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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ILHA DOS ESPÍRITOS - P.2 / Camilla Läckberg
A ILHA DOS ESPÍRITOS - P.2 / Camilla Läckberg

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

PATRIK ESTAVA ABORRECIDO POR NÃO TER conseguido fazer muita coisa no dia anterior. Embora fosse domingo, tinha ido à delegacia e elaborado um relatório sobre o barco desaparecido. Depois verificara se fora posto à venda no site Blocket ou nalguma outra lista de anúncios classificados online. Mas não encontrou nada. Mais tarde falou com Paula e pediu-lhe para passar em revista o conteúdo da pasta de Sverin. Dera uma rápida vista de olhos ao interior, só para se certificar de que o computador portátil estava lá, junto com um punhado de documentos. Pela primeira vez tinham tido a sorte do seu lado naquela investigação. A pasta também continha um celular.

 

 

 

 

Na segunda-feira de manhã, ansioso por fazer progressos nesse mesmo dia, Patrik convocou Martin e depois encaminharam-se os dois para o carro, para fazerem a viagem até Gotemburgo.

 

— Por onde começamos? — perguntou Martin. Seguia no lugar do morto, como de costume, embora tivesse dado o seu melhor para tentar persuadir Patrik a deixá-lo conduzir.

 

— Pelos escritórios da Segurança Social, acho eu. Liguei para lá na sexta-feira e disse-lhes que devíamos chegar por volta das dez da manhã.

 

— Então e o Refúgio? Já tens mais perguntas para fazer à diretora?

 

— Espero que consigamos descobrir um pouco mais acerca deles na Segurança Social. Com sorte, talvez nos possam dar uma pista.

 

— E a ex-namorada de Sverin? Ele disse-lhe alguma coisa? — Martin não tirava os olhos da estrada, agarrando-se instintivamente à pega por cima da porta quando Patrik fez uma manobra arriscada para ultrapassar um camião TIR.

 

— Não. Ficamos na mesma. Mas já foi bom ter-nos dado a pasta, claro. E isso pode vir a revelar-se uma descoberta produtiva, mas não saberemos até Paula examinar todo o conteúdo. Não vamos mexer no portátil, uma vez que não fazemos ideia da senha. Vamos ter de enviá-lo aos peritos informáticos.

 

— Como é que Nathalie reagiu à morte de Sverin?

 

— Ficou muito abalada. Vê-se que é uma mulher muito fragilizada. Mas não é uma pessoa fácil de decifrar.

 

— Não é aqui que saímos? — Martin apontou para uma saída e Patrik praguejou enquanto virava o volante tão bruscamente que o veículo que seguia atrás quase os abalroou.

 

— Caramba, Patrik — disse Martin, pálido como cera.

 

Dez minutos mais tarde chegaram ao edifício da Segurança Social e foram imediatamente conduzidos ao gabinete do diretor, que se apresentou como Sven Barkman. Após as cortesias habituais, todos se sentaram a uma mesa de conferências redonda. Barkman era um homem baixo e franzino, com um rosto delgado. Uma pera enfatizava-lhe ainda mais o queixo proeminente. Patrik imaginou imediatamente o Professor Girassol de As Aventuras de Tintin, pois a semelhança era impressionante. Mas a voz do homem não correspondia ao seu aspeto, o que surpreendeu os dois agentes. Barkman tinha uma voz grave e profunda que parecia encher a sala. Poderia ter sido um bom cantor, e, quando Patrik olhou em redor, confirmou essa impressão. Uma série de fotografias, certificados e prêmios testemunhavam que Sven Barkman pertencia a um coro. Patrik não reconheceu o nome do grupo, mas era evidente que tinha muito sucesso.

 

— Creio que têm algumas perguntas acerca da associação Refúgio, não é? — perguntou Sven, inclinando-se para a frente. — Posso perguntar por quê? Somos extremamente cautelosos e exigentes em relação às organizações de solidariedade social com as quais temos ligações; é natural que fiquemos um pouco preocupados quando a polícia nos vem fazer perguntas sobre elas. Além disso, o Refúgio tem uma abordagem invulgar, como já devem ter tido conhecimento. E, para ser franco, fiscalizamos o trabalho deles um pouco mais pormenorizadamente do que as atividades de outras organizações.

 

— Refere-se ao facto de haver homens e mulheres a trabalhar no apoio às vítimas de violência doméstica?

 

— Sim. Essa não é a norma. Leila Sundgren arriscou realmente o pescoço com esta sua experiência, mas nós a apoiamos.

 

— Não há qualquer motivo para alarme. Um ex-funcionário do Refúgio foi assassinado e nós estamos a tentar descobrir mais sobre a vida dele. Como fez parte do Refúgio até há quatro meses e tendo em conta o gênero de trabalho que desempenhava, estamos a investigar mais aprofundadamente a organização. Mas não temos nenhum motivo para crer que haja qualquer irregularidade.

 

— Folgo em sabê-lo. Ora bem, vamos lá então ver... — Sven começou a folhear os documentos que tinha em cima da secretária enquanto cantarolava baixinho. — Sim, bem... hum... ah, pois é verdade. — Sven continuou a falar com os seus botões enquanto Patrik e Martin esperavam pacientemente. — Certo, agora já tenho uma ideia mais clara. Só precisava de refrescar a memória. Trabalhamos com o Refúgio há cinco anos, ou cinco anos e meio, para ser exato. E suponho que, uma vez que se trata de uma investigação de homicídio, devo ser o mais preciso possível — disse Sven com uma risada grave e cadenciada. — O número de casos que lhes entregamos aumentou acentuadamente. Claro que a princípio fomos cautelosos, porque tivemos de ter certeza de que a nossa colaboração com a organização estava a funcionar corretamente. Durante o ano passado encaminhamos quatro mulheres para o Refúgio. Ao todo, diria que a organização apoia cerca de trinta mulheres por ano — Sven ergueu os olhos, aparentemente à espera de uma pergunta acerca do que acabara de dizer.

 

— Pode explicar-nos o processo? Que tipo de casos vão parar ao Refúgio? Parece ser uma medida extrema e suponho que primeiro tentem outras soluções — disse Martin.

 

— Tem toda a razão. Trabalhamos intensivamente com diferentes casos deste tipo e as organizações como o Refúgio são um último recurso. Às vezes descobrimos muito cedo que há problemas no seio de determinada família. Mas há casos em que demoramos bastante tempo a identificar os sinais de alarme.

 

— O que seria um caso típico?

 

— É difícil responder a essa pergunta. Vou dar-vos um exemplo. Digamos que recebemos uma chamada de uma escola a falar de uma criança que parece não estar bem. O nosso passo seguinte é acompanhar a situação através de várias medidas, incluindo uma visita à família, para avaliar a situação. Verificaríamos igualmente se não havia documentação que não tivéssemos valorizado antes.

 

— Documentação? — perguntou Patrik.

 

— Sim. A criança pode ter passado diversas vezes pelo hospital e, quando se confronta essa informação com os relatórios da escola, começa a emergir um padrão. Depois juntamos o máximo de informações possível. De início, tentamos trabalhar com a família na sua situação atual, o que nem sempre é bem-sucedido. Como eu disse, ajudar uma mulher e os seus filhos a fugir é um último recurso. Infelizmente, é mais frequente do que desejaríamos.

 

— Como é que funciona, na prática, quando a Segurança Social tem de recorrer a grupos como o Refúgio?

 

— Contatamo-los diretamente, em vez de enviar um relatório por escrito — respondeu Sven. — Leila Sundgren é o nosso principal contacto no Refúgio. Costumamos encontrar-nos pessoalmente para lhe fornecer os antecedentes relativos ao caso e debater a situação da mulher em questão.

 

— O Refúgio já recusou algum caso? — perguntou Patrik, mudando de posição. A cadeira em que estava sentado era extremamente desconfortável.

 

— Isso nunca aconteceu. Como há crianças no abrigo, o Refúgio não aceita mulheres viciadas em drogas ou que tenham problemas psicológicos graves. Mas nós sabemos isso, portanto não lhes encaminhamos esse tipo de casos. Encontramos outros abrigos para essas mulheres. Por isso, não, a associação nunca se recusou a albergar nenhuma mulher.

 

— Que acontece a partir do momento em que o Refúgio aceita tomar conta do caso? — perguntou Patrik.

 

— Primeiro vamos falar com a mulher e deixamos uma pessoa para contato. Como é óbvio, o mais discretamente possível. A ideia é ficarem seguras e que ninguém possa encontrá-las.

 

— E mais tarde? Costumam ter problemas no vosso serviço? Imagino que alguns homens ficam muito irritados quando descobrem que a mulher e os filhos desapareceram — disse Martin.

 

— Sim, mas não desaparecem para sempre. Isso seria ilegal. Não se pode esconder uma criança do pai, porque o pai tem o direito de contestar tais atos. Mas recebemos a nossa quota-parte de ameaças aqui no escritório e, de vez em quando, temos de contactar a polícia. Até agora não aconteceu nada de grave. E faço figas para que não venha a acontecer.

 

— E como fazem o acompanhamento do caso? — insistiu Martin.

 

— O caso continua conosco e mantemo-nos permanentemente em contacto com a organização em questão. O nosso objetivo é chegar a uma solução pacífica. Na maioria dos casos, isso não é possível, mas temos algumas histórias de sucesso.

 

— Já ouvi falar de casos em que as mulheres receberam a ajuda deste tipo de organização para fugirem do país. Sabe alguma coisa sobre isso? Já houve alguma mulher que tivesse desaparecido? — perguntou Patrik.

 

Sven contorceu-se um pouco na cadeira.

 

— Sei a que se refere. Também leio os jornais. Já houve alguns casos em que as mulheres com quem trabalhamos desapareceram, mas não temos forma de provar que foram ajudadas a fazê-lo por uma determinada organização. Só podemos assumir que encontraram uma maneira de sair do país por conta própria.

 

— Podemos falar off the record por um momento?

 

— Off the record, acho mesmo que recebem ajuda de algumas organizações. Mas, como não temos nenhuma prova, não há nada que possamos fazer quanto a isso.

 

— Alguma das mulheres cujo caso entregaram ao Refúgio desapareceu? Por um momento, Sven não respondeu. Então, respirou fundo e admitiu:

 

— Sim.

 

Patrik decidiu deixar cair o assunto. Provavelmente seria mais produtivo perguntar diretamente no Refúgio. A Segurança Social parecia funcionar sob a máxima “Quanto menos soubermos, melhor”. E tinha dúvidas de que Sven Barkman os pudesse ajudar mais.

 

— Agradecemos o tempo que nos disponibilizou. A menos que haja alguma pergunta que queiras fazer. — Patrik olhou para Martin, que abanou a cabeça.

 

No regresso ao carro, Patrik sentiu-se abatido. Não fazia ideia de que havia tantas mulheres a ser forçadas a fugir de casa. A única estatística que lhe fora fornecida tinha que ver com os casos que envolviam a associação Refúgio e isso era apenas a ponta do icebergue.

 

Erica não conseguia parar de pensar em Nathalie. Por um lado, a ex-colega era a mesma pessoa, mas por outro tinha mudado muito. Era uma pálida cópia de si mesma e estava terrivelmente preocupada com alguma coisa. A aura dourada que a envolvera na escola tinha desaparecido, embora Nathalie continuasse tão bela e completamente inacessível como dantes. Era como se algo dentro dela se tivesse esfumado. Erica tinha dificuldade em descrevê-lo. Apenas sabia que o encontro com Nathalie a deixara triste.

 

Empurrou o carrinho, parando várias vezes na Galärbacken.

 

— Mamãe cansada? — perguntou Maja, que seguia alegremente empoleirada na plataforma do carrinho dos gêmeos. Os bebês tinham acabado de adormecer e, com sorte, assim permaneceriam por mais uma hora.

 

— Sim, a mamãe está cansada — respondeu Erica à filha. Respirava com tanta dificuldade que podia ouvir uma chiadeira vinda do peito.

 

— Anda, mamãe — disse Maja, saltitando na plataforma para encorajar a mãe.

 

— Obrigada, querida. — Erica ganhou coragem para empurrar o carrinho durante a última parte do percurso, diante da loja de tecidos.

 

Depois de deixar Maja no infantário, Erica ia a caminho de casa quando lhe ocorreu uma ideia. A sua curiosidade tinha sido despertada pela visita a Gråskär. A longa sombra do farol e a expressão de Nathalie quando falavam sobre a ilha e os seus fantasmas tinham deixado Erica a cismar. Porque não tentar descobrir um pouco mais?

 

Virando o carrinho, Erica começou a caminhar em direção à biblioteca. Não tinha nada para fazer o dia todo e podia perfeitamente aproveitar enquanto os gêmeos estavam a dormir para pesquisar um pouco. Pelo menos isso parecia-lhe mais produtivo do que ficar sentada no sofá a ver Oprah ou Rachel Ray5.

 

— Olá, bons olhos te vejam! — May, a bibliotecária, sorriu quando Erica parou o carrinho do lado de dentro da entrada principal, tendo o cuidado de o afastar um pouco para o lado para não estorvar quem entrava ou saía. Por sorte, a biblioteca estava completamente deserta. Como tal, não precisava de disputar o espaço com mais ninguém.

 

— E trouxeste os teus gêmeos adoráveis — disse May, inclinando-se para olhar para dentro do carrinho. — São mesmo lindos. E portam-se bem?

 

— Como anjinhos — respondeu Erica com sinceridade. Porque realmente não podia queixar-se. Não lhes davam os problemas que Maja dera quando era bebê. Provavelmente por causa da sua própria atitude. Quando os meninos acordavam a meio da noite e começavam a chorar, sentia apenas gratidão em vez de medo. Além disso, as crianças raramente faziam birras e acordavam apenas uma vez por noite, quando tinham fome.

 

— Bem, conheces os cantos à casa, por isso estás à vontade. Chama-me se precisares de alguma ajuda. Estás a trabalhar num novo livro? — perguntou May, olhando para Erica com expetativa.

 

Para grande alegria de Erica, a cidade inteira tinha orgulho nos seus livros e seguia a sua obra com grande interesse.

 

— Não, ainda não comecei outro. Vim aqui pesquisar um pouco sobre um assunto em que tenho andado a matutar.

 

— A sério? Qual é o tema?

 

Erica riu-se. Os habitantes de Fjällbacka não eram conhecidos pela sua timidez. O seu princípio orientador parecia ser: “Se não perguntar, nunca vai descobrir.” E Erica não tinha quaisquer problemas com essa atitude. Ela própria era mais curiosa do que a maioria das pessoas, como Patrik nunca deixava de salientar.

 

— Estava a pensar procurar livros sobre o arquipélago. Queria ler qualquer coisa sobre a história de Gråskär.

 

— A Ilha dos Espíritos? — disse May, dirigindo-se às estantes ao fundo da sala. — Quer dizer que estás interessada em histórias de fantasmas? Nesse caso, devias ter uma conversa com Stellan, de Nolbotten. E Karl-Allen Nordblom sabe muito sobre o arquipélago.

 

— Obrigada. Primeiro vou ver o que consigo descobrir por aqui. Tinha interesse em encontrar livros sobre fantasmas, acerca da história dos faróis e coisas do gênero. Achas que tens algum sobre estes temas?

 

— Hum... — May estudava as estantes. Tirou um volume, folheou-o rapidamente e voltou a colocá-lo na estante. Tirou outro, passou os olhos pelo índice e pô-lo debaixo do braço. Passados alguns minutos, May encontrou quatro livros que entregou a Erica.

 

— Estes podem ser-te úteis. Não vai ser fácil encontrar livros especificamente sobre Gråskär, mas podes falar com o pessoal do Museu de Bohuslän — disse May enquanto tomava o seu lugar por detrás do balcão da biblioteca.

 

— Vou começar por estes — disse Erica, apontando para os quatro livros que tinha na mão. Depois de certificar-se de que os gêmeos ainda estavam a dormir, sentou-se e começou a ler.

 

— O que é isso? — os colegas de turma tinham-se reunido em torno deles no pátio da escola e Jon sentiu a emoção de ser o centro das atenções.

 

— Fui eu que o encontrei. Acho que são doces — disse Jon, segurando orgulhosamente o saco. Melker deu-lhe um empurrão.

 

— Qual é a tua? Encontrámo-lo os dois.

 

— Tiraste isso de um contentor? Bem, que nojo! Deita isso fora, Jon — Lisa franziu o nariz e depois afastou-se.

 

— Mas isto está dentro de um saco — disse Jon, abrindo-o cuidadosamente. — Além disso, estava num caixote do lixo e não num contentor.

 

As garotas eram tão patéticas. Quando era mais novo, Jon tinha brincado muito com as garotas, mas desde que andava na escola que as coisas tinham mudado e agora pareciam-lhe seres completamente diferentes. Como se tivessem sido dominadas por extraterrestres. Passavam o tempo em grande algazarra e a dar risadinhas.

 

— As garotas são tão parvas — disse em voz alta, e todos os outros rapazes que se aglomeravam em seu redor concordaram. Sabiam perfeitamente o que Jon queria dizer. Os doces não tinham qualquer problema só por estarem num caixote do lixo.

 

— Além disso estão dentro de um saco — exclamou Melker, como um eco do que Jon tinha dito. Todos os rapazes assentiram.

 

Tinha esperado pela hora de almoço para recuperar o saco. Os doces eram proibidos na escola, por isso aquele achado parecia particularmente emocionante — parecia alcaçuz branco em pó como o que vinha numas latas em forma de disco de hóquei. O facto de terem descoberto sozinhos os doces que alguém deitara fora fazia-os sentirem-se aventureiros, como Indiana Jones. Jon, ou melhor, Jon, Melker e Jack seriam os heróis do dia. Agora era apenas uma questão de decidir quanto teriam de partilhar com os outros, a fim de manterem o estatuto de heróis. Os outros rapazes ficariam zangados se não tivessem direito a nada. Mas se lhes dessem demasiado, não sobraria o suficiente para os três.

 

— Todos podem provar. Cada um pode pôr o dedo no saco três vezes — acabou por decidir Jon. — Mas nós começamos, porque fomos nós que encontramos o saco.

 

Melker e Jack lamberam solenemente os indicadores e, em seguida, enfiaram as mãos no saco. Os dedos ficaram cobertos de pó branco e, com ar satisfeito, enfiaram-nos na boca. Será que aquilo tinha um gosto salgado, como o alcaçuz em pó? Ou amargo, como aquelas gomas redondas? Ficaram muitíssimo desapontados.

 

— Não sabe a nada. Achas que é farinha? — perguntou Melker, afastando-se.

 

Jon olhou com desânimo para o saco. Lambeu o dedo como os outros tinham feito e enfiou-o bem dentro do saco de pó. Esperando que Melker não tivesse razão, enfiou o dedo na boca. Não sabia a nada. Absolutamente nada. Mas Jon sentiu um leve formigueiro na língua. Furioso, lançou o saco para um caixote do lixo e dirigiu-se para a escola. Tinha uma sensação estranha na boca. Deitou a língua de fora e limpou-a à manga da camisa, mas isso não ajudou. O coração começou a bater muito depressa. Jon estava a transpirar e as pernas não pareciam querer obedecer-lhe. Pelo canto do olho, viu que Melker e Jack tinham caído ao chão. Deviam ter tropeçado em alguma coisa, ou então estavam só a brincar. Então, Jon sentiu o chão a aproximar-se rapidamente. E tudo ficou escuro mesmo antes de atingir o passeio.

 

Paula lamentava que Patrik não a tivesse levado com ele a Gotemburgo em vez de Martin. Por outro lado, assim podia examinar o conteúdo da pasta de Mats Sverin em paz e sossego. Tinha enviado imediatamente o portátil aos técnicos informáticos, que percebiam cem vezes mais de computadores do que ela e saberiam como lidar adequadamente com o aparelho.

 

— Soube que encontraram a pasta — disse Gösta, enfiando a cabeça pela porta entreaberta do gabinete de Paula.

 

— Pois foi. Tenho-a aqui. — Paula apontou para a pasta de pele castanha em cima da secretária.

 

— Já tiveste oportunidade de examiná-la? — Gösta entrou, puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da colega.

 

— Bem, ainda não fiz muito mais do que tirar o portátil de Sverin da pasta e enviá-lo aos técnicos informáticos.

 

— Bem pensado. É melhor que sejam eles a tratar disso. Mas temo que ainda demorem algum tempo a dizer-nos alguma coisa — acrescentou Gösta com um suspiro.

 

— Quanto a isso, não podemos fazer grande coisa. Não queria correr o risco de destruir os dados sendo eu a fazê-lo sozinha. Mas dei uma olhadela ao celular. Não demorou muito. Sverin quase não tinha números guardados e só há registo de chamadas da câmara municipal e dos pais. Não há fotos nem mensagens de texto gravadas.

 

— Um tipo bem estranho, esse Sverin — comentou Gösta. Em seguida, apontou para a pasta. — Então, vamos dar uma vista de olhos ao resto?

 

Paula puxou a pasta para si e começou cautelosamente a esvaziá-la. Espalhou todo o conteúdo sobre a secretária, à frente dos dois. Quando teve certeza de que a pasta estava completamente vazia, pousou-a no chão. Estavam agora a olhar para várias esferográficas, uma calculadora de bolso, clipes, um pacote de pastilhas elásticas Stimorol e um espesso maço de documentos.

 

— Vamos dividi-los? — Paula pegou nos documentos, lançando um olhar interrogativo ao colega. — Fico com metade e tu ficas com o resto, pode ser?

 

— Tudo bem — respondeu Gösta, alcançando a sua parte dos documentos. Pôs os papéis no colo e começou a folheá-los enquanto cantarolava baixinho para si próprio.

 

— Será que não podias levá-los para o teu gabinete?

 

— Ah, sim, claro. — Gösta levantou-se e foi para o seu gabinete, que ficava mesmo ao lado.

 

Quando ficou sozinha, Paula começou a ler os documentos. Franzia cada vez mais a testa à medida que ia virando as páginas. Depois de meia hora de leitura intensa, levantou-se e foi até o gabinete de Gösta.

 

— Percebes alguma coisa disto?

 

— Não, nem uma palavra. É apenas um monte de números e termos que não consigo decifrar. Vamos ter de pedir a alguém para nos ajudar com isto. Mas a quem?

 

— Não sei — disse Paula. Esperava apresentar as suas descobertas a Patrik quando o colega chegasse de Gotemburgo. Mas os termos financeiros utilizados nos documentos não significavam nada para ela.

 

— Não podemos perguntar a ninguém da câmara municipal, porque provavelmente são parte interessada. Do que precisamos é de um estranho que esteja disposto a dar uma vista de olhos e a explicar-nos o que tudo isto significa. Podíamos enviar os documentos à divisão de crimes econômicos, claro, mas então teríamos de ficar à espera da resposta.

 

— Receio não conhecer nenhum economista.

 

— Nem eu — disse Paula, tamborilando na ombreira da porta.

 

— Que tal Lennart? — sugeriu de repente Gösta com um ar satisfeitíssimo.

 

— Qual Lennart?

 

— O marido de Annika. Não é economista?

 

— Tens razão — disse Paula, parando de tamborilar. — Anda. Vamos pedir a Annika para falar com ele — acrescentou, recolhendo os documentos e dirigindo-se à recepção com Gösta na sua cola.

 

— Annika? — Paula bateu ao de leve na porta aberta. Annika fez girar a sua cadeira e sorriu ao ver Paula.

 

— Sim? Posso ajudar-te com alguma coisa?

 

— O teu marido é economista, não é?

 

— Sim, Lennart é economista — respondeu Annika, confusa. — É o diretor financeiro da Extra-Film.

 

— Achas que Lennart poderia ajudar-nos? Isto estava na pasta de Mats Sverin — Paula sacudiu o maço de documentos. — São documentos financeiros. Gösta e eu estamos completamente à nora e precisamos de ajuda para descobrir o que dizem e se têm algum interesse para a investigação. Achas que Lennart estaria disposto a dar-lhes uma vista de olhos?

 

— Posso perguntar-lhe. Se ele concordar, quando precisariam da ajuda dele?

 

— Hoje mesmo! — responderam Gösta e Paula ao mesmo tempo. Annika riu-se.

 

— Vou telefonar-lhe. Tenho certeza de que não vai haver problema. Só precisam de fazer chegar os documentos ao escritório dele.

 

— Posso levar lá agora mesmo — disse Paula.

 

Esperaram enquanto Annika falava com o marido. Tinham-se encontrado várias vezes com Lennart, quando passava pela delegacia para visitar Annika, e era impossível não gostar daquele homem. Media quase dois metros e era a pessoa mais simpática que se podia imaginar. Após muitos anos de tentativas sem sucesso para terem um filho, Annika e Lennart tinham descoberto que podiam adotar uma bebê chinesa, de modo que ambos tinham agora um brilho novo nos olhos.

 

— Okay. Lennart disse que lhe podes ir lá levar os documentos. De momento não está muito ocupado, por isso prometeu dar-lhes uma vista de olhos imediatamente.

 

— Excelente! Obrigada! — Paula lançou-lhe um sorriso rasgado e até mesmo Gösta conseguiu esboçar um leve sorriso, que lhe transformou completamente o rosto quase sempre sombrio.

 

Paula apressou-se para a saída e entrou no carro. Demorou apenas alguns minutos a chegar ao escritório de Lennart e a entregar os documentos, e fez toda a viagem de regresso a assobiar alegremente. Mas parou abruptamente de assobiar quando estacionou à frente da delegacia. Gösta estava do lado de fora, à sua espera. E, a julgar pela expressão do colega, algo tinha acontecido.

 

Leila abriu a porta vestindo as mesmas calças de ganga coçadas com que os tinha recebido da última vez, assim como uma camisola igualmente folgada, embora desta vez fosse cinzenta em vez de branca. Em torno do pescoço tinha uma comprida corrente de prata com um amuleto em forma de coração.

 

— Entrem — disse a diretora do Refúgio, conduzindo-os ao seu gabinete. Estava tão arrumado como da última vez que ali tinham estado e Patrik perguntou a si próprio como é que algumas pessoas conseguiam manter tudo tão organizado. Por mais que tentasse fazê-lo, era como se sorrateiramente entrassem gremlins no gabinete e desarrumassem tudo mal desviava os olhos.

 

Leila apertou a mão a Martin e apresentou-se antes de se sentarem. Martin lançou um olhar interessado aos desenhos das crianças nas paredes.

 

— Já descobriram quem matou Matte? — perguntou Leila.

 

— Estamos a explorar várias linhas de investigação, mas por enquanto não temos nada a relatar — disse evasivamente Patrik.

 

— Mas, uma vez que estão cá outra vez, calculo que julguem que a morte dele tem algo que ver conosco — disse Leila. Os dedos brincaram com o colar, traindo a agitação que sentia.

 

— Como eu disse, não fizemos grandes progressos. Estamos a investigar diferentes pistas potenciais — afirmou calmamente Patrik. Estava habituado a que as pessoas ficassem nervosas quando ia falar com elas. Isso não significava necessariamente que tivessem alguma coisa a esconder. A mera presença de um agente da polícia era suficiente para provocar ansiedade. — Só queríamos fazer-lhe mais algumas perguntas e dar uma vista de olhos à documentação sobre as mulheres a quem deram abrigo enquanto Mats cá esteve a trabalhar.

 

— Não sei bem se posso concordar com isso. É uma informação sensível. Se divulgar essas informações, isso pode causar problemas às mulheres em questão.

 

— Compreendo, mas as informações estarão seguras conosco. E estamos a investigar um homicídio, portanto temos o direito de ver os documentos.

 

Leila fez uma pausa para refletir acerca das palavras de Patrik.

 

— Com certeza — disse por fim. — Mas preferia que os documentos não saíssem do escritório. Se estiverem dispostos a consultá-los aqui, então dou-vos acesso a tudo o que temos.

 

— Certo. Muito obrigado — respondeu Martin.

 

— Acabamos de ter uma reunião com Sven Barkman — disse Patrik.

 

Leila recomeçou imediatamente a remexer o colar. Inclinou-se em direção aos dois agentes enquanto falava.

 

— Estamos completamente dependentes de um bom relacionamento com a Segurança Social. Espero que não o tenham induzido a pensar que há alguma suspeição em relação à nossa organização. Já estamos numa posição muito difícil e algumas pessoas consideram-nos pouco ortodoxos.

 

— Não se preocupe, deixamos muito claro o propósito da nossa visita e enfatizamos que não há qualquer suspeição em relação ao Refúgio.

 

— Fico contente por sabê-lo — disse Leila, embora ainda parecesse pouco à vontade.

 

— Sven adiantou que a Segurança Social vos encaminha cerca de trinta casos por ano a partir das várias delegações. Concorda com este número?

 

— Sim, creio que foi esse o número que lhes forneci da última vez que aqui estiveram. — Leila cruzou as mãos sobre a secretária e a sua voz assumiu um tom mais profissional.

 

— Na sua opinião, quantos desses casos acabam por revelar-se... como hei de dizer... problemáticos?

 

Martin tinha feito a pergunta bruscamente mas com pertinência e Patrik tomou nota mentalmente para não se esquecer de dar mais margem de manobra ao colega naquelas situações.

 

— Suponho que esteja a referir-se aos homens que aparecem por aqui?

 

— Sim.

 

— Por acaso, nenhum. É raro os homens que agridem as mulheres ou os filhos terem consciência de estar a agir mal. Aos olhos deles, a mulher é que é a culpada. É tudo uma questão de poder e controle. E, a ameaçarem alguém, as ameaças recaem sobre as mulheres, não sobre os centros de acolhimento.

 

— Mas há alguns homens que o fazem, não é? — insistiu Patrik.

 

— De facto há uns quantos todos os anos. Mas temos sobretudo conhecimento desses casos pelos funcionários da Segurança Social.

 

Patrik deteve-se num dos desenhos afixados na parede por detrás de Leila, mesmo sobre a cabeça da diretora. Uma figura gigantesca ao lado de duas mais pequenas. A figura grande tinha presas e um olhar zangado. Não conseguia compreender como é que alguém era capaz de bater numa mulher, quanto mais numa criança... Só de pensar que alguém poderia ser capaz de fazer mal a Erica ou aos filhos ficava com o estômago às voltas. Patrik aferrou-se aos braços da cadeira.

 

— Como lida com os seus casos? Vamos começar por aí.

 

— Conversamos com os assistentes sociais e eles resumem-nos o caso. Às vezes, a mulher vem falar conosco antes de dar entrada no centro. É frequente vir acompanhada por alguém da Segurança Social. Noutros casos vem de táxi ou é trazida por uma amiga.

 

— E que acontece depois? — perguntou Martin.

 

— Depende. Às vezes é suficiente que a mulher permaneça conosco por um tempo até a situação acalmar e depois os problemas ficam resolvidos. Noutras situações, quando achamos que é demasiado perigoso a mulher permanecer na mesma zona, temos de levá-la para outro centro de acolhimento. Podemos também oferecer apoio jurídico no sentido de manter o paradeiro da mulher desconhecido. Algumas dessas mulheres passaram anos a viver num estado de terror permanente. Podem apresentar muitos dos sintomas dos prisioneiros de guerra. Por exemplo, podem ser completamente incapazes de agir. Nesse caso, intervimos e ajudamo-las a tratar das questões práticas.

 

— E as questões psicológicas? — Patrik fitou o desenho da figura grande e escura com presas. — Também conseguem ajudar as mulheres quanto a isso?

 

— Não tanto quanto gostaríamos. É uma questão de recursos. Mas temos um bom relacionamento com vários psicólogos que nos oferecem os seus serviços. A nossa principal preocupação é conseguir apoio psicológico para as crianças.

 

— Recentemente têm aparecido muitas notícias nos jornais sobre mulheres que receberam ajuda para fugir do país e que são depois acusadas de sequestrar os filhos. Tem conhecimento de algum desses casos? — Patrik estudou atentamente Leila, mas a diretora do Refúgio não pareceu incomodada.

 

— Como eu disse, estamos dependentes de uma boa relação de trabalho com a Segurança Social. Não podemos dar-nos ao luxo de ir por esse caminho. Oferecemos o apoio que é permitido por lei. Claro que há mulheres que resolvem agir por sua conta e desaparecem por iniciativa própria. Mas isso não é atitude que o Refúgio promova ou esteja disposto a apoiar.

 

Decidiu deixar cair aquele assunto. Leila pareceu suficientemente convincente, por isso Patrik sentiu que não iria muito mais longe se continuasse a pressioná-la.

 

— Então e os poucos casos que vos trazem problemas? São esses que vos fazem levar as mulheres para um centro de acolhimento diferente? — perguntou Martin.

 

Leila assentiu.

 

— Exatamente.

 

— De que problemas é que estamos a falar? — Patrik sentiu o celular a vibrar no bolso. Quem quer que estivesse a tentar contactá-lo teria de esperar.

 

— Já tivemos casos em que os homens descobriram onde fica a nossa sede. Seguindo os nossos funcionários, por exemplo. Cada vez que há algum problema, aprendemos alguma coisa com a experiência e melhoramos as nossas medidas de segurança. Mas nunca devemos subestimar quão obcecados podem ser esses homens.

 

O celular continuava a vibrar e Patrik pôs a mão sobre o bolso para silenciar o ruído.

 

— Mats Sverin esteve especificamente envolvido em algum desses incidentes?

 

— Não. Fazemos questão de insistir que nenhum dos membros da nossa equipe se envolva demasiado em nenhum caso concreto. Estabelecemos um sistema que pressupõe que, passado algum tempo, a mulher seja acompanhada por outra pessoa.

 

— Isso não dá às mulheres uma maior sensação de insegurança? — O celular recomeçara a vibrar e Patrik estava a ficar irritado. Seria assim tão difícil perceber que de momento não podia atender a chamada?

 

— Talvez, mas é importante, pois permite-nos manter o distanciamento. As relações pessoais e o envolvimento só iriam aumentar o risco para as mulheres. É para o bem delas que trabalhamos desta forma.

 

— E qual é o grau de segurança da nova morada, quando as mulheres são levadas para outro sítio? — Martin mudara de rumo depois de lançar um olhar interrogativo a Patrik.

 

Leila suspirou.

 

— Infelizmente, não dispomos de recursos na Suécia para fornecer a segurança de que essas mulheres necessitam. Como eu disse, costumamos levá-las para um centro de acolhimento noutra cidade e mantemos os seus dados pessoais em completo sigilo. Também entregamos às mulheres, em colaboração com a polícia, um dispositivo que emite um sinal de alarme.

 

— E como funcionam esses dispositivos? Nunca trabalhamos com isso em Tanumshede.

 

— Estão ligados à central de emergência da polícia. Se alguém pressiona o botão, a polícia é imediatamente notificada. Ao mesmo tempo, o altifalante do telefone a que esteja associado é ativado e assim a polícia pode ouvir o que está a acontecer em casa da vítima.

 

— Então e os aspetos legais? A guarda dos filhos, por exemplo? As mulheres não têm de comparecer no tribunal? — perguntou Patrik.

 

— Isso pode ser tratado por um representante legal; é fácil de resolver — Leila esticou a mão para compor um caracol atrás da orelha. Tinha o cabelo cortado à pagem.

 

— Gostaríamos então de consultar os casos mais problemáticos com que lidaram quando Mats esteve aqui a trabalhar — disse Patrik.

 

— Okay. Mas os casos não estão classificados individualmente e nem tudo está acessível. Apenas conservamos os documentos durante um ano e quando as mulheres se vão embora dos centros de acolhimento enviamos a maior parte da papelada à Segurança Social. Vou buscar tudo o que temos. Podem consultá-los à vontade para ver se descobrem alguma coisa — Leila ergueu um dedo em sinal de advertência. — Como eu disse, não gostaria que saísse nada deste gabinete, por isso vão ter de tomar notas. — A diretora do Refúgio levantou-se e dirigiu-se para os arquivadores.

 

— Aqui está — disse, colocando cerca de vinte pastas à frente dos dois agentes. — Agora vou sair para almoçar, e assim podem consultar os arquivos à vontade sem serem incomodados. Volto daqui a uma hora, para o caso de terem alguma pergunta.

 

— Obrigado — disse Patrik, lançando um olhar desanimado à pilha de arquivos. Aquilo ia demorar e

 

Patrik e Martin nem sequer sabiam do que estavam à procura.

 

Erica não conseguiu ficar muito tempo na biblioteca, pois os gêmeos decidiram fazer apenas uma breve sesta. Mas ao menos já tinha material por onde começar a pesquisa. Quando escrevia sobre crimes reais, Erica tinha de passar longas horas a fazer pesquisas meticulosas, o que achava tão interessante como o verdadeiro processo de escrita. E agora queria continuar a investigar as lendas da Ilha dos Espíritos.

 

Teve de forçar-se a pôr de lado todos os pensamentos sobre Gråskär, porque assim que virou o carrinho para o acesso para carros da sua casa em Sälvik os gêmeos desataram a chorar muito alto. Estavam com fome. Erica entrou apressadamente em casa e preparou rapidamente dois biberões, sentindo-se culpada pela alegria de não ter de os amamentar.

 

— Pronto, pronto. Mais devagar, meu querido — disse a Noel.

 

Era sempre o mais voraz dos dois. Às vezes bebia goladas tão grandes que quase sufocava. Anton, por outro lado, era mais lento e demorava o dobro do tempo a beber um biberão inteiro. Ali sentada, com um biberão em cada mão a alimentar dois bebês ao mesmo tempo, Erica sentia-se a Super Mamãe. Ambos os meninos tinham o olhar fixo nela e Erica estava quase vesga de tentar olhar para os dois à vez. Tanto amor ao mesmo tempo.

 

— Pronto, já se sentem melhor? Acham que a vossa mamãe já pode tirar o casaco? — disse Erica com uma risada quando descobriu que ainda estava calçada e de casaco vestido.

 

Pousou cada criança na sua respetiva alcofa, pendurou o casaco no vestíbulo, descalçou-se e levou os bebês para a sala. Depois sentou-se no sofá e apoiou os pés em cima da mesa de café.

 

— A mamãe já vai fazer alguma coisa. Mas primeiro precisa passar um tempinho com a Oprah.

 

Os meninos pareceram ignorá-la.

 

— É muito chato quando a mana mais velha não está em casa, não é?

 

A princípio, Erica tinha deixado Maja ficar em casa tanto quanto lhe fosse possível, mas passado algum tempo percebeu que a filha estava a dar em doida. Maja precisava de estar com outras crianças e tinha saudades do infantário. Era uma grande mudança em relação ao terrível período em que deixar Maja no centro parecia o início de uma guerra mundial em miniatura.

 

— Porque não vamos buscá-la mais cedo hoje? O que é que os meninos pensam acerca disso? — Erica interpretou o silêncio dos gêmeos como concordância. — A mamãe ainda nem sequer tomou o seu café — disse, levantando-se. — E os meninos sabem como fica a mamãe quando não toma o seu café.

 

“Un poco loco”, como o papá costuma dizer. Não é que devamos prestar muita atenção a tudo o que o papá diz, claro.

 

Erica riu-se e foi até a cozinha para preparar um café. A luz do atendedor de chamadas estava a piscar. Não tinha reparado antes. Alguém se dera realmente ao trabalho de deixar uma mensagem, por isso Erica carregou no botão para reproduzi-la. Quando ouviu a voz na máquina, deixou cair a colher de café e levou a mão à boca.

 

— Olá, mana. Sou eu. Anna. A não ser que tenhas outras irmãs, claro. Estou um bocado abananada e tenho o penteado mais horroroso do mundo. Mas estou aqui. Acho. Bem, quase. E sei que estiveste cá e que andas preocupada comigo. Não posso prometer que... — A voz divagava. Era rouca e parecia diferente, pois havia nela um laivo de dor. — Só queria dizer-te que já estou aqui.

 

Clique.

 

Erica não se mexeu durante alguns segundos. Em seguida, deixou-se cair lentamente para o chão e começou a chorar. Ainda estava a segurar a cafeteira com muita força.

 

— Não tens de ir trabalhar daqui a pouco? — Rita lançou um olhar severo a Mellberg enquanto mudava a fralda a Leo.

 

— Vou ficar a trabalhar em casa até a hora do almoço.

 

— Ah, vais ficar a trabalhar em casa... — disse Rita, olhando de relance para a televisão, onde estava a passar um programa sobre pessoas que construíam máquinas a partir de sucata e depois entravam em competições com elas.

 

— Estou a retemperar as minhas forças. Isso também é importante. Nós, os polícias, com o trabalho que temos, se não abrandarmos um bocado estamos tramados. Mellberg pegou em Leo e ergueu-o muito alto, fazendo o rapazinho gritar de tanto rir.

 

Rita cedeu. Não conseguia se zangar com Bertil. Claro que via o que outros viam: que ele era um brutamontes, que era incrivelmente inconveniente e que às vezes não conseguia ver além do próprio nariz. Além disso, Mellberg nunca queria fazer mais do que o estritamente necessário. Mas, ao mesmo tempo, Rita via o outro lado de Bertil. Como sorria de orelha a orelha quando Leo estava por perto, como nunca hesitava em mudar uma fralda ou levantar-se a meio da noite quando o bebê estava a chorar. Como a tratava como uma rainha e a olhava como se ela fosse uma dádiva de Deus à humanidade. Até se tinha entusiasticamente dedicado a aprender a dançar salsa, a paixão da vida de Rita. Bertil nunca seria o rei da pista de dança, mas conseguia conduzi-la razoavelmente, sem lhe magoar muito os pés. Rita também sabia que Bertil amava incondicionalmente Simon, o filho. Simon, que em breve faria dezassete anos, tinha entrado na vida de Mellberg apenas alguns anos atrás, porém, sempre que o seu nome surgia em conversa, o orgulho brilhava nos olhos de Bertil. Fazia questão de estar sempre em contacto com o filho e estava sempre disponível para o ajudar. Por todas estas razões, Rita amava tanto Bertil Mellberg que às vezes sentia que o coração ia explodir.

 

Foi até a cozinha. Quando começou a preparar o almoço, voltou a preocupar-se com Paula e Johanna. Reparara que as coisas não estavam a correr bem entre elas. Ficava triste ao ver a expressão infeliz no rosto de Paula. Suspeitava de que a filha ainda não sabia realmente qual era o problema. Johanna tinha-se fechado, afastando-se de todos eles e não apenas de Paula. Talvez lhe custasse viver assim, com tanta gente na mesma casa. Rita conseguia compreender que Johanna não gostasse particularmente de partilhar o apartamento com a sua mãe e o namorado, para não falar dos dois cães. Ao mesmo tempo, era muito prático tê-los aos dois ali em casa, uma vez que tomavam conta de Leo durante o dia, quando Paula e Johanna estavam a trabalhar.

 

Contudo, devia ser complicado, pelo que Rita concluiu que devia incentivá-las a procurarem o seu próprio apartamento. Mas, enquanto mexia o guisado, sentiu uma pontada no coração ao pensar que já não poderia ir buscar Leo ao berço pela manhã, quando ia ao quarto dele e dava pelo menino ali sentado, bem desperto e a sorrir-lhe. Limpou as lágrimas. Devia ser da cebola que descascara; não podia pôr-se para ali a chorar a meio do dia. Engoliu em seco e rezou para que elas resolvessem as coisas por si. Depois de provar o guisado, Rita acrescentou mais uma pitada de malagueta em pó. Se não conseguisse aquecê-la dos pés à cabeça, sabia que não tinha posto o suficiente.

 

O celular de Bertil, que estava sobre a mesa da cozinha, começou a tocar. Rita aproximou-se para olhar para o visor. Era da delegacia. Provavelmente estavam a perguntar-se onde estaria Bertil, pensou Rita enquanto levava o aparelho para a sala de estar. Bertil estava sentado no sofá, a dormir profundamente com a cabeça inclinada para trás e a boca aberta. Leo estava enroscado a dormir em cima da sua grande barriga. Com a pequena mão pousada na face de Bertil, a criança inspirava e expirava profunda e calmamente, o que fazia com que o peito subisse e descesse ao mesmo tempo que o do avô. Rita desligou o celular. A delegacia teria de esperar. De momento, Bertil tinha coisas mais importantes a fazer.

 

— Já soube que sábado foi um grande sucesso — disse Anders, lançando a Vivianne um olhar inquisitivo. A irmã parecia cansada e Anders perguntou a si próprio se se aperceberia de como aquilo a estava a desgastar. Talvez o passado os tivesse finalmente alcançado. Mas sabia que não adiantava dizer nada, pois Vivianne não queria ouvir. Era muitíssimo teimosa e determinada, e era por isso que a irmã, e possivelmente também ele próprio, tinham sobrevivido. Anders sempre estivera dependente dela. Vivianne tinha tomado conta dele, feito tudo por ele. Mas Anders interrogava-se se as coisas não estariam a começar a mudar, se não estariam lentamente a trocar de papéis.

 

— Como estão a correr as coisas com Erling? — perguntou. Vivianne fez uma careta.

 

— Bem, se ele não dormisse que nem uma pedra, acho que não o ia conseguir suportar — respondeu com um sorriso triste.

 

— Estamos quase lá — disse Anders na tentativa de consolá-la, mas percebeu que a irmã não estava a ouvi-lo. Vivianne sempre tivera uma espécie de luz interior e, mesmo que mais ninguém reparasse, Anders percebia que se estava a extinguir.

 

— Achas que vão encontrar o portátil? Vivianne teve um sobressalto.

 

— Não. A aparecer, já o teriam encontrado.

 

— Talvez tenhas razão.

 

Nenhum dos dois falou por um momento.

 

— Tentei ligar-te ontem — disse Vivianne, hesitante. Anders sentiu o corpo tenso.

 

— Ah foi?

 

— Não atendeste a noite toda.

 

— Devo ter desligado o celular — disse evasivamente Anders.

 

— Durante toda a noite?

 

— Estava cansado, por isso tomei um banho e estive a ler um bocado. Também passei algum tempo a dar uma vista de olhos aos relatórios.

 

— Ah, pois — respondeu Vivianne, embora Anders percebesse que a irmã não acreditava nele.

 

Nunca tinham tido segredos um para o outro, mas isso também tinha mudado. Ao mesmo tempo, sentiam-se mais próximos um do outro do que nunca. Anders estava a ter dificuldade em descobrir o que queria. Agora que a meta estava ao alcance deles, nada daquilo parecia tão claro como anteriormente e os pensamentos mantinham-no acordado durante a noite, fazendo-o dar voltas e mais voltas na cama. Já nada parecia tão simples como dantes.

 

Como é que ia dizer-lhe aquilo? Muitas vezes, as palavras estavam na ponta da língua, mas quando abria a boca não saía nada. Não podia fazer aquilo. Devia tanto a Vivianne. Ainda podia sentir o cheiro dos cigarros e do álcool, ouvir o tilintar dos copos e as pessoas a gemerem como animais. Ele e Vivianne iam esconder-se, muito encolhidos, debaixo da cama dela. A irmã abraçava-o e, embora não fosse muito maior do que ele, Vivianne parecia um gigante que emanava uma segurança que o protegeria de todo o mal.

 

— Ouvi dizer que aquilo de sábado foi um grande sucesso! — exclamou Erling quando saiu da casa de banho, limpando as mãos molhadas às calças. — Acabei de falar com Bertil, que quase fez um poema acerca da experiência. Tu és fantástica. Sabes isso, não sabes?

 

Sentou-se ao lado de Vivianne e pôs-lhe o braço em volta dos ombros com um olhar possessivo. Depois deu-lhe um beijo molhado na face e Anders viu como a irmã teve de conter-se para não se afastar. Em vez disso, Vivianne sorriu docemente e bebeu um golo de chá da caneca que tinha à frente.

 

— A única reclamação foi sobre a comida — um sulco profundo apareceu na testa de Erling. — Bertil não ficou particularmente entusiasmado com o que foi servido. Não sei se os outros partilham a opinião dele, mas ele é o chefe, claro, e nós devemos dar ouvidos aos nossos clientes.

 

— Qual era o problema da comida? — perguntou Vivianne. O tom era gélido, mas Erling não reparou.

 

— Parece que havia demasiados vegetais, assim como algumas coisas estranhas, pelo que percebi. E também não havia muito molho. Por isso Bertil sugeriu que oferecêssemos um menu mais tradicional, capaz de agradar a mais gente. Por outras palavras, comida saborosa e simples — o rosto de Erling iluminou-se de entusiasmo, como se antecipasse uma ovação de pé.

 

Vivianne, no entanto, tinha atingido o seu limite. Levantou-se e fitou Erling.

 

— Dito dessa maneira, parece que o tempo que passaram no spa foi um completo desperdício de tempo. Pensava que compreendias a minha filosofia, a minha visão do que é importante para o corpo e para a alma. A nossa preocupação aqui é a saúde e servimos comida que forneça energia positiva e força, não lixo que provoca ataques cardíacos e cancros. — Vivianne rodou nos calcanhares e afastou- se apressadamente. A longa trança oscilava em sincronia com os seus passos.

 

— Valha-me Deus — disse Erling, claramente surpreendido com a reação à sua sugestão. — Parece que desta vez pus mesmo a pata na poça.

 

— Pois, se calhar pôs mesmo — retorquiu secamente Anders. Erling podia fazer e dizer o que quisesse. Em breve não faria a mais pequena diferença. Então, a preocupação voltou a dominá-lo. Ia ter de falar com Vivianne. Ia ter de contar-lhe.

 

— Então e de que é que estamos mesmo à procura? — perguntou Martin olhando para Patrik, que se limitou a abanar a cabeça.

 

— Não sei mesmo. Acho que temos de seguir os nossos instintos, ler todo o material que está nas pastas e ver se há alguma pista que valha a pena seguirmos.

 

Folhearam os documentos em silêncio.

 

— Que maldição — praguejou Patrik passado algum tempo. Martin assentiu.

 

— E isto é só do ano passado. Ou nem tanto. E o Refúgio é apenas um dos muitos centros de acolhimento para vítimas de violência doméstica. Não fazemos mesmo a mais pequena ideia do que acontece na vida de algumas mulheres. — Martin fechou cuidadosamente uma pasta, pô-la de lado e abriu outra.

 

— Não consigo compreender... — disse Patrik, verbalizando o pensamento que lhe andava a ocupar a mente desde que tinham chegado ao Refúgio.

 

— Sacanas de merda! — praguejou Martin. — E parece que isto pode acontecer a qualquer uma. Não conheço Anna muito bem, mas parece-me uma pessoa que sabe muito bem o que quer e é difícil acreditar que acabou nas garras de alguém como o ex-marido.

 

— Podes crer. — Patrik fez uma careta ao pensar em Lucas. Graças a Deus que Anna e os filhos já tinham ultrapassado tudo aquilo, mas aquele homem tinha conseguido causar-lhes muita dor antes de morrer. — É difícil perceber como é que uma mulher permanece junto de um homem que lhe bate.

 

Martin colocou outra pasta à sua frente e respirou fundo.

 

— Como será para as pessoas que trabalham aqui e têm de lidar com estas situações diariamente? Talvez não seja assim tão estranho que Sverin se tenha fartado e quisesse voltar para Fjällbacka.

 

— Compreendo porque é que estabeleceram aquela regra, aquilo de o pessoal não se envolver demasiado, e porque mudam constantemente a pessoa que assiste cada mulher. Caso contrário, seria praticamente impossível não se envolverem pessoalmente.

 

— Achas que pode ter sido o que aconteceu a Mats? — perguntou Martin. — Será que a agressão está relacionada com alguém daqui? Leila usou a palavra “obcecados”. Talvez um dos homens tenha pensado que Sverin era mais do que apenas uma pessoa de contacto e tenha decidido dar-lhe um apertão.

 

Patrik assentiu.

 

— Também já pensei nisso. Mas, nesse caso, quem poderia ter sido? — interrogou-se, apontando para a pilha de pastas sobre a mesa. — Leila afirma não saber nada sobre isso e eu acho que, nesta fase, não adianta tentar pressioná-la.

 

— Podíamos falar com os outros membros da equipa. Talvez até pudéssemos falar com umas quantas mulheres. Imagino que continuem a circular muitos rumores e, se o que estamos a teorizar realmente aconteceu, as notícias rapidamente se espalhariam.

 

— Hum... talvez tenhas razão — disse Patrik. — Mas gostava de ter factos concretos antes de começarmos a aprofundar a investigação no Refúgio.

 

— Como é que vamos conseguir mais informação? — Martin passou impacientemente as mãos pelo cabelo ruivo curto, deixando-o todo em pé.

 

— Acho que devemos falar com os vizinhos do prédio onde Mats morava. A agressão deu-se à porta do prédio, portanto talvez alguém tenha visto alguma coisa, mas nunca tenha informado a polícia. E agora temos os nomes das mulheres por quem Mats era responsável, por isso, com sorte, teremos um motivo para cá voltar.

 

— Okay. — Martin baixou a cabeça e continuou a ler.

 

Fecharam a última pasta quando Leila entrou de rompante no gabinete. Pendurou o casaco e a mala num cabide.

 

— Encontraram alguma coisa com interesse?

 

— Ainda não temos certeza. Mas pelo menos temos os nomes das mulheres com quem Mats lidava. Obrigado por nos ter deixado consultar os arquivos. — Patrik juntou as pastas numa pilha muito bem ordenada e em seguida Leila recolocou-as no arquivador.

 

— De nada. Espero que não tenham dúvidas de que estamos dispostos a fazer tudo o que for possível para colaborar convosco. — Leila encostou-se à prateleira que continha grossos dossiês.

 

— Muito obrigado — disse Patrik. Dito isto, os dois agentes levantaram-se.

 

— Nós gostávamos muito de Matte. Era uma pessoa sem um pingo de maldade. Tenham isso em mente enquanto trabalham neste caso.

 

— Vamos fazer isso — afirmou Patrik, apertando a mão a Leila. — Pode ter certeza de que vamos fazer isso.

 

— Por que ninguém atende o maldito telefone? — disse irritadamente Paula.

 

— Mellberg também não atende? — perguntou Gösta.

 

— Não. Nem Patrik. Também já liguei a Martin, mas vai logo parar ao gravador de chamadas. Deve ter o celular desligado.

 

— Mellberg não me surpreende muito. O mais certo é estar em casa a dormir. Mas, normalmente, conseguimos apanhar o Hedström.

 

— Deve estar ocupado. Bem, vamos resolver isso nós mesmos e mais tarde informamos. — Paula entrou no estacionamento do Hospital de Uddevalla e parou o carro.

 

— Calculo que estejam nos Cuidados Intensivos — disse Paula, apressando-se para a entrada do hospital.

 

Dirigiram-se ao elevador e esperaram impacientemente que os levasse até o andar certo.

 

— Que coisa desagradável — comentou Gösta.

 

— Sim, imagino a preocupação dos pais. Onde é que as crianças terão conseguido aquela porcaria? Por amor de Deus, só têm sete anos!

 

Gösta abanou a cabeça.

 

— Não faço ideia.

 

— Vamos ter de perguntar-lhes.

 

Quando chegaram à enfermaria, Paula interpelou o primeiro médico que viu.

 

— Desculpe. Somos da polícia e viemos cá por causa das crianças da escola de Fjällbacka. O homem alto de bata branca assentiu.

 

— São meus doentes. Venham comigo. — O médico começou a andar em grandes passadas e Paula e

 

Gösta quase tiveram de correr para acompanhá-lo.

 

Paula tentou respirar pela boca. Detestava hospitais e todos os seus cheiros. Evitava-os a todo o custo, porém, dada a profissão que escolhera, tinha de visitar hospitais com muito mais frequência do que gostaria.

 

— Os miúdos vão ficar bem — disse o médico alto por cima do ombro. — A escola reagiu rapidamente e havia uma ambulância nas proximidades, por isso foram trazidos relativamente depressa e conseguimos controlar a situação.

 

— Estão acordados? — perguntou Paula. Arfava um pouco enquanto marchava pelo corredor, o suficiente para se lembrar de que devia voltar para o ginásio. Não tinha feito muito exercício nos últimos tempos. Para não falar da apetitosa comida de Rita.

 

— Sim, estão acordados, e todos os pais autorizaram que falassem com eles. — O médico parou à porta de um quarto que ficava quase ao fundo do corredor.

 

— Deixem-me entrar primeiro e falar com os pais. Do ponto de vista médico, não há nada que os impeça de falar com os rapazes. Calculo que queiram saber onde encontraram a cocaína.

 

— Tem certeza de que era cocaína? — perguntou Paula.

 

— Sim. Fizemos algumas análises ao sangue que o confirmaram. — O médico abriu a porta e entrou. Paula e Gösta andavam para a frente e para trás no corredor enquanto esperavam. Passados alguns minutos, a porta abriu-se e vários adultos com ar sombrio saíram com os rostos lavados em lágrimas.

 

— Somos da polícia de Tanum — explicou Paula, apertando a mão a todos. Gösta fez o mesmo, parecendo conhecer alguns dos pais.

 

— Sabem onde os nossos filhos encontraram a droga? — perguntou uma das mães, limpando os olhos com um lenço. — Pensamos que estão seguros na escola e depois acontece... — A voz começou a vacilar e a mulher encostou-se ao marido, que lhe pôs o braço em torno dos ombros.

 

— Os vossos filhos não vos disseram nada acerca do que aconteceu?

 

— Não, acho que estão demasiado envergonhados. Dissemos-lhes que não os vamos castigar, mas ainda não conseguimos que nos contassem nada. Mas também não quisemos pressioná-los demasiado — disse um dos pais. Embora parecesse composto, tinha os olhos vermelhos.

 

— Não se importam de que falemos com eles a sós? Prometemos que não os vamos assustar — disse Paula com um sorriso. Sabia que não parecia particularmente ameaçadora. Quanto a Gösta, parecia um velho cão bondoso e tristonho. Paula não conseguia imaginar que alguém pudesse ter medo deles e, aparentemente, os pais achavam o mesmo, pois assentiram.

 

— Porque não vamos todos beber um café enquanto os senhores agentes falam com eles? — sugeriu o pai com os olhos avermelhados. Os outros pareceram achar uma boa ideia. O pai virou-se para Paula e Gösta e disse: — Vamos para aquela sala de espera. E depois gostaríamos que nos dissessem o que descobriram.

 

— Claro que dizemos — afirmou Gösta, dando uma palmadinha no ombro do homem.

 

Paula e Gösta entraram no quarto. Os rapazes estavam deitados lado a lado. Três pequenas criaturas lamentáveis enfiadas nas suas camas de hospital.

 

— Olá! — disse Paula, e os três retribuíram timidamente a saudação. Paula interrogou-se por que rapaz deveriam começar. Quando dois deles lançaram olhadelas ansiosas ao terceiro rapaz, que tinha cabelo escuro e encaracolado, decidiu começar por ele.

 

— Chamo-me Paula — disse, puxando uma cadeira para junto da cama e fazendo sinal a Gösta para fazer o mesmo. — E tu, como te chamas?

 

— Jon — respondeu com voz débil o rapaz, embora não se atrevesse a olhá-la nos olhos.

 

— Como te sentes?

 

— Bem — respondeu, brincando nervosamente com o cobertor.

 

— Que coisa horrível, não foi? — Paula estava completamente concentrada em Jon, mas viu pelo canto do olho que os outros dois rapazes estavam a escutar atentamente.

 

— Ahã — fez o rapaz, olhando para Paula. — És mesmo polícia? Paula riu-se.

 

— Sim, sou. Não pareço?

 

— Bem, nem por isso. Eu sei que as senhoras podem ser polícias, mas tu és tão baixinha. — Jon sorriu timidamente.

 

— As polícias baixinhas também fazem falta. E se precisarmos de entrar num espaço muito pequeno, por exemplo? — perguntou Paula. Jon assentiu, como se aquela fosse uma explicação perfeitamente razoável.

 

— Queres ver o meu crachá da polícia?

 

Jon assentiu com entusiasmo e os outros rapazes esticaram o pescoço para ver melhor.

 

— Talvez também possas mostrar-lhes o teu crachá, Gösta, para que os amigos de Jon possam dar- lhe uma vista de olhos.

 

Gösta sorriu, levantou-se e dirigiu-se à cama do lado.

 

— Ena! O teu crachá parece igualzinho aos que aparecem na televisão — disse Jon, estudando-o por um momento. Depois devolveu-o a Paula.

 

— Aquela coisa que encontraram é muito perigosa. Percebes isso, não percebes? — perguntou Paula, tentando não parecer demasiado severa.

 

— Hum — Jon baixou novamente os olhos e recomeçou a brincar com o cobertor.

 

— Mas ninguém está zangado convosco. Nem os vossos pais nem os vossos professores. E nós também não.

 

— Pensávamos que era um saco com doces.

 

— Realmente parece um bocado aquele pó que vem nas gomas parecidas com discos voadores, não é? — retorquiu. — Eu, provavelmente, teria cometido o mesmo erro.

 

Gösta voltou a sentar-se e Paula esperou que o colega fizesse algumas perguntas, mas Gösta parecia preferir deixá-la conduzir a conversa. Paula sempre tivera jeito para lidar com crianças.

 

— O papá diz que é droga — disse Jon, repuxando um fio do cobertor.

 

— Sim, é verdade. Sabes o que são drogas?

 

— Veneno. Só que não mata.

 

— Não é verdade. As drogas podem matar uma pessoa. Mas tens razão, são um veneno. É por isso que é importante que nos ajudem a descobrir de onde veio aquele pó, para podermos evitar que qualquer outra pessoa seja envenenada. — Paula falava num tom calmo e amigável e Jon começou a ficar mais descontraído.

 

— De certeza que não estão zangados conosco? — Jon olhou Paula nos olhos. O lábio inferior tremia-lhe.

 

— Absoluta. Palavra de honra — respondeu Paula, esperando que a expressão não estivesse irremediavelmente fora de moda. — E os teus pais também não estão zangados. Estão é preocupados, só isso.

 

— Ontem estávamos perto dos apartamentos — disse Jon. — Estávamos a atirar bolas de tênis na parede. Há lá uma fábrica. Pelo menos acho que é uma fábrica. Com muros altos e sem janelas, sem vidros que se possam partir. É por isso que costumamos ir brincar para lá. Depois, a caminho de casa, estávamos à procura de garrafas para vendermos. Nos caixotes do lixo que há à porta do prédio. E depois encontramos o saco. Pensamos que era um saco de doces — o fio desprendeu-se do cobertor, deixando um buraco minúsculo no tecido.

 

— Por que não provaram os doces ontem? — perguntou Gösta.

 

— Porque achamos que era muito legal termos encontrado tantos doces e quisemos levar o saco para a escola para mostrar a todo mundo. Parecia mais legal provar quando estivessem todos lá. Íamos ficar com a maior parte para nós, claro. Mas também queríamos partilhar com eles.

 

— Em que caixote do lixo encontraram o saco? — perguntou Paula. Conhecia a fábrica a que

 

Jon dissera, mas queria ter cem por cento de certeza.

 

— No estacionamento. Vimos quando passamos pelo portão do lugar onde estávamos jogando tênis.

 

— Há um bosque e a colina à direita?

 

— Sim, é essa.

 

Paula olhou de relance para Gösta. O caixote do lixo onde os rapazes haviam encontrado a cocaína era o que estava à porta do prédio de Mats Sverin.

 

— Obrigada, meninos. Ajudaram-nos muito — disse Paula enquanto se levantava. Sentiu um aperto no estômago. Talvez aquele fosse o desenvolvimento pelo qual tanto tinham esperado.

 

FJÄLLBACKA, 1871

O PASTOR ERA GRANDE E GORDO, E AGARROU COM GRATIDÃO A MÃO QUE KARL LHE ESTENDEU PARA AJUDÁ-LO A SUBIR PARA O CAIS. EMELIE FEZ UMA TÍMIDA REVERÊNCIA. NUNCA TINHA IDO À MISSA NA VILA. ESTAVA CORADA E COM ESPERANÇA DE QUE O PASTOR NÃO PENSASSE QUE NÃO IA À IGREJA POR FALTA DE VONTADE OU DE FÉ.

— É REALMENTE UM SÍTIO MUITO ISOLADO. MAS É LINDÍSSIMO — ACRESCENTOU O PASTOR. — MAS NÃO VIVE AQUI UMA OUTRA PESSOA?

— JULIAN — RESPONDEU KARL. — NESTE MOMENTO ESTÁ A FAZER O SEU TURNO NO FAROL. SE DESEJAR, POSSO IR CHAMÁ-LO.

— SIM, AGRADEÇO-LHE QUE VÁ CHAMÁ-LO. — SEM ESPERAR QUE O CONVIDASSEM, O PASTOR COMEÇOU A DIRIGIR-SE À CASA. — JÁ QUE CONSEGUI FINALMENTE VIR A ESTA ILHA, APROVEITO PARA CONHECER TODOS OS HABITANTES. — O PASTOR RIU-SE E SEGUROU A PORTA PARA QUE EMELIE ENTRASSE. KARL ENCAMINHAVA- SE JÁ PARA O FAROL.

— QUE CASA TÃO BONITA E LIMPA — DISSE O PASTOR, OLHANDO EM REDOR.

— É UMA CASINHA MUITO HUMILDE, MUITO SIMPLES — DISSE EMELIE, DANDO POR SI A ESCONDER AS MÃOS DEBAIXO DO AVENTAL. ESTAVAM MUITO ÁSPERAS POR ANDAR CONSTANTEMENTE A LAVAR O CHÃO. MAS NÃO PODIA NEGAR QUE TINHA FICADO FELIZ COM AS PALAVRAS ELOGIOSAS DO PASTOR.

— NÃO HÁ NENHUMA RAZÃO PARA DESPREZAR O QUE É HUMILDE E SIMPLES. PELO QUE POSSO VER, KARL DEVE CONSIDERAR-SE SORTUDO POR TER UMA MULHER TÃO INTELIGENTE — DISSE O PASTOR, SENTANDO-SE NO BANCO DA COZINHA.

EMELIE ESTAVA TÃO ENVERGONHADA QUE NÃO SABIA O QUE DIZER, POR ISSO COMEÇOU A FAZER CAFÉ.

— POSSO OFERECER-LHE UM CAFÉ? — INTERROGOU-SE SE TERIA ALGUMA COISA PARA O ACOMPANHAR E APERCEBEU-SE LOGO DE QUE HAVIA APENAS AS ROSCAS SIMPLES QUE TINHA COZIDO NO FORNO. PORÉM, DADO O INESPERADO DA VISITA, TERIAM DE SERVIR.

— NUNCA RECUSO UMA CHÁVENA DE CAFÉ — RESPONDEU O PASTOR, SORRINDO.

EMELIE COMEÇAVA A SENTIR-SE MENOS NERVOSA. NÃO PARECIA SER DAQUELES PASTORES SEVEROS. NÃO COMO O PREGADOR BERG, DA SUA ANTIGA IGREJA. A SIMPLES IDEIA DE TER DE SENTAR-SE À MESA COM BERG FEZ COM QUE LHE TREMESSEM OS JOELHOS.

A PORTA ABRIU-SE E KARL ENTROU. MESMO ATRÁS DELE ESTAVA JULIAN, COM UMA EXPRESSÃO CAUTELOSA NO ROSTO. EVITOU OLHAR O PASTOR NOS OLHOS.

— PORTANTO, ESTE É JULIAN? — O PASTOR CONTINUAVA A SORRIR, MAS JULIAN LIMITOU-SE A ACENAR COM A CABEÇA, QUANDO APERTARAM BREVEMENTE A MÃO. KARL E JULIAN SENTARAM-SE À FRENTE DO PASTOR

ENQUANTO EMELIE PUNHA A MESA.

— ESPERO QUE ESTEJA A TER CUIDADO PARA QUE A SUA MULHER NÃO TRABALHE DE MAIS, AGORA QUE ESTÁ NESTE ESTADO ABENÇOADO. JÁ PERCEBI QUE É UMA EXCELENTE DONA DE CASA. DEVE ESTAR MUITO ORGULHOSO DELA.

A PRINCÍPIO, KARL NÃO RESPONDEU. MAS DEPOIS DISSE:

— SIM, EMELIE É MUITO EFICIENTE.

— MUITO BEM. AGORA VEM SENTAR-TE CONNOSCO — DISSE O PASTOR PARA EMELIE, DANDO UMA PALMADINHA NO ASSENTO AO SEU LADO.

EMELIE FEZ O QUE O PASTOR DISSE, MAS NÃO CONSEGUIA DEIXAR DE OLHAR PARA AS VESTES NEGRAS E PARA O COLARINHO BRANCO. NUNCA TINHA ESTADO TÃO PERTO DE UM PREGADOR. TERIA SIDO IMPENSÁVEL SENTAR-SE AO LADO DO VELHO BERG A CONVERSAR E A BEBER UMA CHÁVENA DE CAFÉ. AS MÃOS TREMIAM ENQUANTO SERVIA O CAFÉ, ENCHENDO A SUA CHÁVENA EM ÚLTIMO LUGAR.

— A SUA VISITA É UMA GRANDE SURPRESA PARA NÓS — DISSE KARL. ESTAVA CLARAMENTE A INTERROGAR-SE ACERCA DO PROPÓSITO DA VISITA DO PASTOR.

— SIM, BEM, VOCÊS NÃO TÊM PROPRIAMENTE IDO À IGREJA COM REGULARIDADE — DISSE O PASTOR, BEBERICANDO O CAFÉ. PÔS TRÊS TORRÕES DE AÇÚCAR NA CHÁVENA E EMELIE PENSOU QUE O CAFÉ DEVIA TER FICADO HORRIVELMENTE DOCE.

DE REPENTE, KARL PARECIA UM SER INSIGNIFICANTE E DESAJEITADO E, NESSE MOMENTO, EMELIE NÃO CONSEGUIU COMPREENDER PORQUE TINHA TANTO MEDO DELE. ENTÃO RECORDOU AQUELA NOITE E PÔS A MÃO NA BARRIGA.

— É VERDADE QUE NÃO TEMOS IDO À IGREJA TÃO FREQUENTEMENTE COMO DEVÍAMOS — DISSE JULIAN, INCLINANDO A CABEÇA. AINDA NÃO TINHA OLHADO O PASTOR NOS OLHOS. — MAS EMELIE LÊ-NOS A BÍBLIA TODAS AS NOITES, POR ISSO ESTA NÃO DEIXA DE SER UMA CASA CRISTÃ.

EMELIE OLHOU ALARMADA PARA JULIAN. IRIA REALMENTE FICAR PARA ALI A MENTIR AO PASTOR? ERA VERDADE QUE ERAM LIDAS PASSAGENS DA BÍBLIA NAQUELA CASA, MAS SÓ ELA É QUE AS LIA PARA SI, SEMPRE QUE TINHA ALGUM TEMPO LIVRE. NEM JULIAN NEM KARL TINHAM ALGUMA VEZ MOSTRADO QUALQUER INTERESSE PELAS ESCRITURAS SAGRADAS. DE FACTO, ATÉ JÁ TINHAM ZOMBADO DELA EM VÁRIAS OCASIÕES POR LER A BÍBLIA.

O PASTOR ASSENTIU.

— ALEGRO-ME POR OUVIR ISSO. SOBRETUDO NUM LUGAR COMO ESTE, TÃO ESTÉRIL, INACESSÍVEL E DISTANTE DA CASA DO SENHOR. AQUI, UMA PESSOA TEM DE BUSCAR CONSOLO E ORIENTAÇÃO NA BÍBLIA. POR ISSO FICO FELIZ POR SABER QUE O FAZEM. ASSIM AINDA ME AGRADARIA MAIS VÊ-LOS NA IGREJA. SOBRETUDO TU, MINHA QUERIDA EMELIE — DISSE, DANDO UMA PALMADINHA NO JOELHO DE EMELIE E FAZENDO-A DAR UM SALTO NA CADEIRA. JÁ ERA SUFICIENTEMENTE ENERVANTE ESTAR SENTADA TÃO PERTO DE UM PREGADOR; AGORA SER TOCADA POR ELE ERA MAIS DO QUE PODIA SUPORTAR. EMELIE TEVE DE CONTER-SE PARA NÃO SE LEVANTAR DE ROMPANTE, TAL ERA O MEDO QUE SENTIA.

— TIVE UMA CONVERSA COM A TUA TIA. ESTAVA UM POUCO PREOCUPADA POR NÃO TER TIDO NOTÍCIAS

TUAS. E, AGORA QUE EMELIE ESTÁ GRÁVIDA, SERIA BOM QUE O MÉDICO A VISSE PARA TERMOS A CERTEZA DE QUE ESTÁ TUDO A PROGREDIR COMO DEVE SER. — O PASTOR LANÇOU UM OLHAR SEVERO A KARL, QUE TAMBÉM EVITOU O SEU OLHAR.

— CLARO — MURMUROU, OLHANDO PARA A MESA.

— ÓTIMO. ENTÃO ESTÁ DECIDIDO. DA PRÓXIMA VEZ QUE FORES A FJÄLLBACKA LEVAS EMELIE CONTIGO E DEIXAS O MÉDICO EXAMINÁ-LA. A TUA QUERIDA TIA TAMBÉM VAI APRECIAR A VOSSA VISITA, KARL. — O PASTOR PESTANEJOU E DEPOIS PEGOU NUMA ROSCA. — MUITO SABOROSA — COMENTOU, COM MIGALHAS A CAÍREM-LHE DOS LÁBIOS.

— OBRIGADA. — EMELIE NÃO ESTAVA APENAS A AGRADECER-LHE O ELOGIO AOS BISCOITOS. GRAÇAS AO PASTOR, IA TER OPORTUNIDADE DE IR À VILA E DE VER OUTRAS PESSOAS. TALVEZ KARL TAMBÉM A DEIXASSE IR À IGREJA DE VEZ EM QUANDO. ISSO FARIA COM QUE FOSSE MUITO MAIS FÁCIL TOLERAR A VIDA NA ILHA.

— BEM, ACHO QUE KARLSSON JÁ DEVE ESTAR A FICAR FARTO DE ESPERAR POR MIM. TEVE A GENTILEZA DE ME TRAZER ATÉ AQUI NO SEU BARCO, MAS TENHO A CERTEZA DE QUE ESTÁ ANSIOSO POR VOLTAR PARA CASA. QUERO AGRADECER-LHE O CAFÉ E ESTES BISCOITOS DELICIOSOS. — O PASTOR LEVANTOU-SE E EMELIE RAPIDAMENTE O IMITOU PARA O DEIXAR PASSAR.

— E ESTA? AS NOSSAS BARRIGAS SÃO QUASE DO MESMO TAMANHO — DISSE O PASTOR.

EMELIE SENTIU-SE CORAR DE VERGONHA. MAS DEPOIS NÃO PÔDE DEIXAR DE SORRIR. GOSTAVA DAQUELE PREGADOR E QUASE TINHA VONTADE DE SE AJOELHAR E BEIJAR-LHE OS PÉS DE GRATIDÃO POR SE TER APERCEBIDO DE QUE ELA PRECISAVA DE IR A FJÄLLBACKA.

— SUPONHO QUE JÁ OUVIRAM O QUE AS PESSOAS DIZEM ACERCA DESTA ILHA, NÃO É VERDADE? — PERGUNTOU O PASTOR COM UMA RISADA QUANDO KARL E EMELIE O ACOMPANHARAM ATÉ AO CAIS. JULIAN TINHA MURMURADO UMA DESPEDIDA APRESSADA E VOLTARA PARA O FAROL.

— COMO ASSIM? — PERGUNTOU KARL, AJUDANDO O PASTOR A ENTRAR NO BARCO.

— DIZ-SE QUE HÁ FANTASMAS AQUI. MAS É SÓ CONVERSA FIADA, CLARO. OU JÁ OS VIRAM? — O PASTOR DEU NOVA RISADA, FAZENDO COM QUE A GORDURA DAS BOCHECHAS ESTREMECESSE.

— NÓS NÃO ACREDITAMOS NESSAS COISAS — DISSE KARL, LANÇANDO O CABO QUE TINHA ACABADO DE DESATAR.

EMELIE NÃO DISSE UMA PALAVRA. MAS, QUANDO SE DESPEDIU, PENSOU NAQUELES QUE ERAM OS SEUS ÚNICOS VERDADEIROS COMPANHEIROS NA ILHA. NÃO PODIA FALAR DELES AO PASTOR. E, ALÉM DISSO, NINGUÉM ACREDITARIA NELA.

ENQUANTO CAMINHAVA DE REGRESSO A CASA, EMELIE VIU-OS PELO CANTO DO OLHO. NÃO TINHA MEDO DELES. NEM MESMO DEPOIS DE LHE TEREM COMEÇADO A APARECER. SABIA QUE NÃO LHE DESEJAVAM MAL NENHUM.

 

— OLÁ, ANNIKA. Paula tem estado a tentar ligar-me, mas agora não atende o telefone. — Patrik estava parado à entrada do Refúgio, pressionando um dedo contra a orelha esquerda enquanto encostava o celular ao ouvido direito. O barulho do trânsito era tão alto que tinha dificuldade em ouvir o que Annika estava a dizer.

 

— O quê? A escola? Espera, não te ouço bem. Cocaína? Okay, já percebi. No Hospital de

 

Uddevalla.

 

— O que aconteceu? — perguntou Martin.

 

— Três alunos da escola primária de Fjällbacka encontraram um saco de cocaína e comeram um bocado — disse Patrik com ar sombrio enquanto se dirigiam ao carro.

 

— Caramba! Como é que as crianças estão?

 

— Estão no hospital, mas parece que estão fora de perigo. Gösta e Paula estão lá com eles.

 

Patrik sentou-se ao volante e Martin ocupou o lugar do morto. Afastaram-se com Martin a olhar pensativamente pela janela.

 

— Alunos da primária? Pensamos sempre que as crianças estão seguros na escola, sobretudo em Fjällbacka, que não tem os problemas de uma cidade grande. E afinal não estão. As pessoas vão ficar assustadíssimas com uma coisa destas.

 

— Pois, as coisas agora são diferentes de quando éramos crianças. Ou, pelo menos, de quando eu era criança — disse Patrik com um sorriso irônico. Na verdade, não havia muita diferença de idades entre os dois.

 

— Acho que posso dizer o mesmo em relação aos meus tempos de escola — retorquiu Martin. — Mas nós já utilizávamos calculadoras em vez de ábacos.

 

— Ah, ah, ah. Que piada.

 

— Antes, as coisas eram tão simples, nós brincávamos no parquinho, jogávamos bola. As crianças têm que ser crianças. Hoje em dia, parece que todos estão com pressa de crescer. Querem fumar e trepar, beber e fazer tudo e mais alguma coisa. E querem fazer isso tudo antes do secundário.

 

— É verdade — disse Patrik, sentindo um pico de ansiedade no peito. Num abrir e fechar de olhos, Maja estaria a começar a escola. E Martin tinha razão: as coisas tinham mudado muito desde que andara na escola. Nem queria pensar nisso. Queria que a filha continuasse a ser criança o máximo de tempo possível. E, de preferência, que continuasse a viver em casa dos pais até ter quarenta anos. — Mas não acho que a cocaína seja assim tão vulgar — acrescentou, sobretudo para tentar tranquilizar-se a si próprio.

 

— Pois não, aquilo foi o cúmulo do azar. Ainda bem que as crianças estão livres de perigo. Podia ter sido muito, mas muito pior.

 

Patrik assentiu.

 

— Vamos ao hospital? — perguntou Martin, mas Patrik virou para o centro de Gotemburgo em vez de se dirigir à E6.

 

— Acho que Paula e Gösta conseguem resolver o assunto sozinhos. Vou telefonar a Paula para certificar-me disso. Já que estamos aqui, gostava de ter uma conversa com o inquilino de Mats e com os outros vizinhos do prédio onde morava. Parece um desperdício de tempo voltar cá mais tarde quando podemos tratar disto agora.

 

Patrik telefonou a Paula e, alguns minutos depois, desligou a chamada.

 

— Têm a situação sob controle, por isso vamos manter o nosso plano. Podemos parar no hospital a caminho de casa, se ainda lá estiverem.

 

— Ótimo. Paula descobriu onde as crianças encontraram a droga?

 

— Num caixote do lixo à porta do prédio onde Mats Sverin vivia. Por um momento, Martin não disse nada. Mas depois perguntou:

 

— Achas que isto pode estar está relacionado com o caso?

 

— Quem sabe? — Patrik encolheu os ombros. — A cocaína pode pertencer a qualquer pessoa que more no prédio. Mas é sem dúvida interessante ter sido encontrada à porta do prédio de Sverin.

 

Martin inclinou-se para ler as placas das ruas.

 

— Vira aqui. Erik Dahlbergsgatan. Qual é o número da porta?

 

— Quarenta e oito. — Patrik travou a fundo para evitar atropelar uma velhota que estava a atravessar vagarosamente a rua. Esperou impacientemente que a mulher chegasse ao passeio para voltar a carregar no acelerador.

 

— Acalma-te — disse Martin, apoiando-se à porta.

 

— Cá estamos — afirmou Patrik, ignorando o comentário. — Número quarenta e oito.

 

— Espero que haja alguém em casa. Talvez devêssemos ter telefonado antes de vir.

 

— Vamos tocar a campainha e rezar para termos sorte.

 

Era um belo edifício antigo de tijolo. Os apartamentos deviam ter todos ornamentos antiquados em estuque e soalhos de madeira.

 

— Como se chama o inquilino? — perguntou Martin quando chegaram à porta. Patrik pegou num pedaço de papel que tinha no bolso.

 

— Jonsson. Rasmus Jonsson. E o apartamento fica no primeiro andar.

 

Martin assentiu e apertou um botão do interfone. A placa ao lado do botão ainda dizia Sverin. Martin foi quase imediatamente recompensado por um estalido.

 

— Sim?

 

— Somos da polícia. Gostaríamos de conversar com você. Podemos entrar? — Martin falou o mais claramente possível no interfone.

 

— Qual é o assunto?

 

— Quando abrir a porta explicamos. Pode nos deixar entrar?

 

O interfone emitiu um clique e, em seguida, ouviu-se um zumbido na porta de entrada do prédio.

 

Subiram um lance de escadas, inspecionando as placas com nomes nas portas.

 

— É aqui — disse Martin, apontando para uma placa à esquerda.

 

Tocou a campainha. Quando ouviram passos se aproximando no interior, deram ambos um passo atrás. A porta se abriu, mas a corrente de segurança ainda estava trancada. Um jovem na casa dos vinte anos olhou para eles com desconfiança.

 

— É Rasmus Jonsson? — perguntou Patrik.

 

— Quem quer saber?

 

— Como já dissemos, somos da polícia. Queremos falar sobre Mats Sverin, a pessoa que sublocou este apartamento.

 

— Ah, querem? — O tom de voz de Rasmus denotava descaramento e a corrente de segurança ainda não tinha sido retirada.

 

Patrik sentiu a irritação crescer dentro dele e depois lançou um olhar fulminante ao jovem.

 

— Ou nos deixa entrar para que possamos ter uma conversa amigável e tranquila ou vou ter que fazer algumas ligações e seu apartamento vai ser revistado de cima a baixo enquanto passa o resto do dia, e talvez parte de amanhã, na delegacia.

 

Martin olhou de relance para o colega. Patrik não costumava fazer ameaças tolas. Não tinham nenhuma razão para revistar aquele apartamento nem para levar Jonsson para interrogatório.

 

Por alguns segundos, ninguém falou. Em seguida, o jovem soltou a corrente de segurança.

 

— Fascistas de merda! — praguejou Rasmus Jonsson, recuando para o vestíbulo.

 

— Sábia decisão — disse Patrik.

 

Havia um cheiro forte de maconha no apartamento, o que explicava por que o jovem estava tão relutante. Quando entraram na sala de estar, Patrik e Martin viram pilhas de literatura anarquista e cartazes contra o sistema afixados nas paredes. Estavam claramente em território inimigo.

 

— Não fiquem muito à vontade. Estou estudando e não tenho tempo para essas merdas. — Rasmus sentou-se numa pequena mesa repleta de livros e cadernos.

 

— Estudando o quê? — perguntou Martin. Não viam muitos anarquistas em Tanumshede, por isso estava realmente curioso.

 

— Ciência política — respondeu Rasmus. — Para conseguir compreender melhor como é que chegamos a este maldito estado e entender como podemos mudar a sociedade. — Rasmus parecia estar falando com alunos do primário e Patrik olhou-o com ar divertido. Perguntou a si mesmo se a vida e a passagem do tempo acabariam por mudar os ideais daquele jovem.

 

— Mats Sverin sublocou este apartamento a você?

 

— Por que pergunta? — interrogou Rasmus. O sol brilhava através da janela da sala de estar e Patrik percebeu que estava a olhar para alguém que tinha exatamente o mesmo tom de cabelo ruivo de Martin. Mas Rasmus tinha deixado a barba crescer, por isso a impressão que causava era ainda mais intensa.

 

— Repito: está sublocando este apartamento de Mats Sverin? — Patrik falou calmamente, mas começava a perder a paciência.

 

— Sim, é isso — admitiu Rasmus com relutância.

 

— Lamento informá-lo de que Mats Sverin está morto. Foi assassinado.

 

Rasmus fitou Patrik.

 

— Assassinado? Que diabos está dizendo? E o que isso tem a ver comigo?

 

— Nada, espero. Mas tentamos descobrir mais sobre Mats e a vida dele.

 

— Na verdade, não o conheço, por isso não posso ajudar.

 

— Deixe que nós decidimos isso — afirmou Patrik. — Sublocou o apartamento mobiliado?

 

— Sim. Tudo o que tem aqui é dele.

 

— Sverin não levou nada?

 

Rasmus encolheu os ombros.

 

— Acho que não. Pôs todos os objetos pessoais em sacolas, como fotos e coisas assim, e depois jogou tudo no lixo. Disse que queria se livrar daquelas tralhas antigas todas.

 

Patrik olhou em volta. Tal como em Fjällbacka, parecia não haver objetos pessoais no apartamento. Ainda não faziam ideia do motivo, porém, pelo visto, Mats Sverin queria começar de novo. Patrik virou-se novamente para Rasmus.

 

— Como conseguiu o apartamento?

 

— Por um anúncio. Sverin precisava alugá-lo rapidamente. Parece que tinha sido agredido e queria sair de Gotemburgo.

 

— Sverin contou alguma disso? — interrompeu Martin.

 

— De quê?

 

— Da agressão — disse pacientemente Martin. A fonte do cheiro adocicado que pairava no apartamento tornava obviamente tudo um pouco nebuloso para o jovem estudante.

 

— Não, não mesmo... — Rasmus hesitou, o que despertou o interesse de Patrik.

 

— Mas...?

 

— Mas o quê? — Rasmus começou a oscilar a cadeira da mesa para um lado e para o outro.

 

— Se souber algo sobre a agressão que Mats sofreu, gostaríamos de ouvir.

 

— Eu não colaboro com a polícia. — Os olhos de Rasmus se estreitaram.

 

Patrik teve de respirar fundo duas vezes para se acalmar. Aquele cara estava realmente mexendo com seus nervos.

 

— Minha oferta se mantém. Uma conversa calma e agradável conosco ou então chamamos as tropas, e isso significa que o apartamento será revistado enquanto você dá um passeio até a delegacia.

 

Rasmus parou de oscilar a cadeira. Suspirou.

 

— Não vi nada pessoalmente, por isso não têm nada contra mim. Mas deviam ter uma conversa com o velho Pettersson, lá em cima. O homem parece ter visto muito.

 

— Por que esse Pettersson não disse nada à polícia?

 

— Vai ter de perguntar a ele. Só sei que dizem aqui no prédio que o velho sabe alguma coisa. — Rasmus apertou os lábios e os dois agentes perceberam que dali não sairia mais nada.

 

— Obrigado pela ajuda — disse Patrik. — Aqui está meu cartão, no caso de lembrar mais alguma coisa.

 

Rasmus olhou de relance para o cartão que Patrik lhe estendeu e depois segurou-o entre o polegar e o indicador, como se cheirasse mal. Em seguida jogou-o descaradamente no cesto de papéis.

 

Patrik e Martin estavam aliviados por sair para o hall e deixar para trás o cheiro enjoativo de maconha.

 

— Que sujeito desagradável. — Martin abanou a cabeça.

 

— Tenho certeza de que a vida vai acabar por dar-lhe uma lição — disse Patrik, esperando não estar ficando tão cínico quanto parecia.

 

Subiram e tocaram a campainha ao lado da placa que dizia F. Pettersson. Um homem de idade abriu a porta.

 

— O que querem? — Parecia tão irritado como Rasmus. Patrik perguntou a si mesmo se haveria algo na água do edifício que afetava o humor daquela gente. Pareciam ter acordado todos com o pé esquerdo.

 

— Somos da polícia e gostaríamos de fazer-lhe algumas perguntas sobre um ex-inquilino chamado Mats Sverin. Morava no apartamento embaixo do seu. — A paciência de Patrik estava prestes a se esgotar, farto de anarquistas mal-humorados e velhos rabugentos. Teve de fazer grande esforço para manter a calma.

 

— Mats? Ah, sim, era um rapaz bem estranho — disse o homem, sem demonstrar intenção de deixá-los entrar.

 

— Foi agredido na porta do prédio antes de se mudar.

 

— A polícia já esteve aqui fazendo perguntas sobre isso.

 

O homem se apoiou na bengala. Pressentindo indecisão, Patrik avançou um passo.

 

— Temos motivo para acreditar que o senhor sabe mais do que disse à polícia.

 

Pettersson olhou para baixo e depois fez sinal com a cabeça para que entrassem.

 

— Entrem — disse, arrastando-se pelo corredor para o interior do apartamento.

 

A casa de Pettersson não só era muito mais luminosa do que a do andar de baixo como estava decorada de forma muito mais agradável, com móveis clássicos e quadros nas paredes.

 

— Sentem-se — disse o velho, apontando a bengala para o sofá da sala de estar.

 

Patrik e Martin fizeram o que Pettersson disse e se apresentaram. Ficaram sabendo que o primeiro nome do homem era Folke.

 

— Receio não ter nada para oferecer em termos de bebida — disse Folke num tom muito menos agressivo do que antes.

 

— Não faz mal. Além disso estamos com pressa — afirmou Martin.

 

— Como eu dizia... — Patrik aclarou a garganta. — Pelo que sabemos, o senhor tem informações acerca do que aconteceu a Mats Sverin na noite em que foi agredido.

 

— Hum... não tenho assim tanta certeza — disse Folke.

 

— É importante que desta vez nos diga a verdade. Mats foi assassinado. — A expressão de espanto do velho deu a Patrik uma momentânea satisfação mesquinha.

 

— Não pode ser!

 

— Infelizmente, aconteceu. E se tem alguma coisa a dizer da agressão, gostaria de ouvir agora.

 

— Não é bom me envolver. Nunca se sabe do que aqueles caras são capazes — disse Folke, pousando a bengala no chão. Cruzou as mãos no colo, parecendo repentinamente muito velho e frágil.

 

— Que quer dizer com “aqueles tipos”? De acordo com a declaração que Mats prestou à polícia, foi atacado por um bando de jovens arruaceiros.

 

— Jovens arruaceiros! — resfolegou Folke. — Aqueles caras não eram jovens arruaceiros! Não, aquilo era gente com quem nunca devemos nos misturar. Não compreendo como é que um rapaz simpático como Mats se relacionava com eles.

 

— Que quer dizer com isso, senhor Pettersson? — perguntou Patrik. De repente,começou a falar em tom mais formal com o idoso.

 

— Motoqueiros.

 

— Motoqueiros? — Martin olhou para Patrik, surpreso.

 

— Do tipo que aparecem nos jornais. Como os Hell's Angels e os Ladrões, ou como diabos se chamam.

 

— Bandidos — disse Patrik, ao mesmo tempo que uma profusão de pensamentos rodopiava em sua mente. — Se entendi bem, não foram jovens que agrediram Mats, mas um bando de motoqueiros?

 

— Sim, foi isso que eu disse. É surdo, filho?

 

— Por que mentiu à polícia, afirmando não ter visto nada? Disseram que não havia testemunhas do incidente. — Patrik não conseguia esconder a frustração. Se ao menos tivessem sabido disso desde o início.

 

— É melhor não se meter com aquela gente — insistiu teimosamente Folke. — Não tinha nada a ver comigo. Eu não gosto de me envolver na vida dos outros.

 

— Então foi por isso que disse que não tinha visto nada? — Era uma das coisas que mais custava a aceitar: pessoas que viam as coisas e depois encolhiam os ombros.

 

— É preferível não se meter com aqueles caras — repetiu Folke, sem conseguir olhá-los nos olhos.

 

— O senhor viu alguma coisa que possa dar uma pista sobre a identidade deles? — perguntou Martin.

 

— Tinham uma águia nas costas. Uma grande águia amarela.

 

— Obrigado — disse Martin, levantando-se para apertar a mão do velho. Após um momento de hesitação, Patrik fez o mesmo.

 

Pouco tempo depois, estavam a caminho de Uddevalla. Ambos profundamente absortos em seus pensamentos.

 

Erica não podia esperar mais tempo. Depois de se recompor, telefonou a Kristina e pediu-lhe para tomar conta dos filhos. Mal ouviu a porta do carro da sogra bater, vestiu o casaco, saiu apressadamente de casa e conduziu na direção de Falkeliden. Quando lá chegou, permaneceu sentada no carro durante alguns minutos. Talvez devesse manter-se afastada por um tempo e deixá-los em paz. A breve mensagem que Anna deixara no gravador de chamadas do telefone era um pouco confusa. Podia ter interpretado mal o que a irmã tinha dito.

 

Erica aferrava-se ao volante com o motor desligado. Não queria confundir as coisas. Já houvera ocasiões no passado em que Anna a tinha acusado de invadir o seu espaço e de tentar intrometer-se nos seus assuntos pessoais. E muitas vezes tinha razão. Quando estavam a crescer, Erica tinha querido compensar o que achava ser falta de amor por parte da mãe. Mas agora pensava de outro modo e Anna também. Elsy amara-as, mas não tinha sido capaz de o demonstrar. E as duas irmãs tinham-se tornado mais chegadas ao longo dos últimos anos, sobretudo depois do que Anna passara com Lucas.

 

Naquele momento, Erica não sabia ao certo o que fazer. Afinal de contas, Anna tinha a sua própria família. Dan e os filhos. Talvez precisassem de a ter só para si. De repente, Erica viu a irmã à janela da cozinha. Passou a flutuar como um fantasma e depois virou-se e espreitou para o carro da Erica. Ergueu a mão e fez-lhe sinal para que entrasse.

 

Erica abriu repentinamente a porta do carro e apressou-se a subir os degraus. Dan abriu a porta antes que pudesse tocar a campainha.

 

— Entra — disse o amigo, e Erica viu milhares de emoções diferentes no rosto de Dan.

 

— Obrigada. — Hesitante, Erica entrou, despiu o casaco e, com uma estranha sensação de reverência, foi até a cozinha.

 

Anna estava sentada numa cadeira à mesa da cozinha. Não passara o tempo todo na cama; Erica já a tinha visto ali em baixo depois do acidente. Mas nunca parecera verdadeiramente presente. Agora sim.

 

— Ouvi a mensagem que me deixaste no telefone — disse Erica, sentando-se à frente da irmã.

 

Dan serviu a todos uma chávena de café e depois retirou-se discretamente para ir ter com as crianças barulhentas que estavam na sala de estar, para que as duas irmãs pudessem conversar em paz.

 

A mão de Anna tremeu um pouco quando levou a chávena aos lábios. Parecia quase transparente. Frágil. Mas o seu olhar era firme.

 

— Estava com tanto medo — disse Erica, sentindo as lágrimas a aflorar aos olhos.

 

— Eu sei. Eu também estava com medo. Com medo de voltar.

 

— Mas por quê? Quer dizer, eu compreendo. Percebo que... — Erica esforçava-se por encontrar as palavras certas. Como poderia expressar por palavras a dor de Anna quando na verdade não fazia a mais pequena ideia do que a irmã tinha sentido.

 

— Estava escuro. E doía menos ficar no escuro do que estar aqui com vocês.

 

— Mas agora... — A voz de Erica tremia. — Agora estás aqui, não é?

 

Anna assentiu suavemente e bebeu mais um golo de café.

 

— Onde estão os gêmeos?

 

Erica não sabia o que dizer, mas Anna parecia entender a sua hesitação. Sorriu.

 

— Estou muito ansiosa por vê-los. A quem saem? São muito parecidos? Erica olhou para a irmã, ainda insegura de como reagir.

 

— Na verdade não são mesmo nada parecidos. Nem um bocadinho. Noel é mais barulhento. Deixa muito claro quando quer alguma coisa e é tão determinado! Teimoso como nunca vi. Anton é quase o oposto. Nunca berra para pedir nada e parece pensar que a vida é uma coisa extraordinária. Ou seja, está feliz da vida. Agora a quem saem é que não sei muito bem.

 

Anna fez um sorriso mais rasgado.

 

— Estás a gozar comigo, não? — Acabas de descrever-te a ti própria e a Patrik. E, já agora, o feliz da vida é ele.

 

— Não, mas... — começou Erica a dizer, mas depois calou-se quando percebeu que o que Anna tinha dito era verdade. De facto descrevera-se a si própria e a Patrik, embora soubesse que o marido nem sempre era tão calmo no trabalho como quando estava em casa.

 

— Gostava de conhecê-los — disse novamente Anna, olhando fixamente para Erica. — Não há nenhuma ligação com o que aconteceu comigo e tu sabes disso. Os gêmeos não tiveram culpa de o meu filho ter morrido.

 

Erica não conseguiu conter as lágrimas. Ainda não estava convencida de que Anna aceitasse que não havia qualquer ligação; levaria tempo a acreditar nisso, mas a culpa que carregara durante os últimos meses começava lentamente a dissipar-se.

 

— Posso trazê-los cá quando quiseres. Quando te sentires preparada para os ver.

 

— Porque não vais buscá-los agora mesmo? Se não der muito trabalho, claro — disse Anna. Tinha- lhe voltado um pouco de cor ao rosto.

 

— Podia telefonar a Kristina a pedir-lhe para os vir cá trazer de carro. Anna assentiu.

 

Alguns minutos mais tarde, Erica tinha combinado tudo com a sogra, que traria os meninos a casa da irmã.

 

— É difícil — disse Anna. — Sinto que a escuridão continua a pairar.

 

— Pelo menos agora estás aqui. — Erica pôs a mão sobre a mão da irmã. — Vim cá ver-te quando estavas deitada na cama, lá em cima, e foi horrível. Parecia que só estava lá a tua concha vazia.

 

— E devia ser mais ou menos isso. Quase entro em pânico quando me apercebo de que, em parte, ainda estou assim. Sinto-me uma concha frágil e não sei como vou voltar a ficar preenchida. Sinto um vazio tão grande. Aqui. — Anna pôs a mão na barriga, acariciando-a suavemente.

 

— Lembras-te de alguma coisa do funeral?

 

— Não. — Anna abanou a cabeça. — Lembro-me de que era importante fazermos um funeral, que parecia ser algo necessário. Mas não me lembro do funeral em si.

 

— Não faz mal — disse Erica, levantando-se para voltar a encher as chávenas.

 

— Dan disse que a ideia de se revezarem para se deitarem na cama ao meu lado foi tua.

 

— Bem, não foi bem minha. — Erica sentou-se novamente e contou à irmã o que Vivianne lhe dissera.

 

— Manda-lhe cumprimentos e agradece-lhe por mim. Se não tivesse sugerido isso, era capaz de ainda estar para ali deitada no escuro. E o mais certo era ter-me afundado ainda mais. Tanto que talvez nunca mais conseguisse regressar.

 

— Quando a vir, digo-lhe.

 

A campainha tocou e Erica inclinou-se para trás, esticando o pescoço para poder ver o vestíbulo.

 

— Devem ser Kristina e os gêmeos.

 

Tinha razão. Dan abriu a porta a Kristina. Erica levantou-se e foi até o vestíbulo para dar uma ajuda, reparando com satisfação que os filhos estavam os dois bem despertos.

 

— São uns anjinhos — disse Kristina, lançando um olhar de relance à cozinha.

 

— Não quer entrar? — convidou Dan, mas Kristina abanou a cabeça.

 

— Não, agora acho que vou para casa. Assim ficam mais à vontade.

 

— Obrigada — disse Erica, abraçando a sogra. Agora já gostava de Kristina, embora a simpatia da sogra para com os outros não fosse realmente o seu forte.

 

— Não custou nada. Fico feliz por poder ajudar. Sabes disso. — Depois, Kristina saiu apressadamente de casa de Dan e de Anna.

 

Erica pegou nas duas alcofas e levou os gêmeos para a cozinha.

 

— Esta é a vossa tia Anna — disse, enquanto pousava cuidadosamente os gêmeos no chão ao lado da cadeira da irmã. — E estes são o Noel e o Anton.

 

— Bem, pelo menos quanto à paternidade, não há dúvida nenhuma. — Anna sentou-se no chão ao lado dos bebês e Erica imitou-a.

 

— Muita gente disse que são a cara chapada de Patrik. Mas nós não conseguimos notar parecenças nenhumas.

 

— São maravilhosos — disse Anna. A voz tremeu e, de repente, Erica temeu não ter feito bem em levar os filhos lá a casa para a irmã os conhecer. Talvez fosse demasiado cedo. Talvez lhe devesse ter dito que não.

 

— Está tudo bem — disse Anna, como se pudesse ler os pensamentos de Erica. — Posso pegar-lhes?

 

— Claro que podes — respondeu Erica. Sentiu a presença de Dan por detrás delas. O amigo estava sem dúvida a prender a respiração, como ela. Dan também não tinha certeza de aquilo ser o mais acertado a fazer.

 

— Primeiro vamos pegar na pequena Erica — disse Anna com um sorriso enquanto erguia Noel. — Então tu és teimoso como a tua mamãe, não és? Vais ser uma carga de trabalhos para ela, não vais?

 

Anna abraçou Noel, roçando o nariz no pescocinho do bebê. Pousou-o e pegou em Anton, repetindo o mesmo processo. Depois embalou-o nos braços.

 

— São uma maravilha, Erica. — Anna olhou para a irmã por cima da cabecinha careca de Anton. — São simplesmente maravilhosos.

 

— Obrigada — disse Erica. — Obrigada.

 

— Que descobriram? — perguntou ansiosamente Patrik ao entrar com Martin na sala de espera do hospital.

 

— Bem, já te disse quase tudo ao telefone — respondeu Paula. — Os miúdos encontraram um saco com pó branco num caixote do lixo perto do prédio. Aquele que fica em frente ao edifício da Tetra Pak.

 

— Okay. E temos o saco? — perguntou Patrik quando se sentou.

 

— Está mesmo aqui. — Paula apontou para um saco de papel castanho que estava em cima da mesa.

 

— E, antes que perguntes, sim, manipulamos com os cuidados apropriados. Mas, infelizmente, muita gente mexeu antes de chegar aqui. Crianças, professores e funcionários do hospital.

 

— Vamos ter de fazer uma análise cuidadosa. Podes tratar de o enviar para o laboratório forense? E depois temos de recolher impressões digitais de todas as pessoas que possam ter-lhe mexido. Começa por pedir aos pais autorização para recolher impressões digitais das crianças.

 

— É para já — disse Gösta, assentindo.

 

— Como estão as crianças? — perguntou Martin.

 

— De acordo com os médicos, passaram um mau pedaço. Aquilo podia ter acabado muito mal, mas felizmente não ingeriram muito pó, apenas uma pequena amostra. Ou estaríamos agora no necrotério e não aqui.

 

Aquele pensamento era tão terrível que ninguém falou por alguns instantes. Patrik olhou de relance para o saco de papel.

 

— Também devíamos verificar se tem impressões digitais de Mats Sverin.

 

— Achas que o homicídio dele pode estar relacionado com a droga? — Paula franziu a testa, recostando-se no sofá duro. Estava a ter dificuldade em encontrar uma posição confortável, de modo que voltou a inclinar-se. — Descobriram algo em Gotemburgo que possa indicar isso?

 

— Não, não descobrimos nada nesse sentido. Temos mais alguns dados com que trabalhar, mas estou a pensar explicar tudo mais logo, na nossa reunião habitual na delegacia — Patrik levantou-se. — Martin e eu vamos a Fjällbacka falar com alguns dos professores. Podes certificar-te de que o saco é enviado para o laboratório, Paula? Diz-lhes que é urgente.

 

Paula sorriu.

 

— O mais certo é assumirem logo que é urgente, uma vez que vai da tua parte.

 

Nathalie sentia-se um pouco desconfortável desde que Erica e Patrik a tinham visitado. Deveria chamar o médico? Sam ainda não tinha emitido um único som desde que chegara à ilha. Ao mesmo tempo, confiava nos seus instintos. O filho apenas precisava de tempo. Tempo para curar a alma, não o corpo, que era a única coisa que o médico se daria ao trabalho de examinar.

 

Mal se atrevia a pensar naquela noite. Era como se o cérebro desligasse de cada vez que aquelas memórias terríveis começavam a infiltrar-se lentamente na sua mente. Por isso, como poderia esperar que a alminha de Sam conseguisse lidar com aquilo? Tinham partilhado o mesmo terror. E Nathalie perguntava a si própria se não partilhariam agora o medo de que tudo aquilo os pudesse alcançar ali. Tentou acalmá-lo, dizendo-lhe que estavam a salvo na ilha. Que nenhum dos maus os iria encontrar ali. Mas não tinha certeza se o tom de voz jogava com as palavras. Porque ela própria não acreditava no que estava a dizer.

 

Se ao menos Matte... A mão tremia-lhe só de pensar nele. Matte teria sido capaz de protegê-los. Não lhe quisera contar tudo naquela tarde e noite que tinham passado juntos. Mas contara-lhe um bocadinho, o suficiente para Matte saber porque é que já não era a mesma pessoa. Sabia que devia ter-lhe contado toda a história. Se ao menos tivessem tido mais tempo, ter-lhe-ia confidenciado tudo.

 

Nathalie soluçou, mas depois respirou fundo, tentando recuperar a compostura. Não queria que Sam visse o seu desespero. O filho precisava de sentir-se seguro. Só assim conseguiria apagar da memória o som dos tiros, só assim apagaria as imagens do sangue e do pai. Cabia-lhe a ela fazer com que o filho recuperasse completamente. Matte não poderia ajudá-la.

 

Demoraram algum tempo a recolher todas as impressões digitais de que precisavam. Dois conjuntos continuavam em falta: os tripulantes da ambulância estavam a trabalhar e só regressariam mais tarde. Mas Paula tinha a sensação de que estavam a perder tempo a juntar todas aquelas impressões digitais. O instinto dizia-lhe que era mais importante determinar se havia impressões digitais de Sverin no saco. E precisavam de o saber rapidamente.

 

Paula bateu à porta do gabinete.

 

— Entre — Torbjörn Ruud olhou para cima quando a agente entrou.

 

— Olá. Sou Paula Morales, da polícia de Tanum. Já nos encontramos algumas vezes. — Subitamente, Paula sentiu-se algo insegura. Normalmente era rigorosíssima em relação a seguir os procedimentos adequados, afinal de contas as regras existiam por um motivo. No entanto, tinha ido ali pedir a Torbjörn para ignorar todos os protocolos. Na sua opinião, tratava-se de um daqueles momentos em que era preciso contornar um pouco as regras.

 

— Ah, sim, eu lembro-me de si. — Torbjörn fez-lhe sinal para que se sentasse. — Como está a correr a investigação? Pedersen já deu notícias?

 

— Não, esperamos receber o relatório da patologia forense na quarta-feira. De resto, não temos muito por onde pegar, porque não fizemos tantos progressos como esperávamos...

 

Paula calou-se, perguntando-se como formular o seu pedido.

 

— Hoje houve um incidente — disse por fim. — Ainda não sabemos se está relacionado com o homicídio... — Paula pousou o saco de papel na secretária.

 

— Que é que está aí dentro? — perguntou Torbjörn, estendendo a mão para o saco mas afastando-a antes de lhe tocar.

 

— Cocaína — disse-lhe Paula.

 

— Onde encontraram isso?

 

Paula informou-o rapidamente acerca do que tinha acontecido e do que os rapazes lhes tinham contado.

 

— Não é todos os dias que me põem um saco de cocaína em cima da secretária — disse Torbjörn, estudando Paula.

 

— Pois, acredito — retorquiu Paula, sentindo-se a corar. — Mas sabe bem como é o processo. Se enviássemos o saco para o laboratório forense, íamos demorar uma eternidade a obter os resultados. E tenho a sensação de que isto pode ser muito importante. Por isso queria saber se não podia ser um pouco flexível nesta situação. Se pudesse ajudar-me a descobrir apenas uma coisa, eu depois tratava de todas as formalidades. E assumo toda a responsabilidade, claro.

 

Torbjörn ficou em silêncio por alguns instantes.

 

— O que é exatamente que quer que eu faça? — perguntou por fim, embora não parecesse muito convencido.

 

Paula disse-lhe o que queria e Torbjörn assentiu.

 

— Okay, desta vez vamos abrir uma exceção. Mas, se acontecer alguma coisa, a Paula vai ter de assumir a responsabilidade, como disse. E, no final, tem de certificar-se de que nada pareça ter sido feito por baixo da mesa.

 

— Tem a minha palavra — disse Paula, sentindo uma onda de excitação. Tinha razão, estava convencida disso. Agora, apenas restava prová-lo.

 

— Certo, então venha comigo — disse Torbjörn, pondo-se de pé. Paula apressou-se a segui-lo. Ia ficar a dever-lhe um enorme favor.

 

— Espero não te ter ofendido hoje — disse Erling. Não se atreveu a olhá-la nos olhos.

 

Vivianne remexia a comida com o garfo e não respondeu. Como sempre, quando caía em desgraça, Erling sentia todo o corpo a retorcer-se de desconforto. Não devia mesmo ter repetido o que Bertil tinha dito sobre a comida servida no Badis. Que ideia fora a dele? Vivianne sabia o que estava a fazer e não devia ter interferido no trabalho dela.

 

— Meu amor, não estás zangada comigo, pois não? — perguntou Erling, acariciando-lhe as costas da mão.

 

Vivianne não reagiu e Erling não fazia ideia do que fazer a seguir. Normalmente conseguia dar-lhe a volta, mas Vivianne parecia demasiado mal-humorada para reconciliações.

 

— Parece que há uma série de pessoas que aceitaram o convite para a inauguração de sábado. Todas as celebridades de Gotemburgo vão estar presentes. Celebridades a sério, não apenas aquelas personalidades de segunda como Robinson-Martin, do Survivor. E consegui contratar os Arvingarna6.

 

Vivianne franziu a testa.

 

— Mas eu pensava que os Garage é que iam tocar na inauguração.

 

— Vão ter de contentar-se em fazer a primeira parte. Não íamos dizer que não aos Arvingarna, pois não? Além disso, vão atrair uma grande multidão. — Erling estava a começar a esquecer as suas preocupações. O Projeto Badis costumava ter esse efeito sobre ele.

 

— Mas só vamos receber o nosso dinheiro na próxima quarta-feira. Espero que percebas isso. — Vivianne ergueu os olhos do prato e parecia estar menos zangada.

 

Encantado, Erling continuou por esse caminho.

 

— Isso não é problema. A câmara municipal cobrirá as faturas até lá e a maioria dos fornecedores concorda em esperar pelo pagamento, uma vez que já garantimos o dinheiro. Portanto, não precisas de preocupar-te.

 

— Ainda bem. Claro que é Anders quem se encarrega de todos esses assuntos, portanto presumo que tenha sido informado.

 

Nesse momento, um pequeno sorriso começou a bailar-lhe nos lábios e Erling sentiu um formigueiro no estômago. Depois do almoço, quando estava ansiosíssimo por causa da gafe, um plano começara a tomar forma na sua mente. Não percebia porque não tinha pensado nisso antes. Mas, felizmente, era um homem de ação e sabia como fazer as coisas sem muita preparação prévia.

 

— Minha querida — começou a dizer Erling.

 

— Hum... — disse Vivianne, dando mais uma garfada no guisado vegetariano que tinha preparado.

 

— Tenho de fazer-te uma pergunta...

 

Vivianne parou de mastigar e ergueu os olhos para olhar para o namorado. Por um momento, Erling pensou ter visto um lampejo de medo, mas aquilo desapareceu imediatamente, por isso julgou estar a imaginar coisas. Provavelmente era apenas nervosismo.

 

Com esforço, Erling ajoelhou-se ao lado da cadeira de Vivianne e extraiu uma pequena caixa do bolso do casaco. A etiqueta na tampa dizia Nordholms Gold & Watches. Não era preciso ser um gênio para adivinhar o que estava lá dentro.

 

Erling aclarou a garganta. Aquele era um grande momento. Pegou na mão de Vivianne e, com voz solene, disse:

 

— Gostava de aproveitar esta ocasião para lhe perguntar se me daria a enorme honra de casar comigo — o que parecera tão elegante na sua mente parecia agora simplesmente pomposo. Erling tentou novamente: — Bem, quer dizer, estava a pensar que devíamos casar-nos.

 

Aquilo não tinha soado nada melhor e Erling podia ouvir o coração a martelar-lhe o peito enquanto esperava a resposta de Vivianne. Na verdade, tinha quase certeza de qual seria a resposta, mas não podia ter certeza absoluta. Às vezes as mulheres eram muito caprichosas.

 

Vivianne manteve-se em silêncio durante mais tempo do que seria de esperar e os joelhos de Erling começaram a doer. A caixa tremia-lhe na mão e sentia a coluna cada vez mais tensa.

 

Por fim, Vivianne respirou fundo e respondeu:

 

— Sim, claro, devíamos casar-nos, Erling.

 

Aliviado, Erling tirou o anel da caixa e enfiou-o no dedo da namorada. Não tinha sido caro, mas Vivianne não ligava muito às coisas materiais, por isso, porque haveria ele de gastar montes de dinheiro num anel? E conseguira-o por um preço excelente, pensou com satisfação. Nessa noite contava tirar bom partido do dinheiro que gastara. Era preocupante pensar que não faziam amor há tanto tempo, mas hoje iriam comemorar.

 

Levantou-se, as costas a estalar, e voltou a sentar-se. Com uma expressão triunfante, ergueu o copo na direção de Vivianne para um brinde e a noiva fez o mesmo. Por um segundo, Erling pensou ter visto outra vez aquele olhar estranho nos olhos dela, mas afastou a ideia e bebeu outro golo de vinho. Nessa noite não tencionava de todo adormecer no sofá.

 

— Estão cá todos? — perguntou Patrik. A questão era puramente retórica. Conseguia ver perfeitamente quem estava presente. A ideia era tentar silenciar o burburinho que se ouvia na cozinha.

 

— Estamos cá todos — respondeu Annika.

 

— Ora bem, há umas quantas coisas que precisamos de rever. — Patrik pegou no grande bloco que utilizavam para tomar notas nas reuniões.

 

— Antes de mais: os rapazes continuam a melhorar e não parecem ter sofrido nenhuma lesão permanente.

 

— Graças a Deus — disse Annika, aliviada.

 

— Antes de falarmos da descoberta da cocaína, gostava de passar em revista os outros acontecimentos de hoje. Paula, em que pé está a análise ao conteúdo da pasta de Sverin?

 

— Ainda não temos nenhuma novidade — respondeu Paula com vivacidade. — Mas estamos à espera de saber alguma coisa muito em breve.

 

— Havia um monte de documentos financeiros dentro da pasta — esclareceu Gösta depois de olhar de relance para Paula. — Não entendíamos quase nada do que diziam, por isso entregamos a Lennart, o marido de Annika, que vai dar uma olhada antes de enviarmos aos peritos.

 

— Ótimo — respondeu Patrik. — Quando é que Lennart acha que nos pode dizer alguma coisa sobre os documentos?

 

— Depois de amanhã — disse Paula. — Quanto ao celular, não tinha nada de interesse. Enviei o computador portátil aos técnicos informáticos, mas só Deus sabe quando nos enviarão um relatório.

 

— Eu sei que é frustrante, mas não há nada que possamos fazer quanto a isso. — Patrik cruzou os braços. Começou a tomar notas no grande bloco. Em letras enormes, podia agora ler-se: Lennart, quarta-feira.

 

— Que disse a antiga namorada de Sverin? Tinha alguma novidade para nós? — perguntou Mellberg. Todos se sobressaltaram e Patrik olhou para o chefe com espanto. Pensava que Mellberg não estava a prestar a mais pequena atenção ao decorrer da investigação.

 

— Mats foi à ilha vê-la na sexta-feira à tarde, mas foi-se embora algures durante a noite — respondeu Patrik, acrescentando aquela informação ao bloco. — Isso reduz o intervalo temporal em que pode ter ocorrido o homicídio. O mais cedo que pode ter ocorrido é na madrugada de sábado, o que também encaixa com o barulho que o vizinho ouviu. Espero que o relatório de Pedersen nos ajude a estabelecer com mais rigor a hora da morte.

 

— A garota pareceu-lhe suspeita? Será que isto não passou de uma briga entre namorados? — prosseguiu Mellberg. Ernst, que estava deitado aos pés do superintendente, reagiu ao tom de voz do dono, erguendo a cabeça com curiosidade.

 

— “Suspeita” não seria a palavra que eu empregaria para descrever Nathalie, mas parecia um pouco ausente. Ela e o filho estão atualmente a viver na ilha. Parece que não falava com Mats há muitos anos, o que confere com o que os pais dele nos disseram. O mais provável é que, naquela noite, Nathalie e Mats tenham estado a reviver os velhos tempos.

 

— Porque é que Mats se foi embora a meio da noite? — perguntou Annika, virando-se automaticamente para Martin, que parecia sentir-se insultado. Agora era um homem de família, mas em tempos tivera uma vida amorosa bastante ativa. O alvo dos seus afetos tinha tendência para mudar de semana a semana e às vezes os colegas ainda gozavam com ele por causa disso. Martin voltara as costas àquele tipo de vida no momento em que Pia entrara em cena e nunca se arrependeu dessa decisão.

 

Agora Martin recordava os velhos tempos com relutância.

 

— Não vejo nada de estranho nisso. Às vezes só queremos evitar toda aquela conversinha na manhã seguinte — todos olharam para ele com ar divertido e Martin encolheu os ombros. — Que foi? Os homens são assim — disse, corando e fazendo com que as sardas do rosto se destacassem ainda mais.

 

Patrik não pôde deixar de sorrir, mas depois forçou-se a ficar outra vez sério.

 

— Independentemente do motivo, agora sabemos que Mats foi para casa na madrugada de sábado. Mas a questão é: o que aconteceu ao barco em que fez a viagem? Mats deve ter regressado nele a Fjällbacka.

 

— Já viste os anúncios no Blocket? — Gösta pegou num biscoito e mergulhou-o no seu café.

 

— Verifiquei todos os anúncios ontem, mas até agora nada — respondeu Patrik. — Foi lançado um alerta por causa do barco desaparecido e pedi à Guarda Costeira para estarem atentos.

 

— Parece uma estranha coincidência o barco ter desaparecido ao mesmo tempo que Mats foi morto.

 

— Pois parece. Já alguém revistou o carro dele? — Paula endireitou-se na cadeira e olhou para Patrik.

 

O colega assentiu.

 

— Torbjörn e a sua equipe já examinaram o carro de Sverin. Estava estacionado em frente ao prédio onde ele morava. Mas não encontraram nada.

 

— Estou vendo — disse Paula, recostando-se novamente na cadeira. Pensou que lhes podia ter escapado algo, mas Patrik tinha claramente a situação sob controle.

 

— Que foi que descobriram em Gotemburgo? — perguntou Mellberg enquanto dava um biscoito a Ernst às escondidas.

 

Patrik e Martin trocaram olhares.

 

— Bem, acabou por revelar-se uma viagem muito produtiva. Queres contar a todos a nossa reunião na Segurança Social, Martin?

 

Sempre que Patrik decidia deixar o colega mais novo assumir a liderança o efeito era imediato. O rosto de Martin iluminava-se. Fez um relatório claro e conciso da reunião que tinham tido com Sven Barkman e das informações que este lhes fornecera acerca do Refúgio e da colaboração da associação com a Segurança Social. Depois de lançar um olhar inquiridor a Patrik, Martin passou a descrever a visita de ambos aos escritórios do Refúgio.

 

— Tanto quanto sabemos, Mats não foi alvo de ameaças por estar a trabalhar na organização. Pelo menos, a diretora do Refúgio afirma não ter conhecimento de nenhuma. Depois permitiu-nos consultar a documentação relativa às mulheres que receberam a ajuda do Refúgio durante o último ano em que Sverin lá trabalhou. Estamos a falar de cerca de vinte casos.

 

Patrik assentiu e Martin prosseguiu:

 

— Sem mais informações, é impossível determinar se um ou mais desses casos podem ter interesse e merecer uma investigação mais aprofundada. Mas nós tomamos notas e assentamos os nomes das mulheres de que Mats se encarregava, para podermos continuar a investigar. Já agora, não posso deixar de dizer que foi incrivelmente deprimente consultar aqueles processos. Muitas daquelas mulheres estavam a viver um inferno que nem nos passa pela cabeça... É muito difícil de descrever. — Algo perturbado, Martin calou-se. Patrik compreendia plenamente a reação do colega. Também ele fora afetado pelas vidas infernais que tinham vislumbrado naqueles processos.

 

— Estamos a pensar falar com os outros membros da equipe do Refúgio — disse Patrik. — E talvez também com algumas das mulheres que receberam ajuda da associação enquanto Mats lá trabalhava. Mas pode não ser necessário. Temos agora uma declaração de uma testemunha que nos pode fornecer uma pista potencial — fez uma pausa dramática, reparando que todos estavam completamente focados nele. — Desde o início que senti que havia qualquer coisa que não batia certo em relação à agressão a Mats. Por isso, Martin e eu aproveitamos a oportunidade e fomos até o prédio onde a vítima morava em Gotemburgo. Como sabem, a agressão ocorreu à porta do prédio e nós conseguimos falar com um vizinho. Queríamos confirmar o que Sverin declarou acerca dos adolescentes que o espancaram. Porém, de acordo com o vizinho que testemunhou o incidente, a agressão foi levada a cabo por um bando de arruaceiros muito mais velhos. O termo que o vizinho de Mats empregou foi “motoqueiros”.

 

— Porra! — praguejou Gösta. — Por que Sverin mentiria sobre isso? E por que o vizinho não disse nada antes?

 

— Quanto ao vizinho, é a história de costume. Teve medo e não quis se envolver. Ou seja, falta de coragem cívica.

 

— E Sverin? Por que não disse a verdade? — insistiu Gösta.

 

Patrik abanou a cabeça.

 

— Talvez também estivesse com medo. Talvez seja simples assim. Mas esses bandos de motoqueiros não são conhecidos por atacarem pessoas aleatoriamente na rua, por isso deve haver um motivo para a agressão.

 

— O vizinho recordava-se de algum sinal que os identificasse? — perguntou Paula.

 

— Uma águia — respondeu Martin. — O vizinho disse que tinham uma águia nos blusões. Por isso deve ser bastante fácil descobrir que bando era.

 

— Entre em contacto com os nossos colegas de Gotemburgo. Tenho certeza de que podem ajudar- vos com isso — disse Mellberg. — Confirma-se o que eu tenho andado a dizer. Esse Sverin não era flor que se cheire. Se andava metido com esses tipos, não é surpresa nenhuma que tenha ido parar à morgue com uma bala na cabeça.

 

— Eu não iria tão longe — disse Patrik. — Não fazemos ideia se Mats se dava com eles e, até agora, não há nenhuma indicação de que estivesse envolvido em algum tipo de atividade criminosa. Pensei que devíamos começar por perguntar à diretora do Refúgio se reconhece esse bando de motoqueiros em particular e se a sua organização teve algum contacto com eles. E, como Bertil sugeriu, devemos também falar com os nossos colegas de Gotemburgo. Diz, Paula?

 

Paula tinha levantado a mão.

 

— Bem, o que acontece é o seguinte — começou hesitantemente a dizer. — Hoje decidi acelerar um pouco as coisas. Em vez de enviar o saco de papel para o laboratório, levei-o diretamente a Torbjörn Ruud. Sabem que os resultados do laboratório costumam demorar a chegar. As coisas vão parar ao fim da fila e...

 

— Sim, nós sabemos. Continua — disse Patrik.

 

— Tive uma conversa com Torbjörn e pedi-lhe um... favor... — Paula contorceu-se desconfortavelmente na cadeira, receosa da reação de Patrik. — Para ser franca, pedi-lhe para fazer uma rápida comparação entre as impressões digitais no saco e as impressões de Sverin — Paula respirou fundo.

 

— Continua — voltou a dizer Patrik.

 

— Torbjörn descobriu que coincidiam. Havia impressões digitais de Mats no saco de papel com a cocaína.

 

— Eu sabia! — Mellberg ergueu um pouco o braço e cerrou o punho num gesto de triunfo. — Posse de droga e associação criminosa. Sempre soube que esse Mats tinha algo a esconder.

 

— Continuo a achar que devemos proceder com cautela — disse Patrik, embora não parecesse tão seguro de si como antes.

 

Os pensamentos rodopiavam-lhe na mente e tentava encontrar lógica em tudo aquilo. Até certo ponto, tinha de concordar com Mellberg. Mas a imagem que formara de Mats Sverin depois de falar com os pais, os colegas de trabalho e Nathalie não encaixava com aquela nova informação. Ainda que sempre tivesse tido a sensação de que algo não batia certo, não podia aceitar a avaliação que Bertil fazia de Mats.

 

— Torbjörn tem certeza absoluta?

 

— Sim, está cem por cento certo. O saco vai agora ser enviado para o laboratório e a sua conclusão será formalmente confirmada. Mas Torbjörn tem certeza de que Mats Sverin pegou naquele saco.

 

— Isso muda tudo. Precisamos de descobrir junto dos traficantes locais conhecidos se tinham alguma coisa que ver com Mats. Mas tenho de dizer que isto não parece... — Patrik abanou a cabeça.

 

— Tretas! — resfolegou Mellberg. — Estou convencido de que quando começarmos a bisbilhotar, não tardaremos a encontrar o nosso assassino. Um bom e velho homicídio relacionado com droga. Não deve ser muito difícil de resolver. Provavelmente, esse Mats devia dinheiro a alguém.

 

— Hum... — murmurou Patrik. — Nesse caso, porque é que ia atirar o saco para um caixote do lixo perto do apartamento onde morava? Ou terá sido outra pessoa a fazer isso? Seja como for, é preciso investigar. Martin e Paula, podem ir falar com os suspeitos do costume amanhã?

 

Paula assentiu enquanto Patrik começava a escrever no bloco. Sabia que Annika tomava sempre notas naquelas reuniões, mas aquele bloco enorme permitia-lhe ter uma imagem mais abrangente do caso.

 

— Gösta e eu vamos falar com os colegas de Mats, e desta vez vamos fazer perguntas mais específicas.

 

— Específicas?

 

— Como por exemplo, se ouviram ou observaram algo que possa explicar porque é que Mats terá pegado num saco de cocaína.

 

— Queres dizer que vamos perguntar-lhes se Mats era viciado em droga? — Gösta não parecia muito entusiasmado.

 

— Ainda não sabemos isso — afirmou Patrik. — Só vamos ter o relatório de Pedersen depois de amanhã. Até então, não fazemos a mais pequena ideia do tipo de substâncias que podem ter sido encontradas no organismo de Mats.

 

— Podíamos perguntar aos pais dele — sugeriu Paula.

 

Patrik engoliu em seco. Não era tarefa que lhe agradasse particularmente, mas sabia que a colega tinha razão.

 

— Sim, também temos de falar com eles. Gösta e eu tratamos disso.

 

— Então e eu? — perguntou Mellberg.

 

— Gostava mesmo que o senhor, sendo o chefe da polícia, continuasse a defender aqui o forte — respondeu Patrik.

 

— Certo. Se calhar é melhor assim. — Mellberg levantou-se, visivelmente aliviado, e Ernst imitou imediatamente o dono. — Agora, todos temos de fazer o nosso sono de beleza. Amanhã vai ser um dia agitado, mas não tardaremos a solucionar este caso. Sinto-o nos ossos. — Mellberg esfregou as mãos, mas não houve grande reação por parte dos subordinados.

 

— Okay, ouviram o que Bertil disse. Vão para casa e vejam se dormem bem. Recomeçaremos amanhã de manhã.

 

— Então e a pista de Gotemburgo? — perguntou Martin.

 

— Primeiro vamos começar por esta ponta. Depois a investigamos quando tivemos mais informações. Mas não amanhã. Isso significa que, provavelmente, iremos outra vez a Gotemburgo na quarta-feira.

 

Terminaram a reunião e Patrik dirigiu-se ao carro. Passou toda a viagem de regresso a casa absorto nos seus pensamentos.

 

FJÄLLBACKA, 1871

JÁ ESTAVAM NO INÍCIO DO OUTONO QUANDO FOI AUTORIZADA A DEIXAR GRÅSKÄR PELA PRIMEIRA VEZ. O BARCO BALANÇOU DE FORMA ALARMANTE, TAL COMO TINHA ACONTECIDO QUANDO EMELIE FORA PARA A ILHA. MAS DESTA VEZ NÃO SENTIU PÂNICO. TINHA VIVIDO MUITO PERTO DO MAR E FAMILIARIZARA-SE COM OS SONS E COM AS MUDANÇAS QUE NELE SE PRODUZIAM CONSTANTEMENTE. SE NÃO FOSSE PELO FACTO DE O MAR A TER MANTIDO PRESA NA ILHA, PROVAVELMENTE TERIA APRENDIDO A APRECIÁ-LO. E AGORA AS ONDAS ESTAVAM A TRANSPORTÁ-LA PARA O PORTO.

A SUPERFÍCIE DO MAR ERA LISA COMO UM ESPELHO E EMELIE NÃO PÔDE RESISTIR À TENTAÇÃO DE BAIXAR O BRAÇO E PASSAR OS DEDOS PELA ÁGUA AO LADO DO BARCO. TEVE DE INCLINAR-SE SOBRE A BORDA PARA CHEGAR À ÁGUA ENQUANTO PROTEGIA A BARRIGA COM A OUTRA MÃO. KARL IA AO LEME. PARECIA TÃO DIFERENTE, AGORA QUE ESTAVA LONGE DE GRÅSKÄR E DA SOMBRA DO FAROL. ERA TÃO BONITO. EMELIE NÃO PENSAVA NISSO HÁ MUITO TEMPO. O BRILHO MALDOSO NOS OLHOS DO MARIDO FAZIA-O PARECER FEIO. MAS, AO VER KARL NAQUELE MOMENTO, ASSIM DE OLHOS POSTOS NO MAR À SUA FRENTE, EMELIE CONSEGUIU PERCEBER PORQUE É QUE EM TEMPOS O MARIDO A ATRAÍRA TANTO. TALVEZ A ILHA O TENHA MUDADO, PENSOU EMELIE. TALVEZ HAJA ALGUMA COISA NA ILHA QUE O TENHA TORNADO MALDOSO. AFASTOU IMEDIATAMENTE TAIS PENSAMENTOS. QUE IDIOTA QUE ERA. MAS AS PALAVRAS DE ADVERTÊNCIA DE EDITH AINDA LHE ECOAVAM NA MENTE.

FOSSE COMO FOSSE, ESTAVAM A DEIXAR A ILHA PARA TRÁS, MESMO QUE FOSSE APENAS POR ALGUMAS HORAS. EMELIE IA VER OUTRAS PESSOAS, AJUDAR A COMPRAR OS MANTIMENTOS DE QUE PRECISAVAM E TOMAR UM CAFÉ COM A TIA DE KARL, QUE OS CONVIDARA PARA SUA CASA. TAMBÉM TINHA UMA CONSULTA MARCADA NO MÉDICO. NÃO ESTAVA PREOCUPADA. SABIA QUE ESTAVA TUDO BEM COM A CRIANÇA, QUE LHE DAVA ANSIOSAMENTE PONTAPÉS NO VENTRE. NO ENTANTO, SERIA UMA BÊNÇÃO QUE O MÉDICO O CONFIRMASSE.

EMELIE FECHOU OS OLHOS E SORRIU. A SENSAÇÃO DO VENTO BATENDO NA PELE ERA MUITO AGRADÁVEL.

— SENTA COMO DEVE SER — DISSE KARL, FAZENDO-A DAR UM PULO.

EMELIE LEMBROU-SE MAIS UMA VEZ DA PRIMEIRA VIAGEM DE BARCO. ERA RECÉM-CASADA, ESTAVA CHEIA DE EXPETATIVAS. NESSE TEMPO, KARL AINDA A TRATAVA GENTILMENTE.

— DESCULPA — DISSE, BAIXANDO OS OLHOS. NA VERDADE, EMELIE NÃO SABIA DE QUE ESTAVA SE DESCULPANDO.

— E NÃO VALE A PENA FICAR DE CONVERSA FIADA QUANDO CHEGARMOS. — A VOZ ERA FRIA. ERA NOVAMENTE O KARL DA ILHA. O HOMEM FEIO DE OLHOS MALDOSOS.

— SIM, KARL. — EMELIE MANTEVE OS OLHOS BAIXOS, FITANDO O CONVÉS DO BARCO. A CRIANÇA DENTRO DELA DEU UM PONTAPÉ COM TANTA FORÇA QUE EMELIE ARFOU EM BUSCA DE AR.

DE REPENTE, JULIAN LEVANTOU-SE DE ONDE ESTAVA SENTADO, À SUA FRENTE, E SENTOU-SE AO LADO DELA. DEMASIADO PERTO. E ENTÃO AGARROU-LHE O BRAÇO.

— OUVISTE O QUE KARL DISSE. NADA DE CONVERSAS. NÃO FALAS DA ILHA OU DE OUTRAS COISAS COM QUE NINGUÉM TEM NADA QUE VER. — OS DEDOS AFUNDARAM-SE MAIS NO BRAÇO DE EMELIE, QUE FEZ UM ESGAR.

— ESTÁ BEM — DISSE EMELIE. A DOR FEZ COM QUE OS OLHOS SE ENCHESSEM DE LÁGRIMAS.

— AGORA SENTA-TE QUIETINHA NO BARCO. É FÁCIL CAIR AO MAR — DISSE JULIAN EM VOZ BAIXA. EM SEGUIDA SOLTOU-LHE O BRAÇO E LEVANTOU-SE. VOLTOU PARA O SEU LUGAR E VIROU-SE PARA OLHAR NA DIREÇÃO DE FJÄLLBACKA, QUE AGORA SE MATERIALIZAVA À FRENTE DELES.

TREMENDO, EMELIE PÔS AS MÃOS SOBRE A BARRIGA. DE REPENTE, SENTIU SAUDADES DAQUELES QUE DEIXARA PARA TRÁS NA ILHA. AQUELES QUE ERAM OBRIGADOS A FICAR, INCAPAZES DE SAIR DE LÁ PARA TODO O SEMPRE. PROMETEU A SI MESMA QUE IA REZAR POR ELES. TALVEZ DEUS OUVISSE AS SUAS PRECES E MOSTRASSE MISERICÓRDIA PARA COM AS POBRES ALMAS PENADAS.

QUANDO O BARCO ATRACOU PERTO DO MERCADO, EMELIE PESTANEJOU PARA AFASTAR AS LÁGRIMAS E SENTIU UM SORRISO ESPALHAR-SE PELOS LÁBIOS. FINALMENTE ENCONTRAVA-SE DE NOVO NO MEIO DE OUTRAS PESSOAS. AINDA ERA POSSÍVEL DEIXAR GRÅSKÄR.

 

MELLBERG ASSOBIAVA ENQUANTO CAMINHAVA na direção da delegacia. Sentia que ia ser um belo dia. Fizera alguns telefonemas na noite anterior e agora tinha meia hora para preparar tudo.

 

— Annika! — chamou assim que entrou na recepção.

 

— Eu estou aqui. Não há necessidade de gritar.

 

— Importa-se de preparar a sala de conferências?

 

— A sala de conferências? Não sabia que tínhamos isso aqui na delegacia — a secretária tirou os óculos para computador, que ficaram suspensos no fio que usava ao pescoço.

 

— Bem, bem, a Annika sabe do que estou a falar. A única divisão que tem espaço para uma data de cadeiras.

 

— Uma data de cadeiras? — Annika começava a sentir-se desconfortável. Não augurava nada de bom que Mellberg tivesse aparecido tão cedo e tão animado.

 

— Sim. Filas de cadeiras. Para a imprensa.

 

— A imprensa? — perguntou Annika, sentindo o desconforto provocar-lhe um nó no estômago. Que estaria aquele homem a tramar?

 

— Sim, a imprensa. Vou dar uma conferência de imprensa e os jornalistas precisam de ter onde sentar-se. — Mellberg tagarelava como uma criança.

 

— Patrik tem conhecimento disso? — Annika olhou de relance para o telefone.

 

— Hedström em breve ficará ao corrente se se decidir a vir trabalhar hoje. Já passam dois minutos das oito — disse Mellberg, ignorando o facto de ele próprio raramente aparecer na delegacia antes das dez. — A conferência de imprensa está marcada para as oito e meia. Daqui a menos de meia hora. E, como eu estava a dizer, precisamos de preparar a sala.

 

Annika olhou novamente para o telefone, mas depois percebeu que Mellberg não ia deixá-la em paz enquanto não se levantasse e começasse a levar cadeiras para a única divisão da delegacia onde se poderia realizar uma conferência de imprensa. Esperava que, se o fizesse, Mellberg fosse para o seu gabinete. Assim poderia ligar a Patrik a avisá-lo do que estava prestes a acontecer.

 

— Que se passa? — perguntou Gösta da entrada da sala onde Annika começava a dispor as cadeiras.

 

— Parece que Mellberg vai dar uma conferência de imprensa aqui. Gösta coçou a cabeça e olhou em redor.

 

— Hedström sabe disso?

 

— Foi exatamente o que perguntei a Bertil. E não, é evidente que não sabe. Isto é uma das ideias brilhantes de Mellberg e eu não consegui apanhar Patrik para o avisar.

 

— Avisar de quê? — Patrik apareceu à entrada por detrás de Gösta. — Que aconteceu?

 

— Vai haver uma conferência de imprensa daqui a... — Annika olhou para o relógio — ...dez minutos.

 

— Estás a gozar, não estás? — disse Patrik. Porém, pela expressão de Annika, percebeu que não era brincadeira.

 

— Esse maldito... — Patrik virou-se e foi direito ao gabinete de Mellberg. Depois ouviram uma porta a abrir-se, seguindo-se o ruído de vozes agitadas antes de a porta voltar a fechar-se.

 

— Ai, ai, ai — disse Gösta, coçando novamente a nuca. — Acho que vou para o meu gabinete — dito isto, desapareceu tão depressa que Annika perguntou a si própria se o colega tinha realmente estado ali ou se fora apenas uma miragem.

 

Resmungando para si mesma, Annika continuou a dispor as cadeiras, apesar de naquele momento desejar ser uma mosca na parede do gabinete de Mellberg. Ouvia vozes a subir e a descer de tom por detrás da porta, mas não percebeu uma única palavra. Em seguida, a campainha tocou e Annika correu para abrir a porta da delegacia.

 

Um quarto de hora mais tarde, os jornalistas já estavam todos na sala. Ouvia-se um murmúrio abafado de vozes. Alguns deles conheciam-se, outros não. Tinham chegado jornalistas do Bohusläningen, do Strömstads Tidning e dos outros jornais locais. Até a estação de rádio local estava representada, assim como os vespertinos — os “pesos pesados”, que não eram visitantes frequentes da zona. Annika mordeu nervosamente o lábio. Mellberg e Patrik ainda não tinham aparecido, por isso questionou-se se deveria dizer alguma coisa ou limitar-se a esperar para ver o que acontecia. Optou pela última hipótese, embora continuasse a lançar olhares à porta do gabinete de Mellberg. Por fim, a porta abriu-se e o superintendente saiu apressadamente, vermelho como um tomate e com o cabelo em desalinho. Patrik estava à porta com as mãos nas ancas e, apesar da distância, Annika podia ver a sua expressão de raiva. Quando Mellberg veio na sua direção a todo o gás, Patrik entrou no seu gabinete e fechou a porta, fazendo abanar as fotografias penduradas na parede do corredor.

 

— Puto arrogante — murmurou Mellberg ao passar por Annika. — Quem é que ele pensa que é? Vir aqui dizer-me como fazer as coisas? — O superintendente estacou, respirou fundo e compôs o ninho de cabelo. Depois entrou na sala.

 

— Estão todos aqui? — perguntou Mellberg com um largo sorriso, enquanto o grupo murmurava afirmativamente.

 

— Ótimo. Então vamos começar. Como eu vos disse ontem à noite, a investigação sobre o homicídio de Mats Sverin tomou um novo rumo — o superintendente fez uma pausa, mas ninguém parecia ainda ter perguntas. — Os senhores da imprensa local provavelmente já sabem que ocorreu aqui ontem um incidente grave. Três rapazes foram levados para as Urgências do Hospital de Uddevalla.

 

Alguns jornalistas assentiram.

 

— Os rapazes encontraram um saco com pó branco. Pensaram que eram doces, por isso provaram o conteúdo. Mas afinal o pó era cocaína e os rapazes ficaram maldispostos. Foram levados de ambulância para o hospital. — Mellberg parou novamente, endireitando as costas. Estava nas suas sete quintas. Adorava conferências de imprensa.

 

O jornalista do Bohusläningen levantou a mão e Mellberg acenou bruscamente com a cabeça.

 

— Onde é que os rapazes encontraram o saco?

 

— Em Fjällbacka, num caixote do lixo à porta de um prédio perto da Tetra Pak.

 

— Sofreram alguma lesão permanente? — Um jornalista de um dos vespertinos fez a pergunta sem antes pedir para intervir.

 

— Os médicos dizem que os rapazes vão recuperar completamente. Felizmente não ingeriram muita quantidade.

 

— Acha que foi algum toxicodependente desta zona, já identificado pela polícia, que deitou fora o saco? Ou existirá uma ligação entre a droga e o homicídio? Deu a entender que talvez existisse uma ligação, nas suas observações iniciais — interrompeu o jornalista do Strömstads Tidning.

 

Mellberg estava a gostar da forma como a tensão aumentava gradualmente na assistência. Todos percebiam que o superintendente tinha uma notícia em primeira mão para eles e que planeava aproveitar ao máximo o momento. Depois de fazer uma pausa, disse:

 

— O saco estava num caixote do lixo mesmo à entrada do prédio onde morava Mats Sverin. — Mellberg percorreu lentamente os jornalistas com os olhos. Todos os olhares estavam fixos nele. — E identificamos as impressões digitais de Sverin no saco.

 

Um murmúrio ergueu-se na sala.

 

— Caramba — disse o jornalista do Bohusläningen. Várias mãos se ergueram.

 

— Então acha que se tratou de uma situação de tráfico de droga que correu mal? — O jornalista do GT tomava notas rapidamente enquanto o seu fotógrafo disparava incessantemente. Mellberg disse a si próprio para encolher a barriga.

 

— Não queremos dizer demasiado neste momento, mas sim, essa é uma das teorias em que estamos a trabalhar.

 

O superintendente gostava de ouvir a sua própria voz. Se tivesse feito escolhas diferentes na vida, talvez pudesse ter sido porta-voz da polícia de Estocolmo. Podia ter sido ele a aparecer na televisão quando a política sueca Anna Lindh* foi assassinada, ou ter estado sentado no sofá de um talk-show matinal a discutir o assassínio de Palme**.

 

— Há algum indício de que haja drogas envolvidas no homicídio? — perguntou o jornalista do GT.

 

— Não posso revelar isso — respondeu Mellberg. Era tudo uma questão de dosear as guloseimas que lançava aos jornalistas. Nem muitas nem poucas.

 

— Já investigaram o passado de Sverin? Descobriram algum sinal de que fosse toxicodependente? — Agora tinha sido o jornalista do Bohusläningen a conseguir lançar uma pergunta.

 

— Também não posso falar acerca disso.

 

— Já receberam o relatório da autópsia? — insistiu o jornalista do GT. Os colegas menos perspicazes começavam a lançar-lhe olhares furiosos.

 

— Não. Esperamos o resultado ainda esta semana.

 

— Têm algum suspeito? — O jornalista Göteborgs-Posten conseguira por fim fazer-se ouvir.

 

— Por enquanto, não. Muito bem, acho que isto é o máximo que podemos dizer-vos de momento. Têm todos os dados que vos pudemos fornecer e vamos manter-vos informados no decurso da investigação. Mas, na minha opinião, estamos em vias de dar um passo decisivo na resolução deste caso.

 

As palavras de Mellberg motivaram uma enchente de perguntas, mas o superintendente limitou-se a abanar a cabeça. Teriam de contentar-se com as poucas migalhas que lhes dera. Praticamente a flutuar quando regressou ao gabinete, Mellberg congratulou-se por um trabalho bem feito. A porta de Patrik estava fechada. Que grande invejoso, pensou Mellberg com o rosto repentinamente ensombrado. Hedström devia perceber quem comandava as operações naquela delegacia e quem tinha mais experiência naqueles assuntos. E, se isso não lhe agradasse, então que procurasse emprego noutro sítio.

 

Mellberg sentou-se na cadeira, apoiou os pés na mesa e cruzou as mãos atrás da cabeça. Não havia dúvida de que estava a merecer uma pequena sesta.

 

— Por quem devemos começar? — perguntou Martin quando saiu do veículo. Estavam no estacionamento junto ao prédio.

 

— Que tal Rolle? Martin assentiu.

 

— Claro. Já não temos uma conversa com ele há algum tempo. Dar-lhe um pouco de atenção não lhe vai fazer mal.

 

— Só espero que seja coerente.

 

Subiram as escadas e, quando estavam à porta do apartamento de Rolle, Paula tocou a campainha. Ninguém respondeu, por isso carregou novamente na campainha, desta vez mais com insistência. Um cão começou a ladrar.

 

— Merda! É o pastor-alemão dele. Esqueci-me do cão — Martin abanou a cabeça, inquieto. Não gostava de cães de grande porte, sobretudo se os donos fossem toxicodependentes.

 

— É uma cadela, mas não é perigosa. Já estive várias vezes ao pé dela. — Paula tocou novamente a campainha e desta vez ouviram passos a aproximar-se. A porta abriu-se um pouco.

 

— Sim? — perguntou Rolle, desconfiado. Paula deu um passo atrás para que o homem pudesse vê-la bem. Aos pés de Rolle, a cadela ladrava alto e estava com ar de querer saltar pela estreita abertura. Martin avançou até as escadas que conduziam ao andar de cima e subiu dois degraus, embora não tivesse conseguido explicar porque é que aquele gesto o fazia sentir-se mais seguro.

 

— Paula. Da polícia de Tanum. Já nos encontramos algumas vezes.

 

— Certo. Estou a reconhecê-la — disse o homem, embora não tenha feito qualquer movimento para retirar a corrente de segurança e deixá-los entrar.

 

— Gostávamos de entrar por um momento. Só queremos ter uma pequena conversa consigo.

 

— Uma pequena conversa? Ah, pois, já ouvi essa antes — Rolle não se mexeu.

 

— A sério. Não viemos cá para o deter — disse calmamente Paula.

 

— Okay. Okay, entrem lá. — Rolle abriu a porta.

 

Martin fitou o pastor-alemão. Rolle estava a segurá-lo pela coleira.

 

— Olá, cadelinha. — Paula ajoelhou-se para coçar a parte de trás das orelhas da cadela, que finalmente parou de ladrar, deixando-se acariciar. — És uma linda menina. Pronto, está tudo bem. Gostas disto, não é? — Paula continuou a coçar-lhe as grandes orelhas, para óbvio deleite da cadela.

 

— É uma boa cadela, a minha Nikki — disse Rolle, largando a coleira.

 

— Anda, Martin. — Paula fez um gesto para que o colega se aproximasse. Ainda não completamente convencido, Martin desceu as escadas para se juntar a Paula e a Nikki. — Deixa-a dizer-te olá. É muito meiguinha.

 

Martin obedeceu com relutância. Começou a acariciar a cadela e foi recompensado com uma lambidela na mão.

 

— Estás a ver? Ela gosta de ti — disse Paula.

 

— Hum — disse Martin, um pouco envergonhado. Assim ao perto a cadela não parecia tão perigosa.

 

— Agora precisamos de ter uma conversa com o teu dono — disse Paula, levantando-se. Nikki olhou para ela por um momento antes de sair disparada para dentro do apartamento.

 

— Gosto da sua decoração — disse Paula, olhando em volta quando entraram no apartamento.

 

Rolle tinha um estúdio alugado e era evidente que a limpeza não era uma prioridade. O mobiliário consistia numa estreita cama de madeira com lençóis desemparceirados, uma televisão antiga no meio da sala, um sofá muito velho e sujo e uma mesa de café periclitante. Todo o conteúdo da sala parecia ter sido recuperado do lixo e provavelmente era mesmo esse o caso.

 

— Vamos sentar-nos na cozinha — disse Rolle, adiantando-se para lhes indicar o caminho.

 

Martin sabia que, de acordo com os registos policiais, o homem tinha trinta e um anos, mas parecia pelo menos dez anos mais velho. Alto, ligeiramente curvado e com cabelos gordurosos que chegavam ao colarinho da camisa axadrezada, tinha umas calças de ganga cobertas de nódoas e rasgadas em vários sítios — o resultado de muito uso, não um ditame da moda.

 

— Não tenho nenhum aperitivo para vos oferecer — disse sarcasticamente Rolle, estalando os dedos na direção de Nikki para fazê-la deitar-se no chão aos seus pés.

 

— Não faz mal — disse Paula. A julgar pela quantidade de pratos e chávenas empilhados no lavatório e na bancada, não teria havido louça lavada mesmo que Rolle lhes quisesse oferecer um café.

 

— Então, que querem de mim? — Rolle suspirou profundamente e começou a roer a unha do polegar direito. Já tinha roído algumas unhas até o sabugo e as pontas dos dedos pareciam inflamadas.

 

— Que sabe acerca do tipo que vive ali em frente? — perguntou Paula, olhando-o com firmeza.

 

— Que tipo?

 

— De quem acha que estamos a falar? — perguntou Martin, que deu por si a fazer sinal a Nikki para ir antes deitar-se ao lado dele.

 

— O tipo que levou um tiro na cabeça? É dele que estão a falar? — Rolle aguentou calmamente o olhar de Paula.

 

— Bom palpite. Então?

 

— Então o quê? Não sei nada acerca disso. Já vos tinha dito.

 

Paula lançou um olhar inquiridor a Martin, que assentiu. Fora ele quem falara com Rolle, quando tinham andado a fazer a ronda pela vizinhança logo a seguir ao homicídio.

 

— Desde que falamos, soubemos de uma série de coisas. — De repente a voz de Paula assumira um tom mais frio. Martin pensou que não gostaria de vê-la zangada. Podia ser baixinha, mas era mais dura do que a maioria dos tipos que conhecia.

 

— Ah foi? — O tom de Rolle era indiferente, mas Martin percebeu que o homem estava a ouvi-la atentamente.

 

— Já ouviu dizer que uns rapazes encontraram um saco de cocaína lá fora? — perguntou Paula. Rolle parou de roer o dedo mindinho.

 

— Coca? Onde?

 

— Num saco de papel, ali, naquele caixote do lixo. — Paula acenou com a cabeça na direção do caixote do lixo verde, visível pela janela da cozinha.

 

— Coca num saco de papel? — repetiu Rolle com um brilho nos olhos.

 

Devia ser o sonho de qualquer toxicodependente, pensou Martin, encontrar um saco de droga num caixote do lixo. Seria como ganhar a lotaria.

 

— Sim. E os rapazes provaram-na. Foram parar às urgências. Podiam ter morrido — disse Paula. Rolle passou nervosamente a mão pelo cabelo gorduroso.

 

— Que grande porra! As crianças não deviam mexer em coisas dessas.

 

— Os miúdos têm sete anos. Pensaram que era um saco de doces.

 

— Mas vão ficar bem, não vão?

 

— Sim, vão ficar bem. E espero que nunca mais toquem nessas merdas. Nas merdas que o Rolle anda para aí a vender.

 

— Eu nunca venderia nada disso a crianças. Vocês conhecem-me, por amor de Deus. Nunca daria nada disso a miúdos.

 

— Também achamos que não. Como eu disse, as crianças encontraram a droga no caixote do lixo. — Paula suavizou um pouco o tom de voz. — Mas há uma ligação entre o tipo que foi assassinado e o saco de cocaína.

 

— Que ligação?

 

— Isso não interessa. — Paula acompanhou as palavras com um gesto da mão. — O que nós queremos saber é se você teve algum contacto com ele, se sabe alguma coisa. E não, não vamos detê-lo por isso, caso tenha tido — prosseguiu antes de Rolle ter tempo de falar. — Estamos a investigar um homicídio e isso é muito mais importante. Mas, se nos ajudar agora, isso pode vir a beneficiá-lo no futuro.

 

Rolle parecia estar a refletir sobre o que Paula tinha dito. Depois encolheu os ombros e suspirou.

 

— Infelizmente, não tenho nada para vos comunicar. Via o tipo de passagem, de vez em quando, mas nunca falei com ele. Não parecíamos ter muito que dizer um ao outro. Mas, se o que estão a referir é verdade, talvez tivéssemos mais em comum do que eu pensava — acrescentou Rolle, rindo-se.

 

— E o nome dele nunca foi mencionado pelos seus outros contatos? — interrompeu Martin. Nikki tinha-se mudado para perto dele e Martin estava a coçar-lhe o pescoço.

 

— Não — disse Rolle com relutância. Provavelmente teria gostado de ganhar alguns pontos na consideração da polícia, mas era evidente que não sabia de nada.

 

— Caso ouça alguma coisa, ligue-nos, okay? — Paula tirou um cartão de visita do bolso e entregou- o a Rolle, que voltou a encolher os ombros e, em seguida, enfiou o cartão no bolso de trás das calças de ganga manchadas.

 

— Claro. Não preciso de acompanhar-vos à porta, pois não? — Rolle sorriu ao estender a mão para um recipiente de rapé que estava em cima da mesa. Quando a manga da camisa subiu, os agentes puderam ver as marcas da agulha na dobra do braço. Rolle era viciado em heroína e não em cocaína.

 

Nikki acompanhou-os à saída e Martin afagou-a antes de fechar a porta atrás deles.

 

— Um já está. Faltam três — disse Paula, começando a descer as escadas.

 

— É muito divertido passar o dia com um bando de drogados — disse Martin, seguindo a colega.

 

— Se tiveres sorte, pode ser que conheças mais alguns cães. Nunca vi ninguém a mudar tão depressa do terror puro à paixão total.

 

— Era uma cadela simpática — murmurou Martin. — Mas por acaso não gosto muito de cães grandes.

 

Erica sentia que lhe tinham tirado um peso dos ombros. No fundo, sabia que havia um longo caminho pela frente e que Anna podia cair outra vez naquele mundo de escuridão de um momento para o outro. Nada era certo. Ao mesmo tempo, Anna era uma lutadora. Já o provara no passado, erguendo-se do atoleiro graças à sua força de vontade, e Erica estava convencida de que a irmã seria capaz de voltar a fazê-lo desta vez.

 

Patrik também ficou satisfeito quando Erica lhe contou os progressos que Anna estava a fazer. Nessa manhã, quando ia a sair para o trabalho, Patrik estava a assobiar e Erica esperava que o bom humor do marido durasse. Desde que Patrik se sentira mal e fora parar ao hospital que Erica mantinha uma vigilância apertada sobre os seus humores — talvez apertada demais. Tinha medo de que pudesse acontecer alguma coisa. Patrik era o seu melhor amigo, o seu adorado marido e o pai dos seus filhos maravilhosos. Erica não queria que ele pusesse tudo isso em perigo matando-se a trabalhar. Recusava-se a deixá-lo fazer isso.

 

— Olá. Cá estamos nós outra vez — disse Erica, empurrando o carrinho para dentro da biblioteca.

 

— Olá — disse alegremente May. — Não acabaste o que estiveste a fazer ontem, pois não?

 

— Não. Há mais alguns livros de referência que queria consultar. Pensei fazer isso agora, enquanto os gêmeos estão a dormir.

 

— Okay. Eu estou por aqui, se precisares de alguma coisa.

 

— Obrigada — respondeu Erica, ocupando uma mesa.

 

Não era fácil descobrir o que procurava. Pegou num bloco para poder anotar referências a outras fontes que fossem aparecendo enquanto fazia as suas consultas. Quase todas acabaram por revelar-se infrutíferas, conduzindo-a a outras ilhas e zonas da Suécia. Ocasionalmente, porém, Erica lá encontrava algumas pepitas úteis, como acontecia em todos os seus projetos de pesquisa.

 

Inclinou-se para a frente para dar uma espreitadela ao carrinho. Os gêmeos estavam a dormir pacificamente. Esticando as pernas, Erica voltou a mergulhar na leitura. Há muito tempo que não lia histórias de fantasmas. Quando era criança, tinha devorado as histórias mais assustadoras que encontrava. Lera de tudo, desde os contos de Edgar Allan Poe às sagas nórdicas. Talvez fosse por isso que tinha começado a escrever livros sobre casos de homicídios reais. Eram quase como uma extensão dos contos assustadores da sua infância.

 

— Podes fazer cópias de qualquer coisa que queiras levar contigo — disse May, sempre prestável. Erica assentiu e levantou-se. Tinha encontrado várias páginas que queria ler com mais atenção em casa. Sentia um familiar formigueiro no estômago. Adorava aprofundar informações e montar o puzzle, peça a peça. Depois de passar vários meses a pensar exclusivamente nos bebês, estava a gostar de ter um projeto mais adulto com que ocupar a mente. Tinha dito à editora que não ia começar a trabalhar num novo livro pelo menos nos próximos seis meses, decisão que pretendia manter. No entanto, precisava de ocupar o cérebro até lá e aquela pesquisa parecia ser um bom começo.

 

Depois de ter enfiado um maço de fotocópias no saco de fraldas dos bebês, Erica dirigiu-se vagarosamente para casa. Os gêmeos ainda estavam a dormir. A vida era maravilhosa.

 

— Sacana de merda. Dane-se ele... — A linguagem de Patrik não costumava ser tão grosseira, mas

 

Gösta compreendia perfeitamente seu mau humor. Mellberg tinha-se realmente excedido.

 

Patrik bateu com tanta força com a mão no painel que Gösta deu um salto no banco.

 

— Olha o teu coração. Não deves entrar em stress.

 

— Okay, tens razão — disse Patrik , obrigando-se a respirar fundo duas vezes para se acalmar.

 

— Ali. — Gösta apontou para um lugar de estacionamento. — Então, como é que vamos abordar isto? — perguntou. Deixaram-se ficar sentados no carro por mais um momento.

 

— Não há motivo para estarmos com rodeios — respondeu Patrik. — Seja como for, vai aparecer tudo nos jornais.

 

— Sim, mas temos de nos concentrar nisto, independentemente do que Mellberg fez.

 

Patrik parecia ao mesmo tempo surpreendido e um pouco envergonhado quando olhou de relance para Gösta.

 

— Tens razão. O que está feito, feito está e precisamos de continuar com o trabalho que temos em mãos. Sugiro que comecemos por Erling e que falemos depois com os outros colegas de trabalho de Mats. Temos de descobrir se algum deles se apercebeu de algum sinal de que Mats poderia consumir droga.

 

— Como por exemplo? — Gösta esperava que a pergunta não parecesse demasiado idiota, mas realmente não sabia aonde Patrik queria chegar.

 

— Bem, por exemplo, se Mats estava a comportar-se de modo estranho ou a exibir outros sinais invulgares. Parece ter sido uma pessoa certinha, mas talvez os colegas se recordem de algo que não encaixe no padrão.

 

Patrik saiu do carro e Gösta seguiu-o. Não haviam telefonado antes para saber quem estava a trabalhar na câmara municipal, porém, quando falaram com a recepcionista, constataram que tinham tido sorte. Todos os funcionários estavam presentes.

 

— Podemos falar com Erling primeiro? — disse Patrik, fazendo com que a pergunta soasse mais como uma ordem do que como um pedido.

 

A jovem recepcionista assentiu, parecendo um pouco alarmada.

 

— O presidente não tem reuniões agendadas — disse, enquanto apontava para o corredor. Gösta já sabia onde encontrar o gabinete de Erling.

 

— Bom dia — disse Patrik da entrada.

 

— Ah, bom dia! — Erling levantou-se e aproximou-se para os cumprimentar. — Entrem, entrem. Como vai isso? Já fizeram algum progresso? Soube do que aconteceu ontem àqueles rapazes. Meu Deus, o mundo está a enlouquecer — acrescentou, sentando-se à secretária.

 

Os dois agentes trocaram olhares e Patrik começou.

 

— A questão é que parece haver uma ligação... — disse, aclarando a garganta, sem saber como continuar. — Temos razões para acreditar que há uma ligação entre Mats Sverin e a cocaína que os rapazes encontraram.

 

Fez-se silêncio absoluto no gabinete enquanto Erling os fitava e os dois agentes esperavam calmamente pela sua reação. A surpresa de Erling parecia genuína.

 

— Eu... mas... como... — balbuciou, limitando-se depois a abanar a cabeça.

 

— Não suspeitava de nada deste gênero? — perguntou Gösta para tentar ajudar Erling.

 

— Não, de todo. Isso nunca nos passou pela cabeça... Nunca na vida. — Para variar, Erling não sabia o que dizer.

 

— Quer dizer que não notou nenhum sinal de haver algum problema com Mats? Alterações de humor, atrasos na chegada ao trabalho ou dificuldade em cumprir os compromissos? Talvez uma mudança na aparência? — Patrik estudou-o atentamente, mas Erling parecia realmente surpreendido.

 

— Não. Como eu disse antes, Mats era o expoente máximo da estabilidade. Talvez um pouco reservado em relação a certos temas de conversa, mas nada mais. — Erling teve um sobressalto. — Poderá ter sido esse o motivo? Mats terá sido morto por causa de problemas de droga? Talvez afinal não fosse assim tão estranho que nunca falasse da sua vida pessoal.

 

— Não temos certeza. Mas é possível que tenha sido esse o motivo.

 

— Isso é terrível. Caso se venha a saber que tínhamos uma pessoa assim a trabalhar na nossa equipa, isso seria desastroso.

 

— Lamento ter de lhe dizer isto — afirmou Patrik, praguejando, embora desta vez para si próprio —, mas Bertil Mellberg deu há pouco uma conferência de imprensa sobre esta situação. Por isso, o assunto vai mesmo ser tornado público ainda hoje.

 

Nem de propósito, a recepcionista apareceu à porta com as faces coradas e uma expressão preocupada.

 

— Não sei o que aconteceu, Erling, mas os telefones enlouqueceram. Há uma data de jornalistas a tentar contactá-lo e o Aftonbladet e o GT querem entrevistá-lo com urgência.

 

— Valha-me Deus — disse Erling, limpando a testa perlada de gotas de suor.

 

— O único conselho que lhe posso dar é que diga o mínimo possível — afirmou Patrik. — Lamento muito que a imprensa tenha sido envolvida nesta fase inicial da investigação. Infelizmente, não pude fazer nada para o impedir — acrescentou em tom amargo. Mas Erling parecia alheado de tudo para além da sua própria situação.

 

— Claro que vou ter de atender as chamadas — disse o presidente, movimentando nervosamente a cadeira para a frente e para trás. — Vou lidar com a situação, mas um toxicodependente a trabalhar para o município... Como diabo é que vou explicar uma coisa destas?

 

Patrik e Gösta aperceberam-se de que não iam conseguir mais nada com interesse para a investigação por parte de Erling, por isso levantaram-se.

 

— Gostávamos de falar com os seus colaboradores — disse Patrik.

 

Erling ergueu os olhos, embora não estivesse realmente focado nos dois agentes.

 

— Sim, claro. Vão falar com eles. Agora, se me dão licença, tenho mesmo de atender estas chamadas. — Erling limpou a testa com um lenço.

 

Patrik e Gösta saíram e bateram à porta do gabinete ao lado.

 

— Entre — chilreou Gunilla. O tom animado da secretária dava a entender que não fazia ideia do que estava a acontecer.

 

— Podemos dar-lhe uma palavrinha? — perguntou Patrik.

 

Gunilla assentiu alegremente. Mas depois a sua expressão mudou.

 

— Meu Deus, eu para aqui a rir-me e se calhar os senhores vieram cá por causa de Mats. Já descobriram alguma coisa?

 

Os dois agentes trocaram olhares, sem saberem como dizer-lhe o que queriam saber. Depois sentaram-se.

 

— Temos mais algumas perguntas — começou a dizer Gösta. Estava enervado porque, na verdade, não sabiam o suficiente para fazer as perguntas adequadas.

 

— Está bem. Perguntem à vontade — disse Gunilla, voltando a sorrir.

 

Era evidente que se tratava de uma pessoa permanentemente otimista e positiva, pensou Gösta. Do gênero que não gostaria de ter por perto às sete da manhã, antes de ter bebido a sua primeira chávena de café. Felizmente que a falecida mulher partilhava o seu mau humor matinal, para poderem resmungar para si mesmos em paz e sossego.

 

— Ontem, várias crianças da escola foram parar ao hospital depois de provarem um bocado de cocaína que haviam encontrado — disse Patrik. — Talvez já tenha ouvido falar disto.

 

— Sim, foi horrível. Mas ouvi dizer que o incidente vai ter um final feliz.

 

— Sim, é verdade. Os rapazes estão bem. Mas parece que há certas ligações entre o incidente e a nossa investigação.

 

— Ligações? — perguntou Gunilla com os alegres olhos de esquilo a saltitarem entre Patrik e Gösta.

 

— Sim. Encontramos uma ligação entre Mats Sverin e a cocaína. — Patrik percebeu que estava a falar num tom demasiado formal, o que sempre acontecia quando se sentia desconfortável. E aquela não era uma situação agradável. Mas era melhor que os colegas de Mats soubessem daquilo agora em vez de o verem pespegado nos jornais mais tarde.

 

— Não compreendo.

 

— Bem, pensamos que Mats pode ter consumido cocaína. — Gösta olhou para o chão.

 

— Mats? — A voz de Gunilla soou um pouco estridente. — Não podem estar a falar a sério. Mats não faria isso.

 

— Não sabemos nada sobre as circunstâncias — explicou Patrik. — Por isso é que estamos aqui. Para perceber se alguém notou alguma coisa estranha em Mats.

 

— Alguma coisa estranha? — repetiu Gunilla. Patrik podia ver que a secretária começava a ficar perturbada. — Mats era o homem mais simpático que se possa imaginar. Não consigo de todo imaginar que ele... Não, não consigo mesmo.

 

— Quer dizer que não havia nada no comportamento dele que tenha achado estranho? Nada de que se tenha apercebido? — Patrik estava completamente às aranhas.

 

— Mats era uma pessoa excecional. É impensável que andasse metido em drogas. — Gunilla bateu com a caneta na mesa para enfatizar cada sílaba.

 

— Lamento muito, mas temos de fazer estas perguntas — desculpou-se Gösta. Patrik acenou com a cabeça e levantou-se. Gunilla fez um ar zangado aos dois agentes enquanto estes saíam do gabinete.

 

Uma hora mais tarde, Patrik e Gösta conseguiram finalmente deixar o edifício da câmara municipal. Tinham conversado com os outros membros da equipe e todos tinham reagido da mesma forma. Ninguém conseguia imaginar Mats Sverin metido na droga.

 

— Isto confirma o que eu sinto. E nunca conheci o homem — disse Patrik quando já estavam outra vez sentados no carro.

 

— Concordo, e o pior ainda está para vir.

 

— Eu sei — disse Patrik enquanto conduzia o carro para fora do estacionamento e se dirigia para Fjällbacka.

 

Ele tinha-os encontrado. Madeleine sabia-o. Assim como sabia que não tinha outro sítio para onde ir. Esgotara todas as vias de fuga possíveis. Tinha sido tão fácil dar cabo de tudo mais uma vez. Bastou um postal — sem qualquer mensagem, nem o nome do remetente, mas enviado da Suécia — para destruir as suas esperanças no futuro.

 

A mão de Madeleine tremeu quando virou o postal depois de estudar o lado que estava em branco à exceção do seu nome e da nova morada. Não eram necessárias quaisquer palavras: a imagem no cartão dizia tudo. A mensagem não poderia ser mais clara.

 

Lentamente, Madeleine caminhou até a janela. No pátio, Kevin e Vilda brincavam, sem saberem que as suas vidas estavam prestes a mudar novamente. Agarrou com força o cartão até ficar úmido do suor dos seus dedos. Madeleine tentava raciocinar para tomar uma decisão. Os filhos pareciam tão felizes a brincar com as outras crianças... O desespero tinha desaparecido gradualmente dos olhos de Kevin e de Vilda, embora um laivo de medo permanecesse. Tinham visto muita coisa e isso era algo que Madeleine nunca conseguiria desfazer, por mais amor que lhes dedicasse. E agora estava tudo estragado. Aquela parecia ser a única opção, uma última oportunidade de uma vida normal. Deixar para trás a Suécia, deixá-lo para trás a ele e a tudo o resto. Como poderia dar-lhes uma sensação de segurança, agora que lhe tinham tirado a última tábua de salvação que lhe restava?

 

Madeleine encostou a testa à janela. Sentiu o frio da vidraça na pele. Observou Kevin, que ajudava a irmã a subir ao escorrega. Pôs as mãos no traseiro de Vilda, apoiando-a e dando-lhe um pequeno empurrão ao mesmo tempo. Talvez tivesse agido mal ao fazer de Kevin o homem da família. O filho tinha apenas oito anos. Mas tinha assumido aquele papel com toda a naturalidade e tomado conta das miúdas, como ele dizia. Tinha crescido com aquela responsabilidade, encontrado segurança no seu papel. Kevin ergueu a mão para afastar uma madeixa de cabelo dos olhos. Era muito parecido com o pai, se bem que tivesse o coração de Madeleine. A sua fraqueza, como ele costumava dizer quando lhe batia.

 

Lentamente, Madeleine começou a bater com a testa na janela. O desespero consumia-a. Agora, nada restava do futuro que tinha planeado. Batia com a cabeça no vidro cada vez com mais força, reparando como aquela sensação familiar de dor lhe trazia uma estranha calma. Deixou cair o postal e a imagem da águia com as asas abertas deslizou para o chão. Lá fora, Vilda deslizava pelo escorrega com um sorriso encantado.

 

*Anna Lindh (1957-2003). Política social-democrata esfaqueada em Estocolmo por um homem com perturbações mentais. (N. do T.)

**Olof Palme (1927-1986). Primeiro-ministro assassinado a tiros em Estocolmo. O homicídio continua por solucionar. (N. do T.)

 

FJÄLLBACKA, 1871

— ENTÃO, COMO ESTÃO INDO AS COISAS LÁ NA ILHA? DEVE SER UM SÍTIO TERRIVELMENTE SOLITÁRIO.

— DAGMAR LANÇOU UM OLHAR PENETRANTE A EMELIE E A KARL, QUE ESTAVAM RIGIDAMENTE SENTADOS NO SOFÁ À SUA FRENTE. A PEQUENA E DELICADA XÍCARA DE CAFÉ PARECIA COMPLETAMENTE DESLOCADA NA MÃO ÁSPERA DE KARL, MAS EMELIE CONSEGUIA SEGURÁ-LA COM UMA CERTA ELEGÂNCIA ENQUANTO DAVA GOLINHOS NAQUELA BEBIDA QUENTE.

— COMO PODERIA SER DE OUTRA FORMA? — RESPONDEU KARL SEM OLHAR PARA EMELIE. — OS FARÓIS ESTÃO SEMPRE EM LOCAIS ISOLADOS. MAS ESTÁ TUDO A CORRER BEM. E TENHO A CERTEZA DE QUE A TIA SABE DISSO, NÃO É?

EMELIE ESTAVA ENVERGONHADA. PENSOU QUE KARL FALAVA COM DEMASIADA BRUSQUIDÃO COM DAGMAR. AFINAL DE CONTAS, ERA A TIA DELE. EMELIE TINHA SIDO ENSINADA A RESPEITAR OS MAIS VELHOS E, ASSIM QUE CONHECERA DAGMAR, GOSTARA INSTINTIVAMENTE DA MULHER. ALÉM DISSO, MAIS DO QUE NINGUÉM, DAGMAR DEVIA COMPREENDER A SUA SITUAÇÃO, UMA VEZ QUE TAMBÉM TINHA SIDO CASADA COM UM FAROLEIRO. O MARIDO, TIO DE KARL, TINHA TRABALHADO NUM FAROL DURANTE MUITOS ANOS. ENQUANTO O PAI DE KARL HERDARIA E ADMINISTRARIA A QUINTA, AO IRMÃO MAIS NOVO TINHA SIDO DADA RÉDEA SOLTA PARA ESCOLHER O SEU PRÓPRIO CAMINHO. O TIO TINHA SIDO O HERÓI DE KARL, AQUELE QUE O INSPIRARA A FAZER DO MAR E DOS FARÓIS O SEU SUSTENTO. UMA VEZ, QUANDO AINDA FALAVA COM ELA, KARL CONTOU. MAS AGORA ALLAN, O TIO DE KARL, ESTAVA MORTO E DAGMAR MORAVA SOZINHA NUMA PEQUENA CASA JUNTO AO PARQUE BRAND, EM FJÄLLBACKA.

— CLARO QUE SEI COMO É — DISSE DAGMAR. — E TU SABIAS NO QUE TE ESTAVAS A METER, DEPOIS DE OUVIR AS HISTÓRIAS DE ALLAN. AGORA, SE EMELIE TAMBÉM SABIA É OUTRA HISTÓRIA.

— EMELIE É MINHA MULHER, POR ISSO NÃO TEM NADA QUE DIZER OU DEIXAR DE DIZER ACERCA DISSO. EMELIE SENTIU-SE NOVAMENTE ENVERGONHADA PELO COMPORTAMENTO DO MARIDO E OS OLHOS MAREJARAM-SE DE LÁGRIMAS. MAS DAGMAR LIMITOU-SE A ERGUER AS SOBRANCELHAS EM RESPOSTA À OBSERVAÇÃO DE KARL.

— O PASTOR DISSE QUE ÉS UMA BOA DONA DE CASA — DISSE, VIRANDO-SE PARA EMELIE.

— OBRIGADA. FICO CONTENTE POR O PASTOR PENSAR ASSIM — AFIRMOU EMELIE BAIXINHO, INCLINANDO A CABEÇA PARA ESCONDER O RUBOR. BEBEU OUTRO GOLINHO DE CAFÉ, SABOREANDO-O. RARAMENTE PODIA DESFRUTAR DE UMA BOA CHÁVENA DE CAFÉ FORTE. NORMALMENTE, KARL E JULIAN COMPRAVAM MUITO POUCA QUANTIDADE DE CAFÉ QUANDO IAM A FJÄLLBACKA. PREFERIAM GASTAR O DINHEIRO NA TABERNA DE ABELA, PENSOU COM AMARGURA.

— E QUE TAL O HOMEM QUE TE ESTÁ A AJUDAR? TRABALHA BEM? É ESFORÇADO? ALLAN E EU TIVEMOS TODO O TIPO DE GENTE A AJUDAR-NOS. ALGUNS HOMENS QUE POR LÁ PASSARAM NÃO ERAM NADA DE JEITO.

— JULIAN FAZ UM BOM TRABALHO — DISSE KARL, POUSANDO A CHÁVENA NO PIRES COM TANTA FORÇA QUE ESTE ABANOU. — NÃO É VERDADE, EMELIE?

— SIM — MURMUROU EMELIE, EMBORA NÃO SE ATREVESSE A OLHAR PARA DAGMAR.

— ONDE É QUE O DESENCANTASTE, KARL? ESPERO QUE TE TENHA SIDO RECOMENDADO, PORQUE NUNCA PODEMOS FIAR-NOS NOS ANÚNCIOS DOS JORNAIS.

— JULIAN TINHA EXCELENTES REFERÊNCIAS E RAPIDAMENTE PROVOU SER UMA PESSOA COM VALOR.

EMELIE OLHOU PARA O MARIDO, SURPREENDIDA. KARL E JULIAN TINHAM TRABALHADO JUNTOS DURANTE ANOS NUM FAROL. SOUBERA-O POR TÊ-LOS ESCUTADO FALAR DISSO. POR QUE KARL NÃO TINHA MENCIONADO ESSE FATO À TIA? IMAGINOU OS OLHOS FURIOSOS DE JULIAN. O ÓDIO DAQUELE HOMEM, QUE IA AUMENTANDO CADA VEZ MAIS, E ESTREMECEU AO PENSAR NISSO. DE REPENTE, PERCEBEU QUE DAGMAR OLHAVA PARA ELA.

— ENTÃO TENS UMA CONSULTA COM O DR. ALBREKTSON, NÃO É, EMELIE? — PERGUNTOU A TIA DE KARL.

EMELIE ASSENTIU.

— O MÉDICO VAI ME VER LOGO MAIS. PARA TERMOS CERTEZA DE QUE ESTÁ TUDO BEM COM O MENINO. OU A MENINA.

— PARA MIM VAI SER MENINO — DISSE DAGMAR, E HAVIA CALOR GENUÍNO NOS SEUS OLHOS QUANDO CONTEMPLOU A FORMA ARREDONDADA DA BARRIGA DE EMELIE.

— A SENHORA TEM FILHOS? KARL NÃO ME CONTOU — DISSE EMELIE. NÃO ESTAVA HABITUADA A QUE A SUA GRAVIDEZ FOSSE ALVO DE ATENÇÕES E ESTAVA ANSIOSA POR FALAR SOBRE O MILAGRE QUE ESTAVA A ACONTECER DENTRO DO SEU CORPO, SOBRETUDO COM ALGUÉM QUE TINHA PASSADO PELA MESMA EXPERIÊNCIA. MAS RECEBEU IMEDIATAMENTE UMA COTOVELADA PUNGENTE DO MARIDO.

— NÃO SEJAS TÃO CURIOSA — DISSE KARL, IRRITADO.

DAGMAR TRANQUILIZOU-A COM UM GESTO DA MÃO, MAS OS OLHOS ENCHERAM-SE DE TRISTEZA QUANDO RESPONDEU:

— POR TRÊS VEZES CARREGUEI A MESMA ALEGRIA QUE AGORA CARREGAS. MAS DE CADA VEZ O BOM DEUS TEVE OUTROS PLANOS. TODOS OS MEUS BEBÊS ESTÃO LÁ EM CIMA, NO CÉU. — DAGMAR ERGUEU OS OLHOS E, APESAR DA TRISTEZA, PARECIA TER FÉ QUE DEUS DECIDIRA O QUE ERA MELHOR.

— LAMENTO MUITO, EU... — EMELIE NÃO SABIA O QUE DIZER. FICOU CONSTERNADA POR DESCONHECER O QUE TINHA ACONTECIDO A DAGMAR.

— ESTÁ TUDO BEM, MINHA QUERIDA — DISSE A MULHER. NUM IMPULSO, DAGMAR INCLINOU-SE PARA A FRENTE E POUSOU A MÃO SOBRE A MÃO DE EMELIE.

AQUELE GESTO AMÁVEL, O PRIMEIRO EM TANTO TEMPO, QUASE FEZ EMELIE DESATAR A CHORAR. PORÉM, O OLHAR DESCARADAMENTE DESDENHOSO DE KARL OBRIGOU-A A CONTROLAR-SE. OS TRÊS FICARAM EM SILÊNCIO DURANTE ALGUM TEMPO. EMELIE PODIA SENTIR O OLHAR DA IDOSA CRAVADO NELA, COMO SE CONSEGUISSE VER O CAOS E A ESCURIDÃO. DAGMAR NÃO TIROU A MÃO, QUE ERA MAGRA E SECA, MARCADA POR DÉCADAS DE TRABALHO DURO. MAS EMELIE ACHOU QUE ERA BELA — TÃO BELA COMO O ROSTO DELGADO DA MULHER, COM TODOS OS SEUS SULCOS E RUGAS, REVELANDO UMA VIDA BEM VIVIDA E REPLETA DE AMOR. EMELIE SUSPEITAVA QUE OS CABELOS GRISALHOS DE DAGMAR, MUITO BEM APANHADOS NA NUCA, AINDA CAIRIAM EM ENCANTADORAS E GROSSAS TRANÇAS ATÉ À CINTURA QUANDO TIRASSE OS GANCHOS.

— COMO NÃO CONHECES BEM A VILA, ESTAVA A PENSAR IR CONTIGO AO MÉDICO — ACABOU POR DIZER DAGMAR, LARGANDO A MÃO DE EMELIE.

KARL PROTESTOU IMEDIATAMENTE.

— EU POSSO FAZER ISSO. SEI ONDE É O CONSULTÓRIO DO MÉDICO. NÃO PRECISA SE INCOMODAR.

— NÃO É INCÓMODO NENHUM. — DAGMAR LANÇOU UM OLHAR RÍSPIDO A KARL. EMELIE VIU QUE UMA ESPÉCIE DE LUTA PELO PODER ESTAVA A DECORRER ENTRE ELES E, POR FIM, KARL CEDEU.

— ENTÃO ESTÁ BEM, SE A TIA INSISTE — DISSE, POUSANDO A DELICADA CHÁVENA DE PORCELANA. — ASSIM APROVEITO PARA IR TRATAR DE ALGUNS ASSUNTOS MAIS IMPORTANTES.

— SIM, FAZ ISSO — DISSE DAGMAR, CONTINUANDO A OLHAR PARA O SOBRINHO SEM PESTANEJAR. — NÓS VAMOS DEMORAR CERCA DE UMA HORA E DEPOIS PODES VIR TER AQUI CONNOSCO. PORQUE SUPONHO QUE NÃO QUEIRAS IR AO MERCADO SEM A TUA MULHER, NÃO É?

DAGMAR FORMULOU A FRASE COMO UMA PERGUNTA, MAS KARL CORRETAMENTE A ENTENDEU COMO UMA ORDEM, PELO QUE RESPONDEU COM UM LEVE ACENO DE CABEÇA.

— MUITO BEM. — DAGMAR LEVANTOU-SE E FEZ SINAL A EMELIE PARA QUE A SEGUISSE. — VAMOS LÁ ENTÃO AS DUAS, A VER SE NÃO NOS ATRASAMOS. E VAMOS DEIXAR KARL IR TRATAR DAS COISAS DELE.

NÃO SE ATREVIA A OLHAR PARA O MARIDO. KARL TINHA PERDIDO AQUELA PROVA DE FORÇA E EMELIE SABIA QUE IA PAGAR POR ISSO MAIS TARDE. MAS, QUANDO SEGUIU DAGMAR PARA A RUA E SE DIRIGIU DEPOIS PARA A PRAÇA, AFASTOU TODOS ESSES PENSAMENTOS. QUERIA APROVEITAR O MOMENTO, INDEPENDENTEMENTE DO PREÇO QUE TERIA DE PAGAR. TROPEÇOU NUMA PEDRA DA CALÇADA, MAS A MÃO DE DAGMAR AGARROU-LHE IMEDIATAMENTE O BRAÇO. EMELIE APOIOU-SE NA VELHA MULHER E SENTIU-SE SEGURA.

 

— PATRIK E GÖSTA DISSERAM ALGUMA COISA? — perguntou Paula, parando à porta de Annika.

 

— Não, ainda não — respondeu a secretária. Ia começar a dizer mais qualquer coisa, mas Paula já estava a caminho da cozinha, ansiosa por beber um café numa chávena lavada, depois de ter passado a manhã inteira nas casas imundas dos toxicodependentes. Por precaução, deu um salto à casa de banho para lavar cuidadosamente as mãos. Quando se virou, Martin estava à entrada, à espera para fazer o mesmo.

 

— As grandes mentes pensam da mesma maneira — disse com uma gargalhada.

 

Paula secou as mãos e deu um passo para o lado, para dar espaço a Martin no lavatório.

 

— Também queres uma chávena de café? — perguntou por cima do ombro enquanto se dirigia para a cozinha.

 

— Claro, obrigado — respondeu Martin em voz alta, para sobrepor a voz ao barulho da água a jorrar da torneira.

 

O recipiente de café estava vazio, mas a placa de aquecimento por baixo estava em brasa. Paula praguejou, desligou a máquina de café e começou a esfregar o fundo do recipiente para retirar as borras negras.

 

— Cheira aqui a queimado — disse Martin quando entrou na cozinha.

 

— Um idiota qualquer bebeu o café todo e esqueceu-se de desligar a máquina. Espera uns minutos que já faço mais.

 

— Também já bebia um cafezinho — disse Annika atrás deles. Foi até a mesa da cozinha e sentou-se.

 

— Como é que vai isso? — perguntou Martin quando se sentou ao lado de Annika e lhe pôs o braço em torno dos ombros.

 

— Quer dizer que não sabem da novidade?

 

— Qual novidade? — Paula estava a encher o filtro de café com uma colher.

 

— Esta manhã isto esteve animadíssimo.

 

Paula virou-se para lhe lançar um olhar inquiridor.

 

— Que aconteceu?

 

— Mellberg deu uma conferência de imprensa.

 

Martin e Paula trocaram olhares, como que para se certificarem de que tinham ouvido o mesmo.

 

— Uma conferência de imprensa? — perguntou Martin, recostando-se na cadeira. — Só podes estar a gozar.

 

— Não. Parece que Bertil teve essa ideia brilhante a noite passada e telefonou aos jornais e às estações de rádio. E todos morderam o isco. Tivemos casa cheia. Até o GT e o Aftonbladet apareceram.

 

Paula pousou o suporte para o filtro de café com um estrondo.

 

— Terá enlouquecido? Que raio de ideia foi essa? — Paula sentiu a pulsação a acelerar e forçou-se a respirar fundo. — Patrik já sabe?

 

— Ah, sim, podes crer que já sabe. Estiveram trancados no gabinete de Mellberg durante algum tempo. Não consegui ouvir grande coisa, mas a linguagem que estavam a utilizar não era propriamente para crianças.

 

— Não me admira nada — disse Martin. — Por que diabo foi Mellberg fazer uma coisa dessas? Presumo que se tenha explorado a ideia da cocaína, certo?

 

Annika assentiu.

 

— É prematuro falar acerca disso. Ainda não sabemos nada — disse Paula com ar desanimado.

 

— Tenho certeza de que foi isso que Patrik tentou salientar — afirmou Annika.

 

— Como é que correu a conferência de imprensa? — Paula apertou finalmente o botão da máquina e sentou-se quando o café começou a pingar para o recipiente.

 

— Bem, foi o circo do costume. Não me admirava nada que os jornais de amanhã pusessem a notícia na primeira página.

 

— Maldição! — exclamou Martin.

 

Por um momento, ninguém disse nada.

 

— Então e como vos correu o dia aos dois? — perguntou Annika, decidindo mudar de assunto. Já não podia ouvir falar de Bertil Mellberg.

 

— Não há muito a relatar. — Paula levantou-se e deitou café em três canecas. — Conversamos com alguns dos suspeitos do costume, tipos que estão envolvidos no tráfico de droga aqui na zona, mas não descobrimos nenhuma ligação a Mats.

 

— Não consigo mesmo imaginá-lo a dar-se com tipos como Rolle e os amigos dele. — Agradecido, Martin pegou na caneca de café fumegante que Paula lhe entregou.

 

— Também me custa a imaginar isso — disse Paula. — Ainda assim, valia a pena tentarmos. Não é que se venda ou compre muita cocaína por estas bandas. Consome-se sobretudo heroína e anfetaminas.

 

— Lennart já te disse alguma coisa? — perguntou Martin. Annika abanou a cabeça.

 

— Não. Assim que ele tiver alguma novidade, eu digo-vos. Sei que passou umas horas de volta dos documentos ontem à noite, por isso deve ter feito algum progresso. Ah, e disse-me que na quarta- feira já deve ter alguma resposta.

 

— Ótimo — disse Paula, bebendo mais um golo de café.

 

— Quando é que Patrik e Gösta voltam? — perguntou Martin.

 

— Não faço ideia — respondeu Annika. — Iam primeiro à câmara municipal. Depois queriam encontrar-se com os pais de Mats em Fjällbacka, por isso ainda devem demorar um bocado.

 

— Espero que consigam falar com os pais antes de os tipos dos jornais lhes começarem a telefonar — disse Paula.

 

— Eu não contaria muito com isso — afirmou Martin com ar sombrio.

 

— Maldito Mellberg — disse Annika.

 

— Sim, maldito Mellberg — murmurou Paula.

 

Ficaram os três sentados em silêncio, fitando o tampo da mesa.

 

Depois de passar duas horas a ler e a fazer consultas na Internet, Erica percebeu que estava sentada há demasiado tempo. Ainda assim, a pesquisa tinha-se revelado bastante produtiva. Descobriu muito sobre Gråskär, sobre a sua história e as pessoas que lá viveram. E acerca daqueles que, segundo a lenda, nunca deixavam a ilha. Não importava que não acreditasse em fantasmas. Os relatos fascinavam-na e uma parte dela queria realmente acreditar nisso.

 

— Precisamos de um pouco de ar fresco, não acham? — disse para os gêmeos, que estavam deitados lado a lado na manta que pusera no chão.

 

Era sempre muito trabalhoso vestir os dois bebês e ao mesmo tempo arranjar-se a si própria para saírem, mas agora começava a ser mais fácil, pois bastava vestir-lhes casacos mais leves. Às vezes soprava um vento frio, por isso Erica decidiu jogar pelo seguro e pôr um gorro quente a cada um. Pouco tempo depois estavam fora de casa. Erica ansiava pelo dia em que poderia finalmente livrar- se daquele carrinho desajeitado. Era pesado e difícil de manobrar, mesmo que lhe proporcionasse muito do exercício de que tanto precisava. Embora soubesse que era ridículo preocupar-se com os quilos a mais que ganhara durante a gravidez, nunca aprendera a contentar-se com o corpo que tinha. Detestava ser tão superficial, tão previsível como uma garota, mas aquela vozinha dentro da sua cabeça continuava a sussurrar-lhe que não era suficientemente boa. E parecia mais difícil livrar-se daquela imagem negativa que tinha de si própria do que de qualquer outra coisa.

 

Estugou o passo e sentiu-se a começar a transpirar. Não havia muitas pessoas na rua, mas foi acenando a quem ia encontrando pelo caminho, trocando algumas palavras aqui e ali. Muitos perguntavam por Anna, mas Erica apenas lhes dava breves respostas. Parecia demasiado pessoal falar acerca dos progressos — ou da falta deles — da irmã. Ainda não queria dividir a sensação de calor que carregava no coração. Ainda era uma sensação demasiado frágil.

 

Depois de passar a fila de cabanas de pesca, que parecia um colar de contas vermelhas, Erica fez uma pausa para olhar para cima, para o Badis. Queria ter uma breve conversa com Vivianne para lhe agradecer o conselho que lhe dera acerca de Anna, mas subir o íngreme lance de escadas parecia uma tarefa intransponível. Depois de pensar por um momento, concluiu que podia tomar o caminho alternativo. Era à mesma uma subida, mas seria mais fácil do que ir pelas escadas. Decidida, virou o pesado carrinho e conduziu-o até a rua seguinte. Quando finalmente chegou ao topo da colina íngreme, Erica arfava tanto que pensou que os pulmões iam rebentar. Mas pelo menos tinha conseguido e agora bastava seguir o caminho que conduzia ao Badis.

 

— Olá? — chamou, dando um par de passos no interior do hotel. Os gêmeos tinham ficado no carrinho que Erica deixara do lado de fora da entrada. Não ia dar-se ao trabalho de os tirar dali sem saber se Vivianne estava.

 

— Olá! — Vivianne apareceu ao virar da esquina e o rosto iluminou-se quando viu Erica. — Estava a passar por aqui e resolveu dar cá um salto?

 

— Espero não incomodar. Se estiver atarefada, por favor diga-me. Só viemos dar um passeio, eu e os meus filhos.

 

— Não incomoda nada. Entre. Quer tomar alguma coisa? Onde estão os gêmeos? — Vivianne olhou em redor e Erica apontou para o carrinho.

 

— Deixei-os no carrinho porque não tinha certeza se a Vivianne cá estava.

 

— Ultimamente tenho a sensação de que passo aqui vinte e quatro horas por dia — disse Vivianne, rindo-se. — Consegue trazer os seus bebês para dentro, sozinha, enquanto eu vou preparar alguma coisa para bebermos?

 

— Claro que sim. Não tenho outro remédio — disse Erica com um sorriso enquanto saía para ir buscar os filhos. Havia algo em Vivianne que fazia com que as outras pessoas se sentissem bem na sua presença. Erica não sabia o que era, mas parecia sentir-se mais forte ao pé daquela mulher.

 

Pôs as alcofas em cima da mesa e sentou-se.

 

— Calculei que não estivesse muito interessada em chá verde, por isso fiz um bocado daquela zurrapa de que a Erica gosta.

 

Vivianne piscou-lhe o olho e pôs uma chávena à frente de Erica, que aceitou com gratidão o café escuro como breu. Lançou um olhar desconfiado ao conteúdo pálido da chávena de Vivianne.

 

— Acredite, é uma questão de hábito — disse Vivianne, bebendo um golinho. — O chá verde tem toneladas de antioxidantes. Ajudam o organismo a prevenir o cancro. Entre outras coisas.

 

— A sério? — perguntou Erica, bebendo o seu café. Por mais saudável que fosse o chá, não passava sem cafeína.

 

— Como tem passado a sua irmã? — perguntou Vivianne, acariciando a bochecha de Noel.

 

— Melhor, obrigada — respondeu Erica com um sorriso. — Foi por isso que passei cá. Queria agradecer-lhe o conselho que me deu. Acho que ajudou bastante.

 

— Ainda bem. Há muitos estudos que demonstram o efeito curativo do toque humano.

 

Noel começou a choramingar. Depois de lançar um olhar inquiridor a Erica, Vivianne tirou-o da alcofa e segurou-o nos braços.

 

— Ele gosta de si — disse Erica ao ver que o filho se tinha acalmado instantaneamente. — Nem sempre é assim tão fácil agradar-lhe.

 

— São os dois maravilhosos. — Vivianne esfregou o nariz no narizinho de Noel, que tentou agarrar- lhe o cabelo com os punhos rechonchudos. — Neste momento deve estar a pensar se se atreve ou não a perguntar-me porque é que eu não tenho filhos.

 

Erica assentiu, envergonhada.

 

— Simplesmente nunca tive essa sorte — disse Vivianne, esfregando as costas de Noel. Erica viu um brilho e olhou para a mão de Vivianne.

 

— Espere lá. Está noiva? Isso é fantástico! Parabéns!

 

— Obrigada. Sim, é ótimo. — Vivianne fez um leve sorriso e depois desviou o olhar.

 

— Desculpe dizer isto, mas não parece muito entusiasmada.

 

— Estou cansada — disse Vivianne, empurrando a trança por cima do ombro para que Noel não pudesse alcançá-la. — Andamos a trabalhar noite e dia, por isso é difícil entusiasmarmo-nos com o que quer que seja. Mas claro que estou muito feliz.

 

— Então talvez agora... — Erica apontou para Noel, mas imediatamente se apercebeu de que estava a ser ligeiramente metediça. Ao mesmo tempo, não se conseguia conter. Havia tanta nostalgia no rosto de Vivianne quando olhava para os bebês.

 

— Vamos ter de esperar para ver o que acontece — disse Vivianne. — Porque não me fala do seu trabalho? Sei que está de licença de maternidade e completamente ocupada com os seus bebês, mas já começou a pensar num novo livro?

 

— Ainda não. Mas tenho-me entretido a fazer uma pesquisa acerca de uns assuntos que me interessam. Só para me distrair. Assim não encho completamente o cérebro com tagarelice de bebês.

 

— Então e qual é o tema da pesquisa? — Vivianne fazia Noel saltitar devagar no joelho e a criança parecia estar a gostar do movimento. Erica contou-lhe a viagem a Gråskär, falou de Nathalie e do nome pelo qual a ilha era conhecida em Fjällbacka.

 

— Ilha dos Espíritos — disse Vivianne, pensativa. — Normalmente há um fundo de verdade nessas lendas antigas.

 

— Bem, acho que não acredito muito em fantasmas e espíritos — disse Erica com uma gargalhada.

 

— Há muitas coisas que não conseguimos ver, mas que, não obstante, existem — declarou Vivianne, olhando para Erica com uma expressão solene.

 

— Está a dizer que acredita em fantasmas?

 

— Eu não lhes chamaria fantasmas. Sabe, depois de passar tantos anos a trabalhar nesta área da saúde, a experiência diz-me que há mais qualquer coisa além do corpo, do físico. Uma pessoa é composta de energias e a energia nunca desaparece, apenas se transforma.

 

— Teve alguma experiência? Com fantasmas, ou o que queira chamar-lhes? Vivianne assentiu.

 

— Muitas vezes. É uma parte natural da nossa existência. Portanto, se dizem isso de Gråskär, o mais certo é ter um fundo de verdade. Devia conversar com Nathalie. Tenho certeza de que já os viu ou sentiu manifestarem-se lá na ilha. Desde que seja receptiva a esse tipo de coisas, claro.

 

— Como assim? — Erica estava fascinada por aquele assunto, escutando avidamente cada palavra de Vivianne.

 

— Algumas pessoas são mais receptivas a essas coisas — coisas que nós não podemos perceber através dos nossos sentidos normais. Tal como algumas pessoas conseguem ouvir ou ver melhor do que outras, alguns de nós são mais perspicazes do que outros. Mas toda a gente tem o potencial para desenvolver essa capacidade.

 

— Sou muito cética em relação a isso. Mas adorava que me provassem que não tenho razão.

 

— Então volte a Gråskär. — Vivianne piscou-lhe o olho. — Parece haver muitos deles por lá.

 

— Fantasmas à parte, a ilha tem uma história interessante. Gostava de debater o assunto com Nathalie e descobrir o que ela sabe. Mesmo que não saiba nada, pode ser que tenha curiosidade em conhecer o passado da ilha. E eu podia contar-lhe o que descobri até agora.

 

— Já vi que a Erica não tem muito jeito para pôr de lado os seus outros interesses enquanto está de licença de maternidade — disse Vivianne com um sorriso.

 

Erica tinha de concordar. Desempenhar o papel de mãe a tempo inteiro não era o seu forte. Estendeu a mão para Anton. Sem dúvida que Nathalie ia gostar de saber mais sobre a ilha e a sua história. Para não falar dos fantasmas.

 

Gunnar olhou para o telefone que tocava. Era um telefone antiquado, com marcador e um pesado auscultador pousado no descanso. Matte tinha tentado convencê-los a substituí-lo por um telefone sem fios. Até lhes tinha oferecido um no Natal, há uns anos, mas continuava na caixa, algures na cave. Gostavam do telefone antigo, ele e Signe. E agora também já não fazia diferença.

 

Gunnar continuou a fitar o telefone. Lentamente, o cérebro processou que aquele tom estridente significava que devia pegar no auscultador e atender.

 

— Estou? — disse Gunnar, escutando atentamente o que a voz do outro lado estava a dizer. — Não pode ser. Você é parvo ou quê? Como se atreve a dizer uma coisa... — Incapaz de continuar a conversa, o pai de Mats desligou o telefone com estrondo.

 

Um momento depois, a campainha tocou. Ainda abalado com o telefonema, Gunnar foi até o vestíbulo e abriu a porta. O flash de uma máquina fotográfica atingiu-o em cheio e foi alvo de uma enchente de perguntas. Gunnar bateu rapidamente com a porta, rodou a chave na fechadura e encostou-se aos painéis de madeira do vestíbulo. Que estava a acontecer? Ergueu os olhos para as escadas. Signe descansava no quarto. Interrogou-se se teria sido acordada por aquela barulheira. Que lhe ia dizer se descesse as escadas? O que lhe tinham perguntado não fazia qualquer sentido. Era completamente absurdo.

 

A campainha voltou a tocar. Gunnar cerrou os olhos, sentindo-se exausto. Ouviu uma conversa qualquer lá fora, mas não conseguia perceber uma palavra que fosse. Tudo o que percebia pelo tom era que não era uma troca de palavras amigável. Em seguida ouviu uma voz familiar.

 

— Gunnar, somos nós. Patrik e Gösta, da polícia. Pode fazer o favor de deixar-nos entrar?

 

Gunnar visualizou Matte na sua mente. Primeiro vivo, depois deitado no chão do vestíbulo no meio de uma poça de sangue e com a parte de trás da cabeça desfeita. Abriu os olhos, virou-se e abriu a porta. Patrik e Gösta entraram.

 

— Que é que está a acontecer? — perguntou Gunnar. A voz soou-lhe estranha e distante.

 

— Podemos sentar-nos? — Sem esperar por uma resposta, Patrik virou-se para a cozinha.

 

A campainha tocou novamente, ao mesmo tempo que o telefone. Dois ruídos penetrantes. Patrik levantou o auscultador, pousou-o novamente e depois tirou-o do descanso.

 

— Não sei desligar a campainha — disse Gunnar, completamente aturdido.

 

Gösta e Patrik trocaram um olhar sobre a cabeça do pai de Mats e, em seguida, Gösta regressou ao vestíbulo. Saiu e fechou apressadamente a porta atrás de si. Gunnar ouviu novamente vozes iradas e uma rápida troca de palavras. Momentos depois, Gösta estava de volta.

 

— Acho que consegui calá-los por um bocado — disse Gösta, conduzindo suavemente Gunnar à cozinha.

 

— Também precisamos de falar com Signe — afirmou Patrik com uma expressão algo embaraçada. Gunnar ficou ainda mais nervoso. Se ao menos soubesse o que se estava a passar...

 

— Vou chamá-la — disse, virando-se.

 

— Já aqui estou. — Signe descia as escadas e parecia ter acabado de se levantar. Estava em roupão e tinha o cabelo em pé de um dos lados. — Quem é que não para de tocar a campainha? E o que é que os senhores estão aqui a fazer? Já descobriram alguma coisa? — Signe cravou os olhos em Patrik e em Gösta.

 

— Vamos todos sentar-nos na cozinha — disse Patrik. Signe parecia agora tão inquieta como Gunnar.

 

— Que aconteceu? — A mulher de Gunnar desceu os últimos degraus e encaminhou-se para a cozinha.

 

— Sentem-se — disse Patrik.

 

Gösta puxou uma cadeira para Signe e depois todos se sentaram. Patrik aclarou a garganta. Gunnar teve vontade de tapar os ouvidos com as mãos; não suportava ouvir mais acerca do que aquela voz insinuara ao telefone. Quando Patrik começou a falar, Gunnar olhou para a mesa. Não passava de um monte de mentiras, mentiras incompreensíveis. Mas apercebeu-se do que estava prestes a acontecer. As mentiras seriam impressas a preto e branco e tornar-se-iam verdades. Olhou de relance para Signe e viu que a mulher também compreendia. Quanto mais o agente falava, mais vazia se tornava a sua expressão. Nunca tinha visto ninguém morrer, mas era isso que estava a testemunhar naquele momento. E não havia nada que pudesse fazer. Não fora capaz de proteger Matte e agora estava paralisado enquanto observava a mulher a desaparecer.

 

Sentiu um frenesi dentro da cabeça. Um rugido encheu-lhe os ouvidos e achou estranho que nenhum dos outros tivesse reagido. O ruído aumentava a cada minuto que passava, até já não conseguir ouvir o que os agentes estavam a dizer. Apenas se apercebia de que os lábios deles se mexiam. Sentiu os próprios lábios a mexerem-se, formando as palavras necessárias para dizer-lhes que precisava de ir à casa de banho. Sentiu as pernas a erguerem-se e depois a conduzi-lo ao corredor. Era como se alguém se tivesse apoderado dele e lhe estivesse a manipular o corpo. E Gunnar obedeceu, para não ouvir as palavras que não queria ouvir, para ficar longe daquela expressão vazia nos olhos de Signe.

 

Enquanto cambaleava pelo corredor, continuou a ouvir as vozes dos agentes ao fundo. Passou pela casa de banho e chegou a uma porta que ficava ao lado da porta de entrada. A mão mexeu-se como se tivesse vontade própria, rodando a maçaneta para a abrir. Gunnar tropeçou, mas depois recuperou o equilíbrio e, lentamente, passo a passo, desceu as escadas.

 

A cave estava envolta em trevas, mas Gunnar não tencionava ligar a luz. A escuridão combinava com aquele rugido e impulsionava-o para a frente. Às apalpadelas, abriu o armário ao lado da caldeira. Não estava trancado como devia estar, mas isso não importava. Se estivesse trancado, Gunnar tê-lo-ia arrombado.

 

Sentiu a forma familiar da coronha na mão. Afinal de contas, tinha andado a caçar alces com aquela arma há pouco tempo, no início do ano. Sem pensar, Gunnar tirou um cartucho da caixa. Não precisaria de mais do que um, por isso não havia necessidade de perder tempo a carregar mais. Introduziu-o na câmara, que produziu um clique estranhamente audível no meio do ruído ensurdecedor que ia crescendo a cada momento.

 

Então, Gunnar sentou-se na cadeira junto da bancada de trabalho. Sem hesitar, o dedo localizou o gatilho. Teve um sobressalto ao sentir o aço a arranhar-lhe os dentes, porém, depois disso, apenas pensou que aquilo era o mais acertado. Era o que tinha de fazer.

 

Gunnar puxou o gatilho. O rugido cessou.

 

Mellberg sentia uma pressão estranha no peito. Era diferente de tudo o que sentira antes e tinha começado no momento em que Patrik telefonara de Fjällbacka. Uma pressão desconfortável que se recusava a desaparecer.

 

Ernst estava a gemer no cesto. À sua maneira canina, parecia sentir o mal-estar do dono. Levantou- se, sacudiu o corpo enorme por um momento e depois patinhou até Mellberg e deitou-se aos seus pés. Aquilo ajudou um pouco, mas a sensação desagradável permanecia. Como poderia saber que aquilo ia acontecer? Que o homem se ia enfiar na cave, meter o cano da espingarda de caça na boca e estourar os miolos? De certeza que ninguém estava à espera de que ele conseguisse prever uma coisa daquelas! Por mais que tentasse agarrar-se a elas, as justificações recusavam-se a enraizar-se na sua consciência.

 

Mellberg levantou-se abruptamente e Ernst teve um sobressalto quando a sua almofada desapareceu repentinamente.

 

— Anda, meu velho, vamos para casa. — Mellberg tirou a trela do cabide e prendeu-a à coleira de Ernst.

 

Reinava um silêncio sinistro quando saíram para o corredor. Estavam todos escondidos nos seus gabinetes, por detrás de portas fechadas, mas o superintendente podia sentir as suas censuras através das paredes. Tinha-as visto nos olhos deles. E, talvez pela primeira vez na vida, foi forçado a fazer um exame de consciência. Uma voz interior dizia-lhe que talvez tivessem razão.

 

Ernst puxou a trela e Mellberg apressou-se a sair para a rua e para o ar fresco. Afastou a imagem de Gunnar deitado numa maca fria, à espera da autópsia. Tentou igualmente não pensar na mulher — ou melhor, na viúva, pois agora era esse o seu estado civil. Hedström tinha dito que Signe parecia completamente alheada e que não emitira um único som quando o tiro soou na cave. Patrik e Gösta tinham acorrido ao andar de baixo e, quando voltaram para a cozinha, descobriram que Signe não se mexera. Fora levada para o hospital para observação, mas a expressão nos seus olhos disse a Hedström que a mulher não voltaria a estar verdadeiramente viva. Já tinha testemunhado aquilo algumas vezes no decorrer da carreira. Pessoas que pareciam viver, que respiravam e se mexiam, mas que, apesar disso, estavam completamente vazias por dentro.

 

Mellberg respirou fundo antes de abrir a porta de casa. Estava à beira do pânico. Desejou poder livrar-se da pressão que sentia no peito, desejou que tudo voltasse ao normal. Não queria pensar no que tinha feito ou deixado de fazer. Nunca tinha sido muito bom a lidar com as consequências dos seus atos e nunca se tinha incomodado muito quando as coisas davam para o torto. Até agora.

 

— Olá? — De repente, Mellberg ansiou desesperadamente ouvir a voz de Rita e sentir-se envolvido pela calma da companheira, que sempre o fazia sentir-se tão bem.

 

— Olá, meu querido. Estou na cozinha.

 

Mellberg desprendeu a trela de Ernst e descalçou-se. Depois seguiu o cão, que correu para a cozinha, abanando o rabo. Señorita, a cadela de Rita, foi ao encontro de Ernst, abanando a cauda com satisfação, e depois os dois animais cheiraram-se.

 

— O jantar está pronto daqui a uma hora — disse Rita, de costas para Mellberg.

 

Vinha um cheiro delicioso do fogão. Bertil abriu caminho por entre os cães, que pareciam ocupar sempre imenso espaço, e foi abraçar Rita. O corpo roliço da namorada era morno e familiar, e Mellberg abraçou-o com força.

 

— Ena, porque é que eu mereço um abraço tão bom? — perguntou Rita, sorrindo e virando-se para pôr os braços em volta do pescoço do namorado. Bertil fechou os olhos, apercebendo-se de como era feliz e de como raramente pensava nisso. Aquela mulher, que estava agora nos seus braços, era tudo o que tinha sonhado e nem por um segundo conseguia entender como é que chegara a pensar que a vida de solteiro era a melhor coisa do mundo.

 

— Então, que se passa? — Rita afastou os braços para poder vê-lo melhor. — Diz-me o que aconteceu.

 

Mellberg sentou-se à mesa da cozinha e deixou que as palavras lhe jorrassem da boca. Não se atreveu a olhar para Rita.

 

— Olha, Bertil — disse Rita, agachada ao lado dele —, parece-me que desta vez não procedeste muito bem.

 

Curiosamente, foi bom que Rita não tentasse confortá-lo com desculpas. Afinal de contas, ela tinha razão. Não tinha sido boa ideia contactar os jornais. Mas nunca poderia ter imaginado que ia acontecer uma coisa daquelas.

 

— Que vês em mim? — perguntou por fim Mellberg. Olhou-a nos olhos, como se quisesse ver qual era a resposta de Rita e não apenas ouvir as palavras. Não era costume esforçar-se para se ver a si mesmo através dos olhos de outra pessoa. Como achava aquilo desconfortável e embaraçoso, sempre tentara ao máximo não o fazer, mas não podia evitá-lo por mais tempo. E agora não queria mesmo evitá-lo. Por Rita, Mellberg queria ser uma pessoa melhor, um homem melhor.

 

Rita olhou para ele sem se mover durante muito tempo e depois acariciou-lhe a face.

 

— Vejo alguém a olhar para mim como se eu fosse a oitava maravilha do mundo. Um homem que tem tanto amor para dar que faria qualquer coisa por mim. Vejo alguém que ajudou a trazer o meu neto ao mundo e que está sempre disposto a ajudar quando é preciso. Alguém que sacrificaria a própria vida por um menino que pensa que o avô Bertil é a melhor coisa do mundo. Vejo alguém que tem mais preconceitos do que qualquer outra pessoa que alguma vez conheci, mas que está sempre pronto a pô-los de lado quando a vida lhe prova que não tem razão. E vejo um homem que tem os seus defeitos e falhas, e talvez uma ideia demasiado boa de si próprio, mas que neste momento está a sofrer porque sabe que fez uma coisa estúpida. — Rita pegou-lhe na mão e apertou-a. — Aconteça o que acontecer, tu és a pessoa ao lado de quem quero acordar todas as manhãs e, para mim, não podias ser mais perfeito.

 

A panela no fogão começou a transbordar, mas Rita não ligou nenhuma. Mellberg sentiu a pressão no peito começar a diminuir. E, em seu lugar, havia agora espaço para uma sensação inteiramente nova. Uma sensação de profunda gratidão.

 

O desânimo permanecia. Perguntou a si própria se alguma vez se livraria das saudades persistentes de alguém que sabia que nunca mais voltaria a tocar. Nathalie mexia-se com inquietação debaixo das cobertas. A noite ainda era uma criança e ainda era cedo para estar deitada, mas Sam estava a dormir e Nathalie tentara ler um bocado. No entanto, meia hora depois, apenas tinha conseguido virar a página uma vez e mal conseguia lembrar-se do livro que tinha nas mãos.

 

Fredrik não gostava que Nathalie lesse. Considerava a leitura uma perda de tempo, e quando dava por ela embrenhada num livro, tirava-o bruscamente das mãos e lançava-o no fundo do quarto. Nathalie sabia o que estava por detrás daquele comportamento. Fredrik nunca tinha lido um livro na vida e não suportava a ideia de que Nathalie fosse mais culta e soubesse mais do que ele, ou que tivesse acesso a outros mundos. Ele é que era o esperto e o mundano; o papel de Nathalie naquela relação era ser bonita e manter a boca fechada, sem fazer perguntas nem expressar qualquer opinião. Num jantar que uma vez deram em casa, Nathalie cometera o erro de envolver-se numa discussão dos homens acerca da política externa americana. As opiniões que expressou deixavam claro que sabia do que estava a falar e isso enfureceu Fredrik. O marido manteve a calma até os convidados saírem. Depois, Nathalie pagou um preço bem alto por ter falado. Na altura estava no terceiro mês de gravidez.

 

Fredrik tinha-lhe roubado tanta coisa. Aos poucos, tinha-lhe controlado os pensamentos, o corpo, a autoestima. Não podia permitir que também lhe levasse Sam. O filho era a sua vida e sem ele Nathalie não era nada.

 

Pousou o livro na cama e virou-se com a cara para a parede. Quase ao mesmo tempo, sentiu que alguém se sentava na beira da cama e lhe punha a mão no ombro. Nathalie sorriu e fechou os olhos. Alguém estava a cantarolar uma canção de embalar; a voz era agradável mas fraca, pouco mais do que um sussurro. Ouviu uma risada infantil. Um rapazinho brincava no chão, aos pés da mãe, e ouvia a canção, como Nathalie. Desejou poder ficar ali para sempre. Ali estavam a salvo — ela e Sam. A mão no ombro era suave e reconfortante. A voz continuava a cantar e Nathalie teve vontade de se virar para olhar para a criança. Em vez disso, sentiu as pálpebras a ficarem pesadas.

 

A última coisa que viu, na fronteira entre o sonho e a realidade, foi o sangue nas mãos.

 

— Estás a dizer que Erling te deixou sair sem protestar? — Anders beijou Vivianne na face quando a irmã entrou.

 

— Problemas na câmara municipal — explicou Vivianne, aceitando agradecida o copo de vinho que o irmão lhe oferecia. — Além disso, Erling sabe que temos muito que fazer antes da inauguração.

 

— Okay. Vamos tratar disso primeiro? — perguntou Anders. Sentou-se à mesa da cozinha, que estava coberta de papéis.

 

— Às vezes nada parece fazer sentido — disse Vivianne, sentando-se à frente do irmão.

 

— Mas tu sabes porque é que estamos a fazer isto.

 

— Sim, sei — disse Vivianne, olhando para o vinho no copo. Anders reparou de repente no anel que a irmã usava.

 

— Que é isso?

 

— Erling pediu-me em casamento. — Vivianne ergueu o copo e bebeu um grande golo de vinho.

 

— A sério?

 

— Sim — respondeu. Que mais havia de dizer?

 

— Já recebemos confirmações relativamente aos convites que enviamos? — Pressentindo que estava na altura de mudar de assunto, Anders pegou em várias listas de nomes que tinham sido agrafadas umas às outras.

 

— Sim, o limite era sexta-feira passada.

 

— Ótimo. Pelo menos essa parte está controlada. E a comida?

 

— Já compramos tudo. O cozinheiro parece bom e já temos empregados de mesa suficientes.

 

— Não achas que isto é um bocado absurdo? — perguntou Anders repentinamente, voltando a pousar as listas de convidados na mesa.

 

— Como assim? — perguntou por seu turno Vivianne. Um sorriso despontou-lhe nos lábios. — Qual é o mal de nos divertirmos um bocado?

 

— Sim, mas isto envolve uma carga de trabalhos. — Anders apontou para todos os papéis sobre a mesa.

 

— Que culminará numa noite fabulosa. Um grand finale. — Vivianne ergueu o copo num brinde ao irmão e bebeu o resto do vinho. Subitamente, o sabor e o cheiro deixaram-na maldisposta. As imagens que lhe passaram pela mente eram claras e distintas, apesar de terem chegado de tão longe.

 

— Já pensaste no que eu disse? — perguntou Anders, lançando-lhe um olhar inquiridor.

 

— Em quê? — Vivianne fingiu não perceber.

 

— Sobre Olof.

 

— Já te disse: não quero falar dele.

 

— Não podemos continuar assim. — A voz de Anders era suplicante e Vivianne não conseguia compreender por quê. Que queria ele? Só sabiam fazer aquilo. Continuar a andar para a frente. Era assim que viviam desde que se tinham livrado dele — e do fedor a vinho tinto, do fumo dos cigarros e dos cheiros estranhos dos homens. Ela e Anders tinham feito tudo juntos, por isso Vivianne não conseguia compreender a ideia do irmão quando dizia que não podiam continuar assim.

 

— Ouviste as notícias?

 

— Sim. — Anders levantou-se e começou a pôr a mesa para o jantar. Juntou todos os documentos num monte que depois colocou numa das cadeiras da cozinha.

 

— E o que é que achas?

 

— Não acho nada — respondeu Anders, pondo dois pratos em cima da mesa.

 

— Fui a tua casa naquela sexta-feira à noite, depois de Matte ter vindo ao Badis. Erling estava a dormir e eu precisava de falar contigo. Mas tu não estavas em casa. — Pronto, já o tinha dito, já tinha dado voz ao que a andava a atormentar. Vivianne olhou para Anders, rezando por alguma reação que pudesse aliviar-lhe a mente. Mas o irmão não queria olhar para ela. Não se mexeu, embora continuasse ali parado, de olhos fixos na mesa.

 

— Não me lembro mesmo do que estava a fazer nessa noite. Talvez tenha ido dar um passeio.

 

— Foi depois da meia-noite. Quem é que vai dar um passeio a essa hora?

 

— Tu andavas na rua.

 

Vivianne sentiu as lágrimas a picarem-lhe os olhos. Anders nunca tivera segredos para ela. Nunca haviam tido segredos um para o outro. Pelo menos até aquele momento. E aquilo assustava-a como nada a assustara antes.

 

Patrik enterrou o rosto no cabelo dela e ficaram assim no vestíbulo durante algum tempo.

 

— Já soube — acabou por dizer Erica.

 

Os telefones tinham começado a tocar em Fjällbacka assim que se soubera e agora já toda a gente estava ao corrente. Gunnar Sverin tinha descido até a cave da sua casa e suicidara-se com um tiro.

 

— Meu amor. — Erica reparou que Patrik respirava de modo estranho e entrecortado, e quando por fim se afastou dela, Erica viu as lágrimas nos olhos do marido.

 

— Que aconteceu? — perguntou.

 

Pegou-lhe na mão e conduziu-o até a cozinha. As crianças estavam a dormir e não se ouvia mais nada a não ser as vozes abafadas da televisão na sala de estar. Erica empurrou-o gentilmente para uma cadeira à mesa da cozinha e começou a preparar a sanduíche preferida do marido: torrada com manteiga, queijo e caviar, que Patrik gostava de mergulhar no chocolate quente.

 

— Não tenho fome — resmungou Patrik.

 

— Tens de comer — disse Erica na sua melhor voz maternal enquanto continuava a preparar-lhe a comida.

 

— Aquele sacana do Mellberg. Foi ele quem começou isto tudo — acrescentou por fim Patrik, limpando os olhos à manga da camisa.

 

— Eu vi as notícias. Foi Mellberg quem...

 

— Sim.

 

— Desta vez excedeu-se mesmo. — Erica mexeu o cacau O’boy num tacho com leite. Depois acrescentou mais uma colher de açúcar.

 

— Assim que ouvimos o tiro na cave, soubemos logo o que tinha acontecido. Gösta e eu. Gunnar disse que ia à casa de banho, mas nós não fomos confirmar para termos certeza. Devíamos ter pensado... — As palavras pareceram ficar-lhe presas na garganta e uma vez mais Patrik teve de limpar os olhos à manga.

 

— Toma — disse Erica, dando-lhe uma folha de rolo de cozinha.

 

Doía-lhe ver Patrik a chorar, porque era muito raro acontecer. Erica daria tudo para o ver outra vez alegre. Preparou duas sanduíches e serviu-lhe uma grande e fumegante chávena de chocolate quente.

 

— Vá, agora tens de comer — disse com firmeza, pondo tudo na mesa à frente do marido.

 

Patrik sabia que de nada adiantava resistir. Relutantemente, mergulhou uma das sanduíches no cacau até a torrada começar a amolecer. Então deu-lhe uma grande dentada.

 

— Como está Signe? — perguntou Erica, sentando-se ao lado dele.

 

— Eu já estava preocupado com ela antes de isto ter acontecido. — Patrik estava com dificuldade em engolir um segundo pedaço de sanduíche. — E agora... não sei. Deram-lhe um sedativo e está a ser observada no hospital. Mas não me parece que alguma vez volte a ser a mesma pessoa. Perdeu tudo o que tinha. — Mais lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de Patrik, e Erica levantou-se para ir buscar mais uma folha de rolo de cozinha.

 

— Que vais fazer agora?

 

— Vamos continuar a investigar o caso. Amanhã, Gösta e eu vamos a Gotemburgo para seguir uma pista. E o patologista forense vai enviar o relatório da autópsia de Mats. Temos de continuar a trabalhar como de costume. Ou melhor, temos de trabalhar ainda mais.

 

— E os jornais?

 

— Não podemos impedi-los de escrever o que quiserem. Mas uma coisa é certa: ninguém na delegacia vai ter nada para lhes dizer. Nem sequer Mellberg. Se ele falar com algum jornalista, juro que vou expor o assunto ao comando da polícia em Gotemburgo. E há muitas outras coisas que lhes poderia contar sobre ele.

 

— Sim, eu também faria isso — disse Erica. — Queres ficar aqui mais um bocado ou vamos deitar- nos?

 

— Vamos deitar-nos. Gostava de me enfiar debaixo do edredão contigo e abraçar-te. Achas que posso fazer isso? — Patrik pôs-lhe o braço em volta da cintura.

 

— Sem dúvida.

 

FJÄLLBACKA, 1871

ERA UMA SENSAÇÃO ESTRANHA SER EXAMINADA PELO MÉDICO. EMELIE NUNCA TINHA ESTADO DOENTE NA VIDA E NÃO ESTAVA ACOSTUMADA AO TOQUE DAS MÃOS DE UM ESTRANHO NO SEU CORPO. MAS A PRESENÇA DE DAGMAR TEVE UM EFEITO CALMANTE SOBRE ELA, E, DEPOIS DO EXAME, O MÉDICO ASSEGURARA-LHE QUE TUDO PARECIA ESTAR BEM. ERA MAIS DO QUE CERTO QUE EMELIE IA DAR À LUZ UMA CRIANÇA SAUDÁVEL.

QUANDO SAÍRAM DO CONSULTÓRIO, EMELIE SENTIU-SE IMENSAMENTE FELIZ.

— ACHAS QUE VAI SER MENINO OU MENINA? — PERGUNTOU DAGMAR. — AS DUAS MULHERES FIZERAM UMA BREVE PAUSA PARA RECUPERAR O FÔLEGO E DAGMAR PÔS SUAVEMENTE A MÃO NA BARRIGA DE EMELIE.

— MENINO — DISSE EMELIE.

ESTAVA COMPLETAMENTE SEGURA. NÃO ERA CAPAZ DE EXPLICAR PORQUE É QUE SABIA QUE ERA UM MENINO QUE ESTAVA A DAR PONTAPÉS ENÉRGICOS DENTRO DELA. MAS SABIA.

— UM RAPAZINHO. ACHO QUE TENS RAZÃO.

— SÓ ESPERO QUE ELE NÃO... — EMELIE CONTEVE-SE E PAROU A MEIO DA FRASE.

— SÓ ESPERAS QUE NÃO SAIA AO PAI, NÃO É?

— SIM — SUSSURROU EMELIE, SENTINDO TODA A ALEGRIA DESAPARECER. A IDEIA DE IR SENTADA NO BARCO COM KARL E JULIAN PARA VOLTAREM À ILHA FEZ COM QUE TIVESSE VONTADE DE FUGIR.

— KARL NÃO TEM TIDO UMA VIDA FÁCIL. O PAI FOI SEMPRE MUITO DURO COM ELE.

EMELIE TEVE VONTADE DE PERGUNTAR A DAGMAR O QUE QUERIA DIZER COM AQUILO, MAS NÃO SE ATREVEU. EM VEZ DISSO, AS LÁGRIMAS COMEÇARAM A ESCORRER-LHE PELO ROSTO E SENTIU-SE ENVERGONHADA QUANDO AS LIMPOU APRESSADAMENTE À MANGA. DAGMAR OLHOU-A COM EXPRESSÃO SOLENE.

— A TUA CONSULTA NÃO CORREU BEM — AFIRMOU. EMELIE OLHOU PARA DAGMAR, CONFUSA.

— MAS EU PENSAVA QUE O DOUTOR TINHA DITO QUE ESTAVA TUDO BEM.

— NÃO, NÃO CORREU MESMO NADA BEM. ALIÁS, A SITUAÇÃO É TÃO GRAVE QUE VAIS TER DE PASSAR O RESTO DA GRAVIDEZ NA CAMA. E TENS DE ESTAR PERTO DO MÉDICO, PARA O CASO DE PRECISARES DE AJUDA. NEM PENSAR EM FAZER UMA VIAGEM DE BARCO.

— OH, MAS... — EMELIE COMEÇOU A PERCEBER AONDE DAGMAR ESTAVA A QUERER CHEGAR, EMBORA MAL SE ATREVESSE A ACREDITAR NO QUE OUVIA. — POIS NÃO, A CONSULTA NÃO CORREU BEM. MAS ONDE É QUE EU IA...

— EU TENHO UM QUARTO VAGO. O MÉDICO ACHOU QUE SERIA BOA IDEIA FICARES A MORAR COMIGO PARA QUE ALGUÉM PUDESSE CUIDAR DE TI.

— OH, SIM — DISSE EMELIE, E AS LÁGRIMAS VIERAM-LHE NOVAMENTE AOS OLHOS. — MAS ISSO NÃO SERIA MUITO INCÓMODO? NÃO PODEMOS PAGAR-LHE.

— NÃO É PRECISO PAGAREM NADA. SOU UMA VELHA A VIVER SOZINHA NUMA CASA GRANDE E ADORARIA TER ALGUMA COMPANHIA. E SERIA UMA GRANDE ALEGRIA AJUDAR A TRAZER UMA CRIANÇA AO MUNDO.

— A CONSULTA NÃO CORREU BEM — REPETIU EMELIE, HESITANTE, QUANDO SE APROXIMARAM DA PRAÇA.

— NÃO, NADA BEM. O DOUTOR DISSE QUE PRECISAS DE IR JÁ PARA A CAMA. CASO CONTRÁRIO, AS COISAS PODEM ACABAR MUITO MAL.

— SIM, FOI ISSO QUE ELE DISSE — RETORQUIU EMELIE, MAS SENTIU LOGO O CORAÇÃO A MARTELAR-LHE O PEITO QUANDO VIU KARL AO LONGE.

O MARIDO AVISTOU-AS E APRESSOU-SE NA SUA DIREÇÃO COM AR IMPACIENTE.

— A CONSULTA DEMOROU MUITO TEMPO. AINDA TEMOS MUITO QUE FAZER E, NÃO TARDA, TEMOS DE NOS PÔR A CAMINHO DA ILHA.

NORMALMENTE, KARL NÃO COSTUMAVA TER TANTA PRESSA EM VOLTAR, PENSOU EMELIE. PELO MENOS QUANDO IA COM JULIAN À TABERNA DE ABELA. AÍ JÁ NÃO IMPORTAVA SE CHEGASSEM TARDE. DE REPENTE, JULIAN APARECEU ATRÁS DE KARL E, POR UM MOMENTO, APODEROU-SE DELA UMA TAL SENSAÇÃO DE PÂNICO QUE EMELIE PENSOU QUE PODIA CAIR MORTA ALI MESMO. NESSE MOMENTO, SENTIU DAGMAR DAR- LHE O BRAÇO.

— ISSO ESTÁ FORA DE QUESTÃO — DISSE DAGMAR COM VOZ CALMA E FIRME. — O MÉDICO MANDOU-A FAZER REPOUSO ABSOLUTO. E FOI MUITO INSISTENTE EM RELAÇÃO A ISSO.

KARL ESTAVA PERPLEXO. OLHOU PARA EMELIE, QUE QUASE PODIA VER O TORVELINHO DE PENSAMENTOS QUE LHE PASSAVA PELA CABEÇA, COMO RATOS A CORRER. SABIA QUE O MARIDO NÃO ESTAVA MINIMAMENTE PREOCUPADO COM ELA. ESTAVA APENAS A TENTAR PESAR AS CONSEQUÊNCIAS DO QUE A TIA TINHA ACABADO DE DIZER-LHES. EMELIE NÃO DISSE UMA ÚNICA PALAVRA. BALANÇAVA UM POUCO PARA A FRENTE E PARA TRÁS, PORQUE OS PÉS E AS COSTAS DOÍAM-LHE DEPOIS DE TANTO ANDAR.

— MAS ISSO NÃO VAI PODER ACONTECER — DISSE POR FIM KARL, E EMELIE SABIA QUE OS RATOS AINDA CORRIAM DESENFREADAMENTE PELA MENTE DO MARIDO. — QUEM VAI TRATAR DO TRABALHO DOMÉSTICO?

— ORA, ORA, TENHO A CERTEZA DE QUE VOCÊS OS DOIS CONSEGUEM DAR CONTA DO RECADO — AFIRMOU DAGMAR. — COZEM UMAS BATATAS, FRITAM UNS ARENQUES E VÃO VER QUE SE ARRANJAM MUITO BEM SOZINHOS. ACHO QUE NÃO VÃO MORRER À FOME.

— MAS PARA ONDE VAI EMELIE? NÓS TEMOS DE ESTAR NO FAROL, POR ISSO NÃO POSSO FICAR AQUI. E NÃO PODEMOS DAR-NOS AO LUXO DE LHE ALUGAR UM QUARTO. ONDE É QUE VAMOS ARRANJAR DINHEIRO PARA ISSO? — O ROSTO DE KARL ESTAVA FICANDO VERMELHO DE RAIVA E JULIAN OLHAVA FURIOSAMENTE PARA EMELIE.

— A TUA MULHER PODE FICAR EM MINHA CASA — DISSE DAGMAR. — VAI SER MUITO BOM PARA MIM TER COMPANHIA E RECUSO-ME A ACEITAR UM ÚNICO ÖRE EM TROCA. TENHO CERTEZA DE QUE TEU PAI VAI ACHAR QUE ISTO É UM EXCELENTE ACORDO, MAS POSSO FALAR COM ELE, SE QUISER.

KARL FITOU A TIA POR ALGUNS SEGUNDOS E DEPOIS DESVIOU O OLHAR.

— NÃO, ACHO QUE ASSIM ESTÁ TUDO MUlTO BEM MURMUROU. — OBRIGADO. É MUITO ATENCIOSO DE SUA PARTE.

— NÃO TENS NADA QUE AGRADECER. BEM, VAMOS PARA CASA, QUE VOCÊS AINDA TÊM COMPRAS PARA FAZER E DEPOIS IR EMBORA.

EMELIE NÃO OUSOU OLHAR SEQUER DE RELANCE PARA 0 MARIDO. MAS NÃO PÔDE DEIXAR DE SENTIR UM SORRISO BAILANDO EM SEUS LÁBIOS. GRAÇAS A DEUS QUE NÃO PRECISAVA VOLTAR PARA A ILHA.

 

— PARECE QUE TAMBÉM NÃO CONSEGUISTE DORMIR a noite passada — disse Gösta, reparando nos círculos escuros sob os olhos de Patrik. Gösta também tinha olheiras.

 

— Pois não, não consegui — concordou Patrik.

 

— Já deves estar muito habituado a esta estrada — disse Gösta, olhando de relance na direção de Torp, pois estavam novamente a caminho de Gotemburgo.

 

— Hum, hum.

 

Gösta percebeu a deixa e inclinou-se para ligar o rádio em vez de tentar manter uma conversa com o colega. Uma hora mais tarde, depois de ter ouvido demasiada música pop inútil, chegaram finalmente à cidade.

 

— Quando falaste com ele ao telefone, pareceu-te disposto a ajudar-nos? — perguntou Gösta. Sabia por experiência própria que a colaboração entre os distritos policiais dependia muitas vezes de quem os chefiava. Se se deparassem com um tipo mal-humorado, seria quase impossível obterem qualquer informação.

 

— Parecia simpático — disse Patrik quando avançou, à frente de Gösta, para a recepção. — Patrik

 

Hedström e Gösta Flygare. Estamos aqui para falar com Ulf Karlgren.

 

— Sou eu — trovejou uma voz por detrás deles, e um homem robusto com um blusão de couro preto e botas de cowboy aproximou-se. — Estava a pensar que podíamos ir para o refeitório. O meu gabinete é muito apertado e o café lá é melhor.

 

— Claro — disse Patrik. Não pôde deixar de olhar aquele polícia improvável de alto a baixo. Era evidente que Ulf Karlgren não ligava nenhuma ao uniforme regulamentar, o que se tornou ainda mais evidente quando Patrik vislumbrou a camiseta desbotada que o colega usava por baixo do blusão. Ostentava o logótipo AC/DC no peito.

 

— Sigam-me.

 

Ulf avançava em grandes passadas a caminho do refeitório. Patrik e Gösta davam o seu melhor para o acompanhar. Repararam que o homem tinha um longo rabo de cavalo que compensava a escassez de cabelo no topo da cabeça. E puderam ver claramente a silhueta de uma caixa de rapé no bolso de trás das calças.

 

— Olá, meninas! Hoje estão mais bonitas do que nunca. — Ulf piscou o olho às mulheres por detrás do balcão, que se riram alegremente. — Então, que têm hoje para me tentar? Sabem que tenho de ter cuidado com a minha figura! — Ulf deu uma palmadinha na barriga, que se evidenciava perfeitamente por baixo da camiseta, e Patrik deu por si a pensar em Mellberg. Mas as semelhanças não iam além da barriga. Ulf era uma pessoa significativamente mais atraente.

 

— Cada um de nós vai comer uma fatia de bolo princesa — disse Ulf, apontando para a bandeja com um enorme bolo verde de maçapão.

 

Patrik começou a protestar, mas Ulf fez um gesto a indicar que não adiantava reclamar.

 

— Têm de pôr um bocado de carne nesses ossos — disse o polícia de Gotemburgo, colocando as fatias na bandeja. — E três cafés. Assim já ficamos bem.

 

— Olhe, não precisa de... — disse Patrik quando Ulf tirou um cartão de crédito da carteira muito usada.

 

— Não se preocupe com isso. Hoje é por minha conta. Venham, vamos sentar-nos.

 

Patrik e Gösta seguiram-no até a mesa e sentaram-se. O alegre Ulf de repente pôs-se sério.

 

— Queriam perguntar-me umas coisas acerca de um bando de motoqueiros, não é?

 

Patrik assentiu. Resumiu o que tinha acontecido e o que tinham descoberto até o momento. Em seguida, explicou que uma testemunha tinha visto Mats Sverin a ser agredido por vários tipos que pareciam motoqueiros com águias nas costas.

 

Ulf assentiu.

 

— Parece credível. Pela sua descrição, poderíamos estar a falar dos IE.

 

— IE? — Gösta já tinha acabado de comer a sua fatia de bolo. Patrik não conseguia perceber onde o colega punha tudo o que comia. Era magro como um galgo.

 

— Illegal Eagles. — Ulf tinha posto quatro cubos de açúcar na chávena e mexia lentamente o café. — São o principal bando desta zona. Mais beras, feios e cruéis do que todos os outros.

 

— Merda!

 

— Se são eles que estão envolvidos, aconselho-vos a proceder com cautela. Tivemos alguns confrontos bastante desagradáveis com esse bando.

 

— No que é que esses IE estão metidos? — perguntou Patrik.

 

— Droga, prostituição, proteção de delinquentes, extorsão. Tudo. Seria mais fácil dizer-vos no que eles não estão metidos.

 

— Cocaína?

 

— Sem dúvida. Mas também passam heroína, anfetaminas e, até certo ponto, esteroides anabolizantes.

 

— Já teve oportunidade de verificar se Mats Sverin esteve relacionado com alguma investigação policial por estas bandas? — perguntou Patrik.

 

— O nome dele nunca veio à baila. — Ulf abanou a cabeça. — O que não significa necessariamente que não tenha estado envolvido em alguma coisa, apenas que o nome dele nunca chegou ao nosso conhecimento.

 

— Ele não encaixa propriamente no perfil. Quer dizer, como membro de um bando — disse Gösta, inclinando-se para trás com ar satisfeito.

 

— O núcleo duro do grupo é constituído por motoqueiros, mas há todo o tipo de gente em torno deles, sobretudo quando se trata de droga. Algumas das nossas investigações conduziram-nos às classes sociais mais abastadas.

 

— Seria possível entrar em contacto com esse bando? — Patrik bebeu o resto do café. Ulf levantou-se imediatamente para lhe ir buscar outro.

 

— A segunda chávena é de borla — declarou quando voltou a sentar-se. — Como eu estava a dizer, não recomendo um contacto direto com estes senhores. Tivemos uma série de experiências desagradáveis com eles. Por isso, se pudessem começar a explorar outro ângulo, por exemplo, falar com pessoas ligadas a esse tal Sverin, aconselhava-os a fazerem isso.

 

— Compreendo — disse Patrik. — Quem é o chefe dos IE?

 

— Stefan Ljungberg. É um neonazi que fundou o bando há dez anos. Já esteve dentro uma série de vezes depois de ter feito dezoito anos. Antes disso estava num centro de detenção para delinquentes juvenis. Está a ver o gênero, não é?

 

Patrik assentiu, embora na verdade nunca se tivesse deparado com tal espécie. Em comparação, os criminosos da sua área pareciam incrivelmente brandos.

 

— O que é que os levaria a ir a Fjällbacka para meter uma bala na cabeça de alguém? — perguntou Gösta.

 

— Ocorre-me uma série de cenários prováveis. Tentar sair do bando é normalmente a melhor maneira de acabar com uma bala na cabeça, embora esse não pareça ser o caso; portanto, temos de considerar outras possibilidades. Talvez tenham sido enganados numa transação de droga, talvez estivessem com medo que alguém desse com a língua nos dentes. Se assim for, talvez devamos interpretar a agressão como um aviso. Mas isto é tudo pura especulação. Vou perguntar aos meus colegas se ouviram falar de alguma coisa mais concreta. Recomendo igualmente que falem com pessoas próximas de Sverin. Muitas vezes sabem mais do que os próprios pensam.

 

Patrik tinha dúvidas. Esse tinha-se revelado o maior problema da investigação até o momento. Ninguém parecia saber muito acerca de Mats Sverin.

 

— Obrigado pelo tempo que nos dispensou — disse Patrik, levantando-se. Ulf apertou-lhe a mão e sorriu.

 

— Tudo bem. Foi um prazer ajudar-vos. Se tiverem mais perguntas, deem-me uma apitadela.

 

— Tenho certeza de que isso vai acontecer — disse Patrik. Havia tantas coisas que pareciam lógicas naquela pista em particular. Mas, ao mesmo tempo, havia outras que não batiam certo. Por mais voltas que desse, não conseguia deslindar aquele caso. Além disso, continuava a não fazer ideia de quem realmente era Mats Sverin. E era difícil para Patrik concentrar-se plenamente naquele caso, pois o som do tiro do dia anterior não parava de ecoar-lhe na mente.

 

— Que vamos fazer agora? — Martin estava à porta do gabinete de Paula.

 

— Não sei — sentia-se tão desanimada como Martin parecia estar.

 

Os acontecimentos do dia anterior tinham deixado marcas em todos eles. Ninguém vira Mellberg. Trancara-se no gabinete e, se calhar, tinha sido melhor assim. Da forma como as coisas estavam no momento, seria difícil para os colegas esconder o seu desprezo. Felizmente para Paula, que também não tinha visto Bertil Mellberg em casa. Quando chegara, na noite anterior, Mellberg já tinha ido deitar-se. E, quando ele saíra de casa nessa manhã, Paula ainda estava a dormir. Ao pequeno-almoço, Rita tentara falar com ela sobre o que tinha acontecido, mas Paula deixara bem claro que não estava com disposição para tocar no assunto. E Johanna nem sequer tentara abordá-lo. Virara-lhe simplesmente as costas quando Paula se foi enfiar na cama. O muro entre ambas estava a ficar cada vez mas alto. Só de pensar nisso Paula sentia a boca secar, como se estivesse em pânico. Teve de beber um golo do copo de água que tinha na secretária. Não tinha forças para pensar em Johanna.

 

— Não há nada que possamos fazer enquanto eles estão em Gotemburgo? — perguntou Martin, que depois entrou e se sentou.

 

— Lennart deve dizer-nos alguma coisa hoje — disse Paula. Não tinha dormido bem e, por mais que compreendesse a impaciência de Martin, estava demasiado cansada para tomar alguma iniciativa. Mas Martin continuava ali sentado, fixando-a com olhar inquiridor.

 

— Vamos telefonar a Lennart para saber se já leu os documentos todos? — sugeriu Martin, tirando o celular do bolso.

 

— Não, não. Lennart vai telefonar assim que acabar de ler tudo. Tenho certeza.

 

— Okay. — Martin guardou o celular no bolso. — Então o que é que havemos de fazer enquanto esperamos? Patrik não deixou instruções. Não podemos ficar para aqui a olhar para ontem, pois não?

 

— Não sei. — Paula sentia-se cada vez mais irritada. Porque haveria de ser ela a decidir? Não era muito mais velha do que Martin; além disso, o colega estava a trabalhar na delegacia há muito mais anos, embora Paula tivesse a vantagem da experiência adquirida na polícia de Estocolmo. Respirou fundo. Não era justo descarregar em Martin a frustração que sentia.

 

— Pedersen deve entregar o relatório da autópsia hoje. Acho que devemos começar por isso. Posso ligar-lhe a saber se já está pronto.

 

— Okay. Talvez assim tenhamos alguma coisa em que trabalhar. — Martin parecia um cachorrinho satisfeito por ter acabado de receber uma festa na cabeça e Paula não pôde deixar de sorrir. Era impossível ficar irritada com Martin por muito tempo.

 

— Vou ligar-lhe agora mesmo.

 

Martin observou a colega a marcar o número. Pedersen devia estar sentado ao lado do telefone, porque atendeu ao primeiro toque.

 

— Bom dia. Fala Paula Morales, de Tanumshede... Já o tem? Ah, ótimo. — Paula esticou o polegar na direção de Martin. — Claro. Envie-nos o relatório por fax. Mas será que podia resumi-lo pelo telefone? — Paula abanou a cabeça e tomou algumas notas no bloco que tinha em cima da secretária.

 

Martin esticou o pescoço, tentando ler o que a colega tinha escrito, mas depois desistiu.

 

— Hum... estou a ver... Okay. — Paula ouviu um pouco mais e tomou mais algumas notas. Depois desligou lentamente o telefone. Martin fitou-a.

 

— Que disse Pedersen? Alguma coisa que nos possa ser útil?

 

— Nem por isso. Confirmou sobretudo o que já sabíamos — respondeu Paula, olhando para as anotações. — Disse que Mats Sverin foi baleado na nuca com uma pistola de nove milímetros. Um tiro. Provavelmente teve morte instantânea.

 

— Então e quanto à hora da morte?

 

— Essa é a boa notícia. Pedersen conseguiu determinar que Mats morreu pouco depois da meia- noite, ou seja, nas primeiras horas da madrugada de sábado.

 

— Isso interessa-nos. Que mais?

 

— Não havia qualquer vestígio de substâncias tóxicas no sangue.

 

— Nada?

 

Paula abanou a cabeça.

 

— Não. Nem sequer nicotina.

 

— Mesmo assim, Mats pode ter sido traficante.

 

— É verdade. Mas realmente isto dá que pensar... — Paula voltou a olhar para as notas. — A parte mais interessante será ver se a bala coincide com alguma arma que tenhamos nos registos. Se houver alguma ligação a qualquer outro crime, vai ser muito mais fácil encontrar a arma. E também o assassino, esperemos.

 

De repente, Annika apareceu à entrada do gabinete de Paula.

 

— A Guarda Costeira ligou. Encontraram o barco.

 

Paula e Martin trocaram olhares. Não precisaram de perguntar a Annika de que barco estava a falar.

 

Tinha embalado tudo. Mal recebeu o postal, Madeleine soube o que tinha de fazer. Já não adiantava tentar fugir. Estava ciente do perigo que os esperava, mas era igualmente perigoso ficar ali. Talvez ela e os filhos tivessem uma hipótese se regressassem voluntariamente.

 

Madeleine teve de sentar-se na mala para a fechar. Só tinha conseguido levar uma mala para a Dinamarca. Teve de enfiar uma vida inteira nela. Contudo, estava cheia de esperança quando embarcou no comboio para Copenhagen, com as crianças e aquela única mala. Sentira tristeza e saudades de tudo o que estava a deixar para trás, mas ao mesmo tempo felicidade e esperança no futuro.

 

Percorreu o estúdio simples com o olhar. Um sítio sombrio, com apenas uma cama onde as crianças tinham dormido e um colchão no chão para ela. O apartamento não parecia grande coisa, mas por um breve período de tempo tinha sido o paraíso. Um lugar seguro, que era só deles. Até se ter transformado numa armadilha. Não podiam ficar ali. Mette emprestara-lhe dinheiro para os bilhetes sem fazer nenhuma pergunta. Talvez tenha comprado uma sentença de morte para os três, mas que alternativa tinha?

 

Lentamente, Madeleine levantou-se, pegou no postal e enfiou-o na mala de mão muito usada. Tinha vontade de rasgá-lo em mil pedaços, enfiá-los na sanita e vê-los desaparecer. Mas sabia que tinha de guardar o poscomo um lembrete. Para que não mudasse de ideias.

 

Os filhos estavam em casa de Mette. Tinham ido para lá depois de terem estado a brincar no pátio e Madeleine estava grata por poder ter um pouco mais de tempo para si antes de ter de lhes dizer que iam regressar a casa. Essa palavra não tinha um significado positivo para os filhos. Cicatrizes, tanto internas como externas, eram as únicas coisas que alguma vez tinham recebido na sua pretensa “casa”. Madeleine esperava que os filhos soubessem que os amava, que nunca faria nada que os prejudicasse, mas também que percebessem que não tinha outra opção. Se fossem encontrados ali, presos naquela coelheira, nenhum deles seria poupado. Sabia que seria assim. A única hipótese dos coelhos era voltarem para a raposa de livre vontade.

 

Estava na altura de partir. Não podia continuar a adiar o inevitável. Reafirmando a si própria que os filhos iriam compreender, Madeleine pegou na mala. Só queria acreditar verdadeiramente nisso.

 

— Já soube o que aconteceu a Gunnar — disse Anna.

 

Ainda parecia um passarinho frágil, e Erica deu o seu melhor para sorrir. — Não penses nessas coisas. Já tens muito com que preocupar-te.

 

Anna franziu a testa.

 

— Não sei. Por estranho que pareça, é bom sentir pena de outra pessoa além de mim própria.

 

— E deve ser horrível para Signe. Agora está sozinha.

 

— Como está Patrik? — Anna dobrou as pernas quando se sentou no sofá. As crianças encontravam- se na escola e no infantário e os gêmeos estavam a dormir a sesta matinal, no carrinho, à porta da casa.

 

— Ontem Patrik estava muito perturbado — respondeu Erica, pegando num bolo de canela.

 

Belinda, a filha mais velha de Dan, tinha feito os bolos. Começara a dedicar-se à pastelaria por ter tido um namorado que apreciava garotas com dotes culinários. O namorado já passara à história, mas Belinda continuava a gostar de fazer bolos e parecia realmente ter um talento natural para aquela arte.

 

— Meu Deus, estão deliciosos. — Erica revirou os olhos.

 

— Eu sei. Belinda é uma excelente pasteleira. E Dan diz que tem sido maravilhosa para os outras crianças.

 

— Sim, Belinda começou logo a ajudar quando foi preciso.

 

Belinda tinha um ar algo feroz, com o cabelo pintado de preto, as unhas igualmente pintadas de preto e uma maquilhagem pesada. Mas quando Anna se isolara, tinha posto os irmãos mais novos, incluindo Adrian e Emma, debaixo da sua asa.

 

— O que aconteceu não foi culpa de Patrik — disse Anna.

 

— Pois não, eu sei. E tentei dizer-lhe isso. A responsabilidade é de Mellberg, mas Patrik sente-se sempre responsável, vá-se lá saber por quê. Ele e Gösta estavam em casa de Gunnar quando ele se suicidou. Patrik acha que devia ter percebido os sinais de alarme e tentado detê-lo.

 

— Que sinais de alarme? — resfolegou Anna. — Ninguém anuncia de antemão que está a pensar matar-se. Houve vários momentos em que eu... — Anna calou-se e olhou de relance para Erica.

 

— Tu nunca farias uma coisa dessas, Anna. — Erica chegou-se para mais perto da irmã e olhou-a nos olhos. — Já passaste por tanta coisa, por mais do que a maioria das pessoas, e se tivesses de te matar já o terias feito há muito tempo. Não és pessoa para isso.

 

— Como podes ter tanta certeza?

 

— Sei, porque não te foste enfiar na cave, meter uma espingarda na boca e puxar o gatilho.

 

— Nós não temos espingardas cá em casa — disse Anna.

 

— Não te faças de parva. Sabes bem o que quero dizer. Tu nunca te atiraste para a frente de um carro nem cortaste os pulsos, nem tomaste uma data de comprimidos para dormir e essas coisas. Nunca fizeste nada disso porque és uma pessoa muito forte.

 

— Não tenho certeza de ser forte — murmurou Anna. — Acho que deve ser preciso muita coragem para puxar o gatilho.

 

— Na verdade, não. Exige apenas um momento de coragem. Depois está tudo acabado e os que cá ficam é que têm de limpar a porcaria, por assim dizer. Na minha opinião, isso não é coragem. É covardia. Gunnar não estava a pensar em Signe naquele momento. Se tivesse pensado, não teria feito o que fez. Teria mostrado mais coragem se ficasse com ela, para se poderem ajudar um ao outro. Tudo menos escolher a saída dos covardes. E tu nunca optaste por essa saída.

 

— Bem, de acordo com aquela mulher que ali está, podemos resolver todos os nossos problemas se fizermos ioga, se não comermos carne e se respirarmos fundo cinco vezes por dia. — Anna estava a apontar para o televisor, onde uma entusiasmada guru da saúde versava sobre a única forma de nos mantermos felizes e saudáveis.

 

— Como é que alguém pode encontrar a felicidade sem comer carne? — perguntou Erica. Anna não pôde deixar de dar uma gargalhada.

 

— És mesmo parva — disse, dando uma cotovelada a Erica.

 

— Olha quem fala! Tu é que pareces uma doente que acaba de ter alta do manicômio.

 

— És tão mazinha. — Anna atirou uma almofada a Erica com toda a força que tinha.

 

— Faço tudo o que for preciso para te ver rir — disse Erica baixinho.

 

— Acho que era apenas uma questão de tempo — disse Petra Janssen. A bílis ameaçava aflorar-lhe à garganta, porém, como tinha cinco filhos, ao longo dos anos Petra tinha desenvolvido grande tolerância para cheiros repugnantes.

 

— Sim, não é surpresa nenhuma. — Konrad Spetz, parceiro de longa data de Petra, parecia estar com mais dificuldade em acalmar as náuseas que sentia.

 

— Os tipos dos estupefacientes devem estar a chegar.

 

Saíram do quarto. O fedor seguiu-os, mas na sala de estar do andar de baixo respirava-se melhor. Uma mulher na casa dos cinquenta anos estava sentada numa cadeira a soluçar enquanto um dos colegas mais novos de Petra e Konrad tentava consolá-la.

 

— Foi ela que o encontrou? — Petra apontou para a mulher.

 

— Sim. É a empregada de limpeza dos Wester. Normalmente vem cá uma vez por semana, mas como iam de férias, só precisava de vir de quinze em quinze dias. Quando cá chegou hoje encontrou... bem... — Konrad aclarou a garganta.

 

— Já localizamos a mulher e o filho? — Petra fora a última a chegar ao local. Aquele deveria ter sido o seu dia de folga e estava com a família no parque de diversões de Gröna Lund quando recebeu o telefonema.

 

— Não. De acordo com a empregada, a família tinha feito as malas para ir para Itália. Iam passar lá o verão inteiro.

 

— Temos de contactar as companhias de aviação. Se tivermos sorte, vamos dar com eles na praia a bronzearem-se — disse Petra, mas a sua expressão era sombria. Sabia muito bem quem estava deitado na cama do andar de cima e o gênero de pessoas com quem se dava. Parecia altamente improvável que a mulher e o filho estivessem a apanhar banhos de sol. Era muito mais provável que estivessem mortos na floresta, algures. Ou no fundo da baía de Nybroviken.

 

— Já pus uma pessoa a investigar isso.

 

Petra assentiu com satisfação. Trabalhava com Konrad há mais de quinze anos e a sua relação funcionava melhor do que muitos casamentos. Porém, em termos de aparência, formavam um par no mínimo estranho. Com mais de um metro e oitenta e um corpo muito bem constituído, uma vez que fora moldado por cinco gravidezes, Petra elevava-se acima de Konrad, que além de baixo era também franzino. O colega tinha um ar estranhamente assexuado, o que levava Petra a questionar-se se Konrad saberia como se faziam os bebês. Fosse como fosse, durante todos aqueles anos a trabalhar juntos, nunca lhe ouvira a mais pequena menção a uma vida amorosa, com um homem ou uma mulher. E Petra nunca abordara esse assunto. O que tinham em comum era um intelecto aguçado, um sentido de humor seco e um grande empenho no que faziam. E tinham conseguido manter esse empenho apesar de todas as reorganizações infligidas por chefes que eram meras nomeações políticas, não fazendo a mais pequena ideia do que constituía um bom trabalho policial.

 

— Temos de lançar um alerta em relação à mulher e ao filho e falar com os rapazes dos estupefacientes — acrescentou.

 

— Rapazes e garotas — corrigiu Petra. Konrad suspirou.

 

— Okay, Petra. Rapazes e garotas.

 

Petra tinha cinco filhas, de modo que os direitos das mulheres eram um assunto delicado. Konrad sabia que Petra considerava as mulheres superiores aos homens, mas nunca tinha tido a infeliz ideia de perguntar-lhe se isso não era uma discriminação ao contrário. Era suficientemente inteligente para manter a opinião que tinha sobre o assunto para si próprio.

 

— O caos em que aquele quarto está. — Petra abanou a cabeça.

 

— Parece que foram disparados vários tiros. A cama está cheia de buracos de bala e Wester também.

 

— Que os terá feito pensar que isto valia a pena? — Petra deixou o olhar passear pela sala de estar bem iluminada e depois abanou novamente a cabeça. Claro que esta é uma das casas mais bonitas que alguma vez vi, e sem dúvida que viviam bem, mas deviam ter percebido que, mais cedo ou mais tarde, ia tudo dar para o torto. Agora está para ali, a apodrecer na própria cama, deitado em lençóis de seda e com o corpo crivado de buracos de bala.

 

— É daquelas coisas que uns meros assalariados como eu e tu nunca vamos entender. — Konrad levantou-se das almofadas branquíssimas do sofá e dirigiu-se para o vestíbulo. — Parece que a equipe dos estupefacientes está à porta.

 

— Ótimo — disse Petra. — Vamos lá ouvir o que os rapazes têm para nos dizer.

 

— E as garotas — acrescentou Konrad, sem conseguir esconder um sorriso.

 

— Que fazer? — perguntou Gösta com ar resignado. — Não me parece boa ideia falar com esses tipos.

 

— Não — admitiu Patrik. — Provavelmente devíamos deixar isso para último recurso.

 

— Então e agora? Suspeitamos que os IE foram responsáveis pela agressão e, possivelmente, pelo homicídio, mas não nos atrevemos a falar com eles. Que ricos polícias que nós somos! — Gösta abanou a cabeça.

 

— Vamos voltar ao sítio onde Mats estava a trabalhar quando ocorreu a agressão. Até agora só falamos com Leila, mas acho que devemos descobrir o que os outros membros da equipe do Refúgio têm para dizer. A meu ver, essa é a única maneira de avançarmos com a investigação neste momento.

 

— Patrik ligou a ignição e seguiram na direção de Hisingen.

 

Deixaram-nos entrar de imediato, mas Leila parecia um pouco irritada quando os viu aparecer no gabinete.

 

— Vejamos, nós queremos mesmo ajudar, mas não sei do que estão à espera ao vir aqui outra vez — a diretora do Refúgio abriu as mãos. — Já partilhamos convosco toda a documentação que aqui temos e respondemos a todas as vossas perguntas. A questão é que não sabemos pura e simplesmente mais nada.

 

— Gostava de falar com o seu pessoal. Há mais duas pessoas a trabalhar aqui, não é verdade? — A voz de Patrik era amigável mas firme. Sabia que era inoportuno aparecerem assim sem mais nem menos, porém, ao mesmo tempo, o Refúgio era o único sítio onde poderiam recolher mais informações. Era óbvio que Mats tinha sido muito dedicado àquela organização e à sua missão, por isso, talvez fosse o lugar indicado para descobrirem mais acerca dele.

 

— Okay, podem ir sentar-se na sala do pessoal — disse Leila com um suspiro, apontando para a porta à direita do gabinete. — Vou pedir a Thomas para ir falar convosco e que chame a Marie quando acabarem. — Leila compôs um caracol por detrás da orelha. — Depois disso, gostava que nos deixassem continuar a trabalhar em paz. Compreendemos que a polícia precisa de investigar o homicídio e temos muita pena da família de Matte, mas o nosso trabalho é muito importante e não há mais nada que vos possamos dizer. Nos quatro anos em que Matte trabalhou aqui nunca falou muito sobre a sua vida pessoal e nenhum de nós faz a mais pequena ideia de quem poderia querer matá-lo.

 

Além disso, Matte foi morto quando já não trabalhava no Refúgio.

 

Patrik assentiu.

 

— Compreendo. Depois de falarmos com os outros membros da equipe tentaremos deixar-vos em paz.

 

— Não quero parecer pouco colaborante, mas fico muito contente por ouvir isso. — Leila saiu para falar com a sua equipe enquanto Patrik e Gösta se instalaram na sala do pessoal.

 

Pouco depois, entrou um homem alto, de cabelo escuro, na casa dos trinta. Patrik já o tinha visto de passagem nas visitas anteriores, mas apenas haviam trocado algumas palavras.

 

— Quer dizer que o Thomas trabalhou com Mats? — Patrik inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos e cruzando as mãos.

 

— Sim, comecei a trabalhar no Refúgio pouco tempo depois de Mats, por isso já lá vão quase quatro anos.

 

— Dava-se com Mats fora do trabalho? — perguntou Patrik.

 

Thomas abanou a cabeça. Tinha olhos castanhos e uma postura calma. Respondeu sem qualquer hesitação.

 

— Não, Matte era uma pessoa muito reservada. Não faço a mais pequena ideia de quem eram os amigos dele à exceção do sobrinho de Leila. Mas parece que perderam logo o contacto quando Matte se foi embora.

 

Patrik suspirou. Era o mesmo que toda a gente dizia sobre Mats.

 

— Estava a par de algum problema que Mats pudesse ter? Pessoal ou aqui no trabalho? — interrompeu Gösta.

 

— Não, nada disso — respondeu imediatamente Thomas. — Matte era sempre... Matte. Incrivelmente calmo e estável. Nunca se deixava perturbar. Eu teria notado se alguma coisa estivesse mal — acrescentou, olhando para Patrik sem pestanejar.

 

— Como lidava ele com as situações com que se deparam na vossa atividade?

 

— Todos os que trabalhamos aqui acabamos por ficar profundamente afetados pelas vidas das pessoas com quem nos cruzamos. Ao mesmo tempo, é importante mantermos a distância; caso contrário, nunca conseguiríamos continuar a fazer este tipo de trabalho. Matte lidava muito bem com tudo isso. Era afetuoso e compassivo, mas não se deixava envolver muito.

 

— Porque veio trabalhar para aqui? Parece que o Refúgio é o único centro de acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica que emprega homens. E Leila explicou que os funcionários do sexo masculino tiveram de passar por um processo de triagem cuidadosa — disse Patrik.

 

— Sim, Leila já teve muitos problemas por causa de mim e de Matte. Talvez já saibam que Matte conseguiu este trabalho através do sobrinho de Leila. A minha mãe é uma das melhores amigas de Leila e eu conheço-a desde criança. Quando voltei para a Suécia, depois de fazer trabalho voluntário na Tanzânia, Leila perguntou-me se eu queria trabalhar aqui. Nunca me arrependi da minha decisão, nem por um segundo. Mas é uma grande responsabilidade. Se cometer erros, isso só vai pôr mais lenha na fogueira e ajudar os que se opõem ao trabalho de homens nestes centros de acolhimento.

 

— Mats teve mais contacto do que é habitual com alguma vítima em particular? — Patrik estudou o rosto de Thomas para ver se o homem estaria a ocultar alguma coisa, mas a sua expressão mantinha- se calma como sempre.

 

— Não, isso é estritamente proibido, sobretudo por causa do que acabei de dizer. Temos de manter uma relação profissional com as mulheres e com as suas famílias. Essa é a regra número um.

 

— E Mats seguia essa regra? — perguntou Gösta.

 

— Todos nós a seguimos — disse Thomas, parecendo ofendido. — Uma organização como esta depende da sua boa reputação. O mais pequeno passo em falso poderia ser desastroso. Por exemplo, a Segurança Social pode deixar de trabalhar conosco. E, a longo prazo, isso iria prejudicar as próprias pessoas que estamos a tentar ajudar. Como eu tenho tentado explicar, nós, os homens, temos uma responsabilidade acrescida. — O tom de Thomas era cada vez mais áspero.

 

— Temos mesmo de fazer estas perguntas — disse Patrik, tentando acalmar as coisas. Thomas assentiu.

 

— Eu sei. Desculpem a minha irritação. É muito importante que nada ensombre o nosso trabalho. E sei que Leila está profundamente preocupada com o efeito que tudo isto pode ter na organização. Mais cedo ou mais tarde alguém poderá pensar que não há fumo sem fogo e então tudo começará a desmoronar-se. Leila arriscou muito para fundar o Refúgio e para geri-lo à sua maneira.

 

— Nós compreendemos. Ao mesmo tempo, temos de fazer algumas perguntas incômodas. Como esta, por exemplo... — Patrik fez uma pausa e depois prosseguiu. — Percebeu algum sinal de que Mats consumia ou traficava droga?

 

— Droga? — Thomas fitou-o. — Eu li os jornais desta manhã. Ficamos indignados com as parvoíces que escreveram. É uma perfeita loucura. A ideia de que Matte poderia estar metido nesse tipo de coisas é um absurdo.

 

— Alguma vez se deparou com os IE? — Patrik forçou-se a seguir em frente, embora sentisse cada vez mais que estava a mexer numa ferida aberta.

 

— Está a falar dos Illegal Eagles? Sim, lamento informá-lo que já me cruzei com eles.

 

— Temos uma testemunha que diz que foram alguns membros desse bando de motoqueiros que mandaram Mats para o hospital. E não um bando de miúdos, como Mats afirmou.

 

— Está a dizer que foram os IE que o agrediram?

 

— Foi o que nos disseram — afirmou Gösta. — Alguma vez teve qualquer tipo de relacionamento com eles?

 

Thomas encolheu os ombros.

 

— Temos ajudado algumas mulheres ligadas a membros desse bando, mas nunca tivemos problemas com eles que não tenhamos tido com os outros namorados ou maridos idiotas das vítimas.

 

— Mats era a pessoa de contacto de alguma dessas mulheres?

 

— Não, pelo menos que me lembre. A agressão deve ter sido um caso de violência fortuita. O mais certo é que Matte estivesse no sítio errado à hora errada.

 

— Essa também era a versão dele do incidente. O sítio errado à hora errada.

 

Patrik deu-se conta do ceticismo com que dissera aquelas palavras. Thomas devia saber que um bando de criminosos como aquele não agredia ninguém sem motivo. Porque estaria a tentar convencê-los do contrário?

 

— Bem, por agora é tudo. Pode dar-nos o seu contacto telefônico, para lhe ligarmos se tivermos mais alguma pergunta para lhe fazer? Assim não teríamos de estar sempre a vir aqui incomodar-vos — disse Patrik com um sorriso irônico.

 

— Claro. — Thomas rabiscou seu número de telefone num papel e entregou-o. — Também querem falar com Marie?

 

— Sim. Não se importa de chamá-la?

 

Os dois polícias tiveram uma breve conversa enquanto esperavam. Gösta parecia ter acreditado em tudo o que Thomas lhes dissera, achando que era completamente fiável. Patrik tinha as suas dúvidas. Thomas parecera uma pessoa honesta e franca, e respondera a todas as perguntas. No entanto, por várias vezes Patrik pensara ter detetado alguma hesitação, embora fosse mais uma sensação do que alguma coisa que tenha verdadeiramente observado.

 

— Olá. — Uma mulher jovem entrou na sala do pessoal e cumprimentou os dois agentes com um aperto de mão. Tinha a palma da mão ligeiramente fria e transpirada, e manchas vermelhas no pescoço. Ao contrário de Thomas, Marie parecia muito nervosa.

 

— Há quanto tempo trabalha aqui? — começou Patrik.

 

Marie brincava com a saia. Era bonita e fazia lembrar uma boneca. Nariz pequeno e arrebitado, cabelo louro comprido que estava constantemente a cair-lhe para os olhos, rosto em forma de coração e olhos azuis. Patrik calculou que tivesse cerca de vinte e cinco anos, mas não tinha certeza. Quanto mais velho ficava, mais dificuldade tinha em calcular a idade das pessoas que eram mais novas do que ele. Talvez fosse o seu instinto de sobrevivência, uma forma de poder continuar a imaginar-se com vinte e cinco anos.

 

— Comecei a trabalhar no Refúgio há cerca de um ano. — As manchas vermelhas no pescoço ficaram mais brilhantes e Patrik reparou que, de vez em quando, Marie engolia em seco.

 

— Gosta do seu trabalho? — Patrik queria que Marie se descontraísse, que baixasse a guarda. Gösta estava recostado na cadeira, a escutar. Parecia ter decidido deixar as perguntas para Patrik.

 

— Sim, gosto muito de trabalhar aqui. É um trabalho tão importante. Claro que também é difícil, mas de uma forma importante, se é que me percebe. — Marie tropeçava nas palavras e parecia estar a ter dificuldade em formular os pensamentos.

 

— Qual era a sua opinião sobre Mats como colega?

 

— Matte era muito doce. Toda a gente gostava dele. — Todos os membros da nossa equipa. E as mulheres também. Sentiam-se seguras com ele.

 

— Alguma vez Mats se envolveu demasiado com alguma das mulheres?

 

— Não, não, essa é a regra número um. Nunca nos podemos envolver pessoalmente. — Marie abanou vigorosamente a cabeça, fazendo esvoaçar os cabelos louros.

 

Patrik lançou um rápido olhar a Gösta, para ver se o colega também achava que aquilo parecia ser um tema sensível para Marie. Mas o rosto de Gösta tinha ficado rígido de repente. Patrik olhou novamente para ele. Que diabo se passava?

 

— Eu... eu preciso de... Será que podia dar-te uma palavrinha? Em privado? — Gösta estendeu a mão para dar um puxão na manga de Patrik.

 

— Claro. Vamos... — Patrik apontou para a porta e Gösta assentiu.

 

— Dá-nos licença por um momento? — perguntou Patrik. Marie parecia aliviada por aquela interrupção.

 

— Que se passa? Estávamos a começar a chegar a algum lado — disse Patrik quando saíram para o corredor.

 

Gösta estudou os sapatos. Depois de aclarar a garganta um par de vezes, olhou para Patrik com uma expressão perturbada no rosto.

 

— Acho que fiz uma coisa muito estúpida.

 

FJÄLLBACKA, 1871

AQUELE ACABOU POR SER O MOMENTO MAIS MARAVILHOSO DA VIDA DE EMELIE. SÓ QUANDO O BARCO QUE TRANSPORTAVA KARL E JULIAN TINHA DEIXADO FJÄLLBACKA E SE DIRIGIA PARA GRÅSKÄR É QUE PERCEBEU O QUE A VIDA NA ILHA LHE TINHA FEITO. PELA PRIMEIRA VEZ EM MUITO TEMPO SENTIA QUE PODIA RESPIRAR.

E DAGMAR ESTAVA CONSTANTEMENTE A MIMÁ-LA. ÀS VEZES, EMELIE FICAVA CONSTRANGIDA POR SER TÃO BEM TRATADA E POR TER TÃO POUCO QUE FAZER. TENTARA AJUDAR NAS LIMPEZAS, A LAVAR A LOUÇA E A COZINHAR, PORQUE QUERIA SER ÚTIL E NÃO UM FARDO. MAS DAGMAR NÃO QUERIA SEQUER OUVIR FALAR NISSO, INSISTINDO QUE EMELIE TINHA DE DESCANSAR. POR FIM, ACABOU POR RENDER-SE A UMA VONTADE MAIS FORTE DO QUE A SUA. E TINHA DE ADMITIR QUE ERA MARAVILHOSO DESCANSAR E NADA MAIS. AS COSTAS E AS ARTICULAÇÕES DOÍAM-LHE E A CRIANÇA QUE CARREGAVA NO VENTRE ESTAVA CONSTANTEMENTE A DAR PONTAPÉS. ACIMA DE TUDO, EMELIE SENTIA-SE MUITO CANSADA. À NOITE CHEGAVA A DORMIR DOZE HORAS SEGUIDAS E DEPOIS AINDA FAZIA UMA SESTA A SEGUIR À REFEIÇÃO DO MEIO-DIA, SEM QUE MESMO ASSIM SE SENTISSE COMPLETAMENTE DESPERTA DURANTE O DIA.

ERA MARAVILHOSO TER ALGUÉM A CUIDAR DELA. DAGMAR FAZIA CHÁ E UMAS ESTRANHAS INFUSÕES QUE, DIZIA, SERVIAM PARA LHE DAR FORÇAS. TAMBÉM CONVENCEU EMELIE A COMER AS COISAS MAIS ESTRANHAS, A FIM DE LHE FORTALECER O CORPO. NADA DAQUILO PARECIA AJUDAR MUITO, PORQUE CONTINUAVA A SENTIR-SE EXAUSTA, MAS PERCEBIA QUE DAGMAR FAZIA AQUILO PORQUE GOSTAVA DE SENTIR-SE ÚTIL. POR ISSO, EMELIE COMIA E BEBIA ALEGREMENTE TUDO O QUE A TIA DE KARL LHE IA PONDO À FRENTE.

O QUE MAIS LHE AGRADAVA ERAM AS NOITES QUE PASSAVAM JUNTAS. FICAVAM SENTADAS NA SALA A CONVERSAR ENQUANTO FAZIAM ROUPA PARA O BEBÊ EM TRICÔ E CROCHÉ. EMELIE NUNCA TINHA DEDICADO MUITO TEMPO A ESSAS COISAS ATÉ TER IDO PARA CASA DE DAGMAR. COMO EMPREGADA DOMÉSTICA NUMA QUINTA, TINHA TIDO OUTROS AFAZERES. MAS DAGMAR ERA HABILIDOSA COM A AGULHA E AS LINHAS E ENSINOU A EMELIE TUDO O QUE SABIA. AS ROUPAS DE BEBÊ E AS MANTAS IAM-SE ACUMULANDO. DAGMAR E EMELIE TINHAM FEITO PEQUENOS GORROS, CAMISINHAS, MEIAS E TUDO O QUE UM RECÉM-NASCIDO PUDESSE PRECISAR. A MAIS BELA DE TODAS ERA A COLCHA DE RETALHOS À QUAL AS DUAS DEDICAVAM UM BOCADINHO TODAS AS NOITES. EM CADA QUADRADO BORDAVAM O PADRÃO QUE LHES VINHA À CABEÇA. OS PREFERIDOS DE EMELIE ERAM OS QUADRADOS COM MALVAS. AO VÊ-LOS, SENTIA UMA PONTADA NO CORAÇÃO. PORQUE, POR ESTRANHO QUE PARECESSE, ÀS VEZES EMELIE TINHA SAUDADES DE GRÅSKÄR. NÃO DE KARL OU DE JULIAN — DELES NÃO SENTIA A MAIS PEQUENA FALTA. MAS A ILHA TORNARA-SE UMA PARTE DELA.

UMA NOITE, EMELIE TENTOU FALAR A DAGMAR DA ILHA, DAQUELES QUE NELA HABITAVAM E DO FACTO DE NUNCA SE TER SENTIDO SOZINHA. MAS AQUELE ERA O ÚNICO ASSUNTO DO QUAL NÃO PODIA FALAR COM DAGMAR. A EXPRESSÃO DA VELHA MULHER ENDURECERA E DAGMAR DESVIARA OS OLHOS DELA PARA QUE EMELIE PERCEBESSE QUE NÃO QUERIA OUVIR O QUE LHE ESTAVA A DIZER. TALVEZ ISSO NÃO FOSSE ASSIM TÃO ESTRANHO. ATÉ A EMELIE SOAVA ESTRANHA A DESCRIÇÃO DAQUELA EXPERIÊNCIA, MAS TUDO PARECERA TÃO NATURAL QUANDO ESTAVA NA ILHA. QUANDO ESTAVA ENTRE ELES.

HAVIA OUTRO ASSUNTO DE QUE NUNCA FALAVAM. EMELIE TENTARA FAZER PERGUNTAS SOBRE KARL, A SUA INFÂNCIA E O PAI DELE. MAS, ASSIM QUE O FAZIA, APARECIA LOGO A MESMA EXPRESSÃO SEVERA NO ROSTO DE DAGMAR. A ÚNICA COISA QUE DIZIA ERA QUE O PAI DE KARL SEMPRE EXIGIRA MUITO DOS FILHOS E QUE KARL O TINHA DESAPONTADO. DAGMAR DISSE QUE NÃO SABIA TODOS OS PORMENORES E QUE, PORTANTO, NÃO QUERIA FALAR ACERCA DISSO. COMO TAL, EMELIE TINHA DESISTIDO DE PERGUNTAR. EM VEZ DISSO, DEIXAVA-SE ENVOLVER NO ABRAÇO TRANQUILO DA CASA DE DAGMAR E, À NOITE, TRICOTAVA PEQUENAS MEIAS PARA A CRIANÇA CUJA CHEGADA SE APROXIMAVA RAPIDAMENTE. GRÅSKÄR E KARL TERIAM DE ESPERAR. PERTENCIAM A UM OUTRO MUNDO, A UM OUTRO TEMPO. NAQUELE MOMENTO, AS ÚNICAS COISAS QUE EXISTIAM ERAM O SOM DAS QUATRO AGULHAS DE TRICÔ E OS FIOS BRANCOS QUE RESPLANDECIAM À LUZ FRACA DOS CANDEEIROS DE PARAFINA. EM BREVE VOLTARIA PARA A VIDA NA ILHA. AQUILO NÃO PASSAVA DE UM SONHO BREVE E FELIZ.

 

— ONDE É QUE O ENCONTRASTE? — Paula apertou a mão a Peter e subiu a bordo do navio da Guarda Costeira.

 

— Recebemos uma chamada acerca de um barco encalhado numa enseada.

 

— Como é que não o encontraram antes? Já tinham andado por aí à procura dele — disse Martin enquanto examinava entusiasticamente o navio da Guarda Costeira. Sabia que o MinLouis podia dar quase trinta nós10. Talvez conseguisse persuadir Peter a aumentar a velocidade quando estivessem mais afastados da costa.

 

— Há muitas enseadas aqui no arquipélago — disse Peter, manobrando o barco para longe do cais com mão firme. — Encontrá-lo foi pura sorte.

 

— E tens certeza de que é o barco que procuramos?

 

— Ainda não, mas quando o vir vou reconhecer se for o barco de Gunnar.

 

— Como é que vamos levá-lo para Fjällbacka? — Paula estava a olhar pela janela. Tinha passado muito pouco tempo no mar. Era de uma beleza de cortar a respiração. Virou-se e olhou para Fjällbacka, que agora estava por detrás deles e se afastava rapidamente.

 

— Vamos rebocá-lo. Pensei que era melhor irmos lá primeiro para termos certeza de que é o barco certo. E também achei que poderiam querer examinar o local onde foi encontrado.

 

— Provavelmente não há muito para ver — retorquiu Martin. — Mas é bom passar algum tempo no mar — acrescentou. Lançou uma olhadela ao acelerador, mas não se atreveu a formular o pedido. Havia por ali mais barcos e podia ser perigoso ir mais depressa, por mais que desejasse que acelerassem.

 

— Tens de vir comigo um dia destes. Assim posso mostrar-te a potência dele — disse Peter com um sorriso divertido, como se pudesse ler a mente de Martin.

 

— Isso seria fantástico! — O rosto pálido de Martin iluminou-se e Paula abanou a cabeça. Os rapazes e os seus brinquedos.

 

— Ali — disse Peter, virando a estibordo. E lá estava ela. Uma lancha de madeira enfiada numa pequena fenda. Não aparentava estar danificada, mas parecia estar presa.

 

— É mesmo o barco de Gunnar. Tenho certeza — disse Peter. — Quem quer ser o primeiro a ir a terra?

 

Martin olhou para Paula, que fingiu não ter ouvido a pergunta. Era uma mulher da cidade, da capital. Andar para ali aos tropeções no meio das rochas afiadas era algo que preferia deixar para Martin. O colega subiu à proa, pegou no cabo de amarração e esperou o momento certo. Peter desligou o motor e depois ajudou Paula a desembarcar. Paula quase caiu depois de escorregar numas algas, mas conseguiu manter o equilíbrio. Martin nunca mais deixaria de provocá-la se caísse à água.

 

Movendo-se com cautela, os três encaminharam-se para a lancha. Quando chegaram perto, confirmaram que não apresentava quaisquer danos.

 

— Como é que o raio do barco veio aqui parar? — Martin coçou a cabeça.

 

— Parece que andou à deriva — disse Peter.

 

— Poderá ter vindo à deriva até aqui desde o porto de Fjällbacka? — perguntou Paula. Porém, pela expressão de Peter, percebeu que fizera uma pergunta disparatada.

 

— Não — respondeu.

 

— Ela é de Estocolmo — explicou Martin, e Paula lançou-lhe um olhar fulminante.

 

— Estocolmo também tem um arquipélago. Martin e Peter olharam o barco com ceticismo.

 

— Uma floresta inundada — disseram em uníssono.

 

Paula contornou o barco. Às vezes as pessoas que viviam na costa oeste eram tão tacanhas. Se ouvisse mais alguém dizer “Ahhh, tu és do avesso da Suécia”, daria uma tareia ao indivíduo em questão.

 

Peter voltou a embarcar no MinLouis e Martin amarrou um cabo de reboque à lancha de Gunnar. Então, fez um gesto para indicar a Paula que se aproximasse.

 

— Ajuda-me a empurrar — disse, começando a empurrar o barco para fora da fenda.

 

Paula começou a caminhar cuidadosamente pelas rochas afiadas, aproximando-se do barco para dar uma ajuda a Martin. Depois de uma boa dose de esforço, conseguiram soltar o Sophia, que deslizou suavemente para a água.

 

— Está feito — disse Paula, regressando ao navio da Guarda Costeira. De repente, os pés resvalaram nas rochas, sentiu-se a escorregar e caiu. Ficou instantaneamente encharcada. Merda, os colegas não iam parar de gozar com ela por muito tempo.

 

Agora estavam constantemente com ela. Faziam-na sentir-se segura, mesmo que apenas os visse pelo canto do olho. Às vezes Nathalie pensava que o rapaz se parecia um pouco com Sam, com o seu cabelo encaracolado e aquele brilho travesso nos olhos. Só que aquele rapaz era louro e Sam era moreno. Porém, como Sam, mantinha o olhar fixo na mãe.

 

Nathalie sentia mais do que via a mulher. E ouvia-a. A bainha do vestido a roçar o soalho, as suaves admoestações dirigidas à criança, os avisos sempre que via algo que podia ser perigoso. Era uma mãe superprotetora, como Nathalie. Ocasionalmente, a mulher tentara falar com ela. Havia qualquer coisa que lhe queria dizer, mas Nathalie recusava-se a ouvir.

 

O rapaz gostava de estar no quarto de Sam. Às vezes parecia que Sam estava a falar com ele, mas Nathalie não tinha certeza. Não se atrevia a aproximar-se para escutar, porque não queria perturbá- los se estivessem realmente a conversar. Aquilo enchia-a de esperança. Com o tempo, Sam também voltaria a falar com ela. Embora representasse a segurança para o filho, Nathalie compreendia que Sam também a associava a todas as coisas terríveis que vivera.

 

De repente, Nathalie deu por si a tremer, embora a casa estivesse aquecida. E se afinal não estivessem a salvo ali? Talvez um dia vissem um barco a aproximar-se da ilha, como Nathalie tanto temia. Um barco repleto do mesmo mal que tinham tentado deixar para trás.

 

Ouviu vozes vindas do quarto do filho. O medo que sentia esfumou-se tão depressa como tinha aparecido. O menino louro estava a conversar com Sam e parecia que o filho estava a responder. O coração de Nathalie saltou-lhe no peito de alegria. Era tão difícil saber o que estava certo. Tudo o que podia fazer era seguir o instinto, que se baseava no amor por Sam — e o instinto estava constantemente a dizer-lhe para lhe dar mais tempo. Para deixar que o filho curasse ali as mazelas em paz e sossego.

 

Não vai aparecer nenhum barco. Sentada à mesa da cozinha e olhando pela janela, Nathalie repetiu aquelas palavras para si mesma como um mantra. Não vai aparecer nenhum barco. Sam estava a falar e isso devia significar que estava prestes a voltar para ela. Ouviu novamente a voz do menino. Sorriu. Estava contente por Sam ter um amigo.

 

Patrik observava Gösta a remexer o bolso do casaco.

 

— Podes explicar-me o que se está a passar?

 

Passado um momento, Gösta pareceu encontrar o que procurava. Tirou qualquer coisa do bolso e entregou-a a Patrik.

 

— Que é isto? Ou melhor, quem é esta mulher? — Patrik olhava para a fotografia que tinha na mão.

 

— Não faço ideia. Mas encontrei-a no apartamento de Sverin.

 

— Onde?

 

Gösta engoliu em seco.

 

— No quarto dele.

 

— Podes explicar-me como é que foi parar ao teu bolso?

 

— Pensei que poderia ter interesse, por isso trouxe-a. Mas entretanto esqueci-me dela — respondeu Gösta num tom submisso.

 

— Esqueceste-te disto? — Patrik estava tão irritado que, por um segundo, tudo ficou escuro diante dos seus olhos. — Como é que te podes ter esquecido de uma coisa destas? Não temos falado noutra coisa além do pouco que sabemos de Mats e de como tem sido difícil descobrir quem é que o homem conhecia.

 

Gösta pareceu encolher-se ali no corredor.

 

— Entendo isso, mas pelo menos agora estou mostrando. Antes tarde do que nunca, certo? — disse, tentando esboçar um sorriso.

 

— E não fazes ideia de quem é? — perguntou Patrik, detendo-se a estudar atentamente a fotografia.

 

— Zero. Mas deve ser alguém que foi importante para Sverin. E ocorreu-me que... Pensei nisso quando estávamos... — Gösta acenou com a cabeça em direção à sala onde Marie os esperava.

 

— Vale a pena tentar — disse Patrik. — Mas a nossa conversa acerca disto não fica por aqui. Garanto.

 

— Eu sei. — Gösta olhou para o chão, mas parecia aliviado com as tréguas, embora fossem apenas temporárias.

 

Regressaram à sala de pessoal. Marie parecia tão nervosa como quando saíram. Patrik foi direto ao assunto.

 

— Quem é esta mulher? — perguntou, colocando a fotografia em cima da mesa à frente de Marie. Patrik viu os olhos da mulher abrirem-se muito.

 

— Madeleine... — respondeu com ar assustado. Tapou a boca com a mão.

 

— Quem é Madeleine?

 

Patrik bateu com o dedo na fotografia, a fim de obrigar Marie a continuar a olhar para ela. A mulher não respondeu, mudando de posição na cadeira, inquieta.

 

— Isto é uma investigação de homicídio e todas as informações que tiver podem ajudar-nos a descobrir quem matou Mats. Também é isso que quer, não é?

 

Marie encarou-os com uma expressão infeliz. As mãos tremiam-lhe e a voz vacilou quando finalmente começou a dizer-lhes o que sabia sobre Madeleine.

 

Quando a equipe de técnicos forenses chegou ao local para levar a cabo uma análise aprofundada ao barco, Paula e Martin regressaram à delegacia. Paula envergava umas enormes calças impermeáveis e uma camisola polar cor de laranja da Guarda Costeira, que Peter lhe emprestara. Preparava-se para fulminar com o olhar quem quer que imaginasse sequer fazer algum tipo de comentário sarcástico. Quando se sentou no carro, ligou o ar condicionado. A água do mar estava gelada e ela continuava a tremer de frio.

 

O volume do rádio estava no máximo, por isso quase não ouviram o celular de Martin a tocar. O jovem agente baixou o volume antes de atender.

 

— Isso é excelente! Podemos ir lá agora? Estamos a caminho da delegacia, por isso podemos passar por lá. — Martin terminou a chamada e virou-se para Paula. — Era Annika. Lennart já deu uma vista de olhos a todos os documentos, por isso podemos ir ter com ele quando quisermos.

 

— Perfeito — respondeu Paula, parecendo um pouco mais animada.

 

Um quarto de hora mais tarde estacionaram à frente dos escritórios da Extra-Film. Lennart estava a almoçar, sentado à secretária, quando entraram, mas pôs logo de lado a sanduíche e limpou as mãos a um guardanapo. Lançou um olhar surpreendido à indumentária de Paula, mas sabiamente decidiu não comentar.

 

— Fico contente de os ver — disse.

 

O marido de Annika irradiava calor, como a mulher. Paula pensou que a filha adotiva de ambos não fazia ideia da sorte que tinha por ter Annika e Lennart como pais.

 

— É tão linda — disse Paula, apontando para a fotografia da menina, que Lennart tinha afixado no quadro de avisos.

 

— É mesmo. — Lennart fez um sorriso rasgado e depois um gesto para que se sentassem nas cadeiras reservadas às visitas, à frente da secretária. — Não sei se vale realmente a pena sentarem-se. Estive a consultar todos estes documentos com o maior cuidado possível, mas não há realmente muito a dizer. As finanças parecem estar em ordem e não encontrei nada que me despertasse a atenção. Não sabia ao certo o que deveria tentar encontrar mas, pelo que vejo, a autarquia tem investido muito dinheiro no projeto e também negociou cláusulas de pagamento muito alargadas. Mas não há nada que tenha feito soar o alarme aqui na minha melhor ferramenta financeira — disse o marido de Annika, afagando a barriga.

 

Martin ia fazer um comentário, mas Lennart prosseguiu:

 

— Os Berkelin, ou seja, Vivianne e Anders, são responsáveis por uma grande fatia das despesas e, de acordo com os documentos, o financiamento que conseguiram deve chegar na segunda-feira. Enfim, receio não ter podido ajudar-vos grande coisa.

 

— Não, claro que ajudou. Pelo menos é bom saber que a autarquia está a fazer bom uso do nosso dinheiro — Martin levantou-se.

 

— Bem, até agora, tudo bem. Mas tudo depende de serem ou não capazes de atrair clientes. Caso contrário, o projeto vai sair bastante caro aos contribuintes.

 

— Nós, pelo menos, gostamos muito do Badis.

 

— Pois, Annika contou-me que passaram um bom bocado no spa. E que Mellberg foi tratado como um rei.

 

Paula e Martin riram-se.

 

— Gostávamos de o ter visto. Dizem as más-línguas que lhe fizeram um tratamento com ostras. Mas vamos ter de limitar-nos a imaginar Mellberg coberto de conchas de ostras — disse Paula.

 

— Bem, já vos disse tudo o que sei. — Lennart entregou-lhes a pilha de documentos. — E repito: lamento não vos ter podido ajudar mais.

 

— A culpa não é sua. Vamos ter de continuar a investigar — disse Paula, embora não conseguisse esconder o desapontamento. A descoberta do barco de Gunnar tinha-os animado bastante, mas a euforia não durara muito tempo. Parecia muito improvável que o barco fosse capaz de fornecer novas pistas para a investigação.

 

— Deixo-te na delegacia e depois vou a casa mudar de roupa — disse Paula quando se aproximaram da delegacia. Depois lançou-lhe um olhar de advertência. Martin assentiu, mas Paula sabia que, assim que cruzasse a porta da delegacia, o colega se deleitaria a contar pormenorizada e exageradamente a história do seu mergulho involuntário.

 

Paula estacionou à frente do prédio onde morava e subiu apressadamente as escadas até o apartamento. Ainda se sentia gelada, como se a água fria lhe tivesse chegado aos ossos. As mãos tremiam-lhe quando enfiou a chave na fechadura, mas depois lá conseguiu abrir a porta.

 

— Está alguém em casa? — perguntou, esperando ouvir a voz alegre da mãe vinda da cozinha.

 

— Olá — ouviu. Era a voz de Johanna, vinda do quarto. Entrou, surpreendida por a namorada já ter regressado do trabalho àquela hora.

 

Passava-se qualquer coisa. Algo que tinha mantido Paula acordada durante a noite, ouvindo a respiração de Johanna. Apesar de perceber que a namorada estava bem desperta, não se atrevera a dizer nada. Não tinha certeza de querer saber o que a andava a incomodar. Johanna estava sentada na cama com um olhar tão abatido que Paula teve vontade de dar meia-volta e fugir dali. Um monte de pensamentos passou por sua cabeça. Uma série de cenários potenciais materializaram-se repentinamente no seu cérebro, mas Paula não queria ver como nenhum deles se desenrolava. Mas agora estavam as duas ali, cara a cara, num apartamento vazio e sem a agitação habitual por detrás da qual se podiam esconder. Não havia nenhum cão a correr de um lado para o outro. Nem Rita a cantar alto na cozinha e a brincar com Leo. Nem Mellberg a gritar obscenidades para a televisão. Apenas silêncio. E elas.

 

— Que diabos é isso que vestiu? — perguntou por fim Johanna, olhando Paula de alto a baixo.

 

— Caí na água — respondeu Paula, olhando para a horrível camisa de lã, tão larga que quase lhe chegava aos joelhos. — Só vim em casa mudar de roupa.

 

— Por que não faz isso e depois falamos? Não posso ter uma conversa séria contigo vestida assim.

 

— Johanna sorriu ironicamente, o que fez com que Paula sentisse uma guinada no estômago. Adorava o sorriso de Johanna, mas ultimamente não o via muito.

 

— Podes fazer um chá enquanto eu mudo de roupa? Depois podemos sentar na cozinha e conversar.

 

Johanna assentiu e saiu da sala. Os dedos de Paula estavam entorpecidos de frio e de medo quando vestiu umas calças de ganga e uma camiseta branca. Então, respirou fundo e foi até a cozinha. Aquela não era conversa que quisesse ter, mas não tinha alternativa. Tudo o que podia fazer era fechar os olhos e mergulhar de cabeça.

 

Detestava mentir-lhe. Vivianne tinha sido tudo para ele durante tanto tempo e assustava-o estar, pela primeira vez, preparado para sacrificar o que os unia. Anders respirava a custo enquanto caminhava pela encosta íngreme e estreita que conduzia a Mörhult. Tivera de ir apanhar um pouco de ar fresco e de estar longe de Vivianne. Não havia outra maneira de encarar aquilo.

 

Às vezes o passado parecia tão perto. Por vezes, Anders tinha outra vez cinco anos e estava deitado debaixo da cama, ao lado de Vivianne, com as mãos a tapar os ouvidos enquanto a irmã o abraçava com muita força. Debaixo daquela cama tinham aprendido muito sobre a sobrevivência. Mas Anders já não se contentava simplesmente em sobreviver. Queria viver e não sabia se Vivianne o estava a ajudar ou a estorvá-lo.

 

Um carro passou por ele a alta velocidade e Anders teve de saltar para a berma. O Badis estava por detrás dele, ao fundo. O seu grande projeto. E o último. Era Erling quem estava a fazer com que tudo fosse possível. E, agora, o pobre diabo até tinha pedido Vivianne em casamento.

 

Erling telefonara a convidar Anders para jantar nessa noite, para comemorar o noivado. De alguma forma, Anders duvidava de que a irmã estivesse ao corrente desses planos. Sobretudo porque aquele chefe da polícia gordo e a namorada com quem vivia também tinham sido convidados. Anders tinha declinado o convite, dando uma desculpa esfarrapada. A combinação Erling e Bertil Mellberg não parecia a receita para uma noite agradável. E, dadas as circunstâncias, seria estranho estar a comemorar.

 

A estrada começava a descer. Anders não sabia ao certo para onde estava a ir, não importava que direção escolhia. Pontapeou uma pedra que rolou colina abaixo até que desapareceu numa vala. Era exatamente como se sentia naquele momento. Como se estivesse a rolar cada vez mais depressa por uma encosta abaixo. A única questão era: a que vala é que iria parar? Aquilo estava fadado a acabar mal, porque não havia nenhuma boa alternativa. Tinha passado a noite em claro a tentar descobrir uma solução, uma solução de compromisso. Mas não havia nenhuma, como não houvera meio- termo nos tempos em que estavam deitados debaixo da cama, com as cabeças encostadas às ripas do estrado.

 

Deixou-se ficar no cais, à frente da pequena ponte de pedra. Não havia cisnes à vista. Tinham-lhe dito que os cisnes costumavam construir os ninhos à direita da ponte e que todos os anos tinham um novo bando de filhotes, vivendo precariamente ao lado da estrada. Diziam que os cisnes acasalavam e ficavam juntos a vida inteira. E também era isso que Anders queria. Até agora, a única mulher da sua vida era a irmã. Não como amante, claro, mas Vivianne sempre fora a sua parceira, a pessoa junto da qual iria viver até o fim dos seus dias.

 

Agora, tudo tinha mudado. Anders precisava de tomar uma decisão, mas não fazia ideia de como o poderia fazer. Sobretudo porque ainda era capaz de sentir as ripas de madeira contra a cabeça e o abraço protetor de Vivianne, e porque sabia que a irmã sempre tinha sido a sua defensora e a sua melhor amiga.

 

Quase tinham perdido a batalha pela sobrevivência. O álcool e o fedor tinham estado presentes mesmo quando a mãe ainda era viva. Mas, ao mesmo tempo, houvera pequenas ilhas de amor, momentos a que se tinham agarrado. Quando a mãe optou por desaparecer, quando Olof a encontrou no quarto com um frasco de comprimidos vazio no chão, os últimos vestígios da infância deles desapareceram. Olof culpou-os e foram ambos severamente castigados. Sempre que as assistentes sociais apareciam, Olof recompunha-se e conquistava-as com os seus olhos azuis, mostrando-lhes a casa e os filhos, que ficavam a olhar silenciosamente para o chão enquanto as senhoras se deleitavam na presença de Olof. De alguma forma, sabia sempre com antecedência quando planeavam aparecer por lá, por isso o apartamento estava sempre limpo e arrumado quando faziam as suas visitas supostamente inesperadas. Se os odiava tanto, porque não os tinha entregado para adoção? Anders e Vivianne haviam passado horas sem conta a imaginar os novos pais que poderiam ter tido se Olof os deixasse ir.

 

Era mais do que certo que queria mantê-los por perto para poder vê-los sofrer. Mas, no final, Anders e Vivianne venceriam. Embora tivesse morrido há anos, Olof continuou a servir-lhes de incentivo. Estavam determinados a provar-lhe que iam conseguir ter sucesso na vida. E o sucesso estava agora ao seu alcance. Não podiam simplesmente desistir e admitir que Olof tinha razão quando dizia que não passavam de inúteis que não chegariam a lado algum.

 

Ao longe, Anders podia ver a família de cisnes a aproximar-se. Os filhotes seguiam vacilantes atrás dos pais imponentes. Eram singelos, com as suas penas cinzentas e felpudas, mas nada comparados às aves elegantes que acabariam por se tornar. Ter-se-iam, ele e Vivianne, tornado grandes e belas aves? Ou eram ainda pequenas crias de cisne cinzentas, almejando ser diferentes?

 

Anders virou-se e caminhou lentamente colina acima. Fosse o que fosse que decidisse, teria de ser rápido a agir.

 

— Sabemos da existência de Madeleine — disse Patrik quando se sentou à frente de Leila sem esperar que a diretora do Refúgio o convidasse.

 

— Desculpe?

 

— Sabemos da existência de Madeleine — repetiu calmamente Patrik. Gösta tinha-se sentado na cadeira ao lado dele, mas estava a olhar para o chão.

 

— Estou a ver. Mas o que... — começou Leila a dizer, parecendo nervosa.

 

— Disse que estava disposta a colaborar conosco e que nos contaria tudo o que soubesse. Agora sabemos que isso não era inteiramente verdade e gostaríamos de uma explicação. — Patrik fez com que a voz soasse o mais severa possível, o que pareceu surtir efeito.

 

— Não me pareceu que... — Leila engoliu em seco. — Não pensei que fosse relevante.

 

— Não acredito nisso. Além do mais, não lhe cabe a si decidir o que pode ser relevante ou não. — Patrik fez uma pausa e continuou: — Que pode contar-nos sobre Madeleine?

 

Por um momento, Leila permaneceu em silêncio. Em seguida, levantou-se abruptamente e dirigiu-se à estante. Enfiou a mão por detrás de uma fila de livros e tirou de lá uma chave. Voltando a sentar-se à secretária, baixou-se e abriu a gaveta.

 

— Tomem — disse secamente, pondo uma pasta em cima da secretária.

 

— Que é isto? — perguntou Patrik. Gösta inclinou-se para frente, igualmente curioso.

 

— É o processo de Madeleine. É uma das mulheres que precisavam de um tipo de apoio que o Estado já não podia oferecer.

 

— Que quer dizer com isso? — Patrik começou a folhear os documentos.

 

— Que a apoiamos de um modo que não é considerado legal. — Leila olhou resolutamente para os dois agentes. Todos os vestígios de nervosismo tinham desaparecido e parecia que a diretora os estava a desafiar a protestar. — Algumas das mulheres que vêm ter conosco já tentaram tudo. E então nós também tentamos tudo. Mas essas mulheres e os seus filhos são ameaçados por homens que se estão nas tintas para a lei, deixando-nos indefesos. Não temos nenhuma maneira de proteger estas mulheres de forma legal, por isso ajudamo-las a fugir. A sair do país.

 

— Como era a relação de Madeleine e Mats?

 

— Na altura não sabia, mas depois descobri que tinham um caso. Passamos muito tempo a tentar resolver a situação de Madeleine e dos filhos. Durante esse tempo devem ter-se apaixonado, o que era estritamente proibido, claro. Mas, como eu disse, na altura não estava a par da relação deles, por isso... — Leila abriu as mãos. — Quando descobri fiquei incrivelmente decepcionada. Matte sabia como era importante para mim provar que os homens são necessários neste tipo de organizações. E sabia que o Refúgio estava na mira de muita gente, muita gente que esperava que falhássemos. Não consigo compreender como foi capaz de trair o Refúgio desta maneira.

 

— E depois, que aconteceu? — perguntou Gösta, tirando o processo das mãos de Patrik. Leila pareceu ficar sem ar.

 

— As coisas foram piorando. O ex-marido de Madeleine estava sempre a descobrir onde ela e os filhos tinham sido alojados. A polícia envolveu-se, mas não serviu de nada. Por fim, Madeleine não conseguia aguentar mais e concluímos que a situação era intolerável. Para continuarem vivos, teriam de sair da Suécia. Deixar a casa, a família, os amigos, tudo.

 

— Quando tomaram essa decisão? — perguntou Patrik.

 

— Madeleine veio falar comigo logo depois de Matte ter sido agredido e pediu-nos que a ajudássemos. Nós já tínhamos chegado mais ou menos à mesma conclusão.

 

— Que pensava Mats acerca disso? Leila olhou para o tampo da secretária.

 

— Não lhe dissemos nada. Foi tudo organizado enquanto estava no hospital. Quando voltou ao trabalho, Madeleine já havia partido.

 

— Foi nessa altura que descobriu que Mats e Madeleine estavam a ter um caso? — Gösta recolocou o processo na secretária.

 

— Sim. Matte estava inconsolável. Implorou e suplicou para que lhe dissesse para onde tinham ido. Mas eu não podia fazer isso. Matte teria posto Madeleine e os filhos em perigo se alguém descobrisse onde estavam.

 

— Alguma vez suspeitou de uma ligação entre toda esta situação e a agressão a Mats? — Patrik abriu a pasta e apontou para algo que estava escrito numa das páginas.

 

Leila brincou nervosamente com um clipe antes de responder.

 

— Claro que isso me ocorreu. Mas Matte garantiu-me que não havia qualquer ligação. E não havia muito que pudéssemos fazer.

 

— Temos de falar com Madeleine.

 

— Isso é impossível — disse Leila, abanando a cabeça. Seria demasiado perigoso.

 

— Vamos tomar todas as precauções necessárias. Mas temos de falar com ela.

 

— Estou a dizer-lhe que é impossível.

 

— Compreendo que queira proteger Madeleine e prometo não fazer nada que possa pô-la em perigo. Espero que possamos resolver este assunto fácil e rapidamente, para que isto... — Patrik apontou para a pasta sobre a mesa — possa ficar só entre nós. Se não, vamos ter de informar os nossos superiores.

 

Leila cerrou os dentes, mas sabia que não tinha alternativa. Com um simples telefonema, Patrik e

 

Gösta poderiam dar cabo de todo o trabalho que o Refúgio estava a tentar levar a cabo.

 

— Vou ver o que posso fazer. Mas vai demorar algum tempo. Talvez até amanhã.

 

— Não há problema. Ligue-nos assim que souber alguma coisa.

 

— Tudo bem, mas com uma condição: fazemos as coisas à minha maneira. Há vidas de muitas outras pessoas envolvidas, não apenas a de Madeleine e dos filhos.

 

— Sim, nós compreendemos isso — afirmou Patrik. Os dois agentes levantaram-se e, mais uma vez, saíram do Refúgio para regressarem a Fjällbacka.

 

— Bem-vindo, bem-vindo! — exclamou Erling, fazendo um sorriso rasgado quando lhes abriu a porta. Estava contente por Bertil Mellberg e a namorada terem conseguido aparecer para celebrar a ocasião. Gostava genuinamente de Mellberg, cuja atitude pragmática perante a vida era muito semelhante à sua. Aquele homem era uma pessoa com quem era fácil lidar.

 

Depois de ter apertado entusiasticamente a mão a Mellberg, Erling beijou Rita na face. Resolveu jogar pelo seguro e beijou-a também na outra face. Não tinha certeza do que se costumava fazer nas terras do sul, mas certamente que não falharia muito se lhe desse um par de beijos. Vivianne apareceu para cumprimentar os convidados e ajudá-los a despir os casacos. Mellberg entregou à anfitriã um ramo de flores e uma garrafa de vinho. Vivianne agradeceu-lhe efusivamente, como mandava a etiqueta, e levou as oferendas para a cozinha.

 

— Entrem, entrem — disse Erling, fazendo-lhes sinal para que o seguissem. Como sempre, estava ansioso por mostrar-lhes o seu lar. Vira-se forçado a lutar muito para manter a casa depois do divórcio, mas tinha valido a pena.

 

— Que bela casa — disse Rita, olhando em redor.

 

— O Erling trata-se bem — referiu Mellberg, dando-lhe uma palmada nas costas.

 

— Não posso queixar-me — retorquiu Erling, entregando um copo de vinho a cada um dos convidados.

 

— Então, o que é o jantar? — perguntou Mellberg. O almoço no Badis ainda estava fresco na sua mente, por isso, se lhes estivesse reservada uma refeição de sementes e nozes, poderiam sempre passar pela rulote de cachorros-quentes a caminho de casa.

 

— Não se preocupe, Bertil. — Vivianne piscou o olho a Rita. — Esta noite fiz uma exceção por sua causa e planeei uma refeição rica em hidratos de carbono. Mas acho que também há para lá alguns legumes.

 

— Acho que vou sobreviver — disse Bertil com uma gargalhada algo exagerada.

 

— Vamos sentar-nos? — Erling pôs o braço em torno de Rita e conduziu-a até a espaçosa e bem iluminada sala de jantar. Não podia negar que a ex-mulher tinha bom gosto em termos de decoração. Por outro lado, tinha sido ele a pagar aquilo tudo, portanto o resultado podia ser considerado obra sua, e era isso mesmo que costumava dizer.

 

Os aperitivos foram rapidamente despachados e o rosto de Mellberg iluminou-se ao ver que o prato principal consistia em porções substanciais de lasanha. Só quando estavam a comer a sobremesa, e depois de alguns puxões que Erling lhe deu debaixo da mesa, é que Vivianne mostrou o anel que usava na mão esquerda.

 

— Ai, ai. Isso é mesmo o que parece ser? — exclamou Rita.

 

Mellberg semicerrou os olhos na tentativa de ver o motivo de todo aquele alarido e depois lá reparou no objeto que luzia no anelar de Vivianne.

 

— Estão noivos? — Mellberg pegou na mão de Vivianne e estudou cuidadosamente o anel. — Erling, seu grande malandro. Deve ter dado uma pequena fortuna por isto.

 

— As coisas boas custam dinheiro. Mas Vivianne vale cada coroa que paguei por ele.

 

— Fantástico — disse Rita, sorrindo calorosamente. — Parabéns aos dois.

 

— Pois. E agora temos de comemorar. Não tem nada mais forte para podermos brindar à vossa felicidade? — Mellberg olhou desdenhosamente para o copo de Baileys que Erling lhes servira para acompanhar a sobremesa.

 

— Hum... Vou ver se consigo desencantar um uísque. — Erling levantou-se e abriu o grande armário de bebidas. Pôs duas garrafas em cima da mesa e depois tirou quatro copos de uísque do armário, distribuindo-os pela mesa.

 

— Este é uma verdadeira joia. — Erling apontou para uma das garrafas. — Um Macallan com vinte e cinco anos. E não foi barato, garanto-lhe.

 

Erling deitou uma porção de uísque em dois dos copos e, em seguida, estendendo a mão sobre a mesa, colocou um no seu lugar e outro no de Vivianne. Então, pôs a rolha na garrafa e, com mil cuidados, devolveu o uísque caro ao armário das bebidas.

 

Mellberg olhou para Erling, espantado.

 

— Então e nós? — Não pôde deixar de perguntar. Rita parecia estar a pensar no mesmo, embora não o tenha dito em voz alta.

 

Erling regressou à mesa e abriu displicentemente a segunda garrafa. Era um Johnnie Walker Red Label, um uísque que Mellberg sabia custar duzentas e quarenta e nove coroas na loja estatal de bebidas.

 

— Seria um desperdício servir-vos o uísque caro — disse Erling. — Não seriam capazes de apreciá- lo como deve ser.

 

Com um sorriso alegre, Erling serviu as bebidas e entregou os copos a Mellberg e a Rita. Os convidados olharam em silêncio para o seu Johnnie Walker e depois para o conteúdo dos copos de Vivianne e de Erling. Tinham uma cor completamente diferente. Vivianne parecia ter vontade de rastejar para debaixo do tapete.

 

— Skål! E skål para nós, minha querida! — Erling ergueu o copo num brinde. Ainda mudos de surpresa, Mellberg e Rita imitaram-no.

 

Pouco tempo depois, desculparam-se e foram-se embora. Que sacana mesquinho, pensou Mellberg enquanto seguiam de táxi para casa. Fora um rude golpe numa amizade tão promissora.

 

A plataforma estava deserta quando desembarcou do comboio. Ninguém sabia que estavam a chegar. A mãe ficaria em estado de choque quando aparecessem, mas Madeleine não podia avisá-la da sua chegada. Já ia ser suficientemente arriscado ficar em casa dos pais. Teria preferido não os envolver, mas não tinham outro sítio para onde ir. Madeleine teria de acabar por falar com algumas pessoas para lhes explicar a situação, e prometera a si própria pagar os bilhetes de comboio a Mette. Detestava estar em dívida para com quem quer que fosse, mas fora a única forma de regressarem à Suécia. Tudo o resto teria de esperar.

 

Não se atrevia a pensar no que ia acontecer a seguir. Ao mesmo tempo, uma sensação de calma tinha invadido Madeleine. Era estranhamente reconfortante estar encurralada a um canto, sem possibilidade de ir a lado nenhum. Tinha desistido e, na verdade, isso era um alívio. Era tão incrivelmente cansativo fugir e lutar... E Madeleine já não tinha medo. Só os filhos a faziam hesitar, mas ia fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para que ele compreendesse e lhe perdoasse. Ele nunca tinha tocado nos filhos. Kevin e Vilda iam ficar bem, independentemente do que acontecesse.

 

Pelo menos era disso que queria convencer-se. Caso contrário, estava perdida.

 

Apanharam o elétrico número três na praça de Drottningtorget. Tudo era muito familiar. As crianças estavam tão cansadas que mal conseguiam manter os olhos abertos. Mesmo assim, tinham o rosto colado aos vidros e olhavam lá para fora.

 

— Ali está a prisão. Não é a prisão, mamãe? — perguntou Kevin.

 

Madeleine assentiu. Sim, tinham acabado de passar pela prisão de Härlunda. Madeleine percorreu mentalmente as próximas paragens de elétrico: Solrosgatan, Sanatoriegatan e depois sairiam na Kålltorp. Por pouco não perderam a paragem, porque Madeleine se esquecera de carregar no botão. No último segundo lembrou-se e o elétrico abrandou e parou para os deixar sair. O céu de verão ainda estava claro àquela hora, mas os postes de iluminação tinham acabado de ligar-se. Havia luzes acesas na maioria das janelas, incluindo o apartamento dos pais. O coração batia-lhe cada vez mais depressa à medida que se aproximava. Ia voltar a ver a mãe. E o pai. Sentir os abraços deles e observar a alegria estampada nos seus rostos quando avistassem os netos. Caminhava cada vez mais depressa e os filhos corriam expectantes atrás dela, ansiosos por visitar os avós que não viam há tanto tempo.

 

Chegaram finalmente à porta do apartamento. A mão de Madeleine tremia quando tocou a campainha.

 

FJÄLLBACKA, 1871

ERA UM BEBÊ LINDÍSSIMO E O PARTO TINHA SIDO SURPREENDENTEMENTE FÁCIL. ATÉ A PARTEIRA O DISSERA QUANDO O ENVOLVEU NUMA MANTA E O DEITOU NO PEITO DA MÃE. UMA SEMANA DEPOIS, EMELIE CONTINUAVA IMENSAMENTE FELIZ E SENTIA A ALEGRIA AUMENTAR A CADA MINUTO QUE PASSAVA.

DAGMAR ESTAVA TÃO FELIZ QUANTO ELA. SE EMELIE PRECISAVA DE ALGUMA COISA, A TIA DE KARL APARECIA IMEDIATAMENTE PARA A AJUDAR E TRATAVA DO BEBÊ COM A MESMA EXPRESSÃO DE REVERÊNCIA COM QUE IA À IGREJA AO DOMINGO. A CRIANÇA ERA UM MILAGRE QUE AS DUAS PARTILHAVAM.

O BEBÊ DORMIA NUM CESTO AO LADO DA CAMA DE EMELIE, QUE PASSAVA HORAS A OLHAR PARA ELE ENQUANTO DORMIA COM A MÃOZINHA ENCOSTADA À FACE. SEMPRE QUE OS LÁBIOS TREMIAM, EMELIE IMAGINAVA QUE AQUILO ERA UM SORRISO, UMA EXPRESSÃO DE ALEGRIA POR ESTAR NESTE MUNDO.

AS ROUPAS E AS MANTAS QUE EMELIE E DAGMAR TINHAM PASSADO TANTAS HORAS A CONFECIONAR ESTAVAM AGORA A TER BOM USO. AS DUAS MULHERES TINHAM DE MUDAR A ROUPA AO BEBÊ VÁRIAS VEZES AO DIA E O MENINO ESTAVA SEMPRE LIMPO E BEM ALIMENTADO. EMELIE TINHA A SENSAÇÃO DE QUE ELA, DAGMAR E O BEBÊ ESTAVAM A VIVER NUM PEQUENO MUNDO À PARTE, SEM TRISTEZAS NEM PREOCUPAÇÕES. ATÉ JÁ TINHA DECIDIDO O NOME DA CRIANÇA. CHAMAR-SE-IA GUSTAV, COMO O PAI DE EMELIE. NEM SEQUER PENSARA EM PERGUNTAR PRIMEIRO A KARL. GUSTAV ERA O FILHO DELA E SÓ DELA.

KARL NÃO A VISITARA UMA ÚNICA VEZ DESDE QUE ESTAVA A MORAR COM DAGMAR. MAS EMELIE NÃO TINHA DÚVIDAS DE QUE, ENTRETANTO, O MARIDO E JULIAN JÁ TINHAM VINDO A FJÄLLBACKA, COMO ERA COSTUME. APESAR DE SER UM ALÍVIO NÃO TER DE O VER, EMELIE FICAVA MAGOADA POR NÃO SIGNIFICAR MAIS PARA KARL.

TENTARA FALAR COM DAGMAR ACERCA DISSO, MAS A MULHER TINHA-SE FECHADO EM COPAS COMO SEMPRE FAZIA QUANDO O NOME DE KARL VINHA À BAILA. MURMURARA NOVAMENTE QUE KARL NÃO TINHA TIDO UMA VIDA FÁCIL E QUE NÃO QUERIA ENVOLVER-SE NOS ASSUNTOS DA FAMÍLIA. POR FIM, EMELIE DESISTIRA. NUNCA COMPREENDERIA O MARIDO, PORÉM, FOSSE COMO FOSSE, TERIA DE SUPORTAR A SUA SORTE. O PASTOR DISSERA “ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE” E ERA ASSIM QUE TERIA DE SER. AGORA, PELO MENOS, EMELIE TINHA ALGO MAIS ALÉM DOS OUTROS, QUE FORAM O SEU CONSOLO NA ILHA. AGORA TINHA ALGO QUE ERA REAL.

TRÊS SEMANAS DEPOIS DO NASCIMENTO DE GUSTAV, KARL FOI BUSCÁ-LA. NEM SEQUER OLHOU PARA O FILHO. LIMITOU-SE A FICAR ESPECADO NO VESTÍBULO COM AR IMPACIENTE E DISSE-LHE PARA ARRUMAR AS SUAS COISAS. QUANDO ACABASSEM DE COMPRAR OS MANTIMENTOS, PARTIRIAM PARA A ILHA E EMELIE E O BEBÊ IAM COM ELES.

— O MEU PAI DISSE ALGUMA COISA ACERCA DO BEBÊ? EU ESCREVI-LHE, MAS NÃO RECEBI NENHUMA RESPOSTA — DISSE KARL, OLHANDO PARA DAGMAR. PARECIA ANGUSTIADO E AO MESMO TEMPO ANSIOSO, COMO UM MIÚDO DA ESCOLA A QUERER AGRADAR. O CORAÇÃO DE EMELIE SUAVIZOU-SE UM POUCO AO VER KARL TÃO INSEGURO. DESEJOU SABER MAIS ACERCA DELE PARA CONSEGUIR COMPREENDER O QUE ESTAVA A SENTIR.

— O TEU PAI RECEBEU A TUA CARTA E ESTÁ FELIZ DA VIDA. — DAGMAR HESITOU. — COMO SABES, ANDAVA PREOCUPADO.

DAGMAR E KARL TROCARAM UM OLHAR QUE EMELIE NÃO CONSEGUIU DECIFRAR. ESTAVA ALI PARADA, COM GUSTAV NOS BRAÇOS.

— O PAI NÃO TEM MOTIVOS PARA SE PREOCUPAR — DISSE KARL COM HOSTILIDADE. — MANDE-LHE OS MEUS CUMPRIMENTOS, SE FAZ FAVOR.

— ESTÁ BEM. MAS TENS DE PROMETER QUE VAIS TRATAR BEM A TUA FAMÍLIA. KARL OLHOU PARA O CHÃO.

— CLARO QUE SIM — DISSE, VIRANDO-SE LOGO EM SEGUIDA. — DAQUI A UMA HORA TENS DE ESTAR PRONTA PARA IRMOS EMBORA — ACRESCENTOU, FALANDO PARA EMELIE POR CIMA DO OMBRO.

EMELIE FEZ QUE SIM COM A CABEÇA, SENTINDO UM NÓ NA GARGANTA. NÃO TARDARIA A REGRESSAR A GRÅSKÄR. ABRAÇOU GUSTAV COM MUITA FORÇA.

 

— LEILA CONSEGUIU ENCONTRÁ-LA? — perguntou Gösta. Ainda parecia estar meio dormindo.

 

— Não disse. Pediu apenas para irmos ao escritório do Refúgio o mais depressa possível.

 

Patrik praguejou. Havia muito trânsito e tinha de estar constantemente mudando de pista. Quando chegaram ao Refúgio, em Hisingen, saiu do carro e abanou a camisa. Estava empapada em suor.

 

— Entrem — disse Leila em voz baixa quando os foi receber à porta. — Vamos sentar-nos na sala de pessoal. É mais confortável do que o meu escritório. Fiz café e sanduíches, para o caso de não terem tido tempo para tomar o pequeno-almoço.

 

Mal tinham tido tempo para comer alguma coisa antes da viagem até Gotemburgo, por isso Patrik e Gösta pegaram cada um num pão e sentaram-se.

 

— Espero que Marie não tenha problemas por causa do que disse — afirmou Patrik. Esquecera-se de o mencionar no dia anterior e quando se foi deitar não conseguiu dormir. Temia que aquela pobre garota nervosa pudesse perder o emprego por lhes ter falado de Madeleine.

 

— De forma alguma. Eu assumo toda a responsabilidade. Devia ter sido eu a dizer-vos, mas a minha principal preocupação era a segurança de Madeleine.

 

— Compreendo — disse Patrik. Continuava chateado por terem perdido tanto tempo, mas percebia porque é que Leila tinha agido daquela forma. Além disso, não era rancoroso.

 

— Já conseguiu contactá-la? — perguntou, acabando de comer a sanduíche. Leila hesitou.

 

— Receio que tenhamos perdido o rastro a Madeleine.

 

— Perderam-lhe o rastro?

 

— Sim. Nós a ajudamos a fugir para o exterior. Se calhar não vale a pena estar a contar-vos todos os pormenores, mas fazemos as coisas de modo a garantir a máxima segurança das vítimas. Seja como for, Madeleine e os filhos foram instalados num apartamento no exterior. Mas agora... agora parece que foram embora.

 

— Foram-se embora?– repetiu Patrik.

 

— Sim. De acordo com o nosso colega que foi até lá, o apartamento está vazio e a vizinha diz que Madeleine e os filhos se foram embora ontem. E não pareciam planear regressar.

 

— Para onde poderão ter ido?

 

— Suspeito que tenham voltado para a Suécia.

 

— Porque haveriam de fazer uma coisa dessas? — perguntou Gösta, estendendo a mão para outra sanduíche.

 

— Madeleine pediu dinheiro emprestado à vizinha para comprar bilhetes de comboio e não tinha mais para onde ir.

 

— Mas por que voltar, sabendo o que a espera aqui? — Gösta estava a falar com a boca cheia, projetando uma chuva de migalhas para o colo.

 

— Não faço ideia — Leila abanou a cabeça e os dois agentes viram o olhar de desespero no seu rosto. Estava claramente muito perturbada. — Têm de compreender que se trata de uma questão psicológica extremamente complexa. Poderão perguntar porque é que uma mulher não deixa o marido da primeira vez que é agredida, mas é mais complicado do que isso. Acaba por criar-se uma relação de interdependência entre o agressor e a vítima e, às vezes, a mulher não se comporta de uma forma muito racional.

 

— Acha que Madeleine voltou para o marido? — perguntou Patrik com ceticismo.

 

— Não sei. Talvez já não aguentasse mais o isolamento e tivesse saudades da família. Apesar de lidarmos há anos com estas situações no nosso centro, nem sempre compreendemos como as mulheres pensam. E têm de ser elas a decidir o que é melhor para as suas vidas. São livres para o fazer.

 

— Como é que vamos encontrá-la? — Patrik estava a sentir-se completamente impotente. Mais outra porta que se fechava nas suas caras. Tinha de falar com Madeleine. Aquela mulher podia ser a chave de tudo.

 

Por um momento, Leila não respondeu. Depois disse:

 

— Eu começaria pelos pais. Vivem em Kålltorp. Madeleine pode ter ido para lá.

 

— Tem a morada? — perguntou Gösta.

 

— Tenho. Mas... — Leila fez uma pausa. — Estão a lidar com pessoas extremamente perigosas. Madeleine e a família podem não ser os únicos em risco. Vocês também podem correr perigo.

 

Patrik assentiu.

 

— Seremos discretos.

 

— Também pensam falar com ele? — perguntou Leila.

 

— Sim, receio que isso seja inevitável. Mas primeiro é melhor falarmos com os nossos colegas aqui de Gotemburgo para sabermos qual será a melhor abordagem.

 

— Tenham cuidado. — Leila entregou a Patrik um papel com uma morada.

 

— Vamos ter cuidado — disse, embora não estivesse tão confiante como tentara soar. Agora estavam a entrar em águas profundas e a única coisa a fazer era nadar o melhor que podiam.

 

— Já falaram com as companhias de aviação? — perguntou Konrad.

 

— Sim — respondeu Petra. — Não saíram do país. Pelo menos não com os nomes verdadeiros.

 

— Há muitas maneiras de conseguir identidades e passaportes falsos.

 

— Se for esse o caso, vamos demorar algum tempo a encontrá-los. Primeiro devemos investigar todas as outras possibilidades. Depois saberemos se se confirma o cenário mais provável. — Estavam sentados nas suas secretárias, à frente um do outro, e Petra trocou um olhar com Konrad. Nenhum deles precisava de ser mais específico do que aquilo. As imagens que visualizavam eram suficientemente nítidas.

 

— Seria uma crueldade do caraças matarem uma criança de cinco anos — disse Konrad. Ao mesmo tempo, sabia que aquela gente se movia em círculos onde a vida humana não significava nada. Matar uma criança podia ser impensável para alguns deles, mas não para todos. O dinheiro e a droga conseguiam transformar as pessoas em animais.

 

— Falei com algumas amigas dela. Pelo que percebi, não tinha muitas e nenhuma afirma ser muito chegada. Mas todas dizem a mesma coisa: Nathalie, Fredrik e o filho iam passar o verão na casa que têm na Toscana. E ninguém tinha qualquer razão para pensar que não tivessem ido. — Petra bebeu um golo da garrafa de água que tinha sempre em cima da secretária.

 

— De onde é que ela é? — perguntou Konrad. — Será que está em casa de algum familiar? Pode ter acontecido alguma coisa que a tenha impedido de ir com o filho para Itália. Problemas conjugais. Ou então talvez tenha sido ela que o matou.

 

— Algumas das tais amigas deram a entender que não era um casamento particularmente feliz, mas não acho que devamos tirar conclusões precipitadas nesta fase. Sabes se as balas já foram enviadas para os técnicos? — Petra bebeu mais um pouco de água.

 

— Sim, e deram-lhes a máxima prioridade. A divisão de estupefacientes anda a investigar esse tipo e a organização que está por detrás dele há muito tempo, por isso puseram o caso no topo da lista.

 

— Ótimo — disse Petra, levantando-se. — Vou descobrir onde para a família de Nathalie enquanto tu tratas dos tipos da balística. Diz-me logo que saibas se têm alguma coisa por onde pegarmos.

 

— Okay — disse Konrad com ar divertido. Há muito que se habituara a que Petra agisse como se fosse a chefe, embora tivessem os dois o mesmo posto. Mas Konrad não se importava, uma vez que não estava ali para competir. Sabia que a colega lhe dava ouvidos e que respeitava a sua capacidade de discernimento e as suas opiniões, e isso era o mais importante. Pegou no telefone para ligar para a balística.

 

— Tens certeza de que esta é a morada certa? — Gösta olhou de relance para Patrik.

 

— Absoluta. E ouvi barulho lá dentro.

 

— Então acho que Madeleine está cá — sussurrou Gösta. — Senão abriam-nos a porta. Patrik assentiu.

 

— Mas a questão é: que vamos fazer agora? Têm de deixar-nos entrar de livre vontade — disse, fazendo uma pausa para pensar. Depois pegou no bloco de notas e na caneta. Escreveu algumas linhas e rasgou a folha. Em seguida, baixou-se e enfiou o papel por debaixo da porta, juntamente com o cartão de visita.

 

— Que é que escreveste?

 

— Sugeri um ponto de encontro. Espero que Madeleine concorde — respondeu Patrik enquanto começava a descer as escadas.

 

— Achas que não vai antes fugir? — Gösta teve de apressar-se para acompanhar o colega.

 

— Não me parece. Disse-lhe que queríamos falar com ela acerca de Mats.

 

— Espero que tenhas razão — referiu Gösta quando entraram no carro. Para onde vamos?

 

— Para a reserva natural de Delsjön — respondeu Patrik, arrancando com um solavanco.

 

Deixaram o veículo no estacionamento e caminharam até uma área de piqueniques na orla da floresta. Depois esperaram. Era muito bom estar no campo para variar e aquele dia de início de verão estava magnífico, agradavelmente quente e ensolarado, e sem uma única nuvem no céu. Os pássaros cantavam e ouvia-se o restolhar das folhas das árvores.

 

Passaram cerca de vinte minutos até verem uma mulher esguia a caminhar na sua direção. Tinha os ombros curvados e olhava ansiosamente em redor.

 

— Aconteceu alguma coisa a Matte? — Madeleine tinha uma voz surpreendentemente ameninada.

 

— Porque não nos sentamos? — Patrik apontou para o banco ao lado do qual se encontravam.

 

— Digam-me o que aconteceu — pediu, deixando-se cair no banco. Patrik sentou-se ao lado dela. Gösta preferiu ficar um pouco afastado e deixar que fosse Patrik a fazer a conversa.

 

— Somos da polícia de Tanumshede — disse-lhe Patrik. A expressão de Madeleine provocou-lhe um aperto no estômago. Sentia-se completamente idiota por não ter percebido que teriam de dar a notícia da morte de Mats. Ia ter de dizer àquela mulher que alguém que tinha claramente significado muito para ela tinha morrido.

 

— Tanumshede? Mas por quê? — Madeleine tinha as mãos no colo e cerrou repentinamente os punhos, lançando-lhe um olhar suplicante. — Matte é dessa zona, mas...

 

— Mats mudou-se para Fjällbacka, onde nasceu, depois de a Madeleine ter desaparecido. Conseguiu por lá um emprego e subalugou o apartamento onde morava aqui em Gotemburgo. Mas Mats... — Patrik hesitou, mas depois prosseguiu: — Mats foi baleado há quase duas semanas. Lamento muito, mas Mats está morto.

 

Madeleine arfou em busca de ar. Os grandes olhos azuis encheram-se de lágrimas.

 

— Pensava que o iam deixar em paz. — Madeleine escondeu o rosto nas mãos e soluçou. Patrik afagou-lhe desajeitadamente as costas.

 

— Sabia que o seu ex-marido e os amigos tinham agredido Mats?

 

— Claro que sabia. Nunca acreditei naquela história absurda de ter sido um bando de adolescentes a atacá-lo.

 

— E foi por isso que decidiu fugir? — perguntou suavemente Patrik.

 

— Pensava que o iam deixar em paz, uma vez que eu já me tinha ido embora. Antes da agressão, tinha esperança de que tudo se resolvesse. Pensava que nos poderíamos esconder algures na Suécia. Mas quando vi Mats no hospital... percebi que ninguém que estivesse ligado a nós estaria seguro se cá ficássemos. Tivemos de desaparecer.

 

— Por que voltou? O que aconteceu?

 

Madeleine apertou os lábios e Patrik compreendeu que estava determinada a não responder àquela pergunta.

 

— Fugir não serve de nada. Se Matte está morto... isso só prova que tenho razão — disse Madeleine, levantando-se.

 

— Podemos fazer alguma coisa para ajudá-la? — perguntou Patrik, que também se levantou. Madeleine virou-se. Ainda tinha os olhos marejados de lágrimas, mas a expressão era vazia.

 

— Não, não há nada que vocês possam fazer. Nada.

 

— Quanto tempo é que vocês os dois estiveram juntos?

 

— Isso depende do ponto de vista — disse com voz trémula. — Mas durou cerca de um ano. Não era permitido, por isso mantivemos tudo em segredo. Também tivemos de ter cuidado por causa de... — Madeleine não terminou a frase, mas Patrik compreendeu o que queria dizer. — Matte era tão diferente em relação ao que eu estava habituada. Tão gentil e afetuoso. Nunca sonharia em fazer mal a ninguém. E isso era... novo para mim — acrescentou, rindo-se com amargura.

 

— Há mais uma coisa que tenho de perguntar-lhe — disse Patrik. Mal conseguia olhar para Madeleine. — Sabe se Mats estava envolvido em alguma coisa relacionada com droga? Cocaína?

 

Madeleine fitou-o.

 

— Porque é que está a perguntar-me isso?

 

— Foi encontrado um saco de cocaína num caixote do lixo, à entrada do prédio onde Mats morava, em Fjällbacka. Com as impressões digitais dele.

 

— Deve haver algum engano. Matte nunca tocaria em drogas. Mas sabe tão bem como eu quem tem acesso a essas coisas — disse Madeleine em voz baixa. As lágrimas começaram novamente a escorrer por seu rosto. — Desculpe, mas agora tenho de ir para casa ver meus filhos.

 

— Fique com o meu cartão e ligue-me se houver alguma coisa que possamos fazer. O que quer que seja.

 

— Está bem — disse, embora ambos soubessem que nunca iria ligar. — O que pode fazer por mim é apanhar a pessoa que assassinou Matte. Nunca devia ter... — Madeleine desatou a correr, chorando.

 

Patrik e Gösta ficaram a vê-la afastar-se.

 

— Não lhe fizeste muitas perguntas — disse Gösta.

 

— Está-se mesmo a ver quem é que Madeleine acha que assassinou Mats.

 

— Sim. E não estou com grande vontade de fazer o que temos de fazer a seguir.

 

— Eu sei — disse Patrik, sacando o celular do bolso. — Mas é melhor telefonar a Ulf. Vamos precisar de ajuda.

 

— Esse é o eufemismo do ano — murmurou Gösta.

 

Quando o telefone tocou, Patrik sentiu um mal-estar persistente. Por uma fração de segundo, visualizou mentalmente uma imagem cristalina de Erica e dos filhos. Então, Ulf atendeu.

 

— O jantar de ontem correu bem? — perguntou Paula. Para variar, ela e Johanna estavam em casa ao mesmo tempo à hora do almoço. Como Bertil também tinha aparecido para desfrutar de uma refeição caseira, estavam todos reunidos à mesa da cozinha.

 

— Bem, depende do ponto de vista — respondeu Rita com um sorriso, que revelava claramente as covinhas nas faces roliças. Apesar de dançar muito, continuava rechonchuda. Aos olhos de Paula, a mãe era lindíssima e, pelo que via, Bertil sentia o mesmo.

 

— Aquele sacana mesquinho serviu-nos uísque barato — murmurou Mellberg. Em condições normais, o superintendente gostava de beber Johnnie Walker e nunca sonharia em gastar o seu dinheiro numa garrafa de uísque caro. Mas por que raio é que Erling lhes mostrara o melhor que tinha se não tencionava oferecê-lo aos convidados?

 

— Que nojo — comentou Johanna. — O uísque barato dá cabo de uma pessoa.

 

— Erling serviu a si próprio e a Vivianne uísque caro e a nós deu-nos do barato — esclareceu Rita.

 

— Que falta de educação — disse Paula com espanto. — Nunca pensei que Vivianne fosse assim.

 

— E acho que não é. Pareceu-me uma pessoa muito simpática e julgo que estava envergonhadíssima. Mas deve haver algo em Erling que a atrai, porque, qual não foi o nosso espanto, anunciaram que estão noivos.

 

— Essa é boa! — Paula tentou imaginar Erling e Vivianne juntos, mas não conseguiu. Seria difícil encontrar um par mais incompatível. Bem, a mãe e Bertil também entravam nessa categoria, porém, por incrível que pudesse parecer, Paula começara a vê-los como uma combinação perfeita. Nunca tinha visto a mãe tão feliz e isso era a única coisa que importava. Por esse mesmo motivo, ainda era mais difícil dizer a Rita o que ela e Johanna tinham de dizer-lhe.

 

— Que bom tê-los a todos em casa — disse Rita enquanto servia a sopa fumegante de uma grande panela que colocara em cima da mesa.

 

— Sim, sobretudo porque parece que vocês as duas não andam a dar-se muito bem ultimamente. — Mellberg deitou a língua de fora a Leo, fazendo-o dar gritinhos de tanto rir.

 

— Olha que ele engasga-se — disse Rita, e Mellberg parou imediatamente com as suas palhaçadas. Tinha um medo de morte que pudesse acontecer alguma coisa a Leo, que era o seu menino de ouro.

 

— Mastiga a comida como deve ser para o teu avozinho Bertil — disse.

 

Paula não pôde deixar de sorrir. Mellberg podia ser o homem mais irritante que alguma vez conhecera, mas perdoava-lhe tudo quando via a maneira como olhava para Leo. Em seguida, aclarou a garganta, plenamente consciente de que o que estava prestes a dizer cairia que nem uma bomba.

 

— Bem, realmente as coisas têm andado um bocado frias entre nós nos últimos tempos. Mas, ontem, Johanna e eu tivemos oportunidade de falar e...

 

— Não vão separar-se, pois não? — perguntou Mellberg. — Seria impossível encontrares outra. Não há muitas lésbicas por aqui e o mais provável era não conseguires arranjar uma nova namorada.

 

Paula revirou os olhos e pediu paciência a Deus. Contou de dez até zero e depois disse:

 

— Não vamos separar-nos. Mas nós... — começou a dizer, lançando um olhar de relance em busca do apoio de Johanna.

 

— Não podemos continuar a morar aqui — disse Johanna.

 

— Não podem continuar a morar aqui? — Rita olhou para Leo e os olhos encheram-se de lágrimas. — Mas para onde vão? Como é que vão... E o Leo? — A voz de Rita quebrou e as palavras teimavam em não sair pela ordem certa.

 

— Não podem voltar para Estocolmo. Espero que não estejam com ideias de fazer isso — disse Mellberg. — Leo não pode crescer numa cidade como Estocolmo. Percebem isso, não é? Pode acabar por tornar-se um delinquente, um toxicodependente ou coisa do gênero.

 

Paula absteve-se de salientar que tanto ela como Johanna tinham crescido em Estocolmo sem que nada de mal lhes acontecesse. Sabia que não adiantava discutir certos assuntos com Mellberg.

 

— Não, nós não vamos voltar para Estocolmo — apressou-se a dizer Johanna. — Estamos bem aqui. Mas pode ser difícil encontrar um apartamento nesta zona, por isso vamos ter de procurar em Grebbestad e também em Fjällbacka. Claro que o melhor seria se conseguíssemos encontrar algum nas proximidades. Mas, ao mesmo tempo...

 

— Ao mesmo tempo, temos mesmo de mudar-nos — completou Paula. — A mãe e o Bertil têm sido um apoio incrível e têm sido fantásticos para o Leo, mas precisamos de ter a nossa própria casa — disse, apertando a mão de Johanna debaixo da mesa. — Por isso vamos ter de contentar-nos com o que conseguirmos arranjar.

 

— Mas Leo precisa de estar com os avós todos os dias. Está habituado a isso. — Mellberg parecia ter vontade de arrancar a criança da cadeirinha, abraçá-la e nunca mais a largar.

 

— Vamos fazer o que pudermos, mas temos de mudar-nos o mais depressa possível. Depois logo se vê o que acontece.

 

O silêncio desceu sobre a mesa e só Leo estava alegre como era habitual. Rita e Mellberg trocaram olhares preocupados. Paula e Johanna iam mudar-se e levar Leo com elas. Podia não ser o fim do mundo, mas sem dúvida que parecia.

 

Era impossível esquecer o sangue. O vermelho parecia tão berrante em contraste com o branco da seda. Nathalie estava aterrorizada como nunca tinha estado na vida. E os anos que passara com Fredrik tinham sido pródigos em episódios assustadores — episódios nos quais, mesmo agora, Nathalie se recusava a pensar, empurrando-os sem hesitar para o subconsciente. Tentou antes concentrar-se em Sam e no amor que ele lhe tinha.

 

Naquela noite, Nathalie ficara para ali a olhar para o sangue como se estivesse congelada. Depois entrara em ação, movendo-se com uma determinação que desconhecia possuir. Já tinha feito as malas. Estava em camisa de noite e, apesar do medo que sentia, teve tempo para vestir apressadamente o jeans e uma camiseta. Sam podia ir de pijama. Pegou o filho no colo e levou-o para o carro depois de ter posto a bagagem no porta-malas. Sam não estava dormindo, mas não disse uma palavra.

 

Tudo parecera tão tranquilo. Apenas se ouvia o leve murmúrio do pouco trânsito noturno. Não se atrevera a pensar no que Sam poderia ter visto, em como isso o poderia ter afetado ou no que significava o silêncio do filho. Normalmente, Sam gostava de conversar com ela, mas não dissera uma única palavra. Nem uma.

 

Nathalie recolheu as pernas e pôs os braços em torno dos joelhos quando se sentou no cais. Estava surpreendida por não se sentir inquieta depois de estar há duas semanas na ilha. Mas os dias pareciam ter passado a correr. Ainda não tinha decidido o que fazer nem pensara no que o futuro poderia trazer-lhes. Quem sabe se ainda tinham um futuro? Nathalie não tinha maneira de saber se ela e o filho iriam estar na mira das pessoas com quem Fredrik se dava, nem se seria seguro continuarem ali escondidos. Teria preferido afastar-se completamente do mundo e ficar em Gråskär para sempre. Isso era fácil de fazer no verão, porém, quando o inverno chegasse, não seriam capazes de permanecer ali. E Sam precisava de amigos e de outras pessoas. Pessoas reais.

 

Porém, antes que Nathalie pudesse tomar qualquer decisão, Sam tinha de melhorar. Por enquanto, o sol brilhava e o som do marulhar das ondas contra as rochas nuas embalava-os durante a noite. Estavam seguros à sombra do farol. Tudo o resto podia esperar. E, com o tempo, a recordação do sangue acabaria por desaparecer.

 

— Como te sentes, amor? — Anna sentiu Dan a abraçá-la por trás e teve de esforçar-se para não o afastar. Emergira da escuridão e conseguia novamente olhar para os filhos, passar tempo com eles e sentir o amor que tinha por eles. Mas ainda se sentia morta por dentro sempre que Dan lhe tocava ou lhe lançava aquele olhar suplicante.

 

— Estou bem — disse Anna, libertando-se dos braços de Dan. — Só um bocado cansada, mas vou tentar ficar levantada mais algum tempo. Preciso de voltar a treinar os músculos.

 

— Quais músculos?

 

Anna tentou rir-se da piada, como sempre costumava fazer quando Dan gozava com ela. Mas apenas conseguiu fazer um esgar.

 

— Podes ir buscar as crianças? — perguntou-lhe, fazendo uma careta quando se baixou para apanhar um carrinho do chão da cozinha.

 

— Eu faço isso — disse Dan, baixando-se rapidamente para apanhar o brinquedo.

 

— Eu conseguia — disse bruscamente Anna, irritada, arrependendo-se imediatamente do tom de voz quando viu a expressão magoada de Dan. Que se passava com ela? Porque teria aquele buraco vazio no peito, no sítio onde tudo o que sentia por Dan costumava estar?

 

— Não quero que exageres, é só isso. — Dan acariciou-lhe a face. Sentiu o frio da mão do marido na pele e esforçou-se novamente para não a afastar. Porque estaria a reagir assim quando sabia que Dan a amava tanto e era o pai da criança que tanto ambicionara ter? Teriam os seus sentimentos por Dan desaparecido quando o filho dera o último suspiro?

 

Anna sentiu-se repentinamente exausta. Não aguentava pensar nisso agora. Só queria ser deixada em paz para poder descansar até os filhos chegarem a casa e sentir o coração ficar repleto do amor que sentia por eles. Um amor que tinha sobrevivido.

 

— Podes então ir buscá-los? — murmurou, e Dan assentiu. Não se atreveu a encará-lo, porque sabia que os olhos do marido estariam repletos de tristeza. — Tenho de deitar-me e descansar um bocado. — Anna virou-se e, lentamente, subiu as escadas.

 

— Te amo, Anna — disse Dan em voz alta na direção das escadas. Anna não respondeu.

 

— Tem alguém aqui? — perguntou Madeleine quando entrou.

 

O apartamento estava invulgarmente silencioso. Será que os filhos estavam a dormir? Não seria muito estranho se estivessem. Tinham chegado tarde a noite passada e Kevin e Vilda tinham-se levantado de manhã bem cedo, entusiasmados por estarem em casa dos avós.

 

— Mãe? Pai? — interpelou Madeleine, baixando a voz. Descalçou-se e pendurou o casaco de verão. Ficou parada por um momento frente ao espelho do corredor. Não queria que vissem que estava a chorar. Já estavam suficientemente preocupados. Mas tinha sido uma alegria imensa ver os pais. Na noite anterior tinham-lhe aberto a porta em pijama e com ar perplexo. Mas, depois, a expressão cautelosa nos rostos dos pais dera lugar a grandes sorrisos. Era tão bom estar novamente em casa, mesmo sabendo que a sensação de segurança era uma ilusão e apenas temporária.

 

Estava tudo num caos. Matte estava morto e Madeleine percebia agora que, bem no fundo do seu ser, tinha albergado a esperança de que, de alguma forma, encontrariam uma maneira de ficarem juntos.

 

Ainda frente ao espelho, compôs o cabelo por detrás da orelha e tentou ver-se a si mesma como Matte a tinha visto. Tinha-lhe dito que era linda. Não conseguia compreender aquilo, mas sabia que Matte estava a falar a sério. Podia vê-lo nos seus olhos sempre que Matte olhava para ela. E Matte tinha tantos planos para o futuro de ambos... Embora tivesse sido ela quem tomara a decisão de fugir, continuara a acreditar que um dia os seus planos seriam realizados. Os olhos de Madeleine ficaram outra vez marejados de lágrimas. Olhou para o teto para impedir que lhe escorressem pelas faces. Piscou os olhos para afastar as lágrimas e respirou fundo. Para bem dos filhos, tinha de recompor-se e fazer o que precisava de ser feito. Aquele não era o momento de chorar a morte de Matte.

 

Virou-se e dirigiu-se para a cozinha. Era aí que os pais passavam a maior parte do tempo. A mãe a tricotar e o pai sentado à mesa a fazer palavras cruzadas, embora nos últimos tempos se dedicasse mais ao sudoku.

 

— Mãe? — chamou Madeleine quando entrou na cozinha. Parou abruptamente.

 

— Olá, minha querida. — Aquela voz, sempre tão suave mas sempre com um toque de desprezo. Jamais se livraria daquela voz.

 

A mãe tinha os olhos transidos de terror. Estava sentada numa cadeira, de frente para Madeleine, com o cano de uma pistola apontado à têmpora direita. Tinha o tricô ao colo. O pai de Madeleine ocupava o lugar habitual, perto da janela, e um braço musculoso em volta do pescoço certificava-se de que não se mexia.

 

— Temos estado a falar dos velhos tempos, os meus sogros e eu — disse calmamente Stefan. Madeleine viu-o a pressionar a arma ainda mais contra a têmpora da mãe. — É bom voltar a ver-te. Já lá vai algum tempo.

 

— Onde estão as crianças? — perguntou Madeleine. A voz pouco mais era do que um grasnar, porque tinha a boca completamente seca.

 

— Estão num lugar seguro. Pobres crianças. Deve ter sido traumatizante estar nas mãos de uma psicótica e não poderem ver o pai. Mas agora vamos recuperar o tempo perdido. –

 

Stefan sorriu e os dentes brilharam entre os lábios.

 

— Onde estão Kevin e Vilda? — Madeleine quase tinha esquecido de quanto o odiava. E do medo que tinha dele.

 

— Já disse que estão seguros. — Stefan encostou ainda mais a pistola na cabeça da mãe de Madeleine e a mulher fez um esgar de dor.

 

— Estava pensando em ir te ver. Por isso é que voltamos à Suécia — disse. — Percebi que tinha cometido um erro. Voltei para remediar as coisas.

 

— Recebeste o postal?

 

Era como se Stefan não tivesse ouvido uma palavra do que Madeleine tinha dito. Não conseguia compreender como é que alguma vez o achara atraente. Estava tão apaixonada por Stefan, convencida de que se parecia com uma estrela de cinema, com aquele cabelo louro, os olhos azuis e as feições tão perfeitas. Ficou lisonjeada por Stefan a ter escolhido quando podia ter tido qualquer mulher que quisesse. Madeleine tinha apenas dezassete anos e muito pouca experiência de vida. Stefan tinha-a cortejado e inundado de elogios. O outro lado dele — os ciúmes e a necessidade de controlar tudo — apenas se revelara mais tarde. E então já era tarde de mais. Estava grávida de Kevin e a sua autoestima estava tão dependente da opinião e da atenção de Stefan que não conseguia deixá-lo.

 

— Recebi — respondeu Madeleine, sentindo-se subitamente muito calma. Já não tinha dezassete anos e tinha conhecido um homem que a amara. Imaginou o rosto de Matte e soube que devia ser forte em memória dele. — Eu vou contigo. Mas deixa os meus pais em paz. — Madeleine abanou a cabeça na direção do pai, que estava a tentar levantar-se. — Tenho de resolver isto. Não devia ter-me ido embora, foi um erro da minha parte. Agora vamos ser uma família.

 

De repente, Stefan deu um passo em frente e golpeou-a na cara com a pistola. Madeleine sentiu o aço a bater-lhe com força na face e caiu de joelhos. Pelo canto do olho, viu Stefan a forçar o pai a sentar-se novamente na cadeira. Desejou fervorosamente que os pais não tivessem de se ver envolvidos naquilo.

 

— Isso é o que vamos ver, minha puta. — Stefan agarrou-a pelos cabelos e começou a arrastá-la para fora da cozinha. Madeleine esforçou-se para se levantar. A dor era terrível; era como se lhe estivessem a arrancar todo o couro cabeludo. Ainda a segurar-lhe no cabelo, Stefan virou-se e apontou a arma para a cozinha.

 

— Vocês não vão dizer uma palavra que seja acerca disto. Não vão fazer porra nenhuma. Senão, esta é a última vez que vêm a vossa filha. Percebem? — Stefan encostou a pistola à têmpora de Madeleine e olhou primeiro para a mãe e depois para o pai.

 

Os dois assentiram em silêncio. Madeleine não se atreveu a olhar para eles. Se o fizesse, perderia toda a coragem, perderia a imagem mental que tinha de Matte, a imagem que lhe dizia para ser forte, independentemente do que pudesse acontecer. Manteve os olhos fixos no chão quando sentiu uma sensação de queimadura nas raízes dos cabelos. Sentiu o cano frio da pistola contra a pele e, por um momento, interrogou-se se sentiria a bala a perfurar-lhe o cérebro ou se a luz simplesmente se extinguiria.

 

— As crianças precisam de mim. Precisam de nós. Podemos ser outra vez uma família — disse

 

Madeleine, tentando manter a voz firme.

 

— Isso é o que vamos ver — repetiu Stefan. O tom de voz do ex-marido assustava-a mais do que os violentos puxões no cabelo, mais do que a arma que ele lhe apontava à cabeça. — Isso é o que vamos ver.

 

Em seguida, Stefan arrastrou-a para a entrada do apartamento.

 

— Tudo aponta para Stefan Ljungberg e os amigos — disse Patrik.

 

— Quer dizer que a mulher regressou a Gotemburgo? — perguntou Ulf.

 

— Sim, e os filhos também.

 

— Isso não é nada bom. Devia ter ficado o mais longe possível desse tipo.

 

— Madeleine não quis dizer-nos porque regressou.

 

— Pode haver mil razões. Já vi isto acontecer muitas vezes. Começam a ter saudades de casa, da família e dos amigos. Ou então a vida depois de fugirem não lhes corre como tinham imaginado. Às vezes, o homem encontra-as e ameaça-as, e elas decidem que mais vale voltarem para ele.

 

— Sabe que há organizações como o Refúgio que por vezes dão um tipo de apoio às vítimas que não é necessariamente legal? — perguntou Gösta.

 

— Sim, mas optamos por fechar os olhos a essas coisas. Ou melhor, optamos por não desperdiçar recursos com essas situações. Essas organizações intervêm quando o Estado falha. Não podemos proteger essas mulheres e os filhos delas como deve ser, por isso... Enfim, que havemos de fazer? — Ulf abriu as mãos. — Quer dizer que Madeleine acha que o ex-marido pode ser responsável pelo homicídio que estão a investigar?

 

— Sim, Madeleine parecia pensar isso — disse Patrik. — E nós temos provas suficientes que apontam nesse sentido, portanto gostávamos de ter uma conversa com Stefan.

 

— Como eu lhe disse, isso não vai ser fácil. Por um lado, porque não queremos pôr em risco as investigações policiais em curso sobre os IE e as suas atividades. Por outro, porque, se for possível, é preferível ficar longe desses tipos.

 

— Eu compreendo isso — afirmou Patrik. — Mas uma vez que as pistas que estamos a seguir apontam para Stefan Ljungberg, acho que seria negligência não falar com ele.

 

— Sabia que ia dizer isso — Ulf suspirou. — Vamos fazer o seguinte: eu levo um dos meus melhores agentes e vamos os quatro ter uma conversa com Stefan. Não é um interrogatório, não vai ser uma coisa agressiva que possa provocá-lo. Apenas uma conversa. Vamos fazer tudo com jeitinho e ver o que conseguimos descobrir. Que lhe parece?

 

— Tudo bem. Também não temos grande alternativa, pois não?

 

— Ótimo. Mas vamos ter de esperar até amanhã de manhã. Têm onde ficar esta noite?

 

— Acho que podemos ficar com o meu cunhado. — Patrik lançou um olhar inquiridor a Gösta, que assentiu. Depois Patrik sacou o celular para ligar a Göran, o irmão de Erica.

 

Erica ficou desapontada quando Patrik telefonou a dizer que só ia para casa no dia seguinte, mas rapidamente lhe passou. Era uma enorme diferença de atitude se comparada com o tempo em que Maja tinha a idade dos gêmeos! Nessa altura, se Patrik lhe tivesse telefonado a dizer que estava atrasado, teria entrado em pânico só de pensar que teria de passar uma noite inteira sozinha com o bebê. Ia sentir falta de Patrik ao seu lado na cama, mas não estava preocupada por ter de tomar conta dos três filhos sozinha. As coisas pareciam ter acalmado e Erica estava contente por, desta vez, poder desfrutar dos seus bebês como nunca tinha sido possível com Maja. Isso não significava que amasse menos a filha, nem pensar. Apenas se sentia mais calma e mais confiante com os gêmeos.

 

— O papai vem para casa amanhã — disse Erica a Maja, que não respondeu. Estava a ver Bolibompa na televisão e não teria notado se estivessem a cair bombas lá fora.

 

Erica dera o biberão aos gêmeos e mudara-lhes as fraldas. Contentes e saciados, tinham adormecido no berço que partilhavam. E, pela primeira vez, as divisões do rés-do-chão estavam razoavelmente limpas e arrumadas. Tivera uma explosão de energia e fizera uma limpeza geral à casa depois de regressar do infantário. Mesmo agora, ainda se sentia enérgica e um pouco inquieta.

 

Erica foi até a cozinha, preparou uma chávena de chá e descongelou alguns bolos no micro-ondas. Depois de ponderar o que fazer, pegou na pilha de papéis sobre Gråskär e sentou-se ao lado de Maja com o chá, os bolos e as histórias de fantasmas. Não tardou a ficar profundamente embrenhada no mundo dos fantasmas. Queria mostrar tudo aquilo a Nathalie.

 

— Não devias ir para casa com tuas filhas? — perguntou Konrad, olhando para Petra. Pela janela do gabinete, na sede da polícia de Estocolmo, na Kungsholmen, podiam ver que a iluminação de rua já estava ligada.

 

— Pelle fica com elas esta noite. Tem trabalhado até tão tarde nos últimos tempos que vai fazer-lhe bem passar algum tempo em casa.

 

O marido de Petra tinha um café em Söder e os dois tinham de estar constantemente a fazer malabarismo para conseguirem coordenar a vida quotidiana. Às vezes, Konrad perguntava a si próprio como é que Petra e Pelle haviam conseguido ter cinco filhos, uma vez que era raro estarem em casa ao mesmo tempo.

 

— Já fizeste algum progresso? — Konrad esticou as costas. Tinha sido um longo dia de trabalho e os músculos começavam a doer-lhe.

 

— Os pais dela morreram e não tem irmãos. Vou continuar a procurar, mas Nathalie não parece ter muita família.

 

— Não consigo deixar de questionar-me como é que Nathalie acabou metida com um tipo como Fredrik — disse Konrad. Virou a cabeça de um lado para o outro para aliviar a tensão no pescoço.

 

— Não acho assim tão difícil de perceber, tendo em conta o gênero de pessoa que ela é — disse secamente Petra. — Nathalie é uma daquelas mulheres que vivem da sua beleza e cujo único objetivo na vida é encontrar um homem que as sustente. Não querem saber de onde vem o dinheiro e passam os dias nas compras, em tratamentos de beleza e em longos almoços com as amigas no Sturehof*.

 

— Caramba — disse Konrad —, parece que alguém está a ser um bocadinho tendencioso.

 

— Eu estrangularia pessoalmente uma das minhas filhas que acabasse assim. Cá para mim, quem se mete naquele mundo só se pode culpar a si próprio. É o preço que se paga quando se opta por fechar os olhos e ignorar que aquele dinheiro tresanda.

 

— Não te esqueças de que também há uma criança envolvida nesta história — lembrou Konrad. A expressão da colega suavizou-se de imediato. Petra era dura, mas também era mais sentimental do que a maior parte das pessoas, sobretudo quando se tratava de crianças em risco.

 

— Sim, eu sei. — Petra fez uma careta. — É por isso que ainda estou aqui sentada, apesar de já serem dez da noite e, provavelmente, Pelle já estar em casa a ver uma nova versão do motim na Bounty. Podes ter certeza de que não é por estar preocupada com a mulher de um ricaço qualquer. — Petra continuou a teclar ao computador por alguns instantes e depois encerrou a sessão.

 

— Pronto, pronto. Enviei alguns questionários, mas não me parece que consigamos fazer mais progressos esta noite. Temos uma reunião com a equipe dos estupefacientes às oito da manhã para analisarmos o caso em conjunto. Agora é melhor irmos dormir umas horinhas para estarmos despertos e de olho vivo amanhã.

 

— Parece-me boa ideia. — Konrad levantou-se. — Espero que amanhã seja um dia mais produtivo.

 

— Caso contrário, teremos de recorrer aos média para nos ajudarem — disse Petra, com um olhar de repulsa.

 

— Tenho certeza de que já souberam da história. — Konrad deixara de se chatear com os jornalistas que se intrometiam no trabalho da polícia. E não tinha uma ideia tão tendenciosa dos jornalistas como Petra. Umas vezes, os média ajudavam, outras estorvavam. Fosse como fosse, os jornalistas estariam sempre a rondar e Konrad sabia que não servia de nada lutar contra moinhos de vento.

 

— Boa noite, Konrad — disse Petra, afastando-se apressadamente pelo corredor.

 

— Boa noite — respondeu Konrad, desligando a luz.

 

*Famoso restaurante de frutos do mar na praça Stureplan, no centro de Estocolmo. (N. do T.)

 

FJÄLLBACKA, 1873

A VIDA NA ILHA TINHA MUDADO, EMBORA MUITA COISA PERMANECESSE NA MESMA. KARL E JULIAN CONTINUAVAM COM O MESMO BRILHO MALICIOSO NOS OLHOS SEMPRE QUE OLHAVAM PARA EMELIE E, DE VEZ EM QUANDO, SOLTAVAM UMA OBSERVAÇÃO MAL-INTENCIONADA. MAS EMELIE NÃO SE IMPORTAVA, PORQUE AGORA TINHA GUSTAV. DEDICAVA TODA A ATENÇÃO ÀQUELE FILHO MARAVILHOSO; DESDE QUE PUDESSE ESTAR COM O BEBÊ, CONSEGUIRIA SUPORTAR QUALQUER COISA. PODERIA VIVER EM GRÅSKÄR ATÉ AO DIA DA SUA MORTE SE A DEIXASSEM FICAR COM GUSTAV. NADA MAIS IMPORTAVA. AQUELA IDEIA ENCHIA-A DE CALMA, ASSIM COMO A FÉ QUE TINHA EM DEUS. CADA DIA QUE PASSAVA NAQUELA ILHA DESOLADA OUVIA A PALAVRA DE DEUS COM MAIS CLAREZA. PASSAVA TODO O TEMPO LIVRE A ESTUDAR A BÍBLIA E A SUA MENSAGEM PREENCHIA-LHE DE TAL MODO O CORAÇÃO QUE CONSEGUIA ALHEAR-SE DE TUDO O RESTO.

PARA SUA GRANDE TRISTEZA, DAGMAR FALECEU APENAS DOIS MESES DEPOIS DE ELA TER REGRESSADO À ILHA. TINHA MORRIDO DE UMA FORMA TÃO TERRÍVEL QUE EMELIE MAL CONSEGUIA PENSAR NISSO. UMA NOITE, ALGUÉM LHE ENTRARA EM CASA, SEM DÚVIDA PARA ROUBAR O POUCO QUE A VELHA SENHORA TINHA. NO DIA SEGUINTE, UMA AMIGA DE DAGMAR TINHA DADO COM ELA MORTA, ASSASSINADA. OS OLHOS DE EMELIE ENCHIAM-SE DE LÁGRIMAS QUANDO PENSAVA NO DESTINO CRUEL DA AMIGA. ÀS VEZES, AQUELE PENSAMENTO ERA INSUPORTÁVEL. QUEM PODERIA SER TÃO MAU E TER TANTO ÓDIO DENTRO DE SI A PONTO DE MATAR UMA VELHA MULHER QUE NUNCA FIZERA MAL A NINGUÉM?

À NOITE, OS ESPÍRITOS SUSSURRAVAM UM NOME. ELES SABIAM E QUERIAM QUE EMELIE OUVISSE O QUE ESTAVAM A DIZER. MAS EMELIE NÃO QUERIA SABER, NÃO QUERIA OUVIR. TINHA IMENSAS SAUDADES DE DAGMAR. TERIA SIDO RECONFORTANTE SABER QUE A AMIGA ESTAVA LÁ LONGE, EM FJÄLLBACKA, EMBORA NÃO A PUDESSE TER IDO VISITAR, UMA VEZ QUE OS DOIS HOMENS NÃO LHE PERMITIAM QUE OS ACOMPANHASSE QUANDO IAM ATÉ LÁ DE BARCO COMPRAR MANTIMENTOS. MAS AGORA DAGMAR TINHA DESAPARECIDO E EMELIE E GUSTAV ESTAVAM OUTRA VEZ SOZINHOS.

NO ENTANTO, ISSO NÃO ERA INTEIRAMENTE VERDADE. QUANDO VOLTOU PARA GRÅSKÄR COM GUSTAV NOS BRAÇOS, OS ESPÍRITOS ESTAVAM NAS ROCHAS À SUA ESPERA. FORAM DAR-LHE AS BOAS-VINDAS. AGORA CONSEGUIA VÊ-LOS SEM FAZER QUALQUER ESFORÇO. GUSTAV TINHA DEZOITO MESES. A PRINCÍPIO, EMELIE NÃO TINHA A CERTEZA SE O FILHO TAMBÉM OS CONSEGUIA VER, MAS AGORA ESTAVA CONVENCIDA DE QUE CONSEGUIA. ÀS VEZES, GUSTAV RIA-SE MUITO ALTO E ABANAVA AS MÃOZINHAS, COMO SE LHES ESTIVESSE A ACENAR. A PRESENÇA DELES FAZIA O FILHO FELIZ E A ALEGRIA DE GUSTAV ERA A ÚNICA COISA QUE IMPORTAVA NO MUNDO DE EMELIE.

A VIDA DE EMELIE NA ILHA PODIA PARECER MUITO MONÓTONA, JÁ QUE TODOS OS DIAS ERAM MUITO SEMELHANTES, MAS NUNCA SE SENTIRA MAIS FELIZ. O PASTOR VIERA FAZER-LHES OUTRA VISITA. EMELIE TIVERA A SENSAÇÃO DE QUE ESTAVA PREOCUPADO E QUERIA VER COMO ESTAVAM AS COISAS. MAS O PASTOR NÃO PRECISAVA DE PREOCUPAR-SE. O ISOLAMENTO, QUE ANTES A INQUIETARA TANTO, JÁ NÃO A INCOMODAVA. TINHA TODA A COMPANHIA DE QUE PRECISAVA E A VIDA TINHA UM PROPÓSITO. QUEM PODERIA PEDIR MAIS? O PASTOR VOLTARA PARA CASA COM UMA SENSAÇÃO DE ALÍVIO. TINHA VISTO A CALMA ESTAMPADA NO SEU ROSTO, E A BÍBLIA, MUITO LIDA, ESTAVA ABERTA EM CIMA DA MESA DA COZINHA. ACARICIARA O ROSTO DE GUSTAV E DERA-LHE UM REBUÇADO PARA A TOSSE. “QUE BELO MENINO”, DISSERA, ENCHENDO EMELIE DE ORGULHO.

KARL, POR SEU LADO, IGNORAVA COMPLETAMENTE GUSTAV. ERA COMO SE O FILHO NÃO EXISTISSE. TAMBÉM TINHA DEIXADO DE VEZ DE DORMIR NO QUARTO. AGORA DORMIA NUMA DIVISÃO DO RÉS-DO-CHÃO, AO PASSO QUE JULIAN DORMIA NO BANCO DA COZINHA. KARL QUEIXAVA-SE DE QUE O MENINO CHORAVA DE MAIS, MAS EMELIE SUSPEITAVA DE QUE NÃO PASSAVA DE UMA DESCULPA PARA NÃO PARTILHAR A CAMA COM ELA. EMELIE NÃO SE IMPORTAVA NEM UM BOCADINHO. DORMIA AO LADO DE GUSTAV, COM O BRACINHO RECHONCHUDO DO FILHO EM VOLTA DO PESCOÇO E O ROSTO ENCOSTADO AO SEU. NÃO PRECISAVA DE MAIS. ALÉM DISSO, TAMBÉM TINHA DEUS.

 

PASSARAM UMA NOITE AGRADÁVEL com Göran. Durante a maior parte das suas vidas, Erica e Anna não souberam que tinham um irmão, mas Göran não tardou a afeiçoar-se às irmãs mais novas. Tanto Patrik como Dan tinham o cunhado em grande estima. A mãe adotiva, Märta, que jantou com eles, era uma mulher maravilhosa que rapidamente se tornara parte da família.

 

— Estão prontos? — perguntou Ulf quando Patrik e Gösta chegaram ao estacionamento à frente do quartel-general da polícia de Gotemburgo.

 

Sem esperar por uma resposta, Ulf apresentou-lhes o colega, Javier. Era ainda mais alto do que Ulf, se é que isso era possível, e estava em muito melhor forma. Não parecia muito falador e apertou- lhes as mãos em silêncio.

 

— Querem ir atrás de nós? — Ulf encolheu-se ao volante de um carro da polícia descaraterizado.

 

— Claro, desde que não vá muito depressa. Não conheço muito bem os caminhos por aqui — disse

 

Patrik, dirigindo-se depois com Gösta para o seu próprio veículo.

 

— Vou conduzir com tanto cuidado como um instrutor de condução — disse Ulf, rindo-se.

 

Cruzaram a cidade e entraram numa zona menos urbanizada. Vinte minutos mais tarde já quase não havia prédios.

 

— Estamos mesmo no campo — disse Gösta, olhando em redor. — Será que vivem na floresta?

 

— Talvez não seja assim tão estranho viverem tão longe. Deve haver uma série de atividades que não querem que os vizinhos vejam.

 

— Lá isso é verdade.

 

Ulf abrandou e virou para um acesso para carros à frente de uma grande vivenda. Vários cães desataram a correr na direção dos carros, ladrando alto.

 

— Merda! Não gosto de cães — disse Gösta, olhando pelo para-brisas. Deu um salto quando um dos cães de grande porte, um rottweiler, começou a ladrar à sua porta.

 

— Cão que ladra não morde — disse Patrik, desligando o motor.

 

— Isso pensas tu — retorquiu Gösta, sem fazer qualquer movimento para abrir a porta.

 

— Anda. — Patrik saiu do carro, mas estacou quando três cães o cercaram, mostrando os dentes e rosnando.

 

— Chama os cães — gritou Ulf. Passado um minuto, um homem saiu pela porta da frente.

 

— Por quê? Os cães estão a fazer o trabalho deles. A manter os visitantes indesejados afastados. — O homem cruzou os braços com um sorriso divertido.

 

— Vá lá, Stefan. Só queremos ter uma pequena conversa contigo. Chama lá a porra dos cães.

 

Stefan riu-se, levou a mão aos lábios e assobiou. Os cães pararam de ladrar. Correram para o dono e deitaram-se aos seus pés.

 

— Satisfeito?

 

Patrik não pôde deixar de notar que o líder dos IE era muito bem parecido. Se não fosse pela frieza dos seus olhos, até se poderia dizer que era bonito. A roupa que usava prejudicava essa impressão: calças de ganga coçadas, camiseta manchada, colete preto de motoqueiro e tamancos de madeira.

 

Mais homens começaram a aparecer, todos eles com a mesma expressão cautelosa e hostil.

 

— Então, que querem? Estão em propriedade privada — disse Stefan. Seguia cada movimento dos agentes.

 

— Queremos ter uma conversa contigo, nada mais — repetiu Ulf, erguendo as mãos. — Não estamos aqui para arranjar problemas.

 

Houve um momento de pausa enquanto Stefan considerou aquelas palavras. Ninguém mexeu um músculo.

 

— Tudo bem, entrem — disse-lhes por fim Stefan, encolhendo os ombros, como se dissesse que se estava nas tintas. Virou-se e caminhou em direção à casa.

 

Ulf, Javier e Gösta fizeram o que Stefan disse e, com o coração a martelar-lhe o peito, Patrik imitou-os.

 

— Sentem-se. — Stefan apontou para várias poltronas junto a uma pequena mesa de vidro muito suja. O líder dos IE sentou-se num pomposo sofá de couro, esticando os braços sobre o encosto. A mesa estava coberta de latas de cerveja, caixas de piza e pontas de cigarro, apenas algumas delas no cinzeiro.

 

— Não tivemos tempo para arrumar a casa — disse Stefan com um sorriso. Mas depois ficou logo sério. — Que querem?

 

Ulf olhou de relance para Patrik, que aclarou a garganta. Patrik estava nervoso, para empregar um eufemismo, por se encontrar no quartel-general de um bando de motoqueiros. Mas agora não havia volta a dar.

 

— Somos da polícia de Tanumshede — disse, observando, horrorizado, que a voz lhe tremia. Não muito, mas o suficiente para pôr um brilho divertido nos olhos de Stefan. — Temos algumas questões relativas a uma agressão que ocorreu em fevereiro. Na rua Erik Dahlbergsgatan. O homem que foi atacado chamava-se Mats Sverin.

 

Patrik fez uma pausa. Stefan continuou a fitá-lo.

 

— E?

 

— De acordo com uma testemunha, Mats Sverin foi agredido por alguns homens que usavam o emblema deste clube nas costas.

 

Stefan riu-se com desdém e olhou para os seus homens, que estavam ao fundo da sala, de olho nos agentes, e que também se desataram a rir.

 

— Então e o que é que esse tipo diz acerca disso? Qual era o nome dele? Max?

 

— Mats — corrigiu Patrik. Era óbvio que os motoqueiros estavam a gozar com ele, mas Patrik ainda não sabia o suficiente para poder ter o prazer de tirar aquele sorriso presunçoso da cara de Stefan Ljungberg.

 

— Oh, peço desculpa. O que é que Mats tem a dizer? Disse que fomos nós? — Stefan esticou ainda mais os braços. Parecia ocupar todo o sofá. Um dos cães aproximou-se e deitou-se aos seus pés.

 

— Não — respondeu relutantemente Patrik. — Não, não disse.

 

— Ah, bom. — Stefan sorriu.

 

— Parece-me um pouco estranho que não tenham perguntado quem é este homem de quem estamos a falar — disse Ulf , tentando atrair o cão para junto de si. Gösta olhou para o colega de Gotemburgo como se este fosse louco, mas o cão levantou-se e aproximou-se de Ulf, que lhe coçou as orelhas.

 

— Lolita ainda não aprendeu a odiar o cheiro a polícia — disse Stefan. — Mas vai aprender. Agora, em relação a esse tal Mats, bem, eu não consigo lembrar-me de toda a gente. Sou um homem de negócios e falo com uma série de pessoas.

 

— Mats trabalhava para uma organização chamada Refúgio. Isto diz-lhe alguma coisa?

 

Quanto mais tempo se encontravam ali sentados, mais a aversão de Patrik por aquele homem crescia. Estava a achar aquela charada frustrante. Stefan sabia exatamente do que estavam a falar. Teria sido preferível levá-lo para a delegacia para que a testemunha da Erik Dahlbergsgatan pudesse identificá-lo. Embora não tivessem nenhuma prova de que Stefan participara na agressão a Mats Sverin, Patrik estava convencido de que o homem estava implicado. Tendo em conta o caráter pessoal da situação, Patrik não achava que Stefan tivesse delegado a tarefa aos seus capangas.

 

— Refúgio? Não, nunca ouvi falar nisso.

 

— É estranho. Porque eles conhecem-no. Muito bem, até. — Patrik sentia-se a ferver por dentro.

 

— A sério? — disse Stefan com ignorância fingida.

 

— Como está Madeleine? — perguntou Ulf. Lolita estava agora deitada de costas para que Ulf lhe pudesse afagar a barriga.

 

— Sabem como são as gajas. Andamos um bocado desavindos, mas nada que não possa ser resolvido.

 

— Desavindos? — perguntou laconicamente Patrik. Ulf lançou-lhe um olhar de advertência.

 

— Madeleine está em casa? — perguntou.

 

Javier não tinha dito uma palavra. Irradiava força muscular e Patrik percebeu porque é que Ulf resolvera trazê-lo.

 

— De momento, não — respondeu Stefan. — Mas tenho certeza de que vai ter pena de não vos ter encontrado. As gajas adoram visitas.

 

Parecia completamente calmo e Patrik teve de conter-se para não lhe dar um soco na cara.

 

Stefan levantou-se. Lolita pôs-se instantaneamente de pé e aproximou-se do dono. Foi encostar-se às pernas de Stefan, como que a pedir desculpa por ter saído de junto dele. Stefan inclinou-se para acariciá-la.

 

— Já acabaram? É que tenho mais que fazer.

 

Patrik ainda tinha mil perguntas a fazer. Acerca da cocaína, de Madeleine, do Refúgio e do homicídio. Mas Ulf lançou-lhe novo olhar de advertência e acenou com a cabeça em direção à porta. Patrik percebeu que as outras perguntas teriam de esperar.

 

— Espero que o tipo esteja bem. Esse que foi agredido. Essas coisas às vezes acabam mal. — Stefan estava à porta, à espera de que os polícias saíssem.

 

Patrik fitou-o.

 

— Mats está morto. Foi assassinado com um tiro — disse com o rosto tão perto de Stefan que conseguiu sentir o cheiro desagradável a cerveja e a cigarros no seu hálito.

 

— Morto a tiro?

 

O sorriso desapareceu e, por uma fração de segundo, Patrik viu um olhar de surpresa genuína no rosto de Stefan.

 

— Então, a casa ainda estava de pé quando chegaste ontem à noite? — Konrad olhou para Petra através das lentes pequenas e redondas dos óculos.

 

— Sim, estava — respondeu Petra, embora não parecesse estar a ouvir. A atenção da agente estava voltada para o ecrã do computador. Passado um momento, rolou a cadeira para trás e virou-se para Konrad. — Encontrei uma coisa nos registos. A mulher de Wester tem uma propriedade em Bohuslän, no arquipélago ao largo de... — Petra inclinou-se para ler o que estava escrito no ecrã. — Fjällbacka.

 

— Fjällbacka é um sítio fantástico. Passei lá duas férias de verão.

 

Petra olhou para Konrad com espanto. Não sabia bem por que, mas nunca conseguira imaginar o colega de férias. Teve de conter-se para não lhe perguntar com quem tinha ido a Fjällbacka.

 

— Onde é que isso fica? — perguntou Petra. — Parece que Nathalie Wester é proprietária de uma ilha inteira. Chama-se Gråskär.

 

— Entre Uddevalla e Strömstad — respondeu Konrad. Estava a consultar os registos telefônicos de Fredrik Wester, tanto as chamadas feitas como as recebidas. Era uma tarefa maçadora, mas tinha de ser feita e os telefones podiam ser minas de ouro para as investigações criminais. Porém, Konrad duvidava de que encontrassem alguma coisa através dessa fonte. Aqueles tipos eram demasiado espertos para deixarem rastro. Provavelmente utilizavam um cartão recarregável e deitavam-no fora se detetassem algum perigo. Mas valia a pena tentar e Konrad era conhecido pela sua tenacidade. Se a pista estivesse à espreita naquela lista interminável de telefonemas, encontrá-la-ia.

 

— Ainda não consegui encontrar o número de celular dela — disse Petra. — Por isso, se calhar era mais rápido entrar em contato com a polícia de lá. Quer dizer, se é que há lá polícia. Não é propriamente uma grande cidade. Talvez só haja polícia em Gotemburgo.

 

— Tanumshede — disse Konrad, sem deixar de introduzir números de telefone no computador para compará-los com a lista. — A delegacia mais próxima é a de Tanumshede.

 

— Tanumshede? Como é que sabes?

 

— Apareceu uma grande história nos jornais há uns dias sobre um homicídio relacionado com droga por essas bandas. — Konrad tirou os óculos e esfregou a ponta do nariz. Depois de olhar por muito tempo para a letra pequena da lista, os olhos começavam a doer-lhe.

 

— Ah, quer dizer que essas merdas não acontecem só aqui na capital.

 

— Não. Acredites ou não, também há vida fora de Estocolmo. Sei que pode parecer estranho, mas é um facto — afirmou Konrad.

 

Petra nascera em Estocolmo e sempre vivera na capital. Raramente se aventurava para norte de

 

Uppsala ou para sul de Södertälje.

 

— A sério? — perguntou. — E tu, de onde és? — acrescentou sarcasticamente. Ao mesmo tempo, apercebeu-se de como era estranho não saber, uma vez que trabalhavam juntos há quinze anos. Mas aquilo nunca tinha vindo à baila.

 

— Gnosjö — respondeu Konrad, sem tirar os olhos da lista de telefones. Petra ficou a olhar para o colega.

 

— Em Småland? Mas não tens sotaque.

 

Konrad encolheu os ombros. Petra estava prestes a fazer outra pergunta, mas conteve-se. Tinha acabado de saber onde Konrad tinha nascido e onde passava as férias. Era informação mais do que suficiente para um dia.

 

— Gnosjö — repetiu com espanto. Depois pegou no telefone. — Vou ligar aos nossos colegas de

 

Tanumshede.

 

Konrad limitou-se a assentir. Estava profundamente embrenhado no mundo dos números.

 

— Pareces cansado, amor — disse Erica a Patrik, dando-lhe um beijo. Segurava um bebê em cada braço. Patrik beijou os filhos na cabeça.

 

— Sim, estou um bocado estoirado. Está tudo bem contigo? — perguntou com ar culpado.

 

— Por acaso está. — Erica ficou surpreendida ao ouvir-se dizer aquilo, mas era verdade. Tudo tinha corrido bem. Maja estava no infantário e os gêmeos tinham acabado de beber os biberões, por isso estavam ambos satisfeitos.

 

— A viagem valeu a pena? Como estão Göran e Märta? — perguntou enquanto pousava os gêmeos numa manta que estava no chão. — Há café, se quiseres.

 

— Obrigado. Apetece-me mesmo um café. — Patrik seguiu Erica até a cozinha. — Não posso demorar-me. Tenho de voltar para a delegacia.

 

— Senta-te por alguns minutos e descontrai-te — disse Erica, obrigando-o praticamente a sentar-se numa cadeira de cozinha. Pôs-lhe uma chávena de café à frente, que Patrik bebeu com satisfação.

 

— Olha, até fiz uns bolos. — Erica pôs um prato de bolos, ainda quentes do forno, em cima da mesa.

 

— Ena, não posso acreditar. Parece que estás a transformar-te numa verdadeira dona de casa — disse

 

Patrik. Porém, pelo olhar de Erica, deu-se conta de que a piada não lhe tinha agradado.

 

— Okay, conta-me o que descobriste — disse Erica, juntando-se ao marido à mesa.

 

Patrik resumiu-lhe o que tinha acontecido em Gotemburgo. Notava-se alguma resignação na voz.

 

— E Göran e Märta estão bem. Estão a pensar vir visitar-nos um fim de semana destes. O rosto de Erica iluminou-se.

 

— Isso era excelente! Vou telefonar a Göran esta tarde para combinarmos uma data. — Depois, Erica ficou muito séria. — Estive a pensar numa coisa. Já alguém disse a Nathalie o que aconteceu a Gunnar?

 

Patrik olhou para a mulher, apercebendo-se de que Erica tinha razão. Tinham de contar-lhe.

 

— Não, pelo menos julgo que não. A menos que Nathalie tenha telefonado a Signe.

 

— Signe ainda está no hospital. Parece que não está nada bem. Patrik assentiu.

 

— Okay, eu telefono a Nathalie assim que puder.

 

— Ótimo. — Erica sorriu. Depois levantou-se, afastou a chávena de café de Patrik e sentou-se ao seu colo, virada para ele. Passou-lhe os dedos pelo cabelo e beijou-o suavemente nos lábios.

 

— Tive saudades tuas.

 

— Hum, eu também tive saudades tuas — disse Patrik, envolvendo-lhe a cintura com os braços.

 

Da sala de estar podiam ouvir os gêmeos a tagarelar alegremente e Patrik viu um brilho familiar nos olhos de Erica.

 

— Será que a minha doce mulher está com disposição para me acompanhar lá acima?

 

— Com certeza, meu amo e senhor. Seria um prazer.

 

— Então estamos à espera de quê? — Patrik levantou-se tão abruptamente que Erica quase lhe caiu do colo. Pegou-lhe na mão e conduziu-a até as escadas. Porém, mal pôs o pé no primeiro degrau, o celular tocou. Estava plenamente decidido a ignorá-lo, mas Erica deteve-o.

 

— Amor, tens de atender essa chamada. Pode ser da delegacia.

 

— Eles que esperem — afirmou Patrik. — Porque isto não vai demorar muito tempo, acredita — acrescentou. Puxou outra vez a mão de Erica, mas não teve grande sorte.

 

— Não me parece que isso seja um bom argumento para vender o produto — disse com um sorriso. –

 

E sabes muito bem que tens mesmo de atender o celular.

 

Patrik suspirou. Sabia que Erica tinha razão, por mais desapontado que estivesse.

 

— Terei outra oportunidade? — perguntou Patrik, dirigindo-se ao vestíbulo para tirar o celular do bolso do casaco.

 

— Será um prazer, meu amo e senhor — disse Erica fazendo uma vênia.

 

Patrik riu-se quando atendeu o celular. Adorava mesmo aquela mulher e as suas maluquices.

 

Mellberg estava preocupado. Era como se toda a sua vida dependesse da resolução daquele assunto. Rita fora dar um passeio com Leo, e Paula e Johanna tinham ido trabalhar. Bertil tinha dado uma escapadela até casa para ver o canal de desporto. Mas pela primeira vez na vida foi incapaz de concentrar-se no que estava a acontecer na televisão. Em vez disso, deu por si a prestar atenção a todos os pensamentos que se acumulavam na mente.

 

De repente, Mellberg teve um sobressalto. Caramba, tinha a solução. Estava mesmo à frente do nariz. Saiu apressadamente de casa e desceu as escadas até o escritório que havia no rés-do-chão. Alvar Nilsson estava sentado à secretária.

 

— Olá, Mellberg!

 

— Olá. — Bertil fez-lhe um grande sorriso.

 

— Que aconteceu? Vieste cá fazer-me companhia? — Alvar abriu a gaveta de cima da secretária e tirou uma garrafa de uísque.

 

Mellberg travou uma batalha silenciosa consigo mesmo, mas a contenda acabou como habitualmente.

 

— Sim, que se lixe — respondeu, sentando-se. Alvar deu-lhe um copo.

 

— Tenho de falar contigo sobre um assunto. — Mellberg rodou o uísque no copo, detendo-se a contemplar o líquido que tanto apreciava, antes de começar a beber.

 

— Ah tens? Em que posso ajudar-te?

 

— As miúdas decidiram que querem morar sozinhas.

 

Alvar parecia divertido. As “miúdas” já passavam ambas dos trinta.

 

— Isso costuma acontecer. — Alvar recostou-se na cadeira e cruzou as mãos atrás da cabeça.

 

— O problema é que Rita e eu não queremos que elas se mudem para muito longe.

 

— Compreendo. Mas, de momento, é difícil encontrar apartamentos em Tanumshede.

 

— Foi exatamente por isso que pensei em ti. — Mellberg inclinou-se e fixou os olhos em Alvar.

 

— Eu? Sabes como estão as coisas por aqui. Todos os apartamentos do prédio estão ocupados. Nem um cubículo vos consigo arranjar.

 

— Mas há um apartamento muito agradável de três assoalhadas mesmo por baixo do nosso. Alvar lançou-lhe um olhar de surpresa.

 

— Mas o único apartamento de três assoalhadas do prédio é... — Alvar calou-se por um momento e depois abanou a cabeça. — Nem por sombras. Não, isso é impossível. Bente nunca concordaria. — Alvar esticou o pescoço e olhou nervosamente em direção à divisão ao lado, onde a secretária norueguesa e amante secreta costumava trabalhar.

 

— Isso não é problema meu. Mas pode passar a ser um problema teu. — Mellberg baixou a voz. — Não me parece que a tua mulher, Kerstin, apreciasse este pequeno... caso que vocês têm.

 

Alvar fulminou Mellberg com o olhar e o superintendente sentiu um desconforto momentâneo. Se tivesse cometido um erro, Alvar podia corrê-lo do escritório a pontapé. Prendeu a respiração. Então Alvar começou a rir-se.

 

— Caramba, Mellberg, não fazes a coisa por menos. Mas não vamos permitir que uma mulher se intrometa na nossa amizade. Vamos resolver isto. Tenho alguns contatos e tenho certeza de que posso pôr Bente noutro sítio. Que tal mudarem-se daqui a um mês? Mas não tenciono pagar pinturas nem obras. Vão ter de ser vocês a suportar essas despesas. Combinado? — Alvar estendeu a mão.

 

Mellberg suspirou de alívio e apertou-a.

 

— Sabia que podia contar contigo — disse. Sentiu o estômago a borbulhar de alegria. Leo podia estar prestes a mudar-se, mas ficaria apenas um andar abaixo. Bastava descer as escadas para ver o miúdo sempre que quisesse.

 

— Acho que devemos comemorar com outra bebida. Que te parece? Mellberg estendeu o copo.

 

Reinava uma atividade febril no Badis, mas Vivianne sentia-se como se estivesse a mover-se em câmara lenta. Havia tanta coisa para tratar, tantas decisões a tomar. Mas não podia parar de pensar nas respostas evasivas de Anders. O irmão estava a esconder-lhe algo e isso tinha aberto um abismo entre eles, tão extenso e profundo que Vivianne mal conseguia ver o outro lado.

 

— Onde devemos pôr as mesas de bufete? — A empregada de mesa estava a lançar-lhe um olhar inquiridor e Vivianne foi forçada a prestar atenção.

 

— Ali, à esquerda. Numa única fila, para que as pessoas possam ter acesso de ambos os lados.

 

Tudo tinha de estar devidamente organizado. Os lugares à mesa, a comida, a secção de spa, os tratamentos. Todos os quartos tinham de estar impecáveis, com flores e cestas de fruta para os convidados de honra. E o palco tinha de estar pronto para os músicos. Nada podia ser deixado ao acaso.

 

A voz de Vivianne começava a falhar à medida que ia respondendo a perguntas vindas de todas as direções. De vez em quando reparava no anel que lhe luzia no dedo e tinha de lutar contra o impulso de arrancá-lo e atirá-lo contra a parede. Não podia perder o controle agora que estavam tão perto do objetivo, e a vida estava finalmente prestes a tomar um novo rumo.

 

— Olá. Que posso fazer para ajudar?

 

Anders estava com péssimo aspeto. Parecia não ter dormido. Tinha o cabelo desgrenhado e olheiras profundas.

 

— Passei a manhã toda a telefonar-te. Onde é que te meteste? — Vivianne estava assustadíssima. Aquele pensamento recusava-se a deixá-la em paz. Não acreditava verdadeiramente que Anders fosse capaz de uma coisa daquelas, mas não tinha certeza absoluta. Como é que alguém podia saber ao certo o que ia na cabeça de outra pessoa?

 

— Estava desligado. Precisava de dormir — respondeu Anders sem a olhar nos olhos.

 

— Mas... — Vivianne calou-se. Era inútil. Depois de tudo o que tinham partilhado, Anders decidira excluí-la. Nenhuma palavra podia expressar a mágoa que sentia.

 

— Por favor certifica-te de que há bebidas suficientes — pediu Vivianne. — E copo para todos. Agradeço-te que trates disso.

 

— Claro. Sabes bem que faria qualquer coisa por ti — disse Anders. Por um instante, era outra vez o mesmo de sempre. Depois, o irmão virou-se e dirigiu-se para a cozinha.

 

Eu sabia, pensou Vivianne. As lágrimas escorreram-lhe pelo rosto. Limpou-as à manga e começou a caminhar em direção às salas de spa. Não podia ir-se abaixo. Teria de deixar isso para mais tarde. Agora tinha de assegurar-se de que havia óleo de massagem e esfoliante de ostras suficiente.

 

— Recebemos um telefonema dos nossos colegas da divisão de crimes violentos, em Estocolmo. Estão a tentar localizar Nathalie. — Patrik viu o espanto estampado nos rostos dos colegas. Devia ter feito a mesma expressão quando atendera o celular em casa, há menos de meia hora, e Annika lhe dissera a mesma coisa.

 

— Por quê? — perguntou Gösta.

 

— O marido dela foi encontrado morto. Foi assassinado e os nossos colegas temiam que Nathalie e o filho também pudessem estar mortos. Parece que Fredrik Wester era um dos pesos pesados do narcotráfico sueco.

 

— Estás a gozar — disse Martin.

 

— Eu também não queria acreditar. Mas parece que a divisão de estupefacientes andava a investigá- lo há muito tempo. Foi encontrado morto a tiro há uns dias na própria cama. Pensam que o cadáver já estava lá há algum tempo, talvez há duas semanas.

 

— Mas porque é que ninguém o encontrou mais cedo? — perguntou Paula.

 

— Parece que a família tinha feito as malas e estavam todos para ir de férias para a casa que tinham em Itália. Iam lá passar o verão. Por isso, toda a gente assumiu que tinham ido mesmo.

 

— Então e Nathalie? — perguntou Gösta.

 

— Como eu disse, a princípio os colegas de Estocolmo recearam que Nathalie e Sam pudessem vir a ser encontrados mortos num bosque qualquer, com uma bala na cabeça. Quando lhes confirmei que os dois estão cá, a polícia de Estocolmo concluiu que Nathalie deve ter fugido com o filho, tentando escapar a quem lhe matou o marido. Nathalie pode mesmo ter testemunhado o homicídio e, nesse caso, fez bem em fugir. Mas não se pode descartar a possibilidade de ter sido ela a disparar sobre Fredrik.

 

— Que vai acontecer agora? — perguntou Annika, com ar preocupado.

 

— Dois dos agentes encarregados da investigação vêm cá amanhã. Querem falar com Nathalie o mais depressa possível. Vamos esperar que cheguem.

 

— E se Nathalie e o filho correrem perigo? — perguntou Martin.

 

— Até agora não aconteceu nada e amanhã teremos reforços. Espero que os nossos colegas saibam lidar com esta situação.

 

— Sim, se calhar é melhor deixar que seja Estocolmo a tratar disso — concordou Paula. — Mas serei a única pessoa a pensar...

 

— Que há uma ligação entre os homicídios de Fredrik Wester e de Mats Sverin? Bem, também já tinha pensado nisso — disse Patrik. Estivera praticamente convencido da identidade do autor do crime, mas aquela nova informação mudava tudo.

 

— Então, como é que correu em Gotemburgo? — perguntou Martin como se pudesse ler a mente de Patrik.

 

— Bem e mal. — Patrik contou-lhes o que tinha acontecido durante os dois dias em que estivera com Gösta em Gotemburgo. Quando terminou, fez-se silêncio entre todos na cozinha, com exceção de Mellberg, que se riu por algo que lhe passou pela cabeça. O superintendente exalava um cheiro suspeito a uísque.

 

— Antes não tínhamos nenhuma pista, agora temos duas plausíveis — disse Paula.

 

— Sim, e é por isso que é extremamente importante não ficarmos presos a nenhuma teoria em particular. Temos de continuar a trabalhar. Amanhã chegam os agentes de Estocolmo e então poderemos falar com Nathalie. Também estou à espera que Ulf me telefone de Gotemburgo para me sugerir a melhor forma de procedermos com os IE. E depois temos de considerar as provas técnicas. Ainda não descobriram o número de série da pistola que terá disparado a bala? — indagou Patrik.

 

Paula abanou a cabeça.

 

— Isso deve demorar algum tempo. O barco também está a ser examinado, mas ainda não obtivemos nenhuma resposta.

 

— E o saco de cocaína?

 

— Há algumas impressões digitais que ainda não foram identificadas.

 

— Estava a pensar no barco. Temos de consultar um especialista nas correntes do arquipélago, alguém que possa dizer-nos em que direção o barco teria ido se estivesse à deriva, até onde poderia ter ido e assim por diante. — Patrik olhou em redor e, por fim, fixou o olhar em Gösta.

 

— Eu trato disso. — Gösta parecia cansado.

 

— Ótimo.

 

Martin ergueu a mão.

 

— Sim?

 

— Paula e eu conversamos com Lennart sobre os documentos que foram encontrados na pasta de

 

Mats.

 

— Que disse Lennart?

 

— Infelizmente, tudo parece estar em ordem. Embora isso talvez até seja uma boa notícia. Enfim, depende do ponto de vista. — Martin corou.

 

— Lennart não conseguiu encontrar qualquer irregularidade — esclareceu Paula. — Isso não significa necessariamente que não haja alguma; porém, de acordo com os documentos na posse de Mats, não parece haver nada suspeito.

 

— Muito bem. Que sabemos acerca do computador portátil?

 

— Isso vai demorar mais uma semana — disse Paula. Patrik suspirou.

 

— Parece que vamos ter muito que esperar, mas precisamos de continuar a trabalhar com o que temos. Daqui a pouco vou sentar-me a rever o que descobrimos até agora. Assim fico com uma ideia de onde estamos e se nos esquecemos de alguma coisa. Gösta, tu tratas do barco. Martin e Paula... — Patrik fez uma breve pausa. — Gostava que começassem a desenterrar tudo o que conseguirem acerca das atividades dos IE e também acerca de Fredrik Wester. Os nossos colegas de Gotemburgo e de Estocolmo prometeram ajudar-nos. Lembrem-me de vos dar os contatos e depois peçam-lhes toda a informação relevante. Podem dividir o trabalho entre os dois como acharem melhor.

 

— Certíssimo — disse Paula.

 

Martin assentiu e depois levantou novamente a mão.

 

— E o Refúgio? Vamos denunciá-los?

 

— Não — respondeu Patrik. — Decidimos não fazer isso. A nosso ver, não há nenhum motivo para isso.

 

Martin parecia aliviado.

 

— É verdade, como descobriste a namorada de Sverin?

 

Patrik lançou um olhar para Gösta, que cravou os olhos no chão.

 

— Trabalho policial meticuloso. E um pressentimento. - Patrik bateu palmas. - Okay, ao trabalho.

 

FJÄLLBACKA, 1875

OS DIAS TRANSFORMARAM-SE EM SEMANAS E OS MESES TRANSFORMARAM-SE EM ANOS. EMELIE TINHA-SE INSTALADO, ADAPTANDO-SE AOS RITMOS CALMOS DE GRÅSKÄR. SENTIA-SE COMO SE VIVESSE EM HARMONIA COM A ILHA. SABIA EXATAMENTE QUANDO AS MALVAS IAM FLORESCER, QUANDO O CALOR DO VERÃO DARIA LUGAR AO FRIO DO OUTONO, QUANDO O GELO SE FORMAVA E QUANDO COMEÇAVA A QUEBRAR. A ILHA ERA O SEU MUNDO E, NESSE MUNDO, GUSTAV ERA REI. ERA UMA CRIANÇA FELIZ E TODOS OS DIAS EMELIE SE SURPREENDIA COM A ALEGRIA QUE O FILHO ENCONTRAVA NO CENÁRIO DELIMITADO QUE EMOLDURAVA A SUA VIDA.

KARL E JULIAN JÁ MAL FALAVAM COM ELA. VIVIAM VIDAS SEPARADAS, MESMO QUE TODOS PARTILHASSEM AQUELE ESPAÇO TÃO CONFINADO. AS PALAVRAS DURAS TAMBÉM TINHAM DIMINUÍDO. ERA COMO SE EMELIE JÁNÃO FOSSE UMA PESSOA E, COMO TAL, NÃO HAVIA MOTIVO PARA ALBERGAR QUALQUER RANCOR EM RELAÇÃO A ELA. EM VEZ DISSO, OS DOIS HOMENS PARECIAM CONSIDERÁ-LA UM SER INVISÍVEL. EMELIE FAZIA TUDO O QUE ERA PRECISO FAZER, PORÉM, FORA ISSO, KARL E JULIAN NÃO LHE PRESTAVAM QUALQUER ATENÇÃO. ATÉ GUSTAV ACEITAVA AQUELE ESTRANHO ESTADO DE COISAS. NUNCA TENTOU APROXIMAR-SE DE KARL OU DE JULIAN. ERAM MENOS REAIS PARA ELE DO QUE OS ESPÍRITOS. E KARL NUNCA CHAMAVA O FILHO PELO NOME. NAS POUCAS OCASIÕES EM QUE O MENCIONOU, REFERIU-SE SEMPRE A GUSTAV COMO “O RAPAZ”.

EMELIE SABIA EXATAMENTE QUANDO É QUE O ÓDIO NOS OLHOS DOS DOIS HOMENS SE TINHA TRANSFORMADO EM INDIFERENÇA. FORA POUCO TEMPO DEPOIS DE GUSTAV TER FEITO DOIS ANOS. KARL TINHA VOLTADO DE UMA VIAGEM A FJÄLLBACKA COM UMA EXPRESSÃO QUE EMELIE TIVERA DIFICULDADE EM DECIFRAR. O MARIDO ESTAVA COMPLETAMENTE SÓBRIO. NÃO TINHAM IDO À TABERNA DE ABELA, O QUE ERA VERDADEIRAMENTE INVULGAR. PASSARAM-SE VÁRIAS HORAS SEM QUE KARL PROFERISSE UMA PALAVRA QUE FOSSE E EMELIE TENTOU ADIVINHAR O QUE ESTAVA A ACONTECER. POR FIM, O MARIDO PÔS UMA CARTA EM CIMA DA MESA DA COZINHA.

— O MEU PAI MORREU — DISSE KARL. E ERA COMO SE NAQUELE MOMENTO KARL ESTIVESSE FINALMENTE LIVRE. EMELIE DESEJOU QUE DAGMAR LHE TIVESSE CONTADO MAIS ACERCA DA RELAÇÃO DE KARL COM O PAI, MAS AGORA ERA TARDE DE MAIS. NÃO HAVIA NADA A FAZER QUANTO A ISSO E EMELIE ESTAVA GRATA POR KARL A DEIXAR A ELA E A GUSTAV EM PAZ.

À MEDIDA QUE CADA ANO PASSAVA, FICAVA MAIS CLARO PARA EMELIE QUE DEUS ESTAVA PRESENTE EM TUDO O QUE HAVIA EM GRÅSKÄR. SENTIA-SE REPLETA DE GRATIDÃO POR LHES SER PERMITIDO VIVER NAQUELE LUGAR ONDE PODIAM SENTIR O ESPÍRITO DE DEUS NO MOVIMENTO DA ÁGUA E OUVIR A SUA VOZ NAS RAJADAS DO VENTO. CADA DIA NA ILHA ERA UMA DÁDIVA, E GUSTAV ERA UM RAPAZINHO MUITO ANIMADO. EMELIE SABIA QUE O ORGULHO DE TER EM TÃO GRANDE CONTA O FILHO ERA QUASE PECAMINOSO,

UMA VEZ QUE GUSTAV TINHA SIDO FEITO À SUA IMAGEM E SEMELHANÇA. MAS, DE ACORDO COM A BÍBLIA, GUSTAV TAMBÉM FORA FEITO à IMAGEM E SEMELHANÇA DE DEUS, PORTANTO EMELIE ESPERAVA QUE ESSE PECADO LHE FOSSE PERDOADO. GUSTAV ERA TÃO ADORÁVEL, COM OS SEUS CABELOS LOUROS ENCARACOLADOS, OLHOS AZUIS E AQUELAS PESTANAS COMPRIDAS QUE REPOUSAVAM NAS SUAS BOCHECHAS QUANDO DORMIA A SEU LADO DURANTE A NOITE. GUSTAV ESTAVA CONSTANTEMENTE A FALAR COM EMELIE E COM OS ESPÍRITOS. ÀS VEZES, EMELIE ESCUTAVA-O COM UM SORRISO NO ROSTO. DIZIA TANTAS COISAS SÁBIAS E OS ESPÍRITOS TINHAM MUITA PACIÊNCIA PARA ELE.

— POSSO IR LÁFORA, MAMÃE?

GUSTAV PUXOU-LHE O VESTIDO E OLHOU PARA CIMA, PARA A MÃE.

— SIM, PODES IR. VAI LÁ. — EMELIE INCLINOU-SE E BEIJOU O FILHO NA FACE. MAS TEM CUIDADO PARA NÃO CAíRES à ÁGUA.

EMELIE OBSERVOU-O A CORRER PORTA FORA. NÃO ESTAVA VERDADEIRAMENTE PREOCUPADA. SABIA QUE GUSTAV NÃO ESTAVA SOZINHO. OS ESPíRITOS E DEUS OLHAVAM POR ELE.

 

SÁBADO CHEGOU COM O MAIS BELO TEMPO IMAGINÁVEL. Sol radioso, um céu azul-claro e apenas uma ligeira brisa. Toda a cidade palpitava de expectativa. Aqueles que tinham tido a sorte de receber um convite para a inauguração dessa noite haviam passado grande parte da semana a angustiar-se sobre que roupa e que penteado usar. Todos aqueles que eram alguém na comunidade local iam lá estar e dizia-se que também apareceriam várias celebridades de Gotemburgo.

 

Mas Erica tinha outros assuntos em que pensar. Nessa manhã, decidira que seria melhor se alguém contasse pessoalmente a Nathalie o que tinha acontecido a Gunnar, em vez de lho dizer pelo telefone. Além disso, já estava a pensar ir ter com Nathalie para dar-lhe as informações que desenterrara acerca da história de Gråskär. Seria uma pequena surpresa. Agora que tinha uma baby-sitter, resolveu fazer a viagem até a ilha.

 

— De certeza que se arranja por aqui durante tanto tempo? — perguntou à sogra. Kristina resfolegou.

 

— Com estes anjinhos? Não há problema nenhum — respondeu. Tinha Maja ao colo e os gêmeos dormiam nas suas alcofas.

 

— Vou estar fora durante bastante tempo. Primeiro vou ver Anna e depois sigo para Gråskär.

 

— Promete que tens cuidado. Essa ideia de ires até a ilha de barco sozinha não me agrada muito. — Maja começava a contorcer-se e Kristina pô-la no chão. A menina deu um par de beijos molhados aos irmãos e depois desatou a correr para ir brincar.

 

— Não se preocupe. Eu sei manobrar um barco — disse Erica, rindo-se. — Ao contrário do seu filho.

 

— Lá isso é verdade — retorquiu Kristina, embora ainda parecesse preocupada. — A propósito, tens certeza de que Anna já está suficientemente forte para fazer uma coisa dessas?

 

O mesmo pensamento ocorrera a Erica quando Anna telefonara a pedir-lhe para a acompanhar à campa do filho. Mas depois percebeu que tinha de deixar a irmã tomar as suas próprias decisões.

 

— Sim, acho que sim — respondeu Erica, soando mais confiante do que se sentia.

 

— Pois eu acho que ainda é muito cedo para isso — afirmou Kristina, pegando em Noel, que tinha começado a choramingar. — Mas espero que tenhas razão.

 

Eu também, pensou Erica enquanto se dirigia ao carro para ir ter com a irmã ao cemitério. Por mais reservas que tivesse, prometera ir com Anna e agora já não podia voltar atrás.

 

A irmã estava à espera junto ao grande portão de ferro, ao pé do quartel dos bombeiros. Parecia tão débil. O cabelo curto fazia-a parecer ainda mais frágil, e Erica teve de conter-se para não abraçar Anna e embalá-la como se fosse um bebê.

 

— Tens certeza de que estás preparada para isto? — perguntou suavemente Erica. — Se preferires, podemos ir lá noutro dia.

 

Anna abanou a cabeça.

 

— Não, eu estou bem. E quero mesmo ir. Na altura estava tão alheada que quase não consigo lembrar-me do funeral. Tenho de ver a campa dele.

 

— Tudo bem. — Erica deu o braço a Anna e percorreram as duas o caminho de gravilha.

 

Não poderiam ter escolhido um dia mais belo. Ouvia-se o ruído abafado do trânsito que passava ali perto; porém, fora isso, reinavam a calma e a paz. O sol fazia as lápides reluzirem e muitas das campas estavam bem cuidadas e tinham flores frescas deixadas pelos familiares dos mortos. De repente, Anna parou e Erica acenou com a cabeça na direção da campa.

 

— Está ao lado de Jens. — Erica apontou para uma grande pedra arredondada de granito onde estava gravado um nome: Jens Läckberg. Jens tinha sido um bom amigo do pai e Erica e Anna recordavam- se dele dos tempos de criança como um homem com uma barriga impressionante e sempre alegre, sociável e espirituoso.

 

— Que bonito — disse Anna. Não havia emoção na sua voz, mas a expressão não deixava dúvidas quanto à dor que sentia. Tinham escolhido uma lápide semelhante, uma peça naturalmente arredondada de granito. E a gravação também fora feita da mesma maneira. Dizia “Pequenino”, e a data. Nada mais

 

Erica sentiu um nó na garganta, mas forçou-se a conter as lágrimas. Tinha de ser forte por Anna. A irmã oscilou um pouco ao fitar a pedra, que era tudo o que lhe restava da criança que tanto quisera ter. Agarrou a mão de Erica e apertou-a com força. As lágrimas escorreram-lhe pelo rosto. Então virou-se para a irmã.

 

— Que vai acontecer? Como serão as coisas daqui para a frente? — Sem dizer uma palavra, Erica pôs os braços em torno dos ombros de Anna e abraçou-a com força.

 

— Rita e eu temos uma sugestão. — Mellberg puxou a namorada para mais perto de si. Paula e Johanna olharam-nos, interrogando-se qual seria.

 

— Bem, não sabemos ao certo quais são os vossos planos — disse Rita, parecendo um pouco mais hesitante do que Mellberg. — Disseram que precisam de uma casa só vossa... e, bem, o que nós gostávamos de saber é se estão a pensar mudar-se para muito longe.

 

— Como assim? — perguntou Paula, olhando para a mãe.

 

— O que nós queremos saber é se seria suficiente mudarem-se para o andar de baixo. — Mellberg olhou para Paula e Johanna, expectante.

 

— Mas não há nenhum apartamento vago aqui no prédio — disse Paula.

 

— Há um. Pelo menos vai haver, para o mês que vem. O apartamento de três assoalhadas por baixo deste pode ser vosso logo que seque a tinta no contrato de arrendamento.

 

Rita estudou cuidadosamente Paula e Johanna para tentar perceber no que estavam a pensar. Tinha ficado muito feliz quando Bertil lhe falara do apartamento, embora não soubesse ao certo quanto é que a filha e a namorada precisavam de distanciar-se deles.

 

— Claro que não vamos estar constantemente a bater-vos à porta — assegurou-lhes Rita.

 

Mellberg olhou para Rita, surpreendido. Será que não os deixariam entrar e sair quando lhes apetecesse? Mas decidiu não comentar. O mais importante era que aceitassem a oferta.

 

Paula e Johanna entreolharam-se. Em seguida, ambas sorriram e começaram a falar ao mesmo tempo.

 

— Esse apartamento de três assoalhadas é fantástico. Tem muita luz e tem janelas viradas para dois lados. E a cozinha foi remodelada há pouco tempo. E aquela pequena divisão que Bente usa como closet podia ser o quarto de Leo, e... — de repente calaram-se.

 

— Mas onde é que Bente vai morar? — perguntou Paula. — Não sabia que estava a pensar mudar-se. Mellberg encolheu os ombros.

 

— Não faço ideia. Presumo que tenha encontrado outro sítio. Alvar não mencionou isso quando falei com ele. Mas disse que vão ter de pintá-lo e fazer algumas obras à vossa custa.

 

— Não há problema — disse Johanna. — Até vai ser divertido. Vai ficar um brinquinho, não vai amor? — Os olhos brilhavam e Paula inclinou-se para beijá-la nos lábios.

 

— E assim podemos continuar a ajudar a criar Leo — interveio Rita. — Bem, damo-vos a ajuda que quiserem, claro. Não queremos ser intrometidos.

 

— Vamos precisar de muita ajuda — disse Paula para a tranquilizar. — E achamos que é maravilhoso que Leo tenha o avô Bertil tão perto. Desde que tenhamos o nosso próprio apartamento, vai correr tudo bem.

 

Paula virou-se para Mellberg, que tinha Leo ao colo.

 

— Obrigada, Bertil — disse.

 

Para sua surpresa, Mellberg ficou um pouco envergonhado.

 

— Ora essa. — Mellberg encostou o rosto à nuca de Leo, o que fazia sempre com que ele desse uma risadinha. Então, ergueu os olhos e mirou as mulheres à sua volta, à mesa da cozinha. Uma vez mais Bertil Mellberg sentiu-se profundamente grato por ter aquela nova família.

 

Anders deambulava pelo edifício. As pessoas andavam atarefadas de um lado para o outro, tratando de todos os preparativos de última hora. Sabia que devia dar uma ajuda, porém, o que estava prestes a fazer paralisava-o. Queria fazê-lo, mas ao mesmo tempo não queria. A questão era se teria coragem suficiente para lidar com as consequências dos seus atos. Ainda não estava convencido, mas em breve deixaria de ter tempo para matutar naquilo. Em breve teria de tomar uma decisão.

 

— Sabe onde está Vivianne? — perguntou-lhe uma funcionária quando passou por ele, acelerada. Anders apontou para a sala contígua. — Obrigada. Esta noite vai correr às mil maravilhas.

 

Toda a gente se apressava, porém, no meio daquele alvoroço, Anders tinha a sensação de estar a mover-se debaixo de água.

 

— Ora aqui está o meu futuro cunhado — disse Erling, pondo-lhe o braço em torno dos ombros. Anders teve de lutar contra o impulso de se afastar. — Vai ser fantástico. As celebridades chegam por volta das quatro, para que tenham tempo de se instalar nos seus quartos. Às seis abrimos as portas aos outros convidados.

 

— Não se fala noutra coisa em Fjällbacka.

 

— Isso não me surpreende. É o evento mais importante nesta zona desde... — Erling não terminou a frase, mas Anders sabia o que o presidente queria dizer. Já ouvira falar do reality show Tanum Sempre a Abrir e do fiasco que havia sido.

 

— Então, onde está a minha rolinha? — Erling esticou o pescoço e olhou em volta.

 

Anders apontou novamente para a sala ao lado e Erling saiu disparado ao encontro da noiva. Não havia dúvida de que Vivianne estava a ser muito procurada naquele dia. Anders dirigiu-se à cozinha, sentou-se numa cadeira ao canto e esfregou as têmporas. Sentia que uma valente dor de cabeça estava a caminho. Encontrou a caixa de primeiros socorros e tomou duas aspirinas. Em breve, pensou. Em breve ia decidir-se.

 

Erica ainda podia sentir o nó na garganta quando manobrou a lancha para fora do porto. O motor tinha arrancado à primeira e Erica gostava de ouvir aquele som tão familiar. O barco tinha sido o bebê do pai. Mesmo que Erica e Patrik não fossem tão cuidadosos como o pai tinha sido, tentavam mantê-lo em bom estado de conservação. A coberta de madeira precisava de ser lixada e envernizada. Estava a começar a descascar em vários sítios. Se conseguisse convencer Patrik a tomar conta dos filhos, tencionava ser ela própria a fazer aquilo. Como escrever livros é um trabalho sedentário, de vez em quando Erica gostava de fazer algo que exigisse mais força muscular. E tinha mais jeito para as coisas práticas do que Patrik, apesar de isso não querer dizer grande coisa.

 

Olhou para a direita para ver o Badis de relance. Esperava que pudessem ir à inauguração, nem que fosse só por um bocadinho, mas ainda não tinha decidido. De manhã, Patrik parecera-lhe muito cansado e Erica não sabia se Kristina conseguiria aguentar as crianças durante tanto tempo.

 

Fosse como fosse, Erica estava cheia de vontade de ir a Gråskär. Quando fora à ilha com Patrik sentira-se cativada pela atmosfera. Agora que tinha lido sobre a ilha ainda estava mais fascinada. Vira uma data de fotografias do arquipélago e não havia dúvida de que o farol de Gråskär era um dos mais bonitos. Não se surpreendia por Nathalie gostar de lá estar, embora pessoalmente achasse que daria em doida depois de alguns dias sem ver outras pessoas. Então pensou no filho de Nathalie e esperou que já estivesse melhor. Devia ter melhorado, uma vez que Nathalie não havia telefonado a pedir ajuda.

 

Pouco tempo depois, Gråskär materializou-se no horizonte. Nathalie não parecera muito entusiasmada quando Erica telefonou; porém, depois de alguma persuasão, concordou com a visita. Erica estava convencida de que Nathalie ia gostar de saber mais acerca do passado da ilha.

 

— Consegues atracar o barco sozinha? — gritou Nathalie do cais.

 

— Sim, claro. Desde que não tenhas o teu cais em grande estima. — Erica sorriu para mostrar que estava a brincar e atracou o barco sem qualquer dificuldade. Desligou o motor e lançou o cabo a Nathalie, que o amarrou cuidadosamente.

 

— Olá — disse Erica ao desembarcar.

 

— Olá — Nathalie sorriu, mas não a olhou nos olhos.

 

— Como está o Sam? — perguntou a olhar para a casa.

 

— Melhor — respondeu Nathalie. Parecia mais magra desde a última vez que Erica a vira e o contorno da clavícula era visível através da camiseta que usava.

 

— Trouxe-te uns bolos acabados de fazer — disse Erica, tirando um saco do barco. — Oh, não, esqueci-me de perguntar se precisavas de mantimentos. — Erica ficou irritada consigo própria. Devia ter perguntado aquilo quando telefonou. Provavelmente Nathalie não quisera voltar a incomodá-la com tal pedido, uma vez que não se conheciam muito bem.

 

— Não, não te preocupes. Trouxeram-me muita coisa da última vez e posso sempre pedir a Gunnar e a Signe, embora não queira incomodá-los numa altura destas.

 

Erica hesitou, mas ainda não tinha coragem de dar a notícia a Nathalie. Ia esperar que se sentassem.

 

— Pensei que podíamos tomar café na cabana de pesca. Está um dia magnífico.

 

— Sim, não está tempo para se ficar dentro de casa. — Erica seguiu Nathalie até a cabana de pesca, onde havia duas chávenas de café sobre uma mesa castigada pelo tempo, com bancos de ambos os lados. Havia utensílios de pesca pendurados nas paredes, ao lado de brilhantes bolas de vidro azuis e verdes que eram utilizadas como flutuadores. Nathalie pegou numa garrafa térmica e encheu as chávenas.

 

— Como é que consegues viver num sítio tão isolado? — perguntou Erica.

 

— Habituamo-nos — respondeu Nathalie em voz baixa, contemplando o mar. — Além disso, não estou completamente sozinha.

 

Erica teve um sobressalto e olhou para Nathalie com curiosidade.

 

— O que quero dizer é que tenho Sam comigo — acrescentou Nathalie.

 

Erica riu-se para si própria. Tinha mergulhado tão profundamente nas histórias sobre Gråskär que começara a acreditar nelas.

 

— Quer dizer que essa coisa da Ilha dos Espíritos é apenas uma lenda?

 

— Acho que já ninguém acredita nessas antigas histórias de fantasmas — respondeu Nathalie, olhando novamente para o mar.

 

— Bem, o nome dá à ilha um certo fascínio.

 

Erica tinha posto todas as informações que recolhera sobre Gråskär numa pasta que retirou da mala e passou a Nathalie por cima da mesa.

 

— Pode ser uma pequena ilha, mas tem um passado muito colorido. E aconteceram aqui algumas situações bastante dramáticas.

 

— Sim, já ouvi falar disso. Os meus pais sabiam muito sobre a ilha, mas receio nunca ter prestado muita atenção ao que disseram sobre esse assunto. — Nathalie abriu a pasta. Uma leve brisa agitou as folhas.

 

— Está tudo por ordem cronológica — disse Erica, que ficou em silêncio enquanto Nathalie folheava as fotocópias.

 

— Encontraste tanta coisa. É incrível — disse Nathalie, corando.

 

— Gostei muito de fazer a pesquisa. Preciso de fazer mais do que mudar fraldas e alimentar bebês a berrar. — Erica apontou para um artigo no qual Nathalie se tinha detido. — Esse é o incidente mais misterioso da história da ilha. Uma família inteira desapareceu de Gråskär sem deixar rastro. Ninguém sabe o que lhes aconteceu nem para onde foram. Encontraram a casa como a família a tinha deixado.

 

Erica percebeu que parecia demasiado entusiasmada, mas achava o incidente muitíssimo intrigante. Os mistérios sempre lhe tinham despertado a imaginação e aquela era uma história de suspense da vida real.

 

— Olha o que diz aqui — disse Erica num tom mais contido. — O faroleiro Karl Jacobsson, a mulher Emelie, o filho Gustav e o ajudante de faroleiro Julian Sontag viveram vários anos nesta ilha. E depois desapareceram, pura e simplesmente, como se se tivessem esfumado. Nunca encontraram nenhum corpo e não havia uma única pista acerca do que lhes possa ter acontecido. Também não havia qualquer motivo para acreditar que tivessem deixado a ilha de livre vontade. Não havia nada de nada. Não é estranho?

 

Nathalie olhou para o artigo com uma expressão estranha.

 

— Sim — disse. — Muito estranho.

 

— Não os tens visto por aí à espreita, pois não? — perguntou Erica com ar divertido. Mas Nathalie não respondeu. Continuou simplesmente a fitar o artigo. — Que será que aconteceu? — prosseguiu Erica. — Talvez alguém tenha vindo até cá de barco, assassinado toda a família, fazendo depois desaparecer os cadáveres. O barco deles ainda estava no cais.

 

Nathalie murmurou para si mesma enquanto corria o dedo sobre a folha. Era algo sobre um rapazinho louro, mas Erica não conseguiu perceber que mais estava a dizer. Virou-se para olhar para a casa.

 

— Não tens medo que Sam possa acordar e não saber onde estás?

 

— Sam adormeceu pouco antes de tu chegares. Normalmente dorme bastante — disse Nathalie com ar distraído.

 

Nenhuma delas falou durante algum tempo, até que, de repente, Erica se lembrou do outro motivo da sua visita. Respirou fundo e disse:

 

— Tenho uma coisa para te contar. Nathalie ergueu os olhos

 

— É sobre Matte? Já sabem quem...

 

— Não, ainda não, apesar de terem encontrado algumas pistas. Mas o que tenho para te dizer não tem que ver com Matte.

 

— O que foi? Diz-me. — A mão de Nathalie ainda repousava no topo do artigo. Erica respirou fundo e contou-lhe o que tinha acontecido a Gunnar.

 

— Não. Isso não pode ser verdade. Mas por quê? — Nathalie parecia mal conseguir respirar.

 

Com o coração apertado, Erica falou-lhe da cocaína que os rapazes tinham encontrado, das impressões digitais de Matte no saco e do que acontecera depois da conferência de imprensa.

 

Nathalie começou a abanar a cabeça.

 

— Não, não, não. Não pode ser. Isso não cabe na cabeça de ninguém — disse, e depois virou-se.

 

— É o que toda a gente diz. E sei que Patrik também não queria acreditar. Mas tudo aponta nesse sentido e também pode explicar porque é que Matte foi assassinado.

 

— Não — repetiu Nathalie. — Matte odiava drogas. Odiava tudo o que tivesse que ver com drogas — acrescentou, cerrando os maxilares. — Coitada. Pobre Signe.

 

— Sim, deve ser terrível perder o filho e o marido em poucas semanas — murmurou Erica.

 

— Como está ela? — Os olhos de Nathalie estavam repletos de empatia e tristeza.

 

— Não sei ao certo. Só sei que está no hospital e parece que não está muito bem.

 

— Pobre Signe — repetiu Nathalie. — Tanta desgraça. Tantas tragédias — acrescentou, para depois descer os olhos para o artigo que estava em cima da mesa.

 

— É verdade. — Erica não sabia mais o que dizer. — Achas que eu podia subir ao farol? — perguntou por fim para mudar de assunto.

 

Nathalie teve um sobressalto, como se tivesse estado perdida em pensamentos.

 

— Oh... com certeza. Só tenho de ir buscar a chave — respondeu, afastando-se apressadamente em direção à casa.

 

Erica levantou-se e encaminhou-se para o farol. Quando chegou à base, inclinou a cabeça para trás para olhar para cima. A tinta branca resplandecia ao sol. Ouviam-se gaivotas a grasnar, esvoaçando sobre o farol.

 

— Aqui está. — Nathalie arfava um pouco quando se aproximou. Estendeu-lhe uma grande chave enferrujada.

 

A chave não rodava bem na fechadura, porém Nathalie acabou por conseguir abrir a pesada porta, que rangeu e gemeu nos gonzos. Erica entrou e começou a subir as escadas estreitas e sinuosas, com Nathalie no seu encalço. A meio do caminho, Erica já respirava com dificuldade, mas quando chegou ao cimo viu que valera a pena o esforço. A vista era espetacular.

 

— Ena! — exclamou.

 

Nathalie assentiu com orgulho.

 

— Sim. É incrível, não é?

 

— Mas imagina passar uma data de horas seguidas neste espaço apertado — disse Erica, olhando em redor.

 

Nathalie aproximou-se e pôs-se ao lado dela, tão perto que os ombros das duas mulheres quase se tocaram.

 

— É um trabalho solitário. Como estar nos confins do mundo. — Nathalie parecia muito distante, embrenhada nos seus pensamentos.

 

Erica cheirou o ar. Notou um cheiro estranho, mas que ao mesmo tempo lhe parecia familiar. Sabia que já o tinha sentido, mas não conseguia recordar-se de onde. Nathalie tinha dado um passo em frente para olhar pela janela circular para o mar aberto. Erica também se aproximou.

 

O cérebro estava a trabalhar febrilmente para identificar aquele cheiro. Então apercebeu-se de onde o sentira antes. Os pensamentos continuaram a rodopiar-lhe na mente e, lentamente, as peças começaram a encaixar.

 

— Importas-te de esperar aqui enquanto eu vou num instante ao barco buscar a minha máquina fotográfica? Gostava de tirar algumas fotos.

 

— Tudo bem — disse relutantemente Nathalie. Avançou até a pequena cama e sentou-se.

 

— Ótimo. — Erica desceu apressadamente as escadas e depois percorreu a grande velocidade a colina onde ficava o farol. Porém, em vez de ir até o cais, Erica correu em direção à casa. Tentava dizer a si própria que aquilo não passava de uma das suas ideias malucas, mas, ao mesmo tempo, precisava de ter certeza.

 

Depois de lançar um olhar ao farol, rodou a maçaneta e abriu a porta da frente do chalé.

 

No dia anterior, Madeleine tinha-os ouvido do andar de cima. Não sabia que eram polícias até Stefan aparecer e lhe ter dito. Enquanto lhe batia.

 

Arrastrou o corpo maltratado até a janela. Com grande esforço, levantou-se e olhou lá para fora. O pequeno quarto tinha um teto inclinado e a única luz vinha da janela estreita. Lá fora, Madeleine viu terrenos agrícolas e bosques.

 

Não se tinham dado ao trabalho de vendá-la, por isso sabia que estava na quinta. Aquele era o quarto dos filhos quando ali ficavam. Agora, a única recordação da presença deles era um carrinho que Kevin deixara a um canto.

 

Encostou as mãos contra a parede e sentiu o relevo do papel que a cobria. Era ali que tinha estado o berço de Vilda. A cama de Kevin costumava estar encostada à parede, ao fundo do quarto. Parecia ter passado uma eternidade desde esses tempos. Mal conseguia lembrar-se de ali ter estado. Tinha sido uma vida de terror, mas pelo menos tinha os filhos.

 

Perguntou a si própria onde estariam naquele momento, para onde Stefan os teria levado. Provavelmente estavam em casa de uma das famílias que viviam fora da quinta. Uma das outras mulheres devia estar a tomar conta deles. As saudades dos filhos eram quase piores do que a dor física. Visualizou-os mentalmente: Vilda a descer pelo escorrega, no pátio da casa de Copenhagen, enquanto Kevin observava com orgulho a coragem da irmãzinha. E aquela madeixa sempre a cair-lhe para os olhos. Madeleine perguntou-se se alguma vez voltaria a vê-los.

 

Por entre soluços, sentou-se no chão e enrolou-se na posição fetal. Todo o corpo parecia um enorme hematoma. Stefan tinha descarregado nela toda a raiva que sentia. Enganara-se. Enganara-se redondamente ao pensar que seria mais seguro voltar para a Suécia e pedir-lhe perdão. Assim que o viu na cozinha dos pais, Madeleine compreendeu. Não haveria perdão e fora idiota em pensar o contrário.

 

Pobres pais. Deviam estar preocupadíssimos e o mais certo era estarem a discutir se deviam ou não entrar em contacto com a polícia. O pai seria a favor. Diria que era a única opção. Mas a mãe opor-se-ia, aterrorizada por isso poder significar o fim, receosa de perder toda a esperança. O pai tinha razão, mas deixaria que a mãe levasse a melhor, como sempre. Ninguém iria ali salvá-la.

 

Enrolou-se ainda mais, tentando moldar o corpo numa pequena bola. Mas o mais leve movimento provocava-lhe dores, por isso forçou os músculos a relaxar. Ouviu uma chave a girar na fechadura. Ficou completamente imóvel, tentando impedi-lo de entrar apenas com a força do pensamento. A mão áspera agarrou-lhe o braço e puxou-a até os seus pés.

 

— Levanta-te, grande puta!

 

Parecia que o braço estava a ser arrancado da articulação, como se algo se tivesse partido no ombro.

 

— Onde estão as crianças? Posso vê-las?– implorou. Stefan olhou-a com desprezo.

 

— Isso querias tu, não era? Assim podias levar os meus filhos e voltar a fugir. Ninguém, mas ninguém mesmo vai levar os meus filhos para longe de mim. — Stefan arrastrou-a para fora do quarto e escadas abaixo.

 

— Perdoa-me. Por favor, perdoa-me — disse Madeleine por entre soluços. Tinha a cara cheia de sangue, sujidade e lágrimas.

 

Os homens de Stefan estavam todos reunidos no rés-do-chão. O núcleo duro. Madeleine conhecia- os a todos: Roger, Paulo, Lillen, Steven e Joar. Agora olhavam para ela em silêncio, enquanto Stefan a arrastava pela sala. Tinha dificuldade em concentrar-se. Um olho estava tão inchado que quase não o conseguia abrir e o sangue de um corte na testa toldava a visão do outro. No entanto, Madeleine sabia exatamente o que ia acontecer. Podia vê-lo nos rostos dos homens — alguns deles olhavam-na friamente, enquanto outros a miravam com pena. Joar, que sempre fora o mais simpático para ela, desviou repentinamente o olhar para o chão. Foi então que Madeleine compreendeu. Pensou que podia lutar, tentar resistir, tentar fugir. Mas para onde iria? Era impossível. Apenas conseguiria prolongar a agonia.

 

Em vez de reagir, seguiu aos tropeções atrás de Stefan, que continuava a agarrar-lhe o braço com força. Caminharam pelo campo por detrás da casa, na direção do bosque. Convocou mentalmente imagens de Kevin e de Vilda. Recém-nascidos, deitados no seu colo. E muito mais tarde, a rirem-se enquanto brincavam no pátio da casa na Dinamarca. Optou por não recordar o tempo intermédio, quando o olhar dos filhos se ia enchendo de interrogações e de resignação a cada dia que passava. Era para essa vida que iam agora voltar e Madeleine não suportava pensar nisso. Tinha falhado. Devia tê-los protegido, mas tornara-se desleixada e fraca. Agora estava prestes a receber o castigo e aceitava-o. Desde que os filhos fossem poupados.

 

Tinham entrado no bosque. Os pássaros cantavam e as copas das árvores filtravam a luz do sol. Madeleine tropeçou numa raiz e quase caiu, mas Stefan puxou-a pelo braço e obrigou-a a continuar. Mais adiante avistou uma clareira e, por um momento, viu o rosto de Matte. O rosto bonito e gentil de Matte. Amara-a muito e também ele fora castigado.

 

Quando chegaram à clareira, Madeleine viu o buraco no chão. Um buraco retangular com cerca de um metro e meio de profundidade. A pá ainda lá estava, despontando de um monte de terra.

 

— Caminha até a borda — ordenou Stefan, soltando-lhe o braço.

 

Madeleine obedeceu. Deixara de ter vontade própria. Estava à beira do buraco, toda a tremer. Quando olhou para baixo viu vários vermes gordos a tentar enfiar-se mais e mais na terra úmida e escura. Com um último esforço, virou-se lentamente para ficar cara a cara com Stefan. Pelo menos seria forçado a olhá-la nos olhos.

 

— Acho que vou enfiar-te a bala mesmo entre os olhos. — Stefan ergueu a pistola, segurando o braço direito esticado, e Madeleine sabia que não estava a mentir. Era um excelente atirador.

 

Alguns pássaros levantaram voo das árvores, assustados ao ouvir o disparo. Mas depressa voltaram a instalar-se nos ramos e o chilrear misturou-se com o sussurro do vento.

 

Era incrivelmente maçador peneirar aqueles documentos: relatórios de autópsias, conversas com vizinhos das vítimas, notas tomadas durante a investigação. Depois de três horas naquilo, Patrik apercebeu-se com desânimo de que ainda só ia a meio. Quando Annika enfiou a cabeça pela abertura da porta, agradeceu a interrupção.

 

— Os detetives de Estocolmo já chegaram. Trago-os para aqui ou vais recebê-los na cozinha?

 

— Na cozinha — respondeu Patrik, levantando-se. As costas estalaram e lembrou a si próprio que devia levantar-se e esticar-se de vez em quando. Não podia dar-se ao luxo de ter problemas nas costas numa altura daquelas, sobretudo porque só há pouco tempo voltara ao trabalho, depois de ter estado de baixa.

 

Encontrou-se com os detetives no corredor e cumprimentou-os. A mulher, que era alta e loura, apertou-lhe a mão com tanta força que Patrik pensou que os ossos iam partir-se. O homem, baixo e de óculos, tinha um aperto de mão mais suave.

 

— Petra e Konrad, não é? Penso que podíamos sentar-nos na cozinha. Que tal correu a viagem? Conversaram um pouco mais enquanto ocupavam os seus assentos e Patrik pensou que aqueles dois formavam um par estranho. No entanto, pareciam perfeitamente à vontade um com o outro e Patrik suspeitou que deviam trabalhar juntos há muitos anos.

 

— Precisamos de falar com Nathalie Wester — disse por fim Petra, farta de conversa fiada.

 

— Como eu disse, ela está cá. Na ilha dela. Estive com ela há uma semana.

 

— E ela não falou no marido? — Petra cravou os olhos em Patrik, que se sentiu como se estivesse a ser interrogado.

 

— Não, nunca disse nada dele. Fomos à ilha falar com ela por causa de um antigo namorado que foi encontrado morto em Fjällbacka.

 

— Nós lemos a notícia nos jornais — disse Konrad. Virou-se para olhar para Ernst, que tinha entrado na cozinha. — É a vossa mascote?

 

— Sim, acho que se pode dizer isso.

 

— É uma grande coincidência — prosseguiu Petra. — Nós encontramos o marido, morto a tiro, e vocês o antigo namorado, também morto a tiro.

 

— Também já pensei nisso. Mas nós já temos um possível suspeito.

 

Patrik resumiu aos colegas o que tinham descoberto acerca de Stefan Ljungberg e dos Illegal

 

Eagles. Tanto Petra como Konrad ficaram surpreendidos quando Patrik mencionou o saco de cocaína encontrado no caixote do lixo.

 

— Mais uma ligação — disse Petra.

 

— A única coisa que sabemos é que Sverin mexeu no saco da droga. Petra desvalorizou os protestos de Patrik com um gesto.

 

— Por pouco que seja, temos de investigar isso. Fredrik Wester traficava sobretudo cocaína e as suas operações não se cingiam a Estocolmo. Com Nathalie como ligação, talvez tenham entrado em contacto um com o outro e começado a fazer negócios.

 

Patrik fez uma careta.

 

— Não sei... Mats Sverin não era exatamente o tipo de pessoa para...

 

— Receio que aqui não haja um tipo específico de pessoas — disse Konrad. — Já vimos de tudo: jovens da classe alta, mães de crianças pequenas e até mesmo um pastor.

 

— Ah, pois, aquele tipo — riu-se Petra. De repente, parecia menos intimidatória.

 

— Pois, eu compreendo — disse Patrik, sentindo-se um verdadeiro saloio. Sabia que era um novato em relação aos crimes relacionados com droga e podia estar enganado. Tinha de confiar na experiência dos colegas de Estocolmo em vez de prestar atenção aos instintos.

 

— Vamos ouvir o que vocês já descobriram e depois pomo-vos ao corrente da nossa investigação — disse Petra.

 

Patrik assentiu.

 

— Okay. Quem quer começar?

 

— Força. — Konrad pegou num papel e numa esferográfica. Ernst deitou-se no chão, decepcionado. Patrik fez uma pausa para aclarar as ideias e depois, de memória, contou aos colegas o que tinha descoberto até o momento. Enquanto Konrad tomava notas, Petra ouvia-o atentamente de braços cruzados.

 

— Bem, basicamente é isto — concluiu Patrik. — Agora é a vossa vez.

 

Konrad pousou a esferográfica e fez-lhe um resumo da investigação. Não tinham trabalhado muito tempo no caso, mas já haviam reunido uma grande quantidade de informações sobre Fredrik Wester e a organização de tráfico de droga de que fizera parte. Konrad acrescentou que tinham passado em revista uma série de dados no dia anterior, depois de Martin Molin ter telefonado. Patrik já sabia, mas queria ouvir tudo da boca dos colegas.

 

— Como pode ver, estamos a trabalhar em estreita colaboração com os nossos colegas da divisão de estupefacientes nesta investigação. — Konrad ajeitou os óculos.

 

— Sim, parece-me bem — murmurou Patrik. Uma ideia começava a tomar forma na sua mente. — Já confrontaram as balas com a base de dados da polícia?

 

Konrad e Petra abanaram a cabeça.

 

— Ontem falei com os tipos da balística — disse Konrad –, mas ainda estavam a começar.

 

— Ainda não recebemos um relatório, mas...

 

Petra e Konrad fitaram-no. De repente, Petra percebeu onde Patrik queria chegar.

 

— Se pedíssemos ao laboratório para comparar as balas destes dois casos...

 

— Provavelmente obteríamos os resultados mais depressa — completou Patrik.

 

— Gosto da sua forma de pensar. — Petra olhou de relance para Konrad. — Podias telefonar-lhes? Dás-te bem com os tipos da balística. Já comigo não têm andado muito contentes nos últimos tempos, por causa da...

 

Konrad parecia saber exatamente o que Petra queria dizer, porque interrompeu-a e pegou no celular. — Vou ligar-lhes agora mesmo.

 

— Isso. Entretanto, vou buscar as informações de que precisam. — Patrik saltou da cadeira e dirigiu- se rapidamente ao seu gabinete. Regressou com um documento que pôs em cima da mesa, à frente de Konrad.

 

O detetive de Estocolmo conversou um pouco ao celular e depois fez o pedido. Escutou, acenou com a cabeça e um sorriso despontou-lhe no rosto.

 

— Isso é fantástico. Fico a dever-vos uma. Obrigado. — Konrad terminou a conversa com uma expressão de satisfação. — Falei com um dos tipos que conheço por lá. Vai fazer uma comparação imediatamente. Quando acabar volta a ligar.

 

— Incrível — disse Patrik, visivelmente impressionado.

 

Petra parecia imperturbável. Estava habituada à capacidade de Konrad para fazer pequenos milagres.

 

Anna saíra do cemitério e regressara lentamente a casa. Erica oferecera-se para levá-la, mas ela queria andar um bocado. Falkeliden ficava perto e precisava de pôr as ideias em ordem. Dan devia estar em casa à espera dela. Ficara magoado quando Anna lhe disse que queria visitar a campa com Erica e não com ele. Mas, naquele momento, não tinha forças para levar em consideração os sentimentos do marido. Quase não era capaz de deslindar as próprias emoções.

 

A inscrição na lápide ficar-lhe-ia gravada no coração para sempre. Pequenino. Talvez devessem ter encontrado um nome de verdade, depois do que aconteceu. Mas isso também não lhe parecia acertado. Era assim que lhe chamavam quando estava na barriga dela e fora tão amado por todos. Por isso, sempre lhe chamariam Pequenino. Nunca ia crescer, nunca seria nada além daquele ser minúsculo que jamais pegara sequer ao colo.

 

Anna estivera inconsciente durante muito tempo, e quando despertou já era tarde de mais. Dan tinha pegado nele e embrulhara-o numa pequena manta. Conseguira tocar no bebê e dizer-lhe adeus. Mesmo sabendo que Dan não tinha culpa, magoava-a que o marido tivesse tido essa experiência e ela não. No fundo do seu ser, também estava zangada com ele por não os ter protegido, a ela e ao Pequenino. Sabia que estava a ser ridícula e irracional. Fora ela a decidir entrar no carro e Dan não estava presente quando ocorreu o acidente. Não havia nada que ele pudesse ter feito. Mesmo assim estava zangada por Dan não ter sido capaz de protegê-la de situações perigosas.

 

Talvez se tivesse deixado embalar por uma falsa sensação de segurança. Depois de tudo o que tinha passado, depois de todos aqueles anos terríveis com Lucas, convencera-se de que a vida mudara, definitivamente, para melhor. Que a sua vida com Dan seria uma estrada longa e direita, sem solavancos inesperados ou curvas. Anna não tinha planos mirabolantes nem grandes sonhos. Tudo o que queria era uma vida normal numa casa geminada em Falkeliden, com convidados para jantar, os pagamentos da hipoteca, o futebol dos filhos e as sempiternas pilhas de sapatos no vestíbulo. Seria pedir muito?

 

De certa forma, havia considerado Dan como a pessoa que lhe poderia garantir esse tipo de vida. Dan era tão firme e estável, sempre calmo e com a capacidade de ver para além de todos os problemas que surgiam. Apoiou-se nele em vez de se apoiar nos próprios pés. Mas Dan tinha-se ido abaixo e Anna não sabia como poderia perdoá-lo por isso.

 

Abriu a porta de casa e entrou. Todo o seu corpo lhe doía após a caminhada e os braços pesavam quando os ergueu para tirar o cachecol. Dan olhou-a de relance da cozinha e dirigiu-se a ela, parando à porta. Não disse uma palavra, limitando-se a olhá-la com expressão suplicante. Anna desviou os olhos.

 

— Vou deitar-me — murmurou.

 

Anders fazia as malas lentamente. Gostara de estar naquele pequeno apartamento, onde acabara por se sentir em casa. Não era uma sensação frequente para os dois irmãos. Tinham vivido em muitos sítios diferentes, e quando começavam a criar raízes e a fazer amigos, estava outra vez na altura de mudar de casa. Tinham de embalar os pertences quando as pessoas passavam a fazer perguntas, quando os vizinhos e os professores começavam a preocupar-se com eles e quando as senhoras da Segurança Social finalmente se apercebiam da falsidade por detrás dos encantos de Olof.

 

Em adultos, ele e Vivianne haviam feito a mesma coisa. Era como se os dois carregassem uma sensação de insegurança, como se aquilo estivesse nos seus ossos. Estavam constantemente em movimento, de um sítio para o outro, como faziam quando Olof era vivo.

 

Olof já tinha morrido há bastante tempo, mas a sua sombra continuava presente. O padrão repetia- se. As coisas eram diferentes mas, de alguma forma, iguais.

 

Anders fechou a tampa da mala. Decidira sofrer as consequências. Bem no fundo do seu ser já sentia saudades de Vivianne, mas era impossível fazer uma omeleta sem partir alguns ovos, como a irmã gostava de dizer. Embora soubesse que Vivianne tinha razão, aquela omeleta em particular ia demorar anos a fazer e Anders não sabia se conseguiria prever os resultados. Mas ia dizer-lhe. Não adiantava começar algo novo sem admitir o que tinha feito. Passara muitas noites sem dormir para chegar àquela conclusão e agora já se decidira.

 

Anders olhou em redor. Sentia-se ao mesmo tempo aliviado e aterrado. Era preciso ter coragem para ficar em vez de fugir novamente. Ao mesmo tempo, esse era o melhor caminho a tomar. Ergueu a mala da cama e depois pousou-a no chão. Não havia tempo para remoer mais naquilo. Tinha de ir para o Badis. Tinha de ajudar Vivianne a garantir que a festa de inauguração seria um grande sucesso. Era o mínimo que podia fazer por ela.

 

O tempo não passara tão devagar como Patrik chegara a temer. Tinham debatido ambos os casos enquanto esperavam a chamada da balística e Patrik sentiu as veias cheias de adrenalina. Apesar de Paula e Martin serem agentes altamente qualificados, percebeu que os colegas de Estocolmo tinham uma mentalidade completamente diferente. Acima de tudo, invejava o trabalho de equipe de Petra e Konrad. Percebia-se que tinham sido feitos um para o outro. Petra era impaciente e estava constantemente a ter novas ideias e a disparar sugestões. Konrad era mais diplomático e introspetivo e conseguia tecer sempre comentários perspicazes aos desabafos de Petra.

 

Quando o celular de Konrad tocou, os três deram um salto nas cadeiras. O agente de Estocolmo atendeu.

 

— Sim? Okay. Hum... A sério?

 

Petra e Patrik olharam para ele. Estaria a dizer tão pouco só para atormentá-los? Por fim, Konrad desligou a chamada e recostou-se na cadeira. Continuaram ambos a olhar para ele até que, finalmente, Konrad falou:

 

— Coincidem. As balas coincidem.

 

Por um momento, fez-se total silêncio na cozinha.

 

— E os tipos da balística têm certeza? — perguntou então Patrik.

 

— Cem por cento. Não há dúvida nenhuma. Foi utilizada a mesma arma em ambos os homicídios.

 

— C’um caraças. — Petra tinha um sorriso rasgado no rosto.

 

— Agora ainda é mais importante falar com a viúva do Wester. Deve haver alguma ligação entre as vítimas e é possível que tenha que ver com a cocaína. Tendo em conta o gênero de pessoas que podem estar envolvidas, não me sentiria muito segura se estivesse no lugar de Nathalie.

 

— Vamos até lá? — perguntou Petra, levantando-se.

 

Patrik estava tão absorto nos próprios pensamentos que mal ouviu o que a colega tinha dito. As vagas suspeitas que tivera começavam a formar um padrão.

 

— Primeiro preciso de verificar umas informações. Podem esperar uma ou duas horas antes de irmos até a ilha?

 

— Sim, claro — disse Petra, mas era óbvio que estava impaciente.

 

— Ótimo. Façam como se estivessem em vossa casa ou, se preferirem, deem um passeio pela cidade. Se tiverem fome, recomendo a comida do Tanums Gestgiveri.

 

Os colegas de Estocolmo assentiram.

 

— Então vamos almoçar. Tem é de dizer-nos onde fica — disse Konrad.

 

Depois de lhes ter explicado como encontrar o restaurante, Patrik respirou fundo e voltou para o seu gabinete. Era importante não se precipitar. Precisava de fazer vários telefonemas, por isso começou por Torbjörn. Não tinha certeza de conseguir localizá-lo, uma vez que era sábado, mas Torbjörn atendeu o celular. Patrik disse-lhe brevemente o que tinham descoberto acerca das balas e depois pediu-lhe se podia comparar as impressões digitais não identificadas que havia no saco de cocaína com as outras que tinham encontrado tanto no interior como no exterior da porta do apartamento de Sverin. Também o avisou de que lhe ia enviar uma nova impressão digital para comparar com as outras. Torbjörn começou a fazer perguntas, mas Patrik cortou-lhe o pio. Explicaria tudo mais tarde.

 

A próxima tarefa na lista era localizar um relatório. Patrik sabia que estava algures na pilha de papelada que tinha sobre a secretária, por isso começou a folhear os documentos. Por fim encontrou- o. Leu cuidadosamente o breve e estranho relatório e em seguida dirigiu-se ao gabinete de Martin.

 

— Preciso da tua ajuda — disse, e pôs o relatório em cima da mesa de Martin. — Lembras-te de mais alguma coisa acerca disto?

 

Martin olhou para Patrik, surpreendido, mas depois abanou a cabeça.

 

— Não, receio que não. Mas acho que não vou esquecer essa testemunha tão depressa.

 

— Podias voltar lá e fazer-lhe mais algumas perguntas?

 

— Claro. — Martin parecia estar a rebentar de curiosidade.

 

— Mas gostaria que fosses lá agora — disse Patrik ao ver que Martin não fazia nenhum movimento para se levantar.

 

— Pronto, está bem. — Martin levantou-se. — Quando descobrir mais alguma coisa telefono-te — disse por cima do ombro. Mas depois estacou. — Não podias ao menos dizer-me porque...

 

— Vai lá. Mais logo falamos.

 

Já tinha resolvido dois assuntos. Faltava um. Patrik dirigiu-se à carta náutica pendurada na parede do corredor. Depois de tentar desprender um pionés, perdeu a paciência e arrancou o mapa da parede, rasgando vários cantos. Em seguida levou-o até o gabinete de Gösta.

 

— Já falaste com o tipo que conhece as correntes do arquipélago perto de Fjällbacka? Gösta assentiu.

 

— Sim. Dei-lhe todas as informações e ele ia dar-lhe uma vista de olhos. Não é uma ciência exata, mas pode ser que nos dê uma pista.

 

— Telefona-lhe e dá-lhe mais esta informação. — Patrik pôs a carta náutica na mesa de Gösta e mostrou-lhe aquilo a que estava a referir-se.

 

Gösta ergueu uma sobrancelha.

 

— Isto é urgente?

 

— Sim. Telefona-lhe agora mesmo e pede-lhe uma opinião rápida. Só precisa de dizer-nos se é possível. Ou razoável. Depois vai ao meu gabinete contar-me o que ele disse.

 

— É para já. — Gösta pegou no telefone.

 

Patrik regressou ao seu gabinete e sentou-se à secretária. Estava sem fôlego, como se tivesse estado a correr, e o coração martelava-lhe o peito. Os pensamentos continuavam a girar-lhe na mente. Mais pormenores, mais perguntas, mais especulações. Ao mesmo tempo, Patrik sentia que estava no caminho certo. Mas tudo o que podia fazer de momento era esperar. Olhou pela janela e tamborilou no tampo da secretária. Sobressaltou-se com o toque estridente do celular.

 

Atendeu e escutou atentamente.

 

— Obrigado por ligar, Ulf. Mantenha-me informado, okay? — depois desligou.

 

O coração estava outra vez a bater descompassadamente. Agora de raiva. Aquele desgraçado tinha encontrado Madeleine e os filhos. O pai ganhara coragem para telefonar à polícia a contar que o ex- marido da filha tinha entrado à força em sua casa e tinha levado Madeleine e as crianças. Desde aí nunca mais tinham sabido deles. Patrik percebeu que quando estivera na quinta com Ulf, provavelmente já não estavam lá. Ou estariam algures na propriedade, fechados a sete chaves e a precisar de ajuda? Cerrou os punhos, sentindo-se impotente. Ulf garantira-lhe que fariam tudo o que estivesse ao seu alcance para encontrar Madeleine, mas não parecia esperançoso.

 

Uma hora mais tarde, Konrad e Petra apareceram à porta.

 

— Já podemos ir? — perguntou Petra.

 

— Ainda não. Há mais uma pista que temos de desbravar. — Patrik não sabia bem como explicar aquilo. Ainda havia tanta coisa obscura e nebulosa.

 

— Qual? — Petra franziu a testa. Era óbvio que não queria perder mais tempo.

 

— Vamos reunir-nos na cozinha. — Patrik levantou-se e foi chamar os outros. Depois de hesitar por um momento, também bateu à porta de Mellberg.

 

Quando já estavam todos na cozinha, Patrik apresentou Petra e Konrad. Em seguida, aclarou a garganta e, lentamente, começou a explicar a sua teoria, tendo o cuidado de incluir os pontos onde ainda havia grandes lacunas. Quando terminou, por um momento fez-se silêncio. Depois Konrad perguntou:

 

— Qual teria sido o motivo? — Parecia esperançoso e cético ao mesmo tempo.

 

— Não sei. Isso é o que ainda temos de descobrir. Mas a teoria tem cabimento, apesar de existirem algumas lacunas que têm de ser preenchidas.

 

— Que fazemos agora? — perguntou Paula.

 

— Falei com Torbjörn e disse-lhe que lhe íamos enviar uma nova impressão digital o mais depressa possível, para que possa compará-la com as impressões digitais que havia na porta e no saco de papel. Se corresponderem, tudo o resto será mais fácil. Então teremos um vínculo ao homicídio.

 

— Aos homicídios — corrigiu Petra. Parecia ter dúvidas, mas ao mesmo tempo mostrava-se impressionada.

 

— Quem vai conosco? — perguntou Konrad, olhando para os outros. Estava a levantar-se, pronto para sair.

 

— Eu vou convosco. Deve ser suficiente — respondeu Patrik. — Meus colegas ficam a trabalhar nas novas pistas.

 

No preciso momento em que saíram da delegacia e foram acolhidos pelo sol radioso, o celular de Patrik tocou. Quando viu que era a mãe esteve para não atender, mas depois acabou por carregar no botão verde. Impaciente, ouviu as preocupações de Kristina. Não conseguia localizar Erica, embora lhe tivesse ligado várias vezes para o celular. Quando lhe disse aonde Erica tinha ido, Patrik parou abruptamente. Sem se despedir da mãe, desligou a chamada e virou-se para Petra e Konrad.

 

— Temos de ir. Já!

 

Erica abriu a porta e quase caiu para trás. Teve vontade de vomitar e percebeu que tinha acertado. Cheirava a carne podre. Um fedor nauseabundo e incrivelmente desagradável que, depois de já se ter sentido, era impossível de confundir com qualquer outra coisa. Entrou, tapando o nariz e a boca com o braço para tentar minimizar o cheiro. Mas era impossível. Era tão penetrante que parecia infiltrar-se por todos os poros, como tinha aderido à roupa de Nathalie.

 

Olhou em redor com os olhos cheios de lágrimas por causa do mau cheiro. Cautelosamente, avançou mais alguns passos no interior da pequena casa. Tudo estava calmo e pacífico. Apenas se ouvia o som distante do mar. As náuseas ameaçaram dominá-la, mas Erica lutou contra o desejo de fugir para o ar fresco.

 

De onde estava, podia abarcar com o olhar todo o rés-do-chão, onde não viu mais nada além de coisas do dia a dia. Uma camisola pousada nas costas de uma cadeira, uma chávena de café em cima da mesa, ao lado de um livro aberto... Nada que pudesse explicar o cheiro nojento e enjoativo que pairava como um cobertor sobre toda a casa.

 

Viu uma porta fechada. Erica receava abri-la, mas agora que tinha ido até ali, sabia que tinha de fazê-lo. As mãos tremiam e, de repente, as pernas pareciam gelatina. Queria virar-se e desatar a correr lá para fora, enfiar-se no barco e ir para casa, para o aroma perfumado do cabelo dos seus bebês. Mas, em vez disso, aproximou-se. Viu a mão direita tremente a esticar-se e a segurar a maçaneta da porta. Continuava a hesitar em rodá-la, não se atrevendo a ver o que havia no interior daquela divisão.

 

Uma súbita rajada de vento atingiu-lhe as pernas e fê-la virar-se. Mas já era tarde de mais. De repente, tudo ficou escuro.

 

Os convidados de honra conversavam alegremente ao saírem dos autocarros vindos de Gotemburgo. Tinha sido servido espumante durante a viagem para Fjällbacka e agora estavam todos animadíssimos.

 

— Vai ser fantástico. — Anders pôs o braço em torno dos ombros da irmã enquanto esperavam para receber os convidados.

 

Vivianne sorriu sem alegria. Aquilo era o princípio, mas era também o fim. E não conseguia aproveitar o momento presente, uma vez que só o futuro importava. Um futuro que já não lhe parecia tão certo como noutros tempos.

 

Estudou o perfil de Anders quando ele estava à porta do Badis. Havia algo de diferente nele.

 

Sempre fora capaz de lê-lo como a um livro aberto, porém Anders tinha-se retirado para um lugar onde era incapaz de alcançá-lo.

 

— Que dia esplêndido, minha querida. — Erling beijou-a nos lábios. Estava com ar repousado. Na noite anterior, Vivianne tinha-lhe dado o comprimido para dormir às sete, por isso Erling dormira treze horas seguidas. Agora praticamente saltitava no seu fato branco. Depois de lhe dar outro beijo, afastou-se à pressa.

 

Os convidados começaram a entrar no edifício.

 

— Bem-vindos. Espero que tenham uma estada agradável no Badis. — Vivianne distribuía apertos de mão, sorria e repetia as palavras de boas-vindas vezes sem conta. Parecia ter saído de um conto de fadas, com um vestido branco até os tornozelos e a cabeleira espessa apanhada numa grande trança, como era costume.

 

Depois de todos terem entrado, Vivianne ficou sozinha com Anders por um momento, o sorriso desapareceu e a expressão tornou-se séria. Virou-se para o irmão.

 

— Dizemos sempre tudo um ao outro, não é? — perguntou em voz baixa. Estava ansiosa por ouvi-lo dizer o que queria ouvir. Queria realmente acreditar nele. Mas Anders desviou o olhar e não disse uma palavra.

 

Vivianne estava prestes a repetir a pergunta, mas um convidado atrasado estava a aproximar-se da entrada, de modo que fez o sorriso mais caloroso possível. Por dentro sentia-se gelada.

 

— Por que sua mulher foi à ilha? — perguntou Petra.

 

Patrik conduzia para Fjällbacka o mais depressa a que se atrevia. Falou-lhes dos livros que Erica escrevia e disse-lhes que ela ultimamente começara a fazer pesquisas sobre Gråskär, por pura distração.

 

— Provavelmente queria mostrar a Nathalie o que descobriu.

 

— Não há nenhuma razão para pensar que possa correr perigo — disse Konrad, que estava sentado no banco de trás e tentava tranquilizar Patrik.

 

— Pois, eu sei — afirmou Patrik. Ao mesmo tempo, o instinto dizia-lhe que tinha de chegar a Gråskär o mais depressa possível. Telefonara a Peter, que prometeu ter o navio da Guarda Costeira pronto a partir quando chegassem.

 

— Continuo intrigado quanto ao motivo da viagem da sua mulher — disse Konrad.

 

— Com sorte, não tardaremos a descobrir, se é que Patrik tem razão, claro. — Petra não parecia completamente convencida.

 

— Ou seja, como disse, de acordo com uma testemunha, Mats Sverin tinha uma mulher no carro com ele quando chegou a casa na noite em que foi assassinado. E a testemunha é de confiança? — Konrad inclinou-se para enfiar a cabeça entre os bancos dianteiros. Lá fora, a paisagem passava a alta velocidade, mas Petra e Konrad não pareciam particularmente preocupados.

 

Patrik ponderou o que devia contar-lhes. A verdade é que o velho Grip não era a testemunha de maior confiança do mundo. Para começar, afirmara que fora a sua gata a ver a mulher. Essa foi a primeira coisa que ocorreu a Patrik quando soube que as balas correspondiam. No relatório, Martin escrevera que Grip tinha dito que a gata estava à janela, a bufar para o carro e, algumas linhas acima, dizia: “Marilyn não gosta de mulheres. Bufa quando vê uma.” Martin não percebera a ligação e Patrik também não quando leu o relatório pela primeira vez. Porém, combinada com os outros dados que foram surgindo, aquela informação foi o suficiente para Patrik mandar Martin ter outra conversa com Grip. Dessa vez Martin conseguiu que o homem admitisse que fora vista uma mulher a sair do carro à frente do prédio, na madrugada de sábado. Depois de hesitar um pouco, também havia confirmado que se tratava do carro de Sverin. Infelizmente, Grip continuara a insistir que a gata é que tinha presenciado a cena e Patrik achou que, por enquanto, era preferível omitir esse último pormenor.

 

— A testemunha tem certeza — disse, na esperança de que isso satisfizesse os colegas. O importante era chegar junto de Erica o mais depressa possível e ter uma conversa com Nathalie. Tudo o resto podia esperar. Além disso, tinham o barco. De acordo com o especialista com quem Gösta contactara, não era apenas possível, mas muito provável que o barco de Sverin tivesse ido à deriva de Gråskär até a enseada onde o encontraram encalhado.

 

Na mente de Patrik, uma cadeia plausível de eventos começara a desenrolar-se. Mats fora visitar Nathalie e, por algum motivo, a mulher tinha-o depois acompanhado no barco até Fjällbacka. Tinham ido de carro até o apartamento de Mats, onde Nathalie o baleara. Mats confiara em Nathalie, por isso não hesitara em virar-lhe as costas. Então, Nathalie regressara ao porto, levara o barco dos Sverin até Gråskär e deixara-o ali sem o amarrar, fazendo com que fosse à deriva até o local onde foi mais tarde encontrado. Isso era claro como a água. Só que Patrik ainda não fazia ideia das razões de Nathalie para querer matar Mats e possivelmente também o próprio marido. E porque é que teriam deixado Gråskär e regressado a Fjällbacka a meio da noite? Será que tinha tido alguma coisa que ver com a cocaína? Teria Mats estado envolvido em algum negócio com o marido de Nathalie? Será que a impressão digital não identificada no saco pertencia a Nathalie?

 

Acelerou a fundo. Cruzaram Fjällbacka a alta velocidade e Patrik só abrandou um pouco para não atropelar um homem idoso que atravessava a rua perto da praça Ingrid Bergman.

 

Estacionou o carro no porto, junto ao navio da Guarda Costeira, e saiu apressadamente. Ficou aliviado ao ver que Peter já tinha ligado o motor. Konrad e Petra trotaram atrás dele e saltaram para bordo.

 

— Não se preocupe — disse Konrad. — Por enquanto ainda só estamos a especular e não há nenhum motivo para acreditar que a sua mulher possa estar em perigo, mesmo que a sua teoria esteja correta.

 

Apoiado à balaustrada do navio, Patrik olhou para o colega. Afastavam-se do porto a todo o gás, mais depressa do que era normalmente permitido.

 

— Não conhece Erica. Tem uma certa propensão para meter o nariz em coisas que não lhe dizem respeito. Mesmo as pessoas que não têm nada a esconder acham que faz demasiadas perguntas. Digamos que é mesmo muito persistente.

 

— Parece que é cá das minhas — disse Petra, contemplando fascinada o arquipélago que estavam a atravessar.

 

— Além disso, não atende o celular — acrescentou Patrik.

 

Ninguém disse uma palavra durante o resto da travessia. Viram o farol à distância e Patrik sentiu um aperto no estômago quando se aproximavam da ilha. Não conseguia parar de pensar no outro nome de Gråskär, o nome pelo qual era conhecida entre os habitantes de Fjällbacka: Ilha dos Espíritos. E não conseguia deixar de pensar no que o motivara.

 

Peter diminuiu a velocidade e manobrou o barco para o cais, para junto da lancha de madeira que pertencia a Erica e a Patrik. Não havia ninguém à vista, vivo ou morto.

 

Tudo ia ficar bem. Estavam juntos. Ela e Sam. E os espíritos olhavam pelos dois.

 

Nathalie cantarolava na água com Sam nos braços. Cantava-lhe sempre aquela canção quando o filho era mais novo e não conseguia dormir. Sam estava ao seu colo e parecia muito leve, porque a água ajudava a suportá-lo. Algumas gotas salpicaram-lhe o rosto e Nathalie limpou-as cuidadosamente. O filho não gostava de água na cara. Quando se sentisse melhor ia ensiná-lo a nadar. Já tinha idade para aprender a nadar e andar de bicicleta, e os dentes de leite não tardariam a cair- lhe. Depois ficaria com um grande espaço entre os dentes, mostrando que já tinha deixado para trás os primeiros anos da infância.

 

Fredrik sempre fora impaciente com Sam e sempre exigira demasiado do filho. Afirmava que Nathalie o estragava com mimos, que não queria que ele crescesse. Fredrik não tinha razão. Claro que queria que o filho crescesse, mas Sam tinha de o fazer ao seu próprio ritmo.

 

Depois tentara afastá-la de Sam. Naquela sua voz arrogante, Fredrik dissera que o filho ficaria melhor com outra mãe. Aquela recordação começou a enraizar-se e Nathalie cantarolou mais alto para a afastar. Mas aquelas palavras terríveis já lhe tinham penetrado a alma, abafando a música. A outra mulher seria melhor, dissera-lhe Fredrik. Seria a nova mãe de Sam e acompanhá-los-ia, a ele e a Sam, a Itália. Nathalie não seria mais a mãe de Sam. Iria desaparecer.

 

O rosto de Fredrik revelara uma tal satisfação presunçosa que Nathalie não duvidara por um momento que o marido ia fazer aquilo. Como o odiava. A raiva começou a crescer algures dentro dela e, em seguida, apoderou-se de todo o seu corpo antes que conseguisse detê-la. Fredrik teve o que mereceu. Já não podia fazer-lhes mais mal. Tinha visto a sua expressão rígida. Tinha visto o sangue.

 

Agora, ela e Sam poderiam viver em paz ali na ilha. Nathalie olhou para o rosto do filho. Sam estava a dormir. Ninguém ia levá-lo para longe dela. Ninguém.

 

Patrik pediu a Peter que esperasse no barco e depois desembarcou com Konrad e Petra. Olharam para a mesa da cabana de pesca aberta e viram que alguém tinha estado ali a tomar café. Quando passaram por ela, um bando de gaivotas levantou voo de um prato cheio de bolos.

 

— Devem estar na casa — disse Petra, olhando atentamente em redor.

 

— Venham. — Patrik estava impaciente, mas Konrad pegou-lhe suavemente no braço.

 

— Acho que a partir de agora temos de agir com cautela.

 

Patrik compreendeu que o colega tinha razão. Dirigiu-se para a casa devagar, embora lhe apetecesse correr. Quando chegaram, bateram à porta. Como ninguém foi abrir, Petra inclinou-se para a frente e bateu com mais força.

 

— Está alguém? — perguntou.

 

Continuava a não se ouvir um único ruído no interior. Patrik rodou a maçaneta e a porta abriu-se. Avançou um passo e depois quase chocou com Konrad e Petra ao recuar, tal era o cheiro.

 

— Merda! — praguejou, pondo a mão sobre o nariz e a boca. Teve de engolir várias vezes em seco para não vomitar.

 

— Merda! — repetiu Konrad por detrás dele. Também devia estar a lutar contra as náuseas. Só Petra parecia imperturbável, e Patrik olhou-a com espanto.

 

— Não tenho grande olfato — disse-lhe a colega.

 

Patrik avançou e avistou imediatamente a pessoa deitada no chão.

 

— Erica? — Patrik correu até a mulher e caiu de joelhos. Com o coração apertado, estendeu a mão para tocar-lhe. Erica mexeu-se e soltou um gemido.

 

Patrik repetiu o nome da mulher várias vezes e Erica virou lentamente a cabeça para olhar para ele. Só então pôde ver a ferida que a mulher tinha na têmpora. Com esforço, Erica ergueu a mão para tocar-lhe e abriu muito os olhos quando viu o sangue nos dedos.

 

— Patrik? Nathalie... ela... — Erica começou a soluçar e Patrik acariciou-lhe a face.

 

— Ela está bem? — perguntou Petra.

 

Patrik tranquilizou-a com um gesto. Em seguida, Petra e Konrad subiram ao primeiro andar para ver o que havia lá em cima.

 

— Parece estar vazio — disse Petra quando voltaram a descer as escadas. — Já viu ali? — perguntou, apontando para a porta fechada por detrás de Erica.

 

Patrik abanou a cabeça, por isso Petra contornou-os cautelosamente e abriu a porta.

 

— Maldição. Venham ver. — Petra fez-lhes sinal, mas Patrik preferiu ficar onde estava e deixar que fosse Konrad a ir ter com a colega.

 

— Que está a ver? — indagou Patrik, olhando de relance para a porta parcialmente aberta que não lhe permitia ver o que havia no interior.

 

— Seja o que for, este cheiro vem deste quarto. — Konrad saiu com a mão a tapar a boca e o nariz.

 

— Um cadáver? — Por um momento, Patrik pensou que devia ser Nathalie quem ali estava, mas logo lhe ocorreu um pensamento que o fez ficar branco como a cal. — É o filho? — sussurrou.

 

Petra também saiu do quarto.

 

— Não sei. Não está ali ninguém. Mas a cama está toda desarrumada e tresanda. Até eu consigo sentir o cheiro.

 

Konrad assentiu.

 

— Deve ser o filho dela. Estivemos aqui com Nathalie há uma semana e calculo que o corpo esteja aqui há mais tempo do que isso.

 

Erica esforçava-se para se sentar e Patrik pôs-lhe o braço em torno da cintura para a apoiar.

 

— Temos de encontrá-los — disse, olhando para Erica. — Que aconteceu aqui?

 

— Estávamos no farol. Reparei no cheiro na roupa de Nathalie e comecei a questionar-me. Depois vim até aqui para verificar. Nathalie deve ter-me atingido na cabeça... — A voz de Erica sumiu-se.

 

Patrik ergueu os olhos para Konrad e para Petra.

 

— Eu não disse? Está sempre a meter o nariz em tudo. — Patrik sorriu, mas estava com ar preocupado.

 

— Não viu a criança? — perguntou Petra, de cócoras. Erica abanou a cabeça e depois fez uma careta de dor.

 

— Não, não cheguei a abrir a porta. Mas têm de encontrá-los — disse, repetindo o que Patrik tinha dito. — Eu estou bem. Vão procurar Nathalie e Sam.

 

— Vamos levá-la para o barco — disse Patrik.

 

Ignorando os protestos de Erica, os três transportaram-na até o cais. Depois puseram-na cuidadosamente no barco onde estava Peter.

 

— De certeza que estás bem? — Patrik não queria deixar Erica quando olhou para a ferida ensanguentada que a mulher tinha na cabeça e ao ver como estava pálida.

 

Erica fez um gesto a indicar-lhe que não havia problema.

 

— Vai lá. Já te disse que estou bem. Relutantemente, Patrik virou-se.

 

— Para onde acham que eles foram?

 

— Devem estar do outro lado da ilha — respondeu Petra.

 

— Sim, porque o barco ainda está aqui — confirmou Konrad.

 

Começaram a caminhar sobre as rochas. A ilha parecia tão deserta como quando chegaram e, além do marulhar das ondas e dos guinchos das gaivotas, não se ouvia um único som.

 

— Podem estar no farol. Patrik inclinou-se para trás para poder observar a torre.

 

— Talvez, mas acho que devemos revistar a ilha primeiro — disse Petra. Protegeu os olhos com a mão para tentar ver através dos painéis de vidro no topo do farol, mas também não viu ninguém a mover-se lá em cima.

 

— Vêm ou não? — perguntou Konrad em voz alta.

 

O ponto mais alto da ilha ficava a curta distância e os três polícias foram lançando olhares para a esquerda e para a direita enquanto caminhavam. Quando chegassem ao topo do morro poderiam avistar quase toda a ilha, mas moviam-se com cautela. Não sabiam qual era o estado de espírito de Nathalie. Além disso, a mulher tinha uma arma. A questão era saber se estava disposta a utilizá-la. O cheiro enjoativo do cadáver ainda se agarrava às suas narinas. Todos tinham o mesmo pensamento, mas nenhum ousou verbalizá-lo.

 

Chegaram ao cimo da colina.

 

Tinham vindo de barco, como Nathalie pensara. Ouvira vozes vindas do cais, vozes vindas da casa. A sua rota de fuga da ilha estava bloqueada. Não conseguia chegar ao barco para fugir. Tinham- nos apanhado.

 

Nathalie tinha pensado que Erica estava do seu lado, mas depois tentara intrometer-se no mundo deles. Por isso fora forçada a agir e fizera o mais acertado. Protegia Sam, como prometera no momento em que no hospital lhe puseram o filho nos braços. Prometera-lhe que nada de mal lhe aconteceria. Durante muito tempo fora uma covarde e não conseguira cumprir a promessa. Mas desde aquela noite mantinha-se forte. Tinha resgatado Sam.

 

Lentamente, avançou mar adentro. As calças de ganga pesavam-lhe e arrastavam-na para a frente. Sam estava com um ar tão doce, repousando tranquilamente nos seus braços.

 

Alguém se aproximou dela, avançando ao seu lado dentro de água. Pelo canto do olho, Nathalie viu a mulher a segurar as pesadas saias. Passado um momento, deixou a saia cair e esta ficou a flutuar na água em torno dela. A mulher tinha os olhos fixos em Nathalie. Os lábios moviam-se, mas Nathalie recusava-se a ouvir. Se o fizesse, não conseguiria proteger Sam por mais tempo. Fechou os olhos para fazer com que a mulher se fosse embora, mas quando os voltou a abrir não pôde deixar de olhar novamente na direção dela, como se algo estivesse a obrigá-la a olhar.

 

Agora, a mulher carregava uma criança nos braços. Há pouco não estava lá. Nathalie tinha certeza disso. Porém, naquele momento a criança também estava a olhar para ela com os olhos muito abertos, suplicantes. Estava a falar com Sam. Nathalie teve vontade de tapar os ouvidos com as mãos e gritar para calar as vozes do menino e da mulher. Mas as mãos estavam a segurar Sam e o grito estava preso na garganta. A camisa começava a ficar molhada e Nathalie arfou quando a água fria lhe chegou à barriga. A mulher estava a andar muito perto dela. Falava ao mesmo tempo que o rapazinho — a mulher para Nathalie e o menino para Sam. Contra a sua vontade, Nathalie começou a ouvir o que estavam a dizer. As vozes abriam caminho à força, como a água salgada lhe ensopava a roupa e lhe atingia a pele.

 

Tinham chegado ao fim da estrada, ela e Sam. A qualquer momento aquelas pessoas iam encontrá-los e terminar o que tinham começado. De repente, recordou-se do sangue a salpicar a parede e a colorir o rosto de Fredrik. Abanou a cabeça para fazer as imagens desaparecerem. Seriam sonhos, fantasias? Ou eram reais? Já não sabia. Apenas se lembrava da sensação gelada de ódio e de pânico. E daquele medo enorme que se apoderara dela e lhe deixara apenas as reações mais primitivas e furiosas.

 

Quando a água lhe chegou às axilas, Nathalie sentiu Sam mais leve nos seus braços. A mulher e o menino estavam muito perto. As suas vozes ressoavam nos ouvidos de Nathalie, que percebeu claramente o que diziam. Fechou os olhos e cedeu por fim. Tinham razão. Aquela certeza preencheu-a e fez com que todo o medo desaparecesse. Nathalie sabia que a mulher e o rapazinho não lhes queriam mal e deixou-se ali ficar, enlevada pela calma que se apoderou dela.

 

Julgou ter ouvido outras vozes lá ao fundo. Vozes que a chamavam, que queriam algo e que estavam a tentar fazer com que lhes prestasse atenção. Nathalie ignorou-as. Eram menos reais do que as vozes que continuavam a ressoar-lhe nos ouvidos, que ainda não se tinham calado.

 

— Deixe-o ir — disse gentilmente a mulher.

 

— Quero brincar com ele — disse o menino.

 

Nathalie assentiu. Tinha de o deixar ir. Era isso que eles queriam o tempo todo, o que lhe tinham tentado explicar. Agora, Sam pertencia-lhes. Pertencia aos outros.

 

Lentamente, Nathalie foi soltando Sam. Deixou que o mar o levasse, deixou-o desaparecer sob a superfície para ser levado pelas correntes. Então deu um passo em frente e depois outro. Continuava a ouvir todas as vozes. Ouvia-as ao perto e ao longe, mas optou uma vez mais por ignorá-las. Queria seguir Sam e ser um deles. Que mais poderia fazer?

 

A voz da mulher era suplicante, mas a água já lhe tapava os ouvidos, abafando todos os sons e substituindo-os por um rugido que Nathalie julgou ser o sangue a fluir-lhe pelo corpo. Avançou, sentindo as águas a fecharem-se sobre a cabeça e o ar a comprimir-lhe os pulmões.

 

Então, algo a arrastrou para cima. A mulher era surpreendentemente forte. Puxou-a para a superfície e Nathalie sentiu a raiva crescer dentro dela. Por que não a deixavam acompanhar o filho? Debateu- se, mas a mulher recusou-se a largá-la e continuou a arrastá-la de volta para a vida.

 

Outro par de mãos agarrou-lhe o corpo e puxou-a para cima. A cabeça de Nathalie emergiu de repente e os pulmões encheram-se de ar. Soltou um grito que se ergueu em direção ao céu. Queria voltar para debaixo de água, mas em vez disso sentiu-se a ser arrastada para terra.

 

Então, a mulher e o garotinho desapareceram. Como Sam.

 

Nathalie sentiu que era erguida e levada. Desistiu. Finalmente a tinham encontrado.

 

A festa continuou durante toda a tarde e prolongou-se noite dentro. Todos gostaram muito da comida, que consideraram excelente, o vinho fluiu, os convidados de honra e os habitantes locais conviveram e fizeram-se novos amigos na pista de dança. Ou seja, um enorme sucesso.

 

Vivianne aproximou-se de Anders, que estava encostado ao corrimão, a observar os pares a dançar.

 

— Agora temos de nos ir embora.

 

Anders assentiu, mas algo na sua expressão fez com que Vivianne se sentisse mais desconfortável do que nunca.

 

— Anda — disse, puxando-o pela manga do casaco. Sem a olhar nos olhos, Anders virou-se e seguiu-a.

 

Vivianne escondera a mala num dos quartos que não estavam reservados aos hóspedes. Pegou nela e dirigiu-se para a porta, pronta para sair.

 

— Onde está a tua mala? Temos de sair daqui a dez minutos, senão podemos perder o avião. Anders não respondeu. Em vez disso, deixou-se cair sobre a cama e olhou para o chão.

 

— Anders? — Vivianne aferrava-se à pega da mala.

 

— Eu adoro-te — sussurrou Anders. Aquelas palavras deixaram-na logo aterrada.

 

— Temos de ir — repetiu Vivianne, embora soubesse no fundo do seu ser que o irmão não ia acompanhá-la. Ao longe ouviam-se os compassos da música. Vivianne pousou a mala no chão e sentou-se ao lado dele.

 

— Não posso. — Anders olhou para ela. Os olhos encheram-se de lágrimas.

 

— Que foi que fizeste? — Não queria ouvir a resposta, não queria saber que os seus piores receios se tinham tornado realidade. Mas não pôde deixar de fazer a pergunta.

 

— O que foi que fiz? Valha-me Deus, não achas que fui eu quem...

 

Anders abanou a cabeça e começou a rir-se enquanto limpava as lágrimas com as costas da mão. — Meu Deus, Vivianne, claro que não!

 

Sentia-se imensamente aliviada, mas assim já não percebia o que se estava a passar.

 

— Então, por quê? — Vivianne pôs-lhe o braço em volta dos ombros e Anders inclinou a cabeça contra a dela. Aquilo evocava tantas memórias de todos os momentos em que tinham estado assim sentados, com as cabeças juntas.

 

— Tu sabes que te adoro.

 

— Sim, eu sei. — De repente, Vivianne compreendeu. Endireitou-se para poder vê-lo bem. Delicadamente, pegou-lhe o rosto com as mãos. — Meu querido irmão, apaixonaste-te por alguém?

 

— Não posso ir contigo — disse Anders, novamente com os olhos marejados de lágrimas. — Sei que prometemos um ao outro que íamos ficar sempre juntos. Mas vais ter de fazer esta viagem sem mim.

 

— Se tu estiveres feliz, então eu também estarei. É tão simples como isso. Vou sentir muito a tua falta, mas o que eu mais quero neste mundo é que tenhas a tua própria vida. — Vivianne sorriu. — Mas tens de dizer-me quem é ela. Senão não posso ir-me embora.

 

Anders mencionou um nome e Vivianne imaginou uma mulher que tinha trabalhado com o irmão no Projeto Badis. Voltou a sorrir.

 

— Tens bom gosto — disse, e depois ficou calada por um momento. — Vais ter muito que explicar e vais ser responsabilizado. Será que é boa ideia deixar-te entregue a tudo isso sozinho? Se quiseres eu fico.

 

Anders abanou a cabeça.

 

— Quer que vás. Aproveita o sol e diverte-te por mim também. Duvido que eu vá ver muita luz do dia por uns tempos, mas ela sabe de tudo e prometeu esperar por mim.

 

— E o dinheiro?

 

— É todo teu — respondeu Anders sem a mais pequena hesitação. — Não preciso de nenhum.

 

— Tens certeza? — Vivianne envolveu-lhe mais uma vez a cara com as mãos, como se tocá-lo fosse ajudá-la a recordar-se das suas feições familiares.

 

Anders abanou a cabeça e afastou-lhe as mãos.

 

— Tenho certeza. E agora tens de ir-te embora. O avião não vai esperar por ti.

 

Levantou-se e pegou na mala da irmã. Sem mais palavras, levou-a para o carro e pô-la no porta- bagagens. Ninguém os viu. O zumbido das vozes misturava-se com a música e toda a gente estava concentrada em outras coisas.

 

Vivianne entrou no carro e sentou-se ao volante.

 

— Fizemos um bom trabalho, não foi? — perguntou a olhar para o Badis, que resplandecia na semiobscuridade.

 

— Um trabalho do cacete.

 

Por um momento, nenhum dos dois falou. Então, Vivianne tirou o anel de noivado e entregou-o a Anders.

 

— Toma. Devolve a Erling. Não é má pessoa. Espero que encontre alguém para dá-lo, um dia.

 

Anders guardou o anel no bolso das calças.

 

— Eu me certifico de que Erling o receba.

 

Olharam fixamente um para o outro em silêncio. Então, Vivianne fechou a porta e ligou o motor. Anders ficou ali durante muito tempo, observando-a a ir-se embora. Depois subiu lentamente as escadas do Badis. Decidira ser a última pessoa a deixar a festa.

 

ERLING COMEÇAVA A ENTRAR EM PÂNICO. Vivianne tinha desaparecido. Ninguém a vira desde a festa de sábado e o carro também tinha desaparecido. Algo devia ter acontecido.

 

Pegou mais uma vez no telefone e ligou para a delegacia.

 

— Já soube alguma coisa? — perguntou assim que Mellberg atendeu. Quando recebeu outra resposta negativa não se conseguiu controlar por mais tempo. — O que é que estão a fazer ao certo para encontrar a minha noiva? Estou convencido de que alguma coisa terrível lhe deve ter acontecido. Já dragaram a zona das docas? Sim, eu sei que o carro também desapareceu, mas e se alguém o tiver levado até o porto? E talvez com Vivianne lá dentro? — A voz de Erling subiu para um tom de falsete quando imaginou Vivianne presa no carro, incapaz de escapar enquanto a água a envolvia lentamente.

 

— Exijo que faça uso de todos os recursos possíveis para encontrá-la.

 

Erling atirou o telefone para o descanso. Uma tímida batida na porta fê-lo erguer os olhos. Gunilla enfiou a cabeça pela porta entreaberta e lançou-lhe um olhar assustado.

 

— Sim? — Erling só queria que o deixassem em paz. Tinha estado fora todo o domingo à procura de Vivianne e naquela manhã havia ido ao escritório apenas porque esperava que a noiva pudesse tentar ligar-lhe para ali.

 

— Telefonaram do banco. — A voz de Gunilla soou ainda mais ansiosa do que era habitual.

 

— Agora não tenho tempo para essas coisas — disse, fitando o telefone. Vivianne podia ligar a qualquer momento.

 

— É sobre a contabilidade do Badis. Há qualquer coisa que não está bem. Querem que lhes telefone.

 

— Já lhe disse que não tenho tempo para isso — retorquiu Erling. Para sua surpresa, Gunilla não arredava pé.

 

— Querem que lhes ligue e disseram que é urgente — insistiu Gunilla, regressando depois à sua secretária.

 

Com um suspiro, Erling pegou no telefone e ligou para a pessoa com quem costumava falar no banco.

 

— Fala Erling. Há algum problema?

 

Falou num tom impositivo. Queria que a chamada fosse o mais breve possível, para que a linha não estivesse ocupada se Vivianne telefonasse. Mal prestava atenção ao que o funcionário do banco dizia, mas de repente endireitou-se na cadeira.

 

— Não há dinheiro na conta? Como assim? É melhor voltar a verificar. Nós depositamos vários milhões de coroas e vão chegar fundos adicionais de Vivianne e Anders Berkelin esta semana. Eu sei que temos um grande número de fornecedores a quem é preciso pagar, mas na conta há dinheiro mais do que suficiente para isso — então, Erling ficou em silêncio e ouviu um pouco mais. — Tem certeza de que não se enganou?

 

Erling aliviou o colarinho da camisa. De repente estava com dificuldade em respirar. Quando desligou o telefone, os pensamentos começaram a girar-lhe na cabeça. O dinheiro tinha desaparecido. Vivianne sumira-se. Não era estúpido, conseguia somar dois mais dois. Mas não queria acreditar.

 

Tinha acabado de marcar os três primeiros dígitos do número de telefone da delegacia quando Anders apareceu à porta. Erling fitou-o. O irmão de Vivianne parecia abatido e exausto. De início, ficou simplesmente para ali, sem dizer uma palavra. Depois aproximou-se da secretária de Erling e estendeu a mão com a palma para cima. O sol que se filtrava pela janela incidiu sobre o objeto que Anders tinha na mão e projetou pequenos pontos de luz bruxuleantes na parede por detrás de Erling. Era o anel de noivado de Vivianne.

 

Nesse momento, todas as dúvidas na mente de Erling se dissiparam. Em transe, marcou os restantes dígitos do número da polícia de Tanumshede. Anders sentou-se numa cadeira à frente do presidente e esperou. O anel de noivado cintilava em cima da mesa.

 

NA QUARTA-FEIRA DE MANHÃ, Erica teve alta do hospital e pôde ir para casa. Afinal, o golpe na cabeça não era grave, porém, tendo em conta as lesões anteriores que sofrera no acidente de carro, os médicos decidiram mantê-la em observação por alguns dias por uma questão de segurança.

 

— Para com isso. Eu consigo andar sozinha. — Erica fulminou Patrik com o olhar. O marido estava a segurar-lhe o braço enquanto subiam os degraus até a porta de casa. — Tu ouviste o que eles disseram. Parece estar tudo bem. Não tenho nenhuma concussão, apenas alguns pontos.

 

Patrik abriu a porta.

 

— Sim, eu sei, mas... — calou-se quando viu o olhar que Erica lhe lançou.

 

— Quando é que as crianças vêm para casa? — Erica descalçou-se.

 

— A minha mãe traz os gêmeos por volta das duas e depois estava a pensar que podíamos ir buscar a Maja. Está com muitas saudades tuas.

 

— É tão querida — disse Erica, encaminhando-se para a cozinha. Parecia estranho estar em casa sem crianças à volta. Mal conseguia lembrar-se daquela sensação.

 

— Senta-te que eu faço-te um café — disse Patrik, passando pela mulher.

 

Erica estava prestes a protestar quando se apercebeu de que devia aproveitar aquela situação ao máximo. Sentou-se à mesa da cozinha e, com um suspiro de satisfação, apoiou os pés na cadeira ao lado.

 

— Sabes o que vai acontecer ao Badis? — Sentiu-se como se tivesse vivido numa redoma no hospital, por isso agora queria saber tudo o que tinha acontecido. Ainda não podia acreditar nos rumores que ouvira sobre Vivianne.

 

— O dinheiro e Vivianne desapareceram. — Patrik estava junto à bancada a preparar o café. — Encontramos o carro dela no aeroporto de Arlanda e estamos neste momento a verificar as listas de passageiros do fim de semana. Julgamos que viajou com um nome falso, por isso não vai ser fácil.

 

— E o dinheiro? Conseguem seguir-lhe o rastro? Patrik virou-se e abanou a cabeça.

 

— Também vai ser muito complicado. Pedimos ajuda à divisão de crimes econômicos, em Gotemburgo, mas há maneiras de transferir fundos para fora do país que tornam extremamente difícil seguir o rastro do dinheiro. E deduzo que Vivianne planeou tudo isto muito bem.

 

— Que diz Anders? — Erica levantou-se para tirar alguma coisa do frigorífico.

 

— Senta-te, eu trago-te os bolos. — Patrik pegou num saco de bolos de canela do congelador e pôs vários no micro-ondas. — Anders admitiu ter participado no esquema de desfalque, mas recusa-se a dizer-nos onde estão a irmã e o dinheiro.

 

— Porque é que Anders não se foi embora com Vivianne? — Erica sentou-se à mesa.

 

— Quem sabe? Talvez se tenha acovardado no último segundo e não quisesse passar o resto da vida fora da Suécia, no exílio.

 

— Hum, é uma possibilidade. — Erica fez uma pausa e depois perguntou: — Então, como é que Erling está a reagir? E o que é que vai acontecer ao Badis?

 

— Erling parece sobretudo... resignado. — Patrik serviu duas chávenas de café, tirou os bolos de canela do micro-ondas e pôs tudo na mesa da cozinha. — Quanto ao futuro do Badis, ninguém sabe ao certo qual será. Quase nenhum dos fornecedores ou empreiteiros foi pago. A questão é saber qual das opções ficará mais cara: fechar as portas ou continuar em funcionamento. Depois da festa de sábado, as reservas não param de chegar, por isso a autarquia pode tentar gerir o spa e esperar que seja rentável. Pelo menos, essa seria uma forma de recuperar parte do dinheiro. Acho que é possível que decidam manter o Badis aberto.

 

— Seria uma vergonha fechá-lo depois do excelente trabalho de remodelação que foi feito.

 

— Concordo — disse Patrik, dando uma grande dentada num bolo de canela.

 

— Como é que Matte soube que havia algo que não batia certo? Tu disseste que o marido de Annika não encontrou irregularidades. Parece estranho que ninguém da autarquia tenha tido sequer a mais pequena suspeita.

 

— De acordo com Anders, Mats não tinha certeza, mas começou a interrogar-se se não haveria alguma coisa errada. Na sexta-feira antes de ir ter com Nathalie à ilha, Mats passou no Badis e teve uma conversa com Anders. Fez uma data de perguntas. Por exemplo, queria saber porque é que havia tantas faturas de fornecedores por pagar. Também perguntou quando é que os fundos que Anders e Vivianne tinham prometido investir iam chegar. E de onde vinha o dinheiro. Mats queria os nomes dos contatos para poder verificar os fundos. Anders ficou bastante preocupado. Se Mats não tivesse sido morto, provavelmente teria descoberto o verdadeiro estado das finanças do Projeto Badis e exposto Anders e Vivianne como os vigaristas que são.

 

Erica assentiu. De repente fez um ar triste.

 

— Como está Nathalie?

 

— Vai ser avaliada por um psiquiatra forense e acho que há muito poucas probabilidades de ir parar à prisão. Provavelmente vai ser internada numa instituição psiquiátrica. Pelo menos era isso que devia acontecer.

 

— Porque é que fomos todos tão estúpidos? Porque é que não percebemos o que estava a acontecer?

 

— Erica pousou o bolo de canela. De repente tinha perdido o apetite.

 

— Como é que haveríamos de saber? Ninguém sabia que Sam estava morto.

 

— Mas como é que o menino morreu? — Erica engoliu em seco. Sentiu o estômago às voltas só de pensar em Nathalie a viver naquela casa durante mais de duas semanas enquanto o cadáver do filho se ia decompondo lentamente. Sentiu um misto de horror e compaixão.

 

— Não sabemos. E o mais certo é nunca virmos a saber. Mas falei com Konrad ontem à noite e descobriram que havia outra mulher que ia viajar para Itália com o marido de Nathalie e Sam. Falaram com a mulher e souberam que estava planeado que acompanhasse Wester, ao passo que Nathalie ia desaparecer de cena.

 

— E a mulher sabia como é que o marido de Nathalie estava a pensar fazer isso?

 

— Wester ia utilizar o facto de Nathalie ser dependente de cocaína para chantageá-la. Ameaçou Nathalie com a perda da custódia de Sam se não se afastasse voluntariamente.

 

— Que grade sacana!

 

— Isso é dizer pouco. O mais certo é ter confrontado Nathalie com o plano na noite anterior à partida para a Itália. A polícia encontrou dois tipos de sangue quando examinou a cama do casal. É provável que Sam tenha ido até o quarto e se tenha enfiado na cama com o pai. Assim, quando Nathalie crivou a cama e o marido de balas, bem... não sabia que o filho também lá estava.

 

— Imagina descobrir que matamos o nosso próprio filho.

 

— Não consigo pensar em nada pior. Provavelmente foi tão traumático para Nathalie que ela perdeu completamente a noção da realidade e recusou-se a aceitar que Sam estava morto.

 

Por um momento, nenhum deles falou. De repente, Erica parecia confusa.

 

— Mas porque é que a amante não chamou a polícia quando Wester não apareceu?

 

— Fredrik Wester não era exatamente conhecido por ser uma pessoa de confiança. Por isso, quando não apareceu, a mulher presumiu que ele a deixara. Segundo Konrad, deixou algumas mensagens furiosas no gravador de chamadas de Fredrik.

 

Erica já tinha avançado para outro assunto.

 

— Matte deve ter encontrado Sam.

 

— Sim. E a cocaína. As impressões digitais de Nathalie estão no saco e na porta do apartamento de Mats. Uma vez que não conseguimos falar com Nathalie, não sabemos ao certo, mas parece provável que Mats tenha descoberto que Sam estava morto e que também tenha encontrado a cocaína na madrugada de sábado. Depois terá obrigado Nathalie a vir a Fjällbacka para falar com a polícia.

 

— E Nathalie teve de matá-lo, de modo a proteger a sua crença ilusória de que Sam estava vivo.

 

— Sim. E isso custou a vida a Mats. — Patrik olhou pela janela. Também sentiu enorme compaixão por Nathalie, apesar de ter morto três pessoas, incluindo o próprio filho.

 

— Será que agora Nathalie já sabe?

 

— Disse aos médicos que agora Sam está com os espíritos em Gråskär. Disse que lhes devia ter dado ouvidos mais cedo e deixado o filho ir com eles. Por isso, acho que agora já sabe.

 

— O menino foi encontrado? — perguntou Erica, hesitante. Nem queria pensar no terrível estado em que o corpo da criança devia estar. Já tinha sido suficientemente mau ter sentido aquele cheiro pavoroso dentro da casa.

 

— Não. Desapareceu no mar.

 

— Como será que conseguia suportar o cheiro? — Erica quase ainda podia senti-lo nas narinas e apenas tinha lá estado pouco tempo. Nathalie tinha vivido com aquilo mais de duas semanas.

 

— A psique humana é estranha. Não é a primeira vez que alguém vive com um cadáver durante semanas, meses ou mesmo anos. A negação é uma força muito poderosa. — Patrik bebeu um pouco de café.

 

— Pobre criança — suspirou Erica. Depois de uma pausa, disse: — Achas que os rumores têm algum fundamento?

 

— Como assim?

 

— Então, aquilo que as pessoas dizem sobre Gråskär, ou Ilha dos Espíritos, que os mortos nunca deixam a ilha.

 

Patrik sorriu.

 

— Não. Agora deixaste-me preocupado. Espero que o golpe na cabeça não te tenha afetado o cérebro. É uma história da carochinha. Não passam de histórias de fantasmas. Nada mais do que isso.

 

— Talvez tenhas razão — disse Erica, embora não parecesse totalmente convencida. Pensava nos artigos de jornal que tinha mostrado a Nathalie, sobre o faroleiro e a família que tinham desaparecido da ilha sem deixar rastro. Talvez ainda lá estivessem.

 

Nathalie sentia-se tão estranhamente vazia por dentro. Sabia o que tinha feito, mas não sentia nada. Nem pena nem dor. Apenas o vazio.

 

Sam estava morto. Os médicos tinham tentado contar com todos os cuidados, mas Nathalie já sabia. No momento em que a água se fechou sobre a cabeça de Sam, compreendeu. As vozes tinham- na finalmente alcançado e feito com que o soltasse, convencendo-a de que seria melhor deixá-lo juntar-se a eles. Iriam cuidar bem dele. E estava feliz por lhes ter dado ouvidos.

 

Quando o barco a levou de Gråskär, virou-se para dar uma última olhadela à ilha e ao farol. Os mortos estavam de pé sobre as rochas, a olhar para ela. Sam estava com eles, ao lado da mulher. Do outro lado estava o filho. Dois garotinhos. Um moreno, o outro louro. Sam parecia feliz e, com o olhar, assegurou-lhe que estava bem. Nathalie ergueu a mão para acenar, mas depois baixou-a. Não podia suportar dizer-lhe adeus. Doía-lhe demasiado que Sam já não estivesse com ela. Agora fazia parte deles. De Gråskär.

 

O quarto onde estava era pequeno, mas luminoso. Havia uma cama e uma mesa. Passava a maior parte do tempo sentada na cama. Ocasionalmente era obrigada a falar com alguém, um homem ou uma mulher. Ambos lhe falavam com simpatia quando lhe faziam perguntas a que nem sempre era capaz de responder. Mas, com o passar dos dias, começou a ver as coisas mais claramente. Era como se tivesse estado a dormir e agora houvesse despertado. Lentamente, estava a ser forçada a distinguir entre o que tinha sido um pesadelo e o que era realidade.

 

A voz desdenhosa de Fredrik era real. Tinha-se divertido a deixá-la fazer as malas para irem para Itália para depois lhe dizer que ia sem ela. E que a outra mulher o ia acompanhar em seu lugar. Se Nathalie protestasse, Fredrik diria às autoridades que era viciada em cocaína e então perderia a custódia de Sam. Aos seus olhos, Nathalie não passava de uma mulher fraca. Descartável.

 

Mas Fredrik tinha-a subestimado. Nathalie foi até a cozinha e sentou-se no escuro, à espera que Fredrik se fosse deitar. O marido tinha uma vez mais tido o prazer de esmagá-la e de levar a melhor sobre ela. Dessa vez, porém, Fredrik cometera um erro grave. Nathalie podia ter sido fraca antes de Sam nascer, e ainda o era, até certo ponto. Mas o seu amor pelo filho tinha-a tornado mais forte do que Fredrik jamais seria capaz de entender. Nathalie sentou-se num dos bancos altos da cozinha, com as mãos repousando sobre o mármore frio da bancada, à espera que Fredrik adormecesse. Depois foi buscar a pistola dele, subiu as escadas e, com mão firme, disparou uma e outra vez para a cama. E soube-lhe bem. Aquilo parecia o mais acertado a fazer.

 

Só quando foi ao quarto de Sam e viu que a cama do filho estava vazia é que o pânico a dominou e uma névoa caiu lentamente sobre ela. Soube logo onde o filho devia estar. No entanto, quando levantou o cobertor e viu o seu pequeno corpo manchado de sangue, o choque foi tão grande que se deixou cair no tapete grosso. A névoa intensificou-se e, embora soubesse que estava a viver num sonho, ainda sentia que Sam estava vivo.

 

E também havia Matte. Agora lembrava-se de tudo. A noite que passaram juntos e a sensação do seu corpo contra o dela, tão familiar e tão imensamente agradável. Lembrava-se de como se sentira segura e de como um possível futuro se interligava ao passado que tinham partilhado, apagando tudo o que acontecera entretanto.

 

Depois ouvira os ruídos no rés-do-chão. Acordou e descobriu que Matte se tinha ido embora. O calor do corpo dele ainda lá estava e Nathalie percebeu que Matte devia ter acabado de sair da cama. Envolveu-se num cobertor, desceu as escadas e viu o olhar de desapontamento dele. Tinha na mão o saco de cocaína. Nathalie pusera-o numa gaveta que afinal não fechou como devia ser. Queria explicar, mas as palavras não saíam. Não tinha qualquer desculpa e Matte jamais compreenderia aquilo.

 

Enrolada num cobertor e descalça no chão frio de madeira, Nathalie vira Matte a abrir a porta do quarto de Sam. Então, Matte virou-se e lançou-lhe um olhar assustado. Disse-lhe que se vestisse, porque tinham de ir a Fjällbacka pedir ajuda. Aconteceu tudo muito depressa e Nathalie fez tudo o que Matte lhe dissera. No sonho, no mundo que não era real, Nathalie tinha-se oposto com todas as suas forças a deixar Sam para trás na ilha. Mas nenhum dos dois dissera uma palavra enquanto atravessavam a baía no barco de Matte.

 

Quando chegaram a Fjällbacka, entraram no carro dele. A mente de Nathalie parecia estranhamente desprovida de qualquer pensamento além da preocupação com Sam. E do facto de mais uma vez estar a acontecer algo que o levaria para longe dela. Sem pensar, pegara na mala quando saíram de casa e levara-a com ela. Sentada no carro, Nathalie podia sentir o peso da pistola no interior.

 

Enquanto caminhavam em direção ao prédio de Matte, um zumbido insistente tinha começado a soar dentro da sua cabeça. No meio de uma névoa, viu Matte a atirar o saco de papel para um caixote do lixo. Já no vestíbulo do apartamento, enfiou a mão na mala e sentiu o aço frio nos dedos. Matte não se virara. Se o tivesse feito e se Nathalie o tivesse olhado nos olhos, talvez se conseguisse conter. Mas Matte estava a afastar-se, de costas voltadas para ela, e Nathalie ergueu a mão, empunhando a pistola com o dedo no gatilho. Um estampido ensurdecedor, um baque. E depois o silêncio absoluto.

 

Tinha de voltar para Sam. Não pensava em mais nada. Regressou ao cais, levou o barco de Matte até a ilha e a seguir deixou que se afastasse. Depois disso já não havia nada que a impedisse de estar outra vez com Sam. A névoa apoderou-se da sua mente. O resto do mundo desapareceu. Só restavam Sam e Gråskär, e a convicção de que tinham de sobreviver. Aquele era o seu único refúgio. Além disso, apenas restava o vazio.

 

Nathalie sentou-se na cama, olhando em frente. Imaginou Sam de mão dada com a mulher. Agora, eles iam tomar conta do filho. Haviam-lho prometido.

 

FJÄLLBACKA, 1875

— MAMÃE!

EMELIE INTERROMPEU INSTANTANEAMENTE O QUE FAZIA. DEIXOU A PANELA CAIR NO CHÃO E PRECIPITOU-SE PARA FORA DE CASA. O MEDO FLUTUAVA COMO UM PASSARINHO DENTRO DO SEU CORAÇÃO.

— GUSTAV, ONDE ESTÁS? — EMELIE OLHOU EM REDOR.

— MAMÃE, VEM CÁ!

EMELIE PERCEBIA AGORA QUE O FILHO A CHAMAVA DA PRAIA. LEVANTOU A PESADA SAIA DE LÃ E CORREU PELAS ROCHAS QUE FORMAVAM UMA CRISTA NO MEIO DA ILHA. DO ALTO DAS ROCHAS ELA O VIU. ESTAVA SENTADO À BEIRA-MAR SEGURANDO O PÉ E CHORAVA. EMELIE CORREU ATÉ O FILHO E AJOELHOU-SE A SEU LADO.

— DÓI — SOLUÇOU, APONTANDO PARA O PÉ. UM GRANDE PEDAÇO DE VIDRO DESPONTAVA DA SOLA.

— PRONTO... — DISSE, TENTANDO ACALMAR GUSTAV ENQUANTO PENSAVA NO QUE FAZER. O FRAGMENTO ESTAVA BEM ENTERRADO NA CARNE. DEVERIA RETIRÁ-LO AGORA OU ESPERAR ATÉ TER ALGO PARA COBRIR?

DECIDIU-SE RAPIDAMENTE.

— VAMOS VER TEU PAI. — EMELIE OLHOU PARA O FAROL. KARL TINHA IDO PARA LÁ ALGUMAS HORAS PARA AJUDAR JULIAN. NÃO COSTUMAVA PEDIR CONSELHOS AO MARIDO, MAS NÃO SABIA AO CERTO O QUE SE DEVIA FAZER NUMA SITUAÇÃO DAQUELAS.

PEGOU EM GUSTAV, QUE CONTINUAVA A CHORAR BABA E RANHO. LEVOU-O AO COLO COMO SE FOSSE UM BEBÊ E TEVE O CUIDADO DE VER ONDE PUNHA OS PÉS. NÃO ERA FÁCIL LEVÁ-LO ASSIM, AGORA QUE JÁ ESTAVA TÃO CRESCIDO.

AO SE APROXIMAREM DO FAROL, EMELIE CHAMOU KARL, MAS O MARIDO NÃO RESPONDEU. A PORTA ESTAVA ABERTA, PROVAVELMENTE PARA DEIXAR ENTRAR UM POUCO DE AR FRESCO. ÀS VEZES FICAVA UM CALOR INSUPORTÁVEL LÁ DENTRO, QUANDO O SOL ESTAVA MAIS FORTE E INCIDIA DIRETAMENTE NO FAROL.

— KARL! — CHAMOU OUTRA VEZ. — PODES VIR AQUI, POR FAVOR?

ERA NORMAL QUE KARL A IGNORASSE E EMELIE PERCEBEU QUE TERIA DE FAZER O ESFORÇO DE SUBIR AO FAROL PARA ENCONTRÁ-LO. NÃO PODIA LEVAR GUSTAV PELAS ESCADAS ÍNGREMES, POR ISSO POUSOU-O CUIDADOSAMENTE NO CHÃO, ACARICIANDO-LHE TERNAMENTE A FACE.

— VENHO JÁ. VOU LÁ ACIMA CHAMAR O TEU PAI.

O MENINO LANÇOU-LHE UM OLHAR ESPERANÇOSO E DEPOIS ENFIOU O POLEGAR NA BOCA.

EMELIE JÁ ESTAVA SEM FÔLEGO DEPOIS DE TER CARREGADO GUSTAV DESDE A COSTA E TENTOU RESPIRAR PAUSADAMENTE ENQUANTO SUBIA AS ESCADAS. NO PATAMAR, PAROU E ERGUEU OS OLHOS. DE INÍCIO NÃO CONSEGUIA COMPREENDER O QUE ESTAVA A VER. PORQUE É QUE OS DOIS HOMENS ESTAVAM DEITADOS NA CAMA? E PORQUE É QUE ESTAVAM COMPLETAMENTE NUS? EMELIE FICOU ALI ESPECADA, CONGELADA, E OLHOU. NENHUM DOS HOMENS A TINHA OUVIDO. ESTAVAM COMPLETAMENTE CONCENTRADOS UM NO OUTRO, NO SÍTIO PROIBIDO DOS SEUS CORPOS, E EMELIE VIU COM CRESCENTE ESPANTO QUE ESTAVAM ACARICIANDO UM AO OUTRO.

ARFOU EM BUSCA DE AR E, NESSE MOMENTO, KARL E JULIAN REPARARAM NELA. KARL ERGUEU OS OLHOS E, POR UM SEGUNDO, OS OLHOS DE AMBOS SE ENCONTRARAM.

— ESTÃO PECANDO! — AS PALAVRAS DA BÍBLIA ARDIAM DENTRO DELA. AS ESCRITURAS SAGRADAS PROIBIAM TAIS COISAS. KARL E JULIAN TRARIAM A DESGRAÇA E O OPRÓBRIO SOBRE SI MESMOS E TAMBÉM SOBRE ELA E GUSTAV. DEUS AMALDIÇOARIA TODOS OS HABITANTES DE GRÅSKÄR SE NÃO EXPIASSEM OS SEUS PECADOS.

KARL CONTINUAVA CALADO, MAS ERA COMO SE PUDESSE VER ATRAVÉS DELA E SOUBESSE O QUE EMELIE ESTAVA A PENSAR. OLHOU-A COM FRIEZA E EMELIE OUVIU OS ESPÍRITOS COMEÇAREM A SUSSURRAR. DISSERAM-LHE PARA FUGIR, MAS OS PÉS RECUSAVAM-SE A OBEDECER-LHE. ERA INCAPAZ DE MOVER-SE OU DE AFASTAR OS OLHOS DOS CORPOS SUADOS E NUS DE JULIAN E DO MARIDO.

AS VOZES SOARAM CADA VEZ MAIS ALTO E SENTIU QUE ALGUÉM A ACOTOVELAVA PARA A INCITAR A VOLTAR A MOVER-SE. DESCEU AS ESCADAS A CORRER E PEGOU EM GUSTAV, QUE SOLUÇAVA. COM UMA FORÇA QUE DESCONHECIA POSSUIR, EMELIE CORREU SEM SABER PARA ONDE ESTAVA A IR. OUVIU KARL E JULIAN NA SUA PEUGADA E SABIA QUE NÃO SERIA CAPAZ DE CORRER MAIS DEPRESSA DO QUE ELES. A CASA NÃO SERIA UM REFÚGIO SEGURO. MESMO QUE CONSEGUISSE ENTRAR E TRANCAR A PORTA, OS DOIS HOMENS PODERIAM FACILMENTE ARROMBÁ-LA OU ENTRAR POR UMA JANELA.

— EMELIE! PARA! — GRITOU KARL ATRÁS DELA.

UMA PARTE DELA QUERIA FAZER EXATAMENTE ISSO. PARAR E DESISTIR. E TÊ-LO-IA FEITO, SE APENAS TIVESSE DE PENSAR EM SI PRÓPRIA. MAS CONTINUOU POR CAUSA DE GUSTAV, QUE AGORA CHORAVA DE MEDO NOS SEUS BRAÇOS. EMELIE NÃO ACREDITAVA QUE O POUPARIAM. GUSTAV NUNCA SIGNIFICARA NADA PARA KARL. O MENINO SÓ EXISTIA PARA APLACAR O PAI DELE, PARA CONVENCÊ-LO DE QUE TUDO ERA COMO DEVERIA SER.

HÁ MUITO TEMPO QUE EMELIE NÃO PENSAVA EM EDITH, A SUA CONFIDENTE DURANTE OS ANOS QUE PASSARA NA QUINTA. DEVIA TER DADO OUVIDO AOS AVISOS DA AMIGA, MAS ERA JOVEM E INGÉNUA E NÃO QUERIA VER O QUE ERA CLARO COMO A ÁGUA PARA EDITH. JULIAN FORA O MOTIVO PELO QUAL KARL TINHA VOLTADO TÃO ABRUPTAMENTE DO FAROL PARA CASA E FORA FORÇADO A CASAR COM A PRIMEIRA RAPARIGA DISPONÍVEL. ATÉ UMA CRIADA DA QUINTA ERA SUFICIENTEMENTE BOA PARA SALVAR A REPUTAÇÃO DA FAMÍLIA. E TUDO TINHA SIDO ORGANIZADO DE ACORDO COM OS DESEJOS DOS PAIS DELE. O ESCÂNDALO PROVOCADO PELO FILHO MAIS NOVO NUNCA VIERA A LUME.

MAS KARL TINHA ENGANADO O PAI. NAS SUAS COSTAS HAVIA CONTRATADO JULIAN PARA SER SEU ASSISTENTE NA ILHA. DECIDIRA QUE VALIA A PENA CORRER O RISCO DE SOFRER NOVAMENTE O PESO DA IRA DO PAI. POR UM MOMENTO, EMELIE SENTIU PENA DE KARL, MAS DEPOIS OUVIU OS PASSOS DOS DOIS HOMENS SE APROXIMANDO E SE LEMBROU DE TODAS AS PALAVRAS DURAS E DAS AGRESSÕES, E DA NOITE EM QUE GUSTAV FORA CONCEBIDO. KARL NÃO PRECISARIA TÊ-LA TRATADO TÃO MAL., MAS POR JULIAN NÃO SENTIA UM PINGO DE COMPAIXÃO. JULIAN TINHA UM CORAÇÃO CRUEL E DIRIGIRA A ELATODO O SEU ÓDIO DESDE O INÍCIO.

NINGUÉM PODIA SALVÁ-LA AGORA, MAS OS PÉS DE EMELIE CONTINUAVAM A FAZÊ-LA AVANÇAR. SE ESTIVESSE APENAS A SER PERSEGUIDA POR KARL, TALVEZ HOUVESSE UMA ESPERANÇA DE TENTAR CHAMÁ-LO À RAZÃO. KARL JÁ FORA UMA PESSOA DIFERENTE, MAS TINHA MUDADO QUANDO SE VIRA FORÇADO A VIVER UMA MENTIRA. MAS JULIAN NUNCA A DEIXARIA ESCAPAR. DE REPENTE, TORNOU-SE MUITO CLARO PARA EMELIE QUE IRIA MORRER NAQUELA ILHA. ELA E GUSTAV. NUNCA SAIRIAM DALI.

SENTIU UMA MÃO A ESTENDER-SE PARA ELA, VINDA DE TRÁS, QUASE A TOCANDO NO OMBRO. MAS AFASTOU-SE NO MOMENTO CERTO, COMO SE TIVESSE OLHOS NA PARTE DE TRÁS DA CABEÇA. OS ESPÍRITOS A ESTAVAM AJUDANDO. INSTARAM-NA A CORRER PARA A PRAIA, PARA O MAR QUE TINHA SIDO SEU INIMIGO DURANTE TANTO TEMPO. AGORA PERCEBIA QUE O MAR SERIA SUA SALVAÇÃO.

EMELIE CORREU PARA O MAR, CARREGANDO O FILHO NOS BRAÇOS. A ÁGUA SALPICOU-LHE AS PERNAS E, DEPOIS DE AVANÇAR UNS METROS, ERA IMPOSSÍVEL CORRER, E TEVE QUE DIMINUIR O RITMO E COMEÇAR A ANDAR. GUSTAV TINHA OS BRAÇOS EM VOLTA DE SEU PESCOÇO, MAS JÁ NÃO CHORAVA E NEM SEQUER PROTESTAVA, COMO SE COMPREENDESSE.

AO FUNDO, EMELIE OUVIU KARL E JULIAN ENTRANDO NA ÁGUA. TINHA ALGUNS METROS DE VANTAGEM E CONTINUOU A AVANÇAR. A ÁGUA JÁ BATIA EM SEU PEITO E SENTIA QUE O PÂNICO COMEÇAVA A DOMINÁ-LA. NÃO SABIA NADAR. MAS ENTÃO SENTIU QUE A ÁGUA A ABRAÇAVA, A ACOLHÊ-LA E A PROMETER SEGURANÇA.

ALGO A FEZ SE VIRAR. KARL E JULIAN ESTAVAM DENTRO DA ÁGUA A CURTA DISTÂNCIA E A FITAVAM. QUANDO VIRAM EMELIE PARAR, RECOMEÇARAM A AVANÇAR EM SUA DIREÇÃO. EMELIE COMEÇOU A RECUAR. A ÁGUA JÁ CHEGAVA NOS OMBROS DELA E REDUZIA O PESO DE GUSTAV. AS VOZES FALAVAM COM ELA, ACALMANDO-A, DIZENDO QUE TUDO FICARIA BEM. NENHUM MAL LHES ACONTECERIA. ERAM BEM-VINDOS E FICARIAM EM PAZ.

UMA ENORME SERENIDADE APODEROU-SE DE EMELIE. CONFIAVA NELAS. ELAS A ENVOLVIAM DE AMOR. ENTÃO, INSTARAM-NA A VIRAR-SE E CONTINUAR EM DIREÇÃO AO HORIZONTE SEM FIM. ÀS CEGAS, EMELIE OBEDECEU AOS QUE HAVIAM SIDO SEUS ÚNICOS AMIGOS NA ILHA. COM GUSTAV NOS BRAÇOS, DIRIGIU-SE COM ESFORÇO PARA ONDE SABIA QUE AS CORRENTES ERAM MAIS FORTES E O FUNDO DO MAR SE INCLINAVA ABRUPTAMENTE. KARL E JULIAN OS SEGUIAM, AVANÇANDO EM DIREÇÃO AO HORIZONTE E PESTANEJANDO POR CAUSA DO SOL, SEM TIRAR OS OLHOS DELES.

A ÚLTIMA COISA QUE EMELIE VIU ANTES DE A ÁGUA SE FECHAR SOBRE ELA E GUSTAV FOI KARL E JULIAN SENDO PUXADOS PARA O FUNDO PELAS CORRENTES. E TALVEZ POR OUTRA COISA. MAS TINHA CERTEZA DE QUE NUNCA MAIS VOLTARIA A VÊ-LOS. ELA E GUSTAV FICARIAM EM GRÅSKÄR, MAS AQUELES DOIS NÃO. SÓ HAVIA UM LUGAR PARA KARL E JULIAN: O INFERNO.

 

 

                                                                                                    Camilla Läckberg

 

 

 

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