto horrível com um lençol. — As pessoas vão pensar que ele morreu por causa dos ferimentos.

— É possível que o envenenador adivinhe a verdade — Marilen deduziu. — E agora precisamos tentar descobrir quem pode ser essa pessoa. Alguém que sabe que estou aqui e que, de alguma forma, descobriu quem sou. E que teve a oportunidade de envenenar a minha comida. A cozinheira, Amarantz...

— Amarantz não sabe que você existe! — Sharn interrompeu. — Ela pensa que as bandejas de comida são para um velho empregado do palácio que não consegue mais descer e subir escadas. E, de qualquer forma, eu confiaria a minha vida a ela. Ela nunca serviria ao Senhor das Sombras.

Marilen não pareceu muito convencida, mas acabou concordando.

— Então deve ser um dos guardas deste andar ou da biblioteca — ela suspeitou. — Os guardas devem saber que sou uma visitante especial e secreta, já que nunca desço.

— Mas eles também não descem, Marilen — Sharn lembrou, o coração apertado ao perceber como eram poucos os suspeitos. — Barda não quis arriscar que eles ficassem ouvindo boatos ou fossem drogados, como aconteceu uma vez. Eles fazem as refeições e dormem neste andar.

Marilen balançou a cabeça frustrada.

— Então quem pode ser o espião? Perdição trouxe a bandeja para mim, mas ele não é um suspeito. E Josef também não, é verdade, se bem que... — ela continuou, franzindo o cenho.

— O quê? Conte-me — Sharn ordenou.

— Josef estava... diferente na biblioteca, hoje de manhã. — Marilen disse hesitante. — Ele parecia zangado e ansioso. Ele saiu às pressas e disse a Ranesh que o encontrasse na cozinha para discutir um assunto importante. Ele nunca agiu assim antes.

Sharn hesitou diante dos pensamentos desagradáveis que tomaram conta da sua mente.

— Marilen — ela disse, afinal — Não me entenda mal, mas preciso saber. Você e Ranesh se tornaram... bons amigos. É possível que você tenha dado a ele alguma pista do motivo de sua presença aqui?

Marilen corou até a raiz dos cabelos.

— Não, de jeito nenhum! — ela gritou zangada. — Ranesh sabe que sou de Tora, é verdade, mas qualquer pessoa que olhar para mim pode adivinhar isso. Ele nunca perguntou por que estou aqui ou o que vou fazer no futuro, e eu nunca lhe disse. — Ela ergueu o queixo numa atitude de desafio. — Tenho todos os motivos do mundo para não contar.

Ao ouvir essas últimas palavras, Sharn contemplou os olhos magoados e preocupados da garota e soube que ela tinha dito a verdade. Ela suspirou, o coração pesado.

— Sinto ter magoado você, Marilen, mas precisamos enfrentar a verdade. De todos os suspeitos, Ranesh e Josef são os únicos que sabem que você está aqui e que também estavam na cozinha quando a sua bandeja estava sendo preparada.

— Então, por mais difícil que seja acreditar, Josef deve ser o culpado — Marilen concluiu com tristeza.

— Não pode ser Josef, Marilen.

— Por que não? — Marilen retrucou, fazendo Sharn se lembrar de Jasmine. — Por que ele é velho e frágil? Por que ele diz que salvou Os Anais de Deltora? Sem dúvida, nós aqui em Deltora já aprendemos que a maldade pode usar uma máscara enganadora.

“De fato”, pensou Sharn, enquanto saíam do quarto do morto, trancando a porta. “Mas receio, Marilen, que essa seja uma lição que o seu coração a fez esquecer.”

Quando viraram na direção das escadarias, elas viram um dos guardas da biblioteca correndo na direção delas. Ele trazia um papel dobrado e lacrado numa das mãos.

— O que você está fazendo fora de seu posto, Follin? — Sharn perguntou bruscamente.

— Estou no meu intervalo de descanso, senhora — ele explicou. E colocou o papel na mão de Sharn com uma expressão de alívio.

— O velho senhor, o bibliotecário, me deu isso logo depois que a senhora saiu da biblioteca com a jovem — ele contou, inclinando-se distraidamente na direção de Marilen. — Ele disse que tinha de ser entregue com urgência.

Marilen congelou.

— Uma mensagem de Josef? — Sharn disse em voz baixa.

— Ele insistiu muito para que eu a entregasse logo. Mas, como eu lhe disse várias vezes, não podia deixar o posto até que o meu substituto chegasse. Essas foram as ordens, senhora.

Ele olhou para Sharn ansioso, claramente preocupado, sem saber se tinha tomado a decisão certa.

— Está tudo certo, Follin — Sharn o tranqüilizou, forçando um sorriso. — Obrigada. Vá descansar. Você mereceu.

O guarda curvou-se desajeitado, virou-se e saiu correndo. Com os dedos frios e rígidos, Sharn quebrou o lacre do bilhete e o desdobrou.

 

Senhora,

Quando a vi na biblioteca, há pouco, tão gentil e corajosa, percebi que não podia mais ficar em silêncio. Estou seriamente preocupado. Preciso falar com a senhora imediatamente. Não demore, eu lhe peço.

Seu criado, Josef

 

O coração de Sharn batia dolorosamente em seu peito enquanto corria escadas acima até a biblioteca. Ela tinha medo do que Josef tinha para lhe contar.

Marilen a seguia de perto. Ela também tinha lido o bilhete e não quis saber de ser deixada para trás.

— Pode ser uma armadilha, Sharn — ela disse determinada. — Você não pode ir sozinha. De qualquer modo, quero ficar frente a frente com ele.

Não havia como evitar. O que quer que Josef tivesse a dizer teria de ser dito na frente das duas.

“E talvez seja melhor assim”, Sharn pensou desesperada.

Ela encontrou Josef rondando as portas da biblioteca, esperando por ela sob o olhar sério dos guardas que estavam de serviço. O rosto do velho mostrou alívio quando viu Sharn se aproximando. E, ao ver Marilen, lágrimas lhe saltaram aos olhos. Ele pareceu não notar a frieza com que a moça recebeu seu cumprimento.

— Dei uma tarefa a Ranesh do outro lado da biblioteca — ele sussurrou, conduzindo as duas mulheres pelo aposento grande e silencioso. — Achei melhor que ele não nos ouvisse.

Josef as levou para o seu pequeno quarto e fechou a porta. Suas mãos tremiam quando ele se virou para elas. Estava claro que, agora que o momento chegara, ele não sabia por onde começar.

— O que está preocupando você, Josef? — Sharn perguntou com calma, embora os seus pensamentos a deixassem amedrontada.

Os lábios de Josef tremeram. Ele respirou fundo e então disse a última coisa que Sharn esperava ouvir.

— Traí a confiança que tinha em mim — ele murmurou. — Deixei que a piedade por uma velha amiga e protetora tomasse conta de mim. E, ao fazer isso, cometi um grande erro — ele contou, curvando a cabeça aflito.

— Mas, Josef, o que você quer dizer? — Sharn exclamou consciente de que Marilen estava muito agitada ao seu lado.

— Eu só queria consolar a pobre Amarantz. Dizer a ela que Lief voltaria ao palácio — ele sussurrou. — Assim, escrevi na lousa que não havia dúvidas de que ele voltaria, que ele tinha de voltar porque a sua noiva de Tora estava aqui.

Marilen deixou escapar um som abafado.

— O que? — Sharn quase engasgou, segurando o braço de Marilen. De repente, os olhos de Josef se encheram de lágrimas.

— A mensagem era apenas para Amarantz — ele disse com dificuldade — mas então, de repente, Lindai, aquela mulher careca e gigantesca entrou na cozinha com Jinks. É possível que eles tenham visto a mensagem. Eu acho que eles a leram.

— Ranesh também estava na cozinha, não é, Josef? — Sharn indagou depressa.

— Ranesh? — O rosto de Marilen ficou vermelho. Josef pareceu confuso e assustado.

— Não culpe Ranesh por encobrir o que fiz, senhora — ele pediu. — Ranesh não sabe nada sobre isso! Eu já tinha apagado a lousa quando ele chegou e eu não lhe contei nada depois. Eu fiquei muito envergonhado e tive medo de que ficasse zangado por ter traído o nosso precioso segredo.

Josef curvou a cabeça com humildade.

— É imperdoável — ele murmurou. — O próprio Lief deixou lady Marilen aos nossos cuidados. É claro que ele não disse quem ela era, mas havia boatos no palácio de que ele tinha ido até Tora em busca de uma noiva e, naturalmente, quando Ranesh e eu a conhecemos, somamos dois mais dois.

— Naturalmente! — A cabeça de Sharn girava. Boatos no palácio. Claro! Como puderam se esquecer disso?

O rubor tinha desaparecido do rosto de Marilen, deixando uma palidez mortal em seu lugar.

— Vou para o meu quarto — ela disse para Sharn. — Acho que você sabe que tenho algumas coisas para arrumar.

Ela curvou-se de leve para Josef e deixou a biblioteca andando muito depressa.

Angustiado, Josef a seguiu com os olhos.

— Será que ela vai fugir... voltar para Tora? — ele sussurrou.

— Talvez — Sharn respondeu devagar. — Ela levou um grande susto.

— Ah, eu daria qualquer coisa para apagar o que fiz — Josef gemeu. — Fiquei aflito e com muito medo de que algum mal acontecesse a ela. Mas isso, pelo menos, não aconteceu.

Sharn, ocupada demais com os seus pensamentos, não respondeu.

— Estou pronto para partir — Josef acrescentou com tristeza. Sharn olhou para Josef. Ele estava parado diante dela com uma pequena trouxa debaixo do braço. Pela primeira vez, percebeu que ele tinha tirado todos os objetos pessoais do quarto.

— Josef... — ela começou.

— Se acha que tenho condições de não me envergonhar outra vez, gostaria de voltar para a minha velha casa — ele murmurou. — Prefiro isso a ir para a masmorra, embora as duas não sejam muito diferentes. Mas eu farei qualquer coisa que a senhora...

— Josef, não diga bobagens! — Sharn disse em voz alta. — Não há motivo para você ir embora.

Josef olhou para ela sem acreditar.

— Não discuta! — Sharn repetiu. — Você cometeu um erro, é verdade, mas todos temos o direito a um engano, não é mesmo?

— Os resultados desse meu... engano... poderiam ser graves — Josef disse, os lábios trêmulos. — Esse homem, Jinks... não acho que ele seja de confiança. E Lindai...

— Jinks está morto — Sharn informou bruscamente. — Lindai está com Perdição. Só há uma pessoa que preciso ver para acertar isso.

Sharn saiu apressada do quarto, deixando Josef estático e boquiaberto.

Sharn chegou à porta da cozinha ofegante. Ela ficou ali, por um momento, a mão na maçaneta, tentando se acalmar. Então, para sua surpresa, ela ouviu a voz abafada de Amarantz dizendo o seu próprio nome.

— Sharn está no andar de cima, mas vai voltar a qualquer momento. Esperem por ela aqui, por favor. E experimentem um ou dois destes aqui. É uma receita nova. Vocês certamente estão com fome depois dessa longa viagem.

— Estamos, sim — respondeu outra voz — uma voz que Sharn conhecia muito bem. — Eu poderia comer o meu cavalo se não precisasse dele para puxar a carroça. Venha, menina!

Ouviu-se um forte arrastar de cadeiras.

Sharn escancarou a porta, rapidamente observando a cena. Duas figuras enormes estavam sentadas à mesa. Uma delas era Steven, amigo de Perdição, o estranho comerciante das Planícies que tinha sido um ótimo e poderoso aliado nos tempos do Senhor das Sombras. A outra... era Lindai!

E, ao lado deles, estava o próprio Perdição, tirando o casaco com um gesto de cansaço. Mas Sharn não tinha tempo nem condições para pensar nos motivos da volta de Perdição ou por que Steven estava com eles. O seu olhar estava preso no prato para o qual todos estendiam a mão: um prato cheio de pequenos bolos dourados envoltos em papel prateado.

— Não!

Sharn correu para a mesa. Enquanto o grupo gritava assustado, ela empurrou o prato para longe deles, derrubando-o no chão e fazendo com que os bolinhos se espalhassem no chão de pedra.

Amarantz, o rosto pálido como papel, caiu de joelhos, apanhando-os.

— Sharn! O que foi? — bradou Perdição assustado e quase zangado.

Sharn não conseguiu responder. Ela estava ofegante, tonta e aliviada. Se tivesse chegado um minuto mais tarde...

Ela se apoiou na borda da mesa e olhou a velha mulher que engatinhava no chão da cozinha.

Os olhos de Amarantz encontraram os dela. E, de repente, pareceu a ela que algo mais a observava por detrás daqueles conhecidos olhos azuis. Algo estranho, dissimulado e perverso.

Um calafrio percorreu o corpo de Sharn e ela recuou trêmula.

Então, Amarantz soltou um riso terrível.

— Idiotas! — ela gargalhou. — Vocês não sabem que nunca vão me derrotar?

Praguejando, Perdição ergueu-se derrubando a cadeira. Steven levantou-se mais devagar, agarrando a ponta da mesa. Os músculos de seus braços e do pescoço se enrijeceram como se estivesse erguendo um grande peso. Todo o seu corpo tremia. A cor de seus olhos mudava de dourado para castanho enquanto Nevets, o irmão selvagem que carregava dentro dele, lutava para se libertar.

— Não! — Lindai mandou, colocando a mão enorme em seu ombro. — Nevets, não precisamos de você aqui. Volte!

O terrível tremor se acalmou e parou.

Agachada como um sapo e com os ombros erguidos, Amarantz os observava.

— Seria uma alegria ver você seguir o mesmo caminho da pobre noivinha, Perdição — ela grunhiu. — E os seus amigos, esses monstros da natureza, também. Mas esse corpo fraco já está acabado. Eu vou ver você numa outra oportunidade, Perdição, em outro lugar. Ela colocou o punho fechado na boca.

— Não deixem... — Sharn começou ansiosa. Compreendendo o que acontecia, Perdição saltou na direção dela.

Mas era tarde demais. O bolo envenenado já estava na boca da velha mulher que o engolia inteiro.

— Logo estaremos em todos os lugares! — ela sussurrou. — Muito em breve...

O rosto dela mudou, ela revirou os olhos. Com um grito terrível, ela agarrou o estômago e caiu de lado, dando chutes, a cabeça batendo nas pedras de modo assustador.

Enquanto Perdição, Lindai e Steven ficavam parados, paralisados de horror, Sharn correu até Amarantz. Ela não conseguiu evitar, pois aquela era Amarantz, sua amiga da juventude, possuída por alguma força maligna. Ela não podia deixar que morresse sozinha daquela forma horrível.

Ela tomou o corpo agitado nos braços e segurou-o com força. Durante um longo momento, nada aconteceu. Então, de repente, os olhos dela voltaram ao normal. A mulher olhou vagamente para Sharn e depois fixou o olhar em seu rosto.

— Estou aqui, Amarantz — Sharn sussurrou.

— Sharn? — ela indagou, parecendo confusa. — Ah, Sharn, tive um sonho terrível.

Sharn concordou com os olhos cheios de lágrimas e acariciou a testa molhada.

— Sonhei que os Guardas Cinzentos foram à olaria e prenderam todo mundo — a velha mulher murmurou. — E eu... — Ela arregalou os olhos, de repente, aterrorizada.

— Não tenha mais medo, Amarantz — Sharn a tranqüilizou. — O pesadelo acabou.

— Sim. — A paz voltou aos olhos enevoados, e os lábios se curvaram num leve sorriso. E ela parou de respirar. Para Amarantz, o pesadelo realmente tinha terminado, afinal.

— Por que ela falou da “pobre noivinha”? — Perdição indagou ansioso.

— Ela pensou ter envenenado Marilen, mas estava enganada -Sharn explicou.

Sharn deitou a cabeça da velha mulher no chão com cuidado e afastou os cabelos grisalhos do rosto manchado de sangue. Então ela pensou ter visto algo se mover no cabelo que se espalhava pelo chão. As lágrimas não a deixavam enxergar bem. Ela as limpou, olhou novamente e recuou violentamente, soltando um grito de horror.

Um longo verme cinzento com a cabeça vermelha saía do ouvido de Amarantz. Ele deslizou pelo chão da cozinha deixando um rastro de uma substância viscosa por onde passava, enquanto a sua cauda se agitava furiosa.

 

Com o rosto retorcido pelo nojo, Perdição se adiantou e pisou no verme maligno, esmagando-o contra as pedras.

— O que era isso? — Lindal gritou.

— Uma nova criação da maldade do Senhor das Sombras — Perdição balbuciou. — Parece que Amarantz foi levada às Terras das Sombras e, em algum momento, talvez há pouco tempo, essa coisa horrível foi colocada em seu cérebro e ela foi mandada de volta.

Ele contemplou o corpo encolhido de Amarantz.

— Pelo menos agora entendemos o que aconteceu aqui — ele disse. — Por que somos atormentados por assassinos e espiões que antes eram boas pessoas.

Seguiu-se um silêncio breve e assustador. Um pensamento tomou conta de todos.

— Pode haver milhares deles — Lindai disse de repente, finalmente revelando o que pensava.

— Não. — O rosto de Perdição estava sério. — Ela disse: “Logo estaremos em todos os lugares.” Por algum motivo, a invasão ainda não começou.

— Talvez porque o processo ainda não seja perfeito — Sharn deduziu, controlando o tremor da voz com dificuldade. — Ele causa... danos.

Quando os seus companheiros a observaram confusos, ela respirou fundo.

— Vocês não perceberam? — ela disse. — Amarantz disse que ficou surda por ter sido surrada, mas isso era mentira. No final, quando ela recuperou a consciência e o verme deixou o seu corpo, porque sabia que ela ia morrer, ela conseguiu me ouvir perfeitamente. Além de controlar a sua mente, o verme também bloqueou a sua audição.

— É mesmo! — Perdição concordou. — E isso explica muitas coisas. A mulher tagarela com a faca, o velho guarda que não podia andar...

— E, claro, o homem chamado Pieter, que colocou o escorpião no quarto de Lief e que era atormentado por dores de cabeça terríveis. — Sharn exclamou. — Ele foi outra experiência imperfeita.

De repente, ela não suportou aquele horror e cobriu os olhos com as mãos.

— Não há dúvidas de que o Senhor das Sombras está tentando corrigir as falhas desse processo — Lindai murmurou. — E quando ele ficar satisfeito...

— Garota, você é tão pessimista quanto Nevets! — Steven resmungou. — Você está tentando fazer com que a gente perca as esperanças? Acho que você tem um verme nesse seu crânio pintado!

— A única coisa que me dá dor de cabeça é você, Steven — Lindai respondeu. — Eu só estou sendo realista. O Senhor das Sombras...

Ela parou de falar quando a porta da cozinha foi aberta com violência. Marilen entrou, a cabeça erguida, o rosto vermelho. Os seus olhos desafiadores se arregalaram quando ela viu Perdição, dois estranhos e o corpo de Amarantz no chão, mas ela não hesitou. Ignorando todo mundo, ela se dirigiu diretamente a Sharn.

— Por favor, não culpe os guardas por eu estar aqui. Eles não têm ordens de me impedir e todos vocês confiaram em que eu obedeceria a essa recomendação. Pois bem, estou cansada de ser obediente.

— Marilen... — Sharn começou atônita. Mas Marilen não tinha terminado.

— Vim para dizer que, não importa o que pensem, tenho certeza de que Ranesh não tem culpa de nada — ela disse em alto e bom som.

— Além disso, que decidi ficar aqui, não importa o que aconteça no futuro. Mas não vou mais me esconder no andar superior sem saber o que acontece no palácio.

Lindai soltou um riso zombeteiro.

— É esta a “pobre noivinha”? — ela sussurrou para Steven. — Parece que ela ficou bem fortinha.

Marilen corou ainda mais, mas virou a cabeça na direção de Perdição.

— Se alguma coisa me acontecer, você ou Lief não serão considerados culpados — ela afirmou. — Esta decisão é minha e de mais ninguém.

— Não cabe a você tomar essa decisão, Marilen — Perdição retrucou com seriedade. — Não é apenas o seu pai que teme por sua segurança.

Marilen encontrou o seu olhar sem hesitar.

— A decisão é minha, Perdição — ela disse. — Não vou mais ser uma prisioneira, e ponto final! — Ela olhou para Steven, Lindai e de novo para Perdição. — Discuta o assunto com o meu pai, se quiser — ela acrescentou, com um ar de triunfo. — Ele e Zeean estão vindo para Del.

Sharn abafou uma exclamação. Steven e Lindai a contemplaram curiosos.

— A carta chegou nesta manhã — Marilen informou. — Eu deveria tê-la lido imediatamente, mas algo aconteceu que desviou minha atenção — ela disse, olhando para Steven e Lindai. — Zeean e meu pai vão chegar dentro de um ou dois dias.

— Bem, fico contente por ter voltado a tempo de cumprimentá-los

— Perdição retrucou, a expressão imperturbável.

— Perdição, por que você voltou? — perguntou Sharn de repente, dando-se conta do fato.

— Lief e Barda não estão mais nas colinas — ele informou. — Eles seguiram Jasmine até as cavernas subterrâneas.

Sharn olhou para ele, num misto de alegria e preocupação:

— Jinks estava mentindo?

— É claro! — Marilen tornou com calma. — Eu não lhe disse?

— As abelhas de minha mãe nos trouxeram as notícias — Steven ajuntou. — A história demorou a se espalhar entre elas, pois começou com os pássaros tecelões das Colinas. Eu não entendia nada, pois imaginava que Lief estivesse em Tora. Só descobri o que estava acontecendo quando encontrei Perdição e Lindai na estrada.

— Nos subterrâneos... — Sharn balançou a cabeça. — Então Jasmine está mesmo tentando encontrar o caminho secreto para as Terras das Sombras. E Lief, e Barda estão com ela?

— Parece que sim — Steven confirmou.

— Mas, Perdição, você precisa ir atrás deles! — Sharn gritou. — Precisa impedi-los. Eles não podem salvar os prisioneiros sozinhos. Lief vai acabar se entregando nas mãos do Senhor das Sombras, juntamente com o Cinturão de Deltora.

— O Cinturão não pode ser levado para fora das fronteiras de Deltora — Perdição informou. — E Lief também sabe disso.

Sharn olhou para ele sem entender por que estava tão calmo,

— Mas e a Flauta de Pirra? Lief tinha certeza de que era a única forma de derrotar o Senhor das Sombras no próprio território.

— Talvez Lief saiba de alguma coisa que desconhecemos — Marilen murmurou.

— Talvez... — Perdição concordou. Pensativo, ele olhou para a moça por um momento e então se dirigiu a Sharn. — Voltar para Del não foi uma decisão fácil, Sharn — ele disse com delicadeza. — Os meus instintos me diziam para continuar. Mas, então, me ocorreu que foram Lief, Barda e Jasmine que restauraram o Cinturão de Deltora sozinhos, sem nossa ajuda ou proteção.

Os olhos de Sharn estavam cheios de lágrimas.

— Você está dizendo que devemos confiar neles?

— Estou dizendo que precisamos confiar neles. Nossa tarefa, nosso lugar é aqui, principalmente agora. O que podemos fazer é ter fé e desejar que tudo corra bem para Lief, Barda e Jasmine, estejam onde estiverem.

Lief, Barda e Jasmine estavam num lugar distante, enfrentando um desafio que nem mesmo Perdição poderia ter imaginado. Eles estavam seguindo o plano de Lief. Nesse momento, escalavam as paredes da caverna que se erguiam ao lado do domo de Auron.

Um dos velhos barcos remendados dos moradores das balsas flutuava abaixo deles. O próprio Flautista assistia à cena da popa. Penn estava postada ao lado dele, olhando para cima ansiosa. Aos seus pés, o que restava de um grande rolo de corda, que diminuía à medida que os três companheiros avançavam na perigosa subida.

— Há cada vez menos apoio para as mãos — Barda disse ofegante, alçando-se para outra saliência.

— Você pode parar agora. Já estamos acima da altura do domo — informou Jasmine, que escalava agilmente acima dele, a corda pendurada atrás de si. — Vou subir mais um pouco e prender a corda.

Ela continuou a escalar na direção da ponta de uma rocha que se projetava bem acima deles, onde a parede da caverna se curvava para encontrar o teto.

Colado à rocha, ao lado de Barda, Lief olhou para baixo. Bem abaixo, ligeiramente à sua direita, o bote, pequeno como um brinquedo, oscilava perto da faixa de algas. Agora a corda pendia solta do penhasco, a ponta em nó oscilando e subindo lentamente à medida que Jasmine avançava.

E, erguendo-se diante dele, surgindo das águas paradas e leitosas, estava o contorno arredondado do domo levemente cintilante. Alguns Arachs arrastavam-se na sujeira amontoada em sua base, alimentando-se, tecendo, vigiando.

A música da Flauta de Pirra soou nos ouvidos de Lief. Ele fechou os olhos e tentou expulsá-la.

— Muito bem. Eu a prendi o melhor que pude — Jasmine avisou do alto.

Lief olhou para cima e através da penumbra pôde ver que Jasmine tirara a corda da cintura, enrolara-a ao redor da ponta do penhasco e a tinha amarrado com firmeza.

Ela testou a corda puxando-a com força. E então, sem demonstrar medo, ela se inclinou para trás, curvou o corpo para que os pés tocassem a parede de pedra e começou a descida, a corda deslizando entre suas mãos.

Ela rapidamente chegou à saliência onde estavam Lief e Barda.

— Prontos? — ela perguntou tranqüila.

Barda puxou a corda e a segurou com firmeza.

— Prometa, Lief, que, se isso não der certo, você vai descer até as balsas e voltar para Del, do jeito que puder — ele murmurou. — Não podemos arriscar...

— Vai dar certo se seguirmos o plano de Lief — Jasmine garantiu. — Tenho certeza de que a corda é bastante comprida e está bem presa. O mais importante é dar um impulso bem forte para que possamos nos afastar do penhasco o máximo possível e balançar depressa para atravessar a distância que nos separa do domo. E quando eu disser “pule”, Barda, você deve pular. Vamos!

Barda cerrou os dentes.

— E se eu aterrissar no alto do domo em segurança, mas não tiver onde me segurar? — ele quis saber.

— Então você vai escorregar até a base e lutar com os Arachs — Jasmine respondeu com calma. — Do contrário, você vai apenas esperar que eu volte com Lief.

Não havia mais nada que Barda pudesse dizer. Com um gesto preocupado, ele segurou a corda com mais força e curvou um joelho para que a sola da bota ficasse posicionada com firmeza no rochedo. Então, ao contarem até três, ele e Jasmine se lançaram no espaço.

Lief prendeu a respiração quando os amigos formaram um grande arco no ar, duas figuras pequenas na ponta da corda que parecia extremamente frágil. O tempo pareceu parar. O mar leitoso ondulava abaixo deles. O contorno de seus corpos formava uma linha escura em contraste com o brilho fosco do domo, balançando para cima... para cima...

— Agora! — Jasmine gritou e a sua voz formou um eco estranho. Agora... agora... agora...

Barda soltou a corda e atravessou o ar. Ele aterrissou de barriga no alto do domo. A sua superfície tremeu, mas não cedeu.

Jasmine já balançava de volta, o pequeno corpo voando na direção da parede com uma velocidade assustadora. Lief estava preparado para segurá-la e amortecer a sua queda para que ela não se machucasse no penhasco.

Em segundos, estava tudo terminado. Jasmine estava de volta à saliência, dando instruções. Lief tomava o lugar de Barda, agarrava a corda, pressionava um dos pés contra o penhasco e dava impulso ao seu corpo, ao sinal de Jasmine.

Assim, ele iniciou a travessia, o ar frio batendo em seu rosto, prestando atenção ao grito de Jasmine.

O domo era imenso e lhe enchia a vista. Ele se sentiu balançando para cima. O seu cérebro se encheu com a música da Flauta de Pirra. Alto, cada vez mais alto...

— Agora! — Jasmine gritou.

Lief soltou a corda. O seu corpo atravessou o vazio até o alto do domo. Os seus olhos perceberam as roupas de Jasmine ao seu lado, agitadas pelo vento, e Barda deitado imóvel sobre o domo, logo abaixo.

E então ele começou a cair. O brilho fraco do domo apressou-se a encontrá-lo, e uma névoa quente e trêmula o envolveu.

Lief não percebia nada além do som. Uma música doce e suave o invadiu e possuiu. Foi por puro instinto que procurou a mão de Jasmine e agarrou o ombro de Barda quando começou a deslizar através da névoa e a ser atraído pela magia da Flauta de Pirra para o interior do domo.

 

A grama sob os pés de Lief era macia como veludo. Acima de sua cabeça, havia um céu azul sem nuvens. Colinas arroxeadas cobriam o horizonte. O ar estava quente e perfumado pelas flores que cresciam ao lado de um riacho prateado e ondulante. As sombras sob as árvores estavam salpicadas pela luz do sol.

Pirra.

Os pássaros pareciam cantar esse nome. O córrego o balbuciava. As folhas o sussurravam, farfalhando na brisa delicada que parecia espalhar magia.

Lief sentiu mãos puxarem o seu braço e ouviu Jasmine chamá-lo de muito longe.

— Lief! Acorde! Estamos dentro do domo.

Como a água, o azul do céu tremeluzia de forma incerta, Como a água, As árvores oscilavam.

— Lief, atrás de você! Olhe! -A voz de Jasmine era aguda e insistente e não podia mais ser ignorada. Contra a vontade, Lief se virou.

Uma grande multidão observava os companheiros em silêncio. Uma delas, que usava o chapéu alto e engomado de um flautista, estava vestida de branco. Os demais usavam túnicas largas de cores claras e suaves. Muitas tinham flores nos cabelos. Elas eram parecidas com os Aurons das balsas, mas eram mais altas, as feições eram mais delicadas, e a pele tinha um tom bronzeado.

Atrás delas, erguendo-se bem acima das árvores mais altas, dando a impressão de estar quase tocando o céu, havia uma torre de vidro cintilante. Ela brilhava tanto sob a luz do sol que no início Lief viu somente uma grande coluna faiscante.

Então, quando a sua vista se acostumou com a claridade, ele percebeu que o objeto tinha uma forma: era uma grande estátua, a estátua de uma mulher de Pirra usando o mesmo chapéu de um flautista. Lief adivinhou que era Fair, que há muito tempo tocara músicas tão lindas que fazia as pessoas chorarem.

A longa túnica da estátua chegava até o chão, formando centenas de dobras de vidro brilhante e afiadas. Os seus olhos parados e serenos contemplavam sem ver as colinas arroxeadas. E, cravado no centro da chama branca, perfeita e intocável, estava a haste da Flauta de Pirra.

Lief a contemplou assombrado. Aquela imagem enorme não podia ter sido construída por mãos humanas. Ela só podia ter sido criada por magia.

— Não é de surpreender que estejamos aqui no centro da ilha, e não na extremidade como esperávamos — Barda murmurou. — O bocal da Flauta nos puxou para onde queria que estivéssemos.

— Nunca vamos conseguir escalar essa estátua. Vamos ser cortados em pedaços assim que tentarmos — Jasmine deduziu. — Você vai ter de convencer os moradores do domo a nos dar a haste de boa vontade, Lief. Eles parecem gentis. Acho que vão atender ao seu pedido.

Mas Lief estava em silêncio, lutando contra o desespero. Estava claro que a estátua tinha sido criada para proteger a haste da Flauta de qualquer perigo para sempre. Quem a construiu não daria o seu prêmio de livre vontade. Nunca.

— Olá, estranhos.

Lief olhou para baixo e tentou se concentrar na figura que estava parada diante dele. Era o homem vestido de branco. Seus braços estavam estendidos num gesto de boas-vindas. As pessoas atrás dele também estavam sorrindo, as túnicas ondulando como pétalas de flores agitadas por uma brisa suave.

— Eu sou Auris, o Flautista — ele se apresentou. — Não faço idéia do motivo que os trouxe à nossa terra, mas sei que deve ser algo digno e nobre, já que o mal não encontra lugar aqui. Em nome do povo, eu lhes dou as boas-vindas a Pirra.

Boas-vindas a Pirra?

Lief olhou para Barda e Jasmine. Ambos se esforçavam para demonstrar calma.

Auris esperava educadamente. Lief molhou os lábios. Por mais perdida que a situação parecesse, por mais certeza que ele tivesse de que os moradores do domo ficariam enraivecidos com o seu pedido, e certamente iriam se recusar a atendê-lo, ele tinha de tentar.

— Obrigado por nos receber, Flautista — ele começou com cuidado. — Eu sou Lief, rei de Deltora. Vim com os meus companheiros, Barda e Jasmine, para lhe pedir um favor.

O rosto do flautista ficou sério por um momento e pareceu a Lief que o ar doce e ensolarado estremecera.

Mas ele tornou a sorrir.

— Ah! — ele disse, curvando-se. — Claro, Deltora. O reino atrás das montanhas. Perdoe-me, majestade. Por um momento, o nome me fugiu da lembrança. Nós, de Pirra, não sentimos necessidade de viajar. Acho que vocês entendem bem o motivo.

Ele ergueu a mão num gesto elegante e mostrou a beleza que o cercava.

— De fato — Lief concordou, educado.

— Então quer nos pedir um favor? — Auris murmurou.

Lief respirou fundo, olhou para Jasmine e Barda mais uma vez, desejando que eles tivessem paciência, e mentalmente cruzou os dedos para ter sorte.

— Muitas pessoas de nosso povo são prisioneiras do Senhor das Sombras, que é nosso inimigo, assim como de vocês — disse ele com voz calma e suave. — A única coisa que pode salvá-las é a Flauta de Pirra. Sabemos que a haste está com vocês. Já temos o bocal, que nos foi emprestado de boa vontade pelos Plumes. Foi desse modo que conseguimos entrar no seu domo mágico para...

— Pare! — Os olhos do flautista ficaram embaçados. O povo atrás dele começou a se agitar nervosamente. E a luz... a luz tremia e se apagava...

— Não precisam ter medo de nós! — Lief exclamou depressa. — Não poderíamos tomar a haste pela força, mesmo que quiséssemos. Mas eu peço que escutem. Viemos de muito longe, atravessamos cavernas, enfrentamos perigos terríveis para encontrar a sua ilha.

Ouviu-se um leve ruído semelhante a trovões distantes. As árvores, a grama e as flores se agitaram e começaram a se inclinar como se as suas cores e formas estivessem se desmanchando e se misturando ao ar agitado.

Auris bateu palmas sobre a cabeça e fechou os olhos.

— Você está dizendo bobagens! As suas palavras não significam nada! — ele gritou. A respiração dele estava pesada ele se tornara muito pálido. A multidão atrás dele estava agitada como o mar num dia de tempestade.

— Não ouçam o que eles dizem! Eles são idiotas desorientados! — ele disse ofegante. — Não existem cavernas, perigos, ilha ou domo. Existe apenas Pirra, onde tudo é belo, tudo é pacífico, tudo é verdadeiro...

— Você é quem está dizendo bobagens, flautista! — Jasmine explodiu incapaz de continuar em silêncio. — Nada é verdadeiro neste lugar.

— Não! — Auris abriu os olhos, que pareciam querer explodir em suas órbitas. — Parem!

O som de trovões ficou mais alto. Lief olhou ao seu redor. Em todos os lugares, árvores, flores, grama e céu estavam tremendo e se dissolvendo. Tudo derretia e mudava...

Mas... aquela mudança não podia ser provocada apenas pela raiva do flautista. Aquilo era algo muito mais grave. Era como se...

Lief teve um pensamento terrível e um intenso calafrio percorreu o seu corpo. De repente, ele se lembrou dos rolos de pergaminho que Penn lhe havia mostrado. Ele se lembrou de um fato que o tinha deixado curioso. Ele se lembrou do rosto angustiado de Penn e de suas palavras:

Fiz tudo o que me pediu, Flautista, e isso me custou caro.

No entanto, o que Penn tinha feito além de contar a história do exílio de seu povo? Por que tinha sido tão difícil para ela? Só por que temia que os três estranhos corressem perigo?

Ou porque, ao contar a história, ela havia quebrado a lei que considerava a mais importante de todas?

A verdade é mais importante que tudo.

O que Penn tinha dito quando Barda perguntou por que seus ancestrais tinham sido expulsos do domo?

Eles eram perigosos... Eles eram dominados pelo fingimento.

Perigosos? Por que perigosos? A menos que...

— Você pode criar todos os trovões que quiser, Auris, mas antes vai me escutar! — Jasmine gritou. — Isto aqui não é Pirra! Esta é apenas uma ilha protegida pela mágica e cheia de imagens. E você sabe disso! Posso sentir isso em sua voz!

As palavras de Jasmine foram seguidas pelo som de algo se partindo e quebrando como se o próprio céu estivesse desabando.

Auris soltou um grito agudo.

E Lief sentiu um arrepio quando finalmente entendeu. Penn não tinha mentido, só não tinha contado toda a verdade. E, o que quer que o flautista dissesse, Penn sabia que era a mesma coisa que mentir.

Auris e o seu povo balançavam e recuavam na direção da estátua como se quisessem se proteger.

— A sua boca está cheia de imundície! — Auris gritou para Jasmine. — Você tem uma mente imperfeita e o seu coração é mau e duro. Você é uma pessoa selvagem, cujos olhos não merecem ver a beleza de Pirra!

— Jasmine, não responda! Deixe-o falar! — Lief gritou ansioso. — Os moradores das balsas sabiam que isso ia acontecer. Eles estão nos usando para quebrar a ilusão e destruir o domo! O domo só existe se acreditarem nele. Se houver dúvidas, ele desaparece. A dúvida vai destruí-lo.

Mas Jasmine não o escutava. Ela seguia Auris e gritava com ele furiosa.

— Não sou uma selvagem e isto aqui não é Pirra! — ela gritou. — Você finge que não sabe disso, mas conhece muito bem a verdade. Fora desse seu lindo sonho, há monstros rastejando e vivendo na sujeira. Há cavernas, um mar imenso e milhares de pessoas que vivem na escuridão por sua causa...

Os trovões produziram um barulho surdo sobre eles.

— Vocês foram mandados pelos descrentes! — Auris esbravejou, os olhos arregalados de terror. — Vocês são espiões do mal e da falta de fé! Vocês vieram me destruir!

E, com essas palavras, a multidão ao seu redor simplesmente sumiu, as cores e formas bruxuleantes desapareceram na grama como fantasmas que eram.

Auris gritou. Um grito de pura angústia que gelou o sangue de Lief.

— O que aconteceu? — Barda rugiu, ao mesmo tempo se ouviam os trovões. — As pessoas! Para onde elas foram?

— Elas não existiam — Lief gritou em resposta gelado de pavor. — Elas... faziam parte da ilusão. Ele está sozinho aqui. Quem sabe há quanto tempo...

— Um por um, o último deles me decepcionou e morreu — Auris gritou. — Mas eu conservei a fé! Sozinho, mantive Pirra viva, usando a magia de milhares para manter a perfeição de sua beleza. E então vocês chegaram. Espiões e traidores! Dizendo o que nunca deve ser dito, falando de coisas que não podem ser admitidas...

Um clarão estonteante surgiu acima deles, seguido de um ruído ensurdecedor. Uma fenda recortada e negra se abriu no céu e ziguezagueou na direção do horizonte como um raio.

Auris gritou e caiu no chão, na base da estátua. Desesperado, ele estendeu os braços para ela, os dedos magros agarrando o ar.

A abertura estremeceu e se alargou enquanto a magia, presa por tanto tempo dentro do domo, começou a escapar com uma fúria violenta. Pela brecha, era possível ver a luz do arco-íris, ao mesmo tempo que as paredes da caverna do lado de fora explodiam para a vida, e as cores escondidas durante séculos cintilavam.

Lief, Barda e Jasmine jogaram-se ao chão e se agarraram com desespero à terra, enquanto a força uivava ao redor deles, despedaçando o que restava das árvores, das flores desbotadas, da grama, das colinas arroxeadas e distantes...

Então, de repente, seguiu-se um profundo silêncio. Mas não era o silêncio tranqüilo e exausto que acompanha o fim de uma tempestade. Era um silêncio pesado e tenso como se tudo ao redor tivesse parado de respirar. Esperando...

Com cuidado, a pele formigando, Lief ergueu a cabeça. A imagem de Pirra havia desaparecido e somente a enorme estátua continuava erguida no ar espesso e parado, no qual não se via nenhuma cor. Auris estava deitado na base da estátua com o rosto voltado para o chão, as pontas dos dedos tocando levemente as dobras afiadas da túnica, encostadas no solo.

Tudo estava envolto numa meia-luz estranha. No horizonte, as colinas haviam desaparecido. Enormes cogumelos, altos e grossos como árvores antigas, amontoavam-se onde antes estavam as árvores. Pequenas samambaias e turfas cobriam a terra e se agrupavam ao longo das margens de um córrego fundo e silencioso.

Na distância, o rasgo recortado na cobertura do domo era agora uma ferida aberta. Em seu topo, brilhava a luz de um arco-íris, mas bem abaixo tudo estava envolto numa profunda escuridão.

“Isso é estranho”, Lief pensou.

— Lief!

Assustado, Lief se virou e viu Barda levantando e recuando de costas até o monte de cogumelos mais próximo. Os olhos do amigo estavam fixos na abertura do domo. Jasmine também se ergueu de um salto e apanhava a adaga.

— O quê...? — Lief começou. E então ele viu a expressão dos amigos mudar e ouviu, atrás de si, algo arranhando e rasgando.

Ele se virou de repente e percebeu porque nenhuma luz tinha podido passar pelo buraco na parte inferior do domo. Algo o encobria. Algo enorme e negro que agora forçava a passagem pela abertura, um pé espinhento depois do outro.

Arach!

 

Com um grunhido baixo, o arach conseguiu passar pela abertura do domo. Imenso, ele se levantou nas patas traseiras, fazendo com que os cogumelos gigantes que salpicavam o horizonte parecessem minúsculos.

O monstro avançou de repente e, apavorado, Lief viu a aproximação de outro Arach pela fenda. Arco-íris brilharam brevemente por trás do emaranhado de patas negras e do corpo inchado. Então o segundo Arach atravessou o buraco que foi logo ocupado por um terceiro.

— Eles estão fugindo da luz! — Jasmine exclamou.

“Claro!”, Lief pensou. “Os Arachs vêm das grutas, vivem e se reproduzem na escuridão. Eles não suportam luz forte. Agora que as cavernas estão outra vez iluminadas pela magia, o domo é o único lugar em que podem se esconder.”

O domo não tinha sido iluminado pelo brilho do arco-íris que vinha do lado de fora. Era como se a meia-luz que cobria a ilha impedisse a luz mais forte de entrar.

Agora, cinco Arachs apareciam no horizonte e mais outros vinham chegando. Os primeiros avançavam. Os corpos imensos oscilando sobre as patas espinhentas abriam caminho desajeitadamente no terreno sólido e desconhecido.

— Eles estão vindo para cá — Jasmine exclamou. — Talvez eles estejam sendo atraídos pela estátua. Ou talvez eles sintam o cheiro de alguma presa.

— Esse não é um pensamento agradável — Barda disse carrancudo. Ele olhou para a espada pensativo. Apesar de grande e pesada, ela parecia muito pequena comparada aos monstros que se aproximavam.

— Não podemos derrotá-los, Barda — Lief murmurou. — Assim como ocorreu com os monstros da areia nas dunas ou com o Glus no labirinto da besta. Não duraríamos nem um minuto.

— O que mais podemos fazer além de ficar e lutar? — Jasmine resmungou furiosa. — Você viu como eles correm, Lief. Eles nos pegariam num instante se tentássemos fugir. Devemos simplesmente nos deitar e esperar que nos comam?

— Precisamos nos esconder — Lief respondeu. — A luz é fraca. Precisamos nos esconder e esperar que passem por nós para que possamos escapar.

— Esconder? — Jasmine exclamou, olhando para as samambaias ao redor e os cogumelos espalhados. — Não há lugar onde possamos nos esconder.

— Há, sim — Lief retrucou, tirando a capa. — Aqui está. Do mesmo jeito que aconteceu, não muito tempo atrás, no rio Largo, quando um Ak-Baba voava acima de nós. E também nas dunas, quando os guardas cinzentos se aproximaram. Vocês já se esqueceram?

Os olhos verdes de Jasmine brilharam.

— Não esqueci nada — ela disse bruscamente. — Ao contrário de você....

Lief olhou para ela magoado e confuso. Ele não entendeu o que ela quis dizer.

Barda pigarreou.

— Se quisermos nos esconder, é melhor que seja depressa — aconselhou. — As criaturas andam devagar, mas os seus passos são largos. Elas logo vão estar em cima de nós. E o que fazemos com Auris?

Lief afastou os olhos de Jasmine e observou o corpo de Auris deitado ao lado da estátua. Ele deixou a capa nas mãos de Barda.

— Você e Jasmine, se cubram. Se ele ainda estiver vivo, vou trazê-lo.

— Abaixe-se! Tome cuidado! — Jasmine disse baixinho quando Lief começou a correr.

Obediente, Lief abaixou a cabeça. “Pelo menos ela se importa com a minha segurança”, ele pensou. “Mas por que ela disse que eu esqueci a nossa busca pelo Cinturão? Eu jamais poderia esquecer.”

Auris, de olhos fechados, estava totalmente imóvel. Mas assim que Lief se aproximou o bastante da estátua e pôde sentir o estranho calor que se desprendia de sua pele, ele percebeu que o último habitante do domo não estava morto nem inconsciente.

Auris cantarolava tão baixo e depressa que Lief não conseguiu entender as palavras.

— Auris — Lief chamou, tocando o braço do homem. — Auris, venha comigo. Estamos em perigo.

Auris fechou ainda mais os olhos, mas não deu nenhum outro sinal de que tinha ouvido. Não levantou a cabeça nem tirou os dedos da barra da túnica da estátua. E não cessou os sussurros loucos por nenhum momento.

Lief olhou nervoso para os Arachs que se aproximavam. As criaturas estavam cada vez mais perto, agora. Havia pelo menos dez deles rastejando em grupo liderados pelo maior de todos.

— Auris! — ele chamou insistente. Ele tentou puxar o Flautista para longe da estátua, mas os dedos magros imediatamente agarraram o vidro afiado. O sangue correu pelo chão, mas os sussurros continuaram.

Lief aproximou-se ainda mais, esforçando-se para ouvir.

— Ofeitiçoprecisacontinuarofeitiçoprecisacontinuarofeitiço... Uma frase repetida sem parar.

— Lief! — Barda e Jasmine acenavam com insistência atrás dos cogumelos onde tinham se escondido. Lief mal conseguia vê-los. Como sempre, a sua capa tinha assumido a cor do ambiente que a cercava e os encobria com perfeição.

Ele se voltou e se assustou ao perceber como os Arachs estavam muito perto e a grande distância que tinham percorrido em apenas alguns momentos. Eles não demoraram a se acostumar com a terra dura sob suas patas e avançavam com firmeza e confiança.

Eles não tinham visto Lief, ainda. Mas a qualquer momento...

Desesperado, sussurrando avisos e ordens, Lief tentou puxar Auris mais uma vez, mas os dedos cheios de sangue do Flautista agarraram o vidro morno como se fossem garras de aço, e o seu cantarolar não parava.

Não adiantava. Aflito, Lief deixou Auris e rastejou até onde Jasmine e Barda estavam agachados, esperando ansiosamente.

— Ele não se move — ele disse, entrando debaixo da capa com os amigos.

— É problema dele — Jasmine respondeu com calma. — Ele deve achar que a magia da estátua vai lhe dar mais proteção do que um esconderijo.

Lief balançou a cabeça. Estava angustiado e quase não conseguia falar.

— Não concordo com você. Acho que ele está usando seus últimos poderes e o poder da Flauta para tentar se agarrar a tudo o que resta de seu mundo.

Um gosto amargo enchia a sua boca; o gosto da derrota, da raiva e da culpa. Ele pensou em Penn e no Flautista. Eles ainda estariam observando do bote do outro lado da faixa de algas? Ou já estariam voltando depressa para as balsas, dominados pela alegria de terem conseguido recuperar para o seu povo a luz e a magia que tinham perdido por tanto tempo?

— Segundo o Flautista das balsas, havia milhares de pessoas dentro do domo — ele murmurou, os olhos fixos no Arach que se aproximava. — Milhares que teriam perdido a vida pelo que ele fez. Pelo que nós fizemos, sem saber.

— Ele estava lutando pela vida de seu povo — Barda justificou em voz baixa. — Como qualquer bom chefe, quando apareceu uma oportunidade de vitória, ele a aproveitou.

Lief pensou nos olhos brilhantes do Flautista quando ele falou com Penn sobre os visitantes.

Eles podem ser a nossa salvação.

— E como todo bom chefe — Barda continuou, ainda mais baixo — ele sabia que a causa exigiria sacrifícios. Infelizmente, nesse caso, parece que os sacrificados somos nós. Esses monstros não vão nos ignorar.

Os Arachs estavam quase em cima deles. Eles haviam diminuído o passo ao se aproximar da estátua e agora tinham parado completamente.

— É o calor — Jasmine sussurrou. — Eles ficavam perto do domo não só por causa da comida, mas por causa do calor. Eles gostam da estátua pela mesma razão. Acho que eles vão tentar fazer ninhos ao redor dela.

Lief se sentiu mal. Seria verdade? Eles estavam condenados a ficar agachados ali, sem chance de fugir e sem poder fazer nada, apenas observando a morte de Auris? E saber que a haste da Flauta de Pirra estava perdida para sempre por causa de algo que eles tinham feito?

Ele observou horrivelmente fascinado quando o grande Arach se aproximou do corpo imóvel de Auris.

A criatura era gigantesca e monstruosa. Os olhos vermelhos saltavam de dentro de sua casca negra e brilhante. As pinças se abriram e fecharam devagar, pingando veneno.

As duas patas dianteiras se estenderam delicadamente, agarraram Auris e puxaram. As mãos de Auris seguraram o vidro com mais força. Ele não se moveu.

— Não! — Lief sussurrou agoniado, preparado para levantar. A mão de Barda agarrou o pulso dele com firmeza.

— Fique quieto! Não podemos ajudar! Ainda há uma oportunidade de fazer você escapar, Lief. Pelo menos você!

— Isso não importa mais — Lief sussurrou em resposta. — Agora só importa...

Mas, nesse instante, o Arach perdeu a paciência. Com um grunhido baixo, ele arrancou Auris de junto da estátua e o ergueu no ar.

O grito de terror e desespero de Auris congelou Lief. Sua testa se encheu de um suor frio e ele começou a tremer violentamente. Queria tampar os ouvidos, mas as suas mãos pareciam presas. Queria desviar o olhar, mas não conseguiu se mexer.

O monstro se levantou nas patas traseiras e puxou a vítima para mais perto. Apavorado, Auris gritava sem parar. Os olhos vermelhos do monstro o observavam de perto, como se gostassem do medo que ele sentia. Então, de repente, as pinças avançaram e se enterraram em seu pescoço, pondo fim à sua luta.

Imediatamente, as patas espinhentas começaram a rasgar o corpo imóvel da mesma forma que haviam destroçado o barco.

Os outros Arachs se aproximaram, lutando por uma fatia do prêmio, brigando pelos pedaços de carne que caíam das mandíbulas de seu líder.

Nauseado, Lief finalmente conseguiu olhar para o outro lado.

E somente então ele viu o que sempre tinha estado diante de seus olhos desde o momento em que Auris fora atirado para o alto.

A estátua estava erguendo os braços. Perplexo, Lief observou as mãos cobrirem o rosto sereno. Então, de repente, o vidro perdeu toda transparência e brilho e ficou totalmente branco.

Lief cobriu a boca com a mão para abafar um grito. Então, sem outro aviso, a estátua simplesmente desmoronou, caindo no chão com um ruído ensurdecedor e formando uma chuva de estilhaços de vidro.

— Cuidado! — Lief gritou, empurrando Barda e Jasmine para o chão.

Os companheiros ficaram deitados sob a capa de olhos bem fechados, enquanto os fragmentos eram lançados para o alto e tornavam a cair, forrando o chão com um granizo mortal. Eles ouviram os urros dos Arachs, o som de vidros se quebrando sobre as couraças dos monstros.

Então, finalmente, tudo ficou em silêncio outra vez. Lief levantou a cabeça com cuidado, a mente era dominada pela música da Flauta de Pirra. A haste da Flauta estava ali, em algum lugar, enterrada debaixo dos vidros despedaçados. Ela o chamava, atraía-o, mas ele ficou ali estático, pois sabia que não podia se mexer.

Os dois Arachs que tinham se aproximado da estátua estavam caídos no chão, as patas se agitando e se enrascando inutilmente. Mas os ferimentos dos demais, pequenos cortes e rachaduras nas couraças, tinham servido apenas para deixá-los furiosos. Rugindo, eles se levantaram nas patas traseiras, enquanto as dianteiras se agitavam no ar.

Barda praguejou baixinho.

— O domo — Jasmine disse, olhando para cima. — O domo...

Eles ouviram um som baixo e sussurrante e então o domo simplesmente derreteu e desapareceu como uma névoa.

A luz era ofuscante, cheia de esplêndidos arco-íris cintilantes. Lief, Barda e Jasmine cobriram o rosto com as mãos. Os Arachs soltaram guinchos agudos e fugiram desesperados, deixando os dois companheiros feridos para morrer ali mesmo.

E Penn parada, ofegante, onde antes estava a brecha no domo, segurava desajeitadamente uma lança de osso na mão, desajeitada. Soluçava frustrada e ao mesmo tempo aliviada, pois não havia mais nada que pudesse fazer.

 

Muito tempo depois, na pequena cabana de Penn, sobre as balsas, tudo era a imagem da paz. A luz entrava pela janela, trazendo com ela os sons da alegria. Tresk e Mesk flutuavam preguiçosamente em seu aquário. Kree, empoleirado no braço de Jasmine, experimentava com cuidado a asa que estava curando.

Lief, Barda e Jasmine estavam sentados ao lado do fogão com Penn e o Flautista, de onde ouviam os gritos de alegria dos habitantes das balsas. Uma imensa bandeja de empadinhas de peixe e um cesto de pão quente estava diante deles. Filli estava sentado no ombro da dona, mordiscando frutinhos do mar que faziam o seu pequeno nariz franzir de surpresa e prazer.

Até mesmo Fury e Flash estavam calmas em suas gaiolas, lado a lado. Aparentemente, a aventura que tinham vivido com os Arachs fez com que mudassem de idéia sobre brigas. Juntas, elas haviam enfrentado um inimigo terrível, uma aranha muito mais poderosa do que jamais tinham imaginado. Por ora, elas tinham decidido que a paz era uma vantagem.

— Então, os Arachs voltaram às grutas de onde vieram — o Flautista contou, mordendo uma empada com gosto. — Eles não agüentaram a luz e o frio. Eu lhe disse que isso ia acontecer, Penn.

Penn olhou para Lief, Barda e Jasmine. A sua comida continuava intocada no prato. Ela, pelo menos, ainda não estava em paz.

Lief sabia que seria um alívio para ela se pudessem conversar sobre o problema não resolvido entre os dois.

Ele sabia muito bem que a haste da Flauta de Pirra, retirada da pilha de vidro quebrado na ilha de Auron, estava naquele exato momento bem guardada debaixo da túnica do Flautista.

Mas, para o bem de todos, ele tinha de dizer o que pensava.

— Você nos usou, Flautista — ele acusou. — Desconfiamos que nos usou como instrumentos para conseguir a haste da Flauta de Pirra. Mas, na verdade, você fez muito mais do que isso. Você nos usou como uma arma para destruir o domo.

— Para destruir aquilo que estava roubando a vida de meu povo? — o Flautista disse com suavidade. — Sim, confesso que fiz isso. Você não faria o mesmo por Deltora?

Lief hesitou.

— Claro que faria, Lief — Jasmine respondeu impetuosa. — Você consegue ser frio e calculista quando o bem do reino está em jogo.

— O que você quer dizer, Jasmine? — Lief exclamou espantado com o repentino tom amargo da voz da amiga.

— Se, por exemplo, você achar que deve esconder um segredo, você faz isso — ela disse, dando de ombros. — Mesmo dos mais interessados.

Ela contemplou as mãos para evitar o olhar de Lief. Estava furiosa consigo mesma, pois não tinha a intenção de agir de modo tão impensado.

Tentou não pensar em Faith, a irmãzinha que era prisioneira nas Terras das Sombras e que Lief não queria que ela descobrisse. Ela tinha tentado não pensar na garota bem-nascida de Tora que Lief havia levado ao palácio em segredo para se tornar a sua rainha.

E, na maior parte do tempo, ela tinha conseguido. Mas agora se lembrou desses fatos outra vez, eles machucavam o seu coração e faziam com que atacasse Lief com raiva e sofrimento.

Lief sentiu o rosto corar e se lembrou das palavras precipitadas na ilha.

Não esqueci nada... ao contrário de você.

Seria possível que Jasmine tivesse adivinhado o segredo que ele guardara para si mesmo a tanto custo? O segredo que era uma carga pesada demais para carregar?

Não, era impossível. Ele e Perdição tinham sido muito cuidadosos.

Ele se voltou para Barda, mas o amigo olhava pela janela como se houvesse algo muito interessante acontecendo na rua silenciosa.

“Jasmine apenas desconfia de que existe um segredo”, Lief disse para si mesmo. “Ela sente a barreira que surge entre duas pessoas que sempre falaram a verdade e de repente escondem um fato.”

Ele mesmo sentia essa barreira e a detestava. Queria muito derrubá-la e pôr um fim a essa terrível e dolorosa solidão que sentia em momentos como aquele.

Mas sabia que não podia. Não até tudo estar bem. Não até que o futuro de Deltora estivesse garantido.

Lief percebeu que o Flautista o olhava com curiosidade e ficou ainda mais corado.

— Às vezes, os líderes precisam fazer coisas que prefeririam não fazer — o Flautista afirmou como se falasse sozinho. — Às vezes, têm de esquecer os seus desejos e as suas vontades pelo bem de todos. E isso não é... agradável, principalmente quando seus atos enraivecem pessoas de quem gostam.

Jasmine não levantou a cabeça, mas Lief sabia que ela tinha ouvido e rezou para que tivesse entendido também.

— Você deve pensar que eu sou mau — o Flautista continuou no mesmo tom calmo. — Você acha que Penn seguiu minhas ordens e os enganou. Você pensa que eu usei vocês como instrumentos para destruir o domo sem me importar com as suas vidas ou a vida das pessoas que viviam na ilha.

— Não pensamos isso — Barda disse secamente.

O Flautista encolheu os ombros estreitos.

— É verdade que obriguei a pobre Penn a fazer o que fez — ele confessou, olhando a preservadora da história dos Aurons, que estava com a cabeça baixa. — Ela ficou muito angustiada com a tarefa. Como todos os moradores das balsas, ela respeita a verdade acima de tudo. Eu sugeri que ela deixasse que vocês lessem a nossa história para que ela não tivesse de contá-la.

— Mas a história estava incompleta — Lief disse. — Os dois rolos de pergaminho que Penn nos deu estavam rasgados, o primeiro embaixo, e o segundo no alto. Acho que antes eles eram um só documento. Você rasgou a parte do meio antes de entregá-los a nós. Não é verdade?

Penn concordou infeliz. Sem falar, ela se levantou e foi até os cestos pendurados na parede e tirou um pedaço de papel de dentro de um deles, voltou até o fogão e passou-o às mãos de Lief.

Entretanto, o domo só poderá continuar inteiro enquanto todos os que vivem dentro dele acreditarem na ilusão e afastarem qualquer dúvida de suas mentes. Por terem negado que a ilha era Pirra e terem falado em voz alta sobre as cavernas e o domo, nossos ancestrais ameaçaram continuamente a sua existência.

— Vocês teriam nos ajudado se eu tivesse deixado que Penn mostrasse o documento inteiro a vocês? — o Flautista perguntou, olhando para Lief com os pequenos olhos frios.

Lief hesitou.

— Nós precisávamos da segunda parte da Flauta de Pirra — ele disse finalmente. — Nós teríamos entrado no domo, mesmo sabendo da verdade.

— Talvez — o Flautista concordou. — Mas é possível que vocês tomassem tanto cuidado que o domo teria ficado fechado, e o meu povo continuaria a viver na escuridão. Eu não podia correr esse risco.

O Flautista suspirou.

— Assim, sou culpado da primeira acusação que me fizeram, mas não das outras.

Ele pegou um pedaço de pão do cesto e o mordeu.

— Eu sabia que os habitantes do domo não feririam vocês, pois não poderia haver derramamento de sangue em seu interior — acrescentou pensativo. — E não pensei que vocês ou qualquer outra pessoa teriam que enfrentar os Arachs. Eu pensei que o domo se quebraria, a luz voltaria para as cavernas e os Arachs fugiriam para a escuridão das grutas mais uma vez.

— Mas isso não aconteceu — Barda retrucou mal-humorado. — Auris manteve vivo o feitiço. Ele fez com que o domo, mesmo danificado, ficasse no lugar com toda a sua força de vontade. Somente a morte dele conseguiu destruí-lo.

— É verdade — e o Flautista deu de ombros. — Eu não tinha contado com isso. Mas assim que percebemos o que tinha acontecido, Penn e eu chamamos os guardas e entramos no domo, mesmo antes de eles terem chegado, para tentar ajudar vocês.

Ele comeu mais um pedaço de pão e olhou para Penn.

— Não sei se teríamos podido ajudar — ele disse, mastigando. — Como eu disse a Penn, a nossa morte era quase certa, mas ela insistiu. Felizmente, Auris morreu a tempo de salvar a todos nós.

Lief estremeceu quando se lembrou da morte terrível de Auris. Ele contemplou o Flautista com desprezo e, repugnado com a frieza dele, logo desviou o olhar.

No entanto, Lief pensou... “apesar da aparente indiferença, ele tinha entrado no domo. Ele tinha arriscado a sua vida.”

Lief olhou novamente para o pequeno e enrugado Auron, que mastigava o seu pão com prazer. Por mais que não aparentasse, o Flautista tinha sentimentos, era honrado e corajoso. Era apenas um ser que preferia guardar as emoções dentro de si mesmo. Aquele foi o meio que encontrou para sobreviver.

— Nunca imaginamos que haveria só uma pessoa vivendo naquela ilha — Penn falou de repente, finalmente quebrando o silêncio. — Sabíamos que não podiam ser muitas, pois a colônia do domo nunca poderia ter prosperado. Mesmo na época em que nossos ancestrais partiram, nasciam cada vez menos crianças na tribo. O Flautista concordou com um gesto.

— Crianças não sabem como viver uma mentira. Elas têm muita energia, são impacientes demais e fazem muitas perguntas.

E, lançando um olhar esperto para Jasmine, ele acrescentou:

— E existem pessoas que conservam essas qualidades mesmo depois de crescidas. Acho que isso é bom, mas nem sempre é agradável para quem as ama.

No silêncio tenso que se seguiu, ele terminou de comer com calma. Então, limpou as migalhas das mãos e mexeu nas dobras da túnica.

— Aqui está a haste da Flauta de Pirra — disse ele, pegando um pequeno pedaço de madeira esculpida e entregando-a a Lief com aparente indiferença. — Use-a como quiser. Ficaríamos satisfeitos se a devolvesse depois de atingir o seu objetivo, pois por enquanto podemos ficar sem ela.

Lief apanhou a haste do Flautista com mãos trêmulas. Quando a tocou, todo o seu corpo formigou, e a música da Flauta soou em seus ouvidos. Ele apanhou o bocal do bolso da camisa e juntou os dois pedaços.

— Obrigado — ele conseguiu dizer.

O Flautista permitiu-se dar um leve sorriso.

— Não tem de quê — respondeu. — Na verdade, não é um grande sacrifício. Afinal, ficamos sem a nossa parte da Flauta durante muito tempo. Por enquanto, a magia que existe em todos os Aurons, e que agora voltou para nós, será mais do que suficiente. Graças a vocês, a ilha é nossa outra vez. O que mais podemos querer?

A música nos ouvidos de Lief ficou mais forte e o encheu de uma sensação doce e ao mesmo tempo triste. Ele olhou para Barda e Jasmine, viu os olhos dos amigos fixos no objeto mágico que segurava nas mãos e soube que eles também sentiam o seu poder.

Mais um esforço... mais uma aventura e a Flauta de Pirra estaria completa.

E então?

“E então”, pensou Lief, “estaremos preparados e poderemos ir, para o bem ou para o mal, para as Terras das Sombras.”

 

 

                                                                                                    Emily Rodda

 

 

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