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A ILHA DAS TRÊS SEREIAS / Irving Wallace
A ILHA DAS TRÊS SEREIAS / Irving Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A ILHA DAS TRÊS SEREIAS

 

 

     Os cientistas americanos chegaram à Ilha das Três Sereias, há muito perdida na vastidão do Pacífico, como observadores imparciais. Eram dez. A famosa antropóloga Dra. Maud Hayden; seu filho Marc, casado com a linda e jovem Claire; um professor solteiro, censor de cinema em sua cidade do Interior, que viaja para tentar fugir da mãe dominadora; uma enfermeira devotada, disposta a dar tudo de si, apesar de seus poucos encantos; um fotógrafo de espírito liberal e sua mulher, ansiosos por afastar a filha de 16 anos da turma em que se envolveu; a mulher quarentona do rico patrocinador da expedição, e uma psicanalista cujos problemas pessoais superam os de seus clientes.

     Na Ilha das Três Sereias esses visitantes deparam com um comportamento desinibido - costumes que chocam seus preconceitos civilizados. Os nativos não conhecem qualquer restrição sexual; aprenderam a aliviar a monotonia do casamento sem criar sentimentos de culpa e ensinaram os jovens a amar sem temer. O que esta liberdade provoca nos observadores vindos de outra cultura - como são levados a reconhecer os seus próprios temores e desejos - é o tema deste romance de Irving Wallace, um trabalho singular de ficção que explora implacavelmente detalhes nunca antes devassados da consciência do homem moderno.

      

       

     Era a primeira das cartas que Maud Hayden retirara da pilha da manhã, colocada sobre o mata-borrão da sua secretária. O que a atraíra para ela, admitia timidamente para si mesma, fora a exótica fila de selos a toda a largura da extremidade superior do envelope. Os selos continham uma reprodução do Cavalo Branco, de Gauguin, em verde, vermelho e anil, e as palavras “Polinésia Francesa... Via Aérea”.

     Do cimo da sua montanha de anos, Maud achava-se penosamente consciente de que seus prazeres se tornavam cada vez menos visíveis e distintos em cada novo outono. Os Grandes Prazeres continuavam provocadoramente claros: as suas realizações intelectuais com Adley (ainda respeitado); a sua absorção no trabalho (constante); o filho Marc (que seguia - de certo modo - as pegadas do pai); a sua nora, Claire (doce, encantadora; era difícil supor a existência de outra jovem tão encantadora quanto ela). Os Pequenos Prazeres é que começavam a se tornar tão ilusórios e invisíveis como a juventude. O passeio agradável, efetuado no princípio de cada manhã, ao sol da Califórnia, especialmente quando Adley ainda vivia, era uma celebração consciente do nascimento de cada dia. Agora, recordava-a apenas de sua artrite. A vista - em especial da janela do seu estúdio, no andar superior - da faixa regular da auto-estrada entre Los Angeles e San Francisco, com a praia de Santa Bárbara e as enormes vagas do oceano mais além, fora sempre esteticamente impressionante. Porém, agora, ao contemplar da janela o panorama, via apenas o pontilhado dos automóveis, monstros velozes, e a sua memória aspirava as emanações da gasolina, do lixo apodrecido, e das plantas marinhas, no outro lado da estrada, à beira-mar. O café da manhã constituíra sempre outro dos Pequenos Prazeres, o jornal dobrado, com os seus recitais diários das loucuras e das maravilhas do homem, a suculenta refeição de cereal, ovos, bacon, batatas, café fumegante bem açucarado, torradas com bastante manteiga. Agora, os convidados ao café da manhã eram em número reduzido devido à conversa sinistra sobre o elevado grau de colesterol e as dietas com baixa percentagem de gorduras e todas as coisas, e expressões correntes (leite desnatado, margarina, brócolos, pudins de arroz) da Idade do Infortúnio. E por fim, entre os Pequenos Prazeres de cada manhã, contava-se a pilha do correio - e este prazer, como Maud compreendia, continuava constante, ainda não erodido pela sua montanha de anos.

     O mais interessante para Maud Hayden, no que se referia à correspondência, era que esta lhe proporcionava novas alegrias todas as manhãs, ou assim parecia. Era uma correspondente prolífica. Os seus colegas antropólogos e os seus discípulos eram também correspondentes infatigáveis. Além disso, Maud parecia também um pequeno oráculo, ao qual muitos se dirigiam com seus enigmas, esperanças e interrogações. Nenhum dos sacos de cartas que recebia semanalmente deixava de conter curiosidades provindas de lugares distantes - a de um estudante já graduado na sua primeira viagem à índia, relatando como a tribo Baiga se apegava de novo ao solo, após cada tremor de terra; a de um eminente antropólogo francês, no Japão, que apurara que o povo de Aino não considerava uma noiva verdadeiramente casada antes que ela desse à luz, e que perguntara se era isto exatamente o que Maud descobrira entre os siameses; a da rede nova-iorquina de televisão, que oferecia uma modesta soma se Máud verificasse a autenticidade da seguinte informação, que seria utilizada num documentário sobre a Nova Bretanha: um nativo comprara a noiva ao tio da jovem, e depois, ao nascer um filho, a criança fora colocada sobre uma fogueira para se assegurarem do seu crescimento.

     Ao primeiro olhar, o correio desta manhã, com seus segredos encerrados no interior do envelope, parecera menos prometedor. Ao percorrer os vários envelopes, Maud descobrira que, a julgar pelas marcas de correio, as cartas tinham sido remetidas de Nova York, Londres, Kansas City, Houston e de lugares semelhantes, sem qualquer atrativo, até que sua mão se deteve no envelope com os selos que reproduziam o quadro de Gauguin.

     Compreendeu que ainda conservava o envelope alongado, espesso, amarrotado, entre os dedos curtos e grossos, e então apercebeu-se de que na maioria das vezes, nos últimos anos, o seu hábito de ação direta fora impedido por meditações e divagações de pensamento nubladas por uma vaga compaixão por si mesma.

     Desgostosa consigo própria, Maud Hayden voltou o longo envelope e, nas costas, encontrou o nome e o endereço do remetente escrito com uma caligrafia européia ondulante e anacrônica: “A. Easterday, Hotel Temehami, Rue du Commandant Destremau, Papeete, Taiti”.

     Tentou ligar o nome “A. Easterday” a um rosto. Quanto ao presente, nada. Em relação ao passado - a sua memória, um eficiente arquivo, recuou no tempo -, tantos, tantos... até que encontrou o rosto com a legenda do nome. A impressão era vaga, descolorida. Fechou os olhos e concentrou-se profundamente; pouco a pouco a impressão tornou-se mais definida.

     Alexander Easterday. Papeete, sim. Caminhavam no lado da sombra de uma rua, em direção da sua loja, Rue Jeanne d'Arc, 147. Era baixo e gordo, atarracado como se tivesse sido comprimido mecanicamente. Nascera em Memel ou Dantzig, ou numa outra cidade qualquer riscada do mapa pelas tropas de assalto nazistas. Tivera muito nomes e passaportes, e no seu caminho - um longo caminho cujo objetivo era a América - como refugiado fora obrigado a deter-se, fixando por fim residência em Taiti, onde se dedicara ao comércio. Declarara ter sido arqueólogo noutros tempos, ter acompanhado diversas expedições alemãs em dias mais felizes e afizera-se ao modelo de Heinrich Schliemann, obstinado e excêntrico escavador de Tróia. Easterday era demasiado mole e desmazelado, demasiado desejoso de agradar e demasiado falto de sorte para representar o papel de Schliemann, pensara então Maud. Alexander Easterday, sim. Conseguia agora vê-lo melhor: chapéu de linho, ridiculamente empoleirado na cabeça; gravata borboleta (nos Mares do Sul), terno tropical cinzento, amarrotado, cujas calças o ventre saliente alargara. E ainda pormenores mais curiosos: pince-nez alto num nariz longo, três centímetros de bigode, bolsos deformados, cheios de ninharias, notas, cartões de visita.

     Começava agora a recordar-se com mais nitidez. Passara a tarde a bisbilhotar a loja cheia de artefatos da Polinésia, todos a preços razoáveis, e adquirira um par de castanholas de bambu balinesas, uma clava de guerra, esculpida, das ilhas Marquesas, uma saia de tapa da Samoa, um capacho da ilha de Ellice e uma antiga tigela de madeira de Tonga, a qual servia agora de adorno no aparador da sua sala de estar. Antes de partirem, recordava, ela e Adley - pois quisera que Adley o conhecesse - tinham convidado Easterday para uma refeição no restaurante do terraço do Grande Hotel. O convidado mostrara-se uma enciclopédia no que tocava a informações - iluminara alguns enigmas menores da sua estada de meio ano na Melanésia. Isto passara-se há oito anos, quase nove, quando Marc estava no seu último ano na Universidade (ao jovem desagradava a influência ali de Alfred Krober apenas porque o pai e a mãe idolatravam o mestre).

     Ao recordar agora os anos passados, Maud lembrou-se de que o seu último contato com Easterday se verificara um ano ou dois após seu encontro em Taiti. Nessa altura tinham publicado um estudo sobre o povo de Bau, nas ilhas Fidji, e Adley recomendara-lhe que enviasse a Easterday um exemplar autografado. Ela assim fizera e passados alguns meses Easterday agradecera a dádiva numa breve carta formal a que não era, porém, estranho um certo desvanecimento por tão augustos conhecidos se terem lembrado dele. Empregara a palavra “augustos”, e depois disso Maud convencera-se de que ele estudara na universidade de Gõttingen.

     Fora essa a última vez que tivera notícias de. “A. Easterday” - a carta de agradecimento de seis ou sete anos antes - até ao momento presente. Fixara o endereço nas costas do envelope. Que poderia querer dela aquele rosto vago, semi-esquecido, tão longe? Dinheiro? Uma recomendação? Elementos sobre um tema qualquer? Tomou o envelope na palma da mão. Era muito pesado para se tratar de um simples pedido. Mais provavelmente se trataria de uma informação. O homem que lhe escrevia, pensou, tinha alguma coisa a comunicar-lhe.

     Pegou na adaga Ashanti - recordação de uma jornada pela África naqueles dias pré-Gana entre as duas guerras mundiais -, que se encontrava em cima da secretária, e com um golpe apenas abriu o envelope.

     Desdobrou as frágeis folhas de papel de correio aéreo. A carta fora cuidadosamente datilografada numa velha máquina, já em péssimo estado, pois muitas das palavras apresentavam pequenos buracos - em vez de um e ou de um o via-se, na maioria das vezes, um furo -; contudo, a carta fora batida com cuidado, laboriosamente, a dois espaços, certos. Ela contou as folhas de papel de arroz: vinte e duas ao todo. A sua leitura ocupá-la-ia durante algum tempo. Havia a outra correspondência e diversas notas a rever antes da última aula da manhã. Todavia, sentiu a curiosa e bem familiar censura do segundo ser, a não-intelectual, não-objetiva, segunda Maud Hayden, dissimulada dentro de si, e isto por se tratar do ser feminino, não científico, intuitivo. Agora, este segundo ser impunha-se, recordava-lhe os mistérios e as excitações que, muitas vezes no passado, tinham vindo de terras longínquas. O seu segundo ser só raramente pedia para ser escutado; porém, quando o fazia, ela não o podia ignorar. Seus melhores momentos provinham de tal obediência.

     Sem dar ouvidos ao bom senso e sem se importar com a pressão do tempo, sucumbiu. Tornou a sentar-se, pesadamente; sem atender ao protesto metálico da cadeira giratória, levou a carta quase rente aos olhos e, lentamente, começou a ler para si mesma aquilo que, esperava, talvez constituísse o melhor dos Pequenos Prazeres do dia.

       

      “PROFESSOR ALEXANDER EASTERDAY

      HOTEL TEMEHAMI PAPEETE, TAITI

      Dr.a Maud Hayden.

      Presidente, Departamento de Antropologia

      Edifício das Ciências Sociais, Sala 309

      Raynor College

      Santa Bárbara, Califórnia

      E. U. A.

      Cara Dr.a Hayden

      Estou certo de que esta carta constituirá para a senhora uma surpresa. Confio, no entanto, em que tenha a bondade de se recordar de mim. Tive a grande honra de a conhecer, e a seu ilustre marido, há cerca de dez anos, quando passaram alguns dias em Papeete, vindos das ilhas Fidji, em viagem para a Califórnia. Espero que se lembrará da sua visita à minha loja de objetos da Polinésia, na Rue Jeanne d'Arc, onde teve a generosidade de me felicitar pela minha coleção de peças arqueológicas primitivas. Constituiu também para mim um memorável momento ter sido convidado para jantar com a senhora e seu marido.

      Embora me encontre afastado dos principais interesses da minha vida, tenho conseguido manter-me em contato com o mundo exterior, e isto devido ao fato de assinar diversos jornais de arqueologia e antropologia e também o Der Spiegel, de Hamburgo.

      Assim, chegam até mim, de tempos a tempos, pormenores acerca das suas atividades, que acolho com orgulho, devo admitir. Também, nos últimos tempos, adquiri alguns dos seus primeiros livros, publicados em edições brochuras, mais acessíveis, que li com extraordinário interesse. Verdadeiramente, acredito, e não apenas eu, que o seu distinto marido e a senhora prestaram a maior das contribuições à etnologia dos nossos dias.

      Portanto, foi com grande consternação que li - há três ou quatro anos, creio - no nosso semanário local, Les Débats, a notícia da morte do Dr. Hayden. A profunda comoção que me causou tal ocorrência não me permitiu escrever nessa altura, mas agora que os anos passaram apresento-lhe as minhas mais sinceras condolências. Espero que tenha resistido, com ânimo, face à dor motivada por tão grande perda, e se encontre agora já resignada e de boa saúde, dedicando-se de novo ao ensino, escrevendo e viajando, como sempre.

      Deus queira que esta carta chegue às suas mãos, pois possuo apenas o seu cartão com este endereço; porém, se tiver mudado de residência, estou certo de que os correios a localizarão, uma vez que se trata de uma pessoa de grande renome. A razão pela qual afirmo “Deus queira que esta carta chegue às suas mãos” deve-se ao fato de sentir que seu conteúdo subseqüente poderá interessá-la vivamente e ter enorme influência no decurso do seu trabalho.

      Antes de a informar sobre a notável curiosidade que chegou ao meu conhecimento, será necessário avivar-lhe a memória - se for caso disso - acerca de uma parte da nossa conversa de há dez anos. Foi depois do jantar em Papeete, quando tomávamos os licores, que a senhora e seu querido esposo me felicitaram pelas pequenas histórias e anedotas que lhes contei. Bebemos em silêncio durante alguns minutos, e em seguida disse-me o seguinte (baseio a minha recordação das suas palavras não numa memória prodigiosa mas numa passagem de um diário que tenho conservado fielmente durante todos estes anos):

      - Professor Easterday: a nossa viagem a Fidji, as nossas excursões ocasionais através da Melanésia e as nossas breves visitas às ilhas de Tonga, Cook, Marquesas e aqui a Taiti têm sido tão produtivas e estimulantes que meu marido e eu sentimos que devemos voltar. Desejávamos voltar à Polinésia, especificamente à Polinésia, num futuro próximo. Porém, deve haver uma razão, um objetivo para tal visita. É aqui que nos pode ser útil, professor Easterday. Fazemos-lhe este pedido: se alguma vez tomar conhecimento de que um povo da Polinésia, de um atol desconhecido, mantém a sua cultura incontaminada por contatos exteriores e não submetida ainda à observação científica, desejaria que não se esquecesse de nos comunicar imediatamente essa descoberta. Se esse povo e o seu atol merecerem um estudo in loco, se nos puderem revelar alguma coisa acerca do comportamento humano, empreenderemos uma investigação.

      Ao ouvir isto, Dr.a Hayden, senti-me impressionado pela fé que depositava em mim. Ao mesmo tempo, se se recorda, tive de admitir que duvidava de poder ajudá-la no seu trabalho. Afirmei que, pio que sabia, não existiam quaisquer ilhas importantes - isto é, ilhas povoadas - que não fossem já conhecidas, tivessem sido cartografadas, visitadas, submetidas a investigação. Afirmei, com toda a franqueza, que os exploradores, missionários, pescadores de baleias, mercadores - e desde então os militares, os turistas, os desocupados, os antropólogos - tinham visto tudo o que havia para ver nesta parte do mundo, e que era provável que não existisse já por aqui qualquer coisa de novo e virgem.

      Apesar da minha firme declaração, se bem me lembro, a senhora não se mostrou desencorajada. Compreendi então que isto é coisa típica na senhora, que as percepções, otimismo, persistência da Dr.a Hayden constituem algumas das características da sua famosa personalidade. E assim, nessa altura, afirmou-me:

      - Professor Easterday: embora conheça melhor a Oceania do que nós, devo declarar que a nossa experiência em muitos pontos da Terra ensinou-nos que nem tudo foi descoberto, que nem tudo é conhecido, e que a natureza tem maneira de preservar as suas pequenas surpresas. De fato, conheci alguns antropólogos, pessoas que serviram no Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial, que me confessaram terem descoberto, por acaso, pelo menos meia dúzia de ilhas desconhecidas, habitadas por tribos primitivas, que não constavam dos mapas existentes. Estes antropólogos mostram-se bastante reservados quanto a estas ilhas - não indicaram ainda a sua localização a ninguém -, pois receiam que elas sejam registradas nos mapas e nas cartas comuns. Estes antropólogos estão entesourando os seus pequenos atóis, aguardando o dia em que disponham de tempo e fundos para fazer seus estudos. Como certamente compreende, a exclusividade - isto é, o estudo de problemas ainda não ventilados - conta por vezes muito nas ciências sociais. Agora, tenho a sensação de que, entre os inúmeros atóis, ilhas de coral; ilhas vulcânicas que, na Oceania, excedem dez mil, devem encontrar-se algumas das chamadas ilhas perdidas dignas de um estudo em profundidade. Repito, professor: se alguma vez ouvir falar de uma ilha destas, com um povo cujos costumes sejam ainda desconhecidos do mundo exterior, recorde-se por favor dos Haydens e do extraordinário interesse que manifestaram. Não esqueça o que afirmei esta noite, professor Easterday. Não esqueça. Prometo que não lamentará o tempo perdido.

      Jamais esqueci as suas palavras daquela noite, Dr.a Hayden. Pode tê-las já esquecido após todos estes anos, mas eu não. O seu pedido permaneceu sempre presente na minha memória. Na verdade, nos últimos anos, em especial devido ao fato de a civilização a jato ocidental penetrar cada vez mais no Sul do Pacífico, cheguei a acreditar que a sua esperança, e o bom resultado das minhas pesquisas, constituíam uma quimera impossível. Estamos ambos cientes de que o mapa-múndi ainda mostra áreas inexploradas - o interior da Nova Guiné holandesa, grandes extensões da China, Birmânia, Índia, a extremidade superior da bacia do rio Amazonas - com tribos nunca vistas por olhos estranhos. Mas o seu sonho de uma ilha da Oceania ainda não visitada e povoada? Confesso que quase abandonara as minhas pesquisas, que quase fechara os ouvidos a qualquer rumor que pudesse consubstanciar o seu sonho. Porém, subitamente, na semana passada, por acaso, quando deixara já de pensar no assunto, seu velho pedido teve o seu prêmio.

      Sim, Dr.a Hayden, encontrei a sua ilha perdida.

      Perdoe-me se meu insípido inglês não consegue exprimir a emoção que me domina enquanto lanço estas palavras no papel. Como desejara expressar-me com eloqüência na sua língua neste momento em que nossos anseios se realizaram! Apesar desta dificuldade, tentarei o melhor que puder transmitir as minhas entusiásticas emoções.

      Ao fim de dez anos encontrei, entre as milhares de ilhotas da Oceania, os até aqui desconhecidos ilha e povo que outrora procurou. Isto não é palavreado ou tagarelice de nativos, Dr.a Hayden. Dirijo-me à senhora com a autoridade de uma prova em primeira mão, pois pisei o solo desta minúscula mas tão importante ilha. Convivi durante breve tempo com seus habitantes, uma mescla de semipolinésios, de semi-ingleses, à semelhança da ilha Pitcairn. Fiz minhas observações e desde então ouvi muito acerca dos costumes desta tribo, e estes costumes revelam uma das mais peculiares e estranhas civilizações isoladas que existem atualmente sobre a Terra. Tentei ver esta minha descoberta através dos seus olhos experientes de sábio e antevejo um estudo que poderá ser de grande importância na sua obra e uma notável contribuição a todos os homens e mulheres vivos.

      Este grupo de ilhas até agora desconhecidas dos Mares do Sul - uma pequena mas luxuriosa ilha vulcânica e dois diminutos atóis - denomina-se Três Sereias.

      Não tente localizar as Três Sereias em qualquer mapa. Não se encontram nele. Não foram oficialmente descobertas quer pelas autoridades quer pelo público. Não tente descobrir pormenores acerca das Três Sereias em quaisquer livros científicos sobre a Oceania. No que se refere à história e à geografia, elas não existem. Deve confiar nos meus conhecimentos de estudioso: as Três Sereias, apesar de microscópicas por comparação, são tão reais como Taiti, Rarotonga ou a ilha da Páscoa, ou mesmo a ilha de Pitcairn. Quanto à sua população, as Sereias não têm mais que duzentos habitantes, atrevo-me a afirmar, mas são todos tão reais como a senhora e eu. Com exceção da minha pessoa e de dois outros caucasianos, jamais foram vistas por quem quer que viva presentemente neste mundo.

      O que é mais original quanto a esta gente das Três Sereias - devo declarar este fato como um preliminar, pois se isto não despertar a sua curiosidade poderá poupar-se ao incômodo de ler o que se segue, e relutantemente dirigir-me-ei a outra pessoa interessada neste assunto -,. o que é mais extraordinário quanto a ela é a sua progressista (devo dizer surpreendente) atitude em relação às práticas do amor e do casamento. Estou convencido de que não existe nada que se assemelhe a este comportamento histórico em qualquer outra sociedade do globo.

      Não posso comentar se os costumes sexuais e conjugais das Três Sereias são bons ou maus. Posso apenas notar, sem equívocos, que me causaram espanto. E eu, Dr.a Hayden, não falo como um calouro ignorante e inexperiente, mas como cientista e homem do mundo.

      Se tiver despertado seu interesse, como ardentemente desejo, prossiga a leitura. Recorde-se, à medida que for lendo, que não sou um mero contador de histórias, mas que falo com fria objetividade de um arqueólogo formado na Alemanha. Recorde-se também das palavras do imortal Hamlet: “Existem mais coisas no Céu e na Terra, Horácio, do que as sonhadas na tua filosofia.”

      Falarei cronologicamente sobre o meu envolvimento nesta descoberta acidental, bem como sobre o que encontrei, o que observei, o que ouvi, e, no que se refere à senhora, o que se pode fazer de maneira prática, a respeito de todos estes fatos.

      Há cerca de seis semanas entrou na minha loja um australiano de meia-idade, alto, de porte aristocrático, que se apresentou como Sr. Trevor, de Camberra. Declarou que acabara de completar uma viagem de recreio que incluíra a Samoa Ocidental, as Marquesas, as Cook, e que não podia regressar à terra natal sem levar algumas lembranças. Ouvira falar do meu sentimento e da minha reputação de homem honesto e desejava adquirir vários pequenos artefatos. Mostrei-lhe o que tinha na loja, explicando-lhe isto e aquilo, no que se referia aos objetos em exposição, a sua origem, a sua história, os seus usos e significados, e pouco tempo depois ele estava tão maravilhado com a extensão dos meus conhecimentos sobre os Mares do Sul que começou a interrogar-me acerca de muitas das ilhas e das minhas viagens, especialmente daquelas em que eu fora adquirir objetos de artesanato. A sua permanência estendeu-se por algumas horas - servi-lhe chá - e embora se fosse com compras que não perfaziam mais de 1800 francos do Pacifico lamentei a sua partida. É raro encontrarem-se ouvintes instruídos neste lugar isolado.

      Pensei que não tornaria a ver este Sr, Trevor, de Camberra, Austrália, e assim pode imaginar minha surpresa quando, pouco depois de abrir a minha loja na manhã seguinte, o vi aparecer de novo. Não viera para adquirir artefatos, disse, ou para ouvir mais algumas das minhas histórias, mas antes para saber a minha resposta sobre uma proposta de negócios que me ia fazer. Ficara impressionado, afirmou, com meus conhecimentos sobre as muitas ilhas e povos da Polinésia. Procurava, desde há algum tempo, entrar em contato com uma pessoa como eu, disse, e durante toda a sua viagem não conhecera ninguém que dispusesse de vastos conhecimentos e em que pudesse confiar, até me encontrar. Uma vez que duvidava de que se pudesse encontrar assim inesperadamente uma pessoa com a minha experiência e a minha cultura, consultara alguns preeminentes funcionários na noite anterior, os quais, além de lhe darem as melhores referências a meu respeito, me tinham recomendado.

      Sem mais pormenores, o Sr. Trevor revelou a sua missão. Representava um grupo de negociantes de Camberra que acreditavam no futuro da 'Polinésia e desejavam investir nela alguns milhões de libras. Os projetos eram muitos, e diferentes, mas entre os primeiros contava-se uma frota de pequenos aviões de passageiros para conduzir turistas entre as ilhas menores porém pitorescas e as maiores. A companhia, Vôos Interoceânicos, oferecia passagens e fretes de custo mais reduzido que a Qantas, a TAI francesa, as Linhas Aéreas do Sul do Pacífico, 'a TEAL neozelandesa e diversas outras. Essencialmente, esperava organizar um serviço de barcas, conferindo-lhe maiores mobilidade e latitude do que companhias mais poderosas. Uma vez que seriam utilizados aviões leves e usados campos de aterrissagem menores e de manutenção mais barata, as tarifas manter-se-iam baixas. Trevor explicou que tinham sido estabelecidos acordos através de toda a Polinésia e conseguida a cooperação de governos estrangeiros com interesses nesta região; porém, necessitavam de terreno para mais um aeroporto.

      Trevor não podia prolongar sua estada a fim de localizar esse aeroporto. Precisava de alguém que agisse em seu nome. Eis por que me procurava. A sua proposta era a seguinte: desejava que eu fizesse alguns vôos de reconhecimento, num avião particular, em duas direções. Em primeiro lugar, queria que eu estudasse o corredor entre Taiti e as ilhas Marquesas. Se com isto não se localizasse um campo adequado, sugeriu-me que me dirigisse para o sul de Taiti, cobrindo o amplo triângulo formado pelas ilhas Tubuai, pela ilha Pitcairn e pela ilha de Rapa, e se necessário que fosse ainda mais além, para o sul, para lá das linhas do tráfego aéreo.

      A Vôos Interoceânicos desejava uma pequena ilha despovoada, com um platô ou uma área rasa em que pudesse ser utilizado o bulldozer, a fim de se construir um aeroporto com pista de cerca de 2500 metros de comprimento. Uma ilha despovoada, eis o que preferiam, pois aí o terreno podia ser comprado por um preço reduzido a um governo negligente que o possuísse. Por outro lado, se a ilha apropriada que surgisse ante meus olhos fosse mesmo habitada por uma única tribo ou por um punhado de nativos, e onde os brancos não tivessem interferência, isso também serviria. Os nativos podiam ser deslocados para outro lugar, ou mesmo segregados, e o terreno seria ainda menos dispendioso.

      A minha tarefa consistiria em localizar, do ar, três ou quatro destas ilhas, depois aterrar e visitá-las, e em seguida enviar um relatório bastante pormenorizado para Camberra. Os peritos de Trevor examinariam cuidadosamente meu relatório, fariam incidir sua atenção sobre duas destas ilhas e depois encarregariam seus especialistas de tomar, no local, a decisão final. Para me recompensar pelas despesas feitas com o reconhecimento dar-me-iam quinhentos dólares. Pelo meu relatório, caso o julgassem útil, caber-me-iam mais três mil dólares.

      Apesar de sentir alegria em viajar entre estas ilhas, a missão de que fora incumbido não me agradava. Em primeiro lugar, causa-me aversão voar. Em segundo lugar, não possuo energias que me permitam palmilhar terras quase áridas e longínquas. Contudo, minha situação pecuniária é bastante difícil. Creia, não gosto de me fazer passar pelo que não sou. Meus esforços cotidianos consistem em fazer o possível por me agüentar. A concorrência dos negociantes nativos é enorme. Os artefatos de valor são cada vez mais raros. Portanto, sempre que existe oportunidade de conseguir um suplemento para os escassos rendimentos que me fornece a loja, não posso deixar de aproveitar a oportunidade. Apesar da conta de despesas de Trevor ser limitada, a sua recompensa final era considerável, certamente mais do que obtenho durante um ano com o meu negócio - a loja e outros. Não tive remédio senão aceitar a incumbência.

      Após ter recebido todas as instruções, e Trevor ter regressado à Austrália, decidi imediatamente fretar um avião particular. Os que se achavam disponíveis em Papeete - por exemplo, os dois hidraviões da RAI, que conduzem turistas a Bora Bora - eram demasiado dispendiosos para utilização particular. Continuei a procurar colher informações e, quando mencionei o meu problema ao barman do Quinn, este disse-me que conhecia a pessoa que me convinha - um dos seus clientes, o Capitão Ollie Rasmussen, de quem já ouvira falar, possuía um velho hidraviao que comprara a uma firma americana depois da Segunda Guerra Mundial. O barman afirmou que Rasmussen tinha uma vivenda e uma mulher polinésia em Moorea - que, como sabe, fica a pequena distância daqui - e que era proprietário de um armazém situado pouco abaixo do Quai Commerce. Rasmussen era um importador, supunha o barman, e usava o hidraviao para transporte de mercadorias. Em qualquer caso, vinha a Papeete pelo menos uma vez por semana, seria muito fácil avistar-me com ele.

      Poucos dias depois avistei-me de fato com o Capitão Rasmussen e com o seu co-piloto, um nativo de vinte e poucos anos chamado Richard Hapai. Rasmussen recendia a uísque, exalava irreverência e tinha um aspecto grosseiro. Pela minha parte, sentia certo receio. Ele possuía, na verdade, um antiquado Vought-Sikorsky - um avião de dois motores, rudimentar, que atingia uma velocidade máxima de cerca de 270 quilômetros por hora -, que encontrei limpo e bem cuidado isto fez despertar a minha confiança. Rasmussen era pitoresco e volúvel; em dado momento disse-me deplorar o fato de ter sido obrigado a abandonar em 1947 a sua velha escuna para substituí-la por um hidravião; porém, penso que gostava mais do hidravião do que parecia fazer crer. Efetuava, todas as semanas, viagens através das ilhas, durante dois dias de cada vez; contudo, tinha bastante tempo disponível e não fazia objeção em ceder-me o hidravião, incluindo os seus serviços. Ao fim de uma hora de conversa concordou em efetuar três vôos de reconhecimento, dois deles curtos e um mais longo, e pousar apenas três vezes, tudo por quatrocentos dólares.

      Há duas semanas, não companhia de Rasmussen, e com Hapai no posto de pilotagem, fiz a minha primeira viagem de exploração. O Capitão Rasmussen, devo dizê-lo, conhecia a área entre Samoa e as Marquesas bem melhor do que eu, e conduziu-me a grande número de atóis não povoados que a senhora sempre suspeitou que existissem mas que não constavam dos mapas. Porém, nenhum deles convinha à Vôos Interoceânicos. Alguns dias mais tarde, numa segunda viagem de reconhecimento, não conseguimos nada de melhor, embora o hidravião pousasse uma vez e fizéssemos uma visita à costa. Senti-me desanimado - compreendi que talvez não ganhasse os três mil ólares que me haviam oferecido -, mas tinha ainda esperannça de que no terceiro vôo, o mais longo, poderia descobrir o que desejava. Todavia, esta viagem final foi adiada durante alguns dias. Rasmussen achava-se ausente de Papeete e em parte alguma consegui encontrá-lo. Por fim, apresentou-se no meu hotel, isto há cinco dias, decidido a decolar de madrugada para o que seria uma viagem de reconhecimento de dois dias, interrompida apenas por breves paradas para reabastecer-se de combustível e a estada durante uma noite em Rapa. As minhas ordens para pousar sempre que se me deparasse uma boa possibilidade seriam obedecidas.

      Não vejo necessidade, Dr.a Hayden, de fazê-la sofrer o desespero desta última excursão, vazia, nas alturas. No primeiro dia nada vimos que nos prendesse a atenção. No segundo, depois de decolarmos de Rapa ao amanhecer, dirigimo-nos para o sul, voando a pequena e grande altura durante horas, bastante afastados das rotas batidas do oceano, examinando ilhas de coral, uma após outra. Nenhuma delas se coadunava com os objetivos de Trevor, e não vi necessidade de me enganar a mim próprio. Ao meio da tarde Rasmussen utilizou os tanques auxiliares de gasolina e decidiu regressar, resmungando que tínhamos ido já demasiado longe para voltarmos a Taiti a uma hora razoável da noite. Sugeri que dirigisse o avião para noroeste, para que, por fim, sobrevoássemos a costa das ilhas Tubuai no nosso caminho para Taiti. Rasmussen queixou-se disto e da diminuição da sua reserva de combustível; porém, tomou em consideração o meu desânimo e encorajou-me entre alguns tragos de uísque.

      Hapai manobrava os comandos, e Rasmussen fazia o possível para se embriagar completamente; eu seguia acocorado atrás deles, olhando pela janela, quando avistei um vago pedaço de terra, coruscando ao pôr do sol, perdido a distância. Com exceção do grupo Tubuai, que ainda se encontrava algures, perto, não estava familiarizado com esta área; todavia, tinha a sensação de que esse pedaço de terra não representava uma ilha importante, em que se fizesse escala em qualquer viagem.

      - Que é aquilo ali? - perguntei ao Capitão Rasmussen.

      Até este momento, apesar do seu aspecto grosseiro, considerara Rasmussen o mais simpático e cooperativo dos companheiros. Notara nele certas vulgaridades de linguagem, que reputara desagradáveis, mas não prestara muita atenção a esse fato. Contudo, tentarei reproduzir ao vivo a sua locução, de modo que a senhora possa experimentar o que eu experimentei no ar, naquele fim de tarde.

      À minha pergunta acerca do pedaço de terra que avistara a distância o Capitão Rasmussen respondeu com um grunhido:

      - Que é aquilo? Ora, coisíssima nenhuma... um atol nojento... deserto... um pouco de mato... talvez guano... sem água, sem vida... exceto albatrozes, andorinhas do mar, tarambolas... coisa para pássaros e não para aviões.

      Não me satisfez esta explicação. Eu tinha certos conhecimentos sobre ilhas, desejo lembrar-lhe.

      - Não parece tratar-se de um pequeno atol - volvi. - Tenho a impressão de que se trata de uma ilha um pouco mais extensa, com um platô de coral, ou mesmo de uma ilha vulcânica. Se não se importa, gostaria de examiná-la mais detidamente.

      Diante disto, o Capitão Rasmussen mostrou-se mais sóbrio, e um quê de aspereza transpareceu na sua voz.

      - Importo-me, sim, de desperdiçar o meu tempo quando faço uma viagem de regresso. Demais, a minha tarefa está concluída... a noite aproxima-se... disponho de pouco combustível... e temos ainda muito caminho a percorrer. É melhor não ligarmos àquilo.

      Alguma coisa no seu tom de voz, nos seus modos, no seu olhar evasivo fez com que eu suspeitasse subitamente da sua integridade. Decidi não me render.

      - Disse-me que não era habitada - tornei.

      - Sim, sim, foi isso mesmo que disse.

      - Então, tenho de insistir em vê-la mais de perto. Enquanto nos encontrarmos neste avião, fretado por mim, sugiro que respeite meus pedidos.

      Os seus olhos, aguados pelo álcool, pareceram-me aclarar-se e endurecer. Fitou-me fixamente.

      - Está procurando criar-me dificuldades, professor?

      Senti-me inquieto, mas dispus-me a jogar. Tinha arriscado muito para que me mostrasse tímido. Respondi no mesmo tom:

      - Então está tentando ocultar-me alguma coisa, capitão?

      Isto encolerizou-o. Estava certo de que me ia amaldiçoar. Em vez disso, porém, voltou o corpo para o seu co-piloto.

      - Muito bem... Para que ele não me aborreça mais, faça-lhe a vontade, Hapai, aproxime o aparelho de terra e mostre-lhe que não existe nada nas Sereias a não ser penhascos e algumas colinas.

      - Sereias? - perguntei imediatamente. - É esse o nome da ilha?

      - Não tem nome oficial - volveu ele, com extrema acrimônia.

      O avião, após descrever um semicírculo, dirigiu-se para aquela distante mancha de terra que, gradualmente, se tornava mais distinta, de modo que pude contemplar com certa nitidez os íngremes penhascos da costa e o que talvez fosse um platô com uma crista de montanhas além.

      - Muito bem, quanto mais perto melhor - disse Rasmussen ao seu co-piloto. Depois, voltando-se para mim: - Veja com seus próprios olhos, professor... Não há lugar para uma aterragem.

      Isto seria verdade se não houvesse platô, mas eu suspeitava de que havia, e confessei a Rasmussen o que pensava. Exigi que se aproximasse mais e que voasse mais baixo, de modo que eu pudesse satisfazer de um modo ou de outro a minha curiosidade, Uma vez mais, Rasmussen, grunhindo, preparava-se para me antepor as suas objeções em voz alta quando o interrompi com toda a severidade que consegui exprimir.

      - Capitão - disse -, tenho uma boa idéia do local onde nos encontramos. Se se opõe a que eu lance um olhar conveniente sobre esta ilha, encontrarei alguém que não recuse, e voltarei amanhã.

      Isto era pura bravata, pois pouco dinheiro me restava do que me dera Trevor, e não estava certo de saber o ponto exato onde nos achávamos. Todavia, quase acreditei na minha ameaça.

      Rasmussen ficou calado durante uns momentos, fitando-me com os olhos a pestanejar, lambendo os lábios gretados. Quando por fim começou a falar, notavam-se na sua voz vagas insinuações sinistras.

      - Não o faria se estivesse no seu lugar, professor. Estabelecemos um acordo bastante amigável, uma viagem tranqüila e como que particular. Tenho-me mostrado muito generoso. Nunca trouxe ninguém a esta área, antes. Em seu lugar, eu não me aproveitaria das facilidades concedidas pelo capitão.

      Piquei com um certo receio de Rasmussen, mas temia também fracassar na minha empresa. Orei para que pudesse manter o meu tom de bravata.

      - Estamos num céu livre e num oceano igualmente livre - volvi. Em seguida repeti: - Ninguém me pode impedir de voltar aqui, em especial agora que creio, sem sombra de dúvida, que o senhor me oculta qualquer coisa.

      - Está falando à toa - resmungou Rasmussen. - Há um milhão de ilhas áridas como esta. Nunca conseguirá dar com ela. Jamais a descobrirá.

      - Eu a descobrirei, nem que demore um ano - volvi com ênfase. - Recorrerei aos que me apoiam em Camberra e a toda a sua frota aérea. Tenho uma boa idéia sobre a área total. Observei já certas características da ilha. - Concluí o jogo. - Se me quiser impedir, muito bem. Conduza-me imediatamente a Taiti. Tratarei deste assunto com pilotos que cumprem o que trataram.

      Receei que Rasmussen explodisse ou exercesse a violência sobre mim; porém, ele estava afogado em álcool e as suas reações eram lentas. Resmungando para si mesmo, fez um gesto de desagrado na minha direção e voltou-se para Hapai.

      - Mostre as Sereias a este filho de uma... Talvez isso lhe faça calar a boca.

      Nos dez minutos que se seguiram o oceano foi percorrido em dramático silêncio. Depois começamos a sobrevoar a ilha que, como agora observava, não era uma, mas três. Apercebi-me da existência de dois minúsculos atóis, cada um com menos de quatrocentos metros de circunferência. Eram de coral, mal se elevavam acima do nível do mar, cada um deles com terra seca, alguma erva, arbustos e coqueiros. Um tinha uma lagoa em miniatura, mas encantadora. Comparada com eles, a ilha principal era extensa; porém, na verdade, comparada com outras ilhas da Polinésia, era pequena, e, como eu imaginava, não teria mais de 6500 metros de comprimento e 5000 de largura. Apesar de voarmos a certa velocidade, consegui distinguir a alta cratera vulcânica, encostas íngremes, cobertas com densa vegetação, florestas, diversos vales verdejantes, uma lagoa brilhante, cor de cobre, inúmeros barrancos e ravinas, com enormes penhascos rochosos guardando a terra.

      E em dado momento avistei o meu platô. Intensa vegetação cobria-o como um maciço tapete; era liso e plano, sem rochas ou ravinas. Apagando-se ante meus olhos, o platô mergulhou quase nas encostas da selva, que desciam em direção de uma estreita faixa de praia arenosa.

      - Não existe ancoradouro para navios - disse Rasmussen com satisfação. - Baixios... recifes submersos... rochedos... Os ventos do norte esmagariam qualquer barco. Eis por que jamais toquei neste iugar quando tinha a escuna. Tornou-se possível apenas quando comprei este avião.

      - Há um platô - casse eu, calando com dificuldade o meu entusiasmo. - £ perfeito.

      Tão fascinado e absorvido se encontrava Rasmussen à vista da ilha mais extensa que parecia ter-se esquecido do que aqui me trouxera. As minhas palavras despertaram-no abruptamente.

      - Desejo que desça - disse eu.

      Penso que repeti isto diversas vezes, como uma criança que achou uma guloseima. O meu coração inflava de esperança, pois sabia que esta terra era apropriada. Levaria a bom termo a minha missão para Trevor e para a Vôos Intero-ceânicos. Receberia a devida recompensa.

      - Não - retorquiu o Capitão Rasmussen.

      - Não? - volvi com incredulidade. - Que quer dizer? Tínhamos descrito um semicírculo e achávamo-nos sobre

      uma passagem da ilha principal. Rasmussen esboçou um gesto em direção da janela.

      - A ressaca... a arrebentação é violenta... O vento traiçoeiro... nos destruiria. Olhei para baixo.

      - O mar parece de vidro. Está ótimo.

      - Não sei - resmungou Rasmussen. - Há outras coisas. É perigoso. Existem nela caçadores de cabeças... canibais...

      - O senhor disse que não era habitada - recordei com severidade.

      - Tinha-me esquecido.

      Sabia que não encontraríamos canibais naquela área. Contudo, não podia acusá-lo de mentiroso.

      - Eu me arriscarei, capitão - disse. - Por favor, peça ao Sr. Hapai que pouse. Preciso apenas de uma hora ou duas.

      Rasmussen continuou estranhamente obstinado.

      - Não posso aceder - retorquiu com voz débil. - O senhor se encontra sob a minha responsabilidade.

      - Sou responsável por mim próprio - redargüi com firmeza. - Já disse isto duas vezes e di-lo-ei uma terceira... Se continua a impedir que eu veja essa ilha, voltarei amanhã com alguém mais cooperativo.

      Rasmussen fitou-me durante alguns segundos, durante os quais ouvimos apenas o martelar dos dois motores do monoplano. O seu rosto nórdico, enrugado, com a barba hirsuta, parecia o perfeito retrato da consternação. Por fim, quase sem emoção, ele disse:

      - Abrirei a escotilha e o atirarei no oceano.

      Não consegui perceber se ele estava gracejando ou não; contudo, não se notava nenhum traço de humor no seu rosto.

      - Sabem que me encontro com o senhor - repliquei.

      - Seria guilhotinado, capitão.

      Ele olhou para fora da janela.

      - Isto não me agrada - afirmou. - Por que havia eu de me misturar com o senhor? Se o conduzir lá para baixo...

      - A voz extinguiu-se-lhe. Sacudiu a cabeça. - Está me causando muita preocupação, professor. Jurei que jamais traria alguém às Três Sereias.

      Senti o sangue latejar-me nas têmporas. Então, estas ilhas não eram provavelmente habitadas. A quem fizera Rasmussen esta jura? Que estava Rasmussen ocultando acerca do pedaço de terra lá embaixo? O mistério excitava-me tanto como o aeroporto em perspectiva.

      - Descemos ou não? - perguntei.

      - Não me oferece outra alternativa - retorquiu Rasmussen com evidente desespero. - Se eu estivesse no seu lugar, poria óculos escuros na praia. Procure a sua maldita faixa de aterragem e nada mais.

      - É apenas nisso que estou interessado.

      - Veremos - volveu ele enigmaticamente. Lançou um olhar de relance para Hapai. - Comunique-lhe que descemos. Depois... corte lentamente a velocidade para os cem quilômetros... o mar está suficientemente calmo para nos aproximarmos cerca de oitocentos metros da praia. Desamarrarei o bote.

      À medida que o hidravião descrevia um semicírculo, Rasmussen erguia-se do seu lugar com um suspiro e dirigia-se para a ré, para o costado de bombordo. Imediatamente, tomei o seu lugar no compartimento do piloto. Hapai conduzira o aparelho sobre o centro da ilha principal. Começou a descer no que compreendi ser um vale profundo dissimulado entre sombras. De súbito, fez balançar o avião, mergulhou as asas, ume, duas vezes, quase me lançando para fora do meu lugar. Depois, pareceu lançar para cima o aparelho, sobre a cratera vulcânica, tomando por fim a direção dos penhascos e da praia.

      A descida foi rápida e regular; quando pousamos na água, um pouco para lá da praia, Hapai deixou os comandos. Encontrei-o abrindo a escotilha da entrada principal, a bombordo. Em seguida, ajudou Rasmussen a desamarrar o bote e a descê-lo para a água.

      Rasmussen precedeu-me no bote balouçando e ergueu o braço para me ajudar a descer.

      - Mantenha-se a postos - disse para Hapai. - Voltaremos dentro de duas horas. Se nos demorarmos mais, pedirei a Paoti ou a Tom Courtney que mandem alguém avisá-lo.

      A minha mente reteve estes dois nomes... Paoti... Tom Courtney. Provocantes devido à sua justaposição, embora um deles fosse obviamente polinésio e outro parecesse anglo-saxão, apesar de Courtney ser de derivação francesa. Antes que pudesse fazer uma observação sobre este fato singular, Rasmussen ordenou-me, de cenho carregado, que pegasse num remo e remasse.

      Apesar de o mar estar calmo, os esforços produzidos com as remadas - combinadas com o rigor da tarde, quase abafada, sufocante, não suavizada por qualquer sopro de vento - fizeram que eu estivesse encharcado de suor no momento em que chegávamos à praia. O trato de praia arenosa, os rochedos escarpados atrás acolheram-nos em silêncio. Quando desembarcamos, foi como se eu tivesse começado a pisar na terra do Paraíso no quarto dia após o Gênese (Perdoe a minha eloqüência, Dr.a Hayden, mas foi isto que senti. )

      Depois de ter amarrado o bote, Rasmussen não perdeu tempo.

      - Temos meia hora de subida dura - disse ele -, se não pararmos, para chegarmos ao seu maldi... platô.

      Seguia atrás do capitão, enquanto ele dirigia a marcha até a um caminho estreito, sinuoso, que subia gradualmente ao longo do declive de um penhasco.

      - Há gente aqui? - perguntei. - Quem são Paoti e Courtney?

      - Poupe o seu fôlego - resmungou Rasmussen -, pois precisará bem dele.

      Para não fatigar a senhora com os pormenores da minha aventura, Dr.a Hayden, serei o mais conciso que me for possível no que respeita à nossa subida ao platô. O caminho não era íngreme, mas elevava-se constantemente, e as paredes de rocha, de ambos os lados, tinham acumulado o calor do dia, que era sufocante. Devido ao fato de ter pedido várias vezes para nos determos, a fim de recobrar a respiração, que por vezes quase me faltava, a subida demorou quase três quartos de hora. Durante esse período Rasmussen hão me dirigiu uma palavra sequer. No rosto enrugado, queimado, tinha uma expressão sombria, e limitou-se a responder às minhas perguntas com resmungos e grunhidos onde transparecia a cólera de que estava possuído.

      Por fim, as formações rochosas atingiram o cume de um largo rochedo, que conduzia a pequenas colinas verdejantes. e estas perdiam-se lentamente no platô, longo e raso.

      - Chegamos, por fim - disse Rasmussen; estas eram as primeiras palavras que pronunciava depois de termos partido da praia. - Que vai fazer agora?

      - Examinar o local.

      Penetrei, até grande distância, no platô, calculando o seu comprimento e largura, julgando a regularidade do terreno, estudando a vegetação, verificando a consistência do solo, atento mesmo à direção dos ventos. Fiz tudo o que Trevor me ordenara. Foi durante este exame, que ocupou toda a minha atenção - encontrávamo-nos há cerca de uma hora nessa chapada, onde, apoiado sobre as mãos e os joelhos, examinava a erva e a superfície do solo -, que pela primeira vez ouvi as vozes. Ergui a cabeça, surpreendido, e verifiquei que Rasmussen não se achava atrás de mim. Rapidamente, olhei em redor, e vi-o então; porém, não se encontrava só.

      Ergui-me de um salto. Rasmussen estava acompanhado por dois nativos, altos, delgados e de epiderme clara, um deles com uma pequena enxó de pedra na mão. Tanto quanto pude notar à distância a que me achava, e com Rasmussen a obstruir a visão ampla do local, ambos os nativos estavam nus. Encontravam-se descontraídos, escutando, enquanto Rasmussen falava, acompanhando as palavras de gestos largos. Uma vez quase girou sobre si mesmo ao apontar para mim, e como supus, erradamente, que se tratava de um convite para me aproximar, Rasmussen acenou-me para que eu continuasse onde estava. A conversa, que eu não conseguia entender a distância, prosseguiu talvez durante mais cinco minutos, e por fim os três homens dirigiram-se subitamente para o local onde me encontrava.

      A medida que caminhavam, pude distinguir as feições dos dois nativos, e vi que um deles era talvez polinésio enquanto o outro não podia deixar de ser caucasiano, embora fossem ambos da mesma cor. Estavam nus da cabeça aos pés, com exceção de uma concessão ao pudor. Ambos usavam sacos púbicos em redor dos órgãos genitais, contidos frouxamente por fios de fibra de coco à volta da cintura. Devo confessar que me senti desconcertado, pois embora tivesse visto semelhantes sacos púbicos na Melanésia há alguns anos, estes já não se usam na Polinésia civilizada, onde se preferem as calças ocidentais ou os saiotes dos nativos. Tive a impressão de que aqueles homens, ou quem quer que representavam, se mantinham fiéis aos velhos usos e costumes e não tinham sido influenciados pelos costumes modernos.

      - Professor Easterday - disse Rasmussen -, estes cavalheiros caçavam aqui perto quando viram o meu sinal e aproximaram-se para nos receber. Este é o Sr. Thomas Courtney, um americano que é membro honorário da tribo das Sereias. E este aqui é Moreturi, o filho mais velho de Paoti Wright, chefe da tribo.

      Courtney estendeu-me a mão, que apertei. Moreturi não estendeu a sua - ofereceu apenas um ar sombrio.

      Um sorriso breve cintilou no rosto do Courtney, sem dúvida motivado pelo espanto que o meu próprio exprimia. Perguntei-me então, e durante algum tempo mais tarde, o que faria um americano quase nu, com aquela vestimenta, numa ilha chamada Três Sereias, que não existia em mapa algum? Embora o enigma me continuasse a preocupar, podia agora distinguir com nitidez os dois homens.

      Moreturi, o mais novo, não contava mais de trinta anos, e tinha cerca de um metro e oitenta e cinco centímetros de altura. Sabemos que a epiderme dos polinésios é suficientemente clara para bronzear, mas ele parecia um branco moreno que se expusera ao sol. O seu cabelo era negro e ondulado, mas no corpo não se via um pêlo sequer. O rosto era mais largo e mais belo - com feições lisas e corretas - do que o de Courtney. O oblíquo ligeiro dos olhos e a espessura dos lábios era tudo o que indicava que se tratava de um nativo. O peito, forte, vigoroso, e os músculos do bíceps, enormes, contrastavam com as ancas e as pernas delgadas.

      Courtney era, como eu disse, o mais velho dos dois. Imagino que contaria cerca de quarenta anos, mas possuía um aspecto e um físico soberbos. Calculei que tivesse cerca de um metro e noventa de altura. Tinha cabelo cor de areia, despenteado, e parecia não se barbear há algum tempo. O rosto era mais longo e anguloso do que o do seu amigo polinésio, com olhos castanhos, profundamente cavados, nariz que dava a impressão de ter sido já quebrado e tratado com negligência, lábios mais finos e boca mais larga. Era o mais delgado dos dois, mas também musculoso, com pêlos não muito espessos no peito e nas pernas.

      A descrição que faço dessas pessoas pode não ser completamente exata, pois observei tudo isso durante poucos segundos, e apenas corrigi estas impressões mais tarde na escuridão, quando um exame pormenorizado era mais difícil.

      Estava ciente de que Courtney se dirigia a mim, quando disse:

      - O Capitão Rasmussen é, com efeito, o nosso embaixador e agente de ligação com o mundo exterior. Contou-nos, o melhor que pôde, alguns fatos sobre o senhor e falou-nos da sua missão para a Vôos Interoceânicos. - A sua voz era baixa, bem modulada, e a maneira como se exprimia denotava um homem culto e educado. - É o primeiro estranho a vir aqui desde a minha chegada, há alguns anos. A sua presença não deixará de preocupar o chefe e os nativos. Os estranhos são considerados tabus.

      - Mas o senhor é americano, e não um dos deles - retorqui. - Por que é tolerada a sua presença aqui?

      - Cheguei aqui por acaso, e fiquei devido à generosidade do chefe. Agora sou um deles. Ninguém mais seria acolhido com simpatia. O segredo que envolve a aldeia e as ilhas é sagrado.

      - Não vi aldeia alguma quando voei sobre as ilhas - volvi.

      Courtney inclinou a cabeça num gesto de aprovação.

      - É verdade, não viu aldeia alguma. Mas ela existe, e é composta por mais de duzentos habitantes, os sobreviventes de antepassados tanto brancos como pardos.

      - Descendentes dos amotinados da Bountyl - inquiri.

      - Não. Tudo isso aconteceu de maneira muito diferente. Não há tempo para mais explicações. Penso que seria prudente, professor Easterday, que partisse quanto antes e se esquecesse de que lançou alguma vez os olhos sobre nós ou sobre estas ilhas. O fato é que a sua chegada pôs em perigo toda a população. Se o seu desaparecimento não comprometesse a posição do Capitão Rasmussen em Taiti, estou certo de que Moreturi não permitiria que partisse. No pé em que as coisas estão, pode abandonar estas ilhas sem correr qualquer risco.

      Resolvi não ceder. As palavras daquele americano transformado em nativo eram, porém, menos sinistras do que as que poderiam ser pronunciadas por um polinésio.

      - Este platô é uma perfeita pista de aviões - disse eu. - É meu dever enviar para Camberra um relatório sobre o que vi.

      Moreturi agitou-se, mas Courtney tocou-lhe no braço sem o fitar.

      - Professor Easterday - disse Courtney suavemente -, não tem a mínima idéia do que está fazendo. Esta ilha, aparentemente inacessível e raramente visitada, tem-se mantido fora do alcance de olhos estranhos... as corrupções da civilização moderna... desde 1796, ano em que a presente aldeia foi edificada e a presente cultura começou.

      Penso, Dr.a Hayden, que foi o emprego da palavra “cultura” que me fez pensar na antropologia e no seu pedido de há dez anos. Porém, conscientemente, o meu espírito estava ainda apegado à missão de que fora incumbido por Trevor.

      - É o meu trabalho - retorqui.

      - Já imaginou a que o conduzirá o seu trabalho? - perguntou Courtney. - Os seus amigos de Camberra mandarão alguém examinar detalhadamente esta área. O terreno merecerá a sua aprovação. Depois avistar-se-ão com um governo estranho a esta ilha, que possua colônias na Polinésia ou detenha territórios sob mandato. Apelarão para a França, Grã-Bretanha, Nova Zelândia, Estados Unidos e outras nações que possuam ilhas e bases no Pacífico. Qual será o resultado dessas inquirições? Tristeza, dor, abandono. Se nenhuma potência sabe que existe esta pequena ilha, como poderão reivindicar sua posse? Nenhum descobridor jamais aqui aportou. Ainda terei de defender a causa deste povo em algum tribunal internacional, a fim de provar a sua independência. Suponha que ganharia mesmo a minha causa. Ainda assim tudo se perderia, pois as Sereias tornar-se-iam uma causa pública romântica. A sua atual sociedade não poderia ser preservada. E suponha que eu perdesse a minha causa, e que a algum governo estrangeiro fosse conferida a posse deste território? O francês, digamos. Que aconteceria então?

      Os administradores franceses e os pequenos burocratas chegariam, seguidos pelos seus amigos negociantes, com aviões, barcos. Desembarcariam bulldozers, casas pré-fabricadas e operários ébrios. E, quando o campo estivesse construído, os aviões comerciais voariam até aqui e partiriam diariamente com os seus turistas papagueando como néscios. A ilha converter-se-ia num terminal público. Que supõe aconteceria à tribo das Sereias?

      - Não mais seriam selvagens. Tornar-se-iam civilizados, fruiriam uma melhoria de vida, o progresso, tornar-se-iam parte do mundo conhecido. É isto assim tão mau?

      Courthey voltou-se para Moreturi.

      - Ouviu o professor, meu amigo? É isto assim tão mau?

      - Não o permitiremos - volveu Moreturi em perfeito inglês.

      Receio ter aberto a boca de espanto diante desse nativo.

      - Sabe, eles não são selvagens - disse Courtney. - De fato, têm mais para oferecer à sua apregoada civilização do que o senhor tem para oferecer a eles. Mas se os seus exploradores e caixeiros-viajantes aparecerem, estão para sempre perdidos. Por que é tão importante para o senhor destruí-los, professor? Que lucra com isso? Faz parte dessa companhia de Camberra?

      - Não. Sou apenas um negociante, e a minha vocação converteu-me num estudioso dos Mares do Sul. Sinto grande afeição por todos estes povos e pelos seus costumes ancestrais. Contudo, creio que não podem continuar a evitar o progresso.

      - Então o progresso é a razão do seu interesse? Não será antes o dinheiro?

      - Um homem tem de viver, Sr. Courtney.

      - Sim - volveu ele, lentamente. - Suponho que é assim. O senhor tem de arranjar as suas moedas de prata, em nome do progresso, e uma cultura bastante notável, maravilhosa, tem de morrer.

      Não consegui reprimir por mais tempo a minha curiosidade.

      - O senhor continua a enaltecer esse povo. Que tem ele de tão notável?

      - O seu modo de viver - retorquiu Courtney. - Não existe na Terra outro que se lhe assemelhe. Comparado com a maneira como o senhor e eu temos vivido, este é quase perfeito.

      - Gostaria de apreciá-lo com meus próprios olhos - volvi. - Mostre-me a aldeia.

      Moreturi voltou-se para Courtney.

      - Paoti Wright não o permitirá.

      Courtney concordou e disse, dirigindo-se a mim.

      - É impossível. Não posso responder pela sua segurança, se o levar lá. Tem de aceitar a minha palavra de que a preservação deste povo é mais importante do que qualquer soma em dinheiro que o senhor possa receber desse grupo. Deve regressar com o Capitão Rasmussen e guardar silêncio.

      - Suponha que eu regresse na verdade agora - redargüi. - Como sabe que pode confiar em mim? E se eu fosse falar disto à gente de Camberra... ou a outros?

      Courtney ficou calado durante um momento.

      - Não poderei dizer se o senhor sofrerá mais do que de uma má consciência. Sim, não posso garantir sequer isso. Conhece o co-piloto do capitão, Richard Hapai? Ele é um dos nossos, um das Sereias. Se o senhor quebrar o tabu tribal, arruinar este povo, é possível então que ele, ou outro, o descubra um dia, onde quer que se encontre, e o mate. Isto não é uma ameaça. Não me acho em posição de impor vingança. É apenas uma advertência razoável, derivada da minha experiência, colhida entre este povo. Menciono a possibilidade.

      - Não tenho medo - retorqui. - Partirei agora...

      - E enviará um relatório sobre as Três Sereias?

      - Sim. O senhor não me convenceu de que não o devo fazer, Sr. Courtney. Tentou embalar-me com palavras... uma cultura notável, um povo maravilhoso, qualquer coisa diferente, incrível... Mas afirmo-lhe que tudo isso não passa de palavras vazias. Não me conduzirá à aldeia para que veja tudo com os meus próprios olhos. Não me dirá precisamente o que tem em mente. Não me apresentou uma só razão que explique por que a tribo das Sereias deve sobreviver no seu atual estado primitivo.

      - E se lhe contar a verdade... pelo menos parte dela... o senhor' me acreditará?

      - Creio que sim.

      -É isso fará que não envie o seu relatório ao grupo de Camberra?

      - Não sei - volvi com sinceridade. - Poderá acontecer que sim. Depende do que me contar.

      Courtney olhou Moreturi de viés.

      - Que pensa, meu amigo? Moreturi inclinou a cabeça.

      - É necessário dizer a verdade.

      - Muito bem - declarou Courtney, fitando Rasmussen, que escutara a conversa. - Capitão, proponho que voltemos à praia. Dirá a Hapai» que saia do avião e nos traga provisões. Acenderemos uma fogueira e comeremos. Entrementes, explicarei ao nosso visitante, durante uma hora ou duas, o que se passa aqui.

      - Por que tanta insensatez? - perguntou Rasmussen. - Não confio no professor. Deixemo-lo partir. Poderemos fazer que os criminosos se encarreguem dele e...

      - Não, não me agrada isso - volveu Courtney. - Não seria justo nem para ele nem pari nós. Não podemos correr esse risco, capitão. Faria perigar a sua vida e também a de Hapai... e, por fim, as autoridades poderiam descobrir o que acontecesse ao professor. Não, prefiro que resolvamos razoavelmente esta questão. Confiarei na decência básica do professor.

      Depois disto, Courtney começou a agradar-me.

      Bem, Dr.a Hayden, dirigimo-nos todos para a praia. Quando lá chegamos a noite descera já. Apenas a lua iluminava frouxamente o ponto onde nos encontrávamos. O Capitão Rasmussen dirigiu-se no bote até ao hidravião, de onde regressou pouco depois com alimentos. Moreturi juntara já alguns arbustos e acendera uma fogueira. Rasmussen cozinhava... com apuro, devo dizer, e enquanto cozinhava sentamo-nos todos na areia, ao redor da fogueira. Courtney começou a contar a sua história das Três Sereias.

      Courtney, como intróito à sua narrativa, disse que não podia revelar todos os pormenores da história e costumes do grupo das Sereias. Prometeu apenas um simples esboço, balando com calma, descontraído, remontou aos começos da experiência. À medida que se referia aos tempos modernos, falava gradualmente com mais emoção. Pela minha parte, mergulhei de tal modo naquela maravilhosa narrativa que mal me apercebi de que a minha refeição se encontrava defronte de mim.

      Durante um breve interlúdio, comemos em silêncio; este foi interrompido apenas quando afirmei a Courtney que não podia conter a minha sede de mais conhecimentos. Pedi-lhe que satisfizesse a minha curiosidade. A pouco e pouco, começou de novo a falar, e prosseguiu depois sem se deter. Jamais retirei dele os olhos. Todos nos consideramos juizes dos homens, e eu próprio julgo-me bastante perspicaz no que se refere a estas coisas: acreditei que Courtney não mentia, que não embelezava ou exagerava, que o que contava correspondia à verdade, era tão rigoroso como os melhores estudos científicos. Tão intrigado me encontrava ante a sua narrativa que, quando ele terminou, supus que não se teriam escoado mais de sete minutos. Realmente, Courtney apresentara a sua causa de defesa da tribo - e compreendi que parte da perícia que evidenciara como narrador se devia à sua experiência no foro de Chicago, e parte a seu amor ao povo das Sereias... Senti um desejo imenso de fazer mil perguntas, mas mostrei-me suficientemente polido, e fiz apenas as mais pertinentes. Ele respondeu com grande sinceridade a algumas delas, a outras escusou-se, considerando-as, segundo as suas próprias palavras, “demasiado pessoais; uma intromissão nos segredos alheios”.

      A noite ia já alta - e, apesar do calor, corria uma brisa fresca - quando Courtney me disse:

      - Bem, professor, acaba de ouvir uma narrativa resumida mas concisa sobre as Três Sereias. Ouviu o bastante para saber o que poderá destruir. Qual é a sua decisão?

      À medida que a história de Courtney se aproximava do fim, eu começava a pensar na senhora, Dr.a Hayden. Todos aqueles fatos bizarros fizeram que dissesse a mim próprio: “Ah, se a Dr.a Maud Hayden estivesse aqui, com que encanto escutaria isto”. E enquanto Courtney prosseguia, e eu escutava, recordei-me do seu antigo pedido. Imaginei o que poderia significar para a senhora uma viagem às Três Sereias, e, através da senhora, para todo o mundo. Por diversas vezes ouvira-a dizer que as culturas primitivas deviam ser salvas, os velhos costumes preservados, antes que fossem aniquilados ou se extinguissem. A senhora sempre sentiu, sempre disse e escreveu que as culturas primitivas isoladas podiam ensinar-nos toda a variedade de coisas sobre o comportamento dos seres humanos, e que podíamos aplicá-los de maneira a melhorarmos o nosso próprio comportamento. Com clareza, então, surgiu-me a idéia de que a singular e minúscula sociedade das Três Sereias merecia ser salva antes que eu, ou alguém como eu, auxiliasse a moderna sociedade tecnológica a obliterá-la. Fiquei profundamente impressionado com o meu poder para decidir sobre o bem e sobre o mal e com a minha responsabilidade para com aqueles que pudessem ser capazes de se servir desta comunidade insular como laboratório para melhorar o bem-estar da nossa sociedade. De súbito, a importância do seu trabalho - do qual sou um pobre e menor aliado - fez que o meu dever para com Trevor e o grupo de Camberra parecesse insignificante.

      Courtney perguntara-me qual era a minha decisão. Do outro lado das chamas aguardava a minha resposta.

      - Gostaria de estabelecer um acordo com o senhor - disse eu abruptamente. - Oferecerei, com efeito, uma proposta.

      - De que espécie? - perguntou Courtney.

      - Já ouviu falar na Dr.a Maud Hayden, a famosa antropóloga?

      - Decerto que sim - volveu ele. - Já li a maior parte dos seus livros.

      - Que pensa deles?

      - São brilhantes - afirmou Courtney.

      - É esta a proposta que ofereço - disse. - O preço por não mencionar as Três Sereias ao grupo de Camberra.

      - Estou certo de que não o compreendo bem - retorquiu Courtney.

      Falei lentamente, dando grande ênfase a cada palavra.

      - Se permitir que a Dr.a Hayden e seus colegas façam até aqui uma viagem de estudo no próximo ano, se permitir que ela elabore um trabalho, para a posteridade, sobre esta sociedade, garantir-lhe-ei o meu silêncio no futuro e o isolamento destas ilhas.

      Courtney conseguiu que a proposta fosse considerada. Após alguns momentos de reflexão, trocou olhares com Moreturi e Rasmussen. Por fim, voltou para mim os seus olhos, como se quisesse avaliar as minhas boas intenções.

      - Professor - disse -, como pode garantir o silêncio da Dr.a Hayden e dos seus colegas?

      Como já esperava esta pergunta, tinha uma resposta preparada.

      - Decerto - retorqui -, a Dr.a Hayden e seus colegas jurarão manter o maior segredo acerca desta viagem e do destino da equipe. Porém, os seres humanos são frágeis e eu sei que as promessas verbais podem não o satisfazer suficientemente. Portanto, sugeriria que a Dr.a Hayden e seus colegas fossem mantidos na maior ignorância no que respeita ao local para onde partirão. Ela e seu grupo podem seguir para Taiti, de onde serão conduzidos às Três Sereias pelo Capitão Rasmussen em plena noite. Nenhum dos antropólogos saberá a latitude ou a longitude. Tampouco saberão se viajam para o norte ou para o sul, oeste ou leste. Saberão apenas que estão algures no Sul do Pacífico, num ponto qualquer de um labirinto de mais de dez mil ilhas. Acomodá-los-á até ao limite do possível. Observarão e ouvirão o que o seu chefe permitir que observem e ouçam. Fotografarão o que desejar que fotografem e nada mais. Quando o seu estudo estiver concluído, partirão como vieram, em plena noite. Jamais saberão exatamente onde estiveram. Contudo, possuirão o mais pormenorizado registro acerca desta sociedade para benefício da humanidade. Desta maneira, e embora a vida nas Sereias se possa extinguir um dia, o registro das suas maravilhas, e excessos também, comprovará a sua existência pelos tempos afora. São estas as minhas sugestões e suponho-as justas.

      - Quanto ao aeroporto, nada fará? - volveu Courtney.

      - Sim. Pode contar com a minha palavra. Courtney mordeu os lábios, pensativo, e depois fez um

      sinal a Moreturi. Os dois ergueram o corpo nu da areia e caminharam em direção da praia, ao longo da beira da água, mergulhados em profunda conversa. Pouco depois desapareciam na noite. Passados momentos, Rasmussen sacudiu a ponta do charuto no fogo, levantou-se e seguiu na direção que eles tinham tomado.

      Daí a dez minutos, voltaram os três, e ergui-me para ouvir-lhes o veredicto.

      - Fica estabelecido o acordo - disse Courtney. - A pedido do filho, o chefe Paoti Wright permite que informe a Dr.a Hayden de que pode vir, sob as exatas condições que esboçou. Ela pode demorar-se apenas seis semanas entre junho e julho. Utilizarão o Capitão Rasmussen como seu intermediário conosco. Através dele comunicar-nos-á se ela vem e a data da sua chegada e quaisquer modificações a este acordo. O Capitão Rasmussen pousa aqui de quinze em quinze dias, a fim de transportar os nossos artigos de exportação, que troca pelos artigos de que temos necessidade. Deste modo, está em contato permanente conosco. Então, fica tudo entendido, professor?

      - Sim.

      Courtney e eu apertamo-nos as mãos, eu disse adeus a Moreturi e, acompanhado pelo Capitão Rasmussen, voltei ao hidravião, onde Hapai nos esperava.

      Logo que decolamos na escuridão, em direção a Papeete, vi que o fogo na praia se extinguira. Pouco depois perdia mesmo de vista a silhueta das Três Sereias. Fiz a viagem de regresso sentado na cabina principal, só, sem ser perturbado, e, com o meu livro de apontamentos e a minha caneta, anotei aquilo de que me pude recordar sobre a noite estimulante na praia. Devotei-me largamente ao registro apressado dos pontos salientes da narrativa de Courtney, referente à história e às práticas da tribo das Três Sereias.

      Ao rever as minhas notas, à medida que redigia esta longa carta, verifiquei que omitira mais pormenores do que aqueles que imaginara. Se se trata de lapsos da minha memória ou de deliberadas omissões de Courtney é coisa que não sei dizer. Contudo, este esboço não-organizado é mais do que suficiente para que a senhora decida se quer ou não fazer essa viagem.

       

      Resumindo então:

      Em 1795, vivia em Skinner Street, em Londres, de rendimentos deixados pelo seu falecido pai, um ardoroso filósofo e panfletário chamado Daniel Wright. Este Daniel Wright era casado e tinha um filho e duas filhas. Obcecava-o a idéia de melhorar ou reformar a sociedade inglesa. Achava-se com freqüência em companhia do seu vizinho, amigo e ídolo William Godwin, que então contava trinta e nove anos. Godwin, como a senhora certamente se recordará, foi o autor e livreiro que acabou por se casar com Mary Wollstonecraft e que mais tarde teve, para sua infelicidade, Shelley como genro. O fato mais importante é que Godwin publicou, em 1793, Um Inquérito sobre a Justiça Política, no qual advogava, entre outras coisas, que se acabasse com o casamento, com os castigos corporais e a propriedade privada. Este trabalho, bem como toda a personalidade de Godwin, influenciaram o pensamento radical de Daniel Wright. Porém, Daniel Wright encontrava-se menos interessado nas reformas políticas do que na, reforma do matrimônio. Escrevera, com o encorajamento de Godwin, um livro intitulado Paraíso Ressurgido. A idéia do livro era a seguinte: Por graça de Deus fora dada a Adão e Eva uma segunda oportunidade de voltarem ao Paraíso e começarem tudo de novo. Desencantados com o estado de conubialidade herdado por eles, decidiram praticar, ensinar e promover um novo sistema de relações amorosas, coabitação, corte e casamento. Um conceito apaixonante, devo admitir.

      O livro de Wright atacava com violência o sistema matrimonial e os costumes do amor que então prevaleciam na Inglaterra, e advogava um sistema inteiramente diferente. Wright serviu-se não só da sua imaginação e das idéias de Godwin como também das idéias propostas por Platão, na República, Sir Thomas More, na Utopia, Tommaso Campa-nella, em A Cidade do Sol, Sir Francis Bacon, na Nova Atlântida, e James Harrington, em A Rota. Wright não pôde resistir também à tentação de denunciar práticas de governo ao tempo prevalecentes sobre leis, educação, saúde pública e religião. Wright encontrou um editor corajoso e, por volta de 1795, foram impressos os primeiros exemplares do delgado mas explosivo volume. Antes que estes exemplares pudessem ser distribuídos Wright soube, através de Godwin, que alguns membros da corte de Jorge III tinham sido informados do conteúdo daquele livro radical. Preparavam-se para declarar a utopia matrimonial de Wright “corruptora da juventude” e “subversiva”. A confiscação do livro e a prisão do seu autor seriam inevitáveis. Seguindo os conselhos de Godwin e de outros amigos, Wright colocou numa mala um exemplar do seu livro, os objetos caseiros mais fáceis de transportar, as suas economias, e, acompanhado pela mulher e pelos filhos e por três discípulos, dirigiu-se apressadamente, em plena noite, para o porto irlandês de Kinsale. Ali embarcaram num cargueiro de 180 toneladas que seguia para Botany Bay, Nova Holanda, mais tarde conhecida como Sydney, Austrália.

      De acordo com a história de Courtney, baseada em documentos originais da aldeia nativa das Três Sereias, Daniel Wright não teria fugido da Inglaterra apenas para salvar a pele. Na verdade era dotado de espírito de mártir, e, no julgamento, ter-se-ia divertido em fazer alarde de suas idéias perante as autoridades e o reino. O que o impeliu a fugir foi um motivo mais afirmativo. Durante vários anos animara-o a idéia de partir para os jovens dezesseis Estados do Novo Mundo ou para os recentemente explorados Mares do Sul, a fim de praticar, por assim dizer, o que pregava - isto é, em vez de escrever apenas acerca das suas idéias visionárias sobre o matrimônio, pensava viajar até um lugar remoto a fim de pô-las em prática. Porém, era um estudioso sedentário, um pensador e não um homem de ação, e tinha a cotidiana responsabilidade de educar os filhos; por isso não fora capaz de se decidir a fazer tão dramática revolução na sua vida. O confisco do seu livro e a pena de prisão que o ameaçava em Newgate inflamaram-no, contribuindo para isto não só a injustiça do governo como também as vistas estreitas da sociedade em meio à qual vivia. Eis então o que o incitou a partir, para realizar o que sempre desejara.

      Durante essa longa e fatigante viagem para a Austrália teve tempo de sobra para converter as fantasias utópicas do seu livro em medidas práticas, pelo menos no papel. Necessitava apenas de um lugar próprio onde as experimentar. Daniel Wright esperava que a Austrália pudesse ser este lugar. Porém, mal ele e os seus desembarcaram em Botany Bay, compreendeu que estava enganado. A região, constituída por grandes pântanos e lamaçais, abandonada pelos primeiros colonizadores a pretos nus munidos de lanças e a condenados, era o inferno na Terra. Depressa Wright e os acompanhantes se dirigiram para Sydney Cove, a primeira colônia de criminosos ingleses, estabelecida oito anos antes. Um mês depois, Wright apercebeu-se de que teria de partir paxá um lugar ainda mais afastado. A vida na colônia dos condenados era demasiado dura, violenta e doentia, e o governador de Sua Majestade não toleraria nela um reformador como aquele inglês rebelde e ardoroso.

      De posse de escritos românticos tanto de Louis Antoine de Bougainville como de James Cook, que tinham explorado os Mares do Sul, Wright pensava que este imaculado paraíso era exatamente aquilo por que ansiava. Com efeito, Bougainville escrevera sobre o Taiti de 1768, no seu diário: “As canoas estavam cheias de mulheres cujos rostos encantadores não desmereciam da maioria das mulheres européias; quanto à beleza do corpo, elas rivalizavam com qualquer. A maior parte destas ninfas achava-se nua, pois os homens e as mulheres tinham tirado as tangas que usavam habitualmente. A princípio fizeram das suas canoas pequenos gestos convidativos. Os homens, mais simples, ou melhor, mais livres, facilitavam as coisas; eles nos convidavam a escolher uma moça, a segui-la até à praia, e os seus gestos inequívocos mostravam a maneira como as íamos conhecer. “ Referindo-se ao que se passava na praia, Bougainville acrescentara: “Era como se estivéssemos no jardim do Paraíso... Tudo sugeria com clareza o amor. As nativas não têm complexo algum. Tudo o que as rodeia convida-as a seguir a inclinação do seu coração ou o chamamento da natureza.”

      Isto foi o bastante para Daniel Wright. Para lá da Austrália existia uma civilização nova e não inibida que praticava o amor e o casamento de uma maneira compatível com as suas melhores idéias. Ali, longe das práticas infelizes e restritivas do Ocidente, combinaria as suas idéias com as práticas similares dos polinésios e criaria o seu perfeito microcosmo.

      Wright comprou passagens para ele e para os seus e embarcou num pequeno mas sólido brigue que se dirigia para os Mares do Sul, com o objetivo de carregar mercadorias, tendo Otaheite, como os ingleses chamavam então a Taiti, como seu destino final. Wright perguntou ao capitão do navio se, por um pagamento adicional, ele não se importava de ir além de Taiti, tocando em meia dúzia de ilhas desconhecidas que ainda não constavam das cartas, até encontrarem uma onde Wright, a família e os discípulos pudessem ficar. O capitão concordou.

      O capitão do brigue foi fiel à sua palavra. Após a viagem até Taiti, onde se deteve durante duas semanas, prosseguiu mais para sul através da Polinésia. Por três vezes o brigue fundeou a alguma distância da praia, a fim de que Wright e dois companheiros explorassem as pequenas ilhas. Uma não serviu devido à existência de florestas de mangueiras, outra não tinha nem nascentes de água para beber, nem terra fértil e a terceira estava infestada de caçadores de cabeças. Wright solicitou ao capitão o prosseguimento da busca. Dois dias depois avistaram o grupo de ilhas que em breve seriam batizadas com o nome de Três Sereias.

      Um dia de exploração na ilha principal convenceu Wright de que encontrara o Paraíso na Terra. A situação de uma enseada que estava fora das rotas comerciais e que não possuía porto natural ou ancoradouro profundo prometia o maior isolamento. No interior da ilha havia uma fauna e uma flora abundantes, cursos dágua sem obstáculos e outros recursos naturais. Acima de tudo, Wright encontrara uma aldeia de quarenta polinésios que se mostraram gentis e hospitaleiros.

      Por intermédio de um intérprete nativo trazido de Taiti, Wright pôde falar sem dificuldade com Tefaunni, chefe da tribo. Wright soube que os indígenas descendiam de um grupo polinésio, com afinidades sangüíneas, que há muito tempo, ao procurar novas terras para colonização, em canoas de alto-mar, se refugiara naquele lugar. O chefe, que jamais vira um branco ou possuíra alguns dos seus dons e objetos mágicos (um machado de metal, ou uma lâmpada de óleo de baleia), acolheu Wright com o maior temor e respeito. Considerou grande mana - uma palavra que Wright aprendeu que significava, entre muitas outras coisas, “prestígio” - que o visitante partilhasse a ilha e o seu governo com ele. Conduzindo Wright numa excursão pela aldeia, Tefaunni explicou-lhe os hábitos do seu povo. No seu diário, Wright anotaria que o povo era “alegre, livre, sensível, embora enamorado da vida e dos prazeres da carne”, e que as atitudes e maneiras de todos teriam “encantado o coração de Bougainville”. No dia seguinte, a família e os discípulos de Wright, oito ao todo, incluindo o próprio Wright, desembarcaram com todos os seus bens, entre os quais diversos cães, cabras, galinhas e carneiros. O brigue afastou-se e Wright reuniu-se a Tefaunni a fim de fundar o Paraíso Ressurgido.

      Há muito, muito mais a acrescentar a esta história extraordinária, Dr.a Hayden, mas os pormenores a senhora os conhecerá por si mesma, se a isso estiver disposta. Dentro das limitações desta carta prefiro dedicar o restante aos costumes da sociedade que, por fim, se desenvolveu desde 1796 até ao presente.

      Um mês depois de Wright e os seus se terem estabelecido fisicamente na comunidade polinésia, ele empreendeu um sério estudo sobre as tradições, ritos e práticas tribais. Observou-os cuidadosamente e ao mesmo tempo lançou no papel as suas próprias idéias de como a existência devia ser vivida nas Três Sereias. Na questão do governo, os polinésios inclinavam-se para um chefe hereditário e Wright para um comitê de três homens ou mulheres que tivessem sido treinados para a chefia e passassem em todos os testes. Era uma modificação da idéia de Platão, como sabe. Wright compreendeu que o seu sistema não funcionaria naquela ilha solitária - onde e como estabelecer uma escola para treinar na chefia homens com espírito universalista? - e anuiu à idéia de um chefe hereditário.

      Quanto ao trabalho e aos bens, cada grupo de parentes consanguíneos polinésios, embora individualmente edificassem e possuíssem o seu próprio lar e pertences, trabalhariam como uma unidade para semear ou colher alimentos e conservá-los num armazém familiar comum. O chefe, pensou, devia controlar todos os bens imóveis e distribuí-los de acordo com o tamanho de cada família. Se uma família se expandisse em tamanho, o mesmo aconteceria com os bens. Se uma família fosse reduzida, aplicar-se-ia o sistema inverso. Além do mais, cada indivíduo adulto, do sexo masculino, das Três Sereias trabalharia quatro horas por dia no que mais lhe conviesse, fosse na agricultura, na pesca, na carpintaria ou em qualquer outra ocupação considerada necessária. O produto deste trabalho iria para um grande armazém comum. Semanalmente, cada família retiraria do armazém uma quantidade mínima de provisões e outros artigos. Essa quantidade mínima seria igual para todos. Porém, os trabalhadores mais produtivos da aldeia poderiam exceder esses fornecimentos mínimos com quantidades-bônus do que preferissem. Em resumo, absoluta igualdade, ausência de pobreza, e, contudo, um certo grau de incentivo. Tefaunni anuiu prontamente a esta reforma, que foi introduzida em 1799.

      Segundo as minhas notas, derivadas da explicação de Courtney, concessões semelhantes foram efetuadas dentro do mesmo espírito de cordialidade - o melhor do sistema polinésio aqui, o melhor das idéias visionárias de Wright ali, e por vezes duas idéias fundidas. As obrigações foram estabelecidas no setor da educação, da religião, da recreação e em outros também importantes. Wright não permitiu que dois sistemas conducentes ao mesmo fim existissem lado a lado. Sentiu que isto poderia originar conflitos. Teria de ser sempre, para tudo, a prática polinésia ou a sua.

      Verificaram-se decerto muitas barganhas. Para controle da população contra fomes futuras os polinésios praticavam o infanticídio. Se uma mulher tinha mais de um filho em períodos de três anos, as outras crianças eram afogadas ao nascer. Wright achou esta prática odiosa e obteve a anuência de Tefaunni para que ela fosse considerada tabu. Por outro lado, Wright teve, como compensação, de fazer certas concessões. Esperava impor porta-seios e saias às mulheres, calças só aos homens, mas viu-se obrigado a transigir, aceitando os saiotes curtos polinésios, sem qualquer roupa de baixo, e seios nus, para as mulheres, e sacos púbicos, e nada mais, para os homens. Apenas em ocasiões especiais usavam as mulheres saias tapa e os homens, tangas. Courtney falou com alacridade de certas passagens do antigo diário de Wright, em que este registrou o embaraço da mulher e das filhas quando da sua primeira aparição no centro da aldeia, com os seios nus e os seus saiotes de trinta centímetros, que o vento por vezes levantava.

      Houve muitos outros acordos. Os polinésios defecavam onde quer que se encontrassem no matagal. Wright opôs-se a este costume, que considerou contrário às melhores conveniências sanitárias, e procurou introduzir cabanas comuns de higiene, duas de cada lado da aldeia. Os polinésios acharam que essa inovação constituía pura bizarria, mas permitiram-na. Por sua vez, Tefaunni exigiu que o seu sistema penal prevalecesse. Wright desejara introduzir o desterro para uma ravina como castigo para todos os crimes. Os polinésios não acederam. No que tocava ao crime de morte, condenavam o infrator à escravidão doméstica. Isto significava que o criminoso tinha de se tornar um servo na casa da família da vítima até perfazer a diferença em anos entre a idade da vítima na altura da sua morte e os setenta anos. Wright sentiu certas desconfianças quanto à severidade do castigo; contudo, compreendeu o seu aspecto justiceiro também, e submeteu-se. Devo acrescentar, de acordo com as palavras de Courtney, que este castigo ainda vigora nas Três Sereias.

      Entretanto, todas as práticas que esbocei até aqui são relativamente sem importância comparadas com os costumes referentes ao sexo, ao amor e ao casamento, que Tefaunni, e a sua tribo de quarenta, e Daniel Wright, com os seus oito, concordaram que funcionassem na aldeia. Aqui, os polinésios e os ingleses progressistas tinham menos em que discordar, e os acordos foram em menor número. Wright considerou as práticas sexuais daquela tribo não só singulares como superiores a quaisquer outras que imaginara ou de cuja existência soubesse. Adaptavam-se à sua filosofia em quase todos os pormenores. Acima de tudo, davam resultado. Uma vez que muitas destas idéias representavam quase com exatidão o que Wright sonhara introduzir, poucos reajustamentos ou modificações foram necessários. Segundo calculava Courtney, de todos os sistemas sexuais praticados neste momento nas Três Sereias cerca de setenta por cento são predominantemente polinésios de origem e apenas uns trinta por cento foram ditados por Wright.

      Poderei referir aqui que os descendentes de Tefaunni e Wright formam hoje um único povo, uma raça. Durante alguns anos Tefaunni e Wright governaram em conjunto. Quando Tefaunni morreu, Wright tornou-se o único chefe. Quando este faleceu, com uma idade avançada - o filho mais velho morrera já -, o neto mais idoso, produto de um casamento inglês e polinesio, tornou-se também o único chefe. Com o decorrer dos anos estes casamentos mistos continuaram. Hoje não há divisão entre caucasianos e polinésios. Sobrevive apenas o povo das Sereias. Este povo sem dissensões pratica o exato sistema de relações amorosas estabelecido pelos fundadores há mais de cento e cinqüenta anos. Quanto a este sistema de relações amorosas, lamento dizer que Courtney não se quis referir em pormenor a muitos dos costumes correntes, mas o que decidiu contar-me pareceu-me suficientemente interessante para qualquer estudo antropológico. Algumas dessas práticas são as seguintes: aos adolescentes entre as idades de quatorze e dezesseis é fornecida conveniente educação sexual. Como o compreendo, são-lhes ministradas lições teóricas sobre as relações sexuais. Antes de completarem o seu curso, observam-nas e participam delas. Este, insistiu Courtney, é um método absolutamente salutar.

      Os adolescentes do sexo masculino das Sereias submetem-se a uma incisão no pênis semelhante à circuncisão. Depois, têm a sua primeira cópula com jovens ligeiramente mais velhas, que os guiam e os instruem na técnica sexual. Por outro lado, o clitóris da adolescente é distendido durante alguns anos. Quando este se encontra distendido pelo menos cerca de trinta milímetros ela é considerada apta para conhecer a cópula, participando dela. O aumento do clitóris não tem conotação mágica. O motivo único dessa operação é o aumento do prazer. A virgindade, devo acrescentar, é considerada uma enfermidade e um defeito nas Sereias. Porém, conforme as minhas próprias observações, nas ilhas da Sociedade e nas ilhas Austrais estas práticas não são desconhecidas.

      Existe nas Sereias uma grande casa a que chamam a Cabana de Auxílio Social. A sua função é dupla. É usada por solteiros, viúvos, de ambos os sexos, e mulheres não ligadas, e exerce-se nela a corte e o amor. A segunda função, que apenas se sugere, é mais surpreendente e original. Diz respeito à - repito as palavras exatas de Courtney - “concretização das emoções do amor, em qualquer momento, por homens e mulheres casados que o desejem. Sejam quais forem as suas implicações, não é, aparentemente, uma prática tão dissoluta e orgíaca como se poderá imaginar”. Courtney afirmou que este “serviço” da Cabana de Auxílio Social era razoável, lógico, e que o regulavam normas estritas. Não se quis alargar no que se refere a este ponto. Notou apenas que nas Três Sereias não havia homens ou mulheres fisicamente reprimidos.

      Os casamentos são realizados por mútuo consentimento dos indivíduos em causa. A cerimônia é dirigida pelo chefe. O noivo escolhe os convidados de ambos os sexos. À entrada para o local da cerimônia o noivo transpõe o corpo da sogra, que está prostrada, simbolizando assim a sua ascendência sobre ela. Depois da cerimônia, a noiva deita-se nos braços do noivo e cada convidado do sexo masculino, a instâncias daquele, exceto os parentes consanguíneos, frui o prazer da cópula com ela. O noivo é o último a participar. Este rito de incorporação, se a memória não me falha, é praticado também em várias outras ilhas da Polinésia, especialmente no grupo das Marquesas.

      A iniciação do divórcio, segundo Courtney, é uma das práticas mais progressistas das Três Sereias. Courtney mostrou-se extremamente reticente em dar-me quaisquer pormenores. Mencionou, contudo, que o conselho dos anciãos, denominado Hierarquia, não concedia o divórcio meramente a pedido de uma ou outra parte, nem baseava o seu veredicto em provas secundárias, como o “ouvir dizer”. Afirmou apenas que o divórcio era permitido após “longa observação” de ambas as partes em causa.

      Courtney e Moreturi falaram de um festival anual, realizado em fins de junho, e que durava uma semana. Embora ambos o descrevessem como uma competição desportiva, uma dança cerimonial, um concurso de beleza, ao nu, nenhum deles se referiu em pormenor ao objetivo principal do festival.

      Courtney disse:

      - Os antigos romanos tinham a sua Saturnália anual, assim como os nativos de Upolu, na Samoa, ainda têm. O festival das Sereias não é precisamente o mesmo. Todavia, constitui uma forma de escape, em certas áreas, permitindo que casais que há muito vivem em comum e os indivíduos solteiros dêem vazão às suas emoções e desejos recalcados. O adultério e o divórcio são freqüentes na América e na Europa, não é verdade? Tal não se verifica nas Sereias. Nos nossos países os casais são, na maioria das vezes, infelizes, vivem uma existência inquieta, plena de tédio. Não se verifica isso aqui. O chamado mundo civilizado poderia aprender bastantes coisas com estes supostos primitivos.

      Foi esta a única referência, se bem que indireta, de Courtney ao enigmático festival.

      Nem Courtney nem Moreturi me contaram alguma coisa mais acerca dos costumes amorosos nas Sereias. Em resumo: Courtney afirmou que em nenhuma outra parte da Terra, ao que sabia, era o amor praticado com menos embaraço, tensão e medo.

      Aqui tem tudo o que eu soube, Dr.a Hayden. Pode sentir curiosidade em conhecer mais alguns fatos sobre este Tom Courtney, mas não posso elucidá-la. Além de admitir que fora advogado em Chicago, declarou que viera por acaso para as Sereias e que decidira ficar, o que lhe havia sido permitido. Quanto à sua vida, nada mais adiantou. Achei-o atraente, culto, freqüentemente céptico, no que se refere à sociedade fora destas ilhas, e devotado ao seu povo adotivo. É uma grande vantagem, penso, que ele a conheça e a seu trabalho, e o respeite. Senti que confiaria na senhora e creio que ele próprio é sincero e de confiança, embora o nosso encontro fosse curto. Não posso, todavia, mostrar-me absolutamente positivo.

      Esta é a carta mais longa que escrevi até hoje. Tenho, no entanto, esperança de que a nossa causa a justifique. Desconheço a sua presente situação, Dr.a Hayden; porém, se ainda se mantiver em atividade, a porta que conduz a uma cultura ousada está aberta para a senhora dentro das limitações referidas.

      Responda-me por favor logo que possa, mas não demore. Tem quatro meses para os preparativos; contudo, nesta região longínqua o tempo parece demasiado curto. Se tencionar vir até aqui, escreva-me, e diga-me a data aproximada da partida. Comunique também o número de pessoas que a acompanham. Tudo isto transmitirei prontamente ao Capitão Rasmussen, que, por seu turno, o transmitirá a Tom Courtney e ao chefe atual, Paoti Wright. Eles farão então os necessários preparativos para a sua chegada e cuidarão dos alojamentos. Se as circunstâncias não permitirem que esta empresa se concretize, diga-mo igualmente, pois tentarei então, com relutância, acredite-me, passar esta informação a um ou dois antropólogos que conheço.

      O custo desta expedição, excetuando os transportes, não deverá ser elevado. O povo das Sereias fornecerá tanto os alojamentos como os víveres. A gratificação pelos serviços de Rasmussen será pequena. Pela minha parte, nada exijo, exceto a sua boa vontade, e, decerto, o reembolso dos três mil dólares que perdi por não enviar o meu relatório ao Sr. Trevor, de Camberra.

       

      Na expectativa da sua resposta e fazendo votos para que esta carta a vá encontrar de perfeita saúde, subscrevo-me com o maior respeito e consideração.

      ALEXANDER EASTERDAY

    

     Maud Hayden baixou lentamente a carta, como que hipnotizada por ela; parecia achar-se em transe, tanto a absorvera a leitura. Contudo, sentia dentro de si o calor da expectativa e da emoção, e logo abaixo da pele as extremidades dos seus nervos vibravam. Era uma sensação de vida profunda - todos os sentidos se achavam despertos - que não conhecera durante os quatro anos que haviam passado depois da morte do marido e colaborador.

     As palavras verdes, luxuriantes, tão maravilhosas como um “Abre-te Sésamo”, e as imagens que evocavam, não exigiam aceitação ou aprovação do seu intuitivo segundo ser. O seu ser exterior, que era a lógica fria (com a sua invisível balança pesando tudo o que é bom e tudo o que é mau), o conhecimento, a experiência, a objetividade profissional, envolveu o convite num enorme abraço.

     Quando recobrou a calma, recostou-se na cadeira giratória e pensou no conteúdo da carta, especialmente nas práticas que Courtney relatara a Easterday. O casamento e os seus costumes nas outras sociedades tinham sempre exercido intensa fascinação sobre ela. A única viagem de estudo que sempre pensara fazer depois da morte de Adley fora ao Sul da Índia, a fim de viver algum tempo com a tribo Nayar. As mulheres de Nayar, após o seu casamento formal, faziam sair o marido de casa poucos dias depois de realizada a cerimônia e tomavam certo número de amantes, um após outro, todos residentes em outras localidades, entregando as crianças que depois nasciam à própria família. Este costume até certo ponto atraíra Maud; porém, quando compreendeu que teria de se interessar por todo o padrão de comportamento social dos Nayar, e não apenas pelas suas práticas matrimoniais, desinteressou-se por completo do projeto. Contudo, não tardou a aperceber-se de que não fora este o motivo que a levara a desinteressar-se do projeto. A razão era outra. Não desejaria viajar, como uma viúva ainda de luto, até àquela região longínqua do Sul da Índia.

     Todavia, eis que a carta de Easterday encontra-a, a ela, Maud, viva e profundamente entusiasmada. Por quê? Os selos de Gauguin no envelope faziam acudir à sua memória o Noa Noa e a recordação do seu autor. “Sim, na verdade, os selvagens haviam ensinado muitas coisas àquele homem de uma antiga civilização; estes ignorantes tinham-no instruído profundamente na arte da vida e da felicidade. “ Sim, isto fazia parte dos costumes simples dos Mares do Sul. A visita que lá efetuara constituíra uma das experiências mais felizes da sua vida. E recordou: os ventos alísios temperados, os homens e as mulheres altos, robustos, bronzeados, as lendas transmitidas oralmente, os ritos brgíacos, o odor dos cocos verdes e dos hibiscos vermelhos, a entonação doce, parecida com a italiana, da língua polinésia...

     A nostalgia das ilhas, eis o que a comovia neste momento; de súbito, alheou-se do sentimento. Existia um elevado objetivo, como indicara Gauguin. Os selvagens podiam ensinar muitas coisas aos civilizados. Contudo, quantas? O curioso personagem da carta de Easterday, Courtney, dera a entender que a vida nas Três Sereias era edênica ao ponto da utopia. Poderia existir a utopia na Terra? A palavra utopia derivava do grego e queria dizer, literalmente, inexistência de um lugar determinado. Abruptamente, a impiedosa disciplina antropológica de Maud advertiu-a do seguinte: considerar-se uma só sociedade como utópica envolvia uma série de julgamentos de valor baseados nas nossas próprias concepções preconcebidas do que é um estado de coisas ideal. Nenhum antropólogo verdadeiro podia pretender procurar uma utopia. Como antropóloga, ela podia munir-se de uma receita indicadora do que poderia ser um bom padrão de vida ou o que poderia constituir a mais satisfatória cultura, mas não podia definir um lugar como utópico e outro de maneira oposta.

      

     Não, disse de si para si, não procurava uma terra maravilhosa, algures. Era alguma coisa mais, então. A sua colega Margaret Mead, quando, com pouco mais de vinte anos, fora a Pago Pago, instalara-se durante breve espaço de tempo no próprio hotel onde W. Somerset Maugham escrevera Chuva, vivera com as mulheres de Samoa e declarara ao mundo que a ausência de restrições sexuais entre aquele povo eliminara a hostilidade sexual, a agressividade, a tensão. De um momento para o outro, Margaret obtivera um êxito espantoso, pois o mundo ocidental sentira sempre grande curiosidade pelas coisas proibidas e estendera a mão como um pedinte. E eis por fim uma boa oportunidade, dissera Maud. O mundo ocidental desejava o Imediato Conhecimento. Não interessava agora se as Sereias representavam ou não a utopia. Não interessava também se a sociedade das Sereias podia ensinar alguma coisa ao homem civilizado. O único ponto surgia agora, iluminado, a Maud: não era o de que o mundo necessitava que a impressionava, mas o de que ela própria desesperadamente necessitava.

     Recordou-se de uma carta que Edward Sapir escrevera a Ruth Benedict quando esta planejava pedir auxílio financeiro ao Conselho de Pesquisas das Ciências Sociais. Sapir aconselhara assim Ruth: “Por Deus, não vá tão longe, nem se preocupe tanto com o aspecto técnico como no ano passado. A mitologia dos pueblos impressiona tanto o público como a gramática dos athabaskans... detenha-se num projeto vivo que conseguirá tudo o que pretende.”

     Detenha-se num projeto vivo... que conseguirá tudo o que pretende.

     Maud endiretou-se abruptamente na cadeira, as solas de couro dos sapatos roçando o chão, sob a mesa. Deixou cair a carta sobre o mata-borrão e, com os dedos entrelaçados, considerou a notável descoberta à luz da presente situação. Não se lhe deparara uma oportunidade como esta desde que ficara só. Era uma dádiva de anos. A cultura das Três Sereias - parte dela conhecia-a de algumas viagens de estudo, outra parte era, felizmente, nova -, eis o que na verdade a interessava. Sempre evitara o sediço, o já explorado. Sempre rejeitara a monótona familiaridade dos estudos paralelos. Sempre tivera - e jamais admitira isto a alguém a não ser a si própria - faro apurado para o extraordinário, para o maravilhoso, para o fantástico. E eis que se lhe apresentava isso, uma coisa que nenhum outro antropólogo conhecia. Tudo parecia favorável: em vez do habitual ano de estudo estava limitada a seis semanas, de modo que não a poderia inquietar a pouca profundidade que pudesse obter nos estudos a efetuar; não se tratava de um assunto que, pela sua natureza, exigisse redação e publicação de caráter científico; ademais, constituía uma solução fácil para o problema que vagamente a oprimia há já longo tempo.

     Pensou na carta que o Dr. Walter Scott Macintosh lhe enviara dois meses antes. Fora colega do seu falecido marido ha universidade e seu amigo dedicado nos últimos anos. Agora era uma Eminência Parda, um homem influente, menos pelas suas realizações no campo da antropologia do que pelo poder político de que dispunha como Presidente da Liga Antropológica Americana. Escrevera-lhe como amigo sincero, como admirador, e confidenciara, contando com a sua reserva, que uma boa posição estaria vaga dentro de um ano e meio. Tratava-se de um lugar de diretor-executivo da Culture, o órgão internacional da Liga Antropológica Americana. O atual diretor-executivo, presentemente com oitenta anos, e doente, iria se aposentar. O lugar, vitalício, ficaria em aberto, com o prestígio e estabilidade que oferecia.

     Macintosh esclarecera que gostaria de nomear Maud para o cargo. Por outro lado, alguns dos seus colegas no conselho de administração inclinavam-se para uma pessoa mais jovem, o Dr. David Rogerson, cujos recentes estudos publicados refletiam, espetacularmente, duas viagens feitas à África. Uma vez que se falava muito da fremente África, falava-se também do Dr. Rogerson. Ao mesmo tempo, escrevera Macintosh, acreditava pessoalmente que Rogerson não possuía a vasta experiência de Maud acerca de muitas culturas ou os seus contatos com os que se ocupavam, em todo o mundo, dos estudos antropológicos. Macintosh estava certo de que ela era o elemento indicado para o lugar. O problema, sugeria, constituía em fazer ver aos membros do conselho de administração que ela era mais capaz do que o Dr. Rogerson.

     Macintosh tinha, sutilmente, posto o dedo na ferida. Desde a morte de Adíey, Maud pouco fizera sozinha. Mantivera-se quase estática enquanto os antropólogos mais jovens e ousados tinham avançado. Além de diversos ensaios, todos sobre antigas viagens de estudo, nada publicara durante quatro anos. Macintosh aconselhara-a a partir uma vez mais, e voltar com um novo estudo, um ensaio original, que pudesse ler perante a Liga na sua próxima Convenção de três dias. Esta efetuar-se-ia em Detroit, pouco depois do Dia de Ação de Graças, e precederia a reunião do conselho para a escolha do novo diretor-executivo da Culture. Se tivesse qualquer plano para a viagem e um novo ensaio, escrevera esperançadamente Macintosh, Maud deveria comunicar-lhe sem demora esse fato, a fim de que ele preparasse as coisas de modo a que a amiga falasse perante o conclave.

     A carta de Macintosh animara-a bastante, pois o lugar era exatamente aquele que desejava nesta altura da sua vida. Com tal cargo, na sua idade, não necessitaria mais de sofrer os rigores provocados por viagens a regiões inóspitas, não precisaria de se exaurir na monotonia do ensino, mormente a estudantes indiferentes, não precisaria de sofrer as exigências da redação de ensaios, não necessitaria de se preocupar com a possível insegurança ou com qualquer dependência, nos anos que estavam para vir, nem mesmo de Marc.

     Com tal cargo, teria um salário de vinte mil dólares por ano, gabinetes em Washington, uma vivenda na Virgínia e seria a emérita antropóloga da nação. Contudo, apesar de todas essas recompensas, do momentâneo estímulo dado pela carta de Macintosh, sentira-se incapaz de tomar uma decisão. Tornara a afundar-se na monotonia da sua presente existência, demasiado enorme para conceber um novo estudo, demasiado fatigada para agir. Por fim, após alguma demora, respondera, grata mas ambiguamente, à amável sugestão de Macintosh. Obrigada, obrigada, veria, pensaria, comunicar-lhe-ia a sua decisão. E nos dois meses que se tinham seguido nada fizera. Mas agora... Tocou com carinho na carta de Easterday.

     Sim, estava viva. Fixou os olhos nas estantes do outro lado da sala, onde se encontravam encostados, uns aos outros, os volumes coloridos sobre os habitantes das Fidji, os ashantis, os minoanos, os jívaros, que ela e Adley tinham escrito. Podia imaginar mais um monumento: os ilhéus das Sereias.

     Ouviu passos e compreendeu que eram de Claire, que descia a escada. Restavam eles também - a sua nora, Claire, e Marc. Maud achava-se sobrando, desde que Marc casara. Suspeitava de que Marc ansiava por ver-se livre dela, tanto social como profissionalmente. As Três Sereias tornariam isso possível. A sua liberdade poderia ser a libertação de Marc, também. Isso revigoraria o casamento, sabia, e perguntou-se por que pensava que o casamento necessitava de auxílio. Mas esta não era uma manhã para tais pensamentos. Em outro momento tentaria responder à sua interrogação.

      

     O relógio elétrico com caixa de nogueira indicou-lhe que tinha ainda cinqüenta minutos disponíveis antes da aula. Enquanto tudo se achava bem vivo e presente na sua mente, seria melhor tomar algumas notas. Nada devia ser omitido. O tempo era da maior importância.

     Pegou na volumosa carta de Easterday, manuseando-a como se fosse um fragmento das Escrituras, e depois colocou-a de lado. Pôs o largo bloco de apontamentos amarelo diante de si, procurou uma esferográfica e começou a escrever com rapidez:

      

     1. Delinear um colorido esboço de projeto, para Cyrus Hackfeld; obtenção de um razoável subsídio.

      

     2. Consultar Marc e Claire - e diversos estudantes já graduados, também - a fim de se fazerem pesquisas sobre alguns pontos da carta de Easterday, de modo a apresentar da melhor maneira possível o assunto a Hackfeld. Pesquisa sobre a área das Três Sereias - menção da sua história ou qualquer coisa parecida -, pesquisa sobre Daniel Wright e Godwin, pesquisa sobre costumes,. aIgures, iguais aos das Três Sereias. Apurar os antecedentes de Courtney, etc.

      

     3. Traçar uma lista de nomes do possível grupo de estudos. Hackfeld gosta de celebridades. Possibilidades: Sam Karpowicz, botânica e fotografia; Rachel DeJong, psiquiatria; Walter Zegner, medicina; Orville Pence, estudos comparados sobre sexo - e outros. Uma vez que Hackfeld concorde, ditar cartas a Claire para todos eles, a fim de inquirir se estão disponíveis e interessados.

      

     4. Escrever a Macintosh, a fim de saber se há ainda tempo para a leitura de um novo trabalho sobre etnologia polinésia no simpósio da Liga. Não escrever. Telefonar.

     Reclinou-se na cadeira. Fixou os olhos no bloco amarelo e sentiu que registrara tudo que precisava de ser feito sem demora. Depois compreendeu que omitira uma coisa, talvez a mais importante de todas. Inclinou-se sobre o bloco uma vez mais.

      

     5. Escrever uma carta aérea para Alexander Easterday, Taiti, esta noite. Dizer-lhe que sim - absolutamente sim, sim, sim!”

 

     Dos quatro membros da família Hayden - quatro membros, isto é, se se contasse a sempre sorridente Suzu, a empregada japonesa - Claire Emerson Hayden fora, conforme ela própria pensava, a menos afetada, na rotina diária, pela carta de Easterday, recebida cinco semanas antes.

     A transformação da sogra, Maud (Claire ainda a achava tão extraordinara, após quase dois anos, para chamá-la de Matty), fora a mais acentuada. Maud sempre estivera ocupada, alardeando a sua eficiência, mas nas últimas cinco semanas tornara-se muito mais ativa, fazendo o trabalho de dez pessoas. E mais do que isso, aos próprios olhos de Claire mostrava-se cada vez mais jovem, enérgica, criadora. Claire imaginava que ela se encontrava agora como devia ter sido no auge do seu vigor físico, quando Adley era seu colaborador.

     Ao pensar nisso, Claire, agora mergulhada até aos ombros no seu voluptuoso banho de espuma, abriu, com a palma da mão, um caminho em forma de leque através da espuma. Permitiu que seu espírito se detivesse no Dr. Adley R. Hayden, de quem se recordava agora imprecisamente. Vira-o duas vezes antes do seu casamento, quando Marc a trouxera a Santa Bárbara para participar de reuniões mundanas, e impressionara-a bastante aquele erudito alto, curvado, um pouco barrigudo, com a sua ironia seca, os seus vastos conhecimentos e a sua compreensão. Apesar de Marc tartamudear na presença do pai, de provocar com freqüência a sua ironia e de ser por ele menosprezado com demasiada facilidade com um leve ridículo, ela sentira-se impressionada pela autoridade de Adley. Sempre pensara ter deixado de si uma impressão pouco lisonjeira, embora Marc lhe tivesse garantido que o pai a achara “uma coisinha bastante bonita”. Com freqüência desejava ter significado mais alguma coisa para Adley; porém, uma semana depois do seu segundo encontro, ele morrera subitamente de um ataque de coração, e, no além, estava certa, seria ainda considerada por ele apenas “uma coisinha bastante bonita”.

     As bolhas de sabonete tinham-se amontoado novamente diante do corpo de Claire, que, ainda divagando, começou a alisá-las. A sua mente errava, sabia, e tentava recordar-se daquilo em que pensara. Por fim recordou-se: a carta de Easterday, recebida cinco semanas antes, e o efeito que produzira em todos eles. Maud mantinha-se numa atividade febril, sim. E Marc achava-se mais ocupado agora, mais concentrado (se isso era possível), mais nervoso, queixando-se cada vez mais de pequenos contratempos, mas acima de tudo perguntando-se se era prudente, se valia a pena, fazerem aquela viagem de estudo. “Tenho a impressão de que o seu Easterday não passa de um romancista”, dissera ele duas noites antes a Maud. “Uma coisa como esta devia ser investigada convenientemente antes de desperdiçarmos todo este tempo e dinheiro.” Maud tratara-o como sempre o tratara, com a infinita paciência e a afeição de todas as mães para com os seus filhos precoces. Maud defendera a integridade de Easterday e explicara que as circunstâncias não permitiam qualquer investigação, recordando o seu faro quando se tratava de um cometimento de onde se podiam esperar bons resultados, produto não só do seu instinto como da sua experiência. Como habitualmente, quando era derrotado pelos argumentos da mãe, Marc batera em retirada e mergulhara no trabalho.

     Somente a rotina de Claire não parecera afetada pelo recente acontecimento. Havia agora mais trabalho de datilografia e arquivo para fazer, mas isso não preenchia suficientemente o seu tempo. Todas as manhãs, porém, podia demorar-se no seu banho quente, ler ao café, consultar Maud, fazer o trabalho do costume e participar depois, com as jovens esposas de outros professores, de uma partida de tênis, tomar chá na sua companhia ou assistir a uma conferência. E nas noites em que Marc se achava demasiado ocupado, sem tempo para levá-la ao cinema ou para dar com ela um passeio de automóvel, ou quando não se realizava uma festa, ela permitia que o marido fixasse os olhos sobre as suas notas, fizesse as suas pesquisas, corrigisse os seus escritos - trabalho de homem - enquanto ela lia um romance ou assistia, com olhos sonolentos e entediados, a alguns programas no aparelho portátil de televisão. Nada disto fora modificado por Easterday e pelas Três Sereias.

     Contudo, e Claire tinha certeza disso, alguma coisa se modificara, no que lhe tocava. Era uma coisa que não se relacionava com a rotina diária. Tratava-se de uma sensação - de uma bolha de emoção quase tangível e efervescente - dentro do seu ser. Ela era a Sra. Marc Hayden, oficial, legalmente, para melhor, para pior, para sempre, desde há um ano e nove meses. Com o casamento - “um bom casamento” tinham dito a mãe e o padrasto - essa- bolha de emoção dentro de si parecera vivaz, engraçada, como uma enorme bolha que a elevava continuamente, e para além dela tudo era maravilhoso. Mas pouco a pouco, à medida que os dias passavam, essa bolha detivera-se, desvanecera-se, convertera-se num pequeno charco apavorante que não representava absolutamente nada. Eis o que parecia a bolha: nada. Eis a sua sensação no que se referia a tudo mais: nada. Era como se todas as excitações, todas as possibilidades de ser feliz, se tivessem extinguido. Era como se todos os fatos da vida fossem previsíveis, os do próximo momento, do dia seguinte, até ao último, e não houvesse esperança de se sentirem novos frêmitos de prazer, de se experimentarem novas alegrias. Eis a sensação, e quando ouvia mães discutirem os sentimentos de depressão que sobrevinham depois de darem à luz uma criança, perguntava-se se o mesmo não seria válido em relação ao casamento. Não podia censurar ninguém pelas suas decepções - nem Marc, decerto, Marc muito menos que as outras pessoas - com exceção, possivelmente, da própria noiva, com o seu murcho buquê de grandes esperanças ultra-românticas. Se tivesse dinheiro, pensava, financiaria um grupo de peritos a fim de que estes descobrissem o que acontecia às Cinderelas após o casamento.

     Contudo, cerca de cinco semanas antes do presente momento uma coisa muito agradável acontecera a Claire. O efeito que produzira em toda a sua pessoa fora imediato, mas nada revelara às pessoas que a rodeavam. Sentia-se desperta. Experimentava uma sensação de bem-estar. Tinha a certeza de que sua vida iria conhecer melhores momentos, uma renovação quase total. E sabia que o elemento inspirador fora a carta de Easterday. Datilografara com desvelo excertos resumidos, em duplicata, dessa carta. Conhecia de cor tudo o que Easterday prometia.

     Com exceção de uma longa viagem de uma semana a Acapulco e à Cidade do México, na companhia da mãe e do padrasto, quando tinha quinze anos (recordava-se das Pirâmides, do Jardim Flutuante, de Chapultepec, recordava-se de não se encontrar só nem sequer um instante), Claire nunca estivera fora dos Estados Unidos. E agora, quase de um dia para o outro, seria transportada para um lugar desconhecido e exótico dos Mares do Sul. A promessa de uma transformação era quase insuportável, de tão estimulante que era. Os verdadeiros pormenores acerca das Três Sereias possuíam pouca realidade e portanto pouco significado para ela. Tinham bastante semelhança com as milhares de palavras dos livros de Maud, de inúmeros outros volumes sobre antropologia que lera atentamente, e tudo parecia apenas história, passado remoto, sem nada a ver com sua vida presente. Todavia, a data aproximava-se cada vez mais, e se Easterday não era o “romancista” que lhe chamara Marc, se aquelas coisas fossem verdadeiras e não constituíssem somente palavras, ela estaria em breve numa cabana sufocante, entre homens e mulheres quase nus, que retiravam os víveres de um armazém comum, que consideravam a virgindade um defeito e a educação prática nos assuntos do sexo uma necessidade, que praticavam o amor numa Cabana de Auxílio Social e num festival, sem restrições e inibições (com um concurso de beleza nudista!).

     Claire lançou um olhar para o relógio de parede esmaltado que se encontrava ao lado da banheira. Eram nove e um quarto. A primeira aula de Marc já teria terminado. Hoje, disporia de quatro horas antes da aula seguinte. Perguntou-se se ele voltaria a casa ou se se dirigiria para a biblioteca. Decidiu que era melhor vestir-se. Estendeu a mão e fez girar a alavanca que se achava sob a torneira; o escoadouro abriu-se e a água e a espuma começaram a descer com o ruído característico.

     Ergueu-se e, cautelosamente, passou um pé sobre uma das bordas da banheira, ficando a gotejar sobre o espesso tapete branco. Enquanto os fios de água desciam pelas curvas da sua carne cintilante, a sua mente voltou de novo à carta de Easterday. Que dissera ele acerca do vestuário usado nas Três Sereias? Os homens traziam sacos púbicos, presos frouxamente por fios. Decerto que isso não era realmente uma coisa chocante se se considerasse a maneira como os homens se vestiam nas praias durante o verão. Contudo, apenas aqueles sacos, e nada mais. Porém, eles erarn nativos, e aquilo não podia deixar de ser decente, quase clínico. Vira centenas de fotografias de nativos, alguns deles sem qualquer saco púbico, e isso, neles, parecera absolutamente natural.

     Ocorrera-lhe, uma vez que estava agora de pé no meio do quarto de banho, completamente nua, que era assim que teria de aparecer em público nas Três Sereias. Não, não era bem assim. Easterday escrevera que as mulheres usam curtos saiotes, “sem qualquer roupa de baixo”, e andam com os seios nus. Mas, céus, era quase o mesmo que mostrar todo o corpo.

     Claire voltou-se para se mirar no espelho alto, da porta. Tentou imaginar o que pareceria dessa maneira, nua, aos nativos das Três Sereias. Tinha um metro e cinqüenta e três centímetros de altura e pesava, conforme verificara aquela manhã, cinqüenta e um quilos. O seu cabelo era escuro e brilhante, cortado curto, com as extremidades caídas sobre as faces. Os olhos em amêndoa pareciam de uma vaga casta do Extremo Oriente, faziam evocar as jovens submissas e recatadas da antiga Cathay, e contudo o efeito sofria o contraste da cor, azul-fumado; sexy, dissera uma vez Marc. O nariz era pequeno, com narinas bastante delicadas, os lábios de um vermelho profundo e a boca generosa, demasiado generosa. Do declive dos ombros e do peito, os seios desenvolviam-se gradualmente. Estes eram largos, cheios - como odiara que assim fossem na adolescência - todavia altos e jovens, o que constituíra uma fonte de saturação quando tinha vinte e cinco anos. As costelas mostravam-se um pouco - que pensariam os nativos?. -, mas o abdome era quase liso, apenas ligeiramente arredondado, e as proporções das coxas e das pernas delgadas não pareciam más, realmente. Contudo, não se podia prever o que sentiriam outros povos, noutras culturas - os polinésios poderiam considerá-la magra, com exceção do peito.

     Então recordou-se do saiote. Trinta centímetros. Era fácil ver que trinta centímetros permitiam apenas dez de modéstia extra. Não falando do vento... Meu Deus - que aconteceria quando se curvasse ou levantasse a perna para subir um degrau, ou, também, como se sentaria? Decidiu discutir todo este assunto do vestuário com Maud. De fato, uma vez que esta era a sua primeira viagem de estudo, devia perguntar a Maud o que se exigiria dela nas Três Sereias.

     Enquanto se enxugava, viu-se uma vez mais ao espelho. Como seria quando estivesse grávida? Realmente, tinha uma barriga tão pequena! Onde haveria espaço para outra pessoa, o seu bebê? Bem, havia sempre, a natureza tinha seus segredos, mas era absolutamente impossível prever, neste momento, o que aconteceria. Ao pensar na criança que teria, mas não tinha, franziu automaticamente a testa. Desde o princípio falara com paixão, e mais tarde com naturalidade, em ter um filho, mas Marc opusera-se a isto. Isto é, opunha-se por agora, disse sempre. As razões que o levavam a pensar assim pareciam importantes, quando as manifestava; porém, quando se encontrava só, com tempo para meditar nelas, pareciam-lhe sempre insignificantes. “Devemos ajustar-nos primeiro ao casamento”, afirmara ele uma vez. “Devemos reservar alguns anos só para nós e evitar todas as responsabilidades que pudermos”, declarara de outra. E por último acrescentara mais uma razão: era preciso que Maud se instalasse numa outra casa, se separasse deles, vivessem sós, os dois, antes de iniciarem uma nova família.

     Agora, à medida que passava a toalha pelas pernas, perguntava-se se qualquer dessas razões era honesta, para não dizer válida, ou se dissimulava a verdade: que Marc não desejava um filho, que temia ter um, pois ele próprio era ainda uma criança, uma criança crescida, demasiado dependente para arcar com responsabilidades. Claire não gostou dessa momentânea suspeita e decidiu não especular mais.

     Ouviu bater à porta, atrás do espelho.

     - Claire?

     Era a voz de Marc. Teve um sobressalto de surpresa e sentiu-se culpada, devido a seus pensamentos, agora que Marc estava tão perto.

     - Bom dia - volveu, com alegria.

     - Já tomou o café?

     - Ainda não. Estou-me vestindo.

     - Espero por você, então. Tive de passar sem ele, esta manhã. Dormi de mais. Que quer que diga à Suzu? Alguma coisa especial?

     - O costume.

     - Muito bem... A propósito, a última comunicação sobre as pesquisas chegou já de Los Angeles.

     - Novidades sensacionais?

     - Ainda não tive tempo de examiná-la. Vamos lê-la juntos, ao café.

     - Muito bem.

     Depois de Marc se afastar, Claire pôs rapidamente o soutien, as calcinhas, colocou o cinto das ligas, calçou as meias e prendeu-as e vestiu a combinação cor-de-rosa. Ao sair da atmosfera quente do banheiro para entrar no quarto, mais fresco e claro, perguntou-se se a comunicação apresentaria qualquer fato novo. Dentro de alguns minutos saberia. Penteou-se apressadamente, pôs batom nos lábios - não usava cosméticos no resto do rosto - vestiu a saia leve de lã cor de cacau, em seguida o suéter de cachemir bege, abotoou-o, procurou uns sapatos de salto baixo, calçou-os, dirigiu-se imediatamente para o hall e desceu as escadas.

     Suzu, sorridente, preparava-se para servir o café e Marc achava-se sentado à mesa da cozinha, inclinado sobre uma pasta aberta, quando Claire entrou. Esta deu o bom dia a Suzu e passou em seguida a mão pelo cabelo de Marc, cortado quase rente, ao mesmo tempo que lhe beijava uma das faces. Sentou-se, bebeu de um trago o suco de laranja e fez uma careta, pois esquecera-se de adoçá-lo. Depois, olhou para o outro lado da mesa.

     - Maud ainda não chegou?

     - Anda passeando por aí - retorquiu Marc, sem erguer os olhos.

     Claire mordeu o canto de uma torrada.

     - Bem - disse, apontando para a pasta -, a nossa Disneylândia polinésia existe realmente?

     Marc ergueu a cabeça e encolheu em seguida os ombros.

     - Talvez sim, talvez não. Porém, gostaria de estar tão certo como a Matty. - Deixou cair uma das mãos sobre os papéis que se encontravam diante de si. - Os nossos estudantes parecem ter feito um belo trabalho, mesmo na Biblioteca do Congresso. Vasculharam toda a literatura sobre os Mares do Sul, a publicada e a não publicada. Nenhuma referência em parte alguma às Três Sereias. Nem uma palavra sequer...

     - Isto não deve surpreender. Easterday disse que era um grupo desconhecido.

     - Sentir-me-ia mais tranqüilo se houvesse alguma coisa publicada. Claro... - começou de novo a folhear as notas -... diversas outras fontes parecem apoiar um pouco as afirmações de Easterday.

     - O que, por exemplo?

     - Existiu realmente um Daniel Wright, que viveu em Skinner Street, em Londres, antes de 1795. Em Chicago houve, também, um advogado chamado Thomas Courtney...

     - Ah, sim?! Mais alguma coisa acerca dele?

     - Datas, em especial. Tem trinta e oito anos. Licenciou-se pelas Universidades Northwestern e de Chicago. Sócio de uma firma antiga. Foi aviador na Guerra da Coréia, em 1952. Ao voltar, começou de novo a exercer a advocacia em Chicago. A partir de 1957 não se sabe mais nada.

     - Foi nesse ano que partiu» para os Mares do Sul - afirmou calmamente Claire.

     - Talvez - volveu Marc. - Sabê-lo-emos dentro de muito pouco tempo. - Em seguida fechou a pasta e dedicou-se aos flocos de cereal e ao leite.

     - Temos onze semanas para fazer compras de Natal - disse Claire.

     - Não creio que se celebre o Natal nas Três Sereias - retorquiu Marc. - Não é lugar para mulher... entre aqueles primitivos. Se eu pudesse, deixaria você aqui, de boa vontade.

     - Não ouse sequer tentá-lo! - exclamou Claire, com indignação. - Além disso, não são inteiramente primitivos. Easterday afirmou que o filho do chefe falava um inglês perfeito.

     - Muitos primitivos falam inglês - redargüiu Marc. - Incluindo alguns dos nossos melhores amigos - acrescentou de súbito, sorrindo. - Não me agradaria também que você desperdiçasse muito tempo com eles.

     Encantada com esse interesse, que não era muito habitual no marido, Claire passou a mão sobre a dele.

     - Esse interesse é mesmo verdadeiro? - perguntou.

     - Dever masculino e instinto - respondeu Marc. - Proteger a nossa companheira... Mas, a sério, as viagens de estudo não são piqueniques. Já disse que detesto as que me vejo obrigado a fazer. Não são nunca tão idílicas na realidade como parecem quando as descrevem nos livros. Em geral descobrimos que não temos muito de comum com os nativos, além do nosso trabalho com eles. Tem-se saudade de todos os pequenos prazeres da vida. Inevitavelmente, adoece-se de disenteria, de malária, ou de qualquer outra maldita febre. Não me agrada expor uma mulher a todas essas situações difíceis, mesmo que se trate de um curto período.

     Claire apertou a mão do marido.

     - Você é um amor. Mas estou certa de que não será tão mau como supõe. Apesar de tudo, sempre terei a sua companhia e a de Maud.

     - Poderemos estar muito ocupados.

     - Farei o possível por me ocupar também com alguma coisa. Desejo participar de toda a experiência.

     - Não diga depois que não a avisamos.

     Claire retirou a mão, pegou no garfo e enterrou-o, pensativa, nos ovos fritos. Conhecendo Marc como conhecia, perguntou-se se ele realmente estava tão interessado no seu bem-estar como queria fazer parecer, ou se projetava apenas seus próprios receios em relação a um fato novo e estranho. Era Marc, como tantos homens, constituído por dois indivíduos separados, constantemente em conflito, cada um deles decidido a obter uma paz separada? Irritá-lo-ia, intimamente, uma rotina monótona, e, ao mesmo tempo, encontraria segurança nela? Era tão firme, tão constante, nos seus movimentos diários como os ponteiros de um relógio que funciona como precisão? Todavia, poderia desejar fugir a esta existência, apesar da tranqüilidade que ela proporcionava. Atrás deste ajustamento superficial talvez espreitasse um outro Marc, um Marc que partia para viagens de que ela jamais participaria, viagens a secretos Monte Cristo que temporariamente o libertavam das prisões do dinheiro e das celas do nada. Para ele, talvez as Três Sereias não oferecessem qualquer benefício pessoal, mas apenas o prosseguimento da rotina, mais penoso. Assim, transformaria a aversão que sentia pela sua própria destruição em desvelo e inquietação pela mulher.

     Depois de acabar de comer os ovos, Claire ergueu os olhos e fitou o marido, que continuava ocupado com a sua refeição. Não se devia nunca observar uma pessoa quando ela comia. Parece ridícula, distorcida, comodista. Claire separou Marc da comida. Ele dava sempre a impressão de ser mais baixo do que ela, disse de si para si. Tem um metro e oitenta e três de altura, mas existe nele um hormônio perverso que lhe reduz a altura. Contudo, considerava-o fisicamente atraente. As suas feições, as suas proporções, eram corretas, regulares, equilibradas. O corte do cabelo parecia um anacronismo num rosto tão rígido, tão grave, embora lhe ficasse bem quando ele sorria, gracejava, se encontrava contente ou esperançado. Os olhos, de um cinzento opaco, eram profundos, mas bem distanciados um do outro. O nariz era aquilino, os lábios finos. Todavia, no aspecto geral, era belo, irradiava sinceridade, por vezes simpatia, como um estudioso austero. Tinha o corpo compacto, demasiado musculoso, de um atleta de segundo plano. Usava ternos largos, mas elegantes, que lhe assentavam bem. Se o aspecto dissesse tudo, pensou Claire, Marc seria mais feliz e ela refletiria a felicidade dele. Mas o seu interior, sabia Claire, vestia com freqüência roupagens diferentes, e ressentia-se do seu acanhamento. Não quis suspirar alto, porém isto aconteceu.

     Marc ergueu os olhos, interrogativamente.

     Claire tinha de dizer qualquer coisa. E disse:

     - Sinto-me um pouco nervosa quando penso no jantar especial desta noite, nos convidados...

     - Mas por que motivo se sente nervosa? Hackfeld já concordou em conceder um subsídio.

     - Sabe que Maud afirma que necessitamos de mais. Como pode Hackfeld insistir num grupo tão grande se se mostra tão avaro em relação ao dinheiro?

     - É por isso que ele é rico. Ademais, tem muitas outras coisas em que pensar.

     - Pergunto-me como Maud resolverá o problema com ele - declarou Claire.

     - Deixe isso com ela. É a sua especialidade. Os olhos de Claire seguiram Suzu até ao fogão.

     - Suzu, que haverá para esta noite?

     - Frango à Teriyaki.

     - D caminho para a bolsa de um homem passa pelo seu estômago. Brilhante, Suzu.

     - Isso é bem verdade - retorquiu ela, sorrindo.

     - Que bolsa? Que estômago? - Maud Hayden encontrava-se à porta da sala de jantar. Os cabelos grisalhos achavam-se indescritivelmente revoltos, talvez devido ao vento. O rosto largo e enrugado estava corado. O corpo forte, mas atarracado, parecia não ter formas no casaco com capuz cor-de-rosa e na saia de flanela azul-marinho, e nos sapatos largos, grosseiros. Ela agitou sua bengala, um produto do Equador e do país dos jívaros. - Qual é o assunto da conversa? - perguntou.

     - Cyrus Hackfeld, o depositário do nosso dinheiro - respondeu Claire. - Tomou já o café?

     - Sim, há já algumas horas - disse Maud, tirando o capuz. - Brrr. Faz um frio dos diabos lá fora. Sol e palmeiras, e contudo quase que enregelamos.

     - Que espera em março?! - exclamou Marc.

     - O tempo da Califórnia, meu filho. - Sorriu para Claire. - De uma maneira ou de outra, dentro de poucas semanas teremos todo o tempo tropical que conseguirmos suportar.

     Marc ergueu-se e estendeu a pasta à mãe.

     - A última comunicação sobre as pesquisas acaba de chegar. Nem uma palavra sobre as Sereias. Um Daniel Wright viveu em Londres. E, até há muito pouco tempo, um Thomas Courtney exerceu a advocacia em Chicago.

     - Maravilhoso! - exclamou Maud, despindo o casaco, com o auxílio de Marc. - É do Courtney que eu dependo. Não calcula quanto vai me auxiliar. - Em seguida, dirigindo-se a Claire, acrescentou: - Cada viagem de estudo decente demora de seis meses a um ano, e em certos casos mesmo dois anos. A mais curta em que tomei parte demorou apenas três meses. Mas aqui temos umas ridículas seis semanas. Por vezes, demoramos este tempo a localizar o nosso informante mais importante, uma pessoa na aldeia que seja relativamente digna de crédito, que conheça as lendas e a história, que não se importe de falar. Não é possível descobri-lo numa semana e estabelecer depois contato com ele do dia para a noite. Tem de se esperar com paciência, aguardar que ele se habitue a nós, que aprenda a confiar em nós, e, por fim, que se dirija mesmo a nós. Se se descobre o homem de que se necessita, ele arranja as coisas de maneira a que não encontremos dificuldades na aldeia. Bem, no presente caso tivemos muita sorte. Courtney, se é o que Easterday diz dele, parece-me o perfeito intermediário. Ele tem o povo das Sereias preparado para nos dispensar um bom acolhimento. Compreende-nos e às nossas necessidades. Deve ser uma mina de informações. E deve conduzir-nos também sem demora aos nossos informantes. Acredite-me...

     - Voltara-se para Marc. - Agrada-me bastante o fato de termos provas razoáveis de que este Courtney existe. - Agitou a pasta. - Vou subir ao escritório a fim de examinar isto imediatamente.

     Claire ergueu-se.

     - Irei ter com a senhora daqui a um momento - disse ela.

     Depois de Maud ter saído e de Marc levar o jornal da manhã para a sala de estar, Claire tirou a mesa da cozinha e, a despeito dos protestos de Suzu, começou a lavar os pratos.

     - Isto não me dá muito trabalho - disse ela a Suzu.

     - Você tem de preparar o jantar especial desta noite e isso vai ocupá-la durante muito tempo.

     - Só contamos com quatro pessoas, além de nós - volveu Suzu.

     - Como. deve calcular, o Sr. Hackfeld come por oito; assim, o jantar tem de ser abundante.

     Suzu riu e voltou a seu trabalho.

     Quando acabou de lavar os pratos, Claire enxugou as mãos e, em seguida, após exprimir a sua admiração pelo frango cozido de Suzu, subiu para saber o que podia fazer pela sogra.

     Encontrou Maud, com a cadeira giratória afastada da secretária, balouçando-se lentamente enquanto lia com atenção as notas sobre as pesquisas. Depois de Maud perceber a sua presença, fazendo um aceno com a cabeça, Claire dirigiu-se para a mesa de café a fim de retirar um cigarro do maço que se encontrava sempre ali e acendê-lo. Em seguida,. aspirando com satisfação a fumaça, começou a passear pela sala, tão familiar. Fixou os olhos no pedaço de tecido sépia e branco, que pendia da parede, contemplou os retratos autografados de Franz Boas, de Bronislaw Malinowski, de Alfred Krceber, que se achavam emoldurados, a máquina de escrever elétrica, que estava junto da sua pequena secretária, e de teve-se depois diante da estante. Examinou os exemplares encadernados da Culture, órgão da Liga Antropológica Americana, e Man, publicação do Instituto Real de Antropologia, e o American Journal of Physical Sciences.

     - Belo, belo - disse por fim Maud. - Desejaria ter todos estes elementos quando preparei a declaração do projeto e despesas para Hackfeld. Não importa, fornecer-lhe-ei parte do material suplementar esta noite.

     Claire aproximou-se da secretária e sentou-se diante de Maud.

     - Serão feitas mais pesquisas? - perguntou ela. Maud sorriu.

     - Elas nunca acabam. De fato, estive ontem de pé, até depois da meia-noite, tentando descobrir, em diversas fontes, algumas das práticas a que Easterday se referiu como sendo seguidas nas Sereias. Muitas procedem de outras ilhas. A velha civilização da ilha da Páscoa desprezava a virgindade tanto como as Sereias agora. E o rito em que os convidados do sexo masculino fruem a noiva - a afirmação de Easterday é correta - é também praticado na Samoa e nas ilhas Marquesas. Quanto à misteriosa Cabana de Auxílio Social, localizei coisa semelhante, uma casa de prazer ou are popi, no estudo de Peter Buck sobre Mangareva. Porém, algumas das práticas das Sereias são absolutamente originais. Por exemplo: os comentários de Easterday acerca da Hierarquia que trata dos divórcios. Sabe, Claire, estou ansiosa por examinar tudo isso, partir para lá e ver tudo com meus próprios olhos.

     Claire sentiu que era o momento de falar naquilo que a preocupara, após o banho.

     - Estou também ansiosa por partir - disse, lançando fora o cigarro. - No entanto, devo confessá-lo, encontro-me um pouco apreensiva...

     - Mas não há nada que possa preocupá-la!

     - Quero dizer... Como nunca participei de uma coisa dessas, como me devo comportar?

     Maud pareceu surpreendida.

     - Como deve se comportar? Da maneira que sempre se comportou, Claire. Seja você própria... afetuosa, modesta, cortês, interessada. Seja o que é naturalmente. - Maud refletiu durante uns momentos e depois acrescentou: - De fato, suponho que existem alguns pontos de referência que uma pessoa inexperiente nesse campo deve ter sempre bem presentes. Não se deve mostrar melindrada, superior ou condescendente. Tem de se adaptar ao ambiente e à nova situação social. Tem de dar a impressão de que tudo lhe agrada. Tem de mostrar respeito pelos chamados nativos... e, ante eles, mostrar também que você respeita o seu marido. Muito provavelmente, irá viver numa sociedade patriarcal. Nesta, a mulher polinésia ocupa sempre um segundo plano, em público, por muito que seja ela a ditar as leis em casa e na intimidade. Sempre que possível, se for convidada para participar de uma festa, uma tarefa, um ato recreativo, tente imitá-los. É tudo uma questão de grau. Habitualmente, uma mulher deve apenas evitar embriagar-se, fazer cena em público, mostrar-se demasiado agressiva, e, como mulher casada, coabitar com um polinésio do sexo masculino.

     Claire corou; porém, apercebeu-se depois que Maud gracejara acerca da coabitação.

     - Creio que conseguirei manter-me fiel - volveu, sorrindo.

     - Sim - disse Maud, que acrescentou com ar sério: - Decerto que não existem bem e mal absolutos, também. Tudo depende muitas vezes da natureza da tribo com que se trabalha. Em muitos casos, os nativos apreciaram o fato de um antropólogo ter coabitado com um dos da sua tribo. Consideraram isso uma expressão de aceitação. Uma mulher, numa dessas áreas... no caso de não ter ligações fora dela... pode relacionar-se facilmente com um nativo e despertar o aplauso de todos, uma vez que, como estranha ao meio, é rodeada por uma aura de riqueza, poder, prestígio.

     - Bem, não necessita de falar disso com um ar tão sério - retorquiu Claire.

     - Uma coisa importante que você precisa reconhecer - prosseguiu Maud - é a seguinte: o povo das Sereias, embora predominantemente polinésio, não é de um primitivismo baixo. Você sabe bem que o velho K - Claire compreendeu que ela se referia a Kroeber - costumava dizer que as formigas têm uma sociedade mas não uma cultura, e cultura, neste contexto, não significa refinamento, mas antes costumes verbalmente adquiridos, técnicas, crenças tradicionais a que se mantêm fiéis. Bem, os polinésios não são formigas, nem primitivos. Têm muitas culturas sólidas e seculares. Quando ouço os leigos falarem de primitivos, sei que se referem a brutos iletrados de mentalidade subdesenvolvida. E, certamente, em certas seções da África, do Equador, do Brasil, e também da Austrália, você pode encontrar povos destes. Autênticos aborígines. Não espere encontrá-los nas Sereias, em especial pelo fato de serem polinésios cruzados com caucasianos. Este povo, provavelmente, possui uma existência, medida em tempo, tão longa como a nossa. Pode não ter uma cultura material complexa, mas possui uma estrutura social complexa. Talvez sejam primitivos apenas num sentido tecnológico. Pode estar certa de que, no aspecto social, são extremamente progressistas.

     Era este o momento exato, compreendeu Claire, de se referir ao que tinha em mente.

     - É difícil considerá-los civilizados, uma vez que os homens não usam, em geral, senão uma tira de pano para ocultar o sexo. As mulheres, por seu lado, andam nuas, excetuando, claro, os saiotes de trinta centímetros.

     - Creio que usam o vestuário apropriado para o clima, o que constitui uma coisa sensata; ademais, as suas atitudes comuns são bem significativas neste ponto - acrescentou Maud placidamente.

     - Então, temos de nos comportar como os nativos? - perguntou Claire.

     Maud pareceu surpreendida.

     - Que quer você dizer?

     - Quero dizer... Temos nós duas de despir o nosso vestuário habitual e...

     - Por Deus, não, Claire! Tente imaginar-me de saiote, com toda a minha carne mole e a minha autoridade à mercê da brisa. Por Deus, por que é que veio à sua mente uma coisa dessas? Você andará vestida como aqui, na Califórnia, com roupas de verão, porém mais leves. De fato, temos ambas de fazer algumas compras. O único tabu seria usar blue jeans ou calças largas. Aos olhos dos nativos você pareceria um homem, e isso causar-lhes-ia confusão profunda. Seria preferível, em vez de blue jeans ou calças largas, que você se apresentasse completamente nua. Eles prestariam menos atenção. Não, pode ir com confortáveis blusas e saias desportivas. Isso será aceitável. O que mais interessa é mostrar simpatia por eles, afabilidade. Nenhum de nós pode comportar-se como o jovem e aristocrata antropólogo inglês ao qual Robert Lowie se costumava referir. Este antropólogo inglês, depois de passar algum tempo com os nativos, voltou com o seguinte relato: “Roupa escassa, maneiras nada recomendáveis, poucos preceitos morais.”

     Claire riu com a sogra, e sentiu-se melhor. Ao dirigir-se para a mesa de café, a fim de ir buscar um cigarro, viu Maud tirar um maço de papéis de uma gaveta da secretária.

     - São estas as cópias das cartas para os possíveis membros da expedição? - perguntou Maud.

     Claire olhou sobre o ombro, inclinou a cabeça num gesto de aprovação e voltou para o seu lugar.

     - Datilografei quatro. Extraí os excertos que sugeriu da carta de Easterday e remeti-os. Assinei seu nome.

     - Quando é que as enviou?

     - Ontem à tarde. Seguiram todas por via aérea, exceto a dirigida à Dr.a Rachel DeJong, uma vez que esta vive em Los Angeles.

     - Sim, deixe-me ver. Eis a carta para Rachel. Penso que é melhor lançar uma vista de olhos sobre elas, pois pode muito bem acontecer que eu tenha omitido qualquer coisa. Terei uma desculpa para acrescentar algum pormenor. Espero que todos estejam disponíveis. Hackfeld ficou profundamente impressionado. Detestaria ter de apresentar substitutos...

     - Todos devem receber ainda hoje as cartas - disse Claire. - Creio que teremos as respostas durante o íim-de--semana.

     - Hum - murmurou Maud, passando os olhos pela primeira carta. - Tenho esperança de que Rachel possa dispor das seis semanas.

     - É ela a psicanalista? Tenho-me perguntado, Maud, o que a teria levado a escolhê-la.

     - Li uma vez um ensaio escrito por Rachel... Os Efeitos do Namoro e do Noivado no Casamento... e considerei-o uma obra de alto nível. Pensei que ela realizaria um belo trabalho nas Sereias. Além disso, ela afigura-se-me de um tipo excelente para uma viagem de estudo: fria, pouco emotiva, totalmente objetiva, muito ponderada para uma pessoa tão jovem. Além do mais, não é freudiana fanática. Tenho franca preferência por colegas que sejam capazes de se controlar em qualquer situação nova que possa surgir. Rachel reúne este predicado. Agrada-me. Espero também agradar a ela.

      

     Eram onze e quarenta da manhã. No seu obscuro gabinete de psiquiatra, no topo de um alto edifício de Wilshire Boulevard, em Los Angeles,; a Dr.a Rachel DeJong estava sentada numa cadeira, ao lado da doente, agitava o lápis entre os dedos e dizia de si para si que, se prolongasse por um só instante mais os nove minutos que faltavam para a sessão terminar, gritaria com certeza.

     A voz da doente extinguiu-se, e Rachel teve um momento de pânico profissional. Teria a doente sentido a sua própria hostilidade? Descruzando as pernas, Rachel inclinou-se sobre o diva, observando a doente, e compreendeu que ela olhava fixamente para diante, mergulhada nos seus pensamentos e esquecida da presença analítica da médica.

     Debruçada sobre o diva, Rachel compreendeu outra coisa mais. O quadro que ela e a doente apresentavam, nestes derradeiros segundos, assemelhava-se a uma antiga pintura que vira - possivelmente num anúncio - de um belo Narciso inclinado sobre a fonte, fixando, espantado, o reflexo da sua figura na água. A imagem era precisa, aparentemente: ela, Rachel DeJong, era Narciso, o diva de couro era a fonte, e a Srta. Mitchell, prostrada, o reflexo dela própria. A imagem parecia imprecisa apenas num pormenor: Narciso enlanguescia de amor ante o reflexo da sua figura enquanto Rachel se desintegrava com o ódio despertado pelo mesmo reflexo.

     Pensando na Srta. Mitchell, tentou analisar o caos emocional que a possuía. Não odiava a moça como pessoa. O que odiava era o que se apercebia de si própria, tão grotescamente exato, no problema da Srta. Mitchell. O ódio de Rachel, refletido na doente, era o ódio que sentia por si mesma.

     Durante os seus poucos mas bastante ocupados anos como analista isso jamais acontecera, pelo menos manifestado desta maneira. Até há cerca de dois meses, quando a Srta. Mitchell entrara na sua vida profissional, Rachel DeJong mostrara-se relativamente estável e desapaixonada, com uma vida interior sem qualquer desequilíbrio. Compreendeu que o seu problema pessoal se encontrava ali, sempre se achara ali, subsistira à sua própria análise, e que a Srta. Mitchell não lho trouxera. O que a moça fizera fora revelar, expor e dramatizar o seu problema, irmão gêmeo do dela.

     Rachel voltou a apoiar-se nas costas da cadeira; irritada, agitava o lápis com os dedos. Devia, compreendeu, ter-se desembaraçado da doente após a quarta semana, quando esta se achara suficientemente desoprimida para discutir o seu problema. Em vez disso, Rachel escutara-o com sofrimento, e continuava a escutá-lo, agonizando com ele, absorvendo-o com masoquismo, e de noite examinava-o e detestava-se a si própria. Devia ter-se dirigido, logo no primeiro instante, ao Dr. Ernst Beham, com quem fizera a sua análise didática. Essa, sabia, teria sido a solução profissional, e contudo não recorrera a ela. Era como se tivesse desejado preservar por mais tempo a autoflagelação, suportá-la, talvez para negar a fraqueza, para provar que resolvera os seus problemas, que era forte. Mas alguma coisa mais evitara que se dirigisse a seu analista. Rachel compreendeu que ele não teria permitido que a relação com a Srta. Mitchell continuasse. Disto estava absolutamente certa. Todavia, Rachel desejava que ela se prolongasse. Era como se, três vezes por semana, durante cento e cinqüenta minutos, reatasse uma história, dividida em capítulos, acerca de si própria, e não ousasse perder um episódio, pois desejava conhecer o desenlace do triste enredo. Hoje, tudo era ainda pior, talvez porque a sua própria situação, no que tocava à vida privada, tivesse atingido o ponto extremo, estivesse também pior do que nunca. A presente sessão era insuportável. Lançou um olhar de relance para o seu relógio de mesa. Ainda faltavam sete minutos - sete terríveis minutos. Devia interrompê-la?

     - ... não concorda, doutora? - perguntara a doente.; Rachel DeJong tossiu e pôs o capuz da sagacidade; uma vez recobrada a presença de espírito, disse:

     - Saberá a minha opinião mais tarde, Srta. Mitchell. Agora, como já afirmei, o mais importante é que revele completamente a causa desses distúrbios, pelo menos os pontos que vir com mais clareza. Em breve, penso, dispensará a minha opinião. Discernirá por si própria. Descobrirá por si mesma o que é preciso fazer.

     A Srta. Mitchell mostrou o seu desagrado e voltou a cabeça, apoiada sobre a leve almofada coberta por plástico, de modo que os seus olhos se fixaram no teto de um água-marinha frio.

     - Não sei por que continuo a vir aqui.. < e, além disso, a pagar-lhe - queixou-se ela. - É raro que a senhora me dê qualquer indicação, que me esclareça.

     - Quando um esclarecimento é necessário, eu dou - volveu Rachel bruscamente. - Por ora, o mais importante é contar-me tudo o que puder. Vá, tente continuar.

     A Srta. Mitchell refletiu durante um momento, naquele silêncio penoso. Por fim, disse:

     - Bem, se insiste.:. - E retomou a associação livre. Rachel, como fizera diversas vezes no passado, examinou secretamente a pessoa da Srta. Mitchell. A doente contava cerca de trinta anos, era filha única de uma ilustre família de sociedade, e herdara já bens de considerável valor. Possuía uma educação primorosa, viajara muito e gozara sempre a companhia de belos e ricos jovens. Era glacialmente atraente, desde o seu magnífico cabelo louro, impecavelmente penteado, ao seu longo rosto oblíquo (tão parecido com o que representa o antigo busto egípcio de Nefertíti) e à sua figura esbelta de manequim. Fisicamente, era desejada pelos homens, que jamais lhe faltavam com a sua atenção; contudo, fizera por se esquivar, até muito recentemente, a qualquer ligação.

     Rachel desviou os olhos da doente e fixou-os no tapete e em si própria. Se tinha qualquer problema, este não era provocado por falsa modéstia. Sabia que, à sua maneira, era tão atraente para o sexo oposto como a Srta. Mitchell. Apesar de não ser tão alta e esbelta, de não provir de uma família de tanto renome na sociedade, igualava a doente em elegância e charme. De fato, isto sempre constituíra para si uma dificuldade em relação aos doentes do sexo masculino. A transferência deles era por vezes total e com freqüência agressiva. Perguntou-se como a veria a Srta. Mitchell como mulher, não como terapeuta. A roupa de Rachel, de um azul escuro, a sua blusa levantada até ao pescoço - o conjunto que vestia nesse momento - não faziam que a sua figura perdesse feminilidade. Como o penteado da Srta. Mitchell, o seu cabelo castanho era ondulado, embora menos. Seus olhos de lince eram pequenos e vivos, o nariz reto, clássico, as maçãs do rosto altas e proeminentes, de modo que seu rosto se adelgaçava até terminar num queixo firme e triangular. O corpo era longo e ossudo, com ombros largos, seios também largos mas não profundos, cintura estreita e quadris de rapaz. Possivelmente, a barriga da perna era demasiado reta. Porém, no todo, não era inferior a sua doente, nem, na verdade, à maior parte de suas amigas. Contudo, aos trinta e um anos ainda continuava solteira.

     Assim, o seu problema, à semelhança do problema da Srta. Mitchell, não era de falta de atração em relação ao sexo oposto. Tratava-se antes de uma enfermidade interior, medo, medo do sexo oposto. Achavam-se ambas perturbadas emocionalmente desde a mais tenra infância e para ambas, também, o sintoma adulto fora a fuga a todas as ligações emocionais. Ambas cultivavam uma extrema independência, fugindo às suas obrigações para com os outros seres humanos.

     A voz da doente chegou até ela e, ante as suas queixas e torturas, Rachel sentiu uma ponta de culpa, que a obrigou a dirigir sua atenção para a Srta. Mitchell.

     A enferma falava:

     - Continuo a recordar-me, tudo volta àquelas primeiras semanas depois que o conheci. - Fez uma pausa, sacudiu a cabeça, fechou os olhos e prosseguiu: - Ele era absolutamente diferente de todos os outros, ou talvez eu é que fosse diferente, e não ele... Isto é, os meus sentimentos acerca dele como homem eram diferentes. Quando os outros tentavam beijar-me, acariciar-me, ou quando se declaravam, eu conseguia dizer sempre não, sem ficar triste. Nunca fiz caso de qualquer deles. Pareciam todos crianças, crianças mimadas. Mas, quando ele surgiu, cedi positivamente. Desejava-o. Desejava-o, sim. Tinha medo de perdê-lo. Consegue imaginar-me com medo de perder um homem? Bem, ele sentia o mesmo em relação a mim... já afirmei isto dezenas de vezes... mas estava certa, ainda o estou, de que me amava. Por que demônio desejaria casar comigo se não me amasse? Ele tinha quase tanto dinheiro como papai, de modo que não devia estar interessado apenas na minha fortuna. Não, desejava-me como esposa. E eu desejava-o como marido. Porém, na noite em que ia sair com ele, quero dizer, algumas horas antes, compreendi que ia propor-me casamento, compreendi, sim, e então adoeci... por conveniência, dirá a senhora... Vá, diga, por conveniência... Creio que tem razão. Queria ser desejada, e desejava-o, queria que uma espécie de noivado infantil se prolongasse durante muito, muito tempo, como num conto de fadas, um belo conto de fadas onde o sexo não conta, mas apenas amor platônico, sem realidade, sem responsabilidade, sem compromissos mesmo nos mais simples contactos... Não desejava os contactos entre adultos, dar e dar bem, expor-me, depender de outro em vez de mim própria... Eu sei, doutora, já falamos disto, eu sei...

     Rachel escutava, interiormente trêmula. E pensou: “O diabo se você sabe, Srta. Mitchell.”

     A memória de Rachel recuou, vacilante, detendo-se num passado não muito distante com experiências semelhantes às da Srta. Mitchell. Durante seus estudos na escola médica, e mesmo depois, convivera sempre com homens, com freqüência estudantes, por vezes muito mais velhos do que ela. Recebera propostas de casamento, também, belas, atraentes. Será uma coisa perfeita, Rachel. Você terá o seu trabalho e eu terei o meu. Poderemos arranjar alguém que trate das crianças. Poderemos comprar dois divas ao mesmo tempo e obter assim um desconto, ah, ah... Vamos, Rachel, responda, mas bem. Recorde-se disto: a família que trabalha junta permanece unida. Tivera sempre a mesma resposta na ponta da língua: “Você é um amor, Al (ou Bill, Dick, John), mas compreenda... E além disso... e assim... eis por que infelizmente não posso. Realmente não posso.”

     Tentara sempre reduzir a paixão e o fervor à mais inócua das amizades e conseguira-o geralmente. Apenas duas vezes, um ano depois de ter decidido especializar-se, tornar-se psicanalista, permitira que uma ligação excedesse a amizade. Um deles era colega de estudos, um jovem magro, acanhado, de Minnesota. O cenário fora o seu pobre quarto de solteiro, o local, o diva dele (tinha-lhes acudido o gracejo quase simultaneamente). Viera preparada para o que se ia passar e suportara tudo com estoicismo, como se tivesse ido ao dentista obturar um dente. Nada dera, e ele pouco mais. Aquilo constituíra apenas um ato teatral. Contudo, em nome da Experiência - como se podia orientar os outros, no futuro, sem o conhecimento direto do próprio passado? -, mantivera um flerte com um jovem professor doidivanas, marido e pai, e passara um fim-de-semana com ele num hotel, na ilha Catalina. Com isto obtivera grandes conhecimentos no domínio profissional, mas nenhuma alegria. Emocionalmente, mantivera-se sempre distante dele, ainda que fechados no mesmo quarto. Desempenhara o papel de uma curiosa inocente, de uma observadora imparcial, e, no que tocava a si, ele poderia ter-se mesmo masturbado. Ele não conseguiu compreender por que tinha ela interrompido subitamente aquele fim-de-semana idílico. Foi a última Experiência direta de Rachel. Daí por diante os seus conhecimentos acerca da função advieram de lições, de leituras, e, uma vez por outra, das descrições, dos seus doentes. Tranqüilizou-a o pensamento de que a sua libido se encontrava em paz, de que era uma princesa adormecida. Quando o seu príncipe chegasse, ela e sua paixão despertariam normalmente.

     Quatorze meses antes deste mesmo dia o homem sonhado surgira, e ela e sua paixão tinham com efeito despertado. Tudo no momento devido. Ele tinha quarenta anos - quarenta e um agora - e ela trinta - agora trinta e um. Era um homem alto, terno, de olhos mansos como os de um boi, um corpo vigoroso, solteirão de sãos princípios, com os melhores instintos, os mais vastos interesses, os maiores rendimentos. Era o Morgen da firma de corretagem Jaggers, Ulm e Morgen. Joseph E. Morgen. Excelente família, também. Ela despertara e sentia-se feliz, ele fora apanhado na rede e gostava da situação em que se encontrava.

     A cronologia dos primeiros dez meses, na versão condensada de um livro, era simples. Capítulo I. Galerias de arte, museus. Capítulo II. Teatros, cinemas. Capítulo III. Clubes noturnos, bares diversos, freqüentes coquetéis. Capítulo IV. A casa da família dele, a própria família, gente encantadora. Capítulo V. A casa dos amigos dela, os amigos, gente maravilhosa. Capítulo VI. Festas, muitas festas. Capítulo VII. O carro parado em Laguna, Newport, Malibu, Trancas, beijos, beijos. Capítulo VIII. O apartamento dela, carícias, beijos, afagos, muitos e variados. Capítulo IX. Fim-de-semana em Carmel, o passeio à beira-mar, à noite...

     A Srta. Mitchell soluçara, e Rachel não lamentou o fato de deixar o passeio à beira-mar, à noite. No momento em que a moça começou de novo a falar, Rachel desejou recuar, pois conhecia o que se aproximava, já escutara tudo antes.

     - Durante todo aquele dia na Riviera senti que tudo estava absolutamente certo - disse a Srta. Mitchell. - Fugira como uma colegial assustada, e ele e seu amor seguiram-me, ainda decidido a fazer a mesma pergunta. Porém, achava-me mais tranqüila, e, quando voltamos para Cannes, tinha a certeza de que se encontrava tudo resolvido, de que diria sim... diria sim e, meu Deus, terminaria o tormento, terminaria com um fim feliz. Contudo, ainda havia sol e ele desejava que nos preparássemos para ir à praia, para passearmos, tomarmos uns drinques... Troquei de roupa na cabana e ele, em seguida, fez o mesmo. Quando saiu, senti que me ia sentir mal, que ia ter vertigens, acredite-me. O filho da mãe trazia calção de banho... nunca o vira assim antes, e parecia tão grosseiro, tão animalesco... Ele, como pessoa, não era diferente, era o mesmo, mas vestido de outra maneira dava a impressão de ser diferente. Não consegui mais olhar para ele... Depois, estendido a meu lado, disse, sem rodeios, o que tinha em mente, declarou-se, propôs que casássemos imediatamente. Compreendi o que aquilo significava e comecei a chorar. Fugi para o hotel. Os médicos impediram que ele se aproximasse de mim... mas que poderia eu dizer? Aliás, como muito bem sabe, foi nesse momento que sofri o primeiro colapso, que tudo isto começou...

     O fim, era o fim, pensou Rachel.

      

     Tinham descoberto um trecho solitário de praia ao norte de Carmel, e pararam lá o carro, entre as árvores. Ele ajudara-a a descer o íngreme declive até à areia. Fazia calor na praia e a água murmurava, ondulante, ao luar. Tiraram os sapatos e começaram a caminhar à beira do mar, de mãos dadas. Sabia que ele ia propor-lhe casamento, aquele homem corpulento e sensitivo, tão apaixonado por ela quanto ela por ele, e manteve-se calada enquanto ele se declarava. Lançara-se nos seus braços, impelida por um súbito impulso, sem refletir, possuída por este instante de felicidade, limitando-se a inclinar aprovadoramente a cabeça à medida que ele murmurava os seus sentimentos.

     Ele quis que festejassem aquele momento. Desejou que se lançassem, juntos, à água. Perguntou-se como seria aquilo possível, uma vez que não tinham roupa de banho. E ele afirmara com alegria que não necessitavam de roupa de banho, agora que estavam praticamente casados. Estupefata ante o que se passava dentro de si, concordara, estupidamente, e dirigiram-se para trás de uma rocha, a fim de se despirem. Desabotoou a blusa e sentiu-se gelar; ficou ali a tremer, arrepiada, durante mais de mil segundos. Depois ouviu-o pronunciar o seu nome, apercebeu-se dos seus movimentos, e circundou, a correr, o rochedo para lhe explicar o que se passava, e encontrou-o no seu estado natural, como ele esperava que ela estivesse também. A expressão de terror que surgiu no seu rosto extinguiu imediatamente o sorriso de confiança que brilhava no rosto do companheiro. Mirara o peito dele, sólido, peludo, e involuntariamente, como num sonho, baixara os olhos... Sim, Srta. Mitchell, sim... e. desatara a correr ao longo da praia, caindo, erguendo-se, correndo, com os gritos dele perseguindo-a.

     Quando ele voltou, vestido, ao carro, ela esperava-o com os olhos secos, controlada, e durante todo o percurso de regresso a casa mostraram-se terrivelmente razoáveis acerca do incidente, encarando-o sob um prisma intelectual, de maneira que, quando a manhã surgiu e Los Angeles apareceu através do nevoeiro, tinham chegado à conclusão de que a culpa fora dele. Joe poderia ter evitado tudo, refletindo um pouco. As mulheres são diferentes, mais emocionáveis, sensíveis. Os homens tendem a ceder a seus impulsos, são impetuosos, irrefletidos. A profissão dela não tinha nada a ver com a sua frágil feminilidade. Anuíra à proposta de casamento e sentira-se subjugada, oprimida. Concordava? Casar-se-iam e tudo se resolveria. Sempre sucede assim. Amo-a, Rachel. Amo-o Joe. O nosso casamento dará certo, Rachel. Eu sei, Joe. É melhor começar a pensar na data, Rachel. Sim, sim, Joe. Amanhã à noite, então? Amanhã à noite.

     Seguiu-se um período de quatro meses de amanhãs à noite, alguns dos encontros efetuaram-se, outros não. Joseph Morgen insistira em que ela marcasse a data do casamento. Rachel utilizara todos os estratagemas conhecidos nos anais da feminilidade para evitar qualquer data. As suas defesas tinham por base casos de emergência, uma sobrecarga de trabalho clínico, ensaios psiquiátricos para escrever, convenções a que tinha de comparecer, parentes a receber, doentes que necessitavam da sua assistência, e, de súbito, na última semana... Uma briga. Ela estava fazendo-o de tolo, disse ele. Se não o amava por que não o dizia? Mas amava-o muito, disse, amava-o mesmo muito. Então por que tentava fugir, ludibriá-lo, recusando-se realmente a casar com ele? Casariam, sim, casariam muito em breve, volveu. Por fim, ele disse as suas últimas palavras: não insistiria mais com ela, mas o seu desejo era o mesmo e a sua proposta estava de pé; quando ela estivesse decidida, devia procurá-lo e anunciar-lhe a sua decisão.

     Essa disputa verificara-se na semana passada.

     Na noite anterior lera, na crônica de Hollywood de um jornal, que Joseph Morgen jantara no Perino com uma siaxlet italiana.

     Não dormira nem três horas nessa noite.

     Tomou consciência do tempo. Mirou o mostrador do relógio de mesa e mexeu-se na cadeira.

     - Bem, Srta. Mitchell, estamos na hora - anunciou Rachel. - Esta sessão foi muito útil. Embora não o sinta, tem feito muitos progressos.

     A paciente sentou-se no diva, compôs o cabelo e por fim ergueu-se, o rosto mais descontraído do que antes. Rachel levantou-se também.

     - Desejo-lhe um agradável fim-de-semana, e espero vê-la segunda-feira à mesma hora.

     - Sim - respondeu a Srta. Mitchell, dirigindo-se depois para a porta. Rachel seguiu-a. Em dado momento a cliente hesitou e voltou a cabeça.

     - Que... Queria poder ser como a senhora, Dra DeJong. Sê-lo-ei alguma vez?

     - Não, nem o desejaria. Um dia, em breve, será você própria, um ser que apreciará bastante, e isso será o suficiente.

     - Confio na sua palavra. Adeus.

     Depois de a doente partir, encostou-se ao arco do limiar da porta, singularmente desorientada. Com certo esforço, compreendeu que era meio-dia e que não teria outro paciente antes das quatro. Por que isto? De súbito, o verdadeiro motivo acudiu à mente. Participaria, com o Dr. Samuelson e o Dr. Lynd, de uma mesa-redonda no teatro da Escola Secundária de Beverly Hills. Haveria uma discussão sobre a adolescência e o casamento prematuro; depois a palavra seria franqueada aos pais e aos professores. Tudo isto fora combinado alguns meses antes e devia ocupá-la da uma às três da tarde. Quando o convite fora formulado, aceitara-o sem reservas. Sempre lhe agradara esse jogo de perguntas e respostas, o repto mental, o estímulo desses encontros. Agora, porém, sentia-se fatigada, débil, infeliz quanto a Joe, desgostosa consigo mesma, com o nível do amor-próprio muito baixo. Nãc se encontrava num estado de espírito propício para o debate; este requeria argúcia, equilíbrio, calma, além da experiência psiquiátrica. Desejava estar só, a fim de recobrar o ânimo, pensar, resolver seus próprios problemas. Contudo, sabia que não podia faltar. Jamais o fizera, e não era possível fazê-lo agora. Era demasiado tarde para arranjar um substituto. Teria de suportar a prova, o melhor que pudesse.

     Depois de sair do banheiro, cuidou do rosto, vestiu o casaco e partiu. Ao passar pela sala da recepção, viu a sua correspondência dessa manhã em cima da mesa. Encontrou meia dúzia de cartas. Colocou-as no bolso, fechou a porta a chave e tomou o elevador, que a conduziu ao hall de entrada do edifício.

     Uma vez na rua, sentiu que estava frio e o dia tão sombrio e pesado como seu coração. Pensara ir buscar seu carro conversível, dirigir-se nele até Beverly Hills, tomar um aperitivo, almoçar tranqüilamente num dos melhores restaurantes e dirigir-se depois para o local onde se efetuava o debate. Agora, porém, achava-se demasiado preocupada para pensar em tomar o aperitivo ou almoçar. Assim, voltou pelo Wilshire Boulevard e dirigiu-se, a pé, para o bar da esquina.

     O balcão estava quase todo ocupado, mas havia dois reservados vazios. Sentou-se no mais próximo, pois desejava estar afastada das outras pessoas. Depois de fazer o pedido, sentou-se, os dedos entrelaçados sobre a mesa, tentando dar ordem ao caos dos últimos meses.

     Não podia censurar Joe no que tocava ao encontro com a starlet ou a outros encontros no futuro. Isto era mais que evidente. Ele tinha sua vida e precisava de vivê-la. O encontro com a starlet não significava que se tivesse ligado emocionalmente a outra. Provavelmente, não havia nisso mais profundidade que num simples ato de fornicação. Joe afirmara, ao despedirem-se, que desejava casar-se com ela e que a esperava. Bem, com os diabos, ela também desejava casar-se com ele. A coisa mais razoável a fazer, compreendeu, seria procurá-lo e confessar a verdade nua e crua, revelar-lhe o grau da sua inibição. Psiquiatricamente orientado como estava, compreenderia. Com esse entendimento e esse apoio, ela dirigir-se-ia a seu próprio analista e poria tudo a nu, resolveria o problema. Por fim, seria capaz de casar com Joe.

     Para a psiquiatria em si aquilo era simples, uma questão apenas de rotina. Contudo, a mulher - a outra metade do seu ser - não concordava, pois não queria revelar seu problema básico. As coisas, nesse pé, achavam-se pouco certas. A noiva tem um problema; não quer tirar o véu. Isso era uma tolice, uma tolice doentia, mas real. Sentia-se de novo confusa, e o que parecera simples por uns momentos revelava a sua absoluta complexidade.

     Suportava-se uma temperatura abafante na sala, vapores erguiam-se no ar; quando começou a despir o casaco, notou a sua correspondência da manhã. Dobrou o casaco, colocou-o no assento ao lado, e retirou os envelopes do bolso.

     Enquanto mexia a sopa, separou as cartas. Nenhuma delas a interessou antes de chegar ao último envelope. No remetente leu: “Dr.a Maud Hayden, Raynor College, Santa Bárbara, Califórnia.” Isso constituía uma surpresa. Embora conhecesse muito bem Maud Hayden, não eram de modo algum amigas; seus contactos tinham sido puramente profissionais. Nunca estivera em casa de Maud Hayden, nem Maud jamais a visitara no seu apartamento. Além disso, nunca se tinham também escrito. Não conseguia imaginar o motivo que levara Maud Hayden a escrever-lhe, mas a sua admiração por ela, que considerava uma das maiores antropólogas do país, era tão grande que a fez abrir imediatamente o envelope. A carta achava-se diante de si, e um momento depois Rachel penetrava no mundo longínquo das Três Sereias.

     Leu enquanto comia e continuou a leitura depois de terminada a breve refeição. Após percorrer uma página, duas, e deter-se avidamente nos extratos da narrativa de Easterday, o seu mundo privado - possuído pelo problema do seu ser, por Joseph Morgen, pela Srta. Mitchell - foi povoado por Alexander Easterday, pelo Capitão Rasmussen, por Thomas Courtney, por um polinésio chamado Moreturi e pelo pai deste e chefe, Paoti Wright. O impacto da carta de Maud Hayden e do seu conteúdo lançou-a no espaço e fê-la aterrar, vibrando, num planeta estranho, sereno, sem crosta, uma mescla da Boyawa, de Malinowski, da ilha encantada dos Mares do Sul da Ave-do-Paraíso, de Tully, do Wragby Hall, de D. H. Lawrence. Tentou projetar-se na imagem sugerida pelas Três Sereias e apercebeu-se de que seu ser sensível fora fascinado pela cultura nativa e se mostrava também repugnado pelo evidente erotismo dessa cultura. Num outro tempo, em que seus nervos se encontravam menos expostos e as repressões convenientemente enterradas, ter-se-ia interessado, sabia, e telefonaria sem demora a Maud Hayden.

     Rachel recordava-se, como Maud lembrou na carta, de que um ano antes se oferecera para participar de uma viagem de estudo com um diretor e mentor capaz de lhe ensinar as coisas que desejava aprender nesse campo. Interessavam-na extremamente os costumes do casamento. Isto, porém, verificara-se noutro tempo, em que o seu espírito, o seu trabalho, a sua vida social (começara então a sair com Joe) se encontravam organizados e controlados. Hoje, tal viagem constituiria uma loucura. Um estudo sobre práticas sexuais sem inibições e sobre o casamento feliz seria insuportavelmente penoso. Não possuía já objetividade e calma para isso. Ademais, como poderia partir sem resolver a sua ligação com Joe? Como poderia deixar a Srta. Mitchell e trinta outros doentes durante seis semanas? Decerto, deixara diversas vezes no passado seus doentes durante períodos prolongados e não havia indicação alguma de que a sua permanência aqui resolvesse algum dos problemas relacionados com Joe. Porém, numa altura destas, as Três Sereias constituíam pura fantasia, egoísmo impossível. Devia esquecer tudo.

     O aparecimento da garçonete com a conta fê-la regressar daquele mundo longínquo. Consultou o relógio. Faltavam dezoito minutos para a uma. Tinha de se apressar.

     Dirigiu-se com passo vivo para seu carro e partiu para a Escola Secundária de Beverly. Chegou aos bastidores no momento preciso em que iam telefonar para ela. A assistência esperava no auditório completamente cheio, e pouco depois - nesta tarde parecia separada de tudo e de todos, como se sonâmbula - viu-se sentada à mesa, entre o Dr. Samuelson e o Dr. Lynd, participando de uma viva discussão sobre o casamento entre adolescentes.

     Os minutos voaram, e compreendeu que representava um papel passivo no debate, permitindo que o Dr. Samuelson e o Dr. Lynd dominassem a discussão, mantendo-se o mais atenta que lhe era possível e falando somente quando se lhe dirigiam. Normalmente, saía-se bem nestas polêmicas públicas. Esta tarde, porém, como compreendeu, as suas intervenções eram fracas - gíria, banalidades, citações.

     Em dado momento, Rachel apercebeu-se confusamente de que o debate terminara e que do auditório começavam a fazer perguntas. Ela era o alvo de dois dos assistentes e os colegas de outros doze ou mais. O relógio de parede indicava que a sessão estava quase no fim. Reclinou-se na cadeira, considerando uma possível entrevista com Joe.

     De súbito ouviu o seu nome, o que significava que lhe dirigiam nova pergunta. Endireitou-se na cadeira e tentou compreendê-la. Depois de feita a pergunta exibiu uma expressão meditativa - Joe teria visto através dela - e começou a responder.

     - Sim, compreendo, minha senhora - volveu. - Não li esta peça popular, do autor que menciona. Mas se o conteúdo é o que referiu, posso honestamente declarar que não tocaria por nada deste mundo nesse pênis popular dele...

     Deteve-se, espantada. Furando o leve rumor produzido pela audiência, ouvira-se um grito agudo, seguido de risadas e de um sussurro de vozes, depois.

     Rachel hesitou, perdida, e concluiu, confusa:

     - ... Bem, estou certa de que compreenderam a observação que fiz.

     De súbito toda a audiência começou a rir perdidamente.

     Entretanto, Rachel voltou-se desamparada, para o Dr. Lynd, que corara e olhava, imóvel, em frente, como se fingisse não ter reparado naquela cena de tão pouca discrição. Rachel, então, voltou-se para o Dr. Samuelson, que franzia os lábios num sorriso e fixara o público.

     - Que se apoderou deles? - perguntou Rachel num murmúrio, no meio da vozearia. - Por que riem? - Tentou recordar-se do que dissera, qualquer coisa acerca de não tocar naquele artigo de revista por nada... por nada deste mundo... aquele artigo... aquela peça popular... peça... coisa... De súbito, arquejante, murmurou para o Dr. Samuelson: - Eu disse...

     E ele, ainda com os olhos fitos na audiência, volveu, baixinho, num tom jovial.

     - Receio, Dr.a DeJong, que o seu lapso de linguagem freudiano tenha sido notado por toda a gente.

     - Oh, meu Deus - volveu Rachel, com um suspiro -, quer dizer que eu disse... ?

     O presidente da mesa fez soar o martelo, e imediatamente foi restabelecida a ordem; o lapso de linguagem perdeu-se pouco depois no meio das perguntas e respostas que se seguiram. Rachel decidiu não falar mais. Era um teste de caráter que devia sustentar, sem vacilação: tinha de mostrar a calma de que era capaz, sua presença de espírito, enquanto permanecesse ali sentada como se em exibição, rígida, grave. A medida que as palavras erguiam uma barreira em redor dela, sua memória voltou a seus dias de estudante e às leituras, sobre equívocos de linguagem, da Psicopatologia da Vida Quotidiana, de Sigmund Freud. “Uma dama exprimiu-se assim certa vez em sociedade... as próprias palavras demonstram que foram pronunciadas com fervor e sobre a pressão de muitas emoções secretas: Sim, uma mulher tem de ser bela se quer agradar aos homens. Ura homem, porém, encontra-se em melhor posição. Enquanto tiver cinco membros eretos não precisa de mais!... No processo psicoterapêutico que utilizo na solução e remoção de sintomas neuróticos vejo-me por vezes ante a tarefa de descobrir, através das expressões acidentais e das fantasias do doente, os conteúdos mentais que, apesar do esforço produzido para os dissimular, trai contudo, sem o desejar”.

     Rachel estivera, refletindo nisto e no seu lapso de linguagem durante alguns segundos quando compreendeu que o debate terminara. Depois de se erguer e de se dirigir para fora do palco, ligeiramente distanciada dos outros, compreendeu que escreveria duas cartas nessa noite. Uma, para Joseph Morgen, confessando-lhe a verdade acerca do seu problema e permitindo-lhe que decidisse se estava ou não disposto a esperar que ela o resolvesse, para melhor ou pior. A outra, para Maud Hayden, comunicando-lhe que Rachel DeJong estava disposta a acompanhar o grupo às Três Sereias durante seis semanas em junho e julho.

      

     Maud Hayden pegou na cópia da carta que Claire datilografara e remetera ao Dr. Sam Karpowicz, de Albuquerque, Novo México. Antes de a ler, voltou-se para a nora:

     - Espero que isto o fascine - disse. - Não podemos dispensar o Sam. Ele é não só um excelente botânico como um fotógrafo brilhante, um dos poucos com sentido criador. A única coisa que me preocupa é a seguinte: Sam é um homem muito apegado à família e deliberadamente esqueci-me de convidar a mulher e a filha. Talvez não existisse problema se o fizesse, mas desejo que o grupo seja o menor possível.

     - E se ele insistir em fazer-se acompanhar pela família? - perguntou Claire.

     - Nesse caso, não sei, não sei na verdade. Decerto que Sam é tão importante para mim que, creio, o aceitaria sob quaisquer condições, mesmo que fosse obrigada a levar o avô, os cães, a estufa... Bem, tenhamos confiança e procuremos vencer essa dificuldade quando estivermos em face dela. Esperemos a resposta do Sam.

 

     Passava das dez horas da noite quando Sam Karpowicz fechou a porta da cabana que lhe servia de câmara escura e atravessou os poucos metros de relvado até aos degraus de laje, que subiu, com ar fatigado, para penetrar no pequeno pátio. De teve-se junto da espreguiçadeira de vime, inalando o ar fresco e seco da noite, a fim de se libertar das emanações da câmara escura, que lhe toldavam a mente. A inalação daquele ar era tão deliciosa como qualquer intoxicante. Fechou os olhos, e inspirou e expirou várias vezes; depois, tornou a abrir os olhos e contemplou, por uns momentos, com bastante prazer, as filas de luzes da rua e as luzes da área residencial, que se prolongavam até ao Rio Grande. As luzes dos lampiões da rua pareciam tremular e mover-se, amarelas, resplandecentes, como os fachos de uma procissão religiosa noturna que vira no ano anterior entre Saltillo e Monterey, México.

     Deixou-se ficar tranqüilamente no pátio, relutante em abandonar os prazeres oferecidos pelo luar e pelas suas cenas. A sua afeição por este bairro suburbano, pelos pueblos poeirentos de Acoma e San Felipe, próximos, pelos terrenos planos de pastagens, pelos campos plantados, irrigados, pelas montanhas de abetos, era profunda e inabalável.

     Recordou-se, com sobressalto, do que o trouxera até esta cidade, que nada tinha de comum com alguém que apenas conhecera o Bronx, de Nova York, desde a infância até ao princípio da juventude. Durante a guerra - a guerra de Hitler - fizera grande camaradagem com Ernie Pyle. Sam fora funcionário dos Serviços de Imprensa do Exército e fotógrafo do Signal Corps, apesar de ser licenciado em Botânica por uma universidade, e Pyle, correspondente de guerra. Nas suas longas andanças juntos, por três ilhas do Pacífico, Sam costumava discorrer sobre as maravilhas da flora daquelas paragens, e Pyle, a instâncias de Sam, falava por sua vez da sua paixão pelo Novo México, onde nascera. Alguns meses após a morte, em ação, de Pyle, Sam fora enviado para a Califórnia, a fim de ser desmobilizado. Adquirira um velho carro, já muito batido, e percorrera o Sudoeste, rumo a Nova York, decidido a lançar um olhar sobre o país antes de se enterrar na monotonia da vida do professorado metropolitano.

     Durante a viagem, vira-se obrigado a dirigir-se a Albuquerque e, uma vez na cidade, compreendeu que não a podia deixar sem visitar a viúva de Pyle, a vivenda de Ernie e o bairro a que o amigo tantas vezes se referia com acrisolado amor. Sam instalou-se no hotel Alvarado, próximo da estação de Santa Fé. Após mudar de roupa e jantar, e de pedir algumas informações na recepção, percorrera de automóvel o quente e calmo bairro comercial, passara pela universidade, de estilo pueblo, antes de se lhe deparar Girard Drive. Virará à direita, na rua pavimentada, tão familiar e acolhedora após as descrições do seu falecido amigo, e percorrera mais dois quilômetros, entre casas de tijolo, de estilo espanhol. Algumas centenas de metros mais adiante, chegou à esquina de Girard Drive e de Santa Monica Drive. Ernie Pyle afirmara que sua vivenda era a 700 de South Girard Drive, com um pátio de cimento ornado de arbustos, um cão chamado Cheeta, uma casa branca de telhado verde feita para uma existência tranqüila.

     Sam estacionara o carro, dirigira-se até à porta da casa e batera. A porta fora aberta por uma enfermeira e ele identificara-se e explicara ao que vinha. A enfermeira declarara que a Sra. Pyle estava gravemente doente e que não podia receber ninguém, mas sugeriu que, se era um amigo de Ernie, talvez gostasse de ver o quarto dele, intocado desde o dia em que o deixara para sempre. Mentalmente, Sam vira o quarto muitas vezes, e, para si, este não continha surpresas. De certo modo, era mais o seu quarto do que aquele do apartamento de Bronx onde Estelle o esperava. Lentamente, percorrera o quarto - o dicionário aberto sobre uma mesinha, o desenho autografado de Low, as duas estantes de livros, a fotografia emoldurada de Ernie conversando com Eisenhower e Bradley, o boné verde de beisebol suspenso de um cabide - e, por fim, com agradecimentos e cumprimentos para a Sra. Pyle, saíra.

     Uma vez na rua, andara ao longo da estrada de cascalho, inclinara a cabeça a um vizinho que cortava relva diante de sua casa, observara os edifícios da universidade, a certa distância, entrara por vários terrenos desocupados, detendo-se por vezes para contemplar as colinas longínquas, e por fim voltara ao carro e à cidade.

     Não ficara apenas essa noite em Albuquerque. Permanecera uma semana na cidade. E nessa semana requererá um lugar na Universidade do Novo México e depois continuara a sua andança pelo país.

     Um ano mais tarde era professor da universidade, dispunha de um laboratório privativo e de um reluzente microscópio, e um ano depois possuía a sua própria casa de tijolo em South Girard Drive.

     E era aqui, no pátio desta vivenda, que se encontrava nesta noite. Não lamentara, um momento sequer, a sua mudança, nem Estelle a lamentara também. Só lamentara alguma coisa quando tivera necessidade de abandonar Albuquerque a fim de efetuar viagens de estudo.

     Uma última vez, respirou fundo o ar revigorante e deixou que este enchesse seu peito estreito; depois, parcialmente revigorado, entrou em casa pela porta de vidro, aberta neste momento, da sala de jantar. Do limiar, gritou:

     - Estelle, há café pronto?

     - Pronto e à sua espera! - volveu ela. - Na sala de jantar!

     Encontrou Estelle enroscada na ampla cadeira de braços. Tinha o cabelo grisalho encaracolado e o roupão largo aberto para cobrir tanto o seu corpo amplo como os lados da cadeira. Parecia, pensou ele, uma confortável cabana. Estava lendo, com a teimosa atenção que denota auto-aperfeiçoamento, Individualism Reconsidered, de David Riesman; neste momento, porém, pôs o livro de lado a fim de se erguer para retirar a cafeteira da grelha elétrica portátil. Sam dirigiu-se para a cadeira de braços em frente, e, como se fosse baixado por um guindaste, instalou o comprido esqueleto, que parecia ranger, na cadeira. Uma vez sentado, com as pernas delgadas estendidas, suspirou de prazer.

     - Faz barulho como um velho - disse Estelle, deitando café na xícara que se encontrava em cima da mesa coberta com laça.

     - A Tora diz que, aos quarenta e nove anos, um homem tem licença para suspirar com equanimidade.

     - Então suspire. Trabalhou muito?

     - Imprimi parte do material que obtive em Little Falls. Aquele sol mexicano é tão brilhante que se tem de trabalhar como um cão para se conseguir uma boa impressão. De uma maneira ou de outra, o pitahaya resultou esplendidamente. Estou quase no fim. Creio que posso enrolá-lo dentro de poucas semanas. Como vai essa datilografia?

     - Estamos juntos - retorquiu Estelle, voltando a seu lugar. - Quando você escrever as restantes legendas, continuarei.

     Sam provou o café, soprou-o com ruído e por fim bebeu com prazer até a metade e baixou a xícara. Tirou os óculos quadrados, sem aros - “os óculos de Schubert”, como dizia a filha -, pois as lentes tinham-se coberto de vapor; depois, alisou o cabelo cor de açafrão, desalinhado, passou os dedos pelas sobrancelhas em ponta e por fim procurou, e encontrou, um charuto. Enquanto o preparava, olhou subitamente em redor de si.

     - Onde está Mary? Já voltou?

     - Sam, são apenas dez e quinze.

     - Pensei que fosse mais tarde. As minhas pernas sentem-no. - Começou a fumar e bebeu mais um gole de café. - Mal a vi hoje...

     - Nós mal o vimos também. Hora após hora, esteve metido naquele buraco escuro dos fundos. Um indivíduo vem, pelo menos, para jantar. Comeu os sanduíches?

     - Com os diabos, esqueci-me de trazer a bandeja com os pratos. - Colocou a xícara vazia em cima da mesa. - Sim, limpei a bandeja. - Chupou o charuto, de novo, lançou uma nuvem de fumaça e perguntou: - A que horas ela saiu?

     - Quê? - Estelle voltara à leitura.

     - Mary? A que horas saiu daqui?

     - Por volta das sete.

     - Quem foi esta noite? O jovem Schaffer, mais uma vez?

     - Sim, Neal Schaffer. Levou-a a uma festa de aniversário em casa dos Brophys. Imagine, Leona Brophy tem dezessete anos.

     - Imagine, Mary Karpowicz tem dezesseis. O que não consigo imaginar é o que Mary vê nessa jovem Brophy. Ela é absolutamente vazia, e a maneira como se veste...

     Estelle deixou cair o livro sobre o regaço.

     - Leona é uma bela moça. Os pais, eis quem você detesta.

     Sam soltou um grunhido.

     - Uns tipos que colam fotografias com imagens da América no carro. Meu Deus, quantas vezes tenho tentado imaginar o que se passa na mente daquela gente. Por que tem de se andar por aí a anunciar que se é americano na América? Decerto que são americanos, como nós o somos também e quase toda a gente que vive neste país. É uma coisa bastante suspeita. Que tentam dizer... que são superamericanos, americanos especiais, mais americanos que os americanos comuns? Desejam provar que todos os demais querem derrubar o governo um destes dias ou que vendem segredos a uma potência estrangeira? Que loucos e sombrios desígnios abriga aquela gente, para que tenha de provar a sua cidadania e a sua leadade? Por que é que o velho Brophy não usa também um emblema de lapela com os dizeres Pelo Casamento, Pelo Homem, ou por Deus?

     Estelle aceitou com paciência a explosão do marido - a verdade era a seguinte: adorava-o nestes momentos de indignação - e, quando viu que Sam terminara, voltou com presteza ao ponto central.

     - Tudo isso nada tem a ver com Leona, com a festa de aniversário, ou com a ida da Mary lá.

     Sam sorriu.

     - Tem razão - disse. Fixou os olhos no charuto. - Este jovem Schaffer... Mary falou-lhe alguma vez dele?

     Estelle sacudiu a cabeça.

     - Sam, não vai descompor o rapaz, não é verdade?

     Sam tornou a sorrir.

     - De fato, ia, mas com suavidade. Não tenho muito mais do que uma leve impressão acerca dele, mas parece-me demasiado vivo e velho para Mary.

     - Serão todos demasiado velhos e vivos para Mary enquanto você for pai dela e ela estiver crescendo.

     Sam tentou dizer um gracejo, mas não o conseguiu. Em vez disso, inclinou a cabeça com plácida concordância.

     - Tem razão. Creio que tem razão, e além disso a Mãe sabe melhor o que se passa.

     - ... com o Pai. Com certeza que sabe.

     - Mudemos de assunto. - Passou os olhos sobre a mesa laqueada. - Houve telefonemas hoje... visitas... correio?

     - Tudo calmo, nada no correio exceto um convite para um jantar dançante em Sandia Base, algumas contas, um relatório da União das Liberdades Civis, The New Republic, mais contas.. '. - Subitamente endireitou-se. - Oh, querido, quase que me esquecia. Há uma carta de Maud Hayden. Está em cima da mesa da sala de jantar.

     - Maud Hayden? Onde se encontrará ela agora? Talvez venha de visita para estes lados.

     - Vou buscar a carta - disse Estelle, que se encontrava já de pé. Calçada com os chinelos, que produziam um ruído surdo no assoalho, dirigiu-se para a sala de jantar. Pouco depois regressou com um longo envelope, que entregou ao marido. - Vem de Santa Bárbara.

     - Ela está-se transformando num ser sedentário - volveu Sam, abrindo o envelope.

     Quando o marido começou a ler, Estelle colocou-se a seu lado, abafando um bocejo, mas incapaz de se afastar antes de saber do que se tratava a carta.

     - Alguma coisa de importância? - perguntou.

     - Pelo que compreendo... - Interrompeu a frase, à medida que prosseguia a leitura, absorvido. - Vai fazer uma viagem de estudo ao Sul do Pacífico, em junho. Deseja companhia. - Passou a Estelle a página que acabara de ler, e, com ar ausente, procurou os óculos, equilibrou-os no nariz e continuou.

     Cinco minutos depois, tinha-se inteirado do conteúdo da carta e esperava, pensativo, fitando a mulher, que esta terminasse a leitura da missiva de Easterday.

     - Que pensa disto, Estelle? - perguntou por fim.

     - Fascinante, decerto... Mas, Sam, prometeu que passaríamos este verão juntos. Não me agrada que ande por aí sem nós...

     - Não disse que o faria.

     - Temos centenas de coisas a fazer em casa, trabalho para concluir, e prometemos à minha família que este ano podia vir até aqui e...

     - Estelle, tenha calma, não vamos a parte alguma. Segundo penso, as Três Sereias não nos podem oferecer nada de diferente do resto da Polinésia. Creio apenas que... Bem, primeiro do que tudo seria agradável estar com a velha Maud e muito bom trabalhar com ela. Em segundo lugar, tem de o admitir, parece que se trata de um lugar bem estranho, com aqueles costumes... Levaria a máquina, e poderia obter material para um álbum ilustrado que possivelmente venderia...

     - Vivemos bem. Não necessitamos desse dinheiro. Demais, estou farta de ser uma nômade ou uma espécie de viúva de um botânico. Durante o verão, pelo menos, sejamos uma família com um lar num local onde nos encontramos bem integrados.

     - Escute, estou também farto. Amo tudo isto tanto como você. Estava apenas especulando. Não tenciono afastar-me um metro sequer daqui.

     - Então muito bem, Sam. - Ela inclinou-se sobre o marido e beijou-o. - Mal consigo manter os olhos abertos. Não se demore até tarde.

     - Até que a Mary...

     - Autorizei-a a voltar à meia-noite. Que quer você... dar-lhe as boas-vindas? Ela tem uma chave e conhece o caminho. Venha deitar-se, precisa de dormir.

     - Está bem. Logo que deixe o banheiro.

     Depois de Estelle ter percorrido o corredor, até ao quarto, Sam Karpowicz pegou na carta de Maud e, preguiçosamente, tornou a lê-la. A parte a guerra, visitara apenas uma vez os Mares do Sul, durante curto tempo, reunindo espécimes das ilhas Fidji, um ano depois de Maud ter estado lá. Conseguira uma bela coleção de inhames selvagens, diversos exemplares de uma espécie que desconhecia; porém, após os medir penosamente, de conhecer seu nome e história, fizera qualquer coisa de errado quanto à sua preservação e todos se tinham deteriorado na viagem de regresso. Valeria a pena conseguir nova coleção, isto é, se os houvesse nas Três Sereias. Existia também a possibilidade de publicar um álbum como suplemento - ou mesmo explorar, pelo lado financeiro - do best-seller que Maud inevitavelmente escreveria. Era tentador, mas Sam compreendia que não era o bastante. Estelle tinha razão. A família estava em primeiro lugar, devia permitir-se que suas próprias raízes crescessem e florissem. Passar-se-ia um bom verão em Albuquerque, pensou, e não se importava; de fato, achava-se contente. Dobrou com cuidado a carta de Maud e colocou-a no envelope. Apagou as luzes, deixando apenas uma acesa - e a do alpendre também, para Mary.

     O quarto encontrava-se já mergulhado na escuridão quando entrou. Depois de acostumar os olhos às sombras conseguiu distinguir os contornos do corpo de Estelle na cama. Cautelosamente, dirigiu-se para o banheiro, fechou a porta, acendeu a pequena lâmpada que utilizava quando se barbeava e fez os preparativos para se deitar. Depois de pronto, verificou com surpresa que já passavam dez minutos da meia-noite. Vestiu o roupão de um azul desbotado sobre o pijama, pois decidira dar boa noite a Mary.

     Ao aproximar-se do quarto da filha, reparou que a porta estava aberta. Uma vez no limiar da porta viu também que a cama estava ainda feita. Desapontado, dirigiu-se silenciosamente para o escritório, acendeu o abajur colocado sobre a mesa de estudo e afastou as persianas. Lá fora. Girard Drive estava vazia e desolada. Isto nem parecia da Mary. Ela não costumava proceder assim. Sam afastou-se, preocupado, da janela. Pensou em fumar um charuto, mas, como já tinha escovado os dentes, decidiu não o fazer. Sentou-se à sua secretária e, inquieto, passou os olhos sobre algumas páginas de revistas de botânica.

     Um momento depois ouviu o barulho produzido por um automóvel que se aproximava. O relógio colocado na prateleira acima do fogão de sala indicava: meia-noite e trinta e quatro. Abruptamente, pôs-se de pé num salto, apagou a luz e tornou a afastar as persianas. Distinguiu o Studebaker de Neal Schaffer, que passou diante da vivenda, descreveu uma breve curva e subiu o passeio. O motor cessou de trabalhar. Sam retirou as mãos das persianas, como se estas o tivessem queimado. Um pai inquieto quanto à filha, sim, mas um espião, nunca.

     Lentamente, suas pernas de garça conduziram sua pessoa, alta, côncava, até à cama. Tirou o roupão e meteu-se entre os lençóis. Ficou deitado sobre as costas e começou a pensar em Mary, na sua infância, e permitiu que sua mente se ocupasse de novo de Maud, da viagem de estudo que fizera com ela, refletiu sobre a guerra e os anos que se tinham seguido e, de súbito, encontrou-se de novo pensando em Mary, ainda completamente desperto. Estivera sempre de ouvido à escuta e não deu por sua entrada. Então, como se para o castigar, ouviu o ruído metálico da chave na porta, o chiar dos gonzos, o contacto da madeira contra a madeira quando a porta se fechou. Sentiu que seu rosto sorria na escuridão. Esperou ouvir os passos dela enquanto se dirigia da sala de estar para seu quarto.

     Aguardou o andar automático da filha, mas não o escutou. Mais desperto do que nunca apurou os ouvidos. Contudo, nem sombra de passos. Estranho. Conteve-se e voltou-se para o lado esquerdo, fingindo tentar dormir; porém, os tímpanos esperavam. Silêncio. Isto era uma coisa singular. Estava com os nervos em frangalho, agora. Tinham-se passado pelos menos cinco minutos após a entrada da filha, estava certo. Não conseguiu suportar mais o mistério. Afastou a coberta, meteu os pés nos chinelos, vestiu o roupão e dirigiu-se para o corredor.

     Foi de novo ao quarto da filha. Não se encontrava ocupado. Retornou à sala de estar, mas esta parecia vazia. Porém, viu-a de súbito sentada numa cadeira. Descalçara os sapatos de salto alto - a que ele nunca se habituara - e estava sentada, rígida, inconsciente da presença do pai, com os olhos fixos num ponto qualquer à sua frente.

     Curioso, muito curioso, pensou, e aproximou-se da filha, colocando-se à sua frente.

     - Mary...

     Ela ergueu a cabeça, e seu rosto estreito estava bem encantador, fresco, jovem, e, conforme viu, desfigurado em redor dos olhos, como se tivesse chorado.

     - Olá, paizinho - disse Mary em voz baixa. - Julgava que dormia.

     - Ouvi-a entrar - volveu cautelosamente. - Como não ouvi você dirigir-se para seu quarto, fiquei preocupado. Sente-se bem?

     - Sim, creio que sim.

     - Isso não é seu costume. Que esteve fazendo aqui, só, todo este tempo? É tarde.

     - Pensando um pouco. Não sei o quê.

     - Tem certeza de que não aconteceu nada esta noite? Divertiu-se?

     - O mesmo de sempre.

     - O jovem Schaffer a trouxe em casa?

     - Decerto que sim. - Ela animou-se, inclinando-se para a frente na cadeira, preparando-se para se erguer.

     - Que significa isto?

     - Oh... nada, paizinho, por favor...

     - Bem, se não deseja me contar...

     - Nada tenho que contar, acredite. Ele foi apenas desagradável.

     - Desagradável. Quer dizer, atrevido?

     - Desagradável, apenas. Alguns beijos, é uma coisa, mas quando supõem que somos propriedade deles...

     - Creio que não a compreendo. Ou talvez compreenda. Ela ergueu-se imediatamente.

     - Por favor, papá...

     Sam sabia que Mary só usava a palavra papá quando estava exasperada com ele, quando ele a tratava com frieza.

     - Não tome a nuvem por Juno - acrescentou a jovem. - É embaraçador.

     Sam não sabia o que mais dizer. Impelia-o a necessidade de preservar a autoridade paterna e sua imagem de pai, e contudo a filha estava crescendo e merecia que não se intrometessem muito no que lhe dizia respeito. Enquanto Mary apanhava sua bolsa, ele observou-a, seu cabelo castanho bem penteado, seus belos olhos escuros num rosto doce sem manchas, o vestido novo, vermelho, colado ao corpo delgado que revelava a mulher apenas no peito surpreendentemente saliente e firme. Que haveria para dizer a esta semicriança, semimulher, que não desejava que a embaraçassem?

     - Bem, se quiser falar alguma vez... - disse Sam, vacilante, após o que decidiu calar-se.

     Já com a bolsa e os sapatos na mão, Mary declarou:

     - Vou deitar-me, paizinho.

     Ela pusera um pé antes do outro e começara a caminhar. Porém, estava já a um metro ou dois de distância do pai quando pareceu cambalear - um dos joelhos fraquejara como se se tivesse partido uma junta - e ir tombar, esforçando-se ao mesmo tempo por manter o equilíbrio. Com um passo enérgico, Sam colocou-se ao lado dela, segurando-a e ajudando-a a endireitar-se. Entretanto, o rosto de Mary roçou pelo seu, e o odor da respiração não enganava.

     Ela murmurou um obrigada e tentou prosseguir, mas o pai impediu-o. Sam já não se encontrava indeciso. Sabia agora o que era justo e o que não era.

     - Esteve bebendo, Mary.

     Ante a calma desaprovação que transparecia nas palavras do pai, Mary traiu sua pose. A transformação foi instantânea. Não tinha já os vinte e seis anos que queria fazer supor, mas dezesseis... ou talvez seis. Tentou manter as aparências durante um segundo apenas, desviou os olhos e ficou imóvel, uma criança com a sua culpa edípica.

     - Sim - admitiu por fim, quase num sussurro.

     - Mas você nunca... - começou ele. - Supunha que tínhamos chegado a um entendimento acerca disto. Que é que se meteu na sua cabeça? Quantos bebeu?

     - Dois ou três. Não me recordo. Sinto muito. Mas tinha de o fazer.

     - Tinha de o fazer? Isto é novo. Quem é que lhe torceu o braço?

     - Não o posso explicar, paizinho, mas tinha de fazer alguma coisa, uma vez que me encontrava ali. Não podemos comportar-nos como uns monos, estragar tudo. De uma maneira ou de outra, imaginei que era preferível à outra coisa...

     Sam sentiu que seu peito ossudo se lhe contraía.

     - Que outra coisa? - perguntou.

     - O paizinho sabe - volveu ela, com uma das mãos agitando a bolsa. - Querem todos que o façamos. Se não o fizermos não pertencemos ao grupo. Todas o fazem.

     - Fazem? Fazem o quê? - perguntou ele, inquieto. - Refere-se a relações sexuais?

     - Sim.

     Mal a ouviu.

     - E todas o fazem? - insistiu.

     - Sim. Quase todas.

     - Quase todas? Quer dizer que algumas moças recusam?

     - Bem, sim, mas são afastadas do grupo.

     - As suas amigas... Esta Leona também o faz?

     - Não é leal, paizinho, não posso...

     - Então ela faz, não é verdade? Vem daí a cena desagradável com o jovem Schaffer. Ele quis que o fizesse ali fora?

     Ela tinha os olhos pregados no chão, sombrios. Não respondeu. E vendo-a desta maneira, esta leal e inocente parte de si, não se achou com mais coragem para representar o papel de pai severo. Seu coração entregou-se-lhe, com compaixão e amor, e desejou apenas cuidar dela, protegê-la, expulsar todo o desencanto do branco e puro reino de Mary.

     Tomou-a pelos ombros. Sua voz era doce.

     - Venha, Mary, sentemo-nos na cozinha e bebamos um copo de leite... Não, é melhor de chá, chá e biscoitos.

     Quando ela tinha seis, oito, dez anos, e girava pela casa, ainda desperta, com os olhos de pálpebras espessas, os caracóis emaranhados, o pijama amarrotado, carregando um poney de feltro, levava-a muitas vezes para a cozinha a fim de que ela o acompanhasse num copo de leite e biscoitos, para lhe contar uma história e a conduzir depois à sua cama,

     Sam entrou na cozinha, acendeu a luz, colocou a chaleira no fogão e tirou uns biscoitos da lata. Mary sentou-se à pequena mesa, seguindo, cabisbaixa, todos os movimentos do pai.

     Depois dele servir o chá encontraram-se por fim sentados frente a frente. Sam observava a jovem por cima da borda da sua xícara enquanto ela mordiscava o biscoito e sorvia o chá a pequenos goles. Não tinham trocado ainda uma palavra desde que haviam deixado a sala de estar.

     - Mary... - disse ele.

     Ela ergueu os olhos, fitou o pai e esperou.

     - ... Você bebeu porque desejou fazer parte do grupo, porque quis ocupar-se com qualquer coisa, uma vez que não podia proceder como eles. Não é assim?

     - Creio que sim - volveu Mary.

     - Porém, ainda esperam que faça aquilo?

     - Sim.

     - Então por que não se afasta deles e se junta a outros jovens que possuam melhores valores?

     - Paizinho, estes são os meus amigos. Cresci com eles. Não podemos procurar novos amigos todas as vezes que alguma coisa nos aborrece. Gosto de todos... São os melhores dos amigos... Tenho-me divertido na sua companhia até agora... e continuaria... se não fosse isto.

     Sam hesitou durante um momento e depois perguntou:

     - Suas amigas falam com você acerca de tudo o que fazem?

     - Oh, decerto, sempre.

     - Elas... Bem, não se sentem preocupadas ou culpadas? Quero dizer: aborrece-as esta atividade ou encontram prazer nela?

     - Prazer? Claro que não. Que prazer pode dar uma coisa indecente como aquela... isto é, uma coisa que se é forçada a fazer? Penso que a maior parte das moças não se importa, de uma maneira ou de outra. Não pensam que seja interessante, aquilo, como não pensam que seja errado ou se preocupem. Crêem apenas que é uma daquelas coisas aborrecidas que se tem de fazer a fim de alegrar os rapazes.

     - Por que é assim tão importante manter os rapazes felizes, como afirma? Se é uma coisa aborrecida, desagradável, por que não dizem não e se mantêm vocês mesmas felizes?

     - Papá... Não compreende. É uma daquelas coisas a que acedemos para nos sentirmos por fim mais felizes. Quero dizer: então pertence-se ao, grupo, podemo-nos divertir, sair com os rapazes que quisermos, passear de automóvel, ir ao cinema.

     - Mas primeiro paga-se a entrada.

     - Bem, se quer pôr as coisas dessa maneira... A maior parte das moças diz que é um preço bastante baixo para tudo o que se segue. Quero dizer, enquanto as amigas o fizerem também, que pode ser tão...

     - Mary - interrompeu ele - por que não o fez esta noite? Presumo que lhe foi proposto.

     - Sim, ele tentou... convencer-me.

     Sam estremeceu. A sua pequenina travessa de pijama cor-de-rosa largo como um saco...

     - Mas você não acedeu. Por quê?

     - Tive medo.

     - De quê? A sua mãe e eu...

     - Oh, não. Quero dizer, isso não seria o principal. Demais, poderia não revelar nada do que se passasse. - Sorveu o chá, com ar ausente, as sobrancelhas brilhantes franzidas. - Não posso dizer exatamente...

     - Teve medo de ficar grávida... ou talvez de apanhar uma doença venérea?

     - Por favor, papá. A maior parte das moças jamais pensa em tais coisas. Além disso, creio que os rapazes usam contraceptivos.

     Sam estremeceu de novo. Era como se o Blue Boy, de Gainsborough, tivesse pronunciado uma asneira. Fitou, incrédulo, a sua pequena Blue Girl.

     Mary achava-se absorta, pensando.

     - Creio que tive medo apenas porque nunca fiz tal coisa. Era um dos mistérios. Quer dizer, falar e fazer são duas coisas diferentes.

     - Claro que sim.

     - Penso que todas as moças da minha idade são curiosas, mas suponho que não desejamos fazer tudo. Quero dizer, a idéia não me atrai. Pensei constantemente, durante a festa, mais tarde no carro, quando me vi obrigada várias vezes a afastar as mãos dele, que isso seria horrível, que me mancharia, que jamais seria a mesma depois.

     - Não estou certo se compreendo, Mary.

     - Não. Não sei explicar.

     - Sempre fomos... bem, bastante liberais acerca das questões sexuais... sensatos... de modo que não deve sentir repulsa por elas.

     - Não. É qualquer coisa mais.

     - Seria a frieza da exigência... a troca requerida no caso... essa maneira de dizer que, se você desejava conviver com eles, manter as relações de amizade, divertir-se, tinha de pagar tributo...

     - Não sei, paizinho, não sei na verdade.

     Sam inclinou a cabeça num gesto de aprovação, pegou na xícara da filha e na sua, ergueu-as e levou-as para a pia. Depois, voltou lentamente para o seu lugar.

     - Que temos a seguir, Mary?

     - A seguir?

     - Vai encontrar-se de novo com Neal Schaffer?

     - Decerto! - Pôs-se de pé. - Gosto dele.

     - Apesar das suas mãos insistentes e das suas propostas?

     - Não devia ter contado isto. A julgar pelas suas palavras, tudo parece mais repulsivo do que é. Neal não é diferente dos outros rapazes do grupo. É um rapaz americano normal. A família...

     - Como tenciona enfrentá-lo da próxima vez? Que acontecerá se ele não aceitar o seu não? Que acontecerá se o grupo ameaçar afastá-la?

     Mary mordeu o lábio inferior.

     - Não o farão, creia. Conseguirei livrar-me de apuros. Sempre o consegui até agora. Acharei maneira de o conter e aos outros. Penso que gostam de mim o suficiente para...

     - Interrompeu-se abruptamente.

     - Gostam de você até que ponto? - perguntou Sam. - Até ao ponto de cederem por fim?

     - Não! De respeitarem meus desejos. Sabem que não sou uma sonsa completa. Não me importo de dar um “beijo uma vez por outra e... bem, divertir-me um pouco:

     - E agora sabem que beberá.

     - Paizinho, dá a impressão de que me vou tornar uma alcoólatra inveterada. Mas isso não sucederá. Esta noite foi... foi uma exceção, e não o desapontarei.

     Ela pegara de novo na bolsa e nos sapatos e começara a caminhar em direção do corredor.

     - Mary, desejo apenas dizer-lhe isto. Talvez seja demasiado crescida para ouvir sermões. Eu aceito o fato de que é um ser livre, dotado de alma e discernimento. Porém, é ainda muito jovem. As coisas que parecem para você importantes neste momento parecê-lo-ão muito menos dentro de poucos anos, quando tiver de decidir sobre coisas bem mais importantes. Não posso evitar que saia com seus amigos. É uma moça decente e inteligente, respeitada por todos, e sua mãe e eu sentimos orgulho em você. Detestaria que se comportasse de maneira a decepcionar-nos e, no fim das contas, acredite-me, a decepcionar-se a si própria.

     - Leva tudo muito a sério, paizinho. - Ela aproximou-se do pai e, nos bicos dos pés, beijou-o no rosto e sorriu-lhe.

     - Sinto-me muito melhor agora. Pode confiar em mim. Boa noite.

     Depois de a filha se ter ido deitar, Sam Karpowicz continuou na cozinha, apoiado contra o aparador, os braços cruzados sobre o roupão, examinando todo o problema da filha de dezesseis anos e do seu grupo de estróinas. Compreendia que não lucrava nada em afastá-la do seu atual ambiente. Se a mandasse para Phoenix, Miami, Memphis, Pittsburgh, Dallas ou St. Paul ela não tardaria a conviver com os mesmos amigos, o mesmo grupo de doidivanas com rostos diferentes. Era a condição da sociedade adolescente de hoje, não de toda, mas da maior parte dela, e Sam detestava-a (aceitando algumas das culpas por sua existência), e detestava que a filha crescesse nela.

     Via os contornos do futuro próximo, e via-os com nitidez. O que o amedrontava era o verão crucial que não tardaria a chegar. Nos poucos meses que se seguiam, o grupo manter-se-ia ocupado com seu trabalho escolar, exames e atividades afins, e não se veriam uns aos outros com freqüência, pois não teriam muito tempo para desperdiçar. Com o verão e o fim das aulas tudo se modificaria. O grupo reunir-se-ia com mais freqüência e Mary participaria de suas atividades, de dia, de noite. Ela poderia, como tencionava, conter os impulsos dos Neal Schaffers durante os próximos meses. Porém, o verão era a estação propícia ao amor. Neal sentir-se-ia impaciente e irritado com o fato de Mary o deter quando pretendesse beijá-la, afagar-lhe os seios, de Mary lhe retirar as mãos de sob a saia. Insistiria em consumar suas relações e, uma vez insatisfeitos os seus desejos, podia procurar algures uma jovem mais compreensiva. Mary seria evitada por todos. A marca da lepra estigmatizá-la-ia. Ela era suficientemente forte para fazer face a isto? Sam duvidava que o fosse, duvidava-o sinceramente. Quem, afinal, podia suportar a ameaça do ostracismo, ou abraçar sem temor a solidão?

     E as bebidas constituíam outro perigo. De súbito, Sam, ao refletir no motivo que a levara a beber, afastou-se do aparador. A princípio pensara que ela o fizera para provar que, apesar de querer manter sua virgindade, era ainda uma boa camarada. Agora via sob outro prisma o fato de beber, existia, uma motivação diferente. Desejara mostrar que pertencia ao grupo. E receara as relações sexuais. E assim, provavelmente por sugestão de alguém - Leona? Neal? - bebera duas vezes para dissipar suas inibições e tornar possível a capitulação. Esta noite, não conseguira vencer seus receios. Mas de outra vez, em lugar de duas bebidas, quatro ou cinco e...

     Sam, deprimido e desamparado, apagou a luz da cozinha. Começou a caminhar em direção do hall e seguiu para a sala de estar a fim de apagar o abajur. Ao fazê-lo, viu a carta de Maud Hayden. Na escuridão, mirou-a fixamente, e depois dirigiu-se para seu quarto.

     Tirou o roupão e deitou-se.

     - Sam... - murmurou Estelle. Voltou a cabeça no travesseiro.

     - Ainda não...

     - Sam, ouvi quase tudo. Levantei-me para escutar a conversa. - Na sua voz trêmula transparecia a preocupação. - Que faremos?

     - Devemos tentar remediar o melhor que pudermos esta' situação - volveu Sam com firmeza. - Escreverei de manhã a Maud Hayden. Dir-lhe-ei que vamos todos ou nenhum. Se ela anuir, teremos Mary fora daqui, numa pequena ilha pacífica onde não seja submetida à tentação.

     - Está tudo muito bem quanto ao verão, Sam. Mas que faremos depois?

     - Depois ela será mais velha. Desejo-a apenas mais velha. Assim, comecemos pelas primeiras coisas. E a primeira coisa é ocuparmo-nos deste verão.

       

     Maud Hayden ergueu os olhos da cópia daxcarta para o Dr. Walter Zegner, de San Francisco, Califórnia.

     - Por que foi isto, Claire? Por que convido um médico para esta viagem? Bem, agora... - Ela hesitou, mas em seguida acrescentou solenemente: - Gostaria de lhe dizer que convidei o Dr. Zegner apenas porque ele é especialista em gerontologia e me tem dado bastante prazer a longa correspondência que tenho mantido com ele. Além do mais, as Sereias podem constituir um valioso laboratório para seu trabalho.

     Ela fez mais uma pausa e permitiu que seu rosto se abrisse num sorriso.

     - Quero acrescentar mais uma coisa, estritamente confidencial, que não deve passar para lá destas quatro paredes. Convidei um médico, minha querida, por uma questão política, de pura política. Conheço a mentalidade de Cyrus Hackfeld e seus negócios. Ele possui uma grande cadeia de drogarias e é dos maiores acionistas da firma de produtos farmacêuticos que fornece a estas drogarias. Hackfeld interessa-se sempre por qualquer simples medicação ou erva que as tribos primitivas usam... qualquer ninharia exótica que possa ser convertida num estimulante inofensivo, num creme para rugas, numa droga para abrir apetite... Assim, todas as vezes que quaisquer cientistas pedem um subsídio ele trata de inquirir se um médico acompanha a expedição. Já esperava que isto viesse a suceder de novo.

     - E quanto a esta Dr.a Rachel DeJong? - perguntou Claire. - Ela é formada em medicina, além de especialista em psicanálise, não é verdade? Isto não satisfaria Hackfeld?

     - Pensei nisso também, Claire, mas opus meu veto a esta idéia - retrucou Maud. - Concluí que Rachel não se sairia satisfatoriamente como médica, uma vez que desempenhasse dois papéis, e, no fim, Hackfeld poder-se-ia sentir ludibriado. Eis por que não me quis arriscar. Poderia despertar a animosidade do promotor da nossa viagem de estudo. Tem de seguir conosco uma pessoa que exerça apenas clínica médica; assim, no pé em que estão as coisas, afigura-se-me que a pessoa indicada é o Dr. Walter Zegner.

       

     Faltavam vinte minutos para as oito horas da noite, e Walter Zegner afirmara que estaria com ela às oito em ponto. Durante as dez semanas que convivera com ele, e as últimas nove semanas e seis dias bastante intimamente, Harriet Bleaska nunca tivera de esperar por Walter Zegner. De fato, em três ocasiões de que se conseguia recordar - e neste momento essa recordação fê-la sorrir - ele chegara de quinze minutos a meia hora mais cedo, isto motivado pelo que explicara ser “um desejo incontrolável”.

     Sim, não chegaria atrasado, especialmente esta noite em que não havia muito que celebrar, e ela devia estar preparada.

     Um último esticão e tinha sobre o corpo o vestido de coquetel, de seda azul-escura, que comprara recentemente. Agora que puxava o fecho acima das costas de costelas salientes, dirigiu-se até à janela. Do alto de seu apartamento sobre a colina distinguia as grandes garras da neblina, cinzento vivo contra a noite negra, e as luzes amarelas, rastejando através da cidade, embaixo. Em breve, toda a San Francisco estaria mergulhada na escuridão, e apenas as vigas e os suportes da ponte de Golden Gate, como barras distantes, isoladas no céu, continuariam visíveis.

     Sabia que Walter detestava a neblina, e, embora tivesse falado que passariam a noite na cidade, suspeitava de que não iriam além do restaurante em Fisherman's Wharf. Após os aperitivos e a refeição, se prevalecessem os velhos hábitos, voltariam diretamente para o conforto e o calor deste quarto e do largo diva que Walter ajudaria a preparar para ambos. Não se importava. Sentia-se feliz ao vê-lo - com toda a sua reputação exterior, riqueza, ligações, poder (e agora a sua elevada posição) - reduzido à igualdade pela sua carne, que era a de um animal sensual pouco complicado. Este talento para o despojar de seus orgulhos mundanos, para o reduzir a seu ser essencial, sem adornos (a melhor parte dele, pensou) constituía seu principal trunfo e sua maior esperança.

     Da janela, dirigira-se para a penteadeira a fim de descobrir, na modesta caixa de jóias, qualquer coisa atraente com que se enfeitasse. Tentou fazer combinar diversos pares de brincos com vários colares - inexplicavelmente o seu homem oferecia-lhe sempre volumosos livros de arte ou pequenos copos para licor (tinha uma teoria que não aceitava porque acreditava nela: em geral, seus amantes sentiam que as jóias seriam desperdiçadas em sua pessoa); decidiu-se por fim pelos mais simples brincos de pérola e colar, pois seriam os menos obstrutivos.

     Harriet Bleaska não se mirou no espelho por cima da penteadeira a fim de ver se estas jóias a favoreciam. Sabia muito bem que isso não se verificaria e não sentia desejo que a recordassem da impiedade da natureza. Se tinha alguma auto-estima, e tinha bastante, esta não receberia apoio nem do seu rosto nem na verdade de qualquer visível atração do seu corpo. Como alguém que nasce deformado, Harriet aprendera muito cedo que sua aparência lhe barrava automaticamente certas satisfações da vida.

     Agora, fugindo à regra, os olhos dela viram seu reflexo no espelho, apenas para se assegurarem de que o make-up ainda estava fresco. O rosto familiar que o espelho mostrava - a Máscara, como secretamente o denominava, pois escondia de toda a gente a sua verdadeira beleza e virtude - fixou-a, solene. Se tudo se devesse apenas à sua simplicidade, à sua falta de beleza, ou a qualquer coisa natural, já não seria muito mau, não existiria problema. Durante quase toda a sua vida, os seus vinte e seis anos, Harriet vivera com o fato de que era notavelmente desgraciosa. Suas feições pareciam afastar do seu caminho os homens como se fossem uma sirena de alarme. Mesmo o melhor da sua aparência, o cabelo, seria o pior de qualquer mulher bonita. O cabelo caía-lhe sobre os ombros, era fibroso e de cor de canela, enervantemente rígido. Num esforço para lhe dar graça, fazia-o tombar sobre a testa. Do cabelo para baixo tudo piorava. Os olhos eram demasiado pequenos e muito próximos um do outro, o nariz chato, inclinado para um dos lados, sem sombra de beleza. A boca parecia uma grande incisão, quase sem lábio superior, e com um lábio inferior proeminente. O queixo era comprido e afilado. Ela imaginava que as pessoas diziam que tinha a fisionomia de uma mula belga.

     O restante da sua pessoa não oferecia qualquer pormenor compensador. O pescoço tinha a graça de um pedaço de cano de chumbo; os ombros pareciam os chumaços usados pelos jogadores de rúgbi; os seios quase não tinham o tamanho de uma pequena xícara; os quadris e os artelhos eram demasiado finos. Em resumo, como Harriet pensara uma vez, quando Deus criara a mulher utilizara os restos que sobravam para a criação de Harriet Bleaska.

     Encolhendo os ombros com resignação - era demasiado sensata e prática para se deixar invadir pela amargura -, Harriet afastou-se da penteadeira, pegou num cigarro com filtro, acendeu-o com o isqueiro prateado em forma de galeão (que Walter lhe oferecera) e colocou-o no seu lugar, sobre o grosso e lustroso livro de arte (que Walter lhe oferecera também). Tinha ainda doze minutos à sua frente e não sabia como os preencher. Por fim, decidiu preenchê-los contando os favores que o destino lhe concedera.

     Fumando continuamente, enquanto andava pelo quarto, pensou que não se saíra bastante mal na vida apesar de todos os seus senões. Na verdade, e baseava-se numa pesquisa pessoal, um punhado de belos cavalheiros deste mundo testemunhariam, unânimes, que não existia na Terra fêmea mais bela do que Harriet Bleaska... na cama. r

     Obrigada, meu Deus, por esta bênção, pensou, e lamentou todas as suas irmãs que eram emocionalmente feias, deformadas e deficientes abaixo da cintura.

     Contudo, o prazer que retirava desta sua característica bastante superior era nublado pelos duros fatos da vida. No mercado do seu tempo os homens compravam belas fachadas. O que se escondia atrás das fachadas era menos importante, pelo menos no princípio. Todos os indivíduos do sexo masculino deste tempo eram orientados pela poesia, ficção romântica, rádio, televisão, filmes, cartazes, teatro, anúncios de revistas e de jornais, que os levavam a acreditar que se o rosto de uma jovem era encantador, o seu busto largo, cheio é firme, a sua figura bem proporcionada, os seus gestos de certo modo provocantes (lábios apartados, voz rouca, passo ondulante), ela transformar-se-ia automaticamente na melhor parceira para a cama e para a vida mundana. Quando uma jovem tinha este exterior, podia escolher os interessados na sua compra - o belo, o aristocrático, o rico, o célebre. Os segundos melhores exteriores atraíam menor número de compradores, e isto continuava assim em escala descendente até ao ponto solitário onde se encontrava Harriet Bleaska.

     A idiotice de tudo isto, embora não causasse amargura, fazia-a por vezes desejar soltar um brado aos estúpidos machos, para lhes incutir bom senso. Não conseguiam eles ver, compreender, verificar que a beleza achava-se apenas para além da epiderme? Não conseguiam eles ver que, com muita freqüência, por trás das belas fachadas se dissimulavam o egoísmo, a frigidez, as psicoses? Não conseguiam eles ver que outras qualidades davam melhores garantias de felicidade conjugai na sala de estar, na cozinha, no quarto de dormir? Não, eles não o conseguiam compreender, não eram educados para o ver, e isto eonstituía a Cruz de Harriet.

     Os homens equacionavam a Máscara - a falta de atrativos dela. - com um casamento insípido e uma vida sexual enfadonha. Raramente lhe concediam uma oportunidade de mostrar qual valia mais; e, quando muito poucas vezes o faziam, não era ainda assim o suficiente. Pois, nesta sociedade, escolher a beleza exterior para o casamento, mesmo quando se sabia que era uma coisa errada, constituía um ato lógico, bem de acordo com o símbolo do sucesso público. Os homens eram néscios, a vida estúpida, e contudo existiram tempos em que ambos prometiam mais.

     Ela nascera em Dayton, Ohio, de pais lituanos, decentes, simples, encantadores, da classe trabalhadora. Durante seus primeiros anos não compreendera que era diferente, pois recebera pródigas atenções e elogios dos pais e da extensa família. Até à puberdade sentira-se importante, especial, desejada.

     Foi apenas depois de o pai, empregado numa empresa tipográfica, ter conseguido uma melhor situação em Cleveland, onde ela entrou para a Escola Secundária Cleveland Heights, que Harriet teve a primeira suspeita da existência do que se interpunha entre si e uma vida social normal. Era a Máscara. Sua desgraciosidade exterior atingira a maturidade. Ela era um cacto entre camélias. Tinha bastantes amigos, mas principalmente do seu próprio sexo. As jovens gostavam dela devido a um motivo inconsciente. Era um perfeito objeto de contraste em relação aos dotes delas. E, no primeiro semestre, os rapazes tinham gostado dela, nos corredores, nas atividades escolares, como podiam gostar de outro rapaz. Para explorar e reter mesmo esta aceitação limitada da parte deles, tornou-se, durante alguns dos semestres que se seguiram, ainda mais masculinizada.

     Nos seus últimos anos de escola a sua aceitação pelos rapazes decresceu. Estes eram mais velhos agora e não gostavam de outros rapazes. Desejavam moças. Desalentada, Harriet converteu-se de novo numa verdadeira moça. Uma vez que não podia dar aos jovens o que as outras moças davam, decidiu dar-lhes mais. Suas amigas mostravam-se, em tudo, tão conservadoras como as próprias mães, e os rapazes comuns de Cleveland bem cedo conheciam as limitações a que estavam sujeitos. Beijar era desagradável, mesmo beijar à francesa. Podiam fazer-se as carícias que se desejasse, mas apenas acima da cintura. Dançar significava contacto de um corpo com outro, com a conseqüente excitação provocada pelo roçar e pelo movimento, mas era tudo. Harriet, devido à sua falta de graciosidade e à liberdade com que fora educada dadas as suas necessidades e a desinibição do seu espírito, e em especial esta falta de graciosidade, que a coagira a dar o dobro a fim de obter metade, foi a primeira a quebrar a lei tácita.

     Num fim de tarde, depois da escola, na última fila do balcão de um vazio auditório, protegida pelas sombras, Harriet permitiu que um jovem ousado e esperto, que pouco antes chegara da universidade, explorasse a parte do seu corpo que ficava sob a saia. Dado que ela não oferecesse resistência, soltasse apenas, com os olhos fechados, um murmúrio de antegozo, o jovem estudante sentiu-se demasiado subjugado para continuar. Porém, continuou, e uma vez que sua resposta convulsiva à sua exploração com as mãos o excitou para o além de todo o constrangimento, ela imitou as ousadias do companheiro. A troca, breve, quente, sem restrições, agradou a Harriet. Sentira-se, por fim, uma moça consciente de si.

     No último ano da escola os progressos de Harriet atingiram a última forma de excitação mútua. Os rapazes consideravam-na uma autêntica camarada; as moças consideravam-na uma dissoluta. Harriet sentia-se satisfeita pela aceitação que obtinha dos jovens. E também, nas suas ocasionais praticas acrobáticas - nunca se entregava totalmente aos vastos prazeres do amor, pois tinha seus padrões exclusivos -, sentia que sua natureza, quente, pródiga, amorável, se libertava. Tinha uma enorme satisfação em agradar. Naqueles embriônicos contactos, em que a experiência era partilhada de ambos os lados, seus pares nunca faziam com que ela agradasse profundamente. A simples capitulação era o ponto mais alto. Os parceiros do amor não sonhavam sequer que existisse nela uma dimensão escondida. O último ano de Harriet, metade do qual foi passado na escola, constituíra ainda um período do qual tinha as mais gratas recordações. Apenas um enigma a espantara naquele tempo. A despeito da sua popularidade como par noturno, passava só as noites de festa escolares. Nessas ocasiões, o seu enorme círculo de jovens vigorosos abandonavam-na completamente.

     A razão deste abandono em massa tornou-se-lhe clara apenas dois anos depois, em Nova York, quando tirava no Bellevue Hospital o curso de enfermeira. A decisão de se tornar enfermeira fora tão natural como uma escolha entre a vida e a morte. Ela desejava um escape para a sua natureza quente, compassiva, uma profissão respeitável, onde a oferta do afeto fosse desejada e bem recebida, um modo de vida em que a Máscara não dissimulasse mais a sua autêntica beleza interior.

     Embora a maior parte das suas quinhentas colegas na residência das enfermeiras em Bellevue soltassem queixumes e lamentos sob as implacáveis pressões a que estavam sujeitas no seu trabalho, Harriet floria, com a alegria por ele provocada. Sentia orgulho no seu uniforme branco e azul, nas suas meias e nos seu sapatos pretos e achava-se satisfeita por lhe pagarem 240 dólares por ano para aprender uma profissão. Depressa a possuiu uma enorme afeição pela sala de jantar que dava para East Ri ver, pelo pequeno snack que por vezes freqüentava, pela sala de bowling a que costumava ir na companhia de outras condiscípulas. E invejava as enfermeiras que concluíam o último ano do curso, às quais permitiam usar meias e sapatos brancos e que tinham abandonado a monotonia dos livros de texto pela instrução nas salas de operações e nas enfermarias.

     Sentia-se apenas triste durante os fins de semana quando as suas “colegas se encontravam com os namorados. Nessas ocasiões, Harriet podia dispor quase exclusivamente não só do seu quarto como de todo o dormitório. A sua solidão terminou a meio do primeiro ano. Um taciturno estudante de enfermagem, no último ano do seu curso, que, apesar de míope, se fazia com cada saia que visse ondulando (era o que se dizia), encontrou-a certa vez sozinha numa sala de aula. Com ar ausente, beijou-lhe a nuca e, imediatamente, viu-a nos seus braços, respondendo com paixão as suas carícias. Tão ardente se mostrava Harriet que o estudante, para quem o rosto dela era pouco mais que um borrão, se sentiu com coragem suficiente para a convidar a acompanhá-lo ao apartamento de um amigo, o qual ficava a pouca distância dali, a fim de saber se ela era apenas uma chata ou alguma coisa mais do que isso. Mesmo antes de apagarem as luzes verificou com surpresa que ela era bastante mais do que isso. Na tarde, na noite, na madrugada que se seguiram foi transportado a uma nova e até desconhecida dimensão de luxúria. Perguntou-se se Harriet não seria o repositório vivo de todas as técnicas amorosas da história. Sabia apenas que nas suas numerosas e erráticas conquistas jamais encontrara uma parceira que se entregasse ao prazer com tão poucas restrições. A sua vontade, depois da primeira noite, fora transmitir a notícia desta incrível descoberta a todo o Bellevue e ao vasto mundo além. Porém, difícil como isto se afigurava, conteve a língua. Desejava este prodígio apenas para si próprio. O romance, raramente vivido em sentido vertical, durou quatro meses. Quando o fim se aproximava Harriet começou a acreditar que encontrara o companheiro da sua vida. Como o dia da graduação dele não tardasse, falou-lhe do “nosso futuro”. A partir deste momento ele começou a aparecer com menos freqüência e depois de obtido o diploma desapareceu por completo.

     A herança que o companheiro lhe deixou foi dupla: primeiro, antes de partir, ele espalhou a lúrida história da sua virilidade e da notável perícia de Harriet na cama entre metade da população masculina do Bellevue; em segundo lugar, contou a um amigo, que por sua. vez contou a outro amigo, que o repetiu a Harriet, num momento de franca hostilidade, depois de ela ter manifestado pouco interesse por ele, que “aquela moça é sensacional, o bocado de mulher mais notável que vive sobre a Terra; começa onde todas as outras damas se detêm, mas que diabo, que diabo, como é que uma pessoa se pode casar com a moça e levá-la a todo o lado sem lhe meter um saco pela cabeça abaixo... a não ser que se saísse com ela apenas quando o rei faz anos”.

     Como era bastante realista, Harriet não se deixou esmagar devido à maneira como fora apreciada; no entanto, sentiu-se ferida. Daí por diante, quase todos os enfermeiros, médicos, funcionários, mesmo alguns professores, começaram a competir entre si a fim de ganhar as boas graças de Harriet. Suspeitando de todos, começou a mostrar-se reservada, e apenas mais cinco vezes durante os seus três anos de permanência no Bellevue se permitiu acreditar que os que a cortejavam estavam interessados somente no seu ser essencial; aceitou-os totalmente - esperançada, esperançada, sempre que se lhes submetia. Exceto um que morrera num acidente de avião (jamais viria a saber se ele a pediria em casamento), os restantes comportaram-se da mesma maneira. Ofereciam doces palavras e cópula e ela fruía o prazer proporcionado pelo corpo e os elogios dos companheiros de leito. Eles levavam-na a lugares sombrios e a reuniões, divertimentos, onde se encontrava muita gente, grandes multidões, a restaurantes, a obscuros clubes noturnos, mas nunca a exibições de modelos, a parties, a reuniões familiares, a jantares importantes. E quando Harriet tentava, hesitante, com a maior doçura de que era capaz, fazê-los confessar a verdade sobre o seu interesse nela, todos se evaporavam. Esta conduta, porém, não a surpreendia.

     Terminado o curso, Harriet partiu não só com seu diploma como com uma grande devoção pela sua nova carreira, uma natureza franca, pertinazmente boa, e um conhecimento prático, mas resignado, da atitude que os homens tomariam sempre para com ela (até que um pobre sonho, um entre milhões, surgiria para se desfazer como todos).

     Obteve seu primeiro emprego numa enfermaria de Nashville, o segundo, mais bem pago, numa clínica de Seattle, e por fim, seis meses antes do presente momento, fora admitida por este vasto hospital de San Francisco. Em Nashville e Seattle vivera num mundo sem homens. A Máscara aterrara-os a todos, e a sua reputação não a precedera. Em San Francisco, quase imediatamente, verificara-se na sua vida social uma volta para melhor.

     Assistira até altas horas uma complexa operação de emergência no coração e quando deixara a sala, exausta, o jovem anestesista, também exausto, saíra a seu lado. Depois de se terem lavado e vestido, ele sugerira que tomassem um café. Ambos necessitavam dele mas àquela hora tardia nenhum pequeno café se encontrava aberto. Como estivessem perto do seu apartamento, Harriet convidou o anestesista a subir, a fim de tomarem o desejado café. Enquanto o bebiam, e descansavam, ela escutou a história pateta e introvertida da vida do homem - perdera cedo os pais, fora criado por parentes horríveis, passara anos fatigantes em diversas escolas, casara prematuramente (deste casamento resultará uma criança mentalmente deficiente) e a mulher fugira por fim com o patrão. San Francisco era um novo começo de vida para ele, como o era para ela, e o coração de Hàíriet apiedou-se do jovem tímido. Não o deixou partir assim tão exausto, e a uma hora tão tardia, e como houvesse no apartamento apenas uma cama, um diva, partilharam-no ambos.

     A experiência daquela noite revelou ao jovem anestesista a experiência de um mundo que desconhecia. Após mais duas experiências, compreendeu que não servia para Harriet e que ela não servia para ele. Era um daqueles homens que desconfiam da sua boa sorte e disse-lhe, preocupado, no seu íntimo, que não merecia estes prazeres carnais. Além do mais, a perícia de Harriet não lhe transmitia confiança em si mesmo; avivava, em vez disso, seu senso de incapacidade; assim, meditou sobre o caso. Contudo, podia ter continuado - o regalo semanal era irresistível - se não se lhe tivesse deparado uma oportunidade de utilizar Harriet para seu exclusivo benefício, o que constituía a coisa mais importante.

     Como um recém-chegado ao hospital, o anestesista necessitava que os médicos desejassem seus serviços, pelo menos quando se tratasse de doentes bastante ricos. Conhecera o Dr. Walter Zegner, mas até esse momento não fora ainda recomendado por ele. Se Zegner começasse a falar dele, o seu futuro no hospital estaria garantido. O que o fizera lembrar-se de Zegner fora não só a reputação deste como médico mas também a sua reputação como sedutor. Assim, o jovem aguardou a oportunidade e, quando esta chegou, apontou como se por acaso, para Harriet, que nesse momento passava no seu uniforme branco, e contou o que foi capaz de articular acerca dos talentos dela. Durante o recital, os olhos de Zegner seguiram, com uma expressão de dúvida, a desgraciosa pessoa de Harriet. O termo da provocante narrativa não o fez, contudo, reagir de maneira diferente.

     Uma semana mais tarde, o anestesista intervinha na primeira de uma série de operações compensadoras, resultado da recomendação de Zegner, não o importando o fato de não tornar a visitar Harriet.

     Foi o próprio Walter Zegner que contou a maior parte disto a Harriet, numa noite em que se encontravam, exaustos, deitados no diva da sala de estar. De certo modo, não se importara. Tudo correra pelo melhor para todos, e agora as suas mais belas esperanças tinham renascido.

     Uma tarde, dez semanas antes deste momento, tomava café com torradas na cafeteria do pessoal do hospital. Os bancos de ambos os lados dela estavam vagos. De súbito, um foi ocupado, e o seu ocupante era nada menos do que o Dr. Zegner. Em dado momento começaram a conversar. Ele mostrou-se interessado, mesmo encantador. E sentiu-se infantilmente lisonjeado quando, ao falarem sobre as suas pesquisas em gerontologia, Harriet, que era muito lida no assunto, lhe formulou perguntas inteligentes. Tinha de partir sem demora, disse ele logo depois, mas estava ansioso por continuar a conversa. Quando é que ela se encontrava livre? Naquela noite? Quase com a língua presa, respondeu afirmativamente. Ele concordou em esperá-la no parque de estacionamento dos médicos.

     Quando ela apareceu, trêmula de emoção, ajudou-a a entrar no Cadillac. Jantaram num restaurante boêmio das cercanias da cidade. Beberam, comeram uma refeição leve, conversaram, e tornaram a beber. Quando ele a conduziu ao apartamento, Harriet achou-se demasiado embaraçada para o convidar a subir. Ele convidou-se a si mesmo, invocando a necessidade de tomarem uma última bebida. Uma vez no quarto, e ambos bebendo, a conversa de Zegner tornou-se menos acadêmica, mais pessoal, e, o que a contrariava, mais centrada sobre o sexo. Quando por fim Walter a tomou nos braços, ela sentiu que era beijada pelo Dr. Martin Arrowsmith ou pelo Dr. Philip Carey, as imagens-deus da sua fantasia, e dissolveu-se nele, incapaz de se soltar do abraço. Ele não desejava partir, isso era bem evidente, e assim passou a noite com ela no diva. Em todas as suas uniões com homens, Harriet jamais se abandonara tão totalmente, e, ao ouvir as suas palavras abafadas, os seus murmúrios indistintos e extravagantes, compreendeu que ele, em nenhuma outra ocasião semelhante, na sua vida, fora tão profundamente satisfeito.

     Quando o Dr. Zegner partiu, ao alvorecer, Harriet imaginou que ele voltaria, e não se enganou. Telefonava-lhe três, quatro, cinco vezes por semana, e iam aos lugares mais obscuros, bebiam, comiam, dançavam, e voltavam sempre ao quarto dela para amarem sem restrições durante horas. Ela sentia-se empolgada e orgulhosa. No hospital, desejava gritar a sua conquista a todas as enfermeiras, e a todos os médicos também. Porém, jamais revelou seu segredo, guardou-o para si mesma. A posição dele não devia ser ameaçada. Custava-lhe, no entanto, ouvir as enfermeiras, e os internos inclusive, nas suas tagarelices sobre os médicos, contar os pecadilhos de Walter com damas da sociedade e com herdeiras. Sempre que obrigada a escutá-las desejava bradar-lhes: “Vocês, seus paspalhões, e as suas histórias idiotas! Sabem onde tem passado todas estas noites? Comigo! Sim, comigo, nu, acariciando-me, amando-me como eu o amo a ele, sim, eu, Harriet Bleaska. “

     Mas sempre, recordando as antigas queimaduras, bem penosas, recusou-se a nutrir aquela esperança fundamental, aquele efêmero enlevo. Isto é, recusara-se a nutri-la até ao meio-dia do dia anterior. Então, pela primeira vez, sentiu que sua influência sobre Walter fora além da possibilidade de traição. Pela primeira vez, um homem espreitara para lá da Máscara e compreendera o seu todo belo.

     O que ocorrera no dia anterior ao meio-dia confirmara a estonteante notícia divulgada três horas antes de que o Dr. Walter Zegner fora nomeado chefe do grupo clínico do hospital. A sua cabeça começou a rodopiar à medida que escutava o rumor das conversas. A influência da família Fleischer, a velha viúva, a filha mais nova, e assim por diante. Mas o fato mantinha-se. Walter era um dos diretores do hospital e, do dia para a noite, fora oficialmente proclamado um dos mais importantes médicos do Oeste. Ela não permitiu pensar no que isto significava para as suas relações. Era um teste, e aguardava.

     Ao meio-dia teve a resposta. Ele chegara, estava no corredor, rodeado, aceitando felicitações. Ela passou, fingindo dirigir-se a algures, e ouviu a voz dele. “Enfermeira... Srta. Bleaska... não me quer felicitar? Sou o seu novo chefe.” O coração pulou-lhe no peito. Solenemente, diante dos outros, apertou-lhe a mão, as palavras presas na garganta. Depois, Walter pegou-lhe no braço. “Agora, ao trabalho. Desejo fazer-lhe uma pergunta sobre o doente do quarto... “ Afastara-se com ela, e, em dado momento, sorriu e murmurou: “Mantém-se o encontro para amanhã à noite?” Ainda estonteada, inclinou a cabeça num gesto afirmativo. Ele volvera: “Bem, desejo comemorar. Jantaremos, e daremos depois uma volta pela cidade, e... Bem, até logo... vem aí o Dr. Delgado.”

     Isto passara-se no dia anterior ao meio-dia, a sua melhor hora. Agora, nesta noite, faltavam três minutos para as oito, e dentro de cento e oitenta segundos estaria nos braços de Walter. O pensamento, as possibilidades do futuro faziam que se sentisse entontecida.

     Compreendeu, com um estremecimento, que não estava já andando pela sala, fumando, mas sentada no braço da sua única cadeira, sentada pouco confortavelmente, de modo que mantinha rígida a nuca. Ergueu-se, distendeu os braços, passou as mãos, aqui e ali, sobre o vestido, e decidiu preparar dois uísques com soda e gelo, um para se dar ânimo e outro para Walter (a fim de lhe demonstrar que se tornaria uma boa esposa, uma esposa maravilhosa, maravilhosa).

     Pegou em dois copos simples, tirou alguns cubos de gelo da pequena geladeira, depois derramou lentamente uma boa quantidade de uísque sobre o gelo, nos copos. Após colocar o copo de Walter na mesa que se encontrava ao lado da grande cadeira de braços, começou a beber, deliciada, o seu uísque.

     Quando faltava um minuto para as oito bateram à porta, e ela levantou-se imediatamente a fim de fazer entrar Walter.

     Porém, para seu espanto, não foi Walter quem viu. O homem que se encontrava à porta, de altura mediana, magro mas vigoroso, era o Dr. Herb Delgado, um interno amigo de Walter, que muitas vezes o substituía quando havia chamadas noturnas de fora. A primeira reação de Harriet, depois do espanto, foi de intenso desagrado. As enfermeiras do hospital não gostavam do Dr. Delgado. Ele mostrava-se desdenhoso para com elas, não as respeitava, tratava-as como se fossem membros de uma casta mais inferior.

     - Boa noite, Srta. Bleaska - disse ele, com desenvoltura, como se tivesse a certeza de ser esperado. - Está surprendida?

     - Supus que fosse o Walt... o Dr. Zegner.

     - Sim... Mas, como costumavam dizer à porta dos speakeasies, venho da parte do Walter. - Ele o mandou?

     - É verdade. Posso entrar por um momento? - Não esperou que ela o mandasse entrar. Desabotoando o sobretudo, entrou no quarto.

     Ela fechou a porta, surpreendida.

     - Onde está ele? Combinou vir aqui...

     - Não pôde - volveu Delgado, em voz baixa. - Detido contra sua vontade, eis a expressão correta. - Sorriu e acrescentou: - Viu-se obrigado a faltar, no último momento, e pediu-me que viesse aqui e dissesse...

     - Podia ter telefonado.

     - E, de certo modo, o substituísse esta noite.

     - Oh! - Harriet estava ainda confusa; porém, sentiu vagamente que isto constituía uma atenção da parte de Walter. - Ele encontrar-se-á conosco em algum lugar, mais tarde?

     - Receio que não, Harriet.

     Ela perguntou-se como é que a Srta. Bleaska se tornara Harriet e quando é que Harriet se tornaria enfermeira. O Dr. Delgado mordeu os lábios e volveu:

     - Os Fleischers decidiram, de súbito, comemorar qualquer coisa... um desejo de último momento... e Walter teve de ir...

     - Teve de ir?

     - Foram eles que ajudaram Walter a conseguir a posição que tem no hospital.

     - Sim, ouvi falar nisso.

     - Com certeza. Assim, compreende. - Viu o copo em cima da mesa. - É para mim? - perguntou.

     - É para Walter.

     - Bem, sou o seu substituto. - Ergueu o copo, e fez um brinde. Em seguida, bebeu o líquido de um trago. Ela, porém, não levou seu copo aos lábios.

     - Quanto a mim, prefiro não sair esta noite - disse ela.

     - Mas tem de sair. São as ordens do médico.

     - É muita amabilidade da parte do Walter, e da sua, mas acho melhor ficar. Quando estiver livre, Walter telefonar-me-á.

     O Dr. Delgado estudou-a com ar grave.

     - Escute, minha querida, eu não contaria mais com uma coisa dessas. Falo com sinceridade, como membro do clube, e repito: não contaria mais com uma coisa dessas.

     Pela primeira vez, o que constituía a mais vaga das apreensões transformou-se numa pungente dor interior. Sentiu que um medo inominável lhe contraía o estômago, e franziu a testa.

     - Não quero dizer que conte com alguma coisa - retorquiu ela, com voz estranhamente baixa. - Sei que ele se encontra ocupado e que tem novas responsabilidades. Também sei o que pensa acerca de mim e dele, Dr. Delgado. Ontem ao meio-dia...

     - Ontem ao meio-dia estava na Idade Média - volveu ele quase com brutalidade. - Hoje, a sua vida entrou numa outra era. Progrediu muito, talvez tivesse mesmo ultrapassado a mim. De uma maneira ou de outra, a sua situação é diferente. Não se pode preocupar mais com flertes destes.

     - Flertes destes? - repetiu ela, bastante ofendida no seu íntimo. - Que espécie de linguagem é esta? Que quer dizer com isso?

     - Oh, não diga disparates - redargüiu Delgado com impaciência.

     Ela observara que Delgado fizera por fim a transição de Harriet para Querida e para Enfermeira. Ele não mostrava a mínima delicadeza.

     - Escute - tornou ele -, Walter contou-me tudo acerca de você.

     - Que quer dizer? - Ela tentou controlar a voz.

     - Quer dizer que sou seu amigo íntimo e que ele me conta tudo.

     - Não gosto das insinuações que transparecem na sua voz. As suas palavras sugerem-me que tenta alguma coisa... alguma coisa vil...

     - Querida, foi você que afirmou isso, e não eu. Não tenho tal coisa em mente. Walter gosta de você, e para fazer que eu viesse aqui esta noite tinha de me explicar por quê. E agora, você impressiona-me bastante. Claro, sei muito bem que Walter se tem encontrado com freqüência com você. Eis o que significam as minhas palavras quando disse que ele não se podia preocupar mais com um flerte destes. Esta noite, é recebido em casa dos Fleischers, e não como médico mas como indivíduo da mesma categoria social. Por acaso sei também que uma das filhas conquistou Walter, ou tenta conquistá-lo, e ela é extremamente bonita.

     Harriet sentiu que as palavras de Delgado a feriam intensamente, e sentiu alguma coisa mais, em seguida. A Máscara, há bem pouco tirada, voltava a seu lugar.

     - Ele... ele mandou-o cá para que dissesse tudo isto? - perguntou ela, sem ter consciência de que pronunciava esta frase.

     - Pediu-me que dissesse tudo isto sem mais rodeios. As palavras são minhas, os sentimentos, dele.

     - Não... não posso acreditar - retorquiu ela. - Ainda ontem ele... ele... - Não conseguiu continuar.

     O Dr. Delgado colocou-se ao lado de Harriet e estendeu, num gesto paternal, um braço em redor dos ombros dela.

     - Escute, querida, tenho muita pena, creia. Não me ocorreu o que você... Bem, o que quero dizer é isto: não imaginava o que você tinha em mente. Os homens como Walter...

     - Os homens como os outros homens -disse ela quase para si mesma.

     - Você, minha querida, se pensar um pouco recordar-se-á de um pequeno teste básico que costumavam fazer no primeiro ano de Psicologia. Pegavam num rato macho e davam-lhe fome de duas maneiras: mantinham-no afastado tanto de alimentos como de sexo. Depois libertavam-no numa caixa com alimentos numa extremidade e com uma fêmea na outra. A questão era a seguinte: procuraria ele os alimentos, o que realçaria o instinto de conservação, ou procuraria ele o sexo e o amor? Você conhece a resposta. O instinto de conservação vence sempre.

     - Que está procurando dizer? - Ela quase não o escutara.

     - Digo que o instinto de conservação venceu mais uma vez.

     - Mas que diabo, não, não... - Sentiu-se desfalecer e estendeu a mão para o braço da cadeira.

     O Dr. Delgado evitou que ela caísse.

     - Vá, não leve as coisas tão a sério - disse ele. - Não é o fim do mundo. - Ajudou-a a sentar-se na cadeira, e passou-lhe o copo com o pouco uísque que ainda restava. - Acabe de beber isto. Necessita dele. Preparo outro copo.

     Ela aceitou a bebida. Delgado despiu o sobretudo e desapareceu atrás de Harriet. Ela ouviu-o preparando o uísque e ouviu também, no fundo da sua mente, um grito distante. Este fora desferido por Mary Shelley, quando, no andar superior da Casa Magni, fitava Trelawny, que acabara de voltar da praia perto de Viareggio, onde identificara o corpo. Trelawny mantivera-se mergulhado no silêncio eloqüente da dor e das más notícias, e Mary Shelley gritara: “Não há esperança?” sabendo que não havia nenhuma.

     Harriet lera isto numa velha biografia e não pensara nesta cena ou em Mary Shelley nos anos que se seguiram, até este momento.

     - Sente-se melhor? - perguntou o Dr. Delgado, debruçando-se sobre ela.

     Bebeu um trago de uísque e pousou o copo. Digerira tudo e reconhecera o seu destino.

     - Pelo menos - falou -, ele podia ter-me dito isso pessoalmente.

     Restavam-lhe agora as pequenas queixas.

     - Não pôde. Sabe que ele é sensível. Detesta cenas. Além disso, desagradava-lhe feri-la.

     - E não pensa que isto me fere?

     - Bem, dito por um estranho...

     - Sim, eu sei.

     Delgado sentou-se no braço da cadeira, acariciando com uma das mãos o cabelo de Harriet.

     - Não é por eu ser uma enfermeira - tornou ela, com os olhos fixos adiante de si, perdidos no vago - é por ser como sou. Médicos importantes casam-se com enfermeiras. E muitos. Mas não se casam com aquelas que não sejam bonitas ou ricas ou não tenham qualquer predicado especial. Não censuro Walter. Tenho apenas pouca sorte naquilo em que os homens põem mais valor. Não sou a imagem exterior da mulher com que um homem gosta de casar-se. Para um homem, uma mulher representa o seu bom gosto, o seu prestígio e posição, o seu julgamento, o seu ego... ela é o seu embaixador, quem faz as apresentações nas reuniões íntimas ou quem preside à mesa de jantar, a quem dá o braço em casa dos outros, e eu para nada presto, a não ser para a cama.

     - Querida, não seja tola. Walter costumava elogiá-la muito.

     - Elogiava a minha ação na cama e nada mais. Porém, continuou a vir aqui apesar da minha falta de atrativos exteriores. A minha parte pior conseguiu cegá-lo... por uns tempos.

     O Dr. Delgado apertou-lhe o ombro com alegria.

     - Não nego que ele também falasse disso. Se não o conhecesse considerá-lo-ia um mentiroso. Não consigo compreender como uma mulher tenha aquilo que ele diz que você tem.

     Mal o ouviu. Olhava, com tristeza, para diante.

     Ele sacudiu-a levemente.

     - Escute, querida, seja razoável. Está tudo feito e acabado. O rei está morto, viva o rei. Walter partiu, o velho Herb ficou. Por que não aproveita esta ocasião? Você parece uma moça razoável. Por que não espanta suas tristezas? Muitas damas consideram-me bastante interessante. Bem, elas não me conseguem caçar, mas você pode, se quiser.

     Ela parecia ter despertado e fitava-o, com espanto.

     - Vamos jantar, como tinha combinado com Walter - tornou Delgado. - Depois, podemos vir até aqui e recomeçar tudo e...

     - Vir até aqui e fazer o quê?

     Ele ficou calado por uns momentos. Depois repetiu: - Recomeçar tudo.

     - Quer dizer que deseja dormir comigo?

     - Isso é um crime?

     - Deseja dormir comigo esta noite?

     - E todas as noites. Não se ofenda. Afinal, você não é exatamente...

     - Saia.

     - Quê?! - exclamou ele, surpreendido.

     Harriet ergueu-se.

     - Saia, imediatamente.

     O Dr. Delgado levantou-se com lentidão do braço da cadeira.

     - Você não é... Fala a sério?

     - Ouviu-me duas vezes.

     - Jovem, fale em termos. Quem é você afinal? Estou tentando conceder-lhe uma oportunidade.

     - Pela terceira e última vez, saia, ou chamarei o porteiro para o pôr na rua.

     O Dr. Delgado sorriu com desdém. Numa atitude de insolente reflexão terminou sua bebida, pegou no sobretudo e dirigiu-se para a porta. Uma vez aí voltou-se e disse:

     - O seu funeral.

     Abrira já a porta quando subitamente se voltou de novo: - Quase me esquecia - volveu. Levou a mão ao interior do casaco e tirou um longo envelope. - Walter pediu-me que não me esquecesse de lhe entregar isto. Trata-se de uma carta que deseja que leia.

     Ele estendeu-a, mas ela ficou imóvel. Irritado, Delgado lançou-a para cima de uma pequena mesa.

     - Ver-nos-emos no hospital, enfermeira - disse por fim, e partiu.

     Harriet continuou imóvel, no meio do quarto, olhando fixamente para a carta de Walter. Não estava interessada agora no que ele tinha para lhe dizer. Era como se beijar alguém depois de morto, como naquela cena de Hemingway em Adeus às Armas, quando Henry beijou Catherine Barkley, a enfermeira, depois de ela ter morrido.

     Um minuto ou dois depois Harriet voltou ao bar e serviu-se de um novo uísque. Com o copo na mão começou a andar pelo quarto, descalça, bebendo um gole uma vez por outra. Diante do guarda-vestidos, deteve-se, pousou o copo e despiu-se até ficar apenas com as calcinhas de nylon. Por fim, pegou num robe e vestiu-o. Durante alguns momentos perguntou-se se prepararia alguma coisa para jantar, se faria um sanduíche, e decidiu continuar a beber.

     Começou de novo a andar pela sala e em dado instante deteve-se à janela. Sentiu satisfação por a neblina que envolvia a cidade se ter tornado mais densa. Pelo menos não teria de sair com aquele tempo úmido. Dando costas à janela, notou o envelope pousado sobre a pequena mesa. Abruptamente, terminou o uísque, dirigiu-se para o ponto onde se encontrava o envelope e abriu-o. Entretanto, perguntara-se se ele ousara enviar-lhe dinheiro. Se isso acontecesse esbofeteá-lo-ia na primeira vez que o visse. Depois, compreendeu que esta cena não se daria, pois não o veria mais. Agora era para ela impossível continuar no hospital.

     Dentro do envelope encontrou uma longa carta, redigida em papel do Reynor College, dirigida ao “Caro Walter” e assinada por “Maud”. Anexa a esta carta achava-se um pequeno retângulo de papel de memorando com os seguintes dizeres impressos na extremidade superior: “Do gabinete do Dr. Walter Zegner. “ Mão feminina garatujara sobre o papel: “Cara Srta. Bleaska: O Dr. Zegner pediu-me que lhe enviasse a carta anexa. Pensa que lhe pode interessar muito. Vai escrever sobre a Senhorita à Dr.a Hayden. “ A nota estava assim assinada: “Sra. Snyder pelo Dr. Zegner.”

     Confundida, Harriet levou a carta e o copo vazio para a cadeira de braços, e sentou-se; durante os quinze minutos que se seguiram permitiu-se ser transportada para o mundo, irreal das Três Sereias.

     Depois de concluída a leitura compreendeu a razão da generosidade de Walter. Desejava que ela saísse da cidade. Durante um momento esteve tentada a não partir, a continuar no hospital, como a consciência culpada dele. Porém, apercebeu-se de que, mesmo que isso fizesse infeliz a ele, não a faria feliz.

     Mirou de novo a carta de Maud Hayden e imediatamente desejou abandonar San Francisco para sempre. As Três Sereias constituíam uma perfeita transição para uma nova vida. Divorciá-la-iam do presente, agora passado. Desejava um novo começo, sim, um começo inteiramente novo.

     Vinte minutos mais tarde, depois de tomar mais um uísque, e com um sanduíche de queijo num prato e uma xícara de café junto do cotovelo, pegou numa esferográfica, colocou uma folha de papel diante de si e escreveu:

      “Cara Dr.a Hayden...“

    

     Maud Hayden acabara de ler a cópia da carta dirigida ao Dr. Orville Pence, de Denver, Colorado.

     - Bem - disse Maud -, isto fará Marc feliz.

     - Nunca consegui saber o que Marc vê nele - respondeu Claire.

     - Oh, já conhece o Pence. Tinha-me esquecido.

     - Conheci-o no ano passado, quando estivemos em Denver - tornou Claire.

     - Decerto, decerto. Creio que é uma dessas pessoas que temos de estudar bem para as conhecer.

     Claire não queria concordar.

     - Talvez - disse. Depois, acrescentou: - Marc é mais razoável no que se refere às pessoas do que eu. As minhas reações ante elas são instintivas. Formo sem demora uma opinião e jamais a modifico. O Dr. Pence repugnou-me tanto como um desses animais marinhos exangues.

     Maud sorriu, divertida.

     - Oh, a sua fantasia, Claire...

     Não estou brincando. Parece-me extravagante como uma solteirona, uma dessas criaturas que não permitem que fumemos na pequena sala de visitas de uma casa. E a sua conversa. Sexo, sexo, sexo. Quando acaba de falar pensamos que se trata de uma doença epidêmica cujo vírus se isola para estudo. Toda a idéia do prazer lhe é estranha.

     - Nunca me preocupei com suas atitudes em relação ao sexo - disse Maud, suavemente. - Mas como sabe, o sexo é o único assunto que lhe interessa, é o objetivo, a matéria de estudo de toda a sua carreira. O Conselho de Pesquisas em Ciências Sociais e a Fundação Nacional de Ciências não lhe concederiam bolsas de estudo se não tivessem boas razões para isso. A Universidade de Denver não o teria como professor se ele não fosse altamente qualificado. Acredite-me, seus estudos sobre comportamento sexual comparado conferiram-lhe uma sólida reputação.

     - Tenho a sensação de que ele está atrasado um século no que diz respeito a sexo.

     Maud riu. Depois, já calma, disse:

     - Oh, Claire, não permita que a dominem esses preconceitos, após um único encontro... De uma maneira ou de outra, foi Marc quem pensou que Orville Pence poderia estar interessado nas Sereias... Trata-se da sua especialidade, e suas descobertas podem ser valiosas para o meu ensaio.

     - Contudo, mantenho minha opinião. Demais, devia ter visto a mãe dele.

     - Claire, não a convidamos.

     - Mas convidou-o. É exatamente a mesma coisa.

    

     A espaçosa sala de aula da Universidade de Denver estava fria a esta hora da manhã, e, à medida que passava os dedos sobre suas notas, Orville Pence compreendeu que o frio lhe fazia recordar os lugares situados a grande altitude da sua infância. Lembrou-se de ter subido, conduzido por alguém, os degraus do capitólio da capital do Estado, e de lhe terem indicado o décimo quarto degrau, que tinha uma placa em que se lia: “Uma Milha acima do Nível do Mar”; recordou-se do teleférico que o transportou, e à mãe, ao cume do pico Pike; recordou-se de ir com a mãe e com os escoteiros visitar a sepultura de Buffalo Bill, no alto de uma montanha. Lembrou-se do frio entorpecedor e do pensamento favorito da mãe: “É bom estar-se no alto, Orville, para que as pessoas nos olhem sempre de baixo para cima” - e agora, nesta manhã, parecia que se encontrara sempre tão no alto que nunca chegara a descer à terra.

     Contudo, não era o frio que fazia na sala de aula que mais o perturbava esta manhã. O que mais o perturbava era a. jovem que se encontrava sentada numa das carteiras da fila da frente; ela tinha o hábito desconcertante de cruzar constantemente suas longas pernas, primeiro a direita sobre a esquerda, e, depois de descruzar esta, a esquerda sobre a direita.

     Orville Pence tentou manter sua atenção afastada daquelas pernas enquanto dava a aula, mas isto constituía uma proeza que julgava impossível concretizar. Procurou racionalizar esta distração. O ato de cruzar as pernas, nos indivíduos do sexo feminino, era universal e natural. Em si mesmo, não parecia errado. A única parte errada era o emprego de uma técnica defeituosa (isto é, normalmente viciosa ou deliberadamente provocante). Se uma jovem cruzava as pernas rápida, rigidamente, ao mesmo tempo que escudava o movimento puxando para baixo a bainha da saia, era decente. Se não o fizesse, o ato seria suspeito. Observava, dentro dos limites deste campo, que, quando cruzavam as pernas, certas mulheres levantavam automaticamente a saia ou o vestido. Se, como era o caso com a jovem estudante que se encontrava diante de si, o vestido era curto, as pernas longas, os movimentos lentos, um observador poderia com freqüência contemplar facilmente a carne da parte interior da coxa, a qual começava onde a extremidade superior das meias terminava. Que espécie de pessoa se poderia comportar de uma maneira tão imprópria? Seus olhos percorreram o corpo da jovem, de baixo para cima, e em seguida de cima para baixo. Ela era alta, bem feita, com cabelos ruivos mal penteados, um rosto de doce inocência; vestia um suéter cor de limão, uma saia de lã, de xadrez, que não caía abaixo dos joelhos quando ela se levantava.

     De súbito, a jovem moveu-se na carteira, e eis a saia para cima, as pernas apartadas, a carne cintilante das coxas exposta e depois dissimulada pelo cruzar das pernas. Ela tentava deliberadamente perturbá-lo, pensou Orville. Era um jogo de que muitas mulheres gostavam; porém, ele não se lhe submeteria; encontrava-se num ponto alto; ela e as outras teriam de o compreender. Ergueu os olhos para incluir as outras jovens estudantes que se encontravam na sala. Quase quarenta estavam ali sentadas, com canetas e lápis pousados sobre cadernos de apontamentos, aguardando que ele prosseguisse.

     Orville aclarou a garganta, pegou no copo que se encontrava na pequena estante, levou-o aos lábios e bebeu um gole dágua, lentamente. Em seguida, para readquirir a completa postura, tirou o lenço e limpou a testa; isto fê-la latejar, pois tinha uma testa ampla. Seu cabelo recedera nos últimos anos. Um terço do alto da cabeça achava-se prematuramente calvo. Ao repor o lenço no bolso espreitou por cima da armação dos óculos colocados a meio do nariz de furão, passeou os olhos pelas ouvintes, e depois, debruçado sobre suas notas, dirigiu de novo, sub-repticiamente, o olhar para a jovem de suéter cor de limão e pernas longas.

     Ela não devia ter mais de dezenove anos, calculou, e ele era um velho solteirão de trinta e quatro; se se tivesse casado aos quinze anos, ela podia ser sua filha mais velha. A distração era ridícula e consumia muito tempo. Dirigiu seus pensamentos para Beverly Moore, de Boulder, com mágoa, para sua mãe, Crystal, com culpa, para sua irmã, Dora, com ressentimento e para Marc Hayden, Maud Hayden, professor Easterday e chefe Paoti, com interesse, e por fim - ela descruzara as pernas, levantara a saia, cruzara de novo as pernas -, para isto, com pesar.

     A classe parecia inquieta, imaginou, e isto raramente acontecia. Normalmente, todas o escutavam com muita atenção e bebiam todas as suas palavras, uma vez que falava, desde há alguns dias, sobre a evolução da moralidade sexual durante os últimos trezentos anos. Porém compreendeu que todas se encontravam preocupadas devido ao fato de ele parecer estupidificado, como sucedia algumas vezes, e de se ter esquecido de reencetar a lição. Por fim, levou a mão aos lábios, tossiu e começou a falar.

     - Resumamos, nestes últimos minutos de aula, o nosso tema - disse -, antes de continuarmos a nossa discussão sobre os princípios da unidade familiar.

     Enquanto recapitulava os problemas do casamento monogâmico, desde os tempos primitivos até à Grécia antiga, Orville sentiu satisfação em observar que prendia de novo a atenção de suas alunas. A própria jovem de suéter cor de limão, demasiado ocupada em tomar notas, esquecera-se de cruzar as pernas. Confiante, continuou a falar, mas, à medida que os segundos se escoavam, sua mente ativa libertava-se da sua comunicação vocal e divagava. Esta capacidade para falar de um assunto e pensar noutro não constituía um dom exclusivo de Orville; porém, ele utilizava-o com rara perícia. Esta manhã era mais fácil, pois a lição que dava pertencia à mesma série das que proferira no verão passado na Universidade do Colorado, em Boulder, Vide conhecera a Srta. Beverly Moore.

     Mesmo agora, à medida que falava, conseguia imaginar fielmente o retrato de Beverly Moore. Ela era uma jovem de cerca de vinte e cinco anos, de cabelo preto, rosto patrício e figura graciosa. Há um mês que não a via, mas distinguia-a com tanta nitidez na sua mente como se a tivesse diante de si neste momento (e na verdade parecia tê-la, na fila da frente, com aquelas pernas fantasticamente longas).

     Quando fora a Boulder proferir aquelas lições de um curso de férias, Beverly, secretária-executiva do departamento administrativo, fora incumbida de o guiar e de cuidar de suas necessidades acadêmicas. Embora tivesse, com sacrifício, através dos anos, construído uma fortaleza de ambição e atividade em redor de si mesmo, a fim de se proteger dos assaltos de jovens agressivas e perigosas, conseguira, de certo modo, deixar uma ponte suspensa sobre o fosso. Uma vez por outra convidava uma jovem a atravessar a ponte. Todavia, sempre que ela se tornava uma distração indesejável, fazia o possível por a desalojar da fortaleza. Em Boulder encorajara - ou permitira, pois não estava já certo do que sucedera - Beverly a atravessar a ponte. Impressionara-o, desde o começo, a seriedade, os predicados intelectuais, o senso comum dela. Acima de tudo, parecia compreendê-lo e a importância de seu trabalho.

     A sua ligação, inteiramente cerebral, amadurecera através do verão, de modo que, por fim, não desejara encarar a realidade da sua partida após terminado o curso. Quando regressou a Denver compreendeu que Beverly se tornara quase uma parte de si, um hábito seu, como sua mãe, Crystal, ou sua irmã, Dora. Quando sentiu saudades dela deu por si fazendo o que nunca fizera antes - esquecer-se de sua rotina para continuar a vê-la. Todas as semanas, percorria os cinqüenta quilômetros para noroeste, através das montanhas Rochosas, até chegar a Boulder. Cada vez com mais freqüência, começara a divagar acerca daquilo que outrora parecera impossível - a imaginar um casamento com uma jovem que não modificasse sua vida, transformasse seu programa ou perturbasse seu trabalho, mas melhorasse, em vez disso, sua existência quotidiana.

     Contudo, sem dar por isso, começara a vê-la mais raramente nos últimos três meses, acabando por deixar de vê-la. Ela telefonara e aceitara suas desculpas - estava carregado de trabalho, dissera - e tornara a telefonar, para ouvir com menos cordialidade seus circunlóquios. Depois, não voltara a telefonar.

     Ao reavivar agora tudo isto tentou recordar o que acontecera entre ambos. O fato era que nada acontecera entre eles. Não tinham brigado e sua afeição mútua não decrescera. Porém, Orville sempre se recordou de uma coisa. Ocorrera uma semana antes, antes de adormecer, e de novo na noite passada, como na outra ocasião, procurara afastar o pensamento, como se de algo em que não desejasse acreditar. No entanto, o pensamento acudira-lhe outra vez à mente, e agora, com certa coragem, examinou-o.

     Vagamente, até este momento, supusera ter decidido ver Beverly com menos freqüência, não se ligar muito mais emocionalmente a ela, devido a um defeito de sua personalidade. O defeito era a superioridade de Beverly como ser humano. Ela não era uma mulher complexa, achava-se perfeitamente integrada, segura de si própria, era educada e atraente para os homens. Se se casasse com ela, Beverly ganharia a ascendência. Por ora, necessitava dele, pois era uma mulher solteira, só, que desejava conseguir status social através de ura bom casamento. Assim, por agora, ele era a pessoa superior. Uma vez casados, a intimidade poderia pôr a nu a sua fraqueza - toda a gente tinha fraquezas. Ao mesmo tempo, as qualidades de independência de Beverly, robustecidas pela confiança que o casamento conferia a uma mulher e reforçadas pelo conhecimento das incapacidades de Orville, desenvolver-se-iam, perturbá-lo-iam e à sua vida. Ela mostrar-se-ia superior e ele inferior. No casamento, as posições de ambos modificar-se-iam para sua desvantagem. Em resumo, não era a mulher que lhe convinha. Desejava uma companheira que fosse menos do que ele, e continuasse assim, fitando-o sempre de baixo para cima, dependendo dele, grata por o ter encontrado. Beverly não era jovem que se conformasse com isto. Era diferente. Assim, expulsara-a discretamente e retirara a última ponte que conduzia à sua fortaleza.

     Esta, acreditara, fora a única razão para a ruptura da sua ligação. Agora, acreditava em mais alguma coisa, embora a nova percepção não invalidasse inteiramente o primeiro sentimento que experimentara em relação a ela. Via agora que começara a afastar-se de Beverly uma semana depois de a ter apresentado à mãe, à irmã, ao cunhado. Isto passara-se há três meses.

     Desejara decidir-se e assim opusera-lhe o teste final, a corrida de obstáculos, como gostava de o denominar. Apenas duas vezes antes, na sua vida, convidara jovens a submeter-se ao teste. Beverly respondera com entusiasmo. Viera de Boulder, de trem, e ele aguardara-a na estação, orgulhoso da sua figura e da sua elegância. Conduzira-a ao apartamento da mãe, onde Dora e o marido, Vernon Reid, chegados de Colorado Springs com a mãe, que se queixava de um ataque de artrite e padecia de febre de feno, esperavam heroicamente. Apesar da pressão do momento, Beverly comportara-se de maneira excelente. Mostrara-se altiva, embora afetuosa. Talvez o nervosismo a tivesse obrigado a falar mais do que era habitual nela, mas a conversa decorrera com interesse. A noite passara suavemente. Mais tarde, ao conduzir Beverly a Boulder, Orville sentira maior ternura por ela do que antes.

     A reação inicial da família durante o café da manhã seguinte fora favorável, melhor do que supusera. Na verdade, não falaram muito nela, e nas referências à pessoa de Beverly utilizaram expressões como “uma jovem encantadora” e “bastante inteligente”. Porém, na semana que se seguiu - Orville compreendia agora melhor isto do que então -r começaram a desfazer de Beverly. A mãe não se referira em especial a Beverly mas a “certas moças de tipo intelectual” que “conduziam um homem como desejavam”. Dora relacionara Beverly com uma mulher “muito senhora do seu nariz”. Vernon, por sua vez, referira-se a ela com irreverência. Beverly fizera que recordasse uma colega muito ousada da universidade que satisfizera todos os colegas da faculdade. “Mas não me leve a mal, Orville, pois não estou insinuando nada. Porém, fisicamente, ela faz-me lembrar a Lydia”, disse Vernon.

     Sem dar por isso, Orville começara, nos dias seguintes, a interrogar-se sobre Beverly, sobre seu passado, projetando-a no futuro. De certo modo, e de maneira sutil, a perfeição dela deslustrara. Era como se movido por um impulso, pelo amor à primeira vista, e não por um cuidadoso exame, se comprasse uma peça esculpida original e se fruísse sua beleza até que os amigos começassem a fazer observações casuais acerca da duvidosa qualidade de sua originalidade, de sua beleza, do seu valor, de modo que por fim se ficava incerto e a pura alegria até então sentida era modificada e depois dissipada por demasiada reflexão.

     Com a súbita clareza dada pela honestidade, um luxo que raramente se permitia, Orville compreendeu que evitara Beverly não por causa dos seus defeitos mas devido à suspeita de defeitos inseridos no seu espírito pela família. Como sempre, tinham-lhe feito uma lavagem no cérebro. Há muito tempo que se apercebera da verdade acerca deles, mas a dependência tinha-o condicionado, obrigara-o a fechar os olhos à verdade. Porem, a partir deste momento jamais relacionaria as táticas da família com seu estado de solteirão.

     A mãe estava casada há quatro anos (dera primeiro à luz Dora) quando o pai a trocara por uma mulher mais jovem, menos exigente e mais feminina. A mãe atribuíra a catástrofe ao sexo, à natureza depravada do pai, ao feio, vil, perverso impulso conhecido por desejo. Dora, no momento em que atingiu a maioridade, revoltara-se contra a tirania maternal, abandonara o lar, casara com Vernon, mudara-se para Colorado Springs e dedicara-se aos filhos que começaram a nascer do matrimônio. Orville, sem a proteção da cólera da irmã, tivera de se apegar às saias da mãe, um refém pelo pai errático. Fora necessária uma década, após a chegada à maioridade, para se atrever a procurar um apartamento que permitisse certa intimidade - mas mesmo agora, apesar de não residir com ela, falava duas vezes por dia ao telefone com a mãe, jantava na sua companhia três vezes por semana e conduzia-a a uma infinidade de médicos e de clubes sociais.

     Através dos raios Roentgen da sua auto-analise, Orville relacionava esta gente do seu sangue com seu estado de solteiro. Compreendia que todos se empenhavam em mantê-lo solteiro. Tivesse ele casado com Beverly, ou com qualquer das outras antes dela, e sua mãe daria a impressão de ter sido abandonada por um segundo marido e deixada só e na penúria. Tivesse ele casado e se tornado independente, e a irmã e o cunhado teriam sido obrigados a dispensar mais atenções à mãe. Como as coisas estavam, toleravam a mãe apenas uma vez por ano na casa de Colorado Springs e contribuíam com uma pequena soma mensal para o apartamento de Denver. Despendiam dinheiro, pensou com amargura, enquanto ele despendia emoções. Entregavam dinheiro enquanto ele entregava sua liberdade. Só, em Denver, era obrigado a carregar o pesado fardo. Dora mantinha-se indiferente e egoísta. Se fosse casado, pensou Orville, poderia ter um aliado na independência e Dora ver-se-ia forçada a desempenhar seu papel de filha.

     À claridade deste raio de luz de verdade, Orville detestou a irmã. Não ousava dirigir uma emoção tão forte para a mãe mas disse de si para si que, uma vez que não podia detestar a mãe, pelo menos não a amaria. Sabendo isto, sentindo o que sentia, por que não partir sem demora para Boulder e ajoelhar-se ante Beverly e pedir-lhe a mão? Por que estava assim imobilizado? Por que não agia? Conhecia as respostas, e por fim desprezou-se a si também. Sabia que um medo inominável o mantinha na servidão. Tentou dar um nome, definir este medo: receava a solidão, receava partir e perder possivelmente o que era seguro, aquilo de que se podia depender, os dois ventres, por um ventre estranho e ainda não experimentado que um dia poderia ser demasiado superior para necessitar de seus afetos e de sua atenção. Eis o nó górdio da sua indecisão. Que fazer? Veria, veria, teria de se decidir.

     Fez, de novo, incidir sua atenção sobre as notas, sobre a classe, sobre a jovem de suéter cor de limão que neste mesmo instante descruzava as pernas, as abria - a parte interior da coxa rosada - e as cruzava uma vez mais. Consultando o relógio de parede, Orville viu que dentro de alguns segundos o período de aula terminaria. Concluiu a lição, endireitou as notas e disse em seguida:

     - Na próxima semana falarei em pormenor sobre as numerosas ameaças à instituição do casamento e mostrarei seu papel na evolução do sexo através dos tempos. Para começar, referir-me-ei ao papel da chamada Outra Mulher. Através dos séculos, a “esposa” ilícita de um homem casado, e por vezes de um homem não casado, teve muitos nomes e rostos, tais como adúltera, concubina, cortesã, prostituta, cocotte, hetaira, semimundana, filie de joie, meretriz, mulher de vida fácil, femme entretenue, etc. Estas designações, apenas com ligeiras variações na função e no ato, têm descrito a mesma mulher - a amante, ou melhor, “a mulher por conta”. Na próxima semana discuti-la-emos na evolução do sexo... Obrigado. Podem sair.

     Reunindo suas notas, ouvindo o ruído produzido pelas alunas que se erguiam, caminhavam, conversavam, perguntou-se se a jovem de suéter cor de limão ainda o fitava provocantemente. Embora tivesse inclinada a cabeça brilhante, Orville levantou os olhos, a fim de se certificar. Ela estava de pé, os livros e o caderno de apontamentos debaixo de um dos braços, as costas voltadas para ele, esperando que duas amigas se lhe juntassem. Momentos depois as três deixaram a sala, A de suéter cor de limão, que conhecia tão intimamente, passou diante dele olhando-o apenas de soslaio. Era como se ele não fosse mais do que um gramofone neutro que se tivesse calado. Sentiu-se tolo, logrado, e por fim, embaraçado.

     Uma vez a sala vazia, e depois de ter fechado a pasta, saiu. Ordinariamente, gostava de se reunir no café a alguns dos mais inteligentes colegas de ensino a fim de trocarem, algumas impressões sobre assuntos profissionais e conversarem um pouco. Esta manhã, porém, não dispunha de tempo.

    

     Prometera à Comissão de Censura da C. S. W. A., à Associação das Mulheres do Colorado, estar no cineteatro às onze e quinze, pois iam passar pela primeira vez um filme francês importado recentemente, Monsieur Bel-Ami. Não havia tempo a perder.

     Apressou-se a abandonar o campus, perdeu algum tempo fazendo sair o seu novo Dodge do parque de estacionamento dos professores, mas, por fim, pôs-se a caminho. Enquanto dirigia recordou-se da carta da Dr.a Maud Hayden. A maior parte das vezes, não lia sua correspondência de manhã. O correio pessoal, enviado para o seu apartamento, lia-o à noite, com calma; o correio profissional, enviado para a universidade, lia-o depois do almoço. O correio desta manhã continha o envelope com o nome e o endereço da Dr.a Hayden, e não conseguira resistir a abri-lo. A informação sobre as Três Sereias absorvera-o tanto que quase se esquecera de telefonar à mãe, uma coisa que raramente acontecia. Uma vez que a leitura da carta o atrasara, tinha conversado com a mãe durante cinco minutos apenas. Prometera reservar-lhe mais tempo quando ligasse para o seu gabinete depois do almoço. Porém, estava agora menos certo de desperdiçar mais tempo com ela.

     À medida que dirigia, analisava o conteúdo da carta da Dra.. Haiden. Seus estudos em comportamento sexual comparado eram, na sua maior parte, de segunda mão, baseados nos escritos e memoriais de observadores e camaradas etnólogos. Fizera apenas duas viagens, e estas de importância secundária, bastante curtas: na primeira, para reunir material para sua tese de doutorado, passara seis meses numa reserva hopi (a mãe instalara-se num hotel próximo); na segunda, subsidiada pelo Instituto Polar da Universidade do Alaska, passara três meses entre as Aleutas, nas ilhas que ficavam a pouca distância da costa (a permanência fora interrompida devido à doença da mãe, em Denver). Em nenhum dos casos se adaptara bem à vida de campo. Não sentia qualquer afeição pelos primitivos e não lhe agradava o desconforto. Tinha, com muito prazer, trocado as Aleutas pela cabeceira da mãe. Dissera-se que a participação ativa e a observação não eram necessárias. Não pintara Leonardo da Vinci A última Ceia sem ter a ela assistido? Não escrevera o seu grande mestre, Sir James Frazer, The Golden Bough, uma obra imortal, sem ter visitado uma vez sequer uma sociedade primitiva? (Uma anedota apoiava-o. William James perguntara a Frazer: “Quero que me fale dos aborígines que conheceu”, e Prazer respondera: “Que Deus me perdoe!”).

     Contudo, a despeito da sua relutância em viajar, Orville teve de admitir que a perspectiva de uma visita às Três Sereias o fascinava tanto como os costumes sexuais de todas as ilhas dos Mares do Sul. De uma maneira ou de outra era mais atraente, menos rigorosa e repugnante do que os hopis e as Aleutas. Sempre o tinham fascinado as orgias praticadas pelo grupo ariori de Taiti, o coitus interruptus praticado na Tikopia, o desagrado que inspiravam aos nativos de Pukapuka as carícias feitas nos seios, e o prazer que sentiam em arranhar-se durante o ato sexual, o aumento do clitóris praticado na ilha da Páscoa, a aceitação do desvirginamento em massa praticado em Ra'ivavae.

     A julgar pela carta da Dr.a Hayden, os costumes da tribo das Três Sereias prometiam coisa bastante mais interessante, e Orville imaginou que isto poderia trazer novas perspectivas para seu trabalho. Demais, embora conhecesse a Dr.a Hayden apenas superficialmente, conhecia muito bem o filho, Marc, com quem tinha muito em comum. Trabalhar com Marc no campo seria muito agradável. Contudo, sabia também que estava apenas sonhando acordado. Era para ele impossível participar de tal aventura. A mãe não o permitiria. A irmã, Dora, faria uma cena. E além disso, se partisse, alienar-se-ia de Beverly por completo, se isto não tivesse já sucedido. Teria de declinar o convite, apresentar seus agradecimentos à Dr.a Hayden, esta noite, e pedir-lhe que transmitisse os melhores cumprimentos a Marc e à esposa.

     Com isto decidido, Orville deixou o carro no parque de estacionamento de Welton e dirigiu-se para o cinema, que ficava a umas dezenas de metros. Ao entrar no átrio da sala, vazio, perguntou-se quanto tempo demoraria este filme francês a passar e se mereceria o tempo que ia gastar. Há cerca de um ano, a C. S. W. A., inspirada pelos editoriais do Post de Denver, criara a sua Comissão de Censura e convidara-o a servir de censor. Não desejara qualquer remuneração - um serviço prestado à comunidade, dissera de si para si -, pois a publicidade pessoal favorável que obteria do Post seria suficiente. Em geral, esta tarefa era do seu agrado. Podia ver filmes estrangeiros, e também alguns de Hollywood, numa forma que o público não veria. Este conhecimento proibido tornava-o um objeto de interesse nas reuniões mundanas. Além do mais, gostava de pensar que estava salvando a cidade das influências corruptas e a elevar o seu tônus moral. Tirava certa satisfação da consulta das estatísticas: dos trinta filmes examinados nos últimos meses era responsável pela proibição de quatro, pelo expurgo de muitas cenas de quinze e por pequenos cortes em mais seis. Os vizinhos elogiavam sua inteligente vigilância.

     No interior do cinema encontrou três membros da comissão, que esperavam nos camarotes. Com um sorriso, e cumprimentos corteses, apertou a mão de cada um deles - primeiro da Sra. Abrams, uma mulher pequena e vivaz que se parecia com qualquer coisa que se tivesse escapado de um termômetro partido; depois da Sra. Brinkerhof, que dava a impressão de um jogador de basquetebol com um chino feminino cinzento, e por fim da Sra. Van Horne, que o fazia sempre recordar um prato bem servido, gelatinoso, surpreendendo-o o fato de ela não ter uma maçã na boca.

     A Sra. Brinkerhof fez imediatamente um sinal ao operador. As luzes da sala foram apagadas e os títulos principais perpassaram pela tela. Orville afundou-se na sua poltrona de couro, ergueu os óculos no nariz e passou os olhos pela legenda principal - Produções Versailles apresentam Monsieur Bel-Ami, de Guy de Maupassant.

     Orville estava bem preparado para o que se ia seguir. Na noite anterior lera uma sinopse da novela original de Maupassant, publicada em 1885 e passada naquele período. Lera também o folheto publicitário da companhia distribuidora e soubera que o filme modernizava o enredo da novela que se passava agora em 1960. Quanto ao resto, as personagens - o jornalista e velhaco, Georges Duroy; as mulheres que ele seduziu, Madeleine Forestier, Clotilde de Marelle, Basile Walter; os protetores que traiu, Charles Forestier, M. Walter - e o enredo - a história da ascensão de Duroy de desconhecido jornalista a cavaleiro da Legião de Honra e candidato à Câmara dos Deputados - e o local - Paris e Cannes - tudo seguia fielmente a novela.

     Orville fixou os olhos na tela, concentrado. Viu o vôo do avião de transporte de tropas, que partira da Argélia. A seguir, a aterragem no aeroporto de Orly. Os ocupantes do avião, veteranos desmobilizados das forças combatentes francesas da Argélia, lançavam-se nos braços de parentes e amigos. Apenas um deles não fora acolhido por ninguém - o alto e belo Georges Duroy, que observava os outros e se dirigiu depois, manquejando, para o ônibus que os aguardava. A cena dissolveu-se. Em seguida, surgiram os Campos Elísios, a meio da tarde; Duroy passeava, examinando um cartão que trazia na mão, procurando uma casa. Depois, passou-se para a redação de La Vie Française, onde o editor, Forestier, dava alegremente as boas-vindas a seu antigo colega do Exército, Duroy. Seguiu-se um interminável diálogo entre os dois camaradas e por fim Duroy conseguia um lugar no jornal. De súbito, a mulher de Forestier, Madeleine, entra em cena, e é apresentada ao velho amigo do marido.

     Juntamente com Duroy, Orville estuda Madeleine. Quem quer que fosse a atriz, a verdade era que tinha busto e nádegas magníficos e olhos afrodisíacos. Um veterano dos filmes franceses, Orville sabia que se aproximava o momento capital; assim, tirou do bolso o livro de notas e a caneta luminosa. Não seria decepcionado. Forestier convidara Duroy a passar uns dias na sua casa de campo, próximo de Chartres. Quando chegou, Duroy soube que o amigo estava de cama, com uma doença nos brônquios. Apenas Madeleine o recebeu. Depois, seguiu-se o esperado encadeamento, e mais outro, e outro ainda, e de súbito a caneta de Orville estava sem tinta. Madeileine, de minúsculas calcinhas rendadas, e sem mais nada no corpo, achava-se deitada na cama de uma cabana da floresta, a um quilômetro de distância da casa de campo. Tinha os olhos cerrados, os lábios apertados, os amplos seios nus, e Duroy, visto apenas a partir da cintura para cima, nu, movia-se na cena e sentava-se ao lado dela. Madeleine enroscou-se, murmurou qualquer coisa em francês, e ele acariciou-a, sussurrou também qualquer coisa e inclinou-se, lentamente, sobre ela...

     Daí por diante, durante quase meia hora, a caneta de Orville arranhou o papel do seu bloco de. apontamentos... a indecência do prazer sem disfarce de Madeleine nos seus encontros carnais com Duroy... a cena repugnante entre o rico proprietário do jornal, M. Walter, e sua esposa, Basile, em que a impotência dele era glosada com humor... a chocante, impudica sedução de Basile por Duroy num compartimento do wagon-lit a caminho de Cannes... os sórdidos planos em que intervinham jovens estouvadas em biquíni na Riviera, os ângulos, os grandes planos anatômicos!... O encontro de Duroy com Suzanne, filha de Basile Walter, e suas apaixonadas acrobacias no espaço úmido de uma cabana... Duroy fazendo chantagem sobre suas mulheres, a fim de adquirir poder, e não retribuindo seus favores.

     As luzes acenderam-se. Orville refletiu no que vira. Segundo sua opinião, todo o filme devia ser proibido. Porém, não queria que só ela prevalecesse. Se a comissão houvesse gostado do filme, não levantaria objeção alguma. Não desejaria que o julgassem puritano.

     Voltou-se no seu lugar.

     - Bem, minhas senhoras, que pensam?

     A julgar por suas expressões, vítreas, distantes, elas tinham gostado muito. Nenhuma respondeu durante alguns momentos. Depois, a Sra. Abrams ousou pronunciar-se:

     - É um pouco forte aqui e ali e não penso que o herói constitua um bom exemplo de homem, mas... - Ela hesitou, acrescentando em seguida: -... penso que o filme tem mérito artístico.

     - Sim - concordou a Sra. Brinkerhof -, mérito artístico.

     - Oponho apenas uma restrição - disse por sua vez a Sra. Van Horne. - Terá de ser “Só para adultos”.

     Depois de todas terem emitido sua opinião, Orville sabia o que se esperava dele. Afinal, pensou, os maridos eram homens importantes.

     - Estou satisfeito por compartilharem da minha opinião - afirmou vivamente. - Creio que devemos insistir num bom corte... a cena da impotência, que é feia e nada acrescenta ao filme, e talvez cinco ou seis cortes menores. Posso indicá-los?

     As mulheres, sofrendo de culpa coletiva, desejavam expiar esta culpa, estavam ansiosas por ouvir mencionar os cortes. Orville, no tom monótono com que sempre falava nestas ocasiões, leu alto as sugestões que registrara no bloco de apontamentos. A concordância da comissão foi unânime e dada com alívio. Agora que sua missão terminara, todas pareciam alegres, romanticamente enriquecidas e libertas de sua vergonha interior.

     Depois de se despedir delas e de abandonar o teatro, com mais um sensato compromisso estabelecido, levava um simples enigma consigo. Este enigma era antigo e formulado numa só palavra: mulheres. Era doutor em antropologia. Quantos anos passariam antes de ser doutor em mulheres? Quando chegaria ele, ou qualquer outro homem, a compreendê-las?

     Uma vez dentro do carro, a caminho do seu gabinete, reviu o filme, o que lhe dera prazer e o que merecera seu desagrado, e recordou as poucas mulheres que conhecera: pensou na mãe, na irmã e em Beverly. Depois de estacionar o carro no local do costume, no parque da rua Arapahoe, e de se dirigir para o gabinete, compreendeu o que, nas suas reflexões, o perturbava. Afinal, não desejava ser Sir James Frazer, mas Georges Duroy. A mãe e Dora não gostariam disso, decerto, mas eis o que desejava neste momento. Bem, elas não necessitariam de se preocupar, este estado de espírito passaria.

     E este estado de espírito passara no momento em que entrou na sala da recepção da suíte onde tinha seu gabinete. Ouviu a secretária dizer ao telefone: “Um momento, por favor, talvez esteja chegando.”

     Fitou-a interrogativamente.

     Ela colocou a mão sobre o bocal do telefone e disse...

     - É sua mãe, Dr. Pence.

     . Sem consultar o relógio, soube que deviam ser duas horas, exatas. Consultou-o e verificou que assim era.

     - Muito bem, diga-lhe que espere um segundo. - Ao dirigir-se para seu gabinete recordou-se que não tinha almoçado.

     - Gale - chamou -, logo que ligar o telefone para aqui mande buscar alguns sanduíches. Bife... com molho, e leite desnatado.

     Depois de fechar a porta tirou o chapéu e o casaco e em seguida instalou-se na cadeira giratória atrás da ampla secretária de carvalho. Pegou no fone.

     - Olá - disse, fazendo uma pausa para que Gale, sabendo que a ligação estava estabelecida, deixasse a linha. Quando ouviu o clique que indicava que estava só com a mãe, a sua voz despiu-se da sua dignidade profissional. - Olá, mamãe, como está?

     Teve a impressão de que a voz de Crystal se tornava mais aguda, gritante, à medida que os anos decorriam.

     - Sabe bem o que se passa comigo, tudo se mantém na mesma - dizia ela. - A pergunta é: como está o meu rapaz? - Ele franziu a testa ao ouvir o “meu rapaz”; porém nunca tivera coragem para recordar à mãe de que lhe dera um nome quando o batizara. Ela continuou: - Dá a impressão de estar cansado esta manhã. Trabalhou toda a noite? - Tentou dizer que trabalhara até tarde, mas ela não escutava; assim, desistiu.

     - Consegue dormir como um bebê - dizia a mãe. - Desejaria poder afirmar quanto invejo a gente feliz que coloca a cabeça sobre um travesseiro, e adormece num instante. Talvez eu tivesse vivido já demasiado tempo! Quanto mais velho se é mais dificuldade se tem em dormir. - Ele assegurou-lhe que não tinha vivido demasiado tempo. Ela escutava desta vez, pois respondera: - É um amor quando quer; continue sempre assim, meu rapaz. Muitos filhos, ao crescerem, esquecem-se das pessoas que são importantes para eles. Os amigos acabam por desaparecer. Não se pode confiar neles. Só com uma mãe se pode contar. Lê-se constantemente nos jornais que muitas mães dão a vida pelos filhos, se sacrificam, por eles. Ah, meu rapaz, um dia há de compreender. Mas que dizia eu... não consegui dormir toda a noite... os comprimidos não me fizeram nada... e os sonhos, os sonhos perseguem-me... as pessoas não são capazes de compreender antes que o mesmo lhes aconteça. Quando são velhas e isto sucede compreendem então. Os comprimidos não prestam, meu rapaz, tudo é diferente, e não podemos confiar sequer no nosso próprio médico. Quando era nova, o médico dava a impressão de ser um membro da nossa família. Ele não nos mentia, não nos puxava pelos cordões da bolsa, não se aproveitava das nossas dificuldades, não nos receitava comprimidos de açúcar e dizia que os nossos males se achavam na mente. Na mente... que disparate! O que sinto nos ossos não se encontra na mente. Meu rapaz, se você conseguisse sequer imaginar como me sinto hoje uma inválida... meus braços parecem-se brasas, e meus pés, meus artelhos... Que tortura...

     Ela está lançada, pensou Orville. Durante, pelo menos uns três minutos não teria uma abertura para pronunciar sequer uma interjeição. Com o aparelho apertado entre o ouvido e o ombro, tossindo levemente uma vez por outra para a fazer supor que se achava atento, mas escutando menos de metade da súmula dos seus achaques, que teriam enriquecido a Anatomia da Melancolia, de Burton, Orville começou a separar a correspondência. Pondo de parte a carta da Dr.a Maud Hayden, à qual dedicaria mais tarde a sua atenção, abriu, um por um, os outros envelopes, indicando com uma marca que devia responder a esta carta, arquivar aquela, e lançar fora aqueloutra. A última carta, de um comerciante de livros raros de Paris, anunciava com júbilo que um belo exemplar da edição de 1750 de Argumento Contra a Introdução dos Cintos de Castidade, de Freydier, fora localizado. Satisfeito por o preço apresentado ser tão razoável, Orville escreveu na carta: “Responder e dar instruções imediatamente para a compra. “ Restava a pilha de revistas. Uma vez que gostava de lhes prestar mais atenção, Orville as colocou de lado até se encontrar livre.

     Permitiu que a mãe continuasse durante mais um minuto e depois interrompeu-a.

     - Mamãe, escute... Mamãe, tenho uma chamada interurbana, de Pensilvânia... Sim, mamãe, deve ir a esse novo médico se ele é o que toda a gente diz... Sim, sem dúvida, levá-la-ei lá... Estou aí às duas e meia, amanhã...

     Não, não me esqueço... Sim, prometo. Muito bem, mamãe, muito bem. Adeus.

     Colocou o fone no descanso e ficou imóvel, surpreendido, como sempre, devido ao esgotamento que sentia no fim destas conversas. Um minuto depois, já mais descontraído, aproximou a cadeira giratória da secretária e começou a tirar a cinta das revistas. Como parte do seu estudo sobre o comportamento sexual comparado, Orville assinava as revistas pornográficas e picantes mais conhecidas do mundo. Alguns anos antes visitara o Instituto de Pesquisas sobre o Sexo, do falecido Dr. Alfred Kinsey, em Bloomington, Indiana, e ficara impressionado com sua valiosa coleção erótica. Nos interesses da pesquisa, iniciara sua própria coleção, e agora, todas as semanas, anotava e arquivava diversos artigos, histórias e, o mais importante de tudo, desenhos e fotografias. Infalivelmente, Orville considerava esta parte do dia a mais compensadora e apetecível. Gale tinha instruções para não o perturbar com telefonemas ou visitas durante a meia hora que se seguia' ao tempo da conversa com a mãe. Durante esta meia hora folheava as revistas, sem as anotar ainda, a fim de se decidir sobre o que era útil e sobre o que não era. No fim da semana levava-as para seu apartamento e percorria-as com grande atenção, fazendo então suas notas.

     Cautelosamente, pegou na primeira revista, de capa lustrosa, que se encontrava na pilha, que continha sete. Esta era uma das suas favoritas, Clássicos da Beleza Feminina, uma bela publicação trimestral editada em Nova York, inestimável contribuição para qualquer estudo sobre os costumes sexuais americanos. Voltou as páginas com lentidão - aqui, uma ruiva de calças brancas e braços cruzados sobre os seios nus; ali, uma loura platinada encostada ao umbral de uma porta, inteiramente nua, com exceção de uma tira negra sobre a área vaginal; mais adiante, uma morena, mergulhada na água até aos joelhos, com o traseiro nu e as costas voltadas para a máquina; por fim, uma jovem muito bela, em pose de corpo inteiro, diante de uma cama de baldaquim, com um casaco de malha que lhe chegava até aos quadris, mas desabotoado para revelar os bicos enormes dos seios, e seguro pelo último botão a fim de dissimular as partes íntimas.

     Orville manteve os olhos fixos no corpo da jovem provocante que se encontrava diante da cama de baldaquim. Tinha, como sempre, uma expressão de incredulidade. Este rosto era doce e casto como o de uma madona. O rosto, a pele, os seios, o ventre e as coxas eram jovens e frescos, perfeitos. Ela não teria mais de dezoito anos. Contudo, ei-la aqui, com tudo exceto o último segredo exposto a milhares e milhares de olhos ardentes. Como poderia ela fazer isto, e por quê? Não teria mãe, pai, irmão? Não ia à igreja? Não desejava guardar um vestígio de decência para um amor duradouro? A nudez e estas posturas tão naturais tinham sempre chocado Orville. Esta bela adolescente teria entrado num estúdio, despido todas as peças de vestuário, vestido um ridículo suéter, e nada mais, recebido instruções de um estranho, ou de estranhos, sobre como devia revelar os seios ou dissimular parte do corpo, utilizando o último botão. Deus do Céu, por que faria ela isto? Quando estendia os braços, caminhava ou tomava várias poses, revelava tudo aos estranhos? Que prazer retirava disto? Elogios, adulaçao? O prazer perverso do exibicionismo? Uma retribuição em dinheiro? A esperança de que algum produtor de filmes visse a fotografia e a convidasse a comparecer a seu estúdio? Que era, então?

     Ainda estudando a jovem e o cenário que a rodeava, Orville perguntou-se onde se encontrariam tantas destas adolescentes que se despiam com tal impudor. Que aconteceria se quisesse examinar algumas delas - a adolescente que se encontrava diante da cama de baldaquim, por exemplo - para fins clínicos? Posaria ela para uma das maiores autoridades americanas sobre questões sexuais? E em caso afirmativo, responderia às suas perguntas, sem vacilar?

     De súbito, ao fixar os indecorosos botões dos seios, cor de púrpura, Orville franziu o sobrolho. Jovem cadela pecadora, pensou. Cortesã flamejante, em posição tão lúhrica, para excitar uma infinidade de impotentes, de solitários, posando de maneira tão indecente para escarnecer de tudo o que era sagrado, sacrossanto, da procriação e do amor... Nenhum castigo seria demasiado para estas prostitutas. Uma frase desgarrada, e ainda outra, penetravam na mente de Orville. “Uma grande mercê foi-me concedida. A noite passada coube-me o privilégio de trazer uma alma aos braços amorosos de Jesus. “ Mas que era isto? Onde ouvira, lera, esta frase? Recordou-se então. O reverendo Davidson falava da Srta. Thompson.

     Com um suspiro, Orville retirou os olhos da fotografia da adolescente e continuou a folhear a revista. Quando terminou, pegou nas outras, uma por uma, não se permitindo mais cogitações ou solilóquios filosóficos. Quase meia hora mais tarde o exame científico estava concluído. Colocou as revistas, com cuidado, sobre as outras no topo da sua estante, onde ficariam até ao fim da semana, e voltou à secretária a fim de passar os olhos sobre o Post de Denver antes de começar a ditar.

     Depois das revistas, o jornal favorito de Orville parecia fastidioso. Percorreu os títulos apressadamente com os olhos, e também as diversas colunas, que falavam desde a guerra à política, desde os acidentes aos divórcios, tudo deplorado. Porém, quando chegou à sétima página, um título que encimava uma pequena notícia sem importância deteve sua atenção e fê-lo endireitar-se na cadeira. Eis o título: PROFESSOR INGLÊS NOIVO DE UMA JOVEM DE BOULDER.

     Uma vaga sirena de alarme soou num recesso do cérebro de Orville. Debruçou-se sobre a notícia e leu-a sofregamente, relendo-a em seguida com lentidão. As frases atingiram-no como bastões... “O Dr. Harvey Smythe, professor de Arqueologia de Oxford, que se encontra lecionando... a Srta. Beverly Moore, funcionária da administração da Universidade do Colorado... surpreendeu os amigos... partiram para Las Vegas ontem para se casarem... voltaram a noite passada... segundo casamento do noivo... no próximo ano fiixar-se-ão na Inglaterra, onde o Dr. Smythe... os colegas da faculdade oferecerão esta noite uma festa... “

     Orville deixou tombar o jornal sobre o tampo da secretária. Manteve-se imóvel, sofrendo a sua dor silenciosa, com os olhos vítreos fixos na pequena notícia, a sua urna.

     Beverly Pence era agora Beverly Smythe, agora e durante toda a eternidade, para sempre, irrevogavelmente.

     Mesmo na sua dor Orville mostrou-se razoável. Não censurou Beverly Moore. Não era vítima dela. Censurou a mãe e a irmã. Era vítima de ambas, a presa de dois tiranos sanguinários, mártir das duas, e também de seus pálidos cromossomos e genes.

     Após muitos minutos de mudez total, dobrou o jornal que se encontrava diante de si e lançou-o para a cesta de papéis. Em cima da secretária restavam apenas os fragmentos da sua correspondência aberta, num lado, e a carta da Dr.a Hayden, noutro.

     Pegou no fone e manteve-o imóvel diante de si. Seu primeiro pensamento foi telefonar à mãe e dizer que teria, se quisesse, de tomar um táxi para se dirigir ao consultório desse maldito médico, amanhã. Porém, chegou à conclusão de que o telefonema para a mãe poderia esperar. Em vez dele, pediria a Gale que ligasse para Colorado Springs.

     Aguardou, absolutamente tranqüilo, gozando estes momentos de espera.

     Quando ouviu a voz da irmã, sentiu prazer em notar que era estridente, aguda, como a da mãe.

     - Dora? Fala o Orville.

     - O que está havendo, para você telefonar ao meio do dia? A que se deve esta grande surpresa? Mamãe está bem?

     Não fez caso do que se seguiu.

     - A grande surpresa é esta, Dora... Vou passar fora o verão... no Sul do Pacífico... a fim de colaborar num estudo da Dr.a Maud Hayden. Desejei que fosse a primeira a saber... de modo que não se queixasse depois de que dispunha de pouco tempo para se preparar... quando tiver de vir buscar mamãe.

     - Orville, você está...

     - Estou de partida, Dora, e você de regresso, você e o Vernon. Bon voyage, Dora, e um feliz Dia das Mães.

     Pousou o fone no descanso e o pequeno grito da irmã morreu na garganta do telefone.

     O coração doía-lhe; mas agora, por fim, podia sorrir.

      

     Depois de ter arquivado as cópias das cartas dirigidas ao Dr. Orville Pence, ao Dr. Walter Zegner, ao Dr. Sam Karpowicz, à Dr.a Rachel DeJong, e de ter passado os elementos recebidos nesse mesmo dia, Claire Hayden, acompanhada por Maud, desceu as escadas a fim de comer um almoço ligeiro com Marc na cozinha. Depois, Marc voltou às suas aulas e Claire e Maud subiram uma vez mais ao estúdio.

     Agora, à uma e cinqüenta e cinco da. tarde, Claire sentou-se à mesa da máquina de escrever, que se encontrava ao lado da sua pequena secretária, e começou a transcrever, das notas estenografadas, uma carta para o professor Easterday, sobre problemas correntes, que Maud ditara mais cedo. Quando chegou a um parágrafo deteve-se, desabotoou o suéter, tirou os sapatos de salto baixo e inclinou-se sobre a, secretária a fim de tirar um cigarro da caixa. Ao acendê-lo, viu Maud no sofá, absorvida na leitura, e tomando por vezes notas, de Os ültimos Selvagens, de Radiguet.

     Surpreendida com esta capacidade de Maud para se concentrar, Claire voltou a seu trabalho. Apertava uma tecla quando o telefone, atrás da máquina de escrever, retiniu. Pegou o fone e respondeu. Era uma chamada interurbana.

     Escutou, e depois disse:

     - Um momento, por favor. Vou chamá-la... Maud, telefonam de Los Angeles. Cyrus Hackfeld.

     Maud, como se impelida por uma mola, ergueu-se do sofá.

     - Oh, querida, espero que não tenha surgido algum contratempo em relação ao jantar desta noite.

     Claire passou o fone e sua cadeira a Maud, e atravessou a sala, fumando, ouvindo.

     - Sr. Hackfeld... Como está? - O tom de Maud exprimia uma vaga réstia de angústia. - Espero que nada...

     A voz extinguiu-se e ela escutou, atenta,

     - Bem, sinto muito prazer em que venha... Às oito, sim, é a melhor hora.

     Escutou de novo.

     - Referiu-se a Rex Garrity? Não, nunca tive esse prazer, mas, decerto, já ouvi falar dele, como toda a gente, aliás... com todos aqueles livros...

     À menção do nome de Garrity, Claire, que se achava agora junto do sofá, concentrou-se mais. Tanto ela como Maud escutavam com grande atenção.

     Maud falava.

     - É isso que o preocupa? Ora, não necessitava de ter telefonado por tão pouca coisa. Decerto que pode vir. Dar-nos-á muito prazer tê-lo conosco, acredite. Diga-lhe que o jantar não é de cerimônia... Estilo polinésio. - Riu, esperou, e depois volveu: - A Sra. Hackfeld acompanhá-lo-á, claro. Terei muito gosto em tornar a vê-la. Não se esqueça de dizer que os Loomis também vêm. Penso que gosta deles... Até logo, Sr. Hackfeld. Estamos ansiosos para recebê-los em nossa casa. Adeus.

     Depois de ter pousado o fone no descanso, Maud sentou-se na cadeira giratória para um intervalo de meditação. Porém, apercebendo-se da curiosidade de Claire, ergueu-se.

     - Ele desejava saber se podia trazer um convidado. Rex Garrity estava no seu gabinete, e como tivesse mencionado as Três Sereias, Garrity mostrou interesse em vir. - Fez uma pausa. - Sabe quem é Rex...

     - Lê-lo é detestá-lo - volveu Claire alegremente. - Passei umas férias de verão, quando estava no colégio, lendo todas as suas obras. Pensei então que ele era a figura mais romântica do momento. Quando fui para a universidade tive de reler parte dessas obras, a fim de me preparar para um exame, e a meio vi-me obrigada a mandar buscar Dramamine.

     - Para que serve isso?

     - Para combater a náusea provocada pelo movimento. Oh, aqueles pavorosos atos de heroísmo, estúpidos, teatrais. No Rasto da Aventura - a travessia a nado do canal de Suez, a escalada de Ixtacchihuatl, a Dama Adormecida... tudo para lhe dizer que a amava..., uma noite na tumba do Rei Tut... E os outros, Na Pegada de Aníbal, Seguindo os Passos de Marco Polo, Seguindo a Sombra de Ponce de Léon, Em Vôo com Lord Byron... Que fancaria... Demais, com aquele estilo de folhetim barato, cercado por uma floresta de pontos de exclamação...

     Maud encolheu os ombros.

     - Suponho que tem lugar...

     - No lixo.

     - Mas vendem-se aos milhares.

     - É demasiado objetiva quando se trata de pessoas - volveu Claire. - Ele e o resto desses românticos de meia tigela corromperam uma geração com mentiras. Ocultou a verdade acerca das realidades do mundo em que vivemos. E falo como uma romântica, bem sabe.

     Maud hesitou.

     - Li poucos dos seus livros, admito, mas os que li... Em resumo, concordo com você. Todavia, ele pode ser um conviva perfeitamente agradável ao jantar.

     - Decerto, Maud, dou-lhe também uma oportunidade. Pensativa, Maud dirigiu-se para o sofá.

     - Lealmente, preocupa-me apenas o seguinte: terei dificuldade em falar a sós com Cyrus Hackfeld, com este Garrity aqui... e com Lisa Hackfeld também. Não posso contar com os Loomis, para distraí-los.

     - Pode contar com Marc e comigo - disse Claire. - Afaste-se com Hackfeld, depois do jantar, que farei o possível por entreter o nosso autor de livros de viagens e a Lisa Hackfeld. De fato, pouco me preocupa Rex Garrity. Estou certa de que nada lhe dá mais prazer do que falar de seus antigos triunfos. - Fitou Maud. - Lisa Hackfeld é quem me causa mais apreensões. Não sei se o Rex será capaz de ligar bem com ela. A única referência que tenho de Lisa, e esta feita por você, é que ela é frívola.

     - Frívola? Disse isso?

     - Pensei...

     - Talvez tivesse dito. Bem, não passa contudo de uma primeira impressão. Fui injusta. A verdade é que não a conheço; porém, desejava conhecê-la agora.

     Até este momento-, Claire não compreendeu a importância que Maud atribuía ao jantar. De certo modo, acreditara que, se o vultoso subsídio que Maud desejava era uma coisa tão crucial, ela poderia ter-se avistado com Hackfeld no escritório deste. No entanto, apercebia-se agora de que a sogra não desejara discutir o subsídio num ambiente comercial, onde Hackfeld era senhor absoluto e costumava dizer não. Maud quisera debater o caso depois do jantar, entre um fino conhaque, numa atmosfera suave, agradável, onde a áspera palavra “não” estaria deslocada. Áo compreender isto agora, e o significado de um subsídio substancial, Claire decidiu mitigar as inquietações da sogra.

     - Acho que não nos devemos preocupar com o encontro desta noite - disse Claire com firmeza. - Os ricos, em geral, não fazem aquilo que não desejam fazer. Se a Sra. Hackfeld não estivesse interessada em você, Maud, e no projeto, não se daria ao trabalho de vir aqui esta noite. Eis o que penso. Pode deixá-la, e ao Garrity, ao cuidado de Marc, com uma certa assistência da minha parte. Talvez que, no momento em que o jantar terminar, já tenhamos conseguido conquistar Lisa Hackfeld... para depois retê-la.

      

     As cinco e dez da tarde, Lisa Hackfeld fez volta com o seu Continental branco na aléia que conduzia à vasta mansão de dois andares em Bellagio Road, Bel-Air, e estacionou o carro na garagem.

     Fez soar duas vezes a buzina para que Bretta, a sua criada pessoal, viesse buscar os diversos pacotes de I. Magnin que estavam colocados no assento de couro ao lado do volante; depois, abandonou o carro e, com ar fatigado, entrou em casa. No vestíbulo, tirou o lenço de seda que lhe tinha protegido o cabelo louro, deixou-o cair sobre um banco, estilo francês, Diretório, despiu o casaco comprido de pele de leopardo e, quase arrastando-o, dirigiu-se para a espaçosa sala de estar, onde o lançou no braço da poltrona mais próxima. Em seguida, passou, com indiferença, os dedos pela correspondência que se encontrava sobre a prateleira por cima da lareira, aproximou-se da mesa de café e folheou, sem interesse, o novo número de Harper's Bazaar. Por fim, dirigiu-se para o sofá e deixou-se tombar sobre as fofas almofadas, esperando com impaciência que Averil, o mordomo, aparecesse.

     Meio minuto depois, Averil surgiu com o duplo martini seco numa pequena bandeja revestida de laça.

     - Boa tarde, minha senhora. Não houve telefonemas.

     - Obrigada, Averil. - Pegou no copo. - Precisamente o que o médico ordenou. - Ele dirigiu-se para a porta, enquanto Lisa sorvia a bebida fresca. - Traz mais um dentro de quinze minutos - tornou ela -, e diz à Bretta que me prepare o banho.

     - Sim, minha senhora.

     Depois de o mordomo ter saído, ela bebeu, de um trago, metade do martini, fazendo uma careta após ter sentido o picante da bebida - tão parecido com o dos sais aromáticos -, acolhendo em seguida com agrado a invasão do líquido através dos membros. Era demasiado cedo para que a fizesse sentir-se melhor. Devia dar tempo à poção. Fez girar o copo entre os dedos, hipnotizada pelo reflexo da azeitona, e pousou-o depois em cima da mesa, diante dela.

     Inclinou-se para a frente, e, com os cotovelos espetados sobre os joelhos, censurou silenciosamente o martini por este não ter a magia suficiente para a curar.

     Não existia tal magia sobre a Terra, sabia, e, com as mãos colocadas sobre as têmporas, para que não pudessem ver seus olhos, começou a chorar. “Oh Senhor, oh Impostor”, pareciam dizer suas lágrimas, “não me disseste que tudo seria assim, não me avisaste de que tudo isto aconteceria. Este é o último dia da vida, e amanhã começará a longa, lenta e torturante descida aos limbos do esquecimento. “ No dia seguinte, às nove e três da manhã, iniciaria o quadragésimo ano da sua existência, e, rapidamente, muito rapidamente, ver-se-ia ante o pesadelo dos cinqüenta, dos sessenta, do fim. Eis no que' pensava Lisa. O dia de hoje tinha sido desperdiçado, compreendia ela, pois, não importa onde tentasse esconder, proteger, o último dia dos seus trinta e nove anos, descobrira que o Velho estava ali, impelindo-a com o cotovelo, com um sorriso na boca sem dentes, e que esperaria em cada Samarra.

     Compreendera, a partir do momento em que o sol filtrado tocara suas pálpebras, às dez horas da manhã, que o dia estava condenado, e que ela estava condenada, e que jamais tornaria a ser jovem. E compreendera o motivo por que, depois de ter despertado completamente e de a água do chuveiro tombar sobre o seu corpo, começara a pensar não no dia presente mas em todos os dias passados, desde a memória mais longínqua.

     Pensara na sua infância em Omaha, onde se chamara Lisa Johnson e onde o pai fora proprietário de uma loja de ferragens, perto da Union Stock Yards. Encantara-a ser a mais linda pequena da escola primária, a moça mais popular do colégio, a mais jovem atriz que jamais desempenhara um primeiro papel no Teatro da Comunidade de Omaha. Fora, com pouca aprendizagem, a melhor e a mais atraente cantora e dançarina da cidade. Muito naturalmente, partira para Hollywood - com uma amiga que contava também pouco mais de vinte anos - pronta a aceitar imediatamente o estrelato.

     Surpreendera-a o fato de, uma vez que fora a melhor e a mais atraente cantora e dançarina de Omaha, não atingir a celebridade em Hollywood, mas depressa verificou que em Hollywood vegetavam tantas com iguais talentos. Levara uma vida gregária, fizera muitos amigos, e um deles, um agente, arranjara-lhe trabalho como corista em quatro deslumbrantes comédias musicais produzidas pelos estúdios mais importantes. Isto a nada a conduzira. Depois, gravara algumas canções para programas radiofônicos comerciais e participara do show de um dos clubes noturnos menos seletos. Gastara uma boa parte do dinheiro ganho tentando aprender a representar num pequeno teatro de La Brea Avenue, e fora a este teatro, nos primeiros dias do pós-guerra, depois de ter sido desmobilizado como oficial de abastecimentos, que Cyrus Hackfeld viera como espectador. Vira-a e apaixonara-se por ela, e conseguira, habilmente, ser-lhe apresentado. Embora fosse quinze anos mais velho do que Lisa, Cyrus era mais jovem do que os jovens com quem ela saía. Era mais ativo, mais dinâmico, mais próspero. Um ano depois casara com ele, e sentira-se feliz, segura, rica.

     Recordara tudo isto sob o chuveiro e ficara surpreendida ao verificar a rapidez com que se tinham escoado os seus dezessete anos de vida de casada. Durante estes anos, a única sobrevivência da sua carreira fora o interesse que sempre manifestara pela dança. Continuara esporadicamente com as lições e depois cada vez com mais irregularidade quando o filho, Merril, que tinha as suas maneiras e não a energia impulsionadora do pai, entrara para uma escola secundária do Arizona. E ei-la agora, coisa incrível, apenas com um dia entre si e os quarenta anos.

     Durante toda a manhã tentara encarar o fato com filosofia. Pensara que os calendários constituíam, afinal, fraudes inventadas pelos homens, sendo, portanto, arbitrários. Se os calendários e os relógios não tivessem sido inventados, se não se contassem os movimentos de translação da Lua, não se conheceria uma idade específica, ser-se-ia sempre jovem. Como, num dia apenas, se poderia passar de jovem a velho? Era uma tolice falaz.

     Todavia, apesar de pensar profundamente no caso, não se sentira mais tranqüila. Primeiro, recordara o passado, o que toda a gente dizia constituir um sinal de maturidade. Depois, pensara em Merril e compreendera que não se podia ter um filho daquela idade e manter-se ainda assim jovem.

     Em seguida, pensara em Cyrus, lembrando-se de que ele, outrora, fora apenas gordo e que era agora um paquiderme, que outrora tivera apenas uma pequena fábrica e agora possuía trinta e três (e a sua Fundação; as fundações eram criadas por velhos ricos, e não por jovens ambiciosos; mesmo que esta Fundação constituísse, além de uma distração, um ardil para evitar os impostos, representava uma passagem de muitos anos). Por fim, pensara em si própria.

     Noutros tempos seu cabelo fora de um louro natural, como o do linho, mas agora não fazia idéia do que era realmente, após uma década de loções e tinturas. O resto do corpo (se quisesse mostrar-se honesta para consigo mesma) modificara-se gradualmente de maneira que o rosto da mais linda moça de Omaha era agora o de uma mulher fanada, depois de exposto ao sol de demasiados anos. Tinha as faces mais arredondadas, carnudas, vincos na testa e linhas sob os olhos grandes e, aqui e ali, sulcos a que não queria chamar rugas. A garganta e as mãos eram o pior, pois não se tinham mantido retesadas e lisas. E o corpo, que já não tinha forma, parecia um O, denunciava a obesidade e eclipsava as curvas, tornava-se cada vez mais uniforme, embora a obesidade não fosse, felizmente, ainda muito pronunciada. Contudo, apesar da cilada da natureza, a essência que residia no seu interior não sucumbira aos anos. Uma certa centelha de sabedoria, adquirida nas reuniões mensais do Fórum Cultural, sintetizava seus sentimentos. Provinha de um desses dramaturgos ingleses que disfarçavam a verdade na comédia. Provavelmente, muito provavelmente, Oscar Wilde. Que exprimia essa sabedoria? Sim: a tragédia da velhice não reside no fato de se ser velho, mas de se ser jovem. Sim!

     Era esta a manhã execrável.

     Estava-se agora no fim da tarde. Lentamente, Lisa bebia seu martini enquanto refletia na derrocada das horas entre o despertar e este momento. Tentara escapar às recordações do passado e aòs espelhos da casa dirigindo-se para Beverly Hills, mantendo-se ocupada, gerando a atividade que a impedisse de pensar profundamente.

     Saboreando o martini, reviveu o princípio da tarde, como se participasse agora mesmo em cada ação e em cada evento, como se cada momento vivido pertencesse ao presente, não representasse somente o passado.

     Voltou ao meio-dia e trinta.

     Combinara encontrar-se à uma hora com Lucy e Vivian, a fim de almoçarem no mais novo restaurante escandinavo de Beverly Hills, O Grande Dinamarquês; porém, ao meio-dia e trinta pensou que podia adiar o encontro se conseguisse fazer que Cyrus almoçasse com ela. Vestia a sua última aquisição, um taílteur ornado verde-jade, que lhe subtraía tanto os quilos como os anos, mas demasiado bonito para desperdiçar com seu próprio sexo.

     Ligou para o marido e foi imediatamente atendida.

     - Lisa?

     - Olá, querido. Senti, de súbito, desejo de lhe telefonar.

     - Apanhou-me no último momento. Preparava-me para me dirigir para o clube, onde fiquei de me encontrar com Rex Garrity.

     - Oh! Quer dizer que tem um compromisso para o almoço?

     - Combinei este encontro há já algum tempo. Ele veio aqui proferir uma conferência e desejou avistar-se comigo, a fim de tratarmos de alguns assuntos sobre a Fundação. O almoço será breve e depois voltaremos aqui para... - Fez uma pausa. - Por que pergunta? Gostaria de se juntar a nós?

     - Não, não. Desejava apenas conversar um momento com você.

     - É possível que você apreciasse a companhia dele. É um ótimo conversador.

     - É muito amável, querido, mas não. De fato, combinei um encontro com a Lucy e a Vi.

     - É pena. Que vai fazer hoje?

     - Bem, este almoço. Depois, o cabeleireiro. Algumas compras. O costume.

     - Belo. Tenho de me apressar. Até logo.

     - Até logo, querido.

     Depois de desligar, dirigiu-se para Beverly Hills. Cyrus fora muito gentil em convidá-la, pensou, em especial no meio de um dia tão ocupado. Mas não tinha paciência para ouvir um escritor daquele gênero, que nunca vira ou lera, e que não tinha desejo de ver ou ler. Quisera estar só com Cyrus, sentada, conversando sobre isto e aquilo, sobre a vida de ambos, talvez. Tinham conversado muito poucas vezes durante todos estes anos, talvez por ele passar o dia falando no seu trabalho, talvez por ela se encontrar muito separada do verdadeiro mundo do marido (ou de qualquer coisa interessante), o que faria que agora nada tivessem que discutir, nada, isto é, além de Merryl, dos amigos, das novidades.

     Lucy e Vivian encontravam-se já no reservado quando ela entrou em O Grande Dinamarquês. Admiraram a sua indumentária. Lisa admirou a delas. Consumiram algum tempo com os aperitivos e escolhendo o menu. Tagarelaram acerca de uma amiga comum que se separara do marido e admitiram a possibilidade de haver outro homem metido no caso. Discutiram o desempenho de uma peça representada por uma companhia itinerante e que tinham visto em Baltimore. Falaram do último best-seller e discorreram sobre seu provável conteúdo autobiográfico, uma vez que suspeitavam que a vida da heroína era baseada na de uma escandalosa atriz de cinema. Falaram sobre o novo penteado da Primeira Dama. Quando o primeiro prato foi servido, Lucy e Vivian envolveram-se numa conversa interminável acerca das filhas. Lisa não participou dela e em dado momento estava cheia de tédio. As conversas sobre as crianças em pleno crescimento deprimiam-na; era como se fizesse o testamento. Desejava apenas falar de um assunto: o seu aniversário, mas as amigas não compreendiam ainda esta urgência, pois Lucy tinjia trinta e seis anos e Vivian, trinta e um. O tempo achava-se ainda a seu favor.

     Quando faltavam dez minutos para as duas e meia, hora que combinara comparecer ao cabeleireiro, sentiu muita satisfação em deixar a sua parte na conta e escapar-se. Podia ter ido a pé, porém, preferiu percorrer no seu Continental as poucas centenas de metros até Rodeo Drive e estacionar o carro no parque principal ao lado do Salão de Beleza Bertrand.

     Depois de entrar, deixou o casaco com a recepcionista, recebeu o robe e dirigiu-se para a sala de toalete privada. Após tirar o vestido e envolver-se no robe dirigiu-se para o salão de cabeleireiro, onde a jovem empregada a esperava. No caminho, retribuiu o gentil cumprimento que Bertrand lhe fez em francês e o aceno de Tina Guilford, que se encontrava sob o secador.

     Sentou-se na cadeira giratória e inclinou-se sobre a bacia para uma rápida lavagem da cabeça, seguida de loção. Sentiu o xampu e a água refrescantes, o que fez com que se descontraísse. O que mais lhe agradava no salão era o ritual da preservação e do realce da beleza. Este produzia uma agradável sensação de euforia que escoava toda a angústia do seu espírito. Tornava-se um objeto que não necessitava de tomar decisões. Tinha apenas um dever, estar ali, ser uma presença, existir, enquanto mãos hábeis cuidavam dela. Por vezes chegava a sentir-se uma espécie de... de Madame Pompadour.

     Automaticamente, Lisa entrou no cubículo particular, recebeu o capacete perfurado e sentiu as madeixas do cabelo puxadas lentamente através dos orifícios. Quando o seu cabelo foi aflorado, cada madeixa colorida e depois apertada, ela estendeu as pernas e ergueu a parte inferior da combinação até à cintura; uma segunda jovem, que trouxera a tina metálica de cera, retirou-lhe as ligas, que fez rolar pelas pernas, e depois os sapatos e as meias. Mirou fixamente a barriga das pernas, bem torneada, e teve prazer em verificar que não a tinham abandonado, como acontecera com a juventude. Preguiçosamente, observou a jovem ajoelhada à medida que esta batia as tiras de cera nas pernas com o instrumento de madeira e depois as puxava com rapidez, removendo pela raiz todos os pêlos que escapavam à vista.

     Depois da extração dos pêlos - as pernas ficaram lisas como mármore -, ela moveu-se ao longo da “linha de montagem”, com um vácuo na mente. Aplicaram-lhe uma segunda loção, mais completa, com a massagem, a lavagem, a escova dura e a toalha felpuda. Em seguida, entregou-se durante quinze minutos às mãos de Bertrand.

     Depois de colocada a rede, instalou-se debaixo, do secador, onde passaria a hora seguinte. Começara a sacudir a depressão da manhã quando viu Tina Guilford, já preparada para sair, aproximando-se dela. Não se importava de falar com Tina, pois, como esta tinha já cinqüenta anos, podia sentir uma certa superioridade sobre ela. Ergueu a mão e desligou o secador.

     - Lisa, querida - dizia, excitada, Tina Guilford -, não lhe quero roubar o tempo mas acabo de tomar conhecimento do mais espantoso milagre de Pasadena. Um médico suíço, que faz cirurgia plástica, abriu um consultório e as moças mostram-se delirantes, absolutamente delirantes. Ele é caro, bastante caro, mas todas dizem que vale a pena. Aplica um novo método descoberto em Zurique. A operação é rápida e passa completamente despercebida. Uma só sessão e acabam-se o queixo e o pescoço flácidos, os sacos sob os olhos... Se quiser que ele a trate do busto, minha querida...

     - Que a faz supor que desejo que me tratem do busto? - perguntou Lisa com um olhar gélido.

     - Ora, minha querida, pensei apenas... toda a gente fala nele... e quando se chega à nossa idade...

     Lisa esteve prestes a dizer: “A nossa idade... o diabo que a carregue; a sua idade, eis o que quer dizer, minha cadela. “ Porém, volveu:

     - Obrigada, Tina. Se alguma vez julgar isso necessário pedir-lhe-ei mais pormenores. Desculpe-me, agora. Preciso de sair daqui.

     Ergueu de novo o braço e pôs o secador a funcionar. As últimas palavras de Tina perderam-se no zumbido produzido pelo secador.

     Quando Tina se afastou o belo estado de espírito de Lisa desapareceu com ela. A impudência da amiga irritara-a. Aquela velha de cinqüenta e tantos ousara colocar-se ao nível de uma jovem de trinta e nove anos. Passado um momento a sua cólera abrandou, cedendo a vez ao desânimo. Tina, compreendia agora, desejava apenas mostrar-se gentil, pretendera ajudá-la, confiadamente. Devem ser já bem evidentes, pensou Lisa, os quarenta devem ser já bem evidentes para toda a gente. Sentia-se agora infeliz e desejosa de fugir deste antro de tagarelice.

     Depois de o cabelo ter secado, de Bertrand ter retirado os rolos e de lhe pentear artisticamente o cabelo, ao mesmo tempo que contava os seus enfadonhos triunfos em Paris, Lisa não conseguiu vestir-se com a rapidez desejada. Passados alguns minutos pagou a conta, distribuiu três generosas gorjetas e dirigiu-se para o carro, perguntando-se que método inventara aquele cirurgião suíço. Talvez dispusesse do derradeiro segredo. Talvez descobrisse também o meio de alcançar o rejuvenescimento interior. Essa cirurgia interior, não importa o que dissera Oscar Wilde, talvez merecesse todas as suas ações e títulos da Bolsa.

     Quando chegou ao carro, lembrou-se de que estava apenas a pouco mais de cem metros da loja de Jill. Há mais de um ano que não visitava esta loja de vestuário desportivo. Necessitava de umas calças justas, das usadas pelas jovens, para a primavera e para o verão, para usar no pátio e na casa de Costa Mesa. Com crescente otimismo em relação ao futuro dirigiu-se para a Jill.

     Esquecera-se de que só detestava a loja quando entrava nela. No momento que atravessava o espesso tapete que conduzia à sala vasta e quadrada dos espelhos, sentia vontade: de se voltar e fugir. Jill Clark, que era a proprietária da loja. mas nunca se encontrava ali, fizera questão de dar um ar de juventude à casa, este bem manifesto na decoração, no mobiliário, nos malditos espelhos, no corte dos shorts, das calças, das roupas de banho, nas empregadas, acima de tudo nas empregadas. Lisa via-as agora reunidas diante de uma coluna conversando. As empregadas eram todas jovens de aparência imaculada, de idades entre os dezessete e os vinte anos. O rosto delas, brilhante, não necessitava de make-up, e todas tinham seios altos e retos, ventres macios, ancas estreitas e traseiros regulares, lisos como uma tábua. Fumavam, usavam blusas de usar no mar, calças justas e sandálias abertas, douradas, e acolhiam os clientes com a arrogância e a insolência próprias da juventude. Eram repugnantes.

     Antes que Lisa pudesse voltar-se para se dirigir para a porta, uma adolescente flexível, de passo ligeiro, aproximou-se dela. Tinha uma chapa que a identificava como “Mavis”. O cabelo era platinado, o rosto estreito, perfeito, o corpomaleável. Confrontando Lisa, o seu olhar condescendente, caridoso, parecia o de uma jovem que tinha por obrigação atender mulheres velhas, fanadas, que procuravam abrigo na neve.

     - Em que posso ser-lhe útil, minha senhora?

     - Gostaria de ver as calças Capri que se encontram na vitrina.

     - As medidas?

     - Pode procurá-las no fichário da casa. Sou a Sra. Cyrus Hackfeld.

     Anunciou o seu nome, em vez de o pronunciar, mas Mavis ficou impassível, como se não o conhecesse. Quando a jovem se dirigiu para o balcão da caixa, Lisa, irritada, encaminhou-se para o cabide das calças.

     Com passo indolente, após um longo intervalo, Mavis voltou com um cartão.

     - As suas últimas medidas foram tiradas há três anos - disse ela significativamente.

     A cólera de Lisa veio à superfície.

     - São as mesmas ainda.

     Mavis procurou no cabide e tirou por fim um par de calças violeta.

     - Deseja vesti-las, Sra. Hakworth?

     - Sim. E o nome é Hackfeld.

     - Hackfeld, não esqueço... Por aqui.

     Trêmula, e por fim só, atrás da cortina, tirou rapidamente o casaco de leopardo, o vestido, a combinação curta e meteu-se nas calças apertadas. Tentou puxar o fecho, mas as calças não obedeceram. Tentou abotoar as calças pela cintura mas alguns centímetros separavam o botão do buraco. Rodou sobre os calcanhares e observou-se ao espelho; viu que as calças eram demasiadamente apertadas, impossivelmente apertadas, mostrando feios bojos nas ancas e nas coxas. Cheia de compaixão por si mesma, Lisa puxou para baixo as calças, esforçando-se por se tirar de dentro delas.

     Ficou de soutien e cinta, e chamou a jovem.

     Momentos depois, Mavis entrou, pachorrenta, fumando.

     - Que tal ficaram, Sra. Hack... Hackfeld?

     - Deu-me umas de tamanho abaixo do meu.

     - Mas não, essas condizem com as medidas indicadas na ficha - volveu Mavis, a picadora, imperturbável.

     Lisa estava consumida pela fúria, devido à contenda com as calças e com a jovem.

     - Bem, diabos as levem, não me servem; traga-me um número maior.

     Mavis sorriu com compaixão para a jovem velha.

     - Sinto muito, Sra. Hackfeld, mas estas são as maiores que temos na loja. A Srta. Jill não manda vir calças com medidas superiores às destas. É do programa dela. Receio que tenha de ir a outro lado procurar umas que sirvam.

     A fúria de Lisa transformara-se em humilhação e dor. Compreendeu que tinha o rosto rubro como o fogo e detestou sua rendição.

     - Muito bem - retorquiu. - Obrigada.

     A jovem saíra e Lisa achava-se de novo só. Vestia-se perplexa. Era a primeira vez que não conseguia encontrar nada que lhe servisse na Jill. Todavia, pensou, enquanto ajustava o casaco, era a primeira vez que ia fazer quarenta anos.

     Deixou apressadamente a loja, os olhos fixos sua frente, mas bem consciente de que as jovens de traseiros lisos como tábuas a observavam divertidas. Ao passar a porta, compreendeu que existia uma coisa contra a qual a riqueza nada podia fazer - a idade. Aquelas estúpidas jovens eram mais ricas do que ela. Adeus, Jill, adeus para sempre, e maldita seja... Um dia verá...

     Como cega, encaminhou-se para o Continental branco, dirigindo-se depois ao Magnin, que era agora a casa mais indicada. Percorreu a loja e obrigou-se a comprar, com constante desinteresse, artigos de toalete e acessórios para a noite. Uma vez de posse daquilo de que não necessitava, saiu pela porta dos fundos, esperou pelo carro, deu uma gorjeta generosa ao porteiro e seguiu em direção de Wilshire Boulevard.

     Ao parar diante de um sinal de trânsito fechado, o relógio recordou-a de que tinha ainda um longo período de lazer entre as quatro e as seis horas, e perguntou-se qual a melhor maneira de o preencher. Por um momento considerou a idéia de continuar pelo Wilshire Boulevard, até ao edifício Hackfeld, a fim de surpreender Cyrus. Porém, depressa abandonou a idéia. Não se encontrava com disposição para enfrentar as empregadas, a recepcionista, as secretárias, mais traseiros lisos como tábuas, as pequenas que tinham herdado os seus bons anos. Elas haviam de se piscar os olhos, de cochichar, após a sua entrada: “Ali vai a Sra. Hackfeld, a velhota do chefe... Como é que ela conseguiu pescá-lo?”

     Em vez de voltar para leste, conduziu o carro na direção oeste. Espreitaria o Clube de Tênis da Costa - ficava no caminho de casa, e ela e Cyrus eram membros efetivos dele - e talvez tomasse um aperitivo e participasse de um jogo de bridge, a fim de matar o tempo. Dez minutos mais tarde, oprimida pelo céu negro, chegou ao Clube de Tênis, abandonou o carro e penetrou na atmosfera da lareira e cabana de montanha do refúgio fechado. Sentira-se aliviada. Transportada até acima pelo cintilante elevador, manobrado pelo próprio usuário, escutou as notas abafadas de Cocktails for Two tocadas por uma orquestra onde predominavam os instrumentos de corda, e não ousou pensar quando dançara pela última vez aquele número. Em cima, o terraço fechado estava, apenas parcialmente cheio; duas mesas estavam ocupadas por velhos que bebiam gim com rum, outra por dois jovens atraentes, publicitários talvez, conversando com ar sisudo, e uma por mulheres com caras familiares, que jogavam bridge.

     Lisa, com um aceno, fez o empregado fardado afastar-se do seu caminho e deteve-se junto da janela contemplando os courts de saibro avermelhado. Devido ao frio, apenas um era utilizado, e, neste, dois jovens corajosos, um rapaz e sua namorada, ambos de calções brancos, jogavam com entusiasmo, correndo vigorosamente, rindo e divertindo-se. Com um suspiro, Lisa voltou-se e dirigiu-se para a mesa de bridge. Os rostos familiares saudaram-na efusivamente, como a alguém da sua classe, e uma das jogadoras ofereceu-lhe o seu lugar. De súbito, Lisa sentiu-se sem vontade alguma de jogar. Declinou polidamente o gentil convite, explicando que subira para ver se Cyrus se encontrava ali e que não podia demorar-se. O empregado trouxera uma cadeira, que ela aceitou.

     Pediu uma limonada, e, durante os quinze minutos que se seguiram, tentou, à medida que chupava pelos canudos coloridos, seguir com atenção o jogo. Procurou imitar os gestos de prazer e de desagrado das jogadoras ante um pequeno cheleme inesperado, mas segura apenas de que os olhos de alguém estavam fixos nela. Lançando um olhar de viés para a parede, pensou que podia ver o mais atraente dos dois publicitários fitando-a. Sentiu um arrepio de excitação, e, embora não tivesse bem a certeza de que era alvo da atenção dele, ergueu um pouco a cabeça para ajeitar o decote e endireitou-se na cadeira para definir o busto; depois cruzou as pernas (o melhor que tinha), a fim de exibir as barrigas bem torneadas, esguias. Mostrava-se mais alegre agora, fazia comentários, dizia pequenos gracejos às outras mulheres acerca do jogo. Ainda sentia os olhos dele fixos nela, e arriscou outro olhar de viés. Sim, mirava-a com seus olhos negros e profundos. Num impulso de audácia, decidiu, temerariamente, retribuir aquele olhar, para ver o que acontecia. Fitou-o, mas não verificou qualquer reação da parte dele. Nesse instante, apercebeu-se de que os olhos de ambos não se encontravam. Desolada, moveu a cabeça, tentando seguir a linha daquele olhar, compreendendo que ele o tinha desviado cerca de dez centímetros dela. Em seguida dirigiu o olhar para o bar. Num dos bancos altos do bar, onde nunca entrara antes, viu a jovem - vinte e cinco anos, não mais - que estivera no court de tênis. Ela parecia rosada, sueca; o tecido fino da sua blusa branca esticava-se contra os seios, e os calções brancos, justos, faziam sobressair os membros musculosos. Bebeu um gole do highball e, em seguida, seus olhos encontraram-se com os do homem que estava do outro lado da sala; sorrindo ironicamente, inclinou-se sobre o copo.

     Lisa sentiu vergonha, além de uma dor pungente no peito: era uma louca, uma jovem-velha louca, que jamais poderia participar = destes divertimentos amorosos; daí por diante seria apenas uma espectadora e uma intrusa. Seu estúpido equívoco fê-la corar, e desejou uma vez mais a única coisa que parecia oferecer-se-lhe: fugir. Momentos mais tarde, abandonou o Clube de Tênis tão flagelada como qualquer dos soldados de Napoleão na retirada de Moscou.

     Ao ouvir tossir discretamente endireitou-se e compreendeu, com espanto, que se achava reclinada no sofá amarelo da sua sala de estar, emergindo do passado próximo para o presente, e que o impecável Averil se encontrava diante dela com um segundo martini seco duplo.

     O copo de coquetel estava vazio na sua mão. Com indolência, trocou-o pelo que o mordomo acabara de trazer.

     - Obrigada, Averil - disse -, é tudo por agora.

     Depois de Averil ter saído, bebeu, mas sem resultado. Não se sentia flutuar de euforia. Em vez disso, o martini fez com que se sentisse mole, pegajosa, saturada de umidade, como um jornal ensopado e amarfanhado.

     Despertou-a o ruído produzido por uma chave abrindo a porta da frente. Segundos depois, tirando o sobretudo, Cyrus surgiu na sala de estar. Alardeava ainda vivacidade, dinamismo, apesar de um dia de trabalho estafante. Fazendo mover com vigor sua sólida pessoa em direção a Lisa, inclinou-se e beijou-a na testa.

     - Como está, querida? - perguntou ele. - Estou surpreendido por vê-la ainda aqui embaixo. Esperava que se estivesse vestindo.

     “Vestindo-me”, pensou. “Decerto, envolvendo-me na minha mortalha. “

     - Vestindo-me? Para quê?

     - Para quê? - Cyrus tinha uma expressão grave. - Para irmos a Santa Bárbara. Vamos jantar com Maud Hayden.

     - Sim? - disse com ar estúpido. - Não me recordo...

     - Que diabo, Lisa, sabe-o há duas semanas. Mencionei diversas vezes este fato nos últimos dias.

     - Creio que me esqueci. Tenho ocupado a mente com outras coisas.

     - Bem, apressemo-nos. Rex Garrity insistiu em acompanhar-nos, e não vi mal nenhum nisso. Distrair-nos-á durante as poucas horas do percurso. Estará aqui dentro de trinta ou quarenta minutos... Esperam-nos às oito para jantar.

     - Cyrus, temos de ir? Não me sinto com disposição suficiente. A cabeça começou a doer-me há instantes.

     - Sua dor de cabeça passará. Tome qualquer coisa. Precisa de sair um pouco mais. Essa sua tendência anti-social não fará com que se sinta melhor. Esta é uma noite especial.

     - Que tem ela de especial, com os diabos?

     - Escute, querida, não posso recusar o convite de Maud Hayden. Maud é uma das maiores antropólogas do mundo. Faz muita questão em nos receber em sua casa. Trata-se de uma espécie de celebração. Descobriu algumas ilhas tropicais... Recorda-se? Falei-lhe disso há duas ou três semanas. Chamam-lhe as Três Sereias, e ficam no sul do Pacífico. Vai partir para lá com um grupo constituído por estrelas, e a nossa Fundação apóia-a com um subsídio. Constituirá um belo triunfo para mim o momento em que ela ler a sua comunicação perante a Liga Antropológica Americana. Esses tipos da Ford e da Carnegie aperceber-se-ão então da existência de Hackfeld. E o livro que escrever será decerto um best-seller; ele, também...

     - Cyrus, por favor, não estou ainda...

     Averil trouxera um uísque, e Cyrus bebia-o como se fosse água; engolia o líquido, engasgava-se, tossia, e tentava falar entre acessos de tosse.

     - Além disso, tenho aguardado, desde há semanas, esta noite com mais interesse do que qualquer outra coisa. Maud é uma grande escritora. Faz que Xerazade pareça uma enfadonha tímida e gagá. Supus que se interessaria tanto como eu pela tribo das Três Sereias, com todos aqueles estratagemas sexuais... como a Cabana de Auxílio Social, que parece resolver todos os problemas da gente casada... e o festival anual, aberto a todos, que se realiza durante toda uma semana, em junho, quando... Lisa deu por si sentada no sofá.

     - Quê?! - exclamou. - De que está você falando? Inventou tudo isso?

     - Lisa, por amor de Deus; dei-lhe o extrato que Maud me enviou, o esboço dessa cultura e dos seus costumes. Dei-lhe, para ler, essas páginas datilografadas. Nem ao menos passou os olhos por elas?

     - Não sei... Creio que não o fiz. Não me ocorreu que se tratasse de uma coisa interessante. Supus que fosse um desses folhetos sociológicos enfadonhos...

     - Enfadonhos? É espantoso. O que todos esses nativos semibrancos, semipolinésios provavelmente praticam faz que a Casa de Todas as Nações pareça um lugar tão sério como o Palácio de Buckingham.

     - É verdade... o que está dizendo... sobre a Cabana de Auxílio...

     - Maud pensa que sim. Suas fontes de informação são dignas de crédito. Ela, com o grupo que organizou, vai partir para lá a fim de, durante seis semanas, em junho e em julho, se certificar. Falaremos acerca de tudo aquilo esta noite. Eis a razão do convite para jantar. - Passou a mão por sua pequena cara rosada. - Tenho de me barbear, de me preparar para sairmos. - Dirigiu o corpo sólido para a porta, mas de súbito voltou-se para a mulher. - Querida - disse -, se realmente tem essa maldita dor de cabeça, então não insisto que...

     Porém, Lisa achava-se já de pé, quase tão enérgica como o marido.

     - Não... não se preocupe. Começo a sentir-me melhor. Seria um crime não aproveitar a oportunidade de passar esta noite na companhia de Maud Hayden. Tem muita razão. Vou tomar banho e estarei pronta dentro de alguns minutos.

     Cyrus Hackfeld abriu-se num sorriso.

     - ótimo. Você é uma bela moça.

     Lisa curvou o braço no do marido para agradecer este “bela moça”, e depois perguntou-se o que seria ter-se quarenta anos nas Três Sereias. Acompanhada por Cyrus, subiu as escadas para se preparar para sua última noite como jovem...

    

     O jantar em casa dos Haydens fora servido ás nove e quinze. Agora, no momento em que Suzu distribuía com parcimônia tortas de cerejas, que constituíam a sobremesa, faltavam vinte para as onze, como Claire notou.

     O repasto decorrera maravilhosamente bem, sentiu Claire. A sopa de ovos chinesa fora consumida até à última colher. O frango à Teriyaki, guarnecido com arroz, as ervilhas chinesas com castanhas, o sake quente, servido em chávenas brancas miniaturais, tinham sido bem acolhidos, e todos, exceto os Loomis, haviam aceitado segundas doses. Mesmo Rex-Garrity, que se considerava um gourmet internacional, elogiara Maud pela refeição, admitindo que não saboreara com tanto prazer uma mistura de pratos chineses e japoneses desde que visitara Xangai em 1940, quando nacionais de ambas as nações ocupavam a cidade.

     A própria conversa fora interessante em todos os aspectos, afetuosa e surpreendentemente estimulante; Claire sentira verdadeira satisfação em participar nela, como se os temas fossem novos. No princípio do jantar, durante os aperitivos e os hors d'oeuvres - Suzu fizera Rumaki e folhados de queijo -, travara-se uma breve mas acesa discussão, uma justa verbal, entre Garrity e Maud. Eram os mais viajados do grupo, ambos cheios de experiência e de fatos, ambos habituados a ser escutados; tinham competido pelo domínio da noite, lutando como gaios, ripostando aos golpes que se desferiam, defendendo-se, opondo um golpe a outro. Garrity parecera desejoso de impressionar tanto Hackfeld como Maud com a sua mundanidade e a sua importância. Maud decidira transformar esta noite numa noite Hayden e fazer também com que Hackfeld sentisse orgulho em apoiar a expedição às Três Sereias. Desde o momento em que Suzu anunciara o jantar, Garrity, já um pouco tocado pelos aperitivos, confundido pela terminologia antropológica de Maud, e sentindo que os convivas estavam mais interessados nela do que nele, baixara a lança e retirara-se do combate.

     Durante todo o jantar, Maud tivera o campo à sua disposição, e a maneira como alardeara esta vitória e exibira seu novo troféu fora bem evidente. Exceto algumas tentativas para salvar o orgulho, confirmando, de uma autoridade para outra, algumas das observações de Maud relativas às suas longas viagens, Garrity dedicara-se inteiramente à comida. Duas ou três vezes, retivera a atenção de Marc, que parecera absorvido por ele.

     Claire sentiu certa satisfação em verificar que Garrity era exatamente o que esperava, embora um pouco mais patético e tolo. Portanto, não via motivo para surpresa. Para ela, a verdadeira surpresa da noite fora Lisa Hackfeld. Com exceção da sua toalete, nada havia de frívolo em Lisa. Ela mostrara-se gentil, desafetada, curiosa. Viera preparada para se lançar aos pés de Maud e aproximara-se da anfitrioa sem qualquer presunção. Pouco sabia de antropologia, de trabalho de campo, da Polinésia, e admitiu esse fato, mas desejava saber mais, saber tudo sem demora. Durante o jantar, interrogara firmemente Maud, em especial acerca das Três Sereias, para total deleite de Maud e tranqüilo prazer de Hackfeld.

     Agora, à medida que comia com prazer a sua sobremesa - sentia-se demasiado nervosa durante toda a noite para comer convenientemente - Claire estudava com discrição os convidados. Quando de tarde colocara os cartões que indicavam o lugar de cada um à mesa, Claire perguntara-se se seria ou não melhor que a disposição fosse mulher-homem-mulher. Maud, porém, não dera a mínima importância a isto. Desejava que os convidados se sentassem, por motivos táticos, nos lugares que mais lhe conviessem. Maud sentou-se à cabeceira da mesa, com Cyrus Hackfeld à sua direita, e Lisa Hackfeld à sua esquerda... e neste momento previa as condições de vida no campo quando o grupo se instalasse nas Três Sereias.

     Ao lado de Lisa, cortando a sua torta de cerejas, sentava-se o presidente Loomis, do Raynor College, que se parecia um tanto com o achatado Woodrow Wilson, e em frente dele, cortando também a sua torta de cerejas, achava-se a Sra. Loomis, que não se parecia com ninguém. No momento em que tomavam o segundo aperitivo, e depois durante a sopa, Loomis tentara exprimir sua opinião sobre o contraste entre a instrução universitária na América e na Rússia, isto a propósito de nada, e verificara que ninguém, com exceção de Claire, lhe prestava a mínima atenção. Em vista deste fato, tomara a atitude de um ouvinte prudente, à semelhança do que fizera a esposa. Agora, mantinham-se absolutamente calados, mastigando a sobremesa, como dois distintos pilares de sal. Defronte de Garrity sentava-se Claire, que tinha a seu lado o presidente Loomis; no outro lado, no fundo da mesa, Marc achava-se um pouco inclinado sobre o autor de livros de viagem, fazendo gestos de aprovação com a cabeça à medida que o escutava, constituindo as palavras deste um murmúrio indistinto para Claire.

     Uma vez que todos se encontravam ocupados, Claire examinou Rex Garrity com mais rigor. Fizera algumas conjecturas acerca dele antes dessa noite, mas agora sentia que sabia bastante mais, talvez tudo o que se podia saber. Ao observá-lo, atentamente debruçado sobre Marc, via que ele devia ter sido outrora um homem muito belo, tão belo como um grego antigo herói das Olimpíadas. No alvor da vida, um quarto de século antes, devia ter sido um jovem gracioso e esbelto, de cabelo louro ondulado, de rosto fino e anguloso, gestos curiosamente efeminados realçando um corpo robusto e flexível. O tempo fora o seu pior inimigo, e de diversas maneiras, suspeitava Claire. O cabelo era ainda louro, ainda ondulado, mas parecia rijo como palha e artificial como um topete. O rosto travara mil batalhas dietéticas, e fora, provavelmente, mais cheio e mais fino muitas vezes; agora, assolavam-no de tal modo os prazeres e o álcool que a carne pendia, frouxa, e a pele mostrava leves manchas vermelhas e veias salientes. Quanto ao corpo, este constituía uma desesperada reminiscência da esbelteza da velha Yale, do antigc best-seller, como a de na-pegada-de-Aníbal e a de seguindo--os-passos-de-Marco-Polo, os ombros largos e as ancas estreitas, o ventre singularmente saliente, como se fosse a sua única parte anatômica que se tivesse submetido ao tempo.

     Claire examinava-o impiedosamente; calculou que ei teria entre quarenta e oito a cinqüenta anos, e estava quase certa de que estes eram seus maus anos. Pouco depois da sua chegada, ouvira por acaso uma pequena conversa entre ele e Hackfeld. Dela depreendera que Garrity procurara neste mesmo dia Hackfeld, a fim de solicitar um subsídio da Fundação destinado à edição de um livro de viagens, e que Hackfeld o recusara, alegando que o conselho de administração não dispensava fundos para trabalhos não científicos, para obras de cordel. Claire suspeitava de que o pior, para Garrity, era que o mundo o ultrapassara, que ele mantinha ainda o mesmo antigo repertório, e que o mundo não estava já interessado no ator que deixara para trás.

     Durante os anos trinta, Garrity tivera público. Era o tempo entre as duas guerras, existiam ainda restos da loucura dos anos vinte e havia a Grande Depressão a que os homens desejavam furtar-se tomando outras identidades Garrity fornecera-lhes uma identidade romântica, tornara possível a fuga. Corporizara, na sua pessoa, todos os sonhos e anseios por lugares longínquos e aventuras exóticas. Seguira o rastro dos heróis lendários evitando a morte, salvando donzelas seqüestradas, descobrindo ruínas perdidas, escalando majestosas montanhas, divagando nas sombras e ao luar dos Taj Mahals da Terra, escrevera e proferira conferências sobre estas escapadas juvenis, e milhões de pessoas pagaram para abandonar a sua caveira e a sua pele, identificando-se com ele.

     Foram os anos quarenta que deterioraram Garrity e os anos cinqüenta que o destruíram. Nos anos quarenta os filhos dos que o tinham escutado haviam sido forçados a abandonar a sua existência insular para partirem para o mundo, para as velhas cidades da França, da Itália, da Alemanha, para as areias da África, para as selvas do Pacífico, e tinham visto estes lugares com os olhos céticos da realidade. Haviam estado onde Garrity estivera, compreendendo que as suas aventuras românticas não passavam de mentiras. Sabiam mais do que Garrity sobre esses lugares longínquos, conheciam a verdade, e manifestavam a sua indiferença por ele, apesar da permanente credulidade dos pais, que mantinham suas ilusões acerca do que Garrity lhes impingira. Nos anos cinqüenta, os antigos ouvintes começaram a desaparecer e os novos ouvintes manifestaram o seu interesse por outras vozes. Os novos ouvintes, e seus herdeiros, não mostravam inclinação pela leitura de livros de aventuras (presumindo que ainda os havia), pois durante o tempo que desperdiçavam lendo um livro de Garrity podiam visitar, em pessoa, transportados em aviões a jato, as ruínas de Angkor, a ilha de Rodes e a Torre de Pisa. O mundo tornara-se de súbito muito pequeno, e todo ele acessível, fazendo que o interesse pelos romances de viagens declinasse. Uma vez que se podia ver com os próprios olhos o interior da caixa do mágico, à medida que ele serrava a jovem em duas, não existia mais curiosidade em ver o mágico. Uma guerra em escala universal e o turbojato constituíram a sepultura de Garrity.

     As suas divagações fizeram que Claire quase se compadecesse desta relíquia. Ele publicava ainda livros, mas ninguém os comprava. Continuava a proferir conferências, mas poucos o iam escutar. Comercializava ainda seu nome, mas raros com menos de cinqüenta anos o recordavam ou lhe prestavam atenção. O ídolo de outros tempos fora abandonado mas não o queria acreditar. Carregava o passado consigo sempre que se encontrava acordado, mantendo-o vivo com álcool, e alimentava projetos fantasistas. Gesticulava agora, ao mesmo tempo que falava, em murmúrios, para Marc, e os gestos eram ainda mais efeminados do que antes. Numa revelação súbita, Claire viu o que estivera dissimulado durante longo tempo mas que agora, devido à incontrolável angústia produzida pelo malogro, se denunciava mais vezes. Ele era um homossexual, sempre o fora; porém, antes disto seus romances viris imaginários tinham-se constituído numa camuflagem. Esta noite, sem ela, podia distinguir-se a verdade nua e crua.

     Imediatamente Claire fez seu juízo sobre Garrity como homossexual. Não tinha sentimentos negativos em relação aos invertidos. Os poucos que conhecera durante sua ainda curta vida pareceram-lhe mais talentosos, mais inteligentes e sensíveis do que os homens normais. Supunha também que se sentia mais à vontade com eles, pois eram menos ameaçadores. Não, não foi a óbvia inversão de Garrity que levou Claire a esquecer a aversão que sentia por ele e a substituí-la pela compaixão. Era a ficção do seu ser que ocasionava esta piedade.

     Observando-o do seu lugar, do outro lado da mesa, ela abandonara a compreensão pelo seu primeiro sentimento de desaprovação. Reclinou-se na cadeira, levou o guardanapo aos lábios e perguntou-se de novo por que estaria Marc tão absorvido na conversa deste semi-homem blefe que apenas notícias de jornais já amarelecidos e elogios ainda lembrados mantinham ereto.

     Voltou a cabeça e ergueu os olhos da mesa, à medida que os pratos da sobremesa eram retirados, cruzando-os com os de Maud. Quase imperceptivelmente, Maud fez um gesto que traduzia confirmação e Claire baixou a cabeça para manifestar que compreendera.

     - Bem - disse Maud em voz alta -, penso que estaremos melhor no living. Claire, você...

     A moça, com um leve gesto de assistência da parte do presidente Loomis, levantou-se.

     - Sim, penso que é uma boa idéia. Sra. Hackfeld... Sra. Loomis... e Marc, desculpe-me, Marc, detesto interromper, mas se trouxesse as bebidas...

     Enquanto isso, os convidados tinham-se erguido. Como um diretor de relações públicas do Adirondacks, Claire tomou a dianteira, introduzindo os Loomis na sala de estar; Marc e Garrity seguiam-nos. Logo que tomou o braço de Lisa Hackfeld, viu, por sobre o ombro, que Cyrus Hackfeld se preparava também para se dirigir para a sala de estar. Mas Maud, que se achara até então conversando com ele, acrescentou alguma coisa mais, e Hackfeld lançou-lhe um olhar interrogativo, fez com a cabeça um gesto de aprovação e acompanhou-a até à ampla janela da sala de estar. O momento da verdade, pensou Claire, que cruzou mentalmente os dedos e entrou com Lisa Hackfeld na sala de estar a fim de realizar a sua manobra de diversão.

     Enquanto Marc distribuía parcimoniosamente licor de damasco e Cointreau, cálices de Armagnac, de Benedictine e de brandy, os convidados instalavam-se, timidamente, em redor da ampla sala. Parecia, disse Claire de si para si, a subida do pano de um teatro, antes de aparecerem os atores principais, quando o telefone toca e a criada atende, e os atores secundários, marcando o tempo, atravessam o palco proferindo suas banalidades. Desesperadamente desejava-se que as vedetas criassem a emoção. Contudo, Claire tinha um dever a cumprir e estava decidida a cumpri-lo.

     Achava-se sentada defronte de Lisa Hackfeld.

     - Sra. Hackfeld - disse -, fez uma pergunta à minha, sogra acerca do festival das Três Sereias, não é verdade?

     - Sim - volveu Lisa. - Parece uma coisa absolutamente fascinante... Devíamos realizar um semelhante aqui.

     Marc, que continuava a servir os licores, fez uma pausa.

     - Temos festas, temos o 4 de Julho - interveio ele, com um sorriso forçado. Porém, como Lisa Hackfeld parecesse espantada, Marc explicou-se rapidamente, agora com um sorriso mais amplo, mas ainda forçado: - Estava gracejando, claro. Porém, falando agora a sério, creio que temos dentro dos limites do nosso mundo civilizado inúmeros meios de festejar seja o que. for. Para melhor ou para pior, temos lugares onde... nos podemos descontrair com uma bebida, lugares onde podemos comprar pílulas, lugares onde poderemos procurar diversões de todo o gênero...

     - Não é o mesmo, Marc - retorquiu Claire. - É tudo, de certo modo, artificial, muito pouco natural. Gracejava quando se referia às nossas festividades, como o 4 de Julho, mas isto é bem um exemplo de tudo o que nos separa das Sereias. Efetivamos as nossas celebrações com fogos de artifício... nas Sereias os ilhéus transformam-se em fogos de artifício.

     Lisa Hackfeld lançou um olhar cintilante a Claire.

     - Exatamente, Sra. Hayden! Não temos nada que se pareça com isso...

     - Porque, como o Dr. Hayden declarou, somos civilizados - interrompeu Garrity. Seu rosto manchado tinha a solenidade do de um cardeal lendo um breve apostólico. - Andei por essas ilhas e em todas realizam festivais como pretexto para voltarem a seu modo de viver natural. É a sua maneira de iludir os missionários e os governadores, a fim de mergulharem nas suas vis paixões. Não suporto esses imbecis e esses etnólogos que conferem a todos os jogos e danças dos festivais, a todas essas obscenas exibições pélvicas, fantasiosas interpretações estéticas. A civilização pôs freio a este comportamento indecente, e eles utilizam qualquer pretexto para renová-lo.

     Claire sentiu-se aborrecida.

     - E isso é mau?

     Marc interveio rapidamente.

     - Ora, Claire, parece...

     - Um ser selvagem, não civilizado? - disse ela, querendo concluir a frase do marido. - Por vezes bem desejava sê-lo, mas não o sou. - Voltou-se para Lisa Hackfeld, que a escutava com os olhos esbugalhados. - Creio que me compreenderá, Sra. Hackfeld. Encontramo-nos todos, de certa maneira, recalcados, comprimidos, condicionados emocionalmente. Não é natural. Penso que as leis, normas, inibições são úteis, mas uma vez por outra deve-se ter licença para gritar, doidejar. Isso far-nos-ia bem.

     - Faço minhas as suas palavras - afirmou Lisa Hackfeld com alegria. - Concordo plenamente com você.

     - Bem, é tudo uma questão de ponto de vista - declarou Marc, prudente. Todo ele era agora ponderação. - O Sr. Garrity talvez não esteja muito longe da verdade. Estudos recentes indicaram. que os ilhéus utilizam, com muita freqüência, os costumes para disfarçar o erotismo. Os das ilhas Fidji, por exemplo. Eles realizam um festival chamado vei-solo. O costume principal é o seguinte: as mulheres jovens invadem a casa dos homens jovens para roubar seus víveres. Mas ambos os sexos conhecem bem o objetivo do seu jogo. É, sem dúvida, um pretexto para... terem relações sexuais. Basil Thompson' escreveu sobre isto em 1908. Uma jovem vigorosa entrava numa cabana de homens para roubar víveres e via-se assediada por certo número de ocupantes do sexo masculino. “Então seguia-se uma cena”, disse Thompson, “que sugere existir significado sexual no costume, pois a jovem era despida e assaltada cruelmente de uma maneira que não se deve descrever.” Ora, como antropólogo, acho isto muito interessante. E não tenho qualquer juízo a fazer, exceto... - Voltara-se completamente para a esposa e para a Sra. Hackfeld. - Decerto Claire, você não sugere que esta prática é divertida ou desejável... para todos nós, neste país.

     Claire compreendia agora o que se passava nele: reprimia a irritação; porém, a voz denunciava-o, e também a ruga entre os olhos e o meio sorriso que tinha nos lábios. Claire compreendeu que devia impedir que a atmosfera se toldasse ainda mais.

     - Marc, é preciso que entenda melhor as coisas. Eu gracejava, não queria sugerir isso seriamente. - Ouviu a respiração de Lisa Hackfeld, uma decepção, como se Lisa sentisse que tinha perdido uma aliada. Ao mesmo tempo que procurava acalmar o marido, Claire esforçava-se por manter a fé que Lisa manifestara nela. - Mas, voltando a esse festival das Sereias, creio que ele deve ser útil aos ilhéus, uma vez que o realizam há muito tempo. - Sorriu para Lisa Hackfeld, e piscou-lhe os olhos. - Prometo um relatório completo no próximo mês de agosto.

     Depois, a conversa tornou-se menos viva, mais refletida e apática. Lisa Hackfeld fez algumas perguntas hesitantes acerca dos costumes polinésios em relação à música e à dança, e Marc respondeu com certo pedantismo, citando estudos publicados. O presidente Loomis referiu-se aos kabuki, mas Garrity fez com que ele se calasse ao relatar uma aventura que tivera outrora com um grupo de dançarinos de hula em Waikiki.

     Entretanto, ouviu-se um ruído de passos. Cyrus Hackfeld entrou com ar de satisfação na sala e dirigiu-se para a bandeja onde se encontravam os cálices de brandy. Maud seguia-o. Claire podia dizer, a julgar pelos lábios da sogra, que estavam fixos num sorriso público forçado, que Maud não se achava contente. Por um instante, deteve-se entre Marc e Claire e os convidados, reunindo-se ao filho e à nora como se deixasse de parte os restantes. Nesse momento, fez um gesto rápido, voltando o punho defronte do peito, com o polegar para baixo, e isto acompanhado pela mais breve das caretas.

     O coração de Claire desfaleceu. Maud contou que Hackfeld rejeitara seu apelo tendente a um subsídio mais substancial. Claire perguntou-se o que aconteceria. Isto não queria dizer que a viagem de estudo seria cancelada mas significava que teria de ser mais restrita, limitada: “E as cartas que haviam sido dirigidas a alguns peritos convidando-os a fazer parte do grupo, teriam agora de ser dadas sem efeito?”, perguntou-se Claire. Em seguida perguntou-se também por que correra Maud o risco de lhes anunciar este malogro. Esperava ainda que Hackfeld reconsiderasse, esperava que Claire e Marc conseguissem, no aspecto social, obter o que ela não pudera?

     Ouviu a voz de Garrity, extraordinariamente alta, dirigida a Maud.

     - Dr.a Hayden - dizia ele - vou contar-lhe por que vim a Los Angeles. Meus agentes de conferências, Bush Artist e Lyceum Bureau, conseguiram-me uma fabulosa série de contratos, para o próximo ano; porém, e revelo-o com a maior franqueza, na condição de que descubra um novo tema. E de fato desejo descobri-lo. Estou farto dos temas antigos. Bem, ocorreu-me uma idéia, e tenho feito algumas pesquisas relacionadas com ela. Creio que a idéia é maravilhosa. Sabe, em tempos como este, diga-se o que se disser, as pessoas desejam evadir-se, enterrar a cabeça na areia, à semelhança do avestruz. Assim, acudiu-me à mente que, para escaparem a todos os perigos e pesadelos provocados pela possibilidade de uma guerra nuclear, os meus admiradores gostariam de partir comigo, por uma noite, para a Cidade do Ouro, que fica em regiões inexploradas da selva do Mato Grosso, no Brasil. Como se sabe, diz-se que existe este lugar. Decidi organizar uma pequena, uma modesta expedição, com guias, com técnicos cinematográficos, e subir o Amazonas, seguir o velho rastro de Fawcett, a fim de converter tudo isto numa rara aventura. Ora, como uma coisa dessas precisa de apoio financeiro, pensei em Cyrus, um velho amigo, mas ele crê que o projeto não se apresenta suficientemente científico para...

     Hackfeld mexeu-se desassossegado.

     - Não eu, Rex, mas o conselho executivo da Fundação - declarou ele.

     - Bem, seja como for, continuo a pensar que estão errados - volveu Garrity, a língua solta pelo álcool. - Bem, não me importa. - Apontou de novo para Maud. - Esta noite convenceu-me, Dr.a Hayden, de que a Cidade do Ouro é uma coisa passée comparada com as suas Sereias.

     - As Sereias não são minhas; no entanto, obrigada - retorquiu Maud.

     - Conseguiu uma coisa admirável, Dr.a Hayden. É uma aventura, é emocionante, e ao mesmo tempo - perdoe-me - pode passar por inquérito científico. Sabe, é ciência com bilheteria e lotação garantida.

     Claire estremeceu ante este ataque desferido contra a sogra, mas compreendeu que Maud saberia ripostar.

     - Não posso concordar com a descrição que faz do nosso estudo antropológico, Sr. Garrity - volveu Maud com voz dura.

     - Não quis ofender - replicou Garrity. - Tinha em mente apenas elogiá-la. Mas digamos, não dependemos ambos do mesmo público? De uma maneira ou de outra, vou direto à questão, como é sempre meu costume. Gostaria de participar também da expedição às Três Sereias. Estive discutindo o caso com Marc ao jantar. Sinto-me encantado. É um assunto completamente novo. Sensacional. Ora veja, uma ilha desconhecida, laboratório de novos costumes sobre o sexo e o casamento. Duplicaria, triplicaria meus contratos, e escreveria um best-seller que não prejudicaria o seu. Posso ajudá-la bastante, e oferecer-lhe-ia parte dos direitos que...

     - Não! - exclamou Maud.

     Titubeante, Garrity começou uma frase; todavia, deteve-se, de boca aberta.

     - Mas...

     Marc inclinou-se sobre a mãe.

     - Matty, talvez seja uma coisa que possamos discutir mais tarde com o Sr. Garrity.

     - Respondi já com muita clareza: não!

     Como todos os olhos estavam fixados no par, Marc tentou imediatamente defender sua posição de cientista.

     - O que quero dizer, Matty, é o seguinte... Bem, concordo absolutamente que não nos devemos envolver em qualquer espécie de popularização pouco digna... mas ocorreu-me que devem existir outras áreas... não sei... pequenas áreas, onde o Sr. Garrity nos pode ser útil e... - Fez uma pausa, ergueu as mãos, com as palmas para cima, e encolheu os ombros. - Sugeria apenas que isto constitui uma coisa que poderíamos explorar de outra vez.

     - Agrada-mè que tente auxiliar-me, Marc - disse Maud -, mas não existe coisa alguma para explorar. - Pronunciara as últimas palavras com o mais leve dos sorrisos; porém, quando se voltou para Garrity, o sorriso tinha desaparecido. - Respeito sua posição e suas necessidades, Sr. Garrity; porém, deve compreender as minhas. Vamos visitar um povo único, numa ilha até aqui desconhecida, com a promessa de que sua localização jamais seja revelada ao público...

     - Mas eu não o faria! - exclamou Garrity com calor.

     - ... e de que qualquer relato sobre sua vida e costumes não seria distorcido pelo sensacionalismo - prosseguiu Maud. - Pela própria natureza da sua posição de escritor popular, bem aceito, poderia explorar as Sereias de uma maneira absolutamente prejudicial. Estou decidida a manter tudo num nível puramente científico. Quando mais tarde falar e escrever acerca do que observei, ou qualquer dos membros do meu grupo, fá-lo-ei em termos estritamente antropológicos, com interpretações sociológicas. Isto, espero, lançará a luz adequada sobre a tribo e tornará útil o estudo. Dei a minha palavra de que me limitaria a meu estudo, que não faria incorrer em quaisquer riscos o povo das Sereias. Que Deus me perdoe, mas não o censuro, Sr. Garrity. Há lugar para as suas descobertas, e lugar para as nossas, mas não posso conceber qualquer gênero de colaboração entre nós... Marc, creio que o Sr. Hackfeld gostaria de tomar outro brandy.

     A partir deste momento Garrity deixou de contribuir para a conversa geral. Mergulhou num sombrio silêncio, movendo-se apenas para tornar a encher seu copo de Armagnac. Lisa Hackfeld mostrava-se agora mais vivaz, formulando a Maud uma série de perguntas sobre o que ela esperava encontrar na Polinésia. Cyrus Hackfeld parecia satisfeito por ver a mulher tão interessada.

     Pouco antes da meia-noite Claire ouviu Garrity pedir roucamente a Marc que o conduzisse a um telefone onde pudesse fazer uma chamada urgente. Amável, Marc ergueu-se e guiou o escritor popular através do corredor até à sala onde se encontrava, além do telefone, o aparelho de televisão. Tinham-se afastado há cinco minutos quando Hackfeld se pôs pesadamente de pé.

     - Querida - disse ele à mulher -, temos de partir. O percurso é longo.

     - Já? - perguntou Maud.

     - Desagrada-me bastante, acredite-me - declarou Lisa, erguendo-se por sua vez. - Há muitos anos que não participava de uma conversa tão estimulante.

     Os Loomis encontravam-se já de pé, também. Claire precipitou-se para o háll a fim de ir buscar os sobretudos e os casacos das senhoras. Daí, viu Marc e Garrity, de pé, um pouco mais para além da porta da pequena sala onde se encontrava o aparelho de televisão, conversando em voz baixa, quase absortos. É singular, pensou Claire. Garrity não quisera o telefone mas os ouvidos de Marc.

     Demorou-se um pouco com os sobretudos e os casacos no braço.

     - Sr. Garrity - disse por fim -, o Sr. e a Sra. Hackfeld vão partir.

     Garrity, que saiu da sala de cabeça inclinada, ofereceu um sorriso falso a Claire e voltou ao living. Marc seguia-o, pensativo; Claire caminhava entre os dois.

     Em dado momento Claire deteve o marido e disse:

     - Marc, ajude-me a levar isto.

     Uma vez que Garrity se afastara, Claire perguntou:

     - Marc, que se passa entre vocês dois? Os olhos de Marc cintilaram.

     - Ele procura obter minha colaboração para esse assunto das conferências. Afirmou que, com um tema como as Três Sereias, poderia ganhar mais de um milhão de dólares... um milhão, imagine... que dividiria conosco. E isto para começar.

     - Conosco?

     - Quer dizer, se Maud anuísse.

     - Daria cabo de todo o projeto. É horrível.

     - Não me venha com seus juízos apressados, Claire. -Ele é um tipo suportável, se o conhecermos melhor. E tem obtido muito êxito. De fato, tenho a impressão de que é mais conservador e moderado do que parece. Creio que são suas maneiras em público o que os aborrece tanto.

     - Ele é um parasita - volveu Claire. - É um desses sanguessugas, como tantos, completamente destituídos de talento, que vivem à custa de gente como você e Maud, que têm talento. Engodam vocês com sua conversa enfatuada, com suas referências a milhões, a dinheiro graúdo. Eis o que este Garrity está fazendo, e...

     - Calma, Claire. - Nervosamente, olhou para diante. - Ele pode ouvi-la.

     - Que ouça.

     Claire começou a caminhar, mas Marc deteve-a.

     - Escute, mantenho o que disse antes. Não estamos interessados em fazer sensacionalismo das nossas descobertas. É pena que... Bem, você sabe tão bem como eu que grande número de dados acabam por apodrecer nos arquivos. Penso que talvez pudéssemos impingir o que não nos interessa a Garrity sem nos comprometer. Quero dizer, se existe tanto material à nossa disposição por que não nos aproveitamos dele? Gostaria de lhe dar um carro, roupa nova...

     - É um amor - retorquiu Claire. - Porém, devem existir maneiras mais fáceis de obter o que deseja. Que tal um assalto a um banco?... Continue a pensar assim, Marc. Permita que Mefistófeles encontre outro Fausto.

     - Mas que diabo, querida, estava apenas falando.

     - Garrity também. - Puxou o marido pelo braço. - Vamos, devem ter dado por nossa ausência.

     Cinco minutos mais tarde Maud Hayden achava-se de pé no limiar da porta, observando a partida dos convidados. Claire aproximou-se dela, estremecendo ao contato com o ar frio da noite. Do lado de fora, via-se um estranho quadro. Os Loomis tinham já partido mas a limusine de Hackfeld encontrava-se ainda parada diante do passeio. Garrity deixara-se já tombar no assento da frente e o motorista mantinha-se atento junto da porta da retaguarda, aberta. Lisa Hackfeld chamara de parte o marido e, a certa distância do carro, pareciam estar agora discutido acaloradamente.

     - Que se passa com eles? - perguntou Claire.

     - Desconheço-o - respondeu Maud. - Tudo o que sei é que, para mal dos meus pecados, ele rejeitou o meu pedido. Afirmou que os fatos que se conheciam sobre as Sereias não justificavam a concessão de fundos suplementares.

     - Que quer dizer com isso?

     - Bem, suponho...

     Deteve-se. A pesada figura de Cyrus Hackfeld aproximava-se lentamente, ao mesmo tempo que a mulher se afundava no assento do carro. Hackfeld estacou a alguns metros da porta.

     - Dr.a Hayden - bradou ele -, podemos conversar durante uns momentos em particular?

     Rápida, Maud dirigiu-se ao encontro do milionário.

     - Espere - disse Claire -, vou buscar-lhe um suéter.

     - Não se preocupe...

     Desceu o passeio. Claire observou-a durante um momento; ouviu Hackfeld pronunciar algumas palavras, viu Maud fazendo com a cabeça gestos de aprovação, e em seguida afastou-se da porta para que não a supusessem uma intrometida. Começou a ajudar Marc, que estava arrumando as garrafas e os copos e limpando os cinzeiros. Aguardava ansiosamente o regresso da sogra.

     Maud fechou a porta da frente e encostou-se a ela enquanto a limusine se punha em movimento e se afastava. Claire e Marc tentaram ler no rosto de Maud, à medida que ela se aproximava lentamente da mesa de café. O rosto denunciava alívio mas não alegria.

     - Bem, meninos - disse ela -, sempre conseguimos os fundos suplementares, apesar de tudo... e levamos também conosco a Sra. Lisa Hackfeld.

     Foi Marc quem reagiu primeiro.

     - Que diabo quer isso dizer, Matty?

     - Quer dizer que Lisa Hackfeld teve esta noite o grande momento de sua vida. É uma mulher rica, cheia de tédio, e a conversa acerca das Sereias constituiu para ela a primeira coisa de interesse desde há longo tempo. Faz anos amanhã e pediu ao marido que lhe oferecesse esta viagem conosco como presente. Deseja acompanhar-nos. Insiste nisso. Diz que tem algumas noções sobre dança, pois estudou-a. Hackfeld fará tudo para lhe agradar. E, para lhes ser franca, não tive tempo para opor objeções. Ele afirmou-me: “Decerto, Dr.a Hayden, se levar mais uma pessoa as despesas são maiores. Assim, terei de aumentar o subsídio, não é verdade? Muito bem, seja a quantia que me pediu depois do jantar. Pessoalmente, acrescentarei do meu bolso cinco mil dólares. Chega?” - Maud soltou um grunhido. - Chega? Creio que sim. Viajaremos com uma grande e estranha companhia, mas por Deus, meninos, estamos já a caminho, e isso é tudo o que conta!

    

     Apesar de serem duas horas da madrugada e de se encontrar fisicamente exausta, Claire não se achava realmente demasiado fatigada para aquilo. Compreendia que o marido a desejava como sempre acontecia, embora com pouca freqüência, nos momentos em que fazia tímidas insinuações e fixava seu busto.

     Tinham-se despido, e Claire encontrava-se já na cama de casal, com a diáfana camisola de nylon, de finas alças, e a saia plissada. Marc encontrava-se ainda no banheiro, e ela estava deitada de costas, esperando. Com exceção do abajur de luz fosca colocado na mesa junto da cama, do lado de Marc, o quarto achava-se mergulhado na obscuridade propícia à intimidade, e confortavelmente quente; contudo, Claire sentia a expectativa da espera no espírito e não nos membros inferiores, e perguntava por quê. Na verdade, conhecia a resposta mas detestava encará-la. Desagradava-lhe sempre censurar-se a si própria. A verdade era que não sentia prazer no ato más na idéia romântica que justificava o ato. A sua realização constituía um símbolo. Esta participação no sexo fazia que se sentisse casada e normal e igual a todas as mulheres deste mundo. A própria participação não lhe dava prazer físico. Desde há meses que receava que ele suspeitasse dos seus verdadeiros sentimentos. Demais, por que se aproximaria dela com tão pouca freqüência?

     Marc saíra do banheiro no seu pijama listrado, e à medida que voltava a cabeça no travesseiro, para o encarar, ela via, pela sua expressão, pelos seus movimentos, que o marido estava decidido. Achava-se deitada na cama sem sombra de tensão, de ansiedade, pois os passos eram familiares. Ele sentar-se-ia na borda da cama, descalçaria os chinelos com um piparote, deslizaria sob o cobertor, apagaria a luz e estender-se-ia. Depois, estenderia a mão para a tocar e de súbito erguer-se-ia sobre ela para a beijar na boca, puxaria as finas alças e beijar-lhe-ia os seios, estenderia a mão até abaixo para lhe puxar a extremidade da», camisola e aquilo aconteceria; daí a minutos sentir-se-ia normal. Valia bem a pena sentir-se normal e casada, disse de si para si, enquanto esperava.

     Ele sentou-se na borda da cama e lançou fora os chinelos com um piparote.

     - Foi uma noite agradável, querido - disse ela. - Estou muito contente por tudo ter corrido tão bem.

     - Sim - volveu ele; porém, a desaprovação lera-se por um instante nas suas feições. - Apenas uma coisa...

     Deslizou sob o cobertor, ainda apoiado sobre um cotovelo. Ela mostrou o seu espanto.

     - ... apenas uma coisa me aborrece, Claire - tornou ele. - Que é que se mete na sua cabeça, que a obriga a falar com tanta liberdade diante de pessoas completamente estranhas? Refiro-me àquelas tolices sobre os festivais de sexo. Manifestou sua aprovação e desejou tal gênero de práticas intoleráveis aqui. Que podem pensar as pessoas? Ficam com uma má impressão. Não a conhecem, não sabem que está gracejando.

     Estendeu a mão e apagou a luz.

     - Não gracejava, Marc - retorquiu ela na súbita escuridão. Há alguma coisa a dizer em favor da maneira como os povos primitivos -se divertem. Dei o dito por não dito apenas porque notei que você começava a encolerizar-se.

     Segundo antes, a voz, dele, embora denunciando um certo desagrado, manifestava o desejo que sentia por ela. Agora, de súbito, mudou de tom e o desejo transformou-se em desprazer.

     - Que quer dizer... começava a encolerizar-me? Sim, que quer você dizer?

     - O seguinte: sempre que falo de sexo, o que é bastante raro, fica irritado comigo. Acontece sempre isto, não sei por que razão.

     - Não sabe por que razão, hem?

     - Por favor, Marc, não faça disto um caso de vida ou de morte. Não sei o que digo... estou fatigada...

     - Tem muita razão. Sim, não sabe o que diz. Gostaria de compreender o que realmente passa por sua cabeça, mas vou dizer-lhe uma coisa: é melhor que cresça, mais tarde ou mais cedo, que se torne uma mulher casada responsável, e não... não...

     Ela sentiu-se desamparada.

     - Que tem em mente, Marc?

     - Escute, terminemos com isto. Estou também fatigado. A cama oscilou quando se sentou nela e se aproximou da beira. Daí a momentos, depois de ter encontrado os chinelos, ergueu-se na escuridão.

     - Marc, que tem... que vai fazer?

     - Descer, para tomar um trago - volveu ele asperamente. - Não consigo dormir.

     Caminhou às cegas através do quarto, tropeçou numa cadeira, saiu e, daí a momentos, descia a escada.

     Claire continuava deitada de costas, imóvel. Lastimava o que se passara, mas também não era a primeira vez que isto sucedia. Era estranho, mas estes rompantes ocasionais seguiam um padrão, compreendeu. Sempre que repetia uma história que ouvira por acaso, um gracejo ou uma confidencia relacionados com o sexo, todas as vezes que era franca, ele irritava-se. A última vez fora há duas semanas, num momento de intimidade como este. Tinham ido ao cinema ver um filme no qual o herói era um lutador. Mais tarde, ao fazer alguns comentários sobre o aspecto atraente e o físico musculoso do ator principal, e ao tentar analisar a fascinação que ele poderia exercer sobre as mulheres, Marc escolhera esta observação para se mostrar desagradável. Sim, todas as vezes que fazia uma referência favorável ao sexo ou a qualquer aspecto da sexualidade, Marc encarava isto como uma afronta pessoal, uma subversão da sua virilidade. Nessas ocasiões, a sua gentileza, o seu bom humor, a sua sólida maturidade pareciam evaporar-se de súbito, deixando apenas uma petulância tensa e defensiva. Graças a Deus que isto não sucedia com freqüência; porém, sucedia. Então, ficava confusa, como agora. Que ridículo, pensou, preocupada. Que é que o inquieta nestes momentos?, cogitou. São estes rompantes comuns entre os homens?

     Sonolenta, reviu seus primeiros sonhos de amor e casamento, quando tinha onze, doze anos, e vivia em Chicago, quando tinha quinze, dezesseis, e vivia em Berkeley, quando tinha dezoito, dezenove, e vivia em Westwood, e quando, aos vinte e dois, conheceu Marc. De certa maneira, podia relacionar seus sonhos com a realidade corrente. Existia um certo conforto e uma certa segurança no casamento, em especial durante o dia. De noite, bem, em noites como esta, o abismo entre o sonho e a realidade não tinha fim.

     Ele estava, embaixo, bebendo brandy. Ficaria lá até que ela adormecesse, e só então voltaria para a cama.

     Durante uma hora, Claire tentou dormir, mas não o conseguiu.

     Quando Marc voltou, fingiu que estava dormindo. Desejava que o marido se sentisse feliz...

    

     Como a colossal ave castanha da lenda polinésia, o hidravião anfíbio rasgou o vácuo e a escuridão, preparando-se para fazer nascer o Princípio.

     Existem muitos mitos da criação na Oceania, mas aquele em que Claire Hayden acreditava esta noite era o seguinte: no universo sem fim havia apenas o quente mar primevo, e acima dele voava uma ave gigante; a ave deixou cair sobre o mar um ovo-mamute e quando a casca se rompeu surgiu o deus, Taaroa, que criou o Céu e a Terra acima e abaixo do mar e também o primeiro sopro de vida.

     Para Claire, surpreendida, sonolenta, entre o sono e a vigília, não era difícil imaginar o hidravião do Capitão Ollie Rasmussen como a ave castanha da lenda polinésia que em breve daria à luz nos Mares do Sul o Paraíso das Três Sereias, que constituía o seu único mundo.

     Tinham partido de Papeete, de noite, e era noite ainda, sabia Claire, mas uma vez que dormia espaçadamente desconhecia onde se encontrava agora ou de onde tinham partido. Este mistério, compreendia, fora criado por Rasmussen desde o princípio.

     Reclinada desconfortavelmente no assento já muito gasto, um dos dez que o co-piloto, Richard Hapai, reinstalara - a cabina principal era utilizada para carga antes da chegada do grupo -, Claire endireitou o corpo, estendeu as pernas e tentou habituar os olhos à luz fosca da lâmpada que uma bateria mantinha acesa. Tentando não perturbar Maud, que dormitava no assento à sua direita, ou Marc, que ressonava levemente no assento defronte, à esquerda, ela procurou, pelo tato, a sua espaçosa bolsa de mão, localizou-a, e tirou dela um cigarro e o isqueiro.

     Fumando e completamente desperta, Claire contorceu o corpo a fim de observar o interior da apinhada cabina principal. Além dos três, e excetuando Rasmussen e Hapai, instalados no compartimento do piloto, achavam-se presentes outros sete componentes do grupo. A luz baça, contou as cabeças, procurando inconscientemente outro que se encontrava tão desperto e cheio de expectativa como ela.

     Afundado no assento, ao lado de Marc, estava Orville Pence, com o ridículo capacete cinzento tropical puxado para baixo, a fim de cobrir a calva, e os olhos, pequenos e brilhantes como contas. Viu que ele tinha tirado os óculos de aros grossos e que ressonava ligeiramente, em dueto com Marc. A despeito do fato de ter encontrado um Pence mais afetuoso, menos obcecado pelo sexo do que aquele que conhecera em Denver, não conseguia descobrir um elo comum com ele, embora com Marc isso se tivesse verificado. Sem o espectro da mãe pesando sobre ele, e longe do seu meio habitual, Pence era menos repulsivo mas não menos ridículo fisicamente.

     Atrás de Pence e de Marc achava-se Sam Karpowicz e a sua Mary, o pai dormindo profundamente, como se se encontrasse já exausto antes desta viagem, a filha mergulhada num sono inquieto, como se (acontecia o mesmo com Claire) o Desconhecido lhe causasse apreensão. Observando agora os Karpowicz, incluindo a mãe, Estelle, inclinada para um lado e dormindo no assento de trás, Claire recordou-se de que sentira imediata afeição por eles no momento em que os conhecera. Gostara de Sam, um homem delgado como um poste, um estudioso com ardentes idéias liberais e um grande entusiasmo por suas câmaras e prensas de plantas. Gostara também de Estelle, mole e complacente, porque parecia uma pessoa absolutamente digna de confiança, uma espécie de Mãe-Terra. Mary, de dezesseis anos, era, por temperamento, bem filha de seu pai, franca, viva, camarada. Seus olhos negros de Rebeca, sobressaindo numas feições morenas, imaculadas, condiziam com sua figura primaveril, em botão, fazendo dela um suplemento decorativo do grupo.

     A seguir a Estelle Karpowicz, direta e bem desperta, mascando um chiclete, sentava-se Lisa Hackfeld. A semelhança de Orville Pence, que trazia gravata e colarinho engomado e um terno de passeio escuro e lavável, Lisa Hackfeld achava-se incongruentemente vestida. O seu tailleur, de Unho branco como a neve, caro e nada prático, ficaria bem numa estância de veraneio da moda, mas era coisa extravagante numa viagem antropológica que tinha como objetivo uma ilha polinésia semi-selvagem. Numa das lapelas do tailleur branco exibia já uma nódoa de gordura e na cintura diversas rugas.

     Claire tentou captar o olhar de Lisa, mas não o conseguiu, pois ela estava perdida dentro de si mesma, mergulhada em profunda introspecção subterrânea.

     Ao fundo sentavam-se Rachel DeJong e Harriet Bleaska. Com dificuldade, Claire conseguiu vê-las de relance. Elas dormitavam ou tentavam repousar. Desde o primeiro encontro, Claire não se achava certa de seus sentimentos em relação a Rachel. Relacionando a sua profissão de psicanalista com o seu porte frio, preciso, pessoal, Claire apercebera-se de que era difícil conversar com ela. Uma coisa surpreendia Claire: Rachel DeJong era jovem e bonita. Contudo, seu ar rígido, inflexível, fazia com que parecesse ter mais de trinta e um anos e endurecia o seu cabelo castanho-escuro, os seus olhos vivos, as suas feições regulares, clássicas, a sua figura longa.

     Claire voltou a atenção para a enfermeira. Harriet Bleaska, pensou, era bastante diferente. Uma vez que uma pessoa se restabelecesse do choque inicial produzido por sua fealdade, tornava-se possível descobrir suas excelentes qualidades. Harriet Bleaska era uma extrovertida, descontraída, gentil, quente. Desejava agradar, uma característica que em certas pessoas era forçada e opressiva, mas em Harriet, natural e sincera. De certo modo, sentia-se prazer em conhecê-la. De fato, estas virtudes interiores eram tão dominantes que, pouco tempo depois, pareciam sobrepor-se a seu rosto desfavorecido.

     Claire sentia agora mais simpatia por Harriet Bleaska e estava satisfeita por Maud ter sido obrigada a incluí-la na expedição. Após a adição de Lisa Hackfeld ao grupo, e em vista da necessidade de aceitar a família de Sam Karpowicz, Maud pensara em rejeitar Harriet, uma enfermeira, como substituta do Dr. Walter Zegner, médico e investigador. Houvera um último protesto familiar dirigido a Marc e a ela própria. Maud dissera, nessa ocasião, que o perfeito grupo de campo devia ser composto apenas por uma pessoa, ou quando muito duas ou três, e que seu projeto original de trazer sete constituíra uma concessão à grandeza de Hackfeld; sete, porém, era o número limite. Com a presença da mulher e da filha de Karpowicz, de Lisa Hackfeld e de Harriet Bleaska a investigação poderia transformar-se numa ópera cômica e a análise científica sofrer um grande dano. Se os Karpowicz e Lisa constituíam conveniências inevitáveis, pelo menos Harriet, uma enfermeira que não conhecia, podia ser dispensada. Nove era um número mais razoável do que dez.

     - Sei que já o disse antes, mas repeti-lo-ei agora - protestara Maud. - Um grupo numeroso de antropólogos numa pequena cultura poderá alterar essa cultura e arruiná-la. Verificou-se um caso clássico não há muitos anos: um grupo de doze investigadores de campo, ao chegar, em dois carros, a uma aldeia nativa, a fim de estudar uma tribo, foi recebido a pedrada e teve de debandar. Representavam uma invasão, e não alguns, poucos, participantes que se poderiam integrar. Se chegarmos dez pessoas às Sereias constituiremos uma colônia americana entre um punhado de nativos, seremos incapazes de nos dissolver na vida tribal, de nos tornarmos parte dela, e acabaríamos por nos estudarmos uns aos outros.

     Maud procurara Cyrus Hackfeld com sua lista de nove e este imediatamente dera pela falta de Zegner. Maud declarara que a Dr.a DeJong completara o estágio médico muitos anos antes, mas Hackfeld mostrara-se inflexível, insistindo que levasse Harriet Bleaska como substituta de Zegner. Exigiu uma pessoa com experiência médica, a quem fossem familiares as mais recentes técnicas da medicina como salvaguarda de sua mulher, uma vez que esta não estivera ainda num lugar primitivo ou numa ilha tropical. Maud, que não se achava habituada a Waterloos ou Appomattoxeá, e era bem conhecida por sua obstinação em lutar para além do que era humanamente possível, compreendera que tinha de se render. Eis por que se encontrava aqui Harriet Bleaska e o grupo era constituído por dez elementos.

     O hidravião, que entrara e saíra de um vácuo, oscilou e seus dois motores gemeram ainda mais; porém, tudo voltara ao normal. Claire fora sacudida no seu lugar e olhara imediatamente para Marc, a fim de verificar se um solavanco o tinha despertado. Todavia, isso não acontecera. Continuava dormindo, não ressonava já, mas sua respiração produzia um certo ruído. Claire observou o marido no sono. O rosto tenso mostrava-se mais repousado. De fato, excluindo sua respiração ruidosa, parecia tão atraente como no tempo em que não o conhecia ainda muito bem, parecia - e o corte curto do cabelo ajudava-o - um jovem colegial inocente, saudável e agressivo. Seu vestuário acrescentava alguma coisa a este retrato. Vestia um leve casaco de seis bolsos, uma fina camisa de xadrez lavável, calças caqui e trazia botas grossas de pára-quedista.

     Tentando admirá-lo, sentir-se orgulhosa dele, Claire recordou algumas das conversas entre ambos, em casa. Uma vez que o Dr. Walter Scott Macintosh concedera a Maud uma oportunidade para proferir uma conferência sobre as Sereias, durante o encontro de outono da Liga Antropológica Americana (e sentia-se certo de que ela venceria Rogerson na corrida para o posto de diretor-executivo de Cvlture), Marc mostrava-se absolutamente ebuliente quanto a seu próprio futuro. Quando a mãe deixasse o Raynor College, ele herdaria sua importante cadeira de Antropologia. Embora a cadeira lhe fosse concedida devido ao mérito da mãe, à influência do nome da família, ver-se-ia liberto de Maud e de Adley, dependeria apenas dele, teria sua própria identidade e seus próprios aduladores. Era este seu único objetivo, ser ele próprio, ser Alguém. Não explicaria tudo exatamente desta maneira a Claire, mas era o que ela compreendia que o marido sentia e queria exprimir quando falava do futuro imediato e da necessidade de obterem o maior êxito com a viagem às Sereias.

     A ponta rubra do cigarro tocara os dedos, manchados de nicotina, de Claire, e ela inclinou-se para a frente, deixou-a tombar para o chão e esmagou-a com a sola lisa de um dos sapatos. Tirou um novo cigarro, e, depois de acendê-lo, recostou-se no assento, as pernas estendidas cruzadas nos tornozelos, e divagou sobre a irrealidade destes momentos. Até agora, apesar das investigações já feitas, o objetivo Polinésia e o lugar conhecido como as Três Sereias tinham constituído uma quimera, um oásis de férias que poderia assemelhar-se aos restaurantes adulterados estilo Havaí que ela e Marc visitavam ocasionalmente em Los Angeles e em San Francisco. Agora que este velho hidravião anfíbio, a manhã e o atol convergiam, ela achava-se de certo modo confusa acerca do que a esperava e do que seria para ela a vida durante aquelas seis semanas. Por motivos que não examinara em profundidade, esta viagem e o lugar que muito em breve seria seu lar temporário revestiram-se de grande importância para ela, como se constituíssem um marco de seu destino. Era como se se estivesse preparando para trocar a rotina e uma certa frustração por algo definido que, de um golpe, a separaria do passado e que permitiria que Marc e ela própria penetrassem numa vida mais feliz.

     Dobrada no seu duro assento, sentia o peito rígido, e esta rigidez estendia-se mesmo até aos braços, sob o suéter azul-pálido. Tratar-se-ia de inquietude sobre o que não era familiar, o que jamais conhecera, como suspeitava que sucedesse com a jovem Mary Karpowicz e com Lisa Hackfeld? Ou tratava-se apenas de uma certa fadiga causada pela viagem, pela mudança de clima operada nestes últimos dias? Estabeleceu um compromisso consigo própria. Era uma e outra coisa, um pouco de cada.

      

     Tinham-se reunido todos apenas cinco dias antes em casa dos Haydens, em Santa Bárbara, e o presidente Loomis fornecera gratuitamente aos visitantes instalações no campus. Todos os dez se conheceram e se misturaram, estudaram-se uns aos outros, tentaram compreender as respectivas personalidades. Maud, como diretora de campo, endereçara algumas palavras a todos e em seguida efetuara-se uma sessão isenta de quaisquer formalismos, apenas de perguntas e respostas. Verificara-se também uma apressada procura de artigos que tinham sido esquecidos, fizeram-se as malas, e por fim os Loomis ofereceram um almoço de despedida a que compareceram os professores do Raynor.

     Ao fim da tarde, em três limusines fornecidas por Cyrus Hackfeld (duas para os passageiros, uma para a bagagem), foram conduzidos ao Beverly Hilton Hotel, onde Hackfeld reservara quartos para todos. A mulher recusara voltar com ele à mansão de Bel-Air, e, a despeito da sua oposição, ficara com os restantes. Depois, efetuou-se uma entrevista coletiva, habilmente conduzida por Maud, seguida de um jantar de despedida, planejado por Hackfeld e por diversos membros do conselho-executivo da Fundação.

     Às onze da noite, foram conduzidos, em limusines particulares, através do. tráfego já ligeiro, ao aeroporto internacional, no Sepulveda Boulevard. No vasto e moderno terminal, onde Maud verificara os passaportes, os vistos, os certificados de saúde, a lista de bagagens, todos tinham sido invadidos por um sentimento de solidão, como se se encontrassem aglomerados no corredor de um hospital, após a hora de recolher. Apenas Cyrus Hackfeld se despedira deles. Chegara um telegrama de Colorado Springs para Orville Pence, e Rachel DeJong fora chamada ao telefone para atender um tal Joseph Morgen. De certo modo, os fios das velhas ligações estavam soltos. Era como se tivessem sido abandonados pelo mundo conhecido.

     Por fim, depois de o vôo n1? 89 da TAI ter sido anunciado, e perdidos no meio dos outros passageiros, saíram em fila do terminal; daí a pouco estavam na cápsula de metal do jato DC8 da Companhia de Transportes Aéreos Intercontinentais, francesa, que faria um vôo direto de Los Angeles para Papeete, Taiti. Seguiam na classe turística, e não na primeira classe - Maud discutira isto com Hackfeld, e, com o apoio de Lisa, vencera - o que significava uma economia de 2500 dólares nas passagens. Na classe turística, os macios assentos estofados de tecido estavam assim dispostos: três num dos lados do corredor, três no outro, de modo que se sentavam seis em fila, ocupando a maior parte de duas filas. Os restantes lugares da segunda fila eram ocupados por um amável dentista de Pomona, que partia em férias, e por um jovem gordo, bem vestido e barbudo, que celebrava o seu fim de curso universitário.

     Precisamente à uma da madrugada o jato começou a mover-se, primeiro com lentidão; após ganhar velocidade, percorreu, rugindo, a pista de cimento, e momentos depois perdiarse na altura. Começaram a ficar para trás os inúmeros pontos amarelos das luzes da metrópole embaixo, uma fieira de luzes vacilantes, e outra ainda, e os passageiros foram catapultados para a altura, sobre o oceano Pacífico, numa escuridão profunda.

     Esta fase da jornada fora repousante. Sentada entre o marido e a sogra, Claire principiara a ler um compacto guia turístico sobre a Oceania, enquanto Maud e Marc folheavam as revistas, escritas em três línguas, oferecidas pela TAI. Mais tarde, pediram champanha, fornecido a preços reduzidos; serviu-os uma comissária taitiana de cabelo negro e lustroso, vestida com um pareu de algodão azul.

     O champanha dera a Maud uma sensação de bem-estar; a sua pesada pessoa descontraíra-se e a língua soltara-se. Com seus modos festivos, reconciliara-se, finalmente, com o tamanho do grupo, e pensara mesmo que a variedade das especialidades devia mostrar-se vantajosa para o estudo.

     - Dez pessoas não era um número recorde, sabem - dissera ela. - Uma vez, um jovem bastante rico, suponho que de uma família de banqueiros, organizou um grupo de vinte, de vinte, imaginem, que levou à África, e creio que não houve contratempo algum. Este jovem rico vestia-se com tanto aparato como o nosso Dr. Pence. No campo, trazia camisa social, gravata e um terno de corte elegante. De acordo com a história, os nativos de uma tribo africana convidaram um dia este jovem bastante rico para jantar. A sua pièce de résistance era bolo frito feito de vários legumes, vegetais e lama. Quando o jovem contou mais tarde a experiência, alguém perguntou: E então comeu aquilo? Ao que ele respondeu, erguendo os braços: “Não seja pateta! Mal consigo engolir a comida do Yale Clube!”

     Claire e Marc, e Lisa Hackfeld, que se encontrava no assento defronte, desataram a rir, e Maud continuara a evocar reminiscências durante mais de meia hora. Pouco depois, íatigada, voltou-se para cochilar um pouco. Gradualmente, e uma vez que não havia nada que ver ou fazer, amodorrados pela monotonia do vôo, pelo champanha e pelos sedativos, a maior parte dos componentes do grupo adormecera.

     Às seis e meia da manhã, um por um, despertaram. Como a Polinésia ainda não se encontrava à vista, ocuparam-se todos com as necessidades matinais, com a colocação nas malas dos objetos que tinham mantido fora delas e com o café. Enquanto faziam tudo isso, a noite extinguia-se, o sol despontara no horizonte e o vasto oceano de vidro podia ver-se embaixo. Pelo alto-falante tinham transmitido instruções: apertar os cintos de segurança, lançar fora os cigarros, Taiti está próxima.

     Para Claire, a ilha lendária significara uma mistura de todas as leituras, significara Cook e Sieur de Bougainville, e Bligh e Ghristian, Melville e Stevenson, Gauguin e Loti, Rupert Brooke e Maugham, e colara os olhos à janela para apreciar a vista daquele lugar encantado. A princípio, houve apenas o pálido céu sem nuvens, fundindo-se com o mar cerúleo, e depois, como uma estampa esmaecida e distante, que representasse um esquisito e frágil Hiroshige - em verde-esmeralda oriental projetado numa cortina de ar - surgiu Taiti.

     Claire arfara audivelmente ao ver o quadro encantador tomar dimensão e crescer de proporções. Por um instante, sentira uma dor profunda motivada pelo fato de tudo isto existir sobre a Terra desde os tempos imemoriais, e de ela ir também a seu encontro. Mas prezara a sua boa sorte por poder conservar por fim isto como uma memória, e recordara exatamente, como se uma legenda apropriada, as palavras de Robert Louis Stevenson: “O primeiro amor, a primeira alvorada, a primeira ilha dos Mares do Sul são memórias à parte que tiram a virgindade dos sentidos. “ Silenciosamente, agradecera esta percepção de seus próprios sentimentos.

     A vista fora dominada pelo verde aveludado do alto monte Diadème, e de súbito começaram a perder altura. Maud inclinara-se para o lado, bloqueando parcialmente a janela, Marc dera algumas instruções a Claire; depois de uma visão final, de relance, dos telhados cor de tijolo de Papeete, ela não conseguiu distinguir mais nada.

     Houvera a precipitação e o ruído provocados pelo próximo desembarque, o gradual abrandamento de velocidade na pista e a freada final. Puseram-se todos de pé com a bagagem de mão e penetraram no ar matinal, nublado, tépido. Esperava-os uma confusão indescritível de pessoas de tez morena, flores perfumadas e música irradiada do aeroporto. As sorridentes e belas moças nativas, graciosas e flexíveis, com seus vistosos pareus, sandálias, tiras de flores brancas em botão nas orelhas, como jóias, viam-se por todo o lado. Uma colocara uma grinalda de flores em volta do pescoço de Claire, e outra, rindo, beijara Marc e gritara iaorana, as boas-vindas taitianas.

     Claire distinguira imediatamente Alexander Easterday, antes da apresentação, e maravilhou-a uma vez mais a precisão da memória descritiva de Maud. Observando Easterday, à medida que ele apertava a mão de Maud, Claire viu um obeso e maneiroso tipo de alemão, de capacete e com um terno tropical bege, bem passado apesar de gasto. Impressionara-a olhar o seu precário pince-nez e o bigode grisalho, sacudindo-se de cada um dos lados do nariz afomatado. Parecera-lhe sempre incrível que esta caricatura de um herr professor, tão deslocado no meio de tantas flores, bustos e pareus, fosse responsável pela presença de todos os dez na ilha de Taiti.

     Um solavanco súbito sacudiu Claire, desviando-a da recordação da chegada a Taiti. Endireitou-se rigidamente no assento do hídravião de Rasmussen, que se dirigia para as Três Sereias. Mudando de posição, Claire notou que Maud se mexera, como se despertasse um pouco; porém, com as pálpebras cerrando ainda os olhos fatigados, continuou a dormir. Do outro lado, Marc continuava tranqüilamente seu sono, mas Pence despertara e tentava reunir seus pertences.

     O cigarro de Claire estava quase no fim. Ela sacudiu a cinza, levou o cigarro aos lábios e inalou, decidida a prosseguir na evocação de suas recordações de Taiti. Tentou fixar a mente nos eventos fantásticos do dia anterior, que decorrera com tanta rapidez. Fora um dia caleidoscópico, que agora revolvia na mente, separando os fragmentos de vidro colorido, procurando deter-se no padrão real do que testemunhara.

     O padrão variegado não queria tomar forma, transformava-se na memória, de maneira que ela conseguiu apenas ver um fragmento aqui, outro ali. Tinham-se deixado envolver com demasiada facilidade pelos costumes locais. Tinham sido conduzidos, em Peugeots alugados, aos arredores da cidade, ao hotel Les Tropiques, composto por cabanas cobertas de colmo; em redor delas, palmeiras, e mais além uma lagoa, que se abria para o oceano; algumas das cabanas tinham sido reservadas para os que desejassem mudar de roupa ou repousar.

     O almoço, cedo, no pátio, incluíra peixe cozido, frango frito, rum da Martinica, e poi quente, que consistia de taro com ananás, banana e papaya em creme de coco. Do local, observava-se a vista notável de Moorea, que ficava a cerca de quinze quilômetros; Easterday dissera que o Capitão OUie Rasmussen vivia em Moorea e viria, na sua lancha, depois do jantar.

     Easterday fornecera a Maud o programa do grupo. Tomara a liberdade de arranjar para todos uma excursão de automóvel por Taiti, mais de cento e cinqüenta quilômetros em redor do perímetro da ilha. Isto, a visita a lugares de interesse, as compras em Papeete, consumiria toda a tarde. Esperava que os Haydens fossem seus hóspedes para o jantar. Os outros comeriam no hotel, claro. Deixara a noite livre, sugerindo que repousassem, uma vez que necessitariam de todas as suas forças para a viagem até as Três Sereias. A meia-noite, conduziria Maud ao Vaima Café, que ficava à beira-mar, a fim de que ela se encontrasse com Rasmussen, enquanto os outros componentes do grupo, com suas bagagens, seriam conduzidos ao cais para embarcarem no hidravião do capitão. Easterday supunha que partiriam para as Sereias uma hora ou duas depois da meia-noite e que chegariam ao nascer do sol a seu destino. Fez todos os preparativos, por intermédio de Rasmussen, com Courtney e Paoti, nas Sereias. O grupo disporia de instalações para o período de seis semanas que fora combinado. Havia mais uma coisa, acrescentara Easterday, apenas uma coisa: deviam manter segredo quanto à localização das Sereias a partir desse instante. Deviam manter também a conveniente reserva nas suas conversas. Pedira a Maud que impusesse este sigilo a todos os elementos do grupo, e ela anuíra.

     Para Claire, as restantes dezessete horas em Taiti tinham constituído uma experiência impressionante. Não se permitiria qualquer lazer ou divagação mental. Numa só noite passara do mundo do Raynor College, de Suzu, dos Loomis, do Beverly Hilton, para o mundo da Polinésia, de Easterday, de Rasmussen e Les Tropiques.

     Houvera a excursão, em automóveis alugados, que se dirigiam para norte no meio do calor: a tumba do último rei de Taiti, Pomare V, tão amante do álcool que uma réplica de coral, de uma garrafa de Benedictine, coroava a tumba, entre as aitos; as vistas do pico Vênus, onde o Capitão Cook estivera em 1796 observando a trajetória da Lua através do Sol; a longínqua catarata de Faaru, como se inúmeros fios brancos oscilando ao vento; o almoço, já tarde, na sala de bambu do restaurante Faratea, com o odor das acácias cor-de-rosa por todo o lado; a frescura da gruta de Maraa, com seu poço dentro da cave funda; as paredes de lava negra do Templo das Cinzas, onde os sacerdotes recitavam ritos pagãos; o amontoado de cabanas representando a segunda maior cidade da ilha, Taravao...

     Depois de terem circulado completamente a ilha e de voltarem a Papeete, os fragmentos de vidro colorido do caleidoscópio mental de Claire refletiram as lembranças mais extravagantes: a espuma sobre os recifes de coral; o café à beira da estrada, com seu vinho argelino; a casa colonial rodeada de árvores de fruta-pão cheias de folhas verdes; as igrejas brancas com campanários cor de argila; os receptáculos, semelhantes às caixas de correio, ao longo da estrada, para a entrega de longos pães franceses e leite pasteurizado; o desconjuntado ônibus nativo, ocupado por meninas a caminho da escola, vestidas de azul-escuro, e cheio de blocos de gelo na capota; e, por todo o lado, as gargantas verdes, os riachos cintilantes e as buganvílias vermelhas.

     De Papeete à cidade, recordava-se apenas das moças alegres e risonhas com os seus parem coloridos, caminhando aos pares; das motonetas ruidosas movendo-se pelas ruas amplas cobertas de cinzas; as escunas de copra, os iates, os barcos de pesca e um grande transatlântico cinzento na água, ao longo do cais; o letreiro de bambu com a inscrição “Quinn” à entrada de um cabaré de onde saíam vozes roufenhas; as lojas francesas e chinesas e o amontoado de artefatos exóticos na loja de Easterday, na rua Jeanne d'Arc.

     Ao jantar, encontrava-se completamente fatigada, as pernas, os olhos, os sentidos, e durante a refeição, com Easterday no Chez Chapiteau, comera o seu filet mignon e as batatas fritas quase sem escutar Maud e Marc que conversavam sobre Rasmussen e as Três Sereias com o anfitrião. De volta a Les Tropiques, lançara-se sobre a cama e dormira, imóvel e profundamente, durante as horas que precederam a meia-noite. Quando a sacudiu, a fim de despertá-la, Marc dissera-lhe que Maud se dirigia já para o Vaima Café, para se encontrar com Rasmussen, e que um jovem polinésio chamado Hapai os esperava no exterior do hotel com o propósito de conduzi-los ao hidravião.

     O aparelho decolara cerca de uma da madrugada, deixando atrás de si as luzes, a música, os gritos de Papeete, transportando-os através do espaço, até às Três Sereias. Vira Rasmussen durante uns momentos, depois da partida. Hapai achava-se nos comandos quando Rasmussen entrara na cabina principal, e Maud fez as apresentações. A aparência do capitão agradava a Claire: um personagem da beira-mar com um veneravel boné de marinheiro, o colarinho da camisa branca de mangas curtas aberto, bine jeans e tênis sujos. Os olhos raiados de sangue e o rosto escandinavo cheio de cicatrizes pareciam um retrato vivo da dissipação. Sua fala era áspera, gramaticalmente irregular, mas direta, grave, destituída de humor. Depois das apresentações, desapareceu por onde tinha vindo, na parte da frente do hidravião, para não tornar a ser visto.

     O cigarro ardera completamente e Claire deixou-o tombar no chão, ao lado de um dos pés.

     . Ouviu o chiar de um assento, provocado pela pessoa rotunda e pesada de Maud, a seu lado, e voltou-se para ver a sogra, sentada ereta, estender as pernas e menear a cabeça para sacudir o torpor.

     - Devo ter dormido profundamente - disse Maud, bocejando. - Esteve desperta durante todo este tempo?

     - Sim, bem desperta. Repousei após o jantar.

     - Que se passa? Rasmussen ainda não voltou aqui?

     - Não. Tem estado tudo bastante calmo. Só a Sra. Hackfeld e eu nos mantivemos despertas.

     Maud consultou seu grande relógio de pulso de aço inoxidável.

     - Já passa das seis - disse. - Rasmussen declarou que chegaríamos ao alvorecer. Devemos estar perto.

     - Espero que sim. Maud fitou Claire.

     - Sente-se bem?

     - Decerto. Por que pergunta? Maud sorriu.

     - A primeira viagem de campo de uma jovem é como o seu primeiro flerte. Uma coisa nova e importante. Tem o direito de se sentir incerta. Que é que a espera? Como irá reagir?

     - Sinto-me bem, Maud - volveu Claire, hesitante. - Apenas... - Deteve-se.

     - Continue. Ia dizendo que...

     - Apenas me preocupa o fato de a minha presença se provar inútil nesta viagem. Quero dizer... qual é a minha função? Esposa?

     - Por amor de Deus, Claire, por vezes a esposa de um antropólogo pode ser dez vezes mais importante numa viagem de campo do que o marido. São inúmeras as razões. A dupla homem-mulher parece menos importuna, menos estranha, mais aceitável em muitas culturas. Além disso, a esposa pode descobrir coisas bem mais relevantes quanto aos costumes dos casais, compreendê-los melhor do que o marido. Sabe que, no que se refere ao governo da casa, à educação dos filhos, à nutrição, é mais fácil a uma mulher reconhecer as diferenças existentes nestes setores e absorvê-las. Talvez mais importante é o fato de que... Bem, numerosas sociedades têm tabus contra os homens, os estrangeiros, claro, que observam e entrevistam as esposas. Não sei o que se passará nas Sereias, mas Marc poderá ser impedido de estudar... oh, a menstruação, as relações sexuais, a gravidez, o que estas mulheres sentem por serem mulheres, seus prazeres, desprazeres, anseios... E isto porque pertence ao sexo masculino. Mas a esposa pode ser aceita, mesmo bem-vinda. Sabe, ela é uma mulher também, etc, justamente como eu, exceto que outras tarefas me manterão ocupada. Assim, terá muitas coisas a fazer, Claire, e coisas de real valor.

     - Um belo discurso, que agradeço - volveu Claire, puxando o suéter sobre a blusa e abotoando-o.

     - Além disso, espero que continue a me ajudar na preparação das notas, e...

     - Decerto que a ajudarei, Maud. - Divertia-a a ansiedade que a sogra manifestava a seu respeito. - De fato, já me sinto sobrecarregada de trabalho.

     - Bom. - Maud ergueu-se. - Vamos, Claire, descubramos onde estamos.

     Claire levantou-se e tomou a dianteira. Lentamente, na semi-obscuridade do interior do aparelho, subiram o corredor, passaram pelo compartimento do trem de aterragem, pelas seções de correio e bagagem, pelos banheiros, pela escotilha da entrada principal e, de súbito, deram com Rasmussen e Hapai no compartimento do piloto, cheio de fumaça.

     Ao notar a sua aproximação, Rasmussen voltou-se rapidamente dos comandos e, como um garoto turbulento, apanhado atrás do celeiro com uma ponta de cigarro, baixou o charuto. Afastou, com a mão livre, uma nuvem de fumaça, e inclinou a cabeça num cumprimento.

     - Um momento - disse ele, debruçando-se para esmagar a ponta do charuto no cinzeiro de metal, que se encontrava no solo.

     - Espero que perdoe a nossa curiosidade - declarou Maud.

     - Decerto, minha senhora. Como paga, tem todo o direito de observar.

     Claire encolheu-se atrás de Maud, aquém das cadeiras dos pilotos. Seus olhos ergueram-se do complexo painel de instrumentos e fixaram-se no pára-brisa; tentava ver o que estava para lá dos motores. Era noite ainda, não noite negra mas noite cinzenta, como se uma densa neblina se tivesse levantado. O oceano, embaixo, não se distinguia.

     - O dia está nascendo - disse Claire para Maud.

     - Sim, mas não consigo ver...

     - Espere quinze minutos, minha senhora - interrompeu Rasmussen -, e verá o primeiro clarão do sol. Poderá então contemplar o velho Pacífico.

     - Capitão - volveu Maud -, falta ainda muito para avistar terra?

     - Dentro de quinze minutos, como disse, verá a luz do dia, e passados mais cinco minutos poderá começar a contemplar as Sereias.

     Conversar com Rasmussen era tão fácil como patinar através de um pântano. No entanto, Maud prosseguiu.

     - Como é que as Três Sereias obtiveram aquele nome? Rasmussen cobriu a boca e arrotou, murmurando depois

     uma desculpa.

     - É uma dessas coisas que se devem perguntar a Tom Courtney, pois a verdade é que soube tudo por intermédio dele. Por volta de 1796, quando o velho Wright... o primeiro... se encontrava a bordo de uma escuna à cata de uma ilha onde se pudesse fixar, ele ocupava o tempo com grandes leituras de livros antigos. E quando o vigia gritou que tinha avistado uma das ilhas... estas para onde nos dirigimos agora, o velho Wright estava no seu camarote lendo um livro de um escritor chamado... Homero... Conhece este Homero?

     Maud e Claire inclinaram gravemente a cabeça num gesto de aprovação...

     - ... Bem, ele lia o tal livro de cujo nome nunca me consigo lembrar, onde um tipo anda à toa por esse mundo, metido em trabalhos, tentando voltar à casa e à mulher...

     - A Odisséia - disse Maud com ar tolerante.

     - Bem, seja qual for o nome, o velho Wright estava no camarote lendo a passagem em que o tal tipo avista as ilhas onde as vahines se encontram cantando, tentando seduzi-lo... perdoem-me... e ele tem de pôr cera nos ouvidos, para não escutar, e fazer-se amarrar ao mastro... Bem, esqueci-me da continuação...

     Começou a ruminar sobre a passagem. Porém, Claire, enchendo-se de coragem, interveio.

     - Circe disse para Ulisses: “Primeiro, virás para as Sereias, que enfeitiçam todos os que as contemplam. Se algum homem se aproxima delas com toda a sua inocência e escuta a sua voz jamais tornará a ver o lar... “

     - Sim, é isso mesmo! - bradou Rasmussen. Dirigiu um olhar de revés para Claire, como se ela constituísse uma admirável descoberta. - É muito inteligente, minha senhora, tão inteligente como Tom Courtney.

     Teve prazer em ouvir que era tão inteligente como Tom Courtney.

     - Obrigada, capitão.

     - Bem - prosseguiu Rasmussen -, p velho Wright está agora na coberta e diz que aquelas ilhas que parecem tão belas terão, no caso de serem as tais, o nome que a senhora mencionou... Sereias... E como eram três, passaram a chamar-se as Três Sereias. Eis a história.

     Para Claire, a completa incongruência da conversa, considerando tanto a procedência e cultura dos participantes como a sua posição, de suspensão animada, algures entre dois e quatro mil metros acima do nível do mar, divertiu-a, fê-la feliz.

     - Capitão Rasmussen - disse Maud -, importa-se de me responder a uma pergunta pessoal?

     O seu rosto duro, gasto, fechou-se, suspicioso.

     - Depende da natureza da pergunta - retorquiu ele.

     - O professor Easterday, como toda a gente, descerrou uma tão pesada cortina de segredo sobre as Sereias que me pergunto como teria alguém fora destas ilhas sabido da sua existência. Claro, refiro-me a Tom Courtney e ao senhor, capitão.

     Rasmussen franziu a testa, como se pensando na resposta que devia dar. Obviamente, pensar era um processo penoso e lento para ele. Precisava de tempo. Por fim, disse:

     - Não falo por Tom Courtney. Não tenho nada que me imiscuir no que lhe diz respeito, ademais talvez ele não deseje contar como foi parar nas” ilhas. Portanto, fale com Courtney, se quiser saber. Disporá de muito tempo. Ele fala pelos cotovelos, como aliás todos nós por estás bandas, mas não gosta muito de se referir à sua vida. Fale com ele, sim...

     - E quanto ao senhor, capitão? - insistiu Maud.

     - Quanto a mim? Bem, não faço segredo, uma vez que vai também até lá. Não pensava no caso há quase um século. Foi por volta de trinta anos atrás, quando era ainda rapaz e metia o nariz por todo o lado, e por vezes com grande risco. Trabalhava para uns plantadores de copra, os tais que tinham sucedido a J. C. Godeffroy and Son e a esses ingleses da Lever Brothers. Porém, fartei-me, e com o dinheiro que tinha junto comprei uma escuna e comecei a trabalhar por minha conta. Bem, numa das minhas viagens de negócios, desviei-me da rota do costume, a fim de lançar uma vista de olhos sobre esse vasto mar, e uma manhã vi um jovem polinésio à deriva, numa canoa outrigger, com a vela esfarrapada. Bem, içamo-lo para o barco e quase que o ressuscitamos. Eis o que tinha acontecido: ele dirigia-se para algures, quando lhe deu vontade de esvaziar a tripa - perdoem-me -; assim, foi satisfazer a necessidade, apanhando, entretanto, muito sol. Bem, não sabia o que havia de fazer dele. O rapaz dizia que morreria se não o conduzíssemos a casa, que ficava muito perto. Lá tratá-lo-iam. Quando me disse onde ficava a ilha de onde viera pensei que o rapaz era maluco, pois nunca ouvira falar dela e conhecia todas as que existem por esses mares. No entanto, seguimos na direção que indicou e o certo é que vimos as Sereias. Lançamos a âncora um pouco para lá de terra, e na altura em que cheguei à praia com ele - já se sentia então melhor -, o rapaz estava aterrorizado. Dera-me a direção quando estava delirando, ninguém conhecia as ilhas e os estranhos eram absolutamente tabus. Mas como sempre fui intemerato não prestei atenção ao que o rapaz dizia. Demais, ele não estava em condições de sair da praia pelo seu pé. Assim, pus-me a caminho, à sorte, quase o arrastando, e por fim chegamos à aldeia. Bem, em vez de me cortarem a cabeça, festejaram-me como um herói, pois o rapaz que salvara era parente do chefe. Bem, ele era... já morreu... o pai de Dick Hapai.

     Maud e Claire seguiram o dedo de Rasmussen, que apontou para o jovem de cabelo escuro e pele castanho-clara que estava nos comandos. Ele voltou-se ligeiramente e durante uns momentos mirou-as nos olhos e mexeu a cabeça.

     - É verdade - disse.

     - Para terminar - tornou Rasmussen -, o tipo que fazia as vezes de médico da tribo salvou o pai de Hapai. Ele morreu há poucos anos. Quanto a mim, não me queriam deixar partir; comi e bebi até não me poder mexer, e para vencerem o tabu realizaram danças rituais e fizeram-me membro honorário da tribo. Então, que tal a história?

     - Muito interessante - volveu Maud.

     - Sim, é verdade. Poderia ter tudo o que desejasse. Bem, um ano ou dois após a primeira visita adquiri o hábito de tocar uma vez por outra na ilha, apenas por esporte. É um belo lugar para a folia, para a pândega, como irão ver. Um dia descobri que eles têm um produto especial superior à copra ou às pérolas e pedi que me deixassem exportá-lo e negociá-lo com exclusividade, pagando-lhes com mercadorias de outras ilhas de que tivessem necessidade. Desde então é o que tenho feito. Nos velhos tempos costumava vir aqui, na minha escuna, talvez quatro vezes por ano, mas depois da segunda guerra vi que os aviões estavam na moda. Assim, quando me apareceu uma oportunidade propícia, comprei este hidravião. Todavia, sinto falta daqueles dias de outrora em que por esses mares só se viam escunas. Podia preguiçar-se, levar-se uma vida tranqüila...

     - E quanto à tripulação da escuna? - perguntou Maud. - Por que não revelaram o segredo das Sereias?

     Rasmussen grunhiu.

     - Que tripulação? Costumava trazer comigo apenas dois chineses beberrões. Eles não eram sequer capazes de ler uma bússola, nunca souberam onde estavam, e eu encharcava-os em álcool sempre que nos aproximávamos. Jamais foram à terra. Mais tarde, quando os chineses morreram, Paoti começou a dizer-me que eu devia utilizar seu próprio povo, pois era mais seguro. Primeiro, tive um primo de Hapai e depois o próprio Dick. Bons rapazes. Eis por que o lugar ainda não é conhecido. Sempre mantive o segredo porque me davam os direitos exclusivos sobre os produtos que exporto. Porém, esta não é a verdadeira razão, minha senhora. Sabe, faço parte agora deste povo, sou um parente honorário, e morreria antes de o trair... ou antes que a ilha fosse espionada por estranhos. Eis por que ia ficando maluco quando o professor, o velho Easterday, descobriu por acaso a ilha. Cheguei a pensar em dar cabo dele.

     - Capitão Rasmussen - disse Maud -, não necessita de ter receio dos componentes do grupo. Assumimos o compromisso de proteger o isolamento das Sereias. Qualquer um de nós que fosse indiscreto pouco adiantaria, pois não faz a mínima idéia de onde se encontra.

     - Contudo, têm de se mostrar prudentes - retorquiu Rasmussen -, uma vez que agora todos conhecem a área. Se alguém dispusesse de uma só indicação, estou certo de que, após apuradas pesquisas, conseguiria, num ano ou dois, localizar as ilhas.

     - Quando escrever meu livro - declarou Maud -, tenciono dá-las como situadas algures na Polinésia, não adiantando mais pormenores.

     - Capitão - interveio Claire -, surpreende-me o fato de ninguém as ter localizado durante a Segunda Guerra Mundial. O Pacífico era então atravessado em todos os sentidos por aviões e navios japoneses e americanos. E a partir daí...

     - Estou também certo de que as viram muitos aviões e navios - disse Rasmussen. - Todavia, do mar parecem desabitadas, e os que as enxergaram pouco caso fizeram delas. Não parecem grande coisa, e além disso não têm enseadas. Quanto aos aviões, passaram por cima delas, mas nada observaram também. E isto é uma coisa excelente para as Sereias. A aldeia está praticamente fora das vistas, do céu e do mar. Parece não existir nada. Além do mais, estão afastadas das principais rotas comerciais, e toda a gente deseja apenas visitar ilhas conhecidas. Calculam que tudo o que é bom é conhecido e que o resto nada vale. Eis o que nos tem salvo.

     Maud preparava-se para dizer qualquer coisa mais quando a mão de Hapai tocou no braço de Rasmussen.

     - Capitão - disse Hapai -, as Sereias estão à vista.

     Todos volveram os olhos para o exterior. A noite desaparecera, e o sol nascia. O oceano, embaixo, cinzento-azulado e franjado a ouro pela primeira réstia de sol matinal estirava-se diante deles numa extensão líquida aparentemente sem fim. Os olhos de Claire devassaram o mar, e aí, algures na distância, exatamente como Easterday descrevera em sua carta, viu a vago contorno, contra o horizonte, de uma faixa de terra. As palavras de Hapai encantavam-na: as Sereias estão à vista.

     Maud só as distinguiu passados alguns momentos. Exalou de prazer.

     - Já consigo vê-la, capitão. Que lhe chamaria... um

     atol úmido ou uma ilha vulcânica exposta ao tempo?

     - Defini-la-ia das duas maneiras, sem errar - volveu Rasmussen, que voltara as costas a ambas. - Na verdade, chamar-lhe uma ilha alta seria mais correto, pois tem aquele pequeno vulcão extinto... veja, lá onde as pesadas nuvens brancas se amontoam... mas não é tão árida e selvagem como a maior parte das ilhas altas que se vêem por aqui; embora possua um anel de coral tem também pântanos salinos e melhor vegetação do que os atóis. E, o que é melhor... do ponto de1 vista das Sereias... são escarpadas, íngremes, de interior difícil de penetrar, como as Aguigan e as Pitcairn. - Fez uma pausa. - Vê-la-á com seus próprios olhos dentro de minutos.

     Claire e Maud permaneceram retesadas, em temeroso respeito, à medida que o aparelho sobrevoava a superfície cintilante, esplendorosa, como seda chinesa, do Pacífico; p todo do disco amarelo do sol expandia-se e alargava-se, envolvendo, como uma moldura, a linha principal, uma peça de jade, rasgada e impolida, imóvel na calma tropical.

     Estavam quase sobre ela e Claíre podia ver distintamente o que vira Easterday; penhascos íngremes, negros, como terraços, esculpidos pela erosão, pela chuva, pelo tempo; o tapete luxuriante e verde-cinzento do platô, uma montanha quebrada elevando-se na altura, orgulhosa como as ruínas de um antiquíssimo castelo; lagoas, como se salpicos cor de púrpura; ravinas cavadas pela “mão paciente dos tempos” de Loti; encostas arborizadas e arroios de cristal e manchas de verdes vales. Contudo, pensou Claire, tudo detalhado delicadamente em miniatura, como se obra do pincel de Breughel.

     Tinham mergulhado para diante dos dois atóis próximos e retrocediam agora em direção de uma incisão no perímetro rochoso. Claire distinguia as fileiras de coqueiros, a sua folhagem, pequenas explosões festivas no céu. Para além, o oceano de cobalto, de um verde esplendente à medida que se aproximava de uma faixa de praia, onde a areia refletia o brilho- dourado do sol. Tudo parecia inanimado, com exceção da borbulhante espuma branca contra os rochedos que se desdobravam ao longo da pequena extensão de praia, tudo imóvel, em contraste com a ligeira sugestão de movimento lá muito embaixo, na areia.

     O coração de Claire sobressaltou-se.

     - Há gente lá embaixo, na praia? - perguntou ela. Rasmussen soltou um grunhido.

     - Sim. Provavelmente trata-se de Courtney, que nos vem dar as boas-vindas, e alguns aldeões, encarregados do transporte das bagagens. - Rasmussen estava ocupado com os comandos. - Vamos descer. É melhor que despertem a sua gente. Digam que continuem reclinados. Por vezes, a água é uma almofada e por vezes uma estrada esburacada.

     Maud foi a primeira a deixar o compartimento e Claire mostrou relutância em segui-la. Durante mais um momento seus olhos regalaram-se com a visão daquele lugar primitivo, do arco-íris colorido sobre a asa, e murmurou para si mesma iaorana. Libertou os olhos do que lhe deflorava os sentidos e tornou à razoável segurança representada pelo marido e pelos companheiros.

     Quando chegou a seu lugar viu que Marc e os outros estavam despertos; após fazer um aceno vago, ainda seduzida, sentou-se precisamente no momento em que o hidravião se lançava em mergulho para a frente. Manteve-se imóvel, retesada, com os olhos fixos nas vigias de madeira, e desceu com a obesa, castanha ave da Polinésia; sentiu-a tocar a água, balouçar e deslizar, até que seus motores soltaram os últimos espasmos e ficaram mudos, parados. Todos, então, se ergueram, maravilhados, sobre as águas tranqüilas e pouca distância da areia da praia das Três Sereias.

      

     Era ainda manhã, embora tivessem esperado na areia durante mais de uma hora, enquanto Rasmussen e Hapai ajudavam nove jovens das Sereias a transportar os caixotes, e agora as bagagens, do hidravião para a praia.

     O Sol era, por esta altura, um globo incandescente e o calor que lançava sobre eles quase que se podia ver. O ar que os circundava parecia parado e abrasador, quase úmido, com a consistência do vapor, mas fervendo sempre. Era um calor que, habitualmente, não se sentia nesta parte da Oceania.

     Claire ergueu-se, o suéter no braço, fruindo o calor, no rosto e no pescoço, e a quentura dos grãos da areia que lhe cobriam as sandálias. A seu lado, Rachel DeJong e Lisa Hackfield sentiam-se menos contentes. Rachel, que se mostrava pouco à vontade no seu vestido de lã preta, começou a tirar a blusa. Inspirada por este gesto tão formal, Lisa Hackfeld deixou também cair a sua blusa branca.

     - Deve ser da umidade - disse Lisa, como que desculpando-se. - É sufocante.

     - Temos de aprender a vestir-nos convenientemente - volveu Rachel DeJong.

     Claire contemplou um nativo alto, mais escuro do que os companheiros, à medida que ele se debruçava para a frente, cotovelos sobre os joelhos, pronto para receber a longa canoa que se aproximava. Visto de trás, o nativo parecia achar-se nu. Seus membros descaídos, a saliência da espinha, os longos flancos e as pernas estreitas estavam inteiramente à mostra. Apenas a cintura mantinha a tira que segurava o saco púbico.

     Quando, a princípio, a tinham ajudado a descer para a canoa e se encontrou face a face com estes nativos, a sua masculinidade mais acentuada do que escondida pelos sacos, Claire desviara os olhos, embaraçada. Aterrorizava-a a idéia de chegar à praia, onde, sabia, estaria o branco, Tom Courtney, aguardando-os na companhia de todos. Nos nativos, a exigüidade do vestuário, embora embaraçadora, era pelo menos aceitável. Pertenciam afinal, a outra raça, a outro povo e lugar. Não os sentia iguais a si, não os identificava ou os concebia. Mas que uma pessoa da sua própria raça revelasse assim o corpo era coisa que não conseguia admitir.

     Com pavor, Claire suportara a passagem até à praia, com o cenário dos remadores. Mantivera-se imóvel enquanto Maud a apresentava ao Sr. Thomas Courtney, e para seu profundo alívio ele não era carne exibida sem pudor mas a própria personificação da decência civilizada.

     - Seja bem-vinda às Sereias, Sra. Hayden - dissera. Quando tomara a mão de Courtney, evitando olhá-lo no rosto, pôde ver que ele trazia uma fina camisa de algodão, de ginástica, já manchada pela transpiração, calças justas azuis-escuras, cheias de vincos, enroladas até aos tornozelos, e tinha os pés metidos em sandálias de couro, de tiras. Apenas mais tarde, estava ele ocupado algures, comparou seu rosto com a imagem que sua mente formara ao ler a carta de Easterday. Esperava que tivesse cabelo claro, cor de areia, mas era castanho-escuro, como os olhos, e espesso e emaranhado. Tinha um rosto longo, mais sensitivo e luminoso do que Easterday descrevera, e um sorriso maravilhosamente expressivo. Era esbelto, provavelmente robusto, mas movia-se em volta deles na praia com longas passadas pouco firmes, como se fosse demasiado alto e demasiado tímido. Possuía, quando estava imóvel, como Claire observou, o dom do repouso, da descontração, uma aparência enganadoramente indolente - um contraste com seu próprio Marc, que se encontrava sempre rígido, retesado.

     Agora, ao lado de Rachel DeJong e de Lisa Hackfeld, enquanto mirava o posterior do nativo à beira da água, Claire teve a sensação de que ele e os outros nativos eram sensatos no que se referia ao vestuário, ao contrário dela e dos companheiros. Durante um momento, teve a sensação de que, por muito que fruísse o calor da manhã, desejava libertar-se da blusa e da saia e de arremessá-las para longe, a fim de conhecer o prazer total proporcionado pelo sol, pelo ar e pela água.

     Lisa queixara-se de que se sentia sufocar e Rachel declarou que teria de aprender a vestir-se convenientemente. Por sua vez, Claire afirmou, num tom ligeiro:

     - Bem, Dr.a DeJong, talvez tenhamos de aprender a despir-nos, imitando os nativos.

     Rachel ofereceu apenas os lábios num sorriso.

     - Duvido, Sra. Hayden. Receio que estejamos na posição do inglês da Malásia, nos tempos do Império, que se vestia a rigor para jantar na selva.

     - Mas como é possível haver gente assim? - perguntou Lisa Hackfeld.

     - Habitualmente, vivem sós - volveu Claire.

     Rachel DeJong esboçou um gesto de assentimento, para além delas.

     - Esta deve ser a nossa bagagem. Espero que sejam cuidadosos.

     Olharam para a proa afilada da canoa que se aproximava, dirigida por oito jovens nativos vigorosos. No centro da canoa elevava-se o volume de bagagem do grupo.

     - Não consigo me habituar à aparência deles - disse Lisa. - Esperava que fossem mais escuros, mais nativos.

     - São uma mistura de ingleses e de polinésios - declarou Claire, recordando-a desse fato.

     - Eu sei, mas de uma maneira ou de outra... - tornou Lisa. - Ora, o americano, Sr. Courtney, é mais escuro do que eles. Tenho esperança de conseguir um bronzeado como o dele. Farei a inveja de todos, uma vez na pátria.

     Rachel DeJong concentrara a atenção na canoa que se aproximava.

     - As suas feições podem ser claras - observou -, mas creio que têm um matiz bem polinesio. São todos altos e musculosos, de cabelo negro, de nariz largo, lábios bastante cheios, e contudo parecem ter um ar efeminado, suponho que devido à graciosidade dos seus movimentos.

     - Penso que são bem masculinos - volveu Claire, que, durante um momento, olhou de viés, a fim de se assegurar de que Marc não escutara, por acaso, suas palavras.

     - Sim, não há dúvida - disse Rachel secamente.

     A canoa alcançou a praia e os remadores saltaram para a água pouco profunda a fim de a empurrarem para a areia, enquanto alguns companheiros, à proa, puxavam com toda a força.

     - Desejo ver se minhas coisas estão ali - disse Lisa, começando a caminhar através da areia, em direção à canoa.

     - É melhor ir verificar também - declarou Rachel DeJong, seguindo Lisa.

     Neste momento, Claire não sentia qualquer interesse pela sua bagagem. Acompanhou com os olhos Rachel e Lisa até à canoa, e depois rodou sobre os calcanhares para ver o que faziam os outros. A sombra de um rochedo, Maud, Marc e Orville Pence achavam-se absorvidos numa conversa. Próximo, Courtney, agachado com Hapai, percorria uma lista, enquanto Rasmussen escutava, de testa franzida. A certa distância, à beira da água, Mary Karpowicz patinhava, enquanto o pai e a mãe a observavam, enlevados.

     Por um momento, Claire pensou em reunir-se ao marido, mas decidiu aproveitar estes instantes. Voltando as costas aos outros, ergueu a sua pequena bolsa da areia e, balançando-a com indolência, dirigiu-se para a canoa que estava sendo descarregada. Porém, aproximou-se de um grupo de coqueiros curvados sob o peso dos frutos, e uma vez debaixo do primeiro, deixou-se tombar sobre a areia; depois, puxou um cigarro do maço e acendeu-o, reclinando-se em seguida contra o tronco da árvore; com ar sonhador, mergulhou os olhos na paisagem em redor e por cima dela. Era fácil despovoar a cena, devolvê-la a seu estado virginal, pois tinha uma grandeza magnificente.

     Cercada pelos penhascos, pela vegetação virgem e selvagem, sentiu pela primeira vez que tinha cortado todos os laços com a civilização, com tudo o que era familiar e controlado. Era como se tivesse retirado os pés do mundo seguro, penetrasse no espaço exterior e fosse o primeiro ser a pisar um planeta quente e desconhecido. Longe, estava o mundo pasteurizado, sanitário, antibiótico, plástico, elétrico, automático, que a envolvera durante toda a sua vida passada. Aqui, o primeiro mundo primevo, não arregimentado, reprimido, derrotado, culto, domesticado, educado, inibido. Longe, a elegância afetada, a sofisticação, o progresso, e aqui a natureza crua, primordial, paga.

     Pela primeira vez, desde a infância, estava à mercê dos outros. Na sua mente, voou para os confortos da sua vida passada, para os casulos que a envolviam, o macio leito de lanugem, o banheiro com seus apetrechos esplendorosos, a cozinha com suas glutonices mecânicas, a sala de estar e o estúdio com sua mobília de couro e madeira, e os discos, os livros, a arte. Em casa, era visitada por amigos civilizados que podia compreender e que traziam uma indumentária que não inspirava receios, gente que fruía as amenidades proporcionadas pela sociedade industrial e que obedecia às regras à maneira da nobreza vitoriana.

     O passado fora esquecido, e agora que possuía ela em seu lugar? Uma ilha vulcânica, um pedaço de terra e de selva, tão isolado no mar poderoso que nem sequer se encontrava no mapa. Um povo, uma cultura, tão estranho que nada sabia de polícias, de votos, de lâmpadas elétricas, Fords, filmes, máquinas de lavar, camisolas de dormir, de martinis, supermercados, sociedades artísticas, bombas de incêndios, zôos com j aulas, canções de natal, soutiens, vacinas contra a poliomielite» bolas de futebol, blusas, toca-discos de alta fidelidade, New York Times, telefones, cartões de previdência, aparelhos de televisão, Diner's Club, desodorantes, bombas nucleares, lápis, cesarianas. Tudo isto fora varrido da sua vida e deixado na areia desolada, numa pequena área da Oceania, com um metro e cinqüenta e três centímetros, cinqüenta e um quilos e vinte e cinco anos do seu ser superabrigado, supercivilizado, subprotegido e inexperiente. Não mais que trinta e duas horas separavam o confortável paraíso de engenhocas dos Estados Unidos e as rudes e primitivas ilhas das Três Sereias. Lançara, fisicamente, uma ponte sobre o tempo e a distância. Podia fazer o mesmo quanto à mente e ao coração?

     Apesar do resplendor do sol que batia na sua cabeça, estremeceu. Após tirar uma fumaça mais profunda, enterrou o cigarro na areia e pôs-se de pé. Lançou um olhar para a beira da água. Todo o grupo se reunia junto da pilha da bagagem ao lado da canoa, e sabia que Maud necessitaria dela e do inventário que guardava na bolsa. Com mais energia do que antes, caminhou através da areia, recordando o lago de Chicago da sua infância,. e pouco depois era, uma vez mais, um elo da engrenagem formada pela sogra, pelo marido e pelos componentes do grupo.

     Embora tivesse sido permitido a cada um dos membros do grupo reter os bens de utilidade pessoais, até ao limite de vinte quilos, na sua própria mala, os instrumentos científicos tinham sido reunidos e colocados em caixotes de madeira. Após ter ajudado cada membro a identificar sua bagagem, Maud chamou Claire e pediu-lhe o inventário dos utensílios e apetrechos.

     Com a lista na mão, Claire manteve-se atrás de Maud enquanto esta examinava o exterior dos caixotes.

     - Parecem achar-se em boas condições - anunciou Maud. - Vejamos se está tudo aqui. Leia a lista, a fim de que possa identificar cada coisa, sem nada omitir.

     - Uma caixa de sacos de dormir, lâmpadas, baterias e um gravador portátil - leu Claire. - Também...

     - Confere - disse Maud.

     - Uma caixa com os instrumentos de secagem do Dr. Karpowicz, prensas de plantas...

     - Confere.

     - Uma caixa com o equipamento fotográfico do Dr. Karpowicz, máquina de filmar, duas máquinas comuns, tripés, equipamento portátil de revelação, fume...

     - Confere.

     - Uma caixa... Não, duas caixas com artigos de primeiros socorros da Srta. Bleaska, outros medicamentos, e inseticidas.

     - Sim, ei-los, Claire.

     - Seis caixas de provisões sortidas - víveres em latas, leite em pó...

     - Espere, Claire. Vi apenas duas... três... Um momento.

     Observando Maud, que se ajoelhara e rebuscava os caixotes, Claire recordou-se de que lhe parecera bastante singular o fato de trazerem víveres. Maud explicara que, de maneira geral, comeriam as iguarias dos nativos das Sereias; porém, uma reserva limitada de provisões poderia ser útil. Por vezes, dissera Maud, encontra-se um povo no meio de uma fome cíclica ou sujeito ao racionamento, “e se comermos das nossas latas não os privamos”. Outra razão para se trazerem produtos americanos devia-se ao fato de alguns componentes do grupo não conseguirem adaptar-se aos bizarros pratos nativos e preferirem morrer de fome a terem que comer o que seu estômago não admitia. Maud tinha uma recordação bem marcada, como uma cicatriz, de uma viagem de campo com Adley em que fora obrigada a comer ratos da floresta cozidos; preferira ingeri-los a insultar os anfitriões ou, na verdade, a morrer de fome.

     - Muito bem, Claire, continue. Claire consultou a lista.

     - Vejamos. Uma caixa de artigos de escritório - máquina de escrever portátil, resmas de papel, testes projetivos do Dr. Pence, blocos de apontamentos e lápis...

     Maud inclinava a cabeça num gesto de assentimento à medida que verificava o conteúdo dos caixotes.

     - Sim, Adley gostava sempre de dizer: “Durante uma viagem de campo necessito apenas de lápis e creme de barbear”... Confere.

     - Livros - disse Claire -, uma caixa com livros. Tinha, pessoalmente, reunido e encaixotado as diversas dúzias de volumes de obras básicas - O Perfil das Matérias Culturais, Notas de Campo, de Kennedy, Notas e Quesitos para Antropólogos, do Museu Britânico, Manual, de Merck (propriedade da Srta. Bleaska), Argonautas do Pacífico Ocidental, de Malinowski, Sociedade Primitiva, de Lowie, Macho e Fêmea, de Mead (propriedade do Dr. Pence), eis os que lhe acudiram logo à mente - mas os componentes do grupo tinham trazido consigo seus livros recreativos. Orville Pence trouxera alguns romances pornográficos, explicando que os utilizava para um estudo. Harriet Bleaska emalara uma dúzia de novelas policiais. Claire trouxera consigo o Typee, de Melville, o Noa Noa, de Gauguin, Voyages, de Hakluyt, Sombras Brancas nos Mares do Sul, de Frederick 0'Brien, cada um dos quais escolhido por constituir leitura apropriada para a jornada.

     - Encontrei os livros - disse Maud.

     Rápida, Claire prosseguiu com o inventário. Os caixotes que restavam continham uma grande diversidade de utensílios e utilidades, tais como equipamento de hidrologia, sabonetes, purificadores de água, medidas de fita de aço, cartas topográficas coloridas, álbuns fotográficos de nativos de outras culturas, mapas, apetrechos de pesca, brinquedos; todos estes objetos deviam ser utilizados em estudos específicos.

     Maud, que se endireitara por fim, massageava os quadris e Claire guardava o inventário na bolsa quando Tom Courtney surgiu entre elas.

     - Tudo em ordem? - perguntou ele.

     - Sim, e estamos todos aqui - volveu Maud com ar risonho. - Que fazemos em seguida, Sr. Courtney?

     - Em seguida, Dr.a Hayden, temos a nossa caminhada. - Sorriu. - Realmente, não é uma coisa do outro mundo. A distância é pequena, mas em certos pontos vão deparar-se-nos alguns obstáculos. Há uma subida gradual até ao platô, depois uma descida, outra subida, esta um tanto íngreme, e por fim a descida até a aldeia. Demoraremos cerca de cinco horas, creio, contando com duas ou três paradas ao longo do caminho. - Indicou os caixotes e a bagagem. - Não se preocupe com isto. Da aldeia virão mais uma dezena de jovens ajudar os nove que aqui se encontram. Levarão tudo por outro caminho, por um atalho demasiado difícil para muitos de vocês, a não ser, claro, que estejam em forma.

     - Seguiremos pelo caminho mais demorado mas menos difícil - volveu Maud.

     Neste momento, Marc apareceu ao lado de Claire e da mãe; a maioria dos componentes do grupo juntara-se atrás de Courtney para escutar a conversa. Davam a impressão de ser jovens soldados de infantaria que se juntam em redor do sargento ansiosos por ouvir uma migalha de informação que dissipe seus receios ante o desconhecido e os reassegure acerca do futuro próximo e comum.

     Lisa Hackfeld erguera a mão, e quando Courtney notou este gesto, ela perguntou com voz trêmula:

     - Pelo caminho que vamos seguir... correremos o risco de sermos atacados por animais ferozes?

     - Não, de maneira alguma - prometeu Courtney. - Como em muitas das pequenas ilhas do Pacífico, a fauna das Sereias é bastante limitada e a maior parte dela constituída por seres marinhos concentrados em redor das praias. Como sabe, tartarugas, caranguejos e alguns lagartos inofensivos. A medida que caminhamos para o interior podemos ver diversos bodes, cabras, cães de pêlo curto, galinhas, gaios, todos descendentes dos animais domésticos trazidos para aqui por Daniel Wright, em 1796. Vagueiam por aí à vontade. Os carneiros, esses, já não existem por aqui. Por sua vez, a ilha tem algumas variedades de porcos selvagens, bastante dóceis. Constitui tabu matá-los, exceto os destinados às festas do chefe. Durante a semana do festival o tabu não vigora também.

     Enquanto Courtney falava, uma ave, bela, de longas pernas, lançou-se de um penhasco para o tronco úmido de uma árvore, espreitando-os.

     - De que espécie é aquela ave? - inquiriu Claire.

     - É uma tarambola dourada - explicou Courtney. - Pode ver, também uma vez por outra, uma certa variedade de gaivinas, pombas, pombos coroados. - Tornou a fitar Lisa Hackfeld. - Não tem com que se preocupar. O sol é o único inimigo.

     - Esta excursão parece tão inofensiva como um piquenique - disse Maud com alegria.

     - Garanto-lhes que assim é - retorquiu Courtney. Contudo, ao passar os olhos pelos seus ouvintes apercebeu-se da existência de uma obstinada ansiedade. Durante uns instantes pensou no que dizer mais, e depois declarou: - Bem, agora que tudo está em ordem, que conhecem o caminho que vamos seguir e alguma coisa sobre a fauna, não há muito mais que acrescentar neste momento. Compreendo que tudo isto é estranho para vocês e que gostariam de saber mais alguma coisa, mas creio que a praia não é lugar para tal. O sol está tornando-se cada vez mais forte e não podemos contar aqui com abrigo. Não os quero ver alquebrados antes de começarmos. Responderei, através da Dr.a Hayden, ou diretamente, a quaisquer outras perguntas quando nos encontrarmos no conforto da' aldeia.

     - No conforto da aldeia?! - exclamou Marc em tom de gracejo.

     Courtney pareceu surpreendido.

     - É verdade, Dr. Hayden. Quero dizer, relativo conforto. Não é uma comunidade americana, não temos água quente e corrente, luz elétrica, ou farmácia, mas não se assemelha também a esta praia solitária. Encontrarão cabanas preparadas para vocês, lugares onde se sentarem, se deitarem e comerem, e boa companhia também.

     Maud, que fitava de testa franzida o filho, encarou Courtney com um sorriso forçado.

     - Estou certa de que será uma estada agradável, Sr. Courtney. Alguns de nós já estiveram antes no campo. Sabemos que não é a nossa casa. Se fosse isso o que desejávamos, não teríamos vindo até aqui. E, como já afirmei, sentimo-nos honrados, lisonjeados, por nos ter sido permitido vir até esta ilha e sermos aceitos pelo chefe Paoti.

     - Bom - disse Courtney, sacudindo a cabeça de maneira perfunctória. Após examinar o rosto dos outros, acabou por fixar os olhos nas feições atentas de Claire. - Alguns de vocês podem sentir-se confusos, experimentar uma sensação de isolamento do mundo. Isso não me surpreenderia. Foi exatamente o que senti quando pisei pela primeira vez a terra das Sereias, há quatro anos. Por experiência própria, posso assegurar que esta sensação terá desaparecido amanhã. O que realmente desejo dizer é que não estão tão isolados como podem supor. O Capitão Rasmussen concordou em estreitar o contato conosco, em vir aqui uma vez por semana. Creio que o professor Easterday se encarregará de receber o seu correio. Bem, o capitão trá-lo-á todas as semanas e levará as cartas que desejarem fazer expedir de Papeete. Também, se sentirem falta de algumas utilidades ou de algumas provisões, o capitão comprará tudo aquilo de que necessitarem e que possa ser adquirido em Taiti, e trará tudo semanalmente, também. Creio que..

     - Tom! - bradou Rasmussen na praia.

     Courtney rodou sobre os calcanhares e todos os outros olharam para trás dele. Rasmussen e Hapai apontavam para Sam Karpowicz. O botânico tinha as pernas bem afastadas, sobre a areia molhada, à beira da água, e com uma minúscula máquina fotográfica prateada focava o hidravião.

     - O brincalhão está tirando fotografias! - gritou Rasmussen.

     Imediatamente, Courtney afastou-se do grupo e correu em direção de Sam Karpowicz, que não estava a muitos metros de distância. A última explosão de Rasmussen penetrara o botânico, que baixou a máquina, confuso, devido ao ruído produzido pelo incidente e à aproximação de Courtney. Decorridos alguns momentos, Maud, seguida por Marc e por Claire, e depois pelos outros, pôs-se em marcha, atrás de Courtney.

     - Que diabo pensa você que está fazendo? - perguntou Courtney

     - Ora, ora, eu... - Desorientado, Sam não conseguia encontrar palavras sem esforço. - Tirava apenas algumas fotografias. Trago esta Minox no bolso. É apenas para...

     - Quantas tirou?

     - Que quer dizer? Aqui?

     - Sim, aqui.

     Ante esta acusação, e observando a expressão severa, acusadora de Courtney, a súbita dureza que transparecia na sua voz, Claire sentiu-se perturbada. Supusera-o gentil, apenas gentil e vivaz, demasiado cavalheiro para se encolerizar, e esta cena assustou-a. Perguntou-se o que o possuíra.

     - Eu... eu... - Sam Karpowicz tartamudeava de novo. - Tirei dois ou três instantâneos da praia... e um do hidravião agora... e....

     Courtney estendeu a mão.

     - Dê-me o filme.

     Sam premiu um botão na parte de trás da Minox e esta abriu-se. Deixou tombar o pequeno rolo de negativo para a palma da mão e entregou-o a Courtney.

     - Que vai fazer dele? - perguntou Sam.

     - Jogá-lo fora.

     Os olhos míopes de Sam, atrás dos óculos quadrados, sem aros, pareciam os de uma corça ferida.

     - Não pode fazer isso, Sr. Courtney... Aqueles... O rolo dá para cinqüenta fotografias... e tirei vinte instantâneos em Papeete.

     - Sinto muito - volveu Courtney, recuando alguns passos e lançando o pequeno rolo de metal, que descreveu um arco no ar, para a água, onde afundou após um pequeno barulho.

     Sam fixou os olhos na água, sacudindo a cabeça.

     - Mas... Mas por quê?...

     Courtney aproximou-se do botânico, fitou-o, e depois aos outros. Seu rosto já não denunciava a sombria cólera que o possuíra momentos antes, mas tinha uma expressão grave.

     - Convenci Paoti, a tribo inteira, a permitir a sua vinda. Dei a minha palavra de que não fariam nada, absolutamente nada, que revelasse a localização destas ilhas ou fizesse perigar a segurança de todos.

     Marc protestou.

     - Realmente, Sr. Courtney, não acho possível que alguns instantâneos inofensivos de uma praia primitiva... parece-se com centenas de outras...

     - Mas não - volveu Courtney com firmeza. - Não para uma pessoa que conheça bem os Mares do Sul. Cada centímetro de cada atol tem as suas características próprias, a sua individualidade, que olhos experientes facilmente descobrirão. Estes instantâneos da praia, a área em redor, uma vez mostrados ou publicados poderiam fornecer uma indicação... uma indicação precisa...

     Sam tomara o braço de Maud, apelando para ela, como se a antropóloga fosse o supremo tribunal.

     - Concordaram que poderíamos tirar fotografias...

     - Decerto que pode - interrompeu Courtney. - Ele dirigia-se também a Maud. - Dr.a Hayden, compreendo de certo modo o seu trabalho, o que requer, a importância de provas fotográficas. O chefe Paoti concordou em que tirassem as fotografias que quisessem no interior da ilha... a paisagem, os habitantes, a fauna e a flora, as danças, as atividades quotidianas... tudo exceto o que pudesse revelar a situação da ilha. Estou certo de que compreende. Eles correriam perigo se tirassem fotografias do perímetro exterior da ilha, se fixassem pontos de referência... os restos do pico vulcânico, por exemplo, ou perspectivas dos dois atóis. Porém, quanto ao resto... este estúdio é seu, e podem fazer nele tudo o que quiserem.

     Maud, que acompanhara as últimas palavras de Courtney com gestos de aprovação feitos com a cabeça, volveu os olhos para Sam Karpowicz.

     - Ele tem muita razão, Sam - disse. - Impuseram-nos certas normas e devemos respeitá-las. - Voltou-se para Courtney. - Não encontraria uma pessoa mais cooperativa do que o Dr. Karpowicz. O seu erro, todos nós os cometemos, consistiu em ignorar as limitações. Logo que possível, Sr. Courtney, terá de me informar acerca dos tabus, a fim de esclarecer convenientemente todos os componentes do grupo.

     Enquanto escutava, a expressão de Courtney perdera toda a sua severidade, e uma vez mais Claire, estudando-o, gostou dele.

     - Bastante justo, Dr.a Hayden - disse Courtney. Tirou um lenço do bolso da frente das calças e limpou a testa. - Agora, creio que é melhor que rios afastemos da praia e nos dirijamos para o interior.

     Courtney deu uma ordem em polinésio aos nativos na canoa, e um deles respondeu com um gesto de assentimento. Depois, afastando-se do grupo, Courtney dirigiu-se para o ponto onde se encontravam Rasmussen e Hapai.

     - Capitão, obrigado - disse. - Você também, Dick. Espero-os aqui na próxima semana, à hora do costume.

     - Sim, na próxima semana - volveu Rasmussen desviando depois os olhos de Courtney e fixando-os em Maud e Claire, sorrindo. - Espero vê-las de saiote...

     Maud fingiu não ter ouvido as palavras do capitão.

     - Em nome de todos, capitão, agradeço sua colaboração - disse ela.

     Courtney bateu palmas para chamar a atenção de todos.

     - Agora, a caminho da aldeia!

     Esperou que Maud se aproximasse dele, e em seguida, voltando as costas aos outros e ao mar, começou a caminhar através da areia em direção a uma abertura nos rochedos gigantes. Silenciosos, os outros nove, em fila, seguiram o par e pouco depois encontravam-se no estreito caminho que conduzia até acima, entre as paredes de rocha, ao interior da ilha.

     Com Marc a seu lado, Claire fechava a retaguarda. Sentiu a mão do marido no cotovelo.

     - Que pensa, Claire?

     Ela deteve-se e deslocou a alça da bolsa, a fim de que esta ficasse mais segura no ombro.

     - De quê?

     - Disto tudo... do lugar... daquele Courtney.

     - Não sei. É tudo tão diferente. Nunca vi nada que se assemelhasse a isto... tão belo, mas isolado do mundo.

     - Isolado, sim - concordou Marc, volvendo o olhar para o caminho que os outros subiam lentamente. - Como o nosso amigo ali.

     - Quem? O Sr. Courtney?

     - Sim. Não sei o que pensar dele. Espero que nos seja útil como informante.

     - Parece culto e sensato.

     - Sem dúvida que é culto - volveu Marc. - Quanto a ser sensato, depende do que entenda por isso. É prático e eficiente, sim, mas por que se impôs este exílio? Se fosse um leproso, um deformado, um fugitivo da lei ou mesmo um vagabundo sem eira nem beira, podia compreender. Mas parece normal...

     - Não sei, Marc, mas creio que tem algumas razões muito pessoais para se encontrar aqui.

     - Talvez sim, talvez não - retorquiu Marc, meditativo.

     - Pensei que estabeleceria relações francas, cordiais, com ele desde o princípio, e assim perguntei-lhe o que fazia num lugar destes. Sabe o que me respondeu? “Tento viver.” Devo admitir que aquilo me desconcertou. Que espécie de pessoa se exilaria numa ilha, a mil quilômetros do mundo civilizado, entre primitivos nus, com o fim de vegetar apenas, calmamente?

     Claire não respondeu. Todavia, fez-se também a mesma pergunta. Depois, quando Marc entrou no caminho, ela voltou-se para lançar um último olhar para a praia e para o oceano. Em seguida, perguntou-se qualquer coisa mais. Na próxima vez que contemplasse esta cena, alguma coisa ou algum deles seria diferente?

     Resoluta, estugou o passo e começou a subir o caminho que dentro em breve a conduziria a um mundo que há muito tempo a iludia nos seus sonhos.

     Caminhavam penosamente, arrastando-se no meio de calor sufocante há quase quatro horas e meia.

     Durante a primeira parte da jornada, quando ainda se encontrava possuída de todo o seu vigor, quando seus sentidos se achavam frescos e vivos e capazes de absorver as novas paisagens e sensações, Claire sentira prazer na caminhada. A primera subida através das rochas de lava calcinada, com sua vegetação, que aumentava gradualmente, os pequenos arbustos e as videiras torcidas, tudo quase seco, sombrio e contraído, fora fácil, mesmo revigorante, e sentira os músculos frouxos distenderem-se.

     O verde magnificente do liso platô, que por vezes cedia lugar a fundas ravinas e barrancos completamente saturados de umidade, era também agradável. Ante seus olhos bailavam filas e filas de árvores de fruta-pão, as videiras enfezadas que davam a impressão de inhames selvagens, a cana-de-açúcar, as folhas de pandanus, os coqueiros, as bananeiras, os pequenos bosques de bambu, as mangas, as acácias amarelas e brancas, os pântanos de taros, tudo tão exótico, tão colorido, que a vista se embaciava gradualmente e a reação à paisagem começava a tornar-se deficiente. Pouco depois restavam apenas os odores, um leve sopro do mar salgado, atrás, sobrepujado pelos odores das flores tropicais, das frutas, das plantas e das cascas de coco.

     Agora, sentia-se fatigada devido ao extremo exotismo da ilha, à sua beleza, ao movimento, ao sol. Tinha os músculos e os sentidos doridos.

     Após a última parada, uma hora antes, encontrara um lugar ao lado de Harriet Bleaska, a um metro de Courtney e Maud, que caminhavam na dianteira e pareciam não se cansar, uma coisa que detestava. Como um cavalo de tração seguindo outro, numa parelha, tentou acompanhar as passadas militares de Maud - que sucedia com a sua artrite? - e o andar monótono, sacudido, oscilante, de Courtney. Tinham subido uma faixa de terra, uma colina - de declive sarroso, cheio de pandanus e scaevol (como dissera Sam Karpowicz) - e chegado ao topo; uma vez aí, aproximaram-se de um renque de árvores de fruta-pão de espessa folhagem, em frente de um pequeno regato, cujas águas se precipitavam algures, no sopé da colina.

     Courtney abrandou o passo, ergueu um braço e em seguida voltou-se para os encarar a todos.

     - Muito bem - disse -, podemos descansar aqui à sombra. É a última parada antes de chegarmos à aldeia. Temos de caminhar durante cerca de vinte ou trinta minutos, descendo a colina, de maneira que a marcha não será dura. Se têm sede, saciem-na no regato. A água é fresca.

     Sem demora, Mary Karpowicz dirigiu-se para o regato, seguida imediatamente pela mãe, ofegante, e depois por Orville Pence e Lisa Hackfeld.

     Claire, que os estivera observando, compreendeu de súbito que Courtney se encontrava um pouco acima dela, contemplando-a, com olhar sombrio.

     - Está cansada, não é verdade?

     - Nota-se assim tanto?

     - Não, mas...

     - Sim, estou - concordou ela. - Mas não compreendo por que, também. Não sou nenhuma atleta mas mantenho-me em forma, na minha terra, sabe. Tênis, natação...

     Ele sacudiu a cabeça.

     - Não, não me refiro à fadiga física, mas a outra. Talvez tenha feito demasiado esforço de uma vez só. É como ir a Paris ou a Florença, pela primeira vez, e tentar ver tudo apenas num dia. Sua cabeça parece que se separa do corpo, sente uma grande indiferença por tudo, os olhos doem-lhe, e as costas e a barriga das pernas.

     - É vidente? Como descobriu?

     - Aconteceu-me o mesmo quando cheguei aqui. Depois de descansar senti-me bem, e à noite era de novo um ser de uma só peça, de novo receptivo. Esta noite sentir-se-á em forma.

     - Estou certa de que sim - disse Claire. - Aliás, detesto que minha fadiga seja notada pelos outros.

     - Juro que isso não acontece. Seu espelho testemunhará a minha honestidade. Fazia apenas uma suposição...

     - É melhor sentar-se aqui à sombra com os outros. Nestes dez minutos recobrará as forças. Demais, não tardaremos a chegar à aldeia, onde encontrará um lugar para repousar.

     Gostava dele, e perguntou-se se esta atenção era pessoal, ou se tratava apenas de uma gentileza que também manifestaria por Rachel DeJong ou por Lisa Hackfeld, caso estivessem perto dele. Voltou-se para se dirigir até ao regato. Chegou à conclusão que a atenção dele era impessoal, e encaminhou-se para o renque de árvores de fruta-pão e deixou-se tombar sobre a erva, a poucos passos de Maud.

     O alívio proporcionado por isto, como também por se ter escondido do sol, reanimou-a um tanto. Sentia-se capaz, quase pela primeira vez desde que partira da praia, de reparar nos outros, que descansavam sobre a erva. Todos, exceto Courtney, tinham voltado do regato. Encontrou um drope de limão na bolsa, e depois de o ter posto no boca ressequida começou a estudar os companheiros, fazendo conjecturas sobre os que estavam calados, imóveis, escutando com atenção os que conversavam.

     Maud, notou, achava-se silenciosa. Estava sentada com as pernas cruzadas, como um Buda cansado, o rosto largo mosqueado pelo esforço e pelo calor, balançando o físico corpulento, os olhos fechados para o presente, divagando sobre o passado. Claire supôs que ela pensava em Adley, na sua viagem às Fidji cerca de dez anos antes, no que se passara então, com um ser amado, a seu lado, e no que se passava agora, uma vez mais na Polinésia, mas emocionalmente só.

     Claire fixou sua atenção nos três Karpowicz. Estelle e Sam estavam estendidos na grama. Mary achava-se apoiada sobre os joelhos, irritada devido a qualquer pergunta. Claire observou-a.

     - Bem, como hei de saber, papai? - disse ela, impaciente. - Não vi nada ainda... apenas uma série de árvores e nativos com uma tira de pano sobre as partes íntimas.

     - Mary, que linguagem é essa? - Era Estelle quem falava. - Onde aprendeu essas coisas?

     - Deixe de me tratar como um bebê, mamãe. Estelle voltou-se, suplicante, para o marido. Sam fitou fixamente a filha,

     - Mary, isto far-lhe-á dez vezes melhor do que um verão em casa. Prometi-lhe que assim sucederia e torno a afirmá-lo.

     - Oh, decerto - disse Mary num tom de vivo sarcasmo.

     - Leona Brophy e as outras invejá-la-ão.

     - Decerto, decerto...

     - E aquele Neal Schaffer não fugirá. Mostrar-se-á interessado apenas em você mesma quando voltar.

     - Claro, manter-se-á bem quieto à minha espera. - Apontou, com a mão, para o cenário. - Isto é uma coisa magnífica para umas férias de verão. É realmente estupendo. Regressarei ao lar com um anel no nariz e com tatuagens pelo corpo. Não importa o que me digam, acho que não foi justo terem-me arrastado até aqui...

     Claire desviou sua atenção dos Karpowicz e mirou Lisa Hackfeld com piedade.. Lisa parecia macilenta e desgrenhada. O seu vestido branco estava sujo e amarrotado. O rosto, sob os cabelos louros, achava-se túmido, manchado, e ela tentava desesperadamente disfarçar isto com pó-de-arroz. Claire observava Lisa, enquanto esta fixava o espelho do estojo. Que se passava na sua mente? Claire conjecturou: está pensando que, pela primeira vez, parece ter a sua idade, sente a sua idade (o vôo longo, a longa marcha), pois antes falara-lhe, disfarçadamente, do seu quadragésimo aniversário. Pensava, conjecturou Claire, que os anos pesavam sobre ela como uma mochila de soldado com quarenta pedras, mais pesada agora que se sentia mais fatigada. Pensa, conjecturou Claire (como ela própria pensara na praia), que isto é um erro, pois agora o excitamento e a alegria iniciais suscitados pelos projetos de viagem e pela partida extinguiram-se, o salão de beleza, o Continental, as criadas, o Saks, o Racket Club estão muito longe, e restava apenas a transpiração, as árvores, mas não os salões de chá com ar condicionado.

     Os olhos de Claire fixaram-se em Rachel DeJong e Harriet Bleaska que conversavam; Harriet, com a cabeça lançada para trás, os olhos fechados, deixava-se invadir pelo ar fresco, e Rachel, com as faces retesadas, era a própria expressão da desventura. Claire pôs-se de ouvidos à escuta.

     - ... encantada com isto - dizia Harriet. - Nunca senti tanta energia. Não sou capaz de explicar o que tudo isto tem feito por mim. Afastei-me dos hospitais... de toda a gente, do passado... para ser livre, para depender apenas de mim.

     - Certamente que a invejo - volveu Rachel. - Receio não possuir a sua natureza. É na verdade um dom... livrar-mo-nos de cuidados, eis o que quero dizer. Eu... eu deixei tanta coisa incompleta atrás de mim. Refiro-me aos doentes e... oh, a questões pessoais. Parece-me uma irresponsabilidade tê-lo feito.

     - Deixe de se preocupar, comece a viver. Doutora, ainda acabará num diva! - exclamou Harriet, rindo com verdadeiro prazer ante este gracejo; depois, apertou o braço de Rachel para provar que se tratava apenas de um gracejo. Claire afastou os olhos das duas e torceu o corpo a fim de observar Courtney, que voltara do regato e se encontrava agora, curvado, ao lado de Marc e de Orville Pence. Imediatamente, concentrou neles sua atenção.

     - Afirmava ainda agora ao Marc - dizia Orville - que a beleza das mulheres polinésias é grandemente exagerada. Bem, isto é o que se me afigura, após a minha primeira visita a Taiti. Sei que são observações de um só dia, mas tenho lido muita coisa sobre este tema. O mundo dos Mares do Sul tem sido objeto de muita publicidade, de muitos contos de fada, de peças e de filmes. Achei estas jovens de Taiti absolutamente destituídas de encantos.

     - De que maneira?

     - Oh, têm largos narizes negróides - disse Orville -, dentes de ouro, cintura larga, artelhos grossos, joanetes, espinhas e calos nos pés... Eis o que me parecem as suas belezas dos Mares do Sul.

     - Sinto-me inclinado a concordar com Orvüle - interveio Marc com certo pedantismo. - As minhas investigações persuadiram-me de que todas as lendas sobre a beleza das polinésias foram criadas pelos primeiros exploradores e marinheiros que visitaram estas ilhas. Eles tinham navegado durante muitos meses e estavam famintos de mulheres. Naturalmente, as primeiras fêmeas sobre que lançaram os olhos, e em especial as mais submissas, pareceram-lhes belas. Estou esperançado, Sr. Courtney, de que as mulheres das Sereias tenham mais para oferecer.

     - Não sou um perito no que se refere ao sexo oposto - disse Courtney com um leve sorriso. - Porém, as mulheres da aldeia não são polinésias puras, mas semi-inglesas, e refletem assim o melhor, e o pior também, da beleza feminina de ambas as sociedades. Sei que discordarei de suas opiniões, mas penso que as mulheres polinésias são as mais bonitas do mundo.

     - Aquelas criaturas corpulentas?! - exclamou Orville Pence. - Deve estar gracejando.

     Marc apoiou Orville.

     - O nosso Sr. Courtney esteve no mar durante muito tempo.

     Courtney não gostava de se ver objeto de gracejos; porém, retorquiu:

     - Descobri que a verdadeira beleza de uma mulher não se encontra na sua aparência exterior. Está dentro dela... e, por dentro, as mulheres polinésias, as mulheres das Sereias, são incomparavelmente belas.

     - Belas por dentro? - volveu Marc surpreendido. - Que pretende dizer com isso?

     Courtney tinha uma boca malévola.

     - São vocês os antropólogos - disse enquanto se erguia.

     - Vejam com seus próprios olhos.

     Marc mostrou-se confundido e embaraçado.

     - Apreciaremos tudo o melhor que pudermos, se contarmos com colaboração - disse ele, hesitante.

     Claire volveu deles os olhos e os ouvidos, e começou uma vez mais a refletir sobre Thomas Courtney. Passou, distraída, a mão pelos cabelos negros, e tentou imaginar como ela e as outras mulheres do grupo apareciam aos olhos de Courtney, como ele as julgava, como julgava a ela própria, comparando-as com as mulheres das Sereias. De súbito, sentiu-se insegura acerca da sua própria feminilidade, e o que se encontrava imediatamente à frente pareceu-lhe hostil. As mulheres das Sereias eram belas por dentro. E o que seria ela?

     Courtney aproximava-se.

     - Ergam-se e regozijem-se, meus amigos - bradou ele.

     - Um último pulo e eis-nos em casa.

     Com os outros, Ciaire pôs-se de pé. O problema suscitado pelas palavras de Courtney ocupou-a inteiramente, e depois a resposta; sentiu-se tentada a exclamar: Sr. Courtney, conheço a resposta... sou bela por dentro, e apenas porque a beleza está encerrada dentro de mim ninguém a pode ver... Nem Marc, nem você... nem eu.. Porém, começo a senti-la, isto é, se se refere ao que eu me refiro.

     Porém, não se encontrava exatamente certa daquilo a que se referia. Fechou por ora a mente ao enigma, e começou a caminhar entre Maud e Courtney.

     

     Para Claire e para os outros, a caminhada dos vinte minutos seguintes foi menos penosa do que a anterior. Marchavam em fila, desciam e subiam gradualmente, como se pisassem montanhas-russas em miniatura. O caminho regular atravessava uma paisagem verde e densa; aqui e ali encontravam bodes pastando, e tinham a impressão de que davam um passeio matinal por uma campina inglesa. Que reconfortante devia ter sido isto para o primeiro Daniel Wright, para o gentleman Daniel Wright, de Skinner Street!

     O imenso disco amarelo do sol parecia encher o céu azul, e o calor que irradiava perseguia-os impiedosamente. Claire viu que a camisa branca de algodão de Courtney era agora uma mancha colada às costas musculosas. O próprio pescoço de Claire, os seios e o rego sinuoso entre eles achavam-se umedecidos. De certo modo, contudo, era melhor do que antes, e o calor fazia que a pele cintilasse, como se refletisse saúde.

     Tinham subido lentamente, por entre a vegetação cada vez mais densa e mais alta, à sombra de renques de acácias, de amoreiras e de outras árvores que Karpowicz identificara como kukui; seus movimentos, através do túnel fragrante, fizeram que meia dúzia de aves de penas brilhantes levantassem vôo assustadas e se afastassem no céu. Pouco depois o sol começou de novo a banhá-los e encontraram-se junto de um amplo precipício. Courtney deteve-se, colocou as mãos bem abertas um pouco acima dos olhos e mirou a beira do abismo; depois, quando os componentes do grupo emergiam do caminho, voltou-se e disse:

     - Se se aproximarem um pouco mais poderão ver a aldeia lá embaixo.

     Claire, com Harriet Bleaska e Rachel DeJong a seu lado, assim fez, e, fixando os olhos embaixo, divisou a aldeia.

     A única comunidade das Três Sereias estendia-se ante elas, no longo vale. A aldeia constituía um triângulo perfeito. O centro era um conjunto de grama e sujidade, dividido por um fio de água pouco profundo atravessado por cerca de uma dúzia de pequenas pontes de madeira. De ambos os lados do conjunto, dispostas em linhas paralelas, encontravam-se as cabanas da aldeia, como se cestas quadradas voltadas para cima. Não havia apenas uma fila de cabanas, mas diversas, umas atrás das outras, porém com espaço bastante entre elas para que cada cabana fosse circundada por um tapete de relva. Entre as cabanas viam-se caminhos e renques de árvore, que pareciam eucaliptos.

     Todas as cabanas, de ambos os lados do longo conjunto, tinham sido construídas sob vastas saliências das colinas, que forneciam cobertura natural e sombra. Ocorreu à mente de Claire que estas projeções tinham provavelmente constituído a razão principal que levara a tribo a instalar-se aqui, há séculos. Pois, com exceção do ponto onde agora se encontravam, a aldeia parecia escondida dos olhos curiosos que pudessem espreitar das alturas, escondida da vista dos exploradores que se tinham arriscado a penetrar no interior, e escondida, nos tempos modernos, das tripulações dos aviões. Sim, pensou Claire, fora isto, bem como a existência do regato e da área plana do conjunto, que fizera com que o povo das Sereias se instalasse neste local, de preferência às terras altas.

     Claire tirou os óculos escuros da bolsa e colocou-os sobre os olhos, uma vez que o brilho ofuscante do sol dissimulava a extremidade mais distante da aldeia. As lentes escuras tornavam esse setor da aldeia claramente visível, e Claire distinguia agora o que não vira antes: três grandes cabanas, uma delas, na verdade, tão grande como uma pequena casa de campo; porém, todas as três alongadas como lagartas, tinham apenas um só piso e estavam situadas entre renques de árvores.

     Durante estes, momentos, a cena embaixo parecera, não sabia por que, destituída de vida, como se uma cidade fantasma tropical; todavia, conseguia agora distinguir duas pequenas figuras bronzeadas, provavelmente de homens, que entravam no conjunto, seguidas por um cão. O par atravessou uma pequena ponte, e, depois de se dirigir para o outro lado, desapareceu no interior de uma cabana.

     Voltou-se para perguntar onde se encontravam os nativos e viu que Courtney e Maud, que tinham estado conversando em voz baixa, se separavam ao notarem a curiosidade de todos.

     - Ei-la, meus amigos - disse Courtney em voz alta. - Perguntam-se onde se encontram as pessoas, não é verdade? Pois bem, elas encontram-se dentro das cabanas, comendo a sua refeição do meio-dia ou repousando, como deve fazer a esta hora qualquer cidadão sensato. Os que não se encontram nas cabanas estão nas colinas fazendo o seu quinhão de trabalho quotidiano. Normalmente, a esta hora, veriam mais gente nas suas idas e vindas pelo conjunto; porém, vivem uma ocasião especial... a ocasião da sua chegada. Disse-lhes que chegariam aqui cerca do meio-dia, e assim aconteceu; por respeito por todos vocês... o chefe Paoti dotou-os com uma mana especial para vencer o tabu contra os estrangeiros... encontram-se dentro das cabanas. Sei que nos Estados Unidos toda a gente sai para a rua para celebrar a chegada de pessoas importantes... paradas, confetes, chaves da cidade, mas aqui a marca do respeito e das boas-vindas consiste em conceder-lhes, durante o momento da chegada, pelo menos a liberdade de circularem pela aldeia sem serem observados. Espero que compreenderão isto.

     - Todos compreendemos, sem dúvida, a hospitalidade deles - disse Maud.

     - Na verdade - tornou Courtney -, muitos vestirão, esta noite, os seus trajes de cerimônia, em sua honra. Sei que o professor Easterday, lhes disse que os homens das Sereias usam, em geral, apenas sacos púbicos, e as mulheres pequenos saiotes, e que os menores andam por aí nus. Bem, é verdade. Contudo, encontrarão certas exceções. Na enfermaria, na escola, por exemplo, os indivíduos do sexo masculino trazem tangas, saiotes, ou o que quer que desejem chamar-lhes, e nestes lugares as mulheres usam uma espécie de soutiens com seus pequenos saiotes. Os jovens e os mais velhos podem vestir-se como quiserem. Durante as festas e ocasiões especiais, tal como a cerimônia de boas-vindas desta noite, envergam as roupas mais formais.

     Orville Pence acenou com a mão para chamar a atenção de todos.

     - Sr. Courtney, além do professor Easterday, do capitão e do senhor, somos os primeiros estranhos a vir aqui?

     Courtney franziu a testa, pesando a resposta.

     - Não - disse por fim. - Além das três exceções que mencionou, não são os primeiros brancos que vêm aqui desde que Daniel Wright se instalou nestas ilhas e seus descendentes constituíram uma nova raça. De acordo com uma lenda, um grupo de espanhóis desembarcou aqui cerca de cinco anos após a chegada de Wright, por volta de 1801, e mostraram-se bastante cruéis, tentando levar com eles algumas jovens à força. Quando voltavam à praia caíram numa cilada e foram dizimados até ao último homem, e os que ficaram no navio foram surpreendidos de noite e mortos. Em tempos mais recentes, nos princípios deste século, Úm velho vagabundo barbudo, que dava, só, a volta ao mundo, conduziu sua chalupa até à praia. Depois de se embrenhar pelo interior chegou à aldeia; porém, quando desejou partir não lhe permitiram. Acabou por se resignar a ficar por aqui, mas morreu, devido a causas naturais, antes de ter decorrido um ano.

     - O Capitão Joshua Slocum e a Sproyf - perguntou Claire.

     Courtney encolheu os ombros.

     - Não registraram o nome. Não usam a escrita aqui e a história é passada oralmente de geração em geração. Pensei também em Slocum. Porém, quando fiz certas indagações verifiquei que ele tinha morrido em 1909. Podia ter chegado até aqui sem ninguém o saber? É possível, mas não provável.

     - Devem existir alguns indícios, uma sepultura, uma pedra tumular, qualquer coisa - persistiu Claire.

     - Não - retorquiu Courtney. - Como saberá, os ritos fúnebres, nas Sereias, requerem a absoluta e total cremação de um cadáver e a redução a cinzas de todos os seus pertences. - Courtney voltou-se, dirigindo-se a Orville Pence. - Durante a Segunda Guerra Mundial um bombardeiro japonês fez uma aterragem forçada no platô, mas explodiu e incendiou-se. Não houve sobreviventes. Mais tarde, um transporte americano que se tinha perdido na noite chocou-se contra um dos lados do pico. Uma vez mais, não houve sobreviventes. À parte estes casos, o seu grupo é, pelo que sei, o primeiro, e espero que o último, do mundo exterior a visitar as Três Sereias.

     Maud estivera observando, concentrada, a aldeia embaixo.

     - Sr. Courtney - disse ela -, todos os componentes da tribo vivem naquela aldeia?

     - Todos vivem ali - volveu Courtney. - Todavia, existem diversas cabanas espalhadas em redor da ilha, abrigos para a noite, destinados àqueles que estão longe ocupados com o trabalho do campo, com a caça, a pesca, e próximo do pico há algumas colunatas de pedra, os restos de um antigo mar ae sagrado; porém, esta é a única comunidade verdadeira. Como se trata de uma pequena ilha, todas as coisas úteis estão concentradas nesta povoação. Pelo último censo, existiam aqui duzentos e vinte nativos e cerca de cinqüenta ou sessenta cabanas. No mês passado, foram construídas quatro novas cabanas, e duas delas vagaram, para instalá-los.

     Mary Karpowicz, que estivera, absorta, contemplando a aldeia, exclamou de súbito:

     - De que são feitas estas cabanas? Tem-se a impressão de que uma simples aragem as pode fazer ir pelos ares.

     - Achá-las-á mais consistentes do que isso - retorquiu Courtney com um sorriso. - Não têm paredes, como poderia pensar, mas a armação de cada uma delas é feita de madeira sólida, segundo as influências da arquitetura inglesa do século XVIII; os telhados são de colmo nativo, folhas de pandanus colocadas sobre cana ou bambu, e as paredes de material similar, mas com reforços de cana. A maior parte das cabanas tem duas divisões, e algumas três.

     - Sr. Courtney - disse Maud, que apontava para os pequenos bosques na extremidade da aldeia -, aquelas edificações maiores...

     - Ah, sim. Trata-se, chamemos-lhe assim, da seção municipal da comunidade. De fato, não se pode ver todas daqui. Entre as árvores, encontrará a Cabana Sagrada... uma espécie de museu, realmente, e para alguns um lugar de culto... e várias cabanas maiores, ligadas umas às outras, que constituem a escola. O armazém de víveres fica próximo também. Duas importantes edificações estão no centro da aldeia. Uma é o dispensário médico. A outra é a cabana do chefe Paoti, bastante imponente e espaçosa, com muitas divisões para seus familiares, para as reuniões, para as festas. Pode vê-la daqui.

     - Mas a maior e a mais comprida da extremidade, aquela com cobertura de colmo em forma de cúpula? - perguntou Maud.

     Courtney fixou-a com os olhos durante um momento e depois disse com ar sério:

     - É a Cabana de Auxílio Social, mencionada na carta do professor Easterday.

     - O bordel - interveio Marc com um sorriso rasgado. A mãe voltou-se para ele, encolerizada, e disse com severidade:

     - Por amor de Deus, Marc, veja se fala em termos.

     - Estava apenas gracejando - volveu Marc, com um ar hesitante e depois defensivo.

     - Desorientará apenas os outros - tornou Maud. Voltou-se para Courtney. - Como antropólogos, sabemos da existência de casas de prazer na Polinesia. Em Mangareva são denominadas are popi, e na ilha da Páscoa são conhecidas como hare nui. Presumo que esta cabana tem funções similares.

     - Um tanto - disse Courtney, hesitante. - Pelo que sei, não há nada de semelhante em todo o mundo. De fato, existem muitas coisas lá embaixo, completamente desconhecidas no mundo exterior. Para mim, representam quase exclusivamente um ideal de vida, em questões de amor, pelo menos, que nós ocidentais devemos um dia conseguir. - Relanceou o olhar pela aldeia com uma expressão que era, em si mesma, um ato de amor. - Vê-la-á muito em breve e saberá qual é a sua função. Até esse momento, afigura-se-me inútil continuar com estas explicações. Permitam-me que os conduza às cabanas que lhes estão reservadas. Ali adiante encontraremos um caminho íngreme, que é, no entanto, seguro. Estaremos lá embaixo dentro de dez minutos.

     Começou a descer a encosta e rodeou uma saliência de pedra, desaparecendo dos olhos dos outros, que o seguiram imediatamente, um a um. Claire viu o marido aproximar-se de Orville Pence. Marc disse então:

     - Contudo, continuo a dizer que é um bordel.

     Ele afastou-se, acompanhado por Orville, e naquele momento Claire não desejou caminhar com qualquer deles.

     Estava furiosa com Marc, devido às suas palavras levianas. De todo o coração, sabia que o Dr. Adley R. Hayden teria ficado furioso também, e teria gostado mais dela.

     Esperou que eles circundassem a curva, e depois continuou a marcha. Desejava entrar só na aldeia das Três Sereias.

      

     Estava-se a meio da tarde, na aldeia.

     Claire Hayden, mais fresca agora, num vestido cinzento sem mangas, de dacron, encostou-se ao umbral da porta da cabana reservada para Marc e para ela, e, com ar ausente, observou Marc, Orville e Sam que, com ferramentas que tinham trazido, ajudavam dois dos jovens nativos da praia a abrir' a última das caixas de madeira.

     Em dado momento deu consigo mirando os dois nativos, esbeltos e airosos; existia nisto uma certa fascinação de suspense. À medida que os jovens se moviam, se curvavam e se erguiam, compreendeu que, em qualquer instante, os fios que lhes rodeavam a cintura, segurando os sacos púbicos, se partiriam e exporiam o que estava escondido. Era impossível compreender por que isto não acontecera já, mas o fato é que até esse momento não se verificara tal ocorrência.

     De súbito, sentiu vergonha desta diversão e volveu os olhos para lá dos homens e dos caixotes, fixando-os no coração da aldeia. Alguns habitantes encontravam-se agora no conjunto. Mulheres e crianças, por fim. Os menores corriam, saltavam, brincavam, completamente nus. As mulheres, como Easterday prometera, achavam-se nuas da cintura para cima e os saiotes curtos dissimulavam precariamente suas partes íntimas. Só algumas das mulheres mais velhas tinham seios pendentes; porém, as mais jovens, e mesmo as de meia-idade, exibiam seios altos, firmes, extremamente pontudos. Quando caminhavam em passos curtos, delicados, peculiarmente femininos, sem dúvida tentando manter direitos os pequenos saiotes, os seus seios cônicos estremeciam e os saiotes ondulavam, revelando, uma vez por outra, parte do traseiro. Claire achava-se perplexa ante a maneira como as mulheres caminhavam, tão descobertas; na verdade, era estranho que seus homens passassem constantemente por elas sem sentirem o desejo de as violar.

     Observando-os de longe - mostravam-se ainda demasiado tímidos, polidos, corretos, para se aproximarem - Claire sentiu-se inquieta. Automaticamente, tocou o vestido com a mão; este, apesar de muito fino, cobria-a completamente, e, com soutien, a combinação, as calcinhas, fez que se sentisse ridiculamente destituída de feminilidade. Continuou a observar as mulheres das Sereias, o seu cabelo negro lustroso, os seus seios pontudos e oscilantes, as suas ancas sedutoras, as longas pernas nuas e teve vergonha de estar vestida com tanta castidade, como a esposa de um missionário.

     Logo depois, porém, resolveu deixar-se de tão inocentes preocupações, e decidiu ocupar-se com sua bagagem. Neste momento, ouviu a voz de Marc.

     - Bem, Claire. - Ele aproximou-se do umbral, passando as costas da mão pela testa suada. - O que tem feito?

     - Estive tirando as coisas das malas. Fiz uma pausa por uns momentos. Observava a... as pessoas.

     - Também eu - disse Marc. Fixou os olhos no centro do conjunto. - Courtney podia estar enganado acerca de muitas coisas, mas tinha absoluta razão no que se refere a estas mulheres.

     - Que quer dizer com isso?

     - Fazem com que as taitianas pareçam simples rapazes. São realmente alguma coisa. Dez vezes melhores do que a Miss América de qualquer concurso. Nunca vi nada que se parecesse com isto nos Estados Unidos. - Depois, mirando o rosto da mulher, acrescentou: - Excetuando a presente companhia.

     Ela ainda guardava um resíduo do velho ressentimento, e esse foi sobrecarregado por nova sensação desagradável. Desejava exercer retaliação condigna, feri-lo onde ele era mais vulnerável.

     - Isso aplica-se também aos homens - disse. - Já alguma vez viu outros tão atléticos e com uma aparência tão viril?

     O rosto do marido obscureceu-se, como ela pressentira.

     - Que espécie de conversa é essa, afinal?

     - A espécie de conversa de que gosta - volveu ela, entrando na cabana com sua detestável vitória.

     - Claire, por amor de Deus! - exclamou ele, contrito. - Falava apenas como antropólogo.

     - Muito bem - volveu ela. - Está perdoado. - Porém, não voltou para junto dele.

     Durante alguns minutos, como se ausente, transportou as suas peças de vestuário e os artigos de toalete da divisão da frente para a de trás, até que a cólera que fervia dentro dela começou a se dissipar; momentos depois, recobrou o equilíbrio e conseguiu expulsar a insensatez de Marc do espírito. Fazendo uma pausa para descansar, examinou as instalações. A divisão da frente era de tamanho regular, pelo menos de cinco metros por seis, e, embora quente, era mais fresca do que a temperatura exterior. As paredes de cana davam uma sugestão de conforto, e as esteiras de folhas de pandanus que cobriam a maior parte do piso de areia e de cascalho eram flexíveis e macias. Não havia grandes peças de mobiliário de qualquer gênero, mesas, cadeiras, nem decoração, mas Sam Karpowicz suspendera do teto duas lâmpadas alimentadas por uma pilha. Uma janela dava para a cabana de Maud, e estava abrigada do sol e do calor por meio de um pano escuro, que podia ser afastado.

     Algum tempo antes, um adolescente nativo, coberto apenas por uma curta tanga, trouxera duas tigelas de barro cheias de água fresca e explicara em inglês irregular que a água de uma delas era para beber e a da outra para lavagens. Em seguida, trouxera uma série de folhas largas e fortes que, conforme dissera a Claire, eram para serem utilizadas como pratos. Esta divisão, refletiu Claire, destinar-se-ia a sala de estar, sala de jantar e escritório.

     Com os braços cruzados sobre o peito, dirigiu-se lentamente para a parte de trás da cabana, através da abertura que dava para um corredor de cerca de dois metros. Aqui, uma fenda na cobertura servia de escoadouro da fumaça, e sob ela, junto de uma esteira, achava-se o fogão de terra, um buraco redondo no solo que se enchia de pedras quentes e cobria com folhas espessas. Esta passagem dava para uma divisão menor, semelhante à da frente, apenas com uma janela. Aqui, sobre as esteiras de pandanus, Claire abrira os dois sacos de dormir; estes pareciam incômodos e pesados; se as noites fossem quentes, como parecia, dormiria sobre o saco em vez de dentro dele, pensou, ou dormiria mesmo sobre as próprias esteiras nativas, muito mais grossas nesta divisão e provavelmente utilizadas como camas.

     Ajoelhou-se e dividiu as roupas, as de Marc em diversos montes, para um lado. Depois, uma vez mais fatigada, deixou-se tombar para trás, para se sentar nas esteiras, as pernas sob as coxas, e tirou os cigarros e os fósforos do bolso do vestido.

     Fumando, repousada - como era maravilhoso não ter telefone, lista de compras, reuniões mundanas, carro para dirigir -, escutou o rumor da aragem sobre o colmo acima. Da distância, demasiado débeis e femininas para pertencerem aos que se encontravam do lado de lá da porta, chegavam finas risadas. Estes sons delicados, e o odor das plantas que penetrava no quarto, confortaram totalmente Claire, dando-lhe uma sensação de langor felino.

     Daí a momentos sentiu-se capaz de medir suas emoções interiores em relação ao que as despertara, da primeira vez que entrara no centro da aldeia, três horas antes. Com exceção de Maud, que a atividade de campo fazia reviver, e da infatigável Harriet Bleaska, o estado de ânimo do grupo resumia-se a uma mescla de decepção levedada pelo interesse. O estado de espírito da própria Claire condizia com o do grupo. Compreendia-o melhor agora. Nenhum paraíso real podia ser uma réplica do sonho do paraíso. Os sonhos do paraíso não têm defeito. Quando se deixa um sonho, tem de se descer mais e mais, de fato descer até à terra, e esta tinha dedos tateantes e nodosos que desfiguravam o que os sonhos delicados construíam.

     Para Claire, tudo era melhor agora, pois a parte mais útil e lubrificada do mecanismo que era ela própria movia tudo o que estava em seu redor, para o ajustar às suas necessidades, para tornar tudo compatível consigo. Era a sua força, ou talvez a sua fraqueza, isto, o talento de abandonar automaticamente os pormenores de um sonho encantado e rearranjar a fria realidade de modo que condissesse com o que restava de um sonho. Em outros, ter-se-ia chamado flexibilidade ou compromisso, ou encontro a meio caminho com a vida. Ela era uma veterana de muitos sonhos românticos, de grandes e intermináveis esperanças, expectativas, antecipações, e também uma veterana de desilusões sem conta; há muito, muito tempo, armara-se a si própria com a maquinaria da reconciliação. Isto funcionara também - e se não como podia ainda sorrir nas manhãs do seu casamento? -, mas recentemente, com muita freqüência, a maquinaria respondia com menos ruído, estalava, protestando. Hoje funcionava, e muito bem. O paraíso parecia de certo modo o sonho recorrente de toda a primavera.

     Após acender um novo cigarro na ponta do outro e lançar este para a casca quebrada de um coco que trouxera para servir de cinzeiro, perguntou-se se os outros do grupo tinham feito um ajustamento semelhante ao seu. Ao recordar fragmentos de suas reações iniciais em relação à aldeia, à medida que a atravessavam atrás de Courtney, e as palavras de todos ao entrarem nas cabanas onde se instalariam, tivera sérias dúvidas.

     Courtney apontara as seis cabanas de que disporiam durante as seis semanas da visita. As cabanas estavam dispostas em linha, sob a saliência esbranquiçada, cerca do conjunto, bastante mais próximas da entrada da aldeia do que do centro, onde se encontrava a imponente cabana de Paoti. Aos Karpowicz foram destinados os primeiros alojamentos, exatamente com os mesmos exterior e interior da cabana que fora destinada a Claire e Marc; uma exceção, porém: para lá da divisão do fundo, havia um terceiro e pequeno quarto para Mary Karpowicz. Claire e Maud tinham acompanhado Courtney e os Karpowicz no seu primeiro exame do lar temporário. Embora Sam tivesse notado com desagrado evidente a falta de uma câmara-escura - Courtney prometera imediatamente fazer que lhe fossem fornecidos materiais e mão-de-obra para preparar uma -, ele e Estelle acharam tudo, se não tão bem como em Saltillo, no ano anterior, pelo menos aceitável para uma curta permanência. Mary, por outro lado, manifestou seu desagrado pela falta de intimidade e pelo grande vazio que tudo sugeria.

     - Que farei eu aqui durante todo o verão? Crochê? - perguntara ela.

     Lisa Hackfeld fora instalada na cabana a seguir, a qual, em atenção ao apoio financeiro do marido, ocupava sozinha. Depois de lançar os olhos em redor da cabana, surpreendera Maud no conjunto.

     - Não consigo dar com o banheiro - dissera, com uma expressão que refletia o mais ingênuo espanto. - Não há banheiro.

     Courtney, que ouvira por acaso estas palavras, tentara acalmá-la.

     - Há um banheiro público a pequena distância de cada grupo de dez cabanas - explicara ele. - O mais próximo da senhora fica a uns trinta metros, atrás da cabana onde ficará a Dr.a DeJong. Não tem como se enganar. Parece mais uma cabana circular de erva do que um banheiro.

     Lisa sentira-se horrorizada ante a idéia de um banheiro público, mas Courtney afirmara que se devia sentir feliz por o ter. Durante décadas, antes da vinda de Daniel Wright - os banheiros públicos tinham constituído uma inovação sua - os nativos não possuíram nada que se parecesse com isto, dirigiam-se apenas até às moitas para se aliviar. Infeliz, Lisa voltara a seu castelo sem toalete a fim de chocar suas penas antes de sua bagagem chegar.

     Orvüle Pence, que nunca estivera no Polinésia, como confessara, após entrar na sua cabana dissera ter esperado, de certo modo, instalações com janelas verdadeiras - em Denver, como era afeito à congestão bronquial, dormia sempre com as janelas bem fechadas -, algum mobiliário e prateleiras para seus livros. Tinham-no deixado todos, no meio do seu quarto, triste e imobilizado.

     A cabana seguinte fora reservada para Rachel DeJong e Harriet Bleaska, que a partilhariam. Harriet ficara encantada com a nova morada, muito mais pitoresca do que os apartamentos solitários que conhecera em Nashville, Seattle e San Francisco. Rachel DeJong ficara menos impressionada. Embora não exprimisse verbalmente qualquer queixa e se mostrasse indiferente ante as atuais condições de vida, preocupara-a a falta de isolamento propício a seu trabalho.

     - Não necessito de um diva - disse de viés -, mas sim de isolamento com um doente... ou, neste caso, um analisando.

     Desejoso de lhe agradar, Courtney prometera procurar uma cabana vaga, algures, que ela pudesse usar como consultório.

     Depois, coubera a Claire e Marc a vez de serem conduzidos à sua residência, e por fim Maud partira com Courtney para seu gabinete e instalações, que ficavam a seguir. Meia hora mais tarde chegaram os fornecimentos; porém, uma vez que os anfitriões não tinham feito caso do almoço dos componentes do grupo, Marc abrira o caixote que continha as conservas e levara latas a todas as cabanas.

     Recordando agora algumas das queixas, uma frase solta, um clichê magnífico, perpassara pela mente de Claire: os nativos são impacientes. Isto era uma tolice, mas deleitou-a. Estava aqui, entre eles, e os nativos não se mostravam absolutamente nada inquietos. No fim das contas, eles, os civilizados, é que manifestavam inquietação ante condições de vida estranhas.

     Maud, pensou ela, só a poderosa Maud estaria tranqüila, como um perfil de granito no monte Rushmore. Teve um súbito e confuso desejo de ver Maud, a fim de que ela a contagiasse com seu entusiasmo. A fadiga desaparecera. Endireitou o corpo. Ouviu os ruídos produzidos pelos homens labutando lá fora. Atravessou a cabana e saiu para o conjunto, esperando ver Marc; Orville Pence e Sam Karpowicz ajudavam os nativos, mas Marc parecera ter-se evaporado. Aonde fora ele? Quis perguntar, mas não o fez, pois imaginou saber. Tinha ido até aos confins da aldeia. Tinha ido contemplar os seios nus. Que vão todos para o diabo, pensou; não os seios mas os homens; não todos os homens, também, mas os homens como Marc.

     Ao chegar à cabana da sogra a porta de cana abriu-se de par em par, quase a atingindo. Recuou, no mesmo instante em que Courtney surgia. Surpreendeu-a o fato de Courtney ter estado com Maud durante todo este tempo.

     - Olá, Sra. Hayden - disse ele. - Já repousou? Sentiu-se possuída pela timidez e quase sem fala.

     - Sim - volveu.

     - Posso ajudá-la?...

     - Não é preciso, obrigada.

     - Bem, então...

     Achavam-se imóveis, tímidos, em face um do outro, mas um pouco afastados, ambos incapazes de se aproximarem ou de se afastarem.

     - Eu... ia entrar... - começou ela dizendo.

     - Sim, eu...

     De longe, alguém bradou:

     - Claire... Claire Hayden!

     Este brado fez com que ambos se mexessem e volvessem os olhos para o ponto de onde viera a voz. Era Lisa Hackfeld, que se aproximava correndo, agitada.

     Chegou com a respiração suspensa, manifestando horror e incredulidade. A sua atenção estava de tal modo concentrada em Claire que mal reconheceu Courtney.

     - Claire - disse, arfando, e tão ansiosa de falar que se esquecera de que não tinham ainda introduzido a familiaridade nas suas relações: - Claire, já foi ao banheiro?

     A pergunta foi tão inesperada que Claire não soube como responder.

     Lisa Hackfeld achava-se tão inquieta na sua aflição que não foi capaz de esperar.

     - É... é comunitário! - exclamou. - Quero dizer, é misto... uma tábua com buracos, e quando entrei... vi três homens sentados e uma mulher... conversando... juntos.

     Espantada, Claire voltou-se para Courtney, que se esforçava por ocultar o divertimento que lhe inspirava a cena. Por fim, ele inclinou a cabeça num gesto afirmativo.

     - Sim, é verdade - disse. - Os banheiros são comuns, utilizados por homens e mulheres, ao mesmo tempo.

     - Mas como podem... - tornou Lisa Hackfeld.

     - É comum - retorquiu Courtney -, e, para ser franco, um bom costume.

     Lisa Hackfeld pareceu dissolver-se.

     - Um bom costume? - exclamou.

     - Sim - disse Courtney. - Quando chegou aqui, em 1796, Daniel Wright verificou que os nativos eram desinibidos e naturais nestes casos e não viu razão, uma vez que conseguira mandar construir os banheiros, para modificar suas atitudes. Não há nada de mal, nesta sociedade, em ir-se ao banheiro e misturar-se com o sexo oposto. Um estranho leva tempo a habituar-se, mas uma vez que isso acontece tudo se torna fácil, um lugar-comum. Ninguém presta a mínima atenção ao parceiro do lado, e este não se preocupa também.

     - Algumas coisas devem ser feitas em particular - insistiu Lisa Hackfeld. - Isto constituiria um escândalo na nossa terra.

     - Tudo depende do país em que se vive, Sra. Hackfeld. Esta prática é familiar em certas regiões da Europa e da América Latina. Na sofisticada França, no tempo de Maria Antonieta, as grandes damas mandavam parar as carruagens, na beira da estrada, e, depois de descer, realizavam este mesmo ato à vista dos outros passageiros e acompanhantes.

     - Não acredito!

     - É verdade, Sra. Hackfeld. Compreendo o que sente. Isto tudo é estranho e causará choques, pequenos choques. Recordo-me que, quando aqui cheguei, fiquei espantado com o que vi no banheiro na primeira vez que lá entrei. Mas com o decorrer do tempo reconheci o valor do costume, que não fazia senão destruir mais uma área oculta do nosso falso pudor. Desde então descobri outro valor dos banheiros comunitários. Eles constituem um grande nivelador da natureza. Quando aqui cheguei, senti-me profundamente apaixonado por uma jovem nativa atraente e orgulhosa. Desejava falar com ela, mas sua família era a melhor, ela era importante. Hesitei. Pouco tempo depois, porém, encontrei-me ao lado desta jovem no banheiro comum e todos os meus receios e constrangimentos desapareceram. Se a instituição se tornasse universal, podia falar-se de democracias nos seus termos mais absolutos. Hoje, não existe igualdade. Temos a elite, os opulentos, os talentosos, os fortes, os inteligentes, e uma grande maioria de seres inferiores na escala social. Mas aqui disporíamos do único nivelador, como disse, o único lugar onde a realeza e os camponeses, as atrizes e as donas-de-casa, os santos e os pecadores pareceriam absolutamente iguais.

     - Não fala a sério, Sr. Courtney.

     - Falo muito a sério, Sra. Hackfeld. - Fez uma pausa, lançou um olhar de relance a Claire e sorriu. - Espero não a ter ofendido, Sra. Hayden.

     Claire estava tão preocupada com as condições sanitárias como Lisa Hackfeld; porém, procurava ocultar este fato, pois não queria que a julgassem dominada pelo falso pudor que possuía Lisa.

     - Não - mentiu ela -, muito pelo contrário. Talvez tenha razão nesse ponto.

     Apesar de duvidar da verdade destas palavras, Courtney fez um gesto de concordância com a cabeça e puxou para cima as calças. Em seguida, voltou-se para Lisa e disse:

     - A não ser que tenha rins incríveis, aconselho-a a aproveitar tudo o que temos para oferecer. - Começou a afastar-se, voltou-se e, num murmúrio dirigido a Lisa, acrescentou: - De uma pessoa timorata para outra, deixe-me sugerir o seguinte: se visitar os banheiros comunitários após o toque para o café, almoço e jantar... sete, meio-dia e sete... encontrará provavelmente o mais completo isolamento, pelo menos no que se refere aos nativos.

     - Que tal o isolamento em relação aos homens do grupo? - perguntou Lisa, quase com lágrimas nos olhos.

     Courtney passou a mão pelo queixo.

     - Sim - disse ele -, isso constituiria um problema, não é verdade? Bem, Sra. Hackfeld, por deferência por seus costumes retrógrados sèr-lhe-á feita uma concessão. Amanhã, antes de o dia terminar, encontrarão atrás das cabanas duas novas edificações sanitárias, uma com a inscrição. Eles e a outra com a inscrição Elas. Que tal?

     Lisa Hackfeld suspirou de alívio.

     - Qh, obrigada, Sr. Courtney.

     - De nada, Sra. Hackfeld. Boa tarde, e... boa tarde também, Sra. Hayden.

     Deixou-as e seguiu para o conjunto, no seu passo gingado, dirigia-se para a grande cabana do chefe Paoti.

     - Ele é um homem singular, não acha? - sussurrou Lisa. - Claro, estava divertindo-se à minha custa, com toda aquela conversa.

     Claire inclinou lentamente a cabeça num gesto de aprovação, os olhos fixos ainda na figura que se retirava.

     - Creio que sim - disse. - Mas não apostava.

     - Bem - volveu Lisa -, de qualquer modo mostrou-se útil. Teremos o nosso isolamento amanhã. Decidi escrever todos os dias ao Cyrus, uma espécie de diário de viagem. As cartas serão postas no correio todas as semanas pelo Capitão Rasmussen. Esta pequena experiência forneceu-me assunto para começar.

     Claire volvera de novo a sua atenção para Lisa.

     - Decerto - concordou.

     Lisa sacudiu a cabeça, como se tivesse feito a si mesma uma profunda observação.

     - Consigo ver o rosto dele neste momento - disse. - É surpreendente, não importa a sofisticação ou a afetação que exista em todos nós!

     - Sim - assentiu Claire.

     Lisa agitou a mão diante do rosto, como um leque.

     - Espero que não faça tanto calor todos os dias. Creio que é melhor afastar-me do sol. Até logo.

     Claire observou-a à medida que ela caminhava em direção à sua cabana. Sentiu compaixão por Lisa, pois esta teria ainda muito que suportar. Então, recordando-se do que tivera em mente fazer antes deste encontro, abriu a porta de cana e entrou, a fim de visitar a sogra.

     Quando fez a transição visual do resplendor do sol para a sombra, Claire viu que não se encontrava ninguém na divisão da frente da cabana de Maud. Esta assemelhava-se à sua, exceto que era consideravelmente mais ampla e tinha já em ordem os instrumentos do ofício. Sob a janela coberta achava-se uma grosseira mesa de madeira, de tampo liso; pernas, toscamente talhadas e com uma leve coloração de avelã, davam a impressão de terem sido pouco antes cortadas. Em cima da mesa estava o gravador portátil, prateado, e a máquina de ditar também portátil. Ao lado destes estavam um calendário e um candeeiro alimentado por uma bateria, e numa extremidade duas tigelas de coco, uma cheia de lápis novos e de pequenos aparadores baratos e a outra vazia, esta, aparentemente, para servir de cinzeiro. Uma cadeira inacabada, bastante robusta e com um alto encosto de madeira - obviamente construído por mãos pouco práticas - seguro por correias em vez de pregos, completava o jogo da mesa. Afastados, à direita, encontravam-se dois bancos longos e baixos com tampo de madeira grosseira que não devia ter sido cortada por uma serra.

     Claire preparava-se para chamar pela sogra quando esta surgiu, com andar vivo, da passagem da retaguarda, os braços carregados de cadernos de apontamentos.

     - Oh, Claire, ia visitá-la dentro de momentos.

     - Não estava fazendo nada, as malas... Faz com que me sinta culpada.

     - Disparate. - Deixou cair desfazendo os cadernos de nota, sobre a mesa. - O meu sentido neurótico da ordem. Está-se comportando corretamente. Uma pessoa deve repousar, pelo menos durante o dia, numa ilha tropical. - Apontou com a mão nédia para a mesa e continuou o gesto até incluir toda a divisão. - Que pensa? O Sr. Courtney diz-me que isto constitui verdadeiro luxo nas Sereias. Há semanas, o chefe Paoti afirmou que, uma vez que sou chefe como ele, devo ser tratada como. tal. Segundo o Sr. Courtney, o chefe possui o único mobiliário ocidental existente na ilha... uma cadeira como esta, para servir de trono, e uma vasta mesa utilizada nas festas. Agora tenho uma cadeira, uma mesa que serve de secretária, graças ao Sr. Courtney, e bancos para meus súditos. - Fez uma careta. - Talvez não devesse ter aceitado tudo isto. Pode não só criar ciúmes entre os componentes do grupo como obsta a que viva como um nativo, como um participante. Porém, devo confessar que facilitará meu trabalho.

     - Sou a favor da opulência - disse Claire, sorrindo. - Faz com que todos nós nos esforcemos mais para atingi-la.

     - Declarei ao Sr. Courtney que necessitávamos de uma pequena mesa para a sua máquina de escrever, e ele disse que poderíamos contar com uma amanhã.

     - Vai colocá-la aqui, Maud? Acho preferível. Desejo conservar as nossas duas divisões como estão agora, absolutamente em estilo nativo. A nossa cabana encantou-me deveras, e gosto de vê-la aberta, arejada, sem nada dentro dela a não ser nós. Maud, como falávamos, de Courtney...

     Claire referiu-se a ele, ao incidente com Lisa Hackfeld, à digressão de Courtney sobre o valor dos banheiros comunitários e como grandes niveladores humanos.

     Maud estava divertida.

     - Pobre Sra. Hackfeld! Bem, ela... e não só ela mas todos nós... terá maiores surpresas, espero. Sim, recordo-me da primeira vez, há anos, em que eu e Adley nos vimos nuns banheiros mistos. O nosso Sr. Courtney tem razão, sabe? Temos muito que contar ainda sobre este costume. Apesar de umas leves falhas, ele também tem razão no que toca à história. Era na Inglaterra do século XVII que uma dama abandonava a carruagem e acompanhantes para satisfazer suas necessidades na beira da estrada, diante de toda a gente. Era na França do século XVII que uma dama aristocrática se sentava lado a lado, num banheiro, com amigos do sexo masculino, conversando. Vivia-se no período da Restauração, depois de Richard Cromwell ter sido expulso do Poder. Era um período de rebelião contra o falso pudor. As mulheres usavam seios artificiais, provocantes, feitos de cera, que colocavam sobre os seios verdadeiros, e não traziam calcinhas. Nunca esqueci o encontro de Casanova com Madame Fel, a cantora. Representava bem a moral da alta sociedade do tempo. Casanova viu três pequenos brincando em redor das saias de Madame Fel e ficou surpreendido por não haver semelhanças entre eles. “Decerto que não”, disse Madame Fel. “O mais velho é filho do Duque de Annecy, o segundo do Conde Egmont e o terceiro do Conde Maisonrouge. “ Casanova apresentou suas desculpas. “Perdoe-me, Madame”, disse. “Pensei que todos eles eram seus filhos. “ Madame sorriu. “E são”, volveu. Claire não escondeu o seu deleite.

     - Maravilhoso! - exclamou.

     - O que é maravilhoso, Claire, é o fato de nós duas estarmos aqui, sob um telhado de colmo, no meio do Pacífico, recordando a moral fácil da França e da Inglaterra civilizadas de há mais de trezentos anos, e verificarmos que quase correspondem a parte dos preceitos morais de uma tribo semipolinésia. Pelo menos, no que toca ao banheiros.

     Algures na mente de Claire perpassou a figura descontraída de Courtney. Como por acaso, falou de novo nele.

     - De uma maneira ou de outra, foi Thomas Courtney que deu origem a esta conversa. Surpreendeu-me vê-lo sair daqui tão tarde. Esteve com você durante todo este tempo?

     - Sim, antes de chegar a mobília sentamo-nos nas esteiras de pandanus e conversamos. Ele é uma pessoa encantadora, muito lida, com grande experiência da vida, extremamente liberal sob todos os aspectos. Deu-me uma imediata explicação sobre os tabus, sobre o que se deve e o que não se deve fazer, sobre o que é mana, o que traz prestígio, o que é sagrado na comunidade. Discorreu um pouco sobre a rotina e os hábitos que teremos de compreender. Tudo muito elucidativo. Vou escrever algumas notas sobre o assunto e preparar uma reunião para amanhã cedo com todos os componentes do grupo. Penso que todos devem saber o que podem e o que não podem fazer, e o que, de maneira geral, devem esperar. O Sr. Courtney foi extremamente preciso. Será de inestimável valor para nós.

     - Referiu-se... à vida dele?

     - Não disse uma palavra sequer. Fez-me algumas perguntas sobre você e Marc. Parece que você causou uma ótima impressão nele.

     Claire alertou-se imediatamente.

     - Sobre mim e Marc?

     - Sim. Perguntou-me há quanto tempo estavam casados... se tinham filhos... onde e como viviam... o que fazia Marc... o que fazia você... Coisas deste gênero.

     - E satisfez a curiosidade dele?

     - Bem, disse pouca coisa, apenas por cortesia. Pensei que não me cabia a mim falar sobre o que lhes diz respeito.

     - Obrigada, Maud. Procedeu com inteligência. Fez também perguntas sobre os outros?

     - Algumas. Tinha de saber qual era a especialidade de cada um, o que nos interessa estudar, a fim de poder ajudar-nos nas investigações. Mas nada de pessoal no que se refere aos componentes do grupo. Interessou-se apenas por você e pelo Marc.

     Claire mordeu, pensativa, o lábio inferior.

     - É extraordinário que se encontre aqui... Ele é... não sei... tão singular. Desejaria poder conhecer mais coisas acerca da sua vida.

     Maud aproximou a cadeira da mesa.

     - Terá uma oportunidade esta noite - volveu. Depois, sentou-se e começou a pôr os blocos de apontamentos em ordem. - O chefe Paoti oferecer-nos-á uma festa de boas-vindas na sua cabana, esta noite. Altamente cerimoniosa e importante. O chefe estará lá com a mulher, Hutia, com o filho, Moreturi, com a nora, Atetou, e com a sobrinha, que faz agora parte da família... Tehura... Sim, é este o nome dela, Tehura. Disse que comparecesse com os parentes mais chegados, que são Marc e você. O Sr. Courtney servirá de intermediário... para nos apresentar.

     - Como será a festa? - desejou saber Claire. - Que vestiremos e...

     - Usará o seu melhor vestido. O melhor e o mais simples. Fará calor lá. Quanto à festa, o Sr. Courtney falou-me de um ou dois discursos, de música, e de comida em abundância... comida nativa e bebidas nativas, também... distrações e um rito da amizade. Depois, possuiremos mana oficial e poderemos circular livremente na aldeia. Seremos, assim, considerados membros da tribo. O jantar começa ao cair da noite. Não se esqueça de dizer ao Marc que se prepare a tempo. O mesmo se aplica também a você. O Sr. Courtney virá cerca das oito para nos conduzir à cabana do chefe. Será divertido, e constituirá uma nova experiência, prometo-lhe.

       

     Em dado momento, entre as dez e as onze horas da noite - no estado em que se encontrava não conseguiu distinguir a hora exata no pequeno mostrador do seu relógio de pulso, de ouro -, Claire recordou-se da previsão feita por Maud e reconheceu (para si mesma) a sua exatidão. Todos os exóticos momentos passados durante a festa do chefe Paoti tinham sido divertidos; cada minuto, sob a cúpula de colmo da sua imensa cabana de bambu, constituíra uma nova experiência. Não se mostrara ela própria, compreendia o seu ser recente, e esta nova faceta da sua personalidade, tão surpreendente, mais reforçara o seu prazer.

     Após ter consultado sem resultado o relógio, o pescoço pareceu elevar-se-lhe - “Agora estou a abrir-me como o maior telescópio que jamais existiu!”, gritara há muito tempo Alice no País das Maravilhas ao atingir mais de dois metros e setenta centímetros de altura -, e, como a cabeça de Alice, a sua quase tocava o teto. Depois, porém, flutuou liberta, alto, muito alto, como um planeta quase independente com vestígios de vida humana. Do cimo, a sua pessoa alongada fazia descer os olhos sobre os contornos recendentes do mundo noturno. Havia o piso de pedra polida e o fogão de terra fumegante e, no centro, entre o fogão e a plataforma, o longo retângulo da mesa real, ainda com os restos do leitão assado, da pahua de escabeche, dos pudins quentes de taro e do creme de coco, da fruta-pão, dos inhames, das bananas vermelhas. Em redor da mesa, sentados de pernas cruzadas nas esteiras (com exceção do chefe Paoti Wright, à cabeceira da mesa, na sua cadeira de pés curtos, cada um com trinta centímetros de altura), encontravam-se todos os nove, incluindo aquela que era o corpo que pertencia a esta cabeça dorida.

     A sua cabeça era o olho que tudo via, mas o corpo era a carne esponjosa que embebia na ascensão e na queda as palavras pronunciadas em inglês e em polinesio, os cantos e as palmas dos cantores, o ritmo erótico das flautas e dos instrumentos de percussão de bambu, a fragrância das pétalas multicolores dançando nas amplas bacias de madeira cheias de água, o rumor produzido pelos criados nativos e pelos que comiam no seu vestuário de tapa.

     Fora a combinação de duas bebidas, compreendia Claire, que fizera que sua cabeça se elevasse acima da mesa. Em primeiro lugar, verificara-se a elaborada cerimônia da preparação da Kava, servida em seguida. A verde kava fora trazida pelo chefe num vasto recipiente. A um sinal, cinco jovens, belos, de peito nu, tinham entrado, ajoelhado diante do recipiente e brandido com destreza facas de osso, a fim de tirar a casca da kava e cortar as raízes em pequenas porções. Depois, ao som da música, todos tinham colocado bocados de kava na boca, mastigado com delicadeza, e posto os restos numa tigela de barro. Em seguida, fora colocada água ria tigela e alguém misturara e agitara os ingredientes, e por fim, por meio de um coador feito de fibra de casca de hibisco, o fluido verde escorrera. A kava leitosa fora apresentada a cada um deles numa taça de coco com relevos.

     Claire achara a bebida fácil de engolir e enganadoramente branda. Escutara Courtney explicar que a kava não era uma beberagem fermentada, não embriagando, portanto, quem a consumia. Antes, tratava-se de uma droga, de um narcótico suave que habitualmente estimulava, avivava os sentidos, não afetava a cabeça mas com freqüência embotava os membros. Após a kava, fora servida a Claire uma bebida fermentada, “sumo de palma”, dissera Moreturi, a seu lado. Era uma beberagem alcoólica feita de seiva de palmeira, e tinha o picante do uísque ou do gim. O sumo de palma fora servido com abundância, e, ao contrário da kava, afetara Claire - a cabeça, a vista, o ouvido, o equilíbrio. Misturada, o efeito, para Claire, fora o de um coquetel de drogas. Os sentidos contenderam uns com os outros e separaram-se, alguns elevando-se, outros pairando ao rés do solo, e ela sentiu-se aturdida, contente, docemente alegre. Suas faculdades sensoriais tinham-se apurado. Perdera quase completamente a noção das coisas - a capacidade de distinguir o tempo, por exemplo - mas retivera a capacidade, se bem que leve, de ver, ouvir, cheirar, de sentir; porém, o que percebia através dos sentidos era mais aguçado, profundo, real.

     Tentando, uma vez mais, localizar-se no tempo da noite, Claire procurou ligar a seqüência dos acontecimentos recentes. Isto era difícil, mas pouco a pouco obteve relativo êxito. No escuro, Courtney, com uma camisa esporte branca, aberta no pescoço, calças claras e sapatos brancos, de tênis, chamara-os, acompanhado por Maud. Marc vestia uma camisa azul, trazia gravata e calças de marinheiro, e ela o seu vestido favorito; de seda amarelo-claro, sem mangas, do qual pendia uma pequena jóia incrustada em ouro branco de quatorze quilates que Marc lhe dera no dia do primeiro aniversário do seu casamento. Tinham atravessado juntos o conjunto. O caminho iluminado por tochas acesas na margem do regato e por velas de noz que piscavam através da parede de cana das cabanas. Após uma curta digressão, entraram na grande cabana do chefe, onde 03 familiares deste os aguardavam. Depois de Courtney ter feito as apresentações e de todos se sentarem, entrou o chefe, que inclinava a cabeça á medida que cada um lhe era anunciado.

     Uma surpresa, que não constituiu surpresa, pois Courtney explicara tudo antes. Em vez de sacos púbicos, os dois nativos, o chefe e o filho, Moreturi, traziam amplos saiotes, bem como os criados. E aqui as mulheres não tinham os seios nus nem traziam as saias curtas, mas achavam-se envoltas, em redor do peito e da cintura, em tecido tapa colorido, embora os ombros, as espáduas, as pernas e os pés estivessem descobertos. Seguiram-se os discursos, do chefe e do filho. Depois a música, e a kava, servida de maneira diferente do que lera, tanto por homens como por mulheres; o sumo de palma; os inúmeros pratos - leitão assado tirado do fogão de terra, cheio de pedras aquecidas, e o resto, uma série de iguarias estranhas. Comeram com os dedos, utilizando uma folha para limpá-los e conversaram; o chefe e Maud eram os que se ouviam com mais freqüência, mas Courtney, e por vezes Marc também, intervinham na conversa; as mulheres, essas, mantinham-se caladas, e Moreturi, que só raramente dizia uma palavra, mostrava-se afetuoso e divertido. E serviram mais iguarias. Agora, poi com molho de coco.

     Devem ser dez e trinta, pensou Claire.

     Lentamente, o pescoço contraiu-se-lhe, a cabeça pendeu; porém, esfregou os olhos e olhou em redor da mesa. Comiam com prazer, absortos. À cabeceira da mesa, à sua direita, acima deles na sua ridícula cadeira, achava-se o chefe Paoti Wright, a quem uma adolescente dava de comer. À luz das velas, a sua epiderme, enrugada como pergaminho, parecia mais parda do que a de qualquer dos outros. O seu rosto era ossudo, cavo, e tinha olhos e faces cavados, e boca quase sem dentes. Contudo, o cabelo cortado rente, grisalho já, a vivacidade dos olhos, com sobrancelhas brancas, espessas, o seu inglês, preciso, rápido, mas pouco natural, por vezes arcaico, com freqüência coloquial, a sua importância - refletida nas vênias que lhe faziam e na maneira extremamente cerimoniosa como era servido - conferiam-lhe a dignidade de qualquer monarca, de um rajá indiano, de um presidente de conselho de administração inglês, de um multimilionário grego. Ela calculou que Paoti tinha cerca de setenta anos e que seus modos afáveis dissimulassem a astúcia e a severidade.

     À esquerda dele sentava-se Maud, a seguir Marc, e depois ela, Claire. A seu lado, achava-se Moreturi, o herdeiro. No momento em que pousou pela primeira vez os olhos nele, Claire recordou-se da descrição feita por Easterday: cabelo negro, ondulado, rosto largo com olhos oblíquos, lábios carnudos e faces bronzeadas, musculoso até às ancas e depois delgado. Easterday afirmara: cerca de trinta anos de idade e cerca de um metro e oitenta centímetros de altura. Desde que vira pela primeira vez Moreturi, Claire tentara rever o retrato que fizera dele. Não havia nem um só pormenor que pudesse corrigir, exceto que era menos delgado e um tanto mais corpulento do que supusera. Contudo, parecia diferente do que imaginara, e agora sabia por quê. Classificara-o mentalmente como forte e reservado. Este seria o seu tipo. Para sua surpresa, não era nenhuma destas coisas. A despeito dos músculos, não se parecia com qualquer atleta que vira até ao momento. Uma vez que sua epiderme não tinha um pêlo sequer, gordura ou ruga, havia uma suavidade, uma graça, uma beleza naturais nas formas dele. Contra a sua suposição, descobrira, devido às suas falas ocasionais, às reações manifestadas em face das palavras dos outros, que Moreturi era um perfeito extrovertido. Imaginou que, uma vez fora da presença do pai e do ambiente solene da lesta, poderia ser louco pela folia.

     Automaticamente, como fizera Easterday, Claire procurou comparar Moreturi a Courtney, o seu oposto branco e seu amigo. Ao fazer a transição visual de Moreturi para Courtney os olhos de Claire tiveram de aflorar a mulher que se sentava defronte de Moreturi. Era, de entre todos, a pessoa que conhecia menos bem. Fora apresentada como Atetou, mulher de Moreturi, e não dissera palavra desde que começara a refeição. Evitando os olhos do marido e qualquer resposta aos apartes de Courtney, dedicou-se à comida, às bebidas e a secretos solilóquios.

     Atetou era bela, pensou Claire, mas não atraente. Suas feições, pequenas, regulares, rígidas, eram de um bege semelhante ao marfim. Na sua expressão transparecia uma soturna melancolia, uma constante desilusão, e apesar de ter o rosto endurecido compreendia-se que não poderia contar mais de vinte e oito anos. Parecia a personificação de todas as mulheres que tinham casado cedo, alimentando grandes esperanças e expectativas, para se exasperar com o malogro romântico e econômico do marido. Claire comprimiu os olhos: pobre Atetou, os gracejos do marido não conseguem mais fazê-la rir.

     Por fim, Claire fixou Thomas Courtney. Tencionava compará-lo com Moreturi, como fizera Easterday, mas viu que não havia comparação, similaridade alguma, exceto que pertenciam ambos ao sexo masculino e tinham uma natureza alegre. Courtney era o mais maduro, ajuizou Claire instintivamente. Era uma coisa que nada tinha a ver com mais educação ou com mais anos de vida, com um rosto mais enrugado, experiente ou sábio. O que interessava em especial neste caso era a qualidade do senso de humor de Courtney face ao senso de humor de Moreturi. As piadas de Moreturi eram de adolescente. O ar divertido de Courtney era de adulto, com suas raízes profundas mergulhadas na experiência, na auto-analise, na compreensão, no ajustamento filosófico. Talvez seja um céptico, pensou ela, mas não de todo amargo. Talvez seja sardônico, mas não de todo cruel. Suposições, apenas. Kava, sumo de palma...

     De súbito, Claire compreendeu que contemplava duas pessoas, pois a que se encontrava do outro lado de Courtney, a mulher mais jovem e mais bela à mesa, a sobrinha do chefe, estava inclinada sobre ele, murmurando-lhe qualquer coisa ao ouvido. Ao escutá-la, ele sorria, sorria, e fazia gestos de assentimento com a cabeça. Em dado momento, Claire apercebeu-se de qualquer coisa mais. A sobrinha de Paoti, Tehura, colocara como que por acaso a mão na coxa de Courtney e passava-a suave mas intencionalmente sobre ela. Claire sentiu inveja e pena, inveja de Tehura, pela naturalidade com que conduzia a mão, e pena de si mesma, de si mesma e de Marc, e da sua situação afetiva, que nada faziam para modificar.

     Como se para adquirir conhecimentos sobre esta arte sem arte, simples, natural, Claire examinou Tehura mais cuidadosamente. A sobrinha de Paoti era um verdadeiro encanto. Melville tê-la-ia identificado sem demora como filha de Fayaway; porém, o cruzamento das duas raças acrescentara alguma coisa. A sua perfeição, compreendia Claire, podia ser medida pelo estonteamento sentido por Marc ao ser-lhe apresentado. De manhã, tanto Marc como Orville Pence tinham menosprezado diante de Courtney a beleza das mulheres da Polinésia, tinham-se referido depreciativamente à grossura do seu nariz, do queixo, da cintura, dos tornozelos. Courtney, em resposta, elogiara a sua beleza interior. Se o encanto e a graça das jovens da aldeia, vistas de longe, ao entardecer, tinham já apoiado a refutação de Courtney, a presença de Tehura agora, de noite, como primeira prova, apoiara sua defesa. Claire, contudo, não conseguira ainda distinguir a beleza interior de Tehura, mas o seu físico magnificente era bastante. E certamente fora o suficiente para emudecer Marc. A medida que comia o poi, Claire notava que Marc fitava com insistência a sobrinha de Paoti. Todavia, não sentia ciúmes, ou muito menos do que aqueles que Marc poderia suscitar caso contemplasse, fascinado, uma obra de arte clássica criada por um gênio.

     Tehura afastara-se de Courtney, para terminar a refeição, e Claire tentou localizar as raízes de sua beleza. Por um lado, era uma jovem cintilante: o cabelo cor de azeviche, caído sobre as espáduas, era lustroso; os olhos, grandes e redondos, eram líquidos e vivazes; a carne, esticada, tinha o revérbero luminoso do cobre. As feições, delicadas como as do quadro de Romney, tinham apenas o contraste da linha sensual do pescoço e dos ombros descaídos. O peito, apertado pela faixa de tapa, parecia pequeno, mas o ventre nu e o umbigo, acima do cós da saia, e o perfil das ancas eram mais cheios. Ela não contaria mais do que vinte e dois anos, calculou Claire. Havia outros fatores anômalos. Quando desatenta, a pessoa de Tehura não refletia langor. Quando falava ou falavam com ela, mostrava-se possuída de grande vivacidade. A delicadeza do semblante dava uma sugestão de inacessível virgindade; porém, suas maneiras ousadas, romanescas, quase lascivas para com Courtney desfaziam esta impressão.

     Tehura, depois de acabar o poi, afastou-se um pouco de Courtney para escutar qualquer coisa que a tia, a esposa do chefe Paoti, dizia. A esposa do chefe, Hutia Wright, era uma mulher atarracada e corpulenta. Tinha o rosto redondo e grave e, apesar de contar cerca de sessenta anos, não mostrava uma ruga sequer, e no seu perfil notavam-se ainda traços de beleza juvenil. Falava inglês com a precisão do marido, tinha bem consciência da sua posição (pois media o conteúdo de todas as observações) e servia, como Claire ouvira por acaso, como delegada do marido num dos departamentos de governo mais importantes da aldeia.

     Hutia Wright tinha acabado de falar com Tehura e volvia de novo sua atenção para o marido e para Maud. Tehura, liberta da conversa e das iguarias, circunvagou os olhos em redor dela e interceptou o exame concentrado que Claire fazia. Quase apreciativamente seus dentes luminosos revelaram-se num sorriso. Embaraçada, Claire esforçou-se por retribuir o sorriso; depois, ruborizada, inclinou a cabeça sobre o poi ainda não tocado e procurou automaticamente uma colher; como não visse nenhuma, começou, pouco à vontade, a tomar o que podia com os dedos.

     Com os olhos baixos, concentrados, Claire escutava de novo. Ouviu o bater dos instrumentos de percussão, na divisão contígua. Ouviu o raspar das cascas de coco na mesa. Ouviu, por fim, as vozes em seu redor.

     -... mas a nossa é uma sociedade insular, isolada do mundo exterior devido aos fatores da providência. - Era Paoti Wright que falava. Com a sua voz, fina e melodiosa, prosseguiu. - O sistema resulta tão bem para nós... tão bem... que sempre contestamos ao... ao... Sr. Courtney, como é essa frase jurídica que gosta tanto de empregar?...

     - Violação da propriedade, senhor - volveu Courtney.

     - Sim, sim, a nossa vida é tão serena que sempre resistimos a esta violação. Estou certo de que este isolamento tem também os seus óbices. Talvez sejamos demasiado desenvolvidos interiormente. Talvez sejamos demasiado complacentes. A felicidade em excesso pode enfraquecer a fibra do povo. Para ser forte, combativa, uma sociedade deve ter seus altos e baixos, os seus conflitos. Esta é a combustão do progresso, a sobrevivência na guerra; todavia, Dr.a Maud Hayden, não necessitamos disto, pois não desejamos mais progresso, não temos guerras às quais sobreviver, e não competimos com ninguém fora da nossa pequena comunidade.

     - Não sente curiosidade em saber o que se passa exatamente no mundo exterior? - perguntou Maud.

     - Não muita - respondeu Paoti.

     - Senhor. - Era Marc, e Claire ergueu a cabeça para apoiar o marido. - Gostaria de ampliar a pergunta de minha mãe - tornou Marc. - Apesar de estarem satisfeitos com o que têm, nunca lhes ocorreu que o conhecimento das ilhas mais civi... mais sofisticadas da Polinésia poderia melhorar o nível da sua aldeia? Ou antes, que esta podia lucrar pela adoção das idéias progressistas da América e da Europa? Avançamos muito e depressa desde o século XVIII, sabe?

     O mais leve dos sorrisos aflorou aos lábios do velho chefe.

     - Sei - disse ele. - Avançaram tanto e tão depressa que se encontram à beira do abismo. Mais um passo e... Não me considere arrogante e presumido quando me refiro a seu padrão de vida. Temos as nossas falhas, sim, e nos poderíamos beneficiar muito do seu progresso. Porém, estes benefícios poderiam fazer-se acompanhar de certos prejuízos, que se poderiam sobrepor a eles. Assim, mantemo-nos fiéis a nossos costumes. - Aclarou a garganta. - Quero acrescentar que o mundo exterior não é para nós um mistério completo. Durante um século permitimos que nossos jovens saíssem para o mar nas suas longas canoas e nos seus outriggers, e eles tocaram com freqüência em ilhas muito próximas sem nunca revelar de onde vinham. Uma vez por outra isto ainda se faz, como prova de capacidade e força. Contudo, voltam sempre, com muita satisfação, a esta ilha, trazendo extensos elementos sobre as ilhas mais progressistas da Polinésia. Em algumas ocasiões, no passado, pessoas da sua própria raça vieram até aqui, e o que revelaram alargou consideravelmente nossos conhecimentos sobre o mundo exterior. Por seu lado, o Capitão Rasmussen, que não é com muita freqüência um observador profundo, esclareceu-nos mais, e o Sr. Courtney tem sido pródigo em informações sobre o seu próprio país. Admiramos muito a tecnologia desse lugar chamado América. Porém, admiramos menos o padrão de vida originado por essa tecnologia, e pelos seus costumes.

     Claire notou a inquietação de Marc durante todo o discurso de Paoti. Agora, falava controlando o tom de voz.

     - Não sei o que o Sr. Courtney disse acerca de nossa cultura, senhor. Cada um de nós tem preconceitos e pontos de vista pessoais, e talvez a América de que ele falou não seja a mesma América que minha mãe e eu poderíamos descrever.

     Paoti ruminou isto, sacudindo lentamente a cabeça grisalha.

     - É verdade, sim, é verdade. Contudo, espanta-me. - Voltou a cabeça, de Marc para Maud. - Como sabe, Dr.a Maud Hayden, sentimos orgulho no êxito duradouro do nosso sistema de relações entre os sexos. Todos participamos de suas gratificações. É a essência da nossa felicidade. - Maud inclinou a cabeça num gesto de aprovação, mas não interrompeu. - O Sr. Courtney elucidou-me acerca do seu sistema. Talvez o Sr. Courtney tivesse colorido os fatos com sua personalidade, como o Dr. Hayden sugere. Por outro lado, se o que ouvi se aproxima da verdade, isso espanta-me. É verdade que suas crianças não recebem educação prática sobre a arte de amar antes da maturidade? Ê verdade que a virgindade é muito admirada nas mulheres? É verdade que um homem casado não deve fruir os prazeres proporcionados por outra mulher, e que, se isso acontece, tudo se passa habitualmente no meio do maior segredo, sendo esse ato designado como adultério e olhado com certa desaprovação pela lei e pela sociedade? É verdade que não existe um método organizado para a sexualidade satisfazer um homem ou uma mulher insatisfeitos pela prática do ato do amor?

     - É verdade - disse Maud.

     - Então, acredito que seu filho teria muito pouco a acrescentar ao que o Sr. Courtney nos contou.

     Marc inclinou-se para a frente.

     - Um momento... O que eu...

     Maud não fez caso da intervenção do filho.

     - Há mais alguma coisa a dizer, chefe Paoti - afirmou ela -, mas tudo aquilo a que se referiu é autêntico.

     Paoti fez um gesto de assentimento.

     - Então, existe muito pouca coisa na sua sociedade que poderíamos adotar. Por outro lado, trata-se de sua maneira de viver, e eu respeito-a. Talvez a prefiram a qualquer outra coisa, sim. Porém, Dr.a Hayden, à medida que descobrir a nossa maneira de viver gostaria que me dissesse o que pensa dela, e que a comparasse, em todos os seus pormenores, com os costumes da sua pátria. Afirmei que não era grande a minha curiosidade quanto ao que se passa no mundo exterior. Isto é um fato. Contudo, sinto orgulho do meu povo, do nosso sistema, e terei interesse em ouvir seus comentários.

     - Dar-me-ão grande prazer essas conversas - volveu Maud.

     Claire, com a cabeça cada vez mais leve devido às libações e às interferências das palavras de Paoti, inclinou-se de súbito para a frente e exclamou:

     - Sr. Courtney...

     Courtney voltou-se para ela surpreendido.

     - Diga-me - prosseguiu Claire -, o que contou, real1 mente, sobre as relações entre os sexos na América. - Ela afastou as costas para trás, expeçtante; não sabia o que a impelira a falar, mas sorria, contudo, a fim de que ele compreendesse que, aqui, não era uma aliada de Marc.

     Courtney encolheu os ombros.

     - Contei tanta coisa...

     - Por exemplo - persistiu Claire -, mencione qualquer coisa relevante da nossa vida sexual que seja diferente daqui. Mencione uma só. Estou cheia de curiosidade.

     Courtney fixou o olhar na mesa, durante uns momentos. Depois, tornou a erguer os olhos.

     - Muito bem - disse. - Vivemos numa panela de pressão, o que não sucede aqui.

     - Que quer dizer com isso?

     - Que existem muitas inibições sexuais na nossa pátria, das quais resultam a malícia, as palavras obscenas, o puritanismo, o isolamento, o culto do seio, etc.

     - Para as mulheres, talvez - retorquiu Claire -, mas não tanto para os homens. Para eles, tudo é mais fácil. - Notou que Tehura e Hutia Wright a escutavam com interesse; assim, disse, voltando-se para elas: - Os homens têm menos problemas na nossa sociedade porque...

     Sentiu a mão de Marc no braço.

     - Claire, isto não é lugar para...

     - Marc, este tema fascina-me. - Fitou Courtney uma vez mais. - Sinto-me absolutamente fascinada. Não crê que tenha razão?

     - Bem - volveu Courtney -, falei ao chefe sobre a nossa moralidade como um todo, sobre a nossa sociedade...

     - Afirmou que os homens estão sujeitos a menos pressão?

     - Não me referi exatamente a isso, Sra. Hayden, porque não tenho certeza de que seja verdade.

     - Não? - volveu Claire. Não se mostrava desconcertada mas tinha um intenso desejo de saber o que ele pensava. - Durante toda a história do Ocidente, os homens impuseram a castidade às suas mulheres, não se coibindo, porém, de procurar aventuras amorosas. Ainda hoje o fazem. Fruem o prazer de que são capazes enquanto as mulheres... - Abriu as mãos em alegre desespero.

     - Se realmente deseja minha opinião... - disse Courtney. Olhou em redor, como que pedindo desculpa, e viu que todos faziam incidir a sua atenção sobre ele.

     - Por favor, Sr. Courtney, prossiga - interveio Maud.

     - Já que pede... - retorquiu, com um sorriso rasgado. Subitamente, porém, mostrou uma expressão solene. - Creio que a Sra. Hayden tem razão acerca de uma coisa. Desde o tempo das cavernas, até à época vitoriana, os homens impuseram sempre suas conveniências. Na verdade, o mundo pertencia-lhes. As mulheres eram apenas seus vassalos em tudo, inclusive no amor. O objetivo último de um casal consistia na plena satisfação do homem. A mulher servia unicamente pára dar prazer, não para o partilhar. Se ela própria também o fruía, isso não passava de uma coisa acidental. Era assim que tudo decorria noutros tempos.

     A medida que escutava, o torpor de Claire ia-se desvanecendo, e ela tentou refletir no que Courtney afirmava. Sem fazer ruído, um criado aproximou-se, por trás, oferecendo uma nova bebida de sumo de palma numa casca de coco. Automaticamente, Claire aceitou-a.

     - Crê que alguma coisa se modificou? - perguntou ela a Courtney.

     - Creio que muita coisa se modificou, Sra. Hayden - volveu Courtney, passado um momento. - Em dada altura, entre Freud e Woodrow Wilson, surgiu a era da emancipação, do liberalismo, da confissão. Os homens concederam a igualdade às mulheres, tanto privada como publicamente. Isto passou da urna dos votos e do escritório para o quarto de dormir. As mulheres ganharam não só o voto como também o direito ao orgasmo. Apreciaram a sua descoberta e introduziram-na em todos os ouvidos, usando-a como medida de felicidade. Do dia para a noite, parece, as mesas foram viradas. Os homens, que tinham imposto sua vontade durante muito tempo, tiveram de começar a satisfazer as mulheres, além de serem por elas satisfeitos. Tiveram de reprimir suas inclinações naturais, inibi-las, a fim de se mostrarem generosos. De um momento para o outro o prazer primitivo foi condicionado. Era isto que tinha em mente quando me referi à pressão a que estava hoje sujeito o macho da nossa sociedade.

     Durante toda a fala, Claire inclinara constantemente a cabeça, aprovando. Agora, porém, sua atenção foi desviada pelo chefe Paoti, que se dirigia a Maud.

     - Dr.a Maud Hayden - disse Paoti -, concorda com a observação do Sr. Courtney?

     - Mais ou menos - volveu Maud. - A observação do Sr. Courtney tem validade, mas parece-me muito simplificada. Por exemplo, equaciona a virilidade do macho com a sua capacidade para levar a mulher ao orgasmo. Não creio que isto constitua um critério válido na América, na Inglaterra, ou na Europa em geral. As opiniões de nossas mulheres quanto à virilidade do homem são as mais díspares. Se é um bom provedor de bens, seguro, digno, de confiança, de preferência a um magnífico amante, ele pode ser considerado um homem autêntico. Num nível diferente, um outro que tenha riqueza, poder ou prestígio, verificará que tudo isto é um verdadeiro substituto da virilidade conferida pela capacidade de originar o orgasmo.

     Paoti voltou-se para Courtney.

     - Uma interessante ilustração do seu ponto de vista, não acha?

     Courtney concordou.

     - Absolutamente, Dr.a Hayden - retorquiu ele. - Os homens ricos ou famosos estão isentos desta pressão moderna. Se se mostram incapazes de dar prazer sexual são, contudo, capazes de fornecer outros prazeres ainda mais valiosos na nossa sociedade. Vou até ao ponto de afirmar que as classes mais elevadas e mais baixas do estrato social sofrem menos pressões do que a classe média. Os indivíduos das classes mais elevadas dispõem de outros meios para satisfazer suas mulheres. Os das classes mais baixas são geralmente demasiado pobres e indiferenciados para se preocuparem com o orgasmo mútuo. Nas mulheres sujeitas à pobreza o desejo da segurança básica sobrepõe-se ao do orgasmo, e o companheiro que possa garantir esta segurança é por elas considerado um verdadeiro homem. Estas mulheres aspiram primeiro do que tudo à satisfação econômica. A outra é considerada um refinamento da ociosidade.

     - Mas a classe média? - perguntou Paoti.

     - Quanto a esta, a pressão exercida sobre os homens é constante - respondeu Courtney. - O homem desta classe, situado entre as outras classes econômicas, se suficientemente instruído para reconhecer a existência desta posição social, se possuidor de disponibilidades bastantes para efetuar seus pagamentos, mas sem riqueza ou prestígio e a obsessão pelo pão como substitutos da virilidade, é o elemento masculino da nossa sociedade submetido a maior pressão. Na intimidade, tem de não se esquecer daquilo que os livros dizem ser o padrão conveniente, de se mostrar atencioso e cordato; por vezes é bem sucedido, mas quase sempre os malogros são em maior número do que os êxitos, acompanhando-o constantemente a noção de que a vida não é tão agradável para ele como costumava ser para seus avós. Esta nostalgia pelo passado, segundo penso, por vezes explica a existência das prostitutas, das call girls, que satisfazem as exigências dos homens da classe média e da classe média superior. Estas jovens fazem as vezes das jovens vassalas de outros tempos. Dão prazer, mas não o pedem, e como retribuição desejam apenas uma utilidade impessoal, uma pequena prenda ou algum dinheiro.

     Durante uns momentos, com exceção da música distante, a grande sala de cana e bambu esteve mergulhada em completo silêncio. Claire sorveu um pouco de sumo de palma, e perguntou-se como encaravam os anfitriões nativos esta conversa, que considerava agora certa na sua maior parte. Decerto, pensou, Courtney omitira as mulheres, o tédio e a insatisfação da maioria das mulheres casadas, as causas de tudo isto e os problemas respectivos. Quem dissera que a tragédia final do casamento é a indiferença? Maugham, sim. A tragédia final do amor, a indiferença. Claire pensou se devia ou não tocar no assunto; após uns instantes de reflexão decidiu não o fazer devido à presença de Marc, tão inquieto a seu lado. Porém, baixando a tigela de casca de coco, resolveu descobrir o que Courtney deixara ainda por dizer acerca das pressões dos homens.

     - Sr. Courtney, eu... o senhor falou apenas da situação do homem na América, no Ocidente...

     - Sim.

     - Os homens não estão submetidos exatamente às mesmas pressões em todas as partes da Terra, e mesmo aqui, nas Sereias?

     - Não. Nem também as mulheres.

     - Por quê?

     Courtney, hesitante, fitou de relance o chefe Paoti, que estava sentado, curvado, acima de todos eles.

     - Talvez o chefe Paoti esteja melhor qualificado para... Paoti acenou com sua mão frágil, escusando-se.

     - Não, não, Sr. Courtney, o senhor é mais eloqüente, mais capaz de explicar a nossa maneira de viver a seus compatriotas.

     - Muito bem - respondeu Courtney. Seus olhos, sérios, passaram de Maud para Marc e para Claire. - Falo baseado na minha experiência de quatro anos entre este povo. As pressões referidas não se verificam nas Sereias devido ao modo como as pessoas são educadas, a seus costumes tradicionais. Tudo isto contribui para uma atitude mais saudável, mais realista, em face do amor e do casamento. Nos Estados Unidos ou na Inglaterra, por exemplo, nossas proibições quanto ao sexo criaram um Interesse excessivo e pervertido nele. Aqui nas Sereias, as proibições são tão diminutas, as considerações sobre o sexo tão naturais que este se tornou uma parte normal e aceitável do dia-a-dia. Aqui, quando uma mulher sente1 desejo de comer, come, e não vê nada de mal ou especial nisso. Da mesma maneira, quando sente desejo de amar, ama. Eis tudo. E o mais importante é que o amor não lhe provoca culpa ou vergonha. Nas Sereias, as crianças começam a conhecer o amor na escola, não só em teoria como também na prática, de maneira que seus conhecimentos sobre este tema não são inferiores aos conhecimentos que adquirem sobre a história ou a linguagem. Os jovens, ao crescerem, não experimentam uma ávida curiosidade quanto ao sexo, pois nada lhes foi escondido. Nem tampouco têm repressões. Se um jovem deseja uma mulher, ou uma jovem um homem, nenhum deles se vê frustrado. E o coito pré-matrimonial é alegre, apaixonado mas alegre, um grande ato desportivo, uma vez que não existem tabus que criem culpa ou inquietação ou a necessidade de o praticar às escondidas e de ter receio dele. No casamento, qualquer das partes é satisfeita, caso o deseje; a comunidade garante isto. E tanto os viúvos como os solteiros de ambos os sexos encontram maneira de satisfazer sem dificuldade seus apetites. Não existe aqui homossexualismo, violência, estupro, aborto, palavras obscenas escritas nas paredes das latrinas, adultério, desejos secretos e sonhos eróticos por realizar, pois os costumes polinésios foram preservados e melhorados pelas idéias liberais de Daniel Wright. As práticas do sexo, do amor e do casamento são sinônimos de contentamento nas Três Sereias.

     - Essas práticas podem também ser satisfatórias nos Estados Unidos - disse Marc friamente.

     - Estou certo de que o podem ser e de que por vezes são - replicou Courtney. - Porém, baseado na minha experiência de advogado e nas minhas leituras, penso que, na América, são menos agradáveis do que deviam ser. Uma vez que tenho vivido nestas duas sociedades contrastantes, creio que o mais incrível é o seguinte: nós, nas chamadas nações civilizadas, apesar de toda a nossa extraordinária aprendizagem, do ensino, da educação, de todas as nossas comunicações e conhecimentos nos mais variados campos, das nossas máquinas de lavar e secar, das máquinas que nos examinam as entranhas, das máquinas que lançam um indivíduo para além do alcance da gravidade, não inventamos a máquina simples, ou melhoramos a máquina humana, que nos permita educar sensatamente as crianças, fazer casamentos felizes, desoprimir a vida. Contudo, aqui, nesta ilha remota, onde não existe uma só máquina, um terno ou um vestido, e talvez nem sequer um livro- onde órbita, gravidade, raios X e jato são palavras sem significado, o povo foi capaz de criar e perpetuar uma sociedade onde as crianças e os pais são maravilhosamente felizes.

     “Um último ponto. Embora sejam, emocionalmente, os mais complicados de todos os mamíferos, os humanos são, todavia, na união sexual, os mais simples. Um é côncavo, o outro convexo. Quando se juntam verifica-se prazer automático e por vezes procriação. Contudo, no Ocidente, não dominamos os caprichos, as sutilezas, da natureza. De certo modo, juntamos o côncavo e o convexo e, embora muitas vezes o resultado seja a procriação, raramente é o prazer. Apesar de toda a nossa sapiência, progresso, gênio, não resolvemos este problema primordial de todos os povos da Terra. Contudo, aqui, nesta nesga de terra do Pacífico, cerca de duzentos brancos-pardos, quase nus, semiletrados resolveram-no. Penso que, no fim destas seis semanas, concordarão comigo... - Voltou-se, de Paoti e de Maud, para Claire. - Peço que me perdoe o meu longo discurso, Sra. Hayden. Isto fará que aprenda a não me interrogar sobre o meu tema favorito. Falei mais esta noite do que nos últimos quatro anos. Atribuo este fato à kava, à kava e ao sumo, e a um crescente desejo de me tornar um missionário.

     Os olhos nublados de Claire alargaram-se.

     - Um missionário?

     - Sim. Desejo conduzir um grupo de sacerdotes sagrados, das Sereias, até Nova York e Roma, a fim de converter os gentios aos princípios da natureza.

     Claire fitou o marido, apertando os olhos para pô-lo em foco.

     - Vamos nos converter, Marc.

     - Mais devagar, querida - volveu Marc. - Não quero comprar gato por lebre. O Sr. Courtney talvez tenha exagerado, utilizando umas certas liberdades poéticas para elogiar este lugar e seu povo.

     Marc está furioso, pensou Claire. É por isso que fala tão alto. O rosto de Marc, porém, não denunciou a cólera que o possuía quando voltou a dirigir-se à mulher, mas falando para todos o ouvirem.

     - Afinal, deixaria o Sr. Courtney a sua pátria durante tanto tempo se não estivesse descontente? E sua permanência aqui não lhe teria feito perder a perspectiva das coisas?

     Marc fitou Courtney, cuja expressão traduzia completa calma e passividade.

     - Sr. Courtney - tornou ele -, não me interprete mal. Estou repetindo agora apenas o que disse esta manhã. Marinheiros, durante muito tempo no mar, aportaram frustrados e sedentos de prazer a estas ilhas achando-as portanto mais aprazíveis e encantadoras do que realmente são. Não lhe estou chamando de romântico. Não pretendo estabelecer uma discussão. Mas, como sabe, sou um cientista social, como o são a maior parte dos componentes do grupo, e gosto de julgar todos os fenômenos à luz de padrões científicos imparciais, onde a emoção não conta.

     - É bastante claro - retorquiu Courtney.

     Durante toda a discussão, as mulheres nativas não tinham pronunciado sequer uma palavra; continuaram sentadas, como imagens gravadas. Agora, porém, Tehura sacudiu seus longos cabelos negros, ergueu-se sobre os joelhos e tomou o braço de Courtney.

     - Não é suficientemente claro, Tom! - exclamou ela. Fitava diretamente Marc, que se encontrava do outro lado da mesa. - Não é necessário o estudo científico de que fala. É tudo verdade... quanto à América não sei... no que diz respeito às Sereias, Tom descreveu com exatidão a maneira como vivemos. Uma vez que pertenço a este povo, posso apoiar sem hesitação suas palavras.

     De súbito, Marc mostrou-se todo galanteria.

     - Jamais discordaria de uma bela jovem - disse ele.

     - Então, deve escutá-la durante alguns momentos. Contar-lhe-ei uma encantadora história acerca de Thomas Courtney e de Tehura Wright.

     Impassível, Marc cruzou os braços; um sorriso artificial animou-lhe o rosto. A cabeça de Maud estava inclinada na atitude devota do antropólogo face ao informante. A expressão de Claire, todavia, refletia a sua excitação interior, como se ela esperasse que o pano subisse para a representação de um drama que revelaria a verdade sobre o enigmático Courtney.

     Tehura, com o braço metido no de Courtney, começou a contar, com veemência, a sua história:

     - Quando chegou aqui Tom não era a pessoa que hoje vêem. Parecia ter uma alma diferente. Era... bem, não conheço palavras suficientes para o descrever... um homem triste e... Tom, que costumava você dizer nesse tempo?

     Courtney mirou-a com afetuosa indulgência. Depois, revelando quanto o divertia interiormente a digressão de Tehura, disse:

     - Era um Ulisses que perdera completamente o norte, quase esfarrapado, mas com as fitas das condecorações conquistadas nas batalhas de Ogigia, Ilium, Aeolia e outras Madison Avenues guardadas nos bolsos das calças. Pensara, uma vez que nenhuma Penélope o esperava, que não havia razão para voltar a ítaca. Assim, conseguira desamarrar-se do mastro do seu barco, escutara as Sereias e sucumbira a seus encantos. Um deus maléfico tornara-o permeável à fadiga, à profunda melancolia, à apatia, ao cepticismo e à descrença. Ele ofereceu-se às Sereias porque estava cansado da viagem, e orou para que elas lhe dessem a energia suficiente para prosseguir a jornada... ou ficar.

     Tehura apertou o braço de Courtney.

     - Exatamente - disse. Uma expressão secreta perpassou pelos olhos de ambos, e depois Tehura volveu a sua atenção para os outros, uma vez mais. - Quando ele foi conduzido à. aldeia e se tornou um dos nossos a sua melancolia desvaneceu-se. Viveu conosco animado pela curiosidade. Desejou conhecer tudo o que fazíamos e por que o fazíamos. Como a música, a nossa vida era rítmica, fluente, e muitos meses depois Tom desembaraçou-se das suas velhas idéias da maneira como se desembaraçara das suas roupas quentes, e começou a mostrar-se vivo, apaixonado. Desejei-o a partir do primeiro momento em que o vi, e quando ele principiou a compreender-nos decidi revelar-lhe o meu amor. Foi então que descobri que ele sentia verdadeira paixão por mim. Tornamo-nos imediatamente amantes. Foi muito belo, não é verdade, Tom?

     Courtney tocou a mão dela.

     - Sim, Tehura, muito - respondeu.

     - Mas não imediatamente - disse Tehura para os outros. - A princípio, ele não era bom, na união sexual. Era demasiado formal, muito desajeitado...

     Courtney, com os olhos fixos na mesa, interrompeu.

     - Eles podem compreender, Tehura. Falamos das pressões existentes nas relações amorosas na minha pátria... para ambos os sexos, grande parte delas resultado de uma mistura de álcool e de drogas, de hostilidade e de culpa, de ansiedade e de medo.

     - Mas eu era diferente, pois não sofrerá de tais males, e conhecia a felicidade que se frui nas relações de amor - disse Tehura para os Haydens. - E assim ensinei a Tom o que tinha aprendido, a sentir prazer nos divertimentos do sexo, sem se ter o espírito e o corpo pesados, a ser natural como as ondas que se erguem e tombam, e livre como o vento que sopra através da floresta. Muitos meses passaram, e sentimos a ternura, a paixão; vivemos longos momentos de intimidade absoluta, na nossa cabana...

     Marc fitava-a com um ar estranho.

     - Então são casados - disse ele. O rosto de Tehura transformou-se.

     - Casados? - exclamou ela com alegria. - Oh, nunca! Nem nos casaremos, pois não somos um para o outro, de muitas maneiras. Amamo-nos apenas fisicamente, até que no ano passado tudo terminou. Estou saciada do corpo de Tom, e ele está saciado do meu. Já não necessitamos de fazer amor um com o outro. Além disso, sinto-me apaixonada por Huatoro, e esse é o meu futuro. Eu e Tom já não somos amantes, mas continuamos amigos. Quando estou preocupada, vou à sua cabana, falo e ele fala, e aconselha-me. Quando ele precisa de novos esclarecimentos acerca do meu povo, vem à minha cabana, sentamo-nos, comemos taro, e falamos do meu povo e do povo dele. Contei-lhes o que se passou entre mim e Tom porque me orgulho de nos termos um dia amado. Quando me referi pela primeira vez, na aldeia, à nossa ligação ele ficou surpreendido. Disse que no seu país, uma mulher não revela suas ligações sexuais a toda gente quando solteira. Porém, depois aprendeu conosco que isso nada tem de mal, e que somos felizes e sentimos orgulho.

     - Também sinto orgulho, Tehura - disse Courtney calmamente.

     Paoti tossiu.

     - Já falamos bastante, para o nosso primeiro encontro. Está ficando tarde. É tempo de começarmos a cerimônia do rito da amizade.

     Paoti procurou com os dedos a bengala de madeira que estava apoiada à sua cadeira. Depois, ergueu-se e bateu com ela duas vezes na mesa. Em seguida apontou a bengala para a plataforma, para lá de Moreturi e Atetou.

     Todos se voltaram para observar a plataforma. Claire, que mirava Tehura e Courtney, viu que Maud e Marc a fitavam, e tentou ler nos seus rostos familiares. Obviamente, Maud sentira prazer em escutar a narrativa franca, simples e desinibida de Tehura, e descobrira um material rico para seu estudo. O rosto de Marc estava cerrado, isto, como Claire imaginava, devido à sua crescente aversão por esta gente aberta, simples. A própria Claire tentou definir sua reação em face da confissão de Tehura. Sentiu apenas inquietação e inferioridade. Era uma emoção por vezes experimentada em reuniões mundanas em Santa Bárbara ou Los Angeles, quando outro casal fazia algumas alusões veladas à sua vida sexual, sugerindo que era superior à de todos os outros. Claire experimentava agora esta emoção. Eles tinham magia, e ela nenhuma. Eles eram saudáveis, e ela estava paralisada. Sofria muito mais por Marc, um ser muito mais vulnerável. Por fim, afastou Tehura de seu espírito.

     Uma jovem alta,. delgada como uma estatueta, de cerca de dezenove anos, surgira subitamente no meio da plataforma. Estava imóvel, os braços estendidos, as pernas bem afastadas. Duas grinaldas reluzentes de hibisco pendiam-lhe do pescoço e cobriam-lhe parcialmente os seios jovens e pequenos. Da cintura, estavam suspensas duas tiras curtas de tapa branca, uma defronte das pernas, outra detrás; os quadris e as coxas achavam-se nus.

     Os instrumentos de percussão e de sopro encheram a sala de sons. Quando o volume e o ritmo da música começaram a crescer, a jovem alta e bronzeada que se encontrava na plataforma principiou a mover-se, mas sem deixar seu lugar, permitindo que tudo, exceto os pés nus, se animasse. Suas mãos, ondulantes como uma serpente, acariciaram o ar, e seu rosto e seu corpo começaram a vibrar. Decorridos alguns momentos toda ela era movimento vivo e sensual. Os olhos dançavam-lhe nas órbitas, a boca abria-se e fechava-se, os pequenos seios tremulavam, colados às flores, despontavam delas, o ventre sacudia-se, as ancas sedutoras pareciam voltear. A princípio, suas ondulações eram lentas; porém, gradualmente, adquiriu ritmo, e começou a ser possuída pelo êxtase carnal, por fim, explodiu no ar e tombou curvada sobre a plataforma.

     A dançarina estava no palco, sobre as costas, elevando as pernas e o dorso. Fascinada, Claire compreendera o que ela representava, o violento êxtase do amor realizado; seguia-se agora a procriação, as dores do parto que originariam o nascimento da amizade.

     Os músculos pélvicos, quase a descoberto, comprimiam-se, distendiam-se e elevavam-se, ante o ritmo da música. Claire apertou os braços um contra o outro, sentiu a boca seca, a garganta latejar e o desejo percorrer-lhe o corpo. A embriaguez, os olhos umedecidos fizeram com que a cena se turvasse, e desejou este símbolo no palco, e um homem, um homem, não importa qual, que a desejasse, que a penetrasse e depositasse em si a semente de uma nova vida. De súbito, como a música parasse e a dançarina se erguesse, firme e gelada, Claire escutou as palpitações do seu coração e manteve-se retesada, reprimindo a excitação.

     A dançarina estava imóvel uma vez mais. Dois jovens, ' que transportavam uma caixa de madeira exalando vapor, ergueram-na e colocaram-na na plataforma, diante da dançarina. E de novo Paoti bateu com a bengala no tampo da mesa.

     - Dr.a Maud Hayden - disse ele -, atingimos a fase final do nosso tradicional rito da amizade, um rito poucas vezes celebrado nos últimos séculos. Uma mulher do nosso sangue e outra do seu terão de ascendei à plataforma, e colocar-se ao lado da dançarina. Tirarão o vestuário da parte de cima do corpo e conservarão os seios nus para a unção sagrada que juntará os nossos povos em amizade e removerá o tabu contra os estrangeiros. Para representar o nosso sangue, designo a jovem que é filha do meu falecido irmão, aquela conhecida por vocês como Tehura.

     Tehura inclinou a cabeça para Paoti, descruzou as pernas, pôs-se graciosamente de pé e subiu à plataforma, colocando-se ao lado da dançarina.

     Paoti dirigiu-se de novo a Maud.

     - E qual a mulher do seu sangue que designa para representá-los?

     Maud mordeu os lábios, pensativa, e volveu.

     - Representarei eu a minha família e o nosso grupo.

     - Matty, por amor de Deus... - disse Marc.

     - Não seja tolo, Marc - volveu Maud, ríspida. - Quando, na companhia do seu pai, estive anteriormente no campo participei de ritos similares em diversas ocasiões. - Voltou-se para Paoti. - Estamos familiarizados com os ritos da aceitação em todas as culturas. Proferi uma vez uma conferência sobre os mylittas, os quais, para simbolizar a integração de um visitante no seio da tribo, oferecem uma das suas jovens mulheres. Quando dá testemunho a seu amor, ela recebe uma moeda; depois desta troca, nasce a amizade.

     Nervosa, Maud começou a erguer-se, mas Marc de teve-a.

     - Com os diabos, Matty, não permito que se levante. Uma das outras...

     Maud manifestou-lhe o seu desagrado.

     - Marc, não sei o que passou por sua cabeça. Isto é um costume tribal.

     Tonta, e em face do desacordo entre ambos, Claire sentiu de súbito vergonha pelo marido e por si mesma. Contudo, sabia que não podia permitir que Maud subisse à plataforma e descobrisse os seios pendulares, tocados pela velhice. Compreendeu que era ela, Claire, contraparte de Tehura, quem devia participar no rito. A idéia empolgou-a, e com a kava e o sumo de palma correndo dentro de si, como um regato, pôs-se de pé.

     - Ocuparei seu lugar, Maud - ouviu-se dizer. Vacilante, dirigiu-se para a plataforma. Marc procurou retê-la, mas não o conseguiu; o gesto que esboçou, porém, fê-lo tombar sobre a esteira.

     - Claire, não seja tonta - bradou ele.

     - Desejo participar da cerimônia - volveu ela. - Quero ser amiga deles.

     Uma vez na plataforma, cambaleou, mas esforçou-se por recobrar o equilíbrio, e volvido um momento achava-se ao lado da dançarina imóvel. Circunvâgou os olhos pelo círculo de rostos, embaixo, e viu que Moreturi aprovava, Marc exalava cólera e Maud manifestava preocupação. Todavia, Paoti e Courtney não revelavam qualquer emoção.

     A dançarina alta voltara-se para Tehura e desapertava lentamente a faixa de tapa que lhe cobria o peito. O tecido, uma vez liberto, caiu para o solo. Com a remoção da faixa, os seios de Tehura pareceram irromper do peito. Claire tentou não olhar, mas a curiosidade consumia-a. Tinha de saber o que Tehura, que conhecia os segredos do amor, oferecera a Courtney. Do canto de um dos olhos observou o que se passava junto dela. Pôde ver que os ombros descaídos e luminosos da jovem nativa tinham cumprido a sua promessa, pois fundiam-se sem um vinco ou uma ruga nas duas elevações curvas dos seios rígidos e alvos com pronunciados botões vermelhos.

     A dançarina encarava Claire; surgira o momento temido. Porém, para seu alívio, apercebeu-se de que o medo não a possuía, e compreendeu sem demora por quê. Porém, antes que pudesse entregar-se a novas reflexões, verificou que sua assistente precisava de auxílio. A dançarina de epiderme parda desconhecia por completo os mistérios do vestuário ocidental. Claire inclinou a cabeça, compreensiva, e levou a mão- atrás das costas; depois, desapertou o topo da blusa amarela, puxou o fecho e desembaraçou-se da metade superior da sua indumentária, a qual tombou para a cintura. Trazia seu novo soutien transparente e rendado, e sentia-se satisfeita por isso. Rápida, levou uma vez mais as mãos atrás das costas e abriu-o; em seguida deixou cair as mãos, colou-as nos quadris e aguardou. A assistente compreendeu, pegou imediatamente nas fitas soltas do soutien e puxou-as ao longo dos braços de Claire, que ficou completamente nua até à cintura.

     Com o corpo bem ereto, rígido, Claire viu Tehura, que invejara, fitá-la com admiração. Compreendeu, então, por que não sentira medo. Num mundo onde as glândulas mamárias protuberantes, a sua capacidade, o seu contorno, constituíam marcas da beleza feminina, ela pareceria altamente favorecida. O tamanho, o arco, a firmeza dos seios, a circunferência dos botões castanhos, agora macios, acentuados pela cintilação da jóia que tombara no meio do rego profundo entre eles, representavam a sua feminilidade, constituíam a sua propaganda do amor. Isto revelado, não se sentia mais inferior a Tehura, mas sua igual, e talvez os que se encontravam embaixo a considerassem mesmo superior.

     A jovem assistente tinha ajoelhado, mergulhado as mãos na tigela e feito o óleo quente elevar-se. Após derramar algum nas mãos abertas de Tehura, e de Claire, depois, fez-lhes sinal, convidando-as a aproximarem-se, a fim de se debruçarem sobre a tigela da amizade. Tehura estendeu as mãos e, com leveza, aplicou o óleo sobre o topo dos seios de Claire. Esta compreendeu que esperavam o mesmo dela, passou o óleo sobre os seios de Tehura. À jovem nativa sorriu, e deu um passo atrás. Claire imitou-a imediatamente.

     A jovem assistente disse, com voz melodiosa, uma palavra em polinésio.

     O chefe Paoti bateu com a bengala na mesa e, trêmulo, ergueu-se.

     - Está feito - anunciou. - Sejam bem-vindos à aldeia das Três Sereias. A partir deste momento, a nossa vida é a sua vida, como se fôssemos todos do mesmo sangue.

    

     Quinze minutos mais tarde - era quase meia-noite - Claire atravessava, ao lado de Marc, a aldeia obscurecida e adormecida. A única iluminação era provida pelas poucas tochas que tremulavam de cada lado do regato.

     Desde que se vestira, que dissera adeus aos anfitriões e entrara no conjunto - Maud vinha um pouco atrás com Courtney - Marc não a fitara uma só vez nem pronunciara sequer uma palavra.

     Caminhavam em silêncio.

     Quando chegaram à cabana, ela deteve-se e notou rugas produzidas pela cólera no rosto do- marido.

     - Detestou-me esta noite, não é verdade? - perguntou de súbito.

     Os lábios de Marc moveram-se, mas ele não disse uma palavra ainda desta vez. Passados alguns momentos, porém, as palavras jorraram-lhe rápidas mas entrecortadas.

     - Detesto toda a gente... Detesto todos os que se embriagam... e que provocam conversas nojentas sobre o sexo... e quem se comporta como uma prostituta sem-vergonha.

     No meio da noite suave como seda as palavras duras do marido penetraram-na dolorosamente como aguilhões. Manteve-se de pé, trêmula, envergonhada dele, profundamente envergonhada. Jamais, em quase dois anos de casados, Marc falara com uma fúria tão insólita. Suas palavras de crítica eram sempre submetidas a rígido controle, e quando as escutava Claire procurava evitar sempre a controvérsia. Mas agora, neste terrível instante da noite, tudo o que acontecera, tudo o que vira, ouvira e bebera apoiava-a, permitia que se mostrasse pela primeira vez tal como era, que exprimisse por fim seus sentimentos.

     - E eu - disse em voz baixa, sem receio - detesto todo aquele que se revela um pedante ignominioso.

     Esperou, com a respiração suspensa, que ele a esbofeteasse, mas compreendeu, decorrido um momento, que o marido era demasiado fraco para o fazer. Em vez de esbofeteá-la, lançou-lhe um olhar de aversão e, voltando-lhe as costas, entrou na cabana.

     Claire continuou onde estava, trêmula. Por fim, tirou um cigarro do bolso do vestido, acendeu-o e começou a caminhar, lentamente, em direção ao regato. À medida que passeava em ambos os sentidos, da cabana até ao regato e deste até aquela, escoaram-se os minutos. Recordou a sua vida antes de Marc e depois de Marc, imaginou Tehura com Courtney, reviu o rito da aceitação, e depois os antigos sonhos e as mais caras esperanças. Cerca de meia hora depois, já calma, e após ter verificado que as luzes da cabana tinham sido apagadas, dirigiu-se para a porta.

     Ele embriagara-se tanto como ela e estaria dormindo. O ressentimento que experimentara desvanecera-se muito, e quando entrou sentiu que na manhã seguinte, já lúcidos, ter-se-iam perdoado.

       

     Claire dormira como se num fosso profundo, envolta em ar negro e parado. Tinham-na trazido de novo à superfície os dedos estendidos do sol da nova manhã, que tateavam através das paredes de cana, procurando-a, para a acariciarem. Por fim, abrira os olhos. Sentiu o braço e a anca esquerda rígidos e magoados devido à primeira noite passada no chão coberto de esteiras. Sentiu também os lábios gretados, a língua ressequida e inchada, o que fez com que se recordasse dos acontecimentos da noite anterior. Consultou o relógio de pulso. Passavam vinte minutos das oito da manhã.

     Ouvindo passos, rolou sobre si mesma, puxou para baixo a parte superior do pijama de nylon, que subira até à curva inferior dos seios, e viu Marc junto da janela do fundo, com um espelho oval na mão, penteando meticulosamente o cabelo. Ele já se tinha vestido - camisa esporte de manga curta, calças e sapatos leves - e se sabia que ela se encontrava acordada não o demonstrava. Para Claire, a invasão do sol, a frescura do dia, o encrespamento do marido fizeram com que as atividades e a conversa de nove horas antes parecessem distantes e improváveis.

     - Marc - disse ela -, bom dia. Ele mal tirou os olhos do espelho.

     - Dormiu como uma pedra.

     - Sim.

     - Ouviu Karpowicz? Veio aqui com um recado de Matty. Ela deseja a presença de todos no seu gabinete, por volta das dez.

     - Estarei pronta. - Ergueu-se, contente por não sentir os efeitos do álcool. - Marc...

     Desta vez ele voltou-se, reconhecendo a sua presença, mas seus lábios mantinham a rigidez da noite anterior. Continuava ressentido.

     Ela engoliu em seco, mas quis esclarecer tudo o que se passara.

     - Marc, creio que estava embriagada a noite passada. Lamento...

     - Não tem importância - volveu ele, movendo lentamente os lábios.

     - Não quero detestar-me a mim própria durante toda a manhã. Lamento também as coisas que dissemos um ao outro.

     Ele curvou-se e deixou cair o pente e o espelho sobre os objetos de seu uso pessoal.

     - Muito bem, querida - declarou -, esqueçamos tudo, sim? Façamos de conta que nada dissemos. Porém, recordemo-nos ambos de quem somos e não nos rebaixemos diante de olhos estranhos. Façamos por manter nossa dignidade.

     Ela nada respondeu, desejando que, pelo menos, o marido se aproximasse dela e a beijasse, a beijasse apenas. Marc achava-se à porta da sala de estar, e deixou-a unicamente com uma nota de advertência.

     - Tente chegar a tempo, Claire. O fim de semana terminou. Voltamos todos ao trabalho.

     - Chegarei a tempo, sim, não se preocupe.

     Depois de ele ter saído, Claire endireitou os sacos de dormir de ambos e observou que Marc arrumara, com cuidado, as roupas que vestira, que eram para lavar; depois, desabotoou despreocupadamente a parte de cima do pijama. Não tinha interesse em mirar os seios, mas notara que a jóia se encontrava ainda entre eles. Tirou-a e ajoelhou-se para a colocar na caixa de couro. Nesta posição, não poderia deixar de reparar nos seios, e, contemplando-os, evocou os olhos dos homens - Moreturi, Paoti, Courtney (um americano!) - que os tinham visto assim nus. Agora, devido ao embaraço provocado pela luz do dia, considerou-se impudica. Neste momento, não censurava Marc por ter expresso sua cólera. Era esposa dele, uma esposa americana - quase acrescentara: “e mãe” - e comportara-se, na primeira noite em que saíra, como uma ninfomaníaca. Bem, mais ou menos. Até agora, dissimulara todas as vergonhosas fantasias da sua mente sob as etiquetas Bem Criada, Uma Mulher Decente, Ama, Honra e Obedece. A sua muralha de repressão fora construída com materiais como Pudor, Decência, Castidade, e com um tijolo mais, sim, Timidez. Como e por que fizera ruir tudo na noite anterior? Exprimira sua lascívia, e agora, à medida que reconstruía a muralha repressora, tijolo a tijolo, não via como poderia suportar de novo os olhares de Courtney e dos outros. Que pensarão eles?

     Decidiu penitenciar-se diante de Marc. Devia-lhe isso. Depois, enquanto procurava a blusa e os shorts brancos de tênis, compreendeu que passava a vida se desculpando perante Marc. Havia sempre qualquer coisa, atos menores de estupidez, indiscrições, lapsos de memória, omissões de comportamento, e não era agradável, não era mesmo nada agradável, nem justo também, encontrar-se sempre na defensiva. Todavia, o que se passara na noite anterior era bem mais sério, e, logo que o visse, pedir-lhe-ia, com veemência, que a desculpasse.

     Vestiu-se com rapidez e, depois, um tanto deprimida, dirigiu-se para o banheiro comunitário. Entrou cautelosamente e agradeceu ao Senhor por se encontrar ali apenas Mary Karpowicz, taciturna e monossilábica. Em seguida, caminhou com lentidão através do sol, quente e maravilhoso, de regresso à cabana. Fez a toalete na divisão da frente, e, depois de passar batom pelos lábios, verificou que alguém, Marc ou um criado nativo, deixara uma grande tigela cheia de frutas e a sua ração de comida enlatada e de bebidas. Comeu com vagar e, cerca das dez horas, saiu. Dirigiu-se para o conjunto da aldeia, a fim de apresentar as suas desculpas a Marc e de se juntar aos outros no gabinete de Maud.

     Com exceção das crianças que brincavam junto do regato, não se via ninguém por ali. Em dado momento, porém, apercebeu-se da existência de atividade humana, idas e vindas, na extremidade mais distante da aldeia, diante da Cabana de Auxílio Social e da escola. Depois, viu duas figuras defronte da cabana de Maud; Marc era uma delas, e encontrava-se conversando animadamente com Orville Pence.

     Ao aproximar-se, desejou a presença de Marc para si só durante uns momentos, pois tinha de lhe apresentar suas desculpas.

     - Marc...

     O marido volveu para ela os olhos e de súbito seu rosto ensombreceu-se. Tocou no braço de Orville e aproximou-se.

     - Marc - disse ela - estava pensando...

     A mão do marido fez com que se calasse, apontando-a de cima a baixo, indicando toda a sua pessoa.

     - Por Deus, Claire, onde diabo pensa que vai?

     Surpreendida, tocou a garganta com os nós dos dedos.

     - Que... que há?

     Ele manteve-se imóvel, as mãos nos quadris, examinando-a, sacudindo a cabeça com exagerado desprazer.

     - Esses malditos shorts de tênis... Olhe bem para eles... Devia saber que não é conveniente trazer shorts no campo.

     Achava-se tão espantada em face desta crítica do marido que se sentiu incapaz de responder.

     - Mas... mas Marc, não sabia...

     - Decerto que sabia. Ouvi Matty adverti-la... e a todas as mulheres, em Santa Bárbara. Ela cita constantemente o velho Kroeber: “Mostrem-se delicados no que se refere aos problemas do sexo. Não usem shorts, não tentem os nativos. “ Não deu ouvidos a ninguém, e com este procedimento desejou desafiar toda a gente. Parece decidida a quebrar todas as normas. Ontem, foi o sexo; hoje, são esses shorts indecentes. Que lhe resta ainda? Dormir com um nativo?

     - Oh, Marc... - volveu, ela, com lágrimas nos olhos. - Não sabia, juro. Pareceu-me uma coisa sensata, com este calor. Eles cobrem o que deve ser coberto. São cem vezes mais pudicos do que os saiotes das nativas.

     - Não é uma mulher primitiva, mas uma americana civilizada. Essa indumentária não só mostra impudor... os nativos esperam mais de você... como é deliberadamente provocante. Vá mudá-la depressa. Estão todos no gabinete, à espera.

     Ela voltara já as costas ao marido pois não quisera dar-lhe a satisfação de vê-la ferida. Sem mais palavras, dirigiu-se para a cabana. Desprezou-se a si própria por ter desejado o seu perdão e desprezou-o por transformar todos os dias num inferno. Ou piorava ele, como marido, ou piorava ela, como esposa. Tratava-se de um ou de outro... Não, existia uma terceira possibilidade, que parecia mais exata: a influência das Três Sereias, desde a manhã que entrara na vida de todos devido à carta de Easterday até este momento no conjunto da aldeia. Eis o problema. O feitiço das ilhas agira sobre ele e sobre ela, desnudara o aspecto mais mesquinho da personalidade de Marc, todas as suas fraquezas e defeitos. Agora, via-o implacavelmente, o seu ser essencial, sem a dissimulação das próprias culpas dela. Viu-se mais claramente a si, também, e a vida de ambos, em comum, como fora, era e seria.

     Só quando chegou à porta da cabana é que se permitiu desafiá-lo. Endireitou os ombros, os seios pareceram furar a blusa e sentiu-se contente pelo que acontecera na noite anterior. Agradou-lhe pensar que os homens a tinham olhado fixamente, durante longo tempo. Estava fatigada, fatigada de não se mostrar o bastante, quando era muito. Oh, se ao menos uma pessoa, uma pessoa apenas, compreendesse...

     Quando voltou ao gabinete de Maud, quinze minutos mais tarde, com um uniforme antropológico aceitável, blusa e saia de algodão pregueada, encontrou todos menos Maud presentes, preparados para a reunião. Marc estava ainda com Orville Pence, agora junto da mesa que servia de secretária; os outros achavam-se sentados nos bancos, conversando animadamente.

     Sem prestar atenção a Marc e a Orville, Claire atravessou a sala para se juntar ao grupo constituído pelos Karpowicz e por Harriet Bleaska. Falavam sobre a festa a que tinham assistido na noite anterior, oferecida por uma mulher nativa, Oviri, parente de Paoti, a qual tinha a seu cargo o programa do próximo festival. Absorvia-os a recriação da pantomima histórica que tinham presenciado; Em vista disto, Claire sentou-se ao lado de Rachel DeJong e de Lisa Hackfeld, no banco mais afastado.

     Lisa achava-se tão deprimida que mal respondeu à saudação de Claire. Rachel, porém, parecia em melhor disposição. Claire tentou apanhar o fio das agruras de Lisa.

     - ... sabe quanto isso me inquieta - dizia Lisa. - Empacotei pessoalmente essas preciosas garrafas, liguei-as umas às outras com fio de algodão, e...

     - Que garrafas? - inquiriu Claire. - De uísque?

     - Muito mais importante - volveu Rachel DeJong, fazendo uma careta risonha. para Claire. - A pobre Sra. Hackfeld trouxe um fornecimento de per oxido e tintura para alourar o cabelo; todavia, quando as procurou na caixa, esta manhã, encontrou as garrafas partidas.

     - Tudo, foi-se tudo - lamentou Lisa. - E ninguém tem nada do gênero para me emprestar. Sinto vontade de chorar. Não sei, Claire... Posso tratá-la por Claire? Talvez você disponha de alguma coisa...

     - Bem -o desejaria, Lisa - volveu Claire. - Porém, não tenho uma gota de nada.

     Lisa Hackfeld torceu as mãos.

     - Desde que... me conheço, usei sempre esta tintura para colorir o cabelo... semanalmente. Agora, que me irá acontecer? Dentro de duas semanas o cabelo voltará à sua cor natural. Nunca me vi assim... Suponha que eu tenha cabelos grisalhos?

     - Sra. Hackfeld, há piores sinais - disse Rachel para a animar. - Muitas mulheres acham elegante pintar o cabelo nesse tom.

     - Podem fazê-lo quando não é naturalmente grisalho. Mas quando sucede o contrário... - Recobrou a respiração. - Já não sou uma ingênua, uma menina. Tenho quarenta anos.

     - Oh, não é possível! - exclamou Claire. Lisa fitou-a com gratidão, surpreendida.

     - Não?! - volveu passado um momento. Recordando-se, porém, do que a preocupava, tornou: - Acreditará dentro de uma ou duas semanas.

     - Sra. Hackfeld - interveio Rachel -, dentro de uma ou duas semanas encontrar-se-á demasiado preocupada para pensar nisso. Estará... - Deteve-se abruptamente e ergueu a mão para apontar. - Aí vem a Dr.a Hayden. Deve trazer-nos muitas novidades. Estou certa de que vamos iniciar nosso trabalho.

       

     Achavam-se todos sentados, nos bancos ou sobre as esteiras no chão, exceto Maud Hayden, que estava junto da mesa esperando que as conversas entre eles terminassem. Apesar do seu aspecto caricato - trazia um chapéu de palha de abas largas, de dentro do qual se escapavam madeixas de cabelo grisalho, não pusera máke-up no rosto túmido queimado pelo sol, tinha vários colares de pedras coloridas em redor do pescoço, envergava um vestido sem mangas no qual os braços carnudos avultavam; calçava meias de escoteiro que lhe chegavam até pouco abaixo dos joelhos e sapatos quadrados que pareciam marcianos -, tinha um ar mais profissional e ao mesmo tempo mais despreocupado do que os outros.

     Quando os colegas se calaram, Maud começou a falar-lhes num tom que oscilava entre a precisão científica e o coloquialismo maternal.

     - Imagino que muitos de vocês se têm perguntado o que irá acontecer - disse ela. - Pedi que se reunissem aqui comigo para esclarecer. Passei a manhã, desde o nascer do sol, com o chefe Paoti Wright e a esposa, Hutia Wright, ambos seres humanos encantadores e fraternais. Embora Hutia sinta algum receio em face da nossa presença na ilha, e conseqüentemente ponha algumas reservas sobre o que nos deve ser permitido ver e fazer, o chefe Paoti mostrou-se bastante liberal. Uma vez que nos encontramos aqui, decidiu que veremos e faremos o que quisermos. Confia muito, e foi bem claro a esse respeito, na palavra do Sr. Courtney, que lhe afirmou que respeitaremos os costumes, a maneira de viver, a dignidade, os tabus do povo das Sereias e que comunicaremos o que observarmos honesta e cientificamente, embora mantendo o devido segredo sobre a localização das ilhas. Bem, por assim dizer nada nos é oferecido numa bandeja de prata. Seremos esclarecidos pelos nativos, sempre que o desejarmos. Oferecer-nos-ão todas as informações que requerermos. Depois, como é evidente, teremos de contar apenas conosco. Serão feitos todos os esforços para que nos integremos na aldeia e na sua vida quotidiana. Insisti nisto. Não desejo que nos tratem com deferências especiais ou que nos façam concessões demasiadas. Não me agrada que nos considerem visitantes de um zôo, como não me agradará que os olhem de igual maneira. Concordou-se que nos deviam considerar, dentro da medida do possível, digamos, habitantes do outro lado da ilha. Para lhes ser franca, sei que jamais poderemos ter as condições ideais; porém, Paoti prometeu-me fazer o que pudesse, para nos ajudar, e em seu nome prometi que a nossa atitude seria semelhante. Em resumo, não nos encontramos aqui como simples observadores do exterior, mas como observadores participantes, tentando, se pudermos, comer, trabalhar, pescar, divertir-nos com eles, e tomar parte tanto nos seus ritos como nos seus jogos, nos números de festival, etc. Esta é, segundo se me afigura, a única maneira de apreendermos seus padrões culturais. O grau era que obtivermos êxito determinará, em referência a cada um de nós, a contribuição que daremos à antropologia, e às nossas respectivas especialidades, com o estudo das Três Sereias.

     Poucos de vocês têm participado em atividades destas. Os Karpowicz, Sam, Estelle, Mary já estiveram várias vezes no campo. Marc fez uma viagem de estudo há três anos, e Orville... penso que a partir deste momento devemos tratar-nos pelo nome próprio... Orville fez Úm certo número destas viagens de campo. Porém, o mesmo não acontece com Claire, Rachel, Harriet e a Sra... e Lisa. Assim, embora me refira a coisas que os mais experientes conhecem já muito bem, desejo que tenham paciência, pois por ora dirijo-me principalmente àqueles para quem isto não é familiar. Em certos 'aspectos, certamente, haverá também valiosas informações para os veteranos. Assim, repito, escutem-me com paciência; quando terminar, creio que compreenderão melhor o seu papel aqui, aquilo que se espera de vocês, o que podem e o que não podem fazer, e tudo o que nos aguarda.

     A antropologia social e o estudo de campo talvez sejam mais antigos do que pensam. Entre os primeiros que deixaram o lar, neste caso Oneida, Nova York, a fim de irem observar cientificamente outra sociedade, achava-se um jovem estudioso chamado Henry Schoolcraft. Ele viveu entre os índios chippewas, e registrou meticulosamente grande número de costumes fascinantes, como por exemplo o seguinte: quando uma mulher chippewa tocava num objeto este era, automaticamente, tido como maculado, sendo evitado pelos indivíduos do sexo masculino da tribo.

     “Porém muitos consideram Edward Tyler, um quaker inglês, o homem que fez da antropologia social uma ciência. Na sua longa vida, ele efetuou muitas viagens de campo, uma das mais notáveis ao México. Deixou-nos duas importantes doutrinas: a da recorrência, que diz que se podem encontrar costumes similares ou semelhanças no folclore de regiões diferentes, como o Canadá, o Peru, o Egito e a Samoa, por exemplo, fornecendo-nos isto uma grande ajuda para a reconstituição da pré-história, e a doutrina da sobrevivência que diz que certos comportamentos aparentemente sem significado que sobreviveram ao passado tiveram provavelmente um objetivo real numa dada época. Estes pioneiros estabeleceram os alicerces dos futuros trabalhos de campo.

     Deduzo, dos rostos de alguns, que receiam que a velha Maud se prepare para uma longa dissertação. Não é necessário preocuparem-se. Não é esta a hora nem é este o lugar para ensinar antropologia. Tento apenas fazer com que compreendam o impulso histórico que está na origem da sua grande viagem pelo oceano até esta ilha exótica. Uma ou duas referências mais à história e ocupar-me-ei de coisas práticas. O primeiro grupo, um grupo como o nosso, que fez um estudo científico sobre uma cultura estranha foi dirigido por Alfred C. Haddon, por volta de 1898. Anos antes, Haddon visitara a vulcânica ilha de Murray, ao largo da Nova Guiné, e vivera entre os papuas. Da segunda vez acompanhou-o um grupo de peritos: dois psicólogos, um fotógrafo, um musicólogo, um lingüista, um médico; ele era o único antropólogo. Os psicólogos aplicaram testes aos nativos... desenho e percepção sensorial, e foram os primeiros a utilizar as técnicas que Rachel e Orville utilizarão aqui. Haddon e os outros, uma vez que a ilha fora um tanto corrompida pelos missionários e pelos magistrados brancos procuraram fazer com que os nativos revivessem os ritos e as cerimônias do passado, quando os homens andavam nus e as mulheres traziam apenas diminutos saiotes confeccionados com folhas. Os componentes do grupo trabalharam durante oito meses no campo, e ao voltarem a Cambridge com suas descobertas tinham provado o valor representado pelo uso de um grupo de peritos e aberto uma nova via aos futuros antropólogos.

     Podia continuar falando-lhes durante horas sobre os grandes antropólogos indiretamente responsáveis pela nossa presença aqui, esta manhã. Desejaria dispor de tempo para lhes falar sobre um genial alemão chamado Franz Boas, que me ensinou... como a Ruth Benedict, Margaret Mead, e a Alfred Kroeber também... inúmeras coisas sobre a coleta, a infatigável coleta de elementos. Boas chegou a interessar-se pelo tom grisalho do cabelo humano, e após visitar as barbearias de Nova York juntou e classificou um milhão de madeixas. Suspeito de que não gostava de viver no campo, mas estava decidido a verificar todas as teorias através de inquéritos em primeira mão. Fez inúmeras viagens a regiões remotas, isto desde o tempo da sua viagem inicial ao Ártico, para viver entre os esquimós, tinha então vinte e cinco anos, até à sua última estada entre os índios, contava setenta. Por muitos conhecimentos que adquiram através da leitura das obras de Boas e dos outros gigantes da antropologia: Durkheim, Crawley, Malinowski, Lowie, Benedict, Linton, Mead, e do meu querido marido, Adley Hayden... jamais esqueçam que somos os seus herdeiros e que, por intermédio do que aprendemos com eles, podemos estudar a sociedade das Sereias. Primeiro que tudo, porém, devemos procurar ser cientificamente exatos.

     “Decerto, talvez se interroguem sobre a validade científica das nossas descobertas. A antropologia, admito-o, vê-se por vezes envolvida na interminável controvérsia entre as ciências e as humanidades. Os cientistas gostam de criticar-nos, afirmando que somos muito descuidados nos nossos métodos de campo. Os humanistas, por outro lado, preferem declarar que usurpamos o terreno do poeta, reduzindo a complexidade infinita da vida humana a categorias descritivas irrelevantes. Sempre sustentei que devíamos recordar a ambos os setores que nós, e só nós, constituímos a ponte que pode juntar as ciências e as humanidades. É verdade que nossos informantes nativos só raramente merecem confiança. É verdade que, embora possamos medir a largura de uma cabana ou de uma caveira) não podemos medir os sentimentos mais profundos de um nativo no que se refere ao amor e ao ódio. É verdade que embora tentemos comunicar as nossas descobertas, interessando vivamente os nossos auditórios, saímo-nos muito mal como trovadores, pois limitamo-nos a transmitir fatos. Estas são as nossas limitações; contudo, a despeito delas, devemos continuar a efetuar cientificamente, as nossas pesquisas e a revelar humanisticamente ao mundo o que descobrimos.

     Agora, eis-nos aqui. Perguntar-se-ão, com certeza, o que nos espera. Vou dizer-lhes. Os investigadores que mencionei ensinaram-nos, e falo também por experiência própria, que é má política mostrarmo-nos agressivos ou superiores num estudo de campo. Geralmente, é pouco satisfatório mandar comparecer diante de nós os nativos, mantê-los sentados durante três ou quatro horas e tentar “secá-los”. É igualmente indesejável estabelecermos relações apenas com certa facção , de uma comunidade. Se o fizermos, poderemos aliar-nos à facção errada e separar-nos da maioria, despertando sua hostilidade. O mais prudente será procurarmos conhecer a estrutura social da comunidade e selecionar com cuidado os informantes mais capazes. Contudo, não devemos exercer grandes pressões. Devemos, pelo contrário, estabelecer-nos no meio de uma sociedade e aguardar, com paciência, confiar na curiosidade natural dos nativos e no nosso próprio instinto, que nos dirão quando e como proceder. O problema mais delicado é encontrar o informante mais experiente, a pessoa que liga o passado ao presente, que é articulado e honesto, que sabe falar sem inibições sobre seu próprio mundo e deseja conhecer o que se passa no mundo exterior.

     Na questão da ligação podemos dar-nos por extremamente felizes. Tivemos muita sorte. Tecnicamente, fomos convidados a vir aqui. Na noite passada, fomos integrados nesta sociedade. Para começar, não temos apenas um informante precioso, mas dois. O chefe Paoti Wright, que é de inestimável utilidade para nós, e Thomas Courtney, que vive aqui há muito tempo e conhece tanto os costumes dos nativos como os nossos. Trabalharei com Paoti. Espero estabelecer com ele uma excelente relação interpessoal. Quanto a Courtney, este concordou em pôr-se à disposição de vocês todos, para os elucidar sempre que for necessário.

     Podem dispor do seu tempo como quiserem. Quando se lhes deparar um problema de difícil resolução, sugiro que me procurem ou que discutam com Courtney. Dentro de meia hora, Courtney comparecerá aqui para os levar à aldeia, aos pontos que quiserem ver, às atividades que desejarem observar ou em que desejarem participar, para lhes apresentar prováveis informantes. Uma vez introduzidos assim na vida da aldeia, disporão da independência necessária para procederem às investigações.

     Bem, como desejo falar do papel de cada um, começarei por Harriet. As enfermeiras, apesar de não fazerem habitualmente parte de grupos de campo, têm acompanhado alguns. É desnecessário dizer que se mostraram sempre úteis. Por exemplo, quando Robert Redfield foi a Yucatan estudar a aldeia maia de Chan Kom, levou com ele uma enfermeira. Os maias mostraram-se pouco amistosos, mas a enfermeira fez depois muitos amigos devido ao fato de ter curado bastantes doentes e de ter introduzido preceitos de higiene moderna. Assim, a tribo, impressionada, começou a colaborar. Verificarão que as Sereias dispõem de uma clínica ampla mas rudimentar; melhor, de um dispensário, o qual se encontra sob a supervisão de um jovem chamado Vaiuri. Courtney apresentará Harriet hoje a ele. O chefe concordou em que prestasse esclarecimentos a Vaiuri. Embora uma das funções de Harriet aqui seja cuidar de nós, a função mais importante será aprender o que puder sobre as doenças e remédios dos nativos e tirar o maior número possível de notas sobre as suas descobertas. Se Vaiuri concordar, você pode introduzir novos métodos de tratamento e de higiene, desde que não interfira com seus costumes ou com seus tabus.

     Quanto a você, Rachel, levei um tempo dos diabos para explicar a psicanálise a Paoti e a Hutia. Não fez sentido para eles. Consideram-na infantil. Porém, convenci-os de que se tratava de uma espécie de prática mágica especial que faz maravilhas em pessoas perturbadas. Embora pareça não haver por aqui psicopatas, existe, contudo, uma pequena minoria de pessoas infelizes ou desajustadas. Hutia dirige um conselho, constituído por cinco anciãos de ambos os sexos, denominado Hierarquia Matrimonial. Todas as queixas das pessoas casadas, e os seus pedidos de divórcio, são-lhe submetidos. Assim, tem em seu poder as histórias destes casos, que são examinados todos os meses. Permitem que escolha três pacientes dentre meia dúzia ou mais de casos correntes e procure resolver seus problemas. Encontrar-se-á hoje com Hutia, a fim de a interrogar acerca destes casos; então, fará sua escolha e começará a agir. Courtney arranjou uma cabana para servir de consultório, a qual poderá utilizar a partir desta tarde.

     Agora quanto a você, Lisa, fiz saber que desejava estudar as danças primitivas. Devo dizer que Paoti ficou encantado com a idéia. Não podia ter vindo em melhor hora. Começaram já a ensinar o programa para o festival anual. Como a dança domina todos os divertimentos, terá oportunidade de ver, e mesmo de participar, no melhor que têm para oferecer. É Oviri quem está encarregada do programa e poderá avistar-se com ela dentro de momentos.

     Orville, a sua situação é um pouco diferente, uma vez que o estudo do comportamento sexual comparado abrange todas as áreas. Imagino que seu trabalho se assemelhará ao que Cora Dubois efetuou na ilha de Alor em 1937... a aplicação das técnicas psicodinâmicas aos aldeões. Sei que Dubois empregou os testes Rorschach com muito êxito, e suponho que o mesmo sucederá com você. Discutimos a sua possível agenda e decidiu-se que no primeiro dia apreciaria os costumes sexuais da comunidade... penso que verá hoje a Cabana de Auxílio Social... e seria apresentado a diversos nativos de ambos os sexos. Depois, poderá tentar estabelecer contatos e selecionar os informantes mais convenientes, que interrogará ou a quem fará testes, como achar mais apropriado.

     Agora, a família Karpowicz. Bem, seria supérfluo dizer alguma coisa a um homem com a experiência de Sam Karpowicz. Courtney afirmou-me que Sam teria a sua câmara escura, atrás da cabana, depois de amanhã. Pode fazer seus filmes, tirar seus instantâneos, na aldeia e em redor dela, como desejar, sem restrições. Quando se quiser embrenhar no interior... recorde o incidente na praia... deve fazer-se acompanhar por Courtney, por Moreturi ou por alguém que eles designem. Quanto a seu trabalho como botânico, pode andar por onde quiser.

     Não arranjei nada de especial para você, Estelle. Presumo que ajudará Sam no seu trabalho, como é habitual. Se quiser participar em qualquer outra coisa, poderá escolher a vida de trabalho de uma mulher das Sereias, as limpezas, a cozinha, a tecelagem. Os dados que obtiver ser-me-ão muito úteis. Penso que poderemos discutir isto em particular, a fim de vermos até onde quer ir. Segui a sugestão de Estelle e de Sam acerca da sua filha, e temos a luz verde... Não me olhe com tanta apreensão, Mary. É um projeto fascinante; constituirá um bom tema de conversa quando voltar a Albuquerque. Têm uma escola, bastante primitiva é certo, uma cabana ou uma série de cabanas, na extremidade da aldeia; esta é freqüentada por um grupo, entre outros, de estudantes dos quatorze aos dezesseis anos. Pode freqüentar esta classe, se quiser. Não há lápis, livros, quadros-negros, trabalhos de casa... O ensino é oral e baseia-se nas demonstrações de um inteligente professor chamado Manao. Creio que sentirá prazer em conhecer os jovens das Sereias, da sua idade, e privar com eles durante seis semanas, aprendendo o que eles aprendem. O professor espera hoje a sua visita, e, decerto, gostaria que me apresentasse um relatório completo sobre suas experiências. Prometo mencionar sua contribuição no meu livro... e oferecer-lhe um lindo presente no Natal.

     Resta a minha família. Marc, espero que se dedique largamente a um informante, como eu própria tenciono fazer. O chefe Paoti recebê-lo-á esta manhã e pode fornecer-lhe algumas sugestões. Sugiro começar com um membro de sua família ou com qualquer outra pessoa da aldeia. Quanto a você, Claire, espero que me ajude... de fato conto com você... e que atue como uma espécie de agente de ligação entre mim, o chefe Paoti e Courtney.

     Como disse, a sua participação não será sujeita a restrições, dentro, claro, dos limites impostos por certos tabus. Segundo apurei na minha conversa com o chefe Paoti, a Cabana de Auxílio Social e a Cabana Sagrada são tabus e só podem ser visitadas com expressa autorização do próprio Paoti. A visita aos dois atóis... supõe-se que os antigos deuses, ainda venerados pelos mais conservadores, habitam ali... é tabu, a não ser que se esteja acompanhado por um aldeão. Em algumas das cabanas encontrarão ídolos de basalto cinzento-escuro ou negro, e tocá-los é tabu. O sistema de parentesco, as crianças pertencem a uma ampla família composta de pais, tios, tias, etc, prevalece, e o incesto é considerado absolutamente tabu. O mesmo sucede quanto à violência física. Pode ser-se provocado até ao limite do que é humanamente suportável, mas nunca se agride outrem ou se lhe causa mal físico. Em vez disto, participam-se as ofensas de que se foi alvo ao chefe. O assassínio, mesmo como retribuição ou castigo por crimes graves, é considerado bárbaro. Uma pessoa doente... supõem-na possuída por altos espíritos, que a julgam... é tabu para mãos mortais, exceto para as daqueles que tenham mana ou elevados privilégios oficiais. Todo o oceano que cerca esta ilha é considerado tabu para estrangeiros. Portanto, a entrada, como a saída, na ilha principal não é permitida, exceto com o consentimento do chefe. Paoti provavelmente omitiu alguns tabus de menor importância. Quando os conhecer, informar-lhes-ei.

     Uma vez que falo disto, devo acrescentar que a antropologia tem alguns tabus próprios, isto é, restrições, sobre certas práticas. Não existem normas rígidas, duras, mas disposições forjadas pela experiência. Primeiro, nunca mintam aos nativos, acerca de vocês mesmos ou dos seus costumes. Se eles descobrirem que mentiram, serão rejeitados. Quando compreenderem que fizeram uma declaração inexata, admitam o seu erro imediatamente e procurem esclarecer o assunto. Não se encolerizem se eles os fizerem objeto de gracejos ou se rirem de vocês, pois pode acontecer que os estejam experimentando. Mantenham-se reservados em tais situações e ganharão sua confiança e sua estima. Se ficarem chocados por alguma das suas superstições, não façam chacota nem pretendam abalar suas crenças. Permitam que a superstição se mantenha e passem por cima dessa fase do seu trabalho. Recordo-me de que, num estudo de campo entre os andamaneses, Adley tentou tirar fotografias dos nativos; estes, porém, ficaram horrorizados, pois acreditavam que a máquina fotográfica lhes roubava a alma. Bem, Adley teve de pôr a máquina de lado. Ao lidarem com o povo das Sereias evitem atitudes excêntricas, não se mostrem altivos ou pomposos. A condescendência não os conduzirá a parte alguma. Afinal, como poderão ter certeza de que seus costumes são superiores aos deles?

     “Como regra normativa, aconselho a sobriedade. Não conheço seus hábitos pessoais, mas se gostam de narcóticos ou de beber sugiro que o evitem tanto quanto possível nas próximas semanas. Decerto, espera-se que bebam, se puderem, com eles quando eles bebem. Mas mesmo então não se devem embriagar. A perda do equilíbrio pode fazê-los parecer ridículos ou ofensivos.

     Uma vez que temos sete mulheres, eu incluída, no nosso grupo de dez, creio que uma breve digressão sobre o papel da mulher no campo pode ser pertinente. Devem vestir-se com sobriedade. Se o calor apertar, não necessitam de usar roupa de baixo... anáguas, soutiens... uma vez que os homens das Sereias não sentem ávida curiosidade por suas partes íntimas. Como já viram, cobrem uma ínfima parte do corpo e são naturais no que se refere à sua aparência. A maior parte das comunidades desta espécie não gosta de mulheres belicosas, dominadoras, frias. Eu própria farei por não esquecer isto.

     Agora, chegamos a um ponto delicado, que com freqüência preocupa as mulheres do campo. Refiro-me à coabitação com os nativos. Estabelecemo-nos numa sociedade onde a atividade sexual é casual e fluida. Existe uma escola antropológica minoritária que não se opõe ao estabelecimento de ligações românticas. Certamente, a coabitação com um nativo pode ser fácil, simples, sem dar margem a objeções. A população nativa pode não olhar com desagrado quem decida aceitá-la, e até, é fato, sentir-se bastante desvanecida. Apesar de existir a possibilidade de uma tal ligação lhes trazer experiência ou mesmo prazer, devo apontar os senões. Se a ligação é secreta, então o simples fato da sua existência inibirá os escritos científicos. Ver-nos-emos ante a impossibilidade de contar a verdade. Se a ligação fizer que se estabeleça competição com as mulheres nativas, poderá verificar-se uma separação do resto da comunidade. Há ainda outro problema. Quero ilustrá-lo com um exemplo. Há anos, quando Adley e eu estivemos na África, acompanhavam-nos três estudantes já graduados, entre os quais, uma jovem. Esta sentiu-se profundamente atraída por um jovem nativo e coabitou com ele. Fê-lo abertamente. Os outros nativos ficaram encantados. Ela comportava-se como as outras mulheres da tribo, e uma vez que era branca, com poderes e prestígio, consideraram a ligação como a prova por excelência da perfeição das práticas democráticas. Aqui o problema não era que ela perturbasse os nativos, pois procedia de acordo com os costumes deles. Perturbava, sim, os componentes do sexo masculino do nosso grupo, devido a seu comportamento. Em geral, mostraram-se ressentidos, daí resultando inúmeras dificuldades no nosso trabalho.

     Assim, permitam-me que diga uma última palavra acerca da coabitação... e dirijo-me a todos com exceção de Mary. Conheço os prós e os contras. Não lhes posso dar mais conselhos sobre este assunto. Como sabem, uma conduta deste teor não se me afigura escandalosa... deixamos isto para os leigos, pois, para mim, classificá-la como tal implicaria um juízo do valor, que não posso nem quero emitir. Consultem o seu coração, a sua consciência, e procedam como acharem justo.

     Enquanto falo sobre o nosso comportamento, quero esclarecer que existe uma área em que desejo que meu juízo moral prevaleça. Desejo que cada um de vocês declare perante si mesmo e perante mim que não procurará alterar qualquer aspecto desta sociedade, impelido por objetivos egoístas. Nos primeiros dias da antropologia, certos indivíduos, o etnólogo alemão Otto Finsch, que esteve nos Mares do Sul entre 1879 e 1884, foi um destes, lançaram a discórdia entre tribos com o seu dom-juanismo ofensivo e indesejável. Indivíduos semelhantes, no passado, embriagaram nativos com uísque para os induzir a reviver antigas práticas orgíacas e eróticas. Não permitirei que nativos que se mostram tão gentis para conosco sejam, seduzidos pelo álcool, levados a práticas sexuais ofensivas a fim de satisfazerem as nossas necessidades no campo da investigação. Há alguns anos, a Universidade de Harvard enviou um grupo à Nova Guiné holandesa com a incumbência de estudar a atividade primitiva. Declararam depois os missionários que este grupo, desejoso de filmar todas as fases da vida nativa, fomentou uma guerra local em que, nos interesses da investigação, se perderam algumas vidas. Não faço a mínima idéia se isto aconteceu realmente, mas ao fato foi dada ampla publicidade. Importa, no entanto, que não se façam acusações semelhantes a um grupo dirigido pela Dr.a Maud Hayden.

     De fato, nem sequer permitirei provocações de menor importância. Sei que um investigador tão respeitável como Edward Westermarck, que eu e Adley conhecemos, antes da sua morte, em 1939, empregou truques elementares de mágica em Marrocos para amedrontar os árabes e induzi-los a fornecer informações sobre sua moralidade. Não admitirei truques de qualquer natureza. Estes, por mais infantis que sejam, tornam-se explosivos em mãos irresponsáveis.

     Acima de tudo, não quero gente do tipo de Leo Frobenius neste grupo. Ele efetuou brilhantes trabalhos de antropologia na África, mas seus métodos e preconceitos deixaram muito a desejar. Dirigiu-se inamistosamente a sacerdotes em Ibadan, explorou os pobres ao adquirir seus bens religiosos, conseguiu penetrar nos meandros de uma sociedade secreta, que depois denunciou, tratou os nativos africanos como indivíduos inferiores, em especial os parcialmente civilizados, a quem chamou “pretos de calças”. Não tolerarei isto aqui. Não permitirei a exploração, emocional ou material, desta bela gente, nem manifestações de superioridade em relação a eles.

     Se não puderem respeitar este povo, a sua presença aqui não terá justificação. Como disse Evans-Pritchard, devem fazer uma transferência intelectual e emocional em relação aos nativos que estudam, tentar pensar e sentir como eles até que a sua sociedade esteja dentro de vocês e não nos seus livros de notas. Recordo-me de algumas linhas de Evans-Pritchard, memorizadas há muito tempo: “Um antropólogo falha se, no momento das despedidas, não verificar da sua parte e da dos nativos desgosto em face da partida. É evidente que isto só pode suceder se ele se torna, em certo grau, um membro da sociedade em questão...”

     Quanto à participação, Malinowski afirmou que o simples interrogatório era inútil quando se tratava de certas informações. Deve-se investigar... usou uma frase maravilhosa: “a imponderabilidade da vida autêntica”. Portanto, é necessário que cada um de vocês participe realmente da vida quotidiana das Sereias, conheça os verdadeiros sentimentos dos nativos, no seu enquadramento social, saiba que cuidados dispensam eles ao corpo, o que receia a sua mente, conheça suas vaidades e suas aversões, o que se passa entre os cônjuges, os filhos, dentro de si mesmos. Para conseguirmos esta transferência, devemos fazer por não nos alhearmos ou formarmos grupos isolados. O perigo em vir aqui com um largo grupo deve-se ao fato de, após o nosso trabalho diário, termos tendência para procurar, exclusivamente, a companhia de um ou de outro dos componentes do grupo em vez de dedicarmos o tempo à comunidade.

     Alguém, suponho que Rachel, perguntou de que maneira íamos recompensar o povo das Sereias pelo seu tempo e incômodo. Devemos-lhe alguma coisa. Se a sua ajuda for posta numa base financeira destruiremos grande parte das relações interpessoais recíprocas. Os presentes, oferecidos em excesso, podem ser tão prejudiciais como o dinheiro. A meu ver, um presente ocasional e pouco dispendioso, uma engenhoca, algumas latas de provisões, brinquedos para as crianças, oferecidos espontaneamente, são o bastante. Porém, penso que ajudá-los, dentro das nossas possibilidades, poderá ser mais aceitável. Por exemplo, se Marc ou Sam os ajudassem a construir uma cabana, ou a juntar os víveres, ou se Harriet tratasse dos doentes, ou Rachel desse conselhos apropriados, ou Mary ensinasse jogos... Tudo isto constituiria uma forma de recompensa. Sugiro também que procedamos de igual modo quando tiverem para conosco qualquer gesto de hospitalidade. A noite passada, a minha família e eu fomos convidados do chefe Paoti. Em breve, procuraremos tê-lo a ele e à sua família conosco, e oferecer-lhe da nossa comida americana.

     Para terminar, mais algumas sugestões. Orville perguntou-me como nos havemos de sair de uma situação em que nos seja oferecida alguma coisa que não podemos aceitar. Por vezes, surgem situações destas no campo. Durante a sua permanência entre os árabes, foram oferecidas a Westermarck várias esposas. Não quis rejeitá-las sem explicações e, inteligentemente, disse que tinha já meia dúzia de esposas na pátria e que não podia sustentar mais... Apenas para se mostrar hospitaleira, uma família pode tentar oferecer-lhes uma criança para adotar ou uma jovem para tomar como amante ou esposa. A melhor maneira de resolver a situação é dizer a essa família que na sua sociedade adotar uma criança ou tomar uma jovem como amante ou como segunda mulher é absolutamente tabu. Inventem os seus tabus como acharem conveniente. Se forem sinceros, isso em si mesmo não constituirá uma mentira. Compreendê-lo-ão e vocês não ofenderão ninguém.

     Uma palavra final e terminarei, prometo-lhes. Quase todos nós somos cientistas sociais, e perguntamo-nos por que motivos nos encontramos aqui, dominados por certo nervosismo nesta atmosfera desconhecida, suportando incômodos físicos, fazendo face ao esgotamento devido à coleta e registro de elementos até altas horas da madrugada. Podem dedicar-se às ciências, e encontrar-se aqui no campo apenas por motivos materiais. É uma maneira de ganhar a vida. As experiências que colherem aqui farão vocês progredirem na sua especialidade, quer econômica quer profissionalmente. Porém, um progresso deste gênero constitui o menos importante dos motivos. Existem outros, científicos, humanitários e filosóficos, a conduzi-los. Desejam adquirir conhecimento e transmiti-lo, pois a amplitude de comportamento humano constitui a sua disciplina, e desejam também ampliar a sua visão do mundo, numa nova cultura. Além disto, existe também em nós uma espécie de romantismo de raízes muito fundas. Somos românticos com uma consciência inquieta, e não estudiosos de gabinete. Tampouco, somos o que Malinowski denominou de “antropologistas de ouvir dizer”. Preferimos os encantos e -os estímulos de outros ambientes. Afastamo-nos da rotina a fim de explorar mundos novos empolgantes, de participar da vida de povos exóticos.

     Acima de tudo, e pouco importa que caminhos diferentes nos conduziram aqui, encontramo-nos nas Sereias por motivos semelhantes aos que levaram Bronislaw Malinowski, sem qualquer companhia, à Boyawa, uma ilha das Trobiands, perto da Nova Guiné, onde chegou numa manhã de agosto de 1914. Os motivos dele, suspeito, não eram diferentes dos seus ou dos meus. “Talvez”, disse ele, “através da compreensão da natureza humana, numa forma bem estranha para nós, consigamos derramar alguma luz sobre a nossa.”

     “A isto, digo: Amém. A vocês: comecemos.”

    

     Marc Hayden achava-se possuído por certo nervosismo, no meio da câmara de recepção da cabana do chefe Paoti, onde Courtney o deixara quando entrara noutra sala. Marc parecia duvidar que esta fosse a mesma da noite anterior. O chão era composto por lajes lisas devido a terem sido expostas à ação do mar, e aqui e ali, representando cadeiras, supôs Marc, encontravam-se espessas esteiras de folhas de palmeira, que serviam de assentos. Exceção feita ao ídolo de pedra cinzenta, a sala estava nua.

     Marc aproximou-se do ídolo para examiná-lo. A cabeça e o corpo eram distorções de uma figura masculina, provavelmente um deus, e tinha-se a impressão de que constituía uma criação de Modigliani e de Picasso, ambos em estado de embriaguez. Afastando-se um pouco do grotesco ídolo de cabeça alongada, Marc apercebeu-se do motivo por que este causava repugnância. A imagem, apesar das suas feições sobrenaturais, era de um falo com um metro e trinta centímetros de altura.

     Cheio de repulsa por esta figura que fazia acudir à mente a obsessão da aldeia, Marc voltou-lhe as costas. Impaciente, começou a andar em redor da sala, com o maior desprezo pelo ídolo. Encontrava-se ainda deprimido. Desde a chegada da carta de Easterday, parecia que as coisas tinham ido de mal a pior. Estava farto das pesadas grilhetas que o prendiam à antropologia - detestara sempre a sua insípida escravidão - e invejava pessoas como Rex Garrity, uma alma livre, pletórica de vida, que corria mundo, sem amarras. Um aventureiro como Garrity, compreendia Marc, não tinha grilhetas. Não pertencia a um rebanho. Possuía identidade.. Além disso, vivia num mundo onde uma pessoa se podia tornar conhecida e rica de um dia para o outro. O próprio Garrity, na noite do jantar oferecido por Maud a Hackfeld, sugerira que formassem uma sociedade e por um momento permitira que Marc divagasse com ele, o acompanhasse numa digressão para lá do mundo acadêmico da antropologia,. um mundo onde Marc nunca podia ser tanto como a mãe ou como o pai e onde seria sempre menos do que ele mesmo.

     Uma vez mais, sentiu certo rancor por Matty por esta ter posto Garrity à margem. EÍa liquidara seus desejos de liberdade, que as promessas do escritor poderiam consumar, mantendo-o ligado a ela como um pseudo-Adley. Os ressentimentos multiplicaram-se: Matty mantinha-o como seu servo, Matty continuava seu casamento espiritual com o homem medíocre e pretensioso a quem ele tivera de chamar pai, Matty persistia em conduzi-lo, lecioná-lo. A mãe dirigira-se a ele, e não aos outros, há meia hora no seu estúpido gabinete. A quem era destinada toda aquela conversa pomposa - sobre Leo Frobenius e a sua superioridade em relação aos nativos - senão a ele? Ao recordá-la, Marc amaldiçoou a enfadonha objetividade e o liberalismo de Matty - o estratagema que utilizava para pôr todos na defensiva e tornar-se, ela só, a pessoa pura, a pura cientista. Que fosse para o diabo!

     E já que era assim, Marc mandou também a mulher para o diabo. Claire estava-se transformando numa autêntica decepção. Anteriormente, começara a tornar-se muito exigente - o que se refletia nos seus olhos, aqueles malditos olhos de vaca, nos seus silêncios, aqueles infernais silêncios condenatórios. Além do mais, mostrava-se presunçosa, muito pegajosa, muito feminina. Como Matty, como tantas outras mulheres, era uma provedora automática de culpas, de modo que uma pessoa perdia o equilíbrio, a razão, diante delas, nada representava, achava-se sempre insegura, angustiada. Acima de tudo, Marc sentia-se ressentido devido ao recente comportamento de Claire. Ela denunciara um aspecto da sua personalidade do qual já suspeitava há bastante tempo mas que não vira manifestado abertamente. Sua preocupação com as conversas sobre o sexo, em casa, tinha-o perturbado bastante, mas a inesquecível exibição da noite anterior mostrara que ela era uma autêntica cadela. Oferecera as tetas aos olhos daquele jovem macaco, Moreturi, e do fátuo vagabundo Courtney de maneira nauseante. Fizera-a agir a hostilidade que nutria pelo marido. E era esta a cadela que desejava ser mãe. Graças a Deus, disse de si para si, não permitira que o induzisse a mais aquela prisão áo seu ser.

     Marc relembrou o incidente da manhã e sentiu-se mais furioso. Primeiro, as tetas nuas, depois os shorts e o rabo nu. Que viria a seguir? Talvez pusesse um daqueles saiotes das nativas para que todos os homens vissem o que restava para ver. Cadela, louca, maldita cadela. E agora tinha Matty do seu lado, e, como as outras cadelas, licença para fornicar. Imitou a voz da mãe, na mente: “Claro, a coabitação com um nativo pode ser fácil, simples, sem dar margem a objeções. “ Meu Deus, que indecência!

     Marc compreendeu que já não estava só. Courtney voltara. Rápido, dissimulou sua cólera e exibiu seu sorriso profissional.

     - Ele recebê-lo-á agora - disse Courtney. - Não são necessárias cerimônias com Paoti. Conversa franca, fatos. Disse-lhe que precisava de um informante. Ele resolverá o problema com você.

     - Obrigado. Fico muito grato pelo que... Courtney, à porta, interrompeu-o para afirmar:

     - Oh, de nada, de nada, Tenho de voltar à cabana da sua mãe a fim de dar uma ajuda aos outros.

     Courtney saiu. Marc, aliviado, podia odiar novamente. Contudo, o chefe Paoti entrou inopinadamente na sala.

     - Bom dia, bom dia, Dr. Hayden.

     Paoti, com o peito e os pés nus, trazia um saiote branco. Embora aparentemente frágil, avançou com vigor.

     - Bom dia, senhor - volveu Marc. - É muito gentil da sua parte querer ajudar-me.

     - Creio que uma pessoa apenas ajuda os outros a ajudarem-se a si próprios. Interessa-me que receba a melhor impressão do meu povo. - Sentou-se sobre a mais espessa das esteiras de folhas de palmeira e cruzou as pernas finas. - Sente-se, por favor, sente-se - disse.

     Marc instalou-se, pouco à vontade, no tapete, defronte de Paoti.

     - O Sr. Courtney disse-me que deseja entrevistar uma pessoa da minha família.

     - Sim, senhor, necessito de um informante, de uma pessoa que conheça bem a sua história, as suas lendas e costumes, e que queira falar com honestidade.

     Paoti passou a língua pelos lábios.

     - Homem ou mulher? - perguntou.

     De maneira inexplicável, ao ouvir Paoti pronunciar a palavra mulher, a mente de Marc volveu à noite da véspera. Escutou de novo a música primitiva e viu a figura luminosa da jovem nativa na plataforma, com os botões vermelhos distendidos, a fenda do umbigo, a epiderme reluzente, a barriga das pernas bem modelada. A figura dela pairava no fundo de seus olhos, contorcendo-se sensualmente. Tehura, eis o seu nome, Tehura...

     Paoti, as mãos pousadas sobre as pernas, aguardava pacientemente que Marc se pronunciasse. Por fim, este disse com vigor:

     - Mulher.

     - Muito bem.

     - De preferência uma jovem - acrescentou Marc. - Uma vez que o chefe Paoti vai ser o informante de minha mãe, estou certo de que ela terá uma imagem completa da sua sociedade, do ponto de vista, bem entendido, de um indivíduo do sexo masculino já maduro e experiente. Como contraste, gostaria de ouvir um jovem, de preferência uma moça de pouco mais de vinte anos.

     - Casada ou solteira?

     - Solteira, se for possível. Paoti refletiu nisto.

     - Há tantas...

     Marc tomara sua decisão, baseada nas fantasias que tinha na cabeça, e era agora ou nunca.

     - Senhor, tenho em mente alguém como... como a sua sobrinha.

     Paoti mostrou-se um pouco surpreendido.

     - Tehura?

     - Ela pareceu-me extremamente inteligente.

     - Sim, é muito inteligente - volveu Paoti, refletindo ainda.

     - Claro, se tem objeções a fazer... ou receia que ela se mostre tímida, que não deseje colaborar...

     - Oh, não tenho objeção alguma a fazer. Quanto a Tehura, ela é decidida, obstinada como um jovem ousado, e curiosa, bastante curiosa quanto ao que é novo... - A voz sumiu-se-lhe, como se tivesse falado apenas para si mesmo. Depois, fixou os olhos em Marc. - Que tem exatamente em mente quanto a Tehura?

     - Conversas sem qualquer formalismo, nada mais - volveu Marc. - Uma ou duas horas quando muito por dia, nos dias em que estiver livre. Sentar-nos-emos como estamos sentados aqui e far-lhe-ei perguntas, a que ela responderá. Tomarei grande número de notas. É tudo.

     Paoti pareceu satisfeito.

     - Se isso é tudo, muito bem. Claro, ela dirá se quer cooperar. Porém se souber que eu sanciono o pedido não se oporá. Quando quer começar?

     - Hoje, se for possível. Imediatamente. Serão necessárias algumas sessões curtas para a pôr à vontade.

     Paoti voltou-se, colocou uma das mãos em forma de concha acima dos lábios e bradou:

     - Vata!

     Sem demora, um jovem delgado de quartoze anos assomou à porta e entrou. Fez uma mesura diante de Paoti, apoiando-se sobre um joelho. Paoti falou em polinésio, numa cadência que fez com que Marc pensasse que ele recitava um longo poema. Decorrido cerca de um minuto o jovem Vata, que entretanto se mantivera a inclinar constantemente a cabeça, murmurou uma palavra de assentimento e endireitou-se, afastando-se em seguida.

     Paoti voltou-se para Marc.

     - Um jovem inteligente, este, filho de um primo. Não se esquecerá. Explicará tudo a Tehura, e ela decidirá por si mesma. Agora vai conduzi-lo até ela. Tehura pertence a esta casa, mas como acha que vive aqui gente em excesso prefere viver na sua própria cabana. Sou muito tolerante para com a filha do meu irmão... Ela sempre fez o que quis de mim - acrescentou Paoti, sorrindo. Depois agitou a mão descarnada, como para se despedir. - Pode ir agora. O jovem conduzi-lo-á até Tehura. Marc pôs-se de pé.

     - Sinto-me muito grato...

     - Se ela mostrar pouco desejo de colaborar, agora ou no futuro, volte aqui. Procurarei outra.

     - Obrigado, senhor.

     Marc atravessou a porta que o jovem mantivera aberta e saiu para o sol. Com um pulo, o jovem encontrava-se à sua frente, indicando o caminho. Pela primeira vez, Marc penetrou na extremidade mais distante da aldeia. Como acontecera na manhã do dia anterior, antes da refeição do meio-dia, o conjunto achava-se virtualmente deserto. Um grupo de crianças nuas brincava ao longo do regato. Duas anciãs, carregando frutas em tigelas, caminhavam lentamente à sombra. Três homens, vergados sob longos feixes de canas, atravessavam uma ponte de madeira.

     Ao aproximar-se da enorme Cabana de Auxílio Social o jovem virou de súbito à esquerda, atravessou uma ponte e fez sinal a Marc para que o seguisse. Por fim, chegou à porta de uma pequena cabana e deteve-se. Quando Marc se acercou dele, o jovem disse:

     - Tehura aqui. Fique. Vou dizer as palavras de Paoti.

     - Muito bem.

     Bateu à porta de bambu, colou a ela o ouvido, ouviu a voz abafada de uma mulher, fez, alegremente, um gesto afirmativo com a cabeça para Marc e entrou.

     Marc esperava ao sol. Perguntou-se o que teria dito Paoti ao jovem. A idéia de utilizar Tehura como informante ocorrera-lhe subitamente, fruto de um impulso. Como antropólogo, agira apressadamente. Ela talvez fosse muito jovem, demasiado jovem, demasiado superficial para fornecer informações de valor. Devia, como era lógico, ter procedido com prudência, esperado mais tempo, procurado outros possíveis informantes, até encontrar uma pessoa mais integrada na tribo, que tivesse idéias e gostasse de falar. Devia, também, ter procurado um homem, de preferência da sua idade ou próximo dela. Com um homem, o contacto talvez fosse estabelecido com mais facilidade. Com uma mulher, e tão jovem, um contacto satisfatório poderia ser difícil de estabelecer, pois as mulheres não falam, na maioria das vezes, com franqueza aos homens. Contudo, Tehura fora bastante franca na noite anterior, demasiado franca. Recordando agora a narrativa dela, tinha a certeza de que a jovem exagerara para produzir mais efeito. Em resumo, tivera um excesso de vaidade e um quê de desonestidade, e isto fazia com que a considerasse menos digna de crédito como informante. Então, por que a teria escolhido? Sabia muito bem por quê? Não o interessava absolutamente nada o seu papel como antropólogo. Para ele tinha maior relevância o seu papel como homem. Esta era a sua revolta, o seu primeiro ato de protesto. Isto era anti-Adley, anti-Matty, anti-Claire.

     Viu o jovem com um largo sorriso nos lábios.

     - Ela diz sim, muito contente por ajudar.

     - Bom. Obrigado.

     - Diz para esperar. Vem já.

     O jovem partiu, a trote, e pouco depois perdia-se de vista. Marc continuou a olhar fixamente para o caminho que ele tomara. Sentia-se contente consigo mesmo. As coisas decorriam a seu modo e para sua maior satisfação não trouxera nem bloco de apontamentos nem lápis. Porém, que poderia perguntar a esta jovem? Oh, tantas coisas, disse de si para si. Interrogá-la-ei sobre o seu senso moral, a maneira como manejava os homens, a audácia de que fizera alarde na noite anterior. Seria ela tão sincera de dia, sem o apoio da kava e do sumo de palma?

     Atrás dele, a porta de bambu abriu-se e fechou-se. Ela aproximava-se dele. Tomou-o o espanto. Esquecera completamente sua beleza. Esquecera também a maneira como as mulheres nativas se vestiam. Ela nada trazia sobre o corpo exceto o pequeno saiote, que se erguia e tombava contra o topo dos quadris. Desesperadamente, tentou ignorar os seios dela, tremulando docemente à medida que caminhava, mas não o conseguiu.

     - Olá - disse Tehura. - Não sabia qual de vocês esperava por mim. Agora sei. É o que não acredita no nosso amor.

     - Não foi isso que disse exatamente na noite passada...

     - Oh, não tem importância... Meu tio deseja que responda às suas perguntas.

     - Apenas se quiser ser gentil...

     Ela encolheu os ombros, com indiferença.

     - Pouco me importa isso. Quero apenas satisfazer o pedido de meu tio. - Seus olhos procuraram os de Marc, e perguntou: - Que fará de minhas palavras? Contará a muita gente na América o que Tehura vai dizer?

     - A milhares de pessoas. Lerão a seu respeito no meu livro. No livro da Dr.a Hayden. Quando for publicado, enviarei um exemplar ao Capitão Rasmussen, que o entregará a você.

     - Não se incomode. Não sei ler. São poucos os que sabem ler... Paoti, Manao, que é o professor, alguns estudantes... e Tom, que tem muitos livros. É um desperdício. Penso que aprender a ler é um desperdício de tempo.

     Marc tentou verificar se ela gracejava, mas sua expressão nada denunciava. Preparou-se para defender a alfabetizarão e a Semana Nacional do Livro.

     - Não posso dizer se...

     - Quando lê para você mesmo é como se fizesse amor consigo mesmo - interrompeu ela, continuando sua digressão. - Isso impede que fale ou escute os outros... Quer falar comigo e escutar-me?

     - Sim. Eis por que estou aqui.

     - Não tenho muito tempo hoje. Nos próximos dias, se estiver interessada, arranjarei mais tempo. - Olhou para o céu, protegendo os olhos. - Faz muito calor aqui fora. Parece um peixe cozido.

     - Sinto-me assim, na verdade.

     - Então tire a roupa. Sentir-se-á melhor.

     - Bem...

     - Oh, esqueçamos isto. Sei que não o pode fazer. Tom descreveu-me os americanos.

     Marc sentiu-se invadir pela cólera. Decididamente, estes nativos enjoavam-no.

     - Que lhe contou ele?

     Tehura tornou a encolher os ombros.

     - Não é importante... Venha, iremos para um lugar fresco.

     Ela voltara à esquerda e caminhava à frente de Marc num caminho situado entre as cabanas, paralelo ao conjunto. Momentos depois, encontravam-se próximo da Cabana de Auxílio Social.. Aqui o caminho desviava-se para as colinas. Tehura continuou à frente, na subida. Duas vezes, ao pular por cima de calhais que se lhe deparavam no caminho, o saiote elevou-se e Marc viu. as curvas das nádegas atraentes da jovem. Embora ela o tivesse irritado minutos antes, começava de novo a achá-la um objeto desejável.

     Tinham chegado ao topo da elevação. Um pouco afastado do caminho via-se um pequeno fosso coberto de verdura, a grama verde circundada por árvores de fruta-pão, cujas largas folhas constituíam um esplêndido leque.

     - Aqui - disse Tehura.

     Ela aproximou-se do tronco da árvore mais vigorosa e sentou-se na grama, as pernas dobradas de lado sob o saiote. Marc seguiu-a e sentou-se defronte dela, bem consciente de sua quase nudez.

     - Faça-me perguntas - disse Tehura regiamente.

     - Para ser franco, não tenho... perguntas formais a fazer ainda. À medida que for conhecendo o meio as perguntas surgirão naturalmente. Hoje, desejo apenas relacionar-me com você, conversar com despreocupação.

     - Fale. Escutarei. - Ergueu os olhos para o amplo leque da árvore de fruta-pão.

     Marc sentia-se desconcertado. Ela não era a pessoa comunicativa e alegre da festa na cabana de Paoti. Espantava-o a transformação operada na personalidade da jovem. Marc compreendeu que, se não resolvesse sem demora a situação, as relações entre ambos seriam breves.

     - Tehura - disse ele -, acho difícil falar com você. Não me parece tomar uma atitude amistosa para comigo. Por que procede assim?

     Isto fez com que ela baixasse abruptamente os olhos. Fitou-o com mais respeito.

     - Penso que não se mostra gentil para conosco - disse ela. - Sinto que não aprova nossa maneira de ser.

     Sua percepção fizera com que ganhasse o respeito dela, e agora a percepção de Tehura, quanto à sua atitude interior, que não definira ainda bem, ganhara o respeito dele. Até este momento, a seus olhos Tehura fora apenas uma cabeça-de-vento, uma cadela nua, um vaso sexual promíscuo e nada mais. Porém, era muito mais do que isto e seria uma digna oponente.

     - Está muito enganada a esse respeito - volveu ele. - Lamento ter dado essa impressão. Achava-me bastante fatigado, na noite passada, e a embriaguez torrou-me combativo. Claro, a sua cultura é muito singular, para mim, como a minha deve ser para você. Porém, não estou aqui para a alterar ou para modificar, ou para emitir juízos de valor. Encontro-me aqui para aprender, somente para aprender. Se me quiser conceder uma oportunidade, acabará por me considerar um companheiro agradável.

     Ela sorriu pela primeira vez. - Agora gosto mais de você.

     Marc sentiu os fios enovelados da tensão desenredarem-se dentro do peito e a amargura mitigada. Procurou no bolso a cigarrilha manchada pela transpiração. Pensou: “Palavras, palavras, palavras”; assim falara Hamlet para Polonius, Ato II, Cena II. E depois: “Nenhuma arma masculina, físico, perícia, nada, pode seduzir uma mulher tão fácil e profundamente como as palavras. Acabara de o provar. Devia recordar-se disto, a partir daquele momento.

     - Escolhi-a - disse ele -, porque desejo que goste de mim. Meu trabalho não é o mais importante.

     - Gostarei de você se se mostrar simpático.

     - Sou e serei - prometeu ele. Agora, não sabia o que dizer mais. Ergueu a cigarrilha. - Importa-se que fume? - perguntou.

     - Continue. Também fumamos aqui. O velho Wright trouxe esse hábito para cá. Nossos homens cultivam tabaco negro e enrolam-no em folhas de bananeira para o fumarem. Prefiro o cachimbo. Tom tem um cachimbo.

     Restava um enigma para decifrar. Assim, volveu:

     - Este Courtney constitui ainda um mistério para mim. Que o fez vir até aqui?

     - Pergunte-lhe - respondeu ela. - Tom fala por ele, eu falo por mim.

     - Mas falou com tanta liberdade acerca dele na noite passada...

     - Não dele, mas de nós. É diferente.

     - Impressionou-me a maneira como se referiu ao seu... ao seu...

     - Ao nosso amor?

     - Sim. Se me permite a pergunta, durou muito... ?

     - Dois anos - retorquiu Tehura prontamente. - Foi a minha vida durante dois anos.

     Refletiu sobre o que tinha em mente e decidiu experimentar a sinceridade dela.

     - Recordo-me de qualquer coisa que disse na noite passada. Afirmou que Courtney tinha muita coisa boa dentro dele, mas que não era bom no amor. Que queria dizer com isto?

     - Que não correspondeu imediatamente ao que se espera de um homem aqui nas Sereias. Tinha vigor, mas não... não... - Franziu as sobrancelhas. Procurava a palavra mais correta. Por fim, acrescentou: - Tinha vigor, mas não sutileza. Compreende? Aqui, o amor flui da primeira dádiva de flores, até à dança, ao contacto, ao abraço dos corpos nus. É natural e simples. E então porque foi ensinado e praticado e se tornou uma arte o abraço é bom... funde-se com a dança... o homem freme, e a mulher participa livremente na sua dança... com a cintura, as ancas, as pernas... muitas posições no abraço... não uma, mas muitas...

     A medida que ela prosseguia Marc sufocava-se de calor, e sabia que este não era provocado pelo sol. Tremia, sob a epiderme, de paixão pelo que Jamais conhecera. Afastara os olhos dos de Tehura, e fingia, assumindo a atitude impessoal do pedagogo que tudo supõe conhecer, olhar para além dela, para lá dos seus ombros. Contudo, não deixava de vislumbrar os seios da jovem, trêmulos, como se apontados para ele, e não sabia por quanto tempo poderia suportar esta visão sem os tocar. Chupou a cigarrilha e procurou escutá-la com atenção.

     - ... mas Tom era muito diferente - dizia ela. - Fazia do abraço uma coisa demasiado importante, uma coisa fora da vida. Fez-me sentir que me devia alguma coisa por me ter dado o seu amor. E tentava sempre, sempre, sempre. Tinha vigor, sim, mas isto não é o bastante. Aos americanos não ensinam o amor sexual, disse-me ele; aprendem com a prática, seguem apenas os instintos. Mas o amor é uma coisa que deve ser aprendida, disse-lhe eu, uma arte, e os instintos não são o suficiente. Fazia amor apenas de uma maneira, talvez de duas, mas isto era errado. Fazia tolices como premir os lábios nos meus, tocar os meus seios e outras coisas que não fazemos nem apreciamos. O desejo é preparação bastante, e com o abraço a dança é suficiente. - Ela fez uma pausa, recordando um fato qualquer, uma memória, e disse depois: - Ele aprendeu a nossa maneira de amar, e isso ajudou-o nos outros aspectos da sua vida.

     No seu íntimo, Marc detestava Courtney, devido a esta aprendizagem, às suas experiências. Tentou falar com calma, para não denunciar o que sentia.

     - Quer dizer que ele aprendeu a satisfazê-la... fisicamente, claro.

     Tehura sacudiu a cabeça com vigor.

     - Não, não, não. Isso não era o principal. Nas Três Sereias todas as mulheres atingem a fase de dar e receber com muita facilidade, devido a certas preparações físicas feitas durante a infância. O principal não é esta satisfação física, mas ser-se espontâneo, descontraído. Eis o que Tom aprendeu entre nós. Que quando se ama uma mulher nada se lhe deve, nada se fez de errado ou de proibido; conduzimo-nos apenas da maneira que o Alto Espírito preparou para nós.

     Agora que forçara Tehura a falar, Marc perguntou-se até que ponto a devia conduzir.

     - Tehura - perguntou ele -, parece ter insinuado que conheceu alguns homens antes de Courtney. Foram muitos?

     - Não os contei. Contamos a fruta-pão que comemos ou as vezes que nadamos ou dançamos?

     Marc piscou os olhos e pensou: o Dr. Kinsey teria partido daqui com os bicos dos lápis intactos e o Dr. Chapman sem qualquer relatório. Como era evidente, as Sereias nada ofereciam aos estatísticos do amor reprimido. Contudo, disse Marc de si para si, não era um estatístico mas sair-se-ia bem melhor. Observando Tehura, notou a sua juventude e a sua frescura e pressentiu alguma coisa que contradizia a sua insinuação de que conhecera inúmeros homens. Precisava de se certificar de que a compreendera bem.

     - Tehura, quando é que teve pela primeira vez relações sexuais com um homem?

     - Amor físico?

     - Sim. Suponho que o designam dessa maneira. Ela não hesitou.

     - Todos o temos pela primeira vez na mesma idade: dezesseis anos. Os que o desejarem, podem continuar a visitar a escola para aprender outras coisas, até aos dezoito anos, mas aos dezesseis já têm conhecimento de tudo o que se relaciona com o amor físico. Até então, são apenas explicações e demonstrações. O último passo antes de crescer é praticar.

     - Praticar? Compreendo. Por outras palavras, depois dos dezesseis anos não há virgens.

     - Virgens? - Tehura mostrava-se sinceramente horrorizada. - Ser virgem após os dezesseis anos é uma autêntica desgraça. Constituiria uma doença embaixo como alguns têm em cima, na cabeça. Uma moça não pode crescer, tornar-se mulher, se é virgem. Continuaria sempre uma moça. Os homens desprezá-la-iam.

     Marc pensou nos colegas do corpo docente do Raynor College e nos seus amigos de Los Angeles e na sua reação perante esta informação. A sua mente pulou da Califórnia para Nova York, para a nação entre ambas. Vastas audiências ficariam deleitadas ante cada palavra que repetisse. De um momento para o outro tornar-se-ia... Neste momento, friamente, picou a bola de sabão da sua fantasia, uma vez que compreendera de súbito que nada se transformaria com esta informação. Matty conhecê-la-ia, através de outras fontes, e seria a primeira a revelá-la à nação. Ele continuaria o que sempre fora, seu assistente, seu eco, a figura na sombra. Não via possibilidade de utilizar isto para seu próprio benefício. Contudo, à parte o seu valor antropológico, havia elementos que o intrigavam pessoalmente.

     - Tehura, que lhe aconteceu aos dezeseis anos?

     - A cerimônia habitual - volveu ela. - Fui conduzida à Cabana Sagrada. Aí, fui submetida a um exame físico especial efetuado por uma anciã da Hierarquia do Casamento. Depois de tida como preparada para entrar na Cabana de Auxílio Social, disseram-me para escolher o meu primeiro companheiro de entre os homens mais velhos, experientes e solteiros. Sempre me sentira atraída por um, um belo atleta de vinte e cinco anos, e apontei-o. Fomos conduzidos à Cabana Sagrada e deixados sós durante uma noite e um dia. Só saíamos para ir ao banheiro e para comermos ou bebermos. Fora instruída sobre as práticas do amor e não sentia qualquer receio. Fizemos amor físico umas seis ou sete vezes, não me recordo, mas senti-me bem, e no dia seguinte era uma verdadeira mulher.

     - E ficou livre para fazer amor com outro qualquer depois disso?

     - Não, não com outro qualquer. Uma moça solteira só pode fruir o prazer com um homem solteiro... o homem casado é tabu, exceto durante uma semana no ano ou quando tem necessidade da Cabana de Auxílio Social... Bem, não disponho de tempo para lhe contar tudo hoje. De outra vez, sim. Mas respondo à sua pergunta: estava livre para fazer amor com o. homem que quisesse uma vez que fosse solteiro. Não pense mal disto. Tom não interpretou bem nossos costumes no princípio, mas depois aprendeu a verdade. Tom ensinou-me ã palavra promíscuo e mais tarde a palavra seletivo. Não somos promíscuos. Somos seletivos. Nunca me deitei com um homem que não desejasse.

     - Já foi alguma vez casada?

     - Não. Mas acontecerá. Um dia, quando tiver vontade disso. Por agora é melhor continuar assim. Sou feliz.

     Ela alisou o saiote e puxou os longos cabelos sobre os ombros, preparando-se para se erguer e voltar à aldeia. Marc lançou fora a ponta da cigarrilha.

     - Desejava que dispuséssemos de mais tempo. Tenho tantas perguntas...

     - Ficam para a próxima vez. - Ela pôs-se de pé com leveza, as pernas apartadas, os braços levantados para cima. Deixando tombar os braços sobre os quadris, fitou Marc durante um momento. - Tenho uma pergunta a fazer-lhe- disse-lhe.

     Marc achava-se de pé, sacudindo a poeira das calças. Volveu os olhos para cima surpreendido.

     - Uma pergunta? Muito bem, faça-a.

     - Na noite passada ficou furioso com sua mulher quando ela se aproximou de mim e mostrou os seios. Por que ficou furioso?

     - Bem... - Os seios de Tehura estavam diante de seus olhos, e os de Claire por trás de seus olhos. Tinha que ser cauteloso: era preciso explicar uma coisa a uma sem ofender a outra. - Você já sabe que os costumes de minha pátria são muito diferentes dos de sua aldeia. No meu país, devido a múltiplas razões... religiosas, morais, ao clima... as mulheres, exceto quando são dançarinas, por exemplo, cobrem sempre os seios em público.

     - É assim? Então há qualquer coisa de estranho. Tom mostrou-me uma vez revistas americanas ilustradas, e vi nelas que os vestidos de suas mulheres cobrem quase todo o corpo, exceto na frente, em que exibem parte dos seios...

     - Ah, a isso chama-se decote. Nossas mulheres sabem que assim atraem os homens, um pouco aqui, um pouco ali, mas não mostram tudo. Só em casa é que mostram mais o . corpo.

     - Foi esse então o motivo por que estava zangado com sua mulher. Ela quebrou o tabu?

     - Exatamente - Tehura sorriu com doçura.

     - Não acredito em você.

     Marc sentiu o aguilhão do medo no peito. Preparou-se para fazer face à ameaça.

     - Que diabo quer dizer com isso?

     - Simplesmente que não acredito em você. Vamos... Deu um passo para a interceptar.

     - Não, espere... Quero saber... Por que crê que me zanguei com minha mulher?

     - Não sei explicar. Tenho apenas a sensação de que existem outras razões, e isto porque Tom me contou muitas coisas acerca dos americanos. Talvez um dia explique o que sinto, mas não agora. Venha, pois está ficando tarde para mim.

     Deprimido devido à superioridade manifestada por ela, Marc começou a caminhar a seu lado.

     Tehura ostentava uma expressão de zombaria nos olhos.

     - Não deve mostrar-se sempre tão zangado com os outros, consigo mesmo. Tem tanta coisa... É um belo homem...

     - Oh, obrigado.

     - ... e possui uma mulher muito bonita. Sou também bonita, e sinto orgulho nisso, mas quando estava ao lado dela na noite passada senti-me menos bonita.

     - Não me diga que inveja uma pobre americana.

     - Oh, não. Possuo coisas bem melhores que a Sra. Hayden. Não sinto ciúmes de qualquer outra mulher. Que há para desejar? - Ela encaminhou-se para a trilha, deteve-se, e voltou-se lentamente. - O ornamento luminoso que trazia no peito. Nunca vi...

     - Refere-se ao pingente?

     - É raro?

     - É caro, mas não raro. Muitas americanas recebem-nos como presente do marido ou do amante.

     Tehura inclinou a cabeça pensativamente.

     - Para uma mulher, estas coisas são bonitas, muito bonitas.

     Ela voltou-se e começou a descer o caminho. O coração de Marc inflou. Até este momento, sua surpremacia fora inexpugnável. No prisma do pingente de Claire podia ver a rotura na armadura da jovem nativa. Era vulnerável, afinal, esta filha da natureza demasiado perfeita, demasiado segura de si. Era uma mulher como qualquer outra; podia ser seduzida, tentada, submetida.

     Com ar superior, com as mãos metidas nos bolsos das calças, Marc entrou no caminho atrás dela. Pela primeira vez, começou a encarar com confiança o futuro.

     Meia hora depois do almoço, a Dr.a Rachel DeJong achava-se de pé na sala da frente da cabana vaga que Courtney destinara a seu trabalho e lugubremente refletiu nas suas deficiências.

     À sala faltavam diva e cadeiras, mesa e abajur, estante e arquivos, telefone. Embora fosse apenas seu, constituísse tabu para todos, exceto os pacientes, possuísse uma atmosfera de isolamento tão necessária a este gênero de trabalho, o gabinete, primitivo, era invadido pelos ruídos da aldeia - garotos gritando, mulheres tagarelando, homens aos berros, pássaros cantando - que a distraíam.

     Que diferente do silêncio de Beverly Hills, Califórnia, EUA, pensou Rachel. Se seus sábios colegas, com seus infinitos fins de semana em Ojai, com seus carros esporte, a vissem agora! Esta idéia divertiu Rachel, que não conseguiu reprimir um sorriso. Com seus olhos experientes, examinou a sala, tentando calcular o que podia fazer para melhorá-la.

     Uma vez que havia apenas espessas esteiras de panãanus, dedicou-se à tarefa de lhes dar outra disposição. Trouxe todas as que encontrou junto das paredes da divisão e, colocando-as em pilha, umas sobre as outras, arranjou um diva sem pernas, de modo que o paciente estivesse deitado a alguns centímetros do solo. Para ela mesma, arranjou, também com esteiras, uma espécie de cadeira sem pernas. Isto feito, estavam exauridas todas as possibilidades de improvisar mais mobília.

     Consultando o relógio, Rachel viu que dentro de dez minutos o primeiros dos seus três pacientes chegaria.

     Frugal como era quanto ao tempo, à semelhança do que sucedia quanto aos honorários e às emoções, Rachel preparou-se para utilizar os dez minutos com o maior lucro possível. Tirou a caneta e o bloco de apontamentos de estenografia da bolsa e sentou-se na. cadeira de esteiras a fim de continuar seu diário, e acrescentar umas notas clínicas, que começara a redigir na tarde do dia anterior.

     “A manhã começou com a palestra de orientação de Maud Hayden. Muitas sugestões ingênuas, principalmente no que se refere à transferência emocional em relação aos nativos. Não sabe ela que a transferência deve ser feita em relação a mim? Porém, acertou quanto à necessidade de estabelecer contacto e de ser observador participante. Mostrar-me-ei firme no que diz respeito a isto, e procurarei vencer os aspectos da minha natureza que fazem com que me distancie, me alheie, que considere todos os outros como espécimes. Essa, suponho, constituiu a barreira entre mim e Joe. (É melhor que não me ponha a desfiar pormenores pessoais senão pouco haverá para dizer acerca das Três Sereias.)

     Depois da palestra, Courtney conduziu Marc à cabana do chefe. Marc é atraente, mas nota-se muita tensão por trás da sua amabilidade... Suspeito de um esquizóide paranóico em potencial... superego dilacerado... Possivelmente uma defesa paranóica contra homossexualidade latente... não estou ainda certa.

     Em seguida, Courtney levou Orville Pence e eu própria à Cabana de Auxílio Social. Acho Pence um compêndio de tendências reprimidas. Oh, que fascinante seria conhecer suas fantasias! Sinto uma dupla curiosidade quanto à Cabana de Auxílio Social - por mim, para saber o que é realmente, e por Orville, para saber como reage. A sua reserva profissional dissimula tudo. Exceto os olhos. Estes cintilam. O voyeur, sem dúvida.

     A Cabana de Auxílio Social é uma vasta construção de bambus entrançados. Não sei o que esperar lá dentro. Orgias? Parece reinar aí a serenidade, a ordem. Porém, os jovens de ambos os sexos, nus, por todo o lado, a excessiva quantidade de carne vigorosa, conferem-lhe um caráter sensual. Como posso eu descrever a casa de prazer? No interior, pode comparar-se a uma casa de campo desportiva com muitos vestiários dotados de armários individuais. Vimos jovens bastante saudáveis, e alguns homens de meia-idade, recostados indolentemente aqui e ali, fumando, tagarelando. Não conseguimos apurar por que motivo não se encontravam trabalhando. Também, aqui e ali, seis ou sete mulheres dormitavam. ou tomavam suas refeições. Eram de diferentes idades, que iam dos dezenove aos cinqüenta e cinco anos, pareceu-me.

     “Segundo Courtney, a Cabana de Auxílio Social é um ponto de reunião central, para diversão de solteiros, divorciados e viúvos de ambos ps sexos. Aqui passam o tempo disponível confraternizando e aqui têm as suas relações sexuais. Atinge outro objetivo, como Easterday sugeriu, um método único de dar aos aldeões plena satisfação sexual. Contudo, o nosso Courtney não quis revelar em que consiste este método. Afirmou que era preferível que soubéssemos isto por intermédio de um nativo. O Auxílio Social tem diretores administrativos - uma mulher de quarenta e cinco anos, Ana, e um homem de cinqüenta e dois, Honu. A mulher não estava presente, mas o homem era uma pessoa franca e amável de quem gostei logo. Honu ofereceu-se para nos mostrar com mais vagar a cabana e suas dependências, mas Courtney tinha de me conduzir à Hierarquia do Casamento, onde me aguardavam. Assim, parti. Orville ficou ainda, com Honu, e terei de apurar o que ele soube lá. “

     Rachel sentia os dedos fatigados; assim, fez uma pausa no registro dos acontecimentos do dia a fim de repousar a mão. Para aproveitar o tempo, leu o que escrevera, e depois, preguiçosamente, pensou se Joe Morgen teria um dia oportunidade de ler seu diário. Que pensaria dele, da sua aparente habilidade em escrever acerca do amor e discuti-lo com franqueza, sem manifestar emoção, e também da sua incapacidade em o encarar na sua própria vida?

     Quando lhe enviou uma longa carta informando-o - caso estivesse ainda interessado - da sua viagem de seis semanas aos Mares do Sul, e aludindo a certos problemas pessoais que se achavam na raiz da separação, ele respondera imediatamente. Encontrara-se com ela em território neutro, o reservado de um bar, e mostrara-se interessado e formal, pobre urso sucumbido. Assegurava não estar interessado noutra mulher (ele não mencionou a starlet italiana) além de Rachel. Sua proposta de casamento mantinha-se como antes. Esperava passar o resto da sua vida com ela.

     Aliviada em face do interesse manifestado por ele, revelara-lhe mais alguns pormenores sobre seu ser secreto, sobre o receio de ter uma relação autêntica com um homem e cc encarar as conseqüências que esta relação podia produzir no casamento. Tinha a sensação, declarara, de que poderia resolver seu problema nesta viagem. Se isso acontecesse, casaria com ele logo que regressasse. Se sucedesse o contrário, seria absolutamente franca e terminariam sua ligação. O afastamento, seis semanas num novo ambiente, podia dar-lhe uma visão racional de si mesma e da ligação entre ambos, e se quisesse esperar procuraria tentar... Ele prometeu esperar. Ela prometeu escrever, sempre que pudesse.

     Sentia vontade de lhe escrever neste mesmo momento, apenas para contactar com ele e para que soubesse que pensava nele. Mas o diário estava em primeiro lugar. O correio só seria recolhido daí a cinco dias e dispunha de tempo bastante para lhe falar da sua aventura, que não tinha certeza ainda se seria benéfica.

     Durante um curto intervalo mirou fixamente, sem porém o ver, o bloco de apontamentos que tinha no regaço; depois, recordou-se do que quisera anotar e continuou:

     Numa sala da cabana do chefe conheci os cinco membros da Hierarquia do Casamento, três mulheres e dois homens, todos de cerca de sessenta anos. O seu porta-voz, uma mulher obesa, dignificada (verdadeiramente exótica, pois trazia apenas o pequeno saiote e tinha um ar lânguido e um aspecto bojudo), era uma tal Hutia, esposa do chefe. Depois de Courtney ter feito as apresentações e saído, Hutia explicou-me nos termos mais gerais a função deste conselho, que consiste em supervisionar os casamentos e os divórcios nas Sereias e investigar e arbitrar as disputas matrimoniais.

     Hutia pediu-me que esclarecesse minha pretensão. Uma vez que Maud me preparara para isto, assim fiz. Obviamente, nenhum deles sabia da existência de Freud ou do processo psicanalítico, e tentar explicar isto, relacioná-lo com sua vida de todos os dias, não foi coisa fácil. Penso que por fim compreenderam que eu dispunha de meios para ajudar os que sofriam de perturbações a exorcizar os demônios da sua alma. Hutia declarou que tinham seis pedidos de divórcio e que ela e a Hierarquia consentiam em que eu escolhesse três para os submeter às minhas técnicas.

     Os candidatos foram introduzidos na sala, um a um. Quando um deles entrava Hutia enunciava simplesmente um breve sumário biográfico da pessoa. Por exemplo, entrou um homem baixo de cerca de quarenta e cinco anos. Hutia disse: “Este é Marama, lenhador, cuja primeira esposa, de vinte anos, morreu há cinco anos. Recentemente, tomou por mútuo consentimento uma segunda esposa, muito mais nova do que ele, e agora pede o divórcio. “ Foi-me concedido um minuto ou dois para interrogar o candidato.

     Dois seis nativos que vi durante tão pouco tempo, decidi-me imediatamente por dois. Marama era bom, e também uma mulher de pouco mais de trinta anos chamada Teupa. Duas outras mulheres mostraram-se menos prometedoras, rejeitei-as. Restavam, portanto, dois candidatos, e não sabia ao certo qual deles escolher. Um era um jovem plácido, provavelmente não muito imaginativo, que poderia conduzir com facilidade. O outro era um jovem chamado Moreturi, que Hutia declarou ser o filho do chefe, e, portanto, também seu filho. Isto fez com que Moreturi surgisse a meus olhos como uma personagem de relevo, mas não podia dizer se a Hierarquia desejava que o aceitasse ou o rejeitasse.

     Moreturi era corpulento, mas considerei suas maneiras e sua personalidade menos atraentes. Ele sorriu com condescendência durante todo o tempo em que o interroguei e respondeu a todas as minhas perguntas com irritante sarcasmo. Velada hostilidade, creio, ante a idéia de que uma mulher pudesse ter magia e autoridade para resolver seu problema. Antes de terminarmos decidira, uma vez que se mostrava pouco desejoso de cooperar, escolher um homem mais condescendente. Depois de Moreturi se ter levantado, sorrindo, e de ter deixado a sala, voltei-me para os membros do conselho para lhes dizer que escolheria o outro e não Moreturi. Porém, sucedeu que desejei Moreturi. Este erro foi tão involuntário como o lapso de linguagem que cometera meses antes em Beverly Hills.

     “Aqui sentada, tento analisar por que, uma vez cometido o erro, não o desfiz perante a Hierarquia e não lhes anunciei o outro nome. Suponho que, inconscientemente, preferia o filho do chefe como paciente. Não creio que isto se deva à sua elevada posição, que me conferiria prestígio na aldeia. Não acredito tampouco que sua participação possa valorizar meu trabalho. Penso que fui compelida a escolhê-lo apenas porque me desafiou com sua insolência. Quero provar-lhe que não sou, como mulher, um ser inferior. Sempre me irritaram os homens que pensam que as mulheres são boas para uma coisa e nada mais. (De fato, isto pode constituir parte do seu problema. ) De uma maneira ou de outra, creio... “

     Bateram com vigor à porta. Rachel estremeceu e, erguendo os olhos, viu que a porta de bambu era empurrada pelo punho de alguém.

     - Entre... Entre - bradou ela.

     A porta foi inteiramente aberta. Moreturi surgiu e fitou Rachel de revés, com um sorriso rasgado. Depois, inclinou a cabeça numa lenta saudação, entrou, fechou a porta com suavidade e aguardou, movendo as solas dos pés.

     - Disseram-me que me escolheu - balbuciou ele. - Aqui estou.

     O inesperado do seu aparecimento... pensara, não sabia bem por que, que Marama ou Teupa seriam os primeiros a apresentar-se... e o fato de surgir no momento preciso em que confiava seu nome ao diário desconcertaram-na. Era como se tivesse sido apanhada em flagrante delito. Não pôde evitar que o rubor cobrisse suas faces.

     - Sim - disse ela. - Pensei que devíamos começar.

     Por um momento, não soube o que dizer. A rotina habitual seria impossível nesta situação. Não havia diva, pessoa que a respeitasse, que procurasse desesperadamente seu auxílio. Pessoa que se parecesse com qualquer outra que tivesse conhecido, de gravata, camisa, terno de bom corte. Deparava-se-lhe apenas o nobre selvagem de Rousseau, com um bem evidente saco púbico branco entre as pernas. Os olhos inquietos de Rachel ergueram-se para fitarem os olhos semicerrados e irônicos do nativo.

     - Que quer que eu faça, moça-doutora?

     Moreturi dera ao título ênfase especial, para esclarecer que ainda a encarava com cepticismo e sarcasmo.

     Apressadamente, ela fechou o diário e introduziu-o na pasta. Passou as mãos pelos cabelos, e tomou uma posição mais rígida no assento de esteiras.

     - Deixe-me explicar, Moreturi - disse, tentando falar como uma professora primária. - No meu país, quando alguém sofre de perturbações emocionais, tem um problema e procura ajuda psiquiátrica vem a meu gabinete. Tenho um diva... como uma pequena cama... o paciente deita-se, e eu sento-me numa cadeira ao lado ou atrás dele... É o que faremos aqui.

     - Que devo fazer agora? - perguntou ele obstinadamente.

     Ela indicou o leito de esteiras, a seu lado.

     - Deite-se aqui, por favor.

     Ele pareceu encolher, com indiferença, não os ombros mas os olhos. Como se para fazer a vontade a uma criança, moveu o corpo musculoso, apoiou-se sobre os joelhos e estendeu-se sobre as esteiras.

     - Esteja o mais confortável que puder - disse ela sem o fitar.

     - Não é fácil, moça-doutora. Aqui não nos deitamos desta maneira a não ser para dormir ou para fazer amor.

     Ela estava bem consciente da sua presença, e sabia que não o podia evitar. Deliberadamente, voltou um pouco o corpo a fim de o encarar, e, depois de o fazer, lamentou-o. Quisera fitá-lo apenas no rosto, mas não pôde refrear o impulso de pousar os olhos no seu peito vigoroso, nas ancas estreitas e no saco púbico, bem evidente.

     Num gesto brusco, desviou o olhar, que fixou no chão.

     - Não é necessário que se deite, mas é melhor - disse ela. - Fica mais descontraído. Este é um método de tratamento que temos para o auxiliar, para o tornar mais feliz, mais bem integrado, para o libertar de suas culpas e dúvidas, para o ajudar a corrigir seus juízos deficientes e... e impulsos. Moreturi é o analisando. Eu sou a analista. Não o posso curar. Posso apenas aconselhá-lo, ajudá-lo a que se cure a si mesmo.

     - Que é preciso fazer agora, moça-doutora?

     - Deve falar, dizer o que lhe vem à cabeça, não importa o quê. Chamamos a isto associação livre. Não deve pensar em mim, nem permitir que alguma coisa interrompa ou impeça o fluir de suas recordações, sentimentos, idéias. Não se importe se é ou não polido. Seja tão rude ou franco quanto desejar. Diga as coisas que habitualmente não diria em voz alta, mesmo à sua mulher, família, amigos. Fale de tudo, de coisas triviais ou secretamente importantes. E quando hesitar em repetir uma idéia, imagem, recordação, saiba que desejo ouvir isso, também, e que quero que a ouça pronunciada em voz alta, pois pode ter bastante significado.

     - Falo - volveu Moreturi. - Que faz enquanto eu falo, moça-doutora?

     - Escuto - retorquiu ela, fixando por fim o olhar no rosto dele. - Escuto, por vezes discuto certos pontos, faço comentários, dou conselhos; porém, na maior parte do tempo, mantenho-me apenas atenta ao que diz.

     - Isso vai ajudar-me?

     - Provavelmente sim. Até que ponto, em seis semanas, não posso dizer. Mas das suas recordações confusas, dos seus pensamentos aparentemente sem sentido, poderá eventualmente aparecer, primeiro para mim, depois para você, um significado. As coisas ligam-se entre si, relacionam-se. Fios centrais tornar-se-ão visíveis, e podemos puxá-los para fora, procurar suas raízes e possivelmente o que não está bem.

     Seus modos ásperos tinham desaparecido.

     - Nada vai mal - disse ele.

     - Por que está então aqui?

     - Porque me pediram que fosse gentil e... - Deteve-se abruptamente.

     - E quê? Qual é a outra razão, Moreturi?

     - Você. Sinto muita curiosidade acerca das mulheres americanas.

     Subitamente, ela sentiu-se inquieta e incompetente.

     - De que gênero é essa curiosidade acerca das mulheres americanas?

     - Olho para todas... do grupo e penso, e penso... Deteve-se uma vez mais.

     - Moça-doutora, quer que eu diga tudo o que tenho na cabeça?

     Rachel fez um gesto de assentimento.

     - Penso que são apenas meio mulheres - declarou Moreturi. - Têm empregos como os homens. Dizem as palavras dos homens. Cobrem todas as partes belas do corpo. Não são completamente mulheres.

     - Compreendo.

     - Eis por que sou curioso.

     - Tenta então examinar-me enquanto procuro ajudá-lo? - perguntou Rachel.

     - Tenciono ajudá-la enquanto me ajuda a mim - corrigiu ele com um sorriso gentil.

     Em Roma seja romana, pensou ela.

     - Bem - disse - talvez nos possamos ajudar mutuamente.

     - Creio que não acredita - volveu Moreturi.

     É preciso mostrarmo-nos honestos para com eles, dissera Maud, e não lhes mentir.

     - Mas acredito - mentiu ela. - Talvez me ajude. Neste momento, porém, estou interessada apenas em você. Portanto, podemos continuar.

     - Continue - disse ele, com ar sombrio.

     - Afirmou que não vê nada de mal em você, que se encontra aqui por outras razões. Muito bem. Todavia, pediu auxílio à Hierarquia.

     - Para me divorciar de minha mulher.

     - Então há um problema.

     - Que não é meu, mas dela.

     - Veremos. Por que deseja divorciar-se? Moreturi fitou-a suspeitosamente.

     - Tenho razões - declarou.

     - Diga-me as suas razões. É por isso que estou aqui.

     Ele pôs-se a meditar, os olhos fixos no teto. Rachel aguardou. Calculou que decorrera um minuto antes de ele tornar a. voltar a cabeça para ela.

     - A senhora é uma mulher - disse por fim o nativo. - Não poderá compreender as razões dos homens.

     - Segundo me afirmou, não sou como as suas mulheres, sou meio mulher, mais parecida com um homem. Então veja-me como um homem, um homem-doutor.

     Isto era absurdo, mas surtiu efeito nele. E sorriu, uma coisa que não fazia há muitos minutos. O sorriso, compreendeu Rachel, nada tinha a ver com o sarcasmo anterior. Tratava-se de puro divertimento.

     - É impossível - disse ele. - Dispo-a com os olhos e vejo uma mulher.

     Pela segunda vez, sua impertinência fê-la corar, e esta reação deixou Rachel perplexa. Depois, compreendeu que não fora a impertinência que a tocara, mas antes a arrogância sexual que o possuía.

     - Sejamos francos, Moreturi. Vejamos isto de outra maneira. Fale-me um pouco do seu casamento. Como se chama sua mulher? Como é ela? Quando se casaram?

     Estas perguntas, tão específicas, surtiram efeito, e ele respondeu diretamente.

     - Minha mulher chama-se Atetou. Tem vinte e oito anos. Eu, trinta e um. Ela não é como a maior parte das moças da aldeia. É mais séria. Eu não sou assim. Estamos casados há seis anos.

     - Por que se casou com ela?

     - Porque era diferente.

     - Casou-se com ela porque era diferente e agora deseja divorciar-se porque é diferente?

     Uma expressão matreira perpassou pelas feições de Moreturi. - Confunde as palavras - disse ele.

     - Mas é verdade o que afirmei.

     - Sim, talvez seja verdade.

     - Atetou era seu primeiro amor, quando se casou com ela?

     - O primeiro?! - Moreturi mostrou-se espantado. - Eu era já velho quando nos casamos. Tive moças antes dela.

     - Isso não é uma resposta à minha pergunta. Não me interessam as moças que teve antes. Perguntei se Atetou fora seu primeiro amor.

     - Respondi a essa pergunta - insistiu Moreturi, combativo. - Atetou não foi o meu primeiro amor porque tive vinte moças antes dela e amei-as a todas. Não me deito com uma mulher a não ser que a ame por dentro e por fora.

     Era sincero, compreendia ela, não exibia agora sua arrogância sexual.

     - Sim, compreendo- disse Rachel.

     - Amo ainda a primeira, que tinha mais quinze anos do que eu.

     - Quantos anos tinha quando conheceu a primeira?

     - Dezesseis. Foi depois da cerimônia em que me tornei adulto.

     - Que espécie de cerimônia?

     - Na Cabana Sagrada. Pegaram no meu... meu..,

     - Genital - disse ela apressadamente.

     - Sim. Pegaram nele e fenderam o topo do prepucio.

     - Como a circuncisão na América?

     - Tom Courtney disse-me que não. Lá fazem-na de maneira diferente. Tiram todo o prepucio. Nós abrimos apenas a parte superior. Depois de sarar fica uma crosta. Antes de a crosta cair somos conduzidos ao Auxílio Social a fim de procurarmos uma mulher mais velha e experiente. - Sorriu, abandonando-se a uma recordação. - Escolhi uma viúva de trinta e um anos. Apesar de ser apenas um rapaz, era forte como uma árvore. Ela era mais forte. Perdi depressa a crosta. Gostei muito dela. Durante um ano, na Cabana de Auxílio Social, sempre que podia ter uma mulher escolhia a ela.

     Estava úmido na sala e Rachel esperava que não se notasse sua transpiração.

     - Compreendo - disse ela. E depois, para dizer mais alguma coisa, perguntou: - Que usam aqui como contraceptivos? - Ele não compreendeu. Procurou ser mais explícita. - Para deter... para evitar a concepção de crianças?

     - A primeira ensinou-me a esfregar um ungüento no genital.

     - Um ungüento?

     - Para tornar mais fraco o esperma masculino. Evita muitas vezes a procriaçao, embora Tom diga que existem melhores meios na América.

     - Muito interessante. Tenho de estudar isso. - Hesitou, durante um momento, e depois disse: - Comecemos a falar sobre sua mulher...

     - Que não foi o meu primeiro amor - volveu ele com um sorriso.

     - Isso é evidente - retorquiu Rachel secamente. - E agora não gosta dela porque é diferente.

     Moreturi ergueu-se sobre um cotovelo e, instintivamente, ela recuou.

     - Temos conversado sobre o amor e assim posso falar mais livremente de Afetou - disse ele. - Ela não gosta de fazer o... o... não me consigo recordar da palavra de Tom... a palavra para o abraço...

     - Coito?

     - Sim, sim... Ela não gosta disso, e para mim é sempre uma alegria. Não estou zangado com Atetou. O Alto Espírito não faz as pessoas iguais, mas não é justo que se unam pessoas tão diferentes. Quando desejo a alegria do amor, a minha mulher recusa-a. É difícil. Tenho de ir cada vez mais à Cabana de Auxílio Social, e meus sonhos de noite estão cheios de mulheres que vejo durante o dia. Passo todo o ano à espera do festival.

     Rachel tinha agora centenas de perguntas a fazer, mas fechou-as a sete chaves dentro de si. A luxuria de Moreturi repugnava-a. Estava farta de ouvi-lo. E o que era pior, pela primeira vez Atetou tornara-se uma criatura viva na mente de Rachel, pois Atetou. tinha um rosto, e este era o seu. Recordou-se subitamente da glacial Srta. Mitchell no diva em Beverly Hills, e em seguida dos outros. Por fim voltou a Atetou, e depois a si mesma. A semimulher.

     Consultou o relógio.

     - Tomei muito do seu tempo, Moreturi... - Ele sentava-se, erguia o tronco vigoroso. - Eu... eu tenho uma imagem satisfatória do seu problema imediato.

     - Não me censura por necessitar do divórcio?

     - De maneira alguma. É o que é. Não vejo nada de mal em você... no seu pedido - emendou depois.

     As feições de Moreturi refletiam muito pouca surpresa.

     - É mais do que eu pensava. É uma mulher - disse ele.

     - Obrigada.

     - Falaremos outra vez? Hutia disse que me quer ver todos os dias a esta hora. É verdade?

     - Sim, você e os outros. Continuaremos a... a examinar tudo isto, a fim de chegarmos a uma melhor compreensão de seus conflitos conscientes e inconscientes, e da sua mulher também.

     Ele estava já de pé.

     - Verá Atetou?

     Rachel não tinha necessidade de outra Srta. Mitchell, mas sabia qual era o seu dever.

     - Ainda não decidi. Preciso de mais tempo com você. Mais tarde, suponho... Bem, uma vez que se trata de um divórcio talvez tenha de a chamar aqui.

     - Quando a conhecer compreender-me-á melhor.

     - Estou certa de que ela tem também sua história para contar, Moreturi. Afinal, o problema talvez resulte... - Deteve-se, pois, o patois psicanalítico pouco significaria para ele, aqui, nas Três Sereias. Demais, sabia que ao defender Atetou defendia a sua própria causa. - De qualquer modo, quero concentrar-me na sua versão do problema durante as próximas semanas. Tente recordar-se de tudo o que puder sobre o seu passado. E os sonhos, mencionou sonhos, dão-nos visões significativas do seu inconsciente. Os sonhos podem ser símbolos de... de medos inconscientes.

     Ele olhava-a de cima, as mãos nos quadris.

     - Só sonho com outras mulheres - disse ele.

     - Estou certa de que encontrará mais...

     - Não, só mulheres.

     EÍa ergueu-se e estendeu a mão.

     - Ver-nos-emos muito em breve. Obrigada. por ter cooperado comigo hoje.

     Ele envolveu a mão de Rachel na sua, sacudiu-a uma vez e libertou-a. Relutante, como ela pôde notar, dirigiu-se para a porta, abriu-a e depois voltou-se, com uma expressão grave no rosto largo.

     - Tive um sonho na noite passada. Sonhei com você.

     - Não graceje, Moreturi. Viu-me hoje pela primeira vez.

     - Vi-a entrar na aldeia com os outros - volveu ele com ar sério. - Na noite passada sonhei. - Esboçou um sorriso. - É uma mulher, sim... uma mulher.

     Partiu.

     Lentamente, Rachel sentou-se, detestando a transpiração que lhe cobria as sobrancelhas e o lábio superior, receosa da noite que não tardaria a descer. Não queria sonhar.

    

     Mary Karpowicz, com os braços arqueados em volta dos joelhos, balançava-se no seu lugar, no solo, na última fila da sala de aula principal, e desejava ter vinte e um anos para fazer o que lhe apetecesse.

     Embora sentisse certo ressentimento contra o pai por a ter trazido até esta ilha idiota, não podia, na verdade, culpá-lo por ter de freqüentar a escola. Reservava as culpas para si própria. Foram apenas o tédio e o convencimento de que esta experiência podia conferir-lhe certo ascendente sobre as outras jovens na pátria (esta estranha experiência compensá-la-ia da sua virgindade) que levaram Mary a freqüentá-la.

     Sem mexer a cabeça, movendo apenas os olhos de um lado para o outro, abrangia metade da sala circular com cobertura de colmo. Via as costas das duas dezenas de estudantes, as moças em pareus, os rapazes de tanga, a maior parte do tempo atentos mas uma vez por outra brincando ou rindo. Uma caricatura de professor dirigia-se-lhes em inglês.

     Três horas antes houvera, pelo menos, a esperança de uma coisa diferente. Três horas antes, separara-se do pai, com suas máquinas fotográficas pendentes do pescoço, como se fossem condecorações, e seguira com nervosismo o Sr. Courtney, que a conduzira àquela cabana. Tinham entrado numa sala fresca e penumbrosa, muito parecida com as da sua própria cabana, com a exceção de que era redonda em vez de quadrada. Esperara ver mobília, mas havia apenas caixas abertas ao longo da parede, cheias de livros pertencentes ao professor e outros objetos de ensino.

     O Sr. Manao, o professor, ao ouvir seus passos, entrara subitamente na sala, e fizera uma cortês mesura diante dela após o Sr. Courtney ter feito as apresentações. O Sr. Manao era um homem quase calvo, fibroso - podiam ver-se-lhe as costelas da frente, e, quando se voltava, as vértebras nas costas - mas não tão alto como o pai. Trazia uns óculos antiquados com aros de aço, pendendo sobre o nariz, uma espécie de tanga (como Gandhi) e sandálias de fio entrançado. Os óculos, incongruentes, davam-lhe o aspecto de um diácono do século XIX. O seu inglês, pensou Mary, era perfeito como o de um compêndio, embora a inflexão fizesse supor que conjugava à medida que falava.

     O Sr. Courtney, que admirava por ser enigmático e casual, e por não lhe falar como a uma criança, mas sim como a uma mulher, tentara pô-la à vontade contando-lhe uma engraçada anedota antiescolar. Depois, o Sr. Courtney deixara-a e o dickensiano Sr. Manao - seus estudos sobre literatura na escola, na América, estavam dando seus frutos - mostrou-lhe as instalações da escola nativa.

     O Sr. Manao explicara que a primeira sala servia de escritório e de habitação dele e da mulher. Um corredor conduzia a uma outra sala circular onde a Sra. Manao e dois estudantes-professores trabalhavam com um grupo dos oito aos treze anos. Outro corredor ainda conduzia à última e mais ampla das salas; aí, o Sr. Manao apresentou Mary aos jovens nativos da sua idade, o grupo dos quatorze aos dezesseis anos. Mary sentiu-se pouco à vontade junto das jovens nativas e estas tinham-se mostrado tímidas mas afetuosas com ela, tentando não mirar com aparência de interesse seu vestido azul de dacron, as meias e os sapatos baixos.

     Agora estava sentada ao fundo, entre uma moça e um jovem simpático, que, saberia pouco depois, se chamava Nihau e era da sua idade. Houvera três monótonas aulas. A primeira, dedicada à história e às lendas da tribo das Sereias, preenchida com os longos nomes de antigos chefes e com suas proezas, e, ainda, diferentes referências a Daniel Wright, de Londres. Na segunda, dedicada às artes manuais, os sexos eram separados, e aos rapazes eram ensinadas coisas práticas como caça, pesca, construção e agricultura, e às moças, tecelagem, cozinha, cerimônias caseiras e higiene pessoal. A terceira, e última, era dedicada, durante uma parte do ano, ao ensino oral em inglês e polinésio; durante outra à fauna, e à flora; e durante outra ainda ao faa hina'aro, que Mary não se deu ao trabalho de perguntar o que era.

     Os melhores momentos das três horas tinham sido os dedicados ao convívio nos dois intervalos entre as aulas. A maior parte dos alunos saiu, uns para ir aos banheiros, outros para se estenderem debaixo das árvores e outros ainda para conversar ou namoriscar. Durante o último destes dois intervalos, Mary vira-se na companhia do nativo que estivera a seu lado na sala de aula, o jovem chamado Nihau, que timidamente a convidara a tomar um suco de fruta. Quando ele lhe trouxe a bebida numa casca de coco e lhe disse do prazer que todos os aldeões sentiriam se ela e os pais assistissem ao festival anual, Mary tomou, pela primeira vez, consciência da existência de Nihau como pessoa, em especial como pessoa da sua idade. Ele era uns centímetros mais alto do que ela, a sua tez dava a impressão de ser mais bronzeada pelo sol do que parda, tinha olhos brilhantes, nariz um pouco achatado, queixo sólido e pescoço e peito largos, como os jogadores de futebol de Albuquerque. Mary, sensível às manifestações de apreço dos homens, supôs que Nihau estava interessado nela. Mostrou-se reservada, pouco comunicativa, pois não sabia se o interesse dele era dirigido a Mary Karpowicz, um indivíduo do sexo feminino, ou a Mary Karpowicz, um ser do outro lado do mar.

     Pensava agora em Nihau, e detinha-se no seu perfil - homem paleolítico, mas com boca sensitiva e olhos vivos, estes fixos no Sr. Manao, que, de pé, falava a toda a classe. Ele, e o magnífico Sr. Courtney, tinham feito que gostasse de uma coisa que antes supusera uma sensaboria. Espreitou por entre as costas nuas à sua frente, fixou também os olhos no Sr. Manao e tentou prestar atenção à matéria lecionada. Porém, apercebeu-se de súbito que ele terminara a sua dissertação sobre o tema da tarde e falava agora sobre outro que seria iniciado no dia seguinte, dedicado apenas para os alunos de dezesseis anos.

     - O estudo do faa hina'aro - dizia o Sr. Manao - principiará amanhã e prolongar-se-á durante três meses. É, como todos sabem, o fecho de tudo o que estudaram anteriormente sobre este assunto. É o ensino final, o prático sobrepondo-se ao teórico; depois, todos aqueles que contam dezesseis anos serão submetidos às esperadas cerimônias que celebram a maturidade. O tema do faa hina'aro...

     As referências à maturidade despertaram o interesse de Mary, que, inclinando-se para Nihau, perguntou num murmúrio:

     - Que querem dizer aquelas palavras?

     Nihau, sem voltar a cabeça, respondeu num sussurro:

     - É o equivalente polinésio do amor físico. Penso que a tradução para o inglês-americano é... sexo.

     Imediatamente, e pela primeira vez, Mary aplicou toda a sua atenção às palavras do Sr. Manao.

     - Nos tempos antigos, antes de os nossos antepassados Tefaunni e Daniel Wright modificarem e melhorarem a nossa educação - dizia o Sr. Manao -, os jovens polinésios da tribo aprendiam o faa hina'aro segundo os costumes dessa época. Ninguém o desconhecia então, como ninguém o desconhece agora. Nesses tempos, uma família vivia num só quarto, e os jovens podiam observar os pais no ato do amor. Nos tempos antigos havia, também, uniões espontâneas nos lugares públicos da aldeia - especialmente durante os períodos do festival - e os jovens podiam aprender através da observação. Além disso, as danças cerimoniais, que reproduziam todos os processos do amor, da união ao nascimento, constituíam um meio instrutivo de grande valor. Nesses dias, quando os jovens de ambos os sexos atingiam a maturidade plena, os últimos ensinamentos eram dados por um vizinho mais velho do sexo oposto. Quando se estabeleceu aqui, Daniel Wright apresentou muitas teorias, baseadas nos escritos de alguns filósofos ocidentais - Platão e Sir Thomas More, por exemplo -, e, entre estas teorias, uma que propunha o controle de todas as uniões, como medida eugênica, outra que exigia que noivo e noiva se vissem nus antes do casamento, outra ainda que insistia num período de amor livre e de vida em comum antes das cerimônias nupciais. Embora as teorias apresentadas por Daniel Wright não fossem aceitáveis de todo, uma foi integralmente incorporada nos nossos costumes: aquela que exigia que a educação em matéria de amor se tornasse parte do curriculum formal de uma escola. Como sabem, a partir de então temos ensinado a arte do amor nesta escola. Após a conclusão dos estudos do faa hina'aro, de amanhã a três meses, os que tiverem dezesseis anos serão conduzidos à Cabana de Auxílio Social e à Cabana Sagrada a fim de começarem a praticar o que aprenderam teoricamente. O conhecimento dos segredos do amor é necessário à sua saúde e a seu prazer futuros. Nas semanas que se seguem, a última fase ser-lhes-á ensinada através da descrição, da observação e da demonstração. Quando partirem, terão um amplo conhecimento destas coisas e estarão preparados para fazer face à verdade da vida.

     Mary escutara com a respiração quase suspensa todas as frases, as quais foi lentamente digerindo. Experimentara extáticas sensações, semelhantes àquelas que a tinham possuído no princípio do ano, quando Leona Brophy lhe emprestara um exemplar de O Amante de Lady Chatterley, com as partes mais excitantes sublinhadas. Uma porta para a maturidade abrira-se então, no segredo do seu quarto, e agora, nesta estranha sala de aula, uma porta maior começava a abrir-se também; no dia seguinte, os últimos mistérios da maturidade ser-lhe-iam revelados.

     Mais do que tudo, surpreendera-a a inesperada simplicidade do Sr. Manao e a calma patenteada por todos os estudantes nativos. Na sua escola, em Albuquerque, o assunto nunca fora ventilado com tamanha franqueza. Era uma dessas coisas que se escondiam, como se proibidas. Nos corredores, quando via Neal Schaffer e os amigos conversando em voz baixa, suspeitava que faziam referências grosseiras e obscenas ao sexo. Quanto a Leona Brophy e a várias outras amigas, estas também falavam em segredo sobre o mesmo tema, sobre cada nova migalha adquirida através da experiência, como se se tratasse de um vício proibido. Todas estas atitudes tinham feito com que Mary considerasse o sexo uma coisa pecaminosa mas elegante que exigia uma entrega total. Só assim, supunha, se alcançaria toda a experiência das coisas do mundo. De certo modo, Mary considerara-o sempre uma prova desagradável por que se tinha de passar mais tarde ou mais cedo. A entrega era o preço que a juventude pagava para entrar no mundo dos adultos. Era um abandono, uma rendição. Más a afirmação extraordinária do Sr. Manao de que o ato sexual era uma coisa que se devia desejar, uma coisa boa e apetecível necessária à “saúde e prazer futuros”, confundira inteiramente Mary. Notável também fora a declaração do professor de que havia uma “arte” para o realizar, a qual era ensinada como... como a cozinha ou a declamação. Em Albuquerque, se se era uma jovem, realizava-se o ato ou não se realizava; o que acontecia ou o que se fazia era decidido pelo parceiro do sexo oposto e para seu benefício.

     Mary sentiu que lhe tocavam no braço. Era Nihau.

     - As aulas terminaram por hoje - disse o jovem nativo.

     Ela olhou em redor: todos os outros estavam de pé, conversando ou preparando-se para sair. Ela e Nihau eram os únicos que se mantinham sentados. Assim, ergueu-se e dirigiu-se para a porta. Uma vez no exterior, reparou que Nihau a seguia de perto.

     Instintivamente, abrandou o passo, pronta a aceitar a companhia.

     Ao entrarem no conjunto da aldeia, ele perguntou com certa ansiedade na voz:

     - Gosta da nossa escola?

     - Oh, sim - respondeu.

     - O Sr. Manao é um professor muito dedicado.

     - Gostei dele - disse Mary.

     Sua aprovação agradara ao jovem nativo, que se tornou mais comunicativo.

     - Poucos sabem ler aqui. Ele é o que lê mais. Está quase sempre lendo. É a única pessoa nas Sereias que usa óculos ocidentais.

     - Agora que menciona os óculos, pensei que eles eram bastante invulgares.

     - O Sr. Courtney comprou-os em Papeete. O Sr. Manao tinha os olhos cansados devido ao fato de ler muito, e o Sr. Courtney disse que ele necessitava de óculos. Como o Sr. Manao não podia sair daqui, o Sr. Courtney procurou verificar a que distância ele conseguia ler bem e há dois anos foi a Taiti com o capitão e comprou os óculos. As lentes não são as mais indicadas, mas o Sr. Manao pôde ler de novo.

     Tinham chegado à ponte de madeira. Nihau esperou que Mary a atravessasse, e em seguida fez o mesmo.

     - Vai para sua cabana? - perguntou ele.

     A jovem fez um gesto de assentimento com a cabeça.

     - Minha mãe quererá que lhe conte tudo sobre o primeiro dia de escola.

     - Terei muito prazer em acompanhá-la.

     Mary sentiu-se lisonjeada, embora não soubesse ainda bem se ele estava interessado na sua pessoa ou no fato de ela ser uma estranha.

     - Obrigada - volveu ela.

     Caminharam silenciosamente através da aldeia, sob o sol ardente, como dois tímidos adolescentes, separados alguns centímetros um do outro. Ela esperava interrogar Nihau sobre a última dissertação do Sr. Manao. Desejava saber, em pormenor, de que constava realmente a aula de faa hina'aro. Todavia, o embaraço fez com que contivesse as inúmeras perguntas que queria formular. Em dado momento, porém, voltou a cabeça e viu que ele tentara dizer qualquer coisa.

     - U... a... Srta. Karpa... Karpo...

     - Chamo-me Mary.

     - Srta. Mary.

     - Mary.

     - Ah. Mary... - O esforço que fizera fora tão penoso que parecia não ter forças para falar.

     - Ia perguntar-me alguma coisa, Nihau?

     - A sua escola na América é como a nossa?

     - Não. É completamente diferente. O edifício é enorme, feito de... tijolos e pedras... tem dois pisos e freqüentam-no centenas de estudantes. Temos muitos professores. Um professor diferente para cada disciplina.

     - Que bom. As disciplinas são iguais às nossas? Ela refletiu na pergunta.

     - Sim e não, imagino. Temos história, como vocês, só com a diferença de que se refere ao nosso país... aos americanos famosos... Washington, Franklin, Lincoln... e a alguns outros países também... a seus reis e...

     - Reis?

     - Como os seus chefes... Temos também trabalhos manuais... coisas práticas, como vocês... e estudamos línguas de outros países. A diferença principal é esta,: as disciplinas são em maior número.

     - Sim, vivem num mundo maior.

     Ao tentar recordar as outras disciplinas que estudava na escola de Albuquerque compreendeu que não incluíra uma. Eis uma oportunidade de tocar suavemente no tema do faa hina'aro e de fazer diversas perguntas. O momento era apropriado e não devia ter vergonha.

     - Não temos uma disciplina das suas... aulas verdadeiras sobre educação sexual.

     A incredulidade estampou-se nas faces do jovem Nihau.

     - Será possível? É a mais importante de todas.

     A bandeira do patriotismo começou a flutuar ao vento, acima dela, e Mary procurou apressadamente corrigir sua afirmação.

     - Talvez tivesse exagerado um pouco. Temos alguma educação sexual, decerto. Aprendemos muitas coisas sobre os animais inferiores... e também sobre as pessoas... como, por exemplo, lançar uma semente numa mulher...

     - Mas quanto à arte de fazer amor... não lhes ensinam nada sobre ela?

     - Na... não - volveu Mary. - Claro, toda a gente aprende mais cedo ou mais tarde. Quero dizer...

     Nihau encontrava-se verdadeiramente perplexo.

     - Deve ser ensinada na escola. Deve ser demonstrada. É a única maneira de aprendermos. - Mirou-a de relance no momento em que passavam pela cabana do chefe. - Como... como aprendem no seu país, Mary?

     - Oh, é bastante fácil. Por vezes, nossos pais, ou nossos amigos, falam-nos sobre o assunto. Bem, e como quase toda a gente na América sabe ler, e existem milhares de livros que descrevem...

     - Mas não, é errado - disse Nihau.

     Mary pensou na noite em que comparecera à festa de aniversário de Leona, pouco antes de saber que viria às Sereias. Embriagara-se, para provar que era desinibida; depois, no carro, quando se encontravam sós, Neal desejara realizar o ato, dissera que todos o realizavam. Ela opusera-se, pois não estava verdadeiramente apaixonada pelo companheiro e não queria ter um filho. Porém, para não parecer diferente das outras, uma tola, uma criança, consentira que ele lhe pusesse as mãos debaixo das saias, durante um instante, um breve instante, esperando que isto o contivesse. A partir desse momento os rapazes começaram a tratá-la melhor. Aparentemente, Neal falara, e ela passara a constituir uma possibilidade, tornara-se mais aceitável. Seria tudo uma questão de tempo, supuseram eles. No verão, talvez, mas felizmente era verão e ela estava longe, para seu alívio.

     Volveu sua atenção para o novo amigo.

     - Existem outras maneiras de aprendermos - disse. - Quer dizer... bem, mais tarde ou mais cedo, toda a gente o deseja, e acontece naturalmente.

     - Não é bom assim - retorquiu Nihau. - Uma mulher decide um dia, de improviso, cozinhar naturalmente ou coser naturalmente? Não. Tem de aprender primeiro. Aqui, o amor surge naturalmente... mas só depois da aprendizagem.. de modo que seja praticado com... espontaneidade... com alegria.

     Tinham chegado à cabana dos Karpowicz, que era a última daquele lado do conjunto. Deixaram o sol quente e abrigaram-se sob o alpendre.

     Ela não sabia o que dizer mais. Quando falou, passados momentos, fê-lo em voz baixa.

     - O Sr. Manao explicará tudo na nova classe que começa amanhã?

     - Sim. Mas meus irmãos e meus amigos mais velhos já me explicaram muita coisa. É bom.

     - Então, terei muito prazer em ouvir o professor, Nihau. Os olhos do jovem nativo cintilaram.

     - Estou muito contente - disse ele. - Sinto-me muito feliz por a ter conhecido, Mary. Espero que sejamos amigos.

     Deixou-o, ao sol, e entrou na divisão da frente, escura. Estava tão maravilhada que mal conseguia distinguir o que a cercava.

     Perto do fogão de terra, encontrou a mãe debruçada sobre uma tigela, cortando legumes. A mãe ergueu os olhos.

     - Já terminaram as aulas? Que tal decorreram, Mary?

     - Precisamente como na escola na América.

     - Que fez você?

     - Nada, mamãe, absolutamente nada. Foi aborrecido. Dirigiu-se para seu quarto. Não podia esperar. Tinha pensamentos profundos na mente e desejava examiná-los antes do dia seguinte.

     

     Os gemidos de um doente atrás da parede de junco tinham feito que Vaiuri, o médico prático da aldeia das Sereias, se desculpasse e partisse. Harriet Bleaska encontrava-se agora só no que supunha ser um misto de sala de recepção e de sala de exame da enfermaria.

     Fora conduzida para ali meia hora antes por Courtney. No caminho para a enfermaria, Courtney dera-lhe uma idéia do que devia esperar. Um jovem de trinta anos, Vaiuri, tinha a seu cargo aquela clínica rudimentar. Herdara o lugar do pai, que por sua vez o herdara também do pai. Ao que supunha Courtney, a saúde nas Sereias encontrara-se sempre nas mãos da família Vaiuri. Antes da chegada do primeiro Wright, seus antepassados eram nada mais nada menos do que feiticeiros, Merlins nus, cuja mana e encantações escorraçavam os espíritos malignos. Como remédios, esses antepassados usavam ervas da ilha, selecionando as mais ativas ou as apropriadas através de experiências realizadas, como é óbvio, no corpo dos doentes. Alguns praticavam pequena cirurgia utilizando um dente de tubarão como bisturi. Fora Daniel Wright, que trouxera livros como Bexigas e Sarampo, Tratamento de Ferimentos e Fraturas, Elementos de Fisiologia do Corpo Humano (edição de 1766), este de Albrecht von Haller, e uma mala com instrumentos e drogas, de acordo com a sugestão de um assistente de John Hunter, quem dera às Sereias uma representação elementar da medicina moderna.

     Realmente, dissera Courtney a Harriet, Vaiuri fora o primeiro da sua família a receber treino médico formal. Jovem, acompanhara Rasmussen a Taiti, onde permanecera durante um mês. Por intermédio da mulher de Rasmussen, Vaiuri conhecera um médico nativo prático que freqüentara a escola em Suva. Em troca de alguns artefatos, este ensinara a Vaiuri o que pudera, no seu tempo livre: primeiros socorros, curativos, cirurgia simples, um pouco de higiene e saúde pública. Vaiuri partira com estes conhecimento escassos, várias seringas, drogas e uma brochura sobre medicina prática.

     Vaiuri ajudara o pai na enfermaria, e depois da morte do velho suplantara-o, tomando dois jovens assistentes como aprendizes. Em troca de mercadorias, Rasmussen fornecia a enfermaria de Vaiuri de medicamentos contra a malária, aspirina, antibióticos, ligaduras, instrumentos. A maior parte do estoque era desperdiçado, pois nem Vaiuri nem qualquer outra pessoa das Sereias tinha conhecimentos sobre diagnósticos ou treino suficiente para empregar como devia os medicamentos. Courtney admitira perante Harriet que, em várias ocasiões, tentara ajudar Vaiuri, baseado nas suas recordações de medicina legal e no que aprendera - primeiros socorros - no Exército. Felizmente, acrescentara Courtney, não se necessitava de grandes conhecimentos médicos nas Sereias, pois os nativos eram bastante saudáveis e longevos. Além disso, não se tinham verificado epidemias ou pestes durante a sua história, uma vez que não tinham sido contagiados por portadores de germes vindos do mundo exterior.

     - Todavia, pode ser de grande utilidade aqui - dissera Courtney a Harriet. - Pode passar a Vaiuri todos os seus novos conhecimentos, mostrar-lhe como usar os medicamentos que tem de reserva. Em troca, pode aprender muito sobre os métodos curativos dele, as suas ervas e ungüentos, uma coisa que será útil tanto para a Dr.a Hayden como para Cyrus Hackfeld.

     Harriet, desde sua chegada, nunca se encontrou tão entusiasmada. A dor produzida pela rejeição de Walter Zegner era muito menos intensa. Porém, ao atravessar a aldeia na companhia de Courtney, ao aproximar-se da enfermaria, sentira-se momentaneamente perturbada em vista dos nativos que iam e vinham. Eram todos, pelo menos os de idade aproximada à sua, bastante atraentes. Estava certa de que as fachadas humanas eram tão admiradas aqui como na América. Seria tida pelo que era, uma jovem feia, e mais uma vez ninguém se preocuparia com o que se encontrava por detrás da Máscara. Não conseguira evadir-se, afinal.

     Este estado de espírito persistira durante uma boa parte da sua meia hora com o curandeiro nativo. Vaiuri era um jovem de tez clara, delgado mas sólido, um ou dois centímetros mais baixo do que ela, com músculos que pareciam cabos de aço nos braços e nas pernas. Seu rosto tinha uma expressão de águia, mas sem qualquer traço de ferocidade. Em vez disso, era benevolente, sério, dedicado, objetivo. Harriet considerara sua aparência absolutamente destituída de qualquer semelhança com a de um médico, em especial porque não podia imaginar um verdadeiro médico de sarong (ou o que quer que chamassem àquela indumentária) e sandálias.

     Gentil, calmo, Vaiuri falara sobre seu trabalho e seus problemas. Ela sentira-o distante. Preocupara-a o fato do rapaz não olhar para ela à medida que falava (atribuindo isto, como sempre, à Máscara). Como se sentia normalmente insegura todas as vezes que aqueles com quem se encontrava pareciam não lhe prestar atenção, empenhou grandes esforços para o aproximar dela. Tentou, o melhor que pôde, insinuar que estava pronta a entregar parte da sua autonomia, oferecendo amizade por atenção. Com exceção de um leve tremeluzir de seus olhos firmes e do aparecimento de uma ruga nos cantos dos lábios, Vaiuri continuou remoto. Porém, manifestara verdadeira preocupação quando um de seus doentes soltara um gemido de sofrimento e apressara-se a ir em seu auxílio. Isto agradara sobremaneira a Harriet.

     Momentaneamente entregue a si própria, Harriet ergueu-se e tentou compor seu uniforme branco e sem mácula de enfermeira. Perguntou-se se o uniforme a fazia parecer demasiado imponente ou se, por outro lado, não era prático. Contudo, como era de mangas curtas e fora confeccionado com tecido fino, pouca semelhança tinha com um verdadeiro uniforme. E o fato de trazer as pernas nuas e de estar de sandálias mais realçava a sua aparência pouco formal. Na sua terra, a indumentária sugeria devoção e gentileza. Aqui,

     era estranha, e não conseguia imaginar o que poderia sugerir. Todavia, embora fosse estranha, não podia ser mais exótica do que os trajes de algodão colorido de Claire Hayden. O mais importante, apesar de tudo, é que a fizesse sentir-se uma enfermeira.

     Desejou fumar um cigarro, mas pensou que seria pouco próprio fazê-lo aqui. E, também, não queria mostrar desrespeito por Vaiuri. Teria de saber se as mulheres eram consideradas masculinas se fumassem. Maud tinha-as advertido contra as calças; talvez fosse aconselhável estender a advertência aos cigarros.

     Notou as largas caixas abertas que se encontravam na sala e quis saber o que se encontrava dentro delas. Estavam cheias de frascos e embalagens de medicamentos básicos, e os rótulos de cada recipiente tinham o nome de uma farmácia de Taiti. Acocorada, examinou todos os frascos, como se os inventariasse; passados cinco minutos, porém, Vaiuri voltou.

     Envergonhada por ter sido surpreendida naquela postura, Harriet pôs-se de pé de um salto, uma desculpa semiformada nos lábios.

     - Está interessada na minha pequena coleção? - perguntou Vaiuri.

     - Perdoe-me. Não devia...

     - Não, não. Agrada-me seu interesse. É bom ter alguém... - A sua voz extinguiu-se.

     - Tem uma reserva maravilhosa - disse Harriet, com a esperança de ter por fim estabelecido contacto com ele. - Vejo que dispõe de antibióticos, desinfetantes...

     - Porém, em vez disso, uso ervas - volveu ele. Harriet compreendeu que Vaiuri depreciava a sua pessoa; este momentâneo vislumbre de fraqueza talvez conduzisse à amizade. Para manifestar sua gratidão, observou:

     - Bem, decerto que algumas ervas...

     - A maior parte delas não tem qualquer utilidade - interrompeu ele. - Não emprego mais vezes os medicamentos modernos porque não conheço suficientemente bem suas aplicações. Tenho receio de os utilizar mal. Não possuo treino médico suficiente. Pouco mais sei do que meus doentes.

     Sentiu um desejo enorme de lançar entre ela e ele uma ponte de palavras, de lhe estender o braço, de tocá-lo, de fazê-lo ciente de que estava ali para o ajudar. Porém, reprimira este desejo. Se os americanos manifestavam ressentimento pelas mulheres experientes, dotadas de conhecimentos, considerando-as ameaças à sua masculinidade, os homens das Sereias podiam sentir da mesma maneira. Conteve a língua. Contudo, como podia fazer sua oferta? O próprio Vaiuri resolveu o problema.

     - Estava pensando... - começou ele. Fez um gesto breve com a mão, e continuou. - Não tenho o direito de tomar seu tempo, Srta. Bleaska, mas estava pensando no que podia fazer por mim, pelos aldeões, se me quisesse instruir na moderna...

     Acolheu calorosamente as palavras de Vaiuri, manifestou-lhe o mais profundo afeto por ser superior, neste aspecto, à maioria dos americanos que conhecera.

     - Mas é meu desejo fazê-lo - disse com fervor. - Não sou médica, claro, não sei tudo, mas, como enfermeira diplomada, trabalhei durante alguns anos em hospitais, e li muito, para me manter a par das novas técnicas terapêuticas. Demais, a Dr.a DeJong pode elucidar-nos num caso de verdadeira emergência. Assim, se quiser desculpar minhas limitações... sim, adoraria fazer tudo o que pudesse.

     - É muito bondosa - limitou-se Vaiuri a responder. Harriet quis lisonjear sua masculinidade.

     - E pode também fazer muito por mim - disse. - Tenciono tirar algumas notas sobre suas enfermidades, redigir histórias clínicas acerca dos seus doentes, aprender o que puder sobre... bem, sobre seus métodos curativos, uma vez que mencionou as ervas medicinais.

     Ele inclinou a cabeça.

     - O meu tempo, à parte aquele que dedico aos doentes, é inteiramente seu. A minha enfermaria é a sua casa. Pode vir aqui quantas vezes quiser. Durante a sua permanência nas Sereias considerá-la-ei minha colega de trabalho. - Indicou o corredor que dava acesso ao interior da enfermaria. - Quer que comecemos já?

     Vaiuri, caminhando suavemente, dirigiu-se, seguido por Harriet, para a espaçosa sala da comunidade, que alojava sete doentes, seis deles adultos: duas mulheres, quatro homens e uma menina. A criança e uma das mulheres dormitavam, e os outros doentes estavam deitados, apáticos, aqui e ali. O aparecimento de uma mulher estranha vestida de branco fez com que se reclinassem e se mostrassem atentos.

     Vaiuri conduziu Harriet pela sala, apontando vários doentes que sofriam de feridas ulceradas, um que tinha uma infecção provocada por um corte num coral, outro que tinha uma fratura num braço, dois que se restabeleciam de um desarranjo intestinal. A atmosfera da sala úmida parecia a de um bloco de celas cheio de prisioneiros entorpecidos. Quando saíam, Harriet, que sentia falta dos sons produzidos pelo aparelhos de rádio e de televisão, perguntou:

     - Que fazem eles durante todo o dia?

     - Dormem, sonham acerca do passado e do futuro, falam entre si, fazem-me queixas... a maior parte do nosso povo suporta dificilmente esta restrição à sua atividade... e distraem-se com nossos jogos tradicionais. Agora, Srta. Bleaska, mostrar-lhe-ei nossos quartos particulares, onde mantenho aqueles que considero gravemente enfermos ou que sofrem de doenças contagiosas, ou aqueles que... Bem, que são incuráveis. Temos aqui seis pequenos quartos. Sinto satisfação em dizer que apenas dois estão ocupados. É mais fresco aqui, não é verdade?

     Vaiuri abriu a porta de bambu, que dava para um pequeno quarto com uma janela ocupado por um velho macilento deitado numa esteira: este ressonava.

     - Tuberculose, creio - disse Vaiuri. - Uma vez visitou outra ilha e contraiu lá a doença.

     Seguiram agora pelo corredor, detendo-se à porta que ficava na extremidade.

     - Este caso entristece-me bastante - disse Vaiuri antes de entrar. - Eis Uata, antigamente um dos nossos melhores nadadores, um jovem da minha idade. Freqüentamos a escola na mesma época, tivemos as nossas cerimônias da maturidade . na mesma semana. Apesar da sua robutez física, foi atacado por grave doença há dois meses e trouxe-o para aqui. Baseado nas minhas leituras, e sei ler muito mal, creio que sofre de uma doença do coração. Cada vez que repousa recobra energia, mas um novo ataque acaba por prostrá-lo. Suponho que não sairá daqui vivo.

     - Tenho muita pena - disse Harriet, e seu coração condoeu-se do coração frágil do doente, embora não o tivesse ainda visto. - Talvez não seja prudente perturbá-lo.

     Vaiuri sacudiu a cabeça.

     - De modo algum - retorquiu ele. - Apreciará nossa companhia. Sabe, nas Sereias os doentes são isolados de todos. É um antigo tabu. Só as pessoas do sexo masculino da família do chefe podem visitar um parente. O pai de Uata é primo do chefe Paoti e, assim, a alguns membros da família é permitido vir aqui. Sim, Uata ficará muito contente por ter uma visita... - Nos seus olhos entrevia-se secreto divertimento -... em especial do outro sexo. - Acrescentou apressadamente. - Na devida oportunidade apreciarei seu diagnóstico.

     Ele abriu a porta e entrou no pequeno cubículo. Harriet seguiu-o. Perto da janela, com as costas voltadas para eles, um corpo enorme, como se um grande tronco de mogno claro, estava estendido numa esteira. Ao aperceber-se da entrada de ambos, o doente, que fazia lembrar uma reprodução do Milo de Crotona, rolou sobre si e dirigiu um sorriso ao amigo; depois, ao notar a presença física de Harriet, uma expressão de perplexidade estampou-se-lhe nos olhos.

     - Uata - disse Vaiuri -, ouviu falar da chegada dos americanos que nos visitam? Um deles está aqui, uma médica prática mais experiente e com mais conhecimentos do que eu. Ela colaborará comigo nas próximas seis semanas. Quero que a conheça. - Vaiuri deu um passo para o lado. - Uata, esta é a Srta. Bleaska, da América.

     Harriet sorriu.

     - Prefiro ser, para vocês ambos, Harriet, que é o meu nome próprio... - Ela viu o Golias, abatido, esforçando-se por se erguer, decidido a levantar-se a despeito da sua incapacidade. Num impulso súbito, aproximou-se dele, ajoelhou-se e pousou as mãos sobre seus ombros. - Não, repouse. Quero que fique absolutamente imóvel antes de o examinar. Deixe-se estar deitado. - Ele tentou protestar, depois rendeu-se, com um pálido sorriso, e encolheu os ombros. Harriet, com o braço esquerdo rodeando os seus ombros largos, fez com que ele tombasse lentamente sobre a esteira. - Ora, assim é melhor.

     - Não sou tão fraco como pensa - disse Uata do chão.

     - Decerto que não - concordou Harriet -, mas poupe as energias que tem. - Ajoelhada ainda, voltou-se para Vaiuri. - Gostaria de fazer um exame geral imediatamente, a não ser que tenha mais alguma coisa...

     - Ótimo - volveu Vaiuri. - Vou buscar o estetoscópio e tudo o que encontrar mais.

     Depois de ele sair, Harriet voltou-se para o doente. Seus olhos ovais, líquidos, não a tinham abandonado um só instante, e ela achava-se bastante contente.

     - Tem dificuldade em respirar? - perguntou Harriet.

     - Estou bem - retorquiu Uata.

     - Não sei... - Ela colocou a palma da mão sobre o peito do nativo e moveu-a até à cintura, até ao cós da tanga curta; introduzindo-a sob esta, foi até ao estômago, de onde a ergueu. - Assim sentir-se-á melhor.

     - Estou bem - repetiu ele. - A sua vinda provocou-me... - Procurou a palavra e disse então: - Hiti ma'ue, que significa... excitação Harriet retirou a mão.

     - Por quê?

     - Há dois meses que nenhuma mulher me visita... A senhora manifesta compaixão. É coisa rara numa mulher. Entrou na minha alma.

     - Obrigada, Uata. - A mão de Harriet tinha já rodeado o pulso do nativo. - Deixe-me tomar-lhe o pulso.

     Depois, tentando não franzir as sobrancelhas, ela baixou a mão e compreendeu que Uata a fitava.

     - Pareço-lhe diferente? - perguntou ela.

     - Sim.

     - Por causa do meu vestido... ou porque venho de longe?

     - Não.

     - Então por quê?

     - É diferente das outras mulheres que vi e admirei. Não é muito bela de ossos e carne, mas a beleza está bem dentro de você e possuí-la-á eternamente.

     Escutava com a respiração quase suspensa. Fora necessário percorrer milhares de quilômetros para encontrar um homem, um homem ihvulgar, dotado de um corpo animalesco, mas capaz de ver sob a Máscara.

     Quis dizer-lhe que ele era um poeta, pronunciar algumas palavras, mas antes que o pudesse fazer a porta abriu-se e Vaiuri voltou com uma ampla tigela de tartaruga cheia de instrumentos médicos.

     Com Vaiuri a seu lado, começou a examinar minuciosamente Uata ao mesmo tempo que o interrogava sobre a respiração, vertigens e possível visão dupla. Notou que ele tinha os tornozelos inchados e compreendeu que estava há muito tempo assim. Pegou no estetoscópio e aplicou-o ao peito e às costas, escutando cuidadosamente.

     Terminado o exame, ergueu-se e olhou de relance para Vaiuri.

     - Tenho na minha cabana um aparelho para medir a pressão sangüínea - disse ela. - Tenho também Heparin... um anticoagulante... se necessitarmos dele. E alguns medicamentos diuréticos, se seu uso for indicado. Gostaria de examiná-lo de novo amanhã.

     - Com certeza - concordou Vaiuri.

     Ele colocou o estetoscópio na tigela e saiu do quarto. Harriet preparava-se para segui-lo quando Uata a chamou. Vaiuri desaparecera, e Harriet estava uma vez mais só com o doente.

     - Não queira nunca enganar-me - disse ele. - Vivi uma vida inteira.

     - Nunca se sabe até...

     - Não quer enganar-me, não é?

     - Não, Uata.

     - O meu estado não me preocupa - disse ele. - O que me importa é que o ultimo período de uma boa vida não seja desperdiçado no isolamento. Não sabe quanta alegria me deu com a sua vinda aqui. Sentia-me só, desejava a companhia de uma mulher. Elas têm sido todo o prazer de minha vida.

     Harriet desejou estender a mão para confortá-lo, mas conteve-se. Perguntou-se se devia dizer a Uata que tentaria que Maud intercedesse junto do chefe para que este removesse o tabu, a fim de que ele pudesse receber as suas mulheres e passasse os seus últimos dias com elas. Quando se preparava para formar o seu plano ouviu que alguém entrava, e desviou a sua atenção para a porta.

     Um nativo jovem, atraente, de cabelo negro, entrara no quarto, familiarmente, e Uata apresentou-a à visita: era o seu melhor amigo, Moreturi, -o filho do chefe. Durante uns momentos os dois nativos trocaram alguns gracejos em inglês, e depois, de súbito, Uata disse uma frase em polinésio a Moreturi. Em resposta, este desviou os olhos e fixou-os em Harriet, que se sentiu pouco à vontade em face da atenção dos dois homens. Não sabia do que se tratava, mas em vez de perguntar resolveu sair do quarto.

     Na vasta sala de exame encontrou o médico prático passeando de um lado para o outro. Para sua surpresa, Vaiuri estava fumando uma espécie de tabaco nativo.

     - O Sr. Courtney disse-me que as mulheres americanas fumam - declarou ele. - Quer um dos nossos cigarros?

     - Obrigada, mas se não se importa prefiro fumar um dos meus.

     Depois de acender o cigarro notou que Vaiuri esperava que falasse.

     - O estado dele é grave - disse Harriet.

     - Receava isso.

     - Não tenho a certeza ainda - acrescentou rapidamente. - Sou apenas enfermeira, e não uma especialista de doenças do coração. Porém, os sintomas de doença cardiovascular são tão evidentes que me surpreende o fato de ele estar ainda vivo. Poderei saber mais depois da minha próxima visita. Porém, não serei capaz de dizer especificamente de que espécie de doença cardíaca sofre ele. Pode tratar-se de uma doença degenerativa, de algum defeito congênito que surgiu de repente. Duvido que se possa fazer alguma coisa, mas empenharei todos meus esforços, tentarei tudo. Espero que... que parta subitamente. Talvez devesse preparar a família.

     - Eles esperam o pior. Já o choram. Ela sacudiu a cabeça.

     - É uma pena. Uata parece uma pessoa maravilhosa. - Deixou tombar a ponta do cigarro numa concha cheia de água que tinha já outras. - Bem, sinto-me contente por me ter recebido tão bem, Vaiuri, e por me deixar colaborar com você... Até amanhã, então.

     Vaiuri acompanhou-a até à porta e inclinou a cabeça quando ela saía. Durante alguns segundos, Harriet deixou-se ficar imóvel à sombra, um pouco para lá da enfermaria, pensando no doente, cheia de compaixão por ele. Começou a caminhar ao ouvir que uma porta se abria e se fechava atrás dela. Porém, alguns metros mais adiante Moreturi encontrava-se a seu lado.

     - Obrigado por ajudar meu amigo - disse ele.

     - Quer ajudar-me a mim, Moreturi? Uata disse algumas palavras na sua língua, pouco antes de eu sair, e ambos me fitaram.

     - Perdoe-nos.

     - Disse alguma coisa acerca de mim?

     - Sim, mas não sei se...

     - Por favor, diga-me.

     Moreturi inclinou a cabeça num gesto de assentimento.

     - Muito bem. Ele disse na nossa língua: “Morreria com alegria se uma vez só, antes de partir, pudesse dizer a uma bela mulher como ela Here vau ia oe.”

     Harriet fitou desconfiada o filho do chefe.

     - Here vau ia oe?

     - Quer dizer: amo-a. Isto é mais expressivo na nossa língua do que na sua.

     - Compreendo.

     - Está ofendida?

     - Pelo contrário, eu...

     Atrás deles, a porta rangeu. Vaiuri deitara a cabeça de fora, interrogativamente.

     - Alguma novidade?

     - Não. Vai tudo bem - volveu Harriet. De súbito, porém, foi possuída por um segundo impulso. - Vaiuri...

     - Sim?.

     - Em vez de amanhã, gostaria de voltar esta noite para completar o exame. Estou profundamente interessada em Uata. Desejo ver o que se pode fazer.

     - Venha, por favor - retorquiu Vaiuri. - Terei de comparecer esta noite a uma festa oferecida por uma pessoa da família, mas um jovem esperá-la-á aqui.

     Depois de Vaiuri se ter retirado, Moreturi fitou Harriet, pensativamente.

     - Crê que pode salvar meu amigo?

     Harriet sentiu uma leve aragem tocar-lhe o rosto, e com ela vieram as palavras que Maud pronunciara nessa manhã: deve dizer-se sempre a verdade nunca mentir.

     - Salvá-lo? - ouviu-se Harriet dizer. - Não creio que seja possível. Tudo o que posso fazer, e qualquer pessoa o pode fazer... Bem, é simplesmente isto: nenhum ser humano deve morrer só.

     Após dizer isto Harriet deixou Moreturi e a sombra, e desceu, ao sol, o declive que conduzia ao conjunto da aldeia. Imersa nos seus pensamentos, sem fazer caso do sub-reptício interesse que o seu uniforme branco despertava, atravessou a ponte sobre o regato. Então, após tomar a decisão de discutir o caso de Uata com a Dr.a Maud Hayden, a fim de que esta intercedesse junto de Paoti para que o tabu contra as visitas do sexo feminino à enfermaria fosse posto de lado, estugou o passo.

     Não ia ainda muito longe quando ouviu pronunciar seu nome. Deteve-se e olhou sobre o ombro, vendo Lisa Hackfeld, de braço erguido, acenando.

     Enquanto esperava que ela se aproximasse, disse para consigo que jamais vira a esposa do patrocinador da viagem com um aspecto tão radiante.

     De fato, Lisa Hackfeld estava transformada. Tinha perdido a sua afetação, a sua aparência imaculada, rica, bem penteada, manicurada, o dourado de Beverly Hills. Perdera também seu tom lamentoso. A Lisa que dava o braço a Harriet parecia ter sobrevivido a um furacão e exultava com sua vitória. O seu cabelo louro era um ninho de ave desfeito, e o rosto, sem make-up, parecia muito mais jovem, tocado pelo entusiasmo que dissimulava as poucas rugas. Além disto, a blusa, à qual faltavam dois botões, estava suja, e uma parte dela pendia fora do cós da saia.

     - Harriet - bradou Lisa, - estou ansiosa por dizer a alguém...

     Deteve-se ao compreender que a enfermeira a tinha olhado toda, com espanto. Então, retirou o braço e, num gesto rápido, ajeitou o cabelo, compôs a blusa, tentando dar certa ordem a si mesma.

     - Devo ter um aspecto horrível - murmurou. Depois, porém, descontraiu-se. - Que diabo, quem se vai preocupar com minha aparência? Sinto-me eufórica, e isto é o que conta.

     - Que aconteceu? - desejou saber Harriet.

     - Diverti-me a valer, querida - respondeu Lisa com alacridade. - É inacreditável. Não me divertia tanto desde o tempo em que era Lisa Johnson, em Omaha, e ia aos meus primeiros bailes. E o mais curioso é que me achava deprimida como o diabo ainda esta manhã. Provavelmente, ninguém deu por isso, mas enquanto estava sentada naquela sala abafada, ouvindo Maud, pensava sem cessar: que faço eu aqui? Nem sossego, nem toalete, nem luz. Não existe o mínimo conforto. Que maneira de passar o verão! Podia ter ido para a nossa propriedade de Costa Mesa, beber com Lucy e Vivian... são amigas minhas... e viver regaladamente. Em vez disso, eis-me neste buraco seco como o diabo. Sabe, enquanto ouvia a dissertação de Maud cheguei a pensar em erguer-me e dizer que desistia, que ia no avião do Capitão Rasmussen até Taiti, de onde partiria para a boa Califórnia.

     Esta torrente de palavras deixou Lisa sem fôlego; enquanto ela tentava recobrar a respiração, Harriet perguntou:

     - O que a fez modificar seus planos?

     - A dança, querida! - Procurou qualquer coisa nos bolsos e depois disse: - Até perdi os cigarros. Pode emprestar-me um?

     Depois de acender o cigarro oferecido por Harriet, Lisa continuou a falar:

     - Mesmo quando esse Courtney me conduzia ao local onde estão ensaiando para o festival, não desejava ir. Continuava a dizer para mim mesma: o que faço ali na minha idade? E o que me interessam estes nativos nus que se devem estar contorcendo ao sol? No entanto, o nosso amigo vagabundo dizia, sem cessar, que se tratava de um espetáculo interessante, e eu fingia que acreditava e lá me deixava arrastar por ele. Chegamos a uma clareira, a umas boas centenas de metros da aldeia, e aí vimos vinte nativos, homens e mulheres, juntos. Courtney apresentou-me a uma jovem, tipo Katherine Dunham, chamada Oviri. É ela quem dirige os ensaios. Bem, sentamo-nos na grama, e esta Oviri mostrou-se afetuosa, devo dizer. Deu-me algumas explicações sobre a semana do festival. Isso interessou-me verdadeiramente. Já ouviu falar do festival?

     - Sim, um pouco - disse Harriet. - Mas apenas o que Maud nos contou: as danças, as competições, o concurso de beleza nudista. E também qualquer coisa sobre a liberdade de que gozavam os casais durante esse período...

     - É assim para todos - interrompeu Lisa. - Sabe bem o que se passa na América. Antes de casarmos, vemos um homem que nos interessa, talvez na rua, numa loja, ou no salão de um bar, mas habitualmente não chegamos a conhecer. Só conhecemos as pessoas a quem somos apresentadas. E depois de casarmos, quando começamos a envelhecer... bem, você ainda não tem experiência destas coisas, mas acredite na minha palavra... tudo piora, é uma coisa triste como o diabo. As pessoas têm de se agarrar ao que têm. Cometem-se todas as espécies de trapaças secretas, infidelidades e o mais. Tenho certeza de que o Cyrus já me foi muitas vezes infiel, mas nunca o procurei imitar, como retribuição. E nem penso nisso, creia. É uma coisa imprópria, perigosa e simplesmente errada. Assim, vamos envelhecendo, pouco a pouco, até que não nos resta uma única oportunidade. Secamos como uma videira exposta ao sol.

     Durante um momento ficou absorta, refletindo, com o olhar fixado na relva que orlava o caminho. Em dado momento ergueu os olhos e prosseguiu:

     - Estava pensando... Não, não é como uma videira exposta ao sol. É como... Bem, tem-se apenas uma vida, e esta vai-nos fugindo gradualmente como o ar que se escapa de um balão mal atado. Por fim, sentimo-nos completamente vazias. Compreende, Harriet? Isto acontece com freqüência. Por vezes, contudo, conhecemos outro homem numa festa, ou aqui ou ali, e ele pensa que ainda valemos alguma coisa e nós pensamos que ele é encantador, gentil. E pensamos em... Bem, pensamos que ele nos pode ainda atar o balão, evitar que a vida se nos escape, renovar a nossa existência. Quando se está casada há tantos anos como eu, Harriet, o tempo deixa marcas bem profundas, que não podemos dissimular. E temos de aceitar sem um queixume as fraquezas do nosso marido, seus malogros como pessoa, suas atitudes para com a mãe, o pai, o irmão, seus desacordos com seu primeiro sócio, sua estupidez em relação ao filho, a sua incapacidade em agüentar as bebidas que tomou certa noite durante uma festa à beira-mar, suas infantiiidades, seus receios disparatados, sua falta de graça ao dançar, seu mau gosto a propósito disto ou daquilo. Resignamo-nos a tudo, à idade, ao tédio, e sabemos que ele pensa de nós o mesmo que pensamos dele, que temos sempre bem presentes as nossas insatisfações, todas as cicatrizes. Chegamos até a esquecer os bons momentos, os aspectos razoáveis da nossa personalidade. Assim, desejamos por vezes outro, não apenas por causa do sexo e do resto, mas para nos sentirmos novas para alguém, para estarmos junto de um novo ser. Ele não poderá ver as nossas cicatrizes, nós não poderemos ver as dele. Mas o que acontece quando se encontra um candidato? Nada. Pelo menos às mulheres como eu. Sou demasiado convencional.

     Lisa parecia ter-se quase esquecido da companheira. Em dado momento, porém, fitou-a de súbito.

     - Imagino que perdi o fio da conversa - disse. - Talvez não. Bem, comecei por dizer que nesta ilha as pessoas dispõem de um escape. O festival anual é a sua válvula de segurança. Segundo esta tal Oviri, naquela semana todos, homens ou mulheres, casados ou solteiros, podem aproximar-se de qualquer outra pessoa. Por exemplo, um homem pode ter um romance, fazer amor com uma mulher casada, por exemplo, há dez ou quinze anos. E ela pode apaixonar-se pelo marido de uma outra. Dá-lhe apenas um presente, um colar, suponho, e se ele o põe quer dizer que sente o mesmo por ela. Podem encontrar-se às claras. Se desejam dormir juntos podem fazê-lo. Se desejam apenas companhia, muito bem, têm-na. Quando o festival termina, a mulher volta ao marido e a vida em comum prossegue, sem recriminações. É uma tradição perfeitamente saudável, aceita por todos. Penso que é maravilhoso.

     - Está certa no que se refere às recriminações? - perguntou Harriet. - Quero dizer, as pessoas são possessivas, ciumentas.

     - Não aqui - volveu Lisa. - Foram criadas com estes costumes e seguem-nos durante toda a vida. Oviri disse que se verificam oor vezes alguns desajustamentos, um apelo à Hierarquia, um pedido de divórcio, numa troca de companheiro, devido ao festival. Porém, isso é raro. Apesar de tudo, continuo na minha: isto é maravilhoso. Imagine, poder-se fazer o que se deseja durante uma semana sem receio, sem sentimentos de culpa.

     - É fantástico. Nunca ouvi falar de uma coisa assim.

     - Bem, como estamos aqui, havemos de ver tudo com nossos próprios olhos. Oviri declarou que tudo começa com as danças cerimoniais da primeira noite. Estas criam uma atmosfera de regozijo, de liberdade. Eis o que os vi ensaiar há pouco mais de uma hora. Depois de Oviri me deixar a fim de se reunir a seu grupo... havia alguns novos a quem tinha de ensinar a dança com o grupo... fiquei sentada, só, dominada um tanto pela depressão. Todavia, mal começaram a dançar, meus olhos acompanharam-nos, fascinados. Tenho algumas noções sobre dança, querida, mas nunca vi nada que se parecesse com aquilo. Diante de meus olhos, exaltavam a fertilidade, uma fila de homens e uma fila de mulheres, face a face, em movimentos sincronizados. Em dado momento dois músicos começaram a tocar, um, uma flauta, outro, um tambor de madeira, e as mulheres puseram-se a bater palmas e a cantar, lançando a cabeça para trás, fazendo sobressair os seios e o pélvis, todos os músculos vibrando, os homens, por seu lado, faziam voltear os quadris, em frenesi. Cheguei a acreditar que tudo terminava numa orgia. Suponho que estava arrebatada e que o mostrei, pois tinha os olhos dilatados e batia as palmas das mãos contra os quadris. Bruscamente, Oviri surgiu diante de mim e estendeu-me a mão. Nunca me “passara pela cabeça juntar-me a eles, pois, além da minha idade o proibir, já não dançava há muitos anos. Porém, decorridos alguns momentos, estava entre eles, no meio de seres completamente estranhos, imitando-os. Volvidos alguns minutos fizeram uma pausa, felizmente, pois tinha a boca seca e as pernas e os braços doíam-me. Pensei que ia ter um colapso. Distribuíram bebidas, um líquido leitoso feito de ervas, e Oviri explicou-me o número seguinte, no qual não tencionava participar; porém, o entusiasmo venceu-me e daí a instantes achava-me no círculo que tinham formado, acompanhando aquele ritmo endiabrado. Se Cyrus e nossos amigos me pudessem ver naquele frenesi, que espetáculo! Em dada altura encontrava-me tão excitada que tirei bruscamente a blusa - eis por que lhe faltam os botões -, e fiquei apenas de soutien e saia, como uma maníaca. Há muitos anos que não me sentia tão descontraída. E quando a dança terminou nem sequer me sentia fatigada. Que coisa singular! Bem, todos gostaram de mim, e eu gostei deles, e prometi a Oviri vir todos os dias. Tenho de redigir algumas notas para Maud... Uma coisa engraçada: aquela dança maluca é reservada aos jovens, pelo menos na América. Mas sabe, no momento em que me preparava para partir perguntei a Oviri sua idade. Ela é mais velha do que eu, tem quarenta e dois anos. É extraordinário, não acha?

     Harriet escutara deliciada a narrativa de Lisa Hackfeld. Como sempre, gostara de ver uma pessoa feliz. Esquecera quase por completo a mágoa que Uata lhe inspirara.

     Subitamente, recordou-se do seu dever e deteve-se, pois tinham já ultrapassado a cabana de Maud.

     - É sensacional, Lisa - disse Harriet. - Tem de me levar lá um dia destes... Escute, quase me esquecia, mas tenho de ir falar com Maud.

     - Vá... Perdoe-me tê-la feito perder tanto do seu tempo com isto.

     Tinham-se separado já quando Lisa se lembrou de perguntar qualquer coisa.

     - Oh, Harriet, que tal passou o dia?

     - Como você, num baile, num grande e maravilhoso baile. - Sabia que Lisa não descobriria, e não compreenderia, se descobrisse, a ironia expressa no seu tom de voz.

    

     Passava um pouco das quatro da tarde - em casa sempre o período mais terrível do dia, quando se lamenta o que se fez ou o que não se fez até àquele momento, quando se sofre a aproximação da noite, com suas decepções - e Claire Hayden sentia-se contente, neste momento, por estar ocupada.

     Uma vez que sua mesa só estaria pronta no dia seguinte, sentou-se à secretária de Maud, acabou de datilografar a terceira carta, tirou-a da máquina, e preparou o papel e o carbono para a quarta carta. Antes de sair, para ir à cabana de Paoti, Maud ditará sete cartas para colegas dos Estados Unidos e da Inglaterra, cada uma delas curta mas aliciante, sugerindo um futuro estudo, um estudo espantoso.

     As raras cartas de Maud eram cuidadosamente calculadas, a fim de suscitarem insinuações verbais nos círculos antropológicos. Um certo Dr. Fulano de Tal abriria sua carta em Dallas, lisonjeado pelo fato de receber notícias da lendária Maud, extremamente fascinado pela “ilha secreta” de onde ela escrevia. Depois diria a outro antropólogo: “Escute, Jim. Sabe quem me escreveu na semana passada? Maud... Maud Hayden, do Sul do Pacífico. Fez uma grande descoberta desta vez, qualquer coisa que vai impressionar todo esse mundo.”

     Eis como Maud criava a atmosfera propícia à dramática comunicação que iria apresentar diante dos membros da Liga Antropológica Americana no próximo outono. Desta maneira, reforçaria o apoio do Dr. Walter Scott Macintosh e afastaria a ameaça representada pelo Dr. David Rogerson. E, assim, seria nomeada, com todas as honras, diretora-executiva da Culture. A nora sabia que a partir deste dia as teclas da máquina não conheceriam descanso.

     Satisfeita por colaborar nesta ação, por ajudar Maud a obter aquele elevado cargo, que viria também a beneficiar Marc e tornaria possível que vivessem na mais completa intimidade pela primeira vez desde o casamento, embora estivesse menos certa de o desejar, Claire introduziu as folhas na máquina e ajeitou-as.

     Inclinara-se para ler os sinais estenográficos quando, de súbito, a porta se abriu e o sol brilhante penetrou na sala, ofuscando-lhe a visão. Cobriu os olhos, ouviu a porta fechar. Deixou tombar a mão sobre o tampo da mesa e viu que era Tom Courtney que entrava, simpático, atraente, de camisa de manga curta e calças azuis.

     Courtney mostrou-se surpreendido por ver Claire atrás da mesa.

     - Olá - disse ele.

     - Olá - volveu ela.

     - Es... Esperava encontrar Maud.

     - Está com o chefe. - Inesperadamente, acudiu-lhe à mente que não tinha desejo algum de trabalhar. Preferia a companhia. - Deve voltar dentro de momentos - acrescentou apressadamente. - Por que não se senta?

     - Se não se importa... Porém, se estiver ocupada...

     - Terminei por hoje.

     - Muito bem. - Sentou-se num banco, tirou o cachimbo e a bolsa do tabaco e começou a enchê-lo. - Desculpe-me por ter entrado sem bater. Tudo é muito pouco formal aqui. Aos poucos esquecerá as suas... as suas maneiras americanas.

     Observou-o, enquanto ele acendia o cachimbo. Perguntou-se que teria em mente acerca dela... se alguma coisa. Com exceção do marido e do seu médico, nenhum outro branco a tinha visto nua até à cintura a não ser este estranho. Que pensara ele?

     Voltou-se um pouco na cadeira para fitá-lo, e puxou a saia. Com o cachimbo fumegando, ele ergueu os olhos, fitou-a e sorriu de maneira vaga, cruzando em seguida as pernas.

     - Bem, Sra. Hayden... - disse.

     - Ê melhor trocarmos Claire por Tom - interrompeu ela. - De certo modo, conhece-me tão... tão intimamente como o meu marido.

     - Que quer dizer com isso?

     - Creio que ofereci um belo espetáculo na noite passada. “Senhoras e senhores, venham ver a nova rainha do strip-tease das Três Sereias.”

     - Verdadeiramente, aquilo não a preocupava, não é verdade? - perguntou ele com uma expressão um pouco sombria.

     - Não, mas preocupa o meu marido. - Não se importava de se mostrar hoje desleal para com Marc. - Ele pensa que isto me está transformando numa dissoluta.

     Pronunciara as últimas palavras com certa ligeireza, mas a resposta de Courtney não deixava transparecer a mais vaga réstia de humor.

     - Aquilo tinha de ser feito, e você era a pessoa indicada - afirmou ele. - Creio que se comportou com dignidade. Causou uma maravilhosa impressão em Paoti, e nos outros.

     - Ainda bem. Tenho de o fazer depor sob juramento diante do meu marido.

     - Os maridos constituem uma raça especial - retorquiu ele. - Por vezes mostram-se possessivos e ressentidos.

     - Como sabe? Já pertenceu a essa raça?

     - Quase... Meus conhecimentos são em segunda mão - disse ele cuidadosamente, falando para o cachimbo. Ergueu os olhos. - Como advogado tratei de muitos divórcios.

     - Sellers, Woolf e Courtney, Advogados, Chicago, Illinois, Universidades Northwestern e de Chicago. Força Aérea, Coréia, 1952. Rumo às Sereias, 1957.

     A surpresa fez com que seus olhos se esbugalhassem; porém, não procurou dissimular o espanto.

     - Onde disse que vivia... Baker Street 221 B?

     - Foi tudo muito simples - declarou Claire. - Maud é extremamente meticulosa e fez as pesquisas que pôde, incluindo os cavalheiros Daniel Wright e Thomas Courtney.

     Ele inclinou a cabeça.

     - Sim, compreendo. Suponho que nada pode constituir já segredo. A entidade mais íntima e desconhecida deve ter uma ficha arquivada algures. Sabe. Sra... Posso tratá-la então por Claire?... Sim? Muito bem, Claire, por vezes, quando me encontrava na firma preparando ações de divórcio, espantava-me o fato de conhecer muito bem uma pessoa sem jamais a ter visto. Depois de um homem vir ao nosso escritório com seu pedido de divórcio, eu não tardava a conhecer, por dentro e por fora, a mulher visada, baseando-me nos papéis, em coisas como os documentos referentes ao pagamento do imposto profissional, da renda da casa, as contas do banco, os recortes de jornais, além daquilo que o marido me contava. Assim, não me surpreende que a minha vida constitua também um livro aberto.

     Claire gostava de Courtney. Apreciava a gentileza e a inteligência. Apreciava as manifestações de afetuosidade. Desejava saber mais, muito mais, acerca dele.

     - Sua vida não constitui um livro inteiramente aberto - disse ela. - O nosso dossiê revela que abandonou Chicago, más não indica por quê... ou por que veio para aqui... e como... ou por que tem continuado durante todo este tempo. Creio que não me cabe...

     - Não possuo segredos, pelo menos agora. Não tenho certeza de que alguém esteja interessado em... Bem, em motivos.

     - Eu estou interessada. Adoto-o como meu principal informante. Preparo um ensaio antropológico sobre os advogados que se dedicam ao divórcio e sobre a sociedade a que pertençam.

     Courtney riu.

     - Não é uma coisa tão dramática como pode supor.

     - Permita que seja eu o juiz. Um dia, você está atirando sobre Migs na Coréia. A seguir, retoma o seu papel de sócio de uma firma jurídica. Depois é... é um expatriado numa ilha desconhecida dos Mares do Sul. Isto é coisa normal nos advogados que tratam de causas de divórcio?

     - Naqueles que acabam de perder a confiança no semelhante, sim.

     - Semelhante? Isso significa alguma coisa?

     - Refiro-me especificamente às mulheres. Fora de contexto, isto parece coisa de rapazes. No entanto, é assim.

     - Baseada em provas concretas... cito Tehura, conforme o relato da noite passada, não me parece que você seja um misógino.

     - Estava falando no pretérito perfeito. Nos últimos dias da minha vida em Chicago eu era um perfeito misógino. As Três Sereias reformaram-me, deram-me uma melhor perspectiva de mim mesmo.

     - Bem, você esteve numa estância termal. Está curado. Por que não volta à pátria, americano?

     Ele hesitou.

     - Habituei-me a esta vida. Gosto de estar aqui. É uma vida fácil, sem exigências; um homem pode ter a solidão ou a companhia que deseja. Tenho aqui o meu trabalho, os meus livros...

     - As suas mulheres.

     - Sim, isso também. - Encolheu os ombros. - Assim, fico.

     Ela fitou-o fixamente.

     - É tudo?

     - Talvez haja outras razões - volveu ele lentamente. Sorriu. -- Reservemos' alguma coisa que me dê uma desculpa para conversar com você outra vez.

     - Como desejar.

     Ele endireitou-se no banco.

     - Por que abandonei Chicago? Não me importo de o dizer. De fato, terei prazer nisso. Penso que nossas atitudes endurecem cedo. Sei que em relação às mulheres e ao casamento assim aconteceu comigo. Meus pais passaram a vida de casados brigando. Havia apenas um telhado, mas era como se vivessem em casas separadas. Bem, quando isto sucede crescemos com a noção de que o casamento pode ser tudo menos o paraíso. E quando a nossa mãe é uma mulher de mau gênio, dominadora, isso faz também com que as nossas atitudes se modifiquem. Acabamos por concluir que Disraeli tinha razão: “Todas as mulheres deviam casar-se... mas não os homens. “ Passei muito do meu tempo com moças, na escola e depois, mas fui sempre muito cauteloso. Porém, nos fins de 1951 conheci a tal, e as minhas defesas ruíram completamente. Ficamos noivos. Todavia, antes que nos pudéssemos casar tive de partir para a Coréia. Juramos fidelidade um ao outro, fizemos voto de castidade e prometemo-nos esperar. E de fato ela esperava-me quando voltei. Casamos. Após a cerimônia, todavia, descobri que ela engravidara antes do meu regresso. Pouco se importava comigo já. Necessitara apenas de um imbecil que lhe desse e à criança a legitimidade e um nome. No momento em que apurei a verdade deixei-a e anulei o casamento. Eis por que lhe disse antes que meu conhecimento sobre a raça dos homens era em segunda mão. Tenho a sensação de que nunca fui casado.

     - Lamento que isto tenha acontecido, Tom. - Sentia agora mais prazer na companhia dele, sentia-o agora mais próximo dela, uma vez que revelara seu malogro.

     - Sim, não devia ter permitido que aquilo acontecesse, mas o certo é que aconteceu.

     - Assim, temos o velho tema... uma mulher fez com que perdesse a fé em todas as mulheres, envenenou sua vida.

     - Bem, de certo modo é verdade. No entanto, não é tudo. Depois daquela experiência... não muito invulgar, no entanto... comecei a recear os contactos íntimos com as pessoas, passando a dedicar-me com mais energia às minhas ocupações como advogado. Pouco tempo depois, era sócio da firma, que alterou a denominação para Sellers, Woolf e Courtney. Mas estavam-se operando curiosas modificações no meu trabalho. Ocupava-me das leis sobre os impostos, exercia as funções de consultor jurídico de algumas sociedades, mas, pouco a pouco, comecei a interessar-me pelas causas de divórcio. Tornei-me perito nas leis sobre o divórcio, ocupei-me de centenas de litígios, e em breve aplicava toda a minha energia neste campo. Agora, sei o que me conduziu a isto. Desejava provas em primeira mão que escorassem minhas idéias sobre as mulheres e o casamento. Não queria ver o aspecto positivo que forneciam os casais relativamente felizes. Isto faria com que compreendesse que tinha falhado. Enterrando-me no mundo contraditório das desavenças matrimoniais... e posso dizer-lhe o que sugerem as mulheres e os homens nestes casos: hostilidade, ódio, mesquinhez, infelicidade, fingia que isto constituía a norma, justificava o meu invencível desejo de continuar solteiro. Encontrava-me deformado, sim. Não faz idéia como nos deformamos muito mais se vivemos no mundo do divórcio. Chegamos à conclusão de que todas as mulheres são doentes, infiéis; os homens idem, que são todos o diabo. Compreende?

     - Ainda pensa assim? - perguntou Claire. Courtney “refletiu durante um momento.

     - Não - volveu por fim. - Modifiquei minhas opiniões. - Tornou a refletir sobre todo o assunto e, com ar ausente, acendeu o cachimbo. - De qualquer maneira - disse depois, erguendo os olhos para Claire -, cansei-me tanto das pessoas com que privava diariamente, revoltou-me tanto a chicanice da vida à minha volta que um dia examinei minha conta no banco, vi que tinha o suficiente e abandonei a firma. Meus sócios consideram-me apenas ausente. Mas, para mim, tinha abandonado tudo. De seis em seis meses um deles escreve-me, ou escrevia-me, pedindo-me que recobre o juízo, que volte a meu lugar. Respondo sempre que não, que jamais voltarei. Ultimamente as cartas têm sido mais raras.

     - Dirigiu-se imediatamente para aqui, logo que abandonou a firma?

     - Primeiro segui para Carmel, Califórnia. Pensei em descansar, refletir, ocupar-me com a biografia de um advogado, Rufus Coate, mas não me apetecia trabalhar. Carmel estava repleta da mesma gente que conhecera em Chicago, e assim apercebi-me de que não me tinha afastado muito. Por fim, parti para San Francisco, onde embarquei num navio, o Mariposa, rumo a Sydney. Quando o barco parou em Taiti desci à terra, e fui o único que manifestou entusiasmo pela ilha. Quase todos os passageiros esperavam demasiado, mas eu nada esperava. Decepcionou-os o falso colorido, o comercialismo. Encantou-me encontrar um lugar onde se pudesse preguiçar, largar o veneno da sociedade competitiva. Podíamo-nos estender ao sol e mandar o mundo para o diabo. Assim, quando o Mariposa seguiu viagem, deixei-me ficar... Ei-la, a saga de Courtney. Adiamos o resto da conversa?

     Claire, que mal se movera até então na cadeira, protestou docemente.

     - Protesto - disse. - Ainda não me contou toda a saga. Deixamos o herói preguiçando em Taiti. Mas nos últimos três ou quatro anos ele tem vivido nas Sereias, não em Taiti. Quer omitir isto?

     - Protesto aceito, mas realmente não tenho nada para omitir. Demorei-me alguns meses em Papeete. Bebi um bom bocado. Quando começamos a beber fazemos logo amigos, por vezes bons amigos. O Capitão Ollie Rasmussen foi um deles. Bebemos juntos. Tornamo-nos íntimos. Gostei daquele velho canalha e ele gostou de mim. Em breve conhecia sua vida, exceto o trabalho, uma coisa que não me interessava absolutamente nada. Todavia, notei que de duas em duas semanas ele partia em viagem, para adquirir mercadorias. Certa vez, porém, deixei de vê-lo durante dias. Como se passasse uma semana sem ele aparecer, comecei a preocupar-me. Quando me dispunha a fazer algumas indagações, recebi um recado da mulher, de Moorea. Ela dizia que Ollie estava doente e que precisava de falar comigo imediatamente. Dirigi-me para Moorea de lancha e encontrei o capitão de cama, macilento e fraco. Soube então que tivera uma pneumonia, que o imobilizara durante duas semanas. Ao mesmo tempo, o seu co-piloto, Dick Hapai, cortara um pé, sobrevindo uma infecção, e encontrava-se ainda no hospital. Como resultado disto, o capitão perdera duas viagens, o que significava que, pelo menos durante um mês, as pessoas que habitualmente visitava não o tinham visto. Enquanto falava, o capitão tentava avaliar-me, e em dado momento pegou-me subitamente num pulso e disse: “Tom, quero perguntar-lhe uma coisa...”

     Courtney fez uma pausa, recordando o que se tinha seguido. Depois, fitou Claire e continuou sua narrativa.

     - O capitão queria perguntar-me o seguinte: se eu sabia ainda voar. Tivera conhecimento de que eu combatera sobre o Yalu. Respondi-lhe que nada tinha esquecido. Em seguida, fez-me outra pergunta: seria eu capaz de conduzir o seu Vought-Sikorsky? Respondi que sim, embora necessitasse antes de algumas explicações. O capitão declarou que isso não constituiria problema. Porém, preocupava-me uma coisa: por que precisava com tanta urgência da minha colaboração? Por que não se restabelecia primeiro e depois conduzia ele próprio o avião? Foi este o momento crucial da nossa amizade. Desejou saber se podia confiar-me um segredo. O segredo envolvia não só a sua honra como a sua subsistência. Todavia, não esperou pela minha resposta. Sabia muito bem que podia confiar-me tudo. “Muito bem, Tom”, disse Ollie, “vou contar-lhe uma história sobre um lugar de que nunca ouviu falar... um lugar chamado as Três Sereias. “ Durante duas horas, escutei-o maravilhado, como um jovem aos pés de Strabo ou de Marco Polo. Não foi isto o que sentiu quando leu a carta do professor Easterday?

     - Não me recordo muito bem - respondeu Claire. - As Sereias pareceram-me uma coisa demasiado encantada num mundo prosaico. Demais, a Polinésia ficava muito longe. Era uma região irreal.

     - Bem, como estava mais próximo dela, a história de Ollie Rasmussen pareceu-me totalmente verídica. Quando terminou sua narrativa sobre as Sereias, ele disse-me que, durante seu último encontro com Paoti, este afirmara que se receava a primeira epidemia na história da ilha. O capitão prometera voltar com os necessários medicamentos. Agora, estava atrasado um mês. Não queria arriscar a prolongar a demora. Alguém teria de conduzir seu avião até às Sereias. Como resultado de tudo isto, dois dias depois achava-me no comando com um combalido Ollie Rasmussen a meu lado. Pousei sem dificuldade. O meu inesperado aparecimento nas Sereias foi saudado com certa hostilidade. Quando Ollie explicou quem eu era, Paoti ficou satisfeito. Ofereceram-me uma festa e trataram-me como um benfeitor. Nos meses seguintes acompanhei, no lugar de Hapai, Ollie Rasmussen em todas as viagens até às Sereias. Em breve era inteiramente aceito pelos aldeões, quase tanto como o próprio capitão. Estas visitas começaram a exercer um efeito particular em mim. Encontrara a verdadeira antítese do que desprezara na pátria. E embora Taiti, com as bebidas e as mulheres, tivesse constituído um escape, não me havia libertado por completo da minha amargura. As Sereias fizeram com que me sentisse em paz comigo mesmo e com o mundo. Durante uma visita, pedi a Ollie que me deixasse ficar lá até à viagem seguinte. Quando ele voltou, minhas inibições tinham-se extinguido. Não sentia desejo de voltar a Papeete, nem que fosse para ir buscar as minhas coisas. De fato, não voltei. O capitão as trouxe. Volvido algum tempo era iniciado na tribo, e possuía a minha cabana. Devido à minha cultura, dispunha de mana. Excetuando algumas viagens ocasionais a Taiti, para comprar livros e tabaco, permaneci sempre aqui. - Fez uma pausa e ofereceu um sorriso a Claire. - Você é bem eficaz, Claire. Há muitos anos que não me abria desta maneira.

     - Obrigada - volveu Claire. - Porém, creio que não se abriu tanto como supõe. Penso que me disse apenas o que desejava dizer-me e nada mais.

     - Contei-lhe tudo o que sei acerca de mim mesmo. O resto está sendo processado e inventariado.

     - Mas encontra-se plenamente satisfeito aqui?

     - Sim, mais ou menos. Despertar todas as manhãs é agora o que mais me interessa.

     - Por outras palavras, não tenciona voltar a Chicago?

     - Chicago? - Courtney repetiu a palavra como se estivesse lendo uma garatuja na parede de um banheiro.

     Claire viu a careta que ele tinha feito, e isso forçou-a a demonstrar a sua lealdade à infância, ao mais precioso dos seus bens.

     - Mas Chicago não é assim tão má! É maravilhoso nadar-se no lago Michigan e ir até ao Loop aos sábados. Ainda me recordo dos passeios de pônei no Lincoln Park. Ora, eu...

     - Quer dizer que é de Chicago também? - perguntou ele com uma expressão de incredulidade.

     - É assim tão invulgar ser-se de Chicago?

     - Não sei. Mas você não parece de lá. Supunha que era da Califórnia.

     - Vivi durante mais tempo na Califórnia, sim. Permaneci em Chicago somente até aos doze anos, até à morte de meu pai... num acidente. Ele costumava levar-me consigo a todo o lado. Era um homem maravilhoso. Eu tinha sempre um lugar na tribuna da imprensa dos estádios...

     - Quer dizer que seu pai era jornalista esportivo?

     - Sim. Chamava-se Emerson. Não sei se você... Courtney deu uma palmada no joelho.

     - Os editoriais desportivos de Alex Emerson! Seu pai?

     - Sim.

     - Claire, parece incrível estarmos sentados nesta cabana tropical falando de Alex Emerson. Devo-lhe as minhas inclinações literárias. Quando os outros garotos se dedicavam às leituras de Tom Swift, Huck Finn e Elmer Zilch eu perdia-me com os grandes filósofos... Grantland Rice, Warren Brown e Alex Emerson. Jamais esquecerei o seu artigo, em 1937, creio, sobre o combate em que Joe Louis pôs a dormir James j. Braddock no oitavo assalto. - Courtney fitou-a. - Que idade tinha então?

     - Três semanas - volveu Claire.

     - E ele morreu contava você doze anos? Claire inclinou a cabeça num gesto afirmativo.

     - Sempre senti saudades dele... do seu ar pensativo, sentimental... do seu riso...

     - Que aconteceu depois?

     - Tínhamos parentes na Califórnia, em Oakland e em Los Angeles. Minha mãe levou-me para casa dos parentes, em Oakland, e aí vivemos com eles. Depois de eu fazer quatorze anos, ela tornou a casar-se, desta vez com um coronel do Exército. O seu padrão familiar era a vida militar. Fui guardada como uma vestal até completar o curso secundário. Meu padrasto desejou que eu fosse para a Universidade da Califórnia, em Berkeley, de modo que pudesse ficar sob sua vigilância. Rebelei-me e estabelecemos um compromisso. Viveria com meus parentes de Los Angeles e freqüentaria a Universidade da Califórnia, em Westwood. Não consigo descrever-lhe a alegria que senti quando me vi livre 'do coronel, uma coisa que não foi nada fácil.

     - Quando é que você e seu marido se conheceram?

     - Terminei o curso da universidade e desejei ser a filha de meu pai. Queria ser repórter. Por fim, consegui um lugar de estenografa num jornal de Santa Mônica. Todavia, nunca deixei de escrever e alguns de meus artigos foram publicados. Comecei a ser destacada para fazer entrevistas, na sua maioria a pessoas com interesse humano. Um dia a formidável Dr.a Maud Hayden foi proferir uma conferência em Santa Mônica e incumbiram-me de a entrevistar. Ela achava-se muito ocupada, mas o filho disse que falaria em seu nome. Eis como Marc e eu nos conhecemos. Fiquei terrivelmente impressionada. Primeiro do que tudo, ele era filho de Maud Hayden. Em segundo lugar, era um antropólogo. Tinha mais dez anos do que eu e pareceu-me experiente, vivido, simpático. Creio que me achou muito ingênua, pouco experiente e vivida, e que aparentemente lhe agradou esse fato. Passados alguns dias voltou de novo a Los Angeles e telefonou-me, a fim de marcar um encontro comigo. Eis como tudo começou. Durante muito tempo não estabelecemos qualquer compromisso. Marc tinha de se habituar à idéia do casamento. Por fim, deu o passo. Dentro de duas semanas comemoro o meu segundo aniversário como Sra. Hayden. - Abriu as mãos. - Ora, aqui tem a história de minha vida.

     - Toda? - Ele exprimia suas dúvidas. Aliás, Claire procedera de igual maneira depois de Courtney ter concluído sua narrativa, minutos antes.

     - Mais ou menos, também - volveu ela. Courtney sorriu.

     - Aposto que nunca pensou em passar um aniversário de casamento numa ilha tropical. Parecer-lhe-á estranho, não é verdade?

     - Agrada-me bastante a idéia. Quando me casei com Marc, supus que visitaríamos muitos lugares exóticos. No fim das contas, ele era um antropólogo. Porém, Marc não gosta de viajar fora dos Estados Unidos. Tinha-me conformado já quando isto surgiu. Acho que tudo é maravilhoso. Quero ver a vida da aldeia, saber tudo. De certo modo, sinto que posso relacionar isto com minha própria vida. Datilografo as cartas de Maud, e elas estimulam-me. Surpreendo-me a dizer para comigo: Ah, se pudesse visitar um lugar como este! E depois compreendo que estou aqui.

     - Que é que gostaria mais de ver?

     - Ora, tudo.

     - Bem, para começar, devia visitar a Cabana Sagrada. Pode dizer-se que esta sociedade começa ali. A maturidade dos habitantes, os próprios costumes da tribo. Quando é que quer ir lá?

     - Quando você estiver livre.

     - Estou livre neste momento. - Courtney descruzou as pernas e ergueu-se - Prefiro não esperar por Maud Hayden. Isto atrai-me mais. E quanto a você, Claire?

     - Estou encantada.

     Alguns minutos depois ela e Courtney atravessavam o conjunto, sob um calor menos inclemente, pois o pôr do sol aproximava-se.

     - Há uma coisa que me causa perplexidade - disse Claire, em dado momento. - O capitão e os marinheiros do barco que trouxe Daniel Wright e os seus às Sereias deviam ter cartas e mapas. Por que motivo jamais revelaram a localização destas ilhas ao mundo exterior?

     - Tê-lo-iam feito com certeza se tivessem sobrevivido - respondeu Courtney. - De fato, a Sra. Wright pedira ao capitão do barco que voltasse dentro de dois anos para os levar de regresso a Taiti se a Utopia tivesse resultado num malogro. Mas o destino quis que o barco não mais voltasse. Um dia, algumas tábuas e barris, um com o nome do barco, deram à praia das Sereias. Aparentemente, pouco depois de desembarcar a família Wright e acompanhantes, o barco foi surpreendido por um furacão tropical. Desintegrou-se na tempestade e todos os tripulantes pereceram. Com isto, o único testemunho do desembarque de Daniel Wright perdeu-se para o mundo exterior. Aquele furacão preservou a sociedade das Sereias de 1796 até hoje. - Courtney estendeu a mão. - A Cabana Sagrada fica atrás daquelas árvores.

     Depois de entrarem num caminho sinuoso bordado por um renque de árvores frondosas, deparou-se-lhes uma cabana circular que parecia ter sido construída segundo o formato do chapéu de um mágico.

     - Esta é a primitiva Cabana Sagrada, construída sob a direção de Daniel Wright e Tefaunni em 1799 - disse Courtney. - Todavia, acredito que só a madeira da estrutura é original. O telhado de colmo e o bambu devem ter sido substituídos muitas vezes, após as tempestades. Entremos.

     Ela ficou espantada ante a pequenez da sala circular, imersa na escuridão. Daí a um momento, contudo, compreendeu que não havia janelas, mas apenas pequenas fendas para ventilação, no alto, no ponto onde as paredes curvas começavam a afunilar para formarem o teto cônico.

     - A mais alta estrutura da aldeia - disse Courtney. - Para a aproximar do Alto Espírito.

     - O Alto Espírito. É esse o Deus deles?

     - Sim, exceto que não adoram uma divindade. O Alto Espírito, não lhe dedicam altares nem imagens, é uma espécie de diretor de todas as outras divindades, a que são atribuídos elevados poderes. - Apontou para os três ídolos cinzentos que se encontravam numa curva escura da sala. - Eis ali os deuses do prazer sexual, da fertilidade e do matrimônio.

     Os três ídolos de pedra assemelhavam-se vagamente, segundo pensou Claire, a representações de Quetzalcoatl, Siva e Isis.

     - A religião, aqui - continuou Courtney -, incorpora o sexo e advoga-o. Isto é bastante curioso, uma vez que no Ocidente a religião é geralmente contra o sexo, exceto quando se trata da procriação. Quando chegou aqui Daniel Wright achou prudente não se opor à religião deles, ou pelo menos não insistiu em impor as suas próprias crenças. De tal oposição resultaria que o culto polinésio se tornasse mais forte e que os nativos se separassem dos colonos ingleses. Assim, Wright proclamou que todas as formas de culto seriam permitidas, o que se mantém ainda hoje. A Cabana Sagrada é, por assim dizer, uma espécie de templo pagão... pois, como sabe, realizam-se nela os ritos da maturidade, é o único símbolo dos altos poderes. Em ocasiões especiais, os aldeões efetuam suas cerimônias religiosas, simbolizando o nascimento, a morte, o matrimônio; porém, estas decorrem nas suas cabanas, perante seus próprios ídolos.

     Claire volvera os olhos para uma larga caixa semelhante às dos balcões das ourivesarias. Era uma coisa tão incongruente naquele lugar primitivo que não foi capaz de reprimir uma exclamação.

     - Que é? - perguntou Courtney. Claire indicou a caixa.

     - Como chegou isto aqui?

     - Ollie Rasmussen trouxe-a de Taiti - disse Courtney. - Eu mostro-a...

     Ao atravessarem a sala, um dos pés de Claire afundou-se de tal maneira na esteira que ela perdeu o equilíbrio e cambaleou. Courtney, porém, agarrou-a por um braço antes que caísse.

     Claire observou o piso.

     - Nunca vi uma esteira tão espessa. Parece que pisamos um colchão.

     - Exatamente - retorquiu Courtney. - Não se esqueça de que é aqui que os adolescentes são iniciados no ato do amor.

     Claire engoliu em seco.

     - Oh! - exclamou.

     Tentou não olhar para o chão, enquanto Courtney a tomava pelo cotovelo e a guiava até à caixa de vidro. Nela, pousados sobre veludo, estavam os tesouros de Daniel Wright. Um livro de capa castanha, esmaecida, intitulado Paraíso Ressurgido, um manuscrito denominado Diário - 1795-96, e outros manuscritos.

     - Quando cheguei aqui encontrei estas raridades empilhadas a um canto desta sala - disse Courtney. - O tempo e os elementos tinham efetuado já as suas incursões. Sugeri a Paoti que se fizesse alguma coisa para preservar estes documentos, destinados às futuras gerações. Ele concordou. Quando fui depois a Papeete comprei esta caixa de vidro, em segunda mão, de um ourives, e encomendei uma solução de gelatina para a restauração e conservação do livro e dos manuscritos. Realmente, os papéis de Wright encontram-se em bom estado agora. Acham-se num lugar seco, sem excessivo calor nem umidade. Assim, a maior parte das idéias de Wright tem sobrevivido não só nos costumes dos aldeões como nestas páginas. Durante o primeiro ano de minha permanência nas Sereias ocupei a maior parte do tempo a copiar todos estes manuscritos. A cópia encontra-se no cofre-forte de um banco de Taiti. Desisti, há muito tempo, de escrever a biografia de Rufus Choate. Porém, penso fazer um dia uma obra definitiva sobre Daniel Wright, de Skinner Street. Não creio que o estudo de sua sogra possa colidir com o meu trabalho. Ela ocupa-se da sociedade que resultou da vinda de Wright. Eu ocupar-me-ei do próprio Daniel Wright, do idealista londrino que se estabeleceu com sua família entre os primitivos.

     - Era numerosa a família dele?

     Courtney abriu suavemente a caixa de vidro e tirou dela o manuscrito do Diário. Mostrou a primeira página a Claire.

     - Veja: “3 de Março, 1795... Eu, Daniel Wright, filósofo, de Londres, encontro-me a bordo de um barco no porto de Kinsale, de onde partirei, dentro de uma hora, com destino à Nova Holanda, nos Mares do Sul. Uma vez que o governo reprovou meus princípios, procuro um clima de completa liberdade. Comigo estão meus queridos familiares, a minha esposa Priscilla, o meu filho John e as minhas filhas Katherine e Joanna. Comigo estão também três discípulos, a saber: Samuel Sparling, carpinteiro, Sheila Sparling, esposa, e George Cover, comerciante.”

     Courtney voltou a colocar o manuscrito na caixa de vidro.

     - Os colonos foram prolíferos. Os três filhos de Wright casaram-se com jovens das Sereias, e Wright teve, supõe-se, vinte netos. Aos Sparlings nasceram quatro filhas que, durante várias décadas, lhes deram vinte e três netos. Quanto a George Cover, este se casou sucessivamente com três polinésias, que lhe deram quatorze filhos. É a isto que eu chamo integração.

     - Qual é o deus da fertilidade? - perguntou Claire. - Mande-me quando tiver ocasião.

     Courtney fitou-a com certa intensidade. Porém, ela fingiu que não reparava e debruçou-se sobre a caixa para examinar os manuscritos.

     - Que é isto? - perguntou.

     - As notas de Wright, com sugestões e idéias práticas sobre a sua sociedade ideal. Um terço delas deve ter sido aplicado nas Sereias. As restantes, suponho, foram rejeitadas por Tefaunni. - Com cuidado, Courtney pegou numa porção de folhas, que colocou sobre o vidro superior da caixa. - Maravilhosos arcaísmos, palavras, frases do século XVIII - murmurou.

     - Que espécie de práticas defendia ele nessas páginas? - inquiriu Claire.

     - Toca em tudo que diz respeito à sociedade humana. Por exemplo, no que se refere à jurisprudência... O velho Wright aceitava os julgamentos e os juizes, mas era contra os advogados. Neste ponto, baseava-se na Utopia, de Sir Thomas More. Escute: Wright diz aqui que concorda com o que Thomas More escrevia em 1516. Cita More, sobre os utupistas: “Não há advogados entre eles, pois consideram-nos uma casta de gente cuja profissão consiste em mascarar as coisas e distorcer as leis; portanto, crêem que é muito melhor que cada homem defenda a sua própria causa e a confie ao juiz. “

     - Claro, como advogado não perfilha essas idéias...

     - É a prática atual nas Sereias - volveu Courtney. - Que habitantes da aldeia defendam as suas próprias causas, não ante um juiz mas diante do chefe Paoti. Decerto, isso não funcionaria em sociedades altamente sofisticadas, onde as leis se tornaram tão complexas que só os peritos as compreendem, e os peritos são membros da classe jurídica. Se me propusesse imitar Daniel Wright na América, em vez dos advogados. dispensaria os jurados. Acredito no sistema de júri, mas não como é constituído agora. Que se consegue de um júri médio? Os jurados são apenas amadores que pouco percebem de leis, gente desviada do seu trabalho em troca de uma ninharia, ou indivíduos que nem sequer trabalham. Todos eles sofrem das mesmas neuroses e preconceitos que possuímos. Em resumo, os júris são compostos por pessoas com boas intenções, e por vezes inteligentes, dominadas pela inexperiência e pela instabilidade.

     - Pelo menos é democrático - disse Claire.

     - Mas não é o suficiente. Vou dizer-lhe o que era necessário fazer-se. Do mesmo modo que homens e mulheres estudam para se tornarem advogados, também homens e mulheres deviam estudar para se tornarem jurados. Sim, criar-se-ia a profissão de jurado nos Estados Unidos, à semelhança de outras, como arquitetura, medicina, finanças, jornalismo, matemática. Assim, os jovens que escolhessem esta profissão iriam para a universidade, a fim de se prepararem, e estudariam leis, psiquiatria, filosofia, e aprenderiam a ser objetivos. Uma vez de posse do seu diploma, seriam colocados numa junta federal ou estadual de jurados, com um salário anual fixo dependente do tribunal ou das causas que tivessem de ouvir. Então, o nosso sistema judicial seria bastante melhor. Certamente tão bom como o que existe nas Sereias. - Courtney fez uma pausa e sorriu. - Uma coisa sou obrigado a dizer em favor do velho Wright: ele faz-nos pensar.

     - Decerto que sim.

     Courtney repôs as folhas do manuscrito na caixa de vidro, que fechou em seguida.

     - Como é de esperar, sessenta por cento dos escritos de Daniel Wright dizem respeito ao namoro, ao casamento. Wright era a favor da educação sexual, reprovava o casamento entre parentes, preferia a monogamia, achava que as crianças deviam ser separadas dos pais e criadas num lar comum. Os polinésios seguiam já a maior parte destas idéias, mas numa forma menos drástica. Os pais mantinham os filhos em casa, mas a parentela era tão extensa que se tinha a impressão de que cada criança pertencia a toda a aldeia. Wright desejava que o casamento fosse sujeito aos preceitos eugênicos, mas como isto era impossível aqui, teve de se conformar. Pensava que todo o homem e mulher que desejassem casar-se deviam viver juntos durante um mês. O casamento experimental, como vê. Este conceito radical fora inspirado pelas necessidades verificadas nos países anglo-saxões. Na Polinésia era inútil. As relações sexuais eram fáceis e a escolha, livre. Já ouviu falar do código matrimonial de Wright?

     - Não. Que é isso?

     - Ele esperava tornar a vida sexual mais feliz. Para tanto, baseava-se em normas destinadas a melhorar o casamento ou a justificar a obtenção do divórcio. Tentou reduzir o sexo a uma fórmula. Todos os casais entre os dezesseis e os vinte e cinco anos deviam fazer amor pelo menos três vezes por semana, a não ser que, por mútuo acordo, preferissem menor atividade. Neste grupo, o tempo mínimo de duração do ato sexual era de cinco minutos, e podia ser mais curto se ambos os parceiros concordassem. Caso a um deles desagradasse o fato de o ato sexual se realizar menos de três vezes por semana ou de ter uma duração de menos de cinco minutos, podia pedir, o que obtinha, uma separação, enquanto o outro era submetido a um novo período de educação sexual. As normas eram diferentes para os casais entre os vinte e seis e os quarenta anos, etc. Wright esforçou-se por introduzir este sistema, mas Tefaunni e a sua Hierarquia opuseram-se, considerando-o ridículo. Afirmaram que os números não podiam ser aplicados ao amor, que estes não garantiam o prazer e a felicidade. Tefaunni demonstrou que seus súditos casados eram relativamente felizes e que os solteiros tinham a Cabana Comunitária. Então Wright interessou-se pela Cabana Comunitária, a fim de melhorar seu funcionamento. Assim, convenceu Tefaunni de que deviam acrescentar novas funções à Cabana Comunitária e dar-lhe' o nome de Cabana de Auxílio Social. Uma coisa revolucionária, hem? Se Maud Hayden se referir a isto nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Europa, o eco será enorme.

     - Por agora - interveio Claire -, tenho ama noção sobre as funções da Cabana de Auxílio Social. Todavia, quais são as funções extras a que toda gente alude de modo tão misterioso?

     - Está tudo no manuscrito. Um dia lê-lo-emos.

     - Não me pode revelar tudo agora?

     A relutância de Courtney era evidente.

     - Não sei...

     - Trata-se de uma coisa chocante para os ouvidos ocidentais? Não crê que eu seja puritana, pois não?

     - Não, não creio, mas... Bem, após o incidente da noite passada, não desejaria que seu marido pensasse que estava sendo corrompida.

     Claire endireitou-se na cadeira.

     - É a mim que está dando estas explicações e não a Marc - disse ela.

     - Muito bem, já que insiste... Wright vira que os desajustamentos sexuais eram profundos na Grã-Bretanha. Embora encontrasse tudo isto melhorado nas Sereias, desejou a perfeição. Não queria que houvesse insatisfeitos. No seu manuscrito encontram-se passagens eloqüentes sobre este ponto. Compreendia que as inovações que sugeria não resolveriam os problemas matrimoniais, mas sabia que criariam melhores alicerces para a felicidade. Assim, introduziu a idéia de um segundo parceiro sexual, quando este era necessário.

     Courtney fez uma pausa para ver se Claire compreendia. Porém, ela não dava mostras disso.

     - Talvez seja um pouco retardada - disse ela. - Não entendo o que quer dizer.

     Courtney soltou um suspiro e prosseguiu:

     - “Wright apercebeu-se de que, com muita freqüência, após o coito, só um parceiro ficava satisfeito. Habitualmente, o homem tivera o seu orgasmo mas a companheira não. Por vezes, acontecia o contrário. Sob o novo costume, se isto ocorresse, digamos, à mulher, ela podia dizer ao marido que ia à Cabana de Auxílio Social terminar o seu ato de amor. Se sentisse que isto não se justificava, que ela estava apenas se mostrando promíscua, ele tinha o direito de protestar junto da Hierarquia e requerer um julgamento. Porém, se supusesse o contrário, como se verificava normalmente, deixava-a partir e dormia. Quanto à mulher, ela dirigia-se à Cabana de Auxílio Social. Do lado de forta, encontravam-se duas varas de bambu, cada uma com uma pequena campainha na extremidade. Se era do sexo masculino, o visitante faria soar uma campainha. Se era do sexo feminino, faria soar as duas. Depois disto, ela entraria na cabana, e dirigir-se-ia para uma saia obscurecida, onde um homem de suficiente potência sexual a esperava. O que o marido começara seria terminado por outro. Eis tudo.

     - Incrível! - exclamou Claire. - Esse costume ainda se mantém?

     - Sim, mas tem sido modificado desde o princípio do século. As campainhas já não são usadas. Faziam muito ruído, provocando muitas vezes inibiçoes aos casais. Hoje, a mulher nas condições referidas dirige-se simplesmente à Cabana de Auxílio Social e escolhe um homem, solteiro ou viúvo, com quem se retira para um quarto particular.

     - E não sente embaraço ou humilhação em face disto?

     - Nem uma coisa nem outra. Não se esqueça: é uma prática aceita por todos. Conhecem-na desde a infância. Todos a seguem de quando em quando.

     - E a ternura e o amor? - perguntou Claire bruscamente.

     Courtney encolheu os ombros.

     - Concordo com você, Claire. O ato, assim realizado, parece frio e mecânico, mesmo degradante, a uma pessoa de outra cultura. Senti o mesmo. Posso apenas dizer que para este povo é bastante aceitável. Sabe, o velho Wright não era um pateta. Conhecia a ternura e o amor de que fala... Bem, eram coisas quase abstratas, que não se podiam tocar ou medir. O seu espírito, materialmente orientado, desejava resolver tudo de maneira prática. Assim, propôs este costume, que nunca eliminou os problemas básicos ou resolveu inteiramente as necessidades do amor. No entanto, constitui um progresso com certa relevância. Realmente, hoje, não se permite que as uniões mal estabelecidas se prolonguem durante muito tempo. A Hierarquia procede às suas investigações e concede o divórcio. Demais, ninguém tem dificuldades em encontrar um novo companheiro, mais apropriado. Cada um acaba por encontrar o seu par.

     Claire mordeu os lábios.

     - Sim?

     Courtney fez um gesto de afirmação com a cabeça.

     - Creio que sim. - Depois acrescentou: - O único problema é que, na nossa pátria, as convenções impedem-nos por vezes de conhecer a pessoa certa. Aqui. é mais fácil.

     Claire circunvagou os olhos pela sala, que parecia agora mais escura.

     - Deve ser tarde - disse. - Tenho de voltar para fazer o jantar. - Viu que Courtney a observava. - Muito bem, estou um pouco confusa... com todas estas práticas estranhas. Quase não sei já distinguir o tolerável do que não o é. No entanto, Tom, sei que... passamos uma tarde absorvente. Estou contente por me ter trazido aqui. E estou contente também por sermos amigos agora.

     Dirigiram-se para a porta.

     - Estou também contente por sermos amigos - disse Courtney. À porta, deteve-se, no que foi imitado por ela. - Claire - tornou -, talvez tivesse defendido deficientemente a causa das Sereias, hoje e na noite passada. Isto não é um bordel, um lugar de depravação. Trata-se de uma experiência progressista, da fusão das melhores e mais avançadas idéias de duas culturas, que funcionou durante muito tempo e funciona ainda.

     Seu rosto, ainda há pouco endurecido pela tensão, descontraiu-se. Ela tocou a mão de Courtney, com afeto.

     - Eu sei, Tom. Mas dê-me tempo.

     Percorreram o caminho, entre as árvores, e penetraram no conjunto da aldeia. Não se via o disco do Sol mas era ainda dia claro. As mulheres e as crianças haviam desaparecido - talvez estivessem preparando a refeição da noite, pensou Claire -, e grupos de homens altos, quase nus, entravam na aldeia, vindos dos campos. Claire, ao escutar o murmúrio do regato, sentiu-se tentada a sentar-se na margem, a tirar os sapatos para banhar os pés na água fresca. O relógio de pulso, porém, recordou-a do seu dever. Marc encontrar-se-ia na cabana, faminto, esperando, com um highball na mão. Teria de preparar a primeira refeição no rudimentar fogão de terra.

     Voltou-se para se dirigir para sua cabana e Courtney manteve-se a seu lado.

     - Vou com você até a cabana de Maud - disse ele. - Preciso falar com ela.

     Continuaram seu caminho sem uma palavra mais. Embora tivessem transposto o abismo que os separava, Claire sentia-se demasiado consciente da presença de Courtney, demasiado julgada e, portanto, timorata. Todavia, esta emoção não lhe era estranha, e recordou-se da última vez que a sentira. Uma tarde, em Oakland, quando freqüentava seu último ano do colégio, o capitão da equipe de futebol deste, um estudante do último ano, com prestígio, acompanhara-a até a casa. Fora um pequeno teste, inexplicável como este.

     Quando chegaram à cabana de Maud, Claire disse bruscamente:

     - Penso que devemos nos despedir.

     Courtney abriu-lhe a porta e ela entrou. Uma vez dentro da cabana, vacilou. Marc estava sentado atrás da secretária, acabrunhado, escutando Orville Pence, que tinha um dos pés sobre um banco. O inesperado do encontro desconcertou-a. Porém, compreendeu que fora outra coisa que a fizera retrair-se: o fato de Courtney ter aberto a porta, uma sutil intimidade, e o fato de o marido se encontrar na cabana com um amigo. Ela perpetrara um pequeno ato de deslealdade, pois sempre compreendera com muita clareza, mesmo antes de vir para a ilha, que Marc se aliara com Pence contra o deboche dos nativos e agora considerava Courtney um traidor à decência civilizada.

     - Olhe quem está aqui - disse à mulher, fingindo não dar pela presença de Courtney.

     - Entrei para ver Maud... - começou ela.

     - Já aqui esteve duas vezes, mas tornou a sair - interrompeu Marc. - Tenho procurado você por toda a parte. Desejava dizer-lhe que não precisava de se preocupar com o jantar. O filho do chefe e a mulher convidaram-nos e à Maud para nos juntarmos a eles às sete.

     - Muito bem - volveu Claire nervosamente. - Sa... Saí com o Sr. Courtney. Ele acompanhou-me gentilmente num passeio pela aldeia.

     - Sim, foi muito gentil de sua parte... Obrigado, Sr. Courtney. Aonde foram?

     Courtney aproximou-se e colocou-se ao lado de Claire.

     - Como sua esposa disse, demos um passeio pela aldeia; depois, mostrei-lhe a Cabana Sagrada.

     - Sim, ouvi falar disso - retorquiu Marc. - Suponho que suas funções são semelhantes às da Cabana de Auxílio Social. Orville passou lá o dia...

     - Foi uma autêntica revelação - disse Orville, dirigindo-se a Courtney.

     -... e tem estado a explicar-me suas finalidades - continuou Marc. - Mas sentem-se... Claro, conhece melhor isto do que nós, Sr. Courtney.

     - Estou particularmente interessado na opinião do Dr. Pence - volveu Courtney, encostando-se à parede e começando a encher o cachimbo. Claire sentou-se timidamente no banco, um pouco afastada de Orville Pence.

     - Estava dizendo a Marc que examinei as duas varas de bambu com as campainhas na extremidade que os visitantes da Cabana de Auxílio Social usaram outrora - disse Orville. - Devo acrescentar que aquelas relíquias me fascinaram.

     Marc moveu-se na cadeira, um sorriso nos lábios.

     - Mas nestes dias, se o compreendi bem, Orville, é tudo feito com mais eficiência. Não há necessidade de campainha. Limitam-se a entrar e são imediatamente servidos.

     - É verdade - concordou Orville.

     Fingindo ignorar a presença da mulher e de Courtney, Marc continuou a fitar Orville, sacudindo lentamente a cabeça.

     - Não sei, Orville. Quanto a mim... - Hesitou. - Por que não havemos de ser francos? Faço por me recordar de que sou um cientista social, quase à prova de choque, e que devo manter de certo modo a minha objetividade; no entanto, sinto que posso emitir um juízo inicial que talvez lhes pareça demasiado duro. Nunca conheci outro lugar na Terra em que houvesse uma tão profunda obsessão pelo sexo como nesta ilha. Que mentalidade podia conceber a Cabana de Auxílio Social? Se não se importam, digo...

     - Mais devagar, Marc - interrompeu Orville. - Em geral, não discordo de você, mas neste particular não está pisando terreno muito firme. Afinal, as cabanas de prazer são...

     - Sei muito bem o que elas são - interrompeu por sua vez Marc, com impaciência. - Também sei o que não são. As habituais cabanas de prazer polinesias não passam de câmaras onde os jovens, os não ligados, dão vazão ao instinto. Mas esta aqui... - Deteve-se. Seus olhos fixaram-se em Courtney e em Claire. Como se para terminar uma conversa desagradável, pousou as mãos sobre o rebordo da mesa e recuou a cadeira. - Mas que diabo, cada qual com sua opinião, e sucede que tenho a minha. Não é apenas uma só coisa mas toda a atmosfera desta ilha que eu acho repugnante.

     - Marc. - Era Claire que falava. - Como antropólogo...

     - Minha querida, estou perfeitamente consciente das minhas funções como antropólogo. Acontece também que sou um ser humano, um ser humano normal e civilizado, e como tal, repito, acho repugnante toda a atmosfera desta ilha. Parece-me muito bem que conservemos as nossas diretrizes científicas acerca de cada instituição e de cada indivíduo aqui, que tratemos cada nativo apenas como uma cobaia útil à ciência. Mas esta gente é considerada verdadeiramente gente, pelo menos parecem pessoas e movem-se como as pessoas. E, quando tento procurar uma relação entre mim e eles, não a consigo encontrar. O comportamento dos membros desta sociedade é absolutamente deplorável e bem pouco desejável, seja qual for o padrão étnico por que o encaremos. - Fez uma pausa, decidido a defender-se aos olhos da mulher.

     - Sim, eu sei que isto é apenas um juízo pessoal, mas no entanto não prescindo dele, diga o que disser Matty. Claire, se soubesse quantas práticas degradantes emanam da Cabana de Auxílio...

     Claire suportara tudo isto diante de Courtney, mas não podia mais.

     - Marc, nada disso é novidade para mim. O Sr. Courtney elucidou-me, gentilmente.

     Marc fitou-a com espanto e volveu a cabeça de Claire para Courtney. Fixou o inimigo durante um breve momento, com ar sombrio, e depois disse com voz trêmula:

     - Suponho que também tentou convencer minha mulher de que tudo isto é civilização.

     Courtney manteve-se imperturbável, apoiado contra a parede.

     - Sim - volveu calmamente.

     - Constituímos um grupo de peritos em muitas ciências - disse Marc -, e adquirimos experiência com o estudo de muitas sociedades. Asseguro-lhe que o nível desta é bastante baixo na escala do progresso. Tenho visto...

     Claire estendeu a mão na direção do marido.

     - Marc, por favor, poupe-nos...

     - Se não se importa, Claire, gostaria de exprimir minhas opiniões - disse Marc com firmeza. Voltou-se para Courtney.

     - Tentava dizer o seguinte: estou nesta ilha há dois dias apenas e duvido que possa aprender mais nos quarenta e dois dias em que permaneceremos aqui. Que vemos nesta terra atrasada? Um punhado de gente iletrada que anda por aí de saiotes indecentemente curtos, que venera ídolos de pedra c tem a mente cheia de superstições e fornicação. E continua a chamar a isto civilização?

     - Sim - retorquiu Courtney. Marc fitou-o com exagerada piedade.

     - Senhor, já o disse antes, mas repito-o: está afastado dos Estados Unidos há demasiado tempo.

     - Sim? - tornou Courtney. - Considera os Estados Unidos uma utopia?

     - Comparados com esta ilha são, sem dúvida. Apesar dos nossos pequenos defeitos, temos progredido, temo-nos cultivado, e quanto a isto é o que se vê.

     - Um momento, Dr. Hayden. - Courtney endireitara o corpo e mostrava agora toda a sua altura.

     - Não me agrada que confunda os valores de minha mulher... - continuou Marc, tentando conter sua crescente cólera.

     - Um momento - insistiu Courtney. - Permita que apresente a minha causa neste tribunal. O senhor, apesar de ter chegado aqui integrado num grupo antropológico, tem denunciado esta sociedade nos termos mais violentos e proclamado que é atrasada e selvagem comparada com a sociedade progressista que deixou atrás de si.

     - Perfeitamente, Sr. Courtney. É meu direito fazê-lo como homem, e talvez mesmo como antropólogo.

     - Muito bem - redargüiu Courtney calmamente. - Vejamos o caso ao contrário. Suponhamos que pertencia às Sereias e que os habitantes destas ilhas eram americanos. Suponhamos que um grupo de peritos das Três Sereias se metia num barco e atravessava o Pacífico para elaborar um estudo sobre uma sociedade de que ouvira falar, a tribo composta pelos nativos conhecidos como homo americanus. Qual seria a sua opinião final?

     Marc mantinha-se sentado rigidamente, tamborilando a ponta dos dedos no tampo da mesa. Orville Pence manifestava interesse. Claire, infeliz e envergonhada do marido, torcia e retorcia as mãos, os olhos fixos no solo.

     - Os antropólogos polinésios comunicariam que a tribo americana vivia em muitas cidades e aldeias, sendo as cidades mausoléus sufocantes de cimento armado, de aço, de vidro, o ar das cidades poluído, cheio de fumos, vapores de gás, odores de comida e de transpiração. Nestas cidades sem ar, sem luz, ruidosas, frenéticas, os nativos americanos trabalhavam longas horas em salas fechadas, artificialmente iluminadas, labutando intensamente devido ao constante terror que lhes inspiravam aqueles que estavam acima deles e também os que se encontravam abaixo.

     “Uma vez por outra, estes nativos eram desviados da sua rotina por guerras sem sentido. Os homens, que tinham sido ensinados aos domingos a amar o semelhante, a voltar a outra face, marchariam com armas explosivas para aniquilar, mutilar, escravizar seus irmãos. Se um homem abatia muitos outros homens era condecorado com um bocado de metal, que lhe prendiam no peito.

     “A vida provava-se difícil para o homo americanus, tão difícil que, para sobreviver, ele tinha de se drogar com líquidos amargos que lhe embotavam os sentidos ou com cápsulas que o acalmavam artificialmente ou que lhe forneciam momentâneo esquecimento.

     “A tribo era composta por uma grande variedade de indivíduos dos sexos masculino e feminino. Havia mulheres, de traje negro, que juravam eterna castidade” mas que casavam com uma divindade de outra era; havia jovens que davam o seu corpo em troca de diversas somas em dinheiro a qualquer homem que telefonasse, e havia mulheres mais velhas, pertencentes a agrupamentos chamados clubes, que passavam toda sua vida a ajudar os outros, e prestando pouca atenção à sua própria família e cabanas. Havia homens, que tinham feito voto de castidade, que se sentavam sem ser vistos, enquanto outros confessavam seus pecados, e ainda homens, que não faziam voto de castidade, que se sentavam completamente visíveis, escutando indivíduos perturbados enquanto estes desfiavam recordações caóticas. Havia homens com alguns anos de aprendizagem que ensinavam a maneira de um assassino recuperar a liberdade ou como extorquir dinheiro do corpo governante. Havia homens que pintavam quadros semelhantes aos que as crianças pintavam naturalmente e se tornavam milionários, e homens que escreviam livros que não seriam compreendidos e se tornavam ídolos vivos. Havia homens escolhidos para governar os outros, não devido à sua sabedoria, mas devido à sua capacidade em falar, ou ao seu talento para a chicana, ou à sua semelhança com uma imagem de pai universal.

     “Uma sociedade curiosa, esta, que descansava no sétimo dia, que celebrava um feriado dedicado a todas as mães, um feriado a Cupido, um feriado ao trabalho. Uma sociedade em que era venerado um bandido chamado Robin Hood, um outro chamado Jesse James e outro ainda chamado Billy the Kid, e que também distinguia as mulheres de acordo com seu desenvolvimento mamai.

     “Nesta tribo medieval abundavam as superstições. Grandes estruturas eram erguidas sem um número treze. As pessoas procuravam não caminhar sob escadas, ver gatos pretos, derramar sal ou assobiar em determinadas salas. Quando se casava, o noivo não via habitualmente a noiva durante todo o dia que precedia o da cerimônia.

     “Os nativos não permitiam a matança de um touro em público, mas entusiasmava-os o desporto em que um homem, com couro nos punhos, desfigurava e por vezes matava outro homem; igualmente, eram loucos por um desporto em que vinte e dois indivíduos corpulentos se lançavam num bloco para arrebatar uma bola, muitas vezes à custa de danos físicos.

     “Era uma sociedade de abundância onde alguns morriam de fome, uma sociedade que consumia caracóis e vacas mas tinha um tabu contra o consumo de gatos e cães. Era uma sociedade que receava e mantinha à margem aqueles dos seus membros que tinham pele negra; contudo os indivíduos de pele clara consideravam um reflexo da opulência e do lazer expor-se ao sol e enegrecer sua própria epiderme. Era uma sociedade em que os líderes inteligentes se viam olhados suspeitosamente, em que muitos homens que desejavam instruir-se não tinham o dinheiro necessário para tal, em que eram gastas fortunas para manter homens vivos e outras fortunas para matar homens por meio da eletricidade.

     “Os costumes sexuais da tribo eram os mais difíceis de compreender. No casamento, os homens juravam fidelidade, contudo dedicavam a maior parte do seu tempo, enquanto despertos, a forjar atos de infidelidade, que habitualmente cometiam em segredo e contra as leis da tribo. Era uma sociedade em que os homens falavam em voz muito baixa sobre o sexo, tagarelavam sobre o sexo, gracejavam sobre o sexo, liam sobre o sexo, mas consideravam as discussões espontâneas e os escritos francos sobre o sexo coisas sujas e repugnantes. Era uma sociedade que fazia todo o possível, na propaganda das suas mercadorias e celebridades, para despertar a paixão nos indivíduos do sexo masculino e a complacência nos do sexo feminino, especialmente nas jovens, proibindo-lhes, contudo, os prazeres resultantes.

     “Apesar de tão evidente hipocrisia, de tantas contradições e males, de tantos costumes bárbaros, o grupo polinésio, se era objetivo, verificaria que esta sociedade produzira muitas maravilhas. Do estéreo, tinham-se elevado Lincoln, Einstein, Santayana, Garrison, Pulitzer, Burbank, Whistler, Fulton, Gershwin, Whitman, Peary, Hawthorne, Thoreau. Se o estudo fosse comparativo, o grupo polinésio teria de admitir que nenhum dos membros do seu povo ganhara o Prêmio Nobel, ou criara uma sinfonia, ou colocara um ser humano em órbita. Em termos intelectuais e materiais, a Polinésia e as Sereias nada tinham dado à história... exceto duas coisas, caso o ocidental as considerasse relevantes. As Sereias tinham inventado e sustido um padrão de existência que proporcionava paz de espírito e alegria. Durante a sua longa permanência na Terra, o homem ocidental, apesar dos seus múltiplos talentos, não conseguira, nem uma coisa nem outra. Nesse sentido, o grupo da Polinésia chegaria à conclusão de que sua civilização era mais perfeita, superior àquela que tinha visitado.

     Courtney fez uma pausa. Seus olhos ofereciam o armistício no fim de uma batalha. Concluiu:

     - Podem chamar um bordel às Sereias. Eu considero-as um Paraíso... Porém, não é este o ponto. Tento apenas dizer o que supõem já saber... que uma sociedade não é pior do que outra simplesmente porque é diferente. Decerto, os escritos de sua mãe mostram que esta é a sua crença. Eu sei que é a minha. Suspeito que é a sua, apesar da animosidade que sente em relação àquilo que é estranho e bizarro... Perdoem-me a alegoria, e adeus.

     Com um breve sorriso dirigido a Claire, ele voltou-se e saiu.

     Os olhos de Claire ficaram fixos na porta. Não era capaz de fitar Márc, tão humilhado este se encontrava. Todavia, teve de o ouvir.

     - Aquele maldito filho de uma cadela, com toda a sua conversa... - disse ele. - Que pensa ele que é, para nos vir com estas lições? Imaginem aquele ignorante a falar-nos sobre o que está bem e o que está mal na nossa vida. - A sua cólera tomou expressão plena num grunhido. - Talvez sejamos nós os tais que devem fazer aqui algum trabalho missionário... eh, Orville...

       

     A noite descera sobre as Sereias.

     O conjunto estava deserto, envolto no silêncio e na quietude. A luz errática das tochas, acesas de ambos os lados do regato, constituíam o único vestígio de vida. A hora de jantar e de convívio passara há muito. Com exceção de um ou outro, a aldeia dormia.

     Apenas num cubículo da enfermaria havia certa atividade humana. Ali, Harriet Bleaska concluía seu exame pormenorizado em Uata.

     Durante a tarde, Harriet falara com a Dr.a DeJong sobre o doente. Mais tarde tentara que Maud intercedesse junto de Paoti para que o tabu contra as visitas fosse posto de lado. Harriet falara do estado de Uata, e da necessidade, o seu último desejo, de estar com uma mulher. Porém, Maud pronunciara-se com firmeza contra tal idéia, pois Paoti considerá-la-ia, sem dúvida, uma subversão de costumes, o que podia trazer dificuldades ao grupo.

     Pouco depois, ao jantar, na companhia de Rachel DeJong e de Orville Pence, que conversavam animadamente sobre os rituais da Cabana de Auxílio Social, Harriet continuara, quase absorta, a pensar no pobre Uata. Ém dado momento, apesar de conhecer muito bem a resposta, perguntara a Orville se a Cabana de Auxílio Social estendia seu serviço à enfermaria. Orville retorquiu, como Maud antes, que o contacto com os enfermos era estritamente tabu. A fim de fazer incidir a atenção deles sobre o assunto que a preocupava, Harriet falou-lhes dos doentes da enfermaria, deixando para o fim o caso de Uata. Sutilmente, perguntou se um cardíaco podia ter relações sexuais. Rachel, que parecia bem informada sobre o assunto, dissera que isso dependia da natureza da enfermidade. Supunha que muitos cardíacos podiam fruir o coito limitado, desde que os preparativos não fossem prolongados e se utilizasse a posição de lado. Satisfeita, Harriet deixara o tema.

     Depois de terminado o jantar, ela pôs um vestido de algodão colorido, lavou o uniforme no regato e, em seguida, com uma maleta de médico na mão, dirigiu-se a passo lento para a enfermaria. Meditou durante todo o caminho no problema e quando chegou à porta da enfermaria tinha já tomado uma decisão. O humanitarismo sobrepunha-se à superstição, disse de si para si, e daria a Uata o que ele mais desejava.

     Tudo isto se passara uma hora antes deste momento, em que, completado seu exame, repunha o esfigmomanômetro na maleta. Uata, supunha ela, sofria de uma deficiência cardíaca congênita que se manifestara apenas recentemente. Embora parecesse possuir um físico vigoroso, seu estado interior deteriorara-se. Sua morte deveria ter ocorrido há semanas. Não restavam dúvidas de que ocorreria em breve. Ele era incurável.

     Durante todo o exame, Uata se mantivera, sem um protesto, deitado de costas, permitindo que Harriet fizesse o que desejasse, mas observando-a constantemente com olhos atentos; quando a enfermeira pôs o instrumento de lado e tirou da maleta álcool e gaze, ele fitou-a interrogativamente.

     - Isto é para o refrescar - disse Harriet. - Dormirá melhor.

     Quando lhe era aplicado o álcool no peito, perguntou:

     - Como estou eu? Como antes? - Porém, acrescentou rapidamente: - Não, não é necessário responder.

     - Mas responderei - volveu Harriet. - Está doente. Até que ponto, não sei. Amanhã, começaremos uma série de injeções.

     Ajoelhada ante ele, friccionando-o com mão experiente, chegou ao abdome do nativo. Automaticamente, desapertou a tanga e tirou-a; vendo depois que ele se encontrava bastante excitado, sentiu que não podia continuar a friccionar aquela região. Aplicou o álcool no torso nu e nas ilhargas e disse:

     - Sei que necessita de uma mulher, Uata. Decidi procurar uma para você. Trago-a aqui. Diga-me um nome.

     - Não - retorquiu ele; a palavra emergira-lhe do fundo da garganta. - Não, não posso ter nenhuma. É tabu.

     - Não me importo...

     - Só desejo você - tornou ele com paixão.

     Harriet sentiu-se bruscamente calma e aliviada. Terminou a fricção e ergueu-se.

     Os olhos escuros de Uata pareciam mais líquidos do que nunca.

     - Ofendi-a - disse.

     - Fique calado - volveu ela.

     Dirigiu-se para a porta, abriu-a parcialmente e espiou o corredor. Através da escuridão, à luz débil do pavio que ardia em óleo de coco, distinguiu a figura adormecida do jovem assistente de Vaiuri. Todos os doentes, pensou, estavam dormindo.

     Fechou a porta. Voltou-se para o gigante enfraquecido, que se achava nu, como o deixara. Avançou na direção dele, puxou o fecho do vestido, e o tirou lentamente. Depois, desembaraçou-se do soutien e por fim das calcinhas de nylon azul.

     Nua diante de Uata, podia permitir-se a verdade: o que tinha feito, o que ia fazer, planejara-o desde o entardecer.

     Baixou-se sobre os joelhos e deixou-se envolver pelos braços dele. Estendida ao lado do doente, acariciou seu rosto com uma das mãos e com a outra o corpo. Uata suspirou de paixão e, face a face com ele, Harriet sentiu-lhe no corpo o desejo que o possuía.

     Minutos depois, perguntou-se se quebrara de fato um tabu. Isto não a preocupava, contudo. Preocupava-a, sim, que ele pudesse fazer mau juízo dela devido à sua súbita entrega. Ao ler, porém, o êxtase espelhado no seu rosto, viu que ele pensava bem dela, bastante mais do que qualquer dos homens que já conhecera. Aliviada, podia por fim cerrar os olhos e abandonar os pensamentos. Exceto um... Era bom ser bela novamente.

       

     Foi no princípio da manhã do décimo terceiro dia nas Três Sereias, imediatamente após o seu solitário café, que Maud decidiu começar a pensar na carta que desejava enviar ao Dr. Walter Scott Macintosh.

     Do seu lugar atrás da mesa, via o pequeno saco de lona do correio, meio cheio, que pendia da parede, próximo da porta. No dia seguinte, o Capitão Rasmussen viria pela segunda vez desde que tinham chegado às Sereias. Traria os abastecimentos, novidades, e visitaria Maud para entregar as cartas provenientes dos Estados Unidos e levar o correio. Maud sabia que a carta para Macintosh já estaria ali.

     Não que tivesse esquecido seu protetor na Liga Antropológica Americana. Na semana anterior ditara um resumo colorido de suas descobertas nas Sereias. Claire datilografara-o com perfeição, fazendo duas cópias. O original era para Macintosh, a primeira cópia para Cyrus Hackfeld e a segunda para ela própria. Agora desejava apenas escrever uma carta curta, narrativa, pessoal, para acompanhar o resumo.

     De quanto tempo podia dispor? Através da janela entreaberta, via que a manhã cinzenta começava a dourar-se, o que significava que o sol não tardaria a surgir. Consultou o relógio de mesa: sete e dez. Paoti concordara em recebê-la às sete e meia. Seria um dia atarefado. Projetava passar a manhã inteira com ele. A tarde, com exceção da visita à creche da comunidade, seria dedicada à elaboração e à atualização de suas notas.

     Pegou no microfone de prata do gravador portátil, premiu um botão e a fita começou a correr; após um momento de reflexão, principiou a falar.

     “Claire, esta é a carta que acompanha o original do resumo... É para o Dr. Macintosh.“

     Fez uma pausa, os olhos fixos na fita do gravador, e depois, num tom de voz mais confidencial, prosseguiu:

     “Caro Walter. Deve ter já recebido a carta que lhe enviei de Papeete e a que escrevi após o meu segundo dia de permanência nas Sereias. Já se passaram quase duas semanas, e posso dizer que aquilo que encontrei excedeu minhas expectativas mais otimistas... Claire, novo parágrafo... O resumo anexo, apesar de deficientemente delienado, representa um sumário das nossas descobertas até hoje. Como verá, o padrão cultural desta sociedade oferece costumes até agora desconhecidos da antropologia. Creio que a apresentação destes elementos atrairá tanta atenção como A Chegada da Maioridade na Samoa e A Herança da Bounty, quando da sua publicação... Novo parágrafo... De qualquer modo, Walter, penso que não lamentará a sua decisão de me reservar três sessões na próxima reunião da Liga. Agrada-me o fato de você presidir à primeira sessão - “Cultura e Personalidade” - fico-lhe muito grata por me ter concedido uma hora. Espero apresentar os elementos mais importantes do meu estudo nessa sessão. Confio, tanto como você, que riscaremos do mapa o nosso Dr. Rogerson, em especial se organizar essa entrevista coletiva que me prometeu... Novo parágrafo... Confesso que esta viagem de estudo, acerca da qual estava tão apreensiva, tem' decorrido muito melhor áo que esperava. O fato de me encontrar novamente no campo e pela primeira vez só... quero dizer, sem o Adley, fez com que remoçasse... Claire, risque a última frase e escreva: O fato de me encontrar novamente no campo, após todos estes tristes anos, fez com que remoçasse. Não quero mentir a um velho amigo como você, Walter. Sinto muito a falta de Adley. Compreender-me-á. Quando estou só, à noite, redigindo minhas notas, dou comigo por vezes erguendo os olhos, para discutir um ponto com Adley, e fico surpreendida por ele não se encontrar à minha frente. Isto é uma dura realidade da vida. Creio que ele é insubstituível, mas sinto-me grata pelas dádivas que me deixou, uma parte generosa da sua sabedoria e da sua tolerância. Novo parágrafo... Não me interprete mal, Walter. Não tenho muito de que me queixar. Sou mais rica do que a maior parte das pessoas, pois tenho um trabalho de que gosto, uma família que amo. A minha nora Claire, que não conhece, adaptou-se maravilhosamente ao campo. Ela possui, como eu, a sede do conhecimento, e muitos atributos. Tem-me sido de inestimável valor. Quanto a Marc, ele tem sido...”

     Deteve-se, desconcertada. Ele tem sido - o quê? Premiu o botão que fazia parar a fita.

     Marc desconcertava-a, sim. Fora sempre uma criança dócil, e, como jovem, submisso, apesar de se mostrar por vezes taciturno. Porém, desde a morte de Adley... Não, desde o seu casamento, ou, mais precisamente, desde o ano anterior, mostrava-se deliberadamente caprichoso, e com freqüência rebelde e sarcástico em público. Suas depressões eram cada vez mais pronunciadas. Apesar de fingir, com grande esforço, que não via o que via, Maud não podia deixar de verificar que seu casamento não era dos mais felizes. Por vezes, após algumas reflexões sobre o assunto, chegava à conclusão de que sua presença constituía um estorvo. Sua separação de Marc e Claire resolveria os problemas matrimoniais do casal. Após a chegada às Sereias estava menos certa de que a separação resolveria fosse o que fosse. O comportamento de Marc, desde que recebera a carta de Easterday até agora, em especial durante estas duas últimas semanas nas Sereias, fora alarmante. Talvez o impacto produzido por esta sociedade tivesse feito aumentar qualquer desequilíbrio de sua personalidade. As afirmações francamente hostis que fazia perante ela, suas opiniões sobre Claire e os outros membros do grupo, sua crescente falta de objetividade eram demasiado aparentes e bastante deploráveis. Ele não se mostrava nem um antropólogo nem um cavalheiro. Dava a impressão de ser, acima de tudo, um grande adversário das Sereias.

     Devia ter uma conversa com ele? O que faria Adley no seu lugar? Como antropóloga, Maud era confiante e decidida. Como mãe, confusa e reticente. No momento em que tinha de se comunicar com o produto da sua carne e do seu sangue num nível emocional, mais profundo do que o seu trabalho, sentia-se inerme. Contudo, teria de fazer alguma coisa para reprimir suas exibições públicas de desaprovação. Talvez tivesse primeiro de consultar Rachel DeJong, que possuía, afinal, experiência nestes assuntos. Porém, Maud compreendeu que não podia consultar uma psicanalista. Se o soubesse, Marc ficaria furioso, o que o levaria a fazer ainda mais cenas. Não, era inevitável uma confrontação entre mãe e filho. Aguardaria a oportunidade propícia. Veria.

     Maud dirigiu de novo sua atenção para o gravador. Premiu um botão a fim de fazer voltar a fita um pouco atrás e escutou: “... Ela possui, como eu, a sede do conhecimento, e muitos atributos. Tem-me sido de inestimável valor. Quanto a Marc, ele tem sido... “

     Fez parar de novo a fita: “... extremamente útil. Passa diariamente algumas horas entrevistando uma valiosa informante, que é sobrinha do chefe. Ainda não vi as notas de Marc, mas pelo que me diz em conversa, a jovem é bastante fluente. O resultado será uma penetrante contribuição sobre os costumes dos jovens solteiros desta sociedade. O que Marc está sabendo através de Tehura e Claire através do Sr. Courtney completa maravilhosamente as informações que estou adquirindo por intermédio do chefe Paoti. Este contou-me a história do seu povo e falou-me sobre suas tradições. Ontem encorajei-o a falar sobre. sua própria vida, a cujos primeiros anos se referiu. Espero que tudo prossiga como até aqui durante mais uma ou duas semanas: Novo parágrafo... Quanto aos outros membros do grupo..”

     Ela fez uma pausa para recordar o que tinham conseguido durante estas semanas e o que estavam fazendo agora. A fita continuava a correr. Distraída, estendeu a mão e premiu o botão stop.

     Fez um rápido censo mental do grupo e tentou organizar as suas atividades para benefício do Dr. Walter Scott Macintosh. De todos, Lisa Hackfeld constituíra para Maud a maior das surpresas. Maud aceitara sua participação sob protesto silencioso e considerava-a inútil, o albatroz do grupo. Contudo, após um começo incolor, Lisa Hackfeld ajustara-se completamente aos rigores do campo. Mais do que isso, demonstrava o maior entusiasmo pelo seu papel de participante-observadora. Já não se queixava da falta de tintura para o cabelo, embora este começasse a se mostrar grisalho na raiz. Já não opunha objeções aos banheiros, à privada, à mobília. Redescobrira a Dança, não por dinheiro ou pela fama que podia proporcionar, mas pelos prazeres que dava a seu corpo. De manhã à noite, todos os dias, absorviam-na os ensaios com o grupo de Oviri. Ainda não encontrara tempo, afirmara alegremente a Maud no dia anterior, para escrever sua carta semanal a Cyrus.

     De Lisa, a mente de Maud saltou para os elementos profissionais do grupo. Rachel DeJong continuava as suas prolongadas consultas com Moreturi, Marama e Teupa. Com exceção de dois breves encontros com Maud - para discutir o papel dos mortais e de outras veneradas relíquias da presente sociedade - Rachel mantivera, como se esperava, o maior sigilo sobre seus pacientes e as conseqüentes descobertas. Parecia andar constantemente preocupada. Seu ar fleumático parecia ter-se intensificado nesses treze dias. Maud não poderia dizer se ela se achava satisfeita ou descontente, mas, aparentemente, encontrava-se bastante absorvida.

     Harriet Bleaska, por seu lado, era uma pessoa mais fácil de ler. Antes da chegada à ilha, manifestara a extroversão tão peculiar às mulheres feias. Nesta sociedade, basicamente descontraída, pareceu florir. Exceto numa ocasião em que mostrara profundo pesar ante o estado de saúde de um doente da enfermaria e desejara quebrar um tabu a fim de suavizar suas penas, Maud jamais a vira com ar solene. Harriet colaborava regularmente com Vaiuri. Quando lhe sobrava tempo, aproveitava-o em pesquisas sobre as tradições que estavam por detrás da utilização das plantas medicinais que Sam Karpowicz lhe trouxera, consciente de que uma das razões por que se encontrava no grupo era descobrir, se pudesse, qualquer coisa de valor para a indústria de produtos farmacêuticos de Cyrus Hackfeld. Harriet guardava meticulosamente suas notas e todas as sextas-feiras submetia-as à apreciação de Maud. Uma pequena percentagem deste material era útil, pois revelava as doenças encontradas nas Sereias. No dia anterior, Harriet dissera, com bastante calma, que perdera um dos doentes entregues a seus cuidados. Fora, de entre todos os membros do grupo, o único convidado a participar nos ritos fúnebres. Maud sentia-se satisfeita por ela ter sido aceita pelos nativos.

     Os Karpowicz passavam completamente despercebidos entre todos. Maud mal os via. Sam decidira adiar a maior parte das suas investigações botânicas para as últimas três semanas de permanência na aldeia. Até aqui, concentrara quase inteiramente suas energias na fotografia. Passara três dias preparando uma série de fotografias sobre a Cabana de Auxílio Social, a Cabana Sagrada, a cabana do chefe, a vida quotidiana no conjunto da aldeia e uma reunião da Hierarquia. As provas de contacto que mostrara a Maud refletiam mais o seu desejo de mostrar os aspectos humanos da aldeia do que dar satisfação a seus pendores artísticos. Os nativos das Sereias pareciam saltar das provas de Sam. Este dissera a Maud que tencionava filmar a enfermaria, a escola, as diversas atividades do festival, passar um dia com os artífices da aldeia, durante o seu trabalho, outro com os pescadores, outro (sob a supervisão de Courtney) nas colinas e nas ilhotas, outro ainda para mostrar a vida típica de uma jovem como Tehura, e uma tarde tirando instantâneos de Maud quando ocupada no seu trabalho.

     Estelle Karpowicz- dava também sua colaboração; estudava a culinária da ilha. Quando não se encontrava lendo ou na lida da casa, anotava receitas nativas, movida apenas pelo seu interesse em iguarias exóticas. Contudo, Maud viu que os achados de Estelle teriam certo valor quando da publicação do seu estudo.

     A princípio, Maud pensara que a única pessoa que, com Lisa, não se integraria no grupo, seria a jovem Mary Karpowicz. Porém, como Lisa, Mary fizera uma completa volta-face após o segundo dia na ilha. Embora não fosse comunicativa - era dada às respostas monossilábicas - e possuísse a tensão dos adolescentes, parecia agora uma jovem tratável e cooperadora. Freqüentava com satisfação a escola e era por vezes vista sob uma árvore conversando, absorta, com um colega do sexo masculino chamado Nihau. Estelle estava encantada e Maud satisfeita.

     O último membro do grupo, Orville Pence, passara os primeiros dez dias elaborando um cuidadoso estudo sobre a Cabana de Auxílio Social, as suas origens, história, regulamentos e funcionamento corrente. Metade do seu tempo era dedicado ao registo do que soubera. Dois ou três dias antes empreendera uma nova fase do seu trabalho. Começara a aplicar testes em um grupo misto de nativos, usando os testes de Rorschach, de percepção temática, e alguns de sua invenção. Um destes, explicara ele a Maud com o seu ar de pedante, consistia na apresentação de uma série de fotografias eróticas ocidentais, a fim de obter e calcular a reação dos nativos. O método era familiar a Maud, que, com Adley, tinha freqüentemente, no passado, mostrado aos nativos de determinada cultura livros ilustrados de outra cultura ou da vida nos Estados Unidos, a fim de estimular a discussão. A idéia de Orville de exibir o erotismo ocidental a uma sociedade sexualmente livre dos Mares do Sul constituíra uma autêntica inspiração. Maud disse para consigo que haveria de observar isto na carta dirigida a Macintosh. Com exceção de um momento ou outro de conversa com Marc, Orville confraternizava com os colegas. O seu feitio de solteirão, a superioridade que sempre evidenciava faziam com que fosse impossível que se convertesse num observador-participante. Embora trabalhasse com eficiência com os aldeões, mantinha-se sempre separado deles, e Maud tinha a impressão de que Orville não gostava dos nativos nem estes dele.

     Pelo menos, disse Maud de si para si, Orville tinha o bom senso, o autodomínio necessário para se dar ares de puro cientista Se sentisse desprazer ou descontentamento não os revelaria publicamente. Tentava manter-se fiel às normas.

     Desta maneira, estava acima de qualquer crítica e mostrava-se mais bem ajustado do que Marc.

     Maud soltou um suspiro involuntário de tristeza. Dentre todas as pessoas, o seu Marc, que fora treinado, que tinha experiência, que sabia muito bem o que se esperava dele, era o que se mostrava mais destrutivo. Tinha de o chamar à atenção.

     Escapou-lhe outro suspiro no momento em que se inclinava para a frente a fim de pôr o gravador em funcionamento. Premiu o botão, aproximou da boca o microfone de prata e preparou-se para concluir sua carta espontânea, sem formalismos, dirigida ao Dr. Walter Scott Macintosh...

       

     Para Marc Hayden, o momento com Tehura, que fantasiara durante a maior parte do dia e quase toda a noite, aproximava-se. Ofegante, devido as palavras provocantes da jovem nativa, esperava que ela terminasse, a fim de poder desferir o golpe decisivo.

     Encontravam-se numa elevação da aldeia, num pequeno bosque isolado, um pouco para lá do caminho. O calor do meio-dia envolvia-os. Marc quase que podia aspirar o desejo que fremia na sua carne e a sensualidade do corpo dela. Estava sentado, de pernas cruzadas sobre a grama, escutando-a. Tehura achava-se alguns centímetros afastada dele, deitada de costas, uma perna estendida, nua, e a outra dobrada, de modo que o saiote, levantado, constituía um autêntico suplício para Marc. Perguntou-se se esta postura era deliberada, se ela conhecia o seu poder como mulher e se suspeitava da fome desesperada que ele sentia do seu corpo, ou se isto era simplesmente fruto de sua ingenuidade.

     Hipnotizado, mirava-lhe os seios, o torso todo. Ela tinha um braço atrás da cabeça, que lhe servia de almofada. O outro utilizava-o para os gestos fluidos que fazia à medida que falava das atitudes sociais das jovens das Três Sereias. Quando movia o braço livre e o ombro para sublinhar qualquer coisa, os seios oscilavam com o braço.

     Exausto pela expectativa, Marc cobriu os olhos e inclinou lentamente a cabeça, com uma expressão pensativa, a pose de um estudioso em meditação. Não queria que ela visse já os seus olhos. Era ainda cedo.

     Tentou desviar a atenção das palavras dela e recordar o caminho que percorrera até este momento. A familiaridade dá origem à tentação, pensou ele. Vira-a regularmente, todos os dias, nestas duas semanas. A maior parte das vezes vinham até ao bosque, onde se demoravam duas ou três horas. Ele começava com algumas perguntas preparadas e ela respondia com surpreendente inocência. Por vezes, davam um passeio pelo bosque e conversavam; num dos últimos passeios tinham consumido quase toda a tarde. Tehura convidara-o duas vezes a acompanhá-la em almoços ligeiros que cozinhara no fogão de terra. Uma vez fora com ela até ao armazém comunitário buscar provisões, e, como um colegial carregando os livros da namorada, transportara a ração de inhame e de fruta-pão até à cabana.

     Diante dela, fazia o papel de uma personagem inventada para o substituir, e desempenhava-o com a paixão manifestada por um grande ator representando Hamlet numa noite de estréia. Sempre que a não escutava, desempenhava o seu próprio papel de Marc Hayden. E sempre que se lhe deparava uma oportunidade inseria esta personagem na mente atenta da jovem Tehura.

     Felizmente para ele - embora tivesse, por obrigação, de fazer perguntas sobre a vida das jovens das Sereias - ela parecia mais interessada na sua vida na exótica e distante Califórnia. Nessa terra, Marc projetava-se como uma figura mitológica de importância nacional e de imenso poder. Como nunca lá estivera, Tehura não podia contradizê-lo. Decerto, alguns aspectos da visão que ela tinha do homem americano haviam sido corrompidos por aquele filho de uma cadela chamado Courtney, mas nessas duas semanas Marc procurara corrigir o quadro que Courtney pintara. Marc sentia que tivera êxito ou estava tendo, pois Tehura era jovem, imaginativa, e desejava acreditar em maravilhas - e também porque tinha, imperceptivelmente, minado a autoridade de Courtney.

     Marc tentara acentuar, sutilmente, que as opiniões de Courtney não eram típicas, pois Courtney não era típico. E mais: por que fugira Courtney de uma terra onde viviam milhões de pessoas? Por que se expatriara? Courtney era um autêntico fracassado, uma pessoa sem a menor importância, afável, atraente, mas vencido, e fugira, sim, fugira. As palavras dele refletiam sua amargura e não a clareza da verdade. Marc jamais se referira exatamente desta maneira em relação a Courtney - dava a impressão de sentir compaixão pelo compatriota -, mas era isto que tentava impor na mente de Tehura.

     Mais afirmativamente tinha criado uma auréola em volta de sua própria pessoa. Explicara que os cientistas se encontravam entre a nobreza no Ocidente, e que ele era um cientista de considerável prestígio. Uma vez que Tehura mostrara gostar das coisas materiais da vida, Marc descrevera-se e à sua posição na sociedade americana em termos materiais. Falara da grande universidade onde a sua palavra era lei, dos estudantes e ouvintes que bebiam cada gota de sua sabedoria. Falou da mansão sobre o mar onde residia com sua família, com empregados e engenhocas mágicas. Falou dos seus automóveis, dos seus aviões, dos seus navios. Falou das mulheres que o costumavam procurar, e que o procuravam ainda; dentre elas, elegera Claire, de quem fizera uma espécie de rainha que vivia no meio do maior fausto. Falou da mobília da mulher, do leito, da cozinha, dos trajes, das jóias, dos direitos. Fizera-a e tinha o poder para a desfazer também. Podia fazer ascender qualquer mulher, qualquer mulher da Terra, a este elevado trono.

     Nestas ocasiões, enquanto ele falava das suas magnificências, Tehura escutava calmamente. Com exceção dos olhos, seu rosto não exprimia interesse, ambição ou desejo. Por vezes, falando sem qualquer inflexão, o. que em si era pouco natural, formulava uma pergunta, e outra, mas estas constituíam a soma total da sua reação. A um estranho, Tehura poderia ter parecido um tanto incrédula, e, contudo, conquistada pela retórica. A Marc, que acreditava conhecê-la por dentro e por fora, ela parecia impressionada com seu mundo e com sua vida, mas demasiado orgulhosa para o revelar. Só uma vez por outra duvidava que a tivesse conseguido subverter. Havia momentos em que Tehura considerava certos costumes americanos inferiores aos da ilha; porém, formulava agora tais objeções cada vez com menos freqüência.

     O que Marc não disse foi que a desejava com a maior paixão. O instinto afirmava-lhe que, se desferisse muito cedo seu golpe, poderia assustá-la e fazer com que ela se afastasse. O momento apropriado seria aquele em que Tehura, atraída por ele ou por aquilo que representava, sucumbiria sem resistência. Durante as duas últimas semanas, Marc vivera uma vida inteiramente imaginária com ela, vida esta de que Tehura não suspeitava. Não lhe restava tempo para dedicar à elaboração de notas - não redigira uma desde que chegara - e não tinha paciência para aturar a mãe nem interesse na sua mulher. Seu espírito estava inteiramente possuído pela sedução de Tehura.

     Através da imaginação, dormira já com Tehura, nua, nas esteiras da cabana dela, na relva do bosque, na areia da praia; dormira com ela em Papeete, Santa Bárbara, Nova York; dormira com ela nesta posição e naquela, e naqueloutra também; dormira com ela uma hora, dez horas, cem horas, com uma apaixonada Tehura cujo rosto era o do amor.

     Agora, o momento de desferir seu golpe aproximava-se. Continuava sentado, de pernas cruzadas sobre a grama, com os olhos ainda cobertos com a mão, esperando com impaciência.

     - ... e assim, como crescemos com tanta liberdade, sentimos o que eu sinto - dizia ela. - Nossa vida amorosa é simples, como tudo o que fazemos.

     Ele baixou a mão.

     - Compreendo tudo o que diz, Tehura. Só uma coisa me causa perplexidade. Você, e todos nesta ilha, referem-se ao amor como se a uma arte. Contudo, não admitem os preliminares, os beijos, as carícias acima da cintura...

     - Não disse isso, Marc. Decerto, temos aquilo a que chama preliminares. São diferentes dos seus, eis tudo. No seu país, as mulheres usam roupas, que tiram para excitar os homens. Escondem os seios, e, assim, quando os homens os vêem descobertos excitam-se. Aqui, todas andam da mesma maneira, há pouco que tirar; os seios estão sempre nus, de maneira que não causam excitação. Nas Sereias um homem mostra o seu ardor oferecendo prendas...

     - Prendas?

     - Flores muito belas. Ou colares. Ou caça. Se estou interessada, encontrar-me-ei com ele. Dançaremos juntos. Conhece a nossa dança? Excita mais do que o seu tolo costume de tocar a boca com a boca. Após a dança, uma mulher deita-se, para recobrar a respiração, e o homem acaricia-lhe os cabelos, os ombros, as coxas. Com isso, uma mulher está pronta.

     - Nada mais? Nem beijos, nem outras carícias? Ela sacudiu a cabeça.

     - Marc.. Marc... Quando quer compreender? Se ao menos o pudéssemos educar!

     Marc agitou-se.

     - Bem o desejaria.

     - Você e Claire precisavam de compreender os nossos costumes.

     - Desejo compreendê-la. Quero ser como você. Ensine-me, Tehura.

     Eis o momento, pensou Marc. Uma velha máxima perpassou-lhe pela mente: quem cala consente. Todo seu corpo vibrava de desejo. Lentamente, mudou de posição, colocou-se a todo o comprimento ao lado da jovem nativa, os olhos fixos no rosto dela.

     - Ou permita que eu a ensine - disse ele num murmúrio.

     Tehura continuou silenciosa e imóvel. Marc pousou a mão no braço dela, acima do seio oscilante.

     - Tehura, se eu... se eu tocasse seus seios...

     - Não sentiria nada - interrompeu ela.

     - Tem certeza?

     - Seria o mesmo que tocar-me num cotovelo ou num dedo dos pés... ou colar a sua boca à minha. Nada.

     - Deixa que prove que está enganada? - disse ele, trêmulo.

     Os olhos dela manifestavam perplexidade.

     - O quê? - perguntou. - Que quer dizer?

     - Isso - respondeu ele.

     Num impulso incontrolável, colocou-se sobre ela. Sua boca encontrou os lábios abertos de Tehura, e, enquanto a beijava, movia a mão sobre um dos seios tão apetecidos.

     Surpreendeu-o o fato de ela não se debater sob ele. Porém, quando trouxe a mão até abaixo da cintura, Tehura afastou-o.

     - Não - disse ela, como se repreendesse uma criança; depois, sentou-se sobre a grama e compôs o saiote.

     Atônito, Marc endireitou-se.

     - Mas, Tehura, pensei...

     - O que pensou? - volveu ela calmamente, sem cólera. - Que estes seus gestos me excitariam para o amor? Como disse, Marc, essas carícias tolas não despertam em mim o desejo. Deixei que as fizesse para ver se me excitavam. Porém, isso não aconteceu e tive de o afastar.

     - Por que, Tehura? Necessito de você, desejo-a...

     - Para você, é bom. Para mim não é o suficiente. Não o desejo ainda. •

     - Pensei que se interessava por mim. Nestes últimos dias...

     - Estou interessada. Você é diferente. Tem prestígio. Mas oferecer-me sem desejo... não.

     As palavras tinham criado esta situação e estava decidido a seduzi-la. Apertou-lhe o braço.

     - Tehura, escute-me. Como disse, na América sou muito... tenho... Cem, mil moças ficariam maravilhadas se eu lhes concedesse a minha atenção.

     - Ainda bem para elas, ainda bem para você, mas não estou na América.

     - Tehura, desejo provar meu amor. Como posso convencê-la de que isto não é apenas uma diversão? Como posso demonstrar que falo a sério?

     Ela fitou-o astutamente.

     - Tem uma esposa. Nas Sereias os homens casados são tabu.

     - Sim, tenho uma esposa. Todavia, não sabia que existia uma mulher como você, pois teria esperado, não me teria casado com Claire. Farei tudo o que quiser. Será também uma rainha.

     - Sim? Como?

     - Poderá ter tudo o que quiser, o que ela tem. Comprar-lhe-ei roupas caras, tudo...

     - Roupas? - Ela fitou-o como se a um louco. - Que faria eu com essas tolices aqui?

     - Outras coisas, então. Disse que seus homens dão às mulheres que amam todas as espécies de objetos. Colares, por exemplo. Oferecer-lhe-ei todos os colares que quiser. - De súbito, recordou-se. - O colar que minha mulher trazia. Admirou-o. Mandarei vir um igual para você. Custará uma fortuna, mas não me importo. Quer?

     Ela hesitou, e franziu as sobrancelhas antes de responder.

     - Não se incomode.

     Sua angústia converteu-se em frenesi.

     - Que diabo, diga o que quer. Que posso eu fazer para a impressionar?

     - Nada.

     - Disse-me... que deu seu amor a Courtney e a todos os outros homens. Ainda pensa nesse tal... Que raio de nome tem ele?

     - Huatoro. É bom.

     - Bem, é assim uma pessoa tão excepcional? Quem diabo é ele? Por que o prefere a mim?

     - É livre. E ama-me...

     - Eu também a amo - interrompeu Marc.

     - Você é uma pessoa preeminente na América, mas aqui Huatoro tem mais categoria. Será o nosso principal atleta no festival. Vencerá a prova de natação, e todas as minhas amigas o desejarão. Quero-o para mim.

     - Isso é ridículo. Vai entregar-se a um homem apenas porque ele vence uma prova de natação?

     Ela empertigou-se.

     - É importante para nós - retorquiu. - É tão importante aqui vencer a prova como é importante na América ganhar muito dinheiro para depositar no banco ou construir um grande edifício.

     - Muito bem, concedo essa importância à sua maldita prova de natação - volveu ele. - Mas como sabe que Huatoro a vai ganhar? Com os diabos, sou capaz de o deixar a mais de um quilômetro. Na América fiz parte da equipe de natação da universidade. Tínhamos mais candidatos para aquela equipe do que vocês habitantes nesta ilha. Posso vencer qualquer dos professores da nossa faculdade e a maior parte dos estudantes também. - Detestava reduzir-se ao nível juvenil de Tehura. - Seu tio permitirá que eu entre nessa prova?

     - Qualquer pessoa nesta ilha pode entrar nela. Participarão talvez vinte ou trinta. Tom concorreu algumas vezes e perdeu sempre.

     - Muito bem - disse Marc rudemente. - Conte comigo. Se eu vencer seu amigo Huatoro... e vencerei, pode estar absolutamente certa, que acontecerá então? Tratar-me-á como trataria a ele?

     Ela riu.

     - Vença-o primeiro. Depois veremos.

     Com isto, ela ergueu-se, começou a saltitar entre as árvores e desapareceu. A frustração fizera -com que a cólera o invadisse. Porém, aquilo que fantasiara ainda não estava perdido.

       

     Mary Karpowicz conteve a respiração e orou para que ninguém, nem mesmo Nihau, que se encontrava a seu lado na última fila da sala de aula, notasse sua apreensão.

     O professor, Sr. Manao, tirara momentos antes seus óculos de aros de aço, que limpara e equilibrara de novo no nariz. Em seguida, anunciara:

     - A fase introdutória do nosso estudo do faa hina'aro está completada. Durante doze dias falei sobre a evolução das relações sexuais entre os animais, das espécies mais inferiores às superiores. Hoje, chegamos à mais elevada ordem da vida... o ser humano. Como aconteceu em relação aos animais, o nosso método dará maior relevância ao prático do que ao teórico. Tenho no meu quarto dois voluntários da Cabana de Auxílio Social. Trá-los-ei aqui e começaremos.

     O Sr. Manao deixou em seguida a sala.

     Os estudantes das filas da frente conversavam em voz baixa, e Mary Karpowicz forçou os ombros, involuntariamente erguidos como a concha de uma tartaruga, a baixarem-se, e respirou fundo. Desejava voltar-se para Nihau, que se mostrava sempre afável para com ela, e perguntar o que se iria passar em seguida. Todavia, tinha medo de se trair. Acima de tudo, não desejava mostrar falta de naturalidade.

     Continuou a olhar para a frente. Refletiu nos ensinamentos do Sr. Manao, nos últimos dias. O que dissera acerca dos animais fora bem interessante, sim, mas sem relação com sua pessoa. Havia coisas bastante singulares, mas nada que não se pudesse aprender, se se lesse nas entrelinhas de Seleções ou num compêndio de biologia. Nada do que ouvira teria a mínima utilidade em Albuquerque. Os conhecimentos sobre o período de gestação da fêmea do javali não fariam com que se sentisse uma igual de Leona Brophy. Desejara aprender acerca de si mesma, acerca dos mistérios do sexo, e, cheia de expectativa, freqüentara diariamente a aula, relatando aos pais o que ouvia, exceto o que se referia a este tema (que decidira não mencionar). Agora, o que aguardara com tanta ansiedade estava prestes a ser-lhe oferecido. E sentia receio, preferia ouvir falar sobre a fêmea do javali.

     O murmúrio nas filas da frente tinha cessado. Todos haviam esticado o pescoço para melhor verem o que ia suceder. O Sr. Manao voltara, seguido pelo par da Cabana de Auxílio Social. Estes eram in vulgarmente belos. O jovem, de cerca de trinta anos, era de altura média e tinha a epiderme bronzeada. Seu rosto era largo, bem-humorado, e os ombros largos; exibia músculos sólidos, salientes, e trazia como única peça de indumentária o seu saco púbico. A jovem, aproximadamente da mesma idade, era inteiramente de casta polinésia, e tinha cabelos negros caídos sobre os ombros, seios perfeitamente redondos e quadris largos mas bem torneados.

     Mary ouviu Nihau sussurrar-lhe ao ouvido:

     - São ambos bem conhecidos na aldeia. Ele é Huatoro, um dos nossos melhores atletas. Tem vinte e oito anos. Ela é Poma, uma viúva de vinte e dois anos muito apreciada pelos homens.

     Mary fez um gesto de assentimento, sem voltar, no entanto, a cabeça para Nihau. Tinha os olhos fixos no par.

     O Sr. Manao conduzira a jovem Poma pelo cotovelo até próximo da primeira fila. Huatoro, o atleta, ficara onde estava, sentado na esteira aguardando sua vez.

     Ainda com o cotovelo de Poma na mão, o professor dirigiu-se à classe.

     - Começaremos com a descrição das funções femininas - disse ele. - Embora todas as partes do corpo estejam relacionadas com o prazer sexual e com a procriação, em especial certas áreas sensíveis, dedicaremos agora a nossa atenção apenas aos órgãos genitais, externa e internamente. - Libertou o cotovelo da jovem, deu um passo para trás, colocando-se defronte dela. - Por favor, Poma.

     Da última fila, Mary não queria acreditar no que observava. Com as mãos fechadas sobre o regaço do seu vestido leve de verão, ouviu, de olhos esbugalhados, toda a explicação. Poma, completamente nua, era uma verdadeira peça de exame.

     Tudo aquilo causava nela a maior perplexidade. Em Albuquerque, ela e as amigas andavam por vezes nuas no vestiário do ginásio do colégio ou em festas em que só participavam moças, com a mais completa equanimidade. Porém, nunca vira uma jovem expor-se nua aos olhos de um grupo misto. A sua vergonha era menos por Poma do que por si mesma e pela sua falta de feminilidade, refletida de maneira tão aberta diante dos rapazes da classe, em especial daquele que se encontrava a seu lado. Que iria ver agora?

     Com voz clara e firme o professor falava à classe. Poma parecia calma e natural como um modelo de artista; o Sr. Manao, a mão estendida como um ponteiro, explicava aquela parte da anatomia feminina.

     Mary sentia-se aturdida. Era uma coisa inacreditável. Baixou os olhos e assim os manteve durante toda a crua descrição. Porém, seus ouvidos, bem abertos, escutavam todas as palavras do Sr. Manao. Procurava mostrar-se despreocupada e atenta, pois imaginara que todos os olhos estavam voltados sobre si, ou sentia que o deviam estar, uma vez que era uma estranha, que pertencia a uma raça que proibia todos estes costumes.

     Em dado momento apercebeu-se de que o Sr. Manao prescindira da jovem Poma e chamava Huatoro, o atleta, que se aproximou. Este estava voltado para a classe. Contra todos os censores do seu cérebro, Mary ergueu os olhos e manteve-os pousados no corpo do nativo. O que viu fê-la abrir a boca de espanto e suspender a respiração. Huatoro tirara o saco púbico e estava nu diante dela. Só decorridos alguns momentos, quando o Sr. Manao apontou para Huatoro e calmamente prosseguiu sua lição, ela baixou a cabeça. Tentou defender-se contra as palavras pronunciadas agora pelo professor, as palavras clínicas de um homem, mas não' o conseguiu; elas eram velozes e certeiras como setas. Então, desejou levantar-se e fugir, mas manteve-se sentada, pois se fizesse o que tinha em mente converter-se-ia num espetáculo bem mais chocante do que aquele que tinha diante de si.

     Quando ouviu anunciar o intervalo, pôs-se de pé, vacilante, quase com os olhos fechados. Não queria ver ninguém e não desejava que a vissem. Estava nua, tão nua como eles. Tinha um único desejo: esconder-se.

     Ao chegar à rua, quis correr, distanciar-se o mais possível deste lupanar. Os estudantes que a tinham precedido e que enchiam os gramados da escolas faziam com que isto fosse impossível. O mais rapidamente que pôde, ignorando todos os olhos, dirigiu-se para o conjunto.

     Em dado momento, compreendeu que Nihau daria pela sua falta. Nas últimas duas semanas tinham combinado encontrar-se durante os dois intervalos. Se saísse da aula antes dele, devia esperar debaixo de uma árvore. Segundos depois, Nihau apareceria inevitavelmente, sorrindo com timidez, mais hesitante do que nunca, com duas meias cascas de suco de fruta nas mãos. Sentavam-se debaixo das árvores, muitas vezes na companhia “de um ou outro amigo do jovem, e reviam o que se passara na sala de aula ou nas suas vidas. Hoje, pela primeira vez, não estaria à espera dele debaixo da árvore. Que iria pensar Nihau?

     Na verdade, pouco se importava com o que pensassem dela agora. A fealdade do que se passara diante de seus olhos, na escola, sufocara toda a razão. Queria apenas estar longe daquela casa de deboche, num lugar onde pudesse respirar.

     Desceu o declive e, como não viu ninguém, começou por fim a correr. Ao chegar ao limite do conjunto da aldeia de teve-se, arquejante, sem saber para onde ir. Se se dirigisse para a cabana, o pai ou a mãe, ou ambos, estariam lá. Aperceber-se-iam de que se achava agitada e considerariam estranha sua presença, pois àquela hora costumava encontrar-se ainda na escola. Fariam perguntas e teria que descrever o que queria omitir.

     - Mary!

     Ao ouvir seu nome voltou-se e viu Nihau aproximando-se dela, um tanto inquieto.

     - Estava perto de você quando saímos - disse ele. - Vi como partiu. Que é que a preocupa, Mary?

     - Não desejo falar agora.

     - Lamento... lamento... Não quero perturbá-la, ofendê-la...

     O ar dele era de tal modo suplicante que Mary não foi capaz de o suportar.

     - Não é nada de especial, Nihau. Eu... - Olhou em redor. - Onde é que nos podemos sentar?

     O jovem nativo apontou para a esquerda.

     - Ali, perto da Cabana Sagrada.

     Puseram-se a caminho, ao longo do limite do conjunto, sem uma palavra. Depois de entrarem no pequeno bosque, Nihau indicou a primeira clareira mergulhada na sombra.

     - Quer ficar aqui? - perguntou ele.

     - Não o quero reter - volveu ela. - Chegará atrasado à próxima aula.

     - Não importa.

     Sentaram-se sobre a grama fresca, mas Mary não sabia o que dizer. Tinha uma expressão dorida nas feições jovens.

     - Detesto ter de contar o que sinto a alguém - disse ela por fim, entrelaçando os dedos. - Vão pensar que sou uma criança.

     - O que se passa, Mary?

     - O que acabamos de ver na aula... Bem, jamais vira uma coisa como aquela, antes.

     Lentamente, ele começou a compreender.

     - Refere-se a Poma e a Huatoro?

     - Sim.

     - Mas já viu outras pessoas nuas. Crianças. Suas amigas. Seus pais.

     - É diferente. Isto foi tão... tão cru.

     - De qualquer maneira, tem de começar, Mary. Deve aprender como nós aprendemos.

     - Não sei, não consigo explicar, eis tudo - volveu ela. - Talvez tenha crescido sem muitos problemas, talvez seja... romântica. No entanto, tudo aquilo... Nus, em frente de um grupo misto, à luz do dia, e o Sr. Manao a apontar para, para... não sei. Tudo me pareceu muito pouco atraente. Foi uma coisa forçada. Como o que se passa no meu grupo, em Albuquerque. Foi devido a isso que sempre me mantive à margem. Penso que não se devem fazer certas coisas apenas para se seguir uns certos costumes, ou para nos sentirmos crescidos. Deve-se fazer as coisas quando se deseja fazê-las, e na devida hora. Compreende-me, Nihau? Estou bastante confusa neste momento.

     Ela sentiu-se aliviada por ter dito isto. Tentou ver se o jovem nativo compreendia. Ele estava calmo, tinha o olhar fixo nas mãos, emocionado.

     Após uns momentos de silêncio, Nihau ergueu a cabeça.

     - Compreendo o que sente - disse ele. - Veio de um lugar onde as coisas são ocultadas para outro onde não existem segredos. Nós estamos preparados para receber este ensino, e você não. Desde pequenos que eu e os outros alunos conhecemos isto, de certa maneira. Vi muitas vezes homens e mulheres de todas as idades despidos. Vi muitas vezes também fazer amor. Para todos nós, Poma e Huatoro não foram os primeiros a revelar estas particularidades do sexo. O Sr. Manao mandou-os despir como nas suas classes o professor tira um mapa da parede ou exibe um esqueleto. Ele quis mostrar exatamente o que são essas coisas, que fazem parte da vida, que são as mais imediatas. - Fez uma pausa para pensar no que iria dizer a seguir. - Se é nova para você, a experiência deve ser de fato aterradora. Lamento que veja em tudo aquilo um ultraje ao amor. Não é verdade, Mary. O que empobrece o amor é a vergonha, o medo, a ignorância. Ver o que viu, aprender o que aprendeu não fará empobrecer coisa alguma quando seu coração sentir verdadeiro amor. Então, o homem com quem estiver será como o primeiro homem que já viu ou conheceu. Se for sensata e não receosa, terá muito maior prazer com ele e será mais feliz devido ao fato de começar bem sua vida amorosa.

     As palavras de Nihau confortaram-na. Agora, na sua mente, as imagens de Poma e Huatoro, nus, e a vivida descrição do Sr. Manao sobre as suas anatomias pareciam difusas, menos desagradáveis. Por fim, as imagens tornaram-se ainda mais atraentes.

     Nihau esperava, como se aguardasse uma súbita decisão.

     Em dado momento, Mary sorriu e disse:

     - Obrigada, Nihau. É melhor que volte para a escola.

     - E você? - volveu ele, hesitante.

     Quanto a ela... Sentiu uma vaga de frescura por todo o corpo. Os mistérios dissipavam-se, e em breve não restaria nenhum. Seria uma mulher sensível, confiante, superior a qualquer outra de Albuquerque, e mais saudável. O medo e a vergonha tinham-se esfumado. Era como se não fosse capaz de esperar a maturidade. Queria-a imediatamente, desejava que os muitos dias de aprendizagem se transformassem num só. Desejava sentir-se já uma autêntica mulher.

     - Hoje, não, Nihau - disse ela. - Ficarei aqui sentada, pensando. Mas amanhã... sim, estarei na escola, amanhã.

    

     Durante mais de uma hora, sob o sol tórrido do começo da tarde, Harriet Bleaska, com o seu uniforme branco de enfermeira, observara sem uma lágrima o funeral de Uata.

     Antes de vir, Harriet sentira-se um tanto receosa. Maud, porém, tranqüilizara-a, dizendo que os ritos da separação, na maior parte das ilhas da Polinésia, eram simples. Os ritos nas Três Sereias, explicara Maud, consistiam principalmente na separação da alma de Uata do seu ser carnal e na conseqüente purificação para a subida ao reino do Alto Espírito.

     De todos os visitantes americanos só Harriet fora convidada a assistir. Ela esperava que alguns dos companheiros estivessem presentes; contudo não encontrara nenhum deles diante da cabana de Uata, que ficava na elevação, a algumas centenas de metros da enfermaria. Harriet vira-se de pé perto de vinte e poucos aldeões, todos parentes de Uata. Reconheceu o chefe Paoti e sua mulher, Moreturi, Tehura e vários outros. Supôs que os dois anciãos que se achavam diante de todos fossem os pais de Uata.

     O aparecimento de Harriet não despertou a atenção de nenhum dos presentes. Estava satisfeita por isso ter sucedido, mas espantara-a o fato de Moreturi a haver procurado para lhe dizer que comparecesse. O grupo fazia incidir sua atenção sobre a cabana de Uata. Decorridos alguns minutos, seis jovens da idade de Uata surgiram com uma longa e alta cesta de vime na qual repousava o cadáver do nativo. Tinham-no trazido diretamente do seu cubículo da enfermaria. Rápidos, depositaram seus restos mortais no centro da divisão da frente da cabana. Pouco depois, saíram, fecharam a porta e começaram a destruir a cabana. Usando afiadas facas de bambu, retalharam o telhado e as paredes de folhas e ramos de pandanus. Um monte de folhas de pandanus e canas partidas achava-se sobre o falecido e seus pertences. Em dado momento, Paoti tocou com uma tocha acesa a pira funerária, que começou imediatamente a arder. As chamas foram surpreendentemente breves, mas pouco tempo depois colunas espiraladas de fumaça e poeira começaram a elevar-se no céu. Presumia-se, pensou Harriet, que a alma de Uata, libertada e purificada pelas chamas, se separava das colunas de fumaça para alcançar seu abrigo final.

     Durante toda a cremação, Harriet sofrerá, mas não chorara. O fim de Uata parecera-lhe tão inevitável depois de o examinar que o falecimento dele, duas noites antes, não constituíra surpresa. Coabitara com Uata não uma mas três vezes e sentia-se contente por lhe ter dado aquela alegria.

     Quando as chamas se extinguiram, para deixarem apenas cinzas, Harriet perguntou-se o que esperavam dela. Deveria tentar consolar os pais e os outros familiares de Uata? Porém, antes de ter tomado uma decisão, Moreturi colocou-se a seu lado. Compreendeu que ele estivera distribuindo bebidas, pois passou-lhe uma casca com líquido.

     - Para celebrar a chegada dele lá em cima - disse Moreturi. - Só necessita de a provar. - Começou a afastar-se, mas depois deteve-se. - Obrigado, Harriet.

     Perplexa, sorveu um gole do líquido pegajoso e derramou o resto sobre a grama. Quando ergueu os olhos viu que uma fila de nativos, conduzida pelos pais de Uata, se formara diante dela. Um por um, todos lhe apresentaram seus respeitos com um ciciado “Obrigado”, afastando-se em seguida. O chefe Paoti e Hutia Wright seguiram-se aos pais de Uata, depois aproximaram-se os mais velhos, e, por fim, uma dúzia de jovens de ambos os sexos. Todos expressaram verbalmente seus agradecimentos a uma Harriet Bleaska atônita.

     Terminada a cerimônia, Harriet viu-os partir. Depois, desceu à aldeia, caminhando apressadamente pela sombra, e dirigiu-se para a enfermaria.

     Encontrou Vaiuri ocupado com suas ervas medicinais. Ao dar pela entrada dela o prático nativo pôs-se de pé, com uma expressão grave formal.

     Harriet tirou um lenço da bolsa e passou-o pelo rosto.

     - Está calor - disse.

     - Ah, a cremação e o sol - volveu Vaiuri. - Vou buscar-lhe água.

     - Não, não, obrigada. Deram-me qualquer coisa para beber. Necessito apenas de um cigarro. - Tirou um da bolsa e Vaiuri acendeu-o.

     - Como decorreu a cerimônia? - perguntou ele.

     - Foi triste, muito triste, mas dignificante.

     - Sim, habitualmente não há lágrimas. Vivemos. Morremos. Talvez vivamos novamente.

     Harriet deu uma tragada e decidiu fazer uma pergunta a Vaiuri.

     - Vaiuri, se não se importa quero que me explique uma coisa referente à cerimônia.

     - Com todo o gosto.

     - Depois da cerimônia todos se aproximaram de mim para me agradecerem não sei o quê...

     Vaiuri manifestou seu espanto.

     - Não sabe?

     - Não faço a mínima idéia.

     - É famosa em toda a ilha.

     - Famosa?

     Vaiuri inclinou a cabeça.

     - Sim, tem prestígio. Foi generosa para Uata nos seus últimos dias de vida. Toda a gente está em dívida com você.

     Estaria ele dizendo o que pensava que estivesse dizendo?

     - Quer dizer... Uata revelou que fizemos amor?

     - Estava orgulhoso. Isso não é nenhuma desgraça aqui. Ele era um desses que vivia para o corpo. Só necessitava de amor para se sentir feliz. O costume não o permitia. Só você, como estrangeira, podia transcender o costume, o que fez. A família dele considera-a uma divindade. Eis por que lhe agradeceram. E também... - Deteve-se.

     - E também o que, Vaiuri?

     - Não quero ofendê-la embora não se trate de nada que cause ofensa. É alguma coisa de que se deve orgulhar.

     - Não são necessários rodeios, Vaiuri. Trabalhamos juntos.

     - Foi considerada parente de Uata.

     - Por favor, diga-me o resto.

     - Depois da primeira noite, e das outras que se seguiram, Uata confessou-me, e também a Moreturi, e aos outros que o visitavam, o seu romance. Não podia conter-se, pois sentia-se muito feliz. Conhecera muitas mulheres, muitas... mulheres apaixonadas e experientes... mas disse que nunca encontrara uma que se igualasse a você. Falou-me da sua magnificência. Afirmou que nenhuma mulher possuía a sua arte, no amor. Referia-se em especial ao seu calor, à sua ternura. Pouco depois, a família soube de tudo, a aldeia também. Desconhece-o com certeza, mas hoje você é uma lenda viva. É considerada por todos a mulher mais desejável e mais bela de toda a ilha.

     A mente de Harriet recuou no tempo; recordou-se da escola de Cleveland, dos homens do Bellevue, de Nova York, do anestesista e de Walter Zegner, em San Francisco. Todos os que conhecera intimamente a tinham considerado desejável e bela na cama, mas na cama apenas. Nenhum penetrara para além da Máscara para saber que a beleza do seu amor era também a beleza da sua pessoa. Contudo, aqui, talvez aqui, a Máscara dissolvera-se para sempre. Não podia, no entanto, confiar em ninguém depois da desilusão com Zegner. Devia mostrar-se cautelosa.

     - Eu... eu não sei o que dizer, Vaiuri. Acredite-me, o pobre Uata, Deus tenha a sua alma em descanso, exagerou. Não sou tudo isso.

     - Não precisa de ser modesta. É verdade. Foi provado. É a mulher mais desejável e mais bela para todos aqui.

     Observou o rosto franco, sério e singularmente romano do médico prático.

     - Para todos aqui, Vaiuri? É uma coisa que...

     - Para todos - disse ele com calor.

     Harriet sabia o que ele queria dizer, e seu coração rejubilou.

    

     Nunca, durante todos os anos que dedicara ao estudo do comportamento sexual comparado, se sentira Orville Pence mais frustrado do que neste momento.

     O suor caía-lhe pela testa, obrigando-o a tirar os óculos para limpar os olhos. A gravata, que persistia em usar apesar dos gracejos de Sam Karpowicz e de Marc, estava colada a seu pescoço úmido e fazia com que a respiração fosse bastante difícil.

     Em momentos como este desejava nunca ter vindo. Em vez da felicidade matrimonial que estivera a seu alcance - maldita Crystal, maldita Dora, maldita Beverly - surgira esta viagem; agora, achava-se, cheio de amargura, sentado no chão da divisão da frente da sua cabana cercado por um semicírculo de idiotas quase primitivos que não queriam cooperar.

     Eram seis, três homens e três mulheres, entre os vinte e os cinqüenta anos. Tinham-se apresentado a fim de serem submetidos aos testes projetivos de Orville. O teste inicial, que ele próprio inventara e experimentara com êxito, parecia, desta vez, verdadeiramente inadequado.

     Orville tinha orgulho deste teste e esperava escrever um ensaio notável sobre a sua aplicação a uma sociedade remota, como a das Sereias, uma sociedade altamente preocupada com o sexo. Nunca negara, nem mesmo durante a sua conversa da noite anterior com Rachel DeJong e Maud Hayden, que o teste era derivado de outros.

     Com considerável antecedência, Orville aguardara a chegada de seus voluntários. Depois de um breve e claro resumo, tinha, momentos antes, começado a aplicar o teste nas Sereias. Do monte de reproduções que se encontravam com a face para baixo a seu lado tirara a de cima e oferecera-a ao exame curioso dos seis nativos.

     Após pôr a funcionar o gravador portátil, dissera aos ilhéus, que passavam de uns para os outros a reprodução, sem fazer comentários, o seguinte:

     - Esta é a fotografia de um dos muitos afrescos da Casa dei Ristorante, em Pompéia, uma antiga cidade de um país chamado Itália. Estes famosos afrescos mostram todos os métodos utilizados na cópula. O que vêem tem uma mulher nua, de joelhos, em cima de uma cama, e um homem por trás...

     A fotografia voltara à sua mão.

     - Bem - perguntou ele -, qual é a sua impressão? Aguardou os esperados comentários, mas nenhum dos seis falou ou se moveu.

     - Pronuncie-se um de cada vez - tornou, para os ajudar a vencer o que supunha ser nervosismo. Apontou para a primeira pessoa do semicírculo, uma nativa de meia-idade. - Que é que lhe vem à mente?

     Elevou a reprodução do afresco.

     - Muito bonito - respondeu ela.

     Orville inclinou a cabeça para o segundo, um homem mais velho.

     - Que tem a dizer?

     - Bom - volveu este -, muito bom. O terceiro consultado disse por sua vez:

     - Bonito.

     O que se seguiu:

     - Bonito.

     Orville deteve-se espantado.

     - Só têm isto a dizer? Não estão surpreendidos? Chocados? Estimulados?

     Orville esperou. Os membros do grupo entreolharam-se e encolheram os ombros; por fim, um deles, a mulher de meia-idade, falou por todos:

     - É comum - afirmou ela.

     - Quer dizer que é uma coisa familiar para todos? - perguntou Orville.

     - Familiar - respondeu a nativa, e todas as cabeças se inclinaram num gesto de assentimento.

     Desconcertado, Orville tentou prosseguir. Se não conseguisse extrair uma reação original não poderia examinar o seu padrão de resposta a um estímulo.

     - Nenhum de vocês quer falar sobre esta fotografia? Que imaginam que aconteceu antes deste momento, e durante ele? Conseguem imaginar o que acontecerá a seguir?

     O semicírculo consultou-se silenciosamente; todos tinham as sobrancelhas arqueadas e os ombros elevados, como se supusessem que o visitante era um lunático. Um deles levantou a mão. Tratava-se de um jovem delgado de cerca de vinte anos.

     - Falarei eu - anunciou ele. - Ele deseja o amor, ela deseja o amor, e fazem amor na fotografia. Daqui a pouco ele estará feliz, ela estará feliz, e repousarão. Depois fazem amor de novo, se não dormirem. São fortes. Fazem amor muitas vezes.

     - Sim, sim - retorquiu Orville com impaciência. - Mas não têm mais nada a dizer? Isto os faz pensar em vocês mesmos... agrada-os, desagrada-os...

     - Não há nada que pensar - disse o jovem, calmamente. - É muito comum. Todos o fazemos. Todos gostamos. Não há nada mais para dizer.

     Orville olhou de relance para os outros cinco, interrogativamente. Todos inclinaram a cabeça para afirmarem que concordavam com o companheiro.

     Esmagado, Orville deixou tombar a fotografia do afresco de Pompéia sobre as pernas e ficou com os olhos fixos nela. A fotografia provocou nele uma resposta imediata. Por um lado, nunca utilizara esta posição com uma mulher, e as possibilidades de a utilizar agora eram mínimas. Por outro, nunca tivera o prazer que a fotografia sugeria, o que o entristeceu. Por outro ainda, a sua mente detivera-se na imagem de Beverly, o que fez que se sentisse só.

     Estes pensamentos, originados pelo malogro do teste de sua invenção, avivaram seu sentimento de frustração.

     Acabrunhado, decidiu persistir até que os nativos capitulassem. Colocando de lado o afresco de Pompéia, pegou na reprodução que se seguia na pilha. Esta era de um quadro de Jean-François Millet intitulado Amantes. Descrevia nos tempos modernos o que o afresco de Pompéia descrevera nos tempos antigos. A reprodução do quadro de Millet impressionara sempre os amigos de Orville. A maior parte deles só conhecia o pintor através do Angelus e não acreditava que o mesmo artista se tivesse preocupado com a sexualidade mais crua. Orville exibiu a reprodução. Uma vez mais aquelas faces rígidas continuaram impassíveis, e uma vez mais, interrogados sobre sua reação, nada disseram exceto que o ato lhes era familiar.

     A terceira e a quarta reprodução eram de O Leito, de Rembrandt, e do Abraço, de Picasso, ambas mostrando realisticamente homens e mulheres na posição normal da cópula Os seis nativos mais uma vez ficaram mudos. Desesperado, Orville tirou do fundo da pilha a reprodução de As Amigas, de Pascin. A reação perante este quadro de duas lésbicas francesas nuas foi imediata e unânime. Os seis nativos riram com evidente satisfação. Imediatamente, Orville sentiu renascerem suas esperanças.

     - Por que acham o quadro engraçado? - desejou ele saber.

     O jovem de vinte anos falou:

     - Rimos porque... é um desperdício de tempo!

     - As mulheres não fazem isto aqui?

     - Nunca o fizeram.

     - Que sentem em face do quadro?

     - Nada, a não ser que isto é um desperdício de tempo. Orville voltou à carga, tentando provocar novas reações.

     Porém, nada mais conseguiu obter.

     Com crescente desânimo, Orville exibiu uma gravura do século XVI, de Giulio Romano. Esta representava um par nu, com a mulher por cima. Pela primeira vez, o grupo manifestou interesse. Debruçaram-se todos sobre a gravura, discutindo-a em polinésio.

     Orville sentiu-se mais animado.

     - Isso lhes é familiar?

     A mulher de meia-idade inclinou a cabeça e disse:

     - Familiar.

     - É popular nas Sereias?

     - Sim, popular.

     - Muito interessante - disse Orville. - É menos praticado no meu país do que...

     - O seu povo pratica-o muitas vezes - interrompeu a mulher de meia-idade.

     - Não é bem assim - retorquiu Orville. - De acordo com as estatísticas, eu...

     - Uata disse que as suas mulheres são maravilhosas desta maneira...

     - Quem é Uata?

     - O que morreu.

     - Ah, sim... Com todo o devido respeito, como poderia ter ele sabido que...

     O jovem delgado interrompeu.

     - Ele soube. Ele amou uma das suas mulheres. Orville hesitou. Seus ouvidos tinham-no enganado. O constante problema da comunicação.

     - Como poderia ter ele sabido que utilizamos esta posição?

     - Estão aqui entre nós.

     - Quer dizer... uma das nossas mulheres...

     - Sim.

    

     Orville tentou conter-se, pois receava que eles se remetessem ao silêncio. Cautela, cautela, disse de si para si.

     Cinco minutos depois, já de posse de todos os pormenores, dispensou os nativos.

     Só e acabrunhado, Orville condenava a perfídia, o comportamento vergonhoso do elemento mais fraco do grupo. Havia apenas uma coisa a fazer, denunciar o escândalo à Dr.a Maud Hayden e afastar a delinqüente da ilha.

     Com isto em mente, Orville ergueu-se e dirigiu-se apressadamente para a cabana de Maud. Ao chegar, encontrou-a sentada à mesa, escrevendo. Ao notar a presença dele, o seu ar abatido, Maud perguntou:

     - Orville, que há? Parece estar terrivelmente preocupado.

     - Estou, estou - volveu ele, tentando controlar-se. - Maud, detesto ter de lhe comunicar... É demasiado nojento.,.

     Maud pousou a caneta.

     - Por favor, Orville, que se passa?

     - Por intermédio de um de meus testes, soube que uma das mulheres do nosso grupo fez... - Não conseguiu pronunciar a palavra.

     - Fornicou? - disse Maud suavemente. - Sim. Presumo que se refere a Harriet Bleaska.

     - Sabe?

     - Decerto, Orville. Soube sempre. É meu dever saber. De qualquer maneira, estas coisas espalham-se depressa numa sociedade como a das Sereias.

     Orville avançou curvado. A sua postura assemelhava-se à de um Quasímodo possesso.

     - Dá a impressão de que aprova este degradante...

     - Não desaprovo - retorquiu Maud com firmeza. - Não sou nem mãe de Harriet nem sua guardiã. E ela já tem mais de vinte e um anos.

     - Maud, que é feito do seu pudor? Isto pode ter conseqüências desagradáveis para todos nós, pode rebaixar-nos aos olhos deles. Além disso...

     - Muito pelo contrário, Orville. O ato de Harriet foi tão superior, num lugar onde a ousadia na esfera sexual é admirada, que ela é tida como uma rainha e nós membros da realeza. Ela receberá maior cooperação de parte de todos os aldeões, e o mesmo sucederá quanto a nós. Em resumo, Orville, aos olhos deles não somos já um grupo de presunçosos.

     Ante esta defesa de uma licenciosa, Orville endireitou-se, furioso.

     - Não, não, Maud. Está completamente errada. É demasiado científica, demasiado objetiva. Para nosso bem, tem de intervir imediatamente, obrigar esta enfermeira a não descer tão baixo. Mande-a regressar. Sim, é isto que deve fazer. Falará com ela?

     - Não.

     - Que diz?

     - Não.

     - Muito bem, muito bem, se não o fizer fá-lo-ei eu... para o bem de todos.

     Após dizer isto, Orville readquiriu sua pose. Dava a impressão de ter sido ferido na sua dignidade. Saiu abruptamente.

     Maud suspirou. Pensara que o reverendo Dayidson morrera há muito na praia de Pago-Pago. Estava enganada. Perguntou-se o que faria Orville, se alguma coisa. Precisava de o vigiar. Um missionário, costumava dizer Adley, pode destruir num só minuto o trabalho feito por dez antropólogos em dez anos. Satisfeita por Adley a apoiar nesta questão, Maud pegou na caneta e continuou a redação de suas notas.

    

     Rachel DeJong não sabia o que esperar quando a porta se abriu, dez minutos antes, para dar entrada, no seu consultório primitivo, a Atetou, mulher de Moreturi.

     Era surpreendente que, numa aldeia tão pequena, onde a população feminina circulava numa área limitada, nunca tivesse visto a mulher de Moreturi, principalmente durante um período em que vira tanta coisa e conhecera tanta gente. Não compreendera isto quando combinara o encontro. Enquanto esperava Atetou, Rachel DeJong tentou recordar-se de qualquer coisa que a pudesse identificar. Foi só nesse momento que tomou consciência da omissão. O fato de nunca ter visto a mulher de Moreturi constituíra um acaso ou fora forjado inconscientemente, da parte de Atetou ou da sua?

     Agora, ao servir chá frio nas canecas de alumínio que os Karpowicz tinham trazido, Rachel deteve-se na personalidade da mulher de Moreturi, tal como a via. Embora nunca tivesse visto Atetou em pessoa, conhecia-a através das associações livres altamente coloridas de Moreturi. Que esperara? Certamente uma mulher velha, desprovida de qualquer atrativo físico. Uma bruxa que atormentava a pessoa extrovertida e sensual de Moreturi. Enfim, Xantipa.

     Contudo, no primeiro encontro, nada disto transparecera, embora Rachel suspeitasse de que devia haver alguma coisa oculta. A partir do aperto de mão, Atetou mostrara-se calma e igual. Manifestara profunda relutância em comparecer ao encontro, mas a sua presença não traía este fato. Rachel imaginava que ela não devia contar mais de trinta anos: possuía rosto estreito, sem rugosidades, pescoço fino e seios pequenos mas altos e lisos. Tinha o hábito desconcertante de olhar para além do seu interlocutor, e nunca se sabia ao certo se escutava a pessoa com quem se encontrava. Falava em voz baixa, demasiado baixa, de maneira que todos aqueles que a ouviam precisavam de se inclinar para a frente para compreender o que ela dizia.

     - Ei-lo - disse Rachel, pousando a caneca de chá frio diante dela. - Espero que o ache refrescante. Já tomou alguma vez chá?

     - Sim, diversas vezes. Sempre que o Capitão Rasmussen o traz.

     Atetou levou a caneca aos lábios e começou a beber impassivelmente. Rachel instalou-se na esteira defronte dela e principiou também a beber seu chá. Sentia a frieza, a hostilidade patenteada pela visita. Moreturi confessara ter explicado à mulher o método clínico da psicanálise. Atetou ressentir-se-ia naturalmente do fato de uma estranha se intrometer na sua vida, e faria todo o possível para a desiludir. Atetou encontrava-se ali apenas para provar que não era tão desajustada como o marido pensava.

     Se quisesse que a entrevista decorresse normalmente, a iniciativa teria de partir dela, pensou Rachel. Atetou nada faria, o que era compreensível. Para a obrigar a falar, teria de insinuar que Moreturi desaprovava a maneira como ela conduzia a vida do lar. Deplorava a tática, mas teria de a utilizar. Não via maneira de fazer com que a nativa se deitasse no diva ou desempenhasse o papel de paciente. Atetou não o permitiria nem sequer durante um segundo. Encontrava-se ali como uma senhora perante outra, preparada para retificar uma pessoa que fora mal informada. Encontrava-se ali para tomar chá e conversar placidamente.

     Para Rachel, Moreturi tinha-se mostrado um analisando muito mais acessível nos últimos dias. Uma vez que a barreira entre eles ruíra, cooperara dentro de suas limitações. As sessões eram um meio de diversão para ele. Estendido sobre as costas, as mãos atrás da cabeça, gracejava com a sua “moça-doutora” e falava livremente, sem inibições de qualquer espécie. Gostava de desconcertar Rachel com suas experiências amorosas. Gostava de contar seus sonhos em pormenor. Tirava prazer do fato de tentar chocar Rachel, que viu já através dele com bastante clareza. Moreturi não se preocupava com suas motivações inconscientes. Quando suas crises domésticas transcendiam os limites do que era suportável, havia sempre o recurso de apelar para a Hierarquia. Seu único interesse, seu jogo, compreendia Rachel, era reduzir sua analista à condição de mulher. Era inteligente, mas não a importava o fato. A análise da sua mente e a introspecção na selva inexplorada do seu cérebro não o atraíam. O hedonista por excelência: comida, bebidas, desporto, dança, cópula. Como seu falecido amigo Uata, prezava uma só coisa: a sensação física. Para uma alma livre por natureza, as responsabilidades da vida constituíam um fardo. Necessariamente, não desejava divorciar-se de Atetou mas sim da prisão do matrimônio, que era antinatural.

     Talvez, pensava Rachel na última semana, Atetou não fosse tão frígida como Moreturi queria fazer supor. Talvez, aos olhos de qualquer homem como Moreturi, todas as mulheres fossem frígidas. Inconscientemente, presumia Rachel, ao defender Atetou defendia apenas seu próprio sexo. Os homens como Moreturi constituíam uma ameaça à monogamia. Ao mesmo tempo, embora não analisasse em si com suficiente profundidade esta ambivalência, Rachel estava secretamente ao lado de Moreturi contra a mulher. De certo modo, Atetou achava-se entre Rachel e o seu paciente. Não se mantinha uma linha reta entre analista e analisando, pois Atetou transformava-a num triângulo. Rachel movia-se sinuosamente num dédalo de culpas sempre que surpreendia Moreturi nas suas tolas lamúrias. O espectro de Atetou avultava sempre que a comunicação era mais aberta.

     Porém, Rachel sabia que se estava enganando a si própria. Atetou não se encontrava de modo algum entre ela e Moreturi. O maior problema decorria da sua insistência em continuar a análise psicanalítica com Moreturi, e portanto a comunicação com ele. Isto parecia cada vez mais impossível. Ela falava ao jovem nativo da inveja do pênis, por parte das moças, ou do medo da castração sentido pelos jovens, e Moreturi desatava a rir a bandeiras despregadas. Falava das culpas edípicas, do deslocamento dos desejos inaceitáveis, e Moreturi ridicularizava-a até quase às lágrimas.

     Gradualmente, Rachel chegava a esta conclusão: um sistema de assistência mental criado pouco antes do fim do século na sofisticada Viena por um judeu genial não funcionava bem, se funcionava, sequer, numa civilização que não era atormentada pelas tensões do Ocidente. Rachel tinha dificuldade em relacionar seus conhecimentos sobre os neuróticos e os psicopatas que viviam numa sociedade altamente alfabetizada, reprimida, materialista, competitiva, com uma sociedade semipolinésia relativamente indolente, hedonista, isolada, onde muitos valores estavam invertidos. Sim, Rachel compreendia que Freud, Jung, Adler, caso se tivessem ocupado da Hierarquia das Três Sereias, acabariam por se verem obrigados a analisarem-se uns aos outros.

     Todavia, Rachel apercebeu-se de que isto constituía um segundo subterfúgio. Não eram Atetou nem a psicanálise ocidental os obstáculos que impediam o seu êxito com Moreturi. Era apenas a causa do malogro. A segurança do seu paciente, a sua falta de inibições, a sua masculinidade, assustavam-na, manietavam-na. Não chegaria a qualquer conclusão relevante com ele somente porque o jovem nativo era forte e ela fraca, e não conseguiria fazer com que ele compreendesse isto. Seus conhecimentos superiores eram bastante úteis. Proporcionavam autodomínio e um gabinete com ar condicionado em Beverly Hills, e poder sobre uma pessoa que se encontrava doente, segundo os padrões da sociedade ocidental. Por outro lado, de nada valiam numa sociedade primitiva como esta. Em face de um animal vigoroso que sobrevivera devido ao instinto e ao apetite, não era possível domesticá-lo com a aplicação dos conhecimentos sobre o Id, o Ego e o Superego. Fazia-se uma coisa apenas: evitava-se um contacto de perto. Fugia-se, como se do demônio.

     Eis agora a companheira do Rei dos Animais diante de si. A companheira representava metade de um problema autêntico que Rachel se propusera resolver. Alguma coisa tinha de ser feita. Rachel viu que a sua visita pousara a caneca e aguardava, os dedos de uma das mãos entre o cós do saiote e a epiderme. Rachel acabou de beber o chá, colocou a caneca de lado e, com certo esforço, assumiu a sua pose profissional.

     - Dá-me muito prazer a sua vinda, Atetou - disse Rachel. - Tem alguns conhecimentos sobre a natureza do meu trabalho?

     - Meu marido e minha sogra falaram-me sobre ele.

     - Bom. Então sabe que desejo ajudar Moreturi a resolver o problema que os preocupa.

     - Não tenho problema algum.

     Rachel previra que ela não se quereria submeter; portanto, não estava surpreendida.

     - Seja como for, seu marido dirigiu um pedido de divórcio à Hierarquia, declarando que você não cumpria seus deveres de esposa. Encarregaram-me de estudar o problema e de o tentar resolver. Como deve compreender, represento a Hierarquia.

     - Não tenho problema algum - repetiu a nativa. - O problema é dele. Moreturi é que fez o pedido.

     - É verdade, sim - admitiu Rachel, recordando-se de que Moreturi fizera uma negativa semelhante a uma acusação igual na sua primeira visita. - Todavia, se um dos membros de um casal se sente infeliz, isso indica que poderá acontecer o mesmo com o outro. - Acrescentou. - Em certos casos, pelo menos.

     - Não disse que me sentia feliz. Podia ser feliz. O problema é dele.

     - Bem, está disposta a deixar que tudo continue como até aqui entre você e seu marido?

     - Não sei... É possível.

     Rachel não podia permitir esta insensatez. Teria de obrigar Atetou a desnudar a alma.

     - Sabe, não é verdade, que tenho visto diariamente seu marido, Atetou?

     - Sim.

     - Sabe que ele fala da sua própria vida e da vida em comum com você?

     - Sim.

     - Sabe o que ele diz?

     - Sim.

     - Atetou, tenho a versão dele. Agora desejo a sua versão. Quando ele me diz, dia após dia, que você não é afetuosa, que não cumpre suas obrigações como esposa, vejo-me obrigada a acreditar que Moreturi deverá conseguir o divórcio... isto é, se admitir apenas a versão dele. Mas não seria justo ouvir apenas Moreturi. Preciso de a ouvir também, Atetou, pois a Verdade tem duas vozes.

     Pela primeira vez, as feições de Atetou animaram-se. A sua serenidade desintegrava-se.

     - Moreturi mente - disse ela.

     - Tem certeza?

     - Ele diz que não cumpro as minhas obrigações como esposa. Cumpro-as tão bem como qualquer outra mulher da aldeia. Quando afirma que não sou uma esposa afetuosa, pensa apenas numa coisa. Ele não tem mais senso do que uma criança. Não sabe que uma esposa não serve só para uma coisa, mas para muitas coisas. Cozinho para ele. Limpo a casa. Interesso-me pela sua vida. Cuido dele. Tudo isto pouco significado tem para Moreturi. Apenas lhe interessa uma coisa.

     Rachel esperou que ela continuasse, mas Atetou não deu mostras de se querer abrir mais.

     - Diz que só uma coisa lhe importa. Qual?

     - O amor físico. É só para jsso que uma mulher tem préstimo no entender dele.

     - Opõe-se às relações sexuais? Resiste a elas?

     O rosto de Atetou manifestou pela primeira vez indignação.

     - Não me oponho, mas tenho de resistir. O casamento só serve para isto? Três, quatro vezes por semana estou pronta, sinto desejo, entrego-me. Mas de manhã à noite, todos os dias, todos os dias? É uma loucura. Uma esposa não pode satisfazer isto. Nem uma centena de esposas. O casamento é diferente.

     Rachel escutou profundamente surpreendida, mesmo incrédula, a versão de Atetou, que diferia tanto da do marido.

     - Moreturi não me disse isso.

     - Ele diz o que lhe convém. Mente.

     - Moreturi afirma que você é uma excelente esposa em tudo, com exclusão do que é mais importante para ele. Afirma que você é fria e que o repele muitas, muitas vezes. Afirma que exige apenas o que é normal aqui, mas que você se recusa a dormir com ele mais do que uma ou duas vezes por mês.

     - É mentira.

     - Afirma que tem de ir muitas vezes à Cabana de Auxílio Social satisfazer-se. É verdade?

     - Sim. Qual é a mulher que o consegue satisfazer?

     - Permita-me a seguinte pergunta, Atetou. Quando dorme com ele as relações satisfazem-na?

     - Por vezes, sim.

     - Mas muitas outras vezes, não.

     - O amor causa muita dor.

     - Quer esclarecer essa afirmação?

     - Ele excita-se demasiadamente quando ama. Parece um louco. Fere. Somos diferentes.

     - Foi sempre assim?

     - Talvez sim, mas nunca me importei. O prazer vence a dor. Agora é pior. Só existe dor, mas não prazer. Ele quer ver-se livre de mim.

     - Não quererá, pelo contrário, você ver-se livre dele? Por que suporta tudo isto?

     - Ele é meu marido.

     Um súbito pensamento acudiu à mente de Rachel.

     - E é o filho do chefe.

     A reação de Atetou foi imediata. Perpassou-lhe pelos olhos uma expressão de cólera.

     - Por que diz isso? Que tem em mente?

     - Estou tentando descobrir se existirão outros motivos cuja influência não compreenda...

     - Não me fale dessa maneira! - Ela pôs-se de pé, furiosa. - Defende-o. Procuro ter paciência com você. Talvez você não seja leal. Ele conquistou-a, como conquista todas as outras mulheres que deseja. Pensa que ele não mente. Pensa que eu minto. Pensa que sou fria. Pensa que não o satisfaço. Pensa que o tento prender apenas devido ao prestígio. Deseja que ele se divorcie de mim.

     Rachel ergueu-se calmamente.

     - Atetou, por que quereria eu que isso acontecesse? Seja razoável...

     - Sou razoável. Compreendo-a perfeitamente. Deseja que ele se divorcie de mim para estar livre para você. É esta a verdade. Pensa em você e não em mim. É desleal.

     - Oh, Atetou, não...

     - Vejo a verdade na sua cara. Faça o que quiser, mas não me incomode.

     Rachel acompanhou-a apressadamente à porta, e procurou retê-la. Atetou, porém, não o permitiu. Abriu a porta e afastou-se.

     Rachel quis chamá-la, mas decidiu não o fazer. Ao fechar a porta, recordou-se de que se passara o mesmo na Hierarquia. Tencionara rejeitar o nome de Moreturi, mas aceitara-o. Então compreendeu a causa disto e estremeceu.

     Instintivamente, Atetou tivera um vislumbre do subconsciente de Rachel e vira o que a psiquiatra recusara ver - que competia com ela pela posse do marido, que tentava ajudar-se apenas a si própria.

     Sentia vergonha de si mesma. Exprobrava-se.

     Longos minutos mais tarde, já com a razão a comandá-la, resolveu tomar uma decisão. Devia afastar-se daqueles dois, para sempre. Dirigir-se-ia a Hutia e às outras mulheres e homens da Hierarquia e devolver-lhes-ia o caso.

     Como investigadora de campo, fora um malogro. Como mulher, não seria uma louca.

    

     Na tarde que declinava, Tom Courtney conduzia Maud e Claire numa visita à creche da comunidade.

     A creche consistia em quatro salas - na verdade apenas uma sala dividida em quatro - esparsamente mobiliadas. Viam-se nelas varas de bambu, blocos de madeira, imagens em miniatura de adultos e de canoas, em talha, brinquedos baratos que Rasmussen trouxera de Taiti, tigelas para refrescos de frutas, tudo isto destinado a ocupar as crianças.

     Diversas crianças entre os dois e os sete anos entravam e saíam, das salas, ativas e ruidosas, sob os olhos atentos de duas jovens (mães que se ofereciam voluntariamente para servir, de tempos em tempos, durante uma semana). Segundo informou Courtney, a freqüência não era obrigatória. Os pequenos eram trazidos aqui ou vinham pêlo seu próprio pé, como eles ou as mães desejavam. Não havia um programa rígido. Por vezes, as crianças arranjavam seu próprio programa, cantavam ou dançavam em grupo, como preferiam. Reinava a anarquia infantil.

     Courtney explicara que, a princípio, o velho Daniel Wright esperara introduzir um sistema radical baseado nas teorias de Platão: os recém-nascidos eram afastados dos pais para serem criados comunitariamente. Uma vez que as identidades se fundiam, os pais teriam de amar todas as crianças, como se fossem suas. Porém, este sonho não pôde ser realizado devido ao fato de colidir com o tabu do incesto das Sereias. O projeto de Wright, uma vez posto em execução, teria feito com que os irmãos e irmãs se casassem uns com os outros, mais tarde, sem conhecerem seus laços de sangue. O próprio pensamento de que isto pudesse suceder causava a maior repugnância aos polinésios. Courtney citara Briffault, que dissera que não era o senso moral que fazia com que o incesto fosse inaceitável para os nativos. O tabu existia por antigos motivos místicos e porque, subconscientemente, as mães amavam os filhos e desejavam poupar-se à competição com as filhas.

     Por fim, Wright desistira do projeto, o que nunca lamentou, pois o sistema nativo atingia os mesmos ideais através de meios menos drásticos. A maior contribuição de Wright para a educação das crianças fora a creche comunitária, que sobrevivera até ao presente.

     Ao mesmo tempo que observavam as crianças que brincavam na última das salas, Maud e Courtney discutiram os méritos das disciplinas de Spock e de Gesell comparadas com as das Sereias. Claire, embora escutasse os dois e seguisse a atividade recreativa na sala, refugiara-se dentro de si mesma. Pensava no seu ressentimento contra Marc, pelo fato de este não desejar filhos. Porém, logo depois viu que Courtney se dirigia para a porta.

     - Vamos observar o que se passa lá fora - disse ele. - As crianças geralmente brincam aqui quando faz muito calor no exterior ou quando chove. Durante a maior parte do tempo correm lá por fora, como pequenos selvagens.

     Claire e Maud seguiram-no até ao pátio gramado. Nem cerca nem paredes delimitavam a área. Os três lados abertos eram demarcados por árvores e arbustos. A maioria das crianças ocupava-se com a construção de uma cabana em miniatura, com hastes de bambu e folhas. Claire seguiu tudo durante um momento, e depois viu-se só. Courtney conduzira Maud para debaixo da copa frondosa de uma árvore. Maud sentou-se pesada como um elefante, e Courtney imitou-a. Decorridos alguns momentos, Claire juntou-se a eles.

     Claire sabia que Courtney a observava, e não às crianças, mas fingiu não notar. Todavia, tentou instalar-se sobre a grama da maneira mais graciosa possível, como Pauline Bonaparte reclinada na Villa Borghese, segundo a obra de Canova. O contacto continuado com o antigo advogado de Chicago não fizera cessar o interesse que Claire sentia por ele. Apesar das confidencias feitas doze dias antes, ele continuava ainda um enigma aos olhos de Claire. Nem uma só vez depois dessa ocasião tornara a falar de si tão abertamente. Uma vez por outra acrescentava mais uma confidencia, mas esta bem ligeira. Desempenhava o papel de guia e de mentor, mas com a maior reserva possível no que tocava à sua vida particular.

     De súbito, ela decidiu fazer-lhe compreender que sabia que estava sendo observada. Fitou-o nos olhos, abertamente, sem um sorriso. Todavia, ele sorriu.

     - Tenho estado a observá-la - disse Courtney, ignorando a presença de Maud, como se esta não se encontrasse ali; na verdade, Maud concentrava sua atenção nas brincadeiras das crianças. - Você tem a mesma graça felina daquelas crianças - acrescentou ele.

     Claire ficou decepcionada. Tentara projetar Canova e representara apenas Marie Laurencin.

     - Talvez isso se deva ao ar daqui - volveu ela. - É bom para as garotas. Gosta de crianças, Tom?

     - Em geral, sim... Mas das minhas mais do que das outras.

     Ela mostrou-se surpreendida.

     - Das suas? Não sabia...

     - Estou gracejando. Quero dizer, gostaria mais das minhas, de muitas brincando à minha volta.

     - Compreendo - disse ela rindo.

     - Se tivesse filhos, agradar-me-ia, num plano ideal, claro, que eles fossem criados numa atmosfera como esta - tornou Courtney, agora com um ar sério.

     Maud volvera por fim a sua atenção para eles.

     - Isso podia não funcionar a não ser que continuassem a sua vida aqui - disse ela. - De outro modo, talvez fossem incapazes de competir com o mundo exterior. A educação das crianças nas Sereias parece perfeita apenas quando temos em mente as pressões a que os pequenos americanos são submetidos. Mas quem pode realmente dizer que essas mesmas pressões não são úteis se eles têm, mais tarde, de enfrentar uma sociedade bastante mais difícil?

     - É verdade - concordou Courtney.

     Claire não estava ainda satisfeita com a afirmação de que a educação das crianças nas Sereias era superior à de Los Angeles ou de Chicago.

     - Tom, por que é assim tão excepcional esta atmosfera para as crianças? Vejo que os adultos desta ilha diferem dos da nossa sociedade, mas as crianças?... Brincam aqui como se brinca na Califórnia, por exemplo.

     - Sim, mas não é o mesmo - retorquiu Courtney. - As pressões são menores aqui, embora, é certo, as exigências dos adultos também sejam menores. Estes pequenos vivem sem preocupações. Até aos seis ou sete anos andam por aí nus. São insignificantes as restrições e, conseqüentemente, quase inexistentes os medos. O sexo não lhes provoca receios. Como sabem, quase nada lhes é ocultado. Não têm com que se preocupar, como atravessar uma rua. Na ilha, não há ruas nem veículos. Não se preocupam também com o preenchimento do tempo... quero dizer, os pais não necessitam de os levar ou de os trazer de casa de amigos, dos parques, ou dos jardins de infância. Andam simplesmente por aí à solta, ou na companhia de outros. Não se perdem. São independentes. Pela prática e pela imitação aprendem a construir cabanas, a pescar, a semear. Não têm que recear a fome. Se sentem fome, apanham fruta ou legumes. Se sentem calor, banham-se no regato. Se sentem frio, alguém lhes dará abrigo, pois, como crianças, pertencem a toda a comunidade.

     - Começo a compreender - disse Claire. - Completa independência.

     - Quase completa independência - tornou Courtney. - Decerto, a chave de tudo é a segurança que estes pequenos possuem. Sabem que são amados. O pai ou a mãe de qualquer deles cortaria a mão antes de aplicar um corretivo físico. Mais importante: as crianças não têm apenas um pai e uma mãe, os do nascimento, mas muitos pais e muitas mães; todas as tias são mães e todos os tios são pais, de modo que a família, no verdadeiro sentido, é muito extensa. É assim que se adquire um sentimento de segurança e de solidariedade. Têm sempre alguém que manifeste afeição por elas, que lhes dê conselhos, que os apoie, que os anime, alguém em quem podem confiar. Estes pequenos jamais se sentem sós, jamais têm medo, e contudo não sacrificam a individualidade ao afeto. Estive conversando com a Dr.a DeJong e ela concordou que Sigmund Freud não teria nada que fazer aqui. Como podia um jovem das Sereias sofrer as culpas do complexo de Édipo quando possui, com efeito, dez mães e sete pais? Seria necessário procurar durante muito tempo entre estas crianças para descobrir uma que fosse caprichosa e hostil, que urinasse na cama ou que sofresse de gagueira... Estou certo de que as Sereias têm seus pontos fracos. Porém, estou convencido de que pelo menos duas coisas são melhores aqui do que nos Estados Unidos. Os casais vivem com menos atritos e criam melhor as crianças. Claro, não sou perito. Esta é apenas a minha opinião pessoal. - Voltou-se de Claire para Maud Hayden. - Como perita, Dr.a Hayden, concorda ou discorda?

     O rosto de Maud, uma abóbora tostada pelo sol, estava pensativo.

     - Detesto emitir um juízo de valor - respondeu ela por fim - sobre coisas como estas. Porém, baseando-me no que vi nas Sereias, sinto-me inclinada a concordar com você, pelo menos no que se refere à educação das crianças. - Pareceu avaliar o que ia dizer a seguir, e prosseguiu: - Acredito que nas sociedades polinésias os jovens passem da infância e da adolescência à maturidade sem a perturbação experimentada pelos jovens americanos. Decerto, a adolescência é um período de menores pressões aqui do que na América. As frustrações sexuais, que provocam os maiores conflitos aos jovens da nossa pátria, não existem, por assim dizer, nas Sereias, como não existem também outras fontes de perturbação, como seja, por exemplo, o problema de arranjar lugar no mundo dos adultos. De certo modo, aqui, como aliás em todas as outras ilhas dos Mares do Sul, a transição da infância para a maturidade é gradual e feliz, o que muitas vezes não acontece no Ocidente. Existem muitas razões para isto, é evidente, mas... Bem, acho que não é este o momento de debatermos o assunto...

     - Por favor - disse Claire. - Quais são os outros motivos?

     - Muito bem. Para lhe ser franca, penso que as crianças são mais desejadas em sociedades como esta do que na nossa. Aqui tudo é muito simples. Não existem preocupações com os problemas econômicos, que conduzem naturalmente a um elevado controle dos nascimentos. Não há receio de uma explosão populacional. Desejam as crianças porque elas são uma fonte de prazer e não de problemas. E devido ao fato de não possuírem os nossos meios científicos, a taxa de mortalidade infantil é mais alta, sendo cada criança que sobrevive considerada mais preciosa. Na nossa sociedade, embora advenham certas satisfações do fato de ser pai ou mãe, estas são insuficientes. Ser-se pai é um valor negativo, pois cada criança significa sacrifício econômico. Assim, enquanto as crianças. são desejadas aqui, o mesmo não sucede muitas vezes no Ocidente, e estas atitudes, transmitidas aos jovens, criam deformações na personalidade de cada um. O Sr. Courtney citou o valor básico da educação infantil na Polinésia. É o sistema de parentesco, o clã, a chamada família extensa. Isto, na verdade, é bastante superior a tudo o que possuímos.

     - Temos também famílias unidas na América - insistiu Claire.

     - Não é o mesmo que aqui - volveu Maud. - As nossas famílias são pequenas: mãe, pai, um, dois, três filhos. Os parentes não fazem, em geral, parte da família, no sentido pleno do termo. De fato, existe muita hostilidade, muito pouca afeição entre os parentes. Os parentes derivados do casamento, por exemplo, são considerados marginais na nossa sociedade. Nas Sereias, como na maior parte das ilhas da Polinésia, a família extensa é a família básica. Os casamentos podem não ser sempre duradouros aqui... sabemos que não são, mas as famílias são unidas, permanentes. Uma criança nasce numa instituição inamovível, num abrigo seguro. Se os pais morrem, ou se divorciam, isto não afeta a criança, pois ela pode ainda contar com uma família. Se a mesma coisa acontece a uma criança americana ou européia, a morte dos pais, digamos, com que fica? Pensa que um seguro representa verdadeira segurança? Se pensa, experimente pedir conselhos a uma cláusula de uma apólice de seguro ou tente pedir afeto a uma pensão anual.

     - Nunca tinha pensado nisso - afirmou Claire.

     - Mas é assim - disse Maud. - Não há neste mundo seguro de vida algum que possa comprar os benefícios proporcionados por um sistema de parentesco extenso. O Sr. Courtney falou em muitas mães e pais, irmãs e irmãos, mas a família aqui também consiste de avós, tios, primos; todos pertencem à família autêntica da criança e não são considerados apenas parentes afastados. São todos responsáveis pelas crianças. Apóiam-nas, amam-nas, e as crianças, por seu lado, retribuem este apoio e este amor. Não se encontra aqui um órfão, a bem dizer, e os velhos não são desprezados. As Sereias constituem uma sociedade patriarcal; se os pais morrem, a criança é entregue à família do pai, mas não como um órfão, pois aquela foi sempre a sua família de sangue. É a maravilha destas sociedades: ninguém, criança ou adulto, se vê alguma vez só, a não ser que o deseje.

     Courtney inclinou-se para a frente.

     - E quanto ao casamento, qual é a sua opinião?

     - Quero saber mais - disse Maud - antes de afirmar que o sistema matrimonial é muito melhor aqui do que na América. Suspeito já que é superior em certos aspectos; porém, preciso de mais informações antes de formar uma opinião exata. Claro, penso que a ausência de restrições sexuais tende a eliminar a agressão e a hostilidade, tão prevalecentes na nossa pátria. Existe aqui um verdadeiro sentido comunitário, semelhante ao do kibbutz israelense. Todos sabem que não passarão fome ou viverão sem abrigo ou sem afeições... os prêmios da competição são limitados... de modo que as discórdias, as preocupações são consideravelmente menores. Tenho também razão para acreditar que os ilhéus resolvem seus problemas matrimoniais muito melhor do que nós os resolvemos na nossa pátria. Simplesmente, não se verifica tanta confusão nas relações entre os membros dos casais. Na América não se sabe onde começam as prerrogativas do homem ou onde terminam as da mulher. Nas Sereias tudo está bem delimitado. O homem é o chefe da família. Toma suas decisões. A mulher concede-lhe a primazia em todas as funções sociais. O poder e a identidade dela existem no lar. Sabe qual é o seu lugar, como o marido sabe qual é o dele. É tudo muito mais simples.

     A dissertação de Maud tinha, de certo modo, exaurido Claire. Agarrara-se a cada frase como se a uma jangada, após um naufrágio. Desejava ser salva, libertar-se de Marc e de si mesma...

     - Maud - perguntou ela -, o que disse que sucederia aqui se... se a mulher desejasse filhos e o marido não, ou vice-versa?

     - Creio que está querendo impor um problema tipicamente ocidental a uma cultura onde tal problema não existe - respondeu Maud. Voltou-se para Courtney. - Corrija-me, se estou enganada.

     - O que disse corresponde à verdade - volveu Courtney. Fitou Claire. - O que sua sogra afirmou, quanto ao casamento e à situação das crianças na Polinésia, aplica-se a esta ilha. As crianças são desejadas por todos. É quase impossível que um dos membros do casal deseje um filho e o outro não. Se isso acontecesse... Ora, suponho que a Hierarquia interviria. Seria imediatamente concedido o divórcio, e o que desejasse filhos não teria dificuldade em arranjar um companheiro apropriado.

     Claire sentia-se infeliz. Um velho aforismo californiano perpassou-lhé pela mente: se é casada com uma criança, como poderá ser mãe de outra? Em seguida ocorreu-lhe outro pensamento, este seu: como pode uma criança dar-lhe um filho sem criar o seu próprio rival? Malditos homens, pensou, todos os homens-crianças da América.

     Maud e Courtney falavam um com o outro, mas Claire não os ouvia. Em dado momento viu-os erguerem-se, aproximarem-se das crianças nativas e da sua construção, mas não os seguiu.

     Levantou-se, apoiada sobre um cotovelo, o corpo ainda estendido, refletindo nos homens, em Marc como homem. Era incrível, pensou, que os homens americanos, os homens como Marc, se considerassem másculos. Desejava gritar o seguinte a todos eles, pois todos tinham o rosto de Marc: vocês, homens, lêem as suas páginas desportivas e arremessam a sua bola de golfe a um quilômetro de distância, praguejam na sala do clube ou à mesa de pôquer, tomam o seu uísque sem caírem de bêbados, falam com ares de grandes conquistadores, sobre as moças com quem dormiram ou gostariam de dormir, jogam, conduzem um carro a 110 à hora, fornicam com as jovens garçonetes de restaurantes e pensam que são másculos, que é tudo isto que faz um homem. Patetas, pensou ela, crianças patetas, que supõem que isto só por si justifica a virilidade. Que tem a autêntica virilidade a ver com a sua força, com a velocidade, com as suas manias dom-juanescas? Querem saber o que é virilidade, a verdadeira virilidade, o que pensa a este respeito uma mulher madura, uma mulher que é a sua esposa? Virilidade significa dar e receber amor, virilidade significa respeito e aceitar responsabilidades, virilidade significa gentileza, solicitude, afeição, amizade, desejo recíproco. Escutam-me todos? A bondade, a gentileza não necessitam de conquista de boudoir. A solicitude não precisa de ter pêlos no peito. A amizade não é musculosa. O desejo não exige palavras obscenas. A virilidade não é um pênis, uma garrafa de uísque ou um blefe na mesa do pôquer. Quando é que aprende? Marc, oh Marc, quando deixará de ter medo de se mostrar verdadeiramente terno, viril, de me dar um filho?

     Os olhos de Claire estavam umedecidos, mas suas lágrimas corriam para dentro. Devia evitar estes solilóquios interiores antes que fizesse uma cena. Devia deixar de pensar. Como é que se deixa de pensar? Procure mover-se, não deve ficar quieta, especialmente quando se trata do dia do segundo aniversário de seu casamento.

     Pôs-se de pé como uma velha que tenta em vão mostrar as últimas migalhas da juventude e aproximou-se de Maud e de Courtney. Consultou o relógio de pulso.

     - São quase cinco - disse. - A cozinheira que vão mandar não demorará. É melhor pôr-me a caminho.

     - A cozinheira? - exclamou Maud surpreendida.

     - A festa do segundo aniversário de casamento - tornou Claire, com certa alegria artificial, para despistar Courtney, para não denunciar o que lhe ia na alma.

     Maud bateu com a mão na testa.

     - Ah, tinha-me esquecido por completo. Claire fitou Courtney.

     - Espero que não se tenha esquecido, também. Pedi a Paoti e à esposa que o levassem com eles. Seremos seis à mesa.

     - Não me esqueci - retorquiu Courtney. - Tenho aguardado com a maior ansiedade a sua festa.

     - Serve-se apenas comida americana, mas isso não o fará com certeza sentir a nostalgia da pátria - disse Claire, tomando o braço da sogra. - Vamos.

     Depois de terem atravessado uma vez mais a creche e de penetrarem no conjunto da aldeia, Maud e Claire separaram-se de Courtney. Durante um momento, Claire seguiu Courtney com os olhos; ele dirigia-se para sua cabana, situada perto da Cabana Sagrada. Depois, Claire e a sogra tomaram a direção contrária.

     - A última hora foi muito instrutiva - disse Maud.

     - Para mim, foi deprimente - volveu Claire.

     Claire apercebeu-se de que Maud a fitara de relance, com um olhar penetrante. Habitualmente, Maud não se preocupava com as dores e com os problemas daqueles que a rodeavam, ou, melhor, de qualquer pessoa. Reservava seus sentimentos para o seu trabalho. Segundo ela, a indulgência minava a energia. Se a preocupavam as relações entre Marc e Claire, nunca tinha, aparentemente, denunciado esse fato, com receio, talvez, de ter de trocar a sua nobre paz pela vil batalha. Agora, porém, Claire tentara provocar a sogra. Se Maud se recusasse a notar essa provocação, a sua atitude indicaria desinteresse, o que revelaria a pouca conta em que tinha o filho e a nora. Claire aguardava, perguntando-se como sairia a sogra deste impasse.

     - Deprimente? - disse Maud com relutância. - De que maneira, Claire? - Fez um esforço para não dar um tom emocional às suas palavras. - Porque o sistema de educação das crianças é muito bom ou muito mau?

     Claire não se quis deixar ludibriar.

     - Porque há crianças e eles desejam a sua vinda - volveu ela com amargura. - Não tenho nenhuma. É deprimente.

     Maud franziu a testa.

     - Sim, compreendo. - Tinha os olhos postos no chão enquanto caminhava. - Você e Marc hão de resolver esse problema, estou certa. Essas coisas resolvem-se sempre.

     Antes que Claire pudesse contestar a afirmação da sogra, Lisa Hackfeld surgiu diante delas. Claire viu com desagrado que Maud soltara um suspiro de alívio e manifestara imediato interesse pela presença de Lisa, que considerara uma autêntica tábua de salvação.

     Ressentida, Claire escutara Lisa e Maud, enquanto se dirigiam para o conjunto. Lisa perdera pelo menos cinco quilos desde que chegara às Três Sereias, sentindo-se, assim, mais jovem e mais enérgica. Seu entusiasmo não tinha limites. Parecia ter-se tornado a Lisa Johnson, de Omaha. Fora escolhida para dirigir uma das danças cerimoniais do festival, que começaria no dia seguinte, ao meio-dia. Maud ouvia estas novidades com interesse semelhante ao manifestado pela Rainha Vitória ao escutar o relatório de Disraeli sobre a inclusão da Índia no Império. Claire sabia que o fervoroso interesse da sogra, tão fingido, era menos um esforço para lisonjear a esposa do patrocinador da viagem do que uma tentativa para evitar uma aborrecida questiúncula familiar.

     Enquanto caminhavam pelo conjunto, Claire mantinha os olhos fixos nas feições de Maud. Compreendia agora alguns dos motivos que tinham feito que Marc se tornasse Marc. Maud era o protótipo. Pouco se preocupara com a família, com seu verdadeiro papel de mãe. Por que concebera ela Marc? Talvez isso tivesse constituído também uma experiência social, uma experiência de campo, que conduzisse a mais amplos conhecimentos. Ela era uma máquina pavorosa, sem sentimentos, sem coração, apenas uma engrenagem em constante atividade.

     Contudo, Claire não odiava a sogra. Antes de as coisas terem piorado, Maud parecera um parente superior - afetuosa, interessada. Maud apreciara a vivacidade de Claire, a sua curiosidade, a sua inteligência. Como compreendia que a sogra gostava dela, Claire gostava ainda mais da sogra. Maud era o parente perfeito, compreendeu Claire, enquanto as exigências fossem intelectuais e não emocionais. Porém, agora que desejava a confiança de um ser humano, um ser humano maternal, via-se apenas diante de uma máquina de grande qualidade. A máquina antropológica chamada Maud, pensou ela, que compreendeu todos os povos mas não uma única pessoa.

     De súbito, a introspecção de Claire foi interrompida por um aceno de Maud, feito para alguém que se encontrava à esquerda. Para lá do regato, diante da cabana de Paoti, Claire distinguiu três pessoas num grupo. Uma delas era Rachel DeJong; outra Hutia Wright; e a terceira, uma nativa magra e idosa, desconhecida para Claire. Estavam conversando, e fora Rachel quem acenara primeiro, segundo parecia, a fim de chamar a atenção de Maud, pois disse ainda de longe:

     - Posso falar com você durante um momento, Maud? Esta deteve-se.

     - Rachel parece necessitar da minha presença - disse ela a Lisa e a Claire. Dirigiu um sorriso à nora e tocou-lhe afetuosamente no braço. - Dar-me-á muito prazer a festa desta noite - tornou, encaminhando-se em seguida para a ponte mais próxima.

     - Que festa há esta noite? - perguntou Lisa.

     - Bem, apenas uma festa de aniversário - volveu Claire, após o que as duas continuaram o seu caminho.

    

     Aliviada por se ter visto livre da nora - Marc e Claire que resolvessem sozinhos os seus problemas pessoais - e satisfeita por não ter de intervir numa coisa que lhe tomaria tempo e energias, Maud Hayden sentiu-se contente por se dedicar uma vez mais a um problema de campo.

     Maud encontrava-se diante de Rachel DeJong, de Hutia Wright e de um membro da Hierarquia, uma viúva chamada Nanu, de cabelos fibrosos, olhos matreiros, sorriso astuto, e possuidora de infinitos conhecimentos sobre os problemas matrimoniais. Maud escutava Rachel, que explicava os motivos por que tivera de interromper a análise de Moreturi e de sua mulher, Atetou. A imponente entrada de bambu da residência de Paoti, para a qual Maud estava voltada, conferia dignidade ao conclave. Porém, como a arquitetura da cabana desviava sua atenção, ela afastou os olhos da residência de Paoti a fim de se concentrar na explicação de Rachel.

     - ... e assim, embora faça progressos com os outros dois pacientes, tenho receio de nada estar adiantando com Moreturi e a mulher - dizia Rachel. - As suas versões são tão diferentes que teria de perder mais tempo do que aquele de que disponho para apurar a verdade. Além disso, é tão grande a animosidade existente entre os dois que o caso toma um aspecto de emergência. Na verdade, creio que não poderei emitir um juízo definitivo dentro de pouco tempo, e tem de se chegar depressa a uma conclusão a fim de se tomarem medidas que salvem o casamento ou garantam o divórcio pedido por Moreturi. Avisei Hutia de que abandono o caso, ou melhor, que o devolvo à Hierarquia, a fim de que esta se pronuncie definitivamente. Lamento não ter encontrado outra alternativa.

     - Bem, lamento-o também - disse Maud -, mas não considero isto um verdadeiro malogro. Estou certa de que obteve alguns dados valiosos sobre a vida de...

     - Oh, sim, quanto a isso não tenho dúvida - interrompeu Rachel.

     Maud dirigiu-se a Hutia, por fim.

     - Então, tudo fica depositado nas mãos da Hierarquia. A perda de algumas semanas prejudicou a sua investigação?

     Hutia Wright, que parecia uma perfeita réplica nativa de Maud, embora fosse mais baixa, mais redonda e tivesse feições mais lisas,, respondeu com placidez:

     - A Hierarquia tem-se ocupado destes assuntos desde o tempo do primeiro Wright. Prosseguiremos imediatamente a nossa investigação. Porém, com uma modificação. Como sou mãe de um dos membros do casal, resolvi abster-me, para não ser acusada de parcialidade. - Indicou a mulher idosa que se encontrava a seu lado. - Nanu conduzirá os trabalhos. Todavia, quero fazer uma sugestão, Dr.a Hayden. Penso que deve substituir-me na Hierarquia, enquanto este caso não for resolvido. Prezo muito os seus juízos. Terá, assim, a oportunidade de ver como funciona a Hierarquia. Falou a meu marido no seu desejo de participar, não é verdade?

     - Sim, com efeito falei - respondeu Maud com entusiasmo. - É uma grande honra. Aceito o convite. Quando começamos a agir?

     - Esta noite - volveu Hutia.

     - Esta noite? ótimo. Então, eu... - Maud deteve-se abruptamente e fez estalar os dedos. - Quase que me esquecia de uma coisa bem importante. Hutia, esta noite não posso comparecer. Sabe bem por quê. Celebramos o segundo aniversário do casamento do meu filho.

     Hutia inclinou a cabeça num gesto de aprovação.

     - Sim, mas estará disponível durante o resto da semana - disse ela.

     - Sim. Quanto a esta noite, tenho uma idéia. - Voltou-se para Rachel DeJong. - Escute, Rachel: por que não me substitui? Gostaria que participássemos desde o começo nesta investigação. São-me necessários todos os dados que possamos colher, para o meu estudo, e talvez sejam úteis os que conseguir esta noite para o seu. O mecanismo do divórcio nas Sereias é uma coisa de que nada sabemos...

     - Porque é difícil de explicar - interrompeu Hutia. - Pensamos que devia seguir um caso destes pessoalmente. Não há mistérios, mas as palavras são menos elucidativas do que a observação direta.

     - Sim, compreendo, Hutia - retorquiu Maud, voltando-se de novo para Rachel. - Por favor, Rachel. É só esta noite.

     Rachel hesitou. Prometera a si mesma não se intrometer mais nos assuntos pessoais de Moreturi e de Atetou. Contudo, sentia-se em dívida para com Maud por esta a ter convidado a participar da viagem de campo. Não podia recusar um favor tão insignificante. Assim, concordou em colaborar.

     - Muito bem, Maud. Mas só esta vez. - Fitou Hutia.

     - Que desejam que faça?

     - Apareça às nove da noite - respondeu Hutia -, na cabana da Hierarquia. Nanu e o outro que ela escolher estarão à sua espera. Pouco depois, começará a investigação.

     Surpreendida, Rachel volveu os olhos para a velha Nanu.

     - Que investigação é esta? Que teremos de fazer?

     - Em breve saberá, jovem - retorquiu Nanu.

    

     Durante o jantar, na cabana que partilhava com Harriet Bleaska, uma persistente sensação de inquietude oprimia Rachel DeJong. Era como se tivesse de efetuar em breve uma tarefa desagradável que não prometia qualquer recompensa expressa em prazer ou no sentimento do dever cumprido. Era, pensou Rachel, como ter de acompanhar um funeral de alguém que fora apenas um simples conhecido, ou de ter de participar em qualquer ato com alguém que falara mal dela. Ou, pior, era como ter de ser obrigada a participar numa cabala, cujos desígnios eram misteriosos, suspeitos e infinitamente ameaçadores. Para Rachel, o grupo de investigação da Hierarquia parecia uma destas cabalas, e desejava não ter nada a ver com ela.

     O conhecimento, ou a falta de conhecimento, do que a esperava dentro de vinte minutos fazia com que se sentisse infeliz.

     Assim preocupada, continuou a comer com apatia, sabendo que se estava mostrando pouco correta com Harriet, que cozinhara o jantar, e com Orville Pence, que se convidara, depois de insistir que estava farto da sua ração de solteiro. Rachel esperava que os dois não interpretassem mal o seu silêncio, uma vez que gostava bastante da enfermeira, devido a seu bom humor e a seu bom coração, e que considerava Orville, apesar do seu esnobismo, uma pessoa intelectualmente agradável. Todavia, Rachel não se sentia capaz de suportar companhia esta noite, e assim, a despeito da presença dos dois, comia só.

     Realmente, não tinha apetite. Era a primeira vez, durante toda a sua permanência na ilha, em que o talento culinário de Harriet não a interessava. Em dado momento fez um esforço para escutar o elogio que Harriet fazia da enfermaria e do médico prático que a supervisionava. Apercebeu-se de que Orville também escutava com esforço, que se encontrava em pior estado de espírito do que ela. As suas interrupções, os seus comentários sarcásticos sobre o comportamento licencioso dos aldeões, eram constantes e veementes. Surpreendia Rachel o fato de Orville, como convidado, se mostrar tão desagradável para a sua anfitrioa, e surpreendia-a também o fato de aquelas impertinências não conseguirem despertar a cólera de Harriet. Rachel tinha a impressão de que Orville preparava uma cena com a jovem enfermeira. Mas quem é que teria coragem de ferir Harriet, e que tinha o seu comportamento de censurável para dar origem a uma disputa?

     De súbito, Rachel compreendeu que faltavam dez minutos para as nove, e que se devia dirigir sem muita demora para a cabana da Hierarquia. Afastou para o lado a tigela e começou a erguer-se.

     - Detesto ter de partir tão precipitadamente, Harriet, mas esta noite substituo Maud num trabalho. Tenho de partir já. A comida estava maravilhosa. Na próxima semana ocupar-me-ei da cozinha.

     Aproximou-se do pequeno espelho suspenso da parede, ao lado da janela, e penteou o cabelo.

     - Tenho também de me despachar - disse Harriet. - Esperam-me na enfermaria.

     Orville fungou audivelmente.

     - Preciso falar com você, Harriet.

     - Que bom - retorquiu ela, distraída. - Em qualquer ocasião, exceto esta noite. Tenho ainda de vestir o uniforme... Seria muito gentil se me arrumasse isto - acrescentou, dirigindo-se para a divisão da retaguarda.

     No espelho, Rachel DeJong surpreendeu o reflexo do rosto de Orville. Ele tinha os dentes cerrados, de raiva, enquanto olhava com ar sombrio para a porta através da qual Harriet desaparecera. Interrogativamente, Rachel voltou-se e fitou Orville Pence.

     - Que há, Orville?

     Ele hesitou. Depois volveu:

     - Nada. Estava pensando em enfermeiras. Eram consideradas simples prostitutas no tempo de Florence Night-ingale.

     Para Rachel, a observação teria parecido um comentário ocioso se não fosse o veneno que transparecia nela.

     - Que quer dizer com isso, Orville? - tornou ela.

     - Apenas que nada se modificou até hoje.

     - Ora, ora, Orville... - começou Rachel a dizer, mas antes que pudesse terminar ele tinha desaparecido, pela porta que conduzia ao exterior, com as tigelas na mão.

     Perplexa, Rachel perguntou-se o que teria originado este estranho comportamento de Orville, a sua animosidade para com Harriet, a sua observação infantil acerca das enfermeiras. Rachel teria gostado de descobrir, mas não dispunha de tempo para interrogar a companheira. Faltavam três. minutos para as nove, e chegaria atrasada.

     Pegou no seu bloco de apontamentos e no lápis e dirigiu-se imediatamente para o conjunto da aldeia. Orville não se encontrava à vista. Do outro lado do regato, três homens, curvados sob uma tocha, faziam não sabia o quê. Mais além, uma mulher, com uma peça de cerâmica, atravessava a ponte. Excetuando os sons modulados da Rhapsody in Blue, de Gershwin (que incongruência num lugar como este!), provindos da cabana onde Marc e Claire Hayden davam a sua festa, a aldeia estava imersa no silêncio e a maior parte de seus habitantes encontrava-se na cama.

     Rachel DeJong chegou à cabana da Hierarquia apenas com dois minutos de atraso. A velha Nanu estava sentada, com um homem idoso, no meio da sala. Ela saudou Rachel com um sorriso e apresentou o companheiro, um homem magro, ossudo, de cabelos grisalhos, chamado Narmone.

     Antes que Rachel se pudesse sentar junto deles, Nanu tentou levantar-se, grunhindo, as juntas rangendo; Rachel aproximou-se para a ajudar a erguer-se.

     - Vamos partir - disse Nanu.

     A apreensão que Rachel sentira antes voltou, pregando-a ao chão.

     - Partir para onde?

     - Para a residência de Moreturi e Atetou, decerto - disse Nanu.

     - Por quê? - desejou Rachel saber. - Eles esperam-nos?

     - Esperam-nos? - Nanu desatou a rir. - Nem sequer saberão que estamos lá. Isso é o essencial.

     Em tom de protesto, Rachel disse:

     - Simplesmente, não compreendo absolutamente nada. Narmone debruçou-se sobre a velha Nanu e falou em voz

     baixa, em polinésio.

     Nanu inclinava constantemente a cabeça, como se exprimisse a sua concordância com o que ouvia, murmurando ao mesmo tempo:

     - Eaha?... Eaha?... Eaha?...

     Quando Narmone terminou, a velha nativa disse para Rachel:

     - Ua pe'a pe'a vau. - Porém, ao notar a expressão de espanto de Rachel, compreendeu que estava ainda falando em polinésio. Com um grunhido, voltou ao inglês. - Eis o que comecei a dizer: “Lamento muito. “ O meu amigo recordou-me... torno-me cada vez mais esquecida de ano para ano... que Hutia nos pediu que lhe explicássemos os nossos planos antes de partirmos. Bem, vou explicá-los. É simples.

     Não demorarei um minuto. Depois teremos de nos apressar, para os surpreendermos ainda acordados. Comecemos pela teoria...

     A teoria que governava todas as atividades da Hierarquia, conforme explicou a velha Nanu, baseava-se nisto: as ações falam sempre mais alto do que as palavras, mais alto e com. mais clareza. As palavras dos queixosos podiam levar ao engano; os seus atos, quando presenciados, não. Quando um dos membros de um casal das Três Sereias apresentava seu pedido de divórcio, não fazia nenhuma declaração de causa ou condição. A Hierarquia não estava interessada no que cada um dos membros tinha para dizer, uma vez que ambos, condicionados pelos seus interesses, apresentavam uma versão diferente. Logo que o pedido era recebido, a Hierarquia punha-se em campo. Em geral, e sem planos previamente estabelecidos, os membros da Hierarquia colocavam o casal sob estrita observação. Por vezes, as investigações eram conduzidas de manhã, com menos freqüência à tarde, e quase sempre à noite. Esta observação decorria lentamente, durante semanas, meses, e em certos casos durante meio ano. Por fim, os cinco membros da Hierarquia dispunham de uma imagem autêntica da vida quotidiana do casal, os seus aspectos favoráveis e os seus malogros. De posse desta informação, a Hierarquia podia decidir se se devia submeter o casal a novo período de aprendizagem, mantendo-se assim unido, ou se devia ser concedido o divórcio. Demais, o longo período de observação habilitava a Hierarquia a arbitrar, no caso de ser concedido o divórcio, queixas contraditórias das duas partes, em especial aquelas que diziam respeito aos filhos. A partir da presente noite Moreturi e Atetou seriam objeto desta investigação.

     Rachel DeJong escutara a explicação de Nanu com uma sensação de incredulidade.

     - Mas como é que os observam? - perguntou. - Se um homem e uma mulher sabem que se encontram em casa deles mostrar-se-ão inibidos, não se comportarão naturalmente, e a Hierarquia não apurará verdade nenhuma.

     - O homem e a mulher não saberão que estamos em sua casa - replicou Nanu com voz roufenha.

     - Quê? - exclamou Rachel. - Não sabem? Como é isso possível?

     - Vemo-los, mas eles não nos vêem.

     Para Rachel, os dois nativos pareciam personagens de Lewis Carroll.

     - Eles têm de nos ver - disse ela, um tanto incerta já.

     - Não, não vêem. Desde o tempo do primeiro Wright, cada cabana destinada aos casais da aldeia é construída com uma parede extra, falsa, num dos lados. Os membros da Hierarquia servem-se dela, é como um corredor, uma passagem, e deixam-se aí ficar postados, sem serem vistos do interior ou do exterior, olhando, através das folhas, para dentro do quarto. Vemos, ouvimos, mas não somos vistos, nem nos ouvem.

     Este insólito costume desgostou Inchei. Era a primeira vez, desde a sua chegada às Sereias, que uma coisa feria a sua sensibilidade.

     - Mas, Nanu, isso é imoral, é... não sei... Errado, pelo menos. - Fez uma pausa. - Todos os seres humanos têm direito ao isolamento completo.

     Com os olhos contraídos, a velha nativa fitou Rachel com verdadeiro espanto.

     - Concede o isolamento às pessoas? - rosnou ela.

     - Eu?

     - Sim, Dr.a DeJong. Ouvi falar do seu trabalho. Não consigo recordar o nome...

     - Psicanálise.

     Nanu fez um gesto de assentimento com a cabeça.

     - Sim. Concede o isolamento a seus pacientes? Espreita para dentro da cabeça deles e vê o que nunca ninguém viu lá.

     - Meus pacientes estão doentes. Procuram-me para que os auxilie, comprende?

     - Os nossos pacientes estão doentes - volveu Nanu, com voz calma - e vêm também procurar-nos para que os auxiliemos. Não é diferente. Creio que o nosso costume é ainda mais decente. Examinamos o exterior deles. A senhora tenta penetrar o interior.

     O choque sofrido por Rachel decrescera de intensidade. Ela podia ver, por motivos diferentes dos apresentados por Nanu, que a prática da Hierarquia talvez se justificasse. Maud afirmara que o que era revoltante para uma sociedade seria perfeitamente aceitável para outra. Viva e deixe viver. A cada um o que é seu. O que é bom? O que é mau? Na verdade, o que é absoluto? A sua atitude era agora mais tolerante.

     - Tem razão, Nanu - disse ela. Ocorreu-lhe uma pergunta. - Estes postos de observação são alguma vez utilizados para fins diferentes?

     - Não. Constituem tabu para todos, com exclusão da Hierarquia.

     Ocorreu-lhe nova pergunta, que imediatamente formulou.

     - Como poderão acreditar que os membros do casal se comportam normalmente, se sabem que estão sendo vigiados?

     - Uma boa pergunta - retorquiu Nanu. - Porém, eles nunca sabem quando são vigiados, em cada dia, a que hora, em que semana. Descobrimos que nem sempre têm consciência de que estão sendo submetidos à observação. Durante longos períodos, é como se tivessem esquecido de que poderemos estar lá. Comportam-se como em todos os dias. É especialmente assim quando os problemas são sérios. O conflito surge com mais naturalidade e rapidez.

     Rachel compreendeu que dentro de alguns minutos estas condições se aplicariam a Moreturi e a Atetou. A princípio, felizmente, manter-se-iam em guarda, e esta noite não os observaria como eram realmente. Contudo, desejava estar certa disto.

     - Quanto a Moreturi e à mulher - disse ela -, imagino que nesta altura supõem que estão sendo vigiados.

     - Não, para nossa boa sorte - volveu Nanu. - Não avisamos ainda Moreturi de que desistiu do caso e o devolveu à Hierarquia. Ele não faz a mínima idéia de que estamos agindo. Vê-lo-á, e à mulher, como são. De fato, Dr.a DeJong, Hutia quer pedir-lhe um favor. Que amanhã continue a análise com o filho, mesmo que superficialmente, a fim de evitar que ele tome conhecimento da nossa investigação. Facilitará nosso trabalho, poupar-nos-á muito tempo. Será benéfico para Moreturi e para Atetou.

     Uma vez mais, Rachel sentiu-se inquieta. Não desejava já Moreturi como paciente. Não o desejava ver esta noite, não o queria espreitar, não lhe agradava fazer este indecente papel.

     A velha nativa dirigiu-se para a porta.

     - É tempo de começarmos - disse.

     Um momento depois Rachel saiu, com as pernas trêmulas, seguida pelo ancião.

     A aldeia estava inteiramente deserta. Voltaram à direita e caminharam em silêncio durante alguns minutos até que Nanu se deteve e levou o indicador aos lábios. Em seguida, apontou com o dedo para a cabana de teto de colmo que estava ao lado deles, quase oculta nas sombras; se não fosse a débil luz amarela atrás da janela coberta, poderia passar totalmente despercebida.

     - Siga-me. Faça o que nós fizermos - disse a velha Nanu num murmúrio a Rachel.

     Nervosamente, Rachel desviou os cabelos que lhe tinham tombado sobre os olhos e seguiu o par da Hierarquia. Contornaram a cabana e pararam a meio da estrutura. Narmone ajoelhou-se diante da parede de cana e ergueu a pequena porta de bambu.

     Dobrando-se, Nanu introduziu-se no interior, seguida imediatamente por Rachel e por Narmone. Rachel encontrou-se no que parecia um poço escuro. Daí a pouco, porém, seus olhos habituaram-se à escuridão. Verificou que o luar, de trás, e a vela, de dentro, se combinavam para iluminar toda a área. Achava-se num corredor de cerca de um metro e vinte de largura, que corria a todo o comprimento da cabana.

     Diante dela estava a verdadeira parede da cabana, e embora a estrutura dissimulada fosse de madeira rija e de cana, a superfície superior da parede era constituída por folhas tropicais colocadas umas sobre as outras.

     Nanu descera silenciosamente o corredor da parede falsa, até à extremidade mais distante da cabana. Rachel distinguia apenas a silhueta da velha nativa. Um momento depois ela voltou e disse num murmúrio aos companheiros:

     - Chegamos atrasados. Atetou tirou o saiote e pôs a sua ahu para dormir.

     A mão de Nanu avançou para as folhas, deslizou sob algumas delas, levantou-as levemente com um movimento rápido. Depois, espreitou através da pequena abertura que tinha feito. Rachel verificou que o dispositivo, embora primitivo, era engenhoso. Como as folhas estavam colocadas umas sobre as outras, Nanu podia observar o que se passava no interior da cabana sem que notassem sua presença. A direita de Rachel, Narmone espreitava também.

     Rachel recuou um pouco, amedrontada pela necessidade de ter de desempenhar seu papel. Todavia, a velha nativa apontou para ela um dedo, chamando-a. Rigidamente, Rachel deu um passo para a frente.

     - Faça o que nós fazemos - murmurou Nanu. - Já estamos observando. Continuamos até que ambos durmam.

     Rachel tentyu imitar a sua mentora, erguendo algumas folhas. Um fio de luz amarela tornou-se visível. Colocou a cabeça sob as folhas, os olhos voltados para a abertura, e preparou-se para ver o que se passava no interior. Moreturi andava lentamente sobre as esteiras da divisão da frente. Ele parecia maior do que era. Fumava um cigarro nativo enquanto caminhava com a graça poderosa de um leopardo na jaula. Parecia descontraído; porém, seu rosto polinésio, largo e bronzeado, denunciava qualquer inquietude interior.

     De súbito, deteve-se no meio da sala, perto da vela, e lançou um olhar para o corredor que conduzia ao quarto de dormir.

     - Atetou - bradou ele.

     Como não houve resposta, aproximou-se.

     - Atetou, já se deitou?

     Atetou respondeu em voz muito baixa:

     - Durmo. Boa noite.

     Moreturi murmurou, como se para si mesmo, uma frase em polinésio, pensou Rachel, e aproximou-se de uma jarra de greda, que se encontrava no canto mais afastado, lançando para dentro dela a ponta do cigarro. Absorvido nos seus pensamentos, avançou até à parede atrás da qual se achavam agachados Rachel, Nanu e Narmone. Tinha os olhos fixos na parede... em mim, receou Rachel. Dentro de um momento daria por sua presença, escarneceria dela. Com os braços dobrados sobre o peito largo, aproximou-se um pouco mais. Embora a parede estivesse entre eles, Rachel sabia que seria descoberta. Desejava retirar-se abandonar o corredor, fugir, mas continuou na mesma posição, gelada, com medo de ser denunciada por qualquer movimento.

     Moreturi deteve-se a alguns centímetros da parede, e olhou sobre o ombro para o quarto de dormir. Ele parecia um gigante, visível da boca aos pés. Como sempre, trazia apenas o saco púbico. Rachel tentou engolir em seco, suspender a respiração. Era inevitável o que aconteceria em seguida, sabia ela, e isso aconteceu de fato. Com um gesto rápido, o jovem nativo desapertou o fio que segurava o saco e deixou cair este no solo.

     Rachel soltou um murmúrio de horror, ciente de que denunciava sua presença; porém, o corpo nu manteve-se diante dela durante um momento apenas. Moreturi voltara-se e dirigira-se para o quarto de dormir. A divisão da frente ficou vazia. Terminado o martírio, Rachel tirou a cabeça de sob as folhas e permitiu que elas impedissem o acesso dos seus olhos à sala.

     Porém, não tardou a sentir a pressão dos dedos de Nariu sobre o seu antebraço. A velha nativa puxava-a para a passagem secreta que dava para o quarto de dormir. Rachel tentou resistir, mas em vão. Narmone encontrava-se atrás dela, como se para impedir a fuga. Rachel tentou protestar contra este louco esporte, mas as palavras não surgiram.

     Um momento depois os três encontravam-se atrás da parede do quarto de dormir. Nanu apontou para as folhas e só baixou o braço quando Rachel cumpriu o seu dever, quando ergueu uma fila de folhas e espreitou para o quarto.

     O quarto de dormir estava semi-obscurecido. Rachel desejou fazer o sinal-da-cruz e dar graças a Deus. Porém, não tardou a distinguir as duas figuras. Aparentemente, a que se encontrava apoiada sobre os joelhos era Moreturi, e sob ele, esforçando-se por' se libertar, Atetou. As palavras trocadas eram indistintas mas as entonações claras. Moreturi suplicava a Atetou que fizesse amor físico, e ela resistia, Moreturi baixou-se mais sobre Atetou, e esta começou a erguer-se, decidida a empurrá-lo.

     Moreturi recuou e pôs-se de pé.

     - Muito bem - rosnou ele num inglês bem claro. - Vou ao Auxílio Social.

     - Vá... vá... vá - volveu Atetou, troçando do marido. - Se é essa a sua maneira de manifestar amor, vá.

     Moreturi voltou-se e disparou através da escuridão, rumo à sala da frente.

     Depois de assistir a isto Rachel fechou os olhos, incapaz de controlar seu nervosismo. Afastou-se do monte de folhas, completamente desorientada; depois, tomou consciência de que as mãos de Nanu estavam pousadas sobre ela. Abriu os olhos. Narmone dirigia-se já para o esconderijo que dava para a dependência da frente. Impelida pelas mãos ásperas da velha Nanu, Rachel vacilou, recobrou o equilíbrio e aproximou-se de Narmone. De novo, Nanu estava a seu lado, erguendo as folhas, tanto as que se achavam defronte de Rachel como as suas. Incapaz de protestar, Rachel submeteu-se, baixou a cabeça, entre as folhas, e olhou para dentro da cabana.

     A luz do quarto cegou-a momentaneamente, mas volvido um instante já foi capaz de ver. Moreturi, nu, costas, nádegas, pernas, estava à porta. Numa das mãos tinha o saco púbico. Apenas podia ver-se a parte de trás do seu corpo, e Rachel orava para que ele não se voltasse. A porta, Moreturi hesitou. Por um momento pareceu que ia pôr a sua diminuta indumentária, mas isto não aconteceu. Em vez disso, elevou os ombros, endireitou-se depois e desembaraçou-se do saco púbico. Vendo-o voltar-se, Rachel fechou os olhos, fechou-os de tal maneira que as pálpebras lhe doeram. Ouviu seus passos, aproximando-se e depois recuando, mas não quis olhar. Um minuto escoou-se, talvez dois. Os olhos doíam-lhe, inteiramente. Por fim, abriu-os.

     O jovem nativo estava agora sentado na esteira, no centro da divisão, de costas voltadas para ela. Tinha os braços em volta dos joelhos, a cabeça baixa. Permaneceu uma eternidade nesta posição - cinco minutos, talvez - e gradualmente Rachel começou a sentir por ele uma compaixão incontrolável. Desejava estar a seu lado, falar-lhe docemente. Como analista, ouvira muitas coisas sobre o desejo animal no homem e compreendia-o, compreendia as garras de ferro da repressão e da frustração. Porém, sentiu vergonha ao tomar de súbito consciência de que se encontrava ali como uma espécie de agente de espionagem.

     Era sua intenção dizer a Nanu, num murmúrio, que se deviam afastar, mas antes que o pudesse fazer ouviu um ruído de passos dentro da cabana.

     Escutou a voz de Atetou, embora não a visse.

     - Não foi embora, Moreturi?

     Ele voltou a cabeça e o que viu fez com que seus olhos se dilatassem.

     - Não... não fui...

     - Ainda deseja a sua Atetou?

     - Preciso de amar - volveu ele ferozmente.

     - Então venha até mim - disse Atetou, dirigindo-se para o quarto de dormir. - Eu espero.

     Antes que Rachel pudesse fechar de novo os olhos Moreturi pusera-se de novo de pé e voltara-se para ela. Rachel, trêmula, hipnotizada, viu o sólido, poderoso animal, profundamente excitado, atravessar a sala e dirigir-se para o quarto.

     Com os olhos ainda fixos na sala vazia, e detestando Atetou, Rachel jurou não testemunhar seu triunfo. Passado um momento estremeceu ao ouvir o primeiro ruído provindo do quarto. Este escapara-se da garganta de Atetou.

     Rachel não foi capaz de suportar mais. Trêmula, aproximou-se de rastros da porta falsa e ultrapassou-a. Uma vez no exterior, pôs-se de pé e dirigiu-se a correr para o conjunto da aldeia, detendo-se apenas quando chegou junto do regato. Aí ficou durante alguns minutos arquejante, confusa, até que seu coração deixou de bater com violência. Depois, sentou-se no chão, relativamente calma. Tirou um cigarro do bolso, acendeu-o e tentou afastar da memória a recente experiência. Que a conduzira a isto, a este lugar? Como desejava estar na pátria, numa casa sem portas falsas, numa comunidade sem uma Hierarquia, na segurança do seu lar, como a Sra. Joseph Morgen! Mas isso era impossível. Era demasiado inteligente para supor que encontraria tal refúgio. Não podia escapar a si mesma.

     Dez minutos mais tarde, os dois nativos atravessavam o conjunto e aproximaram-se dela.

     - Dormem - disse a velha Nanu. - O nosso trabalho da primeira noite terminou... Por que saiu com tanta pressa?

     Rachel ergueu-se e limpou a saia.

     - Receei um acesso de tosse - retorquiu ela. - Tive de me afastar para não revelar a nossa presença. Assim, saí, para poder tossir à vontade.

     Nanu fitou-a; aparentemente, não estava convencida.

     - Compreendo - disse ela por fim - Espero que a noite a tivesse esclarecido.

     - Sim... sim, esclareceu-me - volveu Rachel. - Porém, aquilo é uma coisa que interessa mais à Dr.a Maud Hayden. Amanhã, ela tomará o meu lugar.

     - É melhor ir deitar-se, pois precisa de dormir - tornou Nanu. - Todos nós precisamos agora de dormir.

     Rachel inclinou a cabeça num gesto de aprovação e acompanhou-os; a certa altura, porém, apartou-se deles e continuou sozinha. Havia ainda luzes, música e ruído de vozes na cabana de Maud Hayden, contudo mal se apercebeu deste fato. Estava fatigada, demasiado fatigada para registrar a experiência no diário ou nas suas notas clínicas. No dia seguinte, teria provavelmente esquecido os pormenores; demais, não tencionava registrar os acontecimentos insólitos daquela noite.

    

     Passava da meia-noite. A festa comemorativa do segundo aniversário dos Haydens terminara meia hora antes, com a partida de Paoti, Hutia, Courtney e por fim de Matty. Aimata, uma mulher nativa alta, robusta e de cara fechada, de cerca de quarenta anos, limpara o fogão de terra e a sala da frente e partira dez minutos depois.

     Marc Hayden encontrava-se só, por fim, na sala da frente da sua cabana. Claire fora para a dependência dos fundos, a fim de se despir. Marc sentia-se satisfeito por poder estar uns momentos só; porém, achava-se inquieto. A sala era viscosa, úmida, e as paredes encontravam-se enegrecidas devido à fumaça do fogão de terra, dos cigarros e das velas que Claire usara em vez das lâmpadas. Notava-se um leve odor a uísque no ar. Bebera demasiado, todos tinham bebido demasiado. Em vez de se sentir leve, alegre, estava pesado, deprimido.

     Andou pela sala úmida. A sua roupa estava pegajosa. Tirou a gravata, desabotoou a camisa, que despiu e lançou para o solo. Alargou o cinto, dirigiu-se para a porta da frente, abriu-a e sentou-se à entrada, tentando revigorar-se com o ar fresco. Espiou o conjunto, escuro e vazio, tirou um charuto do bolso das calças, colocou-o na boca e acendeu-o. Aspirou umas fumaças, ainda acabrunhado. Tentou rever os acontecimentos daquela noite sem história. O uísque tinha-lhe nublado o cérebro. Contudo, foi capaz de recordar alguns dos melhores e dos piores momentos.

     Todos pareceram ter passado bem o tempo, exceto Marc. Claire decidira oferecer uma festa inteiramente americana, extravagante, para Paoti e Hutia, nostálgica para Courtney, um bom interlúdio digestivo para Maud. Foram servidos uísque escocês e americano, coquetéis, e houve Vivaldi, Gershwin, Stravinsky. Claire apresentou sopa de vegetais enlatada, frango enlatado, fruta enlatada, que Aimata serviu. Courtney e Matty fizeram brindes, que Marc aceitou com sorrisos forçados. Claire recordou seus primeiros encontros com Marc, o período de namoro, o que irritou o marido. Paoti, com ar solene, fez algumas perguntas sobre o casamento na América, a que Marc quis responder mas a que Matty e Claire responderam antes dele.

     Claire quis ver os presentes de aniversário após o jantar. Havia uma peça de escultura nativa - parecia qualquer coisa pré-colombiana - oferecida pelo casal Wright. Uma antiga tigela de festa das Sereias, do canalha do Courtney. Uma máquina fotográfica, trazida de propósito para esta ocasião, de Matty. E de Claire para Marc, com amor - todos os velhos pecados e omissões perdoados nesta noite de aniversário -, uma caixa para charutos, de couro, cara e atraente. De Marc para Claire- nada, absolutamente nada.

     Esquecera-se de fazer compras antes da partida. Esquecera-se de procurar arranjar alguma coisa nas Sereias, pois Claire e seu maldito aniversário de casamento preocupavam-no bem pouco. Desculpara-se dizendo que mandara vir qualquer coisa de Los Angeles - que não chegara, porém, a tempo. O presente aguardá-los-ia em casa, quando voltassem. Preferia não dizer o que era, declarou. Claire manifestara sua alegria com um rápido beijo que recendia a uísque. Porém, ao fitar a mãe, enquanto recebia o beijo de Claire, Marc compreendeu que não conseguira enganá-la. Que vá para o inferno, pensou.

     Agora, restavam na sua mente apenas três fragmentos da conversa que se seguira. O resto dissipara-se com o uísque.

    

     Primeiro fragmento:

     Ele estava preparando outra bebida, e Claire achava-se a seu lado, queixando-se.

     - Que é que lhe passou pela cabeça? - perguntou ele.

     - Todos estamos bebendo, é certo, mas não desejo que se embriague na noite do nosso aniversário de casamento.

     - Sim, esposa - volveu, e acabou de preparar a bebida. Bebera um gole quando Courtney se acercou deles.

     - Bem, Dr. Hayden, soube que vai participar do nosso festival, que entra na prova de natação - afirmou Courtney.

     - Quem é que lhe disse uma coisa dessas? - perguntou ele.

     - Tehura - retorquiu Courtney. - Se é verdade, devo adverti-lo de que a prova é violenta. Pode não estar em forma suficiente para a disputar.

     - Não se preocupe comigo - observou Marc. - Sou como o peixe na água. Posso bater aqueles macacos com um braço atado atrás das costas... Segundo me disseram, também já entrou na prova de natação.

     - Duas vezes para meu mal - esclareceu Courtney. - Mas nunca mais o farei. Não temos chance com eles. Andei com o, corpo dorido durante várias semanas.

     - Você é você e eu sou eu. Amanhã lá estarei.

     - Amanhã estará onde? - perguntou Claire. - Do que é que estão falando?

     - Da grande prova que inaugura o festival. Uma prova de natação, amanhã. Entro nela.

     - Oh, não, Marc - exclamou Claire. - Mas por quê? Já não é um colegial.

     Marc desejou dizer: “Porque ando atrás de um verdadeiro pedaço de mulher, querida, não de uma artista castradora como você. “ Em vez disto, disse:

     - Observação participante, esposa, a chave da antropologia de campo. Sabe a que me refiro, não é verdade, esposa? Não foi por isso que mostrou as tetas aos nativos na noite da festa de Paoti?

     Claire corou intensamente, e Marc sentiu-se melhor ao afastar-se para perguntar aos convidados se desejavam outra bebida.

      

     Segundo fragmento:

     A Dr.a Matty, a boa, a belíssima Mãe Matty, com a sua habitual diarréia oral, que falava, falava, sem descanso, conversava com Paoti e Hutia quando Marc a serviu.

     - Matty - interrompeu ele maliciosamente -, eis uma nova bebida, bem fresca.

     Matty fitou-o com certa frieza e voltou-lhe as costas, para ignorar sua rudeza; depois, continuou a conversa, enquanto Marc, reduzido à sua inferioridade como filho, escutava.

     - Durante anos - dizia Matty a Paoti -, o grande problema da ciência, incluo as ciência sociais, nos nossos países, residia no fato de não se poder comunicar com as massas, que não tinham preparação, que não a compreendiam, mas cujo apoio era necessário. Não bastava apresentar-se a Teoria da Evolução ou a Teoria da Relatividade. Era preciso explicá-las, filtrá-las, torná-las acessíveis a todos, despertar sua aprovação, pois sem esta não se encontrava quem quisesse financiar a investigação básica. Hoje, na América, na Grã-Bretanha, na França, na Alemanha, na Itália, na Rússia, em todo o lado, a ciência está compreendendo isto, e procurando maneira de se comunicar com as massas, para, assim, receber maior apoio.

     Marc observou Matty-Maud-Mãe, que sorvia agora a sua bebida. Depois, escutou-a de novo.

     - Nós, os que nos dedicamos à Antropologia, temos tido grande êxito com nossas descobertas. Estamos aprendendo a falar a linguagem do povo. Eu, pessoalmente, sempre desejei ser lida e compreendida por toda a gente. Acho preferível ter-se um editor comercial do que uma imprensa universitária, mesmo que se trate de estudos técnicos. Alguns antropólogos deploram o fato de muitos de nós escrevermos para publicações alheias ao nosso setor profissional. A grande maioria daqueles que admitem apenas a publicação de estudo nas revistas da especialidade e nos anais universitários pensa que o dinheiro e a fama são coisas alheias à Antropologia. Crêem que um antropólogo deve ser um cientista e não um escritor, um divulgador. Alguns são sinceros. Mas a maior parte de suas críticas é motivada pela inveja, e também pela arrogância intelectual e pelo esnobismo. A minha posição, chefe Paoti, é a seguinte: não desejo revelar meu estudo sobre as Sereias apenas aos amigos e aos inimigos. Quero que toda a gente se inteire dele e se aproveite dele.

     Marc continuou a observá-la e a escutá-la maravilhado. A mãe, disse ele de si para si, era uma Força da Natureza, tinha o fulgor de uma deusa. Paoti dissera alguma coisa que escapara a Marc; Matty inclinou a cabeça num gesto de assentimento, sorriu e continuou sua dissertação.

     - Sim, isso também... Somos o que somos. Senti-me atraída pela Antropologia devido ao fato de se tratar de uma especialidade que de certo modo conhecia, uma ciência que incluía toda a Humanidade e que eu podia popularizar. Os pontos obscuros da ciência, que posso compreender mas os outros não, interessam-me menos do que os dramas vivos da ciência.

     Maravilhosa, maravilhosa Maud, pensou Marc, quase incrédulo.

      

     Terceiro fragmento:

     Fora servida a última bebida. Os convidados preparavam-se para partir. Claire agradeceu a Paoti e a Hutia os serviços da sua serva, Aimata, a criada mais eficiente que já conhecera, incluindo Suzu.

     - Oh, ela não é nossa serva - disse Hutia Wright. - É escrava de outra família. Foi apenas cedida para a festa.

     - Quê?! - exclamou Claire. - Aimata é uma escrava?

     - Mas sim... devido a seu crime...

     A perplexidade de Claire fez com que Maud intercedesse rapidamente.

     - Trata-se de alguma coisa que Easterday referiu na sua carta, mas que não tinha sido explicada a você e aos outros - disse ela. - Existe, pelo menos consideramo-lo assim, um único sistema punitivo nas Três Sereias. Não há pena capital aqui. De fato, o sistema tem muita coisa em seu favor. É humano e prático. Nos Estados Unidos, uma pessoa que cometa um crime premeditado é, na maior parte das vezes, enforcada, morta na cadeira elétrica, na câmara de gás ou por um pelotão de execução. Embora isto elimine a, possibilidade de ela cometer novo crime, um castigo tão extremo e vingativo da parte da sociedade não serve à comunidade nem recompensa a família da vítima. Aqui nas Sereias, toda a pessoa que cometa um assassínio é condenada à escravidão, a servir a família de sua vítima durante o número de anos que a vítima provavelmente perdeu. - Fez um gesto na direção de Paoti. - Talvez se possa relacionar este princípio ou lei com a pessoa de Aimata.

     - Sim - disse Paoti a Claire. - É simples. Aimata tinha trinta e dois anos, e o marido trinta e cinco, quando decidiu assassiná-lo. Empurrou-o de um rochedo. Ele morreu instantaneamente. Não houve julgamento perante mim, pois Aimata confessou* O nosso costume, quanto ao crime, diz que toda a pessoa deve viver em média setenta anos nesta ilha. Portanto, Aimata privou o marido de trinta e cinco anos de vida. Ela é escrava da família da vítima durante esse período, sem privilégios; não pode casar, fruir o amor, divertir-se, e deve só comer os restos das refeições e vestir o que jogarem fora.

     Claire levou a mão à boca.

     - Nunca soube de nada assim. É aterrador...

     Paoti sorriu com simpatia.

     - É eficaz, Sra. Hayden. Tivemos apenas três assassínios na aldeia durante trinta anos.

     - Há sistemas e sistemas, neste imundo - acrescentou Maud, dirigindo-se a Claire. - Certa tribo da África Ocidental nunca executou um assassina. Consideram isto um desperdício, tal como aqui. Condenam o assassino ao exílio durante dois anos. Depois tornam a aceitá-lo e obrigam-no a viver e a copular com uma parente da vítima até nascer uma criança que substitua aquela. É uma coisa singular, mas justa, como o sistema daqui. Não estou tão certa de que nós, no Ocidente, tenhamos melhor maneira, de encarar o crime. - Voltou-se. - Sr. Courtney, como advogado, o que diz a isto?

     - Digo muito obrigado e muito boa noite. Os fragmentos tinham-se pulverizado.

     Marc encontrava-se ainda sentado à entrada da porta, os ombros e o peito um tanto frios, mas a boca e a língua quentes e ásperas, devido ao uísque e ao charuto, semifumado, que tinha entre os dedos.

     Foi então que ouviu a voz abafada, de Claire, vinda da divisão dos fundos.

     - Marc, é tão tarde... Ele não respondeu.

     - Marc, não vem para a cama? Tenho uma surpresa para você.

     Surpresa, surpresa. Sabia qual era a surpresa, e sabia que estivera ali sentado para a evitar. Ela ia oferecer-lhe o corpo enjoativo. Era uma prenda que nao desejava. Em dois anos cansara-se daquele corpo. Porém, avaliados os dois anos, compreendeu que não tinha possuído aquele corpo tantas vezes como imaginara. Era apenas o fato de o corpo estar ali, sempre irritantemente à sua disposição, que o fazia parecer tão usado.

     Compreendeu que já não dormia com ela há um mês ou dois. Agora surgia uma ocasião. Detestava o dever. Desejava a jovem de corpo pardo, com sua arrogância sobre o sexo, os seios nus, as belas coxas escondidas pelo saiote de erva. Recordou-se do incidente daquele dia: quase a possuíra Tehura; todavia, estava certo de que ainda a haveria de possuir. Desejava-a agora, mas não a podia ter, e assim decidiu consumir a paixão no dever.

     Ergueu-se, lançando o charuto para o conjunto. Depois, puxou a porta, fechando-a.

     Atravessou o corredor e entrou no quarto de dormir, toscamente iluminado. O quarto parecia vazio. Não viu Claire no saco de dormir ou entre as sombras. Ouviu um movimento à sua direita, e então ela emergiu da parede obscurecida e dirigiu-se para o local onde se encontrava a vela, a fim de se mostrar.

     Uma expressão de espanto estampou-se nos olhos de Marc.

     - A surpresa do nosso segundo aniversário, querido - disse ela.

     Durante um instante pensou que, devido a um golpe de magia, era Tehura e não Claire que se encontrava diante dele. Porém, tomou consciência de que era Claire. Ela trazia a mesma indumentária usada por Tehura e por todas as mulheres das Três Sereias. Tinha uma flor berrante no cabelo e, no pescoço, o colar. A jóia cintilava entre os seios brancos com seus indecentes botões castanhos. O umbigo contraía-se e expandia-se acima do cós do saiote demasiado curto. As coxas, pernas, pés, estavam nus.

     A cólera dominou-o completamente. Desejava esmagá-la, chamar-lhe prostituta, cadela, tudo. Por que é que o insultava desta maneira, por que ousava vestir aquela indumentária reles de um bordel tropical?! Era demais! Que animal asqueroso!

     - Bem, Marc - tornou ela cheia de alegria. - Diga alguma coisa.

     Diga alguma coisa!

     - Onde diabo arranjou você essa maldita vestimenta? O sorriso dela desvaneceu-se.

     - Ora, pensei que lhe faria uma surpresa. Pedi a Tehura que me emprestasse um dos seus... Tehura!

     - Tire imediatamente esse maldito saiote e queime-o, com mil diabos!

     - Marc, que tem você? Pensei que...

     - Disse para você tirar isso. Que supõe que está fazendo? Em que é que se transformou? Compreendi tudo no primeiro dia, na primeira noite, quando mostrou as tetas... e quando começou a» andar por aí com esse Courtney, pensando em sexo, e se mostrando para toda essa gente...

     - Cale-se! - gritou ela. - Cale-se, cale-se, demônio... Estou farta de você, do seu pedantismo, do seu falso pudor, de ser desprezada pelo meu grande gênio, pelo meu grande atleta... Eu... eu...

     Arquejava. Tinha os olhos fixos no rosto dele e arquejava, as mãos esticadas como garras, desejando feri-lo, matá-lo e matar-se, e gritar, gritar...

     Cobriu os olhos e reprimiu um soluço.

     - Vá embora, afaste-se de mim e cresça - disse, ofegante.

     Ele tremia incontrolavelmente devido à retaliação de

     Claire.

     - Muito bem, vou-me embora - disse numa voz sumida. - Voltarei quando você recuperar a razão, quando se recordar quem é e se comportar como tal... Meu Deus, gostaria que você visse a figura que faz. Se é essa a sua idéia de prender um marido...

     - Saia.

     Deixou-a imediatamente. Uma vez no exterior, afastou-se o mais rapidamente que pôde da cabana e penetrou no conjunto.

     Não soube durante quanto tempo caminhou na semi-obscuridade. Em dado momento encontrou-se perto da Cabana de Auxílio Social, mergulhada na escuridão.

     Mais tarde, sentou-se junto de um archote quase apagado, do outro lado do regato, demasiado exausto para se sentir encolerizado. Refletiu no que esta maldita ilha estava fazendo aos dois e no que aconteceria mais a ambos, em especial o que aconteceria a ele. Pensou na autêntica Tehura, no futuro, e, como tinha sucedido tantas vezes ultimamente, no admirável Rex Garrity.

     Por fim, meteu a mão no bolso das calças e tirou a carta de uma página já suja que recebera duas semanas antes em Papeete. Num estilo floreado, Garrity recordava-lhe que a visita às Três Sereias podia constituir a oportunidade de uma vida. Se Marc quisesse vender o material de que a mãe não necessitava, pagaria por ele uma larga soma. Se por acaso tivesse outros projetos, que escrevesse, para os examinarem.

     “Marc, meu velho, esta é uma oportunidade única. Descobrimos uma mina de ouro”, escrevera Garrity. “Mantenha-se em contacto comigo e diga-me o que pensa sobre a minha proposta.”

     Uma hora depois de ler a carta em Papeete, Marc respondera apressadamente, mas formulando muitas perguntas.

     Tornou a guardar a carta no bolso das calças e aspirou o ar da noite. Sentiu-se revigorar.

     Claire estaria já dormindo profundamente. Iria para a divisão da frente, a fim de começar uma carta para Rex Garrity. No dia seguinte o capitão talvez trouxesse outra carta de Garrity, com as respostas às perguntas que fizera. Então, terminaria a que iria começar a escrever esta noite.

     Depois, faria o que devia fazer e a sua vida modificar-se-ia totalmente. Sim, totalmente.

     Ergueu os olhos para o vasto céu por cima dele. Sacuda a sua maldita cabeça, Adley, pensou; porém, não o posso ver, não necessito mais de você, porque está morto para sempre e eu em breve estarei vivo.

     Dirigiu-se para a cabana, com a carta salvadora já escrita na mente.

       

     Inquieto, Marc Hayden passeava pela elevação da qual se observava toda a aldeia das Três Sereias, estabelecida no extenso vale.

     Agora, no fim da manhã, via-se pouca gente no conjunto, os grupos animados das crianças, de algumas mulheres; os homens estavam ocupados com seu trabalho, os adolescentes encontravam-se na escola, os membros do grupo de Matty (não do seu grupo) abrigados, algures, do calor, com seus lápis, gravadores e informantes.

     Se a vista deste ponto alto e isolado era bela, Marc não dava por tal. A aldeia estava embaixo, mas não era uma parte dela. Desde a noite anterior separara a sua identidade quase completamente dela. Era tão remota e irreal como a fotografia colorida do National Geographic Magazine.

     Para Marc, a aldeia e seus habitantes eram apenas Coisas, acessórios para o ajudar a fugir a seu antigo e odiado padrão de vida. O que era real, o que era animado, o que era mesmo belo: aquela Magna Carta da alma... a sua Declaração de Independência, encerrada no bolso direito das calças.

     A carta tinha apenas, três páginas, e estas e o envelope, apesar de finos, enchiam-lhe o bolso, o corpo e o espírito como se uma lâmpada de Aladim pronta a satisfazer seu desejo.

     Mantivera-se de pé durante quase toda a noite, na divisão da frente da cabana, redigindo estas três páginas para Rex Garrity, que se encontrava em Nova York. A maior parte do tempo não fora consumida escrevendo, mas refletindo no que devia dizer a Garrity, quanto às suas intenções. Ao terminar, deitara-se e dormira facilmente e bem pela primeira vez em meses, com a sensação de que preenchera utilmente seu dia de trabalho, sem remorsos e esperanças demasiado grandes. O sono constituíra assim um bom prêmio. Ignorara o corpo de Claire no saco de dormir, acertara o despertador e fechara os olhos e dormira.

     Quando o despertador o acordou, tinha dormido apenas três horas, e contudo não sentia a mínima fadiga. Durante o café, Claire surgira e, de rosto e expressão sombrios, cumprimentara-o de maneira rude, tendo ele respondido com um débil murmúrio. Ela começara a mover-se ruidosamente pela cabana, tropeçando em tudo, exigindo, sem falar, com sua presença opressiva, desculpas pelo comportamento da noite anterior. Desejava explicações imediatas, conversa, mais conversa, para sarar suas feridas. Que ele se desculpasse de suas imprecações, da sua rejeição durante as horas da noite, que invocasse a embriaguez mas que se desculpasse, para que tudo fosse esquecido e a vida em comum pudesse prosseguir.

     Porém, não se prestara ao que ela quisera. Comera em silêncio e evitara-a, simplesmente porque nesta manhã ela já não tinha existência para ele. O seu desinteresse era total. De noite crescera, tornara-se o homem que sempre pensara poder ser, e, portanto, um estranho para esta mulher.

     Saíra apressadamente da cabana - depois de procurar o bloco de apontamentos e a caneta, ruidosamente, a fim de a despistar, de lhe fazer acreditar que ia para o trabalho - e com a carta de Garrity no bolso direito das calças dirigira-se rapidamente para o caminho que conduzia à elevação. Sabia que não devia se atrasar. Planejara interceptar o Capitão Rasmussen - era o dia de Rasmussen, do correio, do abastecimento -, antes de o velho pirata descer à aldeia e se dirigir à cabana de Matty. Se houvesse uma carta de Garrity, em resposta à sua de Papeete, não desejava que Matty a visse ou suspeitasse que a recebera. O conteúdo da carta determinaria sua decisão final - enviar ou não a que tinha no bolso direito das calças.

     Sentara-se há mais de uma hora à sombra de uma frondosa acácia, a alguns metros do caminho onde Rasmussen devia passar, e esperara nervosamente o portador do seu destino. Como Rasmussen não tivesse surgido, levantara-se da sombra da árvore para dar uma volta pelo penhasco próximo.

     Andava agora há mais de vinte minutos junto do precipício, perguntando-se se haveria carta, e, em caso afirmativo, se esta preencheria suas expectativas. Em dado momento, porém, não conseguiu suportar mais o calor inclemente.

     Lentamente, limpando o rosto e o pescoço com o lenço, voltou ao caminho sinuoso que conduzia à praia. Não se lobrigava ainda a figura de Rasmussen. Por um momento perguntou-se, inquieto, se não teria calculado mal o dia ou se Rasmussen não teria adiado o vôo da misericórdia. Mas acabou por se sossegar: Rasmussen apareceria, certamente.

     De pé, junto do caminho, Marc levou a mão ao bolso e sentiu o volume da carta. Tirou o envelope sem selo dirigido a Garrity e seu ânimo fortaleceu-se. Depois, voltou a colocar o envelope no bolso. Tornou à sombra, após espreitar uma vez mais o caminho, e deixou-se tombar sobre a grama. Tirou um charuto, e, enquanto o preparava e acendia, sua mente voltou a Tehura e ao que escrevera a Garrity acerca dela e do seu papel nos dias decisivos por chegar.

     Quando pouco depois consultou o relógio de pulso viu que era quase meio-dia e que estava de vigia há cerca de três horas. Retornou aos seus pensamentos e às suas fantasias e não soube quanto tempo decorrera antes de ser desperto pelas passadas duras de alguém que entoava uma canção de marinheiros.

     Marc pôs-se apressadamente de pé - passavam quinze minutos do meio-dia - e dirigiu-se, célere, para o caminho. A vinte metros de distância achava-se a gloriosa pessoa de Ollie Rasmussen.

     Ao aproximar-se, Rasmussen reconheceu Marc, e acenou-lhe.

     - Olá, doutor, faz parte do comitê de recepção?

     - Como está, capitão... Vim dar um passeio até aqui e em dado momento recordei-me de que o senhor viria hoje, com o correio. Como espero uma carta importante, eis-me aqui.

     Rasmussen tirou o saco que trazia aos ombros e pousou-o no caminho.

     - A carta deve ser bem importante, pois de outro modo não me teria esperado. Contudo, ainda não separei a correspondência.

     - Bem, pensei...

     - Não se incomode, não há muito que separar, no fim das contas.

     Arrastou o saco até à grama, sentou-se de pernas abertas sobre o tronco de um coqueiro tombado e puxou o saco para os joelhos.

     - Tem aí um desses charutos, doutor? - perguntou ele.

     - Com certeza - volveu Marc, tirando, lesto, um charuto do bolso da camisa e passando-o a Rasmussen, que o colocou a seu lado, no tronco.

      

     Com Marc observando-o com ansiedade, Rasmussen levou á mão ao fundo do saco e tirou um maço de cartas. Depois, procurou entre elas, enquanto proferia em voz alta o nome completo de Marc. Por fim, retirou três envelopes.

     - Eis o que há para o senhor, doutor - disse ele, entregando as cartas.

     - Obrigado - volveu Marc, pegando rapidamente nelas. Enquanto ele via o remetente, Rasmussen lançou o maço para dentro do saco e acendeu o charuto.

     A primeira carta era de um colega do Raynor College; a segunda, dirigida a Claire e a ele, de um casal amigo de San Diego, e a terceira de “*R. G., Busch Artist and Lyceum Bureau, Centro Rockefeller, Nova York”. Sim, a última era de Rex Garrity, que escrevera do escritório do seu agente literário. Marc foi possuído pela emoção provocada pela expectativa. Contudo, sentia relutância em abrir o envelope diante de Rasmussen. O capitão estava ainda sentado, chupando o charuto, observando-o com seus olhos mortiços de alcoólatra.

     - Recebeu a carta que queria, doutor?

     - Com os diabos, não - mentiu Marc. - Apenas cartas pessoais. Talvez venha no próximo correio.

     Rasmussen pegou no saco e pôs-se de pé.

     - É melhor ir andando - disse ele. - Preciso de encher a barriga e preparar-me para o festival. Começa hoje e dura toda a semana.

     - Quê? Oh, sim, o festival. Tinha-me esquecido. Com efeito, começa hoje.

     Rasmussen fitou pensativamente Marc durante alguns instantes.

     - Recordo-me... Encontrei-me com Huatoro e alguns outros rapazes na praia... transportam os abastecimentos pelo atalho... e ele disse qualquer coisa acerca do senhor, doutor. Que o senhor entra na prova de natação hoje. É brincadeira ou verdade?

     A prova de natação do festival, marcada para as três da tarde, era o último pensamento que ocupava o espírito de Marc; surpreendeu-o esta lembrança.

     - Sim, capitão, é verdade. Prometi participar nela.

     - Por quê?

     - Por quê? Pelo exercício que proporciona, suponho. Rasmussen colocou o saco sobre os ombros.

     - Quer um bom conselho? Pode fazer mais exercício com essas bonecas das Sereias, doutor. Não quero dizer com isto que falte ao respeito à senhora, compreenda-me. Dou-lhe este conselho no interesse da investigação científica. Tenha-o em mente, no caso de uma das jovens lhe enviar uma concha do festival.

     - Que é isso?

     - É o que lhes desata o saiote, doutor. - Ele riu, mas um acesso de tosse fez que tirasse o charuto, que momentos depois voltou a colocar entre os dentes descoloridos. - Sim, é para isso que serve.

     - Não me esqueço, capitão - volveu Marc quase num murmúrio.

     Rasmussen dirigiu-se para o caminho.

     - Vem comigo? - perguntou ele.

     - Não, obrigado. Quero passear um pouco mais.

     - Bem, não se canse antes da prova de natação e daquilo que muito bem sabe.

     Rasmussen afastou-se então. Desconcertado pela referência do capitão ao festival, Marc continuou de pé, olhando-o. Quando Rasmussen desapareceu de vista a mente de Marc voltou ao longo e fino envelope de Garrity.

     Saindo do sol, refugiou-se sob a copa das árvores do outro lado do caminho e meteu os outros dois envelopes, dobrados, no bolso. Depois, rasgou a extremidade do de Garrity e, cuidadosamente, retirou quatro folhas datilografadas, que desdobrou. Como um gourmet ante um prato saboroso, leu a carta, palavra por palavra:

       

      “Meu caro Marc:

      Desejo desde já notar que recebi com dupla satisfação a sua carta, pois, creio, só eu dou o devido apreço à sua sensibilidade, personalidade e posição. Sei que o entravam inúmeras restrições. Por um lado, a sua famosa mãe, Deus a abençoe, que, apesar de todo o seu gênio, tem uma visão estreita e pedante do mundo comercial. A rejeição que fez da minha pessoa, a sua indubitável aversão por todos aqueles que se ocupam da comunicação pública e do entretenimento é baseada num código ético fora de moda. Por outro lado, tem-no prejudicado o fato de estar há tanto tempo encerrado no mundo de sua mãe, o chamado mundo “científico” dos pedantes. Mas você é de uma geração sofisticada, e existe para você esperança, a promessa da glória. A partir da nossa conversa particular na sua casa de Santa Bárbara, em que me defendeu diante de sua mãe, de sua esposa e desse toleirão do Hackfeld, e devido à sua carta de Papeete, que fez cimentar a minha fé em você e no futuro da nossa amizade, por todas estas razões, vejo em você um novo Hayden, um indivíduo forte e ambicioso preparado para enfrentar o mundo e conquistá-lo por fim.

      Lendo cuidadosamente alguns dos seus parágrafos julguei ver que especula sobre a viabilidade de pôr ante o público vasto e geral as informações que está colhendo nas Três Sereias. Você teme que o material seja mal utilizado, ou melhor, “sensacionalizado” por mãos impróprias. Pergunta-se se alguns cientistas, ou antropólogos, já apresentaram as suas descobertas à nação “à maneira de Rex Garríty”. Interroga-se acerca dos proventos que se podem obter hoje numa série de conferências, e diz, com certo cepticismo, que eu apenas gracejava quando afirmei em sua casa que uma conveniente apresentação das Três Sereias e da aventura nelas vivida nos traria cerca de “um milhão de dólares”.

      Depois de refletir cuidadosamente no conteúdo da sua carta, decidi zelar pelos seus interesses com absoluto tato e honestidade. Estava fazendo uma conferência em Pittsburgh quando recebi sua carta e imediatamente cancelei o contrato que tinha para Scranton, dirigindo-me imediatamente para Nova York, a fim de me avistar com meus agentes do Centro Rockefeller. Confidencialmente, falei-lhes do pouco que sabia acerca da sua viagem de campo, das próprias Sereias, e perguntei-lhes quanto é que tudo isto podia render “economicamente”. Eles ficaram de me dar a resposta dentro de dois dias. Acredite-me, Marc, é verdadeiramente emocionado que lhe escrevo. Tenho esperança de que minhas emoções o contagiem nesse lugar incrível e remoto onde trabalha no momento.

      Por ora, permita-me que desfaça seus receios quanto à oportunidade de comunicar a aventura das Três Sereias ao público, e também os receios quanto à imprópria utilização do material. Como afirmou, isto pode ser prejudicial tanto para a Antropologia como para a segurança dos ilhéus. Marc, sua mãe está errada. Perdoe-me esta afirmação, mas ela reflete o pensamento antiquado dos cientistas sociais de antes da guerra, um grupo fechado que mantinha apenas para si mesmo o que era valioso. De fato, sua mãe e seu pai criaram a reputação que têm devido ao simples fato de terem saído um tanto da casca e apresentarem seus livros de uma maneira mais popular. Mas, afirmo, não foram muito longe. Suas descobertas, como as dos colegas, não alcançaram as massas, não foram benéficas aos milhões que se podiam aproveitar delas. Se o que vê agora nas Três Sereias é útil à América, por que não o disseminar amplamente para ajudar os americanos? Recorde-se de que os grandes “revolucionários” do nosso tempo, como Darwin, Marx e Freud, não abalaram mundos antes de as suas descobertas terem caído em mãos como as suas e as minhas e sido popularizadas. Se me interroga sobre a ética eu interrogo-o sobre o direito de qualquer grupo de manter para si ou censurar informações que poderão enriquecer os espíritos. Não, Marc, não tenha receio, só o bem pode vir da divulgação deste material, da sua colocação nas mãos de homens que compreendem as massas.

      E como poderia o seu material ser usado de maneira imprópria? Se formos para diante, será como colaboradores. Você controlará a publicação do material. Conhece o meu trabalho, a minha reputação, baseada no bom gosto. Pessoas de ambos os sexos, de todas as idades, das diversas classes sociais, têm sido durante anos meus dedicados seguidores. As vendas dos meus livros, as cidades que me têm aplaudido, as inúmeras cartas que recebo de admiradores, as vastas somas que anualmente pago de impostos ao Estado testemunham o meu conservantismo, a minha universalidade de julgamento e o meu gosto. Por fim, contaríamos com os auspícios de Busch Artist and Lyceum Bureau, fundada em 1888, uma firma de grande reputação que patrocinou nomes como o Dr. Sun Yatsen, Henry George, Máximo Górki, Carveth Wells, Sarah Bernhardt, Lily Langtry, Richard Halliburton, Gertrude Stein, o Dr. Arthur Eddington, Dylan Thomas, o Dr. William Bates, o Conde Alfred Korzybski, Wilson Mizner, a Rainha Maria da Romênia, Jim Thorpe - e, perdoe-me uma terceira vez, o seu amigo Rex Garrity.

      Quanto a seu receio sobre a presença dos antropólogos diante do público leigo, ponha essa idéia de parte. Tenho provas cabais de que dezenas de colegas seus, de Robert Briffault a Margaret Mead, têm feito isto e têm melhorado em vez de prejudicado a sua reputação profissional.

      Agora, vamos à minha conversa com a gente de Busch e ao fator econômico. Meus agentes asseguraram-me que o êxito é garantido, pois possuímos ambos os elementos do sucesso provável. Eu tenho a reputação e você o material - ao mesmo tempo oportuno e fora do vulgar. Ambos, podemos fazer das Três Sereias um nome tão famoso como o Shangri-La, o Shangri-La do amor e do casamento.

      Pela obtenção dos contratos, pelos transportes, hotéis e o mais, a agência cobrará 33 por cento dos nossos lucros totais. Assim, restará para cada um de nós 33 e meio por cento livres de. despesas. Se suas descobertas são o que promete, eles crêem que é possível que em dez meses (conferências, rádio, televisão, direitos literários) poderemos conseguir pelo menos setecentos e cinqüenta mil dólares! Pense nisto, Marc, em dez meses poderá obter um quarto de milhão livre de despesas e uma reputação de extensão nacional.

      A gente da Busch requer apenas uma coisa: a sua presença. Necessitam que prove que as Três Sereias existem. E o que poderia apresentar como prova? Um filme colorido sobre a vida na ilha, fotografias a cores ou uma grande coleção de instantâneos que pudessem ser projetados. Ou mesmo, como o Capitão Cook fez no regresso de Taiti... um nativo para aparecer ao nosso lado quando proferirmos as nossas conferências.

      Talvez eu tenha ido demasiado longe ao tentar perceber os seus pensamentos e ambições. Espero que não. Se encontrar maneira de se juntar a mim nesta empresa, não o lamentará. Tornar-se-á, de um dia para o outro, rico e famoso, ainda muito mais famoso do que sua mãe.

      Pense nisto, pense em tudo que lhe disse, que não constitui fantasia mas fatos, e tome a sua decisão. A riqueza e a glória esperam-no. Não preciso de acrescentar mais nada, exceto que a gente da Busch e eu aguardamos avidamente a sua resposta. Se for favorável, e confio que será, trataremos imediatamente das coisas. Se o desejar, voaremos sem demora para Taiti, e voltaremos com você para Nova York a fim de pormos em marcha o Projeto para a Glória.

      Seu amigo e, espero, futuro colaborador,

      Rex Garrity.”

      

     Quando terminou, Marc não releu a carta. Cada palavra estava profundamente gravada na sua mente. Mantinha-a numa das mãos, sentado na grama, cercado pela cor e pela fragrância do bosque de acácias, e com os olhos fixos no caminho.

     Compreendeu que, apesar do calor do meio-dia, havia uma certa frescura nos seus ombros, braços, antebraços. O prêmio assustava-o, e também a enormidade do passo que devia dar para o conquistar.

     Porém, ao pôr-se de pé, compreendeu que tomara já a sua decisão. O que estava à sua frente era aterrador, pois desconhecia a energia de que era dotado. No que se referia a Matty e a Claire, continuar com elas seria uma coisa mais pavorosa do que um pesadelo, como, por exemplo, ser enterrado vivo por toda a eternidade. A escolha não oferecia dúvidas.

     Tentou refletir. Teria, primeiro que tudo, de selar e expedir a carta escrita na noite anterior. Não necessitava de acrescentar uma palavra sequer. Previra tudo e respondia a tudo o que se encontrava nas páginas que acabara de ler. Sim, lançá-la-ia para o saco de correio de Rasmussen. Este era o primeiro passo. Depois, precisava de saber se seu plano era prático. Tudo dependia dele, ou melhor, de Tehura. Veria depois da prova de natação, quando o coração primitivo dela o recebesse como conquistador. Quanto a Claire, que fosse para o diabo. Estava fora da sua vida agora. Bem, não estava completamente fora dela; talvez um dia viesse rojar-se a seus pés, suplicante. Veria, veria depois. Por agora, ela pouco contava. Havia acontecimentos importantes à vista, e eram estes que mais importavam.

     Marc dobrou a carta de Garrity, introduziu-a no bolso das calças, acendeu o charuto e encaminhou-se para o caminho que conduzia à aldeia. Sentia-se já senhor de um quarto de milhão.

    

     Na escola, as aulas terminariam hoje mais cedo, e isto devido ao fato de começar o festival, anunciara o Sr. Manao. A escola fecharia às duas horas e, assim, teriam uma hora livre antes de principiar a prova de natação.

     - O horário será este durante toda a semana - acrescentara o Sr. Manao ante o regozijo geral.

     Os alunos, costumeiramente tão atentos e moderados, sublinhavam as lições do Sr. Manao com murmúrios quase inaudíveis. Todos estavam alegres, riam, gracejavam. Mesmo Nihau, sempre tão sério, parecia menos reservado. Ria mais e correspondia aos olhares de Mary com um gesto de satisfação e um sorriso. Parte da sua boa disposição, sabia ela, devia-se ao fato de a ter convencido a voltar à aula após o seu momento de perturbação do dia anterior. Na verdade, a súbita ausência de Mary, durante o intervalo que se seguira ao estudo do jaa hina'aro e à lição de anatomia ao vivo com a jovem e bela Poma e o viril Huatoro, não tinha passado despercebida ao Sr. Manao. Quando Mary entrara na sala, determinadamente cedo, o professor aproximara-se dela e, longe dos ouvidos dos outros, perguntara se se sentia bem. Dera pela sua ausência, disse,. durante as últimas aulas. Mary falara vagamente de uma dor de cabeça, de ter sido obrigada a deitar-se e o professor ficara satisfeito.

     Agora, escutando as últimas palavras da lição do Sr. Manao sobre a história da ilha, Mary sentiu um vazio na cavidade estomacal. Tentou atribuir isto ao fato de não ter ainda almoçado - a verdade, sabia, era porém outra, pois houvera um intervalo extra em que tinham sido distribuídos refrescos de frutas -, mas vira-se forçada a admitir que fora a apreensão causada pela perspectiva de poder ver ainda Poma e Huatoro novamente nus que originara esta incômoda sensação física.

     Ao refletir nisto, a cavidade vazia encheu-se e a sua confiança voltou. Tinha visto bastante, pensou, e pouco haveria hoje de novo. Apercebeu-se de que Nihau mudara de posição a seu lado - a lição de história terminara - e recordou as palavras do dia anterior, quando afirmara que era a vergonha, o medo e a ignorância que empobreciam o amor. A evidente superioridade com que encararia o velho grupo de Albuquerque, no regresso, animou-a. Calma, aguardava quase com ansiedade a hora que estava à sua frente.

     Enquanto o Sr. Manao se preparava para a última aula - limpara os óculos com a tanga, ajeitando-os nas orelhas, e examinara em seguida uma folha de papel - os estudantes trocaram algumas palavras em voz baixa. Mary, por sua vez, volvera os olhos para as janelas abertas, à direita, e vira o pai ainda de Rolleiflex assente num tripé. Ele, era singular, fazia agora o que o Sr. Manao acabara de fazer, limpava os óculos sem aros.

     Mary não vira seu pai durante o café. Ele comparecera, soube, a uma reunião com Maud Hayden. Mais tarde, ao chegar perto da escola, ficou surpreendida ao vê-lo, carregado com seu equipamento, procurar ângulos para seus instantâneos.

     Ela aproximara-se por trás e tocara-lhe na nuca úmida, quente. Ele quase perdera o equilíbrio e voltara-se, espantado.

     - Oh, é você Mary...

     - Quem pensava que era? Alguma sereia sexy? E que anda fazendo por aqui?

     - Maud deseja uma série de fotografias sobre a escola, a preto e branco e a cores.

     - Mas isto é uma escola comum, como tantas outras que há por toda a parte.

     Sam Karpowicz tirara a Rolleiflex.

     - Está ficando embotada, Mary. É a única coisa que todo fotógrafo deve evitar. Quero dizer, o olho da máquina nunca envelhece, nunca se habitua demasiadamente ao que toda a gente vê. O olho da máquina deve ser sempre jovem, aperceber-se dos contrastes e das singularidades, e não tomar nunca nada como certo. Pense na arte de Steichen. Sempre jovem. - Voltou-se um pouco e apontou para a cúpula de colmo da edificação. - Não existe uma escola como esta na América ou na Europa, nem também estudantes que se vistam como os da sua classe, nem professores como o Sr. Manao. Talvez queira dizer que os temas são de certo modo semelhantes aos das outras escolas. - Sam deteve-se, e fitou a filha, pensativo. - Pelo menos, de acordo com o que nos conta todos os dias, as disciplinas que ensinam aqui, história, trabalhos manuais e as outras, parecem semelhantes às da sua escola em Albuquerque. - Hesitou. - É ou não verdade? A pergunta alarmara Mary, que se recordara de Poma e Huatoro, tal como os vira anteriormente. Engoliu em seco.

     - Sim, paizinho, é isso que tinha em mente. - Como não desejava que a conversa prosseguisse, uma vez que receava denunciar o que pretendia esconder, afetou desinteresse. - Bem, tenho de ir - disse.

     Isto passara-se algumas horas antes deste momento, e uma vez por outra vira de relance, através das diversas janelas abertas, o pai com suas máquinas fotográficas. Volvendo agora os olhos para a janela mais próxima, não deu pela presença dele no exterior da escola. Supôs que tivesse terminado a sua série de fotografias. O Sr. Manao falava uma vez mais e ela começou a escutar com atenção as palavras do professor.

     Não haveria lição hoje sobre os órgãos humanos, ouviu. Aliviada, aguardou com expectativa o tema seguinte. Decorridos alguns minutos o Sr. Manao esclareceu-os a todos.

     Prometera que a sua dissertação sobre os preparativos do amor seria pormenorizada, requereria vários dias e seria iniciada somente depois de se ter referido aos pontos básicos. Esta tarde, falaria sobre as posições principais, seguindo-se uma demonstração prática. Estas posições eram seis, disse, e as variantes talvez cerca de trinta.

     - Primeiro as posições principais - anunciou ele. Poma e Huatoro surgiram na sala, vindos da dependência de trás. O atleta musculoso ficou com o seu saco púbico, mas a jovem viúva de vinte e dois anos tirou o minúsculo saiote, com um movimento rápido, e lançou-o para o lado.

     Embora se encontrasse no fundo da sala, Mary podia apreciar com clareza a demonstração, por entre as filas de estudantes. Para sua surpresa, não houve contacto físico entre os atores. Eles representavam com graça e fluidez, como um par de acrobatas.

     Embora um tanto decepcionada, Mary continuou com os olhos fixos nos intérpretes, seguindo todos os seus gestos. De fato, estava de tal modo absorvida que não ouviu um ruído de passos pesados na sala nem se apercebeu da agitação produzida atrás dela.

     De súbito, todavia, sentiu duas mãos largas sobre os ombros empurrando-a.

     - Mary, quero que saia da sala!

     A voz colérica que se ouvira era L. pai.

     A demonstração foi suspensa, a frase do Sr. Manao ficou incompleta, e todas as cabeças se voltaram para a retaguarda. Mary esforçava-se por se libertar das mãos do pai, duas autênticas garras. Nunca vira o rosto dele tão contorcido e lívido.

     - Mary - repetiu Sam Karpowicz em voz alta -, levante-se e saia daqui imediatamente!

     Paralisada sobre a esteira, de boca aberta, perturbada pelo choque que precede a humilhação, manteve-se como estava. As mãos do pai deixaram seus ombros; porém, ele elevou-a pelas axilas e arrastou-a pelo chão.

     Arfando, pôs-se de pé, com uma expressão de profundo desolamento no rosto. Todos os olhos incidiam sobre ela, supôs, e sobre o velho rude que interrompera a aula. E Nihau, Nihau, que pensaria ele?

     Tentou falar; mexeu a boca, mas nem uma palavra sequer saiu dela.

     Sam Karpowicz fitava-a, com os olhos chispando.

     - Tem vindo aqui todos os dias... a este ginásio desportivo... Observou toda esta degradação... e nada nos disse...

     Por fim, ela conseguiu pronunciar algumas palavras, soltas, fragmentadas.

     - Pa... pai, por fa... vor...

     Tinha os olhos cheios de lágrimas; o autodomínio era impossível.

     O Sr. Manao apareceu entre pai e filha, perplexo.

     - Senhor - disse ele -, que vê de mal aqui?

     - Com os diabos, com os diabos, homem - volveu Sam, como se cuspisse. - Se não tivesse vindo até aqui tirar algumas fotografias, jamais saberia o que se passava nesta sala. Mas, como... como ousa mostrar a uma garota de dezesseis anos estas cenas de prostíbulo? Ouvi dizer que se faziam exibições semelhantes em Paris e em Singapura, mas os habitantes desta ilha são tidos como avançados...

     O Sr. Manao ergueu a mão para interromper, para explicar.

     - Sr... Dr. Karpowicz... o senhor não compreende...

     - Compreendo uma coisa, com mil demônios... o que os meus olhos vêem! Sou tão progressista e liberal como qualquer outro homem, mas quando uma criança é forçada a ver... a enterrar a cabeça na lama... Olhe para aqueles dois ali... o grande atleta seminu, tentando excitar estes garotos... Olhe para ela, com o traseiro ondulando ao vento...

     Foi então que Mary soltou um grito.

     - Pai! Cale-se... sim... cale essa boca... cale-se... cale-se...

     Sam ficou durante uns momentos com os olhos fixos na filha, como se tivesse sido èsbofeteado. Mary voltou-se para todos, muda, desesperada, com os olhos cheios de lágrimas; queria dizer alguma coisa, exprimir uma desculpa. Todavia, não conseguiu. Deixara de os poder ver, as lágrimas tinham-na cegado. Trêmula, vacilante, dirigiu-se para a porta e desapareceu.

     Corria, com a visão ofuscada; desejava apenas uma sepultura, um buraco onde tombar, pois seu coração estava já morto.

     Ninguém a seguia, mas continuou correndo, durante todo o caminho até em casa, soluçando, soluçando, e desejando que Deus abatesse o pai, e a mãe também, e que a cabana se tornasse um orfanato.

    

     Ainda não eram três horas quando Claire Hayden e Maud completaram a sua subida ao ponto sobranceiro ao mar para observar a prova que dava início ao festival anual.

     A multidão era a mais compacta e a mais ruidosa que Claire vira desde que chegara às Sereias. Talvez cerca de duzentos torsos pardos se encontrassem reunidos na borda da saliência que descia até à água. Os membros do grupo americano estavam quase todos presentes, junto do chefe Paoti e da mulher, que se achavam sentados de pernas cruzadas no ponto de onde melhor se dominava o mar.

     Durante a curta caminhada da aldeia até ali Claire pouca atenção prestara ao cenário, tão concentrada se encontrava no fume que corria na sua mente, mas em sentido contrário, sobre a sua vida com Marc. O que viu nesta sala de projeção assustou-a. Pois, embora o ano anterior, especialmente os últimos meses, não tivesse sido satisfatório, apegara-se à idéia de que tudo poderia mudar, de que o período do noivado, dos primeiros meses do casamento, poderia ser reativado. Esta era a sua grande esperança.

     O presente estava descolorindo as imagens do passado. Recordou-se da noite de núpcias em Laguna. Depois da primeira união dos seus corpos nus na cama; Marc começara a chorar incontrolavelmente. Então, aquilo pareceu-lhe uma reação emocional tão bela e tão doce que o envolveu nos seus braços e o acariciou até ele dormir como uma criança. Mas agora a cena afigurava-se-lhe muito menos romântica, nem sequer já romântica, mas desagradável, doentia.

     No instante em que chegou a seu destino e se juntou à multidão o filme deixou de correr. Somente uma coisa lhe enchia no momento os olhos e a mente: as atividades, a animação de todos, que atenuavam sua tristeza. Saudou Harriet Bleaska e Rachel DeJong e fez um aceno a Lisa e a Orville Pence.

     Quando Sam Karpowicz, com uma máquina de filmar na mão, se aproximou, Claire saudou-o também. Ele viu-a, mas fingiu não a notar, ignorou-a rudemente; ele tinha as feições singularmente contorcidas, como se por paralisia facial. Não parecia o botânico gentil, o fotógrafo amador cortês que conhecera durante todas estas semanas. Surpreendida, procurou com o olhar Estelle e Mary Karpowicz, mas não as viu em parte alguma.

     Em dado momento, Maud chegou junto dela vinda do. local onde se encontrava Paoti.

     - Que estará roendo Sam Karpowicz? - perguntou Claire.

     - Que quer dizer com isso?

     - Ao cruzar por mim, há momentos, nem sequer respondeu à minha saudação. Deve passar-se. alguma coisa.

     - Ora, ora - retorquiu Maud. - Sam anda sempre de bom humor. Está ocupado, eis tudo. Vai filmar toda a prova de natação e está sempre metido consigo mesmo quando tem trabalho a fazer.

     Claire rejeitou esta explicação, pois compreendia que provinha do único ponto fraco de Maud, a sua incapacidade em avaliar a sensibilidade das pessoas.

     Então, como para confirmar suas suspeitas, observou Sam mais detidamente e viu que tinha razão. Estava acabrunhado, sim, bastante acabrunhado, de mau humor, mesmo. Perguntou-se por quê. Era uma prerrogativa democrática, direito inalienável de cada ser humano sob Deus, Pátria e Freud, estar de mau humor. Não estaria ela também de mau humor? Estava, sim, porém com a diferença de que tentava observar as regras da civilidade.

     - Venha cá, Claire - disse de súbito Maud. - A vista não é soberba?

     Maud achava-se na beira da elevação. Claire aproximou-se e olhou. O panorama infundia respeito e temor, apesar da brandura do sol e da quietude do tapete de veludo verde do mar. Seus olhos deambulavam pela extensão infinita do oceano embaixo. Achava-se de pé no meio da elevação, que tinha a forma de uma ferradura. O oceano formava aí uma espécie de lagoa, onde se realizaria a prova.

     Claire voltou-se para o penhasco quase perpendicular num extremo daquela espécie de lagoa. Do seu topo viu os que participavam da prova. Estavam talvez a uns noventa metros de distância, e entre eles distinguiu, se bem que imprecisamente, o marido. Foi fácil, aliás, pois só ele tinha uma epiderme rosada, pêlos pelo corpo, e trazia calções azuis, em contraste com as duas dezenas de homens das Sereias, de epiderme parda bronzeada pelo sol, corpo sem pêlos e de saco púbico apenas. Ao ver assim o marido, numa prova atlética, não pensou num observador participante mas em alguém que estava na segunda infância. Sentiu-se invadir de novo pela cólera, e esta fez-lhe doer o coração. A consciência da dor diminuía a beleza da cena. Afastou-se.

     Maud, viu, encontrava-se na companhia de Harriet Bleaska e Rachel DeJong, e de um jovem nativo um pouco baixo com um rosto grave e um curioso perfil latino. Reconheceu nele Vaiuri, o médico prático da clínica e colaborador de Harriet.

     Aproximou-se do grupo. Vaiuri dirigia-se a Harriet. Mesmo na sua tanga, parecia ter as maneiras solenes de todos os médicos do mundo. Dizia:

     - ... e devido ao fato de trabalharmos juntos, Srta. Bleaska, fui encarregado de lhe comunicar o resultado da nossa votação. Tenho a honra de a informar que foi designada rainha do festival.

     Ele esperou, como um orador público experiente que faz uma pausa para ouvir os habituais aplausos, e não foi decepcionado. Harriet bateu as palmas das mãos, que levou em seguida à boca, aberta. O olho pareciam sair-lhe das órbitas.

     - Oh! - exclamou ela. - Eu? Eu vou ser rainha?...

     - Sim, sim - volveu Vaiuri -, de acordo com a votação feita esta manhã entre todos os homens da nossa aldeia. É uma das grandes honras que concedemos durante a semana do festival.

     Harriet olhou com espanto para as outras.

     - Sinto-me esmagada. É lá possível... imaginam-me rainha...

     - É maravilhoso - declarou Maud.

     - Parabéns - disse Rachel. Harriet voltou-se de novo para Vaiuri.

     - Mas por que... por que eu?

     - Era inevitável - retorquiu com ar sério o médico prático. - Esta honra é concedida anualmente à mais bela mulher da aldeia...

     - Está embaraçando-me - interrompeu Harriet, rindo nervosamente. - Ora, ora, Vaiuri, não sou eu... Conheço minhas qualidades e meus defeitos. Há por aqui pelo menos cem mulheres mais belas do que eu. Claire, a sobrinha do chefe...

     Claire viu que Vaiuri se inclinara respeitosamente diante dela, continuando, porém, a dirigir-se a Harriet, com seu ar solene.

     - Isto não significa desrespeito pelas muitas outras, que também mereciam a honra. Repito: os homens da aldeia consideraram-na a mais bela de todas.

     Claire tentou ver Harriet como estes homens a viam. Se tivesse ouvido dizer uma coisa destas quando conhecera Harriet concluiria que zombavam dela. A absoluta fealdade de Harriet fizera com que não lhe tivesse prestado a atenção devida. Desde então, porém, a afetuosidade e a alegria da enfermeira douravam de tal maneira suas feições que estas eram agora aceitáveis. Neste momento de emoção, Claire viu que a alegria manifestada por Harriet quase a fazia parecer fisicamente bela.

     - Quase que perdi a fala - disse ela. - Que devo eu fazer, como rainha, claro?

     - Presidirá à abertura e ao encerramento do programa de dança desta noite - volveu Vaiuri. - Ensinar-lhe-ei as palavras que terá de proferir. Haverá outras cerimônias similares durante a semana.

     Harriet voltou-se para Maud.

     - É uma grande honra, não é verdade? Rainha... - Uma sombra perpassou-lhe pelos olhos. - Vaiuri, que usará a rainha, um manto, jóias?...

     Vaiuri pareceu subitamente inquieto. Aclarou a garganta.

     - Não, não usará nenhum manto. Sentar-se-á num

     banco, numa plataforma, acima dos outros. Sim. Harriet inclinou-se sobre ele.

     - Não respondeu à minha pergunta. Que veste a rainha do seu festival?

     - Bem... noutros tempos, de acordo com a tradição...

     - Não me refiro aos outros tempos. No ano passado que vestia ela?

     - Nada - respondeu.

     - Nada?! Nada mesmo?

     - Como tentei explicar, é da tradição que, uma vez que a rainha é a eleita do coração dos homens, a sua beleza, e só ela, deve reinar. Em ocasiões especiais aparece nua, isto é, sem qualquer espécie de indumentária... Mas devo dizer que, este ano, em virtude de você ser estrangeira, foi decidido modificar esta tradição. Pode aparecer como quiser.

     Harriet já se dava ares de soberana ante seus súditos.

     - Que desejam vocês? Que agradaria mais aos homens da aldeia?

     O médico prático hesitou. Todas as atenções incidiam sobre ele. Passou a mão pelo queixo.

     - Suponho que os homens da aldeia gostariam que aparecesse com a indumentária habitual das nossas mulheres.

     - Quer dizer, o saiote de erva e nada mais?

     - Bem, eu disse...

     - É isso então?

     - Sim.

     Harriet sorriu para Claire, e depois para Maud e para Rachel.

     - Não tenho muito que mostrar, mas uma vez só... - Piscou o olho a Vaiuri. - Diga ao rapazes que a rainha agradece a honra concedida e que aparecerá de saiote, como é desejo deles. Que panorama... Vaiuri, estou emocionada, bastante emocionada.

     Vaiuri, aliviado e mais calmo, voltou-se para Rachel DeJong, que se encontrava a seu lado.

     Dr.a DeJong, foi-me confiado um presente destinado à senhora.

     Rachel manifestou sua surpresa.

     - Um presente? Que gentileza.

     Vaiuri meteu a mão no interior da tanga e tirou um objeto dourado, que entregou a Rachel. Esta examinou, espantada, o objeto. Era uma concha muito polida suspensa de um fio.

     - Um colar - disse ela, como se para si mesma.

     - O colar do festival - explicou Vaiuri.

     Rachel estava verdadeiramente perplexa. Maud, com um gesto rápido, tocou a concha luzidia e perguntou ao prático:

     - É esta a famosa concha com que se solicita um encontro? - Vaiuri inclinou a cabeça num gesto de assentimento e Maud pareceu encantada. - Rachel - tornou ela -, coube-lhe também uma grande honra, Não se recorda? Para a semana do festival, os homens preparam estas conchas e oferecem-nas às mulheres que durante todo o ano merecem suas atenções. À semelhança das pulseiras de vidro dos mabuiangs, isto constitui um testemunho de admiração, um convite... suponho que para um encontro secreto e íntimo. Se puser este colar no pescoço, manifestará seu consentimento. Depois seguir-se-á o encontro, e... Bem, você já sabe a que me refiro. Acertei, Vaiuri?

     - Absolutamente, Dr.a Hayden.

     Rachel fixou, de testa franzida, a concha bulbosa.

     - Ainda não estou certa de que compreenda - disse. - Quem é que a enviou?

     - Moreturi - volveu o médico prático. - Agora, se me permitem...

     Claire reparou que a psicanalista empalidecera ao ouvir mencionar o nome do jovem nativo. Rachel ergueu os olhos e, ao notar que Claire a fitava, sacudiu a cabeça, com os lábios apertados.

     - Ele é intratável - afirmou, com certa indignação. - Outro ato de hostilidade. Está decidido a ferir-me, a embaraçar-me.

     - Ora, Rachel, não pense nisso - disse Harriet, exuberante. - Eles amam-nos. Que mais pode uma mulher pedir?

     Antes que Rachel DeJong tivesse tempo de responder, Tom Courtney juntou-se ao grupo.

     - Como estão todos... Olá Claire... É melhor tomarem seus lugares. A prova começará dentro de momentos.

     Obediente, o grupo dispersou-se, partindo todos em diferentes direções. Claire foi a única que ficou onde estava. Preparando-se para partir também, Courtney voltou-se para ela, como se a esperasse.

     - Importa-se que assistamos juntos à prova? - perguntou ele.

     - Não estou certa se a desejo assistir, mas... Bem, sim, obrigada.

     Dirigiram-se para a direita, para a beira da elevação. Passaram por Rasmussen, que estava inclinado sobre uma jovem, murmurando-lhe qualquer coisa. Encontraram um local deserto, afastado daquele onde se encontravam os restantes elementos do grupo e os aldeões.

     Antes de se sentar, Claire mirou de relance os espectadores.

     - Tom - disse ela -, por que tudo isto?

     - Que quer dizer?

     - O festival. A semana toda. Ouvi diversas vezes os comentários de Marc sobre ele. Contudo, não estou ainda certa...

     - Leu O Ramo Dourado, de Frazer?

     - Sim, na universidade. Uma vez por outra datilografo trechos do livro para Maud.

     - Talvez se lembre deste - volveu, durante um momento, os olhos para o céu e recitou de memória: - “Vimos que muitos povos costumam observar um período anual de licenciosidade; as habituais restrições da lei e da moralidade são postas de lado, a população entrega-se à alegria e aos prazeres mais extravagantes, as paixões mais obscuras encontram um escape que não seria permitido no decurso da vida comum, sóbria e moderna. De todos os períodos de licenciosidade, o mais conhecido dos povos do Ocidente é a Saturnal. “ - Fez uma pausa. - Ora aqui tem, Claire.

     - Sim, sim, recordo-me - disse ela. - Lembro-me de me ter perguntado, na primeira vez que o li, por que não tínhamos uma coisa parecida na nossa pátria. Um dia, referi-me a ele numa festa, e suponho ter cometido então uma heresia social. - Depois, acrescentou: - Aos olhos de Marc, bem entendido. Ele acredita que o 4 de Julho, o Dia de Natal, o Dia da Raça, satisfazem todas as nossas necessidades. - Sorriu, mas não foi capaz de dissimular a ironia que transparecera nas suas palavras. Volvido um momento, olhou para a distância e viu que os corpos pardos e o único corpo branco começavam a alinhar-se na borda do penhasco. - A prova dá início a tudo, conforme dizem. Como começa ela?

     Courtney seguiu o olhar da companheira.

     - O que dá o sinal da partida soprará num apito de bambu. Imediatamente, todos se lançam à água.

     - O mergulho é medonho.

     - Dezoito metros. Eles nadam em estilo livre, sem regras, através da lagoa. Cerca de mil e quinhentos metros, penso. No ano passado, a travessia foi feita em vinte e três minutos. Quando chegam ao declive do lado oposto, ali percorrem de rastos os quinze metros que faltam para chegar ao topo. O primeiro homem a atingi-lo é o vencedor, o rei da colina.

     - Que ganha o vencedor?

     - Considerável prestígio ante as jovens. A prova constitui um símbolo importante de virilidade e é muito apropriada como ato de abertura do festival.

     - Compreendo - retorquiu ela. - Agora, começa tudo a fazer sentido.

     - Que quer dizer com isso?

     - Oh, ele sabe nadar; é a única coisa, aliás, em que se distingue. Refiro-me a meu marido... - Em seguida, disse: - Sentemo-nos.

     Sentaram-se sobre a grama; Courtney, com suas longas pernas dobradas diante dele, e Claire com os braços em volta dos joelhos nus.

     Ela fitou o perfil bronzeado de Courtney enquanto este concentrava sua atenção nos nadadores, que se preparavam para a prova.

     - Tom - disse Claire -, depois disto, que se passa esta noite, e durante todas as outras noites? Tenho na mente o trecho de Frazer. Ele evoca uma semana de desregramento.

     - Oh, nada disso. Não se trata de uma Saturnália, estilo romano. Há apenas mais liberdade, mais folgança, sem recriminações. É a semana do ano em que este povo abre a válvula de escape e deixa sair o vapor, vapor sancionado e legalizado. Todos recebem rações duplas do armazém comunitário, incluindo aves, carne de porco e os intoxicantes que desejarem. Há danças, concursos de beleza, jogos polinésios de toda a espécie, e oferece-se a concha do festival...

     Claire pensou na cólera de Rachel DeJong - verdadeira ou fingida? Provavelmente verdadeira... Ora, receber-se uma concha de Moreturi. Usá-la-ia ela? Observação participante, conforme Maud Hayden.

     - Por que isto da concha? - perguntou a Courtney. - Podem ter o que desejam durante todo o ano na Cabana de Auxílio Social.

     - Nem tudo - volveu Courtney. - Um nativo pode utilizar a Cabana de Auxílio Social se tiver motivo para isso. Se interrogado, é obrigado a provar que necessita dela. Durante a semana do festival, ninguém tem nada que provar ou explicar. Se uma mulher casada deseja um homem casado ou mesmo um homem solteiro, precisa apenas de lhe enviar a concha polida para combinar um encontro. Pode enviar todas as que quiser. E o mesmo princípio é válido no que se refere ao homem.

     - Parece-me um costume muito perigoso.

     - Não é, Claire, se tivermos em atenção os fundamentos desta cultura. É tudo folgança bem discreta. Se eu fosse casado e durante todo o ano tivesse certas inclinações por você, mandar-lhe-ia uma concha, hoje ou amanhã, digamos. Se você pusesse o colar que eu tinha feito, conversaríamos, combinaríamos um encontro fora da aldeia. Isto não significa que automaticamente você dormiria comigo. Significa: encontremo-nos e conversemos, bebamos e dancemos, e depois ver-se-á.

     - Que é que aconteceria depois?

     - A minha esposa fictícia não se zangaria comigo e eu não teria nada contra ela. A vida retomaria seu curso normal. Por vezes, mas não com freqüência, depois desta semana verificam-se reajustamentos. Novos romances de amor surgem, e depois a Hierarquia intervém como medianeira.

     - E nove meses mais tarde que é que acontece? - perguntou Claire. - Que sucede se nascer uma criança devido a estes romances extraconjugais?

     - Raramente se verifica isso. Toma-se muito cuidado. As soluções deles são positivas. Se nasce uma criança, a mãe tem a seguinte opção: ficar com ela ou entregá-la à Hierarquia, que por sua vez a entrega a um casal estéril.

     - Pensam em tudo - redargüiu Claire. - Muito bem, concordo.

     - Mas este costume não daria certo na nossa pátria - tornou Courtney. - Tenho pensado muitas vezes nisto. O povo das Sereias foi orientado neste sentido durante algumas gerações. Estão todos preparados pela educação e pelo nascimento. Na nossa pátria é bastante insatisfatória a maneira como crescemos emocionalmente, como nos casamos. Além do mais, as possibilidades de escolha são limitadas. É impossível conhecermos todas as pessoas que, julgamos, poderíamos amar. Recordo-me de que uma vez, em Chicago, vi passar na rua uma jovem morena e esbelta, tão encantadora que durante dez segundos me senti apaixonado por ela. E pensei: se ao menos pudesse falar com ela, acompanhá-la, verificar se existe possibilidade de pleno entendimento entre nós... Porém, em breve a jovem desaparecia no meio da multidão e eu segui o meu caminho e nunca mais a encontrei. Não era possível enviar-lhe um colar com uma concha, compreende. Assim, tive de me confiar a grupos limitados, criados artificialmente, fazendo aí a minha escolha... Após o casamento...

     Porém, os antropólogos sabem disto... não dispomos de liberdade extraconjugal; ambos os sexos seguem pela mesma via até à velhice, ignorando o cenário, a vida em redor. A Igreja e o Estado regulam a nossa felicidade. É uma coisa destituída de realismo. Se se segue a via única, ou se não se segue, se se procuram outros caminhos, a frustração, o desprazer, são os mesmos. Sei do que falo. Como advogado ocupei-me de muitos divórcios.

     - Sim - disse Claire. - Suponho que alguns de nós sentiram isso, influenciados pelo que o festival sugere. Só não fomos capazes de articular nossos sentimentos, ou talvez não o tivéssemos desejado. Harriet Bleaska disse-me quando da nossa chegada que Lisa Hackfeld afirmara estar consciente destas mesmas limitações, das restrições, dos constrangimentos existentes tanto para os solteiros como para os casados.

     - Isso não me surpreende. Os anos que vivi em Chicago parecem-me incríveis agora, após esta longa permanência nas Sereias.

     Um silvo penetrante interrompeu a conversa entre Claire e Courtney. Seguiu-se um coro de brados vibrantes, vindos da esquerda. Ambos voltaram imediatamente a cabeça e viram a fila de nadadores mergulhar na água. Todos os corpos pareciam pardos, mas Claire não tardou em reconhecer o de Marc, branco e cabeludo, os braços lançados para a frente como setas, o corpo rígido como uma tábua.

     Marc encontrava-se entre a primeira meia dúzia a entrar na água. Na verdade, mal a tocou; como uma faca, rasgou-a, e dentro em pouco tinha alguns metros de avanço sobre o competidor mais próximo. Empregando o crawl australiano, seus braços começaram a revolver, a puxar a água, a cabeça como se sobre o travesseiro do mar calmo, as pernas abrindo-se e fechando-se como tesouras, deixando um rasto de espuma à medida que avançava. Atrás dele, Moreturi e Huatoro nadavam vigorosamente, mas de maneira primitiva. Os minutos passaram e o avanço de Marc tornou-se mais pronunciado.

     Em dado momento, Courtney consultou o relógio e voltou-se para Claire, que observava a prova sem denunciar qualquer vestígio de emoção.

     - Quinze minutos e já fizeram quase oitocentos metros - disse ele. - É um tempo muito bom. Afinal, o seu homem sabe nadar.

     O seu homem, pensou ela pela primeira vez, deixando que as palavras lhe ecoassem no cérebro.

     - Veja o avanço que ele leva em relação aos outros dois - tornou Courtney.

     Era verdade. Havia um mar aberto entre Marc e os dois nativos, talvez uns bons vinte metros. Ela fixou os olhos no homem branco, no grande amante branco, no homem superior de uma raça superior, exibindo simbolicamente a sua virilidade. De novo, as perguntas que se fazia constantemente; as maneiras masculinas e as proezas masculinas tornam um homem masculino? Marc é um homem? Como saberei que ele é um homem ou que eu sou uma mulher?

     - Deve sentir-se orgulhosa!

     Uma jovem emocionada falava-lhe, e Claire compreendeu que a bela Tehura viera sentar-se entre ela e Courtney. Os olhos da jovem nativa cintilavam.

     Claire inclinou a cabeça com indiferença e Courtney disse em tom de gracejo:

     - O seu amigo Huatoro não está habituado a olhar para os pés dos outros.

     - Não tenho favorito - retorquiu Tehura com afetação. - Huatoro é meu amigo. Moreturi é meu primo e Marc Hayden é meu... - Ela hesitou, e depois concluiu: -... é meu mentor. - Apontou para baixo. - Olhe, Tom, Huatoro está ultrapassando o pobre Moreturi!

     Claire fitou, pensativa, a jovem nativa. Considerara-a sempre apenas uma jovem atraente da aldeia, mas uma jovem especial, devido ao fato de ter estado a seu lado no rito da aceitação da primeira noite. Todavia, pela primeira vez, compreendeu que ela mantinha relações estreitas com Marc. Marc era o “mentor” dela. Ela era “informante” de Marc. Durante uma boa parte das duas semanas, Marc passara longas horas com a jovem nativa. Nesse período, ela tinha provavelmente passado mais tempo com Marc do que ele com a esposa. Que pensaria de Marc, desse homem estranho e taciturno da Califórnia? Considerá-lo-ia um homem? Estas perguntas não faziam sentido. Tehura não conhecia Marc. Conhecia um antropólogo que fazia perguntas e redigia notas. Conhecia um branco musculoso que nadava à frente dos seus companheiros da aldeia. Não conhecia o puritano que insultara o saiote de erva, o seu, que ela, Claire, pusera, como prova de amor, na noite anterior.

     Claire viu que Courtney e Tehura, como aliás todos os que se encontravam atrás deles, seguiam absortos a prova. Soltou um suspiro e inclinou-se para a frente. Marc era ainda o primeiro, mas o avanço parecia menor. Atrás dele, à esquerda, nadava Huatoro, à direita Moreturi, e pouco mais para trás os restantes competidores, dispersos. Ouviu a voz de Courtney anunciar a Tehura:

     - Aproximam-se cada vez mais dele. Nunca pensei que Huatoro tivesse tanta energia.

     - Elè é forte - retorquiu Tehura.

     A multidão gritava entusiasmada. Courtney e Tehura puseram-se de pé.

     - Veja... veja! - bradou Courtney. - Voltou-se um pouco. - Claire, deve ver o fim...

     Claire volveu os olhos para a lagoa. Marc acabara de tocar o sopé do declive rochoso e elevava-se do oceano, como uma foca... Um momento depois subira, quase de rastos, a rocha íngreme, escalvada, seguido por Huatoro e pouco depois por todos os outros. Era breve, Marc estava quase a meio da subida. Porém, as forças começavam já a faltar-lhe e as pausas a tornar-se cada vez mais demoradas.

     A cerca de cinco metros do topo, deteve-se uma vez mais, exausto, deformado pela fadiga. Huatoro alcançou-o então. Claire viu Marc sacudir a cabeça como um gladiador próximo do fim. No entanto, começou de novo a mover-se, desesperadamente tentando aproximar-se do outro, que tinha já um bom metro de avanço. Em vão, pois deteve-se mais uma vez, trêmulo, arquejante.

     Volvidos alguns momentos, Claire ouviu os aplausos, o clamor dos espectadores. Huatoro alcançara o cume do declive rochoso e a vitória, enquanto Marc, à beira do colapso, era ultrapassado por um competidor, por mais outro, por um terceiro ainda... Por fim, Marc começou uma vez mais a mover-se, e, num esforço desesperado, alçou-se para o cume. Huatoro, Moreturi e dois outros, aproximaram-se, para lhe falarem, mas ele evitou-os. Dirigiu-se só, para um dos lados do topo do declive, a fim de recobrar as forças e o orgulho.

     O clamor cessara. Claire desviou os olhos da cena, voltou as costas ao oceano, ao declive, somente para encontrar Courtney fitando-a.

     Não tentou espocar um sorriso, nem encolher os ombros como reação. Tehura aproximou-se dela e disse:

     - Marc não venceu, mas lutou bem, Sra. Hayden. - Com uma leve inclinação de cabeça, a jovem partiu em seguida.

     Perplexa, Claire observou a jovem nativa distanciar-se. Depois, voltou-se para Courtney e encolheu então os ombros.

     - Bem, obrigada pela companhia, Tom - disse ela. - Acho melhor regressar à cabana, a fim de pôr uma ligadura na virilidade ferida do meu herói... Todos nós necessitamos das nossas energias. O festival vai exigi-las.

    

     Alguns minutos depois das oito horas da noite as orlas da aldeia estavam obscurecidas, o que fazia realçar a grande esfera de luz que se via no centro do conjunto.

     A bola de luz resultava da fusão de três círculos formados pelas chamas de três tochas colocadas nos lados da grande plataforma construída de manhã cedo. As tochas elevavam-se do chão como velas num bolo de aniversário gigante.

     Courtney dissera aos membros do grupo de Maud Hayden que a plataforma oval tinha quase doze metros de comprimento e seis de largura; as tábuas que a compunham haviam sido utilizadas nos anos anteriores, de modo que a superfície, lisa, polida, parecia um tapete sob os pés nus dos inúmeros dançarmos.

     No momento, com exceção dos seis jovens músicos nativos - dois batiam em troncos ocos de árvores, que serviam de tambores, um tocava flauta, um batia, uma na outra, duas pequenas varas de bambu, dois batiam energicamente as palmas das mãos -, a plataforma estava vazia.

     Aos membros do grupo tinham sido oferecidos os lugares de honra, na primeira fila, distanciados cerca de cinco metros da frente da plataforma. Estavam todos sentados sobre a grama, com os aldeões instalados atrás deles, fila após fila, até se perderem na escuridão.

     Claire encontrava-se na extremidade da fila principal, as mãos juntas sobre o regaço. Ouviu Orville Pence, que se achava apoiado sobre os joelhos junto de Rachel DeJong e de Maud, esta a seu lado, dizer:

     -... E os músicos insistiram que mesmo os seus instrumentos são antigos símbolos sexuais; o tambor oco, ali, representa a fêmea, a flauta de madeira obviamente o macho. Tudo tem que ver com o tema do festival. Ora, se considerarmos...

     Claire fechou os ouvidos ao resto. Estava farta destas tolices freudianas. Haveria isto, haveria Boas, Kroeber, Benedict e, sempre, Maíinowski, e muito provavelmente Cora DuBois e a ilha de Alors, e, o que era inevitável, a psicodinâmica. Para Claire, todos estes nomes não passavam de Intrusos, de convidados indesejáveis, que analisavam, que explicavam, que separavam e tornavam a juntar, que descascavam a beleza primitiva, até restar apenas o núcleo informe, completamente desfigurado.

     Esta noite, Claire não desejava nada disto. A cena e o palco eram românticos, e preferia que seu conteúdo lhe penetrasse nos poros e não na cabeça. Queria escapar-se à conversa técnica do grupo, à sua presente situação, e estava decidida a empreender a fuga nem que fosse por breves instantes.

     Concentrou sua atenção no palco “e nas atividades em redor dele.

     Um carnaval infantil, pensou, um carnaval mágico para quando se é muito pequeno, quando os nossos olhos, a nossa mente, são muito pequenos também, e quando não vemos as falsidades, as imperfeições, a morte de todos os dias. Lembrou-se, pela primeira vez em muitos anos, da praia de Oak Street, em Chicago, da magnífica praia do lago, quando era pequena. Talvez tivesse cinco ou seis anos. Recordava-se da mão firme do pai cobrindo a sua mão quando desciam até ao lago, vindos do Michigan Boulevard. Recordava-se de que toda a gente parecia conhecê-lo. “Olá, Alex”... “Com que então passeando com sua namorada, Alex...”

     Recordou-se de muitos outros pormenores encantadores dos passeios com o pai através da areia quente, dos sons, das luzes, das filas de bazares com coisas maravilhosas, das esplanadas, dos carroceis...

     As recordações desvaneceram-se. Porém, acudiu-lhe ainda à memória o momento de uma noite bela, imortal, em que, dormitando contra o amplo peito do pai, quando este a levava no colo para o carro, sentiu uma emoção maravilhosa, dulcíssima a emoção produzida pela certeza de Ser Amada, que jamais tornaria a experimentar, nos anos descoloridos, lentos, vazios que se seguiram, uma emoção tão doce e radiosa.

     Tentou evocar o velho carnaval da infância uma vez mais, projetá-lo na doçura da noite das Sereias, mas não era possível, pois crescera e a realidade das coisas e das pessoas era outra.

     Estava só, sim, só. Maud não contava. Nem Rachel nem o desagradável Orville Pence. Estava casada há dois anos e um dia, era metade de dois que (pela matemática matrimonial) deviam ser um apenas, e contudo estava aqui sentada como uma solteirona, como metade de uma pessoa, só.

     Marc encontrava-se já no quarto de trás da cabana quando ela voltara da prova de natação. Os calções, ainda pingando água, estavam suspensos de um cabide na parede. Ele repousava, apenas de calças, sem sapatos, sem camisa, sobre o saco de dormir. A sua excursão pela juvenilidade esgotara-o completamente.

     Abandonara o quarto para se ir ocupar do jantar. Para celebrar o festival, havia uma ração extra de víveres e bebidas nativos: lagosta, bananas vermelhas, pepinos, ovos de tartaruga, inhames, taro, leite de coco e licor de palmeira. Claire levou tudo para o fogão de terra e começou a cozinhar. Algum tempo depois, ouviu Marc mexer-se pela cabana e disse em voz alta que o jantar estava na mesa.

     Esperava que ele aparecesse de cenho carregado. Isso teria ajudado, constituído pretexto para dizer alguns gracejos, e talvez acabassem os dois rindo. Porém, ele mostrara-se petulante. Viu que a observava detidamente enquanto o servia, como se estivesse em guarda contra alguma piada acerca da prova. Por isso, resolveu não fazer qualquer comentário.

     Em dado momento, Marc tentara justificar sua derrota, e escutara-o com condescendente silêncio. Que haveria a justificar? Era uma tolice fazê-lo. Findo o jantar, pretextara uma dor de cabeça para não assistir aos números da noite do festival. Demais, encontrando-se lá ela e Maud, a sua falta não seria grandemente notada.

     Claire mexeu-se e acomodou-se melhor no seu lugar na primeira fila. Ficou agradavelmente surpreendida. ao ver Tom Courtney à sua direita, apoiado sobre um dos joelhos.

     - Olá, Tom - disse ela. - Já está aqui há muito tempo?

     - Há alguns minutos. E você?

     - Mentalmente, acabo de chegar - volveu ela.

     - Eu sei. Eis por que não quis perturbá-la. Importa-se que me sente junto de você ou já passou tempo mais que suficiente comigo hoje?

     - Não desperdice essas amenidades comigo, Tom. Sabe que me agrada sempre sua presença. - Apontou para a plataforma. - Quando é que começam as danças?

     - Logo que a enfermeira Harriet, rainha do festival, apareça para presidir à cerimônia de abertura.

     - A enfermeira Harriet não se deve sentir embaraçada, suponho. E quanto a mim, não posso esperar mais.

     - Oh, ela mostra-se bastante descontraída. Vi-a ainda há pouco nos bastidores. Os homens das Sereias estão grudados nela.

     Claire sorriu bruscamente e disse:

     - Acabo de me recordar de uma coisa... Do que se passou após o meu strip-tease, na nossa primeira noite nas Sereias... Tehura e eu, no jantar do chefe Paoti...

     - Como já lhe disse, o rito da amizade é uma cerimônia absolutamente natural, como esta o será - retorquiu Courtney.

     Quis responder: “Diga isso a Marc”, mas engoliu as palavras e fingiu concentrar sua atenção na plataforma.

     A música cessara, sem deixar, porém, o palco mergulhado no silêncio. Ouviram-se vozes cantando na noite quente. Dois jovens nativos, transportando um banco que mais parecia uma mesa de café alta e quadrada, subiram à plataforma. Com grande cuidado, colocaram o banco no centro do palco. Depois, acocorados, receberam, com os braços estendidos, uma tigela gigante - cheia até ao rebordo, ae um líquido qualquer - que colocaram no meio do banco.

     Em seguida, depois de os dois jovens descerem, dois outros nativos, mais idosos, mas belos, subiram por sua vez à plataforma. Claire reconheceu um deles, o nadador que batera Marc. Pouco depois viu que eles ajudavam a subir uma jovem, e esta era Harriet Bleaska, rainha do festival.

     Aparentemente, Harriet fora ensaiada, pois movia-se com absoluta segurança. Quando ela avançou para o banco e se sentou, Claire viu-a então distintamente.

     “Meus Deus”, murmurou.

     Os cabelos longos e cor de canela de Harriet estavam enfeitados com uma grinalda de flores em botão. Das ancas, três ou quatro centímetros abaixo do umbigo, pendia um saiote verde de erva que não teria muito mais de três dezenas de centímetros de altura. O que reteve mais a atenção de Claire foi a brancura do corpo de Harriet, tão contrastante aqui, e o espaço oval entre as suas coxas. Nada no corpo dela estremeceu quando se dirigiu em passos medidos para o banco, e isto devido à sua magreza e à escassa protuberância dos seus seios. Contudo, era tal a dignidade do seu porte, o deleite expresso pelos seus pequenos olhos cinzentos e pela boca ampla, que suas feições e seu físico pareciam mais uma vez transmutar-se em beleza diante dos olhos que a contemplavam.

     Claire escutava os sons produzidos pelos tambores e pela flauta e as exclamações de alegria e os aplausos que assinalavam a abertura do festival. O campeão de natação mergulhara uma concha de coco na tigela gigante e passara-a a Harriet. Ela aceitara-a como uma poção mágica, erguera-se e fizera um brinde aos membros do grupo e aos nativos que se encontravam por trás deles. Em seguida, bebera. Depois, movera-se para outro lado do banco quadrado, sentara-se, erguera-se uma vez mais e fizera novo brinde, agora aos aldeões que estavam desse lado, e tornara a beber, acompanhada pelos aplausos clamorosos de toda a população masculina adulta das Sereias.

     Quando Harriet voltou a seu lugar no banco, Clalre viu algumas mulheres de meia-idade da aldeia, aos pares, caminharem para baixo e para cima entre as filas de espectadores, uma passando canecas de barro, outra enchendo-as com sumo de palma que trazia numa terrina.

     Daí a momentos, já todos servidos, Harriet estava mais uma vez de pé, flanqueada pela sua escolta nativa, cercada pelos músicos, animados.

     Claire baixou os olhos e viu Courtney tocando a sua caneca de barro com a dele.

     “Com esta bebida”, pensou ela, “começa a Saturnal. “

     Obediente, imitou o gesto do companheiro e bebeu. O líquido desceu-lhe pela garganta, quente e doce, fazendo-lhe recordar a primeira noite na ilha, em que a kava e este mesmo sumo de palma a tinham inebriado. Ambos continuaram bebendo até as canecas estarem vazias, e a bebida produziu nela um efeito incrivelmente rápido. Como compreendeu, removia-lhe da cabeça, especialmente das têmporas, e dos braços e do peito, a ansiedade, a apreensão, as recordações torturantes do passado, fosse o passado de há uma hora, fosse o passado de há um ano. Restava apenas o presente, delicioso.

     Ao voltar-se, encontrou as duas nativas diante de si; uma tirou-lhe a caneca das mãos, outra encheu-a com o líquido contido na terrina. A caneca foi-lhe devolvida de novo, cheia, até ao rebordo, de um fluido extraordinário.

     Após sorver outro gole ergueu a cabeça e apontou para o palco. A princípio não conseguiu ver com clareza, mas apercebeu-se de que entre ela e a plataforma se encontrava Sam Karpowicz, acocorado, com a camisa branca colada às costas, à transpiração, e os olhos fixos na Leica.

     Ela inclinou-se para a frente a fim de saber o que Sam estava fotografando. Isto precisamente: Harriet Bleaska, com a sua grinalda, o seu saiote de erva pendente precariamente da cintura, agitando a sua concha de coco, entre os dançarinos e as dançarinas nativos que, alinhados, batiam as palmas das mãos uma na outra e os pés no estrado; entre estes, Lisa Hackfeld, de soutien e pareu vermelho, com os braços carnudos e as coxas volumosas em constante movimento.

     Uma súbita altercação fez com que Claire desviasse a atenção da plataforma. Sam Karpowicz, que estivera defronte dela, afastara-se um pouco para a esquerda, movendo-se como um caranguejo, para melhor fotografar a seminua Harriet Bleaska. Achava-se precisamente diante de Maud, de Rachel DeJong e Orville Pence, quando, inesperadamente, Orville se pusera de pé, inclinara-se para a frente e, com rudeza, pousara a mão sobre o ombro de Sam Karpowicz, desequüibrando-o.

     Sam erguera os olhos, o rosto extraordinariamente lívido.

     - Com os diabos! - exclamara ele. - Fez-me perder o melhor...

     - Desejo saber de quem é que está tirando fotografias - replicara Orville, com certa dureza na voz.

     - Por Deus, Pence, estou fotografando o festival, a dança...

     - Está fotografando os seios de Harriet Bleaska, segundo vejo. Isso é uma coisa altamente imprópria.

     - Quê?! - exclamara Sam com incredulidade.

     - Deve registrar as atividades dos nativos, mas não os vergonhosos excessos de um membro do nosso grupo. Que dirão as pessoas ao verem estas fotografias de uma moça americana exibindo-se quase nua, sem decência...

     - Ora que bobalhão! Escute, Pence, meta-se na sua vida e deixe a minha. Por favor, não me aborreça.

     Sam afastou-se, decidido a ignorar Pence, e focou uma vez mais Harriet Bleaska. Porém, Orville pousou de novo, com igual rudeza, a mão sobre o ombro de Sam, num esforço para censurar este obsceno ultraje.

     - Deixe-me! - bradou Sam, empurrando Orville Pence com a mão livre. O empurrão fez com que Orville se desequilibrasse e caísse ao solo, sobre o traseiro. Todavia, ele pôs-se imediatamente de pé e ter-se-ia lançado sobre o fotógrafo se Maud não se tivesse levantado para se interpor entre os dois.

     - Orville, por favor, todos os aldeões estão...

     - Não suportarei isto nem mais um minuto... este espetáculo revoltante. Surpreende-me que o sancione, Maud. Bem, é melhor calar-me. Muito boa noite a todos.

     Pence afastou-se; Maud, claramente perturbada, passou os olhos por todos e murmurou:

     - Há pessoas que nunca deviam beber.

     Em seguida, sentou-se ao lado de Rachel para continuar a observar a dança.

     A altercação manteve-se durante alguns segundos na mente de Claire. Estranho, estranho, pensou, o efeito que as Sereias estão exercendo em alguns de nós. A ilha tem um feitiço que age sobre as nossas piores qualidades. Orville, apático lá, inflamado aqui; Sam Karpowicz, amável lá, rude aqui; Marc, sério e reservado lá, colérico e cruel aqui. E eu, Claire, lá... Com os diabos, estou farta disto tudo e vou beber... aqui.

     Bebeu. EÍa e Courtney beberam. Todos beberam. Por vezes olhava para o estrado e via os dançarinos ondulando atrás das tochas. Em dado momento, Lisa Hackfeld dominara a plataforma, tão alegre e irrequieta como a enfermeira Harriet Bleaska, que desaparecera com sua escolta. Lisa de Omaha, não de Beverly Hills, Lisa da juventude redescoberta, exorcizando os demônios da respeitabilidade burguesa.

     Claire perdera a noção do tempo e não sabia quantas tigelas de sumo de palma bebera, mas ouvia vagamente a voz de Courtney, vinda de cima. Ele estava de pé, aliás como todos os outros à sua volta; só ela continuava sentada. Depois, Courtney debruçou-se sobre ela e colocou-a de pé, fácil e suavemente, como se levantasse uma pena.

     - Toda a gente está dançando - disse ele. - Quer dar-me o prazer...

     Seus olhos nublados anuíram, e poucos momentos depois dançava numa roda, uma das mãos na de Tom, a outra na de um nativo. Esta roda quebrou-se e formaram-se novas rodas menores. Em dado momento, viu-se com as mãos livres e tirou as sandálias, que lançou para o ar, desapertou o cabelo e permitiu que os quadris, coxas, todo o seu corpo vibrasse.

     Sentia as pernas moles como geléia, e, embora Courtney a amparasse, vacilava constantemente. Em dado momento, como Tom a puxasse um pouco mais para si, encostou a cabeça no peito dele, arquejante e exausta... e sentiu a mesma emoção daquela outra vez quando voltava do lago, em Chicago, nos braços de Alex, dormitando, feliz... Todavia, agora era diferente, pois ouvia as palpitações do coração de Courtney e escutava as batidas do seu, consciente de que estas não se deviam ao esforço produzido pela dança... Sim, era diferente, pois o peito de Alex significava Ser Amada, segurança, e o peito deste homem estranho significa... outra coisa, uma coisa desconhecida, e o que era desconhecido era perigoso.

     Conseguiu desprender-se dos braços dele, e, sem o fitar, disse:

     - Sinto-me vencida, como o meu marido... - Depois, acrescentou: - Obrigada por estes momentos deliciosos, Tom. Por favor, leve-me para casa.

     

     Somente quando se encontravam na estreita canoa e ele puxava ritmicamente a água clara com o remo - a canoa deslizava através do silencioso canal, bastante afastada da ilha prateada e muito perto do atol de coral - o espírito de Rachel DeJong começou a desanuviar-se. Pensou se devia dizer a Moreturi que parasse e a conduzisse para junto dos seus amigos civilizados.

     Quisera verbalizar sua decisão, pois desejava voltar; porém, ao ver o rosto sorridente do jovem nativo na semi-obscuridade e o volume dos seus bíceps, à medida que ele movia o remo nas águas do canal, compreendeu que não podia exprimir o que sentia. Por instinto, apercebeu-se que sua voz seria a voz do medo. Recordou: não se deve mostrar medo diante de um animal. O medo fará com que a besta tome ascendência sobre você. Era ainda Rachel DeJong, médica, psicanalista, treinada para a superioridade, senhora do destino humano, do seu, do dele, e preparada para dominar qualquer situação. E assim manteve o silêncio, em colaboração com o silêncio da noite.

     Uma vez mais, compreendeu que estava sentada no fundo oco de uma canoa, as pernas estendidas para a frente. Nunca em toda a sua vida estivera dentro de uma canoa. Perguntou-se por que isso jamais acontecera. Talvez porque as canoas são frágeis. Que é que as mantém na superfície? Que é que mantém um avião no alto?... Sempre imaginou que as canoas se voltavam e que se iam para uma sepultura submarina como aquela pobre jovem do romance de Dreiser... Sim, Roberta Alden... Roberta desaparecera num bote, não é verdade? Clyde atingira-a com sua máquina fotográfica. Bem, estava numa canoa, e, como podia ver, Moreturi parecia ter nascido numa coisa frágil como esta. As canoas nunca viravam, ao contrário do que imaginara.

     Assim, embalada pelo suave movimento da canoa deslizando na água, deixou fluir os pensamentos.

     Só embriagada, pensou, se deixara arrastar desta maneira. Rachel DeJong não costumava beber. Uma vez por outra, numa festa, tomava um licor adocicado e era tudo. Não costumava beber porque sabia como os ébrios se comportavam, e uma pessoa jamais devia perder a linha, deixar de ser ela própria. O Criador dera um ser a cada pessoa, e o álcool separava % pessoa desse ser. Não seriam, todavia, concedidos dois seres a cada pessoa, um ser público e outro que saía do seu covil movido pelo álcool? Decerto que isto era verdade e ela sabia-o, como psicanalista. Evitava o álcool porque só podia enfrentar um ser. Este ser era, por assim dizer, um navio sólido. O álcool, por outro lado, era a água em chamas que incendiava o navio. Bem, depois não se teria navio algum, a não ser aquele que o álcool trouxera à superfície, e a nova tripulação não era de confiança.

     Deus, que tolas, incoerentes fantasias! Tomara algumas daquelas canecas de sumo de palma apenas porque este tinha um sabor adocicado, e parecia inofensivo como o licor que costumava beber nas festas de aniversário da prima. O álcool fazia paralisar os sentidos, incendiava o navio e tinha de se tomar qualquer embarcação estranha, uma canoa por exemplo. E isto fez com que voltasse de novo a Moreturi.

     Quando a dança terminara no palco, pensara que a noite terminara também. Quisera partir com Maud, mas Maud acompanhara Paoti e a mulher deste. Depois procurara Claire, mas Claire rodopiava com Courtney e com um bando de nativos. Com relutância, decidira dirigir-se para a cabana... com relutância porque era grande a animação em redor; sentia-se bem, desejava estar na companhia de alguém, não necessariamente na de Joe Morgen, embora isso fosse ótimo, mas preferia alguém que não fosse solene.

     Como se uma estranha no meio de foliões, pusera-se a caminho, não sem notar antes que Claire estava completamente embriagada, aliás como quase toda a gente. Porém, não os criticava, pois ela própria também se sentia caminhando sobre um trampolim. Encontrava-se já a algumas dezenas de metros de distância da plataforma, no meio da escuridão, quando se apercebeu de que alguém se aproximava dela. Abrandou o passo, voltou-se e ficou satisfeita e ao mesmo tempo preocupada por ver Moreturi.

     - Procurei-a por todo o lado - dissera ele, desta vez sem gracejar.

     - Estive na fila da frente - retorquiu ela.

     - Eu sei. Quero dizer, depois... Fui até lá, mas já tinha partido.

     Ela tivera esperança de o encontrar, por acaso, mas receara também vê-lo e recusara-se a analisar a razão deste receio. Com exceção do que contara de manhã cedo a Maud, decidira esquecer tudo o que se passara na noite anterior, com os voyeurs da Hierarquia. Detestara a nudez do jovem nativo. Este era o homem que mais exibia o corpo em todo o conjunto, e a sua proximidade desconcertava-a. Embora quisesse sufocar a lembrança do que vira, o corpo sólido, nu, quando ele se dirigira para o quarto de dormir da mulher, não o conseguira. O grito desferido por Atetou ecoava ainda nos seus tímpanos e picava-lhe o coração. Bruscamente, nada mais desejara do que fugir.

     - Sinto-me cansada - dissera. - Ia para minha cabana, dormir.

     Ele fitara-a, incrédulo.

     - Não me parece que esteja cansada.

     - Bem, mas estou.

     Moreturi mirava-lhe a garganta, e, inconscientemente, ela levara a mão aí.

     - Enviei-lhe o colar do festival. Vejo que não o pôs.

     - Claro que não - volvera indignada, recordando-se de que o tinha no bolso da saia.

     - Fala como se a tivesse insultado - tornara ele, um tanto perturbado. - Um presente destes é uma homenagem aqui.

     - Quantos enviou? - perguntou com voz sibilina.

     - Um.

     A simplicidade com que ele disse um envergonhara-a. Forçara-se a falar-lhe com uma cólera que não sentia apenas porque o receava.

     - Talvez me devesse então mostrar grata. Porém, duvido que sua mulher se sinta contente com a sua generosa distribuição de colares.

     Os olhos do jovem nativo denotavam perplexidade.

     - Todas as esposas sabem disto. Elas também enviam colares. É um costume, antigo e aceito, e encontramo-nos na semana do festival.

     Rachel compreendera então que tinha errado e tentara mostrar-se mais branda para com ele.

     - Suponho que me esqueço com freqüência desse costume.

     - Além disso - dissera ele -, tenho sido paciente, como Atetou também, e sabe muito bem o que se passa entre nós.

     Pensara: Sim, com os diabos, sei o que se passa entre vocês, e vi também alguma coisa por entre as folhas, na noite passada.

     Porém, dissera:

     - Isso não tem nada a ver com este colar. É hábito de vocês oferecerem tais coisas, mas não é nosso hábito aceitá-las.

     - Meu pai diz que estão aqui para se inteirarem dos nossos costumes e para viverem como nós vivemos.

     - Decerto, Moreturi, mas tudo tem limites. Sou analista, como sabe, e você é meu analisando. Portanto, não podemos ter encontros clandestinos...

     Ele parecera ter compreendido este fato, pois interrompeu-a para perguntar:

     - Se pudesse, punha o colar?

     Sentira picadelas nos braços, no pescoço, e amaldiçoara aquele maldito sumo de palma. Possuía a resposta perfeita, e esta poderia fazer terminar uma conversa intolerável. Podia dizer que estava apaixonada por outro, por um homem da sua raça. Podia falar de Joseph E. Morgen. Isso ergueria uma parede de vidro entre eles. Quisera evocar Joe e liquidar Moreturi, mas não o conseguira. A noite estava fresca e deliciosa e não desejava estar só.

     - Real... Realmente não sei se... noutras circunstâncias diferentes... o poria ao pescoço. Talvez, se as nossas relações fossem diferentes, se o conhecesse melhor...

     Os olhos dele tinham começado de súbito a cintilar.

     - Sim! - exclamara. - Temos de nos tornar amigos. Acompanho-a à sua cabana, a fim de conversarmos.

     - Não, não pode ser...

     - Então, sentemo-nos algures na relva...

     - Teria prazer nisso, Moreturi, mas é tarde.

     Ele tinha as mãos apoiadas nos quadris. Pela primeira vez, esta noite, sorria; e o sorriso era desconcertante. Gracejava, como das outras vezes.

     - Tem medo de mim, moça-doutora?

     Ficara furiosa, mas respondera com voz trêmula.

     - Não seja ridículo. Não tente iludir-me.

     - Tem medo - repetiu ele. - Conheço a verdade. Esta manhã conversou com a sua Dr.a Hayden, que falou com minha mãe, que por sua vez me contou tudo. Decidiu terminar a minha análise, afastar-me da sua cabana.

     - Sim, cheguei à conclusão de que devíamos terminar a análise. Como compreendi que não o estava ajudando em nada, que perdíamos apenas tempo, resolvi devolver o caso à Hierarquia.

     - Mas eu nunca perdi meu tempo. Sempre compareci, com bastante satisfação, a nossos encontros.

     - Somente para poder me ridicularizar.

     - Não, isso não é verdade. Aprendi muitas coisas durante eles.

     Ela hesitara.

     - Bem, tomei uma decisão. Terá de se desembaraçar dos seus problemas sem a minha ajuda.

     - Como não a poderei ver mais, tenho novas razões para querer estar com você esta noite.

     - De outra vez...

     - Esta é a grande noite do festival. Só desejo ver a você. Quero explicar-me.

     - Por favor, Moreturi, sinto-me fatigada... Uma vez mais, ele sorrira.

     - Talvez seja bom para você. Talvez se torne mais mulher. Está acostumada a mandar nos homens, a dar-lhes conselhos, a dizer-lhes isto e aquilo, a manter-se bem acima deles... Tem medo de se encontrar com um homem que não possa tratar como doente. Sou normal. Para mim, não é uma médica, mas uma fêmea, como Atetou. Porém, vale mais do que ela, muito mais. Eis o que lhe causa medo.

     Fora, recordou-se, aquele pequeno discurso que decidira tudo. Moreturi contemplara durante uns momentos o fosso dos seus medos, e não quisera que ele conhecesse tanto, que a dominasse. Sentira-se incapaz de se dirigir para a sua cabana, pois não poderia dormir com o grito medonho que Atetou soltara na noite anterior. O sumo de palma fermentava dentro dela, embebia a sua última migalha de superioridade. Decidira enfrentá-lo, desafiá-lo, mostrar-lhe que não tinha medo, que uma psicanalista jamais tem medo.

     Não discutira mais com ele. Continuaram a conversar . até surgirem as palavras que tornavam possível a sua condescendência, sem perda de prestígio e sem rendição. Quisera fazer-lhe ver que ia sem receio com ele aonde as outras não iam.

     Tinham subido a colina e deixado para trás o penhasco de onde se tinham lançado os nadadores na prova dessa tarde; ela apertara com firmeza a mão de Moreturi quando este a guiou através de um caminho íngreme que conduzia a uma baía rochosa que ainda não vira.

     Em dado momento perguntara:

     - Aonde é que me leva? Como disse, não posso ficar aqui fora até tarde.

     Ele respondera:

     - Há três Sereias, e viu apenas uma. Vou levá-la a outra.

     - Mas onde?

     - Do outro lado do canal. Podemos sentar-nos na areia e falar tranqüilamente. Terá uma recordação sobre a beleza da ilhota que os outros não possuirão. Há lá apenas areia, grama, palmeiras, e, bem entendido, água por todos os lados. Quando desejar voltar, far-lhe-ei a vontade.

     Ele encontrara a canoa na escuridão, empurrara-a para a água e depois pusera-se de pé dentro dela.

     Devia ter hesitado, pois o jovem nativo exclamara:

     - Se tem medo de mim...

     - Não seja tolo.

     Permitira que ele a colocasse dentro da canoa, onde estava ainda, de olhos fechados, a mão delineando um caminho na água, a presença fluida de Moreturi diante dela, movendo graciosamente o remo.

     Ouviu um ruído provindo do fundo da canoa, seguido imediatamente pela voz do companheiro:

     - Aqui estamos no pequeno atol que é a segunda Sereia. Abriu os olhos e sentou-se.

     - Tire os sapatos - disse ele. - Pode deixá-los na canoa.

     Obediente, tirou as sandálias. Moreturi encontrava-se na água. Tentou sair da canoa sem a ajuda dele, mas o nativo estendeu as mãos e ergueu-a como se a uma pena, pousando-a de pé, a seu lado.

     - Vá para a praia - disse ele, apontando.

     Ela patinhou através da água e um momento depois encontrava-se na praia. Quando se voltou, viu que Moreturi retirara a canoa da água e colocava-a entre as pedras.

     Uma vez junto dela, tomou-a pelo braço e conduzia-a por entre um renque de palmeiras altas; passaram por uma lagoa pouco profunda, chegaram a uma clareira e desceram um pequeno declive que conduzia a uma minúscula praia de areia grossa que parecia cintilar sob o luar.

     - A parte do atol voltada para o oceano - disse Moreturi.

     A superfície do oceano era turbulenta e viva, em contraste com a pequena lagoa junto da qual tinham passado pouco antes, que era lisa e tranqüila como o vidro.

     O oceano estava envolvido pela escuridão, e parecia não ter horizonte nem fim: as cristas das ondas, cobertas de espuma, lançavam-se sobre a praia como a carga de uma brigada branca.

     - É magnificente - murmurou Rachel. - Estou contente, por me ter trazido aqui.

     Moreturi deixou-se tombar sobre a areia e estendeu o corpo bronzeado, colocando a cabeça sobre as mãos, juntas. Rachel sentou-se ao lado do companheiro, de joelhos para cima, a saia puxada sobre eles; porém uma aragem suave fazia estremecer a saia, acariciava-lhe docemente as pernas e as coxas.

     Durante longo tempo nenhum deles pronunciou palavra; não havia necessidade de falar. Contudo, quando viu os olhos de Moreturi pousados nela, Rachel decidiu quebrar aquela quietude tão íntima. Pediu ao jovem nativo que contasse episódios da sua adolescência, e ele começou a desfiar recordações sobre seus verdes anos. Ela mal o escutava, pois seus ouvidos percebiam apenas o ruído das vagas, e espantou-a o fato de os sons por elas produzidos se assemelharem ao grito de amor de Atetou. Insensivelmente, sentiu-se tentada a mencionar a noite anterior, o que seus olhos tinham testemunhado. Combateu este impulso, concebido pelo sumo de palma, e, como se recordasse um fragmento das suas sessões analíticas, interrogou-o sobre uma semana de festival de alguns anos antes em que ele possuíra doze mulheres casadas em sete dias e sete noites. Moreturi falou sobre o prazer que fruíra com elas e sobre as diferenças entre todas, enquanto ela refletia na sua vida estéril, insípida, e evocava o presunçoso estudante de Minnesota, as três vezes que se deitara com o professor casado, em Catalina, as disputas com Joe. De súbito, perguntou:

     - Trouxe já algumas delas aqui? Moreturi pareceu surpreendido.

     - Quê? - exclamou.

     - Trouxe já algumas das suas mulheres a este atol de coral e... fez amor com elas?

     O jovem nativo ergueu-se sobre o cotovelo.

     - Sim, trouxe já algumas aqui. De súbito, ela sentiu-se invadir por um estranho calor, que lhe tocava a testa, a nuca, os pulsos. Abanou-se com uma das mãos.

     - Que tem? - perguntou ele.

     - Sinto um pouco de calor... apenas.

     - Então vamos nadar...

     - Nadar?

     - Decerto. A água está maravilhosa esta noite. Fará com que se sinta melhor do que nunca.

     Moreturi pôs-se de pé, tomou-lhe uma das mãos e ergueu-a.

     - Não... não tenho maio - volveu ela, embaraçada.

     - Venha sem maio de banho. - Ele esperou, e depois sorriu docemente. - Não está na América. Além disso, prometo não olhar.

     Quisera dizer não, mandá-lo para o diabo, e, enquanto ele esperava, recordou-se, com um estremecimento, daquela vez na praia perto de Carmel, quando passeava à beira-mar com Joe. Este desejara nadar, também, e dissera que não importava o fato de não trazerem maios, porque, praticamente, já estavam casados. Escondera-se atrás do rochedo para se despir, desabotoara a blusa, mas um momento depois não fora capaz de mover mais os dedos. Ao aproximar-se de Joe para lhe dizer isto, encontrara-o despido e fugira dele e do casamento.

     - Muito bem - disse, e teve a impressão de que uma voz estranha falava por ela. - Tenho qualquer coisa por baixo. Mas não olhe, apesar de tudo. Juntar-me-ei a você na água.

     Ele encaminhara-se alegremente para a orla da praia. Rachel pensou que o jovem nativo se lançaria imediatamente à água; mas ele de teve-se, colocou as mãos na cintura e tirou o saco púbico. Pouco depois, como um Dionisius liberto, mergulhava na água e na escuridão.

     Impassível, como uma falsa Afrodite, desabotoou a blusa de algodão. Desta vez, não se encontrava em Carmel. Tirou a blusa, deixando-a tombar na areia, e ajustou o soutien, para cobrir completamente os seios demasiado evidentes. Depois, puxou para baixo o fecho da saia e desembaraçou-se dela. As suas calcinhas de nylon branco estavam bem justas aos quadris pouco salientes. Por um momento, perguntou-se se as calcinhas eram transparentes, mas compreendeu que a escuridão dissimularia aquilo que queria esconder.

     O primeiro contacto com a água fê-la estremecer, pois estava mais fria do que supusera. Porém, logo que a água lhe chegou à cintura, lançou-se para a frente e começou a nadar. Quase se esquecera de que, algures na escuridão, um homem a esperava.

     - Estou aqui! - exclamou de súbito Moreturi, nadando próximo dela.

     Uma onda inesperada fez com que Moreturi desaparecesse por alguns segundos de vista para reaparecer daí a momentos por trás da companheira, mergulhando e elevando-se como um idiota contente; estes movimentos do nativo fizeram com que ele revelasse o corpo até ao abdome; arquejante, Rachel engoliu água salgada, não desejando ver mais. Voltou-se, nadando, e perguntou-se como poderia alcançar a praia e vestir-se sem ser observada, e também como poria ele o saco púbico de maneira que não o tivesse de ver nu.

     Porém, pouco a pouco a apreensão principiou a atenuar-se devido ao revigorante prazer do mar; começou a sentir-se uma maravilhosa criatura do oceano, uma sereia, e agradeceu ao sumo de palma e àquele que a trouxera o fato de estar ali.

     Diria a Moreturi que estava contente, pensou, e começou a voltar-se na água. Entretanto, ouviu-o pronunciar seu nome com um grito frenético - era a primeira vez que ele a chamava pelo seu nome - e mergulhou na água, sem sensação do tempo e movimento. Quando voltou à superfície, com os pulmões explodindo, quase sufocada, ouviu de novo pronunciar o seu nome e viu os braços do companheiro envolvendo-a, segurando-a na água.

     - Sente-se bem? - perguntou ele.

     - Sinto-me ótima - volveu ela, tossindo, arquejante.

     - Vou ajudá-la.

     - Sim, sim, por favor...

     Com Moreturi a seu lado, ajudando-a a equilibrar-se na água, dirigiram-se para a praia. Uns minutos depois ele ergueu-se, curvou-se e, rodeando-lhe a cintura com um braço, elevou-a da água, aninhou-a nos seus braços e conduziu-a para a areia.

     No momento em que saíra com Moreturi do mar, Rachel tinha já recuperado as forças. Apoiava agora a cabeça contra o braço dele, o seio esquerdo sob sua mão. Com surpresa, baixou a cabeça e viu que tinha os seios completamente à vista.

     Tonta ainda, tentou recordar o que se passara e compreendeu que a violência do impacto da onda lhe arrancara o soutien do corpo.

     - Oh, meu Deus - murmurou.

     - Quê?

     - Tenho ainda alguma coisa sobre o corpo... as calcinhas?...

     - Sim, não se preocupe.

     Porém, não estava absolutamente nada preocupada, pois não fora devido a um ato de sua vontade que o soutien tinha desaparecido. Desejara, de maneira irracional, que as calcinhas de nylon tivessem também desaparecido, uma vez que isso resolveria tudo.

     Gentilmente, ele pousou-a, de costas, sobre a areia quente, onde ela ficou de braços estendidos, com os joelhos um pouco levantados, contemplando o teto negro da noite. Fechou os olhos, desejando render-se à lassitude. Afinal, a água não a refrescara. Abriu os olhou e viu-o, apoiado sobre os joelhos, levemente inclinado sobre ela; então, assustou-se a valer, pois compreendeu que ele estava completamente nu. Estava completamente nu, sim, e pronto para o amor.

     De súbito, nada mais importou. Permitiu que ele a abraçasse, a beijasse, e abraçou-o, beijou-o, deixou-se possuir; por fim sentiu o grito formar-se na garganta e deixou-o escapar-se... para se certificar de que se escapara também.

 

     A aldeia mergulhara de novo no silêncio, coberta pelo manto da noite. Mesmo os últimos foliões, que se dirigiam, vacilantes, às suas cabanas, para dormir, ou para as colinas do amor, mesmo estes, falavam em murmúrios mais suaves do que a aragem.

     Dentro da cabana de teto de colmo para ele tão familiar, Marc, sentado, esperava ouvir a todo o momento o ruído dos passos de Tehura. Encontrava-se há longo tempo aqui, na semi-obscuridade, e perguntara-se repetidas vezes se ouviria outros passos além dos dela, e se assim fosse o que diria para explicar sua presença.

     Bebera mais do que costumava antes de partir para a cabana, quatro uísques puros ao todo, mas estes não o tinham afetado absolutamente nada. Embora tivesse sido talvez o álcool que lhe dera coragem para procurar Tehura, não se permitira beber demasiado para não prejudicar a empresa a que se dedicava.

     Era quase meia-noite, e os ruídos do festival tinham deixado de se ouvir cerca de meia hora antes. Desde então, houvera apenas silêncio, silêncio enervante, neste mesmo momento perturbado. Endireitou a cabeça, franziu os lábios finos e escutou, profundamente atento. O ruído que ouvia era de pés humanos pisando a grama, certamente passos de uma só pessoa, supôs, dela, que voltava só.

     Afastou as costas da parede e ficou sentado, ereto e concentrado, enquanto a porta de cana se abria. Tehura, coberta apenas por duas longas trancas de cabelo negro, que lhe tombavam entre os seios, e pela saia de erva, entrou no quarto. A princípio, não o notou. Parecia achar-se absorvida por qualquer pensamento quando automaticamente fechou a porta. Isto feito, lançou as trancas sobre os ombros e voltou-se para o quarto. Foi então que o viu.

     Suas feições não manifestaram surpresa, mas apenas interesse.

     - Marc! - exclamou ela, acrescentando depois: - Tinha-me perguntado onde você esteve este tempo todo.

     - Passei aqui a maior parte da noite - volveu ele. - Desejava vê-la, só a você. Preocupava-me o fato de você poder voltar com Huatoro.

     - Não.

     - Por favor, sente-se junto de mim - tornou ele. - Se ' não está fatigada, quero conversar com você.

     - Não sinto a mínima fadiga.

     Tehura atravessou o quarto e sentou-se a alguns centímetros dele, na esteira.

     Marc não olhava para ela mas para a parede oposta, pensativo.

     - Sim, receei que trouxesse esta noite Huatoro com você. Afirmou que talvez concedesse os seus favores ao vencedor da prova de natação.

     - Isso pode ainda suceder - retorquiu a jovem.

     - Mas não sucedeu esta noite. Por quê?

     - Não sei... Ele ofereceu-me o seu colar do festival.

     - Porém, não o pôs.

     - Esta noite não.

     - Huatoro deve ter ficado furioso.

     - Isso pouco me preocupa. Bem, esperará.

     - Fará amor com ele?

     - Se soubesse, não lhe teria falado nisto... Não sei - respondeu Tehura à pergunta. Fez uma pausa. - Ele quer que eu seja sua mulher.

     - E você?

     - Repito, não me sinto ainda preparada para tomar tal decisão. - Refletiu durante um momento. - Ele é forte, muito admirado. Disseram-me que ama bem. Tem muito prestígio agora, por ter vencido a prova de natação.

     Marc mexeu-se, inquieto.

     - Lamento ter-me comportado daquela maneira na prova, Tehura, mas não a pude vencer. Você compreende.

     - Sim, compreendo - volveu ela.

     - Desejei vencer, sim, não importa como, pois lhe dissera que a venceria. Isso era tudo o que contava. - Teve um momento de hesitação e depois acrescentou: - Quer que lhe diga uma coisa tola?

     Ela esperou, impassível.

     - Tehura, durante toda a prova pensei constantemente em você. Enquanto nadava tinha os olhos postos no rochedo, dizendo para mim mesmo que era você. À medida que me aproximava ele começou mesmo a transformar-se na sua imagem, acredite. A saliência arredondada, em cima, transformou-se nos seus seios. Uma mossa num dos lados converteu-se no seu umbigo. E então embaixo, naquele rochedo, pareceu-me ver uma espécie de... - Deteve-se. - Afirmei que se tratava de uma tolice.

     - Mas não é, Marc.

     - Enquanto nadava pensava apenas que tinha de me aproximar dela antes de qualquer outro; se a alcançasse, se a galgasse, ela seria minha. - Respirou fundo. - Quase o consegui.

     - Nadou bem - afirmou Tehura. - Não tem por que sentir vergonha. Admirei-o.

     Ele mexeu-se de novo, para se aproximar dela.

     - Então tem de me dizer... Admirou-me tanto como a Huatoro?

     - O que lhe posso dizer? Ele é mais forte do que você. É mais jovem. Você pouco sabe dos nossos costumes, e por vezes parece-me uma pessoa bastante estranha. Porém, isto admiro em você... tentou seguir nossos costumes por minha causa... Fez tudo, mesmo coisas erradas, para demonstrar que era digno de nós e de mim. Sim, isto admiro em você. No seu país, sei, tem muito mana. Agora, para mim, também o tem no meu.

     - Não lhe posso dizer com quanto encanto ouvi as suas palavras, Tehura.

     - É verdade - tornou ela com singeleza. - Perguntou-me o que sentia por Huatoro. Para ser franca, tenho de acrescentar uma coisa mais. - Refletiu durante um momento e depois disse: - Huatoro ama-me muito. Isto é muito importante para uma mulher.

     Impulsivamente, Marc pegou-lhe a mão.

     - Por amor de Deus, Tehura, bem sabe que também a amo... Ontem...

     - Ontem - repetiu ela, retirando a mão. - Sim, falarei de ontem. Tentou tirar-me a saia, possuir meu corpo com o seu corpo. O amor de Huatoro é também isso, mas é mais ainda, muito mais.

     Ele tinha agora ambas as mãos pousadas nos braços da jovem.

     - O meu também, Tehura, acredite-me.

     - Como é que pode ser? - perguntou ela. - Somos... qual é a sua frase?... duas pessoas insolitamente juntas. Por vezes sou o inseto que você estuda. Outras, sou a fêmea que você deseja para satisfazer seu apetite passageiro. Nunca fui mais do que isto e nunca me queixei. Compreendo seus sentimentos, pois é já poderoso, devido a seu trabalho, e às suas mulheres. Tem amor, o grande amor, tem sua bela mulher, que é tudo.:.

     - Ela não é nada! - gritou Marc.

     A maneira selvagem como renegava Claire impressionou deveras Tehura, que o fitou fixamente, a boca fechada, expectante.

     - Eis a verdadeira razão por que a esperei aqui esta noite - tornou ele com ímpeto. - Para lhe dizer que é você que amo, e não Claire. Surpreende você isto? Ouviu ou viu já qualquer prova do meu amor por ela?

     - Os homens são muito diferentes nos seus atos públicos.

     - Os meus atos públicos são semelhantes a meus atos privados. Conheci aquela jovem, cortejei-a, achei-a simpática e porque compreendia que tinha de casar-me com uma qualquer... esperava-se isto de mim, é uma coisa corrente na nossa sociedade conformista... caseí-me com ela. Agora posso dizer-lhe que não existia verdadeiramente amor entre nós. Não a desejava, não sentia a paixão que sinto por você. Quando estou com Claire posso pensar num milhão de outras coisas. Quando estou com você, penso somente em você. Acredita-me?

     Ela fitava-o com os olhos cintilando.

     - Por que não a deixou antes? - perguntou ela. - Tom disse que isto é possível na sua América.

     - Sempre o quis fazer, mas... - Encolheu os ombros. - Tive receio. Seria uma coisa embaraçosa. Preocupava-me o que a família e os amigos poderiam dizer. Assim, continuei com ela, para não criar problemas. Além disso, para onde iria eu? Durante estes dois anos tenho-a satisfeito fisicamente, e de outras maneiras também, mas eu próprio nunca me senti satisfeito. Vim até aqui e encontrei-a. Agora, já tenho para onde ir, e meus receios desvaneceram-se.

     - Não o compreendo, Marc - volveu Tehurá, calmamente.

     - Vou explicar-me melhor. - Erguera-se sobre os joelhos e procurava alguma coisa no bolso da sua camisa esporte. - Sei o que os ritos cerimoniais significam para você. Efetuarei agora um rito, o rito da transferência do amor da mulher com quem casei para a mulher que... - Encontrara o que procurava e pousou-o na palma da mão. - Isto é para você, Tehura.

     Perplexa, estendeu a mão para o objeto que se achava na palma da mão de Marc, pegou nele e deixou-o pender dos seus dedos. Era o colar com um pingente que Claire tinha ao pescoço na primeira noite e que Tehura tanto admirara.

     Contente, Marc apercebeu-se de que o presente fizera com que ela emudecesse. Tehura tinha os olhos esbugalhados, os lábios afastados, numa expressão de assombro. Sua mão tremia. Ergueu os olhos e fitou Marc, profundamente grata.

     - Oh, Marc... - disse, arfando.

     - É seu - declarou ele - todo seu, e no futuro haverá centenas de provas mais do meu amor.

     - Marc, coloque no meu pescoço!

     A jovem torceu-se, na esteira, as costas nuas voltadas para ele. Marc colocou as mãos sobre as costas de Tehura e pôs o colar em redor do pescoço dela. Quando a jovem se dobrou para o admirar, os dedos tocando a jóia, as mãos de Marc acariciaram os ombros dela, deslizaram pelos seus braços. Fascinado pela textura da carne de Tehura, e pela promessa que oferecia, dirigiu as mãos para os seios pontudos. A jovem nativa pareceu não se importar, tão concentrada estava na contemplação da jóia. As mãos de Marc rodearam-lhe os seios, envolveram-nos e todos os membros, todos os órgãos do seu corpo se inflamaram. Libertando um dos seios, fez descer a mão até à saia e introduziu-a na parte interior da coxa. Nunca, em toda a sua vida, desejara a posse de qualquer objeto como desejava sexualmente a ela.

     - Tehura - disse.

     A jovem desviou os olhos do diamante, mas não retirou as mãos dele do seu corpo.

     - Tehura, desejo-a para sempre. Vou deixar Claire. Quero que seja minha mulher.

     Pela primeira vez, nesta noite, o rosto de Tehura pareceu hipnotizado. Cada palavra que ele pronunciara continha para ela magia.

     - Marc, deseja-me para sua mulher?

     - Sim;

     Ela girou sobre si mesma para o fitar, retirando o seio e a coxa às carícias do companheiro.

     - Deseja casar-se comigo? - fitou as mãos dele, e cobriu-as com as suas. - Elas amar-me-ão, Marc, mas espere... tenho de saber...

     - Casarei com você logo que possível.

     - Como?

     Ele sentou-se, tentando dissipar o seu ardor. Disse a si próprio o que ela pouco antes dissera, que haveria tempo para o amor, para o amor entre eles, mas primeiro que tudo devia explicar o que tinha em mente. Chegara o momento crucial, compreendeu, e se pudesse retardar esta necessidade torturante de consumir a sua luxúria, podia mostrar-se racional e persuasivo.

     Decidira revelar-lhe seus planos, como escrevera a Garrity. Teria, antes do mais, de obter sua anuência. Ela era a única pessoa aqui em quem podia confiar, que podia transformar seu sonho em realidade. Sem a ajuda de Tehura, nada seria possível. A proposta de casamento, friamente calculada, faria ruir suas defesas e envolvê-la-ia em todo o projeto. Contudo, a proposta de casamento não fora pronunciada com a calma que imaginara. O desejo que tinha de a possuir, de a submeter, era uma chama ardente que o abrasava. Comprendeu que a proposta de casamento era menos motivada agora pelo seu projeto do que pela paixão que o consumia. Ganhara com seu ardor, com a oferta daquela estúpida jóia. Devia explorar imediatamente este fato. Se ela não aquiescesse a tudo o que tinha em mente estava perdido.

     Respirou fundo e tentou encarai com a sua nova objetividade, tão semelhante à de Garrity. “Como?”, perguntara ela. Desejava saber como podia casar-se com ela. Responderia imediatamente e seu plano transformar-se-ia no plano de ambos.

     - Tehura, desejo levá-la comigo das Sereias, primeiro para Taiti e depois para a Califórnia - disse. - Pouco depois de chegarmos a meu país, divorciar-me-ei e no próprio dia em que o divórcio for concedido casarei com você.

     - Por que não o faz aqui? - inquiriu a jovem com a perspicácia que ele por vezes suspeitara que ela possuía.

     - Sabe bem que é impossível, Tehura. Nem o divórcio nem o casamento aqui seriam considerados válidos nos Estados Unidos. Tudo o que fizermos deve ser legal, aceito no meu país, pois é aí que desejo que vivamos. De tempos em tempos visitaremos esta ilha, para que possa ver os seus. Mas a minha vida deve tornar-se a sua vida. A ilha, apesar de encantadora, parece muito pequena, inadequada, uma vez comparada com tudo o que vai ver e possuir no meu país. Aí será considerada uma beleza exótica, venerada por um milhão de homens, invejada por um milhão de mulheres. Terá não uma cabana mas uma casa dez vezes maior, e criados, as roupas mais caras, um carro... Conhece estas coisas através do que têm dito... E possuirá pedras preciosas como essa jóia, tantas quantas desejar.

     Ela escutara-o como uma garota escuta um conto de fadas, e contudo não se mostrava completamente arrebatada. Sua perspicácia manifestou-se de novo.

     - Nem toda a gente é assim tão rica no seu país - volveu ela. - Tom disse que no seu país muito poucas pessoas possuem todas essas coisas.

     Esta era a abertura. Marc entrou nela.

     - De certo modo, ele tem razão. Sou rico, se comparado com uma pessoa como Huatoro ou outras da sua aldeia. Não sou o homem mais rico da minha terra. Tenho, como sabe, muito mana. E conhece bem o valor dessa jóia. Mas serei mais rico, muito, muito mais rico, Tehura. Para isso, terá de confiar em mim, de acreditar no que lhe vou dizer em seguida.

     Ela inclinou a cabeça num gesto de assentimento.

     - Fica tudo entre nós.

     - Existe enorme interesse por lugares como as Três Sereias na minha pátria. Sabe bem disso. De outro modo, por que estaríamos aqui estudando seu povo? As conferências que minha mãe proferir, dentro de um mês ou dois, sobre vocês, na América, não nos trarão quaisquer benefícios materiais. Não me peça que explique isso esta noite, se eu partir daqui com você dentro do mais curto prazo possível, com provas da existência deste lugar, conseguiremos uma enorme riqueza. Acredite-me, seremos mais ricos do que pode imaginar. Posso mostrar-lhe as cartas que confirmam a minha afirmação. Um amigo meu esperar-nos-á em Taiti. Ele tem tudo organizado. Uma vez juntos, partiremos para os Estados Unidos num avião como o do Capitão Rasmussen, a fim de darmos a conhecer ao mundo a sua extraordinária cultura...

     - E quebrarão o tabu? Isso destruiria as Sereias.

     - Não, não, Tehura. Não diremos muito mais do que minha mãe dirá nas suas conferências e livros. Prometo não revelar a localização das Sereias. As provas que levarei demonstrarão suficientemente a existência da ilha. Demais, você, a minha mulher...

     - Eu? - retorquiu ela, lentamente. - O seu povo quererá ver-me?

     - Sim, desejará conhecê-la, vê-la, ouvi-la, amá-la. Oferecer-lhe-á tudo o que quiser. Sabe o que isso significa?

     - Vi as gravuras dos livros de Tom.

     - Tudo será seu.

     Ausente, ela brincava com a jóia.

     - Estarei tão longe daqui... Sentir-me-ei tão só... Aproximou-se mais de Tehura e colocou o braço em redor de seus ombros.

     - Será minha mulher.

     - Sim, Marc.

     - Prometi dar-lhe tudo.

     Ela fixou os olhos na esteira; depois, ergueu lentamente a cabeça, sorrindo com tristeza.

     - Muito bem - disse num murmúrio quase inaudível. O coração de Marc deu um pulo no peito.

     - Casará comigo? Partirá comigo?

     Ela inclinou a cabeça, num gesto de aprovação.

     Marc desejava levantar-se de um salto, gritar de alegria. Conseguira realizar seus intentos! Garrity!

     - Tehura... Tehura... Amo-a...

     A jovem nativa inclinou uma vez mais a cabeça, subjugada pela enormidade da sua decisão.

     Ele estava agora bem desperto e ativo. Retirou o braço com que a envolvia.

     - Eis o que se deverá fazer... Primeiro do que tudo, teremos de manter absoluto segredo... Por enquanto, não mostrará a jóia a ninguém... Claire não deverá saber...

     - Por que motivo não deverá ela saber?

     - Ela ama-me. Haveria cenas terríveis* Quero partir com você sem que ninguém saiba: depois enviarei uma carta por intermédio de Rasmussen. Todos os membros do grupo, incluindo minha mãe, querem aproveitar para si próprios os benefícios que a visita a esta ilha proporciona. Nenhum deles desejaria que partilhássemos as riquezas que a descoberta das Sereias oferece. O seu povo também não deve saber disto... Paoti, Moreturi, Huatoro, absolutamente ninguém. Poderiam tentar deter-nos por medo e inveja.

     - Sim.

     - Bom. - Na mente de Marc perpassavam imagens dos prováveis benefícios da sua vitória. Ergueu-se e começou a andar pelo quarto. - Eis o que faremos. Planejei tudo com muito cuidado. Segundo me disseram, alguns dos jovens mais ousados das Sereias vão de canoa ou de barco a vela até outras ilhas.

     - Sim - confirmou ela. - Conhecem bem o mar.

     - Necessitamos de um deles, Tehura, de um em quem possamos confiar.

     - Talvez o encontremos - disse a jovem.

     - Podemos oferecer-lhe o que desejar, qualquer coisa do que possuímos. Teremos de sair daqui de noite para irmos ao encontro do seu amigo que tiver um barco a vela. Ele conduzir-nos-á à ilha mais próxima em que possamos conseguir passagem num navio ou num hidravião para outra ilha, onde arranjaremos transporte para Taiti. Depois, estaremos em segurança. É possível isto?

     - Será muito mau para aquele que nos ajudar.

     - Quando voltar, contará a Paoti que o obriguei... tinha uma arma... a fazer aquilo. Assim, será absolvido. É possível, todavia, que ele não queira voltar. Podia dar-lhe bastante -com que viver noutro lugar... Encontraremos alguém, decerto.

     - Sim. Mas não tenho certeza.

     - Encarrega-se então de o procurar?

     - Sim.

     Ele sorriu-lhe, cheio de contentamento.

     - Sabia que faria isso. É para nós ambos. Quanto tempo demorará... para arranjar tudo?

     - Não sei.

     - Calcule.

     - Alguns dias. Uma semana. Não mais. - Hesitou. - Se for possível.

     - É preciso que tenha cuidado, Tehura.

     - Eu sei.

     Inclinou-se e colocou-a de pé. Ela tão flexível, leve nos seus braços.

     - Sabe que a amo, Tehura.

     Ela inclinou. a cabeça contra o peito do companheiro.

     - Tenho de lhe ensinar a beijar. Faz parte do nosso costume. Desejo selar isto, Tehura... Amá-la, beijá-la...

     A jovem nativa ergueu a cabeça, os lábios apartados, e Marc colou a sua boca na dela e pousou as mãos sobre os seios pontudos, opulentos. Durante a última hora o seu eu interior é o seu ser exterior haviam-se expandido, dilatado, devido a seu triunfo, à primeira percepção que tivera de independência e da ação; agora, sentia-se um homem quase totalmente maduro. Restava apenas uma tarefa inacabada: a revelação da sua maturidade a Tehura, para se certificar de que a tinha conquistado.

     - Tehura - murmurou.

     Ela desprendeu-se completamente dos braços dele, deu um passo atrás, as mãos coladas aos quadris, serena.

     - Por hoje chega, Marc - disse. - Dar-nos-emos um ao outro na noite em que partirmos.

     - Promete?

     - Sim.

     - Irei então, Tehura. - Dirigiu-se para a porta. - Continuaremos nossos encontros diários, antropólogo e informante, fingiremos trabalhar. Ninguém deve suspeitar sequer do que se passa. Quando encontrar a pessoa que tenha um barco, fale comigo. Precisarei de algumas horas para proceder aos últimos preparativos.

     - Sim, não me esquecerei.

     - Boa noite, querida.

     - Boa noite, Marc.

     Uma vez no exterior, a alguns metros do conjunto da aldeia, decidiu escrever uma segunda carta, mais breve, a Rex Garrity. Na primeira, lançada à tarde para dentro do saco de Rasmussen, esboçara suas intenções. Na segunda, um pós-escrito, anunciaria o seu triunfo e pediria a Garrity que os esperasse em Taiti. Uma coisa porém continuava a atormentá-lo. Até quev ponto ia a esperteza de Tehura, o seu engenho? Tudo correra certamente conforme os planos que delineara; contudo, inquietava-o o pensamento de que talvez tudo tivesse corrido de acordo com os planos dela. No entanto, não via motivo para inquietações, uma vez que seus objetivos eram comuns. A súbita suspeita de que ela pudesse ser tão astuta como ele, não inferior mas igual a ele, mesmo superior, desconcertava-o; todavia, talvez não fosse verdade, contudo era possível. Sentia agora que não dominava a situação como supusera; possivelmente não era o homem dela. Para o inferno com estas especulações. No entanto, sentia-se menos feliz do que antes. Que vão para o diabo todas as mulheres, toda a gente, disse, quase em voz alta, e entrou no conjunto.

    

     A Dr.a Maud Hayden, cheirando levemente a desodorante, estava sentada atrás da sua secretária improvisada, com os olhos fixos num ponto situado para além de Claire, tentando ordenar os pensamentos. Embora se estivesse a meio da manhã, ela tinha já a blusa e a saia cor de caqui amarrotadas e com grandes manchas de transpiração, de maneira que parecia uma obesa chefe de escoteiros após uma marcha de duas horas.

     Enquanto esperava, uma perna cruzada sobre a outra, o caderno de notas de estenografia sobre o joelho, o lápis aparado, Claire sentia o tormento do calor. O sol entrava através das janelas da cabana como se fosse ferro rubro saído de uma fornalha, e parecia furar a epiderme. O sono, mesmo provocado pelas drogas, era a única maneira de escapar a este inferno, e Claire desejava estar dormindo no seu quarto. Porém, fora despertada bem cedo por Maud, que, depois de apresentar as suas desculpas, explicara que o gravador portátil não funcionava e que estava sendo reparado por Sam Karpowicz. Entretanto, tinha cartas urgentes a ditar, as quais deviam ser entregues ao Capitão Rasmussen quando ele chegasse ao meio-dia.

     Para Claire, a sogra, despojada do gravador, parecia tão desamparada como um almirante sem as suas dragonas.

     - Bem, vejamos... - disse Maud. - Comecemos com o Dr. Macintosh. Uma nota breve, destinada a mantê-lo a par de tudo.

     Inconscientemente, Claire piscou os olhos. Até agora, sentira prazer em datilografar os relatórios para o Dr. Walter Scott Macintosh. Cada um deles, pensara Claire, mais firmemente cimentara as possibilidades de Maud se tornar diretora-executiva da Culture. Claire imaginara, por instinto, que isto viria a favorecer seu próprio futuro. Durante dois anos, duas mulheres haviam disputado o tempo de Marc. Com uma delas, forçosamente Maud, em Washington, a outra, Claire, poderia receber a atenção que há tanto tempo desejava. Com Maud longe do casal, Marc ver-se-ia com mais liberdade para subir, sem apoios, no mundo acadêmico, e Claire seria por fim senhora da sua casa. Esta tinha sido a idéia de Claire até há bem poucos dias. De súbito, porém, tudo se transformara, e ela não sabia já o que desejava.

     Até à chegada às Três Sereias, Marc mostrara-se sempre reservado, difícil, por vezes frio, mas fora possível viver com ele. Por vezes, exercia suas funções de marido, e- Claire tinha esperança de que se tornasse um marido bastante melhor. Nas últimas semanas deixara completamente de ser seu marido. Estava insuportável. A esperança extinguira-se. Apesar de viverem na mesma cabana, raramente o via. Parecia que ele caprichava em sair de manhã cedo e voltar tarde, de noite, já com ela dormindo. Quando se encontravam juntos, tinha a impressão de que havia outra pessoa em redor de ambos. Nas poucas ocasiões em que estavam sós, Marc nem sequer se dava ao cuidado de a evitar. Tratava-a justamente como se ela não estivesse ali, como se fosse uma sombra, uma mulher invisível.

     Jamais na sua vida Claire se sentira mais ferida, mais abandonada, mais só. Tom Courtney era gentil, muito gentil mesmo, por vezes galante, e isto preenchia muitas horas de tédio; todavia, Courtney mostrava-se um pouco reservado também. Tratava-a com excessiva correção, como a Mulher de Outrem. Assim, restava Maud. Claire adorara sempre Maud, uma estranha contradição, uma vez que alimentara a esperança de se ver livre dela. Ultimamente, Claire manifestava menos consideração pela sogra, pois esta recusara a sua ajuda neste período difícil com Marc. Contudo, agora que se sentia abandonada, Maud aparecia a seus olhos como o derradeiro amigo que tinha no mundo, um verdadeiro refúgio. Por conseguinte, detestava ter de estenografar, copiar à máquina e expedir outra carta que ajudaria a separar Maud dela.

     Claire compreendeu que Maud começara a ditar; apressadamente, apanhou no ar as palavras que se escapavam e debruçou-se sobre o caderno.

     “Caro Walter”, disse Maud, “escrevi há uma semana, mas aqui estou de novo com uma breve nota. Com ela, quero apenas comunicar que. estes últimos dias ultrapassaram tudo o que esperava. As informações colhidas durante eles são abundantes e preciosas... “ Parágrafo, Claire... “Estamos no derradeiro dia do festival, e a meio da nossa viagem de campo, pois faz precisamente três semanas que chegamos. Na última carta mencionara já o festival, servindo-me das informações fornecidas pelo chefe Paoti Wright. Porém, o fato de ser observadora participante do festival deu-me uma melhor visão de tudo... “ Parágrafo. “O festival começou há sete dias com uma competição esportiva, uma prova de natação, na qual Marc teve a coragem de entrar. As suas notas serão de inestimável valor. Posso acrescentar com orgulho maternal que ele quase venceu os nativos numa competição para a qual estavam excelentemente preparados. Perdeu apenas na chegada.

     A inflexão de Maud, no fim da última frase, esclarecera Claire de que a sogra não queria falar mais no fiasco.

     “Nessa noite”, prosseguiu Maud, “foi erguida uma vasta plataforma no conjunto da aldeia, orlada de tochas coloridas, e a nossa enfermeira, Harriet Bleaska, presidiu à cerimônia de abertura da semana do festival. Ela fora eleita para esse efeito pelos jovens da aldeia. Depois, houve uma exótica dança cerimonial e, por muito que lhe custe a acreditar, uma das estrelas foi a Sra. Hackfeld, esposa do patrocinador da viagem. A Sra. Hackfeld saiu-se maravilhosamente bem. Na segunda tarde efetuaram-se novos jogos, luta em especial, porém mais no estilo japonês do que no estilo americano, e de noite foi-nos oferecido um ato de pantomima, uma espécie de rito da fertilidade; uma vez mais, a Sra. Hackfeld foi a atração principal. Para ela, este lugar tem sido uma verdadeira Fonte da Juventude. Na terceira noite, realizou-se um concurso de beleza ao nu, em que participaram a maior parte das jovens solteiras da aldeia. Todos os rapazes assistiram, aplaudindo suas favoritas. Este concurso foi um tanto semelhante àqueles que Peter Buck presenciou nas ilhas Cook. Nestes concursos, segundo me recordo, as jovens eram mesmo examinadas por detrás, para ver se tinham as pernas juntas, pois isto era considerado um sinal de virtude e muito apreciado. Este exame não se fez aqui. O chefe Paoti. não sabe a origem deste concurso de beleza, mas não discordou quando sugeri que se devia tratar de uma espécie de exibição destinada às jovens que desejavam mostrar seus dotes a possíveis cortejadores e maridos. Suspeito também de que é uma espécie de estimulante para a semana do festival. Na quarta noite...”

     De súbito, Maud rodou na cadeira e ergueu uma das suas mãos carnudas.

     - Espere, Claire. Antes de entrarmos na quarta noite quero acrescentar qualquer coisa à minha frase. Leia, por favor.

     - Um momento - disse Claire. Depois, leu: “Suspeito também de que é uma espécie de estimulante para a semana do festival...”

     - Sim. Acrescente isto... - Refletiu no que queria acrescentar e depois ditou: “O Dr. Orville Pence foi um dos juizes do concurso de beleza ao nú, e suas escolhas foram bem recebidas, pois coincidiam com as dos outros juizes, exceto num ponto. A última das jovens a exibir-se foi um elemento do nosso grupo, a indomita Harriet Bleaska, que se vira forçada a anuir às solicitações feitas nesse sentido por seus admiradores da aldeia. Poderia ter vencido, é muito estimada aqui, se não fosse o voto contrário do Dr. Pence. De qualquer maneira, recebeu honras de vencedora. Como pode ver, não temos sido apenas observadores, mas participantes industriosos, desde que chegamos. Como disse na carta anterior, minha nora ofereceu-se para participar dos ritos da amizade celebrados durante a festa realizada na cabana de Paoti, na primeira noite.”

     Claire ergueu a cabeça.

     - Ora Maud - disse ela -, por que é que menciona isso? É já para mim embaraçoso saber que fiz aquilo sem...

     - Não seja tola, Claire. Como antes, torno a mencionar este fato com orgulho maternal.

     - Bem, se insiste...

     - Por que se mostra tão vitoriana para comigo?

     - Porque meu marido também assim procede em relação a mim - ripostou Claire.

     A expressão de Maud nada deixou transparecer.

     - Oh, os homens têm o mesmo sentimento de posse - volveu ela, acrescentando: - Bem, continuemos. Tenho muito que fazer esta manhã. Deixe-me ver... Ah, sim... - Ditou de novo: “Creio que o nosso amigo funcionalista, Bronislaw Malinowski, teria sentido grande orgulho na ativa utilização de suas disciplinas no campo... “ Parágrafo... “Cada um destes eventos do festival, que observamos de perto, foi filmado por Sam Karpowicz, que tem a câmara-escura cheia de bobinas, instantâneos e diapositivos a cores. Walter, nossos amigos da liga Antropológica Americana terão muito que ver além do que vão ouvir... “ Ponto de exclamação aí, Claire... “Como predisse, Walter, as Três Sereias constituem o impulso de que necessitava, e serão o tema do primeiro estudo original que se faz sobre a Polinésia nos últimos anos... “ Parágrafo... “Porém, voltemos aos números mais salientes da semana do festival. Na quarta noite... “ Bateram à porta, e Maud deteve-se, desconcertada.

     - Entre! - bradou Claire.

     A porta foi parcialmente aberta e um momento depois uma onda de calor entrou na cabana, seguida por Lisa Hackfeld, que trazia um vestido leve de nylon e um largo sorriso. Diante dela mantinha uma pequena tigela cheia de plantas cortadas.

     - Oh - exclamou Lisa, quando viu Claire com o bloco e o lápis. - Se interrompo, posso...

     - Fique, Lisa - disse Maud vivamente. - Não interrompe nada. Parece estar cheia de novidades.

     - Sim, sim, estou - replicou Lisa, como se cantarolasse. Com uma reverência, colocou a tigela com as plantas diante de Maud. - Sabe o que é isto?

     Maud inclinou-se para a frente e espreitou para dentro da tigela.

     - Parece uma planta... - Pegou numa das hastes musgosas e amarelas e examinou-a. - É uma erva que...

     - A puaü, - exclamou Lisa Hackfeld.

     - Sim, sim, é verdade- concordou Maud. Lisa pareceu surpreendida.

     - Como sabe, Maud?

     - Ora, cresce nestas ilhas, onde é bastante conhecida. Creio que foi o próprio Paoti Wright quem me falou primeiro dela. É a droga que o Capitão Rasmussen leva daqui todas as semanas. De fato, falei também com ele sobre o assunto.

     - E ninguém me disse nada - volveu Lisa, incrédula. - E pensar que poderia passar-me despercebida. De qualquer modo, descobri-a, mas não por intermédio do Capitão Rasmussen, com quem estive conversando sobre ela há alguns minutos.

     - Quer dizer que o capitão se encontra já na aldeia? - perguntou Maud. - Habitualmente, vem direto aqui.

     - Interceptei-o, Maud - admitiu Lisa com orgulho. - Arrastei-o até à minha cabana, coloquei uma garrafa de uísque defronte dele e consegui que dissesse tudo o que sabia. Vou escrever sem demora ao Cyrus para lhe contar tudo o que sei agora.

     - Mas por quê? - perguntou Maud.

     - Por quê? Ora, pode fazer-se uma fortuna com isto. - Lisa voltou-se para Claire, que mal escutara a conversa. - Claire conhece o efeito desta planta, puai?

     Claire encolheu os ombros.

     - Não faço a mínima...

     - Uma pessoa sente-se jovem e comporta-se como jovem; ela acaba com as rugas e lubrifica as articulações - anunciou Lisa com voz de falsete tão entusiástica como a de um evangelista. - Com isto, a vida pode realmente começar aos quarenta. Perdoem-me, mas sinto-me flutuar mais alto do que um papagaio, e isto por ter descoberto a minha erva mágica. - Lisa dirigia-se tanto a Maud como a Claire e enquanto falava agitava na mão uma das ervas polposas. - Foi por acaso que a descobri. Como sabem, ensaio há dias com aqueles nativos... e viram os dois espetáculos que realizamos nesta semana...

     - Você foi notável, Lisa - disse Maud.

     - Lá isso é verdade, mas talvez me tenha excedido um pouco. Quando era nova, costumava dançar a valer, e bem. Todavia, agora é diferente. Já não sou uma garota. Na América, quando o Cyrus me levava ao clube, ficava quase uma semana sem me poder mexer se dançasse qualquer coisa mais mexida do que uma valsa. Em contrapartida, aqui, meti-me nestas danças dos nativos... Tenho participado desde o primeiro dia e não me sinto fatigada. Sinto-me, sim, com o vigor de uma garota. Não sabia a que devia atribuir este rejuvenescimento. Porém, uma destas noites uma coisa fez com que refletisse um pouco. Momentos antes da dança da fertilidade, distribuíram canecas com uma bebida esverdeada. Recordei-me de que bebíamos sempre aquilo durante os ensaios, mesmo antes da primeira. noite do festival; e, claro, não se tratava de sumo de palma ou de qualquer bebida alcoólica. Assim, perguntei o que era aquilo e disseram-me que se tratava de um extrato da planta puai... puai significa vigor em polinésio... a qual, durante séculos, tem sido distribuída aos dançarinos para lhes dar energias. Não é um intoxicante, quero dizer, não atua sobre os sentidos, mas sim uma espécie de narcótico ou estimulante que não produz hábito ou efeitos secundários. Descobri que esta é a erva mágica que Rasmussen, desde há anos, exporta daqui, e de Taiti para Hong-Kong, Singapura, Indoohina, índias Orientais. O capitão compra-a barata e vende-a cara. Ele e a mulher têm só este negócio mas vivem esplendidamente... Bem, comecei a pensar nisto, e quanto mais pensei mais excitada me senti. Claro, sabem o que tenho em mente...

     - Deseja importá-la, uma vez nos Estados Unidos - disse Maud.

     - Exatamente! E então, esta manhã, mal pus as mãos em cima do pobre capitão, procurei levá-lo a confessar. Falei do Cyrus e do seu vasto negócio de especialidades farmacêuticas; como andamos sempre à cata de qualquer coisa nova, acrescentei, talvez isto resulte num produto sensacional... Vejam o rótulo: palmeiras, silhuetas de dançarinos nativos e estas palavras, por exemplo: o novo e exótico elixir dos Mares do Sul, aprovado, garantido; dá energias, juventude, vitalidade. Que tal isto numa embalagem? Vitalidade!

     Claire nada disse, mas Maud ergueu-se para fazer frente à situação.

     - Onde posso eu comprar disso, Lisa?

     - No próximo ano, em qualquer drogaria da América. Vou imediatamente tentar estabelecer um contrato com o Capitão Rasmussen... sujeito à aprovação do Cyrus, decerto. - Passou as mãos pela erva, carinhosamente. - Pensem nisto, a puai modificou a minha vida e ajudará milhões de mulheres como eu. Oh, não posso esperar... a minha descoberta... tenho tantas coisas para fazer. É minha intenção dirigir, lançar grupos de dançarinos polinésios, ou mesmo prepará-los para programas comerciais de televisão... - Parecia estar sem fôlego; seus olhos vivos iam de Maud para Claire e de novo para Maud. - Quero dizer, terei um negócio meu só e ao mesmo tempo ajudarei as outras. É uma idéia estupenda, não acham?

     Maud inclinou a cabeça com a autoridade com que o Papa de Roma dava a sua bênção.

     - É uma idéia magnífica, Lisa. Siga em frente.

     - Estava certa de que teria prazer em saber disso - tornou Lisa, colocando de novo a erva na tigela. - É melhor decidir já tudo com o capitão e enviar um telegrama a Cyrus. -: Dirigiu-se para a porta, mas antes de a abrir deteve-se. - Realmente, devo a você esta descoberta, Maud. Se não tivesse permitido a minha vinda às Sereias, nunca a teria feito. Obrigada. As primeiras embalagens de Vitalidade, grátis e entregues a domicílio, pertencem-lhe desde já.

     Depois de Lisa ter saído, Maud sentou-se contemplando um pedaço de erva que retinha ainda na mão.

     Claire acendeu um cigarro e sacudiu o fósforo até a chama se extinguir.

     - Essa erva é assim tão boa? - perguntou ela.

     - Não - respondeu Maud. Claire endireitou-se, surpreendida.

     - Ouvi-a bem?

     - É inofensiva, absolutamente inócua, uma fraude quase e de pequeno valor terapêutico, segundo os farmacologistas de Rasmussen. As viagens de campo revelam sempre qualquer coisa... Na' nossa pátria, entre os índios, casca de cascara como laxativo; por estas bandas, cúrcuma como mezinha, ou hastes de kava, marindinum, como narcótico, para dormir. Porém, a maior parte destas plantas é de segunda ordem, verdadeiramente inútil. rPor. vezes, encontra-se qualquer coisa de valor. O quinino, por exemplo, da casca de cinchona. Descobrimo-lo por intermédio dos nativos do Peru e da Bolívia. - Sacudiu a cabeça. - Mas a puai... pouco depois de Paoti a mencionar pedi a Sam Karpowicz qtiè a procurasse e visse o que era. A sua força real reside na tradição. A magia da sugestão foi sempre mais potente do que as drogas nas sociedades primitivas. Os nativos acreditam que a puai lhes dá vigor; assim, desnecessário será dizer, Claire, que lhes dá mesmo vigor. Rasmussen, porém, nunca quis correr riscos, e tem, desde o princípio, feito o seguinte: mistura os ingredientes da puai com os ingredientes de bêche-de-mer...

     - Já ouvi falar dessa última, creio. Que é?

     - A bêche-de-mer? É uma planta marinha. Os nativos penetram cerca de um metro na água, e retiram-na dos rochedos, cortam-na, cozem-na e curam-na ao sol. É muito popular nas Fidji, de onde a exportam para a China. A bêche-de-mer é um estimulante mais forte. Morrell chamou-lhe a “voluptuária imoderada”. Sam Karpowicz diz que temos cem drogas que provocam os mesmos resultados. Nada sei sobre os processos de venda de um produto. Suponho que esta coisa tola terá o rótulo apropriado; além disso, não causará mal a ninguém. Os Hackfelds farão um bilhão de dólares e talvez se lembrem de patrocinar no futuro outras viagens de campo.

     - Se o puai é uma droga tão vulgar, Maud, por que disse a Lisa que seguisse em frente com a idéia... uma fraude quase, como a classificou?

     - Repito, minha querida: mal não fará a ninguém... e talvez faça algum bem. Pelo menos, estes nativos sentem-se mais jovens quando a tomam, o mesmo sucedendo com Lisa. Talvez ajude os outros da mesma maneira. Poderá converter-se num estimulante psicológico para os compradores.

     - Contudo, ainda não...

     - Outra coisa, Claire. Quando uma mulher chega aos quarenta, sente que tem realmente quarenta ou mais e é suficientemente sensata para se comportar de acordo com sua idade numa sociedade como a nossa que presta apenas atenção aos que têm vinte ou pouco mais, penso que ela devia ser encorajada a fazer qualquer coisa razoável que a mantivesse ocupada e ativa. Devia ligar harmoniosamente o coração e não pensar muito no corpo. Com a Vitalidade, Lisa será uma jovem de quarenta, não uma velha de quarenta, e também uma jovem de cinqüenta e de sessenta, e preencherá sua vida. Falo baseada na minha experiência, Claire. Um dia compreenderá. Lisa segue um caminho certo; encorajá-la-ei, pode ficar certa.

     Sentada defronte de Maud, escutando-a e fumando o seu cigarro, Claire começava já a compreender. Maud encontrara a sua própria puai: as Três Sereias. Claire sentia simpatia por ambas: Maud e Lisa. Tinha vinte e cinco anos, Lisa era quinze anos mais velha e Maud trinta e cinco. Apesar disto, sentia-se tão velha como elas, pois a idade não se reconhece só pelos anos mas também pelo sentimento de não se sentir desejada. Claire sabia que, tecnicamente, tinha vantagem: restavam-lhe mais anos para utilizar do número concedido, e portanto a promessa de uma mais larga permanência no planeta... a única e indesmentível arrogância dos jovens de vinte e trinta anos. Porém, esta vantagem não bastava, pois não sabia o que fazer dela. Demais, não tinha Vitalidade, e da viagem de estudo às Sereias pouco se beneficiaria, praticamente.

     - Bem, onde ficamos nós? - perguntou Maud. Claire pegou de novo no bloco e no lápis, mas antes que pudesse elucidar a sogra ouviu vozes no exterior, voz de mulher, depois de mulher e de homem, uma troca rápida de palavras e... Harriet Bleaska abriu a porta e entrou na sala, com uma expressão um tanto sombria.

     - Aquele Orville Pence, Maud... - murmurou. Então, apercebeu-se da presença de outra pessoa na sala. - Oh, olá, Claire. - Voltou-se para Maud. - Posso conversar com você a sós em qualquer ocasião, hoje? Necessito de seus conselhos e pensei...

     - Não há melhor ocasião do que a presente - interrompeu Maud.

     Claire ergueu-se imediatamente.

     - Deixo-as sós, já.

     - Muito bem, Claire - disse Maud. - Se quiser, poderemos continuar isto daqui a quinze minutos.

    

     Depois de Claire ter deixado a sala, Maud girou na cadeira e concedeu toda a sua patriarcal atenção ao mais feio dos seus pintainhos.

     - Falava de Orville Pence quando entrou - disse. - A conversa diz respeito a Orville?

     - Orville? - repetiu Harriet Bleaska. - Oh, ele... - Sacudiu a cabeça, dirigiu-se para o banco e sentou-se. - Ele cada vez me parece mais pateta. Não o consigo entender. E era uma pessoa tão simpática! Agora, volta e meia faz-me observações bastante sarcásticas. Há alguns momentos mostrou-se muito grosseiro para comigo, pegou-me num braço e tentou arrastar-me até algures para “conversarmos”. Disse-lhe que esperasse, pois tinha uma coisa mais urgente a discutir com você. Porém, ele mostrou-se de novo bastante rude. Assim, voltei-lhe simplesmente as costas e entrei.

     Enquanto a ouvia, Maud mantivera-se com a cabeça inclinada, condescendente.

     - Sim - disse por fim - estas viagens de estudo afetam por vezes alguns dos... dos componentes, adversamente. A mudança de ambiente, o esforço que fazem para se comportar de acordo com seus padrões próprios numa cultura totalmente diferente, pode conduzir algumas pessoas ao nervosismo mais extremo.

     Pensou na discussão que tivera durante a semana com Sam Karpowicz, a veemência dele no seu ataque ao ensino praticado nas Sereias, na cólera provocada pelo incidente na escola. Recordou-se também de uma troca de palavras, antes, com o próprio Orville, do pedantismo missionário que manifestara nos seus comentários sobre a sociedade das Sereias e sobre o caso de Harriet com o doente nativo que morrera. Mesmo Rachel DeJong, normalmente tão remota e objetiva, parecera fora de si durante toda a semana. E, por fim, pensou no seu próprio filho e a nora, que só exibiam a imagem da harmonia conjugai quando estavam publicamente juntos.

     Talvez tivesse chegado o momento, disse Maud de si para si, de impor sua autoridade como chefe do grupo, de os unir a todos, de fazer com que se libertassem das pressões que o estudo provocara, de os serenar com um dos capítulos aprendidos em passadas experiências. Todavia, eis aqui Harriet Bleaska, enfermeira, com suas preocupações, que teria de procurar compreender e se possível remediar imediatamente.

     - Bem, Harriet, não sei o que é que tem levado Orville a comportar-se tão mal com você - mentiu Maud. - Porém, se continuar assim, volte aqui que procurarei entender-me com ele.

     - Isso não será necessário - volveu rapidamente Harriet, um tanto aplacada. - Eu manobrá-lo-ei - acrescentou, rindo já.

     - Era para falar das impertinências de Orville que desejava falar comigo esta manhã? - perguntou Maud, tentando reprimir a impaciência produzida pela interrupção.

     - De fato, não. Vim aqui para... para ter uma pequena conversa confidencial com você, Maud.

     - Ah, sim. Então explique-se sem receio, Harriet. - Hesitou. - Preocupa-a alguma coisa?

     Harriet localizara um cigarro e acendia-o nervosamente. Esta manhã tinha um ar mais sombrio do que em qualquer dos outros dias, desde a chegada às Sereias.

     - Não tenho exatamente nada que me preocupe - disse Harriet por detrás da cortina de fumaça. - Quis apenas conversar com você sobre... sobre... Bem, com a sua experiência...

     Esperava, na expectativa do encorajamento de Maud.

     - Se a puder ajudar...

     - Na verdade, desejo que me preste alguns esclarecimentos. Tenho pensado... Você já fez algumas viagens de campo e conhece outras pessoas que também as fizeram. Já esteve aqui na Polinésia antes...

     - Sim, tudo isso é verdade.

     - Bem... Já ouviu falar de qualquer caso em que uma mulher, uma americana, após uma destas viagens de campo decidisse não voltar à pátria?

    

     Maud disfarçou uma exclamação (isto prometia) e continuou imóvel.

     - É uma coisa interessante - disse cautelosamente. - Como afirmei, a você e aos outros, conheci casos de mulheres que coabitaram com nativos, de quem por fim tiveram filhos. E lembro-me de que diversas antropólogas se estabeleceram numa nova sociedade, definitivamente. Quero acentuar, no entanto, que meus conhecimentos sobre isto são em segunda mão.

     - Bem, eu não pensava exatamente em antropólogas - disse Harriet. - Pensava em mulheres comuns... quer dizer, não especializadas. Para elas, seria mais fácil, não é verdade?

     - Não o posso afirmar, Harriet. Tudo depende da própria mulher. Além disso, as mulheres têm sempre motivos muito especiais. Com os homens, é diferente. Conheço muitos que se adaptaram à vida dos nativos, que aceitaram seus costumes.

     - Sim? - volveu Harriet com certa ansiedade. - Tornaram-se mais felizes? Quero dizer, conseguiram adaptar-se, realmente?

     - Nunca se sabe ao certo - retorquiu Maud. - Imagino que sim, pelo menos em alguns casos.

     - E conhece realmente casos desses?

     - Oh, decerto. Alguns parecem lendários e são discutidos ainda, sempre que os antropólogos se reúnem. Certo antropólogo partiu um dia para a Ásia exterior a fim de estudar a tradição budista. Uma vez lá, fascinou-o tanto o assunto, o povo, a vida, que se convrteu ao budismo e se tornou sacerdote. Presentemente, encontra-se talvez em algum convento de lamas. Outro, jovem ainda, depois de completar um estudo de campo na África Central, não quis voltar à América. Outro ainda partiu para a região dos índios pueblos a fim de estudar seus costumes, e por fim renunciou à sua vida antiga e juntou-se à tribo. Isto faz-me lembrar Frank Hamilton Cushing, um etnólogo de Pensilvânia. Cushing foi ao Novo México, para estudar os índios zunis, e publicou um livro, Os Mitos da Criação dos Zunis. Porém, sentiu-se tão fascinado pela vida ali que também abandonou tudo e passou a viver como um nativo. Com efeito viveu como um zufii até à data da sua morte, em 1900. Todavia, conheço um caso bem mais extraordinário... Já ouviu falar de Jaime de Angulo, de Berkeley, Califórnia?

     - Creio que não - volveu Harriet.

     - Conta-se sobre ele uma história, que não deve ser aceita na totalidade, mas que contém muita verdade, estou certa - disse Maud. - Jaime de Angulo nasceu na Espanha, de família castelhana, c teve uma infância verdadeiramente cosmopolita, pois viajou muito pela Europa com o pai. Diz-se que foi educado principalmente na França, vindo depois para os Estados Unidos, onde se licenciou em medicina pela Universidade John Hopkins. Após a licenciatura, partiu para a Califórnia, estudou com Kroeber e foi amigo de Paul Radin. De certo modo, era um lingüista, e escrevia maravilhosamente em espanhol, francês e inglês. Porém, era uma pessoa muito excêntrica. Dizia-se que por vezes passeava nu no quintal e em redor de sua casa de Berkeley ou se vestia como os nativos aqui das Sereias, o que horrorizava os vizinhos. Isto não interessa. O que importa é que ele fazia viagens de campo, estudava os índios do México e os índios da Califórnia. Escreveu um livro excelente sobre os dialetos de várias tribos americanas. Quando trabalhava entre os índios vivia como eles. Em dada altura considerou a vida destes nativos mais compatível do que a dos chamados civilizados da América. Assim, modificou por completo o seu padrão de vida. Tinha uma casa no Big Sur, mas quando decidiu seguir os costumes dos nativos transformou-a em qualquer coisa parecida com um hogan índio. Cobriu as janelas da casa, pôs um fogão no meio de Uma sala, abriu um buraco no teto, em estilo índio, e assava carne neste fogão; passeava nu como um pele-vermelha, cantava canções índias e batia em tambores índios. Converteu-se em índio talvez como vingança, mas de uma coisa estou certa; ele era feliz. Quando desejou estudar os costumes dos índios, Ruth Benedict escreveu a Jaime de Angulo, solicitando-lhe que a apresentasse a informantes que lhe pudessem explicar os ritos cerimoniais, etc. Jaime ficou indignado. Escreveu a Ruth Benedict: “Julga que é assim que se mata agora os índios?” Queria dizer, tanto espiritual como fisicamente. Acrescentou: “É o que vocês, antropólogos, com sua infernal curiosidade e a sua sede de elementos científicos, estão fazendo. Não conhece o valor psicológico da segregação num determinado nível de cultura?” Mais tarde tornou a escrever: “Não sou antropólogo mas meio índio, ou mais. Não se esqueça de que Cushing matou zunis. “ Eis alguns casos em que pode refletir, Harriet.

     - Pergunto-me por que motivo as pessoas que mencionou teriam modificado assim sua vida - volveu Harriet pensativamente.

     - Posso dar-lhe apenas a minha opinião, a opinião de uma pessoa experiente. Creio que todos os que, escolhem a vida nativa o fazem devido ao fato de não terem raízes fixas no exterior, quero dizer, na sua pátria. São pessoas, creio, às quais não satisfaz inteiramente a existência que viveram na pátria ou a quem desagrada a nossa civilização. Tom Courtney é um bom exemplo. De certo modo, ele cortou os elos que o ligavam, bem precariamente, à cultura em que nasceu. Devia falar com ele.

     - Já falei - retorquiu Harriet.

     - Já falou? - Maud mostrou-se surpreendida. - E que disse ele?

     - Isto: “O meu caso é bastante pessoal. Fale com Maud Hayden. Ela é imparcial. Tem muita experiência destas coisas.” Eis o motivo por que vim.

     - Lisonjeiam-me muito as palavras do Sr. Courtney. Porém, não conheço tudo, e a decisão final tem de partir de você, deve ser expressa por sua personalidade total. Os antropólogos que não quiseram voltar após suas viagens de campo acharam que a vida nativa proporcionava maiores satisfações. Afinal, a comunidade básica ideal é relativamente pequena. Para uma pessoa que trabalha numa pequena comunidade, como a aldeia das Sereias, que se integrou nela, que foi absorvida por ela, a separação é difícil. Se um observador participante vai para uma sociedade estranha, e fica seis semanas ou cinqüenta, é relativamente fácil voltar à sociedade de que proveio. Se fica dois anos, a separação é mais difícil. Se fica quatro ou cinco anos, como Cushing e Angulo, a vida da sociedade nativa torna-se a sua vida. Assim, se suas recordações sobre a vida na pátria deixam muito a desejar, o que encontra no campo pode parecer mais atraente. Normalmente, apegamo-nos aos novos amigos e detestamos deixá-los. Idealmente, um antropólogo não se deve converter em nativo. Deve manter-se fiel a seu trabalho. Deve- percorrer uma linha estreita, isto é, integrar-se, adaptar-se mas manter sempre certa distância, experimentar a vida do povo no seio do qual se encontra mas não se deixar seduzir por ela. Uma sociedade como a das Sereias é altamente sedutora. Num lugar como este, preciso de dizer constantemente a mim mesma que devo manter a minha identidade cultural. Faço por me recordar de que sou uma antropóloga, que faço parte de uma certa cultura que possui também uma tradição, e que devo viver segundo as normas dela. Faço por me recordar sempre de que não poderei ser uma boa antropóloga se não voltar à pátria com meu material, que devo analisar e publicar para uso do meu próprio povo. Porém, como não é antropóloga, você talvez não esteja especialmente interessada na ética, nos deveres da minha profissão.

     - Na verdade não estou - retorquiu Harriet com franqueza.

     Os olhos de Maud estreitaram-se, e ela fitou esta jovem feia com viva curiosidade.

     - O que diz, Harriet, é que está interessada apenas em você mesma, na maneira como poderá reagir em face da possível integração na vida nativa, no caso de ficar aqui. É isso que tem em mente?

     - Sim, Maud.

     - Bem, é uma coisa muito séria. Já refletiu bem nisso? Já pensou por que motivo está considerando esta modificação na sua vida?

     - Sim - disse Harriet em voz baixa. - É a única coisa que me resta fazer.

     - Creio que não a compreendo. Harriet respirou fundo.

     - Bem, encontrei o único lugar no mundo que me deseja. Pelo que sei, não existe outro. Decerto, nunca encontrei amor, calor, doçura, hospitalidade na América. - Fez uma pausa e continuou. - Parece ter apodrecido tudo na nossa pátria, Maud... uma coisa que talvez não conheça. Não sabe o que é crescer-se nos Estados Unidos e ser... bem, ser uma moça sem atrativos. Lá tem de se ser bela como uma estrela de cinema ou, pelo menos, possuir um bom palmo ae cara ou de corpo. De acordo com os padrões que os homens seguem na nossa pátria eu sou zero, menos que zero. Nenhum homem me olha duas vezes, e muito menos sai comigo... ou se casará comigo. Quando na escola, nos hospitais, os rapazes tiveram conhecimento de que não me importava de ir para a cama com um qualquer... tinha de fazer alguma coisa para arranjar companhia, começaram a requestar-me, sim. Depois souberam que eu era melhor do que as outras moças, isto é, que era mais artista na cama, e não tive mais dificuldades em conquistá-los. Mas a ligação não passava da cama, estava circunscrita a ela. Alguns homens mostraram-se tão seduzidos por minha capacidade em dar prazer que conseguiram criar a ilusão de que me amavam, de que gostavam de mim como mulher. Por vezes chegavam a dizer-me que se casariam comigo. Todavia, no fim sucedia sempre o mesmo: preferiam uma mulher com uma cara e um corpo que pudessem exibir, ainda que fosse uma autêntica pedra na cama. Assim, que me espera, se voltar? A que volto eu? A mais hospitais, clínicas, a mais imundos e solitários apartamentos, até que um jovem ou um velho médico descubram que sou fácil, que sou boa na cama. Sabe ao que renuncio se partir, Maud? Compreende o que quero dizer?

     Um tanto impressionada, Maud inclinou lentamente a cabeça.

     - Sim, compreendo, Harriet - respondeu ela.

     - Aqui, sinto-me quase no paraíso. Aqui, a minha cara e meu corpo não contam. O que conta é o calor, o afeto que transmito, o fato de gostar de amar e de ser amada. E estes maravilhosos idiotas acharam que eu era bonita. Imagine, rainha do festival. Eu! E não porque seja a maravilha criada no nono dia; refleti nisso também. Sou uma estranha, branca, diferente, e faço bem o que é importante aqui, mais importante do que parece. Tenho-me perguntado o que sucederá quando deixar de ser maravilha criada no nono dia, quando for uma como as demais, vivendo esta existência ano após ano. E sabe, Maud, penso que seria ainda bom. Vejo como os homens tratam aqui as suas mulheres, conheço a liberdade de que elas gozam. Não é nada que se compare com o que se passa no nosso país. - Respirou profundamente. - Bem, não quero importuná-la mais. Afinal, vim aqui para dizer apenas uma coisa. Na última semana recebi uma dúzia de propostas de casamento, verdadeiras, autênticas. Porém, houve um jovem que me impressionou deveras. É uma pessoa séria, que supus reservado, frio; no fim das contas, mostrava-se assim porque me amava e tinha receio de não ter muito que me oferecer. De qualquer modo, o festival desinibiu-o, e enviou-me o colar; encontrei-me com ele, falamos, falamos e nada mais. E, sabe, propôs-me casamento na noite passada... deseja que eu seja sua mulher para sempre. Sabe de quem estou falando? De Vaiuri, o médico prático, a pessoa com quem tenho trabalhado na enfermaria. Ele é inteligente, culto, de acordo com os padrões das Sereias, atraente; está apaixonado por mim e deseja que eu fique aqui para sempre. Bem, isto sempre é qualquer coisa. Todavia, não lhe dei uma resposta definitiva porque... porque detesto o lugar de onde vim, daquilo que provenho, e porque sou ainda uma moça americana. Ao mesmo tempo parece estranho estar-se aqui, separada da chamada civilização. Assim, não sei, sinto-me confusa, incapaz de decidir. Portanto, quis ouvir o que você tinha para dizer acerca de tudo isto. Imagino que ninguém me pode ajudar. Eu é que tenho de tomar as minhas próprias decisões.

     Maud sentia-se verdadeiramente comovida. Um estranho instinto, nela, queria gritar a esta moça solitária: “Fique aqui, por amor de Deus; fique aqui e não regresse ao lugar de onde veio, fique aqui e conheça a autêntica aceitação e a verdadeira felicidade. “ Contudo, Maud não podia tomar o papel de conselheira dos corações solitários. O seu treino fizera dela uma observadora, e não ousava penetrar intimamente na vida de outrem. Conteve-se o melhor que pôde.

     - Sim, Harriet, compreendo que a proposta de Vaiuri é encantadora, e que a vida nas Sereias poderia ser bem mais aceitável do que a vida na nossa pátria. Deve encarar tudo de maneira realista e decidir pelo melhor. Porém, como pensou, não quero aconselhá-la. Deve tomar sua própria decisão sem interferência estranha. Se resolver ficar, ajudá-la-ei em tudo o que for possível. Se resolver voltar conosco à América, estarei sempre à sua disposição, auxiliá-la-ei no que puder.

     Harriet estava já de pé; Maud ergueu-se também, por deferência com o problema de Harriet, com o drama de Harriet.

     A jovem sorriu e disse:

     - Obrigada, Maud, por se ter mostrado tão razoável. Comunicar-lhe-ei o que decidir.

     - É uma pessoa sensata, Harriet - disse Maud. - Sei que fará o que for melhor para você.

     Harriet inclinou a cabeça num gesto de aprovação, abriu a porta, que depois fechou com respeito, e penetrou no conjunto da aldeia, uma verdadeira fornalha.

    

     Ao aproximar-se da cabana de Claire, Harriet abrandou o passo, com a intenção de ver se ela estava lá dentro. Agora que se abrira, o seu dilema tornara-se menos secreto. Desejara que Claire tivesse permanecido na sala com Maud. Neste momento, desejava visitar Claire, falar sobre a proposta de casamento com alguém da sua idade, ouvir o que Claire poderia ter para dizer. Claire, porém, mostrara-se reservada, distante, durante a semana anterior, e talvez tivesse coisas que a preocupassem; assim, Harriet decidiu ir à cabana seguinte. Rachel DeJong poderia estar, e, se estivesse, talvez a aconselhasse, como psicanalista, no que fosse possível.

     Quando se encontrava entre as cabanas de Claire e de Rachel, Harriet viu uma figura na sombra, encostada ao lado da última das duas cabanas. Ao verificar que era ela que se aproximava, esta figura - não era outro senão Orville Pence - abandonou a sombra e aproximou-se.

     - Harriet, preciso falar com você - disse Orville com a entonação de quem se prepara para dar uma reprimenda. - Tem tentado evitar-me... Contudo, direi o que tenho a dizer.

     - Não tenho tentado evitá-lo. como julga, Orville, mas evito-o agora, pois não tolero a sua grosseria. Não sei o que se meteu na sua cabeça.

     - Lamento que tenha dado essa impressão. No entanto, desejo apenas ajudá-la. Tenho de ajudá-la.

     Pela primeira vez, Orville despertava o interesse de Harriet. Ela procurava conselho, e aqui estava uma pessoa que, a despeito do seu indesejável comportamento, o oferecia. Submeteu-o à sua curiosidade.

     - Muito bem - disse Harriet -, mas acho melhor sairmos do sol. Vamos para a sombra.

     Penetraram no espaço entre as duas cabanas e detiveram-se, um em face do outro.

     Harriet viu os olhos de Orville fixos no seu rosto, como se ele perscrutasse o que ia nela. Esses olhos, porém, começaram a perturbá-la, pelo que resolveu tomar a iniciativa.

     - Disse que queria falar comigo, Orville! Acerca de quê?

     - Sei tudo! - exclamou ele, com certa ferocidade.

     Harriet sentia-se mais do que perplexa. Estava verdadeiramente espantada. Como é que ele poderia saber? Não falara do seu problema a ninguém, com exceção de Maud, e isso poucos minutos antes. Ocorreu-lhe então que Vaiuri confessara tudo a Orville ou talvez a seus amigos nativos, que por sua vez se abriram com Orville.

     - Como sabe? - perguntou ela.

     - Ora, toda a gente está a par dos fatos na aldeia.

     - Bem - volveu ela, na defensiva -, é verdade. Não é coisa de que me envergonhe. De fato, sinto orgulho nisso.

     - Orgulho?! - tornou a exclamar Orville, a voz trêmula, os olhos arregalados.

     - Por que não deveria sentir orgulho? - perguntou Harriet. - Ele é um dos homens mais educados e mais importantes da aldeia. Não é um selvagem. Respeita-me. Terei orgulho em ser sua mulher.

     Harriet nunca vira um homem fulminado por um relâmpago, mas Orville dava a impressão de p ter sido. Seus espasmos faziam supor que uma violenta carga elétrica lhe penetrara no corpo.

     - Mulher? - repetiu estupefato. - Vai casar-se com um deles?

     A confusão de Harriet tornou-se ainda maior.

     - Não sabia? Afirmou que toda a gente fala de mim. Pensei que se referia à proposta de Vaiuri. Que tem em mente?

     - A proposta de Vaiuri?

     - Orville, se não deixar de papaguear tudo o que eu digo afastar-me-ei de você imediatamente - disse ela com indignação. - Desejaria que se ouvisse a si mesmo. Mas que diabo de coisa o abalou dessa maneira?

     - Referia-me a seu romance com Uata, o nativo que morreu...

     - Oh, isso - volveu ela, com indiferença. Ele agarrou-ai de novo por um braço.

     - Espere um momento! Como ousa falar com tanta despreocupação de uma coisa dessas? Tem sido motivo de conversa em toda a aldeia. O caso chegou mesmo a meus ouvidos, através dos nativos. Nunca me senti tão chocado... uma moça educada, com tanta decência nos Estados Unidos... deixar-se seduzir por um ignorante... por um primitivo...

     A surpresa de Harriet converteu-se em irritação.

     - Ele não me seduziu, seu pateta; fui eu que o seduzi. E tive prazer nas nossas relações, sim, tive prazer, e voltarei a fazer o mesmo com outro qualquer.

     Orville vacilou ante a cólera manifestada por Harriet e retirou a mão do braço dela. Com a incredulidade e o espanto estampados nos olhos, encostou-se à cabana como se ao Muro das Lamentações.

     - Você não sabe... não sabe o que diz - tartamudeou ele. - Enfeitiçaram-na...

     Naquele momento, compreendeu toda a verdade sobre aquele pobre professor solteirão e teve pena dele.

     - Orville, lamento tê-lo decepcionado. Não fazia idéia de que estava interessado na minha pureza. Mesmo que conhecesse então seus sentimentos teria dormido com Uata, pois ele estava morrendo e necessitava de alguém. Por que é que isso o preocupa tanto?

     - Penso no... no grupo... na nossa dignidade... na nossa posição, aqui.

     - Bem, Maud disse que fortaleci a nossa posição aqui; assim, não tem com que se preocupar.

     De súbito, Orville pousou de novo os olhos no rosto dela.

     - E agora - disse ele -, se meus ouvidos não me enganam, vai casar-se com um nativo...

     - Tenho refletido nisso, é verdade. O médico prático com quem trabalho propôs-me casamento, o que me lisonjeou bastante.

     - Harriet, você não pode... Perderá sua nacionalidade, como americana.

     O que ele decidira dizer era tão cômico que Karriet sentiu vontade de rir.

     - Escute, Orville, que me importa a minha nacionalidade? Que é que ela já me trouxe? Um americano verdadeiramente homem? Uma proposta de casamento? Um lar e filhos? Amor? Nada obtive com o meu título de cidadania a não ser algumas excursões com acrobatas sexuais americanos que recusaram fazer de mim uma mulher honesta. Bem, isso não é o suficiente para mim. A companhia é uma coisa bonita, mas não a desejo apenas à noite. Desejo-a de dia e de noite. Além de mulher, quero ser esposa e mãe...

     - Casarei com você! - exclamou Orville.

     Harriet Bleaska engoliu o resto da frase e ficou de boca aberta olhando-o.

     - Falo com sinceridade - bradou Orville. - Casarei com você e terá um lar e filhos.

     O seu orgulho subiu-lhe à garganta, mas ela engoliu-o também.

     - Quê?! - volveu ela quase num murmúrio. - Deseja salvar uma alma, erguer uma mulher caída?

     - Sinto ciúmes de todos eles - retorquiu Orville com veemência. - Sinto ciúmes de todos eles e não permitirei que fiquem com você. Quero levá-la daqui, desejo-a para mim. Nunca estive apaixonado, mas também nunca senti o que sinto agora... Deste modo, imagino que é amor...

     Ela aproximou-se mais do companheiro, cheia de compaixão.

     - Orville, compreende o que está dizendo?

     - Sim. Compreendo muito bem. Não permitirei que desperdice sua vida com esse tal médico prático. Merece mais. Poderei fazê-la feliz.

     - Quer levar-me para... para... onde é? Ah, sim, Denver. Quer casar-se comigo?

     - Nunca fiz uma proposta destas a qualquer outra moça. Uma vez estive prestes a fazê-la, mas minha mãe...

     - A sua mãe, a sua família... Que é que disse?

     - Não importa. O fato de me afastar da minha família obrigou-me a pensar. Harriet, não consinto que se entregue àquele nativo, porque...

     - Um momento, um momento, Orville. Está indo muito depressa. Durante um quarto de século tenho sido candidata ao eterno celibato, mas de um momento para o outro, zás, eis-me a considerar algumas propostas. - Fitou-o por um momento, pensativa. Viu-se no seu papel de esposa de Vaiuri, nas Sereias, e no seu papel de Sra. Pence, em Denver; isto fê-la vacilar, enervar-se. - Orville - tornou ela começando a conduzi-lo até à sua porta -, antes mesmo de poder pensar em... É melhor sentarmo-nos... Farei chá e conversaremos... Sim, é melhor conversarmos um pouco...

    

     Habitualmente, quando trabalhava na câmara-escura, Sam Karpowicz esquecia-se das convenções do mundo exterior. Para ele, as câmaras-escuras da sua vida, fossem elas rudes cabanas nas Fidji ou no México, ou a mais apetrechada da sua casa de Albuquerque, ou mesmo aquela em que se encontrava nesse momento nas Três Sereias, eram cápsulas isoladas onde o Tempo estava suspenso. Nas suas câmaras-escuras, absorvido nas imagens que extraíra ao mundo de Deus, onde tudo era fluido e imemorial, e debruçado sobre o papel onde tudo estava imóvel e era imortal, Sam escapava-se às sessões e às banalidades da existência. Nas suas câmaras-escuras não havia reuniões, festas, competições, conluios, vácuo, comestíveis.

     Portanto, só muito raramente, pensou Sam enquanto lavava as provas de contacto e as punha a secar, sentia no estômago o vazio provocado pela fome. Quando aproximou o relógio de pulso da lâmpada de segurança amarela, a hora confirmou o vazio que sentia agora no estômago. Passavam trinta minutos do meio-dia, o que queria dizer que Estelle estava à sua espera com o almoço; e ele desejava almoçar, porque, com exclusão do suco de fruta que bebera de um trago de manhã cedo, não ingerira fosse o que fosse nas últimas quinze horas.

     Acordara ao romper do dia, e fora incapaz de adormecer de novo; deixara Estelle dormindo e a sua perturbada Mary atrás da porta, continuamente fechada, do segundo quarto de dormir nos fundos da cabana, e dirigira-se para as colinas da aldeia. Fora sua intenção cortar algumas plantas antes de se instalar na câmara-escura. Mas a botânica não o tentara esta manhã. Assim, limitara-se a errar pelo descampado recriminando as Fúrias que o tinham enviado para este lugar imundo.

     Desde a sua súbita entrada na sala de aula, a filha não lhe dirigira uma só palavra, ou, pelo menos, uma palavra cortês. Mary falara, supunha, pouco mais com a mãe. Fechara-se no seu quarto, recusando comer com os pais ou mesmo sair com eles, e aparecia apenas algumas vezes por dia para ir ao banheiro. Mantivera sempre cerrada a porta, mas Sam ouvia de quando em quando a música do fonógrafo e o ruído produzido pelas páginas de um livro ao serem voltadas.

     Tão confiante estava na justiça da sua causa, que justificara a sua ação perante Estelle, a qual recusara aliar-se inteiramente a ele. Ao mesmo tempo, com a esperança de conseguir restabelecer a paz no lar, a mulher recusara também defender a causa de Mary. Melhor, desempenhara o papel de uma instituição neutra de certa espécie, pronta a aceitar duas causas diferentes sem contudo as julgar, de modo que pudesse reconciliar os desavindos. Sam adivinhara que Estelle procedia assim, mas também adivinhara que, intimamente, era menos neutra do que fingia ser. Suspeitava de que ela manifestava mais simpatia pelo agravo da filha do que pela afronta do marido. Contudo, não podia dizer quais fossem exatamente os sentimentos de Estelle, pois ela não os exprimira, nem ele a convidara a fazê-lo.

     Durante a semana do festival, à medida que seu rancor inicial por esta sociedade erótica se desvanecia lentamente para se converter em maior objetividade, Sam chegara à conclusão de que tudo se resolveria por si. Daí a três semanas, quando se afastassem da atmosfera doentia da ilha, recobrariam o bom senso. Mary mostrar-se-ia mais razoável, compreenderia que o pai agira para seu bem e nos seus interesses e tomar-se-ia mais submissa. Conversariam com calma. Tudo se resolveria no que o Dr. Pangloss dissera a Cândido ser o melhor dos mundos possíveis.

     Deste modo, caminhando e pensando durante o começo da manhã. Sam Karpowicz estabelecera uma trégua com sua consciência inquieta. Uma vez alcançada esta temporária paz de espírito, descera à aldeia e dirigira-se para a câmara-escura.

     Desde então ocupara-se com a revelação de suas provas, até que o estômago vazio decidiu recordá-lo de que era apenas um simples mortal. Poderia não ter dado importância à sua fome e continuado a realizar esta tarefa se as suas forças não tivessem começado a dar de si em virtude do calor excessivo. Na câmara-escura, um pouco mais ampla do que uma dispensa, fazia sempre bastante calor devido ao fato de se achar sempre acesa uma lâmpada sob a caixa que continha os seus espécimes botânicos. Agora, porém, a atmosfera estava irrespirável. Inalar o ar viscoso era como engolir línguas de fogo. Por hoje, bastava, disse de si para si.

     Depois de pendurar a última das provas, afastou-se da lâmpada de segurança e saiu para a luz ofuscante da aldeia. Desviou-se do sol, procurou seus óculos de lentes verdes, que encontrou no bolso das calças, e colocou-os sobre os óculos de grau, sem aros. Agora podia ver, e embora se sufocasse também aqui fora, ao menos podia-se respirar.

     Começou a descer o caminho entre a cabana de Lisa Hackfeld e a sua e dirigiu-se para a porta da frente, que dava para o conjunto. De súbito, ficou espantado ao ver um rapazote nativo, talvez da idade de Mary, sair da cabana dos Karpowicz. Sam tirou rapidamente os óculos escuros, para ver melhor, e reconheceu Nihau na figura que se afastava, Estelle falara-lhe dele e apontava-o uma vez - o colega de Mary na imunda escola da aldeia.

     Instantaneamente, Sam Karpowicz sentiu-se possuir pela cólera. Ordenara a Mary que tirasse para sempre do pensamento aquela maldita escola. Advertira Estelle de que nem o professor de Mary nem qualquer dos colegas, incluindo Nihau (cujas atenções tinham sido corruptoras), deveriam visitar a jovem ou pôr o pé na cabana durante o resto da sua estada nas Sereias. E agora, em flagrante desafio do seu edito, Mary ou Estelle, ou ambas, tinham dissimuladamente recebido o nativo.

     O primeiro impulso de Sam foi perseguir o intruso, pôr-lhe as mãos em cima e admoestá-lo com suficiente energia. Talvez assim evitasse que, de futuro, até à partida daquela comunidade ofensiva, cessassem as visitas indesejáveis. Sam dominou o impulso por duas razões: no ponto em que se encontrava, entre as duas cabanas, era impossível ver a porta da frente; deste modo, não tinha certeza de que Nihau saíra da sua cabana. Mesmo que Nihau procedesse da sua residência temporária, Sam não sabia se ele fora convidado ou se se intrometera, se fora recebido com satisfação ou com hostilidade. Qualquer confrontação com Nihau poderia, assim, enfraquecer sua posição ou fazer com que passasse por louco. Era melhor apurar primeiro a verdade. Se os fatos provassem que Nihau violara a santidade do seu lar, tentara atrair Mary de novo àquela escola imunda ou a qualquer encontro íntimo, Sam torceria o pescoço do jovem animal ou denunciá-lo-ia a Maud e a Paoti Wright. Por outro lado, se Mary ou Estelle tivessem convidado o jovem nativo a ir a sua casa, qualquer delas, ou ambas, ouvi-lo-iam imediatamente.

     Decidido a invocar sua autoridade, Sam entrou na cabana; porém, fê-lo com tanta impetuosidade que quase derrubou Estelle, que teve de se agarrar a ele a fim de não perder o equilíbrio.

     Quando se refez da surpresa provocada pela entrada brusca do marido, Estelle disse:

     - Ia sair à sua procura, Sam. Onde esteve durante todo este tempo?

     - Na câmara-escura - volveu ele com impaciência. - Estelle, desejo que...

     - Na câmara-escura? Estive lá três ou quatro vezes, mas não o vi.

     - Acabemos já com esta conversa sobre a câmara-escura. Estive... Não, espere, esqueci-me... Levantei-me mais cedo e dei um grande passeio... mas passei lá a última hora...

     - Bem, na ultima hora não o procurei lá. Tenho estado muito ocupada. Sam, escute...

     - Estelle, você é que tem que me escutar - disse ele, indignado, por se ver afastado do seu objetivo devido às frivolidades da mulher. - Sei por que tem estado ocupada durante a última hora. Recebeu aqui em casa aquele maldito nativo, desrespeitando a minha vontade. Não o negue.

     Estelle empalideceu. Sam ficou surpreendido, nestes segundos de verdade, por ver que a lividez do rosto da mulher a fazia parecer mais gasta e mais velha.

     - Sim - retorquiu ela, era voz alta -, Nihau esteve aqui. Acaba de sair. Sam, eu...

     - Claro, eu sabia - rugiu ele - que na primeira oportunidade você vestiria as calças da família. Está convencida de que só você é que sabe o que é justo, o que é melhor. O que se passa na cabeça das mães do nosso país? Por que estão elas tão convencidas de que sabem o que mais convém aos filhos? Parece que o pai não existe. Parece que o pai é um cidadão de segunda ordem, como os servos nos campos, que só prestam para colher o pão de que se alimenta a família, mas que não têm ordem para levantar um dedo ou para dar uma palavra aos filhos. Bolas para isto. Tem de compreender que disponho de um voto nesta casa, um voto talvez mais importante do que o seu, pelo menos no que toca à Mary. Se visse o que observei naquela escola, aquela indecência em frente de uma criança de dezesseis anos, você cuspiria na cara de qualquer desses pequenos animais, do Nihau em especial; expulsá-lo-ia daqui e não o convidaria a vir aqui praticar com a nossa filha a imundície que aprende. Vou entrar no quarto e dizer isto também a Mary, pois estou farto da sua obstinação. Chegou o momento de impor respeito nesta casa e...

     - Sam... cale-se!

     A exclamação de Estelle penetrou Sam como uma bala disparada à queima-roupa. Ficou de olhos esbugalhados, espantado, verdadeiramente ferido. Durante os longos anos do seu casamento, Estelle jamais falara num tom de voz tão desrespeitoso. O mundo parecia que se aproximava do fim e a desintegração devia ser tão terrível que estava sem fala.

     Estelle começou a falar.

     - Entrou aqui como um doido furioso, sem cuidar de saber o que se passava, mais selvagem do que os selvagens. Como um doido furioso, sim. Não sei o que é que se meteu na sua cabeça. Sei apenas que a partir do momento em que entrou na sala de aula e viu sua filha observando um homem e uma mulher, gente decente, despidos numa lição de anatomia, perdeu o juízo. Para que isto, Sam?

     Ele não conseguiu responder porque a rebelião inesperada, o golpe de estado súbito o fizera vacilar. Onde estavam as suas munições?

     Implacavelmente, aquele bandido feminino continuava a minar a autoridade doméstica.

     - Decerto, Nihau esteve aqui, e não. pergunta por quê? Decerto que o procurei, e não quer saber por quê? Não, só sabe gritar como um louco, como se alguém tivesse dado um pontapé no seu ventre. Talvez precisasse disso. Talvez eu o faça. Preferiu atormentar-me e desejou ir depois ao quarto dos fundos atormentar Mary. Já pensou mesmo em perguntar se ela está lá? Agora, vou dizer-lhe a verdade, pobre louco. Ela não está no quarto. Não está nesta casa. Foi-se embora. Ouviu bem? Foi-se embora, fugiu, como nas histórias em quadrinhos. Fugiu de casa.

     Seus olhos profundamente sombrios rolaram atrás das lentes grossas dos óculos; da paralisia emergiu uma só palavra:

     - Mary?

     - A nossa Mary, a sua Mary, a minha Mary, fugiu. - Estelle procurou no bolso da frente do vestido de algodão que usava em casa. Tirou um pedaço de papel e passou-o a Sam. - Olhe para essa nota de despedida. - Sam pegou nele, embora Estelle recitasse o seu conteúdo: “Já sofri o suficiente. Não me compreendem e eu nunca compreenderei vocês. Fujo. Não tentem procurar-me. Jamais voltarei. Mary.”

     Estelle tirou aquela nota infantil dos dedos inteiriçados de Sam e tornou a colocá-la no bolso. O marido parecia encontrar-se ainda estupidificado. Contudo, ela prosseguiu agora com mais suavidade.

     - Eis como são as coisas. Ela é um bebê, como você é um bebê. Precisava de fazer qualquer coisa para nos punir, a você por sua loucura e a mim por me manter neutra em vez de me pôr do seu lado. Assim, foge, após uma semana de casmurrice, de obstinação. Desperto. A nota está junto de mim. O quarto dela está vazio. Você não se encontra em casa. Ela devia ter esperado que você partisse e fugido em seguida. Para onde, não sei. Tento toda a manhã encontrá-la. Em vão. Ponho-me a pensar. Que devo fazer? Procuro Maud Hayden. Ela manda chamar Courtney. Dirigimo-nos ao chefe. Ele concorda em enviar um grupo em busca de Mary. Isto, há duas horas. O jovem nativo que esteve aqui, Nihau... devíamos ter jovens como ele em Albuquerque... vem aqui dizer-me que a busca prossegue. Quatro grupos seguem em outras tantas direções e ele, Nihau, faz o que pode.

     Sam começou a sacudir a cabeça. Sacudiu a cabeça durante dez segundos, antes de readquirir a fala.

     - Quase que não acredito - disse.

     - Mas é tudo verdade - retorquiu Estelle. - Ela tem dezesseis anos, é quase uma mulher. E além de ter dezesseis anos está furiosa por a ter humilhado, repudiado... O seu querido paizinho, para quem ela sempre se voltava e de quem recebia sempre apoio, repudia-a, humilha-a. Assim, vinga-se.

     - Que fazemos agora? - perguntou Sam, cheio de cólera. - Ficamos apenas aqui parados, falando?

     - Sim, é o que faremos, Sam. Aonde é que quer ir? Não conhecemos este lugar. Só aumentaremos a confusão ou acabaremos por nos perder, e eles terão ainda que enviar um grupo à nossa procura. Demais, prometi ficar aqui...

     - Que é que se meteu na cabeça dela? - interrompeu Sam. Começou a andar pela sala. - Fugir de casa, meu Deus...

     - Isto pouco me preocupa - disse Estelle. - Não estamos na América, mas numa pequena ilha. Para onde é que ela pode ir?

     - Mas é capaz de... de cair num buraco... de ser atacada por um animal, um porco selvagem, um cão raivoso... de morrer de fome...

     - Isso pode suceder. Contudo, nem mesmo assim estou preocupada. Os nativos conhecem bem toda a sua ilha. Encontrá-la-ão... Preocupa-me menos a Mary do que o pai dela.

     Sam deteve-se.

     - Que é que quer dizer com isso?

     - Que a encontrarão mais cedo ou mais tarde e que a trarão para casa sã e salva. Todavia, quando a levarmos para Albuquerque, para junto do seu grupo de estróinas, que sucederá? Agora, temos uma rebelde que deseja enfrentar-nos, vingar-se, mostrar que é alguém, e tudo poderá acontecer a não ser que o juizo volte à cabeça do pai.

     - Ah, sou eu que mereço censuras, que tenho culpa de tudo, hem?

     - Não disse que você merecia censuras. Mas desde que chegamos aqui, Sam, em especial desde a semana passada, você e sua filha começaram a desavir-se. Tem de recobrar o juízo, para que Mary recobre o seu.

     Sam abateu o punho sobre a palma de uma das mãos.

     - Mantenho ainda a minha... Procedi com sensatez na sala de aula. Como podia um pai agir de maneira diferente? Estelle, se estivesse no meu lugar...

     Estelle levantou majestosamente a mão, para o deter, como Marco Antônio fizera no Fórum para conter a multidão, quando do funeral de Júlio César. Hipnotizado pelo gesto clássico, Sam quedou-se imóvel.

     Com a mesma veemência, Estelle dirigiu-se de novo ao marido:

     - Sam, deixe-me falar por uma vez, e escute. - Fez uma pausa e continuou: - Sam, analise os seus sentimentos. Perscrute o seu coração. Durante anos, mostrou-se progressista, liberal e foi sempre bastante convincente. Posso dizer que me moldou, e sinto orgulho por sermos como somos. Lemos todas as revistas, todos os livros, sem cuidar da sua origem. Vemos filmes, programas de televisão de todo o gênero, vamos a conferências, acolhemos toda espécie de gente em nossa casa. No que se refere à política, ao sexo, à religião, somos liberais. É verdade? Bom. De súbito, do dia para a noite, vemo-nos num local onde as conversas são raras, os livros inexistentes... num local onde um homem chamado Wright, só Deus sabe quando, disse: “Pratiquemos em vez de pregar.“ Assim, aqui, as pessoas fazem coisas, vivem numa só comunidade, começam a adquirir experiência sexual a partir de tenra idade, criam as crianças livremente, sem inibições, uma coisa que para nós nunca passou de teoria. Talvez tudo isto esteja errado. Talvez as teorias devam ser somente teorias, pois quando se tenta pô-las em prática nada dá certo. Deste modo, eis-nos nas Sereias, e muitas coisas em que você acreditava, a respeito das quais lia, conversava, são aqui praticadas. E, de súbito, do dia para a noite, nada presta. De súbito, quando se trata do sexo, da educação, você começa a agir como um pedante preconceituoso como Órville Pence. Dele, rimos. Mas você será diferente de Orville? Não quero acreditar que revele agora a sua verdadeira identidade, que tivesse destruído o homem com quem me casei, o homem com o qual tenho passado a minha vida. Sam, vou recordar-lhe uma coisa: quando éramos jovens, em Village, desejou dormir comigo antes de casarmos...

     Os olhos de Sam obscureceram-se. Protestou:

     - Estelle, isso era absolutamente diferente, e você sabe bem disso. Tínhamos certeza de que nos casaríamos. Era uma questão de eu acabar o curso...

     - Sam, dormimos juntos durante anos sem sermos casados... E se tivesse sobrevindo alguma coisa que impedisse o nosso casamento? Assim, lá se ia a minha virgindade, o marido que não era meu marido, e eu, Estelle Myer, a filha do meu pai, uma jovem que um dia teve dezesseis anos e dormiu...

     - Continuo a dizer...

     - Diga o que quiser, que somos uns grandes liberais, bem diferentes dos pedantes como Orville Pence, pessoas que não falam apenas, mas que fazem... Era eu muito diferente da nossa filha? Papai, que a sua alma esteja em descanso, se soubesse que eu ia à escola para ver órgãos sexuais e observar as posições do coito, ter-me-ia levado por uma orelha, espancado, e esmurrado o nariz do professor e processado a escola. Mas se descobrisse que eu vivia em Village, uma virgem, uma criança, a sua filha, e permitia que um jovem chamado Sam Karpowicz, que ele nunca vira mais gordo, saltasse para a minha cama todas as noites, ter-lhe-ia morto, a você e a mim, a nós ambos. Não digo que ele tivesse razão. Era antiquado, um velho de vistas estreitas, um pouco ignorante, que lia apenas o Velho Testamento e o Almanaque Mundial; porém, nós somos de outra geração, mais progressista, liberal, e devíamo-nos mostrar mais razoáveis, mais sensatos. Assim, como se comporta o novo papai em relação à sua querida filha, que não dorme com ninguém e vai apenas à escola aprender anatomia e sexo, mas que sente pudor em lhe contar tudo o que vê? O novo papai humilha-a diante de todos. Não manifesta a menor réstia de tolerância. Praticamente, expulsa-a de casa. Isto é ser liberal?

     - A acreditar nas suas palavras, não passo de um monstro terrível...

     - Como meu pai - interrompeu Estelle.

     - Mas não o sou - insistiu Sam. - Sou o que sempre fui. Apesar do que aconteceu, sou um homem de vistas largas, progressista, que pensa no bem de todos...

     - Exceto quando se trata da sua filha, Sam. É aí que termina o senso comum e começa o ciúme. É o princípio e o fim de tudo, Sam, e aposto que a Dr.a DeJong confirmaria todas as minhas palavras. É progressista e tem ciúmes da nossa Mary. Pense nisto, Sam. Recorde o passado. Quando a nossa Mary tinha seis anos, sete, você se sentia feliz quando a abraçava, quando a tinha junto de você, quando a beijava por isto ou por aquilo. Durante algum tempo, ela procurava fugir de você, como uma pequena enguia, e quando falou nisto ao Dr. Brinley ele lhe disse a verdade nua e crua. Recorda-se? Disse que ela não, fugia de você, mas dos seus sentimentos. Ela não podia confiar nos seus impulsos sexuais, já então despertos, e escapava às suas carícias, demasiado vivas.

     - Estelle, isso não vem agora ao caso...

     - Mas vem, Sam. Ela tem dezesseis anos, é quase uma mulher, e trata-me como se eu fosse uma criatura obtusa, uma pedra. Neste mundo, só poderá confiar numa pessoa, escutá-la, e essa pessoa é o seu querido pai. Mas ela está crescendo ainda, e os dezesseis anos não são os seis. Contudo, trata-a como se tivesse seis, sete, oito, porque não quer que ela se aparte de você. Tem receio de a perder, que ela se torne independente, que aprenda o que deve para se fazer uma verdadeira mulher. O que aconteceu aqui prova a verdade de minhas palavras.

     - Que disparate!

     - Que disparate, diz você. É a verdade, eu sei. Tudo para mim é claro. Enquanto o seu próprio ser não correr riscos, você pode ser o grande, o generoso liberal. Tivemos tudo em casa. Constituímos o casal feliz por excelência. Tudo nos é familiar. New Masses. Emma Goldman. Sacco-Vanzetti. Henry George. Veblen. Eugene Debs. John Reed. Lincoln Steffens. Bob La Follette. Populistas. Legalistas espanhóis. New Deal. Kinsey. Sempre concordei que as suas idéias eram as melhores, mas nunca perguntei o que resultaria delas se fossem submetidas a um teste. Investiu todo o seu dinheiro na nossa casa. Porém, o que faria você se os negros ou os porto-riquenhos se mudassem ou tentassem mudar-se para o nosso bairro? Investiu todo o seu coração na nossa filha. Que aconteceria se ela, em Albuquerque, começasse a acamaradar com um mexicano ou um índio? Diria que não tinha preconceitos contra os negros, mas talvez os escorraçasse por supor que eles seriam mais felizes noutro lugar. Diria que não tinha preconceitos contra o jovem mexicano, mas era melhor que ele deixasse Mary em paz para o seu próprio bem, pois na nossa sociedade a sua ligação era inviável.

     - Cale-se, Estelle! - O rosto de Sam estava lívido. - É falso tudo isto que diz de mim. Sabe bem que me bati na universidade pelo ex-comunistá que se quis matricular. Sabe bem que apoiei a petição tendente à admissão de professores de cor. E também aquela petição...

     - As petições, Sam, são úteis, mas não bastam. Nesta ilha está perante os fatos simples da vida, faz face a você mesmo, e no primeiro teste não se comporta como um liberal. Não digo que aprove o que se ensina aqui. Não é talvez sensato expor-se uma jovem de dezesseis anos, de uma cultura diferente, a coisas tão radicais. Decerto que essas experiências podem perturbá-la... ou talvez não. Não sei. Mas você a perturbou mais, esta semana, do que aquilo que ela viu na escola. E tudo porque não apoiou, porque negou na prática os padrões que lhe impôs em teoria. Ela confiava no Sam Karpowicz que conhecia, e de um momento para outro viu-se em face de um Sam Karpowicz diferente. Não é a fuga de Mary que me preocupa, mas a sua. Sim, fugiu de nós, Sam. Eis o que tinha para dizer.

     Ele inclinou a cabeça, mas não para protestar. Seu rosto estava tão lívido que ela quis beijá-lo, pedir-lhe perdão. Porém, não o fez.

     Por fim, ele encolheu os ombros e dirigiu-se para a porta.

     - Aonde vai, Sam?

     - Procurá-la.

     Depois de o marido ter partido, Estelle perguntou-se se ele tinha ido em busca de Mary... ou de Sam Karpowicz, liberal.

    

     Às duas e quarenta da tarde, pouco antes da última consulta do dia, Rachel DeJong sentou-se na cabana que utilizava como consultório, junto de uma pilha de esteiras de pandanus que serviam de diva psicanalítico, e redigiu suas notas clínicas sobre Marama, o lenhador, e Teupa, a esposa insatisfeita. Completada a tarefa, refletiu na chegada, iminente, do seu terceiro paciente.

     Pondo de parte o bloco de folhas soltas destinado apenas aos aspectos profissionais da sua visita às Três Sereias, Rachel pegou no bloco oblongo ao qual confiava, uma vez por outra, os aspectos pessoais da sua vida. Moreturi fora inteiramente transferido do primeiro bloco para o segundo, pois as suas relações com ela (e os pensamentos dela sobre ele) não se destinavam à publicação.

     Ao abrir seu diário, Rachel passou os olhos sobre a última anotação de seis dias antes. Era tersa, críptica, e nada diria a outra pessoa além dela. Ei-la:

     “Primeiro dia do festival. Após as duas sessões do dia, assisti à prova de natação. Emocionante. Um elemento do nosso grupo, Marc H., participou dela. Saiu-se bem até quase ao fim, mas acabou por falhar, de acordo com o padrão da sua personalidade. À noite, assisti a um programa de danças, no qual participaram Harriet e Lisa. Mais tarde, concordei em acompanhar um amigo nativo, Moreturi, num passeio de canoa até ao atol próximo. Romântico como na praia de Carmel. Nadamos. Quase me afoguei. Depois, descansamos na areia. Noite “m0emorável.

     Examinou esta passagem. O que poderia qualquer outra pessoa, digamos Joe Morgen, pensar dela? Nada, concluiu com satisfação. Nem mesmo Champollion seria capaz de decifrá-la. A verdadeira história dos seres humanos estava escrita apenas na sua mente, onde era conservada secreta até à descida à tumba. Tudo o que se lançava ao papel constituía apenas a décima parte da verdade. E então, recordando-se das suas leituras, da inteligência dos seus predecessores, ficou menos certa. Sigmund Freud precisava saber muito pouco acerca da vida de Leonardo da Vinci, em especial do que fora confiado ao papel, para interpretar a verdade dessa vida. E Marie Bonaparte precisara de saber muito pouco sobre Poe para dissecar a sua psique desequilibrada. Contudo, a sua passagem confiada ao papel era banal, improvisada, irrelevante, exceto talvez no que se referia à “noite memorável”. Alguém podia perguntar: Por que memorável? Mas uma noite, especialmente uma noite passada num clima estranho, podia ser memorável, se se atendesse ao cenário ou ao estado de espírito da pessoa em causa. Quem é que saberia que essa noite fora memorável para a sua autora devido ao fato de ter sido a ocasião do primeiro orgasmo da sua vida? Com intrepidez, Rachel assentou o bico da caneta sobre o papel e começou a escrever:

     “Falando deste amigo nativo, vi-o só uma vez após a nossa visita ao atol vizinho. A partir daí, dei por finda a análise (ver Notas Clínicas), pois não havia motivo para a prolongar. Diversas vezes, porém, ele dirigiu-me convites de natureza pessoal, oferecendo-se para me mostrar outras partes da ilha principal, e o terceiro atol. Estes convites, verbais, foram feitos por intermédio de um mensageiro, mas tive de os declinar. Tenho disposto de muito pouco tempo para mim, pois dedico-o inteiramente aos meus pacientes, aos meus estudos sobre a Cabana de Auxílio Social, às minhas investigações acerca da Hierarquia como instituição de auxílio mental e às minhas observações no tocante às atividades do festival.

     “O meu único encontro conseqüente com Moreturi ocorreu esta manhã, quando visitei a mãe, que dirige a Hierarquia (ver Notas Clínicas). Ele aguardava-me diante da porta da cabana e solicitou uma entrevista analítica formal. Disse que as sessões de psicoterapia tinham produzido alguns frutos, e estava desejoso por me revelar os resultados obtidos com a análise. Naturalmente, como psicanalista, achei isto irresistível, e assim prometi uma última sessão, às três da tarde. Não consigo imaginar o que ele me quer revelar. “

     Consultou o relógio e compreendeu que Moreturi deveria chegar dentro de sete minutos. Pôs a tampa na caneta e fechou o bloco. Em seguida, tirou o pequeno espelho da bolsa, mirou-se nele, penteou o cabelo e pôs um pouco de batom nos lábios.

     Teve prazer em ver uma mulher jovem, apesar de tudo. Por que tentara ser mais? O que a levara a tornar-se psicanalista? Por um momento, concentrou-se na resposta a estas perguntas, e procurou ser mais honesta do que quando fizera a sua própria análise. Após completar os estudos, imaginou ela, não desejara lançar-se na vida tumultuosa das grandes cidades. Se entrasse na vida como uma simples mulher, nada mais do que isso, ver-se-ia indefesa e sujeita a muitos sofrimentos. Seus sentimentos de mulher seriam feridos. Era-se por vezes menosprezada, humilhada, conspurcada emocionalmente, mesmo, e não se podia ripostar. Claro, como simples mulher, conhecia-se com freqüência o prazer, mesmo o êxtase, era-se admirada, desejada, mas Rachel colocara de parte todas estas vantagens. Os perigos decorrentes da carência de defesas eram muitos.

     E assim, talvez para se proteger contra a humilhação, o menosprezo, decidira adquirir uma armadura: a especialização. Uma vez de posse do seu diploma de licenciatura e psicanalista, não ficaria mais exposta às incertezas e às agruras experimentadas pelos simples mortais. De certo modo, estava acima das pessoas, era deusa sintética sentada num trono, afastada da pavorosa corrente da vida. Os doentes viriam até ela, os pacientes emocionais e os deformados, e ela seria a sua libertadora. Havia também outra coisa a considerar. No seu trono, atrás do espelho mágico, viveria centenas de existências, conheceria e sofreria, substitutivamente, centenas de experiências. Contudo, estava acima e a salvo desta vida errática. Podia tocá-la, mas não era tocada. E sempre, para se curar de alguma ferida causada pelo seu alheamento em face da vida, havia a flâmula das boas intenções a adejar ao vento: conduza os estropiados e os cegos, ajude-os, e por isso fará jus a uma recompensa do Criador.

     Rachel DeJong tornou a colocar a caixa de pó-de-arroz na bolsa. Ótimo, pensou, isto funcionara com relativo êxito até à altura em que se tornara mais velha e desejara que nada funcionasse. Joe Morgen não a poderia alcançar estando sentada no seu trono do qual não tinha forças para descer. O casamento significava abandono, para melhor ou pior, da carne receosa e das emoções que conservara encerradas dentro de si mesma. A «questão fora sempre esta: poderia ela descer ao nível dos seres humanos seus iguais, permitiria que tocassem nela entre a multidão ou na cama, consentiria em ser mais uma pessoa dentre todas, uma simples mulher, não uma psicanalista?

     Mas ela descera! Seis noites atrás, nas areias hospitaleiras de uma praia estranha e -isolada, renunciara ao papel de voyeur e de observadora distante, entregara-se a um homem tipicamente animal, de outra pele, de duvidosa sensibilidade.

     Não houvera imunidade. Fora tomada como uma simples mulher e dera-se satisfatoriamente, provara a um homem e a si mesma que era capaz de desempenhar o papel de fêmea.

     Todavia, não estava certa ainda de ter dado o passo decisivo. As circunstâncias atenuantes eram muitas. Moreturi forçara-a a acompanhá-lo; temera o ridículo sugerido pelo seu espírito primitivo. Aceitara o convite formulado por ele, visitara o atol, nadara seminua porque estava embriagada.

     Ademais, vira-se despojada do seu vestuário e da sua resistência devido apenas a um acidente na água, e não se entregara por sua livre vontade ao amante de um momento. Submetera-se ao desejo dele porque não pudera resistir. A subjugadora masculinidade de Moreturi, a água acariciante, a doçura da noite, eis o que despertara seus sentidos. A sua resposta fora física, não mental. Não se dera totalmente. Portanto, poucos dos seus problemas tinham sido resolvidos. Reconhecera que sentira receio em ver de novo Moreturi, e isto apenas porque não -estava ainda convencida de que podia agir plenamente como mulher. Estava ainda pouco segura de si mesma, e portanto das suas reações futuras perante Joe. Voltaria à Califórnia como partira - uma psicanalista, com seus conflitos interiores dissimulados atrás da sua calma estóica.

     Durante estes últimos momentos de introspecção ouvira um ruído de passos leves lá fora, e apercebera-se de que alguém batia à porta.

     De súbito, perguntou-se se devia permitir esta sessão final. Seria uma coisa embaraçosa para ela. E para ele. E era suficientemente importante o que Moreturi tinha para contar? Bem, não podia recuar agora. Compulsivamente, subiu a seu alto trono, atrás do espelho mágico, e preparou-se para experimentar a vida de outrem, mantendo segregada a sua própria vida.

     - A porta está aberta! - exclamou.

     Moreturi entrou na sala e fechou a porta atrás de si. As suas maneiras denotavam respeito e afeto. Não exibia nenhuma expressão superior, e quando se aproximou dela sorriu.

     - Foi muito gentil em receber-me uma vez mais - disse ele.

     Rachel apontou para a esteira a seu lado.

     - Afirmou-me que o tinha ajudado, e as mulheres são em geral muito curiosas.

     - Devo deitar-me como antes?

     - Sim.

     Ela observou, fascinada, o deslocamento dos seus músculos sob a pele bronzeada. Moreturi estendeu-se na esteira e ajustou o fio que segurava o saco púbico branco.

     A situação na sala - o paciente reclinado no diva improvisado, a terapeuta sentada no chão junto dele - fazia com que o seu encontro noturno parecesse irreal. Deitada de costas no escuro, vira-o, acima dela, apoiado sobre os joelhos, nu e cheio de desejo. Depois, permitira que ele lhe tirasse as calcinhas de nylon molhadas, e passados momentos fizera coisas loucas, dissera coisas loucas. Agora, tinham-se passado seis dias e ela perguntava-se se o jovem nativo se recordava ainda de tudo.

     - Quer que eu fale? - perguntou ele.

     Por Deus, sim, fale, quis Rachel gritar. Porém, disse:

     - Diga tudo o que tem em mente. Moreturi voltou a cabeça para ela.

     - Estou apaixonado.

     O coração de Rachel começou a bater com mais força e a sua garganta constringiu-se.

     Ele continuou a falar, sem desviar os olhos.

     - Sei que me considerou sempre uma criança crescida, mas agora tenho certeza de que sou mais maduro, e isto desde que o festival começou. Quer que lhe conte tudo?

     - Sim... se acha...

     - Você é a única pessoa a quem posso contar estas coisas, devido à nossa intimidade. Quando convidei aquela de quem falo a acompanhar-me, na canoa, através do canal, pensava apenas no prazer. Confesso que meus sentimentos não eram profundos. Ela resistiu-me durante longo tempo, rejeitou-me, e eu desejei mostrar-lhe que era tão humana como eu. Bem, também se aprecia uma mulher que resiste...

     As faces de Rachel estavam cobertas de rubor. Sentia vontade de o esbofetear.

     - ... mas depois de nadarmos, quando ela se me entregou, qualquer coisa aconteceu. Nunca tinha sucedido uma coisa assim entre mim e uma mulher. Não era só embaixo que sentia amor, inas aqui também. - Tocou o coração. -Imediatamente, fui amado como amei. Esta mulher que parecia tão fria mostrava-se ardente. Nunca me sentira tão feliz.

     Rachel desejou descer do seu alto trono, ajoelhar-se diante dele, beijá-lo, grata por este momento de doçura.

     - Rachel, pensei no que me tem dito e no que tem feito por mim - continuou ele. - Agora, vejo que o meu problema está resolvido. Jurarei eterna fidelidade, com exclusão de uma semana por ano, como é nosso costume, e serei um verdadeiro marido...

     A alegria de Rachel transformou-se em pânico. Com os olhos nublados, estendeu a mão e pegou na dele.

     - Não, Moreturi, nem mais uma palavra. Você é um dos homens mais gentis que já conheci. Estou muito comovida. Mas uma simples noite, um só encontro, não me parece constituir base segura para uma relação duradoura. Além disso, separam-nos mundos. Você fez mais por mim do que eu fiz por você, acredite-me. Porém, jamais poderia...

     - Quê?! - exclamou ele, sentando-se, espantado. - Não me refiro a você, mas à minha mulher, Atetou.

     - Atetou? - volveu Rachel, arfando.

     - À minha mulher. Levei-a ao atol na noite passada e transformamo-nos. Não haverá divórcio. - O jovem nativo fitou-a e viu que ela se sentia incapaz de fechar a boca ou de falar. - Perdoe-me se...

     - Atetou! - repetiu Rachel com voz sibilina, rodeando o tronco com seus próprios braços. Não se encontrava mortificada mas deleitada. - Oh, meu Deus!

     Começou a rir a bandeiras despregadas, e o riso irrompia-lhe do peito e da garganta.

     - Oh, Moreturi, isto é delicioso!

     Ria como louca, o corpo em convulsão.

     Viu-o sentado a seu lado, acariciando-a, tentando acalmá-la! Porém, sacudiu a cabeça, para afirmar que não necessitava de consolo, que se sentia rica e maravilhosa. Lágrimas de alegria corriam-lhe pelas faces.

     - Oh, Moreturi, isto é demais...

     Estendeu a mão e pegou na bolsa; depois, tirou um kleenex e limpou os olhos. O riso decrescia.

     - Que é Rachel?

     - Oh, tem tudo muita graça... Sentia-me tão contente e ao mesmo tempo tão inquieta enquanto falava, certa de que se referia ao nosso encontro... de que tinha planos a meu respeito...

     Ele fitou a face de Rachel, manchada pelas lágrimas.

     - Apreciei muito as nossas relações - disse ele. - Mas também sou prático. Sei que não pode ser. Você tem muito prestígio em seu país, é inteligente demais para um tolo como eu...

     - Oh, pare, Moreturi. Sou apenas uma mulher como Atetou ou como qualquer outra - retorquiu ela. Depois, dominando-se, acrescentou: - Se sabia que não podia haver mais nada entre nós, por que me levou até à praia e... fez amor comigo?

     - Por prazer - volveu ele com singeleza.

     - Por prazer? - repetiu ela.

     - Existe outra razão para fazermos amor? Ter filhos é uma razão, mas não a primeira e a principal. O prazer é a coisa mais importante da vida. Não nos torna piores, torna--nos sempre melhores.

     Imediatamente, foi Rachel que se sentiu uma criança diante de um adulto.

     - Por prazer - disse ela uma vez mais. - Sim, compreendo. Creio que nunca pensei nisto de semelhante maneira... bem, com tanta simplicidade. Dei sempre demasiada importância a uma coisa bem simples... amar, ter prazer com outro. Talvez tivesse assim complicado tudo.

     - Quê? - exclamou ele.

     - Nada. Não importa. - Fitou o rosto largo de adulto do jovem nativo. - Moreturi, sentiu realmente prazer comigo?

     Com grande solenidade, ele inclinou a cabeça num gesto afirmativo.

     - Muito prazer - disse. - Você é uma mulher que dá muito prazer. - Hesitou. - Não sentiu o mesmo?

     Surpreendeu-a o fato de ser muito fácil responder a isto.

     - Senti, senti, como deve saber.

     - Pensei que sim, mas... - Encolheu os ombros. - Como não me quis ver mais, não tinha certeza.

     - Sou uma mulher complicada - disse Rachel.

     - Somos menos complicados nas Sereias. Eu, como o meu povo, creio numa coisa bem simples: quando existe alegria no amor não se pára.

     - Estou começando a compreender isso - volveu ela. - Sou lenta, mas estou aprendendo. Perdoe-me a minha antiga solenidade, Moreturi. De fato... - Levou as mãos ao rosto dele e acariciou-o. - Obrigada.

     Com o braço musculoso, Moreturi puxou-a para si, esmagou-a contra seu peito nu e sua mão livre começou a desapertar-lhe a saia. » Ela fitou esta mão mas não a deteve.

     - Não - murmurou. - Na verdade, não posso... é contra as regras... expulsar-me-iam da Associação Psicanalítica Americana...

     - Teremos prazer - disse o jovem nativo.

     Ela encontrava-se já sobre a pilha de esteiras, sem a saia, sem as calcinhas de nylon. Apressadamente, começou a desabotoar a blusa. Em dado momento, sorriu. Sua mente detivera-se nos títulos de alguns livros de Sigmund Freud. Um deles era: Três Contribuições para a Teoria da Sexualidade, de 1905. Podia nomeá-las todas: As Três Sereias. Riu.

     - Que há? - perguntou Moreturi.

     - Não fale, não fale.

     E não pense, não pense, disse de si para si, uma coisa gratuita, pois daí a um momento sentia-se incapaz de pensar. Era uma mulher. Uma mulher que tinha prazer pela primeira vez, que conhecia a mais bela experiência da sua vida. E mais tarde, muito mais tarde, quando no prazer voluptuoso surgiu a intensa agonia que precedia a paz, deteve um pensamento errático, sobre Joe Morgen, o bom Joe. - Oh, Joe, deve agradecer a este aqui... Joe, jamais saberá, mas deve agradecer...

     E quando tudo terminou, quando repousava no meio da maior quietude, desejou rir uma vez mais. Sua mente voltara aos livros de Freud, especialmente à obra publicada em 1926. Acariciou o título - The Problem of Lay Analysis.

    

     A noite desceu sobre as Três Sereias entre as sete e meia e as oito horas.

     Foi durante este período, quando as tochas eram acesas em ambos os lados do regato que atravessava o conjunto, que Sam Karpowicz percorreu o caminho que conduzia da Cabana de Auxílio Social e entrou no conjunto.

     Estivera, durante toda a tarde, em colinas que antes não conhecia, e não podia definir em pormenor o que acontecera. Em dado momento acudira-lhe à mente um trecho do Novo Testamento que lera quando jovem, secreta, sub-repticiamente. Jesus entrara no deserto, só, para jejuar; penetrara na montanha e, após ser tentado pelo demônio, dissera: “Esconde-te atrás de mim, Satã. “ Muitas vezes, durante a tarde, Sam perdera-se de muitas maneiras, mas ao anoitecer encontrara o caminho certo e voltara à Galiléia.

     Estelle tivera razão, e Sam Karpowicz sabia-o, por fim. Seu dever como pai era desbravar o caminho cheio de escolhos que conduzia a filha à maturidade, era guiá-la e apoiá-la, torná-la forte, judiciosa, independente. Seu dever não consistia em suprimir os são princípios em que sempre acreditara a fim de a guardar para si egoisticamente. Agora tudo era muito claro, e desejara falar a Mary da sua autodescoberta. Porém, não a encontrara, e supunha que ela estava ainda só, algures, no interior da ilha. Se alguma coisa acontecesse a Mary, matar-se-ia.

     Uma vez na aldeia, compreendeu que se achava num estado deplorável. A nuca doía-lhe. Sentia os braços feridos, a barriga das pernas, os pés. Tinha a garganta seca e custava-lhe engolir. Talvez tivesse perdido a voz por gritar tantas vezes o nome dela no descampado.

     Devia dirigir-se imediatamente para a cabana, a fim de perguntar a Estelle se havia notícias sobre Mary. Preparara-se para tomar o caminho de casa quando avistou a figura familiar de Tom Courtney, de camisa e calças brancas, no outro lado do regato.

     - Tom! - gritou ele.

     Courtney deteve-se. Sam Karpowicz encaminhou-se para a ponte mais próxima, a seu encontro.

     - Tom, sabe alguma coisa sobre a minha filha? O rosto de Courtney não ocultou sua compaixão

     - Sinto muito, Sam, nada se sabe até agora.

     - Os grupos continuam a procurá-la?

     - Sim, e não abandonarão as buscas até a encontrarem, mais cedo ou mais tarde.

     - Ela não passa de uma garota... tem somente dezesseis anos... nunca esteve tão só.

     Courtney pousou a mão sobre o ombro de Sam.

     - Nada de mau lhe acontecerá. Estou absolutamente certo disso, e você também deve estar. Por que não vai para sua cabana e espera?

     - Tom, conhece um jovem nativo, da idade de Mary, chamado Nihau? Era colega dela na...

     - Decerto que conheço Nihau.

     - Gostaria de o ver. Tenho uma coisa para lhe dizer. Onde vive ele?

     Courtney apontou para a esquerda.

     - A cabana dos pais dele fica um pouco acima do caminho, ali. Provavelmente, ele e o pai não se encontram na cabana, pois participam na busca. Porém... Com os diabos, Sam, deixe-me levá-lo lá... Vamos.

     Pouco depois chegaram à cabana.

     - Ei-la - Sisse Courtney.

     Sam tirou os óculos e passado um momento colocou-os de novo no nariz.

     - Tom, quer apresentar-me?

     - Decerto.

     Courtney bateu à porta e esperou. Bateu uma segunda vez. Uma voz masculina disse qualquer coisa em polinésio, e Courtney voltou-se para Sam:

     - Disse para entrarmos.

     Courtney abriu a porta e entrou, seguido imediatamente por Sam Karpowicz. A sala da frente, mais larga do que a de Sam, tinha um ídolo de pedra a um canto e era iluminada por diversas velas. No fundo da sala, encontravam-se algumas pessoas sentadas em círculo, todas comendo e bebendo. Na atmosfera, o aroma da carne, de coco, inhames quentes e frutas maduras.

     Nihau levantou-se de um salto, bradando:

     - É o Dr. Karpowicz.

     O jovem dirigiu-se para Sam, com a mão estendida, e disse contente:

     - Ela está a salvo... encontramo-la... veja... veja ali...

     Apontou. A princípio, Sam não conseguiu ver, mas depois, ei-la. Mary, que estivera de costas para a porta, voltara-se, ainda com a casca cheia de leite de coco na mão. Os olhos escuros, o rosto fino e doce que Sam tão bem conhecia e tanto amava, pareceram assustados. Sobre o corpo, ela trazia apenas um vestido americano fino, cor de laranja, que parecia uma combinação e a fazia menor do que era.

     Nihau dizia:

     - Encontramo-la há cerca de uma hora, lá em cima, sentada entre as árvores. Não se achava ferida. Trouxemo-la para a aldeia, mas preferiu vir aqui em primeiro lugar. Como estava cheia de fome, demos-lhe de comer, e também aos que participaram na busca...

     As últimas palavras de Nihau tinham sido dirigidas a Courtney, pois Sam Karpowicz afastara-se já do jovem e aproximara-se do círculo. Mary, hesitante, pusera-se de pé.

     - Mary, eu... - Deteve-se, e olhou para os nativos, homens e mulheres. - Obrigado por a terem trazido sã e salva.

     Todos levantaram a cabeça cortesmente. Sam estava face a face com a filha uma vez mais. Tirou os óculos.

     - Mary, a maior parte das vezes pensava que sabia o que era melhor para você - disse ele -, mas desta vez estava enganado, completamente enganado. Refiro-me a meu comportamento na escola. Peço-lhe que me perdoe... Bem, Mary, estou contente por ter voltado.

     Instantaneamente, as defesas da jovem ruíram.

     - Oh, paizinho, amo-o tanto! -exclamou ela.

     Mary estava nos braços do pai, os seus cabelos tombados sobre o peito dele, e Sam acariciava-lhe a cabeça, os olhos molhados voltados para Courtney.

     Quando se separaram, ele disse:

     - Acho melhor ir para casa, a fim de avisar sua mãe. Vá quando estiver livre.

     - Quero ir já - volveu ela. - Mas deixe-me primeiro agradecer a Nihau e aos outros.

     Mary aproximou-se de Nihau e do velho obeso que era pai dele, enquanto Sam Karpowicz se dirigia para a porta, onde se encontrava já Tom Courtney.

     - Tom, fico muito grato por tudo. Se quer, venha comer qualquer coisa conosco. Estilo americano.

     Courtney sorriu.

     - Obrigado, mas não posso. Claire e Marc Hayden estão à minha espera e de Maud a fim de tomarmos uns coquetéis. Depois, vamos até à cabana de Paoti Wright, onde se realiza a festa de encerramento do festival deste ano. Tenho de me apressar. - Fez um gesto na direção de Mary. - Estou contente por isso ter dado resultado.

     - Deu mais resultado do que você pode imaginar - disse Sam.

     Depois de Courtney partir, Sam esperou Mary, recusando polidamente os refrescos de fruta que lhe eram oferecidos. Quando a filha se aproximou dele, disse:

     - Prefiro leite e biscoitos.

     - Também eu, paizinho - disse ela.

     Então, deram-se o braço e partiram, a caminho de casa.

    

     Na “cabana de Marc Hayden”, como ele gostava de pensar, desde que se desligara (em espírito pelo menos) da mulher, Marc passou o tônico capilar na cabeça. Nesta terra sem barbeiro, e portanto bárbara, o seu corte de cabelo curto tinha dado lugar a uma cabeleira farta mas não desprovida de atração, supôs ele ao dobrar-se para ver sua imagem no espelho de parede. Depois, começou a pentear-se.

     Tinha pressa. Quinze minutos antes, estava Claire mudando de roupa no quarto dos fundos, um jovem nativo surgira à porta com um recado verbal para o Dr. Hayden. Era o Dr. Hayden, pois o recado só podia ser transmitido a ele? Sim, era o Dr. Hayden. O recado provinha de Tehura. A jovem nativa desejava vê-lo durante uns momentos, na sua cabana, antes de ele partir para a festa do chefe.

     A princípio, o recado emocionara Marc, pois teve a impressão de que alguma coisa acontecera por fim. Momentos depois, porém, inquietara-o o seu laconismo. Talvez Tehura tivesse mudado de idéia e desistido de arranjar o barco que os levaria para longe das Sereias. Marc refletiu nisto enquanto o jovem nativo aguardava. Por fim, declarou em voz baixa:

     - Diga a Tehura que não demoro.

     Depois, acabara de se vestir, depressa, revendo ao mesmo tempo os eventos da semana anterior, cheia de torturantes incertezas. Continuara a ver diariamente Tehura. Seus encontros, agora mais breves, tinham decorrido como antes, pois aos olhos dos outros eram ainda antropólogo e informante. Quando se aproximava de Tehura perguntava, em primeiro lugar, se havia notícias, ao que a jovem respondia que não, que nada havia por enquanto. Porém, acrescentava ela, prosseguia nas suas tentativas, e ele devia esperar com paciência.

     Em cada encontro Tehura fazia também uma pergunta, por várias vezes, sobre a futura vida de ambos naquele longínquo continente onde ele nascera. Constantemente, procurava inteirar-se sobre a existência diária de Claire ali e ouvia as respostas veementes de Marc em fleumático silêncio.

     Em geral, Marc exprimia-se com calor, pois, de certo modo, seus relatos, por mais extravagantes que fossem, pareciam-lhe sempre autênticos. Jamais quisera crer que constituíam um produto da sua imaginação dominada pelas “sublimes” convicções de Garrity. No seu mundo, afirmava, não existia o malogro, mas apenas o êxito. Aceitara com tanta paixão esta perspectiva do futuro que a impusera a seu passado, ao passado de Claire, à realidade da vida na América. Depois disto, Tehura aceitara tudo, sem todavia compreender na sua totalidade esta imagem tão perfeita daquela terra de maravilha. Seu espírito semiprimitivo não podia entender o esplendor desta imagem magnífica. Após cada conversa, Marc perguntava-se como traduziria ela, de maneira prática, a ambição de ambos. Esta noite, porém, a mensagem viera: ela queria vê-lo imediatamente.

     Depois de se afastar do espelho, Marc compreendeu que tinha ainda uma coisa a fazer. Devia dizer a Claire que partisse, sem ele, para a cabana do chefe Paoti, pois um compromisso inadiável obrigava-o a chegar alguns minutos mais tarde. Que acontecera? Aonde é que ia? Visitar sua Informante nativa, a fim de discutir um ponto importante do trabalho de Matty? Talvez, mas era arriscado. Tinha de inventar uma coisa melhor. Contudo, nesse mesmo momento apercebeu-se de que Claire se encontrava na sala.

      

     Voltou-se para dizer, como pensara, que chegaria um pouco atrasado à cabana de Paoti porque... Claire parecia preocupada. Observou-a com certo interesse. Claire, curvada e com os olhos fixos no chão, caminhava sobre as esteiras, como se procurasse qualquer coisa.

     - Que diabo está você fazendo? - perguntou Marc.

     - O meu colar... - respondeu ela. - Não sou capaz de o encontrar.

     Não prestara muita atenção às palavras da mulher, e por isso repetira:

     - Colar? Que colar?

     Claire fitou-o de viés e ergueu-se.

     - Tenho apenas um, Marc. O colar com um pingente. Quero usá-lo no jantar. - Sacudiu a cabeça. - Mas não sei onde se encontra.

     Marc tentou dissimular sua inquietação, mas o coração batia-lhe com violência dentro do peito. Cautela, cautela, disse de si para si.

     - Provavelmente, deve encontrar-se por aí, entre as suas coisas. Tire da cabeça e ponha qualquer outra jóia.

     - Desejo o colar com o pingente - persistiu ela.

     - Já o procurou na mala?

     - Sim. No entanto pensei que talvez o tivesse deixado cair aqui, sobre as esteiras; todavia, não consigo ver.

     - É perfeitamente óbvio o que aconteceu - tornou Marc. - Um nativo deve tê-lo roubado.

     - Oh, Marc, isso é ridículo.

     A maneira como ela reagira à sua sugestão irritara-o.

     - Ridículo por quê? Conheço esta gente melhor do que você... tenho-a estudado, e não confiaria numa pessoa sequer durante um segundo. Decerto que o roubaram.

     - Mas que diabo faria um nativo com um colar? Que préstimo teria para qualquer deles, se estão encerrados nesta ilha?

     Preparou-se para dizer que o nativo que o roubara talvez o tivesse dado à mulher, como prenda, mas continuou calado. Volvido um momento, porém, disse cautelosamente.

     - O nativo que o roubou poderá vendê-lo, depois de nos termos ido embora, a este bandido do Rasmussen.

     - Recuso-me a acreditar em tal coisa - volveu ela, fitando-o fixamente. - Por que vê sempre o pior em tudo e em toda a gente?

     - É melhor saber que as pessoas têm um lado mau do que se ser enganado como você o tem sido por um bando de selvagens ou corrompido por um vagabundo extravagante como esse Courtney.

     Ela quis responder de modo desabrido, mas o marido apressou-se a acrescentar:

     - Bem, com os diabos, acabemos com isto. Ninguém lhe roubou esse maldito colar. Procure-o, deve estar por aí. Tenho de sair.

     Dirigia-se já para a porta quando se recordou de que ela não sabia que tinha um encontro. Hesitou:

     - A propósito, esqueci-me de lhe dizer que preciso fazer ainda uma coisa antes de seguir para a cabana de Paoti.

     - Fomos ambos convidados para jantar e não apenas eu - retorquiu ela friamente.

     - Calma, Claire. Estaremos lá os dois... juntos. Enquanto você se vestia, Orville mandou-me dizer que estava às voltas com um problema qualquer e que necessitava dos meus conselhos. Prometi estar com ele durante uns minutos antes de partir para a cabana de Paoti. Importa-se?

     - Tenho o direito de me importar?

     - Matty não tardará a chegar, como aliás o seu amigo Courtney. Assim, será acompanhada com todo o estilo. Não demorarei muito. Demais, ninguém dará por minha falta, Até já.

     Saiu e dirigiu-se em passo vivo para a cabana de Tehura. Porém, após percorrer meia dúzia de metros, abrandou a marcha. Os lóbulos frontais do seu cérebro, aqueles que previam tudo, achavam-se sempre extraordinariamente atentos à menor ação que ele empreendia, e enviavam agora estímulos nervosos a fim de lhe inibir o movimento. Dissera à mulher que ia ver Orville Pence. Que sucederia se ela tivesse a idéia de ir à cabana de Orville para apurar a verdade?

     Imediatamente, Marc modificou sua direção e seguiu para a cabana de Orville. Uma vez aí, bateu à porta, que abriu depois levemente. Orville estava sentado no centro da sala da frente, com um uísque numa das mãos e um baralho de cartas na outra, do qual deixava tombar uma carta de cada vez sobre a mesa.

     - Orville, perdoe-me...

     - Entre, entre, meu caro amigo - disse Orville, menos formal e mais afetuoso do que nunca. - Estava pondo as cartas a fim de conhecer a minha sorte.. Se quer, depois de acabar, as ponho para você.

     - Obrigado, Orville, mas tenho pressa. Quero pedir-lhe um pequeno favor.

     - Peça, peça tudo o que quiser.

     - Escute. Tenho de ir ver uma pessoa. Trata-se de um encontro íntimo. As esposas nem sempre se mostram tolerantes quando necessitamos de visitar alguém. Assim, deixei Claire depois de dizer que você precisava de falar comigo.

     - E de fato preciso - volveu Orville. - Talvez tivesse tomado hoje uma decisão louca, mas sinto-me bem. Não sei ainda o que vai acontecer. Se dispõe de algum tempo, gostaria de falar.

     - Orville, não disponho nem de um minuto sequer agora. Poderemos conversar amanhã.

     - Decerto, decerto.

     - Então fica combinado: se Claire vier aqui, diga que estive com você esta noite.

     - O que é verdade - retorquiu Orville.

     - Muito bem, então. - Dirigiu-se para a porta, mas antes de sair voltou-se e disse: - Comunique-me o resultado.

     Orville pareceu surpreendido.

     - O resultado? Quer dizer que...

     - Refiro-me às cartas, amigo. Quero saber a opinião delas.

     Marc fechou a porta e dirigia-se para o conjunto quando viu a mãe, acompanhada por Courtney, entrar na sua cabana. Coseu-se nas sombras até os perder de vista. Uma vez o caminho desimpedido, aproximou-se defuma ponte, atravessou-a e seguiu para a cabana de Tehura.

     Decorridos menos de cinco minutos chegara a seu destino. Encostou os nós dos dedos à porta e bateu levemente. Escutou o ruído produzido pelos movimentos da jovem nativa atrás da porta, ouviu-a pronunciar uma frase em polinésio e um momento depois ela surgia diante dele.

     - Está uma pessoa comigo - disse Tehura em voz muito baixa. - Não quero que saiba que é você. Venha.

     Tomou o braço de Marc, conduziu-o até ao corredor situado entre a sua cabana e a seguinte e depois caminhou com ele durante uns momentos.

     - Quem é que* está na cabana? - desejou Marc saber.

     - Poma - volveu a jovem num murmúrio. - A que nos está ajudando. Veio falar comigo sobre... o que nos interessa, mas eu não quis que o visse.

     - Confia nela?

     - Sim. Explicar-me-ei muito depressa e depois pode ir. Marc esperou nervosamente que ela contasse as suas

     novidades. Desejava que tudo tivesse corrido bem, mas não se achava ainda certo do êxito das diligências de Tehura.

     - Não foi fácil para mim descobrir uma pessoa de confiança - disse Tehura. - Por fim, veio-me à idéia Poma. Ela é uma jovem viúva, muito bela, e está apaixonada por Huatoro, que por sua vez está apaixonado por mim. Por minha causa, não o pode ter. Poma ofereceu-se para trabalhar com Huatoro na sala de aula da escola, mas ele trata-a com indiferença devido à paixão que tem por mim. Contudo, sabe que poderia contar com ele como marido se eu não estivesse aqui. Eis outra razão que me levou a escolher Poma: ela tem um irmão, muito jovem. - Tehura tocou na testa. - Fraco de espírito, compreende? Chama-se Mataro, o marinheiro, pois navegar é tudo o que sabe fazer, aquilo de que gosta, como uma criança.

     - Mas se ele é um imbecil, como?...

     - Isso não tem importância. É bom marinheiro. Tem uma canoa de alto-mar com seis metros de comprimento, e pode levar um recipiente de água. Navega pelo olfato e de noite pelas estrelas. Admira a bússola do Capitão Rasmussen. Toda a gente faz pouco dele por causa disso. Quer ter também uma grande bússola. Assim, falei com Poma esta manhã, depois de muito refletir.

     O fato de saber que seu segredo era partilhado por uma estranha fê-lo estremecer.

     - Que disse a Poma?

     - O seguinte: “Poma, fica tudo entre nós, mas desejo abandonar as Sereias e ir para Taiti para viver como as americanas que estão aqui. “ Ela disse: “Não pode, nenhuma mulher conseguiu até hoje sair das Sereias. “ Disse: “Poma, serei a primeira e tem de me ajudar. “ Recordei-lhe que Huatoro nos tinha amado às duas mas que preferia a mim. Depois, dei a entender que não sentia amor por Huatoro. Se partisse para sempre, ela teria o Huatoro para ela. Gostou de ouvir isto. Está bastante apaixonada por ele. Ela disse: “Ajudar-lhe-ei se puder. Que devo fazer?” Respondi: “O seu irmão, Mataro, já cometeu a proeza de conduzir a canoa uma, duas, três vezes até outras ilhas. Quero que faça comigo uma tal viagem. Em troca, dar-lhe-ei com que comprar uma bússola... Um dos americanos ofereceu-me um colar com uma jóia que vale uma fortuna no exterior. Quando estivermos longe daqui, vendê-lo-ei e terei o suficiente com que comprar uma bússola para Mataro e seguir viagem até Taiti. “ Ela disse: “Quando se souber, Paoti ficará furioso com meu irmão. “ Eu disse: “Sim, mas Paoti não o castigará, pois sabe que seu irmão é fraco da cabeça. “ Eis a nossa conversa.

     - Ela concordou em ajudar?

     - Sim, Marc. De tarde, mandou-me chamar e declarou que estava tudo resolvido. Esta noite, veio à minha cabana, a pedido do irmão, para se inteirar da verdade acerca da jóia. Estava mostrando-lhe o colar quando você bateu à porta.

     - Bom, Tehura, maravilhoso - disse Marc, tomando-Ihe as mãos para exprimir seu júbilo. - Amo-a.

     - Chiu. - Ela levou um dedo aos lábios. - Haverá tempo para tudo entre nós.

     - Poma e o irmão sabem o que se passa? Tehura sacudiu a cabeça.

     - Ninguém sabe absolutamente nada. É melhor assim.

     - Que dirá o irmão quando me vir junto do barco com você?

     - Nada. Gostará que uma pessoa com tanta riqueza vá no barco dele e o recompense com uma segunda bússola, talvez, e mesmo um sextante também.

     - Tudo o que quiser. Tehura sorriu.

     - Ficou tudo combinado para amanhã à noite.

     Marc tirou as mãos de cima do corpo de Tehura e apertou-as uma na outra para evitar que tremessem.

     - Tão cedo?

     - Desejou partir cedo, não é verdade?

     - Sim, na verdade...

     - Amanhã à noite - repetiu ela. - Apareça na minha cabana com suas coisas às dez horas. Descansaremos até todos dormirem na aldeia. Depois, partiremos. Iremos até à praia, a primeira que viu quando chegou. Mataro estará lá com a canoa e com mantimentos, e abandonaremos então as Sereias. A viagem até à ilha mais próxima demora dois dias e uma noite. Os plantadores franceses que vivem lá têm barcos maiores. Pagaremos a Úm para nos conduzir a outra ilha onde haja uma pessoa que tenha um hidravião como o do Capitão Rasmussen. Essa levar-nos-á a Taiti. O resto fica a seu cuidado.

     - O meu amigo da América, Sr. Garrity, estará à nossa espera - disse Marc. - Juntos, partiremos para o meu país.

     - Está contente, Marc? Ele abraçou-a.

     - Nunca me senti tão feliz.

     - Estou feliz também... - Afastou-o dela. - Agora vá.

     - Amanhã à noite?

     - Sim.

     Ele voltou-se e partiu. Uma vez no limite do conjunto, olhou por sobre o ombro e viu Tehura abrindo a porta. A luz das velas recortava a curva alta dos seus seios nus. Fez um pequeno memorando mental: lembrar-lhe que traga qualquer coisa que sirva de soutien: vamos para Nova York e para a Califórnia, para o novo mundo dos espartilhos.

     Amanhã! Exclamou para si mesmo, e desejava gritar amanhã a todo o mundo, bradar o seu desafio, a sua vitória e o seu prêmio. Desejava esmagar a quietude da noite tropical, iluminar a profunda escuridão do conjunto, subir nas palmeiras e, das copas frondosas, acenar a Garrity, dizer que não tardaria a pôr-se a caminho, por fim.

     Caminhava, cambaleante, como se embriagado. Todas as possibilidades, todos os sonhos estavam prestes a converter-se em realidade. Fora isto que os esfarrapados, os oprimidos tinham sentido ao saírem da Bastilha? Sim, sim. E era isto que tinham também sentido quando se sentaram, * mais tarde, fila após fila, atrás de Madame Defarge, para verem o invento do Dr. Guillotin fazer o seu trabalho?

     As cabeças caíam na cesta. Obliterada para sempre a cabeça fantasmagórica de Adley, o pai, a cabeça escravagista de Matty, a mãe, a cabeça reprovadora de Claire; a esposa. E haveria cabeças menores na cesta, também, as dos imundos” selvagens das Sereias, a desse canalha chamado Courtney. Quando Garrity e ele tivessem posto a nu as imundícies deste lugar, as ilhas seriam localizadas, tornando-se depois uma terra de motéis e restaurantes como qualquer outra; todos os filhos de uma cadela teriam de trabalhar como criados, lamberiam as mãos dos seus superiores para merecerem uma gorjeta.

     For fim, possuiria riquezas e fama; disse de si para si: riquezas e fama, riquezas e fama. E como bônus, teria aquele pedaço de traseiro polinésio, Tehura.

     A imagem de Tehura trouxe-lhe Claire à mente, uma vez mais. No que se referia a Claire, não sentia ainda a plena satisfação da vitória. Porém, ao trocá-la por outra, humilhá-la-ia. Conhecia a insegurança dela como mulher. Transformar-se-ia numa estropiada. Contudo, inquietava-o uma coisa: talvez não a humilhasse e destruísse completamente. Ela jamais deixaria de crer que, nas suas relações, fora sempre mais mulher do que ele fora homem.

     Talvez mais tarde, pensou, tivesse de abandonar Tehura. Sua aparência vestida, e com meias e sapatos de salto alto, devia deixar muito a desejar. As jovens nativas tinham tendência para engordar e envelhecer muito depressa. Isto era um fato antropológico. Depois de ter dormido com ela, de a ter utilizado nas salas de conferências, na televisão, durante alguns anos, cansar-se-ia do seu corpo, da sua presença. Acerca de que poderia um homem falar com uma mulher daquelas? Aonde poderia levá-la - ao La Rue, ao Plaza Hotel? Não, era impossível. Depois de utilizada como peça de exibição, seria completamente inútil. No devido tempo teria de a recambiar para as ilhas. Ela podia fazer companhia à sua amiga Poma, como criada do Três Sereias-Hilton Hotel.

     Sobre Claire, tinha poucas dúvidas. Com divórcio ou sem divórcio, quando fizesse um simples aceno Claire viria correndo. Impor-lhe-ia condições para aceitar - permitiria que se sentasse no segundo trono. Ela teria de se mostrar humilde. Não poderia fazer exigências de qualquer espécie, deveria submeter-se em tudo. Rasteje, Claire, grande cadela, é isso que lhe resta.

     De súbito, Marc compreendeu que chegara à porta da cabana real de Paoti. Lá dentro, música, alegria.

     Sorriu para si mesmo. Em breve, o dilúvio. As cabeças não tardariam a rolar para a cesta. Para ele, no dia seguinte, quase a esta hora, começaria uma vida nova. Quantas pessoas neste mundo, neste mesmo dia, esperavam o começo de uma nova vida, de uma vida maravilhosa? Quantas possuíam a sua secreta sabedoria?

     Ia fazer um brinde a si mesmo, dentro de momentos. Endireitou os ombros e penetrou na cabana, a fim de lançar um último olhar sobre os condenados.

       

     Bem cedo na manhã seguinte, Maud Hayden, que se vestia no quarto de dormir situado atrás do seu gabinete, deteve-se para pôr duas aspirinas na boca, que engoliu com um pouco de água.

     Durante a festa de Paoti, na noite anterior, escutara-se música nativa, viram-se as evoluções de dançarinos da aldeia e ingeriram-se grandes quantidades de sumo de palma e kava, líquidos quase letais. A festa terminara de madrugada e todos tinham saído um pouco alegres, incluindo a própria Maud (por deferência com o anfitrião).

     Contudo, pusera o despertador para as sete horas, como de costume, e às sete despertara, um tanto atordoada, e atordoada começara a vestir-se. Apesar de ter dormido apenas quatro horas, de sentir os efeitos do álcool e da idade, não se permitiria o conforto do leito. No campo, o tempo era precioso. Uma hora desperdiçada com as exigências do corpo significava uma hora subtraída à soma do conhecimento humano. Esta manhã, só se permitiria, como estimulante, as duas aspirinas.

     No momento em que acabou de se vestir e começou a preparar o café, as aspirinas produziam já seus efeitos. Como sempre, neste período da manhã antes de iniciar seu dia de trabalho (tinha uma sessão com o Sr. Manao, o professor, combinada para daí a vinte minutos), gostava de passar revista às tropas no campo.

     Passou revista às tropas.

     Utilizava, como ponto de partida mental, a maleta do correio que ficara no gabinete até à tarde do dia anterior e que fora levada à noite pelo Capitão Rasmussen, para Taiti.

     Lisa Hackfeld trouxera o envelope mais volumoso, dirigido ao marido, Cyrus Hackfeld, Los Angeles, Califórnia, e outro dirigido ao filho, Merrill, que visitava Washington numa excursão de estudantes. Antes de os depositar a ambos na maleta, Lisa beijara o mais volumoso com fingido afeto. Explicara que os elementos sobre o estimulante milagroso se encontravam naquele envelope, como também seus planos para subjugar todo o mundo ocidental ao poder de Vitalidade.

     Pouco depois de Lisa partir, aparecera Rachel DeJong, bastante alegre, eufórica mesmo, uma coisa que Maud achava inconcebível nela. Fora Rachel quem trouxera o maior número de cartas, e partira muito tempo depois. Mostrara-se surpreendentemente faladora. Exibira um envelope dirigido a uma tal Evelyne Mitchell, e afirmara que este e a maior parte dos outros se destinavam a anunciar sua chegada. Sim, tencionava exercer de novo a clínica, pelo menos por um ano. Exibiu outra carta, esta para um tal Dr. Ernst Beham, e declarara: “Então, abandonarei a psicanálise, se o Dr. Beham o permitir. Ele é meu analista didático. “ Por fim, mostrara mais um envelope, este endereçado a um Sr. Joseph Morgen, e dissera: “Ele quer casar-se comigo. Está com sorte, pois decidi fazer-lhe a vontade. “

     Neste dia, sabia Maud, Rachel continuaria sua tarefa com os analisandos nativos, coligindo as informações destinadas a seu estudo psiquiátrico, e passaria o resto do tempo ocupada com seu trabalho sobre a Hierarquia.

     Antes de Rachel sair, Orville Pence surgira com uma carta, lançara-a para dentro da maleta e fugira. Meia hora depois, porém, reaparecera, baixara-se ao lado da maleta, mergulhara a mão nela e, após tirar a carta, começara a rasgá-la na presença de Maud.

     - Era para minha mãe - explicara. - Escrevi-lhe a fim de contar qualquer coisa que fiz ontem, mas cheguei a conclusão de que ela não tem nada a ver com o assunto.

     Dito isto, e sem mais explicações, saíra. Todavia, Maud sabia o que tinha feito Orville, pois no dia anterior Harriet Bleaska confiara um segredo tanto a ela corno a Claire.

     Hoje, pensou Maud, Orville não produzirá muito trabalho. Aguardará, num estado de terrível expectativa, que Harriet decida entre ele e Vaiuri. Qualquer que seja o resultado, libertar-se-á definitivamente da mãe.

     Depois, Maud pensou na sua própria carta, naquela que acabara de ditar já. muito tarde a Claire, destinada a Walter Scott Macintosh. Inevitavelmente, estes pensamentos conduziram-na a seu futuro imediato, à possível separação de Marc e de Claire, e começou a concentrar seus pensamentos no filho; porém, resistiu. Bebeu e café e de teve-se passando revista às tropas que não tinham utilizado a maleta do correio.

     Na noite anterior, no próprio momento em que Maud e Claire se separavam para se irem vestir para a festa na cabana de Paoti, Harriet Bleaska surgira com o seu dilema. Após uma curta conversa - não ajudaram, não podiam de modo algum ajudar - Harriet saíra com Claire. Por fim, ao cair da noite, preparava-se Maud para se dirigir à cabana de Marc, Estelle Karpowicz parará por uns momentos para dizer que Mary fora encontrada e que tudo ia bem entre Mary e Sam. A satisfação de Maud fora enorme, pois gostava daquela família e sofrerá tanto pelo pai como pela filha. Hoje, pensou Maud, o dia seria maravilhoso para os Karpowicz.

     Maud completara sua revista e também seu café, e um novo dia, o primeiro da quarta semana nas Três Sereias, começava. Porém, ao encaminhar-se para a secretária improvisada, a fim de ir buscar o bloco de apontamentos e o lápis, compreendeu que omitira um elemento na sua revista, talvez devido ao receio que tinha em fazer incidir sua atenção sobre Marc.

     Por um momento, recordou-se de ter visto na noite anterior Tom Courtney na cabana de Claire, Courtney em vez de Marc, que fora chamado algures, e do pensamento que lhe ocorrera ao dirigirem-se os três para a residência de Paoti. O pensamento fora o seguinte: preferia que o trio incluísse Courtney em vez de Marc. Que coisa terrível.

     Neste momento, apercebeu-se de um fato sobre o qual sempre evitara refletir: Marc fora vítima do seu egoísmo. Pouco se importara com o filho, pois Adley e ela tinham-se bastado um ao outro. Seu único filho nunca fora tratado como tal. Pouca atenção lhe dispensavam, pois achavam-se sempre absorvidos um no outro.

     Compreendia seu erro. Agora que se aproximava do fim, Marc ficaria no mundo testemunhando o seu malogro. Censurou-se apenas a si, absolveu completamente Adley (“dos mortos diga só bem”, amém). Se pudesse reviver o passado, integraria o filho na família, não concederia todo seu amor a Adley e à sua carreira. Paria do seu filho um ser mais seguro, mais feliz, um homem verdadeiro que por sua vez amaria os filhos que tivesse (mas que não tivera de Claire).

     E, se fosse possível reviver todo o passado, teria feito muito mais. Teria tido vários filhos além do jovem automático que testemunhava o malogro da mãe.

     De pé, junto da secretária improvisada, sentia-se exangue e perdida. Seus sonhos sobre o porvir, quando jovem, incluíam apenas ela e Adley... e o filho perfeito que os adoraria a ambos. Porém, esta manhã não podia deixar de admitir uma coisa fundamental: só devia censurar-se a si própria e mais ninguém.

     Então, pensou no tesouro que Lisa Hackfeld levaria das Sereias. Atividade. Mantenha-se ocupada, marche, não se detenha nunca. Isto era o único elixir antimorte das mulheres idosas. Fora seu erro desta manhã. Detivera-se. Permitira a seu espírito a liberdade do espírito de uma mulher e de uma mãe. Todavia, não era uma coisa nem outra. Era uma antropóloga, muito ocupada, e jamais se devia esquecer disto.

     Pegou nos lápis e no bloco e saiu.

    

     Pouco antes das dez horas, a mulher dormia ainda, Marc Hayden acabou de encher seu saco. Nele colocara todos os artigos necessários para a viagem entre as Sereias e Taiti. O resto dos seus pertences não tinha agora o menor valor para ele. A partir do momento em que pusesse os pés em Taiti poderia gastar prodigamente como Cresus, utilizando os cheques de viagem até não restar um centavo, pois somas extraordinárias esperavam-no.

     Enquanto estivera metendo suas coisas no saco esperara que Claire o interrompesse. Assim, quando ela surgiu achava-se preparado.

     Claire entrou na sala da frente -. atava o cinto do robe de algodão cor-de-rosa que trazia sobre a camisola branca - no momento em que ele pegava no saco para avaliar seu peso.

     - Bom dia - disse Marc. Colocou o saco sobre os ombros para sentir melhor o peso. - Vou partir para uma exploração à ilha. Voltarei depois da meia-noite, se puder, ou talvez amanhã cedo.

     - Com quem é que vai? - desejou ela saber.

     - Com vários amigos de Moreturi. Tinha isto planejado desde há uma semana. Quero ver algumas das velhas ruínas de pedra, o templo edificado no tempo de Daniel Wright.

     - Divirta-se - retorquiu Claire, cobrindo a boca no momento em que bocejava. Andou pela sala, de teve-se, hesitante, diante da tigela de frutas, depois tirou uma banana, que começou a descascar. Fitou de relance o marido. - Está com boa cara, após o que aconteceu na noite passada.

     - O que aconteceu na noite passada?

     - Ora, bebemos... Você tropeçou por todo o lado, insultou nossos anfitriões e Tom...

     - Pelo visto, começamos outro dia encantador.

     - Bem, menciono apenas o seu comportamento. Claro, não se mostra muito diferente quando mão bebe. Antes de partirmos, sua mãe apresentou desculpas a todos.

     Marc soltou um grunhido e pousou o saco no chão.

     - Se o seu relatório é completo, eu...

     - De fato, não é - volveu Claire. - Como você chegou tarde para jantar, tive oportunidade de chamar Tom de parte e de conversar com ele.

     - Naturalmente.

     Claire fingiu não ter notado o sarcasmo implícito nesta palavra.

     - Falamos sobre o colar com o plngente que perdi, e disse que você tinha a certeza de que um dos nativos o roubara.

     - E ele afirmou... - A voz de Marc, de falsete, exprimia um fingido horror. - Oh, não, que disparate, nosso povo não rouba, ninguém dispõe de tempo para isso, estão todos sempre ocupados amando e fornicando.

     - Muito bem, Marc - retorquiu ela, irritada. - Tom disse que os ilhéus não roubam. Foi positivo nisso. Nunca foi praticado um único roubo nas Sereias, pois aqui não se invejam os bens materiais dos outros.

     Marc pensou em Tehura, a falivel, e desejou lançá-la contra Claire. Contudo, não o fez.

     - O seu Courtney, esse pedante, parece saber de tudo. Sua palavra vale sempre mais do que a minha.

     - Sobre as Sereias, sim. Ele é franco e sensato. Você está cheio de preconceitos...

     - Os preconceitos não são, automaticamente, maus - volveu Marc, num grunhido. - Tenho preconceitos, sim, mas não tolero fracassados que projetam seus malogros em todos menos neles próprios. O seu advogado de Chicago não teve coragem de lutar pela vida na pátria e fugiu; agora, ei-lo a pontificar no meio de um bando de iletrados primitivos. Ataca tudo o que sabemos que é bom, o nosso país, o nosso sistema, os nossos costumes. Porém, aqui, neste lugar onde é por fim alguma coisa, tudo é perfeito, tudo é magnífico, grande...

     - Oh, por Deus, Marc, pare com essa cantilena. Ele não é como você o pinta, sabe-o bem.

     - Falando de preconceitos: tenho u. m contra as esposas que se mostram tão hostis para com os maridos, que apoiam todos os que os atacam, em idéias, em discussões, em tudo.

     - Refere-se a mim?

     - Refiro-me a você e a muitas mulheres como você. Graças a Deus, estas não são as únicas que existem no mundo. Existem mulheres que se orgulham dos maridos.

     - Talvez tenham razões para isso - disse ela, levantando a voz. - Talvez estejam casadas com homens autênticos. Como é que me trata? Como é que se comporta comigo? Qual foi a última vez que se deitou ao mesmo tempo que eu, ou que me deu um pouco de atenção, ou que me tratou como sua mulher?

     - Uma mulher tem o que merece... Que. faz você por mim? Uma mulher...

     - Você não consente que eu seja sua mulher...

     - Viver com você não é viver com uma mulher, mas sim com um inquisidor.

     - Marc, isso é o que me faz a mim. Tenho-o observado, não só aqui mas na nossa casa e... e penso que está transformado... doente... que confunde todos os valores, que toma atitudes impróprias em relação à família, a você, às mulheres. Reflita por um instante numa coisa, na prática normal de um marido e da esposa... que devem dormir juntos regularmente, sentir desejo um pelo outro...

     - Voltamos ao mesmo. Porém, vou dizer-lhe o que penso: um homem deseja dormir com uma verdadeira mulher e não com uma garota com espírito de prostituta...

     Claire esteve prestes a perder o autodomínio.

     - Quer dizer que unia mulher que acredita no amor, que deseja ser amada, tem mentalidade de prostituta?

     Ele colocou o saco sobre os ombros com um gesto selvagem.

     - Creio que você cavalgou sobre mim durante muito tempo... dois anos. Porém, já cheguei ao limite. Estou doente, sim, mas doente de você, farto de carregar com as culpas que lança sobre mim.

     - Marc, tento apenas analisar os fatos.

     - Tenta justificar o que tem realmente nessa sua estúpida cabeça. Já alguma vez olhou para um nativo da cintura para cima? Não, só pensa no que esses macacos pardos têm da cintura para baixo...

     - Maldito - gritou Claire, levantando a mão e esbofeteando-o. Automaticamente, ele ripostou, atingindo-a na boca e no queixo com as costas da mão livre. O golpe, violento, fê-la cambalear, mas conseguiu manter o equilíbrio. Depois, levou a mão à boca, espantada.

     - Estou farto de você, farto, farto! - gritou ele. - Faça por não se atravessar no meu caminho!

     Com o saco sobre as costas dirigiu-se para a porta.

     - Marc - bradou ela -, a não ser que me peça perdão, jamais...

     Ele, porém, já não se encontrava na cabana. Claire fez um esforço consciente para não dignificar a cena de loucura dele com suas lágrimas. Quando retirou as mãos da boca, viu que tinha manchas reluzentes de sangue nos dedos.

     Lentamente, dirigiu-se para o quarto dos fundos, onde se encontrava um jarro com água. As palavras pronunciadas no dia anterior por Harriet Bleaska acudiram-lhe de súbito à mente. Harriet, assediada pelo seu próprio dilema, dissera: “Creio que Orville se parece muito com seu Marc. Por isso, talvez me possa esclarecer sobre uma coisa: que tal se vive com um homem assim?” Naquele momento, não foi capaz de responder. Neste momento, desejou ter respondido. Mas talvez Harriet não fosse tão louca como ela tinha sido.

    

     Harriet Bleaska, no seu uniforme branco de enfermeira, circulava pela sala da frente da sua cabana. “Tomara sua decisão após o café e apressadamente escrevera uma breve nota, dizendo nela aceitar a proposta de casamento. Dois minutos antes enviara a nota por um jovem nativo. Neste instante, ela já devia ter sido recebida, lida, e o destinatário não tardaria à sua porta. Os dados estavam lançados. Para sempre, sua vida seria diferente, sua vontade dobrada à de outrem, sua personalidade e sua história submersas debaixo das de um... estranho. Esta era a união, a transformação que se espera ansiosamente desde a adolescência, mas agora que tudo se realizara sentia-se possuída pelo terror.

     Acendeu um novo cigarro com a ponta de outro, e refletiu com certa serenidade. O terror que experimentava não se devia a esta alteração drástica que se ia produzir na sua vida mas à contínua inquietação sobre se fizera ou não uma escolha sensata.

     Uma última vez, antes de abandonar seu ser e seu isolamento atrás da Máscara, reviu os dois homens e o que eles ofereciam. Pensou nos prós e nos contras de ser esposa de Vaiuri, semipolinésio, semi-inglês, médico prático das Sereias, e de ser esposa do Dr. Orville Pence, todo americano, etnólogo de Denver, Colorado.

     Os prós de Vaiuri: ele é fisicamente atraente, é inteligente, está interessado no que estou interessada, é provavelmente um bom amante, como de resto todos aqui, apreciará a minha perícia na mesma matéria, desejará que tenha muitos filhos dele, como eu, aliás, tem uma família maravilhosa e belos amigos, fará o possível para que eu nunca passe necessidades de. qualquer espécie. Ama-me.

     Contras de Vaiuri: ele é talvez demasiado solene, e carece da minha educação formal, não tem ambições muito elevadas, pois não há incentivo aqui, me enganará todos os anos durante o festival, sentirá por vezes que sou inferior devido ao fato de ser toda branca.

     Prós das Três Sereias: é como uma colônia de férias perpétua; posso ser eu mesma aqui, não haverá pressões, sou considerada bela.

     Contras das Três Sereias: não posso exibir meu marido às minhas velhas amigas, não existem as engenhocas da civilização, institutos de beleza, programas de televisão, está muito longe de... De quê?

     Prós de Orville Pence: é um americano bem sucedido, deseja-me para sua mulher.

     Contras de Orville Pence: não o consigo imaginar despido, tem tipo de solteirão, é um homem que se despacha com certeza em dois minutos, tem uma irmã, tem MÃE, vir-me-á com lições a propósito de tudo e de nada, permitirá que tenhamos apenas um filho, é enfadonho, é um esnobe, conceder-me-á apenas dinheiro para os alfinetes, dará a impressão de que me faz um favor, far-me-á entrar para sócia do Clube das Esposas dos Professores, votar pelos republicanos... e não consigo imaginá-lo despido.

     Prós de Denver: é uma cidade americana.

     Contras de Denver: é uma cidade americana, habitada por uma MÃE.

     Oh, diabo, pensou ela, se ao menos houvesse uma máquina de calcular, que resolvesse estes problemas e garantisse a precisão do resultado. Não há máquina, e não houve ninguém que me quisesse aconselhar, nem Maud, nem Claire, nem Rachel. Está decidido agora. Escolhi bem?

     Pôs um terceiro cigarro entre os lábios, e acendeu-o com a ponta do anterior. Escolhera bem? Evocou os maus anos, que constituíam a maioria dentre todos os seus anos. Como fora mal usada! Sempre, sempre, oferecera o corpo a fim de tornar aceitável a Máscara. Tinha unicamente desejado pertencer a alguém ou a alguma coisa, mas jamais o conseguira, exceto talvez uma vez por outra, por momentos.

     Sim, disse de si para si, sim, sim, sim. Escolhera bem.

     Chegara a esta conclusão final quando ouviu bater à porta da cabana.

     Esmagou o cigarro inacabada na concha que servia de cinzeiro, alisou apressadamente o cabelo, passou a língua pelos lábios sem fim para remover qualquer átomo de tabaco que tivesse neles e disse:

     - Entre!

     Ele precipitou-se no quarto, e aí ficou de pé, os olhos dilatados, possuído por nervosa incerteza.

     - Recebi sua nota - falou. - Dizia nela que viesse imediatamente, que tinha boas notícias para mim. É o que penso?

     - Refleti bem e tomei uma decisão. Terei orgulho em ser a Sra. Orville Pence.

     Estas palavras surpreenderam-na um pouco, mas deleitou-a muito ver o alívio refletido no rosto dele.

     - Harriet - disse Orville -, este é o momento mais feliz de toda a minha vida.

     - Da minha também.

     - Anunciaremos o casamento, no almoço, a Maud. Ela engoliu em seco.

     - Orville, não quer beijar a noiva?

     Quando ele se aproximou dela, recordou-se pela primeira vez do sacrifício que fizera. Para sempre, renunciara à possibilidade de ser bela - compreenderia ele alguma vez isso? -, pois era a herdeira de todos aqueles fantasmagóricos antepassados que tinham dado forma à placenta que a produzira para este ato final de conformismo.

     E quando Orville a abraçou, desajeitadamente, como um missionário dando as boas-vindas a seu rebanho, apercebeu-se de que ele cheirava a sabonete, que exalava o odor da limpeza presbiteriana. Ele beijou-a. Contra: não sentiu uma migalha de entusiasmo. Pró: sentiu-se segura. Depois, beijou-o por sua vez, talvez com demasiado fervor, pois, afinal, não era pequena coisa ser a Sra. Pence.

     Passado um momento, soltou um suspiro involuntário.

     Uma vida de incessante gratidão, sabia, começava neste momento.

     

     Do lugar onde se ocultara, atrás de algumas palmeiras, defronte do caminho íngreme que conduzia para fora da aldeia, Marc Hayden podia aperceber-se das idas e vindas dos membros do grupo.

     Vira Claire deixar a cabana e desaparecer no gabinete de Matty. Durante os quinze minutos que se tinham seguido, vira Rachel DeJong encontrar-se com Harriet Bleaska e Orville Pence no conjunto, apertarem-se as mãos e dirigirem-se os três, bastante animados, para a cabana de Maud. A seguir, Lisa irrompera da residência e dirigira-se também para o gabinete de Matty. Os únicos que não tinham abandonado sua cabana eram os que o interessavam neste momento. Por qualquer motivo cuja origem desconhecia, Estelle, Sam Karpowicz e a filha não haviam aparecido ainda.

     A princípio, quando deixara Claire (a cadela) esta manhã, e escondera o saco atrás da cabana de Tehura, pensara em pedir à jovem nativa que mantivesse os Karpowicz ocupados na hora do almoço ou do jantar. Uma vez que não ousara invadir mais cedo a câmara-escura, a fim de tirar as fotografias e os filmes, pois receara que Sam dispusesse de tempo suficiente para descobrir o roubo, tinha de contrair o empréstimo ou fazer a partilha hoje. Não se permitira acreditar que o desvio das fotografias e do filme da câmara-escura constituísse um roubo. Convencera-se de que tudo resultará da participação de todos os membros do grupo, no campo, que tudo era propriedade comum. Devido a esta racionalização, sentia-se com direito a parte do produto das máquinas de Sam. Se isto não era assim, então, pelo menos, tinha o direito de pedir emprestado o material e de fazer cópias dele, devolvendo mais tarde os originais, em Albuquerque.

     Contudo, Marc compreendeu que Sam podia fazer suas objeções. Sam provara recentemente, com sua explosão na escola, que era bem capaz de perder as estribeiras. Sim, Sam podia tornar-se difícil. O melhor seria tirar as coisas de que necessitava da câmara-escura e deixar-se ficar por aí. Havia um problema, porém: penetrar hoje na câmara-escura quando nenhum dos Karpowicz estivesse em casa. De manhã, pensara pedir à sua colaboradora, Tehura, que os convidasse para almoçar ou para jantar na sua cabana. Contudo, este projeto não tinha viabilidade porque não encontrara Tehura na sua residência, nem a vira em parte alguma. Felizmente, enquanto a procurava, topara com Rachel DeJong, que se dirigia para a cabana que utilizava como consultório. Tinham trocado algumas palavras inconseqüentes, mas ao partir Rachel dissera:

     - Bem, ver-nos-emos na cabana de sua mãe, no almoço.

     Marc esquecera completamente o almoço de Matty, marcado para o meio-dia e trinta. O almoço, pensou Marc, que conhecia muito bem a genitora, tinha um único objetivo: levantar o moral de todos. A realização deste almoço dava a Marc a oportunidade de “visitar” a câmara-escura. Agora, só necessitaria de Tehura à noite. Que ironia, Matty ajudava-o a cavar sua própria queda. Antes, nunca compreendera com tanta clareza que estava forjando a queda de Matty. Uma vez que partisse e levasse pôr diante o projeto Garrity para a fama e para a glória, Claire (a cadela) seria esmagada e Courtney aviltado. Mas Matty? Matty, essa, ficaria completamente arruinada. Quando, com Garrity, revelasse nas salas de conferências de toda a América a bacanal das Sereias, Matty teria de apresentar-se de mãos vazias na reunião da Liga Antropológica Americana. De fato, ela seria objeto de censuras, considerada uma desgraça para sua profissão, inimiga de uma sociedade. Teria sorte se conseguisse reter seu lugar de professora no Raynor College. Oh, o presidente Loomis, esse porco senil, deixá-la-ia ficar para a ver morrer no ignoto cemitério dos elefantes.

     Marc despertou destas divagações e ficou alerta, pois viu Estelle e Sam Karpowicz saírem da cabana. O par deteve-se por um momento no conjunto, discutindo qualquer coisa, antes de se dirigir para o gabinete de Maud.

     No próprio momento em que os perdeu de vista, Marc deixou seu pouso e encaminhou-se para o conjunto. A cabana dos Karpowicz era a última e a que lhe ficava mais próxima.

     Em menos de um minuto, suando, chegou junto da cabana e mergulhou na aléia lateral que conduzia à câmara-escura.

     Ao passar pela primeira janela ouviu uma voz, e recuou. Esta voz era, sem dúvida, de Mary Karpowicz. Esquecera-se por completo da jovem. Por que ela não fora ao almoço? Calmamente, perguntou-se o que devia fazer em seguida! Mary conversava com um jovem nativo e as palavras pronunciadas por ambos reverberavam nos seus ouvidos e enfureciam-no.

     Eis o diálogo dos dois jovens:

     - Mas se gosta de mim, por que não, Nihau?

     - Você é demasiado jovem.

     - Sou mais velha do que as moças da escola.

     - Mas não é uma jovem das Sereias. No seu país as coisas passam-se de maneira diferente.

     - Não de maneira tão diferente como pensa. Nihau, não acredito em você, não acredito que não queira devido à minha idade. Diga-me por que não...

     - Aprendeu muito aqui, Mary. Chegou à maturidade. É mais sensata, possui mais experiência do que antes. Terá muito que oferecer a um homem do seu próprio mundo que encontre e ame. Isso acontecerá em breve, dentro de dois, três anos... Quando o encontrar, recordar-se-á de mim, com gratidão. Não quero tornar impossível esse belo momento. Desejo que ele surja, e no momento próprio.

     - Você é a pessoa mais gentil que conheci até hoje, Nihau, mas não compreendo. Faz disto uma coisa tão séria e ao mesmo tempo diz-me que nesta ilha tudo é natural e...

     - Você não pertence a esta ilha e muito em breve partirá para sempre. Deve viver e pensar como seus pais e seu povo ensinam. Gostaria de... de fazer isso com você, mas não o farei porque a compreendo e a aprecio muito. Jamais a esquecerei, e deve ter sempre presente o que aprendeu aqui. Agora, venha até à minha cabana, para almoçarmos com minha família.

     Marc esteve prestes a murmurar uma obscenidade por estes garotos terem frustrado seus planos. Porém, ficara profundamente satisfeito por se ver voltar à razão. Célere, tornou ao conjunto e de teve-se junto da ponte. Quando se voltou, viu que Mary e o jovem nativo saíam da cabana, Marc começou a caminhar descuidadamente, e quando passou por eles fez-lhes um aceno de simpatia, a que ambos corresponderam.

     Decorridos alguns momentos, ao passar junto das palmeiras abrandou o passo e olhou para trás. O par atravessara uma das pontes e perdia-se entre uma fila de cabanas. Passados alguns segundos deixou de os ver; o conjunto, flagelado pelo sol, estava completamente deserto.

     Quase correndo, Marc voltou à residência dos Karpowicz e dirigiu-se para os fundos.

     Uma vez diante da pequena cabana de teto de colmo que servia de câmara-escura, empurrou a porta, que cedeu facilmente. Estava no limiar da caverna encantada. Apropriar--se-ia de uma coleção de instantâneos dos mais espetaculares e de uma dúzia de filmes dos mais representativos. Não levaria muito, apenas o suficiente, para que Sam não desse imediatamente pela falta do material subtraído. Levaria tudo para sua cabana, faria um embrulho e encaminhar-se-ia depois para a cabana de Tehura. Esconderia o volume junto do saco, no meio de espessa folhagem, até ao cair da noite.

     Tudo isto devia ser Jeito com presteza, antes que os convidados de Matty voltassem.

     Penetrou na câmara-escura, fechou a porta atrás de si, e ei-lo só, por fim, diante das riquezas de Ali Babá.

    

     No gabinete de Maud, uma hora e meia tinha-se escoado e o almoço de solidariedade estava chegando ao fim. Os convidados continuavam sentados nas esteiras em redor do banco longo e baixo que servia de mesa. Todos os membros do grupo de campo se encontravam presentes, com exceção de Marc Hayden e de Mary Karpowicz. Tom Courtney, que estava sentado numa extremidade da mesa improvisada, perto da porta e defronte de Claire, fora também convidado devido ao fato de pertencer tanto ao mundo deles como ao mundo das Sereias.

     O almoço começara com uma nota de alegria. Orville Pence, com Harriet Bleaska pelo braço, chegara com uma muito viajada garrafa de uísque. Quando todo o grupo se achava reunido, ele pousou, com ruído, a garrafa sobre a mesa de Maud, a fim de fazer incidir sobre si a atenção de todos. No momento em que se fez silêncio, anunciou seu noivado com Harriet e disse que se casariam e passariam a lua-de-mel em Las Vegas, Nevada, um dia depois do regresso aos Estados Unidos.

     Todos tinham apertado a mão de Orville e beijado Harriet no rosto. Apenas Claire, apesar de conceder um sorriso ao par, se mostrara reservada. No momento em que Orville enchia os copos para o primeiro brinde, os olhos de Claire e os da enfermeira encontraram-se. Harriet tinha as faces coradas, manifestando o prazer que sentia por se ver alvo de todas as atenções, mas quando Claire a fitou o seu sorriso desvaneceu-se. Imediatamente, Claire teve pena dela, pois compreendeu que Harriet lera a tristeza e a compaixão expressas nos seus olhos. Claire, então, obrigou-se a sorrir com afeto mas este momento de verdade não foi completamente obliterado. Harriet compreendia quê Claire preferiria que tivesse escolhido o proponente nativo.

     Após os brindes, foi servido o almoço, por uma nativa magra, rígida, impassível, de idade indeterminada. O almoço constituiu um Verdadeiro sucesso. Houvera leite de coco nas canecas de plástico de Maud, a inevitável fruta-pão, inhames, bananas vermelhas, taro, galinha assada, peixe cozido, de uma espécie que todos desconheciam, e por fim veio para a mesa uma sobremesa incongruente composta de bolos sortidos da reserva americana de Maud.

     A antropóloga falara durante toda a refeição. Contara anedotas sobre os Mares do Sul, referira-se às maravilhas e às surpresas da antropologia, tudo com graça e por vezes com uma moral de permeio. Claire ouvira diversas vezes estas anedotas nos últimos dois anos e prestara menos atenção à sogra do que os outros. No entanto, a despeito da sua aversão pela prole de Maud, Claire disse de si para si que não havia inteiro, diante da porta aberta da sua cabana. Apenas com sua saia de erva, Tehura parecia o sonho polinésio de todos os homens.

     Claire continuou a examinar com interesse a série sobre Tehura. O lar de um habitante médio das Sereias, eis como denominara Sam esta coleção. Noutra fotografia, Tehura estava ajoelhada diante do maciço ídolo da fertilidade colocado num canto da sala da frente da sua cabana. E noutras ainda, Tehura estava debruçada sobre o fogão de terra, dormitava sobre as esteiras do seu quarto dos fundos, apontava orgulhosamente para as jóias e os ornamentos oferecidos pelos seus admiradores.

     De súbito, Claire deteve-se. Espantada, aproximou esta última fotografia dos olhos. Não podia haver engano. Eis o que supunha ter perdido.

     Trêmula, voltou-se e chamou Courtney.

     Ele aproximou-se e fitou-a, tentando compreender sua agitação.

     - Claire, o que se passa?

     - Encontrei-o... Encontrei o meu colar que julgava ter perdido.

     - Sim?!

     - Ei-lo. - Passou-lhe a fotografia. - É Tehura que o tem.

     Durante longo tempo, pareceu, Courtney examinou a fotografia. Depois, de testa franzida, ergueu os olhos.

     - É o seu colar, não há dúvida... Claire, tenho certeza de que ela não o roubou. Conheço bem Tehura.

     - É possível que não tivesse necessidade disso. Courtney fitou-a, perturbado.

     - Acho melhor ir falar com ela - tornou Claire.

     - Acompanhá-la-ei.

     - Não - disse Claire com firmeza. - Há coisas que uma mulher deve fazer sozinha.

     

     Durante toda a tarde aguardou, tensa, a sua confrontação com Tehura, e durante toda a tarde sentiu-se frustrada, pois Tehura não se encontrava na cabana. Três vezes, sob o sol abrasador da tarde, Claire atravessara o interminável conjunto, da sua cabana à de Tehura, e das três vezes vira a cabana de Tehura vazia.

     Agora, passava já das cinco horas, Claire dirigia-se pela quarta vez àquela cabana detestável. Se Tehura não estivesse ainda em casa postar-se-ia diante da porta até que ela chegasse. Se estivesse em casa, não desperdiçaria nem tempo nem palavras. Ali, e imediatamente, terminaria a última parte de sua questão com Marc.

     Aproximou-se da cabana que se tornara o centro dominante de sua vida e quando levantou o punho para bater à porta apercebeu-se intuitivamente de que receberia resposta.

     Bateu.

     A resposta foi imediata.

     - Eaha?

     Empurrou a porta e entrou no interior obscurecido e um tanto fresco da sala-da frente. Tehura tinha as costas apoiadas contra a parede do fundo e estava ocupada cortando legumes para a sua refeição da noite.

     Ao ver Claire, a jovem nativa não manifestou a satisfação com que acolhia suas visitas mas profunda inquietude. Não sorriu nem tampouco se levantou, como era costume, para demonstrar sua hospitalidade. Continuou imóvel numa atitude de vigilante expectativa.

     - Preciso falar com você, Tehura - disse Claire, ainda de pé.

     - Trata-se de uma coisa muito importante? Tenho de servir um jantar esta noite. Não pode esperar até amanhã?

     Claire manteve-se firme na sua decisão.

     - Não, Tehura.

     A bela moça encolheu os ombros e lançou todos os legumes para a ampla tigela.

     - Muito bem - retorquiu ela, de má cara -, fale.

     Claire hesitou. Sempre que se encontrava na presença de uma destas nativas sentia-se em desvantagem. Algumas semanas antes pensara que isto se devia à superioridade delas nas atividades sexuais. Quando está com uma mulher que conheceu muitos homens, outra que conheceu apenas um sente-se inferior. Porém, Claire compreendia agora que o motivo era muito mais superficial. Durante sua primeira tarde na aldeia, tivera já a primeira percepção do problema, pois sentira-se como que a esposa de um missionário. Era tudo uma questão de vestuário ou de falta de vestuário. As jovens nativas, sem nada a cobri-las, exceto o saiote de erva, tão curto que quase revelava as partes íntimas, constituíam a verdadeira personificação da feminilidade. Agora, eis ali uma delas, tão feminina, exibindo as curvas magnificentes de seu corpo pardo, quase de bronze. E por contraste, ei-la a ela, Claire, quase coberta dos pés à cabeça, testemunhando a vergonha que sentia pela sua condição de mulher.

     Claire baixou-se sobre os joelhos diante da jovem nativa. Teria de utilizar todo o seu autodomínio para não falar com voz trêmula.

     - Tehura - disse ela -, como é que o meu colar chegou às suas mãos?

     Claire teve a satisfação de a ver perder a compostura. Tehura endireitou-se contra a parede, como se se encontrasse numa situação de perigo que não podia enfrentar. Sua mente, lenta, vácua, funcionava desesperadamente, compreendeu Claire. Daí a um momento, surgiria com uma mentira estúpida.

     Claire, ante o silêncio da jovem, falou de novo:

     - Não perca tempo forjando mentiras, pois assim embaraçar-nos-á a ambas. Sei que tem o meu colar. O Dr. Karpowicz tirou fotografias, recorda-se? Numa delas você mostra as suas coisas, os seus ornamentos. Vi as fotografias... e o colar. Diga-me: como chegou às suas mãos. Estou decidida a descobrir a verdade.

     Claire resolveu esperar, sabia que Tehura não tardaria a confessar.

     - Pergunte a seu marido - disse a jovem bruscamente. - Ele o ofereceu a mim.

     Bem, pensou Claire, uma parte estava confirmada.

     - Sim, já esperava que tivesse sido Marc.

     - Um presente - apressou-se a acrescentar Tehura -, um presente por ser sua informante. Disse que compraria outro.

     - Não quero outro - retorquiu Claire -, nem tampouco que me devolva este. Desejo apenas saber a verdade, a verdade do que se passa entre você e Marc.

     - Que verdade? - perguntou Tehura.

     - Sabe muito bem a que me refiro. Deixemo-nos de sutilezas. Você é uma mulher tão adulta como eu. Marc ofereceu a minha jóia mais cara e também de maior valor estimativo a uma estranha. Quero saber por quê. Não acredito que o tivesse feito apenas para se mostrar gentil com sua informante.

     De certo modo, Tehura não mentira. Portanto, podia permitir-se manter sua afirmação inicial.

     - Que serei eu mais? Que tem em mente? - Depois, num assomo, cruel, acrescentou: - Ele é seu marido e não meu.

     - Não é meu marido também - volveu Claire.

     - Isso diz respeito a você como mulher e não a mim - ripostou Tehura.

     Ela está mostrando-se deliberadamente insolente, pensou Claire. Não me parece que mantenha apenas uma simples posição defensiva. Sente-se numa posição superior. Devia haver uma razão para isto, e Claire decidiu apurar toda a verdade, custasse o que custasse.

     Durante alguns segundos estudou Tehura; espantava-a o fato de ela se ter modificado completamente em tão poucas semanas. A partir do seu primeiro encontro com a jovem nativa na cabana de Paoti, antes e durante o rito da amizade, gostara de Tehura e admirara-a. A jovem constituíra para Claire o símbolo vivo da alma livre, alegre, confiante, natural. A Eva simples. Tudo se esvanecera. Tehura era tão complexa, reservada, invejosa, inibida, nervosa como qualquer mulher ocidental. Quando e como tivera lugar esta metamorfose? Quem fora o agente infeccioso? De novo, Claire estava certa de conhecer as respostas, mas queria ouvi-las dos lábios de Tehura - precisamente como Rachel DeJong sabia sempre as respostas mas tinha de as ouvir dos lábios dos seus doentes de modo que eles se apercebessem delas também.

     - Tehura, proponho-me ignorar seu óbvio -desdém por mim - disse Claire lentamente. - Vou falar com toda a sinceridade de que for capaz, e depois você poderá dizer tudo o que desejar.

     - Diga tudo o que quiser.

     - Você transformou-se, você transformou-se quase diante dos meus olhos. Não é a. mesma jovem que conheci no dia que aqui cheguei. Pensava que esta sociedade não cedia a qualquer influência estranha. Pensava que a gente das Sereias tinha, de certa maneira, progredido mais do que nós, e podia suportar nossa visita sem sofrer seus maus efeitos. Mas agora vejo que alguns de vocês são seres humanos falíveis, também, e deve haver sempre em qualquer grupo uma ou duas pessoas mais suscetíveis do que as restantes, mais sensíveis a influências estranhas. Alguma coisa tem-na envenenado interiormente, deteriorado. Você era uma jovem simpática, atraente, quase perfeita, mas modificou-se, tornou-se outra, imperfeita. Tem estado constantemente exposta apenas a um de nós nestas últimas semanas... a uma pessoa que conheço muito bem. Marc destruiu-a.

     Tehura inclinou-se para a frente, e a cólera repassava sua voz.

     - Marc nada me fez. Marc comportou-se sempre corretamente comigo. É um homem bom. Você não o aprecia, eis tudo. Você é que está deteriorada e tenta destruí-lo.

     - Compreendo - disse Claire. - Que conhece acerca do meu marido? Como sabe que ele é um homem tão bom?

     - Estive com ele todos os dias durante estas últimas semanas. Como não pode falar com você, fala comigo. Conheço-o bem.

     - Sim, Tehura?

     - Sim, conheço-o melhor do que você. Comigo, ele pode falar, ser livre, ser homem. Com você, não passa de ar.

     - Foi isso o que ele disse, não é verdade?

     - Não, é o que vejo com meus olhos. Ele não pode viver com você.

     Claire mordeu os lábios.

     - Crê que ele pode viver com qualquer outra mulher? Crê que ele pode viver com você?

     - Sim.

     - Bem - tornou Claire -, eis-nos diante de um problema. Realmente, ele envenenou-a. Mas permita que lhe dê alguns conselhos sinceros. Não sei o que Marc lhe disse ou o que tem em mente a seu respeito. Não sei se tenta simplesmente dormir com você, ou se a convidou a partir com ele para os Estados Unidos a fim de fazer de você sua amante... ou esposa, talvez.

     - Fala por você, não por Marc.

     - O que quer que tenham ambos em mente, escute-me* Tehura. Ele é apenas um homem de palavras, nada mais. Esse é o meio de sedução mais mesquinho, o pior, pois para além das palavras pouco mais há. Compreende? Tudo o que ele pode ter dito nestas últimas semanas, acerca de si mesmo, acerca de mim, acerca da nossa vida, acerca da nossa pátria, foi delineado para a iludir, para a corromper.

     - Não.

     - Sim, Tehura - retorquiu Claire com firmeza. - Vivemos uma vida estúpida, monótona no nosso país, uma vida nervosa, fatigante, cheia de tensão. Competimos pelos empregos, por um lugar na sociedade, combatemos o tédio, a, solidão, sempre com uma coisa em mente: como escapar, como vencer. A sua vida aqui é melhor de mil maneiras. O seu vocabulário nem sequer tem palavras para tranqüilizantes, política, ambição, frustração, inveja, dívidas, frigidez, solidão. Mas tudo isto permeia grande parte da vida no meu país. Não direi que na América tudo é mau e que nas Sereias tudo é bom, mas afirmo, e não o duvide, que Marc não pintou um quadro verdadeiro. - Respirou fundo, e prosseguiu. - E mais, Tehura, Marc não é homem para você ou para qualquer mulher normal. Compreendi isto aqui. Que pode ele falar-lhe a mais que os seus homens? É verdade que Marc é inteligente, altamente culto, atraente, e que por vezes tem dinheiro para colares. Mas isto é tão pouco, Tehura, tão pouco. Ele não é capaz de dar ternura, compreensão, amor. É obstinado, colérico, egoísta, demasiado neurótico... doente do espírito... para funcionar, para se comportar como deve um homem. Está corroído pela inveja, pelo ódio, pela piedade por si mesmo, por preconceitos fantásticos, por sonhos irreais. Seus valores não são mais maduros do que os de um rapazola, menos, talvez. Mencionei o amor. Nesta ilha, o amor é expresso com mais calor, veemência, paixão do que em qualquer outra parte do mundo. Você confessou que sentiu prazer com os homens com quem teve relações íntimas. Não sentirá prazer da mesma maneira com um americano...

     - Tom Courtney foi meu amante...

     - Mesmo Tom, e ele é um milhão de anos mais maduro do que Marc; mesmo Tom, como disse, teve de ser ensinado por você. Marc não é Tom, e não aprenderá. Ele é diferente de todos os homens que tem conhecido. Nunca tive um bom amante, conheci apenas Marc, mas posso afirmar, com os diabos, que ele é o pior de todos. Não tem interesse algum numa verdadeira mulher. Não é capaz de se dar. Pensa apenas em si mesmo. Tehura, por você, não por mim, advirto-a...

     Tehura pôs-se de pé, tentando manter sua pose.

     - Não acredito em você - disse ela. Claire ergueu-se.

     - Por quê?

     - Você, como mulher, não sabe prender seu homem. Tem ciúmes e medo.

     - Tehura - tornou Claire -, como posso eu demovê-la, a pessoa em quem se transformou, a pessoa que ele criou? - Apercebeu-se de que era inútil prosseguir. - Muito bem, mas espero que compreenda que não se trata verdadeiramente de ciúmes. Acabei tudo com Marc. Faça a o que quiser.

     Dirigiu-se para a porta.

     - Pode levar seu colar - bradou Tehura.

     - Fique com ele... Fique com ele, mas não com Marc, se tem isso em mente, para não ser tão louca como eu tenho sido.

     Saiu, e quando fechou a porta atrás de si sentiu que os joelhos cediam. Apoiada contra a cabana, deu-se conta de que não tinha lágrimas nem amargura, que se encontrava apenas emocionalmente exausta.

     Está tudo acabado, graças a Deus, está tudo acabado, pensou. Na próxima vez que Rasmussen viesse, partiria com ele.

     Quanto a Marc e Tehura, não sabia se existia alguma coisa entre eles, ou se chegaria a existir. Marc não interessava agora, mas por um momento sentiu pena de Tehura.

     Pobre jovem, pensou, e depois partiu. Aquela criança nativa, já que o desejava, que criasse o seu purgatório.

    

     A noite descera já há algumas horas, sobre as Sereias, e Marc Hayden, de volta, compreendeu que estava atrasado para seu último encontro na aldeia. Quando, da trilha íngreme, distinguiu a silhueta da Cabana de Auxílio Social, embaixo, sentiu alívio por ter encontrado o caminho e por ter sido bem sucedido naquilo que fizera até ao momento.

     Descendo à aldeia, a caminho da residência da sua Tehura, experimentava uma magnífica sensação de bem-estar. Era como se, a cada passada, furasse mais profundamente a crosta que o envolvia. Em breve, encontrar-se-ia livre, e em plena ascensão.

     Estava satisfeito consigo mesmo, com a maneira como passara o fim da tarde e a noite. Depois de ter ocultado aquilo a que Rex Garrity chamava a “única prova plena, isto é, a prova de que as Sereias existem e são o que você diz”, Marc introduzira-se na cabana de Tehura e comera qualquer coisa, o suficiente até ao cair da noite. Quando se certificou de que não seria visto, saiu com mil cautelas da cabana e tomou um dos poucos caminhos menos utilizados pela gente da aldeia. Subira a elevação atrás da Cabana de Auxílio Social e chegara à clareira onde ele e Tehura, como antropólogo e informante, tinham passado muitas horas. Depois de descansar à sombra, continuara a caminhar até alcançar o local do seu fiasco na prova de natação, aonde decerto nenhum dos membros do* grupo se arriscaria a ir num dia de trabalho.

     Na curva da enseada, abaixo do penhasco, vira alguns jovens nativos preparando-se para empurrar suas canoas para a água. Supondo ter reconhecido Moreturi entre eles, começara a descer cuidadosamente o rochedo. Por fim, chegou à beira do mar. Os nativos eram pescadores, e o chefe do grupo não era outro senão Moreturi.

     Por muito que detestasse este, em particular, e todos os nativos em geral, Marc apercebeu-se de que a presença deles podia ajudá-lo a passar as horas que tinha à sua frente. Como esperara, foi convidado a participar da pescaria, e acompanhou-os de boa vontade. Quando voltaram à praia era já noite.

     Revigorado por esta excursão no mar, Marc seguira os companheiros e com eles subira o rochedo. No topo, um dos nativos, que partira antes dos outros, acendera uma fogueira. Depois, todos se sentaram em redor do fogo enquanto se assavam peixe e batatas-doces. Marc não se lembrava de outro jantar que tivesse saboreado com tanto prazer.

     Por causa dos seus planos, Marc, após agradecer aos nativos, partira, deixando-os ainda sentados em redor da fogueira. A marcha de volta à aldeia levara o dobro do tempo da vinda, isto devido à escuridão. Quando se aproximou da clareira, sentiu-se. mais seguro. E aí, durante algum tempo, repousou, sonhando com as futuras glórias.

     Estirado sobre a vegetação, contemplando o céu estrelado, sentiu satisfação em pensar que não seria apenas uma das formigas errantes do planeta. Sempre o aterrorizara a idéia de fazer a sua única caminhada na Terra, sob este céu, sem alcançar fama e distinção. Não desejava viver e morrer como um simples número, um dentre tantos números estatísticos que expiravam na Terra em cada segundo. Mercê, porém, de sua força de vontade, modificara tudo, escorraçara seus medos. Daqui em diante o mundo conhecê-lo-ia como um aristocrata, coroado pela fama; milhares e milhares de pessoas chorariam sua morte, as colunas dos jornais encher-se-iam de fotografias e de palavras em louvor de suas obras, e viveria enquanto existissem homens na Terra.

     Que bem se sentia esta noite.

     Foi então que sua mente febril divisou mais simples recompensas. Uma delas era menor, a outra esplêndida. A melhor: a partir do dia seguinte, poderia abandonar a antropologia para sempre. Vira-se obrigado a seguir aquela carreira por imposição dos tiranos. Jamais dispusera de uma alternativa, de liberdade de escolha. Um filho de Adley e de Maud Hayden só podia decidir-se por uma coisa. Nove anos antes recebera seu diploma de licenciatura e partira imediatamente para o campo, onde trabalhara durante um ano. Esta viagem fora seguida por dois. anos de seminários, a fim de conseguir o doutoramento. A viagem de campo com Adley e Maud constituíra o pior período de sua vida. Estivera, ainda criança, no campo com os pais, mas durante sua primeira viagem como adulto, munido com um diploma, os antigos terrores tornaram a assaltá-lo. Nos longínquos Andes, separado da civilização, resistira, com todas as fibras do seu ser, ao isolamento. Obcecara-o a possibilidade de um acidente que sobreviesse a ele ou aos pais. Se o destino o visasse, seria abandonado naquela região estranha e inóspita, se atingisse os pais ver-se-ia sozinho no meio dá mais profunda desolação. Jamais fora capaz de sacudir estes terrores e estas obsessões.

     Agora, o terror fora exorcizado. Fruindo este prêmio menor, podia fruir também o maior, a recompensa magnífica, que se encontrava à mão. Evocou a pessoa de Tehura, que em breve veria. Imaginou o encontro entre ambos. Ela prometera dar-se esta noite. O que se mostrara tão ilusório seria dentro de momentos possuído por ele, e em mais noites, se o desejasse.

     Pôs-se de novo a caminho, animado pela promessa do amor com Tehura. Eram dez horas quando chegou, aos limites do conjunto, e nenhum de seus inimigos estava à vista. Contando as cabanas, tão semelhantes, foi capaz de localizar a residência de Tehura na escuridão. Viu a luz amarela atrás das janelas. A sua mulher esperava.

     Um último ato antes de entrar: tirar de entre a vegetação o que lá escondera, o saco e o embrulho com as fotografias e o filme. Isto feito, aproximou-se da porta de Tehura e, sem bater, entrou.

     Só passado um instante é que ela conseguiu reconhecê-lo. Estava sentada com indolência num canto obscurecido da sala da frente. Estava tão provocante como sempre; tinha os seios nus, as pernas, também nuas, cruzadas, e trazia apenas a saia de erva e um hibisco branco encantador no cabelo negro. Parecia repousar, enquanto sorvia um líquido contido numa casca.

     - Estava preocupada, Marc - disse ela. - Está atrasado.

     Ele pousou o saco e o embrulho com os filmes no chão, ao lado do ídolo de pedra, junto da porta.

     - Estive escondido - retorquiu ele. - Encontrava-me longe da aldeia. * Levei muito tempo para voltar, devido à escuridão.

     - De qualquer modo está aqui. Sinto-me feliz.

     - Mais notícias?

     - Não. Mas ficou tudo combinado. O irmão de Poma esperar-nos-á na praia com sua canoa, ao romper do dia. Em breve, portanto, partiremos. Estaremos longe e a salvo antes que dêem pela nossa ausência.

     - Maravilhoso.

     - Abandonaremos a aldeia à meia-noite. Todos estarão dormindo. Caminharemos por detrás das cabanas até ao outro lado e tomaremos o caminho mais longo, aquele por onde vieram quando chegaram aqui.

     - Não existe um caminho mais curto?

     - Sim, mas é bastante difícil de noite. O caminho longo é mais fácil e mais seguro.

     - ótimo.

     - Dispomos de duas horas, Marc - tornou ela. - Façamos um brinde por uma jornada feliz. E durmamos um pouco, para nos sentirmos com energias. - Ela estendeu a mão. - Beba um pouco de sumo de palma.

     - Obrigado, Tehura - volveu ele -, mas não me apetece beber isso agora. Demais, tenho duas garrafas de uísque no saco. Este escorrerá melhor.

     Abriu o saco e tirou uma das garrafas; depois de a abrir, levou-a à boca e bebeu três goles. O uísque queimou-lhe a garganta e aqueceu-lhe o peito. Sentiu-se reanimar.

     - O que fez hoje? - perguntou.

     - Visitei minha família. Era um adeus, mas não compreenderam.

     - Viu Huatoro?

     - Decerto que não.

     - Courtney?

     - Não: O que lhe passou pela cabeça?

     Os primeiros goles de uísque tornavam-no sempre invulgarmenté suspicioso e agressivo. Tinha de se controlar. Bebeu um outro gole e disse:

     - Não me passou nada pela cabeça. Perguntei por perguntar. Viu alguém mais, da sua família?

     - Poma, para me certificar de que tudo estava preparado.

     - Só Poma?

     Hesitou, e depois retorquiu com ênfase:

     - Ninguém, a não ser você.

     - Bom.

     - Quem você viu, Marc? - perguntou ela por sua vez.

     - Desde que deixei minha mulher, esta manhã, ninguém, dos do grupo. Esta tarde fui pescar com alguns dos seus amigos. Moreturi e vários outros. - O uísque perturbara-lhe a visão. - Já preparou suas coisas?

     - Tenho muito pouco que levar comigo. Está tudo na outra sala.

     - Tehura, não poderá andar vestida assim na ilha para onde vamos.

     - Eu sei, Marc. Levo uma coisa para esconder isto. - Tocou nos seios. - E saiotes longos de tapa, aqueles que se usam nas cerimônias.

     Ele tinha mais uma vez o gargalo da garrafa na boca. A garrafa estava quase vazia. Pousou-a no chão e fitou a jovem.

     - Não que me desagrade o que você é. Está muito bonita esta noite.

     - Obrigada.

     Aproximou-se, e passou um dos braços em redor das costas nuas de Tehura.

     - Estou apaixonado por você, Tehura. Ela inclinou a cabeça e fitou-o também.

     Marc dirigiu a mão livre para os seios da jovem nativa e lentamente começou a acariciá-los, primeiro a curva de um, depois a curva do outro.

     - Desejo-a, Tehura, neste mesmo momento. Quero que comecemos o nosso amor esta noite.

     - Esta noite não - retorquiu ela, mas não afastou a mão dele dos seus seios.

     - Prometeu-me.

     - Não dispomos de tempo suficiente.

     - Dispomos de mais de uma hora. Tehura fitou-o suspiciosamente.

     - Não dispomos de tempo suficiente para o amor.

     - Oh, dispomos, sim.

     - No meu país, não - persistiu a jovem.

     Ele riu sem convicção, mas sentia o fogo do uísque percorrer-lhe o corpo.

     - Deixe-se de artimanhas, minha linda.

     - Não sei o que quer dizer com isso, Marc.

     - Quero dizer que amor é amor; amamos quando sentimos vontade disso. Sinto vontade neste momento. Depois, temos muito tempo para descansar, antes de partirmos. Escute, Tehura, disse-me que...

     - Mas não prometi que seria agora.

     - Quero fazer amor com você, imediatamente. Uma vez só!

     O rosto jovem de Tehura revelava obstinação. De súbito, perscrutando o dele, refletiu curiosidade.

     - Sim - disse ela -, faremos amor. - Dito isto, afastou á mão dele dos seus seios e ergueu-se. - No quarto dos fundos. É melhor.

     Tehura dirigiu-se para o quarto dos fundos. Ansioso, Marc pôs-se de pé, baixou-se de novo, e bebeu de um trago o uísque que restava na garrafa. Em seguida, entrou por sua vez no quarto. Apesar da escuridão, viu-a imóvel no meio do quarto, ainda com a flor nos cabelos e a saia de erva em volta do torso.

     - Acenda ao menos uma luz aqui - disse ele. - Quero vê-la bem.

     Passou-lhe os fósforos, e ela riscou um e acendeu o pavio que estava mergulhado num recipiente de óleo de coco. A luz era baixa, trêmula, mas suficiente.

     Tehura mantinha-se de pé e ele examinava apaixonadamente sua figura. Com crescente desejo, desabotoou e despiu a camisa esporte. Depois, tirou os sapatos e as meias. Observando-a, na sua imobilidade, desapertou o cinto, deixou cair as calças e afastou-as com um piparote. Agora, tinha apenas os shorts sobre o corpo. Endireitou-se, orgulhoso da solidez do seu corpo atlético e da sua óbvia virilidade.

     - Parece um dos nossos - disse ela.

     - Chegará ainda à conclusão de que sou melhor do que eles - retorquiu Marc, aspirando os vapores do uísque que ingerira. - Sou mellhor para você do que qualquer outro, Tehura.

     Aproximou-se da jovem, desejando cobri-la depressa com seu corpo. Tomou-a nos braços e premiu os lábios contra a boca da jovem. Beijou-a ferozmente, e quando Tehura abriu a boca tentou introduzir nela a língua; porém, vendo-a agitar a cabeça compreendei que isto a repugnava. Tinha de novo as mãos sobre os seios de Tehura, e acariciava-os, desejando sentir os botões rijos. Porém, os botões continuaram flácidos e ela, passiva.

     Fez uma pausa e perguntou com azedume:

     - Que tem?

     Um dos braços da jovem envolvia-o e elevava-se, brincando com o cabelo dele.

     - Marc - disse ela, suavemente -, sabe bem que não gosto de beijos e que as carícias que me faz nos seios não me excitam. Há outras partes para acariciar, após a dança.

     O desejo consumira-o de tal modo que achava quase impossível falar.

     - A dança?

     - Verá. - Afastou-se dele. - Dispamo-nos completamente e dancemos juntos, faça o que eu fizer, que ambos nos excitaremos.

     Decorridos alguns momentos, porém, após os primeiros movimentos, ele derrubou-a subitamente e estendeu-a de costas sobre o monte de esteiras que lhe servia de leito.

     EÍa tentou erguer-se, insatisfeita.

     - Marc, espere...

     - Acabemos com esta dança, estou farto.

     Os movimentos de Maré eram bem pouco sutis. O desejo dominava-o. Para ele, Tehura não passava de um monte de carne inanimada. Por fim, imobilizou-se. Transpirava com abundância.

     - Hum - fez ele, momentos depois, já ao lado de Tehura. - Foi qualquer coisa.

     Ela fitava-o, espantada.

     - É tudo? - perguntou a nativa.

     - É tudo o quê?

     - Só alguns minutos... deve haver mais, mais energia da sua parte, ou, quando está cansado, mais ternura...

     Sentiu as faces ruborizadas. Outra Claire, a cadela. O mundo estava cheio de Claires, de cadelas.

     - De que diabo se queixa você? - perguntou ele. - Alguma vez foi amada por um homem como eu? Não está saciada?

     - Marc, fez' amor sozinho, não fez amor comigo. Ele sorriu, com malícia, e fez uma careta.

     - Quanto a mim, estou satisfeito. Creio que está gracejando. Por ora, fiquemos por aqui, apesar de saber que isto é o grande desporto aqui da terra. Temos muito tempo à nossa frente. Durmamos um pouco e depois ver-se-á.

     Começara a voltar-se quando Tehura se sentou, puxando-o pelo braço, Fatigado, voltou-se de novo para ela.

     O desejo que a jovem parecia exprimir com suas palavras, com o calor do seu corpo, causava-lhe náuseas.

     - Marc, por favor, não estou ainda satisfeita...

     - Mande uma carta à Cabana de Auxílio Social - volveu ele, com enfado.

     - Sabe que não posso ir lá - retorquiu ela, com aspereza.

     - Tehura, descanse, sim? Estou exausto. Precisamos ambos de repouso, Prometo-lhe que à medida que nos conhecermos melhor um ao outro o nosso amor se tornará cada vez mais perfeito.

     Ela recusou-se a libertá-lo.

     - E se isso não suceder, Marc? Não terei Cabana de Auxílio Social na Califórnia.

     - Terá o meu amor, o que já é bastante.

     - Bastante?

     Ele voltara-se de novo para repousar, fatigado pelo longo dia, pela pesca, pela caminhada, pela bebida, pelo orgasmo.

     Tehura estava debruçada sobre ele.

     - Marc - implorou -, se nos vamos tornar amantes você deve aprender a amar. Não é impossível. Tom Courtney aprendeu. Você pode aprender. Nosso homens aprendem a satisfazer as mulheres e deve tentar ser como eles. Ensinar-lhe-ei, mas devemos começar já...

     Quando estas palavras - insultuosas, imaginou ele - penetraram na espessa crosta formada pelo álcool e pelo esgotamento, o coração de Marc começou a bater com violência dentro do peito. Sentou-se sobre as esteiras.

     - Ensinar-me?! - exclamou. - Que diabo pensa que é, minha pequena cadela parda? Você não passa de um animal ignorante, e deve sentir-se feliz por me dar ao trabalho de fazer de você um ser humano. Agora, feche de uma vez essa boca imunda se não se quer ver metida em confusão comigo. Se há alguém aqui que possa ensinar alguma coisa sou eu. Faça por se recordar disto. Perdôo-a desta vez, mas não quero que isto se repita.

     Surpreendeu-o o fato cie ela estar já de pé, pondo sua saia de erva.

     - O que está fazendo?

     - Estou farta de você - retorquiu ela. - Claire tinha razão.

     - Claire?... Que diabo quer você dizer com. isso? Tehura não se deixou intimidar pela cólera expressa pelo tom de voz do companheiro. Manteve-se firme.

     - Quero dizer que ela veio aqui hoje e falou sobre você.

     - Aqui? Esteve aqui?

     -- Descobriu, por intermédio de «ma fotografia, que me tinha dado o colar. Veio aqui, sim, para me advertir, para me dizer o que você é realmente.

     - Aquela cadela estúpida. E deu-lhe ouvidos?

     - Não. Pensei que tinha apenas ciúmes, eis tudo. Mas agora estou certa de uma coisa, Mar c: ela tinha razão.

     Ele pôs-se de pé, possuído pela ira.

     - Ela tinha razão acerca de quê?

     - Não sabia se me desejava para amante ou para esposa, mas fosse o que fosse, seria mau para mim. Disse que mentiu quando falou sobre a sua vida na América; que não tinha interesse em ninguém além. de você mesmo; que era incapaz de satisfazer uma mulher; que era um fraco amante. Ri-me dela, mas esta noite desejo chorar. Agora sei a verdade. EÍa tem razão em tudo.

     Marc perdera a fala. Estava quase cego de raiva. Gostaria de esmagar a cadela parda. Desejava estrangulá-la até ela ficar imóvel para sempre. Conteve-se por lhe ter perpassado pela mente uma advertência de Garrity: é preciso trazer uma prova da existência das Sereias. Tehura era essa prova, Marc não ousava perderia.

     Implacável, ela prosseguiu. Não queria deter-se:

     - Um dia, disse-lhe que sentia qualquer coisa de estranho em você. Agora sei o que é, como sua mulher sempre soube. Por que se zangou quando ela mostrou os seios na primeira noite? Por que se zanga sempre que ela faz isto ou aquilo? Zanga-se porque você sabe que ela um dia poderá conhecer homens mais capazes de a fazer feliz do que você, na cama ou fora da cama, e deseja evitar isso, deseja impedir que ela pense nisso. Sabe que não pode dar-lhe o mesmo que os outros, e assim está sempre cheio de medo. Como tem vergonha do seu sexo, o mantém afastado da sua mulher e de você mesmo, porque supõe que o sexo é mau, é pecado. Está sempre cheio de medo porque não é viril. O sexo não é pecado. E não quer aprender a arte do amor para não saberem que é fraco, para ocultar sua impotência. Mas isso não é um segredo para sua mulher. Agora não é um segredo também para mim. Adeus, Marc.

     Tehura voltou-se e dirigiu-se para a sala da frente, mas Marc perseguiu-a e impediu que ela alcançasse a porta.

     - Aonde pensa você que vai? - perguntou.

     - Vou à cabana de Poma - retorquiu a jovem com os olhos vidrados. - Vou ficar com ela.

     - E dizer-lhe que não parte comigo, não é verdade?

     - Sim, é isso que vou fazer.

     - E quer que ela avise o irmão, que alerte toda a aldeia, você, pequena prostituta? - Todas as esperanças de conciliação se tinham dissipado. - Pensa que permitirei que faça isso?

     - Ninguém o de terá. Ninguém se importa com você. Vá, faça o que deseja e deixe-me.

     Marc continuou obstinadamente entre ela e a porta.

     - Não sai daqui só - disse ele. - Vai comigo até à praia. Uma vez que eu esteja na canoa, pode voltar. De resto, nunca desejei que me acompanhasse. Desejei apenas o barco e possuí-la.

     - Afaste-se do meu caminho!

     - Não, com mil diabos!

     Tehura lançou-se sobre ele, tentando afastá-lo, aproximar-se da porta. Marc puxou-a fortemente contra si e em seguida empurrou-a pelos ombros. Ela vacilou, e depois, com o rosto contorcido, voltou à carga uma vez mais. Marc, porém, deteve-a de novo. Frustrada nos seus intentos, Tehura cravou as unhas na cara dele e rasgou-lhe a pele.

     A dor causada pelas unhas da jovem fê-lo gritar. Ripostou, esbofeteando-a. Ela soltou também um grito, mas manteve as unhas enterradas na cara dele. Em vista disto, Marc fechou a mão direita, enquanto com a esquerda tentava separá-la de si, e socou-a com violência. O golpe fez com que ela se despegasse dele e perdesse o equilíbrio e caísse de costas, batendo com a cabeça na imagem de pedra no canto da sala.

     Durante um segundo, os olhos rolaram-lhe nas órbitas e depois fecharam-se. De rastros, sobre o flanco, aproximou-se da esteira e aí ficou na postura de tantos corpos mumificados encontrados nas ruínas de Pompéia.

     Marc debruçou-se, arquejante, sobre o corpo caído, e colou um dos ouvidos ao rosto dela. Tehura estava inconsciente, mas respirava debilmente.

     Bem, pensou, ela ficará assim durante horas, a pequena prostituta. Dispunha de tempo suficiente para se ver livre dela. As suas fotografias constituiriam prova bastante da existência das Sereias. Devia partir para a praia o mais depressa possível.

     Vacilante, dirigiu-se para o quarto dos fundos. O corpo de Tehura estava afundado nas esteiras que serviam de cama. De certo modo, achava-se satisfeito. Tivera tudo o que quisera dela, os meios de fuga, o corpo.

     Célere, pôs os shorts e começou a vestir-se.

    

     Para Claire Hayden fora mais uma dessas estranhas noites em que vivia quase inteiramente esquecida do que a cercava, mergulhada nas recordações do passado. Cada vez com mais freqüência, desde que passara - mas não oficialmente - de Claire Hayden para Claire Emerson, rememorava a vida da Claire Emerson anterior.

     A escavação nas ruínas do passado - as suas noites arqueológicas, como costumava dizer de si para si - não era saudável, supunha. Nenhum livro ou médico lhe dissera que estas regressões eram nocivas, mas sentia que o eram, pois representavam uma fuga à realidade. Isto fazia com que sentisse culpas similares às que lhe impunha a mãe quando dizia: “Claire, por quanto tempo continua com o nariz metido nesses livros? Não me parece coisa saudável para uma moça em pleno crescimento. Devia sair mais. “ Assim, para contentar a mãe, via-se por vezes obrigada a troçar o melhor mundo pelo pior. O eco da voz da mãe reverberava de novo nos seus ouvidos nesta noite solitária no Pacífico.

     Recusava pensar na cena da manhã com Marc, essa cena desprezível, ou na conversa tão desagradável com Tehura. Tivera esperança, durante a noite, que Tom aparecesse, como prometera. Poderiam conversar tranqüilamente e o mundo da realidade tornar-se-ia mais atraente. Queria falar um pouco de Marc, da conversa com Tehura, dos seus sentimentos.

     Enquanto esperava Tom, perguntando-se por vezes se ele viria, pois era já um pouco tarde, compreendeu que o fato de ter pensado na mãe fizera com que sentisse desejo de lhe escrever. Correspondiam-se, com pouca regularidade, é certo, mas Claire não escrevera uma só linha após a chegada às Sereias.

     Assim, com a caneta e o bloco, passara a maior parte do tempo que faltava para a meia-noite. Escreveu três páginas à mãe. Depois, num impulso súbito, decidiu escrever mais algumas cartas, para amigas e casais que conhecera antes de casar-se com Marc. Completada esta correspondência, quis saber qual o motivo que a compelira a escrever à mãe e a estas velhas amigas. Então, compreendeu. Todas pertenciam ao mundo de Claire Emerson, e era Claire Emerson que as procurava, para as aproximar de si no futuro imediato em que seria mais uma vez uma mulher só.

     Por fim, passava já da meia-noite, desistiu de esperar Tom. Era uma decepção, mas haveria amanhã. Decidiu tomar comprimidos para dormir. Quando acabasse de se despir estaria ensonada e não pensaria muito. Porém, antes que pudesse ir buscar os comprimidos ouviu vozes no conjunto, próximo.

     Dirigiu-se para a porta da frente e abriu-a; Tom Courtney, que se aproximava, fez um aceno.

     - Pensei que estivesse já na cama - disse ele. - Vinha ver se ainda tinha a luz acesa.

     - Esperava sua chegada a todo o momento. Esteve com alguém até agora?

     - Com Maud e Sam, com os quais vim. Sam tirou uns instantâneos esta noite. Estava emocionado como uma criança. - Courtney sacudiu a cabeça. - Desejaria sentir um entusiasmo daqueles. - Ela mantinha ainda a porta aberta. - Importa-se que entre por alguns minutos?

     - Claro que não. Demais, não tenho sono. Gostaria de conversar um pouco. - Courtney entrou na sala da frente. Ela continuou por um instante à porta e depois disse: - Deixarei a porta um pouco aberta para arejar a sala.

     Courtney sorriu.

     - E para não se comprometer - volveu sorrindo. Claire afastou-se da porta.

     - Não me importo de me comprometer. Olhe para mim. __Fez uma pirueta diante dele. - Vê a ex-Sra. Hayden.

     Courtney franziu as- sobrancelhas.

     - Fala a sério?

     - A mais ex-Sra. Hayden que o mundo tem conhecido. Courtney parecia embaraçado.

     - Bem... - disse.

     - Você, como perito em divórcios, conhece a fundo todas estas coisas, mas não se embarace e faça as perguntas que quiser. De fato, não precisa de perguntar seja o que for. Contarei tudo, caso esteja interessado.

     - Decerto que estou interessado. Trata-se de Tehura?

     - Ela pouco tem a ver com a questão - retorquiu Claire. - Primeiro do que tudo, deseja beber alguma coisa?

     - Um uísque com água, já que oferece.

     - Muito bem.

     Ele sentou-se e observou-a pensativamente quando ela se aproximou com a garrafa de uísque, duas canecas de alumínio e um' jarro com água. Quando Claire serviu as bebidas, Courtney disse:

     - Parece-me muito contente para uma ex-qualquer coisa, Nunca ninguém manifestava tal satisfação ao entrar no meu gabinete. Toda a gente aparecia de cara feia.

     - Sinto-me aliviada, eis tudo - redargüiu ela, sentando-se. Passou a, caneca a Courtney e viu que não compreendia ainda. - vou dizer-lhe o que sinto, Tom. Tenho a impressão de que acabo de vir de uma reunião, de uma sociedade, por exemplo, e que disse a meu sócio que sabia a verdade, que ele me roubara, desviara valores preciosos. Aqui tem, sinto-me aliviada, satisfeita comigo própria por j ter dito o que desejava. - Ergueu a caneca. - Quer brindar?

     - Sim - volveu ele, erguendo por sua vez a caneca.

     - À quinta liberdade - disse Claire. - Libertação do casamento, isto é, do meu casamento.

     Beberam, e ela fitou-o por sobre o rebordo da caneca. Os olhos de Courtney não queriam fitar os seus.

     - Embaracei-o, Tom - disse Claire, bruscamente. - Apercebi-me de qualquer coisa. Você é muito conservador no que toca ao nó sagrado...

     - Oh, não.

     - ... e pensa que me mostrei frívola, está decepcionado, talvez. ofendido.

     - De modo algum, Claire, estou habituado a estas coisas. Suponho que me encontro um tanto surpreendido, eis tudo.

     - Você, porém, sabia que meu casamento ia de mal a pior.

     - Talvez tivesse pensado nisso, sim.

     Ela sorveu outro gole e disse com firmeza:

     - Tom, não faça maus juízos a meu respeito. Algumas mulheres preferem seguir uma carreira, outras estar sós, outras ainda saltar para uma centena de camas, outras ser esposas e mães. Pertenço à última categoria. Talvez você não queira aceitar este fato, mas a vida só assim tem significado para mim. É tudo o que sempre desejei. Pouca ambição? Talvez. Todavia, compreendi que tinha errado desta vez... São necessárias duas pessoas para se fazer um casamento.

     - Creio que sim.

     - Marc não podia ajudar. Não podia ajudar-se sequer a ele mesmo. Estivemos casados durante dois anos, mas pouco contacto tivemos um com o outro. Se nunca cresceu, como poderia dar-me filhos, ou fazer de mim sua esposa? Esta manhã, disse que estava farto da minha pessoa, e mais coisas. Esbofeteei-o, e ele esbofeteou-me, tocou o gongo e acabou o combate.

     - E Tehura não teve nada a ver com isto?

     - Absolutamente nada. Se me tivesse deixado humilhar, tudo ficaria por aí. Sabe que procurei Tehura, não é verdade?

     - Você disse que iria procurá-la, pelo menos. Que se passou?

     - Viu-a durante as últimas horas, Tom?

     - Não. Tenho estado muito ocupado.

     - Imagino que ela foi já sua amante, e sei, por mim mesma, o que era ainda há um mês. Porém, está modificada. Afirmo, está irreconhecível. E deve isso a Marc, a seu amigo Marc. Ela podia ser moldável, mas era necessário um Marc para a transformar numa de nós, mas pior que nós.

     - De que maneira?

     - Não. mais a ingenuidade semiprimitiva. É astuta, felina, extremamente ambiciosa. Em suma, efeitos da civilização. Quanto a meu colar... sim, ela o tem. Não o roubou. Ambos compreendemos isso. Marc deu-lhe. Para mais facilmente a seduzir, suponho. O que importa não é que ele o tivesse dado, mas que ela o tivesse desejado e aceito. Li o que ela pensa de mim, no livro de Marc. Cito-a. Esposa ciumenta que maltrata e é incapaz de conservar o marido.

     - É inacreditável!

     - Lamento, Tom.

     - Quero crer. - Sacudiu a cabeça. - Conheço-a muito bem. Você compreende. Aqui ninguém a conhece tão bem como eu. Quando fala dela, tenho a impressão de que se refere a outra pessoa.

     Claire encolheu os ombros.

     - A sua cliente. Veja com seus próprios olhos.

     - Talvez - disse ele. - De fato, verei. Não desejo atravessar-me no caminho de Marc mas sinto uma certa responsabilidade em relação a ela. Se errou, procura irei trazê-la ao bom caminho. Preocupa-me todo esse episódio do colar. Importa-se que eu discuta isto francamente com ela?

     - Repito: veja com seus próprios olhos. Mas se pensa afastá-la de Marc, para obrigá-lo a voltar para mim, então esqueça-se de tudo o que contei. Não me estará fazendo um favor, mas me causando prejuízo. Se quer realmente ajudar a pobre moça, isso é outra questão.

     - É o que farei - disse Courtney. Ergueu-se abruptamente e começou a andar, inquieto, pela sala.

     - Creio que não se trata apenas de um simples romance. Conheço o espírito de Tehura. Para eles, um rornance pouco significa. É como beijar, para nós. Mas quando uma jovem se modifica tão drasticamente, quando deseja colares com pingentes que pertencem a outra, passa-se qualquer coisa bem diferente de um romance. Descobrirei tudo, pode estar certa. Amanhã de manhã...

     Courtney interrompeu-se, pois de súbito ouviu-se uma voz, indistinta mas áspera, e uma torrente de palavras, como se disparadas por uma espingarda. Courtney e Claire puseram-se de pé, espantados, e saíram.

     Seus olhos viram Sam Karpowicz, transfigurado, gesticulando como um louco. Maud, de camisa de dormir, diante do alpendre de sua cabana, ouvia-o, inclinando constantemente a cabeça.

     - Deve ter sucedido alguma coisa - disseste Courtney, e os dois decidiram ir procurar saber do que se tratava.

     Chegaram junto deles no próprio momento em que Maud, tocando no braço do botânico, começava a falar:

     - Sim, é terrível, Sam. Temos de agir com rapidez. Entretanto, devemos consultar Paoti...

     - Que há? - interveio Courtney. - Posso ser-lhes útil em alguma coisa?

     Sam Karpowicz, trêmulo, acabrunhado, voltou-se para Courtney.

     - Uma coisa medonha. Assaltaram-me a câmara-escura e roubaram-me pelo menos um terço de minhas fotografias, negativos, filmes de dezesseis milímetros...

     - Tem certeza?

     - Absoluta - asseverou Sam com firmeza. - Absoluta, sim. Quando me separei de você há momentos dirigi-me para a câmara-escura a fim de revelar o que fiz esta noite. Enquanto trabalhava, notei que algumas coisas não se encontravam na posição exata em que as deixara. Sou muito metódico. Decidi verificar tudo e vi que um terço dos meus trabalhos tinha desaparecido. Deve ter sido roubado esta tarde ou esta noite.

     - Quem é que teria feito uma coisa destas? - disse Maud, como se se interrogasse a si própria.

     - Isso é o que me espanta - tornou Sam. - Nenhum dos elementos do grupo teria necessidade de roubar filmes. E os nativos. De que lhes serviria aquilo?

     Claire falou pela primeira vez.

     - Bem, pode ser que haja um fanático religioso entre os nativos... como acontece em algumas sociedades... que sente que captar imagens no papel é captar a alma, ou coisa parecida. Ter-se-ia passado isto?

     - Duvido, Claire - retorquiu Maud. - Não descobri qualquer tabu contra a fotografia.

     Courtney pousou a mão sobre o ombro de Sam Karpowicz.

     - Sam, mais alguém sabe disto?

     - Dei pelo roubo há cerca de dez minutos. Precipitei-me para casa e despertei Estelle e Mary, para verificar se elas me tinham ou não pregado alguma peça. Ficaram espantadas. Depois, perguntei à Mary se vira alguém perto da nossa cabana, hoje, mas ela respondeu-me que estivera fora de casa durante a maior parte do dia. Ao princípio da tarde, porém, tinha visto Marc...

     - Quando?, - perguntou Claire, surpresa.

     - Quando? - repetiu Sam, mais surpreendido ainda. •- Ora, talvez... pouco depois de partirmos para o almoço de Maud... Mary ficou ainda alguns minutos na cabana e depois saiu com Nihau. Foi então que viu seu marido.

     Claire fitou Courtney de viés e voltou de novo os olhos para Sam.

     - É singular. Marc partiu esta manhã, ainda cedo, para fazer uma exploração nas colinas, com alguns aldeões. Disse que voltaria cerca da meia-noite, ou talvez amanhã, e agora você afirma... - Uma vez mais, fitou Courtney. - Tom, está pensando o mesmo que eu?

     - Receio que sim - respondeu Courtney.

     - Isso explicaria muitas coisas.

     - Sim - concordou Courtney com ar grave. Consultou o relógio. - É quase uma hora. No entanto, acho melhor ir à cabana de Tehura.

     - Permita-me que o acompanhe - disse Claire.

     - Isso seria embaraçador - retorquiu Courtney, franzindo a testa.

     - Não me importo - tornou Claire.

     - Que tem isso a ver com o roubo das minhas fotografias e dos meus filmes? - perguntou Sam Karpowicz.

     - Possivelmente nada - respondeu Courtney -, ou possivelmente tudo. - Passou os olhos sobre todos eles. - Se me querem acompanhar... Porém, preciso, falar a sós com Tehura, primeiro. Penso que é preferível fazer-se isto antes de você participar o caso a Paoti.

     Sem relutância, Maud Hayden deixou tudo aos cuidados de Tom Courtney. Ela manifestava sua inquietação. Courtney e Sam encaminharam-se para a ponte, e, talvez por instinto, Maud deu o braço a Claire antes de os seguir.

    

     Na semi-obscuridade da cabana de Tehura, os três, Courtney, Maud Hayden e Sam Karpowicz, estavam imóveis, no fundo da sala, com os olhos fixos no corpo da jovem nativa, tombado sobre o ídolo de pedra da fertilidade.

     Fora Courtney o primeiro a vê-la, estendida, inconsciente, as pulsações quase imperceptíveis. Notara o sangue atrás dos glóbulos oculares, baços, da jovem nativa, e sangue nos olhos, na boca, nos ouvidos. Precipitara-se para fora e gritara para Claire:

     - Traga-me Harriet, Bleaska, depressa!

     Depois de Claire partir, fizera sinal a Maud e a Sam para que entrassem.

     E esperaram.

     Em dado momento, Maud voltara-se para Courtney e perguntara com voz rouca.

     - Que quer dizer tudo isto, Tom? Sabe mais do que aquilo que me contou.

     Ele limitara-se a sacudir a cabeça e fixara o corpo inanimado de Tehura, recordando o prazer do seu amor antigo. Depois, nenhum deles tornara a falar.

     Parecera que tinham decorrido cinco eternidades, mas haviam-se passado apenas cinco minutos quando ouviram vozes e passos. Harriet Bleaska, de robe, e com uma pequena maleta de médico na mão, entrara só. Depois de inclinar a cabeça diante dos três fixou os olhos no corpo frouxo de Tehura e ajoelhou-se ao lado dele.

     - É melhor que me deixem só com ela por uns momentos - disse, por cima do ombro.

     Saíram. Para lá da porta, esperavam Claire e Moreturi, que falavam um com o outro em voz muito baixa. Quando os viu, Moreturi aproximou-se de Courtney.

     - Tom - perguntou o nativo -, como está ela?

     - Creio que viva, mas... não sei.

     - Entrava na aldeia, com os outros, trazendo o peixe, quando a Sra. Hayden e Harriet me contaram o que aconteceu. Poderá tratar-se de um acidente?

     - Não sei ao certo, Moreturi. Claire juntou-se a eles.

     - Tom - disse ela -, Marc esteve nas colinas esta tarde. Pescou com Moreturi.

     - É verdade - confirmou o nativo.

     Courtney refletiu durante uns momentos, tentando relacionar isto com o resto, e de súbito perguntou:

     - Ele voltou com vocês?

     - Não - respondeu Moreturi. - Comeu conosco, mas quando começou a ficar escuro partiu no meio da nossa refeição.

     - Lembra-se de ter falado em Tehura?

     - Que me lembre, não falou nela.

     Neste momento, ouviram a voz de Harriet Bleaska e, como uma só pessoa, voltaram-se para a porta, no limiar da qual ela se encontrava.

     - Tom - chamou a jovem enfermeira. Courtney deu um passo em frente. - Tom, Tehura está morta. Expirou há cerca de um minuto.

     Ficaram todos como estátuas na semi-obscuridade. O único movimento foi por fim feito por Moreturi, que enterrou a cabeça nas mãos. O único som foi emitido por Maud Hayden, que disse num murmúrio, como se soltasse um gemido:

     - Pobre jovem.

     Harriet aproximou-se de Tom Courtney.

     - Fratura do crânio. A queda foi demasiado violenta para se tratar de um acidente. A cabeça dela bateu no ídolo de pedra e houve um derrame interno. Você viu o sangue.

     Tehura esteve inconsciente durante a maior parte do tempo, mas moribunda. Tentou dizer qualquer coisa- mesmo com os olhos fechados. Não consegui entender, mas pouco antes de expirar... - Harriet fitou Claire de viés, confusa.

     - Pouco antes de expirar o quê? - desejou saber Courtney.

     - Creio que disse “Marc” - respondeu apressadamente Harriet -, mas posso estar enganada.

     - Não deve estar enganada - declarou Claire.

     - E depois - tornou Harriet -, qualquer coisa que não compreendi bem. Primeiro disse: “pergunte” e em seguida “Poma”, duas vezes. O que é Poma?

     - Uma pessoa, uma moça amiga dela - esclareceu Courtney.

     Moreturi, já recomposto, estava ao lado de Courtney.

     - Ela disse: “Pergunte a Poma?”

     - Creio que sim - retorquiu Harriet, perturbada. Moreturi e Courtney trocaram um olhar. Courtney inclinou a cabeça num gesto de assentimento e Moreturi anunciou:

     - Vou a cabana de Poma dizer-lhe que a nossa Tehura morreu e perguntar-lhe o que sabe acerca disto.

     Moreturi afastou-se correndo, na noite.

     As feições de Courtney não revelavam qualquer emoção.

     - Suponho que é melhor que alguém vá notificar Paoti. Quero esperar aqui...

     - Vou eu - ofereceu-se Harriet. - Mas primeiro preciso de ir lá dentro arrumar minhas coisas.

     Com Moreturi ainda ausente e Harriet na cabana, fazendo o que as enfermeiras fazem com os mortos, os que continuavam no exterior tinham-se aproximado uns dos outros. Fumava-se em silêncio. Sam Karpowicz achava-se como que estupidificado. O que começara com o roubo de suas preciosas fotografias e filmes conduzira a isto, mas como, não conseguia ele compreender; porém, era demasiado sensato para pedir uma explicação. A mudez de Maud era menos de pesar pela jovem nativa do que de inquietação pelo filho, que, como se apurara, tivera certa relação com o fim dela. Contudo, ainda se apegava a uma secreta esperança de que não fosse assim. O silêncio de Claire, como o de Courtney, era de pesar por Tehura, uma chama muito viva que se apagava com um sopro. A perplexidade obscurecia os pensamentos de todos. Que se passara? Que estava por trás deste mistério?

     Escoaram-se dez minutos, depois quinze, e Moreturi surgiu, menos triste do que irado.

     Não houve perguntas, interrupções, para não retardar as palavras de Moreturi.

     - A princípio, depois de a acordar, Poma não queria dizer nada acerca do que sucedeu hoje. Porém, quando declarei que a nossa Tehura tinha morrido ela começou a chorar e contou tudo. Procurarei ser breve, pois há muito que fazer esta noite. Tehura procurou Poma, a fim de utilizar o irmão e a canoa dele para deixar a ilha. Foi tudo combinado para de manhã, na praia mais afastada. Tehura fingiu que ia partir só e Poma fingiu acreditar. Na noite passada, estava Poma aqui, alguém veio procurar Tehura. Poma é muito curiosa, um verdadeiro espírito maligno. Teve de espreitar. Através da janela de trás, viu tudo e ouviu a conversa. O visitante era o marido da Sra. Hayden, o Dr. Marc Hayden. - Moreturi fez uma pausa e depois prosseguiu. - O Dr. Hayden projetara vir aqui esta noite, e à meia-noite ele e Tehura partiriam para a praia. Mencionou um nome estranho para Poma, o nome Garrity, que pertence a uma pessoa que estaria à espera de ambos em Taiti.

     - Marc tirou suas fotografias, Sam - disse Maud numa voz abafada. - Ele ia encontrar-se com Rex Garrity.

     Courtney dirigiu-se a seu amigo nativo.

     - Poma disse mais alguma coisa, Moreturi?

     - Apenas que Marc se encontraria com Tehura esta noite e que partiriam depois da meia-noite, para chegarem à praia ao raiar da aurora.

     Todos tinham esquecido Harriet Bleaska, que se achava agora junto deles, com uma garrafa de Uísque vazia na mão.

     - Descobri isto.

     Courtney pegou na garrafa e fitou Claire, que inclinou a cabeça.

     - A marca dele - disse Claire. - Marc esteve aqui. Courtney voltou-se para Moreturi.

     - É bem evidente agora o que se passou. Marc esteve aqui esta noite com Tehura e bebeu. Ia levar Tehura com ele, não importa por que razões. Levava também as fotografias e os filmes sobre as Sereias, e ele e Garrity iam vender a localização da ilha, explorá-la, fazer dela um carnaval. Porém, alguma coisa aconteceu entre Tehura e Marc esta noite; Marc bateu-lhe e ela caiu sobre o ídolo de pedra e fraturou o crânio. Aposto que Marc partiu com as fotografias e os filmes destinados a seu amigo Garrity, e vai neste momento a caminho da praia. - Olhou fixamente Claire e Maud. - Tenho pena, mas as coisas devem ter-se passado assim.

     - Tom, temos de o deter. - Era Moreturi quem falava.

     - Claro que temos. Se ele consegue fugir estas ilhas estarão condenadas.

     - Se ele consegue fugir, Tehura não dormirá - tornou Moreturi.

     Os dois homens concordaram que deviam ir imediatamente em perseguição de Marc Hayden. Ignoraram os outros e sem demora traçaram seus planos. Marc tinha algumas horas à sua frente. Todavia, só conhecia um caminho que conduzia à praia, o mais longo. Havia o atalho mais íngreme, mais difícil, ao longo do mar, aquele que os nativos utilizavam com freqüência. Courtney e Moreturi decidiram ir por este. Não tinham certeza de poderem alcançar Marc. Tentariam, apenas.

     Sem mais uma palavra, partiram.

     Os outros voltaram ao conjunto. Harriet afastou-se para ir contar as tristes notícias ao chefe Paoti. Sam Karpowicz separou-se de Claire e de Maud, ainda cabisbaixo, e dirigiu-se para junto da mulher e da filha. Do. grupo, apenas Maud e Claire, as duas Haydens, ficaram 'no conjunto, diante da cabana de Maud, observando com ar ausente as tochas ao longo do regato.

     Em dado momento, Claire disse:

     - E se eles não o alcançarem?

     - Tudo se perderá - volveu Maud.

     - E se o alcançarem? - tornou Claire.

     - Tudo se perderá - repetiu Maud.

     Ela estava pálida, velha, fatigada. Voltou-se e dirigiu-se, de cabeça baixa, para a cabana, esquecendo-se de dizer boa noite. Depois de Maud ter fechado a porta, Claire encaminhou-se lentamente para sua cabana, a fim de esperar a manhã.

     A manhã nascia; gradualmeme.

     A primeira luz do dia dava a impressão de uma fenda no horizonte.

     No novo dia não haveria vento, e o calor seria escaldante. Nesta elevação, onde os dois caminhos que conduziam à praia convergiam, os coqueiros estavam imóveis, rígidos. Muito, muito abaixo do penhasco erosado, o mar de cobalto lambia suavemente os rochedos.

     Os dois surgiram da garganta, através da folhagem densa, e dirigiram-se para o ponto onde os dois caminhos se uniam.

     A pele de Moreturi estava perolada de suor misturado com poeira. Courtney tinha a camisa suja colada ao peito e à espinha.

     Repousaram no vasto e estéril penhasco, arquejando como animais exaustos; haviam corrido durante toda a noite, e tentavam agora regular a respiração e recobrar as energias.

     Passado algum tempo Moreturi voltou-se, e começou a andar sobre o caminho mais largo, que se elevava do platô, ajoelhando-se diversas vezes, para estudar o solo. Courtney observava-o confiante. Os aldeões eram peritos em descobrir pegadas, apesar de não pertencerem a um povo nômade, dedicado à caça.

     Courtney esperava. Por fim, Moreturi, satisfeito, juntou-se ao amigo.

     - Creio que ninguém pisou este caminho hoje.

     - Provavelmente é assim, mas acho melhor certificarmo-nos - retorquiu Courtney. - Levaremos apenas meia hora para chegar à praia. Ou o barco está ainda lá ou partiu já com ele.

     Começavam a caminhar na direção da praia quando, de súbito, os dedos de Moreturi se fecharam sobre o ombro de Courtney e detiveram-no. Moreturi ergueu a mão, num gesto de quem exige silêncio, e murmurou:

     - Espere.

     Rápido, acocorou-se, o ouvido colado ao solo, escutando; após segundos intermináveis, ergueu-se.

     - Aproxima-se alguma coisa ou alguém - anunciou ele.

     - Pensa que sim?

     - É verdade. Está perto.

     Automaticamente, separaram-se. Moreturi escondeu-se atrás de uns arbustos, Courtney ocultou-se junto de um dos lados de uma palmeira; cada um deles parecia uma sentinela, de cada lado do caminho, aguardando aquele que ia contornar a curva e subir o rochedo.

     Um minuto escoou-se e depois outro, e bruscamente ele surgiu.

     Os olhos de Courtney estreitaram-se. A figura que se aproximava era agora maior: trazia um saco sobre as costas e um embrulho na mão, e era evidente que se encontrava no limite das suas forças.

     A princípio, não os viu. Em dado momento fez uma pausa para se aliviar da carga do saco, e depois voltou a retomar a marcha através do alto penhasco, até chegar ao ponto onde os dois caminhos convergiam. Por um instante, hesitou, e voltou a andar, agora ao longo do novo caminho.

     De súbito, deteve-se, manifestando o mais profundo espanto, dando a impressão de ter, inesperadamente, recebido um soco doloroso na boca e no queixo.

     Volveu os olhos da esquerda para a direita, primeiro com incredulidade, depois com terror.

     Trêmulo, como se não acreditasse, viu Courtney e Moreturi aproximarem-se lentamente dele.

     Passou a língua pelos lábios, hipnotizado pela aparição de ambos.

     - Que fazem aqui? - rosnou a boca de Marc Hayden. Parecia a voz de um homem que não falara com ninguém durante toda a noite e que esperava não falar com ninguém durante todo o dia.

     Courtney aproximou-se, um passo, dois.

     - Vimos aqui para o levar conosco, Marc - disse ele. -; Esperávamo-lo. A sua sórdida trama foi descoberta. Tehura está morta.

     As pupilas dos olhos de Marc dilataram-se. Pousou o embrulho e com ar ausente deixou escorregar o saco pelas costas.

     - Ela não pode estar morta.

     - Não morrerá outra vez - retorquiu Courtney, com calma. - Você não precisa de dizer seja o que for. Poma, a amiga dela, contou-nos praticamente tudo. Tem de nos acompanhar, Marc. Terá de ser julgado diante de Paoti.

     Os ombros de Marc afundaram-se, mas seu rosto manteve-se provocador.

     - Vão para o diabo! - bradou ele. - Foi um acidente. Ela tentou matar-me... agi em legítima defesa... e tive de a socar. Perdeu o equilíbrio e bateu contra o mono de pedra, mas estava bem quando parti. Foi um acidente, como disse. Talvez alguém a tivesse matado. - Arquejante, volveu os olhos de Courtney para Moreturi. - Não têm o direito de me deter! Posso ir aonde quiser!

     - Mas não agora, Marc - disse Courtney. - Tem de responder perante o tribunal.

     - Não...

     - Está vivendo nas Três Sereias. Deve respeitar suas leis.

     - Mas que possibilidades tenho de me safar - esbravejou ele. - Aquele tribunal de cangurus pardos, de selvagens nus, aos berros, chorando a sua pequena prostituta, e eu, só... Não, nunca! - Mudou de tom, tentando amolecer Courtney. - Courtney, por amor de Deus, você é um dos nossos. Se houve um acidente e alguém deseja a minha versão, quer ouvir a verdade, prestarei declarações em Taiti, na Califórnia, em qualquer parte do mundo civilizado, entre gente como nós, mas não neste fim de mundo desta ilha. Você sabe que acabarão por me pôr uma corda no pescoço.

     - Ninguém lhe porá uma corda no pescoço, Marc. Se estiver inocente, pode seguir para onde quiser. Se for considerado culpado...

     - Você é louco, como eles - interrompeu Marc com azedume. - Quer ver-me de pé numa daquelas choupanas, só em face das testemunhas deles, essa Poma, o cretino do irmão dela, e todos os outros rnacacos pardos, ouvindo o que inventam? Quer ver-me, um cientista, um americano, julgado por essa canalha? Está brincando com certeza. Deseja que me condenem à morte?

     - Marc, controle-se. Ninguém o condenará à morte. É certo que todas as provas são contra você. Porém, pode defender-se, tem a sua versão. Só no caso de ser considerado culpado da morte de Tehura será condenado, mas não à morte. Permitirão que viva, mas terá de ficar aqui, para indenizar a família de Tehura do tempo que ela deixou de viver.

     Os olhos de Marc chisparam.

     - Está-me pedindo que passe cinqüenta anos na escravidão, neste lugar dos diabos, seu porco? - gritou ele. - Vão todos para o inferno. Saiam do meu caminho!

     Nem Courtney nem Moreturi se moveram.

     - Marc - disse Courtney -, você não conseguirá escapar. Assim, seja razoável...

     À medida que Courtney falava, ele e Moreturi aproximavam-se de Marc Hayden. Quando o braço de Courtney o tocou, Marc sentiu-se galvanizado e disposto à ação. Instintivamente, com as poucas forças que lhe restavam, revidou. Seu punho apanhou Courtney pelo queixo e enviou-o, em desequilíbrio, para os braços de Moreturi.

     Arfando, Marc virou bruscamente para o lado do. penhasco, preparando-se para os ultrapassar e correr para a praia. Em vão. Eles tinham-se afastado também do caminho e cortavam-lhe a retirada. Marc deteve-se, medindo-os, olhando de viés para um lado e para outro. Por fim, compreendeu. Não podia escapar.

     Courtney e Moreturi avançavam com decisão, e o nativo dizia com mal contida fúria:

     - Eu agarro-o, eu agarro-o.

     Foi então que Marc quebrou. Quando viu o nativo já muito próximo dele, sucumbiu. Seus olhos horrorizados patenteavam a derrota. As barreiras civilizadas tinham ruído. As hordas bárbaras avançavam, para o suprimir.

     Seus olhos de louco, voltados para o céu, pareciam dirigir uma súplica a alguém.

     - Adley - gritou.

     Recuou, mas Moreturi estava quase sobre ele.

     - Não! - tornou a gritar. - Não! Irei para o inferno primeiro!

     Voltou-se e começou a correr, cambaleando por toda a largura do penhasco, aproximando-se da borda. Com as costas para o horizonte, encarou-os, agitou o punho, não para eles - que estranho, pensou Courtney -, mas para o céu.

     - Maldito! - gritou mais uma vez. - Por toda a eternidade, maldito!

     Com a mão, Courtney deteve Moreturi; depois, bradou:

     - Marc, não...

     Vacilante, na beira do precipício, Marc riu convulsivamente, e em seguida soltou um uivo, com o rosto contorcido, como um louco. De súbito, lançou-se para o mar profundo, ignorando-os, só com os seus demônios. Dera um simples passo, grotesco, no vácuo, e ficara suspenso, durante alguns momentos, entre o céu e o inferno; por fim despencara-se da altura.

     - Marc! - bradou de novo Courtney, quase como se num reflexo, mas não havia ninguém ali.

     Correram para o ponto onde ele estivera; aí, Courtney tombou sobre os joelhos e volveu os olhos para as profundezas do abismo.

     Moreturi, que imitara Courtney, apontou pára baixo, e Courtney viu o que restava de Marc. Seu corpo minúsculo oscilava entre dois chuços de basalto, esmagado como um ovo que tivesse caído sobre o cimento. A água espumosa lambia o cadáver. Por fim, este deslizou da rocha escura e daí a momentos era submerso pelo vasto mar, verde e profundo, e desaparecia de vista, talvez para sempre.

     Segundos depois, os dois ergueram-se, e sem se fitar voltaram ao caminho. Então Courtney soltou um suspiro e colocou o saco sobre os ombros, enquanto Moreturi pegava no pequeno embrulho.

     Moreturi foi o único que falou.

     - É melhor assim - disse ele mansamente. - Alguns homens não nascem para viver.

     Em seguida, calados, começaram a caminhar pelo caminho mais longo de regresso à aldeia das Três Sereias.

       

     Quase não acreditava que tivessem vivido e trabalhado nas Três Sereias durante cinco semanas e seis dias, e que esta fosse a sua última noite nas ilhas, antes da partida na manhã seguinte.

     Claire Hayden, de pés nus, mas ainda com seu vestido fino de algodão, as pernas debaixo de si, as costas voltadas para a lâmpada oscilante, estava sentada na sala da frente da sua cabana e tentava retomar a leitura da edição de bolso das Viagens, de Hakluyt.

     Em vão. Não conseguia fixar os olhos e a mente no livro. Uma antologia de viagens e explorações na Inglaterra do século XVI não correspondia às suas necessidades desta noite. Pegara no livro mais para atrair o sono do que para se ilustrar, mas nada conseguira. Sua mente preferira rever os acontecimentos deste dia, desta semana, das três semanas que tinham decorrido após a morte de Marc. Por fim, como não estivesse sequer sonolenta, pousou o pequeno livro no regaço.

     Acendendo um cigarro, Claire perguntou-se se não cometera um erro ao recusar, algumas horas antes, o convite da sogra para jantar e para passar com ela a sua última noite nas Sereias. Como desculpa, dissera a Maud que necessitava de todo o seu J, empo para fazer as malas. O Capitão Olie Rasmussen e Richard Hapai chegariam ao conjunto entre as sete e as oito da manhã. Todos os membros do grupo tinham sido informados de que deviam ter a bagagem preparada, pois os nativos transportá-la-iam bem cedo até à praia. Na verdade, Claire declinara o convite da sogra, não porque tivesse forçosamente de fazer as malas, mas porque preferia passar só esta última noite.

     Os colegas e amigos, sabia, tinham jantado juntos. Era como se cerrassem fileiras antes do regresso aos Estados Unidos. Claire cozinhara sua própria refeição, com víveres das Sereias, comera só e não metera ainda coisa alguma nas malas.

     Na verdade, tinha pouco que colocar lá, de modo que a tarefa não a aborreceria. Alguns dias depois da morte de Marc, ela e Maud, ambas de olhos enxutos, tinham examinado os pertences dele, camisa, calças, cuecas, meias, sapatos, livros, charutos, uísques, gravatas, e todas as demais utilidades de um homem civilizado. Maud desejara ficar com algumas destas utilidades, a chave do seu quarto de estudante, o relógio de pulso, de ouro, o exemplar anotado de Crime e Costume nas Sociedades Selvagens, de Malinowski, para se lembrar de que ela e Adley tinham tido um filho. Claire não ficara com coisa alguma, pois sabia que nunca tivera marido. A ocasião fora triste apenas porque tentara compreender o que a mulher mais velha sentia. Depois de completado o exame aos efêmeros pertences de Marc, o momento mais penoso, para Claire, fora aquele em que Maud murmurara surpreendida: “Mas o trabalho dele, onde está o trabalho dele?”

     Nada tinham conseguido encontrar, e, ao verem todos os blocos de apontamentos em branco, compreenderam que Marc nada fizera. Mesmo o saco que Moreturi trouxera, depois de as provas e os filmes terem sido restituídos a Sam Karpowicz, não oferecera qualquer evidência do trabalho de um antropólogo no campo, salvo as cópias de papel carbono das notas de Maud que Claire não arquivara e que Marc roubara. Com exceção das cartas de Garrity, não havia outra prova de que Marc tivesse feito fosse o que fosse nas Sereias além de ter procurado destruir a sociedade nelas estabelecida. Foi esta impressionante falta de atividade, de uma mente desintegrada, que causara maior sofrimento a Maud.

     Isso foi o pior de tudo, inclusive para Claire, a quem a dor de Maud impressionara. Os pertences de Marc com que a mãe não ficara tinham sido entregues ao Capitão Rasmussen durante a sua ulterior visita. Com autorização de Claire, fora solicitado ao capitão que vendesse em Taiti as últimas coisas de Marc e que comprasse, com o dinheiro apurado, alguns utensílios de cozinha, destinados aos parentes de Tehura, e produtos farmacêuticos para a enfermaria de Vaiuri.

     Nesta noite, parecia que aquele inventário fora feito há muito tempo, e que tinha pouca relação com o presente. O relógio de pulso de Claire marcava dez e um quarto. Maud e os outros deveriam neste momento ter já terminado o seu último jantar na ilha e regressado às suas cabanas, possuídos pela felicidade e pela tristeza que todos os viajantes experimentam na noite anterior à partida de um lugar estranho para regressarem a seus lares e a sua vida normal. Claire refletiu nos seus próprios sentimentos quanto à partida. Não sentia nem felicidade nem tristeza. Estava num limbo desprovido de ar. Nenhuma emoção a tocava.

     Na sua vida, tudo se modificara desde a sua chegada às Sereias, e contudo nada mudara. Obviamente, devia experimentar os sentimentos de uma viúva, não importa o que sentiam as viúvas, o que queria dizer que uma parte importante do seu ser fora removida, arrancada, para a deixar deformada., Outros exprimiam tais sentimentos em relação a ela. Aceitara mecanicamente as condolências, para satisfazer os que lhe tinham expressado seus sentimentos de pesar, mas vira nisso fingimento, pois nada experimentara. Maud' sabia-o, decerto, e possivelmente Courtney, embora nada tivessem insinuado. Mas não dissera ela a Courtney, quando Marc se lhe escapava, que era a ex-Sra. Hayden?

     Fora sempre a ex-Sra. Hayden, desde a noite da lua-de-mel até ao fim. Se lhe tivessem pedido que escrevesse qualquer coisa sobre sua vida íntima com o falecido Marc Hayden, apresentaria páginas em branco como os blocos de apontamentos do próprio Marc. Nada conhecera do seu ser interior, exceto a parte doente. Marc mostrara-se sempre incapaz de se dar a outrem. Nada os ligara. O amor jamais tocara sua união. A própria parte física não passara de uma mistificação. Algumas semanas antes, ao tentar dormir, procurara recordar e contar as suas cópulas em dois anos. Dezoito, eis o total. Talvez tivessem sido mais, mas não conseguia recordá-las, nem o corpo dele.

     O que diriam os outros, não Maud e Courtney, nem mesmo Rachel, mas os outros, aqui e na Pátria, se conhecessem a verdade nua e crua? Que diriam se soubessem que estava contente e que ele fora para sempre expulso da sua vida?

     Permitira-se examinar este sentimento, dissecá-lo, e a parte do seu ser moldada pelos convencionalismos reagira. Porém respondera, para se tranqüilizar, que não desejara que Marc tivesse saído da sua vida daquela maneira horrível. Deus sabia que não desejava a morte de ninguém. O sadismo com que ele a flagelara nas últimas semanas antes da sua morte fora quase insuportável. Com esta lembrança podia justificar sua própria frieza. Ele insultara-a, vexara-a, traíra-a com Tehura, minara os alicerces da tranqüilidade de todos, do povo que o acolhera, com aquele porco chamado Garrity. Isto não conseguiria ela esquecer. Uma vez que se matara, o fato da morte era o suficiente, segundo as regras da sua sociedade, para o resgatar de todos os vexames infligidos. Pelo acidente da morte redimira-se e isto comprometia a viuvez dela. Para o diabo com as convenções, pensou; nenhuma ferida estava sarada. A única morte dele não reparara as centenas de mortes dela. Para o diabo com as falsas convenções, e adeus Marc, pobre velhaco doente.

     Nestas últimas semanas nas Sereias quisera estar só, e seus desejos tinham sido respeitados, mas pelas razões falsas. Todos, talvez mesmo Tom Courtney, que devia saber avaliar melhor as coisas, pensaram que ela exigia o seu período de luto. Desejara estar só apenas porque quisera dispor de tempo para se libertar das tensões originadas por Marc. A prova passara e necessitava de férias.

     Com certa inconstância, continuaria a trabalhar com Maud mesmo depois de Marc ter ido para a sua sepultura oceânica. Claire mostrara-se suficientemente forte para estenografar as palavras com que Maud compusera o obituário floreado destinado à imprensa popular e às revistas de antropologia. Escrevera uma dúzia de cartas, também, para os professores do Raynor College e para os amigos de Maud -- colegas antropólogos de todo o país. Todas as pessoas importantes tinham sido notificadas do fatal acidente que vitimara Marc, “no meio do mais valioso esforço no campo”. O que mais impressionara Claire em todos os obituários e cartas tinham sido as referências feitas por Maud ao trabalho realizado agora e ao que ela e Adley tinham efetuado no passado. Que amargura sentiria Marc se soubesse que sua morte serviria para incensar os pais, que tanto odiara.

     Rasmussen expedira as cartas e trouxera os telegramas de condolências e as notícias da imprensa. Num artigo publicado por um jornal de Papeete, o célebre aventureiro Rex Garrity chorara a perda do mais prometedor antropólogo da América, que era seu amigo íntimo. No mesmo artigo, Garrity anunciava que, após as suas curtas férias em Taiti, partiria para a ilha da Trindade, de onde seguiria para a pequena ilha do Tobago, nas índias Ocidentais Britânicas, perto da qual, segundo a tradição, Robinson Crusoé naufragara. Garrity fora encarregado, por Busch Artist and Lyceum Bureau, de emular os vinte e oito anos de isolamento de Crusoé em vinte e oito dias, e Garrity prometia a seus fiéis admiradores que utilizaria apenas víveres, rum, pistolas e pólvora semelhantes às que Crusoé utilizara noutros tempos.

     Depois da fase publicitária, Claire continuara a estenografar as notas de Maud sobre as Sereias e os volumosos relatórios dirigidos a Walter Scott Macintosh e a Cyrus Hackfeld. Este trabalho monótono consumira a quase totalidade dos seus dias. À parte longos passeios, só uma vez Claire saíra do gabinete de Maud ou da sua própria cabana. Assistira à cremação do corpo de Tehura e encontrara-se chorando ao lado dos parentes da jovem nativa, pois a sua morte constituíra uma autêntica tragédia. Somente a corrupção provinda do exterior, e não os males da alma ou do corpo, pusera termo à existência de Tehura.

     Claire vira tom Courtney quase diariamente, mas sempre em público. A gentileza e o aparente. vigor de Courtney contrastavam vivamente com a loucura e brutalidade de Marc. Ela não sabia explicar a si mesma o que sentia realmente por Courtney; porém, a presença dele, por muito pouco tempo que fosse, tinha o condão de a animar, e sentia-se sempre como que abandonada quando ele se afastava dela. E o mais curioso de tudo era que Courtney, desde a morte de Marc, embora se mostrasse bastante afetuoso, parecera tornar-se mais impessoal nas suas relações. Não fora capaz de o atrair - a sua opinião, a sua atenção - como acontecera antes. E nunca conseguiu encontrar-se a sós com ele.

     Que é que o tornara mais distante? Seguiria ele as normas convencionais que impunham respeito pela viúva? Ter-se-ia desvanecido o interesse que manifestara por ela, como mulher? Ou sucedia que, agora que se encontrava só, Courtney tinha receio de que ela necessitasse apenas de sua companhia?

     Durante toda esta semana o enigma Courtney preocupara-a. Por vezes, pensara procurá-lo, dirigir-se à sua cabana de solteiro, sentar-se defronte dele a fim de dizer o que sentia acerca de Marc e do seu casamento, acerca de si própria e das falsas convenções. Conversariam e seria posto termo a esta mentira. Contudo, não se decidira a dar este passo. Conhecia mulheres que marcavam encontros com homens, que lhes telefonavam, que os visitavam mesmo em sua casa. Para Claire, uma ação agressiva destas parecia impensável, mas refletia nela.

     Compreendeu - sentada defronte do candeeiro, o livro no regaço, três pontas de cigarro no cinzeiro improvisado - que passara quase uma hora em indolentes reflexões. Devia mostrar-se prática e tomar uma decisão. No dia seguinte, estaria em Taiti. Um dia depois encontrar-se-ia na Califórnia. Não existia um problema imediato de dinheiro. Marc fizera um pequeno seguro de vida porque era também pequeno o seu interesse na vida para além dele. Apesar de tudo, este seguro sempre seria útil. Tinha dinheiro suficiente para se manter viva durante um ano.

     Maud, com crescente confiança nos resultados do seu trabalho sobre as Sereias, convidara Claire a viver com ela em Washington, no caso de obter o lugar de diretora-executiva da Culture. Claire agradecera a atenção mas não desejava continuar como secretária de Maud. Por agora, voltaria à casa de Santa Bárbara; nada planejaria, veria o que aconteceria durante certo tempo. Eventualmente, alugaria um apartamento em Los Angeles, procuraria um emprego (tinha muitos amigos) e aprenderia de novo a viver como solteira.

     Alguns dias antes, num estado de espírito diferente, pensara em ficar nas Três Sereias. Se não conseguisse adaptar-se à vida da aldeia, sempre haveria Rasmussen para a levar dali. Porém, isto não fazia sentido. Era uma decisão demasiado dramática para o seu ser prosaico, e não tinha a coragem suficiente para se submeter a esta mudança. Oh, se Tom Courtney tivesse pedido que ficasse, talvez anuísse, e veria, veria não sabia o quê. Ele não chegara mesmo a sugerir fosse o que fosse e ela deixara de tecer esta fantasia.

     Mais um cigarro, disse de si para si. Depois, enquanto fumava, começou a pensar nestas semanas de permanência nas Três Sereias. Nascida e criada numa cultura tão diferente pouco havia que pudesse levar consigo para a pátria. O que mais apreciara na ilha era completamente inaceitável entre aqueles com quem crescera. Contudo, este povo, com seus costumes, fizera reforçar certas crenças secretas jque sempre tivera. Refletira profundamente tanto no que se referia a si como à vida que vivera e para a qual teria de voltar. Com exclusão das querelas com Marc e da subseqüente tragédia, passara bons momentos.

     O relógio de pulso continuava a tiquetaquear e ela cada vez mais se aproximava do dia seguinte. A inevitabilidade do dia seguinte fez com que se sentisse inquieta pela primeira vez nesta noite. Detestava abandonar o isolamento e a liberdade proporcionados por esta ilha. Quase do dia para a noite, mergulharia numa existência plena de tensão e de simulações, teria de tomar a pose de viúva. Que terrível era deixar um lugar que se tornara mais sua pátria do que aquela a que teria de voltar. Contudo, de que sentiria mais saudade? Como não mantivera relações íntimas ou de amizade com qualquer nativo, deveria existir outra coisa ou pessoa. No isolamento deste quarto, podia ser ela própria e sincera para consigo mesma. Assim, admitia por fim que de uma pessoa sentiria saudade, a pessoa que se chamava Tom Courtney. Esta saudade por uma pessoa que conhecia e ao mesmo tempo desconhecia fez com que se sentisse inquieta. Esmagou a ponta do cigarro no cinzeiro, ergueu-se rapidamente sacudiu os ombros e entrou no quarto dos fundos para vestir a camisola antes de fazer as malas. Ao despir-se, lentamente, apercebeu-se de que ele penetrava mais uma vez nas seus pensamentos. Por que teria tanta relutância em deixar Tom Courtney? Como poderia sentir a falta de alguém que, a julgar pelo seu comportamento recente, não dera. a entender que sentiria a falta dela no momento em que partisse?

     Esta última interrogação permaneceu no seu espírito enquanto vestia a camisola de nylon branco. Se ao menos ele respondesse por ela a esta última interrogação, nesta última noite... Então poderia partir sem cuidados. ' Se ao menos ela não fosse ela e tivesse coragem de...

     

     A tímida batida à porta de cana na quietude entre a madrugada e a aurora parecia reverberar na atmosfera.

     A porta abriu-se quase imediatamente e ei-los face a face, ele no limiar, ela da parte de fora, mas ambos surpreendidos. Nunca o vira desta maneira antes. Parecia um nativo branco, só com um saco púbico. Compreendeu que ele devia andar sempre assim na intimidade da sua cabana e que a camisa e as calças que trazia no exterior eram uma concessão ao grupo civilizado. Puxou mais o robe cor-de-rosa sobre a camisola e ei-la ali, sem saber por que viera ou o que devia dizer.

     - Claire - disse ele.

     - Acordei-o, Tom? Perdoe-me. É uma tolice. Deve passar um milhão de horas depois da meia-noite.

     - Não dormia. Estava deitado no escuro, pensando... bem, pensando em você, Claire!

     - Sim?

     - Entre, entre - tornou ele; apercebendo-se de que estava praticamente nu, acrescentou: - Espere, deixe que me vista...

     - Não seja criança - retorquiu ela -, pois eu também não o sou.

     Entrou na cabana.

     Ele fechou a porta e aproximou-se da tira de bambu onde se encontravam colocadas as velas.

     - Precisamos de luz.

     - Não, Tom. Ê mais fácil conversar com você assim. O luar que entra pela janela é suficiente.

     Claire baixou-se sobre a esteira. Courtney aproximou-se e sentou-se a alguns centímetros dela.

     - Nunca procurei um homem na casa dele - disse Claire. - Devia ter-lhe enviado antes um desses colares do festival. Estamos nas Três Sereias, não é verdade?

     - Sinto-me contente por ter vindo aqui, Claire - disse ele. - Na noite passada pensei várias vezes em ir à sua cabana. Porém, é mais difícil para um homem...

     - Por que, Tom? É essa a razão por que... tive coragem de vir aqui. Não podia partir amanhã, desaparecer, sem saber primeiro diversas coisas sobre você. Fomos amigos durante algumas semanas. A nossa amizade foi importante para mim. Não faz idéia como apreciei a nossa convivência. E bruscamente, após a morte de Marc, deixei de o ver. Por quê? Respeito pela viúva?

     - Sim e não. Mas nunca pelas razões que parece pensar. Tive receio de estar sozinho com você. Eis a verdade.

     - Teve receio por quê?

     - Porque de um momento para o outro tudo se tornou possível, e amedrontava-me o que podia dizer ou fazer. Meus sentimentos por você são profundos, desde a sua chegada, mas tive de os ocultar. E de súbito compreendi que podia exprimi-los. Estou falando como um idiota, mas... antes, na companhia do seu marido, você podia permitir-se mostrar interesse por mim. Desprotegida, podia não manifestar o mesmo interesse. E se aparecesse...

     - Tom - disse ela docemente -, obrigada.

     - Por quê?

     - Por ser possível estar aqui com você sem ser preciso corar.

     - Claire, não disse isto tudo para... para me mostrar simpático. Falo para uma mulher de uma maneira de que não era capaz há quatro ou cinco anos. A verdade é que sou eu quem deve sentir-se grato. Quer saber por quê?

     - Sim.

     - Você fez com que eu crescesse e jamais o soube. Até hoje, pensei em ficar aqui indefinidamente. As velhas razões. Esta é uma vida permissiva, fácil, hedonista. Deixa-se o corpo viver, e não existem quaisquer preocupações. Além do mais, é-se importante nesta pequena comunidade. O regresso à América torna-se cada vez mais difícil. Se se volta, perde-se esta importância e se é de novo uma pessoa comum. Tem de se trabalhar muito para se ter de novo importância. E é preciso viver-se com a cabeça, também, e não apenas com o corpo. É necessário usar as camisas-de-força do progresso, ser pontual, seguir as leis e as convenções. Mas hoje tudo se modificou. Dirigi-me a Maud e perguntei-lhe se podia voltar a Taiti e aos Estados Unidos com todos vocês. Regresso com você, Claire.

     Claire estava sentada muito quieta, mas feliz.

     - Por que deixa as Sereias, Tom?

     - Por dois motivos. Primeiro: cresci e compreendi que podia lutar pela vida na nossa pátria. Claire, tenho fugido da vida nestes últimos anos. A sua presença, os pensamentos que inspirou, fizeram com que compreendesse que o meu exílio constituía felicidade ilusória comparada com tudo o que você representava. Ao vê-la, e talvez a alguns dos outros, senti-me inquieto, profundamente insatisfeito, mesmo envergonhado de mim mesmo. Foi então que me apercebi de que nada tinha resolvido, que nunca resolveria fosse o que fosse longe do seu próprio mundo, que é também o meu mundo.

     Fez uma pausa, evitando os olhos de Claire, fitando apenas as mãos dela. Depois, prosseguiu:

     - Não quero fazer um grande discurso dramático acerca do regresso a uma existência que os outros tomam como certa. Só desejo que saiba por que tomei esta decisão. Compreendo bem que a vida na nossa pátria não é tão fácil e tão idílica como esta aqui. A existência é mais intensa e perturbadora nos Estados Unidos. Acredito agora que nasci num lugar chamado Pátria para viver ali os meus dias e enfrentar a realidade, fazer o que um homem deve fazer. Porém, antes, quando a vida se tornou dura, fugi. Não constituo um caso único. Sou um entre milhões. Todos os homens fogem à sua maneira. Alguns fogem para dentro de si mesmos. Outros fogem para longe, como eu. Um mau casamento, uma guerra, um emprego falaz, e fugi. Pensei que os quatro anos que passei aqui me tinham libertado. E libertaram. Contudo, apenas de maneira limitada. No todo, sou um covarde. O homem maduro que não foge, que se mantém no mundo da luta pela existência, no qual nasceu e foi criado, é o único que mostra heroísmo autêntico, jamais cantado. Devemos não escapar da vida, fugir ao labor convencional, ao casamento, à procriação. A euforia das ilhas escondidas, os coqueiros e as virgens morenas pertencem aos sonhos. Se a vida não-realiza estes sonhos, então é tarefa de um homem tentar melhorá-la, lutar por ela em casa, no bairro, na comunidade, no país. O principal é fazer-se face à vida no nosso campo de batalha, e- isto vou procurar fazer. Eis por que regresso.

     Fez uma pausa e esperou, mas Claire nada disse.

     - Claire, não me perguntou qual é a segunda razão por que volto.

     Ela continuou calada.

     - É por você, Claire. Amo-a. Comecei a amá-la no primeiro momento em que a vi. Desejo estar próximo de você, estar onde você estiver, quer o deseje ou não.

     Ela ouvia a sua respiração na obscuridade. Assustava-a a violência das palpitações do seu coração.

     - Tom... fale... diga a verdade... o que sente?

     - As minhas palavras jamais poderiam exprimir o que sinto, mesmo que estivesse falando uma vida inteira. Amo-a tanto que não consigo pensar ou falar convenientemente. Tenho-a desejado desde que chegou aqui, desejei-a esta noite. Desejei-a para companheira dos meus dias. É.... é tudo o que posso dizer... e o que receei dizer até hoje.

     Claire apercebeu-se de que tinha coberto a mão dele com a sua.

     - Tom, por que pensa que vim aqui esta noite?

     - Claire...

     - Desejo-o também. Necessito de você. Necessito de você esta noite e em todas as demais noites enquanto existirmos sobre a Terra. Nunca... nunca disse uma coisa como esta a ninguém. - Lançou-se nos braços dele e encostou a cabeça ao seu peito nu. - Talvez não devesse admitir estas coisas agora...

     - O que um ser humano sente sobre o amor está certo.

     - Então, Tom, ame-me, sempre...

     

     Eram oito horas da manhã do último dia, e uma aragem refrescante agitava docemente as copas das palmeiras na aldeia das Três Sereias.

     Através da porta da frente da sua cabana, «por detrás da secretária à qual estava sentada, Maud Hayden observava a primeira atividade da manhã no conjunto. Os jovens nativos encarregados do transporte da bagagem, quatro ou cinco, conduziam as malas e as caixas para a margem do regato.

     Maud retirou os olhos do conjunto e pousou-os no microfone de prata que tinha na mão. Na última meia hora, gravara suas derradeiras impressões sobre as Sereias. O que fora registrado esta manhã, e durante as manhãs de seis semanas, era importante e invulgar. Pela primeira vez desde a tragédia - naquela terrível semana chorara duas vezes, furtivamente - sentia-se, se não bem, pelo menos conformada. Em silêncio, agradeceu a todos, a Easterday, Rasmussen, Courtney, Paoti, e ao longínquo Daniel Wright também, por a terem restituído ao trabalho. Restava pouco tempo agora. Que havia mais para gravar?

     Uma súmula final seria talvez útil. Com o Indicador, premiu um botão do gravador e a fita começou a girar.

     Em voz baixa e rouca disse:

     “Um último pensamento. A prática do amor e do casamento nas Sereias é totalmente diferente de qualquer outra conhecida no mundo. Para estes nativos, parece perfeita, pois ajustaram-se a ela no decorrer de muitas décadas. Contudo, estou convencida de que seus padrões, tão perfeitos, não podem ser introduzidos na nossa sociedade, no Ocidente. Somos herdeiros de uma sociedade competitiva, com suas vantagens e desvantagens, e devemos viver dentro dos nossos meios emocionais. O que vi funcionar com êxito nas Três Sereias não funcionará nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Rússia, ou qualquer outra parte do mundo moderno. Porém, creio nisto: podemos aprender um pouco com sociedades como a das Sereias; não podemos viver como vivem os ilhéus, mas nos podemos beneficiar de seus ensinamentos.

     Permiti que a fita continuasse a correr durante alguns segundos antes de premir o botão que a detinha.

     Era necessário dizer qualquer coisa mais, compreender, justificar a missão dos antropólogos sociais, dos colegas que participavam destas muitas vezes difíceis e incertas viagens de campo. Sempre que desejava tranqüilizar-se sobre o valor do trabalho de todos, recordava-se das palavras de um deles, que muito admirava.

     Curvou-se e abriu a mala na qual tinha os seus livros; depois, voltou alguns até localizar o volume que desejava. Com o microfone ainda na mão direita, abriu o livro Sociedade Primitiva, de Robert Lowie, a fim de procurar a introdução; após folhear meia dúzia de páginas, encontrou-a.

     Pela última vez, nesta viagem, premiu o botão que fazia girar a fita. Em seguida, começou a ler, lentamente, para o microfone: “O conhecimento das sociedades primitivas tem um valor educativo que deve recomendar o seu estudo mesmo àqueles que não estão profundamente interessados nos processos culturais. Todos nós nascemos numa sociedade regida por instituições e convenções tradicionais, as quais são consideradas não só como naturais mas também como as únicas capazes de satisfazer as necessidades sociais. A tudo o que seja diferente dos nossos padrões apomos a marca da inferioridade. Contra estas convicções míopes não há melhor antídoto do que o estudo sistemático de civilizações estranhas... Como vemos, os nossos costumes e opiniões englobam-se num número infinito de variantes.”

     O rosto largo de Maud Hayden começou a abrir-se num sorriso. Com firmeza, premiu o botão que fazia deter a fita e compreendeu que a viagem de campo estava concluída.

     Depois de repor o livro na mala e de colocar o tampo de metal sobre o gravador portátil, volveu os olhos para a porta aberta. A bagagem estava empilhada, e todos tinham chegado: os Karpowicz, Harriet e Orville, Rachel e Lisa. Claire e Tom Courtney, juntos, atravessaram o conjunto, aproximando-se dos outros.

     O Capitão Rasmussen e o professor Easterday surgiram passados momentos. Depois de cumprimentarem os presentes e de reunirem os nativos, encaminharam-se para a cabana.

     Era uma hora boa e má também, mas era hora de partir.

     Com as mãos apoiadas sobre a mesa, ergueu-se. Em seguida, pegou no gravador portátil e circunvagou os olhos pela sala, a fim de ver se tinha esquecido de algum papel. Tudo estava em ordem e ela estava pronta.

     Enquanto esperava, pensou se alguma vez voltaria às Três Sereias, ela ou qualquer dos membros do grupo. Se algum deles desejasse voltar, quem é que os conduziria a este lugar desconhecido, na falta de Rasmussen e Courtney?

     As Três Sereias, disse para si, constituem o sonho eterno do Paraíso Ressurgido. Quando o mundo soubesse da sua existência, acreditaria, e, acreditando, procurá-las-ia? E quanto tempo demoraria o mundo a encontrá-las, se alguma vez as encontrasse?

 

                                                                                            Irving Wallace

 

 

                      

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