Biblio VT
Quando Sara resolveu gastar sua herança numa viagem de navio pelo Pacífico, jamais imaginou que isso mudaria tanto seu destino. Primeiro foi o encontro com Nick Bryant, homem frio e insensível que ela odiou desde o começo. Depois o naufrágio, isolando-a numa ilha deserta com mais onze homens. Sua vida virou um inferno! A mercê daqueles animais, Sara não tinha mais sossego. Cada passo seu era seguida por homens embrutecidos pela solidão, sedentos de carinho. Aterrorizada, ela teve que aceitar a ajuda de Nick. E acabou caindo de amores por ele, que parecia corresponder. Mas era só ilusão! Ali, ela era a única mulher... seria também depois, se conseguisse sair daquela ilha?
O cargueiro Saratoga cortava lentamente as águas do Pacífico. Era uma embarcação grande e desajeitada, com a pintura destruída pelo tempo e um certo ar de desalinho. De dois em dois meses ele fazia a travessia entre a Venezuela e o Tahiti, sempre parando nas pequenas ilhas do caminho para desembarcar mercadoria e algum passageiro audacioso que se aventurava a viajar no navio, apesar de suas precárias condições. O capitão Dan Anders já não se admirava quando levava um desses passageiros excêntricos. Mas, nessa viagem, ele se surpreendeu ao perceber uma jovem alta e loira, elegantemente vestida, subindo a bordo. Era a primeira vez que uma mulher embarcava sozinha na Saratoga. Quem seria ela? Para onde estaria viajando? Consultando a lista de passageiros, ele viu que se chamava Sara Smith, era solteira e tinha comprado passagem até as ilhas Society. Mas isso era muito pouco para saciar a curiosidade do capitão. E ele resolveu perguntar a Nick Bryant, seu velho amigo, que também viajava como passageiro, se tinha mais informações a respeito da desconhecida, - Não sei quem é nem quero saber - disse Nick, com a cara amarrada. - Deve ser uma dessas inglesas imprudentes, que saem pelo mundo em busca de aventura. Todas elas pensam que sabem de tudo e, quando percebem que se meteram em uma enrascada, voltam correndo para a casa da mamãe. Pode ter certeza, Dan, você ainda vai se ver em apuros por causa dela. - Deixe de ser ranzinza, Nick. Ela pode não ser nada disso que está pensando. Olhando de longe me pareceu uma moça direita. Deve ter lá seus motivos para viajar em um cargueiro como este. Sara Smith caminhava pelo tombadilho, sem saber que era alvo de tantos comentários. Seus olhos castanhos se arregalaram, admirados com tudo o que via no navio. Ela sempre tinha sonhado em viajar em um cargueiro, e agora mal podia acreditar que estivesse ali. Lembrando a mudança fantástica que havia ocorrido com ela, desde que recebera uma herança. Sara deu um sorriso e ergueu, involuntariamente, a cabeça. Era uma jovem decidida e corajosa, disposta a aproveitar a vida e a não se deixar deter pelos perigos que surgissem em seu caminho. Até o momento ela tivera muita sorte, nada de mau lhe tinha acontecido. Mas, mesmo que acontecesse, sentia-se preparada para enfrentar qualquer parada. As ondas no mar batendo no navio provocavam um arrepio de felicidade em Sara, que estava pessimamente instalada no Saratoga, mas isso não tinha importância. O importante é que ia conhecer muita gente nessa viagem. Pela primeira vez estaria dire-tamente em contato com a tripulação de um navio e com os habitantes das ilhas do Pacífico que ficavam nas praias à espera das mercadorias. Seria maravilhoso conversar com eles e saber como viviam naquelas exóticas ilhas. Sara não via a hora de fazer a primeira escala. Mas, antes que isso acontecesse, sabia que ainda teria muitos dias de viagem pela frente. E era bom aproveitar esses dias para fazer amizade com a tripulação do navio. O salão de jantar, para onde se encaminhava agora, era um ótimo lugar para isso. Ela entrou nele com passos decididos e sentou-se à mesa dos oficiais. Logo estava no meio de uma conversa animada. - Você é muito corajosa - disse o capitão. - Poucas mulheres ousariam fazer uma viagem destas sozinha. Admiro seu espírito de aventura. - Aventura? - exclamou Nick Bryant. - Ou ousadia? Sara olhou para ele e deu de cara com dois olhos cinzentos, sarcásticos, fitando-a do outro lado da mesa de jantar. - Talvez um pouco de cada - respondeu friamente. - É preciso ter ousadia para sair de casa e correr o mundo. Claro que eu voltarei praticamente sem um tostão, mas, ao menos, terei do que me lembrar nos próximos anos, enquanto estiver trabalhando para sobreviver. A não ser que alguém me deixe outra herança. Aí poderei ver os lugares que não conhecerei desta vez. - Você tem muitos parentes velhos e ricos? - Não, não tenho parentes. Recebi uma herança do meu padrinho. - Mal acabou de falar isso. Sara já se arrependia por contar sua vida assim, sem mais nem menos. Mas o capitão Anders a tinha tratado tão gentilmente, e parecia tão ansioso em saber por que ela viajava em um cargueiro, em vez de estar em um navio luxuoso, que ela não pudera resistir. Sara não se envergonhava do que havia dito, só ficava sem jeito porque Nick Bryant sentia prazer em fazer com que a aventura dela parecesse uma coisa totalmente irresponsável. Ele deve ser o tipo de sujeito presunçoso, pensou com raiva. Sem dúvida é daqueles homens que consideram as mulheres inferiores. E o pior é que elas devem gostar dele. Com todo esse ar insolente e machão, ele com certeza provoca paixões! - Acho que precisa mesmo de coragem para vir tão longe, viajando dessa maneira - disse um oficial, tirando Sara de seus pensamentos. - A maioria das mulheres, se tivesse escolha, preferiria uma linha normal e confortável. - Mas eu não tinha escolha. Se viajasse em outro navio, só poderia fazer metade do passeio. Confesso que fiquei um pouco apreensiva no começo, mas a companhia de navegação arrumou tudo de maneira perfeita. Eu aconselharia qualquer pessoa que quisesse dar a volta ao mundo gastando pouco a fazer o que fiz. Muitos não aceitariam a sugestão, é claro. A maioria dos meus amigos achou que eu estava louca por viajar assim. - É o tipo de loucura que eles provavelmente gostariam de fazer - disse o capitão. - Por quanto tempo ainda pretende viajar? - Dez semanas, mais ou menos. Faz duas que estou viajando. De Londres a Barbados, fui de avião. Ia pegar o navio em La Guarita, mas tive de esperar três dias porque uma das caldeiras explodiu e eles precisaram substituí-la. De qualquer maneira, tive oportunidade de conhecer mais a Venezuela. - E gostou mais do que previa também - Nick provocou-a novamente. - Mais alguns contratempos como este e você acabará sozinha e desamparada do outro lado do mundo. - Se isso acontecer, não me considerarei desamparada, sr. Bryant. Procurarei um emprego e arranjarei dinheiro para voltar para casa. - Assim tão facilmente? Da maneira como fala até parece possível! Por que não admite que não pensou nos imprevistos? Ninguém vai condená-la por isso. - Digamos que eu não ponho o carro na frente dos bois - Sara rebateu, já louca de raiva. - Minha passagem está paga até as ilhas Society. Depois, quero passar por Tonga, e de lá vou à Austrália, onde ficarei na casa de uns amigos. - Vai perder a Nova Zelândia? Mas que pena! - Passarei lá da próxima vez. - Nick estava começando a perturbá-la, mas Sara não queria dar o braço a torcer, Certamente ele se divertiria muito se ela perdesse o controle. Mas esse gostinho ele não teria. Ela podia responder à altura, ora se podia! Para desviar a atenção de Nick, Sara se voltou para os outros dois passageiros do navio. - Vocês também vão descer em Tahiti, não? - Meu irmão e eu pretendemos nos estabelecer nas ilhas - respondeu o mais velho. - Somos advogados aposentados e vamos tentar mudar de vida. Ao contrário de você, nenhum de nós teve coragem de partir para o desconhecido quando éramos jovens. - Acho que é muito mais difícil fazer isso agora. Espero que vocês encontrem o que procuram. - Se não encontrarmos, certamente não será por falta de tentar! O primeiro-oficial aproximou sua cadeira da de Sara, com o pretexto de servi-la de um pouco mais do vinho que o capitão abrira no jantar. - Seu nome verdadeiro é Smith? - perguntou, tentando puxar conversa. - Ou é um pseudônimo? - É verdadeiro - ela respondeu, pensando na falta de originalidade dele. - E o outro? - Sara. - Ah, sim? O meu é Mike. O primeiro-oficial Michel Chandris, Sara decidiu naquele momento, deveria ser vigiado. Ele era o tipo do cara que se a gente desse uma mão, logo queria o braço todo! Mas devia ser uma companhia divertida em certas circunstâncias, desde que essas circunstâncias não permitissem que ela ficasse a sós com ele. Os outros oficiais sentados à mesa os observavam, com expressões admiradas. As conquistas do primeiro-oficial já deviam fazer parte da lenda do navio. Um pouco abruptamente, ela se virou para o capitão, que estava sentado na cabeceira da mesa. - Seus oficiais me disseram que o senhor poderia me arranjar uma passagem para seguir depois de Tahiti, É verdade? - Posso, sim, mas em outra linha. Há muitos navios a vapor nas ilhas. Eles podem levá-la, só que talvez façam algumas escalas no caminho. - Nós teremos outras escalas além da ilha do Coco? - Só uma parada para deixar Nick em Matalita. Você sabia que ele é o dono dessa ilha? - Dono? - Sara olhou para Nick de relance, mal podendo se conter. Percebeu um leve sorriso nos lábios dele e procurou disfarçar. Muito bem, ela estava realmente impressionada, mas quem não estaria? Possuir uma ilha no Pacífico era, sem dúvida, uma coisa fantástica. Mas Nick que não esperasse que ela saísse correndo atrás dele só por causa disso. Pobre ou rico, ele continuava intolerável. - Fascinante - disse, com um sorriso. - Seus antepassados a compraram? - Não, Meu bisavô a ganhou por serviços prestados. Ela formava os limites das ilhas Marquesas, eu a divido com um sócio. - Como está ele? - perguntou o capitão, em um tom um pouco alterado. - Tão bem quando possível. O desenvolvimento da doença é lento, o que, de certa maneira, torna as coisas mais tristes. Ele pode viver anos, piorando lentamente. - E não se pode fazer nada? - Nada. Sentindo, evidentemente, que era tempo de mudar de assunto, o capitão Anders comentou: - Sua filha deve estar grande, Nick. Que idade tem agora? - Nove. - Sua expressão subitamente se alterou. Meio enternecido, comentou com Sara:- Ela terá de ir para a escola. A última governanta só ficou dois meses. - Falta de disciplina, esse é o problema - interrompeu o capitão. - Você deveria se casar novamente, Nick. - Subitamente ele se deu conta do que dizia, e tentou emendar, um pouco constrangido: - Bem, talvez a escola seja a melhor solução. Será que Nick é viúvo? Sara se perguntou. Ou, quem sabe, divorciado? Gozado, mas ela não conseguia imaginá-lo casado. Que tipo de mulher aceitaria um homem daqueles? A menos que ele tivesse ficado mal-humorado assim depois do casamento... Ela deu outra olhada em seus lábios ríspidos e sentiu um tremor percorre-la. Não, aquela expressão nascera com ele, com certeza era um homem frio, que seguia seu caminho sem se importar com nada e com ninguém. Um homem para se manter a distância! Já era tarde quando eles terminaram o jantar. Sara desculpou-se, dizendo que precisava arrumar as malas, e foi para sua cabine, no mesmo convés. As acomodações no cargueiro Saratoga eram bastante precárias, mas, pelo que ela estava pagando, não podia reclamar. Havia três cabines disponíveis para transporte de passageiros. Nick Bryant ocupava a pegada à sua, e os irmãos Regan, os advogados aposentados, dividiam a outra. Eles deviam estar terrivelmente apertados lá, mas Sara duvidava de que se incomodassem com isso; afinal, esperaram a vida toda para fazer aquela viagem. Ela tinha sorte em fazê-la tão jovem. Tinha recebido a notícia da herança um pouco antes de seu vigésimo segundo aniversário. Levou o maior susto, principalmente porque nem mesmo vira seu padrinho nos últimos anos... A vida não havia sido muito fácil depois da morte de seu pai, um ano e meio atrás. Quando conseguiu acreditar que aquela herança era mesmo dela, Sara pensou em fazer a coisa mais sensata: investir o dinheiro. Mas logo seu espírito de aventura falou mais alto e ela resolveu gastar tudo em uma viagem pelo mundo. Agora, pensava que tinha valido a pena. Foi maravilhoso conhecer as ilhas do Caribe, a costa da Venezuela e da Colômbia, sem falar da emoção de atravessar o canal do Panamá e se encontrar do outro lado de um continente. Não, não se arrependia de nada. Teria muito tempo para pensar no futuro quando estivesse de volta. Ainda tinha dois meses de viagem pela frente e iria aproveitá-los ao máximo. Continuava arrumando sua bagagem quando alguém bateu à porta. Abriu e deu de cara com Michel Chandris. - Achei que você gostaria de conhecer o navio - ele propôs, sorrindo. - Podemos também ver a lua do Pacífico... ela é linda! - E a mesma que nós temos lá em casa. A menos que tenham feito uma duplicata - Sara respondeu, irônica. - Eu ficarei devendo, pois hoje foi um dia muito agitado. De qualquer maneira, obrigada pelo convite. - Ora, vamos lá! - Mike adotou um tom persuasivo, recusando-se a desistir facilmente. - Na sua idade você não pode estar tão cansada. O mar está calmo e, de acordo com a previsão do tempo, provavelmente nós não o veremos assim por alguns dias. Estamos esperando uma mudança brusca amanhã no fim da tarde. Sara tentou disfarçar seu medo. Tinha pavor de ventanias e furacões, mas sabia que eles não eram raros em alto-mar. O Saratoga já deveria ter passado por vários. - Então devemos todos dormir um pouco enquanto podemos. Você não disse que começa a trabalhar às quatro da madrugada? - Disse. Essa era uma das razões pelas quais eu gostaria de ter um momento de descanso. - Ele hesitava em aceitar a recusa. - Nós temos umas duas semanas até chegarmos às ilhas Society. Você não vai ficar indiferente todo esse tempo, vai? - Depende do quão íntimo você está pensando em se tornar. Sei que o fato de ser a única mulher a bordo me torna uma novidade, mas estou aqui somente pelo transporte, Mike. - Esta é outra coisa que gosto em você: vai direto ao assunto. - Não conte com isso. Há... - Ela parou ao ver Nick Bryant passar pelo corredor, olhando-a rapidamente. - Acho que é hora de você ir embora. Boa noite. Enquanto se preparava para dormir, ela podia ouvir os movimentos na cabine de Nick. Quando já tinha se acomodado em sua cama, os movimentos pararam e tudo ficou em silêncio. Só se ouvia o barulho da água batendo contra o casco do cargueiro. Sara se acalmou. O balanço do Saratoga era regular e agradável, como se estivesse se embalando em uma cadeira de balanço. Até aquele dia o navio viajara ao longo da costa, evitando, assim, qualquer variação brusca de tempo. Mas isso ia acabar logo, como Mike Chandris havia dito. O Pacífico era imenso, e eles se dirigiam exatamente para o seu centro. Tudo podia acontecer. Não era exa-tamente por isso que ela estava lá? Não viajava em busca de aventura? E que aventura! Do tipo que a maior parte dos jovens de sua idade daria a vida para ter. Fazer a volta ao mundo com vinte e dois anos! Não era fantástico? Podia não ser muito objetivo, mas e daí? A vida era para ser vivida, não para se poupar. Alguém a sacudiu gentilmente para que acordasse. Sara abriu os olhos, percebendo que a luz estava acesa e Nick Bryant estava, curvado sobre ela, tocando com os dedos seu ombro nu. - Não grite - ele disse em um tom autoritário. - Você estava tendo um pesadelo, falando enquanto dormia... Achei que fosse melhor vir até aqui antes que acordasse todo o navio. Sara percebeu que estava molhada de suor e sentiu seu coração bater descompassado. Não sabia se era por causa do pesadelo ou pelo choque de encontrar aquele homem ali em sua cabine. Levantou-se bruscamente, puxou o cobertor e, apoiando-se no cotovelo, disse: - Eu não me lembro de ter estado sonhando... - Bem, você estava. E para valer, pela maneira como se debatia. Eu diria que você estava lutando com alguma coisa ou alguém. Talvez esteja se preparando para o futuro. Você se comporta de uma maneira que isso poderia facilmente acontecer. - O que está insinuando? Não sei o que quer dizer com isso. - Quero dizer que seu subconsciente deve estar querendo lhe avisar que é melhor você se comportar direito com os homens. Você tem alguma noção do que pode encontrar viajando sozinha? Chan-dris talvez não seja o único a reagir daquele jeito... - Que jeito? - Não se faça de desentendida. Ele foi bem rápido. Um homem da laia dele não perde tempo e nem respeita as mulheres. - Suponho que você respeitaria. - Vendo que o rosto dele assumia uma expressão dura, ela hesitou, mas já era muito tarde para voltar atrás. - E o que você tem com isso? - continuou, erguendo a cabeça. - Posso lidar com Mike Chandris. - Pode? Tenho minhas dúvidas. Talvez eu devesse deixar você fazê-lo... para aprender algo com a experiência. - Ótimo. Obrigada pelo conselho. A porta fica logo ali. Nick não se importou com a reação dela e continuou onde estava, olhos cerrados, lábios crispados. - Alguém já bateu em você? Para valer? - Não, desde que eu tinha oito anos. - Ela estava zangada, mas procurava se controlar. - Já passei da idade de apanhar. - Está certo. Mas disto você não passou da idade? Com um movimento rápido, Nick jogou Sara na cama, empurrando-a com seu corpo contra o travesseiro. Seus lábios se apertaram contra os dela, e Sara não pôde esboçar sequer uma reação. O beijo queimou-a por dentro, e ela se deu conta de que estava correspondendo avidamente. Quando ele finalmente a soltou, ficou claro, pela expressão de seu rosto, que tinha percebido a reação dela. - É assim que você sabe se defender? Ainda se acha capaz de afastar qualquer aventureiro? - Eles não iriam tão longe. - Ela odiou-o por tê-la usado daquela maneira só para provar que estava certo. - Daqui para a frente manterei minha porta fechada para todo mundo! - Esta é a coisa mais inteligente que você disse desde que nos encontramos. Não se afobe. Qualquer dia destes você aprenderá a se defender e até a cuspir nos olhos de um homem. - Espero que alguém já tenha cuspido nos seus olhos! - Não tenho dúvida de que espera mesmo. - Ele riu. - Durma bem. Estarei aí ao lado, se precisar de alguma coisa... Ela ficou imóvel até que a porta se fechasse atrás dele. Aí então levou a mão aos lábios. Até algumas poucas horas atrás ela nem sabia da existência de Nick Bryant, e agora... Dizer que o odiava seria simplificar demais. As emoções que ele despertava nela não podiam ser assim tão facilmente definidas. Desde o momento do encontro, alguma coisa tinha acontecido entre eles. Sara sentiu uma atração por Nick e percebeu que ele também a desejava. No entanto, ele tinha prazer em agredi-la, e ela em revidar... Sabia que Nick a havia beijado para feri-la, quebrar-lhe o orgulho. Mas tinha a sensação de que ele, na verdade, queria ferir outra pessoa com que ela se parecia. Era muito estranho! Tudo em Nick, aliás, era estranho. A ironia dele era insuportável, e ele sabia ser cruel como ninguém. Apesar disso, a lembrança de seu beijo continuava a queimá-la por dentro...
O vento soprava ainda mais forte no dia seguinte. Cansada depois de uma noite sem dormir, Sara desistiu de tomar o café da manhã e ficou um pouco mais na cama, mas sentiu-se tão mal que resolveu levantar. Ficar deitada era pior. De pé ela era mais capaz de se equilibrar no vaivém do navio. Fazia frio no convés, o mar era uma grande massa cinza sob um céu carregado e triste - não era esse o Pacífico que ela esperava encontrar, mas havia muitos dias ainda pela frente. A ventania não deveria durar muito, à noite provavelmente o tempo já estaria melhor. Enquanto isso, ela devia se dar por satisfeita em conseguir andar sem perder o equilíbrio. Se enjoasse muito, aí sim seus planos iriam por água abaixo. A luz do dia, a noite anterior parecia um pesadelo, mas ela sabia que não fora. Nick Bryant estava ainda lá no navio e ali continuaria por vários dias. Sem dúvida ele devia estar pensando que ela perdera o café da manhã por sua causa. E o pior é que ele tinha razão! Na verdade, ela estava mesmo receosa de encarar aquele olhar cínico do outro lado da mesa. Sabia que não poderia suportá-lo. Mas uma hora ou outra teria de enfrentá-lo, não poderia ficar trancada em sua cabine a viagem toda. Até a hora do almoço ela precisava recobrar sua calma para entrar no salão aparentando indiferença. Afinal de contas, nada de tão grave tinha acontecido. Ele só a beijara, e essa não era exatamente a primeira vez que alguém a beijava. O melhor era encarar aquilo como mais uma experiência e pronto! - Não é uma manhã das melhores, não? - Gerald Regan, o mais velho dos irmãos, juntou-se a ela na amurada. - Acho que vai piorar ainda mais. Estamos indo de encontro a uma tempestade. - Nós não estamos tentando evitá-la? - De maneira alguma. O navio precisa chegar ao Tahiti dentro de uma semana para pegar carga. Um dia de atraso custaria uma fortuna à companhia. Mas tenho certeza de que não há nada para se preocupar. O Saratoga é um ótimo navio. O capitão Anders me disse que ele sobreviveu a um furacão no Caribe há uns dois anos, saiu apenas com uma das pranchas arrebentadas e pequenos danos na estrutura superior. A previsão da meteorologia ontem à noite era de tempo moderado ou ruim para toda a área, mas, seja como for, não se preocupe porque nós sobreviveremos. - E a previsão desta manhã? - Não sei bem. Eles estão com problemas no rádio. Parece que não é nada que não possa ser consertado rapidamente. Mas procure relaxar e aproveitar a viagem. Sentimos sua falta no café. O ter-ceiro-oficial queria que alguém fosse até a sua cabine, mas Bryant disse que você talvez preferisse ficar sozinha. Está se sentindo um pouco mal, não? - De maneira alguma. - Sara estava quase desmaiando, mas não queria demonstrar fraqueza. - Raramente tomo café da manhã. Em geral bebo só uma xícara de chá e, quando tenho tempo, como uma torrada. - Comer só isso faz mal. Você se arrependerá mais tarde. Mas, veja só - riu ele -, já estou querendo controlar sua vida. E típico dos mais velhos passar sermões nos jovens, não é? Sara também riu, observando aquele rosto emoldurado pelos cabelos grisalhos. - Você não é velho! Tem o espírito de um jovem. Poucas pessoas teriam coragem de começar uma nova vida com a sua idade. - Eu podia ser seu avô, Sara. Quer saber de uma coisa? Na realidade minha aposentadoria foi voluntária, Nós desfizemos nosso escritório para arriscar a sorte em outro lugar. Esta é uma das vantagens de não se ter uma família para cuidar. O tom da voz de Regan era triste, apesar de suas palavras alegres. Sara percebeu isso e disse, impulsivamente: - Você nunca teve vontade de se casar, ter uma família? - Nunca tive tempo. - Dessa vez a voz soou claramente chateada. - A gente vai deixando de lado as coisas e um dia, quando se dá conta, já é tarde demais. - Mas não para viajar, senão não estaria aqui agora. - Nao, não para viajar. - Regan se recompôs, pigarreou e continuou em um tom diferente: - Olhe, eu sei que você vai achar que sou um velho intrometido, mas o que Bryant disse ontem à noite esta certo. Você é jovem, muito atraente e totalmente desprotegida. Como o capitão, admiro seu espírito aventureiro, mas ao contrário dele enxergo os perigos. Até agora você teve sorte. Aliás, estará a salvo enquanto estiver no Saratoga. Mas e o resto de sua viagem? Estes vapores podem ser baratos, mas estão longe de ter uma boa frequência. Eles carregam tipos muitos perigosos! De novo!, Sara pensou, resignada. Por que será que todos os homens querem tomar conta da minha vida? Mas, em voz alta, disse: - É simpático de sua parte preocupar-se comigo, sr. Regan, mas, honestamente, eu pensei em tudo isso. Em primeiro lugar, se não estivesse preparada para correr alguns riscos, não teria vindo neste navio. Tomar cuidado é tudo o que eu posso fazer. - Mas não é tudo o que eu posso fazer. - Ele prosseguiu rapidamente, antes que ela pudesse interrompê-lo: - Gostaria que você me permitisse colocá-la em um avião para ir direto do Tahiti até a Austrália, Você não visitaria Tonga, mas, também, é só uma ilha, e não estaria perdendo muito! Você me deixa fazer isso, ao menos para ficar tranquilo? Ela demorou para responder, consciente da sinceridade dele e com medo de fazer algo que pudesse magoá-lo. - Você é muito gentil - falou finalmente, - Por favor, não pense que não aprecio a sua oferta, mas é que prefiro resolver as coisas da minha maneira e com o meu dinheiro. - Deixe de ser orgulhosa, Sara. - Pode pensar o que quiser de mim. Mas me diga, sinceramente: você aceitaria dinheiro de um estranho? - Não é dinheiro, é só uma passagem de avião. - £ a mesma coisa, você sabe disso. Será que ninguém acredita que tenho juízo suficiente para tomar conta de mim? Os homens levam esse negócio de proteção longe demais! - Ela viu que ele estava envergonhado e corrigiu-se, rapidamente: - Sinto muito, eu não queria ser grosseira. Como disse, sou grata pela sua oferta. Mas percebe que é impossível para mim aceitá-la, embora ela tenha sido bem-intencionada? Mesmo que eu pudesse pagar depois de voltar, não aceitaria. - Entendo perfeitamente. - Ele suspirou. - Mas isso não vai impedir de me preocupar com você depois que partir do Tahiti. Para acabar com o mal-estar criado com o oferecimento de Regan, Sara resolveu mudar de assunto: - Seu irmão é tão bom marinheiro quanto você? - Wesley? Aah, ele se vira. Está lá embaixo mexendo em sua coleção de selos. Nada neste mundo o convenceria a deixá-la para trás. - Ele pareceu ver alguém atrás de Sara e comentou. - Que clima tropical, hein? Sara se encolheu instintivamente, sabendo que era Nick quem estava atrás dela. Logo ele se aproximou e ficou perigosamente perto. - Não é uma boa época do ano, mas sobreviveremos - respondeu, enquanto observava atentamente Sara. - Sente-se melhor? - Eu não estava doente. Sentia-me apenas um pouco cansada. Dormi mal. - Todos nós dormimos mal. O navio balançou muito. Acho que o Saratoga terá de fazer força para aguentar o temporal que vem por aí. - O senhor já viajou no Saratoga antes? - perguntou com interesse o sr. Regan. - Muitas vezes. Quando faz esta rota, ele é o principal navio de fornecimento para Mataleta. - Quer dizer que só pode ir é vir da ilha com os navios de carga? - Não é bem assim. Muitos barcos fazem a ligação de uma ilha para outra. Mas quando faço viagens mais longas prefiro o Saratoga. - O senhor esteve muito tempo fora? - Dois meses - Nick respondeu em um tom que, de alguma forma, desencorajava a conversa. - Vamos tomar café enquanto ainda está quente. O capitão provavelmente virá também, se não estiver em serviço. Sara o seguiu porque era mais fácil ir do que recusar. Além do mais, queria beber alguma coisa para ver se melhorava. O mar estava cada vez mais revolto. Gerald Regan segurou-lhe a porta para que passasse, mas ela quase caiu quando o navio se inclinou de repente, e foi amparada por uma mão firme que a segurou pelo cotovelo. Soltando-se da mão que a segurava, Sara apressou o passo para subir a escada do tombadilho, em direção ao convés inferior. Mas o navio deu outra guinada e ela perdeu novamente o equilíbrio. - Não tente correr antes de conseguir andar - advertiu Nick Bryant. - Pode terminar sua turnê mais cedo do que pensa se cair e quebrar um braço ou uma perna. - Eu não tenho intenção de cair em lugar nenhum. De qualquer modo, se isso acontecer, minhas reações são provavelmente mais rápidas que as suas. - Quero verificar - Nick disse baixinho junto ao ouvido dela. - Aposto dez para um como você perde, mas se quiser arriscar novamente... O sr. Regan tinha ficado para trás, e Sara deu graças a Deus que ele não pudesse escutar a conversa. Estava em uma situação de inferioridade em relação a Nick, e ele sabia disso. Como ela poderia inverter esses papéis? Precisava urgentemente pensar em uma saída. E o pior é que ela se sentia tão mal... O capitão Anders já estava com os oficiais no pequeno salão quando eles chegaram. Ele parecia estar contando uma história muito interessante a Wesley Regan, mas interrompeu-a para receber os outros passageiros e mandar buscar mais café na cozinha. - Precisamos comer bem e nos preparar, pois esta será uma noite difícil. O pior pedaço virá amanhã a esta hora. Infelizmente não podemos desviar do temporal, senão ficaremos sem combustível. Será muito difícil para todos nós. Acha que poderá aguentar, srta. Smith? Não era possível! Até o capitão achava que ela era inferior aos homens? Sara estava realmente irritada. - Se eu disser que não o senhor voltará atrás? - perguntou, irônica. O capitão sacudiu a cabeça. - De modo algum. Nem um tufão me faria mudar de idéia. Além do mais, a senhorita parece que se adaptou muito bem. É de admirar que o Saragota não seja exatamente o mais estável dos navios, por ser muito largo nas laterais. - Ele não foi feito para servir de transporte às mulheres - Gerald Regan observou, e deu um sorriso a Sara. - É claro que você é uma exceção. Estou começando a achar que vai aguentar muito bem a viagem. - Eu nunca duvidei disso. Sempre me saio bem das enrascadas. - Dá para ver. Com a chegada do engenheiro-chefe a conversa foi interrompida e todos se apressaram em encontrar um lugar para ele. Nick Bryant resolveu a questão cedendo sua cadeira e indo sentar-se no braço da poltrona de Sara, sem aceitar os protestos do recém-chegado. - Não faça cerimônia que eu já sou da casa - disse tranquilo. - Sente-se, homem! A conversa continuou, mas Sara não conseguiu mais prestar atenção a ela. Estava por demais consciente da presença de Nick para poder acompanhar o bate-papo. O braço dele quase roçava o seu. As pernas estavam cruzadas à sua frente de tal forma que um dos pés ficava como uma barreira impedindo-a de sair. Ele vestia um suéter, como ela. Os cabelos grisalhos pareciam ainda mais brilhantes em contraste com a brancura da blusa. Sara podia sentir, nitidamente, o cheiro de sua loção pós-barba. Tudo nele era muito másculo, muito agressivo. Era inútil negar que se sentia atraída por Nick. E desculpou-se pensando que poucas mulheres permaneceriam imperturbáveis perto de um homem assim tão seguro. Quantos anos ele teria? Talvez trinta e seis ou trinta e sete. Com certeza, não mais do que isso. Será que era viúvo? Teria uma mulher em sua vida? O pensamento deixou-a agitada, e ela se mexeu na cadeira. - Não me deseje tanto - Nick cochichou no ouvido dela. - Posso sentir as vibrações daqui. Sara não procurou negar. De que adiantaria? - Você deve estar acostumado a ter as mulheres a seus pés. - respondeu também em voz baixa. - Mas nem todas são iguais... - Eu não disse que eram... - Fez uma pausa e mudou de assunto: - Tem medo de tempestades? - Só se forem muito fortes. Por quê? - Você parecia um pouco perturbada quando Dan falava do mau tempo. Ele também notou. Não vai ser uma viagem muito agradável, mas nós não correremos grandes riscos. Sabe usar um colete salva-vidas? - Não. Está querendo me assustar? - É bom estar preparada para tudo. Dan deveria tê-la ensinado. Há uma em sua cabine. Depois que você terminar o café iremos até lá e eu mostrarei como usá-la. Nosso bote salva-vidas é o da seção 3. Você deve saber o caminho mais rápido de sua cabine até ele. - Descobrirei, não se preocupe. Em caso de necessidade posso perfeitamente me virar sozinha, obrigada. - Acho que não pode não. Há alguns detalhes meio complicados. Eu disse que vou mostrar a você e mostrarei. Quer goste, quer não, terá de aprender a depender dos outros enquanto estiver neste navio. Uma mulher sozinha já causa por si só muito transtorno. Não precisa ficar piorando as coisas! Sara não disse mais nada, não havia necessidade. Eles saíram do salão junto com o capitão, deixaram-no na escada do tombadilho e seguiram pelo corredor até a cabine dela. Nick achou o salva-vidas dobrado cm uma prateleira superior do armário. Endireitou as amarras e fez com que Sara passasse os braços pelos buracos adequados, ensinando-a, então, como prender o colete e como amarrá-lo rapidamente com os fios. Havia um assobio no bolsinho e uma lanterna a pilha do tipo que se acende automaticamente ao entrar em contato com a água. Sara tinha certeza de que teria conseguido se virar sozinha, sem maiores dificuldades, mas achou indelicado dizer isso. - Obrigada - respondeu, quando ele terminou. Nick observou-a tirar o colete e depois guardou-o em seu lugar, antes de continuar a explicação: - O caminho mais rápido para o seu bote é pela escada que descemos vindo do deck. O bote 3 está quase em frente. Entendeu bem? - Sim. - Ela sentia a maior vontade de fazer uma ironia, mas conteve-se. - Parece que você não se esqueceu de nada. - É claro que não me esqueci. Bem, vejo você na hora do almoço. Sara não tinha tanta certeza disso. O aumento constante do balanço do navio estava começando a deixá-la enjoada, achava que não poderia se manter em pé. O café da manhã só tinha piorado as coisas. Agora Sara não via alternativa a não ser deitar e esperar o enjôo passar. Ela ficou deitada por tanto tempo que até perdeu a noção da hora. Voltou a si quando Nick apareceu na porta dizendo: - Achei que fosse acontecer isso. Você já estava meio enjoada antes. Fique onde está, volto em um instante. Dificilmente vou a algum lugar sentindo-me mal deste jeito, Sara pensou, quando ele desapareceu. Que chato! Não era nada agradável que Nick a visse daquela maneira! Fechou os olhos e virou-se para o canto, na esperança de que ele pensasse que ela estivesse dormindo. Fosse qual fosse o remédio que Nick lhe trouxesse, ela não iria querer. Não queria nada além de ficar sozinha e morrer! Quando a porta se abriu, ela ficou quietinha, mas Nick não se deixou enganar, foi até ela, sentou na beira da cama e estendeu a mão com dois comprimidos. - Tome estes, primeiro. Nada de água, que água não pára no estômago. Ela achou que não tivesse escolha e colocou os comprimidos na boca, engolindo-os a seco. Depois escondeu o rosto no travesseiro. - Deixe-me sozinha - implorou, procurando conter as ondas de náusea. - Ainda não. Você vai comer estes biscoitos. Ficar de estômago vazio é pior. - Não posso! - Pode, sim! - gentilmente, mas com firmeza, ele a virou em sua direção. - Tente sentar-se ou vai engasgar. Há um prato com bolachinhas... coma algumas, é o melhor remédio. Os comprimidos vão ajudá-la a se adaptar ao balanço do navio. Ora, vamos, você vai se sentir melhor, eu garanto. - Por que você se importa com o que eu estou sentindo? - Ela estava sendo infantil e sabia disso, mas não se incomodava. -Você não é responsável por mim! - Eu tenho alma de bom samaritano. Não abandonaria um gatinho doente. Vamos, deixe de ser criança, coma os biscoitos. O primeiro custou-lhe um pouco para descer e não pareceu ajudar muito. Ela tentou recusar um segundo, mas Nick foi irredutível. O terceiro já foi mais fácil e, milagre, o enjôo começava a passar! - Eu tentaria dormir um pouco agora - Nick disse, depois que ela comeu tudo. - Há bastante comprimido na cesta de remédios. Se você precisar, pode tomar mais dois dentro de três ou quatro horas. Comum pouco de sorte, poderá até jantar. Bem, já vou indo. Quer que eu tranque sua porta por fora para ninguém vir perturbá-la? Você só terá que abaixar o trinco, se quiser sair. Sara apenas sacudiu a cabeça, com medo de abrir a boca e enjoar. Esperou até que ele chegasse à porta para dizer em uma voz baixinha; - Desculpe-me eu agir como um bebê, é que nunca gostei de ficar doente. - Ninguém é a fortaleza que gostaria de ser. - Pela primeira vez o sorriso de Nick era franco. - Esqueça isso. Amanhã tudo terá passado.
Quando Sara acordou a cabine estava às escuras. Somente o contorno da porta, levemente iluminado, destacava-se na escuridão. Não havia estrelas no céu, e o movimento do navio piorava considerávelmente. Curiosamente ela não sentiu nada ao levantar a cabeça para acender a luz. Seu relógio marcava sete e quinze. Isto queria dizer que ela dormira quase seis horas! Provavelmente tinha sido por causa dos comprimidos, não estava acostumada a tomar nenhum tipo de remédio. O jantar só seria servido às oito e meia, e Sara tinha tempo suficiente de tomar uma ducha e trocar de roupa. A que vestia, depois de ter dormido com ela, estava muito amarrotada. Ao se levantar, percebeu que um cobertor lhe cobria as pernas. Estava certa de que ele não estava lá antes de dormir. Alguém havia entrado lá durante o dia. O comissário, talvez. Mas dificilmente ele entraria sem bater na cabine! Sobrava, então, Nick Bryant. Ele era a única pessoa que tinha a chave de sua porta. Mais uma vez teria de agradecer a Nick. Por que ele se preocupava tanto com ela? Sara não conseguia entender aquele homem. Se ele não a tivesse obrigado a comer aqueles biscoitos à tarde, agora ela provavelmente estaria se sentindo um trapo. Mas, na noite anterior, ele a forçara a coisa bom diferente. Nick era, realmente, imprevisível. A única coisa que podia esperar era que seus bons instintos continuassem a prevalecer. Segurando-se no corrimão para não cair, Sara foi tomar um banho, sem encontrar ninguém no corredor. O balanço do navio era tanto que ela demorou para se vestir, e levou mais tempo ainda para maquilar-se. Finalmente estava pronta para ir jantar, elegante e esbelta num vestido leve, um dos únicos que levara. Sara havia levado uma bagagem muito pequena, pois antes quase não tinha dinheiro para comprar roupas. E, depois de receber a herança, quis empregá-la inteira na viagem. Não se arrependia disso porque, como era a única mulher no meio do pessoal do navio, ela parecia sempre bonita e bem vestida. Já estava pronta quando ouviu baterem à porta. Seu coração disparou pensando que fosse Nick e, ao mesmo tempo, desejando que não fosse. Foi quase um alívio abrir e dar de cara com o primeiro-oficial. - Pensei que não voltaria a vê-la - ele disse. - Como está? - Sinto-me uma nova pessoa. - Estou contente que você não seja... Estava bem satisfeito com a antiga. Pronta para jantar? Ela concordou, saindo com ele. Ao fechar a porta, lembrou-se de que deveria pedir a chave a Nick Bryant. - Você estava em serviço? - perguntou, enquanto atravessava o estreito corredor. - Saí há quinze minutos. Tive de me trocar rapidamente, para ficar elegante a tempo de vir buscá-la. - Estou envaidecida. Cheguei a pensar que não conseguiria jantar... - O mar está muito bravo, segure-se firme. - Mike agarrou Sara pela cintura, apertando-a de encontro a si, pois o navio tinha inclinado agudamente para estibordo por segundos que pareceram intermináveis. Sara não viu alternativa, mas havia alguma coisa na maneira como ele a abraçava que a impedia de relaxar. Justamente nesse instante Nick Bryant saía de sua cabine, antes mesmo que ela tivesse tido tempo de endireitar-se. Quando o navio começou a voltar ao normal, soltou-se imediatamente do primeiro-oficíal, mas encontrou os olhos cinzentos de Nick já fixos nela. Mesmo sem querer, Sara sentiu que corava. - Folgo em ver que você se recuperou bem - ele disse, irônico. Entraram juntos no salão e encontraram os irmãos Regan já sentados, ao lado dos oficiais que não estavam de guarda. Não foi uma refeição agradável, e não só por causa do balanço do navio. Com Mike a seu lado e Nick Bryant a sua frente, Sara sentia-se entre a cruz e a espada. Por isso, ficou contente em poder concentrar sua atenção em Gerald Regan, que conversava animadamente com o engenheiro-chefe. Quando eles foram para o salão, o primeiro-oficial sentou-se no braço da poltrona de Sara, usando o balanço do navio como desculpa para apoiar seu braço nas costas da cadeira, por trás da cabeça dela. Instalado assim, ele tocava em Sara a qualquer movimento que ela fizesse. Mike fingia que não percebia isso, falando da tempestade que logo chegaria. Eles se safariam do centro dela, garantia, mas a tempo permaneceria turbulento pelo menos durante a noite toda. Pelos seus cálculos, no dia seguinte de manhã eles já teriam tempo bom. O primeiro-oficial recebeu com desagrado, mas sem surpresa, o chamado para se dirigir à ponte. - O terceiro-oficial só serve para alguma coisa dentro de uma piscina - comentou impiedosamente. - Precisa de um computador para distinguir a esquerda da direita! O engenheiro-chefe ergueu-se com esforço quando o primeiro-oficial saiu. - É hora de descer e dar uma olhada nas coisas - ele disse, preocupado. Ninguém queria ir para a cabine dormir, mas havia pouca coisa a fazer. Sara notou que Wesley Regan estava completamente sem cor, embora se esforçasse ao máximo para afastar a náusea. Só de notar isso ela já começou a sentir-se mal, e engoliu em seco com medo de voltar a enjoar. - Ainda estou com sua chave - disse Nick, quando eles saíam do salão. - Precisa de mais comprimidos? Ela tentou se mostrar indiferente, não querendo admitir que começava a enjoar. - Talvez não seja má idéia ter alguns ã mão. - Eu vou lhe dar dois para agora e dois para o caso de você acordar de madrugada. Sara olhou-o rapidamente, agarrando-se no corrimão para não tropeçar à medida que avançavam. - Você trouxe seu próprio remédio? - Não, pedi ao capitão que me desse alguns se ''alguém" tivesse necessidade. - Se esse "alguém" sou eu, por que não mandou diretamente para a minha cabine. - Diplomacia. Você poderia sentir-se tentada a atirar tudo na cara do capitão. Pelo jeito como Nick falou, ele devia supor que ela não atiraria na cara dele. Bem, mais uma vez ele estava com a razão. Sara permaneceu na porta de sua cabine, enquanto ele foi buscar a chave e os comprimidos. Estava consciente de que Nick a tratava com frieza por causa de Mike Chandris, mas nada podia fazer a respeito. Se ele a julgava receptiva às atenções do primei-ro-oficial, que continuasse pensando assim. Além do mais, Nick não tinha o menor direito de julgá-la. Ele a ajudara naquela tarde, é verdade, mas nem por isso poderia censurá-la. - Muito obrigada por toda a sua ajuda - disse sem jeito, quando ele voltou. - Fico muito agradecida. - De nada. Boa noite. A explosão ocorreu quando Sara se virava para entrar em sua cabine. O convés levantou-se sob seus pés com violência, atirando-a através da passarela, até que fosse parar no tabique do navio. Não estava desacordada, mas levou alguns minutos até que conseguisse entender o que acontecia e se levantar. Por toda a parte havia um barulho alto e contínuo, estouros, homens gritando, o ronco de vapor escapando de algum lugar no interior do navio. Aturdida, viu o convés inclinando-se perigosamente onde ela havia caído, e sentiu as vibrações percorrendo toda a embarcação. O medo tomou conta dela, fazendo com que esquecesse a dor de seus machucados. Lutava para ficar em pé quando Nick se pôs a seu lado. Com a mão sob seus braços, ergueu-a. O rosto dele estava tenso, e um fio de sangue escorria de um corte no rosto. - Sua cabeça - ela disse, meio fora de si. - Você cortou a cabeça! - Não foi nada. - Sua voz revelava urgência. - Você está bem? Sara fez que sim com a cabeça, sem ter muita certeza. - Que aconteceu? - Batemos em alguma coisa. - Enquanto falava isso ele a empurrava até a cabine. - Pegue seu salva-vidas e vista, Ande! Nick voltou com o dele antes que ela abrisse o armário, pegou-o e vestiu nela em vez de se incomodar consigo mesmo. O convés não havia se endireitado ainda, adernando para estibordo e caindo em direção à proa. Fora, as explosões continuavam, junto com o barulho de pés correndo e com o atrito de metais. - Venha! - Nick ordenou, empurrando-a em direção à porta. - Para onde vamos? - ela disse num pânico crescente e tentando voltar para a cabine. - Minha bolsa, eu não peguei minha bolsa! - Deixe-a. Você poderá pegar mais tarde. Ande, Sara, não está ouvindo esse barulho? E o sinal do barco salva-vidas que eles estão acionando! Barco salva-vidas! Sara foi dominada pelo terror. Então eles estavam abandonando o navio? Não podia ser verdade! Apenas alguns poucos minutos se passaram desde a explosão. Um navio não afunda em minutos! Sem dar tempo para que ela se entregasse totalmente ao pânico, Nick continuou a empurrá-la através do navio. Em poucos segundos eles estavam do lado de fora, passando pelo corredor estreito em direção a popa, com os Regan atrás deles. Nick ainda a segurava com a mesma força, mas Sara não sentia nada. Pensava que estivesse vivendo um pesadelo. Tinha que ser um pesadelo! Aquilo tudo não podia estar acontecendo de fato. A força do vento e a chuva batendo em cheio em seu rosto foram suficientes para convencê-la da verdade. O bote número 3 já descia até a água, oscilando aos solavancos quando o navio dava guinadas: os marinheiros estavam dependurados nas cordas, tentando manter o bote parado. Sara se viu carregada, e depois viu Nick de pé no convés olhando para trás com as mãos na boca como se quisesse fazer-se escutar acima do barulho do vento. Então, de repente, ela sentiu que perdia os sentidos e não viu mais nada.
Sara voltou a si lentamente, como se relutasse para enfrentar o que a esperava. O vento ainda soprava forte, e a noite estava escura como breu. Um homem se inclinava sobre ela. Pelo toque, sabia que era Nick. - Não se mexa - ele ordenou em seu ouvido. - Consegue ver alguma coisa? - Posso ver você... O que aconteceu ao navio? - Afundou como uma pedra. Acho que todos conseguiram se salvar. - Mas como... por quê? - Ela não podia acreditar no que ouvia. - Houve uma explosão, eu me lembro, mas o que... - Nós chocamos com uma mina. Uma velha mina, da época da guerra. Pelo menos, é o que pensamos. Ela retalhou a proa submersa, e os compartimentos anteriores se inundaram em um minuto. Não havia a mínima chance de o navio escapar inteiro. Ainda bem que conseguimos sair a tempo. - Homem na água! - O grito chegou até eles vindo de algum ponto no bote. Dois marinheiros se debruçaram na água, tentando desesperadamente alcançar alguém com um remo. - É Chandris - Nick disse. - Com ele completamos uma dúzia. Todo mundo está mais ou menos bem. E você, dói muito a cabeça? - Um pouco.... - Sara se sentia muito mal, mas não queria reclamar. Ela estava deitada, ensopada, como todos, da água da chuva e do borrifo do mar. A chuva passou primeiro, trazendo um pouco de alívio. Mais tarde o vento diminuiu consideravelmente, embora o mar continuasse bravo. Apesar do desconforto, Sara adormeceu, exausta. Quando acordou já era dia, o céu estava claro e azul. Nick estava sentado diante dela, de costas, conversando. Sara tentou sentar, mas sentiu uma dor aguda na nuca. - Sente-se bem? - Mike Chandris perguntou, agachando-se ao lado dela. - Pensei que nunca mais você voltaria a si, - Eu estou melhor. Ainda bem que os marinheiros conseguiram tirá-lo da água. Você teve sorte ontem. - Todos nós tivemos sorte ontem! O navio afundou exatamente vinte minutos depois da explosão. - E o capitão? Conseguiu sair? - Acho que sim. Fomos os dois últimos a deixar o navio. Ele pode ter sido recolhido por algum outro bote. Podia, mas não era provável. Com o tempo daquele jeito, eles já deviam se julgar satisfeitos de ter salvado Mike. Sara fechou os olhos um instante, lembrando-se do simpático capitão do Saratoga. Ela não conseguia acreditar que ele estivesse morto, tudo parecia irreal. Imagine só: um naufrágio de navio. Esse era o tipo de coisa que se vê nos livros. - Quanto tempo acha que vão levar para nos encontrar? - A qualquer hora aparece um navio. - Não lhe dê falsas esperanças - disse Níck bruscamente, juntando-se a eles. - Ela já tem idade suficiente para saber o que se passa: mandamos um sinal pedindo socorro, mas não sei se será recebido. O rádio não estava funcionando ontem à noite. A esta altura já devemos estar fora das rotas regulares dos navios. Isso nos deixa duas chances: ou nos encontramos com águas bruscas ou chegamos a terra. Olhando para o sol dá a impressão de que estamos sendo levados para sudoeste pela corrente. Se continuarmos assim e ajudarmos com os remos, poderemos chegar às ilhas Galápagos dentro de poucos dias. Ela ficou quieta durante um longo tempo, olhando-o, tentando captar o que não fora dito. - Isso vai depender de onde estamos agora - disse, controlada. - Não teríamos sido carregados para muito longe pela tempestade? - É pouco provável. E, mesmo que seja assim, temos água e comida para dez dias se formos cuidadosos, E mais do que suficiente. Desde que os cálculos dele estejam certos, Sara pensou. Se estivessem errados, eles estariam perdidos. Além das Galápagos, havia milhares de quilómetros de água! Ela sabia disso, e também que não deveria alimentar muitas esperanças. Mas ficou contente que Nick tivesse contado o pior. Mike Chandris fuzilou Nick com o olhar. - Acha que adianta falar isso para ela? - Uma vez que se sabe o pior, nada nos surpreende - Nick respondeu. Dirigindo-se a Sara, acrescentou: -Como vai a cabeça? Sente tonturas? - Tenho só um galo na nuca. Ele pegou o queixo de Sara e, gentilmente, virou seu rosto de lado, repartindo os cabelos e examinando a área dolorida. - Parece que já está melhor. - Não me diga que você é médico também! - Mike arguiu, sarcástico. - Não, não sou. Sara, será que você poderia sentar-se um pouco mais na frente enquanto os homens montam o abrigo? - Claro. - Sara aceitou a ajuda dele para se levantar. Podia sentir o olhar irônico de Mike, mas recusou-se a se deixar afetar por isso e perguntou a Nick: - Os Regan não deviam estar conosco? - Eles foram para o outro bote. Tentei chamá-los, mas havia muito barulho. Eu não me preocuparia, acho que eles não estão pior do que nós. - Nick... - Mal começou a falar, ela parou, dando-se conta de que o chamara pelo primeiro nome. Mas, naquela situação, não podia ser tão formal. - Qual a chance que temos de nos encontrarem com um aviso de busca? - Não muita... - Então não acredita que o sinal tenha sido recebido? - Digamos que não estou contando com isso. Gostaria muito de estar errado. Mas tente relaxar, Sara. Volto já. Ela viu-o caminhar através dos bancos para ajudar os tripulantes que erguiam a lona de cobertura. Mike Chandris estava mais próximo, mas não parecia interessado em fazer força. Além dele, Ronny era o único oficial a bordo, mas estava com a perna ferida. Sara foi sentar-se ao lado dele. - Olá! Quem diria que a nossa viagem terminaria assim, hein? - Você é muito corajosa, srta. Smith. - Meu nome é Sara. Depois de tudo o que aconteceu, não pode continuar me chamando de srta. Smith! - Está bem... Sara. Quinze minutos mais tarde foi servida a primeira refeição, composta de um punhado de biscoitos e uma caneca de água. O "cozinheiro" eleito para o dia prometeu que o almoço seria melhor, desde que o mar se acalmasse o suficiente apara que pudessem acender sem perigo a espiriteira de parafina. Assim ao menos poderiam fazer café. Para Sara tudo continuava meio irreal. Tinha certeza de que de um momento para o outro acordaria! Mas tudo continuou igual, e o tempo foi passando. As noites eram piores, durante o dia havia alguma atividade para distrair: comida a preparar, a força para fazer no remo, a higiene pessoal. Mas, à noite, havia somente o mar escuro, perigoso e traiçoeiro, levando-os sempre para o sul. Já não tinham mais chances de atingir as ilhas Galápagos, mas ninguém queria ser o primeiro a dizer isso. Era fácil pegar peixes com a linha de pesca do equipamento de emergência. E foram as tripas desses peixes que atraíram os tubarões, que depois não se afastaram mais do bote. No começo, eles sentiam medo. Mas acabaram se acostumando a vê-los sempre por perto. De todos, somente Nick se recusava a entregar-se ao desânimo, ele estimulava os homens para que remassem cinco horas por dia: era a única maneira de não se deixarem dominar pela apatia total. Mike Chandris parecia bem contente em deixar que Nick assumisse o comando da situação, passando a maior parte do tempo ao lado de Sara, sem notar a crescente aversão dela por ele. No sétimo dia eles avistaram algo que parecia uma porção de nuvens no horizonte. Nick disse que eram montanhas. Se era verdade ou não Sara não sabia, mas isso estimulou os homens a vencer as correntes e atingir a praia. Depois de uma semana no bote sal-va-vidas, eles não acreditavam que estavam em terra firme. Sentir a areia sob os pés foi uma sensação estranha para Sara. Suas pernas estavam duras, não conseguia andar direito. Sentou-se a alguns metros da água e, com as mãos na areia, gozou a sensação de segurança. - Que maravilha, hein? - Mike sorriu. - Chegamos a um novo lar! - Melhor do que passar outra noite no barco. Você não vai ajudar a trazer Ronny até aqui? - Eles que se virem. Temos só uma hora antes de anoitecer e precisamos arranjar fogo. - Parece que já pensaram nisso - ela respondeu friamente, apontando para Nick e dois homens que recolhiam gravetos para a fogueira. - Ótimo! Eles fazem o trabalho puxado e eu conduzo o show, é minha função. - Virando-se para o trio, gritou: - Peguem umas facas e cortem folhas de palmeiras para improvisarmos uma cabana para hoje. Bryant, quantos fósforos temos ainda? Nick o olhou, impassível, e respondeu: - Três pacotes. O primeiro-oficial foi até Nick e estendeu a mão. - Eu tomo conta deles, não podemos desperdiçar. - Guardo um comigo. - Estendeu-lhe dois pacotes. Por um segundo pareceu que Mike ia discutir, mas acabou dando de ombros e indo embora. Sara foi ate Nick, protestando: - Não me agrada tê-lo no comando de coisa alguma. - Preferia que fosse eu? - Ele sorriu, provocador. - Incrível o que uma semana no mar pode fazer com as pessoas! - Na verdade, eu preferia não receber ordens de ninguém. Todos são adultos e sabem o que precisam fazer. - E você deveria saber que precisa se afastar de Chandris, a menos que queira brincar de Adão e Eva... Você é a única mulher no meio de onze homens. Se mostrar preferência por algum, pode correr perigo. - É uma maneira delicada de me dizer para me afastar de você? - Não, é uma maneira de dizer que sou igual a eles,.. Lembre-se do que acabei de lhe dizer e não procure confusão. - E se elas acontecerem, de qualquer maneira? - Veremos isso depois. A! vem Chandris. A vontade de Sara era sair correndo atrás de Nick, apoiar o rosto no peito dele e implorar por proteção. Mas não podia fazer isso, ele tinha deixado bem claro. Azar dele!, pensou. Mostraria a todos do que era capaz!
Choveu muito naquela primeira noite na praia. Preocupados em ter onde se abrigar, em dois dias eles construíram três cabanas de sapé. Sara ficou com uma delas. Se alguém se opunha a esse trabalho extra para dar privacidade a um dos membros do grupo, ninguém disse nada. A presença dela no meio deles estimulava os homens a cuidar da aparência. As roupas haviam sido lavadas, e o banho diário foi aceito como uma obrigação. Como não era possível barbear-se, a maioria dos homens já apresentava indícios de uma bela barba, com exceção de Ronny Tarrent, o jovem terceiro-oficial. Sua barba era rala e crescia em tufos, o que o enchia de vergonha. - Meu único consolo é que não posso me ver - ele se lamentava a Sara. - Meu queixo parece um coco velho! - Nenhum de nós está uma maravilha. Eu nem consigo desembaraçar meus cabelos. Ele olhou-a por um segundo. O castanho dos olhos de Sara contrastava com a cor de sua pele. - Você não deve se preocupar. Está duas vezes mais bonita do que qualquer garota que eu conheço. - Obrigada. - De todos os homens, Ronny era provavelmente o mais vulnerável ã sua presença. Convidá-lo a olhá-la do modo como acabara de fazer não era uma maneira inteligente de manter uma certa distância no relacionamento deles. Tinha que ser mais cuidadosa. Rapidamente, acrescentou: - Como está sua perna hoje? A expressão dele mudou, ele parecia ter medo de encarar a verdade. - Bem, quase não sinto mais dores. - Ótimo! - Sara não acreditava que Ronny estivesse melhor. Nick tinha feito tudo o que podia para impedir que o joelho dele infeccionasse, mas a rótula estava quebrada. A única esperança para Ronny, Nick lhe confidenciara, seria arranjar um bom cirurgião quando voltassem para casa. Casa... Essa palavra trazia lembranças dolorosas, fazia dez dias que o Saratoga havia afundado, quase um mês que ela partira da Inglaterra. A essa altura todos eles eram considerados mortos. A ilha, que no início tinha parecido um paraíso, estava se transformando rapidamente em uma prisão. Mas, se eles partissem, para onde iriam? A lembrança daqueles dias no bote estava muito viva ainda para que ousassem se lançar ao mar novamente. Ela olhou a praia, admirando a beleza selvagem da areia branca com as palmeiras e sentindo um cheiro de mato trazido pela brisa. Os grupos de reconhecimento que eles formaram já tinham percorrido a ilha inteira à procura de indícios de vida, sem nada encontrar. Havia pássaros, frutos comestíveis e uma infinidade de tocos, mas nada para caçar. Era o paraíso com que as pessoas sonhavam, mas, passado um tempo, começava a se tornar cansativo. Para alguém animado como Nick, muita coisa havia para fazer. Cada melhoria, porém, parecia reforçar a idéia de que permaneceriam para sempre na ilha. Mike Chandris saiu da cabana, e Sara estremeceu. Desde que chegaram à ilha quase não tinha falado com ele. Mesmo assim, a atitude de Mike em relação a ela era de crescente familiaridade. Frequentemente o surpreendia olhando-a com um ar de cumplicidade, como se partilhassem algum tipo de segredo. Isso a incomodava, mas não podia fazer nada. De uma coisa, porém, estava certa: não queria ter Mike nem como amigo nem como inimigo. Depois de ver a maneira como se autodenominara líder, só sentia desprezo por ele. Se havia algum líder, este devia ser Nick; afinal, foi ele quem organizou a construção das cabanas, quem construiu as rudes ferramentas de que dispunham, quem, por mais de uma vez, apartou as brigas entre os homens. Mike usava o comando como desculpa para ficar sentado e deixar os outros trabalhar. Até aquele momento tinham permitido que ele se comportasse assim, mas Sara sentia que em breve haveria uma revolta. E Nick seria incapaz de impedi-la. Pensar em Nick deu-lhe um aperto no coração. Será que ele jamais sente falta de alguém?, ela se perguntava. Nada parecia abalá-lo, nem mesmo a situação que viviam. Se abalava, não demonstrava. Ao contrário dos outros que viviam se queixando da falta da família, ele parecia não precisar de ninguém, bastando-se a si próprio. Sara não se conformava com isso e sentia-se desprestigiada por ele cada vez que pensava no assunto. - Acho que vou tomar meu banho - ela disse de repente a Ronny. - Por favor, não deixe mais ninguém vir até a praia. - Vou vigiá-la com um facão. Enquanto caminhava até a pequena praia oculta, Sara sentia a areia quente sob os pés descalços e o vestido colando em suas costas. Achava horrível ter de usá-lo o tempo todo. Como estavam em uma praia, pensava que poderia muito bem andar só de biquini. A única diferença é que aquela não era uma praia de veraneio, com dezenas de outras mulheres usando trajes de banho. Se aparecesse de biquini, todos os homens iriam desejá-la. E, como Nick sempre a lembrava, chamar a atenção sobre seu sexo era procurar problemas. Depois de verificar mais uma vez que ninguém a observava, Sara tirou o vestido, lavou, e deixou-o ao sol para secar. Mergulhou com prazer no mar, sentindo a água gelada acariciar sua pele e refrescar seu corpo. Por muito tempo ela ficou lá, brincando e tentando desembaraçar os cabelos. Não era fácil sair da água, mas ela não podia ficar no mar a manhã toda. Andando lentamente, foi até as palmeiras e ajeitou algumas folhas para deitar enquanto sua roupa de baixo secava o suficiente para que ela pudesse colocar novamente o vestido. Deitada ao sol, com os olhos fechados, Sara quase sentia que estava em férias normais. Sua pele se adaptara bem à exposição dos raios solares; procurava proteger-se nas horas mais quentes do dia. Mas, nesse momento, o sol apenas esquentava suavemente seu corpo sem queimá-lo demais. Estava cochilando quando percebeu alguém parado a seu lado. Era Mike que a olhava demoradamente. Assustada. Sara sentou-se rapidamente, procurando pegar o vestido. - Você não tem nenhuma consideração? - Olhou-o com raiva. - Sabe que venho tornar banho a esta hora todos os dias! - E, eu sei. - Ele sorria, com uma expressão nos olhos que a deixava amedrontada. - Aproveitando bem o seu banho? - Não é da sua conta. Você se incomodaria em sair daqui enquanto me visto? - Para que a pressa? Está maravilhosa assim. - Mike se deitou ao lado dela na areia. Quando Sara tentou se levantar, ele forçou-a a permanecer deitada. - Eu disse: por que a pressa? Já está na hora de nos conhecermos melhor. Vamos ficar juntos muito tempo... - Mas não sozinhos! - Sara gritou. Rolando na areia, pegou seu vestido e saiu correndo com ele nas mãos. Antes que Mike tivesse tempo de se levantar, ela já estava longe. - Deixe-me sossegada, Mike. Eu não estou interessada em você. Isto não entra na sua cabeça? - E em quem está interessada? - Ele estava de pé a alguns passos de distância, encarando-a com uma expressão dura e ameaçadora. - Bryant? - Não seja ridículo! Ele não é diferente de você. - Não era verdade mas, se conseguisse convencê-lo de que era assim que sentia, teria mais chance de manter Mike longe. Ele não poderia perceber que havia, para ela, uma enorme diferença entre os dois. - Não quero nada com você nem com Nick. - Seja realista, querida! Quanto tempo acha que os outros levarão para começar a ter certos pensamentos. - Eles podem ter quantas idéias quiserem. Duvido que tentem pô-las em prática se ninguém estimulá-los. - Você é o estímulo de que qualquer homem precisa. Ora, vamos, seja razoável! Estar preso aqui já é suficientemente ruim para nos recusarmos aos prazeres da vida! - Mike, você não é realmente desse tipo que quer parecer. Não prefere esperar até que uma mulher esteja pronta para dormir com você por sua própria vontade? Meus nervos ainda estão abalados pela explosão. Com um pouco mais de tempo... - De propósito ela interrompeu a frase, forçando um sorriso enquanto avaliava as emoções conflitantes estampadas no rosto dele. Será que daria resultado? Tinha que dar. Pelo menos até que ela voltasse para perto dos outros. E, depois dessa vez, tomaria suas precauções para que não houvesse outra chance daquelas. - Você ouviu o que ela disse: ela quer mais tempo! - Nick Bryant falou, semi-oculto pelas palmeiras. Assim como Mike, vestia somente calças arregaçadas até os joelhos. Da camisa de seda creme que usava na noite da explosão, fizera uma tira que amarrava em sua cabeça e que lhe dava um ar de pirata. Falta só um tapa-olhos, pensou Sara levianamente. Ela estava uma pilha de nervos. Não queria nem pensar no que ele teria entendido da cena que havia acabado de presenciar, se é que só chegara naquele momento. - E melhor que você se vista. Vamos esperá-la mais abaixo, na praia. Não é, Chandris? O outro olhou-o com ódio. Sacudindo os ombros, pôs as mãos no bolso e foi andando. Sara suspirou profundamente logo que os dois se afastaram. Sentia-se mal. Sabia que não teria mais sossego dali para a frente. Teria de ficar atenta a qualquer movimento suspeito, porque Mike não ia se convencer a deixá-la em paz! Se Nick não tivesse chegado naquela hora, ela não sabia o que poderia ter acontecido. Precisava de um protetor, e o único homem capaz de desempenhar esse papel era o próprio Nick. Apesar do que ele dissera naquele primeiro dia na ilha, Sara duvidava que corresse algum perigo a seu lado. Não, a menos que ela mesma o provocasse. E ela dificilmente faria isso, lembrava-se muito bem das consequências de um beijo dele. Tirando esse pensamento da cabeça, começou a se vestir rapidamente. Os dois a esperavam na praia. Estavam em silêncio quando ela chegou, e Sara duvidava de que tivessem trocado alguma palavra. De longe, eles até que se pareciam: ambos eram fortes e tinham a mesma estatura, mas entre Nick Bryant e Mike Chandris nada mais havia em comum. Ela não olhou para Nick, mas sentiu seu desprezo e ficou magoada. Tinha que falar com ele. De uma maneira ou de outra, precisava ficar a sós com ele e explicar-lhe como as coisas realmente haviam acontecido. Sem dúvida, ele entenderia por que ela dera esperanças a Mike. Tinha que entender! Durante o resto do dia ela não conseguiu falar com Nick simplesmente porque ele não queria que isso acontecesse, parecia evitá-la de propósito. Mike também não fez nenhuma tentativa de se aproximar. Era um consolo, para Sara, ver que pelo menos por algum tempo ele guardaria distância dela. Ronny desmanchou-se em desculpas por ter deixado que o pri-meiro-oficial a seguisse da maneira como havia feito. - Eu disse a ele que você estava tomando banho e ele riu, simplesmente. Não podia fazer nada, e os outros não pareciam querer se meter. Quando Nick voltou da expedição de caça, fui procurá-lo. Ele foi logo atrás de vocês. Espero que Mike não tenha ido longe demais... - Ele não teve tempo, não se preocupe com isso, Ronny. - Sara ficou contente em saber que Nick tinha ido logo atrás dela. Isso significa que ele, provavelmente, ouvira tudo. Ela não se lembrava quase nada do que havia dito. Só sabia que, a certa altura, o nome dele entrou na conversa. Na hora do jantar, eles se deliciaram com as três aves que a expedição de Nick tinha caçado. Assadas no fogo, elas exalavam um ótimo aroma, dando água na boca. Mas a porção que coube a cada um era muito pequena. Felizmente, a expedição havia trazido outros alimentos, como inhame, que podiam ser cozidos como batatas e serviriam, ao menos, para encher a barriga. Assim pela primeira vez desde que deixaram o navio, Sara acabou o jantar sem estar com a barriga roncando de fome. Como sempre, ninguém ficou de pé até tarde naquela noite. A maioria deles levantava logo que raiava o dia, incapaz de dormir bem nas camas feitas de copas de palmeiras. A vida se organizara pouco a pouco, entrando numa rotina. Apesar dos esforços de Nick para animá-los, poucos homens ainda tinham coragem para ir à caça ou sair em busca de frutas. Eles se contentavam em passar o dia sentados, esperando o tempo passar. Sara acordou no meio da noite, percebendo que a silhueta de um homem se desenhava contra a porta de sua cabana. Antes que pudesse fazer qualquer movimento, uma mão tapou-lhe a boca, anulando seu grito. - Não se assuste - Mike Chandris disse suavemente. - Sou eu. E esse não é um motivo suficiente para eu me assustar? Sara se perguntava, enquanto tentava morder o dedo dele. Quando conseguiu, Mike retirou a mão, xingando-a, e ela aproveitou para pedir socorro. Foi o nome de Nick que ela gritou e, pela rapidez com que ele atendeu, achou que devia estar ã espera do chamado. Mike tentou sair da cabana, mas um vulto lhe barrou a passagem. No minuto seguinte ele estava estendido na areia, com o queixo arrebentado. Os outros homens saíram também, mas não fizeram nenhum movimento no sentido de separar Nick e Mike. Por mais defeitos que Mike tivesse, ele não era covarde. Levantou-se rapidamente do chão e atingiu Nick no peito, procurando acertá-lo no queixo. Mas Nick avançou e o atingiu novamente. Dessa vez o primeiro-oficial ficou no chão nocauteado. Sem perda de tempo, dois homens da tripulação carregaram-no até a cabana. O resto se dispersou. Ao ficarem sozinhos, Nick olhou demoradamente para Sara, que estava imóvel na entrada da cabana. - Você está bem? Ela fez que sim, sem nada dizer. - Sua mão está sangrando - conseguiu pronunciar finalmente. - Não me surpreende. Luta de socos não é nenhuma brincadeira inocente! - Sinto muito. - Sente pelo quê? Por impedi-la de ser violentada? - Eu não consigo acreditar que ele iria tão longe. - Seu rosto estava ruborizado. - Ainda pensa que ele é um sujeito decente! O que você precisa para convencer-se? Chandris não veio à sua cabana a esta hora para bater papo. Eu diria que ele decidiu que você já teve tempo suficiente para pensar. - Não foi bem isso que eu quis dizer hoje à tarde. Só estava tentando afastá-lo. - Não com muito empenho. - Não é justo que você pense isso! - ela explodiu com raiva. - Que mais eu podia fazer? Vocês têm mais ou menos o mesmo tamanho e o mesmo peso. Apesar disso você precisou de dois murros para colocá-lo a nocaute. - Você podia ter gritado. Funcionou muito bem agora há pouco. - Não sabia se tinha alguém que pudesse ouvir meu grito. - Se você não está machucada, pode voltar para a cama. Duvido que Chandris tenha ânimo para incomodar novamente alguém nesta madrugada. - Nick! - Ela precisou afastar seu orgulho para fazer o apelo, mas sabia que não tinha alternativa. - Não posso continuar desta maneira. - De que maneira? - Você sabe o que quero dizer, não preciso repetir. Muito bem, você tinha razão e estou convencida: não confio em Mike Chandris e tenho medo dele. Gostaria que você me ajudasse. Ele riu baixo, meio divertido. - Quer dizer que quer proteção. O que a faz ter certeza de que não vai pular da frigideira para o fogo? Ah, já sei. Se é para escolher, eu sou melhor do que Mike. Sinto-me lisonjeado. - Se eu tivesse que fazer uma escolha, você seria o escolhido - ela respondeu com franqueza, ignorando a ironia dele. - Só que eu não tenho, não é? Tudo que estou pedindo é sua ajuda. - O que você está pedindo é que eu seja um santo. Suponhamos que o preço para minha proteção, se eu der, seja o mesmo pedido por nosso oficial comandante... - Eu não acreditaria. - Então já é hora de abalar essa sua confiança. - Enquanto falava isso, Nick a empurrou para dentro da cabana. Sara sentiu as mãos dele percorrendo avidamente o pano fino de seu vestido e a pressão exigente da boca de Nick colada à sua. O corpo dele juntava-se ao seu, e ela sentia a batida apressada do coração contra seu peito. Procurou afastá-lo, mais por medo das próprias emoções do que de Nick. Quando ele finalmente a largou, ela não sabia se estava contente ou triste. - Ainda quer minha ajuda? - Nick perguntou. - Sim. - Sara fazia um esforço imenso para se recompor. - Você pode abalar minha confiança, mas não pode destruí-la. Sei que não é do tipo de homem que forçaria uma mulher a algo que ela não quisesse. - Eu provavelmente não teria necessidade disso. Bem, quer que eu venha para cá esta noite? - Para cá? Aqui? - Onde mais. A única maneira de manter Chandris afastado é dando e impressão de que eu assumi a situação. Ele dificilmente acreditaria nisso se ocupássemos cabanas separadas. - Mas, e os outros. Poderiam armar uma confusão. - Se houver problemas, saberei lidar com eles. Mas você está procurando desculpas. Afinal, quer ou não que eu fique a seu lado? Sara tinha um pressentimento de que ficaria melhor se estivesse sozinha, mas não tinha coragem de recusar o oferecimento dele. Depois de concordar, Nick disse: - Então vou buscar minha cama. Há espaço suficiente para nós dois, se você for um pouco mais para o lado. Antes que Sara tivesse tempo de arrumar sua própria cama, ele voltou. Ela deitou-se com o rosto virado para a parede e esperou que ele terminasse a arrumação. Quando Nick finalmente se deitou, Sara sentiu sua pulsação aumentar de repente. Era estranho ter alguém com ela na cabana, estranho, enervante... mas não totalmente desagradável. Nick Bryant era másculo e capaz de mexer com ela de uma maneira que homem nenhum jamais tinha feito. Sara gostaria de entender Nick um pouco melhor. Ele era tão complicado! Já tivera uma esposa, ainda tinha uma filha e jamais falava numa ou noutra. Parecia que não lhes dava a menor importância. Quando ele a beijou, alguns minutos antes, foi com força mas não com brutalidade. Isso a fazia se perguntar como se sentiria sendo beijada por ele com amor. - Durma! Eu não vou tocá-la. Sara não sabia com certeza se, ouvindo isso, sentia alívio ou desapontamento.
Na manhã seguinte Mike Chandris estava quieto e mal-humorado, cuidando de um machucado em seu queixo que já adquirira um aspecto ruim. Ele saiu sozinho depois do café, levando um dos arcos e algumas flechas. Sara sentia-se muito mal ao vê-lo, mas não quis falar nada, pois sabia que não havia maneira de melhorar as coisas entre eles. Afinal, fera Mike quem provocara tudo! Os outros homens abstiveram-se de qualquer comentário sobre a noite anterior, embora Sara sentisse que era alvo de olhares maliciosos e ouvisse cochichos irreverentes, O próprio Nick parecia ter adquirido um status maior aos olhos deles. Ele não apenas tinha posto a nocaute um homem com quem ninguém simpatizava mas também se apropriara da única mulher do grupo. Até aquele momento nenhum deles parecia ressentir-se do arranjo, exceto, talvez, Ronny Tarrent. E ele demonstrava mais desilusão e tristeza do que inveja ou ciúme. Sara sentia que precisava deixar as coisas bem claras com Nick, antes que ele começasse a levar aquele trato a sério. A luz do dia, ela via que estava num beco sem saída. A quem poderia pedir ajuda, se Nick resolvesse cobrar o privilégio que todos já consideravam dele? Podia gritar quanto quisesse que, provavelmente, ninguém interferiria, com medo de ser tirado fora de circulação, confiar nele, baseando-se só em sua intuição, foi, certamente, uma tolice. Nick era um desconhecido, imprevisível e impossível de controlar. Ele a atraía e a amedrontava ao mesmo tempo. E ela se colocara inteiramente em suas mãos! Entretanto, dias e noites corriam sem que nada acontecesse. Aos poucos Sara começou a relaxar e a aceitar a presença de Nick na cabana como parte de sua vida. Podia perceber a lenta mudança nas atitudes dele, mas não fazia nenhum comentário, apesar de várias vezes o ter surpreendido olhando-a com um sorriso cínico. Ofendia-se às vezes ao pensar que ele não a desejava como ela o desejava: saber que Nick estava deitado a seu lado durante as longas noites sem fazer nada, nem ao menos tentar tomá-la nos braços, era um golpe forte demais para sua feminilidade e para seu orgulho. Mas o que ela queria que acontecesse? Devia era agradecer a Deus o fato de ele respeitá-la. Mike Chandris até aquele momento não tinha mostrado nenhum sinal de querer revidar a derrota que o outro lhe impusera. Toda vez que seus olhos encontravam os de Nick, ele ficava carrancudo, mas se mantinha a distância. Até quando, ninguém sabia. Os ânimos, porém, foram se exaltando à medida que eles perdiam a esperança de ser logo resgatados. Um ou dois homens começaram a defender a idéia de deixar a ilha. Eles preferiam morrer no mar a ficar lá, parados, na expectativa de ser encontrados. Foram derrotados, mas não demoraria muito tempo até que outros se juntassem a eles, procurando escapar do tédio. Sara sabia bem o que queria: a vida ali não era uma maravilha, mas ao menos era vida. Ela preferia ficar lá e não pensar no dia seguinte. Foi na manhã do décimo dia que Nick fez um convite para que Sara o acompanhasse em uma expedição às colinas. Ela aceitou prontamente, pois não ousava ficar com Mike Chandris sem Nick por perto. Todos, agora, tinham sandálias rústicas feitas de fibras de palmeira trançadas, para proteger da areia quente as solas dos pés. Elas se gastavam rapidamente, mas eram facilmente substituídas. Com alguma engenhosidade e a ajuda de uma faca. Sara conseguiu transformar seu vestido numa saia e frente única, mais fresca, embora um tanto desigual nas beiradas. Assim ela senti a-se melhor para fazer longas caminhadas. Antes de saírem eles pegaram um pouco de comida e dois cocos. Nick carregava seu porta-flechas dependurado no ombro, preso por uma tipóia feita com uma manga de sua camisa. Se antes ele estava bronzeado, sua pele agora tinha escurecido ainda mais. Andando na frente de Sara, ele parecia completamente adaptado à vida primitiva. Sem dúvida, Nick sempre se adaptaria a qualquer circunstância. Sara gostaria de sentir o mesmo. Era a primeira vez que ela se aventurava mais para dentro da ilha, e achou a experiência muito interessante. As árvores eram imensas, a vegetação rasteira, abundante, os raios de sol insinuavam-se de tal forma na mata que enchiam de um ar primaveril o caminho dela. Quando finalmente atingiram as elevações do centro da ilha, deram com uma vista maravilhosa: cada curva de areia branca da baía era rodeada de água em uma dúzia de diferentes tons de verde e azul, o mar se encontrava no horizonte em um céu iluminado e aberto. Nick apontou para a pequena baía, facilmente identificável pelo barco ancorado em sua praia. Havia pouca atividade lá embaixo, a não ser pelo movimento ocasional de uma figura que se arrastava para baixo e para cima na praia. - É o jovem Tarrent tentando mover sua perna -ele comentou calmamente. Sara olhou para Nick, alto, ereto, perfeito, a seu lado, a barba mal aparada dando-lhe um ar viking. - Ele nunca voltará ao normal, não é? - Não conseguirá flexionar a perna. Precisa da assistência de um especialista. O que dificilmente poderá conseguir enquanto estiver preso aqui, Sara pensou, sentindo o coração se apertar. Na idade de Ronny, ter uma perna dura era quase tão ruim quanto não ter uma perna. Nick sentou-se em uma pedra para abrir os arcos com a faca. Sem olhar em volta, Sara disse: - Você acha que deveríamos tentar partir? - Alguns de nós certamente deveriam. - Nick, você não iria embora sem mim... - Ir embora e deixá-la sob a guarda carinhosa do nosso amigo Chandris? - Nick concluiu, desdenhoso. - Você é quem sabe se fica ou se vai. A escolha é toda sua. - Não há muita escolha. Ele deu-lhe um coco com a água escorrendo. Seus olhos cruzaram-se rapidamente. - Nós estamos a centenas de milhas de qualquer rota normal de navio e temos tanta possibilidade de ser encontrados aqui quanto de nos crescerem asas. Se a gente fizesse uma vela de retalhos e tivesse sorte com o vento, poderíamos chegar até o continente. Deve ter umas oitocentas milhas até lá. - E mar que não acaba mais! As Galápagos não estão mais perto? - Talvez, mas são muito mais difíceis de se encontrar. Sem bússola, vai ser um trabalho cansativo; teríamos, porém, a chance de dar com a costa da América do Sul. - O que usaríamos como vela? - Essa sua saia deve ter uns dois ou três metros... - Você não está pensando que eu vou me submeter a ficar seminua nesta ilha ou no meio do mar... - Pense no que é realmente importante. Se você tem tanto pudor, pode tentar fazer outra saia com fibras que há na ilha. Com essa quantidade de pano, mais umas duas camisas, poderíamos conseguir alguma coisa... Especialmente se fizermos uma vela e uns remos. - Isso se eu concordar em dar a saia a você... - Eu mesmo a tome de você se for necessário - Nick disse, irritado. - Não entra na sua cabeça que há coisas mais importantes, do que dignidade pessoal? Ninguém está lhe pedindo que ande nua. - Está me pedindo quase isso! - Sara sabia que estava derrotada, mas não queria se deixar vencer. - É muito fácil para você falar, mas você não é... eu - murmurou, pouco convicta. - Quer dizer que eu não tenho as suas formas? Você não precisa me lembrar disso. Não há nenhum de nós que não saiba de cor todas as suas curvas! - Ele notou o rubor que lhe subiu pelas faces. - O que esperava? Há muito pouco por aqui para ser olhado. E essa roupa não é do tipo que distraia a atenção. Ninguém nunca lhe disse que a imaginação é que nos leva a ter algum momento de lazer? - Pare com isso! - Ela estava tremendo de raiva, consciente do ridículo. - Você já falou o suficiente. Mais do que o suficiente! E ainda acusava Mike Chandris de não ter nenhuma educação... - Está fazendo comparações? - Seus olhos a fitavam em tom de desafio. - Não. - Mesmo com raiva, Sara sabia que não podia se dar ao luxo de brincar com Nick. Ele era imprevisível, e poderia se zangar. - Eu só acho que não precisava chegar a este ponto para dizer o que queria. - Precisava, sim, senão você não entenderia. - De repente, ele fez um gesto de impaciência. - Vamos parar com isso, certo? Eu não a trouxe aqui para passar o dia todo discutindo! Essas palavras fizeram Sara lembrar que, de fato, ficara curiosa com o convite dele. Por que o teria feito? Ela decidiu deixar esse pensamento de lado e aproveitar o passeio. Sentou-se por perto para beber um pouco de água de coco, enquanto olhava a imensidão de azul à sua frente. - Você acha que os outros foram resgatados? - perguntou, querendo iniciar uma conversa mais descontraída. - Seu palpite vale tanto quanto o meu. Nós não temos nem certeza de que os outros barcos conseguiram partir. Ela ficou quieta por um longo tempo, lembrando-se dos Regan e do capitão Anders, do melancólico engenheiro-chefe e dos outros. Quando novamente falou, foi para tentar tirar essas imagens da cabeça. - Fale-me de sua ilha, Nick. Parece com esta aqui? - Mataleta? É parecida. As ilhas do Pacífico têm mais ou menos os mesmos detalhes topográficos. É bem maior do que esta e cultivada, naturalmente. Tem muito café. - Você e seu sócio administram a ilha sozinhos? - Com a ajuda de algumas centenas de nativos. A população branca é composta de seis pessoas, atualmente. - Todos moram na mesma casa? - Quase. Os Newall têm sua própria casa dois quilómetros além da plantação. Em Silverwood moramos eu, Jenny e minha mãe. - Belo nome para uma casa. - É uma casa maravilhosa - disse, sem vaidade. - Meu avô a construiu no lugar da antiga. Eu sou seu último descendente. - E sua filha? - Ela ficará com a casa, se a quiser. - Seu tom de voz mudou bruscamente. - Mais alguma coisa que você gostaria de saber? Ele não gostava de falar da filha, Sara percebeu instintivamente. Será que não a amava? Como Nick era estranho! - Você disse seis pessoas - ela comentou. - Até agora só falou de cinco. A menos que seu sócio tenha um filho também. - Não, é só ele e sua mulher, Olívia. Nós contratamos um administrador alguns meses atrás. Não é exatamente o tipo que eu queria, mas está dando conta do serviço. Dá trabalho encontrar alguém que queira ficar em Mataleta durante bastante tempo. Não há nenhuma diversão, além das que nós mesmos criamos. Terá sido isso, talvez, o que acabou com seu casamento? Sara perguntou-se. Algumas mulheres achavam difícil desistir do mundo exterior pelo resto da vida. Mas, por amor, podiam muito bem fazer isso. Além do mais, havia a criança. Que tipo de mulher abandonaria a própria filha voluntariamente? Sara gostaria de ousar perguntar se a mulher de Nick ainda estava viva, mas sabia que não teria coragem. Ele dava a impressão de já ter dito mais do que gostaria de dizer. - Espero que você possa voltar logo para sua casa - disse em voz baixa. - Se não voltar, não será por falta de tentar. E você? Não quer voltar para casa? Não sente saudade de Londres? - Eu não tenho tanta coisa para rever. Não tenho nem mesmo um emprego. Você tinha até me chamado de imprudente por causa disso, não foi? - Foi imprudência mesmo viajar daquela maneira. Veja onde isso a levou. - Mas veja toda a experiência que estou ganhando. Devia escrever um livro quando voltar e me tornar uma escritora conhecida da noite para o dia. Aqui tem todos os ingredientes necessários, não tem? Uma moça e onze homens sozinhos em uma ilha deserta! Imagine só o estardalhaço que a imprensa faria disso! A única coisa que falta... é vir alguém e nos achar aqui. - Dizendo isso, Sara começou inesperadamente a chorar. - Mas nós não vamos esperar por isso. - Nick estendeu a mão para ela, com um olhar significativo. - Sara, venha cá. Ela encarou-o como que hipnotizada, sentindo-se trêmula. Sabia que não ousaria resistir àquela mão estendida. Lembrava-se dos braços dele a seu redor e já sentia o desejo invadindo-a... Sem se permitir outros pensamentos, levantou-se e foi até ele ajoelhando-se a seu lado, as mãos segurando as dele, os olhos fitando-o, com lágrimas. - Nós vamos sair daqui - Nick disse com suavidade. - Não só sairemos como iremos até o fim. Você não vai chorar agora, porque eu não vou permitir. Entendeu? Não vou permitir! Ela sacudiu a cabeça sem coragem de falar. Seus olhos castanhos cruzaram com os dele, e perceberam quando o rosto de Nick adquiriu uma expressão diferente. Quando ele a puxou de encontro ao corpo, Sara não resistiu. Encostou sua boca na dele e deixou-se beijar com paixão. Havia firmeza nas mãos de Nick, mas delicadeza também. Ela estremeceu ao ser tocada no rosto, no pescoço, acendendo-se como uma vela próxima ao fogo, afastando todo o pensamento do futuro. Queria se deter apenas naquele momento. Nick podia não amá-la, mas ela o amava. Havia dias que sabia disso. Era tudo o que importava; então, por que não deixar acontecer! Ao menos não se sentiria mais tão sozinha. Subitamente, ele levantou a cabeça, surpreendendo-a. Desolada, com a garganta apertada o seca, ela o viu pôr-se de pé e se afastar alguns passos. Quase incapaz de recompor-se, tentou falar: - Nick, eu... - Quieta! - Nick estava de pé, a cabeça erguida para o céu em uma atitude de escuta. - Não consegue ouvir? - Ouvir o quê? - Quando acabou de dizer isso, o zumbido distante entrou em seus ouvidos, fazendo-a ir rapidamente para o lado dele, os olhos perscrutando o céu com uma repentina e incon-trolável esperança. - É um avião! Nick, é um avião! - Lá! - Apontou com o dedo quando o pequeno cisne prateado apareceu. - Ele vem vindo nesta direção! - Tome! - Ela pôs-se de pé, tirando às pressas a saia com dedos trêmulos. - Acene com isto! Eles têm de nos ver! Eles têm! - Acene você, - Ele já corria para o alto da colina, que ficava bem perto. - Nós preparamos uma fogueira aqui para essa eventualidade! O avião estava muito alto e muito longe, mas ia certamente em direção à ilha. Sara acenava com o pano quando ouviu um estalo e um súbito crepitar atrás de si. Viu chamas e fumaça subindo atrás do topo da colina. A parafina, lembrou-se! Eles tinham armazenado o que sobrara da parafina do barco para que o fogo pegasse rapidamente. Ainda acenando, ela olhou para baixo e viu os homens saindo das cabanas para cravar os olhos no céu. Eles deviam ter acabado de ouvir o avião. Agora viam o fogo, dançavam e acenavam em toda a extensão da praia, em um esforço desesperado para ser vistos. A brisa do mar trazia consigo gritos roucos e ininteligíveis. Quando Sara olhou novamente o avião, ele estava acima de sua cabeça, mas não dava mostras de ter visto os sinais e seguia na direção norte. Nick juntou-se a ela para observá-lo, as mãos na cintura, o rosto impassível e controlado. - Se eles não nos virem agora, não verão nunca mais - disse. - Eles têm de nos ver! - Sara redobrou os esforços com a saia, já sentindo o gosto da derrota, mas sem abandonar toda a esperança. - Por favor, por favor! - gritou. - Não nos deixe aqui! - Ele está virando! - Mesmo o autocontrole de Nick fraquejava agora, seu corpo estava tenso como uma corda de violão à medida que o objeto prateado inclinava-se para a esquerda e fazia uma curva que o levaria diretamente para aquele lado da ilha. - Está voltando para olhar de novo! O avião voltou, voando rápido e baixo sobre as cabeças do grupo reunido lá embaixo, que gritava e dava vivas de alegria. Sara quase podia ver o piloto olhando-os com atenção. Quis gritar, exultante, quando ele sacudiu rapidamente as asas, para mostrar que tinha percebido a presença deles. Depois disso o avião retornou a sua rota original, ganhando altura até desaparecer no céu, deixando a ilha toda cheia de esperança. - Mesmo se pudesse descer, ele dificilmente conseguiria acomodar todos - Nick explicou, enquanto os últimos ruídos sumiam na distância, - Se o tempo continuar bom, eles podem nos enviar um hidroavião. Do contrário será um navio, o que significa mais dois ou três dias. - Você tem certeza de que eles perceberam que nós estávamos presos aqui? - Se não perceberam, com certeza comunicarão a existência de uma nova raça de nativos brancos, o que dará o mesmo resultado. Era um aviso de reconhecimento, Sara. Aposto dez para um como ele tirou fotografias. Eu diria até que elas têm toda chance de aparecer na primeira página dos jornais! Sara olhou para suas coxas bronzeadas e despidas e ficou com vergonha. Precipitadamente, vestiu de novo a saia, levando mais tempo que o habitual para recompor-se. Quando levantou a cabeça, Nick estava com uma expressão risonha, embora faltasse um pouco da mordacidade habitual no seu ar zombeteiro. - Estranho a diferença que faz uma palavra. Só você saberia que o que está vestindo não é um biquini. - E o fato de eu saber que faz a diferença. Espero que ele não tenha tirado nenhuma fotografia. Eu me sentiria péssima! Ele deu uma gargalhada gostosa, espontânea. - Tinha de ser uma mulher para sair com uma dessas. Ora, vamos lá! E melhor voltarmos para a praia. Não pretendo ficar o dia inteiro aqui em cima. Ele não pretende e também não tem nenhum interesse, pensou Sara. Logo estariam de volta para casa e livres; por que complicar as coisas? Sara apagou da lembrança aqueles momentos emocionantes nos braços dele. Ela devia sentir-se contente pelo fato de o destino ter interferido. Não significava nada para Nick. O único interesse dele era sexual, estava na cara. Naquele momento, ele não parecia sequer lembrar-se de que algo tinha acontecido entre os dois. Bem, tudo bem, Sara se consolou. Não havia mesmo acontecido nada. Ao menos, nada que importasse. Quando eles chegaram ao acampamento, os outros ainda festejavam na praia, cheios de uma energia que não mostravam havia tempos. Mesmo Mike Chandris parecia ter temporariamente abandonado o lado mesquinho de sua personalidade, rindo e brincando com todos. Ronny Tarrent estava calado, mas havia um brilho novo de esperança em seus olhos. Com o resgate iminente, ele sentia uma possibilidade de recuperar seu joelho. Os ânimos se acalmaram um pouco quando a noite desceu sem um sinal ou ruído de avião. Foi preciso que Nick, com seu bom senso, argumentasse, para animar os homens. Mesmo se o piloto tivesse dado a notícia pelo rádio, era improvável que conseguissem chegar lá com uma esquadra de salvamento. Nenhum piloto ia arriscar uma aterrissagem à noite em uma costa desconhecida, explicou Nick. Ele não citou a outra possibilidade, que era a de terem de esperar vários dias por um navio. Haveria muito tempo para falar disso quando estivesse na cara que não chegaria nenhum avião. Sara não podia deixar de se torturar com o medo de ser abandonada ali, embora soubesse que era altamente improvável o piloto deixar de comunicar a posição deles. A espera causava agonia, intensificada pelo cair da noite. Ninguém comeu muito, o ambiente era de muita tensão. Ninguém também quis dormir. Mas, lá pela madrugada, todos acabaram indo para as cabanas. Agora que a volta à civilização parecia certa, Sara pensava que Nick ficaria com os outros homens. Ela achava que dificilmente Mike Chandris a incomodaria novamente. Preocupada com isso, foi deitar antes de todo mundo e levou um susto ao ver Nick entrando, calmamente, para dormir a seu lado. - Você não precisa mais dormir aqui - disse, com uma vozinha triste. - Não há necessidade, não é? - Não havia pensado nisso. - Sua voz parecia normal, mas Sara achava que Nick escondia alguma coisa. - De qualquer maneira, é um pouco tarde para mudanças agora. - Por quê? Por causa do que os outros pensariam? Tem medo de perder o cartaz? O silêncio pesado que caiu entre os dois era quase insuportável. Quando ele respondeu, foi em um tom surdo e decidido: - Espero que saiba o que está fazendo. - O que você quer dizer com isso? - Quero dizer que você está tentando apagar o que nós começamos lá na colina. Tem certeza de que é isso o que quer? - Não! Não é o que quero. Não sei o que quero. Deixe-me sozinha. Nick! - Ah, então você se magoou com o que aconteceu? Muito bem, está certo, me aproveitei de uma situação. Isso, talvez, faça com que eu não pareça melhor que Mike Chandris. Mas não seria humano se não a desejasse naquele momento. Você tem um corpo maravilhoso e idade suficiente para fazer amor. - E eu parecia desejar fazer, é isso o que você está querendo dizer? Acha que eu fui até você porque queria fazer amor, Nick? - Para ser sincero, não acho que você soubesse o que queria. Talvez soubesse só inconscientemente. Eu já a tinha avisado de que não era nenhum santo, por isso você deveria esperar que as minhas reações fossem um pouco além de um tapinha amigável nas costas. Se aquele avião não tivesse aparecido naquele instante, você conheceria um pouco mais da vida do que conhece agora. Tenho certeza de que essa experiência a amadureceria bastante. - Você está dizendo que sou imatura? - A ironia dele a machucava, como uma ferroada. - Ser adulto é mais do que... do que ficar por aí indo pra cama com qualquer um! - Eu concordo. - Sua voz calma contrastava com o tom exaltado dela. - Mas vê se não fala besteira e se controla, pra começo de conversa. Se você me agredir novamente, Sara, vou acabar esquecendo sua idade... Voltando ao assunto, eu não me impressiono com as assim chamadas "mulheres sexualmente liberadas". Sei muito bem que, no fundo, a maior parte dos homens gostaria de saber se é o primeiro. Eu não me referia a sua falta de experiência nesse sentido. Estava tentando fazê-la ver a coisa sob outra perspectiva, foi isso. O que aconteceu hoje à tarde era simplesmente inevitável em tais circunstâncias. Você precisa de algum tipo de contato emociona] para sentir-se segura, e eu pude dá-lo. Tenho certeza de que você provavelmente responderia da mesma maneira a qualquer outro homem. Só que, por acaso, eu era o único disponível. - Você é muito modesto. - Sua resposta foi controlada mas ríspida. - E a realidade. Mas agora as coisas são diferentes. Você ficou com a confiança em mim abalada, é claro. Mas não precisa se preocupar por eu dormir aqui hoje. Estou cansado e pretendo dormir a noite toda. Naturalmente você poderia me provocar, se quisesse. A escolha é sua. - Você deixou bem claro o que quer. Não me esquecerei. - Ótimo. - Ele deitou-se, aliviado, com ar de quem termina um assunto desagradável. - Agora, pelo amor de Deus, durma um pouco. De qualquer maneira esta será uma noite muito longa. Mais longa para mim do que para você, Sara pensou, vendo que Nick dormia alguns minutos mais tarde. Essa era a última chance que teria de ficar assim tão próxima dele. Se ele a tivesse tomado nos braços poucos minutos atrás, sabia que não resistiria. Não que isso fosse fazer alguma diferença no final das contas. O que adiantava em se preservar tanto? Para Nick, ela havia sido parte de um episódio da vida dele, um episódio que ele, sem dúvida, logo esqueceria. Mas, para ela, ele se tornara tudo. Por que então não ir até o fim? Estava claro que Nick era um homem insensível. De outra forma, teria percebido que era ele que Sara desejava, e não um outro qualquer. Mas ele não tinha entendido isso, julgando que ela procurava apenas um ponto de apoio. Ou Nick não sabia nada de mulheres ou não estava disposto a abrir seu coração para enxergar os sentimentos dela. As duas hipóteses eram tristes. Suspirando, Sara procurou dormir. O hidroavião apareceu às oito e meia, uma hora que ficaria gravada na memória de todos para o resto da vida. Ele aterrissou graciosamente dentro do recife, depois de fazer um reconhecimento preliminar, parando sua corrida uma centena de metros adiante de onde eles estavam e virando lentamente para deslizar de volta. A porta do avião se abriu e um bote dobrável foi lançado à água, dois homens entraram nele e remaram até a praia, saltando para a areia com um largo sorriso, recebendo os cumprimentos calorosos e apertando as mãos ansiosamente estendidas a eles, -Ei, companheiros, vocês passaram por uma boa, hein? - disse um deles com simpatia. - Os outros barcos foram recolhidos em dois dias. Nós desistimos de procurar este depois de duas semanas. Pensavam que nenhum de vocês sobreviveria mais do que esse tempo. E muito improvável achar terra firme nesta região, - Podemos imaginar, todo mundo se salvou? - Nickquís saber. - Não podemos dizer ao certo até saber quem está aqui. - Ele deu uma olhada rápida no grupo reunido e percebeu Sara entre os homens, - Ah, então ele viu certo! Ei, querida, você vai ser manchete, sabia disso? A imprensa já espalhou a história. Há uma multidão esperando pela volta de vocês. Pelo número de homens que tem aqui, acho que quase todo mundo se salvou. O capitão do Saratoga não estava nos outros barcos. - Lamento. Devemos embarcar? - Mike Chandris perguntou. - Não temos nada para levar conosco a não ser o que está nas nossas mãos. Não há muito o que fazer com o barco salva-vidas. - Acho que o deixaremos simplesmente para que acabe por aqui. Tudo bem, todo mundo, vamos indo. Podemos levar quatro de cada vez. Três viagens e estaremos todos em casa. Quem vai primeiro? Sara se viu empurrada gentilmente para a frente pelos homens que estavam próximos a ela. - Mulheres e crianças primeiro! - Nós não temos nenhum garoto - gritou alguém, e houve uma confusão alegre na disputa de quem seria o primeiro a entrar no bote depois dela. Muitos brincavam: - Para trás, seu malandro! Deixe-me entrar primeiro! O piloto que estava dentro do avião era do Tahiti e falava muito pouco o inglês, mas fez questão de cumprimentar Sara quando ela entrou. - Você é uma moça muito corajosa. O avião não era muito confortável, mas ninguém se incomodou. Como era de esperar, Nick foi o último a embarcar, atravessando a portinhola com uma agilidade que revelava sua vontade de ir embora. - A primeira coisa que eu vou querer é um barbeador - comentou com uma careta, passando os dedos pela barba, - Não imagino como alguém pode deixar crescer uma barba como esta por livre e espontânea vontade. - Acho que vou deixar a minha crescer mais um pouco - disse alguém, despreocupadamente. - Nunca tive paciência para tentar isso antes, mas as mulheres gostam de barba. - Especialmente quando escondem uma cara feia como a sua - disse seu vizinho mais próximo, esquivando-se de um soco de brincadeira. Depois que todos se acomodaram, o hidroavião deslizou até a extremidade da baía e retornou para levantar vôo. Sara olhou a estreita faixa de praia cintilando e sentiu um peso no coração quando eles se ergueram da água. Ela sentia uma emoção estranha ao pensar que estavam voando de volta para casa. Vista de cima, a ilha parecia pequena e de alguma forma abandonada. Sara pensou que, provavelmente, jamais a veria de novo. Ficou olhando-a até que aquele pedaço perdido de terra sumisse no meio das nuvens.
O quarto do hotel era decorado confortável mente em estilo espanhol e ficava isolado do calor da tarde por um aparelho de ar-condicionado. Desperta de um sono que, se não a refizera totalmente, ao menos a descansara. Sara ficou deitada um pouco, examinando o teto, enquanto relembrava os acontecimentos das últimas horas. A chegada deles à cidade do Panamá foi uma provação que ela não gostaria de passar outra vez, com a imprensa implorando por detalhes e as pessoas observando-os como animais estranhos. Só quando chegaram ao hotel, onde ela e Nick tinham feito reservas, é que conseguiram uma cópia do jornal que dera a notícia sobre eles. A história estava na primeira página, e vinha ilustrada por uma foto dos dois acenando da colina, a saia de Sara tremulava como uma bandeira, e suas pernas apareciam inteiramente despidas. "Encontrados sãos e salvos os sobreviventes do Saratoga" - dizia a manchete. - 'Terminada a provação da jovem inglesa." Nick não disse muita coisa, mas, quando ela viu a matéria, ficou irritada e envergonhada. - Esqueça! Eles fariam um estardalhaço com qualquer um - disse Nick, para consolá-la. Sara sabia que ele tinha razão, mas achava difícil ignorar toda aquela chateação. Ainda por cima, ver Mike Chandris em uma conversa íntima com um dos repórteres a deixava muito pouco à vontade. Nick já era conhecido naquela região e, por isso mesmo, fazia mais sucesso do que os outros. Se viesse à tona que ele tinha aparentemente se apropriado de Sara para seu uso enquanto estavam na ilha, a imprensa faria a festa. Por mais que procurasse esquecer o assunto, ela se preocupava com a idéia. Os Regan tinham voltado à Inglaterra havia menos de uma semana, depois de esperar em vão por notícias dos náufragos do Saratoga. De todos, somente o capitão Anders não conseguira se salvar, e ninguém sabia exatamente por quê. Sara procurava afastar a suspeita de que Mike Chandris o deixara para defender-se sozinho. Ele próprio havia reconhecido ter sido a última pessoa a ver o capitão. Sara não ousaria contar isso a Nick; Dan Anders fora seu amigo durante muitos anos. Se soubesse de alguma coisa nesse sentido, se tivesse alguma suspeita, ele provavelmente não esperaria por confirmação. Nick dominava seu coração e sua mente. Amá-lo daquela maneira já era uma agonia enorme, mas pensar em separar-se dele estava além de suas forças. Teria de suportar a separação quando chegasse a hora, por enquanto não queria nem se lembrar disso. Ela não tinha a menor idéia de quanto tempo levaria para tomar as providências e voltar à Inglaterra. Havia os cheques de viagem a ser repostos, roupas a ser compradas, mil e uma formalidades a ser cumpridas. Um dos repórteres, em nome de seu jornal, ofereceu-lhe uma grande quantia pelos direitos exclusivos da versão dela sobre o naufrágio e os problemas que se seguiram. Sara não ouviu o que Nick disse para ele mas, fosse o que fosse, foi o suficiente para impedir qualquer outra oferta. Uma batida na porta tirou Sara de seus pensamentos e fez com que ela puxasse o lençol para se cobrir. Depois de ter tomado uma ducha quente, não conseguiu vestir sua roupa de baixo, tão gasta, e deitou-se despida, deliciando-se com o roçar dos lençóis em seu corpo depois de tanto tempo. Então notou que todas as coisas que tinha deixado em uma cadeira haviam sumido enquanto dormia. Agora não tinha muita escolha, era obrigada a ficar despida. Felizmente era a camareira que entrava no quarto com uma pilha de caixas e pacotes. Ela depositou tudo na cadeira, antes de dizer a Sara, sorrindo: - O sr. Bryant manda dizer que espera que tudo esteja bem com a senhorita. Ele virá vê-la dentro de uma hora. Sara agradeceu, curiosa, levantou-se logo que a porta se fechou e foi abrir o primeiro dos pacotes. Dentro havia um conjunto de lingerie de seda finíssima, entremeada de rendas delicadas, Com dedos trêmulos, abriu as outras caixas, colocando as roupas sobre a cama ã medida que as tirava. Havia um conjunto italiano de calça comprida de algodão com uma blusa, tudo bege, um vestido leve de seda, vários pares de sapatos e sandálias de cores e desenhos diferentes, todos com bolsas combinando. Finalmente, abriu uma caixa menor e deu de cara com alguns cosméticos adequados a seu típico físico. Olhando as peças espalhadas a seu redor, Sara engoliu em seco. Nick devia ter encomendado aquelas coisas, ou então tinha sido ele mesmo quem as escolhera. Mostrava, assim, uma consideração e atenção que não lembravam em nada o cinismo agudo com o qual ela estava acostumada. Se ao menos conseguisse entender o homem que se escondia por trás da máscara que ele assumira... Se ao menos pudesse se abandonar novamente em seus braços... Mas não haveria tempo, com certeza. Em poucos dias, talvez cm horas, Nick voltaria para Mataleta, e ela nunca mais o veria. Antes da hora combinada, Sara já estava pronta. Usava o conjunto de calça comprida e um par de sandálias bege-claro, com saltos finos. Seus cabelos emolduravam-lhe o rosto suavemente. Tinha passado um batom rosa-claro e um pouquinho do sombra azul, preferindo proteger a pele com um hidratante, em vez de passar pó-de-arroz. Seu rosto, refletido no espelho, parecia-lhe estranho, com aquele bronzeado e com os cabelos prateados pelo sol. Ela mudara de várias maneiras, não só na aparência. Estava muito diferente da menininha que partira alegremente para uma viagem "inesquecível". Nada agora seria como antes. Um dia ela teria de aprender a viver com a lembrança daquelas semanas na ilha. Nick chegou na hora marcada, exatamente como ela sabia que faria. Ao entrar, lançou-lhe um olhar de aprovação. - Você parece outra pessoa. Está linda! - Obrigada. - Sentiu-se de repente com vergonha dele, como se fosse um homem que acabara de conhecer, bem vestido, barbeado, com os cabelos cortados e penteados. - Eu quero lhe agradecer por tudo isto - disse, mostrando com um gesto a roupa que vestia. - Não precisa agradecer. Foi até divertido tentar adivinhar seu manequim. - Você tem um olhar de entendido. Pelas roupas que você comprou, imagino que esteja pensando em ir a algum lugar. Ou estou imaginando demais? - De maneira alguma. Se vamos ficar só alguns dias, é melhor aproveitarmos ao máximo. Achei que jantar fora seria bem melhor do que comer neste hotel. - Nós ficaremos alguns dias? - Sara virou-se para ele, traindo sua surpresa. - Mas eu pensei... - Pensou o quê? Que eu a deixaria aqui sozinha? De jeito nenhum. Mas não se preocupe, isso é uma coisa que discutiremos depois do jantar. Depois dessa conversa. Sara quase não conseguiu prestar atenção às ruas pelas quais eles passaram de táxi. Só uma que era muito iluminada e movimentada distraiu-a. O restaurante que Nick tinha escolhido era antigo, sossegado e luxuoso, com as mesas dispostas em pequenos compartimentos privados. Ele fez o pedido para os dois. Em seguida, com ar de quem frequentava o lugar, recostou-se para observá-la. - Vamos comer antes de conversar? - perguntou. Sara sacudiu os ombros, procurando parecer tranquila, apesar de sentir seu coração bater descompassadamente. - Se tem alguma coisa que você deseja discutir comigo, é melhor discutir agora. Não vejo muito sentido em esperar até mais tarde. - Nem eu. - Absolutamente tranquilo, completou: - Quero que você vá comigo para Mataleta. Uma onda de esperança invadiu o corpo de Sara, refletindo em seu olhar, mas ela não quis se entregar. - Como uma espécie de governanta para sua filha? - arriscou. - Essa é uma maneira de ver as coisas - ele respondeu, divertido. - Estou sugerindo que case comigo. Quanto tempo ela ficou lá, parada, olhando para ele, Sara não saberia dizer. Quando conseguiu recobrar-se, gaguejou: - Eu... eu não entendi direito. Ele franziu a testa, em um gesto que ela conhecia muito bem. - O que é difícil de entender em uma proposta de casamento? - Seus motivos - conseguiu responder, depois de uns dois minutos. - Você não me ama. - Não é preciso que duas pessoas estejam apaixonadas para que um casamento dê certo - Nick respondeu, matando qualquer esperança de Sara. - Ele tem muito mais chance de durar sem amor. Ela respirou fundo, procurando disfarçar a dor que sentia. - Não é uma maneira muito fria de encarar a questão? - É uma maneira sensata. A emoção só complica um relacionamento. - Você fala por experiência própria? - Sim. Eu me casei muito jovem e por todas as razões erradas. Não quero cometer novamente o mesmo erro. - Você é divorciado? - Minha mulher morreu quando Jenny tinha só alguns meses. - Eu... sinto muito. - Não tem por quê, já faz muito tempo. Mas estou propondo uma sociedade que beneficiara nós dois: Jenny precisa de uma mãe, e você, como já disse, não tem nenhuma razão para voltar à Inglaterra. - Você está querendo propor um casamento por conveniência? - Se quiser chamar assim... Não faz diferença a maneira como você se refira a ele, desde que estejamos de acordo. Eu quero uma mulher, você quer um lar. Eis aí a questão. - Para mim um casamento precisa ter alguma coisa além de lógica. - Quer dizer que prefere esperar até encontrar um homem que se apaixone loucamente por você? - Seus lábios se crisparam, como se ele estivesse aborrecido com a insistência dela. - Talvez acabe se decepcionando. Nós, ao menos, estaríamos começando sem nenhuma ilusão. - Por que eu? - perguntou subitamente com raiva. - Se tudo o que precisa é de uma mãe para Jenny, tenho certeza de que muitas mulheres aceitariam de bom grado o que está oferecendo! - Talvez. - Ele não quis aceitar a provocação. - O caso é que você é exatamente o que ela precisa. Alguém suficientemente jovem para ser sua amiga, mas com habilidade e inteligência para enfrentá-la. - Pela maneira como se refere a ela, deve ser terrível. - E é. E não é por falta de firmeza. - Acredito. - A raiva cedera lugar a uma emoção indefinível. - Talvez, se lhe desse um pouco mais de carinho, em vez de deixá-la aos cuidados dos outros, ela não procurasse chamar sua atenção a qualquer preço. Já lhe ocorreu que levar uma surra é melhor do que ser deixada de lado pelo próprio pai? - Por que você pensa que eu a abandonei? - ele perguntou num tom ameaçador. - Você ficou fora por dois meses e tenho certeza de que não foi a primeira vez. Você nem mesmo se refere a ela com algum sentimento. - Ah, quer dizer que você me conhece tão bem assim? Está bem, eu fiquei longe por dois meses... serão três até eu chegar em casa novamente, mas acontece que é a primeira vez que viajo mais do que alguns poucos dias desde que a mãe dela morreu. O problema maior de Jenny é que ela tem sido muito mimada por uma avó bem-intencionada que, infelizmente, não entende de educação. Isso acontece sempre que uma criança perde a mãe. Por isso você seria ótima para todos nós. - Como um pára-choque entre vocês três, não é? - Não, como um alicerce em que nós pudéssemos todos nos basear para construir algo. - Com o olhar repentinamente zombeteiro, ele completou: - É muito para vocês Ele calculou tudo, Sara pensou. O que Nick lhe oferecia era tão pouco como não oferecer absolutamente nada, rnas ela já sabia que ia aceitar. Ao menos, como sua esposa, estaria com ele, em vez de estar perdida do outro lado do mundo tentando esquecê-lo. E quem garantia que Nick não acabaria também se apaixonando por ela? Quem poderia garantir que não conseguiria fazê-lo esquecer as tristezas do outro casamento? - Está certo - disse baixinho. - Tudo bem, Nick. Eu me caso com você, se é isso o que quer. - Muito obrigado. - Se houve ironia nesse agradecimento, foi muito sutil para ser percebida. - É melhor que amanhã você passe o dia comprando um guarda-roupa adequado, enquanto eu tomo as providências necessárias. Poderemos nos casar daqui a dois dias e tomar um avião para as ilhas. Estaremos em Mataleta antes do fim de semana. - Você vai preveni-los? - Já preveni. Pelo menos disse no telegrama que enviei hoje pela manhã que esperava levar uma esposa comigo. Acho que não subestimei seu bom senso. - Estou sendo sensata, não? - Sara olhou o copo à sua frente, na mesa. - Ontem à noite você disse que eu era tudo, menos sensata. - Ontem à noite nós estávamos falando de outra coisa. Quanto a isso, não temos que nos preocupar. - Ele percebeu que a expressão do rosto dela mudara levemente e riu, então, com familiaridade. - Você não espera que seja um casamento só formal, não é? - Claro que não! - Se ela não esperava, era porque não se havia permitido até aquele momento pensar no assunto. E não era agora que ia pensar. Os homens não precisam estar apaixonados para fazer amor, como ele mesmo tinha dito naquela noite. O que lhe restava era fazer com que o amor dela bastasse para os dois. E Sara se achava bastante forte para isso. Tinha de ser suficientemente forte. Oh, Deus, pensou desesperadamente, faça com que ele me ame também. O casamento civil realizou-se na terça-feira à tarde. Foi uma troca rápida de juras que pouca coisa afetou os sentimentos de Sara. Ela usava um vestido simples, creme, e um chapéu de palha com abas largas. Quando o escrivão a cumprimentou, demorou para se conscientizar de que seu sobrenome agora era Bryant, como o de Nick. Como não foi possível conseguir um vôo para o dia seguinte, Nick havia reservado uma suíte em um hotel. Para evitar publicidade, ele subornou o recepcionista para guardar segredo até que eles tivessem partido. Para alívio de Sara, Nick sugeriu que fizessem um passeio de carro pela cidade e depois fossem a um jantar dançante, em um restaurante que havia escolhido exatamente pela falta de privacidade. Ele dançava bem, mas sem nenhum interesse em especial. Mais tarde, ela recordou vagamente que tinham discutido a situação econômica da Grã-Bretanha, mas não se lembrava de uma só palavra. Foi no caminho de volta para o hotel que Sara caiu na realidade. Naquela noite dormiria com Nick mais uma vez, só que agora como sua mulher, sem nenhuma barreira entre os dois. Ele não a amava, mas tinha deixado claro que esperava que ela fosse compreensiva ao menos em relação a seus deveres conjugais. De repente Sara se viu assaltada por dúvidas. As barreiras não tinham sido desfeitas, estavam em seu coração, sólidas como ferro. Como poderia ter achado em algum momento que tal arranjo daria certo? Se Nick percebeu alguma mudança nela, não deixou transparecer. Ele também parecia preocupado. Subiram pelo elevador em um silêncio absoluto, quebrado somente pelo assobio monótono do ascensorista que, embora demonstrasse total indiferença, seguiu-os com os olhos pelo corredor até que as portas se fechassem novamente. Logo que entraram na suíte, ela acendeu as luzes e, com voz animada, disse: - Que tal um pouco de café? Espero que o serviço de copa ainda esteja funcionando. - Provavelmente, mas não acho que devemos incomodá-los. Bem, eu vou primeiro ao banheiro. Assim não ficarei rodando por aí enquanto você faz todas aquelas coisas que as mulheres consideram indispensáveis antes de dormir. Se quiser fazer alguma outra coisa enquanto estou no banheiro, poderá escolher uma camisa limpa para eu pôr amanhã cedo e colocar umas abotoaduras nela. Sara esperou que o chuveiro estivesse funcionando para ir até o outro quarto, Nick tinha deixado toda a sua roupa sobre uma cadeira. Ela guardou tudo no armário, tirou as abotoaduras da camisa que ele usava e colocou em uma limpa que estava na mala. Ele havia comprado bem menos coisas para si mesmo do que para ela. Sara tinha duas malas novinhas de couro abarrotadas de roupas caras, muito mais do que jamais usaria em uma ilha como Mataleta. Ela tentara dizer-lhe isso, mas Nick fingiu que não ouvia. Ela tinha certeza de que ele não a acompanhara às compras porque sabia que, se fosse sozinha, compraria apenas o essencial. Para pagar seus vestidos, Sara quis usar os cheques de viagem que haviam sido repostos naquela manhã por um dos bancos da cidade, mas Nick se recusou terminantemente a aceitar o dinheiro. Ela acabou ficando com mil e quinhentas libras que não sabia onde gastar. Nick sugeriu que as investisse no próprio nome e se propôs a ajudá-la nisso. Todos os cheques estavam em sua bolsa, menos um que ela trocara por dólares. Nick não deixou que Sara gastasse mais de dez dólares em um presente para Jenny, dizendo que ela não compraria a simpatia da filha com uma boneca caríssima. De qualquer maneira, ele concluiu, Jenny estava muito velha para brincar com bonecas. Sara apostava que nenhuma menina de nove anos rejeitaria a boneca que ela pensava comprar, mas evitou fazer qualquer comentário. Contentou-se em comprar um livro muito bem encadernado e ilustrado. O Mundo em que Vivemos, que pensou que pudesse interessar a uma criança criada a vida toda em uma ilha. Para sua sogra, de quem não conhecia o gosto, ela optou por um xale branco. Ao ouvir o barulho do chuveiro sendo desligado, Sara se levantou e pendurou a camisa que Nick usaria no dia seguinte. Quando ele abriu a porta do banheiro, ela ainda estava diante do guarda-roupa, olhando sua roupa de viagem pendurada lado a lado com a dele. - Pronto - disse Nick. - Ele é todo seu. Vestia um robe de seda muito parecido na cor e no modelo com aquele que tinha usado no Saratoga na noite em que entrou em sua cabine. Por baixo, usava um pijama mais claro. Sara juntou suas coisas sem nada dizer e foi para o banheiro, passando por ele. Fechou a porta com desespero. A situação estava piorando. Aquele homem lá no quarto era seu marido, e era um estranho! Um estranho que ela amava, é verdade, mas mesmo esse amor parecia ter morrido totalmente agora. Durante os últimos dois dias ela tinha estado nas nuvens e agora caía em si. Havia cometido um engano terrível. Mas não era ainda tarde para corrigir o erro. Eles podiam anular o casamento, caso este não se consumasse. Ela saiu do banho e encontrou Nick recostado na cama, dando uma olhada em uma revista. Ele examinou-a de cima a baixo e sorriu. - Você parece uma colegial. Uma adorável colegial! -Estendeu a mão para ela, exatamente como fizera naquele dia na ilha. - Venha cá, querida. Querida... Era tão fácil para ele dizer isso, e não tinha nenhum sentido. Ela ficou onde estava, em uma atitude defensiva. - Nick, eu sinto muito. Eu... eu não posso. Ele ficou imóvel, franzindo levemente a testa. - Não pode o quê? - perguntou finalmente. - Você sabe do que estou falando. Não me humilhe. Eu.,, nós cometemos um erro. Não vai dar certo, você tem de se convencer disso. - Eu não cometi nenhum engano. E agora é muito tarde para você começar a pensar que cometeu um. Você é minha mulher, Sara. Isso é um fato, não uma ilusão. Não seja ridícula, eu já disse que você parecia uma colegial... não esperava que começasse a agir também como uma. - Não é muito tarde. Podemos anular o casamento. - Com os diabos! - Nick sentou-se na cama, muito bravo. - Deus meu, como você é infantil! Acho que não sabe o que está falando. Talvez tenhamos sido um pouco apressados, mas parecia não haver nenhuma razão para esperarmos. Amanhã vamos rir dessa história de anulação, eu lhe prometo. - Amanhã eu vou me sentir da mesma maneira - ela respondeu baixinho. - E no dia seguinte, na semana seguinte, e sempre! Isto não será um casamento, Nick, será uma palhaçada. - Então terá que ser uma palhaçada! Se você tivesse dezessete ou dezoito anos, eu até pensaria na possibilidade de esperar algum tempo para adaptação, mas você não é mais criança, Sara. Tem vinte e dois anos e precisa entender o que é a vida! - Talvez você tenha que esperar mesmo. - Ela ergueu a cabeça, apesar de sentir que o tremor dos lábios traía seu receio. - A menos que não se importe de ser desprezado pelo resto da vida! - Correrei o risco. Você vem até aqui ou tenho que ir buscá-la? Sara continuou imóvel, reconhecendo a besteira de insistir na questão, mas mesmo assim incapaz de tomar a iniciativa de ir até ele. Sentiu o coração disparar à medida que Nick se aproximava e tentou fazer com que ele mudasse de idéia. - Nick, por favor, não. Não desta maneira! - Parece que é a única saída. - Ele pegou-a no colo. - Você vai crescer, minha querida, queira ou não. Eu quero uma mulher, não outra filha. A raiva e o medo dela não duraram muito, e Nick percebeu logo. Sua agressividade desapareceu depois que Sara correspondeu ao beijo, seus braços a estreitaram com mais delicadeza, ao mesmo tempo que a traziam para mais perto, com ternura. Ele possuiu-a sem pressa, com muita experiência, fazendo com que ela esquecesse tudo o mais que não fosse a emoção daquele momento, até se abandonar totalmente. Mais tarde, deitada em seus braços, Sara procurou se convencer de que o que tinha havido entre eles não passara de atração física. Nick era um amante como poucos, Era o que quase todas as mulheres desejavam. Será que ela não podia se contentar com isso e parar de desejar o impossível?
Onde fica Silverwood? - Sara quis saber. - Lá. - Nick apontou para a esquerda. - Vamos desembarcar em meia hora. Arrependida? - Claro que não. - Ela reclinou a cabeça no peito dele. - Espero que Jenny goste de mim! - Ela pode reagir à sua presença no início. Não conheceu nem a própria mãe! Envolvida nos braços de Nick, pensou que nem sequer sabia o nome da primeira mulher dele, nem em que circunstâncias ela tinha morrido. Estranho, mas não sentia a menor curiosidade em saber nada disso. O casamento anterior de Nick não havia sido feliz, mas começara com amor. Talvez ele estivesse certo em pensar que teriam mais possibilidades de ser felizes. Os sentimentos dele em relação a ela eram um mistério. Mas, pelo menos, Nick a desejava. E naqueles últimos dias eles haviam se aproximado muito. O porto de Ruru era o principal da ilha. Uma frota de pequenas embarcações cheias de nativos foi dar-lhes as boas-vindas tradicionais da Polinésia. Eles desembarcaram na estreita plataforma em meio a uma alegre multidão. Havia música e danças no cais, as jovens usavam saia de palha e corpete de flores, e os homens vestiam trajes coloridos. Sem que se desse conta, Sara já tinha no pescoço meia dúzia de colares de flores. Nick a guiava por entre a multidão. - Isto é para você, eles estão dando as boas-vindas à noiva - sussurrou. - Está ouvindo essa canção? Ela nos deseja muitos e belos filhos. Não devemos desapontá-los, não? A mãe de Nick se aproximou, sorrindo. Abraçou o filho por alguns segundos, rindo e chorando de alegria. Ele a acariciou e lhe disse: - Diga olá para sua nora! Anna Bryant tomou as mãos de Sara, radiante. - Minha querida, se você soubesse como estou feliz em conhecê-la! Primeiro recebi as notícias de salvamento de vocês, e então o telegrama de Nick. Quase não acreditei... já havia perdido as esperanças. Bem, mas vamos para o carro. Os nativos os acompanharam até lá, acenando e sorrindo, - Sempre pensei que essas coisas só aconteciam nos filmes - disse Sara. - Que jeito maravilhoso de ser recebida! - É uma maravilhosa desculpa para não trabalharem, também - comentou Nick, - Isto vai varar a noite. - E por que não? - Anna Bryant estava radiante. - Não é todo dia que eles assistem à chegada de uma noiva. - Não, apenas duas vezes em onze anos.... Suponho que Jenny não tenha querido vir nos receber. - Eu... não consegui encontrá-la. - Ela vai dizer que esqueceu. Você tem tido problemas com ela desde que telegrafei, não é? - Não, pelo menos não do jeito que você está insinuando. - Quantos jeitos existem? - Oh, Nick, por favor, Jenny é apenas uma criança... - Sua mãe quer dizer que você não pode esperar que ela me aceite assim, sem mais nem menos - disse Sara. - Acho que ela está certa. - Está bem, mas terei uma conversinha com essa jovem. Como está John? - perguntou, então, calmamente. Houve uma longa pausa. - Acho que eu deveria ter dito logo - Anna falou, afinal -, mas não queria estragar sua chegada. John morreu há três semanas, Nick. Foi uma morte rápida e sem sofrimento, durante o sono. No dia seguinte soubemos do desaparecimento do Saratoga. Foi terrível, não preciso nem dizer! - Não, não precisa dizer. - Fora um ligeiro tremor nos lábios, ele não mostrou nenhuma reação à notícia. - Como Olívia reagiu? - Muito mal. Ninguém esperava que acontecesse tão cedo. Ela ficou em Silverwood até o funeral, mas voltou para casa depois. Virá para o jantar esta noite, vocês não se incomodam? - Por que deveríamos nos incomodar? Agora ela é minha sócia. - Você vai comprar a parte dela? - Sua voz revelava certo descontentamento. - Só se ela quiser vender. - Mas ela não tem mais motivo para ficar. - Não - disse Nick, como se quisesse encerrar o assunto. A casa era alta e branca, com telhado vermelho. O carro estacionou em frente a ela. Nick desceu para ajudar Sara e Anna, enquanto os dois empregados descarregavam a bagagem, respondendo com o habitual sorriso dos nativos à saudação do patrão. Ao entrar em casa, Sara se encontrou em um hall espaçoso. Uma porta se abriu lentamente para dar passagem a uma jovem de jeans e longos cabelos castanhos despenteados, caindo sobre o rosto triste. - Olá, papai! - Jenny - Ele ficou sério, olhando-a com desaprovação. - Isso é tudo o que tem a dizer? Ela pensou um pouco, acrescentando, então, impassível: - Desculpe-me por não ter ido esperá-los. Perdi a hora. - Você quer dizer que se escondeu de propósito até que fosse tarde demais, não minta. - Não estou mentindo! Eu perdi a hora! Você nunca acredita em nada do que eu digo! - Talvez eu tenha boas razões para isso. Está bem, vamos deixar este assunto de lado. Venha conhecer sua madrasta. Que maneira terrível de se conhecer alguém. Sara pensou. Mas apenas disse, de maneira banal: - Olá, Jenny! - Olá. - Jenny a encarou com raiva, para perguntar em seguida: - Posso tomar chá agora, vovó? - Nós vamos subir direto - disse Nick, sombrio. - Preparei o quarto à direita para vocês. Espero que gostem - disse Anna Bryant, sem graça. - Ótimo! Se foi bom para a senhora e papai, certamente será para nós. - Nick tomou o braço de Sara, sem olhar para a filha. - A que horas é o jantar? - Eu combinei com Olívia oito e meia. Achei que antes gostariam de descansar um pouco. - Acertou! Sara virou-se, antes de subir a escada, e disse: - Vejo você mais tarde, Jenny. Por que não sobe depois do chá para receber seu presente? Seu pai também trouxe uma surpresa para você. Os olhos azuis de Jenny brilharam com interesse. - Nada disso - interrompeu Nick. - Os presentes podem esperar até que ela os mereça. Será um erro iniciar uma discussão na frente da menina, Sara pensou, irritada, e por isso não fez nenhum comentário. A escada conduzia a um hall. Nick abriu a última porta à direita e parou, deixando-a entrar primeiro. - Eu devia carregá-la no colo, como manda a tradição. - Deveria ter feito isso lá embaixo. Agora é muito tarde. - É mesmo? - disse, pegando-a no colo. Mais tarde, deitada na cama. Sara pegou a mão de Nick e pediu: - Nick, não brigue demais com Jenny. Tenho certeza de que as coisas se ajeitarão, se você não forçá-la. Ela parece tanto com você quando cerra os dentes daquela maneira! - Ela é mais parecida ainda com a mãe - replicou friamente, e foi até a janela. - E mantenho o que disse: Jenny não receberá os presentes. - É uma maneira ultrapassada de ver as coisas, Nick. - Então, sou um pai ultrapassado. E não fique me dizendo como devo lidar com minha própria filha. - Ah, percebo... Isso é para me colocar no meu lugar, não é? - Se você entendeu assim... Não quero que Jenny se torne um problema entre nós, é tudo. O mais sensato, no momento, era deixar o assunto de lado. Sara resolveu fazer isso e examinou o quarto atentamente. - É realmente uma beleza! - É. Aquela é a porta do quarto de vestir, e o banheiro fica logo depois. - De pé junto à janela, Nick olhava fixamente a copa das árvores, pensativo. Sara se levantou para se aproximar dele, mas parou quando alguém bateu à porta. Entraram dois criados com a bagagem e um com uma bandeja com chá e sanduíches. - Você não vai fazer as honras da casa? - Nick perguntou, irônico. - É o seu primeiro dever de dona-de-casa. - Por favor, Nick, odeio quando fala desse jeito! - Desculpe-me. Estou chateado. Foi duro saber da morte de John. - Você gostava muito dele, não é? - Ele era um velho amigo... As oito e quinze eles desceram. No momento que chegavam ao hall.um carro parou lá fora. Sara ficou tensa ao ver uma morena vistosa entrar, usando um vestido de chiffon estampado. Essa, então, era Olívia. Imaginava que ela deveria ser assim, e não tinha errado. Os olhos negros de Olívia cruzaram rapidamente com os de Sara. No instante seguinte ela se dirigia a Nick. - Suponho que Anna tenha lhe contado. É uma péssima notícia para seu dia de chegada. Não era assim que gostaria de lhe dar as boas-vindas. - Também não foi como eu imaginei. Como vai você, Olívia? - Tão bem quanto é possível nestas circunstâncias. - E, virando-se para Sara com um sorriso, disse: - Você deve me apresentar sua esposa, Nick. - Acho que podemos deixar as formalidades de lado não é? - Sara forçou-se a se aproximar dela com a mão estendida. - Fiquei muito triste ao saber sobre John... Deve ter sido muito doloroso para você. - Foi. Aconteceu mais cedo do que prevíamos, mas de certa maneira foi uma bênção. John não era o tipo de suportar uma longa doença. Anna Bryant entrou na sala, sorrindo calorosamente, mas demonstrando certa inquietação. - Ouvi o barulho do carro. Você veio dirigindo? - Claro. Você sabe como eu gosto de dirigir. - Tomamos um drinque antes do jantar? - Nick sugeriu e, tomando as duas jovens pelos braços, conduziu-as à sala ao lado. Sara quase não reparou na sala onde jantaram e nem se deu conta do que tinha comido. Tudo em Silverwood era refinado, naquele momento porém nada lhe importava. Tentou se convencer de que estava imaginando coisas, mas no fundo sabia que não era sua imaginação: a tensão que sentia lá no hall havia sido real e envolvia seu marido e essa outra mulher. Apesar da cordialidade aparente, o ambiente estava tenso. E Anna Bryant também percebeu tudo isso...
Como era de esperar, o tempo que Nick e Sara tinham vivido na outra ilha logo surgiu na conversa. Nick tomou o cuidado de esconder alguns detalhes. Sara, por sua vez, falou o mínimo que lhe foi possível dizer, enquanto sentia os olhos de Olívia fixos sobre si. - Você deve ter se sentido muito assustada o tempo todo - Olívia observou. Depois de uma pausa, continuou: - Mas, claro, você tinha Nick! Nós ouvimos alguns noticiários que falavam sobre "uma única jovem no meio de onze homens". Não deve ser muito agradável ter de aguentar esse tipo de comentário depois de tudo o que você passou. De qualquer modo, de agora em diante não faz mais sentido ficar falando sobre isso. - Não precisamos mais falar principalmente porque nosso casamento confirma as suposições de toda a imprensa, não é? - Nick parecia divertir-se. Seu olhar dirigiu-se para Sara, que estava sentada silenciosamente à sua frente na mesa de jantar. - Como éramos os dois únicos passageiros, era inegável que acabássemos nos ligando. Até o pessoal da tripulação tendia a nos deixar de lado. Está cansada, Sara? - Um pouco - admitiu ela, surpresa com a brusca mudança de assunto. - Então, encurtemos a noite - disse Olívia, sorrindo e fazendo um gesto amável quando Sara protestou polidamente. - Não, realmente, eu também estou precisando de uma boa noite de sono. Nick, o carro estava falhando um pouco quando vim para cá. Você poderia dar uma voltinha com ele para ver se há algum problema? Não deve ser nada grave. - Claro. Ele saiu da sala. Alguns minutos depois, ouviram o barulho do motor sendo ligado. Parecia estar tudo bem, Sara concluiu, mesmo sem entender nada de automóveis. O rosto de Olívia estava sereno, ela falava mais para passar o tempo do que por qualquer outro motivo. Quando Nick voltou, ela fumava um cigarro. - O motor está fazendo um ruído estranho, pode ser o carburador. É melhor você passar a noite aqui. Poderemos consertá-lo amanhã cedo. - Prefiro voltar para casa. Sei que é bobagem da minha parte, mas acho que se deixar a casa sozinha estarei em falta com John. - Não tem problema. Vou levá-la para casa e devolvo seu carro depois que consertá-lo. Olívia sorriu e aceitou com um suspiro, dizendo a Sara: - Eu devia ter ficado calada. Desculpe-me, minha querida. Nick não demonstrou emoção ao beijar Sara. - Eu não vou demorar, mas não espere por mim. Você precisa descansar. Sara instintivamente evitou o olhar da sua sogra enquanto acompanhavam a saída de Olívia. Depois que ela saiu com Nick, Sara caminhou para a escada. - Se a senhora não se incomodar, acho que vou para a cama. - Não, claro que não. - Anna tomou gentilmente a mão que Sara lhe estendia, dizendo-lhe: - Sara, estou muito contente por Nick tê-la encontrado. Você se dará melhor com ele do que qualquer outra pessoa. Embora sendo meu filho, tenho de admitir que ele, algumas vezes, não é um homem fácil. Se você o ama, não deve ficar pensando no que já passou. Sara olhou-a por algum tempo. - A senhora quer dizer que devo esquecer a primeira mulher dele? - perguntou finalmente, com alguma dificuldade. - Sim. Ele me disse que você não se importava com o que tinha acontecido entre eles, mas sei que não deve ter lhe contado tudo. Se tivesse contado, você teria encarado Nick de outra maneira. O que foi exatamente que ele contou sobre Helen? - Ele só me disse que ela morreu quando Jenny era pequena. Desde o começo Nick procurou evitar esse assunto. Ele acha que isso é tudo o que devo saber. Anna pareceu se irritar. - Acho que Nick não pensou que você tem direito de saber mais do que esse simples detalhe. Bem, acontece que não concordo com ele. E se ele não vai lhe contar, eu o farei. - Acha que deve mesmo fazer isso? - Sara estava dividida entre a curiosidade de saber a história e a lealdade ao homem com quem tinha casado. - Eu não tenho... - Estou certa de que devo contar, ó bom que você conheça a história toda para compreendê-lo melhor. Não se preocupe com o que Nick vai pensar, Sara. Deixe a responsabilidade para mim. Venha cá e tome mais um café. Sara a acompanhou, receosa e ao mesmo tempo ansiosa. O café ainda estava quente, e elas nem precisaram pedir outro. Sara segurava a xícara com ambas as mãos, esperando que Anna começasse a falar. - Nick tinha vinte e dois anos quando trouxe Helen para Ma-taleta - ela começou suavemente. - Ela era um ano mais moça do que ele e muito bonita. Desde a primeira vez que a vi, soube que não ficaria em uma ilha como esta por muito tempo. Era esse tipo de garota que não vive sem festas e pessoas constantemente à sua volta... Oh, ela amava Nick, tenho certeza. Costumava dizer que ele a conquistara da noite para o dia. A questão é que no casamento os sentimentos devem crescer e transformar-se, o que não aconteceu com os dela. Helen queria estar casada com Nick, mas também queria mostrá-lo a todo mundo. Bem, naturalmente ele logo se cansou das constantes idas e vindas ao continente. No final das contas, é uma viagem bem longa. Nick atendeu os pedidos dela durante um ano, mais ou menos, depois parou. Decidiu que passariam a tirar férias de seis semanas a cada ano e a fazer duas ou três viagens pelo Tahiti durante o resto do ano. Mas, enquanto estivesse aqui, Helen deveria se adaptar à vida em Mataleta. Nick foi firme nisso, embora fizesse outras concessões. Ele até trouxe um administrador para ter mais tempo livre para se dedicar a ela. - Isso foi antes de John Newall? - Sara perguntou, quando ela fez uma pausa, - Oh, não, John já estava aqui. John e Nick cursaram juntos o colégio e a universidade. Quando os pais de John se separaram, ele propôs a Nick comprar uma parte da ilha... dizia que era o único lar verdadeiro que jamais tivera. Mas ele administrava sua parte e seus, trabalhadores. John conheceu Olívia há dezoito meses. Nessa ocasião, ela estava aparentemente presa lá por causa do mau tempo. Depois que os dois já estavam casados havia dois meses, foi diagnosticada a estranha doença tropical. - Sua voz alterou-se um pouco. - Pessoalmente, acreditava que ela o abandonaria logo que soubesse que ele não tinha cura. Cuidar de um marido com uma doença progressiva exige devoção e sacrifício, e eu não achava que Olívia fosse capaz disso. Fiquei feliz por ter me enganado, John a adorava. Teria morrido se ela o abandonasse... Mas isso não tem nada a ver com a história de Helen, não é? Onde eu estava? - Ele havia trazido um administrador. - Sara não sabia se queria ouvir ainda mais alguma coisa. Era como se ela tomasse conhecimento de um segredo que não era seu. - Ah, é, Paul Ravel. Um homem excelente para o emprego, todos nós achamos... Trinta e poucos anos, muito experiente, um trabalhador dedicado e um ótimo caráter de acordo com a opinião geral. Todos nós pensávamos assim até a noite em que ele pegou Helen e o barco e acabou morrendo com ela, em uma noite tempestuosa. Só quando demos por falta de uma porção de roupas de Helen foi que percebemos que eles estavam fugindo juntos. Acho que ela pensou que Paul lhe daria tudo o que não conseguia ter em Mataleta. - Deve ter sido terrível para Nick! E ele não suspeitava de nada? - Duvido. Ele teria tomado alguma providência antes que a coisa fosse tão longe. - E Jenny? Eles não tentaram levar Jenny? - Sara respondeu sua própria pergunta com voz baixa e emocionada: - Não, claro que não. Ou ela teria se afogado também. Pobre Jenny! - Sim, pobre Jenny. Mas talvez fosse melhor, em certo sentido, se ela tivesse ido com eles. Pode parecer terrível falar isso, Sara, mas é verdade. Eu adoro minha netinha, mas.. - Mas Nick não. Por quê? Ela o faz lembrar Helen? - É um pouco por isso. Mas principalmente porque ele não acredita que Jenny seja sua filha. - Oh, não! - Sara levou a mão à boca, com os olhos arregalados. Mentalmente lembrou-se do rosto de Jenny, do queixo, dos olhos. - Mas ele está enganado. Só pode estar enganado! Ela se parece muito com ele. - Às vezes também acho. Mas é difícil convencer Nick disso. Já fiz de tudo. E clara que ele nunca me disse diretamente. Há muito tempo, porém, ele insinuou alguma coisa a esse respeito. E, com os anos, parece que isso se tornou uma idéia fixa. - Mas não deveria ser assim. Deve haver alguma maneira de... - Sara parou ao tomar consciência da situação real. Nada poderia fazer, pois aos olhos de Nick ela não sabia de seu passado. A não ser que o próprio Nick decidisse contar-lhe, não teria nenhuma chance. E ele não faria isso, tinha certeza. - Não estou dizendo que ele seja cruel com Jenny, ou algo parecido. - Anna tentava contornar as coisas. - Nick normalmente não é tão severo com Jenny como foi esta tarde, mesmo quando ela merece. A verdade é que ela sempre teve tudo o que uma criança poderia desejar. - A não ser o amor do pai... Você sabia que ele ameaçou mandá-la para uma escola? - Sim. Ele falou sobre isso antes de viajar. A partida da srta. Cartwright foi a gota d'água. Jenny colocou uma aranha na cama dela, uma das maiores, não oferecia perigo algum, mas para quem não sabe é terrível. A pobre mulher ficou histérica. - Jenny se arrependeu? - Nem um pouquinho. Nem mesmo quando Nick a deixou de castigo por isso. - Ela é bem teimosa. - Isso é verdade. Lembro que ele tinha a mesma atitude quando era da idade dela. Nada no mundo podia fazê-lo arrepender-se de algo que tivesse aprontado. Eu mesma estive dando aulas a Jenny desde a partida da srta. Cartwright. Naturalmente, só posso lhe ensinar o que sei. Nick trouxe muitos livros, mas eles seguem um método moderno demais para mim. - Talvez eu possa ajudar em alguma coisa. - Bem, você deve se lembrar mais da escola do que eu. Alguns desses métodos estão completamente fora da minha compreensão. Levei bastante tempo para entender a maneira como eles fazem uma simples conta hoje em dia! Mas nós poderemos ver isso pela manhã. Estou certa de que Nick está ansioso para voltar a trabalhar... Você acha que o que eu lhe contei poderá ajudá-la, Sara? - Explica muita coisa - Sara respondeu com cuidado. - Posso imaginar como deve ter sido horrível. Mas agora acho que é melhor eu subir antes de Nick chegar. Ele pode perguntar por que eu não aproveitei para descansar mais cedo. - É possível chegar à conclusão de que nós estivemos conversando sobre ele. Nick deveria ter mandado Tamu levar Obvia para casa, em vez de deixá-la sozinha, na sua primeira noite aqui. Se você tiver um pouco de juízo, diga isso a ele. Se eu tivesse algum juízo, pensou Sara, não teria me casado com um homem que não me ama. Para que fui fazer isso? Para passar a vida inteira sentindo ciúme, sabendo que seu amor não era correspondido? Sara subiu para o quarto, trocou-se e deitou na enorme cama, Ainda estava acordada quando ouviu o barulho do carro. Escutou Nick entrar na casa, e depois o ruído abafado de vozes. Quando ele entrou no quarto, ela fingiu estar dormindo. Nick entrou no quarto de vestir sem fazer ruído para não acordá-la e tomou um banho que, para Sara, pareceu durar séculos. Ele não acendeu nenhuma luz ao voltar, encontrando o caminho no escuro com a ajuda da lua que brilhava sobre o oceano. A noite era quente mas agradável. Sara sentiu Nick se acomodar sob os lençóis e suspirar como um homem para quem a vida reserva problemas. Naquele momento ela o odiou como jamais odiaria alguém em sua vida. Na manhã seguinte, ao acordar, estava sozinha. Apenas as dobras do lençol mostravam que Nick se deitara ali. Sara encontrou Anna e Jenny tomando o café da manhã numa varanda coberta, nos fundos da casa. Jenny ignorou seu cumprimento, fitando o prato. - Pensei em deixá-la dormir mais um pouco - disse Anna. - Há quanto tempo Nick saiu? - perguntou, sentando-se à mesa. - Mais de uma hora. Ele tem muito o que fazer. Léo trabalhou muito bem, considerando sua falta de experiência. Mas, com duas propriedades para dirigir nestas últimas semanas, ele teve de deixar de lado muitas coisas. - Léo? - O administrador da fazenda, Léo McKearn. Nick o trouxe quando John começou a ter problemas. Ele é jovem, mas tem muita vontade de aprender, é um bom rapaz. Sara pensou um pouco antes de comentar casualmente: - Se ele era relativamente inexperiente, não foi imprudência de Nick viajar por tanta tempo? Especialmente com John Newall não podendo dar conta do serviço... - Ele tinha suas razões, estou certa. - Havia algo estranho em sua voz. - Ele não lhe contou o motivo da viagem? - Não, ele não disse quase nada... - Vou ser mandada para a escola! - Jenny interrompeu a conversa, falando com voz trêmula, - Não - Sara respondeu quase sem refletir. Jenny e Anna olharam na direção dela imediatamente. - Você acha mesmo ou está falando só por falar?! - perguntou Jenny. - Eu acho mesmo. - Nick certamente ficará furioso, Sara pensou. Mas isso era algo com que ela teria de lidar mais tarde. No momento, era necessário convencer Jenny de que não estava apenas tentando agradá-la. - Talvez quando você for maior, digamos aos doze anos, poderemos pensar nisso, mas não vejo razão para ir agora. Sua avó e eu podemos nos encarregar de suas lições. - Você! - Jenny olhou-a entre surpresa e descontente. - Você é professora também? - Por que também? - Sara não conseguiu entender. - Não sou professora, não. Nós vamos aprender juntas. Pode ser divertido, você não acha? - Lições nunca são divertidas - Jenny respondeu, com a segurança de quem conhece bem o assunto. - E não quero que você me ensine. Prefiro a vovó. - Acho que é muita coisa para Anna fazer sozinha. - Pensei que você tivesse dito que era divertido - Jenny respondeu, desafiadora. - Eu disse que poderia ser. - Sara começava a tomar consciência do problema que teria pela frente. Jenny era inteligente, viva e voluntariosa. Igualzinha a Nick. Por que ele não via isso por ai mesmo? Por quê? Bem, o jeito era procurar ela própria se entender com Jenny. - Que tal me mostrar alguns de seus livros? Talvez possamos combinar algo. - Sábado não é dia de lição. - Num gesto brusco, Jenny levantou-se. - Vou até a praia. Decepcionada, Sara comentou com Anna logo que Jenny saiu:. - Estraguei tudo, não? - Acho que você se saiu muito bem, considerando as circunstâncias. A não ser dizendo aquilo sobre não ir para a escola. Ainda hoje cedo Nick dizia que era a melhor coisa a fazer. Até já escolheu uma. - Bem, eu prometi a ela, então acho que ele vai ter de esquecer essa escola. - Sara desejou se sentir tão confiante quanto parecia. - Ela é muito criança para ser mandada para longe, e muito sensível, também. - Ah, você também acha! - Anna acariciou a mão de Sara. - Tenho certeza de que saberá lidar com o problema, querida. Sara achou melhor não perguntar qual era o problema. Depois que terminaram de comer, Anna lhe mostrou a casa. Vendo os belos quartos tão bem mobiliados, Sara pensou se algum dia encararia Silverwood como seu lar. Nick e a mãe pertenciam àquele lugar, mas ela era uma estranha ali. E, de certa forma, Jenny também o era. Isso a fazia sentir-se unida à menina. Por volta das onze e meia ela subiu para pegar um lenço. Da janela de seu quarto admirou, então, a paisagem que apenas vislumbrara na noite anterior. A praia branca estava bem distante da casa. A cerca de meio quilómetro da areia era possível ver as ondas quebrando, o que significava que por ali havia um recife. Todas as ilhas do Pacífico se pareciam, Nick já lhe tinha dito, mas cada uma despertava um sentimento totalmente diferente. Uma figurinha apareceu caminhando à beira d'água, procurando alguma coisa não identificável na areia. Impulsivamente, Sara vestiu um maio e uma saída-de-banho e resolveu procurar sozinha o caminho até a praia. Saindo na varanda pelo lado oeste, desceu por uma trilha ladeada de palmeiras centenárias e saiu muito próximo de onde Jenny estava. - Oi - disse para a menina. - Achou alguma coisa interessante? - Não, você vai nadar? - Vou. Por que não vem nadar comigo? - Eu não gosto de nadar. - Ah... - Sara ficou confusa por um momento. - Mas você sabe nadar, não é? - É claro. Todo mundo sabe. Acho até que sei nadar melhor do que você. - Isso não me surpreenderia. Não tenho muita prática. Espero que não tenha correntes muito fortes, senão posso me afogar. - Você deve ficar deste lado do recife. Mesmo papai não vai mais além. Se você quiser, fico aqui tomando conta enquanto você nada. - Ótimo! Assim poderemos voltar juntas. - Sara entrou na água fria e clara até ter os ombros cobertos. Então mergulhou e começou a nadar livremente, do modo como melhor sabia fazer, sorrindo de seu desejo instintivo de impressionar a garota. Naqueles dez dias que passara na outra ilha, ela havia praticado bastante, e agora sentia-se em forma para cobrir uma distancia considerável sem se cansar. Quando finalmente parou para descansar por um momento, ficou surpresa de ver quanto havia se afastado da praia. Jenny agora era uma figurinha distante, Sara acenou e sorriu ao ver seu sinal correspondido. Levou mais tempo para alcançar a praia novamente, parando com frequência no caminho de volta. Quando afinal chegou à areia, estava fatigada e quase sem fôlego. - Você não conseguirá nunca alcançar papai. Ele é mais veloz que um tubarão. - Não duvido. - O orgulho e o amor de Jenny por seu pai comoveram Sara. - É melhor que eu me vista para voltarmos logo. Não quero me atrasar para o almoço. Jenny não disse nada, mas Sara percebeu que ela se aproximou no momento em que se abaixava para pegar a saída-de-banho deixada na areia. Como pôde conter o grito que quase saiu de sua garganta ao ver aquele enorme inseto negro sobre sua roupa? Sara não soube dizer. Rapidamente se refez do susto e sacudiu o robe com cuidado. O bicho se afastou no mesmo instante, mais assustado do que ela, em direção ao gramado que ficava um pouco distante. - Gozado que ele tenha ido para lá - ela comentou sem olhar para Jenny. - Parece que gosta muito mais da grama do que da areia. - Ele deve ter se perdido. - Jenny parecia meio perdida também. - Não tem medo de bichos desse tipo? A srta. Cartwright odiava. Ela gritava feito louca quando um chegava perto dela. - Então não foi muito delicado colocar um na cama dela, não acha? - Sara falou suavemente, mas viu que o rosto de Jenny mudava de expressão. - Aposto como foi papai que lhe contou isso - disse, em uma voz sumida. - Não. Foi sua avó. Eu lhe perguntei por que sua governanta tinha ido embora. - Bem, não quero mais saber dela. Não está fazendo a menor falta! Ela era horrível e eu a detestava! Ficava inventando histórias a meu respeito. - Histórias falsas? - Não - disse, relutante. - Mas eu não fazia sempre tudo de propósito como ela dizia. - Tenho certeza de que não. - Sara sorriu. -- Ninguém pode ser um terrorzinho o tempo todo! Jenny quase sorriu em resposta. - É isso o que você acha que sou? - Acho que é o que você está tentando ser. A diferença é que não vou me assustar tão facilmente como as outras e ir embora, porque amo seu pai. - Sara não alterou seu tom de voz - Você já pensou alguma vez que eu também tenho de dividi-lo? - Você quer dizer... comigo?! - E com sua avó. Ninguém pode amar ou ser amado por apenas uma pessoa. Existem muitos tipos de amor, - E isso é tudo o que direi hoje, Sara pensou ao ver a expressão subitamente interessada de Jenny. - Vou trocar de roupa. Você vem? Ainda não viu seu presente. - Papai disse que eu não ia ganhar nada até que merecesse. - Jenny parecia hesitante. - Bom, ele decide pelo dele, naturalmente. - Mentalmente Sara torceu para que Nick concordasse com isso. Afinal, tinha que aproveitar todas as chances que tivesse para tentar conquistar Jenny. - Eu trouxe um para sua avó também. Nós poderíamos lhe dar antes do almoço. - Está bem. - Jenny foi andando rápido em direção à trilha, deixando para trás uma Sara feliz, afinal tinha conseguido uma pequena vitória. Foi com ansiedade que Jenny recebeu o pacote embrulhado das mãos de Sara. - Espero que você goste - ela disse. A primeira reação da garota foi de desapontamento. - Oh, um livro... eu já tenho um monte deles. - Pode ser, mas não como este. - Sara sentou-se ao lado da menina e abriu o livro. - Veja, ele conta tudo sobre como a Terra e a vida começaram. Há um capítulo sobre vulcões e outro sobre o espaço, depois sobre o mar e os desertos e sobre as florestas e todos os diversos tipos de criaturas que vivem aí. - Esta aqui parece com uma aranha que eu coloquei na cama da srta. Cartwright! - Jenny exclamou, apontando a página com o dedo, subitamente interessada. - Era assim toda peluda. Ela saiu do meio de um cacho de bananas. Sara deu uma espiada e sentiu uma súbita simpatia pela antiga governanta. Não era para menos que a pobre mulher tivesse ficado histérica! Jenny agora virava as páginas ela mesma, parando aqui c ali para examinar uma ou outra figura que lhe chamara a atenção. Elas estavam sentadas assim, tranquilamente, quando Nick entrou no quarto. - Que amizade! - ele comentou com simpatia. Sua expressão transformou-se abruptamente quando percebeu o que elas estavam olhando. Sara sentiu-se desamparada por causa do olhar que ele lhe lançou e disse: - Jenny esteve me mostrando a praia. Aproveitei para dar um mergulho. - Estou vendo. - Nick estava sério e fez um gesto com a cabeça para sua filha. - É melhor se arrumar para o almoço. - Posso levar meu livro? - ela perguntou, ansiosa. - Pode. Sara viu Jenny sair do quarto e ficou indignada. - Você poderia ao menos ter mostrado algum interesse. Eu estava começando a me aproximar dela. - E o que é que eu devo fazer para me aproximar de você? - Sua voz era calma, mas nem por isso deixava de ser ameaçadora. - Eu disse que ela não deveria ganhar o presente. - Você disse que ela não ganharia até que se comportasse bem. Acontece que eu achei que ela se comportou. Claro que eu não precisava esperar uma permissão especial sua, não é? - Deixe de lado o sarcasmo. Isto não é um jogo. - Sei bem que não é! - O que quer dizer com isso? - Nada. - Sara fez um gesto desamparado com as mãos. - Nada. Apenas isso: eu sei que não é um jogo, Nick. Nunca foi um jogo para mim. Casei com você esperando ser tratada como uma pessoa adulta e responsável, e não... - Então comporte-se como tal. Você não acha que é instintivo uma criança jogar um adulto contra o outro? Ou acha que as coisas entre você e Jenny vão bem, agora que está tudo arranjado? - Claro que não! Nada é tão simples, mas também não é tão .complicado. Jenny não faz o que faz por maldade. Ela só se comporta assim para chamar a atenção. - Você já disse isso antes. - Eu sei que já disse. Por que, então, não lhe dar um pouco de atenção? Você nunca brinca com ela como a maioria dos pais costuma fazer com os filhos. - Eu não sou como a maioria dos pais, e Jenny não é como a maioria das filhas. - Sua expressão tornou-se dura. - É uma observação muito profunda. Nick começou a se aproximar dela mas parou. - Você está passando dos limites. Nós não vamos mais discutir sobre Jenny agora nem em qualquer outra ocasião. Ela pode ficar com o livro, mas da próxima vez procure outra maneira de se aproximar dela. Agora é melhor você se trocar. - Nick! Não me deixe fora da sua vida. - Sua voz tremia ao fazer o apelo. - Deixar você fora? - Ele se virou para encará-la, aparentemente surpreso. - Como assim? Você usa o meu nome, minha casa... e minha cama. O que exatamente está faltando? - Compreensão. Sei que nos casamos sem amor, mas você ao menos parecia ter vontade de se relacionar de uma maneira mais sincera. Você nem mesmo me beijou desde que deixamos o barco... - Ah, então é esse o problema! A noiva exige um pouco de atenção. - Antes que ela pudesse se mexer, ele chegou perto e a tomou em seus braços. - Esse é um problema que podemos resolver facilmente. - O beijo foi violento, sufocante e totalmente sem afeto. Quando finalmente a afastou, sua expressão era irônica. - Satisfeita, ou devemos perder o almoço? Sara estava pálida, cabisbaixa, começou a tremer. Nick soltou um palavrão baixo, como se estivesse xingando a si mesmo. Em seguida ele a abraçou novamente. Ela nada perguntou sobre essa súbita mudança, simplesmente a aceitou. Qualquer coisa era melhor do que a violência do momento anterior. - Pui muito cruel - ele disse em voz baixa. - Não faz mal. - Ela ainda estava abraçada com ele, a cabeça apoiada em seu peito, cerrando os lábios para conter a dor e a tristeza. - Acho que provoquei. - Não. - Nick segurou o queixo dela e ergueu-lhe o rosto, um tanto emocionado. - Não vou começar a inventar desculpas. Tive uma manha difícil, e você está pagando por isso, essa é a verdade. - Está com problemas? - Alguns. Estive fora por muito tempo. - Ele a beijou delicadamente na testa e a afastou. - Vista-se depressa, estamos atrasados para o almoço. Ele hasteou a bandeira branca, Sara pensou com tristeza, enquanto despia o maiô molhado no banheiro. Estava decretada a paz entre eles, mas a que preço? Ela poderia aceitar até mesmo a violência, se fosse por alguma coisa que tivesse feito. .Mas Nick mesmo havia dito que a discussão fora causada pelos problemas da manhã... E a noite anterior? O que tinha acontecido? Sara parou de pensar para evitar mais sofrimento. Eles almoçaram no terraço. Nick estava cabisbaixo e quase não falou sobre a manhã que tinha tido. Arma tentou animar o ambiente, falando sobre a ilha em geral e contando as novidades locais. - Teremos uma grande festa, daqui a um tempo - disse para Sara, - Um tipo de agradecimento anual ao deus do vulcão. Os nativos sabem que o vulcão está extinto, mas a tradição não se extingue nunca. Muitos anos atrás, se alguma coisa interrompia a cerimônia, eles acreditavam que isso fosse um sinal de que não estavam aplacando o deus. - E a quem eles responsabilizam agora? - Sara sorriu. - A ninguém. Eles se resignam - Nick disse, a voz sem nenhuma emoção. - Agora é diferente, mas os antigos deuses não podiam falhar. Jenny tinha ficado quieta durante todo o almoço. Foi apenas no final que ela disse, subitamente: - Sara falou que não preciso ir para a escola. O silêncio que se fez então foi tão grande que Sara estremeceu. Pronto, está tudo perdido, pensou. Mas quando .Nick finalmente respondeu, não foi nada do que ela esperava ouvir. - Se Sara diz isso, então você não precisa, ao menos por enquanto, - Você promete? - Jenny estava feliz. - Sim. - A resposta foi imediata. - Então está bem. - Jenny olhou para Sara, séria. - Papai sempre cumpre suas promessas... as boas e as más. - Eu tento - Nick disse. - O que vamos fazer esta tarde? Jenny olhou para Sara, meio sem graça. - Todos nós? - Eu estou de fora - disse Anna, à vontade. - Vou ler e tirar um cochilo. - Então seremos apenas nós três. Vamos fazer um passeio em família! Que tal mostrarmos a ilha para Sara, Jenny? - Está bem. - Jenny não estava entusiasmada, mas também não parecia aborrecida. E melhor do que nada, Sara pensou, aliviada. Qualquer coisa é melhor do que nada.
Só depois de alguns dias Sara teve certeza de que Jenny começava a aceitá-la. O fim de semana passado com Nick havia ajudado muito. Tendo tanto sua companhia quanto sua atenção. Jenny se transformou em uma criança totalmente diferente. Nick nada dizia, mas várias vezes Sara o surpreendeu olhando para a filha atentamente, como se tentasse encontrar alguma coisa dele nela. Sara gostaria de falar com ele sobre isso, mas era impossível sem envolver Anna. Na segunda-feira de manhã começaram as aulas de Jenny. Em poucos dias ela já aceitava Sara como sua nova professora, deixando Anna de lado, que também ficou aliviada por ter sido destituída de sua função. - Havia momentos em que eu ficava desesperada - confessou. - Eu mesma nunca fui uma estudante muito brilhante. E claro que Jenny logo percebeu os assuntos em que eu tinha mais dificuldades. Tenho certeza de que você será uma professora muito melhor do que eu, embora não ache certo que assuma essa tarefa. - Eu gosto muito de fazer isso. Assim tenho com que me preocupar e fico mais próxima de Jenny... - Não completou a frase, sentindo sobre si o olhar perspicaz da sogra. Será que ela tinha percebido o quanto Sara apreciava estar perto de alguém? Teria percebido a distância entre seu filho e a esposa? Era difícil dizer, mas Sara achava que Anna sabia muito mais do que dizia. Olívia nunca mais apareceu ali depois daquela primeira noite nem Nick tocou em seu nome. Anna havia lhe contado que antes Nick costumava almoçar com o administrador ou na casa dos Newall. Foi quase no fim de sua primeira semana em Mataleta que Sara conheceu Léo Mackern. Nick o tinha trazido para casa no fim da tarde e o deixa no terraço, onde ela e Anna tomavam chá. - Espero que a senhora me perdoe a intromissão, sra. Bryant - disse o administrador, um pouco formal. - Nick quer me dar alguns relatórios que andou verificando, então sugeriu que eu viesse aqui esta tarde. - É um prazer. - Sara sorriu para ele, apreciando a expressão franca do administrador. Anna havia dito que ele tinha vinte e sete anos, irias parecia mais jovem, não era o tipo que se julgaria adequado para um trabalho pesado como aquele, especialmente tendo Nick por patrão. De qualquer modo, ele devia sair-se bem para merecer a aprovação de Nick. - Já era tempo de nos conhecermos - ela acrescentou. - Talvez você queira tomar um uísque, ou outra coisa, Léo? - sugeriu Anna. - Prefiro chá, obrigado, especialmente assim tão cedo. - Ele pegou a xícara das mãos dela e bebeu com gosto, olhando para Sara do outro lado da mesa. - A senhora saiu da Inglaterra recentemente, não é, sra. Bryant? - Exato. E você, de que parte da Escócia veio? - Eu não vim da Escócia. Nasci em Reading. Meus pais viviam lá havia mais de vinte anos. Sara riu. - Eu nem percebi que estava faltando o sotaque, mas pensei que fosse por causa de sua longa permanência no exterior. Que acha desta parte do mundo? - Eu adoro isto aqui. Trabalhava em administração florestal na minha região, mas os trópicos sempre me atraíram, acho até que por puro romantismo. Quando se está acostumado à chuva e ao nevoeiro, a tendência é sonhar com um lugar como este, onde o sol brilha o dia todo e as noites são longas e quentes. Parece até que eu estou recitando um trecho de um folheto de turismo, não é mesmo? - Mas é uma opinião sincera. E isso você não encontra nos folhetos de turismo. - Você fala isso porque ainda não conhece nossas tempestades - Nick disse secamente, juntando-se a eles. Abriu uma pasta e a colocou em cima da mesa. - O relatório está um pouco confuso, mas os números estão corretos. - Eu nunca fui muito bom em contabilidade. - O rapaz não parecia muito â vontade. -- Me perdoe, Nick. - Está bem. Afinal não acho que isso seja tão importante assim, desde que seja legível. - Nick recusou o chá que sua mãe lhe oferecia. - Para mim não, obrigado. Prefiro um drinque. - E um pouco cedo, não acha? - Sara perguntou. - Pode ser. - Por que não fica para o jantar, Léo? - Sara disse, sem re-fletir. - Deve sentir-se muito sozinho, não? - É muito gentil de sua parte. Mas eu não estou com trajes apropriados. - Você pode muito bem ir até sua casa se trocar. São apenas uns poucos quilómetros. - Claro, por que não? - Nick procurou ser agradável. - É uma boa idéia. Vou chamar Olívia e faremos uma festa. Pensando bem, nós poderíamos deixar de lado o jantar e fazer um churrasco na praia. Que é que vocês acham? O olhar de Léo ia e vinha entre eles, em dúvidas. Anna tranquilizou-o, confirmando o convite: - Já faz muito tempo que não fazemos um, Jenny vai adorar! Sara podia sentir a tensão no ar. Com certeza, ela vinha de Nick, mas por que, exatamente, não sabia. Sentiu raiva de si mesma. Ela tinha acabado de lhe dar uma desculpa perfeita para trazer Olívia, que mais ele podia querer? - Vou dizer a Tem Gan para cancelar a vitela. Não esqueça o maio, Léo. - Ela se levantou. Após tomar as providências necessárias, Sara foi procurar Jenny, que cortava e colava recortes no livro. - Veja! - ela disse. - Já preenchi metade do livro. - Vamos fazer um churrasco na praia esta noite. Seu pai disse que você pode vir conosco. O sr. McKearn e sua tia Olívia virão também. - Ela não é minha tia. - Sua voz estava agressiva. - Não gosto dela. Mais uma coisa que Jenny tem em comum comigo. Sara pensou, enquanto perguntava: - Você não quer chá? - Não, obrigada. Ouvindo o barulho do automóvel de Léo que se afastava, Sara se perguntou se ele teria percebido o ambiente tenso lá no terraço, e se tinha, o que estaria pensando. Ela o colocara em uma posição difícil, sem querer. Estava chateada com todos e principalmente com Nick. No momento em que ela tentava decidir o que usar naquela noite, ele entrou no quarto encontrou as roupas espalhadas pelas cadeiras. - Está com dificuldade? - ele perguntou. - Na verdade, não. É que tenho tanta coisa que ainda não tive chance de usar todas. Estava querendo colocar alguma roupa nova. - Se pretende nadar esta noite, não precisa nada mais além de um maiô e uma saída-de-banho. A menos que esteja querendo impressionar... Não era bem impressionar o que Sara pretendia, mas sim fazer o máximo para manter as aparências. Nick resolveu seu problema, escolhendo ele mesmo um conjunto azul e branco de maiô inteiriço e saída-de-banho. - Vista isto, combina com você. Léo não vai ver muita coisa no escuro, a menos que ele chegue suficientemente perto. Mas eu não vou deixar que faça isso. - Sem que ela esperasse, ele a segurou pela cintura. - Se você está se sentindo abandonada, a culpa é sua. Não tem sido uma esposa afetuosa nestes últimos dias. - Quando nós fizemos nosso contrato, não combinamos que eu teria de ficar à sua disposição o tempo todo - Sara respondeu, com raiva, gemendo de dor quando ele a segurou com firmeza. - Nick, você está me machucando! - Intencionalmente, você não sabe mesmo como fazer as coisas! - ele disse, enfurecido. - Muito bem, se é um contrato, vamos daqui para a frente dar mais atenção à minha parte. Não vou mais pedir pela parte que me toca. Vou exigi-la! - E quando foi que você não exigiu? - Ela tremia, mas estava decidida a não voltar atrás. - Desde o começo vive exigindo. - Você não sabe a diferença entre pedir e exigir, não é? Mas vai aprender. Estou cansado de ficar pisando em ovos para não ferir suas suscetibilidades. Ela afastou-se rápido quando Nick, finalmente, a soltou. - Estou cansada de tudo isso. De você e dessa confusão toda! Eu lhe disse que não daria certo. - Então você disse! Parece que eu deveria ter lhe dado ouvidos. Casei com você porque acreditava que poderíamos construir algo juntos. Eu devia saber o quanto você era infantil. Mas agora será pior para você. Se não amadureceu de um jeito, amadurecerá de outro. De qualquer maneira, não desmancho o casamento. Nick tinha casado com ela para esquecer a mulher de seu sócio. Era óbvio: ficara óbvio desde à primeira noite. Cada palavra que Olívia dizia só comprovava isso. Nick havia tentado esquecê-la, ele realmente se esforçara! Dias antes de voltar a Mataleta eles tiveram momentos de ternura, em que ela olhava para o futuro cheia de esperanças no coração. Mas isso terminou antes mesmo de começar. Terminou, e nada ficou resolvido. O casamento continuaria, como Nick tinha dito, mas como poderia continuar em tais circunstâncias? Como ele poderia suportar esse tipo de relacionamento, enquanto estava apaixonado por outra mulher? Sara não conseguia olhar para o homem com quem havia se casado. Sentia-se como se estivesse morta por dentro.
A festa na praia acabou sendo muito mais concorrida do que ela esperava. A notícia se espalhou rápido, e logo depois do cair do sol começaram a chegar os nativos, acenderam-se fogueiras por toda a praia, e todos, adultos e crianças, cantavam e dançavam. - Aqui tudo acaba virando festa - disse Anna. - Todo mundo adora festas. Todas as pessoas que vem nos visitar sempre dizem que a melhor coisa do Pacífico é seu povo. Sara estava inclinada a concordar. Os polinésios eram tão alegres! E tinham uma capacidade de se divertir com as coisas mais simples que era incrível. Ela os invejava por terem uma vida tão sem complicação.. Nick estava sentado entre ela e Olívia, observando a folia. Olívia parecia maravilhosa, com um kaftan verde-limão esvoaçante. Ninguém precisava perguntar a quem ela queria impressionar. Sara pensou com cinismo, assustando-se por aceitar esse fato sem mágoas. Não se incomodava mais com nada depois da conversa que tinha tido com Nick no quarto. Fazia pouco mais de uma semana que ela estava casada e já não o amava mais, seu amor por Nick havia morrido! - Por que escolheu um emprego que o deixasse tão isolado? - perguntou a Léo, que estava sentado do seu outro lado. - Não tem, às vezes, vontade de mudar de ares, de ver gente nova? Ele sacudiu a cabeça, sorrindo. - Eu nunca fui de viver no meio de muita gente, sra. Bryant. Fico mudo perto das garotas e sou um péssimo dançarino. - Você não fica mudo comigo - ela protestou. - Se chama Nick pelo primeiro nome, por que não me chama também de Sara? - Está bem... Sara. Você é... bem... diferente, não me faz sentir insignificante. - Eu não vejo como alguém possa fazê-lo, a menos que você se sinta assim. - Acho que esse é o problema. Até agora eu não fiz nada de importante. Tenho dois irmãos que são diretores executivos, e uma irmã, mais moça, que é quase uma advogada bem-sucedida. Eu não consegui nem entrar na universidade, acabei indo para uma faculdade de agronomia. E só consegui esse emprego porque ninguém mais o queria na época. Ele não seria meu se houvesse outro candidato com experiência. - Onde você morava antes de vir para Mataleta? - Na Argentina. - Você não é tão desinteressante e incapaz quanto quer me fazer crer. Nick me disse uma vez que você estava se saindo muito bem. - Ele disse? - Seus olhos brilharam. - Que bom saber disso. Às vezes sinto que Nick se arrependeu de ter me trazido para cá. - Ele faz isso só para mantê-lo no caminho certo. Precisa de você tanto quanto você precisa dele. Dificilmente Nick conseguiria administrar as duas propriedades sozinho. - Ah, se precisasse, acho que conseguiria. Depois que John Newall morreu, elas são administradas praticamente da mesma maneira. A sra. Newall prefere dar suas ordens por meio de Nick. Sara podia imaginar. Ela olhou-os, mas eles pareciam muito entretidos consigo mesmos para prestar atenção ao que ela e Léo conversavam. Anna não parecia notar como os casais tinham se agrupado, mas ela tinha uma maneira toda particular de não ver o que não queria. Seria bom que Sara também tivesse aprendido a fazer isso. Levantou-se e foi andar um pouco pela beira da água. Sem pensar no que fazia, despiu a saída e entrou na água, avançando lentamente pelo mar. Da água o espetáculo na areia parecia um cenário de teatro. Ela podia distinguir facilmente o verde-limão do vestido de Olívia e ver Léo conversando com Anna. Ninguém parecia ter dado por sua falta... Provavelmente ninguém sentiria falta dela se fosse embora de vez. Saindo da depressão, Sara pensou que sentir pena de si mesma não ia ajudar em nada. Nick tinha que se convencer de que eles precisavam se separar. O divórcio era uma coisa muito chata, mas era a única solução real. Por que fazer três pessoas infelizes por causa de um princípio? Se ela também se apaixonasse por uma outra pessoa, facilitaria as coisas Mas por quem? Quando nadava de volta à praia, sentiu uma coisa mole presa à sua coxa, queimando terrivelmente. Era uma água-viva! Uma dor terrível tomou conta de sua perna, da coxa até o joelho. Amedrontada, Sara percebeu que quase não conseguia se manter na superfície. Lembrou-se, então, de deitar de costas e ficar boiando. Como o mar estava muito calmo, aos poucos conseguiu nadar de costas em direção à praia. Sentia-se mal, e as lágrimas desciam pelos seus olhos misturando-se à água salgada. - O que você pensa que está fazendo aqui sozinha? - Nick apareceu, de repente, nadando a seu lado, furioso. Viu, então, que alguma coisa tinha acontecido. - O que há? - Minha perna... uma água-viva me queimou. Nick não perdeu tempo com perguntas. Virou Sara de novo de costas e a levou cuidadosamente até a praia, carregando-a no colo. - Vou levar Sara até em casa e pôr algo nisto - disse a Anna, quando chegaram à praia. - Fique aqui e tome conta de tudo. Léo levará Olívia de volta para casa. Sara sentia muita dor. Ele a levou direlamente para o banheiro, colocou-a com delicadeza no banquinha e abriu as torneiras da banheira. - É mais fácil acabar com isto no banho, Assim cuidamos de todo ferimento de uma vez só. - Carinhosamente, afastou os cabelos molhados do rosto dela. - Não demoro. Voltou em meio minuto com uma garrafa cheia de cristais brancos, que colocou na banheira. - Já estou melhorando. Pode deixar, Nick. A expressão dele continuou a mesma. - Você vai precisar de ajuda para sair desse maiô. A melhor coisa é cortá-lo. Sara ficou quieta enquanto ele pegava uma tesoura no armário. Mas, quando ele voltou, protestou: - Nick, deixe que eu mesma corto... por favor! - Você não vai conseguir. Eu não vou discutir com você, Sara. Não seja boba, fique de pé. Com a ajuda dele, ela se levantou. Nick cortou o maiô e ajudou-a a retirar as tiras e, depois, a entrar na água. De repente ergueu-se, demonstrando toda a raiva que estava sentindo. - Fique aí até passar a dor. Eu espero do lado de fora. Depois de dez minutos mais ou menos, a dor diminuiu. Sara vestiu o roupão branco e foi ver Nick, que estava recostado na janela. Quando ele se virou, ela não conseguiu encará-lo, - Está se sentindo melhor? - Estou, obrigada. Eu... eu sinto muito ter sido tão infantil, Nick, simplesmente, eu não podia... - Você não podia suportar que eu a tocasse depois do que aconteceu hoje à tarde. E isso que está tentando me dizer? - Algo parecido com isso, acho. Talvez seja também uma reação infantil. - Uma reação bem feminina - ele emendou. - Quem tem de pedir desculpas sou eu. Acho que estava bravo demais para pensar no que eu dizia. - Você então não quis dizer o que disse? - Sobre exigir os meus direitos? - Olhou-a, com uma expressão estranha. - Bem, era o que eu queria dizer, mas não da maneira como eu disse. Tenho procurado deixar você se adaptar à vida aqui. em Mataleta, nestes últimos dias. E acho que não foi nada boa essa discussão que tivemos. Desde que chegamos, a distância entre nós tem aumentado. De um modo ou de outro, precisamos acabar com isso para fazer alguma coisa pelo nosso casamento, não acha? - Acho que você está errado. - Ela olhava para o infinito, sentindo um outro tipo de dor. - O que acontece é que nossa vida junto não tem muita chance de dar certo, seja lá o que façamos. Veja... - Engoliu em seco. - Eu sei tudo sobre você e Olívia.
Depois de falar sobre Olívia, Sara não ousava en-carar Nick, mas sabia que ele a olhava fixamente. - Você se incomoda se eu perguntar o que sabe sobre Olívia? - ele disse finalmente, ríspido. - O que você sente por ela. Eu não o estou culpando, Nick, não pense isso. Você fez o que pensou ser o melhor. Não podia adivinhar que John ia morrer logo. Ele não fez nenhum movimento. - Parece que você então já sabe de tudo... Como ele não falasse mais nada, Sara ergueu finalmente a cabeça. O rosto de Nick estava sombrio e tenso. Com hesitação, ela continuou: - Você não nega que sente alguma coisa por ela? - Eu não nego nada... nem confirmo, até que saiba aonde você está querendo chegar. - Nick, não torne as coisas mais difíceis do que já são! Apaixonar-se pela mulher do melhor amigo já é suficientemente ruim em circunstâncias normais, e havia a doença de John. Ir embora era a única coisa a fazer. - E me casar com você - ele disse, com voz muito calma -, também era a única coisa a fazer? - Sim, da maneira como você via as coisas naquele momento. Eu estava... disponível e sem nenhum parente que pudesse causar problemas. E, suponho, eu parecia suficientemente jovem para ser moldada da maneira que você queria. - Na verdade, seria então uma compensação adequada? Ela corou um pouco com o sarcasmo dele. - Não suficientemente adequada. Eu não consegui fazer você esquecer Olívia. - Não. Você nem mesmo tentou fazer com que eu parasse de desejá-la. Nota dez pelas observações, minha pequena. Mas o fato de ter falado tudo isso, não quer dizer que você entenda melhor a situação. Certo, você acertou as razões que me levaram a fazer a viagem. Se quer completar seu levantamento, saiba que eu invejei John desde o dia em que ele chegou aqui com ela. Olívia é uma mulher completa. - E eu não - Sara completou em voz baixa. - Não, você não é. E, com os diabos, você não se permite sê-lo! Se quisesse, poderia se tornar até melhor do que ela. Acontece que você não se permite isso. Criou mil barreiras dentro da sua categoria. - Você não pode exigir tanto de uma pessoa, Nick. Eu sou uma pessoa! - Você é minha esposa. E se não suporta a idéia de eu desejar outra mulher, então faça alguma coisa. - Eu não vou brigar pela sua atenção. Se não quer me amar, paciência. - Oh, você preferia que eu a amasse! Bem, vai me desculpar, mas eu me recuso. Por que deveria me preocupar com isso quando eu consigo tudo o que quero simplesmente tomando-a para mim quando tenho vontade? - Com Olívia também é assim, eu suponho! - Acontece que eu não possuí Olívia... ainda. Antes era por causa de John, e agora é por sua causa. Por mais estranho que possa parecer, eu ainda tenho alguns princípios. - Se você tem, com certeza encontrará uma maneira de passar por cima deles. - Sara estava de pé novamente, apoiada no espaldar da cadeira, a dor em sua perna não era nada comparada com à de seu peito. - Você não dá a mínima importância a quem quer que seja, não é? Magoaram você uma vez e agora quer ter certeza de que não o farão novamente. Não importa quem possa sair ferido pelo caminho! Você é incapaz de gostar de alguém de verdade. - É essa a sua opinião? É assim que me considera? - Seu, olhos brilhavam de raiva. - Um minuto atrás você estava convencida de que eu estava apaixonado por Olívia. - Um minuto atrás eu ainda não ouvira tudo o que você tinha a dizer. Agora... - Sua voz fraquejou. - Acho que você é incapaz de amar, Nick. Pelo menos da maneira como eu entendo o amor. - E, com os diabos, o que você entende disso? Casou comigo com os olhos bem abertos, então não comece esse blablablá sobre sentimentos que não conhece. Se não fosse... - Interrompeu-se ao perceber a extrema palidez do rosto dela e o tremor incontrolável dos lábios. A raiva sumiu de repente de seu rosto, dando lugar a um falso ar de interesse. - É melhor você deitar antes que caía de cansaço. Vá para a cama que eu trarei umas aspirinas. Sara continuou parada onde estava, enquanto ele passava por ela para ir até o banheiro. Só quando ouviu abrir a porta do armário de remédios atravessou o quarto para vestir uma camisola. Seus cabelos ainda estavam úmidos, mas não importava. Nada importava. Ela estava deitada na cama, imóvel, quando Nick voltou com o remédio e um copo de água. Pegou sem dizer nada e, ao devolver o copo, tocou na mão dele, fria como uma barra de aço. Quando ele já saía do quarto, perguntou: - Nick, o que vamos fazer? - Nada. Eu dormirei no quarto de vestir esta noite para não perturbá-la. Amanhã o veneno já terá saído de seu corpo. - Não foi a isso que me referi. - Sei disso. Mas vamos parar por aqui, Sara. Nós dois já nos dissemos coisas demais esta noite. - Eu não posso parar por aqui. Eu... nós não podemos continuar desta maneira. - Não tem alternativa. - Tem de haver uma alternativa. Ele chegou bem perto dela, com o rosto crispado. - Nós estamos casados a menos de duas semanas - disse. - Eu não vou falar em divórcio e não deixarei que você fale. Se nós não conseguirmos juntar os pedaços, então vamos nos virar com o que temos. - Com ou sem Olívia? - Isso depende mais de você. Se você se esforçasse para me entender como fez com Jenny, não estaríamos tendo esta conversa. Não era hora para conversar sobre isso, mas Sara não se conteve. - Jenny precisa mais de você do que de qualquer outra pessoa. Não foi culpa dela se a mãe... morreu. - Você não sabe nada sobre isso. - O que não é nenhuma novidade. Você nunca me disse nada, Nick, sobre você e Helen. Como posso conhecer alguém tão fechado como você? - O que há para ser dito? Helen pertence ao passado. Ela não nos afeta agora. - Afeta, se foi ela quem fez você ficar do jeito que é. -A expressão do rosto dele não era encorajadora, mas era muito tarde para voltar atrás. - Uma vez me disse que tinha casado muito jovem e por motivos errados. O amor pode ser algo totalmente errado? - Quando é cego, está errado. Mas eu não vou falar sobre Helen com você, Sara. É passado e vai continuar assim. Tente dormir um pouco, vou tomar uma ducha. - Por que não vai encontrar Olívia? - Sara disse, querendo feri-lo. - Tenho certeza de que ela não tem dificuldade em entender você. - Você está certa. Boa noite. Pela manhã o inchaço e as dores na perna de Sara tinham desaparecido, embora a marca continuasse ali por mais umas vinte e quatro horas. Ela passou o fim de semana apática, sem se importar com coisa alguma. Se Anna percebeu o que estava acontecendo entre Sara e o filho, não disse nada. Foi Jenny quem tocou no assunto. - Você e papai brigaram, não foi? - perguntou francamente a Sara, quando ficaram sozinhas na manhã de segunda-feira. - A vovó disse que eu não devia me meter na vida dos outros e fazer de conta que não percebi nada, mas não melhorou nem um pouco como ela disse que iria acontecer. Acho que vocês não voltaram a se gostar ainda. Sara forçou um sorriso, respondendo: - Claro que nós nos gostamos. As pessoas não deixam de se gostar só porque têm diferenças de opiniões. - Eu deixo! Eu amo papai o tempo todo, mas não gosto dele o tempo todo. Ele não é nada simpático quando fica bravo. Quanta verdade, pensou Sara. Mas o que podia fazer? Coisas duras tinham sido ditas naquela noite pelos dois. Ela dissera quase tudo por vingança. Estremeceu ao lembrar o que lhe havia dito por último. Se queria empurrar Nick para os braços acolhedores de Olívia, estava acertando no alvo. Mesmo assim, a opção de lutar por ele não a atraía mais. Não tinha certeza nem de saber como lutar contra a influência da outra. Entregar-se fisicamente a um homem como Nick não era o suficiente. Ele tinha que possuir o corpo e a alma de uma mulher, fazê-la sentir por ele aquilo que ele era incapaz de sentir novamente por alguém. Acontece que não era da natureza dela submeter-se a esse ponto - ou talvez o que sentisse não fosse suficientemente forte. Por isso estava num verdadeiro impasse. - O que acha de me levar a um passeio esta tarde? - ela perguntou a Jenny. - Pensei que talvez pudéssemos ir pela praia na direção de Ruru até onde aguentássemos, e depois voltar pela plantação. - Tudo bem. - Jenny sorriu, misteriosa. - Adultos sempre mudam de assunto quando não querem falar sobre alguma coisa. Eu gostaria de ser adulta! - Não tenha pressa. Não é sempre tão maravilhoso assim. - Ah, mas isso é porque você não é um adulto propriamente dito, como papai e vovó. Eles dois são velhos. Papai está perto dos trinta e sete. Vovó me disse que você só tem vinte e dois. Sara supôs que, vindo de uma garota de nove anos, ela deveria receber aquilo como um elogio, mas não tinha ficado satisfeita. - O aniversário de seu pai está perto? - perguntou. - É nesta semana, dia 27. Você não comprou nada para ele? - Eu não sabia, senão teria comprado alguma coisa antes de deixar o Panamá. - Bem, então o jeito é fazer um. Espero que ele goste do meu. - Tenho certeza de que gostará. Posso saber o que é? - Não, é segredo. Sara mudou de assunto, Jenny tinha direito à sua privacidade. Passou o resto da manhã tentando descobrir o que poderia fazer para Nick: tinha que lhe dar algo inesquecível. Como sempre, Nick não apareceu para almoçar. Logo depois de comerem, ela e Jenny saíram. O sol já estava baixo o bastante para que o passeio fosse agradável. Levaram quase uma hora para atravessar a pequena faixa de praia que se estendia além da baía onde moravam, parando aqui e ali no caminho para estudar conchas e outros entulhos trazidos pela maré. Num certo trecho, encontraram um grupo de crianças que brincavam de um jogo parecido com voleibol. Eram crianças nativas, trazidas pelo professor para passar a tarde na praia. O professor parou para conversar com Sara. Era um jovem de cerca de trinta anos. Não era nativo, mas sim funcionário do Estado, enviado para lá para dirigir a maior das duas escolas. Ao contrário do que se podia supor, não era Nick quem ditava as regras nas escolas da ilha. Tudo era decidido por uma espécie de parlamento dos nativos: um comité eleito pelos votos da população da ilha. Nick só era chamado quando havia alguma encrenca. O professor estava entusiasmado com seu trabalho, e se admirou quando soube que Sara era a professora de Jenny. Ele logo a convidou para trabalhar na escola, com as crianças, e se mostrou interessado em que Jenny frequentasse as aulas. Dessa maneira, ela complementaria seus estudos e teria contato com outras crianças. Sara adorou a idéia e prometeu pensar no assunto. Já passava das quatro horas quando elas começaram a voltar para casa, através da plantação. O trabalho já terminara, os homens se reuniam em pequenos grupos para bater papo, enquanto as cotas eram conferidas e carregadas nos caminhões. Quando elas passavam, eram cumprimentadas com curiosidade e surpresa. Os nativos andavam muito, mas sempre com um objetivo certo, andar pelo prazer de andar era uma coisa que eles não conseguiam compreender. Um homem perguntou alguma coisa para Jenny na língua deles, apontando para a frente. Jenny respondeu e traduziu para Sara: - Ele estava perguntando se nós procurávamos a casa do administrador. Não é longe daqui. O recanto de Léo. Sara foi tomada de um súbito desejo de ver aquele rosto aberto e amigo. Léo era uma pessoa simples, de conversa agradável. Ao menos com ele, ela não se sentia tão deslocada. - Vamos visitá-lo - disse impulsivamente. - Estou louca para tomar alguma coisa gelada e ainda estamos longe de casa. Talvez ele nos leve de volta de carro. - É claro que ele leva, se você pedir. Eu gosto do sr. McKearn, ele é simpático. Léo é mesmo uma raridade, pensou Sara. Era dificílimo Jenny dizer que gostava de alguém. Sem pensar muito, apressou o passo. A casa era um bangalô pequeno e de muito bom gosto. Tinha um jardim com plantas de várias espécies e uma varanda. Léo levantou-se rapidamente da cadeira de bambu onde estava sentado quando elas chegaram, parecendo surpreso e embaraçado. Vestia a roupa que provavelmente usara o dia todo. Assim como a camisa, a calça estava toda suja. Vendo seu embaraço, Sara achou que deveria ter pensado duas vezes antes de quebrar dessa fornia a rotina dele. - Sinto muito - disse. - Acabamos com seu descanso. Nós estávamos passando e pensamos em apresentar nossos cumprimentos - concluiu, morrendo de rir com a gravidade da frase. - Pensamos também em pegar uma carona até em casa - disse Jenny, com ar inocente. - Sara cansou-se de andar e queria tomar alguma coisa. Eu posso tomar alguma coisa, também? - Vou arranjar uma bebida gelada. Ou melhor, Kim Lee fará isso enquanto troco esta roupa por outra limpa. Sinto muito por vocês me pegarem vestido assim. Geralmente descanso uma meia hora antes de me trocar. - Não faz mal. Eu faria a mesma coisa em seu lugar. - Sara queria encontrar alguma frase para dizer, mas não conseguia pensar cm mais nada. Ele foi se trocar e ela ficou imaginando por que as pessoas davam tanta importância às roupas. Só por causa dos trajes dele, a situação estava tão embaraçosa. Que pena! Ela queria fazer uma visita descontraída e acabou se dando mal. Sara ainda estava na metade da limonada gelada quando ele voltou, e Jenny vagava por algum lugar perto da casa, depois de ter bebido o seu refresco. Elegante e à vontade em um par de calças brancas e camisa azul-escura, Léo parecia ter readquirido o domínio da situação. Estava bem mais à vontade ao sentar-se ao lado de Sara. - Assim está melhor. Eu me desabituei de me preocupar com a aparência, ultimamente. - Ele olhou diretamente para Sara, detendo-se por um momento na curva de sua boca. - Nick não disse que você vinha para estes lados. - Nick não sabia. - Ela falou como se isso fosse a coisa mais normal do mundo. - Ele esteve por aqui? - Não, saiu ao meio-dia. Foi para o oeste esta tarde. Pelo menos, hoje ele não esteve com Olívia. Mas isso não faz muita diferença, Sara pensou. De qualquer maneira, ficou aliviada. - O que você faz quando não está trabalhando, Léo? - Não muita coisa. Leio muito e ouço discos, além de rádio. - Não acha muito entediante? - Você já me perguntou isso naquela noite. A propósito, espero que já tenha se recuperado completamente do machucado. Parecia horrível. - Já estou praticamente boa. Quando eu lhe perguntei isso, naquela noite, você não chegou a me responder e acabei pensando novamente no assunto. - Não me sinto solitário. Aprendi um pouco da língua nativa desde que cheguei, % alguns dos nativos falam um pouco de inglês. Assim eu consigo me comunicar. Alguns deles me visitam de tempos em tempos, temos um relacionamento social. Eles também me convidam para ir a suas casas... é um povo muito alegre e divertido. E... - hesitou antes de concluir - eu tenho um convite permanente para ir à sua casa quando tiver vontade. - Mas pensa duas vezes antes de aceitar, depois que eu cheguei. Por quê, Léo? O sorriso dele foi espontâneo. - Há uma diferença entre visitar a casa de um homem que vive com a mãe e a casa de um homem que mora com a esposa. - Eu não penso assim. Anna ainda está lá, e Jenny. - Você acha ruim que elas estejam lá? - Ele corou, um pouco embaraçado. - Sinto muito, eu não devia ter dito isso. É que... Bem, a maioria dos casais tem uma casa para si mesmo, por algum tempo, pelo menos, - Não, eu não acho ruim. Elas pertencem a Silverwood muito mais do que eu. - Depois de uma pausa, disse impulsivamente: - Eu vim aqui porque tinha esperança de que você pudesse me dar alguns conselhos. Você sabe, o aniversário de Nick será dentro de poucos dias. E não tenho nada para dar para ele. Quero dizer, não lembrei que não poderia comprar nada depois que chegasse a Mataleta. Pensei que você pudesse me sugerir alguma coisa que pudesse comprar aqui mesmo na ilha. - Bem, nós geralmente encomendamos o que precisamos. Mas eu tenho uma coisa que talvez possa agradá-lo. - Saiu e voltou trazendo um porta-canetas esculpido em madeira. - Que coisa bonita, Léo. Você me venderia? Será que pode guardá-lo para mim até chegar o aniversário dele? - Claro, sem dúvida. E então, quer beber mais alguma coisa? -Não, acho melhor voltarmos. Já deve passar das cinco. Onde estará Jenny? - Deve estar por aí com Iggy, minha pequena iguana. O carro está na estrada, podemos pegá-la lá embaixo. Vou embrulhar o porta-canetas, e você poderá pegá-lo quando quiser. Sara teria que arranjar uma desculpa para ir até a casa de Léo pegar o presente. Talvez estivesse se preocupando muito com o aversário de Nick, ele provavelmente não iria se importar em receber ou não um presente dela. Mas, para Sara, essa era uma questão de honra!
Léo deixou-as perto da casa, recusando o convite de Sara para entrar. - Tenho alguns papéis para pôr em dia. Vamos embarcar uma mercadoria amanhã e eu terei de ficar lá embaixo nas docas a maior parte do tempo. - Podemos ir ver. Sara? - perguntou Jenny, ansiosa. - Eu gosto de ver os guindastes trabalhando. - Espero que sim. Tamu pode nos levar até lá. Isto é, se não atrapalharmos. - Vocês não vão atrapalhar - garantiu Léo. - Todo mundo aparece para ver o embarque... o próprio Nick provavelmente vai querer levá-las. - Bem, então a gente se vê, Léo. Tchau e obrigada por tudo. - Estou contente por ter ajudado. Até a vista, Jenny. Venha visitar Iggy de novo. - Acenou e saiu com o carro. - Eu gostaria de ter uma iguana de estimação - Jenny confessou, na subida até a casa. - Será que o sr. McKearn acharia outra pequena iguana para morar em casa? - Eu não sei se seu pai gostaria muito da idéia. O que você precisa é de um cachorrinho ou de um gatinho. O que você acha de um pônei? Sabe montar? - Não muito. Papai tinha dois cavalos quando eu era pequena, mas ele os vendeu quando tio John começou a ficar doente e ele não tinha mais tempo para treiná-los. Não acho que ele gostaria de me dar um pônei. Ia dizer que sou muito criança para tomar conta dele direito. - Bem, um cachorrinho talvez fosse uma idéia melhor - disse Sara, pensando em como Nick era insensível. - Não vi nenhum cachorro na ilha. - Tem muito pouco. Algumas vezes os navios, abandonam os cachorrinhos aqui na ilha. - Seus olhos brilharam com interesse, - Você acha que poderíamos encontrar uma cadela que vai ter filhotes? - Claro que sim, mas eu estava pensando em comprar um ani-mal com pedigree, talvez um setter ou um labrador. Só não sei se é difícil conseguir qualquer uma dessas raças aqui nesta região. Seu pai deve saber melhor. - Ele não vai deixar eu ter um cachorrinho. - Jenny parecia sentida, com os olhos tristes - Sei que ele não vai. - Ele vai, eu prometo. Talvez demore um pouco porque o cachorrinho terá de vir de longe. - Não me importo de esperar, se souber que ele vai chegar mesmo. - Em seus olhos azul-acizentados ainda pairava um pouco de dúvida, agora misturada com esperança. - Quando vamos pedir a ele? Hoje à noite? - E se a gente esperasse até quinta-feira? Ele não pode dizer não no dia de seu aniversário! Jenny não parecia muito convencida. - Tudo bem - concordou, como se não tivesse alternativa. - Esperaremos até quinta. Quando elas se aproximavam, Nick saiu de casa e parou ao lado de um pilar para observá-las com cara de poucos amigos. Vestia uma calça marrom com uma camisa combinando e um lenço vermelho no pescoço. Parecia sóbrio e ameaçador. - O que aconteceu? - perguntou. - Vocês saíram daqui às duas e já passa das cinco e meia. - Duas e meia, para ser exata - disse Sara, no mesmo tom. - Demoramos mais do que prevíamos. Passamos na casa de Léo e ele nos deu uma carona, mas não quis entrar. - Não me surpreende. Ele sabe que é tarde para visitas. - Nick virou as costas para Sara e encarou friamente Jenny. - Lich já aprontou seu chá, é melhor subir e se arrumar antes de comer. E faça alguma coisa com seu cabelo. Está parecendo um monte de feno! Se era uma brincadeira ou não, Sara não sabia. O fato é que Jenny a tomou como tal e disse, feliz. -Estive brincando com Iggy. Ela ficou puxando os meus cabelos com suas garras. Nick esperou até que ela entrasse na casa, antes de dizer, zangado: - Eu disse a Léo para se livrar daquela iguana. Ela pode ser portadora de alguma doença.
- Ela é limpa e bem cuidada... com certeza não tem nada errado com ela - Sara protestou. - Acho que ele se sentiria perdido sem ela por ali. É um bichinho tão bonito! - Você vai mudar de idéia quando ela crescer. Elas ficam imensas e muito violentas. Belo bicho de estimação para ficar em casa! Era uma boa chance de falar sobre o desejo de Jenny, mas Sara resolveu ficar quieta. O humor de Nick era imprevisível, ele não tinha gostado da demora delas, por isso não valia a pena se arriscar a estragar tudo. Era melhor dar um tempo. Em vez de falar do cachorro, ela disse: - Léo contou que vocês vão carregar o navio amanhã. Será que eu e Jenny poderíamos ver? - Por que eu me incomodaria com isso? - Nick respondeu, indiferente. - Eu as levo de manhã e trago de volta antes do almoço. - Não poderíamos fazer um piquenique todos juntos? Jenny adoraria. - Sei disso - Nick falou secamente. - Mas não temos tempo. - Nunca há tempo - ela disse, entrando em casa com a cabeça erguida. Ele correu atrás de Sara, pegou-a peio braço e segurou-a. - Há uma ou duas coisinhas que é mais do que tempo de você aprender. Eu dirijo um negócio aqui, não um acampamento de férias. E falando de tempo, você está gastando tempo demais com Jenny! - Não foi para isso que você me empregou? - Sara tremia de raiva. Nick cerrou os lábios ameaçadoramente, com os dedos apertando forte o braço dela. Sem dizer uma palavra, ele a empurrou até a biblioteca, fechando a porta. Depois, ficou bem na frente de Sara e exigiu: - Diga isso novamente! - Nick, sinto muito. - Sua voz tremeu, não só porque estava arrependida do que tinha dito mas também porque sentia medo do que ele pudesse fazer. - Foi um comentário infeliz. - Você é quem me diz isso? Devia ficar calada para não dizer mais besteira, e me dar pelo menos a chance de responder. Eu gostaria de socá-la! - Já disse que sinto muito! - E acha que isso torna tudo azul novamente? - Não, claro que não, Eu... eu não parei para pensar no que estava dizendo. Você acredita, Nick? Honestamente, sinto muito. - Eu também. - Ele a soltou. Foi até a mesinha onde havia uma caixa com cigarros, pegou um e acendeu. Olhou-a novamente com a mesma expressão severa. - Posso entender agora por que os homens assassinam suas mulheres. Sara continuava irritada com ele, pensando que Nick não tinha o menor direito de fazer essa cena toda só por causa de umas palavras impensadas, Mas achava melhor acalmá-lo. - Você não deve ficar remoendo o que eu disse - murmurou. - Nós dois temos cometido muitos erros. - Eu não nego. O meu erro foi não ter levado em conta a diferença entre nós. - Em idade, você quer dizer? Mas quinze anos não é muita coisa, é? - Em alguns casos não faria muita diferença, mas no nosso parece ser intransponível. Você precisa de um pai mais do que de Um marido, e esse não é um papel fácil de desempenhar, como você já percebeu. - Não é verdade! - Não? - Ele a examinou por um longo momento, começando pelos cabelos despenteados, o rosto infeliz, descendo com uma calma estudada pelo corpo vestido de jeans até parar na calça arregaçada nos joelhos. - Com essas roupas, você não parece mais velha que Jenny. Não é de espantar que às vezes eu não consiga separar as minhas reações. - E por acaso eu era diferente quando você resolveu casar comigo? - Acho que sim. Você dizia o que pensava, mas sem maldade. Agora está terrivelmente maldosa. Talvez seja culpa minha... Eu não sou nenhum santo. - Parou de falar, como se hesitasse em perguntar uma coisa importante. - Por que você quis casar comigo, Sara? Porque eu estava apaixonada por você, queria gritar, só que sabia que não era verdade. Nunca tinha amado aquele homem frio e grosseiro que estava a sua frente, amara ura produto de sua imaginação, o homem que ela queria que ele fosse. Pela primeira vez Sara era capaz de ver as coisas claramente. Sentia-se chocada com sua descoberta. Mas esse homem que ela odiava era seu ma- rido, esse homem a tivera em seus braços e a possuíra completa-mente como uma mulher. Se ela sentia alguma coisa por ele, era algo que não sabia definir. Tudo o que sabia era que ele a tinha ferido como ninguém jamais a ferira antes. - Eu não sei por que - respondeu, sem emoção. - Talvez pela segurança. - Nada mais? Seus olhos cinzentos se cruzaram com os dela por um instante, e Sara corou levemente. - Por que se incomoda em perguntar o que já sabe? Outro dia você não disse que sabia muito bem que eu o desejava? - Eu disse? Não tive muito tato, não é? - Mas estava certo. Você sabia desde a primeira vez que me beijou que era capaz de me fazer desejá-lo como ninguém. Os homens sempre sabem essas coisas. - Eu nunca consigo adivinhar se você está sendo irônica ou não, Sara. Não nego que tenha feito muitas farras com mulheres quando era mais jovem. Você tem alguma coisa contra? - Posso entender muito bem isso - ela disse, com ar superior. - Mas não pode entender que eu me recuse a falar sobre meu passado. Parece que está sempre me cobrando isso. Mas, se eu falasse com você sobre Helen, acha que faria alguma diferença? Nós ainda seríamos as mesmas pessoas, com os mesmos problemas. - Só que teríamos mais chance de nos entender. Você deve tê-la amado muito. - Certamente mais do que ela a mim - ele explodiu, com raiva. - Ela se afogou quando fugia com outro homem. Isto responde alguma coisa? - Começo a entender melhor as coisas. - Ela escolhia as palavras com cuidado, sem querer se trair. - Você disse que Jenny era como ela. - E é mesmo. Helen era petulante, voluntariosa e intratável quando não conseguia ter o que queria. Exatamente como Jenny. - Jenny não é intratável. Ela simplesmente se esconde dentro de si mesma quando fica magoada ou chateada. - Você parece ter descoberto mais sobre ela neste pouco tempo que está aqui do que eu consegui em nove anos. - Você não disse que ou sou um pouco mais do que uma criança? Talvez seja por isso. - Não diga coisas que eu não disse. Não falei que você era criança em tudo... Mas não quero mais falar desse assunto. Isso não faz bem a nenhum de nós. Vamos esquecer esta conversa. - Nick... Jenny só pode ser sua filha. Você não pode ter dúvidas sobre isso! - Sara não pretendia tocar no assunto, mas as palavras saíram sem que quisesse. Ele empalideceu, e quando falou foi em um tom bem calculado: - Nada do que eu lhe disse poderia pôr essa idéia na sua cabeça. E agora, o que eu posso responder?, pensou, desesperada. Anna tinha que ser mantida fora da conversa. Ele não podia saber nunca que sua mãe havia lhe contado sobre o primeiro casamento dele. Forçando-se a pensar rapidamente, respondeu: - Pode-se ver em seus olhos quando você olha para ela, Agora mesmo, quando falou de outro homem, isso me veio à cabeça. Mas pensar nisso é loucura, Nick. Você não pode se torturar dessa maneira. Qualquer um pode ver a semelhança entre vocês. Eu descobri desde que vi Jenny. - Foi o que você disse na ocasião. - Ele olhava Sara desconfiado, como se tentasse descobrir alguma coisa. - Tem mais alguma coisa a dizer sobre o assunto? Se tiver, aproveite. - Não, não temos mais nada para conversar. Você estava certo, Nick, não adianta. Nós erramos em pensar que poderia dar certo. - Então é um erro com o qual teremos de conviver, de um jeito ou de outro. Não pense que vou me separar tão fácil de você. Bem, não é melhor você ir se trocar? Sara sempre se sentia desnorteada quando ele encerrava um assunto assim, sem mais nem menos. Saiu sem dizer nada, não havia razão para ficar. Tudo o que eles tinham feito era tornar o relacionamento pior ainda do que antes. Uma coisa era certa: ela não ia dividir esse arremedo de casamento com Olívia. Se fosse necessário, seguiria o exemplo de Helen e o abandonaria. Só de pensar nisso, sentiu um enorme vazio. Foi uma longa noite, com muita tensão no ar. Depois de jantar, Sara jogou palavras cruzadas com Jenny e ficou surpresa quando Nick aceitou jogar uma partida com elas. - É um bom exercício - ele explicou, irónico, olhando para Sara. - E bom tentar encontrar as palavras certas. Todos nós precisamos praticar isso. Na verdade, ele não precisava muito, pois venceu duas partidas sem grandes dificuldades, recusando-se a jogar uma terceira com a filha. - Você está procurando uma desculpa para ficar acordada - ele disse a Jenny. - Eu sei. Vovó me disse que você também detestava ir dormir quando tinha a minha idade. - A sua avó fala demais! - Está bem, eu vou dormir. - E Jenny foi andando, conformada, para a porta. - Você não vai esquecer de amanhã, não é? - Não vou, não. Você gostaria de ir até a baía de Tubai depois de ver o carregamento? Acho que eu poderia tirar umas duas horas de folga, ali pelo meio-dia. - Eu adoraria - ela respondeu ansiosa, com os olhos bem abertos. - Sara e vovó vão também? - Eu não, muito obrigada - Anna recusou, sorridente. - Se eu quiser ir à praia, tem uma ótima aqui em frente. Faz muito calor ao meio-dia para ficar andando de carro por aí na minha idade. Com vocês todos fora do caminho, vou me instalar na varanda e ter um bom descanso. - Ela esperou até que Jenny saísse para dizer a Nick: - Foi uma ótima idéia, meu filho. - Idéia de Sara. Ela acha que eu não cuido de Jenny. - Seus olhos cruzaram com os da mulher. - Está com vontade de dar um passeio? - Eu não me incomodaria. - Não voltem logo. - Anna parecia contente, - Eu vou ouvir um pouco de música clássica, e Nick não suporta - acrescentou, explicando a Sara. - Especialmente as peças para coral. Por isso eu quero colocar um equipamento estéreo no quarto. - Com um isolante à prova de som, espero. - Nick continuava ríspido, e não parecia ter vontade de esconder isso. A noite estava sem lua, e as estrelas brilhavam em um céu de um azul profundo. Eles pegaram a trilha que descia por entre as bananeiras e pessegueiros e ia dar além do gramado. Nick estava quieto desde que tinham saído da casa, dando-lhe a mão quando julgava que ela não podia se equilibrar nas passagens mais difíceis. - Eu ainda não tinha passado por aqui - Sara disse, quando ele parou para acender um cigarro. Estava fumando mais do que nunca. Normalmente, depois do jantar ele só acendia o charuto da noite. - Qual é tamanho de Mataleta? - Ela estava disposta a descontrair o ambiente. - É quase do tamanho da ilha de Wight. Você conhece? - Passei férias lá umas duas vezes, muito tempo atrás. - Faz tanto tempo assim? Seus pais a levaram? - A primeira vez fui com uma amiga, quando tinha dezesseis anos. - Encontrou algum rapaz simpático? - Um. - Ela sorriu, relembrando. - Ele tinha dezoito anos e era muito sofisticado. Ele e um amigo levaram Sheila e eu para jantar em um restaurante elegante. Quando o garçom serviu o vinho para que ele experimentasse, disse que não estava bom e pediu para trocá-lo. De onde eu estava sentada, podia ver o garçom atrás do biombo, em frente à porta da cozinha, colocando a rolha de volta na garrafa. Daí ele trouxe a mesma garrafa, já com o sacarrolha nela, para esconder o buraco. Eu fiquei totalmente desiludida quando Jeremy não percebeu que tinha sido enganado. - Suponho que isso tenha acabado imediatamente com o romance. - Até onde ele tinha ido. Aos dezesseis anos, tudo tem que ser perfeito. - Eu não diria que você mudou muito. - Se está falando a respeito de nós dois, não é exatamente a mesma coisa, é? Nós não começamos tom nenhuma ilusão, só com uma esperança que não se concretizou, - Quase não houve tempo, ou oportunidade. Nós temos vivido mais como irmão e irmã do que como marido e mulher, desde que viemos para Silverwood. - Isso é culpa de quem? - Sua voz soou abafada. Ele olhou-a de lado. - Você está me perguntando por que até agora não cumpri a promessa que lhe fiz de exigir os meus direitos? E isso o que quer, um marido que não lhe deixe nenhuma alternativa?! Nunca lhe ocorreu que um homem pode querer mais do que uma mulher para saciar seus desejos? - Você disse que eu... - Ah, sim, você aceita passivamente quando eu a procuro e até se comporta muito bem na cama. O que nunca faz é começar. Se quer que eu faça amor com você, espero que me mostre o que deseje. - E isso que você entende por "ser mulher de tudo"? Sinto muito se eu não tenho o tipo de experiência a que está acostumado! - Pelo amor de Deus, pare com isso! - Ele apertou fortemente o cigarro entre os dedos e jogou-o no penhasco, alguns passos à frente. Suas mãos agarraram Sara, segurando-a com firmeza e puxando-a contra seu corpo. - Eu tenho que lhe explicar linha por linha o que estou tentando dizer? Talvez eu faça isso mesmo. Muito bem, comecemos do início. Beije-me. Ela olhou-o, sem saber se devia obedecer. - Nick, eu... - Não fale, aja! - Ele agarrou-lhe a cintura e a fez abraçá-lo. - Ou você faz alguma coisa para melhorar nosso relacionamento ou aceita que eu procure outra mulher para fazer o que desejo. - Nick, você não pode me forçar a beijá-lo sem amor. Está querendo brincar com os meus sentimentos? - Não estou preocupado com o que sente, quero ver o que sabe fazer na prática. Será que é incapaz de tomar uma iniciativa? Vai deixar que eu procure outra mulher só para não desistir de seu belo orgulho? Não é pecado nenhum tentar um homem, Sara. - Pode não ser pecado, mas não é o que desejo fazer neste momento. Você não se importa com isso? - Não. Já disse que o importante é que você faça, com ou sem vontade. Vamos, eu disse beije-me! E!a o beijou com os lábios duros, fechados, recusando-se a submeter-se totalmente às ameaças. Ele sempre conseguia provocá-la, só com o mais leve toque. Mas, dessa vez, Sara permaneceu impassível. Quando se afastou, ele não tentou impedi-la o deu-lhe um sorriso sarcástico. - Muito bem, com o tempo você aprenderá. Terá que aprendei-se quiser me manter longe dos braços de Olívia. É isso que a incomoda mais, não é? - Se me deixasse ir embora, ela poderia ter você quanto quisesse. Alguém do tipo dela não merece nada melhor! - Cuidado, querida, você está se excedendo. - Com os olhos brilhando, ele a abraçou novamente. - Nosso casamento pode não ser perfeito, rnas tenho o pressentimento de que ele ganhará um sabor diferente daqui para a frente. Você é mais você quando está em brasa. Eu devia ter percebido isso antes. - Seu porco! - ela gritou com a voz enrouquecida. Livrando-se dele, começou a correr às cegas pela trilha, ouvindo a gargalhada de Nick ressoar atrás de si. Estava muito escuro para Sara conseguir enxergar o caminho. Tropeçou. Nesse instante, Nick chegou a seu lado. Ele ajudou-a e estendeu-lhe um lenço, sorrindo desdenhoso quando ela preferiu enxugar com as costas da mão uma lágrima de raiva no canto do olho. - Ora, vamos! - disse ele. - A situação não é tão ruim assim. Nós já passamos por isso antes. A única diferença é que antes você era bem mais dócil, e agora resolveu dar uma de atrevida. Será que não vai aprender nunca? - Nick, não fale assim - implorou ela, pondo de lado o orgulho. - Para que quer me humilhar? - Eu já tentei tratá-la de maneira suave e não recebi nada em troca. Então resolvi apelar para a violência. Pelo jeito, você prefere assim... Agora não fique se fazendo-se de vítima. Foi você quem fez esta escolha. Ande, vamos para casa. Ela foi porque não tinha outro lugar para ir. Sentia uma indignação muda, uma raiva impotente por aquele homem violento, que não hesitava em usar a força para obter o que queria. O que ele lhe deu foi simplesmente ura ultimato: ou aceitava o que ele exigia, passando a seduzi-lo para que se interessasse sexualmente por ela, ou se consolaria com Olívia. Se ela ao menos acreditasse que tinha alguma chance nessa competição com Olívia, seria diferente. Mas Sara achava que jamais venceria esse jogo, simplesmente porque não conhecia as regras e também não estava interessada em levar Nick como troféu pela sua vitória. Sara olhou-o caminhando a seu lado, de cara amarrada. O que ele queria dela é que cedesse, abdicasse de suas vontades unicamente para servi-lo. Nick ousava dizer que, se ela fizesse isso, valeria mais para ele. Mas como alguém podia ter valor fazendo só o que outra pessoa desejava? Por que tudo não podia ser mais simples, por que ele não acabava com aquele casamento ou simplesmente se dispunha a ser feliz a seu lado? Não, para Nick Bryant as coisas eram sempre complicadas. Ele tinha sempre que sentir o mundo a seus pés. A casa estava silenciosa quando eles entraram. Umas poucas lâmpadas iluminavam a sala de visitas, e a cadeira de Anna estava vazia. Olhando o relógio, Sara mal podia acreditar que quase duas horas haviam se passado desde que eles tinham saído para passear. A casa silenciosa era ao mesmo tempo sinistra e aconchegante. Dava medo, mas também sugeria uma certa intimidade. Nick pareceu se humanizar mais, assim que entrou nela. Indo até o armário de bebidas, perguntou a Sara; - Quer um drinque? Ela sacudiu negativamente a cabeça. O álcool não seria solução, tinha que lidar sozinha com a situação. - Acho que vou subir - disse, demonstrando calma. - Certo - Nick respondeu sem olhá-la. - Não demoro. Enquanto se preparava para dormir, Sara pensava que ainda não tinha decidido o que fazer naquela noite: dormiria simplesmente ou passaria o tempo nos braços de Nick? Sentada na frente do espelho, com a escova na mão. ela examinou seu rosto, seus olhos, seu corpo, e sentiu que a expectativa tomava conta de si. Parecia que fazia um século que Nick não a desejava. Naquela noite, se quisesse tê-lo a seu lado, teria de provocá-lo, acender-lhe o desejo. Não era isso que ele havia dito? Era alto demais esse preço! Sara o desejava, e, pensando assim, não valeria a pena tentar conquistá-lo primeiro com seu corpo para depois se entenderem de corpo e alma? Nick entrou enquanto ela estava lá pensando, com a escova na mão. Sara o viu passar por trás dela, tirar a jaqueta e colocá-la em uma cadeira. Com o coração batendo mais rapidamente, viu-o soltar o nó da gravata, desabotoar a camisa... Quando Nick foi em sua direção, largou a escova. Sabia que havia chegado a hora, mas não tinha idéia de como agir. Só quando ele pôs a mão em seu ombro, decidiu-se: inclinou a cabeça para trás de forma que seu rosto encostasse no peito dele. Viu que o rosto de Nick mudava sutilmente de expressão, os olhos adquiriam um brilho mais profundo. Quando ele a levantou, tomando-a nos braços, Sara o abraçou também, sua boca procurava avidamente a dele...
Eles saíram para Ruru um pouco depois das nove. e meia chegaram ao caís quando o cargueiro já estava atracado e o carregamento pronto. Nick deixou Sara e Jenny no escritório das docas, onde Léo lidava com os papéis, dizendo que dali elas poderiam ver tudo sem atrapalhar a atividade do lado de fora. - Eu voltarei por volta das onze e meia - falou, dando um sorriso carinhoso a Sara. - Espero que nós não o atrapalhemos - ela disse a Léo, um pouco preocupada, depois que Nick saiu para ver se estava tudo em ordem. - Tenho certeza de que acharemos um canto seguro lá fora. - Não, de maneira alguma, Nick disse para você ficar aqui até... - Ele parou e sorriu, acanhado. - Sinto muito. Não sou eu quem deve dizer o que você vai ou não fazer. É que nós já nos habituamos a encarar como lei o que Nick diz. Não que ele imponha sempre, naturalmente. - Você não tem que explicar, Léo, Eu entendo o que quer dizer. Ele nos deixou aqui e quer nos encontrar aqui esperando por ele às onze e meia. Mas, desde que não atrapalhemos, não há nada que nos impeça de dar uma saidinha. Aqui dentro é um forno. Você nunca pensou em ter, ao menos, um ventilador? - A única saída é eu encontrar uma jovem disposta a passar o tempo me abanando com uma folha de palmeira - ele disse, rindo. - Não se pode desperdiçar a energia do gerador com esse tipo de luxo. Jenny estava na porta ouvindo a conversa dos dois. - Vai ser chato se a gente tiver que ficar aqui. Nós não podemos mesmo ir um pouco lá fora, Sara? Agora que cabia a ela decidir, Sara hesitou. Não podia haver nenhum mal em sair se tomassem cuidado, e ela achava que Nick sabia que elas não o obedeceriam. Porém, mais do que nunca, não queria ter problemas com ele. Não agora que começavam a se entender. Nick estava diferente naquela manhã. Seu jeito lembrava os primeiros dias passados juntos, antes que chegassem a Matale-ta. Podia ser um longo caminho até chegar ao que Sara esperava, mas parecia que eles estavam pelo menos no começo... - Vamos fazer assim - ela disse a Jenny, - Sente-se aqui no chão e olhe do degrau da porta por enquanto. Nós sairemos quando eles terminarem de limpar o depósito aí do lado. Jenny concordou, suspirando, e ficou sentada, olhando o movimento lá fora. Vendo que a menina não prestava mais atenção no escritório, Léo perguntou: - Quando acha que pegará o presente de Nick? Aquela questão tinha preocupado Sara por muito tempo. Achava difícil resolvé-!a, mas tinha que achar uma saída. Queria muito dar um presente a Nick e sentia que ele gostaria do porta-canetas. - Amanhã - respondeu. - Só que não sei como farei para ir. Você não quer deixar o presente com Kirri? Assim eu dou uma passadinha quando puder... - Acho que seria melhor se eu o levasse de carro, à noitinha, você só desceria para pegá-lo. Assim poderia entrar em casa e escondê-lo. - Léo riu de repente. - Nós parecemos um casal de conspiradores, né? - E nós somos mesmo - Sara concordou. - Acho a sugestão ótima, Léo. Dá para você vir lá pelas nove e meia? - Dá. Vou parar bem na entrada. Ela teria que achar uma desculpa para se afastar dos outros pelo menos por uns quinze minutos. Não ia ser fácil, mas ultimamente nada era fácil para ela. - Você devia se casar, Léo - Sara disse, em um impulso. - Seria um marido muito atencioso! - O casamento exigiria outras coisas além de atenção. - Havia um tom estranho em sua voz, e ele evitou os olhos dela. - Eu prefiro primeiro me apaixonar para depois começar a pensar nessas coisas. - E não tem ninguém por quem você tenha se apaixonado, nem na sua cidade? - Não, era casa não... Eu admiro muito uma das professoras da escola aqui em Ruru. Seu nome é Lehita. Ela é nativa, e sempre foi tão brilhante que Nick financiou seus estudos fora daqui. Ela voltou mais ou menos na mesma época em que comecei como administrador. - Nick a obrigou a voltar? - Não, ela nunca quis outra coisa a não ser voltar para cá e aplicar o que aprendeu. Nunca vai querer deixar Mataleta. - Como você com certeza fará um dia. Demorou um minuto para que ele respondesse: - E possível. Nem sempre eu sei resolver as situações da vida. - E o que se pode dizer de você com essas faturas. - As palavras secas de Nick soaram na sala. - Pensei que estivesse tomando conta de Jenny, Sara. Ela se sentiu culpada, vendo o degrau vazio. - Oh, céus! Onde estará ela? - Eu a pus em um canto sobre uma caixa vazia e disse para ficar lá. - Nick olhou de um modo estranho para Léo, que abaixara a cabeça. - Eu acho que Léo pode continuar com seu trabalho. Venha cumprimentar o capitão do Ballantyre, ele era amigo de Dan Anders. Quando estavam longe do escritório, Sara se apressou em explicar a Nick; - Foi por minha culpa que Léo deixou de lado o seu trabalho. - Foi o que pensei. - Ele estava com as mãos nos bolsos, o rosto sério. - Não devia ter deixado você com ele. Melhor deixar pra lá, Sara pensou. Estava na cara que Nick não gostava de encontrar os dois conversando. Seria por ciúme? Não, não exatamente. decidiu. Era mais um sentimento de posse, ciúme era coisa de gente apaixonada, e Nick estava longe disso. O capitão do navio chamava-se Larson. Era um homem da idade de Dan Anders e parecido com ele. - Apesar da morte de Dan, fico contente que você tenha se saído bem - ele disse quando Sara lhe deu os pêsames pela morte do amigo. - Dan morreu como gostaria de ter morrido. Vivia para o mar desde que era um menino. - Olhou através da cabine para Nick, que estava na porta, observando as docas. - Largue isso, homem. O trabalho acabará em tempo. Estamos dentro do horário. Que tal um drinque? Arranjei um uísque que desce como seda. - Seus olhos se voltaram para Sara como se acabasse de se lembrar de seu sexo e status. - Temos bastante café, se você quiser um pouco. - Adoraria - ela respondeu, sorrindo. Enquanto o café não vinha, os dois experimentaram o uísque. Sara se perguntou como eles podiam tolerar uma bebida forte como aquela às dez e meia da manhã, com o calor chegando a quarenta graus. A atmosfera pesada da noite anterior tinha sido substituída por uma calmaria... Nick não fizera nenhum comentário de manhã, ao descer, mas ela via que toda hora ele estava olhando para o céu azul sem nuvens, como se calculasse alguma coisa. Pelo jeito havia uma tempestade se aproximando. Mas ele devia achar que não os atingiria tão cedo, senão não levaria Sara e Jenny para fazer aquele passeio. Eles deixaram o capitão depois de uma meia hora e foram buscar Jenny. Ela ainda estava sentada onde Nick a pusera. Era impossível saber se tinha ficado lá o tempo todo. Foi só quando já estavam no carro, saindo do cais, que Nick disse calmamente: - Sinto muito, mas teremos de deixar para outro dia. Não tenho mais tempo. Podemos fazer nosso piquenique no Taki Hill... Não é muito longe de casa. - Papai, você prometeu! - Sua vozinha era acusadora. - Você não pode quebrar uma promessa! - Há ocasiões na vida que todos nós temos que fazê-lo, isto é uma coisa que você precisa aprender um dia. E hoje é um bom dia. Taki ou voltar para casa. O que você prefere? Sara cruzou os dedos nervosos quando Jenny hesitou. Viu a expressão de revolta no rostinho da menina e sentiu muita pena dela. Jenny suspirou, contrariada. - Iremos a Taki, então - disse, e olhou pela janela com o rostinho magoado. Eles passaram perto de Silverwood e tomaram uma das estra-dinhas paralelas, subindo pelas colónias que dividiam a ilha. Por entre as árvores, de ambos os lados, espalhavam-se samambaias, que às vezes cediam lugar a trepadeiras floridas, do tipo das que havia em Silverwood. Ao longe da estrada podiam-se ver trechos do mar, vasto e azul. E, dominando a vista, o vulcão que dava nome à ilha, com seu cume que parecia ter sido esculpido. Jenny animou-se novamente logo que eles chegaram ao anfiteatro natural cavado no lado da colina por séculos de ventos e tempestades. Eles entraram, comeram o lanche e, em seguida, a menina saiu para explorar a região. - Será que você não deixaria Jenny ir a uma das escolas da ilha pelo menos por um período? - Sara perguntou impulsivamente. - Acho que seria bom para ela poder brincar com outras crianças da sua idade. - Por que essa idéia, de repente? Está achando que ficar com ela é demais para você? - Eu estava pensando nela mesma. Em matéria de estudos, acho que Jenny vai bem. Podemos nos virar por mais um ano, seguindo o programa que a srta. Cartwright tinha feito. Mas ela precisa de companhia. Você notou como Jenny ficou envergonhada perto das outras crianças na praia, naquela festa? Ela parecia morrer de vontade de brincar com elas, mas ao mesmo tempo não tinha coragem. Outro dia eu estava conversando com um dos professores na praia. Ele me disse que estão com falta de pessoal. Acho que seria bom para mim e para Jenny ir lá por um período. - Você não vai trabalhar em nenhuma escola -Nick disse, categórico. - Os nativos não gostariam mais disso do que eu. E o fato de Jenny ir para lá só causaria problemas também. - Por ser sua filha? - Em parte. Quer você queira, quer não, os Bryan são tidos em alta conta por essa gente. Eles nos consideram uma classe à parte. Isso é feudalismo, eu sei, mas posso fazer pouco a respeito. E a maneira como eles próprios preferem que as coisas sejam. Foi só na época dos meus pais que eles conheceram o mundo de fora. Mesmo agora, são raros os que saem daqui. - Então por que se incomodam com a educação? Não é que eu esteja criticando, Nick, só estou curiosa. Se eles se sentem tão satisfeitos aqui em Mataleta, parece uma perda de tempo ensinar-lhes coisas que só seriam úteis fora daqui. - Era assim que eles pensavam no começo. Meu pai conseguiu convencê-los de que seus filhos deviam ter uma oportunidade de decidir eles mesmos. - Não seria arriscar muito? Ele podia acabar ficando totalmente sem mão-de-obra. - Era pouco provável. A maioria não pode imaginar uma vida melhor do que esta, não importa o que eles aprendam. Mas porque apenas alguns aproveitam a educação que recebem, não é motivo para tirar a possibilidade de estudar. - Como Lehita, por exemplo? - Quem lhe falou sobre ela? - Léo. Falávamos sobre ela quando você chegou. - Não sabia que ele a conhecia. Ela é uma moça muito dedicada, mais séria do que a média. Os polinésios preferem se divertir todos os dias a trabalhar. - Todos nós não preferiríamos também? - Ela riu. - Nós não temos a mesma despreocupação com a vida. - Mas eles parecem ter boa vontade para trabalhar. - Só trabalham para comprar o essencial. Ainda bem que tem bastante gente para que esse sistema de trocas funcione: um homem trabalha até que consiga o que considera necessário para o seu sustento e o de sua família por alguns dias: então ele pára e outro o substitui. É um esquema que eles mesmos bolaram para manter todos felizes e a ilha produtiva. Como cultivam grande parte do que consomem, não precisam de muita coisa extra, além de roupas. - O que, neste clima, não significa muita coisa. - Sara estava deitada na grama, protegendo com a mão os olhos do brilho forte do sol. - Isto me parece uma utopia. - Longe disso. Não existe lugar perfeito quando se trata da raça humana. Nós não fomos feitos para isso. Aqui há tantas disputas mesquinhas por inveja como em qualquer outro Lugar. Elas geralmente acontecem por causa das mulheres. Isso deve ter algo a ver com o sangue francês de seus antepassados, suponho. - É verdade, então, que os franceses pensam mais no amor que os outros? - Eu não diria que eles pensam mais: simplesmente dedicam mais tempo a ele. Ela tirou as mãos dos olhos quando a sombra dele a cobriu. Olhou para aquele rosto bronzeado, sentindo-se emocionada. Nick sorria. - Você preferiria que eu fosse francês! Ela sacudiu negativamente a cabeça, sem ousar falar. Viu os olhos dele fitando longamente sua boca e tentou se controlar. - Jenny pode voltar, Nick. - E você acha que iria se chocar por me ver beijando você? Mesmo uma criança de nove anos deve saber que os adultos fazem esse tipo de carinho de vez em quando. - Mas não nós dois. Ao menos, não ainda. - Sara não podia levantar por causa do jeito que ele estava debruçado sobre ela e sentia que estava em desvantagem para discutir o assunto nessa posição. Mas tinha que fazê-lo. - Jenny está começando a me aceitar como amiga. Se eu despertar ciúme nela, pode me odiar novamente. - Ciúme! - Nick se levantou de repente. - Deus meu, você está falando de uma criança, não de uma mulher! - Mesmo assim, ela é uma mulher. E ela ama você, Nick, mesmo sem você corresponder. Esperava que ele negasse, mas Nick não fez isso. Impaciente, respondeu: - Eu já estou por aqui com toda essa psicologia! Você é minha mulher e, quanto antes Jenny se conscientizar disso, melhor. - Mas ela é sua filha. Claro que... - Ela não é minha filha! - As palavras saíram sem que ele pudesse impedir. - Você não pode meter isso na sua cabeça! Ela nunca foi minha! Instintivamente, Sara olhou sobre o ombro de Nick e viu a figurinha imóvel e silenciosa alguns metros atrás dele. Há quanto tempo Jenny estava lá, não havia jeito de saber. Nem era possível descobrir, pelo seu rostinho impassível, o quanto escutara. Não tinha nem tempo de se preocupar com isso, pois, Nick se colocou de pé com um ar de urgência. - Entrem no carro - ordenou, quando sentiu o vento uivando com uma força que fez voar a cesta de piquenique. - Eu recolho as coisas - Virou-se, então, e viu Jenny, mas não demonstrou sua surpresa. - Vocês duas, rápido, entrem no carro! Sara obedeceu sem perguntar, agarrando Jenny e entrando rápido no automóvel. Sentada, ela observou Nick se movendo com o vento fustigando seus cabelos e suas roupas. O que mais a assustava era a rapidez com que o tempo tinha mudado. Dois minutos antes o céu estava azul e tudo parecia tranquilo. De repente, parecia que ia cair um temporal. As palmeiras agitavam-se com violência, a poeira subia da estrada em direção ao céu em nuvens amarelas. Nick teve dificuldade em segurar a porta para atirar a cesta e a esteira dentro do por-ta-malas. Finalmente, sentou-se a direção. O carro sacudia como um barco num mar bravio. - Eu não tive juízo... não devia tê-las trazido aqui. Sabia que a tempestade viria, mas calculei que teríamos tempo suficiente para voltar antes que começasse. Então foi por isso que ele se recusou a levá-las a Tubai? Sara gostaria que ele tivesse dito na hora. Ela se virou para ver Jenny, sentada no banco de trás, mas o rosto da menina estava voltado para a janela, Jenny parecia deslumbrada com o espetáculo que via lá fora. Uma árvore caiu com estrondo, deixando as raízes à mostra como se fosse leve como um palito de fósforo. O mar, que havia pouco tempo parecia tão tranquilo, estava agora em um caos total, com ondas estourando por todos os lados. Felizmente não havia nenhum barco, os nativos deviam ter reconhecido os sinais. Ela pensou no Ballanlyre lá embaixo no porto e lembrou-se das palavras do capitão naquela manhã. Eles não tinham terminado o carregamento e, na certa, não poderiam continuá-lo. - Quanto tempo deverá durar? - ela gritou, segurando-se no banco, enquanto Nick lutava para conservar o carro estável. - Está nas mãos de Deus - ele respondeu, também aos berros. - Algumas horas ou uns dois dias. Nós estaremos seguros em casa. Se é que conseguiremos chegar lá. Sara pensou. Lutava contra o medo que a invadia e fazia força para ficar sentada no banco. Jenny não dissera uma palavra desde que tinha entrado no carro, mas não parecia aterrorizada. Provavelmente estava acostumada a tais caprichos da natureza, ou então estava muito confusa para perceber o que acontecia lá fora. Sara rezava, apesar de achar pouco provável, para que ela não tivesse ouvido o que Nick havia dito. Era muito cruel. Como esperar que uma criança entendesse os sentimentos de um homem que tinha vivido com ela durante nove anos com aquele tipo de dúvida? Se ao menos pudesse encontrar uma maneira de convencê-lo de que ele estava errado. Mas como? Nick não ia acreditar nunca, porque simplesmente não queria. Se aceitasse a filha de Helen como sua própria filha, perderia o principal motivo para desprezar a memória dela. Foi um verdadeiro milagre eles conseguirem chegar a Silver-wood. Anna os esperava no hall. As janelas estavam fechadas com barras, o todos os móveis tinham sido retirados da varanda. - Você não pode sair de novo com esse tempo! - Sara implorou, assustada, quando Nick caminhou para a porta. - Tenho que chegar ao porto enquanto ainda é possível. Vamos precisar de toda ajuda para manter aquele navio atracado. - Você quer dizer que o vendaval ainda pode piorar? - perguntou, apreensiva. - E bem possível. Não saia novamente, por nenhuma razão. Ouviu bem? Volto quando puder, Tamu e um outro empregado correram para a porta quando ele saiu, trancando-a em seguida. Lá dentro o barulho do vento era mais suave, mas nem por isso a tensão diminuíra. - Não se preocupe, Nick sabe o que faz - Anna disse, tentando acalmar Sara. - Onde vocês estavam quando começou? - Taki Hill. Nick achou perigoso ir até Tuhai quando percebeu que a tempestade estava chegando, embora eu não consiga imaginar como ele adivinhou isso. - É uma sensação que fica no ar e a gente não esquece. Na verdade, eu esperava que ele cancelasse tudo hoje de manhã. - Acho que ele não queria desapontar Jenny. - Sara olhou preocupada para a menina, que andava de um lado para o outro dentro da biblioteca, com as mãos nos bolsos. - Essas coisas não a afetam nem um pouco? - Não que eu tenha reparado. - Anna tentava disfarçar seu nervosismo movimentando-se sem parar. - Nós não podemos ficar sem fazer nada. Vamos tomar chá. E muito cedo, mas que fazer? Como Nick tinha previsto, a tempestade aumentou com o cair da noite, quebrando telhas e batendo as janelas contra as barras de segurança. Apesar do barulho, Jenny foi para o seu quarto na hora habitual, sem ter dito mais que algumas poucas palavras desde que voltara para casa. Sara sentia que não podia fazer nada para consolá-la, enquanto não soubesse o que ela havia escutado. Sempre existia a possibilidade de que seu estado de ânimo fosse simplesmente pelo fato de ter visto ela e Nick juntos, e tão absortos que nem haviam notado a sua presença. Se fosse isso, ela sem dúvida logo melhoraria. Sara só podia esperar que estivesse certa! Era besteira esperar que Nick voltasse aquela noite, é claro. Mas Sara ficou esperando, assustando-se com todos os barulhos que ouvia, sempre na esperança de que fosse o carro dele. Nem ela nem Anna tinham vontade de deitar. De qualquer modo, era impossível dormir. Elas ficaram ouvindo música e lendo, com a luz fraca fornecida pelo gerador de emergência. Nas primeiras horas da madrugada a tempestade finalmente acabou, tão subitamente quanto tinha começado, deixando no ar um silêncio mortal. As duas mulheres levantaram-se das cadeiras onde estiveram sentadas durante todo o tempo e, de comum acordo, foram olhar lá fora. Mesmo à luz da lua, a devastação causada era de espantar. Anna, entretanto, reagia com um aparente descaso, como seja estivesse acostumada com aquilo. Sem dúvida o prejuízo parecia pior do que era, na realidade. A operação de limpeza só poderia começar com o raiar do dia, o que demoraria ainda umas duas horas. Agora que as coisas tinham acalmado, deitar parecia a única idéia sensata. Deitada em sua cama, solitária, Sara procurou não se preocupar demais com o fato de Nick ainda não ter voltado. Devia ter muita coisa para fazer no cais antes que acabassem de carregar o navio. Isso sem falar dos nativos. Aquela hora, a clínica devia estar lotada, sem dúvida, com os acidentes causados por destroços carregados pelo vento, ou com os incêndios nas casas. Agora entendia por que as cabanas dos nativos eram construídas de materiais leves: eles quase não machucavam quando caíam sobre as pessoas, e davam poucos prejuízos se fossem carregados pelo vento. Embora Sara não acreditasse que tempestades como aquela fossem de fato muito frequentes em Mataleta, começou a pensar que, quando elas vinham, fosse para valer. Por isso todos estavam sempre preparados para enfrentá-las. Parecia ter demorado séculos antes que ela, finalmente, conseguisse dormir.
Nick só voltou no meio da tarde, cansado e sujo. Disse que não tinham tido nenhum prejuízo sério. O Ballantyre já havia partido, e assim eles podiam colocar as coisas novamente em ordem. - Só vim trocar de roupa e comer um sanduíche - avisou. - Se começar a chover agora, muitas famílias ficarão sem teto. Nós organizamos um mutirão para começar os reparos, mas eles vão precisar de estímulo constante para terminar logo. - Não há nada que eu possa fazer? - Sara perguntou, enquanto ele subia a escada. - Aqui quase não sofremos nada, e os empregados podem cuidar de tudo. Nick pareceu se animar. - Você pode ser útil na clínica. Eles estão com muito trabalho. Há poucos feridos graves, mas muitos machucados. Peça para alguém rasgar alguns lençóis em tiras para fazer ataduras, enquanto eu me troco. Anna já estava na cozinha preparando alguma coisa para Nick comer. Sabendo que ele não esperaria, Sara pediu que arrumassem um lanche e algumas garrafas com café quente. Os lençóis foram cuidadosamente rasgados em tiras e empacotados para ser transportados. Quando Nick desceu ela já estava pronta. A região parecia um campo de batalha, com as árvores arrancadas com as raízes para cima e muitos pedaços de troncos espalhados pelo chão. A vila não estava tão ruim quanto ela havia pensado; as pessoas pareciam encarar com serenidade a situação, cantando enquanto trabalhavam nos consertos. O que era um pouco de ventania, afinal de contas? Ninguém tinha morrido e as casas podiam ser reconstruídas. Na clínica a situação era mais grave, com uma fila de pessoas ainda esperando para entrar. Sara já tinha falado com as três nativas que trabalhavam lá e sabia que um médico visitava a ilha uma vez por semana. Quando não havia recursos em Mataleta, os casos mais sérios eram enviados a uma das ilhas principais. As nativas tinham dividido tudo em duas alas: os casos de contusão na ala menor, e as crianças, os idosos e as pessoas em piores condições ocupando os leitos. A enfermeira responsável colocava uma atadura na cabeça de um rapaz enquanto suas duas assistentes atendiam os outros pacientes. Ela ficou contente com a chegada de Sara e, de bom grado, passou o que estava fazendo para a re-cém-chegada, a fim de examinar uma criança que estava com o braço quebrado. - Alguns deles esperaram o dia todo antes de vir até aqui - explicou, depois que Nick saiu, em um inglês ruim e lento. - Meu povo não gosta do cheiro deste lugar. - Ela disse alguma coisa ao garoto em sua própria língua, deu-lhe uns tapinhas na cabeça e colocou-o no chão. Depois explicou a Sara: - O osso não quebrou, mas ele está bem machucado. Uma cerca caiu em cima dele. Você tem alguma prática? - perguntou, vendo Sara se esforçar para colocar uma atadura. - Só em primeiros socorros. - Sara sorriu para o rapaz, mostrando-lhe a saída e torcendo para que a atadura não caísse. - Não sou muito rápida. - Mas é cuidadosa, e isso é muito importante. No hospital onde eu aprendi enfermagem me ensinaram que velocidade só é essencial quando se trata de salvar uma vida. Em todas as outras situações, deve-se observar um ritmo moderado... Trabalharemos bem juntas. Realmente trabalharam. Só quando terminaram tudo Sara se lembrou do café que tinha levado de casa. Pretendia dar para Nick levar, mas esquecera. Depois de dividi-lo com o pessoal da clínica, perguntou à enfermeira se sabia onde poderia encontrar Nick. Estava disposta a ir procurá-lo na área do porto, que era, segundo lhe disseram, a que havia sofrido mais prejuízos. Apesar dos protestos, Sara foi a pé, dizendo que lhe faria bem andar um pouco. A clínica ficava no alto da colina, de onde Sara podia avistar os telhados do povoado e, por trás dele, um mar calmo e azul, já cheio de barcos de pescadores. Vendo a cena, ela compreendeu por que os nativos não queriam sair da ilha, apesar do que pudesse acontecer com eles. Ela também tinha se rendido aos encantos de Mataleta! Encontrou Nick trabalhando com os nativos no conserto dos tetos das casas. Ele a viu quando ela já subia a escada. - Eu disse que iria pegá-la na clínica antes de escurecer. - Eu sei, mas nós terminamos de atender os pacientes por enquanto, então pensei que você gostaria de tomar um pouco de café. Deve estar quente ainda. - Acabei de tomar, mas deixe aí. Tomaremos depois. Na verdade, eu ia pedir a Léo para pegá-la daqui a alguns minutos e levá-la de volta para casa. Eu ainda vou ficar bastante tempo aqui. - No escuro? - Faremos algumas tochas. - Erguendo a voz, chamou o administrador, que tinha aparecido em uma esquina. - Léo, pode parar! Ele está aqui embaixo desde ontem cedinho - explicou a Sara. Léo não insistiu quando ouviu a ordem, estava fatigado. - Parece que você sempre me pega de surpresa quando estou mal arrumado - comentou, quando já estava no carro com Sara deixando a cidadezinha para trás. - Depois de tudo o que você passou, não poderia mesmo estar com outra aparência. Pare de se preocupar com coisas que não têm importância, Léo. Você volta lá ainda esta noite? - Tenho que voltar depois de descansar umas duas horas. Temos muito o que fazer. Nick não irá embora até que as coisas estejam em ordem novamente. - Ele virou o carro para pegar a próxima entrada e sugeriu: - Que você acha de passar em casa para pegar o presente de Nick? Não poderia haver uma oportunidade melhor. Sara concordou, sem ter muita certeza. Se o que Léo tinha dito era verdade, Nick provavelmente não estaria em casa no dia de seu aniversário. - Acho que nenhum de vocês dormiu muito ontem à noite - comentou, sorrindo. - Demos só umas cochiladas. Sorte de Nick que foi para casa na hora certa. Depois que a ventania piorou, ele não teria conseguido sair. Deve ter chegado em casa pouco antes de começar a chover, não? - Olhou rapidamente para Sara, percebendo que ela não respondia. - Está se sentindo bem? Parece tão pálida! Ela estava arrasada. Sentia seu coração apertado e o peito doído. Se Nick não tinha passado a noite em Ruru, na certa estava com Olívia! Ele havia preferido ficar com ela do que ir para casa. - Estou bem. Só um pouco abalada. - Espero que seja só isso. Eu acho que o vento é uma coisa que assusta muito. Me lembro uma vez... Sara deixou-o falar, qualquer coisa era melhor do que pensar. Ao chegarem notou que o bangalô dele não tinha sofrido muitos danos. Esperou-o no carro, até que ele pegasse o presente. - Terei que pagar você uma outra hora - disse, assim que ele voltou com o pacote nas mãos. - Se der o dinheiro agora, Nick pode desconfiar. - Ah, qualquer hora você me paga. Não pense nisso. Ele a levou até em casa e foi embora em seguida. As lâmpadas da varanda já estavam acesas. Anna foi recebê-la, olhando surpresa os faróis que se afastavam. - Era Léo? Parece que ele está louco por uma cama. - É isso mesmo, ele está morto de cansaço. Nick não voltará tão cedo. Ele quer terminar de consertar as coisas na cidade. - Ele nunca gostou de largar nada antes do fim. Vai manter todos lá até que caiam de cansaço. - Anna olhou curiosa para o pacote nas mãos de Sara, mas não fez nenhum comentário. - Você deve estar faminta. As coisas estavam muito ruins na clínica? - Não, estava tudo em ordem. Nós esperamos que o doutor venha amanhã, embora não tenha muita coisa para ele fazer. - Ela parou no pé da escada. - Onde está Jenny? - No quarto. - Anna parecia um pouco preocupada. - Ela estava muito quieta, espero que não esteja ficando doente. Se amar Nick for uma doença, então Jenny já está contaminada, Sara pensou com tristeza e simpatia pela garota. O pequeno mundo de Jenny caíra aos pedaços, assim como o dela havia desmoronado alguns minutos atrás. A essa altura estava mais do que claro que Jenny tinha escutado as palavras de Nick. Sara se perguntou se devia procurá-la, mas isso podia piorar as coisas, Jenny devia estar achando que havia sido ela quem provocara a situação. E estava certa: nunca deveria ter casado com Nick. A vida sem ele podia ser triste, mas era preferível à dor que ele causava em quem estava a seu lado. Começou a chover novamente quando estavam jantando. O cheiro de terra molhada entrava pelas portas abertas da varanda. - A chuva trará Nick de volta para casa - Anna comentou, satisfeita, vendo a água correr na varanda. - Não poderá trabalhar enquanto chover assim! Estava certa: meia hora mais tarde Nick chegou. Ele entrou em casa com os cabelos ensopados, a roupa preta de sujeira. - Mais algumas horas e teríamos terminado - disse. - Peio menos, todas as casas já estão com tetos provisórios. - Seus olhos, fatigados, provocaram Sara. - Não fique nervosa assim. Nós já estamos acostumados com essas coisas. - Eu sei. Se ele percebeu a tensão na voz dela, não demonstrou. - Vou vestir uma roupa seca. Você pede a Liah que me prepare alguma comida? Pode ser uma coisa fria mesmo, não estou com muita fome. Sara foi fazer o pedido, passando por Nick sem ao menos olhar para ele. Não podia suportar a maneira de ele olhá-la, como se não tivesse acontecido nada. Seria possível que Léo tivesse se enganado? Impulsivamente, disse que ela mesma levaria a bandeja no quarto, embora não tivesse nenhuma idéia do que diria ou faria quando estivesse sozinha com ele. Achava que devia deixar de lado seus problemas e resolver o que fazer a respeito de Jenny. De um jeito ou de outro, Nick precisava saber que magoara a menina e deveria se desculpar por isso. Quando ela entrou, Nick estava perto da janela. Vestia o roupão branco que combinava com o dela. Sem mais nem menos, disse: - Eu abri o pacote. Era para mim? - Eu ia lhe dar amanhã. - Ela ficou sem saber o que pensar vendo que ele estava aborrecido. - Foi pena não tê-lo guardado, mas não importa. Se a chuva parar, com certeza você irá para Ruru logo cedo. Bem, já que achou o presente, talvez seja melhor eu lhe desejar feliz aniversário aqui e agora. - Com um presente que conseguiu com outro homem? - Sua voz estava carregada de ironia. - Sinto muito estragar a festa, mas fingir não faz meu gênero. Em primeiro lugar, devolveremos isto a Léo amanhã cedo, junto com algumas palavrinhas minhas! - Não o culpe. - Sara não sabia mais nada, só que se sentia muito infeliz. - Eu pedi a ele uma sugestão, Nick. Estava desesperada para encontrar alguma coisa para lhe dar. Eu... - Você realmente pensa que significa tanto assim para mim receber presentes no dia do meu aniversário? Ah, naturalmente que eu apreciaria o gesto, se não tivesse visto esta caixa por acaso na mudança de Léo. Então você pensou que eu não ia querer saber como tinha comprado isto aqui? Pensa que sou idiota, Sara? Como é que você ficou sabendo do meu aniversário? - Jenny me disse. Ela estava fazendo um presente especial para lhe dar de surpresa. - Estava? - Se ela não estiver mais, você não pode culpá-la. Você não é seu pai, lembra-se? Você mesmo disse. Talvez, no final das contas, isso tenha um lado positivo: você não seria capaz de fingir para ela também. - De repente, Sara perdeu o controle diante da frieza daqueles olhos cinzentos. - Por quanto tempo ainda pretende culpá-la das falhas da mãe? - Você não sabe nada sobre isso. Nem minha mãe! E não tente negar que ela lhe disse alguma coisa, isso ficou bem claro na outra tarde. Sara sentiu-se derrotada, nada dava certo. - Ela só queria ajudar. - Mas não ajudou. Sem conhecer a verdade, ela não podia mesmo ajudar muito. - A verdade? - Foi o que eu disse. Se você quer saber, tenho provas de que Jenny não é minha filha. Agora vai esquecer esse assunto? - Não posso. Que tipo de provas? Ela tem seus olhos, sua boca, tem até sua expressão. Como pode negar essas evidências? - Se você tivesse conhecido seu pai verdadeiro não estaria fazendo essas perguntas. Nós tínhamos outra coisa em comum além de Helen. E expressões, minha querida, não são inatas, são adquiridas. Eu sou o único pai que ela conheceu pessoalmente. - Essa prova... - Sara não estava disposta a deixar de lado o assunto - deve ser muito forte para você ter tanta certeza. - É... - Nick fez uma pausa de alguns segundos, como se fizesse um esforço imenso para voltar ao passado. - Helen me deixou uma carta na noite em que fugiu com Ravel. Eu a queimei há alguns anos, mas me lembro dela palavra por palavra. Ela dizia que Jenny era filha de Paul, citando com precisão o dia em que a havia concebido. Contava que eles a deixavam aqui em Mataleta porque eu tinha mais condições de lhe dar um futuro. O que ela estava realmente querendo dizer era que eles começariam melhor a vida sem o estorvo de uma criança. Satisfeita? Se não fosse a lembrança de Olívia, ela teria corrido para abraçá-lo, tentando afastar toda aquela mágoa da vida de Nick. - Sinto muito - sussurrou. - Oh, Nick, sinto muito! - Sim - disse ele. - Agora você sente muito. Mas é tarde demais. Eu fui um bobo de pensar que as coisas poderiam dar certo entre nós. Tudo o que consegui me casando com você foi arrumar mais problemas. - Não é justo que você fale assim. - Ela empalideceu. - Eu tentei ser... tudo o que pediu que eu fosse. - E acha que isso era tudo? Você não entendeu nada, nem uma palavra do que eu disse no outro dia à noite, não é? Você não é capaz de entender. Oh, eu poderia fazer com que você fosse perfeita na cama. E isso que acha que estou procurando? - Não, não era só isso que você queria, Nick, agora sei muito bem. Já sabia, mas não tinha coragem de admitir para mim mesma. Você só ficaria satisfeito se eu o amasse tanto quanto Jenny o ama, porque só assim teria certeza de estar nos ferindo como Helen o feriu há nove anos. Mas isso não acontecerá, Nick, porque nada poderá me fazer amar profundamente um homem que usa os outros como você faz! Passe a noite com Olívia hoje também, se quiser. Ao menos com ela você pode ser sincero. Ele a olhava como se nunca a tivesse visto antes. Quando falou, foi em um tom calmo e sem emoção: - Olívia partiu hoje de manhã no Ballantyre. Eu mesmo a coloquei a bordo, depois de ajudá-la durante a noite toda a empacotar suas coisas e de acertar um preço pela parte dela. Eu não sei para onde ela vai nem estou muito interessado. Com o choque, ela ficou parada por um momento. - Você quer dizer que não... a quer mais? - disse, finalmente. - Eu não a quis desde o dia em que vi você... - Nick falava com calma, de um jeito que não deixava dúvidas sobre sua sinceridade. - Deixei Mataleta porque eu a desejava tanto que poderia comprometer minha amizade com John. Vivi muito tempo sem uma mulher perto, e ela parecia me amar também. Se John não estivesse tão perdidamente apaixonado, eu não teria a menor dúvida em desmanchar seu casamento, pois ela não estava apaixonada por ele. Olívia se casou com John porque ele lhe oferecia um lar e segurança, sem pensar no que seria viver cm uma ilha para uma mulher como ela, acostumada a levar uma vida social movimentada. Para ela, eu era só um divertimento para aliviar seu tédio. - Foi por sua causa que ela ficou tanto tempo. Sem você, teria deixado John logo que soube da doença dele. Você sabia disso e não queria que ele sofresse. Enquanto estava vivo, você tinha que mantê-la aqui e, ao mesmo tempo, não podia traí-lo. -Tudo estava tão claro para ela agora, tão perfeito e incrivelmente claro! Imóvel, Sara ficou olhando para Nick. buscando uma confirmação do que dizia o rosto dele. - Você... disse que parou de desejá-la no dia em que me conheceu - continuou. - O que isso quer dizer? - Quer dizer que eu ganhei um novo estímulo. No começo, eu a desejei mais porque você me lembrava Helen quando ela tinha a sua idade, principalmente na sua maneira ousada e aventureira. Eu queria modificar você, ensinar-lhe, talvez, o que não consegui ensinar a ela. O desastre com o Suratoga mudou nossa vida. Você confiou em mira contra tudo e contra todos, me tornou seu responsável. Depois disso, eu nâo podia deixá-la ir embora. Achei que nós tínhamos uma base para construir alguma coisa juntos... não só atração física, mas um sentimento mais profundo. Queria que você se revelasse a mim inteiramente e resolvi forçá-la a isso, ameaçando deixá-la para ir com Olívia. - Mas você foi até ela. - Sara ainda não acreditava no que ele dizia. - Você foi procurá-la ontem à noite no meio de um vendaval. - Porque ela enviou um garoto de carro para me chamar, dizendo que sofrera um acidente. Quando cheguei lá, encontrei-a óti-ma, mas precisando desesperadamente de companhia. Depois que cheguei, o tempo piorou e eu fiquei preso lá com ela. Aproveitei a oportunidade para dizer o que tinha de ser dito. O que eu já deveria ter tido coragem de dizer naquela noite depois que voltamos, quando ela me forçou a levá-la para casa. - Então você sabia que ela fez aquilo de propósito? - Claro. Olívia queria falar de John, sobre o que significava a morte dele para ela. E pela primeira vez falou de uma maneira que eu quase comecei a acreditar que seus sentimentos por ele eram verdadeiros. Acabei ficando mais tempo do que deveria. Quando cheguei em casa você estava dormindo, sem dar a mínima importância para o fato de eu estar com outra mulher! - Eu não estava dormindo... - Sua voz era suave, seu olhar apaixonado. - Fiquei deitada, fingindo que dormia, enquanto imaginava que vocês estavam juntos e sofria como nunca tinha sofrido na vida. Ela correu para Nick, jogando-se em seus braços. Sentiu que ele a segurava com carinho e emoção. Nenhum dos dois disse nada, não havia necessidade. Anna bateu com força na porta do quarto, gritando aflita e que brando o encanto daquele momento. Nick se afastou de Sara, para ver o que estava acontecendo. - Jenny sumiu! - Anna tinha o rosto transfigurado. - Não está no quarto dela nem em nenhum canto da casa. Nick, se ela saiu neste... - Não completou a frase, falando agora com Sara, que tinha ficado onde Nick a deixara. - Você sabe como ela estava diferente o dia todo! - É. - Sara decidiu reagir e não se deixar dominar pelo medo que já começava a invadi-la. - Nick, nós temos que encontrá-la... - Eu sei. - Ele já estava a meio caminho da sala de vestir. - Vou pôr uma roupa. Em um minuto estava de volta, ainda afivelando o cinto. - Vocês têm certeza de que olharam em todos os lugares aqui dentro? Não há nenhuma possibilidade de que ela esteja escondida em um quarto qualquer? - Não, a menos que esteja em um esconderijo que não conhecemos. - Anna mal podia conter o desespero. - As portas da varanda estavam abertas, e eu tenho certeza de que fechamos antes que você chegasse. Pedi que fossem procurá-la pelos lados da praia. - Então eu vou pela trilha do penhasco - Nick disse. - Nós iremos. - Sara estava a seu lado, pálida mas decidida. - Você não pode me deixar fora disso, Nick. - Então vamos. Antes de sair, eles vestiram capas de chuva. Depois desceram os degraus da varanda e se perderam no meio da noite escura como breu. A chuva caía, formando uma cortina de água. Sara não enxergava um palmo à frente do nariz, mas Nick sabia exatamente aonde estava indo. Com o auxílio de uma tocha, passaram pela trilha que haviam percorrido algumas noites atrás. Aquele passeio noturno parecia tão distante, um episódio tão remoto! Os mal-en-tendidos tinham finalmente terminado, mas, se não encontrassem Jenny, nada entre eles poderia dar certo. Quando se aproximaram do penhasco, Sara pôde ouvir o mar e imaginar a espuma branca das ondas quebrando nas rochas lá embaixo. Em sua imaginação, já via o corpinho de Jenny jogado no mar, como se fosse uma boneca. Nick parou de repente, apontando uma coisa para Sara. Ela mal podia acreditar que aquele vulto minúsculo, quase à beira do penhasco, estivesse realmente vivo. - Não a assuste - murmurou, quando Nick quis se aproximar. - Deixe-me ir. - Não. Tenho que fazer isso sozinho. Apertou a mão dela e soltou-a rapidamente, mas Sara pôde sentir como ele estava tenso. Ela ficou onde estava, rezando para que tudo desse certo. - Jenny - Nick disse calmamente. - O que você está fazendo aqui fora neste aguaceiro? - Vá embora! - A menina tinha virado o rosto na direção dele, mas não fez nenhuma menção de se levantar - Eu não vou mais voltar com você. Nunca mais! Você não me quer. - Por que eu não quero você? - Ele se aproximava, mas não estava perto o suficiente para alcançá-la. - Fale, Jenny. - Porque você tem Sara e a ama em vez de me amar. Você nem mesmo ouviu quando eu o chamei para ver o que tinha achado ontem em Taki Hill. Estava conversando com Sara e nem ligou para mim. - É verdade, eu não ouvi. Talvez você não tenha dito muito alto. - Ele continuou, sem hesitar: - Meu amor por Sara não muda em nada o que sinto por você, querida. Há tipos diferentes de amor, você precisa entender isso. Dessa vez a cabecinha ensopada de chuva se virou totalmente para ele, embora fosse impossível distinguir a expressão de Jenny. - Sara me disse isso outro dia. - Porque é verdade. - Aliviada, Sara foi para junto deles, ajoelhando-se ao lado de Nick, Mal podia acreditar que Jenny não tinha escutado o que ele dissera no dia anterior! - Querida, nós dois queremos você! Muito e vamos querer sempre. Deixe que papai a leve para casa antes que apanhe um resfriado. Você não quer ficar doente no dia do aniversário dele, não é? E o presente dele? A resposta dela pareceu demorar um século. - Eu joguei fora. Lá! - ela disse, explodindo em lágrimas. - Eu tinha feito uma caixa de conchas para você guardar suas abo-toaduras, como estava no meu livro - soluçou -, mas joguei fora. Sinto muito, papai. Ele passou a lanterna para Sara e pegou a filha nos braços, apertando aquele corpinho trêmulo de encontro ao seu. - Não faz mal, querida, não faz mal! Você pode fazer uma outra. Nós vamos procurar juntos as conchas, Nós três, está certo? As lágrimas não pararam de rolar, mas o abraço que Jenny lhe deu foi uma resposta convincente. Nick olhou para Sara sobre a cabeça da filha. - Você tem que nos mostrar o caminho de volta com a lanterna. Você dá um jeito? - Sim, claro. - Não havia nada que ela não fizesse naquele momento para contentar Nick. Finalmente o gelo no coração dele havia derretido. Dali para a frente, nem tudo seria uma maravilha, lógico. Nove anos de mágoa levariam algum tempo para desaparecer. Mas Sara e Jenny conseguiriam acabar com ela. Agora, finalmente, eles eram uma família.
Kay Thorpe
O melhor da literatura para todos os gostos e idades