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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ILHA DAS TREVAS / José Rodrigues dos Santos
A ILHA DAS TREVAS / José Rodrigues dos Santos

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A ILHA DAS TREVAS

 

Dizem que o tempo sara todas as feridas. Talvez seja verda­de. Mas há feridas que parecem não sarar. Sangram, vertem pus, voltam a sangrar, surpreendem-nos a magoar a alma quan­do esta já deveria estar habituada e imune a tanta dor. É certo que, às vezes, essas feridas acalmam, como as marés que reco­lhem a água e recuam para o mar alto; mas, tal como as marés, regressam depois, revigoradas, pujantes, invadindo de novo a praia e fazendo sentir o fulgor da sua presença, o ímpeto do seu regresso.

Paulino Jesus da Conceição tinha uma dessas feridas. Sentia-a por vezes a apertar-lhe o pescoço até quase não conseguir res­pirar, sentia-a dentro de si em parte incerta, ora na cabeça, ora no coração, ora no ventre, ora nos pulmões. Sentia-a nas per­nas e nos olhos. Sabia que ela estava dentro de si, mas, se lhe perguntassem onde se encontrava exactamente, não saberia res­ponder. Ou melhor, sabia; no fundo, no fundo, sabia bem onde encontrá-la. Estava na memória, escondia-se no passado, um passado que desesperadamente se esforçava por romper pelo presente, agarrando-se a Paulino como se ele fosse a sua tábua de salvação, a sua resposta à terrível angústia do esquecimento, do desaparecimento, do eterno silêncio. Mas Paulino sabia que esta ferida jamais cicatrizaria. Podia talvez dar um momento de descanso, distrair-se, ir dormir a sesta, mas à primeira oportu­nidade lá estava ela, voltava sempre, regressava para torturar o homem que a trazia dentro de si, arrastando-o para um estado de febril demência que se apossava da sua alma e o conduzia ao desespero.

Era já contra a loucura que Paulino lutava, e foi em nome da luta pela sanidade que tomou uma decisão naquele dia 20 de Janeiro de 2002. Tinha quarenta e seis anos de idade, ia fazer quarenta e sete a 6 de Abril, e já não podia viver assim. Levantou-se nessa manhã pelas seis horas, como era costume. E, também como lhe acontecia nos últimos dezanove anos, acordou transpirado, assustado, perseguido pelo mesmo pesa­delo que assombrava as suas conturbadas e agitadas noites de sono. Há já dezanove anos que sonhava com os mesmos rostos e as mesmas vozes, as mesmas palavras a ressoar na cabeça enquanto dormia, os mesmos ecos que emergiam da noite dos tempos, amplificados, ameaçadores. Entrega-lhe o crucifixo. Nem numa única noite esses fantasmas o largaram.

Esta última noite não foi excepção. Paulino sentou-se na cama e pôs a cabeça entre as mãos, angustiado.

"Já não aguento mais, não posso viver assim", murmurou, os olhos cerrados por detrás das mãos.

Foi nesse momento que tomou a decisão. Levantou-se da cama com um gesto brusco, pegou numa vasilha pousada no chão, uma barata de patas para cima a flutuar na água, e colocou-a na bacia. Pegou na barata, atirou-a ao chão e esmagou-a com o pé. Mergulhou as mãos na água e passou-as pelo rosto, sentindo a sua frescura. Passou água pelas axilas, esfre­gou com o sabão e voltou a passar água, limpando-se depois com um pano sujo assente em cima da cadeira. No espelho velho e partido que tinha no lavatório analisou o rosto. Trazia a barba demasiado crescida, viam-se até os pêlos grisalhos a espreitar pelo queixo. Esfregou a cara com o sabão, limpou a navalha na vasilha e começou a barbear-se com cuidado. Quan­do acabou parecia outro, agora novo, o rosto limpo e o suor parcialmente removido do corpo. Sentia-se melhor. Vestiu uma roupa limpa, jeans azul-claros e camisa branca, e saiu à rua.

A manhã nascera temperada, não havia ainda muito calor. Mas a humidade já era alta, tornando o ar pesado. Paulino vivia ao pé da estação de autocarros de Balide, o bairro no Sul de Díli. Apesar de ser cedo, a estrada tinha algum movimento, sobretudo de bicicletas e transeuntes, e havia um elemento da Polícia das Nações Unidas junto a uma bancada com fruta. Paulino pôs-se a caminho, cruzou-se com o polícia e reconheceu-o; era um português da PSP. Não lhe sabia o nome, mas conhecia-o de vista.

"Bom dia, senhor guarda."

"Dia", respondeu o homem, olhando-o de relance.

Paulino prosseguiu o seu caminho. Chegou à estação de autocarros e virou à esquerda, passando por cima da ponte. A igreja de Balide erguia-se à sua direita, do outro lado da rua. Paulino parou e ficou a observá-la. Os fiéis convergiam para o edifício, a missa das sete ia começar não tardaria nada. O interior estava apinhado de gente e os recém-chegados faziam fila à porta. Por alguns instantes, Paulino esteve vai não vai para voltar para trás, mas optou por manter a decisão de havia pouco. Tinha de acabar com os pesadelos, talvez há muito tempo que devesse ter feito o que se propunha fazer agora. Em boa verdade, não tinha nada a perder. O pior que lhe podia acontecer era ficar na mesma.

Pela primeira vez em dezanove anos, Paulino entrou no recinto de uma igreja com um propósito religioso. Consideran­do que era um timorense, isso era algo muito estranho. Os timorenses eram muito devotos, católicos profundos apesar das suas tentações animistas, de resto toleradas pela Igreja. As igre­jas, quase todas construídas no tempo dos portugueses, esta­vam aos domingos repletas de gente, se fossem cinemas dir-se-ia que tinham a lotação esgotada. Paulino deixara de as frequentar, voltara-lhes as costas, mas sentia que chegara a hora de procurar a sua ajuda. Não sabia se existia um Deus. Já acreditara nisso com todas as forças. Acreditara na Virgem Maria, em Jesus Cristo, no Espírito Santo e no Pai Nosso Que Estais No Céu, mas essa crença desmoronara-se numa manhã longínqua, fugindo por uma porta esconsa da sua alma, sumindo-se numa lufada de ar que um dia inspirou e expeliu com um sopro.

Foi demorada a missa, ou pelo menos assim lhe pareceu. Passou uma hora inteira de pé, no átrio da igreja, e as articu­lações protestaram com pequenas farpas de desconforto que o obrigavam a mudar constantemente o pé de apoio. Sentiu ganas de se sentar no chão, mas achou que isso seria inter­pretado como uma atitude desrespeitosa e aguentou-se com estoicismo. Na igreja, nem sentado no chão, nem mãos nos bolsos, nem braços cruzados. Foi assim que os pais o ensi­naram e a lição ficou bem marcada na mente. Experimentou uma breve sensação de alívio quando verificou que a missa terminara, mas logo percebeu que afinal a sua vez ainda iria demorar.

Muitos fiéis abandonavam a igreja, esvaziando parcialmente o interior. Paulino pôde assim entrar no santuário, mas constatou que havia uma longa fila para o confessionário. Pela segunda vez a sua impaciência quase o levou a desistir, e pela segunda vez a ideia dos pesadelos que o assombravam todas as noites o encorajou a ser paciente. Foi para o fundo da fila, determinado a pôr em prática a decisão que tomara nessa manhã. A alternativa era a loucura, a vida num permanente inferno, as vozes que o chamavam do passado, torturando-o, supliciando-o. Entrega-lhe o crucifixo. Estava fora de questão não tentar calar estes fantasmas.

Paulino abanou a cabeça e concentrou-se na fila que se prolongava à sua frente. Um, dois, três, quatro, cinco, seis... Foi contando o número de fiéis até ao confessionário. Vinte e cinco. Observou o tempo que permaneciam na cabina e, três fiéis mais tarde, verificou que demoravam uma média de cinco minutos cada. Pelos vistos, pecavam pouco. Tinha por­tanto para cerca de duas horas de espera. Pobre padre, que ficava ali sentado a vasculhar os segredos de cada um, a encomendar vinte ave-marias e trinta pai-nossos durante duas horas, um penitente a encomendar penitências. Devia ser assim todos os domingos, uma fila de pecadores que procura­vam a redenção na confissão. A verdade, porém, é que Paulino não podia ver a coisa com um olhar crítico. Não estava ele afinal naquela fila? Não tinha ele voltado enfim à igreja? Por que razão se preocupava ele com o tempo que o padre passava sentado no confessionário? Analisando as suas moti­vações, percebeu que não era a preocupação que o movia. Era o desejo de fuga. Era o desejo de reprimir os seus fantasmas, de os manter à ilharga, de os entreter com acontecimentos susceptíveis de o distrair, de criar uma diversão suficientemente forte para esquecer, por momentos que fosse, a pulsão obses­siva de aceitar a invasão da sua mente e de se deixar arrastar pelo turbilhão do passado.

A fila podia ser lenta, mas avançava inexoravelmente e, duas horas mais tarde, Paulino acabou por se sentar no confes­sionário. Sentia-se já cansado de estar de pé e foi com alívio que se entregou à cadeira quando chegou a sua vez. O padre permanecia invisível, do outro lado da cortina amarela.

"Perdoe-me padre, porque eu pequei", disse.

Não tinha a certeza de que fosse essa a fórmula correcta, já lá ia muito tempo, mas foi a que lhe ocorreu nesse instante.

"Diz-me, meu filho, o que fizeste?"

Meu Deus, por onde começar?

"Matei."

"Esse é um pecado mortal, meu filho."

"Eu sei", suspirou Paulino.

"Estás arrependido?"

"Todos os dias, senhor padre. Todos os dias."

"Conta-me o que se passou. Quando foi isso?"

"Há muito tempo, senhor padre. No tempo dos nangalas."

Paulino calou-se. Para ser inteiramente rigoroso, a fórmula "no tempo dos nangalas", embora referindo-se efectivamente a um outro tempo, era muito vaga. Tanto podia ser "há três anos" como "há mais de vinte anos".

O padre não gostou do uso do calão, mas deixou passar. Estava aliás mais atento à hesitação manifestada por aquele pecador. Por isso, interveio, encorajando-o.

"Fala com Deus, meu filho, fala com Deus e ele guiar-te-á. Estás pronto para te confessar?"

"Estou. Estou pronto." Um suspiro.

"A confissão libertar-te-á. O que fizeste?"

"Foi há muito tempo", repetiu-se Paulino.

O timorense apercebeu-se de que, com essas palavras mági­cas, atirava os acontecimentos para uma outra existência, para uma outra era que deixara de ser a sua. Ele, Paulino, era o presente, ele era o que pensava e fazia agora, e sentia que o homem que fora já não existia, estava morto no passado, tão morto como as vozes pungentes que o chamavam no sono e o atormentavam quando se encontrava acordado, emergindo algures do outro lado do tempo, sempre com as mesmas pala­vras, o mesmo tom, suplicando, implorando.

Nova pausa.

"Há quanto tempo?", perguntou o padre, dando nova ajuda.

O pároco da igreja de Balide sentia-se já cansado, a manhã fora longa, mas intuiu naquele pecador um estranho mistério, uma ferida profunda e dolorosa que teria de tratar com cui­dado. Seria aquela a alma que iria salvar nesse dia? Seria com aquele homem que cumpriria o desígnio do Criador? Havia algo nele que lhe dizia que sim. E, se queria a redenção daquele pecador, sabia que a única maneira de o fazer era sendo paciente, guiando-o na confissão.

"Tudo começou em 1975."

 

 

As águas quentes do Pacífico agitavam-se com o marulhar contínuo das ondas que vinham morrer na praia, lambendo a areia para a frente e para trás, a espuma na crista a dissolver--se em pequenas bolhas brancas, baba do mar que se agarrava efemeramente ao chão até se fundir de regresso à água salgada. Adelino Gomes olhou impotente para a mancha de terra que se estendia pela linha do horizonte, do outro lado da curta faixa de mar, o perfil das montanhas a erguer-se e a cercar o pequeno vale onde a cidade se espraiava, pareciam penhascos escarpa­dos na borda de uma cratera vulcânica. Lá em baixo a cidade era o caldeirão, estendendo-se pacatamente pelo vale da cra­tera. Vista à distância, Díli assemelhava-se a um vulcão extinto.

Adelino demorou-se a contemplar a cidade distante, vista dali tão tranquila, tão morna, tão plácida, tão traiçoeiramente calma. Mas o repórter não tinha ilusões quanto ao que ali se passava, sabia que naqueles primeiros dias de Outubro de 1975 havia uma lava em incandescência por baixo daquela aparente serenidade, uma lava feita de gente, de paixões humanas, de sofrimento e ardor, de violência, de amizades, de traições, de medos e angústias. De destino. Fora essa lava que o atraíra àquele lugar de tragédia iminente e, por ironia, era ela que o obrigava momentaneamente a manter-se afastado. O vulcão não estava extinto, apenas parecia adormecido.

Adelino suspirou e voltou-se para os companheiros.

"Fazemos o vivo aqui", anunciou.

Herlander Mendes, o operador de câmara, passou a mão pelo rosto transpirado, afastou um mosquito e fez um gesto para o seu assistente. Manuel Patrício pegou no tripé e montou-o junto a Herlander. Jorge Teófilo, o operador de som, deu uma mão e estabeleceu a ligação entre o gravador e a máquina de filmar.

"Porra para a humidade!", praguejou Herlander, preocupa­do com a máquina de filmar e irritado com o calor abafado e o ar pesado.

O operador de câmara não estava habituado a trabalhar naquelas condições e agonizava com a possibilidade de a humidade lhe inutilizar o equipamento. Manuel estendeu-lhe o secador para desumidificar a máquina, mas Herlander abanou a cabeça. Não era preciso, a Harriflex funcionava.

"Estás pronto?", impacientou-se Adelino.

Jorge fez sinal que não, apesar de a pergunta não lhe ser especificamente dirigida.

"Ó Adelino, fala lá um bocado, pá", pediu, querendo acer­tar os níveis de som.

"Um dois três, um dois três, um dois três quatro."

"Está bom", indicou Jorge.

Herlander fez um sinal, Adelino calou-se, concentrou-se, reviu mentalmente o sentido do seu texto e começou a falar para a câmara, fazendo um vivo ali mesmo, nas areias da praia da ilha de Ataúro, frente à cidade de Díli.

"É extremamente difícil nós atingirmos Díli", explicou aos seus telespectadores, observando que "Díli fica perto e fica longe, está perto fisicamente e longe, muito longe ainda, para nós."

A frustração de Adelino Gomes era compreensível. Timor-Leste tinha mergulhado numa guerra civil fratricida, desenca­deada pela dinâmica revolucionária libertada pelo 25 de Abril de 1974. Com o movimento de descolonização a marchar em força no resto do império português, Timor-Leste aderiu à moda e viu aparecer, quase por geração espontânea, um grande número de partidos políticos. As forças dominantes eram a UDT, a União Democrática Timorense, que apoiava uma fede­ração com Portugal; a Apodeti, a Associação Popular Demo­crática Timorense, que defendia a integração na Indonésia; e a independentista e popular ASDT A Associação Social-Democrata Timorense era, de longe, quem mais favores colhia junto da população de pé-descalços de Timor, e o regime de Jacarta, embora simpatizando mais com a Apodeti, percebia a fragilidade deste movimento pró-indonésio e concedeu, por isso, um apoio cauteloso aos independentistas. Em Junho de 1974, um dos líderes da ASDT, José Ramos Horta, foi à capital indonésia e encontrou-se com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Adam Malik. O chefe da diplomacia indonésia recebeu-o entusiasticamente e entregou-lhe uma carta de apoio, afirmando, preto no branco, que "a independência de todos os países é o direito de todas as nações, e o povo de Timor não é excepção". A Indonésia, anfitriã da célebre con­ferência de Bandung e campeã histórica da luta contra o colonialismo, apoiava assim a independência da vizinha colónia portuguesa.

Mas em três meses a situação alterou-se totalmente. Em Setembro de 1974, a ASDT virou radical e marxisticamente à esquerda, por influência de jovens estudantes timorenses entre­tanto chegados da hiperpolitizada e agitada metrópole, e pas­sou a chamar-se Fretilin. Para o governo de Lisboa, isto não constituía problema. O primeiro-ministro era Vasco Gonçal­ves, um homem próximo do Partido Comunista, e, além disso, Portugal entregava nessa altura as suas colónias em Africa a movimentos inequivocamente comunistas, pelo que a ascensão de um movimento comunista em Timor era encarada com total naturalidade.

Mas a reacção foi diferente em três outras capitais: Jacarta, Camberra e Washington. O primeiro-ministro australiano, Gough Whitlam, visitou nesse mesmo mês a Indonésia. Whitlam reuniu-se com o presidente Suharto em Wonosobo, uma cidade no centro de Java, e ambos decidiram que não podia haver um país comunista na região. Timor-Leste poderia tornar-se a Cuba da vizinhança, uma perspectiva que, no qua­dro da Guerra Fria, também assustava Washington. Os ameri­canos mostravam-se igualmente preocupados com a ameaça que um regime comunista em Díli, pró-soviético ou pró-chinês, poderia representar para a circulação no estreito Ombai-Wetar, uma passagem estratégica em águas profundas para submari­nos nucleares, situada nos vinte quilómetros que separam Díli da ilha de Ataúro. Graças a essa passagem, os submarinos americanos não precisavam de emergir quando passavam entre os oceanos Indico e Pacífico, conseguindo manter-se escondi­dos dos olhares soviéticos.

Por seu turno, os militares indonésios, que já encaravam com desconfiança a ideia de uma democracia multipartidária em Timor, ficaram mortalmente alarmados com a perspectiva de um regime comunista que poderia influenciar o seu próprio país, onde um milhão de comunistas tinham sido mortos anos antes, quando Suharto derrubara Sukarno, e não queriam cor­rer o risco de ver um país vizinho tornar-se um novo foco infeccioso que voltasse a fazer alastrar o comunismo pelas ilhas indonésias. Na cimeira de Wonosobo, que veio a revelar-se a Munique de Timor, Whitlam terá dito a Suharto que a indepen­dência de Timor-Leste constituía uma ameaça para a região, embora sublinhasse, com uma significativamente menor ênfase, que teriam de ser os timorenses a decidir o seu futuro. Era tudo o que Suharto queria ouvir.

O presidente apressou-se a convocar Ali Murtopo, o chefe dos seus serviços secretos, e incumbiu-o de desenvolver um plano que conduzisse a uma intervenção indonésia em Timor-Leste de modo a erradicar o comunismo pela raiz. Murtopo reuniu-se com os seus conselheiros católicos chineses no Centro para os Estudos Estratégicos e Internacionais, em Jacarta, e o grupo concebeu um projecto para lidar com o problema. Murtopo e os seus homens apresentaram a solução a Suharto. Chamava-se Operasi Komodo, Operação Komodo. Komodo é o nome de uma ilha indonésia ensanduichada entre Flores e Sumbawa, a meio caminho entre Java e Timor, onde vivem os maiores e mais perigosos lagartos da Terra, gigantes que che­gam a ter três metros e a pesar cem quilos, designados dragões--de-komodo. A sua ideia era libertar os dragões de fogo em Timor-Leste.

O conceito por detrás do plano era maquiavelicamente sim­ples. A Operação Komodo passava por três fases: criar insta­bilidade em Timor-Leste, levar os timorenses a "convidar" a Indonésia a intervir para restabelecer a ordem, e actuar militar­mente para satisfazer o "desejo" timorense. O primeiro passo a dar era, inevitavelmente, quebrar a aliança entre a Fretilin e a UDT, os mais poderosos e influentes partidos timorenses.

Nesta aliança, o elo mais fraco revelou-se a UDT, uma vez que era o menor dos dois partidos, dominado por timorenses com sangue português, e que, por representar uma minoria influente e burguesa, encarava com desconfiança o projecto comunista da Fretilin, o qual incluía expropriações de terras no seu pro­grama.

Os indonésios instalaram em Atambua, na fronteira de Nusa Tenggara Timur, a província em que se inseria Timor Ociden­tal, com Timor-Leste, uma rádio de propaganda negra, fazen-do-a passar por uma estação da UDT e enchendo as suas emissões com uma forte retórica anti-Fretilin e anticomunista. Paralelamente, Murtopo convidou a liderança da UDT para várias visitas a Jacarta na Primavera de 1975, explicando-lhe as suas preocupações quanto à Fretilin e tentando semear a discórdia entre os dois partidos, o que, dada a natureza tendencialmente conflituosa dos timorenses, não era muito difícil. Em Maio, a aliança UDT-Fretilin dissolveu-se num cli­ma de crescente desconfiança mútua, e a tensão entre os dois partidos não parou de aumentar.

A Indonésia intensificou a pressão e a instabilidade, invadin­do dias depois, a 6 de Junho, o enclave de Oecussi. No mês seguinte, a peregrinação dos líderes da UDT a Jacarta foi reto­mada, com os indonésios a apontarem para Oecussi como o exemplo do que aconteceria se a Fretilin não fosse travada. Os interlocutores da UDT eram os próprios generais indonésios, encarregados em segredo de criar as condições para invadir a colónia portuguesa e anexá-la posteriormente à Indonésia.

Os acontecimentos precipitaram-se a 17 de Julho, quando o Parlamento português aprovou uma lei a marcar eleições gerais em Timor-Leste para Outubro de 1976 e o fim da presença portuguesa para dois anos mais tarde. Doze dias depois, nas primeiras — e durante muito tempo, únicas — eleições livres no território, a Fretilin ganhou as autárquicas no concelho de Los Paios com cinquenta e cinco por cento dos votos. Se havia dúvidas quanto ao sentido das simpatias dos timorenses, elas ficaram aqui definitivamente enterradas. Suharto, Murtopo e os seus homens estavam agora em luta contra o cronómetro e sabiam que tinham pouco tempo para alterar decisivamente o rumo dos acontecimentos. Jacarta apostou num golpe de mão a desencadear pelos seus peões, os dirigentes da UDT. Numa reunião na Indonésia, os militares explicaram aos aterrorizados timorenses que jamais autorizariam que um regime comunista se impusesse em Timor. Ou a UDT travava a Fretilin, ou a Indonésia travava Timor-Leste.

Os dirigentes da UDT regressaram a Díli a 6 de Agosto e não alimentavam dúvidas sobre o que tinham a fazer. Passaram os dias seguintes em reuniões conspirativas, delineando um ousado plano de acção que previa a tomada do poder e a eliminação política da Fretilin. O golpe foi lançado nas primei­ras horas de 11 de Agosto por uma força comandada por João Carrascalão, um timorense com sangue português pertencente a uma das mais importantes famílias da colónia. A força de Carrascalão tomou posições em Díli e no interior do território, assaltando na capital o porto, o aeroporto, a rádio e a PSP, onde se encontravam muitas armas, e detendo o seu coman­dante, o tenente-coronel Maggiolo Gouveia. Mas os únicos combates que fizeram vítimas ocorreram no aeroporto de Díli, onde morreu uma pessoa, e em Aileu, onde foram abatidas três.

O governador Lemos Pires preferiu tentar resolver o assunto pelo diálogo, em vez de optar por uma acção de força com o seu pequeno, mas bem armado, contingente. Esta táctica fra­cassou redondamente. A UDT sentiu a fraqueza dos portugue­ses e endureceu as suas posições, a Fretilin reagiu e os combates começaram a alastrar. No auge da crise, o entretanto libertado comandante da PSP, Maggiolo Gouveia, foi aos microfones da rádio anunciar que aderia à UDT, criando junto da Fretilin a impressão de que os portugueses apoiavam implicitamente a acção liderada por Carrascalão. Ao mesmo tempo, o governo indonésio, que manipulara magistralmente os acontecimentos até eles chegarem a este ponto, acrescentou um toque de fina duplicidade ao convocar o encarregado de negócios de Portu­gal em Jacarta para lamentar a forma como as autoridades portuguesas estavam a conduzir o processo de descolonização de Timor-Leste.

Mas no terreno houve uma importante reviravolta na corre­lação de forças. Um soldado timorense integrado no exército português, o aspirante Rogério Lobato, pegou nas armas a 20 de Agosto e conduziu, com êxito, uma revolta das unidades militares de Díli, controlando até o quartel-general das Forças Armadas portuguesas. Os paióis foram saqueados pelos ele­mentos timorenses da tropa portuguesa, leais à Fretilin, que formaram nesse dia o braço armado do partido, as Falintil, e assumiram assim, e de forma decisiva, o controlo dos aconte­cimentos, reconquistando rapidamente terreno à UDT.

No Palácio do Governo, Lemos Pires desesperava. A sua estratégia de diálogo fracassara, e Lisboa, mergulhada numa grave crise política, que conduziria ao afastamento do primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, ignorava totalmente os seus pedidos de ajuda ou de instruções. Como o governo de Lisboa estava paralisado e não intervinha, o presidente Costa Gomes decidiu actuar, ordenando a Lemos Pires que retirasse de Díli. Na noite de 26 de Agosto, o governador e os seus homens transferiram a sede do governo para a ilha de Ataúro.

A Fretilin retomou o controlo de Díli e nos inícios de Setem­bro já os homens da UDT cruzavam a fronteira e se refugiavam em Nusa Tenggara Timur. Pressionados pelos indonésios e à beira da derrota total, assinaram a 7 de Setembro, na povoação fronteiriça de Atambua, uma petição a pedir a integração de Timor-Leste na Indonésia. A Operação Komodo ia de vento em popa, entrando assim na segunda fase. Mas a 24 de Setem­bro, menos de dois meses depois do início da guerra civil, os combates pararam. A Fretilin controlava inteiramente a situa­ção. O fim da guerra civil contrariava os planos de Jacarta, que precisava que a instabilidade se prolongasse para ter um pretexto válido para iniciar a terceira fase da Operação Komodo, a invasão da colónia portuguesa. Os combates tinham, por isso, de recomeçar e, se a UDT já não tinha forças, a Indonésia encarregar-se-ia de levar a cabo acções militares por procuração.

A imprensa portuguesa, atarefada com o processo revolucio­nário desencadeado pelo 25 de Abril, em pleno Verão quente de 1975, que quase conduziu o país à guerra civil, e com a descolonização africana em marcha, praticamente ignorou a guerra civil em Timor-Leste. A excepção foi a RTP. Em Setem­bro de 1975, quando ainda se davam tiros no conflito timo­rense, Adelino Gomes, um talentoso repórter de trinta e um anos, partiu para o território, chefiando uma equipa que che­gou a Darwin, no Norte da Austrália, sem saber bem como iria chegar a Díli, uma vez que os contactos com a cidade eram virtualmente inexistentes. Um golpe de sorte levou os quatro a Ataúro. Em Darwin funcionava uma comissão portuguesa de ligação, que estabelecia os contactos entre Ataúro e Lisboa. Nessa altura, o governador português de Timor-Leste, Lemos Pires, chegava justamente de Lisboa e a equipa de televisão conseguiu assim uma boleia até ao destino que desejava.

Os quatro permaneceram em Ataúro durante uma frustrante semana. Apesar de Díli ser visível a olho nu, o acesso era impossível. Com a guerra civil ainda a decorrer e a situação a permanecer incerta, os pescadores de Ataúro recusavam-se a navegar até à capital, receando a instabilidade que aí se vivia.

Adelino Gomes agonizava na praia de Ataúro, receando ter cruzado meio mundo e não conseguir percorrer os der­radeiros quilómetros, aquela estreita faixa de mar que o separava da ilha do crocodilo, assim chamada porque o seu recorte no mapa fazia lembrar a cabeça de um sáurio. Para ocupar o tempo e tentar justificar um pouco a despesa que a RTP tinha feito, a equipa de televisão entreteve-se a fazer pequenas reportagens em Ataúro, incluindo aquele vivo na praia.

Mas a figura mais importante era a do governador exilado, que aceitou falar aos homens da RTP com a câmara ligada.

"O governo foi forçado por razões de segurança a sair de Díli", explicou Lemos Pires aos microfones da televisão públi­ca. "A sua permanência obrigava-o a envolver-se partidaria­mente com uma das facções, o que sempre se quis evitar, e foi só por razões de segurança, aliás com a indicação do governo central em Lisboa, que se fez esta mudança, como lhe digo a título absolutamente transitório."

O governador esforçava-se por dar um ar de total normali­dade à situação, o que era caricato. Na prática, a sua presença em Ataúro significava que Portugal entregara Timor-Leste ao seu destino, abandonando a população a uma guerra civil de contornos previsíveis. Com mais militantes e armada com material saqueado do paiol do exército português de Taibesse, perto de Díli, incluindo espingardas automáticas G3, Mausers de calibre pesado, granadas, bazucas, lança-granadas, mortei­ros, canhões ligeiros e camiões Unimog de transporte de tro­pas, a Fretilin punha e dispunha. A única força credível que lhe podia ter feito frente era a tropa portuguesa, mas os militares da metrópole não eram muitos, Lisboa ignorava-os, sentiam-se desmoralizados e estavam agora aquartelados em Ataúro, fora do palco das decisões.

Com a instabilidade política a alastrar em Portugal, os cen­tros de decisão encontravam-se paralisados e Timor-Leste era a última das preocupações das autoridades políticas portugue­sas. Se o país largava Angola em guerra, dilacerada pelo con­fronto entre os seus três movimentos anticoloniais, por que razão iria prestar particular atenção ao distante e pobre Timor? A fuga portuguesa para Ataúro constituía assim a perfeita metáfora da queda do império, a potência que tudo larga de repente, abandonando a cena de forma precipitada, envergo­nhada e vexada.

A entrevista com o governador, mais todas as reportagens pitorescas feitas em Ataúro, seguiram de avião para Portugal, enquanto a equipa da RTP tentava entrar em Díli.

A oportunidade surgiu pela mão de um homem de negócios australiano. Frank Favaro era dono de um hotel em Díli, cha­mado justamente Hotel Díli, e com o seu pequeno avião via­java até Ataúro, onde fornecia arroz às tropas portuguesas, e Darwin, para se abastecer de víveres. Logo que soube da sua chegada a Ataúro, Adelino Gomes foi ao aeródromo falar-lhe.

"Good day, mate", cumprimentou-o Favaro, com um forte sotaque australiano.

O inglês de Adelino poderia ser suavemente descrito como macarrónico; a sua língua estrangeira era sem dúvida o francês, que aperfeiçoara à custa da Alliance Française de Leiria. As suas qualidades de repórter eram famosas em Portugal, mas o seu domínio da língua inglesa deixava muito a desejar. Mesmo assim, conseguia desenrascar-se mediocremente.

"Precisamos de ir para Díli", pediu.

"Díli? Are you sure?"

"Sim, Díli", confirmou o jornalista. "Leva-nos lá?"

Favaro olhou para o grupo, estudando-o atentamente. Adelino transmitia-lhe ansiedade com os seus profundos olhos azuis, a expressão interrogativa, quase de súplica, mas os res­tantes pareciam mais descontraídos. Manuel, o assistente, era talvez, e depois do jornalista, o mais desejoso de partir. Aos vinte e três anos, Manuel Patrício estava em plena força da vida, um ribatejano jovem mas experiente naquelas coisas da guerra. Tinha estado na tropa em Africa, já ouvira tiros dispa­rados em fúria, sabia o que aquilo era, mas não se sentia muito preocupado. Herlander, o operador de câmara, mostrava-se talvez mais distante, mais indiferente, não partilhava os entu­siasmos revolucionários que guiavam Adelino e faziam ferver Portugal e o seu moribundo império. Mas o problema era Jorge Teófilo. A sua compleição física era avantajada, se não lhe chamavam gordo era por cortesia, merecendo por isso o epíteto de "pessoa forte". Ser "forte" não seria verdadeiramente o problema caso Favaro não tivesse também de contar com o equipamento de televisão e com todos os abastecimentos ali­mentares que tencionava levar para Díli.

"É isso tudo?", perguntou o australiano, indicando com um gesto largo o equipamento de televisão que o grupo transpor­tava.

Adelino olhou para Herlander, transferindo-lhe a responsa­bilidade da resposta.

"Falta uma caixa com filmes e carregadores de baterias", explicou o operador de câmara.

Favaro fez um cálculo mental, esboçando uma careta pen­sativa enquanto ia fazendo as suas contas. Tinha de avaliar o peso dos quatro portugueses, atribuindo uns quilos a mais a Jorge, das suas bagagens e do equipamento de televisão, e subtrair o peso dos alimentos que tinham já sido retirados do avião para ficarem ali em Ataúro. Feitas as contas, oitenta quilos de batatas a menos, vinte quilos de Jorge a mais, cinquenta quilos de carne a menos, trinta a mais para a câma­ra, mais isto, menos aquilo, ora deixa cá ver, quatro vezes vinte quilos para cada mala, quatro vezes dois, oito, com mais um zero dá oitenta, temos também a considerar as cenouras, são cinco sacos, cada um de trinta quilos, cinco vezes três quinze, mais um zero dá cento e cinquenta, pois pois, hum hum, tatá tatá, as conservas coiso e tal, quanto é que pesa aí o tripé?, deixa cá ver, tudo isto dá... dá...

"Dá peso a mais", concluiu o australiano. "Além disso, o avião é pequeno de mais, só tem quatro lugares e um é para o piloto." Favaro fez uma pausa e o seu rosto abriu-se num sorriso, tinha encontrado a solução. "Não há problema, faze­mos duas viagens." Duas viagens significavam que iria cobrar mais pelo serviço. Adelino também sorriu, aliviado por poder seguir em frente, mas o piloto corrigiu-se. "Ou melhor, há um problema. É precisa autorização da Fretilin."

"E como é que consigo isso aqui?"

"Escreva uma carta endereçada ao vice-presidente da Fretilin, Nicolau Lobato, a solicitar autorização", sugeriu Favaro. "Eu levo a carta hoje para Díli e regresso esta tarde com a resposta."

Adelino rabiscou um pedido no seu bloco de notas e entregou-o ao australiano. Favaro piscou-lhe o olho, como quem diz que vai correr tudo bem, despediu-se com um "see you, mate" e voltou-se para um militar português, preocupado agora em reabastecer o avião e partir para Díli.

O aparelho descolou meia hora depois e Adelino ficou a vê-lo cruzar o mar, zumbindo como uma mosca, enquanto os seus companheiros iam fechando as malas e preparando a partida.

O zumbido voltou pelas três da tarde.

Adelino trincava uma banana perto da pista de terra batida aberta no mato, junto ao mar, a encosta de uma montanha atrás, e Herlander cortava as unhas, o pé em cima de uma mala. O avião sobrevoou o eixo da pista, observando as balizas de vento para decidir por onde iria descer, endireitou-se, cur­vou, alinhou-se com a pista e aterrou. O jornalista aproximou--se do aparelho enquanto as hélices ainda trabalhavam, fazendo levantar a barba e os cabelos compridos de hippie, um look à John Lennon que reflectia a moda contestatária da década de 1970.

"Então?", disparou Adelino logo que os motores se calaram e a porta do cockpit se entreabriu.

"No worries", tranquilizou-o Favaro.

O australiano acenou com a autorização da Fretilin e, sem abandonar o cockpit, fez um gesto à equipa de televisão para se apressar. Adelino repetiu o sinal à sua equipa, que perma­necia à distância, e os homens da RTP puseram-se em movi­mento. Logo ali decidiram que no primeiro voo seguiriam Adelino e Manuel com as bagagens e algum equipamento, depois iriam Herlander e Jorge com a máquina de filmar e o resto do material.

Díli estava agora a dez minutos de distância.

 

O sol escaldava a pista do aeroporto de Díli, intensificando o incómodo de Adelino e Manuel, ambos a arrastarem as malas pela terra batida, a respiração pesada por causa da humidade e do calor. Lá atrás, o avião de Favaro posicionava-se para levantar voo e ir buscar os outros dois homens da RTP.

Dois timorenses aproximaram-se dos recém-chegados, um deles vinha fardado, o outro era claramente um pé-descalço.

"Sou o sargento João Guterres", apresentou-se o militar. "Bem-vindos a Timor-Leste."

"Chamo-me Adelino Gomes e este é o Manuel Patrício. Somos da RTP", devolveu o repórter com um sorriso.

O timorense pé-descalço fez menção de pegar nas malas de Adelino, este fez que não com um gesto, o timorense insistiu, o repórter voltou a indicar que carregaria com as malas, mas à terceira tentativa do timorense o jornalista rendeu-se e passou-lhe as coisas, ao mesmo tempo que aliviava Manuel da sua carga.

"Está tudo bem, senhor sargento?", questionou Adelino depois do bizarro imbróglio das malas com o pé-descalço, meio como cumprimento, meio a tentar saber notícias.

"Tudo bem", respondeu o homem, indicando-lhe com a mão o caminho que devia seguir.

"O senhor é do exército português?", perguntou Adelino, indicando com os olhos a farda que Guterres usava.

O timorense riu-se, embaraçado.

"Não, não", abanou a cabeça. "Eu sou das Falintil, o exér­cito de Timor-Leste. A tropa portuguesa já cá não está, per­tenço agora ao exército timorense."

A verdade é que a farda era indiscutivelmente do exército português, apenas a bandeira das quinas e os símbolos das armas portuguesas tinham sido arrancados pelo sargento Guterres. Apesar disso, mantinha a patente.

No edifício do aeroporto, os homens pousaram as malas e os dois portugueses foram conduzidos a um balcão com um vidro e um painel em baixo a indicar Alfândega.

"Passaporte", pediu o funcionário do balcão, muito compe­netrado no seu papel.

Os portugueses estenderam-lhe os documentos. O homem observou as fotografias, os nomes, as datas de nascimento e a naturalidade, e o prazo de validade dos passaportes.

"A que título vêm cá?"

"Como?"

"A que título vêm cá? Turismo ou negócios?"

"Somos jornalistas, viemos trabalhar", explicou Adelino.

"Preencham estes formulários, se fazem favor", indicou o funcionário, estendendo-lhes dois papéis fotocopiados.

Os dois portugueses analisaram os papéis, toscamente con­cebidos e com o logótipo da Fretilin no topo, e, obedientes, puxaram das canetas e começaram a preenchê-los, principiando com o nome completo e o número do passaporte e terminando com a assinatura. Devolveram os documentos e o funcionário verificou o seu preenchimento com cuidadoso zelo. Conside­rando que tudo se apresentava em ordem, pegou num carimbo, bateu num pano de tinta, bateu num passaporte, bateu num dos papéis, bateu no pano outra vez e repetiu as carimbadelas no outro passaporte e no outro formulário.

"Bem-vindos à República Democrática de Timor-Leste", despediu-se, com ar muito oficial, o funcionário. "Podem passar."

Adelino e Manuel cruzaram a alfândega, divertidos.

"Eh pá, isto parece um grande aeroporto internacional", riu-se Manuel, baixinho.

Faltavam Herlander e Jorge, e por isso os dois recém-chegados deixaram-se ficar junto ao edifício do aeroporto. Vinte minutos mais tarde, o avião de Favaro regressou com os ope­radores de câmara e de som, que tiveram de passar pelos mesmos trâmites burocráticos.

Assaltados por uma multidão ociosa à porta do aeroporto, os quatro contrataram um motorista com jipe e meteram-se à estrada.

"Para onde vamos?", quis saber o timorense.

"Qual é o melhor hotel?", inquiriu Adelino.

"Há o Turismo, o Resende..."

"Qual é o que está mais no centro da cidade?"

"O Resende."

"Vamos a esse", indicou o repórter.

O jipe contornou a curva à saída do aeroporto e meteu por uma estrada direita, o pó a erguer-se dos pneus. Alguns timorenses circulavam em motos ruidosas, outros andavam de bicicleta ou enchiam a pé os passeios poeirentos. As casas eram baixas, simples, uma ou duas janelas na frente, palmeiras ou bananeiras no quintal. Em alguns muros viam-se palavras de ordem. "Viva Timor-Leste" e "Viva Fretilin" eram as mais comuns; em alguns casos havia foices e martelos a acompanha­rem os slogans revolucionários.

"Querem ir pelo Farol?", perguntou o motorista.

Os portugueses encolheram os ombros, tanto se lhes dava. Presumindo que a pergunta indiciava que o motorista preferia essa rota, Adelino fez que sim com o olhar. O carro virou à esquerda e meteu por uma zona muito arborizada; as casas tinham aqui melhor aspecto, havia mesmo pequenas e elegan­tes vivendas, pelo ar mais opulento dava a impressão de que pertenciam a portugueses, e assim era de facto. A estrada virou à direita e os jornalistas perceberam que tinham entrado na marginal, as águas do Pacífico a embaterem suavemente na praia e nas rochas, dez metros à sua esquerda. Ali tudo parecia bonito. Claramente, o motorista procurara aquele trajecto para lhes dar uma boa primeira impressão da cidade, evitando o interior mais caótico e miserável.

A cidade apresentava-se calma. Viam-se homens fardados aqui e ali, mas os passeios pareciam desertos quando cruzaram o Farol. O jipe passou junto à igreja de Motael, construída vinte anos antes em traça portuguesa, à esquerda o portão de entrada do porto. A marginal fundiu-se neste ponto com a Rua Américo Thomás e o grupo entrou finalmente no coração da capital timorense pela Rua Alves Aldeia, o nome da marginal até se transformar na Avenida Sá da Bandeira. Este troço da marginal era o local com mais movimento; a rua e os passeios encontravam-se aqui apinhados de gente, vendedores ambulantes com latas de refrigerantes, garrafas de água, amendoins, bananas, cocos, alguns com vegetais, batatas, arroz, peixe seco estendido nas bancas pelas calçadas, aqui devidamente arranjadas ou não fosse esta a zona mais nobre da cidade.

À direita emergiu, esplendoroso, o Palácio do Governo, um edifício largo e branco com uma imponente traça colonial, vastas varandas, grossas colunas e largas arcadas, a construção mais emblemática da cidade. Apesar do seu aspecto de linha antiga, o palacete tinha sido construído apenas em 1960, quin­ze anos antes, obra do Estado Novo. A praça diante do edifício governativo enchia-se de mirones e, junto à estátua do infante D. Henrique, também erguida em 1960 no centro do jardim, assentava o mastro onde ainda flutuava a bandeira portuguesa, parecia dizer que aquela era terra de Portugal — que mensa­gem tão estranha nos tempos que corriam! O jipe contornou o palácio, de onde os portugueses não desviavam o olhar fasci­nado, e meteu pela Avenida Bispo Medeiros em direcção ao interior de Díli, imobilizando-se junto a uma das alas da sede do Governo.

Era ali o Resende. Um bell boy à civil veio recebê-los e ajudou-os a carregarem as malas. Depois do cbeck-in e de se instalarem devidamente, impôs-se um passeio pela cidade. Só restava mais uma hora de luz e o grupo meteu pelas ruas de Díli, protegidas do calor pelas largas sombras das árvores plan­tadas nos passeios. As paredes e os muros repetiam as palavras de ordem já vistas no caminho do aeroporto, acrescentando-se agora alguns "Independência" e "Pátria ou morte". Mas a capital timorense parecia serenada, tranquila, alheia talvez aos ventos de tempestade que se avizinhavam. O grupo meteu pela Bispo Medeiros em direcção ao interior, virou à direita na Rua Jacinto Cândido, virou outra vez na primeira à direita pela Rua Formosa, o Liceu Dr. Francisco Machado numa esquina, em estilo neoclássico, na outra esquina o armazém e escritório da SAPT, a Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho.

Ao longo da história, vários estrangeiros amaldiçoaram o dia em que tinham visto aquela cidade. O famoso companheiro de Charles Darwin, Russel Wallace, descrevera-a em 1861 como "um local miserável", mesmo em comparação com as mais pobres povoações holandesas, e o célebre escritor Joseph Conrad, autor dos clássicos Coração das Trevas e Nostromo, considerara-a, em 1915, nas páginas iniciais de Victory e pela boca da sua personagem principal, um "local altamente pesti­lento". Mas, naqueles primeiros instantes, os quatro portugue­ses achavam que Díli era uma povoação simpática, acolhedora até, apesar da violência recente. O grupo voltou a virar à es­querda, na Rua José Maria Marques, e foi dar a uma casa onde funcionava a Fretilin.

À frente do bali de entrada erguia-se uma escadaria que os homens da RTP escalaram, passando guardas e militantes que ali se concentravam. No primeiro andar, os quatro portugue­ses, indecisos, voltaram-se para o corredor direito. As paredes alvas apresentavam-se manchadas de humidade e reinava a maior desordem no local, um caos na moradia de arquitectura colonial, que lhe era conferido sobretudo pelos papéis amon­toados no chão e uma certa falta de limpeza recente.

"Posso ajudá-los?", perguntou uma voz de mulher, vinda de um gabinete.

"Boa tarde, somos jornalistas portugueses", saudou Adelino. "Onde é que podemos obter informações e apoio à imprensa?"

A mulher hesitou uma fracção de segundo.

"Falem com o camarada Antunes, a primeira porta à es­querda, no outro corredor."

O camarada Antunes não estava, já se tinha ido embora, mas na porta em frente aconselharam-nos a ir ter com o cama­rada Gonçalves, primeira porta à esquerda, no rés-do-chão. O camarada Gonçalves recebeu-os com surpresa e alguma reser­va, não era sua função lidar com os jornalistas, mas prometeu contactar o camarada Antunes imediatamente. O camarada Antunes vivia em Becora, um bairro de Díli, e Gonçalves suge­riu que recolhessem ao hotel até serem contactados por Antunes. No entretanto, pediu-lhes as identificações e registou--os num caderno de linhas azuis.

Não foi o camarada Antunes quem, nessa noite, interrom­peu o jantar do grupo da RTP na sala quente do Resende, onde as ventoinhas no tecto movimentavam o ar e produziam uma ligeira sensação de frescura nos rostos suados. Na mesa ao lado estavam guedelhudos e ruidosos soldados timorenses, cigarro na boca e ar de bippies, as noites animadas pelas inflamadas tiradas literárias do poeta Borja da Costa.

"São vocês os jornalistas que vieram de Portugal?", pergun­tou o timorense.

Tinha uma farta cabeleira afro, larga e farfalhuda, mas o sangue português era claramente dominante na sua tez.

"Sim...", retorquiu devagar Adelino.

"São da RTP?"

"Somos, somos da RTP."

"Então somos colegas", sorriu o homem. "Ou melhor, fomos." Os portugueses sorriram interrogativamente, o que suscitou um esclarecimento do timorense. "Eu sou o José Ramos Horta e durante algum tempo fui colaborador da RTP aqui em Díli."

Adelino Gomes ergueu-se rapidamente. Reconhecera em Ra­mos Horta, não o antigo colaborador da sua estação de tele­visão, mas o responsável da Fretilin pelas relações exteriores. Era um homem muito influente, a sua família, tal como a dos Carrascalões, era das mais importantes de Timor. Além disso, estava agora no centro das mais relevantes decisões no territó­rio, tratava-se de uma fonte de informação nada desprezível.

Feitas as apresentações e trocados os cumprimentos, o gru­po e o recém-chegado sentaram-se à mesa, Herlander pediu mais uns camarões e umas canecas de Laurentina moçambi­cana, a conversa animou, as palavras são como as cervejas, perdão, como as cerejas, atrás de umas vinham outras, ininterruptamente, a situação política sempre a dominar o diá­logo.

"A situação é muito delicada", comentou Ramos Horta.

Adelino inclinou-se. Dificilmente encontraria alguém mais conhecedor daquilo que realmente se passava do que o seu interlocutor, as suas opiniões eram informadas, as suas infor­mações valiam ouro.

"Quão delicada?"

"Muito", enfatizou o timorense. Engoliu um trago de cerve­ja loira, um pouco de espuma ficou presa na sua barba rala, passou a mão pela boca. "A Indonésia vai atacar, é uma ques­tão de tempo."

"Quando?"

"Em breve."

Adelino decidiu testar a informação, Ramos Horta parecia--lhe demasiado peremptório. Estaria a tentar impressioná-lo?

"Como sabe isso?"

"Ora", respondeu Horta com uma careta, soltando um curto riso disfarçado em suspiro. "Isso sente-se, percebe-se por dedução. A Fretilin é inaceitável para Suharto." Descascou um camarão, meteu-o à boca e retomou o raciocínio. "Sabe, há uns meses estive em Jacarta e o Murtopo foi muito claro..."

"Murtopo?..."

"Sim, o chefe dos espiões, o homem dos serviços de infor­mação de Suharto, aquele que esteve no ano passado em Por­tugal", explicou Ramos Horta. "Fez-me uma careta ameaça­dora e disse we shall be watching you." Novo camarão para descascar. "Eles não vão deixar as coisas como estão, isso é evidente." Camarão na boca. "Vão atacar."

 

Ramos Horta falava devagar, sublinhando as palavras, dan­do peso ao que dizia, deixando os ouvintes suspensos nas suas frases telegráficas, dramáticas, assustadoras. Fez-se uma pausa, os portugueses desconfortáveis.

"Ainda há combates?", perguntou Adelino, preocupado com a mais imediata necessidade de arranjar tema para reportagem. Afinal fora para isso que viera a Timor, eram os combates que lhe davam as melhores e mais emocionantes imagens.

"Com quem, a UDT?", admirou-se Ramos Horta. "Não, isso já acabou, está tudo mais ou menos calmo, eles fugiram para Atambua e limitam-se a umas acções de infiltração. Os que não foram ter com os seus amiguinhos indonésios estão presos. Olhe, até o meu irmão está preso."

"O seu irmão?"

"Sim, o Arsénio." Agora eram dois camarões ao mesmo tempo. "Ele pertence à UDT e foi capturado aqui em Díli, está agora na cadeia."

Adelino quis saber se Ramos Horta não intercederia pelo irmão, mas achou prudente não tentar satisfazer essa curiosi­dade. De resto, achava muito bem que não houvesse nepotis-mos, por que razão iria uma pessoa ser beneficiada só por ser irmão de alguém com influência? Mas, já que a conversa estava na cadeia, a situação de Maggiolo Gouveia merecia uma refe­rência. O comandante da PSP de Díli que alinhara pela UDT constituía tema de notícias, embora breves, na imprensa portu­guesa, e os familiares do tenente-coronel tinham contactado o sogro do jornalista em Leiria, solicitando-lhe que o genro se inteirasse do que acontecera a Maggiolo. Adelino largou então a pergunta:

"E Maggiolo Gouveia?"

"Também está preso." Pausa. "Foi para o mesmo sítio onde se encontra o meu irmão, em Taibesse."

"Onde é isso?"

"É perto, à saída da cidade."

"Podemos ir lá?", pediu Adelino.

"Para filmar?" Pausa pensativa. "Porque não?" Um trago de cerveja e levantou-se, concluindo a conversa. "Venham ter comigo amanhã às oito da manhã, ali ao mesmo edifício aonde foram hoje, e eu levo-vos à cadeia." Despediu-se, todos se ergueram, saudações, "até amanhã", e saiu.

Não foi às oito, mas quase às nove da manhã que o grupo da RTP se apresentou novamente nas instalações da Fretilin. José Ramos Horta estava sentado a uma secretária, os pés na mesa, cigarro na mão, à conversa com outro timorense de balalaica. Ergueu-se rápido e veio acolher os visitantes à porta do gabinete.

"Dormiram bem?"

Os portugueses assentiram, foram trocados os cumprimen­tos da praxe, "como vai isso?", "tudo fino?", "bela manhã", "se calhar chove, estamos quase a entrar na época das chuvas", "um café?", "não obrigado, já tomámos", "eu quero", "açú­car?", "sim, obrigado", "olhe que este não é de Angola, é de Timor, vem ali de Ermera", "ah ah ah!", "é porreiro, pá! Prova", mais isto e aquilo, coisa e tal, quando deram por ela já passava das dez da manhã. Ramos Horta chamou Hélio Pina, um outro elemento do Comité Central da Fretilin. O homem apareceu, franzino, era o encarregado dos contactos com a imprensa. Horta deu-lhe instruções para levar a equipa de televisão à cadeia de Taibesse, ali mesmo em Díli, na carrinha de serviço.

A cadeia para onde tinham sido enviados os homens da UDT estava cercada por uma elevada rede, arame farpado no topo, vários homens fardados em redor, quatro deles armados com G3. É certo que chamar àquele local "cadeia" era um pouco exagerado. Taibesse era, na verdade, um quartel, perten­cia à tropa portuguesa e estava agora ocupado pelas Falintil. Os prisioneiros da UDT encontravam-se no sector disciplinar do quartel, onde antes os soldados eram detidos quando caíam sob a alçada da justiça militar ou desencadeavam a fúria dos seus superiores hierárquicos. Essa parte do campo situava-se ao ar livre, homens amontoados para lá da rede, sentados à con­versa, alguns deitados no chão, a maior parte de tronco nu, outros de camisa interior, os ombros à mostra. Hélio Pina apresentou os homens da RTP ao oficial de serviço, exibiu uma credencial assinada por Ramos Horta, o equipamento de tele­visão foi sumariamente inspeccionado, confirmou-se que não havia nenhuma G3 escondida num saco, os portões abriram-se e os portugueses entraram.

"Vão andando, vão andando", recomendou Hélio, deixando-se ficar para trás.

"E você?", admirou-se Adelino.

"Eu fico aqui à porta."

Adelino mostrou-se encantado, preferia falar com os prisi­oneiros sem ter ninguém da Fretilin a espreitar-lhe por cima do ombro, sentia-se assim mais à vontade.

Mal entraram no recinto, todavia, os homens da RTP foram cercados por prisioneiros e um deles, um português magro e com o cabelo cortado à escovinha, agarrou-se ao microfone com sofreguidão, como se tivesse fome de falar, de gritar, de se libertar.

"O Manei! Ó Jorge! Ó António!", apelou, o olhar de deses­pero e desvario fixado nas lentes da Harriflex. "Sou o Fer­nando! O Fernando! Lembram-se de mim? Venham buscar-me, eu não fiz nada, não fiz nada, venham buscar-me!"

Adelino reconquistou o controlo do microfone com um gesto rápido e decidido, mas ficou fascinado com o homem.

"Alguma coisa fez...", desafiou-o.

"Não fiz nada! Não fiz nada!", insistiu o prisioneiro.

Os prisioneiros apertavam a equipa de televisão e rapidamente se percebeu que não havia condições para prosseguir as filmagens. Os jornalistas portugueses conseguiram libertar-se da turba e bateram apressadamente em retirada, com Adelino a separar-se dos seus três companheiros de equipa. Herlander ficou com Jorge e Manuel, a Harriflex a registar em celulóide a preto e branco as imagens dos homens da UDT espalhados pelo pátio ao ar livre, muitos a mirarem as câmaras, cabelos grandes e desgrenhados, no ar um certo fedor a fezes misturado com um cheiro ácido de suor e urina. O repórter foi deambulando pelo local e pediu que lhe localizassem o tenente-coronel Maggiolo Gouveia e Arsénio Ra­mos Horta, as duas estrelas detidas no campo de Taibesse.

Não foi difícil encontrá-los.

"Maggiolo Gouveia?"

O homem levantou a cabeça.

"Adelino Gomes, da RTP", apresentou-se o repórter, esten­dendo a mão. "Como está?"

Maggiolo devolveu o cumprimento.

"Os seus familiares falaram com o meu sogro em Leiria e pediram para saber de si, mandam dizer que está tudo bem com eles e que fazem os possíveis para o libertar, estão a falar com o Ministério dos Negócios Estrangeiros", explicou Adelino. "Os seus camaradas em Ataúro também se encontram preocupados e estão a tentar ajudá-lo."

O jornalista deu-lhe notícias do mundo exterior e, esgotado o assunto, perguntou ao ex-comandante da PSP de Díli se acei­tava falar para a câmara.

"Não, isso não, não quero."

Adelino insistiu:

"Mas então, qual é o problema?"

"Não quero, não quero."

"Mas olhe que era uma maneira de a família o ver, de ficar mais tranquilizada, de perceber que está mesmo bem..."

"Olhe, se me quiserem filmar, tudo bem, não me importo. Mas falar, não falo, não quero."

Adelino chamou Herlander, o operador de câmara aproximou-se e filmou os dois à conversa, jornalista e prisio­neiro.

"Está arrependido de ter apoiado a UDT?", quis saber o jornalista.

"Não, eu fiz o que tinha a fazer, acredito que fiz o melhor para Timor", exclamou Maggiolo.

"É verdade que terminou a sua alocução na rádio dando vivas a Portugal, ao PS e a Spínola?"

Spínola foi o primeiro presidente da República depois da revolução de 1974, um prestigiado general que rapidamente caíra em desgraça política no período revolucionário e tivera de fugir para Espanha.

"Sim."

"Porquê?"

"Porque o PS e o Spínola podem salvar Portugal."

"E porque abandonou o exército português?"

"Porque amo Timor, amo Portugal e acredito que fiz o melhor para Timor e para Portugal."

Os homens da RTP agradeceram e despediram-se do seu compatriota. Sabiam bem que Maggiolo Gouveia fazia parte de um grupo de portugueses que a Fretilin não queria libertar por causa do seu envolvimento activo com a UDT.

Arsénio Ramos Horta mostrou-se mais cooperante do que o tenente-coronel. Tal como o irmão José, Arsénio usava uma cabeleira afro e a barba rala. Aceitou ser filmado e entrevistado no pátio. Não se mostrava intimidado por se encontrar detido e exprimiu com surpreendente à-vontade as suas opiniões anti-Fretilin, apesar de se encontrar ali à mercê do inimigo.

"A UDT é um movimento para correr com os comunistas daqui", disse Arsénio, explicando a sua adesão ao partido que combatia a Fretilin.

"Portanto, o senhor é anticomunista?", perguntou Ade­lino.

"Anticomunista", assentiu Arsénio com um movimento afir­mativo de cabeça.

Adelino Gomes, um homem de esquerda, interessou-se.

"Porque é anticomunista?", inquiriu.

"Porque o comunismo tem certas normas que não aceito."

"Por exemplo?"

Arsénio não hesitou na resposta.

"Por exemplo, trabalhar em comunas onde a gente pergunta uma coisa e dizem 'ah, isto é nosso', mas afinal não é de ninguém."

"Então é de quem?"

"É do pessoal dirigente."

"Então, por exemplo, num sistema normal em que há um patrão, de quem é que são as coisas?"

"As coisas são do patrão, mas o patrão paga-me bem para eu viver bem."

Adelino mudou de ângulo, mas manteve a conversa no mesmo tema.

"Portanto, o senhor não quer é comunistas na sua terra?", perguntou, quase afirmativamente.

"Não", confirmou Arsénio.

"Acha que eles vêm trazer miséria à sua terra?"

"Sim, creio que sim."

Adelino sentiu que podia apanhar o seu entrevistado numa contradição e disparou:

"O senhor conhece países onde não há comunismo e há miséria, ou não?

Arsénio não se intimidou.

"Olhe, em todo o mundo há miséria, mesmo na América", retorquiu, cheio de paciência.

A sua condição de prisioneiro, de resto, não lhe permitia manifestar qualquer irritação com o jornalista que os seus car­cereiros tinham trazido.

"Mas, mesmo assim, o senhor acha que o comunismo é pior?", questionou o repórter, não desistindo.

"O comunismo é pior", reiterou o preso, dando o exemplo da Austrália. "Toda a gente, se quer trabalhar, ganha bem, tem um nível de vida alto, pode possuir um carro, dispor de uma casa e ir passear."

Adelino Gomes mostrou-se incrédulo.

"Toda a gente na Austrália tem um carro e pode passear?", perguntou, tom duvidoso na voz.

"Só aqueles indivíduos que não querem trabalhar é que não têm."

O jornalista sentiu que tinha novamente de mudar de ângulo.

"Portanto, o importante para o senhor é ter um automóvel, viver bem, poder passear?", questionou, quase irónico.

"Sim, e ter o meu respeito digno, e ter uma personalidade", confirmou o homem da UDT, falhando ou optando por ignorar o sarcasmo da pergunta.

Terminada a entrevista, Adelino decidiu efectuar um vivo à porta do campo de prisioneiros, fazendo um balanço do que vira e ouvira. Também ele simpatizante da então chamada "esquerda revolucionária", que incluía partidos como a UDP, o PRP e o MES, e condescendente com a Fretilin, que via favoravelmente, descreveu Arsénio como um "jovem alienado pelos privilégios da sociedade de consumo, que apenas pensa nas suas comodidades e esquece a realidade do povo a que pertence". Os tempos eram de facto revolucionários e o repór­ter da RTP, um dos mais brilhantes e generosos jornalistas da nova geração, via-se claramente transportado pelas agitadas vagas do seu tempo.

A equipa de televisão deu o trabalho por concluído e o grupo dirigiu-se para o portão, onde Hélio os aguardava.

"Já acabaram?", quis saber o dirigente da Fretilin.

"Sim", assentiu Adelino, transpirando. "Porque não entraste?"

"Porque o meu pai também está aí preso."

Outubro ia ainda na sua primeira semana. Nada se passava em Díli, para descontentamento dos homens da RTP, ausentes quando a situação requeria a sua presença, presentes quando parecia dispensá-los. Mas era tudo uma questão de tempo.

Os militares indonésios haviam passado as últimas semanas a concentrar forças na fronteira e a lançar incursões desestabilizadoras no interior do território timorense, fazendo-se passar pela UDT. Um relatório da CIA na parte final da guerra civil deu conta da presença das tropas especiais da Kopassandha, sob as ordens do coronel Dading Kalbuadi, e de unidades da força de reserva Kostrad, incluindo um batalhão da divisão de elite Siliwangi, a combater dentro da colónia portuguesa. Além disso, os navios de guerra indonésios puseram-se a bombardear a costa timorense e com as suas balas vinha a ameaça da inter­venção de Jacarta.

As forças indonésias tinham agora recolhido para Nusa Tenggara Timur, mas não iam ficar quietas. A Operação Komodo requeria desestabilização em Timor-Leste e, se a UDT já era incapaz de a fornecer, teriam de ser os indonésios a provocá-la. Adelino Gomes e os seus companheiros não teriam de esperar muito.

 

A gritaria foi o primeiro sinal.

Adelino entrou no Palácio do Governo para sondar Hélio Pina sobre a possibilidade de obter uma entrevista com o líder da Fretilin, Nicolau Lobato, mas encontrou um ambiente efer­vescente logo que pisou os corredores do edifício. Os funcioná­rios e dirigentes timorenses corriam de um lado para o outro, misturando palavras em tétum com expressões portuguesas, falando num tropel caótico, incompreensível. O jornalista per­cebeu que algo não ia bem e tentou interpelar duas pessoas, mas todos pareciam demasiado ocupados, embrenhados na azáfama febril que incendiava o palácio.

Com os companheiros no encalço, o jornalista subiu ao primeiro andar e, ao fundo do corredor, espreitou pela porta do gabinete de Hélio Pina. Encontrou-o a conversar animada­mente com dois militares. Pina fez-lhe sinal com a mão para esperar no corredor e prosseguiu a sua discussão durante mais uns dez minutos.

Os militares abandonaram por fim o gabinete e Adelino entrou no local, o resto da equipa atrás.

"Mas que confusão é esta?", perguntou, sentando-se na cadeira diante da secretária. "O que se passa?"

"Há chatice em Batugadé", disse Pina, muito tenso.

"Batubadé?"

"Batugadé", corrigiu-o o timorense. "É junto à fronteira, aqui na costa norte."

"O que aconteceu?"

"Batugadé está sob bombardeamento desde esta manhã. Há fogo de artilharia que vem do outro lado da fronteira e de navios de guerra ao largo da costa."

Adelino fez uma careta perplexa.

"Navios de guerra? A UDT tem navios de guerra?"

"Claro que não", retorquiu Pina com um gesto impaciente. "São indonésios."

Fez-se um silêncio atónito no gabinete.

"Os indonésios estão a atacar?"

O timorense assentiu com a cabeça, uma expressão grave desenhada no rosto.

"Pelos vistos."

Embora em Díli não fossem conhecidos os pormenores, a verdade é que as unidades da Kopassandha, da Kostrad e da Siliwangi, apoiadas por homens da divisão Brawijaya e por fuzileiros navais, lançaram, nesse dia 6 de Outubro, a penúl­tima etapa da Operação Komodo.

Depois de absorver o primeiro impacto da notícia, Adelino Gomes passou a mão pela barba e tomou a decisão.

"Temos de ir para lá!"

Hélio Pina olhou-o ansioso.

"Você está maluco?"

"Porque diz isso?"

"Oiça, aquilo é perigoso."

"Como assim?"

O timorense hesitou, sem saber como explicar o óbvio.

"Estão a bombardear Batugadé, não percebe?"

"Bem... temos de filmar isso, não é? Acha que conseguimos pôr-nos lá num instante?"

"Em Batugadé? Nem pense nisso, homem! Aquilo fica muito longe e as estradas são difíceis."

"Não interessa, temos de ir."

Todos os elementos da RTP, que até aí tinham permanecido em silêncio, assentiram; chegara a hora de fazerem aquilo que ali vieram fazer.

"Como queiram", rendeu-se Pina, abrindo os braços. "Vai sair daqui a pouco uma coluna em direcção à fronteira."

"Acha que nos dão uma boleia?", quis Adelino saber.

O timorense pôs-se de pé.

"Isso arranja-se."

Como pertencia ao Comité Central da Fretilin, Hélio Pina sabia mexer os cordelinhos. E, mesmo que não soubesse, a presença de jornalistas a testemunharem os acontecimentos era algo que interessava sobremaneira à Fretilin, pelo que não haveria qualquer dificuldade em levá-los lá. De resto, havia outros elementos da imprensa internacional em Díli e também se mostravam interessados em ir para a fronteira.

"Veja lá se nos arranja um transporte em condições", pediu Adelino.

"Vai ter de ser um jipe capaz de escalar montanhas", opinou Pina, cruzando a ombreira da porta. "O terreno é muito incli­nado e as estradas são más. Os outros veículos que temos por cá não conseguem subir determinados declives."

Adelino seguiu-o pelo corredor.

"E arranja-nos também um guia?"

"Vou tratar disso", devolveu Pina, desaparecendo na es­cadaria. "Vemo-nos daqui a meia hora, na praça aqui em frente."

A meia hora durou quase hora e meia.

O grupo permaneceu todo o tempo sentado junto à base do mastro diante do palácio, a bandeira portuguesa a bater ao vento lá no topo. Viam-se camiões com tropas para trás e para a frente, numa roda-viva laboriosa, os fumos escuros do gasóleo queimado a encher o jardim com o seu aroma acre e oleoso.

Hélio Pina acabou por regressar com um Toyota e um outro timorense ao seu lado.

"Despachem-se", gritou do volante. "A coluna vai partir daqui a uma hora."

Os homens da RTP apressaram-se a carregar o equipamen­to, mais alguma bagagem e mantimentos, e saltaram para o veículo.

"Pessoal, apresento-vos o Paulino", disse Pina, indicando o jovem ao seu lado. "Ele vai acompanhar-vos até à fronteira."

"E você?", perguntou Adelino. "Não vem?"

"Não", disse Pina. "Tenho coisas para fazer aqui, isto anda uma grande confusão. Mas fiquem descansados que eu depois vou lá ter, está certo? Por agora ficam entregues aqui ao Paulino e ficam muito bem."

Os portugueses trocaram cumprimentos com o guia e salta­ram para o jipe.

"Então boa viagem", despediu-se Hélio Pina, saltando para o passeio. "Paulino, trata bem deles, ouviste?"

Ao volante, o timorense piscou o olho e indicou com a cabeça a equipa da RTP que estava na viatura consigo.

"Vão ter um tratamento cinco estrelas."

Abandonaram a praça pela marginal, em direcção a oeste, e, pouco depois, juntaram-se a vários outros Toyotas estacio­nados à saída da cidade, na grande rotunda próxima do aero­porto.

A azáfama era aí intensa, com vários homens a descarrega­rem material de dois camiões e a levarem-no para os diversos jipes. Uma peça ligeira de artilharia foi encaixada como um atrelado ao jipe dos jornalistas e uma caixa com três balas de canhão atirada para o interior.

"Eh pá, temos mesmo de levar isto aqui?", protestou Ma­nuel Patrício, a quem a tropa em África ensinara a respeitar os explosivos.

"Tem de ser, tem de ser", retorquiu Paulino com um sorriso afável. "Se não fosse aqui, onde haveria de ser?"

"Ora, com as outras munições", exclamou Manuel, expon­do a evidência.

"Quais outras munições?", perguntou o timorense.

"Homessa, então, as outras munições para o canhão."

"Não há outras munições."

"Como assim?", admirou-se Manuel. "Não há outras mu­nições? Então com o que é que disparam? Só com estas três balas?"

"Sim, são as que temos."

"Três balas?", espantou-se, incrédulo, fixando o olhar na caixa a seus pés, dentro do Toyota. "Só levam estas três balas?"

"Só."

Manuel Patrício não sabia o que dizer. Quis rir com o caricato de acompanhar uma força que ia para a guerra com apenas três balas para um canhão, mas o caso era demasiado sério para gozações, sobretudo porque ele próprio estava metido naquilo. O jovem assistente da RTP pressentiu que os timorenses se encaminhavam para a catástrofe e trocou com Herlander um olhar de escandalizada resignação. O operador de câmara encolheu os ombros, quase indiferente; sentia-se algo agastado, achava que os timorenses andavam a brincar com o fogo, semeavam ventos e iriam colher tempestades.

A coluna acabou por partir em direcção a oeste. Os jipes ziguezaguearam pela estrada de Liquiçá, fronteira ao mar, pas­sando por praias desertas de areia branca, penhascos nas encos­tas junto às águas, pequenas povoações com crianças a corre­rem pela estrada ladeada de exuberantes mangais, pescadores a caminharem com peixe fresco às costas. O caminho era re­lativamente acessível, mas só enquanto estiveram à beira-mar.

Uns quilómetros mais à frente, a estrada virou para sul, em direcção a Ermera, e foi aqui que as coisas começaram a com-plicar-se seriamente. O piso tornou-se irregular e o percurso escarpado, com a estrada a contorcer-se em ascensões violentas e de inclinação que dava a impressão de ser próxima da verti­cal, transformando-se em trilhos abertos na montanha; os jipes quase paravam, eram encaixadas as primeiras e os motores urravam como de irritação, as rodas a patinarem na terra empinada, por vezes uma delas no ar, rodando furiosa e inutil­mente.

O ritmo de progressão tornou-se agonizante, os Toyotas faziam escaladas impossíveis. Só havia em todo o território da colónia portuguesa uns trinta quilómetros de estrada alca­troada, e o estado de degradação das vias de comunicação tornava-se penosamente evidente. O grupo passou à velocidade de caracol por Bazartete e Railaco, onde outras forças foram engrossando as colunas; ao fim de algumas horas atingiu Atsabe, era já noite escura.

Ao deslizar por um declive, o Toyota ficou preso na lama. Os tripulantes apearam-se para tentar libertar as rodas; foi nesse instante que, na escuridão, notaram alguns ruídos suspei­tos em redor.

"O que é isto?", perguntou Paulino, alarmado. O timorense decidiu inspeccionar o terreno à frente e voltou-se para trás. "Senhor Adelino, pode vigiar a retaguarda?"

O jornalista olhou-o, embasbacado e assustado. Um homem que saltou de outro jipe estendeu-lhe uma pistola. Adelino agarrou a arma, voltou-se para trás, deu uns passos, hesitou, estranhou aquele objecto frio e pesado nas mãos, o que é que estou a fazer com isto?, as suas armas eram a caneta e o mi­crofone, era com elas que se sentia bem, não com aquilo. Deu meia volta e devolveu a pistola.

A inspecção ao local acabou por revelar que não havia pro­blemas, e o grupo retomou viagem. Viraram à direita junto a Bobonaro e passaram por Maliana, perto da fronteira, onde o caminho era mais fácil porque tinham abandonado a monta­nha e percorriam agora a planície.

Chegaram ao destino já de madrugada.

 

Balibó encontrava-se mergulhada na quase completa escuri­dão. Os jipes aproximaram-se devagar, como se estivessem desconfiados, e dirigiram-se a um ponto de luz à entrada da rua principal. Um candeeiro de petróleo iluminava o posto militar das Falintil que controlava o acesso à povoação, projectando pelas janelas uma luz bruxuleante amarelada, pareciam labare­das a dançar nas paredes caiadas.

A coluna imobilizou-se diante do posto e Adelino Gomes viu os militares trocarem informações. Quando esperava que prosseguissem, o chefe da coluna começou a distribuir ordens em tétum. Paulino foi saber o que se passava e os quatro por­tugueses aproveitaram para esticar as pernas. Saíram do jipe com infinita moleza e tentaram endireitar as costas, mas não conseguiram à primeira, sentiam-se demasiado doridos. Adelino Gomes fez as contas e concluiu que haviam precisado de doze horas para percorrer uns meros cem quilómetros, o que constituíra uma média inferior a dez quilómetros por hora.

Paulino voltou do posto e trouxe um sargento atrás de si.

"Temos de nos instalar aqui numa casa", anunciou.

"Então porquê?", admirou-se Adelino. "Já não vamos para Batugadé?"

"Não. Eles conquistaram Batugadé."

"Ah é?" Adelino tentou avaliar as consequências da notícia. "Mas quem são eles? A UDT?"

Paulino consultou o sargento em tétum.

"Não sabemos", resumiu. "Penso que sim, mas até podem ser indonésios."

A extensão do envolvimento indonésio, ao ponto de as suas forças substituírem a UDT nos combates, ainda não tinha sido compreendida pela Fretilin e pelos portugueses na sua total amplitude.

A coluna começou a descarregar armas e munições, mas os jornalistas seguiram logo para o alojamento que lhes foi improvisadamente destinado, uma casa mais adiante, na rua princi­pal. Instalaram-se na vivenda abandonada por uma família que fugira à guerra e colocaram as bagagens e o equipamento de televisão nos quartos.

Adelino sentia-se a arder de impaciência.

"O Paulino, nós precisamos de imagens", disse, depois de arrumar as suas coisas. "Achas que vamos poder filmar alguma coisa?"

"Vamos ver."

"Mas há combates a decorrer, não há?"

"Neste momento, não."

"Então não vai acontecer nada?"

Paulino hesitou.

"Quem está a chefiar as Falintil neste sector é o comandante Fernando Carmo. É muito bom oficial. Disseram-me que já está a preparar uma operação."

"Uma operação militar?"

"Sim."

"Onde?"

O timorense esboçou um gesto numa direcção indefinida.

"Aqui", disse. "As Falintil vão lançar uma ofensiva para reconquistar Batugadé."

"E vai começar onde?"

"Eles vão partir aqui de Balibó."

"Quando?"

"Amanhã ou depois, não sei. Quando os preparativos esti­verem concluídos."

"Então vamos poder filmar isso, não é?"

"Sim."

Adelino fez um ar intrigado.

"Mas Batugadé é assim tão importante?"

"A importância de Batugadé não é militar, senhor Adelino. É política."

"Como assim? Não percebo."

"A Fretilin quer Batugadé para poder argumentar, nas nego­ciações com Portugal, que é o único representante legítimo de Timor-Leste, uma vez que controla a totalidade do território."

"Estou a ver."

"É justamente por essa razão que os indonésios pretendem ver a UDT a ocupar Batugadé. Querem retirar à Fretilin o argumento de que controla todo o país."

Adelino Gomes respirou fundo.

"Portanto, amanhã vai haver guerra."

Paulino balançou a cabeça.

"Vai."

O dia seguinte decorreu ainda com os timorenses a prepararem-se em Balibó para o ataque a Batugadé. Mas a actividade parecia lenta e, à medida que as horas decorriam, os jornalistas iam-se convencendo de que afinal nada aconteceria. Parecia tudo demasiado calmo.

A noite, durante o frugal jantar, os homens das Falintil desvendaram enfim os seus planos.

"Vamos atacar daqui a pouco", revelou o sargento timo­rense que estava a conduzir as operações e a quem Paulino já tinha pedido informações.

"Quando? Agora?", excitou-se Adelino.

"Daqui a pouco", repetiu o homem. "Daqui a algumas horas."

Adelino fez sinal a Herlander de que filmasse o militar timo­rense. Jorge ligou o gravador, Manuel acendeu os focos de iluminação e o jornalista insistiu com o sargento para repetir o que iria acontecer, desta vez para as câmaras de televisão.

"Amanhã, o pessoal vai tomar o pequeno-almoço em Batugadé", prometeu o sargento, as suas palavras registadas em fita magnética.

O ataque foi marcado para cerca da meia-noite, mas Herlander sentia-se preocupado com a escuridão e comunicou a sua apreensão a Adelino. O repórter voltou-se para o guia da Fretilin.

"Será que podem atrasar o ataque?", perguntou a Paulino.

O timorense olhou-o com perplexidade.

"Porquê?", admirou-se.

"É que à meia-noite está tudo escuro e não podemos filmar nada", justificou o repórter.

Paulino olhou para a Harriflex e para o rosto de Herlander, que confirmava a informação de Adelino, voltou-se para o sargento e discutiu o problema. Afinal, argumentou ele, era fundamental que o mundo visse que os timorenses estavam a combater. Feitas as contas, o que era um pequeno adiamento perante tão grande ganho? O sargento mostrava-se preocupado em manter a vantagem táctica e ser dono da iniciativa, mas compreendia o interesse estratégico de facilitar as filmagens da ofensiva das suas forças.

Depois de uma curta troca de palavras, Paulino virou-se para os portugueses:

"Atrasar quanto tempo?"

Adelino olhou para Herlander.

"Eh pá, eu preciso de luz", retorquiu o operador, os olhos a dançarem entre Adelino e Paulino. "Pelo menos até ao ama­nhecer."

Paulino virou a cabeça para o sargento, mais tétum entre os dois. Depois olhou para Herlander com a resposta.

"Três da manhã está bem?"

O operador encolheu os ombros, não se opondo. Por ele até podia ser à meia-noite, desde que houvesse luz. Se às três da manhã houvesse luz, tudo bem.

Ficou decidido que seria às três da manhã, mas as Falintil optaram mesmo assim por disparar um tiro de canhão contra as posições inimigas. À meia-noite, a peça de artilharia abriu fogo uma única vez, em direcção a noroeste, onde se situava Batugadé, e calou-se. Os quatro elementos da televisão foram deitar-se no alpendre onde se haviam instalado, queriam des­cansar algumas horas.

O sono foi interrompido por um sussurro e um estremeção.

"Está na hora", segredou Paulino enquanto sacudia Adelino.

Herlander levantou-se e olhou pela janela. A noite permane­cia escura.

"Eh pá, não pode ser", protestou o operador de câmara, apontando para fora do alpendre. "Está tudo escuro, como é que querem que eu filme o ataque?"

Adelino Gomes voltou a implorar por um novo adiamento. A Fretilin cedeu novamente e, depois de disparar um segundo tiro de canhão, marcou o ataque para uma nova hora, as qua­tro e meia.

Os primeiros raios de Sol apareceram de facto nessa altura, e os soldados colocaram-se em posição. Herlander apareceu então ainda com mais um problema.

"Porra! Caraças!", praguejou. "A merda da lente está cheia de humidade!"

Adelino preocupou-se.

"O que é que vamos fazer?", quis saber o repórter.

"Precisamos de sol para secar", devolveu o operador de câmara, mal-humorado.

Foi a vez de o jornalista praguejar.

"Só faltava mais isto", desabafou. Mas não baixou os bra­ços. Adelino encheu-se de coragem, respirou fundo e dirigiu-se a Paulino. "Precisamos de adiar outra vez o ataque."

Era o terceiro adiamento do género, já começava mesmo a ser um abuso. Paulino rolou os olhos, desesperado, suspirou e foi ter com o sargento para transmitir o novo pedido dos por­tugueses. Mas já não houve tempo para esperar pela resposta.

O ar encheu-se com o zumbido de um rotor. Os timorenses e os portugueses voltaram-se para o céu e viram um helicóptero a sobrevoar Balibó. As cores rubro-brancas da Força Aérea Indonésia eram claramente visíveis na carlinga do aparelho. O helicóptero rodou sobre a povoação a uma distância segura, os timorenses entraram em alerta e, instantes mais tarde, as bom­bas começaram a cair em Balibó. O aparelho estava claramente a guiar a artilharia inimiga, prestando-lhe informações sobre a localização dos alvos a bombardear, e a corrigir os tiros.

Os timorenses pegaram nas armas, Herlander agarrou-se à Harriflex. Alguns instantes antes tão picuinhas com a humidade na lente, agora já nem sequer se dava conta do problema e não hesitou em filmar o helicóptero. Adelino não cabia em si de excitação, percebia que aquelas imagens que estavam a ser impressas em celulóide dentro da Harriflex eram um docu­mento de suprema importância política porque provavam o envolvimento da Indonésia na guerra civil, uma evidência que Jacarta sempre tivera o cuidado de negar.

Mas a situação degenerou rapidamente, tornando difíceis mais filmagens. Por todo o lado se ouvia tiroteio, morteiradas e disparos de artilharia. Uma Berlier da Fretilin recuou da zona da frente e o motorista disse que estava a ser alvejado. As forças timorenses não conseguiam responder, até porque já tinham gasto dois dos três projécteis que haviam trazido de Díli para o canhão. Pouco depois foi a própria posição onde se encontrava a equipa da RTP que ficou debaixo de fogo. Os quatro, mais Paulino e o sargento, fugiram para as ruínas de uma igreja ali perto.

Adelino Gomes deu ordem a Herlander de que filmasse um vivo.

"Senhores espectadores, bom dia ou má dia", começou por dizer, de forma compreensivelmente desastrada. O repórter estava visivelmente nervoso, apesar do ritmo pausado das pa­lavras. Os companheiros rodeavam-no, mergulhados num si­lêncio profundo e de olhar perdido, todos com cara de caso. "Há poucos minutos fomos surpreendidos com dois tiros de canhão que rebentaram mesmo aqui perto de nós. Estamos assim um pouco sem saber onde nos proteger senão aqui, nes­tes restos de uma antiga igreja católica."

Era uma derrota em toda a linha. Os timorenses quiseram atacar de surpresa durante a noite, não atacaram a pedido da RTP, e agora tinham de fugir do ataque indonésio.

Adelino Gomes sentiu-se culpado. Vexado e acabrunhado por ter tido influência activa nos sucessivos adiamentos que conduziram àquele embaraçoso resultado, o grupo recolheu-se à sua casa de Balibó e aí ficou a aguardar a evolução dos acontecimentos. Os jornalistas esperavam o recomeço das hos­tilidades e acreditavam que aquela era a rota que a guerra iria percorrer.

 

Dois jipes enlameados e envoltos numa nuvem de poeira imobilizaram-se com aparato diante da casa de Balibó, ilumi­nados na noite por uma única lâmpada pública, a luz amare­lada entrecortada por revoadas de insectos. Adelino Gomes espreitou pela porta e viu os recém-chegados sair dos todo-o--terreno com as mãos a afagar os rins, vinham com ar dorido pelos solavancos da dura viagem. Eram homens grandes, de roupas caqui e chapéus australianos na cabeça.

Um deles descobriu os cabelos encaracolados, agitou o ar com o chapéu, expulsando a poeira e os insectos, e mirou os portugueses que o observavam da casa com os olhos arregala­dos.

"Hí mates, bow's it going?", saudou-os. "Greg Sheckleton, Channel 7, Austrália. Nice to meet you."

Sheckleton era um homem novo, magro, de cabelo castanho revolto, e chefiava a equipa da televisão privada australiana Channel 7. Portugueses e australianos trocaram cumprimtos junto à soleira da porta, com Sheckleton a apresentar os elementos da sua equipa, o seu compatriota Tony Stewart e o neozelandês Gary Cunningham. Os homens do outro jipe apro-ximaram-se do grupo; eram ingleses do Channel 9 e apresentaram-se como Brian Peters e Malcolm Rennie, e atrás deles apareceu o rosto familiar de Hélio Pina.

"Então?", saudou-o Adelino. "Estava a ver que não vi­nha..."

"Ah, você não me conhece", devolveu o homem da Fretilin com uma gargalhada. "Acha que eu ia perder a festa?"

Adelino convidou-os a entrar e ofereceu-lhes uma Laurentina, enquanto Manuel ia buscar mais cadeiras e Paulino ins­peccionava o porta-bagagens dos jipes.

"5o, got some action?", quis saber Sheckleton, acomodando-se numa poltrona envelhecida.

O português abanou a cabeça.

"Não se passa nada aqui."

O recém-chegado exibiu um esgar desiludido.

"Ah é?"

"Sim, estamos fartos disto." Adelino fez um gesto em redor. "Não acontece nada e aqui não temos boas condições. A co­mida é uma porcaria e já andamos com saudades de um bom banho."

Sheckleton balançou a cabeça afirmativamente.

"Sei como é", disse com um olhar conhecedor. "Fiz uma vez uma reportagem com os aborígenes em Arnhem Land, na Aus­trália, e não via a hora de chegar à civilização. Ao fim de alguns dias, o calor e a transpiração mexem-nos com os nervos, não é?"

"É isso mesmo", assentiu Adelino. Esboçou um gesto na direcção de Paulino, que ajudava a arrumar a bagagem dos australianos. "O nosso guia disse-nos que existe ali em Maliana uma missão católica gerida por um padre português e estáva­mos a pensar em ir lá amanhã."

"O que tem ele que aqui não haja?"

O Português olhou para os seus companheiros e sorriu.

"Urha tortilla espanhola. Diz o Paulino que este padre tem um cozinheiro que faz uma tortilla de sonho..."

Riram-se todos.

"Isso está mesmo mal, uh?", comentou o australiano.

Adelino suspirou.

"Não imagina. Há uma eternidade que não comemos nada de jeito."

Pin;a, a quem a fadiga calara até aí, inclinou-se para o jor­nalista! português.

"As; tortillas da missão de Maliana são famosas", confir­mou. '"Acho que também vou com vocês."

"Mas você acabou de chegar", observou Adelino. "Já vem com fome?"

"Caramba, nunca se recusa uma tortilla daquelas."

"Já as conhece, é?"

"Então não conheço? Aquelas tortillas são um manjar de reis, digo-lhe eu!"

"Eh pá, você está-me mesmo a tentar", exclamou o jorna­lista, inclinou a cabeça na direcção da rua, como se Maliana fosse ali mesmo. "E é verdade que eles lá na missão têm um tanque para tomar banho?"

"Sim, claro."

"Então está combinado", disse Adelino, batendo com a palma da mão no joelho. "Partimos amanhã de manhã. Há já uma semana que não sabemos o que é um banho."

Os: portugueses pareceram animar diante da perspectiva da tortilha e do banho, mas os australianos permaneceram indife-rentes3. Sheckleton engoliu a sua Laurentina de uma assentada.

"Se houver guerra, onde será?", questionou, depois de recu­perar o fôlego e reprimir um arroto que lhe assomou à boca.

"Por aqui", informou o português, fazendo um gesto largo em torno de si.

"Então é por aqui que vou ficar", disse Sheckleton, determi­nado. "O meu chefe de redacção quer dois minutos de guerra e até agora não temos nada."

Os cinco elementos das duas equipas australianas de televi­são descarregaram os jipes e instalaram-se na casa ocupada pela RTP. Depois de um jantar de sardinhas em conserva e arroz branco, estenderam sacos-cama na sala e passaram aí a noite, enquanto Hélio Pina preferiu juntar-se a uns amigos da Fretilin e levou Paulino consigo.

Na manhã seguinte, logo pela alvorada, Sheckleton pegou numa lata de tinta e desenhou nas paredes exteriores da casa uma bandeira da Austrália, na esperança de que as forças em confronto percebessem que o edifício estava ocupado por ele­mentos neutrais e não beligerantes. A despedida para Maliana, os portugueses ofereceram-lhes café e conservas, e partiram com Paulino ao volante e Pina na conversa.

Foi a última vez que se viram.

A viagem para Maliana foi algo tensa. O Toyota que levava a equipa da RTP ia carregado com armas, munições e explosivos, o que bastava para pôr nervosos os ocupantes, sobretudo os quatro portugueses. Os solavancos provocados pelos caminhos esburacados faziam chocalhar as caixas e enervavam os jornalis­tas. Os dois timorenses também se mostravam desconfortáveis com a carga, mas pareciam controlar melhor as emoções.

Quando chegou à missão do padre José da Silva Brum, porém, o grupo relaxou pela primeira vez. Depois do banho e da famosa tortilla, foram-se todos deitar.

Dormiram apenas hora e meia.

Às vinte e três horas, Jorge Teófilo sacudiu Adelino Gomes.

"Acorda!", ordenou Teófilo.

"O quê?", gaguejou Adelino, estremunhado.

"Começou", disse o operador de som, agitado.

"Começou o quê?"

Adelino não estava a perceber.

"A invasão, homem!", impacientou-se Jorge.

À distância, ouviam-se os sons das explosões. Primeiro, de trinta em trinta segundos. Depois, mais depressa. Os comba­les decorriam claramente na zona de Balibó, onde haviam estado horas antes e onde tinham ficado as duas equipas aus­tralianas.

Nesse mesmo instante, Sheckleton e os seus companheiros espreitavam pela porta o fragor da guerra. Tiveram um desper­tar violento, ainda noite escura, com as granadas a caírem na rua, atiradas pela artilharia indonésia instalada em Batugadé. Os operadores de câmara das duas equipas de televisão pegaram nas máquinas de filmar e apontaram-nas para a rua, mas tudo permanecia desesperadamente escuro, não havia iluminação suficiente para que a película captasse fosse o que fosse.

O bombardeamento durou algum tempo, até o Sol se anun­ciar no lusco-fusco da madrugada, uma cor quente a clarear por detrás das montanhas distantes a leste. Foi nessa altura que ao som das explosões se sucedeu o matraquear das metralha­doras e das espingardas automáticas. Dois vultos fugidios cru­zaram a estrada lá ao fundo.

"Estão ali, estão ali", gritou Sheckleton ao seu cameraman, apontando para o local.

Stewart voltou a máquina para o fundo da estrada mas não captou nada, ainda estava tudo demasiado escuro.

Os homens do Team Susi, o grupo de comandos boinas vermelhas do RPKAD encarregado do assalto a Balibó, esforçavam-se por se manter invisíveis e mergulhados na sombra. Ruidosos com as armas, mas invisíveis.

Os soldados das Falintil esconderam-se nas varandas e atrás das janelas. Enquanto o ataque indonésio se limitara ao bombardeamento preliminar da artilharia, nada puderam fazer. Mas, agora que os comandos indonésios se aproximavam, o caso mudava de figura. De algum modo, ansiavam pela apro­ximação da tropa inimiga porque assim a luta seria menos desigual, poderiam ver os indonésios e abrir fogo contra eles. Claro, era preciso vê-los.

Dentro da casa, os homens do Channel 7 e do Channel 9 nada viam. A artilharia indonésia calara-se porque, com o assalto lançado pelo Team Susi, os artilheiros de Batugadé receavam atingir os seus próprios homens. Assim, tudo o que as equipas da televisão australiana captavam eram sons de tiros, isolados ou em rajada, disparados não se percebia bem de onde. Mas cada minuto trazia mais luz e maior visibi­lidade.

Um indonésio apareceu de repente entre duas casas, à es­querda. Stewart apercebeu-se da sua presença e tentou voltar a câmara, mas dois homens das Falintil, numa varanda do prédio em frente, foram mais rápidos e desataram a largar metralha sobre o indonésio. O soldado inimigo caiu sem um ai. Quando a câmara de Stewart focou o local, o homem já jazia por terra, imóvel.

Mais indonésios apareceram lá ao fundo, em corrida. Um timorense dentro de uma casa ergueu-se da janela e disparou a G3. Um indonésio oculto na mata, do outro lado, abriu fogo e atingiu o homem das Falintil, que se atirou para o chão, protegido pelo parapeito da janela. A progressão dos indonésios não era isolada, mas apoiada por snipers que lhes defen­diam os flancos e identificavam os focos de ameaça. Mais e mais comandos do Teatn Susi apareceram na rua, todos em corrida, alguns disparando em movimento. Os homens das Falintil, obedecendo a uma ordem gritada, ergueram-se em simultâneo das janelas e das varandas e abriram fogo cerrado, a fuzilaria era intensa e a barulheira indescritível. Os vultos distantes iam tombando, um aqui e outro ali, enquanto os que escaparam mergulharam nas sombras e se deixaram engolir pelo mato. Os indonésios sofreram nesse instante várias baixas, mas, para compensar, os seus snipers tinham identificado os locais onde se concentrava o essencial da defesa da vila.

"Apanhaste isto?", sussurrou Sheckleton, logo que os indo­nésios se sumiram e a fuzilaria acalmou.

Stewart acenou com a cabeça sem tirar o olho do óculo da máquina. Os dois britânicos do Channel 9, por seu turno, encontravam-se comprimidos junto à esquina da casa em frente, também a filmar os acontecimentos.

A fuzilaria recomeçou sem aviso, com os indonésios a me­tralharem as posições defensivas dos timorenses, despejando chumbo sobre as varandas e as janelas de onde os homens das Falintil tinham havia minutos abatido alguns dos atacantes. Mais comandos do Teatn Susi apareceram em corrida, avan­çando de casa em casa, as AK-47 Kalasbnikov nas mãos. Para esconderam que eram indonésios, estes homens foram armados com velho material de fabrico soviético, deixando as suas tra­dicionais T-10, de fabrico americano, no quartel.

Os timorenses ergueram-se para disparar as G3, mas desta vez tiveram menos sorte. Os snipers abriram fogo e abateram um homem que estava numa varanda. Outro, numa janela, foi atingido. E ainda mais comandos apareceram. O tiroteio vol­tou a intensificar-se.

 

Um alferes das Falintil aproximou-se a correr e saltou para a casa onde estavam os jornalistas.

"Vamos retirar", disse, ofegante, inspirando grandes golfa­das de ar. "Eles são muitos, não os conseguimos conter."

A equipa do Channel 9 abandonou a esquina em frente e também entrou apressadamente na casa, juntando-se aos ho­mens do Channel 7 e ao alferes timorense.

"Quando vão sair?", perguntou Sheckleton.

"Agora, enquanto podemos." Nova pausa para respirar. "Eles estão a tentar cercar-nos e temos de aproveitar enquanto há caminho aberto para fugir." Mais ar. "Vocês vêm?"

"Não", retorquiu Sheckleton, abanando a cabeça. "Somos australianos, não vai haver problema."

O timorense fitou-o nos olhos durante um longo segundo, o suor a escorrer-lhe abundantemente pelo rosto moreno, despediu-se num murmúrio e saiu como entrou, a correr, a G3 na mão esquerda.

Minutos mais tarde, as duas equipas de televisão viram os vultos dos timorenses em corrida, retirando discretamente das suas posições. Ainda se ouviam tiros e rajadas, mas vinham agora predominantemente do lado indonésio.

O súbito silêncio das G3, que deixaram de responder ao fogo das AK-47, não passou despercebido ao major Andreas. Na verdade, não era major, era capitão; nem se chamava real­mente Andreas, mas era assim que os seus homens do Team Susi o conheciam, o que, no que lhe dizia respeito, não cons­tituía problema.

"Psst, Kris!", chamou o major Andreas.

Kris Silva, a AK-47 em riste, olhou. O oficial fez-lhe com a cabeça sinal para avançar. O major indonésio não tinha a certeza quanto ao real significado do súbito silêncio dos timorenses que defendiam Balibó. Seria a retirada ou uma arti­manha para os atrair a uma emboscada? O seu batedor seria o isco.

Kris devia o seu apelido Silva aos portugueses. O batedor do Team Susi era oriundo das Flores, a grande ilha a noroeste de Timor que também pertencera a Portugal e que, por isso mes­mo, estava repleta de pessoas com nomes portugueses. De res­to, isso já acontecia noutras partes da Indonésia, como por exemplo as ilhas Molucas.

O batedor das Flores avançou com cautela. Era um dos ho­mens de maior confiança do major Andreas, mas sabia que a sua missão, nesse instante, era potencialmente suicida. Acompanhado por Domingos Bere, um timorense também integrado no Team Susi e que, por útil coincidência, era originário de Balibó, Kris inspeccionou várias casas e encontrou-as desertas. Fez sinal para a retaguarda e o major Andreas mandou imediatamente avançar vários homens para tomarem posição nessas casas. O avanço de Kris e Domingos, seguidos de perto pelo major e pelos restantes soldados, era lento mas seguro, e gradualmente foi ficando claro que as Falintil tinham de facto retirado.

Da casa onde permaneciam instalados, os homens da televi­são australiana iam filmando a vagarosa progressão do Team Susi. Por precaução, os jornalistas mantiveram-se dentro do edifício, para não serem confundidos com os soldados das Falintil. Estavam convencidos de que a bandeira australiana, que Sheckleton pintara na parede exterior quando horas antes os portugueses da RTP se haviam despedido, permitiria aos indonésios perceber com clareza que ali estava terreno neutral.

Havia já algum tempo que Kris se apercebera de que havia gente naquela casa com a bandeira australiana pintada na parede. Identificou o aspecto europeu dos seus ocupantes e percebeu que não estavam armados, apesar de apontarem uns objectos que se percebia serem máquinas de filmar. Kris foi avançando sempre com a casa referenciada, mas mais preocu­pado com a possibilidade de ser apanhado numa emboscada. À medida que ia progredindo no terreno, no entanto, essa possibilidade foi-se tornando mais remota e o seu interesse pelas actividades daquela casa foi aumentando. Os estrangeiros espreitavam pela porta, esticando-se e encolhendo-se, ora ago­ra mais cabeças, ora agora menos.

Os indonésios foram perdendo o medo e saindo das suas posições abrigadas, a princípio com muitas cautelas, depois com crescente confiança. Primeiro um, depois três, depois mais, foram aparecendo na rua, cientes agora de que Balibó caíra nas suas mãos.

Faltava a operação de limpeza. O major Andreas aproximou-se de Kris e Domingos. O batedor das Flores apontou-lhe para a casa.

"Australianos", disse com secura.

"O que estão eles ali a fazer?", interrogou-se o oficial que comandava o Team Susi.

"Têm máquinas de filmar", informou Kris.

Domingos permanecia calado, perscrutando os arredores.

O major Andreas manteve-se momentaneamente silencioso, mirando a casa, observando os seus ocupantes na porta. As ordens do seu comandante operacional eram claras, não podia haver testemunhas da presença de tropas indonésias em Balibó. Tratava-se supostamente de uma operação da UDT.

O comandante do Team Susi caminhou para a casa, Kris e Domingos seguindo-o de perto, e, a uns quinze metros, ergueu a AK-47 e abriu fogo contra o edifício.

"Matem-nos", ordenou.

Os jornalistas deram um salto de susto quando viram o indonésio a disparar sobre a casa e encolheram-se junto à porta. Sheckleton baixou-se, mas levantou-se logo que a rajada se calou.

"Australians! Australians!", gritou.

Stewart e Cunningham sentaram-se à porta, Peters logo atrás, enquanto Rennie recuou para bem dentro da casa.

Kris aproximou-se com Domingos e cruzou a porta, empur­rando Sheckleton para o interior e passando por Stewart, Cunningham e Peters. Sheckleton tinha os braços bem estica­dos no ar.

uWe're Australians!", insistiu o repórter do Channel 7.

Kris disparou uma rajada à queima-roupa e Sheckleton tom­bou em silêncio aos pés dos seus horrorizados companheiros. O batedor das Flores apontou a AK-47 para os homens que estavam sentados, Domingos fez o mesmo e ambos abriram fogo quase ao mesmo tempo, varrendo os três de metralha.

Rennie correu para o quarto de banho e trancou a porta.

"Come out!", gritou Kris à porta. "Owí"

O britânico tremia de terror, as mãos em convulsões, a ca­misa colada ao corpo em transpiração, a respiração ofegante, rápida.

"Se não sair, atiro uma granada!", ameaçou Kris.

Sem alternativas, Rennie rodou a chave, abriu a porta, es­ticou as mãos para o ar e tentou sair. Kris apontou-lhe o cano da AK-47 à barriga e obrigou-o a recuar para dentro do quarto de banho. O indonésio podia ter disparado a Kalasbnikov, mas, em vez disso, preferiu variar de método. Tirou a faca e espetou-a no ventre do inglês, torcendo-a e puxando-a para cima com a parte afiada da lâmina, de modo a rasgar as peles, a abrir a barriga e a deixar sair os intestinos. Rennie viu horrorizado, como num pesadelo irreal, as suas próprias tripas brancas e ensanguentadas a deslizarem para o chão. Tentou segurar os intestinos, num derradeiro e vão esforço para desfazer o que estava feito, mas estes escorregaram-lhe pelas mãos e foram anichar-se a seus pés. Os olhos encheram-se-lhe de estrelas, de luzes que o encadeavam, o chão fugiu-lhe. Caiu pesadamente, entrou em choque e perdeu a consciência.

Pouco depois, esvaído em sangue, o coração deixou de bom­bear.

 

O ribombar intermitente das explosões e o rendilhado ner­voso da metralha era acompanhado com ansiedade em Maliana. Os quatro portugueses da RTP e os dois timorenses que os acompanhavam permaneciam inquietamente atentos aos sons da guerra, mas alheios à tragédia das equipas australianas; ignoravam ainda que só se tinham salvo porque quiseram an­dar uns quilómetros para ir comer uma tortilla na missão do padre Brum.

Adelino e os seus companheiros assistiram ao início do as­salto do alto do monte onde se encontrava a missão católica. As explosões iam-se aproximando e, pelas cinco da manhã, encontravam-se a apenas dois quilómetros de distância. Adelino Gomes achava que se tratava somente de uma escara­muça mais forte, não da invasão propriamente dita, e desejava ardentemente que o tiroteio não acabasse antes do nascer do Sol, tão ansioso estava por obter imagens da acção.

Quando apareceu a primeira luz da alvorada, Herlander começou a filmar com a sua Harriflex. À frente, em baixo, estendia-se o arvoredo denso do mato, de onde se erguiam grossas colunas de fumo negro. Ao longe ouviam-se tiros num crescendo de intensidade. O repórter colocou-se perante a câ­mara, a penumbra recortada nas costas e Manuel Patrício ao lado.

"Com a falta de informação que temos, não nos é possível dizer se...", disse, logo que a máquina de filmar começou a registar imagens.

A meio da frase foi interrompido por um tiroteio violentís­simo. Adelino Gomes parou, hesitou, olhou para trás. "Se... aquilo deve ser agora a resposta de Maliana", referiu e, voltando-se para a câmara, retomou o raciocínio inicial: "Não nos é possível dizer se as tropas do movimento anticomunista, ou da Indonésia, ou seja quem for, avançaram." Enquanto falava, o tiroteio ia-se intensificando. "Estes disparos neste momento dão-nos a ideia de que o, não digo corpo-a-corpo, mas real­mente a fuzilaria entre as duas... uh...", interrompeu nova­mente o discurso, hesitou, voltou a olhar para trás e passou a improvisar totalmente. "Como vêem lá ao fundo, não sei se é possível, estamos em contraluz, não sei se é possível, há uma fumarada que se eleva de Maliana, onde fica o quartel-general aqui no local. Esta barragem de artilharia, não consigo enten­der se ela é de um lado se é de outro, deve ser pergunta e resposta, digamos."

Com estas imagens e estes sons registados no celulóide, Adelino deu-se por satisfeito. Por esta altura, o grupo começou timidamente a admitir que, se calhar, bem vistas as coisas, talvez não se tratasse de uma mera escaramuça, de uma troca de tiros resultante de uma refrega mais intensa, mas antes de algo mais importante, da ameaça há tanto tempo esperada e que agora se materializava enfim. A invasão.

Hélio Pina, o homem do Comité Central da Fretilin, dava voltas e voltas no pátio da missão católica.

"O Pina, se calhar é melhor você fugir", sugeriu Adelino.

Pina já andava a pensar nisso; a sua condição de dirigente da Fretilin não lhe permitia ser capturado pela UDT. Os jorna­listas, que ainda não tinham percebido que estavam realmente a lidar com tropas especiais indonésias, e não com timorenses da UDT, não se consideravam em perigo, mas o timorense que os acompanhava sentia-se cada vez mais preocupado.

"É, acho que tenho mesmo de ir", concordou Pina. Olhou para o guia. "E o Paulino também tem de vir comigo. Sendo ele um colaborador meu, não estará seguro por aqui."

Não demorou muito entre o momento de tomar a decisão e a partida. Pouco depois, Herlander estava a filmar a despedida, os abraços na escadaria da missão.

"Tudo corra bem!", ouve-se alguém dizer.

Pina e Paulino desceram as escadas, o dirigente da Fretilin com uma arma na mão. Ainda disseram adeus à câmara e desapareceram lá em baixo.

Os jornalistas ficaram, à espera da evolução dos aconteci­mentos. O padre Brum aconselhou-os a não saírem da missão, alegando que ali ninguém lhes faria mal, e o grupo descontraiu.

Pouco depois, Pina e Paulino regressaram, ambos enchar­cados em suor, e o homem da Fretilin visivelmente alarmado.

"Todos os caminhos estão ocupados por eles", explicou, ofegante por escalar à pressa as escadas da missão.

“ Até a estrada para Bobonaro?", admirou-se o padre Brum.

"Sim, está tudo cortado", confirmou. "A única via ainda aberta é a das montanhas."

"Então é melhor não perder tempo", aconselhou o padre.

Pina olhou para Adelino.

"Vocês vêm?"

"Não, não, a malta fica cá."

"De certeza?", insistiu. "Olhem que isto está a ficar preto."

Os portugueses entreolharam-se. Estavam preocupados, mas não se sentiam verdadeiramente em perigo.

"Eu conheço bem o pessoal da UDT", argumentou o padre Brum. "Alguns foram até seminaristas em Dare e chegaram a ser meus alunos. Vai correr tudo bem."

"Está bem, mas eu vou-me embora", concluiu Pina, pingan­do de transpiração. "Anda, Paulino."

O dirigente da Fretilin despediu-se e apressou-se a descer novamente as escadas com o seu guia. As montanhas do Ramelau, as mais altas do império português, eram o único sítio onde agora se poderia sentir verdadeiramente seguro e não quis perder nem mais um minuto.

As coisas permaneceram calmas durante mais algumas ho­ras na missão católica de Maliana. Mas ao meio-dia o som de um avião invadiu o local. Já com receio de serem detectados, os elementos da equipa de televisão recolheram-se para o inte­rior do edifício e foram para a janela filmar o aparelho. Ater­rorizados, aperceberam-se de que ele não ia regressar à Indonésia. Em vez disso, começou a descer e fez-se a uma pista improvisada de Maliana.

"Ele está a aterrar aqui", admirou-se o padre Brum.

A implicação era óbvia. A UDT não tinha aviões. Se um avião indonésio aterrava em Maliana era porque havia indonésios em Maliana, a poucas centenas de metros da missão cató­lica. O alarme generalizou-se no local.

"Eh pá, isto deve estar cheio de indonésios", exclamou Manuel Patrício.

Herlander fez um trejeito nervoso, os olhos fixos no apare­lho que já rolava lentamente na pista, lá ao fundo, em baixo. Adelino e Jorge partilhavam a ansiedade e sentiam-se agora encurralados. O aparecimento do avião teve um forte impacto junto do grupo e Adelino jurou a si próprio que aquela imagem chegaria a Lisboa, para provar o envolvimento indonésio na crise timorense.

O estado de espírito do padre Brum, também abalado com a presença do aparelho, mudou. Convencido agora de que não eram apenas ex-alunos seus envolvidos nos confrontos, mas indonésios sobre os quais não exercia a mínima influência, só tinha um conselho a dar aos seus visitantes.

"E melhor vocês fugirem", declarou nervosamente. "E quanto mais depressa melhor."

O grupo da RTP ficou perplexo.

"Fugir?", perguntou Adelino. "Fugir para onde?"

Nenhum dos elementos da equipa de televisão, como é evi­dente, conhecia a área, e para mais não tinham agora qualquer meio de transporte. Os quatro começaram a analisar a situação e a estudar as suas opções. O momento era de grande tensão.

"Às tantas, mais vale ficarmos aqui na missão", avançou Adelino.

"Ficar aqui?", irritou-se Herlander. "À espera deles?"

"Sim", retorquiu o repórter. "Quais são as alternativas que temos? A malta não sabe andar por aí, não conhece os cami­nhos, para onde é que vamos?"

"Isso está fora de questão!", garantiu o operador de câmara. "Eu aqui é que não fico!"

"Nem eu", apoiou-o Manuel Patrício. O jovem assistente, com a sua experiência da tropa em Africa, sabia que a realida­de da guerra era diferente da fantasia hollywoodesca, em que os prisioneiros são tratados com dureza mas justiça e as viola­ções à Convenção de Genebra constituem as excepções, não a regra. "Se formos apanhados, somos todos mortos."

"Eh pá, que exagero", exclamou Adelino, sempre o idea­lista, o homem generoso que acredita na bondade humana.

Os três voltaram-se para Jorge Teófilo, que permanecia calado.

O operador de som, cem quilos de peso, hesitou, pensando na dificuldade que teria em escalar as montanhas para fugir ao invasor, mas acabou por se decidir.

"É melhor partirmos", aconselhou. "Se eles nos apanham, é uma chatice."

Democrático, Adelino rendeu-se à maioria e comunicou a decisão ao padre Brum.

"Vamos embora", disse-lhe.

"É, é melhor", concordou o padre, que também achava que aquela era a decisão mais sensata.

"Arranja-nos um guia timorense que nos leve para as mon­tanhas?", pediu o jornalista.

"Vou ver o que posso fazer."

O padre saiu da sala e foi à procura de alguém que condu­zisse a equipa de televisão pelos caminhos das montanhas para zonas mais seguras. Mas nenhum timorense aceitou fazer o trabalho. Todos tinham medo e sabiam que serem encontrados a acompanhar jornalistas portugueses significava execução certa.

Quando o pároco lhes comunicou que não conseguia ne­nhum guia, começou a emergir um sentimento de pânico entre os quatro homens da RTP.

A tarde aproximava-se do fim e ninguém via saída para a situação. Em desespero de causa, o padre Brum apontou para um reflexo nas montanhas.

"Estão a ver aquilo ali a brilhar?", perguntou, dirigindo-se aos visitantes.

Os portugueses identificaram o reflexo na encosta.

"Sim..."

"Aquilo é o telhado de zinco da casa de um liurai meu amigo", explicou o padre. "Vão para lá, digam que vêm da missão e peçam ajuda."

Praticamente encostados à parede, desesperados e sem alter­nativas, os quatro portugueses seguiram o conselho. Largaram os objectos mais pesados e partiram com destino ao reflexo do telhado, que os guiava como uma bússola.

A noite caiu.

Foi como se um manto tivesse envolvido o grupo. O Sol desapareceu e, com ele, o brilho do telhado de zinco. Com a treva a envolver a floresta, o telhado deixou de reflectir a luz e os quatro ficaram perdidos, no meio do mato, sem a casa do chefe tribal a servir-lhes de farol. As sombras cada vez mais escuras do anoitecer cresceram sobre o local, intensificando um sentimento fantasmagórico de ameaça desconhecida em torno dos homens.

Em redor o tiroteio continuava como se decorresse a apenas alguns metros de distância. Foi o pânico total. Perdidos e cegos pela escuridão, alguns dos elementos da equipa de televisão convenceram-se de que não iam viver muito mais tempo. A situação era muito grave.

"O que fazemos agora?", sussurrou Herlander.

Adelino olhou em redor e nada viu senão silhuetas ameaça­doras. Não tinha respostas a dar, nem verdadeiramente Herlander acreditara que as tivesse, perguntara por perguntar, para quebrar o silêncio, para ouvir a sua voz e sentir a dos outros, para tocar na humanidade que os unia e que constituía a sua única e frágil defesa naquele mato pleno de ameaças e perigos.

Estavam perdidos.

Ao fim de duas horas de absoluta desorientação, Manuel Patrício sentiu algo a mexer, ali ao fundo, à esquerda. Seriam arbustos a dançar ao vento? Fixou os olhos naquela sombra e susteve a respiração, como se isso convencesse a sombra a manter-se imóvel.

Mas a sombra voltou a mexer-se.

"O que é aquilo?", murmurou num sopro, alarmado.

"O quê?", respondeu-lhe uma voz também sussurrada que emergiu da escuridão mas que se encontrava mesmo ao pé de si.

"Aquilo ali", apontou, guiando naquela noite o olhar dos seus companheiros. "Estava a mexer-se."

O grupo olhou para as sombras, entrecortadas pelo vago luar que iluminava levemente o mato da planície de Maliana. A sombra voltou a mexer-se e os corações dispararam, tum-tum tum-tum tum-tum, verdadeiros batuques de medo, aquilo não eram arbustos, eram vultos, vultos de homens embosca­dos, homens ameaçadores que tentavam ocultar-se do inimigo, talvez para melhor o surpreenderem, talvez para o atacarem, talvez simplesmente para se manterem escondidos.

"Está ali gente", exclamou baixinho Jorge Teófilo, enun­ciando o que todos já tinham presumido mas que agora, posto em palavras, se tornava ciência certa, indubitável, indiscutível, confirmada; e, sobretudo, aterradoramente ameaçadora.

 

Dilacerados pela dúvida sobre o que deveriam fazer, os quatro começaram a discutir em voz baixa.

"É melhor irmos ter com eles", sugeriu Adelino.

"Ir ter com eles?", escandalizou-se Herlander. "Estás doido?"

"Mas, então, o que queres fazer?", retorquiu o repórter. "Queres ficar aqui toda a noite?"

"O que eu não quero é morrer", retorquiu-lhe o operador de câmara. "Se a malta cai nas mãos deles, estamos feitos."

"E quem te garante que são indonésios?"

"E quem te garante que não são?"

"Corremos o risco..."

"Na dúvida, temos de presumir que os gajos são indo­nésios."

"O Herlander tem razão", intrometeu-se Manuel. "É me­lhor mantermo-nos escondidos."

Adelino procurou Jorge Teófilo.

"O que achas, Jorge?"

O operador de som mostrava-se cansado daquele jogo das escondidas e desesperava com a angústia da espera desespera­da, da espera de quem está perdido e não sabe o que pode esperar. Além disso, estava cansado, sentia-se pegajoso de por­caria, tinha fome e sofria de sede. Na verdade, porque não arriscar? Afinal, não era o risco de arriscar tão grande como o de se manterem escondidos naquelas circunstâncias de deses­pero e agonia? E, se os vultos se moviam com tanto cuidado, não era isso sinal de que também eles sabiam que se encontrava ali alguém? Se assim era, mais valia acabar com o suspense e abrir o jogo.

"Se calhar é melhor irmos ter com eles", opinou Jorge.

Herlander e Manuel abanaram a cabeça. Será possível tanta ingenuidade, Santo Deus? Não percebem eles que a sua única defesa é manterem-se invisíveis e só avançarem pela certa? Os dois homens abanaram a cabeça, desalentados com a ideia de se entregarem assim, sem mais nem menos, sem tentarem fugir, sem jogarem a oportunidade, pequena que fosse, de escaparem sem correrem riscos inúteis.

"Então vamos a votos", sugeriu Adelino. "Quem vota con­tra contactarmos aquelas pessoas?"

"Eu", disseram Herlander e Manuel, firmes.

"E quem vota a favor?"

"Eu", sussurrou Jorge.

"E eu também", disse Adelino. "Estamos com um empate, dois-dois. Assim sendo, tenho de invocar o meu voto de qua­lidade enquanto chefe de equipa para desempatar. Vamos fazer--lhes sinal."

Se temos de morrer, pensou o repórter, mais vale morrer logo aqui do que prolongar a agonia.

Adelino Gomes ergueu-se na noite.

"Jornalistas!", gritou timidamente. E depois em inglês. u]ournalists!"

Os vultos mexeram-se e começaram a avançar lentamente, em passo de combate. Tornou-se visível que tinham espingardas e que estas estavam apontadas. A tensão entre os quatro por­tugueses atingia o auge, os corações batiam desordenadamente, agora já não havia recuo, as cartas estavam na mesa.

Herlander, Manuel e Jorge ergueram-se também.

"Jornalistas!", gritaram todos.

As sombras desconhecidas permaneceram silenciosas en­quanto os quatro berravam a sua identidade, mas faziam al­guns gestos. Seriam acenos? Fossem o que fossem, aqueles gestos revelavam-se algo tranquilizadores, se os vultos quises­sem matá-los teriam reagido a tiro, não com aqueles gestos, e esse raciocínio encorajou novos gritos de identificação.

"Journalists!"

Os vultos aproximaram-se lentamente e, a dois metros de distância, pararam, de arma em riste. Um deles quebrou o silêncio.

"Jornalistas?", perguntou em português. Bom sinal. "Andá­vamos à vossa procura."

Óptimo sinal.

Os portugueses, que já pressentiam que aqueles vultos po­deriam não ser hostis, suspiraram literalmente de alívio, os lábios encheram-se num sorriso de alegria incontida, estavam salvos, o pesadelo acabara. O peso que tinham no corpo largou-os como se tivesse sido empurrado por um sopro, sentiam--se agora leves e absurdamente felizes. Estavam vivos e iam viver.

"Somos das Falintil", identificou-se aquele que parecia ser o chefe. "Foi o camarada Hélio que nos mandou."

Abençoado Hélio Pina.

"Como é que ele está?", quis saber Adelino. A pergunta era mais de cortesia do que outra coisa, pois tornava-se evidente que, se Pina os tinha mandado procurar, era porque se encon­trava vivo e em segurança.

"Está bem", confirmou o timorense. "Nós fomos à missão do padre Brum mas aquilo está cheio de indonésios. Eles ocuparam a missão e nós pensámos que vocês tinham sido apanhados."

"Escapámos a tempo", orgulhou-se Herlander, num remo­que a Adelino, como quem diz se fôssemos seguir a opinião deste gajo a esta hora estávamos todos mortos.

Claro que Adelino poderia responder que, se não fosse pelo seu voto de qualidade, se encontrariam nesse mesmo momento escondidos no mato e não ali com os soldados das Falintil. Mas a hora não era de ajuste de contas. Além do mais, as suas divergências resultavam de momentos de grave tensão e ansiedade e, a esse respeito, o pior parecia já ter passado.

"Já vínhamos de volta com a notícia para dar ao camarada Hélio", adiantou o timorense. "Encontrámo-vos mesmo por acaso."

Este encontro com os soldados da Fretilin proporcionou--lhes uma fugaz sensação de alívio. Apesar de se sentirem reconfortados por estarem agora acompanhados por homens armados que conheciam o terreno, os quatro depressa percebe­ram que precisariam ainda de mais alguma sorte para consegui­rem sair dali. Estavam em terreno hostil parcialmente contro­lado pelos indonésios. O posto mais próximo da Fretilin situava-se a duas horas de distância. Pelo meio encontrava-se o enorme vale que enchia a planície de Maliana até ao Ramelau, e ao longo do vale era visível uma interminável coluna de luzes em movimento. Eram centenas de viaturas de abasteci­mento a entrar em Timor-Leste, e foi nesse instante que o grupo teve a noção exacta da escala da operação indonésia. Não se tratava de um pequeno grupo de comandos a actuar infiltrado no mato, mas de um exército inteiro em acção.

Em boa verdade, e com todo o rigor, era mesmo o começo da invasão indonésia de Timor-Leste, uma vez que aquelas tropas tinham entrado para ocupar o que conquistavam e para conquistar sempre mais, sem nunca retirar. A data oficial da invasão corresponde ao ataque a Díli, dois meses mais tarde, mas Timor-Leste não é apenas Díli e o seu território começou a ser ocupado quando os indonésios atacaram Batugadé, dez dias antes, assalto que agora se estendia a Balibó e a Maliana e iria prosseguir para o resto da colónia portuguesa.

Jornalistas e soldados tiveram de marchar em silêncio pelo vale, escondidos pela noite e pelos arbustos, até chegarem à posição da Fretilin. Aproveitaram para repousar, mas o descan­so foi interrompido alguns minutos depois pelo comandante da posição.

"Vão-se embora", ordenou subitamente o homem. "De­pressa, depressa."

"O que se passa?", perguntou Adelino a Ernesto, o alferes que comandava o grupo que o encontrara no mato de Maliana.

"Os indonésios vêm aí", disse. "Temos de fugir. Depressa!"

Já noite adiantada, a marcha recomeçou em direcção à mon­tanha. O grupo arrastou-se penosamente até chegar a uma aldeia, pelas três da manhã, no alto da montanha, onde a população inteira o esperava. Os aldeões tinham nas mãos uma generosa oferenda: comida. Morto de cansaço, Adelino fez sinal de que não queria comer, queria era dormir.

"Senhor Adelino", chamou Ernesto. "Aceite a comida."

"Oh, Ernesto, estou morto de cansaço, não tenho fome, quero é descansar."

"Não, não está a perceber", insistiu o alferes. "Eles estão a oferecer a comida e vão achar um insulto a toda a aldeia se não comer."

Adelino e os seus companheiros perceberam e fizeram um esforço. Pois, se os aldeões achavam que a recusa de comida era um insulto, como insultar quem os ajudava? Olharam para os alimentos e não ficaram muito animados com o seu aspecto, mas sabiam que os timorenses estavam a dar o que possuíam, era até comovente, e nem sequer tinham o direito de expressar a sua repulsa pela qualidade da comida. Comeram com esforço e simularam que comiam com gosto, sorriram muito, apontan­do para a comida e fazendo vénias, "é bom, muito bom", "maravilha", "repitam, repitam, comam mais", "claro, claro". Ao longe, o tiroteio continuava. Quando terminaram, Adelino arrotou baixinho e pediu para descansar. Os seus companheiros imitaram-no e o grupo dormiu três horas, embalado pelos distantes sons de guerra, estampidos longínquos que lhes relembravam por que razão pernoitavam numa aldeia da en­costa oeste do Ramelau.

Ao nascer do Sol já Ernesto estava de pé com os seus ho­mens.

"Senhor Adelino, senhor Adelino, temos de ir."

O grupo levantou-se, pegou nas suas coisas, agradeceu ao Murai da aldeia e partiu com a escolta, retomando o caminho pelas montanhas. Passaram o dia a andar, sempre com o som dos tiros à distância. Por essa altura, a rádio de Kupang, capital de Timor Ocidental, na província de Nusa Tenggara Timur, dava a conhecer a presença de jornalistas portugueses na região e apelava à sua morte.

Alheios a isso, os elementos da RTP continuavam o seu caminho e, doze horas depois, totalmente exaustos, chegaram a outra aldeia. O liurai local cedeu-lhes a sua própria habitação para descansarem e, pormenor que ninguém esquece, a popu­lação inteira cercou a casa, com zagaias e flechas, para proteger os hóspedes. Nada disto ficou filmado porque Herlander se recusava a trabalhar sem o material que deixara na missão, e só mais tarde Patrício começou a operar com uma pequena máquina Paillard que transportavam.

No dia seguinte, já mais recompostos, pediram três cavalos ao chefe da aldeia. O liurai ofereceu os animais e só aceitou dinheiro após muita insistência de Adelino Gomes. O grupo enviou então um cavaleiro à frente, para avisar a Fretilin de que a equipa da RTP estava viva e pedia que um automóvel se encontrasse com a expedição onde fosse possível. O segundo cavalo foi entregue a Jorge Teófilo, o pesado operador de som que já mal podia andar. Mas, como Teófilo era de facto muito pesado, o animal não o conseguia transportar e optou-se então por amarrar à volta da sua cintura uma corda que o cavalo puxava. O terceiro animal, por seu turno, foi "nacionalizado" por Herlander, o operador de câmara mal-humorado com a difícil situação que estava a viver.

Por esta altura os tiros deixaram de se ouvir. A viagem decorreu a uma cadência ritmada, com Herlander, de óculos escuros, montado a cavalo. Mais atrás, Teófilo era puxado pela sua pileca, e depois vinha a pequena coluna de soldados, onde se integrava Adelino Gomes, com longos cabelos a caírem pelos ombros. Manuel Patrício corria pela frente, com a máquina de filmar a tiracolo, registando a marcha da estranha expedição. O pior é que, como na altura não passava de ajudante de reportagem, não sabia ainda operar com a câmara. Apesar da sua boa vontade, grande parte do seu material revelou-se inutilizável. Não bastava a boa vontade para transformar um ajudante num operador de câmara.

No final deste terceiro dia, o grupo viu, ao longe, no alto de um monte, um jipe. Do todo-o-terreno saiu um timorense que parecia transportar algo. Mais perto, os jornalistas descortina-ram-lhe um sorriso aberto no rosto e Adelino Gomes sentiu as lágrimas inundarem-lhe os olhos. Nas mãos, o homem levava um tabuleiro com um bule e copos.

Era chá.

 

A noite caíra quente e o ar respirava-se pesado, como sem­pre na época das chuvas. O período de maior calor do ano aprestava-se a começar e a casa tinha as janelas abertas de par em par, de modo a deixar entrar a brisa, protegidas apenas pelos mosquiteiros. No tecto, a ventoinha rodava preguiçosa­mente, à velocidade mínima, para poupar electricidade, mas o suficiente para gerar uma agradável aragem.

A primeira detonação foi longínqua, tal como as imediata­mente seguintes. Os seus estampidos surdos e distantes não chegavam para interromper o sono a quem se encontrava na­quela área da cidade. A certa altura, porém, houve uma explo­são ali perto e o fragor da detonação entrou como um trovão pelas janelas abertas.

"O que é isto?", assustou-se Esmeralda, erguendo-se na cama.

Olhou lá para fora, viu tudo escuro, e voltou-se para o marido. Paulino já tinha os olhos abertos e observava, atarantado, o quarto.

"O quê? O quê?"

Os dois apuraram os ouvidos e escutaram um estampido distante.

"São explosões", percebeu ele, levantando-se da cama.

"Que horas são?", perguntou a mulher.

Paulino consultou o relógio.

"Duas da manhã", disse.

Vestiu umas calças à pressa, saiu para o quintal descalço e em tronco nu e ficou a perscrutar a noite. Esmeralda vestiu um robe e foi juntar-se-lhe. Nas casas vizinhas acendiam-se luzes e as pessoas afluíam às janelas ou vinham para a porta, atraídas por aqueles sons que irrompiam pelas primeiras horas daquele domingo, ainda a noite permanecia cerrada e o nascer do Sol longínquo. Novos estampidos, agora ligeiramente mais altos. Esmeralda passou os braços pela cintura de Paulino e apertou-o contra ela. Sentia-se apreensiva. O que ouviam eram claros sinais de guerra e o tão esperado ataque indonésio contra Díli parecia finalmente em curso.

A Operação Komodo entrou abertamente na terceira fase nesse dia 7 de Dezembro de 1975, o aniversário do ataque japonês a Pearl Harbor, o dia da infâmia, parte dois, ainda o Pacífico, actores diferentes. Os indonésios começaram naque­las primeiras horas a bombardear Díli a partir da sua marinha de guerra, desencadeando a Operasi Seroja, ou Operação Lótus, a última etapa do plano Komodo. As Falintil, perceben­do a inutilidade da defesa da capital, retiraram o seu comando militar para Aileu. Nas últimas semanas, em antecipação do ataque final da Indonésia, tinham enviado as armas e munições saqueadas dos paióis portugueses para bases preparadas nas montanhas e apetrechadas também com reservas alimentares. Era das montanhas que as Falintil contavam combater o inimi­go quando as cidades do litoral caíssem.

No mês anterior, a ofensiva indonésia proveniente da fron­teira, mascarada como operação da UDT, avançara de Maliana para Bobonaro e Atabae, que resistiram vários dias. Essas povoações foram duramente bombardeadas pela aviação e pela marinha, e Atabae, o último ponto antes de Díli, acabou por cair a 26 de Novembro. Percebendo que o próximo passo seria a capital, a Fretilin declarou a independência de Timor-Leste a 28 de Novembro. A bandeira portuguesa, que permanecera sempre içada no mastro em frente do Palácio do Governo, foi pela derradeira vez arreada quando faltavam cinco minutos para as seis da tarde, e a bandeira da República Democrática de Timor-Leste içada às seis em ponto.

Agora, onze dias depois, os indonésios anulavam a indepen­dência pelas armas.

O bombardeamento de Díli prolongou-se por um bom par de horas. Paulino e Esmeralda já não conseguiram dormir e ficaram, com os vizinhos, na rua a contemplar o ameaçador espectáculo e a especular sobre o que iria acontecer. Por duas vezes Esmeralda foi a casa ver como estavam as crianças, ambas mergulhadas no sono, alheias ao drama que se desenro­lava na cidade.

A certa altura apareceu uma camioneta com soldados das Falintil na carga. Pertenciam ao pequeno contingente que fica­ra para trás para oferecer resistência aos invasores. O essencial das forças já retirara e iria executar pelo caminho dezenas de prisioneiros da Apodeti e da UDT, incluindo Maggiolo Gouveia. Mas, apesar dessa retirada, a Fretilin não queria entregar Díli de mão beijada aos invasores indonésios e procu­rava simultaneamente atrasar o inimigo de modo a permitir que o grosso das suas forças tivesse mais tempo para se pôr em segurança.

"Quem nos ajuda a defender a cidade?", desafiou o oficial barbudo que comandava aquele pelotão.

Paulino não percebeu o que se passou naquele instante na sua cabeça. Estava empenhado em manter-se alheio àquela confusão. Tinha mulher e filhos e responsabilidades como che­fe de família; não queria, nem podia, separar-se dos que dele dependiam. Foi por isso com surpresa que deu consigo a levan­tar o braço. Seria o cansaço que tinha levado o coração a impor-se à razão?

"Eu."

Esmeralda levou a mão à boca, igualmente surpreendida com a inexplicável decisão do marido, e teve dificuldade em reprimir um grito.

"Paulino, e as crianças?"

"Eu já volto, Esmeralda, prometo."

E saltou para a carrinha com mais três voluntários. A car­rinha arrancou e Esmeralda correu para casa em lágrimas. O oficial barbudo entregou quatro G3 aos recrutas enquanto o veículo seguia para a zona do Farol.

A campainha deu um primeiro toque, breve, depois mais um e ainda um terceiro. A luz laranja acendeu-se. Os soldados das duas unidades de forças especiais, a Kopassandha e a Brigada 18 da Linud Kostrad, ergueram-se pesadamente dos seus assen­tos. O tenente Murdowo verificou pela enésima vez a coloca­ção do pára-quedas, apertou as correias da sua espingarda automática T-10, de fabrico americano, e seguiu os companhei­ros de armas que se dirigiam para a porta do avião. Os solda­dos soltaram o gancho ligado ao cabo de aço estendido na cabina e aguardaram em fila indiana. O silêncio era pesado, ninguém falava, apenas o barulho dos motores do Hercules T-1308 enchia e fazia tremer o ar, as luzes coloridas no interior do aparelho projectando uma imagem fantasmagórica sobre aqueles homens que se preparavam para fazer a guerra.

No cockpit, o comandante do Esquadrão 31 e do aparelho que liderava a formação, o tenente-coronel aviador Suakadirul, viu a sombra escura e majestosa de Ataúro erguer-se à esquerda e desceu o aparelho para os cinco mil pés. O voo Rajawali, nome de código da operação aérea de assalto a Díli, decorrera até aí sem incidentes e ninguém alimentava dúvidas de que a queda da capital timorense e de todo o território eram favas contadas. Não tinha sido o general Benny Murdani quem dis­sera que nesse dia as tropas iriam tomar o pequeno-almoço em Díli, o almoço em Baucau e o jantar em Los Paios? Como poderiam aqueles selvagens guedelhudos, indisciplinados e sem treino fazer frente à elite das gloriosas forças armadas indonésias? Suakadirul sorriu e bebeu um gole de café morno. Sentia-se tranquilo, tão tranquilo que até tinha prescindido de escolta aérea; é certo que todos os P-51 Mustang tinham sido declarados grounded após uma série negra de acidentes e os F-86 Sabre ainda não tinham sido equipados, mas a verdade é que esses aviões de combate nem eram necessários, para quê tanto trabalho se aquilo ia ser um piquenique?

Ainda com a chávena na mão, o comandante do Esqua­drão 31 inclinou a cabeça pela janela. Nesse instante ficou paralisado, não queria acreditar nos seus olhos. Lá em baixo, ancorados na costa da ilha, encontravam-se dois navios de guerra portugueses.

"Ninguém me informou da presença destas fragatas", pro­testou para o co-piloto, pousando a chávena meio cheia e con­tendo com dificuldade a preocupação.

Junto a Ataúro estavam efectivamente as fragatas João Roby e Afonso de Albuquerque, navios modernos equipados com arsenal da NATO e capazes de afundar toda a envelhecida esquadra indonésia que nesse momento bombardeava Timor-Leste. Os indonésios sabiam que se os portugueses interviessem poderia haver uma catástrofe e Suakadirul não conseguia per­ceber como é que os serviços de informação militar tinham negligenciado tão importante factor.

"Não entendo este problema", desabafou o comandante, abanando a cabeça.

A formação em flecha dos nove Hercules T-1308 que cons­tituíam o Esquadrão 31, encabeçado pelo aparelho de Suakadirul, voava há cinco horas desde a base aérea javanesa de Iswahyudi com ordem de manter um rigoroso silêncio de rádio, e a comunicação entre os aparelhos limitava-se por isso ao código Morse. Ora naquele instante crucial não valia a pena enviar protestos por código Morse; as contas teriam de ser ajustadas depois da operação. Entretanto, restava-lhe implorar a Allab para que os portugueses não interviessem.

O navegador fez um sinal, indicando ser aquele o momento, e o comandante do Esquadrão 31 deu ordens para abrir as portas esquerda e direita do avião.

"Estamos a cinco mil pés e ainda em depressurized", indi­cou o co-piloto, lendo os instrumentos.

"Quatro minutos para a dropping zone", anunciou o nave­gador, debruçado sobre o mapa e concentrado nas suas medi­ções.

A formação Rajawali desacelerou, encurtou distâncias e voltou a descer. Os aparelhos posicionavam-se agora a uns meros cem metros uns dos outros.

"Novecentos pés de altitude", informou o co-piloto.

Suakadirul viu a sombra de Díli à distância, a energia cor­tada em todas as casas e ruas; localizou o cabo Fatucama, que era o ponto de referência de navegação, na ponta oriental da baía, e flectiu para a direita, dirigindo-se directamente para o centro da cidade mergulhada na escuridão e na ansiedade. O flap foi descido para metade de modo a reduzir a velocidade até aos cento e dez nós.

"Dois minutos para a dropping zone", comunicou o nave­gador, o cronometro na mão.

Os Hercules sobrevoaram o sector a oeste do bairro dos pescadores e o navegador carregou na campainha. Suakadirul olhou para o relógio, faltavam quinze minutos para as seis da manhã. O seu avião seguia agora numa linha paralela à Rua Dr. António de Carvalho. O comandante olhou para o navega­dor; este estava embrenhado nos seus cálculos, levantou de repente a cabeça e fez o sinal. Tinham chegado à dropping zone. Suakadirul sentiu a garganta seca quando mudou a luz de laranja para verde.

Na carga, o jumping master viu a tão aguardada luz verde acender-se.

"Pára-quedistas, prontos?", gritou o oficial encarregado de dirigir a largada de soldados daquele avião.

Os homens agitaram-se, nervosos, em silêncio. O tenente Murdowo sentiu a respiração mais pesada, o coração a acele­rar, as gotas de suor a descerem-lhe pela testa, as pernas a fraquejarem, trémulas, uma súbita e quase irresistível sede secou-lhe a boca, ainda foi com a mão ao cantil mas controlou--se, aquele não era o momento adequado para beber, a mão recuou e ficou agarrada à correia da T-10. Só na noite anterior soubera que o exercício em que iria participar não era real­mente um exercício, mas uma verdadeira operação militar, e tinha ainda dificuldade em acreditar que não estava a viver uma fantasia, que ia mesmo para a guerra, que teria de matar e poderia ser morto, não acreditava na conversa de que ia ser tudo fácil, isso era paleio para enganar tolos, tretas e bazófias de oficiais que ficavam lá atrás confortavelmente instalados e não se atreviam a atravessar-se no caminho das balas. Durante todo o voo, Murdowo fartou-se de implorar a Allah que o poupasse, que o protegesse, mas sobretudo que não o deixasse fraquejar na hora da verdade.

"Todos para a porta."

Em bom rigor, já todos se encontravam em frente da porta, há longos minutos em fila indiana, ansiosos e angustiados, mas mesmo assim deram mais uns curtos passos em frente. Murdowo admirou-se por constatar que as pernas lhe obede­ciam. Sentia-se um autómato, o corpo separado da cabeça, o soldado a tomar conta do ser humano.

 

"Go!"

Os aviões vieram com os primeiros clarões do Sol. Paulino e os seus companheiros, que já há meia hora tinham tomado posição no local, fixaram o olhar nos pontos de onde vinham os sons. Eram os nove Hercules a sobrevoar a cidade. O céu encheu-se de flocos brancos de algodão, um verdadeiro mar de flores sob o firmamento. Tratava-se dos pára-quedas dos homens da Kopassandha, oitenta homens por cada avião, todos lançados sobre três objectivos tácticos, o aeroporto, o cais e o Palácio do Governo. Mas o problema de Paulino era momentaneamente o segundo objectivo, porque era esse o sector que lhe cabia defender. Os indonésios queriam controlar o porto para permitir o desembarque das suas tropas regulares, dez mil homens que aguardavam no mar a hora para desem­barcar. O cais tornou-se, por isso, um dos alvos cruciais do assalto.

O Farol ficava perto do porto e os homens das Falintil, mais os quatro voluntários, aperceberam-se de que os indonésios lhes estavam a cair em cima. Quando os viu aproximar-se, o oficial barbudo, chamado Fernando, não hesitou.

"Disparem", ordenou. "Matem o mais que puderem."

Os timorenses abriram fogo, alvejando os pára-quedistas indonésios com um fragor infernal. Protegido por um muro, Paulino sentiu a metralhadora a saltar nas mãos, o coice dos disparos magoando-o no ombro direito. Ali perto, os habitan­tes de Díli que tinham armas também disparavam contra os invasores. De resto, isso acontecia um pouco por toda a cidade, mas sobretudo em Vila Verde.

As coisas começaram a correr mal para os homens da Kopassandha. Muitos foram abatidos antes de tocarem no solo, alvejados pelas tropas das Falintil e pelos populares. A desor­ganização era enorme entre os pára-quedistas indonésios, que chegaram a alvejar-se uns aos outros no sector do aeroporto, pensando que disparavam contra o inimigo. As Falintil abriram fogo anti-aéreo, iluminando o céu, e atingiram um dos Hercules, desviando-o da sua rota. Trinta pára-que­distas que saltaram desse aparelho caíram ao mar e afogaram--se com o peso do equipamento.

O avião que liderava a formação e era comandado por Suakadirul também foi atingido. Uma bala destruiu o navi-gation compass e o auxiliary hydraulic pump e outra partiu o vidro do cockpit. No meio da confusão, a chávena de café que se encontrava na cabina foi projectada no ar e acertou na testa do comandante. O co-piloto e o navegador olharam aterro­rizados, vendo um líquido escuro e espesso a espalhar-se e a escorrer pela cabeça do comandante. Foi atingido, pensaram, imaginando que o líquido era uma estranha mistura de sangue e massa encefálica.

"É só café", disse Suakadirul, erguendo-se desajeitadamente e tranquilizando-os.

Mas, lá em baixo, as coisas não estavam a correr bem aos indonésios. Os pára-quedistas da 18.a Brigada da Kostrad caíram em cima de forças das Falintil em retirada e foram dizi­mados. O anunciado piquenique transformara-se num inespe­rado pesadelo. Assustados e nervosos, os homens que escapa­ram ao fogo mortífero das tropas timorenses descarregaram a sua fúria sobre a população indefesa, disparando sobre tudo o que mexia.

Fernando, o oficial barbudo, percebeu que não poderiam permanecer no sector do Farol, sob pena de ficarem totalmente cercados pelos pára-quedistas que naquele sector haviam esca­pado à mira das suas G3, e ordenou aos seus homens que saltassem para a carrinha. Dois dos voluntários foram com eles, mas Paulino e um outro vizinho, absorvidos na tarefa de localizar pontos no céu para os abater, demoraram a aperceber-se da ordem de retirada. Só o som da carrinha a arrancar des­pertou a atenção de Paulino e quando saltou do muro para a estrada era já tarde de mais, o pelotão das Falintil já ia em velocidade lá ao fundo, desaparecendo numa curva à esquerda.

"Eles foram-se embora!", exclamou Paulino, alarmado e quase em pânico, para o seu companheiro.

Era Lúcio, o carpinteiro que morava perto da sua casa.

"Temos de sair daqui", disse Lúcio.

Os dois deixaram de prestar atenção aos vultos que caíam do céu e desataram a correr pelos caminhos secundários; Lúcio ia à frente, Paulino no encalço, duas gazelas a correrem direitas a sul. Quando chegaram à Rua Cômoro flectiram para a es­querda e depois imediatamente para a direita, em direcção à catedral. A sua ideia era passarem a catedral e seguirem pela estrada de Balide até chegarem ao seu bairro.

Uma rajada pôs fim à corrida de Lúcio. O vizinho de Paulino estatelou-se no chão com um gemido baixo. Paulino viu-o cair e parou, não para o ajudar, mas porque localizou a fonte dos tiros junto de um muro em frente. Não podia prosseguir. Apontou a G3 vagamente para o local, largou uma rajada e recuou à pressa, voltando à Rua Cômoro, depois à Rua Américo Thomás. Apercebeu-se de que havia homens lá ao fundo, no largo frente ao porto, atirou a G3 para a rua, saltou para o jardim da igreja de Motael e entrou no santuário, ofegante. A igreja estava já cheia de gente.

A resistência das Falintil nas ruas de Díli foi breve, mas encarniçada. Os indonésios levaram algumas horas a assegurar o controlo dos seus primeiros objectivos tácticos, incluindo o porto, mesmo ao lado da igreja de Motael. Só ao final da manhã é que os dez mil soldados começaram a desembarcar no cais defendido pelos nervosos pára-quedistas. De Motael, Paulino viu as barcaças aproximarem-se com os fuzileiros do Korps Marinir, os homens do Kopasgat e os batalhões das divisões javanesas Siliwangi e Brawijaya, que foram imediata­mente ocupar posições na cidade. Havia indonésios por toda a parte e os timorenses depressa aprenderam a evitar sair à rua. Muitos dos que se tinham atrevido a fazê-lo foram imediata­mente abatidos.

A excepção eram os homens da Apodeti, que defendiam a integração de Timor-Leste na Indonésia e se sentiam natural­mente à vontade para conviver e colaborar com o invasor. Mas nem estes escaparam à fúria dos indonésios. Um grande grupo de homens da Apodeti que tinham sido libertados pelas Falintil convergiu pelas ruas para saudar os soldados, que responderam ceifando os seus aliados a tiro de metralhadora. Outro grupo de trinta elementos da Apodeti foi ajudar os indonésios a reti­rar armas e munições do antigo quartel da PSR Quando aca­baram o trabalho, os indonésios perguntaram-lhes qual o seu partido. Os pró-integracionistas ficaram admirados com a per­gunta e responderam que eram da Apodeti. Com horror e surpresa, viram os soldados abrir fogo contra eles. A maior parte morreu com as primeiras rajadas das T-10. No chão ficou uma massa inerte; alguns gemiam, feridos. Os indonésios aproximaram-se e deram os tiros de misericórdia. Um dos feri­dos, no entanto, pôs o seu braço esfacelado sobre a cabeça e deixou que o sangue se espalhasse pela cara, criando a impres­são de que estava morto. Foi um dos cinco homens que esca­param.

Os incidentes multiplicaram-se por toda a cidade, muitas vezes com os soldados a entrarem em residências para pilharem bens e frequentemente matarem os locatários. Quem tinha ban­deiras ou símbolos da Fretilin, ou até da UDT, era imediata­mente executado. Foram abatidas famílias inteiras. Na zona do aeroporto, os soldados chegaram a atirar granadas pelas jane­las e portas das casas onde percebiam que havia pessoas. Um grupo de dirigentes da comunidade chinesa, que permanecera neutral durante todo o período da guerra civil, saiu à rua para saudar os invasores. Os soldados indonésios viram-nos e abri­ram fogo, matando-os quase todos. À frente do edifício Toko Lay, com três andares, os invasores viram uma bandeira aus­traliana pendurada na janela. Os soldados entraram a correr no edifício, subiram as escadas, forçaram a entrada nos apar­tamentos e descarregaram as balas sobre todos os homens que encontraram. Eram chineses que tinham posto a bandeira aus­traliana na janela, na presunção de que ela, por sugerir neutra­lidade, lhes asseguraria alguma protecção.

O único jornalista estrangeiro que permanecera em Díli, o free-lancer australiano Roger East, foi para o edifício Marconi enviar um despacho urgente endereçado aos escritórios da AAP-Reuter em Darwin. Havia já uma hora que os pára-quedistas tinham chegado e combatia-se com ferocidade em redor.

Alguns homens da Kopassandha circulavam ali ao pé, dispa­rando sobre tudo o que mexia, e East, as mãos a tremerem de nervosismo, atrapalhou-se no telex, enganou-se nas letras, se-tiu-se disléxico, escrevia "Darwin" e saía "Draiwn", o telex não reconhecia o endereço e a mensagem não passava.

East deu um murro de frustração na mesa, percebendo que o tempo de que dispunha se esgotara e estava já em período de descontos. Saiu a correr, frustrado, para a rua, dirigindo-se ao apartamento ali perto da Marconi onde estabelecera ponto de encontro com os homens das Falintil que o levariam para as montanhas. Quando se aproximou do local combinado viu Fernando Carmo à sua espera, impaciente, num jipe com mais três soldados timorenses.

"Vamos!", gritou Carmo, sentado no jipe, a voz transmi­tindo urgência. "Depressa, depressa!"

East apressou o passo, mas não queria correr, isso daria impressão de pânico, o que ele sentia mas não desejava mos­trar. Afinal, Fernando Carmo era um dos melhores comandan­tes operacionais das Falintil. Tratava-se do responsável pelos sucessivos e embaraçosos atrasos e fiascos dos indonésios depois de terem tomado Balibó e Maliana. East queria estar à altura de Carmo.

Dois tiros muito perto fizeram-no estacar. Olhou para a direita e viu cinco pára-quedistas indonésios a alvejarem o jipe de Carmo. Um dos soldados timorenses foi atingido, curvou-se, mas permaneceu sentado no banco da viatura. Os outros apon­taram as G3 e abriram fogo de resposta. Dois indonésios caí­ram, atingidos, dois atiraram-se para o chão e um fugiu. Mais pára-quedistas apareceram no local, agora pela esquerda, a disparar. Eram muitos, talvez uns dez. Um segundo soldado timorense caiu, os outros dois homens, um deles Fernando Carmo, esconderam-se por detrás do jipe, sempre a abrir fogo.

Mas o segundo grupo de indonésios tentou flanqueá-los, contornando-os. Os homens das Falintil abriram fogo cerrado, abatendo três pára-quedistas, mas tiveram de se expor aos dois indonésios do primeiro grupo, que permaneciam deitados no chão a disparar. Mais um timorense caiu. Carmo estava agora rodeado por dois homens mortos e um ferido. Os indonésios do segundo grupo aproveitaram a desorientação do coman­dante das Falintil, apanhado entre dois fogos, chegaram ao jipe sempre a disparar e caíram sobre o oficial timorense, matando-o em alguns instantes. O timorense ferido, único sobrevivente, foi imediatamente executado.

Roger East assistiu ao drama da morte de Fernando Carmo e dos seus homens escondido atrás de uma mangueira. Quando os timorenses morreram, o australiano esgueirou-se por entre os arbustos e, desorientado, sentiu-se com falta de opções. O acesso ao apartamento estava bloqueado, mesmo que mo­mentaneamente. East considerou a possibilidade de se dirigir ao Hotel Turismo, onde se encontrava hospedado, mas rapida­mente rejeitou a ideia. O hotel era muito longe, na Avenida Marechal Carmona, a caminho da Areia Branca, e percorrer a descoberto todo esse caminho parecia-lhe demasiado arriscado. O melhor talvez fosse virar para o interior e tentar atingir os arredores sul da cidade, onde estavam as Falintil. Também era muito longe, mas ao menos tinha a certeza de alcançar terreno amigo.

Saiu dos arbustos e, logo nesse instante, sentiu movimento à direita. Olhou e viu-se rodeado por rostos malaios. Os pára-quedistas tinham-no localizado e cercaram-no. Havia três T-10 apontadas a ele, uma delas a do tenente Murdowo.

Com o caos instalado na cidade, colunas de fumo a erguerem-se no céu e o som das rajadas de metralhadora e das expiosoes de granadas e de morteiros a encherem permanentemente o ar, Paulino percebeu em Motael que não tinha condições para regressar de imediato a casa. Angustiava-se a pensar na família e arrependia-se mil vezes do estúpido e irreflectido impulso que o tinha feito saltar para a carrinha das Falintil. Desesperava com o sentimento de que o seu dever era estar em casa a proteger a mulher e os dois pequenos. Em vez disso, deixara--os sozinhos, entregues à sua sorte, enquanto ele fora brincar aos cowboys e agora encontrava-se ali encurralado na igreja, sem qualquer hipótese de fuga. Em boa verdade, estava mesmo no covil do lobo, considerando que o porto se situava ali ao lado. Todo o sector se apresentava cercado por soldados indonésios e ninguém se atrevia a sair da igreja. As rajadas de metralhadora ouviam-se por toda a cidade, aumentando a sua angústia pela sorte da família que ficara em Balide. Nessa noite dormiu no chão da igreja, tentando abstrair-se dos tiros e do movimento de tropas ali ao lado.

Os indonésios entraram na igreja de manhã cedo. Gritaram umas ordens em bahasa indonésio, que ninguém percebia, e apontaram para um grande grupo de timorenses, fazendo-lhes sinal de que os acompanhassem. Havia choros de mulheres e de crianças no grupo, mas ninguém se atrevia a desobedecer aos invasores. Paulino contava-se entre a centena de pessoas que foi levada para o cais pelas oito da manhã.

No local concentrava-se uma multidão de outros timorenses. O grupo de Motael misturou-se com essa multidão e ficaram todos a aguardar para perceber o que queriam os soldados. Paulino observou, agora mais de perto, as barcaças de desem­barque das tropas e analisou os invasores. A maioria era javanesa, com os seus traços marcadamente malaios. Usavam boinas verdes e tinham o número 502 cosido nos ombros. Eram certamente homens do Batalhão 502 da Divisão Brawijaya, responsável por muitas das matanças em curso na cidade.

Ao fim de uma hora, um oficial aproximou-se da multidão, rodeado por soldados e por alguns timorenses, claramente da Apodeti. O oficial percorreu lentamente as primeiras filas dos prisioneiros, como um cão de guerra a preparar o ataque, apon­tou para um homem e deu uma ordem aos seus soldados. Os indonésios foram buscar o timorense, visivelmente incomoda­do por ser separado do resto da multidão. Os soldados pegaram-lhe pelos braços e levaram-no para a borda do cais, obrigando-o a voltar-se para o mar. O oficial deu uma ordem a um dos homens da Apodeti, e este traduziu.

"O coronel quer que contem", gritou para a multidão. "Quem não contar vai a seguir."

Os timorenses agitaram-se, sem perceber. Contar? O que queria ele dizer com isso? Contar o quê?

O oficial fez um sinal com a cabeça para um soldado, o homem ergueu a T-10, apontou-a à nuca do timorense voltado para o mar e disparou. O timorense teve um espasmo e rolou para a frente, sem um grito, e caiu na água.

A multidão ficou atónita.

"Stffw", gritou o oficial, fitando a multidão.

"Um", apressou-se a traduzir o homem da Apodeti.

A multidão permaneceu especada, siderada. Paulino não queria acreditar no que vira nem percebia o que pretendiam os indonésios.

"Um!", repetiu o tradutor da Apodeti.

"Um", exclamaram algumas vozes, tímidas, da multidão. Havia pessoas que, no meio daquela loucura, tinham consegui­do entender o que o indonésio desejava.

O oficial não ficou contente com a reacção dos timorenses. Deu três passos enérgicos e apontou para outro homem. Os soldados foram-no buscar, mas este, percebendo o que se iria passar, resistiu, o rosto contraindo-se numa careta de choro, dizendo que não, não, não. Os soldados agarraram-no firmemente pelos bra­ços e arrastaram-no para a borda do cais, voltando-o para o mar.

Mais um sinal do oficial, mais um tiro.

"Dwa", gritou o oficial indonésio, voltado para a multidão, à espera da sua reacção.

"Dois", devolveu a multidão, desta vez com maior convicção. Tinham feito o que ele queria. Será que os iam deixar em paz?

O oficial voltou a aproximar-se da multidão. Estavam ali cerca de quinhentas pessoas e as da frente baixaram os olhos, temendo ser seleccionadas. O oficial hesitou, pensativo, até que fixou a vítima seguinte e lhe apontou o dedo. Paulino viu, abismado, que era uma mulher chinesa com um bebé ao colo. Será possível? Estou enganado, pensou. Ele deve ter apontado para outra pessoa ao lado dela. Os soldados aproximaram-se e agarraram na vítima. E mesmo ela, verificou Paulino, estupefacto. Os indonésios iam fuzilar uma mulher com um bebé. Paulino sentiu-se mergulhado no coração do puro horror.

A mulher desatou num pranto, agarrada ao filho com muita força, o rosto mergulhado no pescoço da criança. Outras mu­lheres, que já choravam baixinho, começaram a gemer ruido­samente. Um soldado agarrou na criança, arrancou-a das mãos da mãe e entregou-a a uma outra chinesa, enquanto a mãe do bebé era arrastada para a berma do cais. Será possível?, interrogou-se repetidamente Paulino. Será possível? O sinal, o tiro, o splash na água.

O oficial olhou para a multidão, desta vez sem nada dizer.

"Três", gritaram os timorenses.

O oficial sorriu, satisfeito. Tinham percebido. Voltou para junto da multidão e escolheu mais uma mulher, esta uma timorense com a mão dada a uma menina de sete anos. Novos gritos, novos choros, novo desespero, desta vez com a menina a perceber perfeitamente o que ia acontecer à mãe e a berrar de terror, a ver a espingarda a erguer-se, a parar, a saltar com fumo no cano e um grande estrondo, a mãe a desaparecer na berma do cais.

"Quatro", gritaram todos.

A filha da mulher também gritava, mas de dor.

A contagem prosseguiu até chegarem à vintena de vítimas, o que não demorou muito. Nessa altura, a selecção aleatória foi interrompida pela chegada de três soldados que arrastavam um homem ocidental.

Paulino reconheceu Roger East, o free-lancer australiano que ficara em Díli quando toda a imprensa internacional se retirara para Darwin, dias antes. East debatia-se com fúria, puxando e empurrando, apesar de ter as mãos atadas com ara­mes atrás das costas. Os soldados mostravam-se visivelmente agastados com o trabalho que o jornalista lhes dava e não lhe poupavam coronhadas, em particular o tenente Murdowo. O free-lancer insultou-os em inglês e cuspiu em Murdowo. O tenente deu-lhe mais uma coronhada como troco. O austra­liano foi colocado na berma do cais, tal como a vintena de vítimas antes dele, o corpo voltado para o mar.

"I am not Fretilin! I am an Australian!", vociferou, voltando a cabeça e olhando para trás.

Talvez tenha visto o cano da T-10 do tenente Murdowo apon­tado à cabeça na fracção de segundo antes de deixar de existir.

Com a morte do jornalista, o oficial que comandava aquele pelotão de fuzilamento pareceu desinteressar-se e afastou-se, deixando atrás dele uma multidão simultaneamente aliviada e horrorizada. Paulino sentia ganas de vomitar.

O sol estava a tornar-se mais forte e a multidão foi mantida no cais, sem comer nem beber. Mulheres e crianças choravam baixinho, mas as que tinham acabado de ficar órfãs e perce­biam o que se tinha passado soluçavam de modo convulsivo, inconsoláveis, as imagens do horror gravadas na memória e repetidamente exibidas na mente.

Ao início da tarde, o oficial reapareceu no cais. A multidão temeu o pior, receando que a selecção aleatória de vítimas reco­meçasse. Mas desta vez seria diferente. Um outro grande grupo de prisioneiros apareceu no cais, formado essencialmente por chineses e por timorenses que se tinham envolvido abertamente em actividades políticas no último ano. Os soldados arrasta­ram um primeiro homem para a borda do cais e ele foi execu­tado da forma utilizada para abater os da manhã.

Quando soou a detonação, o oficial olhou para a multidão da manhã.

"Um", gritaram todos, percebendo o que ele pretendia.

Dessa vez as vítimas não vinham da multidão onde estava Paulino nem eram escolhidas ao acaso. Os fuzilados pertenciam ao grupo recém-chegado e tinham claramente sido escolhidos de forma deliberada. Uns porque eram chineses, etnia que, por qualquer motivo, parecia desagradar aos indonésios; outros porque tinham sido apontados pelos homens da Apodeti como activistas pró-independência. O papel dos elementos da multi­dão era agora o de meros espectadores e de placará de conta­gem. A tarde foi passada com os soldados a dispararem e a multidão a contar. No final, tinham morrido todos os elemen­tos do grupo que chegara ao princípio da tarde. A multidão sabia que eram ao todo cento e cinquenta homens porque a contagem em coro só cessou nesse número.

Pouco depois de ter terminado a orgia de matança no cais, os indonésios libertaram a multidão. Paulino podia agora ir para casa. Sem perder tempo, ansioso por rever a família e por sair daquele inferno do porto, meteu os pés ao caminho. Evitou as ruas principais, onde se concentravam mais contingentes de soldados indonésios, e optou por seguir por percursos secundá­rios. As ruas apresentavam-se pejadas de cadáveres e havia casas destruídas, algumas ainda a deitarem fumo. Os tiros pros­seguiam, embora naturalmente sem a intensidade da véspera.

À medida que ia caminhando para sul, em direcção a Balide, Paulino ia ouvindo as rajadas aproximarem-se. As tropas invasoras estavam envolvidas em combate com as Falintil nas encostas dos montes que cercavam Díli e não pareciam sair-se bem. Ágeis e determinados, os soldados timorenses abatiam os indonésios que se atreviam a expor-se às suas miras. O avanço fora travado e os indonésios só controlavam a cidade, onde apenas se encontrava uma população desarmada e indefesa.

Quando viu a sua casa, Paulino começou a correr. O edifício parecia intacto, mas logo que cruzou a porta percebeu que a família não estava lá dentro. A casa encontrava-se deserta, embora as coisas permanecessem todas nos seus lugares, impe­cáveis e arrumadas.

Paulino voltou à rua e procurou nas casas vizinhas quem o soubesse informar. A maior parte dos vizinhos tinha desapare­cido e os que ali permaneciam ignoravam o paradeiro de Es­meralda e das crianças. Paulino reflectiu, pensando no que teria feito se fosse a mulher. Deu meia volta e dirigiu-se à igreja de Balide.

O santuário estava apinhado de gente. Havia um cheiro muito forte no ar e Paulino começou a deambular por entre a multidão, procurando a família. Deu com Esmeralda sentada num banco da igreja, a pequena Isabel ao colo, a dormir, Justino em pé a obser­var uma mulher deitada no chão. O casal abraçou-se, Paulino a acariciar com as mãos livres a cabeça dos seus dois filhos.

 

"Por onde andaste?", perguntou a mulher, demasiado ali­viada para estar furiosa.

Paulino encolheu os ombros.

"Fiquei na igreja de Motael", limitou-se a dizer, evitando contar os pormenores da sua experiência. Não convinha. "E tu, estás bem?"

Esmeralda desviou os olhos para as crianças.

"Foi muito mau, fiquei aterrorizada, pensava que tinhas morrido com os homens das Falintil..."

"Desculpa."

"... e estávamos os três muito assustados." Voltou a mirá--lo. "Sentíamo-nos muito vulneráveis. Ainda pensei em ir a casa dos meus pais, mas era muito longe e decidi vir aqui para a igreja, sempre ficava na companhia de outras pessoas. Além do mais, como a casa é perto, quando as crianças tinham fome eu dava lá um salto para ir buscar qualquer coisa."

Paulino pegou na família e voltou para casa. Passaram o dia lá fechados, a ouvir os tiros e as explosões nos arredores, eram os homens das Falintil a travar os indonésios nas encostas. Por esta altura, já todos se tinham habituado aos sons da guerra, ninguém sentia demasiado medo e, quase como se tudo aquilo fosse normal, as crianças retomaram as brincadeiras.

 

Na manhã seguinte, enquanto tomavam o café, Paulino e Esmeralda ouviram gritos na rua. Vieram à porta e viram sol­dados indonésios a saltar de um camião, alguns oficiais a ber­rar, homens a entrar em residências da vizinhança e os vizinhos a sair com eles e a montar no camião. Paulino e Esmeralda recolheram-se dentro de casa e foram agarrar os filhos, a tre­mer.

Um minuto depois, um indonésio entrou-lhes pela porta e gritou-lhes em bahasa indonésio, fazendo sinal com a mão de que o acompanhassem.

"Eu?", perguntou Paulino, apontando apenas para si.

O indonésio mostrou com um gesto impaciente que se refe­ria a todos, incluindo Esmeralda e as crianças. Paulino sabia, por experiência própria, duas coisas, nesse momento contradi­tórias. A primeira era a absoluta imprudência que constituía qualquer acto ou palavra que contrariasse um soldado indoné­sio armado; eles mostravam um assinalável desprezo pela vida humana e não teriam qualquer problema em abatê-los ali como cães. A segunda coisa era que não convinha andarem com soldados indonésios, em particular a mulher e as crianças, dado o seu gosto pelas execuções sumárias aleatórias. Mas não havia alternativas e Paulino fez sinal à mulher de que não deveria discutir nem contrariar a ordem.

Subiram os quatro para o camião, juntando-se aos vizinhos que já para ali tinham sido arrebanhados. Quando o veículo militar ficou cheio, partiram com destino desconhecido. Paulino olhou para fora, apreensivo, e percebeu que seguiam pela estrada de Balide em direcção à catedral, passaram-na e quando chegaram à Rua Cômoro viraram à esquerda. Havia casas a arder na berma da estrada e muitos soldados indonésios em toda a parte. O camião acelerou sempre em frente pela estrada até flectir para a direita. Paulino percebeu que se diri­giam para o aeroporto e sentiu a vaga esperança de que os iriam mandar para fora de Timor-Leste. Talvez mesmo para a Austrália ou até Portugal.

O aeroporto apresentava-se repleto de timorenses, era um mar de gente a encher todo o espaço em frente. Viam-se tam­bém muitos camiões e soldados indonésios.

Paulino e a família levantaram-se. Saltaram do camião e misturaram-se com a multidão, eram talvez milhares de habi­tantes da cidade que estavam ali concentrados. Ao fim de dez minutos, Paulino deparou com os pais. A família juntou-se, satisfeita por se reencontrar e por estar intacta naqueles dias difíceis, mas depressa as sombras voltaram.

"O primo Júlio morreu", anunciou-lhe o pai. "Mandaram--no sair de casa com a família e levaram-nos, a eles e a outros, para junto do quartel da PSP. Depois os indonésios juntaram os homens num grupo, eram para aí cinquenta pessoas, e começaram a disparar. O Júlio morreu logo, outros foram abatidos de costas enquanto tentavam fugir."

Paulino não se mostrou surpreendido, já vira pior. Mas Es­meralda ficou em estado de choque e começou a chorar.

"A prima Margarida?", quis saber Paulino, indagando pela mulher de Júlio.

"Está com a mãe dela", respondeu o pai de Paulino, que ainda tinha mais notícias sombrias. "O pai dela foi morto em casa, à frente da mãe, porque tinha uma bandeira da UDT na sala."

Paulino ficou sem saber o que dizer, faltavam-lhe as pala­vras. Olhou em redor e procurou mudar de assunto.

"O que estamos aqui a fazer?"

"Dizem que os indonésios querem fazer o recenseamento de todos os habitantes da cidade."

"Fazer um recenseamento?"

"Sim, pelo menos é o que dizem", retorquiu o pai. Apontou com o queixo para a multidão que se concentrava no aero­porto. "Quase toda a cidade foi evacuada e toda a gente en­viada para aqui."

Paulino foi verificar e viu que havia no aeroporto indonésios sentados a uma secretária a registar informações em papéis. Os timorenses formavam filas para dar essas informações. Quando terminavam, afastavam-se das mesas e ficavam no largo, à espera. A família de Paulino imitou os demais e pôs-se também na fila, tentando despachar o registo.

O processo prolongou-se por todo o dia e só ao final da tarde os camiões voltaram a encher-se para os devolver às suas residências. A multidão foi levada em colunas para a praça do Palácio do Governo, onde foi largada em liberdade. Paulino observou que no mastro flutuava já a bandeira alvirrubra da Indonésia, mas não se deteve no local. Deu a mão a Esmeralda, que tinha Isabel ao colo, e a Justino, e marcharam todos pelas ruas ainda fumegantes da cidade.

Dos montes lá ao fundo vinham os sons da guerra. Às raja­das de metralhadora, tiros isolados e detonações de granadas juntaram-se as explosões da artilharia naval e terrestre, que tentava agora alvejar à distância os alvos das Falintil. Mas os soldados timorenses mudavam com facilidade de posição, o que dificultava a sua localização, e também respondiam com fogo letal, beneficiando do moderno arsenal da NATO saqueado dos paióis portugueses. Nunca os generais indonésios pensaram que a resistência seria tão intensa nem imaginaram que, semanas mais tarde, ainda não tinham avançado um metro para fora de Díli, o que os obrigou a pedir reforços a Jacarta quinze dias depois.

Paulino e Esmeralda viam as colunas de fumo erguer-se nos montes circundantes, ignorando ainda, tal como os indonésios, que a batalha pelos arredores de Díli se encontrava apenas no princípio. Mas a sua atenção não estava focada nesses com­bates, a que de resto já se haviam habituado. O que os preo­cupava era o cenário que os rodeava, a paisagem feita de cadáveres espalhados pelo chão e casas saqueadas. Alguns dos corpos já tinham caído há vários dias e não haviam sido reti­rados, começando, naquele clima de calor e humidade, a exalar um fedor pestilento.

Quando a família chegou a Balide, o coração de ambos deu um salto ao verem a sua casa. O edifício permanecia intacto, mas no interior reinava a mais completa desordem. Os sofás tinham desaparecido, o frigorífico também, as ventoinhas do tecto já lá não estavam e até os vidros das janelas se tinham volatilizado. As lágrimas escorriam pelo rosto de Esmeralda perante a imagem da sua casa pilhada pelos larápios.

O casal percebeu finalmente tudo. Era então disso, afinal, que se tratava. De um assalto. A população não tinha sido levada para o aeroporto para que fosse feito um recenseamento; tinha sido levada para permitir que o assalto decorresse com toda a tranquilidade. Enquanto os timorenses se concentravam em Cômoro, os indonésios roubavam-nos nas suas casas. Sem vergonha nem pudor. Paulino e Esmeralda observavam boquia­bertos o interior da casa e, nesse mesmo instante, o porto de Díli enchia-se do produto do saque, dos móveis, electrodomés­ticos, aparelhos de ar condicionado e todos os bens pilhados na cidade, que agora iam mobilar os lares dos soldados em Java, em Samatra, em Sulawesi, em Lombok, nas Flores.

A violação de Díli fora completada, a humilhação dos timorenses era agora total, as luzes da esperança começaram a apagar-se por todo o lado.

A ilha mergulhava nas trevas.

 

                                                                                 GENOCÍDIO

 

Paulino sentia-se asfixiar no pequeno cubículo. A manhã já ia avançada, o confessionário estava abafado e Janeiro não era um mês particularmente simpático em Díli, com o calor e a humidade a atingirem os níveis máximos do ano. As gotas de suor nasciam-lhe por baixo do cabelo, no topo da testa, e as axilas pingavam, literalmente inundadas, deitando a perder todo o esforço da higiene da manhã. Só o facto de a camisa ser limpa impedia que o intenso cheiro da transpiração fosse ainda mais forte.

"Quando os nangalas chegaram, eu já tinha família", come­çou Paulino a contar, recuando àquele longínquo ano de 1975.

"Nangalas, meu filho?", repreendeu-o o padre.

Já era a segunda vez que o seu interlocutor usava calão e o pároco não quis desta feita deixar passar a expressão em claro.

"Desculpe, mas não consigo chamar-lhes soldados indoné­sios. Para mim, serão sempre nangalas."

"Bem", resignou-se o padre, do outro lado da cortina. "Que idade tinhas então?"

Paulino fez rapidamente as contas.

"Ora, nasci em 1955... tinha vinte anos. Frequentei o Liceu Dr. Francisco Machado, mas desisti cedo dos estudos. O meu pai tinha antepassados portugueses, a minha mãe era de Kraras. Como tinha jeito para línguas, o meu pai arranjou-me uma explicadora de inglês e quando dei por ela estava a trabalhar como recepcionista do Hotel Díli."

"O hotel do australiano...", comentou o padre.

"Sim, do mister Favaro."

"Mas porque desististe dos estudos?", indagou o pároco.

"Bem, por uma história pouco católica, não sei se o senhor vai achar bem", avisou. "Havia uma miúda linda no liceu, a Esmeralda, uma mestiça mesmo gostosa, era uma timorense com antigo sangue português e até um antepassado holandês. Os olhos eram verde-garrafa, a pele café-com-leite, uma verda­deira jóia. Começámos por trocar olhares no recreio, primeiro na brincadeira, eu todo contente por ela me prestar atenção, na verdade nem queria acreditar na minha sorte. Tal como eu desejava, a brincadeira ficou meio séria e, a certa altura, está­vamos sempre a olhar-nos, eu piscava-lhe o olho, ela sorria, primeiro embaraçada, depois devolvendo-me o olhar. As ami­gas perceberam e eram todas risinhos parvos, mas nós não nos importávamos, era tudo inveja. A certa altura víamo-nos em toda a parte, parecia feitiço. Ou destino, sei lá. Já não era só na escola, era também no cinema, na missa, na mercearia. Eu estava num sítio e ela aparecia, ela estava num sítio e eu apa­recia. Era sem querer, mas parecia de propósito. De tal modo que, quando eu saía à rua, procurava-a por toda a parte, e quando não a via sentia-me desapontado, triste até. Bem, poupo-lhe os pormenores e digo-lhe apenas que ela um dia apareceu grávida. Foi um escândalo. O meu pai aos gritos, o pai dela furioso, a minha mãe a chorar. Só eu e ela é que não estávamos muito preocupados. Pelo contrário, sentíamo-nos felizes, aquela gravidez selava o nosso amor. Aquela gravidez significava que em breve deixaríamos de nos ver às escondidas, que aqueles olhos verdes, doces e apaixonados seriam sempre meus. Pode­ria haver felicidade maior?"

"Deixaste a escola..."

"Sim, foi por isso que deixei a escola... que deixámos a escola. Casámo-nos em Motael, eu tinha os meus dezassete anos, ela dezasseis. Eu fui trabalhar para o Hotel Díli, ela ficou a ajudar os pais na padaria que tinham aqui em Balide. O meu pai montou-nos a casa em Balide, ainda lá vivo, e foi lá que tivemos o Justino." Calou-se, pensativo. "Foram os dias mais felizes da minha vida, suponho."

"Presumo que tenhas confessado o pecado carnal."

"Sim, claro", disse Paulino com um sorriso. "Confessei, mas não estava nada arrependido. O Justino era divertidíssimo, muito engraçado, tornou-se a principal atracção das nossas reuniões de família. Não era meigo, mas era cómico. Chamávamos-lhe turra, era um verdadeiro terror na cozinha, punha tudo em estado de sítio. A nossa casa era pequena e a Esme­ralda queixava-se de que ele desarrumava as coisas todas, mas era impossível não o mimar. Quando ele tinha um ano, a Es­meralda engravidou outra vez e no ano seguinte nasceu a Isabelinha."

"Isso foi quando?"

"A Isabelinha? Ora... uh... o Justino nasceu em 1972, a Isabelinha em 1974. Portanto, ali estava eu com dezanove anos, casado com uma mulher lindíssima, um menino com dois anos, uma bebé recém-nascida. O dinheiro não abundava, mas as tips dos turistas hippies australianos e dos hóspedes da metrópole constituíam um bom suplemento para o salário. Para mais, a Esmeralda tirava algum dinheiro da padaria dos pais. Como ela era bonita, o pai tirou-a da cozinha e pô-la ao balcão, o que ajudou o negócio."

"Mas 1974 foi complicado..."

"Sim. Logo a seguir ao nascimento da Isabelinha veio a revolução na metrópole. Nós, que nunca tínhamos ouvido falar de política, nem sabíamos o que isso era, fomos de repente invadidos pela vaga revolucionária. Começou a falar-se aberta­mente dos direitos das mulheres, da democracia, de Marx e Engels, dos males do colonialismo, da liberdade..."

"Isso já se falava antes..."

"É verdade, senhor padre, mas sempre às escondidas e ape­nas em círculos restritos. Agora era diferente, era tudo às cla­ras, em reuniões, em comícios, em manifestações. Até se fez uma greve por causa do salário mínimo! Onde é que alguma vez a PIDE e o governador da altura, como é que ele se cha­mava?, o coiso, o..."

"Alves Aldeia."

"... isso, o Alves Aldeia, onde é que ele alguma vez deixava que houvesse uma greve?"

"Passou a deixar."

"Pois passou, que remédio tinha ele. Era tudo novidade naquele tempo."

"Bem, adiante", apressou o padre.

"Só para dizer que despertei um pouco para a política, in-teressei-me, mas não muito. Eu queria era a minha vida com a Esmeralda e os miúdos. Quando em 1975 veio o golpe da UDT e depois o contragolpe da Fretilin, começámos a sentir que as coisas poderiam correr mal, mas não nos ocorreu sair de Timor. Foi um grande erro, mas naquela altura éramos inconscientes, não sabíamos ver bem o que se estava a passar à nossa volta, não fomos capazes de prever e acautelar o fu­turo. Foi mesmo um grande erro!"

"Andavas envolvido com alguma das partes?"

"Envolvido, envolvido, não direi. Mas, graças ao meu inglês e à experiência que adquiri no contacto com estrangeiros a trabalhar no Hotel Díli, comecei a acompanhar jornalistas. A custa disso, fui à fronteira quando os indonésios começaram a atacar."

"Estavas lá quando começou a invasão?"

"A invasão terrestre, sim. Mas no 7 de Dezembro, quando os indonésios atacaram Díli, encontrava-me aqui na cidade. Foi terrível."

Paulino fez uma pausa, relembrando o sucedido na sua mente. O padre fazia o mesmo. A memória daquela data tinha esse efeito nas pessoas que viveram aqueles aconteci­mentos.

"Foi terrível para todos", suspirou o padre. "O que fizeste nesse dia? Fugiste para as montanhas ou ficaste cá?"

"Fiquei cá. Por causa dos miúdos, eu e a Esmeralda concluí­mos inicialmente que eles eram demasiado pequenos e que não era sensato levá-los para as montanhas. Pensávamos que os bapas iam ser difíceis, mas não estávamos à espera que se comportassem daquela maneira. Depois do primeiro choque da matança e do saque da nossa casa decidimos mesmo assim, para bem das crianças, ficar cá. Só que aconteceu uma coisa que nos fez rever essa decisão."

"O que foi?"

"Os bapas começaram a exigir mulheres, ainda no rescaldo da invasão. Uma noite entraram dois nangalas na nossa casa, agarraram na Esmeralda e começaram a puxá-la, mesmo à minha frente. Riam-se e disseram qualquer coisa na língua deles que incluía Hotel Tropical. Ficámos muito alarmados. Já tínhamos ouvido falar nas violações de mulheres timorenses levadas para o Tropical. Sabíamos que era lá que o Bakin torturava o pessoal. Um vizinho nosso que ali esteve mencio­nou tê-las visto lá totalmente à disposição dos homens do Bakin, sabe, os serviços secretos civis. Em geral, os bapas só levavam para ali as mulheres com familiares na Fretilin ou então ligadas à Organização Popular da Mulher de Timor ou à União Nacional de Estudantes de Timor. Mas eu acho que a Esmeralda foi referenciada pela sua beleza, pelos seus olhos verdes, pelas formas do seu corpo."

"Os indonésios levaram-na?"

"Quando vi os dois nangalas a puxá-la e a falar no Tropical perdi a cabeça e atirei-me a eles. Agarrei um pelo pescoço, o outro veio ajudá-lo, senti a faca no cinto do homem que eu agarrava, peguei nela e esfaqueei-o no peito e nos rins; depois voltei-me e esfaqueei o segundo no pescoço. A Esmeralda grita­va, descontrolada, e os miúdos ficaram muito assustados. Per­cebi então que estávamos perdidos, todos nós. Havia dois nangalas a esvaírem-se em sangue no chão da minha casa e não via forma alguma de os bapas nos deixarem com vida quando descobrissem o que tinha acontecido. Primeiro acalmei a Esme­ralda e os garotos, depois sentei-me um pouco para pensar. Por mais voltas que desse à cabeça, só vislumbrava uma solução para o nosso caso."

"Fugir?"

"Sim, fugir. Fui cavar um buraco no quintal, arrastámos para lá os dois nangalas e enterrámo-los..."

"Estavam mortos."

"Um estava, de certeza. O outro, não sei bem. Mas, se não estava, passou a estar. Tapámos tudo muito bem e depois fui conversar calmamente com a Esmeralda. Disse-lhe que, se fi­cássemos, podiam acontecer duas coisas. Ou os bapas desçobriam os cadáveres e nos matavam. Isso era muito possível, uma vez que aqueles homens tinham certamente sido manda­dos pelo Bakin. Ou, mesmo que não descobrissem, mais nangalas iriam ali aparecer para a levar para o Tropical ou qualquer outro sítio onde a violassem, como acontecia nas prisões. A beleza dela era a sua maldição. Por isso tínhamos de fugir para as montanhas, custasse o que custasse."

"E fugiram..."

"Foi difícil, mas fugimos. Graças a um amigo que conhecia alguém, arranjámos maneira de nos virem buscar, pela noitinha, e de nos levarem para fora de Díli."

"Isso aconteceu quando?"

"Foi em Fevereiro de 1976, mais ou menos na altura em que os nangalas tomaram Aileu. Eles tinham percebido que não conseguiam passar de Díli e pelo Natal mandaram vir o dobro das tropas de que dispunham, de modo a avançarem para outras partes do país. Nessa altura já havia milhares e milhares de pessoas, que inicialmente tinham ficado nas cidades, a fugi­rem para as áreas controladas pelas Falintil, de maneira que nos juntámos a esse êxodo. Os massacres assustaram toda a gente. Em Díli foi o que se sabe. Em Maubara e Liquiçá cha­cinaram a população chinesa e muitos timorenses. No Remexio e Aileu mataram toda a gente que tinha mais de três anos de idade. Homens, mulheres, velhos, crianças. Tudo, excepto os bebés, que ficaram órfãos e mais tarde soube que foram envia­dos para Jacarta. Disseram-me que a própria Igreja da Indoné­sia fez um relatório confidencial a revelar que, no primeiro ano da ocupação indonésia, tinham morrido, ao todo, cem mil pessoas em Timor. As notícias destas matanças levaram as pessoas nas outras povoações a fugir para as áreas das Falintil antes que os nangalas chegassem. Em Ainaro, por exemplo, os nangalas encontraram a vila absolutamente deserta, sem um único timorense; tinha tudo ido para as montanhas, abando­nando as plantações de café. De maneira que a Fretilin tinha sob a sua responsabilidade um total de meio milhão de pessoas. Havia mais gente a viver sob a protecção das Falintil do que a sobreviver nas cidades sob a bota dos bapas."

"E para onde é que vocês foram?"

"Nós fomos para Kraras, perto do monte Matebian, onde as Falintil tinham montado o seu quartel-general. Kraras era a terra da minha mãe, ainda lá viviam uns parentes, pareceu-nos a melhor opção. Ficámos surpreendidos com a extensão de território que era controlado pelas Falintil, era extraordinário como os nangalas, com o seu gigantesco exército e as suas armas americanas, apenas conseguiam operar dentro das cida­des. Sempre que se deslocavam para um sítio, as Falintil montavam-lhes emboscadas e atacavam-nos, infernizando-lhes a vida. Outra surpresa foi descobrir que se comia melhor na zona da Fretilin. Enquanto em Díli só havia comida para uma refei­ção por dia, em geral apenas arroz, e a única carne era a de cão, enquanto os houve, no campo sempre se encontravam mais alimentos, incluindo carne e fruta. As pessoas organizaram-se no campo, a Fretilin encorajou a agricultura, semearam-se campos e criou-se uma base mínima de subsistência. Era fru­gal, mas era melhor do que a fome de Díli. Para além disso, enquanto em Díli os hospitais estavam ocupados pelos nangalas e os timorenses tinham falta de assistência médica, na zona das Falintil foi montado um serviço de saúde e passaram a ser fabricados medicamentos a partir de plantas medicinais."

"Então foram para Kraras", disse o padre, redireccionando o relato de Paulino.

"Fomos. Os meus primos arranjaram-nos uma cabaninha e lá ficámos nós. Eu, a Esmeralda e os miúdos. O Justino tinha já quatro anos, a Isabelinha tinha dois. Coitados, passaram por todas aquelas dificuldades, aqueles horrores, mas mantinham--se alegres, brincavam, eram eles que nos davam ânimo. Aquilo não era infância que se tivesse, mas nós parecíamos mais preo­cupados com isso do que eles. O que, bem vistas as coisas, até é natural. Nós possuíamos termos de comparação, eles eram ainda muito pequenos e, por isso, as dificuldades pareciam-lhes normais. Tinham fome e estavam magros, mas habituaram-se a comer pouco e não se queixavam de mais. Os miúdos foram realmente formidáveis. O que é curioso é que eu e a Esmeralda nos sentíamos ao mesmo tempo miseráveis e felizes, tínhamos escapado aos bapas e estávamos vivos e juntos. Feitas as con­tas, podia ser pior."

"Como é que correram as coisas em Kraras?"

"De início, bem, considerando as circunstâncias, claro. Mas, nos finais de 1977, a situação foi-se tornando cada vez mais difícil. Os nangalas estavam cansados de levar tareia das Falintil e lançaram uma grande ofensiva, a famosa campanha de 'cerco e extermínio'. Arranjaram aviões Bronco, aparelhos americanos de ataque ao solo muito mais eficientes do que os jactos, que eram demasiado rápidos para ter qualquer eficácia contra tropas escondidas no mato e em grutas. Além disso bombardearam as áreas florestais para desfolhar o terreno e retirar cobertura às Falintil. Alguns bombardeamentos eram estranhos. Apareciam pessoas a vomitar e com diarreia depois de beberem água das zonas atacadas há pouco tempo, ou então apareciam larvas a destruir as colheitas dessas zonas recente­mente bombardeadas. Claramente, estavam a usar armas quí­micas e biológicas."

"Esse foi o momento mais difícil...", comentou o padre.

"Não, o momento mais difícil foi nos dois anos seguintes. Os nangalas intensificaram a campanha em 1978, determina­dos a estourar com a resistência. Atacaram com tudo o que tinham, os bombardeamentos duravam horas e horas, a terra tremia, as águas dos rios ficaram cheias de sangue e de corpos a boiar, era uma coisa incrível e indescritível. Começaram na zona de fronteira e foram deslocando esses ataques progressi­vamente para leste. Em Outubro e Novembro chegou a vez do monte Matebian, o último reduto das Falintil e dos milhares de civis que, como nós, buscavam protecção por detrás das suas linhas. Os nangalas largavam todos os dias, no sopé do monte, entre seiscentas e setecentas bombas e varriam as encos­tas com napalm. Era o terror completo. Para encurralar ainda mais as Falintil, a infantaria dos nangalas avançava atrás de uma linha de timorenses obrigados a marchar à sua frente, enquanto ia destruindo todas as colheitas. Quando finalmente tomaram o Matebian e mataram o Nicolau Lobato foi uma catástrofe."

"Vocês estavam em Kraras nessa altura?"

"Não, estávamos mesmo no Matebian, tínhamos saído de Kraras para fugir ao avanço dos nangalas. Os miúdos tinham fome, nós tínhamos fome, não havia onde dormir, os nangalas não paravam de nos sobrevoar e de largar bombas e metralha, estava tudo cercado, foi o fim. Não havia para onde fugirmos e as Falintil não possuíam poder de fogo para travar aquele vendaval ofensivo nem dispunham de capacidade para proteger as populações que se amontoavam nas encostas. Os grupos que se rendiam eram mortos. Quinhentas pessoas que se renderam em Vadaboro, na cordilheira do Matebian, foram chacinadas. Outras trezentas tiveram a mesma sorte em Taipo, mais cem no Sul do Matebian. Estávamos realmente encurralados. Ou nos rendíamos, e éramos massacrados, ou fugíamos, e éramos mas­sacrados. Foram ao todo milhares de pessoas a serem abatidas no sector do Matebian."

"Então como é que vocês escaparam?"

"Quando o Lobato morreu, a 31 de Dezembro, e depois de uma orgia de chacinas, os nangalas acalmaram. Eu e a minha família estávamos em Janeiro de 1979 com mais umas dezenas de pessoas junto a uma fonte, nas encostas do Matebian, quan­do os nangalas nos apanharam. Mataram dois rapazes logo ali e confesso que pensei que íamos ser todos mortos. Eu, a Esme­ralda, o Justino e a Isabelinha abraçámo-nos. Mas os nangalas mandaram-nos segui-los. Os combates nessa altura já tinham acabado e eles procediam a operações de limpeza da monta­nha. Caminhámos durante umas horas e, lá em baixo, havia camiões militares. Meteram-nos nos camiões e trouxeram-nos para o Remexio."

"Então voltaram para ao pé de Díli..."

"Sim, viemos aqui para o Remexio. Sentíamo-nos mortos de cansaço e de fome e eu pensei que, se não nos tinham fuzilado no Matebian, então já não nos matariam. Isso animou-nos um pouco. Puseram-nos no campo de realojamento do Remexio, onde há já alguns meses estavam dezenas de milhares de pes­soas arrebanhadas das zonas das Falintil. Depressa nos aper­cebemos de que, em vez de nos matarem de uma vez, os bapas queriam acabar lentamente connosco. Soube que eles espalha­ram campos destes por todo o país, para onde atiraram trezen­tas mil pessoas, era metade da população que sobrevivera à chegada dos nangalas e que se encontrava confinada a esses campos. Estávamos proibidos de sair dali. Entregaram-nos uns cartões de identificação, mas não nos davam comida suficiente. Como não podíamos sair para cultivar ou recolher alimentos, a fome começou a alastrar. Todos os dias morria gente no campo, talvez uma dezena por dia. Eu e a Esmeralda vivíamos desesperados com a situação dos miúdos. A Isabelinha e o Justino choravam com fome e nós não tínhamos nada para lhes dar nem podíamos ir à procura de comida. Sentíamo-nos totalmente impotentes. Quando aparecia uma malga de arroz, eu e a Esmeralda separávamos uns grãos para cada um de nós e dividíamos o resto da malga ao meio, metade para o Justino, metade para a Isabelinha. Juntávamos baratas e formigas ao arroz, para lhe dar mais consistência de proteínas."

"Eu lembro-me desse período, toda a gente passava fome", interrompeu-o o padre. "O que é incrível é que os bapas tive­ram o..."

"Bapas, senhor padre? Então também fala calão?"

"... perdão, os indonésios. Os indonésios tiveram o descara­mento de chamar diplomatas e jornalistas para lhes mostrar o estado lastimoso das populações famintas que vieram do sector das Falintil. Foram os indonésios que tinham provocado aquilo, mas conseguiram transmitir a imagem de que era tudo resul­tado da acção das Falintil. Até receberam auxílio alimentar internacional para os ajudarem na sua nobre missão de dar de comer aos pobrezinhos dos famintos de Timor-Leste!"

"Senhor padre, essa ajuda nunca chegou aos campos, isso garanto-lhe eu. Pelo menos, não ao Remexio. Mas lembro-me de me terem contado que, uns meses antes da nossa captura, tinha aparecido no Remexio o ministro dos Negócios Estran­geiros, o Mochtar Kusuma-tmaadja, com um grupo de diplo­matas e jornalistas estrangeiros, e de terem obrigado os timorenses a gritar merdeka em coro. A malta nem sequer sabia o que era merdeka! Enquanto gritava, o pessoal entreti-nha-se a fantasiar que estava a descrever a sua situação ou que estava a insultar os bapas."

Riram os dois, imaginando o equívoco. Os indonésios a ouvir os timorenses a gritar "liberdade" em bahasa indonésio, os timorenses a pensar que os seus carcereiros lhes tinham pedido que dissessem em coro que a sua situação era uma grande merdeka.

"Bem, e depois?", disse o padre, incitando Paulino a reto­mar a sua narrativa.

"Depois as coisas foram piorando, piorando", respondeu Paulino, o sorriso a desaparecer-lhe do rosto, os olhos a ensombrarem-se. "Uma vez, em desespero de causa, esgueirei-me do campo com outros dois timorenses e fomos à floresta procurar alimentos. Voltámos horas depois, com tapioca e folhas, que comemos sofregamente. No dia seguinte, encorajados pelo êxito da operação da véspera, saímos os três novamente, bem à noitinha, para ir outra vez à procura de comida. Os outros dois iam à frente, eu atrapalhei-me com o arame farpado e atrasei-me ligeiramente. De repente, as luzes acenderam-se à nossa frente, iluminando os outros dois. Os nangalas abriram fogo e os meus companheiros caíram no chão. Tínhamos sido apanhados numa emboscada montada pelos nangalas. Fiquei paralisado pelo medo. Quis fugir, mas não me conseguia mexer. Foi a minha sorte porque afinal os nangalas não me tinham visto. Devagar, recuei para dentro da cerca e fui ter com a Esmeralda e os miúdos. Estavam os três deitados no chão, muito fracos. Há já algum tempo que andavam adoentados, coitados, mas nessa altura já nem conseguiam andar. A Esme­ralda tinha uma tosse cavernosa, até fazia impressão quando se punha a tossir. Havia uma epidemia de tuberculose no campo e apercebi-me de que ela tinha apanhado a doença. Os miúdos estavam esquálidos e não brincavam. Debaixo da pele só ti­nham ossos. Os músculos desapareceram e as barrigas incha­ram como um balão, estavam cheias de água. Sem poder sair do campo para ir buscar comida, senti-me desesperar. Não sabia como os ajudar. Não havia medicamentos nem alimentos. A determinada altura, o Justino começou a ter diarreia, o que também era normal no campo. Procurei dar-lhe água e arroz, mas não era fácil arranjar arroz. Dias depois, o nosso Justino começou também a vomitar. Só lhe saía água e ácido. Além disso, estava com os movimentos muito lentos, deixou de pes­tanejar e tinha os olhos cheios de moscas. A Esmeralda come­çou a chorar, vendo o nosso filho naquele estado. Um dia, de manhã, fui o primeiro a acordar e saí para ver se haveria distribuição de comida ou se conseguia localizar algum insecto ou lagarto para comermos. Quando voltei, com um escarave­lho e alguma água, a Isabelinha já tinha acordado. Dei-lhe de beber, guardando o escaravelho para quando tivéssemos arroz. A Esmeralda despertou pouco depois e começou logo a tossir. Estranhámos o Justino demorar a acordar, sobretudo consi­derando o barulho da tosse. Fui ter com ele e abanei-o suave­mente. Senti-o muito frio e assustei-me. Abanei-o com força e ele não acordou. Senti uma depressão dentro de mim, mal conseguia respirar. O meu filho tinha morrido. Aquilo que receava tinha acontecido. A Esmeralda abraçou-o, tossia e chorava, pedia a Deus para ele acordar, agarrou-se durante muito tempo àquele corpo esquelético e inerte, que parecia dormir. Mas não havia nada a fazer. O Justino tinha morrido. Tinha apenas sete anos e passara mais de metade da vida, a metade que ele recordava, no inferno. Tecnicamente, morreu de doença, de diarreia. Na verdade, morreu de fome, os bapas mataram-no lentamente."

A voz de Paulino desfez-se em soluços, as últimas frases ditas já com enorme dificuldade. Fez-se silêncio no confessio­nário. Paulino passou o braço direito pelo nariz, limpando o ranho. Com a mão esquerda tirou as lágrimas dos olhos e retomou a narrativa.

"Enterrámo-lo num buraco ali ao lado, quase nu, coitado. Era um esqueleto pequenino, o nosso filhinho."

Mais soluços.

"O pior é que, dias depois, a Isabelinha manifestou os mesmos sintomas. Tinha a barriga inchada e as moscas come­çaram a voar-lhe à volta dos olhos. Depois veio uma diarreia semelhante. Eu e a Esmeralda estávamos a viver um verdadeiro pesadelo. Tinha-nos acabado de morrer um filho à fome e ia--nos agora morrer o outro. A Isabelinha tinha cinco anos e ia morrer. Foi então que tomámos a decisão de nos separarmos. Percebemos que tínhamos de fugir do campo, mesmo correndo o risco de sermos abatidos pelos nangalas, e ir procurar ajuda noutro lado. O problema é que a Esmeralda não podia andar, a tuberculose estava a afectá-la muito. Mas, se ficássemos, a Isabelinha morria de certeza. Ora, como eu estava em condi­ções de andar, decidimos que seria eu a levar a Isabelinha dali para fora."

Nova pausa no confessionário. O padre sabia que era sua função oferecer consolo, mas sentiu que, naquelas circunstân­cias, talvez fosse melhor nada dizer, teria de ser o seu interlocutor a retomar a narrativa. O que Paulino acabou por fazer, embora de forma penosa.

"Foi uma decisão muito difícil. Eu e a Esmeralda chorámos abraçados. Quando a noite caiu, peguei na Isabelinha, pu-la nos braços da mãe, a Esmeralda agarrou-a com muita intensi­dade, deixei-as algum tempo e depois arranquei-a quase à for­ça, lancei um último olhar à minha mulher, pensando que pro­vavelmente não a voltaria a ver, e fugi dali, envolvendo a menina com uns trapos que tinham pertencido ao irmão."

Paulino fez nova pausa.

"Disseram-me que o último censo português, efectuado em 1974, contabilizava quase setecentos mil habitantes em Timor-Leste, e que o primeiro censo indonésio, realizado em 1979, apontava para quinhentos mil. Será verdade?"

"Infelizmente é", assentiu o padre. "Faltam duzentas mil pessoas entre 1974 e 1979." Uma pausa. "São duzentos mil mortos."

Foi nessa altura que alguém bateu suavemente na madeira do confessionário.

"Senhor padre, demora muito?"

Era uma idosa que estava na fila.

"Espere, minha senhora."

"É que já estamos há meia hora à espera de nos confessar..."

"Espere, minha senhora", repetiu o padre, irritado com a interrupção.

Paulino abanou a cabeça, os olhos fixos no chão.

"Senhor padre, eu volto noutro dia."

"Não, continua."

"Não tenho coragem de continuar. Volto amanhã e acabo a confissão."

"De certeza?"

"Sim, senhor padre. Isto agora está a fazer-me mal, não quero continuar a falar nestes assuntos."

"Mas a confissão é importante..."

"Eu sei. Eu volto amanhã."

Paulino levantou-se num ápice, determinado a não dar tem­po ao padre para argumentar. Saiu da igreja de Balide quase a correr, invadido por um sentimento ambivalente. Por um lado, experimentava alívio por ter contado parte da história. Mas, por outro, sentia-se atormentado pelas recordações, agora mais vivas do que nunca, mais dolorosas, mais cruéis. E o mais grave é que não conseguira terminar a sua narrativa.

Quando reentrou em casa, a decisão estava tomada. Não voltaria ao confessionário. O que tinha a dizer já fora dito. O que faltava dizer, teria de o dizer a Esmeralda. Era ela, afinal, o seu verdadeiro confessor, não um desconhecido, mesmo sendo ele o representante de Deus. Esmeralda era a única que o compreenderia, se é que havia algo para compreen­der, a única com poderes para o absolver, se ele não estava já para além da absolvição. Se a confissão que tinha para lhe fazer não fosse capaz de afugentar os fantasmas que o importuna­vam, então a confissão ao padre também não teria esse poder. Isso tudo sabia Paulino agora.

 

Sebastião pegou na placa do "E" e assentou-a sobre a gran­de folha de cartolina. Verificou o alinhamento com as outras letras e as linhas traçadas a lápis, mergulhou o pincel na tinta e passou-o sobre a placa. Retirou a placa e verificou se o "E" ficara bem impresso, à frente do "F" e do "R". Satisfeito, repetiu a operação com a mesma placa e voltou a observar o resultado. "FREE" estava bem visível, embora algo artesanal.

"Amanhã fazemos os cartazes em português", murmurou Afonso, de pé atrás de Sebastião com uma vela na mão, a apreciar o esforço do companheiro, que permanecia ajoelhado sobre a cartolina.

"Isso se conseguirmos terminar este ainda hoje", retorquiu Sebastião sem erguer os olhos do trabalho.

"Nem que fiquemos toda a noite", exclamou Afonso, sem­pre metódico. "Temos de estar dentro do prazo, os portugueses não vão esperar por nós."

Afonso Henriques chegara havia algumas horas de Baucau e, tal como o seu homónimo português, alimentava aos vinte e nove anos o sonho de fundar uma nação. Quando, após a morte de Nicolau Lobato, Xanana Gusmão assumiu a lideran­ça das Falintil e reorganizou toda a resistência aos indonésios, Afonso era ainda um adolescente, o que não o impediu de aderir à rede clandestina.

Sob a liderança de Xanana, a resistência continuou nas mon­tanhas, para grande consternação dos indonésios, e os guerri­lheiros tiveram até a ousadia de lançar uma operação dentro da cidade de Díli em 1980. Xanana pôs fim à vertente comunista da Fretilin e criou o Conselho Revolucionário de Resistência Nacional, uma frente comum que incluía outros partidos timorenses, designadamente a UDT. Mas, apesar das novidades que vinham das montanhas, o essencial da resistência foi-se transferindo gradualmente para os círculos estudantis, que Afonso integrava, e para a Igreja, que fazia a ligação entre a guerrilha, os estudantes e o exterior. As Falintil já não opera­vam como um exército regular desde que a sua máquina militar fora esmagada no Matebian, mas como unidades de guerrilha cuja acção desestabilizava as forças indonésias, embora com menos aparato.

Em 1988, a Indonésia decidiu abrir o território ao exterior, fazendo-o no entanto de uma forma muito cautelosa e contro­lada, e em 1991, desejosa de pôr fim à enorme pedra no sapato que eram as permanentes e incómodas objecções portuguesas à anexação, acordou com Portugal uma visita de deputados portugueses ao território. Os indonésios esperavam demons­trar, durante essa visita, que Timor-Leste estava perfeitamente integrado na sua república, procurando assim convencer os portugueses a mudarem a sua postura. Mas os timorenses não se mostravam dispostos a colaborar com Jacarta. A visita dos deputados portugueses constituía a grande oportuni­dade do movimento nacionalista para fazer valer os seus direi­tos, e os timorenses preparavam-se para jogar o tudo ou nada nessa cartada. Xanana dera ordem para se organizar uma gi­gantesca manifestação perante os deputados, com exibição de cartazes em inglês e português, e de bandeiras das Falintil e de Portugal.

Afonso chefiava uma das unidades de estudantes encarrega­da de elaborar os cartazes e decidira vir a Díli para verificar o progresso dos trabalhos.

"O que é esse saco?", perguntou Sebastião, apontando para um saco de plástico de mercearia que Afonso encostara à porta quando chegara.

"É a bandeira portuguesa."

"Mostra", pediu Sebastião, cheio de curiosidade, interrom­pendo o trabalho.

A sua cartolina já tinha escrito "FREE EA"; faltava agora o "S" e o "T", e a palavra "Timor".

Afonso agarrou no saco, meteu a mão lá dentro e puxou um tecido, inicialmente apenas vermelho. Abriu-o de lado a lado e exibiu a bandeira. Verde e vermelha, a esfera armilar e as armas portuguesas ao centro. Sebastião admirou-a, simultanea­mente agradado e nervoso. A sua exibição em público, frente aos deputados portugueses, seria mais um murro no estômago dos indonésios, a acrescentar aos murros que constituíam os cartazes que estavam a preparar.

"Onde é que conseguiste isso?", quis saber.

"É segredo", riu-se Afonso. "Trouxeram-ma de Portugal."

"Os padres?"

"Não posso dizer."

Mas era evidente que só podiam ter sido os padres. Eram eles que mais ajudavam os estudantes e faziam uso da sua liberdade de circulação e de contacto com as grandes multi­dões para servir de correio aos jovens nacionalistas timorenses. A resistência à ocupação indonésia encontrava-se nesse mo­mento assente no triângulo Falintil-estudantes-Igreja, o que os militares indonésios sabiam. Os padres eram obrigados à maior discrição, de modo a não violar de forma demasiado óbvia o seu estatuto de suposta neutralidade, e os indonésios viam-se na contingência de os tolerar. Havia muitos cristãos no país, em particular nas ilhas orientais onde os portugue­ses tinham estado, como Timor, Flores, Sumba e as Molucas, pelo que as boas relações com a Santa Sé eram cultivadas por Jacarta. Para o movimento de resistência timorense, o dis­creto apoio da Igreja à sua causa era uma verdadeira bênção e o respeito dos indonésios pelo Vaticano um grande golpe de sorte.

Um som de bater à porta colocou os dois timorenses em sobressalto. Afonso apressou-se a meter a bandeira no saco, enquanto Sebastião enrolava à pressa a cartolina. A batida era ritmada, como convencionado para a senha da noite, o que acalmou os dois, mas não totalmente. Estavam a desenvolver uma actividade clandestina e nada lhes garantia que um dos muitos informadores dos indonésios não tivesse tido conheci­mento da reunião e da senha. Já acontecera noutras ocasiões, e agora, com a aproximação da visita dos deputados portugue­ses, os militares andavam mais nervosos do que nunca, abso­lutamente empenhados em cortar pela raiz qualquer potencial foco de embaraço que deitasse por terra a imagem que preten­diam oferecer de um território perfeitamente integrado na República da Indonésia. Por isso todas as cautelas eram poucas.

Sebastião e Afonso esconderam os cartazes e a bandeira num alçapão e foram abrir a porta. Um grupo de jovens estava amontoado à entrada, ansioso por penetrar na casa.

"Por momentos pensei que não estivesse cá ninguém", de­sabafou um deles, Bonifácio, que se apressou a entrar. "Há nangalas por toda a parte."

"Alguém vos viu?", quis saber Afonso, enquanto os recém--chegados entravam.

"Acho que não", disse Bonifácio. "Mas não tenho a cer­teza."

Sebastião voltou ao alçapão e foi buscar os cartazes, mas deixou a bandeira pousada no chão.

"Temos muito trabalho pela frente", avisou.

"Não há problema", devolveu Bonifácio. "Vamos ficar até o Sol nascer, não é seguro sairmos daqui ainda noite."

O grupo espalhou-se pela sala, foram acendidas várias velas e abertas cartolinas. Afonso começou a distribuir trabalho.

"João, tu ajudas o Sebastião a concluir o cartaz em inglês. Carlos e Xavier, façam outro em inglês. Tu vais redigi-lo, Bonifácio, e depois mostras-me. Eu e o Tomás vamos pensar nas frases em português."

Os jovens deitaram mãos ao trabalho. Sebastião sentia-se mais descontraído agora que o grupo chegara, e ouviam-se risos baixos na sala, alguns aproveitavam para dizer pequenas piadas. O momento alto ocorreu quando Bonifácio leu em voz alta uma das suas propostas de texto para um cartaz.

"Fuck Suharto in peidola!"

A gargalhada foi geral. Afonso riu com gosto e Sebastião contorcia-se agarrado à barriga, as lágrimas nos olhos.

"Sutrisno   is paneleiro!", disparou novamente Bonifácio.

Novas gargalhadas, todos imaginando o ar estupefacto de militares indonésios, deputados portugueses e jornalistas a olharem para uma manifestação com aquele tipo de cartazes.

Mas à terceira tirada deixou de ter tanta graça. Bonifácio começava a repetir-se nos jogos de palavras, com as suas misturas de tétum, português e inglês, para achincalhar a sexualidade dos dirigentes indonésios e lançar dúvidas sobre a sua virili­dade. A calma regressou ao grupo, absorto nas suas tarefas.

Pela meia-noite, Afonso levantou-se e foi à janela. Fazia-o de quinze em quinze minutos, para se assegurar de que estava tudo bem. Desta vez, porém, não estava. Havia três homens encostados a uma árvore, do outro lado da rua, mesmo em frente à casa onde se escondiam, na Rua Albuquerque.

"Atenção!", murmurou. "Eles estão lá fora."

O grupo ficou momentaneamente gelado. Os jovens ajoe­lhados no chão, inclinados sobre as cartolinas, a luz amarelada das velas a dançar no rosto e a projectar sombras bamboleantes na sala, levantaram a cabeça e olharam para Afonso, o alarme estampado nos olhos.

"Depressa!", ordenou Afonso, olhando para os companhei­ros. "Arrumem as coisas."

Os timorenses enrolaram apressadamente os cartazes, Se­bastião mostrou-lhes o alçapão, Bonifácio empurrou para ali os três rolos de cartolina e as tintas e placas de letras, Sebastião ocultou o esconderijo, as velas foram apagadas. O grupo con­vergiu para a janela e espreitou. Lá se encontravam os três homens junto à árvore, um fumava um cigarro, o ponto de luz vermelho a dançar entre os seus dedos.

"Bufos", disse Bonifácio. "São os homens do Mariano."

Referia-se ao administrador Armindo Mariano, um dirigen­te integracionista.

Os vultos na rua abandonaram de repente a sua pose descontraída e começaram a olhar para a direita. Afonso e os seus rapazes olharam também, mas o ângulo da janela impedia-os de ver o que se passava naquele sector. Instantes mais tarde, viram, em pânico, um camião militar a parar em frente da casa, homens a saltarem da lona, eram soldados.

"Depressa, depressa", exclamou Sebastião, fugindo da ja­nela. "Vamos pelas traseiras."

O grupo nem hesitou. Desataram todos a correr, atraves­sando a cozinha até ao quintal. Lá fora ouviam-se ordens militares em babasa indonésio. Os jovens treparam a vedação e saltaram para o outro lado, um caminho de terra que ia desembocar na Rua da Colmera. Ouviram passos de botas a bater ritmadamente no chão e perceberam que os soldados procuravam cercar a casa. Do outro lado da vedação largaram a correr, nem sentiam as pernas, tentavam fundir-se com o vento, desaparecer antes que os soldados chegassem às trasei­ras e se apercebessem de que as suas presas já tinham escapado da toca.

"Berhenti! Berhenti!", gritou um dos soldados, mandando os fugitivos parar.

Tarde de mais, tinham sido referenciados.

"Motael", disse Bonifácio para os companheiros, correndo o mais que podia.

Todos perceberam. Era cada um por si e o ponto de encon­tro, e de abrigo, era a igreja de Motael, a uns oitocentos metros de distância em direcção ao mar.

Soaram disparos. Um, dois tiros na noite. Os timorenses chegaram à Rua da Colmera e meteram por um atalho paralelo à Rua Albuquerque, saltando vedações e cruzando quintais. Gritos de soldados, lá atrás, informavam-nos de que estavam a ser perseguidos. Desembocaram na Rua Américo Thomás, viraram à direita, viram o jardim da igreja à esquerda, o Hotel Makhota à direita, atravessaram a rua em corrida e saltaram para o jardim, correndo para a igreja. A porta estava fechada, mas mesmo assim atiraram-se contra ela, com grande estrondo.

"Senhor padre! Senhor padre!", gritou Sebastião, que fre­quentava a igreja e conhecia bem o padre Vicente.

Durante um longo instante, o santuário permaneceu ador­mecido, ignorando a angústia dos jovens plantados à sua porta.

"Não vamos escapar, não vamos escapar!", desesperou Bonifácio, olhando para trás, para a rua.

Ainda não se viam os soldados. Claramente, os indonésios tinham-se atrasado na perseguição, estavam menos familiariza­dos com os atalhos percorridos pelas suas presas, mas ninguém tinha dúvidas de que apareceriam.

A porta abriu-se e o padre Vicente, de pijama, olhou assustado.

"O que se passa?"

"Senhor padre", implorou Sebastião. "Deixe-nos entrar, por favor. Os nangalas vêm aí."

O padre não percebeu tudo, mas percebeu o essencial. Abriu a porta e fez-lhes sinal para entrarem depressa. Bonifácio já tinha avistado vultos de soldados na rua e empurrou os seus companheiros.

"Depressa", murmurou. "Eles vêm aí."

O grupo entrou, o padre trancou a porta e conduziu-os a uma sala contígua. Algumas freiras circulavam com velas nas mãos. Ao aperceberem-se do que se estava a passar, foram imediatamente certificar-se de que o edifício se encontrava se­lado. O padre pediu aos jovens que rezassem, o que estes fize­ram de imediato, e deixou-os entregues às orações. Subiu as escadas e foi espreitar pela janela. Havia soldados indonésios lá fora. Vinham armados e improvisavam um cerco à igreja. A situação era grave, apercebeu-se o padre.

Alguém bateu à porta com violência.

"Não abram", ordenou o padre às freiras.

Novas batidas, insistentes.

Dentro da igreja, o tempo parecia congelado, as pessoas transformadas em estátuas. Uma das freiras ajoelhou-se e co­meçou a rezar. As outras imitaram-na.

Houve uma pausa nas batidas na porta.

Silêncio.

Depois, um estrondo brutal. Os indonésios arrombavam a porta. As freiras suspenderam por momentos a oração, aterro­rizadas, e o padre tomou uma decisão de último recurso. De­satou a correr pela igreja, subiu as escadas da torre e chegou ao carrilhão do sino. Puxou desesperadamente a corda e o sino da igreja começou a tocar a rebate. Era madrugada, mas o sino soava com urgência.

Os indonésios conseguiram rebentar a fechadura e entraram de rompante. O soldado da frente, um homem de Sumba, apercebeu-se de vultos dentro da igreja e abriu fogo. Duas freiras rebolaram pelo chão, atingidas nas pernas. Os soldados afluíram em catadupa, um deles partindo vidros com a coronha da Ml 6. Um oficial, pistola na mão, gritou ordens aos seus homens e estes espalharam-se pelo interior do edifício. Na torre, o sino ainda tocava a rebate.

Os indonésios chegaram à sala onde estavam entrinchei­rados os timorenses e um soldado abriu fogo.

Sebastião e Afonso caíram no chão, o sangue a escorrer pelo pavimento.

O oficial gritou uma ordem e o soldado calou a arma. Os indonésios invadiram a sala, agarraram em Bonifácio e nos seus companheiros e arrastaram-nos para a rua. O oficial curvou-se sobre Sebastião e Afonso e colocou a mão na carótida de um e depois do outro.

"Estão mortos", constatou, e saiu.

 

O pipilar musical das andorinhas nos galhos verdejantes conferia, naquela hora fresca do despertar, uma enganadora aparência de calma à cidade. As ruas junto ao Hotel Turismo permaneciam quase desertas e uma aragem salgada que desli­zava do mar enchia o ar de uma fragrância pura, era o picante aroma da salmoura que se insinuava com o perfume da neblina matinal.

Os olhos azuis cristalinos de Max Stahl perderam-se por instantes pela paisagem para lá das janelas do hotel, como se navegassem na brisa revigorante daquela manhã de 28 de Ou­tubro de 1991. Mas depressa a sua atenção regressou à mesa do pequeno-almoço. Mirou a torrada quente que acabara de barrar com uma manteiga de aspecto duvidoso e, no momento em que se preparava para a trincar, sentiu uma presença a abeirar-se de si.

"Houve problemas esta noite", disse-lhe, em português, o empregado, inclinando-se para servir o leite.

"Esta noche?", perguntou o hóspede em espanhol.

"Em Motael", sussurrou o rapaz. "Os indonésios mataram dois nacionalistas dentro da igreja."

A atenção do inglês despertou por inteiro e concentrou-se no empregado.

"Verdadr

"Sim", confirmou o timorense, falando muito baixo. "Houve tiros e o padre tocou o sino de madrugada, atraindo muita gente à igreja. A polícia veio em força e carregou sobre a multidão, forçando as pessoas a dispersarem."

Max esboçou uma careta incrédula. Tinha dormido bem e não notara nada de anormal.

"Esto noche?"

"Sim. Em Motael." O empregado olhou em redor, para se certificar de que ninguém o escutava. "E verdade que o senhor é jornalista?"

O inglês endireitou-se, subitamente tenso. Sentia-se alar­mado por aquela informação ser do domínio público.

"Quem lhe disse isso?"

"Os meus amigos."

"Que amigos?"

"Uns amigos que eu tenho."

Max hesitou.

"Indonésios?"

O empregado riu nervosamente.

"Não. Timorenses."

"Resistência?"

"Uns amigos."

O inglês descontraiu-se. O nervosismo do empregado tor­nava claro que a sua fonte era a rede clandestina.

"Para que quer saber isso?"

O timorense encolheu os ombros.

"Alguém tem de contar o que aqui se passa, não acha?"

Max não precisava que lhe dissessem o que tinha a fazer. Concluiu apressadamente o pequeno-almoço e foi de imediato ao quarto buscar a minúscula câmara que trouxera de Inglater­ra. A máquina vinha escondida dentro de um estojo de mão, a lente a espreitar por uma abertura discreta. O jornalista pegou nas coisas e desceu para a recepção, onde pediu direcções.

Saiu à rua de estojo a tiracolo. Com o seu ar de byppie tardio, que cultivava para passar por turista inofensivo, cami­nhou tranquilamente ao longo da marginal, como se gozasse a maresia que enchia o ar e lhe afagava a barba rala, soprando nos caracóis aloirados que se lhe enrolavam na ponta dos ca­belos compridos. Palmilhou o caminho com passo de visitante ocioso, embalado pelo som das ondas a rolar sobre o paredão da marginal, até que chegou à zona do porto e do Farol e se dirigiu à igreja de Motael.

Apesar da carga policial que ocorrera horas antes, encon­trou ainda muita gente à porta do santuário. Os ânimos já não pareciam exaltados, mas resignados. Entrou na igreja e viu nas paredes os buracos de balas recentemente abertos e observados em silêncio pelas pessoas. Max ligou discretamente a sua handycam e filmou os mirones, o santuário e os buracos nas paredes. As freiras já tinham limpado o sangue e os estilhaços, pelo que não havia muito mais a registar.

Paulino aproximou-se de Max. O inglês sabia que o timorense pertencia à rede clandestina, já se tinham encontrado dias antes.

"Olá, espanhol", saudou Paulino em voz baixa.

"Hola", devolveu Max. "Mataron a quien?"

"Sebastião Gomes, tinha dezoito anos, e um outro de Baucau", disse Paulino. "Estavam envolvidos nos preparativos para a recepção aos portugueses."

"Y tf donde están los cuerpos?", quis saber o inglês no seu castelhano macarrónico.

"O de Baucau foi para Baucau. O Sebastião foi entregue à família." Uma ideia. "Queres assistir ao funeral?"

"Si, claro:'

"Espera às seis da tarde junto à ponte de Bécora", recomen­dou Paulino. "Apanhamos-te lá."

Aquela era já a segunda vez no espaço de um mês que Max Stahl se deslocava a Timor-Leste. O seu interesse pelo proble­ma tinha sido despertado por uma entrevista dada à televisão britânica pelo académico americano Noam Chomsky durante os preparativos para a Guerra do Golfo, no ano anterior. Uma força multinacional concentrava-se nessa altura na Arábia Saudita para pôr fim à anexação iraquiana do Kuwait, e Chomsky questionava a hipocrisia da comunidade internacio­nal, muito preocupada com o pequeno estado do golfo Pérsico mas perfeitamente alheada de situações semelhantes noutros pontos do planeta, como Timor-Leste.

A referência de Chomsky atraiu a atenção do repórter bri­tânico. Max Stahl, filho de um diplomata britânico e de uma sueca, tinha no seu curriculum a cobertura das guerras em El Salvador, Guatemala e Líbano, que relatara em vários documentários. A sua ambição profissional era fazer progra­mas onde os acontecimentos reais fossem estruturados numa narrativa dramática, e começou a considerar seriamente a possibilidade de se dedicar agora a este conflito de que nunca ouvira falar. Em meados de 1991, Stahl partiu para Timor-Leste com um produtor da Yorkshire Television, Peter Gordon, ambos disfarçados de homens de negócios. A acompanhá-los seguia uma australiana que falava babasa indonésio e portu­guês, embora Max compreendesse perfeitamente esta última língua porque era fluente em espanhol, que aprendera durante a infância nos países onde crescera.

A chegada de Max Stahl e Peter Gordon a Timor-Leste coincidiu com importantes evoluções no processo diplomático entre Portugal e a Indonésia. Os dois britânicos sentiram a tensão a crescer no território e, graças a Paulino e a outros membros da rede clandestina, lograram ter acesso aos prepa­rativos da recepção à delegação parlamentar portuguesa. Os estudantes revelaram aos dois jornalistas que as forças indonésias estavam a levar a cabo uma campanha de intimida­ção, ameaçando fuzilar quem tivesse contacto com qualquer elemento da delegação parlamentar portuguesa. Mas isso não parecia dissuadir os elementos da rede clandestina.

Ao fim de três semanas, e com o visto a expirar, Stahl e Gordon partiram para a Austrália. O produtor mostrava-se satisfeito com a série de depoimentos que tinham recolhido, mas Max não. Regressou a Timor-Leste passados alguns dias, na esperança de captar imagens mais dramáticas, e o incidente na igreja de Motael constituiu a primeira oportunidade.

O jornalista britânico foi nessa noite com Paulino a casa da família Gomes. Juntara-se uma pequena multidão à porta, o corpo de Sebastião estendido no quarto à luz das velas, a mãe a chorar copiosamente sobre o cadáver do filho. Max ligou a câmara e filmou a cena.

"Se os portugueses não vierem, muitos de nós seremos pre­sos ou mortos, não haverá tempo para esconder", vaticinou um dos estudantes, com arrepiante exactidão, o seu depoimento registado em vídeo. "Se eles adiarem ou cancelarem a sua vi­sita, quando vierem muitos de nós já estaremos mortos."

Nessa noite Max filmou uma procissão silenciosa, à luz das velas, para enterrar Sebastião. O cortejo desfilou até à capela do cemitério de Santa Cruz, no centro da cidade, onde o bispo de Díli, D. Ximenes Belo, encomendou a alma do jovem ao Criador. D. Ximenes protestara vigorosamente junto dos indonésios pela invasão da igreja de Motael, queixando-se de que a Igreja era tratada como se fosse o inimigo da Indonésia. A sua presença à cabeça do cortejo fúnebre constituía um sinal inequívoco de que as suas simpatias estavam com as vítimas.

Já há alguns dias que o copo da preocupação do bispo com o evoluir da situação tinha transbordado. Alarmado com a multiplicação de incidentes e com o crescente nervosismo dos militares indonésios desde que fora anunciada a visita parla­mentar, D. Ximenes fez na rádio portuguesa um apelo dramá­tico aos deputados de Portugal.

"É melhor que não venham!", declarou o bispo.

Foi a 21 de Outubro, exactamente uma semana antes da morte de Sebastião e Afonso. D. Ximenes referia-se às ameaças de morte feitas pelos indonésios aos timorenses que se atreves­sem a falar com qualquer elemento da delegação.

O apelo do bispo caiu que nem uma bomba em Lisboa. Os deputados mostravam-se já imensamente nervosos com um re­latório secreto de dois diplomatas do Ministério dos Negócios Estrangeiros que tinham estado alguns dias em Timor-Leste numa discreta missão preparatória para a visita parlamentar. Num memorando confidencial entregue ao governo e à Assembleia da República, os dois diplomatas, Francisco Ri­beiro Teles e Manuel de Andrade, observaram que a situação era muito tensa no território e concluíram que os timorenses não iriam desperdiçar a oportunidade e certamente sairiam às ruas, o que faria explodir aquele barril de pólvora, com mortos e feridos.

Os deputados ficaram muito assustados. Aproveitando uma quase irrelevante divergência com Jacarta relativa à composi­ção do grupo de jornalistas que integravam a delegação, os parlamentares decidiram cancelar a visita. Não queriam res­ponsabilidades pela erupção de violência em Timor-Leste nem tencionavam meter-se naquele vespeiro. O que não sabiam é que o cancelamento iria ter um efeito devastador no moral dos timorenses.

O desespero instalou-se em Díli.

 

As gotas deslizavam com suavidade pela lata de Bintang, como bátegas de suor fresco. Max agarrou na cerveja gelada que dona Palmira lhe pusera na mesa, naquele restaurante im­provisado no pátio da sua casa, e levou-a aos lábios; o inglês engoliu um golo refrescante e, a sede saciada, mirou Paulino, sentado ao lado na esplanada daquela vivenda de traça colo­nial.

"Tengo de ir às montanhas", disse Max, a voz decidida.

O inglês começara a fazer um esforço para falar português, cujas palavras ia captando nas conversas com timorenses mais velhos e revelavam uma familiar semelhança com o espanhol. Mas, sem querer, ia misturando palavras espanholas naquele seu português hesitante.

O timorense ergueu o sobrolho.

"Fazer o quê?"

"Ver os guerrilleros."

"As Falintil?"

"Sim." Suspirou. "Os portugueses já não vêm e o facto é que preciso de arranjar mais material para o meu documen­tário."

"Não é melhor aguardares a resposta de Xanana?"

Max encolheu os ombros. Tinha endereçado a Paulino um pedido para entrevistar Xanana e o assunto já seguia há alguns dias os seus trâmites pela rede clandestina.

"E quando é que essa respuesta vem? Manana? Daqui a um mês?"

"Não sei."

"E o que faço entremientes?" Ergueu a lata de Bintang. "Fico aqui a encher-me de cerveza?"

O timorense sorriu.

"Pois, estou a perceber..."

Max inclinou-se para a frente, fixando Paulino nos olhos.

"Preciso de imagens dos guerrilleros, entendes? Televisión são imagens. Sem imagens, não tengo material para o meu documentário." Fez uma pausa para reforçar a pergunta. "Arranjas-me manera de ir às montanhas?"

Paulino olhou em redor, para se reassegurar de que ninguém os escutava.

"Dá-me alguns dias."

A vida de Max Stahl em Díli não era simples.

O inglês começou a sentir-se vigiado e descobriu que dois agentes à paisana o seguiam por todo o lado. O seu compor­tamento revelava-se, no entanto, tão óbvio que se tornaram fáceis de detectar. Eram mal-educados, estavam constante­mente a beber, andavam acompanhados por prostitutas, tinham melhores roupas e melhores sapatos do que o resto da população e, ainda por cima, eram descarados na forma como vigiavam o repórter. A subtileza não era decididamente um dos seus dons.

Infinitamente mais incómodo que os agentes era o perma­nente clima de vigilância existente em Timor-Leste. Em qual­quer parte onde fosse, Max era interrogado vezes sem conta por pessoas que queriam saber quem ele era, para onde ia, o que queria, porque estava na ilha. A vigilância era cada vez mais apertada, o que dificultava o projecto de ir ter com os guerrilheiros.

Dias depois, no entanto, Paulino interceptou-o discreta­mente no corredor do Hotel Turismo, quando o inglês se pre­parava para se ir deitar. Max convidou-o a entrar no quarto e ficaram ambos às escuras, a falar em sussurros.

"Temos um plano", anunciou o timorense, sentado na cama.

"Um plano? Que plano?"

Paulino sorriu.

"Sabes andar de moto?"

O jornalista alugou no dia seguinte uma moto num stand referenciado por Paulino. A meio da tarde começou a tornar claro que ela se tinha avariado.

"Porra de moto!", vociferou para quem o queria ouvir. "Aluguei-a esta manhã e funciona aos tropeções! Unas veces bem, otras mal... Cofio! Que azar!"

Queixou-se da avaria na rua, no hotel, nos autocarros, nos passeios, junto a soldados e a polícias. Toda a gente ficou a saber que a moto daquele homem alto e louro, que já era conhecido por o espanhol, andava meio avariada.

No dia seguinte passou à segunda fase do plano que Paulino lhe expusera. Max pediu boleia a um autocarro, sabendo que uma das suas paragens era o local de encontro com a guerrilha, e amarrou a moto ao tejadilho. Quando chegou ao ponto combinado apeou-se, tirou a moto, deixou o autocarro partir e abandonou a moto com uma mensagem onde referia que ela já não funcionava. Depois limitou-se a esperar.

A noite apareceu um autocarro ligeiro. Fizeram-lhe sinal e Max saltou para dentro do veículo. A bordo seguia um peque­no grupo de homens e sacos de farinha. Se o autocarro fosse interceptado, o motorista alegaria que se desviara da rota para fazer uma entrega de comida a domicílio. Pouco depois o autocarro parou e o repórter recebeu ordem para sair. À sua espera estava um homem que o levaria para as montanhas.

Era um guerrilheiro.

Marcharam a noite toda.

Perto do amanhecer, e exausto após uma dura escalada com todo o equipamento de televisão às costas, Max Stahl chegou finalmente ao destino. O inglês foi conduzido a um indivíduo baixo e magro, de barba e sorriso desenhado no rosto.

"Bom dia, sou o comandante David Alex", disse o desco­nhecido, muito baixinho e franzino, mas rijo. "A viagem foi boa?"

"Si, buena", riu-se Max, achando que o guerrilheiro estava a brincar. Só podia.

O inglês olhou em redor para os homens que o observavam com curiosidade, mas em silêncio. O que tinha diante dele era uma das unidades de guerrilha mais temidas pelo exército indonésio, que considerava David Alex um dos seus maiores pesadelos. E ali estava Max, no meio dos homens que tanto atormentavam os indonésios.

"Quantos guerrilheiros tem a sua unidade?", perguntou o jornalista.

"Nove", murmurou David Alex, reforçando a informação com a exibição de nove dedos.

Max espantou-se por ninguém ali falar com voz normal, era tudo sussurrado. Os movimentos revelavam-se lentos e cuida­dosos, como se os guerrilheiros estivessem permanentemente com receio de acordar alguém. Para mexer numa cafeteira, era como se tudo se passasse em câmara lenta. Apesar da sua longa experiência como repórter de guerra, e embora não vislum­brasse perigo iminente, o inglês achou que nunca na sua vida tinha visto situação mais tensa.

Max estudou com cuidado o local onde se encontravam. O grupo tinha-se entrincheirado numa ribeira seca, debaixo da qual fora escavado um sistema de túneis. Os guerrilheiros per­maneciam nesses túneis durante o dia, para camuflagem e tam­bém para se defenderem do intenso calor tropical. Encontra-vam-se todos fardados a rigor, impecáveis, o que o jornalista não achou normal em homens que combatiam no meio do mato. Era claro que tinham tratado cuidadosamente da sua apresentação para impressionar o visitante.

"O que fazem durante todo o dia?", quis saber o inglês.

"Escondemo-nos", soprou David Alex.

Max meditou na resposta.

"Escondem-se? Não há combates?"

"À noite, só à noite."

O jornalista pegou na bandycam e começou a gravar ima­gens do acampamento. A câmara registou o movimento quase camaleónico dos guerrilheiros, que permaneciam contempla­tivos e calados, à espera não se sabe bem do quê.

Inclinado num túnel, David Alex sussurrou para a câmara.

"Eles estão neste lado e no outro lado, é ali que estão acam­pados", indicou, apontando com o dedo. "Estão a cerca de quatrocentos metros de distância. Quatrocentos, quinhentos..."

Sustendo a respiração, Max olhou para o lado e viu, a cinco metros de distância, uma passagem usada por camponeses que pareciam desconhecer a presença da guerrilha naquela posição. Mais longe, a quatrocentos metros, lá estava um posto indo­nésio com trinta soldados. Apesar da proximidade, os guerri­lheiros nunca foram detectados e davam-se até ao luxo de receber duas vezes por dia a visita de estafetas com correio e comida.

A conversa com David Alex foi instrutiva. Max percebeu que a estratégia da guerrilha já não era militar mas essencial­mente política, e que nos últimos meses passara sobretudo pelos preparativos da recepção à anunciada visita dos deputados por­tugueses.

"O nosso plano era descer das montanhas para nos encon­trarmos com a delegação dos deputados e explicar a nossa posição", revelou o comandante dos guerrilheiros.

"Y ahorar

David Alex encolheu os ombros.

"Agora terá de ser o comandante Xanana Gusmão a deci­dir", respondeu. "É evidente que a nossa estratégia está com­prometida."

Nem de propósito, um estafeta acabara de chegar ao acam­pamento com uma informação. Max, disse o rapaz, tinha à sua espera em Díli uma carta de Xanana. Era, presumiu, a resposta ao pedido de entrevista que endereçara dias antes a Paulino.

Nada se passava no acampamento e, satisfeito com as ima­gens que recolhera do grupo de guerrilheiros, o jornalista de­cidiu voltar. Despediu-se de David Alex e dos seus homens e começou a descer, seguindo um guia.

O regresso não foi fácil. O guerrilheiro que o acompanhou na descida da montanha entregou-o a um nervoso e inexperiente estudante, este com a missão de o conduzir à capital. O plano era passar a noite numa casa de abrigo, perto da estrada, e de manhã apanhar o autocarro para Díli. Mas as coisas não estavam a correr conforme planeado.

"O dono da casa está cheio de medo", explicou o estudante. "Não nos quer lá."

"Entonces que poderemos bacer?"

"Passamos a noite aqui na montanha e depois reaparece­mos", sugeriu o estudante.

Max abanou a cabeça.

"Se eu reaparecer, vindo das montanhas, vai haver proble­mas", comentou.

"Então o que vais fazer?", perguntou o estudante, desorien­tado.

"Vou-me embora daqui", disse o inglês. "Vais cem metros à minha frente e, quando chegares à estrada, inspeccionas a casa."

Os dois retomaram o caminho, às escuras, separados por uma centena de metros, a descer a montanha. Quando chega­ram à estrada, o estudante aproximou-se da casa de abrigo. Estava abandonada. Aconteceu alguma coisa, pensou Max, preocupado com o rumo dos acontecimentos.

"Vamos seguir pela estrada e tu continuas cem metros à minha frente", sugeriu o repórter. "Se vires alguna cosa, avisa."

Os dois caminharam pela berma da estrada deserta e som­bria, o inglês já a arquitectar uma história para explicar o seu desaparecimento. Ao fim de algum tempo, Max deixou de ver o jovem e foi surpreendido por um pssst! Olhou e adivinhou o estudante, oculto pela sombra, atrás de uma árvore. Escondia-se de soldados indonésios que à frente guardavam um cemitério militar.

"Tu ficas, eu avanço", sussurrou Max. "Adiós!"

O estudante mirou-o, primeiro com surpresa, depois com alívio.

"Adeus", despediu-se, acenando com a mão.

O repórter seguiu em frente e passou pelos soldados. Os indonésios olharam-no, espantados, mas nada disseram. Logo a seguir apareceu um outro soldado de moto. Ao ver o europeu hesitou, passou por ele, parou, voltou para trás.

"Thank you for stopping", agradeceu Max, controlando os nervos. "Perdi o autocarro, pode dar-me boleia?"

O indonésio fitou-o, horrorizado, e foi-se embora sem pro­ferir uma palavra. O inglês retomou a marcha.

Duas horas depois surgiu um camião militar carregado de soldados. Tal como o motociclista, também o camião passou por ele, parou e voltou para trás. Mas agora as coisas evoluí­ram de maneira diferente. Em alguns instantes, Max viu-se cercado por soldados indonésios de espingardas em riste. Nin­guém quis ouvir explicações e o repórter foi arrastado para o veículo e levado para o quartel.

Era um feriado nacional na Indonésia e havia uma festa nas instalações militares. Max foi levado para um gabinete e vários militares tentaram interrogá-lo, sempre em bahasa indonésio. Como o preso só falava inglês, tiveram de ir chamar um coro­nel para efectuar o interrogatório. O oficial apareceu pouco depois, irritado por lhe terem interrompido a festa.

"O que está aqui a fazer?", perguntou-lhe o coronel.

"Fui visitar uma aldeia aqui perto", respondeu o jornalista, começando a desbobinar a história que inventara pelo cami­nho. "Há lá um local sagrado que eu queria ver, mas acabei por perder o autocarro."

O oficial viu aqui uma oportunidade para verificar a vera­cidade do que era dito.

"A que horas saiu de lá?", quis saber.

"Pelas oito", arriscou Max.

O coronel saiu do gabinete e foi perguntar a que horas tinha saído o último autocarro. O horário das camionetas indicava as seis da tarde, para grande alívio do prisioneiro. Os indonésios aceitaram a sua história e convidaram-no a pernoi­tar no quartel.

Quando o dia nasceu, Max saiu das instalações militares e apanhou um autocarro para Díli. Foi direito à casa de Paulino, o elemento da rede clandestina que tinha guardada a mensa­gem de Xanana. O líder da resistência timorense revelava na carta que a manifestação inicialmente prevista para os deputa­dos portugueses teria lugar no dia seguinte. A nova estratégia assentava no facto de estar em Díli o relator das Nações Unidas para as questões de tortura, o holandês Pieter Koojmans, e também vários jornalistas ocidentais, incluindo o próprio Max Stahl. Por conseguinte, a manifestação seria realizada após uma cerimónia religiosa em memória de Sebastião Gomes.

 

O coro cantava músicas religiosas, embalando a multidão naquela manhã de terça-feira, 12 de Novembro de 1991. Eram ainda seis horas da manhã em Díli, o Sol acabara de nascer e já o calor apertava. A multidão concentrou-se, nervosa e silen­ciosa, frente à igreja de Motael. As vozes do coro religioso enchiam o ar e muitos fiéis faziam fila no pátio. O padre Ricardo, voltado para os fiéis à frente da fila, punha-lhes as hóstias na boca e mandava-os em paz.

Todos sabiam que aquela não era uma missa qualquer. Max Stahl reconheceu Paulino no meio da multidão, cumprimentou-o com um piscar de olhos e concentrou-se no seu trabalho. Regis­tou com a câmara as imagens da multidão, do padre a distri­buir hóstias e do coro. A tensão era palpável.

"E agora, o que vai acontecer?", perguntou o inglês, dirigindo-se a Paulino.

"Vai ser feita uma procissão até ao túmulo do Sebastião", explicou-lhe o timorense.

"E a manifestação?"

"A procissão será a manifestação."

Não era preciso ser um génio para perceber que o momento era crítico. Não sendo um timorense, Max sabia muito bem que todas as manifestações no passado tinham acabado em acções de repressão e, bem vistas as coisas, não havia razões para acreditar que desta vez seria diferente. O jornalista olhou para a multidão e compreendeu que toda aquela gente estava a correr um risco de morte, havia um enorme potencial de violência naquela situação e o facto de, mesmo assim, as pes­soas estarem ali era testemunho do seu desespero e da sua determinação.

A missa durou uma hora. No final, tudo se transformou. A aparente calma foi substituída por um frenesim tenso, as pessoas começaram a desfraldar bandeiras nacionalistas e a exibir camisolas com o rosto de Xanana. Era o material que tinha sido preparado com todo o cuidado para receber a dele­gação de deputados portugueses.

Max apontou a câmara para a multidão, filmando as pes­soas a tirarem as camisas e a exibirem bandeiras e cartazes que traziam escondidos no corpo, por baixo da roupa. Para o repór­ter inglês, tratava-se de um acto de desespero, tudo aquilo parecia um suicídio. Os timorenses levavam as bandeiras e os cartazes desfraldados quando saíram da igreja de Motael e começaram a marchar pela marginal. Outras pessoas junta-ram-se ao grupo, vindas de casas, lojas e escritórios. Algumas choravam, mas a maioria ria-se, libertava-se naquele gesto de desafio perante vários jornalistas estrangeiros que os filmavam e fotografavam. Max Stahl, da Yorksbire Television; o free-lancer Steve Cox; Amy Goodman, da rádio WBAI-Pacifica; Alan Nairn, da revista New Yorker. Todos eles, jornalistas e timorenses, esperaram em vão pelos deputados portugueses, todos eles tinham agora encontro marcado com algo que os transcendia.

Um acto do destino.

Max circulava de moto, para trás e para a frente, a registar imagens do acontecimento. A multidão passou na Jalan Alves Aldeia, frente ao Palácio do Governo, a gritar palavras de ordem e a ostentar bandeiras das Falintil e fotografias de Xanana, e virou à direita para a Jalan Avenida Bispo de Medeiros.

"Viva Timor-Leste!", gritava a multidão em português.

"Viva Xanana!"

"Viva Falintil!"

Os cartazes eram igualmente elucidativos. "Tears, Injustice — This is wbat we suffer!", proclamava um. "Xanana Gusmão — Símbolo de União Nacional", dizia outro, mostrando uma pin­tura do rosto do líder da resistência, ladeado pela bandeira das Falintil e pelo símbolo da Convergência Nacionalista. E um terceiro cartaz dizia "Portugal, és responsável por nós".

À beira da estrada, um grupo de marinheiros indonésios observava com os olhos esbugalhados e a boca aberta, não acreditava no que via. Nesta altura Max esqueceu todas as precauções e começou a filmar ostensivamente, até ver um homem à paisana a fotografá-lo. O repórter decidiu também filmá-lo e o homem desistiu, escapando pelas ruas. Max seguiu-o, vendo-o entrar numa esquadra da polícia.

Na mesma altura, Alan Nairn reconheceu o temido coronel Gatot Purwanto, comandante da Intel, os serviços secretos mili­tares, a passar de jipe e a seguir pelo percurso previsto para a procissão.

A multidão já se mostrava de tal modo grande que enchia toda a avenida. A algazarra era enorme entre aquele cada vez maior grupo de homens, rapazes, velhos, mulheres e até crian­ças de bibe. Alguns dos manifestantes mais jovens começaram a correr e depressa os elementos mais velhos da resistência ergueram os megafones.

"Disciplina! Disciplina!", ordenaram, indicando que as filei­ras deveriam permanecer cerradas.

O desfile chegou à rotunda, virou à esquerda para a Jalan 15 Oktober e flectiu na segunda rua à direita. Era a rua do cemitério de Santa Cruz. Durara meia hora o percurso.

À chegada às portas do cemitério, os familiares de Sebastião Gomes entraram no recinto, seguidos por raparigas com ramos de flores. Alguns dos manifestantes subiram para cima do muro, exibiram os cartazes aos jornalistas e depois ficaram ali todos, quase sem saber bem o que fazer. Uma mulher subiu ao muro, megafone na boca.

"Vamos agora todos entrar e rezar", disse a mulher à mul­tidão. "Depois vamos para casa do bispo."

Não era inocentemente que a resistência queria levar os manifestantes para a residência oficial de D. Ximenes Belo. É que junto ao paço episcopal estava o Hotel Turismo, onde se encontrava hospedado o relator da ONU.

Max Stahl apressou-se e entrou no cemitério para filmar a multidão de outro ângulo. Os manifestantes seguiram-no, muitos estavam já a rezar junto ao túmulo de Sebastião, o inglês com a câmara apontada para registar as orações.

Um camião do exército apareceu ao fundo da rua e parou. Do interior começaram a saltar soldados vestidos de verde e com tiras vermelhas no capacete. Uma vez todos cá fora, for­maram e começaram a aproximar-se em passo de marcha. Ao lado destes soldados estavam oficiais sem farda e o tenente Iswanto, da temida SGI, os serviços secretos do Kopassus.

"A Gestapo!", gritou um timorense.

A multidão estacou, petrificada.

Do lado direito apareceram mais soldados, estes com unifor­mes castanho-escuros e com as Ml 6 em posição de fogo, mar­chando em formação ordenada com passo lento e disciplinado. Eram centenas de homens e enchiam mais de cem metros de estrada.

Alguns timorenses começaram a recuar lentamente. Alan Nairn e Amy Goodman, convencidos de que a sua presença era suficiente para dissuadir os indonésios de fazer alguma coisa, interpuseram-se entre os soldados e a multidão, o repórter do New Yorker erguendo a máquina fotográfica acima da cabeça, a jornalista da WBAI-Pacifica estendendo o microfone do seu gravador. Ignorando momentaneamente os dois jornalistas americanos, os soldados colocaram-se em frente da multidão e apontaram as espingardas automáticas.

Começaram as rajadas, cerradas.

Os timorenses das primeiras filas tombaram logo ali, os outros voltaram as costas num pânico de fuga e começaram igualmente a cair. Os soldados avançaram, saltando sobre os corpos no chão e disparando sobre todos os que estavam em pé, disparando sempre, sem uma única pausa, o chão ensopado de sangue e eles a dispararem continuamente.

Dentro do cemitério, Max Stahl foi surpreendido pelo baru­lho ensurdecedor. Tiroteio cerrado, gritos de desespero, gente em pânico a correr. Os corpos rolavam na rua, os seguintes empurravam os que estavam atrás, numa aflição, num susto, num sufoco, tentando por todos os meios escapar à chuva de aço flamejante que se abatera sobre si.

O repórter tinha a câmara apontada, mas a multidão atro-pelou-o. Max ficou por terra, desorientado, sem saber quem disparava e de onde. Foi tudo muito rápido e inesperado. O que estava a ouvir era o som de uma execução que não come­çou com um tiro isolado mas com metralha simultânea. O inglês arrastou-se para um local mais abrigado, olhou pelo óculo da câmara e descobriu, desesperado e frustrado, que não estava a filmar, perdera cerca de trinta segundos. Enervado, premiu o botão e começou finalmente a gravar.

As imagens mostram o portão do cemitério, onde se amon­toava uma massa humana que se atropelava para entrar a todo o custo, os que conseguiam iam correndo entre as campas, alguns deles ensanguentados, tudo ao som de tiroteio e de uma sirene angustiada. Mas Max não ouvia a sirene, apenas o tiro­teio e os gritos.

As armas calaram-se ao fim de um bom bocado e a sirene também. No ar ergueu-se o coro da multidão refugiada no cemitério, a rezar Ave Maria em português. O repórter olhou em redor e viu vários feridos à sua volta, muita gente escondida na capela ou atrás das campas, algumas crianças de cinco ou seis anos protegidas pelas mães e pelos amigos. Um fotógrafo seu amigo, Steve Cox, ocultava uma menina aterrorizada.

Os soldados levaram vinte minutos a entrar no perímetro do cemitério. Tinham a dirigi-los homens à paisana que condu­ziam toda a operação. Encostado a uma campa, Max filmou--os à distância. Seguiam em fila, com as espingardas automá­ticas Ml6 na mão, num movimento em tenaz para cercar o cemitério.

Um deles, de bigode, espingarda ao ombro, viu Max a fil­mar e fez-lhe um gesto para que se aproximasse. O repórter permaneceu quieto e o soldado insistiu, parecia dizer vem cá! Fuck you!, pensou Max, que se sentia mais zangado do que com medo. Fuck you! Continuou a filmar. Se o homem se aproximasse, o inglês julgava-se na disposição de responder à pedrada. Soou um tiro algures à direita da imagem, o soldado olhou para o lado, desinteressou-se do europeu que filmava tudo e afastou-se.

Vários timorenses aproximaram-se de Max à procura de protecção, esperando que o facto de ele ser um ocidental ini­bisse os indonésios de procederem naquele sítio a execuções sumárias. Depois apareceram mais dois, um deles muito ferido, com uma hemorragia no estômago. Disseram-lhe que, na estra­da, depois do tiroteio, os soldados agarraram os sobreviventes e os esfaquearam com baionetas. Aquele era um deles e o repórter filmou-o nos braços do amigo, a esvair-se em sangue e a gemer. Depois apercebeu-se de que os soldados, ao longe, estavam a sovar sobreviventes estendidos no chão, e filmou-os também.

A determinada altura, Max começou a preocupar-se com a segurança das duas cassetes que já estavam repletas de ima­gens. Era evidente que elas lhe seriam apreendidas e considerou várias opções. A primeira ideia não foi brilhante. Pegou nas cassetes e entregou-as a um timorense, que o olhou aterrori­zado. Max pensou melhor e recuperou-as. Tirou um plástico que guardara no bolso e embrulhou-as lá dentro. Fez um bu­raco num túmulo, enterrou-as, tapou o buraco e afastou-se do local. Entrou na capela, colocou uma nova cassete na câmara e recomeçou a filmar.

Sentiu de repente uma mão pousar-lhe no ombro. Olhou e viu um soldado indonésio. O soldado arrastou-o para fora da capela e tirou-lhe a câmara.

"Hey, thafs mine!", gritou Max, furioso.

 

O inglês puxou brutalmente a câmara para si, perante o espanto do soldado. Um oficial à paisana, ali perto, ficou igual­mente desconcertado, sem saber o que fazer ao europeu. De­pois de uma hesitação, deixaram-no ficar com a câmara, mas mandaram-no sentar-se num banco, guardado por um soldado corpulento. O repórter premiu o botão de gravação e começou a filmar dissimuladamente, sem olhar pelo óculo.

À sua frente, os militares estavam a agredir violentamente os feridos no chão, por vezes com a coronha das espingardas. No outro lado, ao fundo, encontravam-se timorenses de tronco nu com as mãos amarradas atrás das costas, uma cena reminiscente de outras a que Max tinha assistido anos antes em El Salvador. Depois passou diante de si, em fila indiana, um grupo de oficiais que vinha assistir à operação. Max filmou-os discretamente e voltou a fazê-lo quando dezenas de mulheres, umas adolescentes e outras de meia idade, foram libertadas e gritavam histericamente atrás dos soldados que as empurra­vam.

Meia hora mais tarde, os militares decidiram levar Max para a esquadra. No caminho, o repórter sentiu um calafrio — lembrou-se de que tinha na mala um bloco de notas com infor­mação sensível que, apesar de estar rabiscada em sueco, não podia cair nas mãos dos indonésios. Inclinou-se, retirou o blo­co da mala e fê-lo desaparecer debaixo do banco da carrinha.

A viatura imobilizou-se à frente da esquadra e o jornalista recebeu ordem para sair. Entrou no edifício e foi para uma sala. Instantes depois, entrou um oficial da polícia.

"Quem é você?", perguntou o indonésio.

"Quem é você?", devolveu Max, agressivo.

O polícia ficou momentaneamente desconcertado.

"Eu sou o capitão Sugyanto", declarou o oficial. "Faça o favor de se identificar."

"Eu sou Max Stahl."

"Tem documentos?"

Max estendeu-lhe o passaporte, United Kingdom impresso a ouro na capa com o leão inglês. O capitão folheou o docu­mento, estudou o carimbo colocado na alfândega do aeroporto Sukarno-Hatta e ergueu os olhos.

"O que estava a fazer no cemitério?"

"Isso pergunto-vos eu", retorquiu Max, sempre em tom de desafio. "O que estavam vocês a fazer no cemitério?"

"Oiça, quem faz as perguntas aqui sou eu", avisou o capi­tão, agastado com a insolência do inglês. "O que está a fazer em Timor-Leste?"

"Vim cá passar férias", respondeu finalmente Max.

Nem pensar em revelar que era jornalista.

"Como soube da manifestação?"

"Então, vi-os a andar pela rua..."

"E porque foi atrás?"

"Oh, não tinha nada para fazer. Isso pareceu-me exciting." Max inclinou-se para a frente, fitando o capitão. "O que se passa aqui? Porque estão a matar pessoas?"

"Elas desafiaram-nos, estavam a pedi-las", justificou-se o indonésio, defensivo.

"No meu país, a polícia não mata manifestantes", comentou Max.

O capitão Sugyanto encolheu os ombros e ergueu os braços, fazendo um gesto no ar.

"É uma diferença cultural", disse, à falta de melhor.

O interrogatório prosseguiu como um jogo. O indonésio fazia perguntas, o inglês respondia com mais perguntas. Defi­nitivamente, a conversa não progredia. Max começou entretanto a ficar preocupado com a cassete que tinha na câmara. Para impedir um visionamento imediato, deixou a bateria ligada até se gastar.

A certa altura, o capitão Sugyanto apontou para a câmara.

"O que é isso?"

"É uma câmara, não vê?"

"Mas que tipo de câmara?"

"De turista, claro."

O tamanho miniatura da handycam tornava esta resposta muito convincente e credível.

"Quero ver isso."

"Quer ver a câmara?"

"Não, quero ver as imagens na cassete."

O oficial pegou na handycam e tentou ligá-la, mas não fun­cionava. Não admira, a bateria estava gasta.

"Você avariou-me a câmara", protestou Max. "Exijo que me paguem uma indemnização!"

O capitão chamou outros militares e todos rodearam a câ­mara. O que é?, o que não é?, será este botão?, como é que se liga isto?, não percebo nada destas máquinas. Mas os oficiais não desistiram e mandaram chamar um técnico da TVRI, a televisão estatal indonésia.

O homem apareceu pouco depois. Pegou na máquina e per­cebeu imediatamente que o problema era da bateria. Max ti­nha uma sobressalente no bolso, mas, por incrível que pareça, ainda ninguém o revistara. O técnico saiu para ir buscar uma outra bateria e os militares desinteressaram-se momentanea­mente do seu prisioneiro europeu.

"Posso ir ao quarto de banho?", solicitou Max.

O capitão assentiu e fez um sinal a um homem, que levou o jornalista para uns sanitários miseráveis. Max seguiu com a câmara na mão, entrou no quarto de banho, certificou-se de que não estava lá ninguém e colocou a bateria sobressalente, visionando as imagens que tinha gravado. Achou que eram ainda mais violentas do que as do próprio massacre. Num bolso tinha ainda uma cassete virgem e durante momentos considerou seriamente a possibilidade de colocar a cassete com as imagens no bolso e substituí-la pela outra, mas acabou por preferir jogar pelo seguro. Convencido de que acabaria por ser revistado, optou por apagar todas as imagens. Colocou a cas­sete na câmara, premiu o botão e gravou negro sobre o mate­rial que tinha captado no rescaldo do massacre.

Enquanto esperava, contou quinze camiões repletos de pri­sioneiros no pátio da esquadra. Passado um bocado, apareceu um americano gordo, de chapéu à cowboy. Entrou no edifício ao lado de um militar indonésio.

"Hello", saudou-o Max.

O americano olhou-o e ignorou-o ostensivamente, seguindo em frente. Max achou-o parecido com os agentes da CIA que conhecera anos antes na América Latina.

A mesma hora desenrolava-se um drama no hospital militar Wira Husada n.° 4, em Díli. Os indonésios mandaram os fun­cionários timorenses colocar na casa mortuária os corpos reco­lhidos no cemitério. Os cadáveres foram apinhados num mon­te, uns sobre os outros. Mas algumas das pessoas ainda estavam com vida. Gemiam, pediam água e solicitavam ajuda.

Um soldado indonésio e um contínuo do hospital deram--lhes comprimidos de paraformaldaído, um desinfectante muito forte usado para matar insectos. Envenenados, os feri­dos agonizaram até à morte. Outros tiveram um fim mais rápido, com os soldados a esmagar-lhes a cabeça e o peito com pedras.

Na esquadra, Max ainda teve de aguardar algumas horas. No final da manhã, o homem da TVRI voltou com uma bateria nova. Os militares aproximaram-se e rodearam-no, os olhos presos ao minúsculo óculo da câmara. O técnico ligou a câma­ra e começou a visionar. Previsivelmente, e para grande alívio de Max, só via a imagem negra.

"Não tem nada", comentou o técnico, expondo a evidência.

Max lançou um olhar triunfal sobre o capitão Sugyanto y sus mucbachos.

"Estão a ver?", perguntou com insolência. "Avariaram-me a câmara!"

Os indonésios nada disseram e afastaram-se, aparentemente desinteressados, deixando o homem da TVRI sozinho a olhar para o óculo.

Após um bom bocado, o técnico exclamou:

"Ah, está aqui!"

O coração de Max deu um salto. Os militares convergiram para o óculo e, logo a seguir, deixaram o prisioneiro ver.

"Então, estava avariada?", perguntaram com um sorriso trocista.

Agora eram eles quem tinha o olhar triunfal. Max espreitou pelo óculo e lá viu as imagens das timorenses a gritarem his­tericamente. Por lapso, aquele trecho não tinha sido desgravado quando visitara o quarto de banho.

"Ainda bem que não está avariada!", exclamou, fingindo-se aliviado. "Porcaria de equipamento que não funciona em con­dições! Custou uma fortuna e é isto. Umas vezes trabalha, outras não, nunca se sabe."

Ao fim de dez horas, o interrogatório terminou. Às dezoito horas, Max Stahl era um homem livre.

"Vai abandonar Timor-Leste?", perguntou-lhe o capitão Sugyanto à saída.

"Não", retorquiu o repórter. "As minhas férias ainda não acabaram."

O repórter encontrou nas ruas um surpreendente clima de excitação e percebeu que os timorenses sentiam que o massacre fora uma vitória política. Apanhou de seguida boleia até ao Hotel Díli, propriedade de Frank Favaro, o australiano que dezasseis anos antes ajudara a equipa da RTP chefiada por Adelino Gomes a voar de Ataúro para a capital timorense.

No hotel, situado na marginal depois do Palácio do Gover­no, Max reencontrou os seus colegas ocidentais, incluindo Steve Cox, que tinha sido agredido no cativeiro, e Alain Nairn, com várias equimoses na cara, resultado de coronhadas sofri­das quando tentara evitar o massacre. Estavam todos em esta­do de choque.

"Conseguiste filmar tudo?, perguntou-lhe Steve.

"Tudo."

"Onde estão as cassetes? Os militares ficaram com elas?"

"Deixei-as escondidas no cemitério", explicou Max. "Quem quer ir lá comigo buscá-las?"

Ninguém queria. Nem pensar em voltar àquele local, não valia a pena desafiar o destino outra vez.

Mas a recuperação das cassetes era uma tarefa prioritária para Max. À noite, o repórter inglês partiu sozinho, confiando na sorte e na ausência dos indonésios, que alimentavam a su­perstição de que as visitas nocturnas aos mortos davam azar.

Vinte horas depois do massacre, o cemitério apresentava-se de facto deserto. Max entrou às escuras, apenas iluminado pela Lua, e, após tactear durante algum tempo na escuridão, desco­briu o embrulho no túmulo vazio. Saiu do local e foi para um outro hotel, onde tinha guardadas as restantes cassetes, in­cluindo as gravadas nas montanhas com os guerrilheiros.

Após a meia-noite houve uma quebra de energia na cidade de Díli. Os indonésios fizeram disparar um disjuntor de propó­sito para deixar a cidade às escuras. Cobertos pela escuridão, tiraram os cadáveres da casa mortuária, colocaram-nos em camiões do exército e levaram-nos para fora da cidade, onde os enterraram em valas comuns previamente preparadas para a visita dos deputados portugueses.

Cabia a Max Stahl e aos seus amigos fazer com que desta vez a sua morte não fosse em vão. O problema final do repórter inglês era retirar todas as gravações de Timor-Leste. Max deci­diu dividi-las por emissários diferentes. Era menos seguro, mas aumentava as probabilidades de pelo menos algumas delas con­seguirem sair. Uma cassete, mostrando a guerrilha, foi entregue a um padre que ia partir para Tóquio. Outra ficou com uma amiga holandesa, que contactou o relator da ONU para ajudar a transportá-las. Apesar de gozar de imunidade diplomática, Pieter Koojmans recusou-se e a holandesa acabou por ficar com o material. As restantes dez cassetes, que incluíam as imagens do massacre, permaneceram com Max.

Dois dias depois, Max Stahl abandonou definitivamente o hotel. No aeroporto de Díli cruzou-se com diplomatas britâni­cos que chegavam a Timor-Leste para investigar os aconteci­mentos, mas o repórter evitou-os. Ao entrar no avião, ninguém o revistou. Voou para Denpasar, em Bali, e dali para Bangue-coque, de onde enviou as imagens via satélite para Londres.

Nesse mesmo dia, os indonésios juntaram os oitenta prisio­neiros timorenses capturados após o massacre, colocaram-lhes vendas inos olhos, obrigaram-nos a entrar em camiões do exér­cito e levaram-nos para Tacitolo, nos arredores de Díli. Esperava-os o pelotão de fuzilamento. Não foram abatidos a tiro, um a um, mas em grupo, a rajadas de metralhadora. Feitas as contas, poderão ter morrido mais de trezentas pessoas em todo o incidente, muitas no cemitério, muitas depois do tiroteio inicial. Muitas outras desapareceram, incluindo vinte e quatro elementos de uma única família do bairro de Fatu Hada.

Para as famílias, um único consolo. Depois de as imagens de Max Stahl darem a volta ao mundo, começaria o cerco à Indonésia, um lento e inexorável movimento que só tinha um destino.

 

"Quem vota contra?"

A pergunta era supostamente retórica. Na mesa estava um lucrativo acordo comercial que traria milhões a cada um dos signatários, naturalmente mais a uns do que a outros, mas todos ficavam a ganhar. A Comunidade Europeia e a Asso­ciação das Nações do Sudeste Asiático, ASEAN, firmavam um contrato mutuamente vantajoso, abrindo os respectivos merca­dos à produção de ambos os blocos, eram milhões de consumi­dores, da Europa e dos chamados dragões asiáticos, que de repente iriam poder adquirir, em condições vantajosas para as duas partes, os respectivos produtos. Brinquedos baratos e exércitos de Hyundays para a Europa, perfumes franceses e vinhos portugueses para a Ásia. Quem se oporia a tal acordo?

João de Deus Pinheiro levantou a mão.

"Eu."

A mesa gigante gelou.

"Perdão?", gaguejou o ministro britânico dos Negócios Es­trangeiros, que fizera a pergunta.

Será que o português pensava que era o momento de votar a favor e votou contra? Estes portugueses são sempre os mes­mos, não admira que nos corredores de Bruxelas se multipli­quem anedotas sobre as suas "façanhas", a sua inépcia, a sua desorganização. Piores que eles só os gregos. Douglas Hurd fixou os olhos azuis nos olhos azuis do colega português, como que pedindo-lhe que acordasse e regressasse ao mundo real.

"Eu voto contra", repetiu o ministro português dos Negócios Estrangeiros naquela segunda-feira quente de 21 de Julho de 1992.

Silêncio.

Na sala onde decorria o Conselho de Assuntos Gerais, no edi­fício Berlaymont, em pleno centro de Bruxelas, fez-se silêncio.

João de Deus Pinheiro não sabia se se devia esconder de­baixo da mesa, tal era a intensidade dos olhares que sobre ele caíam, se deveria gozar o prato. Na mesa exibiam-se doze expressões sideradas, onze ministros e um comissário europeu abismados, doze bocas entreabertas. Fitando os colegas, o português sentiu que, secretamente, bem lá no íntimo, a sua inesperada objecção o divertia. Ou melhor, o que verdadeira­mente o divertia eram as caras de estupefacção, de incredulida­de, de pasmo, à volta da mesa. A bomba que trouxera guarda­da na mala produzia o seu efeito explosivo.

"Vota contra?", admirou-se o ministro britânico, que con­duzia os trabalhos. Como convencionado, era o governante do país que ocupava a presidência da Comunidade Europeia que tinha a responsabilidade de preparar, coordenar e dirigir todas as reuniões dos Doze. Neste segundo semestre de 1992, o pre­sidente da Comunidade Europeia era o Reino Unido, que su­cedera a Portugal, o presidente do primeiro semestre. "Vota contra porquê?"

"Por causa dos direitos humanos."

Oh não!, pensaram em uníssono os europeus, alguns revi­rando os olhos com enfado, as suas expressões transmitindo desânimo e desespero. Lá vêm os portugueses outra vez com esta conversa de Timor-Leste, vão estragar tudo. Os ministros europeus sabiam que, na boca de um português e naquele contexto, a palavra "direitos humanos" significava "Timor-Leste", e de há uns meses para cá este nome tinha um efeito mágico entre eles, não se cansavam de falar na maldita ilha, raios os partam que andam armados em grande potência só porque aderiram à CE. Sempre que havia uma cimeira europeia, o comunicado final incluía inevitavelmente um pará­grafo sobre Timor-Leste. Os governantes europeus divertiam-se a chamar-lhe o "parágrafo português", era referência obrigató­ria em todos os comunicados europeus em matéria de política internacional dos últimos nove meses. Só que agora não se sentiam com vontade de se divertir; enquanto se limitava à retórica até era engraçado, mas agora isto é uma coisa séria, há muito dinheiro em jogo e lá vêm os portugueses outra vez com esta conversa, será que eles não percebem que são uns pain in tbe ass com esta treta de Timor-Leste? Ainda por cima está-se mesmo a ver que aquilo não se vai resolver nunca, está na cara que os indonésios não vão largar a ilha ou a península ou lá o que isso é.

Todos estes pensamentos terão afluído simultaneamente à cabeça de vários dos surpreendidos ministros europeus, mas os mais interessados no acordo de terceira geração com a ASEAN não iam deixar as coisas ficar por ali.

"Mas, João", insistiu Douglas Hurd, "certamente que vocês não vão bloquear este acordo por causa de Timor..."

"Vamos, vamos." Deus Pinheiro tirou os olhos do seu colega britânico e passeou-os pela mesa. Depois de mirar os outros parceiros, consultou as notas que tinha preparado e afinou a voz com um hum-hum gutural. "A Indonésia é responsável por graves atropelos aos direitos humanos em Timor-Leste. Não só está de forma ilegítima a ocupar militarmente o território como se encontra empenhada numa sistemática tentativa de destrui­ção da identidade cultural e religiosa do povo timorense e é responsável pelos massacres e perseguições que a população da ilha vem sofrendo. Ignorar tudo isso é equivalente a negar o próprio Tratado de Maastricht, que ainda há pouco tempo assinámos e que associa a política de cooperação da Comuni­dade Europeia ao respeito pelas liberdades fundamentais nos países com quem vamos cooperar. Ora, como a Indonésia per­tence à ASEAN e não está a respeitar as liberdades fundamen­tais em Timor-Leste, Portugal entende que têm de ser aplicadas as disposições previstas por Maastricht e suspensa a coopera­ção até que a situação no terreno se modificar e as liberdades fundamentais começarem a ser respeitadas. Assim, e por razões de dignidade nacional e comunitária, não pode a delegação portuguesa aceitar que a negociação de um acordo, que cons­titui uma opção e um sinal político de valor manifesto, possa englobar a Indonésia enquanto esta não alterar a sua atitude face ao povo de Timor-Leste e da própria comunidade interna­cional. Por isso mesmo, Portugal usa o direito de veto que lhe conferem as leis que regem a Comunidade Europeia e não aprova o acordo de terceira geração entre a Comunidade Europeia e a ASEAN."

Fez-se novo silêncio em torno da mesa, desta vez um silêncio pesado e profundo, um silêncio tão respeitoso que deixou com pele de galinha os delegados portugueses que se sentavam atrás do ministro. Alguns ministros mostravam-se impressionados e fizeram com a cabeça sinal de aprovação, designadamente o irlandês e o dinamarquês, mas outros permaneciam estáticos, era evidente que buscavam desesperados argumentos para de­fender a todo o custo a assinatura do acordo de terceira gera­ção.

"Isso é muito radical", observou o comissário europeu res­ponsável pelas relações da Comunidade com a Ásia, o espanhol Abel Matutes, quebrando a pausa.

"Foi o que nós acordámos fazer quando assinámos Maas­tricht", argumentou Deus Pinheiro. "Aliás, Abel, não é só Maastricht, como bem sabes. O próprio Conselho de Ministros da Comunidade aprovou uma resolução a condicionar a coo­peração europeia com países terceiros ao respeito pela demo­cracia e pelos direitos do homem nos estados beneficiários. Diz-me com sinceridade, achas que há democracia e respeito pelos direitos humanos em Timor-Leste?"

"Mas o problema não é esse", contrapôs o espanhol, evitan­do a incómoda pergunta. "O problema é que o Sudeste Asiá­tico é uma região estrategicamente importante e tanto os ame­ricanos como os japoneses estão a investir forte naquelas economias. Sem este acordo ficamos para trás, ficamos fora do negócio e totalmente marginalizados. Com este acordo conse­guimos proteger as exportações e os investimentos comunitá­rios, para já não falar na defesa da nossa propriedade intelec­tual naqueles mercados e nas garantias de que os países da ASEAN vão respeitar o meio ambiente."

"Tudo isso é verdade", assentiu Deus Pinheiro. "Mas tam­bém é verdade que concordámos em ligar a cooperação à de­fesa dos direitos humanos, e é essa disposição que entendemos agora aplicar."

"Mas, João", interrompeu Douglas Hurd, "Portugal subs­creveu em Fevereiro uma declaração da Comunidade a expri­mir o desejo de assinar o acordo com os países da ASEAN em Outubro. Como a situação em Timor-Leste não se agravou desde Fevereiro, porque é que vocês só agora, hoje, dia 20 de Julho, é que levantam este problema?"

"Porque no primeiro semestre éramos os presidentes da Co­munidade Europeia e, como bem sabes, estávamos obrigados a não impor a nossa vontade e tínhamos o dever de, enquanto presidentes, submeter os nossos interesses nacionais aos inte­resses da Comunidade", explicou o português. "Agora tudo é diferente, já não somos presidentes da Comunidade."

Com esta resposta, Deus Pinheiro aproveitou para dar um subtil remoque ao seu colega britânico, que aproveitava as prerrogativas de presidente da Comunidade Europeia nesse semestre para apressar a aprovação do acordo. De tal urgência não pareciam estar dissociados os interesses de empresas britâ­nicas em vender armas à Indonésia, nem da British Petroleum, que se preparava para explorar o petróleo do mar de Timor e precisava de ver a sua posição defendida com a assinatura do acordo de terceira geração com a ASEAN.

Sabendo disso, Douglas Hurd acusou o toque e calou-se. O testemunho foi passado para o seu colega francês, Roland Dumas, igualmente interessado na aprovação do acordo.

"Não é justo prejudicar os outros países da ASEAN por causa da Indonésia", disse Dumas.

Deus Pinheiro tinha resposta preparada para esta questão.

"Com certeza", exclamou. "Nós não nos opomos a acordos bilaterais entre a Comunidade e cada um dos outros cinco países da ASEAN. Opomo-nos é a um acordo que envolva a Indonésia. Se a Indonésia permanecer de fora, ficamos encan­tados."

"Essa vossa posição é contraproducente, vamos ser margi­nalizados", resmungou o ministro francês.

"Sim, é contraproducente", concordou Douglas Hurd, dirigindo-se ao português. "Eu compreendo a vossa posição, mas a verdade é que a Comunidade não dispõe de qualquer possibilida­de de obrigar a Indonésia a respeitar os direitos humanos."

"Não concordo", declarou Deus Pinheiro. "Mas, seja como for, esta é a nossa posição e assim se manterá enquanto a Indonésia não alterar a sua atitude face ao povo de Timor-Leste."

"Sendo assim, o debate fica adiado para Setembro", decla­rou o ministro britânico, resignado. "Este fim-de-semana, eu e os meus colegas da troika, que este semestre inclui Portugal e a Dinamarca, iremos a Manila comunicar oficialmente à ASEAN que não assinaremos o acordo de terceira geração devido às objecções portuguesas." Fez uma pausa e olhou em redor. Os restantes ministros permaneceram calados. "Então, se não virem inconveniente", acrescentou Hurd, "passemos agora aos outros assuntos na agenda desta reunião, começando pelo Pacote Delors II."

Os onze parceiros de Portugal na Comunidade Europeia sabiam que era inútil pressionar os portugueses no sentido de reverem a sua posição. Desde que ocorrera o massacre no ce­mitério de Díli, e sobretudo desde que as imagens captadas no local por um obscuro jornalista britânico foram difundidas, os portugueses tinham-se tornado muito radicais em relação à questão de Timor-Leste. Exigiam condenações da Indonésia, protestavam contra os negócios feitos por empresas europeias com aquele país, tudo servia de pretexto para despejarem munições contra o regime de Jacarta. É certo que nunca nin­guém acreditara seriamente que Portugal viesse a vetar o milio­nário acordo com a ASEAN, ainda por cima numa posição de total isolamento, isso parecia uma loucura, mas, tendo tomado essa posição, e conhecendo a recém-adquirida hiper susceptibilidade portuguesa em relação à Indonésia, todos sabiam que os homens de Lisboa seriam inflexíveis.

Já antes do massacre de Díli os portugueses pressionavam a comunidade internacional por causa de Timor-Leste. Mas era tudo muito ao de leve, sem insistência, quase como se levantas­sem o assunto por uma questão de rotina, de um dever que até a eles próprios embaraçava, sentiam-se quixotescos a lutar por uma causa perdida, ridícula até. Desde que viram as imagens da matança no cemitério, no entanto, tinham-se transfigurado, a questão timorense transformara-se numa causa nacional. O som dos timorenses a rezar em coro o Ave Maria em portu­guês, dentro do cemitério e enquanto os indonésios os mata­vam, teve um efeito profundo na psique nacional. Não era já um povo distante, desconhecido e pouco familiar que os indonésios estavam a aniquilar. Era um povo que falava portu­guês, rezava como os portugueses aos domingos nas missas, parecia português. Eram portugueses. Sobretudo isso, eles eram portugueses. Os indonésios estavam a matar portugueses.

"Eles rezavam em português", comentou o agnóstico presi­dente Mário Soares após ver as imagens. "Vocês viram-nos a rezar em português?"

O governo português decretou dia de luto nacional, não após o massacre, mas no dia seguinte à transmissão das ima­gens de Max Stahl pela RTP. Milhares de pessoas saíram às ruas nas cidades, nas vilas, em obscuras aldeias; o país inteiro acendia velas, rezava Ave Maria pelos timorenses com as mes­mas palavras com que estes tinham rezado pela sua vida, indignava-se, descobria Timor-Leste, concluía que toda a conversa de genocídio dos últimos anos, na qual não acreditara realmen­te, era afinal verdadeira, vira-a ser verdadeira, vira-a pelos olhos e pela lente de Max Stahl, vira-a e acreditara finalmente.

As imagens do massacre de Díli uniram os portugueses de­baixo de uma bandeira, arranjara-lhes uma causa comum. Ricos e pobres, esquerda e direita, patrões e empregados, benfiquistas e portistas, governo e oposição. Da revolta contra a Indonésia ao bloqueio do acordo CE-ASEAN foi, feitas as contas, um passo natural, lógico, inevitável.

Um passo que levou Douglas Hurd a Manila com a espinho­sa missão de comunicar oficialmente aos países da ASEAN que o lucrativo acordo de terceira geração entre os dois blocos ficava sem efeito. Enquanto presidente da Comunidade Europeia, o Reino Unido chefiava a troika comunitária, que incluía igualmente o presidente anterior, Portugal, e o seguinte, a Dinamarca. O ministro Deus Pinheiro, depois da sua hora de glória na segunda-feira, cedeu o lugar na viagem a Manila ao seu secretário de Estado da Cooperação, o ambicioso e promis­sor Durão Barroso, o homem que saltara para a ribalta ao arrancar à UNITA e ao MPLA o acordo de paz para Angola. Com Hurd e Durão, seguia também o chefe da diplomacia dinamarquesa, Uffa Elleman-Jensen.

A troika chegou à capital das Filipinas na sexta-feira, 27 de Julho, quatro dias depois da já famosa reunião de Bruxelas. Manila era nesse fim-de-semana a anfitriã de uma conferência interministerial entre a ASEAN, a Comunidade Europeia, os Estados Unidos e o Japão, e a assinatura dos acordos comer­ciais deveria ser um dos pontos altos do encontro. Mas os europeus iriam ficar fora do barco. Depois de se instalarem, os elementos da troika reuniram-se com os ministros dos Negóci­os Estrangeiros dos seis países da ASEAN. Entre eles, o sorri­dente chefe da diplomacia indonésia, Adi Adjie. Presentes esta­vam também os diplomatas americanos e japoneses. Depois dos cumprimentos e das declarações preliminares, chegou a vez de Douglas Hurd explicar ao que viera.

"Como sabem, temos estado nos últimos meses a trabalhar no acordo de terceira geração entre a Comunidade Europeia e a ASEAN, acordo destinado a substituir o actual, que vigora desde 1980", declarou o ministro britânico. Os asiáticos mantiveram-se estáticos, em silêncio, à espera do que viria a seguir. "Do nosso ponto de vista, trata-se de um acordo altamente satisfatório e vantajoso para ambas as partes, e há todo o interesse em fazê-lo avançar. No entanto, temos um problema para resolver. Não será novidade para vós se eu disser que é princípio da Comunidade Europeia só estabelecer uma política de cooperação desde que haja respeito pelos direitos humanos nos Estados com quem nos associamos, e lamento dizer que, a este respeito, consideramos que não estão reunidas todas as condições para que possamos assinar este acordo que negociámos."

Estava dito. A Comunidade Europeia bloqueara o acordo com a ASEAN por causa da questão dos direitos humanos. Douglas Hurd portara-se bem, expondo o problema com diplo­macia, mas com clareza e sem se demarcar de Portugal nem mostrar que discordava do veto português.

Não se pode dizer que os asiáticos tivessem ficado surpre­endidos. Três dias antes, quando os seus embaixadores em Bruxelas lhes telefonaram a dar a notícia do veto português, sim, aí sim, tinham ficado estupefactos. Mas o hiato de três dias permitira-lhes digerir a notícia e podiam agora exibir o rosto impenetrável perante os europeus.

Como lhe competia, coube ao anfitrião, o ministro filipino, tomar a palavra.

"Portanto, se percebi bem, vocês não vão assinar o acor­do?", perguntou, olhando o seu homólogo britânico.

"Isso é correcto, não vamos assinar", confirmou Hurd.

"Por causa dos direitos humanos?", quis assegurar-se o filipino.

"Sim, como eu disse é por causa dos direitos humanos, sim", repetiu Hurd. "A questão dos direitos humanos não vai desaparecer, antes pelo contrário, permanecerá como parte integrante das relações entre os países."

"E onde é que eles estão a ser violados?", questionou o filipino.

Todos sabiam que o que estava em causa era a Indonésia e Timor-Leste, os seus embaixadores já o tinham explicado ao telefone, de Bruxelas, mas era agora preciso que tudo fosse dito preto no branco.

"Temos um problema com o que se passa em Timor-Leste", explicou Hurd, evitando olhar para Adjie.

Mas Durão Barroso, esse, não se cansava de fixar o ministro indonésio, de observar o seu rosto e os seus olhos, de lhe procurar uma reacção, um tique nervoso, um rubor de vergo­nha, uma gota de suor, algo que denunciasse incómodo pelo vexame por que estava a passar. Adjie, todavia, mantinha-se aparentemente imperturbável. Fervia por dentro, agonizava lentamente, até o estômago lhe doía, mas escondia as emoções por detrás da máscara em que se tinha transformado o seu rosto naquele supremo instante de humilhação. A cara ardia--lhe, mas não ia dar ao português a satisfação de o ver emba­raçado. Malditos sejam estes portugueses por se empertigarem em defesa daqueles ingratos, malditos sejam os timorenses por cuspirem em quem os ajuda, malditos sejam os nossos militares por não terem ainda posto cobro à insurreição naquela provín­cia amaldiçoada. Adjie ouvia Hurd, ouvia o seu colega filipino, sentia o olhar do português e só pensava numa coisa. É preciso resolver, de uma vez por todas, o problema de Timor-Leste. Estava farto daquelas vergonhas, farto de passar os últimos meses a ouvir sermões, farto de ser incomodado com perguntas embaraçosas, farto de estar à defesa, farto de dar explicações esfarrapadas. Desta vez Suharto teria de o ouvir, as coisas ti­nham ido longe de mais.

"Vocês vão bloquear o acordo por causa de Timor-Leste?", insistiu o filipino nas suas perguntas, como quem diz tanta coisa por causa de uma tal ninharia?

Adjie, absorto na sua vergonha interior, regressou à realida­de daquela sala.

"Sim, como sabem estamos preocupados com as sucessivas violações dos direitos humanos nesse território ocupado ilegal­mente pela Indonésia", declarou Hurd. "Portugal, que é a po­tência administrante de Timor-Leste aos olhos da lei internacio­nal, deu-nos a conhecer as suas objecções e nós apoiamo-lo inteiramente."

Foi um brilhante movimento táctico do ministro britânico. Sem quebrar solidariedade com o seu parceiro comunitário, Hurd introduziu Portugal na conversa e, dessa forma, transfe­riu para Durão Barroso o ónus de responder perante os asiá­ticos. Estes perceberam e aproveitaram. O ministro filipino voltou-se para o secretário de Estado português.

"Então é Portugal quem está a criar dificuldades a este acordo?"

Durão Barroso não se mostrava nada preocupado com o facto de lhe caberem agora as respostas. Pelo contrário, dese­java essa situação, sentia-se até ansioso por dar em público uma boa ensaboadela aos indonésios, e fazê-lo à frente dos colegas europeus e dos amiguinhos asiáticos e americanos da Indonésia era um maravilhoso bónus.

"Não, nós não estamos a criar nenhuma dificuldade", aba­nou a cabeça, com ar sonso.

"Não?", admirou-se o filipino. "Então quem está?"

"A Indonésia", retorquiu o português, fechando o rosto. Era mesmo um prazer estar a dizer isto na cara de Adi Adjie. Durão Barroso saboreou bem o momento. "Nós gostaríamos de assinar o acordo, mas não podemos devido ao comportamento da Indonésia em Timor-Leste. Portugal não vai permitir a assina­tura do acordo enquanto a Indonésia não alterar a sua posição em relação a Timor. O que Portugal não quer é estar associado à Indonésia, por um acordo ou de qualquer outra forma, en­quanto os indonésios estiverem a fazer o que fazem em Timor-Leste. Ao violar os direitos humanos, a Indonésia está a impe­dir a assinatura deste acordo."

"Isso é inaceitável, é neocolonialismo", protestou o filipino. "Quem são vocês para nos impor regras de conduta?"

"Não vos impomos regras de conduta, impomos essas re­gras é a nós próprios", vociferou o português. "Neocolonia­lismo é o que a Indonésia está a fazer em Timor-Leste, repri­mindo liberdades, impedindo a autodeterminação do território, violando direitos humanos. Acha que nos queremos associar a gente dessa?"

Adjie não se conteve.

"O que quer dizer com 'gente dessa'?", cortou, ofendido, o ministro indonésio.

"Gente que viola os direitos humanos, gente que massacra, mata, tortura e persegue, esse tipo de gente", retorquiu-lhe Durão.

Pela primeira vez, os dois ficaram presos no olhar.

"Como se atreve Portugal a vir aqui dar-nos lições quando é o primeiro responsável pelo que se passou em Timor-Leste?", exclamou Adjie, fixando Durão mas falando verdadeiramente para toda a gente que estava na sala. "Vocês deixaram que Timor-Leste se envolvesse numa guerra civil em 1975, fugiram, nós fartámo-nos de vos pedir que regressassem, não o fizeram, tivemos nós de intervir a pedido dos timorenses para acabar com a guerra civil, e vêm vocês agora dar-nos lições e pregar--nos sermões?"

Adjie fizera habilmente um resumo muito deturpado dos acontecimentos que culminaram com a invasão indonésia. Durão sabia que desmontar esta argumentação requereria uma longa exposição que demonstrasse que a guerra civil fora provocada e desejada pela própria Indonésia no âmbito da Operação Komodo, que a invasão tinha ocorrido quando a guerra civil já tinha terminado e que Portugal não dispunha na altura de condições políticas internas para actuar. Tudo isso, no entanto, era história, e não lhe cabia estar ali a dar uma aula.

"A Indonésia não foi a Timor-Leste para acabar com a guerra civil", exclamou. "A Indonésia invadiu um território que não era seu e matou duzentas mil pessoas. Portugal é culpado de negligência, mas a Indonésia é culpada de genocídio. Qual lhe parece ser o crime mais grave? E o pior é que o genocídio ainda não acabou, como se pôde verificar em Novembro passado com o massacre de Díli."

"Ah, o incidente de Díli..."

"O massacre."

"...eu já estava surpreendido por ainda não ter falado do incidente de Díli", sorriu Adjie, a voz carregada de ironia. "Infelizmente, alguns soldados com a cabeça quente reprimi­ram com excesso de força uma manifestação ilegal. O que eles fizeram não reflecte a política indonésia e estão a ser punidos por isso. Em Timor-Leste, toda a gente é livre de falar, de protestar e de se manifestar, só que têm de o fazer em boa ordem. Isso também se passa no Ocidente. As manifestações têm de ser autorizadas pelas autarquias, pelas autoridades. O que os portugueses estão a tentar fazer é transformar esse incidente numa cause célebre, num pólo aglutinador do seu ataque à Indonésia e num acontecimento que varra da memória o seu vergonhoso comportamento em 1975, a sua fuga de Timor-Leste."

"Chama incidente a um massacre onde morreram quase duzentas pessoas?", indignou-se Durão. "O senhor ministro diz que a matança não é política da Indonésia, e no entanto morreram duzentas mil pessoas desde que a Indonésia invadiu Timor-Leste. Isso representa um terço da população local. Nessas circunstâncias, como alegar que o massacre de Díli não se insere numa política normal e estabelecida pela Indonésia em Timor-Leste? O problema da Indonésia não é ter assassina­do aquelas duzentas pessoas no cemitério de Díli, o problema da Indonésia é que pela primeira vez foi apanhada a fazê-lo. O massacre foi filmado por um jornalista britânico e exibido em todo o mundo. Esse é que é o verdadeiro problema da Indonésia."

O duelo estava a ser seguido em silêncio pelo resto da mesa. Europeus, asiáticos e americanos acompanhavam apaixonada­mente a troca de tiros, torcendo por um ou por outro, mas o anfitrião percebeu que teria de intervir, caso contrário o debate prolongar-se-ia eterna e inutilmente. Era até contraproducente porque iria conduzir a um novo radicalizar de posições, o que se tentava evitar.

"Peço desculpa por interromper esta interessante conversa", declarou o ministro filipino, quebrando o silêncio dos especta­dores. "Claramente há um problema que tem de ser resolvido entre a Indonésia e Portugal, e esse problema está a afectar-nos a todos." Voltou-se para o seu colega indonésio. "Adi, o que é que a Indonésia pode fazer?"

Adjie respirou fundo.

"Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que Timor-Leste é a vigésima-sétima província da Indonésia, essa é uma realidade definitiva e irrevogável", declarou pausadamente. "Reconhece­mos, no entanto, que há alguns problemas em Timor-Leste e que alguns militares têm tido um comportamento algo excessivo face às provocações de uma minoria desenraizada. Como prova de boa-fé, estamos dispostos a avançar com um conjunto de confidence building measures, designadamente a desmilitari­zação parcial do território e a libertação de detidos políticos."

O chefe da diplomacia indonésia tinha acabado de avançar com duas medidas previamente acordadas com os seus parcei­ros da ASEAN e que tinham merecido a aprovação de Suharto. Chegariam para superar o impasse? Foi o que o ministro an­fitrião quis saber quando voltou o rosto para Durão Barroso.

"Estas medidas satisfazem Portugal?", perguntou, acredi­tando ter sido aberta uma porta para o entendimento. Será que Portugal iria agarrar a oportunidade?

"Saudamos essas medidas", começou o português por dizer. "Mas não chegam. Portugal não aprovará este acordo enquan­to não houver uma radical alteração da política indonésia em Timor-Leste, e o que o ministro Adi Adjie acabou de anunciar está muito longe de se poder designar por alteração radical de política. É um passo no bom sentido, mas falta dar ainda muitos outros. A menos que eles sejam dados, não vemos ra­zões para alterar a nossa decisão."

O acordo CE-ASEAN estava definitivamente morto. A aber­tura portuguesa para aprovar acordos bilaterais entre a Comu­nidade Europeia e cada um dos países da ASEAN, excluindo naturalmente a Indonésia, não foi considerada interessante, uma vez que a economia indonésia era das mais importantes do grupo dos dragões asiáticos. A conferência de Manila sagrara--se num fracasso nas relações entre os dois blocos e claramente havia que fazer algo para impedir novos incidentes do género. As relações entre a Europa e a Ásia não podiam estar bloquea­das por um problema com a dimensão de Timor-Leste.

 

Adi Adjie sabia o que precisava de ser feito. Logo que o seu voo da Garuda aterrou no aeroporto internacional Sukarno-Hatta, em Jacarta, o ministro dirigiu o motorista para o palá­cio presidencial. A limusina atravessou a cidade em direcção a leste, passando pelo sector que constituía o orgulho da econo­mia indonésia, o chamado "triângulo dourado" do distrito fi­nanceiro, entre as avenidas Subirman, Rasuna Said e Gatot Subroto, com os seus modernos e envidraçados arranha-céus, hotéis de luxo, embaixadas estrangeiras, arrojados centros comerciais, engarrafamentos e néons luminosos. Parece Singapura, considerou Adjie, orgulhoso, ao passar pelo local.

Sempre que circulava por ali, vindo do estrangeiro, o minis­tro pensava no mesmo, fazendo simultaneamente por esquecer que os nove milhões de habitantes da cidade viviam, na sua generalidade, em condições miseráveis, Jacarta tinha os piores bairros de lata de toda a Indonésia. Mas isso era herança do passado. A Nova Ordem e os cinco princípios da chamada ideologia Pancasila, instituídos por Suharto, criaram aquele sofisticado centro financeiro e comercial, mas naturalmente que não podiam ser responsabilizados pelo que o regime her­dara no resto da cidade.

A limusina atravessou o cruzamento da estátua Arjuna e a Praça Merdeka abriu-se à direita, o verdadeiro centro da cida­de, com o Monumento Nacional, uma coluna de quase cento e quarenta metros de altura feita totalmente em mármore ita­liano e com uma chama dourada na ponta, erguida no meio da praça e visível de muitos pontos da cidade. Adjie olhou para o monumento, também conhecido por Monas, uma extravagân­cia começada a construir por Sukarno em 1961 e terminada por Suharto em 1975, precisamente o ano em que a maldita confusão de Timor-Leste começara. O Monas simboliza a força e a independência da nação indonésia, mas Adjie não pôde deixar de sorrir ao pensar no mito popular de que Sukarno o mandara construir daquela forma fálica para homenagear a sua virilidade.

Frente à Praça Merdeka erguia-se o palácio presidencial, um bonito edifício branco, de traça colonial holandesa, baixo mas largo, com colunas em arco e vastas varandas, como era obri­gatório nas grandes mansões europeias dos trópicos. Os portões do palácio abriram-se e a limusina estacionou em frente de uma porta lateral, uma entrada de serviço utilizada pelos mi­nistros e altos funcionários indonésios sempre que tinham de ir ao edifício.

Ibu Herni Subroto, a secretária de Suharto, ligou o intercomunicador para o gabinete presidencial.

*Ya?", perguntou uma voz do outro lado da linha.

"Permisi, bapak presiden, o senhor ministro Adi Adjie che­gou."

"Silakan masuk."

Ibu Subroto fez um sinal e o ministro, que também ouvira Suharto a dizer para ele entrar, abriu a porta.

"Selamat siang, meu caro Adi", cumprimentou o presidente quando o ministro dos Negócios Estrangeiros penetrou no seu gabinete. "Apa kabar?"

"Selamat siang, pak Harto", saudou Adjie, dirigindo-se a Suharto pelo respeitoso diminutivo Harto, usado apenas pelos elementos do círculo mais próximo do presidente, e dizendo que estava bem, obrigado. "Kabar baik, terima kasib."

Suharto era general, mas preferia as roupas civis, em parti­cular a balalaica.

"Já sei que as coisas não correram bem em Manila."

Adjie carregou o rosto.

"Dizer que as coisas correram mal é ser moderado."

"Então?"

Sentaram-se os dois, Suharto no seu sofá preferido, Adjie no divã comprido.

"Temos de fazer algo para resolver o problema de Tim-Tim. Os portugueses estão a montar-nos um verdadeiro cerco. Agora já não se limitam aos protestos. Não contentes com terem blo­queado o acordo comercial com a Europa, envergonharam-me à frente dos nossos parceiros da ASEAN, dos japoneses e dos americanos, chamando-nos assassinos, genocidas e tudo o que se possa imaginar."

Tim-Tim era o diminutivo de Timor-Timur, a tradução em bahasa indonésio de "Timor-Leste".

"É preciso ter lata", desabafou Suharto, abanando a cabeça. "E tu o que disseste?"

"A verdade", apressou-se a retorquir Adjie. "A verdade. Que eles é que fugiram em 1975 e nos deixaram com a criança nas mãos, que fomos nós que tivemos de pôr ordem naquele caos comunista e que era preciso descaramento os portugueses virem agora armar-se em anjinhos e apontar-nos o dedo."

"Deve ter sido bonito", sorriu Suharto. "Gostava de ter assistido a isso."

uYa, eles foram arrasados", assentiu Adjie, agradado com o comentário do presidente e agradecendo secretamente aos céus ele não ter lá estado, teria tido uma síncope. "Mas o problema é que o acordo comercial foi pelo cano abaixo."

"A culpa é deles, toda a gente percebe isso", exclamou Suharto, com um gesto de enfado. "Eles agora que se desunhem."

Adjie pigarreou, desconfortável.

"Pak Harto, não é bem assim."

"Tidak} Então?"

"Os portugueses dizem que não alteram a sua posição en­quanto não ocorrerem alterações radicais em Tim-Tim, e..."

"Era o que mais faltava!", rugiu o presidente.

"Claro, tem toda a razão", concordou o ministro. "Mas o facto é que o acordo não foi assinado por causa de Tim-Tim.'"

"E que culpa tenho eu disso?"

"A culpa é toda dos portugueses", assentiu Adjie. "Mas os nossos parceiros pediram-nos que tentássemos fazer qualquer coisa em Tim-Tim."

A calma de Suharto era lendária, havia mesmo quem o con­siderasse um verdadeiro bloco de gelo, mas neste instante sur­giram algumas fissuras naquele maciço glacial.

"O quê? Alguém se atreveu a atirar as culpas para cima de nós?"

"Não, não, toda a gente percebeu que eram os portugueses quem estava por detrás de tudo. Mas devo dizer-lhe que con­cordo com a ideia de que temos de fazer algo em Tim-Tim.'"

"O que queres dizer com isso?"

"Que a situação não pode continuar como está. Desde o incidente de Díli que os portugueses aproveitam todos os pre­textos para tentar embaraçar-nos. Fazem lobby em toda a parte, protestam, acusam-nos, acicatam a imprensa, promovem cam­panhas, manipulam os factos, enfim, estão a montar-nos um verdadeiro cerco. Um verdadeiro cerco. Isto não pode continuar, não podemos ser humilhados desta forma em toda a parte."

"E o que sugeres?"

"Que se resolva o problema de Tim-Tim."

Suharto levantou-se e foi à janela. Lá fora, ao fundo, por entre as árvores, via a estátua equestre do príncipe Diponegoro e, logo atrás e em cima, a chama dourada no topo do Monas, em pleno centro da Praça Merdeka. "Merdeka" é a palavra em babasa indonésio que significa "liberdade", e Suharto não podia conhecer os gracejos dos portugueses sobre o significado da liberdade na Indonésia. Da janela voltou-se para o ministro, que permanecia sentado no sofá, expectante.

"Tim-Tim é a vigésima-sétima província da Indonésia", de­clarou, com grande firmeza e convicção, a voz com um ligeiro tom ameaçador. "Essa é uma realidade incontornável."

"Eu sei, pak Harto, e concordo com todas as minhas for­ças", respondeu Adjie. "Nem sequer estava a sugerir que essa realidade fosse alterada, tal não me passou pela cabeça, não é essa a minha ideia."

"Então qual é a tua ideia?"

"A minha ideia é que temos de acabar com a resistência em Tim-Tim, temos de eliminar essa infecção que nos ameaça, temos de esmagar a minoria ingrata que nos contesta."

Suharto permaneceu alguns instantes imóvel, a reflectir. Sim, ele tem razão, pensou. Chegou a hora de acabar com aquele circo. O presidente da República da Indonésia pegou no tele­fone que estava em cima da mesa.

"Mbak Herni", dirigiu-se à secretária, tratando-a por "irmã", uma expressão normal entre pessoas próximas. "Cha-me-me o Winata imediatamente."

Ainda foram precisos quarenta minutos para que o ministro da Defesa aparecesse, tempo suficiente para Suharto e Adjie discutirem as linhas gerais de um plano que começava a germi­nar. Quando ainda iam a meio da discussão, ibu Herni Subroto anunciou que o general tinha chegado. Suharto mandou-o entrar. Faisal Winata era um batak de meia-idade, originário do Norte de Samatra.

"Saudara, temos de conversar", começou Suharto.

Entre militares era de bom tom utilizar a expressão "irmão". Mesmo assim, Winata sentia-se ligeiramente preocupado com esta convocatória urgente. Mas ao ver Adjie sentado no sofá percebeu que o problema não deveria ser com ele, antes uma questão de origem externa.

"Bapak presiden, vim logo que me chamou", justificou-se. "Estava de visita ao quartel de Sukabumi e apanhei um heli­cóptero logo que fui avisado de que requeria a minha presença com urgência."

"Senta-te, saudara", convidou Suharto, indicando o lugar ao lado de Adjie.

"Terima kasib, bapak presiden", retorquiu Winata, agrade­cendo e sentando-se.

"Não desconheces certamente que o nosso país tem estado sob crescente pressão internacional por causa da situação em Tim-Tim", disse Suharto, fazendo o preâmbulo da conversa. Winata assentiu com a cabeça, estava familiarizado com o problema. "Como sabes, essa pressão foi consideravelmente intensificada desde o incidente de Díli, que tem sido aprovei­tado por comunistas e esquerdistas para manipular a comunidade internacional contra a nossa legítima presença na provín­cia.." Winata também sabia tudo aquilo. "Logo a seguir a esse incidente, mandei o Adi fazer uma digressão pela Europa para exrólicar os nossos pontos de vista e minimizar os danos pro­vocados pelo empolamento da questão. Essa digressão teve resultados positivos, mas os portugueses parecem ter-se acirra­do para além do normal e começaram a montar-nos um verda­deiro cerco. O que talvez não saibas, mas vai ser tema do nosso próximo conselho de ministros, é que esse cerco resultou ontem numa decisão muito grave para o nosso país. Os portugueses conseguiram que a Comunidade Europeia vetasse um muito importante acordo comercial com a ASEAN. O pior é que isso Poderá ser apenas o começo, e não estamos livres de haver novos embaraços, porventura envolvendo até outros países que se deixem encorajar por Portugal. Uma tal situação de isola­mento da Indonésia é inaceitável, compreendes?"

"Absolutamente, bapak presiden", concordou Winata, ain­da sem perceber bem qual era o seu papel no meio daquilo tudjo.

'O problema da pressão portuguesa parecia-lhe ser do pellouro do ministro dos Negócios Estrangeiros e não via em qe é que aquela situação o afectava. Mas não tinha dúvidas de que em breve iria entender tudo.

"Saudara, diz-me com sinceridade", pediu Suharto, mudan­do, subtilmente de tom e fixando os seus olhos pequenos no miInistro da Defesa. "Por que razão o problema de Tim-Tim naco está ainda resolvido?"

Winata sentiu-se empalidecer.

"Bem, bapak presiden... uh... como sabe... uh... tem havido uma enorme resistência por parte de um... um pequeno grupo de   terroristas..."

"Um pequeno grupo de terroristas? E isso chega para emba­raçar o nosso exército?", perguntou Suharto num tom sibilino, teatralizado. "Ora, ora..."

Winata emudeceu e baixou os olhos. Suharto deixou as suas palavras momentaneamente penduradas no ar, a flutuarem. De­pois da pesada pausa, retomou o seu raciocínio.

"Diz-me, saudara, nós não conseguimos realmente saber onde estão os líderes dos terroristas, onde está esse Xanana?"

"Sabemos, bapak presiden, temo-los localizados graças a uma rede de informadores", retorquiu Winata, levantando a cabeça, animado por Suharto a entrar numa questão onde podia mostrar serviço.

"Então porque não os eliminamos?"

Winata já não sabia o que dizer. Suharto conhecia muito bem a resposta a essa pergunta, mas precisava que o ministro da Defesa a enunciasse para poderem ultrapassar o último obstáculo.

"Bem... uh... penso que as instruções são no sentido de os manter localizados..."

"Mas porquê só mantê-los localizados? Para que é que isso serve?"

"E que... uh... enfim, nós assim podemos tê-los controla­dos..."

Suharto era todo ele paciência, todo ele o grande patriarca de Java, todo ele bapak presiden.

"Vamos, saudara, sê franco comigo", disse, quase terno. Só lhe faltou passar a mão pelo cabelo preto do ministro da Defesa. "Por que razão esse Xanana não é eliminado? Por que razão continua a guerra em Tim-TimV

Suharto sabia a resposta e Winata sabia que Suharto sabia. Se, mesmo assim, o presidente insistia em que ele desse a res­posta, então que remédio tinha senão dá-la? Mas era difícil enunciar a ideia sem que ela parecesse caricata e vergonhosa. O ministro da Defesa fez um esforço, tinha de acabar com aquele jogo, com aquele suplício, custasse o que custasse.

"Penso, bapak presiden, penso que o subsídio de zona de guerra... uh... tem alguma coisa... uh... tem responsabilidades... uh... enfim, é por causa dele que a nossa tropa não tem sido mais... uh... determinada na sua actuação."

Winata transpirava. As palavras teimavam em não lhe sair, ou em sair aos tropeções, trapalhonas e desajeitadas, mas final­mente conseguira responder à maldita pergunta. O diabo do velho era implacável.

"O que me queres dizer, saudara, é que a continuação da situação de guerra em Tim-Tim é da conveniência das nossas forças armadas, porque assim os nossos homens continuam a ganhar o subsídio de guerra por estarem em zona de guerra, não é assim?"

"É uma maneira dura de colocar a questão, mas o bapak presiden percebeu bem o que infelizmente se passa", murmu­rou Winata, desta vez sem gaguejar.

"Portanto, sem guerra não há subsídio. Logo, é preciso que a guerra continue para que o salário seja melhor..."

"Julgo que é assim que os nossos oficiais pensam, bapak presiden."

"Eu compreendo, acredita que compreendo", assentiu Suharto. "Eu próprio sou um militar, acredito na instituição militar, sei como ela é importante no nosso país para impedir a sua desagregação e não vejo inconveniente em sermos flexí­veis na forma como encaramos estas coisas. A Indonésia tem muito a agradecer aos militares, fomos nós que impedimos que o país ficasse entregue aos comunistas e se afundasse, por que não fecharmos os olhos a pequenas coisas?"

"Penso exactamente o mesmo, bapak presiden", exclamou Winata, aliviado por Suharto se mostrar tão compreensivo e agradecido aos céus por o presidente ser uma pessoa tão extra­ordinariamente controlada. "Foi por isso mesmo que não actuei para pôr cobro à situação, embora ela não me agradasse."

"Pois é, saudara, mas isso agora vai ter de acabar", disse Suharto suavemente.

"O bapak presiden manda", assentiu prontamente o minis­tro da Defesa.

Só faltou pôr-se de pé e fazer continência.

"Enquanto era tudo inofensivo, não vi quaisquer problemas nessa situação, entendes?"

"Ya, bapak presiden", exclamou Winata, dizendo vigorosa­mente que sim com a cabeça.

"Mas agora já não é inofensivo. O eternizar do problema de Tim-Tim já não é aceitável à luz dos últimos acontecimentos. O prolongamento da situação de guerra na província está a dar aos nossos inimigos munições para nos atingirem, e isso não pode continuar." Suharto fixou os olhos em Winata, sem pes­tanejar uma única vez. "Saudara, quero que acabes com a guerra em Tim-Tim, e de uma forma definitiva."

Suharto não pestanejou, mas o mesmo não se pode dizer de Winata.

"O bapak presiden quer que lancemos uma grande ofen­siva?"

"Isso acabaria com a guerra?"

"Não, não acabaria", reflectiu Winata, afagando o bigode negro. "Tentámos isso em 1975, de 1977 a 1979, em 1983 e nunca resultou. As montanhas oferecem muitos esconderijos e são de difícil acesso aos nossos homens. Por outro lado, os guerrilheiros têm muita mobilidade e evitam o contacto com os nossos soldados, acabando por ser eles a escolher o local e o momento do combate."

"Então o que podemos fazer?"

"Aquilo que o bapak presiden sugeriu há pouco: decapitar a liderança dos terroristas."

"Apanhar o Xanana?", perguntou Suharto.

"Ya, apanhar o Xanana", confirmou o ministro. "Ele é o líder histórico dos timorenses, assumiu esse papel depois de termos morto o Nicolau Lobato. Sem o Xanana, acaba-se o terrorismo."

"Portanto, queres matar o Xanana."

"Não, matar não, isso seria um erro. Matámos o Lobato e fizemos dele um mártir. Não podemos repetir esse erro."

"Então achas que basta prender o Xanana para que o ter­rorismo acabe?", admirou-se Suharto.

"Não, isso não basta, na prisão ele seria também um herói, como o Nelson Mandela", meditou Winata. "Precisamos de o prender e de o quebrar, precisamos de o pôr contra a indepen­dência e a favor da Indonésia."

"E conseguem fazer isso?", surpreendeu-se Suharto, algo céptico.

"Acho que sim", retorquiu Winata, confiante.

"O que achas disto, Adi?", perguntou o presidente, voltan-do-se para o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, que até ali tinha permanecido calado.

"Se o Winata conseguisse quebrar o Xanana, isso seria um grande golpe", sorriu Adjie, abrindo as mãos. "Os portugueses nunca mais recuperavam e o Xanana era capaz de arrastar os timorenses recalcitrantes para o nosso lado." O chefe da diplo­macia voltou-se para o colega da Defesa. "Tem a certeza, gene­ral, que o consegue quebrar?"

"Certeza, certeza, ninguém pode ter", devolveu Winata. "Mas estou confiante."

"Quanto tempo leva a prender o Xanana?", perguntou Suharto.

"Depende das suas movimentações", explicou Winata. "Se ele permanecer nas montanhas, teremos de esperar que venha à cidade. Ele costuma ir frequentemente a Díli. Da próxima vez que aparecer, os nossos informadores dão-nos a sua localização e apanhamo-lo num instante."

"Mas estamos a falar de dias, de semanas ou de meses?", insistiu Suharto.

"Estamos a falar em ter o Xanana nas nossas mãos até final do ano", declarou Winata com um trejeito de boca.

Suharto sorriu e serviu o chá. Era a forma indonésia de dizer polidamente que a reunião tinha terminado.

 

O galo cantou pela terceira vez no espaço de dez minutos, anunciando a alvorada a toda a vizinhança da casa de palapa situada no bairro de Lahane, em Díli. José Alexandre abriu os olhos, ergueu-se na manta onde passara a noite, bocejou e consultou o relógio. Os ponteiros marcavam seis da manhã. Passeou os olhos pelo refúgio e fixou-se num calendário colado à parede a indicar que aquele era o dia 20 de Novembro.

Olhando para a data, José Alexandre sentiu-se preocupado. Havia já algum tempo que tentava canalizar material de guerra para o sector ocidental de Timor-Leste. A guerrilha mostrava--se muito activa na área oriental, mas considerava importante estender a sua actividade para oeste. Era exactamente por isso que se encontrava nesse momento em Díli. Articulando-se com o comandante David Alex, nas montanhas, e com o padre Mário Belo, em Ermera, coordenava a operação logística para colocar o equipamento militar na zona ocidental, onde já havia homens mas faltava armamento. Na capital aguardava impa­cientemente a remessa das armas e munições prometidas. Seria hoje que elas viriam? José Alexandre sentia-se ansioso por abandonar a casa-abrigo onde se refugiara havia já alguns dias, ainda para mais sabendo que, mesmo em frente à residência, se encontrava o reservatório de Díli, guardado por sentinelas indonésias.

O guerrilheiro esfregou os olhos, levantou-se, esticou os braços para se espreguiçar, sentiu a pressão na bexiga, habitual e natural todas as manhãs, e dirigiu-se à entrada da cave, tendo cuidado para não pisar a Ml6, a metralhadora com tripé e as munições amontoadas no chão, era já uma pequena parte do material destinado a oeste.

Subiu os degraus, levantou o alçapão e emergiu no armário do quarto que dava acesso ao abrigo. Sentia o mau hálito matinal a erguer-se da boca e os pêlos rebeldes a fazerem-lhe comichão na cara, o que o inclinava a aproveitar a passagem pelo quarto de banho para também aparar a barba. De cuecas e camisa interior, cruzou a sala de jantar em direcção aos sa­nitários, caminhando com pezinhos de lã para não acordar Bernardina e as suas netas, a dormirem nos quartos contíguos à sala.

Um ruído lá fora fê-lo estacar.

O que é isto?, interrogou-se. José Alexandre ficou imóvel, atento aos sons. Está gente lá fora, sentiu. Agora mais distin­tamente, ouviu sons no quintal e a voz de homens. Está gente lá fora, não há dúvida. Mais vozes, agora com maior nitidez.

Bernardina saiu de rompante do quarto com as netas, os olhos numa aflição.

"Comandante Xanana!", exclamou, muito alarmada. "São os nangalasl Esconda-se! Depressa! Depressa!"

 

José Alexandre "Xanana" Gusmão correu para o quarto dos hóspedes, as duas netas de Bernardina na peugada.

Ouviam-se agora vozes em redor de toda a casa e alguém bateu com violência na porta de entrada. Um dos netos de Bernardina protestou ruidosamente do seu quarto, exigindo aos soldados que os deixassem dormir. Outros militares tenta­vam já entrar pela porta de trás, junto à sala de jantar, e Bernardina decidiu enfrentá-los no quintal. Tinha setenta e oito anos, vestia uma camisa de noite, mas mesmo assim impunha respeito a qualquer um.

"Vocês não têm vergonha de incomodar as pessoas a esta hora?", gritou da porta para os homens armados até aos dentes que invadiram o quintal.

Os soldados usavam boinas vermelhas, eram tropas espe­ciais do Kopassus. Não percebiam português, mas ficaram im­pressionados e algo embaraçados. Aquela mulher podia ser sua avó e estava a pregar-lhes um sermão numa língua estranha.

Bernardina fazia os possíveis por ganhar tempo e o mesmo tentavam os dois netos junto à porta principal, no outro lado da casa. Enquanto isso, Xanana esgueirava-se pelo alçapão oculto na base do armário de tijolo. As duas netas de Bernardina, uma vez fechada a porta do alçapão, ocultaram a entrada com plásticos e espalharam apressadamente sapatos por cima.

O comandante da força indonésia, coronel Sriyono, chamou Juanico, o timorense da sua confiança, e deu-lhe instruções respeitantes à velha empertigada que discutia com os seus ho­mens. Juanico aproximou-se de Bernardina.

"Minha senhora, vamos ter de entrar na sua casa", informou-a.

"Entrar na minha casa?", admirou-se Bernardina. "A que propósito?"

"É um problema dos militares, tenha paciência."

"Qual problema de militares? Que história é essa?"

Juanico mostrava-se inquieto, cheio de preocupação, deseja­va ardentemente que tudo acabasse bem e que a mulher fosse razoável.

"Minha senhora, estes são homens do Kopassus, é melhor não brincar com eles."

"Eu sei muito bem quem eles são", devolveu Bernardina, fingindo-se ofendida. "O que eu quero é garantias de que os nangalas não vão estragar nada. Garantias, percebeu?"

"Esteja tranquila", disse Juanico, preferindo ignorar a ex­pressão pejorativa usada pela mulher para se referir aos solda­dos indonésios.

Bernardina calculou que Xanana já tinha tido tempo sufi­ciente para se esconder e sentiu que não deveria abusar da sorte nem esticar mais a corda. Com um passo para o lado, afastou--se da porta e deixou o caminho livre.

Os soldados entraram tensa e cautelosamente, as Ml6 em riste, o coronel Sriyono atrás. Na mão, o oficial levava um papel com um esboço. Depois de os soldados revistarem a casa e verificarem que o suspeito que procuravam não se encontrava em nenhuma das divisões visíveis do edifício, Sriyono sentou--se numa cadeira da sala de jantar e consultou o esboço. O desenho tinha sido feito por um homem que tinham interro­gado na véspera num outro abrigo clandestino, situado no bairro Pite, a oeste de Díli. O coronel analisou o esquema, identificou o quarto dos hóspedes no papel, levantou-se da cadeira e foi vê-lo pessoalmente.

O quarto parecia-lhe normal. Tinha uma cama e um armá­rio de tijolo na parede. Olhou para o esboço, olhou para o armário e abriu-o. Havia roupas penduradas nos cabides e sapatos na base. Afastou os sapatos, levantou o plástico que estava por baixo e ficou a olhar para as tábuas que se encon­travam no fundo do armário.

Xanana Gusmão tinha acabado de vestir o camuflado quan­do ouviu os ruídos persistentes no quarto de cima e o som dos sapatos a serem removidos por cima do alçapão. Como os indonésios pareciam não querer largar aquele quarto, concluiu que tinha sido localizado pelo inimigo. Sentou-se na manta estendida no chão e considerou a sua situação.

No imediato tinha três opções. Uma era o suicídio, outra era o combate e a terceira a rendição. A primeira era a mais sim­ples e limpa. A segunda revelava-se talvez a mais complicada; Xanana dispunha ali no abrigo de uma M16, uma metralhado­ra pesada, uma pistola, muitas munições, algumas granadas, controlava o único acesso ao abrigo e poderia matar vários soldados inimigos, mas essa opção implicava provavelmente a morte de toda a família que vivia na casa. Por seu turno, a rendição era a hipótese mais incerta e incontrolável, poderia de resto apenas implicar o adiamento da morte.

O líder da resistência timorense agonizou no dilema. O sui­cídio era efectivamente o mais simples, mas Xanana não se sentia com forças para tal. Já o combate era muito complicado. Seria a opção mais honrosa, mas também a mais custosa e, no limite, inútil. Por exclusão de partes, só lhe restava mesmo a rendição. O guerrilheiro recordou-se dos contactos que tinha mantido em 1983 com os oficiais indonésios chefiados pelo coronel Purwanto e sabia que vários deles ainda estavam a prestar serviço em Díli. Na altura as conversas tinham sido muito amigáveis e até simpatizara com alguns desses homens.

Talvez agora o ouvissem, talvez fosse possível conversar com eles, talvez os conseguisse convencer da justiça das suas ideias, talvez o cativeiro constituísse uma solução interessante, não há afinal bens que vêm por mal? Além do mais, queria viver, não desejava a morte, tinha medo, era humano, queria viver. Viver. A decisão estava tomada. Iria render-se.

Nenhum indonésio se voluntariou para abrir o alçapão. A fama de Xanana era intimidatória e ninguém duvidava de que o líder da resistência poderia resistir até à morte. Se assim fosse, o homem que abrisse o alçapão seria um homem morto. Os soldados orgulhavam-se das suas boinas vermelhas, de per­tencerem ao Kopassus, de serem a elite da elite, mas pertence­rem ao Kopassus não significava que fossem parvos ao ponto de se exporem daquela forma à mira do inimigo.

O coronel Sriyono chamou Juanico.

"Abre o alçapão", ordenou.

Juanico sabia que não tinha alternativa. Timidamente, tre­mendo de medo e com o coração nas mãos, ergueu as tábuas, revelando uma abertura para o esconderijo subterrâneo, e viu lá em baixo o homem barbudo e de camuflado.

"Xanana", chamou. "Entrega-te."

O guerrilheiro abriu as mãos, as palmas para cima.

"Sim, estou aqui", disse. "Entrego-me."

Juanico suspirou de alívio. Olhou para o coronel Sriyono, que prudentemente saíra do quarto e espreitava pela porta, e fez-lhe sinal de que estava tudo bem.

Xanana emergiu pela abertura do armário e abandonou o abrigo. Os homens do Kopassus agarraram-no brutalmente, algemaram-no com as mãos por trás das costas e arrastaram--no para uma carrinha. Bernardina e os quatro netos foram igualmente detidos.

A carrinha onde seguia Xanana acelerou pelas ruas de Díli e imobilizou-se ao fim de alguns minutos. As portas abriram-se e o guerrilheiro foi puxado para fora e levado para o inte­rior de uma vivenda luxuosa, claramente a residência de alguém importante.

O grupo aguardou alguns instantes no hall de entrada até que apareceu um oficial superior. Xanana reconheceu Theo Syafei, o comandante militar indonésio em Timor-Leste. Syafei olhou-o apreciativamente, um sorriso largo a exprimir satisfa­ção, e foi falando com os homens que escoltavam o líder da resistência. Xanana não entendia babasa indonésio e apenas podia imaginar que conversavam sobre os pormenores da cap­tura. Instantes depois, o coronel Sriyono deu uma ordem a um soldado, este saiu e regressou volvidos alguns momentos com Juanico. Syafei falou com Juanico enquanto mirava o prisionei­ro, visivelmente pedia-lhe que traduzisse algo.

"O senhor comandante diz que a luta da guerrilha vai aca­bar e que a paz chegará finalmente a Timor-Leste, e aconselha-o a cooperar", disse Juanico.

"A guerrilha não sou eu, a luta não acaba comigo", retor­quiu Xanana, no seu tom pausado.

Juanico traduziu, Syafei riu-se, os homens do Kopassus ri-ram-se, Syafei deu uma ordem e o prisioneiro foi outra vez arrastado para a carrinha.

A viatura seguiu em grande velocidade para o sector do Farol e imobilizou-se diante do edifício onde o Kopassus estava sediado. Xanana passou aí algumas horas, até ser metido nova­mente na carrinha, já de tarde, e levado para um novo local. A sua espera estavam o chefe de estado-maior das Forças Armadas da Indonésia, general Try Sutrisno, e outros generais acabados de chegar de Jacarta. A satisfação era geral e justificada, no fim de contas tinham apanhado o líder da resis­tência três meses e meio depois da ordem dada por Suharto para pôr fim ao conflito em Timor-Leste.

O prisioneiro foi transferido para Bali no dia seguinte. Ao contrário dos milhares de turistas que frequentavam a mais famosa estância balnear da Indonésia, o seu destino não era um qualquer luxuoso hotel nas praias de Kuta ou Nusa Dua, perto de Denpasar, mas a cadeia de Wisma Bayu. Mal chegou à penitenciária foi levado para a sala de interrogatórios e estenderam-lhe uma carta.

"É para assinar", explicou um timorense que servia de in­térprete.

Xanana leu o documento. O texto era um reconhecimento da integração de Timor-Leste na República da Indonésia e a aceitação da cidadania indonésia.

"Não assino isto", disse o guerrilheiro, abanando a cabeça.

O timorense traduziu e os militares começaram aos berros.

"Tem de assinar", aconselhou o intérprete, voltando-se para o prisioneiro.

"Não assino."

Mais gritos, ameaças, rostos crispados.

"Eles dizem que com a cidadania indonésia o senhor fica mais protegido", informou-o o timorense.

"Não assino, já disse."

Os militares agarraram no telefone, deram uma ordem e, instantes mais tarde, apareceu o que parecia ser um médico ou um enfermeiro com instrumentos na mão. Os indonésios agar­raram Xanana enquanto o recém-chegado lhe metia um tubo nas veias.

 

"É só para lhe tirar sangue", explicou o intérprete. "Para análise."

Mas, em vez de retirar o equivalente a uma seringa, o que seria normal se a amostra de sangue fosse mesmo para análises, extraíram-lhe uma quantidade razoável. Xanana concluiu que o queriam enfraquecer. Quando terminaram, o interrogatório foi retomado. Um militar falou para o prisioneiro.

"Queremos saber os nomes das pessoas que constituem a rede clandestina", traduziu o intérprete.

"Não sei."

O oficial deu um brutal murro na mesa.

"Ele quer os nomes", disse o tradutor.

"Não sei."

Mais gritos do militar.

"A tua irmã Armandina foi presa, o teu cunhado também, as tuas outras irmãs e os teus pais foram interrogados", disse o intérprete. "É melhor falares."

A ameaça era implícita, mas Xanana percebeu que os indonésios conduziam o interrogatório com extrema cautela, evitando agressões físicas e ameaças directas. Era bom sinal. Era sinal de que o encaravam como um prisioneiro especial e receavam que qualquer comportamento mais incorrecto viesse mais tarde a ser denunciado, embaraçando a instituição militar.

O interrogatório prosseguiu no mesmo tom durante algum tempo, mas revelou-se inconclusivo e Xanana foi finalmente levado para a sua cela. O prisioneiro contava descansar. Porém, cedo percebeu que isso era impossível. Em redor, os carcereiros faziam uma algazarra enorme, parecia de propósito. O timo­rense fechou os olhos e tentou adormecer, mas o barulho era mesmo infernal e prolongou-se por horas a fio.

Às duas da manhã vieram-no buscar e foi levado novamente para a sala de interrogatórios.

"Queremos os nomes das pessoas que integram a rede clan­destina", ordenou o intérprete.

"Não os conheço."

Murros na mesa, gritos furiosos, os militares não paravam de berrar. Voltaram a estender-lhe a carta que horas antes se recusara assinar.

"Assine a carta."

"Não assino."

Berraria.

"Não percebe que a guerra acabou?"

"Não acabou, vai continuar."

Mais berros desvairados.

"Os seus companheiros estão desanimados e começaram a render-se em grande número."

"Não acredito."

"Que você acredite ou não, não interessa", disse o intérpre­te, sempre traduzindo os exaltados militares. "O facto é que eles estão a descer das montanhas e a entregar-se."

"Se assim é, para que precisam que eu assine a carta?"

"É uma ordem de Jacarta."

"Mas eu não assino."

O interrogatório prolongou-se pela madrugada, sempre com os militares a exigirem que o prisioneiro declarasse que aceita­va a integração e este a recusar. Ao amanhecer deixaram-no ir.

"Vá descansar", disse-lhe o intérprete, ainda traduzindo os militares.

A noite foi longa, os olhos pesavam-lhe, ia finalmente poder dormir. Quando se deitou sobre a manta estendida num canto da pequena cela, a barulheira recomeçou. Gritos, música aos altos berros, gargalhadas ruidosas, uma cacofonia de sons a invadir a cela. Parecia de propósito. Era de propósito.

O recluso tentava descansar mas os carcereiros arranjavam mil e um pretextos para o impedir. Sempre que Xanana se deixava vencer pelo sono, acordavam-no de imediato para limpar o quarto, ou para dar comida, ou para arejar a cela, ou para mudar a manta, ou para verificar a sanita, ou para isto ou para aquilo.

A meia-noite passou e Xanana ainda não tinha conseguido adormecer. Às duas da manhã vieram buscá-lo para novo inter­rogatório. A conversa voltou a incidir no reconhecimento da integração de Timor-Leste na Indonésia, com os militares a exigirem intempestivamente a assinatura da carta e o prisionei­ro a resistir. De madrugada voltou para a cela com novas re­comendações de que aproveitasse para descansar. Deviam estar a gozar. Quando se deitou sobre a manta, a barulheira infernal voltou à cela, mais todos os pretextos possíveis e imaginários para lhe interromperem o sono.

O guerrilheiro sentiu-se quebrar. Não dormia há dois dias, os olhos pesavam-lhe, a cabeça já raciocinava com dificuldade e Xanana receou perder o domínio de si mesmo. Sentou-se sobre a manta e começou a interrogar-se sobre a sensatez da sua estratégia. Estou a actuar mal, pensou. A minha prioridade tem de ser sobreviver e manter o domínio sobre mim mesmo, é isso que faz de mim um guerrilheiro. Sentiu a cabeça ator­doada e os músculos a doer. Se isto continua assim, vou que­brar. Massajou as têmporas. Um bom guerrilheiro adapta-se às circunstâncias.

Xanana lembrou-se das cartas que lera nas montanhas, re­metidas por companheiros que tinham sido capturados e julga­dos em tribunais indonésios. Nessas missivas, os timorenses falavam abundantemente de organizações de defesa dos direi­tos humanos que lhes tinham arranjado advogados e actuado de forma decisiva nos processos judiciais. E se eu levar o meu caso a tribunal?, interrogou-se o prisioneiro. Como as coisas estão, eles se calhar nunca me levarão a julgamento. Tenho de mudar o meu comportamento, tenho de os convencer a deixa-rem-me ir a tribunal. A cadeia de pensamentos entrou em marcha. O que preciso de fazer para que eles aceitem julgar-me?, considerou. A conclusão era inescapável. Tenho de lhes dar o que eles querem, tenho de ser menos inflexível, tenho de me adaptar. A decisão foi tomada. Vou ceder. Era preciso dar um passo atrás para depois poder dar dois em frente.

Nessa madrugada, e após mais um dia inteiro sem conseguir pregar olho, Xanana Gusmão voltou a ser levado para a sala de interrogatórios, onde o aguardavam os mesmos excitados oficiais do Kopassus e o intérprete timorense.

"Esperamos que tenha descansado bem", disse o tradutor.

O prisioneiro nem se deu ao trabalho de responder.

"Os guerrilheiros estão todos a descer das montanhas, a guerra acabou."

Era a lengalenga do costume, a conversa repetia-se, estava a tornar-se monótona. Xanana sorriu.

"Então já não precisam de mim."

"E importante que aceite a integração, isso permitirá conso­lidar a paz e trazer prosperidade a Timor-Leste."

"Mas para que precisam da minha aceitação se, como dizem, está toda a gente a render-se?"

"É importante para a paz", disse o intérprete, ainda e sem­pre a traduzir os oficiais. "Timor-Leste é a vigésima sétima província da Indonésia, é preciso aceitar que essa é uma reali­dade incontornável."

Mais uma vez, a conversa prolongou-se nestes moldes. Xanana Gusmão sentia-se já muito cansado e sem paciência para mais esta ronda de disparates e lugares-comuns. Ao fim de algum tempo, tomou a decisão. É melhor aproveitar enquanto posso discernir, pensou.

"A integração é o único futuro viável para Timor-Leste", dizia então o intérprete pela enésima vez. "Os portugueses abandonaram-vos, a guerrilha está a desistir, é melhor para todos se você aceitar a integração."

Xanana olhou para os militares em redor.

"Muito bem, amigos, querem que eu aceite?", perguntou. "Pois eu aceito, qual é o problema?"

"Como?", admirou-se o intérprete, que não traduziu imedia­tamente estas últimas palavras do prisioneiro, pensando que talvez tivesse percebido mal.

"Eu aceito."

"Aceita a integração?"

"Aceito, pois."

O intérprete voltou-se para os seus superiores, todos com cara de poucos amigos, e traduziu estas palavras. Xanana observou, fascinado, os seus rostos a transfigurarem-se. As faces cerradas e ameaçadoras abriram-se, como por magia, num sorriso largo. Alguns oficiais saltaram de alegria, abraça-ram-se uns aos outros, deram-lhe palmadinhas nas costas e disseram-lhe palavras de encorajamento e agradecimento, pa­reciam crianças, estavam realmente felizes. Xanana ficou estupefacto com a sua ingenuidade. Mas será que esta gente não percebe que isto é aparência, que nada disto é verdade?, reflectiu, observando, incrédulo, a festa a desencadear-se em redor de si.

Um dos oficiais, excitado e transbordando de entusiasmo, agarrou o telefone e ligou para Jacarta, dando a boa nova. Horas depois, Xanana Gusmão viu-se num Hercules C-130 e transportado para a capital indonésia, onde foi alojado no centro de interrogatórios do Kopassus. Pela primeira vez em três dias, deixaram-no dormir.

Mais tarde foi levado à presença do governador de Timor-Leste, Abílio Osório Soares, para fazer a declaração pública de arrependimento. Respondendo às perguntas de Soares, o líder da resistência falou no seu habitual tom calmo e pausado, uma camisa branca no tronco, o colarinho alto a tapar-lhe o pescoço.

"Após vários contactos, cheguei à conclusão de que o objec­tivo da integração é o progresso e a promoção social dos timorenses, que eu reconheço ter havido, e que, na realidade, Timor-Leste é da Indonésia", declarou o prisioneiro, o seu depoimento registado em vídeo. "Estou arrependido por ter ordenado a manifestação do dia 12 de Novembro, que não esperava poder vir a ser uma tragédia, como foi. Aproveito para pedir desculpa a todas as famílias dos vitimados, inclusive à tropa que estava lá naquele momento. E declaro a responsa­bilidade pelo acto e por todos estes dezassete anos de luta armada."

Os indonésios mostravam-se realmente satisfeitos com a de­claração e acreditaram genuinamente que aquele era o instante de viragem, que a resistência iria baixar os braços e descer efectivamente das montanhas, que o problema de Timor-Leste estava de facto em vias de ser resolvido. Quando a gravação terminou, alguns jornalistas indonésios aproximaram-se do lí­der timorense, procurando mais pormenores. Xanana olhou-os com ar divertido.

"Mas vocês acreditam mesmo que eu hoje penso exacta­mente o oposto do que pensava há uma semana?", perguntou-lhes o guerrilheiro.

Ninguém respondeu. Não parecia importante.

Previsivelmente, a parte seguinte do plano indonésio não correu bem. Xanana Gusmão começou a ser julgado em Feve­reiro de 1993, em Díli, e perante o tribunal renegou o seu arrependimento e voltou a defender a independência. Conde­nado e enviado para a prisão de Cipinang, em Jacarta, tornou--se mesmo o Nelson Mandela timorense.

Por outro lado, em Timor-Leste a resistência não parou com o desaparecimento de Xanana. As Falintil escolheram um novo líder, Mau Huno. Os indonésios capturaram-no também, as Falintil arranjaram outro chefe, Konis Santana, este morreu e as Falintil foram buscar mais um líder, Taur Matan Ruak. Em Jacarta, era o desespero. As Falintil pareciam uma hidra, em cada cabeça cortada nascia uma nova.

Mas a capacidade de resistência da guerrilha timorense era já nesta altura a menor das preocupações no palácio presiden­cial. Para Suharto tornou-se gradualmente evidente que, se fosse possível acabar com a guerrilha, e pelos vistos não era, tal facto não atenuaria o cerco internacional. Provavelmente até o agravaria. Desde o fiasco de Manila que a pressão não parava de aumentar e, sinal muito preocupante, os Estados Unidos davam os primeiros sinais de inflexão da sua política. Em Março de 1993, os americanos viabilizaram uma condenação da Indonésia pela Comissão dos Direitos Humanos da ONU, pela violação persistente dos direitos humanos em Timor-Leste, e em Julho de 1994 decretaram um embargo de venda de armas à Indonésia. Até os americanos!

Os indonésios sentiam-se cada vez mais isolados.

 

Suharto coçou o queixo e ergueu o sobrolho, mirando pen­sativamente o seu ministro dos Negócios Estrangeiros.

"Adi, estou preocupado", murmurou.

A mente do presidente indonésio estava voltada para a ci­meira Europa-Asia, prevista para 29 de Fevereiro de 1996 em Banguecoque, na Tailândia. A marcação da cimeira foi recebida com susto em Jacarta, uma vez que se tratava de uma conferên­cia ao mais alto nível, o que implicava a presença de Suharto. Mas, e os portugueses?

"Não auguro nada de bom", concordou Adjie.

"Lembras-te do que se passou em Manila?"

"Então não me lembro, pak Harto}", suspirou o ministro, fazendo uma careta. "Os portugueses chamaram-me tudo. As­sassino, genocida. Tudo. Foi uma vergonha." Cerrou os dentes ao lembrar-se do sucedido e deixou passar um insulto. "Orang portugis gila!"

"Eu não me posso sujeitar a isso."

"Eu sei, pak Harto", assentiu Adjie. "Não podemos permi­tir isso."

"Como é este novo primeiro-ministro português?"

"António Guterres?"

"Ya", disse Suharto. "Ele vai estar lá..."

"Não o conheço, pak Harto, é novo no lugar." O ministro fez uma curta pausa, pensativa. "Mas já me apercebi de que, em relação a Tim-Tim, nada mudou. Nem eu esperava outra coisa..."

"Ele vai levantar a questão de Tim-Tim em Banguecoque...", adiantou Suharto, meio a perguntar, meio a falar com os seus próprios botões.

"Visto assim à distância, eu diria que é muito provável, quase certo até", assentiu Adjie. "Estes portugueses são todos os mesmos, não perdem uma oportunidade para levantar o problema. Ficaria muito admirado se estivessem numa reunião destas, tivessem pela primeira vez o presidente da Indonésia à frente e nada dissessem. Isso é que seria surpreendente."

"É evidente", concordou Suharto. O rosto fechou-se. "Adi, eu não me vou sujeitar a isso. Telefona aos tailandeses e diz que, ou a questão de Tim-Tim é liminarmente eliminada da cimeira, ou nós não vamos. Diz-lhes isso. Nós não vamos! Lembra-lhes o que se passou em Manila."

"Ya, pak Harto."

"E diz-lhes que, se os portugueses mencionarem o assunto e nós estivermos lá, levantamo-nos e vamos logo embora. Diz--lhes isso."

"Ya, pak Harto."

"Aproveita e diz o mesmo aos países que integram a União Europeia."

"Ya, pak Harto."

Os contactos foram imediatamente estabelecidos. Adi Adjie ligou ao seu homólogo tailandês e expôs-lhe a posição indonésia. Os tailandeses entraram em contacto com os euro­peus. Adjie convocou os embaixadores dos países da União Europeia acreditados em Jacarta para lhes comunicar que, se os portugueses levantassem a questão de Timor-Leste na cimeira, a delegação indonésia abandonaria de imediato os trabalhos. Multiplicaram-se as consultas, os portugueses resistiram, os asiáticos insistiram, os parceiros europeus alarmaram-se, lá vão os portugueses estragar tudo, lá vai Timor-Leste fazer fracassar mais uma reunião entre a União Europeia e a ASEAN, não pode ser, eles que se calem desta vez.

Eles que se calem desta vez.

Mas António Guterres não tencionava calar-se. Recentemente eleito, o primeiro-ministro português não queria dar sinais de fraqueza onde o seu antecessor mostrara firmeza, e estava determinado a levantar o assunto, custasse o que custasse.

Um cordão da polícia cercava o quarteirão do Hotel Orien­tal. Todo o sector entre a Charoen Krung e o rio Chão Phraya, no antigo bairro Farang, apresentava-se rodeado de fortes medidas de segurança, viam-se agentes por toda a parte, uns fardados a dirigir o trânsito e a tornar palpável a sua presença, outros à paisana por entre a multidão de mirones, transeuntes e hóspedes, alguns ainda instalados com espingardas de mira telescópica no topo do hotel e nos edifícios situados no triân­gulo formado pela Soi 38 com a Antiga Casa da Alfândega e a Companhia do Leste Asiático.

O Oriental era uma das jóias arquitectónicas de Bangue-coque e o local que, a partir desse dia, iria albergar os chefes de estado e de governo que vinham participar na Cimeira União Europeia-ASEAN. António Guterres e toda a delegação portuguesa deram entrada no grande e imponente átrio do hotel e admiraram o luxuoso interior, decorado com palmeiras, sinos de madeira pendurados do tecto e chão de mármore. O pri-meiro-ministro entregou as bagagens aos seus assessores para o check-in e foi levado pelo protocolo para a sua suite, situada na elegante Ala dos Escritores, as paredes rosa-claro a acentuar a fachada neoclássica da arquitectura.

O edifício tinha sido construído em 1876 e foi celebrizado pelos escritores ingleses Somerset Maugham, Joseph Conrad e Graham Greene, algo que o governante português, infinita­mente meticuloso na preparação dos pormenores culturais das suas viagens, sabia apreciar. O Oriental encontrava-se na mar­gem esquerda do Chão Phraya, o "rio dos reis" que serpenteia ao longo do Khlong Bangkok Noi e do Khlong Bangkok Yai, visível para lá das persianas brancas que cobriam a janela da suite do chefe de governo português, as suas águas recortadas pelas sampanas, barcas de arroz e botes com frutas e legumes.

Guterres planeava levantar a questão timorense durante a primeira sessão de trabalhos, logo no dia seguinte. Antes disso, no entanto, queria descontrair-se no jantar informal marcado para essa mesma noite. O primeiro-ministro português vestiu--se de gala, com camisa de seda e botões de punho de ouro, e à hora prevista juntou-se aos restantes chefes de estado e de governo no salão onde iria decorrer o banquete. Os ministros dos Negócios Estrangeiros, entre os quais Jaime Gama e Adi Adjie, tinham jantar marcado para outra sala do hotel. A noite abateu-se sobre a cidade, quente e prazenteira, e os vários governantes, após os aperitivos nas largas varandas arejadas, entraram no grande salão e ocuparam os seus lugares, previa­mente marcados.

Era efectivamente um jantar informal. Não estavam previs­tos discursos e a conversa de cada governante era feita com os parceiros do lado. Como a disposição geral da larga mesa oval distribuía alternadamente europeus e asiáticos, António Guterres viu-se ensanduichado entre dois asiáticos, Suharto bem distante, noutro ponto da mesa. O presidente indonésio era um homem imponente, os cabelos brancos puxados para trás, o olhar a transmitir bonomia. Como o aspecto das pessoas engana, pensou o primeiro-ministro português. Quem olha para ele, parece o Buda, todo ele bondade e afabilidade. Mas só se deixava enganar quem queria. Aquele homem era res­ponsável pela morte de um milhão de pessoas no seu próprio país, durante a repressão contra os comunistas que se seguira à sua tomada do poder; para além, claro, dos duzentos mil timorenses desaparecidos desde a invasão de 1975. E para já não falar da violência em Aceh e Irian Jaya, as outras provín­cias politicamente problemáticas da Indonésia. De tudo isto sabia Guterres.

Quando a refeição chegou ao fim, o primeiro-ministro da Tailândia levantou-se e tilintou uma colher num copo de cris­tal, provocando o silêncio imediato na mesa.

"Senhores presidentes e senhores primeiros-ministros", disse o chefe de governo tailandês. "Em nome da Tailândia, quero dar-vos as boas vindas, agradecer a vossa presença e desejar-vos uma óptima estada no nosso país." Fez um gesto em direcção a uma porta. "Gostaria de convidar-vos a passarem à sala ao lado para uma reunião preparatória da cimeira que amanhã começa."

Esta reunião era uma novidade, não constava do programa. Os governantes da União Europeia e da ASEAN levantaram-se da mesa e seguiram para a sala indicada pelo anfitrião tailandês. O compartimento tinha cadeirões dispostos em oval com umas mesinhas ao lado. Guterres notou que as cadeiras não eram todas iguais, o que significava que a reunião tinha sido marcada à pressa. Se estivesse planeada, o arranjo da sala teria sido certamente diferente, porventura mais harmonioso e cuidado.

Os governantes sentaram-se e o primeiro-ministro tailandês encetou os trabalhos, começando por expor o programa da cimeira. Era, na verdade, uma exposição redundante, uma vez que todos os participantes tinham o programa nas suas pastas. Mas, quando concluiu esta parte preliminar, o anfitrião entrou na verdadeira questão.

"Há aqui uma coisa muito importante que eu gostaria que decidíssemos em conjunto", referiu, à laia de introdução. "E fundamental que esta cimeira corra bem. Para isso, é pre­ciso que não haja situações de atrito entre nós, situações que ensombrem esta nossa reunião." Fez uma pausa, observando os governantes à sua frente. "Consequentemente, proponho que nenhuma questão conflitual ou problema bilateral sejam abor­dados neste fórum."

O chefe de governo tailandês submeteu a proposta à opinião dos convidados. Um após outro, os governantes europeus e asiáticos endossaram a sugestão. Guterres estava especialmente interessado em ver o que diziam os grandes países europeus e ficou muito atento quando viu o chanceler alemão, o corpulen­to Helmut Kohl, erguer-se para tomar a palavra.

"Muito obrigado, senhor primeiro-ministro, pela sua inicia­tiva", disse Kohl, olhando para o chefe do governo tailandês. Depois voltou-se para os convidados. "Apoio vivamente a pro­posta do nosso anfitrião. Temos de evitar as questões polémicas que perturbem o êxito desta cimeira."

O chanceler era amigo pessoal de Suharto. Mas logo os principais parceiros europeus secundaram as suas palavras. John Major, do Reino Unido, François Mitterrand, de França, Romano Prodi, de Itália. Todos sabiam que aquela conversa se destinava a Portugal e mostravam-se determinados a impedir que os portugueses desta feita estragassem as coisas.

Quando chegou a sua vez, António Guterres discordou.

"Senhor primeiro-ministro, essa proposta não me parece adequada", declarou, dirigindo-se formalmente ao tailandês mas, na prática, à plateia de governantes. "Penso que regras dessa natureza não fazem aqui sentido. Esta reunião é livre e entendo que cada país é livre de levantar as questões que muito bem entender."

A reacção de Guterres já era esperada. Não era afinal ele o destinatário de toda aquela conversa? Antecipadamente prepa­rado para a objecção portuguesa, o tailandês insistiu na sua argumentação.

"Concordo perfeitamente, desde que sejam questões no âmbito desta cimeira. Não faz qualquer sentido serem levanta­das questões bilaterais que irão estragar a harmonia e o bom ambiente desta nossa reunião. Penso que ninguém quer isso."

Guterres voltou a tomar a palavra.

"Senhor primeiro-ministro, tenho a dizer-lhe que estão aqui representadas as mais antigas civilizações do mundo e sabere­mos certamente encontrar a forma correcta e adequada de le­vantar as questões mais sensíveis, quaisquer que elas sejam."

O anfitrião voltou à carga.

"Estou naturalmente de acordo. Todas as questões podem ser levantadas, desde que estejam no âmbito económico, que é aquele que está previsto em agenda. As questões fora da agenda terão de ser tratadas noutros fóruns que não este."

O chefe de governo português tomou a palavra pela terceira vez.

"Da agenda dos trabalhos constam todas as matérias que digam respeito às nossas relações. Insisto que vim aqui no pressuposto de que esta é uma cimeira livre e de que cada país é livre de levantar as questões que entender, incluindo as mais sensíveis. Essa liberdade é um direito que todos temos e de que não podemos prescindir."

Estava-se mesmo a ver que Portugal jamais concordaria com a limitação proposta, mesmo que se encontrasse isolado, como era o caso. Guterres notou que os pequenos países europeus que tradicionalmente apoiavam Portugal na questão de Timor-Leste, como por exemplo a Irlanda, não pareciam dispostos a ajudá-lo desta vez, optando antes por permanecer calados. John Major sentiu a resistência portuguesa e decidiu desferir o golpe de misericórdia.

"Quero fazer uma proposta", anunciou o primeiro-ministro britânico. "Proponho que o chefe de governo anfitrião, que preside a esta cimeira, fique mandatado para retirar imediata­mente a palavra a quem quer que levante qualquer questão bilateral."

Era uma proposta incrivelmente hostil para com os portu­gueses e que mereceu a aprovação da sala. Guterres empalide­ceu, percebendo que a sua estratégia para a cimeira se encon­trava comprometida. Não poderia levantar a questão de Timor-Leste na reunião do dia seguinte, sob pena de ser humi­lhado quando lhe fosse retirada a palavra, mas também não podia deixar de levantar a questão, ninguém em Portugal com­preenderia o seu silêncio numa ocasião daquela natureza. Colocado perante um dilema insolúvel, decidiu improvisar. Só tenho uma chance, pensou. Se quero criar um incidente, tem de ser já.

A reunião terminou e todos se levantaram, dirigindo-se para a porta. Guterres atravessou a sala e começou a dirigir-se a Suharto. O intérprete do presidente indonésio viu o português a aproximar-se, arregalou os olhos de surpresa, deu um toque em Suharto, o chefe de estado indonésio levantou a cabeça e

fixou os olhos no governante português, já quase junto a si. Pânico, confusão, ele vem aí, será que ele tem o descaramento de me falar?, o que é que ele quer?, calma!, calma!, quem o trava?, quem o pára?

Ninguém.

"Mister President", cumprimentou António Guterres, um sorriso nos lábios a disfarçar o nervosismo. "J need to speak to you."

O intérprete traduziu. Suharto manteve a compostura, os olhos de aço cravados no seu interlocutor. Venceu a hesitação momentânea e acedeu, sentando-se de novo no cadeirão que ocupava. Guterres puxou outro cadeirão e acomodou-se junto ao indonésio.

"Muito obrigado por aceder a falar comigo", começou, encorajado e encantado com a abertura manifestada pelo seu interlocutor.

"Ora essa", devolveu Suharto. "O prazer é todo meu."

Estava criado um incidente.

"Senhor presidente, a questão de Timor-Leste está bloquea­da e penso que temos a responsabilidade de a desbloquear onde for possível."

Suharto assentiu com a cabeça. Animado, Guterres prosse­guiu:

"Há uma parte em que estamos em absoluto e irremediável desacordo. Vocês acham que Timor-Leste faz parte integrante da Indonésia e não abdicam dessa posição. Nós achamos que cabe aos timorenses decidir o que querem, não aos indonésios, e também não abdicamos dessa posição. Esta é a parte onde penso que não iremos conseguir progredir."

Suharto voltou a acenar afirmativamente.

"Se não conseguimos um acordo global, vamos ao menos tentar alcançar um acordo num ponto que nos permita uma aproximação. Eu acredito nas virtudes do diálogo, de as partes em conflito terem capacidade de conversar, de discutir, de ex­por as suas divergências, acredito que o diálogo poderá dar frutos, estabelecer pontes, aproximar-nos em pontos onde des­conhecíamos haver convergência entre nós."

O presidente indonésio mirava o seu interlocutor, tentando perceber onde é que ele queria chegar. Guterres sabia que não dispunha de muito tempo e avançou então com uma proposta que tinha preparado em segredo com os seus conselheiros mais próximos, inspirado numa ideia que lhe fora apresentada há algum tempo por Shimon Peres. O ministro dos Negócios Estrangeiros israelita revelara-lhe que os acordos israelo-árabes tinham sido alcançados quando ambas as partes partiram do princípio de que nunca teriam um acordo global e precisavam mesmo assim de estabelecer pontes de entendimento. Era essa ideia que Guterres queria agora aplicar no caso de Timor-Leste.

"Tenho uma proposta a fazer-lhe", revelou, observando o seu interlocutor com atenção.

Suharto manteve o olhar impenetrável.

"Gostaria de lhe manifestar a nossa disponibilidade para que os nossos países abram secções de interesses nas respectivas capitais, conforme a Indonésia tem repetidamente solicitado nas conversações entre os nossos dois países. Em troca, pedia--lhe a libertação de Xanana Gusmão e de todos os presos políticos timorenses, e a garantia de que a Indonésia não mais violará os direitos humanos em Timor-Leste, deixando que as Nações Unidas acompanhem a situação no terreno."

Fez-se uma pausa. Guterres manteve o olhar fixo no presi­dente indonésio, à espera de ver qual o efeito das suas palavras. Em boa verdade, o chefe de governo português não alimentava grande esperança de que os indonésios comprassem a proposta. Tinha-a apresentado apenas para criar um happening. O que Guterres realmente pretendia era ter um pretexto para levantar a questão de Timor-Leste.

Suharto percebeu que o português tinha terminado.

"Senhor primeiro-ministro", retorquiu. "Muito obrigado pela sua amabilidade em falar comigo. Acredito que podemos conversar, concordo que é necessário estabelecermos pontos de diálogo e sermos capazes de explicar as nossas posições. Como compreenderá, não lhe posso responder assim de repente, te­mos de ver este assunto com cuidado, analisar as implicações, discutir as vantagens e os inconvenientes de um tal acordo." Olhou para a porta. "Talvez valesse a pena chamar o meu ministro dos Negócios Estrangeiros para lhe entregar a análise da questão."

Durou vinte minutos a reunião a sós de Guterres com Suharto. Adi Adjie e Jaime Gama entraram na sala e juntaram--se aos seus chefes para falarem sobre a proposta que estava na mesa.

No dia seguinte, Adi Adjie deu indicações de que a proposta era desinteressante. Duas semanas mais tarde, a Indonésia avançou com uma contraproposta, revelando que estava na disposição de libertar Xanana se os guerrilheiros timorenses se entregassem às autoridades indonésias. Não era realista.

A situação regressou a um impasse.

 

Aquela manhã de 11 de Outubro nascera fria, triste e som­bria. Apesar de não ser muito cedo, Soren Seiersted chegou ao trabalho ainda o Sol não tinha despontado. Estacionou o carro, apertou o grosso sobretudo e dirigiu-se à mansão clás­sica, um edifício branco construído no século xix em pleno centro de Oslo. A relva do vizinho Slottsparken, o jardim do palácio, era claramente visível imediatamente ao lado, o majes­toso edifício do Det Kongelige Slott, o palácio real, no meio daquele agradável mar verde. Ao lado da grande porta de entrada da mansão estava um pequeno jardim, protegido por uma cerca metálica, e a dominar o relvado erguia-se um busto em pedra escura de um homem com barba, as palavras "Alfred Nobel" a identificarem a estátua. Em cima da porta encontra-va-se, cravada a pedra clara, o nome da instituição que Seiersted presidia.

Det Norske Nobel Institutt.

A mansão que albergava o Instituto Nobel Norueguês era originalmente uma casa com dois apartamentos. Quando o Instituto Nobel a comprou, em 1905, uniu os apartamentos e fez uma renovação total, uma medida então muito criticada por implicar custos excessivos e um luxo despropositado. Mas agora ninguém se atreveria a reprovar o edifício, apesar das recentes obras de renovação, uma vez que, pelos padrões da década de 1990, a sede do Instituto Nobel Norueguês, na prestigiada rua Drammensveien, era tudo menos ostensiva. Pelo contrário, revelava-se até elegante e sóbria.

"Hei!", disse Seiersted à sua secretária, lançando-lhe um "olá" informal quando entrou no gabinete.

"Mor'n, Soren", retorquiu Kristina, com um "bom dia" igualmente informal, e perguntando-lhe como estava. "Hvordan stãr det til?"

"Bare bra, takk", respondeu Seiersted, dizendo que estava muito bem, obrigado, e devolvendo-lhe a pergunta cortês, como quem diz "e você?" "Og med deg?"

"Bra."

Kristina era, para os padrões do resto do mundo, uma ver­dadeira deusa nórdica, as curvas acentuadas, o busto volup­tuoso e o rosto bem desenhado. Mas aqui, em Oslo, não pas­sava de mais uma agradável rapariga de vinte e cinco anos, uma loira num mar de loiras.

"Então é hoje o grande dia?", sorriu Seiersted.

"Os restantes membros?"

"Já chegaram", informou Kristina, apontando para o corre­dor. "Estão à sua espera na sala de conferências."

Seiersted pegou na pasta e apressou-se em direcção à sala de conferências. O anúncio oficial fora marcado para as onze da manhã e a decisão final teria de ser tomada com relativa rapidez.

"God morgen", saudou Seiersted ao entrar na sala de con­ferências, dando os bons-dias de um modo mais formal.

Os restantes quatro membros do Comité Nobel Norueguês devolveram-lhe o cumprimento e sentaram-se à pequena mesa oval de madeira. A sala de conferências, apesar do seu nome pomposo, era um compartimento apertado e acolhedor. As paredes apresentavam-se forradas com um papel de parede verde com flores, decoradas com pequenos quadros emoldura­dos a madeira e mostrando fotografias a preto e branco de todos os galardoados com o Prémio Nobel da Paz. Distin-guiam-se os rostos de Henry Kissinger e Le Duc Tho, Aung Sang Suu Kyi, Desmond Tutu, Nelson Mandela e Frederik De Klerk, Elie Wiesel, Rigoberta Menchú, Mikhail Gorbachev, Yasser Arafat, Shimon Peres e Yitzhak Rabin, Lech Walesa, Madre Teresa de Calcutá, Anwar al-Sadat e Menachem Begin, Andrei Sakharov, Willy Brandt e muitos outros cujo nome a actualidade já esquecera, figuras como Jean Henry Dunant, Sir William Cremer ou a inefável baronesa Bertha Sophie Feli­cita von Suttner, aliás condessa Kinsky von Chinic und Tettau.

Alheio ao olhar eternizado em película de todos estes anti­gos galardoados, Seiersted limpou os óculos com um pano especial e passou a mão pelo cabelo grisalho impecavelmente penteado, muito responsável pelo seu porte distinto e altivo.

"Como sabem, temos pouco tempo para tomar a decisão final", indicou o presidente do Comité Nobel Norueguês. "Gunnar, faça o favor de enumerar os candidatos que sobrevi­veram à nossa última reunião."

"Takk, Soren." O bispo Gunnar Frederikssen folheou as páginas à sua frente. "Ora, na nossa última reunião seleccionámos os nomes de Richard Holbrooke, Cari Bildt, Thorvald Stoltenberg, Wei Jingsheng, Ximenes Belo, Ramos Horta e Jimmy Cárter."

"Muito bem", exclamou Seiersted, olhando para os quatro colegas do Comité Nobel Norueguês. "Vamos passar imediata­mente à votação final. Inger Marie Eriksson?"

"Richard Holbrooke."

"Sissel Bruntland?"

"Wei Jingsheng."

"Lennart Holmqvist?"

"Ximenes Belo."

"Bispo Gunnar Frederikssen?"

"Richard Holbrooke, Cari Bildt e Thorvald Stoltenberg."

"Um toque escandinavo, Gunnar", sorriu Seiersted. "Pois eu voto em Ximenes Belo e Ramos Horta, o que significa que temos aqui um empate e uma dúvida. O empate é entre Richard Holbrooke e Ximenes Belo. A dúvida é se um destes dois can­didatos deverá ser o único laureado ou se deverá ser acompa­nhado por outros nomes."

O presidente do Comité Nobel fez uma pausa e olhou para cada um dos rostos sentados à mesa. Todos haviam sido nomeados pelo Storting, o parlamento norueguês, para um mandato de seis anos, embora nenhum deles respondesse agora perante o Parlamento. Com excepção de Gunnar Frederikssen, que era um bispo luterano, todos tinham sido membros do governo e políticos destacados.

"Soren", disse Inger Marie, que tinha ocupado três cargos ministeriais no governo norueguês. "Com o consentimento do Gunnar, gostaria de fazer a defesa da candidatura de Richard Holbrooke."

O bispo Gunnar Frederikssen, que também tinha votado em Holbrooke, fez sinal de que estava tudo bem.

"Richard Holbrooke é, para mim, o homem do ano", decla­rou Inger Marie Eriksson. "A guerra nos Balcãs começou em 1991, na Eslovénia e na Croácia, e no ano seguinte estendeu-se à Bósnia-Herzegovina. Durante anos, sérvios, croatas e muçulmanos combateram furiosamente pelo domínio dos ter­ritórios, no primeiro conflito na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Durante esses mesmos anos, a comunidade internacional, e em particular a União Europeia, falou muito e nada fez para acabar com o conflito. Foi preciso os america­nos entrarem em cena, e em particular Holbrooke, para que a sangrenta guerra nos Balcãs cessasse. Foi Holbrooke quem arrancou o acordo de Dayton, após uma maratona nego­cial que incluiu Slobodan Milosevic, Franjo Tudjman e Alija Izetbegovic. Parece-me ser de elementar justiça que Richard Holbrooke seja o galardoado deste ano com o Prémio Nobel da Paz. Poderemos discutir se Cari Bildt e Thorvald Stoltenberg poderão ou não partilhar o prémio, devido ao seu trabalho nos Balcãs, mas, a mim, parece-me incontornável que o Nobel da Paz deste ano tem de celebrar o fim da guerra naquela contur­bada região da Europa."

"Takk, Inger Marie", agradeceu Seiersted. "Lennart, tu votaste no bispo Belo. Podes fazer a defesa desse candidato?"

"Com certeza", retorquiu o antigo ministro da Saúde no­rueguês. "Timor-Leste é um problema antigo e ignorado no mundo. A Indonésia invadiu esta colónia portuguesa em 1975, e, desde então, através de uma campanha sistemática e organi­zada de chacinas, assassinatos, fome e perseguições, dizimou um terço da população local. Meus senhores, só há paralelo recente com Timor-Leste nos casos do Cambodja e do Ruanda. Mas, num certo sentido, pior do que as chacinas é a ignorância da comunidade internacional. Trata-se de um problema antigo que requer atenção para poder ser resolvido. Se o mundo conti­nuar a ignorá-lo, a Indonésia sentir-se-á à vontade para prosse­guir a política de aniquilamento que está a conduzir no territó­rio. O bispo Ximenes Belo é o cardeal Romero de Timor-Leste, é a principal voz que se ergue em defesa dos timorenses. Mas é uma voz fraca. Cabe-nos a nós dar-lhe força. Meus senhores e minhas senhoras, acredito convictamente que, mais do que premiar feitos ocorridos no passado, o Nobel da Paz deve ser usado como factor de mudança, como um pólo de pressão para que haja alterações nas políticas opressoras. Ao premiar o bispo Ximenes Belo, o Comité Nobel estará à altura das suas melho­res tradições, introduzindo irreversivelmente a questão de Timor-Leste na agenda política internacional e dando um passo de gigante para ajudar a resolver o problema daquela martiri­zada ilha."

Fez-se silêncio na pequena sala de conferências do Comité Nobel Norueguês. Coube ao presidente quebrar esse silêncio.

"Takk, Lennart", agradeceu Seiersted. "Vamos então passar à votação, escolhendo primeiro quem deverá ser o vencedor. Como Wei Jingsheng só teve um voto na ronda anterior e Jimmy Cárter não teve nenhum, estes dois ficam automatica­mente eliminados. Restam-nos Holbrooke e Belo. Depois deci­diremos se deverá haver um ou dois ou três galardoados. Inger Marie Eriksson?"

"Holbrooke."

"Lennart Holmqvist?"

"Belo."

"Bispo Gunnar Frederikssen?"

"Holbrooke."

"E eu voto Belo. Portanto, ficamos com um empate dois-dois. Cabe a ti, Sissel, decidir."

Sissel Bruntland tinha votado em Wei Jingsheng na primeira volta e tinha agora a responsabilidade de desempatar a vota­ção. A antiga presidente do Riksantikvaren pigarreou, bebeu um copo de água e olhou para os seus companheiros do Comité Nobel.

"Como o nome indica, o Prémio Nobel destina-se a premiar. Mas eu concordo com Lennart quando ele diz que, mais do que premiar o que foi feito, o Nobel da Paz atinge a plenitude da sua nobreza quando se assume como voz de denúncia e factor de mudança. Para mim, o mais belo momento do Nobel da Paz foi quando o Comité Nobel teve a coragem de o entregar ao pacifista e judeu alemão Cari von Ossietzky, em 1936, provo­cando a fúria de Hitler e deixando até o nosso país numa posição delicada perante a ameaçadora Alemanha. O prémio a Ossietzky foi a finest hour do Comité Nobel e temos de estar à altura dessa tradição. Foi por isso que há pouco votei em Wei Jingsheng e é por isso que agora voto em Carlos Ximenes Belo."

Os restantes membros da mesa aplaudiram. Aplaudiram os que tinham votado no bispo de Díli e os que tinham votado no mediador dos Balcãs. Havia fumo branco na acolhedora sala de conferências do Comité Nobel, mas faltava resolver um derradeiro pormenor.

"O bispo Belo ganhou o Prémio Nobel da Paz de 1996, mas falta-nos determinar se ele é o único galardoado ou se devere­mos fazer com que ele partilhe o prémio com mais alguém", disse Seiersted. O presidente do Comité Nobel Norueguês vol-tou-se para a sua direita. "Lennart, tu votaste apenas em Belo, queres defender essa posição?"

"Eu acho que, num prémio destinado a encorajar mudanças, é importante concentrar todas as atenções numa única pessoa. Se introduzirmos mais nomes, a eficácia perde-se. Reparem, por exemplo, no bispo Desmond Tutu. Se tivéssemos dado o prémio nesse ano a várias pessoas, Tutu não poderia ter tido a mesma força de denúncia do Apartheid que teve sendo o único galardoado. De resto, essa é a razão pela qual existe a regra de que o Nobel da Paz só pode ser partilhado por um máximo de três pessoas. É pelo mesmo motivo que o bispo Belo deve ser o único premiado deste ano."

"Takk, Lennart", agradeceu Seiersted. "Como eu votei si­multaneamente no bispo Belo e em Ramos Horta, cabe-me a mim fazer a defesa desta opção. O que eu quero dizer é muito simples. Timor-Leste é um território mergulhado num estado policial e militarizado, e as pessoas que aí vivem têm enorme dificuldade em expressar o que pensam. O bispo Belo é uma excepção, mas mesmo ele está muito condicionado pela presen­ça dos militares. Ora, para que haja mudança em Timor-Leste, é preciso que o território tenha porta-vozes com inteira liber­dade para exporem os seus pontos de vista e denunciar as situações que têm de ser denunciadas. O bispo Belo, apesar de ser uma voz de contestação dentro de Timor-Leste, sabe que há linhas que não pode ultrapassar. Portanto, é preciso introduzir aqui uma segunda figura, alguém que não esteja sob a alçada dos indonésios. José Ramos Horta anda há vinte anos a defen­der Timor-Leste em todo o mundo, ele é o porta-voz interna­cional dos timorenses. Fala inglês correctamente, é articulado, inteligente e intransigente na defesa da sua causa. Para que este prémio tenha verdadeiramente eficácia, é necessário que Ra­mos Horta também seja distinguido." O presidente do Comité Nobel fez uma pausa e consultou o relógio. "Vamos então fazer um curto intervalo, para podermos analisar o relatório elaborado pelos conselheiros do Comité sobre José Ramos Horta, e passaremos de seguida à votação."

Seiersted levantou-se para ir buscar um café, deixando os quatro colegas a lerem o relatório sobre Ramos Horta. O documento, preparado por consultores convidados, não fazia recomendações sobre se o candidato devia ou não ser galardoado, limitando-se a descrever o seu trabalho. Seiersted já tinha lido atentamente o relatório e não precisava de refres­car a memória. Abriu uma porta lateral e foi ao seu escritório.

"Está quase na hora, Soren", informou-o a bela Kristina quando o viu.

Entre os noruegueses, é pouco comum o uso de formalismos do tipo "senhor presidente", considerando-se mais apropriado o recurso ao nome próprio, mesmo quando a conversa decorre em bokmâl, a língua dominante e erudita da Noruega.

"Eu sei, eu sei", disse Seiersted. "A imprensa?"

"Está tudo lá fora, à porta", sorriu a secretária. "Vai haver alguma surpresa?"

"Talvez", limitou-se a dizer o presidente do Comité Nobel, mantendo um sorriso de mistério.

Kristina sabia que aquilo era o máximo que extrairia do seu chefe, e não insistiu.

Seiersted instalou-se no seu gabinete e agarrou num jornal, a edição da manhã do Aftenposten.

"En kopt kaffe meã flote", disse, pedindo uma chávena de café com um dedo de creme, uma especialidade norueguesa.

"Varmf", perguntou Kristina, querendo saber se era quente.

Era uma pergunta verdadeiramente desnecessária, a secretá­ria já tinha obrigação de conhecer bem os hábitos do seu chefe. Mas Soren era um homem paciente e educado, um verdadeiro gentleman, e não se irritou.

"/<a, bare varm."

Queria-o muito quente.

Kristina aqueceu e serviu o café. O presidente do Comité Nobel Norueguês tomou-o calmamente e, quando terminou, pousou o Aftenposten e regressou à sala de conferências, reto­mando o seu lugar.

"Estão prontos para votar?"

Os quatro colegas acenaram afirmativamente com a cabeça, arrumando os relatórios ao lado.

"Então vamos a isso", disse, esfregando as mãos. "Inger Marie Eriksson?"

"Belo e Horta."

"Sissel Bruntland?"

"Belo e Horta."

"Lennart Holmqvist?"

"O bispo Belo."

Teimoso, este Lennart.

"Bispo Gunnar Frederikssen?"

"Belo e Horta."

"E eu também voto em Belo e Horta", disse Seiersted. "Por­tanto, por quatro-um, os laureados deste ano são o bispo Ximenes Belo e José Ramos Horta."

Aplausos na mesa.

Estavam escolhidos os laureados pelo Nobel da Paz, os dois homens que daí a dois meses seriam convidados para o grande salão do Rãdhus, a Câmara Municipal de Oslo, onde recebe­riam o maior galardão do mundo. Os cinco elementos do Comité Nobel Norueguês discutiram os pormenores da expli­cação que iriam dar em público sobre a sua escolha.

Quando terminaram, Soren Seiersted verificou o relógio. Faltavam cinco minutos para as onze da manhã. O presidente do Comité Nobel levantou-se da mesa, ajeitou a gravata com motivos de fantasia sobre o fato azul-escuro, corrigiu o cola­rinho da camisa às riscas, consultou a folha com a declaração preparada e, às onze em ponto, fez sinal a Lennart de que o seguisse e caminhou para a porta de madeira trabalhada.

Quando a abriu, o seu rosto foi iluminado por uma chuva de flashes fotográficos e pelas luzes de iluminação das equipas de televisão.

"O Comité Nobel Norueguês decidiu atribuir o Prémio Nobel da Paz de 1996 em duas partes iguais a Carlos Filipe Ximenes Belo e José Ramos Horta, pelo seu trabalho para uma solução pacífica do conflito de Timor-Leste", anunciou Seiersted ao mundo.

Era fim de tarde em Jacarta e Adi Adjie entrou de rompante no gabinete presidencial, os olhos chispantes, o rosto rubro de indignação.

"Pak Harto! Pak Harto!"

Suharto quase deu um salto no sofá. Bebia uma tisana e o susto quase o fez entorná-la.

"O que se passa? O que é?"

Adjie imobilizou-se diante do presidente, o corpo muito hirto e tenso, a respiração quase ofegante, as mãos a tremer. Tinha a fúria contida no peito e não sabia como libertá-la, era demasiado grande para sair, uma pressão de lava prestes a explodir pela caldeira de um vulcão.

"Eles atreveram-se! Os cabrões! Eles atreveram-se!"

Suharto, recuperando a sua lendária serenidade, fez-lhe sinal de que se sentasse no sofá.

"Tem calma", disse, a voz tranquila. "O que se passa?"

O ministro sentia-se demasiado nervoso, excessivamente excitado, e não conseguiu sentar-se.

"Eles... eles atreveram-se! É demasiado grave!"

O presidente esboçou uma expressão intrigada.

"Eles quem? Do que estás a falar?"

Adjie fez um gesto para a janela.

"Eles!"

"Quem?"

"Os tipos do... do Nobel! Os suecos ou noruegueses ou lá quem são."

"Os tipos do Nobel? Que Nobel? Do que estás tu a falar? Explica-te."

Adjie sentia a informação sufocá-lo e expeliu-a como se largasse um escarro.

"Eles deram o Nobel aos terroristas de Tim-Tim!"

Suharto endireitou-se, os olhos arregalados, a face a empa­lidecer.

"O quê?"

"Deram o Nobel da Paz aos terroristas de Tim-Tim!"

 

O cocktail de Natal na embaixada americana decorria muito animado. Diplomatas, altos funcionários indonésios, empresá­rios, militares, homens da CIA disfarçados de adidos culturais, intelectuais, todos enchiam o grande salão nobre do edifício, os empregados impecavelmente vestidos de branco a circularem com bandejas numa mão, copos e aperitivos fragilmente equi­librados nos dedos.

Ade Budianti juntara-se à sua irmã mais nova na varanda, as duas com drinks na mão, Ade tinha um copo meio cheio de uma sparkling Perrier gelada, a irmã Desi com um gin tonic, ambas à conversa com o embaixador neozelandês, um alto e simpático sexagenário em fim de carreira.

"Então como vai o mundo das notícias?", perguntou o em­baixador, desafiando a jovem Desi.

"Oh, já estou um pouco cansada, gostava de mudar de vida", retorquiu a indonésia num inglês perfeito, muito Britisb.

As irmãs Budianti eram duas minang de Padang, na ilha de Samatra, mas tinham partido muito cedo para Inglaterra, onde haviam sido educadas. Desi, a mais nova, era uma flor, toda coquette, os olhos amendoados e a tez morena, um verdadeiro êxito na apresentação do principal noticiário de uma das tele­visões privadas da Indonésia. Ade, a mais velha, revelava-se uma quarentona interessante, os olhos misteriosos e inteligen­tes por detrás dos óculos modernos, uma mulher viva e apai­xonada pelo mundo da política, o rosto da Indonésia moderna e liberal, um dos contrapontos ao país dos generais. Concluíra em Inglaterra a licenciatura em História, fizera o doutoramento na Universidade de Melbourne, na Austrália, e iniciara a car­reira no Instituto Indonésio de Pesquisa Política, acabando assim por se envolver na política indonésia e tornar-se a prin­cipal conselheira do presidente Yusuf Habibie.

A noite estava quente e húmida, o que era normal em todo o ano mas um pouco pior nesse mês de Dezembro, e a pesada e densa poluição urbana de Jacarta pairava no ar. Apesar disso, as duas irmãs mantinham-se estoicamente na varanda com o embaixador, a Praça Merdeka à frente, o palácio presidencial lá ao fundo, do outro lado da praça.

O telemóvel de Ade tocou e ela atendeu. A conversa foi rápida.

"Desi, tenho uma emergência", disse à irmã. "O presidente quer falar comigo."

"Vou mandar chamar o teu motorista", voluntarizou-se a telegénica Desi.

"Ya, terima kasih", agradeceu a irmã mais velha. O cami­nho era curto, mas nem pensar em ir a pé, sobretudo sendo quem era. Ade voltou-se para o embaixador. "Peço-lhe que me desculpe, but duty calls"

"Merry Christmas!", desejou-lhe o diplomata, erguendo o copo de scotch em jeito de despedida.

A conselheira de Habibie era uma dedicada muçulmana pra­ticante, o que não a impedia de perceber a importância da época natalícia entre os cristãos. Considerando que o dia de Natal seria daí a quatro dias, os desejos de boas-festas enchiam algumas conversas naquele cocktail.

"Merry Christmas to you", retorquiu a indonésia. "And a Happy New Year!"

Ade deixou-se guiar até ao palácio presidencial, o carro vencendo o intenso tráfego nocturno da Avenida Medan Merdeka Barat até ao outro lado da Praça Merdeka. Para lá dos vidros foscos do automóvel, Jacarta brilhava com luzes e néons coloridos, a cidade quase regressara à normalidade desde os tumultos ocorridos há oito meses, em Maio de 1998, que conduziram ao afastamento de Suharto.

A crise económica na Ásia atingira a Indonésia com parti­cular ferocidade, atirando a rupia para o abismo. Na altura, a população reagira em pânico. Primeiro, começou a açambarcar alimentos e outros bens essenciais, receando novos aumentos de preços. Depois vieram os tumultos, a insubordinação popu­lar, os saques, os confrontos, a insurreição. Após trinta e dois anos no poder, Suharto foi forçado a demitir-se e a situação acalmou. Os efeitos da crise eram ainda visíveis, com muitos escritórios da zona financeira fechados e a situação política ainda instável e volátil, mas claramente o pior já tinha passado.

A conselheira do presidente chegou ao palácio e meteu pela entrada lateral reservada aos altos funcionários. Yusuf Habibie aguardava-a com impaciência no seu gabinete.

"Selamat malan, pak Habibie", cumprimentou Ade.

"Selamat malan, mbak Ade", devolveu o presidente.

"Então o que se passa assim de tão importante?", quis saber a conselheira.

"Os australianos traíram-nos", anunciou Habibie.

"Como assim, traíram-nos?"

"Traíram-nos", repetiu. Pegou num papel que tinha na se­cretária e estendeu-o. "Veja isto."

Ade segurou o papel. Era o fax de uma carta do primeiro--ministro australiano, John Howard, dirigida ao presidente da Indonésia. Ade leu o documento e foi abrindo a boca.

"Mas ele está a defender um referendo em Tim-Tim!", excla­mou, ainda a meio, levantando os olhos.

"Precisamente", retorquiu Habibie. "É esse o problema."

"Mas isto é muito grave", comentou Ade, voltando a aten­ção para a carta e retomando a leitura.

"Concordo", assentiu o presidente.

A conselheira leu até ao fim. Quando concluiu, abanou a cabeça.

"Portanto, os australianos acham que deve haver um refe­rendo daqui a alguns anos e sugerem que tudo decorra a exem­plo do que aconteceu quando dos acordos de Matignon."

"Ora aí está uma dúvida minha", exclamou Habibie, apon­tando o dedo para a carta que se encontrava nas mãos de Ade. "O que é isso dos acordos de Matignon?"

"São os acordos ao abrigo dos quais a França organizou um referendo numa das suas colónias, a Nova Caledónia."

"O quê?", irritou-se Habibie, sanguíneo. "Estão a chamar--nos colonialistas? A nós? Colonialistas? Como se atrevem eles? Nós que fomos sempre contra o colonialismo, nós que liber­támos Tim-Tim do colonialismo, nós que albergámos a Confe­rência de Bandung contra o colonialismo mundial!"

Ade voltou a consultar a carta.

"Isto está datado de 19 de Dezembro", observou. "Quando é que chegou cá?"

"Foi-me entregue esta tarde pelo embaixador australiano", respondeu o presidente com secura. "E não é tudo."

"Há mais?", surpreendeu-se a conselheira.

"Mais do mesmo, se assim se pode dizer", indicou Habibie, pegando noutros papéis. "Isto é outro fax, um que nos enviou hoje o nosso embaixador em Camberra, citando declarações do Downer aos jornalistas."

Alexander Downer era o ministro dos Negócios Estrangei­ros da Austrália.

"O que é que ele diz?", perguntou Ade.

"Ora oiça isto, mbak Ade", pediu Habibie, voltando os olhos para o texto enviado de Camberra. "O governo austra­liano tenciona pressionar a Indonésia a aceitar um processo de autodeterminação em Timor-Leste e admite a independência do território, embora esse não seja o resultado preferido pela Austrália." Habibie calou-se e procurou outro trecho mais à frente. "Não faz qualquer sentido haver um acto de autodeter­minação se esse acto não for verdadeiramente de autodetermi­nação."

"O Downer disse isso?"

"Ipsis verbis."

"On tbe record?"

"Ya."

"Meu Deus", exclamou Ade, sentando-se na cadeira. "Essa notícia já saiu cá para fora?"

"As rádios australianas não falam de outra coisa, ao que parece, e o The Australian tem um título elucidativo na primei­ra página."

"Qual é?"

"Howard's reverse on East Timor."

Ade permaneceu calada, a reflectir.

"Então o que acha, mbak Ade?", quis saber Habibie.

"O que acho?", interrogou-se Ade. "Acho que isto é um terramoto e que temos de pensar muito bem no que vamos fazer agora."

"Precisamente, temos de reflectir no assunto e amadurecer as ideias, e depois quero marcar uma reunião do governo para tomar uma posição e preparar uma resposta."

"Não podemos demorar muito a responder", opinou Ade.

"Que dia é hoje?"

Ade olhou para o calendário no seu relógio.

"Hoje é 21 de Dezembro."

"Temos de responder no espaço de um mês", determinou Habibie. "Prepare-me projecções com cenários alternativos, analisando as implicações de cada um desses cenários, para que possamos discutir a situação."

O tema foi agendado para o encontro que se realizou cinco semanas mais tarde. Em vez de convocar uma reunião de urgên­cia, o presidente optou por discutir discretamente o assunto na habitual sessão mensal do executivo, depois de ter analisado em pormenor todas as opções em conversas privadas com os seus conselheiros mais próximos. Nessas semanas começou a ser delineado um plano ousado, mas faltava convencer todo o executivo.

A reunião de conselho de ministros foi realizada a 25 de Janeiro de 1999. A ordem dos trabalhos mencionava apenas como constando da agenda os "assuntos políticos" e de "segu­rança", suprimindo qualquer referência explícita à questão de Timor-Leste. Os ministros sentaram-se à comprida mesa da sala de reuniões do palácio presidencial, copos de água e chávenas de chá à frente dos papéis, alguns funcionários retarda­tários a entrarem com outras pastas.

O burburinho foi interrompido quando o presidente da Indonésia apareceu por uma outra porta com Ade ao lado.

"Selamat datang", saudou o presidente Yusuf Habibie, dan­do as boas-vindas aos ministros.

Os membros do governo levantaram-se, numa cacofonia de cadeiras a arrastar-se.

"Selamat pagi, bapak presiden", cumprimentaram num coro desafinado e cheio de vozes tardias a dar os bons-dias.

Habibie fez-lhes sinal de que se sentassem e a barulheira das cadeiras a guinchar foi momentaneamente retomada.

"Como sabem, o primeiro e principal assunto da reunião de hoje é a determinação da nossa política em relação a Tim-Tim, em função da alteração da posição australiana sobre o assun­to", declarou Habibie, introduzindo imediatamente o tema quente na mesa. "Temos passado as últimas semanas a analisar e discutir a nova situação, ponderando os prós e os contras de cada opção. Nem todos temos a mesma opinião, o que é na­tural, mas chegou a hora de nos entendermos e tomarmos uma decisão. A conselheira do presidente apresentou-me uma pro­posta arrojada que penso ser um bom ponto de partida para a discussão." O presidente transferiu o seu olhar para Ade. "Se­nhora conselheira, faça o favor."

Ade ajeitou os óculos, fez uma derradeira consulta aos seus papéis e levantou a cabeça para Habibie.

"Terima kasih, bapak presiden", agradeceu, voltando-se então para o resto da mesa. "Tim-Tim tem sido, ao longo dos anos, um espinho cravado nas costas da Indonésia. Desde que entrámos no território, em 1975, que temos tido uma enorme dificuldade em pacificar a província. Isso em si não seria grave caso não houvesse repercussões internacionais extremamente negativas. Infelizmente, elas existem. Em qualquer fórum inter­nacional onde a Indonésia participe, em qualquer visita que o presidente faça ao estrangeiro, em qualquer entrevista que um governante da Indonésia dê a um jornalista ocidental, a ques­tão de Tim-Tim é persistentemente levantada. Houve uma altura em que acreditámos que os protestos desapareceriam com o tempo e a situação gradualmente entraria na normali­dade. De facto, foi esse o caminho que as coisas tomaram de início, com a ajuda dos Estados Unidos, da Austrália e dos principais países europeus, que nos apoiaram em 1975 e per­cebiam a necessidade de estabilizar a situação. Mas nos últimos anos houve um forte recrudescimento da atenção internacio­nal. As televisões de todo o mundo transmitiram imagens do incidente de Díli, os timorenses ganharam o Nobel da Paz, os portugueses desataram a fazer lobby em toda a parte e a atiçar a comunidade internacional contra a Indonésia e a imprensa é--nos francamente hostil. No meio deste ambiente adverso, a posição internacional da Indonésia tem sido sustentada pelo apoio implícito dos Estados Unidos e explícito da Austrália. Mas os americanos já deram há alguns anos sinais de nos abandonar, e desta feita foi a vez de os australianos nos tirarem o tapete. Em suma, estamos agora isolados." Ade fez uma pausa, para deixar que a sua última frase assentasse e fosse devidamente digerida. "A pergunta que temos de fazer agora é: queremos continuar isolados? Faz sentido continuarmos isola­dos? Tim-Tim vale esse sacrifício?" Nova pausa. "Eu acho que não. Por muito que nos custe, acho que não. A nossa priori­dade é salvar o país, a nossa lealdade é para com a nação indonésia. Tenho muita pena, mas Tim-Tim não vale o sacri­fício. Contactos informais que mantivemos em Camberra per-mitiram-nos aliás perceber que o governo australiano já chegou à mesma conclusão e acha que entrámos num beco sem saída, num imenso lamaçal que está a sujar a nossa reputação perante todo o mundo e sem fim à vista." Mais uma pausa, esta solene, as palavras que se seguiriam exigiam-no. "Em conformidade, propus ao presidente da República da Indonésia que convocas­se um referendo em Tim-Tim que resolva definitivamente a questão. Se os timorenses quiserem permanecer na Indonésia, encantados. Se não quiserem, selamat jalcm!", concluiu, fazen­do adeus com a mão.

Fez-se silêncio na sala. Algumas cabeças acenavam em apro­vação, outras mantinham-se imóveis. Defendendo a proposta da sua liberal conselheira, mas obrigado ainda a manter uma fachada de neutralidade, Habibie tinha uma estratégia para conduzir a reunião e levar a ideia a bom porto.

"Terima kasih, mbak Ade", agradeceu, e olhou para um dos ministros que visivelmente estavam de acordo com a ideia. "Senhor ministro da Justiça, tem a palavra."

Muladi, um javanês de rosto largo, possante, voz calma e afável, endireitou-se na cadeira. O facto de a palavra lhe ser entregue constituiu uma hábil tentativa do presidente de gerar uma dinâmica de apoio à proposta.

"Terima kasih, bapak presiden. Segui com atenção a lúcida exposição de ibu Budianti e vejo nela muita sensatez. A repu­tação da Indonésia está a sofrer muito por causa deste pro­blema. A nossa intervenção, em 1975, destinou-se sobretudo a pôr fim à ameaça comunista na região, cortando pela raiz um mal que poderia alastrar a todo o arquipélago. Mas o comu­nismo já morreu, a ameaça já não se põe. Assim sendo, o que temos a ganhar com a nossa presença? A única coisa que vi sair dali foram problemas. Tim-Tim transformou-se numa coutada dos militares e a reputação da Indonésia está pelas ruas da amargura. Se este governo quer cortar com a herança do pas­sado, se este governo quer mostrar ao mundo que os tempos de Suharto acabaram, se este governo quer conquistar o apoio e a confiança das instituições financeiras internacionais, então tem de resolver o problema de Tim-Tim. Apoio, por isso, a proposta de ibu Budianti e acho que o referendo é a nossa única saída."

"Terima kasib, senhor ministro da Justiça", agradeceu Habibie. "Tem a palavra o senhor ministro das Finanças."

u Terima kasib, bapak presiden. Devo começar por salientar que, como indonésio, me aborrece deixar que seja realizado um referendo em Tim-Tim. Mas há dois argumentos de peso, a nível financeiro, para que o problema seja resolvido dessa for­ma. O primeiro é que Tim-Tim não é um produtor de riqueza, mas um consumidor. Estamos fartos de injectar dinheiro na província e só recebemos ingratidão em troca. São cinquenta milhões de dólares por ano. Nem o petróleo do Timor Gap compensa o dinheiro que já ali derretemos. O segundo argu­mento é o que o senhor ministro Muladi já invocou. Precisa­mos de ganhar a confiança das instituições financeiras interna­cionais. Tim-Tim está a tornar-se um crescente obstáculo à ajuda internacional, particularmente à europeia, mas não só. Este problema tem de ser removido. Por isso, e embora a so­lução não seja inteiramente do meu agrado, vejo-me na contin­gência de apoiar a proposta de ibu Budianti."

"Terima kasib, senhor ministro das Finanças. Senhor minis­tro da Informação, silakan.n

O ministro da Informação, Mohammad Pohar Ariawan, poderia ser um problema. De todos os que estavam na mesa, era aquele que mais ligado estava a Timor-Leste. Integrara a Operação Komodo em 1975, chefiando o Team Susi, a unidade de comandos que assaltou Balibó e matou os cinco jornalistas da televisão australiana. Ariawan, na altura capitão, era sus­peito de operar na altura com outro nome, o de major Andreas, o homem acusado de ter pessoalmente dado a ordem para assassinar os jornalistas.

"Terima kasih, bapak presiden", agradeceu, como requeria a polida etiqueta indonésia. Os olhares estavam fixos nele, todos sabiam que, se alguém poderia resistir à ousada proposta de Ade Budianti, era o ministro da Informação. "Segui com muita atenção o que aqui foi dito e confesso que me sinto profundamente dividido. Como todos sabem, estou envolvido na questão de Tim-Tim desde o início, desde o primeiríssimo instante, e esta é uma questão que me interessa sobremaneira, ainda mais porque a minha mulher é uma timorense de origem portuguesa. Concordo que o problema do comunismo foi o que nos levou a agir, mas a questão não se pode reduzir à equação de que, com o fim do comunismo, deixou de haver razão para a nossa presença. Muitos soldados nossos deixaram ali a vida. Vamos renegar o seu sacrifício? Vamos dizer aos seus pais e às suas mães que morreram por nada? Por outro lado, que tipo de mensagem vamos nós transmitir às outras províncias onde a unidade da Indonésia é questionada? O que vão pensar os terroristas de Aceh? E os de Irian Jaya? Se largarmos Tim-Tim, está dado o primeiro passo para a desintegração do país..."

"Senhor ministro, ninguém está a falar em largar Tim-Tim", interrompeu-o Habibie. Ambos eram oriundos de Sulawesi. "Do que estamos a falar é de organizar um referendo na pro­víncia."

"Mas, bapak presiden, o referendo prevê a possibilidade de a província deixar a Indonésia..."

"Naturalmente", retorquiu Habibie com um gesto. "Senão não seria um referendo. Mas o senhor acha que os indepen­dentistas vão ganhar?"

"Bem... uh... acho que não", atrapalhou-se Ariawan. "O cidadão comum sabe o que deve à Indonésia, sabe o quanto investimos na província, sabe que fomos nós quem impediu que os comunistas tomassem conta daquilo."

"Então qual é o seu problema? Se acha que a integração ganha..."

"Enfim... uh... é um problema de princípio."

"O nosso dever é para com a Indonésia, a nossa lealdade é para com o povo da Indonésia", afirmou Habibie. "Se a orga­nização de um referendo permitir a resolução do problema de Tim-Tim, acabar com o cerco internacional à Indonésia, que­brar com o crescente isolamento do país nesta questão e remo­ver um importante e embaraçoso obstáculo à ajuda das insti­tuições internacionais, o senhor opõe-se? Mesmo achando que, no final, Tim-Tim acaba por permanecer na Indonésia, que os timorenses votam na integração? O senhor opõe-se?"

"Bem...", gaguejou Ariawan, sentindo os olhos expectantes pousados em si. Hesitou uma fracção de segundo, mas perce­beu que o sentimento na mesa tendia para o referendo e acabou por se decidir. "Não, claro que não. Embora não me agrade, reconheço que as alternativas são provavelmente piores."

A mesa agitou-se. Habibie e Ade viram a partida ganha. Nos minutos seguintes foi a vez de outros dois potenciais proble­mas, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Adi Adjie, e o ministro da Defesa, general Wiranto, se renderem aos argu­mentos dominantes e concordarem, embora cheios de hesi­tações, dúvidas e temores, com a proposta de Ade Budianti.

Adjie levantou, todavia, um problema inesperado.

"Fermisi, bapak presiden", disse o chefe da diplomacia. "Não posso deixar de questionar o timing desta decisão."

"O timing}", admirou-se Habibie.

"Ya, o timing", insistiu Adjie. "Como sabe, temos passado os últimos meses a negociar com os portugueses o estatuto de autonomia para Tim-Tim. Essas negociações prosseguem a bom ritmo e prevejo que sejam concluídas em breve. Ora, se os portugueses souberem que afinal aceitamos a independência, a nossa posição vai ficar muito enfraquecida."

"Mas isso agora já não é relevante", observou o presidente.

"Permita-me discordar, bapak presiden", devolveu o minis­tro dos Negócios Estrangeiros. "Temos de manter todas as opções em aberto. Se arrancarmos dos portugueses, como espero que vamos arrancar, a aceitação da autonomia para Tim-Tim, o problema da independência deixa de se pôr. Peço--lhe, bapak presiden, que me deixe primeiro terminar essas negociações. Só depois deveremos decidir se vale ou não a pena aceitar o referendo sobre a independência. Se, no entanto, anun­ciarmos agora que admitimos considerar a independência, os portugueses já não aceitarão nenhum modelo de autonomia."

"Também acho que não devemos fazer um anúncio ime­diato", interrompeu Wiranto, apoiando a posição de Adjie. "Porque não deixar tudo para depois das eleições?"

Do que Wiranto estava a falar era de adiar tudo para as calendas javanesas. As eleições legislativas estavam marcadas para daí a cinco meses e as presidenciais para daí a nove. Se a decisão fosse adiada para depois dos dois actos eleitorais, pro­vavelmente as circunstâncias seriam diferentes e o governo outro, o que significava que o referendo já não se realizaria. Isso era inaceitável para Habibie. O presidente sabia que ocu­pava interinamente o cargo e precisava de um acto espectacular de governação para alimentar qualquer possibilidade de ser eleito. A remoção do obstáculo timorense, com as consequên­cias internacionais de tal decisão nos planos político e económico, poderia ser esse acto. Habibie acreditava que seria descrito pela comunidade internacional como um grande esta­dista, uma espécie de Gorbachev indonésio, autor de uma perestroika e de uma glasnost que mudariam a face do país, ultrapassando assim as objecções de diversas instituições finan­ceiras que poderiam ajudar a Indonésia. Mas sabia que o tempo corria contra si e que teria de agir muito depressa. Essa equa­ção era determinante na sua mente.

No imediato, porém, o chefe de estado tinha de ultrapassar a bem fundamentada argumentação de Adjie. Yusuf Habibie bebeu calmamente um copo de água, deixando os seus minis­tros suspensos. Esse instante, que prolongou deliberadamente, serviu-lhe para reordenar ideias e preparar a defesa da neces­sidade de um referendo rápido.

"Sabem o que eu realmente penso de Tim-Tim?", pergun­tou, pousando finalmente o copo e fitando os rostos fixados em si em torno da mesa. "Ao contrário do ministro da Informação, não tenho a certeza de que os timorenses nos estejam agrade­cidos. Na verdade, o que eu acho é que aquilo é uma terra pequena, pobre, e ainda por cima católica, que não tem nada a ver com a nação indonésia. Fartamo-nos de meter lá dinheiro e só nos devolvem insultos e ingratidão." Fez uma pausa, que por instantes encheu a sala de silêncio. "Os australianos tive­ram o desplante de nos comparar com os colonialistas france­ses e de defender um referendo sobre a independência de Tim-Tim para daqui a alguns anos." Nova pausa. "Um referendo daqui a alguns anos? Vocês acham isso bem? Então vamos estar aqui quatro ou cinco ou quinze anos a despejar tonela­das de dinheiro em Tim-Tim para depois aquela cambada de mal agradecidos votar na independência? Acham isso bem?" Os ministros murmuraram em aprovação, as palavras de Habibie tiveram o seu efeito. Encorajado com a reacção à sua tirada, o presidente avançou para a estocada final. "Pois eu acho mal! Se temos de fazer um referendo, que seja agora! A Indonésia não tem de andar anos a alimentar preguiçosos e ingratos! Agora é que vamos ver como é, se Tim-Tim é para sair, que saia, saia já. Nem mais um tostão até que essa questão fique devidamente esclarecida!"

O executivo concordou com o presidente e o destino de Timor-Leste ficou selado. Para evitar mencionar a palavra "independência", o governo determinou que a Indonésia sub­meteria a referendo uma proposta de autonomia regional para Timor-Leste. A rejeição da proposta implicaria a indepen­dência.

Pohar Ariawan compareceu na sala de imprensa. Decorria a manhã de 27 de Janeiro e cabia ao ministro da Informação, como era costume, dar conta do que ficara decidido na reunião efectuada dois dias antes. Os jornalistas, a maior parte caras que rotineiramente cobriam as reuniões do executivo, tomaram os lugares e aprontaram os blocos de notas.

O ministro ajeitou os papéis diante de si e bebeu um golo de água. Era dura a missão que o esperava, considerou. Ele que tanto se empenhara na integração de Timor-Leste na Indonésia, ele que até se casara com uma timorense, ele que chegara a sujar as mãos de sangue para reprimir a resistência à anexação, depois de tudo o que fizera decidira o destino entregar-lhe a tarefa de fazer este anúncio. Como eram irónicas as voltas que a vida dava! Abanou a cabeça, meditando sobre o destino que dele parecia zombar.

Pousou o copo e fez um compasso de espera, aguardando que todos se sentassem.

"Selamat sore, selamat datang'", cumprimentou Ariawan.

Os jornalistas retribuíram.

"O Conselho de Ministros reuniu-se no dia 25 de Janeiro com vários pontos em agenda, o primeiro dos quais diz respeito à nossa vigésima sétima província." Pigarreou, ganhando cora­gem para dizer o que tinha a dizer. "O governo decidiu que uma autonomia regional máxima será concedida a Timor-Timur." Fez nova pausa, ergueu os olhos do papel e formulou a frase que iria selar o destino do território. "Se não for aceite pela população, sugeriremos à Assembleia Consultiva Popular que resultar das próximas eleições que Tim-Tim seja libertado da Indonésia."

Minutos depois já a notícia fervilhava nas agências e era difundida para todo o mundo.

 

O general Zacky Wandi acendeu o cigarro, aspirou o fumo e deixou-o deslizar lentamente pelas narinas e pela boca. Olhou em redor para os edifícios que cercavam Taman Fatahillah, a praça onde se encontrava. Aquele era, na verdade, um local carregado de história. Tratava-se do antigo centro administra­tivo da velha Batávia, o sítio onde os holandeses ergueram em 1710 o Stadhuis, de onde controlavam o vasto império colonial asiático no tempo da poderosa Companhia Holandesa das índias Orientais.

O Stadhuis erguia-se à esquerda do general, um edifício branco com janelas europeias, duas imponentes colunas a pro­tegerem a entrada, debaixo da qual se encontravam as velhas masmorras onde os presos eram muitas vezes parcialmente submersos por águas imundas. Só que agora aquela estrutura de traça colonial já não se chamava Stadhuis, mas Museu Wayang, o local onde se podia encontrar uma das melhores colecções existentes em Java de marionetas wayang, usadas nos populares teatros de sombras javaneses, o wayang kulit. Dizem os indonésios que não é possível conhecer os javaneses sem conhecer o wayang.

À direita do general situava-se o Balai Seni Rupa, o antigo palácio de justiça do tempo dos holandeses, agora transforma­do no Museu de Belas Artes. Atrás de si estava o Museu de História de Jacarta, completando a trilogia dos museus que cercavam a praça central da Kota, o nome por que era agora conhecido o sector dentro das muralhas da velha cidade de Batávia. A Kota era indubitavelmente a parte mais bonita de Jacarta, com a sua arquitectura carregada de história e mito­logia, embora muitos argumentem que esse estatuto se fica sobretudo a dever à falta de competição no resto da cidade.

Zacky Wandi gostava de história e de simbolismos, e foi justamente por isso que escolheu este local para o encontro. Se lhe cabia agora a tarefa de alterar a história, não faria afinal sentido que fosse aqui que os planos começassem a ser delinea­dos? O general sorriu, agradado com o simbolismo místico da vida, sentindo que tudo obedecia a uma geometria perfeita, que todas as coisas acabavam por se encaixar como um complicado puzzle que se completa sempre no fim.

O homem que Zacky esperava saiu de um carro que parara em frente. O indivíduo vinha fardado e mostrou-se surpreen­dido quando viu Zacky no meio da praça, junto ao canhão antigo que ornava o ponto norte de Taman Fatahillah.

"Selamat siang, bapak general", cumprimentou o homem, tocando a pala do boné com a mão.

"Selamat siang, coronel Sedyono", devolveu o general.

"O nosso encontro não era ali no Café Batávia, bapak ge­neral?"

Zacky olhou para o elegante edifício à sua frente, do outro lado da praça.

"Era e é, coronel."

O coronel ficou a olhar, como que aguardando uma expli­cação suplementar.

"Mas, se não se importa, queria começar a nossa conversa ao pé deste canhão", disse o general, tocando no ferro com a mão esquerda.

O coronel Sedyono observou o canhão com curiosidade.

"Esta peça de museu?"

Zacky riu-se, mostrando os dentes brancos.

"Esta peça de museu, como você lhe chama, é um símbolo, meu caro coronel. E sabe de quê?"

O coronel devolveu o sorriso.

"Da fertilidade, bapak general", exclamou.

A resposta não era disparatada e Zacky sabia-o. O canhão era conhecido como Si Jagur, "o robusto", devido sobretudo ao facto de a sua ponta traseira estar decorada com um punho fechado, o polegar a aparecer entre o indicador e o dedo do meio. Isso era um gesto obsceno na cultura javanesa e, iro­nicamente, criara a crença de que aquela antiga peça de arti­lharia tinha poderes de fecundidade. Muitas mulheres inférteis eram atraídas ao local e sentavam-se sobre o canhão na espe­rança de ficarem grávidas. Também muitos jovens casais eram vistos a oferecer presentes ao Si Jagur, intercedendo assim pela sua futura fertilidade.

"Também é um símbolo da fertilidade", assentiu o general. "Mas, para nós, é mais do que isso." Acariciou o ferro como se tocasse na pele de uma mulher. "É um símbolo da derrota dos portugueses."

O coronel olhou para o canhão com outros olhos.

"Isto, bapak general?"

Zacky deu uns passos em redor do canhão, apreciando-o com olhar de entendido.

"Está a ver esta inscrição?", perguntou, apontando para umas palavras escritas no ferro branco.

O coronel tentou ler, mas atrapalhou-se e preferiu calar-se. O general voltou a sorrir, antecipando o brilho com que iria iniciar a reunião.

"Ex me ipsa renata sum", leu, orgulhoso por exibir a sua erudição. "É latim, significa 'de mim mesmo renasci'."

O coronel fingiu-se impressionado.

"Ah, que interessante."

"Esta inscrição foi feita pelos portugueses, que construíram o canhão, no século xvn", explicou Zacky. "Os holandeses apanharam-no quando capturaram Malaca aos portugueses, em 1641, e trouxeram-no aqui para Batávia como troféu de guerra."

O coronel Sedyono manteve os olhos no canhão, mas agora com genuíno interesse.

"Era dos portugueses...", comentou.

"Yes", confirmou o general. "E foi por isso que eu quis que você visse de perto o canhão. É que cabe-nos a nós, agora, repetir a façanha dos holandeses e voltar a derrotar os portu­gueses. A diferença está em que o troféu de guerra não será um canhão obsoleto, mas Tim-Tim."

Os dois homens começaram a andar, atravessaram a rua e entraram no magnífico edifício do Café Batávia, um antigo armazém restaurado e reproduzindo impecavelmente o am­biente colonial holandês de princípio de século. As paredes apresentavam-se decoradas com retratos de estrelas de Hollywood e o ar enchia-se com o som do jazz, fazendo do café, apesar dos seus elevados preços, um sítio popular e fashionable. Subiram ao primeiro andar, entraram no grande salão e foram sentar-se junto a uma janela, a Taman Fatahillah a abrir-se cá em baixo, o canhão português bem visível no sector norte da praça.

O Café Batávia era famoso pela variedade dos seus cocktails; a ementa contabilizava mais de sessenta, incluindo o célebre Singapore Sling do Raffles Hotel. Mas os dois militares não queriam nada com o álcool. Zacky preferiu uma água mineral, o coronel optou por um café. Quando o empregado se afastou, o general decidiu não perder mais tempo e ir direito ao assunto.

"Bapak coronel, ouviu certamente o anúncio feito na sema­na passada pelo governo..."

"Ouvi e estou muito preocupado."

"Também eu, bapak coronel. E é por isso que nos encontra­mos os dois aqui a conversar."

O coronel Sedyono inclinou-se na mesa.

"Bapak general", exclamou, os olhos fixos no seu interlo­cutor. "Esse referendo não pode ser realizado."

"Concordo, bapak coronel", suspirou Zacky. "O problema é que o referendo foi anunciado e não há maneira de o desanunciar, se assim posso dizer. A caixa de Pandora foi aberta."

"A caixa de quem?", admirou-se o coronel.

O general olhou-o com enfado. O seu interlocutor era ofi­cial do Kopassus, pelo que o respeitava, mas a ignorância re­velada pelos quadros superiores da força de elite era enervante.

"Esqueça", exclamou. "O que quero dizer é que o referendo está anunciado e não há volta a dar ao problema."

Foi a vez de o oficial subalterno abanar a cabeça.

"Mas o que é que se passou na cabeça do Habibie?", inter-rogou-se o coronel Sedyono. "Que ideia esta de organizar um referendo em Tim-Tim!"

"O idiota pensa que vai ganhar o Prémio Nobel da Paz", sorriu Zacky, embora sem vontade.

"Ganhar o Nobel?", admirou-se o coronel. "Está a brincar, bapak general?"

"Não estou não. É mesmo isso, pode crer."

"Mas onde é que ele foi buscar essa ideia tão extraordiná­ria?"

Zacky suspirou.

"O homem está desesperado com a possibilidade de perder a presidência e veio agora com este plano louco e disparatado. A ideia é muito simples. Ele sabe que tem poucas hipóteses nas eleições presidenciais de Outubro, sobretudo frente a Megawati Sukarnoputri, e por isso só lhe resta a fuga em frente. No seu raciocínio, um grande gesto em Tim-Tim permitir-lhe-á gran­jear prestígio junto da comunidade internacional. Se resolver o problema de Tim-Tim, e com um pouco de sorte, poderá ser o Frederik De Klerk da Indonésia e ganhar o Nobel da Paz, o que constituiria um enorme boost para a sua campanha presiden­cial. Só que o tempo corre contra ele, a janela de oportunidade é pequena e, ou deixa agora a sua marca, ou nunca mais o fará. Tim-Tim é o seu legado e a sua oportunidade de se tornar um herói, mas tem de agir rapidamente. Daí que tenha apressado o processo referendário."

O coronel abanou a cabeça.

"Nem posso acreditar que os superiores interesses da Indonésia estejam a ser afectados dessa forma pelas ambições políticas de uma única pessoa."

O general Zacky ajeitou a camisa, olhou em redor para se certificar de que ninguém o ouvia e cravou os olhos no seu interlocutor.

"O que lhe quero dizer, meu caro coronel Sydonto, é que as coisas não vão ficar assim. Não vamos ficar de braços cruzados a ver esses maricas dos timorenses rirem-se à nossa custa, não vamos deixá-los sair assim de qualquer maneira. Não, isso não toleraremos."

O rosto do coronel iluminou-se.

"Concordo inteiramente", disse com ardor. "O que vamos fazer?"

"A primeira coisa é torpedear as negociações entre Portugal e a Indonésia. Temos de desestabilizar a situação em Tim-Tim e impedir um acordo entre os dois países. Há dois meses criámos umas milícias para enfrentar os avanços dos naciona­listas timorenses, os quais, desde a queda de pak Harto, se têm tornado muito atrevidos e começaram até a organizar manifes­tações. As milícias estão a ser utilizadas para fazer ver aos secessionistas que a liberdade do período pós-Suharto não pode nem vai chegar a Tim-Tim. Ora a ideia é usar essas milícias para criar ali um barril de pólvora, estabelecendo as condições para que Portugal e a Indonésia não cheguem a acordo e, se chegarem, para que as Nações Unidas nem se atrevam a pôr os pés na província."

"Desculpe, bapak general, mas olhe que eu não estou muito convencido de que isso funcione assim", murmurou o coronel. "A instabilidade em Tim-Tim dificilmente enfraquecerá a deter­minação dos portugueses em acordar num referendo e, por outro lado, deverá até reforçar a convicção de que as Nações Unidas têm de entrar na província."

"É provável", assentiu Zacky. "É por isso que o plano não se esgota aí."

"Ah, bom", exclamou Sedyono, expectante.

"Se o acordo para o referendo for mesmo fechado, vamos tentar seduzir o eleitorado."

"Seduzir?"

"Isso mesmo, seduzir", confirmou Zacky. "Entregamos às milícias dinheiro para investir em bens a distribuir pela população. A ideia é dar às pessoas arroz e outros produtos de primeira necessidade."

"Portanto, vamos comprar o eleitorado."

"É isso, vamos comprá-los."

"E acha que isso resulta?"

"Espero que sim."

"E se não resultar?"

"Se não resultar, só nos resta lançar uma nova Operasi Komodo", anunciou o general. "Provocação, guerra civil e intervenção indonésia para pacificar a situação." Do punho fechado, Zacky esticou o polegar para cima. "Primeiro vamos pôr as milícias a intimidar a população e a manter os seces-sionistas em respeito. A presença das Nações Unidas, dos obser­vadores internacionais e dos jornalistas impede que seja o nosso exército a actuar abertamente, pelo que teremos de recorrer às milícias para fazer esse trabalho, usando-as tal como em 1975 usámos a UDT." Zacky esticou o indicador, que assim se jun­tou ao polegar. "Segundo, se os terroristas ganharem o refe­rendo, como é provável, as milícias alegam que houve fraude eleitoral, queimam tudo, retiram as populações para Atambua, matam os líderes dos terroristas e provocam confrontos com eles. Quando os confrontos começarem, diremos que há uma guerra civil entre grupos de timorenses que se odeiam há muito tempo e que os patriotas timorenses estão revoltados com as fraudes no referendo. Tal como em 1975 alimentámos a guerra civil entre a UDT e a Fretilin, agora alimentaremos a guerra entre as milícias e os secessionistas." Mais um dedo esticado. "Terceiro, o nosso exército intervém para repor a ordem e acabar com a guerra civil entre os timorenses, exactamente como em 1975. O mundo concluirá então que a independência de Tim-Tim é inviável, uma vez que existem na província ódios ancestrais e os timorenses jamais se entenderão e estão condenados a lutar entre eles. Conclusão, Tim-Tim mantém-se na Indonésia."

O general Zacky ficou a olhar para o coronel Sydonto, esperando um comentário. Só teve de aguardar alguns instan­tes.

"Brilhante, bapak general", aplaudiu o coronel. "Simples­mente brilhante."

"Também acho", riu-se Zacky.

"Foi o senhor que concebeu essa última parte?"

"Eu não diria isso", retorquiu o general com modéstia. "Trata-se, na verdade, de um remake da Operasi Komodo, o que significa que a ideia é, em bom rigor, do general Murtopo." Uma pausa, pensativa. "Digamos que a adaptei às circunstân­cias..."

"E como vamos pôr o plano em prática?"

"É simples e complexo ao mesmo tempo", explicou Zacky. "É simples porque envolve todas as forças que estão em Tim-Tim. Exército e polícia. É complexo porque tudo tem de ser feito às escondidas, em jogo duplo, devido à presença interna­cional. Ou seja, temos de montar as coisas de modo a poder­mos depois atirar todas as culpas para os timorenses, os que nos apoiam e os outros. Nada do que vier a acontecer pode ser atribuído directamente às nossas forças. Temos de dizer que o problema radica nos conflitos ancestrais e irresolúveis dos timorenses, e sublinhar que só a presença indonésia impede que eles se envolvam numa guerra civil e se matem todos uns aos outros."

"E acha mesmo que, se houver um resultado favorável à independência, a comunidade internacional vai deixar que Tim-Tim permaneça na Indonésia?"

"Confesso que essa é a parte mais delicada do plano, aquela que contém maiores imponderáveis e em relação à qual eu próprio alimento algumas dúvidas. Mas, mesmo que Tim-Tim se torne independente, os nossos verdadeiros objectivos estra­tégicos estarão alcançados."

"Como assim?", admirou-se o coronel Sydonto. "Se Tim-Tim ficar independente, falhámos o nosso objectivo estraté­gico..."

"A manutenção de Tim-Tim não é, em si, o nosso objectivo estratégico", retorquiu o general.

"Saya tidak mengerti", exclamou o coronel, abanando a cabeça e dizendo não compreender. "Então qual é o nosso objectivo estratégico?"

"Dar uma lição ao Habibie, mostrar-lhe que quem manda no país somos nós, mostrar ao país o nosso poder e desencora­jar noutras províncias as aspirações de independência. Por­tanto, se Tim-Tim se tornar independente mas a província tiver sido arrasada e a população vier a sofrer na pele a escolha que fez nas urnas, penso que a nossa mensagem será entendida."

"Saya mengerti", declarou o coronel, percebendo final­mente. "E o que espera de mim, bapak general?"

"Você está em Suai..."

"Ya."

"Pois então organize as milícias de Suai. Temos milícias em vários pontos da província, mas não aí. Dê-lhes armas tradicio­nais e, caso seja necessário, armas de fogo. Evite no entanto as M16, para que a ligação das milícias às nossas forças não se torne demasiado óbvia. Dê-lhes antes velhas G3 portuguesas que capturámos aos terroristas ou as AK-47 que temos em armazém."

"Ya, bapak general."

"Arranje um homem de confiança, pague-lhe e ponha-o à frente das milícias. Os chefes têm de ser todos timorenses, mas pode arranjar milicianos de outras ilhas. Dê-lhes dinheiro."

"Onde o vou buscar?"

"Estamos a criar um fundo patriótico. O dinheiro chegar--lhe-á em breve pelas vias hierárquicas normais."

"E as ordens operacionais?"

"Serão dadas oportunamente. Para já, o que as milícias têm de fazer é organizar umas cerimónias de juramento de sangue, prometer fidelidade à bandeira indonésia e mostrar aos secessionistas que quem manda somos nós. Façam listas de suspeitos para abater depois do referendo e dificultem as acções de campanha dos comunistas timorenses. Caso as primeiras etapas falhem, mostrem à população que agiremos com violên­cia se a independência ganhar e intimidem todos aqueles que vos pareça que votam pela independência. Se se assustarem todos, fogem para as montanhas e não votam no referendo. Serão menos votos para a independência."

"Quando começamos, bapak general?"

"Ontem", disse Zacky com secura. "Estamos nos princípios de Fevereiro e temos pouco tempo para actuar."

"E quando é o referendo?"

"Lá para o Verão", indicou. Já se fazia tarde e tinha outras reuniões à sua espera. "Mais alguma dúvida?"

"Ytf", respondeu o coronel. "Quais as forças que apoiam esta operação?"

"Todas as que estão em Tim-Tim, já lhe disse. Mas é natural que o Kopassus lidere as manobras."

Os dois homens levantaram-se, saíram juntos do Café Batávia e seguiram depois cada um para o seu destino.

O general Zacky Wandi olhou para uma kaki lima sentada no passeio, as vasilhas carregadas de rujak, bakso, soto ayam, gado gado, nasi goreng e mie goreng à ilharga. Ver ali a vendedora ambulante com toda aquela comida, incluindo sala­da de frutas, sopa de almôndegas, sopa de galinha com esparguete, vegetais variados, arroz frito e esparguete frito, e sobretudo sentir o intenso cheiro que emergia das vasilhas, fê-lo salivar de fome. Mas o oficial sabia que a comida das kaki lima não era de qualidade garantida e, além do mais, estava com pressa.

Zacky consultou a agenda e viu a longa lista de nomes de pessoas com quem ainda teria de falar. Seria precisa uma semana para pôr de pé toda a operação que tinha em mente. Guardou a agenda na pasta e dirigiu-se apressadamente para o carro.

Adi Adjie reuniu-se alguns dias mais tarde em Nova Iorque com Jaime Gama e Kofi Annan para explicar a posição indonésia. A situação em Timor-Leste degradou-se rapida­mente, com as milícias a perpetrarem um massacre na igreja de Liquiçá e a reprimirem violentamente qualquer acção dos na­cionalistas timorenses.

Mesmo assim, Portugal e a Indonésia assinaram a 5 de Maio um acordo em três partes a estabelecer o direito dos timorenses à autodeterminação, as regras do referendo marcado para daí a três meses e as medidas de segurança para garantir a paz no território. Jacarta insistiu que, por razões de soberania, teriam de ser os seus soldados a manter a segurança, e apenas aceitou uma força internacional de polícias desarmados.

A questão da segurança viria a revelar-se o elo mais fraco.

 

O jipe negociou a curva com cuidado, evitando as pedras no chão, e roçou com a carlinga na vegetação densa. O piso apre-sentava-se lamacento, tinha chovido nessa manhã e provavel­mente antes de o dia terminar voltaria a chover. O todo-o--terreno endireitou-se e aproveitou para acelerar na curta recta que tinha pela frente, voltou a travar e, aos saltos pela estrada, entrou na curva seguinte, esta para a esquerda. A meio da curva, os homens tornaram-se visíveis no meio da estrada.

"Milícias!", alertou Paulino, travando de imediato.

"Estes tipos estão por toda a parte", suspirou Christopher Dunn, o polícia australiano da Civpol.

O jipe, o símbolo azul da ONU bem visível no capot e nas portas, imobilizou-se junto à barreira na estrada. Os milicianos aproximaram-se. Dois traziam catanas à cintura, um levava na mão uma pistola artesanal, todos eles com fitas vermelhas e brancas penduradas no chapéu ou enlaçadas no pescoço.

"UNAMET", exclamou Paulino pela janela.

O miliciano mais próximo, que parecia ser o chefe do grupo, olhou apreciativamente para o carro e aproximou-se da janela do condutor.

"UNAMET?", interrogou-se. "E tu, quem és?"

"Sou da UNAMET", retorquiu Paulino.

"Sim, mas quem és?"

"Paulino da Conceição."

"E estás na UNAMET?"

"É, sou do staff local."

"Staff local...", disse o miliciano, deixando a expressão flu­tuar no ar, cheio de ironia.

O miliciano sabia que a maior parte dos funcionários locais que trabalhavam para a UNAMET pertenciam à rede clandes­tina da resistência e, por isso, encarava-os a todos com enorme desconfiança. Desde o início que as milícias hostilizaram a missão da ONU, recusando-se até a integrar os seus quadros locais, o que, bem vistas as coisas, foi um grave erro. Como os pró-integracionistas se opunham à UNAMET e tentaram boi­cotar o seu trabalho, a delegação das Nações Unidas acabou por recrutar quase todos os seus funcionários locais entre ele­mentos afectos à resistência. Não admirava, por isso, que o staff local da UNAMET fosse maioritariamente constituído por nacionalistas timorenses. Para os integracionistas, já não havia agora volta a dar ao problema.

Sentado no lugar ao lado de Paulino, o polícia australiano não se sentia muito paciente. Estava cansado da viagem, das curvas, dos saltos na estrada, da lama, das subidas, das desci­das, das milícias.

"What the fucking bloody bell is going on?n, explodiu em fúria, mirando o miliciano com o rosto carregado de vermelha irritação e ar de poucos amigos.

O chefe dos milicianos deu um passo para trás, intimidado com os berros.

"Podemos seguir?", perguntou-lhe Paulino, serenamente.

O miliciano fez sinal aos seus companheiros que estavam na barreira, estes afastaram-se, abrindo passagem, e o jipe branco da UNAMET arrancou, prosseguindo viagem.

"Fucking militias!", rosnou o australiano.

Chris era um polícia de meia-idade, enorme e com uns olhos azuis cristalinos. O seu porte era impressionante e a sua voz de comando, quando se aborrecia, impunha respeito a qualquer um. Paulino sorriu, agradado por ir acompanhado por um polícia com aquela estaleca. Sentia-se mais seguro, o homem inspirava confiança.

"Já é o terceiro controlo de estrada que encontramos", lem­brou o timorense.

"Não percebo por que é que o exército não intervém para pôr fim a esta palhaçada", comentou o australiano.

"Chris, já te disse que as milícias são o exército!"

"Nonsense!", respondeu o australiano, abanando a cabeça. "Os indonésios estão a tentar controlar o problema, mas há timorenses que entraram em pânico com a possibilidade de a independência ganhar e são esses que andam a causar estes incidentes todos."

"Quem é que te disse isso?"

"O Suratman."

"O Suratman?", riu-se Paulino.

Tono Suratman era o comandante militar indonésio em Timor-Leste. Um homem com cara de bebé e ar de quem não fazia mal a uma mosca, olhos de carneiro mal morto e ar displicente e enfadado.

"Sim, o Suratman", retorquiu Chris, enervado com a garga­lhada do timorense. "Parece-me genuinamente preocupado com a situação..."

"Chris, ouve-me bem", disse Paulino, já sem sombra de sorriso no rosto, tirando os olhos da estrada e fixando momen­taneamente o australiano. "Não acredites em nenhum chefe militar indonésio. São manhosos, são maus e são mestres na duplicidade. São eles quem está por detrás de tudo, quem or­ganizou as milícias, quem as armou, quem as financiou e quem lhes está a dar ordens. E é evidente que o Suratman também anda metido nisto. Ou tu acreditas mesmo que seria possível as milícias estarem a fazer o que fazem sem pelo menos o acordo dos indonésios?"

O polícia da Civpol meditou por uns instantes, olhando a estrada em frente.

"Supondo que tens razão, explica-me só uma coisa", disse finalmente. "Por que razão estará a Indonésia interessada em lançar o caos em Timor-Leste se foi ela própria quem quis avançar para um referendo? E, além disso, serão eles assim tão estúpidos que não percebam que isto só prejudica a sua ima­gem internacional?"

"Ainda não percebeste que não há aqui uma Indonésia mas duas Indonésias? Ainda não percebeste que os militares se estão nas tintas para a imagem internacional da Indonésia? Tudo isto só tem a ver com duas coisas: o poder e o orgulho. O Habibie está interessado num processo pacífico que o transforme num herói, mas os militares não. Eles querem mostrar ao Habibie quem manda no país e querem mostrar ao país quem manda no Habibie, entendes?"

"Como podes provar isso?"

"Provar o quê? Que isto é tudo uma questão de política interna indonésia? Isso não se prova, percebe-se, sente-se, de-duz-se, intui-se..."

"Isso não basta, não serve em tribunal."

"És mesmo polícia", sorriu Paulino.

Chris riu-se.

"Desculpa, é certamente defeito de profissão mas eu gosto de ver todas as acusações provadas."

"Queres provas? Olha para as milícias, quem é que as ar­mou?"

"São armas tradicionais ou artesanais..."

"Essas são as que vês agora, são as que eles mostram para convencer toda a gente de que o exército não tem nada a ver com isto. Mas por que razão pensas que ninguém desarma as milícias?"

"O Suratman disse-me que o problema é que os seus homens estão emocionalmente envolvidos no problema e se recusam a desarmar defensores da Indonésia."

Paulino voltou a rir-se.

"Essa é boa, nunca me tinha lembrado de um argumento desses!" Mais risos. "Um cómico, o Suratman. 'Emocional­mente envolvidos'!" Os risos degeneraram em gargalhadas. "É muito bom! O homem é um génio! E tu, claro, engoliste essa patranha..."

"Até prova em contrário..."

"Olha lá, lembras-te da matança na igreja de Liquiçá?"

"Aquela que ocorreu há três meses?"

"Sim, em Abril. A milícia Besih Merah Putih atacou a igreja e matou mais de cinquenta pessoas. Não achas anormal que, havendo tantos polícias e soldados indonésios em Liquiçá, nin­guém tenha actuado, nem sequer para prender a posteriori os milicianos envolvidos no massacre?"

"Se calhar não os encontraram..."

"Não os encontraram uma ova! Aquilo foi a Besih Merah Putih. Toda a gente sabe onde encontrar a Besih Merah Putih, eles estão em toda a parte em Liquiçá. Toda a gente sabe quem a chefia e quem a integra. E agora pergunto-te: alguém foi preso?"

"Bem..."

"Alguém foi preso?"

"Sei lá..."

"Ninguém foi preso! Ninguém! Achas isso normal? Se acon­tecesse na Austrália, ficaria tudo na mesma? A Polícia deixava--se ficar, sabendo quem eram e onde estavam os autores da morte de mais de cinquenta pessoas?"

O polícia australiano calou-se, tão óbvia era a resposta. Paulino viu o embaraço do seu companheiro de viagem e pros­seguiu, aproveitando o embalo:

"Se tivessem sido as Falintil a matar cinquenta indonésios em Liquiçá e depois ficassem a passear pela povoação, achas que os soldados e a polícia se deixavam ficar? Queria ver isso! Então por que razão ninguém das milícias da Besih Merah Putih foi preso? Sabes porquê? Porque o massacre foi ordenado pelo próprio exército indonésio, eis porquê. E porque é que, estando a situação agora tão tensa, os indonésios não põem cobro à actuação das milícias? Porque as milícias são um ramo das forças armadas. As forças armadas indonésias têm quatro ramos: a marinha, a força aérea, o exército e as milícias. Todas actuam em coordenação, em particular o exército e as milícias."

Chris não comentou. Havia de facto alguns elementos perturbadores no comportamento da polícia e do exército, mas os oficiais com quem ele falara, designadamente Tono Suratman, pareciam genuinamente preocupados com a situa­ção e empenhados em ajudar. Seria preciso que fossem grandes actores, do género candidatos aos Óscares, para dissimularem tão bem um tal grau de duplicidade. Ora eles não eram actores. Eram polícias e militares. Não pode ser, o Paulino exagera, pensou o australiano. O oficial da Civpol sabia que Paulino pertencia à rede clandestina da resistência e concluiu que ele estava a tentar atiçá-lo contra os indonésios. Por isso, foi dan­do um desconto.

Durou várias horas a viagem até Suai. Chegaram os dois exte­nuados e esfaimados. Tinham pela frente muito trabalho. Cabia a Paulino a tarefa de escolher um local de voto na povoação e organizar tudo para o referendo de 8 de Agosto, incluindo a selec­ção de pessoal local para explicar à população como votar e gerir o escrutínio no Dia D. Fora para esse trabalho, e também por saber falar inglês, que a UNAMET o contratara semanas antes.

Mas havia prioridades e a primeira, naquele momento, era comer. Como Suai não era exactamente uma grande metrópole e não dispunha de hotéis e restaurantes em cada esquina, os dois recém-chegados viram-se forçados a improvisar. O primei­ro local óbvio a contactar era, claro, a igreja. O jipe vasculhou as ruelas até encontrar o santuário.

Paulino estacionou à frente do edifício e ambos se apearam, fazendo exercícios para desentorpecer as pernas enquanto se dirigiam para a entrada.

"Posso ajudá-los?", perguntou um timorense de óculos, en­corpado e com bom aspecto, à porta.

"Procuramos o padre Hilário", disse Paulino.

"Sou eu."

Os três cumprimentaram-se.

"Senhor padre, não tem aí qualquer coisinha para comer­mos? Acabámos de chegar de Díli..."

O padre riu-se.

"Venham daí", convidou-os, seguindo à frente para indicar o caminho.

Os três percorreram a igreja e foram até um anexo, onde se encontrava uma copa.

"O que querem?", perguntou o padre Hilário, qual empre­gado de restaurante, dirigindo-se para o frigorífico.

"Oh, o que tiver", sorriu Paulino. "Olhe que esperamos comer como uns abades..."

A piada já era batida, mas o padre riu-se por cortesia.

"Frango está bom?", disse, olhando do frigorífico.

"Está óptimo", retorquiu Paulino. Voltou-se para Chris, para lhe anunciar a boa nova. "Chicken!"

"Good! Goodr

O que Chris queria era comer, qualquer coisa servia.

O padre trouxe uma travessa com pedaços de frango no churrasco e os seus convidados sentiram literalmente a saliva a crescer-lhes na boca.

"Aqui está", disse o padre, colocando pesadamente a traves­sa na mesa da copa.

O pároco entregou-lhes pratos, talheres e copos com água, e sentou-se junto aos dois esfaimados homens da UNAMET.

"A viagem foi boa?", disse, para alimentar a conversa.

"Boa, boa", retorquiu Paulino, um grande pedaço de peito de frango na boca a abafar-lhe as palavras.

"Muitas milícias na estrada?"

"Algumas", disse Paulino, fazendo um gesto de mais ou menos com a mão.

"Lá conseguiram que se adiasse o referendo..."

Paulino estacou, petrificado.

"O referendo foi adiado?"

"Não sabia?"

"Eu não. Quando é que foi isso?"

"Hoje. O Kofi Annan disse que não havia condições de segurança e anunciou o adiamento."

"Meu Deus!", exclamou Paulino. "Por quanto tempo?"

"Duas semanas", afirmou o padre. "Vão marcar para outra data, mas ainda em Agosto."

"Ah, bom", suspirou o timorense da UNAMET, aliviado. "Por momentos pensei que era um adiamento para sempre..."

Ao lado, Chris comia sofregamente, sem perceber nada da conversa. Paulino comunicou-lhe tudo o que o padre lhe anun­ciara, enquanto o australiano acenava com a cabeça. A situa­ção era realmente muito tensa em todo o território, com as milícias a multiplicarem-se em acções intimidatórias, e o adia­mento constituía, na opinião de Chris, uma medida sensata.

"Wise", limitou-se a comentar por entre duas mastigadelas.

Paulino tinha outra opinião.

"Isto é uma vitória dos militares indonésios", protestou. "A ONU não pode entrar neste jogo, o que eles querem é adia­mentos e mais adiamentos. Ao fazer isto, a ONU não os puniu. Premiou-os."

O padre Hilário concordou.

"É evidente. Os bapas andam agora todos satisfeitos e vão portar-se ainda pior para que os adiamentos prossigam. Não se pode entrar nesse jogo."

Chris encolheu os ombros. Tudo o que sabia é que não se encontravam realmente reunidas as condições de segurança adequadas para se realizar o referendo. Toda a região estava transformada num barril de pólvora à espera de explodir e era absolutamente necessário controlar a situação. Caso contrário, o dia do referendo seria uma grande catástrofe. Por outro lado, a verdade é que o processo de recenseamento não fora ainda concluído e era preciso mais tempo para completar os cadernos eleitorais.

Por isso, o australiano limpou com os dentes uma suculenta perna de frango e, quando acabou, abriu-se num sorriso des­preocupado.

uNo worries, mates."

 

O general indonésio observou detalhadamente o mapa es­tendido na mesa instalada no meio do seu bem arrumado ga­binete. Examinou com grande atenção o relevo das montanhas e as estradas que conduziam à fronteira, e voltou a contabilizar, talvez pela enésima vez, as bandeirinhas vermelhas e brancas que assinalavam os locais onde as suas forças se encontravam mais implantadas.

Alguém bateu à porta.

"Ya?"

A porta abriu-se e entrou o general Sukandar.

"Permisi, saudara?"

O general Zacky Wandi abriu o rosto num sorriso.

"Ah, apa kabar?", cumprimentou-o, perguntando-lhe como estava ele.

"Kabar baik, terima kasib", respondeu o recém-chegado, dizendo que ia bem, obrigado.

"Senta-te, saudara, senta-te", convidou Zacky, apontando a cadeira frente à sua secretária.

"Terima kasih", agradeceu o general Sukandar, instalando--se pesadamente no lugar.

Zacky sentou-se atrás da secretária.

"Então o que te traz aqui?"

"O que havia de ser?", sorriu Sukandar, olhando para o mapa estendido na mesa ao lado. "Tim-Tim, claro. Vamos ou não avançar com a operação?"

O anfitrião inclinou-se sobre a secretária e fixou o seu interlocutor.

"Tens alguma dúvida, saudara}"

"Claro que tenho, quase todos temos."

"Então porquê?"

"Ora", exclamou Sukandar, rolando os olhos. "Todos os relatórios dizem que a operação de sedução do eleitorado está a correr bem, que os timorenses estão satisfeitos, que vão votar em nós..."

"Acreditas mesmo nisso?"

"Eu e toda a gente. Até o presidente."

"O presidente é parvo e vocês são todos parvos se acreditam nisso."

"Zacky, escusas de ficar assim irritado. Pois se todos os relatórios que vêm de Tim-Tim dizem que vamos ganhar..."

"Nem todos os relatórios dizem isso."

"Estás a referir-te àquele chorrilho de pessimismo elaborado pelo major Garnadi?"

"Chorrilho de realismo, saudara, chorrilho de realismo."

"Mas isso não tem credibilidade nenhuma..."

"Isso dizes tu."

"Digo eu e diz o Wiranto e diz o Habibie e diz o Winata", exclamou Sukandar. "Quando o Garnadi apresentou o seu memorando secreto, a admitir a derrota da integração e a su­blinhar a necessidade de avançar para uma operação de terra queimada, toda a gente se riu, entrava em contradição com os outros relatórios. Ou não te lembras disso? Foi apenas há dois meses e a verdade é que todos se riram."

"Eu não me ri", cortou Zacky.

"Mas riu-se o Winata, sobretudo quando leu que o Garnadi achava que seria uma sorte se quarenta por cento do eleitorado votasse na integração."

"O Adjie não se riu."

"Uma excepção", comentou Sukandar.

"Saudara, podes meter na cabeça que vamos perder, os pandeiros dos timorenses vão votar contra a integração."

"Como podes dizer isso?"

"Porque conheço o que se passa em Tim-Tim e conheço-nos a nós, cheios de wisbful tbinking, conheço esses relatórios militares disparatados que estão a ser entregues ao presidente a dizer que está tudo no papo. O homem até já se vê com o Nobel da Paz numa mão e a vitória nas eleições presidenciais na outra."

"Estás a pôr em dúvida esses relatórios?"

"Claro que estou", disse Zacky, recostando-se na cadeira. "São todos falsos, os nossos homens em Tim-Tim estão a mentir com os dentes todos."

"A mentir?"

"Claro, saudara, claro."

"E por que diabo mentiriam?"

"Pelo dinheiro, porque haveria de ser?"

"Pelo dinheiro?"

"Ya, saudara, pelo dinheiro", exclamou Zacky, voltando a inclinar-se sobre a secretária. "Então não sabes que metemos milhões de rupias em Tim-Tim para comprar arroz e outras tretas e distribuir tudo isso pela população?"

"Yes, isso foi a campanha para seduzir o eleitorado", sorriu Sukandar. "Foi um sucesso."

"Um sucesso uma ova!", murmurou Zacky.

"Negas que tenha sido um sucesso?"

"Claro que nego", insistiu. "Então ainda não percebeste que os nossos homens meteram as rupias todas ao bolso e só dis­tribuíram um punhado de sacos de arroz à população?"

"Como?"

"É como te estou a dizer, saudara. Eles ficaram com o di­nheiro e inundaram-nos de relatórios a dizer que a campanha de sedução ia de vento em popa e que enviássemos ainda mais dinheiro." Zacky riu-se. "O governo foi comido que nem um patinho. Enviou mais dinheiro que também foi direitinho para os bolsos deles, como é bom de ver."

"Essa acusação é muito grave..."

"A acusação não é grave", respondeu Zacky, erguendo o indicador. "O que eles fizeram é que é grave. E vocês acredi­tarem no que eles dizem é que é grave."

"Como sabes que eles se afiambraram com as rupias todas?"

"Ora, saudara, como é que eu sei? Achas que sou estúpido? Não te esqueças de que chefiei os serviços secretos do Kopassus. E os boinas vermelhas, para tua informação, são a única força verdadeiramente credível que temos em Tim-Tim.'"

O general Sukandar coçou o queixo, pensativo.

"Então o que vais fazer?"

"Vou preparar-me", explicou Zacky. "Se as coisas correrem como vocês dizem, encantado. Se não correrem, como sei que não vão correr, não seremos apanhados desprevenidos, isso garanto-te eu."

"Muito bem", exclamou Sukandar, erguendo-se da cadeira. "Estou convencido de que perdes o teu tempo e lanças suspei­tas infundadas e injustas sobre os nossos homens. Mas talvez tenhas razão, mais vale prevenir do que remediar."

Zacky acompanhou Sukandar à porta e regressou de ime­diato à sua secretária. Sentia-se deprimido pela cegueira dos políticos e pela corrupção que alastrava entre os seus camara­das de armas. Abriu a gaveta, tirou a agenda e procurou o número de telefone de que precisava.

Lá fora, o tráfego na Jalan Abdul Muis, em pleno coração de Jacarta, era intenso. Pela janela ouvia uma vendedora jamu a apregoar os seus produtos. Imaginou-a como a vira de ma­nhã, sentada de cócoras no chão, acariciando a embalagem cilíndrica de bambu que continha as mistelas de ervas suposta­mente capazes de curar qualquer maleita e de que Zacky tanto precisava. Mas teria de ser depois, agora não; agora tinha outras prioridades.

Alheando-se do rebuliço da rua que lhe entrava no gabinete pela janela entreaberta, o general discou o número que tinha anotado na agenda.

"Y<zí"', perguntou uma voz do outro lado da linha.

"Comandante Sugito?"

"Yar

"Daqui o general Zacky Wandi."

"Apa kabar, bapak general?", cumprimentou o comandante do Kopassus de Díli pelo telemóvel, perguntando como estava Zacky.

"Kabar baik, terima kasih", retorquiu o general.

"Presumo que esteja preocupado com a operação..."

"Estou", confirmou Zacky. "Faça-me o ponto da situação."

"Nós aqui em Tim-Tim estamos todos a postos. As armas de fogo foram distribuídas, toda a gente tem as listas dos líderes timorenses e os camiões encontram-se preparados para a eva­cuação."

"E como vai ser com as igrejas?"

"Nenhum problema. Estou a seleccionar pessoal muçulma­no para as atacar, de modo a prevenir quaisquer hesitações de milicianos cristãos."

"As igrejas são muito importantes, comandante."

"Eu sei disso."

"Os padres estiveram sempre do lado do inimigo e é funda­mental que seja transmitida a mensagem de que queremos as contas todas saldadas. Até com o bispo."

"Pode ficar descansado."

"Mas não lhe façam mal. Assustem-no apenas."

"Pode ficar descansado."

"Alguma dúvida?"

"Por acaso, tenho", respondeu o comandante Sugito. "Por quem começamos? Pelos jornalistas ou pelos observadores in­ternacionais?"

"Pelos dois ao mesmo tempo", explicou Zacky. "Todos os estrangeiros têm de ser expulsos de Tim-Tim ou confinados em locais onde não vejam nada. Intimidem-nos. Se eles se armarem em espertos, apliquem-lhes a solução Balibó, mas certifiquem--se de que são as milícias a fazer o trabalho sujo."

"Isso eu já tinha percebido", disse o comandante Sugito. "A minha dúvida era saber quais seriam os primeiros sobre quem deveríamos actuar."

"Sobre os dois ao mesmo tempo, já disse", impacientou-se o general Zacky.

"Eu sei, eu sei, já entendi."

"Mas lembre-se de que amanhã não quero um único inci­dente."

"Eu sei, bapak general, está tudo controlado, as ordens foram todas distribuídas."

Zacky deu-se por satisfeito. Estava tudo a postos e a opera­ção parecia pronta a ser desencadeada.

"Muito bem, comandante", exclamou, satisfeito. "Então o que está a fazer agora?"

"Veja lá que vou para um encontro na UNAMET com as milícias e as Falintil", disse o comandante Sugito. "Vão ambos jurar que respeitam os resultados do referendo."

Zacky e Sugito riram-se antes de se despedirem.

 

Paulino dirigiu-se à porta da escola e encarou a multidão. Os eleitores encontravam-se todos alinhados em fila, aguar­dando pacientemente a abertura das urnas. Já ali estavam pelo menos mil pessoas há uma hora, ainda o dia não nascera. E que dia este! Ao fim de tantos anos de desespero, chegara final­mente o momento de os timorenses votarem no seu futuro.

Compareceram todos. Os que tremiam de medo, os que viviam na esperança, os que já a tinham perdido. Concentra-vam-se todos ali, uns atrás dos outros, à espera da sua vez, aguardando o momento tão longamente ansiado. Enquanto os observava, Paulino sentiu os eleitores dissolverem-se à sua fren­te, substituídos pela sua família, pelo pequeno Justino, pela corajosa Isabelinha, pela distante Esmeralda. Como tinha sau­dades deles. Os fantasmas do passado voltaram a assaltá-lo e teve de fazer um esforço titânico para os afugentar do pensa­mento.

 

O funcionário timorense da UNAMET consultou o relógio. Chegara a hora. Paulino abriu a porta e dirigiu-se à multidão.

"Podem entrar", anunciou.

Eram exactamente seis e meia da manhã de segunda-feira, 30 de Agosto. O primeiro eleitor era uma mulher franzina, de meia-idade, com um bebé no braço direito e uma trouxa às costas. Dirigiu-se à mesa onde a aguardavam quatro funcioná­rios, identificou-se, um dos funcionários verificou se o seu nome constava da lista de recenseamento, um outro deu-lhe um boletim e ela recolheu-se atrás das cortinas. O boletim tinha uma pergunta. "Aceita a autonomia especial dentro do Estado Unitário da República da Indonésia, ou rejeita-a, o que condu­zirá Timor-Leste a separar-se da Indonésia?" Ao lado do qua­drado da primeira opção estava desenhada a ilha de Timor-Leste com uma bandeira indonésia cravada na terra e, ao fundo, três casas tradicionais timorenses. Ao lado do quadrado da segunda opção encontrava-se o desenho da ilha com uma bandeira do CNRT, o Conselho Nacional de Resistência Timorense. A senhora fez um furo no quadrado que entendeu e foi meter o boletim dobrado pela ranhura da urna.

Cá fora, os outros eleitores aplaudiram esse instante, pare­ciam celebrar um golo do Benfica, o clube de Xanana, ou do FC Porto, as cores de Ramos Horta. Todos sorriram, mesmo os integracionistas que se sentavam na mesa de voto.

A primeira eleitora aproximou-se da porta e parou à frente de Paulino. O uniforme da UNAMET parecia dizer à senhora que aquele homem à sua frente não era um timorense, mas um representante das Nações Unidas, um representante da comu­nidade internacional. Olhou-o com gratidão, como se tivesse sido ele a possibilitar aquele momento memorável, e pegou-lhe na mão com uma intensidade comovida.

 

"Votei na independência", disse com as lágrimas nos olhos. "Se nos deixarem ganhar, eu agradecia."

Paulino sorriu-lhe, sem nada dizer, mas sentiu os seus olhos inundarem-se também de lágrimas. Que dia extraordinário aquele! Olhou lá para fora e observou a multidão com atenção. Viam-se famílias inteiras nas filas de voto, muitas pessoas com trouxas e sacos e malas. Viu a mulher que lhe falara a afastar--se lentamente e sentiu uma súbita necessidade de saber o seu nome.

"Desculpe! Desculpe!"

A mulher voltou-se, surpreendida.

"Como se chama a senhora?"

"Maria do Céu."

"Muito obrigado por ter votado, Maria do Céu", disse-lhe. "Hoje é dia de festa."

"De festa, senhor? Não, vou fugir para as montanhas com a família."

Paulino ficou momentaneamente desconcertado, mas perce­beu que aquela mulher era sensata. Os indícios de que as coisas iriam correr mal estavam a multiplicar-se. Havia incidentes diários, as milícias faziam o que queriam e vários informadores da resistência que se tinham infiltrado entre os milicianos fa­lavam numa grande vingança indonésia caso a independência ganhasse.

No meio da fila, Paulino descortinou dois párocos de Suai, o padre Francisco Soares e o padre Dewanto Tarciso, ambos trajados a rigor, como se fossem celebrar missa dentro de ins­tantes.

"Bons dias, senhores padres", cumprimentou-os Paulino, aproximando-se deles.

"Olá, Paulino, como vai isso?", saudou-o o padre Francisco.

"Vieram cedo...", comentou o timorense da UNAMET.

"Então não havíamos de vir?!", exclamou o padre Dewanto. "Estamos com pressa de mandar os bapas embora!"

Riram-se todos.

"O padre Hilário?", quis saber Paulino.

"Ficou na igreja a tomar conta das coisas. Quando voltar­mos, ele vem cá", explicou o padre Francisco. "Também tem direito a contribuir para a causa, não é?"

Paulino endireitou-se.

"Sou funcionário da UNAMET. Tenho de manter a neutra­lidade."

"Pois, pois", assentiu o padre Dewanto. "Conta-nos histó­rias..."

"A sério."

O padre Francisco olhou em redor.

"Tem piada, não vejo milícias."

"É, andam desaparecidas."

"Ainda bem. Isto tem estado a correr com calma, não achas?"

"Sim", confirmou Paulino. "Está tudo muito calmo." Con­templou a fila. "Até estou surpreendido."

Chris Dunn passeava de um lado para o outro, tornando visível a sua colossal presença. O polícia australiano saltitava com os olhos por todo o lado, perscrutando o local, fiscali­zando as coisas, vigiando os eleitores, procurando vislumbrar qualquer ameaça. Mas não havia nada, nada de nada. O facto é que a votação decorria com surpreendente calma.

Ao meio-dia foi ter com Paulino.

"Então?", perguntou o australiano.

"Já votaram quase todos", anunciou-lhe Paulino.

O polícia australiano riu-se.

"Andámos nós preocupados a pensar que as pessoas não sabiam votar e elas despacharam tudo numa manhã."

"É para que vejas", disse Paulino. "E as milícias?"

"Tudo calmo", retorquiu-lhe enfaticamente Chris. "No worries, mate!"

"E no resto do país, sabes de alguma coisa?"

"Contactei há pouco a Civpol em Díli, para fazer o meu relatório."

"Ah é? E então?"

"Disseram que está tudo a correr bem em toda a parte. As milícias não apareceram e o referendo parece realizar-se de forma ordeira por todo o território." Dunn fez um estalido com a língua. "Dizem que houve grande afluência às urnas nas primeiras horas."

"Exactamente como aqui."

"Sim. Pelas contas do pessoal em Díli, parece que há cerca de meia hora, mesmo no final da manhã, já a maioria dos eleitores recenseados tinha votado."

"Não me digas", exclamou Paulino com um sorriso, sentin-do-se quase eufórico. "É igual ao que se está a passar aqui."

"Right", assentiu o australiano. "Pelos vistos faltam agora poucos eleitores para completar a jornada."

"Mas isso é incrível! E que mais dizem os tipos da Civpol?"

Dunn riu-se.

"Não te chega? O que mais queres que eles digam? Estão surpreendidos e radiantes ao mesmo tempo. Parece que há sítios, onde as milícias não têm uma presença tão activa, em que o referendo está a ser celebrado como uma festa."

"Uma festa?"

"Sim, uma festa. Disseram-me que saltam e dançam. Pare­cem umas crianças."

"E como estão Maliana e Liquiçá?"

Eram dois potenciais trouble spots, áreas onde as milícias se encontravam muito activas e onde a campanha de intimidação antes do referendo fora muito intensa.

"Muito tenso, mas tudo em boa ordem. É um pouco como aqui. Muita gente vem votar e foge logo a seguir para as mon­tanhas."

"É, eles sabem o que nos espera..."

"Ah, lá estás tu!"

As urnas começaram a fechar às quatro da tarde. Paulino consultou a lista de recenseamento e viu cruzes por toda a parte. Toda ou quase toda a população recenseada em Suai tinha ido votar.

Quando foram feitas as contas globais, os números eram espantosos por todo o território. Estavam recenseadas quatro­centas e cinquenta mil pessoas em Timor-Leste e 98,6% tinham comparecido para expressar a sua vontade. Tratava-se de uma taxa de afluência extraordinária em qualquer parte do mundo, mas particularmente aqui, considerando o crescente ambiente de intimidação e medo dos últimos meses.

Afinal a montanha parira um rato e Timor-Leste votara em paz no dia em que marcou encontro com o futuro.

 

Os helicópteros da ONU partiram ao nascer do Sol. Voaram para os quatro cantos do território e algumas horas depois estavam de regresso a Tacitolo, junto a Díli, com as urnas recolhidas de todos os pontos do país. As urnas seladas foram descarregadas dos aparelhos, colocadas em camiões e encami­nhadas para o museu, na estrada do aeroporto de Díli. A con­tagem dos votos começou ainda nesse dia 31 de Agosto.

Meia hora depois da abertura das urnas, o comandante Sugito recebeu uma comunicação telefónica do museu. Um dos observadores indonésios descreveu o que estava a ver, Sugito fez-lhe algumas perguntas, escutou as respostas, agradeceu e pousou o telefone.

O oficial bebeu um copo de água, massajou as têmporas com os olhos fechados, respirou fundo e digitou um número de Jacarta.

"Ya?"

"Bapak general Zacky Wandi?"

"Yã?"

"Aqui Sugito."

"Apa kabar, saudara Sugito?"

"Kabar baik, bapak general."

"Novidades? Já há alguma coisa?"

"Ya, bapak general."

"Então?"

"Vamos ter de avançar com o nosso plano de emergência..."

"Já calculava", retorquiu Zacky, nada surpreendido. "Quão más são as coisas?"

"Muito más", disse Sugito, preparando o general para o pior. "Os nossos observadores telefonaram-me há instantes do museu. Já começaram a abrir as urnas e as primeiras indicações são verdadeiramente catastróficas. Em cada urna aberta está a verificar-se que, em mil votos, só uns oitenta são pela autono­mia. Tudo o resto é para a independência."

Fez-se um curto silêncio na linha telefónica.

"É muito mau...", comentou Zacky, espantado com a dimensão da derrota. "Ao contrário dos idiotas no palácio presidencial, eu sabia que a independência ia ganhar, mas não dessa forma."

"É uma vergonha", desabafou Sugito, agarrado ao telefone em Díli. "Estamos a ser humilhados!"

"Filhos da puta dos timorenses, estão a gozar connosco esses cabrões!", praguejou Zacky.

"Eles e os portugueses", adiantou Sugito. "Os nossos obser­vadores contaram-me que os portugueses que se encontram também no museu a ver as urnas serem abertas não conseguem conter os risinhos de troça."

"Cabrões!", voltou Zacky a vociferar entre dentes. "Nós já lhes mostramos como é..."

Nova pausa, carregada de ameaças.

"Quando é que desencadeio a operação?", perguntou final­mente Sugito, aguardando a ordem.

"Inicie imediatamente a fase A", ordenou Zacky. "As res­tantes fases terão de aguardar o anúncio oficial dos resultados, para não sermos acusados de estar a dar informações às milí­cias."

"E há certezas quanto à data do anúncio oficial?"

"Será a 7 de Setembro, não antes."

"Então temos uma semana pela frente."

"Ya, é tempo suficiente para ultimar a operação."

"Minamos as pontes?"

"Ya."

"E avançamos com a ideia de assaltar o museu?"

"Ya, faça tudo como está combinado e previsto no plano", confirmou Zacky. "O assalto ao museu é aliás uma parte crucial. Quando à noite a contagem for suspensa, mandem as milícias entrar lá dentro e tirar as urnas todas. A ONU será forçada a anular o referendo."

"E o general Wiranto?", quis saber Sugito.

"Não te preocupes com ele, está tudo arranjado", disse Zacky. "Começa é a tratar já das coisas que eu vou agora contactar todos os chefes operacionais do Kopassus. No dia 7 tem de estar tudo a postos para desencadear a última fase da operação."

"Ya, bapak general."

A tensão apareceu em algumas horas.

Paulino bebia um café no posto da Civpol em Suai na altura em que Chris Dunn mandava o seu relatório via rádio para Díli. Do outro lado do aparelho, por entre a estática das ondas, uma voz longínqua trazia notícias inquietantes.

"Isto está a ficar mau", afirmou o oficial a quem Dunn reportava pela rádio. "Logo que as urnas começaram a ser abertas, as milícias assumiram o controlo do porto de Díli, do aeroporto e da fronteira terrestre."

"E o exército indonésio?", perguntou o polícia australiano, esfregando o queixo, preocupado. "O que está a tropa a fazer?"

"Nada."

"Nada?"

"Permanecem totalmente passivos."

"Mas o exército não devia assegurar a ordem?"

"Devia, claro que devia. Mas não estão a fazer nada. Dei­xam as milícias à vontade."

"Fuck!", praguejou Dunn.

"Já há incidentes a decorrer e alguns postos da UNAMET foram cercados em sectores perto da fronteira."

"Ah sim? Onde?"

"Ermera", disse o oficial em Díli. "As milícias sitiaram em Ermera a sede regional da UNAMET durante doze horas." Baixou a voz, mas Paulino logrou escutar o que era dito. "Es­tão agora a chegar informações de que, em Maliana, cercaram as instalações locais da UNAMET e mataram dois funcionários timorenses."

"Fuck!"

Fez-se uma pausa na comunicação rádio.

"Chris", disse a voz do outro lado. "Vocês têm de ter cui­dado."

Foi à hora do almoço que Chris Dunn juntou na maior sala do posto da Civpol, em Suai, todos os funcionários timorenses que trabalhavam para a missão das Nações Unidas. O polícia mostrava um ar pesado e todos perceberam que a situação era séria.

"Acabei de receber ordens de Díli", anunciou num tom dra­mático. "A UNAMET mandou retirar todo o pessoal."

Fez-se um silêncio no posto. O grupo digeria esta notícia.

"Retirar, como?", perguntou Paulino, sem ocultar a pertur­bação.

"Vamos todos para Díli."

"Todos? A população toda?"

O polícia australiano engoliu em seco.

"Não. Só o pessoal da UNAMET." Indicou o grupo com a cabeça. "Nós."

"E as outras pessoas?"

"Ouve, Paulino. Não podemos levar toda a gente para Díli. Temos de ser realistas..."

O timorense sentiu a fúria crescer-lhe no peito.

"Mas o que vai acontecer às pessoas?"

Dunn abanou a cabeça com tristeza.

"Não faço ideia."

Paulino ergueu o indicador de forma acusadora.

"A UNAMET prometeu que ficaria depois do referendo."

"Eu sei."

"A UNAMET disse às pessoas que deviam votar sem medo porque a UNAMET não sairia."

"Eu sei."

"Então a UNAMET não sai!", quase gritou.

Chris Dunn respirou fundo. Sentia as gotas de suor desliza-rem-lhe pelo rosto e a vergonha assomar-lhe à face.

"Tens toda a razão, Paulino. A UNAMET fez promessas às pessoas e não as vai cumprir. Infelizmente não temos armas para nos defendermos. O acordo entre Portugal e a Indonésia prevê que os indonésios garantem a segurança e a polícia inter­nacional encarregada de fiscalizar o referendo não pode ter armas. Lamento, mas é assim." Ergueu as mãos, mostrando-as vazias. "Não temos armas. Não podemos defender ninguém. Nem sequer nos podemos defender a nós próprios."

"Mas, se os indonésios não estão a cumprir a sua parte, vocês podem não cumprir a vossa."

"E fazemos o quê?"

"Arranjem as armas!"

O australiano suspirou.

"Quem me dera que fosse assim tão simples", murmurou. Encarou todo o grupo. "Oiçam, eu já discuti tudo o que tinha a discutir com Díli, mas ordens são ordens e não há nada a fazer, por muito que isso nos custe. O facto é que temos de sair de Suai."

Paulino encheu o peito de ar e mirou o polícia com despeito.

"Eu não saio."

"Como?"

"Eu não saio."

Dunn esboçou um ar cansado.

"Escuta, Paulino, sê razoável. Não há nada que..."

"Eu não saio", repetiu o timorense, decidido.

"Então ficas onde?"

"Sei lá... fico com os padres."

"Com os padres?"

"Eu não saio, já disse. Andei este tempo todo a dizer a toda a gente que a UNAMET não sairia depois do referendo e não tenho agora coragem para fazer o contrário do que disse." Abanou a cabeça. "Eu não saio."

"Paulino, compreendo que te sintas revoltado." Encostou ao peito a palma da mão papuda. "Eu também me sinto revol­tado. Mas a verdade é que não há nada que tu ou eu possamos fazer. Se houvesse, acredita que eu o faria. Mas não há nada que possamos fazer. Temos ordens e temos de as acatar, por muito que nos custe."

"O que vamos fazer agora?", perguntou um outro funcioná­rio, muito inquieto, intrometendo-se na discussão.

O polícia contemplou o rosto ansioso dos timorenses que o rodeavam.

"Os indonésios disseram-me que nos vão dar uma escolta para garantir a nossa segurança." Consultou o relógio. "Parti­mos daqui a uma hora." Fixou Paulino nos olhos e disse-lhe com ar de quem não admitia discussão: "Tu também."

O timorense devolveu-lhe o olhar com uma expressão de desafio.

"Eu não saio."

Paulino já não viu a coluna da UNAMET partir, enquadrada por camiões cheios de soldados indonésios, deixando para trás uma nuvem de poeira e uma cidade abandonada ao seu destino.

O timorense caminhou pelas ruas sujas e desertas até à igre­ja, onde foi acolhido pelos três padres de Suai com um misto de admiração e receio. Algumas famílias juntaram-se no local e as conversas decorriam a meia voz, como se acreditassem que assim conseguiriam manter adormecida a ira das milícias.

"Já foi toda a gente para as montanhas", observou o padre Dewanto com ar desanimado.

"Toda a gente?"

"Bem... quase toda. Algumas pessoas ainda estão aqui em Suai, escondidas dentro de casa. Mas a maior parte já fugiu."

"Quem é que ficou?"

"Apenas algumas mulheres e crianças." O padre suspirou. "O problema são os homens, não é? Vai ser sobre os homens que os bapas vão cair e foi por isso que eles já saíram quase todos."

"A ideia é pôr os homens a salvo", adiantou o padre Fran­cisco, juntando-se à conversa. "Os bapas vão levar as mulheres e as crianças para o outro lado da fronteira."

"Para o outro lado? Onde? Kupang?"

O padre Francisco abanou a cabeça.

"Dizem que será para Atambua."

"Os indonésios vão retirar o pessoal para Atambua, é?"

"É o que consta. Mais tarde, quando as coisas acalmarem, a malta desce das montanhas e as famílias voltarão a encon-trar-se."

O padre Dewanto pousou a mão sobre o ombro de Paulino.

"Tu também devias ir para as montanhas, rapaz."

"Os senhores padres ficaram aqui."

"Connosco está tudo bem", devolveu o padre Francisco. "Somos padres, as milícias não nos farão mal." Esticou o in­dicador. "Mas contigo é diferente. És homem e, pior do que tudo, és funcionário da UNAMET. Se os bapas te apanham vai ser uma chatice."

Paulino sorriu sem vontade.

"Eu fico."

A vida na igreja de Suai decorria tensa.

As milícias controlavam as ruas numa exibição ostensiva, circulando em motos e pickups, as catanas e as espingardas bem visíveis por entre laços rubro-brancos da bandeira indonésia. Passavam diante da igreja com olhar hostil, por vezes vociferando insultos e vivas à integrasi.

Vendo-os por toda a parte, donos e senhores de Suai, Paulino não se atrevia a sair do perímetro do santuário. Interrogou-se mil vezes sobre se não teria cometido uma infantilidade, se não seria melhor fugir dali enquanto tinha tempo. Mas, apesar de dilacerado pelas dúvidas e pela angústia, foi protelando, foi adiando uma decisão, foi deixando correr as coisas.

Foi ficando.

O grupo que se refugiara dentro da igreja habituou-se a juntar-se à hora das refeições para escutar a portuguesa RDP ou a australiana ABC, cujos noticiários em onda curta vinham repletos de notícias sobre a situação em Timor-Leste. Ao que parecia, a contagem dos votos fora acelerada em Díli e havia um sentimento generalizado de que todo o país assentava sobre um vulcão prestes a entrar em erupção.

Após múltiplas tentativas, Paulino conseguiu estabelecer contacto rádio com Chris Dunn, que se encontrava na sede da UNAMET, em Díli.

"Estás bem, Paulino?", quis saber o polícia australiano, cla­ramente aliviado por obter notícias do seu funcionário.

"Sim, vai-se andando."

"As milícias andam calmas?"

"Estão a patrulhar as ruas. Mas ainda não vieram aqui à igreja."

"Tem cuidado contigo, ouviste? Eu acho que as coisas vão piorar muito."

"Ah sim? O que se passa?"

Dunn hesitou do outro lado.

"Ouve, esta ligação não é segura. Apenas te posso dizer que a UNAMET recebeu informações sobre a possibilidade de os militares indonésios assaltarem o museu para roubarem as urnas. Decidimos, por isso, não abandonar o local em momen­to algum."

"Puxa!"

"Além disso, a contagem dos votos foi acelerada. Isto parece uma corrida. O pessoal está a tentar concluir o processo antes da data prevista, percebes?"

"Antes de 7 de Setembro, é?"

"Sim."

"Para quê?"

"Para apanhar os militares de surpresa."

A corrida foi ganha e a contagem terminou ao quarto dia.

A 4 de Setembro, no edifício da ONU em Nova Iorque, o Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, anunciou oficialmente os resultados da consulta popular. Exactamente no mesmo momento, o chefe da UNAMET, lan Martin, entrou na sala do rés-do-chão do Hotel Mahkota, em Díli, e leu os mesmos resultados.

Paulino e os padres colaram-se ao receptor e, de respiração suspensa, escutaram o anúncio através da rádio australiana. A voz de lan Martin, solene com o seu sotaque britânico, rever­berou sobre a mesa do pequeno-almoço, anunciando 21,5% a favor da proposta de autonomia, 78,5% contra.

A independência ganhara.

 

Silêncio.

O resultado foi lido às nove da manhã em Díli e a cidade permaneceu quieta, fechada em si mesma, recolhida num silêncio sinistro. Um mutismo expectante, tenso e temeroso, abateu-se por toda a parte como a calmaria que antecede as grandes tempestades, era uma densa e ameaçadora névoa que tudo vigiava, um manto opressor que asfixiava de angústia aquela manhã medrosa, o mar que recuava de mansinho para erguer a brutal onda destruidora. Não se ouvia uma voz, um festejo, um grito de libertação, um suspiro de alívio. Nada de nada.

Apenas o silêncio.

Mais do que emudecida, Díli estava deserta. Lojas fechadas, ruas vazias, habitações abandonadas. Grande parte da popula­ção refugiara-se já nas montanhas, mas havia ainda muitas mulheres e crianças escondidas em casa, todos a aguardar com nervosa ansiedade a fúria do vulcão, a erupção violenta que nessas horas ruminava às escondidas, como a lava que se acu­mula à entrada da caldeira, a pressão a aumentar em cada instante, amadurecendo num silêncio perverso.

Não tiveram de esperar muito.

Perto das onze da manhã ouviram-se os primeiros tiros junto ao Hotel Mahkota. Na mesma altura, os locais onde se encontravam as missões internacionais foram alvo de ataques intimidatórios das milícias, perante a cumplicidade passiva dos soldados e da polícia, e os estrangeiros viram-se na necessidade de se refugiar na UNAMET.

O Hotel Mahkota, onde permanecia a maior parte dos jor­nalistas e estavam instaladas as grandes agências de televisão, foi atacado três vezes, com milicianos das Aitarak a abrir fogo contra os jornalistas ou a disparar tiros para o ar. Ninguém foi ferido, mas a mensagem era clara e reminiscente de Balibó. As agências desmontaram as parabólicas e chamaram os aviões. Havia sessenta polícias indonésios a "defender" o hotel e dei­xaram três milicianos fazer o que queriam. Na missão portu­guesa, situada ao lado de um quartel militar, ocorreu exacta­mente o mesmo. A missão foi "protegida" por vinte polícias que permitiram que dois milicianos andassem ali aos tiros. A polícia retirou os observadores portugueses para a sede da UNAMET, alegando que os seus vinte homens bem armados não os podiam proteger da poderosa força constituída por aqueles dois maltrapilhos das Aitarak.

Colunas de fumo negro começaram a erguer-se em diversos pontos de Díli, como pequenas crateras a expelir lava e gases. As rajadas de metralhadora tornaram-se frequentes, acompanhadas por tiros isolados e explosões esporádicas. Enquanto não abando­navam a cidade, todos os estrangeiros estavam confinados nos seus alojamentos, criando a impressão de que havia algo de muito grave a decorrer e os indonésios não queriam que ninguém visse. A situação estendeu-se rapidamente por todo o território, em particular pela zona de fronteira e pelas principais localidades onde as milícias se encontravam mais activas.

O vulcão entrara a toda a força em actividade.

A Austrália propôs no dia seguinte, 5 de Setembro, a rápida formação de uma força internacional de paz que interviesse em Timor-Leste, mas a Indonésia recusou, alegando que as suas tro­pas eram perfeitamente capazes de pôr cobro à violência. O que os indonésios não explicaram, mas se tornava visível no terreno, é que não só as suas tropas não eram capazes de acabar com a violência, como eram elas que estavam por detrás do caos.

Milhares de timorenses começaram a ser metidos pelos indonésios em camiões e despachados para Atambua, em Timor Ocidental, enquanto as suas casas eram incendiadas. O Alto Comissariado da ONU para a Defesa dos Direitos Humanos calculou que o número de pessoas deslocadas variava entre as cento e vinte mil e as duzentas e cinquenta mil. As principais figuras independentistas eram activamente procuradas, cons­tando de uma lista negra de elementos a abater.

Na segunda-feira, 6 de Setembro, as milícias atacaram a residência oficial do bispo de Díli. Estavam lá refugiadas duas mil e quinhentas pessoas, das quais quarenta foram mortas e as restantes transportadas para parte incerta. O próprio D. Xime-nes Belo foi expulso da residência e teve de procurar refúgio em Baucau, enquanto os soldados indonésios lançavam fogo à sua casa.

Era evidente para todos que decorria uma grande operação de limpeza e de terra queimada, com constantes atropelos aos direitos humanos e um grande número de mortes. A ausência de informação e o ambiente de terror que os indonésios e as suas milícias espalharam, porém, suscitaram uma catadupa de boatos falsos que encheram a imprensa internacional. Noticiaram-se mortes que nunca ocorreram, torturas que nunca foram feitas, massacres que jamais tiveram lugar. Imaginava-se um genocídio, mas essa era uma definição exagerada para des­crever o que realmente acontecia nesses dias tumultuosos de Setembro de 1999. Não havia genocídio, é certo. Mas havia matança.

A mulher estava à janela da igreja quando soltou o grito.

"As milícias estão lá fora!", disse, a voz carregada de medo e alarme.

O alerta provocou um bruá dentro da igreja de Suai. O san­tuário encontrava-se repleto de habitantes da cidade que ali tinham procurado refúgio. Na sua maioria eram mulheres e crianças cujos maridos e pais haviam escapado para as monta­nhas, deixando-as para trás, para serem deportadas para Atambua. Os timorenses acreditavam que os indonésios só iriam executar homens, pelo que eram estes que tinham de se pôr a salvo. De modo que, quando as milícias começaram a aproximar-se da igreja de Suai, na mesma segunda-feira em que a casa do bispo de Díli foi atacada e destruída, os refugiados no seu interior concluíram que chegara a hora de serem levados para Timor Ocidental.

Paulino consultou o relógio. Eram duas da tarde. O padre Francisco aproximou-se do timorense contratado pela UNAMET.

"Paulino, tira a farda", disse-lhe.

A animosidade das milícias para com os timorenses que trabalhavam para a UNAMET era conhecida, e alguns, aos quais eles deitaram a mão nos últimos dias, foram barbaramen­te executados. Tornava-se de todo conveniente, por isso, que nenhum miliciano ou indonésio se apercebesse das suas fun­ções. Sabendo isso, Paulino nem discutiu. Foi para um cubículo, tirou a camisa e as calças da UNAMET e vestiu umas jeans e uma camisa verde que o padre Francisco lhe estendera.

Pelas três da tarde, a igreja estava totalmente cercada.

Kris Silva comandava o grupo das Mahidi e fumava um derradeiro cigarro antes de dar a ordem de assalto. O miliciano das Flores sabia que o coronel Sydonto esperava uma acção eficaz, uma operação de tal modo eloquente e categórica que limpasse a dignidade dos militares indonésios, e esperava corresponder e estar à altura das expectativas. O coronel fica­ria contente.

Foi nesse momento que o padre Francisco decidiu sair da igreja cercada para falar com as milícias e tentar acalmar os ânimos. Cruzou a porta, dominando o seu receio interior, e dirigiu-se ao ameaçador grupo de homens armados que se encontravam à frente.

"Por favor, por favor, vão-se embora", implorou Francisco. "Aqui só há mulheres e crianças."

Alguns milicianos sorriram, Kris cuspiu no chão. Nenhum dos homens das Mahidi fez menção de se retirar, não era esse o plano. O padre, sentindo que não o ouviam, regressou para junto do seu rebanho.

"Isto está feio", comentou para os padres Dewanto e Hilário e para Paulino, o rosto inundado de transpiração.

"Eu vou lá", decidiu Dewanto. "Temos de perceber o que querem eles exactamente."

Foram os quatro para as escadas. O padre Dewanto Tarciso abandonou o grupo e foi ter com os milicianos, empenhado em ter sucesso onde o padre Francisco fracassara.

Mas os integracionistas, agora na sua máxima força, nem o deixaram falar. Kris atirou o cigarro para o chão, pisou-o para o apagar e fez com a cabeça sinal ao homem mais próximo do pároco. O miliciano percebeu o sinal e começou a empurrar o padre Dewanto. De repente, puxou da faca e espetou-a no peito do pároco timorense.

Lá atrás, nas escadas da igreja, os outros dois padres e Paulino tentaram recuar. Eles são doidos, pensou Paulino. Um outro miliciano apanhou o padre Hilário e também o esfa­queou até à morte. Logo a seguir chegou a vez do padre Fran­cisco. Dessa vez foi Kris, que fazia questão de matar pelo menos um homem nesse dia. O chefe daquele grupo das Mahidi agarrou no pároco sobrevivente e cravou-lhe uma faca no pes­coço, não se importando com o sangue que jorrava abundan­temente sobre o seu braço. Kris agarrou a sua vítima com firmeza e começou a serrar. O padre Francisco foi degolado como um cabrito e a cabeça só ficou presa ao resto do corpo por um pedaço de pele.

Paulino foi o único que escapou, conseguindo voltar a entrar na igreja antes que os milicianos o agarrassem, e misturou-se de imediato com os refugiados no interior do edifício. As mãos tremiam-lhe e nem sentia as pernas. Entre os fiéis, o pânico era agora generalizado. Todos perceberam que os três padres tinham sido assassinados. Ora, se nem os padres eram poupa­dos, o que aconteceria ao comum dos mortais? A pergunta ecoava na mente de toda a gente naquela hora de aflição. Muitas mulheres começaram a rezar num murmúrio colectivo, implorando misericórdia à Senhora de Fátima.

Mortos os padres, as milícias voltaram-se para o rebanho. Kris deu uma ordem a um miliciano de Timor Ocidental, o que tinha acabado de assassinar o padre Hilário. O homem entrou na igreja com uma catana, a lâmina ainda a pingar sangue, e gritou para a multidão em bahasa indonésio.

"Quem está dentro vem cá para fora", ordenou aos aterro­rizados habitantes de Suai.

Ninguém se atreveu a desobedecer. A multidão começou a abandonar lentamente o santuário, olhando cá fora, horrori­zada, para os corpos dos três padres deitados no chão com poças de sangue ao lado.

Quando os habitantes de Suai saíram todos da igreja, Paulino entre eles a tentar não se destacar da multidão, foram arrebanhados para junto de um dos alpendres laterais do edi­fício de culto. As milícias permaneciam com as armas ameaça­doramente apontadas para aquela massa humana que tremia de medo.

"Chegou o vosso dia", anunciou Kris, assumindo-se visivel­mente como aquele que comandava os milicianos. "Este é o prémio da independência."

As milícias abriram fogo directamente sobre a multidão.

As pessoas que estavam à frente dobraram-se e tombaram no chão, as que se achavam atrás voltaram-se e tentaram fugir, embatendo na parede que as encurralava. Paulino e mais al­guns encontravam-se numa das pontas e desataram a correr, conseguindo evitar as paredes e dirigindo-se para as árvores, correndo que nem coelhos, fugindo do caos de metralha e dos gritos de pavor que ficavam para trás.

Conseguiram escapar.

O timorense da UNAMET e alguns companheiros alcan­çaram as árvores e refugiaram-se no mato, outros esconde-ram-se atrás da grande estátua de Nossa Senhora de Fátima, a trinta metros da igreja. Mas a maioria não teve a mesma sorte.

Os corpos iam tombando no chão uns atrás dos outros, os berros de terror dos que estavam atrás abafados pelo ensurde­cedor som da metralha. A multidão recuou até ficar totalmente comprimida entre a parede da igreja e os homens armados, os milicianos sempre a dispararem enquanto avançavam por cima dos que já tinham tombado.

Quando as armas se calaram havia duzentos corpos no chão. O coronel Sydonto aproximou-se de jipe com mais três solda­dos indonésios e parou junto à massa de corpos amontoados. O oficial analisou os cadáveres à distância e fez um gesto a Kris, que se aproximava.

"Os camiões já aí vêm", anunciou o coronel, apontando de seguida para o monte de cadáveres. "Atirem lá para dentro toda esta porcaria."

Kris assentiu com a cabeça.

"Para onde os levamos?", perguntou o miliciano das Flores.

"Atirem-nos ao rio. Os que não conseguirem levar, queimem--nos." O coronel Sydonto levantou o dedo, fixando os olhos no miliciano. "Não quero vestígios nenhuns destes corpos. Ouviste? Nem um pedacinho. Isto é tudo para desaparecer."

"fí<3/&", respondeu Kris, como quem diz "okay".

"E depois limpem-me o resto da cidade, quero tudo queimado."

"Baik, bapak coronel."

Dois camiões chegaram entretanto e os homens das Mahidi, comandados por Kris, lançaram para a carga o maior número possível de cadáveres.

Terminada a operação na igreja, as milícias passaram ao saque do resto da povoação, agora absolutamente deserta. Assaltaram e destruíram casas, a escola e as instalações das madres canosianas. Só a catedral, que estava em construção, foi poupada, uma vez que o fogo não conseguia consumir o cimento. Depois de o Sol se pôr, Paulino viu do mato as milí­cias juntarem os corpos que ainda restavam e deitarem-lhes fogo, uma imensa e pavorosa fogueira a iluminar a noite com macabras e tenebrosas chamas.

 

Jacarta implementou a lei marcial em Timor-Leste no dia seguinte, a terça-feira de 7 de Setembro. Mas, como era fácil prever, a medida teve um impacto nulo no terreno. Algumas horas depois da sua entrada em vigor, e perante os sinais de que não estava a produzir qualquer efeito, o governo britânico disponibilizou-se para integrar uma força de imposição de paz, mas sempre no pressuposto de que essa força teria de ser con­vidada pela Indonésia. Jacarta, no entanto, insistia na ideia de que a lei marcial era a solução e opôs-se frontalmente à entrada de tropas internacionais em Timor-Leste.

A situação entrara num impasse.

Perante este cenário, a posição dos Estados Unidos tornou--se crucial. Como única superpotência, a América desempe­nhava um papel central nas relações internacionais e a sua opi­nião poderia fazer pender a balança para o lado de Timor-Leste. Mas as notícias que vinham de Washington não eram encora-jadoras. Não havia, é certo, uma posição monolítica americana.

Claramente existiam diferentes sensibilidades, mas a verdade é que o grupo anti-intervencionista parecia maioritário.

Em Lisboa começaram a contar-se as espingardas america­nas. Os conselheiros da Casa Branca, incluindo o influente conselheiro para a Segurança Nacional, Sandy Berger, eram contrários a uma posição de força perante Jacarta. O secretário da Defesa, William Cohen, alinhava pelo mesmo grupo. Já o Departamento de Estado, e em particular o subsecretário de Estado para a Ásia, Stanley Roth, era pró-intervencionista, embora a secretária de Estado Madeleine Albright e o influente embaixador americano na ONU, Richard Holbrooke, perma­necessem relativamente indefinidos.

Os sinais de alarme puseram-se a tocar em Lisboa quando Sandy Berger se pronunciou pela primeira vez em público sobre Timor-Leste.

"Lá porque bombardeámos Pristina, não quer dizer que vamos agora bombardear Díli", declarou o conselheiro para a Segurança Nacional.

Berger referia-se à guerra da NATO contra a Jugoslávia, ocorrida meses antes por causa da limpeza étnica que os sérvios efectuaram contra a população albanesa do Kosovo. Ao profe­rir esta declaração, o conselheiro de Clinton deu a entender aos indonésios que tinham as mãos livres para fazerem o que qui­sessem em Timor-Leste. Logo a seguir a Berger foi a vez de o secretário da Defesa, William Cohen, vir a público, a 8 de Setembro, sublinhar que Timor-Leste não era uma prioridade da política externa americana e que não era desejável sacrificar a Indonésia.

Alarmado com estas declarações, o primeiro-ministro portu­guês, António Guterres, pediu de imediato uma chamada para a Casa Branca. Guterres sabia que a chave era o presidente Bill Clinton, que ainda não se pronunciara em público sobre Timor-Leste. Só ele podia inflectir decisivamente o rumo dos aconte­cimentos e convinha que, quando por fim falasse, fosse favo­rável a uma intervenção internacional.

uHi Tony", disse a voz do outro lado da linha.

Era Clinton.

"Hi Biir, cumprimentou-o Guterres.

"Já sei que estás preocupado com a situação em Timor-Leste."

" You can say that again. Estou realmente muito angustiado com tudo o que se está a passar. A situação é tão má como no Kosovo, se não pior. Os indonésios desrespeitaram o acordo que fizeram connosco e estão a pôr o país a ferro e fogo, destruindo tudo e matando muita gente. As coisas estão mesmo dramáticas e parece-me que se encaminham para um genocídio."

"Isso está assim tão mal?"

"Receio bem que sim."

"Mas quem é que está a fazer isso? O exército?"

"Formalmente são as milícias, mas nós sabemos que as milícias foram criadas e armadas pelos militares. Para além disso, e enquanto as milícias fazem o que querem, os soldados e os polícias ficam a ver. Em muitos casos estiveram também envolvidos activamente em acções. Isso aconteceu ainda hoje, quando militares e polícias se juntaram às milícias para atacar um armazém da ONU em Díli."

"Creio que já condenámos a situação."

"Sim, mas há um problema", indicou Guterres, sabendo que seria contraproducente dizer a Clinton que palavras não basta­vam. "Eu soube há pouco que o teu secretário da Defesa afir­mou que vocês não podem adoptar políticas que ponham em causa a Indonésia. Mas deixa-me dizer-te que não é só a Indonésia que está em causa, esta não é uma mera questão regional e asiática. Vocês não estão a ver o problema com todas as suas implicações e ramificações, as coisas são muito graves. A situação em Portugal é de uma profunda revolta nas ruas. Ainda hoje o país fez três minutos de silêncio e foi formado um cordão humano de vários quilómetros aqui em Lisboa, ligando os escritórios da ONU e as cinco embaixadas dos membros permanentes do Conselho de Segurança." Uma pausa. "Bill, participaram trezentas mil pessoas."

"Estiveram à frente da nossa embaixada?"

"Sim, também estiveram lá. Mas o que eu te quero dizer é que a situação em Portugal é de tal modo emocional que, independentemente da minha vontade e opinião pessoal, não tenho verdadeiramente condições para manter as nossas tropas que integram a força internacional na Bósnia e no Kosovo. Isto não é uma ameaça, não estou a ameaçar retirar as tropas. O que estou a dizer é que ninguém em Portugal compreenderia, neste clima emotivo, que o país fizesse um esforço para perma­necer numa operação internacional quando, na sua hora de necessidade, ninguém o ajuda. Com o abandono de Timor, só nos restaria retirar-nos da Bósnia e do Kosovo, eu não teria alternativas."

"I see."

"O país está emocionalmente devastado, as pessoas encon-tram-se todas nas ruas a exigir ajuda para Timor-Leste. Por­tanto, é preciso que vocês compreendam que não se trata de um mero problema asiático, é também um problema europeu. Para não contrariar a Indonésia, vocês vão alienar Portugal, vão criar um problema na unidade da NATO. O sentimento antiamericano está a crescer de tal modo que teríamos de reti­rar os nossos soldados. Por outro lado, é a própria credibilidade da comunidade internacional, do Ocidente, que está em causa. Não é possível assistir a tudo isto de braços cruzados."

"Okay, Tony", disse Clinton após ouvir Guterres. "Vou ver o que podemos fazer, vamos estudar o problema. Thank you for calling. We'll keep in touch."

Foi um telefonema longo, dominado pelo tom emotivo de António Guterres. O presidente americano interveio pouco e ouviu muito. Faltava saber se ficara mesmo convencido.

O primeiro-ministro português tinha consciência de que a partida não estava ganha, longe disso, e ligou ao seu homólogo britânico, em Downing Street. Era preciso jogar em todos os tabuleiros.

"Hello, António", cumprimentou Tony Blair, o "António" pronunciado "Antôuniou", num sotaque todo British.

Ambos eram Antónios. Ou melhor, um era António, o outro Anthony. Por isso, Blair evitava o diminutivo "Tony" quando falava com o seu colega português, sob pena de acabarem os dois a interpelar-se pelo mesmo nome, o que soaria estra­nho.

"Hello Tony."

"Whafs upr

"Acabei agora de falar com Bill Clinton sobre Timor-Leste. O Cohen começou a dizer que os Estados Unidos não podem contrariar a Indonésia e ficámos muito preocupados porque percebemos que os americanos se estão a preparar para perma­necer de braços cruzados."

"É, eles não querem problemas em Jacarta, preferem ajudar o Habibie a segurar o país."

"Mas, Tony, não é só a Indonésia que está em causa, é também Portugal. Eu disse ao Clinton que, se se deixar os indonésios fazerem o que quiserem em Timor-Leste, então o ambiente que se vive aqui em Portugal irá obrigar-nos a retirar as nossas tropas na Bósnia e no Kosovo. Repara que não é uma ameaça, é a constatação de que o estado de espírito no país obrigaria a uma decisão dessas, eu não teria alternativas. Por­tanto, para se apaziguar a Indonésia, ir-se-ia perder Portugal."

"E o que é que o Bill te disse?"

"Não se comprometeu com nada. Ouviu e disse que ia es­tudar o problema."

"É natural, ele tem de falar com os seus conselheiros."

Era isso justamente o que preocupava Guterres. Berger e Cohen iriam favorecer a Indonésia, enquanto Albright e Holbrooke permaneciam uma incógnita. Nestas condições, deixar a decisão nas mãos dos conselheiros de Clinton revela-va-se demasiado arriscado.

"Tony, I need your help."

"Tu tens uma muito maior influência sobre o Clinton do que eu. Por favor, liga-lhe e faz-lhe sentir que isto é muito sério, ele não nos pode abandonar nesta hora."

"Rigbt", acedeu Blair. "Eu vou telefonar, fica descansado." Guterres sabia que podia confiar no seu colega britânico. Tony Blair parecia-lhe genuinamente preocupado com Timor-Leste e empenhado em ajudar os portugueses. Ainda na véspera os dois tinham falado ao telefone a propósito da recusa do embaixador britânico na ONU de aceitar a convocação de uma reunião de emergência do Conselho de Segurança para analisar a situação em Timor-Leste, e foi Blair, a pedido de Guterres, quem deu a ordem ao embaixador para viabilizar a reunião.

António Guterres foi descansar nessa noite de 8 para 9 de Setembro. A vertigem dos acontecimentos e as diferenças ho­rárias entre Lisboa, Díli e Nova Iorque obrigavam-no a perma­necer acordado mais do que o normal, e nos últimos tempos só dormira uma média de duas horas por dia. Mas ainda não seria agora que conseguiria descansar sem interrupções.

Freitas Ferraz, o seu assessor diplomático, irrompeu no ga­binete com uns papéis na mão.

"António, lê isto."

O primeiro-ministro ergueu-se do sofá onde se alongara e pegou nos papéis que o assessor lhe estendia. Era um texto tirado da página da Internet do The New York Times a explicar a posição americana em relação a Timor-Leste, citando como fonte o conselheiro para a Segurança Nacional, Sandy Berger. Dizia o texto, no essencial, que não fazia sentido sacrificar duzentos milhões de pessoas para salvar meio milhão. Ou seja, embora a situação em Timor-Leste fosse lamentável e condená­vel, a prioridade era salvar a Indonésia, era ajudar Habibie a segurar o país. Se Habibie fosse desautorizado, os militares poderiam tomar conta do poder na Indonésia. Esse era um risco que não valia a pena correr.

"Liga à embaixada americana e pede para o embaixador vir aqui a São Bento amanhã às oito da manhã", pediu Guterres, cansado.

Freitas Ferraz saiu e o Primeiro-Ministro retomou o des­canso no sofá. O dia seguinte prometia ser longo.

O embaixador Gerald McGowan apareceu à hora marcada, nessa manhã de quinta-feira, 9 de Setembro. McGowan não era um diplomata de carreira, mas um embaixador político. Tinha sido colega de Bill Clinton na escola e fora premiado com um posto em Lisboa. Era um homem afável e tinha, aos olhos de Guterres, uma grande vantagem: estava cem por cento com os portugueses na questão de Timor-Leste.

"Good morning, mister ambassador."

"Good morning, Prime Minister."

Sentaram-se os dois. Guterres tivera o cuidado de pousar na mesa as folhas tiradas essa madrugada do site do The New York Times.

"Muito obrigado por ter vindo a esta hora tão inconve­niente."

"Não é problema, é um prazer estar aqui consigo."

Guterres ajeitou-se na poltrona.

"Estive ontem a falar ao telefone com o presidente Clinton por causa da situação em Timor-Leste." Pegou nas folhas que se encontravam pousadas na mesa e estendeu-as ao embaixa­dor. "E tenho aqui este artigo do The New York Times a explicar a posição da Casa Branca, que pelos vistos é a de que não se deve incomodar a Indonésia."

McGowan estudou as folhas.

"Quando é que isto foi publicado?"

"Esta madrugada, estava no site do The New York Times.'"

"E foi publicado no jornal hoje?"

"Presumivelmente."

McGowan voltou a olhar as folhas.

"Senhor primeiro-ministro", disse o embaixador após ler o texto. "Isto não representa a opinião do governo americano, é apenas um artigo de jornal."

"Ora, senhor embaixador, é evidente que isso é a posição americana, nós sabemos como é que estas coisas se fazem."

McGowan calou-se e Guterres prosseguiu:

"O senhor não desconhece certamente a reacção que este país está a ter aos acontecimentos em Timor-Leste, não desco­nhece a onda de emoção que se espalhou por toda a parte, viu a reacção das pessoas."

"Ainda as tenho à porta da embaixada."

"Eu sei. Ora, como lhe disse, ontem falei com o presidente Clinton e expliquei-lhe a situação. Mas essa foi uma conversa informal, ao telefone. A si, que é embaixador dos Estados Unidos em Portugal, quero comunicar-lhe formalmente a posi­ção oficial do meu governo. E é para lhe dizer o seguinte." Guterres apontou para as folhas retiradas da Internet. "De acordo com este artigo, os Estados Unidos não querem sacri­ficar a Indonésia por causa de Timor-Leste. Mas o facto é que não está só em causa a Indonésia, está também Portugal. Para salvarem a Indonésia, não perdem apenas Timor-Leste, perdem igualmente Portugal. Consequentemente, se os Estados Unidos apoiarem a Indonésia nesta questão de Timor-Leste, ver-nos--emos obrigados, dado o clima emocional que atravessa o país e que o senhor bem conhece, a retirar as nossas tropas na Bósnia e no Kosovo. Não é uma decisão hostil para com os Estados Unidos, é uma decisão que decorre do clima existente no país e da vontade implícita dos seus habitantes."

O embaixador assentiu com a cabeça.

"7 understand", declarou. "O que nos está a dizer é que, para impedir um problema na Ásia, estamos a criar um proble­ma na Europa, no seio da NATO."

"Precisamente."

"Vou falar com o meu presidente, transmitir-lhe essa posi­ção e expor-lhe a minha opinião."

"Thank you, mister ambassador."

"Tbank you, Prime Minister."

As conversas de Tony Blair e de Gerald McGowan com Bill Clinton, secundando e reforçando tudo o que António Guterres já dissera, acabaram por se revelar cruciais. Ambos insistiram na necessidade de Portugal não ser alienado nesta questão e de os Estados Unidos mostrarem uma atitude mais firme para com Jacarta.

Foi o momento do volte face.

Convencido, o presidente americano concordou com o primei-ro-ministro britânico sobre a necessidade de ser enviada uma força internacional de paz para Timor-Leste. Faltava agora obri­gar a Indonésia a aceitar essa força. Depois de falar com Blair, Clinton deu logo a seguir ordens ao Pentágono de que suspen­desse a cooperação militar com Jacarta. E, ao fim dessa crucial tarde de 9 de Setembro, o presidente dos Estados Unidos emitiu em Washington um primeiro aviso público à Indonésia.

"Se a Indonésia não põe fim à violência, deve convidar a comunidade internacional a restabelecer a ordem", declarou Clinton aos jornalistas, as suas palavras a serem registadas pelos microfones das televisões e vistas em todo o mundo, incluindo em Jacarta. "A Indonésia deve convidar uma força internacional. O futuro de Timor não pode ser travado."

Foi uma primeira mensagem, mas a Indonésia demorou a perceber que as coisas tinham mudado na Casa Branca e decla­rou novamente que não aceitava a entrada de uma força inter­nacional em Timor-Leste.

Bill Clinton deixara entretanto Washington e voava no Air Force One sobre o Pacífico em direcção à Nova Zelândia, onde ia participar na Cimeira da APEC, a organização de Coope­ração Económica Ásia-Pacífico. A declaração indonésia obri-gou-o a repetir a mensagem que enviara de Washington. O avião presidencial fez, a 10 de Setembro, uma escala na Base Aérea de Hickam, no Havai, e Clinton aproveitou a oportuni­dade e a presença de microfones para insistir na questão.

"É claro que os militares indonésios estão a ajudar e a pro­teger a violência desencadeada pelas milícias em Timor-Leste", disse o Presidente americano em Hickam AFB. "Isso é simples­mente inaceitável. O governo e o exército indonésio devem mudar a situação e autorizar a intervenção de uma força inter­nacional que torne possível o retorno da segurança."

Foi o segundo aviso.

A mensagem foi reforçada horas depois, em Washington, nessa mesma sexta-feira, quando o FMI anunciou a suspensão de negociações com a Indonésia sobre uma importante ajuda financeira.

A chegada à Nova Zelândia, Bill Clinton foi discursar pe­rante uma assembleia de grandes empresários da APEC. A CNN transmitia o acontecimento em directo.

"O mundo inteiro tem os olhos postos em Timor-Leste", declarou o presidente, insistindo no mesmo recado. "O povo de Timor-Leste votou esmagadoramente pela independência. A vontade do povo não pode ser derrubada pela violência e pela intimidação. Apelo à Indonésia para que autorize a entrada de uma força multinacional de paz para restabelecer a segurança no território."

Nesse sábado, em Nova Iorque, o Conselho de Segurança da ONU reuniu-se e multiplicou-se em críticas à Indonésia e em exigências para que Jacarta aceitasse a entrada de uma força internacional em Timor-Leste. O embaixador Richard Holbrooke, o homem que enfrentara Slobodan Milosevic nos Balcãs, declarou que a situação no território era pior do que alguma vez o Kosovo fora.

"As luzes estão a apagar-se sobre a Indonésia", declarou Holbrooke no mesmo tom duro e ameaçador que utilizara, tempos antes, para fazer vergar os sérvios na Bósnia e no Kosovo.

Desta vez Jacarta entendeu.

O que ontem era impossível e irrealista tornou-se, de re­pente, não só possível como necessário. No domingo, 12 de Setembro, o presidente Yusuf Habibie anunciou que a Indoné­sia aceitava a entrada de uma força internacional em Timor-Leste. Dois dias depois, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução a autorizar uma força multinacional liderada pela Austrália, a INTERFET, a intervir em Timor-Leste.

As primeiras tropas australianas desembarcaram no aero­porto de Díli ao início da manhã de 20 de Setembro e come­çaram a espalhar-se pela cidade, perante o olhar resignado dos soldados indonésios. As tropas de Jacarta iniciaram a sua reti­rada cinco dias depois. A INTERFET foi-se espalhando pelo território, ocupando posições e detendo alguns elementos das milícias.

As populações que se tinham refugiado nas montanhas fo­ram descendo gradualmente, regressando às povoações. Paulino e os seus companheiros reentraram em Suai para en­contrar a povoação reduzida a escombros e cinzas. A parte ocidental de Timor-Leste, que incluía Suai e ficava mais perto da fronteira indonésia, estava arrasada. Certas áreas da parte oriental, onde as Falintil eram mais fortes e as milícias menos influentes, encontravam-se menos afectadas.

A bandeira azul das Nações Unidas foi hasteada no mastro da praça em frente ao Palácio do Governo, o mesmo mastro onde nos últimos vinte e quatro anos tinham flutuado sucessi­vamente as bandeiras portuguesa, timorense e indonésia.

Ao fim de algumas semanas, os indonésios saíram finalmen­te do território, pondo termo a uma trágica, vergonhosa e desastrada presença na antiga colónia portuguesa. A tranquili­dade regressou gradualmente a Timor-Leste, as famílias separa­das começaram a reencontrar-se e iniciou-se a reconstrução, lenta e cheia de dificuldades. Xanana Gusmão, entretanto liber­tado pelos indonésios, regressou finalmente à sua terra e teve uma recepção apoteótica.

As milícias ainda fizeram algumas incursões no território, mas os homens da INTERFET, e em particular as tropas portuguesas entretanto desembarcadas, deram-lhes caça e desenco­rajaram mais acções. O brasileiro Sérgio Vieira de Mello foi nomeado administrador transitório, encarregado pelas Nações Unidas de administrar provisoriamente o território e preparar Timor-Leste para eleições gerais e a independência. A Fretilin ganhou as legislativas e Xanana Gusmão venceu as presiden­ciais.

Só faltava agora a entrega da soberania aos timorenses. A cerimónia ficou marcada para a noite de 19 de Maio de 2002 e a restauração da independência para as zero horas de 20.

 

Díli, 19 de Maio de 2002 Minha querida Esmeralda,

Soube pelo padre Frederico que te encontras bem de saúde. Ele também me disse que tens feito muitos esforços nestes últimos anos para comunicar comigo. Peço-te imensa desculpa por me ter mantido silencioso durante todo este tempo. Sei que estranhas este silêncio, que provavelmente o interpretas como o fim do meu amor por ti e que sofres com a falta de notícias da Isabelinha. Mas não foi por falta de amor que não te escrevi. Foi por falta de coragem. A verdade é que só hoje me enchi de força e me decidi a escrever-te.

Quando nos separámos, no Remexio, eu estava convencido de que não sobreviverias muito mais tempo. Foi uma grata surpresa descobrir que tiveste a sorte de ter sido vista pelo primo Augusto e, ao que me dizem graças à ligação que ele tinha com um coronel bapa, de ser mandada para Jacarta. Eu e a Isabelinha acabámos por ter menos sorte. Apesar de a distância entre o Remexio e Díli ser de apenas dezassete quilómetros, andei dois dias e duas noites no mato com a nossa filhinha nos braços. Comemos tapioca e raízes, o que não era grande coisa, mas bebemos água pura das fontes, o que cons­tituiu uma grande melhoria em comparação com a água do campo de realojamento.

A Isabelinha estava muito fraca e chamava constantemente por ti. Quando chegámos a Díli fui directamente para casa dos meus pais, à procura de ajuda. A minha mãe tinha uns medi­camentos, o meu pai foi pedir auxílio a uma freira amiga que era enfermeira na unidade hospitalar da igreja de Motael. Ela disse-nos que a menina sofria de um problema que muitos confundiam com beribéri, na altura famoso por causa do Biafra, mas que na verdade se chamava marasmo e era muito grave. Segundo ela, a Isabelinha tinha falta de proteínas, açú­cares, gorduras e vitaminas, tratava-se de uma doença de fome, muito comum em Timor naquela altura. A freira preparou uma papa feita com óleo, farinha e proteínas em pó e recomendou que fosse ministrada em doses pequenas e frequentes. Além disso, preparou também um soro feito com água, açúcar e sal, e disse que era para lhe matar a sede. A Isabelinha estava muito magra mas, em algumas semanas, ganhou de facto alguma energia e recomeçou a brincar. A alimentação fê-la melhorar, embora continuasse esquelética. Arranjámos leite e um pouco de fruta, e conseguíamos comer uma refeição por dia, tendo sempre o cuidado de lhe dar a melhor parte. Os tempos con­tinuavam difíceis, mas a situação revelava-se, apesar de tudo, menos precária do que no Remexio.

Começámos nessa altura a mexer os cordelinhos para tentar descobrir-te no campo de realojamento, mas os nossos esforços embateram numa barreira de silêncio. Foi então que o primo Augusto disse aos teus pais que te tinha visto lá e conseguira enviar-te para Jacarta. Tentámos localizar-te em Jacarta, mas foi impossível. Restava-nos a consolação de saber que tinhas escapado ao inferno do Remexio e eu comecei a acreditar que o nosso reencontro seria já apenas uma questão de tempo.

Após permanecer alguns meses em Díli, percebi que teria de me envolver em alguma actividade para trazer mais um pouco de comida para casa. A nossa casinha de Balide tinha sido ocupada pelos bapas e nós estávamos agora a tempo inteiro com os meus pais. Felizmente que os corpos dos dois nangalas que enterrámos no quintal não tinham sido descobertos, pelo que não fui incomodado pelos bapas. Corria o ano de 1979 e o aparente aniquilamento das Falintil no Matebian criara a convicção de que a guerra estava acabada e de que nós tínha­mos perdido. Só me restava adaptar-me à nova situação.

Foi nessa altura que decidi alistar-me nas Hansip, as unida­des de defesa civil local. Fizeram-me muitas perguntas e tenta­ram detectar qualquer coisa no meu passado que me ligasse à Fretilin. Ocultei a minha presença no Matebian e no campo do Remexio, alegando que tu te encontravas em Jacarta e que morámos todo este tempo com os meus pais. Penso que foi a tua presença em Jacarta que os tranquilizou. Devem ter pensa­do que éramos uns grandes campeões do integracionismo e aceitaram-me. Nas Hansip éramos todos timorenses, mas, à parte alguns elementos da Apodeti, não tínhamos grande entu­siasmo pelas operações militares contra os nossos irmãos nas montanhas. Os nangalas deram-nos armas e obrigavam-nos a ir à frente quando se tratava de fazer uma operação contra as Falintil. Quando se estabelecia contacto com o "inimigo", em geral fazíamos uma de duas coisas: ou dávamos uns tiros para o ar e retirávamos, ou, se estávamos já fartos dos   bapas, juntávamo-nos às Falintil. Não admira, por isso, que os nangalas não confiassem em nós. E que nós também não con­fiávamos neles e mostrávamo-nos prontos a traí-los à primeira oportunidade.

Foi ali nas Hansip que tomei contacto com muita da terrível actividade indonésia no período de 1979 a 1983. Apesar de as Hansip serem unidades locais, o facto de eu falar inglês acabou por me ajudar de uma forma inesperada. Um oficial indonésio, o major Mubyarto, fazia-se ares de falar inglês e queria exerci­tar a língua. Escolheu-me então como elemento de ligação entre os nangalas e as diversas Hansip espalhadas pelo território, preferindo-me a outros elementos que falavam bahasa indo­nésio. Isso permitiu-me testemunhar actos inacreditáveis de crueldade para com o nosso povo.

Não me esqueço de um massacre em particular, a que assisti em Setembro de 1981 em Lacluta. Os nangalas mataram aí cerca de quatrocentas pessoas, a maioria mulheres e crianças, eram guerrilheiros e as suas famílias que se tinham rendido acreditando em promessas de amnistia. Foi uma coisa horrível. Agarravam nas pernas de crianças pequenas e atiravam as suas cabeças contra as rochas. Matavam também as mães. Houve uma mulher que intercedeu por uma criança, cuja mãe tinha acabado de ser assassinada, pedindo para ficar com ela. Pois os nangalas mataram a criança e mataram também essa mulher. Quando perguntei ao major Mubyarto por que razão estavam a matar as crianças, ele disse que era preciso extermi­nar todas as cobras, as grandes e as pequenas. Os bapas ma­tavam em grande número e de formas horrendas. Quando assassinavam só cinco ou seis pessoas, como vi em Manatuto em Julho de 1981, cortavam-lhes as cabeças e exibiam-nas na rua, à frente das crianças. Em Agosto de 1983, no último massacre a que assisti, vi os nangalas amarrarem sessenta pessoas, incluindo mulheres e crianças, e deitá-las no chão. Depois foram buscar um bulldozer e esmagaram-nas. Os seus gritos, quando viam o bulldozer a aproximar-se e a pisar as pessoas ao lado, transformando-as em algo semelhante a folhas de papel prensado, eram uma coisa horrível. Isto aconteceu numa aldeia chamada Malin Luro, perto de Viqueque. Estes foram os massacres que vi com os meus olhos. Mas nas Hansip conta-vam-se muitas outras histórias. Que os bapas matavam prisio­neiros à noite no lago Tacitolo, que atiravam prisioneiros de helicópteros para o mar, que faziam muitas execuções na praia da Areia Branca. Enfim, um rosário que só te descrevo para perceberes o clima que por aqui havia.

Mas o mais curioso é que a guerrilha continuava activa. Os bapas achavam que a resistência tinha terminado com a queda do Matebian, em 1979. Acreditaram que a eliminação da che­fia das Falintil conduzira ao fim da resistência e celebraram a morte do Lobato como se fosse o fim da guerra. Confesso que eu próprio também pensei desse modo, o que contribuiu para que me alistasse nas Hansip, como já te referi. Mas afinal a resistência renasceu meses depois, voltando a atacar os nanga­las. Desta vez, no entanto, as tácticas eram diferentes. Em vez de ataques convencionais, as operações passaram a ser de guer­rilha. Os nangalas deixaram de ter um exército pela frente, mas uma multidão de exércitos miniatura, e ficaram desorientados. Quando em 1980, altura em que os bapas ainda se vangloria­vam de ter ganho a guerra, as Falintil entraram em Díli e desataram a matar nangalas, os bapas ficaram estupefactos. O suposto inimigo derrotado estava a rir-se na cara deles. Lá vieram mais batalhões de nangalas e os massacres que já te descrevi.

A situação entrou num impasse. As Falintil permaneciam tremendamente activas, os nangalas não as conseguiam derrotar e começaram gradualmente a percebê-lo. Por isso, no início de 1983, uma série de comandantes locais bapas estabeleceram acordos de cessar-fogo com as Falintil e em Março o chefe militar bapa em Timor-Leste, coronel Purwanto, e o governa­dor Mário Carrascalão encontraram-se perto de Viqueque com Xanana Gusmão. Assinaram um acordo geral de cessar-fogo e Xanana pediu a retirada dos nangalas de Timor-Leste, a entra­da de uma força das Nações Unidas e um voto popular sobre o futuro do território. O que é extraordinário é que o Purwanto concordou em levar estas propostas a Suharto, encarando-as portanto com seriedade. Como é natural, este acordo de cessar--fogo criou uma onda de optimismo prudente entre todos os timorenses.

Os combates pararam, os massacres também, e até foi orga­nizado um jogo de futebol entre os nangalas e os guerrilheiros, em Baucau. As Falintil ganharam esse jogo, acreditas? Foi nesse ambiente que consegui do major Mubyarto uma autorização para abandonar as Hansip. Regressei assim a casa dos meus pais em Díli, onde a Isabelinha tinha ficado todo esse tempo. Ela já tinha onze anos, estava uma beleza e mostrava-se contentíssima. Uma das tuas cartas, aquela em que lhe enviaste um crucifixo de prata, tinha acabado de chegar a Díli e foi nessa altura que soubemos que te encontravas em Portugal. Ela só me perguntava quando é que íamos também para Portugal, o que, como sabes, não era nada fácil. Se naquela altura todos os timorenses tivessem uma oportunidade de ir para Portugal ou para outro lado qualquer, acho que Timor-Leste teria ficado deserto. Mesmo assim, alimentávamos essa esperança e foi nessa altura que recebeste a nossa carta. Passei uma tarde com a Isabelinha a redigi-la. Ela andava com muita dificuldade com o português, que foi proibido em toda a parte, incluindo nas missas a partir de 1981, pelo que tive de lhe dar uma ajuda.

Infelizmente, e quando parecia que as coisas poderiam me­lhorar, acabaram afinal por piorar. O meu pai morreu com malária cerebral, no meio das maiores febres, e a minha mãe ficou devastada. Ao fim de algumas semanas, ela insistiu em ir para a sua terra, em Kraras, e pediu-me que a levasse lá. Disse--lhe que era um disparate, mas ela afirmou que seria só por uns dias, para se despedir da sua terra natal, queria vê-la uma última vez antes de morrer. Considerando que estava muito abalada com a morte do meu pai, achei que não deveria contrariá-la e aceitei levá-la lá. Foi um erro trágico.

Partimos a 4 de Agosto, aproveitando a boleia de um amigo timorense da Hansip de Kraras, que tinha vindo a Díli tratar de uns assuntos. Chegámos no dia seguinte, mas a minha mãe teve um choque. A maior parte das pessoas do tempo dela tinha desaparecido. Umas morreram nos bombardeamentos do Matebian, outras morreram de fome no mato, outras foram internadas em campos de realojamento e nunca mais se soube delas. Mesmo assim, ainda estavam lá alguns sobrinhos dela, meus primos, e alojámo-nos numa casa de família.

Foi nessa altura que os acontecimentos se precipitaram. Foi organizada na noite seguinte uma grande festa na aldeia, até se matou um búfalo. A meio da festa apareceram uns nangalas e levaram várias raparigas, incluindo a Graça, filha de um primo meu. Felizmente a Isabelinha estava em casa nesse momento, pelo que não lhe aconteceu nada. Horas depois apareceram as raparigas que tinham sido raptadas e vinham num estado las­timável. Tinham as roupas rasgadas, escoriações no corpo e pareciam em estado de choque. Tinham sido violadas pelos nangalas, que fizeram delas o que quiseram. Isso provocou uma grande revolta em Kraras. O pessoal da aldeia fez uma reunião e decidiu que as coisas não iam ficar por ali. Os ho­mens da Hansip local, que eram ao todo quase uma centena e estavam armados com material tradicional, juntaram-se à acção punitiva. É que algumas das raparigas eram também familiares de elementos da Hansip de Kraras.

Na noite de 8 de Agosto, os homens da Hansip passaram à acção. A unidade de nangalas responsável pelo assalto à aldeia e pela violação das moças foi localizada numa clareira ali perto. Contaram-se dezasseis nangalas, todos eles per­tencentes a uma unidade de engenharia. Quando eles foram dormir, um dos nossos homens esgueirou-se e eliminou silen­ciosamente a sentinela. Depois, obedecendo a um sinal, os homens da Hansip caíram em cima dos nangalas, com catanas e paus, e deram cabo deles. Morreram quase todos, mas houve um capitão que, apesar de ferido, conseguiu escapar. A fuga do capitão deixou a Hansip de Kraras numa situação muito difícil, uma vez que havia agora uma testemunha que poderia identi­ficar os atacantes. Os elementos da Hansip decidiram então pegar nas armas dos nangalas, que incluíam armas automáticas Ml6, e fugiram para as montanhas, onde se juntaram às Falintil.

Este incidente foi aproveitado pela Indonésia para reatar a guerra. Ao que parece, Jacarta não ficara muito contente com o cessar-fogo em Timor e estava especialmente agastada com as propostas de Xanana que tinham sido remetidas a Suharto pelo Purwanto. O general Murdani queria passar à ofensiva, mas achou-se que seria contraproducente ser a Indonésia a quebrar o cessar-fogo sem mais nem menos. A matança dos nangalas deu-lhes o pretexto que procuravam. Murdani apresentou um ultimato irrealista às Falintil, exigindo que todos os guerrilhei­ros se rendessem. Como, naturalmente, isso não aconteceu, a Indonésia passou ao ataque.

Na manhã de 7 de Setembro acordámos ao som dos tiros dos nangalas. Peguei na minha mãe e na Isabelinha e fugi para o mato com o resto da população. Cinco velhos que já não conseguiam andar e um miúdo de dezasseis anos, o António Miak, ficaram na aldeia. Os seus cadáveres foram mais tarde encontrados junto ao rio, os velhos mortos à facada, o António a tiro. Os nangalas queimaram as casas e riscaram Kraras do mapa. Percebemos que não podíamos regressar a casa e fomos para a zona de Bibileu, onde ficámos tranquilos alguns dias. Comecei até a estudar a melhor forma de regressar a Díli, mas depressa percebi que seria melhor deixar os nangalas acalmar.

O problema é que os bapas não acalmaram. Em breve apa­receram aviões e começaram a bombardear o sector de Bibileu com grande intensidade. Depois foram avistadas forças de nangalas nas redondezas; estavam a cercar-nos. Contámos quatro batalhões. A situação tornou-se desesperada. A minha mãe, que já tinha idade avançada, não se conseguia movimen­tar com facilidade e isso foi fatal. Não podíamos deslocar-nos com rapidez, apesar de a Isabelinha, já com onze anos, ter total mobilidade. Ainda admiti a hipótese de deixar a minha mãe entregue a um grupo de aldeões e fugir para outro sector com a Isabelinha, mas acabei por achar que deveríamos permanecer unidos. Não quis repetir a cena da separação que tinha vivido contigo no Remexio, isso seria demasiado doloroso. Mas a decisão, embora moralmente correcta naquele momento, aca­bou por se revelar um novo erro.

Os alimentos no sector de Bibileu eram quase inexistentes. Apesar de haver água pura com abundância, faltavam-nos os géneros alimentícios. Começámos a comer folhas e raízes, o que era claramente insuficiente. A minha mãe foi ficando cada vez mais fraca, e eu e a Isabelinha também não estávamos bem. Quando, ao fim de alguns dias, o problema se agudizou, começámos a ouvir os bapas a dizer, através de megafones, que podíamos regressar a Kraras e que havia comida para todos.

Em condições normais, jamais teríamos acreditado. Mas aque­las não eram condições normais. Não tínhamos mobilidade, não tínhamos comida nem perspectivas de vir a ter e estávamos há vários dias em jejum. Nessas condições, a morte parecia provável. Do outro lado tínhamos uma promessa de alimentos. É certo que não confiávamos nos bapas, mas pensámos que eles deveriam saber que haviam sido as Hansip que mataram os seus homens e era possível que eles deixassem o povo em paz. Não estava, afinal, em vigor um cessar-fogo?

A parte que vou agora contar, Esmeralda, é a mais difícil de todas. Estou a escrever-te porque tenho o dever de o fazer, um dever perante ti e a minha atormentada consciência, mas a minha mão treme e os meus olhos ficam embaciados à medida que estou a relembrar estes acontecimentos e os tento descre­ver.

Entregámo-nos. A minha mãe e a Isabelinha tremiam de medo, coitadinhas, e eu tentei dar-lhes segurança, ocultando os meus próprios receios. Aproximámo-nos dos nangalas e vi que eram homens do Kopassus e de vários batalhões, e incluíam algumas tropas irregulares timorenses. Eles mantiveram as armas apontadas ao nosso grupo, formado por umas quinhen­tas pessoas, e conduziram-nos em direcção à ribeira Be Tuku, ali perto. Quando chegámos à margem da ribeira, os nangalas pararam e apontaram-nos as armas. De um lado estavam cente­nas de nangalas, atrás de nós encontrava-se a ribeira. Eu tinha a mão dada à minha mãe e à Isabelinha e percebemos que tínhamos chegado ao fim da linha. Abraçámo-nos com muita força, elas a chorar, eu a beijá-las e a tentar sossegá-las, mas sentia o coração aos pulos, sabia que íamos todos morrer.

Os nangalas abriram fogo de metralhadora sobre nós. Ouvi­mos o matraquear ensurdecedor à nossa volta, a Isabelinha gritou "pai!" e escondeu a cabeça no meu peito, vi pessoas a cair, à frente, à esquerda, à direita, balas a zumbir por todo o lado, a água do rio a ficar vermelha. A minha mãe foi atingida e embateu brutalmente em mim. Desequilibrei-me e caí com a Isabelinha no chão, os dois sempre muito agarrados, a minha mãe por cima com o sangue a ser despejado em golfadas sobre o meu corpo. Tombaram mais pessoas à nossa volta, algumas também em cima de nós. A Isabelinha chorava e eu só rezava a Deus para que aquilo acabasse depressa. Se tínhamos de morrer, que morrêssemos logo, que nos fosse poupada a angús­tia da espera pelo inevitável. Mas não morremos imediata­mente. As rajadas de metralhadora foram perdendo intensi­dade, até as armas se calarem.

Fez-se um súbito silêncio. Senti a Isabelinha debaixo do meu braço, soluçando baixinho, e ouvi gemidos a erguerem-se da montanha de corpos que nos rodeava. Mas a minha mãe estava claramente morta. Como me encontrava deitado, não conse­guia ver o que se passava à minha volta. Ouvi tiros isolados e os gemidos pararam. A Isabelinha tremia encostada a mim e isso deve ter despertado a atenção de um nangala. O homem aproximou-se e encostou a Ml6 à Isabelinha. Entrei em pânico. Percebi que a iam executar e não me contive. Gritei "tolong" em babasa indonésio e ajoelhei-me aos pés do nangala, pedindo misericórdia. O soldado riu-se. Vi um oficial e gritei-lhe que era amigo do major Mubyarto. O oficial, um capitão, aproxi­mou-se e fez sinal ao soldado de que não disparasse. Isso tran-quilizou-me ligeiramente. Expliquei-lhe que eu e a minha filha não éramos de Kraras, tínhamos chegado há alguns dias e não tínhamos nada a ver com o que acontecera. Queríamos era regressar a Díli e expliquei-lhe que eu até pertencera às Hansip e era totalmente a favor da integrasi.

O capitão ficou a olhar para mim e para a Isabelinha, que tremia e soluçava. Claramente, estava a avaliar o caso e preparava-se para tomar uma decisão. Quando finalmente quebrou o silêncio foi para me perguntar se eu era mesmo totalmente a favor da integrasi. Respondi-lhe que sim. Perguntou-me como é que eu podia provar isso. Respondi-lhe que teria de ser o major Mubyarto a testemunhar a meu favor. O capitão disse que não conhecia nenhum major Mubyarto e que, de qualquer modo, mesmo que ele existisse não estava ali nesse instante para ser consultado. Pareceu-me óbvio que teria de se aguardar até se conseguir falar com ele, mas não me atrevi a fazer a sugestão, poderia ser considerada uma insolência. O capitão insistiu que precisava de uma prova da minha lealdade para com a Indonésia. Fiquei a olhar para ele, sem perceber bem que prova lhe poderia dar. Perguntou-me se estava disposto a fazer tudo pela integrasi. Claro que lhe disse que sim.

Foi nesse momento que ele me disse que matasse a Isabelinha. Pensei que tinha ouvido mal, de tal modo era monstruoso o que ele acabara de dizer, e pedi-lhe que repetisse. Com toda a calma, o capitão voltou a dar a ordem, com as mesmíssimas palavras. "Mata a tua filha." A Isabelinha e eu ficámos paralisados. "Não posso fazer isso, senhor capitão, não me peça isso", disse-lhe. Ele respondeu: "Não te estou a pedir, estou a dar-te uma ordem." Custava-me acreditar que aquela conversa esti­vesse a decorrer. "Não me mande fazer isso, imploro-lhe, se­nhor capitão." Ele insistiu. "Tu andaste ou não nas Hansip?" "Sim, meu capitão." "Não sabes que um recruta das Hansip faz o que lhe ordenam?" "Sei, meu capitão." "Então prova que foste das Hansip e que és leal à Indonésia. Mata a tua filha." "Mas, meu capitão, não sou capaz de fazer isso." Ele aproxi-mou-se e apontou a arma à cabeça da Isabelinha. "Ouve, estú­pido timorense, ouve bem. A tua filha está morta. Cabe-te a ti escolher como. Ou a matas tu com um tiro de misericórdia, ou entrego-a eu aos meus homens e, depois de eles se satisfazerem à tua frente, ela será morta entre os maiores suplícios, e tu também. Como é que preferes?"

Os meus nervos não aguentaram e comecei a chorar como uma criança, abraçado à minha querida filhinha. "Não, não, por favor, Deus que está no céu, por favor, deixem-me com a minha filha, ela não fez mal a ninguém, matem-me a mim mas deixem-na, ela é inocente, ela só sofreu, poupem-na, Nossa Senhora de Fátima nos ajude, Deus sabe que ela nada fez, é apenas uma menininha pequena, a minha filhinha." O capitão abanou a cabeça, como se estivesse desapontado, e disse-me: "Ela vai ser violada por vários homens à tua frente e depois será cortada aos bocados com uma catana. A seguir será a tua vez." Vieram uns nangalas e agarraram na menina. A Isabe-linha tentou prender-se a mim, eu tentei segurá-la, chorávamos os dois. Mas os soldados tinham mais força e arrancaram-na. Foi então que a Isabelinha, Deus é minha testemunha, me disse: "Pai, mata-me tu, por favor, mata-me tu!" Olhei para o capi­tão, ele fez sinal aos nangalas para pararem e depois ficou a olhar para mim, à espera, como quem diz que esta era a última oportunidade, decide-te agora ou nunca. Olhei para a Isabe­linha e ela implorava-me com os olhos que fosse eu a pôr fim ao suplício. E então, Deus me ajude e me perdoe, disse ao capitão que sim.

Um nangala aproximou-se com uma pistola, tirou as balas excepto uma, e entregou-ma. Fiquei a olhar para a arma, em­basbacado, pensando que aquilo não estava a acontecer, não podia acontecer, sentia tudo irreal. A Isabelinha, liberta das mãos dos nangalas, aproximou-se, abraçou-me, beijou-me, desprendeu-se e pôs os bracinhos atrás do seu pescoço, retiran­do o crucifixo que tu lhe tinhas enviado semanas antes de Lisboa, e estendeu-mo. "Isto é para a mãe", disse-me. "Entre-ga-lhe o crucifixo." Voltou-se de costas, baixou a cabeça e ficou a aguardar. Não queria acreditar na coragem dela. Então, como num sonho, ergui a pistola, apontei para a nuca, fechei os olhos e fiz aquilo que nunca imaginei que alguém obrigasse um ser humano a fazer. Tinha os olhos embaciados de lágrimas e via tudo turvo. Assustei-me com a detonação e dobrei-me sobre mim próprio, de joelhos, quando o acto ficou consu­mado. Tinha feito o impensável, o indizível, tinha cometido o maior dos pecados, a maior das vergonhas, submetera-me à maldição eterna.

E aqui está explicado, minha querida Esmeralda, o meu silêncio ao longo de todos estes anos. Desde esse dia maldito que nem por um momento o fantasma da Isabelinha e o meu acto infame deixam de estar presentes no meu espírito. O tor­mento tem sido constante e implacável. As suas derradeiras palavras perseguem-me em sonhos ou acordado, pedindo-me, com a espantosa serenidade que mostrou naquele instante de supremo horror e trevas, que te entregasse o crucifixo que levava ao pescoço. Esse crucifixo remeto-to agora, cumprindo assim o último desejo da nossa corajosa filha.

O que se passou em Kraras atirou-me irreversivelmente para os braços da resistência. O meu desejo mais ardente era juntar--me aos guerrilheiros e lançar-me numa fúria cega e louca con­tra os nangalas, mas os elementos da resistência disseram-me que tinham melhor uso para a minha raiva e puseram-me em Díli a trabalhar com a rede clandestina. Envolvi-me por isso nos preparativos de acções dos estudantes e no acompanha­mento de jornalistas, como parte do esforço para nos livrarmos dos bapas.

O meu contributo para a libertação do nosso país consti­tuiu, de alguma forma, um esforço para dar um sentido à morte dos nossos filhos, para encontrar uma razão válida que justificasse tamanho sacrifício. Esta noite, em Tacitolo, realiza-se a cerimónia de independência e a minha missão ficará cum­prida. Vivo há dezanove anos com tempo emprestado. Esse tempo esgota-se à meia-noite de hoje.

Não sei, minha querida Esmeralda, se alguma vez encontrarás no teu coração espaço para compreenderes ou perdoares o que eu fiz. Não te censuro se não encontrares, porque eu também não encontro. Ainda hoje me interrogo sobre o que aconteceu, sobre as nossas opções perante o destino, sobre o facto de que não passamos de meros peões das circunstâncias, joguetes num tabu­leiro cujas regras não compreendemos nem dominamos.

O fantasma da Isabelinha, o eco das suas derradeiras pala­vras e a imagem da menina a baixar a cabeça para o acto final, tudo isso tem sido uma presença constante no meu espírito nos últimos dezanove anos. Muitas vezes dou comigo a pensar como teriam sido as nossas vidas se as coisas tivessem corrido de maneira diferente, se as circunstâncias tivessem sido outras, se as nossas decisões tivessem ido noutro sentido. E se não tivesse havido invasão indonésia, teríamos vivido felizes em Timor? E se tivéssemos saído de Timor quando se tornou evi­dente que iria haver invasão, teríamos sido felizes na Austrália ou em Portugal? E se não nos tivéssemos separado no Remexio, teríamos os três acabado por ir para Jacarta e sobrevivido juntos? E se o meu pai não tivesse morrido de malária, a minha mãe quereria ir naquela altura a Kraras? E se eu e a Isabelinha nos tivéssemos separado da minha mãe em Bibileu, estaria ainda a nossa filha viva? E se ela estivesse viva, ou tivesse morrido em circunstâncias que não aquelas, será que eu e tu, quando nos reencontrássemos, poderíamos recomeçar tudo? Tantas interrogações, tantas dúvidas, tantos fins diferentes, tantos "ses".

Na verdade, minha querida Esmeralda, "se" é a palavra mais terrível, mais angustiante da condição humana. Tenho plena consciência de que, se as nossas decisões tivessem sido diferentes em algum dos momentos cruciais ou se as circuns­tâncias fossem outras, mesmo que ligeiramente, a história da nossa família ainda poderia ter um final feliz. A realidade, porém, é só uma, as considerações sobre o que aconteceria "se" não passam de uma dolorosa fantasia a que nos entregamos quando queremos fugir dos fantasmas que nos perseguem ao longo da vida por causa das nossas decisões e das circunstân­cias em que foram tomadas.

A minha cabeça diz-me que naquele dia em Kraras não tinha alternativas. Mas bem cá no fundo tenho dúvidas e interrogo--me sobre se a grande vitória dos bapas não terá sido a aniqui­lação mais radical da nossa alma e o estado de escravatura a que nos reduziram durante tanto tempo. Porque, se os nangalas naquele dia me deixaram viver, não foi, sei-o bem, porque alguma vez tenham acreditado que eu era um deles. Pouparam--me para que eu pudesse ser a prova viva da sua total e com­pleta vitória sobre a nossa alma e a nossa vontade. Eu era, feitas as contas, a testemunha da amplitude da sua vitória.

E, quando me perguntam o que me fez enfrentar todos estes horrores, o que me fez combater, o que me fez resistir, o que me fez sobreviver, respondo sempre que não foi a coragem, nunca se colocou a questão da coragem. O que me fez estar vivo e enfrentar os bapas foi uma coisa imensamente mais simples. Foi o medo.

O teu eterno,

Paulino Jesus da Conceição

 

A brisa morna desceu pela montanha e correu docemente pela lagoa de Tacitolo, acariciando a multidão que contempla­va, emocionada, a tocante cerimónia que decorria no centro do recinto. Foi nesse instante que o orador começou a recitar o poema. "Um Minuto de Silêncio", de Francisco Borja da Costa. Um minuto de silêncio em memória dos que tombaram.

 

                    Calai

                     Montes

                     Vales e fontes

                     Regatos e ribeiros

                     Pedras dos caminhos

                     E ervas do chão,

                     Calai

                     Calai

                     Pássaros do ar

                     E ondas do mar

                     Ventos que sopram

                     Nas praias que sobram

                     De terras de ninguém,

                     Calai

                    Calai

                     Canas e bambus

                     Arvores e "ai-rús"

                     Palmeiras e capim

                     Na verdura sem fim

                     Do pequeno Timor,

                     Calai

                     Calai

                     Calai-vos e calemo-nos

                     Por um minuto

                     É tempo de silêncio

                     No silêncio do tempo

                     Ao tempo da vida

                     Dos que perderam a vida

                     Pela Pátria

                     Pela Nação

                     Pelo Povo

                     Pela Nossa

                     Libertação

                     Calai

 

— Um minuto de silêncio...

A voz calou-se, o recinto de Tacitolo mergulhou na escuri­dão, fez-se silêncio e dezenas de pessoas de túnica branca pi­saram a arena, cada uma com uma vela, cada vela por um morto, todas a convergir para o centro em levas sucessivas, em filas de gente e de velas, vaga atrás de vaga atrás de vaga, lado a lado, filas a juntarem-se a filas, as mãos no peito com uma vela em frente, mãos em concha a protegerem as chamas ama­relas da leve brisa que descia pelas montanhas.

As vozes suaves do coro feminino ergueram-se na noite, entoando uma melodia triste, um lamento prolongado por todos os que perderam a vida ao longo de vinte e quatro anos de ocupação indonésia. Nicolau e Isabel Lobato, Greg Sheckleton and bis boys, Roger East, Ma Huno, Konis Santana, David Alex, Lúcio, Fernando Carmo, os duzentos do cais de Díli, os chineses de Maubara e Líquiçá, os quinhentos de Vadaboro, os trezentos de Taipo, a população com mais de três anos do Remexio e Aileu, os bravos e os inocentes do Matebian, os milhares e milhares que morreram de fome, Justino e Isabelinha e as centenas de Kraras, Sebastião Gomes, Afonso Henriques e os trezentos de Santa Cruz, os padres Francisco, Dewanto, Hilário e os duzentos de Suai. Todos e cada um deles, os que conhecemos neste livro, os que alguém conhece e constam de outros livros, e a enorme multidão de anónimos que só os amigos e familiares conhecem mas que também tombaram na girândola infernal em que se transfor­mara a vida em Timor-Leste nos anos turbulentos da ocupação indonésia. Todos eles lembrados naquele momento mágico de Tacitolo, um mar de velas a encher a praça que já fora maldita, um mar de almas a retornar ao mundo dos vivos por uma derradeira vez, para saudar, talvez com um sorriso tímido e comovido, o nascimento da nova nação.

Durante anos, Tacitolo foi um local sinistro. Situado às portas de Díli, foi aqui que os indonésios montaram um dos seus centros de detenção e fuzilamento de resistentes à anexa­ção. Foi aqui que foram executados os homens detidos no cemitério de Santa Cruz. Mas também foi aqui que o papa João Paulo II celebrou missa em 1989, quando os soldados indoné­sios carregaram sobre os estudantes timorenses que ostentavam cartazes de apelo ao sumo pontífice. E era agora aqui, nesta noite quente de 19 de Maio de 2002, à espera do toque da meia-noite e do início do dia 20, que se celebrava a restauração da independência da República Democrática de Timor-Leste.

As crianças apagaram as velas, afugentando com um sopro suave o espírito dos que tombaram, e ajoelharam-se para dei­xar passar os guerrilheiros das Falintil, homens e mulheres, velhos e jovens, todos de camisa preta e calças de ganga, cami­nhando altivamente ao som do hino do seu movimento de resistência, tantas vezes entoado em desafio nos refúgios das montanhas, agora cantado em consagração pelo coro no altar do palco da cerimónia. Os guerrilheiros formaram em duas colunas, cada uma com duas filas serpenteadas, enchendo o recinto de Tacitolo de ponta a ponta, a mão direita pousada no peito sobre o coração, rostos fechados e pesados, alguns a chorar, todos comovidos, todos a lembrar rostos amados que ali não estavam e que num dia triste e doloroso caíram como farrapos pelo caminho.

Barbara Hendricks encheu a noite com a sua voz e os gritos cantados de "Oh Freedom", o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, ergueu o punho e gritou "Viva Timor-Leste!" em por­tuguês, Bill Clinton aplaudiu, Jorge Sampaio, António Guterres e Durão Barroso aplaudiram, Megawati Sukarnoputri, Joaquim Chissano, John Howard, Xanana Gusmão, Taur Matan Ruak, José Ramos Horta e D. Ximenes Belo, Paulino e toda a mul­tidão, mais os fantasmas invocados nesse instante supremo de libertação, todos aplaudiram quando Francisco Guterres, pre­sidente da Assembleia Constituinte de Timor-Leste, anunciou, naquela inesquecível noite em Tacitolo, a restauração da inde­pendência proclamada vinte e sete anos antes na praça do Palácio do Governo.

A gigantesca bandeira negra, rubra e branca da República Democrática de Timor-Leste começou a lenta ascensão no mastro maior, ao ritmo da melodia profunda e grandiosa de "Pátria, Pátria", o hino nacional criado por Borja da Costa e Afonso Araújo.

Pátria, Pátria Timor-Leste, Nossa Nação

A bandeira atingiu o topo do mastro e as derradeiras notas do hino soaram quando era exactamente meia-noite em Díli.

Glória ao povo,

E aos heróis

Da nossa libertação.

Uma apoteótica ovação ergueu-se do recinto da cerimónia e os relâmpagos do fogo-de-artifício iluminaram os primeiros instantes da memorável noite de 20 de Maio, o dia da restau­ração da independência, festejando o nascimento do primeiro país do século XXI.

A brisa temperada que vinha das montanhas soprou por momentos mais forte, agitando com maior intensidade a trémula bandeira orgulhosamente fixada no alto do mastro, e afagando com gentil delicadeza a multidão unida numa só voz e numa só vontade, era a natureza a juntar-se aos homens da terra no seu instante de apoteose, na sua catarse de libertação. De pé na bancada e de olhos cerrados, Paulino encheu os pulmões com o ar puro daquela brisa de liberdade, sentiu no vento os fantasmas dos filhos a afastarem-se para o mar, seria sugestão, seria nostalgia, seria ilusão, seria a dor que agora vai e que mais tarde vem, ou será que já não vem?, seria a ânsia e o desespero de acreditar num perdão, seria a doce fantasia da esperança, seriam saudades de Esmeralda, ou seria simples­mente o orgulho, aquele orgulho de quem tudo perdera, tudo mesmo, e algo enfim recuperara.

A dignidade.

Timor-Leste abandonara finalmente as trevas, mas quão difícil e tormentoso tinha sido o longo caminho para Tacitolo.

 

                                                                                José Rodrigues dos Santos  

 

                      

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