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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ILHA DE VAROMPRATA / H. G. Wells
A ILHA DE VAROMPRATA / H. G. Wells

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O homem com um rosto cicatrizado veio até a mesa e olhou para minha caixa.

“Orquídeas?” Ele indagou.

“Algumas,” eu respondi.

“Cypripediums?” Continuou ele.

“Grande parte”, afirmei.

“Alguma coisa nova? — Acho que não. Visitei essas ilhas a vinte e cinco, ou melhor vinte e sete anos atrás.  Se você achar algo novo por aqui — então, será algo realmente novo! Eu não deixei muito.”

“Eu não sou coletor”, falei.

“Eu era jovem,” ele prosseguiu. “Jesus! Como eu viajava.” Ele parecia estar me medindo. “Eu estive nas Índias Orientais por dois anos e no Brasil por sete. E então fui para Madagascar.”

“Conheço alguns desbravadores pelo nome”, eu disse antecipando a conversa. “Para qual firma você coletou?”

“Dawsons[1]. Gostaria de saber se você já ouviu falar no nome Butcher?”

“Butcher — Butcher?” O nome parecia vagamente estar presente em minha memória; então eu relembrei do caso de Butcher vs. Dawson. “Por quê?”, indaguei, “Ah! Você foi o cara que processou eles a pagarem quatro anos de salário acumulados — quando seu barco naufragou em uma ilha deserta.”

“Exatamente”, disse o homem com a cicatriz, curvando-se. “Caso engraçado, não é? Estava eu fazendo minha pequena fortuna naquela ilha sem muito esforço e eles foram incapazes de enviar ajuda. Costumava me divertir pensando sobre isso enquanto eu estava lá. Fiz cálculos — enormes — em todo o bendito atol em números ornamentais.

“Como isso aconteceu?” Perguntei. “Eu não me lembro bem do caso.”

“Bem — você já ouviu falar nos Vorompatras?”

"Vagamente. Andrews me falou de uma nova espécie que estava estudando há um mês atrás. Pouco antes de eu partir. Eles possuem um osso da coxa do animal, ao que parece, com quase um metro de comprimento. O bicho deve ter sido um monstro!”

“Concordo com você”, disse o homem com uma cicatriz no rosto. “Era realmente um monstro. O pássaro Roca era apenas uma lenda baseada nos Vorompatras. Você sabe quando encontraram esses ossos?”

“Há uns Três ou quatro anos atrás — em 1891 eu acho. Por quê?”

"Por quê? — Porque eu também os encontrei — Jesus! — Faz quase vinte anos. Se Dawsons não tivesse sido mesquinho com relação a esse salário, eles poderiam ter ganho uma fortuna. — Eu não tive culpa se o barco infernal ficasse à deriva."

Ele pausou. “Acho que eles acharam os ossos no mesmo lugar. Uma espécie de pântano acerca de noventa milhas ao norte de Antananarivo. Você tem ideia? Você precisa ir ao longo da costa de barco. Você se lembra?”

"Não me lembro. Imagino que Andrews tenha falado algo sobre um pântano.”

 

 


 

 


“Deve ser o mesmo. Fica na costa leste. De alguma forma há algo na água que impede as coisas de se deteriorarem. Ela cheira à creosoto. Me faz lembrar de Trinidad. Eles acharam mais alguns ovos? Alguns dos ovos que eu achei tinham cerca de meio metro. O pântano corta toda ilha, sabe?  E a maior parte dele é salobre. Bons tempos! Encontrei os ossos por acidente. Fomos procurar ovos, eu e dois camaradas nativos, em uma daquelas canoas de rum e encontramos os ossos ao mesmo tempo. Tínhamos uma barraca e provisões para quatro dias. Montamos ela em um dos lugares mais firmes. Ainda hoje ao pensar nisso lembro daquele cheiro estranho. É um trabalho divertido. Sair pelo lamaçal explorando com ajuda de barras de ferro. Geralmente, os ovos saem quebrados. Eu me pergunto até quando os Vorompatras realmente existiram. Os missionários dizem que os nativos contam lendas sobre quando essas criaturas estavam vivas, mas eu nunca ouvi essas histórias.[2] Certamente os ovos que conseguimos pareciam tão frescos como se tivessem sido postos logo antes de acharmos. Fresquinhos! Ao carregá-los até o barco, um dos nativos deixou o ovo que estava carregando cair em uma rocha. Ele quebrou. Como eu fiquei furioso! O nativo disse que uma centopeia havia o mordido. O ovo era doce como se estivesse fresco, nem ao menos cheirava mal e pensar que sua mãe poderia estar morta a mais de quatrocentos anos. Bom, irei resumir a história. Levamos o dia todo para sair da lama com esses ovos sem quebrá-los, e todos nós estávamos cobertos de lama negra, e naturalmente eu estava zangado. Até onde eu sabia, eles eram os únicos ovos intactos que haviam saído daquela ilha. Depois fui ver os que eles tinham no Museu de História Natural de Londres: todos tinham rachaduras e eram colados como se fossem mosaicos faltando alguns pedaços. Os meus eram perfeitos, e eu pretendia repassá-los quando voltasse. Naturalmente, fiquei irritado com o nativo inútil que me fez perder três horas de trabalho apenas por causa de uma centopeia. Eu bati nele um pouco.

“O homem com a cicatriz tirou de seu bolso um cachimbo. Eu coloquei minha caixa à sua frente. Ele deu um trago distraidamente.”

“Quanto aos outros ovos? Você os levou para casa? Eu não me lembro.”

“Essa é a parte mais estranha da história. Eu tinha os outros três ovos. Perfeitamente frescos. Nós colocamos eles no barco e então eu fui até a tenda para fazer um pouco de café, deixando meus dois ajudantes pagãos logo abaixo na praia—um reclamando da mordida que havia levado e o outro tentando ajudar. Nunca passou pela minha cabeça que os dois idiotas tomariam vantagem da posição em que eu me encontrava para se rebelarem. Suponho que o veneno da centopeia e os meus murros chatearam um deles. Ele era do tipo briguento—e então convenceu o outro.

“Eu me lembro que estava sentado, fumando e aquecendo a água em uma espiriteira que eu costumava levar nessas expedições. Naquela ocasião eu estava admirando o sob o pôr do sol, o pântano. Todo em faixas pretas e vermelhas — uma bela vista. Logo acima, as rochas banhadas em um tom rosa acinzentado, enevoadas até o pico da colina e o céu ao fundo vermelho como uma boca de forno. E a cinquenta metros de mim estavam esses dois abençoados pagãos—bem entendidos do ar de calmaria das coisas—conspirando a partir com o barco me deixando sozinho com somente três dias de mantimentos, uma barraca de lona e nada para beber além de um cantil d’água.   Eu ouvi um tipo de grito atrás de mim e lá estavam eles na tramoia do barco—não era propriamente um barco—talvez a vinte cinco metros da costa. Eu entendi o que estava acontecendo instantaneamente. Minha espingarda estava na tenda e além do mais não tinha munição. Eles sabiam disso. Mas eu tinha um pequeno revolver comigo, comecei a correr até a praia e tirei o revolver do bolso.

“Voltem agora!” gritei, acenando para eles.

“Eles tagarelaram algo para mim e o cara que quebrou um dos ovos zombou. Eu mirei no outro—porque ele não tinham ferimentos e estava com o remo. Errei o tiro. Eles riram. No entanto eu não tinha desistido. Eu sabia que devia ficar calmo e tentei novamente. No terceiro tiro creio que acertei sua cabeça e ele caiu levando consigo o remo. Foi um tiro certeiro para um revolver. Eu acho que a canoa estava a quarenta e cinco metros de distância. Não sei se ele foi realmente atingido ou abismado pelos disparos tivera se afogado. Então comecei a gritar para o outro sujeito voltar, mas ele se deitou na canoa e ignorou-me. Gastei todas as balas do revólver mas nenhuma o acertou.”

“Eu me senti um tremendo idiota, posso lhe dizer. Lá estava eu naquela praia podre e lamacenta, todo o pântano atrás de mim, o mar à minha frente, frio após o pôr do sol e a canoa flutuando em direção ao oceano. Eu digo a você que amaldiçoei Dawsons, Jamrachs, os museus e todo o resto com razão. Eu berrei para que esse paspalho retornasse até que minhas palavras se resumiram em gritos.”

“Não me restava nada mais além de nadar atrás dele e testar minha sorte com os tubarões. Então abri meu canivete e o agarrei entre os dentes, tirei minhas roupas e avancei em direção a canoa. Assim que entrei no mar perdi ela de vista, mas avancei como julguei prudente em linha reta. Desejei que o homem que estava nela fosse muito ruim de navegação, assim a canoa continuaria boiando na mesma direção. Novamente ela emergiu no horizonte bem ao sudoeste. O brilho do pôr-do-sol já havia acabado e a escuridão da noite já se fazia presente. As estrelas já estavam aparecendo no céu profundo. Nadei como um campeão de natação até que minhas pernas e braços começaram a doer.”

“Contudo, só o alcancei quando as estrelas estavam todas postas no céu. À medida que escurecia, comecei a ver todo tipo de coisa brilhante na água—fosforescentes, sabe. Em alguns momentos isso me deixava tonto. Eu dificilmente sabia distinguir as estrelas das coisas fosforescentes ou mesmo se estava nadando com minha cabeça ou com meus calcanhares. Estava muito escuro e eu estava ansioso para ver o que o sujeito estava aprontando. Ele parecia estar dormindo confortavelmente na proa e a popa estava seca. A canoa parecia dançar valsa ao flutuar sobre o mar. Então voltei para a popa e o esperei acordar, me preparando para a luta com o canivete. Porém ele não acordou. Restava eu, sentado na popa da pequena canoa, boiando sobre um mar calmo e fluorescente banhado por estrelas esperando por algum milagre.”

“Depois de muito tempo, chamei-lhe pelo nome, mas ele não respondia. Eu estava muito cansado e então cochilei. Quando o amanhecer chegou, vi que o nativo estava realmente morto como um peso de porta, todo inchado e roxo. Meus três ovos e os ossos estavam no meio da canoa, o barril d’água, um pouco de café e alguns biscoitos estavam embrulhados em um jornal aos pés do defunto, e uma lata de álcool desnaturado embaixo dele. Não havia remo, nem algo semelhante a um, com exceção da lata de álcool. Decidi boiar até ser achado. Fiz uma inspeção em seu corpo, determinei que a causa da morte fora a possível mordida da centopeia desconhecida e o joguei ao mar.”

“Depois tomei um gole d’água, comi alguns biscoitos e olhei ao redor. Eu não enxergava muito longe, então, suponho que o homem tenha afundado. No fim, Madagascar estava fora de vista. Enxerguei uma embarcação indo para o sudoeste — parecia uma escuna, mas seu casco nunca retornou ao horizonte. O sol já estava alto e começava a me incomodar. Jesus! — quase fritou meu cérebro de tão quente. Eu tentei me aliviar mergulhando a cabeça no mar, mas logo voltei minha atenção para o jornal, espichei meu corpo sobre a canoa e estendi as folhas sobre mim. Esses jornais são maravilhosos. Eu nunca havia lido um inteiramente antes, mas é diferente quando você fica entediado e sozinho como eu estava. Suponho que li aquela edição do jornal Cape Argus umas vinte vezes. Devido ao sol forte, o casco da canoa começou a cheirar mal e grandes bolhas apareceram.”

“Fiquei à deriva por dez dias”, disse o homem com a cicatriz. “Parece pouco ao contar, não é?” Todo dia parecia como se fosse o último. Nunca procurei por socorro durante o dia, pois o calor era infernal, restando-me apenas o amanhecer e a noite. Eu não vi nenhuma embarcação nos três primeiros dias e aquelas que eu vi não me avistaram. Por volta da sexta noite, um navio passou a quase 800 metros de mim, com todas as luzes acesas e as janelas abertas, parecendo um grande vagalume. Havia música a bordo. Levantei-me, gritei e berrei, mas nada. No segundo dia, peguei um dos ovos de Vorompatra, furei um buraco na casca e fiquei feliz por descobrir que ele estava bom o suficiente para comer. De certa forma saboroso — o gosto é bem parecido com ovos de pato. Havia uma espécie de mancha circular com cerca de quinze centímetros de um lado da gema com manchas de sangue e uma marca branca que eu achava estranha, mas não entendi o que isso significava na época, e eu não estava inclinado a saber. O ovo durou três dias, com biscoitos e um copo de água. Também mastiguei café — coisas revigorantes. O segundo ovo eu abri por volta do oitavo dia. E me assustou.”

O homem com a cicatriz fez uma pausa. “Sim”, ele disse — “em desenvolvimento.”

“Me atrevo a achar que você ache isso algo inacreditável. Eu também não acreditei no que vi. Lá o ovo estava, imerso naquela lama preta e fria, talvez por mais de trezentos anos. Mas não havia engano. Ali estava — qual o nome? — o embrião, com uma grande cabeça, as costas curvadas, o coração batendo abaixo da garganta e a gema murchando ao passo que o embrião se desenvolvia, cheia de grandes membranas que se espalhavam por toda a casca. Aqui estava eu chocando os ovos do maior de todos os pássaros extintos, em uma pequena canoa no meio do Oceano Índico. Se o velho Dawson soubesse disso! Essa experiência valeria mais que quatro anos de salário. O que você acha?”

“Contudo, tive que comer toda aquela coisa preciosa, cada pedacinho dela antes de ter avistado o arrecife. Algumas das bocadas foram bastante desagradáveis. Deixei o terceiro ovo em paz. Eu o coloquei contra a luz mas a casca estava dura a ponto de eu não ver nada além. E embora eu ache ter ouvido algum sangue pulsar, talvez tenha sido o eco nos meus próprios ouvidos.”

“Então veio o atol. Saindo do nascer do sol, por assim dizer, de repente, bem próximo a mim. A canoa flutuou direto até ele a cerca de 800 metros da costa — não mais, e então a corrente virou, e tive que remar o mais forte que pude com minhas mãos e pedaços do ovo de Vorompatra para chegar até o lugar. Assim, eu cheguei lá. Era apenas um atol comum com cerca de 6,5 quilômetros de extensão, com algumas árvores crescendo, uma pequena nascente e a lagoa cheia de peixes-papagaios. Levei o ovo para a praia e o coloquei em um bom lugar, bem acima das ondas da maré e exposto ao sol, para dar a ele toda a chance que pude, puxei a canoa para a costa e fui explorar o lugar. É estranho como um atol pode ser tão chato. Quando eu era criança, achava que nada poderia ser mais divertido do que as aventuras de Robinson Crusoé, mas esse lugar era tão monótono quanto um livro de sermões. Andei procurando coisas comestíveis e pensando em tudo que podia imaginar; mas eu lhe digo que estava entediado até a morte antes do primeiro dia terminar. Isso mostra a minha sorte — no mesmo dia em que desembarquei o tempo mudou. Uma tempestade passou ao norte e bateu sua asa sobre a ilha, e durante a noite a chuva e o vento uivante nos atingiram. Não precisaria de muita coisa para virar aquela canoa.”

“Eu estava dormindo embaixo da canoa e, felizmente, o ovo estava entre a areia mais alta da praia, e a primeira coisa que me lembro foi o som de cem pedras batendo no barco de uma só vez e uma corrente de água sobre o meu corpo. Eu estava sonhando que estava em Antananarivo, indo até a casa de Intoshi para perguntar a ela o que estava acontecendo, procurando por uma caixa de fósforos que costumava ficar no balcão. Então me lembrei de onde estava. As ondas fosforescentes rolando como se quisessem me comer, e o resto da noite negra como breu. O vento uivava forte. As nuvens pareciam tocar quase em minha cabeça, e a chuva caiu como se o céu estivesse alagado e estivessem jogando as águas para fora do firmamento. Uma grande onda veio em minha direção, como uma serpente raivosa, e eu fugi. Então lembrei da canoa, e corri até ela quando a água abaixou, mas ela se foi. Depois me preocupei com o ovo e fui diretamente até ele. Estava tudo bem e fora do alcance das ondas mais insanas, então me sentei ao lado dele e o abracei como companhia. Jesus! Que noite foi aquela!

“A tempestade terminou pela manhã. Não havia mais uma nuvem no céu quando o amanhecer chegou e ao longo de toda praia jaziam os pequenos pedaços de madeira — o esqueleto desarticulado de minha canoa. No entanto eles me serviram muito bem, tirando vantagem da posição de duas árvores consegui fazer um abrigo com os restos de madeira da canoa. Naquele mesmo dia o ovo chocou.”

“Chocou, meu caro, quando minha cabeça estava apoiada nele e eu estava dormindo. Ouvi uma barulho, senti uma trepidação e acordei, vi o ovo rachado com uma estranha cabecinha marrom olhando para mim. 'Jesus!', exclamei, ‘bem-vindo’ e, com um pouco de dificuldade, ele saiu.”

“A princípio, ele era um camaradinha amigável, do tamanho de uma pequena galinha — muito parecido com a maioria das aves jovens, só que maior. Para começar, ele tinha poucas penas, o restante de sua plumagem era de um marrom brilhoso com uma espécie de marca cinza que caiu logo depois. Mal posso expressar o quanto fiquei satisfeito em vê-lo. Eu lhe digo que Robinson Crusoé não aproveitou sua solidão. Mas aqui estava uma companhia interessante. Ele olhou para mim e piscou os olhos como uma galinha, deu um gorjeio e começou a bicar ao mesmo tempo, como se ser chocado trezentos anos mais tarde não fosse nada demais. 'Fico feliz em vê-lo, Man Friday!', eu disse. Naturalmente decidi que se o ovo chocasse, o filhote se chamaria Man Friday. Fiquei um pouco ansioso com sua alimentação, então o ofereci a ele um pedaço de peixe-papagaio cru. Ele pegou e abriu o bico para mais. Fiquei feliz com isso, além do mais, nas circunstâncias, se ele tivesse sido exigente, eu deveria tê-lo comido.”

"Você ficaria surpreso de como o filhote de Vorompatra era um pássaro interessante. Ele me seguiu desde o começo. Ficava ao meu lado assistindo enquanto pescava na lagoa e compartilhava tudo o que pegava. Ele também era sensível. Havia uma espécie de pepinos verdes bem nojentos que geralmente chegavam até a praia e ele experimentou um deles. Isso o entristeceu. Ele nunca mais olhou para nenhum deles novamente”

“Ele cresceu muito rápido. Eu nunca fui um homem social, seu jeito amigável me servia muito bem. Por aproximadamente dois anos nós fomos felizes naquela ilha. Eu não tinha problemas de trabalho, pois eu pensava que meus salários estavam se acumulando com o meu empregador. Víamos uma ou outra embarcação, mas nenhuma chegava minimamente perto da ilha. Também me diverti decorando a ilha com desenhos trabalhados em ouriços-do-mar e conchas extravagantes de vários tipos. Escrevi ILHA DO VOROMPATRA em quase todo o lugar, em letras grandes, como aqueles letreiros de arbustos que você vê nos gramados de alguns clubes. Eu costumava ficar observando aquele abençoado pássaro andando em volta, crescendo e crescendo. Cheguei a pensar que se algum dia saíssemos de lá, eu poderia ganhar a vida exibindo-o. Depois de sua primeira troca de penas, ele começou a ficar bonito, com uma crista, uma pompa azulada e muitas penas verdes atrás dele. E então eu costumava pensar se Dawsons tinha o direito de reivindicá-lo ou não. Nas tempestades e na estação chuvosa nos deitávamos sob o abrigo que eu construíra da velha canoa, e eu costumava contar mentiras sobre meus velhos amigos. Tínhamos um tipo de idílio, posso dizer. Se eu tivesse um pouco de tabaco, teria sido simplesmente o paraíso.”

“Foi no final do segundo ano que nosso pequeno paraíso deu errado. Friday tinha cerca de quatro metros de altura, com uma cabeça grande e larga como a ponta de uma picareta e dois enormes olhos castanhos com bordas amarelas como os olhos de um homem — não fora da vista um do outro como os de uma galinha. A plumagem dele era bonita — nenhum pouco parecida com o estilo de luto da avestruz — mais semelhante a um Casuar. Então ele começou a bater sua crista em mim e a se exibir, mostrando sinais de um temperamento desagradável.”

“Chegou um momento em que minha pescaria estava sendo bastante azarada e ele começou a me cutucar de uma maneira estranha e meditativa. Eu pensei que ele poderia ter se irritado ao comer aqueles pepinos do mar ou algo assim, mas era realmente apenas descontentamento da parte dele. Eu também estava com fome e, quando finalmente agarrei um peixe, o quis para mim. Os ânimos de ambos estavam curtos naquela manhã. Ele deu uma bicada no peixe e o agarrou, e eu lhe dei uma pancada na cabeça para fazê-lo soltar. E com isso ele revidou. Jesus!”

"Ele fez isso no meu rosto." O homem apontou para sua cicatriz. “Então ele me chutou. Era como um cavalo. Levantei-me e, vendo que ele não havia terminado, virei a todo vapor com os braços dobrados sobre o meu rosto. Mas ele correu com aquelas pernas desajeitadas mais rápidas que de um cavalo, e continuou aterrissando em mim com pontapés e cravando seu bico na parte de trás da minha cabeça. Fui para a lagoa e submergi até o pescoço. Ele parou diante da água, porque odiava molhar os pés e começou a fazer um barulho estranho, algo parecido com o de um pavão, apenas um pouco mais rouco. Então ele começou a andar de um lado para o outro. Admito que me senti pequeno ao ver esse fóssil abençoado dominando a área. Minha cabeça e rosto estavam todos sangrando e — bem, meu corpo parecia uma geleia de hematomas.”

“Decidi nadar pela lagoa e deixá-lo em paz por um tempo, até o caso acabar. Eu subi na palmeira mais alta e fiquei sentado pensando em tudo. Acho que nunca me senti tão magoado na minha vida. Eu era mais que um irmão para ele e fui pago com tamanha ingratidão. Eu o choquei. Eduquei. Um pássaro grande, desajeitado e antiquado! E eu um ser humano — herdeiro das eras e tudo mais.”

"Pensei que depois de um tempo ele começaria a ver as coisas sob uma nova perspectiva e sentiria um pouco pelo seu comportamento. Imaginei que, se eu fosse pegar alguns pedacinhos de peixe e levasse até ele de maneira casual, ele poderia fazer a coisa mais sensata. Levei algum tempo para aprender o quão impiedoso e briguento um pássaro extinto pode ser. Maldade pura!"

"Não te conto todas as artimanhas que tentei fazer para que aquele pássaro voltasse ao normal. Eu simplesmente não posso. Minhas bochechas ficam vermelhas de vergonha, mesmo agora ao pensar nos desprezos e desfeitas que recebi dessa ave. Eu tentei violência. Joguei pedaços de coral nele a uma distância segura, mas ele apenas os engolia. Joguei meu canivete aberto nele e quase o perdi, embora fosse grande demais para ele engolir. Tentei matá-lo de fome e parei de pescar, mas ele começou a andar pela praia em águas baixas a procura de vermes, e se sustentou disso. Passei metade do tempo dentro da lagoa e o restante encima das palmeiras. Uma deles não era alta o suficiente, e quando ele me viu, fez a festa com as panturrilhas das minhas pernas. Ficou insuportável. Não sei se você já tentou dormir em uma palmeira. Isso me deu os pesadelos mais horríveis. Pense na humilhação! Ali estava esse animal quase extinto vagando sobre minha ilha como um duque mal-humorado, e eu não tinha permissão para descansar as solas dos meus pés. Eu costumava chorar de cansaço e irritação. Disse a ele diretamente que não pretendia ser perseguido por uma ilha deserta por qualquer anacronismo maldito. Também falei a ele para ir e bicar um navegador de sua idade. Mas ele só batia o bico em mim. Grande pássaro feio — só tinha pernas e pescoço!”

"Eu não gostaria de dizer por quanto tempo tudo isso durou. Eu o mataria mais cedo se soubesse como. No mais, eu finalmente consegui resolver o problema. É uma técnica brasileira. Juntei todas as minhas linhas de pesca com hastes de algas e outras coisas, e fiz uma corda robusta, com cerca de doze metros de comprimento, prendi dois pedaços de rocha de coral na extremidade. Demorei algum tempo para terminar, porque de vez em quando eu tinha que correr para a lagoa ou subir em uma árvore conforme o precioso me ordenava. Girei rapidamente a corda e depois a soltei. Na primeira tentativa eu errei, mas na segunda a corda pegou lindamente nas suas pernas e as enrolou repetidamente. Ele desequilibrou-se e foi ao chão. Arrastei-o para dentro da lagoa até a cintura, e assim que ele caiu, eu estava fora da água serrando seu pescoço com meu canivete.” —

"Nem mesmo agora gosto de pensar nisso. Me senti como um assassino enquanto fazia isso, embora minha raiva estivesse fresca contra ele. Eu estava de pé sobre ele e o vi sangrando na areia branca e suas belas pernas e pescoço se contorcendo em sua última agonia — Pah!”

“Com essa tragédia, veio junto a solidão. Bom Jesus! Você não imagina como eu senti falta daquele pássaro. Sentei-me ao lado de seu cadáver e fiquei triste por ele, e tremi ao olhar em volta do recife silencioso e desolado. Lembrei de como era um passarinho alegre quando ele foi chocado e em mil brincadeiras agradáveis que ele feito antes de tudo dar errado. Eu pensei que, se tivesse apenas o machucado, poderia tê-lo ajudado a entender melhor. Se possuísse algum meio para cavar a rocha de coral, eu o enterraria. Sua perda foi sentida exatamente como se ele fosse humano. Como eu não conseguia pensar em comê-lo, coloquei-o na lagoa e os peixinhos o limparam. Então, um dia, um sujeito que passeava em um iate teve a curiosidade de ver se meu atol ainda existia.”

“Ele havia chegado na hora certa, pois eu já estava cansado da desolação, hesitando apenas em que maneira terminar o drama, me afogando no mar ou pulando das palmeiras.”

“Na volta, vendi os ossos a um homem chamado Winslow — um negociante perto do Museu Britânico, e ele disse que os vendeu para o velho Havers. Parece que Havers não entendeu que eles eram muito grandes e só depois da morte dele eles atraíram a atenção. Eles nomearam seu vorompatra de Aepyornis — algo assim?”

“Aepyornis vastus”, eu disse. “É engraçado, um amigo meu mencionou esse mesmo termo. Quando encontraram um vorompatra com uma coxa de um metro de comprimento, acharam que haviam atingido o topo da escala e o chamaram de Aepyornis maximus. Então alguém achou outro osso da coxa com um metro e quarenta, e eles o chamaram de Aepyornis Titan. Então depois que o velho Havers faleceu, o seu Vastus foi encontrado em sua coleção e ele se transformou em Vastissimus.

"Winslow estava me dizendo isso", disse o homem com a cicatriz. “Se eles acharem mais fosseis de Aepyornises, ele acha que algum capricho científico irá explodir um vaso sanguíneo. Isso foi algo estranho a acontecer com um homem; tudo junto — não foi?"

[1] Dawsons é a firma de Dawnson, o dono.

[2] Nenhum europeu é conhecido por ter visto um Vorompatra vivo com exceção duvidosa de MacAndrew que visitou Madagascar em 1745. H. G. W.

O homem com um rosto cicatrizado veio até a mesa e olhou para minha caixa.

“Orquídeas?” Ele indagou.

“Algumas,” eu respondi.

“Cypripediums?” Continuou ele.

“Grande parte”, afirmei.

“Alguma coisa nova? — Acho que não. Visitei essas ilhas a vinte e cinco, ou melhor vinte e sete anos atrás.  Se você achar algo novo por aqui — então, será algo realmente novo! Eu não deixei muito.”

“Eu não sou coletor”, falei.

“Eu era jovem,” ele prosseguiu. “Jesus! Como eu viajava.” Ele parecia estar me medindo. “Eu estive nas Índias Orientais por dois anos e no Brasil por sete. E então fui para Madagascar.”

“Conheço alguns desbravadores pelo nome”, eu disse antecipando a conversa. “Para qual firma você coletou?”

“Dawsons[1]. Gostaria de saber se você já ouviu falar no nome Butcher?”

“Butcher — Butcher?” O nome parecia vagamente estar presente em minha memória; então eu relembrei do caso de Butcher vs. Dawson. “Por quê?”, indaguei, “Ah! Você foi o cara que processou eles a pagarem quatro anos de salário acumulados — quando seu barco naufragou em uma ilha deserta.”

“Exatamente”, disse o homem com a cicatriz, curvando-se. “Caso engraçado, não é? Estava eu fazendo minha pequena fortuna naquela ilha sem muito esforço e eles foram incapazes de enviar ajuda. Costumava me divertir pensando sobre isso enquanto eu estava lá. Fiz cálculos — enormes — em todo o bendito atol em números ornamentais.

“Como isso aconteceu?” Perguntei. “Eu não me lembro bem do caso.”

“Bem — você já ouviu falar nos Vorompatras?”

"Vagamente. Andrews me falou de uma nova espécie que estava estudando há um mês atrás. Pouco antes de eu partir. Eles possuem um osso da coxa do animal, ao que parece, com quase um metro de comprimento. O bicho deve ter sido um monstro!”

“Concordo com você”, disse o homem com uma cicatriz no rosto. “Era realmente um monstro. O pássaro Roca era apenas uma lenda baseada nos Vorompatras. Você sabe quando encontraram esses ossos?”

“Há uns Três ou quatro anos atrás — em 1891 eu acho. Por quê?”

"Por quê? — Porque eu também os encontrei — Jesus! — Faz quase vinte anos. Se Dawsons não tivesse sido mesquinho com relação a esse salário, eles poderiam ter ganho uma fortuna. — Eu não tive culpa se o barco infernal ficasse à deriva."

Ele pausou. “Acho que eles acharam os ossos no mesmo lugar. Uma espécie de pântano acerca de noventa milhas ao norte de Antananarivo. Você tem ideia? Você precisa ir ao longo da costa de barco. Você se lembra?”

"Não me lembro. Imagino que Andrews tenha falado algo sobre um pântano.”

 


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“Deve ser o mesmo. Fica na costa leste. De alguma forma há algo na água que impede as coisas de se deteriorarem. Ela cheira à creosoto. Me faz lembrar de Trinidad. Eles acharam mais alguns ovos? Alguns dos ovos que eu achei tinham cerca de meio metro. O pântano corta toda ilha, sabe?  E a maior parte dele é salobre. Bons tempos! Encontrei os ossos por acidente. Fomos procurar ovos, eu e dois camaradas nativos, em uma daquelas canoas de rum e encontramos os ossos ao mesmo tempo. Tínhamos uma barraca e provisões para quatro dias. Montamos ela em um dos lugares mais firmes. Ainda hoje ao pensar nisso lembro daquele cheiro estranho. É um trabalho divertido. Sair pelo lamaçal explorando com ajuda de barras de ferro. Geralmente, os ovos saem quebrados. Eu me pergunto até quando os Vorompatras realmente existiram. Os missionários dizem que os nativos contam lendas sobre quando essas criaturas estavam vivas, mas eu nunca ouvi essas histórias.[2] Certamente os ovos que conseguimos pareciam tão frescos como se tivessem sido postos logo antes de acharmos. Fresquinhos! Ao carregá-los até o barco, um dos nativos deixou o ovo que estava carregando cair em uma rocha. Ele quebrou. Como eu fiquei furioso! O nativo disse que uma centopeia havia o mordido. O ovo era doce como se estivesse fresco, nem ao menos cheirava mal e pensar que sua mãe poderia estar morta a mais de quatrocentos anos. Bom, irei resumir a história. Levamos o dia todo para sair da lama com esses ovos sem quebrá-los, e todos nós estávamos cobertos de lama negra, e naturalmente eu estava zangado. Até onde eu sabia, eles eram os únicos ovos intactos que haviam saído daquela ilha. Depois fui ver os que eles tinham no Museu de História Natural de Londres: todos tinham rachaduras e eram colados como se fossem mosaicos faltando alguns pedaços. Os meus eram perfeitos, e eu pretendia repassá-los quando voltasse. Naturalmente, fiquei irritado com o nativo inútil que me fez perder três horas de trabalho apenas por causa de uma centopeia. Eu bati nele um pouco.

“O homem com a cicatriz tirou de seu bolso um cachimbo. Eu coloquei minha caixa à sua frente. Ele deu um trago distraidamente.”

“Quanto aos outros ovos? Você os levou para casa? Eu não me lembro.”

“Essa é a parte mais estranha da história. Eu tinha os outros três ovos. Perfeitamente frescos. Nós colocamos eles no barco e então eu fui até a tenda para fazer um pouco de café, deixando meus dois ajudantes pagãos logo abaixo na praia—um reclamando da mordida que havia levado e o outro tentando ajudar. Nunca passou pela minha cabeça que os dois idiotas tomariam vantagem da posição em que eu me encontrava para se rebelarem. Suponho que o veneno da centopeia e os meus murros chatearam um deles. Ele era do tipo briguento—e então convenceu o outro.

“Eu me lembro que estava sentado, fumando e aquecendo a água em uma espiriteira que eu costumava levar nessas expedições. Naquela ocasião eu estava admirando o sob o pôr do sol, o pântano. Todo em faixas pretas e vermelhas — uma bela vista. Logo acima, as rochas banhadas em um tom rosa acinzentado, enevoadas até o pico da colina e o céu ao fundo vermelho como uma boca de forno. E a cinquenta metros de mim estavam esses dois abençoados pagãos—bem entendidos do ar de calmaria das coisas—conspirando a partir com o barco me deixando sozinho com somente três dias de mantimentos, uma barraca de lona e nada para beber além de um cantil d’água.   Eu ouvi um tipo de grito atrás de mim e lá estavam eles na tramoia do barco—não era propriamente um barco—talvez a vinte cinco metros da costa. Eu entendi o que estava acontecendo instantaneamente. Minha espingarda estava na tenda e além do mais não tinha munição. Eles sabiam disso. Mas eu tinha um pequeno revolver comigo, comecei a correr até a praia e tirei o revolver do bolso.

“Voltem agora!” gritei, acenando para eles.

“Eles tagarelaram algo para mim e o cara que quebrou um dos ovos zombou. Eu mirei no outro—porque ele não tinham ferimentos e estava com o remo. Errei o tiro. Eles riram. No entanto eu não tinha desistido. Eu sabia que devia ficar calmo e tentei novamente. No terceiro tiro creio que acertei sua cabeça e ele caiu levando consigo o remo. Foi um tiro certeiro para um revolver. Eu acho que a canoa estava a quarenta e cinco metros de distância. Não sei se ele foi realmente atingido ou abismado pelos disparos tivera se afogado. Então comecei a gritar para o outro sujeito voltar, mas ele se deitou na canoa e ignorou-me. Gastei todas as balas do revólver mas nenhuma o acertou.”

“Eu me senti um tremendo idiota, posso lhe dizer. Lá estava eu naquela praia podre e lamacenta, todo o pântano atrás de mim, o mar à minha frente, frio após o pôr do sol e a canoa flutuando em direção ao oceano. Eu digo a você que amaldiçoei Dawsons, Jamrachs, os museus e todo o resto com razão. Eu berrei para que esse paspalho retornasse até que minhas palavras se resumiram em gritos.”

“Não me restava nada mais além de nadar atrás dele e testar minha sorte com os tubarões. Então abri meu canivete e o agarrei entre os dentes, tirei minhas roupas e avancei em direção a canoa. Assim que entrei no mar perdi ela de vista, mas avancei como julguei prudente em linha reta. Desejei que o homem que estava nela fosse muito ruim de navegação, assim a canoa continuaria boiando na mesma direção. Novamente ela emergiu no horizonte bem ao sudoeste. O brilho do pôr-do-sol já havia acabado e a escuridão da noite já se fazia presente. As estrelas já estavam aparecendo no céu profundo. Nadei como um campeão de natação até que minhas pernas e braços começaram a doer.”

“Contudo, só o alcancei quando as estrelas estavam todas postas no céu. À medida que escurecia, comecei a ver todo tipo de coisa brilhante na água—fosforescentes, sabe. Em alguns momentos isso me deixava tonto. Eu dificilmente sabia distinguir as estrelas das coisas fosforescentes ou mesmo se estava nadando com minha cabeça ou com meus calcanhares. Estava muito escuro e eu estava ansioso para ver o que o sujeito estava aprontando. Ele parecia estar dormindo confortavelmente na proa e a popa estava seca. A canoa parecia dançar valsa ao flutuar sobre o mar. Então voltei para a popa e o esperei acordar, me preparando para a luta com o canivete. Porém ele não acordou. Restava eu, sentado na popa da pequena canoa, boiando sobre um mar calmo e fluorescente banhado por estrelas esperando por algum milagre.”

“Depois de muito tempo, chamei-lhe pelo nome, mas ele não respondia. Eu estava muito cansado e então cochilei. Quando o amanhecer chegou, vi que o nativo estava realmente morto como um peso de porta, todo inchado e roxo. Meus três ovos e os ossos estavam no meio da canoa, o barril d’água, um pouco de café e alguns biscoitos estavam embrulhados em um jornal aos pés do defunto, e uma lata de álcool desnaturado embaixo dele. Não havia remo, nem algo semelhante a um, com exceção da lata de álcool. Decidi boiar até ser achado. Fiz uma inspeção em seu corpo, determinei que a causa da morte fora a possível mordida da centopeia desconhecida e o joguei ao mar.”

“Depois tomei um gole d’água, comi alguns biscoitos e olhei ao redor. Eu não enxergava muito longe, então, suponho que o homem tenha afundado. No fim, Madagascar estava fora de vista. Enxerguei uma embarcação indo para o sudoeste — parecia uma escuna, mas seu casco nunca retornou ao horizonte. O sol já estava alto e começava a me incomodar. Jesus! — quase fritou meu cérebro de tão quente. Eu tentei me aliviar mergulhando a cabeça no mar, mas logo voltei minha atenção para o jornal, espichei meu corpo sobre a canoa e estendi as folhas sobre mim. Esses jornais são maravilhosos. Eu nunca havia lido um inteiramente antes, mas é diferente quando você fica entediado e sozinho como eu estava. Suponho que li aquela edição do jornal Cape Argus umas vinte vezes. Devido ao sol forte, o casco da canoa começou a cheirar mal e grandes bolhas apareceram.”

“Fiquei à deriva por dez dias”, disse o homem com a cicatriz. “Parece pouco ao contar, não é?” Todo dia parecia como se fosse o último. Nunca procurei por socorro durante o dia, pois o calor era infernal, restando-me apenas o amanhecer e a noite. Eu não vi nenhuma embarcação nos três primeiros dias e aquelas que eu vi não me avistaram. Por volta da sexta noite, um navio passou a quase 800 metros de mim, com todas as luzes acesas e as janelas abertas, parecendo um grande vagalume. Havia música a bordo. Levantei-me, gritei e berrei, mas nada. No segundo dia, peguei um dos ovos de Vorompatra, furei um buraco na casca e fiquei feliz por descobrir que ele estava bom o suficiente para comer. De certa forma saboroso — o gosto é bem parecido com ovos de pato. Havia uma espécie de mancha circular com cerca de quinze centímetros de um lado da gema com manchas de sangue e uma marca branca que eu achava estranha, mas não entendi o que isso significava na época, e eu não estava inclinado a saber. O ovo durou três dias, com biscoitos e um copo de água. Também mastiguei café — coisas revigorantes. O segundo ovo eu abri por volta do oitavo dia. E me assustou.”

O homem com a cicatriz fez uma pausa. “Sim”, ele disse — “em desenvolvimento.”

“Me atrevo a achar que você ache isso algo inacreditável. Eu também não acreditei no que vi. Lá o ovo estava, imerso naquela lama preta e fria, talvez por mais de trezentos anos. Mas não havia engano. Ali estava — qual o nome? — o embrião, com uma grande cabeça, as costas curvadas, o coração batendo abaixo da garganta e a gema murchando ao passo que o embrião se desenvolvia, cheia de grandes membranas que se espalhavam por toda a casca. Aqui estava eu chocando os ovos do maior de todos os pássaros extintos, em uma pequena canoa no meio do Oceano Índico. Se o velho Dawson soubesse disso! Essa experiência valeria mais que quatro anos de salário. O que você acha?”

“Contudo, tive que comer toda aquela coisa preciosa, cada pedacinho dela antes de ter avistado o arrecife. Algumas das bocadas foram bastante desagradáveis. Deixei o terceiro ovo em paz. Eu o coloquei contra a luz mas a casca estava dura a ponto de eu não ver nada além. E embora eu ache ter ouvido algum sangue pulsar, talvez tenha sido o eco nos meus próprios ouvidos.”

“Então veio o atol. Saindo do nascer do sol, por assim dizer, de repente, bem próximo a mim. A canoa flutuou direto até ele a cerca de 800 metros da costa — não mais, e então a corrente virou, e tive que remar o mais forte que pude com minhas mãos e pedaços do ovo de Vorompatra para chegar até o lugar. Assim, eu cheguei lá. Era apenas um atol comum com cerca de 6,5 quilômetros de extensão, com algumas árvores crescendo, uma pequena nascente e a lagoa cheia de peixes-papagaios. Levei o ovo para a praia e o coloquei em um bom lugar, bem acima das ondas da maré e exposto ao sol, para dar a ele toda a chance que pude, puxei a canoa para a costa e fui explorar o lugar. É estranho como um atol pode ser tão chato. Quando eu era criança, achava que nada poderia ser mais divertido do que as aventuras de Robinson Crusoé, mas esse lugar era tão monótono quanto um livro de sermões. Andei procurando coisas comestíveis e pensando em tudo que podia imaginar; mas eu lhe digo que estava entediado até a morte antes do primeiro dia terminar. Isso mostra a minha sorte — no mesmo dia em que desembarquei o tempo mudou. Uma tempestade passou ao norte e bateu sua asa sobre a ilha, e durante a noite a chuva e o vento uivante nos atingiram. Não precisaria de muita coisa para virar aquela canoa.”

“Eu estava dormindo embaixo da canoa e, felizmente, o ovo estava entre a areia mais alta da praia, e a primeira coisa que me lembro foi o som de cem pedras batendo no barco de uma só vez e uma corrente de água sobre o meu corpo. Eu estava sonhando que estava em Antananarivo, indo até a casa de Intoshi para perguntar a ela o que estava acontecendo, procurando por uma caixa de fósforos que costumava ficar no balcão. Então me lembrei de onde estava. As ondas fosforescentes rolando como se quisessem me comer, e o resto da noite negra como breu. O vento uivava forte. As nuvens pareciam tocar quase em minha cabeça, e a chuva caiu como se o céu estivesse alagado e estivessem jogando as águas para fora do firmamento. Uma grande onda veio em minha direção, como uma serpente raivosa, e eu fugi. Então lembrei da canoa, e corri até ela quando a água abaixou, mas ela se foi. Depois me preocupei com o ovo e fui diretamente até ele. Estava tudo bem e fora do alcance das ondas mais insanas, então me sentei ao lado dele e o abracei como companhia. Jesus! Que noite foi aquela!

“A tempestade terminou pela manhã. Não havia mais uma nuvem no céu quando o amanhecer chegou e ao longo de toda praia jaziam os pequenos pedaços de madeira — o esqueleto desarticulado de minha canoa. No entanto eles me serviram muito bem, tirando vantagem da posição de duas árvores consegui fazer um abrigo com os restos de madeira da canoa. Naquele mesmo dia o ovo chocou.”

“Chocou, meu caro, quando minha cabeça estava apoiada nele e eu estava dormindo. Ouvi uma barulho, senti uma trepidação e acordei, vi o ovo rachado com uma estranha cabecinha marrom olhando para mim. 'Jesus!', exclamei, ‘bem-vindo’ e, com um pouco de dificuldade, ele saiu.”

“A princípio, ele era um camaradinha amigável, do tamanho de uma pequena galinha — muito parecido com a maioria das aves jovens, só que maior. Para começar, ele tinha poucas penas, o restante de sua plumagem era de um marrom brilhoso com uma espécie de marca cinza que caiu logo depois. Mal posso expressar o quanto fiquei satisfeito em vê-lo. Eu lhe digo que Robinson Crusoé não aproveitou sua solidão. Mas aqui estava uma companhia interessante. Ele olhou para mim e piscou os olhos como uma galinha, deu um gorjeio e começou a bicar ao mesmo tempo, como se ser chocado trezentos anos mais tarde não fosse nada demais. 'Fico feliz em vê-lo, Man Friday!', eu disse. Naturalmente decidi que se o ovo chocasse, o filhote se chamaria Man Friday. Fiquei um pouco ansioso com sua alimentação, então o ofereci a ele um pedaço de peixe-papagaio cru. Ele pegou e abriu o bico para mais. Fiquei feliz com isso, além do mais, nas circunstâncias, se ele tivesse sido exigente, eu deveria tê-lo comido.”

"Você ficaria surpreso de como o filhote de Vorompatra era um pássaro interessante. Ele me seguiu desde o começo. Ficava ao meu lado assistindo enquanto pescava na lagoa e compartilhava tudo o que pegava. Ele também era sensível. Havia uma espécie de pepinos verdes bem nojentos que geralmente chegavam até a praia e ele experimentou um deles. Isso o entristeceu. Ele nunca mais olhou para nenhum deles novamente”

“Ele cresceu muito rápido. Eu nunca fui um homem social, seu jeito amigável me servia muito bem. Por aproximadamente dois anos nós fomos felizes naquela ilha. Eu não tinha problemas de trabalho, pois eu pensava que meus salários estavam se acumulando com o meu empregador. Víamos uma ou outra embarcação, mas nenhuma chegava minimamente perto da ilha. Também me diverti decorando a ilha com desenhos trabalhados em ouriços-do-mar e conchas extravagantes de vários tipos. Escrevi ILHA DO VOROMPATRA em quase todo o lugar, em letras grandes, como aqueles letreiros de arbustos que você vê nos gramados de alguns clubes. Eu costumava ficar observando aquele abençoado pássaro andando em volta, crescendo e crescendo. Cheguei a pensar que se algum dia saíssemos de lá, eu poderia ganhar a vida exibindo-o. Depois de sua primeira troca de penas, ele começou a ficar bonito, com uma crista, uma pompa azulada e muitas penas verdes atrás dele. E então eu costumava pensar se Dawsons tinha o direito de reivindicá-lo ou não. Nas tempestades e na estação chuvosa nos deitávamos sob o abrigo que eu construíra da velha canoa, e eu costumava contar mentiras sobre meus velhos amigos. Tínhamos um tipo de idílio, posso dizer. Se eu tivesse um pouco de tabaco, teria sido simplesmente o paraíso.”

“Foi no final do segundo ano que nosso pequeno paraíso deu errado. Friday tinha cerca de quatro metros de altura, com uma cabeça grande e larga como a ponta de uma picareta e dois enormes olhos castanhos com bordas amarelas como os olhos de um homem — não fora da vista um do outro como os de uma galinha. A plumagem dele era bonita — nenhum pouco parecida com o estilo de luto da avestruz — mais semelhante a um Casuar. Então ele começou a bater sua crista em mim e a se exibir, mostrando sinais de um temperamento desagradável.”

“Chegou um momento em que minha pescaria estava sendo bastante azarada e ele começou a me cutucar de uma maneira estranha e meditativa. Eu pensei que ele poderia ter se irritado ao comer aqueles pepinos do mar ou algo assim, mas era realmente apenas descontentamento da parte dele. Eu também estava com fome e, quando finalmente agarrei um peixe, o quis para mim. Os ânimos de ambos estavam curtos naquela manhã. Ele deu uma bicada no peixe e o agarrou, e eu lhe dei uma pancada na cabeça para fazê-lo soltar. E com isso ele revidou. Jesus!”

"Ele fez isso no meu rosto." O homem apontou para sua cicatriz. “Então ele me chutou. Era como um cavalo. Levantei-me e, vendo que ele não havia terminado, virei a todo vapor com os braços dobrados sobre o meu rosto. Mas ele correu com aquelas pernas desajeitadas mais rápidas que de um cavalo, e continuou aterrissando em mim com pontapés e cravando seu bico na parte de trás da minha cabeça. Fui para a lagoa e submergi até o pescoço. Ele parou diante da água, porque odiava molhar os pés e começou a fazer um barulho estranho, algo parecido com o de um pavão, apenas um pouco mais rouco. Então ele começou a andar de um lado para o outro. Admito que me senti pequeno ao ver esse fóssil abençoado dominando a área. Minha cabeça e rosto estavam todos sangrando e — bem, meu corpo parecia uma geleia de hematomas.”

“Decidi nadar pela lagoa e deixá-lo em paz por um tempo, até o caso acabar. Eu subi na palmeira mais alta e fiquei sentado pensando em tudo. Acho que nunca me senti tão magoado na minha vida. Eu era mais que um irmão para ele e fui pago com tamanha ingratidão. Eu o choquei. Eduquei. Um pássaro grande, desajeitado e antiquado! E eu um ser humano — herdeiro das eras e tudo mais.”

"Pensei que depois de um tempo ele começaria a ver as coisas sob uma nova perspectiva e sentiria um pouco pelo seu comportamento. Imaginei que, se eu fosse pegar alguns pedacinhos de peixe e levasse até ele de maneira casual, ele poderia fazer a coisa mais sensata. Levei algum tempo para aprender o quão impiedoso e briguento um pássaro extinto pode ser. Maldade pura!"

"Não te conto todas as artimanhas que tentei fazer para que aquele pássaro voltasse ao normal. Eu simplesmente não posso. Minhas bochechas ficam vermelhas de vergonha, mesmo agora ao pensar nos desprezos e desfeitas que recebi dessa ave. Eu tentei violência. Joguei pedaços de coral nele a uma distância segura, mas ele apenas os engolia. Joguei meu canivete aberto nele e quase o perdi, embora fosse grande demais para ele engolir. Tentei matá-lo de fome e parei de pescar, mas ele começou a andar pela praia em águas baixas a procura de vermes, e se sustentou disso. Passei metade do tempo dentro da lagoa e o restante encima das palmeiras. Uma deles não era alta o suficiente, e quando ele me viu, fez a festa com as panturrilhas das minhas pernas. Ficou insuportável. Não sei se você já tentou dormir em uma palmeira. Isso me deu os pesadelos mais horríveis. Pense na humilhação! Ali estava esse animal quase extinto vagando sobre minha ilha como um duque mal-humorado, e eu não tinha permissão para descansar as solas dos meus pés. Eu costumava chorar de cansaço e irritação. Disse a ele diretamente que não pretendia ser perseguido por uma ilha deserta por qualquer anacronismo maldito. Também falei a ele para ir e bicar um navegador de sua idade. Mas ele só batia o bico em mim. Grande pássaro feio — só tinha pernas e pescoço!”

"Eu não gostaria de dizer por quanto tempo tudo isso durou. Eu o mataria mais cedo se soubesse como. No mais, eu finalmente consegui resolver o problema. É uma técnica brasileira. Juntei todas as minhas linhas de pesca com hastes de algas e outras coisas, e fiz uma corda robusta, com cerca de doze metros de comprimento, prendi dois pedaços de rocha de coral na extremidade. Demorei algum tempo para terminar, porque de vez em quando eu tinha que correr para a lagoa ou subir em uma árvore conforme o precioso me ordenava. Girei rapidamente a corda e depois a soltei. Na primeira tentativa eu errei, mas na segunda a corda pegou lindamente nas suas pernas e as enrolou repetidamente. Ele desequilibrou-se e foi ao chão. Arrastei-o para dentro da lagoa até a cintura, e assim que ele caiu, eu estava fora da água serrando seu pescoço com meu canivete.” —

"Nem mesmo agora gosto de pensar nisso. Me senti como um assassino enquanto fazia isso, embora minha raiva estivesse fresca contra ele. Eu estava de pé sobre ele e o vi sangrando na areia branca e suas belas pernas e pescoço se contorcendo em sua última agonia — Pah!”

“Com essa tragédia, veio junto a solidão. Bom Jesus! Você não imagina como eu senti falta daquele pássaro. Sentei-me ao lado de seu cadáver e fiquei triste por ele, e tremi ao olhar em volta do recife silencioso e desolado. Lembrei de como era um passarinho alegre quando ele foi chocado e em mil brincadeiras agradáveis que ele feito antes de tudo dar errado. Eu pensei que, se tivesse apenas o machucado, poderia tê-lo ajudado a entender melhor. Se possuísse algum meio para cavar a rocha de coral, eu o enterraria. Sua perda foi sentida exatamente como se ele fosse humano. Como eu não conseguia pensar em comê-lo, coloquei-o na lagoa e os peixinhos o limparam. Então, um dia, um sujeito que passeava em um iate teve a curiosidade de ver se meu atol ainda existia.”

“Ele havia chegado na hora certa, pois eu já estava cansado da desolação, hesitando apenas em que maneira terminar o drama, me afogando no mar ou pulando das palmeiras.”

“Na volta, vendi os ossos a um homem chamado Winslow — um negociante perto do Museu Britânico, e ele disse que os vendeu para o velho Havers. Parece que Havers não entendeu que eles eram muito grandes e só depois da morte dele eles atraíram a atenção. Eles nomearam seu vorompatra de Aepyornis — algo assim?”

“Aepyornis vastus”, eu disse. “É engraçado, um amigo meu mencionou esse mesmo termo. Quando encontraram um vorompatra com uma coxa de um metro de comprimento, acharam que haviam atingido o topo da escala e o chamaram de Aepyornis maximus. Então alguém achou outro osso da coxa com um metro e quarenta, e eles o chamaram de Aepyornis Titan. Então depois que o velho Havers faleceu, o seu Vastus foi encontrado em sua coleção e ele se transformou em Vastissimus.

"Winslow estava me dizendo isso", disse o homem com a cicatriz. “Se eles acharem mais fosseis de Aepyornises, ele acha que algum capricho científico irá explodir um vaso sanguíneo. Isso foi algo estranho a acontecer com um homem; tudo junto — não foi?"

[1] Dawsons é a firma de Dawnson, o dono.

[2] Nenhum europeu é conhecido por ter visto um Vorompatra vivo com exceção duvidosa de MacAndrew que visitou Madagascar em 1745. H. G. W.

O homem com um rosto cicatrizado veio até a mesa e olhou para minha caixa.

“Orquídeas?” Ele indagou.

“Algumas,” eu respondi.

“Cypripediums?” Continuou ele.

“Grande parte”, afirmei.

“Alguma coisa nova? — Acho que não. Visitei essas ilhas a vinte e cinco, ou melhor vinte e sete anos atrás.  Se você achar algo novo por aqui — então, será algo realmente novo! Eu não deixei muito.”

“Eu não sou coletor”, falei.

“Eu era jovem,” ele prosseguiu. “Jesus! Como eu viajava.” Ele parecia estar me medindo. “Eu estive nas Índias Orientais por dois anos e no Brasil por sete. E então fui para Madagascar.”

“Conheço alguns desbravadores pelo nome”, eu disse antecipando a conversa. “Para qual firma você coletou?”

“Dawsons[1]. Gostaria de saber se você já ouviu falar no nome Butcher?”

“Butcher — Butcher?” O nome parecia vagamente estar presente em minha memória; então eu relembrei do caso de Butcher vs. Dawson. “Por quê?”, indaguei, “Ah! Você foi o cara que processou eles a pagarem quatro anos de salário acumulados — quando seu barco naufragou em uma ilha deserta.”

“Exatamente”, disse o homem com a cicatriz, curvando-se. “Caso engraçado, não é? Estava eu fazendo minha pequena fortuna naquela ilha sem muito esforço e eles foram incapazes de enviar ajuda. Costumava me divertir pensando sobre isso enquanto eu estava lá. Fiz cálculos — enormes — em todo o bendito atol em números ornamentais.

“Como isso aconteceu?” Perguntei. “Eu não me lembro bem do caso.”

“Bem — você já ouviu falar nos Vorompatras?”

"Vagamente. Andrews me falou de uma nova espécie que estava estudando há um mês atrás. Pouco antes de eu partir. Eles possuem um osso da coxa do animal, ao que parece, com quase um metro de comprimento. O bicho deve ter sido um monstro!”

“Concordo com você”, disse o homem com uma cicatriz no rosto. “Era realmente um monstro. O pássaro Roca era apenas uma lenda baseada nos Vorompatras. Você sabe quando encontraram esses ossos?”

“Há uns Três ou quatro anos atrás — em 1891 eu acho. Por quê?”

"Por quê? — Porque eu também os encontrei — Jesus! — Faz quase vinte anos. Se Dawsons não tivesse sido mesquinho com relação a esse salário, eles poderiam ter ganho uma fortuna. — Eu não tive culpa se o barco infernal ficasse à deriva."

Ele pausou. “Acho que eles acharam os ossos no mesmo lugar. Uma espécie de pântano acerca de noventa milhas ao norte de Antananarivo. Você tem ideia? Você precisa ir ao longo da costa de barco. Você se lembra?”

"Não me lembro. Imagino que Andrews tenha falado algo sobre um pântano.”

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_ILHA_DE_VAROMPRATA.jpg

 


“Deve ser o mesmo. Fica na costa leste. De alguma forma há algo na água que impede as coisas de se deteriorarem. Ela cheira à creosoto. Me faz lembrar de Trinidad. Eles acharam mais alguns ovos? Alguns dos ovos que eu achei tinham cerca de meio metro. O pântano corta toda ilha, sabe?  E a maior parte dele é salobre. Bons tempos! Encontrei os ossos por acidente. Fomos procurar ovos, eu e dois camaradas nativos, em uma daquelas canoas de rum e encontramos os ossos ao mesmo tempo. Tínhamos uma barraca e provisões para quatro dias. Montamos ela em um dos lugares mais firmes. Ainda hoje ao pensar nisso lembro daquele cheiro estranho. É um trabalho divertido. Sair pelo lamaçal explorando com ajuda de barras de ferro. Geralmente, os ovos saem quebrados. Eu me pergunto até quando os Vorompatras realmente existiram. Os missionários dizem que os nativos contam lendas sobre quando essas criaturas estavam vivas, mas eu nunca ouvi essas histórias.[2] Certamente os ovos que conseguimos pareciam tão frescos como se tivessem sido postos logo antes de acharmos. Fresquinhos! Ao carregá-los até o barco, um dos nativos deixou o ovo que estava carregando cair em uma rocha. Ele quebrou. Como eu fiquei furioso! O nativo disse que uma centopeia havia o mordido. O ovo era doce como se estivesse fresco, nem ao menos cheirava mal e pensar que sua mãe poderia estar morta a mais de quatrocentos anos. Bom, irei resumir a história. Levamos o dia todo para sair da lama com esses ovos sem quebrá-los, e todos nós estávamos cobertos de lama negra, e naturalmente eu estava zangado. Até onde eu sabia, eles eram os únicos ovos intactos que haviam saído daquela ilha. Depois fui ver os que eles tinham no Museu de História Natural de Londres: todos tinham rachaduras e eram colados como se fossem mosaicos faltando alguns pedaços. Os meus eram perfeitos, e eu pretendia repassá-los quando voltasse. Naturalmente, fiquei irritado com o nativo inútil que me fez perder três horas de trabalho apenas por causa de uma centopeia. Eu bati nele um pouco.

“O homem com a cicatriz tirou de seu bolso um cachimbo. Eu coloquei minha caixa à sua frente. Ele deu um trago distraidamente.”

“Quanto aos outros ovos? Você os levou para casa? Eu não me lembro.”

“Essa é a parte mais estranha da história. Eu tinha os outros três ovos. Perfeitamente frescos. Nós colocamos eles no barco e então eu fui até a tenda para fazer um pouco de café, deixando meus dois ajudantes pagãos logo abaixo na praia—um reclamando da mordida que havia levado e o outro tentando ajudar. Nunca passou pela minha cabeça que os dois idiotas tomariam vantagem da posição em que eu me encontrava para se rebelarem. Suponho que o veneno da centopeia e os meus murros chatearam um deles. Ele era do tipo briguento—e então convenceu o outro.

“Eu me lembro que estava sentado, fumando e aquecendo a água em uma espiriteira que eu costumava levar nessas expedições. Naquela ocasião eu estava admirando o sob o pôr do sol, o pântano. Todo em faixas pretas e vermelhas — uma bela vista. Logo acima, as rochas banhadas em um tom rosa acinzentado, enevoadas até o pico da colina e o céu ao fundo vermelho como uma boca de forno. E a cinquenta metros de mim estavam esses dois abençoados pagãos—bem entendidos do ar de calmaria das coisas—conspirando a partir com o barco me deixando sozinho com somente três dias de mantimentos, uma barraca de lona e nada para beber além de um cantil d’água.   Eu ouvi um tipo de grito atrás de mim e lá estavam eles na tramoia do barco—não era propriamente um barco—talvez a vinte cinco metros da costa. Eu entendi o que estava acontecendo instantaneamente. Minha espingarda estava na tenda e além do mais não tinha munição. Eles sabiam disso. Mas eu tinha um pequeno revolver comigo, comecei a correr até a praia e tirei o revolver do bolso.

“Voltem agora!” gritei, acenando para eles.

“Eles tagarelaram algo para mim e o cara que quebrou um dos ovos zombou. Eu mirei no outro—porque ele não tinham ferimentos e estava com o remo. Errei o tiro. Eles riram. No entanto eu não tinha desistido. Eu sabia que devia ficar calmo e tentei novamente. No terceiro tiro creio que acertei sua cabeça e ele caiu levando consigo o remo. Foi um tiro certeiro para um revolver. Eu acho que a canoa estava a quarenta e cinco metros de distância. Não sei se ele foi realmente atingido ou abismado pelos disparos tivera se afogado. Então comecei a gritar para o outro sujeito voltar, mas ele se deitou na canoa e ignorou-me. Gastei todas as balas do revólver mas nenhuma o acertou.”

“Eu me senti um tremendo idiota, posso lhe dizer. Lá estava eu naquela praia podre e lamacenta, todo o pântano atrás de mim, o mar à minha frente, frio após o pôr do sol e a canoa flutuando em direção ao oceano. Eu digo a você que amaldiçoei Dawsons, Jamrachs, os museus e todo o resto com razão. Eu berrei para que esse paspalho retornasse até que minhas palavras se resumiram em gritos.”

“Não me restava nada mais além de nadar atrás dele e testar minha sorte com os tubarões. Então abri meu canivete e o agarrei entre os dentes, tirei minhas roupas e avancei em direção a canoa. Assim que entrei no mar perdi ela de vista, mas avancei como julguei prudente em linha reta. Desejei que o homem que estava nela fosse muito ruim de navegação, assim a canoa continuaria boiando na mesma direção. Novamente ela emergiu no horizonte bem ao sudoeste. O brilho do pôr-do-sol já havia acabado e a escuridão da noite já se fazia presente. As estrelas já estavam aparecendo no céu profundo. Nadei como um campeão de natação até que minhas pernas e braços começaram a doer.”

“Contudo, só o alcancei quando as estrelas estavam todas postas no céu. À medida que escurecia, comecei a ver todo tipo de coisa brilhante na água—fosforescentes, sabe. Em alguns momentos isso me deixava tonto. Eu dificilmente sabia distinguir as estrelas das coisas fosforescentes ou mesmo se estava nadando com minha cabeça ou com meus calcanhares. Estava muito escuro e eu estava ansioso para ver o que o sujeito estava aprontando. Ele parecia estar dormindo confortavelmente na proa e a popa estava seca. A canoa parecia dançar valsa ao flutuar sobre o mar. Então voltei para a popa e o esperei acordar, me preparando para a luta com o canivete. Porém ele não acordou. Restava eu, sentado na popa da pequena canoa, boiando sobre um mar calmo e fluorescente banhado por estrelas esperando por algum milagre.”

“Depois de muito tempo, chamei-lhe pelo nome, mas ele não respondia. Eu estava muito cansado e então cochilei. Quando o amanhecer chegou, vi que o nativo estava realmente morto como um peso de porta, todo inchado e roxo. Meus três ovos e os ossos estavam no meio da canoa, o barril d’água, um pouco de café e alguns biscoitos estavam embrulhados em um jornal aos pés do defunto, e uma lata de álcool desnaturado embaixo dele. Não havia remo, nem algo semelhante a um, com exceção da lata de álcool. Decidi boiar até ser achado. Fiz uma inspeção em seu corpo, determinei que a causa da morte fora a possível mordida da centopeia desconhecida e o joguei ao mar.”

“Depois tomei um gole d’água, comi alguns biscoitos e olhei ao redor. Eu não enxergava muito longe, então, suponho que o homem tenha afundado. No fim, Madagascar estava fora de vista. Enxerguei uma embarcação indo para o sudoeste — parecia uma escuna, mas seu casco nunca retornou ao horizonte. O sol já estava alto e começava a me incomodar. Jesus! — quase fritou meu cérebro de tão quente. Eu tentei me aliviar mergulhando a cabeça no mar, mas logo voltei minha atenção para o jornal, espichei meu corpo sobre a canoa e estendi as folhas sobre mim. Esses jornais são maravilhosos. Eu nunca havia lido um inteiramente antes, mas é diferente quando você fica entediado e sozinho como eu estava. Suponho que li aquela edição do jornal Cape Argus umas vinte vezes. Devido ao sol forte, o casco da canoa começou a cheirar mal e grandes bolhas apareceram.”

“Fiquei à deriva por dez dias”, disse o homem com a cicatriz. “Parece pouco ao contar, não é?” Todo dia parecia como se fosse o último. Nunca procurei por socorro durante o dia, pois o calor era infernal, restando-me apenas o amanhecer e a noite. Eu não vi nenhuma embarcação nos três primeiros dias e aquelas que eu vi não me avistaram. Por volta da sexta noite, um navio passou a quase 800 metros de mim, com todas as luzes acesas e as janelas abertas, parecendo um grande vagalume. Havia música a bordo. Levantei-me, gritei e berrei, mas nada. No segundo dia, peguei um dos ovos de Vorompatra, furei um buraco na casca e fiquei feliz por descobrir que ele estava bom o suficiente para comer. De certa forma saboroso — o gosto é bem parecido com ovos de pato. Havia uma espécie de mancha circular com cerca de quinze centímetros de um lado da gema com manchas de sangue e uma marca branca que eu achava estranha, mas não entendi o que isso significava na época, e eu não estava inclinado a saber. O ovo durou três dias, com biscoitos e um copo de água. Também mastiguei café — coisas revigorantes. O segundo ovo eu abri por volta do oitavo dia. E me assustou.”

O homem com a cicatriz fez uma pausa. “Sim”, ele disse — “em desenvolvimento.”

“Me atrevo a achar que você ache isso algo inacreditável. Eu também não acreditei no que vi. Lá o ovo estava, imerso naquela lama preta e fria, talvez por mais de trezentos anos. Mas não havia engano. Ali estava — qual o nome? — o embrião, com uma grande cabeça, as costas curvadas, o coração batendo abaixo da garganta e a gema murchando ao passo que o embrião se desenvolvia, cheia de grandes membranas que se espalhavam por toda a casca. Aqui estava eu chocando os ovos do maior de todos os pássaros extintos, em uma pequena canoa no meio do Oceano Índico. Se o velho Dawson soubesse disso! Essa experiência valeria mais que quatro anos de salário. O que você acha?”

“Contudo, tive que comer toda aquela coisa preciosa, cada pedacinho dela antes de ter avistado o arrecife. Algumas das bocadas foram bastante desagradáveis. Deixei o terceiro ovo em paz. Eu o coloquei contra a luz mas a casca estava dura a ponto de eu não ver nada além. E embora eu ache ter ouvido algum sangue pulsar, talvez tenha sido o eco nos meus próprios ouvidos.”

“Então veio o atol. Saindo do nascer do sol, por assim dizer, de repente, bem próximo a mim. A canoa flutuou direto até ele a cerca de 800 metros da costa — não mais, e então a corrente virou, e tive que remar o mais forte que pude com minhas mãos e pedaços do ovo de Vorompatra para chegar até o lugar. Assim, eu cheguei lá. Era apenas um atol comum com cerca de 6,5 quilômetros de extensão, com algumas árvores crescendo, uma pequena nascente e a lagoa cheia de peixes-papagaios. Levei o ovo para a praia e o coloquei em um bom lugar, bem acima das ondas da maré e exposto ao sol, para dar a ele toda a chance que pude, puxei a canoa para a costa e fui explorar o lugar. É estranho como um atol pode ser tão chato. Quando eu era criança, achava que nada poderia ser mais divertido do que as aventuras de Robinson Crusoé, mas esse lugar era tão monótono quanto um livro de sermões. Andei procurando coisas comestíveis e pensando em tudo que podia imaginar; mas eu lhe digo que estava entediado até a morte antes do primeiro dia terminar. Isso mostra a minha sorte — no mesmo dia em que desembarquei o tempo mudou. Uma tempestade passou ao norte e bateu sua asa sobre a ilha, e durante a noite a chuva e o vento uivante nos atingiram. Não precisaria de muita coisa para virar aquela canoa.”

“Eu estava dormindo embaixo da canoa e, felizmente, o ovo estava entre a areia mais alta da praia, e a primeira coisa que me lembro foi o som de cem pedras batendo no barco de uma só vez e uma corrente de água sobre o meu corpo. Eu estava sonhando que estava em Antananarivo, indo até a casa de Intoshi para perguntar a ela o que estava acontecendo, procurando por uma caixa de fósforos que costumava ficar no balcão. Então me lembrei de onde estava. As ondas fosforescentes rolando como se quisessem me comer, e o resto da noite negra como breu. O vento uivava forte. As nuvens pareciam tocar quase em minha cabeça, e a chuva caiu como se o céu estivesse alagado e estivessem jogando as águas para fora do firmamento. Uma grande onda veio em minha direção, como uma serpente raivosa, e eu fugi. Então lembrei da canoa, e corri até ela quando a água abaixou, mas ela se foi. Depois me preocupei com o ovo e fui diretamente até ele. Estava tudo bem e fora do alcance das ondas mais insanas, então me sentei ao lado dele e o abracei como companhia. Jesus! Que noite foi aquela!

“A tempestade terminou pela manhã. Não havia mais uma nuvem no céu quando o amanhecer chegou e ao longo de toda praia jaziam os pequenos pedaços de madeira — o esqueleto desarticulado de minha canoa. No entanto eles me serviram muito bem, tirando vantagem da posição de duas árvores consegui fazer um abrigo com os restos de madeira da canoa. Naquele mesmo dia o ovo chocou.”

“Chocou, meu caro, quando minha cabeça estava apoiada nele e eu estava dormindo. Ouvi uma barulho, senti uma trepidação e acordei, vi o ovo rachado com uma estranha cabecinha marrom olhando para mim. 'Jesus!', exclamei, ‘bem-vindo’ e, com um pouco de dificuldade, ele saiu.”

“A princípio, ele era um camaradinha amigável, do tamanho de uma pequena galinha — muito parecido com a maioria das aves jovens, só que maior. Para começar, ele tinha poucas penas, o restante de sua plumagem era de um marrom brilhoso com uma espécie de marca cinza que caiu logo depois. Mal posso expressar o quanto fiquei satisfeito em vê-lo. Eu lhe digo que Robinson Crusoé não aproveitou sua solidão. Mas aqui estava uma companhia interessante. Ele olhou para mim e piscou os olhos como uma galinha, deu um gorjeio e começou a bicar ao mesmo tempo, como se ser chocado trezentos anos mais tarde não fosse nada demais. 'Fico feliz em vê-lo, Man Friday!', eu disse. Naturalmente decidi que se o ovo chocasse, o filhote se chamaria Man Friday. Fiquei um pouco ansioso com sua alimentação, então o ofereci a ele um pedaço de peixe-papagaio cru. Ele pegou e abriu o bico para mais. Fiquei feliz com isso, além do mais, nas circunstâncias, se ele tivesse sido exigente, eu deveria tê-lo comido.”

"Você ficaria surpreso de como o filhote de Vorompatra era um pássaro interessante. Ele me seguiu desde o começo. Ficava ao meu lado assistindo enquanto pescava na lagoa e compartilhava tudo o que pegava. Ele também era sensível. Havia uma espécie de pepinos verdes bem nojentos que geralmente chegavam até a praia e ele experimentou um deles. Isso o entristeceu. Ele nunca mais olhou para nenhum deles novamente”

“Ele cresceu muito rápido. Eu nunca fui um homem social, seu jeito amigável me servia muito bem. Por aproximadamente dois anos nós fomos felizes naquela ilha. Eu não tinha problemas de trabalho, pois eu pensava que meus salários estavam se acumulando com o meu empregador. Víamos uma ou outra embarcação, mas nenhuma chegava minimamente perto da ilha. Também me diverti decorando a ilha com desenhos trabalhados em ouriços-do-mar e conchas extravagantes de vários tipos. Escrevi ILHA DO VOROMPATRA em quase todo o lugar, em letras grandes, como aqueles letreiros de arbustos que você vê nos gramados de alguns clubes. Eu costumava ficar observando aquele abençoado pássaro andando em volta, crescendo e crescendo. Cheguei a pensar que se algum dia saíssemos de lá, eu poderia ganhar a vida exibindo-o. Depois de sua primeira troca de penas, ele começou a ficar bonito, com uma crista, uma pompa azulada e muitas penas verdes atrás dele. E então eu costumava pensar se Dawsons tinha o direito de reivindicá-lo ou não. Nas tempestades e na estação chuvosa nos deitávamos sob o abrigo que eu construíra da velha canoa, e eu costumava contar mentiras sobre meus velhos amigos. Tínhamos um tipo de idílio, posso dizer. Se eu tivesse um pouco de tabaco, teria sido simplesmente o paraíso.”

“Foi no final do segundo ano que nosso pequeno paraíso deu errado. Friday tinha cerca de quatro metros de altura, com uma cabeça grande e larga como a ponta de uma picareta e dois enormes olhos castanhos com bordas amarelas como os olhos de um homem — não fora da vista um do outro como os de uma galinha. A plumagem dele era bonita — nenhum pouco parecida com o estilo de luto da avestruz — mais semelhante a um Casuar. Então ele começou a bater sua crista em mim e a se exibir, mostrando sinais de um temperamento desagradável.”

“Chegou um momento em que minha pescaria estava sendo bastante azarada e ele começou a me cutucar de uma maneira estranha e meditativa. Eu pensei que ele poderia ter se irritado ao comer aqueles pepinos do mar ou algo assim, mas era realmente apenas descontentamento da parte dele. Eu também estava com fome e, quando finalmente agarrei um peixe, o quis para mim. Os ânimos de ambos estavam curtos naquela manhã. Ele deu uma bicada no peixe e o agarrou, e eu lhe dei uma pancada na cabeça para fazê-lo soltar. E com isso ele revidou. Jesus!”

"Ele fez isso no meu rosto." O homem apontou para sua cicatriz. “Então ele me chutou. Era como um cavalo. Levantei-me e, vendo que ele não havia terminado, virei a todo vapor com os braços dobrados sobre o meu rosto. Mas ele correu com aquelas pernas desajeitadas mais rápidas que de um cavalo, e continuou aterrissando em mim com pontapés e cravando seu bico na parte de trás da minha cabeça. Fui para a lagoa e submergi até o pescoço. Ele parou diante da água, porque odiava molhar os pés e começou a fazer um barulho estranho, algo parecido com o de um pavão, apenas um pouco mais rouco. Então ele começou a andar de um lado para o outro. Admito que me senti pequeno ao ver esse fóssil abençoado dominando a área. Minha cabeça e rosto estavam todos sangrando e — bem, meu corpo parecia uma geleia de hematomas.”

“Decidi nadar pela lagoa e deixá-lo em paz por um tempo, até o caso acabar. Eu subi na palmeira mais alta e fiquei sentado pensando em tudo. Acho que nunca me senti tão magoado na minha vida. Eu era mais que um irmão para ele e fui pago com tamanha ingratidão. Eu o choquei. Eduquei. Um pássaro grande, desajeitado e antiquado! E eu um ser humano — herdeiro das eras e tudo mais.”

"Pensei que depois de um tempo ele começaria a ver as coisas sob uma nova perspectiva e sentiria um pouco pelo seu comportamento. Imaginei que, se eu fosse pegar alguns pedacinhos de peixe e levasse até ele de maneira casual, ele poderia fazer a coisa mais sensata. Levei algum tempo para aprender o quão impiedoso e briguento um pássaro extinto pode ser. Maldade pura!"

"Não te conto todas as artimanhas que tentei fazer para que aquele pássaro voltasse ao normal. Eu simplesmente não posso. Minhas bochechas ficam vermelhas de vergonha, mesmo agora ao pensar nos desprezos e desfeitas que recebi dessa ave. Eu tentei violência. Joguei pedaços de coral nele a uma distância segura, mas ele apenas os engolia. Joguei meu canivete aberto nele e quase o perdi, embora fosse grande demais para ele engolir. Tentei matá-lo de fome e parei de pescar, mas ele começou a andar pela praia em águas baixas a procura de vermes, e se sustentou disso. Passei metade do tempo dentro da lagoa e o restante encima das palmeiras. Uma deles não era alta o suficiente, e quando ele me viu, fez a festa com as panturrilhas das minhas pernas. Ficou insuportável. Não sei se você já tentou dormir em uma palmeira. Isso me deu os pesadelos mais horríveis. Pense na humilhação! Ali estava esse animal quase extinto vagando sobre minha ilha como um duque mal-humorado, e eu não tinha permissão para descansar as solas dos meus pés. Eu costumava chorar de cansaço e irritação. Disse a ele diretamente que não pretendia ser perseguido por uma ilha deserta por qualquer anacronismo maldito. Também falei a ele para ir e bicar um navegador de sua idade. Mas ele só batia o bico em mim. Grande pássaro feio — só tinha pernas e pescoço!”

"Eu não gostaria de dizer por quanto tempo tudo isso durou. Eu o mataria mais cedo se soubesse como. No mais, eu finalmente consegui resolver o problema. É uma técnica brasileira. Juntei todas as minhas linhas de pesca com hastes de algas e outras coisas, e fiz uma corda robusta, com cerca de doze metros de comprimento, prendi dois pedaços de rocha de coral na extremidade. Demorei algum tempo para terminar, porque de vez em quando eu tinha que correr para a lagoa ou subir em uma árvore conforme o precioso me ordenava. Girei rapidamente a corda e depois a soltei. Na primeira tentativa eu errei, mas na segunda a corda pegou lindamente nas suas pernas e as enrolou repetidamente. Ele desequilibrou-se e foi ao chão. Arrastei-o para dentro da lagoa até a cintura, e assim que ele caiu, eu estava fora da água serrando seu pescoço com meu canivete.” —

"Nem mesmo agora gosto de pensar nisso. Me senti como um assassino enquanto fazia isso, embora minha raiva estivesse fresca contra ele. Eu estava de pé sobre ele e o vi sangrando na areia branca e suas belas pernas e pescoço se contorcendo em sua última agonia — Pah!”

“Com essa tragédia, veio junto a solidão. Bom Jesus! Você não imagina como eu senti falta daquele pássaro. Sentei-me ao lado de seu cadáver e fiquei triste por ele, e tremi ao olhar em volta do recife silencioso e desolado. Lembrei de como era um passarinho alegre quando ele foi chocado e em mil brincadeiras agradáveis que ele feito antes de tudo dar errado. Eu pensei que, se tivesse apenas o machucado, poderia tê-lo ajudado a entender melhor. Se possuísse algum meio para cavar a rocha de coral, eu o enterraria. Sua perda foi sentida exatamente como se ele fosse humano. Como eu não conseguia pensar em comê-lo, coloquei-o na lagoa e os peixinhos o limparam. Então, um dia, um sujeito que passeava em um iate teve a curiosidade de ver se meu atol ainda existia.”

“Ele havia chegado na hora certa, pois eu já estava cansado da desolação, hesitando apenas em que maneira terminar o drama, me afogando no mar ou pulando das palmeiras.”

“Na volta, vendi os ossos a um homem chamado Winslow — um negociante perto do Museu Britânico, e ele disse que os vendeu para o velho Havers. Parece que Havers não entendeu que eles eram muito grandes e só depois da morte dele eles atraíram a atenção. Eles nomearam seu vorompatra de Aepyornis — algo assim?”

“Aepyornis vastus”, eu disse. “É engraçado, um amigo meu mencionou esse mesmo termo. Quando encontraram um vorompatra com uma coxa de um metro de comprimento, acharam que haviam atingido o topo da escala e o chamaram de Aepyornis maximus. Então alguém achou outro osso da coxa com um metro e quarenta, e eles o chamaram de Aepyornis Titan. Então depois que o velho Havers faleceu, o seu Vastus foi encontrado em sua coleção e ele se transformou em Vastissimus.

"Winslow estava me dizendo isso", disse o homem com a cicatriz. “Se eles acharem mais fosseis de Aepyornises, ele acha que algum capricho científico irá explodir um vaso sanguíneo. Isso foi algo estranho a acontecer com um homem; tudo junto — não foi?"

[1] Dawsons é a firma de Dawnson, o dono.

[2] Nenhum europeu é conhecido por ter visto um Vorompatra vivo com exceção duvidosa de MacAndrew que visitou Madagascar em 1745. H. G. W.

O homem com um rosto cicatrizado veio até a mesa e olhou para minha caixa.

“Orquídeas?” Ele indagou.

“Algumas,” eu respondi.

“Cypripediums?” Continuou ele.

“Grande parte”, afirmei.

“Alguma coisa nova? — Acho que não. Visitei essas ilhas a vinte e cinco, ou melhor vinte e sete anos atrás.  Se você achar algo novo por aqui — então, será algo realmente novo! Eu não deixei muito.”

“Eu não sou coletor”, falei.

“Eu era jovem,” ele prosseguiu. “Jesus! Como eu viajava.” Ele parecia estar me medindo. “Eu estive nas Índias Orientais por dois anos e no Brasil por sete. E então fui para Madagascar.”

“Conheço alguns desbravadores pelo nome”, eu disse antecipando a conversa. “Para qual firma você coletou?”

“Dawsons[1]. Gostaria de saber se você já ouviu falar no nome Butcher?”

“Butcher — Butcher?” O nome parecia vagamente estar presente em minha memória; então eu relembrei do caso de Butcher vs. Dawson. “Por quê?”, indaguei, “Ah! Você foi o cara que processou eles a pagarem quatro anos de salário acumulados — quando seu barco naufragou em uma ilha deserta.”

“Exatamente”, disse o homem com a cicatriz, curvando-se. “Caso engraçado, não é? Estava eu fazendo minha pequena fortuna naquela ilha sem muito esforço e eles foram incapazes de enviar ajuda. Costumava me divertir pensando sobre isso enquanto eu estava lá. Fiz cálculos — enormes — em todo o bendito atol em números ornamentais.

“Como isso aconteceu?” Perguntei. “Eu não me lembro bem do caso.”

“Bem — você já ouviu falar nos Vorompatras?”

"Vagamente. Andrews me falou de uma nova espécie que estava estudando há um mês atrás. Pouco antes de eu partir. Eles possuem um osso da coxa do animal, ao que parece, com quase um metro de comprimento. O bicho deve ter sido um monstro!”

“Concordo com você”, disse o homem com uma cicatriz no rosto. “Era realmente um monstro. O pássaro Roca era apenas uma lenda baseada nos Vorompatras. Você sabe quando encontraram esses ossos?”

“Há uns Três ou quatro anos atrás — em 1891 eu acho. Por quê?”

"Por quê? — Porque eu também os encontrei — Jesus! — Faz quase vinte anos. Se Dawsons não tivesse sido mesquinho com relação a esse salário, eles poderiam ter ganho uma fortuna. — Eu não tive culpa se o barco infernal ficasse à deriva."

Ele pausou. “Acho que eles acharam os ossos no mesmo lugar. Uma espécie de pântano acerca de noventa milhas ao norte de Antananarivo. Você tem ideia? Você precisa ir ao longo da costa de barco. Você se lembra?”

"Não me lembro. Imagino que Andrews tenha falado algo sobre um pântano.”

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_ILHA_DE_VAROMPRATA.jpg

 


“Deve ser o mesmo. Fica na costa leste. De alguma forma há algo na água que impede as coisas de se deteriorarem. Ela cheira à creosoto. Me faz lembrar de Trinidad. Eles acharam mais alguns ovos? Alguns dos ovos que eu achei tinham cerca de meio metro. O pântano corta toda ilha, sabe?  E a maior parte dele é salobre. Bons tempos! Encontrei os ossos por acidente. Fomos procurar ovos, eu e dois camaradas nativos, em uma daquelas canoas de rum e encontramos os ossos ao mesmo tempo. Tínhamos uma barraca e provisões para quatro dias. Montamos ela em um dos lugares mais firmes. Ainda hoje ao pensar nisso lembro daquele cheiro estranho. É um trabalho divertido. Sair pelo lamaçal explorando com ajuda de barras de ferro. Geralmente, os ovos saem quebrados. Eu me pergunto até quando os Vorompatras realmente existiram. Os missionários dizem que os nativos contam lendas sobre quando essas criaturas estavam vivas, mas eu nunca ouvi essas histórias.[2] Certamente os ovos que conseguimos pareciam tão frescos como se tivessem sido postos logo antes de acharmos. Fresquinhos! Ao carregá-los até o barco, um dos nativos deixou o ovo que estava carregando cair em uma rocha. Ele quebrou. Como eu fiquei furioso! O nativo disse que uma centopeia havia o mordido. O ovo era doce como se estivesse fresco, nem ao menos cheirava mal e pensar que sua mãe poderia estar morta a mais de quatrocentos anos. Bom, irei resumir a história. Levamos o dia todo para sair da lama com esses ovos sem quebrá-los, e todos nós estávamos cobertos de lama negra, e naturalmente eu estava zangado. Até onde eu sabia, eles eram os únicos ovos intactos que haviam saído daquela ilha. Depois fui ver os que eles tinham no Museu de História Natural de Londres: todos tinham rachaduras e eram colados como se fossem mosaicos faltando alguns pedaços. Os meus eram perfeitos, e eu pretendia repassá-los quando voltasse. Naturalmente, fiquei irritado com o nativo inútil que me fez perder três horas de trabalho apenas por causa de uma centopeia. Eu bati nele um pouco.

“O homem com a cicatriz tirou de seu bolso um cachimbo. Eu coloquei minha caixa à sua frente. Ele deu um trago distraidamente.”

“Quanto aos outros ovos? Você os levou para casa? Eu não me lembro.”

“Essa é a parte mais estranha da história. Eu tinha os outros três ovos. Perfeitamente frescos. Nós colocamos eles no barco e então eu fui até a tenda para fazer um pouco de café, deixando meus dois ajudantes pagãos logo abaixo na praia—um reclamando da mordida que havia levado e o outro tentando ajudar. Nunca passou pela minha cabeça que os dois idiotas tomariam vantagem da posição em que eu me encontrava para se rebelarem. Suponho que o veneno da centopeia e os meus murros chatearam um deles. Ele era do tipo briguento—e então convenceu o outro.

“Eu me lembro que estava sentado, fumando e aquecendo a água em uma espiriteira que eu costumava levar nessas expedições. Naquela ocasião eu estava admirando o sob o pôr do sol, o pântano. Todo em faixas pretas e vermelhas — uma bela vista. Logo acima, as rochas banhadas em um tom rosa acinzentado, enevoadas até o pico da colina e o céu ao fundo vermelho como uma boca de forno. E a cinquenta metros de mim estavam esses dois abençoados pagãos—bem entendidos do ar de calmaria das coisas—conspirando a partir com o barco me deixando sozinho com somente três dias de mantimentos, uma barraca de lona e nada para beber além de um cantil d’água.   Eu ouvi um tipo de grito atrás de mim e lá estavam eles na tramoia do barco—não era propriamente um barco—talvez a vinte cinco metros da costa. Eu entendi o que estava acontecendo instantaneamente. Minha espingarda estava na tenda e além do mais não tinha munição. Eles sabiam disso. Mas eu tinha um pequeno revolver comigo, comecei a correr até a praia e tirei o revolver do bolso.

“Voltem agora!” gritei, acenando para eles.

“Eles tagarelaram algo para mim e o cara que quebrou um dos ovos zombou. Eu mirei no outro—porque ele não tinham ferimentos e estava com o remo. Errei o tiro. Eles riram. No entanto eu não tinha desistido. Eu sabia que devia ficar calmo e tentei novamente. No terceiro tiro creio que acertei sua cabeça e ele caiu levando consigo o remo. Foi um tiro certeiro para um revolver. Eu acho que a canoa estava a quarenta e cinco metros de distância. Não sei se ele foi realmente atingido ou abismado pelos disparos tivera se afogado. Então comecei a gritar para o outro sujeito voltar, mas ele se deitou na canoa e ignorou-me. Gastei todas as balas do revólver mas nenhuma o acertou.”

“Eu me senti um tremendo idiota, posso lhe dizer. Lá estava eu naquela praia podre e lamacenta, todo o pântano atrás de mim, o mar à minha frente, frio após o pôr do sol e a canoa flutuando em direção ao oceano. Eu digo a você que amaldiçoei Dawsons, Jamrachs, os museus e todo o resto com razão. Eu berrei para que esse paspalho retornasse até que minhas palavras se resumiram em gritos.”

“Não me restava nada mais além de nadar atrás dele e testar minha sorte com os tubarões. Então abri meu canivete e o agarrei entre os dentes, tirei minhas roupas e avancei em direção a canoa. Assim que entrei no mar perdi ela de vista, mas avancei como julguei prudente em linha reta. Desejei que o homem que estava nela fosse muito ruim de navegação, assim a canoa continuaria boiando na mesma direção. Novamente ela emergiu no horizonte bem ao sudoeste. O brilho do pôr-do-sol já havia acabado e a escuridão da noite já se fazia presente. As estrelas já estavam aparecendo no céu profundo. Nadei como um campeão de natação até que minhas pernas e braços começaram a doer.”

“Contudo, só o alcancei quando as estrelas estavam todas postas no céu. À medida que escurecia, comecei a ver todo tipo de coisa brilhante na água—fosforescentes, sabe. Em alguns momentos isso me deixava tonto. Eu dificilmente sabia distinguir as estrelas das coisas fosforescentes ou mesmo se estava nadando com minha cabeça ou com meus calcanhares. Estava muito escuro e eu estava ansioso para ver o que o sujeito estava aprontando. Ele parecia estar dormindo confortavelmente na proa e a popa estava seca. A canoa parecia dançar valsa ao flutuar sobre o mar. Então voltei para a popa e o esperei acordar, me preparando para a luta com o canivete. Porém ele não acordou. Restava eu, sentado na popa da pequena canoa, boiando sobre um mar calmo e fluorescente banhado por estrelas esperando por algum milagre.”

“Depois de muito tempo, chamei-lhe pelo nome, mas ele não respondia. Eu estava muito cansado e então cochilei. Quando o amanhecer chegou, vi que o nativo estava realmente morto como um peso de porta, todo inchado e roxo. Meus três ovos e os ossos estavam no meio da canoa, o barril d’água, um pouco de café e alguns biscoitos estavam embrulhados em um jornal aos pés do defunto, e uma lata de álcool desnaturado embaixo dele. Não havia remo, nem algo semelhante a um, com exceção da lata de álcool. Decidi boiar até ser achado. Fiz uma inspeção em seu corpo, determinei que a causa da morte fora a possível mordida da centopeia desconhecida e o joguei ao mar.”

“Depois tomei um gole d’água, comi alguns biscoitos e olhei ao redor. Eu não enxergava muito longe, então, suponho que o homem tenha afundado. No fim, Madagascar estava fora de vista. Enxerguei uma embarcação indo para o sudoeste — parecia uma escuna, mas seu casco nunca retornou ao horizonte. O sol já estava alto e começava a me incomodar. Jesus! — quase fritou meu cérebro de tão quente. Eu tentei me aliviar mergulhando a cabeça no mar, mas logo voltei minha atenção para o jornal, espichei meu corpo sobre a canoa e estendi as folhas sobre mim. Esses jornais são maravilhosos. Eu nunca havia lido um inteiramente antes, mas é diferente quando você fica entediado e sozinho como eu estava. Suponho que li aquela edição do jornal Cape Argus umas vinte vezes. Devido ao sol forte, o casco da canoa começou a cheirar mal e grandes bolhas apareceram.”

“Fiquei à deriva por dez dias”, disse o homem com a cicatriz. “Parece pouco ao contar, não é?” Todo dia parecia como se fosse o último. Nunca procurei por socorro durante o dia, pois o calor era infernal, restando-me apenas o amanhecer e a noite. Eu não vi nenhuma embarcação nos três primeiros dias e aquelas que eu vi não me avistaram. Por volta da sexta noite, um navio passou a quase 800 metros de mim, com todas as luzes acesas e as janelas abertas, parecendo um grande vagalume. Havia música a bordo. Levantei-me, gritei e berrei, mas nada. No segundo dia, peguei um dos ovos de Vorompatra, furei um buraco na casca e fiquei feliz por descobrir que ele estava bom o suficiente para comer. De certa forma saboroso — o gosto é bem parecido com ovos de pato. Havia uma espécie de mancha circular com cerca de quinze centímetros de um lado da gema com manchas de sangue e uma marca branca que eu achava estranha, mas não entendi o que isso significava na época, e eu não estava inclinado a saber. O ovo durou três dias, com biscoitos e um copo de água. Também mastiguei café — coisas revigorantes. O segundo ovo eu abri por volta do oitavo dia. E me assustou.”

O homem com a cicatriz fez uma pausa. “Sim”, ele disse — “em desenvolvimento.”

“Me atrevo a achar que você ache isso algo inacreditável. Eu também não acreditei no que vi. Lá o ovo estava, imerso naquela lama preta e fria, talvez por mais de trezentos anos. Mas não havia engano. Ali estava — qual o nome? — o embrião, com uma grande cabeça, as costas curvadas, o coração batendo abaixo da garganta e a gema murchando ao passo que o embrião se desenvolvia, cheia de grandes membranas que se espalhavam por toda a casca. Aqui estava eu chocando os ovos do maior de todos os pássaros extintos, em uma pequena canoa no meio do Oceano Índico. Se o velho Dawson soubesse disso! Essa experiência valeria mais que quatro anos de salário. O que você acha?”

“Contudo, tive que comer toda aquela coisa preciosa, cada pedacinho dela antes de ter avistado o arrecife. Algumas das bocadas foram bastante desagradáveis. Deixei o terceiro ovo em paz. Eu o coloquei contra a luz mas a casca estava dura a ponto de eu não ver nada além. E embora eu ache ter ouvido algum sangue pulsar, talvez tenha sido o eco nos meus próprios ouvidos.”

“Então veio o atol. Saindo do nascer do sol, por assim dizer, de repente, bem próximo a mim. A canoa flutuou direto até ele a cerca de 800 metros da costa — não mais, e então a corrente virou, e tive que remar o mais forte que pude com minhas mãos e pedaços do ovo de Vorompatra para chegar até o lugar. Assim, eu cheguei lá. Era apenas um atol comum com cerca de 6,5 quilômetros de extensão, com algumas árvores crescendo, uma pequena nascente e a lagoa cheia de peixes-papagaios. Levei o ovo para a praia e o coloquei em um bom lugar, bem acima das ondas da maré e exposto ao sol, para dar a ele toda a chance que pude, puxei a canoa para a costa e fui explorar o lugar. É estranho como um atol pode ser tão chato. Quando eu era criança, achava que nada poderia ser mais divertido do que as aventuras de Robinson Crusoé, mas esse lugar era tão monótono quanto um livro de sermões. Andei procurando coisas comestíveis e pensando em tudo que podia imaginar; mas eu lhe digo que estava entediado até a morte antes do primeiro dia terminar. Isso mostra a minha sorte — no mesmo dia em que desembarquei o tempo mudou. Uma tempestade passou ao norte e bateu sua asa sobre a ilha, e durante a noite a chuva e o vento uivante nos atingiram. Não precisaria de muita coisa para virar aquela canoa.”

“Eu estava dormindo embaixo da canoa e, felizmente, o ovo estava entre a areia mais alta da praia, e a primeira coisa que me lembro foi o som de cem pedras batendo no barco de uma só vez e uma corrente de água sobre o meu corpo. Eu estava sonhando que estava em Antananarivo, indo até a casa de Intoshi para perguntar a ela o que estava acontecendo, procurando por uma caixa de fósforos que costumava ficar no balcão. Então me lembrei de onde estava. As ondas fosforescentes rolando como se quisessem me comer, e o resto da noite negra como breu. O vento uivava forte. As nuvens pareciam tocar quase em minha cabeça, e a chuva caiu como se o céu estivesse alagado e estivessem jogando as águas para fora do firmamento. Uma grande onda veio em minha direção, como uma serpente raivosa, e eu fugi. Então lembrei da canoa, e corri até ela quando a água abaixou, mas ela se foi. Depois me preocupei com o ovo e fui diretamente até ele. Estava tudo bem e fora do alcance das ondas mais insanas, então me sentei ao lado dele e o abracei como companhia. Jesus! Que noite foi aquela!

“A tempestade terminou pela manhã. Não havia mais uma nuvem no céu quando o amanhecer chegou e ao longo de toda praia jaziam os pequenos pedaços de madeira — o esqueleto desarticulado de minha canoa. No entanto eles me serviram muito bem, tirando vantagem da posição de duas árvores consegui fazer um abrigo com os restos de madeira da canoa. Naquele mesmo dia o ovo chocou.”

“Chocou, meu caro, quando minha cabeça estava apoiada nele e eu estava dormindo. Ouvi uma barulho, senti uma trepidação e acordei, vi o ovo rachado com uma estranha cabecinha marrom olhando para mim. 'Jesus!', exclamei, ‘bem-vindo’ e, com um pouco de dificuldade, ele saiu.”

“A princípio, ele era um camaradinha amigável, do tamanho de uma pequena galinha — muito parecido com a maioria das aves jovens, só que maior. Para começar, ele tinha poucas penas, o restante de sua plumagem era de um marrom brilhoso com uma espécie de marca cinza que caiu logo depois. Mal posso expressar o quanto fiquei satisfeito em vê-lo. Eu lhe digo que Robinson Crusoé não aproveitou sua solidão. Mas aqui estava uma companhia interessante. Ele olhou para mim e piscou os olhos como uma galinha, deu um gorjeio e começou a bicar ao mesmo tempo, como se ser chocado trezentos anos mais tarde não fosse nada demais. 'Fico feliz em vê-lo, Man Friday!', eu disse. Naturalmente decidi que se o ovo chocasse, o filhote se chamaria Man Friday. Fiquei um pouco ansioso com sua alimentação, então o ofereci a ele um pedaço de peixe-papagaio cru. Ele pegou e abriu o bico para mais. Fiquei feliz com isso, além do mais, nas circunstâncias, se ele tivesse sido exigente, eu deveria tê-lo comido.”

"Você ficaria surpreso de como o filhote de Vorompatra era um pássaro interessante. Ele me seguiu desde o começo. Ficava ao meu lado assistindo enquanto pescava na lagoa e compartilhava tudo o que pegava. Ele também era sensível. Havia uma espécie de pepinos verdes bem nojentos que geralmente chegavam até a praia e ele experimentou um deles. Isso o entristeceu. Ele nunca mais olhou para nenhum deles novamente”

“Ele cresceu muito rápido. Eu nunca fui um homem social, seu jeito amigável me servia muito bem. Por aproximadamente dois anos nós fomos felizes naquela ilha. Eu não tinha problemas de trabalho, pois eu pensava que meus salários estavam se acumulando com o meu empregador. Víamos uma ou outra embarcação, mas nenhuma chegava minimamente perto da ilha. Também me diverti decorando a ilha com desenhos trabalhados em ouriços-do-mar e conchas extravagantes de vários tipos. Escrevi ILHA DO VOROMPATRA em quase todo o lugar, em letras grandes, como aqueles letreiros de arbustos que você vê nos gramados de alguns clubes. Eu costumava ficar observando aquele abençoado pássaro andando em volta, crescendo e crescendo. Cheguei a pensar que se algum dia saíssemos de lá, eu poderia ganhar a vida exibindo-o. Depois de sua primeira troca de penas, ele começou a ficar bonito, com uma crista, uma pompa azulada e muitas penas verdes atrás dele. E então eu costumava pensar se Dawsons tinha o direito de reivindicá-lo ou não. Nas tempestades e na estação chuvosa nos deitávamos sob o abrigo que eu construíra da velha canoa, e eu costumava contar mentiras sobre meus velhos amigos. Tínhamos um tipo de idílio, posso dizer. Se eu tivesse um pouco de tabaco, teria sido simplesmente o paraíso.”

“Foi no final do segundo ano que nosso pequeno paraíso deu errado. Friday tinha cerca de quatro metros de altura, com uma cabeça grande e larga como a ponta de uma picareta e dois enormes olhos castanhos com bordas amarelas como os olhos de um homem — não fora da vista um do outro como os de uma galinha. A plumagem dele era bonita — nenhum pouco parecida com o estilo de luto da avestruz — mais semelhante a um Casuar. Então ele começou a bater sua crista em mim e a se exibir, mostrando sinais de um temperamento desagradável.”

“Chegou um momento em que minha pescaria estava sendo bastante azarada e ele começou a me cutucar de uma maneira estranha e meditativa. Eu pensei que ele poderia ter se irritado ao comer aqueles pepinos do mar ou algo assim, mas era realmente apenas descontentamento da parte dele. Eu também estava com fome e, quando finalmente agarrei um peixe, o quis para mim. Os ânimos de ambos estavam curtos naquela manhã. Ele deu uma bicada no peixe e o agarrou, e eu lhe dei uma pancada na cabeça para fazê-lo soltar. E com isso ele revidou. Jesus!”

"Ele fez isso no meu rosto." O homem apontou para sua cicatriz. “Então ele me chutou. Era como um cavalo. Levantei-me e, vendo que ele não havia terminado, virei a todo vapor com os braços dobrados sobre o meu rosto. Mas ele correu com aquelas pernas desajeitadas mais rápidas que de um cavalo, e continuou aterrissando em mim com pontapés e cravando seu bico na parte de trás da minha cabeça. Fui para a lagoa e submergi até o pescoço. Ele parou diante da água, porque odiava molhar os pés e começou a fazer um barulho estranho, algo parecido com o de um pavão, apenas um pouco mais rouco. Então ele começou a andar de um lado para o outro. Admito que me senti pequeno ao ver esse fóssil abençoado dominando a área. Minha cabeça e rosto estavam todos sangrando e — bem, meu corpo parecia uma geleia de hematomas.”

“Decidi nadar pela lagoa e deixá-lo em paz por um tempo, até o caso acabar. Eu subi na palmeira mais alta e fiquei sentado pensando em tudo. Acho que nunca me senti tão magoado na minha vida. Eu era mais que um irmão para ele e fui pago com tamanha ingratidão. Eu o choquei. Eduquei. Um pássaro grande, desajeitado e antiquado! E eu um ser humano — herdeiro das eras e tudo mais.”

"Pensei que depois de um tempo ele começaria a ver as coisas sob uma nova perspectiva e sentiria um pouco pelo seu comportamento. Imaginei que, se eu fosse pegar alguns pedacinhos de peixe e levasse até ele de maneira casual, ele poderia fazer a coisa mais sensata. Levei algum tempo para aprender o quão impiedoso e briguento um pássaro extinto pode ser. Maldade pura!"

"Não te conto todas as artimanhas que tentei fazer para que aquele pássaro voltasse ao normal. Eu simplesmente não posso. Minhas bochechas ficam vermelhas de vergonha, mesmo agora ao pensar nos desprezos e desfeitas que recebi dessa ave. Eu tentei violência. Joguei pedaços de coral nele a uma distância segura, mas ele apenas os engolia. Joguei meu canivete aberto nele e quase o perdi, embora fosse grande demais para ele engolir. Tentei matá-lo de fome e parei de pescar, mas ele começou a andar pela praia em águas baixas a procura de vermes, e se sustentou disso. Passei metade do tempo dentro da lagoa e o restante encima das palmeiras. Uma deles não era alta o suficiente, e quando ele me viu, fez a festa com as panturrilhas das minhas pernas. Ficou insuportável. Não sei se você já tentou dormir em uma palmeira. Isso me deu os pesadelos mais horríveis. Pense na humilhação! Ali estava esse animal quase extinto vagando sobre minha ilha como um duque mal-humorado, e eu não tinha permissão para descansar as solas dos meus pés. Eu costumava chorar de cansaço e irritação. Disse a ele diretamente que não pretendia ser perseguido por uma ilha deserta por qualquer anacronismo maldito. Também falei a ele para ir e bicar um navegador de sua idade. Mas ele só batia o bico em mim. Grande pássaro feio — só tinha pernas e pescoço!”

"Eu não gostaria de dizer por quanto tempo tudo isso durou. Eu o mataria mais cedo se soubesse como. No mais, eu finalmente consegui resolver o problema. É uma técnica brasileira. Juntei todas as minhas linhas de pesca com hastes de algas e outras coisas, e fiz uma corda robusta, com cerca de doze metros de comprimento, prendi dois pedaços de rocha de coral na extremidade. Demorei algum tempo para terminar, porque de vez em quando eu tinha que correr para a lagoa ou subir em uma árvore conforme o precioso me ordenava. Girei rapidamente a corda e depois a soltei. Na primeira tentativa eu errei, mas na segunda a corda pegou lindamente nas suas pernas e as enrolou repetidamente. Ele desequilibrou-se e foi ao chão. Arrastei-o para dentro da lagoa até a cintura, e assim que ele caiu, eu estava fora da água serrando seu pescoço com meu canivete.” —

"Nem mesmo agora gosto de pensar nisso. Me senti como um assassino enquanto fazia isso, embora minha raiva estivesse fresca contra ele. Eu estava de pé sobre ele e o vi sangrando na areia branca e suas belas pernas e pescoço se contorcendo em sua última agonia — Pah!”

“Com essa tragédia, veio junto a solidão. Bom Jesus! Você não imagina como eu senti falta daquele pássaro. Sentei-me ao lado de seu cadáver e fiquei triste por ele, e tremi ao olhar em volta do recife silencioso e desolado. Lembrei de como era um passarinho alegre quando ele foi chocado e em mil brincadeiras agradáveis que ele feito antes de tudo dar errado. Eu pensei que, se tivesse apenas o machucado, poderia tê-lo ajudado a entender melhor. Se possuísse algum meio para cavar a rocha de coral, eu o enterraria. Sua perda foi sentida exatamente como se ele fosse humano. Como eu não conseguia pensar em comê-lo, coloquei-o na lagoa e os peixinhos o limparam. Então, um dia, um sujeito que passeava em um iate teve a curiosidade de ver se meu atol ainda existia.”

“Ele havia chegado na hora certa, pois eu já estava cansado da desolação, hesitando apenas em que maneira terminar o drama, me afogando no mar ou pulando das palmeiras.”

“Na volta, vendi os ossos a um homem chamado Winslow — um negociante perto do Museu Britânico, e ele disse que os vendeu para o velho Havers. Parece que Havers não entendeu que eles eram muito grandes e só depois da morte dele eles atraíram a atenção. Eles nomearam seu vorompatra de Aepyornis — algo assim?”

“Aepyornis vastus”, eu disse. “É engraçado, um amigo meu mencionou esse mesmo termo. Quando encontraram um vorompatra com uma coxa de um metro de comprimento, acharam que haviam atingido o topo da escala e o chamaram de Aepyornis maximus. Então alguém achou outro osso da coxa com um metro e quarenta, e eles o chamaram de Aepyornis Titan. Então depois que o velho Havers faleceu, o seu Vastus foi encontrado em sua coleção e ele se transformou em Vastissimus.

"Winslow estava me dizendo isso", disse o homem com a cicatriz. “Se eles acharem mais fosseis de Aepyornises, ele acha que algum capricho científico irá explodir um vaso sanguíneo. Isso foi algo estranho a acontecer com um homem; tudo junto — não foi?"

[1] Dawsons é a firma de Dawnson, o dono.

[2] Nenhum europeu é conhecido por ter visto um Vorompatra vivo com exceção duvidosa de MacAndrew que visitou Madagascar em 1745. H. G. W.

O homem com um rosto cicatrizado veio até a mesa e olhou para minha caixa.

“Orquídeas?” Ele indagou.

“Algumas,” eu respondi.

“Cypripediums?” Continuou ele.

“Grande parte”, afirmei.

“Alguma coisa nova? — Acho que não. Visitei essas ilhas a vinte e cinco, ou melhor vinte e sete anos atrás.  Se você achar algo novo por aqui — então, será algo realmente novo! Eu não deixei muito.”

“Eu não sou coletor”, falei.

“Eu era jovem,” ele prosseguiu. “Jesus! Como eu viajava.” Ele parecia estar me medindo. “Eu estive nas Índias Orientais por dois anos e no Brasil por sete. E então fui para Madagascar.”

“Conheço alguns desbravadores pelo nome”, eu disse antecipando a conversa. “Para qual firma você coletou?”

“Dawsons[1]. Gostaria de saber se você já ouviu falar no nome Butcher?”

“Butcher — Butcher?” O nome parecia vagamente estar presente em minha memória; então eu relembrei do caso de Butcher vs. Dawson. “Por quê?”, indaguei, “Ah! Você foi o cara que processou eles a pagarem quatro anos de salário acumulados — quando seu barco naufragou em uma ilha deserta.”

“Exatamente”, disse o homem com a cicatriz, curvando-se. “Caso engraçado, não é? Estava eu fazendo minha pequena fortuna naquela ilha sem muito esforço e eles foram incapazes de enviar ajuda. Costumava me divertir pensando sobre isso enquanto eu estava lá. Fiz cálculos — enormes — em todo o bendito atol em números ornamentais.

“Como isso aconteceu?” Perguntei. “Eu não me lembro bem do caso.”

“Bem — você já ouviu falar nos Vorompatras?”

"Vagamente. Andrews me falou de uma nova espécie que estava estudando há um mês atrás. Pouco antes de eu partir. Eles possuem um osso da coxa do animal, ao que parece, com quase um metro de comprimento. O bicho deve ter sido um monstro!”

“Concordo com você”, disse o homem com uma cicatriz no rosto. “Era realmente um monstro. O pássaro Roca era apenas uma lenda baseada nos Vorompatras. Você sabe quando encontraram esses ossos?”

“Há uns Três ou quatro anos atrás — em 1891 eu acho. Por quê?”

"Por quê? — Porque eu também os encontrei — Jesus! — Faz quase vinte anos. Se Dawsons não tivesse sido mesquinho com relação a esse salário, eles poderiam ter ganho uma fortuna. — Eu não tive culpa se o barco infernal ficasse à deriva."

Ele pausou. “Acho que eles acharam os ossos no mesmo lugar. Uma espécie de pântano acerca de noventa milhas ao norte de Antananarivo. Você tem ideia? Você precisa ir ao longo da costa de barco. Você se lembra?”

"Não me lembro. Imagino que Andrews tenha falado algo sobre um pântano.”

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_ILHA_DE_VAROMPRATA.jpg

 


“Deve ser o mesmo. Fica na costa leste. De alguma forma há algo na água que impede as coisas de se deteriorarem. Ela cheira à creosoto. Me faz lembrar de Trinidad. Eles acharam mais alguns ovos? Alguns dos ovos que eu achei tinham cerca de meio metro. O pântano corta toda ilha, sabe?  E a maior parte dele é salobre. Bons tempos! Encontrei os ossos por acidente. Fomos procurar ovos, eu e dois camaradas nativos, em uma daquelas canoas de rum e encontramos os ossos ao mesmo tempo. Tínhamos uma barraca e provisões para quatro dias. Montamos ela em um dos lugares mais firmes. Ainda hoje ao pensar nisso lembro daquele cheiro estranho. É um trabalho divertido. Sair pelo lamaçal explorando com ajuda de barras de ferro. Geralmente, os ovos saem quebrados. Eu me pergunto até quando os Vorompatras realmente existiram. Os missionários dizem que os nativos contam lendas sobre quando essas criaturas estavam vivas, mas eu nunca ouvi essas histórias.[2] Certamente os ovos que conseguimos pareciam tão frescos como se tivessem sido postos logo antes de acharmos. Fresquinhos! Ao carregá-los até o barco, um dos nativos deixou o ovo que estava carregando cair em uma rocha. Ele quebrou. Como eu fiquei furioso! O nativo disse que uma centopeia havia o mordido. O ovo era doce como se estivesse fresco, nem ao menos cheirava mal e pensar que sua mãe poderia estar morta a mais de quatrocentos anos. Bom, irei resumir a história. Levamos o dia todo para sair da lama com esses ovos sem quebrá-los, e todos nós estávamos cobertos de lama negra, e naturalmente eu estava zangado. Até onde eu sabia, eles eram os únicos ovos intactos que haviam saído daquela ilha. Depois fui ver os que eles tinham no Museu de História Natural de Londres: todos tinham rachaduras e eram colados como se fossem mosaicos faltando alguns pedaços. Os meus eram perfeitos, e eu pretendia repassá-los quando voltasse. Naturalmente, fiquei irritado com o nativo inútil que me fez perder três horas de trabalho apenas por causa de uma centopeia. Eu bati nele um pouco.

“O homem com a cicatriz tirou de seu bolso um cachimbo. Eu coloquei minha caixa à sua frente. Ele deu um trago distraidamente.”

“Quanto aos outros ovos? Você os levou para casa? Eu não me lembro.”

“Essa é a parte mais estranha da história. Eu tinha os outros três ovos. Perfeitamente frescos. Nós colocamos eles no barco e então eu fui até a tenda para fazer um pouco de café, deixando meus dois ajudantes pagãos logo abaixo na praia—um reclamando da mordida que havia levado e o outro tentando ajudar. Nunca passou pela minha cabeça que os dois idiotas tomariam vantagem da posição em que eu me encontrava para se rebelarem. Suponho que o veneno da centopeia e os meus murros chatearam um deles. Ele era do tipo briguento—e então convenceu o outro.

“Eu me lembro que estava sentado, fumando e aquecendo a água em uma espiriteira que eu costumava levar nessas expedições. Naquela ocasião eu estava admirando o sob o pôr do sol, o pântano. Todo em faixas pretas e vermelhas — uma bela vista. Logo acima, as rochas banhadas em um tom rosa acinzentado, enevoadas até o pico da colina e o céu ao fundo vermelho como uma boca de forno. E a cinquenta metros de mim estavam esses dois abençoados pagãos—bem entendidos do ar de calmaria das coisas—conspirando a partir com o barco me deixando sozinho com somente três dias de mantimentos, uma barraca de lona e nada para beber além de um cantil d’água.   Eu ouvi um tipo de grito atrás de mim e lá estavam eles na tramoia do barco—não era propriamente um barco—talvez a vinte cinco metros da costa. Eu entendi o que estava acontecendo instantaneamente. Minha espingarda estava na tenda e além do mais não tinha munição. Eles sabiam disso. Mas eu tinha um pequeno revolver comigo, comecei a correr até a praia e tirei o revolver do bolso.

“Voltem agora!” gritei, acenando para eles.

“Eles tagarelaram algo para mim e o cara que quebrou um dos ovos zombou. Eu mirei no outro—porque ele não tinham ferimentos e estava com o remo. Errei o tiro. Eles riram. No entanto eu não tinha desistido. Eu sabia que devia ficar calmo e tentei novamente. No terceiro tiro creio que acertei sua cabeça e ele caiu levando consigo o remo. Foi um tiro certeiro para um revolver. Eu acho que a canoa estava a quarenta e cinco metros de distância. Não sei se ele foi realmente atingido ou abismado pelos disparos tivera se afogado. Então comecei a gritar para o outro sujeito voltar, mas ele se deitou na canoa e ignorou-me. Gastei todas as balas do revólver mas nenhuma o acertou.”

“Eu me senti um tremendo idiota, posso lhe dizer. Lá estava eu naquela praia podre e lamacenta, todo o pântano atrás de mim, o mar à minha frente, frio após o pôr do sol e a canoa flutuando em direção ao oceano. Eu digo a você que amaldiçoei Dawsons, Jamrachs, os museus e todo o resto com razão. Eu berrei para que esse paspalho retornasse até que minhas palavras se resumiram em gritos.”

“Não me restava nada mais além de nadar atrás dele e testar minha sorte com os tubarões. Então abri meu canivete e o agarrei entre os dentes, tirei minhas roupas e avancei em direção a canoa. Assim que entrei no mar perdi ela de vista, mas avancei como julguei prudente em linha reta. Desejei que o homem que estava nela fosse muito ruim de navegação, assim a canoa continuaria boiando na mesma direção. Novamente ela emergiu no horizonte bem ao sudoeste. O brilho do pôr-do-sol já havia acabado e a escuridão da noite já se fazia presente. As estrelas já estavam aparecendo no céu profundo. Nadei como um campeão de natação até que minhas pernas e braços começaram a doer.”

“Contudo, só o alcancei quando as estrelas estavam todas postas no céu. À medida que escurecia, comecei a ver todo tipo de coisa brilhante na água—fosforescentes, sabe. Em alguns momentos isso me deixava tonto. Eu dificilmente sabia distinguir as estrelas das coisas fosforescentes ou mesmo se estava nadando com minha cabeça ou com meus calcanhares. Estava muito escuro e eu estava ansioso para ver o que o sujeito estava aprontando. Ele parecia estar dormindo confortavelmente na proa e a popa estava seca. A canoa parecia dançar valsa ao flutuar sobre o mar. Então voltei para a popa e o esperei acordar, me preparando para a luta com o canivete. Porém ele não acordou. Restava eu, sentado na popa da pequena canoa, boiando sobre um mar calmo e fluorescente banhado por estrelas esperando por algum milagre.”

“Depois de muito tempo, chamei-lhe pelo nome, mas ele não respondia. Eu estava muito cansado e então cochilei. Quando o amanhecer chegou, vi que o nativo estava realmente morto como um peso de porta, todo inchado e roxo. Meus três ovos e os ossos estavam no meio da canoa, o barril d’água, um pouco de café e alguns biscoitos estavam embrulhados em um jornal aos pés do defunto, e uma lata de álcool desnaturado embaixo dele. Não havia remo, nem algo semelhante a um, com exceção da lata de álcool. Decidi boiar até ser achado. Fiz uma inspeção em seu corpo, determinei que a causa da morte fora a possível mordida da centopeia desconhecida e o joguei ao mar.”

“Depois tomei um gole d’água, comi alguns biscoitos e olhei ao redor. Eu não enxergava muito longe, então, suponho que o homem tenha afundado. No fim, Madagascar estava fora de vista. Enxerguei uma embarcação indo para o sudoeste — parecia uma escuna, mas seu casco nunca retornou ao horizonte. O sol já estava alto e começava a me incomodar. Jesus! — quase fritou meu cérebro de tão quente. Eu tentei me aliviar mergulhando a cabeça no mar, mas logo voltei minha atenção para o jornal, espichei meu corpo sobre a canoa e estendi as folhas sobre mim. Esses jornais são maravilhosos. Eu nunca havia lido um inteiramente antes, mas é diferente quando você fica entediado e sozinho como eu estava. Suponho que li aquela edição do jornal Cape Argus umas vinte vezes. Devido ao sol forte, o casco da canoa começou a cheirar mal e grandes bolhas apareceram.”

“Fiquei à deriva por dez dias”, disse o homem com a cicatriz. “Parece pouco ao contar, não é?” Todo dia parecia como se fosse o último. Nunca procurei por socorro durante o dia, pois o calor era infernal, restando-me apenas o amanhecer e a noite. Eu não vi nenhuma embarcação nos três primeiros dias e aquelas que eu vi não me avistaram. Por volta da sexta noite, um navio passou a quase 800 metros de mim, com todas as luzes acesas e as janelas abertas, parecendo um grande vagalume. Havia música a bordo. Levantei-me, gritei e berrei, mas nada. No segundo dia, peguei um dos ovos de Vorompatra, furei um buraco na casca e fiquei feliz por descobrir que ele estava bom o suficiente para comer. De certa forma saboroso — o gosto é bem parecido com ovos de pato. Havia uma espécie de mancha circular com cerca de quinze centímetros de um lado da gema com manchas de sangue e uma marca branca que eu achava estranha, mas não entendi o que isso significava na época, e eu não estava inclinado a saber. O ovo durou três dias, com biscoitos e um copo de água. Também mastiguei café — coisas revigorantes. O segundo ovo eu abri por volta do oitavo dia. E me assustou.”

O homem com a cicatriz fez uma pausa. “Sim”, ele disse — “em desenvolvimento.”

“Me atrevo a achar que você ache isso algo inacreditável. Eu também não acreditei no que vi. Lá o ovo estava, imerso naquela lama preta e fria, talvez por mais de trezentos anos. Mas não havia engano. Ali estava — qual o nome? — o embrião, com uma grande cabeça, as costas curvadas, o coração batendo abaixo da garganta e a gema murchando ao passo que o embrião se desenvolvia, cheia de grandes membranas que se espalhavam por toda a casca. Aqui estava eu chocando os ovos do maior de todos os pássaros extintos, em uma pequena canoa no meio do Oceano Índico. Se o velho Dawson soubesse disso! Essa experiência valeria mais que quatro anos de salário. O que você acha?”

“Contudo, tive que comer toda aquela coisa preciosa, cada pedacinho dela antes de ter avistado o arrecife. Algumas das bocadas foram bastante desagradáveis. Deixei o terceiro ovo em paz. Eu o coloquei contra a luz mas a casca estava dura a ponto de eu não ver nada além. E embora eu ache ter ouvido algum sangue pulsar, talvez tenha sido o eco nos meus próprios ouvidos.”

“Então veio o atol. Saindo do nascer do sol, por assim dizer, de repente, bem próximo a mim. A canoa flutuou direto até ele a cerca de 800 metros da costa — não mais, e então a corrente virou, e tive que remar o mais forte que pude com minhas mãos e pedaços do ovo de Vorompatra para chegar até o lugar. Assim, eu cheguei lá. Era apenas um atol comum com cerca de 6,5 quilômetros de extensão, com algumas árvores crescendo, uma pequena nascente e a lagoa cheia de peixes-papagaios. Levei o ovo para a praia e o coloquei em um bom lugar, bem acima das ondas da maré e exposto ao sol, para dar a ele toda a chance que pude, puxei a canoa para a costa e fui explorar o lugar. É estranho como um atol pode ser tão chato. Quando eu era criança, achava que nada poderia ser mais divertido do que as aventuras de Robinson Crusoé, mas esse lugar era tão monótono quanto um livro de sermões. Andei procurando coisas comestíveis e pensando em tudo que podia imaginar; mas eu lhe digo que estava entediado até a morte antes do primeiro dia terminar. Isso mostra a minha sorte — no mesmo dia em que desembarquei o tempo mudou. Uma tempestade passou ao norte e bateu sua asa sobre a ilha, e durante a noite a chuva e o vento uivante nos atingiram. Não precisaria de muita coisa para virar aquela canoa.”

“Eu estava dormindo embaixo da canoa e, felizmente, o ovo estava entre a areia mais alta da praia, e a primeira coisa que me lembro foi o som de cem pedras batendo no barco de uma só vez e uma corrente de água sobre o meu corpo. Eu estava sonhando que estava em Antananarivo, indo até a casa de Intoshi para perguntar a ela o que estava acontecendo, procurando por uma caixa de fósforos que costumava ficar no balcão. Então me lembrei de onde estava. As ondas fosforescentes rolando como se quisessem me comer, e o resto da noite negra como breu. O vento uivava forte. As nuvens pareciam tocar quase em minha cabeça, e a chuva caiu como se o céu estivesse alagado e estivessem jogando as águas para fora do firmamento. Uma grande onda veio em minha direção, como uma serpente raivosa, e eu fugi. Então lembrei da canoa, e corri até ela quando a água abaixou, mas ela se foi. Depois me preocupei com o ovo e fui diretamente até ele. Estava tudo bem e fora do alcance das ondas mais insanas, então me sentei ao lado dele e o abracei como companhia. Jesus! Que noite foi aquela!

“A tempestade terminou pela manhã. Não havia mais uma nuvem no céu quando o amanhecer chegou e ao longo de toda praia jaziam os pequenos pedaços de madeira — o esqueleto desarticulado de minha canoa. No entanto eles me serviram muito bem, tirando vantagem da posição de duas árvores consegui fazer um abrigo com os restos de madeira da canoa. Naquele mesmo dia o ovo chocou.”

“Chocou, meu caro, quando minha cabeça estava apoiada nele e eu estava dormindo. Ouvi uma barulho, senti uma trepidação e acordei, vi o ovo rachado com uma estranha cabecinha marrom olhando para mim. 'Jesus!', exclamei, ‘bem-vindo’ e, com um pouco de dificuldade, ele saiu.”

“A princípio, ele era um camaradinha amigável, do tamanho de uma pequena galinha — muito parecido com a maioria das aves jovens, só que maior. Para começar, ele tinha poucas penas, o restante de sua plumagem era de um marrom brilhoso com uma espécie de marca cinza que caiu logo depois. Mal posso expressar o quanto fiquei satisfeito em vê-lo. Eu lhe digo que Robinson Crusoé não aproveitou sua solidão. Mas aqui estava uma companhia interessante. Ele olhou para mim e piscou os olhos como uma galinha, deu um gorjeio e começou a bicar ao mesmo tempo, como se ser chocado trezentos anos mais tarde não fosse nada demais. 'Fico feliz em vê-lo, Man Friday!', eu disse. Naturalmente decidi que se o ovo chocasse, o filhote se chamaria Man Friday. Fiquei um pouco ansioso com sua alimentação, então o ofereci a ele um pedaço de peixe-papagaio cru. Ele pegou e abriu o bico para mais. Fiquei feliz com isso, além do mais, nas circunstâncias, se ele tivesse sido exigente, eu deveria tê-lo comido.”

"Você ficaria surpreso de como o filhote de Vorompatra era um pássaro interessante. Ele me seguiu desde o começo. Ficava ao meu lado assistindo enquanto pescava na lagoa e compartilhava tudo o que pegava. Ele também era sensível. Havia uma espécie de pepinos verdes bem nojentos que geralmente chegavam até a praia e ele experimentou um deles. Isso o entristeceu. Ele nunca mais olhou para nenhum deles novamente”

“Ele cresceu muito rápido. Eu nunca fui um homem social, seu jeito amigável me servia muito bem. Por aproximadamente dois anos nós fomos felizes naquela ilha. Eu não tinha problemas de trabalho, pois eu pensava que meus salários estavam se acumulando com o meu empregador. Víamos uma ou outra embarcação, mas nenhuma chegava minimamente perto da ilha. Também me diverti decorando a ilha com desenhos trabalhados em ouriços-do-mar e conchas extravagantes de vários tipos. Escrevi ILHA DO VOROMPATRA em quase todo o lugar, em letras grandes, como aqueles letreiros de arbustos que você vê nos gramados de alguns clubes. Eu costumava ficar observando aquele abençoado pássaro andando em volta, crescendo e crescendo. Cheguei a pensar que se algum dia saíssemos de lá, eu poderia ganhar a vida exibindo-o. Depois de sua primeira troca de penas, ele começou a ficar bonito, com uma crista, uma pompa azulada e muitas penas verdes atrás dele. E então eu costumava pensar se Dawsons tinha o direito de reivindicá-lo ou não. Nas tempestades e na estação chuvosa nos deitávamos sob o abrigo que eu construíra da velha canoa, e eu costumava contar mentiras sobre meus velhos amigos. Tínhamos um tipo de idílio, posso dizer. Se eu tivesse um pouco de tabaco, teria sido simplesmente o paraíso.”

“Foi no final do segundo ano que nosso pequeno paraíso deu errado. Friday tinha cerca de quatro metros de altura, com uma cabeça grande e larga como a ponta de uma picareta e dois enormes olhos castanhos com bordas amarelas como os olhos de um homem — não fora da vista um do outro como os de uma galinha. A plumagem dele era bonita — nenhum pouco parecida com o estilo de luto da avestruz — mais semelhante a um Casuar. Então ele começou a bater sua crista em mim e a se exibir, mostrando sinais de um temperamento desagradável.”

“Chegou um momento em que minha pescaria estava sendo bastante azarada e ele começou a me cutucar de uma maneira estranha e meditativa. Eu pensei que ele poderia ter se irritado ao comer aqueles pepinos do mar ou algo assim, mas era realmente apenas descontentamento da parte dele. Eu também estava com fome e, quando finalmente agarrei um peixe, o quis para mim. Os ânimos de ambos estavam curtos naquela manhã. Ele deu uma bicada no peixe e o agarrou, e eu lhe dei uma pancada na cabeça para fazê-lo soltar. E com isso ele revidou. Jesus!”

"Ele fez isso no meu rosto." O homem apontou para sua cicatriz. “Então ele me chutou. Era como um cavalo. Levantei-me e, vendo que ele não havia terminado, virei a todo vapor com os braços dobrados sobre o meu rosto. Mas ele correu com aquelas pernas desajeitadas mais rápidas que de um cavalo, e continuou aterrissando em mim com pontapés e cravando seu bico na parte de trás da minha cabeça. Fui para a lagoa e submergi até o pescoço. Ele parou diante da água, porque odiava molhar os pés e começou a fazer um barulho estranho, algo parecido com o de um pavão, apenas um pouco mais rouco. Então ele começou a andar de um lado para o outro. Admito que me senti pequeno ao ver esse fóssil abençoado dominando a área. Minha cabeça e rosto estavam todos sangrando e — bem, meu corpo parecia uma geleia de hematomas.”

“Decidi nadar pela lagoa e deixá-lo em paz por um tempo, até o caso acabar. Eu subi na palmeira mais alta e fiquei sentado pensando em tudo. Acho que nunca me senti tão magoado na minha vida. Eu era mais que um irmão para ele e fui pago com tamanha ingratidão. Eu o choquei. Eduquei. Um pássaro grande, desajeitado e antiquado! E eu um ser humano — herdeiro das eras e tudo mais.”

"Pensei que depois de um tempo ele começaria a ver as coisas sob uma nova perspectiva e sentiria um pouco pelo seu comportamento. Imaginei que, se eu fosse pegar alguns pedacinhos de peixe e levasse até ele de maneira casual, ele poderia fazer a coisa mais sensata. Levei algum tempo para aprender o quão impiedoso e briguento um pássaro extinto pode ser. Maldade pura!"

"Não te conto todas as artimanhas que tentei fazer para que aquele pássaro voltasse ao normal. Eu simplesmente não posso. Minhas bochechas ficam vermelhas de vergonha, mesmo agora ao pensar nos desprezos e desfeitas que recebi dessa ave. Eu tentei violência. Joguei pedaços de coral nele a uma distância segura, mas ele apenas os engolia. Joguei meu canivete aberto nele e quase o perdi, embora fosse grande demais para ele engolir. Tentei matá-lo de fome e parei de pescar, mas ele começou a andar pela praia em águas baixas a procura de vermes, e se sustentou disso. Passei metade do tempo dentro da lagoa e o restante encima das palmeiras. Uma deles não era alta o suficiente, e quando ele me viu, fez a festa com as panturrilhas das minhas pernas. Ficou insuportável. Não sei se você já tentou dormir em uma palmeira. Isso me deu os pesadelos mais horríveis. Pense na humilhação! Ali estava esse animal quase extinto vagando sobre minha ilha como um duque mal-humorado, e eu não tinha permissão para descansar as solas dos meus pés. Eu costumava chorar de cansaço e irritação. Disse a ele diretamente que não pretendia ser perseguido por uma ilha deserta por qualquer anacronismo maldito. Também falei a ele para ir e bicar um navegador de sua idade. Mas ele só batia o bico em mim. Grande pássaro feio — só tinha pernas e pescoço!”

"Eu não gostaria de dizer por quanto tempo tudo isso durou. Eu o mataria mais cedo se soubesse como. No mais, eu finalmente consegui resolver o problema. É uma técnica brasileira. Juntei todas as minhas linhas de pesca com hastes de algas e outras coisas, e fiz uma corda robusta, com cerca de doze metros de comprimento, prendi dois pedaços de rocha de coral na extremidade. Demorei algum tempo para terminar, porque de vez em quando eu tinha que correr para a lagoa ou subir em uma árvore conforme o precioso me ordenava. Girei rapidamente a corda e depois a soltei. Na primeira tentativa eu errei, mas na segunda a corda pegou lindamente nas suas pernas e as enrolou repetidamente. Ele desequilibrou-se e foi ao chão. Arrastei-o para dentro da lagoa até a cintura, e assim que ele caiu, eu estava fora da água serrando seu pescoço com meu canivete.” —

"Nem mesmo agora gosto de pensar nisso. Me senti como um assassino enquanto fazia isso, embora minha raiva estivesse fresca contra ele. Eu estava de pé sobre ele e o vi sangrando na areia branca e suas belas pernas e pescoço se contorcendo em sua última agonia — Pah!”

“Com essa tragédia, veio junto a solidão. Bom Jesus! Você não imagina como eu senti falta daquele pássaro. Sentei-me ao lado de seu cadáver e fiquei triste por ele, e tremi ao olhar em volta do recife silencioso e desolado. Lembrei de como era um passarinho alegre quando ele foi chocado e em mil brincadeiras agradáveis que ele feito antes de tudo dar errado. Eu pensei que, se tivesse apenas o machucado, poderia tê-lo ajudado a entender melhor. Se possuísse algum meio para cavar a rocha de coral, eu o enterraria. Sua perda foi sentida exatamente como se ele fosse humano. Como eu não conseguia pensar em comê-lo, coloquei-o na lagoa e os peixinhos o limparam. Então, um dia, um sujeito que passeava em um iate teve a curiosidade de ver se meu atol ainda existia.”

“Ele havia chegado na hora certa, pois eu já estava cansado da desolação, hesitando apenas em que maneira terminar o drama, me afogando no mar ou pulando das palmeiras.”

“Na volta, vendi os ossos a um homem chamado Winslow — um negociante perto do Museu Britânico, e ele disse que os vendeu para o velho Havers. Parece que Havers não entendeu que eles eram muito grandes e só depois da morte dele eles atraíram a atenção. Eles nomearam seu vorompatra de Aepyornis — algo assim?”

“Aepyornis vastus”, eu disse. “É engraçado, um amigo meu mencionou esse mesmo termo. Quando encontraram um vorompatra com uma coxa de um metro de comprimento, acharam que haviam atingido o topo da escala e o chamaram de Aepyornis maximus. Então alguém achou outro osso da coxa com um metro e quarenta, e eles o chamaram de Aepyornis Titan. Então depois que o velho Havers faleceu, o seu Vastus foi encontrado em sua coleção e ele se transformou em Vastissimus.

"Winslow estava me dizendo isso", disse o homem com a cicatriz. “Se eles acharem mais fosseis de Aepyornises, ele acha que algum capricho científico irá explodir um vaso sanguíneo. Isso foi algo estranho a acontecer com um homem; tudo junto — não foi?"

[1] Dawsons é a firma de Dawnson, o dono.

[2] Nenhum europeu é conhecido por ter visto um Vorompatra vivo com exceção duvidosa de MacAndrew que visitou Madagascar em 1745. H. G. W.

O homem com um rosto cicatrizado veio até a mesa e olhou para minha caixa.

“Orquídeas?” Ele indagou.

“Algumas,” eu respondi.

“Cypripediums?” Continuou ele.

“Grande parte”, afirmei.

“Alguma coisa nova? — Acho que não. Visitei essas ilhas a vinte e cinco, ou melhor vinte e sete anos atrás.  Se você achar algo novo por aqui — então, será algo realmente novo! Eu não deixei muito.”

“Eu não sou coletor”, falei.

“Eu era jovem,” ele prosseguiu. “Jesus! Como eu viajava.” Ele parecia estar me medindo. “Eu estive nas Índias Orientais por dois anos e no Brasil por sete. E então fui para Madagascar.”

“Conheço alguns desbravadores pelo nome”, eu disse antecipando a conversa. “Para qual firma você coletou?”

“Dawsons[1]. Gostaria de saber se você já ouviu falar no nome Butcher?”

“Butcher — Butcher?” O nome parecia vagamente estar presente em minha memória; então eu relembrei do caso de Butcher vs. Dawson. “Por quê?”, indaguei, “Ah! Você foi o cara que processou eles a pagarem quatro anos de salário acumulados — quando seu barco naufragou em uma ilha deserta.”

“Exatamente”, disse o homem com a cicatriz, curvando-se. “Caso engraçado, não é? Estava eu fazendo minha pequena fortuna naquela ilha sem muito esforço e eles foram incapazes de enviar ajuda. Costumava me divertir pensando sobre isso enquanto eu estava lá. Fiz cálculos — enormes — em todo o bendito atol em números ornamentais.

“Como isso aconteceu?” Perguntei. “Eu não me lembro bem do caso.”

“Bem — você já ouviu falar nos Vorompatras?”

"Vagamente. Andrews me falou de uma nova espécie que estava estudando há um mês atrás. Pouco antes de eu partir. Eles possuem um osso da coxa do animal, ao que parece, com quase um metro de comprimento. O bicho deve ter sido um monstro!”

“Concordo com você”, disse o homem com uma cicatriz no rosto. “Era realmente um monstro. O pássaro Roca era apenas uma lenda baseada nos Vorompatras. Você sabe quando encontraram esses ossos?”

“Há uns Três ou quatro anos atrás — em 1891 eu acho. Por quê?”

"Por quê? — Porque eu também os encontrei — Jesus! — Faz quase vinte anos. Se Dawsons não tivesse sido mesquinho com relação a esse salário, eles poderiam ter ganho uma fortuna. — Eu não tive culpa se o barco infernal ficasse à deriva."

Ele pausou. “Acho que eles acharam os ossos no mesmo lugar. Uma espécie de pântano acerca de noventa milhas ao norte de Antananarivo. Você tem ideia? Você precisa ir ao longo da costa de barco. Você se lembra?”

"Não me lembro. Imagino que Andrews tenha falado algo sobre um pântano.”

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_ILHA_DE_VAROMPRATA.jpg

 


“Deve ser o mesmo. Fica na costa leste. De alguma forma há algo na água que impede as coisas de se deteriorarem. Ela cheira à creosoto. Me faz lembrar de Trinidad. Eles acharam mais alguns ovos? Alguns dos ovos que eu achei tinham cerca de meio metro. O pântano corta toda ilha, sabe?  E a maior parte dele é salobre. Bons tempos! Encontrei os ossos por acidente. Fomos procurar ovos, eu e dois camaradas nativos, em uma daquelas canoas de rum e encontramos os ossos ao mesmo tempo. Tínhamos uma barraca e provisões para quatro dias. Montamos ela em um dos lugares mais firmes. Ainda hoje ao pensar nisso lembro daquele cheiro estranho. É um trabalho divertido. Sair pelo lamaçal explorando com ajuda de barras de ferro. Geralmente, os ovos saem quebrados. Eu me pergunto até quando os Vorompatras realmente existiram. Os missionários dizem que os nativos contam lendas sobre quando essas criaturas estavam vivas, mas eu nunca ouvi essas histórias.[2] Certamente os ovos que conseguimos pareciam tão frescos como se tivessem sido postos logo antes de acharmos. Fresquinhos! Ao carregá-los até o barco, um dos nativos deixou o ovo que estava carregando cair em uma rocha. Ele quebrou. Como eu fiquei furioso! O nativo disse que uma centopeia havia o mordido. O ovo era doce como se estivesse fresco, nem ao menos cheirava mal e pensar que sua mãe poderia estar morta a mais de quatrocentos anos. Bom, irei resumir a história. Levamos o dia todo para sair da lama com esses ovos sem quebrá-los, e todos nós estávamos cobertos de lama negra, e naturalmente eu estava zangado. Até onde eu sabia, eles eram os únicos ovos intactos que haviam saído daquela ilha. Depois fui ver os que eles tinham no Museu de História Natural de Londres: todos tinham rachaduras e eram colados como se fossem mosaicos faltando alguns pedaços. Os meus eram perfeitos, e eu pretendia repassá-los quando voltasse. Naturalmente, fiquei irritado com o nativo inútil que me fez perder três horas de trabalho apenas por causa de uma centopeia. Eu bati nele um pouco.

“O homem com a cicatriz tirou de seu bolso um cachimbo. Eu coloquei minha caixa à sua frente. Ele deu um trago distraidamente.”

“Quanto aos outros ovos? Você os levou para casa? Eu não me lembro.”

“Essa é a parte mais estranha da história. Eu tinha os outros três ovos. Perfeitamente frescos. Nós colocamos eles no barco e então eu fui até a tenda para fazer um pouco de café, deixando meus dois ajudantes pagãos logo abaixo na praia—um reclamando da mordida que havia levado e o outro tentando ajudar. Nunca passou pela minha cabeça que os dois idiotas tomariam vantagem da posição em que eu me encontrava para se rebelarem. Suponho que o veneno da centopeia e os meus murros chatearam um deles. Ele era do tipo briguento—e então convenceu o outro.

“Eu me lembro que estava sentado, fumando e aquecendo a água em uma espiriteira que eu costumava levar nessas expedições. Naquela ocasião eu estava admirando o sob o pôr do sol, o pântano. Todo em faixas pretas e vermelhas — uma bela vista. Logo acima, as rochas banhadas em um tom rosa acinzentado, enevoadas até o pico da colina e o céu ao fundo vermelho como uma boca de forno. E a cinquenta metros de mim estavam esses dois abençoados pagãos—bem entendidos do ar de calmaria das coisas—conspirando a partir com o barco me deixando sozinho com somente três dias de mantimentos, uma barraca de lona e nada para beber além de um cantil d’água.   Eu ouvi um tipo de grito atrás de mim e lá estavam eles na tramoia do barco—não era propriamente um barco—talvez a vinte cinco metros da costa. Eu entendi o que estava acontecendo instantaneamente. Minha espingarda estava na tenda e além do mais não tinha munição. Eles sabiam disso. Mas eu tinha um pequeno revolver comigo, comecei a correr até a praia e tirei o revolver do bolso.

“Voltem agora!” gritei, acenando para eles.

“Eles tagarelaram algo para mim e o cara que quebrou um dos ovos zombou. Eu mirei no outro—porque ele não tinham ferimentos e estava com o remo. Errei o tiro. Eles riram. No entanto eu não tinha desistido. Eu sabia que devia ficar calmo e tentei novamente. No terceiro tiro creio que acertei sua cabeça e ele caiu levando consigo o remo. Foi um tiro certeiro para um revolver. Eu acho que a canoa estava a quarenta e cinco metros de distância. Não sei se ele foi realmente atingido ou abismado pelos disparos tivera se afogado. Então comecei a gritar para o outro sujeito voltar, mas ele se deitou na canoa e ignorou-me. Gastei todas as balas do revólver mas nenhuma o acertou.”

“Eu me senti um tremendo idiota, posso lhe dizer. Lá estava eu naquela praia podre e lamacenta, todo o pântano atrás de mim, o mar à minha frente, frio após o pôr do sol e a canoa flutuando em direção ao oceano. Eu digo a você que amaldiçoei Dawsons, Jamrachs, os museus e todo o resto com razão. Eu berrei para que esse paspalho retornasse até que minhas palavras se resumiram em gritos.”

“Não me restava nada mais além de nadar atrás dele e testar minha sorte com os tubarões. Então abri meu canivete e o agarrei entre os dentes, tirei minhas roupas e avancei em direção a canoa. Assim que entrei no mar perdi ela de vista, mas avancei como julguei prudente em linha reta. Desejei que o homem que estava nela fosse muito ruim de navegação, assim a canoa continuaria boiando na mesma direção. Novamente ela emergiu no horizonte bem ao sudoeste. O brilho do pôr-do-sol já havia acabado e a escuridão da noite já se fazia presente. As estrelas já estavam aparecendo no céu profundo. Nadei como um campeão de natação até que minhas pernas e braços começaram a doer.”

“Contudo, só o alcancei quando as estrelas estavam todas postas no céu. À medida que escurecia, comecei a ver todo tipo de coisa brilhante na água—fosforescentes, sabe. Em alguns momentos isso me deixava tonto. Eu dificilmente sabia distinguir as estrelas das coisas fosforescentes ou mesmo se estava nadando com minha cabeça ou com meus calcanhares. Estava muito escuro e eu estava ansioso para ver o que o sujeito estava aprontando. Ele parecia estar dormindo confortavelmente na proa e a popa estava seca. A canoa parecia dançar valsa ao flutuar sobre o mar. Então voltei para a popa e o esperei acordar, me preparando para a luta com o canivete. Porém ele não acordou. Restava eu, sentado na popa da pequena canoa, boiando sobre um mar calmo e fluorescente banhado por estrelas esperando por algum milagre.”

“Depois de muito tempo, chamei-lhe pelo nome, mas ele não respondia. Eu estava muito cansado e então cochilei. Quando o amanhecer chegou, vi que o nativo estava realmente morto como um peso de porta, todo inchado e roxo. Meus três ovos e os ossos estavam no meio da canoa, o barril d’água, um pouco de café e alguns biscoitos estavam embrulhados em um jornal aos pés do defunto, e uma lata de álcool desnaturado embaixo dele. Não havia remo, nem algo semelhante a um, com exceção da lata de álcool. Decidi boiar até ser achado. Fiz uma inspeção em seu corpo, determinei que a causa da morte fora a possível mordida da centopeia desconhecida e o joguei ao mar.”

“Depois tomei um gole d’água, comi alguns biscoitos e olhei ao redor. Eu não enxergava muito longe, então, suponho que o homem tenha afundado. No fim, Madagascar estava fora de vista. Enxerguei uma embarcação indo para o sudoeste — parecia uma escuna, mas seu casco nunca retornou ao horizonte. O sol já estava alto e começava a me incomodar. Jesus! — quase fritou meu cérebro de tão quente. Eu tentei me aliviar mergulhando a cabeça no mar, mas logo voltei minha atenção para o jornal, espichei meu corpo sobre a canoa e estendi as folhas sobre mim. Esses jornais são maravilhosos. Eu nunca havia lido um inteiramente antes, mas é diferente quando você fica entediado e sozinho como eu estava. Suponho que li aquela edição do jornal Cape Argus umas vinte vezes. Devido ao sol forte, o casco da canoa começou a cheirar mal e grandes bolhas apareceram.”

“Fiquei à deriva por dez dias”, disse o homem com a cicatriz. “Parece pouco ao contar, não é?” Todo dia parecia como se fosse o último. Nunca procurei por socorro durante o dia, pois o calor era infernal, restando-me apenas o amanhecer e a noite. Eu não vi nenhuma embarcação nos três primeiros dias e aquelas que eu vi não me avistaram. Por volta da sexta noite, um navio passou a quase 800 metros de mim, com todas as luzes acesas e as janelas abertas, parecendo um grande vagalume. Havia música a bordo. Levantei-me, gritei e berrei, mas nada. No segundo dia, peguei um dos ovos de Vorompatra, furei um buraco na casca e fiquei feliz por descobrir que ele estava bom o suficiente para comer. De certa forma saboroso — o gosto é bem parecido com ovos de pato. Havia uma espécie de mancha circular com cerca de quinze centímetros de um lado da gema com manchas de sangue e uma marca branca que eu achava estranha, mas não entendi o que isso significava na época, e eu não estava inclinado a saber. O ovo durou três dias, com biscoitos e um copo de água. Também mastiguei café — coisas revigorantes. O segundo ovo eu abri por volta do oitavo dia. E me assustou.”

O homem com a cicatriz fez uma pausa. “Sim”, ele disse — “em desenvolvimento.”

“Me atrevo a achar que você ache isso algo inacreditável. Eu também não acreditei no que vi. Lá o ovo estava, imerso naquela lama preta e fria, talvez por mais de trezentos anos. Mas não havia engano. Ali estava — qual o nome? — o embrião, com uma grande cabeça, as costas curvadas, o coração batendo abaixo da garganta e a gema murchando ao passo que o embrião se desenvolvia, cheia de grandes membranas que se espalhavam por toda a casca. Aqui estava eu chocando os ovos do maior de todos os pássaros extintos, em uma pequena canoa no meio do Oceano Índico. Se o velho Dawson soubesse disso! Essa experiência valeria mais que quatro anos de salário. O que você acha?”

“Contudo, tive que comer toda aquela coisa preciosa, cada pedacinho dela antes de ter avistado o arrecife. Algumas das bocadas foram bastante desagradáveis. Deixei o terceiro ovo em paz. Eu o coloquei contra a luz mas a casca estava dura a ponto de eu não ver nada além. E embora eu ache ter ouvido algum sangue pulsar, talvez tenha sido o eco nos meus próprios ouvidos.”

“Então veio o atol. Saindo do nascer do sol, por assim dizer, de repente, bem próximo a mim. A canoa flutuou direto até ele a cerca de 800 metros da costa — não mais, e então a corrente virou, e tive que remar o mais forte que pude com minhas mãos e pedaços do ovo de Vorompatra para chegar até o lugar. Assim, eu cheguei lá. Era apenas um atol comum com cerca de 6,5 quilômetros de extensão, com algumas árvores crescendo, uma pequena nascente e a lagoa cheia de peixes-papagaios. Levei o ovo para a praia e o coloquei em um bom lugar, bem acima das ondas da maré e exposto ao sol, para dar a ele toda a chance que pude, puxei a canoa para a costa e fui explorar o lugar. É estranho como um atol pode ser tão chato. Quando eu era criança, achava que nada poderia ser mais divertido do que as aventuras de Robinson Crusoé, mas esse lugar era tão monótono quanto um livro de sermões. Andei procurando coisas comestíveis e pensando em tudo que podia imaginar; mas eu lhe digo que estava entediado até a morte antes do primeiro dia terminar. Isso mostra a minha sorte — no mesmo dia em que desembarquei o tempo mudou. Uma tempestade passou ao norte e bateu sua asa sobre a ilha, e durante a noite a chuva e o vento uivante nos atingiram. Não precisaria de muita coisa para virar aquela canoa.”

“Eu estava dormindo embaixo da canoa e, felizmente, o ovo estava entre a areia mais alta da praia, e a primeira coisa que me lembro foi o som de cem pedras batendo no barco de uma só vez e uma corrente de água sobre o meu corpo. Eu estava sonhando que estava em Antananarivo, indo até a casa de Intoshi para perguntar a ela o que estava acontecendo, procurando por uma caixa de fósforos que costumava ficar no balcão. Então me lembrei de onde estava. As ondas fosforescentes rolando como se quisessem me comer, e o resto da noite negra como breu. O vento uivava forte. As nuvens pareciam tocar quase em minha cabeça, e a chuva caiu como se o céu estivesse alagado e estivessem jogando as águas para fora do firmamento. Uma grande onda veio em minha direção, como uma serpente raivosa, e eu fugi. Então lembrei da canoa, e corri até ela quando a água abaixou, mas ela se foi. Depois me preocupei com o ovo e fui diretamente até ele. Estava tudo bem e fora do alcance das ondas mais insanas, então me sentei ao lado dele e o abracei como companhia. Jesus! Que noite foi aquela!

“A tempestade terminou pela manhã. Não havia mais uma nuvem no céu quando o amanhecer chegou e ao longo de toda praia jaziam os pequenos pedaços de madeira — o esqueleto desarticulado de minha canoa. No entanto eles me serviram muito bem, tirando vantagem da posição de duas árvores consegui fazer um abrigo com os restos de madeira da canoa. Naquele mesmo dia o ovo chocou.”

“Chocou, meu caro, quando minha cabeça estava apoiada nele e eu estava dormindo. Ouvi uma barulho, senti uma trepidação e acordei, vi o ovo rachado com uma estranha cabecinha marrom olhando para mim. 'Jesus!', exclamei, ‘bem-vindo’ e, com um pouco de dificuldade, ele saiu.”

“A princípio, ele era um camaradinha amigável, do tamanho de uma pequena galinha — muito parecido com a maioria das aves jovens, só que maior. Para começar, ele tinha poucas penas, o restante de sua plumagem era de um marrom brilhoso com uma espécie de marca cinza que caiu logo depois. Mal posso expressar o quanto fiquei satisfeito em vê-lo. Eu lhe digo que Robinson Crusoé não aproveitou sua solidão. Mas aqui estava uma companhia interessante. Ele olhou para mim e piscou os olhos como uma galinha, deu um gorjeio e começou a bicar ao mesmo tempo, como se ser chocado trezentos anos mais tarde não fosse nada demais. 'Fico feliz em vê-lo, Man Friday!', eu disse. Naturalmente decidi que se o ovo chocasse, o filhote se chamaria Man Friday. Fiquei um pouco ansioso com sua alimentação, então o ofereci a ele um pedaço de peixe-papagaio cru. Ele pegou e abriu o bico para mais. Fiquei feliz com isso, além do mais, nas circunstâncias, se ele tivesse sido exigente, eu deveria tê-lo comido.”

"Você ficaria surpreso de como o filhote de Vorompatra era um pássaro interessante. Ele me seguiu desde o começo. Ficava ao meu lado assistindo enquanto pescava na lagoa e compartilhava tudo o que pegava. Ele também era sensível. Havia uma espécie de pepinos verdes bem nojentos que geralmente chegavam até a praia e ele experimentou um deles. Isso o entristeceu. Ele nunca mais olhou para nenhum deles novamente”

“Ele cresceu muito rápido. Eu nunca fui um homem social, seu jeito amigável me servia muito bem. Por aproximadamente dois anos nós fomos felizes naquela ilha. Eu não tinha problemas de trabalho, pois eu pensava que meus salários estavam se acumulando com o meu empregador. Víamos uma ou outra embarcação, mas nenhuma chegava minimamente perto da ilha. Também me diverti decorando a ilha com desenhos trabalhados em ouriços-do-mar e conchas extravagantes de vários tipos. Escrevi ILHA DO VOROMPATRA em quase todo o lugar, em letras grandes, como aqueles letreiros de arbustos que você vê nos gramados de alguns clubes. Eu costumava ficar observando aquele abençoado pássaro andando em volta, crescendo e crescendo. Cheguei a pensar que se algum dia saíssemos de lá, eu poderia ganhar a vida exibindo-o. Depois de sua primeira troca de penas, ele começou a ficar bonito, com uma crista, uma pompa azulada e muitas penas verdes atrás dele. E então eu costumava pensar se Dawsons tinha o direito de reivindicá-lo ou não. Nas tempestades e na estação chuvosa nos deitávamos sob o abrigo que eu construíra da velha canoa, e eu costumava contar mentiras sobre meus velhos amigos. Tínhamos um tipo de idílio, posso dizer. Se eu tivesse um pouco de tabaco, teria sido simplesmente o paraíso.”

“Foi no final do segundo ano que nosso pequeno paraíso deu errado. Friday tinha cerca de quatro metros de altura, com uma cabeça grande e larga como a ponta de uma picareta e dois enormes olhos castanhos com bordas amarelas como os olhos de um homem — não fora da vista um do outro como os de uma galinha. A plumagem dele era bonita — nenhum pouco parecida com o estilo de luto da avestruz — mais semelhante a um Casuar. Então ele começou a bater sua crista em mim e a se exibir, mostrando sinais de um temperamento desagradável.”

“Chegou um momento em que minha pescaria estava sendo bastante azarada e ele começou a me cutucar de uma maneira estranha e meditativa. Eu pensei que ele poderia ter se irritado ao comer aqueles pepinos do mar ou algo assim, mas era realmente apenas descontentamento da parte dele. Eu também estava com fome e, quando finalmente agarrei um peixe, o quis para mim. Os ânimos de ambos estavam curtos naquela manhã. Ele deu uma bicada no peixe e o agarrou, e eu lhe dei uma pancada na cabeça para fazê-lo soltar. E com isso ele revidou. Jesus!”

"Ele fez isso no meu rosto." O homem apontou para sua cicatriz. “Então ele me chutou. Era como um cavalo. Levantei-me e, vendo que ele não havia terminado, virei a todo vapor com os braços dobrados sobre o meu rosto. Mas ele correu com aquelas pernas desajeitadas mais rápidas que de um cavalo, e continuou aterrissando em mim com pontapés e cravando seu bico na parte de trás da minha cabeça. Fui para a lagoa e submergi até o pescoço. Ele parou diante da água, porque odiava molhar os pés e começou a fazer um barulho estranho, algo parecido com o de um pavão, apenas um pouco mais rouco. Então ele começou a andar de um lado para o outro. Admito que me senti pequeno ao ver esse fóssil abençoado dominando a área. Minha cabeça e rosto estavam todos sangrando e — bem, meu corpo parecia uma geleia de hematomas.”

“Decidi nadar pela lagoa e deixá-lo em paz por um tempo, até o caso acabar. Eu subi na palmeira mais alta e fiquei sentado pensando em tudo. Acho que nunca me senti tão magoado na minha vida. Eu era mais que um irmão para ele e fui pago com tamanha ingratidão. Eu o choquei. Eduquei. Um pássaro grande, desajeitado e antiquado! E eu um ser humano — herdeiro das eras e tudo mais.”

"Pensei que depois de um tempo ele começaria a ver as coisas sob uma nova perspectiva e sentiria um pouco pelo seu comportamento. Imaginei que, se eu fosse pegar alguns pedacinhos de peixe e levasse até ele de maneira casual, ele poderia fazer a coisa mais sensata. Levei algum tempo para aprender o quão impiedoso e briguento um pássaro extinto pode ser. Maldade pura!"

"Não te conto todas as artimanhas que tentei fazer para que aquele pássaro voltasse ao normal. Eu simplesmente não posso. Minhas bochechas ficam vermelhas de vergonha, mesmo agora ao pensar nos desprezos e desfeitas que recebi dessa ave. Eu tentei violência. Joguei pedaços de coral nele a uma distância segura, mas ele apenas os engolia. Joguei meu canivete aberto nele e quase o perdi, embora fosse grande demais para ele engolir. Tentei matá-lo de fome e parei de pescar, mas ele começou a andar pela praia em águas baixas a procura de vermes, e se sustentou disso. Passei metade do tempo dentro da lagoa e o restante encima das palmeiras. Uma deles não era alta o suficiente, e quando ele me viu, fez a festa com as panturrilhas das minhas pernas. Ficou insuportável. Não sei se você já tentou dormir em uma palmeira. Isso me deu os pesadelos mais horríveis. Pense na humilhação! Ali estava esse animal quase extinto vagando sobre minha ilha como um duque mal-humorado, e eu não tinha permissão para descansar as solas dos meus pés. Eu costumava chorar de cansaço e irritação. Disse a ele diretamente que não pretendia ser perseguido por uma ilha deserta por qualquer anacronismo maldito. Também falei a ele para ir e bicar um navegador de sua idade. Mas ele só batia o bico em mim. Grande pássaro feio — só tinha pernas e pescoço!”

"Eu não gostaria de dizer por quanto tempo tudo isso durou. Eu o mataria mais cedo se soubesse como. No mais, eu finalmente consegui resolver o problema. É uma técnica brasileira. Juntei todas as minhas linhas de pesca com hastes de algas e outras coisas, e fiz uma corda robusta, com cerca de doze metros de comprimento, prendi dois pedaços de rocha de coral na extremidade. Demorei algum tempo para terminar, porque de vez em quando eu tinha que correr para a lagoa ou subir em uma árvore conforme o precioso me ordenava. Girei rapidamente a corda e depois a soltei. Na primeira tentativa eu errei, mas na segunda a corda pegou lindamente nas suas pernas e as enrolou repetidamente. Ele desequilibrou-se e foi ao chão. Arrastei-o para dentro da lagoa até a cintura, e assim que ele caiu, eu estava fora da água serrando seu pescoço com meu canivete.” —

"Nem mesmo agora gosto de pensar nisso. Me senti como um assassino enquanto fazia isso, embora minha raiva estivesse fresca contra ele. Eu estava de pé sobre ele e o vi sangrando na areia branca e suas belas pernas e pescoço se contorcendo em sua última agonia — Pah!”

“Com essa tragédia, veio junto a solidão. Bom Jesus! Você não imagina como eu senti falta daquele pássaro. Sentei-me ao lado de seu cadáver e fiquei triste por ele, e tremi ao olhar em volta do recife silencioso e desolado. Lembrei de como era um passarinho alegre quando ele foi chocado e em mil brincadeiras agradáveis que ele feito antes de tudo dar errado. Eu pensei que, se tivesse apenas o machucado, poderia tê-lo ajudado a entender melhor. Se possuísse algum meio para cavar a rocha de coral, eu o enterraria. Sua perda foi sentida exatamente como se ele fosse humano. Como eu não conseguia pensar em comê-lo, coloquei-o na lagoa e os peixinhos o limparam. Então, um dia, um sujeito que passeava em um iate teve a curiosidade de ver se meu atol ainda existia.”

“Ele havia chegado na hora certa, pois eu já estava cansado da desolação, hesitando apenas em que maneira terminar o drama, me afogando no mar ou pulando das palmeiras.”

“Na volta, vendi os ossos a um homem chamado Winslow — um negociante perto do Museu Britânico, e ele disse que os vendeu para o velho Havers. Parece que Havers não entendeu que eles eram muito grandes e só depois da morte dele eles atraíram a atenção. Eles nomearam seu vorompatra de Aepyornis — algo assim?”

“Aepyornis vastus”, eu disse. “É engraçado, um amigo meu mencionou esse mesmo termo. Quando encontraram um vorompatra com uma coxa de um metro de comprimento, acharam que haviam atingido o topo da escala e o chamaram de Aepyornis maximus. Então alguém achou outro osso da coxa com um metro e quarenta, e eles o chamaram de Aepyornis Titan. Então depois que o velho Havers faleceu, o seu Vastus foi encontrado em sua coleção e ele se transformou em Vastissimus.

"Winslow estava me dizendo isso", disse o homem com a cicatriz. “Se eles acharem mais fosseis de Aepyornises, ele acha que algum capricho científico irá explodir um vaso sanguíneo. Isso foi algo estranho a acontecer com um homem; tudo junto — não foi?"

[1] Dawsons é a firma de Dawnson, o dono.

[2] Nenhum europeu é conhecido por ter visto um Vorompatra vivo com exceção duvidosa de MacAndrew que visitou Madagascar em 1745. H. G. W.

O homem com um rosto cicatrizado veio até a mesa e olhou para minha caixa.

“Orquídeas?” Ele indagou.

“Algumas,” eu respondi.

“Cypripediums?” Continuou ele.

“Grande parte”, afirmei.

“Alguma coisa nova? — Acho que não. Visitei essas ilhas a vinte e cinco, ou melhor vinte e sete anos atrás.  Se você achar algo novo por aqui — então, será algo realmente novo! Eu não deixei muito.”

“Eu não sou coletor”, falei.

“Eu era jovem,” ele prosseguiu. “Jesus! Como eu viajava.” Ele parecia estar me medindo. “Eu estive nas Índias Orientais por dois anos e no Brasil por sete. E então fui para Madagascar.”

“Conheço alguns desbravadores pelo nome”, eu disse antecipando a conversa. “Para qual firma você coletou?”

“Dawsons[1]. Gostaria de saber se você já ouviu falar no nome Butcher?”

“Butcher — Butcher?” O nome parecia vagamente estar presente em minha memória; então eu relembrei do caso de Butcher vs. Dawson. “Por quê?”, indaguei, “Ah! Você foi o cara que processou eles a pagarem quatro anos de salário acumulados — quando seu barco naufragou em uma ilha deserta.”

“Exatamente”, disse o homem com a cicatriz, curvando-se. “Caso engraçado, não é? Estava eu fazendo minha pequena fortuna naquela ilha sem muito esforço e eles foram incapazes de enviar ajuda. Costumava me divertir pensando sobre isso enquanto eu estava lá. Fiz cálculos — enormes — em todo o bendito atol em números ornamentais.

“Como isso aconteceu?” Perguntei. “Eu não me lembro bem do caso.”

“Bem — você já ouviu falar nos Vorompatras?”

"Vagamente. Andrews me falou de uma nova espécie que estava estudando há um mês atrás. Pouco antes de eu partir. Eles possuem um osso da coxa do animal, ao que parece, com quase um metro de comprimento. O bicho deve ter sido um monstro!”

“Concordo com você”, disse o homem com uma cicatriz no rosto. “Era realmente um monstro. O pássaro Roca era apenas uma lenda baseada nos Vorompatras. Você sabe quando encontraram esses ossos?”

“Há uns Três ou quatro anos atrás — em 1891 eu acho. Por quê?”

"Por quê? — Porque eu também os encontrei — Jesus! — Faz quase vinte anos. Se Dawsons não tivesse sido mesquinho com relação a esse salário, eles poderiam ter ganho uma fortuna. — Eu não tive culpa se o barco infernal ficasse à deriva."

Ele pausou. “Acho que eles acharam os ossos no mesmo lugar. Uma espécie de pântano acerca de noventa milhas ao norte de Antananarivo. Você tem ideia? Você precisa ir ao longo da costa de barco. Você se lembra?”

"Não me lembro. Imagino que Andrews tenha falado algo sobre um pântano.”

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_ILHA_DE_VAROMPRATA.jpg

 


“Deve ser o mesmo. Fica na costa leste. De alguma forma há algo na água que impede as coisas de se deteriorarem. Ela cheira à creosoto. Me faz lembrar de Trinidad. Eles acharam mais alguns ovos? Alguns dos ovos que eu achei tinham cerca de meio metro. O pântano corta toda ilha, sabe?  E a maior parte dele é salobre. Bons tempos! Encontrei os ossos por acidente. Fomos procurar ovos, eu e dois camaradas nativos, em uma daquelas canoas de rum e encontramos os ossos ao mesmo tempo. Tínhamos uma barraca e provisões para quatro dias. Montamos ela em um dos lugares mais firmes. Ainda hoje ao pensar nisso lembro daquele cheiro estranho. É um trabalho divertido. Sair pelo lamaçal explorando com ajuda de barras de ferro. Geralmente, os ovos saem quebrados. Eu me pergunto até quando os Vorompatras realmente existiram. Os missionários dizem que os nativos contam lendas sobre quando essas criaturas estavam vivas, mas eu nunca ouvi essas histórias.[2] Certamente os ovos que conseguimos pareciam tão frescos como se tivessem sido postos logo antes de acharmos. Fresquinhos! Ao carregá-los até o barco, um dos nativos deixou o ovo que estava carregando cair em uma rocha. Ele quebrou. Como eu fiquei furioso! O nativo disse que uma centopeia havia o mordido. O ovo era doce como se estivesse fresco, nem ao menos cheirava mal e pensar que sua mãe poderia estar morta a mais de quatrocentos anos. Bom, irei resumir a história. Levamos o dia todo para sair da lama com esses ovos sem quebrá-los, e todos nós estávamos cobertos de lama negra, e naturalmente eu estava zangado. Até onde eu sabia, eles eram os únicos ovos intactos que haviam saído daquela ilha. Depois fui ver os que eles tinham no Museu de História Natural de Londres: todos tinham rachaduras e eram colados como se fossem mosaicos faltando alguns pedaços. Os meus eram perfeitos, e eu pretendia repassá-los quando voltasse. Naturalmente, fiquei irritado com o nativo inútil que me fez perder três horas de trabalho apenas por causa de uma centopeia. Eu bati nele um pouco.

“O homem com a cicatriz tirou de seu bolso um cachimbo. Eu coloquei minha caixa à sua frente. Ele deu um trago distraidamente.”

“Quanto aos outros ovos? Você os levou para casa? Eu não me lembro.”

“Essa é a parte mais estranha da história. Eu tinha os outros três ovos. Perfeitamente frescos. Nós colocamos eles no barco e então eu fui até a tenda para fazer um pouco de café, deixando meus dois ajudantes pagãos logo abaixo na praia—um reclamando da mordida que havia levado e o outro tentando ajudar. Nunca passou pela minha cabeça que os dois idiotas tomariam vantagem da posição em que eu me encontrava para se rebelarem. Suponho que o veneno da centopeia e os meus murros chatearam um deles. Ele era do tipo briguento—e então convenceu o outro.

“Eu me lembro que estava sentado, fumando e aquecendo a água em uma espiriteira que eu costumava levar nessas expedições. Naquela ocasião eu estava admirando o sob o pôr do sol, o pântano. Todo em faixas pretas e vermelhas — uma bela vista. Logo acima, as rochas banhadas em um tom rosa acinzentado, enevoadas até o pico da colina e o céu ao fundo vermelho como uma boca de forno. E a cinquenta metros de mim estavam esses dois abençoados pagãos—bem entendidos do ar de calmaria das coisas—conspirando a partir com o barco me deixando sozinho com somente três dias de mantimentos, uma barraca de lona e nada para beber além de um cantil d’água.   Eu ouvi um tipo de grito atrás de mim e lá estavam eles na tramoia do barco—não era propriamente um barco—talvez a vinte cinco metros da costa. Eu entendi o que estava acontecendo instantaneamente. Minha espingarda estava na tenda e além do mais não tinha munição. Eles sabiam disso. Mas eu tinha um pequeno revolver comigo, comecei a correr até a praia e tirei o revolver do bolso.

“Voltem agora!” gritei, acenando para eles.

“Eles tagarelaram algo para mim e o cara que quebrou um dos ovos zombou. Eu mirei no outro—porque ele não tinham ferimentos e estava com o remo. Errei o tiro. Eles riram. No entanto eu não tinha desistido. Eu sabia que devia ficar calmo e tentei novamente. No terceiro tiro creio que acertei sua cabeça e ele caiu levando consigo o remo. Foi um tiro certeiro para um revolver. Eu acho que a canoa estava a quarenta e cinco metros de distância. Não sei se ele foi realmente atingido ou abismado pelos disparos tivera se afogado. Então comecei a gritar para o outro sujeito voltar, mas ele se deitou na canoa e ignorou-me. Gastei todas as balas do revólver mas nenhuma o acertou.”

“Eu me senti um tremendo idiota, posso lhe dizer. Lá estava eu naquela praia podre e lamacenta, todo o pântano atrás de mim, o mar à minha frente, frio após o pôr do sol e a canoa flutuando em direção ao oceano. Eu digo a você que amaldiçoei Dawsons, Jamrachs, os museus e todo o resto com razão. Eu berrei para que esse paspalho retornasse até que minhas palavras se resumiram em gritos.”

“Não me restava nada mais além de nadar atrás dele e testar minha sorte com os tubarões. Então abri meu canivete e o agarrei entre os dentes, tirei minhas roupas e avancei em direção a canoa. Assim que entrei no mar perdi ela de vista, mas avancei como julguei prudente em linha reta. Desejei que o homem que estava nela fosse muito ruim de navegação, assim a canoa continuaria boiando na mesma direção. Novamente ela emergiu no horizonte bem ao sudoeste. O brilho do pôr-do-sol já havia acabado e a escuridão da noite já se fazia presente. As estrelas já estavam aparecendo no céu profundo. Nadei como um campeão de natação até que minhas pernas e braços começaram a doer.”

“Contudo, só o alcancei quando as estrelas estavam todas postas no céu. À medida que escurecia, comecei a ver todo tipo de coisa brilhante na água—fosforescentes, sabe. Em alguns momentos isso me deixava tonto. Eu dificilmente sabia distinguir as estrelas das coisas fosforescentes ou mesmo se estava nadando com minha cabeça ou com meus calcanhares. Estava muito escuro e eu estava ansioso para ver o que o sujeito estava aprontando. Ele parecia estar dormindo confortavelmente na proa e a popa estava seca. A canoa parecia dançar valsa ao flutuar sobre o mar. Então voltei para a popa e o esperei acordar, me preparando para a luta com o canivete. Porém ele não acordou. Restava eu, sentado na popa da pequena canoa, boiando sobre um mar calmo e fluorescente banhado por estrelas esperando por algum milagre.”

“Depois de muito tempo, chamei-lhe pelo nome, mas ele não respondia. Eu estava muito cansado e então cochilei. Quando o amanhecer chegou, vi que o nativo estava realmente morto como um peso de porta, todo inchado e roxo. Meus três ovos e os ossos estavam no meio da canoa, o barril d’água, um pouco de café e alguns biscoitos estavam embrulhados em um jornal aos pés do defunto, e uma lata de álcool desnaturado embaixo dele. Não havia remo, nem algo semelhante a um, com exceção da lata de álcool. Decidi boiar até ser achado. Fiz uma inspeção em seu corpo, determinei que a causa da morte fora a possível mordida da centopeia desconhecida e o joguei ao mar.”

“Depois tomei um gole d’água, comi alguns biscoitos e olhei ao redor. Eu não enxergava muito longe, então, suponho que o homem tenha afundado. No fim, Madagascar estava fora de vista. Enxerguei uma embarcação indo para o sudoeste — parecia uma escuna, mas seu casco nunca retornou ao horizonte. O sol já estava alto e começava a me incomodar. Jesus! — quase fritou meu cérebro de tão quente. Eu tentei me aliviar mergulhando a cabeça no mar, mas logo voltei minha atenção para o jornal, espichei meu corpo sobre a canoa e estendi as folhas sobre mim. Esses jornais são maravilhosos. Eu nunca havia lido um inteiramente antes, mas é diferente quando você fica entediado e sozinho como eu estava. Suponho que li aquela edição do jornal Cape Argus umas vinte vezes. Devido ao sol forte, o casco da canoa começou a cheirar mal e grandes bolhas apareceram.”

“Fiquei à deriva por dez dias”, disse o homem com a cicatriz. “Parece pouco ao contar, não é?” Todo dia parecia como se fosse o último. Nunca procurei por socorro durante o dia, pois o calor era infernal, restando-me apenas o amanhecer e a noite. Eu não vi nenhuma embarcação nos três primeiros dias e aquelas que eu vi não me avistaram. Por volta da sexta noite, um navio passou a quase 800 metros de mim, com todas as luzes acesas e as janelas abertas, parecendo um grande vagalume. Havia música a bordo. Levantei-me, gritei e berrei, mas nada. No segundo dia, peguei um dos ovos de Vorompatra, furei um buraco na casca e fiquei feliz por descobrir que ele estava bom o suficiente para comer. De certa forma saboroso — o gosto é bem parecido com ovos de pato. Havia uma espécie de mancha circular com cerca de quinze centímetros de um lado da gema com manchas de sangue e uma marca branca que eu achava estranha, mas não entendi o que isso significava na época, e eu não estava inclinado a saber. O ovo durou três dias, com biscoitos e um copo de água. Também mastiguei café — coisas revigorantes. O segundo ovo eu abri por volta do oitavo dia. E me assustou.”

O homem com a cicatriz fez uma pausa. “Sim”, ele disse — “em desenvolvimento.”

“Me atrevo a achar que você ache isso algo inacreditável. Eu também não acreditei no que vi. Lá o ovo estava, imerso naquela lama preta e fria, talvez por mais de trezentos anos. Mas não havia engano. Ali estava — qual o nome? — o embrião, com uma grande cabeça, as costas curvadas, o coração batendo abaixo da garganta e a gema murchando ao passo que o embrião se desenvolvia, cheia de grandes membranas que se espalhavam por toda a casca. Aqui estava eu chocando os ovos do maior de todos os pássaros extintos, em uma pequena canoa no meio do Oceano Índico. Se o velho Dawson soubesse disso! Essa experiência valeria mais que quatro anos de salário. O que você acha?”

“Contudo, tive que comer toda aquela coisa preciosa, cada pedacinho dela antes de ter avistado o arrecife. Algumas das bocadas foram bastante desagradáveis. Deixei o terceiro ovo em paz. Eu o coloquei contra a luz mas a casca estava dura a ponto de eu não ver nada além. E embora eu ache ter ouvido algum sangue pulsar, talvez tenha sido o eco nos meus próprios ouvidos.”

“Então veio o atol. Saindo do nascer do sol, por assim dizer, de repente, bem próximo a mim. A canoa flutuou direto até ele a cerca de 800 metros da costa — não mais, e então a corrente virou, e tive que remar o mais forte que pude com minhas mãos e pedaços do ovo de Vorompatra para chegar até o lugar. Assim, eu cheguei lá. Era apenas um atol comum com cerca de 6,5 quilômetros de extensão, com algumas árvores crescendo, uma pequena nascente e a lagoa cheia de peixes-papagaios. Levei o ovo para a praia e o coloquei em um bom lugar, bem acima das ondas da maré e exposto ao sol, para dar a ele toda a chance que pude, puxei a canoa para a costa e fui explorar o lugar. É estranho como um atol pode ser tão chato. Quando eu era criança, achava que nada poderia ser mais divertido do que as aventuras de Robinson Crusoé, mas esse lugar era tão monótono quanto um livro de sermões. Andei procurando coisas comestíveis e pensando em tudo que podia imaginar; mas eu lhe digo que estava entediado até a morte antes do primeiro dia terminar. Isso mostra a minha sorte — no mesmo dia em que desembarquei o tempo mudou. Uma tempestade passou ao norte e bateu sua asa sobre a ilha, e durante a noite a chuva e o vento uivante nos atingiram. Não precisaria de muita coisa para virar aquela canoa.”

“Eu estava dormindo embaixo da canoa e, felizmente, o ovo estava entre a areia mais alta da praia, e a primeira coisa que me lembro foi o som de cem pedras batendo no barco de uma só vez e uma corrente de água sobre o meu corpo. Eu estava sonhando que estava em Antananarivo, indo até a casa de Intoshi para perguntar a ela o que estava acontecendo, procurando por uma caixa de fósforos que costumava ficar no balcão. Então me lembrei de onde estava. As ondas fosforescentes rolando como se quisessem me comer, e o resto da noite negra como breu. O vento uivava forte. As nuvens pareciam tocar quase em minha cabeça, e a chuva caiu como se o céu estivesse alagado e estivessem jogando as águas para fora do firmamento. Uma grande onda veio em minha direção, como uma serpente raivosa, e eu fugi. Então lembrei da canoa, e corri até ela quando a água abaixou, mas ela se foi. Depois me preocupei com o ovo e fui diretamente até ele. Estava tudo bem e fora do alcance das ondas mais insanas, então me sentei ao lado dele e o abracei como companhia. Jesus! Que noite foi aquela!

“A tempestade terminou pela manhã. Não havia mais uma nuvem no céu quando o amanhecer chegou e ao longo de toda praia jaziam os pequenos pedaços de madeira — o esqueleto desarticulado de minha canoa. No entanto eles me serviram muito bem, tirando vantagem da posição de duas árvores consegui fazer um abrigo com os restos de madeira da canoa. Naquele mesmo dia o ovo chocou.”

“Chocou, meu caro, quando minha cabeça estava apoiada nele e eu estava dormindo. Ouvi uma barulho, senti uma trepidação e acordei, vi o ovo rachado com uma estranha cabecinha marrom olhando para mim. 'Jesus!', exclamei, ‘bem-vindo’ e, com um pouco de dificuldade, ele saiu.”

“A princípio, ele era um camaradinha amigável, do tamanho de uma pequena galinha — muito parecido com a maioria das aves jovens, só que maior. Para começar, ele tinha poucas penas, o restante de sua plumagem era de um marrom brilhoso com uma espécie de marca cinza que caiu logo depois. Mal posso expressar o quanto fiquei satisfeito em vê-lo. Eu lhe digo que Robinson Crusoé não aproveitou sua solidão. Mas aqui estava uma companhia interessante. Ele olhou para mim e piscou os olhos como uma galinha, deu um gorjeio e começou a bicar ao mesmo tempo, como se ser chocado trezentos anos mais tarde não fosse nada demais. 'Fico feliz em vê-lo, Man Friday!', eu disse. Naturalmente decidi que se o ovo chocasse, o filhote se chamaria Man Friday. Fiquei um pouco ansioso com sua alimentação, então o ofereci a ele um pedaço de peixe-papagaio cru. Ele pegou e abriu o bico para mais. Fiquei feliz com isso, além do mais, nas circunstâncias, se ele tivesse sido exigente, eu deveria tê-lo comido.”

"Você ficaria surpreso de como o filhote de Vorompatra era um pássaro interessante. Ele me seguiu desde o começo. Ficava ao meu lado assistindo enquanto pescava na lagoa e compartilhava tudo o que pegava. Ele também era sensível. Havia uma espécie de pepinos verdes bem nojentos que geralmente chegavam até a praia e ele experimentou um deles. Isso o entristeceu. Ele nunca mais olhou para nenhum deles novamente”

“Ele cresceu muito rápido. Eu nunca fui um homem social, seu jeito amigável me servia muito bem. Por aproximadamente dois anos nós fomos felizes naquela ilha. Eu não tinha problemas de trabalho, pois eu pensava que meus salários estavam se acumulando com o meu empregador. Víamos uma ou outra embarcação, mas nenhuma chegava minimamente perto da ilha. Também me diverti decorando a ilha com desenhos trabalhados em ouriços-do-mar e conchas extravagantes de vários tipos. Escrevi ILHA DO VOROMPATRA em quase todo o lugar, em letras grandes, como aqueles letreiros de arbustos que você vê nos gramados de alguns clubes. Eu costumava ficar observando aquele abençoado pássaro andando em volta, crescendo e crescendo. Cheguei a pensar que se algum dia saíssemos de lá, eu poderia ganhar a vida exibindo-o. Depois de sua primeira troca de penas, ele começou a ficar bonito, com uma crista, uma pompa azulada e muitas penas verdes atrás dele. E então eu costumava pensar se Dawsons tinha o direito de reivindicá-lo ou não. Nas tempestades e na estação chuvosa nos deitávamos sob o abrigo que eu construíra da velha canoa, e eu costumava contar mentiras sobre meus velhos amigos. Tínhamos um tipo de idílio, posso dizer. Se eu tivesse um pouco de tabaco, teria sido simplesmente o paraíso.”

“Foi no final do segundo ano que nosso pequeno paraíso deu errado. Friday tinha cerca de quatro metros de altura, com uma cabeça grande e larga como a ponta de uma picareta e dois enormes olhos castanhos com bordas amarelas como os olhos de um homem — não fora da vista um do outro como os de uma galinha. A plumagem dele era bonita — nenhum pouco parecida com o estilo de luto da avestruz — mais semelhante a um Casuar. Então ele começou a bater sua crista em mim e a se exibir, mostrando sinais de um temperamento desagradável.”

“Chegou um momento em que minha pescaria estava sendo bastante azarada e ele começou a me cutucar de uma maneira estranha e meditativa. Eu pensei que ele poderia ter se irritado ao comer aqueles pepinos do mar ou algo assim, mas era realmente apenas descontentamento da parte dele. Eu também estava com fome e, quando finalmente agarrei um peixe, o quis para mim. Os ânimos de ambos estavam curtos naquela manhã. Ele deu uma bicada no peixe e o agarrou, e eu lhe dei uma pancada na cabeça para fazê-lo soltar. E com isso ele revidou. Jesus!”

"Ele fez isso no meu rosto." O homem apontou para sua cicatriz. “Então ele me chutou. Era como um cavalo. Levantei-me e, vendo que ele não havia terminado, virei a todo vapor com os braços dobrados sobre o meu rosto. Mas ele correu com aquelas pernas desajeitadas mais rápidas que de um cavalo, e continuou aterrissando em mim com pontapés e cravando seu bico na parte de trás da minha cabeça. Fui para a lagoa e submergi até o pescoço. Ele parou diante da água, porque odiava molhar os pés e começou a fazer um barulho estranho, algo parecido com o de um pavão, apenas um pouco mais rouco. Então ele começou a andar de um lado para o outro. Admito que me senti pequeno ao ver esse fóssil abençoado dominando a área. Minha cabeça e rosto estavam todos sangrando e — bem, meu corpo parecia uma geleia de hematomas.”

“Decidi nadar pela lagoa e deixá-lo em paz por um tempo, até o caso acabar. Eu subi na palmeira mais alta e fiquei sentado pensando em tudo. Acho que nunca me senti tão magoado na minha vida. Eu era mais que um irmão para ele e fui pago com tamanha ingratidão. Eu o choquei. Eduquei. Um pássaro grande, desajeitado e antiquado! E eu um ser humano — herdeiro das eras e tudo mais.”

"Pensei que depois de um tempo ele começaria a ver as coisas sob uma nova perspectiva e sentiria um pouco pelo seu comportamento. Imaginei que, se eu fosse pegar alguns pedacinhos de peixe e levasse até ele de maneira casual, ele poderia fazer a coisa mais sensata. Levei algum tempo para aprender o quão impiedoso e briguento um pássaro extinto pode ser. Maldade pura!"

"Não te conto todas as artimanhas que tentei fazer para que aquele pássaro voltasse ao normal. Eu simplesmente não posso. Minhas bochechas ficam vermelhas de vergonha, mesmo agora ao pensar nos desprezos e desfeitas que recebi dessa ave. Eu tentei violência. Joguei pedaços de coral nele a uma distância segura, mas ele apenas os engolia. Joguei meu canivete aberto nele e quase o perdi, embora fosse grande demais para ele engolir. Tentei matá-lo de fome e parei de pescar, mas ele começou a andar pela praia em águas baixas a procura de vermes, e se sustentou disso. Passei metade do tempo dentro da lagoa e o restante encima das palmeiras. Uma deles não era alta o suficiente, e quando ele me viu, fez a festa com as panturrilhas das minhas pernas. Ficou insuportável. Não sei se você já tentou dormir em uma palmeira. Isso me deu os pesadelos mais horríveis. Pense na humilhação! Ali estava esse animal quase extinto vagando sobre minha ilha como um duque mal-humorado, e eu não tinha permissão para descansar as solas dos meus pés. Eu costumava chorar de cansaço e irritação. Disse a ele diretamente que não pretendia ser perseguido por uma ilha deserta por qualquer anacronismo maldito. Também falei a ele para ir e bicar um navegador de sua idade. Mas ele só batia o bico em mim. Grande pássaro feio — só tinha pernas e pescoço!”

"Eu não gostaria de dizer por quanto tempo tudo isso durou. Eu o mataria mais cedo se soubesse como. No mais, eu finalmente consegui resolver o problema. É uma técnica brasileira. Juntei todas as minhas linhas de pesca com hastes de algas e outras coisas, e fiz uma corda robusta, com cerca de doze metros de comprimento, prendi dois pedaços de rocha de coral na extremidade. Demorei algum tempo para terminar, porque de vez em quando eu tinha que correr para a lagoa ou subir em uma árvore conforme o precioso me ordenava. Girei rapidamente a corda e depois a soltei. Na primeira tentativa eu errei, mas na segunda a corda pegou lindamente nas suas pernas e as enrolou repetidamente. Ele desequilibrou-se e foi ao chão. Arrastei-o para dentro da lagoa até a cintura, e assim que ele caiu, eu estava fora da água serrando seu pescoço com meu canivete.” —

"Nem mesmo agora gosto de pensar nisso. Me senti como um assassino enquanto fazia isso, embora minha raiva estivesse fresca contra ele. Eu estava de pé sobre ele e o vi sangrando na areia branca e suas belas pernas e pescoço se contorcendo em sua última agonia — Pah!”

“Com essa tragédia, veio junto a solidão. Bom Jesus! Você não imagina como eu senti falta daquele pássaro. Sentei-me ao lado de seu cadáver e fiquei triste por ele, e tremi ao olhar em volta do recife silencioso e desolado. Lembrei de como era um passarinho alegre quando ele foi chocado e em mil brincadeiras agradáveis que ele feito antes de tudo dar errado. Eu pensei que, se tivesse apenas o machucado, poderia tê-lo ajudado a entender melhor. Se possuísse algum meio para cavar a rocha de coral, eu o enterraria. Sua perda foi sentida exatamente como se ele fosse humano. Como eu não conseguia pensar em comê-lo, coloquei-o na lagoa e os peixinhos o limparam. Então, um dia, um sujeito que passeava em um iate teve a curiosidade de ver se meu atol ainda existia.”

“Ele havia chegado na hora certa, pois eu já estava cansado da desolação, hesitando apenas em que maneira terminar o drama, me afogando no mar ou pulando das palmeiras.”

“Na volta, vendi os ossos a um homem chamado Winslow — um negociante perto do Museu Britânico, e ele disse que os vendeu para o velho Havers. Parece que Havers não entendeu que eles eram muito grandes e só depois da morte dele eles atraíram a atenção. Eles nomearam seu vorompatra de Aepyornis — algo assim?”

“Aepyornis vastus”, eu disse. “É engraçado, um amigo meu mencionou esse mesmo termo. Quando encontraram um vorompatra com uma coxa de um metro de comprimento, acharam que haviam atingido o topo da escala e o chamaram de Aepyornis maximus. Então alguém achou outro osso da coxa com um metro e quarenta, e eles o chamaram de Aepyornis Titan. Então depois que o velho Havers faleceu, o seu Vastus foi encontrado em sua coleção e ele se transformou em Vastissimus.

"Winslow estava me dizendo isso", disse o homem com a cicatriz. “Se eles acharem mais fosseis de Aepyornises, ele acha que algum capricho científico irá explodir um vaso sanguíneo. Isso foi algo estranho a acontecer com um homem; tudo junto — não foi?"

 

 

[1] Dawsons é a firma de Dawnson, o dono.

[2] Nenhum europeu é conhecido por ter visto um Vorompatra vivo com exceção duvidosa de MacAndrew que visitou Madagascar em 1745. H. G. W.

 

 

                                                                  H. G. Wells

 

 

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