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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ILHA DOS PÊSSEGOS / Odette de Saint-Maurice
A ILHA DOS PÊSSEGOS / Odette de Saint-Maurice

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Precisamente. O meu relógio novo (novo é como quem diz, velho, velhíssimo mas preciosamente restaurado depois de adquirido num ferro-velho numa situação de decrepitude que poucas esperanças dava ao corajoso comprador) bate a meia-hora sequinha. Meia hora depois da 13 de um dia ventoso com o azul do céu a diluir-se atrás de nuvens transparentes. Não me apeteceu almoçar. Tomei uma chávena de chá e comi cinco torradinhas. E principio a escrever. Ou melhor, quero principiar a escrever. Sei perfeitamente que está a ser pedido nas livrarias o meu próximo livro "Nove mulheres e meia". Cedo demais! Porque ainda, nesta ocasião, tudo está mais ou menos como ficou na altura da minha promessa e ainda nem sequer a Mirita Abegorim casou. Temos de dar tempo ao tempo... Por isso mesmo o livro que eu desejava (e desejo) principiar a escrever agora não é esse que um dia há-de contar as vidas definidas das nossas amiguinhas, mas sim "Raparigas de vida vazia", tema com tantos temas, com tanta coisa lá dentro, tantas páginas para encher de um nada transbordante de tudo!

 

 

 

 

Pois é. E... e Pedro e o Paulo? E o desgosto que lhes dou?

Na realidade, estas raparigas, estas, de vida vazia, não têm nada a ver com elas, as outras, as de vida completamente cheia. Ou quase completamente cheia. E no entanto penso que preciso de contar o que sei, como um alerta para muitas que andam por aí a arriscar-se a terem no amanhã apenas a tristeza de coisa nenhuma.

Por isso mesmo devo principiar a escrever. Mas...

Parece que o oiço, naquela interrogação que nunca mais consigo esquecer, não pelas palavras mas pelo tom em que foram proferidas "Madrinha... vai abandonar-nos?... Vai escrever coisas sem ser a nosso respeito? "

Pedro, tenho de reagir, de não deixar que a amizade me tolha, impedindo-me de cumprir o meu dever. Não sou apenas vossa! Começa a tornar-se necessário evitar que um exclusivismo de afecto me obrigue a circunscrever o âmbito das minhas observações aos nossos laços por assim dizer familiares. Eu escrevia, antes de os conhecer! Bem sei que convivi com a Rosa Maria quando ambas éramos meninas. Durante pouco tempo, mas convivi. O bastante para ficar sabendo que ela gostava de ter um dia um filho chamado Pedro. Tu! Porque correspondes aos seus ideais, e percebi-o quando mais tarde voltei a encontrar a companheira de umas férias na praia e ficámos amigas para sempre. De qualquer maneira, antes de me debruçar sobre o caso Macedo, (como por ricochete viria a debruçar-me sobre o caso Abegorim), convivi com outras famílias que me não recusaram as suas histórias para os meus romances ou os seus romances para as minhas histórias...

Lembras-te da Becas? A Becas! Oh, filho, a Berta Maria de cujo casamento te falei há dois anos, uma moça que não casou assim muito bebê, já tem perto de vinte e cinco anos! Pois, pois, a herdeira mais nova de Eugênio Torredalto! Há dias escreveu-me a falar-me da sobrinha, a filha única da irmã que ela adorou a ponto de se tornar num expoente de Dedicação. A Teresinha. A Teresinha que parece em crise, a provar mal numa adolescência que não vejo porque motivos não há-de correr certíssima, visto que nada lhe falta. A não ser que eu tenha de admitir que a Teresinha haja herdado em grande parte o caracter frágil da avó, a formosa e inconseqüente Maria Alice.

Mas não me preocupa só a Teresinha Souzelo. Preocupa-me a Maria da Graça. Muito!

Quem é a Maria da Graça? A Maria da Graça de Azevedo, a filha da Nànu! Conheces, sim. Viste-a uma vez cá em casa. É uma lindíssima rapariga de vinte anos, de cabelos pintados de encarnado (uma cor que a Mãe e o Pai detestam mas isso a ela importa pouco e a mim inquieta-me muito). Uma rapariga lindíssima de cujo procedimento não gosto - e sou bem amiga da Mãe, que soube sempre e em todas as circunstâncias conservar-se digna e merecedora do respeito de toda a gente. Por mal dos nossos pecados, a Maria da Graça dir-se-ia encarnar a maneira de ser volúvel do pai, que muitas vezes tem sido pouco merecedor da paixão que a mulher lhe tributa, essa paixão de fundas raízes que a obriga a nunca deixar de lhe perdoar desde que um dia ela reuniu duas vidas num amor...

Mas há mais gente moça que me tira horas de sono. Há, sim, Pedro. Ora por uma coisa, ora por outra. Por exemplo, o caso da Gabriela e do Paulo (não, não se trata do nosso Paulo! Há mais Paulos na terra tal como há mais Marias...)- O filho da Maria Antónia Val-Rei, aquela moça que ficou sem marido pouco depois de casada. Viúva de um vivo, porque ele partiu mundo fora e não voltou nunca. Uma tragédia, tudo aquilo, até porque... Basta. É impossível pôr-me agora a contar o que foi essa existência que em dado momento enveredou pela beira do desvio. Tão flagrantemente que o Paulo não assina o nome do Pai, só o da Mãe. E o Paulo gosta (mas gosta mesmo) da filha do Gabriel Torralva. Talvez não conheças. Morreu há longos anos, ele. Como o pai da Tónia. Gente do passado a reflectir-se na importância do futuro. Às vezes saio do presente e vou até lá, à procura do que desapareceu. Sentindo que os mortos revivem nas lágrimas que por eles já não apetece chorar. Precisamos das lágrimas para as dedicar a certos factos que hora a hora nos afloram a pele, nos tocam na alma. Como o que está a suceder à Gabriela e ao Paulo Val-Rei. Talvez um dia te explique, mas não neste momento, não quando me sinto de tal forma indecisa que...

bom, sei perfeitamente que tenho estado a falar com a tua imagem, Pedro! Não estou assim tão baLhelhas que possa confundir ilusão com realidade. Mas...

- Venho incomodar. Madrinha?

Esfrego os olhos. Não ouso acreditar.

- Venho incomodar, Madrinha?

Ponho-me a rir. com gosto, de súbito invadida por um alívio infinito.

Ele não percebe. Noto-lhe o ar perplexo.

- Estava tão vaga, quando entrei, que nem deu por mim! Tinha aquele seu olhar que parece descobrir muito para além da gente, para além do que sabe... Como se adivinhasse!... Se de repente não me encarasse. acho que me ia embora sem dizer água vai...

Continuo a rir.

- Se tu soubesses, Pedro!...

Sim, o verdadeiro Pedro. O Pedro Ferreira de Macedo. A realidade e não a visão.

- O quê. Madrinha?

- A longa conversa que tive contigo!...

Ele conhece-me como pouca gente. Conhece-me e aceita-me cada vez melhor. Nas suas dimensões espirituais cabe a pessoa difícil e complicada e fechada que às vezes sou. Por isso certas frases que digo, capazes de sugerirem a outros pensamentos inconvenientes a respeito da minha sanidade mental, a ele não o afectam. E não se lhe afigura nada estranho não ter ouvido o que eu lhe contei. Sem esperar convite (desde garoto que se habituou a considerar a minha casa como um segundo lar - o do Paulo, o nosso Paulo, o Paulo Manuel de Ataíde Lemos, compete com o meu, o do Dr. Abegorim não, que o Pedro ainda faz o seu grande pedaço de cerimônia, principalmente por causa da mãe da namorada, explica-me), puxa uma cadeira, senta-se. E pergunta, a olhar-me numa oferta maravilhosa de compreensão:

- Tem coisas para me transmitir?

- Só a ti?. Não sei. Acho que não devo.

- Porquê?

- Já sabes o que sucede. Se tas revelo, fico exactamente como uma vela gasta. Não dou mais luz! É-me difícil escrever depois de revelar.

- Mas se esteve a falar comigo? ...

- Não cheguei a concretizar fosse o que fosse. E de repente baixo os olhos. E com espanto imenso

verifico o incrível. Está tudo no papel que me parecia em branco. Maquinalmente, velozmente, a mão obedeceu ao pensamento e registou tudo até ao momento em que a voz do meu afilhado (por afinidade) me arrancou a esse mundo imaginário onde há tanto de real, ou a esse mundo real onde há tanto de imaginário.

Impressionada, mau grado meu (sucedem-me às vezes coisas tão singulares!) estendo-lhe as folhas de papel. São duas, garatujadas.

Enquanto ele as decifra, sinto-me dominada pela verificação feita. E entre mais factos singulares ocorre-me à idéia... Não, não, já chega! De resto o Pedro está habituado à minha letra, devora num instante as linhas traçadas. E sorri.

- Tremo de receio. Madrinha!

- Tu?

- Sim! Se se põe a falar desta gente, adeus Macedos, adeus Abegorins, adeus promessa feita!...

- Não, Pedro! Não é adeus... Pode ser até breve, ou até à vista! Como quando vou viajar.

Ele suspira, tem uma expressão antiga, de garoto amuado.

- E a gente que suporte!...

- An?

- Pois, que suporte a ausência!

- Não sejas egoísta, filho! Pois acaso acharás mal que eu vá, por exemplo, até Luanda? A tua Mãe, a tua irmã, a minha afilhada, o teu Pai, não serão merecedores de me terem com eles durante uns tempos?

- Evidentemente! Todos merecem, aliás, concordo. Mas...

- Pedro, por enquanto vou e volto. Um dia vou e não volto. É preciso começarem a admiti-lo.

Reparo que os lábios lhe tremem. E trato de dominar rapidamente o estúpido sentimento de saudade de mim própria que me invade. Luto para afastar o espectro.

- Meu querido Pedro, as pessoas só fazem falta até um determinado momento. Se assim não fosse quem suportaria o amanhã?

- Claro.

- Portanto deixa-te de melancolias e vê como tens agüentado a ausência dos teus... Sobrevives, como a tua casa, não é?

E neste instante sinto que o Pedro se liberta da emoção que o tocara, levando à testa o indicador da mão direita num gesto tão expressivo que me preparo para a comunicação inevitável.

- Que há, Pedro?

- Há, Madrinha, que não vim só visitá-la.

- Ainda bem que me desenganas!

- Mas vim!

- Vejo-te!

- Sabe?...

- Compreendo muito mas não adivinho nada!

- Eu digo.

- Acho óptimo.

- Madrinha... pareço-lhe tonto? Pestanejo. Mas que introdução tão estranha!...

- Tonto em que sentido?

- No sentido exacto. Tonto por patetinha. Ponho-me a rir.

- Podes ter procedido algumas vezes como patetinha, mas patetinha não és!

Ele, com o olhar e a atitude, pergunta-me se pode fumar. com certeza. De resto fumar não passa de força de expressão porque ele queima cigarros. É o costume.

E começa a explicar-se. - Sinceramente, Madrinha, desde ontem que estou deveras preocupado. Acabei de ler, ou melhor de reler, as Meninas.

Ergo as mãos em prece:

- Oh, Pedro, não!

- Não o quê, Madrinha?

- Não vais falar-me do desastre das gralhas que grasnam quase do princípio ao fim na "Revelação"... Conheces o acidente de que não fui culpada e que tanto me afligiu, logo imploro-te piedade... -e puxada por uma suspeita. - Que a não ser assim eu deveria considerar-me uma tonta no sentido de patetinha e sem consultar ninguém a esse respeito!

O Pedro ri-se.

- Minha querida Madrinha, não ia falar-lhe no chorrilho de asneiras (engulo em seco...) que lá está a atestar a incúria de certas pessoas e até a sua falta de respeito pelo trabalho de cada um, mas numa tremendíssíma asneira minha que a Madrinha deixou passar.

Percebo que os músculos das faces se me retezam, numa expressão de alarme.

- Que dizes?

- Digo que a Madrinha não notou a tolice que só ontem apanhei e me deixou boquiaberto e assustado.

- Mas qual tolice?

- Lembra-se da minha carta? A carta com que acaba "O Outro"?

- Lembro-me perfeitamente.

- Tem um livro aqui à mão?

- Além na estante. - e aponto, ansiosa de conhecer o erro.

O Pedro vai buscá-lo e volta, a folheá-lo. E mostra-me a página 210. Indica as linhas que leio a meia-voz.

"A propósito do Artur - que me dizes à colocação que ele arranjou? E pergunto que me dizes porque sei que ele já te escreveu a contar. "

Não percebo.

- Onde está o disparate?

Ele, imperturbável, procura a página 216, indicando-me as linhas finais.

E, num relance, compreendo. Repete a notícia em jeito de novidade, como se nada houvesse dito antes...

Durante momentos nem sei que redarguir, de tal modo me choca não o contra-senso da afirmação tão contrária à antecedente, mas o facto de eu haver deixado passar esse mesmo disparate, eu que fui a única senhora da carta durante semanas e semanas.

Sopro um fumo invisível. Faço dois ou três esgares de incredulidade. Abano a cabeça. Suspiro. E ele, à espera.

- Então, Madrinha?

- Bem...

- Mal, não é?

- Sim, muito mal!

- Como posso eu... ?

- ó filho, e como pude eu?...

- Pois é! Pudemos os dois!

- E não demos por nada!

- Por nada!

- Até ao momento em que também sem se entender porquê a evidência nos salta aos olhos!

Estendo a mão, como se fosse aceitar uma boa palmatoada.

- Pedro, eu sou muito mais culpada do que tu! Porque eu devia ter dado por isto! É natural que te esquecesses do que tinhas dito antes... com certeza não releste a carta.

- Não reli.

- E possivelmente principiaste-a num dia e acabaste-a no outro, ou até dois dias depois...

- Não, Madrinha. Escrevi-a de jacto.

- Espera... Há outra explicação aceitável.

- Qual?

- Tinhas vindo de casa dos teus futuros sogros...

- Ó Madrinha, olhe que eu não bebo!... O tom alarmado dele dá-me vontade de rir.

- Não é preciso beber para ter sono à uma hora da noite.

- Madrinha, estou habituado a estudar até às quatro e cinco da manhã e a cabeça funciona certinha!

Rendo-me.

- Pronto, Pedro, desisto de encontrar explicações. Sucedeu! Esqueceste-te de que o disseras já e, embalado na ânsia de comunicares com a tua irmã, repetiste-te. E eu copiei a tua carta na íntegra e não reparei! Talvez os leitores não hajam dado fé...

- A consciência atormenta-me. O facto de os outros não notarem o pormenor não me iliba da responsabilidade que impera sobre mim. Preocupa-me a tolice em si e o meu alheamento dela. Porque só hoje dei por isto! E fiquei de tal modo alarmado que, sinceramente, admito...

- Admites o quê?

- Um abaixamento do meu estado mental. Olha-me com tanto medo estampado no rosto que

sinto tornar-se imperiosa a necessidade de o serenar.

- Tem calma, Pedro. Qual abaixamento qual carapuça! Distracção, filho, só distracção. Porque se admites em ti esse abaixamento... tens de me considerar a mim em crise de senilidade!

Abre numa gargalhada.

- Estou a ver o seu espírito, Madrinha querida, a andar de bengalinha...

- Exactamente!

- E não anda!

- Não?

- Não.

- Tens a certeza?

- Absoluta.

- Então vamos aceitar que sofremos de algo contrário à chamada ilusão de óptica... Na ilusão de óptica vê-se o que não é. Nós não vimos o que estava, ou pensámos a dobrar!

- Isso!

- E agora o remédio é esperar que nos perdoem a ambos...

- Ou que não dêm muito pelo caso! - e numa esperança, o meu brioso Pedro. - A Ana não se referiu a nada...

- Se notasse, falava-te no assunto?

- Ora se falava! Como falou no resto e...

Não diz mais coisa alguma e ainda bem, porque até sinto calafrios só de lembrar o desastre.

A campainha do telefone soara há instantes e precisamente no e... do Pedro, surge a minha criada Emília - pequenina, magrinha e por vezes tão intratável como noutras eficiente - a pedir delicadamente licença para interromper e interrompendo mesmo sem licença a fim de me participar que "estava ao telefone a senhora condessa de Ribatorpes".

Fico surpreendida. A condessa de Ribatorpes, para mim? A que propósito?

Claro que conheço a condessa de Ribatorpes, embora superficialíssimamente. "Como está, passou bem." "Agradecida"...

Claro que recebo com basta freqüência telefonemas de pessoas que mal conheço ou nem conheço. Perguntam, pedem, informam...

Não creio porém Ana Margarida de Ribatorpes em qualquer categoria que se ligue com perguntas, pedidos, informações...

Encaro o Pedro. O Pedro talvez saiba o que possa querer-me a condessa, amiga intima, amiga de infância da futura sogra.

O Pedro não deve fazer a mínima idéia porque tem no rosto uma expressão que também revela um certo pasmo.

- A minha senhora atende?

- Atendo, Emília.

- Trago para aqui o telefone?

- Pois sim.

Ela sai, eficiente.

Então o Pedro comenta, malicioso:

- Talvez a condessa deseje convidá-la para uma partidinha de bridge.

- Talvez. - e não reajo, que ele bem sabe que a minha pequenina inteligência não abarca a aprendizagem e a compreensão de jogos de raciocínio. Para me cansar existem outras ocupações.

A Emília volta, eficiente. Está num dia completo. Nem sequer tropeça no fio do telefone, o que sucede nos dias da intratabilidade, quando parte tudo e estraga tudo.

E eis-me de auscultador na mão, muito fina.

- Alô? ...

- Sim!

- Como está, condessa, passou bem?

- Agradecida!... E a minha amiga?

- Felizmente!

- Venho incomodá-la, desculpe.

- Por quem é, nem pense tal!

- Interrompi-lhe o almoço, não?

- Não, não!

- Pensei que a esta hora ainda não devia estar a trabalhar.

- Ia principiar dentro de instantes.

- Oh, mil perdões!

- Por favor, não tem importância...

Não conto que os meus pensamentos me atrasaram e que o Pedro adiou o princípio do que estou ainda longe de saber se escreverei ou não. Depende tanto de tanto! Até da certeza de valer a pena...

E fico à espera de que ela se explique, pois sinto na voz harmoniosa, expressiva de uma imensa correcção, o tom evasivo de quem anda às voltas sem saber como iniciar qualquer coisa.

Mas Ana Margarida de Ribatorpes compreende que não pode eternizar-se a pausa telefônica. E começa:

- Sabe... acabei ontem de ler o seu último livro. Queria... -e de súbito entra na rampa que há-de levá-la à verdade. - Dizer-lhe que gostei. é pouco. Gostei imenso e podia justificar este meu telefonema com o desejo de felicitá-la pela maneira como recria para nós a vida de alguns que tão bem conheço. com detalhes de que às vezes no convívio nem nos apercebemos. No entanto este meu telefonema tem outro objectivo, objectivo surgido no meu aplauso e na minha adesão a tudo quanto diz, pois... - e detém-se.

Apresso-me a tranqüilizá-la:

- Estou a ouvir, estou!

- Ah... sim, obrigada!

- A ouvir com toda a atenção.

E a bela condessa, expoente de elegância e delicadeza:

- Preciso de toda a sua atenção.

Se lhe posso ser útil... disponha de mim.

Creio que pode. Sim, creio-o sinceramente. Mas, mesmo que não pudesse, tenho uma enorme precisão de falar com alguém que entenda o que se me afigura absurdo, inaceitável, e é tremendamente real. Hesitei deveras. Até este momento em que a mim própria afirmei "Ana Margarida, ela é a única pessoa que, se não puder resolver os teus problemas, pode, pelo menos, ajudar-te a compreendê-los". E quem sabe, talvez a aceitá-los!...

Uma leve inquietação punge-me.

Ela.

ELA. Eu...

Ai, eu! Se eu tivesse uma varinha de condão para a agitar e num simples gesto resolver os problemas que são postos diante de mim com tanta esperança e pelos quais sou capaz de tão pouco! Mas não possuo nada a não ser esta pena imensa de tão pouco poder, além da adesão total com que a minha alma deseja fazer qualquer coisa. E será esta insignificância como certa definição da própria palavra que um dia em menina li num romancinho que nunca mais esqueci... "algo que bem feitinho às vezes chega ao céu?" E se não chegar ao céu, que chegue como um amparo amigo ao coração de quem busca o meu?...

E claro que tudo isto o pensei num relance, dentro da tal inquietação leve.

Que uma rapariga de quinze, dezasseis, ou mesmo vinte anos, precise deste meu parco auxílio ou com ele se contente, enfim...

Mas Ana Margarida de Ribatorpes? Bom, é forçoso que diga algo, que responda. Respondo.

- Senhora condessa, conte comigo.

- Conto consigo.

- Quando?

- Importa-se que seja hoje mesmo?

Olho os meus papéis apenas com duas folhas garatujadas e deixo de me importar.

- Tenho a tarde livre.

- Sendo assim... permite-me que vá a sua casa?

- Espero-a às quatro horas, convém-lhe?

- Inteiramente.

- Então até logo, senhora condessa.

- Por favor, não!

- Como?

- Só Ana Margarida.

- Pois... até logo, Ana Margarida.

E desligo, devagarinho. E faço sinal à emília que se retire e deixe o telefone. E fito o Pedro com uma expressão que ele interpreta.

- Não faz a mínima idéia do que lhe queira a Ribatorpes?

- Não!

- Talvez pedir-lhe a sua colaboração para alguma festa de caridade.

- com tanta urgência? E aliás referiu-se a problemas. Num tom muito divorciado da tua sugestão.

- Nesse caso melhor se torna não fazer suposições e aguardar.

- Claro! - e começo a arrumar a minha papelada.

São duas e pouco, - observa o Pedro, - vou-me já embora e ainda talvez consiga trabalhar um bocadinho.

- Nem sempre o factor tempo é tudo, filho. A liberdade do espirito pesa mais na balança criadora. E confesso-te que neste momento o meu espirito principia a sentir-se preso na expectativa do que vai ouvir. Porque, seja o que for, já sei que preciso de estar aqui toda inteira.

Toda inteira.

Toda inteira, eu? ...

Tanta coisa a dividir-me, a solicitar-me.

A Emília, que de manhã se esqueceu de ir buscar o correio aparece-me desfeita em desculpas com duas cartas que puxam por mim em direcções diferentes.

A Maria de Fátima e um caso sentimental que tive de ajudar a resolver. (É a segunda vez, com ela).

A Luisa Maria e as suas dores reais, tão cedo começadas!

Pego num livro, tento ler. Não consigo. Poiso o livro no regaço e deixo-me afundar em pensamentos.

Volta a surgir-me a Maria de Fátima e o seu caso sentimental. Recordo como foi que ela me escolheu para me dar toda a sua afeição de filha.

Um dia pôs-se a escrever-me e contava-me uma vida cheia de pormenores tão interessantes que os julguei autênticos e eram deliciosos. Pura imaginação. Inicio de um romance inspirado pelos meus. E surgiu uma estima que se enraizou. E depois do imaginado veio o real. Gostava românticamente de um rapaz vizinho que nunca lhe dissera uma só palavra prometedora de qualquer interesse amoroso. Mas cantava baladas, ele. E à noite, na primavera, vinha para a janela e contemplava a lua e as estrelas, tal como a pequena. A Maria de Fátima julgou-se apaixonada e supôs morrer de desgosto no dia em que soube que ele ia casar com outra. Não morreu e esqueceu-o. Ele casou e mudou de casa. Quando voltaram a encontrar-se, ele devia pesar uns doze ou treze quilos a mais. E diante do homem balofo, gordíssimo, a minha amiga deixou de perceber como pudera sofrer tanto pelo rapaz que cantava baladas. Riu de si própria, rindo do lirismo cruzado com excesso de pão com manteiga (ou pastéis de nata). E não pensou mais no assunto. Nem tornou a apaixonar-se, aguardando sensatamente que o amor lhe batesse à porta do coração a dizer-lhe "cá estou..." Até que há dias...

Assustei-me deveras. Contava-me que o namorado de uma amiga íntima andava nitidamente atrás dela, telefonando-lhe, arranjando pretextos para marcar encontros. E ela pedia-me conselho, confessando não saber ao certo como agir, pois sempre que estava com a amiga ele aparecia e ela receava que a outra percebesse. E não queria deixar de andar com a rapariga que estimava deveras, pelo que se sentia confusa e atemorizada. Confusa e atemorizada fiquei eu. Pareceu-me divisar nas entre-linhas um interesse nascente, uma falta de coragem para dar uma boa lição ao individuozinho sem escrúpulos. É claro que lhe escrevi a apontar-lhe duas soluções imediatas - quebrar com tudo arranjando uma desculpa que não alertasse a outra moça, ou então abrir os olhos da incauta e revelar-lhe o caracter de quem não interessava para marido nem a uma mafarrica - admitindo a existência de mafarricas... Na segunda, porém, havia que prever a incredulidade da rapariga. A incredulidade capaz de a levar a suspeitar até das verdadeiras intenções da pobre Fátima. Tudo pode acontecer...

Hoje, a carta da Maria de Fátima alivia-me. Diz-me aqui "tudo arrumado, definitiva e airosamente. Às vezes penso que não vale a pena ralarmo-nos demais com certos problemas. Deus ajuda e resolve-os por nós. O tipo fugiu para a Suécia, calcule! Fugiu, porque havia aí umas confusões com ele. Soube-se que estava envolvido num caso grave (negócio imundo de estupefacientes)! e conseguiu desaparecer, sem deixar rasto, de um dia para o outro. Respiro aliviada em relação a mim. Foi a tempo. E a minha pobre amiga está a reagir bem ao choque. Aliás, para acabar de curá-la, apliquei-lhe o termocautério da verdade que sabe. E assim salvou-se a nossa amizade. "

Salvou-se tudo, penso. Porque os meus receios não eram infundados. Mais umas semanas e a minha Fátima começaria a sofrer!

Agora, assim, o horror de uma atitude evitou outras que se tornariam perigosíssimas. Ela dir-me-ia, neste momento, que este segundo caso não foi um caso sentimental. Pois não. Faltou-lhe o tempo! E o tempo umas vezes falta para bem, outras para mal.

Com a Luisa Maria faltou para mal. Faltou levando-lhe o pai, deixando-a órfã aos treze anos. E as suas cartas são comevedoras, Há nelas uma dor comovente, profunda, uma dor cheia de inteligência.

"Éramos tão felizes! Vivíamos unidos e não podíamos passar uns sem os outros. A minha mãe e o meu pai. Eu e o meu irmão de dez anos, o Alfredo Manuel! Agora andamos sem perceber como. Durante a semana, como as passo a estudar e me deito cedo e tenho aulas logo pela manhãzinha, chego em certos momentos a duvidar de que haja acontecido. Mas depois vem o domingo... E ao domingo o tempo vago é implacável. Sem o meu pai não há nada! E pensar que se ele tivesse saído de casa dez minutos antes ou depois daquele minuto mau, o automóvel desarvorado não o colheria na primeira curva da estrada onde passava diariamente a caminho do emprego... "

O coração aperta-se-me e olhando a letrinha redonda e clara da Luísa (que não conheço ainda) penso que o sofrimento real desta garota devia fazer corar de vergonha os que se julgam infelizes por coisas mesquinhas, quando não imaginárias.

- Minha senhora! Minha senhora, acaba de chegar a senhora condessa.

Ah... Ana Margarida!

E arranco-me do exterior que me domina e avanço para... Para o outro exterior que vem ter comigo.

E de boa vontade. De mãos estendidas para o que for necessário. E tanto faz que seja dar como aceitar.

Ficamos a tentar reconhecer-nos. Ou conhecer-nos.

Ana Margarida não parece aquela que costumo admirar em centros onde na realidade a sua elegância extrema dá que falar, muito embora uns para bem os outros para mal. Os olhos de um azul transparente dir-se-iam aguados, como que lavados por muitas lágrimas. A boca lembra uma rosa que principiou a murchar. E a silhueta esguia dobra-se ligeiramente. Sim, dobra. A revelar de facto uma extrema necessidade de apoio.

Não há dúvida. Esta não é a formosa e adulada condessa de Ribatorpes que sempre me dirige um sorriso discreto quando também eu passo na minha encadernação de luxo, a verdade da criatura simples que sou muito dobradinha dentro de mim para que as pessoas incapazes de me compreenderem não descubram que é vasta a zona sensível que podem atingir para me magoarem e desalentarem.

Mas não posso pensar nisto. Não é para eu entrar em mim própria que encaro o olhar transparente de Ana Margarida, esta Ana Margarida que tem algo de grave a arrancá-la da imagem habitual.

E por isso não estamos a reconhecer-nos. Mas a conhecer-nos.

Convido-a a sentar-se.

Vejo-a na minha frente, imóvel, como que tímida.

E a primeira palavra que lhe oiço é expressiva de pesos que vão desabar.

- Desculpe...

- Fale, Ana Margarida.

São sete horas da tarde.

Ana Margarida acaba de sair. Comigo o seu desespero, as suas dúvidas, as suas indecisões, a sua revolta.

Poderei fazer alguma coisa por ela? Por eles?

Amanhã, ao fim da tarde, vou começar a percebê-lo.

Espero-o!...

O telefone toca.

- Emília, não estou para ninguém.

Oiço-a dizer, a distância: "Não está não senhor".

- Emília... quem era?

- O menino Pedro!

- Ó Emília, mas ao menino Pedro eu atendia!

- A minha senhora disse que não estava para ninguém!

Não vale a pena refutar a afirmação dela. Já lhe expliquei cinqüenta vezes que há pessoas que não cabem dentro da definição ninguém. O Pedro, o Paulo, os meus lá de longe e mais duas ou três pessoas, são sempre alguém.

Encolho os ombros e vou ligar para o Pedro.

Responde-me a voz do Paulo.

- Saiu neste momento. Estava muito cansado e resolveu ir ao cinema.

- Sabes o que ele me queria?

- Julgo que apenas perguntar-lhe o que há com a condessa de Ribatorpes.

- Calculei. Diz-lhe que problemas com os filhos.

- Era o que nós supúnhamos.

- Tu conhece-los?

- De vista.

Fala-se deles no vosso meio?

É natural que sim, mas confesso que tenho

pouco tempo a perder...

- Isso quer dizer que não costumas ouvir o que não te interessa?

- Exactamente.

- Acontece que o que não interessa pode de um momento para o outro adquirir uma grande importância...

- Convinha-lhe?

- Precisava De saber para além do que a mãe me transmitiu. Até porque certas criaturas têm direito e avesso e costuras e os familiares nunca dão por nada...

- Posso tentar descobrir.

- Não, isso também não! Deixa lá. Eu vou ver se entendo o suficiente.

- Hei-de falar com o Pedro a esse respeito e depois telefonamos-lhe ou passamos por aí.

- Obrigado, Paulinho. E até sempre.

É um palacete sumptuoso.

Deixo o carro diante do gradeamento que contorna o jardim, primorosamente tratado.

A minha chegada, prevista, devia estar sujeita a observação, pois mal me abeiro do portão este escancara-se.

Ali-Bábá tinha de dizer abre-te sézamo para penetrar na gruta do tesouro. Eu não precisei de dizer nada. Uma tal ausência de esforço faz-me pensar que lá dentro talvez não haja nada de muito importante. Como tesouro segundo os meus conceitos da palavra enorme. Porque tesouros, há! Preciosidades!

A escadaria era mármore, atapetada a veludo azul negrão, com os corrimãos em prata (prata-prata-prata!) é lindíssima. A meio, divide-se em duas e o centro está preenchido por um altar em talha doirada (vim depois a saber que pertenceu a uma capela mandada construir por um antepassado do ramo Tamegão, ligado aos Ribatorpes por sucessivos casamentos. Da capela desfeita durante as perseguições à igreja, salvou-se esta maravilha).

São muitas as histórias que explicam a existência da maioria das coisas belas que gostaria de admirar, pressinto-o e pressinto que hei-de conhecer algumas. Agora não sei, nesta sala quase toda cor-de-rosa, senão de dois jarrões da Companhia das índias que devem valer...

- Por Deus, não fique em pé!...

- Estava encantada a olhar estes dois belos potes!

- Gosta de louça bonita?

- Gosto de louça bonita. Mas esta não é só bonita!

- Não! De facto, não! E contudo esqueço-me quase sempre disso...

- Talvez do hábito!

- com certeza! Os pássaros têm asas com a maior naturalidade! -e sorri-me, em jeito de súbita modéstia que lhe fica bem. - Não pense que o digo por tolice...

- Não! Se o pensasse não tinha vindo.

Estamos agora uma defronte da outra. Ana Margarida oferece-me um cigarro, que não aceito.

Ah, pois é, não fuma... -e fuma ela.

E pouco depois:

- Traz algum plano estruturado?

- Não!

Olha-me, como que um pouco desconsolada. E tenho de animá-la.

- Não vai pensar que o facto traduz da minha parte qualquer alheamento da questão... Simplesmente, e depois de todas estas horas em que muito pensei em quanto me contou, cheguei à conclusão de que não posso ajudá-la seja no que for sem conhcer o ambiente. Sem os conhecer - e atalho o que me vai dizer. - Eu sei, eu sei que não será nem fácil nem cômodo... Se desconfiarem do móbil fechar-se-ão como se dispusessem de uma concha hermética.

- Antes se fechassem! -e não baixa os olhos.

- Desprezá-la-ão como estão a desprezar tudo o que devia ser sagrado, porque foi sempre sagrado. As coisas sérias e válidas deixaram de contar, para eles. É o que me aterroriza. Dantes, nós, os pais, as famílias, fazíamos uma idéia do que íamos deixar aos filhos. Hoje, não. Porque a destruição alastra de tal maneira que nós não sabemos o que vai subsistir, o que vai permanecer, o que vai salvàr-se.

- Talvez volte do nada a surgir qualquer coisa. Talvez seja preciso começar pelo princípio. Não ter para ocupar todas as forças a fim de vir a ter.

- Talvez. Mas torna-se extremamente doloroso reconhecer que se quisessem conservar, defender, podia tudo ser tão Bom, tão fácil, tão seguro!

- No fim de contas deve residir nessa fartura o segredo do descontentamento. A ambição perdeu o sentido.

- Ou perdeu-se a ambição, com quanto encerra de construtivo.

Não posso responder.

Abre-se a porta que Ana Margarida fechara ao entrar e surge...

Firmo-me para distinguir.

Ele ou ela?

O ser vivo que avança tem no devido lugar (notam-se sob a camisola) as duas pequenas colinas que costumam denunciar o sexo feminino. Mas, segundo a própria Mãe, ele é um pedaço gordo demais. Em garoto costumavam dizer-lhe gracejando, "qualquer dia usas soutien..." Depois lembro-me de uma outra informação. Ele anda envolvido em cabelos e em pelos. Barba, bigode e caracóis misturam-se numa confusão em torno do pescoço.

Portanto é Ela.

Elegante como a mãe. Elegante pela figura. De resto descuidada e... Sim, um tanto suja. Pelo menos, parece. Traz calças ruças, tingidas e descidas. Vejo-Lhe o umbigo. A camisola, verde clara, de malha de seda, deve ser bonita, mas some-se debaixo de um manto de cabelos negros, lisos, talvez lindos. Some-se a camisola e some-se a cara, magrinha, onde os olhos brilham de uma maneira pouco normal. São os olhos de uma pessoa excitada, de uma pessoa com quem não se pode contar.

Não dou pelo insólito da situação senão um bom bocado depois de ela se haver estabelecido.

Ana Margarida dir-se-ia transformada em pedra, vítima da magia daquela história semi-infantil e semi-tradicional onde se escuta o aviso "e quem isto ouvir e for contar em pedra fria se há-de tornar"...

Tento adivinhar o interior da rapariga que avança tão devagar que nem se dá pelos seus movimentos. Sim, da rapariga que se confunde com um rapaz, ou poderia confundir, dado que Ana Margarida me revelou, precisamente (em pedra fria se há-de tornar) que os seus dois filhos chegavam a vestir as camisolas um do outro. "Ele tem cabelos compridos, mas encaracolados". (pedra fria se há-de tornar). "É mais gordo do que ela" (pedra fria...).

A mocita está agora especada na minha frente. E noto-lhe o sarcasmo contido no sorriso. No esgar.

Quanto tempo decorreu sem que disséssemos uma só palavra?

Olho para o pulso, tentando saber as horas. Oh, esqueci-me do reloginho em casa, o que é raríssimo, porque o amo amando nele... Não tenho ensejo de o recordar porque ela ataca, muito mais violenta do que eu podia supô-lo (se há-de tornar...).

Fala para a mãe mas sobre mim caiem as suas palavras.

- Teimaste na tua? ... Sou então obrigada a aturar a presença desta gaja?

Um dia, há bastante tempo já, houve uma rapariguinha que foi extremamente incorrecta para mim. Até hoje conservava-se caso inédito.

Isto não se parece com isso. Porque isto deixa de chamar-se má-criação. E não conheço qualquer palavra para definir a frase. De resto, sei que tudo devo esperar. TUDO.

(Ai que pedra tão fria...)

E Ana Margarida continua gelada, paralisada. E eu estou pronta para TUDO.

Confesso que me sinto diante de uma coisa cheia de interesse. Como uma experiência de laboratório.

E fico à espera do resto.

Agora o resto é-me dirigido a mim directamente.

- Quando ela me deu a novidade, hoje ao almoço, de que você vinha jantar cá a casa, topei logo o fito. A gaja (insiste na palavra que é feia porque é mesmo feia, coitada dela!) vem aí com as suas manias a ver se me converte ao mundo bom dos seus meninos e das suas meninas seráficos. Pois eu cago (assim)! nas suas meninas e nos seus meninos que tresandam a mofo. Têm boas qualidades? Que lhes aproveite. E que morram bestas, tanto se me dá! Eu sou do meu tempo, vivo a minha liberdade e não me chateiem, quando não mando todos à merda e vou por aí como me apetecer e com quem me apetecer! Portanto, se você acha que o seu tempo lhe faz falta prós seus porquinhos da índia, gire, que a sua parte do jantar fica pr'amanhã fazer croquetes. - e larga uma risada. - A cozinheira da mamã está na casa há vinte e dois anos e é muito econômica.

Ana Margarida parece morta, de gelada. Imóvel por completo.

Eu, pelo contrário, escaldo.

Ergo os olhos a senti-los mais cinzentos do que nunca. Neles, a fulgir, o meu espírito combativo que vem, sei lá, dos tempos da velha Gália... E debaixo daquela chuva de impropérios, começo a rir. - Minha querida, lamento imenso, mas amanhã, se quiseres croquetes, não os comerás à custa do meu sacrifício. Vim jantar a casa dos teus pais, jantarei. Mas com todo o gosto te indemnizo e (abro a carteira e tiro do porta-moedas uma chapinha prateada) aqui tens cinco escudos para numa charcutaria saciares a tua voracidade.

Ela recua como se temesse queimar-se. Deixo cair a moeda.

- Quanto aos teus impropérios confirmam apenas um facto: não gastarei com um verme o tempo destinado aos porquinhos da índia. - e tão serena como se o coração não me estalasse de indignação, volto-me para Ana Margarida.

- Quer fazer-me o favor de mandar sair esta criatura?

Na réplica percebo que a descendente de aristocratas tem espuma na boca.

- Atreve-se a tratar-me por criatura?

- Será acaso a palavra mais ofensiva do que gaja?

- Mas eu estou na minha casa!

- Mais uma razão para respeitares quem nela entrou de visita.

- Lá vêm os sermões!

- Não os oiças e sai.

- Mas...

- Sai!

- Saia você! Se não se sente bem!

- Sinto-me muito bem.

- Nesse caso...

- Sai, Catarina! Imediatamente.

E o conde de Ribatorpes indica à rapariguinha em fúria a porta que ele acaba de transpor.

Catarina esboça um trejeito que parece um insulto. Mas não ousa confirmá-lo. E abandona-nos com uma última frase.

- bom proveito para o jantar! Eu não como.

Durante alguns momentos reina o silêncio. Cortado pelo tique-taque de um relógio que me ponho a admirar. É autêntico Império. E marca horas dentro de uma redoma de cristal.

O conde segue a direcção do meu olhar e diz (é forçoso dizer alguma coisa):

- Bate horas como no tempo de Napoleão. Aliás, foi o Imperador que o ofereceu a um italiano que veio a casar com uma portuguesa antepassada da minha mulher. A partir daí tornou-se herança e certo dia, em partilhas, veio aparar ao ramo de Ana Margarida. Permita-nos que lho ofereçamos.

Sorrio-lhe.

- Não me deve nada, conde! Ou, pelo menos, nada que justifique uma indemnização.

- Desculpe.

- Pelo amor de Deus!...

O homem grisalho e meio-calvo, de aspecto extremamente cansado, senta-se diante de nós.

Ana Margarida continua como que paralisada pelo terrível frio que desceu sobre ela.

- A minha mulher contou-lhe... ?

- Contou.

- E explicou tudo?

- Pelo menos, bastante.

- Disse-lhe que o nosso casamento foi uma

asneira?

Pela primeira vez me tolhem laivos de embaraço.

Não. Ana Margarida não me disse coisa alguma que tal fizesse supor. Pelo contrário, referiu-se ao marido com palavras que me pareceram amigas, devotadas até. E no entanto ela não rebate a inesperada declaração que me faz sentir muito mais vontade de me retirar do que os insultos de Catarina. Assalta-me o receio de ser forçada a conhecer uma intimidade que não me interessa devassar. E ainda um outro, que me põe o coração aos baques. Odeio assistir a disputas conjugais e como conheço gente de condição elevada que se não importa de discutir diante de quem quer que seja, não ficaria boquiaberta se porventura aqui surgisse algum conflito.

Mas não... não há no conde, que contempla a mulher com uma expressão estranha, qualquer animosidade. Pelo contrário. A expressão estranha principia a concretizar-se num ar doce, declaradamente compassivo e enternecido. E Ana Margarida tem os olhos fitos no tapete persa que recobre toda a salinha.

Encaro Sebastião de Ribatorpes. E agora sim, agora posso animá-lo a dizer-me o que tem a dizer se na realidade quiser dizê-lo.

Quer.

- Sabe, minha senhora? Levo 24 anos de dianteira na vida a Ana Margarida. E aí começou tudo aquilo que actualmente se encontra errado. Vinte e quatro anos de diferença podem, a uma rapariga de vinte anos e a um homem na máxima pujança física, afigurarse uma diferença sem qualquer importância. Ela enamorou-se do conquistador que eu era, suficientemente bem-parecido para seduzir sem grandes dificuldades (é modesto, porque foi uma autêntica brasa, Sebastião!.) Eu rendi-me aos encantos da rapariguinha adorável, fascinadora, de uma ingenuidade e de uma candura a que deixara de andar habituado. Foi então que tomei a decisão, eu, o celibatário empedernido, de a desposar. Toda a gente achou muito bem. Creio que ninguém revelou a Ana Margarida certas verdades que nos esperavam e haviam de ensombrar o que chegou a ser uma felicidade completa. Entre elas, esta: eu vivera imenso, ela nada. Eu aproximava-me do termo, ela começava. Nos primeiros três anos, tudo certo. O que um queria, queria o outro. Depois nasceram a Catarina e o João Alfredo. E eis as noites mal dormidas. E as criancinhas a chorar às sete da manhã. E eu ensonado protestando. E eu ensonado a não querer sair quando Ana me pedia que fôssemos aqui ou ali. Estavam os cinqüenta a bater-me à porta... E Ana ia nos vinte e quatro... Então mandámos vir uma miss. Agravou-se a situação num sentido. Noutro melhorou. E ante o alivio, não percebemos a gravidade do que se passava. Dormíamos bem, saíamos sem problemas. Viajávamos. O amor continuava forte entre nós - e repare que quando afirmo que o nosso casamento foi uma asneira não pretendo dizer que desconhecemos a ventura a dois... Faz-me bem repetir-lho. O mal era outro. Tornou-se outro. As crianças desabituaram-se de nós. Choravam - acudia a miss. Acordavam de noite tinham a miss. A miss dava-lhes banho, dava-lhes de comer, tudo. E a cisão alargava. Quando foram para o colégio, sabíamos muito pouco acerca deles. E entretanto Ana Margarida criara um estilo de vida. Recebíamos numerosos convites. Eu ultrapassara a casa dos cinqüenta, nem sempre me apetecia ir a festas, jogar até altas horas. Sabia-me bem ficar na minha biblioteca aconchegado, a ler calmamente um livro. E surgiu o primeiro "vai tu, filha, vai tu..." Relutante até achar natural, Ana Margarida passou a sair sem mim. Cada vez mais. E nos meus solitários serões eu pensava que me fazia falta uma companheira da minha idade, uma companheira que também preferisse ficar em casa, quieta e sossegada ao meu lado. Ora Ana Margarida ia nos trinta e poucos... e estava cada vez mais bonita! Julgo que na sua honestidade absoluta freqüentemente deve ter sentido nas festas, em casa das amigas, a falta de um marido jovem como ela, como a maioria dos maridos das amigas. Cada um de nós reconhecia a asneira. E as cruas realidades dessa asneira não encontravam remédio. Tudo quanto se fizesse ficava na ordem dos paliativos que aliviam sem curar. E assim chegaram os treze anos de Catarina e os onze de João Alfredo. Nenhum deles gostava muito de estudar. Nenhum de nós sabia do que verdadeiramente eles gostavam. Até que a miss a quem a morte de um parente deixara rica anunciou o seu regresso a Inglaterra. Foi quando decidimos internar os pequenos em bons colégios. Em muito bons colégios. - (Noto que a sua amargura se acentua extraordinariamente e começo a ter um travo a fel na boca.) - A asneira ia-se tornando cada vez maior. Porque eu entrara na fase em que receava perder a minha mulher. Ficar sem ela, roubada pela vida, e quando a vida decide roubar não há cofres de segredo invioláveis. A vida não me queria roubar. Eu estava com a minha imaginação doente. E para adormentar temores, eis-me a transigir mesmo com o que necessitava de paredes intransponíveis. E dizia a tudo "faz como entenderes". Ana Margarida continuava novíssima. Adorada e adulada num meio cheio de defeitos, num meio que encobre vícios e taras como outros tapam misérias. Fingindo uma superioridade desumana. Desdenhando o que não possuem. Assumindo poses sem resultados práticos. Existindo só por fora. Tomando remédios para dormir porque se recusam à noite a perceber que não possuem nada que preste a não ser aparências. Ana Margarida não reconhecia que andava intoxicada. Eu recusava-me a aceitar os factos e a mostrar-lhos. No fundo, havia comodidade à nossa volta.

E de súbito, inesperadamente, oiço a voz da condessa de Ribatorpes.

Numa palavra solta:

- Egoísmo.

Verifico, com assombro, que marido e mulher estão de mãos dadas. Como que necessitados ambos de se apoiarem um no outro para continuarem.

Sebastião ecoa.

- Egoísmo. E isolados nesse egoísmo escolhemos, por indicação de uma duquesa austríaca, dois óptimos colégios, modernos, evoluídos, próprios para a nossa época. O dele, em Milão. O dela, nos arredores de Londres. É claro que seduzidos pela idéia do estrangeiro acharam delicioso ir aprender línguas. Línguas vivas ao vivo. E lá foram. Da orientação dos colégios, para qualquer dos sexos fazia parte uma intensa liberdade. Eu supunha que se tratasse daquela liberdade condicionada e vigiada que se deve aconselhar, permitir, a fim de que todos aprendam a tomar conta de si. Saíam com quem queriam, como queriam. Viajavam. Quando vieram as férias, no ano seguinte, estavam adaptados àquela forma de viver e troçavam abertamente dos fósseis que, como eu, discordavam de tanto. Ana Margarida não me ajudou a combater. Quase que me considerava fóssil, também, porque no seu meio os filhos dos amigos usufruíam da mesma liberdade. Certa noite decidi conhecer uma boíte especial para a juventude. Sim, repare!... Censuram-se os espectáculos, limitam-se as entradas de menores nos cinemas e nos teatros (e muito bem, que quanto a mim devia principiar no mundo uma luta dos governos contra a imoralidade, mas luta que dispusesse de plenos poderes para queimar todas as produções abjectas e pornográficas!) e autorizam-se boittes para adolescentes. Ana Margarida gabara-me aquela em todos os tons. Era cópia de uma que existe em Berlim, parece. Lá fui. Logo à entrada ia-me estatelando. Não via o lance de escadas que levava à cave. NÃO VIA! Não via nada, ia quase às apalpadelas. Sentei-me no chão. Tomei uma droga que me afirmaram ser especialmente preparada por um barman diplomado a fim de animar a gente moça sem lhe prejudicar o organismo com bebidas alcoólicas. No dia seguinte ainda me sentia agoniado. Ouvi canções decadentes, ritmos sensuais, tambores que pareciam vibrar dentro das veias. Quando os meus olhos se habituaram à escuridão, distingui-os por ali, sentados, estiraçados. Uns meneando-se no centro da sala. Outros colados sem saírem do mesmo sítio, de olhos nos olhos. Outros ainda beijando-se.

Ao meu lado, um médico da moda, que fazia parte do grupo com o qual estávamos, comentava, entusiasmado: que mocidade feliz, an? se havia disto no nosso tempo! Não havia, não! E não sei se fez falta a alguém. Todos, à minha volta, achavam que sim. Eu... continuo a interrogar-me como então: fará?... que sairá disto? que lhes ficará? Bom, creio que estou a alongar-me demais. Porque estas são considerações, neste instante, sem interesse de maior. Tenho de voltar a nós. Acabadas as férias, a Catarina e o João Alfredo regressaram aos seus colégios. A educação deles levou cinco anos. E agora... andam por aí! A ela, já a viu. A ele, não deve tardar a ver. E entretanto eu cá estou, mais ou menos como me tornei na altura em que o meu lar me pareceu a coisa mais importante do mundo. Já não estranho nada. Verifico. E dentro desta verificação cabe o reconhecimento de que Ana Margarida é hoje uma mulher infeliz, com um marido velho, dois filhos que são mais do que dois inúteis, dois idiotas. Ela começou a dar por isso depois de dobrar o cabo tormentoso dos quarenta anos. Principiou a amadurecer. A reflectir. E a assustar-se.

Faz uma pausa. Não percebo se porque a fadiga lha impõe, se porque deseja que eu apreenda tudo o que as suas palavras encerram.

Espero que recomece.

- A Catarina está com vinte anos. O João Alfredo com dezoito. Ela livre de tudo o que podia ser uma directriz. Ele talvez livre do serviço militar, porque uma miopia adiantadissima, se for notada por médicos que reparem que ele se chama "de Ribatorpes", é capaz de o deixar sem quaisquer obrigações, o que no fundo cobardemente desejo. E Ana Margarida compreendeu de chofre o horror desta situação. Aliás teve dela a noção porque na esfera social onde orbita (e faço-lhe notar que continua a orbitar porque se habituou a esta espécie de narcótico que lhe preenche as horas vazias) principiaram a dar-se casos gravíssimos. Herdeiros de nomes respeitáveis transformaram-se em ratos de automóveis, em ladrõezecos por divertimento, em tarados sem préstimo algum. O filho de uma amiga foi preso. O filho de outra foi assassinado, nunca se apurou por quem. Duas raparigas fugiram de Portugal. De uma não houve mais notícias. A outra encontraram-na morta numa estrada de Espanha, julga-se que de fome e cansaço. Desta ainda me recordo bem... Era uma pequerrucha adorável. Oiço um soluço.

A condessa de Ribatorpes está viva. E chora sem acanhamento. A dor transborda no coração desta mulher admirada e até imitada pelas que neste momento iniciam uma existência encaixada nos trilhos em que ela circula.

O conde fita-me a direito. Aceno, num suspiro, toda a minha compreensão. Toda a minha pena. Ambas inúteis!

Que posso eu fazer?

E dá-se o que costuma definir-se como transmissão de pensamento. O olhar de Sebastião de Ribatorpes nubla-se. E sem firmeza alguma, ele que tão bem soube resumir toda uma vida, articula:

- Não... não acredito que não possa fazer nada! Eu já não tenho esperanças. Mas ela... tem-nas. Por isso foi procurá-la, por isso lhe pediu que viesse...

- Está bem, conde. Desistir não é de mim. Não julgo possível combater uma corrente. Corre-se o perigo de se ser submergido, de se ser aniquilado. Mas não fugirei à frente dela.

- Por agora, para nós é muito importante a sua coragem. Ana Margarida tem ouvido falar muito de si. A maior amiga dela, a Teresa Mafalda Abegorim...

- Eu sei, eu sei.

- conhece pelo Pedro de Macedo a enorme influência que exerce na gente nova e...

- Dá-me licença, conde? - com certeza.

- A gente nova que me atende e entende não está estragada. Por isso as suas indecisões, os seus conflitos, as suas insatisfações, aceitam o amparo, o conselho, o estímulo. Felizmente neste mundo perdido ainda há muita gente nova assim, capaz de aperceber-se dos perigos, dos caminhos que levam à destruição. Capaz de querer uma existência válida. A essa é bastante fácil chegar... mesmo quando se abeiram do erro. E tenho a impressão de que todos os novos um dia se acercam de um ou outro barranco... A perfeição não cabe nas dimensões de ninguém e muito menos nas de quem ainda não atingiu as suas exactas proporções. Para ser totalmente franca, até lhe digo mais: a santidade na adolescência aflige-me como me afligem as anomalias. É qualquer coisa que nada possui de humano.

E agora, gritante, uma voz corta-me o fio dos pensamentos. Entra na sala:

- São oito e meia! Não se janta nesta casa?

Ana Margarida estremece. Sebastião esboça um gesto na direcção da porta.

- Eis o João Alfredo que chega!...

Eis o João Alfredo diante de nós. Sem o ar agressivo de Catarina.

Realmente é gordo, o que o faz parecer baixo. Traz as calças (bluejeans) descidas, justas. Uma camisola comprida cor-de-rosa. Um lenço de seda branca colocado à volta do pescoço, com um nó e duas pontinhas. É quase loiro. E os longos cabelos encaracolados misturam-se com a barba e o bigode cujas guias descem reviradas. Os óculos de lentes grossíssimas não me deixam perceber a cor dos olhos. Curioso! Não é repelente. Tem um ar engraçado de boneco de desenhos animados. Ou antes, de fantoche.

E a voz é de fantoche.

Parado, mirando-me (não saberá quem sou?) pergunta:

- É preciso vestir traje de luces?... Ou come-se em família?

O coração dá-me um salto no peito. Ele faz perguntas... Talvez então não esteja tudo perdido!

Mas a pequena esperança que me agita sofre um sobressalto que não tarda em afundá-la.

Sebastião de Ribatorpes tem um movimento vago. E uma resposta singular:

- Come-se em família.

E João Alfredo, na minha direcção:

- Não me apresentas a convidada para a mesa patriarcal?

É Ana Margarida quem diz o meu nome, numa voz destimbrada.

Ele recua como se visse bicho. Tento sorrir:

- Meto assim tanto medo?

Estala uma gargalhada naquele emaranhado de caracóis que escondem o desenho da boca.

- Oh... imenso!... Tanto que preciso de me defender!

E vira costas e some-se.

Não percebo nada do que se passa.

A condessa e o conde levantam-se. com um sinal (dir-se-ia que nenhum consegue falar) pedem-me que os acompanhe.

Atravessamos o vestíbulo. Seguimos por um corredor cujas paredes estão, quase por completo, tapadas por quadros que são obras-primas. Mal posso acreditar quando, de relance, diviso algum dos nomes que as assinam. Van Gogh, Manet, Rembrandt, Picasso, Renoir (o meu grande favorito). Uma pequena tela de Vieira da Silva. Columbano. João Reis. E dois primitivos que me encantam.

Por momentos julgo que não me encontro numa casa particular, mas numa: galeria de arte.

O conde nota o meu assombro e a satisfação que do facto resulta como que vence o mal-estar de pouco antes.

- São belos, não?...

- Não sabia que alguém os pudesse ter assim...

- Assim?

- Juntos, lado a lado. Um só vale uma fortuna!

- A maioria herdei-a de um avô que viveu em Paris e ainda a comprou por bom preço. O Picasso foi oferecido pelo próprio. É de uma primeira fase.

- Maravilhosa.

- Concordo. A fase azul. Pouca gente sabe da existência deste quadro. E que está em Portugal ainda menos. Creio que nem o autor se lembrará do seu possível paradeiro.

É essa uma das coisas que sempre me impressiona

em relação às obras de arte. A alma que as criou perde-lhes o rasto.

- Não a todas.

- Mas a imensas!

- Torna-se inevitável, quando são em número desmedido, como a obra do mestre espanhol. De resto, os gênios pertencem ao mundo. Do mundo é a sua herança. - fita-me a direito. - Sou um coleccionador de sangue. Infelizmente não transmiti o germen a ninguém e...

Não acaba a frase. E a direcção que os seus olhos tomam, arrancados de mim, obrigam-me a virar-me para trás e a ficar de boca aberta. Como tenho a boca aberta, ponho-me a rir.

Compreendo num relance a pergunta que me dera esperanças de um ajuste a preconceitos que são civilização, logo dignificação da espécie. E a resposta.

"Traje de luces? "... "Come-se em família".

João Alfredo foi mascarar-se. Traz envergada uma espécie de toga vermelha salpicada de lantejoulas azuis e brancas. Nos pés nus calça sandálias douradas. São dourados os aros dos óculos. E traz os caracóis dos cabelos, da barba e do bigode, polvilhados com... laca doirada.

- Estás lindo! - afirmo, enquanto Ana Margarida desaparece no interior da sala (salão) de jantar.

Ele parece um pouco surpreendido ante o meu acolhimento. Sei perfeitamente que queria escandalizar-me. Não o conseguiu e isso embaraça-o. Logo, porém, assesta as baterias para atacar noutra direcção, o que mostra que não é tolo de todo... Faz-se!

- Calculo que o meu progenitor ia começar a lastimar-se por nenhum dos filhos ser um apaixonado das obras que a família amontoou. É mania. Está bem à vista que eu sou um rapaz dotado por uma sensibilidade artística apuradíssima! E mal compreendida! Porque passo horas a pensar nestes belos quadros do vovô e da vovó que um dia me hão-de render uns bons milhares de escudos...

O pai não se contém.

- Se julgas tal...

Ele torna-se escarninho.

- Não pode nada contra!... A mana e eu somos os herdeiros, queira ou não queira.

- Ver-se-á!

Os olhos piscos fuzilam ao abrigo das lentes.

- O pai não se atreve a fazer o que disse noutro dia!

- Farei, sim.

- Espero que não viva o suficiente para nos roubar. Tudo isto é desagradabilissimo!

O conde apoia-se à parede. Olha-me como se precisasse de socorro. com voz embargada, explica-me.

- Quero legar a minha colecção a um museu... salvá-la destes vândalos!

- percebo-o perfeitamente. E no entanto, se me permite uma opinião, creio que não deve preocupar-se por ora com o problema. O mundo dá muitas voltas. E depois, no fim de contas, o destino do futuro é muito com eles e muito pouco com o conde.

- Mas?...

Sei que não pode ler-me os pensamentos. Ninguém pode lê-los. E insisto:

- O conde fez do que lhe deixaram o que quis!

- E o que quis está aqui!... Obras de arte como estas não podem ficar à mercê da destruição.

- Em primeiro lugar, talvez não haja destruição. Em segundo lugar e muito embora nos cumpra saber defender um patrimônio, também temos de admitir que nada é eterno e muitas vezes a própria vida se encarrega de espatifar o que se nos afigura, e é! precioso! Não vale por isso muito a pena sofrermos em excesso com o que virá um dia, depois de nós.

Ana Margarida está entre portas e tenta sorrir:

- Querem vir? A sopa arrefece... Entro na sala (salão) de jantar.

Os móveis imponentes, Renascença, deslumbram-me. As pratas surpreendem-me. As loiças espantosas, sobre os lambris, fascinam-me. Nunca de facto os supusera tão ricos.

Na enorme mesa rectangular, coberta com uma toalha de renda (autêntica de Veneza) e posta com o maior requinte, quatro lugares. Os donos da casa às cabeceiras. Eu e o João Alfredo um de cada lado. Uma grande separação entre todos. Um imenso vazio no salão.

Um jovem criado negro (trouxe-o da Guiné o conde quando ele era pequenino) aguarda, com a terrina nas mãos, que nos sentemos para nos servir a sopa, à antiga. É um creme de espargos, óptimo. Mas evito olhar para João Alfredo. Vê-lo comer enoja-me e temo não acabar esta coisa que me sabe deliciosamente. Porque é mesmo boa ou porque já são nove e tal... ?

Agora o Nicolau (o pretinho) apresenta a travessa de peixe. Filetes de linguado com banana. Não gosto, mas procuro ser correcta e ocultar que detesto toda a espécie de manjares que levem banana. Prefiro a banana sem mais nada...

Entretanto não consigo deixar de reparar em João Alfredo. Come com as mãos!...

Tento captar no rosto de Nicolau a impressão que isto lhe fará. Nicolau deve ter aprendido a ocultar os seus sentimentos. Porque é impossível que ele não recorde algum pobre indígena sem quaisquer noções de civilidade devorando em jeito de macaco ao olhar este expoente de educação que busca...

- A pureza dos princípios!...

Ah, sim, é João Alfredo que o diz, não sei ao certo porquê. Alheei-me de tal maneira do ambiente que nestes poucos instantes não dei por nada. Adivinhou-me ele por acaso as reflexões? Ou falei alto, como tantas vezes me acontece em horas de solidão?

Procuro um indício do que possa ter acontecido nas reacções dos donos da casa. Não há reacções. Acabam de comer o seu peixe requintado enquanto eu esfarelo o meu no prato.

Nicolau passa pela segunda vez com o tabuleiro de vidro inquebrável dentro do seu estojo de prata lavrada. Ninguém repete.

Encaro João Alfredo e decido encetar um diálogo partindo da frase que assim captei. E não revelo o meu afastamento momentâneo.

- A que chamas pureza de princípios?

- A tudo o que for simples, natural. Deixar as coisas como são na origem sem nada forçar! Voltar aos estados primários, que é onde reside o segredo da felicidade. Não fazer nada, acabar com a escravatura das regras, das leis, das ordens, das conveniências! Acabar com tudo isto!

- Queres dizer... recomeçar?

- Como?

- Sim, desde que se acabe com tudo e se fique sem nada, a estrutura humana, inevitavelmente, conduzirá a uma busca incessante que volta a reconstruir...

- Não vejo a necessidade!

- Não vês a necessidade?

- Não!

- Um de nós dois precisa de ser esclarecido e vou desde já admitir que a ignorância é minha.

Temos agora diante de nós uma bela fatia de roast-beef à inglesa - ou seja, acompanhada com batatinhas cozidas e ervilhas.

Maquinalmente, como. E só paro porque as palavras se me enrolam na carne o que se torna desagradável para mim e para os outros.

- Ora partindo do princípio a que aludiste, (acabar com a escravatura das regras, das leis, das ordens das conveniências, ou seja, com isto!) encontrar-te-ás naturalmente, tu e quantos perfilharem as tuas convicções, regressado a um estado de carência de tudo. Por detrás das lentes brilham umas pupilas um tanto intrigadas, percebo. E continuo, afoita:

- Sendo assim, terás de viver como os homens das cavernas! Porque não queres persuadir-me de que desejas esse retrocesso que te fará voltar a distâncias perdidas num passado de que os homens não têm saudades mas conservando palacetes, comodidades, pessoal para te servir, automóveis...

E ele, na demonstração cabal do contra-senso das suas aspirações:

- Claro que desejo conservar o máximo!

- Ah!

- Por isso digo que o principal é não fazer nada e deixar andar... Não sou tão parvo que vá renunciar à minha fortuna! O que eu quero mesmo é aproveitá-la sem limitações que até agora não foi de outra maneira nem será, que aí os velhos esmifram o dinheiro sem lhes custar muito. - E sem me dar tempo a reagir a esta feíssima expressão os velhos e dando meia-volta no assunto para fugir à controvérsia comigo, dirige-se ao pai, que acaba de mastigar o pouco que pôs no prato. - A propósito, Sebastião, tens de abrir os cordões à bolsa. O meu carro já não está capaz!

Pela primeira vez após o início da refeição o conde se faz ouvir.

- Um carro comprado há oito meses?

- É como te canto! Saiu o novo modelo sport e o meu cheira a bafio. Está bom para fósseis ou conservadores, que vem tudo a dar no mesmo. Amanhã passo pelo stand, deixo lá o velho e vou-me até ao sul de Espanha com um novo.

Intervenho.

Não sabia que tu, João Alfredo, ganhavas assim tão bem!...

Ele olha para mim como se houvesse escutado o roncar de um trovão em dia de céu azul.

- Como? Repito silabando.

- Não sabia que tu ganhavas assim tão bem.

- Ora deixe-se de piadas! Não ganho nem bem nem mal. Vivo!

- Mas para viver, infelizmente, há que ter dinheiro! Foi um dos males da civilização que principiou pela certa no dia em que um homem precisou de um vaso de argila e o outro de uma pele de cabra e para que a troca se fizesse um deles deu ao outro um pedaço de chifre de boi...

Distingo, de súbito, um sorriso no rosto de Ana Margarida. Um sorriso que me anima. É uma mulher ainda muito nova, não lhe faltam forças bastantes para reagir. com Sebastião é pior... Ele escuta o diálogo com atenção, mas nitidamente sem esperança.

O assunto enche-se de interesse. João Alfredo como um peixe ingênuo morde na isca que lhe lanço. A ver se o anzol actua...

Ele espera que eu diga mais qualquer coisa. Direi.

- Tu, João Alfredo, desejoso de te sentires em liberdade primária, devias renunciar ao dinheiro! Compreendo no entanto que a tua liberdade se situa numa época muito mais avançada, época de escravos. O dinheiro, para ti, é um escravo.

- Com certeza!

- Ora esse escravo custa fortunas... Gênio servidor de um quase Aladino, abre todas as portas esbanjando sem contar. E isso só é possível quando se dispõe de dinheiro!

- Eu disponho de dinheiro, evidentemente!

- Trabalhas?

- Eu?

- Ganhas?...

- De acordo com o seu critério, não.

- Sendo assim e visto que vives... dão-to os teus pais, todo?

- Vamos lá a pôr os pontos nos üs. Não mo dão, adiantam-mo. Tudo o que aí está (e esboça um gesto largo) e o muito mais que não se vê, pertence-me e à Catarina. Portanto, vou gastando agora que sou

novo e...

- Um momento.

- Faça favor.

Estranho a delicadeza inesperada. Talvez resulte do facto de ele estar a lamber no pires, à gato, um delicioso sorvete de chocolate com natas. Tem a boca muito doce...

- Tu acabas de dizer duas coisas importantíssimas. Vais gastando... Ora há que admitir uma velhice demorada nos teus pais, tanto mais que a tua Mãe está longe de ser idosa... O mundo dá muitas voltas. Torna-se lícito admitir que numa delas qualquer coisa submerja a fortuna... e depois? - atalho o impulso dele a querer interromper-me. -Quanto a ti... admitiste com estas palavras a tua posição actual "agora que sou novo..." Mas não vais ficar sempre novo.

Os anos passarão. Tornar-te-ás um adulto completo. Cansar-te-ás. Passarás de grotesco a ridículo. De palhaço a faz-tudo. E se isto houver desaparecido numa voragem de inutilidade?

Ele limpa o bigode e as barbas empapadas em doce às costas da mão, anota (abençoado primitivismo), e põe-se a rir.

- A vida para mim não tem amanhã.

- Ah, não?

- Não! É hoje, e depois de hoje outro hoje, e mais outro hoje, sempre hoje!... Por isso não posso envelhecer.

- Ah, não podes... ?

- Quanto ao desgaste da fortuna, leva seu tempo!... Aliás sei muito bem com o que posso contar. Viu os quadros no corredor? E há muitos mais no salão de festas e bastantes na cave... Alguns deles, aos poucos, hão-de dar-me uns anos folgados, hoje e mais hoje e sempre hoje... com o Picasso conto eu para comprar um iate, que aí o velho está na retranca e teimoso!... De resto o iate por agora não me faz grande falta... O meu veleiro dá-me prazer. E o barco a motor da Catarina também. O meu carro, isso é que já não! Vai para a sucata se não mo trocam.

- Para a sucata? - indaga repentinamente Ana Margarida, que deve adivinhar as intenções dele.

- Olá! Amachuco-o em qualquer sítio!

- E o teu precioso físico, João Alfredo?

Ri e mostra uns dentes bastante porcos. Pena, porque devem ser esplêndidos.

- Não corre perigo, o meu precioso físico. Um compincha qualquer reboca-mo e catrapuz... nem os espelhos retrovisores se aproveitam!

O conde altera-se.

- Não te esqueças de arranjar complicações com a companhia de seguros.

- Porquê? Não tens dinheiro para abafar o escândalo? - e de um cinismo crescente. - Vendes uma das tuas terrinas da Companhia das índias...

- Vendo tudo, não?

- A mim não, que não sou negociável. Decido trazer de novo o futuro conde (sim, que ele é o futuro conde de Ribatorpes e barão de Montelongo!) para o assunto em que estávamos e dentro do qual posso puxar por ele.

- Pois, se me dão licença, não sei realmente porque não há-de o João Alfredo, visto que as obras de arte não lhe interessam, vir a realizar com elas óptimos negócios!

- Como? - e este como, em três entonações distintas, soam simultâneas. No espanto que as envolve há pasmo, incredulidade e decepção.

Ana Margarida e o conde não apreendem, de súbito. Lá chegarão. Prossigo.

- Vejamos. Os bons quadros, entre nós, são raros. E quando digo bons quadros refiro-me a quadros não apenas bons, mas assinados por gênios. Ora existem riquezas nas mãos de verdadeiros amantes destas preciosidades que não hesitariam em desfrutar a posse de uma ou várias telas aqui existentes. Ficariam loucos ante a hipótese de se apropriarem do que se lhes afiguraria um mito. E assim todos lucrariam! Os quadros iriam pertencer a quem os estimaria como merecem e o João Alfredo ficaria com dinheiro mais do que suficiente para adquirir o que lhe interessa.

- Mas...

- Um momento, conde! - e continuo, seguríssima. - Ora por exemplo... o Picasso, segundo o João Alfredo, dava um iate. O Manet talvez um Ferrari especial. O Van Gogh, suponhamos, um trajo romano bordado a pérolas autênticas. O Rembrandt... um palacete. E o Renoir... porque não uma ilha deserta capaz de se transformar num paraíso terrestre para cuja manutenção os restantes contribuiriam?

Ana Margarida disfarça, bem, o seu alívio. O conde bebe o café, que recusei, com ar de pessoa de repente divertida.

João Alfredo volta a rir.

- Eh, eh... isso é imaginação, realmente!... Não me tinha lembrado da ilha deserta! Eh, eh... boa laracha!... O pior é arranjar a ilha...

- Talvez o governo da Nação não se importe de entrar num acordo contigo, João Alfredo.

- Num acordo?

- Exactamente!

- Tu comprometes-te a ceder um número de quadros em pagamento de uma ilha.

- Mas qual ilha?

- Porque não a Berlenga?

- Hum... a Berlenga? ... Já lá estive, não gosto. De inverno o mar é mau.

- E isso que tem? Adquires um helicóptero para serviço da ilha.

- Na... é muito árida! Para paraíso, não serve. Enfio-me resoluta na fantasia.

- Mas dá uma das ilhas mais pequenas dos Açores!

- Dos Açores? São todas habitadas.

- Todas não! A ilha dos Pêssegos deve albergar quando muito umas dez famílias que de certo não se importariam de mudar para a ilha das Flores, ou para a ilha do Corvo, a troco de uma indemnização.

- A ilha dos Pêssegos? Nunca ouvi falar!

- A sério?

- Nunca!

- Bom, não deixa de ser natural. É tão pequena, em comparação com as outras, que nem sequer vem mencionada nos mapas. Ou antes, aparece nos mapas como um sinalzito sem nome.

- Mas se é assim minúscula... ?

- Minúscula mas não tanto que não dê para viver! É linda. Passei por lá há anos. Tem praiazinhas deliciosas! E distingue-se das outras por ser coberta por milhares de pessegueiros.

- Tu não vês que a gaja está a chuchar contigo? Ignorante!...

É claro que só uma voz podia deixar cair na sala, como pedradas, estas palavras agressivas. Tão agressivas que João Alfredo, chicoteado por aquele ignorante, se volta para Catarina, irritadíssimo:

- E se não te metesses onde não és chamada? - Mas tu estás a ser levado, anjinho!

- E depois? Tens alguma coisa com isso? Degladiam-se. Estão em pólos opostos. Nada representam um para o outro. Estorvam-se. Esta certeza relampeja diante de mim e vislumbro a tragédia possível. A tragédia que já ali está.

João Alfredo levanta-se e dá dois passos para Catarina.

Gira daqui p'ra fora. E de bico calado.

Ela encolhe os ombros, como se na ordem houvesse uma ameaça de que ela não tivesse medo, ou não quisesse ter medo.

- Fica-te com as tuas parvoíces! Passa bem... Passem bem, todos!

Ana Margarida não se contém. Ergue-se, avança rapidamente para ela, segura-a por um braço.

- Para onde vais?

- Para onde me apetecer!

E desaparece como surgiu, de repelão.

O conde de Ribatorpes apoia-se à mesa, cotovelos sobre o tampo, cabeça entre as mãos como se não se sentisse bem.

Nicolau avança para ele, toca-lhe num ombro, pergunta:

- Senhor conde... precisa alguma coisa?

- A pastilha!... Esqueci-me delas no quarto. Nicolau sai a correr.

Ana Margarida olha o marido com uma expressão de pavor.

João Alfredo saboreia o café.

Nicolau volta, tão depressa que dir-se-ia não ter ido além da extremidade do corredor. Entrega o frasco desrolhado ao amo, que engole rapidamente o pequenino comprimido.

Reconheço o medicamento. O suporte de um coração abalado, de um coração em perigo.

Ana Margarida balbucia.

- Já te sentes melhor, querido?

Um gesto vago a dizer que sim. A assinalar-nos que não devemos preocupar-nos.

- Talvez seja melhor eu retirar-me. O conde precisará de descansar...

E João Alfredo:

- Aquilo passa depressa. Depois fica outra vez fino. Colhe-me, na frase, uma inesperada revelação. Ele não quer que eu me vá embora, ainda...

Será possível que haja engolido a invenção da ilha dos Pêssegos?

E ante a minha alma ansiosa avoluma-se uma interrogação enormíssima: e se este rapaz desviado de um rumo normal e tantos outros como ele não passam de uns ingênuos tornados fáceis presas de idéias lançadas por espertalhões ávidos de sensacionalismos ou dotados por um sentido oportunista capaz de facultar rendimentos sem empate de capital?

Então decido algo, como se uma inspiração me fosse soprada naquele jeito em que às vezes as recebo sem saber de onde vêm nem porque vêm.

- João Alfredo, convido-te para ires amanhã jantar comigo. Falaremos largamente dos teus projectos e talvez eu te consiga um empenho para que possas realizar as tuas ambições.

O conde muda de posição. Os olhos de Ana Margarida brilham. Nicolau sorri de uma forma que me garante a compreensão dele em tudo aquilo.

João Alfredo resplandece como as suas lantejoulas.

- Lá estarei!

E eu, muito simpática:

Podes ir de traje de luces, se te aprouver.

O conde faz sinal a Nicolau para que se debruce um pouco sobre ele e segreda-lhe qualquer coisa de que logo se desculpa.

- Perdoe ter falado baixinho. Eram umas instruções...

A sua voz soa rouca, mas mais segura que antes do sinal da crise cardíaca.

- Por quem é!...

Ana Margarida troca um olhar com o marido.

- Podemos ir um pouco para a salinha?

- Agradeço que não façam cerimônia comigo... O conde abana a cabeça.

- Cerimônia? Tem havido muita, realmente!...

- e acrescenta. - Aliás estou melhor em pé do que na cama. É bom poder estar em pé. Para a posição horizontal espera-me a eternidade.

Passa no salão um frio que me lembra o gelo que envolveu, que prendeu Ana Margarida, há bocado.

Não quero. Não quero sentir-me de pedra!

NÃO SOU DE PEDRA.

E apetece-me agarrar-me a Sebastião implorando-Lhe - não pense na morte - e a Ana Margarida dizendo-lhe - tenha coragem, mais do que nunca - e a João Alfredo aconselhando-o - não sejas assim...

- A que horas me quer?

- Às oito e meia.

Sai-me a resposta sem que nela pense. Só depois me ocorre uma idéia que abafo. Tinha um compromisso! Não faz mal. Um telefonema a desfazer e... Claro, outro telefonema a fazer! De qualquer maneira e suceda o que suceder, ou melhor, resulte como resultar, a minha decisão surge-me estimulante.

Vamos a isso!...

Saímos do salão. O estômago agita-se-me num sinal inequívoco. Tenho fome. Realmente, não comi. Nenhum de nós comeu, a não ser ele, João Alfredo.

Quando chegar a casa, bebo um copo de leite frio. Ou um whisky bem gelado com uma sanduíche de fiambre. Nasce-me um sorriso cá dentro. Um dia, há longos anos, num primeiro livrinho puro e doce como os meus dezoito anos (é verdade, também tive dezoito anos!) escrevi que o whisky sabia a formigas... Imaginem! Eu nunca comi formigas. E ou elas são deliciosas ou eu estava redondamente enganada, porque hoje não há nenhuma bebida de que mais goste.

E continuo, rumo à saleta acolhedora, a sentir o meu estômago bater horas.

Horas? ...

Que disparate! Nenhum estômago bate horas assim, tão sonoras, tão audíveis...

Tim, tim, tim, tim, tim, tim, tim, tim, tim, tim...

Dez!... Dez badaladas argentinas, compassadíssimas... Diante de mim, perfilado, o Nicolau. Nas mãos negras do Nicolau, que me olha com uma simpatia inequívoca, o relógio do tempo de Napoleão, o relógio que me encantou. Dentro da sua redoma.

Percebo e contesto.

- Oh, não!...

Ana Margarida sorri-me.

E o conde, ao nosso lado, murmura:

- Não se ofenda, minha amiga, rogo-lhe! Eu não quero de modo algum magoá-la com esta oferta. Só tenho um desejo... do qual a minha mulher compartilha inteiramente. Que ele marque para si horas belas... horas belas que a compensem das horas feias que aqui viveu hoje.

Noite. Luzes. Casas. Anúncios luminosos. Gente.

Mundo.

Olho as casas e não me apetece pensar no que existe dentro delas.

E daí... porque não? a ternura de um jovem casal adorando o seu filhinho nascido em terceiro lugar, enquanto os dois primeiros dormem encarnando anjos?

E daí... porque não quatro filhos chorando a morte da mãe que foi tudo para eles porque ficaram sem pai quase no berço?

Lado a lado, sobrepostas, quantas dores e quantas alegrias!

Mundo.

Vida!

Meu Deus, como estou cansada! Já não me apetece nem leite frio nem whisky. Só dormir. Dormir e repousar.

Tic tac - tic tac...

Não, não é o meu estômago a dar horas. É este relógio maravilhoso que me ofereceram.

Ai, horas belas, como preciso de vós!

A claridade intensa alaga-me e traz-me de um sono profundo até à urgência de aproveitar o tempo.

Sempre me fez confusão esta necessidade de dormir. Quem dorme não vive. E sem dormir não se vive.

Eu que o diga, que sou dorminhoca mesmo contra vontade!...

Vejo as horas no relógio de pulso que me acompanha constantemente porque... Ah, são apenas sete e meia da manhã. Tão cedo!

Fecho os olhos e aceito a interrogação que me sobe no espírito. As horas que aí vêm serão belas?

Oiço, lá para dentro, pequenos sons de casa habitada, o que me indica andar a Emília lidando. É uma criatura matinalíssima. Acorda às cinco da madrugada e já me tem despertado às seis com o ruído da enceradora eléctrica a funcionar. Inútil censurá-la. Responde que esta máquina com o seu atroz zumbido não acorda ninguém e que se eu não dormi mais foi porque não tinha de dormir. A lógica de ferro de uma pessoa sem lógica que por questões de embirração chega a adormecer sentada num banco da cozinha e depois garante que "estava só a pensar... "

Ai a Emília e os seus problemas...

Ai a vida e os seus problemas!

Os nossos!

E de repente encolho-me toda, nesta horrível sensação de cansaço, ou inadaptação, que tantas e tantas vezes me domina ante a precisão de recomeçar a existir. Se os outros soubessem quanto luto comigo mesma para enfrentar o novo dia! Mais um dia...

E não é porque não ame esta maravilhosa e transitória realidade de estar viva!

Um complexo contraditório amarra-me, prende-me, desalenta-me. Penso com enorme esforço no que tenho de fazer e em mim algo repele todas as sugestões até que um motivo mais poderoso que os outros me incita a executá-lo. E então encadeiam-se e a cabeça funciona e as razões levam-me atrás delas.

Isto acontece tão freqüentemente I Tão freqüentemente que se calha ser obrigada a principiar o dia antes de vencer as minha inibições, fico de um mau-humor desesperante... Porque o sei, só se de todo em todo não posso é que não espero pelo sinal de "em pé".

Em pé!

Ah, em pé!... Para quê?

Ainda não me apetece.

E eis que oiço.

Tim-tim-tim-tim-tim-tim-tim-tim...

Oito da manhã. Cantadas pelo meu relógio velho que consegui tornar como se fosse novo. E pelo meu novo relógio, o relógio velho do tempo de Napoleão.

Horas belas...

E por que não?

Toca a campainha e meio minuto depois a Emília entreabre a porta.

- bom dia, minha senhora.

- bom dia, Emília.

- Trago o pequeno almoço?

- Traz. E o jornal.

- Se já tiver vindo!...

- Evidentemente. Veio.

Enquanto espero pelo café com leite folheio-o. Não me perco a ler jornais. Dizem todos a mesma coisa e se abrir o rádio ou a televisão fico informadissima acerca do que vai por esse globo cheio de tanto de tão pouco interesse a que tanta atenção procura dar-se. Chego a pensar que não tardaremos em ser pormenorizadamente informados dos últimos acontecimentos nos formigueiros da Nova-Zelândia e nas colmeias da Austrália...

Por isso folheio o jornal. Procuro nos títulos as principais notícias. Aqui e além algo com interesse. Quase sempre o interesse mórbido de desgraças acontecidas.

Desgraças acontecidas...

Na auto-estrada, a imprudência de um condutor que tentou atravessar a faixa de separação das duas vias, provocou a morte de um casal...

o tal interesse obriga-me a ler.

Um acidente brutal. Um lar destruído. O condutor, o Dr. Leopoldo Brás, de 52 anos, e sua esposa, de 50, Dª Maria Clotilde Silva Brás...

O nome dela não me diz nada. Mas o dele acorda em mim reminiscências.

Dr. Leopoldo Brás... Dr. Leopoldo Brás? Conheço. Tenho a certeza de que conheço!

E do fundo do tempo, do fundo da minha memória, emergem frases, frases, frases...

Frases na boca de um homem relativamente novo mas já calvo. Frases ditas numa voz clara e firme, expoente de um caracter recto.

"... o estudo é a única fortuna sólida que permite qualquer pessoa tornar-se superior em relação ao seu semelhante. "

"... a melhor amizade, a grande, a verdadeira, será a que levarem dos bancos da escola... "

"... deviam ser unidos como verdadeiros irmãos, porque todos juntos formavam uma grande família que ele, director, estimava como... "

ELE! DIRECTOR!

Oh, não!

Que importa à fatalidade que eu diga este não com tanta veemência que as lágrimas me saltam dos olhos?

O nome um pouco esquecido no vaivém dos dias tão cheios impõe-se com a certeza fatal do desastre. O Dr. Leopoldo Brás! O director do colégio onde andaram juntos até ao 7. ? ano o meu Pedro e o meu Paulo. Uma pessoa que faz falta!

- Que é que a senhora tem? Porque é que está a chorar?

Não posso recusar à Emília a explicação da minha dor.

- Morreu uma pessoa minha amiga.

- Oh? ... E eu conhecia?

- Não, Emília.

- Sinto muito, minha senhora.

Não sente nada. Não pode sentir. Mas aprendeu a frase estereotipada dos preconceitos sociais e pronuncia-a a propósito.

Bebo de um trago o café com leite. Não quero nenhuma torrada, o que a faz resmungar "não sei para que é que perco tempo, a senhora não come! "

- Leva, leva...

Ela reconhece que preciso de fazer qualquer coisa e não discute mais. Sai a abanar a cabeça.

Pego no telefone. Impõe-se-me a necessidade de entrar em comunicação com os meus rapazes. Podem não dar pela notícia e ambos hão-de querer prestar a última homenagem ao seu antigo mestre.

Nenhum deles está em casa. Claro, são horas de aulas!

Horas belas!...

Horas belas? ...

Deixo recado à Joaquina. Que liguem para mim assim que chegarem, os meninos. O primeiro que entrar.

E salto da cama para começar a trabalhar.

Trabalhar - viver.

Viver.

A caneta emperra. As idéias baralham-se. Ou antes - eu quero uma coisa e a caneta outra.

Noto que a Emília espreita à porta, tentando perceber se pode interromper-me.

Pode. Tanto faz!

- Que é que queres?

- Não se almoça, hoje?

Ela tem razão. Esqueci-me de dar as ordens para o dia. E tenho o jantar...

João Alfredo.

- Que há no frigorífico?

- Os pregados, a garoupa, a carne para assar e um frango.

O Pedro adora roupa-velha de galinha. E o Paulo, filetes.

- Filetes de garoupa com salada. Roupa velha de galinha com arroz de tomate.

- Não há fruta!

- Eu trago, logo.

- Doce, faz-se?

- Leite creme queimado. E não te esqueças de que o vinho verde há-de estar gelado.

- Ponho a mesa vulgar ou à fina?

Não adianta que eu diga vulgar. A Emília é exemplar em certas coisas. Eficiente. Tem vaidade numa mesa bem posta, alindada. Por vontade dela todos os dias mudava de toalhas. E harmonizava depois as cores dos serviços com os copos e os talheres. Nada a indigna mais do que eu querer comer num tabuleirinho. "Não sei pró que servem as coisas nesta casa..."

- Põe a mesa a teu gosto e deixa-me agora.

- Já podia ter dito que eu estava a maçá-la! Lá vem o reverso da medalha... As indisposições

incríveis da Emília, que põe beiça e arma fitas de criança de seis anos. Intratável.

Faço cara feia e não transijo.

- Some-te, vidrinho! Lá vai, a resmungar.

Já sei que de cinco em cinco minutos aparecerá a fazer-me uma pergunta, só para eu não me esquecer da sua existência.

Se a Emília fosse bonita eu diria "não há bela sem senão". Como não deve nada à formosura, direi "não há feia sem virtudes... "

Mergulho de súbito no trabalho. O véu rasgou-se e as linhas sucedem-se com a velocidade dos momentos certos.

- Minha senhora? ...

Jesus, eis a temida primeira aparição da Emília!... Mas sou injusta. Não passaram cinco minutos. Passou quase uma hora, pois bem oiço o meu relógio velho-novo acompanhado pelo novo-velho cantando as badaladas com uma delicadeza que parece anunciar a era romântica... Ou recordar que a doçura não tem épocas.

- É o correio.

- Ah, obrigada!

Sobre a mesa de trabalho fica a correspondência. Folhetos de propaganda de uma livraria. O convite para a inauguração de uma exposição de cerâmica. Uma revista para adolescentes que acho muito bem feita - Menina e Moça. Uma carta da sociedade de autores a pedir autorização para uma companhia de amadores representar uma peça minha, uma peça infantil. E uma carta. Assina o remetente "Maria Helena Tavares Icanha", de Vila Real de Santo Antônio. Não conheço. E não estranho. Começo a habituar-me à necessidade de comunicação dessas raparigas que precisam de alguém com quem falem antecipadamente seguras de compreensão. Dessas raparigas que me elegem para amiga.

Rasgo o sobrescrito.

Leio.

A carta que transcrevo.

"Minha amiga.

Quero pedir-lhe que me desculpe tratá-la por amigo, mas assim o faço para me abrir totalmente e pedir-lhe conselho.

Há já bastante tempo que ouvira falar da Senhora mas jamais lera algo escrito por si. Precisamente há oito dias vi livros da minha amiga e resolvi comprar um.

- Pela beira do desvio -para saber do que se tratava. E acontece que agora - uma e vinte da manhã - sem sono, comecei a lê-lo. E na página 17 na 28." linha vi que era aquilo o que eu sentia. Também eu procuro o amor insistentemente e ainda não o encontrei.

Sou mais nova um ano do que a Tónia (a TÓNJA) do livro da minha amiga -faço 19 anos no dia 30 deste mês, mas sinto que preciso insistentemente de amor e compreensão.

Já fui beijada por três moços e já julguei amar mais do que esses três. Mas agora vejo que não era nada. Realmente já pensei gostar de vários rapazes, os quais com certeza sem o saberem me tratam com indiferença. Mas talvez por isto eu me sinto insatisfeita com a vida, pois anseio viver um grande amor.

O primeiro que namorei - e foi uma experiência amarga -julguei que era o amor para sempre. E depois descobri que era casado e tinha dois filhos. A principio não queria acreditar que ele me tivesse mentido, Tinha de ser tudo invenção de um destino mau que nos queria separar. Mas era verdade. Fartei-me de chorar. Julguei que nunca mais pudesse amar alguém. Que seria ele o meu primeiro e único amor. Porém com o tempo passou e eu já o esqueci. Então tentei viver - e tento! -e em cada rosto masculino procuro encontrar o que será o meu amor.

Começou a freqüentar a minha casa um moço realmente feio que me olhava insistentemente e principiou a demorar mais os cumprimentos. Um dia em que ficámos sós na sala ele prendeu-me as mãos, olhou-me demoradamente e eu deixei que me beijasse. E julguei amá-lo. Continuou a acompanhar-me durante mais uma semana no fim da qual eu vi que o detestava. Sim, já não podia com ele e acabei por lhe dizer que só poderia ser uma boa irmã para ele e não queria namorar por enquanto.

Mais tarde tivemos um baile na escola e, claro, fui. Apresentaram-me um moço que desde logo achei extraordinário. Estuda medicina em Coimbra, é mais alto do que eu e tem vinte anos.

Dançámos quase sempre juntos e após eu tomar meia-taça de champanhe não mais me senti bem. Então vim duas vezes com ele cá fora, porque me fazia bem o ar. Da primeira nada aconteceu. Da segunda distanciámo-nos um pouco e então ele tentou beijar-me. Protestei e ele olhou-me fixamente e disse-me "Não, porquê, se eu te amo? ". Respondi-lhe que mal nos conhecíamos e que não sabíamos nada um do outro. Volveu-me que para se amar nada era preciso saber.

Voltámos para a escola e eu fiquei a pensar no que ele me dissera e acreditei realmente que se ele não me amasse não mo tinha dito. Deixei-me embalar nos sonhos que se apoderaram de mim e vi nele o meu grande amor.

Chegou finalmente a hora de regressar a casa e ele veio acompanhar-me e mais duas colegas. E seguimos abraçados sempre.

Despedimo-nos por fim e ele levou o número do meu telefone para me falar no dia seguinte - domingo, ou antes, nesse mesmo dia, pois eram quase 5, 30 da manhã.

E acontece que não me telefonou nem nunca mais o vi.

Um amigo dele disse-me que ele tem cá estado mas não me procurou.

E eu não acredito que ele não torne a aparecer. Não posso acreditar!

Foi pois ao ler o livro da minha amiga (ainda só vou no VIII capitulo, portanto não o sei todo) que senti o problema da Tónia como o meu...

Tónia!

Poiso a carta que já pouco mais diz, além de me pedir conselho.

Um tumulto de pensamentos agita-me sem me deixar mover.

Conselho?

Creio que o recebeu já, a pobre Maria Helena, acabando de ler o que contei da vida de Tónia. Aquela vida espatifada porque ela se enganou no caminho e julgou certo o errado e bom o mau e seguro o ilusório...

Terá esta moça compreendido? Assustar-se-á o suficiente para parar, ela que avança cegamente pela beira do desvio?

Esta rapariga não é uma leviana. Uma leviana nunca escreveria uma carta assim. Uma leviana aceitava qualquer namoro como uma noite de cinema. Esta rapariga sonha. Esta rapariga acredita. Esta rapariga torna-se numa presa fácil para os rapazes sem moral, para os rapazes que não sabem respeitar, para os rapazes que tudo confundem e baralham porque não sabem que o sonho é, como o afirma Antônio Gedeão, o poeta, e para além de tudo o que ele diz e é verdade, uma bola colorida entre as mãos de uma criança.

O amor faz parte do sonho. Cabe no sonho ou o sonho cabe nele. E a rapariga ignorante assemelha-se à criança que brinca com a bola colorida.

Eu sei que é assim. Sei-o eu, que entendo estes problemas e não confunde os sentimentos. Não posso confundi-los porque não sou daltónica e cada um tem sua cor. Mas ignoram-no os rapazes que não se importam de enganar, de destruir...

Esta rapariga, se pedindo amor encontrasse a resposta num homem sincero e leal, seria uma mulher para a vida toda, apaixonada, fidelíssima. A Esposa.

De outra forma, acabará...

- Minha senhora, o menino Paulo ao telefone.

- Ah, sim, Emília. Atendo imediatamente.

Ela quase nem sai da minha beira. Porque mal percebo que vai e volta, com o aparelho-corta-distâncias nas mãos.

- És tu, Paulo?

- Sou, Madrinha! Há alguma novidade, para nos procurar tão cedo?

- Duas. A primeira... Por onde hei-de começar?

Pela primeira, exactamente. A que, sem a segunda, me levaria a falar-lhe como falo.

- Escuta, filho. Jantei ontem com os Ribatorpes.

- E então?

- Logo conversamos.

- Logo?

- Logo! Queria que vocês dois viessem jantar comigo e com o João Alfredo.

- O quê. O tipo vai aí?

- Espero que sim.

- Fazer o quê?

- Ao certo, Paulo, não sei que responder-te. Talvez muito, talvez nada. De qualquer forma, receber uma lição.

- Receber... ou ouvir, apenas.

- Não se pode desistir antes de tentar.

- Desistir antes de tentar não seria pelo menos uma atitude sua.

- É isso.

- Bom... lá estaremos. E a segunda comunicação, qual vem a ser?

- Vocês já leram os jornais?

- Isso sim! De manhã nunca temos tempo.

- Houve um grande desastre de automóvel.

- Oh, Madrinha... os desastres de automóveis são diários.

- Neste...

- Heim?... -e como não consigo desembaraçar-me do nó que me aperta a garganta, ele acrescenta, num tom de voz onde perpassa o receio da notícia.

- Foi com alguém conhecido?

- Foi.

- Morreu?

- Morreu.

- Quem, Madrinha? Por favor...

- O vosso antigo mestre... o director do colégio onde tu e o Pedro...

- Não posso acreditar! O Dr. Leopoldo Brás?

- Sim. Ele e a mulher.

Por momentos dir-se-ia que do outro lado do fio não há ninguém. E eu explico-me.

- Pensei que tu e o Pedro quisessem manifestar-se... e calculando que não dessem pela noticia a tempo...

- Obrigado, Madrinha. Sabe onde se encontram?

- Não. Mas se falares para o colégio, dizem-to pela certa.

- Claro, claro! - e numa voz que o pesar altera.

- Até logo. Madrinha.

- Até logo, Paulo.

Também eu preciso de saber onde se encontram.

Nunca nos demos, mas conhecíamo-nos. Devo mandar um telegrama de pêsames à família. O menos que pode fazer-se para que chegue a quem sofre um pouco de solidariedade humana.

Ligo para o colégio.

- Sim, minha senhora, com certeza. A partir das 15 horas de hoje achar-se-ão depositados aqui, na nossa capela.

No colégio. Onde souberam viver. Onde souberam explicar como se devia viver.

Dando, na morte, os derradeiros ensinamentos, talvez.

Quem assistirá à aula?

A mesa está posta, requintada. A Emilia decidiu esmerar-se e quando abre a porta ao primeiro que chega mostra a seriedade dos dias bons. Eficiente. Oxalá amanhã não ande com os rizinhos que pressagiam as lágrimas... Intratável. A chorar a sua rica mãezinha falecida há vinte e cinco anos, tinha ela quatro. Não, não é desgosto nem saudade. É crise. A crise que me assusta pois nela como que se lhe esvai a razão em razões que não cessam de desabar sobre mim como chuva em dia de trovoada.

Diante dos meus olhos, João Alfredo. Sem traje de luces. com os seus longos cabelos ondeados, e os longos bigodes e as longas barbas tudo penteado e escovado. Vestido de preto. Um pouco audaciosamente, mas decentemente. Calça, camisa de seda com punhos e gola de renda, sandálias de verniz. Meias de renda, pretas também. Devem ser de mulher.

A Emilia mira-o esbugalhada. Nunca viu ninguém assim trajado e volta para mim as pupilas numa interrogação.

Disfarço e ela retira-se.

João Alfredo vem beijar-me a mão. E depois não resiste a perguntar-me:

- Escandalizo-a?

- Porquê?

- Por causa do meu fato!

- Vens lindo!

- É de mau gosto troçar...

- Não troço! Vens realmente bonito! Sem os óculos, julgar-te-ia uma personagem de Velásquez, saída de uma tela por obra de magia! -e sou sincera. -Nunca percebi a escravidão dos homens à rigidez do chamado terno que durante anos os uniformizou. Eram homens autênticos os que usavam setins e veludos no tempo de Luís XIV, no tempo de Napoleão... Não são as aparências que fazem as criaturas. As aparências... são aparências.

Ele sorri de súbito.

- Nunca pensei que aceitasse realmente...

- Pois aceito! Para mim conta o íntimo de cada qual. O recheio do trajo. E outra coisa ainda - a decência e o bom gosto! A nudez, sem ser como arte pura, desagrada-me. O mau gosto, confrange-me! E bem vês, sempre houve períodos de bom e de mau gosto, sucedendo-se, alternando-se. Hoje o mau gosto e o bom gosto passam lado a lado. Sinto-me no direito de aprovar o belo e rejeitar o feio!

- Claro!

- O teu traje de luces, mesmo no tempo de Nero, seria de mau gosto, logo feio. O teu fato negro, hoje, é de bom gosto, logo bonito. - e sem transição. Senta-te.

Ele instala-se e observa a salinha onde nos encontramos. Torna-se amável. Tem uma casa linda!

- Sinto-me feliz dentro dela. É uma casa com as minhas medidas... e isso afigura-se-me importante. Devemos ajustar-nos ao ambiente que nos rodeia, não te parece?

- Parece! Parece, sim! E... Adivinho-o.

- Não te ajustas ao ambiente do teu lar, é?

- Acho que não.

- Porquê? Encolhe os ombros.

- Em pequeno sentia medo daqueles móveis enormes, escuros... Parecia-me que tinham olhos para me espiar e que iam fazer-me mal em cada momento... Acordava de noite aos gritos porque sonhava com eles, cheios de braços, agarrando-me por todos os cantos.

- E depois?

- Depois... a miss obrigava-me a ficar quieto no escuro, porque senão castigar-me-ia no dia seguinte.

- E castigava-te?

- Se castigava!

- Como?

- Certa vez meteu-me dentro de uma das arcas que mais me assustava, uma enorme, no vestibulo, não sei se reparou... com a tampa meia-entre-aberta, para eu respirar. Doutra vez fechou-me na sala de armas, onde existem armaduras do século XIV...

- Não gritavas?

- Gritava!

- E ninguém te acudia?

- O pessoal estava proibido de intervir.

- A tua Mãe?

- Andava por fora.

- Ninguém a avisava?

- Julgo que lhe contavam. A miss explicava que tinha de me educar. E afirmava que os meus gritos provinham do meu horrível mau-génio. Acabei por aceitar passivamente tudo. E de noite, despertando coberto de suores frios, ficava horas à espera de ser devorado pelos móveis... Um dia comecei a ter medo de um quadro. Era um espanhol qualquer. E certa manhã não pude mais. com uma navalhinha despedacei a tela, matei o homem que me ameaçava. Uma semana depois parti para o colégio.

- Já estavas crescidito nessa altura.

- Já. E consciente de que odiava tudo aquilo.

- Nesse caso... as tuas atitudes actuais traduzem uma necessidade de vingança?

- Trato de destruir o que me desagrada. Ou de o transformar, obrigando-o a servir-me. - De chôfre endurece-lhe a expressão que se diria impregnada de uma dor quase infantil. - É por isso que hei-de liquidar as coisas assim que os velhos desaparecerem.

- João Alfredo, não fales assim! Até porque a tua Mãe não é velha, como já te fiz notar.

- Pena!

- João Alfredo! ?...

Erguem-se muros invisíveis entre nós. A simpatia nascente torna-se fumo. Ele detesta-me e eu sinto repugnância por ele.

Do lado de lá dos muros a voz agressiva solta-se numa espécie de convulsão.

- Se quer, vou-me embora. Não preciso do seu jantar para nada. Mas antes digo-lhe que os pais que se alheiam da infância dos filhos, que os deixam afastar-se do coração deles, que os criam faltando-lhes com o essencial à sua formação, não merecem viver! Andam por aí a culpar a juventude, a acusá-la... Antes metessem a mão na consciência e reconhecessem o que são e o que foram !

- E o que serão vocês? Ele não me poupa.

- Alguns, heróis! Outros, uma merda.

Os meus relógios, o velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão cantam nove badaladas. Nove. Uma a uma.

Horas belas, onde estais?

Uma a uma. nove horas sem beleza. Amargas. Terrivelmente cheias de verdade.

A Emília aparece no enquadramento da porta e a sua figura pequenina desenha uma interrogação.

- Minha senhora, os meninos ter-se-ão esquecido? A resposta não lha dou eu. Dá-lha a campainha

da rua.

Decorre o silêncio. E ei-los.

Ambos de gravata preta. Nos semblantes a desculpa e a explicação do atraso.

Cumprimentam-me, beijinho na mão, beijinho na face, e acenam a João Alfredo que os olha com um ar de ouriço. Em ouriço.

A Emília anuncia, sem permitir mais atrasos:

- A sopa está na mesa.

O ouriço regouga:

- Saio ou fico?

- Claro que ficas. E dirigimo-nos para a sala de jantar.

A principio, ainda o silêncio. Depois, a minha voz.

- Então?

- Um horror!

- O filho estava desfeito!

- Tinham só um filho?

- Dois, mas o mais novo está no ultramar.

- Aliás, dizer que o Dr. Leopoldo Brás era pai de dois filhos não corresponde a uma realidade.

O ouriço pica.

- Ah, ah... eu não sei de quem falam, mas essa é gira... Se calhar os ilegítimos são mais do que às mãezinhas deles... Isso às vezes atrapalha-me, não vá o velho ter pr'rá aí uma porção dos tais fora do matrimônio que apareçam depois dele esticar e nos ensaboem o juízo...

Os nossos olhos sobre ele, os meus, os do Pedro e os do Paulo, amordaçam-no em reprovação.

Ele pretende reclamar, com a boca cheia (está comer com garfo!) "posso ir-me embora se os chateio", mas a frase sai abafada e dilui-se em nós.

- Estava muita gente?

Muita gente. Creio bem que todos, ou quase todos! Chorando como os mais pequenos, que foram mandados para casa assim que os corpos chegaram.

- Nenhuma daquelas crianças, ante um feriado com que não contavam, mostrou a minima satisfação.

- Mostrou, não. Experimentou, o que considero mais importante.

- É mais importante!

Os olhinhos do ouriço, por detrás das lentes, tentam captar a essência do diálogo.

- Os professores, - conta o Pedro, - mal dominavam a emoção, tentando organizar o serviço fúnebre. Os rapazes faziam lembrar formigas, passando, passando, passando...

- Passando e ficando!

- Uns. Os outros saindo para voltar mais tarde, como nós, a divulgar a noticia entre os que não leram os jornais e por isso ainda não sabem.

- Creio que só faltarão os que estiverem espalhados por esse país fora!

- E são bastantes!

- Imensos! O colégio tem despejado centenas e centenas de rapazes!

- Dos quais não julgo que um único haja esquecido o seu director!

Indago:

- Há quantos anos foi fundado o vosso coléio?

- Há uns vinte e cinco. O Dr. Leopoldo era novíssimo quando se juntou com um grupo de colegas extremamente válidos para abrir o que eu ainda hoje considero uma escola modelo.

- Tu e toda a gente, muito embora as escolas modelos não tenham forçosamente de fornecer à sociedade elementos modelos.

Esta a opinião do Paulo. Confirmo-a.

- Para além dos moldes há que contar com a matéria bruta...

E o Pedro:

- Às vezes bem bruta!...

O ouriço grunhe algo que nos faz olhar para ele, aos três que conversamos. Nenhum de nós percebeu se rira, se discordara. E porque o assunto que debatemos nos interessa muito mais do que as reacções dele, prosseguimo-lo, conquanto numa derivante do inicial.

- Sabe, Madrinha, que encontrei lá uns poucos de antigos colegas, precisamente alguns dos que mais se ligaram comigo ou de qualquer forma me fizeram sentir a sua influência nos meus primeiros anos de adolescente?

Sorria.

- Isso vem a propósito da matéria bruta? Responde-me ao sorriso com outro.

- Talvez!

- Conta. Conta tudo, vá. - e começo a entusiasmar-me, disposta a arrancar da hora a sua beleza com toda a boa-vontade.

-Ora bem, vamos por partes. pelas partes que desejares.

pessoalmente? -Não sei, mas falou dele, uma vez. -Ah, falei?

- Falou.

- Vi o Joanico. E falou sobre o seu passado.

- Bom, depois desta minha fiel descrição do passado do tal Joanico... e espero que ele hoje se chame decentemente João...

- João Gabriel Murada. - elucida o Paulo.

- a saber: continua avarento ou corrigiu-se?

- Ele corrigiu-se pouco depois do fogo. Esteve muito doente, a seguir, e quando voltou para o colégio ia francamente melhor.

- Da saúde?

- Do defeito!

- Aliás, - continua o Pedro, - eu não podia hoje, nos poucos minutos durante os quais conversámos, averiguar da sua evolução moral.

- Claro!

- A única coisa que soube foi a sua actual situação na vida. E é que nem a Madrinha imagina!...

- Não!

- Veja se dá um jeito e descobre o rumo que está disposto a seguir um rapaz que foi um expoente do egoísmo - visto que a avareza se lhe equipara.

- Vai para médico?

- Que idéia. Madrinha! Os médicos dão muito, é certo, mas também recebem.

- Vai para aviador? Ele mira-me divertido.

- Qual a analogia entre aviador e generosidade?

- Pouco amor à vida.

- À própria ou à alheia?... Vejo que "meti água".

- Adiante, não atino. Dize lá tu.

- Acabou o 7. ? ano e quando todos supunham que seguiria um curso de Econômicas...

- e Financeiras... o que devia assentar-lhe bem

em relação ao passado...

- Isso mesmo... entrou para o Seminário.

- O quê!? Vai para padre?

- Vai para padre.

Sinto que os olhos se me humedecem.

- Acho uma coisa linda! - comento.

E o Pedro:

- Pois não é? Um rapaz que só queria aferrolhar, ter, sôfregamente. inutilmente, disposto a nada possuir, a existir apenas para ajudar os outros, para

espalhar o bem?

O ouriço tira os óculos com tanta brusquidão que o miro sobressaltada. O Pedro e o Paulo parecem também surpreendidos. Todos três percebemos que ele vai dizer qualquer coisa e esperamos com bastante curiosidade que aquela boca entreaberta deixe cair palavras que... Ei-las.

- Isso é idiota, ser padre!

- Como?

- Idiota! Os padres vão acabar. Não há nada que os justifique. Hão-de acabar os padres e as igrejas e essas velhadas tão estúpidas como as histórias dos papões e das bruxas.

- Sem dúvida, João Alfredo. Há-de acabar a luz do sol. E o azul do céu extinguir-se-á. Quando Deus estoirar.

O Pedro e o Paulo entendem-me e num aceno sublinham a intenção do que por momentos é uma afirmativa de desespero. A toldar a beleza da hora.

João Alfredo gagueja:

- Quando Deus estoirar?

- Sim. E o universo for chuva de lama sem onde cair. Morrerá a necessidade de o homem acreditar nalguma coisa. E os padres, como os médicos, serão poeira. As igrejas e os hospitais! Mas até lá. Deus não deixa que os homens o destruam, porque só Ele pode destruir-se a si próprio. E enquanto assim for, e houver luz e sol e o céu continuar azul, os padres por vocação serão benditos entre os mais homens.

Paira um silêncio, tão profundo que se ouve o tique-taque dos meus relógios, o de Napoleão e o outro. A hora talvez não tarde em recuperar o tom de beleza que a envolvera.

João Alfredo põe os óculos e fica de cabeça baixa.

- Se estou a mais. posso sair sem sobremesa! E de repente solta-se-me da garganta opressa uma

voz de comando. Essa voz de comando que de longe em longe é timbre de mim mesma.

- Tu ficas calado e sossegado, está bem? A minha paciência não é ilimitada. - e sem lhe ligar mais, volto-me para os meus rapazes - Continuemos a falar do futuro reverendo João Murada.

É o Paulo quem responde: por agora nada mais há a dizer. Combinamos

um encontro para breve, aliás com outros, decididos a reatar a antiga convivência. É francamente disparatado dispersarmo-nos a ponto de um dia mal nos conhecermos, não acha, Madrinha?

Sem dúvida, filho. Até porque em obediência

a essa idéia se fazem aquelas reuniões de curso em que os companheiros de anos seguidos ligados por ideais e esforços comuns procuram não perder de todo os pontos de contacto que um dia consideraram insubstituíveis.

- Nem todos os cursos se reúnem.

- Pois não e é pena!

- Os dos estudos secundários raramente o fazem. Só os universitários ainda conservam o hábito.

- Alguns. Outros desinteressam-se...

- Intoxicam-se no hábito de esquecer, de pôr de parte !

- Nós próprios só hoje percebemos quanto gostávamos realmente de saber dos nossos antigos companheiros!

- Lembramo-nos deles de vez em quando, mas apanhados na engrenagem do dia-a-dia, deixamos o tempo passar até uma dispersão que acabará por se tornar definitiva.

- E que ou se trava ou chegará a ocasião em que o nosso colega preferido há-de passar por nós sem o reconhecermos.

- Isso ainda hoje sucedeu, com o Francisco. Eu não era capaz de ligar o nome à pessoa, de maneira nenhuma! Olhava-o e sabia que aquela cara pertencera a um circulo ligado a mim... mas dar-lhe uma personalidade, isso!

Interrompo o diálogo, a querer saber:

- Quem é o Francisco? O do bonèzinho? O Paulo tem um trejeito de ignorância.

- Do bonèzinho? Não faço idéia do que possa valer a referência...

Mas o Pedro sabe lindamente.

- Pois não fazes, não! Tu não estavas lá no dia da cena.

- Qual cena?

- O Francisco apareceu com um bonèzinho aos quadrados azuis, verdes e encarnados, que despertou a atenção de toda a gente, provocando uma atitude de zombaria geral.

- Zombaria?

- Sim, zombaria! Tu recordas-te bem do Francisco desse tempo?

- Recordo. Desse recordo! Era um rapazinho modesto a quem tu davas explicações.

- Exacto! Pois o boné do Francisco era feito de retalhinhos e de facto fazia lembrar o de um polichinelo. E a malta pôs-se a fazer troça dele, com a impiedade da inconsciência e de certos hábitos infelizmente bastante generalizados. Menos respeito pelos considerados nos degraus de baixo da escada social.

- E depois?

- Depois, os pais benevolentes não se compadeciam do garoto rubro de confusão que nem ousava tirar o boné da cabeça, o que agravava tudo. E foi então que a minha mãe intercedeu, chamando o Francisco e interessando-se pelo modelo doboné, querendo saber onde fora comprado (era evidente que por pura comiseração) com vista a dar uma elegante ensinadela àquela assistência que não se importava de deixar que uma criança pudesse estar a sofrer no meio da alegria geral.

- Atitudes da Rosinha-Mãe, que nessas coisas não é muito para tolerâncias...

- Pois! E quando o Francisco, com os olhos rasos de lágrimas, respondeu que o boné fora feito pela mãe, nem queiras tu saber o interesse da minha! Até mostrou vontade de o levar para copiar...

E o Paulo:

- É claro que a partir desse momento não houve mais troças...

- Claro! Pelo contrário. As outras mães decidiram, por mimetismo, achar o boné gabado pela senhora do Sr. Dr. Macedo -(ai o tom enternecidamente irônico do Pedro...) -um amor e nem queiras saber as voltas que o feio bonèzinho deu, de mão em mão...

- Calculo!... -e o tom confirma o do Pedro. De súbito, estranho:

- Mas... e agora pergunto eu, porque motivo estás tu a contar tudo isso tão pormenorizadamente ao Paulo? Ele não estava lá? Não assistiu?

O Pedro ri de novo.

- Madrinha... que vem a ser isso?

Não compreendo a pergunta respondendo às minhas.

- Essa agora? ... Há alguma coisa que não bata certo?

- Há!

- O quê?

- Precisa de reter os seus livros. Madrinha. Ou melhor, os livros sobre nós.

Não posso, nem desejo, confessar que sempre que os folheio, a esses livros cheios de tanta coisa querida e acabada, sou dominada por uma saudade difícil de convencer a deixar-me, uma saudade capaz de me arrastar para as tais situações de torpor que desde há tanto assustam a Rosa Maria. E que por tal os evito. E respondo, muito fingida:

- Ó Pedro, tomara tempo para hoje, quanto mais para ontem!...

Ele não se deixa enganar. E decifro a condenação da minha momentânea cobardia no olhar carinhoso que me envolve. A voz cálida volve, colaborando.

- Ah, sem dúvida!... E dada a. justificação lembrar-lhe-ei que a cena agora descrita ocorreu durante aquela distribuição de prêmios a que o Paulo não assistiu...

E o Paulo:

- Essa que dos dois inimigos que éramos fez surgir os AMIGOS que somos!...

E todos os nossos pensamentos são cortados pelo ouriço, que dir-se-ia não caber em si de espanto. E espanto que, queira ele ou não, traduz, se mais não for, pelo menos um princípio de comunicação.

- O Pedro e o Paulo não foram sempre amigos? O não deles sai em coro e a explicação desenha-se-lhes nos lábios. Atalho-a. Vejo de súbito um caminho aberto e decido enveredar por ele.

O ouriço vai ficar na ignorância, pelo menos enquanto se me afigurar conveniente.

E volto ao Francisco, que é leme de direcção.

- Ora, Paulo, julgo que ias dizer qualquer coisa relativa, ou sugerida, pelo encontro com o Francisco do boné...

- Ia mesmo e muito embora ele não tivesse sido nunca um intimo para mim, em relação a podermos esquecer por completo os que privaram connosco e depois perdemos de vista... Eu olhava-o e não havia maneira de me lembrar donde o conhecia sequer! Ele reparou na minha insistência e veio ter comigo. "O Paulo não sabe quem eu sou?" "Não". "Não tem idéia de um petiz a quem o seu amigo Pedro arrancou do nada estimulando-o com conselhos e, principalmente, com a confiança dele?" É claro que o espirito abriu-se-me imediatamente e foi como se visse diante de mim o garoto que, segundo ele próprio confessava, nascera estúpido... Um rapazito franzino, encolhido e disparatado pelo qual nem os professores sentiam a mínima espécie de consideração. Bom, era impossível reconhecer o que me pairava na memória naquele latagão que me olhava de igual para igual !

- À não ser nos traços fisionômicos que não se alteraram, só aumentaram! - esclarece o Pedro.

E o Paulo.

- Exacto, exacto!

- E que se passa actualmente com o Francisco, Paulo?

- Entrou para a Escola Naval onde parece revelar grandes aptidões para a profissão que escolheu. Não me admira nada que venha a fazer uma carreira estupenda!

- É capaz de chegar a almirante!

- Dizes isso a brincar, Pedro?

- Que idéia, Paulo! Digo-o o mais a sério possível! Dou uma achega:

- Daqui a vinte anos vocês e os outros serão os grandes, os senhores, os potentados...

- Ou os zeros à esquerda!

O comentário dir-se-ia, muito embora feito sem qualquer intenção reservada, desabar como um pedregulho em cima da cabeça do ouriço, que ficou mais baixo na cadeira, como que amachucado. Noto o efeito porque me sinto desdobrada pela força da observação e consigo analisar tudo ao mesmo tempo. E respondo ao Pedro:

- Isso sabe-se, filho! Cada um há-de colher o que semear!

- No campo a que tiver direito!

- Principalmente! E...

- E?...

- Entre os vossos companheiros dessa época vês algum que vá falhar e tornar-se num dos tais zeros?

- Há-os com certeza. Madrinha. Éramos tantos que se a seara fosse toda perfeita constituiríamos uma geração como a do Mestre de Aviz, - e ri, acrescentando: - ínclita!

Rio com ele e explico-me melhor em relação ao que desejo saber.

- Pedro, não pergunto pelos desconhecidos! Pergunto por aqueles que conheci pessoalmente ou por informações.

- Deixe cá ver quais os que podem interessar-lhe...

- Não canses a cabeça que eu pergunto.

- Óptimo!

- O Tomás, por exemplo, o que tinha a mania de jogar à bola com pedras. O Pedro arregala-se: -A Madrinha não sabe?

- ó filho, se estou a mostrar com palavras a minha ignorância!

- Pois o Tomás agora joga à bola... com bolas!

- Heim?

- É jogador de futebol profissional!

- Ah! ...

- Eu nunca lho tinha dito?

- Não!

- Há sempre tantos assuntos...

- Claro.

- Pois ele começou no "teow" do colégio...

- Isso contaste-me.

- Depois foi jogar para os júniores de um clubezinho onde mostrou tanta habilidade que ao completar os dezassete anos logo o aceitaram num dos primeiros.

- Sporting ou Benfica?

- Está em Coimbra, a estudar, e pertence...

- À Acadêmica, evidentemente!

- Evidentemente! É avançado-centro. A Madrinha há-de ter ouvido falar dele e se calhar visto o retrato...

- Talvez. Como se chama?

A pergunta não é tola. O Tomás pode usar um nome qualquer de guerra, como tantos...

- Tomàzinho.

- Tomàzinho? ... Bem sei!...

- Sabe?

- Sei! Às vezes, aqui ou além, oiço por acaso ou por respeito pelos outros, relatos ou pedaços de relatos e o nome de Tomàzinho avulta. Tomàzinho finta Juju... Tomàzinho dribla Careta... Tomàzinho aponta à baliza de Pirulo... Tomàzinho, Golo de Tomàzinho !

Cercam-me as gargalhadas dos rapazes, divertidos com a minha brilhante demonstração de conhecimentos futebolísticos. O ouriço mostra que é humano como nós e ri como o Pedro e o Paulo.

Meu Deus, quando o riso nasce há música nas horas. Horas belas.

Que os meus relógios, o de Napoleão e o outro, cantam quase a par.

Onze.

Acabámos há que tempos de jantar e nenhum de nós se levantou. Nem parece disposto a fazê-lo.

A Emília surge, o que significa ter tudo arrumado. É incapaz de abandonar obrigações por diversões. Considera ponto de honra ser uma excelente profissional, até quando porventura o facto se torna não vantagem mas prejuízo. Como daquela vez em que, num jantar volante, pus os meus convidados à vontade (era tudo gente moça) para irem à cozinha buscar quanto quisessem e precisassem, facilitando o serviço e ela, em vez de se alegrar com a cooperação e o auxílio toda se melindrou declarando que ou fazia tudo ou nada... e não fez mesmo mais nada porque se encostou a uma parede de burro amarrado e não houve volta a dar-lhe.

- Madrinha... a Emília já perguntou duas vezes se podia ir ver televisão.

- Ah, pode com CerTeza - e sorrio.

Os dois rapazes "da casa" e a própria Emília sabem que por momentos me ausentei da realidade. Ela retira-se, agradecendo, e o Paulo indaga:

- Onde esteve, Madrinha?

Encolho os ombros. O derivativo dos meus pensamentos não merece o interesse deles.

- Não saí daqui, embora fosse visitar um dia passado. - E deito a mão ao dia que ainda está connosco, muito embora em resto. - E já agora, meus pequenos, digam-me uma coisa. Que é feito do Filipinho?

- O afilhado da senhora D. Ana Custódio?

- Sim, Pedro, aquele que tinha a mania de brincar às guerras.

- Não sei nada dele. A Madrinha morreu e foi dos tais que se sumiu.

A Emilia aparece.

- A minha senhora e os meninos não querem vir? É teatro!...

Olho-os, consultando-os.

O Pedro agradece a lembrança.

- Está a começar, Emília?

- Não, Pedrinho. Está no intervalo.

- Então não vale a pena. De resto vai sendo tempo de irmos embora. Ainda vamos passar por lá...

E despedem-se.

E quando suponho que o João Alfredo irá sair atrás deles, verifico que não se afasta da cadeira, mãos apoiadas no espaldar.

- Incomodo... se ficar mais um bocado?

São três da manhã e não consigo dormir. Um cansaço imenso enche-me de tal modo que o sono não encontra lugar.

A voz monocórdica de João Alfredo de Ribatorpes continua a envolver-me. Ficou presa às paredes, ao tecto, às alcatifas, aos móveis, ao ar que respiro. Disse, disse e disse. Repetiu coisas que eu já sabia. Confessou outras de que apenas suspeitava. E chegou à conclusão que me deixou nesta fadiga de um esforço para nada.

"Bem sei que eles, os seus queridos, são modelos. Bem sei que outros são modelos. Uns na sucessão de coisas certas. Outros em recuperação. Esses acham que vale a pena. Comigo acabou-se. Estou como um fruto bichoso. Não fui tratado a tempo. E se me extirpassem a parte estragada, que acontecia? Ficava vazio e secava de um momento para o outro. Já agora, hei-de viver mais algum tempo. Não tenho nada do que eles têm... mas tenho o que eles não têm e com isso sou capaz de os utilizar a meu contento. O dinheiro! "

- João Alfredo... de tudo o que se passou, de tudo o que ouviste, resultou isso?

- Não. Resultou diferente! Acordei para a noção da minha inutilidade. E isso não lhe perdôo!

Falhei.

Falhei quando as minhas esperanças eram estrelas sobre mim.

Os meus relógios, o velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão cantam as quatro da manhã. Sim, não há ninguém que não esteja sujeito a falhar.

Acordo estremunhada e com uma primeira idéia a fazer-me saltar da cama. Acabei por não mandar o telegrama para a família do Dr. Leopoldo Brás! E só me resta uma solução. Ir ao funeral.

A Emília franze a testa quando me vê na cozinha.

- Já aqui?

- Queria o jornal de hoje.

- E não podia tocar para eu ir levar-lho?

Não há nada a fazer. Esta rapariga tomou-me sob tutela e julga que voltei à infância. Ou que entrei na segunda... E isso... por enquanto ainda é cedo!

Percorro as colunas onde habitualmente sob cruzes e fotografias (serão estes, os que pela primeira vez têm direito ao retrato nos jornais, os bem-aventurados?) vêm as noticias dos falecimentos e das missas de sufrágio. Eis em grandes letras (sem fotografia!) o que procuro:

Dr. Leopoldo Brás

e sua mulher

Maria Clotilde Silva Brás

Enterro, às 12 h.

Missa de corpo presente, às 11 e 15. São oito e quarenta. Não preciso de andar às carreiras.

- Emilia, arranja-me o pequeno almoço na salinha.

- A senhora vai sair agora?

- Daqui a hora e meia.

- E que é que leva vestido?

- O meu saia e casaco preto, com a blusa branca de pintinhas.

Saia e casaco preto. Blusa branca de pintinhas.

E um ar dolorido que me sobe do coração ao rosto.

E um ar feliz que me desce do cérebro ao rosto.

Mal se rompe nesta sala onde o cheiro das flores amontoadas é sinal de que a morte está ali. A dar aula.

Garotos de doze anos, adolescentes de quinze, jovens de vinte, adultos de todas as idades, assistem.

Lado a lado, nos ataúdes castanhos e simples que dentro em pouco descerão às origens da madeira e da carne, os esposos que foram mestres em todo o sentido da palavra. Porque souberam viver e ensinar a viver.

Oiço frases soltas, pronunciadas pelos mais velhos:

"Era um casal modelo. "

"Adoravam-se, não podiam viver um sem outro".

"Foi melhor que ambos acabassem. Seria horrível se um tivesse de chorar o outro",

"Constituiam um exemplo que toda a gente respeitava, até mesmo quando o não seguia".

"Era uma família e isto diz tudo. "

Dentro de mim a frase ecoa.

ERA UMA FAMÍLIA E ISTO DIZ TUDO.

Diz e explica.

Os rapazes abraçam-se, por aqui e por além, com os olhos marejados. Ou vermelhos de chorar. Não falam. Não podem. Sofrem.

O padre - um antigo aluno - reza a missa. Chegam aos meus ouvidos respostas vindas dos corredores, de longe.

"Dai-lhes, Senhor, o repouso eterno". Os soluços do filho Só respondem às marteladas que fecham as tampas sobre as quais a cruz lembra que antes de nós e depois de nós existe Deus-Pai e a Ressurreição do Filho Só que morreu para nos ensinar a viver.

Nem todos aprendem a viver. E é pena. Deus não merece que o atraiçoemos. Deus pai todo poderoso. Forma-se o cortejo.

Os caixões vão aos ombros de... São eles que os levam. O Pedro. O Paulo. E mais uns tantos que não conheço. Mas percebo o sentido na presença dos meus dois rapazes. O Professor e a companheira, a esposa, a mãe dos seus filhos, iniciam a retirada do tempo actual levados pelos expoentes da sua obra no colégio.

- pelos prêmios de excelência, os melhores alunos.

Agora, o filho sem mais ninguém. O filho só, branco e de lábios cerrados, sem ais nem esgares. Seguem-no os professores. Acenam-me breve cumprimento o Prof. Soares, o Dr. Cláudio Ângelo, o Dr. Isidro Moreira, e mais uns tantos. Os outros não me conhecem nem eu os conheço.

E depois são os alunos, os alunos, os alunos. E os pais de alunos.

Quando chego ao pátio, vejo que o Pedro me espera.

- O Paulo vai no carro funerário. Eu levo-a comigo, se não trouxe o seu automóvel.

- Trouxe, mas deixo-o aqui. Venho depois buscá-lo, vou contigo.

É um longo-longo cortejo. Que pára ante a grande porta do cemitério dos Prazeres. O sumptuoso e gelado cemitério de nome impróprio. Cujos ciprestes me afligem como nenhuns outros.

Penso às vezes que desejo viver a minha morte num pequenino cemitério no topo de um monte donde se aviste céu e mar e onde se oiçam passarinhos todos os dias. Um cemitério sem nome especial cheio de paz e conforto. Há-os. Há-O. Daqui, deste longo terreiro de pedras rasas vê-se o Tejo. Mas vêem-se demais os telhados das casas e as ambições dos homens.

A mancha da multidão silenciosa forma atalhos por entre as lages sem personalidade, fazendo-me recordar a frase do Rumané de Macedo (o Salta-Pocinhas), a qual, contada pela mãe, tanto me impressionou. "A gente morre todos... ou sobeja alguém? "

- A GENTE MORRE TODOS. NÃO SOBEJA NINGUÉM.

E os que estão aqui, ouvem as palavras sentidas do mais antigo aluno do colégio, um rapaz de 38 anos que foi o primeiro prêmio de excelência e já é Ministro, formado em Direito. E na voz dele vibram palavras que vêem de longe. Palavras que estão certas. Palavras decalcadas nas que o Dr. Leopoldo Brás um dia proferiu e nunca mais esqueci. Quando o Pedro recebeu o seu prêmio de excelência.

"A melhor amizade reuniu-nos a todos hoje. Essa que trouxemos dos bancos da escola. Essa que faz com que possamos procurar-nos sempre com absoluta confiança". Essa que nos foi ensinada e aconselhada...

E dir-se-ia que escuto, mais acima, talvez a descer do céu, as frases exactas duma tarde memorável.

"Sejam unidos como verdadeiros irmãos, porque vocês todos juntos formam uma grande família que eu, vosso director, estimo como um pai"...

Unidos como irmãos.

Aula de morte.

Aula de vida !

Parabéns, Dr. Leopoldo Brás.

De tão mergulhada nas páginas deste livro que me encanta, (Meu Pé de Laranja Lima, de um brasileiro-cidadão- do -Mundo, tamanha é a sua alma-compreensão-amor) que me reconcilia com a literatura actual tantas vezes absurda à força de procurar a originalidade na falta de tudo, só oiço a voz da Emilia quando ela sobe de diapasão, impaciente.

Oiço mas não a tempo de saber o que diz. E espero a repetição que não se faz esperar.

- Pela quinta vez, minha senhora! Está lá dentro a senhora condessa de Ribatorpes!

- Ao telefone? - balbucio, vaga, toda eu ainda cheia de ternura por Xururuca.

- Não, minha senhora. Na sala!

Quando a Emília fala assim, piscando os olhitos de rato por detrás das lentes, sei que pensa a meu respeito "Coitada... às vezes nem parece escorreita do juizo... "

Ela não entende porque não sabe. Torno a pensar que Gedeão fala certo quando compara o sonho a uma bola colorida entre as mãos de uma criança, expressão que me acompanha quase permanentemente, talvez porque no fundo sou essa criança, sonhando, balançando como Zézé nos pequenos raminhos do seu amigo - o pé de laranja-lima. A criança nem sempre comparticipa das realidades. A maior parte das vezes não comparticipa.

Sim, reconheço-me tantas vezes crianças, pois que vivo de sonhos!

Poiso o meu companheiro de lá tão longe - bravo, José Mauro de Vasconcelos! - dou um jeito aos cabelos e vou ter com Ana Margarida cuja visita me não surpreende nada. É lógica e o silêncio em que me conservo desde há dois dias, após o jantar com o João Alfredo, requeria-a. Ela sabe já que não consegui nada. Se eu tivesse pelo menos a última coisa a perder

- esperanças! - oferecia-lhas sem que viesse pedir-mas.

Estendo-lhe as mãos num gesto vazio. Estas mãos onde nada existe a não ser pena da própria incapacidade de agir.

- Venho agradecer-lhe! - sussurra Ana Margarida, sentando-se a meu convite.

- Agradecer-me o quê? A desilusão que lhe causei?

- Não houve desilusão. Não há desilusão quando -e procura um médico na última extremidade. Há apenas confirmação! E no entanto...

confirmação! E no entanto...

Aguardo. Afinal ela vai dizer qualquer coisa. Seja o que for. Recomeça:

- No entanto as coisas não estão exactamente iguais, embora eu não perceba se se agravou ou aliviou a tensão nervosa em que nos debatemos. A Catarina mal se deixa entrever e não dá uma palavra. Ele...

- Ele?

- Ontem à noite procurou-me para me participar que deseja sair de casa.

- Proclama a sua total independência?

- Proclama.

- Que decidiu?

- Fiquei de lhe dar hoje uma resposta definitiva.

- Não falou com o Pai?

- Ele ou eu?

- Ele!

- Não. Falei eu.

- Porque é que ele o não faz?

- Porque eu o impeço. O meu marido não voltou a sentir-se bem e receio qualquer nova emoção.

- Transmitida por si a notícia impressioná-lo-à menos?

- Pelo menos digo-lhe as coisas mais suavemente. Disse-lhas. com a minha opinião.

- Qual é a sua opinião?

- Acho melhor que ele se afaste de nós.

- Um rapazito de 18 anos!...

- Não é um rapazito. É um ser errado em qualquer idade. - Parece-me que continua a desertar, Ana Margarida. - Sem dúvida. Mas falta-me a coragem para enfrentar tanta luta simultânea. Não sou de resto a primeira mãe que se engana, pois não?

- Claro que não!

- E depois, na nossa inutilidade junto dele, na aceitação do que não devíamos ter permitido nunca, agravamos o mal. Assim, em liberdade, sem necessidade de nos desafiar, pode saciar-se até cair em si.

Compreendo-a e não quero desiludi-la. No fundo sou uma simples e acredito em milagres.

- Como vai ele manter-se?

- O meu marido estabelece-lhe uma mesada.

- Não lha dava já?

- Sim, mas pequena.

- Quanto?

- Sete mil escudos por mês.

- Quanto, condessa?

- Sete mil escudos por mês!

Meu Deus, o ordenado de tantos chefes de família! Para um rapazote caprichoso e inconsciente...

- Aumentam-lhe a mesada para quanto?

- Para vinte mil.

Há vergonha na voz de Ana Margarida. E compaixão no meu olhar.

Vão acabar de perder o João Alfredo. Vinte contos para espatifar, sem a mínima noção do preço da vida.

Vinte contos não ganhava o Dr. Leopoldo Brás...

E ela, tentando justificar-se:

- com as tendências dele, não desejamos que ante qualquer privação possa cometer erros que deslustrem a família.

- com as tendências dele, condessa, vinte mil escudos não vão chegar para nada.

- Cedemos-lhe um andar que vagou recentemente num dos nossos prédios.

- Ah, não vai pagar renda de casa"?

- Não!

- E mobilam-lho?

- Sim.

- E compram-lhe o carro que ele quer?

- Claro.

- Pois é!...

Ela não entende o meu "pois é". Ou não quer entender. Mas as minhas feições estão de tal modo crispadas numa indignação feita silêncio, que Ana Margarida, decorridos instantes, vê-se forçada a aceitar uma discordância por demais evidente. E, num cicio, indaga:

- Procedemos mal?

- Oiça, Ana Margarida. Há duas formas de encarar o problema. A sua, ou seja, a vossa, colaborando, a minha, discordando.

- Procedemos mal? - repete.

- Estão a premiar a inutilidade de um rapaz no limiar da vida. Um rapaz cujos caprichos visam a desmoralização e a destruição. Dão-lhe tudo, ele aproveita e exorbita. Instala-se e continua. Se se visse repelido, sem nada, a ter de trabalhar para comer, havia de pensar duas vezes...

- Ou de se afundar ainda mais. Já pensou nisso? Duas formas de encarar o problema.

- Tem razão, Ana Margarida. Posso estar perfeitamente errada.

- Ou perfeitamente certa! Mas nós sentimos um medo atroz e por isso tentamos evitar perigos maiores. Se falharmos, de nada mais nos acusará a consciência.

Duas formas de encarar o problema... Se falharem, a consciência não os acusará de nada mais? De nada?

Os dias passam como se tudo fosse eterno. Ontem como hoje. Hoje como ontem. Amanhã?

Não tenho tempo de pensar em amanhã. Escrevo.

Escrevo velozmente, a agarrar idéias, factos, coisas...

- Minha senhora, o correio.

- Obrigada, Emília.

Uma revista para adultos, que não leio. A minha revista para adolescentes, que de novo folhearei encantada. Três cartas. De uma amiga do Norte, que me dá notícias simples de si e dos seus. De uma camarada que conheci em Paris e que quer vir passar férias a Portugal, esperando que a convide. De uma rapariguinha que pede conselhos porque hesita entre dois cursos a seguir. E...

- Quem?...

Mal ouso acreditar.

Mas a Emília é categórica, repetindo:

- Está lá fora o senhor do outro dia, o das barbas e da cabeleira, com mais uns três no gênero dele, a perguntar se a minha senhora pode recebê-los.

O João Alfredo... em grupo?

Passam-me várias suspeitas pela cabeça. E entre elas uma deveras inquietante. Virá o ouriço disposto a perturbar a minha tranqüilidade com atitudes colectivas de desafio?

Seja como for!

- Manda entrar.

- Para a sala?

- Não, para aqui.

Estou no meu quadro, dentro da moldura de que mais gosto.

Nas duas paredes laterais, formando ângulo recto, estantes até ao tecto cheias de livros. Na outra parede, ao lado da janela que dá" para o jardim das traseiras (o jardim não me pertence, envolve a moradia quase sempre fechada dum diplomata português actualmente colocado em Bruxelas) o fogão de sala que no inverno se torna sinônimo da palavra conforto. No canto, a minha mesa de trabalho, redonda. Ao lado o sofá de três lugares onde amontoo almofadas provenientes dos mais diversos países. Sempre que lá vou fora trago uma diferente. Há quem coleccione canecas, cinzeiros, sapatos, alfinetes... não é?...

E aqui, fechada na minha moldura, sou eu.

Tenho o direito de ser eu e de exigir que não transponham aquela porta os que me não aceitam.

Aquela porta que eles, o João Alfredo e os companheiros, passam, em fila.

A Emília enganou-se ao contá-los. São seis ao todo. com ar de facínoras. Ou melhor, com aspecto de facínoras, a admitir que os facínoras estejam catalogados... Bodegões. Andrajosos.

Vencida a suspeita de banditismo, apetece-me dar-Lhes esmola.

O João Alfredo, após três passos, hesita e pára.

- Incomodamos?

- Um bocadinho. Mas já que vieste, fica. Tu e os teus amigos.

Há sorrisos intimidados, descubro-o subitamente, entre barbas e bigodes. E nos olhos deles uma inocência que desfaz a má impressão sugerida pelo conjunto.

João Alfredo apresenta-mos.

- O Licas. O Teco. O Fadista. O Carola. E o Tòdinho.

- Esses são nomes de guerra.

O Licas, muito loiro, empertiga-se.

- Não queremos outros.

- Porquê? Renegaram o baptismo?

- Renegámos as famílias. Somos livres!

- Livres de quê e para quê?

- De obrigações sociais para nos aproximarmos da natureza!

- Trocam portanto umas por outras.

- Como?

- O Licas subordina-se à natureza, não é? Então viverá como ela o deixar, apenas! Sem se defender dela, nunca! Ou seja, agüentando as dores-de cabeça e as dores de dentes sem tomar comprimidos.

Ele pestaneja. Sabe que ironizo, mas não contesta o que se afigura de acordo com as suas teorias.

- Ah, pois... pois! Convido-os:

- Querem sentar-se? - e detenho-os logo. - No sofá não. Nem nas cadeiras! Sejam coerentes! No chão... libertos de deveres educacionais.

E agora, com os braços apoiados na minha mesa, sobre os meus papéis, olho-os de cima. E são tão cômicos, tão puros neste exibicionismo, que não agüento... e começo a rir.

E rindo penso que eles querem realmente qualquer coisa, para virem assim visitar-me. Não, não estão aqui com más intenções. Eles não têm más intenções. Más intenções tiveram os que os ensinaram a viver do lado do avesso. Os que envenenaram o espírito em formação arriscando toda a sua humanidade. Os que impediram estes rapazes (pela certa de boas famílias e ricos - os modestos e os pobres em geral não dispõem de tempo para se destruírem!) - de serem gente.

O riso extingue-se-me por fim numa pergunta:

- Bom, meus filhos, estou às ordens. Que querem de mim?

O Carola, muito magrinho, aponta João Alfredo cuja alcunha fico a saber:

- Aí o Fofo diz.

Encaro os olhos míopes do gordo herdeiro dos Ribatorpes.

- Fofo... fala!

Ele deve ter notado o ridículo deste convite Fofo... fala!

Mas não pode recuar. O grupo fita-o, à espera De muito mais do que eu prevejo neste momento.

- Bom... eu cá disse aí aos meus companheiros da ilha dos Pêssegos.

Consigo suster o relâmpago que me inunda, resultante do choque eléctrico entre a incredulidade e a compreensão.

- Ah... a ilha dos Pêssegos! - ecoo. E ele:

- Os tipos não me acreditaram. E então eu prometi-lhes que os trazia cá para ouvirem da sua boca o mesmo que eu! É tudo.

O Tòdinho (tadinho, tão feio!) regouga em voz de falsete:

- Tudo não! Há mais!

- Pois! - corroborou o Licas. - É que se for verdade a gente estamos interessados!

Indago.

- Mas interessados em quê?

- Na compra!

- Mas... - e inclino-me para o Fofo, -julgo que essa compra só virá a ser possível, dentro de todas as hipóteses, no dia em que o... Fofo for senhor da sua fortuna. Se bem me lembro, quando falámos do assunto, sugeriu-se que essa ilha - (e tento não atraiçoar a linha de invenção ocasional em que nunca mais pensei desde o jantar em casa dos condes) - viesse no futuro a ser cedida pelo nosso governo em troca de uns quadros da família Ribatorpes, entre os quais se contam telas de valor incalculável.

- Mas todos nós somos muito ricos, - diz-me o Licas.

- Mesmo assim o único que na verdade pod gastar livremente é o Carola, o herdado, não?

- Todos nós podemos gastar mais ou menos livremente.

- De maneira a comprar uma ilha?

- Lá isso não! Um só, não.

- Então?

- A gente cotiza-se.

- O quê?

- A gente cotiza-se. Cada um dá uma parte e entra-se em negociações!

- Essa tal ilha convinha-nos!

- Se a senhora nos arranjasse isso, a gente dava-Lhe uma comissão...

- Ah... vocês oferecem-me uma comissão? Eles entreolham-se, esfregam as mãos, contentinhos.

- com dinheiro tudo se consegue, não é? -e enfrento o problema. - Admitamos que eu consiga que lhes vendam a ilha dos Pêssegos. Vocês já pensaram no seu isolamento? Na distância a que fica de tudo?

Alguns encolhem os ombros. E eu continuo.

- Para se abastecerem, têm de ir a qualquer uma das outras ilhas.

Diz o Licas.

- Arranja-se um barco!

- Óptima solução no bom tempo, sem dúvida. Mas... e nos dias de temporal quando a ondulação impede por completo a manobra de encoste? E dificulta a navegação naquelas paragens pouco freqüentadas porque ficam longe das rotas normais?

Eles consultam-se com o olhar.

- Realmente, há que pensar nisso... - concorda

o Fadista.

Mas para o Teco não há dificuldades.

- Ó pá, compra-se um helicóptero e pronto!

- Bestial!

- O helicóptero fica por minha conta! - garante

o Carola.

- Algum de vocês tem brevet? O silêncio diz-me que não.

- Acho que não podem pilotar nenhum helicóptero sem brevet de aviador...

Agora mostram-se preocupados.

- Para tirar o brevet é preciso ter o liceu todo?...

- Confesso que não sei! Mas... mesmo que seja necessário... vocês têm o curso... Ou não?

Uma tossícula. Um pigarreio. Por fim, a sinceridade, na interpretação do Tòdinho. -Não temos!

- Ah... não o concluíram?

- Não chegámos a fazer!

- Ano nenhum? - duvido.

- Eu cá desisti de estudar no segundo ano. Aquilo era uma chatice e não me servia para nada. - confissão do Fadista.

- Eu fui até ao quarto ano. Depois desatei a ter negativas e pronto! - diz o Licas.

E o Fofo:

- Eu, como andei sempre nos colégios lá fora, fiz uns exames que não têm cá valor nenhum. O que falo é bem francês e inglês.

- Ele é o mais instruído, não há dúvida. confirma o Teco, o filho do cirurgião. Encaro-o:

- O teu Pai não se importou que não estudasses?

- A princípio fez fitas. Mas como chumbei o quarto ano três vezes a seguir, desistiu. O tipo, ao cabo e ao resto, tem idéias avançadas, não é dos que obrigam os filhos e é o que vale, quando não já me tinha pirado há muito tempo.

- Então e o Carola?

- Eu cá fiquei na quarta classe.

- Só?

- Só. Sou bronco por natureza. Os meus avós perceberam que não valia a pena insistir e como o dinheiro lá em casa é como se caísse do céu...

- Sendo assim, verifico que na verdade nenhum de vocês poderá pilotar um helicóptero.

- O que nos cria dificuldades, olá se cria...

- concorda o Carola.

Mas o Fofo tem idéias.

- Qual cria qual carapuça! Contrata-se um gajo à laia de chofer !

Os outros aplaudem:

- Ó pá, é colossal, a idéia! Sou forçada a reconhecê-lo.

- Sim, pode ser uma solução!

- Portanto a senhora interessa-se pelo negócio?...

- Um momento, Fofo, um momento! Antes de me comprometer, o assunto precisa de ser devidamente ponderado.

Eles aguardam a ponderação.

- Em primeiro lugar vocês têm de pensar que a ilha dos Pêssegos está situada num mar isolado...

- Isso já a senhora disse e não serve de obstáculo! - exclama o Fadista.

- A pouca gente que lá. vive, (umas dez famílias, julgo!) para os deixar sozinhos há-de querer pela certa uma indemnização...

- Dá-se a indemnização! - garante o Teco. o Tòdinho:

- A não ser que queiram ser nossos empregados!...

- Heim?

- Trabalham p'rà gente e a gente paga!

- Discordo!

- Porquê?

Porque ou a gente procura um mundo só p'rá

gente... ou a gente leva o mundo atrás de nós!

Percebo um certo ideal nesta frase bem construída. E adiro:

- O Licas tem razão!

- Pois, lá isso...

- Portanto, indemnizamos os tipos e eles que se ponham na alheta!

E aproveitamos as casitas deles para nós...

- Tá certo!

- Óptimo, meus rapazes. Por esse lado... ponto final! Mas...

- Mas?...

- Vocês têm de admitir, embora sejam extremamente novos, que podem adoecer de repente... Quem os trata?

- Tratamo-nos uns aos outros.

- Levamos uma farmácia com tudo quanto puder ser útil. O meu Pai receita.

- Ou uns amigalhaços especialistas que aparecem nas nossas casas. Hão-de pagar os jantares e as ceias...

- troça o Fadista.

- E... se sofrerem um acidente? Não podem contratar um médico como contratam um helicoptorista...

- Claro que não!

- E há pernas partidas, dentes a tirar, apendicites agudas...

O Fofo encolhe os ombros.

- Não vamos pensar no pior, Mas se acontecer qualquer coisa... o helicóptero lá está... mais o helicoptorista...

- Pronto, arquivada a dificuldade!

- Todas as dificuldades! A gente leva o que for preciso! Vamos abastecidos.

- Duas perguntas ainda. Eles esperam-nas.

- Vocês não sentem a falta de conhecimentos?

- Conhecimentos? - e o Teco ri. - A gente conhece meio mundo!

- Não me refiro a esses conhecimentos, mas sim a conhecimentos deste conjunto material e espiritual em que vivemos. Conhecimentos no sentido instrução, cultura... Noções de história, de literatura. de matemática, de física, de ciências...

118

O Licas deve ter feito um esgar que o matagal que lhe esconde as feições oculta. A entonação, porém,

- Isso serve p'rá gente se sentir feliz?

A contestação é grave.

- Não, de facto não! As pessoas não são felizes por saberem ciências, física, matemática, literatura. história... a não ser quando dentro delas existe a ânsia de conhecer o que transcende a existência limitada do animal irracional. Por ter querido aprender mais e mais e mais o homem criou obrigações, deveres, necessidades e escravizou-se.

E de súbito, pasmo.

Não, não fui eu que pensei isto! Ouvi a frase.

E pronunciada pelo Teco. Pelo filho do cirurgião.

Este rapaz não é parvo. Este rapaz limita-se a não querer.

Talvez no fim de contas estes rapazes apenas não queiram.

Solta-se-me do mais fundo de mim mesma um imenso suspiro.

- Pois o teu conceito cabe entre todos os que qualquer homem tem o direito de formar, o que demonstra a sua liberdade. A liberdade de pensar.

- A liberdade que nós queremos conservar e pela qual lutamos, à nossa maneira, fugindo à pressão da vontade alheia.

- Ouve, Teco.

Não ouve só o Teco. Ouvem os outros também.

- Para vocês a liberdade reside numa espécie de auto-destruição, num retrocesso... Para outros, no direito enorme de conhecer o que há, o que virá a haver.

O que foi, as consequências do que foi, do que virá a ser... etc.

- Isso é lá com eles. Que não chateiem e acabou-se!

- Mas vocês são homens de hoje!... E obrigados pela natureza a situar-se dentro de imposições que nascem com o próprio sol! Nada subsiste na ociosidade! O trabalho que nos cerca é incessante e...

E detenho-me. Se prossigo, estrago tudo.

- Bom, seja porém como for, não vamos agora embrenhar-nos num estudo sobre um assunto que encheria bibliotecas. Vocês escolheram a ignorância para reino, habitem-no até se identificarem com a matéria informe, se isso lhes agrada.

O Tòdinho, neste momento, reage.

- Tá a censurar-nos? Controlo-me e sorrio.

- Se eu estivesse a censurá-los não acham que me recusava a fazer por vocês o que me for possível?

A frase é cheia de um sentido que eles não alcançam. E o sobressalto provocado pelo Tòdinho serena. Posso continuar.

- Há pouco disse-lhes que ia fazer-lhes duas perguntas. Só formulei uma. Passo à segunda. Vocês já pensaram no problema da tropa?

- Da tropa? - balbucia o Teco.

- Sim, da tropa! Ou vocês ficaram livres?

- Nós... nós ainda não fomos chamados.

- Não foram? Mas estão na idade!

- Só ali o Teco, que já fez os dezanove anos.

- indica o Fadista. - Nós somos mais novos.

- Pouco, julgo?

- Uns meses, excepto o Tòdinho, que ainda não tem 18.

- De qualquer maneira, o serviço militar acha-se a dois passos de vocês!

Um coça a cabeça. Outro cofia o bigode. Outro alisa as barbas. Trocam olhares indecisos.

- Não nos tínhamos lembrado disso! - confessa o Licas.

E o Carola, que é o mais calado mas que quando fala se faz ouvir:

- Que grandessíssima chatice, an? Estraga-nos a vida!

E eu, muito séria, porque o que vou dizer me sobe do coração à boca:

- Ou ensina-lhes a vida!

- Como?

- Entre rapazes das mais diversas origens, rapazes que deixam famílias que amam, carreiras que desejam, cursos de que depende o futuro, rapazes que de armas na mão sentem que se uniram para defender, ou vir a defender, a casa de todos, a Mãe Pátria! vocês, soldados rasos (porque a falta de estudos os nivelará com os mais humildes) receberão uma lição ímpar, a lição que em si contém solidariedade, fraternidade, noção do valor pessoal ou seja, valor do preço do sangue.

O Licas parece muito preocupado.

- É pá, que eu nunca me lembrei disso! A gente vai mesmo pra soldados rasos!

- Pois vão! Os oficiais são rapazes instruídos, rapazes que mostraram as suas aptidões e portanto oferecem garantias para o exercício de funções onde a palavra comando já cabe. Aliás, a palavra comando contém em si o conhecimento da necessidade de obedecer. Ninguém sabe mandar se não tiver aprendido a submeter-se, visto que só assim se reconhece a importância de qualquer das atitudes.

Creio que eles não me ouvem. Cochicham e não distingo uma palavra.

- O que é que vocês estão a dizer? O Teco explica:

- Aqui o Fofo acha que talvez as nossas famílias nos livrem...

Contenho a minha reacção, a qual se traduziria assim "espero que não façam tal, que o não consigam, pois vocês precisam de mergulhar nesse banho de obrigações! "

- Pois... talvez. - concordo. - No entanto não contem muito com isso. Actualmente só em casos extremos um homem fica isento do serviço militar.

- Mas se a gente estivesse na ilha dos Pêssegos, - tartamudeia o Fadista, - eram capazes de não irem buscar-nos...

- Por Acaso tens alma de desertor, Fadista? Ficam calados e eu prossigo:

- O melhor é vocês adiarem o vosso projecto para depois da tropa!

- Ooohhh! ...

- De resto há que ponderar justamente a situação dos seis ante a compra da ilha!

- Como?

- É simples, meus filhos. A ilha pertence ao país; logo a sua cedência a particulares dependerá em muito das garantias que estes ofereçam. Hão-de investigar-vos para ver se devem deixá-los fazer uma aquisição dessas.

O Teco incita-me:

- Ó senhora, faça lá o que puder que a gente não fica a dever-lhe nada.

Estou de pé. com a boca amarga.

- Enganam-se, filhos! Não pretendo um tostão para mim. O meu trabalho a vosso favor será totalmente desinteressado.

- Heim?

- Totalmente desinteressado! - repito e acrescento: - Contudo, nada posso prometer-lhes, pois a decisão acerca do caso não depende de mim. Apresentarei a vossa proposta de compra, saberei quais as hipóteses a considerar... sem me julgar credora do que quer que seja. Contudo, advirto-os de que a solução não será conseguida de um dia para o outro.

Ligeiramente encavacado com a sujeira provocada pelo Licas, o Teco procura demonstrar compreensão.

- Ah, pois, a gente sabe disso!

- Aconselho-os pois a terem paciência. E vou mais longe, voltando a afirmar-lhes que as garantias morais que vocês derem vão pesar tanto na balança oficial como os nomes das vossas famílias. E sabem o que eu faria, no vosso caso - e isso talvez influenciasse muito os conselheiros de Estado que por certo irão ajuizar do interesse do negócio? Não esperava o aliste obrigatório na tropa! Tinham tudo a ganhar se se oferecessem como voluntários... - Espero um momento, para que eles se preparem a fim de digerirem a sugestão. Abro o terreno onde vou arriscar uma frente. - Vocês não andam a fazer nada por aí. Sentem-se, esta é que é a verdade, desgostosos com o que os rodeia. Do serviço militar, não devem livrar-se. Portanto aproveitavam enquanto esperam pela ilha dos... -ia a dizer-lhes sonhos mas domino-me a tempo, - Pêssegos... e arrecadavam dois proveitos, despachando uma obrigação inevitável e causando a melhor impressão aos dirigentes.

Consultam-se primeiro numa troca de olhares. Depois o Fofo, como obedecendo a uma ordem muda, responde-me:

- Se não há outra solução, a gente pensa nisso.

- Outra solução, sinceramente, não vejo.

- E entretanto a senhora vai tratando do assunto?

- Com certeza.

- É preciso a gente fazer qualquer proposta escrita?

- Por enquanto, não. Vou dirigir-me a quem de direito numa primeira consulta e vocês, conservando-se em ligação comigo, saberão como agir assim que eu própria dispuser de elementos.

O Carola acena numa concordância. O Fadista solta um ai de conformação. E o Teco fala:

- E a gente, antes disso, não podia fazer uma idéia de como é a ilha?

O Licas corrobora:

- Sim, antes de entrar em negociações, se se desse um jeito...

Primeiro não tenho idéia nenhuma.

- Ó filhos, mas então vocês queriam ir lá agora? Fazer uma viagem nesta altura?

- Não se perdia nada!

- Mas é difícil! Não há carreiras regulares para a ilha! Tinham de ir até ao Faial, do Faial arranjar barco para as Flores, das Flores ver se um pescador estava disposto a ir até aos Pêssegos. O mar, nesta altura do ano, é péssimo.

- Mas estamos na Primavera!

- Primavera alta, filhos! Precisamente quando as correntes marítimas se modificam naquela zona e a sua deslocação, sob a influência das fases da Lua, perturba a ondulação que chega a provocar uma espécie de redemoinhos perigosíssimos!

A atenção com que me escutam, demonstrando uma ignorância que tudo permite, até as minhas explicações fantasistas, dá-me a convicção necessária para alimentar montes de sugestões... Só preciso de uma e aproveito-a imediatamente.

- Vocês sabem?... E os seis em coro:

- O quê?

- Devo ter aí algures umas fotografias guardadas de quando lá fui, no Outono de há três anos. Vou procurá-las e mostro-lhas.

- Agora?

- Agora não! Perco um pedaço a encontrá-las e preciso de acabar este meu trabalho, percebem?

- devo ganhar tempo para as arranjar, convincentes. Mas telefono a um de vocês e marco-lhes um dia e uma hora para virem vê-las.

- Telefone lá para casa! - sugere o Fofo.

- Se calhar vai demorar muito tempo... -receia o Teco.

- Não, não demoro, prometo!

E nisto, do Tòdinho que se conserva silencioso há longos minutos, solta-se um queixume sentido.

É tudo tão custoso de conseguir! Vão passar

meses, ou anos, antes que a gente consiga isolar-se na nossa ilha!

As cinco cabeças temíveis (no aspecto), inclinam-se num gesto que se faz eco daquelas palavras lamentosas. As seis, com a do Tòdinho.

Contemplo-os com uma piedade que surge, e se define, e me inunda. Meu Deus, estes rapazes sentem-se mal entre os outros homens! Estes rapazes podem não prestar, mas também não prestam os que lhes inspiram um tamanho desejo de evasão. Estes rapazes estão indiscutivelmente errados, mas são infelizes! E querem deixar tudo e todos. Querem isolar-se. Querem, partindo de falsas premissas, conquistar qualquer coisa que lhes falta e nunca obterão. Querem, acima de tudo, abandonar este mundo onde acharam demais. São vítimas, muito mais do que culpados. Rodeiam-nos barreiras em cada uma das facilidades que lhes deram. A fartura enjoou-os. Precisam de voltar ao nada para se reconhecerem vivos, digam o que disserem, apregoem mil vezes uma precisão desvairada de se reclinarem em coxins de veludo servidos por escravos. Proclamam uma ânsia de entrar em choque com os outros e o direito de cheirarem mal. No fundo ambicionam mergulhar em águas límpidas e formar uma sociedade de amigos onde seja possível recomeçar.

Não aceito a verdade deles como boa. É uma verdade deslocada na urgência de reagir e de ressurgir.

Mas reconheço-a com uma pena que transborda em mim e enche as minhas mãos de ternura.

Pobres rapazes ricos sem coisa nenhuma, tão sujeitos a serem arrastados para onde quiserem levá-los tão inocentes no atraso de uma incultura eriçada de perigos, capazes de acreditarem numa ilha deserta cheia de Pêssegos!

Estendo as minhas mãos das quais a ternura escorre. Rodeio a mesa de trabalho. E afago as cabeleiras hirsutas, uma a uma.

A voz solta-se-me embargada pela emoção.

- Meus filhos... façam os possíveis por merecer a ilha dos Pêssegos!

E o Tòdinho, que é o primeiro a erguer-se, agarra na minha mão direita, na minha mão de trabalho, leva-a ao rosto e dentre o emaranhado de todos aqueles pelos e cabelos sinto cair o toque leve de um beijo.

Com o beijo, uma frase:

- A gente confia em si! E eu, eu...

Oh, meu Deus, faz com que ao menos, na ilusão que embala e ajuda, a ilha dos Pêssegos venha a existir!

Fico tão preocupada, tão dominada pela responsabilidade que aceitei, que se não fora a Emília vir perguntar-me "se não acho que são horas e mais que horas de ir arranjar-me para sair", me esqueceria de que estou convidada para ir jantar a casa do Paulo.

A casa dos Pais do Paulo.

Ao longo dos milhares de páginas (já são milhares!)

que tenho escrito, raramente falo da Mariana de Ataíde e do marido. Solicitada por tantas outras coisas, esqueço-me um tanto deles. Não que os não estime ou não considere! Sou muito amiga deles e aprecio-os deveras. Simplesmente...

A Mariana costuma dizer, num sorriso que tira à frase qualquer azedume:

- Não possuímos raízes. Nascemos depois do Paulo... - e nesta frase acha-se a alusão a um conhecimento mais recente, conquanto já longo de anos. Longo mas não tanto como o que existe entre mim e os Macedos.

Contudo não reside na diferença do tempo o alheamento de que posso ser acusada e prefiro explicá-lo a permitir mais suposições. Serei sincera.

A Mariana e o Henrique (Dr. Henrique Jorge de Ataíde Lemos) ainda me não proporcionaram matéria suficiente para se tornarem independentes a ponto de motivarem um registo especial. São óptimas pessoas, equilibradíssimas, conscientes, encantadoras, vivendo a existência mais regular que conheço. Ele trabalha a sério. Açambarcam-no problemas constantes porque toda a gente sabe que é um advogado competentíssimo e honestíssimo. Mal resolve um caso, já outro o solicita quase sem lhe dar tempo a fazer - uff!... Entre o escritório e a barra decorrem-lhe os dias com algumas horas passadas na fábrica e nas companhias de seguros de que é consultor jurídico. Isto profissionalmente. Familiarmente vive para a Mariana a quem adora e o que ela diz faz-se. De resto, o que ela diz está geralmente certo, porque é uma mulher inteligente e sensata e soube chamar a si resolução dos deveres sociais, aliás normalíssimos Não se dão com gente de mais nem de menos. Têm amigos escolhidos a quem visitam com prazer e com prazer recebem. Vão ao teatro e ao cinema quando os espectáculos lhes despertam a atenção, importando-se muito pouco com a opinião dos outros e defendendo sempre o critério de que gostar ou não gostar é uma das maiores definições da palavra liberdade. De vez em quando fazem uma noitada jogando bridge, king de canasta. Depende dos parceiros. Uma vez por outra o Henrique, às nove e meia da noite, despachado o último consulente, telefona à mulher e diz-lhe "Daqui a vinte minutos vou aí buscar-te". Mariana sabe para quê e não arranja desculpas, mesmo que há mais de cinco dias não vá ao cabeleireiro. Veste-se a correr com um dos vestidos que o marido mais gosta, maquilha-se de fresco e chama a Joaquina que é extremamente jeitosa (a Joaquina, a criada de fora) e lhe dá um jeito nos cabelos (de um louro claro que disfarça os fios brancos). Quando a campainha soa, - trim - trhn - trim - trim - trim - trim trim - trim - trim - trim - trim - tim - tim tim, ela está pronta para sair. Quando muito vai no elevador a pôr os brincos... E, radiante, cumpre o programa com o qual já conta. Jantam fora, num bom restaurante, e depois vão dançar até cerca das duas da manhã. E sente-se sempre como noiva, porque nessas ocasiões o Henrique lembra-se de que é maravilhoso namorar a esposa. E as pessoas que os vêem chegam a estranhar o ar encantado daquele casal que não sente nem o peso dos anos nem o cansaço de uma longa vida em comum. São inteiramente felizes - proclamá-lo-á qualquer deles sem hesitação.

O Paulo, filho único, não lhes dá preocupações. E, já homem feito, na preparação da sua vida própria, faculta-lhes uma independência que em pequenino de certo modo cerceava. Até certa altura nada se fazia sem o Paulinho, ou o Paulito. Depois, a pouco e pouco, foi preciso começar a fazer. O Paulo, por exemplo, ia passar uma parte das férias com os Macedos; os pais começaram a viajar. Todos os anos viajam agora. O Henrique passa uns quinze dias seguidos na sua quinta do Minho, orientada pelo irmão mais novo, notário estabelecido numa vila a dez quilômetros da propriedade, e depois abala a conhecer mundo e faz muito bem. Se nós não aproveitamos para admirar a obra de Deus (que as obras válidas dos homens continuam a ser obra de Deus!) quanto perdemos na contemplação do que nos rodeia, perto ou longe!

- Não é verdade? - pergunta-me o pai do Paulo, enquanto acabamos o pudim de peixe que está delicioso. - É necessário abrir os olhos bem abertos para enchermos a alma com as coisas maravilhosas que estão espalhadas pelas sete partidas, até para não nos convencermos de que o que possuímos é melhor do que o alheio! Acho tão má esta noção como a inversa, a que nos leva a achar que o alheio mete o nosso num chinelo!

Concordo e pergunto:

- Para onde vão vocês este ano?

- Estamos a pensar no Brasil. Mas ao mesmo tempo um amigo meu, que dirige uma agência de viagens, começou a entusiasmar-me para ir até à América Central.

- Tiras à sorte. - sugiro. Mariana ri:

- Foi precisamente o que eu lhe disse, sabes? Mas a hesitação dele tem outra base... que não confessa mas eu conheço...

- Ah, sim? - e espero que me elucidem. Henrique esboça um gesto de negativa.

- Olha que já não, ó Mariana...

- Não?

- Não... e explico porquê. Daqui a uns anos, poucos se Deus quiser, o rapaz radica-se lá... e depois sei que não resistimos às saudades e para lá passamos a ir sempre que possível até ao fim. Acaba-se-nos esta liberdade e por isso talvez seja melhor aproveitá-la para ver mais um pouco de mundo.

- Ah, claro... tens razão!

Percebo o alcance das frases sem definição para qualquer outra pessoa. Quando o Paulo se formar, vai para Luanda; em Luanda, junto do sogro e do cunhado, (que Deus fará) estabilizará o futuro. Dedicar-se-á ao hospital, virá à metrópole de longe a longe... e então os pais solitários, talvez avós, não agüentarão a distância que a passagem do tempo inexorável começará a tornar dolorosa.

Passa, sobre todos nós, um toque de emoção ligado ao porvir.

Logo, porém, o som da campainha da porta, soando, nos restitúi ao presente.

- Ah!... -exclama Mariana, ouvindo-o. -Talvez sejam a Laura e o marido.

- Não sabia que os esperavas - estranha o filho, desculpa, esqueci-me de to dizer.

É que os convidei para virem tomar o café. Espero que não te aborreças!

E a conversa decorre animadíssima, entre cafés, conhaque e dois licores. Há muito tempo que eu não via a Laura. A Laura e o marido. Vejo agora o ar tranqüilo desta mulher que um dia conheci partilhada entre um desespero permanente e um complexo de inferioridade que chegava a enervar. Também o homem que se transviou parece recuperado para a dedicação da esposa que tudo lhe perdoou. Ainda bem.

E Laura narra, desvanecida, a excelente conta de si que os enteados estão a dar na escola, e o afecto que lhe dedicam, e o entusiasmo com que se interessam pelos incidentes da vida do irmão, verdadeiro ídolo que por falta de idade não podem ver no cinema mas cujas fotografias recortam e coleccionam espatifando quantas revistas de cinema portuguesas e estrangeiras o pai compra, cada vez mais orgulhoso dos êxitos do primogênito, aliás filho único do casal.

"E não queria a D. Laura deixar o Fernando Vasco ir para o colégio de verão na Alemanha, com o Pedro e o Paulo!" - penso, recordando no meu íntimo as dificuldades que me foram contadas por Rosa Maria.

Agora, precisamente, falamos do Fernando Vasco. Esteve cá há dias (repetição de uma outra visita recentíssima, para os anos do Paulo) sem ninguém o esperar (o Pedro e o Paulo riem-se) e sem ninguém o ver, a não ser a noiva e a família - e os Pais, claro! - e deve regressar daqui a três semanas para o pedido oficial da rapariga e para marcar o casamento.

Somos todos concordantes numa opinião. Achamos isto demasiado rápido. Demasiado precipitado.

- O Fernando Vasco mal conhece a pequena!...

- lamenta Ernesto Peres, que receia bastante de um futuro mal alicerçado.

Entretanto, chegou o Pedro. Depois de nos cumprimentar, diz:

- O tom pálido e faminto, aquela dengosidade entre natural e postiça, bem enroupada pelos Givenchy e Desses...

- Estás muito a par dos grandes nomes da alta costura francesa! - gracejo.

Ele não liga.

- são capazes de fazer furor, no meio em que o Fernando Vasco evoluciona.

O Henrique comenta:

- Ainda nos arriscamos a ver a Alicinha Fontemora transformada em vedeta.

- E o talento?

- Andam por lá tantas sem saber o que isso é...

- Por lá e por cá! Infelizmente a maior parte dos que servem o teatro não precisam de talento para nada!

- O teatro e o cinema!

A conversa deriva para um tema que principia a reacordar em Laura os antigos medos adormecidos por tanta coisa que lhe ensinara que era possível ter uma vida estável, uma vida feliz. E quase gagueja, ao perguntar:

- Acham que... que o Fernando Vasco pode contar-se nesse número? No número dos favorecidos não pelo verdadeiro mérito, mas pela sorte?

- Que idéia! - replica o Paulo vivamente. - O Fernando Vasco é um monstro de vocação!

Ela suspira, aliviada, notando que os nossos sorrisos aprovam o elogio. E eu afirmo:

Escute, Laura. Para eles não há grandes possibilidades de triunfo sem que o valor os imponha, tão difícil se evidencia a ascensão e tão poucas são as razões capazes de lhes abrir caminho. com elas torna-se um pouco menos complicado, já se vê. Uma grande protecção basta às vezes para lhes proporcionar um lugar cimeiro.

E o Pedro:

- Madrinha, isso é contra a sua opinião habitual!

- Que opinião?

- Essa com a qual costuma defender a teoria de que os que sobem por escadas presas a algodão em rama, ou seja, por degraus de favoritismos ocasionais, acabam sempre por cair!

Encaro-o.

- Eu não disse senão que uma grande protecção basta ás vezes para lhes proporcionar um lugar cimeiro... Proporcionar não é garantir! Quantas e quantas, ao alcançarem uma plataforma roubada às que se viram preteridas porque elas, as tais, jogavam com armas desleais, rolam de bem alto para abismos tremendos, exactamente porque não tinham qualidades para se agüentarem lá em cima...

Durante uns minutos debate-se o assunto, todos me dão razão e até há quem cite exemplos. Mas não tarda que voltemos a ocuparmo-nos do Fernando Vasco e da Alicinha Fontemora.

E é Ernesto quem se pronuncia:

- A propósito do meu filho e desta sua decisão... O Henrique interrompe-o.

- Decisão concordante com o ambiente a que ele se adaptou!...

Ernesto Peres acena a sua aprovação e prossegue- mais me assusta que tudo a noção de que ela será incapaz de vir a prendê-lo!

- Como? - perguntamos Mariana e eu.

- Ele podia não gostar muito dela, mas achando-Lhe graça, deixando-se seduzir, acabar por se lhe afeiçoar profundamente se ela, amando-o, fosse capaz de o cativar de tal maneira que ele viesse a não poder existir sem aquela doce companhia que afinal qualquer homem deseja encontrar.

Ficamos silenciosos durante momentos, a reflectir.

O Pedro fita-me. Conservo-me impenetrável. Não preciso, aliás, de ser vulnerável, agora e em relação a isto. Ele bem sabe o que penso. E conhece-me o suficiente para não admitir qualquer alteração nos meus pontos de vista. Porque havia de haver?

E é Laura quem por fim se faz ouvir:

- Custa-me a acreditar que a Alicinha não goste do Fernando Vasco!

- Custa-te a acreditar por que és mãe e o adoras! Mas ela não vê nele senão o salto para uma outra sociedade, para uma outra existência, para um certo número de coisas que lhe estão vedadas! Ela casa com ele porque isso lhe lisongeia a vaidade...

E Laura:

- O meu filho merecia melhor! É um excelente partido!

O Pedro sorri, -discreto. Boa D. Laura e os seus excelentes...

O Paulo acende um cigarro, a disfarçar qualquer coisa que passa no ar.

Qualquer coisa que sem ninguém perceber ao certo porquê estabelece uma súbita e inesperada ligação com os que estão longe de nós e sempre tão extraordinariamente perto - os Macedos.

E é também a Laura Peres, Deus sabe porquê, quem dá forma ao pensamento que nos chega - e ouso afirmá-lo pela expressão que se desenha em cada um de nós.

- É verdade, e notícias da Ana-Maria? Ana-Maria. Minha querida Ana-Maria! Minha

menina do liceu que me alagou de ternura e me deu a medida exacta de uma maternidade total, realizada graças à melhor das filhas nascida da melhor das mães, simbiose perfeita em que o meu coração se encontra reflectido como se qualquer delas estivesse moldada em carne e houvesse resultado de mim. Os olhos enchem-se-me de lágrimas, mas consigo dominar-me. A vida ensinou-me que chorar quase nunca serve para nada. Nem para comovermos os outros, quando somos um bocadinho exibicionistas. Nem para aliviarmos a nossa dor, quando somos excessivamente sentimentais.

O Paulo, o meu Paulo, seguro do que lhe está prometido e é devido e conquistou por mérito próprio, responde à mãe de Fernando Vasco:

- Está óptima, felizmente! Telefonou-me anteontem. E além das saudades, que os afligem como nos afligem a nós, não há por lá nada de extraordinário.

A esta afirmativa -tranquilizadora (porque não há-de sê-lo?) seguem-se vários derivativos, no diálogo generalizado.

Mariana e Laura discorrem acerca do problema

do Fernando Vasco e falam da sua próxima vinda que definirá uma linha de conduta futura.

- Não me diga que ainda casam antes da Mirita Abegorim? - surpreende-se o Paulo.

Não oiço a resposta.

Não oiço mesmo a conversa entre o Henrique de Lemos e o Ernesto Peres, creio que sobre política

- uma coisa ao que deduzo imensamente importante mas da qual nada percebo. Nem quero perceber! Vivo tão dentro de mim... não é?

O Pedro está sentado ao meu lado, as mãos colocadas nos joelhos, um ar tão alheado do momento como o meu.

- Madrinha? ...

- Sim, filho.

- Tem recebido notícias da nossa gente?

- Não.

- E acha natural?

- Porque não hei-de achar natural? Andam cheios de afazeres, assoberbados por vários motivos, todos eles fortes... Aliás vocês ainda ante-ontem falaram com a Ana, segundo o Paulo o afirmou agora mesmo!

- Pois.

Estranho a pequena palavra de aprovação.

- Pedro?...

- Madrinha?...

- Passa-se qualquer coisa que esteja a inquietar-te?

- Não.

- Que não tão pouco convincente!... - olho-o de frente. - Diz o que pensas, Pedro. De outra maneira não te posso ajudar.

- É que ultimamente a Ana, quando pergunto pelos pais, diz muito pouco. Quase nada! A todas as perguntas respondeu com frases estereotipadas, no gênero dessas que aí estão forçando a nota da descontracção.

- E as cartas da tua irmã para o Paulo?

- Nas duas últimas só fala de literatura. Como se lhe faltasse assunto e se esforçasse por fazer uma redação muito bem feitinha.

Tento afastar qualquer suposição desagradável.

- Não estarás tu a criar idéias mórbidas? A ver um incêndio só porque descobres, ou julgas descobrir, um penacho de fumo?

- Está muito habituada a desequilíbrios desse gênero, em mim?

- Mas, nesse caso... que é que tu imaginas?

- O mesmo que a Madrinha.

Ele lê-me os pensamentos, estes que não quero deixar que me dominem.

- Não posso acreditar, filho!

Ele reúne os cinco postais num macinho com um gesto brusco.

- Eu também não posso acreditar, mas há qualquer coisa a correr mal, muito mal.

- com a tua Mãe? - arrisco.

- É a única que não escreve nada. E não falam dela! Sente-se nisto um esforço tão grande para nos conservarem à margem do que quer que seja que por lá haja que ele cede à pressão e pelos rasgões nos deixa perceber sem contornos o que pela certa os aflige.

Fico calada. Continuam a envolver-me palavras soltas e cruzadas entre os dois casais que tagarelam.

O Paulo encontra-se agora junto de mim e do pedro, integrado no nosso problema, sem precisar de explicações para saber que me identifiquei com a preocupação de ambos.

Faço por guardar a coerência aconselhada nestas ocasiões.

- Não vamos precipitar-nos, filhos, e pôrmo-nos a admitir coisas horríveis!

O Paulo diz, surdamente:

- Desde aquela carta da Rosinha-Mãe, lembra-se?... - (lembro-me) - que nós sentimos no ar qualquer coisa que ronda, que ameaça...

Cravo as unhas nas palmas das mãos e a boca seca-se-me.

- Não! - articulo. - Não quero crer.

- Nós também não queremos crer.

- Depois dessa carta recebi eu uma perfeitamente normal. Ora se se passasse algo de estranho, Rosa Maria podia não o dizer a mais ninguém, mas a mim dizia-mo.

E estou a mentir. A mentir deliberadamente.

Magoam-me o cérebro e arranham-me o coração neste exacto momento frases que vêm nessa carta de que não falei a ninguém, nessa carta que não diz nada de positivo e agrava o misterioso sentido da outra e dá agora proporções enormes a esta euforia de "boas notícias em breves notícias" muito mais inquietantes do que as garantias de um silêncio que um velho ditado francês define com o maior optimismo. "Pás de nouvelles, bonnes nouvelles"... Magoam-me o cérebro.

Às vezes, quando a tarde desce, sem quase haver crepúsculo, dou por mim a interrogar uma inesperada sensação de não ter tempo para mais nada.

Arranham-me o coração.

Queria fechar nos meus braços os meus amores, bem fechados, para tentar uma estabilização que me falta, ou melhor, para ver se eles me seguram, pois sinto-me a correr um perigo que sou incapaz de localizar. Eu não era assim. Porque me terei transformado?

Nada, nada de concreto, realmente, a não ser que ela não era assim.

Tenho de reagir. Eles não tardarão a perceber que lhes escondo algo. Não o escondia antes de o reconhecer, porque a verdade é que não liguei excessiva importância àquele desabafo. De resto sou obrigada a admitir que Rosa Maria, na casa dos quarenta anos, principia a sofrer as depressões que às vezes afligem as mulheres que se preparam para renunciar de vez à juventude, depressões indesejáveis e indesejadas, depressões que eu conheço bem demais e tão freqüentemente não sei explicar. E Rosa Maria sabe-o como ninguém, tão bem que não se esqueceu de recomendar ao Pedro "procura-a e se estiver adormentada, acorda-a, ralha-lhe... porque nessas ocasiões tudo quebra no seu coração ameaçando submergi-la em males sem remédio...

Mas Rosa Maria não era assim!

- Madrinha, que tem? Porque é que ficou silenciosa de repente?

Nenhum suspeita do que disfarço.

Penso na rapariguinha a pedir-me que leia os seus cadernos de capas azuis, encarnadas cor-de-rosa e amarelas (os cadernos do Liceu) onde confia da minha a sua alma. Ana-Maria.

Vejo um médico sabedor e consciente que se apresta para agüentar nos braços fortes uma obra de que tanto e tantos dependem. Rui Manuel de Macedo.

Vejo uma mulher que suporta a dor de lábios cerrados e olhos tão febris que secam lágrimas ao lado do pai adormecido em Deus. Rosa Maria Ferreira de Macedo.

E vejo o avô Leonardo como que a despertar, cheio de vida e alegria, para auxiliar cinco garotos encantadores a procurar um tesouro mirífico. Ou melhor, procurando-o ele, numa crença que se provaria não ser baldada... Ah, sim! O avô Leonardo na adega da quinta de S. Boaventura, a medi-la a passos de todos os tamanhos, esbarrando nos cântaros das azeitonas, nas talhas do azeite e nos toneis, e um dia, de mãos a tremer, a puxar de cima de uma prateleira um caixote esbarrondado que sobre ele fez cair uma chuva de cebolas apodrecidas.

tum - tum - tum - tum.

Sobressalto-me. Não sei se ouço dentro ou fora de mim o som das cebolas tombando nas lages do chão.

tum - tum - tum - tum.

Bate o meu coração de tal forma que o escuto.

tum - tum - tum - tum.

Ah... é à porta do quarto. A Emília.

A Emília que estranhou a luz acesa a esta hora - quase cinco já !

- Minha senhora!... A senhora não se sente bem?

- Sinto, Emília!

- E não dorme?

- Não.

- Amanhã depois queixa-se de que sente a cabeça a fugir-lhe!

- Pois é... mas estou à espera da chamada de África.

- Ainda não lha deram?

- Não.

- Credo, que de avião a senhora já lá tinha ido e voltado!

Nem tanto, nem tanto... mas enfim...

- Vai descansar, Emilia. E amanhã...

- logo!

- Isso, logo, não me acordes.

- Prontos!... Entendido.

Meia-hora, no meu relógio velho-novo do ferro-velho. Meia hora no meu relógio velho-novo do tempo de Napoleão.

Realmente, que demora!

Trrimmm.

- Ei-la, Jesus! - e ergo anelante o auscultador.

- Tá?...

- Desculpe-me!

- Como?

- Julgo que vou desligar sem dizer mais nada. Obedeci a um movimento irreflectido. Desculpe! Reconheço a voz e não quero acreditar.

- Quem fala?

- Ana Margarida.

- Aconteceu alguma coisa?

- Não... não... amanhã digo! Isto foi um disparate, mas não pude...

- Não me acordou!

- Não?

- Não. Estou à espera de um telefonema que pedi para Luanda.

- Ah... então sou capaz de atrasar a ligação, o que também é grave.

- Mais grave deve ser a comunicação que deseja fazer-me, para me falar assim!

- Não... não chega a ser grave. É... perturbadora! Fiquei de tal modo que sem reparar nas horas só pensei nisto - entrar em contacto consigo para lhe contar, para lhe pedir que me ajude a entender... Mas amanhã...

- logo!

- isso, logo! - se me marcar uma hora e me der licença, procuro-a para conversarmos.

- De que se trata, Ana Margarida?

- Vou empatar a sua chamada.

- Não. Se Luanda responder entretanto, o serviço responsável interrompe-nos imediatamente.

- Ah, bem!

- Que se passa?

- O João Alfredo entrou em casa há cerca de um quarto de hora. - e cala-se, como sem palavras.

- Não deve ser inédito!

- Claro que não!

- Então?

- O meu marido e eu já dormíamos. Veio acordar-nos para nos participar...

- O quê?

- Que se vai alistar!

- Heim?

- Isso! Quer fazer o serviço militar imediatamente e como voluntário, sem se importar com a miopia...

"Atenção! V. Ex.a pediu uma chamada para Luanda!"

- Pedi, minha senhora.

- "Está a responder. Queira ter a bondade de desligar para atender"

- com certeza!

- Boa-noite e desculpe-me!

- Eu ligo para si, Ana Margarida, assim que tiver falado.

Poiso o auscultador, sem tempo para reconhecer que as sementes principiaram a germinar. Sem o mínimo interesse pelo assunto. Quero lá saber de Ana Margarida e dos filhos dela neste instante!

Trimmm...

- Sim?... Sim?... Está?

Barulhos, intermitências, vozes que tornam desmedida a impaciência que me envolve como uma rede.

"Um momento, por favor".

Dois, três momentos.

E depois, como se fosse do prédio aqui ao lado, uma voz com pronúncia e incorrecções para mim desconhecidas.

- Está?

- Donde fala?

- Casa do Sr. Dr. Rui Manuel de Macedo.

- O Sr. Dr. está?

- Não, não!

- E a senhora D. Rosa Maria?

- Vai melhorzinha, obrigada.

- Como?

- Hoje menina dizer-me que perigo maior ter passado.

Nunca saberei porque e como consigo dominar-me.

- Quem fala daí?

- Serafina.

Sim, a mulatinha prima do noivo da Laura. Recordo-me de Rosa-Maria falar nela.

- A menina Laura, está?

- Só eu em casa.

- A senhora Arminda também saiu?

- Ter ido ver senhora.

- Mas onde está a senhora?

- No hospital!

- Porquê?

- Senhora não saber?

- Não!

- Mas senhora perguntar por senhora D. Rosa-Maria!

- Queria falar com ela.

- Ah! ... - e cala-se.

Adivinho. Existem ordens para não dizer a ninguém, temendo precisamente isto. Um telefonema inesperado daqui.

Serafina, ingenuamente, forneceu-me a chave do segredo e agora, sentindo-se em falta perante as instruções recebidas, sem saber como remediar o caso, decide emudecer. Tenho de convencê-la a dizer mais, a dizer o máximo, quando não rebento de angústia.

- Serafina...

- Senhora? ...

- Conta-me tudo!

- Não dever, senhora!

- É preciso, Serafina! Ninguém te ralha. Eu explico aos senhores, depois.

- Quem ser senhora daí?

- Sou a Madrinha da menina Maria Rosinha.

- Senhora grande amiga de minha senhora?

- Muito amiga, Serafina! Como se fosse irmã dela. - e deixo que as lágrimas me inundem a voz. Serafina, não percebes que morro de aflição? Estou cá muito longe, na metrópole, tu sabes, não posso ir aí a correr... e o coração estala-me!

Ninguém me responde. No entanto oiço a Serafina. Ela afasta-se a falar com alguém que chegou de repente, creio. Certamente largou o telefone.

Quase grito:

- Serafina! Serafina! Serafina, pelo amor de Deus!...

- Oh, minha querida senhora, eu bem achava melhor dizerem-lhe tudo!...

Soluço perdidamente.

- Oh, Laura! Oh, Laura!...

- O pior já passou, minha querida senhora! Acredite que já passou.

- Mas o que foi, afinal?

- Uma coisa horrível!

Tudo gira comigo. Claro que só pode ter sido uma coisa horrível. Mas o quê?

- Laura, por caridade, explica-te!

- A s'Dona Rosinha não andava bem há que tempos, mas sempre a não querer queixar-se, a achar que não devia ser nada... Deixou de comer, sempre tristonha mesmo quando ria... Um dia, vai para três semanas, o Sr. Doutor chegou mais cedo para almoçar... como se fosse trazido pela providência divina! E foi encontrar a senhora a chorar, estendida na cama ao lado da Maria Rosinha. O Sr. Doutor é claro que apanhou um susto enorme! E então a senhora lá desabafou. O Sr. Doutor ficou sem pinga de sangue!

- Mas porquê? - e neste porquê a minha ignorância que permanece porque a Laura explica mas não conta e eu sei que ela não chegará ao fim sem pormenorizar como é seu costume sempre que tem de transmitir algo.

- Ó minha querida senhora, porque o Sr. Doutor dizia que não podia entender como não dera por nada antes!

- Mas... que nada, Laura?

- O Sr. Doutor depois explicava que sempre acontece assim em casa dos médicos. Andam tão saturados de ver doentes e doenças que à entrada no lar correm uma espécie de cortina interior que os impede de observar os sinais de falta de saúde da própria família, a não ser quando se tornam evidentes demais.

Não consigo suportar.

- Laura, por favor, não me forneças razões de coisa nenhuma. Diz-me só o que realmente se passa.

- Ó minha querida senhora, já vai! Se não for assim não entende.

Abafo o protesto. E ela continua:

- Pois o Sr. Doutor reparou então que a s'Dona Rosinha estava muito magra, com umas grandes olheiras e uma cor péssima. Ouviu-lhe as queixas e declarou por fim que a senhora estava infectada.

- Infectada?

- Se fosse dantes, eu julgava que era da mordedura dalgum bicho peçonhento dos que aparecem por aí. Agora, sei que a senhora estava com uma apendicite aguda. Percebi tudo isto por causa do meu curso de primeiros socorros! A senhora foi internada no hospital e agora está tudo muito melhor!

- Louvado seja Deus !

- O Sr. Doutor e a menina Ana Maria, claro não arredaram pé de lá. Foi então que às cinco da manhã...

- O quê?

- A senhora...

- LAURA? ...

- Mas já passou!

- O que foi que sucedeu às cinco da manhã, Laura?

- O coração da senhora parou.

- Teve um colapso?

- O coração parou à s'Dona Rosinha! Eu soube depois pelo Quico. O Sr. Doutor que estava sentado de olhos fixos na senhora (a Anita dormitava no sofá ao lado) viu-a ficar lívida, com o nariz afilado... e percebeu! Acho que deu um berro que atroou o hospital... A menina, arrancada àquela espécie de sonolência, caiu redonda no chão sem sentidos. O Sr. Doutor dominou-se, agarrou-se às campainhas... o pessoal acudiu. O Sr. Doutor ali mesmo deu uma massagem no coração da senhora... e dez minutos depois o coração recomeçava a bater. Por sorte tinham já chegado os aparelhos de reanimação que haviam sido montados dois dias antes! A senhora foi metida num. Durante cinco dias não sei como agüentámos o horror. A senhora lutava com a morte. Lutava desesperadamente! O Sr. Doutor não arredava de ao pé dela. Nunca mais o vi comer. Envelheceu anos! A menina ficou mais transparente que eu sei lá. O Rumané passava o tempo no corredor, encostado aos vidros da janela por onde espreitava a mãe. E nós, a Arminda e eu, revezávamo-nos em casa a tomar conta do bebê. Ao fim dos cinco dias, a senhora falou pela primeira vez. Para pedir a Rosinha. O Quico veio aqui a casa buscá-la. O Sr. Doutor mostrou a menina, que está a coisa mais linda que pode haver, e acho que a senhora balbuciou assim "Não posso ir-me embora. Não tenho esse direito! Nossa Senhora do Monte Alto... pede ao teu filho que me salve! . - e Laura cala-se. Percebo que chora de emoção.

Também as lágrimas me correm em fio pelas faces.

- E... está salva?

- Sim, está salva! Há uma semana que entrou em convalescença. A gente olha-a... já nem parece a mesma de quando ficou no hospital! Nós... nós é que estamos todos muito abalados!

- Nem podia ser de outra forma.

- Pois não!

- E nós, aqui, sem sabermos coisa nenhuma!

- Para que havíamos de ir afligi-los? Não remediava nada!

Nem quero pensar no que seria se... Não vale a pena sequer e graças a Deus! Graças a Deus!

- Uma pergunta, minha senhora.

- Sim, Laura.

- Porque foi que telefonou hoje?

- Olha, Laura, porque as ondas da vossa inquietação se propagaram através do oceano e vieram abalar a nossa tranqüilidade.

Ela não percebe a minha frase, que não tem a mínima importância.

- Laura, adeus por hoje. Diz a todos que os abraço e...

- E?...

- E que não se esqueçam de que os amigos são para as ocasiões!

- Eles sabem!

E quiseram prová-lo, escrevendo postaizinhos ilustrados com boas notícias, notícias excessivamente boas. Se não tivessem agido assim, para nos pouparem à angústia do que nem prevejo a que pudesse obrigar-nos, talvez não me achasse eu neste momento a dizer:

- Amanhã torno a telefonar para aí, Laura.

O sono desta noite vai-se embora para regressar nem imagino quando.

Preciso antes de tudo de saber como dar estas notícias ao Pedro. Não posso calar-me, evidentemente. E acreditará ele, como eu acredito, que o pior já passou?

Tento recordar uma a uma as inflexões da Laura, na ânsia de as sentir expressivas de autenticidade. São expressivas de autenticidade. Ela é simples, não seria capaz de representar ao ponto de me convencer. Nem se lembraria de tal.

Sou menos simples. O Pedro pode desconfiar e, se desconfia, como há-de ser?

Hesito. Talvez no fim de contas seja preferível ocultar-lhe este telefonema que durou quarenta e cinco minutos (vão-se os anéis e fiquem os dedos!) e...

Sete badaladas nos meus relógios, o do tempo ignorado e o de tempo de Napoleão. O velho-novo e o novo-velho.

E a noção de que faltei ao que prometi fazer Nunca mais me veio à idéia que Ana Margarida de Ribatorpes ficara à espera de que eu ligasse para ela...

Que vergonha!

Uma única saída para isto. Achar-me em casa da condessa de Ribatorpes quando ela despertar

- admitindo que haja adormecido no cansaço de aguardar em vão o toque do telefone. Admitindo que a insónia a não dominasse como me dominou a mim.

E levanto-me nesta decisão. Sem descortinar a outra. À espera de que me venha por inspiração, como tantas vezes me tem sucedido. Principalmente de noite. De noite, quando um grande problema anda a atormentar-me, chego a acordar como se me chamassem para alguma coisa, e a solução do tal impõe-se-me até aos mínimos pormenores. Mas neste momento não defronto a noite. Defronto o dia, o dia que promete ser de sol.

Quando entro na cozinha, encontro a Emília a passar a ferro.

- Já a trabalhar, rapariga!...

O meu reparo toma o lugar do nada para dizer. Tantas vezes retoiça pela madrugada fora...

- A senhora não queria dormir até tarde?

- Queria, mas não consegui, Emília.

- Foram más as notícias de Luanda, minha senhora?

- Graças a Deus menos do que podiam ter sido. Ela compreende.

- Quem esteve doente?

- A s'Dona Rosa Maria.

O ferro fica parado no lençol. Quando o retira, pouco depois, desenha-se no pano branco o seu feitio em amarelo. Ela amachuca o lençol e atira-o para o chão.

- Isto desaparece na água.

- Claro que desaparece.

Ergue a ponta do avental e enxuga os olhos.

- Corre perigo, a s'Dona Rosinha?

- Julgo que passou o mais grave.

- O menino Pedro já sabe?

Ah, a pergunta sobre a qual se apoia a minha incapacidade de resolver...

- Ainda não. De resto, não há pressa. A tempestade amainou!

- A minha senhora vai a África?

- Nesta ocasião ser-me-á difícil sair, com o meu livro novo em provas. Mas se for preciso, deixo tudo! Entretanto não quero precipitar-me. - e mudo de assunto. - Dá-me o mais depressa possível um café com leite.

- Uma torradinha?

- Só o café com leite. E vê se o meu saia e casaco cinzento está em ordem.

- Vai sair?

- Vou.

- Vai... falar com o menino Pedro?

Outra vez a chamada para o que tento repelir!

Endureço, para me defender.

- Vou tratar dos meus assuntos. Não sou obrigada a dar-te satisfações... ou sou?

E no quarto de banho, mesmo com a água a correr para a banheira, oiço os soluços da Emília.

E não tenho compaixão dela.

Não cabe mais nada entre as preocupações que me enchem. Nem a pena pequenina da rapariga humilde que não foi indiscreta. Foi pior. Deu-me a medida de quanto em certas ocasiões sou um expoente de inutilidade.

A criadita hesita diante de mim. Não sabe como agir. Educada entre os rigores de uma casa onde os preconceitos, a taparem segredos, se tornam rigorosos, ataranta-se.

- Não sei se a senhora condessa está em casa. Vou perguntar à governanta.

Detenho-a.

- Oiça, menina. A senhora condessa espera-me!

- Ah, bem... Mas...

- A senhora condessa ainda não se levantou, é?

- Pois... é!

- Eu aguardo o tempo que for preciso.

- Pois sim, minha senhora.

Introduz-me na salinha particular de Ana Margarida.

Sento-me, disposta a não me impacientar ainda que ali perca horas. Será uma forma de me penitenciar. De merecer perdão.

Reclino-me. Apoio a cabeça na almofada de cetim, pintada à mão. Ergo os olhos e vejo no espelho por cima da cômoda Luís XV (autêntica) o vulto encolhido de uma mulher que nem ouso reconhecer. Mal penteada, macilenta, faces escavadas...

Eu ontem não estava com tão desagradável aspecto! Como se tornou possível? Como pode uma noite de insónia envelhecer tanto?

Não continuo a observação de mim mesma. No fim de contas é inevitável que aquela imagem se torne real. O mais absurdo reside no facto de a parte de dentro se achar em desacordo com a de fora. O meu Eu eternamente juvenil acomoda-se mal com a encadernação que o fecha. Muito mal. Será um convite à libertação dos laços terrenos?

Começo a pensar nisto.

Penso nisto.

Cerro os olhos e esqueço o meu exterior e o exterior que me cerca.

Talvez tenha dormido.

Dormi com certeza.

Porque não noto a entrada dela. E dou pela sua presença sob uma chicotada que me golpeia o espírito.

- Com que então a fazer ó-ô cá em casa? A ver se leva mais algum presentinho da mamã e do papá?...

Não vale a pena responder-lhe para explicar.

Não gosto de detestar ninguém. Mas quase gosto de sentir que detesto esta rapariga.

Ela está diante de mim, de braços cruzados. Veste calças largas, uma camiseta de flores e uma espécie de jaqueta em não sei quê totalmente esfarrapada do peito até aos joelhos. Cortada em tiras fininhas. Sem algumas. Franjada como certas capas dos antigos estudantes de Coimbra com mau gosto total, orgulhando-se de as estragar pela doação de bocadinhos a quantas namoradas iam somando...

Ela pensa que vou responder-lhe. E franze os lábios a saborear o gozo antecipado de agarrar na minha reacção para me atirar com ela deturpada, enxovalhada na determinante de me ofender.

Desencosto-me, aliso os cabelos, conservo-me quieta e muda.

E ela, percebendo que não logra o seu intento, ataca de novo.

- Já escolheu o que vai gabar hoje p'ra levar os velhos?... Quer o candeeiro de Saxe? Ou o pequeno espelho que está na vitrina e no qual se reviu Maria Antonieta antes de lhe cortarem a cabeça?... Cabeças cortadas, que prazer!... Todos os que cheiram a mofo deviam ir parar à guilhotina. Há-de vir o tempo em que nós, os novos, voltaremos a largar os inúteis no cimo das serranias para não estarem a ocupar o nosso espaço, a chatear-nos. A comer o que é nosso e a negar-nos o direito de vivermos como queremos.

Oiço e fixo.

E ela, a tocar os meus joelhos:

- De que é feita, para ouvir tudo isto sem me dizer nada?

Então não sustenho a réplica.

- De um cristal muito puro que o teu hálito fétido não empesta nem embacia.

- O cristal parte!

- Oh, Catarina de Ribatorpes! ?... Não tencionas experimentar, pois não?

Deixo de sentir o toque da sua presença em mim.

Sobre o ombro dela, inesperadamente, diviso uma mão escura. Uma mão com dedos que parecem garras. Garras impiedosas que a puxam para trás.

Ela volta-se furibunda. Julgo que Nicolau - é ele, o criadito preto - vai ser esbofeteado. Mas não! E não porque a outra mão escura agarra o braço dela quando se ergue no ar.

- Tu atreves-te? - escabuja Catarina, a babar-se de raiva.

E ele, plàcidamente.

- Porque não, se somos todos iguais?

- Todos iguais?

- É sua opinião!... A menina julgar-se igual a Senhora, eu ser igual a menina. Menina ofende Senhora, eu impedir que menina ofenda mais. Só isso.

- Vais p'rá rua hoje mesmo, idiota! - ameaça Catarina.

- Ir p'rá rua quando senhores condes mandarem. Senhores condes não serem iguais a nós. Serem iguais a esta senhora! Gente boa. Menina pertencer a grupo de gente que não presta! Eu também não prestar. Mas eu não saber nome de Pai. Ser Nicolau Gogó, filho da negra Gogó que um dia deixar Nicolau abandonado na vida. Mim ter direito de não prestar. Menina não e ser muito mais grave! Menina gostar de não prestar. Eu dar meu sangue para prestar!

Um silêncio. E envolta nele, sob o espanto dos meus olhos e a cólera fria dos olhos castanhos de Nicolau Gogó, filho da negra Gogó, Catarina de Ribatorpes abandona a salinha.

E ainda dentro do silêncio, Nicolau ajoelha-se diante de mim, põe as mãos e o gesto sem palavras implora desculpa para o que se passou. Um receio desmedido invade-me. Gostará este rapaz, que deve ter os seus 19 anos, da rapariga impossível? Quererá a atitude dele significá-lo, num cruel acesso de sentimentalismo, nesta época onde tudo emparceira?

A tonta romântica (alguém me chamou um dia a última romântica do nosso século) sou eu. Nicolau é a lógica da realidade. Da que ali surge enfim pronunciada:

- Peço não contar nada a senhores condes! Eu amá-los acima tudo na vida e desejar não sofram mais!

- Descansa, filho. Não contarei.

Nas mãos que tenho pousadas nos joelhos toca ao de leve uma boca acetinada. E caiem nelas duas grandes lágrimas.

- Senhora... obrigado! Guardar para sempre um lugar para si em meu coração. Senhora chamar filho a este não presta...

- Mas tu prestas, Nicolau! Tu és um homem de bem! E isso importa muito mais do que herdar nomes por mais nobres que sejam.

Finalmente, Ana Margarida.

São 11 horas.

Ela, estreitíssima no roupão de seda azul sobre o pijama igual, avança para mim com uma expressão contrita e ao mesmo tempo acusadora.

- Devia mandar-me acordar!

- Devia deixá-la descansar. - replico.

- Descansou?

- Não.

- O tal telefonema... ?

- Um assunto de que prefiro não falar agora. Mas felizmente com uma gravidade já passada.

- Antes assim. - e confessa. - Pensei coisas horrorosas, ao verificar que não cumpria o que me prometera.

- Por isso vim disposta a esperar que se levantasse. Disponha de mim.

Ela acena a sua plena aceitação.

- Cheguei a dizer-lhe que o João Alfredo nos acordou às tantas da madrugada para nos participar...

- que ia alistar-se como voluntário? Chegou. E ficaram... atônitos... ou desolados?

Ela hesita. Depois encolhe os ombros.

- Pessoalmente, não sei. É de tal modo incrível!... Mas o Sebastião mergulhou num pasmo sem limites, visto que a participação do nosso filho contradiz por completo a que nos fizera pouco antes.

- A segunda é cem mil vezes melhor, Ana Margarida! Dou-lhe os parabéns por ela.

Os seus olhos fitam os meus.

- Devo dá-los a si?

- Deve guardá-los para o João Alfredo, se ele não mudar novamente de idéias.

- Conta-me o que se passou?

- Não se passou nada de concreto, a não ser que... Surge à porta a criadinha, cortando-me a frase.

- A senhora condessa dá-me licença?

- Que há, Berta?

- Está ao telefone a senhora D. Maria Isabel que deseja falar com urgência à senhora condessa.

Ela parece indecisa mas num sorriso ponho-a à vontade.

- Não me demoro nada. - promete. E não demora.

O seu ar, porém, é cada vez mais cheio de confusão, enquanto explica.

- A Maria Isabel é mulher do Dr. Leman de Serramoura, não sei se conhece...

- A ela sim, de casa de uma amiga. A ele só de nome.

- Têm um filho com quem o João Alfredo se dá imenso, mais ou menos com a idade dele e com as mesmas teorias, o Albertinho...

O Teco! - revejo imediatamente.

- Pois a Maria Isabel está como eu, assombrada. O filho acaba de lhe participar que vai alistar-se... É o terceiro! Porque devo dizer-lhe que fui acordada pela minha amiga Adalgisa Caiate, mulher dum banqueiro...

- O Sérgio Caiate, do Banco Caiate, Leoninos e Sómaris?...

Ela observa-me com a confusão a transformar-se em compreensão.

- Sim... precisamente! A Adalgisa telefonou-me a perguntar-me o que havia, pois o Luís quer também alistar-se... e, como o pai discordasse, fê-lo sabedor de que seguia o exemplo do João Alfredo e outros. E creio que até com um desabafo que o meu não teve.

Aguardo.

- Afirmou que preferia morrer a continuar a apodrecer em vida!

E agora é ela que espera. E sinto que uma grande doçura me invade à recordação do grupinho guedelhudo.

- Vão seis, por agora, se os pais não estragarem tudo.

- Seis?

- Esses três e mais três.

- Então... é certo que os influenciou?

- Espero que não mo levem a mal.

- Quando?

- Ontem.

- Como e porquê?

- Procuraram-me por causa da ilha dos Pêssegos.

- Deus? ... Mas, então acreditam?

- Piamente!

- Foi o João Alfredo que passou palavra!

- Claro. Foi para ele que surgiu a ilha que se tornou abrigo dos seus sonhos.

- Porquê?

- Querem viver num paraíso onde sintam a própria existência.

"Antes morrer do que continuar a apodrecer em vida". - e após uma pausa. - Pensar que se lhes deu tudo para eles tudo detestarem!

- Deram-lhes de mais e eles fartaram-se!

- O João Alfredo pareceu feliz quando anuímos a que tivesse casa própria, e uma mesada alta, e...

- Lembra-se da minha opinião a esse respeito?

- e avivo-lhe a memória. - "Estão a premiar a inutilidade de um rapaz cujos caprichos visam a desmoralização e a destruição".

- Lembro-me... mas não percebo bem a repentina desistência do que ele parecia querer... até por já não poder desejar outras coisas, ou outra vida!

- E depois surgiu a ilha dos Pêssegos, para possuir a qual eles precisam de ser dignos... E quem sabe se não existirá realmente uma Ilha dos Pêssegos onde, sem limitações de tempo e de espaço, eles venham a achar os seus próprios horizontes?

- Uma Ilha dos Pêssegos?... -balbucia.

- Não queiramos ligar os nossos ideais a coisas palpáveis...

- E... pensa que, alistando-se, eles podem tornar-se dignos?

- Podem, principalmente porque vão pela primeira vez contactar com a vida autêntica, a vida que desperta ao romper da alva e adormece ao cair da noite, a vida que ensina o preço das dificuldades, o tamanho dos deveres, a cor do sangue, o cheiro da morte, a glória de existir. - detenho-me, porque a emoção me estrangula. - Não os impedirão disto... pois não?

Por detrás de um véu de lágrimas o olhar de Ana Margarida sorri-me.

- Não impediremos. Vou explicar ao Sebastião e pedir-lhe que fale aos pais dos outros. Temos de deixá-los encontrar... a Ilha dos Pêssegos!

E um grande abraço nos une. Oiço a voz dela num sussurro ao meu ouvido.

- Quando a procurei sabia que ia ajudar-me, mas não como o faria. Isto foi o mais inesperado de tudo. Tão inesperado que nos primeiros instantes nem percebi. Agora entendo... entendo perfeitamente... e quero que saiba que haja o que houver lhe devo algo de extraordinário. Pela primeira vez... posso sentir orgulho do meu filho! Na verdade... vale mais morrer do que apodrecer em vida!

Chegámos à conclusão de que não devíamos nem sequer voltar a repetir a palavra morte.

Nenhum soldado pensa na morte. A morte existe para os soldados como para todos nós.

E então contei pormenorizadamente a Ana Margarida a visita que os rapazes me haviam feito e todas as suas conseqüências. com uma única omissão. Não lhe revelei as alcunhas que eles usam. Não lhe revelei que no grupinho guedelhudo o João Alfredo se chama Fofo.

Fofo não é nome para um soldado. Mas João Alfredo de Montelongo Ribatorpes pode ser nome para um herói...

Não aceito o almoço em casa de Ana Margarida, penso que me convém aproveitar esta hora mais ou menos vazia para ir ao cabeleireiro, que bem preciso. Eu o sabia e o espelho o confirmou...

Telefono para casa, a avisar a Emilia.

- Emilia? Sou eu. Olha, não me esperes para almoçar. Estou no cabeleireiro.

- Demora-se, minha senhora?

- Um bocado.

- Eu guardo-lhe o almoço.

- Não guardes nada. Quando aí chegar tomo um chá com umas torradas.

- Mas a senhora não vem antes das cinco? Mau! - penso de testa franzida. Lá começa a

Emilia a querer certezas do que eu ignoro. Detesto marcar horas assim! Quantas vezes depois de estar na rua sigo o caminho inverso ao que prèviamente destinara, não faço o que tenciono e descubro outras coisas que me dá jeito deixar resolvidas.

- Não sei! Quando me despachar apareço lá.

E Vou desligar, quase de arremesso. Detém-me, a tempo, um grito alarmado de Emilia.

- Mas ó minha senhora, espere!

- Que é preciso mais?

- Ó minha senhora, é que falaram para cá dos telefones a avisar que a senhora vai receber uma chamada de África logo às cinco horas!

- Ó mulher, já podias ter dito!

- A senhora não me deu tempo...

Um sorriso vem-me do coração aos lábios. Ela tem razão, coitada! Desta vez tem razão!

- Está bem, rapariga! Em saindo do cabeleireiro vou logo para aí.

E sento-me na cadeira, disposta a deixar que a Celina me lave a cabeça. Bastante bem disposta. com um ar que sinto tão aliviado que a rapariguinha 15 anos bem galantes! - observa:

- Hoje traz muito bom parecer, s'dona Odette! (nunca me tratam por Madame que eu não deixo. Livra!).

Elas conhecem demasiadamente bem os meus dias carregados, fechados pela preocupação. Ou por aquele torpor que Rosa Maria teme... Estou bem disposta!

Pois se a vida, naturalmente, acaba de resolver o problema que eu não sabia como levar até à solução! Caiu-me do céu nas mãos a chave...

Já posso entrar em contacto com o Pedro. Já posso dizer-lhe toda a verdade sem o lançar no horror da dúvida.

Às cinco da tarde, o pai (com certeza há-de ser o Rui Manuel quem vai falar) confirmarà que diante de nós os caminhos se atapetam de certezas.

Antes de me sentar no salão de secagem volto ao telefone. A Assunção, minha cabeleireira de há tantos anos! protesta, a rir.

- Depois diga que não tem tempo para perder e que se demora aqui demais!

Atende-me a Joaquina. O telefonema ainda é mais rápido do que eu supunha. O Pedro foi almoçar com a Rosarinho, a casa dos pais dela, claro. O Paulo almoçou com uns amigos. O Dr. Lemos e a mulher algures. Encarrego a Joaquina de ligar para casa dos Abegorins, a avisar o Pedro de que espero por ele e pelo Paulo às quatro horas em minha casa. Em ponto. Para um assunto inadiável.

Quatro horas em ponto nos meus relógios, no velho-novo do ferro-velho e no velho-novo do tempo de Napoleão.

As badaladas deste - tim-tim-üm-tim - ritmam um voto. "Que ele marque para si horas belas. Horas belas que a compensem das horas feias... "

A campainha da porta confirma o generoso desejo.

O Pedro, seguido pelo Paulo (a convocação alarmou-os a ambos, como não podia deixar de ser) encara-me e depois de um rápido duplo beijo pergunta:

- Que se passa?

- Sentem-se, filhos.

- Mas que se passa?

- Porque há-de passar-se qualquer coisa?

- Porque tem de passar-se qualquer coisa!

- Estou acaso com ar assustado?

- Não, porque está com um ar expectante.

- Vais ser um grande médico, não há dúvida! Esse poder de observação ajuda imenso nos diagnósticos sem análises clínicas e sem radiografias.

Ofereço-lhes cigarros que ambos aceitam, instalo-me de cotovelos apoiados na minha mesa de trabalho sobre a qual tenho o telefone.

E principio. Primeiro escolho as palavras, cuidadosamente. Depois não detenho a força natural da própria comunicação que acaba por sair de jacto da angústia em que estava contida.

Eles empalidecem, cada vez mais. Os lábios tremem-lhes. O Paulo debruça-se para mim. O Pedro, pelo contrário, recua e acaba por ocultar o rosto nas mãos. E quando acabo de descrever o diálogo com a Laura ocorrido entre as cinco e as cinco e quarenta e cinco da madrugada, dá-se exactamente o que eu receara. O Pedro destapa a cara numa atitude quase de violência e apostrofa-me.

- Madrinha, está a enganar-me! Madrinha, está a querer preparar-me para o pior!

Podia dizer-lhe que se houvesse pior eu não teria ido ao cabeleireiro, não estaria vestida de azul claro, não me conservaria tão serena. Realidades que pouco adiantariam desde que ele me julgasse capaz de possuir o estoicismo necessário para calar a minha dor a fim de o preparar para o pior.

Aponto-lhe o telefone e vejo as horas no meu reloginho de pulso, (um presente lindo de alguém que adoro e por isso adoro o presente):

- Pedro... daqui a dez minutos principiamos à espera que a comunicação com Luanda seja estabelecida. Avisaram de lá que iam falar. Há-de com certeza ser o teu Pai.

É Rui Manuel de Macedo - às cinco e vinte. No fim de uma ansiedade que vincou as faces dos dois rapazes sem que eu mais nada conseguisse dizer. Aliás nada existiria capaz de suavizar aqueles momentos. Eu própria mergulhara no renascer da incerteza.

E mesmo ouvindo a voz amiga do médico, a garantir-nos que tudo está bem agora, os medos não se diluem.

Aliás, Rui Manuel sabe-o em relação a nós como eu o sabia em relação aos rapazes. E age em bases idênticas aquelas em que me apoiei. Mais completamente eficaz porque dispõe de meios. Os meios redentores. Os meios totais.

- Oiçam... a Mãe vai falar.

A mão do Pedro crispa-se no cabo do auscultador. E eu e o Paulo, o mais próximos possíveis, ouvimos distintamente:

- Filho!... Meu querido filho!

- Mãe!...

- Filho, não se aflijam mais! Sinto-me recuperada, sinto-me como as árvores na primavera! Cheia de folhinhas novas e de botõezinhos a abrir...

- Sim, minha Mãe.

- Amanhã já deixo o hospital. Vou para casa.

- Sim, minha Mãe.

- Ainda precisarei de muitos cuidados durante algum tempo, porque o Pai deseja que a convalescença se estabilize gradualmente a fim de não deixar sinais de tudo isto.

- Sim, minha Mãe.

- O Pai é da opinião que a saúde tem bastante semelhança com as plantas. Sem adubo, sol e água... não não!... A saúde, sem os cuidados devidos, não vai.

- Sim, minha Mãe.

- A pouco e pouco o meu corpo será outra vez o corpo sadio que serve de apoio à felicidade do nosso lar, bem o sei.

- Sim, minha Mãe.

- Porque o meu espirito, que habita esse corpo, se o sentir a arrastar-se, mesmo inconscientemente, fraqueja.

- Sim, minha Mãe.

- Era o que estava a acontecer.

- Sim, minha Mãe.

- Quero dizer-te que, talvez por estar deitada (só me levanto aos bocadinhos e daqui em diante cada dia um pouco mais) não experimento nenhum peso.

- Sim, minha Mãe.

- Parece-me que flutuo, de tão leve, a saltar cancelinhas e gradeamentozinhos.

- Sim, minha Mãe.

- Eram tantas, as barreiras que me isolavam de tudo e de todos, no dia em que o Pai me salvou!

- Sim, minha Mãe.

- Tive medo, Pedro!

- Sim... minha Mãe.

- Agora passou.

- Pedro... -e na voz doce-doce vibra uma emoção irizada de lágrimas e sorrisos, - não sabes dizer mais nada senão "Sim, minha Mãe? "

- Sim, MINHA MÃE, sei... Sinto saudades!

- Quero que sintas mais alguma coisa!

- Sim, minha mãe... sinto uma enorme alegria de poder dizer "Sim, minha Mãe. "

- Graças a Deus!

- Graças a Deus!

- Pedro... o Pai está a fazer-me sinal de que chega por agora. Não quer que me canse... É a tal coisa!... Daqui em diante...

- Cada dia um pouco mais!

- Pai! ?... Oh, meu Pai! ...

- Os teus irmãos estão bons. Dá um abraço de todos nós à nossa comadre. E avisa o Domingos para que mande limpar a casa da quinta. Que esteja pronta a receber-nos em Setembro.

- An?...

- Devemos chegar aí em meados do mês, para nos demorarmos cerca de três semanas.

- Vêm... vêm de propósito para assistir à festa de Nossa Senhora do Monte Alto?

- Sim, filho. Vamos agradecer o milagre da salvação da tua Mãe.

- Pois, Pai! - e com um larguíssimo dilatar do peito num sorvo de ar. - Lá estaremos. E vai ser uma coisa muito boa!

Ignoro como foi a despedida, porque a alegria que me inunda não me deixa ouvir mais nada. De resto, o Paulo abraça-se a mim como se eu fosse a própria encarnação da família Macedo.

E o Pedro tenta apertar-nos aos dois, as forças duplicadas pelo tremendo amálgama de sentimentos em que se debateu. Nenhum de nós consegue pronunciar uma palavra, solicitados ao mesmo tempo pela urgente necessidade de desabafar, rindo ou chorando.

Não rimos nem choramos. Parecemos apatetados!

Na verdade foi tanto! É tanto! Por fim o Pedro diz, como se nos desse uma novidade:

- Eles vêm aí!...

E o Paulo, num tom de lástima:

- Ainda faltam quase três meses!...

E eu, retomando o domínio dos nervos:

- Ora... já faltou o tempo todo!...

Durante cerca de uma hora falámos, falámos, falámos. Falámos quase por falar, até estabilizarmos as nossas sensações. Misturando o passado, o presente e o futuro. O acontecido, o não acontecido e o por acontecer.

E quando a Emília nos traz a merenda, feita sem ninguém ter necessidade de lha pedir (sanduíches de presunto, que eles adoram, um magnífico bolo de chocolate, cervejas para eles e uma água tônica com limão para mim) entramos no capítulo dos projectos.

Muitos projectos!

O Paulo ri: - que às vezes mais vale deixar as coisas surgirem por si próprias!

- A que propósito vem isso agora, Paulo?

- Olhe, Madrinha, a propósito de uma conversa que eu e o Pedro tivemos aqui há uns meses atrás.

- é para o amigo. - Recordas-te?

- Se me deres um ponto de referência, é possível. De outro modo como saber a que aludes se nós conversamos tanto acerca de tanto e todos os dias?

- Tens razão! - e depois de uma golada de cerveja confessando que estava cheio de sede... e de fome, que os seus belos dentes não se fazem rogados para mastigar... explica: - Refiro-me àquela nossa discordância de pontos de vista em relação à ida a Angola no verão!

- Ah, pois, bem sei! As férias, lá... Eu de acordo, tu em desacordo. Eu a pensar no dia de hoje, tu no dia de amanhã...

- E ambos com razões defensáveis!

- Os pontos de vista, mesmo os mais bem estruturados, apresentam vários ângulos!

- Claro!

- E depois vêm os factos e modificam tudo.

- Ou confirmam! - digo.

- Pois...

E é a partir daqui que, naturalmente, a conversa deriva e vou parar aos filhos de Ana Margarida. Mais concretamente, ao João Alfredo, o Fofo e seus amigos. À ilha dos Pêssegos.

Eles ouvem-me, arregalados primeiro, depois concordantes, por colaboradores.

E é nesta altura que o Pedro me dá um conselho.

- Madrinha, para que a sua idéia resulte, precisa, urgentemente, de algo que, segundo os entendidos, costuma ser a alma do negócio, o sigilo!

- O sigilo?

- Claro, Deve recomendar-lhes que não falem no assunto a ninguém porque, bem vê, se eles começam a dar com a língua nos dentes, mesmo entre os companheiros de tribo, aparece um mais esperto ou menos ignorante que afunda a ilha...

- Ou a faz explodir, que aquilo é uma região vulcânica... - corrobora o Paulo.

- Não vejo bem como impedi-los de falar sem despertar desconfianças.

- Que idéia, Madrinha! Não há nada mais simples! Basta que lhes faça notar que se eles revelam o projecto a outros surgem logo dois inconvenientes. Ou a solidão se lhes desfaz na invasão dos conhecidos e dos conhecidos dos conhecidos, tornando a ilha num formigueiro humano, ou vai alguém por trás e mina-Lhes a compra, servindo-se de outras influências para ficar com o projecto.

- E não há dúvida de que tens toda a razão!

- tomo muito a sério a advertência, de tal maneira sinto a existência da minha ilha.

- Se a Madrinha lhes falar assim, é mais do que certo que eles não desvendam o segredo e a sua idéia pode frutificar.

- Dar pêssegos, queres tu dizer!

E é a rir que eles se vão embora, quase à hora do jantar.

E é a rir que me preparo para telefonar ao João Alfredo.

Já sei como vou expor o caso. "Numa primeira sondagem, em simples conversa, fiquei ciente de que há outros interessados na aquisição da ilha... Eles por acaso teriam divulgado a intenção?... Talvez não fosse mau evitar que a coisa constasse (e de acordo com a sugestão do Pedro) visto o sigilo ser a alma do negócio- em termos comerciais... "

Não sei de cor o número do telefone de Ana Margarida.

E vou direita ao sítio onde costumo guardar a lista. Encontro... o sítio.

Procuro em derredor. Não está.

- Emília!

- Nh... ora...

- Emília, a lista?

- À... ist... ?

- ó rapariga, que lista há-de ser? A dos telefones!

- ao... i...

- An?

- um... ei... Ia.

Os regougos forçam-me a encará-la, na procura de uma razão para semelhante mau-humor. Sim, que estes resmungos são o índice total de que a Emília está virada com o avesso para fora, e o avesso dela, como o de certos tecidos, não corresponde ao aspecto. A eficiência cede o lugar à intratabilidade...

- Que é que tu tens? Mutismo.

- Quem foi que te fez mal? - especifico. Volta-me as costas e retira-se. Na atitude incorrecta

que indica o descontrole que se segue aos ressentimentos a que é sujeita.

Na verdade... que terá ela? Quem lhe faria mal?

Ah... pois!... Já sei! A pequeníssima censura (que nem censura foi) que lhe dirigi do cabeleireiro por causa do telefonema de África!

Que susceptibilidade infernal!...

E penso "só a minha paciência! ".

- A... ista...

Diante de mim, a lista telefônica que ela foi procurar, de sobrolho carregado.

Decido ignorar a má disposição.

- Obrigada.

- ao... anta?...

- Quando me apetecer jantar, aviso. E procuro o número dos Ribatorpes.

Não vem. Não vem em Ribatorpes! Mas então... ? Ah, pois, já sei!

E agora sim, acho o que procuro. Em Condes. Conde de Ribatorpes.

E ainda que se me afigurasse de tudo o mais imprevisível, a voz que me atende é a de João Alfredo. Não a identifico. É ele que se dá a conhecer quando digo quem sou e pergunto por ele próprio.

Surpreendo-me. E gracejo, para que ele o não note.

- Não é costume estares de piquete ao telefone... pois não?

- Não.

- Sabes, João Alfredo, preciso de falar contigo por causa da ilha.

- Faz favor de dizer.

- Imagina que há terceiras pessoas interessadas na compra.

- Ah? ...

- Sondei há bocado um dos sub-secretários mais ligados ao caso, num cocktail, - até já minto com relativo à vontade! - tentando colher informações e ele riu-se. "As ilhas isoladas estão a ter muita procura! - respondeu-me. - Qualquer dia até surge quem deseje habitar os Farilhões!" - (aguardo uma réplica que não vem.) - Sabes onde ficam os Farilhões?

- Não.

- Junto à Berlenga! São uns ilhéus rochosos, miseráveis!

- Ah! ...

- E foi então que ele se referiu a uma grande empresa que estaria interessada em tornar a ilha dos Pêssegos num centro de turismo de larga projecção. À escala internacional. Hotel, piscinas naturais, casino, etc. Para solitários, evidentemente, ou seja, para quem deseje afastar-se um tanto do bulício da vida actual e tenha dinheiro bastante para fugir aos aglomerados populacionais. Segundo também depreendi, o Estado não vê com bons olhos a perspectiva, devido, aos principais capitalistas serem estrangeiros.

Não oiço nada do lado de lá. Não sei se falo para uma pessoa, se para um boneco. Começo a estranhar o silêncio. Acaso significará desinteresse... já?

Tento investigar.

- Fiquei um pouco preocupada apesar desta contra-indicação. É que podem surgir outros pretendentes, entendes? E a vossa idéia despertar idéias nos que porventura nunca, sem essa referência, viessem a lembrar-se de tal! A maioria das pessoas desconhece até que os Açores constam de oito formosíssimas ilhas... No entanto e com efeito - (e utilizo finalmente a frase bombástica!) - como o sigilo é a alma do negócio, aconselhava-te e aos teus companheiros uma discreção total acerca do assunto. Não falem a ninguém porque...

- Desculpe, tenho de desligar.

- Como?

- Tenho de desligar.

Mas... que significa isto? Um ponto final a acabar o sonho?

E não resisto à pergunta:

- Que se passa. Fofo? - (é intencional, a aplicação da alcunha). - Não compreendo nada!

A voz de João Alfredo soa estrangulada. - O meu Pai está a morrer.

- Ah! ...

Fico sem saber o que hei-de fazer.

Sebastião de Ribatorpes, meu Deus!... Assim, tão de repente! Ou antes, tão depressa!

Pobre dele.

E pobre Ana Margarida.

Adivinho-a prostrada, desorientada, com a inutilidade dos dois filhos diante dela. Deverei ir acompanhá-la?

Talvez não! Tem família, amigos íntimos... Não passo ainda de um contrapeso nos seus dias.

E no entanto... foi a mim que ela buscou a pedir ajuda para a recuperação dos que se afastavam cada vez mais! Isto conferir-me-á direitos?... Ou submeter-me-á a deveres? Duas coisas tão diversas uma da outra e neste momento absolutamente afins nos resultados a que podem conduzir-me.

O direito de ir.

O dever de ir.

- Posso tirar o jantar?

- Eu disse-te que te avisava quando me apetecesse.

- São quase nove horas.

- E que fossem quase dez!...

- E eu?

- Tu, o quê?

- Quando é que me despacho na cozinha?

- ó rapariga, despacha-te já! Come, põe tudo em ordem e vai ver televisão ou vai dormir, como te aprouver.

- Está muito habituada a que eu faça isso, não? Sou alguma galdéria, alguma troca-tintas?

- Mas eu censurei-te?

- Eu bem sei o que pensa a meu respeito! Sou p'ráqui tratada como um cão!...

- Ó Emília, por favor, tenho graves preocupações, não quero estar a aturar mais uma das tuas birras!

- Desde pela manhã que anda a implicar comigo!

- Eu?...

- Mais vale que me mande embora!

- Ó mulher, quando começas assim tornas-te impossível! E quando te tornas impossível não te posso ver!

- Isso sei eu! O que a senhora quer é arranjar outra p'ró meu lugar.

Aperto as mãos à cabeça.

- Pois quero! E por isso faz as malas e vai-te! com esta deve ser a quadragésima vez que a despeço num acesso de desespero.

- Pois então não vou? ...

E toda a sua eficiência sossobra na intratabilidade que me alaga em ira...

Uma ira que o telefone, tocando, suspende. Como ela não atende, levanto eu o auscultador.

- Sim?

É o Pedro.

- Madrinha, acabo de saber pela Maria do Rosário que o conde de Ribatorpes...

- está muito mal, disse-me o João Alfredo há instantes.

- Já faleceu. Madrinha.

- Bem, vou para lá imediatamente.

- Pensei isso mesmo. Por isso vim preveni-la.

- Obrigada, filho. Também vais?

- Não tenho intimidade que o justifique. Mas estarei presente no funeral.

E porque as minhas indecisões anteriores se fundiram na espontânea afirmativa que me subiu do coração à boca, volto-me para a Emilia.

- Depressa, tira-me o vestido preto de crepe e o casaco preto e branco. Sapatos e carteira de verniz.

- É por minha causa que a senhora vai sair?

- O quê?

- É por minha causa que a senhora vai sair?

Ah, sim... A zanga, a ira, a... Um problema ridículo!

E ela, ante o meu silêncio, a cair em si:

- Desculpe, minha senhora... eu prometo não tornar a ser malcriada!...

Passa-me uma grande nuvem diante dos olhos. Nessa nuvem, o cansaço infinito de viver.

Como as pequenas coisas às vezes avolumam as grandes!

- Estás desculpada.

- Então posso tirar o jantar? - e sorri-me por entre as lágrimas da sua simplicidade tão complicada.

- Emilia, não! Vou para junto de uma amiga a quem acaba de morrer o marido.

Sim, para junto de uma amiga.

É que, de repente, sinto que Ana Margarida já ocupa um lugar entre as minhas afeições. Entre estas a quem eu devo tanto, porque na verdade fazem parte da minha vida.

Ana Margarida dir-se-ia... Sim, é isso. Outra vez tornada em pedra, como naquela noite.

A dor modela-a desde a posição dos pés à inclinação da cabeça.

Está imóvel, com os olhos dilatados. Neles, fixo, o espanto dessa morte prevista mas não esperada.

- Foi fulminante! - elucida-me Teresa Mafalda Abegorim (há quantos anos nos conhecemos sem nunca termos ido além de um discreto cumprimento com palavras mínimas). - Às cinco horas da tarde o Sebastião veio a casa, pediu um chá e uns biscoitos, dizendo à Ana Margarida que tinha tanta fome como se não houvesse almoçado. Depois alegando que passara mal a noite, deitou-se um pouco e adormeceu. Acordou às sete e meia e tocou. A Ana atendeu-o e ele queixou-se de estar a sentir a impressão do costume e pediu o medicamento. Ainda ergueu a mão para o receber. Já o não tomou.

- Creio que podemos chamar a esse um fim misericordioso...

- Depende!

- Como?

- Morreu por sacramentar.

- Era... extremamente católico?

Teresa Mafalda encara-me e noto que deixei sair pela boca fora uma tolice. Não há que ser extremamente coisa alguma. Há que ser ou não ser.

- O Sebastião, - explica-me Teresa Mafalda, tornou-se praticante de há uns tempos para cá. Voltou à educação que recebeu.

- Acontece a quem precisa de auxílio impossível de achar no mundo que nos cerca.

- E a quem, passadas as verduras da idade, reconhece que a independência tem limites naturais.

Ficamos caladas. Somos colhidas por um choro convulso que vem do quarto onde os operários da morte, especializados, tiram as medidas para a caixa que há-de levar o conde para...

- Para o jazigo de família nos Prazeres.

Sempre o terrífico cemitério onde a riqueza repele a pobreza como em vida. As grandes moradias e as barraquitas térreas.

A voz que fala é a de um sujeito que não conheço. Surge a dar ordens a um homenzinho que parece muito infeliz. É da praxe. As contas do funeral incluem o ar dolorido que se torna de circunstância entre os mercenários.

Os soluços continuam lá dentro.

Penso que deve ser o João Alfredo. E avanço, para num carinho lhe mostrar que a sua mágoa de filho é algo de certo que está a acontecer.

Paro no limiar do aposento.

Não vejo o João Alfredo.

Ao lado da cama onde repousa o corpo esguio do conde de Ribatorpes acha-se o Nicolau. Nicolau Gogó. O filho da negra Gogó.

São onze horas (23 h.) e chega gente de momento a momento.

A notícia correu célere, de uns para outros, e parentes e amigos acorrem. Uns trazidos por uma sincera mágoa. Outros por cortesia.

Fala-se baixinho.

Soltam-se frases daqui e dali, com um fundo único e sem ligação aparente.

- Deixa uma fortuna colossal.

- Quando começarem a puxar cada um para seu lado, vão dar que fazer aos advogados, até aposto.

- Os filhos são giríssimos.

- Ainda faz falta, porque era um homem de muito, valor.

- Uns cretinos!

- As escadas sociais existem e cada um sobe-as como pode.

- Nunca me pareceu que houvesse entre o casal o que se chama amor.

- O sentido das conveniências domina certa gente.

- Incapazes de aparecerem, já repararam?

Da confusão ciciada que me rodeia e de que apreendo instantâneos, a observação capta-me inteirinha.

"Incapazes de aparecerem"...

Sim, eles. Os filhos. João Alfredo e Catarina. Deviam estar ali, um de cada lado da mãe, da mãe que, sentada, hirta, vai recebendo abraços, beijos e apertos de mão como se estivesse a contemplar-se a si mesma. O espírito dela paira. Ali, encontra-se apenas a sua parte física.

Teresa Mafalda não se afasta da companheira querida dos tempos do colégio. Parece terrivelmente inquieta com aquela apatia. com aquela solidão.

Ana Margarida está de facto isolada na sua angústia irremediável.

Se os filhos ao menos viessem e ela chorasse enfim, compartilhando com eles o desgosto que é de todos! Que devia ser de todos...

Incapazes de aparecerem...

Cumprimento o Juiz Álvaro Abegorim que acaba de chegar com as filhas mais velhas e o noivo da segunda, o Zé Chaves (que bonito rapaz, de facto!). E a Sara Francelim. E a Carmen Atouguia, com o marido. E o Dr. Léman de Serramoura. que a Maria Isabel, a mulher, me apresenta ao passar. "Meu marido"...

Cada vez mais gente.

Começo a recuar. Saio do salão que de um momento para o outro se transformou em capela.

A Berta, a criadinha, rigorosamente fardada, está à porta da rua aguardando os visitantes, sem lhes dar tempo a segundo toque.

Vou à sala de jantar. Vazia.

Vou à salinha íntima de Ana Margarida. Vazia.

E nisto...

- Estou aqui.

Há um desvão sob o patamar da escada onde se acha o maravilhoso altar. Como se fora arco de uma ponte. Encostado à parede, um banco corrido, tipo conventual, diante de uma pequena poltrona ao lado de uma mesita sobre a qual se ergue um candeeiro de vidro coalhado junto ao telefone.

Sentado precisamente na poltrona, no sítio mais escuro, João Alfredo. Perto de todos. Longe de todos.

- Que fazes tu aqui?

- Isto.

- Mas isso é nada!

- Pois.

- Porque não vais lá para dentro?

- Faço lá mais do que aqui?

- Sem dúvida.

- O quê?

- Acompanhas a tua mãe. -Ora!

- Recebes os que vêm solidarizar-se com a vossa dor.

- Favas!

- João Alfredo... ? ...

- Diga.

Vou acender a luz no candeeiro de vidro coalhado. Ele impede-me.

- Não.

- Quero ver-te a cara.

- Não tem que ver.

- Preciso de saber se sofres.

- Não! De resto não via nada. A barba, o bigode e o cabelo tapam tudo. Sempre servem de alguma coisa.

A voz é fria, cortante. E recuso-me a acreditar nela.

- Deixe-me em paz.

- Estarás tu em paz?

- Se não vier bulir comigo, com certeza que sim.

- Está bem.

E vou a afastar-me.

No mesmo instante sinto-me retida por algo que me agarra. É uma das mãos de João Alfredo. Agora as duas envolvem-me a cintura, fico presa entre os braços dele. E um monte de cabelos roça-me o queixo. E a cabeça dele apoia-se no meu peito. E não tenho qualquer necessidade de acender o candeeiro de vidro coalhado para saber que João Alfredo chora. João Alfredo, o novo conde de Ribatorpes (e barão de Montelongo).

Meu Deus! Ó meu Deus! - diz baixinho uma infinita comoção dentro de mim.

Mas não me manifesto. Temo os passos em falso.

Enveredo pela simulação, na procura de um sinal que me indique o caminho.

- Foi mais rápido do que o previras, heim? Podes começai a pensar no iate e...

- Cale-se!

- Pelo menos metade de metade é já teu, se não for mais...

- Por favor!

- Mas...

- A morte do meu Pai vem modificar muita coisa!

- Sem dúvida! E acho naturalíssimo que te desinteresses da ilha dos Pêssegos!

- Mas não é isso!... Não é isso!... -e vibra de desespero, sinto.

- Então?

- Não compreende que estou aterrado?

- Há quem não suporte a vista de um cadáver. Larga-me com tanta violência que por pouco não me desequilibro. Ao mesmo tempo que dá uma espécie de guincho. Um guincho a que se sucede uma torrente de palavras. Dir-se-ia que um tampão saltou brutalmente e a lava dos sentimentos corre.

- O que me horroriza é que o cadáver que lá está dentro seja o do meu Pai! Eu falava, falava, e não sabia o que dizia! Eu não queria que ele morresse! Eu não queria herdar coisa nenhuma! Eu nem sequer imaginava que ele não fosse eterno! Eu mentia quando afirmava que ele não havia de viver o bastante para me prejudicar. E arreliava-o com a mesma inconsciência com que em pequeno destruía os brinquedos mais caros. Divertia-me sem nunca ter a noção do mal. Era como se andasse a dormir e só hoje acordasse de repente! E é medonho, porque não me reconheço neste que está aqui desde que aquilo sucedeu! E não sei como pude ser o que fui até há bocado. Não percebo nada!... Creio que sou culpado de que ele tivesse morrido assim. Dei-lhe um golpe enorme quando lhe disse que ia alistar-me! Interrompo-o.

- João Alfredo, não lhe deste golpe nenhum! Pelo contrário: ofereceste-lhe uma das maiores alegrias dos últimos tempos.

- A alegria também mata, não é?... E por isso apressei o fim, não vale a pena querer convencer-me doutra coisa! E no meio disto tudo... queria fugir, desaparecer... queria ir hoje, agora, já, para a ilha dos Pêssegos!...

- Tu vais agora, já... para o pé da tua Mãe, para o teu lugar junto do caixão do teu Pai.

- Não posso.

- Podes.

- Não. Juro-lhe que não.

O tom de sinceridade fere-me o coração.

- Porquê, meu filho?

- Porque criei um mundo à parte. Porque me tornei uma pessoa que eles não entendem e que os não entende!

Começa a concretizar-se a minha noção de que há de facto muito mais ignorância do que estupidez neste rapaz que ainda não tem idade para Ser, porque tem a idade necessária, exacta, para aprender a Ser.

Agora mesmo ele está a aprender a Ser. A receber uma lição impressionante e a assimilá-la.

Afago só cabelos enormes. Os cabelos inocentes. Que mal têm os cabelos, se envolverem uma cabeça dentro da qual o cérebro comandar de uma maneira válida que determine atitudes comprovativas de sentimentos essenciais à conservação de uma forma de vida desejável? Tantas vezes os homens usaram longos cabelos... E eram Homens!

Jesus Cristo foi mais do que um Homem. E segundo o atestam palavras que não permitem dúvidas, usava os cabelos longos.

Fora o mal de nós todos os cabelos e não haveria mal que mal fizesse!

Podem ser feios, por sujos ou mal tratados. Isso é diferente. E diferentes no insulto que representam para uma sociedade organizada em moldes que aconselham a higiene como medida de saúde. Os que andam sujos e fedorentos são escória. Como selvagens. Mas os selvagens ainda têm uma desculpa-não sabem.

A cabeça de João Alfredo não cheira mal. Pelo contrário. Dá-me a idéia de que foi lavada recentemente com um sabonete bastante caro que...

- Vale mais que não saia daqui, não é?

A interrogação dele traz-me do desvio em que se perdiam os meus pensamentos.

- Não, João Alfredo, não! Vale mais que procedas com normalidade. De acordo com o que aparentas.

- Mas...

- Ora dize-me. Se te cortassem uma perna a sangue frio, não gritavas?

- Creio que sim.

- Então... admite que foi o que te sucedeu. Não precisas de gritar. Mas escusas de fingir que não sofres. Aliás o facto de te haveres escondido é um sinal de reingresso na comunidade.

- Não... porque não quero reingressar em coisa nenhuma! Quero...

- Partir, bem sei. Quando chegar a ocasião! Porque partir não é desertar.

Neste instante parece-me divisar ao longe algo que julgo primeiro impossível, depois proveniente de altas distâncias. É que...

Sim, oiço música! Música estridente, agressiva. Música que não provém de altas distâncias. Música que vem do primeiro andar deste palacete onde hoje morreu um homem. Onde está, entre o silêncio respeitador e comovido de uma pequena multidão, um homem morto.

- Não acredito! - balbucio. E João Alfredo.

- Sim, é Ela. Errada, mas ao menos concordante com ela própria. Ao passo que eu... eu sou apenas um imbecil que se atraiçoa.

E ao som dos sons que vêm lá de cima, dirige-se para o salão.

Subo a sumptuosa escadaria, lentamente.

Não sei o que vou fazer, mas sei que vou fazer algo.

Guiada pela voz que canta, roufenha, ritmada por um instrumento gritante, progrido na direcção certa.

Paro junto da porta por detrás da qual acontece o que não devia.

Receio o que vou achar. Estará Catarina só, ao menos?

O puxador (de prata lavrada) roda facilmente. O batente cede Uma pequena sala dá acesso por um arco a um quarto cor-de-fogo. As paredes são rubras e as luzes que o mergulham em obscuridade (o paradoxo reflecte uma realidade, porque nas paredes há uma espécie de projectores que dir-se-iam labaredas a extinguirem-se) do mesmo tom. Na janela ao fundo balouçam reposteiros negros. Pelo chão, almofadas escuras cujos tons não distingo. A saleta parece desprovida de móveis. A música (música, bem... ?) dir-se-ia sair das próprias paredes. Trata-se com certeza de uma instalação estereofónica.

Dou uns passos... e agora, na minha frente, nisto que tem sugestões de uma antecâmara do inferno, define-se um esguio satanás. Catarina.

Catarina com os cabelos apanhados na nuca e vestida... Sim, de vermelho. Catarina, que ergue mãos que lembram garras na minha direcção.

- Que vem aqui fazer?

- Que estás aqui a fazer?

- com que direito abre a minha porta e entra?

- com que direito procedes desta forma?

- Estou na minha casa. Saia.

- Estás na casa dos teus Pais onde se chora e se reza. Se mais não és capaz de entender, deixa que os outros sejam livres de respeitar o momento.

- Guarde as suas sentenças para quem estiver disposto a aturá-la.

- Vai ouvir música para onde ela não envergonhe ninguém.

Este diálogo incrível, ciciado, interrompe-se de forma concordante.

Ela vira costas mas nem tempo tenho para admitir a hipótese de que ceda à minha imposição - esta imposição que nada me autoriza a fazer senão isto de me sentir humana.

De repente, a música (música?...) atroa os ares. E o demóniozito vermelho baila diante de mim.

Distingo, num canto da salita, a mesa com um gira-discos ao lado da qual se amontoam os discos.

E não há lugar para quaisquer reflexões. Tudo se torna acção.

De súbito, os discos acham-se em meu poder. Quero quebrá-los e não cedem. Então, num impulso, atiro-os pela janela fora. Menos o que continua a girar.

E agüento o embate do pequeno diabo. Que esbofeteio sei lá quantas vezes. A esbofetear tudo quanto de mau existe na terra.

Detém-me, sustendo a força que em mim, tão sem força, parece quadriplicada, ou centuplicada, uma gelada mão inerte.

Ana Margarida.

- Mil perdões! - balbucio. - Perdi a cabeça.

A música (música! ) não domina a agitação que se destingue e cresce lá em baixo. Deu-se o escândalo. E a condessa viúva fala por fim.

- Pára esse disco, Catarina. O disco pára.

- E agora vai-te embora. Sai! Sai, ouves?

- Saio. Para não voltar.

- É isso o que quero.

Tento interferir, talvez remediar.

- Por favor... não! A Catarina há-de cair em si, a Catarina há-de arrepender-se, a Catarina há-de...

- Vingar-se!

Está enquadrada na moldura da porta pela luz que vem de fora, pelas vozes confusas dos que pasmam do acontecimento.

Ana Margarida permanece inflexível.

- Tudo o que fizeres de errado julgando atingir-nos contra ti se voltará, Sai.

- Quero dinheiro.

- Terás a tua parte na hora própria. Através do advogado.

- Quero dinheiro agora.

- Nem um tostão.

- Não pode fazer isso...

- A partir de agora posso fazer tudo. Cortou-se o elo... como um dia foi cortado o cordão umbilical. E mais nada. Sai.

Então avanço e digo-lhe, rápida:

- Anda comigo.

E Catarina, incrivelmente segue-me.

Por acaso sei que deixei a carteira na poltrona onde pouco antes fora achar o João Alfredo. Pego-Lhe, abro-a e procuro. Conto o que tenho. Mil e oitocentos escudos.

- Toma.

E ela aceita, ela a quem tão recentemente eu quisera oferecer cinco escudos para croquettes.

E atrás dela soa a voz do jovem conde - o conde novo de Ribatorpes (e barão de Montelongo).

- Afinal não tens dignidade nenhuma! Catarina ri, sarcástica:

- P'ra que quero eu a dignidade? Não me serve p'ra nada! Se estás interessado, guarda toda a da família e que te faça bom proveito!

Volto ao quarto de Catarina que desapareceu na noite.

As luzes estão apagadas. Há de novo silêncio na casa cheia de morte.

- Ana Margarida! - chamo, baixinho.

- Aqui. Aproximo-me.

- Onde?

- Sentada na cama dela. Do lado direito da porta. Encontro-a.

- Ana Margarida!...

E todo o gelo do horror em que ela está crispada se desfaz em lágrimas que não conseguem dar vazão à dor que talvez nunca mais encontre nem sequer lenitivo.

Pobre condessa de Ribatorpes!

Pobre mulher!

São nove da manhã e estou em casa. Passei toda a noite junto de Ana Margarida. Aliás, quando sobre a madrugada as pessoas fatigadas principiaram a retirar-se, ficámos apenas Teresa Mafalda Abegorim e eu. A amiga de infância e a nova amiga. Amigas ambas. Dessa amizade que não teme provas de exame. Ana Margarida recostada nas almofadas que o Nicolau lhe trouxera, num choro inextinguível, o choro sem palavras nem soluços que impressiona mais que todos os gritos juntos. Teresa Mafalda e eu no sofá, perto dela e do esquife onde o supremo alheamento poupa Sebastião de Ribatorpes a quaisquer males futuros. Só os que já padeceram tudo ficam livres das ameaças ocultas no amanhã.

Reparo que disse "ficámos apenas Teresa Mafalda e eu". Não é exacto. Ficou o Nicolau. E ficou o João Alfredo.

E agora, enquanto tomo banho, e mudo de roupa, e engulo uma chávena de café com leite (mais café do que leite para aliviar o peso que me cai sobre as pálpebras) e reconheço a eficiência da Emília nos olhares de compreensão que me deita, penso no ouriço sem me permitir qualquer conclusão acerca do que verifiquei. Esteve sempre, a partir do que sucedeu, em pé, encostado à urna do pai, de cabeça baixa, impenetrável. Sei que sofre. Mas haverá nesse sofrimento qualquer hipótese de vir a reencontrar noções que o dirijam para um desejo de mudar de pele? De tomar uma nova. direcção?

Meu Deus, porque é que às vezes as pessoas não têm horizontes?

E no entanto...

Pois. Pois!...

A ilha dos Pêssegos! Ele quer a ilha dos Pêssegos. Por isso não há exactidão no meu reparo no que lhe diz respeito a ele. Ele talvez encontre horizontes abertos. Horizontes que o deixem reconhecer que o futuro vem de trás como de nós surgirá o futuro, porque nada existe completamente nosso.

E ela? Ela, Catarina?

Existirão horizontes para a rapariga que vi sumir-se nas trevas de uma noite cheia de absurdos?

 

 

                                                                                                    Odette de Saint Maurice

 

 

 

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