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ASHKELON, ISRAEL, 2:47
A chuva caía na noite como um lençol de facas prateadas, o céu escuro coberto de massas ainda mais escuras de nuvens negras e retorcidas, as ondas do mar e o vento fustigante a ameaçar os dois botes de borracha que se aproximavam da praia, amarrados um ao outro.
Os participantes do grupo de ataque estavam encharcados, o suor e a chuva escorriam pelos rostos sombrios e ansiosos; piscavam os olhos sem parar, esforçando-se para conseguir enxergar a praia. O grupo era formado por oito homens palestinos, do vale do Baaka, e uma mulher, que, embora não tivesse a mesma nacionalidade, era comprometida com a mesma causa, já que esta era uma parte integrante do seu ser, inseparável do compromisso que ela assumira anos antes. ¡Muerte a toda autoridad! Ela era a mulher do líder do grupo de ataque.
- Só faltam alguns minutos! - gritou um homem robusto, ajoelhando-se ao lado da mulher. Como os demais, ele trazia as armas bem presas às roupas escuras; uma mochila preta impermeável, no alto das costas, continha explosivos. - Não se esqueça, é muito importante, quando a gente saltar, jogue a âncora entre os barcos.
- Entendi, meu marido, mas eu ia me sentir melhor se fosse com vocês.
- E nos deixar sem nenhum meio para fugir e voltar à luta? - perguntou ele. - A estação de energia elétrica fica a menos de três quilômetros do mar; é ela que abastece Tel Aviv, e quando a gente fizer a estação explodir, vai ser o caos. Vamos roubar um carro e voltar na mesma hora, mas o nosso equipamento tem que estar aqui.
- Entendi.
- Entendeu mesmo, minha mulher? Você pode imaginar o que vai ser isso? A maior parte, ou, quem sabe, toda Tel Aviv no escuro! E Ashkelon também, evidentemente. Perfeito... e você, meu amor, foi você quem descobriu o ponto vulnerável, o alvo perfeito!
- Eu só sugeri. - Sua mão acariciou-lhe a face. - Só quero que você volte para mim, meu amor, porque você é o meu amor.
- Eu não tenho nenhuma dúvida disso, minha Amaya ardorosa... Nós já estamos bem perto. Agora!
O líder fez um sinal para seus homens. Eles deslizaram pelos lados dos dois botes para dentro da arrebentação violenta, segurando as armas no alto, os corpos sacudidos pelas ondas que quebravam, e cambalearam pela areia macia até a praia. Ao chegarem, o líder acendeu a lanterna uma vez, um sinal único e breve, que significava que todo o grupo se encontrava em território inimigo, preparado para penetrar e executar seu trabalho. A mulher atirou a pesada âncora entre os dois botes de borracha, que continuaram a flutuar ao sabor das ondas. Aproximou o rádio do ouvido e da boca; só deveria usá-lo em caso de emergência, pois os judeus eram espertos demais para deixar as frequências da costa sem monitoração.
Foi então que, subitamente, de forma terrível e definitiva, todos os sonhos de glória explodiram com as selvagens rajadas de tiros sobre os flancos do grupo de ataque. Num verdadeiro massacre, soldados desciam correndo pela areia, disparando suas armas sobre os corpos da Brigada de Ashkelon, explodindo cabeças em pedaços, sem nenhuma misericórdia pelos invasores inimigos. Nada de prisioneiros! Morte para todos!
A mulher, na balsa distante, agiu prontamente, a despeito da angústia, a despeito do choque que paralisava sua mente; seus movimentos rápidos não eram capazes de amenizar a agonia que tomava conta dela, apenas transformavam essa agonia em ação, fruto do instinto de sobrevivência. Ela enfiou o facão nas laterais e no fundo dos dois barcos de PVC, agarrou a sacola impermeável onde guardava armas e documentos falsos e deslizou para dentro das águas revoltas. Lutando contra a arrebentação e o refluxo das ondas com toda a força possível, tomou a direção sul ao longo da costa por cerca de cinquenta metros e, então, nadou em diagonal sobre as ondas até a praia. Sem enxergar quase nada devido à brutalidade da chuva, arrastando-se de bruços na água rasa, ela voltou ao local do massacre. Escutou então os soldados israelenses gritando em hebraico; uma fúria mortal congelou todos os músculos e fibras do seu corpo.
- A gente devia ter levado alguns prisioneiros.
- Para quê, para eles matarem os nossos filhos depois, como a chacina que fizeram com meus dois filhos no ônibus da escola?
- Vão nos criticar... todos estão mortos.
- Meu pai e minha mãe também estão. Esses canalhas mataram eles num vinhedo, um casal de velhos no meio das uvas.
- Eles que apodreçam no inferno! O Hezbollah torturou o meu irmão até a morte.
- Tirem as armas deles e comecem a atirar... algumas balas têm que nos pegar, pelo menos de raspão, nos braços e nas pernas!
- O Jacob tem razão! Eles tentaram se defender; podiam ter matado todos nós.
- Então, um de nós devia ir correndo buscar reforço.
- Onde estão os barcos deles?
- Foram embora, sumiram da nossa vista! Deviam ser dezenas. Foi por isso que nós matamos estes aqui.
- Rápido, Jacob! A gente não pode dar nenhuma munição para essa maldita imprensa liberal.
- Esperem! Um deles ainda está vivo!
- Deixe ele morrer. Tirem as armas deles e comecem a atirar.
O staccato da fuzilaria encheu a noite. Em seguida, os soldados jogaram as armas dos invasores junto dos cadáveres e voltaram correndo para as dunas cobertas da grama silvestre que crescia na areia. Em instantes, viam-se as luzes erráticas de fósforos e isqueiros, que os soldados protegiam com as mãos em concha; o massacre terminara, a tentativa de encobri-lo se iniciara.
A mulher se movia com cautela, de bruços na água rasa; o barulho dos tiros ainda ecoava nos seus ouvidos, alimentando o ódio que a invadira - o ódio e o grande sentimento de perda. Eles haviam destruído o único homem que ela podia amar nesse mundo, o único que podia considerar um igual, pois nenhum outro possuía a mesma força, a mesma determinação que ela. Ele partira e nunca mais haveria outro igual, um incendiário de olhar feroz, cuja voz era capaz de levar multidões ao riso e às lágrimas. E ela sempre estivera ali, ao seu lado, a guiá-lo, a adorá-lo. Aquele mundo de violência jamais voltaria a ver um par como o que os dois haviam formado.
Ouviu um gemido, um lamento baixinho, que perfurou a chuva e a espuma das ondas. Um corpo rolou pelo declive da praia até a beira da água - a menos de um metro dela. Ela se arrastou rapidamente até ele e o segurou; o rosto estava encostado na areia. Ela virou a cabeça do homem e a chuva lavou o rosto ensanguentado. Era seu marido. Grande parte do pescoço e do crânio era uma massa vermelho-escarlate. Ela o agarrou com toda a força; ele abriu os olhos uma única vez e então fechou-os para sempre.
A mulher olhou através da chuva para as dunas de areia, para as chamas hesitantes dos fósforos e para o brilho dos cigarros acesos. Com dinheiro e com documentos falsos, ela atravessaria a Israel que tanto desprezava, deixando a morte no seu rastro. Retornaria ao vale do Baaka e chegaria aos Conselhos Superiores. Sabia exatamente o que fazer.
¡Muerte a toda autoridad!
VALE DO BAAKA, LÍBANO, 12:47
O sol causticante do meio-dia esturricava as ruas de terra do campo de refugiados, um enclave de deslocados de guerra, muitos subjugados por eventos que eles não eram capazes nem de explicar, nem de controlar. Seus passos eram lentos, arrastados, seus rostos, impassíveis, e nos olhos, escuros e abatidos, havia um vazio que revelava a dor de lembranças apagadas, de imagens que nunca mais seriam reais. Outros, porém, eram rebeldes; para eles, a submissão era ultrajante, a aceitação do status quo, impensável, algo digno de desprezo. Eram os muquateen, os soldados de Alá, os vingadores de Deus. Caminhavam com passos rápidos, decididos, sempre com as armas nos ombros, mexendo as cabeças com determinação, num alerta constante, o olhar concentrado e cheio de rancor.
Haviam-se passado quatro dias do massacre de Ashkelon. A mulher de uniforme de brim verde, mangas arregaçadas, saiu da sua modesta armação de três aposentos; aquilo não podia ser chamado de casa. A porta estava coberta por um pano preto, a marca universal da morte; os transeuntes fitavam aquilo e levantavam os olhos para o céu, murmurando preces por aquele que partira; a toda hora emergia um grito de dor, pedindo a Alá que vingasse aquela morte terrível. Pois essa era a casa do líder da Brigada de Ashkelon, e a mulher que descia a passos largos a rua de terra fora sua esposa. Mas mais do que uma mulher, mais do que uma esposa, ela era um dos grandes muquateen, nesse vale convoluto de submissão e rebeldia, onde ela e seu marido eram símbolos de esperança numa causa que jamais seria derrotada.
Enquanto caminhava pela rua de terra esturricada que passava por um mercado ao ar livre, as pessoas se aproximavam dela e muitos a tocavam com carinho e veneração, dizendo preces, até que todos, em uníssono, começaram a cantar "Baj, Baj, Baj... Baj!"
A mulher não deu atenção a ninguém e apressou o passo na direção de um barraco de madeira no final da rua, onde funcionava uma sala de reuniões. Ali dentro, os líderes dos Conselhos Superiores do Vale do Baaka a esperavam. Ela entrou; um guarda fechou a porta e ela se viu de frente para nove homens, sentados a uma mesa longa. Os cumprimentos e condolências foram breves e formais. Da cadeira central, o presidente do comitê, um árabe já mais velho, começou a falar.
- Seu comunicado chegou até nós. Dizer que a notícia foi um choque seria muito pouco para uma morte como essa.
- Morte, essa palavra diz tudo - disse um homem de meia-idade, vestido com um dos muitos uniformes dos muquateen. - Porque é isso que você está procurando, espero que você saiba.
- Se é assim, vou encontrar o meu marido mais rápido, não é?
- Eu não sabia que você concordava conosco - disse outro.
- Se eu concordo ou não, isso é irrelevante. Só peço que vocês me sustentem financeiramente. Acho que nesses anos todos eu fiz por merecer esse sustento.
- Isso é inquestionável - concordou um deles. - Você tem sido uma força notável e, junto com seu marido, que ele descanse nos jardins de Alá, você foi extraordinária. Mas eu vejo uma dificuldade...
- Eu e aqueles que eu escolher para irem comigo vamos agir sozinhos, exclusivamente para vingar o que aconteceu em Ashkelon. Nós vamos ser uma ala provisória e só vamos prestar contas a nós mesmos. Isso esclarece a sua "dificuldade"?
- Se você se considera capaz - replicou um dos líderes.
- Eu já provei que sou. Será que vou ter que apresentar os documentos onde está tudo registrado?
- Não, não é preciso - respondeu o presidente. - Em diversas ocasiões você levou os nossos inimigos a direções tão absurdas que vários governos irmãos foram penalizados por atos sobre os quais eles não sabiam nada.
- Se for preciso, eu posso continuar com essa prática. Nós, e vocês também, temos inimigos e traidores por toda parte, até mesmo entre os seus "governos irmãos". A autoridade sempre acaba se corrompendo.
- Você não confia em ninguém, não é? - perguntou o árabe de meia-idade.
- Essa afirmação é uma ofensa para mim. Eu me casei com um de vocês para toda a vida. Dei a vida dele para vocês.
- Eu peço desculpas.
- Acho bom. E a minha resposta, por favor?
- Você vai ter tudo o que precisar - respondeu o presidente do comitê. - Resolva tudo com Bahrain, como você já fez outras vezes.
- Obrigada.
- Bem, quando chegar nos Estados Unidos, você vai operar através de uma outra rede. Eles vão observar, testar você, e quando estiverem convencidos de que você é realmente uma arma secreta de confiança e não representa uma ameaça para eles, vão procurá-la e você vai se unir a eles.
- Quem são eles?
- Eles são conhecidos nos canais secretos mais profundos como os Escorpiões... Scorpios, para ser exato.
1
Fim da tarde. O pequeno veleiro, em destroços, o mastro despedaçado pelos raios, as velas rasgadas pelos ventos do mar aberto, derivou na direção de uma praia pequena e deserta de uma ilha particular nas Antilhas Menores. Durante os três dias anteriores, antes que baixasse a calmaria absoluta, aquela região do Caribe havia sido vítima não só de um furacão da força do infame Hugo mas, ainda, dezesseis horas depois, de uma tempestade tropical com raios e trovões avassaladores, que incendiaram mais de mil palmeiras e fizeram com que centenas de milhares de habitantes do arquipélago implorassem a clemência dos deuses.
A Casa Grande nessa ilha, porém, sobrevivera às duas catástrofes. Era feita de pedra e aço aparafusados com ferro e encravada no morro gigantesco que se levantava no lado norte, impenetrável, indestrutível, uma verdadeira fortaleza. Era um milagre que o veleiro semidestruído tivesse conseguido sobreviver penetrar na enseada esculpida nas rochas e alcançar a praia, mas foi um milagre agourento, e não uma obra do seu Deus, que fez com que a empregada negra, alta, de uniforme branco descesse correndo os degraus de pedra até a beira d’água e disparasse quatro tiros para o ar com o revólver que trazia na mão.
- Ganja! - gritou ela. - Nada dessa porcaria de ganja aqui! Vão embora!
A figura solitária, ajoelhada no convés do barco, era uma mulher de trinta e poucos anos. Tinha traços bem marcados, cabelos longos, sujos e descuidados, o short e a blusa maltratados pela intempérie... e com um olhar frio e enigmático, ela apoiou seu possante rifle na amurada e espiou pela mira telescópica; apertou o gatilho. O estrondo quebrou o silêncio da enseada, ecoando nas rochas e no morro ao fundo. No mesmo instante, a empregada tombou de frente sobre as ondas que rolavam suavemente.
- Tiros, estou ouvindo tiros! - Um jovem sem camisa, robusto, de uns dezessete anos, com bem mais de um metro e oitenta de altura, irrompeu de dentro da cabine abaixo do convés. Era bonito e musculoso, com traços perfeitamente cinzelados, como uma figura romana clássica. - O que houve? O que foi que você fez?
- Nada além do que tinha que ser feito - respondeu calmamente a mulher. - Por favor, vá até a proa e pule quando você vir a areia; ainda tem luz suficiente. Aí você puxa o barco para a praia.
Ele não fez menção de obedecer, mas fixou o olhar na empregada de uniforme branco, assassinada na praia, e esfregou as mãos na calça, nervoso.
- Meu Deus, mas é só uma empregada! - gritou, com um sotaque carregado de italiano, sua língua natal. - Você é um monstro!
- É isso aí, menino. O meu trabalho é esse, não é? E não era, quando eu matei aqueles três homens que amarraram suas mãos, passaram uma corda no seu pescoço e já iam atirar você no ar, querendo enforcar você por ter assassinado o suprèmo do cais?
- Eu não matei ele. Já disse mais de mil vezes.
- Eles acharam que foi você e isso era o bastante.
- Eu queria chamar a polícia. Você é que não quis deixar.
- Seu bobinho. Você acha que algum dia ia conseguir chegar a um tribunal? Nunca. Iam matar você na rua, como se fosse um lixo jogado fora, porque o suprèmo favorecia os estivadores com o roubo e a corrupção dele.
- Eu discuti com ele, só isso! Depois fui tomar vinho.
- Ah, e você tomou muito vinho mesmo. Quando encontraram você no beco, você não dizia coisa com coisa, até perceber que estava com uma corda no pescoço e os pés na beirinha do cais... E durante quantas semanas eu escondi você e fiquei correndo de um lugar para outro, enquanto aquela gentalha do cais do porto tentava caçar você, jurando que iam matá-lo na hora em que você aparecesse na frente deles?
- Eu nunca entendi por que você foi tão boa para mim.
- Eu tinha as minhas razões... ainda tenho.
- Deus é testemunha, Cabi - disse o jovem, fitando ainda o cadáver estirado na praia. - Devo a minha vida a você, mas nunca... nunca esperei uma coisa dessas!
- Você preferia voltar para a Itália, para Portici e para a sua família, enfrentar uma morte certa?
- Não, não, claro que não, signora Cabrini.
- Então seja bem-vindo ao nosso mundo, meu benzinho - disse a mulher, sorrindo. - E, acredite em mim, você ainda vai me agradecer pelo que eu tenho para lhe dar. Você é tão perfeito; você não sabe o quanto é perfeito... Por este lado, meu Nico querido... Agora!
O jovem fez o que ela mandou.
DEUXIÈME BUREAU, PARIS
- É ela - disse o homem atrás da escrivaninha no escritório escuro. Na parede da direita estava projetado um mapa detalhado do Caribe, especificamente das Antilhas Menores, com um ponto azul oscilante centrado da ilha de Saba. - Podemos supor que ela navegou através da passagem da Anegada, entre a ilha do Cão e a Virgin Gorda - esse é o único caminho por onde ela poderia sobreviver às tormentas. Se é que ela conseguiu sobreviver.
- Talvez ela não tenha conseguido - respondeu um assistente, sentado diante da escrivaninha, olhando para o mapa. - Com certeza isso ia facilitar bastante a nossa vida.
- Claro que ia. - O chefe do Deuxième acendeu um cigarro. - Mas para uma loba que passou pelo que há de pior em Beirute e no vale do Baaka eu só vou dar a caçada por encerrada quando tiver provas irrefutáveis.
- Eu conheço aqueles mares - disse um outro homem, que estava de pé do lado esquerdo da escrivaninha. - Fui enviado para a Martinica durante a ameaça soviético-cubana, e posso afirmar que os ventos lá podem ser muito violentos. Pelo que eu sei da surra que esse mares apanharam, meu palpite é que ela não sobreviveu, pelo menos se estivesse num barco.
- Pois eu parto do princípio de que ela sobreviveu. - O chefe do Deuxième falava num tom ríspido. - Não posso me dar ao luxo de tentar adivinhar. Só conheço esses mares através dos mapas, mas vejo que existem recantos naturais e pequenos ancoradouros onde ela poderia ter-se abrigado. Eu estudei esses locais.
- Não é bem assim, Henri. Nessas ilhas, a direção dos ventos muda radicalmente de uma hora para outra. Se esses locais abrigados existissem, eles seriam conhecidos, habitados. Eu conheço esses lugares; estudar um mapa é um mero exercício à distância, não é a mesma coisa que revirar os mares, procurando submarinos soviéticos. Estou dizendo, ela não sobreviveu.
- Tomara que você esteja certo, Ardisonne. Este mundo é pequeno demais para Amaya Bajaratt.
AGÊNCIA CENTRAL DE INTELIGÊNCIA, LANGLEY, VIRGÍNIA
No complexo de comunicações da CIA, uma construção subterrânea de paredes brancas, uma sala trancada era reservada e uma equipe de doze analistas, nove homens e três mulheres, que trabalhavam dia e noite, revezando-se em turnos de quatro. Eram profissionais poliglotas especialistas em transmissões internacionais por rádio; dois deles encontravam-se entre os mais experientes criptógrafos da Agência e todos tinham ordens de não discutir suas atividades com ninguém, inclusive maridos e mulheres.
Um homem de uns quarenta anos, vestido informalmente, empurrou para trás a sua cadeira giratória e olhou para seus companheiros do turno da meia-noite, uma mulher e outros dois homens; eram quase quatro horas da manhã, metade do expediente.
- Acho que tem alguma coisa aqui - disse ele, sem se dirigir especificamente a nenhum deles.
- O quê? - perguntou a mulher. - Pelo que me consta, esta noite está um tédio.
- Diga o que é, Ron - disse o homem que estava mais perto do primeiro. - Eu já estou quase dormindo com essa Rádio Bagdá.
- Tente a Bahrain, em vez da Bagdá - respondeu Ron, pegando de uma bandeja de arame uma folha de papel que acabava de sair da sua impressora.
- O que é que tem aquela gente rica? - O terceiro homem ergueu os olhos do painel eletrônico.
- É isso mesmo, gente rica. Nossa fonte em Manamah informou que transferiram meio milhão de dólares para uma conta numerada em Zurique, destinada a...
- Meio milhão? - interrompeu o segundo homem. - Para eles isso é titica de galinha.
- Eu não contei para vocês qual foi o destino e o método de transferência. Do Banco de Abu Dhabi para o Crédit Suisse de Zurique...
- É a rota do Vale do Baaka - reconheceu a mulher, imediatamente. - Destino?
- Caribe, não se sabe o local exato.
- Encontre!
- No momento é impossível.
- Por quê? - perguntou o terceiro homem. - É por que não dá para confirmar?
- Está confirmado sim, e da pior maneira possível. O informante foi morto uma hora depois de ter feito contato com o nosso homem na embaixada, um funcionário do protocolo, que está sendo afastado às pressas.
- Baaka - disse a mulher, em voz baixa. - Caribe. Bajaratt.
- Vou mandar um fax de segurança informando isso ao O’Ryan. Nós vamos precisar da ajuda dele.
- Hoje é meio milhão - disse o terceiro homem -, amanhã podem ser cinco, se a rota for segura.
- Eu conhecia o nosso informante em Bahrain. - A mulher falava com tristeza. - Era um cara legal, com mulher e filhos, encantadores... desgraçados. Bajaratt!
MI-6 LONDRES
- O nosso homem em Dominica confirmou a informação que os franceses nos enviaram. - O diretor do serviço de inteligência britânico aproximou-se de uma mesa quadrada no centro da sala de reuniões. Sobre o tampo da mesa via-se um volume grande, grosso, um entre as dezenas de livros que ocupavam as estantes, contendo mapas detalhados de áreas específicas do globo. Nas letras douradas sobre a capa preta do volume lia-se: Caribe - Ilhas de Barlavento e de Sotavento. Antilhas. Ilhas Virgens Americanas e Britânicas. - Por favor, você poderia procurar um lugar chamado Passagem de Anegada? - pediu ele ao seu assistente.
- Claro. - O outro homem que estava na sala de estratégia movimentou-se rapidamente ao perceber a frustração do seu superior; esta não se devia à situação, mas sim à paralisia de sua mão, que se recusava a obedecer aos seus comandos. O assistente virou as páginas pesadas até encontrar o mapa em questão. - Está aqui... Santo Deus, é impossível alguém conseguir ir tão longe no meio daquela tormenta, pelo menos numa embarcação daquele tamanho.
- Talvez ela não tenha conseguido.
- Conseguido o quê?
- Chegar onde queria.
- De Basse-Terre até Anegada, durante aqueles três dias? Eu diria que não. Ela teria que passar mais da metade do tempo em mar aberto para chegar em tão pouco tempo.
- Foi por isso que eu chamei você aqui. Você conhece muito bem aquela região, não é? Você trabalhou lá.
- Se é que existe essa história de especialista, acho que sou um deles. Eu passei nove anos lá, baseado em Tortola, e voei por aquela região toda... uma vida bastante agradável, realmente. Ainda mantenho contato com alguns velhos amigos; todos eles achavam que eu era um exilado com uma boa situação que gostava de ficar voando de uma ilha para outra no meu aviãozinho.
- Eu sei, li a sua ficha. Você fez um excelente trabalho.
- A Guerra Fria estava do meu lado e eu era quatorze anos mais moço; e já não era jovem naquela época. Hoje em dia eu não assumiria o controle de um bimotor naqueles mares nem por todo o dinheiro do mundo.
- Eu entendo - disse o diretor, inclinando-se sobre o mapa. - Quer dizer que na sua opinião de especialista ela jamais sobreviveria.
- Jamais é um pouco radical. Digamos que seria muito pouco provável, quase impossível.
- É o que diz o seu companheiro do Deuxième.
- Ardisonne?
- Você conhece ele?
- Codinome Richelieu. Claro que conheço. Bom sujeito, apesar de meio teimoso. Ele trabalhou na Martinica.
- Ele foi categórico. Está convencido de que ela não sobreviveu.
- Eu acho que ele está certo. Mas, se o senhor me permite, já que estou aqui para ajudar, eu poderia fazer uma ou duas perguntas?
- Pois não, agente Cooke.
- Essa mulher, Bajaratt, é obviamente uma figura legendária no vale do Baaka, mas há anos que eu vasculho essas listas e não me lembro de já ter visto o nome dela. Por que isso?
- Porque Bajaratt não é o nome verdadeiro - respondeu o chefe do MI-6. - É o nome que ela adotou há muitos anos, achando que assim estaria guardando um segredo, pois ela acha que ninguém sabe de onde vem esse nome e nem quem ela realmente é. Considerando que poderiam existir agentes infiltrados aqui dentro e também que ela poderia estar envolvida em coisas mais graves, nós mantivemos essas informações no nosso arquivo confidencial.
- Ah, sim, estou entendendo. Sabendo um nome falso e a origem desse nome, é possível reconstituir uma história, traçar uma personalidade e até mesmo prever o que vem pela frente. Mas quem é ela, o que é ela, exatamente?
- Uma terrorista, das mais qualificadas de todos os terroristas vivos.
- Árabe?
- Não.
- Israelense?
- Não, e se eu fosse você, não diria uma coisa destas para qualquer pessoa.
- Bobagem. O espectro de atividades do Mossad é muito amplo... Mas, por favor, responda à minha pergunta. Não se esqueça de que passei a maior parte do meu tempo de serviço no outro lado do mundo. Então, por que essa mulher é tão perigosa?
- Ela está à venda.
- Ela está o quê...?
- Ela vai a qualquer lugar onde haja desordem, rebelião, revolta, e vende o talento dela para quem pagar melhor. E, devo acrescentar, com resultados notáveis.
- O senhor me desculpe, mas isso me parece tolice. Uma mulher sozinha entra nos caldeirões de revolta e vende conselhos? O que é que ela faz, põe anúncios nos jornais?
- Não, ela não precisa disso, Geoff - replicou o chefe do MI-6, voltando para a mesa de reunião e sentando-se de um modo um tanto desajeitado, ajustando a cadeira com a mão esquerda. - Ela é doutora em matéria de desestabilização. Conhece os pontos fortes e os pontos fracos de todas as facções antagônicas, e conhece também os líderes e sabe como chegar a eles. Ela não tem nenhum princípio de lealdade moral ou política. É uma profissional da morte. Simples, não?
- Eu não acho isto nada simples.
- O resultado é simples, sim, o que não é simples é a história dela, o lugar de onde ela veio... Sente-se, Geoffrey, e deixe eu lhe contar uma história, uma história curta que conseguimos montar. - O diretor abriu um grande envelope de papel-manilha que estava à sua frente e retirou três fotografias, ampliações de flagrantes inocentes de uma mulher em movimento. Em todas as três, o rosto estava focalizado com nitidez, à luz do sol. - Esta é Amaya Bajaratt.
- Mas são três pessoas diferentes! - exclamou Geoffrey Cooke.
- Qual das três é ela? - perguntou o diretor. - Ou será que são todas as três?
- Estou entendendo o que você quer dizer... - disse Cooke, hesitante. - Cada uma tem um cabelo diferente: louro, preto e, eu imagino, castanho-claro; curto, comprido e médio. Porém os traços também são diferentes... mas não tanto. Mas, de qualquer modo, são diferentes.
- Plástico da cor da pele? Cera? Controle dos músculos faciais? Nada disso é difícil.
- Um espectrógrafo seria capaz de dizer, eu acho. Pelo menos com relação a aditivos, como o plástico e a cera.
- Deveria ser, mas não é. Nossos especialistas disseram que existem compostos químicos que podem enganar o detector fotoelétrico, e até mesmo a refração de alguma luz muito forte pode fazer isso. Isto significa, claro, que eles não sabem, e não vão arriscar uma opinião.
- Está certo - disse Cooke. - Presume-se que ela seja uma dessas mulheres ou mesmo as três, mas, que diabo, como é que o senhor pode ter certeza?
- Confiança, eu diria.
- Confiança?
- Nós e os franceses pagamos uma fortuna por estas fotografias, todas de colaboradores secretos que trabalham para nós há anos. Nenhum deles está interessado em perder uma fonte financeira como esta, fornecendo uma fraude. Todos os três acreditam que capturaram a Bajaratt com as câmeras deles.
- Mas para onde ela estava indo? De Basse-Terre até Anegada, se era para Anegada que ela estava indo, são bem mais de duzentos quilômetros, e com aquelas tempestades furiosas. E por que a passagem de Anegada?
- Porque o barco foi visto na costa de Marigot, e não podia chegar até a praia por causa das rochas e porque o ancoradouro estava sendo devastado pela tormenta.
- Quem viu o barco?
- Uns pescadores que trabalham para os hotéis de Anguilla. Depois, o nosso homem em Dominica confirmou que também tinha visto. - Percebendo a perplexidade de Cooke, o diretor prosseguiu: - Ele foi até Basse-Terre, seguindo a orientação que recebeu de Paris, e apurou que uma mulher mais ou menos da idade dessa Bajaratt das fotos alugou um barco, junto com um rapaz alto e musculoso. Um rapaz muito jovem. Essa informação bate com a de Paris, de que uma mulher com a idade e a descrição geral dela, provavelmente com um passaporte falso, saiu de Marselha acompanhada do tal rapazinho, num avião que ia para a ilha de Guadalupe, duas ilhas, na verdade, como você sabe, Grande-Terre e Basse-Terre.
- E como a alfândega de Marselha fez a ligação entre o rapazinho e a mulher?
- Ele não falava francês; ela disse que era um parente distante, da Letônia, e que ela era a responsável por ele depois que seus pais morreram.
- Bastante improvável.
- Mas perfeitamente aceitável para os nossos amigos do outro lado do Canal. Eles ignoram tudo o que fica ao norte do Ródano.
- E por que ela estaria viajando com um adolescente?
- Agora você me diga. Não tenho a mais vaga ideia.
- Bom, repetindo a minha pergunta, para onde ela estava indo?
- Esta é que é a charada. É óbvio que ela é uma marinheira experiente. Sabia que uma tempestade estava se aproximando - ainda mais porque o barco tinha um rádio, e o alerta estava sendo transmitido por toda aquela área, em quatro línguas - e podia muito bem ter ido até a praia antes da tormenta começar.
- A menos que ela tivesse marcado um encontro e não pudesse chegar atrasada.
- É, esta é a única resposta plausível, mas, mesmo assim, ela se arriscaria a morrer por causa disso?
- Mais uma vez, improvável - concordou o agente. - A menos que houvesse outras circunstâncias, alguma coisa que a gente não sabe... Continue; é óbvio que o senhor tem alguma ideia.
- Alguma, sim, mas temo que não seja grande coisa. Bom, partindo do princípio de que ninguém nasce terrorista, mas pode se tornar terrorista em função dos acontecimentos, e com base em alguns relatos que dizem que ela, embora seja poliglota, já foi vista falando um diabo de uma língua quase impossível de entender...
- Para a maioria dos europeus essa língua seria o basco - interrompeu Cooke, calmo.
- Exato. Nós mandamos um grupo de investigadores para as províncias de Vizcaya e Alva para ver o que eles conseguiam descobrir. Lá, eles tomaram conhecimento de um evento particularmente nefasto, uma coisa que aconteceu há muitos anos numa pequena aldeia rebelde, no oeste dos Pireneus. Dessas coisas que fazem parte das lendas das montanhas e vão sendo transmitidas através das gerações.
- Alguma coisa com My Lai e Babi Yar? - perguntou Cooke. - Uma matança coletiva?
- Pior que isso, se for possível. Um grupo de soldados atacou de surpresa a aldeia dos rebeldes e executou toda a população adulta. Os adultos, diga-se de passagem, eram todas as pessoas acima de doze anos. As crianças menores foram obrigadas a presenciar o massacre e depois foram abandonadas à própria sorte nas montanhas.
- Essa Bajaratt era uma das crianças?
- Deixe eu tentar explicar. Os bascos que moram naquelas montanhas são muitos isolados. Eles têm o costume de enterrar todos os registros escritos no meio dos ciprestes que ficam no extremo norte do território. No grupo que mandamos para lá tinha um antropólogo, especialista nos povos que vivem nos Pireneus, e ele sabe falar e ler a língua deles; ele encontrou esses registros. As últimas páginas foram escritas por uma menina, que descreveu o horror que eles passaram, inclusive os pais sendo decapitados pelas baionetas na frente dela e, antes da execução, os olhos vendo os assassinos afiarem as lâminas das baionetas nas pedras.
- Que horror! E essa menina é a Bajaratt?
- Ela assinou o nome Amaya el Baj... Yovamanaree, que é a coisa mais próxima, em basco, do espanhol "joven mujer", jovem mulher. Em seguida uma única frase, num espanhol perfeito: "Muerte a toda autoridad"...
- Morte a toda autoridade - traduziu Cooke. - Só isso?
- Não, tem mais duas coisas. Ela acrescentou uma nota final e, imagine você, uma criança de dez anos escrever uma coisa dessas. "Shirharrá Baj."
- Que diabo quer dizer isso?
- Grosseiramente quer dizer "uma mulher jovem que logo estará pronta para a procriação mas que nunca vai botar uma criança neste mundo".
- É macabro, sem dúvida, mas não deixa de ser compreensível.
- As lendas falam de uma menina que levou as outras crianças da aldeia para longe das montanhas, evitando encontrar as patrulhas, e que era capaz de, sozinha, atrair soldados para armadilhas e matá-los com suas próprias baionetas.
- Uma menina de dez anos... é inacreditável! - Geoffrey Cooke fez uma pausa, com ar intrigado. - O senhor disse que tinha mais duas coisas. Qual é a segunda?
- A última evidência que, para nós, confirma a identidade dela. Entre os registros enterrados, foram encontradas algumas histórias familiares. Algumas ramificações mais isoladas dos bascos temem a endogamia, e é por essa razão que muitos jovens, tanto homens quanto mulheres, são mandados embora. De qualquer modo, havia a família "Aquirre: primeira filha, uma menina batizada de Amaya", um nome comum. O sobrenome Aquirre foi riscado - riscado com fúria, como que por uma criança raivosa - e substituído pelo nome Bajaratt.
- Mas por quê? Vocês por acaso conseguiram descobrir?
- Conseguimos, sim, mas não foi nada fácil. Resumindo, nossos rapazes recorreram aos nossos colegas de Madri, e chegaram a ponto de ameaçá-los com a nossa retirada total dos locais onde eles mais precisavam de nós, se não abrissem determinados arquivos lacrados sobre os ataques aos bascos. Você usou a palavra macabro e não sabe o quanto ela é adequada. Nós encontramos o nome Bajaratt, um sargento de mãe espanhola e pai originário de alguma colônia francesa, pelo nome; esse sargento tinha participado do massacre sangrento na aldeia da montanha. Em poucas palavras, ele foi o soldado que cortou a cabeça da mãe de Amaya Aquirre. E ela adotou esse nome, certamente não em homenagem a ele, mas pelo horror que ele representava para ela, com uma finalidade específica: ela jamais esqueceria aquilo, nem por um momento, enquanto estivesse viva. Ela se tornaria uma assassina abominável, igual ao homem que ela viu passar a baioneta no pescoço da mãe dela.
- É extremamente perverso - disse Cooke, num fio de voz - mas é muito compreensível. Uma criança que assume o disfarce de um monstro, com uma fantasia de vingança através da identificação. Não é muito diferente da síndrome de Estocolmo, em que os prisioneiros de guerra, capturados em condições desumanas, se identificam com os inimigos. Imagine isso numa criança... Quer dizer então que Amaya Aquirre é Amaya Bajaratt. Mas, mesmo tendo renegado o nome verdadeiro, ela nunca disse a ninguém o porquê do nome Bajaratt.
- Nós consultamos um psiquiatra especializado em distúrbios infantis - continuou o diretor do MI-6. - Ele disse que uma menina de dez anos é bem mais adiantada que um menino da mesma idade. Como eu tenho vários netos e netas, sou obrigado a concordar, ainda que a contragosto. Ele disse que uma menina dessa idade que passou por um trauma e uma dor desse nível teria uma tendência a não se revelar inteiramente, só em parte.
- Eu não sei se estou entendendo bem.
- Ele colocou a coisa assim: a síndrome da testosterona, como ele chamou. Um menino, em tais circunstâncias, pode perfeitamente escrever "Morte a toda autoridade" e assinar o nome completo, uma promessa de vingança para todo mundo ver, ao passo que uma menina se comporta de outra maneira, escondendo parte da informação, pois ela já pensa na vingança real, mais adiante. Ela tem que vencer os inimigos pela esperteza, não pela força... Mesmo assim, ela se sente compelida a revelar uma parte de si.
- É, acho que isso faz sentido - concordou Cooke, balançando a cabeça. - Mas, meu Deus, documentos enterrados junto dos ciprestes em lugares remotos, ritos de passagem com derramamento de sangue... execuções em massa, cabeças cortadas com baionetas, e uma criança de dez anos presenciando isso tudo! Cristo, vocês estão lidando com uma psicopata completamente obstinada! Tudo o que ela quer é ver cabeças rolando pelo chão, como aconteceu com os pais dela.
- "Muerte a toda autoridad" - disse o chefe. - Cabeças de autoridades... para todo lado.
- Eu sei, eu entendi...
- Mas eu receio que você não esteja entendendo a gravidade e a relevância disso.
- Como assim?
- Durante os últimos anos, Bajaratt morou no vale do Baaka com o líder de uma facção especialmente violenta dos palestinos, uma causa com a qual ela se identificava com verdadeiro fanatismo. Parece que ela e o namorado se casaram nesta primavera, numa dessas cerimônias informais. Ele foi morto há pouco mais de dois meses, durante um ataque numa praia, em Ashkelon, ao sul de Tel Aviv.
- Ah, estou me lembrando, eu li alguma coisa sobre isso - disse Cooke. - Todos foram mortos, não houve nenhum prisioneiro.
- E você se lembra qual foi a mensagem que o restante da facção, ou seja, a nova líder, divulgou pelo mundo todo?
- Alguma coisa sobre armas, se não me engano.
- Exatamente. A mensagem dizia que as armas dos israelenses que mataram os "vingadores que lutavam pela liberdade" foram fabricadas nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França, e que o povo cujas terras foram roubadas não esqueceria nem perdoaria jamais os monstros que tinham fornecido as armas.
- Essa baboseira a gente já está cansado de ouvir. E daí?
- Daí que Amaya Bajaratt, que agora adotou a alcunha "A Implacável", passou uma mensagem para os Conselhos Superiores do vale do Baaka; os seus amigos ou ex-amigos lá do Mossad pegaram a mensagem, graças a Deus. Ela e os companheiros resolveram dedicar a vida a arrancar "as cabeças dos quatro grandes monstros". Ela, pessoalmente, vai ser "a tocha luminosa que envia o sinal".
- Que sinal?
- Pelo que o Mossad conseguiu entender, vai ser o sinal de ataque para os assassinos escondidos em Londres, Paris e Jerusalém. Os israelenses acham que isso está implícito numa parte da mensagem que diz que "quando o mais vil desses monstros cair do outro lado do grande mar, os outros devem acompanhá-lo sem demora".
- O mais vil...? Do outro lado...? Meu Deus do céu, os Estados Unidos?
- Isso mesmo, agente Cooke, Amaya Bajaratt está se preparando para assassinar o presidente dos Estados Unidos. O sinal dela vai ser esse.
- Mas isso é completamente absurdo!
- Pela história dela pode ser que não. Profissionalmente, nunca, ou quase nunca, ela fracassou. Ela é um gênio patológico e esta vai ser a ação decisiva dela, a vingança contra toda a autoridade "brutal", mas agora com um agravante pessoal: a morte do marido. A ação dela tem que ser impedida, Geoffrey. É por isso que o Ministério das Relações Exteriores, com o total acordo da nossa organização, decidiu que você deve retornar imediatamente ao seu antigo posto no Caribe. Como você mesmo disse, não existe ninguém mais qualificado para isso.
- Mas, meu Deus, o senhor está falando com um homem de sessenta e quatro anos de idade, prestes a se aposentar.
- Você ainda tem contatos lá naquelas ilhas. Nos lugares onde houver pessoas novas, nós vamos providenciar uma apresentação. Sinceramente, achamos que você tem condições de fazer avanços mais rápidos que qualquer outra pessoa conhecida. A gente tem que encontrar essa mulher e se livrar dela.
- E já ocorreu a vocês, meu amigo, que mesmo que eu partisse ainda hoje, quando eu chegasse lá ela já poderia ter escapulido sabe Deus para onde? Me desculpe, mas a palavra "tolice" continua na minha cabeça.
- Quanto à possibilidade dela "escapulir" - replicou o diretor, com um leve sorriso -, nem nós, nem os franceses acreditamos que ela vá a lugar nenhum por alguns dias, pelo menos por uma ou até duas semanas.
- Foram as suas bolas de cristal que disseram isso?
- Não, foi o nosso bom senso coletivo. Veja bem, para executar uma tarefa desse vulto, como ela pensa, vai ser necessário um alto grau de planejamento, envolvendo recursos humanos, financeiros e técnicos, inclusive um avião. Ela pode ser psicopata, mas não é nenhuma idiota; ela não vai se meter a organizar um empreendimento desses no próprio continente americano.
- É, o ideal é ela ficar livre da fiscalização imediata das autoridades federais - disse Cooke, relutante - mas perto o suficiente para ter acesso aos mares da costa e ao pessoal do continente.
- É exatamente o que nós achamos - concordou o chefe do MI-6.
- Por que será que ela passou essa mensagem para os conselhos do Baaka?
- Talvez isso seja o Götterdämmerung dela. Ela quer ter a glória de ser a responsável por essas mortes. Do ponto de vista psicológico, é consistente.
- É verdade. Bem, o senhor me apresentou uma missão praticamente irresistível, não é?
- Eu espero que sim.
- Foi me conduzindo passo a passo... De um enigma distante, com um dossiê horrendo, mas ao mesmo tempo fascinante, até chegar a uma crise iminente. Muito bem, o senhor programou tudo direitinho.
- E existe outra maneira de fazer as coisas?
- Para um profissional, não, e se o senhor não fosse um, não estaria neste lugar. - Cooke levantou-se, os olhos fixos nos do seu superior. - E já que estou assumindo esse compromisso, gostaria de fazer uma sugestão.
- Fique à vontade, meu chapa.
- Não fui inteiramente honesto com o senhor agora há pouco. Eu disse que ainda tinha contato com alguns amigos, como se eu me correspondesse com eles socialmente. A verdade não é bem essa. Na realidade, tenho passado quase todas as minhas férias lá nas ilhas. E, quando a gente encontra colegas antigos ou novos conhecidos com uma história semelhante, é natural a gente se reunir e relembrar o passado.
- É, é natural.
- Pois bem, há dois anos atrás conheci um americano que conhece aquelas ilhas melhor do que eu conheço ou posso vir a conhecer. Ele tem dois barcos que aluga em várias marinas, de Charlotte Amalie até Antigua. Conhece todo o arquipélago, tudo que é ancoradouro, enseada, passagem; é o trabalho dele.
- Estas credenciais são ótimas, Geoffrey, mas dificilmente são o tipo...
- Por favor - interrompeu Cooke -, deixe eu terminar. Para antecipar a sua objeção, ele é um oficial aposentado do serviço de inteligência da Marinha americana. É relativamente moço, deve ter uns quarenta e poucos anos, e eu realmente não sei por que foi que ele deixou o serviço, mas imagino que as circunstâncias não tenham sido muito agradáveis. De qualquer modo, ele poderia ser um trunfo nesta missão.
O diretor do MI-6 inclinou-se para a frente, sobre a mesa, a mão direita, rígida, atrás da esquerda.
- Ele se chama Tyrell Nathaniel Hawthorne. É filho de um professor de literatura americana da universidade de Oregon, e as circunstâncias em que ele saiu do serviço de inteligência da Marinha foram realmente bastante desagradáveis. E, bem, ele seria, sim, um grande trunfo, mas ninguém em Washington conseguiu recrutar o sujeito. Já tentaram exaustivamente, já explicaram exaustivamente do que se trata, esperando que ele mudasse de ideia; ele foi irredutível. Ele tem muito pouca consideração por aquelas pessoas e acha que eles não sabem diferenciar a verdade da mentira. Mandou todos para o inferno.
- Meu Deus! - exclamou Geoffrey Cooke. - O senhor sabia das minhas férias, sabia de tudo. Até que eu conhecia ele.
- Um cruzeiro delicioso, de três dias, pelas ilhas de Sotavento com o seu amigo Ardisonne, codinome Richelieu.
- Seu calhorda.
- O que é isso, agente Cooke? Escute. O ex-comandante Hawthorne está a caminho da marina de British Gorda, onde eu desconfio que ele vai ter algum problema com o motor auxiliar. O seu avião para Anguilla sai às cinco, você tem tempo de sobra para fazer as malas. De lá, você e o seu amigo Ardisonne vão pegar um aviãozinho particular para Virgin Gorda. - O diretor do MI-6, Serviços Especiais, abriu um sorriso radiante. - Vai ser uma reunião e tanto.
DEPARTAMENTO DE ESTADO, WASHINGTON, D.C.
À volta da mesa do agitado salão de reunião estavam sentados os secretários de Estado e Defesa, os diretores da CIA e do FBI, os chefes dos serviços de inteligência do Exército e da Marinha e o chefe do Gabinete Militar. À esquerda de cada um, estavam os respectivos assistentes, profissionais de alto nível e da mais alta confiança. A reunião era presidida pelo secretário de Estado, que foi o primeiro a falar.
- Bem, todos vocês têm as mesmas informações que eu, de modo que podemos dispensar maiores apresentações. Provavelmente alguns de vocês estão achando isto tudo um exagero e, até hoje de manhã, devo admitir, eu também achava o mesmo. Uma terrorista sozinha, com a obsessão de assassinar o nosso Presidente, e com isso deslanchar o assassinato dos líderes políticos da Grã-Bretanha, da França e de Israel, me parecia uma certa apelação. Mas hoje às seis da manhã recebi um telefonema do nosso diretor da CIA, e depois às onze ele me ligou novamente, e eu comecei a mudar de ideia. Por favor, o senhor poderia esclarecer, sr. Gillette?
- Pois não, sr. Secretário - respondeu o imponente diretor da CIA. - Ontem nosso informante em Bahrain que monitora as transações financeiras do vale do Baaka foi morto uma hora depois de ter alertado o nosso contato secreto de que tinha sido feita uma transferência de meio milhão de dólares para o Crédit Suisse de Zurique. A quantia não é assustadora, mas quando o nosso homem em Zurique procurou seu próprio informante no banco, um sujeito pago por fora, e muito bem pago, ele não conseguiu encontrá-lo. Mais tarde ele tentou novamente, sem dizer quem era, evidentemente, fingindo que era um amigo, e disseram a ele que o tal sujeito tinha viajado para Londres a trabalho. Mas quando o nosso homem chegou em casa, encontrou um recado na secretária eletrônica. O recado era do informante, que certamente não estava em Londres coisa nenhuma, porque ele pedia, em tom de desespero, que o nosso homem fosse se encontrar com ele num café em Dudendorf, uma cidade que fica uns quarenta quilômetros ao norte de Zurique. Ele foi até lá, mas o informante não apareceu.
- E que conclusão você tirou disso? - perguntou o representante do Exército.
- Que ele foi eliminado para que o percurso do dinheiro não fosse descoberto - respondeu um homem corpulento, ruivo, de cabelos ralos e rosto redondo, sentado à esquerda do diretor da CIA. - É uma hipótese, nós não temos nenhuma confirmação.
- E em que se baseia esta hipótese? - questionou o secretário de Defesa.
- Na lógica - respondeu o assistente da CIA, lacônico. - Primeiro, o homem de Bahrain é morto por ter passado a informação inicial. Depois, o informante em Zurique inventa essa viagem a Londres para poder ir até Dudendorf conversar com o nosso homem num lugar seguro. O Baaka descobriu esse sujeito e sumiu com ele, para que a informação parasse de vazar.
- Tudo isso por causa de uma quantia de seis dígitos? - perguntou o chefe do serviço de inteligência da Marinha. - Não seria trabalhoso demais para um valor tão modesto?
- É porque o que importa não é a quantia - continuou o assistente de rosto rechonchudo. - O que importa é quem está recebendo o dinheiro na outra ponta, e o paradeiro dessa pessoa, seja ela quem for; é isso que eles estão querendo encobrir. Além disso, se a rota do dinheiro continuar limpa, eles vão poder remeter quantias centenas de vezes maiores.
- Bajaratt - disse o secretário do Estado. - Quer dizer que ela começou a viagem... Muito bem, nós vamos operar da seguinte maneira, e é fundamental o máximo sigilo. Com exceção do pessoal de telecomunicações da CIA, nós aqui nesta mesa, e somente nós, vamos trocar as informações que os nossos departamentos receberem. Todos aqui devem pôr seus respectivos aparelhos de fax na modalidade confidencial, todas as chamadas telefônicas entre nós devem ser feitas nas linhas seguras. Nada deve sair deste círculo sem a minha aprovação ou do diretor da CIA. Até mesmo eventuais boatos sobre esta operação poderiam ser prejudiciais e causar confusões desnecessárias. - Ouviu-se uma campainha; era o telefone vermelho, em frente ao secretário de Estado. Ele atendeu: - Alô?... É para você - disse, olhando para o diretor da Agência.
Gillette levantou-se e foi até a cabeceira da mesa; pegou o telefone e identificou-se.
- Certo, estou entendendo - disse ele, depois de quase um minuto. Pôs o telefone no gancho e voltou a olhar para o seu assistente atarracado. - Sua suposição está confirmada, O’Ryan. Nosso homem em Zurique foi encontrado na Spitzplatz, com dois tiros na cabeça.
- Eles querem ter certeza que aquela vaca está bem protegida - disse O’Ryan, o analista da CIA.
2
Um homem alto, de barba por fazer, short branco e camiseta preta, a pele bronzeada pelo sol tropical, atravessou correndo o passadiço e subiu no píer onde atracavam os barcos motorizados. Parou na extremidade da prancha de madeira e gritou para os dois homens que chegavam a bordo de um esquife.
- Que história é essa, você disse que o motor auxiliar está com um vazamento? Eu usei ele quando parou de ventar e ele estava funcionando perfeitamente!
- Escute aqui, amigo - replicou o mecânico inglês, com a voz cansada, atirando a corda para Tyrell Hawthorne. - Se esse motor estava bom ou não eu não sei. Mas não tem um pingo de óleo no cárter; está poluindo toda essa enseada tão linda. Agora, se você quer levar esse pessoal para passear e pegar outra calmaria, vá em frente e ligue o motor. Mas eu tenho certeza que não vai dar certo e não quero que ninguém venha reclamar comigo depois.
- Está bem, está bem - conformou-se Hawthorne, ajudando o mecânico a subir a escada para o cais. - O que você acha que pode ser isso?
- As gaxetas estão gastas e tem dois cilindros quebrados, Tye. - O mecânico enrolou e prendeu a segunda corda em torno de um poste para que seu companheiro pudesse subir para o píer. - Quantas vezes vou ter que dizer, rapaz, você é bom demais no vento, mas tem que usar mais o motor; ele fica completamente seco com esse sol! Agora me diga, eu já não disse isso um monte de vezes?
- Já, Marty, você já me disse isso. Eu não posso negar.
- Não pode mesmo! E pelo que você cobra, com certeza não está preocupado com preço de combustível.
- Não, não é pelo dinheiro - protestou o patrão. - O pessoal que aluga o barco gosta é de velejar, eles só deixam ligar o motor quando o vento para de vez, você sabe disso. Quanto tempo vai levar para consertar? Umas duas horas?
- Nem morto, Tye-Boy. Talvez amanhã na hora do almoço... se as peças que eu preciso chegarem cedo de St. Thomas.
- Merda! Eu estou com um pessoal que queria chegar em Tortola ainda hoje à noite.
- Você pode oferecer umas doses de rum e arrumar um quarto para eles no clube. Eles não vão nem notar a diferença.
- É, acho que é o jeito - respondeu Hawthorne voltando-se para descer o píer. - Vou ter que dar um porre neles. - O capitão apressou o passo ao longo do ancoradouro.
- Cara, sinto muito - disse Marty para si mesmo, observando o amigo que dobrava à esquerda sobre o passadiço. - Detesto fazer isso, mas ordens são ordens.
A escuridão envolvia o Caribe. Já era tarde quando o capitão Tyrell Hawthorne, proprietário da Olympic Charters, Ltd., nas ilhas Virgens americanas, conduziu seus clientes, primeiro um casal, depois o outro, até as acomodações do hotel do Iate Clube, na praia. Aqueles quartos não eram o lugar onde eles gostariam de acordar, mas pegar no sono não seria um problema; o barman garantia. Tye Hawthorne, então, voltou para o bar ao ar livre, deserto àquela hora, e manifestou seu agradecimento em termos mais concretos. Deu ao negro que preparava as bebidas uma nota de cinquenta dólares.
- Ei, Tye, não precisa.
- Então por que é que você está apertando a nota desse jeito?
- Instinto, cara. Pode pegar de volta.
Os dois riram-se; era um ritual entre eles.
- Como é que vão os negócios, Capitão? - perguntou o barman, enchendo um copo com o vinho branco que Hawthorne costumava beber.
- Nada mal, Roger. Nossos dois barcos estão alugados, e se o idiota do meu irmão conseguir achar o caminho de volta para Red Hook, em St. Thomas, pode ser até que a gente tenha lucro este ano.
- Ei, Tye. Eu gosto do seu irmão. Ele é um cara engraçado.
- Ah, ele realmente é uma piada, Roger. Você sabia que aquele garoto é doutor?
- O quê? Quer dizer que todas as vezes que ele veio aqui e eu tive problema de saúde eu podia ter falado com ele?
- Não, ele não é esse tipo de doutor - respondeu Tyrell. - Ele tem doutorado em literatura, igual ao meu pai.
- Ele não cura dor nem osso quebrado? Para que é que isso serve, então?
- Foi isso que ele disse, que ele ralou durante oito anos para conseguir essa porcaria de diploma e acabou ganhando menos que um lixeiro em San Francisco. Foi por isso que ele resolveu trabalhar comigo, entende?
- Claro - respondeu o barman. - Há cinco anos atrás eu saía de barco para pescar e limpava o vômito dos turistas e botava eles na cama quando eles enchiam a cara. Isso não é vida, Tye! Aí eu resolvi melhorar a minha situação e aprendi a fazer eles encherem a cara.
- Ótima ideia.
- Ei, Tye - disse Roger, baixando subitamente a voz e esticando o braço por baixo do balcão. - Estão chegando dois homens. Eles estão procurando alguém, só pode ser você. E estou com um pressentimento, eu não estou gostando deles; eles não param de apalpar o casaco, as mangas do casaco, e estão andando devagar demais. Mas não precisa se preocupar, o meu revólver está aqui.
- Ei, pare com isso, Roge, que história é essa? - Hawthorne virou-se no banco do bar. - Geoff! - exclamou. - É você, Cooke?... E você também, Jacques? Como é que vocês vieram parar aqui?... Pode largar essa arma, Roge, eles são meus amigos, velhos amigos.
- Só vou largar quando eles mostrarem que também não estão armados.
- Companheiros, este aqui é um outro amigo meu... e ultimamente a situação tem andado meio esquisita aqui nessas ilhas. Será que vocês podiam levantar as mãos e mostrar que não estão armados, por favor?
- Como é que a gente poderia estar armado? - perguntou Geoffrey Cooke, em tom de superioridade. - A gente acabou de chegar num voo internacional, e vocês sabem que os detectores de metais voltaram à moda.
- Mais oui! - disse Ardisonne, codinome Richelieu.
- Tudo bem - disse Hawthorne, pulando do banco do bar e apertando as mãos dos dois homens. - Vocês se lembram do nosso passeio de barco pelo... ei, ei, o que é que vocês estão fazendo aqui? Eu achava que vocês dois tinham-se aposentado.
- Tyrell, nós precisamos conversar - disse Cooke.
- Imediatamente - acrescentou Ardisonne. - Não podemos perder tempo.
- Ei, esperem um minuto. De repente o meu motor que estava ótimo quebra; de repente, no meio de uma noite sossegada na praia o Cookie chega com o Richelieu, nosso velho companheiro da Martinica. O que está acontecendo, cavalheiros?
- Eu já disse, nós temos que conversar, Tyrell - insistiu Geoffrey Cooke, do MI-6.
- Pois eu já não tenho tanta certeza disso - replicou o ex-comandante Hawthorne, do serviço de inteligência da Marinha americana. - Porque se o assunto tiver alguma coisa a ver com essa história que o pessoal de Washington está querendo empurrar para cima de mim, podem esquecer.
- Você tem todo o direito de odiar Washington - disse Ardisonne, com seu sotaque carregado de francês - mas não tem nenhuma razão para não querer nos escutar. Você pode me dar alguma razão para isso? Você está certo de achar que a gente já devia estar aposentado, mas "de repente", para usar suas próprias palavras, nós não estamos. E por quê? Isso não é uma razão suficiente para você querer nos escutar?
- Meus amigos, me escutem, por favor, me escutem bem... O que vocês representam me custou a mulher com quem eu queria passar o resto da minha vida. Ela foi morta em Amsterdã, e eu sei que vocês são capazes de entender quando eu digo que não estou interessado em conversar com vocês... Roge, dê alguma coisa para esses "agentes secretos" beberem, e pode botar na minha conta. Eu estou indo para o barco.
- Tyrell, você sabe muito bem que a gente não teve nada a ver com o que aconteceu em Amsterdã, nem eu nem o Ardisonne - argumentou Cooke.
- Mas eles tiveram e vocês sabem muito bem disso.
- Mas a culpa não foi nossa, mon ami - disse Richelieu. - E se não fosse assim, a gente poderia ter ido passear de barco juntos?
- Escute aqui, Tye. - Geoffrey Cooke bateu a mão com toda a força no ombro de Hawthorne. - Nós já fomos muito amigos e realmente temos que conversar.
- Puta que o pariu! - Tyrell segurou o braço. - Ele espetou uma agulha em mim. Uma agulha! Furou a minha camisa! Roge, pegue o seu revólver...!
Antes que o barman conseguisse reaver a arma, Richelieu levantou o braço até a altura do seu alvo. Esticou o dedo indicador; um dardo narcotizante voou de dentro da sua manga e espetou no pescoço do negro.
Amanhecia. As imagens começaram a entrar em foco, mas não eram aquelas que os flashes das recordações de Hawthorne esperavam. Nenhum dos rostos que pairavam acima dele pertencia a Geoffrey Cooke ou Jacques Ardisonne. Eram, sim, os traços familiares de Marty e seu companheiro inseparável, Mickey, o mecânico dos barcos de Virgin Gorda.
- E aí, como é que você está, cara? - perguntou Marty.
- Quer um gole de gim? - perguntou Mickey. - Às vezes é bom para clarear as ideias.
- O que foi que aconteceu? - Tyrell piscava os olhos, tentando se adaptar à luz ofuscante que entrava pelas janelas. - Cadê o Roge?
- Na cama ao lado - respondeu Marty. - Nós requisitamos este quarto. A gente disse na recepção que tinha descoberto um ninho de cobras aqui na ilha.
- Aqui em Gorda não tem cobra.
- Mas eles não sabem - disse Mickey. - Aqueles londrinos bobalhões.
- E onde é que estão o Cooke e o Ardisonne, os caras que nos derrubaram?
- Logo ali na frente, Tye. - Marty apontou para duas cadeiras de espaldar reto, do outro lado do quarto. Nelas estavam Geoffrey Cooke e Jacques Ardisonne, amarrados e amordaçados com toalhas. - Eu disse para o Mick aqui que tinha que fazer o que eu fiz porque eles disseram que era ordem da Coroa, mas ninguém me disse nada sobre o que eu tinha que fazer depois. A gente ficou de olho em você o tempo todo. E se esses filhos da puta fizessem algum mal de verdade para vocês, a esta hora eles já teriam virado isca lá na ilha dos Tubarões.
- Quer dizer que não tinha nada de errado com o motor?
- Nadinha, cara. Foi o representante do governo que me chamou lá no gabinete dele e me disse que isso era para o nosso próprio bem. Que bem, hem?
- É, que bem! - concordou Hawthorne, apoiando os cotovelos no travesseiro e olhando para os seus ex-amigos.
- Ei, gente! - soou a voz do fundo da garganta de Roger que, deitado na cama vizinha, sacudia a cabeça de um lado para o outro.
- Dê uma olhada nele, Marty - ordenou Tyrell, sentando-se na cama.
- Ele está bem, Tye - disse Mickey, ajoelhando-se ao lado do negro. - Eu fiz aquele francesinho dizer o que foi que eles fizeram com vocês dois: era isso ou um tiro no saco. E ele disse que o efeito do não-sei-o-quê acabava em cinco ou seis horas.
- As seis horas já passaram, Mick. Vamos ver agora quanto tempo vai levar para resolver isso tudo.
A mulher ajudou o jovem a prender o pequeno veleiro na areia, amarrando o cabo da proa em torno de uma ponta de pedra que se projetava do paredão ao fundo da praia, um muro escondido atrás de um emaranhado de trepadeiras e plantas rasteiras.
- Agora ele está bem preso, Nicolo - disse ela, examinando o que restara do barco. - Não que isso tenha muita importância. Na verdade, a gente também pode usar essa porcaria para fazer uma fogueira.
- Você está louca! - O adolescente musculoso começou a retirar do convés alguns objetos, entre eles o rifle. - Se não fosse a ajuda de Deus, a esta hora a gente ia estar morto no fundo do mar.
- Pegue o rifle, mas pode deixar o resto aí - ordenou Bajaratt. - A gente não vai precisar de nada disso.
- Como você sabe? Onde é que nós estamos?... Porque você fez isto?
- Porque eu tinha que fazer.
- Você não me responde nada!
- Muito bem, meu garotinho querido, eu acho que você merece uma resposta.
- Mereço? Três dias morrendo de medo, sem saber se ia continuar vivo ou não? Realmente, acho que mereço.
- Ah, o que é isto, não foi tão ruim assim. O que você não percebeu foi que a gente ficou o tempo todo a duzentos, trezentos metros da praia, no máximo, e sempre a sotavento das ilhas; foi por isso que a gente mudou de rumo tantas vezes. Bem, é claro que eu não podia controlar os raios.
- Você é completamente louca!
- Não sou, não. Não faz muito tempo, eu passei quase dois anos velejando por estas ilhas. Eu conheço elas muito bem.
- Por que você fez isto? - repetiu ele. - A gente podia ter morrido! E por que você matou esta mulher?
Bajaratt fez um gesto em direção ao cadáver.
- Pegue a arma dela; a maré sobe até a metade do muro. O corpo dela vai ser levado durante a noite.
- Você não me conta nada!
- Nicolo, vamos deixar uma coisa bem clara. Você só tem o direito de saber o que eu quiser contar para você. Eu salvei a sua vida, menino, e a muito custo durante dias consegui esconder você daquela gente para impedir que eles matassem você. Além disso, eu depositei milhões de liras na sua conta no Banco de Nápoles, e por causa disso tudo eu tenho o privilégio de não dizer nada sobre qualquer assunto que eu não quiser discutir... Pegue a arma.
- Ai, meu Deus - sussurrou o jovem, inclinando-se sobre o cadáver uniformizado, trêmulo ao tirar a arma da sua mão; a marola lambia o rosto da mulher morta. - Tem mais alguém aqui?
- Não, ninguém que interesse. - Seu olhar se perdeu na direção da fortaleza, enquanto as lembranças lhe passavam pela memória. - Só um jardineiro retardado que toma conta de um monte de cães de guarda, mas ele é fácil de controlar. O dono desta ilha é um grande amigo meu, um velho que precisa de cuidados médicos. Ele está em Miami, na Flórida, fazendo radioterapia. Ele passa os cinco primeiros dias de cada mês lá. Basta você saber isso. Vamos lá, vamos subir a escada.
- Quem é ele? - perguntou o rapazinho, olhando fixamente para Bajaratt.
- Meu único pai verdadeiro - respondeu Amaya Aquirre-Bajaratt com uma voz branda, sonhadora, enquanto eles atravessavam a praia, e calou-se abruptamente, para mostrar a Nicolo que não queria que suas recordações fossem interrompidas. E que recordações! Os dois anos mais felizes de uma vida consignada ao inferno. O padrone, o vizioso elegante, era o homem que ela mais admirava no mundo. Aos vinte e quatro anos de idade ele já controlava os cassinos de Havana, aquele jovem cubano alto e louro, de olhos azuis, escolhido pelos chefões de Palermo, Nova York e Miami. Não temia ninguém, e aterrorizava aqueles que se opusessem às suas decisões. Poucos tiveram tal ousadia, e aqueles poucos desapareceram. Baj tinha ouvido as histórias; no Baaka, em Bahrain e no Cairo.
O capo dei capi da Máfia o havia escolhido, acreditando ser ele o colaborador mais talentoso desde Capone, que aos vinte e sete anos já comandava a cidade americana de Chicago. Mas tudo desmoronou para o jovem padrone quando o louco Fidel desceu a serra e destruiu tudo, inclusive Cuba, o país que havia jurado salvar.
Nada disso, porém, intimidou o vizioso elegante, o homem conhecido por alguns como o "Marte do Caribe". Ele foi para Buenos Aires, onde montou uma organização como nenhuma outra no mundo, trabalhando com os generais, é claro. Em seguida, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde expandiu a organização, superando os sonhos mais ambiciosos de seus superiores. A fim de consolidar sua obra, de uma propriedade clandestina de mais de dez mil acres, passou a agenciar a morte em todas as partes do mundo, recrutando um exército de ex-militares - especialistas na arte de matar, banidos das forças armadas de vários países - e a vender esse serviço por quantias astronômicas. Seu produto era o assassinato e, num mundo de turbulência política, não faltariam compradores. Essa organização era chamada la nostra Legione Straniera pelos chefões, que riam às gargalhadas, bebendo seu vino em Palermo, Nova York, Miami e Dallas, enquanto recebiam gordas comissões a cada morte. O exército silencioso e invisível do padrone era de fato sua Legião Estrangeira.
Até que a idade e a doença obrigaram o padrone a se retirar para sua ilha impenetrável. E então, subitamente, uma mulher apareceu na sua vida. Do outro lado do globo, Bajaratt havia sido gravemente ferida no porto cipriota de Vasilikos, ao perseguir um grupo enviado pelo Mossad para matar um herói palestino que fora visto ali, o incendiário que viria a se tornar seu marido. Liderando o contragolpe, Baj fora durante a noite ao encontro dos executores na costa e, como uma rainha pirata, investindo contra eles por ambos os lados num barco veloz, forçou-os a se aproximar da beira da praia iluminada por holofotes, enquanto disparava rajadas de tiros contra os israelenses encurralados. Recebeu quatro balas no abdome, que estraçalharam seus intestinos, mas recusou-se a entregar sua vida.
Em Chipre, um médico que a atendeu clandestinamente deixou claro que só poderia prestar um socorro provisório, estancando parcialmente a hemorragia interna. Com bastante gelo, ela poderia sobreviver por mais um ou dois dias, mas não passaria disso, caso não se submetesse a uma cirurgia sofisticada. E havia ainda um detalhe: nenhum hospital ou equipe de cirurgiões que tivessem a tecnologia necessária - no Mediterrâneo ou na própria Europa - aceitaria uma mulher ferida, obviamente uma terrorista, sem alertar as autoridades... e a União Soviética já não era um refúgio.
No entanto, as chamadas urgentes e repetidas para o vale do Baaka revelaram uma solução possível, nenhuma garantia de que ela sobreviveria, sem dúvida, mas pelo menos uma tentativa - se ela conseguisse suportar mais dois dias, ou melhor, três. Havia um homem no Caribe, um poderoso intermediário de todo tipo de negócio, fosse espionagem industrial, narcóticos, segredos militares ou tráfico de armas. Ele havia trabalhado muitas vezes com o Baaka, e recebido bem mais de dois bilhões de dólares nas suas diligências pelo Oriente Médio. Ele não poderia recusar um pedido dos Conselhos Superiores; ou melhor, não ousaria.
O homem relutou por algumas horas, mas o notório guerreiro da liberdade, que fora salvo por aquela mulher, não aceitaria uma recusa. Caso o Marte do Caribe se negasse a ajudá-la, ele jurava que todas as facas do vale do Baaka, a começar pela sua própria, passariam pelo pescoço daquele negociante ingrato e pelo de todos os seus aliados.
Entre a vida e a morte, Baj foi transportada até Ancara e, de lá, foi levada num avião de carga militar até Martinica, onde foi transferida para um bimotor. Onze horas após deixar o Chipre, ela chegou à ilha do padrone.
Quando Bajaratt e Nicolo se aproximaram da escada de pedra que levava à fortaleza, Baj não conseguiu se controlar e, repentinamente, soltou uma risada sonora.
- O que foi? - perguntou Nicolo, ríspido. - Não estou vendo razão nenhuma para essa alegria toda.
- Não é nada não, meu Adônis maravilhoso. Eu só estava lembrando os primeiros dias que eu passei aqui. Você não ia achar graça... Vamos subir, esta escada é um sofrimento, mas ela é ótima para a gente ficar subindo e descendo para recuperar a forma.
- Eu não preciso desse tipo de exercício.
- Pois eu já precisei.
Enquanto subiam, aquelas primeiras semanas com o padrone voltavam à sua mente e, ao recordá-las, ela percebia que havia muito do que rir. No início, logo que ela pôde se levantar, eles pareciam dois gatos desconfiados um do outro, temerosos, ela escandalizada com a opulência que ele se permitia, ele aborrecido com aquela intromissão no seu estilo de vida luxuoso. Até que um dia ela entrou na cozinha e o encontrou decepcionado com o cannelloni Sambuca Florentine preparado pela cozinheira - a mesma que agora estava morta na beira do mar, a dez metros deles. Bajaratt pediu licença à empregada para preparar o seu próprio cannelloni e conseguiu agradar o desagradável proprietário da ilha. Em seguida foi o xadrez. O padrone se dizia um mestre; a jovem o derrotou duas vezes e na terceira o deixou ganhar. Ele caiu na gargalhada, percebendo o que ela tinha feito e apreciando seu ato de caridade.
- Você é uma mulher encantadora - disse ele - mas nunca mais faça isso.
- Então eu vou ganhar todas, e o senhor vai ficar zangado.
- Não, menina, eu vou é aprender com você. Essa é a história da minha vida. Eu aprendo com todo mundo... Eu já quis ser um astro do cinema, achando que as câmeras iam adorar a minha altura, o meu corpo, o meu cabelo louro. Sabe o que foi que aconteceu? Vou lhe contar. O Rossellini assistiu a um teste que eu fiz para o Cinecittà, em Roma; sabe o que ele disse? Vou lhe contar. Disse que os meus olhos azuis tinham alguma coisa feia, uma maldade que ele não sabia explicar. Ele tinha razão, e então eu fui cuidar da minha vida.
Daquela noite em diante eles começaram a passar horas na companhia um do outro, os dois em pé de igualdade, um reconhecendo as obsessões do outro, um aceitando o temperamento do outro. Até que, num fim de tarde, sentado na varanda a olhar para o sol vermelho-escuro, o padrone disse:
- Você é a filha que eu nunca tive.
- E o senhor é o meu único pai verdadeiro - respondeu Bajaratt.
Nicolo, um degrau à frente de Baj, levantou a arma quando eles alcançaram o topo da escada. Uma passagem revestida de pedra conduzia a uma porta entalhada, gigantesca, de quase dez centímetros de espessura.
- Acho que está aberta, Cabi.
- Está, sim - concordou Bajaratt. - A Hectra devia estar com pressa e esqueceu de fechar a porta.
- Quem?
- Não vem ao caso. Me dê esse rifle, de repente tem algum cachorro solto. - Os dois se aproximaram da porta entreaberta. - Dê um chute para ela abrir, Nicolo.
Subitamente, no que eles entraram, o barulho de explosões vindas de todos os lados encheu o saguão, um recinto espaçoso, de pé-direito alto. As rajadas de possantes espingardas de cano curto ecoavam pelas paredes de pedra; Bajaratt e seu companheiro jogaram-se no chão de mármore, enquanto ela disparava um tiro atrás do outro - também para todos os lados - até esgotar sua munição. Em seguida, enquanto as ondas de fumaça subiam em direção ao teto, fez-se silêncio, uma quietude súbita que encontrou os dois invasores sem qualquer ferimento. Os dois ergueram a cabeça e viram a fumaça desaparecer entre os últimos raios de sol que escoavam através das janelas estreitas; estavam vivos, e nenhum dos dois entendia como. Nesse momento, através da fumaça que se esvaía, revelou-se a figura de um homem idoso que se aproximava, numa cadeira de rodas, vindo do outro lado do saguão. Junto ao balcão semicircular, no alto da escada curva, dois homens empunhavam a arma predileta dos sicilianos - a espingarda lupo de cano curto. Eles estavam sorrindo; sua munição era falsa, cartuchos sem conteúdo letal - sem nenhuma bala.
- Mas, meu Deus, Annie! - exclamou uma voz débil, vinda da cadeira de rodas, em inglês, mas com um leve sotaque. - Eu nunca pensei que fosse você.
- Mas o senhor não está em Miami... o senhor está sempre em Miami! Fazendo os seus tratamentos!
- Ora, Baj, o que mais que eles podem fazer por mim?... Mas matar a nossa velha Hectra, que cuidou de você até você ficar boa, há cinco anos, foi um ato de loucura... Aliás, você está me devendo uma mulher tão leal quanto ela. Será que vai ser você mesma?
Bajaratt levantou-se lentamente.
- Eu precisava desta casa por alguns dias e ninguém, ninguém podia saber onde eu estava nem o que eu estava fazendo, e nem com quem eu ia me encontrar, nem mesmo a Hectra. O senhor tem os rádios, os satélites... o senhor mesmo me mostrou!
- Você está dizendo que ninguém sabe o que você está fazendo, ou melhor, o que você pretende fazer? Você acha que esta figura decrépita que está na sua frente perdeu a cabeça antes de perder o corpo?... Não, eu garanto que não. Nem que eu tivesse perdido meus familiares do Baaka para os franceses do Deuxième, para o brilhante MI-6 e os colegas americanos, não tão admiráveis. Eu sei exatamente quais são as suas intenções... "Muerte a toda autoridad", não é isso?
- É a minha vida... o fim da minha vida, eu sei, mas eu vou fazer isso, padrone.
- Eu sei, eu entendo. Não importa o que a gente faça, cada um só é capaz de aguentar uma certa dose de dor. Lamento muito a sua perda, Annie, a última, a morte em Ashkelon. Me disseram que ele era um grande homem, um líder de verdade, decidido e corajoso.
- Eu via nele muito do que vejo no senhor, padrone, do que o senhor era na idade dele.
- Ele devia ser um pouco mais idealista, eu imagino.
- Ele podia ter sido tanta coisa, o que ele quisesse ser, mas o mundo não quis deixar. Quando a gente não consegue controlar alguma coisa, essa coisa acaba controlando a gente.
- Isto é bem verdade, minha filha. Eu queria ser um astro do cinema, já lhe contei isso?
- E poderia ter sido um grande astro, meu único pai - respondeu Bajaratt. - Mas o senhor vai deixar eu cumprir a missão final da minha vida?
- Só se for com a minha ajuda, minha única filha. Eu também quero ver todos eles mortos, porque foram eles que fizeram de nós dois o que nós somos... Venha me dar um abraço, como você fazia antigamente. Você está na sua casa.
Quando Bajaratt se ajoelhou e estendeu os braços para o velho inválido, ele apontou para o rapaz, que ainda estava de cócoras no chão de mármore, acompanhando a cena com um olhar ao mesmo tempo de fascinação e pavor.
- Quem é ele? - perguntou o velho.
- Ele se chama Nicolo Montavi, e é a peça principal do meu plano - cochichou Baj. - Ele me conhece como signora Cabrini e me chama de Cabi.
- Cabrini? Como a santa que os americanos veneram tanto?
- Exatamente. Porque com os meus atos eu vou me tornar a segunda santa americana, não vou?
- Um desvario destes merece uma boa dose de rum e um jantar caprichado. Vou providenciar.
- Mas o senhor vai me deixar irem frente, não vai, padrone?
- Claro que vou, minha filha, mas só com a minha ajuda. O assassinato desses homens... o mundo vai ficar tomado pelo pavor. Vai ser a glória suprema, antes da nossa morte!
3
O sol do Caribe queimava a terra, as rochas e a areia da ilha de Virgin Gorda. Eram onze horas da manhã, prelúdio de um meio-dia causticante, e os clientes de Tyrell Hawthorne se protegiam sob o teto de sapê do bar à beira da praia, fazendo todo o possível para aliviar o enjoo. Quando o capitão lhes comunicou que, devido a uma pane mecânica, eles só poderiam sair ao mar no meio da tarde, na melhor das hipóteses, quatro suspiros de alívio acompanharam as três notas de cem dólares colocadas na sua mão por um banqueiro de Greenwich, Connecticut, que suplicou:
- Pelo amor de Deus, vamos deixar para amanhã.
Tyrell retornou ao clube, onde Mickey vigiava Cooke e Ardisonne, enquanto seu companheiro Marty trabalhava na marina. A essa hora, os trajes dos dois invasores estavam reduzidos às cuecas; as demais roupas estavam depositadas na lavanderia. Hawthorne bateu a porta e dirigiu-se ao mecânico.
- Mick, me faça um favor. Vá até o bar e me traga duas garrafas de Montrachet Grand Cru... não, nada disso, me traga duas garrafas de um vinho branco qualquer, pode ser até Thunderbird.
- De que ano? - perguntou Ardisonne.
- Da semana passada - respondeu Tyrell. Mickey retirou-se rapidamente e Hawthorne continuou: - Muito bem, seus agentes secretos, vamos dar continuidade à nossa conversa tão agradável.
- Não estou achando graça nenhuma - disse Cooke.
- Ah, eu adoro quando vocês, europeus, saem das suas ruazinhas cheias de névoa e das suas capas de chuva para rondar os nossos mares, mas por que vocês não encaram a realidade? A alta tecnologia tomou o lugar de vocês, assim como tomou o meu. Foi Amsterdã que me ensinou isso, a menos que todo mundo estivesse mentindo, o que é impossível. Eles eram programados, seguiam instruções das máquinas. As pessoas fazem e dizem o que as máquinas mandam, é a única coisa que elas sabem fazer.
- Isto não é verdade, mon ami. Eu acho o seguinte: nós não estamos preparados para lidar com essa tecnologia. Somos da escola antiga, mas, acredite no que eu digo, ela está voltando e você nem imagina como. Os computadores com os modems, os satélites com as fotografias espaciais, os sinais de rádio e televisão cruzando fronteiras... tudo isso é magnífico, mas essas máquinas não são capazes de lidar com a condição humana. Quem faz isto somos nós... você. Se a gente encontra um homem ou uma mulher frente a frente, nossos olhos e nossos instintos nos dizem se aquela pessoa é ou não é um inimigo. As máquinas não são capazes de fazer isso.
- Você está querendo me dizer, com essa sua lição, que com nossas práticas medievais nós vamos conseguir encontrar essa megera, Bajaratt, mais rápido do que usando o fax para divulgar a foto dela, a descrição e mais todas as informações a que você possa ter acesso, neste arquipélago, que tem mais ou menos cinquenta ilhas habitáveis? Se for isto, eu só posso concluir que você devia ser obrigado a se aposentar imediatamente.
- Eu acho que o que o Jacques está sugerindo - interveio Cooke - é que nossa experiência aliada à tecnologia disponível pode ser mais eficaz do que uma sem a outra.
- Isso mesmo, mon ami. Essa psicopata, essa assassina, ela tem recursos, mas também tem cérebro.
- E, pelo que se diz em Washington, ela também tem um bocado de ódio atiçando aquele cérebro.
- O que sem dúvida não justifica o que ela já fez ou, Deus me livre, o que ela pretende fazer - disse o homem do MI-6, enfático.
- Não, não justifica - concordou Hawthorne. - Mas eu me pergunto quem ela poderia ser hoje se tivesse tido alguma ajuda quando era criança... meu Deus do céu, cortarem a cabeça da mãe e do pai na cara dela! Acho que se isso tivesse acontecido comigo e com o meu irmão, nós dois íamos nos tornar assassinos que nem ela.
- Você perdeu a sua mulher que você amava tanto, Tyrell - disse Cooke -, e não virou assassino.
- É, não virei, não - replicou Hawthorne. - Mas eu estaria mentindo se não dissesse a vocês que eu pensei em matar um monte de gente. E não só pensei, como cheguei a fazer planos.
- Mas você não pôs em prática esses planos.
- Só porque alguém me ajudou... podem acreditar, só porque eu tive alguém para me impedir. - Tyrell olhou para o mar através da janela e sentiu-se momentaneamente hipnotizado por aquele movimento constante. Houvera alguém, e como ele sentia a falta dela! Quando ficava bêbado, ele lhe contava seus planos de eliminar este e aquele, chegando mesmo a abrir gavetas trancadas no seu barco, e mostrar a ela planos, diagramas de ruas e edifícios, estratégias para acabar com a vida dos causadores da morte de sua mulher. Dominique o abraçava quando ele começava a cambalear na sua embriaguez etílica e sussurrava no seu ouvido, dizendo que provocar mortes não traria de volta os mortos, apenas causaria dor a muitos outros que não tinham nenhuma ligação com Ingrid Johansen Hawthorne. Na manhã seguinte, ela ainda estava ali, ao seu lado, confortando a sua ressaca moral com um riso suave, mas lembrando-lhe o quanto aquelas fantasias eram tolas e perigosas; queria que ele continuasse vivo. Ele a amava tanto! E quando ela desapareceu, o uísque foi junto com ela. Talvez essa fosse mais uma fantasia, mas ele sempre se perguntava: se tivesse parado mais cedo de beber daquele jeito, ela teria ficado?
- Desculpe se estamos incomodando - disse Ardisonne; tanto ele quanto Cooke estavam perturbados com o silêncio súbito de Hawthorne.
- Vocês não estão me incomodando; isso é coisa minha.
- Então, qual é a sua resposta, Capitão? Nós já contamos tudo, já pedimos até desculpas pelo que aconteceu ontem à noite, mas tivemos que fazer aquilo. Quando um barman olha para você com a maior hostilidade e se abaixa atrás do balcão de uma birosca deserta no meio da noite... você sabe, eu e o Jacques conhecemos bem estas ilhas.
- Você tem alguma razão, mas aquilo foi um exagero. Vocês disseram que a gente tinha que conversar imediatamente, que era urgente. E, apesar disso, me deixaram fora de combate durante quase seis horas. Que tipo de urgência é essa?
- Aquilo não foi preparado para você nem para o seu amigo barman - explicou Ardisonne. - Foi preparado para outras pessoas.
- Que outras pessoas?
- Ah, pare com isso, Tyrell, você não é ingênuo. O vale do Baaka tem conexões por toda parte e só alguém muito inocente pode acreditar que não existem pessoas corruptas em um ou outro dos nossos departamentos. Vinte mil libras podem virar a cabeça de um burocrata.
- Vocês acharam que podiam ser interceptados?
- A gente não podia descartar esta possibilidade. Foi por isso que a gente só trouxe o que estava na nossa cabeça, nada por escrito sobre a Bajaratt, nenhuma foto, nenhum dossiê, enfim, nenhum material sobre o assunto. Mas se alguém tivesse recebido uma propina para nos impedir de ir adiante, em Paris, em Londres ou em Antigua, a gente poderia se defender.
- Então vocês continuam com as suas capas de chuva, espreitando becos escuros.
- Para que dispensar o sigilo e as armas secretas? Eles já salvaram a sua vida mais de uma vez durante a Guerra Fria, não foi?
- Uma ou duas vezes, talvez, não mais que isso, e eu fiz tudo o que pude para não ficar paranoico. Antes de Amsterdã era tudo bem simples. A gente só tinha que saber quem poderia ser útil e quanto custaria.
- O mundo agora é diferente, Capitão, nós não temos mais esse luxo de conhecer os inimigos. Existe uma outra raça, eles não são agentes nem espiões infiltrados que têm que ser descobertos; já se foi esse tempo. Pode ser que um dia a gente olhe para trás e perceba como tudo era simples, e que a nossa mentalidade também não era muito diferente. Agora tudo mudou; as pessoas com quem a gente lida pensam de uma maneira completamente diferente da maneira que a gente pensava. Nós não estamos mais lidando com o poder ou a influência geopolítica, mas sim com o ódio, puro ódio. Os injustiçados deste mundo estão se revoltando, as frustrações mais antigas estão explodindo, a vingança cega tomou conta de tudo.
- Isso é realmente dramático, Geoff, mas eu acho que você está extrapolando um pouco. Washington está informada sobre essa mulher e até que ela seja eliminada o Presidente não vai ser exposto a nenhuma situação vulnerável. E eu imagino que vai acontecer o mesmo em Londres, Paris e Jerusalém.
- Mas quem é totalmente invulnerável, Tyrell?
- Ninguém, claro, mas ela teria que ser uma ilusionista para conseguir driblar aquele exército de guardas e o sistema de segurança mais sofisticado do mundo. E, pelo que Washington me informou, o Presidente praticamente não sai mais, não enfrenta multidões, e o Salão Oval está num esquema de segurança máxima. Daí eu pergunto pela milésima vez: por que cargas d’água vocês precisam de mim?
- Porque ela é uma illusionniste! - disse Ardisonne. - Ela driblou o Deuxième, o MI-6, o Mossad, a Interpol e todas as agências de informação e contrainformação que você conhece. Mas agora, finalmente, nós sabemos que ela está numa área específica, uma região que a gente pode virar e revirar com todos os recursos tecnológicos, e ao mesmo tempo com o elemento mais vital de todos. A experiência humana: uma batida policial, uma busca liderada por caçadores experientes, que conhecem o território atual da caça como se tivessem nascido ali.
Hawthorne, calado, observava os dois homens, olhando ora para um, ora para outro.
- Vamos supor que eu aceitasse ajudar vocês sob certas condições - disse ele, por fim. - Por onde a gente ia começar?
- Com a tecnologia que você tem em tão alta conta - respondeu Cooke. - Todos os postos de informações da OTAN e todas as autoridades policiais do Caribe estão recebendo o retrato falado da Bajaratt e do rapaz que está viajando com ela.
- Ah! Mas isto é brilhante! - exclamou Tyrell, com uma risada sarcástica. - Vocês enviaram um alerta geral para as ilhas e estão esperando alguma resposta? Estou chocado, cavalheiros, eu pensei que vocês conheciam esta região como se tivessem nascido aqui.
- O que você quer dizer com isto? - perguntou Ardisonne, contrafeito.
- Quero dizer que vocês têm no máximo trinta por cento de chance de receber alguma notícia, oficial ou não, de alguém que tenha visto eles. Se alguém encontrar os dois, não vai vir correndo contar para vocês. Vai, isso sim, correr atrás dela, e receber alguns milhares de dólares para não abrir a boca. Vocês passaram muito tempo longe daqui, meus amigos, a gente não está na terra de Oz. Com exceção de alguns lugares como este aqui, estas ilhas são uma pobreza só.
- E o que você faria no nosso lugar? - perguntou Cooke.
- O que vocês deveriam ter feito - replicou Hawthorne. - Vocês disseram que ela tem que ter acesso aos bancos estrangeiros, então, a chave é esta; ninguém por aqui libera somas muito altas para uma pessoa desconhecida, a não ser que essa pessoa vá buscar o dinheiro pessoalmente. Se vocês se concentrarem nas ilhas onde existem esses bancos, o número já cai para vinte, vinte e cinco. Somando as viagens dos dois, vocês já percorreram a maior parte dessas ilhas, se não todas. Então vocês têm é que oferecer uma boa grana para quem vai ficar de tocaia nesses lugares e deixar que eles se arranjem lá com as autoridades. A porta dos fundos, aqui, funciona melhor que a da frente. Eu estou surpreso de ter que dizer isso para vocês.
- O seu raciocínio é perfeito, cara, mas eu acho que a gente não tem tempo para isso. A estimativa de Paris é que ela vai ficar uns quinze dias aqui; a de Londres é menor ainda, de cinco a oito dias, no máximo.
- Então foi dada a partida. Você já perdeu esta corrida; ela não vai cair na sua rede.
- Quem sabe? - replicou Richelieu.
- O responsável por essa estratégia é Londres - explicou Cooke. - E nós não negligenciamos a corrupção, como você falou. O alerta foi acompanhado de um adendo que dificilmente vai ser ignorado. Os governos da Inglaterra, da França e dos Estados Unidos estão prometendo, cada um, um milhão de dólares pelas informações que ajudem a capturar os dois fugitivos. Por outro lado, se for descoberto que alguém sonegou informação, essa pessoa vai ser castigada com a penalidade máxima.
Hawthorne deu um assobio.
- Uau - disse ele, abrandando a voz. - Estou vendo que a coisa é séria. De um lado, três milhões de dólares; do outro, uma bala na cabeça.
- Exatamente - concordou o veterano do MI-6.
- Vocês tiraram essa ideia do antigo NKVD; até o KGB era mais bonzinho.
- Que nada. Isso é mais antigo que o Beowulf. Muito eficiente.
- Chega, Tyrell! - disse Ardisonne. - A gente tem que andar rápido.
- Quando é que foi dado o alerta? As descrições?
Cooke olhou para o relógio:
- Há seis horas, mais ou menos, às cinco da manhã, hora de Greenwich.
- Onde é a base das operações?
- Em Londres, na Tower Street, por enquanto.
- No MI-6 - disse Hawthorne.
- Tyrell, você falou de "certas condições" - disse Cooke. - Será que eu posso considerar que, em nome da estabilidade mundial, você vai colaborar conosco?
- Não, você não pode considerar coisa nenhuma. Eu não tenho nenhum apreço por esses babacas que dirigem o mundo. Se vocês querem que eu trabalhe para vocês, vocês vão me pagar, mesmo que eles sejam mortos, e vão pagar adiantado.
- Você não está jogando limpo, meu caro...
- Isso não vem ao caso. Para eu e meu irmão conseguirmos deslanchar o nosso negócio, vamos precisar de mais dois barcos; podem ser usados, mas têm que ser bons, de primeira categoria. Setecentos e cinquenta mil cada um, o total dá um milhão e meio. Amanhã de manhã no meu banco em St. Thomas. E cedo.
- Isto não é um pouco demais?
- Demais? Enquanto vocês estão dispostos a pagar três milhões de dólares para qualquer informante que tropece por acaso nessa Bajaratt e no garoto? Pare com isso, Geoffrey. Ou você paga logo ou eu vou para Tortola amanhã às dez da manhã.
- Hawthorne, você é um presunçoso filho da puta.
- Então pode cair fora, que eu estou indo para Tortola.
- Você sabe muito bem que eu não posso fazer isso. Mas, de qualquer maneira, eu tenho minhas dúvidas se você vale esse dinheiro todo.
- Você só vai saber se pagar, não é?
AGÊNCIA CENTRAL DE INTELIGÊNCIA, LANGLEY, VIRGÍNIA
Raymond Gillette, o grisalho diretor da CIA, olhou fixamente para o oficial da Marinha fardado que, sentado diante da sua escrivaninha, aparentava uma mistura de respeito e desagrado.
- Capitão, o MI-6, com alguma ajuda do Deuxième, fez aquilo que você não conseguiu fazer - disse ele calmamente. - Eles recrutaram o Hawthorne.
- Nós tentamos - disse o capitão Henry Stevens, chefe do serviço de inteligência naval. Não havia nenhum pedido de desculpas na sua resposta seca, e ele retesou o corpo esbelto, a despeito dos seus cinquenta anos de idade, como se sentisse uma certa superioridade física em relação à obesidade do diretor. - O Hawthorne foi um tolo e nunca aceitou o que aconteceu. Para dizer a verdade, ele foi um perfeito idiota e se recusou a acreditar em nós, mesmo diante de provas irrefutáveis.
- De que aquela sueca, mulher dele, era agente soviética, ou, pelo menos, uma informante paga?
- Exatamente.
- E que provas eram essas?
- As nossas. Meticulosamente documentadas.
- Por quem?
- Por pessoas que estavam lá e confirmaram tudo.
- Em Amsterdã - afirmou Gillette, sem qualquer pergunta.
- É.
- Eu li a sua ficha.
- Então você viu que os dados eram realmente indiscutíveis. A mulher estava sendo vigiada dia e noite... meu Deus, casada com um agente secreto da inteligência naval, que ela só conhecia há dois meses; e vista, fotografada, entrando à noite pelos fundos da embaixada soviética, em onze ocasiões diferentes! O que mais você quer?
- Cruzamento de informações, por exemplo. Talvez conosco.
- Os computadores secretos já fazem isso.
- Nem sempre e, se você não sabe disso, devia ser rebaixado ao posto de marinheiro.
- Escute aqui, eu não sou obrigado a ouvir isto de um civil.
- É melhor você escutar isto de mim, de alguém que tem alguma consideração pelos seus outros feitos, se não quiser ir parar num tribunal civil e militar. Quer dizer, isso se você conseguisse sobreviver vinte e quatro horas, depois que o Hawthorne descobrisse a verdade.
- Do que é que você está falando, que eu não estou entendendo nada?
- Eu li a nossa ficha sobre a mulher do Hawthorne.
- E daí?
- Você espalhou a informação de que a mulher do Hawthorne, uma intérprete de altíssimo gabarito, estava trabalhando para Moscou, fez todo mundo da sua órbita jurar que isso era verdade. Cada um decorou as palavras exatas, literais: "Ingrid Hawthorne é uma traidora da OTAN; ela faz contatos frequentes com os soviéticos." Parecia um disco arranhado, repetindo a mesma frase o tempo todo.
- Mas era verdade!
- Era mentira, Capitão. Ela estava trabalhando era para nós.
- Você está louco... eu não acredito nisso!
- Pois leia a nossa ficha... pelas peças que eu consegui juntar, para não ter que sujar as mãos, você passou outra informação falsa que por coincidência era a verdade, uma verdade fatal. Você informou, através de alguém com acesso ao pessoal do KGB, que a sra. Hawthorne era uma agente dupla, que o casamento dela era verdadeiro, não era só de conveniência, como os soviéticos pensavam. Eles eliminaram a moça e desovaram o corpo no canal de Heren. Nós perdemos uma excelente informante e o Hawthorne perdeu a mulher dele.
- Meu Deus! - Stevens começou a se contorcer na cadeira, nervoso, mexendo o corpo para a frente e para trás. - Mas, que diabo, por que ninguém nos contou nada? - Parou abruptamente e encarou o diretor. - Espere aí! Se isso que você está dizendo é verdade, então por que foi que ela nunca disse nada para o Hawthorne?
- Não sei, mas existem algumas explicações possíveis. Os dois trabalhavam no mesmo meio; ela sabia tudo sobre ele, mas ele não sabia nada sobre ela. Se ele soubesse, teria obrigado ela a parar, porque ele conhecia todos os riscos, claro.
- Como será que ela pôde não contar nada para ele?
- Não sei, deve ser o sangue-frio dos escandinavos. Você já viu os tenistas deles? Mas, veja bem, ela não podia parar. O pai dela morreu na Sibéria; ele foi preso em Riga como ativista antissoviético, quando ela era bem jovem. Ela mudou de nome, montou o próprio dossiê, aprendeu a falar russo fluentemente, além de inglês e francês, claro, e foi trabalhar conosco em Haia.
- Nós não tínhamos nada disso nos nossos arquivos.
- Podiam ter, se você tivesse a ideia de pegar o telefone antes de tomar decisões. Ela estava fora do sistema.
- Ah, essa não. Como é que a gente pode trabalhar assim?
- Talvez seja por isso que eu estou aqui, rapaz - disse Gillette, carregando nos olhos estreitos e vermelhos doses idênticas de desprezo e compreensão. - Eu sou um velhote que veio do G-2, Vietnã, onde a sujeira, a desmoralização eram tão grandes que eu saí de lá com uma reputação altíssima, que eu não merecia; pelo contrário, provavelmente eu devia era ter sido submetido a um tribunal de guerra. Portanto, eu sei de onde você vem, Capitão, e isso não é desculpa nem para você, nem para mim, mas eu achei que você devia saber a verdade.
- Se você se sentia assim, por que veio trabalhar aqui?
- Você disse que eu sou um civil, e acertou na mosca, eu sou civil, e muito rico. Ganhei muito dinheiro, em grande parte por causa da minha reputação imerecida. Então, quando fui indicado para este cargo, achei que era hora de pagar a dívida. Eu queria tentar melhorar um pouquinho as coisas nesta área do governo, que é uma área muito importante... talvez para me redimir dos erros que eu cometi no passado.
- Bem, considerando esses erros, o que foi que levou você a achar que era qualificado para esse trabalho?
- Exatamente os meus erros. A gente é tão paranoico com o sigilo, que quase sempre acaba deixando de comunicar informações essenciais... ou de correr atrás delas. Por exemplo, eu acho que você não vai repetir o erro que cometeu no caso da Ingrid Hawthorne.
- O erro não foi meu! Você mesmo disse: ela estava fora do sistema.
- Ela e mais uns oitenta ou cem, o que me diz disso?
- Que essa história não está me cheirando bem!
- Inclusive dúzias de homens seus.
- Isso foi antes de eu chegar - disse o oficial da Marinha, ríspido. - Nenhum sistema pode funcionar se não for alimentado. Esses computadores têm dispositivos de segurança.
- Não vá dizer isto aos hackers que entraram no sistema do Pentágono. Pode ser que eles não acreditem em você.
- Uma chance em um milhão!
- Mais ou menos a mesma chance de um espermatozoide fecundar um óvulo e, mesmo assim, nove meses depois nasce uma vida nova. E você acabou com uma dessas vidas, Capitão.
- Vá se...
- Por favor, me poupe - disse o diretor da CIA, levantando as mãos, com os cotovelos apoiados nos braços da cadeira. - Esta informação vai ficar restrita a estas quatro paredes. E, para aliviar a sua consciência, fique sabendo que eu cometi o mesmo tipo de erro com Ho Chi Minh... e isto também vai ficar entre estas quatro paredes.
- Bem, nós já terminamos?
- Ainda não. Eu não posso lhe dar ordens, mas sugiro que você procure o Hawthorne e dê a ele toda a ajuda que ele precisar. Vocês têm gente em todo o Caribe; nós, não.
- Ele não vai querer falar comigo - disse o Capitão em voz baixa, pausada. - Já tentei várias vezes. Assim que ele via que era eu, desligava o telefone sem dar uma palavra.
- Mas ele falou com alguém do seu pessoal, o MI-6 confirmou. O homem deles em Virgin Gorda, Cooke, disse que o Hawthorne sabia da existência da Bajaratt, sabia que o Salão Oval estava em esquema de segurança máxima e o Presidente protegido por todos os lados. Se não foi você quem contou, então quem foi?
- Eu deixei essa tarefa à disposição dos interessados - respondeu Stevens, com alguma relutância. - Como não consegui chegar a lugar nenhum com aquele babaca, eu disse a algumas pessoas conhecidas dele que se alguém se achasse capaz de conseguir alguma coisa fosse em frente e expusesse a situação para o Tye.
- Tye?
- É, a gente se conhecia, não muito, mas de vez em quando a gente saía para beber alguma coisa. Minha mulher trabalhava na embaixada em Amsterdã; eles eram amigos.
- E ele suspeitou de você no assassinato da mulher?
- Porra, eu mostrei as fotos a ele, mas jurei que a gente não teve nada a ver com a morte dela... e não teve mesmo.
- Mas você teve.
- Não havia a menor hipótese dele saber; além disso, os soviéticos deixaram a marca deles como uma advertência para os outros.
- Mas todos nós temos instintos bem desenvolvidos, não é?
- Gillette, o que você quer de mim? Eu não tenho mais nada a dizer.
- Já que os ingleses recrutaram o Hawthorne, convoque uma reunião urgente da sua equipe e veja o que vocês podem fazer para ajudar. - O diretor inclinou-se sobre a mesa e fez uma anotação num bloquinho. - Combine tudo com o MI-6 e o Deuxième; você vai entrar em contato com esses dois homens, mas só com eles e usando sempre o misturador de vozes.
- Direto com a cúpula - observou o oficial, ao ler os nomes. - Qual é a senha?
- "Menina Sanguinária."
- O senhor sabe de uma coisa - disse Stevens, levantando-se e guardando o pedaço de papel no bolso -, tenho a impressão de que todos nós podemos mesmo estar vendo coisas. A gente já passou por dezenas de alertas como este: grupos armados enviados do Oriente Médio, psicopatas esperando para matar o homem no aeroporto, malucos que se juntam para escrever cartas; e noventa e nove por cento das vezes eles acabam se evaporando. De repente, uma mulher viajando com um menino aparece nos nossos arquivos secretos e a sirene dos alarmes toca de Jerusalém a Washington, ecoando em Londres e Paris. Você não fica impressionado, não acha isso um certo exagero?
- Você leu com atenção as informações que eu recebi de Londres e mandei para você? - perguntou o Diretor.
- Com toda atenção. Ela é uma psicopata, por todos os motivos enumerados pelos freudianos, e é, sem dúvida, obsessiva. Mas isso não faz dela uma super-heroína.
- Por isso mesmo. Se fosse uma super-heroína, ela chamaria a atenção, seria conhecida. Bajaratt podia ser tanto a vizinha de algum morador de Centerville, aqui nos Estados Unidos, quanto uma modelo insossa no Faubourg Saint-Honoré, em Paris, ou uma sabrazinha tímida do exército feminino de Israel. Ela não lidera ataques, Capitão, ela organiza, o talento dela é esse. Ela cria fatos e usa os próprios protagonistas desses fatos para atingir os objetivos que ela predeterminou. Se fosse americana e tivesse outro tipo de mentalidade, pode ser que ela estivesse aqui, no meu lugar.
- Posso perguntar uma... - O oficial da Marinha mexia os pés, respirando fundo; o sangue lhe subia à cabeça, fazendo com que seu rosto fosse enrubescendo aos poucos. - O que eu fiz... meu Deus, o que eu fiz... o senhor disse que esse assunto não ia sair desta sala.
- E não vai mesmo.
- Cristo, por que é que eu fiz isto? - Os olhos do oficial estavam turvos e seu corpo tremia. - Eu matei a mulher do Tye...!
- Agora é tarde, capitão Stevens. Lamento muito, mas você vai ter que conviver com isso pelo resto da vida... como eu já convivo há mais de trinta anos desde Ho Chi Minh. É o nosso castigo.
O irmão de Tyrell, Marc Anthony Hawthorne - "Marc-Boy", na língua franca do Caribe -, havia chegado a Virgin Gorda para assumir os negócios do irmão. Marc Hawthorne era, sob vários aspectos, o eterno irmão mais novo, ainda mais alto que Tyrell, bem mais esguio - muito magro, para ser exato - e com o rosto de traços parecidos, mas sem os pés de galinha e o olhar neutro do irmão, mais velho e mais vivido. Era sete anos mais moço e, embora fosse visível sua grande afeição pelo primogênito dos Hawthorne, também era evidente sua dúvida a respeito da inteligência do irmão.
- Porra, Tye! - disse ele, enfático; entardecia, e os dois estavam no píer, deserto àquela hora. - Você vai sair fora dessa merda! Você não pode voltar, eu não vou deixar!
- Bem que eu gostaria que você pudesse fazer isso, mano, mas não dá.
- O que é isso? - Marc baixou a voz até atingir um tom gutural. - Uma vez na Marinha, sempre na Marinha! É isto que você está dizendo?
- Não, de jeito nenhum. É que eu posso fazer coisas que eles não podem. O Cooke e o Ardisonne deram umas voltas nas ilhas; eu levei eles de barco. Eu conheço cada entrada, cada pedaço de terra, mesmo que não esteja nos mapas, e já tive oportunidade de subornar quase todas as autoridades, fosse com um ou com cinquenta dólares.
- Mas por quê? Me explique, pelo amor de Deus.
- Não sei bem, Marc, mas pode ser por causa de uma coisa que o Cooke disse. Ele disse que essas pessoas eram os "injustiçados do mundo", e não os inimigos que a gente conheceu antes, mas sim uma raça nova, de fanáticos enfurecidos que querem destruir tudo o que acreditam que possa ter causado a situação deles, a manutenção deles nos vazadouros do lixo.
- Do ponto de vista socioeconômico deve ser isto mesmo. Mas, repetindo a minha pergunta, por que você está se envolvendo nisso?
- Já disse, eu posso fazer coisas que eles não podem.
- Isto não é resposta, é uma justificativa falsa e ególatra.
- Está bem, meu irmão acadêmico, eu vou tentar explicar. A Ingrid foi morta, por uma razão que talvez eu nunca consiga descobrir, mas não dá para viver com uma mulher como ela sem saber que ela queria que a violência acabasse, de uma maneira ou de outra. Para ser honesto, a essa altura eu não sei de que lado ela estava, mas eu sei, sim, que ela queria a paz. Eu abraçava ela e, sem mais nem menos, ela gritava: "Por que isso não acaba? Por que essa brutalidade não acaba?"... Depois, quando me disseram que ela era agente soviética... bem, eu até hoje não acredito nisso, mas se era, devia ter boas razões para isso. Ela queria a paz; ela era minha mulher, minha mulher amada, e ela não podia mentir para mim quando estava nos meus braços.
Silêncio. Por fim, Marc, abrandando a voz, disse:
- Eu não vou nem me meter a entender aquele mundo em que você vivia. Deus sabe que eu nunca ia conseguir. Mas eu vou ter que perguntar de novo: por que você resolveu voltar?
- Porque existe uma pessoa que representa alguma coisa mais poderosa do que a gente é capaz de entender, e essa pessoa tem que ser encontrada, e se eu puder ajudar a encontrar essa psicopata porque eu conheço esse jogo sujo, pode ser que um dia eu me sinta melhor em relação a Ingrid. Foi esse jogo sórdido que a matou.
- Você me convenceu, Tye - disse Marc.
- Que bom que você concordou. - Hawthorne olhou para o irmão mais novo e deu-lhe um tapinha no ombro. - Porque você vai passar a semana que vem tomando conta do negócio, e vai ter que procurar dois barcos para nós, dois barcos de primeira. Se de repente você encontrar algum à venda por um preço bom, e eu não estiver por aqui, faça uma proposta.
- Proposta? Mas a gente não tem dinheiro.
- O dinheiro vai estar na nossa conta em St. Thomas amanhã de manhã; é uma cortesia dos meus patrões temporários.
- Ainda bem que você consegue conciliar o idealismo com a realidade.
- O que eles me devem nunca vão poder pagar.
- Enquanto você estiver fora, o que é que eu faço quando precisar de outro capitão? Segunda que vem, por exemplo, os dois barcos estão reservados.
- Eu liguei para Red Hook e falei com a Barbie; ela vem para cá. O barco dela ainda está no conserto, desde o furacão.
- Tye, você sabe que o pessoal que aluga os barcos não se sente seguro com uma mulher no comando.
- É só você mandar ela fazer a mesma coisa que ela faz com os clientes dela, quando eles descobrem que B. Pace não é Bruce nem Ben e, sim, Bárbara. Assim que todo mundo embarca, ela dá uma surra no ajudante de bordo.
- É, mas ela paga ele para isso.
- Então pague também. Nós estamos ricos.
Subitamente, veio do estacionamento atrás das docas o ronco de um motor de automóvel, seguido do barulho estridente do freio nos pneus. Segundos depois, ouviram-se as vozes abafadas de Cooke e Ardisonne gritando para Marty e Mickey na oficina do iate clube. Em seguida, o inglês e o francês apareceram, correndo pelo passadiço.
- Aconteceu alguma coisa - disse Tyrell, em voz baixa.
- Você não sabe o que aconteceu! - exclamou Geoffrey Cooke, enquanto os dois subiam correndo pelo píer, ofegantes. - Nós estamos chegando do gabinete do governo... Oi, Marc, desculpe, mas tenho que falar em particular com o seu irmão. - Puxou Hawthorne para o canto esquerdo do píer, seguido por Richelieu.
- Calma - disse Hawthorne. - Recupere o fôlego e se acalme.
- Não dá tempo - disse Ardisonne. - Nós recebemos quatro comunicados, todos dizendo que a mulher e o rapaz foram vistos.
- Da mesma ilha?
- Não, de três, droga! - respondeu Cooke. - Mas em todas tem um banco estrangeiro.
- Quer dizer que dois comunicados vieram da mesma...
- É, de St. Croix, Christiansted. Tem um avião nos esperando no campo de aviação. Eu vou para St. Croix.
- Por quê? - protestou Hawthorne, zangado. - Geoff, não se ofenda, mas eu sou mais novo e, sem nenhuma dúvida, estou em melhor forma do que você. Deixe eu ficar com St. Croix.
- Você não viu as fotografias!
- Mas, pelo que você me disse, são três pessoas diferentes, então para que é que elas servem?
- Tyrell, você esquece rápido as coisas. É uma chance remota, mas pode ser que uma delas esteja certa. A gente não pode desconsiderar essas fotos.
- Então me dê as fotos.
- Elas vão chegar pelo correio; Virgin Gorda está fora da nossa rota normal. O Deuxième vai mandar as fotos pela mala diplomática da Martinica, amanhã bem cedo.
- Nós não podemos perder tempo - insistiu Ardisonne.
- Eu vou lhe dar os nomes dos nossos informantes, Tyrell - disse Cooke. - Você vai para St. Barthélemy. O Jacques vai cobrir Anguilla.
Hawthorne acordou na cama estreita de um hotel na ilha de St. Barts, ainda com raiva de Geoffrey Cooke, que o pusera numa posição secundária. O informante nativo, que ele conseguira encontrar através do chefe de segurança da ilha, era um conhecido alcaguete da polícia, um biscateiro disposto a tudo para receber o prêmio de três milhões de dólares. Ele tinha visto uma senhora alemã desembarcar da lancha de St. Martin, acompanhada pelo neto adolescente. Com aquela frágil evidência, candidatou-se à recompensa. A avó em questão, porém, era apenas uma senhora coberta de maquiagem, uma mãe bem germânica, que reprovava o estilo de vida plebeu da filha e se oferecera para fazer um tour pelas ilhas com o neto.
- Merda! - explodiu Hawthorne, esticando o braço para pegar o telefone e pedir qualquer café da manhã que o hotel tivesse a oferecer.
Tyrell caminhava pelas ruas de St. Barts, tentando se distrair até a hora de pegar um táxi para o aeroporto, de onde um avião o levaria de volta para Virgin Gorda. Não havia outra coisa a fazer senão caminhar; ele detestava ficar sozinho em quartos de hotel. Pareciam celas solitárias, onde uma pessoa em pouco tempo ficava aborrecida com a sua própria companhia.
Foi então que aconteceu. A quinze metros de distância, atravessando a rua em direção à entrada do Banco da Escócia, estava a mulher que salvara sua sanidade mental e, mesmo, sua vida. Ela estava ainda mais bonita, se é que isso era possível. Os cabelos longos e escuros, emoldurando o lindo rosto bronzeado pelo sol, os passos leves e seguros da parisiense cosmopolita, sempre gentil e atenciosa com todo mundo. Tudo aquilo voltou à mente de Tyrell, diante daquela visão gloriosa, e ele mal pôde aguentar.
- Dominique! - gritou, afastando as pessoas que estavam na sua frente e correndo pela rua na direção da mulher que ele não via há tanto, tanto tempo. Ela parou no meio-fio e voltou-se, o rosto iluminado, o sorriso cheio de alegria. Ele a puxou pela calçada até a frente de uma loja e os dois se abraçaram, com o calor e o afeto nunca esquecidos. - Me disseram que você tinha voltado para Paris!
- E voltei mesmo, meu bem. Eu tinha que resolver a minha vida.
- Nenhuma palavra, nenhuma carta, nem sequer um telefonema. Eu quase enlouqueci.
- Eu nunca ia conseguir substituir a Ingrid, e eu sabia disso.
- Você não sabia como eu queria que a gente tentasse?
- Meu amor, o meu mundo é diferente do seu. A sua vida é aqui, a minha é na Europa. Tenho um monte de responsabilidades que você não tem, Tye, eu já tentei explicar isso.
- Eu me lembro direitinho. "Salvem as crianças", "Ajuda para a Somália"... duas ou três palavras de ordem que nunca consegui entender.
- Eu passei muito tempo fora, muito mais tempo do que teria passado se não estivesse com você. Estava tudo muito desorganizado, uma verdadeira bagunça, e tinha muitos governos que não estavam ajudando. Mas agora que o Quai d’Orsay está firme por trás da nossa organização, as coisas estão mais fáceis.
- Como assim?
- Por exemplo, uma vez no ano passado, na Etiópia... - enquanto ela falava dos triunfos da sua obra filantrópica sobre as barreiras burocráticas e outras ainda piores, seu entusiasmo natural emprestava uma deliciosa eletricidade aos seus traços. Os olhos grandes e meigos eram tão vivos, seu rosto, tão expressivo, revelando o poço infinito de esperança que a alimentava e sustentava. Sua capacidade de se compadecer era quase irreal, mas inspirava crédito devido à sua sinceridade, que só não a fazia parecer ingênua porque ela demonstrava, na fala macia, sua inteligência e maturidade. - ... aí, sabe, a gente chegou lá com vinte e oito caminhões! Você nem imagina como foi ver os moradores, principalmente as crianças, com aquela cara faminta, e os mais velhos, que já tinham perdido quase toda a esperança! Acho que nunca chorei tanto de felicidade... E agora os alimentos chegam lá regularmente, e nós estamos abrindo novas frentes em vários lugares, enquanto der para a gente continuar pressionando!
- Pressionando...?
- É, você sabe, meu bem, hostilizando quem nos hostiliza, apresentando as nossas próprias ameaças, com toda a delicadeza, claro, junto com os nossos documentos oficiais. Ninguém vai brincar com a República da França! - Dominique sorriu, triunfante; seus olhos brilhavam.
Ele a amava tanto! Ela não podia deixá-lo outra vez!
- Vamos tomar alguma coisa - disse Hawthorne.
- Ah, vamos sim, claro! Eu quero tanto conversar com você, Tye. Senti tanta saudade! Tenho que encontrar o advogado do meu tio no banco, mas ele pode esperar um pouquinho.
- Dizem que o charme da ilha é exatamente esse. Ninguém chega na hora em lugar nenhum.
- Eu ligo para ele de onde a gente estiver.
4
Os dois se sentaram num café na calçada e ficaram de mãos dadas sobre a mesa até o garçom trazer um chá gelado para Dominique e uma garrafa de vinho branco para Hawthorne.
- Por que você sumiu? - perguntou Tyrell.
- Já disse, eu tinha outros compromissos.
- A gente podia ter o nosso próprio compromisso.
- Foi por isso mesmo que eu fiquei com medo. Você estava se tornando importante demais para mim.
- Como assim? Eu achava que você sabia o que eu sentia por você.
- A sua confusão e a sua culpa por causa da Ingrid eram uma coisa sufocante, Tye. Você não bebia porque era alcoólatra, o seu trabalho com os barcos é a prova disso. Só que parecia que você precisava ficar meio louco por não ser responsável por mais ninguém além de você mesmo. Você não conseguia se perdoar pelo que aconteceu.
- Então foi isso, não foi?
- Foi o quê?
- Você queria ser mais do que uma babá, e eu estava tão voltado para mim mesmo que não conseguia ver isso. Mas agora eu estou pedindo desculpas.
- Tye, você estava profundamente sentido e desnorteado, e eu entendia isso. E se eu me sentisse da maneira que você falou, a gente não teria passado aquele tempo todo juntos. Quase dois anos, meu bem.
- Não foi o suficiente.
- Não, não foi.
- Você se lembra como foi que a gente se conheceu? - perguntou Hawthorne, carinhoso, sem tirar os olhos do rosto dela.
- E como é que eu ia esquecer? - respondeu ela, rindo baixinho e apertando a mão dele. - Eu tinha alugado um barco e estava entrando na marina, em St. Thomas, mas aí tive dificuldade de encostar no lugar que tinham mandado.
- Dificuldade? Você entrou a todo pano, como se estivesse virando de bordo para um marco de corrida. Eu fiquei apavorado.
- Não sei se você ficou com medo, mas zangado eu sei que ficou.
- Dominique, o meu barco estava atracado exatamente na sua linha de ataque.
- Ah, é, você ficou no convés do seu barco, acenando com os braços e me xingando... mas aí eu consegui desviar, não foi?
- Até hoje não sei o que foi que você fez.
- Você não viu, meu bem. Você ficou tão furioso que caiu na água. - Os dois riram, inclinando-se um para o outro, sobre a mesa. - Fiquei com tanta vergonha - continuou Dominique. - Mas depois pedi desculpas, quando você voltou para o píer.
- Foi, naquele bar, o Fishbait’s Whisky Shack. Todo mundo morreu de inveja de mim quando você veio falar comigo... e foi o começo de uma das épocas mais felizes da minha vida. O que eu mais gosto de me lembrar é dos passeios de barco que a gente fazia, só nós dois, por aquelas ilhazinhas minúsculas, e passava a noite na praia, fazendo amor.
- E amando, meu bem.
- Será que a gente não podia começar tudo de novo? O passado já está mais distante, eu não estou mais tão confuso. Até já aprendi a rir e a contar piadinhas, e você ia gostar do meu irmão... Dominique, por que a gente não começa tudo de novo?
- Eu estou casada, Tye.
Hawthorne se sentiu como se tivesse sido atingido pela proa de um navio transatlântico no meio de um mar enevoado. Por alguns momentos não conseguiu dizer nada, as palavras lhe fugiam; tudo o que foi capaz de fazer foi baixar os olhos e fazer o possível para fingir que estava respirando normalmente. Começou a soltar a mão de Dominique; ela o interrompeu abruptamente, cobrindo a mão dele com a sua outra mão.
- Por favor, não faça isso, meu bem.
- Ele é um felizardo - disse Tyrell, contemplando as mãos de ambos. - É um cara legal?
- É meigo, dedicado e muito, muito rico.
- Duas qualidades a mais que eu, em três. Mas dedicado eu seria, também.
- O fato dele ser rico ajudou, não posso negar. Meus gostos não são especialmente caros, mas minhas causas não são baratas. E na carreira de modelo, que com certeza me daria um belo apartamento e roupas maravilhosas, não tem lugar para militantes loucos. Gostei de largar essa profissão. Nunca me senti bem desfilando com roupas que nem meia dúzia de pessoas podiam comprar.
- Você agora está num outro mundo. E você é feliz no casamento?
- Eu não disse isso - disse Dominique tranquila, firme, concentrando o olhar nas mãos entrelaçadas dos dois.
- Acho que eu não entendi.
- É um casamento de conveniência, como já dizia La Rochefoucauld.
- Continuo não entendendo. - Hawthorne ergueu os olhos, examinando o rosto passivo da moça.
- O meu marido é um homossexual não assumido.
- Obrigado, Senhor, pela graça alcançada.
- Ele ia morrer de rir se ouvisse isso. A gente leva uma vida estranha, Tye. Ele é muito influente e extremamente generoso, e me ajuda não só a levantar fundos, mas também a conseguir assistência do governo, que é uma coisa que a gente sempre está precisando.
- Como nesses documentos oficiais que você falou? - perguntou Tyrell.
- Direto para a cúpula do Quai d’Orsay. - Dominique sorriu com seu ar cativante. - Ele diz que isso é o mínimo que ele pode fazer; vive dizendo que eu sou um trunfo importantíssimo para ele.
- Óbvio. Com você do lado, seria impossível ele passar despercebido por alguém.
- Ah, mas ele vai mais além. Ele diz que eu atraio os melhores clientes, porque só o mais rico de todos poderia me comprar, se eu estivesse à venda. Ele fala isso de brincadeira, claro.
- Claro. - Hawthorne serviu-se do que ainda restava de vinho e recostou-se na cadeira. - Você veio aqui para visitar o seu tio em Saba?
- Meu Deus do céu, esqueci completamente! Tenho que ligar para o banco e falar com o advogado de qualquer jeito... está vendo, é assim que eu fico quando encontro você.
- Bem que eu gostaria de acreditar...
- Pode acreditar, Tye - interrompeu Dominique suavemente, inclinando-se para a frente, os grandes olhos castanhos fixos nos dele. - Pode acreditar mesmo, meu bem... Onde tem um telefone? Tenho certeza que vi um.
- É ali na entrada.
- Eu volto já, já. O meu querido titio está pensando em se mudar de novo; ele acha que os vizinhos estão ficando solícitos demais.
- O eremita dos eremitas de Saba, não era isso? - disse Tyrell, com um sorriso. - Nada de telefone, correio e, se possível, nada de visitas.
- Tive que insistir para ele instalar uma antena parabólica. - Dominique empurrou a cadeira para trás e levantou-se. - Ele adora assistir ao futebol internacional; acha que é magia negra, mas passa o tempo todo assistindo... Deixe eu correr lá.
- Estou aqui esperando você.
Hawthorne fitou a figura que se distanciava, a mulher que ele pensara ter saído da sua vida. Aquela torrente de informações contraditórias não era muito diferente de uma ventania violenta. O casamento quase o afogara; o casamento que não era casamento nenhum havia restaurado sua respiração, e ele voltara a flutuar, reanimado e feliz... Não podia perdê-la outra vez; não ia perdê-la outra vez.
Ficou imaginando se ela pensaria em ligar para o tio, em Saba, e dizer a ele que voltaria mais tarde. Normalmente havia voos de hora em hora até o início da noite, uma rede aérea que cobria todo o arquipélago. O encontro deles não podia ser um rápido "oi-tchau", isso era impensável, e ele a conhecia bem o bastante para perceber que ela entendia isso. Sorriu para si mesmo ao pensar naquele tio excêntrico que ele nunca conhecera, o advogado parisiense que havia passado mais de trinta anos no mundo conturbado e traiçoeiro da arbitragem, correndo das salas de reuniões para as salas dos tribunais, milhões em jogo a cada decisão tomada, sempre preocupado com o pânico de clientes que com muita frequência prezavam mais o dinheiro do que os princípios.
Tudo isso para um homem calmo e afável, que só desejava escapar daquela insanidade que minava suas energias para pintar flores e paisagens de pôr do sol, um Gauguin contemporâneo, como ele mesmo dizia. Ao se aposentar, contara Dominique, deixou a esposa, uma mulher fria e inacessível, com mais do que o suficiente para continuar com seus hábitos extravagantes, não se deu ao trabalho de se comunicar com as duas filhas intoleráveis, ambas contaminadas pela doença da mãe, a ganância, e, levando consigo a empregada, uma mulher já idosa, tomou um avião para o Caribe "à procura do meu Taiti".
A escolha de Saba fora acidental, resultado de uma conversa com um desconhecido, no bar do aeroporto da Martinica. O interlocutor, um exilado que havia decidido voltar e passar seus últimos dias sob as luzes de Paris, queria vender sua casa, modesta mas bem construída, numa ilha chamada Saba. Curioso, o tio de Dominique fez algumas perguntas e foi apresentado à casa em questão através de uma série de fotos, retiradas de uma carteira de dinheiro. Sem ter visto o lugar, a não ser pelas fotos, o advogado aposentado comprou a casa imediatamente, redigindo ele mesmo a escritura, enquanto a empregada olhava para ele com ar de perplexidade e pavor. Ele, então, telefonou para a sua firma em Paris, dando instruções para que seu antigo vice-presidente, agora presidente, pagasse o total da dívida ao proprietário, assim que este chegasse a Paris. O ex-subordinado deveria deduzir da generosa pensão do ex-superior a quantia correspondente. Só havia uma condição - apresentada ao proprietário ainda no bar do aeroporto. Ele teria que entrar em contato com a companhia telefônica local de Saba e solicitar que todos os telefones da casa fossem retirados imediatamente. O homem, abismado, sem conseguir acreditar em tamanha sorte, fez do telefone público do aeroporto uma ligação para a ilha e transmitiu as devidas instruções, aos gritos.
O Caribe era cheio de histórias como essa, pois suas ilhas eram um refúgio para os desgostosos, os exilados, os decadentes. Era preciso solidariedade para compreendê-los, fibra para cuidar deles. E Dominique, uma das verdadeiras benfeitoras deste mundo, preocupava-se com o tio e lhe dava toda a atenção.
- Você não vai nem acreditar! - Dominique, de volta à mesa, interrompeu o devaneio de Tyrell. - O advogado deixou recado para mim, dizendo que ele estava preso numa outra reunião e pedindo para adiar o encontro para amanhã! E deu mil explicações, dizendo que teria telefonado para mim na ilha se lá tivesse telefone.
- A lógica está do lado dele.
- Aí eu aproveitei e dei outro telefonema, Comandante... era isso mesmo, não era? - Dominique sentou-se.
- Isso foi há muito tempo atrás - replicou Tyrell, sacudindo a cabeça - e, de lá para cá, fui promovido. Agora sou capitão, porque tenho o meu próprio navio... barco.
- E isso é promoção?
- Dou a minha palavra, é uma promoção e tanto. Para quem você ligou?
- Para os vizinhos do meu tio, um casal tão atencioso que ele quer se mudar de novo. Eles ficam indo na casa dele, levando legumes frescos da horta, interrompem a pintura dele... ou o futebol.
- Devem ser boas pessoas.
- São, sim; o meu tio não, aquele temperamento ranzinza. Mas hoje eu dei um motivo legítimo para eles invadirem a privacidade dele. Pedi para eles irem até lá avisar ao meu tio que existem alguns problemas com a titularidade das casas em outras ilhas, e que eu, o advogado e o banco estamos tentando resolver tudo. E que eu ia voltar bem mais tarde.
- Maravilha das maravilhas - disse Hawthorne, abrindo um largo sorriso, de volta à plena flutuação. - Eu estava cheio de esperanças de que você fizesse isso.
- É claro que eu ia fazer isso, meu bem. Eu estava com saudades mesmo, Tye, não foi para agradar você que eu disse isso.
- Acabei de fechar a conta de um quarto aqui nesta rua - disse Tyrell. - Acho que dá para conseguir o quarto de volta.
- Ah, isso. Faça isso, sim. Como é o nome do hotel?
- "Hotel" é uma categoria um pouco acima daquele lugar. O nome é Flamboyant.
- Então você vai indo, meu bem, e eu encontro você lá daqui a dez, quinze minutos. E não se esqueça de dizer na recepção que você está me esperando, para eles me darem o número do quarto.
- Por que você não vem comigo?
- Eu quero levar um presente para você... para nós dois. A gente tem que comemorar! - exclamou ela.
Os dois se abraçaram, confinados no quartinho do hotel; Dominique, nos braços de Hawthorne, tremia. O presente que ela trouxera eram três garrafas de champanhe gelado, trazidas num balde de gelo até o quarto por um recepcionista, em troca de uma polpuda gorjeta.
- Não deixa de ser um tipo de vinho branco - disse Tyrell, soltando-a, aproximando-se da escrivaninha e abrindo a primeira garrafa. - Você sabia que eu parei de beber uísque quatro dias depois que você foi embora? É claro que bebi todo o estoque da ilha nesses quatro dias e perdi dois passeios com turistas, mas foi aí que resolvi parar de beber.
- Então foi bom para você eu ter ido embora. O uísque era só uma muleta para você, não era uma necessidade. - Dominique sentou-se à mesinha redonda, de onde se via o cais de St. Barts.
- Vamos parar com isso, eu não sou mais aquele cara. - Hawthorne levou a garrafa e os copos até a mesa e puxou uma cadeira. - Vamos fazer um brinde - disse ele, sentando-se. - À minha Dominique.
- A nós dois, meu bem. - Os dois beberam, e Hawthorne encheu novamente os copos.
- Você veio para cá para trazer algum turista? - perguntou ela.
- Não - respondeu Tyrell, dando uma olhada pela janela, enquanto pensava rapidamente. - Estou fazendo um levantamento aqui em St. Barts para um sindicato de hotéis da Flórida; eles estão contando com a chegada do jogo aqui, em breve, e pediram a minha opinião. É o que está acontecendo em todas estas ilhas, a economia está implorando por apostas.
- É, eu ouvi dizer. De certo modo, isso é triste.
- Muito triste e, provavelmente, inevitável. Os cassinos criam emprego... mas eu não quero falar das ilhas, quero falar de nós dois.
- Falar o quê, Tye? A sua vida é aqui, a minha é na Europa, na África, nos campos de refugiados nos países sitiados, onde as pessoas precisam da nossa ajuda. Sirva mais um copo para mim; você e o vinho estão me embriagando.
- E você não pensa numa vida para você? - Hawthorne encheu os copos.
- Logo, logo, querido. Um dia eu vou voltar, e se você não estiver com ninguém, eu vou aparecer na porta do seu Olympic Charters e dizer assim: "Você aí, Comandante, me leve com você ou então me atire aos tubarões."
- "Logo, logo" é quanto tempo?
- Não muito; eu já estou meio sem forças... Mas não vamos falar sobre o futuro, Tye. Vamos falar sobre agora.
- Agora o quê?
- Hoje de manhã, graças à gentileza dos vizinhos do meu tio, eu pude falar com o meu marido. Vou ter que voltar para Paris hoje à noite. Ele tem um jantar de negócios com a família real de Mônaco e quer que eu vá junto com ele.
- Hoje à noite?
- Eu não posso recusar, Tye, depois de tudo o que ele fez por mim, e ele só está pedindo a minha presença. Vai mandar um jatinho particular para me pegar na Martinica. Em algumas horas eu chego em Paris, faço um circuito rápido de compras e malas durante a manhã, e vou me encontrar com ele em Nice no fim do dia.
- Você vai sumir de novo - disse Hawthorne; o champanhe começava a emperrar sua fala. - Você não vai voltar.
- Você está completamente enganado, meu bem... meu amor. Daqui a duas, três semanas eu estou de volta, acredite. Mas agora, nestas horas que a gente tem, vamos ficar aqui, juntos, vamos fazer amor! - Dominique pôs-se de pé, tirou o blazer branco e começou a desabotoar a blusa. Tyrell levantou-se e, depois de encher novamente os copos, despiu-se. - Venha, venha comigo, meu amor! - gritou Dominique, puxando-o para a cama.
A fumaça dos cigarros se esvaía em direção ao teto, refletindo o brilho do sol vespertino; com o corpo exausto, Hawthorne sentia o cérebro relaxado pela intensidade do ato sexual e pelos longos goles de champanhe.
- Foi bom? - sussurrou Dominique, aconchegando-se no corpo nu de Tyrell, e encostando no seu rosto os seios generosos.
- Depois disso, eu não preciso nem conhecer o paraíso - respondeu ele, com um sorriso.
- Vou servir mais um copo para você. Para mim, também.
- É a última garrafa, e a gente já bebeu bastante.
- Não faz mal, é a nossa despedida... até a gente se ver de novo. - Dominique esticou-se e virou a garrafa para encher os dois copos, fazendo poças no chão ao lado da cama. - Aqui, meu bem - disse ela, levando o copo aos lábios de Tyrell. Ergueu o seio direito, aproximando-o da face dele. - Eu quero me lembrar de todos os momentos que nós passamos juntos.
- Você está linda.
- Obrigada, Comandante... desculpe, eu me esqueci, você não gosta desse título.
- Eu já contei o que aconteceu em Amsterdã - disse Hawthorne, mal conseguindo articular as palavras. - Detesto esse título... Ai, meu Deus, estou bêbado, e não posso me lembrar de quando... eu ficava bêbado antigamente...
- Você não está nada bêbado, meu bem, nós só estamos comemorando. Não foi isso que a gente combinou?
- Foi... é, foi isso, sim.
- Então vamos transar de novo, meu amor querido.
- O quê...? - A cabeça de Tyrell rolou para o lado e ele apagou; a ingestão exagerada de álcool, à qual ele não estava mais acostumado, fora demais para o seu organismo.
Dominique levantou-se da cama em silêncio, foi até a cadeira próxima à janela, onde sua roupa estava jogada, e vestiu-se rapidamente. De repente, notou a camisa de algodão marrom-claro de Hawthorne, que ele havia largado no chão; era a roupa que todos usavam nas ilhas, um camisão leve, com quatro bolsos, vestido diretamente sobre a pele, no calor tropical. Não foi, porém, a camisa em si que lhe chamou a atenção e sim um envelope dobrado, meio amarrotado, de bordas listradas de azul e vermelho, o tipo de envelope usado por órgãos de governo ou por instituições particulares que quisessem parecer oficiais. Ela se ajoelhou, tirou o envelope do bolso da camisa, e o abriu para ver o que continha: uma nota escrita à mão, concisa e objetiva. Aproximou-se da janela para conseguir ler; a nota estava escrita numa folha de papel de um iate clube:
Assunto: Mulher adulta viajando com rapaz bem mais jovem.
Detalhes: Descrições incompletas, mas poderia ser Bajaratt e o jovem acompanhante, conforme visto em Marselha. Nomes registrados na declaração de bagagem do porto de St. Martin: Frau Marlene Richter e Hans Bauer, neto. De acordo com os registros, Bajaratt nunca utilizou um nome alemão antes, e não se sabe se ela fala a língua, mas é inteiramente possível que sim.
Contato: Inspetor Lawrence Major, chefe da segurança da ilha de S. Barts.
Intermediário: Nome não divulgado a pedido do próprio.
Método/Operação: Aproximar-se dos suspeitos por trás, armas na mão. Gritar o nome Bajaratt e preparar-se para atirar.
Dominique apertou os olhos, ofuscada pela luz que entrava pela janela, pôs a nota de volta no envelope e cruzou o quarto para devolvê-lo ao bolso da camisa de algodão. Em seguida, retesando as costas, fitou a figura nua deitada na cama. Seu magnífico amante havia mentido. O capitão Tyrell Hawthorne, da Olympic Charters, ilhas Virgens americanas, voltara a ser o comandante Hawthorne, da inteligência naval, Amsterdã, recrutado para caçar uma terrorista do vale do Baaka, cuja viagem de Marselha até o Caribe havia sido rastreada. Era trágico, e tragicamente irônico, pensou Dominique, aproximando-se da escrivaninha para pegar sua bolsa. Em seguida, voltou até a mesinha de cabeceira e ligou o rádio, aumentando aos poucos o volume até que o som estridente e a batida violenta da música caribenha preenchessem todo o espaço do quarto. Hawthorne continuava imóvel.
Era algo tão terrível, tão desnecessário... tão doloroso que ela não ousava reconhecer, embora, ao negar, a dor aumentasse. Ela havia fantasiado uma vida, a vida que ela, se pudesse, faria tudo para ter. Um marido insignificante que apoiava suas causas fielmente, deixando que ela buscasse livremente toda a felicidade que fosse possível encontrar num mundo de deslealdade e traição. Como ela queria que tudo fosse assim, tão simples, mas não era! Ela amava aquele homem nu, deitado na cama, amava a alma, o corpo, até mesmo o sofrimento dele, pois ela compreendia aquilo tudo. Mas esta era a vida real, não uma fantasia.
Lentamente, com todo o cuidado, abriu a bolsa, retirou uma pistola automática e, dobrando o travesseiro sobre a têmpora esquerda de Hawthorne, apontou a arma e pôs o dedo no gatilho, enquanto o reggae-calypso se desenrolava em crescendos sucessivos... Não, ela não podia fazer isso! Sentia ódio de si mesma, mas não podia fazer isso! Ela amava aquele homem, tanto quanto amara o incendiário de Ashkelon!
Amaya Bajaratt pôs a arma de volta na bolsa e saiu do quarto correndo.
Hawthorne acordou, a cabeça latejante, a visão desfocada, consciente, de súbito, de que Dominique não estava ao seu lado. Onde estava ela? Num pulo, levantou-se, recuperando imediatamente o autocontrole, e olhou para o telefone antiquado, na mesinha de cabeceira do lado oposto da cama. Atirando-se sobre os lençóis, tirou o fone do gancho e discou o número da recepção.
- A mulher que estava aqui! - gritou ele. - A que horas ela saiu?
- Há mais de uma hora, senhor - respondeu o recepcionista. - Uma moça muito simpática.
Tyrell bateu o telefone, entrou no banheiro, pequeno e inadequado, e encheu de água fria a pia, igualmente inadequada. Mergulhou o rosto na água, com a cabeça na ilha de Saba. Tinha certeza de que ela não voltaria para Paris sem se despedir do tio... Mas antes ele tinha que ligar para Virgin Gorda e dizer a Geoffrey Cooke que sua missão fora um fiasco.
- Christiansted também não deu em nada, cara, e nem Anguilla - disse Cooke, de Virgin Gorda. - Acho que perdemos o nosso tempo. Você está voltando agora à tarde?
- Não, tenho uma outra coisa para fazer.
- Você encontrou alguma coisa?
- Encontrei e perdi, Geoff. Mas não é nada de importante para vocês, só para mim. Vou voltar mais tarde.
- Volte sim. A gente recebeu mais dois comunicados, que eu e o Jacques vamos cobrir.
- Deixem um recado com o Marty, dizendo onde eu posso encontrar vocês.
- Com o mecânico?
- Ele é mais do que um mecânico.
Os flutuadores do hidroavião pousaram ruidosamente nas águas calmas e, descrevendo um semicírculo, penetraram na pequena enseada, cercada de rochas, da ilha particular. O piloto manobrou a pequena nave e parou junto ao píer, onde um dos guardas esperava, com sua arma lupo. O capo segurou a asa do aparelho, estabilizando-o, e largou-a apenas por um momento para ajudar Bajaratt a subir do flutuador para o píer.
- O padrone passou bem o dia, signora - disse o homem, com seu sotaque italiano, gritando, para que ela o escutasse em meio ao barulho dos motores. - Para ele, ver a senhora é melhor do que todos os tratamentos que ele faz em Miami. Hoje ele ficou cantando ópera enquanto eu estava dando banho nele.
- Você pode resolver tudo aqui para mim? - perguntou Baj, apressada. - Tenho que ir direto falar com ele.
- Não tem nada para resolver aqui não, signora. Eu dou um empurrão na asa e o nosso amico silenzioso faz o resto.
- Va bene!
Amaya subiu correndo a escada de pedra e, ao chegar ao último degrau, parou para recuperar o fôlego. Era melhor não demonstrar ansiedade. O padrone não gostava das pessoas que perdiam o autocontrole, e ela não havia perdido o seu, mas descobrir que sua presença era conhecida nos círculos de inteligência que cobriam as ilhas fora um choque. Ela podia aceitar que o padrone soubesse, pois ele era credor de dívidas do vale do Baaka no mundo inteiro, mas era inaceitável que se tivesse montado uma caçada de tal monta, na qual até mesmo Hawthorne, já aposentado, estava envolvido. Respirando fundo, Bajaratt cruzou a passagem de pedra e girou a maçaneta de bronze da porta. Ao abri-la, parou sob o batente e viu a figura frágil na cadeira de rodas a acenar para ela, como uma criança, do meio do enorme saguão.
- Ciao, Annie! - exclamou o padrone, com um sorriso débil, e com todo o entusiasmo que ele era capaz de expressar. - Você passou bem o dia, minha filha?
- Não consegui ir ao banco - respondeu Bajaratt, lacônica, entrando no saguão.
- Mas isso é lamentável. E por que você não conseguiu? Minha filhinha, você sabe como eu adoro você, e eu não vou permitir que nenhum dinheiro seja transferido para você de uma das minhas contas. Seria arriscado demais, e além disso os meus companheiros lá do Mediterrâneo podem muito bem mandar tudo o que você precisar.
- Eu não estou preocupada com o dinheiro - disse Amaya. - Isso eu posso voltar lá amanhã para buscar, estou preocupada é porque todos eles, os americanos, os ingleses e os franceses, sabem que estou por aqui.
- Mas é claro que eles sabem. Annie! Até eu sabia que você vinha para cá; você acha que eu soube disso como?
- Eu achei que tinha sido pelo Baaka, por causa das operações financeiras.
- Eu não falei do Deuxième, do MI-6, nem dos americanos?
- Me desculpe, padrone, mas às vezes o senhor exagera com essa sua vocação para astro de cinema.
- Molto bene! - disse o inválido, com um riso arranhado, as cordas vocais contraídas. - Mas isso não é bem verdade. Eu tenho uns americanos que trabalham para mim de vez em quando; foram eles que me informaram de que tinham dado um alerta aqui sobre você. Mas onde, em que ilha? Impossibile! Ninguém sabe como você é, e você é mestra, talvez até doutora, em mudar de cara. Então, qual é o perigo?
- O senhor se lembra de um homem chamado Hawthorne?
- Claro que lembro, lembro sim. Um oficial desacreditado da inteligência americana, da Marinha, eu acho, que foi casado com uma agente dupla soviética. Você descobriu quem era ele e armou um encontro, aí aproveitou e ficou com ele alguns meses, enquanto estava se recuperando dos tiros. Achou que poderia aprender alguma coisa com a experiência dele.
- O que eu aprendi não valeu muito, mas agora ele voltou para o serviço da inteligência para caçar a Bajaratt. Eu o encontrei por acaso hoje, passei a tarde com ele.
- Que maravilha, minha filhinha - disse o padrone, examinando o rosto de Bajaratt com seus pálidos olhos azuis. - E que sorte a sua. Pelo que eu me lembro, você foi muito feliz naquele tempo.
- O que é diversão para uns é trabalho para outros, meu pai. Para mim, ele era um mero instrumento de aprendizado, se alguma coisa que ele soubesse fosse útil para mim.
- Um instrumento que tocava música para você, não é?
- Que besteira!
- Você vivia saltitando e cantando que nem uma criança, coisa que você nunca foi.
- A sua memória cinematográfica deforma o seu senso de observação. Eu estava ficando curada dos ferimentos, só isso... Ele está aqui, o senhor não está entendendo? E ele vai até Saba atrás de mim!
- Ah, é, eu me lembro. Um tio imaginário, um francês, não é?
- Ele tem que ser morto, padrone!
- E por que você não matou ele hoje à tarde?
- Porque eu não tive oportunidade. Eu fui vista com ele, iam me descobrir.
- É realmente extraordinário - disse o velho italiano, em voz baixa. - A Baj que é tida em tão alta conta sempre criou as suas próprias oportunidades.
- Pare com isso, meu pai! Mate o cara!
- Muito bem, minha filha. O coração nem sempre consegue se decidir... Saba, não é? Menos de uma hora no nosso barquinho. - O padrone ergueu a cabeça. - Scozzi! - gritou, chamando um dos seus ajudantes.
O que importava era a rapidez, pois nas ilhas a memória, quase sempre intencionalmente, era curta. Saba não era um ponto turístico, mas Hawthorne a conhecia das poucas vezes em que fora até lá no seu barco. Todo mundo nos portos das ilhas mais próximas de St. Thomas e Tortola recebia bem os capitães dos barcos de turismo. Era um bom negócio, e Tyrell contava com a hospitalidade nativa.
Alugou um hidroavião em Barts e voou até o modesto ancoradouro da ilhazinha; queria obter toda a cooperação possível. E pareceu conseguir, embora as informações recebidas fossem absurdas.
Ninguém na marina conhecia um senhor que tinha uma empregada francesa. Ninguém havia visto uma mulher que correspondesse à descrição de Dominique. Como era possível que eles não conhecessem aquela mulher branca, alta, linda, que vinha visitar o tio com tanta frequência? Era estranho; os meninos costumavam saber de tudo o que acontecia nas ilhazinhas, especialmente ali, nas docas. Os barcos chegavam trazendo suprimentos, os suprimentos tinham que ser distribuídos e pagos no ato da entrega; os comerciantes em geral conheciam os caminhos que levavam a cada casa, num lugar como Saba. Por outro lado, como ele mesmo dissera para Dominique, seu tio era o "eremita dos eremitas", a ilha possuía uma pista de pouso e alguns pequenos estabelecimentos comerciais cujas mercadorias eram trazidas de avião e vendidas por preços mais altos. Talvez aquilo fosse o suficiente para um velho debilitado e sua empregada.
Sob um calor tórrido, Tyrell encaminhou-se até a casinha onde funcionava o correio da ilha; foi atendido por um funcionário que lhe disse, com ar arrogante:
- O senhor está maluco! Aqui não tem nenhuma caixa postal dessa pessoa nem nenhuma mulher com sotaque de francesa.
Aquela informação era ainda mais estranha do que as que ele recebera na marina. Dominique havia-lhe contado, anos antes, que seu tio recebia uma pensão "bastante boa" da sua firma; os pagamentos eram remetidos mensalmente. Mais uma vez, havia a pista de pouso, que podia oferecer outra explicação. O correio era irregular nas ilhas menores; talvez a pensão do advogado aposentado fosse enviada de Martinica, por via aérea. Certamente era mais seguro e eficiente.
Tyrell logo se informou com o funcionário do correio sobre o aluguel de uma motocicleta, o meio de transporte mais usado em Saba. Foi simples; o rapaz tinha várias delas nos fundos da casinha. A única exigência era que ele fizesse um elevado depósito, deixasse sua carteira de motorista e assinasse um papel, declarando que se responsabilizava por todos os consertos, cujo valor seria deduzido da quantia depositada.
Hawthorne passou quase três horas percorrendo as ruas, os morros, de casa em casa, de cabana em cabana, de barraco em barraco, encontrando invariavelmente moradores hostis, com armas de fogo na cintura, protegidos por cães rosnentos. A única exceção foi a sua última parada, a casa de um sacerdote anglicano aposentado, um homem de nariz inchado e o rosto cheio de manchas e veios avermelhados. Logo lhe foi oferecida uma dose de rum, bem como a oportunidade de se refrescar e tirar a poeira das roupas e do corpo. As duas ofertas foram recusadas com delicadeza, devido à pressa do visitante, e, enquanto fazia perguntas ao prelado idoso e desalinhado, Tyrell não conseguia disfarçar a ansiedade.
- Eu lamento sinceramente, mas devo dizer que não existe ninguém que corresponda às pessoas que você descreveu, meu jovem.
- O senhor tem certeza?
- Ah, tenho, tenho sim - respondeu o sacerdote, com ar vago, porém levemente divertido. - Eu conheço as minhas fraquezas, e em alguns momentos sinto claramente a necessidade de servir a Deus, como eu fazia antigamente. Então, faço como o velho Pedro, e saio de casa em casa, levando a palavra de Deus Nosso Senhor. Eu percebo que, como é bastante natural, eles me tratam como um velhinho tolo, mas isso faz com que eu me sinta purificado durante algum tempo e, bem, posso garantir que ainda estou com a cabeça no lugar. Nos últimos dois anos, desde que vim para cá, visitei todos os moradores: ricos, pobres, pretos, brancos. Uma, duas, três vezes... Não existe ninguém em Saba que se pareça com a sua descrição. Você não quer mesmo uma dose de rum? É a única coisa que eu tenho para oferecer, que eu posso comprar, mas eu tenho um pé de lima e um de manga; os dois sucos misturados combinam bem com o Cruzan.
- Não, obrigado, padre. Estou com muita pressa.
- Acho que você não quer me agradecer por nada. Dá para ver pela sua voz.
- Desculpe. É que estou confuso, só isso.
- E quem não está, meu jovem?
Hawthorne devolveu a moto na agência do correio, recebeu de volta sua carteira de motorista e metade do depósito e, sem reclamar, tomou o caminho de volta para a marina, onde estava o seu aviãozinho alugado.
O avião não estava lá.
Apertando o passo, ele logo se pôs a correr. Tinha que voltar para Gorda... diabo, onde estaria o avião? Deixara-o amarrado no píer; o piloto e os rapazes que trabalhavam ali haviam garantido que ele permaneceria no mesmo lugar até a sua volta.
Viu, então, avisos pregados nos postes, pintados às pressas, alguns escritos corretamente, outros não. PERIGO. CONSERTO DOS PILARES. MANTENHAM-SE AFASTADOS ATÉ FIM DOS TRABALHOS.
Pelo amor de Deus, eram quase seis horas da tarde, já estava escurecendo, a visibilidade debaixo d’água devia estar terrível, devido ao alongamento das sombras, ao sol poente. Ninguém consertava pilares em tais condições; o píer podia desmoronar, enterrando sob seu peso um mergulhador, sem que houvesse qualquer luz vinda da superfície para alertá-lo. Tyrell atravessou correndo a área demarcada e foi até a oficina situada na extremidade direita do extenso cais, onde as esteiras de transporte e os pesados guinchos desciam até a água. A oficina estava deserta. Aquilo era uma loucura! Homens trabalhando debaixo d’água àquela hora sem ninguém de plantão, sem oxigênio nem equipamento médico; e se houvesse um acidente? Saiu correndo da oficina e desceu até a praia, que dava para a escada do píer, temendo que as nuvens encobrissem os últimos raios de sol. Como é que alguém podia trabalhar daquela maneira? Ele já havia consertado vários cascos de embarcações em condições semelhantes, mas sempre amarrado com cordas, e com pessoas na superfície para içá-lo em caso de emergência. Subiu a escadinha e, com muita cautela, começou a caminhar pelo píer. As nuvens cobriam o sol, nuvens escuras, agora, anunciando chuva.
Seu impulso imediato era tirar os mergulhadores da água e, com a autoridade do militar que fora, repreendê-los, dizendo que aquilo era uma estupidez enorme, e depois dispensá-los por aquela noite.
Sua autoridade, porém, diminuía à medida que seus passos avançavam; não se via nenhuma corda, nenhuma bolha nas águas escuras. Não havia uma alma, nem no píer nem no mar. A marina estava deserta.
De repente, os holofotes, no alto dos postes de alumínio, se acenderam, uma luz intensa que perturbou-lhe a visão. E, logo a seguir, ele sentiu algo gelado encostar-se no seu ombro esquerdo, e ouviu a explosão de um tiro; agarrando o ombro com a outra mão, pulou do píer e mergulhou, escutando a saraivada de tiros, enquanto afundava na água. Por razões que ele nunca seria capaz de explicar, resolveu deixar-se guiar pelo pânico. Foi nadando por baixo d’água até onde o fôlego lhe permitiu, tomando a direção do barco mais próximo que ele lembrava ter visto. Subiu à tona duas vezes, para encher os pulmões, apenas com o rosto para fora d’água, e seguiu em frente, até se deparar com o casco de madeira de uma embarcação. Voltou à superfície na última linha-d’água, respirou novamente e nadou por baixo d’água até o outro lado do barco. Ergueu-se pela amurada e olhou na direção do píer, agora iluminado não só pelos raios difusos do sol, mas também pelo clarão dos holofotes. Os dois pretensos assassinos, de cócoras na beira da doca, perscrutavam as águas.
- Suo sangue! - gritou um deles.
- Non basta! - respondeu o outro, saltando para dentro de uma lanchinha; com sua lupo engatilhada, deu instruções, enquanto ligava o motor, para que seu comparsa soltasse a corda e embarcasse. Os dois puseram-se a esquadrinhar o pequeno porto, trazendo nas mãos um AK-47 e a arma do lobo.
Hawthorne esgueirou-se pela amurada do barco e, no meio das tiras de náilon junto ao bote auxiliar, encontrou o que procurava - uma faca de descamar peixe. Voltou para dentro d’água, tomando o máximo cuidado para não fazer nenhum barulho; seus sapatos haviam desaparecido; tirou, então, as calças, tentando guardar bem o lugar em que as deixara afundar; caso conseguisse sobreviver, ele voltaria para buscá-las. Contorcendo-se, conseguiu tirar a camisa de algodão, enquanto lhe ocorria a estranha ideia de que Geoffrey Cooke teria que pagar pelo dinheiro, os papéis e o avião perdidos. Foi nadando pelas águas cada vez mais escuras e, novamente preocupado com a possante lanterna que seus inimigos apontavam para todos os lados, Tyrell mergulhou fundo, no rastro da lanchinha, até escutar o barulho do motor perto de seus ouvidos.
Cronometrando os movimentos, Tyrell subiu à superfície exatamente junto à popa da embarcação e enfiou a mão na caixa do motor, impedindo o movimento do leme. Furioso, e aturdido ao ver que a lancha não obedecia aos seus comandos, o piloto inclinou-se sobre a popa, menos de meio metro acima da linha-d’água. Ao ver a mão de Tyrell, seus olhos quase saltaram das órbitas, como se tivessem visto um tentáculo de algum monstro marinho. Antes que ele pudesse gritar, Hawthorne afundou a lâmina da faca no pescoço do potencial assassino, levantando a mão esquerda e apertando-lhe a garganta de maneira que ele não pudesse emitir qualquer som. Puxou, então, o cadáver para dentro d’água e, movendo com cuidado o hélice para boreste, subiu na lancha e tomou o lugar do piloto, enquanto o outro, de costas para ele, apontava obsessivamente a lanterna de um lado para o outro, examinando a superfície da água que se estendia à sua frente. Hawthorne pegou o AK-47 e disse em voz alta:
- As ondas quebram com muita força a esta hora e o motor é meio barulhento. Sugiro que você largue essa arma, ou então vá se encontrar com o seu amigo. Acho que você também ia dar um ótimo filé-mignon para os nossos tubarões. Mas eles são criaturas muito bondosas; eles preferem quando a refeição já vem morta.
- Che còsa? Impossibile!
- É sobre isso que nós vamos conversar - disse Tyrell, fazendo-se ao mar.
5
A noite caía; as águas estavam calmas, a lua, quase invisível através da camada de nuvens, e a pequena lancha subia e descia, embalada pela marola suave. O segundo assassino, sentado no banquinho da proa, com as mãos para cima, piscava os olhos, nervoso, sob a luz intensa da possante lanterna.
- Abaixe as mãos - ordenou Hawthorne.
- Esta luz está me deixando cego. Tire ela daí!
- Na verdade, ficar cego seria até uma bênção, quer dizer, se você me obrigar a fazer alguma coisa antes de jogar você no mar.
- Che còsa?
- Todos nós temos que morrer um dia. Às vezes eu acho que o que importa é a qualidade da morte, não a morte em si.
- O que é que o senhor está dizendo, signore...?
- Que você vai me contar tudo o que eu quero saber, se não quiser virar merenda de tubarão. Se você ficar cego, não vai ver aquela fila enorme de dentes pontudos cortando você ao meio. Esses peixes graúdos são luminosos, você sabe, fáceis de ver debaixo d’água. Olhe ali a nadadeira dorsal! Ele deve ter mais de cinco metros de comprimento; está na época da temporada de pesca, você sabe disso, não é? Por que é que você acha que tem tantos concursos de pesca de tubarão aqui nas ilhas nesta época do ano?
- Eu não sei de nada disso, não!
- Quer dizer que você não lê os jornais daqui, mas, também, por que você haveria de ler? Eles não dão muitas notícias da Sicília.
- Sicília?
- Eu não ficaria nada espantado se você fosse um núncio apostólico; acho até que eles atiram melhor que você... Vamos lá, paisan, ou você cai na real, ou então cai na água com o ombro sangrando, que nem o meu está, e vai brincar com o amigo que está aqui nos rondando, com uma mandíbula maior que um terço do corpo dele.
O italiano girava a cabeça de um lado para o outro, os olhos arregalados, tentando tapar a luz com as mãos, enquanto examinava a água de ambos os lados da lancha.
- Não estou vendo!
- Ele está bem atrás de você. Se você se virar, vai conseguir ver.
- Pelo amor de Deus, não faça isso!
- Por que vocês tentaram me matar?
- Ordens!
- De quem? - O assassino não respondeu. - Quem vai morrer é você, não sou eu - disse Tyrell, engatilhando o AK-47. - Vou arrancar um pedaço do seu ombro esquerdo; assim o sangue vai espalhar mais rápido, como um cardume de peixinhos. Claro, os tubarões brancos gostam de beliscar... um tira-gosto antes do prato principal. - Hawthorne apertou o gatilho e deu um tiro na água, à direita do mafioso; a explosão ecoou pela noite.
- Pare!... Pare, pelo santo nome de Deus!
- Uau, vocês lembram dele rapidinho, quando precisam. - Hawthorne atirou novamente, numa rajada ensurdecedora; algumas balas rasparam o ombro do mafioso.
- Per piacere! Por favor, eu estou implorando!
- O meu amigo ali embaixo está com fome. Por que eu não haveria de satisfazer o apetite dele?
- O senhor... o senhor já ouviu falar de um vale...? - O assassino engasgou, procurando as palavras, visivelmente em pânico, tentando recordar outras palavras que já tivesse ouvido. - De um lugar distante, do outro lado do mar!
- Já, já ouvi falar do vale do Baaka - disse Tyrell, sem se alterar. - Fica do outro lado do Mediterrâneo. E daí?
- As ordens vieram de lá, signore.
- E quem foi que transmitiu essa ordem?
- Foi de Miami, o que mais o senhor quer que eu diga? Eu não conheço os capi!
- E por que eu?
- Eu não sei dizer, signore.
- Bajaratt! - urrou Hawthorne, vendo nos olhos arregalados do siciliano aquilo que procurava. - É a Bajaratt, não é?
- Si, si, eu já ouvi esse nome. Mais nada.
- Do Baaka?
- Signore, por favor! Eu sou só um soldato, o que é que o senhor quer de mim?
- Como foi que vocês me descobriram? Vocês seguiram uma mulher chamada Dominique Montaigne?
- Non capisco, nunca ouvi esse nome.
- Mentiroso! - Tyrell disparou novamente o AK-47, mas sem atingir o ombro do capo; uma estratégia ditada pela experiência, apavorando ainda mais o interlocutor.
- Eu juro! - gritou o capo subordinato. - Tem outras pessoas que também estão atrás do senhor.
- Porque eles sabem que eu estou atrás dessa Bajaratt.
- Qualquer que seja a razão, elas estão atrás do senhor.
- É, pode ser - disse Tyrell, dando a volta com o barco.
- O senhor não vai me matar...? - O assassino fechou os olhos e começou a rezar quando Hawthorne desviou do seu rosto o facho da lanterna. - Eu não vou virar comida de tubarão?
- Você sabe nadar? - perguntou Tye, ignorando a pergunta do outro.
- Claro que sei - respondeu o capo - mas eu não posso nadar nesse mar, principalmente sangrando como estou.
- Você nada bem?
- Eu sou siciliano, de Messina. Quando eu era criança, mergulhava para pegar as moedas que os turistas jogavam dos navios.
- Ótimo. Porque eu vou deixar você a uns oitocentos metros da praia. O resto é com você.
- E os tubarões?
- Há mais de vinte anos que ninguém vê um tubarão perto da praia. Eles não gostam de cheiro de coral.
Hawthorne sabia que o siciliano estava mentindo. Quem quer que estivesse por trás daquele atentado havia subornado toda a marina, para conseguir fechá-la. O vale do Baaka não tinha condições de fazer aquilo, com ou sem o auxílio da Máfia. Havia mais alguém, alguém que conhecia as ilhas e sabia como agir. Essa pessoa estava protegendo aquela psicopata, Bajaratt. Hawthorne, postado do lado de fora da oficina, vestido com um macacão sujo que encontrara ali dentro, observava o capo que se aproximava da praia, cambaleando em meio à espuma macia das ondas, tão exausto que caiu de bruços na areia, arquejante. Havia-se desfeito da camisa e dos sapatos, mas o volume do bolso direito da calça indicava que ele guardara ali todos os pertences julgados necessários. Tyrell contava com isso; um pombo-correio sem um envelope é uma ave inútil.
Depois de dois minutos, o mafioso ergueu a cabeça sob a luz dos holofotes. Pôs-se de pé com alguma dificuldade e lançou um rápido olhar em torno de si; era visível que estava tentando se orientar. Em seguida, o capo parou de girar a cabeça para os lados e seus olhos se concentraram na oficina. Aquele era o lugar de onde ele e seu companheiro, agora morto, haviam iniciado a operação; não havia dúvida. Fora dali que eles acenderam os holofotes, ali que eles passaram o dinheiro. E havia um balcão com um telefone... A essa altura, pensava Hawthorne, recordando diversas situações semelhantes ocorridas em Amsterdã, Bruxelas e Munique, a sua presa era como um robô programado. Ele tinha que obedecer ao instinto de sobrevivência. E obedeceu.
Ofegante, o mafioso correu pela praia até chegar ao pé da escada que levava à oficina. Agarrou-se no corrimão e começou a subir, pondo a toda hora a mão no ombro, fazendo caretas diante daquele ferimento banal. Tyrell sorria; seu ombro já estava desinfetado pela água do mar e agora quase já não sangrava. Um simples curativo resolveria o problema dos dois, mas o capo parecia estar cantando uma ópera melodramática.
O assassino alcançou a oficina, abriu a porta com uma força desnecessária e entrou. Em segundos, os holofotes se apagaram e uma lâmpada se acendeu. Hawthorne aproximou-se da porta, pé ante pé, e ouviu o mafioso discutindo pelo telefone com uma telefonista caribenha.
- Si! É, isso mesmo, é um número em Miami! - dizia ele, repetindo os dígitos, que Hawthorne gravou na memória; meu Deus, aqueles jogos novamente! - Emergènza! - gritou o mafioso quando a telefonista completou a ligação. - Cerca il padrone via satellite! Presto! - Alguns instantes se passaram, até que o homem, apavorado, recomeçasse a falar, aos gritos: - Padrone, esso incredibile! Scozzi è morto! Un diavolo da inferno...!
Tyrell não conseguia entender o italiano atropelado que o capo gritava ao telefone, mas o que fora capaz de pescar era o suficiente. Estava a par de um número em Miami, da existência de alguém chamado padrone, que era acessado via satélite - alguém, ali no arquipélago, que estava ajudando e encobrindo a terrorista Bajaratt.
- Ho capito! Nuova York. Va bene!
Estas últimas palavras também não eram difíceis de entender, pensou Hawthorne, enquanto o mafioso colocava o fone no lugar e se dirigia para a porta, ansioso. Haviam mandado que o capo fosse para Nova York, onde ficaria fora de circulação até nova convocação. Tyrell pegou uma âncora coberta de ferrugem, abandonada na plataforma da oficina e, quando o mafioso apareceu no limiar da porta, atirou o pesado objeto de duas pontas nas pernas do assassino, fraturando-lhe os dois joelhos.
O capo soltou um grito e desabou no chão de madeira, inconsciente.
- Ciao - disse Hawthorne, com o corpo inclinado, enfiando a mão no bolso direito da calça do inimigo e retirando todo o seu conteúdo. Examinou os objetos, que o fizeram sentir nojo do dono. Havia um livro de orações preto, escrito em italiano, as contas de um rosário e um maço de dinheiro com novecentos francos franceses - mais ou menos cento e oitenta dólares. Não havia carteira, porta-notas, documentos, nada - Omertà.
Tyrell pegou o dinheiro, levantou-se e saiu correndo. Em algum lugar, de alguma maneira, ele tinha que achar um avião e um piloto.
A figura frágil na cadeira de rodas deixou o escritório e foi ao encontro de Bajaratt, no aviário de mármore.
- Baj, você tem que ir embora imediatamente - disse ele, resoluto. - Agora. O avião já vai chegar, e Miami está mandando dois homens para ficar aqui comigo.
- Padrone, o senhor enlouqueceu! Eu já fiz os contatos, os seus contatos, e eles vêm aqui falar comigo nos próximos três dias. O senhor já confirmou os depósitos do vale do Baaka em St. Barts; ninguém vai descobrir nada.
- Pois eu sei de uma descoberta muito pior, minha filha. O Scozzi foi morto, assassinado pelo seu Hawthorne. E o Maggio está em Saba, histérico, dizendo que o seu amante é um homem diabólico.
- Ele é só um homem - respondeu Bajaratt com frieza. - Por que não o mataram?
- Bem que eu queria saber, mas você tem que ir embora. Imediatamente!
- Padrone, não é possível que o senhor esteja pensando que o Hawthorne seria capaz de fazer a ligação entre nós dois, ou então, mais impossível ainda, de achar que Dominique Montaigne tem alguma ligação com Bajaratt? Meu Deus, a gente passou a tarde fazendo amor, e ele pensa que eu estou voltando para Paris. Ele me ama, aquele idiota!
- Será que ele não é mais esperto do que a gente pensa?
- De jeito nenhum! Ele é como um animal ferido, precisando de socorro, é por isso que ele cai em qualquer uma.
- E você, minha filha? Eu me lembro que você, há quatro anos atrás, vivia alegre, cantando pelos corredores. É óbvio que você gostava desse homem.
- Não seja ridículo! Agora há pouco eu estava prestes a dar um tiro nele, só que eu me lembrei que o rapaz da recepção sabia que eu estava no quarto... O senhor aprovou a minha decisão, padrone, até elogiou a minha prudência. O que mais que eu posso dizer?
- Não diga nada, Baj. Eu é que vou dizer uma coisa. Nós vamos mandar você para St. Barts; amanhã de manhã você pega o seu dinheiro no banco e depois o avião leva você para Miami ou para qualquer lugar que você quiser.
- E os meus contatos? Eles pensam que vão me encontrar aqui.
- Deixe que eu cuido deles. Vou lhe dar o número de um telefone. Enquanto você precisar, eles vão ficar à sua disposição.
- Padrone, o telefone. Já sei exatamente o que fazer.
- Espero que você me informe antes.
- Nós temos amigos em Paris?
- Claro que temos.
- Ótimo!
Hawthorne precisava desesperadamente encontrar um avião e um piloto, mas esta não era a sua prioridade no momento. Havia outra: um traidor perfeito, chamado capitão Henry Stevens, da inteligência naval americana. O fantasma de Amsterdã surgira de repente, como um pássaro de fogo levantando-se das cinzas negras de um sonho estilhaçado. St. Barts e o desaparecimento de Dominique lembravam demais os acontecimentos terríveis que haviam levado à morte de sua mulher. Aquilo não fazia sentido! Se Stevens tinha algum envolvimento, mínimo que fosse, Tye tinha que saber! Depois de dar uma nota de cem francos e de soletrar seu nome e seus dados pessoais para o único funcionário disponível - um apático operador de rádio da torre de controle, que nem era uma torre e nem controlava coisa alguma, a não ser as luzes da pista - foi-lhe permitido usar o telefone do campo de aviação de Saba. O telefone de Miami estava guardado na sua memória; o de Washington era automático.
- Departamento de Marinha - respondeu uma voz, dois mil e quatrocentos quilômetros ao norte.
- Divisão Um, Inteligência, por favor. Código de acesso quatro-zero.
- É uma emergência, senhor?
- Acertou, amigo.
- I-Um - atendeu uma segunda voz, instantes depois. - O senhor disse quatro-zero?
- Disse.
- Qual é o assunto?
- Um assunto que só pode ser tratado entre mim e o capitão Stevens. Passe a ligação para ele. Agora.
- Eles estão em reunião lá em cima. Quem deseja falar?
- Diga que é Amsterdã que ele atende. Na hora.
- Vamos ver.
O antipático funcionário do serviço de inteligência passou a ligação, e em instantes ouviu-se a voz de Stevens:
- Hawthorne?
- Eu sabia que você ia descobrir tudo, seu filho da puta!
- Que história é essa?
- Você sabe muito bem! Os seus robôs me descobriram, porque vocês, com os seus egos deprimidos, não conseguiram suportar que o MI-6 tivesse me recrutado, e pegaram ela para tentar descobrir alguma coisa, porque vocês sabiam que eu não ia abrir a minha boca para vocês! Eu ainda vou encostar esse seu rabo num tribunal militar, Henry.
- Ei, espere aí. Eu não tenho a menor ideia de onde você está e nem de quem é "ela"! Eu ontem passei duas horas insuportáveis com o diretor da CIA, levando esporro porque você se recusava a falar comigo, e agora você vem me dizer que nós "descobrimos" você, onde quer que você esteja, e sequestramos uma mulher que nós nem sabemos quem é. Pode parar com isso!
- Você é um mentiroso filho da puta! Você mentiu em Amsterdã.
- Eu tinha provas, você viu.
- Você forjou aquelas provas!
- Eu não forjei coisa nenhuma, Hawthorne, aquilo foi forjado para mim.
- E agora, a mesma história da Ingrid, de novo!
- Pare com essa história. Eu vou repetir: nós não temos ninguém aí nas ilhas que saiba alguma coisa sobre você nem sobre nenhuma mulher.
- Tem certeza, Capitão? Alguns desses palhaços que trabalham com você andaram me ligando, tentando me empurrar uma história de pânico em Washington. Eles souberam me encontrar; o resto ia ser fácil, até mesmo para eles.
- Então eles sabem mais do que eu! E como amanhã cedo eu vou ter uma reunião com todos os meus palhaços, como você diz, talvez eles me contem alguma coisa.
- Eles devem ter-me seguido até St. Barts, viram ela comigo e pularam em cima quando ela saiu.
- Tye, pelo amor de Deus, você está entendendo tudo errado! É claro que eu admito que a gente tentou de tudo para conseguir você de volta, seria uma verdadeira idiotice se a gente não tentasse. Mas o fato é que não conseguimos, não é? Os ingleses e os franceses conseguiram, mas nós não! Os nossos homens que estão aí nunca viram você... como era mesmo que você dizia?... Ah, sim, nunca viram você mais gordo.
- Não é difícil me achar. Eu até ponho anúncios nos jornais.
- E considerando que nós queremos a sua ajuda, a última coisa que a gente faria seria pegar uma amiga sua para fazer interrogatórios. Isto é uma loucura... Tye, você voltou a beber?
- Só uma recaída momentânea. Irrelevante.
- Talvez não seja tão irrelevante assim.
- É, sim. Se eu tivesse voltado a beber, não poderia estar velejando com os turistas, você sabe muito bem disso.
- É, você tem uma certa razão.
- Você também tem - respondeu Hawthorne, baixando o tom de voz. - Ela ia voltar hoje para Paris, depois ia para Nice. Ela não queria ir.
- Porra, então deve ser isso. Provavelmente ela não queria saber de despedidas.
- Eu não posso aceitar uma coisa dessas!
- Talvez você não se lembre por causa da sua "recaída momentânea"... Isso não é possível?
- Sabe o que é - respondeu Hawthorne, relutante, perdendo subitamente o ímpeto da raiva -, ela já fez isso uma vez, desapareceu.
- Então ela deve ter feito isso de novo. Ligue para Paris mais tarde; aposto que ela vai estar lá.
- Não posso. Eu não sei o nome do marido dela.
- Sem comentários, Comandante.
- Você não está entendendo...
- Nem é da minha conta...
- Isso faz quatro... cinco anos.
- Agora eu realmente não estou entendendo mais nada. Isso foi quando você saiu daqui.
- É, eu saí. E saí porque eu senti alguma coisa, senti que alguma coisa em Amsterdã foi muito malfeita, muito errada, e eu vou sentir isso pelo resto da vida.
- Nisso eu não posso ajudar você - disse o chefe da inteligência naval, depois de vários segundos de silêncio.
- Eu também não espero isso de você. - Novo silêncio.
- Você está fazendo algum progresso com o MI-6 e o Deuxième? - perguntou Stevens, por fim.
- Estou, desde menos de uma hora atrás.
- Eu falei com Londres e Paris, por sugestão do Gillette. Você certamente vai querer uma confirmação deles, mas, como eu estou mais perto, estou pronto a fornecer qualquer tipo de ajuda que você precise.
- Eu não preciso de confirmação nenhuma. Você ia se enforcar se ficasse fora do controle da situação. Não é o seu perfil, Capitão.
- Sabe de uma coisa, Hawthorne? - disse Stevens, sem se alterar. - Eu posso aturar os seus desaforos, mas só até certo ponto...
- Você tem que me aturar de qualquer jeito, Henry, vamos deixar isto bem claro! Não se esqueça que você é um merda de um funcionário, eu sou um contato independente. Eu posso mandar em você, mas você não pode mandar em mim, porque senão eu caio fora. Está entendendo?
Depois de um terceiro e prolongado silêncio, o chefe da inteligência naval perguntou:
- Você quer me fazer algum relatório?
- Isso mesmo, quero, e quero atividade imediata. Eu consegui o número de um telefone em Miami que acessa via satélite um outro telefone aqui nas ilhas. Preciso que ele seja localizado o mais rápido possível.
- Bajaratt?
- Só pode ser. Vou lhe dar o número. - Tyrell foi dizendo os números, pediu que Stevens confirmasse, deu-lhe o telefone do campo de aviação em Saba e já ia desligar, quando seu interlocutor o chamou:
- Tyrell! - disse ele. - Diferenças à parte, falando sério, você não pode me dar nenhuma informação, nenhuma dica?
- Não.
- Pelo amor de Deus, por que não? Agora eu sou o seu contato oficial e, diga-se de passagem, autorizado por todos os governos e você sabe o que isso significa... eu sou um merda de um funcionário, como você disse muito bem. Vou começar a pedir um monte de coisas e todo mundo vai querer explicações.
- O que quer dizer que os relatórios reservados continuam circulando, certo?
- Sob a máxima segurança. É a norma, você sabe.
- Então a minha resposta é não, não e não. Vocês podem achar que o vale do Baaka é como uma estação de esqui, mas eu não. Eu já vi os tentáculos deles se estendendo do Líbano a Bahrain, de Genebra a Marselha, de Stuttgart a Lockerbie. O seu pessoal está vulnerável, Henry, mas você se recusa a ver isso... Bem, se você conseguir logo alguma coisa, me ligue aqui para Saba; se for mais tarde, ligue para o iate clube de Virgin Gorda.
Nos noventa minutos que se seguiram, três aviões particulares pousaram na pista de Saba, mas nenhum dos ocupantes levou a sério as alegações de urgência e as promessas de dinheiro feitas por um Hawthorne maltrapilho, ansioso por voltar à ilha de Gorda. Segundo o operador de rádio, haveria um quarto e último voo chegando em cerca de trinta e cinco minutos. Depois disso, a pista seria fechada pelo resto da noite.
- Ele vai fazer contato antes de aterrissar?
- Claro que vai, a aproximação é difícil, é muito escuro lá em cima. Se estiver ventando, eu dou a direção e a velocidade do vento.
- Quando ele entrar em contato eu quero falar com ele.
- Pois não, amigo, tudo pelo governo.
Depois de quarenta e um minutos de ansiedade, o rádio da torre deu sinal de vida.
- Saba, este é o voo FO-465 vindo de Oranjestad, conforme programado. As condições estão normais?
- Mais dez minutos, amigo, e você não ia ter nenhuma condição, porque nós temos regras. Você está atrasado, FO-5.
- Pare com isso, rapaz, nós somos bons clientes.
- Eu não sei disso, não. Não conheço vocês...
- Esta rota é nova para nós. Eu estou vendo as luzes. Me diga, está tudo normal? O tempo tem andado meio esquisito ultimamente.
- Está tudo normal, amigo, só que tem uma pessoa aqui que quer falar com você, branquela.
- Ei, com quem você pensa que está falando...
- Aqui fala o comandante Tyrell Hawthorne, da Marinha dos Estados Unidos - interrompeu Tyrell, segurando o microfone obsoleto. - Nós estamos com uma emergência aqui e vamos ter que usar o seu aparelho para me levar para Virgin Gorda. O plano de voo já foi aprovado e vocês serão generosamente recompensados pelo seu tempo e pelo incômodo. Como está o combustível? Se for preciso, a gente pode conseguir um caminhão para reabastecer.
- Pois não, Comandante - foi a resposta nervosa que se ouviu pelo alto-falante.
Hawthorne olhava pela grande janela que ia até o teto, de frente para a pista de pouso. Para seu assombro, as luzes do avião que se aproximava levantaram-se novamente, inclinando-se para a direita e afastando-se de Saba a toda velocidade.
- Ei, o que é que ele está fazendo? - gritou Tyrell. - O que você está fazendo, piloto? - repetiu, junto ao microfone. - Eu já disse, é uma emergência.
Não houve resposta no alto-falante, apenas silêncio.
- Ele não quis pousar aqui, amigo - disse o operador de rádio.
- Mas por quê?
- Talvez porque você falou com ele. Ele disse que estava vindo de Oranjestad; pode ser que não seja verdade. Pode ser que ele esteja vindo de Vieques, em Cuba.
- Filho da puta! - Hawthorne deu um murro nas costas da cadeira. - E vocês, o que é que vocês estão fazendo aqui?
- Não grite comigo, companheiro. Eu faço relatórios todos os dias, mas o pessoal do governo não dá a mínima. Esses aviões vêm para cá o tempo todo, mas ninguém quer saber.
- Desculpe - disse Hawthorne, vendo o ar preocupado do negro. - Eu vou ter que dar outro telefonema. A Marinha vai pagar. - Discou para Virgin Gorda.
- Tye-Boy, onde você foi parar? - gritou Marty. - Era para você estar aqui.
- Eu não consegui arranjar nenhum avião para sair de Saba, e nem vou conseguir. Estou tentando há quase três horas.
- Essas ilhotas fecham cedo.
- Até de manhã consigo sobreviver, mas se eu não arrumar um avião amanhã cedo, eu ligo para vocês me mandarem um.
- Tudo bem... mas tem um recado para você, Tye...
- De um sujeito chamado Stevens?
- Ele é de Paris? A recepção do hotel me ligou há umas duas horas para perguntar se o seu barco estava aqui, e como o seu amigo, o Cooke, tinha falado comigo, eu disse que era para passar os recados para mim. Está aqui comigo. É da Dominique, com um telefone em Paris.
- Me dê o número! - Hawthorne agarrou um lápis que estava sobre a escrivaninha. O mecânico disse o número lentamente. - Mais uma coisa, espere um minuto - disse Hawthorne, voltando-se para o operador do rádio. - Já que eu não vou conseguir ir embora hoje, onde eu poderia ficar? É muito importante.
- Se é tão importante assim, você pode ficar aqui; tem uma cama num quartinho ali do outro lado, mas não tem nenhuma comida, só café. O meu chefe depois cobra direto da Marinha, mas você pode dormir aqui, depois que eu fechar. De manhã eu trago alguma coisa para você comer. Chego às seis.
- E vai ganhar o suficiente para mandar o seu chefe passear!
- Nada mau.
- Qual é o número daqui? - O operador deu-lhe o número e Hawthorne, voltando para o telefone, repetiu-o para Marty. - Se um cara chamado Stevens, ou melhor, se alguém me procurar, mande ligar para cá, está bem? Obrigado.
- Tye-Boy - disse o mecânico, cauteloso. - Você não está metido em alguma encrenca, está?
- Espero que não - respondeu Hawthorne, cortando a ligação e discando imediatamente o número de Paris.
- Allo, la maison de Couvier - atendeu uma voz feminina.
- S’il vous plaît, la madame - solicitou Tyrell, com uma fluência não mais do que suficiente. - Madame Dominique, por favor.
- Lamento, monsieur; madame Dominique tinha acabado de chegar quando o marido dela ligou de Montecarlo, pedindo para ela ir se encontrar com ele imediatamente... Mas como a madame conta tudo para mim, eu poderia perguntar se o senhor é o amigo dela das ilhas?
- Sou, sim.
- Ela me pediu para dizer ao senhor que está tudo bem, e que ela vai voltar para encontrar o senhor assim que puder. Graças a Deus, monsieur. Ela precisa de alguém como o senhor, ela merece. Meu nome é Pauline, e o senhor não deve falar com mais ninguém nesta casa, só comigo. Vamos combinar uma senha entre nós dois, para quando a madame não estiver em casa?
- Eu tenho uma. Eu vou dizer "ligação de Saba". E diga a ela que não estou entendendo. Ela não estava lá!
- Eu tenho certeza de que existe alguma razão, monsieur, e também tenho certeza de que a madame vai explicar tudo.
- Você é minha amiga, Pauline.
- Amiga de verdade, monsieur.
Na sua ilha particular, o padrone, rindo baixinho, foi até o telefone, seguido por seus novos acompanhantes, e ligou para o hotel em St. Barts.
- Você tinha razão, minha filha! - gritou ele pelo telefone. - Ele engoliu a história! Caiu direitinho. Agora ele tem uma confidente em Paris, chamada Pauline.
- Eu tinha certeza disso, meu pai - disse Bajaratt, do outro lado da linha. - Mas eu estou pensando num outro problema que está me preocupando muito.
- E o que é, Annie? Eu já aprendi que a sua intuição é infalível, tem que ser levada a sério.
- Eles estão sediados no iate clube de Virgin Gorda, por enquanto. O que será que eles receberam do MI-6? Ou até mesmo da inteligência americana?
- O que você quer que eu faça?
- Mande um animale de Miami ou de Porto Rico para descobrir quem está lá... e o que eles têm lá.
- Deixe comigo, minha filha.
Eram quatro horas da manhã quando a campainha do telefone quebrou o silêncio da torre de controle deserta. Ansioso, Hawthorne levantou-se da cama apertada, piscando os olhos, tentando se orientar, e atravessou correndo a porta aberta para atender o telefone sobre a escrivaninha.
- Alô? - gritou. - Quem é? - perguntou em seguida, sacudindo a cabeça para espantar o sono.
- É o Stevens, seu babaca - disse o oficial, de Washington. - Eu estou há quase seis horas cuidando desse assunto, e seria melhor você um dia explicar para a minha mulher, que por razões que sou incapaz de entender gosta de você, que eu estava trabalhando para você e não prevaricando com uma namorada que não existe.
- Uma pessoa que usa a expressão "prevaricando" não precisa se preocupar com nada. O que foi que você conseguiu?
- Bem, em primeiro lugar, tudo está tão enterrado que seria preciso um arqueólogo para escavar. O número em Miami não está catalogado, evidentemente...
- Espero que isso não tenha sido um problema para você - interrompeu Tyrell, sarcástico.
Stevens ignorou o aparte e prosseguiu:
- Quem paga a conta é um restaurante popular chamado Wellington’s, na Collins Avenue, só que o proprietário não sabe de nada, porque ele nunca recebeu nenhuma conta. Ele indicou a firma que faz a contabilidade dele e paga as contas, para a gente verificar.
- Então dá para rastrear a linha.
- Já foi rastreada. Atendeu uma gravação, num iate ancorado em Miami. O dono é um brasileiro, que no momento está na terra dele, incomunicável.
- Aquele lupo não estava falando com uma máquina! - insistiu Hawthorne. - Tinha alguém do outro lado.
- Não duvido nada. Mas quantas vezes eu e você não ficamos monitorando um telefone enquanto alguma operação estava sendo executada? A pessoa que atendeu tinha recebido ordens para estar lá na hora em que o lupo ligasse.
- Quer dizer que vocês não conseguiram nada.
- Não foi isso o que eu disse - corrigiu Stevens. - A gente consultou os geniozinhos da eletrônica, com aqueles equipamentos mirabolantes. Me disseram que eles desmontaram a máquina, peça por peça, como os relojoeiros suíços, instalaram centenas de programas e acabaram aparecendo com o que eles chamam de busca de satélites.
- E o que quer dizer isso?
- Quer dizer que eles apresentaram coordenadas com base em prováveis transmissões via satélite. Eles restringiram a área de recepção a mais ou menos cem milhas quadradas entre a passagem de Anegada e Nevis.
- É a mesma coisa que nada!
- Não é bem assim. Número um, o iate agora está sob vigilância permanente. Qualquer pessoa que chegar perto vai ser detida e interrogada.
- E o número dois?
- Não é tão eficaz, eu acho - respondeu Stevens. - Nós temos um avião, uma versão menor de um AWAC, na Base Aérea de Patrick, em Cocoa, Flórida. Ele capta transmissões de satélites, mas para localizar as antenas de recepção, as transmissões têm que estar ativadas. Nós estamos mandando ele para essa área.
- Então as transmissões estão cercadas por todos os lados.
- Estamos contando com isto. Alguém vai ter que entrar nesse iate. Nós provocamos um curto-circuito, então alguém vai ter que ir até lá para consertar a máquina e recuperar os recados. Não tem erro, Tye. Eles não sabem que foram descobertos, e assim que alguém se aproximar do barco, a gente pula em cima.
- Tem alguma coisa errada - disse Hawthorne. - Eu não sei o que é, mas que tem, tem.
Os últimos raios da lua desapareceram por trás das silhuetas dos edifícios de Miami e o sol começou a despontar no horizonte. Na marina, uma câmara telescópica focalizada no iate projetava todas as imagens numa tela instalada num armazém a duzentos metros de distância. Três agentes do FBI, revezando-se em turnos, mantinham os olhos bem abertos; sobre uma mesa, ao lado deles, um telefone vermelho com uma única tecla os ligaria automaticamente à CIA e à inteligência naval em Washington.
- Isso é tudo bobagem - disse o agente de plantão, levantando-se para atender a porta. - A pizza está chegando, e eu não vou pagar a conta sozinho. - Seus dois companheiros abriram os olhos, bocejando enquanto ele abria a porta.
A ação da pistola automática foi incondicional. Em menos de quatro segundos os três agentes estavam mortos, estirados no chão, com os corpos ensanguentados crivados de balas. E na tela em frente à mesa o iate explodiu, lançando chamas brilhantes e impetuosas nos céus de Miami.
6
- Hawthorne! - gritou Stevens, pelo telefone. - Miami foi um massacre! Eles sabem de tudo! Tudo o que a gente faz!
- Isto quer dizer que tem informação vazando aí.
- Eu não posso acreditar nisto!
- Pois acredite, só pode ser. Mais ou menos daqui a uma hora eu estou de volta em Gorda...
- Que Gorda nada, vamos buscar você aí em Saba. Os nossos cartógrafos disseram que você está perto da nossa área-alvo.
- Henry, o seu avião não vai conseguir pousar nesta pista.
- Claro que vai! Eu já chequei com os nossos pilotos, a pista tem mais de novecentos metros; com a reversão máxima, eles conseguem. Eu quero que você verifique essas coordenadas; é só o que está faltando. Se aparecer alguma novidade, tome todas as providências que achar necessárias. O avião está sob o seu comando.
- Numa área de duzentos e cinquenta quilômetros quadrados entre Anegada e Nevis? Você perdeu completamente o juízo?
- E você tem uma sugestão melhor? A gente está lidando com uma psicopata, capaz de mandar um governo para o espaço. Sinceramente, depois de tudo o que eu soube sobre ela, estou com medo, Tye, com muito medo!
- Não, eu não tenho uma sugestão melhor - concedeu Hawthorne. - Vou cancelar Gorda e ficar aqui esperando. Espero que vocês me mandem um piloto dos bons.
O AWAC II apareceu no céu; era uma aeronave pouco atraente, bojuda, de nariz chato, com seu disco gigantesco projetando-se acima da fuselagem. O avião supersecreto desceu, mas, ao invés de aterrissar, arremeteu em direção ao final da pista, fez a volta e repetiu o procedimento. Tyrell, que observava a operação, já havia chegado à conclusão de que o piloto estava se comunicando com a base aérea de Patrick para dizer que eles eram loucos, quando, na terceira aproximação, o volumoso aparelho conseguiu tocar precariamente a cabeceira da pista, como um travesseiro de penas, e no mesmo instante as turbinas se reverteram, num barulho estrondoso.
- Ei! - gritou o controlador da torre, arregalando os olhos, com a respiração suspensa ao ver o avião parar a dezenas de metros do fim da pista e fazer a curva para taxiar. - É bom esse piloto! Eu nunca vi uma coisa dessas aqui em Saba. Esse avião parece uma vaca prenhe!
- Eu estou indo, Calvin - despediu-se Hawthorne, tomando a direção da porta. - Volto a falar com você, ou eu ou um dos meus colegas. Tome o dinheiro.
- Conforme eu disse ontem à noite, nada mau.
Tyrell saiu correndo pelo campo de pouso, enquanto a porta lateral do AWAC II se abriu e um oficial, seguido por um subordinado, descia a escada de metal, esticando o corpo.
- Gostei de ver, Tenente - cumprimentou Hawthorne, vendo, ao se aproximar, a barra prateada no colarinho do oficial.
- A gente veio trazer o correio eletrônico, meu amigo. - O oficial estava sem quepe; tinha cabelos castanho-claros e um forte sotaque sulista. - Você é o mecânico daqui? - perguntou, olhando para o macacão sujo de graxa de Tyrell.
- Não, eu sou a encomenda que vocês vieram buscar.
- Sério?
- Peça a identidade dele - disse o suboficial, em tom de ameaça enfiando a mão direita dentro do paletó do uniforme.
- Eu sou o Hawthorne!
- Então prove, companheiro - continuou ele, impassível. - Para mim, você não parece nem um pouco um oficial da Marinha.
- Eu não sou da Marinha... quer dizer, eu já fui, mas não sou mais. Meu Deus, não explicaram nada para vocês em Washington? Todos os meus documentos estão no fundo do mar, aqui no porto.
- Então me diga, isso não é uma boa desculpa? - perguntou o subordinado, puxando vagarosamente um Colt 45 de dentro do paletó. - O meu colega aqui, o Tenente, opera todo aquele equipamento fantástico, mas a minha função a bordo é cuidar de outras questões, como, por exemplo, a segurança.
- Guarde isso, Charlie - ouviu-se uma voz feminina, e uma figura esbelta, uniformizada, emergiu da portinhola e começou a descer os degraus. A mulher aproximou-se de Hawthorne e estendeu-lhe a mão. - Major Catherine Neilsen, Comandante. Desculpe as duas tentativas de aterrissagem fracassadas, mas as dúvidas que o senhor expôs ao Capitão Stevens eram totalmente procedentes. Foi uma sorte nós termos conseguido... Tudo bem, Charlie, Washington mandou a foto dele pelo fax. É ele mesmo.
- A senhorita é quem pilota o avião?
- Por que, o Comandante está chocado?
- Eu não sou Comandante...
- A Marinha diz que é. Sargento, o senhor poderia ficar com a arma na mão?
- Com todo o prazer, Major.
- Vocês podiam parar de falar... de falar besteira?
- O senhor quis dizer parar de falar merda?
- É, foi isso mesmo que eu quis dizer.
- Pois talvez seja exatamente isso que a gente não queira. Nós aceitamos a ideia de que os serviços têm que cooperar entre si, mas não é nada fácil quando alguém nos comunica que um ex-oficial da Marinha, que não conhece absolutamente nada do nosso trabalho, está no comando do nosso avião.
- Escute, senhora... senhorita... Major, eu não pedi nada! Eu também fui envolvido nesta confusão, exatamente como vocês.
- Nós não sabemos que "confusão" é essa, senhor Hawthorne. O que sabemos é só que nós temos que percorrer uma área determinada para tentar captar transmissões de satélites, interceptar o que for possível e entregar os dados para o senhor. E o senhor, mais ninguém, vai nos dizer o que fazer.
- Isto é uma... uma besteira.
- Isto é uma estupidez, Comandante.
- Exatamente.
- Ainda bem que a gente concorda. - A Major tirou o quepe de oficial e, depois de arrancar algumas presilhas, sacudiu a cabeça soltando os cabelos louros. - Agora, sem querer me meter em assuntos sigilosos, eu gostaria de ter uma ideia geral sobre o que o senhor espera de nós, Comandante.
- Olhe aqui, Major, eu sou um reles guia turístico aqui nestas ilhas. Já faz quase cinco anos que eu abandonei esse Sturm und Drang militar e de uma hora para outra eu fui recrutado por três governos, três países diferentes, que acham, equivocadamente, que eu posso ajudar a resolver isso que eles chamam de crise. Portanto, se a senhorita não está satisfeita, leve embora daqui essa vaca prenhe desse avião e me deixe em paz!
- Não posso fazer isso.
- E por que não?
- Ordens.
- A senhorita é muito cabeça-dura, Major.
- E o senhor é muito desaforado, ex-Comandante.
- Então, o que é que nós vamos fazer agora? Ficar aqui trocando insultos?
- Eu sugiro que a gente inicie a operação. Vamos embarcar.
- Isto é uma ordem?
- O senhor sabe que eu não posso dar ordens - respondeu ela, penteando os cabelos para trás com a mão esquerda. - Nós estamos em terra, e aqui o senhor é meu superior hierárquico; lá em cima nós somos iguais... se bem que o comandante da aeronave é o senhor.
- Ótimo. Então, tratem de embarcar, vamos levantar voo.
O ronco surdo das turbinas era contínuo e irritante; o AWAC II esquadrinhava os céus, circunscrito à área a ser vigiada, dando voltas e mais voltas, na tentativa de captar as transmissões dos satélites. O primeiro-tenente, responsável pelo complexo equipamento eletrônico, não parava de apertar teclas e de girar botões misteriosos, enquanto se ouviam bips erráticos, em volumes mais altos e mais baixos. A cada série de bips, ele digitava uma breve sequência de letras num computador, que registrava seus esforços numa folha, soltando-a em seguida numa bandeja de arame presa sob a impressora.
- Pelo amor de Deus, o que está acontecendo? - perguntou Hawthorne, sentado numa poltrona giratória, de frente para o jovem oficial.
- Não deixe os porcos fazerem barulho, Comandante - respondeu o Tenente. - Eles ficam muito agitados na hora do almoço.
- Que diabo quer dizer isso?
- Quer dizer "fique calado, por favor, senhor, porque eu tenho que me concentrar", se a Marinha permitir, senhor.
Tyrell desafivelou o cinco de segurança, levantou-se e foi até o painel de controle, onde estava Catherine.
- Posso sentar? - pediu, apontando um assento vazio ao lado dela.
- Não precisa pedir, Comandante. Com exceção dos assuntos de segurança e regulamentos aéreos, quem manda aqui é o senhor.
- Será que a gente podia parar com essa babaquice militar? - perguntou Hawthorne, sentando-se e apertando o cinto, aliviado ao perceber que o ruído dos motores havia diminuído. - Eu já disse, eu não sou mais da Marinha, e preciso da sua ajuda, e não da sua hostilidade.
- Está certo, o que eu posso fazer para aju... espere! - exclamou ela, ajustando os fones nos ouvidos. - O quê, Jackson?... Retomar o último trajeto a partir do PP?... Tudo bem, gênio. - Neilsen fez uma nova curva em semicírculo. - Desculpe, Comandante, onde é que nós estávamos?... Ah, sim, o que eu posso fazer para ajudar?
- Bom, a senhorita podia começar me explicando o que é o último trajeto, por que vocês estão retomando esse trajeto e que diabo esse "gênio" está fazendo lá atrás?
A Major começou a rir; seu riso era agradável, sem qualquer zombaria ou pretensa autoridade; era apenas uma menina crescida, rindo de uma situação engraçada.
- Bom, para começar, o Jackson é um gênio, senhor...
- Por favor, pare de me chamar de senhor. Me chame pelo meu nome Tyrell, ou Tye, se você preferir.
- Tyrell? Mas que nome mais mórbido! Ele matou os dois príncipes na Torre de Londres; está lá no Ricardo III, de Shakespeare.
- O meu pai tem um senso de humor meio esquisito. Ele jurou que se o meu irmão fosse menina, ela se chamaria Medeia. Como foi menino, ele se conformou com Marcus Antonius Hawthorne; foi a minha mãe que mudou para Marc Anthony.
- Acho que eu ia gostar do seu pai. O meu era filho de imigrantes suecos, não teve nenhuma educação, o máximo que ele conseguiu foi trabalhar numa fazenda de Minnesota. Ou eu resolvia estudar feito uma louca para conseguir entrar na West Point e ter um curso superior gratuito ou ia passar o resto da vida pisando em bosta de vaca. Ele sempre deixou isso bem claro.
- Acho que eu ia gostar do seu pai, também.
- Bem, vamos voltar às suas perguntas - disse ela, subitamente distante. - O Jackson Poole, dos Poole da Louisiana, fique sabendo - acrescentou, permitindo que um leve sorriso crispasse seus lábios -, é um gênio naquele equipamento, e também é um excelente piloto; ele me substitui aqui, mas se eu tocar naquelas máquinas ele me esgana.
- São dois trabalhos bem difíceis. Ele deve ser um cara interessante.
- É, ele é mesmo. Ele entrou para as Forças Armadas porque era para lá que estava indo praticamente todo o investimento em informática, mas eles não tinham muita gente qualificada. Era uma ótima oportunidade para ele. Nesse serviço o mérito conta; eles não podem negligenciar a capacidade... Bem, ele me disse para retomar o trajeto desde o PP. Trocando em miúdos, isso quer dizer que nós vamos voltar ao ponto de partida e repetir o nosso trajeto sobre a área-alvo.
- E isso quer dizer o quê?
- Ele está tentando identificar um padrão, não de tráfego corriqueiro, que é no mínimo de cinquenta a setenta e cinco por cento, mas de coisas incomuns, estranhas.
- E ele consegue fazer isso com aquelas teclas e aqueles botões?
- Ah, consegue, consegue sim.
- Detesto essas pessoas que entendem de tudo.
- Eu já disse que ele também é um dos melhores instrutores de caratê lá de Patrick?
- Se ele resolver brigar com você - disse Tyrell, sorrindo - eu vou ficar do lado dele. Até um anão aleijado é capaz de me nocautear.
- Não é isso o que diz o seu dossiê.
- Meu dossiê? Ele não é secreto?
- Não quando você assume o controle, mesmo limitado, de um oficial de outra arma com o mesmo nível hierárquico. A cortesia militar e os próprios regulamentos exigem que o oficial a ser substituído esteja convicto da necessidade da substituição. E eu me convenci.
- Não foi essa impressão que eu tive em Saba, não foi mesmo.
- Eu estava com raiva, da mesma maneira que você estaria se um estranho entrasse na sua esfera de operações dizendo que dali em diante quem mandava era ele.
- Eu nunca disse isso.
- Claro que disse. Você deixou isso mais do que claro quando disse "tratem de embarcar". Foi nessa hora que eu vi que você ainda era o comandante Hawthorne.
- Esperem! - ecoou um grito pela gigantesca cabine do AWAC II, tão alto que superou o barulho dos motores, e ao mesmo tempo soou através dos fones, em ondas vibrantes. - Que loucura! - Jackson Poole estava de pé sobre o console de fórmica, acenando com os braços.
- Calma, meu bem! - ordenou a major Neilsen, estabilizando a aeronave. - Sente-se e conte direitinho o que foi que você descobriu... Comandante, ponha os fones para escutar melhor.
- "Meu bem"? - perguntou Tyrell, instintivamente; sua voz soou áspera através do interfone.
- Isso é gíria de aviador, Capitão. Não leve a mal.
- E fique frio, senhor - acrescentou o suboficial encarregado da segurança. - A sua patente pode ser alta, mas aqui o senhor não passa de um convidado.
- Sabe de uma coisa, Sargento, você é um pentelho.
- Vamos parar com isso, Hawthorne - disse a Major. - O que foi que você descobriu, Tenente?
- Uma coisa que não existe, Cathy! Não está em nenhum dos mapas da área, e eu já chequei todos os detalhes na tela!
- Seja um pouco mais claro, por favor.
- O sinal é emitido de um satélite japonês e dirigido a um ponto onde não existe nada, pelo menos nos nossos mapas. Mas tem que ter alguma coisa lá! A transmissão é bem clara.
- Tenente - interrompeu Tyrell -, as suas máquinas são capazes de dizer de onde vem a transmissão?
- Não, especificamente não; os nossos colegas de Washington poderiam, mas nós aqui temos limitações. O máximo que eu posso fazer é lhe dar uma projeção a laser, computadorizada.
- E que diabo vem a ser isso?
- É como aqueles jogos eletrônicos de golfe, que você dá a tacada inicial e na hora que a bola encosta na tela aparece uma imagem do percurso dela no fairway.
- Eu não sei jogar golfe, mas vou acreditar na sua palavra. Quanto tempo você vai levar?
- Estou trabalhando nisso enquanto a gente conversa... Esta aqui eu posso quase garantir.
- Esta o quê?
- A transmissão para o nosso "vazio" lá embaixo. É de algum lugar no Mediterrâneo, através do satélite japonês Noguma.
- Itália? Sul da Itália?
- Pode ser. Ou norte da África. Aquela área.
- É o nosso alvo! - exclamou Hawthorne.
- Tem certeza? - perguntou Neilsen.
- O meu ferimento no ombro é a prova, com curativo e tudo. Tenente, você pode me dar as coordenadas precisas, estou dizendo precisas, desse tal vazio lá embaixo?
- Posso sim, ianque, já localizei. São ilhazinhas que ficam umas trintas milhas ao norte de Anguilla.
- E eu tenho certeza de que conheço elas! Poole, você é um gênio.
- Eu não, senhor. É o equipamento.
- A gente pode fazer uma coisa melhor - disse Catherine Neilsen, preparando-se para descer como avião. - Vamos ver esse "vazio" lá embaixo de tão perto que vocês vão ficar conhecendo cada palmo do terreno.
- Não... por favor, não faça isso.
- Você está maluco? A gente já está aqui, bem em cima, a gente pode muito bem fazer isso.
- E todo mundo que estiver lá embaixo vai ver o que a gente está fazendo.
- Você tem toda a razão.
- Ia ser uma grande besteira. Qual é o lugar mais próximo onde você pode aterrissar esta geringonça?
- Esta aeronave, da qual eu gosto muito, apesar de reconhecer que ela é uma geringonça, não tem permissão para aterrissar em território estrangeiro; isso faz parte do regulamento militar.
- Eu não perguntei se você tem permissão, Major, eu perguntei onde você pode aterrissar. Onde?
- Pelos meus mapas, em St. Martin. Território francês e holandês.
- Eu sei disso, eu sou guia turístico, esqueceu?... No meio desta parafernália de equipamentos exóticos tem alguma coisa que possa funcionar como um telefone normal?
- Perfeitamente. Chama-se telefone e está bem embaixo do braço da sua poltrona.
- Não brinque. - Hawthorne apanhou o aparelho, tirou o fone do gancho e perguntou: - Como é que eu faço para ligar?
- Como você faz com qualquer telefone, mas saiba que a sua conversa vai ser gravada pela Base Aérea de Patrick e retransmitida imediatamente para o Pentágono.
- Eu adoro isso - disse Tyrell, discando furiosamente. Segundos depois ele continuou: - I-Um, rápido! O código é quatro-zero e eu quero falar com o capitão Henry Stevens e, por favor, sem passar por aquele babaca que quer saber toda a história da minha vida. Diga que é o Tye, T-Y-E, que ele atende na hora.
- Hawthorne, onde é que você está? Conseguiu alguma coisa? - atendeu Stevens, menos de três segundos depois, atropelando as palavras.
- Nossa conversa está sendo gravada e retransmitida para o Departamento de Defesa...
- Não, desse avião não está não; a transmissão está bloqueada. Pode falar comigo como se estivesse num confessionário com o sumo sacerdote do sigilo. Quais são as novidades?
- Esta aeronave feia e gorda que você me mandou de Patrick é uma maravilha. Nós descobrimos o destino das transmissões e eu quero que um tenente chamado Poole seja imediatamente promovido a coronel ou general!
- Tye, você bebeu?
- Bem que eu gostaria. Outra coisa, enquanto você está nessas armações com o Pentágono, tem uma Major chamada Catherine Neilsen, que eu insisto que seja nomeada chefe da Força Aérea. O que você acha disso, Hank?
- Você voltou a beber - disse Stevens, furioso.
- De jeito nenhum, Henry - respondeu Tyrell, com a voz calma, demonstrando sua sobriedade. - Eu só quero que você fique sabendo como eles são bons.
- Muito bem, já entendi e vou fazer as devidas recomendações, certo? Agora me fale sobre o destino das transmissões.
- É um lugar que não está catalogado nem mapeado, mas eu conheço, é um aglomerado de ilhas tidas como desabitadas; devem ser umas cinco ou seis, e graças a este avião aqui, eu tenho as coordenadas exatas.
- Excelente. A Bajaratt só pode estar lá. Vamos fazer uma investida lá.
- Não, ainda não. Deixe eu ir lá antes, para ter certeza de que ela realmente está lá. E, se estiver, descobrir quem são seus aliados. Eles podem nos levar a descobrir uma organização terrorista muito poderosa.
- Tye, preciso lhe fazer uma pergunta, você era muito eficiente nesse tipo de coisa há alguns anos, mas já se passou muito tempo... Você vai conseguir fazer isto, Comandante? Eu não quero... me responsabilizar pela sua vida.
- Suponho que você esteja se referindo à minha mulher, Capitão.
- Eu me recuso a falar novamente sobre esse assunto. Não tive nada a ver com a morte dela.
- Então por que será que eu continuo na dúvida?
- Isso é problema seu, Tye, não nosso. Só quero ter certeza de que você não está querendo dar um passo maior do que a sua perna.
- Você não tem mais ninguém para fazer isto, então vamos deixar essa lenga-lenga para lá. Quero que o meu avião pouse em St. Martin, no lado francês. Entre em contato com o Deuxième no Quai d’Orsay e arranje a autorização da Base Aérea de Patrick. Nós vamos pousar e lá eles vão me dar todos os equipamentos de que eu precisar. É isso, Henry. Se mexa.
Hawthorne desligou o telefone, fechou os olhos por alguns instantes e em seguida voltou-se para a Major.
- Vamos para St. Martin - disse, com ar abatido. - Nós vamos receber autorização, eu garanto.
- Eu estava na linha do telefone - disse Neilsen, com uma autoridade tranquila. - Na verdade, sou responsável por tudo o que acontece aqui, e faz parte do meu trabalho monitorar as comunicações num avião como este. Tenho certeza de que você compreende isso.
- E eu tenho certeza de que eu sou obrigado a compreender.
- Você falou na sua mulher... na morte de sua mulher.
- É, acho que falei. Eu e o Stevens nos conhecemos há muito tempo, e às vezes lanço uns assuntos que não devia.
- Eu lamento muito. Quer dizer, por sua mulher.
- Obrigado - disse Tyrell, calando-se.
Foram aquelas duas palavrinhas - "meu bem" - que o haviam deixado tão desalentado, fazendo com que ele se comportasse daquela forma tola. Era como se aquela expressão carinhosa pertencesse a ele e a mais ninguém, muito menos a uma americana arrogante, uma oficial da Força Aérea falando com um subordinado. Era uma expressão tão europeia na sua essência, feita para ser dita em voz baixa, com emoção, ou de uma forma tão espontânea que revelasse um carinho profundo e duradouro. Em toda a sua vida, apenas duas mulheres haviam usado essas palavras habitualmente. Ingrid e Dominique - as únicas mulheres que ele amara; uma, a esposa adorada, a outra, uma criatura bela e diáfana, tão inatingível quanto real, que o ajudara a recuperar a sanidade. Aquelas duas palavras pertenciam a elas e só eram dirigidas a ele. Ainda assim, ele estava se comportando como um idiota; as palavras não eram propriedade exclusiva de ninguém, ele sabia. Porém, mais uma vez, elas não deveriam ser vulgarizadas, trivializadas. Santo Deus! Ele tinha que parar de pensar nisso. Tinha muito trabalho pela frente. Sua meta!
- St. Martin está logo ali na frente... Tye - disse a Major Neilsen, com a voz suave.
- O quê?... Desculpe, o que foi que você disse?
- Ou você estava em transe ou então dormiu de olho aberto durante alguns minutos. Eu recebi autorização para pousar em St. Martin, tanto de Patrick quanto das autoridades francesas. Nós vamos estacionar no final do campo de aviação e um destacamento de guardas de segurança vai cercar a aeronave, o Charlie está encarregado de tratar com eles... Eu sabia que você era profissional, mas nunca imaginei uma coisa dessas.
- Você me chamou de Tye.
- Foi ordem sua, Comandante. Não leve a mal.
- Prometo que não.
- De acordo com Patrick e com os franceses, nós estamos subordinados a você até você nos liberar. Eles disseram que isso poderia durar o dia inteiro e talvez amanhã também... Que diabo está acontecendo, Hawthorne? Você fala de terroristas, de conexões, e a gente descobre ilhas que não estão no mapa e que a Marinha está pronta para bombardear! Eu diria que isto extrapola um pouco o nosso trabalho normal, mesmo numa profissão como a nossa.
- Extrapola totalmente o normal, e até mesmo o anormal, Major... Cathy... não leve a mal, senhorita.
- Vamos falar sério; nós temos o direito de saber. Em qualquer lugar, você consegue falar com as autoridades. Você acabou de provar isso. Mas eu sou a responsável por esta aeronave caríssima e pela tripulação.
- Você tem toda a razão. Então por que não me diz onde está o seu oficial de voo, ou copiloto, como nós, os civis, chamamos?
- Eu já disse, o Poole é qualificado - respondeu Neilsen, baixando bruscamente a voz.
- Ora vejam só, major Neilsen, e por que será que eu estou sentindo a falta de alguém neste avião?
- Está bem - disse Catherine, constrangida. - O seu Capitão Stevens insistiu para que a gente saísse de Patrick o mais cedo possível hoje de manhã, mas a gente não conseguiu falar com o Sal, que normalmente é quem ocupa esse assento onde você está. Todo mundo sabe que o casamento dele vai mal, então nós nem tentamos procurar muito; e, como eu estou dizendo, o tenente Poole é tão bom piloto quanto eu, e olhe que isso não é pouca coisa.
- Sem dúvida. E quem é esse Sal?
- Sal é a abreviação de Salvatore. Ele é um cara fantástico, mas tem uma mulher problemática, que bebe demais. Então, já que nós estávamos garantidos, resolvemos decolar logo, para atender ao pedido, ou melhor, à exigência da Marinha.
- E isso não contraria os regulamentos?
- Olhe aqui, não venha me dizer que você nunca fez isso por um amigo. A gente achou que essa busca aérea ia levar de duas a quatro horas; a gente ia voltar e ninguém ia saber de nada, e talvez o Mancini conseguisse resolver alguns dos problemas dele. Você acha que isso é um crime tão terrível, por um amigo?
- Não, não acho - respondeu Hawthorne, com o cérebro a toda recordando as centenas de operações sigilosas que haviam fracassado na sua outra vida. - Lá de Patrick eles podem monitorar as comunicações deste avião?
- Claro que podem, mas você ouviu o que o Stevens disse. Eles não estão mandando nada para o Pentágono. A transmissão está bloqueada.
- Eu sei, eu entendi isso, mas a base aérea lá na Flórida pode escutar.
- Algumas pessoas sim, mas são poucas.
- Então ligue para a base e peça para falar com o seu amigo Mancini.
- O quê? Isso pode criar um problema para ele.
- Faça isso, Major. Por favor, não se esqueça de que sou eu que mando aqui dentro, a não ser em caso de contingências aéreas.
- Seu calhorda!
- Ligue. Agora.
Neilsen entrou na frequência de Patrick e começou a falar, com visível relutância:
- O meu suboficial de voo gostaria de falar com o capitão Mancini. Ele está?
- Oi, Major - disse uma voz feminina pelo alto-falante. - Sinto muito, o Sal foi para casa há uns dez minutos, mas, já que não tem ninguém ouvindo, eu tenho que lhe dizer, Cathy, que ele está muito grato pelo que você fez.
- Aqui fala o comandante Hawthorne, da inteligência naval - interveio Tyrell, com o microfone nos lábios. - O capitão Mancini está a par dos nossos comunicados?
- Claro, ele é um dos poucos que sabem de tudo... Cathy, quem é esse sujeito?
- Alice, limite-se a responder às perguntas - disse Neilsen, sem tirar os olhos de Tyrell.
- A que horas o capitão Mancini chegou aí no centro de comunicações?
- Ah, não sei, umas três ou quatro horas atrás, mais ou menos umas duas horas depois que o AWAC II levantou voo.
- E ninguém estranhou a presença dele? Era para ele estar a bordo, mas ele não estava.
- Ei, Capitão, somos seres humanos, não somos robôs. Não conseguiram encontrar ele a tempo, e todo mundo aqui sabe que esse avião está muito bem coberto.
- Mas mesmo assim eu quero saber o que ele estava fazendo nessas circunstâncias no seu centro de comunicações tão restrito. Me parece que seria melhor que ele continuasse incomunicável.
- Como é que eu vou saber... senhor? O capitão Sal é muito profissional. Ele deve ter-se sentido culpado, ou coisa assim. Ele tomou nota de tudo o que vocês disseram.
- Emita uma ordem de prisão - disse Hawthorne.
- O quê?
- Você ouviu o que eu disse. Prisão imediata e isolamento total até vocês receberem algum comunicado de um homem chamado Stevens, da inteligência naval. Ele vai dar maiores instruções.
- Eu não estou acreditando nisto!
- Pois acredite, Alice, porque caso contrário você não só vai perder o emprego como pode ir parar numa penitenciária. - Hawthorne desligou o microfone.
- Você podia me explicar o que foi que você fez? - gritou Catherine Neilsen.
- Você sabe perfeitamente. Um homem que tem que estar sempre alerta com assuntos de segurança, que pode ser encontrado em qualquer número que ele der para a base e que tem, inclusive, um telefone no carro, fornecido pelo governo, não recebe nenhum recado, mas aparece de uma hora para outra no centro de comunicações da base?... Como ele foi parar lá? Supostamente ele não recebeu nenhuma ligação e, mesmo que tivesse recebido, a base seria o último lugar onde ele gostaria de ser visto.
- Eu me recuso a acreditar no que você está pensando.
- Então me dê algum argumento lógico.
- Eu não tenho nenhum.
- Nesse caso, eu vou lhe dar um, e vou citar literalmente as palavras do homem com quem você falou, e que está comandando esta operação... "Eles estão por toda parte, sabem tudo o que nós fazemos." Isto faz algum sentido para você?
- O Sal não faria isso!
- Ele foi para casa há dez minutos. Ligue de volta para a base e peça para passarem a ligação para o carro dele.
Neilsen fez o que Hawthorne mandou, e conectou o rádio aos alto-falantes do painel do controle. Ouviu-se a campainha insistente do telefone do carro do capitão Mancini. Ninguém atendeu.
- Ai, meu Deus!
- Quanto tempo leva para ir de Patrick até a casa dele?
- Uns quarenta minutos - respondeu Catherine. - Ele tem que morar longe da base. Eu contei para você, ele tem problemas sérios com a mulher.
- Você já esteve lá? Na casa dele?
- Não.
- E você conhece a mulher dele?
- Não. Todos nós sabemos que é melhor ninguém se meter.
- Então como você pode saber se ele é mesmo casado?
- Está na ficha dele! Além disso, somos muito amigos; ele me conta tudo.
- Isso é uma piada, senhorita. Com que frequência você cruza o Caribe?
- Duas a três vezes por semana. É rotina.
- E quem é que coordena as suas rotas?
- O meu oficial de voo, claro... o Sal.
- A ordem de prisão está mantida. Vamos aterrissar em St. Martin de uma vez, Major.
O capitão Salvatore Mancini, vestido à paisana, com roupa esporte, camisa branca, calças escuras e sandálias de couro, entrou no Wellington’s, na Collins Avenue, em Miami Beach. Aproximou-se do bar lotado e barulhento e trocou um olhar com o garçom, que inclinou a cabeça duas vezes, com tal sutileza que nenhum dos clientes percebeu.
O Capitão seguiu adiante e tomou um corredor largo, onde ficavam os toaletes, e dirigiu-se a um telefone público localizado na extremidade oposta. Pôs uma moeda no aparelho e discou a cobrar para um número em Washington, D.C., dando o nome "Wellington" para a telefonista.
- Scorpio Nove - disse Mancini quando a telefonista completou a ligação. - Algum recado?
- Você está liquidado, saia já daí - respondeu a voz do outro lado da linha.
- Você só pode estar brincando!
- Os seus companheiros estão mais aborrecidos do que você, pode acreditar - disse a voz. - Você vai alugar um carro, usando a sua terceira carteira de motorista, e ir para o aeroporto de West Palm, onde você tem uma reserva para as Bahamas, pela Sunburst Jetlines; a reserva está no mesmo nome da carteira. É o voo das quatro horas da tarde para Freeport. Alguém vai encontrar você lá e você vai pegar outro avião, para o lugar que eles decidirem.
- E quem é que vai vigiar a ilha do velho?
- Não vai mais ser você, Scorpio Nove. Existe uma ordem de prisão contra você, eu soube pela nossa linha de segurança com Patrick. Eles descobriram quem é você.
- Quem... quem descobriu?
- Um homem chamado Hawthorne. Ele trabalhou nisso, uns cinco anos atrás.
- Ele é um homem morto!
- Você não é o único que acha isso.
7
Nicolo Montavi de Portici, encostado na parede, olhava pela janela do quarto, de onde se via o café ao ar livre do hotel, na ilha de St. Barts. Vozes abafadas se misturavam com risos distantes e com o suave tilintar de copos. O dia terminava; nativos e turistas estavam prontos a iniciar a noite, em busca de prazeres e lucros. Não era muito diferente dos cafés à beira-mar de Nápoles, talvez não tão luxuosos quanto aquele, mas melhores que os de Portici... Portici? Será que algum dia ele voltaria para casa?
Com certeza não seria uma volta como as outras, ele sabia disso. Ele fora condenado, un traditore ai compagni, um traidor de todos os trabalhadores do cais. Estaria morto agora, se não fosse por uma signora desconhecida e rica que o salvara de ser atirado no mar com uma corda no pescoço. E por várias semanas ela o escondeu, correndo de uma cidade para outra, sabendo que ele corria perigo, com medo de sair de casa, mesmo à noite, especialmente à noite, quando os caçadores rondavam as ruas - facas e revólveres, as armas da vingança. Vingança por um crime que ele nunca cometera!
- Nem eu posso salvar você - dissera seu irmão mais velho num de seus telefonemas furtivos. - Se a gente se encontrar, eu mesmo vou ter que matar você, ou então eles vão me matar, junto com a nossa mãe e as nossas irmãs. A casa está sendo vigiada, os homens estão esperando você voltar. Se o nosso pai, que Deus o tenha, não fosse tão forte e querido, já teriam matado todos nós.
- Mas eu não matei o capogruppo!
- Então quem foi, meu irmãozinho? Você foi o último a falar com ele; você ameaçou arrancar as tripas dele.
- Força de expressão, só. Ele me roubou!
- Ele roubava de todo mundo, principalmente dos próprios navios de carga, e a morte dele nos custou milhões de liras; ele precisava da nossa cooperação, do nosso silêncio.
- E o que é que eu faço agora?
- A sua signora falou com a Mama e disse que seria mais seguro você sair do país com ela, que ela trataria você como um filho.
- Eu nunca vi tratar filho assim...
- Vá com ela! Pode ser que daqui a dois ou três anos as coisas mudem, quem sabe?
Nada ia mudar, pensava Nicolo, afastando-se um pouco da janela, a cabeça inclinada, como se continuasse a observar a cena lá embaixo. Com o canto do olho, viu a sua bella signora do outro lado do quarto espaçoso, sentada diante de uma penteadeira. Com movimentos rápidos das mãos e dos dedos, ela mexia nos cabelos, fazendo penteados esquisitos. Ele a observava, mais perplexo ainda quando ela prendeu na cintura um corpete de espuma, vestiu roupas de baixo feitas para mulheres obesas e, levantando-se, começou a examinar sua figura no espelho. Nicolo estava assombrado; ela parecia outra mulher. Seus cabelos longos e escuros já não chamavam a atenção; estavam esticados para trás, rígidos, presos na nuca. E o seu rosto estava pálido, ou cinza, completamente diferente de antes - estava feio, com olheiras escuras, a pele cansada, marcada por rugas, uma máscara envelhecida dela mesma... O corpo estava grotesco, gordo, sem busto ou qualquer outro sinal da mulher atraente que ela era.
Instintivamente, Nicolo voltou-se para a janela, percebendo que por alguma razão - ele não sabia qual - não devia ter visto o que acabara de ver. Instantes depois seu pressentimento se confirmou. A signora Cabrini, atravessando o quarto com passos rápidos e barulhentos, anunciou:
- Meu bem, eu vou tomar um banho, se este maldito hotel conseguir fazer a água subir três andares.
- Está bem, Cabi - respondeu Nicolo sem tirar os olhos do café lá embaixo.
- E depois nós vamos ter uma longa conversa, pois está na hora de você começar a maior aventura da sua vida.
- Certo, signora.
- Esta é uma das coisas que eu preciso lhe dizer, meu lindo. De agora em diante, você só sabe falar italiano.
- O meu pai ia se revirar no túmulo, Cabi. Ele ensinou todos os filhos a falar inglês. Dizia que era assim que a gente ia progredir na vida. E ele nos expulsava da mesa do jantar se a gente falasse italiano.
- O seu pai era uma relíquia da guerra, Nico, quando ele vendia vinho e mulheres para os soldados americanos. Agora a situação é completamente diferente. Volto já.
- Depois que você tomar banho, a gente podia descer para jantar? Estou morrendo de fome.
- Você está sempre com fome, Nico, mas eu acho que não vai dar. A gente tem muita coisa para discutir. Mas eu já combinei tudo com o pessoal do hotel. Você pode pedir tudo o que quiser do cardápio do restaurante. Gosta de serviço de quarto, não gosta, meu bem?
- Certo - repetiu Nicolo, voltando-se. Bajaratt imediatamente virou de costas para ele; ela realmente não queria que ele a tivesse visto diante do espelho longínquo.
- Va bene - disse Baj, encaminhando-se para o banheiro. - Solo italiano. Grazie!
Ela o tratava como um idiota, pensava Nicolo, raivoso. Essa vaca milionária, que falava tanto do prazer que o corpo dele lhe dava - ele também gostava, era obrigado a admitir -, não o havia tratado tão bem, com tanta generosidade, e por tanto tempo, a troco de nada. Um rapaz bonitão do cais do porto podia ganhar milhares de liras indo para a cama com uma turista amorosa, depois de carregar suas malas em troca de uma gorjeta ridícula em comparação ao pagamento posterior. Benissimo! Mas com a signora Cabrini não era assim; ela fizera muito mais do que isso, sempre encorajando seus planos, seu desejo sincero de estudar e sair do cais de Portici, chegando a ponto de fazer um depósito para ele no Banco di Napoli, para que ele mais tarde pudesse ter uma vida melhor - se ele a acompanhasse numa viagem. Que escolha tinha ele? Ficar em Portici para ser caçado pelos matadores do cais do porto? Ela vivia dizendo que ele era perfeito... para quê?
Eles tinham ido à polícia em Roma, polícia especial, onde os homens só os viram à noite, em salas escuras, e tiraram suas impressões digitais e tinham assinado documentos que ficaram com ela. Depois foram a duas embaixadas, também à noite, apenas um ou dois funcionários presentes, e novos documentos, papéis, fotografias. Para quê?... Ela estava prestes a lhe contar tudo, ele sabia, sentia isso. "... Está na hora de você começar a maior aventura da sua vida." O que mais poderia ser? E mais uma vez, fosse o que fosse, ele não teria outra alternativa senão aceitar. Por enquanto. Havia um ditado do cais do porto, que sempre lhe vinha à cabeça: "Beije os pés do turista até conseguir roubar os sapatos dele." Para uma mulher que matava com a naturalidade que Nicolo havia presenciado, ele não faria por menos. Ela dizia que ele era o seu boneco, e ele continuaria sendo. Até prova em contrário.
Nicolo olhou novamente para o pátio efervescente, sentindo-se como nas últimas semanas que passara na Itália - um prisioneiro. Ao longo daqueles dias sufocantes, ficara confinado, fosse num quarto de hotel, a bordo do barco de algum conhecido de Cabrini, ou mesmo num trailer que a signora havia alugado para que eles pudessem se deslocar com maior facilidade. Aquilo era necessário, ela explicou, pois eles tinham que permanecer nos arredores de Nápoles, à espera de um cargueiro que traria uma encomenda para ela e, quando isso acontecesse, ela teria de ser a primeira a chegar ao porto. E, de fato, numa tarde de terça-feira, vasculhando a seção de marinha mercante de um jornal local, ela soube que a chegada do cargueiro em questão estava prevista para pouco depois da meia-noite. Muito antes de o sol nascer, a signora deixou o quarto do hotel; ao voltar, sem nenhum pacote, anunciou:
- Vamos pegar um avião para Marselha hoje à tarde, meu namoradinho lindo. Nossa viagem vai começar.
- Para onde, Cabi? - Ela havia sugerido essa abreviação do seu nome em consideração ao profundo sentimento religioso de Nicolo, embora Cabrini fosse, na verdade, o nome de uma suntuosa propriedade próxima a Portofino.
- Confie em mim, Nico. Pense na quantia que eu depositei para o seu futuro e confie em mim.
- Você não trouxe nenhuma encomenda.
- Trouxe sim. - A signora abriu sua grande bolsa e retirou um envelope branco, grosso. - Este é o nosso itinerário; as nossas passagens estão confirmadas, meu bem.
- Isso tinha que vir de navio?
- Ah, tinha, Nico, tem coisas que têm que ser entregues em mãos... Agora, chega de perguntas, vamos fazer as malas... o mínimo possível de bagagem, só o que der para carregar na mão.
O rapaz afastou-se da janela, pensando que a conversa que acabava de recordar acontecera há menos de uma semana. E que semana! Vira a sombra da morte no mar, no meio da tempestade, e a morte real numa ilha estranha, desconhecida, habitada pelo velho mais estranho que ele já conhecera. Naquela manhã, mesmo, o padrone, aquele velho doente, furioso porque o avião havia-se atrasado por causa do mau tempo, não parava de gritar, dizendo que eles tinham que ir embora. E agora ele estava numa outra ilha, mais civilizada, onde, ao chegar, Cabi saíra de loja em loja, comprando uma quantidade de artigos suficientes para encher duas sacolas, além de um terno barato que não coubera nele.
- Depois a gente joga ele fora - dissera ela.
Nicolo aproximou-se da penteadeira da signora, pasmo com a variedade de cremes, pós e frascos, que lhe trouxeram à lembrança suas três irmãs, em Portici. Aquilo era o trucco de que seu pai tanto reclamava, mesmo quando estava à beira da morte e as meninas vieram se despedir junto ao seu leito.
- O que é que você está fazendo, Nico? - Bajaratt saiu do banheiro enrolada na toalha, desconcertando o rapaz com sua aparição súbita.
- Nada não, Cabi, só estava pensando nas minhas irmãs... toda esta quinquilharia aqui.
- Você sabe que as mulheres são vaidosas.
- Você não precisa de nada disso...
- Você é um amor - interrompeu Baj, afastando-o para o lado e sentando-se. - Numa dessas sacolas em cima da mesa, aí em frente ao sofá, tem uma garrafa de um vinhozinho razoável. Abra a garrafa e sirva dois copos, um pouco menos para você, porque você tem uma longa noite de estudo pela frente.
- Ahn?
- Pode considerar isto uma parte da educação que você tanto almeja e que vai ajudar você a ficar livre do cais de Portici.
- Ahn?
- Traga o nosso vinho, meu bem. - Depois de servido o vinho, cada um com seu copo na mão, Bajaratt entregou ao seu jovem pupilo o envelope branco que recebera do cargueiro em Nápoles; mandou que ele se sentasse no sofá e abrisse o envelope. - Você sabe ler bem, não é, Nico?
- Você sabe que sim - replicou ele. - Eu quase completei a scuola media.
- Então comece a ler estas páginas e, enquanto você vai lendo, eu vou explicando tudo.
- Cabi? - Os olhos de Nico cravaram-se na primeira página. - O que é isto?
- A sua aventura, meu querido Apolo. Eu vou transformar você num jovem barone.
- Che pazzía! Eu nunca ia conseguir me comportar como um barão.
- Você só tem que ser você mesmo, assim, tímido e atencioso. Os americanos adoram aristocratas modestos. Eles acham muito democrático, ficam completamente encantados.
- Cabi, essas pessoas...
- É a sua linhagem, meu amor. Uma família nobre, das montanhas de Ravello, que há mais ou menos um ano passou por um período difícil. Eles mal conseguiam pagar as contas, as terras e a mansão estavam acabando com eles: vinhais maltratados, gastos excessivos, filhos perdulários, enfim, todos os problemas normais dos ricos. Mas de uma hora para outra, milagrosamente, eles voltaram a ser riquíssimos. Não é maravilhoso?
- É ótimo para eles, mas o que é que isso tem a ver comigo...
- Continue a ler, Nico - interrompeu Bajaratt. - Agora eles são milionários; voltaram a ser respeitados, venerados em toda a Itália. As vicissitudes dos ricos são cíclicas: investimentos antigos dão lucros astronômicos, o vinho deles de repente se transforma em clássico, imóveis fora do país passam a valer ouro... você está me acompanhando, Nico?
- Estou lendo o mais rápido que posso, e escutando o mais...
- Nicolo, olhe para mim - disse Baj, com firmeza. - Eles tinham um filho. Ele morreu de overdose há um ano e meio, naquele gueto infame de Wädenschwill. O corpo foi cremado, conforme a ordem da família: nenhuma solenidade, nenhuma divulgação; eles não queriam escândalos.
- O que é que você está me dizendo, Cabi? - perguntou o rapaz, em voz baixa.
- Ele tinha mais ou menos a sua idade e o mesmo tipo físico que você, antes de se destruir com as drogas... Agora você é ele, Nicolo, é isso.
- O que você está dizendo é um absurdo, Cabi - disse o rapaz de Portici, amedrontado, a voz quase inaudível.
- Você não sabe quantos dias eu passei procurando alguém como você ali na zona do porto, meu menino. Alguém que fosse modesto, mas capaz de impor sua presença, a imagem que todo mundo tem da aristocracia, principalmente os americanos. Tudo o que você tem que aprender está escrito aí: sua vida, seus pais, seus estudos, seus hobbies, habilidades, tudo, até o nome de alguns amigos da família, todos riquíssimos, diga-se de passagem, e empregados antigos da casa... Ah, mas que cara apavorada é esta? É só você ir se familiarizando, você não vai ter que ficar falando sobre essas coisas, porque eu sou sua tia e sua intérprete, e não vou sair do seu lado nem um minuto. Mas não se esqueça, você só fala italiano.
- Cabi, por favor... per piacere! - balbuciou Nicolo. - Eu estou confuso!
- Então, como eu já disse, pense no dinheiro que está lá na sua conta e faça o que eu mandar. Vou apresentar você para muitos americanos importantes. Muito ricos, muito poderosos. Eles vão gostar muito de você.
- Por eu ser essa pessoa que eu não sou?
- Porque a sua família em Ravello está fazendo grandes investimentos aqui na América. E você vai fazer muitas promessas de contribuições: para museus, fundações, obras de caridade, até mesmo para os políticos que estejam dispostos a cooperar com a sua família.
- Eu vou fazer isso?
- Vai, mas só através de mim, sempre. Já pensou? Pode ser que um dia você seja convidado para ir à Casa Branca, conhecer o presidente dos Estados Unidos.
- Il presidente? - exclamou o adolescente, arregalando os olhos, com um sorriso sincero e radiante. - Isso tudo é tão fantástico, será que não é um sonho?
- É um sonho muito bem planejado, meu menino. Amanhã, vou comprar para você um guarda-roupa digno do homem mais rico do mundo. E vamos começar a nossa viagem por esse sonho, que é um sonho meu também.
- E que sonho é esse, Cabi? O que quer dizer isso tudo?
- Eu posso contar, você não vai entender mesmo. Quando a gente quer destruir determinadas pessoas, a gente procura pelas coisas dissimuladas, ocultas, obscuras. Não pelo que está na frente dos nossos olhos.
- Você tem razão, Cabi, não entendi nada.
- Então está tudo certo.
Mas Nicolo entendera perfeitamente, e voltou a devorar as páginas que tinha nas mãos. No cais do porto isso se chamava estorsione - vender um sapato roubado de volta para o dono, por um preço altíssimo, só porque a simples existência daquele sapato poderia causar a sua destruição. Sua hora ia chegar, pensava o menino de Portici, mas, até que chegasse, ele entraria com todo o entusiasmo no jogo da signora, sem se esquecer de que ela era capaz de matar com a maior naturalidade.
Eram 6:45 da tarde quando um desconhecido entrou no saguão do Iate Clube de Virgin Gorda. Era baixo, forte e careca e estava vestido com calças brancas amassadas e um paletó azul-marinho com o emblema preto e dourado da Associação de Iatismo de San Diego bordado no bolso superior. O emblema chamava a atenção, pois evocava imediatamente a Taça das Américas e todas as glórias dela decorrentes.
O visitante assinou uma ficha na recepção. Ralph W. Grimshaw, advogado e iatista. Coronado, Califórnia.
- Nós temos um convênio de cortesia com San Diego, é claro - disse o funcionário atrás do balcão, remexendo as fichas, nervoso. - Sou novo no emprego, por isso talvez eu demore um pouco a calcular o desconto.
- Não tem importância, rapaz - disse Grimshaw com um sorriso. - O desconto não é vital, e se o seu clube, como o nosso, está passando por dificuldades, que tal se deixarmos a cortesia para lá? Eu ficaria muito satisfeito de pagar a diária integral; na verdade, eu faço questão.
- É muita gentileza da sua parte, senhor.
- Você é inglês, não é, amigo?
- Sou sim, senhor, o Grupo Savoy me mandou para cá... treinamento, o senhor sabe como é.
- Claro que sei. Você não podia ter conseguido um lugar melhor que este para treinar. Eu sou dono de alguns hotéis no sul da Califórnia e, vou lhe dizer uma coisa, a gente sempre manda os melhores funcionários para os piores lugares, para eles verem o que é trabalhar duro.
- O senhor acha isso mesmo, senhor? Eu pensava que fosse o contrário.
- Então você não sabe como funciona a administração de um hotel. É assim que a gente descobre quem são os empregados mais promissores: colocando-os nas piores situações para ver como se saem.
- Eu nunca tinha pensado nisso...
- Não diga aos seus patrões que eu lhe contei este segredo, porque eu conheço o Grupo Savoy e eles me conhecem. Fique de bico calado e preste atenção nos pesos-pesados que chegam na cidade, esse é outro segredo, o mais importante de todos.
- Sim, senhor. Muito obrigado. Quanto tempo o senhor vai passar aqui, sr. Grimshaw?
- Pouco, muito pouco, um ou dois dias. Eu só vim ver um barco que talvez a gente compre para o clube, depois estou indo para Londres.
- Sim, senhor. O menino vai levar a bagagem para o seu quarto - disse o recepcionista, olhando em volta para o saguão cheio, à procura do ajudante.
- Pode deixar, rapaz, eu só trouxe uma malinha de mão; o resto da bagagem ficou em Porto Rico, esperando o voo para Londres. Basta você me dar a chave que eu acho o quarto. Para dizer a verdade, estou morrendo de pressa.
- Pressa, senhor?
- É, eu tenho que ir até a marina encontrar o nosso avaliador e já estou uma hora atrasado. O nome dele é Hawthorne, você conhece?
- O capitão Tyrell Hawthorne? - perguntou o jovem inglês, ligeiramente surpreso.
- É, ele mesmo.
- Lamento informar, mas ele não está aqui, senhor.
- O quê?
- Acho que o barco dele saiu hoje no início da tarde.
- Ele não pode ter feito isso!
- Está acontecendo alguma coisa estranha, senhor - disse o recepcionista, inclinando-se para a frente, visivelmente impressionado com aquele "peso-pesado", conhecido do grupo Savoy. - Nós recebemos várias ligações para o capitão Hawthorne, e todas elas foram transferidas para o chefe da manutenção da marina, um rapaz chamado Martin Caine, que está anotando os recados.
- É estranho, realmente. Nós pagamos o cara! A não ser que esse nome Caine estivesse em algum lugar que eu não vi.
- E não é só isso, senhor - prosseguiu o empregado, animando-se diante da sua nova amizade com um advogado-iatista milionário, que tinha tantos conhecimentos em Londres. - O sócio do capitão Hawthorne, o sr. Cooke, Geoffrey Cooke, deixou um envelope enorme para o capitão aqui no cofre.
- Cooke...? Mas claro, é o homem que cuida do dinheiro. Esse envelope é para mim, amigo. É a discriminação dos custos de reposição.
- É o quê, senhor?
- Ninguém compra um barco que custa dois milhões de dólares se tiver que gastar mais quinhentos mil para trocar peças e equipamentos.
- Dois milhões...!
- E é só um barco de tamanho médio. Se você me der o envelope, eu cancelo o pernoite, pego o primeiro voo para Porto Rico e vou mais cedo para Londres... Por falar nisso, me dê o seu nome. Um dos nossos clientes ingleses está na diretoria do Grupo Savoy... Bascomb. Você deve saber quem é.
- Não, eu acho que não, senhor.
- Bom, mas ele vai ficar sabendo quem é você. Me dê o envelope, por favor.
- Bem, sr. Grimshaw, eu tenho ordens para só entregar o envelope para o capitão Hawthorne.
- Eu sei, é claro, mas ele não está aqui e eu estou, e eu já lhe disse que tanto o Capitão quanto sr. Cooke são nossos... funcionários, digamos assim.
- É, o senhor disse sim, sem dúvida nenhuma.
- Ótimo. Você vai longe com os meus amigos de Londres. Me dê o seu cartão, rapaz.
- Eu não tenho... o meu cartão ainda não ficou pronto.
- Então escreva o seu nome completo numa dessas fichas de registro de hóspedes, o velho Bascomb vai gostar de ver. - O empregado obedeceu, entusiasmado. O desconhecido de nome Grimshaw pegou a ficha e sorriu. - Um dia, meu jovem, quando eu estiver hospedado no Savoy e você for o gerente, você bem que podia me mandar uma dúzia daquelas ostras magníficas.
- Com o maior prazer, senhor!
- O envelope, por favor.
- Claro, sr. Grimshaw!
Grimshaw, no quarto, pegou o telefone, a mão protegida por uma luva, e discou para Miami.
- Já peguei tudo o que eles tinham aqui - disse ele -, toda a papelada, inclusive três fotos da Baj, que suponho que ninguém tenha visto, porque elas estavam num envelope britânico oficial, lacrado. Eu vou queimar tudo e sair logo daqui. Não sei quando é que esse Hawthorne ou o cara do MI-6, Cooke, vão aparecer, mas tenho que estar longe... É, eu sei que pelo regulamento nenhum avião pode decolar depois de sete e meia; o que é que você me sugere?... Um hidroavião para Sebastian Point?... Não, deixe comigo. Eu chego lá. Às nove. Se eu me atrasar, não se preocupe... Antes tenho que cuidar de outra coisa, um problema de comunicação. A central de recados do Hawthorne tem que desaparecer.
Na sala de espera do aeroporto de St. Martin, Tyrell, acompanhado da major Catherine Neilsen e do tenente Jackson Poole, aguardava a chegada do suboficial Charles O’Brian, o responsável pela segurança do AWAC II.
De repente, ele rompeu pela porta dupla e, virando o rosto, sem tirar os olhos do campo de aviação, anunciou:
- Vou permanecer a bordo, Major! Ninguém aqui fala inglês e eu não gosto de gente que não entende o que eu digo.
- Charlie, eles são seus aliados - disse Neilsen. - Eles receberam autorização de Patrick, e nós vamos ficar aqui o resto do dia e provavelmente a noite também. Deixe o avião para lá, ninguém vai mexer nele.
- Não posso fazer isso, Cathy... Major.
- Droga, Charlie, tente relaxar.
- Não consigo. Não estou gostando disto aqui.
Fim da tarde. Em seguida, a escuridão; Hawthorne examinava as folhas impressas no computador de bordo do tenente Poole, que estava ao seu lado no quarto do hotel.
- Só pode ser uma dessas quatro ilhas - disse Tyrell, segurando os mapas sob a luminária.
- Se a gente pudesse ter sobrevoado mais de perto, como a Cathy queria, a gente teria descoberto qual era a ilha.
- Mas se a gente fizesse isso, eles iam saber, certo?
- E daí?... A Major tem toda a razão, você é muito teimoso.
- Ela não gosta mesmo de mim, não é?
- Não, não é nada com você, não. Ela é o que a gente chama de mulher durona.
- Mas parece que você se dá bem com ela.
- Porque ela é a melhor, por que não?
- Quer dizer que você não se incomoda de trabalhar com uma "mulher durona".
- Como não, é claro que eu me incomodo! Ela é minha chefe, mas seria uma mentira deslavada se eu dissesse que ela não me atrai... é só olhar para ela, cara, ela é uma mulher. Mas, como eu estou dizendo, ela é minha superior. E é Força Aérea até o fundo da alma. Ela não confunde as coisas.
- Ela acha você o máximo, Tenente.
- É, mais ou menos como um irmãozinho bobo que por acaso sabe ligar o videocassete.
- Você gosta dela, não é, Jackson?
- Deixe eu lhe dizer uma coisa, eu faria qualquer coisa por ela, mas eu pertenço a outra classe. Eu sou um reles técnico, e eu sei disso. Mas quem sabe um dia...
Ouviram-se batidas frenéticas na porta do quarto.
- Pelo amor de Deus, abram! - gritou a major Catherine Neilsen.
Hawthorne correu até a porta e abriu a tranca; a Major entrou, ofegante.
- Explodiram o nosso avião. O Charlie morreu!
O padrone desligou o telefone; os traços do seu rosto murcho e abatido estavam rígidos, resignados. Mais uma vez, havia sido procurado por um covarde, interessado no luxo que ele podia oferecer. Um covarde do Deuxième, com medo de encarar a vida sem a "herança" que aquela força desconhecida do Caribe podia eliminar de um dia para o outro. O homem era um fraco, sempre sucumbindo aos seus elegantes apetites carnais, embora sempre fingindo estar acima da corrupção que tanto o sustentava quanto ameaçava destruí-lo. As pessoas sempre procuravam um covarde influente, exaltando-lhe as qualidades, para em seguida deixar sua carcaça inflada pendurada de cabeça para baixo, com o suor eterno para garantir sua obediência. Agora era uma atrocidade atrás da outra, de Miami a St. Martin, além de um roubo importante em British Gorda, do qual eles logo teriam notícia. Os caçadores da Baj entrariam em pânico e fariam buscas disparatadas em todos os lugares errados, vasculhando as sombras, quando deviam olhar para a luz. Não haveria nenhum avião especial americano sobrevoando a área por pelo menos três horas, e depois disso todas as transmissões seriam canceladas, todas as ondas desviadas em direção a nada.
O velho enfermo tirou o fone do gancho, inclinou-se para a frente na sua cadeira de rodas e cuidadosamente apertou uma série de teclas no painel eletrônico. O toque do outro lado da linha parou, interrompido por uma voz clara, metálica: "Após o bip, digite sua senha." Ao fim do longo sinal, o padrone apertou mais cinco dígitos; o toque recomeçou até que uma voz atendeu:
- Alô, Caribe, você está correndo um risco com esta transmissão, espero que saiba disso.
- Há oito minutos que o risco acabou, Scorpio Dois. O invasor de asas está fora.
- O quê?
- Ele foi eliminado numa escala; pelo menos nas próximas três horas não vai ter nada no ar.
- A notícia não chegou aqui.
- Fique ligado, amico, ela já vai chegar.
- Talvez o senhor tenha mais tempo do que pensa - disse o interlocutor, de Washington, D.C. - O lugar mais próximo onde eles podem conseguir ajuda é Andrews.
- Ótimo - respondeu o padrone. - Agora, Scorpio Dois, vou lhe fazer um pedido, um assunto que eu preferia não ter que entrar em detalhes.
- Eu nunca lhe pedi nenhum detalhe, padrone. Graças à minha "herança", os meus filhos estão estudando nas melhores escolas. Sem dúvida, eles não estariam, se eu dependesse do salário que o governo me paga.
- E a sua mulher, amico?
- Ah, para ela todo dia é dia de Natal, e todo domingo ela vai à missa para rezar por um tio fictício, que cria cavalos na Irlanda.
- Molto bene. Quer dizer que a sua vida está em ordem.
- Está como deveria estar há muito tempo, se o governo me pagasse um salário decente. Eu sou o cérebro disto aqui há vinte e um anos, mas eles não gostam da maneira como me visto, como ando, enfim, então as declarações à imprensa são feitas por uns idiotas que usam as minhas descobertas, e nem sequer mencionam o meu nome.
- Calma, amico. Ri melhor quem ri por último, não é assim que dizem?
- É isso mesmo, e eu fico muito grato ao senhor.
- Então atenda ao meu pedido; não é uma tarefa muito difícil.
- Diga.
- Você tem autoridade para mandar o pessoal da imigração e da alfândega liberar a entrada de um avião particular no país, sem revistar os passageiros, estou certo?
- Claro. Segurança nacional. Só preciso do nome da empresa proprietária do avião, sua identificação, o aeroporto de entrada e o número de passageiros.
- O nome é Sunburst Jetlines, da Flórida. O número, NC21BFN; a entrada, Fort Lauderdale. A bordo estão o piloto, o copiloto e um passageiro.
- É alguém que eu devesse conhecer?
- Por que não? Ele não tem nenhuma intenção de se esconder, nem de entrar ilegalmente no país, pelo contrário; em poucos dias todo mundo nos meios mais ricos vai saber da presença dele, e ele vai ser muito solicitado. Mas ele gostaria de, antes disso, ter alguns dias para fazer o que quiser e para rever os amigos.
- Quem é esse cara, é o Papa, por acaso?
- Não, mas aposto que ele vai ser tratado como se fosse por muitas dondocas, de Palm Beach à Park Avenue.
- Isto quer dizer que eu provavelmente nunca ouvi falar dele.
- Provavelmente não, mas eu garanto que isso não é nenhuma vergonha. É claro que ele vai apresentar todos os documentos necessários para os funcionários de Fort Lauderdale, que sem dúvida também nunca ouviram falar dele. A gente só queria que ele pudesse permanecer a bordo até chegar no aeroporto particular de West Palm Beach, onde vai ter uma limusine esperando por ele.
- Bem, já que isso não tem importância, como é o nome dele?
- Dante Paolo, filho do barão de Ravello; Ravello é o sobrenome e é também a província fundada pela família há centenas de anos. - O padrone baixou a voz. - Vou lhe contar uma coisa confidencial, ele está sendo preparado para assumir responsabilidades importantíssimas. Pertence a uma das famílias mais ricas e aristocráticas da Itália. O baronato de Ravello, para ser exato.
- Um daqueles da Fortune 500, é isto?
- É, isto mesmo. Eles têm vinhais que produzem o melhor Greco di Tufo, e investimentos na indústria comparáveis com os do Giovanni Agnelli. Dante Paolo está vindo para estudar a possibilidade de fazer algumas aquisições aqui nos Estados Unidos e, na volta, vai submeter a decisão ao pai. Tudo dentro da lei, devo dizer, e se a gente pudesse fazer esse favorzinho para uma família italiana tão importante, talvez no futuro eles se lembrem de nós. Não é assim que o mundo funciona?
- O senhor não precisa de mim para isso. O pessoal do departamento de Comércio seria capaz de qualquer coisa para agradar o seu "megadólar".
- Claro que sim, mas seria conveniente evitar que essa nobiltà tão elegante tenha que fazer esse tipo de pedido, não é?... E eles vão saber quem fez isso por eles. Então você faz isso por mim, capisci?
- Está feito. Entrada autorizada, nenhum entrave. Qual o horário e o equipamento?
- Amanhã, sete da manhã, e o avião é um Lear 25.
- Pode deixar... Espere um instante, o meu telefone vermelho está tocando. Fique na linha, Caribe. - Um minuto e quarenta e seis segundos depois, o contato do padrone retomou a ligação. - O senhor tinha razão, acabamos de receber a notícia! O AWAC II de Patrick explodiu em St. Martin com um tripulante a bordo. Estamos em alerta total. O senhor quer discutir a situação?
- Não tem nada para discutir, Scorpio Dois. Não tem nenhuma situação, a crise acabou. Depois desta ligação, eu estou desligado, incomunicável. Desaparecido.
Quase três mil quilômetros a noroeste da ilha fortificada, um homem corpulento, de cabelos ruivos e ralos, de rosto redondo coberto de sardas, estava sentado na sua sala na Agência Central de Inteligência em Langley, Virgínia. Com um charuto na boca, ele soprou as cinzas que haviam caído sobre a gravata de poliéster azul; a saliva formou círculos no tecido quase impermeável. Guardou o telefone ultrasseguro numa gaveta de aço, na parte de baixo da escrivaninha. Para um observador casual - e até mesmo para um atento - não havia gaveta alguma, apenas a base da escrivaninha, junto ao tapete. O homem reacendeu o charuto; a vida era boa, muito boa. Então, o que mais importava?
8
O corpo foi coberto com um lençol e levado por uma ambulância, sob a luz dos holofotes do aeroporto. Hawthorne havia feito a identificação formal do que havia restado entre os escombros e insistira para que a major Neilsen e o tenente Poole se mantivessem afastados enquanto ele fazia isso. A pouca distância, as chamas haviam reduzido a volumosa aeronave a um horrível esqueleto; as hastes negras se projetavam sobre os destroços carbonizados da fuselagem desmantelada, as placas de metal das paredes soltas lembravam a cavidade abdominal de um gigantesco inseto desmembrado.
Jackson Poole, chorando convulsivamente, deixou-se cair no chão e começou a vomitar. Tyrell ajoelhou-se ao seu lado; tudo o que podia fazer era passar o braço em torno dos ombros do Tenente e abraçá-lo; as palavras de um estranho sobre a morte de um amigo não significavam nada, eram apenas uma invasão injustificada. Tye olhou para Catherine Neilsen, Major, Força Aérea até o fundo da alma, e viu que ela continuava de pé, rígida, retendo as lágrimas. Lentamente, ele soltou Poole, levantou-se e se aproximou dela.
- Deixe eu dizer uma coisa, não tem problema você chorar - disse ele com carinho, de frente para ela, mas sem tocá-la. - Não tem nenhum artigo no regulamento aéreo proibindo. Você perdeu uma pessoa próxima.
- Eu sei disso tudo - respondeu a Major, trêmula, tentando engolir as lágrimas que começavam a aparecer nos seus olhos, visivelmente contra a sua vontade. - Estou me sentindo tão desamparada, tão desorientada - acrescentou.
- Por quê?
- Não sei bem. Fui treinada para não me sentir assim.
- Não, você foi treinada para não demonstrar esses sentimentos diante dos seus subordinados, nos momentos de indecisão, que acontecem com todo mundo. É diferente.
- Eu... eu nunca estive em nenhuma guerra.
- Agora você está numa, Major. Pode ser que isso nunca se repita, mas agora você está vendo como é.
- Vendo? Meu Deus, eu nunca vi ninguém ser assassinado... muito menos alguém de quem eu gostasse tanto.
- Isto não é um pré-requisito para o treinamento aéreo.
- Eu tinha que ser mais forte, que me sentir mais forte.
- Aí você seria uma impostora, e uma perfeita idiota também, e isso não é um bom atributo para um oficial. Isto aqui não é cena de cinema não, Cathy, é a vida real. Ninguém confia num superior que não se emociona diante de uma perda pessoal. E você sabe por quê?
- Eu não sei de nada neste momento...
- Então eu vou lhe dizer: porque ele é capaz de deixar você ser morto.
- E eu deixei o Charlie ser morto.
- Não deixou, não, eu estava lá e vi. Foi ele que fez questão de ficar no avião.
- Eu devia ter dado uma ordem para ele sair.
- Você deu, Major, eu escutei. Você fez tudo o que tinha que fazer, mas ele se recusou a obedecer.
- O quê? - exclamou Neilsen, mal conseguindo focalizara visão ao olhar para Hawthorne. - Você está tentando me consolar, não é?
- Só estou tentando ser razoável, Major. Se quisesse amenizar a sua dor, ia abraçar você e deixar você chorar à vontade, mas eu não vou fazer isso. Em primeiro lugar, você depois ia me desprezar por isso; e, em segundo, você vai ter que encarar o cônsul-geral americano e vários funcionários dele. Eles estão retidos no portão, mas estão exigindo prerrogativas diplomáticas e vão ser autorizados a entrar daqui a uns cinco minutos.
- Você fez isto?
- Então aproveite para chorar agora, e depois volte para o seu regulamento. Não tem problema, eu já passei por situações parecidas e não fui rebaixado por causa disso.
- Ai, meu Deus, Charlie! - soluçou Neilsen, encostando a cabeça no peito de Hawthorne. Ele a envolveu num abraço terno e protetor.
Passaram-se dez minutos; as lágrimas cederam e Tye, erguendo delicadamente o queixo de Cathy, disse:
- O seu tempo acabou, isto é outra coisa que eu aprendi. Agora, dê um jeito de enxugar o rosto, mas não pense de maneira nenhuma que você tem que negar o que está sentindo... Pode usar a manga do meu macacão.
- De que... de que é que você está falando?
- O pessoal do consulado está chegando. Eu vou lá ver como é que está o Poole; ele já está de pé. Volto daqui a pouco. - Quando Hawthorne começou a se afastar, Neilsen pôs a mão no seu ombro. - O que foi? - perguntou ele, voltando-se.
- Não sei - disse ela, sacudindo a cabeça, enquanto o carro oficial do consulado americano atravessava o campo de aviação, aproximando-se deles a toda velocidade. - Acho que eu queria agradecer a você... está na hora de tratar com o governo - acrescentou. - Deixe comigo. O negócio agora é com Washington.
- Então se cuide, Major... e não precisa me agradecer. - Tyrell aproximou-se de Poole, que estava junto a um carro de bombeiros, a boca escondida por um lenço, a cabeça baixa, uma tristeza terrível estampada no rosto. - Como é que você está, Tenente?
Poole, cambaleando, agarrou Hawthorne pela parte da frente do macacão.
- O que é que significa isso tudo? - gritou. - Você matou o Charlie, seu filho da puta!
- Não, Poole, eu não matei o Charlie - respondeu Tyrell, sem tentar se desvencilhar das mãos do Tenente. - Foram outras pessoas, não eu.
- Você chamou o meu amigo de pentelho!
- Isso não teve nada a ver com a morte dele, nem com a explosão do avião, e você sabe muito bem disso.
- É, eu acho que sei - disse Poole, mais calmo, soltando o macacão de Hawthorne. - Só que antes de você aparecer éramos eu, Cathy, Sal e Charlie, e estava tudo muito bem. Agora a gente não tem mais o Charlie, o Sal desapareceu e a nossa Grande Dama virou um monte de lixo de Beirute.
- Grande Dama?
- É, o nosso AWAC II. Nós demos esse nome em homenagem à Cathy... Por que cargas d’água você tinha que aparecer na nossa vida?
- Não fui eu que escolhi, Jackson. Na verdade, foram vocês que apareceram na minha. Eu nem sabia da existência de vocês.
- É, pode ser, está tudo tão confuso que não estou entendendo mais nada, e eu vou lhe dizer uma coisa, costumo entender as coisas melhor do que a maioria das pessoas que conheço.
- Com computadores e raios laser e senhas e sinais que ninguém mais entende - replicou Hawthorne, num tom áspero, severo. - Agora deixe eu dizer uma coisa para você, Tenente. Existe um outro mundo lá fora, e você não sabe nada sobre ele. É o que a gente chama de fator humano, e isso não tem porra nenhuma que ver com suas máquinas e sua parafernália eletrônica. E é com isso que as pessoas como eu estamos lidando diariamente, há anos; não são sinais de um radar impressos numa folha de papel, e sim homens e mulheres que tanto podem ser nossos amigos quanto querer nos matar. Agora tente resolver essa equação nessa sua engenhoca de aço.
- Nossa Senhora, você está mesmo puto.
- Estou mesmo, você tem toda a razão. Há menos de dois dias um dos melhores agentes secretos que já conheci me disse exatamente isso que eu acabei de dizer, e eu chamei ele de louco. Mas, cara, ele estava mais do que certo.
- Talvez fosse melhor a gente se acalmar - disse o Tenente, submisso, vendo o carro do consulado atravessar o campo em direção à saída. - A Cathy já terminou a conversa com o pessoal do governo e está com cara de cachorrinho sem dono.
Neilsen aproximou-se, com o cenho franzido numa mistura incerta de perplexidade e tristeza.
- Eles estão voltando para o consulado e vão pedir instruções mais detalhadas - disse ela. Em seguida, lançou um olhar duro para o ex-oficial da inteligência naval. - No que foi que você nos meteu, Hawthorne?
- Eu bem que gostaria de ter uma resposta, Major. Só sei que isso tudo é muito, muito pior do que eu esperava. Esta noite foi a prova. Charlie foi a prova.
- Ai, meu Deus, Charlie...!
- Pare com isso, Cathy - interveio Jackson Poole, recobrando subitamente a firmeza. - A gente tem muito trabalho pela frente e, juro por Deus, eu quero trabalhar. Pelo Charlie!
A decisão não era fácil, mas foi tomada, muito a contragosto, pelo comando da base aérea de Cocoa, Flórida, derrotado pela união de esforços do departamento de Marinha, da CIA e, finalmente, do poder irrevogável das salas de estratégia da Casa Branca. A notícia da sabotagem do AWAC II seria mantida em sigilo, e uma outra versão seria divulgada; para todos os efeitos, a explosão da aeronave de Patrick fora causada por um vazamento de combustível, durante uma escala de emergência em território francês. Por sorte, não houvera nenhuma vítima. Os parentes do suboficial Charles O’Brian, solteiro, foram chamados a Washington e receberam a notícia através do diretor da CIA, que deu ordens para que a equipe de investigadores "fosse discreta mas investigasse a fundo".
A "Menina Sanguinária", como os círculos mais secretos chamavam a operação de busca, era o assunto prioritário, a maior preocupação de todos os serviços. Todos os voos internacionais, vindos de todos os pontos do globo, eram revistados minuciosamente; passageiros eram detidos, alguns durante horas, já que cada viajante considerado suspeito, sozinho ou em grupo, era levado para uma sala isolada, enquanto seus documentos eram submetidos a exames computadorizados, que verificavam sua origem. O número de detidos chegou a centenas, ultrapassou um milhar. O New York Times dizia que aquilo era um "excesso de zelo sem fundamento e um aborrecimento para quem chegava ao país", enquanto o International Herald Tribune tratava o assunto como "paranoia americana... não foi encontrada uma única arma, uma única substância ilegal". Nenhuma resposta, porém, muito menos uma explicação, chegava de Londres, Paris ou Washington. O nome Bajaratt não deveria ser mencionado em hipótese alguma, nem a situação, revelada... A ordem era procurar uma mulher viajando com um rapaz, um adolescente, de nacionalidade desconhecida.
E enquanto a busca continuava, o Lear 25 pousava em Fort Lauderdale, pilotado por um homem que já fizera essa rota centenas de vezes, e copilotado por uma mulher - corpulenta, cabelos escuros, presos por baixo do quepe - que pertencera ao Comando Aéreo Israelense; no assento traseiro viajava um homem jovem e alto. Entre os funcionários da alfândega convocados para a ocasião encontrava-se um simpático oficial, que os cumprimentou em italiano e processou a papelada de imigração com toda a presteza. Amaya Bajaratt e Nicolo Montavi de Portici haviam aterrissado em solo americano.
- Eu juro por Deus que não sei como você consegue isso - disse Jackson Poole, entrando no quarto do hotel em St. Martin, onde Hawthorne e Catherine Neilsen examinavam os mapas computadorizados - mas com toda a certeza nada está fora do seu alcance.
- No vocabulário de uma menina do interior de Minnesota, isto quer dizer que nós recebemos autorização? - perguntou Cathy.
- Major, esse pirata ianque quer nos adotar, com ou sem o nosso consentimento.
- Eu também tenho um navio negreiro - disse Tyrell, voltando aos mapas, sob a claridade da luminária de mesa, com a ajuda de uma minirrégua de aumento conseguida na última hora.
- Por favor, você podia esclarecer, Tenente?
- Ele agora é o nosso dono, Cath.
- Pois eu garanto que não é totalmente - disse a Major Neilsen.
- Bem, a gente meio que se ofereceu. As ordens são para não usar nenhum piloto daqui, porque foi alguém daqui que explodiu a Grande Dama, e essa história está muito obscura. E já que você é credenciada para esse tipo de voo, você foi eleita, Cathy. E como sou muito mais novo que ele e, provavelmente, mais forte também, acho que o pessoal lá em Patrick levantou as mãos e disse: "Tudo o que ele precisar."
- Você tem mais alguma coisa a acrescentar? - perguntou Hawthorne, debruçado sobre a mesa. - Por exemplo, que você me leva para passear e verifica se tomei o meu Geritol?
- Ei, o que é isso? - disse Catherine. - Você deixou claro que ia precisar de nós, mas não podia nos requisitar, muito menos nos obrigar a ajudar. A gente já tinha dito que queria ajudar. Pelo Charlie.
- Eu não sei o que vai acontecer, e não estou obrigando ninguém a ir comigo.
- Pare com essa bobagem, Tye - pediu Cathy. - Para onde é que nós vamos?
- Eu conheço essas ilhas. Elas são um tipo de atol vulcânico, e não vale a pena entrar nelas porque lá não tem nada, só rochas e praias capazes de cortar nosso pé, mesmo de sapato. Perda de tempo.
- Uma delas não é - disse Poole. - Palavra do meu equipamento.
- Eu acredito - concordou Hawthorne. - Mas então a gente vai ter que chegar bem perto. Os franceses vão nos dar um hidroavião, um bimotor silencioso, e nós vamos nos encontrar hoje à noite, cerca de dez quilômetros ao sul da última ilha, com um minissubmarino para dois passageiros, que vai ser rebocado de Gorda por uma lancha inglesa.
- Dois passageiros? - exclamou Neilsen. - E eu?
- Você vai ficar com o avião e a lancha.
- Não vou, mas não vou mesmo. Faça o favor de dizer para os ingleses mandarem um piloto junto, sem maiores explicações; é assim que eles fazem o tempo todo... Esqueça a hierarquia, o Charlie era como um irmão mais velho para mim. E eu vou para onde você e o Jackson forem. De qualquer maneira, vocês vão precisar de mim.
- Posso perguntar para quê?
- Claro que pode. Enquanto vocês dois estiverem na sua patrulha, o que é que vocês pretendem fazer com o submarino? Deixar ele naufragar no lodo?
- Não, vamos deixar ele camuflado, junto da praia; este é um assunto que por acaso conheço um pouco.
- Considerando que existe uma alternativa óbvia, é uma decisão bastante pobre no que se refere a táticas de sobrevivência, um assunto que por acaso eu entendo um pouco. Se você encontrar a ilha que acha que está lá...
- Ela está lá - interrompeu Poole. - Minhas máquinas não mentem.
- Está bem, digamos que vocês encontrem - concedeu Cathy. - Imagino que seja um lugar muito bem protegido, tanto por homens armados como, principalmente, por recursos tecnológicos. É uma coisa relativamente simples instalar detectores eletrônicos em todo o litoral de uma ilha tão pequena. Você concorda, Jackson?
- Você tem razão, eu concordo, sim.
- É por isso que eu acho que seria muito melhor a gente subir à superfície longe da praia, e aí vocês serem ejetados e nadarem até o local de entrada, que pode ser determinado na hora.
- Nós vamos desembarcar, não vamos ser ejetados, nada de sair voando pelo ar, mas mesmo assim eu não gosto desta solução. Você está superestimando os recursos técnicos de uma ilhazinha como essa, primitiva, com pouquíssimos habitantes.
- Não sei, não, Tye - disse o Tenente. - Eu seria capaz de instalar um sistema desses que a Cathy falou com um PC, um gerador que pode custar trezentos dólares, e uns dez ou vinte sensores, e não estou exagerando.
- Você está falando sério? - Tyrell olhou para Poole.
- Não sei se vou conseguir explicar para você - continuou Poole - mas há uns dez ou doze anos, quando eu era adolescente, meu pai comprou um videocassete com controle remoto. Foi a maior sacanagem que ele podia ter feito conosco, a gente queria um microcomputador. Ele nunca se entendeu com o vídeo, principalmente quando queria gravar um jogo do Saints ou algum programa para ver mais tarde. Ele ficava furioso, gritava, xingava, parecia que aquilo era um castigo para ele, e acabou jogando o aparelho no lixo. E o meu pai é inteligente, um puta advogado, mas aquele monte de números e símbolos que a gente tem que apertar para conseguir o que quer se tornou inimigo pessoal dele.
- E o que quer dizer isso tudo? - perguntou Hawthorne.
- Quer dizer - respondeu Poole - que ele não conseguia se acostumar com nada que não tinha feito parte da criação dele, então ele odiava essas coisas, quer dizer, pelo menos em assuntos técnico-mecânicos...
- Em quê?
- Ele é muito generoso em termos humanos, como aconteceu quando os negros resolveram disputar cargos no governo; ele achou que era muito justo, e que já era hora de acontecer isso. Mas não conseguia se adaptar aos avanços da tecnologia, porque eles se tornaram rápidos demais, e não eram humanos. Ele tinha medo daquilo.
- Tenente, que diabo você está tentando me dizer?
- Que tudo é muito simples depois que você se acostuma. Eu e a minha irmãzinha fomos criados com os PCs, os computadores da escola e os videogames. O meu pai não fazia nenhuma objeção, só se recusava a ver aquilo. E a gente se acostumou com todas aquelas teclas e aqueles símbolos, até aprendemos a produzir chips.
- Ainda não entendi por que você está me dizendo isso tudo.
- A minha irmã é programadora no vale do Silício e já está ganhando muito mais do que eu vou ganhar em toda a minha vida, mas eu estou usando equipamento que ela daria tudo para ter.
- E daí?
- Daí que a Cathy tem razão, e eu também. As hipóteses dela coincidem com os meus conhecimentos. Ela teorizou sobre o que poderia haver naquela ilha e o meu conceito de um simples PC, um gerador de trezentos dólares e alguns sensores confirma a ideia dela. Tecnicamente, não é grande coisa, mas para nós poderia se tornar uma bela encrenca.
- Então, o que você está querendo me dizer com todo esse blablablá é que eu devia concordar com ela, não é?
- Olhe aqui, Tye, essa moça é muito importante para mim, e eu também não estou gostando da atitude dela, mas eu conheço ela muito bem. Quando ela diz uma coisa dessas, é porque tem razão, principalmente em se tratando de técnicas e procedimentos; ela já leu todos os livros.
- E o que você me diz dela pilotar um submarino?
- Posso pilotar qualquer coisa que anda para a frente e para trás, no céu, na terra ou na água - respondeu a Major. - Me dê uma hora para estudar os controles e as instruções que dou uma lição de A a Z para vocês.
- Admiro a sua modéstia. E não confio nela, também.
- Eu sei que aquelas equipes de trabalhos submarinos conseguem aprender em vinte minutos.
- Eu aprendi em meia hora - disse Hawthorne.
- Você é meio lento, eu sei disso. Olhe aqui, Tye, não sou nenhuma idiota. Se alguém sugerisse que eu fosse com vocês numa missão de busca, eu teria que recusar. Não por covardia, mas porque não tenho preparo físico nem psicológico para esse tipo de trabalho, e eu poderia prejudicar vocês. Mas numa máquina que eu sou capaz de comandar, eu podia ser uma ajuda. A gente vai ficar em contato pelo rádio, e eu vou estar onde você quiser, na hora que você quiser. E se vocês tiverem algum problema, eu vou estar ali, na retaguarda.
- Ela é sempre assim tão lógica, Jackson?
Antes que o sorridente Poole pudesse responder, o telefone tocou e ele, como estava mais próximo, foi até a mesinha de cabeceira e atendeu.
- Alô? - disse ele, cauteloso, e voltou-se para Hawthorne. - É um tal de Cooke que quer falar com você.
- Já era tempo! - Tyrell pegou o fone da mão do Tenente. - Onde foi que você se meteu?
- Eu podia fazer a mesma pergunta para você - disse Cooke, de Virgin Gorda. - Acabamos de chegar aqui, não encontramos absolutamente nenhum recado seu, e descobrimos que fomos saqueados.
- Como assim?
- Eu tive que ligar para aquele idiota do Stevens para saber onde você estava.
- O Martin não lhe disse?
- O Martin não está aqui, nem o Mickey. Os dois simplesmente sumiram.
- Filho da puta! - gritou Hawthorne. - E qual foi o saque?
- O envelope que eu deixei para você no cofre também sumiu. Tudo; todo o material que a gente tinha reunido até agora.
- Meu Deus do céu!
- Se aquilo cair nas mãos erradas...
- Eu não estou interessado em mãos certas ou erradas, eu quero saber onde estão o Marty e o Mickey. Eles não iam desaparecer assim à toa, eles não fariam isso. Teriam deixado um bilhete, alguma explicação!... Ninguém sabe de nada?
- Parece que não. Disseram que um sujeito que eles chamam de Velho Ridgeley foi até a oficina onde os dois deveriam estar consertando o motor dele, e não encontrou ninguém lá.
- Isso não está me cheirando nada bem! - gritou Hawthorne. - Eles são meus amigos... o que foi que eu fiz?
- Se isso incomoda você, talvez você devesse saber o pior - disse Cooke. - O rapaz da recepção diz que entregou o envelope a um "cavalheiro" chamado Grimshaw, de grande reputação em Londres, que identificou todos nós, e deixou claro que o envelope pertencia a ele porque nós tínhamos sido pagos por aquelas informações.
- Que informações?
- Inspeção de um iate que o clube dele em San Diego estava comprando, especificação do custo de reposição de peças e equipamentos, e avaliação das condições gerais do barco. Tenho que admitir que a história é convincente. Para nosso azar, o rapaz acreditou.
- Esse filho da puta desse recepcionista tem que ser morto, ou, pelo menos, demitido.
- Ele já foi embora, Tyrell, pediu as contas por ter sido repreendido. Ele disse que tinha um emprego garantido no Savoy, em Londres, e que além disso estava farto de trabalhar aqui no fim do mundo, nesta porcaria de ilha. Pegou o último voo daqui para Porto Rico, dizendo com toda a arrogância que esperava pegar o voo para Londres junto com esse tal Grimshaw. E disse ao pobre do gerente aqui que não contasse com ele nem por mais um dia.
- Verifique os passageiros de todos os voos de Porto Rico para... - Tyrell fez uma pausa e suspirou. - Merda, você já fez isso.
- Claro.
- Não tem nenhum Grimshaw - concluiu Hawthorne.
- Nenhum Grimshaw - confirmou Cooke.
- E com toda a certeza ele não está aí no clube.
- O quarto dele está intacto, o telefone completamente limpo, as maçanetas da porta também.
- Um profissional... era só o que faltava!
- Agora é tarde, Ty e; a gente não pode perder tempo com isso.
- Eu posso perder tempo com Marty e Mickey, você pode ter toda a certeza.
- Nós falamos com a Marinha britânica, e as autoridades estão fazendo uma busca pela ilha... Espere um instante, Tyrell, o Jacques acabou de chegar e quer me dizer alguma coisa. Espere na linha.
- Estou esperando - disse Hawthorne, tapando o bocal do telefone e voltando-se para Catherine e Jackson. - A gente levou um ferro lá em Gorda - explicou. - Um amigão meu que era o meu contato lá desapareceu, ele e o colega dele, que também era meu amigo. E sumiu também todo o material que a gente tinha sobre aquela vaca.
Neilsen e Poole se entreolharam. O Tenente encolheu os ombros, demonstrando que não tinha entendido as palavras de Tyrell. A Major concordou, arqueando as sobrancelhas, e logo em seguida sacudiu a cabeça, numa ordem telegráfica para que ele não fizesse perguntas.
- Geoff, cadê você? - gritou Hawthorne, ao telefone, sentindo crescer não só sua irritação como também sua angústia, diante daquele silêncio prolongado.
- Tyrell, eu lamento muitíssimo - disse Cooke. - Preferia não ter que lhe dar esta notícia. Uma patrulha marítima encontrou o corpo de Michael Simms a uns novecentos metros da praia. Ele levou um tiro na cabeça.
- Ai, não - disse Hawthorne, baixando a voz. - E como é que ele foi parar lá?
- Bem, com base na avaliação preliminar, as autoridades acham que ele foi morto, posto num barquinho motorizado ligado no automático e mandado para o mar. Eles acham que ele deve ter caído na água por causa do movimento das ondas.
- Isso quer dizer que nunca vamos encontrar o Marty e, se alguém encontrar, ele vai estar morto numa lanchinha com o tanque vazio.
- Eu acho que a Marinha britânica concorda com essa possibilidade. As ordens de Londres e de Washington são para manter tudo em sigilo.
- Foda-se! Fui eu que meti os dois nessa história. Eles foram heróis na guerra, e agora foram mortos por causa dessa maluquice!
- Tye, você me desculpe, mas eu não acho que isso seja maluquice coisa nenhuma. No mínimo, isso que aconteceu, somado ao massacre em Miami, à sua própria experiência em Saba e ao avião em St. Martin, é uma prova de que estamos lidando com um problema muitíssimo grave. Essa mulher, essa gente tem recursos muito superiores a qualquer uma das nossas estimativas.
- Eu sei - disse Hawthorne, num fio de voz. - E também sei como os meus novos companheiros estão se sentindo em relação ao Charlie.
- Quem?
- Nada, deixe para lá, Geoff. O Stevens informou você sobre os nossos planos aqui?
- Informou, sim. E sinceramente, Tyrell, eu queria lhe perguntar, você acha mesmo que está preparado para isso? Quer dizer, você esteve afastado desse tipo de coisa por alguns anos...
- Por acaso você e o Stevens andaram fofocando como duas velhas solteironas? - interrompeu Hawthorne, enfurecido. - Vou lhe explicar uma coisa, Cooke, tenho quarenta anos de idade...
- Quarenta e dois - sussurrou Catherine, do outro lado do quarto. - O dossiê...
- Cale a boca!... Não, não é você, Geoff. A resposta à sua pergunta é sim. Nós estamos partindo daqui a uma hora e temos muito o que fazer. Mais tarde eu falo com você. Escolha um contato.
- O gerente? - arriscou o agente do MI-6, do outro lado da linha.
- Não, ele não. Ele fica muito ocupado cuidando do clube... Use o Roger, o cara do bar, ele é perfeito.
- Ah, sim, aquele preto do revólver. Boa ideia.
- A gente se fala - disse Tyrell, desligando o telefone e voltando-se para Neilsen. - A minha idade exata não vem ao caso, mas a capacidade do submarino é de duas pessoas, conforme eu já disse, e é exatamente este o número. Não são três nem quatro, são dois. Espero que você e o seu "bem" sejam bastante íntimos, porque já que você insiste em embarcar conosco, um de vocês vai ter que ir no colo do outro!
- Eu tenho uma pequena correção a fazer, comandante Hawthorne - disse a Major. - Na parte de trás, ou melhor, na popa, ao lado do assento traseiro, existe um compartimento de carga que é do mesmo tamanho, ou até maior, que os assentos dos passageiros. Ele comporta um bote inflável de PVC, provisões para cinco dias e armas. Sugiro que a gente dispense as provisões, e, mesmo que você leve os equipamentos que quiser, ainda vai sobrar espaço para mim.
- Como é que você sabe isso tudo sobre minissubmarinos?
- Ela namorou um sujeito de Pensacola, um atleta da Marinha que sabia tudo do mundo submarino - explicou o Tenente. - Eu, o Sal e o Charlie quase morremos de felicidade quando ela dispensou o cara; ele era um chato de galochas, um arrogante.
- Jackson, por favor, isso não vem ao caso.
- O quê, o seu dossiê?
- O dossiê só diz respeito à nossa vida profissional.
- Tudo bem, deixe para lá. - Hawthorne voltou a examinar os papéis sobre a mesa. - A gente pode ir com a lancha até, digamos, mais ou menos uns dois quilômetros ao sul da primeira ilha, com todas as luzes apagadas, claro, só pelo radar. Olhem aqui. - Tyrell apontou para os dados enviados de Washington pelo fax, informando tudo o que era sabido a respeito do atol. Felizmente, entre os papéis havia mapas preparados por homens como Hawthorne. Os recifes estavam marcados, rochas vulcânicas invisíveis, assinaladas para que os marinheiros não se espatifassem de encontro a elas, ou naufragassem naquelas águas bravias. - Tem uma brecha neste recife mais de fora - disse ele, com o dedo sobre um ponto do mapa de navegação.
- O nosso sonar não detecta isso? - perguntou Poole.
- Se a gente estiver submerso, é provável que sim - respondeu Tye. - Mas se for na superfície, ele não vai detectar, e é capaz da gente encalhar numa montanha de coral.
- Então a gente fica submerso - disse Cathy.
- E bate no recife de dentro, que não está definido no mapa; a gente ficaria dirigindo às cegas - replicou Hawthorne. - E isso é só a primeira ilha. Merda!
- Posso fazer uma sugestão? - perguntou Neilsen.
- Pois não.
- Nos treinamentos de combate aéreo, quando a gente encontra uma massa de nuvens, a gente voa o mais baixo possível, logo acima das nuvens, onde os nossos instrumentos permitem a visibilidade máxima. Por que a gente não adota o procedimento inverso? Se a gente for o mais perto possível da superfície, usando o periscópio, e na menor velocidade possível, ninguém vai bater nos recifes e nem nas rochas.
- É realmente muito simples - disse Poole. - Como nos computadores, você vai aos poucos. Metade dentro, metade fora; os dois olhos no objetivo, os dez dedos nas teclas.
- Que teclas?
- Você pode me arrumar um laptop e alguns sensores para eu instalar do lado de fora do submarino?
- Claro que não, não vai dar tempo.
- Então, mãos à obra. A teoria da Cathy está valendo.
- Espero que esteja mesmo.
9
O hotelzinho modesto em Palm Beach era apenas uma parada provisória para o barone-cadetto di Ravello, que foi registrado como um operário da construção civil, em companhia de uma tia de meia-idade, uma doméstica de Lake Worth, a responsável pelo rapaz durante sua viagem pelos Estados Unidos, "um menino tão bom, tão trabalhador!".
No entanto, às nove e meia da manhã, a "tia" e o "sobrinho" estavam na Worth Avenue, em Palm Beach, escolhendo e pagando em dinheiro as melhores roupas nas lojas mais exclusivas daquela rua igualmente exclusiva. E começaram a correr boatos: Ele é um barão italiano, dizem que é de Ravello, mas shhh! Ninguém deve ficar sabendo disso! Ele é chamado de barone-cadetto, o filho mais velho que está sendo preparado para herdar o título, e a tia é uma contessa, uma condessa de verdade. E deixe eu lhe contar, eles estão comprando a rua inteira, tudo do bom e do melhor! A Alitalia extraviou toda a bagagem deles, você acredita?
Naturalmente, todos na Worth Avenue acreditavam em tudo, ao ouvir o tilintar das suas registradoras, e os donos das lojas telefonaram para os colunistas sociais mais conhecidos de Palm Beach e Miami, desejosos de vê-los quebrar aquele silêncio, bem como mencionar com destaque os seus estabelecimentos.
Às nove da noite, no quarto do motel atulhado de caixas com roupas e de malas Louis Vuitton, Bajaratt despiu o vestido levemente acolchoado e, com um suspiro profundo, caiu deitada na cama de casal.
- Estou exausta! - exclamou.
- Eu não! - Nicolo estava exuberante. - Nunca fui tão bem tratado na minha vida. É o máximo!
- Você ainda não viu nada, Nico. Amanhã a gente se muda para um hotel de luxo, do outro lado da ponte; já está tudo arranjado. Agora me deixe em paz, não me venha com esses seus ímpetos de adolescente, por lavor. Eu tenho que pensar, e depois, dormir.
- Pode pensar à vontade, signora. Eu vou tomar um copo de vinho.
- Mas não exagere. Amanhã nós vamos ter um dia cheio.
- Pode deixar - disse o rapaz. - Eu vou estudar mais um pouco. O barone-cadetto di Ravello tem que estar preparado, não é?
- Isto mesmo.
Dez minutos depois Bajaratt já estava dormindo; do outro lado do quarto, sob a luz que se derramava da luminária ao lado do sofá, Nicolo ergueu o copo sobre as páginas de sua nova identidade.
- Para a senhora, Santa Cabrini - disse ele para si mesmo. - E para mim, o futuro barão.
Eram onze e quinze de uma noite de céu claro: a lua brilhava sobre o Caribe, refletindo seus raios nas águas escuras. O hidroavião havia se encontrado com a lancha de Virgin Gorda às 22:05. Os britânicos haviam fornecido aos três americanos roupas de mergulho pretas, pistolas pequenas e silenciosas para serem presas nos cintos, e bolsas impermeáveis fechadas com velcro, contendo lanternas, binóculos de visão noturna e rádios portáteis. Além disso, como era essencial para o sucesso daquela missão, haviam instruído a major Neilsen a respeito do funcionamento do submarino; ela assumiria o controle quando seus companheiros deixassem a nave para peneirar nas ilhas. As instruções foram dadas por um membro do comando britânico, um jovem recalcitrante que insistia que quem deveria participar da patrulha era ele e não - definitivamente não - uma mulher, oficial da Força Aérea americana. Sua oposição arrefeceu depois que a Major o levou até a popa da lancha para uma conversa particular. Apesar de manter um certo ar de relutância, ele se saiu muito bem como professor; em pouco tempo, estava orgulhoso da sua aluna.
- Eu não quero nem pensar no que foi que você prometeu para ele - disse Tyrell, quando ela subiu novamente ao convés, depois de completar os últimos exercícios de manobra numa área de 2,5 quilômetros quadrados de oceano.
- Vai começar a torpeza?
- Não, não é nada disso, eu só estava tentando aliviar a tensão no momento; está noite vai ser longa.
- Eu disse a verdade para ele. Que realmente achava que eu devia isso ao Charlie. Acho que consegui convencer o moço.
- Disto eu não lenho nenhuma dúvida.
- Eu também deixei bem claro que se não me achasse capaz, não estaria insistindo em ir. Eu não arriscaria a vida de duas pessoas... Aquele inglês queria mesmo ir com vocês, e ele poderia ter estragado tudo para mim, mas ele não fez isso. Ele entendeu a minha situação e me deu todas as instruções de que eu precisava.
- Eu acredito em você, Major - disse Hawthorne, com sinceridade. - Nós estamos levantando a âncora para a primeira ilha dentro de minutos. Você quer dizer alguma coisa para o piloto de Gorda que vai tomar conta do avião que você trouxe para cá? Alguma coisa sobre o avião?
- Ele está lá embaixo. Acho que a gente não vai se encontrar com ele. Eu ia deixar um bilhete.
- Foi nisso que pensei. Escreva agora, então.
- Na verdade, é um recado tão curtinho que posso deixar com o Capitão. É o leme de direção esquerda que está com um atraso, ele tem que compensar. Ele vai descobrir isto em cinco minutos, de qualquer modo.
- Vou passar o recado. Se você tiver que ir ao banheiro, é melhor ir agora. Pode ser que não tenha outra oportunidade até amanhã de manhã.
- Já cuidei disso, obrigada, mas não tenho nada a agradecer a quem desenhou estas malditas roupas de mergulho. Porcos chauvinistas, é o mínimo que eu posso dizer.
- Nenhum problema da minha parte - disse Tyrell, olhando para a figura coberta de preto à sua frente, sob o luar.
- É, para você é fácil, você não precisa se agachar.
- Estamos indo! - Jackson Poole aproximou-se dos dois no convés da popa. - O Capitão disse que eles estão içando o submarino para a gente ver como vai se acomodar lá dentro.
- Mas já? - perguntou Neilsen.
- É, Cathy, já. O cara disse que com a velocidade que essa coisa anda, vamos chegar no local do desembarque em vinte minutos ou menos.
- Senhor! - O instrutor da major Neilsen saiu correndo das sombras e, parando junto aos três, postou-se, rígido, cumprimentando Hawthorne com uma continência ao estilo britânico, com a mão espalmada.
- Já recebemos o recado, Sargento. Estão içando o submarino. Estamos prontos.
- Não é isso não, senhor - disse o soldado, quase gritando. - Posso lhe perguntar quando o senhor operou um equipamento como este pela última vez?
- Ah, sei lá, uns cinco, seis anos atrás.
- Fabricado na Inglaterra?
- Quase todos eram nossos, mas eu já usei os de vocês também. A diferença é muito pequena.
- Negativo, senhor.
- Como?
- Não posso permitir que o senhor fique no comando do nosso equipamento.
- Você o quê?
- A senhorita aqui demonstrou um excelente preparo para a operação, um preparo notável, na verdade.
- Bem, é que eu tive alguma experiência em Pensacola, Sargento - observou Neilsen, com ar reservado.
- Muito bem aproveitada, senhorita.
- Você quer dizer que é ela quem vai pilotar o tempo todo?
- Exatamente, senhor.
- Pare com essa história de senhor. Eu conheço as ilhas; ela, não.
- Então o senhor não está informado sobre os avanços tecnológicos. O submarino tem uma televisão onde o piloto pode ver perfeitamente tudo o que é visto pelo periscópio no assento de trás. Se o senhor não sabe disso, também não deve conhecer os outros avanços. Não, o senhor vai me desculpar, mas eu não posso permitir que o senhor seja o principal responsável pelo equipamento.
- Isto é um absurdo...!
- Não, senhor. Esta máquina custou pelo menos quatrocentas mil libras ao governo britânico, e eu não posso entregá-la para alguém que não pilota um submarino há anos. Agora, se vocês quiserem me acompanhar até a proa, o piloto está esperando para ser transferido para o avião.
- Diga a ele que o leme de direção esquerdo está com um retardo - avisou Catherine. - O resto está tudo normal.
- Está bem, senhorita. Eu chamo vocês assim que a gente trouxer o avião para junto do costado e o piloto for autorizado a decolar. - O Sargento, com sua postura ereta, curvou a cabeça, sem se dirigir especificamente a ninguém e, evitando o olhar de Hawthorne, retirou-se.
- Sacanagem! - reclamou Tyrell, furioso, enquanto os três caminhavam ao longo do convés.
- Tye, você vai ver - disse Cathy, quando eles chegaram à proa da lancha. - Vai ser melhor assim. Se eu não achasse isso, não teria me oferecido para pilotar, e eu estava falando sério quando disse que se não me julgasse capaz, teria desistido.
- E por que vai ser melhor assim? - perguntou Hawthorne.
- Porque você vai poder se concentrar no que está procurando, sem se preocupar com a direção do submarino.
Tyrell olhou para ela e viu, ao luar, a súplica contida naqueles olhos grandes, verde-acinzentados, olhos de menina no rosto atraente de uma mulher muito competente.
- Pode ser que você tenha razão, Major, eu não posso negar. Eu só preferia que você tivesse feito isto de outra maneira.
- Eu não pude, porque não sabia se podia ou não.
Hawthorne sorriu, sentindo sua raiva diminuir.
- Você sempre tem uma resposta para tudo? - perguntou.
- A água sempre fica molhada? - perguntou o jovem Poole, alto e esguio, que estava debruçado na amurada do barco, fingindo que não estava escutando a conversa.
- Não diga isso - ordenou Tyrell, cobrindo o rosto de Neilsen com as mãos. - Não diga "fique quieto, meu bem"!
- Ah, isso - disse Catherine, rindo. - Um dia a gente conta como foi isso, e aí até você vai começar a chamar ele assim. - Os olhos de Neilsen subitamente pareceram tristes e distantes. - A ideia foi do Sal e do Charlie, foram eles que inventaram tudo.
- Tudo o quê?
- Nada não, esqueça - respondeu Catherine, piscando os olhos, que logo voltaram a brilhar. - Se você não tiver a patente dessa frase.
- Senhor! - anunciou o Sargento, emergindo das sombras da amurada a estibordo. - Está tudo pronto para os procedimentos de submersão.
- Vamos.
A primeira ilha não passava de puro lixo vulcânico. Eles ultrapassaram os recifes mais próximos à terra, subiram à superfície e não viram nada além de rochas pontiagudas e folhagens semiapodrecidas, que só conseguiam se manter vivas graças às chuvas intermitentes absorvidas pelo solo ressecado de terra e areia.
- Nada feito - disse Tyrell para a Capitã no assento dianteiro. - Vamos para o número dois, fica a menos de dois quilômetros daqui, direção leste-sudeste, se não me engano.
- É isto mesmo - respondeu Catherine, atrás dos controles. - Estou com o mapa e já programei tudo. Fechem as escotilhas e se preparem para submergir.
A segunda ilha, a menos de dois quilômetros, era, se possível, uma candidata ainda pior aos alarmes de Poole. Era uma formação rochosa árida, desprovida de vegetação e de praias, uma aberração vulcânica que não oferecia nenhuma condição para a vida humana ou animal. O minissubmarino seguiu para a terceira ilha, sete quilômetros e meio ao norte da segunda. Havia uma vegetação esparsa, fustigada pelas tempestades recentes. As palmeiras que se viam estavam maltratadas, curvadas, muitas delas caídas no chão; uma massa de terra isolada, à mercê dos elementos. Os três já estavam a ponto de prosseguir para leste, onde ficava a próxima ilha, quando Hawthorne, examinando a tela em frente a Neilsen, disse:
- Espere, Cathy. Reverta os motores e faça uma curva de noventa graus.
- Por quê?
- Tem alguma coisa errada. O radar acima da linha-d’água está recebendo algum sinal. Vamos submergir.
- Por quê?
- Faça o que eu estou dizendo.
- Claro, mas eu gostaria de saber por quê.
- Eu também - disse Poole, do compartimento traseiro.
- Fiquem quietos. - Hawthorne observava alternadamente a televisão e a grade do radar à sua frente. - Mantenha o periscópio acima da superfície.
- Ele está lá - respondeu Neilsen.
- É isto - disse Tyrell. - As suas máquinas estavam certas, Poole. Nós encontramos.
- Encontramos o quê? - perguntou Neilsen.
- Um muro. Uma porra de um muro artificial, que reflete os sinais do radar. Reforçado com aço, é o meu palpite; ele está escondido, mas as ondas estão refletindo.
- O que é que a gente faz agora?
- Vamos contornar a ilha e voltar para cá, se não houver nenhuma surpresa.
O submarino começou a contornar lentamente a ilha, mal ultrapassando a superfície, perscrutando cada metro do litoral com o radar. Para conseguir enxergar alguma coisa, Poole se espremeu para olhar pela escotilha aberta de Tyrell, com um par de binóculos de visão noturna.
- Caramba - disse o Tenente, curvando a cabeça para que os companheiros o escutassem. - Eles têm detectores espalhados por toda parte, a cada cinco, dez metros, eu calculo, e com certeza estão ligados em série.
- Descreva o que você está vendo - pediu Hawthorne.
- Parecem refletores de vidro, pequenos, alguns nas palmeiras, outros em postes, bem perto do chão. Os que estão no tronco das árvores têm fios pretos e verdes, subindo por entre as folhas, os que ficam nos postos, umas estacas de algum tipo de plástico, acho que não têm fios, pelo menos não estou vendo.
- Os fios estão escondidos - explicou Hawthorne -, enterrados a mais de um metro de profundidade; você não conseguiria ver, só se estivesse de cara para eles, em plena luz do dia e, mesmo assim, talvez não conseguisse.
- Como assim?
- Eles são transparentes, as cores ficam nas extremidades, para conectar as séries, como você disse.
- Quem nem as luzes de uma árvore de Natal?
- Exatamente, mas elas são independentes. Se você apagar uma delas, não vai cortar a série. O fios estão ligados a baterias, acima ou abaixo, e elas continuam mantendo contato.
- Bem, estou vendo que você é um técnico no assunto! E como funciona isso tudo?
- São raios de varredura, e o seu computador faz parte do mecanismo. Os raios medem densidade, ou massa, se você preferir, evitando que a presença de animais pequenos e pássaros dispare os alarmes.
- Tye, estou ficando impressionado com você.
- Os detectores já existiam na época em que você ficava brincando com os seus videogames.
- E como é que a gente consegue passar por eles?
- Se arrastando de bruços. Não tem maiores problemas, Tenente. Nos velhos tempos, cinco ou seis anos atrás, em Amsterdã, a gente enchia a cara com os meninos do KGB, e ficava dizendo para o outro como todos nós éramos estúpidos.
- Você fazia isso?
- Todo mundo fazia, Jackson. Não se preocupe com isso. Mas também não espalhe.
- Sabe de uma coisa, Comandante, você está me deixando realmente perplexo.
- Como alguém já escreveu um dia, tudo é perplexidade, rapaz... Espere, Major! - Catherine Neilsen ergueu os olhos do painel. - A enseada está ali, a mesma onde a gente chegou, onde o muro refletiu os sinais do radar.
- Você quer que eu entre?
- Não, de jeito nenhum. Siga direto para oeste. Uns quinhentos metros, não mais que isso.
- E aí?
- Aí eu e o seu "bem" vamos desembarcar... Desça daí, Poole. Verifique a sua arma e feche bem a sua sacola.
- Às suas ordens, Comandante. Você está decidido mesmo - replicou Poole.
O telefone tocou; a campainha estridente arrancou Bajaratt do sono, fazendo com que ela instintivamente enfiasse a mão embaixo do travesseiro, à procura do seu automático. Em seguida, piscando os olhos, a respiração suspensa, ela sentou-se e recobrou o autocontrole, o que em nada amenizou o seu susto. Ninguém sabia onde ela estava - onde eles estavam! Do aeroporto até o hotel, quinze minutos de distância, ela havia tomado três táxis diferentes, os dois primeiros com o disfarce de ex-oficial da força Aérea Israelense, e o terceiro como uma velha mal-ajambrada que mal falava inglês. Os hotéis como aquele onde eles estavam não exigiam referências, muito menos identidades autênticas. A campainha recomeçou a tocar; ela automaticamente levantou o fone para interromper o barulho, olhando para Nicolo, ao seu lado. Ele dormia profundamente, a respiração estável, exalando a vinho passado.
- Alô? - atendeu ela, em voz baixa, olhando para os números vermelhos do radiorrelógio aparafusado na mesinha de cabeceira. Eram 1:35 da manhã.
- Desculpe acordá-la - disse uma agradável voz masculina, no outro lado da linha - mas temos ordens para dar assistência a vocês, e eu tenho uma informação que talvez lhe interesse.
- Quem é você?
- A nossa identificação não faz parte das instruções. Acho que é o suficiente dizer que o nosso grupo tem grande estima por um senhor velho e doente que mora no Caribe.
- Como você me encontrou?
- Eu sabia quem e o que eu devia procurar, e os lugares onde você poderia estar não eram muitos... Nós nos vimos rapidamente na alfândega de Fort Lauderdale, mas isso não importa, o que importa é a informação que eu tenho. Por favor, não me dê trabalho. Eu estou correndo um risco que muita gente, se soubesse, ia achar que eu sou louco.
- Desculpe. É que, sinceramente, você me surpreendeu.
- Não - interrompeu a voz. - Eu assustei você.
- Está certo, eu concordo. Qual é a informação?
- Você fez um excelente trabalho ontem à tarde; as barracudas de Palm Beach estão num verdadeiro frenesi social, o que, sem dúvida, era o que você esperava.
- Foi só uma pequena apresentação.
- Não, foi muito mais do que isso. Você tem uma pequena entrevista coletiva amanhã.
- O quê?
- Isso mesmo que você ouviu. Isto aqui está longe de ser o eixo Nova York-Washington, mas nós temos alguns jornalistas decentes, principalmente na crônica social. Não foi difícil descobrir onde você ia se hospedar; amanhã de manhã eles vão estar esperando no The Breakers. Achamos que seria bom você ficar sabendo. Você não é obrigada a aceitar, mas achamos que você não gostaria de ser... surpreendida.
- Muito obrigada. Tem algum número onde eu possa encontrar você?
- Você está louca? - foi a resposta; em seguida, a linha caiu.
Bajaratt desligou o telefone; levantou-se da cama e, durante alguns minutos, ficou a andar de um lado para o outro, diante da pilha de malas e caixas das lojas da Worth Avenue. Era apenas um detalhe, pensou ela, olhando para os pacotes e cumprimentando-se pela sua previdência, mas ela havia pedido que fossem retiradas das roupas recém-compradas as etiquetas de preço e todas as marcas. Seria bem mais fácil fazer as malas, pela manhã. Aquilo era um detalhe; mas havia coisas que não eram.
- Nicolo! - disse ela em voz alta, dando um tapa no pé do rapaz, mal coberto pelos lençóis. - Acorde!
- O que... O que houve, Cabi? Está escuro.
- Agora não está mais. - Baj foi até a luminária ao lado do sofá e acendeu a luz. O rapaz se sentou, esfregando os olhos e bocejando. - Você bebeu muito? - perguntou.
- Dois ou três copos de vinho - respondeu ele, zangado. - É algum crime?
- Não, mas você estudou aquelas páginas que disse que ia estudar?
- Claro que sim. Fiquei horas estudando ontem à noite, depois hoje de manhã, no avião, nos táxis, e antes da gente sair para aquelas lojas elegantes. Agora à noite eu fiquei lendo pelo menos uma hora. Você estava dormindo.
- E você se lembra de tudo?
- Eu lembro o que eu consigo lembrar, o que é que você quer saber?
- Onde você estudou? - perguntou Bajaratt, em tom áspero, plantada ao pé da cama.
- Eu tive aulas particulares na nossa casa em Ravello durante dez anos - respondeu o jovem, num reflexo de robô.
- E depois?
- Na École du Noblesse, em Lausanne - revidou Nicolo. - Para me preparar para... para...
- Rápido! Para se preparar para quê?
- Para a Universidade de Genebra, é isto!... Aí o meu pai ficou doente e me mandou voltar para Ravello, para assumir os negócios da família... isso mesmo, mandou eu voltar, os negócios da família.
- Fale sem hesitação! Eles vão achar que você está mentindo.
- Eles quem?
- E depois que seu pai mandou você voltar?
- Eu contratei os meus próprios preceptores... - Nicolo fez uma pausa, apertou os olhos e o texto decorado saiu atropelado pela sua boca. - ... durante dois anos, para compensar a lacuna na minha formação universitária... cinco horas por dia! Me disseram que as minhas notas nos esami di stato em Milão ficaram entre as mais altas.
- Suas notas foram documentadas - disse Bajaratt, com ar de aprovação. - Você se saiu muito bem, Nico.
- E vou me sair melhor ainda, mas isso é tudo mentira, não é, Cabi? Imagine se alguém que sabe falar italiano começar a me fazer perguntas que eu não sei responder?
- Nós já conversamos sobre isso. E só você mudar de assunto, deixe comigo.
- Por que você me acordou para falar nesse assunto?
- Porque era importante. Você não ouviu nada, o vinho bloqueou os seus ouvidos, mas eu recebi um telefonema. Quando chegarmos ao hotel, amanhã, vamos encontrar uns jornalistas que querem entrevistar você.
- Não, Cabi. Quem é que ia se interessar em entrevistar um menino do cais de Portici? Eles não querem me entrevistar, eles querem entrevistar o barone-cadetto di Ravello, não é?
- Nico, escute o que vou lhe dizer. - Baj, percebendo o tom de insatisfação na voz do rapaz, sentou-se na beira da cama, junto a ele. - Você pode se tornar o barone-cadetto verdadeiro, você sabe. A família viu as suas fotos, e eles sabem do seu desejo de se tornar um homem educado, um nobile italiano. Eles estão dispostos a receber você como o filho que eles perderam.
- Lá vem você com essas histórias absurdas. Como é que algum nobre vai querer que o sangue dele se suje com o sangue do cais do porto?
- Essa família quer, porque eles não têm mais ninguém a não ser alguém como você. Eles confiaram em mim, e você tem que confiar também. Você vai trocar esta sua vida miserável por outra muito melhor, muito mais rica.
- Mas enquanto essa hora não chegar, é você quem quer que eu seja o barone-cadetto, não é?
- É, claro que é.
- E isso é muito importante para você, e eu já sei que você não quer que eu faça perguntas sobre isso.
- Depois de tudo o que eu fiz por você, inclusive salvar a sua vida, acho que mereço essa demonstração de respeito.
- Ah, você merece sim, Cabi. E você merece ser recompensada por tudo o que me fez estudar. - Nicolo ergueu os braços, pôs as mãos nos ombros dela e a puxou suavemente, deitando-a na cama. Ela não ofereceu resistência ao jovem.
10
Poucos minutos depois das duas horas da manhã, Hawthorne e Poole, com suas roupas de mergulho, rastejavam sobre rochas ásperas, sua entrada para a ilha fora do mapa, a terceira do atol vulcânico.
- Continue de bruços - disse Hawthorne, pelo rádio. - Quando a gente chegar ali na frente, grude no chão como se você fizesse parte da areia, entendeu?
- Entendi, sim, não precisa se preocupar - respondeu o outro, num sussurro.
- Depois que a gente ultrapassar os primeiros detectores continue agachado por mais uns quinze, vinte metros. Depois disso, não tem mais problema, os detectores só são instalados na entrada da ilha, porque a instalação pressupõe que se um homem chegar na praia, vai logo ficar de pé, diante dos detectores, o que não acontece com uma cobra ou um coelho, está entendendo?
- Tem cobra nesta ilha?
- Não, não tem cobra nenhuma. Só estou tentando explicar como o sistema funciona - respondeu Tye, irritado. - Fique de bruços até eu me levantar e pronto.
- Está bem, como você quiser.
Sessenta e oito segundos depois, eles chegaram a um trecho plano, coberto da grama seca tão comum naquelas ilhas, um solo árido, incapaz de produzir palmeiras ou flamboyants.
- Agora - disse Hawthorne, pondo-se de pé. - Está limpo. - Os dois puseram-se a correr pelo terreno inculto até que pararam, subitamente alertados por um barulho estranho, errático, abafado pela distância, um barulho de animais. - Cachorros - sussurrou Tyrell, pelo rádio. - Eles sentiram o nosso cheiro.
- Ai, meu Deus!
- É o vento, ele está vindo do noroeste.
- E o que quer dizer isto?
- Quer dizer que a gente tem que se picar para o sudeste. Venha atrás de mim. - Hawthorne e Poole saíram correndo para a esquerda, traçando uma diagonal na direção da praia, e penetraram num bosque de palmeiras. Sem fôlego, de pé junto ao companheiro, sob a cobertura da folhagem, Tyrell disse: - Isto não faz sentido.
- Por quê? Os cachorros pararam de latir.
- A gente escapou deles, mas não é disso que eu estou falando. - Tye olhou em torno de si, virando os olhos para cima e para os lados. - Estas palmeiras são muito frágeis, em geral são as primeiras a serem derrubadas pelas tempestades, mas a maioria delas está de pé.
- E daí?
- Você lembra o que a gente viu do submarino? Quase todas as árvores estavam caídas, com as raízes para fora, os troncos derrubados no chão.
- Eu não estou entendendo onde você quer chegar. Algumas árvores sobrevivem, outras não. E daí?
- Estas aqui estão num terreno mais elevado, a enseada fica lá embaixo.
- Caprichos da natureza - explicou Poole. - Quando venta lá no lago Pontchartrain, acontece de tudo. Uma vez toda a ala esquerda da nossa casa de veraneio foi pelos ares, mas a casa do cachorro, que fica bem em frente, continuou no lugar, inteirinha. Não dá para entender a natureza.
- Pode ser e pode não ser. Vamos lá. - Os dois continuaram a andar por entre as árvores em forma de leque, até que avistaram uma colina, logo acima da enseada. Tyrell tirou da bolsinha presa ao cinto um binóculo de visão noturna e olhou através dele. - Venha cá, Jackson. Olhe aqui no binóculo, exatamente na nossa frente, no alto daquele morrinho ali, e me diga o que você está vendo - disse, entregando o binóculo para Poole e observando o rapaz que examinava o terreno acima da enseada.
- Ei, tem alguma coisa estranha, Tye - disse o oficial da Força Aérea. - Tem umas luzes meio embaçadas no meio das árvores, formando uma linha reta e dobrando para baixo no final, mas não dá para ver de onde sai essa luz.
- São janelas vedadas contra os furacões, camufladas de verde. Nunca ninguém conseguiu fazer um mecanismo perfeito para se proteger de "furacões" externos; ainda não inventaram uma janela que feche perfeitamente, que vede cada centímetro. Aquelas suas maquininhas acertaram na mosca, Tenente. Tem uma puta casa ali do outro lado, e deve ter alguém muito importante lá dentro, talvez essa vaca que nós estamos procurando, em pessoa.
- Sabe, Comandante, será que já não está na hora de você contar para mim e para a Major que história é esta? A gente fica ouvindo coisas como "essa vaca", "terroristas", "documentos secretos desaparecidos", "caos internacional" e recebe ordens explícitas para não fazer perguntas. Eu sei que a Cathy nunca vai perguntar nada, porque ela é disciplinada demais, e ela está fazendo isso tudo, como eu, por causa do Charlie, mas eu sou diferente dela. Eu não estou nem aí para as ordens. Se vou colocar em risco a minha vida tão preciosa, quero saber por quê.
- Nossa Senhora, Tenente, eu não sabia que você era capaz de falar tanto.
- Eu sou brilhante, Comandante. Agora me diga, que merda é esta que está acontecendo?
- Insubordinado, também. Está bem, Poole, vou abrir o jogo. É o assassinato do presidente dos Estados Unidos.
- O quê?
- E essa mulher é uma terrorista bem capaz de fazer isso.
- Você está alucinado! Isto é uma loucura total!
- Como em Dallas e no atentado contra o Ford... A mensagem que nós recebemos do vale do Baaka é que, se esse assassinato acontecer, vai haver mais três: o primeiro-ministro da Inglaterra, o presidente da França e o chefe do governo de Israel. Imediatamente em seguida. O sinal é o assassinato do Presidente.
- É impossível acontecer isso!
- Você viu o que aconteceu em St. Martin, o que aconteceu com o Charlie e com o avião, apesar de toda a garantia de segurança máxima. O que você não sabe é que uma equipe de agentes do FBI foi massacrada em Miami, durante uma vigília ligada a esta operação, e que eu quase fui morto em Saba, quando estava tentando resolver um outro assunto, porque alguém soube que eu estava envolvido nisto. Nós estamos sabendo que existe gente infiltrada em Paris e Washington; em Londres a gente não sabe. Como disse um amigo meu, que, eu detesto admitir, é um puta agente de informações, essa mulher e o pessoal dela têm recursos inimagináveis. Está respondida a sua pergunta, Poole?
- Meu Deus! - veio a voz da major Catherine, rouca, pelo rádio de Poole.
- É - disse o Tenente, baixando os olhos para a bolsa onde estava o aparelho. - Eu deixei o rádio ligado, espero que você não se zangue. Pelo menos não vai ter que contar tudo de novo.
- Eu podia botar vocês dois para fora da Aeronáutica por causa disso! - explodiu Hawthorne. - Passou pela cabeça de algum de vocês que quem está naquela casa pode ter escutado tudo, seja lá quem for?
- Calma - disse Neilsen. - A frequência deste rádio não pode ser captada num raio de dois mil metros. Nós estamos absolutamente seguros... Obrigada, Jackson. Acho que a gente pode passar adiante. E obrigada a você também, Hawthorne. Às vezes a tropa tem que ter alguma pista, você sabe disto.
- O que eu sei é que vocês dois são impossíveis! Não sei como eu tenho paciência... Onde você está, Cathy?
- Uns cem metros a oeste da enseada. Imaginei que vocês iam voltar por ali.
- Então entre, mas fique submersa, e não chegue a mais de dez metros da praia. A gente não sabe o alcance dos detectores.
- É para já. Pode desligar.
- Certo - respondeu Poole, metendo a mão na bolsa para desligar o rádio.
- Isso foi golpe baixo, Jackson.
- É, com certeza, mas, por outro lado, foi muito esclarecedor. Antes, a gente estava aqui por causa do Charlie, agora, a gente está por mais uma razão.
- Não se esqueça do seu amigo Mancini. Ele não teria pensado duas vezes antes de acabar com você.
- Eu não quero pensar nele. Não consigo.
- Então está bem. - Tyrell apontou para a enseada, lá embaixo. - Vamos. - As duas figuras de preto seguiram diante, movendo-se como silhuetas fantasmagóricas, descendo em zigue-zague o declive que levava à praia. - De bruços - sussurrou Hawthorne, ao alcançarem a areia. - Vamos até aquele monte de vegetação ali. Se não me engano, aqui é um muro.
- Caramba! - exclamou Poole, ao enfiar a mão através da folhagem densa das trepadeiras. - É um muro, concreto puro.
- Com mais escoras de aço que qualquer pista de aeroporto - acrescentou Tyrell. - Foi construído para resistir a bombas, não a reles tufõezinhos e furacões. Continue deitado!... Venha, acho que a gente vai ter outras surpresas.
E tiveram. A primeira foi uma camada de grama artificial sobre um lance de degraus de pedra que levava a uma brecha do morro, logo abaixo do cume.
- A gente jamais veria isto de um avião - comentou o Tenente.
- Aí é que está, Jackson. O morador desta ilha não estende um tapete vermelho, e sim um tapete verde.
- Deve ser um indivíduo muito reservado.
- Acho que você tem razão. Fique do meu lado esquerdo e vá deslizando, que nem uma cobra. - Os dois homens começaram a subir, colados nos degraus camuflados, lentamente, em silêncio, até chegarem a um ponto em que a escada de pedra se interrompia e de onde se via o contorno de uma superfície coberta de palmeiras. Hawthorne ergueu o tapete verde, e viu o pavimento de pedra do pátio. - Meu Deus, que coisa mais simples - cochichou para Poole. - Isso poderia ser feito em qualquer casa de campo ou de praia, e elas jamais seriam vistas, nem do céu, nem do mar.
- Com certeza - concordou Jackson, igualmente impressionado. - Esta grama é moleza, mas aquelas palmeiras, aquilo é uma outra história.
- O quê?
- Elas são artificiais.
- São mesmo?
- Você não é do interior, Comandante, pelo menos da Louisiana. As palmeiras transpiram durante a madrugada; elas mudam de temperatura, porque são seres vivos. Olhe ali, não tem nem uma gotinha de umidade nas folhas. Elas só podem ser falsas, e além disso são grandes demais para os troncos, que devem ser de plástico.
- Quer dizer que é uma cobertura camuflada.
- E provavelmente computadorizada, o que é muito fácil, é só acessar o código pelo radar.
- Hem?
- Ah, Tye, é simples. É como essas portas de garagem que abrem quando as luzes ativam os receptores; aqui é justo o contrário. Os sensores captam a presença de seres estranhos e o equipamento começa a funcionar. Eles fecham a entrada.
- É assim mesmo?
- É. Um avião ou um barco que se aproxime demais, vamos dizer uns novecentos, mil metros de altura ou uns três quilômetros de distância, os receptores transmitem a informação para um computador e as máquinas são ativadas, que nem a porta da garagem, que fecha com controle remoto. Eu poderia montar um sistema desses com alguns milhares de dólares, mas o Pentágono não está interessado nas minhas cifras.
- Você ia quebrar a economia - cochichou Hawthorne.
- É isto que o meu pai diz, mas a minha irmãzinha concorda comigo.
- Os jovens vão herdar a Terra e todas as suas máquinas eletrônicas.
- O que é que a gente vai fazer agora? Entrar no meio daquela folhagem de mentira e anunciar a nossa chegada?
- Não, vamos continuar nos locomovendo com cuidado, em silêncio, e fazer tudo para não sermos "anunciados".
- O que é que nós estamos procurando?
- O que a gente puder ver.
- E depois?
- Depende do que a gente encontrar.
- Você não está mesmo a fim de fazer planos.
- Tem coisas que não dá para botar no computador, cara. Vamos lá.
Os dois foram se arrastando sobre a grama dura, áspera, a mais usada nos jardins do Caribe, contornaram as palmeiras artificiais, e tocaram a "casca" do primeiro "tronco", tentando examinar o equipamento. Poole mexeu a cabeça, à luz do luar, como que para confirmar o seu palpite de que aquilo era um tubo de plástico matizado, cópia perfeita de uma palmeira, mas sem tantos recursos eletrônicos como ele havia suposto. Hawthorne fez um gesto na direção de uma passagem no meio da vegetação, indicando que o Tenente deveria acompanhá-lo.
Um atrás do outro, eles seguiram por um túnel de folhas tingidas até um ponto exatamente abaixo da linha luminosa que saía de uma janela entreaberta. Os dois se levantaram sem fazer barulho e olharam para dentro; aparentemente não havia ninguém ali, e Tyrell abriu a janela mais alguns centímetros para ver melhor. O que viram os deixou assombrados.
O interior da casa parecia uma villa de algum doge da Renascença, portais gigantescos ligando as áreas internas, mármore salpicado de dourado por toda parte e, nas paredes brancas, tapeçarias que deveriam estar em museus, tal a sua qualidade. Uma figura surgiu diante dos seus olhos, um senhor idoso, numa cadeira de rodas motorizada. Estava cruzando o portal entre duas salas. Em seguida, desapareceu, mas logo atrás dele veio um gigante de cabelos louros e ombros tão largos que esticavam o tecido da camisa. Hawthorne encostou no braço de Poole, chamando sua atenção para o tamanho da casa, e pedindo mais uma vez que ele o acompanhasse. O Tenente obedeceu, os dois retomaram o caminho, esgueirando-se em silêncio e se desvencilhando das folhas enormes à medida que avançavam, até que Tyrell chegou à área para onde, ele imaginara, o velho da cadeira de rodas tinha-se dirigido. As janelas contra furacões não emitiam nenhuma luz nesse trecho da parede externa; Hawthorne segurou o braço de Poole, puxando-o para perto de si, e abriu ligeiramente a janela.
Aquela sala era algo inacreditável, uma fantasia criada por um apostador maníaco. Um minicassino feito para um imperador, um imperador atormentado pela insônia. Havia máquinas caça-níqueis, uma mesa de sinuca, uma mesinha baixa de pôquer e uma roda da fortuna, tudo numa altura adequada para a cadeira de rodas, as extremidades planas cobertas de pilhas de dinheiro. Aquele homem, quem quer que fosse, estava apostando a favor e contra a casa. Ele não podia perder.
O guarda-costas - não podia ser outra coisa - mantinha-se de pé ao lado do homem macilento, de escassos cabelos brancos, inválido, e bocejava enquanto o velho enfiava moedas no caça-níqueis, rindo ou fazendo caretas diante dos resultados. Apareceu, então, um segundo empregado, empurrando um carrinho de chá com uma refeição acompanhada de uma garrafa de vinho tinto e estacionando ao lado do patrão. O velho paralítico franziu as sobrancelhas e deu um grito para o segurança-cozinheiro, que no mesmo instante se curvou e retirou o prato, dando a entender que ia trocá-lo imediatamente.
- Vamos lá! - disse Tyrell. - Não vai ter ocasião melhor que esta. A gente tem que achar um jeito de entrar enquanto esse gorila está na cozinha!
- Como a gente vai fazer para entrar?
- E eu é que sei? Vamos nessa!
- Espere um pouco! - disse Poole. - Eu conheço este vidro, esta janela. É uma vidraça dupla com um vácuo no meio, e se entrar ar no vácuo, ela quebra até com uma cotovelada.
- E como a gente vai fazer isso?
- O nosso revólver tem silenciador, não tem?
- Tem.
- E quando sai dinheiro do caça-níqueis, toca a campainha, não é?
- É.
- Então, a gente espera ele ganhar o prêmio e aí abre um buraco de cada lado da janela, quebra o vidro e entra.
- Tenente, eu acho que você é mesmo um gênio.
- Estou tentando lhe dizer isso há um tempão, mas você não escuta. Você fura o canto direito e eu, o esquerdo. A gente espera alguns segundos para o ar entrar, e depois quebra o vidro de vez. Na verdade, com a camada de ar entre os dois vidros, é capaz de fazer menos barulho do que uma janela comum.
- Você é que sabe, General.
Os dois puxaram os fechos de velcro dos respectivos coldres e pegaram as armas.
- Ele acertou, Tye! - exclamou Poole, vendo o velho a acenar os braços diante do caça-níqueis, que não parava de acender e apagar luzes de todas as cores.
Tyrell e Jackson dispararam suas armas e empurraram para cima o postigo externo da janela; depois que o vapor nebuloso encheu a vidraça, eles a estilhaçaram de um golpe e entraram, enquanto a máquina ainda piscava e cuspia moedas, em meio ao som da campainha que ecoava nas paredes de mármore. Quando os dois se agacharam no chão, entre os cacos de vidro, o guarda-costas voltou-se, estarrecido, e levou a mão ao cinto.
- Nem tente fazer isto! - disse Hawthorne, em voz baixa porém estridente, no momento em que a máquina ensurdecedora silenciou. - Se um de vocês dois levantar a voz, vai ser pela última vez na vida. Acreditem em mim, eu não gosto nem um pouco de vocês.
- Impossibile! - gritou o velho na cadeira de rodas, em estado de choque ao ver os dois intrusos, vestidos de mergulhadores.
- Ah, é possível sim - disse Poole, levantando-se e apontando a arma para o inválido. - Eu falo um pouco de italiano, graças a um cara que eu considerava meu amigo, mas se você e ele mataram o Charlie, você não vai mais precisar dessa cadeira de rodas nem mais um segundo.
- Nós precisamos dele vivo, não morto - interveio Tyrell. - Fique frio, Tenente, isto é uma ordem.
- É uma ordem difícil de obedecer, Comandante.
- Me dê cobertura - disse Hawthorne. Em seguida, aproximou-se do guarda-costa louro, deu um puxão na sua camisa e tirou-lhe o revólver do cinto. - Vá para junto do portal, Jackson, e fique perto da parede - continuou Tyrell, concentrando sua atenção no guarda, agora agitado e furioso. - Se você está pensando no que eu acho que está pensando - disse bruscamente para o homem - é melhor mudar de ideia. Eu disse que queria o Matusalém aí vivo. Mas com você eu não estou nem um pouco preocupado. Vá para ali, entre aqueles dois caça-níqueis, já. E não pense que vale a pena você me atacar. Eu não me interesso por capangas; eles são descartáveis. Ande!
O gigante se espremeu entre as duas máquinas; o suor escorria-lhe pela testa, o ódio incendiava-lhe os olhos.
- Vocês não vão sair daqui - murmurou ele, num inglês macarrônico.
- Você acha que não? - Hawthorne, em passos rápidos, foi até o lado do caça-níqueis e, trocando a arma para a mão esquerda, tirou o rádio da bolsa. Depois de ligar o aparelho, trouxe-o para junto dos lábios e começou a falar em voz baixa. - Major, você está me ouvindo?
- Perfeitamente, Comandante. - A voz feminina que soou através do minúsculo alto-falante surpreendeu o guarda e por um momento enfureceu o velho, que, desamparado na sua cadeira de rodas, começou a tremer de ódio e medo. Logo, porém, a fúria se esvaiu com a mesma rapidez com que havia surgido. Ele então olhou para Hawthorne e sorriu; Tyrell jamais vira um sorriso tão cruel e, por um instante, sentiu-se paralisado. - Qual é a situação aí? - perguntou Neilsen pelo rádio.
- Isto aqui é o máximo, Cathy - respondeu Hawthorne, desviando o olhar daquele rosto perturbador da encarnação do mal. - É a villa do primo-irmão de Adriano. Nós já pegamos dois moradores e estamos esperando pelo terceiro. Se tem mais alguém aqui a gente não sabe.
- Será que eu devia avisar os ingleses lá no avião?
Ao ouvir essas palavras, o velho atirou-se para a frente com a cadeira de rodas, apertando com a mão algum instrumento no braço estofado da cadeira, novamente furioso. O pé de Poole o deteve e sua mão soltou-se, esbarrando na roda.
- Eles estão fora da área de segurança, não é?
- É verdade.
- Então espere até o Jackson descobrir quais são os equipamentos que eles têm aqui. Eu não quero que este assunto caia em ouvidos estranhos. Mas se por acaso a gente perder o contato, ligue para eles imediatamente.
- Então fique com o seu rádio ligado.
- Vou ficar. Ele vai ficar dentro da bolsa, mas mesmo assim dá para ouvir. - Passos! De alguma outra sala, ouviam-se passos sobre o mármore. - Até já, Major - sussurrou Tye. Em seguida, guardou o rádio, levantou a arma e apontou para a cabeça do gigante louro, a menos de um metro de distância, junto ao caça-níqueis.
- Arresto! - gritou o velho italiano, com a voz esganiçada, atirando-se de súbito na direção do portal. Ao mesmo tempo, o guarda, com toda a sua força gigantesca, atirou-se no caça-níqueis à sua esquerda, derrubando-o sobre Tyrell com tamanha violência que ele caiu no chão de mármore, sob o peso da máquina e do homem, com o braço imprensado, incapaz de pegar a arma. Ouviu-se, então, o barulho de pratos de porcelana espatifados na sala vizinha. No momento em que o gigante louro enfiou os dedos na garganta de Tyrell, cortando-lhe a respiração, um tiro silencioso atravessou o espaço acima de Hawthorne e explodiu na cabeça do guarda, que despencou no chão. Tye, retorcendo-se, conseguiu livrar o braço do peso da máquina, que continuava piscando e, ao se levantar, viu Andrew Jackson Poole atacar o terceiro homem com uma série de golpes violentos, com pés velozes e mãos espalmadas, até o guarda sucumbir. O Tenente agarrou o corpo do homem e o jogou sobre as costas frágeis do inválido, interrompendo a trajetória do patriarca.
- Hawthorne?... Jackson? - soou a voz de Catherine Neilsen pelo rádio. - O que foi que aconteceu? Eu escutei uma barulheira!
- Espere um instante - disse Tyrell, sem fôlego, caminhando até o capanga inutilizado e inclinando-se para tirar a tomada da parede. O pisca-pisca enlouquecedor das máquinas parou; o ambiente tornou-se ao mesmo tempo calmo e ameaçador. O velho se debatia, esmagado pelo peso do guarda inconsciente, até que Poole o libertou, deixando o corpo desabar no chão, num estrondo. - Nós já recuperamos o controle - prosseguiu Hawthorne pelo rádio. - E eu faço questão de que o Tenente Andrew Jackson Poole, um garoto de menos de trinta anos, seja promovido a general. Ele salvou a minha vida!
- Às vezes ele faz essas pequenas gentilezas. E agora?
- Nós vamos dar uma olhada na casa e no equipamento. Continue ligada.
Tye e Jackson amordaçaram o guarda e o velho italiano, amarraram-nos pelos pés e pelas mãos em duas cadeiras, com cordas de varal que eles encontraram no armário da cozinha, e puseram-se a inspecionar a casa e o terreno. Percorreram a área a sudeste dos canis cercados de grades, situados a menos de quarenta metros da casa, até que avistaram uma casinha pintada de verde, cercada de palmeiras frondosas, com uma janela minúscula onde pulsava uma luz pálida. Os dois se esgueiraram até lá; no interior da cabana, via-se uma figura reclinada numa cadeira, cercada de plantas floridas, vendo televisão e dando soquinhos no ar diante de um desenho animado.
- Acho que esse cara não bate muito bem - cochichou Poole.
- Também acho - concordou Hawthorne - mas ele pode ser mais um que está aqui para cumprir ordens, mesmo sem saber bem o que está fazendo.
- O que você quer fazer?
- A porta é ali, do outro lado. A gente entra, amarra ele, você faz alguma coisa para deixar ele ficar inutilizado por algumas horas.
- Deixe comigo.
- Ótimo... Fique quieto! Ele está ouvindo alguma coisa; está indo para uma mesa do outro lado da sala, onde tem uma caixa vermelha. Vamos lá!
As duas figuras de preto contornaram a cabana camuflada e entraram; encontraram um homem atarantado, que não fez nada além de sorrir para eles, enquanto desligava a máquina que soltava guinchos sobre a mesa.
- É o sinal para eu soltar os cachorros - disse ele, hesitante. - O sinal é sempre o mesmo - acrescentou, esticando a mão para segurar uma alavanca presa na parede. - Eu tenho que fazer isto imediatamente.
- Não! - gritou Hawthorne. - O sinal estava errado!
- Não, ele nunca está errado - disse o jardineiro, com ar sonhador. - Nunca, nunca está errado. - Puxou a alavanca. Em segundos ouviram-se os latidos ferozes dos cães de guarda, que passaram correndo pela cabana, em direção à casa. - Lá vão eles - disse o oligofrênico sorrindo. - São os meus meninos.
- Como foi que você recebeu o sinal? - perguntou Tyrell. - Como?
- Ele fica na cadeira do padrone. Às vezes, ele bebe muito vinho e aí dá o sinal sem querer, porque a mão dele encosta no botão. Eu ouvi o sinal agora há pouco, mas ele parou logo, então eu achei que era isso que tinha acontecido. Mas agora, não, já é a segunda vez. Ele está mesmo mandando soltar os cachorros, e eu tenho que ir lá ficar com eles. É muito importante.
- Ele realmente tem um parafuso solto - disse Poole.
- Mais de um, talvez, Tenente, mas nós temos que voltar lá... Tochas.
- O quê?
- Além do cheiro, os cachorros correm atrás de luzes... chamas. Pegue duas tochas, enfie uma delas por baixo da sua roupa e esfregue debaixo do braço. Esfregue com força, e vamos torcer para que dois ou três dias sem tomar banho tenham servido para alguma coisa.
- Isto é bastante constrangedor - disse Poole, obedecendo.
- Faça o que eu disse!
- Estou fazendo!
- Agora acenda a outra e jogue para o lado esquerdo, o mais longe que puder. Depois jogue a primeira, apagada.
- Lá vai.
Segundos depois os cachorros passaram correndo pela casinha, seguindo o arco de luz. Os cães, soltando latidos selvagens, atropelavam-se em torno do tubo em chamas; ao sentirem o odor que exalava da tocha apagada, começaram a se abocanhar uns aos outros, frustrados.
- Escute, meu senhor - disse Hawthorne, voltando-se para o guardião dos cachorros. - Isto tudo é só um jogo... o padrone gosta de jogos, não é?
- Ah, gosta, gosta sim! Às vezes ele passa a noite inteira jogando lá no salão.
- Pois é, isto é só um outro jogo, e está todo mundo se divertindo. Você pode voltar para ver televisão.
- Ah, obrigado. Muito obrigado. - O homem sentou-se, rindo novamente do desenho animado.
- Obrigado, Tye. Eu não estava gostando da ideia de bater num cara desses...
Com um gesto de impaciência, Tyrell fez um sinal para que o Tenente o seguisse e pôs-se a correr na direção da mansão; ao entrarem, fechou as portas e deparou-se com o velho encarquilhado na sua cadeira de rodas ao lado do guarda inconsciente.
- Muito bem, seu calhorda! - gritou Tyrell. - Eu quero saber o que você sabe.
- Eu não sei de nada - rosnou o velho italiano, com seu sorriso cruel. - Se você me matar, não vai saber nada.
- Isso seria um erro de avaliação, padrone... é padrone, não é? Foi o que disse aquele pobre coitado da casinha. O que foi que você fez, mandou fazer uma lobotomia nele?
- Foi Deus quem fez dele o empregado perfeito, não fui eu.
- Eu imagino que no seu vocabulário, você e Deus são quase a mesma pessoa.
- Que blasfêmia, Comandante...
- Comandante?
- Foi assim que o seu colega e a mulher do rádio chamaram você, não foi?
Hawthorne fitou o velho satânico; por que estaria achando que aquele homem o conhecia?
- Tenente, cheque a sala onde ficam aqueles equipamentos eletrônicos que você gosta tanto. É ali no...
- Eu sei exatamente onde é - interrompeu Poole. - Não vejo a hora de examinar os bancos de dados. Esse equipamento é de última geração! - disse ele, correndo para o escritório do padrone.
- Talvez eu deva lhe dizer - disse Hawthorne, de frente para o velho - que o meu colega é a arma secreta do nosso governo. Ele consegue entrar em qualquer computador. Foi ele quem descobriu você, descobriu esta casa. Por causa de uma transmissão feita do Mediterrâneo, através de um satélite japonês.
- Ele não vai achar nada.... nada!
- Então por que será que eu estou percebendo uma certa dúvida na sua voz?... Ah, eu acho que já sei. Você não tem certeza, e isso está deixando você apavorado.
- Esta conversa não vai levar a nada.
- Isto não é verdade - disse Tyrell, puxando o revólver do coldre. - Eu só quero saber qual é a sua. O que vou perguntar agora é muito importante. Como é que você faz para mandar os cachorros de volta para o canil?
- Não tenho a menor ideia... - Hawthorne apertou o gatilho; a bala raspou a orelha direita do padrone e o sangue escorreu pelo seu pescoço. - Se você me matar, não vai saber nada! - gritou o velho.
- Mas se eu não matar você, vou continuar sem saber nada, certo? - Tyrell atirou novamente, desta vez ferindo de leve a face esquerda do padrone. O sangue jorrou, borrifando-lhe o rosto e o pescoço. - Você tem mais uma chance - disse Hawthorne. - Eu adquiri muita prática na Europa... Se existe um comando para soltar os cachorros, também tem que existir um para mandar eles de volta para o canil. Faça isto, senão eu meto a próxima bala no seu olho esquerdo. Il sinistro, não é assim que se diz?
Sem uma palavra, o inválido mexeu o braço direito, preso nas cordas, e com muito esforço, conseguiu desajeitadamente levar os dedos trêmulos à lateral da cadeira de rodas, onde havia um painel com cinco botões dispostos em semicírculo. Apertou o quinto. No mesmo instante ouviu-se um coro animalesco de uivos selvagens e latidos ferozes; o som foi se diluindo até que fez-se o silêncio.
- Eles já estão de volta nos canis - disse o padrone, com o olhar duro, a voz desdenhosa. O portão fecha automaticamente.
- Para que é que servem esses outros botões?
- Nada que seja do seu interesse. Os três primeiros são para chamar a minha empregada e os meus dois ajudantes; a empregada não está mais aqui e vocês mataram um dos ajudantes. Os dois últimos são para os cachorros.
- Você está mentindo. Um desses sinais tocou na casinha daquele semivegetal. Foi ele quem soltou os cachorros.
- Ele recebe o sinal em qualquer lugar que ele estiver, e quando chega alguma visita ou algum empregado novo aqui na ilha, ele fica controlando os cachorros. Em geral, as pessoas menos inteligentes têm muito mais facilidade para lidar com os animais do que nós. Acho que é uma questão de confiança mútua.
- Nós não somos convidados, então quem é que é novo aqui?
- Os meus ajudantes, inclusive o que vocês mataram. Eles chegaram há menos de uma semana, e os cachorros ainda não estão acostumados com eles.
Hawthorne inclinou-se e desamarrou os braços do velho; em seguida foi até uma mesinha de mármore sobre a qual repousava um estojo de ouro com lenços de papel. Pegou a caixa e levou para o padrone.
- Seque esses ferimentos.
- Você fica perturbado de ver o sangue que você mesmo derramou?
- Nem um pouco. Quando penso no que você está envolvido, quando penso em Miami, em Saba e em St. Martin, e naquela vaca psicopata, fico achando que seria um enorme prazer ver o seu cadáver.
- Você não sabe que a única coisa em que eu estou envolvido é a tentativa de prolongar a vida deste corpo miserável - disse o velho, enxugando o sangue da orelha e comprimindo a face com um chumaço de papel. - Eu sou um inválido, vivendo meus últimos anos isolado no meio deste luxo que eu tanto mereço. Não faço nada que seja remotamente ilegal, só entretenho alguns amigos queridos que ligam para mim pelo telefone ou pegam um avião para vir aqui me visitar.
- Vamos começar pelo seu nome.
- Eu não tenho nome, eu sou só o padrone.
- Eu sei, eu ouvi isso ali na cabana, e também em Saba, quando dois mafiosos subornaram o pessoal da marina e tentaram me matar.
- Mafiosos? E o que é que eu sei sobre a Máfia?
- Um daqueles dois, o que sobreviveu, teve muita coisa para dizer, diante da possibilidade de ir nadar no meio dos tubarões com o ombro sangrando. Eu acho que quando a gente divulgaras suas impressões digitais, inclusive para a Interpol, vamos conhecer a sua identidade, e eu duvido que ela seja a de um vovozinho simpático que gosta de jogar caça-níqueis.
- Jura? - O padrone largou os lenços de papel e, exibindo para Hawthorne seu sorriso feio e arrogante, abriu as duas mãos, as palmas expostas. Tyrell sentiu-se enojado e, ao mesmo tempo, estarrecido. Todos os dedos tinham as extremidades completamente brancas; a carne fora há muito tempo queimada, destruída, e substituída por uma camada lisa, macia, uma fusão de lascas de pele, talvez. - As minhas mãos foram chamuscadas por um tanque alemão que pegou fogo na Segunda Guerra Mundial. Eu sempre fui muito grato aos médicos do exército americano, que se compadeceram de um jovem lutador que aderiu às tropas deles.
- Ah, que coisa linda - disse Tyrell. - Eu imagino que você tenha sido condecorado, também.
- Não, infelizmente nenhum de nós poderia permitir isso. Os fascisti mais fanáticos eram conhecidos pelas suas represálias. Todos os nossos arquivos foram destruídos para nos proteger, a nós e a nossas famílias. Vocês deviam ter feito a mesma coisa no Vietnã.
- Mas isso é lindo demais.
- Então, como você vê... nada.
Nem Hawthorne nem o velho notaram a figura esguia de Poole, com sua roupa de mergulho preta, junto ao portal. Ele havia-se aproximado em silêncio e estava ali observando, ouvindo.
- Você estava quase certo - disse o Tenente. - Não tinha quase nada, mas eu encontrei alguma coisa. O seu sistema é fantástico, vou lhe dizer, mas todo o sistema é bom, dependendo do usuário.
- O que é que você está dizendo? - perguntou Tyrell.
- Este equipamento pode fazer de tudo, tudo mesmo, ele é usado por alguém que sabe apagar completamente as memórias, e que fez exatamente isso. Não tem nada nos discos, a não ser no último, que tem três arquivos. O último a usar o equipamento deve ter sido outra pessoa, porque a memória não foi deletada.
- Será que você podia falar inglês, e não computês?
- Descobri três números de telefones, com prefixos de área e tudo, e chequei que ligações foram essas. Uma foi para a Suíça, e eu aposto tudo o que você quiser que foi para um banco; a segunda foi para Paris, e a terceira para Palm Beach, Flórida.
11
A limusine branca parou na entrada coberta do hotel The Breakers, em Palm Beach, e foi imediatamente cercada por um porteiro com um uniforme de galões dourados, seu ajudante e três estafetas. A cena evocava uma Belle Époque modernizada, senhores e servos nos seus devidos papéis, uns satisfeitos com seus privilégios, outros entusiásticos na sua servidão. A primeira a emergir foi uma mulher de meia-idade, uma grande dama vestida no melhor estilo da via Condotti, a passarela da alta costura em Roma. As abas largas do chapéu sobre o vestido de seda florida sombreavam um rosto moreno onde se estampavam gerações de aristocracia. Seus traços eram harmoniosos e bem definidos, e na pele aveludada não se via qualquer sinal de rugas. Amaya Bajaratt já não era uma terrorista maltrapilha e despenteada, num bote ou num barco em alto-mar, nem uma guerrilheira com o uniforme do vale do Baaka, nem uma ex-oficial desmazelada da Força Aérea Israelense. Ela era agora a condessa Cabrini, conhecida como uma das mulheres mais ricas da Europa, irmã de um industrial de Ravello, ainda mais rico. Ela jogou a cabeça para trás, num gesto gracioso, e sorriu quando o rapaz alto, belíssimo, saltou da limusine, resplandecente, vestido com um paletó azul-marinho, calças aflaneladas de cor cinza e autênticos mocassins de couro Imperiale.
O gerente saiu às pressas pela porta do hotel, acompanhado de dois assistentes, um deles italiano, obviamente, e, mais obviamente ainda, intérprete. Trocaram cumprimentos em ambas as línguas; em seguida, a tia-guardiã do barone-cadetto ergueu a mão e anunciou:
- O jovem barone tem muitas coisas a fazer neste grande país, e ele pede que vocês falem inglês com ele, para que ele possa ir assimilando a língua. No início ele não vai entender quase nada do que vocês disserem, mas ele fez questão... e, claro, eu estou ao lado dele para ajudar.
- Senhora - disse o gerente, em voz baixa, postado ao lado de Bajaratt enquanto os empregados empilhavam aquela quantidade considerável de malas. - Não existe nenhuma razão para a senhora se submeter a esse inconveniente, caso não esteja disposta, mas numa das nossas salas de conferências estão os repórteres e fotógrafos de vários jornais da cidade. Eles gostariam de conhecer o jovem barão, naturalmente. Eu não faço ideia de quem foi que descobriu que ele ia chegar, mas posso assegurar que não foi através do hotel. Nós temos uma reputação elevadíssima de discrição e sigilo.
- Ah, foi algum moleque! - exclamou a contessa Cabrini, com um sorriso resignado. - Mas não se preocupe, Signor Amministratore, isto acontece toda vez que ele vai a Roma ou a Londres. Paris, não, pois a França é cheia de falsos aristocratas, e a imprensa socialista não dá importância para isso.
- Mas a senhora e o barão não são obrigados a comparecer à entrevista, é claro. Foi por isso que eu mandei a nossa segurança acomodar os jornalistas na sala de conferências.
- Não, está tudo bem. Eu vou falar com o barone-cadetto; ele vai dar alguns minutos de atenção para a imprensa. Afinal de contas, ele está aqui para fazer amigos, e não para criar problemas com os jornais.
- Então eu vou até lá para avisá-los, e também para esclarecer que a sessão não deverá se alongar. Todo mundo sabe que essas mudanças de fuso horário são uma canseira.
- Não, signore, não é o caso. Ele chegou ontem e até já fez compras, a menos de cinco minutos daqui. Nós não queremos divulgar informações falsas, tão fáceis de desmentir.
- Mas a reserva era para hoje, senhora.
- Ora, signore, tanto eu quanto o senhor já tivemos a idade dele, não é mesmo?
- Mas essa aparência eu nunca tive, a senhora pode ter certeza.
- Muito poucos têm, mas nem a aparência e nem o título alteram os apetites perfeitamente normais da idade dele, o senhor compreende?
- Não é muito difícil, senhora. Uma amiga mais próxima para lhe fazer companhia durante a noite.
- Pois é, nem eu sei o nome dela.
- Eu compreendo. Bem, o meu assistente vai recebê-los lá dentro enquanto eu cuido do resto.
- O senhor é muito gentil, Signor Amministratore.
- Grazie, Condessa.
O gerente curvou a cabeça e subiu a escada atapetada; Bajaratt voltou-se e aproximou-se de Nicolo, que estava conversando com o assessor do gerente e com o intérprete.
- Sobre o que é que vocês três estão conspirando, Dante? - perguntou a contessa em italiano.
- Ma niente - respondeu Nicolo, sorrindo para o intérprete. - Eu e o meu novo amigo estávamos comentando como este lugar é bonito e como o clima é agradável - continuou ele, em italiano. - Eu disse a ele que os meus estudos e os negócios do meu pai tomam todo o meu tempo, por isso nunca aprendi a jogar golfe.
- Va bene.
- Ele disse que vai arranjar um instrutor para mim.
- Você vai ter muito trabalho aqui, não vai ter tempo para essas coisas - disse Baj, pegando Nicolo pelo braço e conduzindo-o pela escada, enquanto o jovem, sorrindo, cumprimentava de longe os dois homens. - Nico, não dê tanta intimidade para essas pessoas - cochichou Amaya. - Não é apropriado para um homem do seu nível. Seja cordial, mas lembre o tempo todo que eles são inferiores a você.
- Inferiores? - perguntou o suposto barone-cadetto, entrando no saguão do hotel. - Às vezes eu não entendo você, Cabi. Você quer que eu seja outra pessoa, alguém que eu guardei na memória, mas continua querendo que eu seja eu mesmo.
- É exatamente o que eu quero - respondeu Bajaratt, num sussurro áspero, ainda em italiano. - A única coisa que eu não quero é que você pense com a sua própria cabeça. Eu penso por você, entendeu?
- Entendi, sim. Desculpe.
- Melhor assim. Nós vamos ter uma noite maravilhosa, Nico, não vejo a hora de ficar sozinha com você. Você está tão lindo, exatamente como eu imaginava! - O rapaz, com carinho, começou a passar o braço em torno dos ombros de Bajaratt, mas ela se afastou subitamente. - Pare. O assessor do gerente está vindo correndo para nos levar para a sala onde estão os jornalistas e os fotógrafos.
- Os o quê?
- Eu lhe disse ontem à noite. Você vai ser apresentado à imprensa. Não é grande coisa, só a coluna social.
- Ah, já sei, e eu não entendo nada de inglês. Você responde às perguntas para mim, não é isso?
- Todas as perguntas.
- Por aqui, por favor - disse o assessor do gerente. - O salão Regal é logo ali.
A entrevista coletiva durou exatamente vinte e três minutos. A hostilidade inata dos jornalistas e fotógrafos presentes em relação à enorme riqueza da nobreza europeia rapidamente retrocedeu diante daquele jovem alto, tímido e simpático. As perguntas se sucediam, inicialmente num tom negativo, rechaçadas pela contessa Cabrini, tia do barone-cadetto di Ravello, que, de acordo com as regras estipuladas, seria tratada simplesmente como uma "intérprete". Em seguida, um repórter do Miami Herald perguntou em italiano:
- Na sua opinião a que se deve toda a atenção que você está recebendo? Você acha que merece tudo isto? O que mais você já fez, além de ter nascido?
- Na verdade, eu acho que não mereço nada até eu provar do que eu sou capaz, o que ainda vai levar muito tempo... Por outro lado, signore, o senhor estaria interessado em me acompanhar num mergulho no Mediterrâneo, a uma profundidade de uns cem metros, em prol da oceanografia? Ou talvez o senhor quisesse participar comigo das equipes de busca e salvamento nos Alpes Marítimos, onde a gente escala centenas de metros para resgatar a vida de pessoas perdidas, dadas como mortas... Pode ser que eu tenha uma vida privilegiada, signore, mas não sem algumas contribuições, ainda que modestas.
Enquanto a condessa traduzia a resposta para a audiência de jornalistas, os flashes começaram a disparar, iluminando o rosto do jovem barão, belo e despretensioso, e a "intérprete" deu um passo para trás, evitando as fotografias.
- Ei, Dante! - gritou uma correspondente. - Por que você não deixa a nobreza para lá e vai trabalhar em algum seriado da TV? Você é um gato, menino!
- Non capisco, signora.
- Eu estou de acordo com as moças - interveio um repórter mais velho, tentando se fazer ouvir em meio às risadas. - Você é um cara bonitão, mas eu acho que você não veio até aqui para atropelar as nossas meninas.
Na mesma hora, sem necessidade de tradução, o jovem barão replicou:
- Por favor, senhor jornalista, se eu entendi a sua pergunta, minha resposta é que eu gostaria muito de conhecer as meninas americanas, a quem eu trataria com todo o respeito. Na televisão elas são tão lindas, tão atraentes... tão italianas, se o senhor me permite.
- Você está correndo atrás de algum cargo político? - perguntou outro repórter. - Se estiver, pode contar com o apoio das mulheres.
- Não, signore, eu só corro de manhã. Entre quinze e vinte quilômetros. É muito bom para a saúde.
- Qual vai ser a sua agenda aqui, barão? - continuou o repórter da fila da frente. - Eu falei com a sua família em Ravello, com o seu pai, para ser exato, e ele me disse que você deve voltar para a Itália com algumas recomendações, com base nas suas conclusões sobre possíveis investimentos nos Estados Unidos, viabilidade, projeções. É isto mesmo?
A tradução foi feita lentamente, em voz baixa, vários pontos foram repetidos diversas vezes, instruindo a resposta.
- O meu pai me preparou muito bem, signore, e nós vamos nos falar todos os dias pelo telefone. Eu estou aqui para ver e escutar, e ele confia em mim.
- Você pretende viajar muito?
- Eu acredito que muitos empresários virão procurá-lo - interrompeu a contessa, sem traduzir a pergunta. - Uma empresa só pode ser boa se for dirigida por bons executivos. O barone-cadetto é formado em economia, e a responsabilidade dele é muito grande. Ele vai procurar convicção e integridade, além de resultados financeiros satisfatórios.
- Afora as demonstrações de lucros e perdas - disse uma repórter veemente, com ar zangado, o rosto emoldurado por cabelos curtos e escuros - existe algum tipo de preocupação com as condições socioeconômicas das áreas onde os investimentos vão ser feitos, ou só existe a mentalidade mais comum nos negócios, de ir para onde estão os lucros?
- Eu diria que esta é... como é mesmo que vocês dizem?... uma pergunta preconceituosa - replicou a contessa.
- Uma pergunta capciosa - corrigiu uma voz masculina ao fundo.
- Mas eu ficaria muito feliz em respondê-la - continuou a contessa. - Talvez fosse bom esta senhorita telefonar para qualquer jornalista de Ravello, ou até mesmo de Roma. Ela vai ter a oportunidade de constatar a grande estima de que a família goza na província. Tanto nas épocas boas quanto em outras não tão boas eles têm sido muito generosos nas áreas de saúde, habitação e emprego. Eles encaram a fortuna deles como uma dádiva que exige muita responsabilidade, e autoridade também. Eles têm consciência social, e aqui não vai ser diferente.
- O menino não pode responder por si mesmo? - reclamou um repórter impertinente.
- O menino, como o senhor diz, é modesto demais para exaltaras virtudes da família dele em público. Como o senhor pode notar, ele não está entendendo tudo o que o senhor está dizendo, mas o olhar dele mostra que ele está muito ofendido, principalmente porque não consegue entender a razão da hostilidade de vocês.
- Mi scusi - disse o repórter do Miami Herald em italiano fluente. - Eu também falei com o seu pai, o barão de Ravello, e eu peço desculpas pela minha colega - acrescentou, dirigindo um sorriso maldoso para a mulher. - Ela foi muito inconveniente.
- Grazie.
- Prego.
- Se pudermos voltar para o inglês... - disse um jornalista gordo, na fila da frente, à direita. - Sem querer endossar as insinuações da nossa colega, eu acho que a porta-voz do jovem barão levantou uma questão importante. Como todo mundo sabe, existem grandes bolsões de desemprego neste país. Será que a consciência social da família realmente se estenderia até essas regiões?
- Se essa situação concreta se apresentar, eu tenho certeza de que essas áreas estariam entre as primeiras, senhor. O barone di Ravello é um investidor internacional de muita visão, e ele reconhece o valor da lealdade com tanta clareza quanto o da caridade.
- Vocês vão receber milhares de telefonemas - disse o repórter gordo. - Ainda não é nada de concreto, mas pode vir a ser.
- Senhoras e senhores, eu sinto muito, mas nós vamos encerrar a entrevista. Esta manhã foi muito cansativa e nós ainda temos o dia inteiro pela frente. - Sorrindo e curvando a cabeça com elegância para os repórteres, Bajaratt retirou-se do salão com seu pupilo, encantada com os comentários elogiosos dirigidos a ele. Haveria, de fato, muitos telefonemas, exatamente como ela planejara.
A alta sociedade de Palm Beach era de uma eficiência assustadora. Às quatro horas da tarde eles já haviam recebido dezesseis convites e onze consultas sobre as melhores datas para almoços e jantares em homenagem a Dante Paolo, barone-cadetto di Ravello.
Com idêntica eficiência, Bajaratt pesquisou todos os nomes e selecionou cinco dos convites mais importantes, eventos onde seria mais provável o comparecimento da elite da política e da indústria. Quanto aos anfitriões rejeitados, ela telefonou para cada um e, desmanchando-se em desculpas, declarou-se impossibilitada de comparecer, esperando de todo o coração que eles tivessem oportunidade de se encontrar na casa de Fulano e de Beltrano, com quem o jovem barão já estava comprometido. Os gatos pisam macio, pensava Baj, e só mostram as garras quando alguém quer tirar o rato deles. Todos eles iriam onde quer que ela e Nicolo estivessem.
Muerte a toda autoridad!
Aquilo era só o começo, mas a jornada ia ser breve. Era hora de ver como iam as coisas em Londres, Paris e Jerusalém. Morte aos mercadores do sangue de Ashkelon.
- Ashkelon - atendeu uma voz masculina, em Londres.
- É Bajaratt. Você fez algum progresso?
- Dentro de uma semana a Downing Street vai estar coberta. Homens com uniformes da polícia, garis com macacões brancos lindos, sujos de lixo. Vingança por Ashkelon!
- Pode ser que eu leve mais de uma semana, você entende.
- Não faz mal - respondeu Londres. - Podemos aproveitar para ficar ainda mais entrincheirados, ainda mais íntimos. A nossa missão não pode fracassar.
- Ashkelon sempre.
- Ashkelon - disse uma voz feminina, de Paris.
- Bajaratt. Como estão as coisas?
- Às vezes eu acho que estão fáceis demais. O homem vai e vem com aqueles guardas de ar entediado, que já teriam sido executados, se fosse no Baaka. Os franceses são tão arrogantes, tão despreocupados com o perigo, é ridículo. Nós checamos os telhados, eles não têm nenhuma proteção!
- Cuidado com esses franceses de ar entediado, eles são capazes de se transformar e atacar de repente, como cobras venenosas. Lembre da Résistance.
- Isso é merde, como eles dizem aqui. Se eles estiverem sabendo alguma coisa sobre nós, não estão levando nada a sério. Será que eles não entendem que nós estamos dispostos a morrer? Vingança por Ashkelon!
- Ashkelon sempre.
- Ashkelon - sussurrou uma voz gutural, de Jerusalém.
- Você sabe quem eu sou.
- Claro que sei. Eu fiz todo mundo rezar debaixo das laranjeiras por você e pelo seu marido. Ele vai ser vingado, a nossa causa vai ser vingada, acredite em mim.
- Eu preferia que você falasse sobre os seus progressos.
- Como você é fria, Baj, você é fria demais.
- O meu marido não achava isso. Os progressos?
- Merda, você parece mais judia do que esses judeus horrorosos! A gente está pronto para acabar com aquele cretino qualquer dia, na hora em que ele sai do Knesset. Pode ser até que alguns de nós escapem para continuar a luta. Só estamos esperando as novidades, o seu sinal.
- Vai levar um tempinho ainda.
- Pode ir com calma, Baj. À noite a gente põe o uniforme dos israelenses e vai trepar com as mulheres deles, rezando para que Alá ajude a botar um árabe na barriga delas.
- Se concentre no seu trabalho, amigo.
- A gente se concentra nas judias, essas putas!
- Mas não à custa da sua missão!
- Nunca. Vingança por Ashkelon.
- Ashkelon sempre.
Amaya Bajaratt deixou o telefone público do saguão do hotel, depois de guardar os diversos cartões de crédito que Bahrain lhe havia fornecido. Tomou o elevador e seguiu pelo corredor elegante em direção à sua suíte. Ao chegar, encontrou a sala de estar vazia, abandonada, sob uma luz fraca. Foi até o quarto, que estava às escuras, a porta aberta. O jovem Nicolo estava inerte na cama, nu, como de costume; dormia profundamente, e seu corpo magnífico era tentador. Ao contemplá-lo, ela não conseguia evitar a lembrança do marido, com quem ficara casada por tão pouco tempo. Ambos tinham o corpo musculoso, alongado, esguio, um muito mais jovem que o outro, mas a semelhança era indiscutível. Ela não era capaz de resistir a corpos como esses, como também não resistira à nudez de Hawthorne, menos de dois dias antes. De repente, ela escutou e sentiu a sua própria respiração e tocou os mamilos, percebendo a urgência do seu desejo. Aquilo era a compensação por tudo o que ela nunca pudera ter. Alguns anos antes, havia-se submetido a uma pequena cirurgia com um médico de Madri, e pelo resto da vida estaria impossibilitada de engravidar - aquilo era tudo o que ela tinha.
Ela se aproximou do pé da cama e se despiu; agora estava tão nua quanto o corpo à sua frente.
- Nico - disse ela suavemente. - Nicolo, acorde.
- O quê...? - gaguejou o rapaz, abrindo os olhos.
- Eu estou aqui para você... meu bem. - "É o seu dever", pensou ela. "Isto é tudo o que eu tenho!"
- Qual é o número de Paris? - disse Hawthorne, diante do padrone, mas dirigindo a pergunta a Poole, na entrada da sala.
- Esse eu chequei - respondeu o Tenente. - Lá já são quase dez horas da manhã, eu imaginei que ninguém ia levar um susto.
- E aí?
- Eu não entendi nada, Tye. É uma agência de viagens no Champs-Élysées.
- E o que aconteceu quando você ligou?
- Com toda a certeza é uma linha secreta. A mulher que atendeu disse alguma coisa em francês e, quando eu disse em inglês que eu esperava ter ligado para o número correto, ela me perguntou em inglês se eu tinha ligado para uma agência de viagens com um nome francês, e eu respondi que era claro que sim e que era urgente... Aí ela me perguntou qual era a minha cor e, é claro, eu respondi que era branca e ela perguntou "e o que mais", e eu não soube o que responder, aí ela desligou.
- Você não sabia a senha, Jackson; e nem podia saber.
- É, acho que não.
- Vou mandar o Stevens cuidar disso, a não ser que eu consiga convencer o nosso padrone aqui a cooperar conosco.
- Eu não sei do que vocês estão falando! - gritou o inválido.
- É, é provável que não saiba mesmo - concordou Hawthorne. - Essas últimas chamadas, as que não foram apagadas, não foram feitas por você, foram feitas por outra pessoa, por alguém que não sabia apagar a memória, não é mesmo, padrone?
- Não sei. Eu não sei de nada!
- E Palm Beach, Tenente?
- A mesma maluquice, Comandante. É o número de um restaurante superchique na Worth Avenue. Disseram que eu tinha que fazer a reserva com duas semanas de antecedência, a menos que eu fosse cliente preferencial.
- Não é maluquice nenhuma, Jackson, é uma peça do quebra-cabeça, um pedaço do mapa da mina. O cliente preferencial é isto, alguém que se identifica por um nome que você não conhece, e com outras palavras que você não sabe quais são. Eu vou deixar isto para o Stevens resolver com os nossos colegas de Paris. - Tyrell voltou os olhos para o velho; o sangue havia parado de brotar da face do padrone, estancado por um chumaço de lenços de papel que pendia da pele do rosto. - Você vai fazer uma viagem, meu amigo.
- Eu não posso sair desta casa.
- Ah, mas vai ter que sair, scungilli...
- Então pode meter uma bala na minha cabeça.
- É uma ideia tentadora, mas eu não vou fazer isso. Quero que você conheça uns antigos colegas meus, de uma outra vida, eu poderia dizer...
- Tudo nesta casa é feito para ajudar a me manter vivo. Você quer ter um homem morto nas mãos?
- Não, não quero, mas no seu caso isto é uma questão a se discutir - replicou Tyrell. - Portanto, sugiro que você diga quais são os equipamentos necessários para uma viagem curta, só o material básico. Daqui a poucas horas você vai estar no continente, num hospital, e sabia de uma coisa? Aposto que você vai ter um quarto só para você.
- Eu não posso sair daqui!
- Você quer fazer uma aposta? - perguntou Hawthorne, enfiando a mão na bolsa ao ouvir o som do rádio.
As palavras de Neilsen foram lentas e pausadas, o autocontrole tentando se impor sobre a ansiedade.
- Nós estamos com um problema.
- O que foi que aconteceu? - gritou Poole. - Qual foi o problema?
- O que houve de errado? - perguntou Hawthorne.
- O piloto do hidroavião falou pelo rádio com a patrulha marítima; o leme de direção esquerdo quebrou! Ele caiu, mais ou menos uns cento e vinte quilômetros ao sul de onde está a lancha. Os outros estão indo atrás dele, esperando que o coitado sobreviva.
- Cathy, me responda com toda a sinceridade - disse Hawthorne. - Pelo que você sabe sobre aquele avião, você acha possível que tenha sido sabotagem?
- E o que é que você acha que está me atormentando? Eu nem pensei nisso antes, e devia ter pensado! Meu Deus do céu, explodiram o nosso AWAC... Charlie!
- Tudo bem, fique calma. Continue. Qual poderia ter sido a sabotagem?
- Os cabos, porra! - Cathy explicou rapidamente que cada peça móvel do avião funcionava com dois cabos de aço. Era inconcebível que dois cabos quebrassem ao mesmo tempo.
- Sabotagem - concluiu Tyrell, em voz baixa.
- Alguém encurtou os cabos, para eles não aguentarem e quebrarem de uma vez só - disse Neilsen, já mais controlada. - E eu nem considerei essa possibilidade. Merda!
- Será que você podia parar de se martirizar, Major? Eu também não pensei nisso. Alguém lá em St. Martin deu a volta no Deuxième, e se essa pessoa conseguiu fazer isso, a culpa não é nossa.
- Os mecânicos! - gritou a Major pelo rádio. - Prendam todos os mecânicos daquela ilha. Foi um deles!
- Cathy, acredite em mim, quem fez isso não está mais lá. É assim que as coisas são.
- Isso é demais para mim! O inglês que estava pilotando o avião pode ter morrido!
- Mas é assim que as coisas são - repetiu Hawthorne. - Talvez agora você entenda por que é que um monte de gente em Washington, Londres, Paris e Jerusalém tem medo de sair de perto da mesa, do telefone. A gente não está lidando só com uma terrorista psicopata, a gente está lidando com uma fanática obcecada que está dirigindo uma rede de fanáticos enfurecidos, perfeitamente dispostos a morrer para conseguir o que querem.
- Meu Deus, e o que é que nós vamos fazer?
- Neste exato momento, o que você vai fazer é trazer o submarino até a praia e subir aqui na casa. Nós vamos abrir as janelas para você poder ver melhor.
- Acho que eu devia manter contato com a lancha...
- Isto não vai mudar nada - interrompeu Tyrell, seco. - Eu quero você aqui...
- Onde está o Poole?
- Ele agora está levando o nosso paciente para o saguão. Venha para cá, Major, não vai acontecer nada aqui. É uma ordem!
Subitamente, porém, sem um único decibel de som, sem um único sinal de uma devastação iminente, tudo aconteceu. Explosões de todos os lados, paredes desmoronando, colunas de mármore rachando ao meio e desabando no chão de mármore; do outro lado do portal, no complexo de comunicações, os equipamentos voavam em pedaços, fios despedaçados chicoteavam-se entre si, o contato elétrico produzia relâmpagos súbitos que cortavam o ar. Tyrell correu até o vestíbulo e jogou-se no chão, rolando sobre si mesmo para se proteger da chuva de entulho, com a atenção concentrada em Poole, cuja perna estava presa sob uma estante, atrás de um outro portal também em ruínas. Hawthorne levantou-se e correu até o Tenente, ajudou-o a se livrar das prateleiras que se amontoavam em cima dele e o arrastou na direção do portal. Este, porém, começou a ruir, e as placas de mármore atingiram o chão com todo o seu peso; Tye puxou Poole para junto de si e, quando houve um breve intervalo no desabamento, atravessou o portal na maior velocidade possível, puxando o Tenente atrás de si; o portal desmoronou, transformando-se num amontoado de mármore quebrado que teria esmagado os dois. Hawthorne olhou por cima daquele monte de entulho e só viu o padrone rindo histericamente na sua cadeira de rodas, enquanto tudo o que havia à sua volta se estilhaçava. Num esforço supremo, Tyrell passou o braço em torno do tórax de Poole e, curvando os ombros, atirou-se na espessa porta de vidro. Os dois juntos foram bater no tronco de uma das palmeiras artificiais, enquanto o Tenente berrava.
- Pare! A minha perna! Eu não consigo mexer a perna!
- A gente não pode parar. Estas palmeiras vão ser as próximas a explodir! - Com estas palavras, arrastando Poole, Hawthorne continuou correndo em ziguezague no meio das folhagens falsas e verdadeiras até chegar ao gramado.
- Pelo amor de Deus, me largue! Nós estamos longe, e eu estou ferido de verdade!
- Eu vou lhe dizer quando você estiver mesmo ferido - gritou Tyrell, com a voz acima das explosões e do grande incêndio nos limites da propriedade que um dia fora um castelo. O momento chegou menos de trinta segundos depois. Todo o conjunto de palmeiras explodiu com a violência de vinte toneladas de dinamite.
- Não acredito - sussurrou Poole, entorpecido, deitado de bruços ao lado de Hawthorne, no terreno escuro, áspero e seco. - Ele mandou essa porra toda pelos ares.
- Ele não tinha outra opção, Tenente - disse Tye, num tom impiedoso.
Poole, porém, não escutou.
- Meu Deus... a Cathy! - gritou ele. - Onde é que está a Cathy?
Do outro lado do gramado, apareceu uma figura vestida de preto, correndo em volta das labaredas enormes e gritando desesperadamente. Hawthorne se pôs de pé e correu na direção dela, gritando o mais alto que sua voz permitia:
- Cathy, nós estamos aqui! Está tudo bem!
Na luz ofuscante das chamas, a major Catherine Neilsen correu pelo gramado e caiu nos braços do comandante Tyrell Hawthorne.
- Graças a Deus, todo mundo está bem! - exclamou ela. - Cadê o Jackson?
- Aqui, Cathy! - gritou Poole, do meio das sombras. - Agora eu e este ianque filho da puta estamos quites. Foi ele quem me tirou de lá.
- Ah, meu bem! - disse ela, num tom absolutamente antimilitar, e, largando o Comandante, correu para o Tenente e jogou-se no chão para abraçá-lo.
- Tem alguma coisa que eu não estou conseguindo entender, alguma coisa - disse Hawthorne para si mesmo, aproximando-se das duas figuras deitadas no chão.
12
O quarteto de cordas tocava ao fundo, numa sacada sobre o terraço que se estendia até a piscina, as águas azuis brilhando à luz dos refletores internos; o cenário perfeito para uma noite na Costa Dourada de Palm Beach. Três bares e seis bufês se espalhavam pelo gramado impecável, iluminados por tochas e comandados por empregados de paletó amarelo, que gentilmente serviam comida e bebida para a elite do balneário, resplandecente nos seus trajes formais de verão. Era um quadro esplêndido da boa vida, tão merecida pelos privilegiados. E o centro das atrações era um jovem alto, belo e perplexo, vestido de smoking, com uma faixa escarlate na cintura. Ele não entendia exatamente o que estava se passando, mas sabia que aquilo era muito melhor do que qualquer atenção que ele já tivesse recebido nas docas de Portici.
No decorrer da recepção, em que sua tia, a contessa, atuou como intérprete, ele desfilou diante dos numerosos convidados, na companhia de uma anfitriã possessiva, de dentes muito brancos, grandes demais para a boca, e cabelos branco-azulados. Amaya Bajaratt os acompanhava o tempo todo, alguns passos atrás do "sobrinho".
- Aquele ali, você foi apresentado a ele, é um senador muito poderoso - cochichou ela, apertando o passo, enquanto a anfitriã os conduzia na direção de um homem baixo e gordo. - Quando você for falar com ele, diga qualquer coisa em italiano e, quando ele falar, vire para mim. Mais nada.
- Está bem, Cabi, está bem.
A entusiástica anfitriã procedeu às reapresentações:
- Senador Nesbitt, o barone di Ravello...
- Scusi, signora - interrompeu Nicolo, com delicadeza. - Barone-cadetto di Ravello.
- Ah, sim, claro... O meu italiano anda meio enferrujado.
- Até parece que ele já foi melhor, Sylvia. - O Senador sorriu para Nico com simpatia e curvou a cabeça para a contessa. - Muito prazer, meu jovem - continuou, estendendo-lhe a mão. - Você ainda não é o barão, e acredito que não vai ser ainda por muitos anos.
- Si? - respondeu o impostor, voltando-se instintivamente para Bajaratt, que fez a tradução. - Non, per centi anni, Senatore! - exclamou.
- Ele disse que espera que não, pelos próximos cem anos - explicou Bajaratt. - Ele é um filho muito devotado.
- Isto é raro nos dias de hoje - disse Nesbitt, olhando para a pretensa contessa. - Será que a senhora poderia perguntar ao jovem barão... desculpe, não é assim que se diz...
- Barone-cadetto - corrigiu Bajaratt, sorrindo. - Quer dizer que ele é o primeiro na linha sucessória. O termo mais comum é baroncino, mas o pai dele é muito tradicional, e ele acha que barone-cadetto é menos depreciativo, e impõe mais autoridade. O Dante Paolo só estava querendo esclarecer o título dele, mas isto é muito menos importante para ele do que tudo o que pode aprender com uma pessoa tão experiente como o senhor, Senador... O que o senhor deseja perguntar?
- Eu li nos jornais a cobertura da entrevista coletiva de ontem... para ser sincero, foi a minha secretária quem me mostrou, eu não costumo ler a coluna social; bem, o que me chamou a atenção foi aquela declaração sobre lealdade e caridade. De como a família reconhece os benefícios da lealdade da mesma maneira que os da caridade.
- É verdade, senador Nesbitt. Tanto uma quanto a outra são muito importantes para a família do Barão.
- Eu não sou deste estado, senhora... perdão, contessa...
- Não se preocupe.
- Obrigado... Acho que se poderia dizer que eu sou um advogado do interior que subiu mais alto do que esperava.
- O "interior", pelo que eu entendo, é o verdadeiro alicerce de uma nação, signore.
- Bem colocado, muito bem colocado. Eu sou o Senador mais antigo do estado de Michigan, onde, com toda a honestidade, existem muitos problemas, mas, na minha opinião, existem também muitas oportunidades de investimento, principalmente aos preços de hoje. O futuro está no crescimento, com uma mão de obra dedicada, qualificada, e isso nós temos.
- Por favor, Senador, me telefone amanhã. Eu vou autorizar a recepção do hotel a passar a sua ligação e vou dizer para o Dante Paolo como eu fiquei bem impressionada com as suas referências e com o seu preparo.
- Na verdade, eu estou de férias - disse o homem de cabelos grisalhos, olhando pela terceira vez em quatro minutos para o Rolex incrustado de brilhantes, seu símbolo particular de sucesso. - Eu tenho que dar um telefonema daqui a pouquinho... para Genebra, a senhora entende?
- Perfeitamente, signore - respondeu Bajaratt. - Eu e o barone-cadetto estamos muito bem impressionados com as suas sugestões; investimentos realmente interessantes.
- Eu vou lhe dizer uma coisa, Condessa, a família Ravello poderia ter lucros muito elevados. As minhas empresas na Califórnia estão fornecendo sete por cento das compras do Pentágono, e este número só tende a crescer. São empresas de alta tecnologia; nenhuma outra empresa tem uma tecnologia comparável à nossa. Muitas delas vão sair do mercado, mas a nossa, não; nós temos doze generais reformados e oito almirantes na nossa folha de pagamentos.
- Por favor, me telefone amanhã. Eu mando passar a ligação.
- A senhora entende, eu não tenho liberdade para fornecer maiores detalhes para a senhora e para o jovem aristocrata, mas o nosso negócio é o setor aeroespacial, e nós estamos muito bem posicionados. Nós temos acesso a todos os membros do Congresso que estão pensando no futuro, e não são poucos os que estão investindo pesado na nossa área de pesquisa e desenvolvimento, no Texas, em Oklahoma e em Missouri... e os resultados vão ser estratosféricos! Eu posso colocar vocês em contato, discretamente, a senhora entende, com um bom número de congressistas.
- Por favor, me telefone amanhã. Eu mando passar a ligação.
- A política partidária é o esporte nacional - disse, sorrindo, um homem ruivo, de trinta e poucos anos, depois de apertar a mão do barone-cadetto e curvar-se além do necessário para a contessa. - Vocês vão descobrir isto quando tiverem oportunidade de circular sem a sua anfitriã dentuça.
- Está ficando tarde, e eu acho que a Sylvia se rendeu - disse Baj, rindo. - Ela resolveu nos deixar à vontade, depois de ter certeza de que o Dante já tinha sido apresentado a todos os convidados importantes.
- Ah, quer dizer que ela se esqueceu de mim - replicou o ruivo. - Ela deve saber o que faz; afinal de contas, eu recebi um convite de última hora.
- E quem é você?
- Apenas um dos mais brilhantes estrategistas de campanhas políticas do país, mas infelizmente o meu prestígio não ultrapassou a esfera estadual... mas em vários estados, veja bem.
- Então você não é importante mesmo - concluiu a contessa. - Mas então, por que foi convidado?
- Porque eu, com o meu talento excepcional, convenci o New York Times a publicar regularmente os meus artigos na página de opinião. O pagamento é irrisório, mas no meu meio profissional, se o seu nome sair algumas vezes num jornal de grande circulação, mais adiante você consegue ganhar melhor. É muito simples.
- Bem, a nossa conversa foi muito agradável e esclarecedora, mas eu e o barone-cadetto estamos exaustos. Boa noite, Signor Giornalista.
- Por favor, espere um pouco, Condessa. A senhora pode não acreditar, mas eu estou do seu lado, eu acho que vocês são quem vocês dizem que são.
- E por que você acharia que nós não somos?
- Olhe ali. - O jovem colunista fez um movimento com a cabeça indicando um homem moreno, de estatura média, que os estava observando através das figuras de circulavam. Era o repórter do Miami Herald que falava italiano. - Pergunte a ele, senhora, não a mim. Ele acha que vocês são dois impostores.
Hawthorne, com todo o corpo dolorido de toda aquela atividade frenética, estava sentado ao lado de Poole na praia escura, os dois só de cuecas, despidos das roupas de mergulho. Esperavam Catherine Neilsen emergir do submarino, agora seguro pelo seu próprio peso nas águas rasas.
- Como é que está a sua perna? - perguntou Tyrell, com a voz arrastada pela exaustão.
- Não quebrou nada, não, eu só estou com um monte de hematomas que estão doendo pra caramba - respondeu o Tenente. - E o seu ombro? Ainda está saindo sangue aí por baixo do curativo da Cathy.
- Mas já está parando. É que ela não prendeu bem o esparadrapo, só isso.
- Você está criticando a minha oficial superior? - perguntou Poole, com um sorriso.
- Eu não ousaria... pelo menos não na sua frente, meu bem.
- Cara, isto incomoda mesmo você, não é?
- Não, Jackson, não me incomoda em nada. Só que eu acho meio engraçado, pelo que a gente conversou, quando você falou de amor não correspondido.
- Eu acho que eu disse "caso", Comandante, nada permanente.
- O que é isso, será que eu estou falando com outro Poole?
- Não, você está falando com um cara da Louisiana, um candidato a marido cuja noiva não chegou na igreja para o casamento.
- Que história é essa? - perguntou Hawthorne, levantando as pálpebras caídas e olhando para o oficial da Força Aérea que exibia um meio-sorriso sob o luar.
- Ah, eu tive que contar essa história tantas vezes... tantas que ela acabou virando brincadeira, como esse negócio de "meu bem".
- E você se incomodaria de contar de novo?
- De jeito nenhum. - Poole sorriu, e depois começou a rir abertamente, com a lembrança. - Eu enchi a cara e quase enlouqueci, foi isso o que aconteceu. Eu e a minha pretendente tínhamos conseguido a melhor igreja batista de Miami, o que já não é muito fácil naquela cidade, e as duas famílias, a minha e a dela, estavam lá. Depois de duas horas de espera, a dama de honra chegou e entrou gritando na porra da igreja, com um bilhete para mim... A minha noiva tinha fugido com um guitarrista.
- Meu Deus, que coisa...
- É, mas foi melhor assim do que anos depois, com filhos... mas eu fiquei completamente zureta.
- Zureta? - A despeito da necessidade urgente de dormir, Hawthorne não conseguia despregar os olhos de Poole.
- Eu saí correndo daquele lugar, comprei duas garrafas de bourbon, peguei o meu carro nupcial, com aquelas latinhas batendo atrás, os vidros pintados com spray e tudo mais, e fui parar no centro de Miami, nas piores boates que consegui encontrar. Quanto mais bebia, mais eu achava que estava fazendo sucesso... Patético.
- Continue, cara, e aí?
- Bem, a Cathy, o Sal e o Charlie imaginaram que eu ia fazer alguma merda, e vieram atrás de mim. Mas eles não foram tão espertos quanto pensavam; porra, o meu carro chamava bastante atenção.
- E o que foi que aconteceu?
- Um tumulto, Comandante, foi isto o que aconteceu. Eles acabaram me encontrando numa espelunca, tentando agarrar todas as mulheres que apareciam na minha frente, inclusive uma cubana, a preferida do dono da casa. O Sal e o Charlie foram bastante competentes na negociação, e convenceram os meus inimigos a me deixar em paz, mas o problema foi me tirar de lá.
- Mas por quê?
- Eu queria porque queria arrumar uma mulher.
- Ai, meu Deus! - Hawthorne curvou a cabeça, em parte devido ao espanto, em parte, ao cansaço.
- A Cathy então me abraçou e ficou cochichando "meu bem, meu bem, meu bem" no meu ouvido e foi me arrastando para fora. Foi assim.
- Só isso?
- Só.
Silêncio. Logo depois, Tyrell disse, com a voz extenuada:
- Sabe de uma coisa, vocês são mesmo uns doidos varridos.
- Ei, Comandante, quem foi que encontrou este lugar para você?
- Tudo bem, vocês são doidos mas não são burros...
- Escutem! - gritou a major Neilsen, saindo do minúsculo submarino e entrando na água que batia na cintura da sua roupa de mergulho. - Nós já recebemos as instruções da lancha dos ingleses, com a confirmação de Washington e Paris. Eles vão mandar um avião de Patrick para nos pegar; ele deve chegar daqui a umas três ou quatro horas, quando estiver amanhecendo. Ah, e o piloto sobreviveu; quebrou a perna e quase se afogou, mas escapou.
- Para onde eles vão nos levar? - perguntou Hawthorne.
- Ninguém me disse. Só sei que vão nos tirar daqui.
- E os nossos amiguinhos? - perguntou Poole. À distância ainda se ouvia a confusão de latidos de cães de guarda. - Eu não vou embora enquanto não tiver alguém para cuidar deles.
- Eles vão mandar um treinador para cuidar dos cachorros e do jardineiro, junto com uma equipe de investigação que vai ficar aqui um ou dois dias.
- Mas diga, para onde é que esse avião de Patrick vai nos levar?
- Eu não sei. Provavelmente de volta para a base.
- De jeito nenhum! Eu tenho que descer em Gorda, nem que seja de paraquedas. Já fiz isso uma vez.
- Por quê?
- Porque dois amigos meus foram assassinados lá, e eu quero saber por quê e por quem! É essa a pista que eu pretendo seguir; é a única que faz algum sentido. Aquela vaca está operando aqui das ilhas.
- Quando a gente estiver a bordo, você pode entrar em contato com quem quiser. Você já provou que consegue falar com quem toma as decisões.
- Está certo - concordou Hawthorne, baixando a voz. - Desculpem, eu não tenho nenhum direito de extravasar a minha raiva em vocês.
- E não tem mesmo. Você perdeu dois amigos, e nós aqui, também. Eu pensei que nós três estávamos do mesmo lado. Agora há pouco você estava fazendo de tudo para nos convencer disto.
- Acho que o que a Major está querendo dizer é que se você for saltar em Gorda, nós vamos com você - disse Poole. - Nós lembramos perfeitamente da ordem que nos deram. Estamos subordinados a você e queremos ajudar - acrescentou, encolhendo-se de dor ao tentar endireitar as costas.
- Nesse estado você não vai poder ajudar muito, Tenente.
- Isto vai melhorar rapidinho com um banho bem quente e talvez um pouco de cortisona - respondeu Jackson. - Não se esqueça que eu tenho experiência na área médica. Eu sei quando estou ferido e quando estou ferido. Eu não estou.
- Muito bem - disse Tye; sua resistência sucumbia à fadiga -, vamos supor que não mande vocês de volta para a base, vocês dois vão aceitar que eu mande em vocês? Vocês vão fazer o que eu disser?
- Claro - respondeu a Major. - Quem manda aqui é você.
- É, mas até agora isso não deu muito resultado.
- O que ela está querendo dizer, Comandante...
- Pare de tentar explicar o que eu estou querendo dizer - disse a Major, sentando-se na areia com as pernas cruzadas e olhando para Poole com ar ameaçador.
- Está bem, está bem - interrompeu Tye. - Nós estamos no mesmo barco. Seja o que Deus quiser.
- Por falar em estar no mesmo barco - disse Neilsen, olhando para Tyrell. - Você não se dá muito bem com o capitão Stevens, não é?
- Isso não importa. Eu não tenho nada a ver com ele.
- Mas ele é o seu oficial superior...
- Ele não é porra nenhuma. Eu fui contratado pelo MI-6, Londres.
- Contratado? - exclamou Poole.
- Isto mesmo. Eles pagaram o meu preço, Tenente. - Hawthorne arqueou o pescoço; estava exausto.
- Mas e tudo o que você disse sobre essa terrorista inacreditável e o exército de fanáticos atrás dela, prontos para cometer assassinatos em massa... você aceitou isto por um preço?
- É, foi isto mesmo.
- Você é um cara estranho, comandante Hawthorne. Eu realmente não sei se compreendo você.
- A sua compreensão, Major, não é pertinente para esta operação.
- É claro que não... senhor.
- Não é pertinente, Cathy, porque você está pisando no calo de estimação dele - disse Poole, com as costas apoiadas no muro coberto de trepadeiras.
- Que merda é essa que você está dizendo? - perguntou Hawthorne. Com os olhos semicerrados, ele tentava espantar o sono, mas cada vez que piscava, sua cabeça caía para a frente.
- Eu também estava no telefone de Patrick. Você acha que a sua mulher foi morta injustamente, pelo que eu entendi, e foi por isto que não queria voltar para trabalhar com aquele pessoal nem que eles lhe oferecessem metade das casas de Washington.
- Você é muito observador - disse Hawthorne com a voz mole, o queixo enterrado no peito. - Mesmo sem saber o que está dizendo.
- Mas aí aconteceu alguma outra coisa - continuou Poole. - Quando a gente pegou você em Saba, você fez que não estava nem aí, mas estava, sim. Parecia um louco na hora em que o meu equipamento começou a detectar alguma coisa. Começou a perceber alguma coisa que ainda não tinha lhe ocorrido, e ficou absolutamente atento. Até encurralou o Sal Mancini, que nem uma cascavel atacando um rato.
- Que história é essa, Jackson? - perguntou Cathy.
- Uma história que ele sabe e não quer nos contar.
- ... Aqueles cretinos - sussurrou Tyrell com os olhos fechados, cabeceando de sono.
- Há quanto tempo você está sem dormir? - perguntou Cathy, mudando-se para perto de Hawthorne.
- Eu estou ótimo...
- Não está ótimo coisa nenhuma - replicou ela, segurando o ombro machucado de Tyrell. - Você está caindo aos pedaços, Comandante.
- Dominique? - murmurou ele de súbito, o corpo caindo para trás, como se em câmera lenta, sustentado pelo braço de Neilsen.
- Quem?
- Espere, Cathy - disse Poole, estendendo a mão direita para ela. - Dominique era a sua mulher?
- Não! - murmurou Tye, semi-inconsciente. - Ingrid...
- Ela é que foi morta?
- Tudo mentira! Disseram que ela era... agente soviética.
- E era mesmo? - perguntou Neilsen, deitando Hawthorne no chão.
- Não sei - respondeu Tyrell, com a voz quase inaudível. - Ela queria que aquilo tudo acabasse.
- Tudo o quê? - insistiu o Tenente.
- Não sei... tudo.
- Durma, Tye - disse Cathy.
- Não! - objetou Poole. - Quem é Dominique? - Hawthorne, porém já havia sucumbido ao sono, deitado na areia da praia. - Esse cara está com algum problema.
- Cale a boca e acenda uma fogueira - ordenou a Major.
Dezoito minutos depois, diante das chamas que arremessavam sombras sobre a praia, Poole sentou-se com dificuldade na areia e olhou para Cathy, que contemplava Tyrell dormindo.
- Ele está mesmo com algum problema, não é? - perguntou a Major.
- Um problema maior do que todos os nossos juntos, inclusive Pensacola e Miami.
- Ele é um cara legal, Jackson.
- Me diga uma coisa que eu ainda não sei, Cathy. Andei prestando atenção em você, nessas coisas que você fala e, como disse o Comandante, sou muito observador. E acho que você e ele podiam formar um casal sensacional.
- Não seja ridículo.
- Olhe para ele. Ele é mil vezes mais legal que o cara de Pensacola. Quer dizer, ele é um homem de verdade, não um babaca que passa o dia inteiro se olhando no espelho.
- Ele até que não é de se jogar fora - disse ela, segurando a cabeça de Tyrell, ao mesmo tempo em que construía um travesseiro de areia para apoiá-la. - Digamos que ele tem lá as suas qualidades.
- Vá por mim, Cathy. Eu sou um gênio, lembra?
- Ele não está preparado para isso, Jackson. Nem eu.
- Posso pedir um favor?
- O que é?
- Faça o que você tiver vontade.
A Major olhou para o Tenente e, em seguida, para o rosto de Tyrell Nathaniel Hawthorne, que repousava no seu colo. Inclinou-se sobre ele e beijou-lhe os lábios entreabertos.
- Dominique?
- Não, Comandante. É outra pessoa.
- Buona sera, signore - disse Bajaratt, conduzindo o relutante barone-cadetto até o repórter do Miami Herald que falava italiano fluentemente. - Aquele rapaz de cabelo ruivo sugeriu que nós viéssemos conversar com o senhor. A sua matéria sobre a entrevista coletiva de ontem foi muito simpática. Muito obrigada.
- Pena que não foi possível publicar uma das fotos, porque ele é um rapagão e tanto, Condessa - disse o jornalista em tom de cordialidade. - Vocês realmente são duas figuras respeitáveis. Bem, o meu nome é Del Rossi.
- Mas alguma coisa está incomodando o senhor, não é?
- Eu diria que sim, mas ainda é cedo para publicar alguma coisa sobre esse assunto.
- E do que se trata exatamente?
- O que é que vocês pretendem, senhora?
- Eu não estou entendendo...
- Mas ele está. Ele está entendendo tudo o que nós estamos dizendo em inglês.
- Por que o senhor acha isto?
- Porque eu sou bilíngue. A gente vê nos olhos, não vê não? Um sinal de compreensão, uma reação de ofensa ou de humor que não pode ter sido causada pelo tom de voz ou pela expressão do interlocutor.
- Ou a compreensão parcial, que talvez até fique mais fácil à medida que as conversas vão sendo traduzidas... isso não seria possível, meu amigo linguista?
- Tudo é possível, Condessa, mas ele fala e entende inglês, sim. Não é mesmo, companheiro?
- O quê... che còsa?
- Caso encerrado, senhora. - Del Rossi sorriu sob o olhar fixo de Bajaratt. - Ei, mas eu não estou recriminando a senhora por isso, Condessa. Na verdade, é uma jogada muito esperta.
- O que é que o senhor está querendo dizer? - perguntou Bajaratt, num tom gélido.
- Isto se chama a possibilidade da negação pela falta de entendimento. Os antigos soviéticos, os chineses, e a Casa Branca são especialistas. Seu sobrinho pode dizer o que quiser e depois voltar atrás, alegando que não tinha entendido.
- Mas por quê? - insistiu Bajaratt.
- Eu ainda não consegui descobrir, e é por isso que nada foi publicado até agora.
- Mas o senhor não foi um dos jornalistas que falou com o próprio barone em Ravello?
- É verdade, mas, para ser franco, não foi uma boa fonte. Ele só dizia que "tutto quello che dice è vero" e "qualsiasi còsa dica". Ou seja, "tudo o que ele disser é verdade". Que verdade é essa, Condessa?
- Os investimentos da família, claro.
- Pode ser, mas por que será que eu tive a impressão de que daria no mesmo ter falado com o barão ou com uma secretária eletrônica?
- Uma imaginação delirante, signore. Está tarde e nós temos que ir. Buona notte.
- Eu também estou indo - disse o repórter. - Daqui a Miami é um bom pedaço.
- Então vamos procurar os donos da casa. - Baj tomou o braço de Nicolo e começou a afastar-se.
- Eu vou manter a distância recomendada pelo protocolo, vinte passos atrás - acrescentou Del Rossi, em tom visivelmente divertido.
Bajaratt voltou-se para o repórter com um súbito ar de receptividade; o gelo desaparecera dos seus olhos.
- Como, Signor Giornalista? Isso seria muito antidemocrático da sua parte. Ia parecer que o senhor nos desaprova, desaprova a nossa posição.
- Não, senhora, eu não aprovo nem desaprovo. Na minha profissão não se fazem julgamentos, só se apresentam os fatos como eles são.
- Então continue assim, mas por ora fique aqui do meu lado, que eu vou ter a companhia de dois belos italiani enquanto a gente se despede dos amigos.
- A senhora é muito cínica, Contessa. - Del Rossi deu um passo à frente e, educadamente, ofereceu-lhe o braço.
- E o senhor é completamente insignificante para mim, signore - disse Baj, na hora em que os três começaram a atravessar o gramado. Nesse momento, inesperadamente, a condessa Cabrini cambaleou e caiu, perdendo o equilíbrio, como se o tornozelo estivesse preso na grama macia ou na cabeça de um sprinkler. Ela deu um grito; Nicolo e Del Rossi imediatamente a acudiram, os dois de joelhos, estendendo-lhe as mãos. - Meu pé! Soltem o meu pé, por favor, ou então tirem o meu sapato!
- Pronto - disse o repórter, levantando com delicadeza o tornozelo da Contessa.
- Ah, obrigada! - exclamou Bajaratt, apoiando a mão na perna de Del Rossi para se levantar, enquanto os convidados acorriam e se acotovelavam em torno deles.
- Ai! - gemeu o repórter, ao ver um fio de sangue brotar na perna da sua calça, no momento em que ele e Nicolo ajudavam a condessa a se pôr de pé.
- Obrigada... obrigada a todos. Eu estou ótima. Só estou mortificada com a minha falta de jeito! - Um coro de manifestações de simpatia e solidariedade cumprimentou a Condessa e ela seguiu com seus acompanhantes na direção do pátio, onde os anfitriões desejavam boa-noite aos convidados que se retiravam. - Meu Deus! - exclamou Bajaratt, ao ver o sangue na perna de Del Rossi. - Quando eu me apoiei no senhor, esta maldita pulseira rasgou a sua roupa. Pior, o senhor se cortou! Eu estou passada, não sei o que dizer!
- Não foi nada, Condessa. Só um arranhãozinho.
- Por favor, compre uma calça nova e não deixe de me mandar a conta!... Eu adoro esta minha pulseira, mas estas pontinhas de ouro são terríveis. Eu juro que nunca mais vou usar isto!
- Ei, esta calça está pela metade do preço numa liquidação. Não se preocupe com a conta... Mas não se esqueça, senhora, está tudo muito bem, mas eu não vou parar de fuçar.
- Fuçar o quê? A lama?
- Eu não mexo com lama, Condessa, isso já tem quem faça. Mas um terreno contaminado é outra coisa.
- Pois continue fuçando - disse Baj, olhando de relance para o bracelete de ouro preso no seu pulso direito, a ponta de um acúleo dourado vermelho de sangue, o orifício minúsculo... aberto. - O senhor não vai encontrar nada.
The Miami Herald
Repórter morto em acidente
WEST PALM BEACH, terça-feira, 12 de agosto - Angelo Del Rossi, destacado repórter deste jornal e ganhador do prêmio Pulitzer, morreu ontem à noite na Rodovia 95, quando seu carro perdeu a direção, saiu da estrada e bateu no muro de concreto de uma estação de energia elétrica. Presume-se que Del Rossi tenha dormido ao volante. Vários colegas, consternados, manifestaram pesar e perplexidade. "Ele era uma fera, farejava as notícias de longe", declarou um deles. "Era capaz de passar noites seguidas sem dormir, atrás de uma reportagem." Del Rossi estava voltando de um jantar em homenagem ao recém-chegado Dante Paolo, barone-cadetto de Ravello. O futuro barão declarou-se chocado e horrorizado com o acidente e, através de sua intérprete, revelou ter estabelecido uma amizade imediata com Del Rossi, que prometeu lhe dar aulas de golfe.
O sr. Del Rossi deixa a esposa, Ruth, e duas filhas.
Il Progresso Ravello
(traduzido)
Barão em cruzeiro pelo Mediterrâneo
RAVELLO, 13 de agosto - Carlo Vittorio, o festejado barão de Ravello, alegando problemas de saúde, embarca para um longo cruzeiro pelo Mediterrâneo a bordo de seu iate Il Nicolo. "Vou me recuperar nessas ilhas maravilhosas para poder reassumir as minhas responsabilidades", disse ele durante a festa de despedida, no porto de Nápoles.
13
O sol alaranjado do amanhecer refletia-se nas águas verdes; no alto das palmeiras e por toda a folhagem tropical, pássaros chilreavam à procura de alimentos. Tyrell abriu os olhos, estremunhado, incerto e, logo em seguida, surpreso ao perceber que sua cabeça estava encostada no ombro de Cathy, que dormia ao seu lado, os dois rostos a centímetros um do outro. Lentamente, afastou-se dela e se pôs de cócoras, a visão ofuscada pelo brilho do sol; de repente, ouviu o estalido da fogueira e, voltando-se, deparou-se com Poole que, arrastando a perna, atirava no fogo pedaços de madeira. A fumaça escura que subia era a única mancha no céu claro e sem nuvens.
- Para que isto? - perguntou Hawthorne, instintivamente repetindo a pergunta num sussurro, ao ver o Tenente levar o indicador aos lábios. - Para que isto?
- Eu achei que se o piloto do avião tivesse algum problema com as coordenadas, ele poderia ver a fogueira. É uma garantia, só isso.
- Você está conseguindo andar...?
- Eu disse que não era nada. Passei meia hora dentro d’água para deixar a perna de molho; agora está melhor.
- A que horas o avião vai chegar?
- Às seis, se o tempo permitir - respondeu Catherine Neilsen, ainda de olhos fechados. - E vocês dois podem parar de cochichar. - Apoiando-se nos cotovelos, ela arregaçou a manga da roupa de mergulho e consultou o relógio. - Meu Deus, só faltam quinze minutos!
- E daí? - perguntou Poole. - Você tem hora marcada no salão de beleza?
- Quase isto, Jackson. A sua amiga vai ter que se meter no meio dos arbustos e fazer um número de contorcionismo... Aliás, os dois cavalheiros poderiam se vestir? Dois homens de cueca, um deles completamente molhado, diga-se de passagem, e uma mulher sozinha numa ilha deserta, não é esta a imagem que eu quero levar para Patrick.
- Para Patrick? - objetou Hawthorne, imediatamente. - Quem disse que é para lá que nós vamos?
- A gente já falou sobre isso, Tye, e se você não se lembra, a culpa não é sua. Três horas atrás, você era o homem mais exausto que eu já vi. Você seria capaz de dormir uma semana inteira.
- Vocês tem razão, não a respeito do sono, mas eu já me lembrei. Independente das ordens, eu vou falar com o Stevens em Washington e vou saltar em Gorda.
- Negativo - protestou Poole. - Você não vai saltar em Gorda, nós vamos saltar. Você pode ter uma dúzia de contas para acertar, mas eu e a Cathy temos uma que é da maior importância para nós: o Charlie... você se lembra dele?
- Lembro - respondeu Tyrell, olhando para o Tenente. - Então nós três vamos saltar em Gorda.
- Lá vem o avião - gritou Cathy, levantando-se de um pulo. - Tenho que andar rápido.
- Não se preocupe - disse o Tenente. - Eles vão esperar até você terminar de fazer o seu permanente.
- Façam o favor de se vestir! - resmungou a Major, e saiu correndo pela praia em direção aos arbustos.
- Ashkelon - sussurrou a voz de Londres.
- Sempre - respondeu Bajaratt. - Pode ser que nos próximos dias eu não consiga falar com você nos horários e nos telefones combinados. Nós estamos indo para Nova York, e vamos ter muitos compromissos lá.
- Não tem importância. Nós estamos indo maravilhosamente bem. Um dos nossos homens acabou de ser contratado para o destacamento de segurança da Downing Street.
- Isto é realmente maravilhoso.
- E você, Baj?
- Estou indo bem. Os círculos estão se ampliando, mas se tornando mais seletos. Vamos conseguir nos vingar, meu amigo.
- Eu nunca duvidei disso.
- Ligue para Paris e Jerusalém e dê as notícias, mas diga a eles para se manterem em dia com as datas e os telefones combinados, para o caso de alguma emergência.
- Eu falei com Jerusalém hoje de manhã; aquele porra-louca está em êxtase.
- Como assim?
- Ele conheceu um grupo de funcionários graduados do IDF num restaurante em Tel Aviv. Estava todo mundo bêbado e eles adoraram ver o nosso amigo cantando. Agora ele é convidado para todas as festas.
- Mande ele tomar cuidado. Os documentos dele são tão falsos quanto o uniforme que ele usa.
- Não tem ninguém mais protegido do que ele, Baj. Além disso, ele reconheceu dois dos funcionários; dois leitõezinhos do Sharon, o carniceiro.
- Interessante - disse Baj, após um momento de silêncio. - O Sharon poderia ser muito útil.
- É isso que Jerusalém acha.
- Mas não à custa do prêmio, diga isto a ele.
- Ele sabe disso.
- E em Paris, alguma novidade?
- Bem, você sabe que ela está saindo com um cara do primeiro escalão da Câmara dos Deputados, amigo íntimo do Presidente. Ela é uma raposa, aquela menina, muito esperta.
- Seria melhor se ela estivesse saindo com o Presidente.
- Pode ser que isso aconteça.
- Ashkelon - despediu-se Baj.
- Sempre.
Virgin Gorda ainda não despertara na hora em que o hidroavião da Força Aérea dos Estados Unidos, autorizado pelo gabinete do governo, deslizou sobre as águas, três quilômetros ao sul do iate clube. Hawthorne não havia solicitado nenhum tipo de assistência, já que o avião dispunha de vários botes infláveis, e desejava entrar na ilha com a maior segurança possível. Depois que ele desligou o rádio, Catherine Neilsen o chamou, de um assento próximo, num tom de voz alto o suficiente para se fazer ouvir, apesar do barulho dos motores.
- Só um minuto, querido chefe, você não se esqueceu de alguma coisa?
- De quê? Eu trouxe vocês para Gorda, o que você quer mais?
- Roupas, talvez? As nossas ficaram lá na lancha, a centenas de milhas daqui, e acaba de me ocorrer que todo mundo vai notar se a gente sair com essas roupas de homem-aranha. E se você pensa que eu vou andar por aí de calcinha e sutiã, acompanhada de dois gorilas de cuecas brancas, com a barba por fazer, está muito enganado.
- Eu acho que você vai ter que descolar umas roupas para nós, hem, Tye? - disse Poole, sorrindo. - Bem, você gosta de macacões imundos, mas nós somos de outra classe social.
Hawthorne voltou para o rádio e entrou em contato com a mesa telefônica do iate clube.
- O sr. Geoffrey Cooke, por favor - pediu ele.
O toque do telefone de Cooke se repetiu diversas vezes; ninguém atendeu. Finalmente, o funcionário do clube voltou à linha:
- Sinto muito, senhor, ele não está.
- Tente o sr. Ardisonne, Jacques Ardisonne.
- Pois não, senhor. - Mais uma vez, a campainha tocou em vão e, mais uma vez, o rapaz retornou à linha. - Acho que ele também não está.
- Escute, aqui é Tyrell Hawthorne, e eu estou com um problema...
- Capitão Hawthorne? Eu achei que era a sua voz, mas está muito barulho aí.
- Quem está falando?
- É o Beckwith, o recepcionista da noite. O senhor acha que eu estou falando que nem inglês?
- Direto do palácio de Buckingham - respondeu Tye, aliviado por ter-se lembrado do rapaz. - Escute, Beck, eu preciso falar com o Roger, e deixei o telefone da casa dele no meu barco. Será que você podia ir pegar para mim?
- Não é preciso, Capitão. Ele está aqui para substituir um rapaz que se meteu numa briga e foi preso. Vou passar para ele.
- Por onde você andou a noite toda, Tye-Boy? - perguntou Roger, o barman. - Você some e não diz nada para ninguém!
- Onde estão o Cooke e o Ardisonne? - interrompeu Hawthorne.
- Todo mundo tentou falar com você em St. Martin... você sumiu, cara.
- Mas onde é que eles estão?
- Eles estão fora, Tye-Boy. Eles receberam uma ligação de Porto Rico, lá pelas dez e meia, uma coisa muito doida, cara, tão doida que eles foram procurar o gabinete do governo. Aí a polícia levou eles até Sebastian’s Point e eles foram no barco da patrulha costeira até um hidroavião, onde tinha um piloto esperando para levar eles para Porto Rico. Foi isto que eles mandaram dizer para você.
- Só isto?
- Não, Tye, eu guardei o melhor para o fim... eu acho. Eles mandaram dizer que tinham localizado um tal de Grimshaw...
- Beleza! - gritou Hawthorne, tão alto que sua voz ecoou pela fuselagem.
- O que foi? - perguntou Neilsen, surpresa.
- Diga logo, Tye - gritou Poole.
- Pegamos um deles!... Mais alguma coisa, Roge?
- Não, só que aqueles dois trambiqueiros deixaram uma conta enorme sem pagar.
- Você vai receber cinquenta vezes mais, meu amigo!
- A metade disso já estava bom. O resto eu posso roubar.
- Só mais uma coisinha, Roge. Eu estou aqui com dois amigos meus, e a gente está precisando de umas roupas...
Roge foi encontrá-los na praia deserta, a cento e poucos metros das docas do iate clube, e rebocou o pesado bote de borracha até a areia.
- Ainda está muito cedo para os turistas descerem, podem vir comigo que ninguém vai ver vocês. Tem um quarto vazio para vocês se trocarem; as roupas estão lá... Esperem um pouco. O que é que eu faço com o bote? Isto vale dois mil dólares.
- Pode esvaziar e vender - disse Hawthorne. - Só preste atenção e apague bem as siglas. Se você não souber fazer isso, eu posso ensinar. Vamos subir.
As roupas eram perfeitamente adequadas e, no caso da Major Neilsen, mais do que aceitáveis.
- Ei, Cathy, você está uma coisa! - Poole assobiou baixinho na hora em que ela emergiu de dentro do quarto, vestida com um vestido solto, de cores tropicais vibrantes, estampado com penas de pavão estilizadas, e com um corte que realçava as curvas do corpo feminino.
Cathy, com ar de menina vaidosa, deu uma voltinha.
- Nossa, Tenente, eu nunca ouvi você dizer uma coisa dessas... Só uma vez, eu acho, numa certa casa noturna em Miami.
- Miami não conta, você sabe disso, mas com exceção daquele casamento, do qual eu não lembro quase nada, eu nunca vi você de vestido, muito menos um vestido destes. O que você acha, Tye? Está aprovada ou não?
- Você está linda, Catherine - disse Hawthorne, com simplicidade.
- Obrigada, Tyrell. Eu não estou acostumada com tantos elogios. Acho até que estou ficando vermelha, vocês acreditam?
- Eu bem que gostaria de acreditar - replicou Tye, manso, revendo por um instante a imagem de Catherine dormindo ao seu lado... ou era Dominique? Não importava, as duas figuras o comoviam... a última com um doloroso sentimento de perda. Por que ela o havia abandonado outra vez? - Bom, daqui a pouco nós vamos ter notícias do Cooke e do Ardisonne em Porto Rico - disse ele, abruptamente, interrompendo seu devaneio e voltando-se para a janela. - Eu quero encontrar esse Grimshaw, eu mesmo quero quebrar a cara dele e fazer ele me contar como foi que eles descobriram o Marty e o Mickey.
- E o Charlie - acrescentou Poole. - Não se esqueça do Charlie.
- Quem será essa gente que consegue fazer isso tudo? - gritou Tyrell, dando um murro no móvel mais próximo.
- Você disse que eles eram do Oriente Médio - disse Cathy.
- É verdade, eles são, mas isto é muito vago. Você não conhece o vale do Baaka. Eu conheço. Existem dezenas de facções que brigam entre si pela liderança, cada uma achando que é a dona da espada de Alá. Esse grupo é diferente; eles podem ser fanáticos, mas não se importam se é Alá, Jesus Cristo, Maomé ou Moisés. Eles têm fontes por toda parte, a infraestrutura deles é inacreditável... meu Deus, gente infiltrada em Paris e Washington, nós já sabemos, ligações com a Máfia, uma ilha fortificada, satélites japoneses, contas na Suíça, gente em Miami e Palm Beach, e sabe-se lá o que mais! Isso tudo não é o resultado de algum apelo fanático, de religiosos fiéis a um deus ou a um profeta. Não, eles podem ser fanáticos, mas também são mercenários, capitalistas do terrorismo envolvidos numa conexão internacional.
- Eles devem ter uma puta clientela - disse Poole. - Onde será que eles conseguem isso?
- É um caminho de mão dupla, Jackson. Eles vendem mas também compram.
- Compram o quê?
- Desestabilização, na falta de uma palavra melhor. Eles provocam a instabilidade.
- Acho que a pergunta seguinte seria por quê - observou Neilsen, franzindo o cenho. - Eu entendo o fanatismo, mas por que será que pessoas que não têm nada a ver com a causa deles, a Máfia, por exemplo, estariam dispostas a cooperar e, ainda mais, pagar por isto?
- Porque essas pessoas estão interessadas, e isso não tem absolutamente nada a ver com convicções religiosas ou filosóficas. Tem a ver é com poder. E com dinheiro. Onde existe instabilidade, existe um vazio no poder, e pode-se ganhar milhões, bilhões. No pânico, é fácil se infiltrar nos governos, colocar pessoas para serem utilizadas mais adiante, submeter países inteiros ao controle de interesses escusos, que só são descobertos quando a mina de ouro já está esgotada, e aí os responsáveis desaparecem, já com asilo garantido.
- É assim mesmo que acontece?
- Moça, eu já vi isso. Da Grécia a Uganda, do Haiti à Argentina, do Chile ao Panamá, e em muitos países do Leste Europeu... os burocratas deles são tão comunistas quanto os Rockefeller.
- Puta que o pariu! - exclamou o tenente Poole. - Eu nunca pensei nestes termos. Estou morrendo de vergonha, porque só agora estou entendendo você.
- Não precisa ficar assim. Era a minha profissão, Jackson. Saber prever o desdobramento dos fatos é a coisa mais importante nos serviços de inteligência.
- E o que nós vamos fazer agora, Tye? - perguntou Cathy.
- Vamos esperar o Cooke e o Ardisonne entrarem em contato. Se for como eu estou pensando, vamos para Porto Rico com escolta militar.
Ouviu-se uma batida na porta, uma batida desnecessária, pois a voz que se seguiu era a de Roger.
- Sou eu. Preciso falar com você, Tye-Boy.
- Porra, Roge, entre aí, a porta não está trancada!
- Eu não sei se quero entrar - disse o rapaz, já dentro do quarto, cabisbaixo, com um jornal nas mãos. Atravessou o aposento e, aproximando-se de Hawthorne, estendeu o jornal para ele. - É a primeira edição do San Juan Star, chegou há meia hora; o pessoal da recepção está lá sem saber o que fazer. A notícia está na página três, aí onde eu dobrei a folha.
Dois corpos encontrados nas pedras do morro do Castelo
SAN JUAN, sábado - Os corpos de dois homens de meia-idade foram encontrados esta madrugada, presos entre as pedras dessa área costeira, a oeste das palafitas. Os dois foram identificados através de seus passaportes como Geoffrey Alan Cooke, cidadão britânico, e Jacques René Ardisonne, francês. Acredita-se que a morte tenha sido causada por afogamento, após o qual os dois corpos foram trazidos pelo mar até as pedras. As autoridades vão solicitar maiores informações sobre os cidadãos junto aos respectivos países de origem.
Tyrell Hawthorne arremessou o jornal no chão, correu até a janela e, com o punho fechado, estraçalhou a vidraça; sua mão ficou coberta de sangue.
Na cobertura em Manhattan, de frente para a Quinta Avenida e o Central Park, lustres de cristal e velas espalhadas sobre mesas com toalhas adamascadas produziam uma iluminação discreta e de bom gosto. Entre os convidados encontravam-se as pessoas que movimentavam a cidade: políticos, magnatas do mercado imobiliário, banqueiros e proeminentes colunistas da imprensa, além de astros do cinema e da televisão, reconhecíveis à primeira vista, e escritores consagrados, não tão reconhecíveis, todos já publicados na Itália. O anfitrião era um empresário de grande prestígio, cujo comportamento bastante questionável no mercado de títulos passara despercebido, enquanto a maior parte dos seus companheiros fora para a cadeia. O seu Agincourt, porém, estava próximo; suas dívidas seriam executadas e o favorecimento de terceiros, todos presentes, seria descoberto. O centro das atenções era um jovem, filho do barão de Ravello e dono de uma imensa fortuna, que poderia representar uma ajuda considerável na solução dos seus problemas.
A noite se desenrolava tranquilamente; o barone-cadetto e sua tia, a contessa, recebiam os convidados como se fossem a irmã e o filho predileto do czar, na velha São Petersburgo. Para o desagrado de Baj, logo que as apresentações se encerraram e todos se puseram a mastigar os salgadinhos, uma jovem atriz de televisão cumprimentou "Dante Paolo" em italiano e se engajou numa longa conversa com ele. O que perturbou Bajaratt não foi o ciúme, mas sim o pressentimento do perigo. Uma mulher sofisticada, poliglota, poderia detectar com facilidade as falhas na formação "aristocrática" de Nicolo. A sensação de perigo, porém, se esvaiu no momento em que Nico voltou-se para Baj, acompanhado da atriz de cabelos escuros.
- Cara Zia, a minha amiga fala italiano muito bem - disse ele na sua língua nativa.
- Eu imaginei - respondeu Bajaratt, também em italiano, sem muito entusiasmo. - Você foi educada em Roma, querida, ou será que foi na Suíça?
- Nossa, Condessa, não. Depois que eu saí do colégio, os únicos professores que eu tive foram umas figuras esquisitas que me davam aula de teatro, até o dia em que eu consegui o seriado de TV.
- A senhora já viu, tia, eu já vi! Lá na Itália se chama Vendetta delle Selle, todo mundo vê! Ela faz o papel de uma moça que cuida dos irmãos mais novos depois que os bandidos matam os pais deles.
- Essa tradução não é muito boa, Dante. Não é A vingança das selas, é A vingança dos Saddles. "Saddles" quer dizer "selas", mas também é um nome de família. Mas o que é que tem isso? Se todo mundo vê...
- E como você fala tão bem a nossa língua...?
- O meu pai tem um restaurante no Brooklyn. No bairro onde eles moram, a maioria das pessoas de mais de quarenta anos não fala inglês.
- O pai dela pendura na parede provolones inteiros, e queijos de Portofino, e o melhor prichute do sul. Ah, como eu queria conhecer esse tal de Brooklyn!
- É uma pena, mas eu acho que não vai dar tempo, Dante. Amanhã cedo estou voltando para a Costa Oeste - disse a atriz.
- Minha querida - disse Baj em italiano; sua frieza se desvanecera e ela sorriu para a atriz, com um novo calor na voz e uma nova ideia na mente. - Você precisa mesmo voltar para a... a...
- Costa Oeste - completou a jovem. - É a Califórnia. Eu tenho que recomeçar as gravações daqui a quatro dias e, antes disso, preciso de uns dois dias para correr na praia e perder esses quilinhos que ganhei com a comida lá de casa. A irmã mais velha dos Saddles não pode perder a forma.
- Mas se você ficasse mais um diazinho, você ainda teria mais dois para as suas corridas, não é?
- Teria, mas por quê?
- O meu sobrinho está encantado com você...
- Espere aí, minha senhora! - exclamou a atriz em inglês, visivelmente ofendida.
- Não, por favor - disse Bajaratt, também em inglês. - Não me leve a mal. Rispetto, rispetto totale. Eu ficaria o tempo todo com vocês dois, como uma dama de companhia, e nós só iríamos a lugares públicos. É que eu achei que, depois de tantos compromissos de negócios, com pessoas tão mais velhas, talvez um dia de folga, um passeio com uma moça da idade dele, e que fala italiano, ia ser um descanso merecido para o meu sobrinho. Ele deve estar cansado desta tia velha.
- A senhora não é nem um pouco velha, Condessa - disse a jovem, com ar aliviado, novamente em italiano.
- Quer dizer que você vai ficar?
- Hum... acho que sim, por que não? - respondeu ela, olhando para o rosto bonito de Nicolo e abrindo um sorriso.
- Bem, para nós podermos sair de manhã cedo, não seria melhor reservar um quarto para você no nosso hotel por esta noite?
- A senhora não conhece o meu Papa. Quando eu venho a Nova York, eu só durmo em casa, Condessa. O meu tio Ruggio tem um táxi, e ele está me esperando.
- A gente pode levar você até o Brooklyn - insistiu Nicolo, alvoroçado. - Na nossa limusine!
- Aí vocês vão conhecer o restaurante do meu Papa! Os queijos, os salames, os presuntos.
- Por favor, cara Zia!
- O tio Ruggio vai atrás de nós, assim o Papa não vai poder reclamar.
- O seu pai é muito protetor, não é mesmo? - perguntou Bajaratt.
- Nem queira saber! Desde que eu fui morar em Los Angeles, sempre tem alguma parenta solteira dividindo o apartamento comigo. Quando uma vai embora, no máximo vinte minutos depois aparece outra!
- É um bom pai italiano, que mantém a família nos moldes tradicionais.
- Angelo Capelli, pai de Angel Capell... foi o meu empresário que inventou este nome; ele acha que Angelina Capelli parece nome de lanchonete em Nova Jersey. O meu Papa é o mais durão do Brooklyn. Mas se eu contar para ele que estou trazendo um barão de verdade para conhecer ele e a Mama...
- Zia Cabrini - disse Nicolo, com uma ponta de autoridade na voz. - A gente já cumprimentou todo mundo, vamos embora! Eu já estou até sentindo o cheiro do queijo, o gosto do prichute!
- Vou ver o que eu posso fazer, meu sobrinho... mas será que posso dar uma palavrinha a sós com você?... Não é nada de mais, querida, é sobre um senhor com quem nós temos que falar antes de ir embora. Negócios, é claro.
- Não, tudo bem. Vou falar com o crítico da Times que fez uma matéria excelente sobre um papelzinho que eu fiz no Village; foi por causa disso que eu consegui ir para a TV. Mandei uma carta para ele, mas nunca tive a oportunidade de agradecer pessoalmente. Volto daqui a pouquinho. - A jovem atriz, com uma taça de ginger ale na mão, dirigiu-se a um homem obeso, de barba grisalha, olhos de leopardo e lábios de orangotango.
- O que é que foi, Cabi? Eu fiz alguma coisa errada?
- De jeito nenhum, meu bem, você está se divertindo com uma moça da sua idade, o que é ótimo. Mas não se esqueça, você não fala inglês! Tome o maior cuidado para não se trair!
- Cabi, a gente só falou italiano... Você não está zangada porque eu achei ela bonita, não é?
- Você seria um idiota se não achasse, Nicolo. A moral da classe média não é importante nem para mim nem para você, mas alguma coisa me diz que você não devia tratar essa moça como você trataria uma mulher do cais de Portici, doida para ir para a cama com você.
- Não, nunca! Ela pode ser famosa, mas é uma italiana que eu respeito dentro das tradições familiares; ela é uma menina como as minhas irmãs. Ela não faz parte deste mundo para onde você me trouxe.
- Você não está satisfeito com este mundo, Nico?
- E como é que eu poderia não estar? Eu nunca vivi assim... nunca nem sonhei com essa vida.
- Muito bem. Vá lá ficar com a sua bellissima ragazza, que eu já vou me encontrar com vocês. - Baj afastou-se e, com passos elegantes, dirigiu-se ao anfitrião, que estava numa discussão acalorada, até mesmo polêmica, com dois banqueiros. De repente, uma mão tocou o seu ombro, delicada, porém firme. Ela virou a cabeça e deparou-se com o rosto agradável de um senhor de cabelos brancos, que parecia ter saído das páginas de alguma revista inglesa, de uma propaganda exaltando as virtudes de um Rolls-Royce. - Nós já nos conhecemos, meu senhor? - perguntou Bajaratt.
- Estamos nos conhecendo agora, Condessa - respondeu o homem, erguendo a mão esquerda de Baj e beijando-a de leve. - Cheguei atrasado, mas, pelo que eu vejo, está tudo correndo bem.
- É verdade, a festa está muito agradável.
- Ah, esta gente sabe fazer uma festa, acredite em mim. O charme vai invadindo o salão, transbordando como um banho de espuma. O poder e a riqueza juntos são capazes de transformar lagartas em borboletas... lindas borboletas.
- O senhor é escritor?... Romancista, talvez? Eu fui apresentada a vários, esta noite.
- Não, não, eu mal consigo escrever uma carta sem a ajuda da minha secretária. Esses comentários maliciosos são só uma amostra do meu produto.
- E qual é o seu produto, signore?
- Um certo legado aristocrático, pode-se dizer, que eu forneço principalmente para os corpos diplomáticos de vários países, em geral através do Departamento de Estado.
- Que coisa interessante.
- Com certeza - concordou o desconhecido, com um sorriso. - Mas como eu não bebo e não tenho ambições políticas, e além disso tenho uma mansão maravilhosa, que eu adoro mostrar para os outros, o Departamento de Estado considera a minha casa um território neutro, o lugar ideal para receber visitas desses dignitários. Veja bem, ninguém pode oferecer a um visitante um passeio a cavalo, uma partida de tênis, um banho numa piscina com uma cascata, ou um almoço delicioso, e depois se comportar como um grosseirão, na hora das negociações. É claro que tanto um homem quanto uma mulher têm que ter outros atrativos.
- E por que o senhor está me dizendo isso tudo, signore? - perguntou Bajaratt, examinando o suposto aristocrata.
- Porque toda a minha riqueza e todo o meu conhecimento vieram de Havana, muitos anos atrás, minha cara - respondeu o homem, com os olhos fixos nos de Baj. - Isto lhe diz alguma coisa, Condessa?
- E porque deveria dizer? - perguntou Amaya, a expressão completamente neutra, a respiração, porém, suspensa.
- Bem, então eu vou ser rápido, porque a qualquer momento um desses bajuladores pode vir nos interromper. Você tem vários números, mas não tem os códigos telefônicos daqui, e agora você vai precisar. Eu deixei um envelope lacrado para você, no seu hotel; e se o lacre estiver quebrado, me ligue imediatamente para o Plaza e eu mando mudar tudo. Meu nome é Van Nostrand, suíte 9B.
- E se o lacre estiver intacto?
- Nesse caso, de amanhã em diante, use os três números que estão no envelope quando quiser falar comigo. Eu sempre estou em algum dos três, dia e noite. Agora você tem um amigo de todas as horas.
- Um "amigo de todas as horas"? O senhor poderia ser um pouco mais claro, por favor?
- Pare com isto, Baj - sussurrou o personagem do anúncio de Rolls-Royce, sorrindo novamente. - O padrone morreu!
- O que é que o senhor está dizendo? - balbuciou ela.
- Ele morreu... Pelo amor de Deus, faça uma cara de festa.
- Quer dizer que a doença venceu. Ele foi derrotado.
- Não foi a doença. Ele explodiu a fortaleza com tudo dentro, inclusive ele próprio. Ele não teve alternativa.
- Mas por quê?
- Ele foi descoberto; essa possibilidade sempre existiu. Nas últimas instruções que me deu, ele pediu para eu fazer tudo o que pudesse para ajudar você, caso acontecesse alguma coisa com ele. Dentro das minhas possibilidades, eu estou aqui para servi-la... Contessa.
- Mas o que foi que aconteceu? O senhor não me disse nada!
- Agora não. Mais tarde.
- Ele foi um verdadeiro pai para mim...
- Foi, não é mais. Ele morreu. Agora você pode contar comigo e, através de mim, com os meus recursos, que não são poucos. - Van Nostrand jogou a cabeça para trás, como se estivesse rindo de algum comentário da condessa.
- Quem é o senhor?
- Eu já disse, um amigo de todas as horas.
- O senhor é o contato do padrone aqui nos Estados Unidos?
- Dele e de outros, mas principalmente dele. Em qualquer outro sentido, eu era só dele... Havana, eu lhe falei de Havana.
- O que foi que ele disse... a meu respeito?
- Ele tinha a maior admiração por você. E amor também, você foi um grande conforto na vida dele, e por isto ele pediu que eu fizesse tudo o que estivesse ao meu alcance para ajudar você.
- E como o senhor pode me ajudar?
- Usando os meus homens para levar você de um lugar para outro, de uma pessoa para outra, enfim... E eles vão obedecer às suas ordens, desde que elas não entrem em conflito com as minhas... as nossas.
- Nossas?
- Eu sou o líder dos Scorpios.
- Scorpiones! - A voz de Baj mal passava de um sussurro abafado, misturado com o burburinho da festa; ela estava absolutamente sob controle. - O chefe dos Conselhos Superiores me falou de vocês. Ele disse que vocês iam me observar, me testar e, se eu fosse aceita, alguém viria me procurar e eu me tornaria um de vocês.
- Eu não iria tão longe, mas nós podemos lhe dar uma assistência extraordinária...
- É que eu nunca associei os Scorpios ao padrone - disse Bajaratt.
- Foi o padrone quem criou a nossa organização, com a minha ajuda valiosíssima, claro. Quanto ao seu teste, o que você fez em Palm Beach dispensa qualquer outra prova. Foi simplesmente incrível... fantástico!
- E quem são os Scorpios, o senhor pode me dizer?
- Em linhas gerais, sim, sem maiores detalhes. Nós somos vinte e cinco pessoas, nunca mais do que isso. - Van Nostrand riu novamente de um comentário que não fora feito. - Estamos distribuídos em diversas profissões e empregos, escolhidos a dedo para obter o máximo de vantagens; eu tomei essas decisões pensando no benefício dos nossos clientes, que são muito numerosos. O padrone sempre achou que um dia com um lucro inferior a um milhão de dólares era um dia perdido.
- Eu nunca soube desse lado do... do meu pai. Todos os Scorpios são de confiança?
- Eles são movidos pelo medo, é tudo o que eu posso dizer. Eles obedecem ordens em troca de continuarem vivos.
- E senhor sabe porque eu estou aqui, Signor Van Nostrand?
- Não foi preciso que o nosso amigo comum me contasse. Eu tenho ligações muito próximas com alguns funcionários do governo.
- E o que o senhor acha? - perguntou Baj, com o olhar fixo em Van Nostrand.
- Loucura! - sussurrou ele. - Mas eu entendo que o padrone simpatizasse com a ideia.
- E o senhor?
- Vivo ou morto, eu devo tudo a ele. Eu não seria e não sou nada sem o padrone. Eu já disse isso, não?
- Disse, sim. Ele era mesmo tudo o que dizem em Havana, não é?
- Ele era o Marte do Caribe, um homem feroz, jovem, magnífico! Se o Fidel tivesse aproveitado, e não banido, a genialidade dele, Cuba seria hoje uma ilha paradisíaca, de uma riqueza inimaginável.
- E a ilha do padrone, quem foi que descobriu?
- Um tal de Hawthorne, ex-oficial da inteligência naval.
O sangue fugiu do rosto de Bajaratt.
- Ele tem que morrer - disse ela baixinho.
Baj só teve forças para suportar a passagem pelo Brooklyn porque sabia que sua estratégia fora perfeita. Angelo Capelli e Rosa, sua esposa, um belíssimo casal, pois só uma união como essa seria capaz de produzir a jovem Angel Capell, ficaram encantados com a simplicidade do barone-cadetto que, por sua vez, deslumbrou-se com a Casa Capelli, um estabelecimento fiel às velhas tradições, cujos produtos eram sempre os melhores e podiam ser degustados em mesinhas redondas espalhadas pelo salão. Por toda parte viam-se fotografias da filha do casal, a maioria delas exibindo cenas do seriado de televisão; o irmão mais moço de Angel, um rapaz de dezesseis anos, mais baixo que Nicolo, mas quase tão bonito quanto ele, logo fez amizade com o barone-cadetto. Provolone, presunto e salame foram cortados em fatias; um prato frio de massa foi apresentado, juntamente com um molho de tomate preparado pela própria Rosa. O antipasto misto, disposto sobre um conjunto de mesas, foi oferecido a todos, acompanhado de várias garrafas de Chianti Clássico.
- Está vendo, cara Zia, bem que eu disse! - exclamou Dante Paolo em italiano. - Não é muito melhor do que comer na companhia daquela gente emproada?
- É, mas o dono da casa ficou passado, meu sobrinho.
- Por quê? Eu já tinha puxado o saco de todo mundo!
A explosão de gargalhadas foi pontuada pela repreensão bem-humorada de Bajaratt:
- Francamente, Dante... mas eu acho que você tem razão.
- Você não puxão saco de ninguém! - disse Angelo Capelli.
- Papa, por favor, não diga essas coisas...
- Você me desculpe, minha filha. Ele é o barone-cadetto di Ravello, eu sei! Mas foi ele quem falou primeiro.
- Ele tem razão, Angelina... Angel. Fui eu que falei.
- Que amor de menino - comentou Rosa. - Tão simples, tão espontâneo.
- E por que eu não seria, Signora Capelli? - perguntou o exuberante Nicolo. - Eu não pedi para nascer com um título. Mas quando eu nasci, ele estava lá, me esperando...
Mais uma vez, todos caíram na gargalhada, numa total democratização da nobreza. Ouviu-se, então, uma batida na porta trancada do restaurante. Baj disse em inglês:
- Você me perdoem, famiglia Capelli, mas o meu sobrinho queria tanto levar uma lembrança desta noite, que eu pedi para um fotógrafo passar aqui para tirar umas fotos. Mas se isto ofende vocês, eu mando ele embora agora mesmo.
- Nos ofende? - exclamou o pai. - De jeito nenhum, é uma honra que a gente não esperava. Meu filho, vá abrir a porta, rápido!
Depois de reservar uma limusine para a manhã seguinte na recepção do hotel, Bajaratt atravessou o saguão e encaminhou-se para o telefone público. Tirou um pedaço de papel da bolsa, discou para o Plaza e pediu para falar com a suíte 9B.
- Alô? - atendeu uma voz masculina.
- Van Nostrand, sou eu.
- Você não está ligando do seu quarto, está?
- Esta não é pergunta que se faça, mas não, é claro que não estou. Estou no saguão.
- Me dê o número, eu vou descer.
Baj fez o que ele pediu e sete minutos depois o telefone público tocou.
- Isto era necessário? - perguntou ela, atendendo antes que o primeiro toque terminasse.
- Esta não é pergunta que se faça - replicou Van Nostrand, com uma risadinha - mas era necessário, sim. Todo mundo sabe que eu sou confidente do Departamento de Estado, e tem muita gente interessada em saber com quem eu falo. É fácil subornar telefonistas de hotel; o custo é mínimo e as pessoas que pagam sabem ser convincentes.
- Espionagem?
- Em Washington isso é mais comum do que fora do país. O envelope estava intacto?
- Estava, eu examinei com uma lente, numa luz fortíssima.
- Ótimo. Não preciso dizer que, sempre que possível, você deve ligar de telefones públicos. Não é absolutamente necessário, mas é preferível, principalmente quando houver mais de uma ligação.
- O senhor não precisa mesmo me dizer isto - respondeu Bajaratt. - Mas já que o senhor tem contatos tão próximos com funcionários do governo, como o senhor mesmo disse, me diga uma coisa, onde é que está esse ex-oficial da inteligência naval chamado Hawthorne?
- Eu preferia que você deixasse ele comigo. Pelo que eu sei das suas intenções, acho que você sair atrás dele só serviria para retardar o seu progresso... e o dos seus companheiros.
- Ele é esperto demais e o senhor já está velho.
- Parece que você conhece ele...
- Eu conheço a reputação dele. Ele era o melhor em Amsterdã... ele e a mulher.
- Que coisa interessante. Por acaso eu sei que essa informação é extraoficial.
- Eu também tenho as minhas fontes, Signor Van Nostrand.
- Nem o padrone sabia disso, e eu não tive chance de contar para ele. É muito interessante, realmente... Quanto ao fato de eu ser velho, minha cara Baj, eu gostaria de lembrá-la, se você me permite, que eu disponho de recursos mil vezes maiores que os seus.
- O senhor não entendeu...
- Entendi, sim! - interrompeu o confidente do Departamento de Estado, numa fúria súbita. - Você pode dizer que o padrone era o seu único pai verdadeiro, mas ele era a minha vida!
- Como?!
- Você ouviu muito bem - disse Van Nostrand com frieza. - Nós dividimos tudo, tudo, durante trinta anos. Havana, Rio, Buenos Aires... duas vidas numa só, comandada por ele, claro. Até que, há dez anos, a doença dele foi diagnosticada, e ele me mandou para cá, para tratar de outros interesses dele.
- Eu não fazia a menor ideia...
- Então deixe eu lhe fazer uma pergunta, moça. Durante os dois anos que você passou naquela ilha, você viu alguma mulher além da Hectra, a empregada?
- Meu Deus!
- Você está chocada?
- Sexo é uma coisa irrelevante. Mas eu nunca tinha pensado nisso.
- Ninguém nunca pensou. "Marte e Netuno", era como ele chamava nós dois, um comandando tudo, lá do Caribe, o outro trabalhando em silêncio, orientando o chefe, ensinando a civilidade e a sutileza das pessoas educadas... Agora você está entendendo, Baj! Quem vai matar esse Hawthorne sou eu, mais ninguém!
A limusine circulava pela ilha de Manhattan, leste e oeste, norte e sul, das Nações Unidas aos estúdios de televisão próximos ao rio Hudson, do Battery Park ao Museu de História Natural; cada nova visão fascinava o entusiasmado "Dante Paolo", para a alegria da famosa Angel Capell, cuja presença era capaz de abrir portas e conseguir visitas especiais. E, por alguma razão, havia fotógrafos por toda parte. Isto não era nenhuma surpresa para Angel que, acostumada a essas atenções, a toda hora dizia para Nicolo: "Anche i paparazzi devono vivere"; eles também tinham que ganhar a vida. No entanto, o que nem a jovem estrela da televisão nem seu acompanhante notaram foi que não se tirou uma única foto de Amaya Bajaratt. Fora uma condição prévia, negociada pela contessa em troca da divulgação do percurso da limusine.
O almoço no Four Seasons, na 52nd Street, foi coroado por uma sobremesa com que os dois insinuantes donos do restaurante presentearam o jovem casal, um bolo de chocolate com uma mensagem de boas-vindas escrita em letras brancas sobre a cobertura, em homenagem ao belo barone-cadetto e sua linda companheira, tão querida por todos os americanos.
Quando os dois jovens, sem ver o tempo passar, começaram a se servir pela segunda vez de bolo e café, a Condessa os interrompeu.
- Talvez fosse melhor voltarmos para a limusine - disse ela. - Nós ainda temos quatro lugares para visitar, não é, Dante?
- Então eu vou pedir para o garçom embrulhar o bolo para o motorista.
- Você é muito atenciosa, Angelina.
Na hora da saída, Bajaratt diminuiu o passo ao ver, junto à porta, três fotógrafos, que entraram em ação quando o jovem casal passou por eles a trocar sorrisos afáveis.
Perfeito.
The New York Times
(Seção de Negócios)
BROOKLYN, 28 de agosto - Dante Paolo, o barone-cadetto de Ravello, que está representando seu pai, o barão milionário, tem sido visto em companhia de uma das maiores estrelas da televisão americana, Angel Capell, do seriado de TV A Vingança dos Saddles. A foto ao lado mostra a srta. Capell, cujo verdadeiro nome é Angelina Capelli e que fala italiano fluentemente, com sua família e o futuro barão, no Brooklyn. Comenta-se que várias empresas de Nova York e arredores estão à procura de executivos que falem italiano.
The New York Daily News
O nobre italiano e a namorada da América
Mais fotos no interior do jornal. Será um romance à italiana?
The National Inquirer
A namoradinha da América está grávida? Ninguém sabe, mas eles são mais do que "amigos"!
- Isto é um absurdo! - gritou Nicolo. Com os jornais nas mãos, ele andava pelo quarto do hotel. - Eu estou tão constrangido! O que é que eu vou dizer para ela?
- Por enquanto nada, Nico, ela está no avião, indo para a Califórnia. Você não tem o telefone dela? Então, ligue para lá, mais tarde.
- Ela vai achar que eu sou um cafajeste!
- Discordo. Eu acho que ela já tem muita experiência nessas coisas para levar a sério estes artigos.
- Mas de onde saíram todos aqueles fotógrafos? Como é que eles sabiam onde nos encontrar?
- Ela própria lhe disse, meu lindo. Os paparazzi também têm que ganhar a vida; ela compreende isso. O que ela não nos disse, talvez por modéstia, é que ela era tão famosa assim... Mas eu devia ter imaginado, claro.
Baj saiu do elevador e cruzou o saguão do hotel em direção ao telefone público. Com os números gravados na memória, ligou para Van Nostrand.
- O rapaz e a namorada estão em todos os jornais - disse ele. - Nossa Senhora, quanta publicidade... até parece a história de Grace e Rainier! Bem, o público americano também adora essas coisas, são as fantasias deles, claro.
- Então eu consegui o que queria. A cobertura em Washington foi boa?
- Boa? Do Post ao Times, passando por todos esses jornalecos que vendem nos supermercados, eles estão nas primeiras páginas! E eu devo lhe dizer que, como a notícia de que eu estava em Nova York saiu em várias colunas sociais, muita gente da elite aqui do eixo Washington-Nova York me telefonou para saber se eu conhecia o jovem barão; para ser mais exato, se eu conhecia o pai dele.
- E o que foi que o senhor disse?
- Eu desconversei, o que certamente fez todo mundo pensar que eu conheço ele muito bem; nesta cidade ninguém faz comentários sobre as pessoas amigas.
- Bem, então está na hora de irmos para Washington... sem publicidade.
- Você é que sabe.
- O senhor pode nos ajudar?
- Como assim? Eu posso mandar um avião para vocês, claro.
- Não, eu estou falando da sua mansão, a mansão que o senhor ganhou por causa de Havana.
- Nem pensar - respondeu Van Nostrand, seco.
- Por que isto?
- Porque já tenho a minha própria agenda. Dentro de quarenta e oito horas espero estar recebendo na minha casa o ex-comandante Tyrell Hawthorne. Doze horas depois disso, você e o garoto podem tomar conta da casa inteira, se quiserem, porque não vou mais estar lá.
14
Tyrell Hawthorne, vestido com uma roupa leve, uma jaqueta estilo safári, cheia de bolsos, e calças cáqui, compradas no aeroporto, examinava o curativo da sua mão. Catherine Neilsen o fizera na véspera, na ilha de Virgin Gorda. Os dois estavam agora no bar do terraço do Hotel San Juan, em Isla Verde, Porto Rico, à luz de velas, à espera do tenente A. J. Poole, que deveria chegar de uma reunião com a Inteligência Naval dos Estados Unidos, à qual Tyrell se recusara a comparecer. "Se eu não for, não preciso me comprometer com as besteiras deles", dissera ele. "Vamos deixar o Jackson ser o nosso canal. Em último caso, posso dar um tiro nele e dizer que não recebi nenhum recado." A terceira taça de vinho chegou à mesa. A Major ainda estava ocupada com sua xícara de chá gelado.
- Por que será que eu acho que você está acostumado com alguma coisa mais forte? - perguntou Cathy, apontando para o vinho.
- Porque eu estava mesmo, até descobrir que isso não era bom para mim. Está satisfeita?
- Eu não quis me intrometer...
- Porra, cadê ele? Essa maldita reunião era para durar no máximo dez minutos, se ele dissesse para eles o que eu queria!
- Você precisa deles, Tye. Você sabe que não pode agir sozinho.
- Descobri o nome do piloto que trouxe o Cooke e o Ardisonne, um mecânico do aeroporto me deu. Por enquanto, eu não preciso de mais nada. Alfred Simon é o nome desse merdinha!
- Pare com isso, você mesmo disse que ele foi contratado, que está fora do círculo.
- E o pior é que ele nem sabe quem foi que contratou o serviço dele.
- Mas então o que é que adianta você saber o nome dele?
- Bem, é que se eu ainda não tiver esquecido tudo o que aprendi na minha vida, tenho uma chance de penetrar no círculo.
- Sozinho?
- Não sou nenhum idiota, Cathy, e a categoria de mártir nunca me atraiu. Quando for a hora, eu convoco todo o poder de fogo que conseguir, mas até lá é melhor fazer as coisas sozinho, sem dar satisfações a ninguém.
- Como assim?
- Sem ninguém para me dizer o que eu devo ou o que não devo fazer, que se eu fizer assim ou assado vou estar afetando alguma outra coisa que eles não podem me dizer o que é.
- Tenho a impressão de que você está excluindo a mim e ao Jackson.
- Ah, não, Major, você vai ficar até a hora H, e o seu cientista maluco vai ficar até o fim, a não ser que ele desista antes. Eu preciso de uma base, formada por pessoas da minha confiança.
- Obrigada pela parte que me toca e obrigada pelas roupas também. As lojas daqui são ótimas.
- O nosso Henry Stevens tem uma coisa de bom. Ele manda dinheiro como se tivesse os códigos da caixa-forte de Fort Knox, o que talvez até tenha mesmo.
- Eu guardei as notas fiscais.
- Pois faça o favor de queimar tudo, a gente não pode oferecer nenhuma pista para os outros. Você não entende nada disso, não é, major Neilsen? Você seria uma péssima oficial superior. Nunca se deve ter excesso ao prestar contas da ajuda de custo, é antiético.
- Vou tentar me lembrar disto, Comandante.
- Mas como diria o Poole, você está uma coisa.
- O que é isso, obrigada. Foi o Jackson que escolheu esta roupa.
- Você sabe que esse cara é um obsessivo, à beira de um surto. A gente devia trancar ele numa cela, junto com o meu irmão mais novo; não sei qual dos dois tem a mente mais delirante.
- Por falar nisso, o tenente Poole está chegando, e bem delirante. Olhe ali, ele está procurando a nossa mesa.
Andrew Jackson Poole puxou uma cadeira e sentou-se, com as costas retesadas.
- Na próxima reunião com esses caras, quem vai é você, garotão! - cochichou ele. - Os panacas não são capazes nem de articular uma frase.
- Eles fazem isso de propósito, Tenente - disse Hawthorne, sorrindo. - Eles não dizem nada diretamente, para você ter que tirar as suas próprias conclusões e, depois, eles poderem dizer que não foi isso o que disseram. Assim, se alguma coisa der errado, a culpa é sua, e não deles... Você deu o meu recado?
- Ah, com isso eles não criaram nenhum problema. Você pode ir atrás do tal piloto, mas tem um senão, que talvez você ache importante.
- E o que é?
- Tem um cara de Washington, um figurão, ao que parece, que quer falar com você, e com toda a certeza é alguma informação que tem a ver com isso tudo.
- E que informação é essa?
- Bem, este senão tem um outro senão, Tye. Ele passou por cima do seu amigo Stevens, e entrou em contato direto com o pessoal, através do secretário de Defesa, que sabia onde encontrar você. O Stevens não está sabendo de nada.
- Que história é essa?
- Ele só quer falar com você.
- Mas por quê? Quem é esse cara?
Poole meteu a mão no bolso do seu paletó azul-marinho recém-comprado, caríssimo, e tirou um envelope com ar de documento oficial, fechado com uma tarja vermelha.
- Você é quem vai nos dizer, se for capaz - respondeu o Tenente. - E eu devo lhe dizer que o chefe lá da base, um cara de olho arregalado, que me levou até a sala dele e disse que tinha recebido ordens para ficar de bico calado, ele estava completamente encagaçado. Ele me disse que estava esperando você e, quando eu falei que você não ia, ele afirmou que não me entregaria o envelope. Aí eu respondi: "Tudo bem, então ele nunca vai receber o envelope." Aí ele resolveu mandar uma escolta junto comigo, para eles verem eu entregar o envelope para você pessoalmente, e tirarem fotos como prova.
- A mesma palhaçada de sempre - disse Hawthorne.
- É aquele cara que está ali, escondido atrás das flores, à nossa esquerda - disse Cathy. Tye e Jackson voltaram-se; uma cabeça submergiu por trás das orquídeas e uma camisa branca de dragonas correu para a direita, na direção da entrada. - A bola está com você, Comandante.
- Vamos ver se está mesmo - replicou Tyrell, arrancando a tarja e abrindo envelope. Ao terminar de ler o bilhete, ele fechou os olhos. - Era só o que faltava - disse, em voz baixa. Largou o papel sobre a mesa e ficou olhando através do salão em direção ao infinito.
- Posso? - pediu Catherine, pegando o bilhete com cuidado, mas sem abri-lo até entender que não havia qualquer objeção da parte de Hawthorne.
Um erro terrível foi cometido, e deve ser reparado. Refiro-me a Amsterdã, é claro. O que você não sabe é que havia uma ligação entre a sua mulher e o vale do Baaka. Ela foi sacrificada em nome de uma estratégia abortada, mas que pode estar sendo retomada agora. O que eu tenho para lhe dizer deverá ficar só entre nós dois, pois talvez você saiba mais do que pensa e, apesar da iminência de uma crise, só você pode decidir o que fazer com essa informação. A decisão vai ser sua.
Pela minha previsão, eu estarei fora na hora em que você receber este bilhete, mas estarei de volta amanhã às três da tarde. Por favor, me procure no telefone abaixo e deixe que eu tome as providências para que você seja transportado até a minha casa de campo.
Atenciosamente,
N.V.N.
No canto inferior esquerdo, estava escrito o número de um telefone; fora isso, não havia nada que identificasse o bilhete escrito a mão. Abaixo das iniciais, porém, havia um post scriptum.
Sem querer ser melodramático, peço-lhe o favor de destruir este comunicado, depois de anotar o número do meu telefone particular.
- O que será que ele sabe? - disse Hawthorne, com a voz frágil, assustada, perguntando em seguida aquilo que ele e seus dois companheiros queriam saber. - Quem é ele?
- Se o cara lá da base sabe, ele não quer dizer, o que significa que não sabe, porque ele teria dito.
- Como é que você sabe? - perguntou Cathy.
- Eu disse a ele que o meu chefe não estava interessado em comunicados que não tivessem passado pela inteligência naval em Washington. Foi aí que ele veio com essa história do secretário de Defesa.
- Você é muito corajoso, Jackson - disse Tyrell, com sinceridade.
- E também sou um militar bastante disciplinado e fico nervoso quando vejo um civil tentando furar a hierarquia com essa conversa fiada de assunto confidencial. Conheço muito bem esse golpe; e posso contar várias histórias destas, tintim por tintim, desde Pearl Harbor.
- Mas neste caso, Tenente, pode ser que realmente exista alguma coisa. A minha mulher foi assassinada em Amsterdã.
- Eu sei disso, mas por que será que esse sujeito passou cinco anos sem dizer nada, se ele sabe de alguma coisa? E por que será que ele resolveu falar com você logo agora?
- Ele foi bem claro, e você mesmo disse. Ele acredita que o que tem para me contar está relacionado a esta situação toda; ele disse com todas as letras. A minha mulher foi sacrificada.
- Eu lamento muito por isso, mas nós já vimos o que esses selvagens são capazes de fazer, o que eles fizeram, e os contatos que eles têm em Washington, Paris e Londres... e você disse para mim e para a Cathy que isto é só a pontinha do iceberg, não foi?
- Foi, eu disse, sim.
- Isto quer dizer que poderia estar havendo um verdadeiro caos internacional, uma confusão dos demônios, não é isso o que você acha?
- É, e eu tentei deixar isto bem claro.
- Então me diga, quem é você para impedir que esse figurão, seja ele quem for, se comunique diretamente com o presidente dos Estados Unidos e com todas as agências de segurança que ele leva só alguns segundos para conectar?
- Não sei.
- Então pense! Ele até lhe deu a opção de usar ou não a informação que ele acha que você tem. Considerando tudo o que está em jogo, que tipo de raciocínio seria esse? Um comandante aposentado, que não é exatamente benquisto na Marinha, contra a vida do chefe de estado mais poderoso do mundo? Pense, Tye!
- Não consigo - murmurou Hawthorne, as mãos trêmulas, o olhar vacilante. - Não consigo... ela era a minha mulher.
- Nada disso, Comandante, eu não quero saber de choro.
- Pare com isso, Jackson!
- Não paro não, Cathy. Essa história está muito mal contada!
- Eu preciso saber... - Tyrell calou-se por um instante; em seguida, de forma tão súbita quanto se instalara, a onda de emoção desapareceu, e Hawthorne, piscando os olhos, reassumiu a sua atitude controlada. - Amanhã nós vamos descobrir, não é? - disse ele, endireitando as costas, como o tenente Poole. - Até lá, eu vou procurar o tal piloto. Ele mora num bairro da cidade velha.
- Isto tudo deve ser muito difícil para você. - Neilsen cobriu a mão esquerda de Tyrell com a sua. - Você é um cara forte.
- Você não entendeu - disse Hawthorne, com os olhos fixos nos de Catherine. - Até eu falar com a pessoa que escreveu este "comunicado", eu sou o maior covarde que você já conheceu.
- Então vamos atrás do piloto - interrompeu Poole, com firmeza.
- Jackson, por favor...
- Eu sei o que estou fazendo, Cathy. Não tem nada pior do que ficar parado, esperando o tempo passar. Vamos lá, Comandante, vamos ver o que rola em San Juan.
- Não, você fica aqui com a Cathy, eu vou sozinho.
- Negativo, senhor. - Poole levantou-se e se colocou em posição de sentido, à espera de Hawthorne.
- O que foi que você disse? - Tyrell ergueu os olhos para o jovem oficial da Força Aérea, com a expressão tensa, raivosa. - Eu disse que ia sozinho, você não ouviu, não?
- Positivo, senhor - respondeu Poole, numa entonação militar. - Mas eu estou exercendo uma prerrogativa dos oficiais inferiores: quando, a juízo do oficial, o superior precisa de assistência, ele deve prestar essa assistência, desde que o exercício das suas obrigações não seja prejudicado. Está previsto no Manual dos Regulamentos da Força Aérea, artigo 7, seção...
- Cale a boca!
- Não brigue com ele - disse Catherine suavemente, apertando a mão de Hawthorne e soltando-a em seguida. - Ele vai citar todos os artigos do regulamento, desde a primeira página, até convencer você. Ele fez isto comigo tantas vezes que eu já perdi a conta.
- OK, você venceu, Tenente. - Tyrell pôs-se de pé. - Vamos lá. Vamos ver o que rola em San Juan.
- Será que a gente poderia dar uma passada no toalete dos homens?
- Pode ir. Eu espero aqui.
- Eu preferia que você fosse comigo.
- Por quê?
- Pela minha resposta você vai entender por que a reunião com os seus amigos lá foi tão longa. Como eu moro na Flórida, eu conheço bem San Juan. Eu levei um tempo para encontrar as lojas que eu queria, principalmente uma que estivesse disposta a cooperar. O meu acompanhante estava apavorado demais para discutir.
- Eu não estou entendendo nada, do que você está falando?
- Como os nossos revólveres ficaram em Gorda, eu tomei a liberdade de comprar armas para nós... imaginei que você ia querer procurar o piloto, e eu conheço a fama da parte velha da cidade. Comprei dois Walther P.K.: automáticos, oito cartuchos, três pentes cada um, e seis centímetros de cano, ótimos para levar no bolso do casaco.
- Ele também entende de armas? - perguntou Hawthorne em voz baixa, olhando para Catherine.
- Acho que ele nunca matou ninguém num acesso de raiva - respondeu a Major - mas na teoria ele tem o equivalente a um mestrado.
- E em neurocirurgia, qual é a sua habilitação?
- O máximo que eu cheguei foi na lobotomia, mas fazia muita lambança... Olhe, eu não acho muito esperto entregar para você um revólver e três pentes de balas aqui, na frente de todo mundo. Sinceramente, eu sou alto e bonitão demais, as pessoas iam notar.
- Você é um exemplo de modéstia, Tenente.
- Porra, você também não é feio, apesar de já ser meio coroa.
- Cathy, fique na suíte - disse Tyrell.
- Entrem em contato comigo a cada meia hora, eu faço questão.
- Se for possível, Major.
- Ashkelon! - exclamou uma voz do outro lado da linha.
- Sou eu, Jerusalém - respondeu Bajaratt, do hotel Hay-Adams, em Washington. - O que houve?
- O Mossad pegou o nosso homem!
- O quê?
- Numa festa no kibutz Irshun, perto de Tel Aviv. Ele bebeu demais, e foi pego estuprando uma israelense no meio do campo.
- Aquele idiota!
- Puseram ele na cadeia do kibutz, enquanto esperam as instruções de Tel Aviv.
- Você consegue chegar até ele?
- Tem um judeu lá, que a gente pode subornar, com certeza.
- Então faça isto. Mate aquele imbecil. Ele não pode ser interrogado de jeito nenhum.
- Pode deixar. Ashkelon sempre.
- Sempre - repetiu Bajaratt, desligando o telefone.
Nils Van Nostrand entrou no escritório da sua mansão em Fairfax, Virgínia. No recinto gigantesco não se viam mais os equipamentos usuais, que estavam todos em caixotes de papelão, com etiquetas que designavam um depósito de carga em Lisboa, Portugal, de onde finalmente seriam levados, em segredo, para uma outra mansão, às margens do lago Genebra, na Suíça. O resto da casa, os móveis e objetos de decoração, além de todo o terreno, os estábulos, os cavalos e vários outros animais - domésticos e selvagens - haviam sido vendidos sigilosamente para um xeque árabe, que tomaria posse em trinta dias. Era tudo de que Van Nostrand precisava, muito mais, na verdade. Ele foi até a escrivaninha, pegou o telefone vermelho e discou.
- Scorpio Três - atendeu uma voz.
- Aqui fala o Scorpio Um, e eu vou ser breve. Chegou a minha hora. Estou me aposentando.
- Meu Deus, mas isto é um choque! Nós sempre achamos que isto não ia acontecer nunca!
- Essas coisas acontecem. Eu sei a hora de ir embora. Hoje à noite, antes de desaparecer, vou programar o meu telefone para você e vou avisar aos nossos Provedores. Um dia desses eles vão procurar você, porque de agora em diante você vai se reportar a eles. Outra coisa, se uma mulher chamada Baj telefonar, ofereça toda a ajuda que ela precisar. É ordem do padrone.
- Entendido. E você vai nos mandar alguma notícia?
- Sinceramente, eu acho que não. Eu ainda tenho um último compromisso e, depois disso, aposentadoria total. O Scorpio Dois é muito bem preparado, mas ele não tem o seu passado, e não é tão sofisticado quanto você. Não ia dar certo.
- Você está querendo dizer que ele não é dono de um escritório de advocacia em Washington, como eu.
- O que eu estou dizendo é que a partir de amanhã o Scorpio Um vai ser você.
- É uma honra que eu vou levar para o túmulo.
- Espero que isso demore bastante.
Bajaratt saltou do táxi e fez um sinal para que Nicolo se apressasse. O jovem saltou enquanto, pela janela, ela entregava o dinheiro ao motorista.
- Obrigado, senhora, é muita bondade sua. Ei, este não é o garoto que está em todos os jornais? O italiano?
- É sim, signore.
- Esperem até eu contar para a minha mulher, ela é italiana, também. Ela trouxe para casa um jornal do Shoppers World, com um monte de fotos daquela atriz, Angel Capell, com a sua Alteza Real aqui.
- Eles são amigos, só...
- Ei, eu não estou dizendo nada, senhora. Ela é linda, todo mundo adora ela, e esses jornaizinhos são um lixo!
- Ela é uma menina maravilhosa. Obrigada, signore.
- Obrigado à senhora.
- Venha, Dante. - Bajaratt tomou Nicolo pelo braço e entrou com ele no café da moda em Georgetown. O público do almoço era uma mistura de matronas vestidas de seda, mulheres mais jovens, com blusas Armani e calças Calvin Klein, turcos milionários no seu desfile habitual, jovens recém-promovidos refletindo a autoimagem do melhor e mais inteligente e, por fim, alguns membros do Congresso que, impacientes, não paravam de consultar os relógios. - Não se esqueça, Nico - disse Bajaratt, enquanto o maître se desdobrava em mesuras e declarações de boas-vindas. - Ele é o Senador de Michigan que você conheceu em Palm Beach. O nome dele é Nesbitt.
Concluídas as efusivas reapresentações e encomendados três cafés, o senador de Michigan disse:
- Eu nunca tinha vindo aqui, mas um dos meus assessores sabia direitinho onde era. Parece que este lugar é muito conhecido.
- Foi o primeiro que me passou pela cabeça, signore. A nossa anfitriã daquela festa em Palm Beach falou deste restaurante, foi por isto que eu me lembrei dele.
- É verdade, ela falou, sim. - O Senador olhou em volta, com ar divertido. - Vocês receberam o material que eu mandei para o hotel ontem à noite?
- Recebemos, claro, e eu passei várias horas examinando tudo, junto com o Dante Paolo... Vero, Dante? Le carte di ieri sera, ti ricordi?
- Certo, Zia, altro che.
- Ele e o pai, o Barão, estão muito interessados, mas surgiram algumas dúvidas.
- É natural. Esse estudo é um panorama geral das oportunidades de investimento na nossa indústria, não é uma análise profunda de cada caso. Mas se houver interesse, a minha equipe pode levantar maiores informações.
- Bem, sem dúvida isto vai ser necessário antes de qualquer negociação mais séria, mas talvez fosse bom conversarmos um pouco sobre esse... panorama, como o senhor disse.
- Como a senhora quiser. Em que áreas, especificamente?
- Incentivi, signore... incentivos, como vocês dizem. Nós estaríamos falando de centenas de milhões de dólares. Uma coisa é aceitar riscos, e o Barão nunca se intimidou com isso, mas são necessários certos controles para garantir os resultados, não?
- Mais uma vez, em que áreas, especificamente? "Controle" não é uma palavra muito popular na nossa economia.
- Bem, eu suspeito que "bolsões de desemprego" deve ser menos popular ainda. Mas talvez "controle" seja mesmo um pouco forte demais; digamos "acordos mútuos".
- Por exemplo?
- Para ser franca, eu acho que seria bastante problemático se, ao primeiro sinal de saúde financeira, essas organizações trabalhistas começassem a fazer exigências excessivas...
- Esta preocupação já está descartada - interrompeu Nesbitt. - O meu pessoal daqui e de Lansing andou fazendo um trabalho de catequese naquela área, e eu mesmo já tomei as minhas providências. Os sindicatos hoje em dia entendem bem mais de economia do que antes. Muitos trabalhadores já passaram dois, três anos desempregados; eles não vão matar a galinha dos ovos de ouro. Pergunte aos japoneses, que têm fábricas na Pensilvânia, na Carolina do Norte, na Carolina do sul e Deus sabe onde mais.
- Isto é um grande alívio para nós, signore.
- E vocês vão ter tudo por escrito, além de tudo o que se refere à produtividade e ao retorno dos investimentos. O que mais?
- Não é sempre a mesma coisa, seja neste país ou no meu, o relacionamento dos empresários com o governo?
- Os impostos? - perguntou o legislador, com ar de estranheza, exibindo a sua desaprovação. - As alíquotas são mais do que justas, Condessa...
- Não, não, signore! O senhor não entendeu. Como vocês americanos dizem, a morte e os impostos são inevitáveis... Não, eu estou me referindo a uma coisa que também faz parte do mundo dos negócios na Itália, a interferência do estado na comunidade empresarial, e aqui, pelo que me consta, isso chega a proporções assustadoras. Eu sei que a segurança e a integridade têm que ser preservadas, mas nós já ouvimos histórias de arrepiar os cabelos, de atrasos nos trâmites burocráticos que chegaram a custar milhões de dólares: burocracia "local, estadual e federal", é uma coisa que eu mesma já ouvi, que dirá o Barão.
- Segurança e tanta integridade quanto o mercado exigir - replicou o Senador, com um sorriso. - Os poderes do meu estado, apoiados na Constituição, garantem que não vai haver nenhuma interferência injustificada. Nós não podemos fazer de outra maneira e, em respeito ao meus eleitores, vou pôr isso tudo por escrito.
- Excelente, isto é maravilhoso... Só mais uma coisinha, Signore Senatore, um pedido particular, e eu peço que o senhor se sinta absolutamente à vontade para recusar.
- Do que se trata, Condessa?
- Como todo homem importante e experiente, meu irmão, o barão, tem um certo orgulho, até justificável, não só de si mesmo, por tudo o que ele já realizou, mas também da família dele, especialmente do filho, que sacrificou uma adolescência normal e privilegiada para ir ajudar o pai nos negócios.
- Ele é um rapaz encantador. Eu li, como todo mundo, os artigos sobre a amizade dele com aquela atriz tão bonita, Angel Capell.
- Ah, Angelina - disse Nicolo, enlevado, acentuando cada sílaba. - Una bellissima ragazza!
- Basta, mio Dante.
- Eu gostei muito daquela foto dos dois com a família dela, no restaurante do Brooklyn. Acho que nem o publicitário mais bem pago do mundo seria capaz de produzir uma foto daquelas.
- Aquilo foi uma coisa quase acidental... mas com relação ao pedido que eu quero lhe fazer.
- Sim, claro. O orgulho que o Barão tem da família, especialmente deste filho tão simpático. O que eu poderia fazer por vocês?
- Seria possível marcar um encontro particular do barone-cadetto com o Presidente, coisa rápida, só um ou dois minutos, para que eu possa mandar uma fotografia dos dois juntos para o meu irmão? Seria uma felicidade tão grande para o Barão... e é claro que eu contaria a ele como foi que nós conseguimos isso.
- Eu posso tentar, mas, com toda a honestidade, os investimentos estrangeiros não têm sido vistos com muita simpatia ultimamente...
- Ah, eu entendo, signore, eu também leio os jornais! Mas é por isto mesmo que eu queria que fosse um encontro rápido e particular, só eu e o Dante Paolo, e a foto iria só para o Barão de Ravello, nada de jornais ou coisa parecida... Claro, se isto for pedir demais, eu retiro o pedido, e peço desculpas por ter tocado neste assunto.
- Espere um pouco, Condessa - ponderou Nesbitt, pensativo. - Isto vai levar alguns dias, mas eu acho que posso dar um jeito, sim. O outro senador do nosso estado é do partido do Presidente, e ele tem uma dívida comigo, porque eu participei da campanha dele, arriscando os meus próprios votos.
- Não estou entendendo.
- Ele é amigo pessoal do Presidente e ficou muito grato pelo meu apoio; além disso, ele sabe muito bem o que uma injeção de recursos como esta poderia representar para o nosso estado... e o que eu poderia fazer por ele, caso ele se dispusesse a me ajudar... É, Condessa, deixe comigo, eu vou dar um jeito nisto.
- Isso tudo parece tão italiano!
- Maquiavel tinha lá seus méritos, minha cara Condessa.
Hawthorne e Poole caminhavam atentos por uma rua de pedras arredondadas num dos bairros mais pobres da parte antiga de San Juan. Era uma área onde não havia atrações turísticas, a não ser aquelas destinadas aos apetites carnais dos marinheiros, soldados e viciados. Apenas alguns postes estavam com as lâmpadas acesas, algo como um em cada quatro, e, entre os prédios decrépitos, via-se mais sombra do que iluminação. Ao se aproximarem do endereço do piloto - que havia transportado, de Gorda para Porto Rico, Cooke e Ardisonne, agora mortos -, um prédio antigo, de três andares, os dois se surpreenderam com as vozes altas e tempestuosas que vinham de dentro da construção de pedra.
- Esta espelunca é pior do que qualquer casa da Bourbon Street, Comandante. Que diabo será que está acontecendo lá dentro?
- Parece que é uma festa, Tenente, e nós vamos derrubar a porta, já que ninguém nos convidou.
- Você deixa eu fazer isto?
- Isto o quê?
- Derrubar a porta. A minha perna que está boa é perfeita para uma situação como esta.
- Vamos bater, primeiro, para ver o que acontece. - Tyrell bateu. Uma janelinha no centro da porta se abriu e, através dela, apareceu um par de olhos arregalados, cheios de rímel. - Nos disseram para vir aqui - disse Hawthorne, simpático.
- Como vocês se chamam?
- Smith e Jones, foi o que nos mandaram dizer.
- Sumam daqui, gringos! - A janelinha se fechou com violência.
- Acho que você pode meter o pé na porta, Poole.
- Sua arma está na mão, Tye?
- Está tudo em cima, Tenente.
- Então, lá vamos nós, Comandante! - Com um golpe violento do pé esquerdo, Poole estraçalhou ruidosamente a porta, e os dois entraram, por entre os pedaços de madeira lascada, apontando as armas. - Se alguém mexer um dedo, eu atiro! - gritou o Tenente.
A ameaça era desnecessária. Em pânico, alguém caiu sobre o toca-fitas, partindo os fios do alto-falante. O silêncio subsequente foi quebrado por um bando de homens que vestiam as calças, desciam correndo a escada e fugiam pela porta. A falta de recato só aparecia no salão térreo, mal iluminado e embaçado de fumaça, onde a maioria das mulheres, jovens ou não, exibiam os seios, vestidas apenas com calcinhas menores que os biquínis mais sumários. Havia ainda um prolongamento singular desse exibicionismo profissional, representado por um homem já mais velho, de cabelos claros, que parecia alienado do caos. Num sofá cheio de almofadas, num canto da sala, ele continuava a movimentar os quadris, no calor do ato sexual, enquanto sua parceira, uma mulher de cabelos escuros, gritava freneticamente, tentando pedir que ele refreasse seus ímpetos.
- O que... o quê? Fique aí quietinha!
- Talvez fosse melhor você desligar a sua máquina e prestar atenção aqui, Simon - disse Hawthorne, aproximando-se do sofá aveludado e de mau gosto, no canto mais escuro do salão.
- Ei, o que é isto? - rosnou o homem, voltando-se, com o olhar espantado, mas sem nenhum medo diante das armas.
- Mocinhas! - gritou Poole, dirigindo-se não só às mulheres que estavam na sala, mas também às que desciam as escadas correndo. - Eu acho melhor vocês irem embora daqui. Temos um assunto particular para tratar, que não interessa a vocês... Você também, se conseguir se desvencilhar desse cretino.
- ¡Gracias, señor! ¡Muchas gracias!
- E aconselhem as suas amigas a mudar de emprego! - continuou o oficial da Força Aérea, enquanto as prostitutas saíam correndo em direção à rua. - Senão elas podem acabar mortas!
A sala se esvaziou, e o piloto semibêbado se enrolou até a cintura com o pano vermelho-escuro que cobria o sofá.
- Quem são vocês? - perguntou ele. - O que é que vocês querem comigo?
- Bem, para começar, eu quero saber quem é você - disse Tyrell. - Você não é normal, Simon.
- Isto não é da sua conta.
- Este revólver acha que é da minha conta, sim.
- Você acha que eu estou com medo? Pode atirar, faça o favor.
- Não é normal, definitivamente. Você é militar, não é?
- Já fui, há mil anos atrás.
- Eu também já fui militar. Quem foi que derrubou você?
- Por que você quer saber isto?
- Porque eu estou atrás de uma gente muito perigosa. Diga ou então você está morto.
- Está bem, está bem, o que é que importa? Eu era piloto em Vientiane, trabalhava para a Força Aérea do Laos...
- Subsidiária da CIA - interrompeu Hawthorne.
- Isto mesmo, amigo. Quando começaram as negociações lá em Panmunjon, o Senado começou a fazer perguntas, e os espiões tinham que arrumar um jeito de livrar a cara deles. Aí eles venderam os seis aviões para mim por cem mil dólares, que eles mesmos me adiantaram, e depois nunca mais cobraram. Para mim, um piloto de aluguel, menor de idade, que para entrar para o serviço precisei de autorização da minha mãe, porque o meu pai já tinha morrido há muito tempo... gente, eu tinha só dezoito anos! Eu perdi todos os aviões, menos um, eles pararam de funcionar e eu desmontei eles todos para vender as peças, mas estava tudo lá, registrado no meu nome, e numa situação bem esquisita.
- Mas você ainda tinha um dos aviões, que devia valer pelo menos dois milhões. O que foi que você fez, vendeu ele para poder abrir este negocinho aqui, para complementar a sua renda de piloto?
- Porra, eu já tinha roubado bastante para comprar esta casa, há muitos anos - replicou Alfred Simon, com um sorriso de escárnio.
- E o que aconteceu com o jato? Ele devia ser um bom negócio.
- Era sim, e ainda é. Eu fazia voos clandestinos com eles, o pessoal era subornado para autorizar as rotas. Agora ele está aqui, mas eu nunca uso ele. Eu sempre lubrifico ele, para continuar funcionando, e ele fica escondido. Eu só vou usar quando tiver dinheiro para pagar o que eu estou devendo, e aí vou entrar naquela porra daquele Pentágono e mandar para o inferno aqueles filhos da puta que me fizeram passar trinta e quatro anos com a corda no pescoço. Eles dizem que roubei os equipamentos do governo americano, que valiam dez milhões de dólares, isto quer dizer quarenta anos de prisão! Porra, e eu não tenho nem mais dez anos de vida.
- Mas essa corda no seu pescoço bastou para fazer você ir lá buscar aqueles dois homens em Gorda.
- Porra, foi sim, mas não fui eu que empurrei eles para fora do avião na hora do pouso! Eu não tive nada a ver com isso!
- E quem foi, então? - gritou Poole, afastando a arma de Hawthorne e encostando a sua na testa do piloto. - Você está com esses filhos da puta que mataram o Charlie, cara, e se você não contar tudo, eu mato você!
- Ei, pare com isso! - exclamou o piloto, contorcendo-se sob o pano vermelho. - O sujeito me mostrou a identidade dele, e me disse que, se eu o entregasse, nunca mais iam me contratar como piloto.
- E como era o nome do cara?
- Hawthorne. Tyrone Hawthorne, ou coisa parecida.
15
As gotas do orvalho matinal cintilavam nos gramados bem cuidados da propriedade no momento em que Van Nostrand sentou-se diante da escrivaninha e, pela janela do escritório, pôs-se a contemplar o jardim, absorto em seus pensamentos. O tempo era curto e ele deveria passar o dia inteiro ocupado com os preparativos, pois seu desaparecimento tinha que ser completo; iniciaria uma nova vida, apagando todas as marcas do passado - sua "morte" seria incontestável. Mas a vida natural que ainda lhe restava tinha que ser civilizada; ele era capaz de aceitar o anonimato, até mesmo de dar-lhe as boas-vindas, mas não podia aceitar, e não aceitaria, uma vida desprovida de dignidade e conforto.
Muitos anos antes e tantos que não se podia contar, ele e o companheiro de toda a sua vida, il vizioso elegante - Marte e Netuno! - haviam adquirido uma propriedade retirada, protegida, às margens de um lago em Genebra, para passarem juntos a velhice. A escritura foi registrada no nome de um coronel argentino, um solteirão bissexual, que ficou encantado em poder servir ao jovem padrone todo-poderoso e seu confidente. Desde essa época, uma obscura agência de aluguéis em Lausanne passou a receber uma remuneração anual que, por si só, já era suficiente para garantir a sobrevivência da firma sem a necessidade de outros clientes. Havia, porém, algumas cláusulas que, se desrespeitadas, resultariam na dissolução do contrato. Número um: não haveria nenhuma tentativa de se descobrir a identidade dos proprietários; dois: nenhum aluguel seria contratado por menos de dois ou mais de cinco anos; três: todos os pagamentos deveriam ser remetidos para uma conta numerada em Berna, depois de deduzidos vinte por cento, além da comissão paga pelo serviço e pelo silêncio da firma. O contrato em vigor naquele momento havia sido rescindido ao se completarem quatro anos; os meses que faltaram para completar o prazo de cinco anos foram reembolsados aos locatários, a quem foi também concedido um prazo de sessenta dias para desocupar o imóvel. Esses dois meses seriam de grande utilidade para Van Nostrand; era o tempo necessário para que ele fosse esquecido. Sua odisseia começaria com a morte daquele que assassinara o padrone, o ex-comandante Tyrell Hawthorne. Naquela noite.
O dia, porém, era o prelúdio da sua longa viagem. As pessoas a quem ele havia ajudado durante todos os seus anos em Washington agora teriam que aceder aos seus respeitosos, ainda que estranhos, pedidos. Era vital que ninguém soubesse que havia outras pessoas lhe prestando assistência. No entanto, como a capital era um verdadeiro manancial de informações falsas, boatos, notícias divergentes e autopreservação, era preciso haver uma trama comum aos seus apelos, de modo que se, como uma teia de aranha que se desintegra, os fios fossem se rompendo, um a um, sob o peso da verdade, todos os envolvidos tivessem a mesma referência. Van Nostrand podia até ouvir as palavras.
Você também? Meu Deus, depois de tudo o que ele fez pelo nosso país, é o mínimo que nós podíamos fazer. Você não concorda?
É claro que todos concordavam, pois a autopreservação era a primeira lei de sobrevivência em Washington. E as perguntas iam morrer tão logo ele fosse dado por morto.
A trama comum? Misteriosa, incompleta, mas comovente, principalmente vindo de um homem altruísta, patriota, a quem aparentemente não faltava nada - uma imensa fortuna, influência, prestígio e, apesar de tudo, modéstia. Uma criança, talvez; crianças tinham um apelo universal. Que criança seria esta...? Uma menina, óbvio; era só ver como todo mundo babava por aquela atrizinha, Angel não sei das quantas. Circunstâncias? Óbvio também. Sangue do seu sangue, afastada dele durante anos por uma situação trágica. O que estava para acontecer? Casamento? Morte... Morte; o acorde da fatalidade. Van Nostrand estava preparado; as palavras iam surgir, sempre haviam surgido. Marte costumava dizer ao seu Netuno: "Você é tão perspicaz. Parece que lê o pensamento dos outros. Eu gosto disso, preciso disso."
O aristocrata pegou o telefone vermelho e ligou para o número direto, privativo, do secretário de Estado.
- Alô? - atendeu a voz em Washington.
- Bruce, é o Nils. Eu não queria incomodar você, principalmente nesse telefone, mas é que eu não sei muito bem o que fazer.
- Fique à vontade, meu amigo. Isto não é nada, diante de tudo o que você já fez por nós.
- Você tem um ou dois minutos?
- Claro. Para dizer a verdade, acabei de sair de uma reunião chatíssima com o embaixador das Filipinas, e estou dando uma descansada. Em que é que eu posso ajudar?
- É um assunto muito pessoal, Bruce, e, claro, confidencial.
- Esta linha é segura, você sabe - interrompeu o secretário de Estado, com delicadeza.
- É, eu sei. É por isso que eu estou ligando por ela.
- Pode falar, meu amigo.
- Meu Deus, eu estou precisando muito de um amigo.
- Pois eu estou aqui.
- Eu nunca falei sobre isso em público, e com os amigos, falei muito poucas vezes, mas há muitos anos, quando eu morava na Europa, o meu casamento estava indo muito mal. A culpa era dos dois; ela era uma alemã descontrolada e eu era um marido insensível que não queria saber de confrontos. Ela foi procurar uma vida mais emocionante e eu me apaixonei por uma mulher casada, me apaixonei perdidamente, e ela por mim. Na situação dela, ela não podia pedir o divórcio, porque o marido era político e estava concorrendo à eleição por um partido católico e não ia aceitar a separação. Mas nós tivemos um bebê, uma menina que, naturalmente, passou por filha dele. Mas ele soube da verdade e proibiu a mulher de voltar a me ver, e eu nunca cheguei a conhecer a menina.
- Que coisa terrível! Mas ela não podia ter forçado a barra para conseguir o divórcio?
- Ele disse que, se ela fizesse isso, ela e a menina iam morrer antes que ele se desmoralizasse politicamente. Num acidente, claro.
- Que filho da puta!
- Ah, isto é o que ele foi mesmo; o que ele é, aliás.
- É? Você quer que eu arranje um transporte oficial de emergência para trazer - o Secretário fez uma pausa - a mãe e a filha para cá, com imunidade diplomática? É só você dizer, Nils. Eu vejo isso com a CIA e está feito.
- Acho que é tarde demais, Bruce. A minha filha está com vinte e quatro anos e está morrendo.
- Meu Deus!
- O que eu queria, o que eu lhe peço, é que você me arranje um voo para Bruxelas, sem procedimentos de imigração, sem controle de passaporte; esse sujeito tem gente por toda parte, e eu sou um pesadelo para ele. Eu tenho que chegar na Europa sem ninguém saber. Tenho que ver a minha menina antes que ela nos deixe e, depois que ela se for, quero passar os últimos anos da minha vida com a mulher que eu amo, para recuperar o tempo perdido.
- Santo Deus, Nils, que provação terrível você está passando, você vem passando!
- Você pode fazer isto por mim, Bruce?
- Claro que posso. Algum aeroporto afastado de Washington, para ter menos chance de você ser reconhecido. Escolta militar aqui e em Bruxelas; você vai ser o primeiro a embarcar e o último a desembarcar, e vai ficar numa poltrona onde ninguém veja você. Quando quer ir?
- Hoje à noite, se for possível. Claro, eu faço questão de pagar todas as despesas.
- Depois de tudo o que você já fez por nós? Nem pense nisso. Eu ligo de volta daqui a pouco.
Como as palavras fluíam, pensou Van Nostrand, ao desligar o telefone. Para se praticar o puro mal, como Marte sempre dizia, bastava vestir o arcanjo de Satã com as túnicas brancas da bondade e da misericórdia. Claro, Netuno ensinara isso a ele.
A ligação seguinte foi para o diretor da CIA, uma organização que sempre usava os chalés de hóspedes de Van Nostrand como esconderijo de agentes estrangeiros.
- ... Nossa Senhora, Nils, que coisa terrível! Me dê o nome desse calhorda. Eu tenho agentes em toda a Europa que podem acabar com ele. E eu não estou dizendo isto da boca para fora; eu sempre evitei as soluções extremas, mas um sujeito como esse não merece viver nem mais um dia! Meu Deus, a sua própria filha!
- Não, meu amigo, eu não acredito na violência.
- Nem eu, mas a maior violência de todas foi cometida contra você e a mãe da sua filha. Passar anos vivendo sob a ameaça de morte? Uma menina e a mãe?
- Eu tenho outra ideia, e peço que você me escute.
- O que é?
- Eu tenho condições de colocar as duas numa situação segura, mas isso vai custar muito dinheiro. Eu tenho esse dinheiro, sem dúvida, mas se eu fizer a remessa pelos meios normais, a comunidade financeira da Europa vai saber que eu estou indo para lá.
- E você está indo mesmo?
- Quanto tempo eu ainda tenho para passar com a mulher que eu amo, que eu mais amei na minha vida?
- Acho que não estou entendendo.
- Se ele descobrir alguma coisa, a matará. Ele jurou.
- Que filho da puta! Me dê o nome dele!
- As minhas convicções religiosas não permitem.
- Mas, então, o que você vai fazer? O que você quer que eu faça?
- Que você mantenha sigilo absoluto. Todo o meu dinheiro está aqui e, claro, pretendo pagar cada dólar dos impostos que eu devo ao meu país, mas preciso que o restante seja transferido em sigilo, dentro da lei, para qualquer banco da Suíça, você pode escolher qual. Vou lhe dizer uma coisa, vendi a minha casa por vinte milhões de dólares. Os papéis já estão todos assinados, mas tudo só vai ser processado e divulgado publicamente um mês depois que eu for embora.
- Só isso? Você podia ter vendido até pelo dobro. Eu sou empresário, você esqueceu?
- O problema é que não tive tempo para negociar. A minha filha está morrendo e a mulher que eu amo está desesperada, no mais absoluto terror. Você pode me ajudar?
- Me mande uma procuração; pode deixar que ela vai para o arquivo secreto. E me ligue quando você chegar na Europa. Eu resolvo tudo para você.
- Não se esqueça dos impostos...
- Depois de tudo o que você fez por nós? A gente discute isto depois. Tudo de bom, Nils, e tente ser feliz. Deus sabe que você merece.
Como as palavras fluíam. Van Nostrand folheou mais uma vez sua agenda de telefones, que ele sempre guardava trancada numa gaveta de aço da escrivaninha; quando desaparecesse, levaria consigo a agenda. Encontrou o nome e o telefone particular do chefe das Forças Especiais, divisão de operações clandestinas do Exército. O homem era um psicótico e se orgulhava tanto de confundir seus superiores quanto de alcançar seus objetivos, e fazia isso com uma consistência tão alarmante que até a CIA, sua adversária, nutria por ele um respeito rancoroso. Possuía agentes infiltrados não só no KGB, no MI-6 e no Deuxième, mas também no sagrado, impenetrável Mossad. Para isso, servira-se de profissionais selecionados, poliglotas, munidos de documentos extraordinariamente bem falsificados, que não eram detectados nem por controles eletrônicos... e da grande ajuda de Van Nostrand, cosmopolita e bem-informado. Eram amigos, e o general já passara muitos fins de semana agradáveis na propriedade de Fairfax, em companhia de mulheres bem-dotadas e cheias de disposição, enquanto sua esposa pensava que ele estivesse em Bancoc ou Kuala Lumpur.
- Eu nunca ouvi uma história tão sórdida, Nils! Quem esse filho da puta pensa que é? Eu vou lá pessoalmente para acabar com ele! Meu Deus do céu, a sua filha morrendo, e a mãe ameaçada de morte por mais de vinte anos! Ele está liquidado, cara!
- Não é por aí, General, acredite. Quando a nossa filha amada morrer, está tudo acabado. Mas se ele for morto, ele vai se tornar um mártir para os seguidores dele, que são muito devotados, fanáticos, na verdade. Eles iam logo suspeitar da mulher, pois correm boatos de que ela tem ódio e medo do marido. Na mesma hora ela ia sofrer o "acidente" que ele já planejou há tantos anos.
- E já lhe ocorreu que se ele souber que a mulher fugiu com você, e ele vai saber, ele vai atrás de vocês?
- Sinceramente, eu não acredito nisso, meu amigo. Com a morte da menina, a ameaça de desmoralização pública vai desaparecer. A mulher de uma figura política poderosa pode abandonar o marido sem alarde, isso não vira notícia. Agora, esse político viver mais de vinte anos com uma filha que ele pensa que é dele mas não é, isso sim, vira notícia. Ele ia se tornar o maior corno da história. Esta é que é a desmoralização pública.
- OK, não vamos matar o sujeito. E o que eu posso fazer, então?
- Eu preciso de um passaporte para hoje, no final da tarde, um passaporte falso, de nacionalidade não americana.
- Você não está brincando? - perguntou o General, visivelmente satisfeito ao perceber qual era o assunto. - Por que isso?
- Em parte por causa disso que você falou. Ele poderia nos descobrir através dessas redes computadorizadas de informações, mas o motivo principal é que eu quero comprar imóveis. E como eu não sou um desconhecido, não quero ver o meu nome nos jornais.
- E no que você estava pensando?
- Bem, como eu morei muitos anos na Argentina, montando os meus negócios internacionais, e falo castelhano fluentemente, acho que o passaporte poderia ser argentino.
- Nenhum problema. Nós temos os modelos de passaporte de vinte e oito países, e os melhores recursos gráficos do mundo. Você já pensou num nome, numa data de nascimento?
- Já. Eu conheci um sujeito que desapareceu, como aconteceu com tantos outros, naquela época. Coronel Alejandro Schrieber-Cortez.
- Soletre, Nils.
Van Nostrand soletrou o nome e forneceu um lugar e uma data de nascimento guardados na memória - memórias daquela época.
- De que mais você precisa? - perguntou.
- Cor dos olhos e dos cabelos e uma foto de até cinco anos atrás.
- Eu mando entregar em mãos até a hora do almoço... Você entende, eu poderia ter procurado o Bruce, no Departamento de Estado, mas esta realmente não é a especialidade dele...
- Aquele babaca ia tratar desse assunto tão bem quanto ele trata das putas da cidade. E aquele civil da CIA ia pôr tudo a perder com uma foto malfeita!... Você quer vir até aqui para o pessoal fazer uma foto nova? Mudar o cabelo, a cor dos olhos?
- Você me desculpe, meu amigo, mas a gente já discutiu esses procedimentos um monte de vezes. Você até me deu o nome de vários especialistas, extraoficialmente, lembra?
- Se eu me lembro? - O General riu. - Na sua casa? Aquelas visitas estão fora do meu banco de dados.
- Pois é, um deles deve estar chegando aqui. O nome dele é Crowe.
- O Pássaro? As lentes dele fazem milagres... Mande ele trazer o material direto para mim, e deixe que eu cuido de tudo. É o mínimo que eu posso fazer, meu amigo querido.
O último telefonema foi para o secretário de Defesa, um homem muito educado e inteligente que, depois de cinco meses no cargo, estava começando a perceber que estava no lugar errado. Ele havia sido um profissional brilhante no setor privado, tendo chegado à posição de diretor-executivo da terceira maior empresa dos Estados Unidos, mas não era páreo para os generais e almirantes do Pentágono, competitivos e vorazes. Num mundo em que as demonstrações de lucros e perdas não só eram irrelevantes, como praticamente não existiam, e compras maciças de produtos pareciam uma questão de sobrevivência, ele se sentia desnorteado. No ambiente darwiniano da vida empresarial, ele era um mestre do raciocínio calmo, deixando o trabalho braçal para subordinados bem pagos; mas na competição brutal por prestígio no domínio dos serviços militares, ele se sentia perdido, porque isso não tinha nada a ver com lucros. O Pentágono havia aplaudido a sua nomeação.
- Eles querem tudo! - confidenciara o Secretário ao seu amigo Van Nostrand, um funcionário público não pago, herdeiro de grande nome, fortuna e inteligência. - E toda vez que eu proponho aumentar as restrições orçamentárias, eles me vêm com centenas de cenários, metade dos quais eu não entendo, dizendo que as Forças Armadas não vão sobreviver com tantos cortes.
- Você tem que ser mais rigoroso com eles, Secretário. Certamente já teve que enfrentar cortes orçamentários antes...
- É claro que sim - respondera o Secretário naquela noite, tomando conhaque na casa de Van Nostrand. - Mas quando eu dava uma ordem, ficava implícito que alguém poderia perder o emprego se a ordem não fosse cumprida... Agora não, eu não posso demitir esses filhos da puta! Além disso, não gosto de confrontos.
- Então, mande um dos seus assessores civis cuidar disso.
- Isto é uma barbaridade! Hoje eu estou lá, amanhã posso não estar mais, mas o pessoal da burocracia, esses G7 ou G8, ou seja qual for o nível deles, não vão sair nunca. E como é que eles arranjam essas mordomias, essas viagens para o Caribe, à custa dás Forças Armadas? Não precisa responder, eu já sei.
- É uma situação complicada.
- É uma situação insustentável, pelo menos para uma pessoa como eu, e até para alguém como você, eu acho. Vou esperar mais uns três ou quatro meses e vou inventar um motivo pessoal para sair.
- Saúde? Um dos mais famosos beques centrais da história do futebol de Yale, o principal garoto-propaganda do programa de saúde do Presidente? Ninguém vai acreditar, você é sempre o atleta desses comerciais de TV patrocinados pelo governo.
- Um atleta de sessenta anos. - O secretário riu. - A minha mulher odeia Washington. Ela vai adorar ser o motivo da minha renúncia, e eu não tenho nada contra subornar o médico dela.
Para a sorte de Van Nostrand, o Secretário ainda não havia anunciado o seu pedido de demissão. E, naturalmente, estava envolvido no círculo da Menina Sanguinária. Quando Van Nostrand telefonou para ele, dizendo acreditar numa possível conexão entre aquela conspiração assassina e um obscuro ex-oficial da inteligência naval chamado Hawthorne, o Secretário caiu na armadilha do financista. O que Van Nostrand lhe contou era ao mesmo tempo simples e alarmante, e exigia que se contornassem os canais regulares, mais especificamente, que se passasse por cima do capitão Henry Stevens, que certamente tentaria interferir. Esse Hawthorne tinha que ser encontrado, através de uma carta inflamatória... O mundo da terrorista Bajaratt era o mundo das trevas, um inferno internacional, um mundo sobre o qual alguém como Van Nostrand certamente estava informado; e se através dos seus intermediários e informantes ele soubera de alguma coisa, santo Deus, o Secretário lhe daria toda a ajuda de que ele precisasse!
- Alô, Howard?
- Meu Deus, Nils, eu estava doido para ligar para você, mas você tinha dito para eu não fazer isso. Acho que eu não ia aguentar mais muito tempo.
- Mil desculpas, meu amigo, mas é que houve uma sucessão de emergências: primeiro, a nossa crise geopolítica; e uma outra tão pessoal e dolorosa que eu nem quero falar... O Hawthorne recebeu o meu recado?
- Eles revelaram o filme ontem à noite e um avião trouxe os negativos, eu não quis que mandassem por fax, e está confirmado. Tyrell N. Hawthorne recebeu o envelope às 9:12h da noite, no café do Hotel San Juan. Já examinamos as fotos com um espectrógrafo e é ele mesmo.
- Ótimo. Então o ex-comandante vai me telefonar e eu vou convidar ele para vir aqui. Estou rezando para que o resultado desse encontro seja de alguma ajuda para vocês.
- Você não vai me contar nada?
- Não posso, Howard, porque pode ser que alguns detalhes não estejam corretos e, se for assim, eu não quero manchar a reputação de um homem honesto. A única coisa que eu posso dizer é que existe a possibilidade desse Hawthorne pertencer ao mercado Alfa.
- Mercado Alfa? O que é isso?
- Assassinato, meu amigo. São matadores profissionais, muitos deles, porém, por serem veteranos dos serviços secretos, de operações clandestinas, conseguem enganar todo mundo. Mas não existe nenhuma prova concreta contra o Hawthorne.
- Mas, meu Deus! Quer dizer então que ele pode estar trabalhando para a Bajaratt e não para nós?
- É uma teoria baseada em premissas lógicas, mas que pode estar errada, o que seria terrível, ou certa, o que seria trágico. Hoje à noite nós vamos saber. Se tudo acontecer conforme está programado, ele vai chegar entre seis e sete da noite. Logo depois, nós vamos saber a verdade.
- Como?
- Eu vou dizer a ele tudo o que eu sei, e vou ver como ele reage.
- Não vou permitir uma coisa dessas! Vou mandar cercar a sua casa.
- De jeito nenhum. Porque se ele for quem eu estou pensando, vai mandar sondar o terreno; e se alguém vir os seus homens, ele simplesmente não vem.
- Mas ele pode matar você!
- Acho pouco provável. Eu tenho seguranças espalhados por toda parte, e eles são muito atentos.
- Isto não basta!
- Basta sim, meu amigo. Mas se for para você se tranquilizar, mande um carro esperar na estrada de acesso à minha casa a partir das sete horas. Se a minha limusine sair com o Hawthorne, é porque eu estava errado e, nesse caso, peço que você nunca mencione esse assunto com ninguém. Se eu estiver certo, o meu próprio pessoal vai controlar a situação e você vai ser avisado imediatamente. Eu não vou poder fazer isso pessoalmente, o meu tempo está muito apertado. Este vai ser o último ato de patriotismo de um velho que ama esta terra acima de qualquer outra... Estou saindo do país, Howard.
- Eu não estou entendendo...!
- Agora há pouco eu disse que estava enfrentando duas emergências, e eu não consigo encontrar uma maneira melhor de expressar o que está acontecendo. Duas catástrofes ao mesmo tempo e, embora eu seja profundamente religioso, eu me pergunto onde estará o meu Deus.
- Mas o que foi que aconteceu, Nils...?
- Tudo começou há muitos anos, quando eu estava na Europa. O meu casamento estava muito mal... - Van Nostrand repetiu a sua ladainha do amor, do sofrimento, da ilegitimidade e do terror subsequente, com o mesmo efeito dos apelos anteriores. - Eu tenho que ir embora, Howard, e talvez nunca mais volte para cá.
- Nils, que coisa terrível! Eu lamento muitíssimo.
- Nós vamos construir uma vida nova, eu e a mulher que eu amo. Em muitas coisas eu sou um homem de sorte, e eu não peço nada a ninguém. Os meus negócios estão em ordem, a minha passagem já está comprada.
- É uma grande perda para todos nós.
- Mas para mim é um ganho, meu amigo, é o maior prêmio que eu poderia receber depois de tantos anos de modestas realizações. Adeus, meu caro Howard.
Quando Van Nostrand desligou o telefone, a imagem tristonha e autocomiserativa do secretário de Defesa teria se apagado imediatamente da sua memória, se não fosse pela ideia um tanto incômoda de que Howard Davenport era a única pessoa para quem ele mencionara o nome de Hawthorne. Essa questão, porém, seria resolvida mais tarde. No momento, Van Nostrand estava mais interessado na sua pièce du combat, a morte de Tyrell Hawthorne. Ela seria rápida e brutal, mas de uma precisão cirúrgica, produzindo o máximo de dor. As primeiras balas atingiriam os órgãos mais sensíveis. Em seguida, o tiro de uma pistola na cara e, finalmente, a lâmina de um facão no olho esquerdo, l’occhio sinistro. E ele presenciaria tudo, vingando a morte de seu amante, o padrone. E, depois disso tudo, de algum lugar longínquo, ouviria as vozes discretas a louvá-lo nos corredores do poder... "Um verdadeiro patriota." "Um grande americano, embora não tenha nascido aqui." "Que vida ele deve ter levado! Com todos aqueles problemas!" "Ele nunca teria permitido uma coisa daquelas se aquele canalha do Hawthorne não tivesse feito ameaças tão terríveis!" "Fique quieto! É melhor não falar neste assunto!"
Marte sem dúvida teria gritado:
- Eco! Perchè? A gente contrata alguém da família para matar. Para que fazer deste jeito?
- La mente di un serpente - teria sido fatalmente a resposta de Netuno. - A esperteza de uma cobra, padrone. Depois de atacar, eu tenho que sumir no meio do mato, para nunca mais ser encontrado. Mas deve ter gente que sabe que a cobra está ali, mesmo que ela esteja com o disfarce de um santo. Além disso, o pessoal da família fala demais, negocia, perde tempo. A melhor coisa a fazer é recorrer a homens poderosos, acima de qualquer suspeita, porque quando a minha "morte" chegar, eles vão poder se lamentar juntos, comentando a perda de um santo. Finito! Basta!
Depois da morte de Tyrell Hawthorne.
- O nome dele era Hawthorne? - perguntou Tyrell, atônito com a revelação do piloto bêbado, proprietário de um bordel na velha San Juan.
- Eu estou dizendo o que ele me disse - respondeu Alfred Simon. Diante das duas armas apontadas para a sua cabeça, ele aos poucos ia ficando mais sóbrio. - E eu li, com a luz do painel de controle. O nome que estava na carteira de identidade era Hawthorne.
- Quem é o seu contato?
- Que contato...?
- Quem foi que contratou você?
- Como é que eu vou saber?
- Você tem que receber algum recado, alguma instrução.
- Uma das meninas. Alguém vem aqui para se divertir um pouco e deixa um recado com ela, junto com alguns dólares a mais. Eu só recebo o recado mais ou menos uma hora depois. É sempre assim, e eu nem fico com nada dessa gorjeta; aliás, eu só sei disso porque trato as meninas muito bem e elas me contam tudo.
- Não estou entendendo.
- Você acha que numa noite movimentada alguma dessas putas consegue se lembrar quem foi o último, ou o penúltimo, ou o antepenúltimo?
- Este cara é mesmo barra-pesada, Comandante - disse Poole.
- "Comandante"? - O piloto aprumou-se no sofá. - Você é quente?
- Bem mais que você... Quem foi a moça que lhe deu o recado de Gorda?
- Aquela que estava comigo; ela é demais, tem só dezessete aninhos...
- Seu canalha! - rosnou Poole, dando um murro na cara do proxeneta, que caiu novamente sobre as almofadas, com a boca sangrando. - A minha irmã já teve essa idade, e eu quase matei de porrada o filho da puta que tentou encostar a mão nela.
- Calma, Tenente! O nosso negócio aqui é informação, e não catequização.
- Eu fico puto com esse tipo de gente.
- Eu entendo, mas a gente não está aqui para isso... Você perguntou se eu era comandante, Simon, e a minha resposta é "sim". E também faço parte do serviço de inteligência de Washington. A sua pergunta está respondida?
- Vocês podem tirar esses caras da minha cola?
- E você pode responder às nossas perguntas?
- Está bem, está bem. A maioria dos meus serviços clandestinos é feita à noite, entre sete e oito horas, e sempre da mesma pista. É sempre o mesmo controlador que me dá o sinal verde para a decolagem; sempre, não muda nunca.
- Como é o nome dele?
- Eles nunca dão nenhum nome, mas ele é louro, fala alto e está sempre tossindo, mas é sempre ele que fica encarregado do meu equipamento. Antigamente eu achava que era só coincidência, mas depois comecei a ver que isso não era por acaso.
- Eu quero falar com a moça que recebeu o recado.
- Cara, você está maluco? Vocês enxotaram elas daqui. Elas só vão voltar depois que a porta estiver consertada e tudo voltar ao normal.
- E onde é que ela mora?
- Onde ela mora? No mesmo lugar que todas as outras, aqui mesmo, com empregadas para arrumar o quarto delas, lavar a roupa e cozinhar. Deixe eu lhe explicar uma coisa, chefe. Eu também já fui oficial, e eu sei muito bem manter o meu pessoal em forma.
- Quer dizer que enquanto a porta estiver quebrada...
- Elas não voltam. Você voltaria?
- Ei, Jackson...
- Deixe comigo - disse o Tenente. - Nesta casa tem alguma ferramenta, cafetão?
- Lá embaixo, no porão.
- Vou lá ver. - Poole desapareceu pela porta do subsolo.
- Qual é o horário dos controladores de voo que trabalham nesse turno?
- Eles entram às seis e saem à uma; você tem uma hora e vinte para encontrar o cara, quer dizer, menos de uma hora, porque daqui ao aeroporto leva pelo menos vinte, vinte e cinco minutos, se o seu carro for bom.
- Nós não estamos de carro.
- Eu estou alugando o meu. Mil dólares por hora.
- Me dê a chave - disse Hawthorne - senão eu faço um rombo na sua cabeça.
- Pois não - replicou o piloto, pegando um molho de chaves na mesinha lateral. - Está aqui atrás, é um Cadillac branco conversível.
- Tenente! - gritou Hawthorne, arrancando da parede o único telefone da sala e recuando até a porta do porão, ainda com a arma na mão. - Vamos nessa!
- Porra, cara. Eu encontrei duas portas velhas lá embaixo, e eu podia...
- Deixe elas aí e suba. Nós vamos até o aeroporto e não temos muito tempo para chegar lá.
- Estou às suas ordens, Comandante. - Poole subiu a escada correndo. - E ele? - perguntou, olhando para Simon.
- Ué, eu vou ficar aqui - respondeu o piloto. - Aonde vocês acham que eu vou?
O controlador de voo não foi encontrado em nenhum lugar da torre, mas os demais funcionários logo o identificaram pela descrição do seu tom de voz. Chamava-se Cornwall e, nos últimos quarenta e cinco minutos, seus colegas estavam se arriscando em executar as suas funções. Sua ausência era tão perigosa que um controlador que estava de licença médica fora chamado para substituí-lo.
O desaparecido por fim foi encontrado na beira do mar, morto com um tiro na testa. A polícia do aeroporto foi convocada e deu início aos interrogatórios, que se estenderam por quase três horas. As respostas de Tyrell foram as de um profissional, uma mistura de ignorância, ingenuidade e pesar pelo amigo de um amigo que ele nunca conhecera.
Finalmente liberados, Hawthorne e Poole correram de volta ao bordel na velha San Juan.
- Agora eu vou consertar a porta - disse o Tenente, confuso e raivoso, descendo para o porão, enquanto Hawthorne, exausto, desabava numa poltrona. O dono do estabelecimento estava desmaiado no sofá. Instantes depois, Hawthorne dormiu.
Na hora em que a luz do sol invadiu o salão, Hawthorne e o piloto sentaram-se e esfregaram os olhos, tentando se adaptar à realidade diurna. Do outro lado do aposento, deitado numa espreguiçadeira verde, Poole ressonava, num som suave e cativante, que de certo modo refletia a sua delicadeza natural. No lugar da porta despedaçada, via-se agora uma substituta perfeitamente aceitável; idêntica à primeira, inclusive com a janelinha no painel superior.
- Quem é o seu amigo? - perguntou Alfred Simon, fazendo caretas de dor de cabeça.
- É o meu chargé d’affaires militar - respondeu Hawthorne, levantando-se, ainda meio tonto. - Não tente nada contra mim, porque ele é capaz de estraçalhar você com um chute.
- Do jeito que eu estou, até a Minnie Mouse podia fazer isso.
- Eu imagino que você não tenha nenhum voo hoje.
- Ah, não, eu respeito demais os reflexos para chegar perto de um avião.
- É bom saber. Você não tem respeito por muitas outras coisas.
- Eu não quero saber de sermão, Comandante, eu só quero saber se você vai me ajudar.
- E por que eu ajudaria? O homem estava morto.
- O quê?
- Isto mesmo que você ouviu. O controlador de voo foi morto com uma bala no meio da testa.
- Nossa Senhora!
- Você pode ter avisado alguém que a gente estava atrás dele.
- Eu? Como? Você arrebentou o telefone!
- Mas deve ter outros...
- Tem mais um no meu quarto, no terceiro andar, e se você acha que eu ia conseguir subir até lá ontem à noite, então eu estou na profissão errada. Eu devia ser é ator. Depois, para que é que eu ia fazer isso? Eu quero que vocês me ajudem.
- É, tem uma certa lógica o que você está dizendo... Então alguém deve ter nos seguido até aqui. Essa pessoa sabia que a gente tinha encontrado você, mas deduziu que não era só com você que a gente queria falar.
- Você sabe o que você está dizendo, não é? - Os olhos frios de Simon estavam cravados em Hawthorne. - Que como eu faço parte da cadeia, eu posso ser o próximo... a levar uma bala na testa!
- É, me passou pela cabeça...
- Cara, pelo amor de Deus, faça alguma coisa!
- O que você me sugere?... Aliás, a partir das três da tarde vou estar ocupado com o outro assunto. Vou ter que ir embora.
- E vai me deixar nessa confusão da porra?
- Vamos fazer o seguinte - disse Tyrell, olhando para o relógio. - São seis e quinze, então nós temos quase nove horas para chegar a alguma conclusão.
- Você só precisa de nove minutos para me arranjar uma proteção.
- Não é tão fácil assim. Usar o dinheiro dos contribuintes para proteger um trapaceiro, um piloto americano que por acaso também é dono de um bordel? Pense só nas explicações que eu vou ter que dar.
- E você pense na minha vida!
- Ontem você me desafiou a puxar o gatilho...
- Porra, eu estava bêbado! Você é tão puro que nunca acontece de você encher a cara e achar que não gosta muito da vida como ela é?
- Deixe isso para lá. A gente ainda tem nove horas, então vamos começar a pensar. E quanto melhor você pensar, mais fácil vai ser eu conseguir proteção para você... Como foi que recrutaram você pela primeira vez?
- Porra, isso faz anos, eu mal consigo lembrar.
- Pois trate de lembrar já!
- Um cara alto, como você, mas de cabelo grisalho, todo elegante, boa-pinta... sabe, como os caras desses anúncios de roupa de homem bacana. Ele veio falar comigo e disse que toda essa merda em que eu estava metido podia sumir dos arquivos se eu fizesse o que ele mandasse.
- E você concordou?
- Claro que concordei, por que não? Comecei a transportar charutos cubanos, você acredita nisso, charutos cubanos. Eles vinham em caixotes impermeáveis, e eu despejava eles ali na zona de pesca, a quarenta milhas das ilhas Keys, na Flórida.
- Drogas - disse Hawthorne, sem nenhuma pergunta.
- É claro que não era charuto nenhum.
- E você continuou a fazer isso?
- Deixe eu lhe dizer uma coisa, Comandante. Eu tenho um casal de filhos em Milwaukee, eu nem conheço eles, mas são meus filhos. Eu não uso nenhuma droga, e quando entendi o que era aquilo, avisei a eles que eu estava fora. Aí o bonitão lá, que parecia que estava sempre desfilando, disse que o governo ia me pegar e que eu ia me dar mal. Ou eu fazia o que ele estava mandando ou eu ia para a cadeia. Eu não ia mais poder mandar dinheiro para Milwaukee. Para os meus filhos que eu nunca vi.
- Você é um cara muito complicado, seu piloto.
- Eu que o diga. Preciso beber alguma coisa.
- O seu bar não é muito longe. Sirva-se. E depois continue a pensar.
- Bem - disse o proxeneta, cambaleando até o bar. - Tem um filho da puta que sempre vem aqui, tipo uma, duas, até três vezes por ano, um sujeito todo nervosinho, de terno e gravata; ele chega e diz que quer o melhor boquete...
- Boquete?
- Hum... sexo oral, é isso.
- E o que mais?
- Aí ele curte um bocado, mas nem encosta na moça, sabe como é?
- Eu não sou exatamente um especialista nesse assunto.
- Ele nunca tira a roupa.
- E daí?
- Daí que isso não é uma coisa muito natural. E eu, claro, fiquei curioso e mandei uma das meninas darem um teco nele...
- Teco?
- É, um pozinho na bebida dele para ele apagar.
- Obrigado.
- E adivinhe o que a gente descobriu? Na carteira dele tinha um monte de documentos, carteira de identidade, cartões de crédito, carteirinha de vários clubes, etc. Ele é advogado, um superadvogado, dono de uma dessas firmas milionárias de Washington.
- E qual foi a sua conclusão?
- Nenhuma, mas isso não é normal, você entende?
- Não sei.
- Um cara como esse, que pode ir a qualquer lugar da cidade, por que é que ele vem para este fim de mundo? Para um lugar como este?
- Exatamente porque aqui é um "fim de mundo". Anonimato, é compreensível.
- Pode ser, mas também pode não ser isso. As meninas dizem que ele vive fazendo perguntas, tipo quem são os meus clientes, se tem algum que parece árabe ou africano de pele clara... Porra, o que é que isso tem a ver com sexo?
- Você acha que ele é um intermediário?
- Como assim?
- Um cara que passa informações, mas às vezes nem sabe de quem para quem.
- Agora você me pegou.
- Você seria capaz de identificar esse sujeito? Caso esses documentos sejam falsos.
- Claro. Um cara assim chama bastante atenção num lugar como este. - O piloto pegou uma garrafa de uísque canadense, encheu o copo até a metade e bebeu tudo em alguns goles. - Similis similibus curantor - entoou, fechando os olhos e soltando um arroto.
- O que foi que você disse?
- É uma antiga prece medieval. É isso que eu estou fazendo, bebendo para curar a ressaca.
- Bem, nós temos dois "serviços" para terminar: o homem que recrutou você é um advogado de Washington que não tira a roupa num bordel. Como eles se chamam?
- O que me recrutou se chamava sr. Netuno, mas faz anos que eu não sei dele. O espião da justiça se chama Ingersol, David Ingersol, mas, como eu disse, pode ser que ele seja só uma figura excêntrica.
- Nós vamos verificar... Antes de Gorda, qual foi o seu último serviço?
- Bem, o meu ganha-pão, além desta casa, são os turistas...
- Não, o último serviço secreto - interrompeu Tyrell.
- Eu piloto um hidroavião e, mais ou menos uma vez por semana, às vezes duas, eu vou até uma ilhazinha que mal aparece no mapa.
- Com uma enseada, um cais, e uma casa escondida no morro.
- Isto mesmo! Como é que você sabe?
- Ela não existe mais.
- A ilha?
- Não, a casa. O que é que você levava para lá? Ou quem?
- Mercadorias, principalmente. Quilos de frutas, legumes, carne fresca; o pessoal que mora lá não quer saber dessas porcarias congeladas. E visitas, que passavam o dia lá e eu trazia de volta no fim da tarde; eles nunca ficavam para dormir. Menos uma pessoa.
- Como assim? Quem era?
- Eu nunca soube o nome de ninguém. Mas era uma mulher.
- Mulher?
- E que mulher, companheiro. Francesa, espanhola, italiana, eu não sei, mas ela tinha trinta e poucos anos e umas pernas lindas.
- Bajaratt! - sussurrou Hawthorne para si mesmo.
- O quê?
- Nada. Quando foi a última vez que você viu essa mulher?
- Há uns dois dias. Eu peguei ela em St. Barts e levei de volta para a ilha.
Tyrell engasgou, a respiração suspensa, os pulmões bloqueados, sem nenhuma passagem para o ar. Loucura!... Dominique?
16
- Você está mentindo! - Hawthorne agarrou o piloto pela camisa, fazendo com que ele deixasse cairo copo, que se espatifou no chão. - Quem é você? Primeiro você usa o meu nome para o assassino que estava na porra do seu avião, agora está dizendo que uma amiga minha, uma amiga íntima, é a psicopata que metade do mundo está procurando. Você é um cretino mentiroso! Quem foi que mandou você fazer isto?
- Que gritaria é esta? - Jackson Poole, despertado pelo barulho, sentou-se na espreguiçadeira, atordoado.
- Me largue, seu maluco! - O piloto tentava se apoiar no bar para recuperar o equilíbrio. - Você está de sapato; eu não, e o chão está coberto de caco de vidro!
- E eu vou esfregar a sua cara no vidro! Quem foi que mandou você fazer isto?
- Porra, do que é que você está falando?
- A mesma história de Amsterdã! O que é que você sabe sobre essa história?
- Eu nunca fui a Amsterdã!... Pelo amor de Deus, me largue!
- A mulher de St. Barts! Era loura ou morena?
- Morena. Já disse, italiana ou espanhola...
- Alta ou baixa?
- A minha altura, mais ou menos. Eu tenho um e setenta e cinco.
- E a pele?
- Bronzeada...
- Com que roupa ela estava?
- Não sei...
- Pense!
- Branca, a roupa era branca... não me lembro se era vestido ou calça comprida. Era uma roupa tipo de executiva.
- Seu filho da puta, você está mentindo! - gritou Tyrell, imprensando o homem contra o bar.
- Mas por que é que eu ia fazer isso?
- Ele não está mentindo, Tye - disse Poole. - Ele está sem forças para isso, e sem estômago; ele está um lixo.
- Ai, meu Deus! - Hawthorne soltou o piloto e afastou-se dos dois, murmurando: - Ai, meu Deus, meu Deus! - Lentamente, dirigiu-se à janela que dava para a rua imunda, com o olhar vidrado, a garganta apertada pela vontade de chorar. - ... Saba, Paris, Barts... tudo mentira. Amsterdã, Amsterdã!
- Amsterdã? - perguntou ingenuamente o piloto, afastando-se do bar com cuidado, evitando pisar com os pés descalços nos cacos de vidro.
- Cale a boca - disse Jackson em voz baixa, observando a figura trêmula de Tyrell Hawthorne junto à janela. - O cara está sofrendo, seu porco voador.
- E que culpa eu tenho disso? O que foi que eu fiz?
- Acho que você disse alguma coisa que ele não queria ouvir.
- Mas eu só disse a verdade.
De repente, num acesso de fúria, Hawthorne voltou-se, agora com o olhar aceso, concentrado, cheio de ódio.
- O telefone! - gritou ele. - Cadê o outro telefone?
- No terceiro andar, mas a porta está fechada. A chave está por aqui, em cima da... - O piloto não pôde prosseguir. Tyrell já estava subindo, saltando de três em três degraus, seus passos na escada ecoando pelo velho bordel. - Este seu comandante é um louco - disse o dono da casa. - Que história é essa que eu usei o nome dele? O cara do avião foi claro: "O meu nome é Hawthorne." Ele deve ter repetido isso umas três ou quatro vezes.
- Ele estava mentindo. Esse aqui é que é o Hawthorne.
- Puta que o pariu!
No terceiro andar, Hawthorne atirou-se várias vezes contra a porta dos aposentos do piloto; na quinta tentativa, a tranca se soltou. Ele entrou correndo, momentaneamente surpreso com o asseio do ambiente, composto por quartos interligados. Esperava encontrar sujeira e desordem; ao invés disso, deparou-se com uma suíte digna de uma revista de decoração; a mobília era sóbria, uma mistura de couro legítimo e madeira escura, as paredes forradas de lambris de carvalho claro, decoradas com reproduções caras de quadros impressionistas - luzes difusas, cores vivas, jardins suaves. Aquele quarto era a negação do dono.
Onde estaria o telefone? Tyrell correu até o quarto de dormir; por toda a parte, sobre a cômoda, a escrivaninha e as mesinhas de cabeceira, viam-se fotos emolduradas de duas crianças, em épocas diferentes. Ali estava o telefone - na mesinha à direita da cama. Ele tirou um pedaço de papel do bolso da camisa - um número em Paris. Parou por um momento ao ver outra fotografia. Era o retrato de dois jovens, um rapaz e uma moça, os dois muito bonitos e extraordinariamente parecidos um com o outro. "Meu-Deus, eles são gêmeos!" pensou Hawthorne. Estavam vestidos com roupas de estudante, a menina de saia escocesa de pregas e blusa branca e o menino de paletó escuro e gravata. Os dois estavam de pé, sorrindo, ao lado de uma placa onde se lia:
Universidade de Wisconsin.
Setor de Admissões.
Tyrell viu alguma coisa escrita na parte inferior da foto. As letras eram miúdas porém precisas, e a data era de alguns anos antes.
Eles continuam inseparáveis, Al, e, apesar das brigas, um toma conta do outro. Você ficaria orgulhoso, assim como eles ficam do pai deles, que morreu a serviço da pátria. O Herb e eu mandamos um grande abraço e agradecemos a sua ajuda.
Um cara muito, muito complicado, o piloto.
Não havia tempo a perder!
Hawthorne pegou o telefone, esperou a linha, e digitou o número de Paris, lendo atentamente o pedaço de papel.
- La maison de Couvier - atendeu a voz feminina, a quase cinco mil quilômetros de distância.
- Pauline?
- Ah, monsieur, é o senhor, n’est-ce pas? Saba?
- Esta é uma das coisas que eu tenho que perguntar para ela. Por que é que ela não estava lá?
- Ah, eu perguntei para ela, monsieur, e ela disse que não tinha falado nada de Saba, o senhor é que deve ter imaginado. O tio dela já se mudou para outra ilha há mais de um ano. Os vizinhos antigos começaram a ficar curiosos demais, intrometidos, e ela achou que não precisava perder tempo explicando isso tudo, já que ela estava voltando direto para Paris e sabia onde encontrar o senhor quando voltasse para as ilhas.
- Esta explicação é muito conveniente, Pauline.
- Monsieur, não me diga que o senhor está com ciúmes. Não, não pode ser, não existe nenhuma razão para isso! O senhor mora no coração dela, ninguém sabe disso melhor do que eu.
- Eu quero falar com ela. Agora!
- O senhor sabe que ela não está.
- Qual é o nome do hotel dela?
- Ela não está em nenhum hotel. Madame e monsieur estão no Mediterrâneo, num iate monegasco.
- Os iates têm telefone. Qual é o número?
- Eu não sei, acredite. Maintenant, ela vai me ligar daqui a uma hora, mais ou menos, porque na semana que vem nós vamos dar um jantar para uns suíços de Zurique. Os jantares deles são bem diferentes dos nossos; são bem alemães, o senhor entende.
- Eu tenho que falar com ela!
- Mas o senhor vai falar. Deixe um número comigo que eu dou o recado. Ou então me ligue mais tarde para eu lhe dar o número de onde ela está. Vai dar tudo certo.
- Ligo mais tarde.
Um iate no Mediterrâneo, e ela não deixou o telefone em Paris para alguma emergência? Quem seria a mulher que tinha pego o avião de Simon em St. Barts? Até onde iriam aqueles que sabiam de Amsterdã para conseguir levá-lo à loucura? Uma mulher vestida como Dominique inserida naquele mosaico louco!... Ou será que ele estava tentando se enganar? Será que ele mentira para si mesmo em Amsterdã? Se era assim, tinha que parar de mentir.
Tyrell desligou o telefone, mas continuou a segurá-lo com a mão trêmula, decidido mas ao mesmo tempo relutante em ligar para Henry Stevens em Washington. O fato de alguém chamado N.V.N., fosse quem fosse, ter evitado passar pelo chefe da inteligência naval para entrar em contato com o viúvo da OTAN significava alguma coisa, mas Hawthorne só saberia do que se tratava às três horas da tarde. Podia esperar que Stevens o procurasse no hotel em Isla Verde, coisa que o capitão certamente faria, ou talvez até já tivesse feito. Meu Deus, Cathy! Havia esquecido dela; e o pior, Poole também. Ligou imediatamente.
- Onde foi que vocês se meteram? - exclamou Neilsen. - Eu já estava morta de preocupação. Quase liguei para o consulado, para a base naval... até para o seu amigo Stevens em Washington.
- Você não ligou para ele, ligou?
- Não foi preciso. Ele já ligou três vezes, a primeira às quatro da manhã.
- E você falou com ele?
- A gente está na mesma suíte, esqueceu? Eu e ele estamos íntimos.
- Mas você não falou nada sobre o recado que eu recebi ontem à noite...
- Ora, Tye - protestou Cathy. - É claro que não!
- E o que foi que ele disse... O que foi que você disse?
- Ele queria saber onde você estava, lógico, e eu, lógico, disse que não sabia; aí ele me perguntou a que horas você ia voltar, e respondi a mesma coisa. Aí ele perdeu a paciência e perguntou se eu sabia alguma coisa. Eu respondi que tinha ouvido alguma coisa sobre "ajuda de custo"... ele não achou muita graça.
- É, mas as coisas perderam a graça mesmo.
- O que foi que aconteceu? - perguntou a Major.
- Encontramos o piloto e descobrimos uma outra pessoa.
- E isso não é um avanço?
- Mais ou menos. O cara foi morto antes da gente chegar lá.
- Ah, meu Deus! E vocês estão bem? A que horas vocês voltam?
- Assim que for possível.
Hawthorne desligou o telefone; esperou alguns instantes, tentando organizar as ideias, consumido por algo que tomava conta de todo o seu cérebro. Uma mulher alta, vestida de branco, bonita e bronzeada de sol - levada de St. Barts para a ilha do padrone... Não existiam coincidências no mundo que ele deixara e para o qual fora forçado a voltar; duas pessoas iguais, no mesmo lugar e na mesma hora, isso era inconcebível!... Ele não podia suportar! Pare com isso! Controle-se, não se deixe vencer pela dor! E havia um outro fato muito real, o recado de um desconhecido chamado N.V.N., que ligaria às três da tarde. Concentre-se!... Dominique...? Concentre-se!
Pegou novamente o telefone e discou para Washington. Dali a instantes Henry Stevens estava na linha.
- Aquela Major da Força Aérea disse que não sabia a que horas você tinha saído, onde tinha ido, nem a que horas ia voltar. Que diabo está acontecendo?
- Depois eu faço um relatório completo, Henry. Mas agora vou lhe dar quatro nomes, e preciso do máximo possível de informações sobre eles.
- Em quanto tempo?
- Uma hora?...
- Você está louco.
- Esses nomes podem nos levar à Bajaratt...
- Está bem. Diga lá.
- O primeiro é um homem que se apresenta com o nome de Netuno, sr. Netuno. Alto, elegante, cabelo grisalho, uns sessenta anos.
- Igual à metade da população masculina de Georgetown. Qual é o seguinte?
- Um advogado de Washington chamado Ingersol...
- Como o da Ingersol & White? - interrompeu Stevens.
- Provavelmente. Você conhece ele?
- Conheço de nome, todo mundo conhece. David Ingersol, filho de um homem respeitadíssimo, um antigo juiz da Corte Suprema, joga golfe no Burning Tree e no Chevy Chase, é amigo de todo mundo no governo, e ele próprio é bastante poderoso. Meu Deus, você não está insinuando que o Ingersol faz parte...
- Não estou insinuando nada, Henry - interrompeu Hawthorne.
- Como não está? E deixe eu lhe dizer uma coisa, você está completamente desinformado. Por acaso eu sei que esse Ingersol já fez grandes favores à CIA durante suas viagens à Europa.
- E isso quer dizer que eu estou desinformado?
- Ele é muito bem conceituado em Langley. A CIA não é a minha organização predileta, eles vivem pisando nos calos dos outros, mas a capacidade deles de pesquisar antecedentes é imbatível, eu garanto. Acho impossível que eles tenham usado o Ingersol sem antes botar a cabeça dele num microscópio.
- Eles devem ter esquecido as partes mais baixas.
- O quê?
- Olhe só. Como disse o meu informante, pode ser que ele não passe de um cara excêntrico, mas ele foi visto na casa de uma pessoa que está envolvida nessa história, ainda que indiretamente.
- Está bem, vou falar pessoalmente com o diretor da CIA. Quem mais?
- Um controlador de voo de San Juan chamado Cornwall, que morreu.
- Morreu?
- Com um tiro na cabeça, um pouco antes da gente encontrar ele, à uma da manhã.
- E como foi que você descobriu esse sujeito?
- É justamente o quarto nome, e com esse você tem que tomar o máximo cuidado.
- Por que, ele está tão perto assim?
- Não, ele é um prestador de serviços e só tem contato com intermediários, mas tem alguém aí na sua cidade que leva ele pelo cabresto. E essa pessoa que está aí, segurando a ponta da rédea, pode ser uma pista decisiva.
- Você está me dizendo que a Bajaratt tem cúmplices na alta burocracia? Funcionários públicos de Washington?
- Pode acreditar.
- Me diga o nome.
- Simon, Alfred Simon. Ele trabalhou em Vientiane, era piloto da Força Aérea do Laos, quando era menor de idade.
- CIA - disse Stevens. - Velhos tempos, bons e maus. Sacolas de dinheiro para subornar as tribos das montanhas do Laos e do Camboja. As do Vietnã levaram a pior; elas recebiam mais, para os pilotos poderem roubar mais delas... Como é que alguém em Washington poderia pôr um cabresto num cara desses? Acho que o contrário seria mais fácil.
- Eles empurraram toda a responsabilidade pelos aviões para cima dele; ele era um menino, praticamente, e fizeram ele assinar documentos de transferência bastante questionáveis, provavelmente numa hora em que ele estava bêbado. Foi por isso que ele ficou estigmatizado como mercenário e ladrão, um soldado da fortuna que não tem nenhuma ligação com os nossos americanos tão puros.
- Eles puxam o tapete do sujeito e montam um caso de corrupção contra ele, invertendo o esquema. E quem fica com o rabo preso em Washington é ele, enquanto os nossos meninos... morrem como heróis.
- É uma história completamente sórdida.
- É, mas é um clássico, e ele nem precisaria estar bêbado. Ele acha que está ganhando um equipamento que vale milhões, mas não se dá conta de que ele está com a corda no pescoço, enquanto os verdadeiros culpados estão livres... Eu sei exatamente quem eu tenho que procurar para descobrir a situação desse Alfred Simon, piloto, Vientiane.
- Mas você tem certeza de que ninguém vai ficar sabendo?
- Absoluta - afirmou o chefe da inteligência naval. - A nossa informante já foi agente internacional e acabou resolvendo mudar para a carreira de analista, mas ela também tem o rabo preso na CIA. É claro que nunca ninguém disse nada, mas ela sabe muito bem que tem que andar na linha.
- Me ligue para o hotel - disse Hawthorne. - Se eu ainda não estiver de volta, passe todas as informações para a major Neilsen. Ela é uma ótima colaboradora.
- Pela voz dela, ela deve ser ótima mas é em outra coisa.
- Não me encha o saco, Capitão. Sem ela, já estaríamos todos mortos.
- Desculpe, só estava tentando dar um toque de leveza nessa situação tão tensa.
- A sua leveza é igual à de um hipopótamo, Henry. Vá trabalhar, ligue de volta para mim, e depois vá para casa, para a sua mulher não achar que você está "prevaricando". - Hawthorne bateu o telefone, sentindo o suor brotar da sua testa. E agora? Tinha que manter a atividade! Não podia ficar parado, não podia pensar em coisas em que... não ousava pensar. Mas ele tinha que pensar! Podia mentir para os outros, mas não para si mesmo. Saba, um tio recluso, uma confidente em Paris, causas beneficentes... declarações de amor. Tudo mentira.
Dominique! Dominique Montaigne era Bajaratt!
Ele a perseguiria até a morte. Nada neste mundo o faria parar agora. Traição!
No quartel central de San Juan, divisão de Homicídios, Rose Cornwall, a mulher do controlador de voo assassinado, teve uma atuação brilhante diante das autoridades policiais de Porto Rico. Comportou-se de forma estoica e corajosa, a despeito da tragédia que estava dilacerando o seu coração... Não, ela não conseguia entender aquele crime. Seu marido amantíssimo nunca tivera um único inimigo na vida, pois ele era o homem mais gentil e delicado que Deus já pôs no mundo, podiam perguntar ao padre da paróquia. Dívidas, não; eles viviam bem, mas sempre dentro do orçamento. Hábitos tais como frequentar cassinos? Raríssimo, e só apostavam nos caças-níqueis, geralmente nos de vinte e cinco centavos, em que eles estabeleciam o limite de vinte dólares para cada um. Drogas? Nunca; ele não tomava nem aspirina, e quase não fumava, só após as refeições. Por que há cinco anos eles tinham se mudado de Chicago para Porto Rico? Era uma vida mais agradável; o clima, as praias, a floresta tropical - ele gostava de fazer longos passeios pela floresta - e sem as terríveis pressões do aeroporto O’Hare de Chicago.
- Agora posso voltar para casa? Eu queria ficar um pouco sozinha, e preciso chamar o padre. Ele é uma pessoa maravilhosa, e vai tomar todas as providências.
Rose Cornwall foi escoltada até sua casa, num condomínio em Isla Verde. Mas ao invés de telefonar para o padre, ligou para um número em Mayagüez.
- Escute aqui, seu filho da puta, eu livrei a cara de vocês, e agora eu quero o meu - disse a viúva Cornwall.
Catherine Neilsen estava na suíte do hotel San Juan, sentada à mesa, lendo nos jornais o noticiário sobre o assassinato no aeroporto, quando o telefone tocou. Ela rapidamente alcançou o aparelho barulhento e atendeu:
- Alô?
- Aqui é o Stevens, Major.
- Ligue para o número cinco.
- Já liguei e ninguém atendeu, mas já era para ele ter chegado. Falei com ele há uma hora e meia.
- Ele já chegou, sim. Mas está tomando banho, os dois estão tomando banho, e eu acho bom que eles demorem bastante. Esta suíte está cheirando a perfume vagabundo.
- Cheirando a quê?
- Puteiro, Capitão. Era onde eles estavam.
- O quê?
- Você não entende nada do que eu digo?
- Tire ele do banho! Foi ele quem exigiu prioridade máxima para essas informações.
- Espero que ele não fique escandalizado comigo. Espere um instante. - Neilsen foi até o quarto de Hawthorne e dirigiu-se a porta do banheiro. Hesitante, abriu a porta e encontrou Tyrell nu, se secando com uma toalha enorme. - Desculpe a invasão, Comandante. Washington na linha.
- Alguém já lhe ensinou a bater na porta?
- Com o chuveiro ligado, não.
- Ah... esqueci.
Hawthorne enrolou-se na toalha e foi atender o telefone.
- E aí, Henry?
- Sobre o "Netuno", quase nada...
- O que quer dizer "quase"?
- Nos bancos de dados sobre a América do Sul só apareceu uma entrada. Parece que, há muitos anos, houve um Netuno na Argentina, que participou do golpe militar, mas esse nome era só o apelido de um estrangeiro ligado aos generais. Mais nenhuma informação, só que existia também um homem chamado Marte, com a mesma classificação.
- E o Ingersol?
- Bico calado, Tye, mas você tinha razão. Ele vai a Porto Rico quatro ou cinco vezes por ano, a serviço de alguns clientes, todos com bons antecedentes, nós checamos.
- Só que o cliente é ele - replicou Hawthorne.
- Como assim?
- Deixe para lá. Um cara excêntrico. E Cornwall, o controlador?
- Um pouco mais interessante. Ele era-chefe de seção no aeroporto O’Hare, um sujeito inteligente, que tinha um salário decente, mas nada de extraordinário. A mulher dele era sócia de um restaurante em Chicago. Não era nada assim como o Delmonico’s, mas era um restaurante bastante conhecido naquela parte da cidade, e quando eles se mudaram para Porto Rico, venderam a parte dela por um valor muito abaixo do preço do mercado. Era um negócio que dava uma boa renda anual.
- O que levanta uma questão - interrompeu Tyrell. - Onde eles arranjaram dinheiro para entrar nesse negócio?
- Tem uma outra pergunta que talvez responda a essa - disse Stevens. - Como é que um controlador de voo em San Juan, ganhando muito menos do que no O’Hare, consegue comprar um apartamento de seiscentos mil dólares num condomínio em Isla Verde? A parte dela no restaurante não dava para pagar nem um terço disso.
- Isla Verde...?
- É, a praia onde fica o melhor bairro da cidade.
- Eu sei, é onde nós estamos. Mais alguma coisa sobre os Cornwall?
- Só especulações, nada de concreto.
- Que especulação?
- Os controladores de voo são submetidos a uma bateria de testes, para ver se eles têm condições para esse tipo de trabalho. O Cornwall passou entre os primeiros: cabeça fria, rápido, metódico; mas parece que ele preferiu o turno da noite, na verdade até insistiu, o que não é nada comum.
- Aqui foi a mesma coisa, pelo que disse o meu informante. E qual é a opinião do pessoal de Chicago?
- Que o casamento dele estava em crise, talvez irreversível.
- Mas é óbvio que não estava, pois os dois vieram para cá juntos e compraram um apartamento de seiscentos mil dólares.
- Eu disse que era uma especulação.
- A não ser que eles tenham alguma outra informação, que o Cornwall andava com outras mulheres, por exemplo.
- Os testes não chegam a esse ponto. Eles precisam de controladores, só isso. Mas a impressão geral foi de que ele não estava a fim de passar as noites em casa.
- Vou ver isso - disse Hawthorne. - E o outro, o nosso piloto Alfred Simon?
- Bem, ou ele está mentindo ou está fazendo uma brincadeira de muito mau gosto.
- O quê?
- Ele tem a ficha completamente limpa e meia dúzia de medalhas esperando por ele, se algum dia ele aparecer. Não existe nenhuma referência à compra, legal ou ilegal, de nenhum avião do Laos. Ele era um oficial muito jovem, um segundo-tenente da Força Aérea, que se ofereceu como voluntário para operações perigosas na área de Vientiane, e se ele roubou alguma coisa, isso nunca foi mencionado. Se ele entrasse no Pentágono hoje, eles iam organizar uma solenidade de entrega de medalhas e ainda pagar a ele mais de cento e oitenta mil dólares de adicionais de periculosidade e pensões acumuladas que ele nunca foi receber.
- Meu Deus! Vou lhe dizer uma coisa, Henry, ele não tem a menor ideia disso.
- Como é que você sabe?
- Porque eu sei muito bem para onde ele mandaria esse dinheiro.
- Não entendi.
- O pobre coitado trocou uma mentira que está estrangulando ele há anos por uma realidade que pode ser a morte dele hoje.
- Continuo sem entender.
- Ele está sendo chantageado para trabalhar para as pessoas erradas. O grupo da Bajaratt.
- E o que é que você vai fazer?
- Eu não, quem vai fazer é você. Eu vou mandar o segundo-tenente Alfred Simon para a base naval daqui, você vai providenciar um avião para levar ele para Washington e, quando ele chegar aí, você vai arranjar proteção para ele até tudo estar resolvido e ele poder aparecer e receber a aposentadoria de herói a que tem direito.
- Mas por que isso tem que ser agora?
- Porque se a gente demorar, talvez seja tarde demais, e a gente precisa dele.
- Para identificar esse Netuno?
- E outros que talvez a gente ainda nem saiba.
- Simon, primeira classe para Washington - disse o chefe da inteligência naval. - O que mais?
- A mulher do Cornwall. Como é o nome dela?
- Rose.
- Não sei por quê, mas acho que as pétalas vão murchar. - Hawthorne pôs o telefone no gancho e olhou para Cathy, recostada no batente da porta. - Quero que você e o Jackson peguem o Simon lá no bairro antigo e levem ele para a base naval. Rápido.
- Espero que ele não pense que estou procurando emprego.
- Você não faz o tipo. - Tyrell pegou o catálogo de telefones na mesinha de cabeceira e começou a folhear a letra "C".
- Não entendi se isto é um elogio ou um insulto.
- As putas não andam armadas, as armas fazem volume e estragam as curvas. Aliás, não se esqueça de levar o seu revólver.
- Não tenho revólver.
- Leve o meu, está aí em cima da escrivaninha... Aqui, achei, Cornwall, o único de Isla Verde.
- É tão pequenininho que cabe na minha bolsa - disse a Major, pegando o Walther P.K. automático.
- Você está de bolsa? - Hawthorne ergueu os olhos, enquanto rabiscava o endereço de Cornwall no bloco de notas do hotel.
- Bem, normalmente eu estaria usando uma mochila, mas passei as últimas vinte e quatro horas com esta bolsinha linda, de pérolas. Ela combina com o meu vestido; o Jackson aprovou.
- Cadê ele, vocês não estão indo?
- Ele já saiu do banho, tenho certeza. Estou ouvindo ele cantar, mas está muito alto para ser debaixo d’água.
- Então vá ajudar o menino a se vestir e se mandem, vocês dois. Não quero mais um cadáver em cima de mim, de jeito nenhum.
- Sim senhor, Comandante.
Tyrell entrou com o Cadillac de Alfred Simon no estacionamento do condomínio onde moravam os Cornwall. Como dissera Stevens, era a área mais valorizada de Isla Verde; cada apartamento possuía a sua própria varanda de frente para o mar, e o condomínio tinha um enorme terraço com duas piscinas.
Hawthorne saltou do carro e dirigiu-se à portaria. Como em todos os edifícios daquela área, havia um funcionário uniformizado, sentado diante de uma mesa num cubículo cercado de espessas paredes de vidro. Ele apertou o botão à sua frente e perguntou:
- Español ou inglês, señor?
- Inglês - respondeu Tyrell. - Eu vou para a casa da sra. Rose Cornwall, é urgente.
- O senhor está com a polícia?
- Polícia? - Hawthorne ficou paralisado, mas teve a presença de espírito de responder com ar casual, mas firme: - Claro que estou. Consulado dos Estados Unidos, a polícia me chamou.
- Pode entrar, señor. - A pesada porta se abriu e Tyrell entrou, virando-se por um instante para perguntar ao porteiro dentro do cubículo: - Qual o número do apartamento dos Cornwall?
- Novecentos e um, señor. Está todo mundo lá.
Todo mundo? Que diabo...? Hawthorne atravessou rapidamente o hall dos elevadores e apertou o botão várias vezes, até que uma das portas se abrisse. A subida até o nono andar foi lenta, interminável. Ao chegar, saiu correndo do elevador, mas parou bruscamente ao ver uma pequena multidão saindo pela porta do apartamento, uns cinco metros à sua direita, e o reflexo de flashes que vinham ali de dentro. Caminhou em direção ao grupo, notando que a maioria das pessoas usava o uniforme da polícia. De repente, um homem baixo e gordo, de terno cinza e gravata azul, saiu do apartamento, abrindo espaço no meio das pessoas, folheando um caderno de anotações. Ele ergueu os olhos escuros para Tyrell e ficou a contemplá-lo com ar perturbado. Era o detetive da polícia que estivera no aeroporto menos de oito horas antes.
- Ah, señor, estou vendo que nem eu nem o senhor tivemos tempo para dormir entre uma tragédia e outra. O marido dela foi morto ontem à noite e ela, hoje de manhã; e o senhor, que não conhecia nenhum dos dois, como o senhor explica a sua presença lá e aqui?
- Pare com isso, Tenente, eu não tenho tempo para ouvir essa conversa fiada. O que foi que aconteceu?
- Parece que o senhor tem um grande interesse nesse casal. Talvez para negar o seu próprio envolvimento.
- Ah, com certeza eu despachei os dois e apareci no local do crime para não levantar suspeitas. Eu sou esperto mesmo. Vá, me diga o que aconteceu.
- Entre, por favor, señor - disse o detetive, conduzindo Hawthorne para a sala de visitas do apartamento. Ali dentro, a desordem era total; por toda parte viam-se móveis revirados e cristais e louças estilhaçados. No entanto, não havia sangue e não se via nenhum cadáver. - Era exatamente assim que o senhor esperava encontrar o local do seu "despacho", estou certo, señor?
- Onde é que está o corpo?
- O senhor não sabe?
- E como é que eu poderia saber?
- Acho que só o senhor mesmo pode responder a essa pergunta. O senhor estava ontem no aeroporto, no lugar onde foi encontrado o controlador de voo, o marido dela.
- Mas foi só porque tinha alguém gritando, dizendo que ele estava lá.
- E agora o senhor está aqui. Por que isso?
- Isto é um assunto confidencial... que não pode ir parar em todos os jornais. Nós não vamos permitir.
- Vocês não vão permitir? E quem são vocês, posso perguntar?
- Se você me disser o que aconteceu, talvez eu responda.
- Quer dizer que o americano quer mandar em mim?
- É um pedido. Eu tenho que saber.
- Então vamos lá. - O detetive conduziu Tyrell através da sala, passando pelos funcionários que, ajoelhados no chão, procuravam impressões digitais, e levou-o até a varanda. As portas de correr estavam abertas, e a tela de proteção, que ia do chão ao teto, cortada, aparentemente por uma faca grande e afiada. - A mulher foi atirada daqui, da altura de nove andares. Isto não lhe diz nada, señor?
- Do que é que você está falando?
- Ponham as algemas nele! - ordenou o detetive aos funcionários atrás de Hawthorne.
- O quê?
- O senhor é o meu principal suspeito, e eu tenho um nome a zelar.
Três horas e vinte e dois minutos mais tarde, depois de uma violenta discussão, tentando vencer a teimosia e a presunção do detetive, Tyrell foi autorizado a dar o seu telefonema particular. Era para Washington, e trinta segundos após o fim da ligação, um subordinado do departamento de polícia o liberou, pedindo breves desculpas em nome de seus superiores. Hawthorne não tinha a menor ideia de onde estava o Cadillac de Alfred Simon, e pegou um táxi para voltar ao hotel.
- Onde você esteve nas últimas cinco horas? - perguntou Catherine.
- Aluguei um carro aqui na recepção e já ia sair atrás de você - acrescentou Poole.
- Eu estava preso - respondeu Hawthorne em voz baixa, deitando-se no sofá. - Vocês conseguiram tirar o Simon de lá?
- Foi meio difícil - respondeu Neilsen. - Para começar, ele achou mesmo que eu seria uma ótima aquisição para o negócio dele, um elogio que você não foi capaz de me fazer.
- Mea culpa.
- Daí nós levamos o Simon para a Base e demos um balde de café para ele - continuou Cathy. - Mas, para dizer a verdade, acho que não adiantou muito, porque me fez várias propostas indecorosas antes de embarcar.
- Ele tem esse direito. É um herói de verdade.
- Ele tem direito a mim?
- Não foi isso o que eu disse, eu só disse que ele tem o direito de fazer a proposta que quiser.
- Para onde nós vamos agora? - perguntou Poole.
- Que horas são?
- Faltam doze minutos para as três - respondeu Neilsen, olhando atentamente para Tyrell.
- Então daqui a doze minutos vamos saber - disse Hawthorne, sentando-se e percebendo de repente que estava transpirando... e o quarto estava fresco.
A cada minuto que se passava, a ansiedade de Tyrell crescia, e imagens incontroláveis de Dominique/Bajaratt faziam com que a fúria se somasse à ansiedade. Ele sabia que isso ia acontecer - ele não estava fazendo nada. Ficou andando de um lado para o outro, quase grato à polícia que o fizera passar horas na delegacia, onde a discussão e a gritaria inútil o mantiveram ocupado.
- São três horas, Tye - avisou Cathy. - Você prefere que a gente saia?
Hawthorne interrompeu seu passeio errático; examinou os dois oficiais da Aeronáutica, virando os olhos para ambos os lados.
- Não - disse ele. - Quero que vocês fiquem aqui, porque eu confio em vocês.
- A gente se preocupa com você, Comandante - acrescentou a Major. - Isto é importante para nós também.
- Obrigado. - Tyrell foi até o telefone e discou.
- Alô? - A voz em Fairfax, Virgínia, era fria, um cumprimento prolongado, como se o interlocutor falasse com relutância.
- Aqui é o Hawthorne.
- Um momento, por favor. - Ouviu-se uma série de sinais curtos e em seguida N.V.N. retornou. - Agora podemos falar à vontade, Comandante - continuou a voz, bem mais agradável -, embora a nossa conversa dificilmente vá comprometer um de nós dois.
- O telefonema está sendo gravado? Aquele barulho foi por causa disso?
- Pelo contrário, eu estava ligando o misturador de vozes. Qualquer gravação só ia registrar sons incompreensíveis. Para nossa segurança.
- Então diga o que você tem para dizer. Sobre Amsterdã.
- Não dá para dizer tudo, preciso que você veja.
- Como assim?
- Fotografias. De Amsterdã. Elas mostram a sua mulher, Ingrid Johansen Hawthorne, acompanhada de três homens em quatro lugares diferentes: no zoológico de Zuiderkerk, na casa de Rembrandt, num barco de turistas e num café em Bruxelas. Em todas essas fotos parece que eles estão numa conversa muito séria e confidencial. Estou convencido de que eles foram os responsáveis pela morte da sua esposa; ou levaram a Ingrid a uma situação comprometedora, ou eles mesmos a mataram.
- Quem são eles?
- Isto eu não posso dizer nem com o misturador de vozes, Comandante. Podem ter sido os três ou um dos, e na verdade eu só identifiquei um deles. Mas tenho certeza de que você pode identificar os outros dois. Os arquivos estão fechados, eu não tenho acesso a eles.
- Como você pode ter tanta certeza de que vou identificar os outros dois?
- Porque eu soube que eles trabalharam com você em Amsterdã.
- Mas eram trinta, quarenta pessoas... Você disse que havia uma conexão com o Baaka.
- No sentido de que o Baaka está tão presente em Amsterdã quanto em Washington.
- Washington?
- Com toda a certeza.
- É a tal "estratégia abortada" que estaria sendo retomada? Se eu estou entendendo bem, você acha que isto está ligado à situação atual.
- Certamente. Você se lembra que há cinco anos, umas três semanas antes da morte da sua mulher, o presidente dos Estados Unidos deveria participar de uma conferência da OTAN em Haia?
- Claro que lembro, foi tudo cancelado e a conferência foi realizada em Toronto, um mês depois.
- E você se lembra por quê?
- Claro. Fomos informados de que o Baaka tinha enviado dezenas de terroristas para assassinar o Presidente... e outros.
- Exatamente. Entre eles o primeiro-ministro da Inglaterra e o presidente da França.
- Mas qual é a conexão?
- Quando você chegar aqui eu explico tudo; depois que você identificar os dois homens desconhecidos, o que tenho certeza de que você é capaz de fazer. O meu avião vai estar no aeroporto de San Juan às quatro e meia; vai ter uma pessoa no balcão para orientar você... Por falar nisso, o meu nome é Van Nostrand, Nils Van Nostrand. E se você tiver qualquer dúvida a meu respeito, fique à vontade para entrar em contato com o secretário de Estado, o diretor da CIA e o secretário de Defesa. Tenho certeza de que eles vão tranquilizar você. Mas, pelo amor de Deus, não diga nada sobre o que eu lhe disse.
- Eles são pessoas importantes...
- E também são meus amigos íntimos há muitos anos - interrompeu Van Nostrand. - Se você disser que convidei você para uma reunião ligada ao trabalho que está realizando no momento, garanto que eles vão encorajar você a aceitar o convite.
- O que elimina a necessidade desses telefonemas - observou Hawthorne. - Eu estou indo com dois colegas, Van Nostrand.
- Eu sei. A major Neilsen e o tenente Poole, da base aérea de Patrick, que estão trabalhando com você. Acho ótimo que eles venham com você, mas eles não vão poder participar da nossa reunião. A poucos quilômetros da minha casa existe um excelente hotel; vou fazer as reservas, por minha conta, é lógico, e quando vocês chegarem eu mando o carro levar os seus amigos até lá.
- Meu Deus! - explodiu Hawthorne subitamente. - Se você tinha todas essas informações, por que esperou tanto tempo para falar comigo?
- Não foi tanto tempo assim, Comandante e, por motivos óbvios, este é o momento apropriado.
- Porra, e quem é o homem que você identificou nas fotografias? Eu sou um profissional, Van Nostrand, e guardei na minha cabeça muito mais nomes do que você imagina... enquanto eu jantava fora com eles.
- Você insiste?
- Insisto.
- Pois muito bem. É o homem de quem você suspeita há cinco anos. O capitão Henry Stevens, atual chefe da inteligência naval. - Van Nostrand fez uma pausa e continuou: - Ele não tinha alternativa. Ou os soviéticos matavam a Ingrid ou você matava ele. Eles eram amantes, há muitos anos. Ele não podia deixar que ela escapasse.
17
Uma figura se movia por entre as sombras do Rock Creek Park, em Washington; as luzes intermitentes dos postes não eram suficientes para penetrar na folhagem que crescia durante o verão. O homem escutava o barulho do córrego logo abaixo e sabia que estava próximo do ponto de encontro; havia um banco entre dois postes de luz no caminho de terra. No meio da escuridão, pois os dois homens não podiam ser vistos juntos; era uma ordem que jamais seria desobedecida. Eles eram Scorpios.
Ao ver o colega já sentado no banco com um cigarro aceso na mão, David Ingersol aproximou-se, olhando para todos os lados, para se certificar de que não havia mais ninguém por perto. Não havia; ele se sentou ao lado do outro homem.
- Olá, David - disse Scorpio Dois, um homem corpulento, de cabelos escassos e ruivos, de rosto redondo e nariz inchado.
- Boa noite, Pat. Está uma noite úmida, não é?
- Estão dizendo que vai chover, mas esses idiotas sempre erram. Eu até trouxe o meu guarda-chuva, que é uma merda, desses que dobram e ficam tão pequenos que cabem no bolso; mas é só para isso que ele serve mesmo.
- Eu esqueci de trazer o meu. Ando completamente atolado.
- Nota-se. A última vez que nós nos encontramos foi há mais de três anos.
- Agora a situação está pior.
- Está?
- Está todo mundo louco, acho que você sabe - disse Scorpio Três.
- Eu não faço esse tipo de julgamento. Ganho o suficiente para obedecer ordens sem questionamentos.
- Mesmo que isso leve você à autodestruição?
- Ei, Davey, o que é isto? Já faz anos que abandonamos o rebanho dos carneirinhos, desde que vendemos a nossa alma aos Provedores.
- Esse tipo de abstração filosófica não me interessa. O que me interessa é proteger os bens que acumulamos, tudo o que nós já ganhamos. Aquele velho doente morreu, e junto com ele se foi a insanidade senil que produziu isto tudo... Pergunte a si mesmo, O’Ryan, o que é que nós temos a ganhar com um assassinato... ou com vários assassinatos?
- Nada, a não ser o fato de não termos atrapalhado, o que já é um grande ganho. Digamos, entre cada um de nós continuar vivo ou ser morto.
- Mas por quem, meu Deus?
- Por esses maníacos que estão obcecados com essa operação. Ela não está sozinha; ela tem seguidores, exatamente como Abu Nidal e outros. Talvez seja um círculo menor, mas não menos comprometido ou com menos recursos. Não, David, a gente tem que fazer o que o Scorpio Um mandou, e se acontecer alguma coisa que faça essa locomotiva descarrilhar, ele vai dizer no seu relatório que nós cumprimos a nossa obrigação. Ninguém vai poder pôr a culpa em nós.
- Relatório...?
- Pelo amor de Deus, Conselheiro, não destrua a imagem que eu tenho da sua capacidade, não venha me dizer que você não sabe qual é o lugar dos Scorpios. Bem, talvez o trabalho de advogado não exija uma análise tão apurada, o que eu duvido muito, mas sou agente do serviço de inteligência há vinte e seis anos, e vejo as coisas de longe. A gente pode estar numa posição elevada; o Scorpio Um, numa posição mais elevada ainda, mas existe um nível superior, e nem nós nem ele estamos lá.
- Eu sei muito bem que existe uma hierarquia, O’Ryan, e também sei de uma coisa que nem passa pela sua cabeça.
- Acho difícil acreditar nisso, porque fora o Scorpio Um, eu era a principal ligação entre o padrone e o nosso grupo. E eu, como número dois, fui a última pessoa com quem ele falou. Ele deixou isso bem claro.
- Pois eu suspeito que ele deu mais um telefonema.
- Ahn?
- Para todos os efeitos, a partir de amanhã eu vou ser o Scorpio Um. Lamento muito, mas eles devem ter achado que eu era melhor que você. É só ligar para o número dele, você vai ver que vai cair em mim. Esta é a prova.
O analista da CIA fitou o rosto fino, de traços marcados, de David Ingersol. Por fim, disse:
- Não vou tentar esconder a minha decepção, porque a minha colaboração tem sido muito mais valiosa que a sua, e eu sou uma figura muito menos conhecida que você. Por outro lado, você tem a sua firma e tem acesso a certas pessoas e eu acho que nesse ponto isto era inevitável. Mas como sou um profissional, tenho que lhe dar um aviso, Davey. Tome cuidado, muito cuidado. Você é conhecido demais.
- Você não está entendendo, O’Ryan, o meu trunfo é exatamente este. Eu sou a imagem da respeitabilidade.
- Então, é melhor você nunca voltar a Porto Rico.
- O quê? - Parecia que Ingersol tinha sido atropelado por um caminhão. - Do que você está...?
- Você sabe muito bem do que é que eu estou falando. Digamos que eu antecipei a novidade que você acabou de me contar. O irlandês gordo, que come demais, que fala demais, e às vezes até usa meias brancas... derrubado em favor do advogado distinto que conhece todo mundo. Ah, e ele estudou numa das melhores universidades do país, é filho de um juiz da Suprema Corte, pertence a uma boa família, sócio dos melhores clubes... E por isso vai ser o Scorpio Um? Você acha mesmo que eu vou aguentar uma coisa destas?... O padrone sabia que eu era o canal mais importante dele, e não acredito que ele tenha dado essa ordem. Você nem sonha em ter o acesso que eu tenho à inteligência internacional.
- Por que Porto Rico? - perguntou Ingersol, quase sem voz, apavorado, ignorando o discurso violento do Scorpio Dois.
- Eu tenho depoimentos autenticados das putas de uma casa na Calle del Ocho, em San Juan; só eu tenho esses papéis.
- Eu fui lá porque o Scorpio Um mandou! Eu estava investigando o piloto!
- Você foi longe demais, Scorpio Três, esta é a verdade. Uma noite você até desmaiou...
- Foi menos de um minuto, e não aconteceu nada! Meu dinheiro, minha carteira, ficou tudo intacto! Eu estava exausto!
- Isso não tem a menor importância, não é? Eu tenho as fotos, cortesia das minhas próprias informantes lá da Calle del Ocho, nada a ver com o nosso grupinho aqui.
Ingersol sacudia a cabeça com movimentos lentos, respirando fundo, perdendo o vigor à medida que caía na sua realidade de advogado; sabia que fora derrotado.
- O que é que você quer, Patrick?
- O controle. Eu estou muito mais bem equipado do que você. Tudo o que você sabe, aprendeu comigo. Eu estou no círculo da Menina Sanguinária, você não está.
- Mas eu não posso mudar as coisas, o meu nome já foi indicado.
- Ora, porra, o título não me interessa, fique com ele. Se fosse pelo título, você ia ter que desaparecer, e isso provocaria muitas perguntas. Não, você continua sendo o Scorpio Um até chegar o seu dia, mas quem manda sou eu; assim é melhor para todo mundo. Não vai ser difícil; você vai ser informado sobre tudo.
- É muita generosidade sua - disse o advogado, sarcástico.
- Não, é só uma necessidade. Eu não sou um cara generoso, mas posso ser tratável, não é assim que se diz? Por exemplo, eu concordo com você, esta loucura tem que parar. Isto só pode levar a uma situação caótica que não é boa para ninguém. Ia ser tudo revirado, examinado. Não podemos permitir que isso aconteça.
- Mas como você mesmo disse, nós não temos a audácia de atrapalhar os planos dela. Se alguma coisa der errado, os Scorpios vão ser os principais suspeitos, e a ideia de uma faca do vale do Baaka atravessada no meu pescoço não me agrada nem um pouco.
- Então a gente não pode ficar em evidência; o crédito tem que ir para a incrível eficiência do nosso serviço de inteligência.
- Eles podem descobrir você, você sabe disso.
- Eu acho que você não lamentaria muito essa descoberta, Davey-Boy, mas eles não vão me descobrir, não. Vai ficar registrado que eu mandei investigar no lugar errado, e que pedi muitas desculpas depois. Onde é que essa mulher está agora, você sabe?
- Não, ninguém sabe. Ela e o garoto letão submergiram, eles podem estar em qualquer lugar.
- Eu autorizei a entrada dele pela imigração de Lauderdale, e de lá os dois foram para West Palm Beach. Pelo que disse o Scorpio Vinte e Dois, eles se registraram num hotelzinho pulguento e depois sumiram.
- Eles podem estar em qualquer lugar - repetiu Ingersol. - A gente não sabe como eles são, nem onde eles estão. Nenhuma foto, nenhuma descrição...
- O MI-6 e o Deuxième mandaram fotos dela; mas para dizer a verdade, essas fotos são inúteis. Tanto podem ser três pessoas diferentes quanto uma pessoa só, e considerando o talento dela para se disfarçar, nada feito.
- Como você disse, eles sumiram; a gente não sabe nem se eles estão viajando juntos ou separados, e nem mesmo qual é a função do rapaz.
- Ele é ao mesmo tempo um braço forte, quer dizer, um guarda-costas tapado que faz tudo o que ela manda, e um companheiro indispensável.
- Não entendi.
- Pelo que o pessoal da alfândega de Marselha se lembra, ele é um eslovaco novinho, forte, que não deve nem saber ler e escrever, mas capaz de partir um homem ao meio.
- E o que é isso de "companheiro indispensável"?
- Os especialistas fizeram um perfil psicológico com base em todas as informações fornecidas pelo Mossad e por Paris e Londres. A maior parte é bobagem, mas algumas coisas fazem sentido... Como a maioria dos fanáticos, a Bajaratt se excede em tudo o que faz, e esses extremos supostamente justificam o que eles chamam o "destempero emocional" das atitudes dela. De acordo com esse perfil, a atividade sexual dela pode chegar às raias da ninfomania, mas ela é cautelosa demais para se meter com estranhos, a não ser com algum propósito determinado. É por isso que ela precisa de um troglodita desses.
- Eles evaporaram; na verdade, eles podem ser qualquer pessoa, em qualquer lugar, chegando cada vez mais perto. O que é que a gente pode fazer? Eles podem ser meros turistas visitando a Casa Branca, ou participantes de algum protesto ali na frente ou em alguma entrada lateral, com uma bolsa cheia de granadas.
- Todas as visitas à Casa Branca foram suspensas, por causa das reformas, é lógico, e os desfiles do Presidente em carro aberto estão cancelados. Mas tudo isso é desnecessário, na verdade, porque esse que você sugeriu não é o estilo da Bajaratt. A tática dela é ludibriar o inimigo, não atacar de frente e ser massacrada. Desde a infância dela.
- Infância?
- Isto faz parte das coisas a que eu tenho acesso e você não, Davey-Boy. É por isto que eu é que vou ser o Scorpio Um, apesar de não ter o nome.
- Mas o que é que a gente pode fazer? - repetiu Ingersol.
- Vamos esperar. Antes de atacar, ela vai ter que procurar você, Scorpio Um, nem que seja para você facilitar a fuga dela, caso ela sobreviva.
- E se ela já tiver seus próprios planos?
- Numa situação destas, ninguém faz planos sozinho. Ela vai se cercar por todos os lados. Esta é outra coisa que você não sabe, Scorpio Três. Já tive agentes que se aliaram com três outros departamentos, sem a minha autorização, achando que eu não ia ficar sabendo. É sempre assim. Não existe essa história de lealdade, o que importa é a sobrevivência.
- Quer dizer que você acha que ela vai me procurar?
- Se ela tiver tutano, vai, e eu acho que ela tem e muito... Ela vai procurar você.
Amaya Bajaratt estava cruzando o saguão do hotel, com ar despreocupado, segura no seu papel de contessa quarentona, quando parou, com o corpo subitamente paralisado. O homem louro que estava diante do balcão da recepção - os cabelos louros tingidos - era um agente do Mossad, que antes tinha cabelos castanho-escuros; ela o conhecera em Haifa, dormira com ele em Haifa! Sem saber o que fazer, ela correu na direção dos elevadores e tomou a decisão óbvia. Ela e Nicolo tinham que se mudar imediatamente - mas para onde? E com que explicação? Estava esperando tantos telefonemas no hotel, telefonemas de pessoas importantes no Senado e na Casa Branca, políticos que ela estava segurando na coleira do nome Ravello, um dos quais era nada menos que Nesbitt, o senador de Michigan, o homem que poderia conduzi-la ao seu confronto final, o confronto com o presidente dos Estados Unidos. Era Wolfsschantze revisitada, mas ela teria muito mais sucesso do que aqueles generais desesperados que faziam oposição a Adolf Hitler... Chega! Agora ela tinha que sair do hotel! Entrou correndo num dos elevadores e apertou o botão do andar onde ficava a sua suíte.
- Ela não é linda, Cabi? - exclamou Nicolo. Estava sentado em frente à televisão, assistindo à reprise de 18:30 do seriado de Angel Capell. - Falei com ela há uma hora, você acredita? E agora ela está aí!
- Basta, Nico! Não se esqueça, ela gostou do barone-cadetto de Ravello, não de um menino pobre do cais de Portici.
- Por que você está falando assim comigo, Cabi? - perguntou Nicolo, encarando Bajaratt com os olhos negros zangados. - Você disse que não tinha problema eu gostar da Angelina.
- Pare com isso. Nós vamos nos mudar!
- Por quê?
- Porque eu estou mandando, seu pirralho estúpido - replicou ela, dirigindo-se à escrivaninha, onde estava o telefone. - Faça as nossas malas. Já! - Bajaratt ligou para o número que estava gravado no fundo da sua memória extraordinária. Era apenas uma ligação, que não acarretaria nenhum risco, portanto ela podia usar o telefone do hotel.
- Alô? - atendeu a voz em Fairfax, Virgínia.
- Sou eu, e preciso de um teto, fora deste hotel, fora de Washington.
- Aqui é impossível. Pelo menos por esta noite.
- Eu estou mandando, em nome do padrone e de todas as fontes dele no Baaka, em Palermo e em Roma! Eles vão matar você se você se recusar a me atender.
Silêncio. Por fim, ele respondeu:
- Vou mandar o carro buscar vocês, mas a gente não vai se encontrar hoje à noite.
- Isto não importa. Eu preciso de um telefone, estou esperando várias ligações.
- Você vai ficar no chalé de hóspedes mais afastado da casa, cada chalé tem um telefone exclusivo. Quando você chegar, pode ligar para o hotel e dar o número. Não precisa se preocupar com nada, as ligações são feitas via satélite, através do estado de Utah.
- Grazie.
- Per cento anni, signora. Mas devo avisar que a partir de amanhã, vocês estão sozinhos.
- Perchè?
- Eu vou embora, e você não vai saber de nada. Você é só uma amiga que veio da Europa e que espera ter notícias minhas em breve, a qualquer hora, qualquer dia. Mas pode usar o meu número para falar com o meu sucessor.
- Certo. E eu vou ter notícias suas?
- Não. Nunca mais.
O jato da Gulfstream começou a sobrevoar o litoral dos Estados Unidos, a leste da baía de Chesapeake, próximo ao cabo Charles, Maryland.
- Mais quinze minutos - declarou o piloto.
- Um pouco mais - interrompeu o copiloto, examinando um mapa computadorizado no painel de bordo. - Tem uma zona de turbulência ali na frente, e nós vamos contornar pelo norte.
- Você jura que consegue aterrissar com este avião numa propriedade particular? - perguntou Poole. - Vai precisar de uma pista de quase mil metros.
O copiloto olhou para o traje à paisana de Poole.
- O senhor é piloto?
- Bem, tenho algumas horas de voo acumuladas, não tantas quanto vocês, mas o suficiente para saber que não dá para pousar com isto numa pistinha qualquer.
- Não é uma pistinha qualquer, senhor, é uma pista de mais de mil e duzentos metros, asfaltada, e com uma torre, que não é exatamente uma torre porque é uma casinha de vidro. A gente fez um treinamento hoje de manhã, e eu vou lhe dizer uma coisa, o sr. Van Nostrand não é qualquer um, não.
- É, parece que não - disse Hawthorne do assento traseiro, visivelmente perturbado.
- Você está bem, Tye? - perguntou a Major.
- Estou ótimo. Eu só quero é chegar logo.
Vinte e dois minutos depois, o jato sobrevoava o interior da Virgínia, vasto e escuro. Abaixo, cortando os campos, via-se uma pista de pouso ladeada de luzes âmbar; tinha quase mil e quinhentos metros de extensão. O piloto aterrissou e em seguida taxiou e parou próximo a uma limusine que estava à espera; ao seu lado, estava um carrinho de golfe.
Ao desembarcarem da aeronave, os três passageiros foram recebidos por dois homens, um de terno e chapéu pretos e o outro sem chapéu, de paletó esporte e calça bege. Ambos estavam de pé, em frente às luzes âmbar.
- Comandante Hawthorne? - cumprimentou o homem sem chapéu, à direita, dirigindo-se a Tyrell. - Posso levar o senhor até a casa no nosso carrinho? É logo ali.
- Claro. Obrigado.
- E a senhora e o cavalheiro - disse o chofer, à esquerda. - Os quartos estão reservados no Shenandoah Lodge, cortesia do sr. Van Nostrand, é claro. São só dez minutos daqui. Poderiam entrar na limusine, por favor?
- Perfeitamente - respondeu Cathy.
- Bons, esses pneus - observou Poole.
- A gente se encontra mais tarde - disse Hawthorne.
O motorista do carrinho de golfe parou e olhou para Tyrell.
- O senhor vai ficar hospedado na casa do sr. Van Nostrand, senhor. Está tudo preparado.
- É muita gentileza da parte dele, mas eu tenho outros planos para depois da nossa reunião.
- Ele vai ficar muito decepcionado, e eu tenho certeza de que ele vai convencer o senhor a ficar, Comandante - respondeu o chofer, abrindo a porta da limusine para Neilsen e Poole. - A cozinheira preparou um jantar daqueles. Eu sei porque ela é minha mulher.
- Peça as minhas desculpas para ela...
- Nossa, eu acho que esqueci a minha educação! - exclamou Poole, afastando-se do enorme Cadillac e olhando para o avião.
- Que educação? - perguntou Cathy, inclinando-se para fora da limusine.
- Você e o Comandante se despediram dos dois pilotos, mas eu, não, e eles foram muito legais comigo, ficaram me mostrando como funcionam todos aqueles instrumentos.
- O quê...?
- Volto já! - O Tenente correu para o avião; todos puderam vê-lo falar rapidamente com os pilotos, que ainda estavam no painel de comando, com todas as luzes acesas. Poole apertou as mãos dos dois e voltou apressado para o automóvel, enquanto Hawthorne entrava no carrinho de golfe, olhando com curiosidade para o jovem oficial. Poole havia-se despedido dos pilotos, sim, e muito efusivamente. - Pronto, agora estou me sentindo melhor. O meu pai sempre me disse que a gente deve ser educado e agradecer às pessoas que nos tratam bem. Podemos ir, meu senhor, não vejo a hora de tomar um banho quente; há dias que eu não tomo um! A minha mãe ia me dar uma boa surra, se me visse nesse estado... Até mais tarde, Comandante! - O Tenente entrou na limusine. Tyrell, intrigado, acomodou-se no carrinho de golfe, que seguiu por entre as luzes âmbar e atravessou o gramado gigantesco em direção à casa.
O enorme Cadillac deixou a pista de pouso e tomou uma estrada sinuosa que terminava numa reta; os faróis iluminavam à distância um grande portão de ferro com uma guarita do lado esquerdo. Havia uma outra limusine, que acabava de ser autorizada a entrar e passou por eles tão rapidamente que ninguém viu os passageiros. Subitamente, Jackson Poole pulou do banco traseiro para o dianteiro e, para a surpresa de Catherine, puxou o seu Walther automático.
- Seu motorista, faça o favor de parar, já! O senhor acredita que eu esqueci uma coisa?
- O que foi, senhor? - perguntou o chofer, atônito.
- O Comandante Hawthorne, seu porco imundo! - O Tenente encostou o cano do revólver na têmpora do motorista, que parecia aterrorizado. - Faça a volta com este carro e apague os faróis!
- Jackson! - gritou Neilsen. - O que é que você está fazendo?
- Esta história toda é uma arapuca, Cathy. Eu já disse e vou repetir: faça a volta, seu cretino, ou os seus miolos vão sair pela janela! - A limusine fez uma curva veloz, incerta, e subiu no gramado; nesse momento, o motorista esticou-se para a direita: um botão vermelho, um alarme! Não conseguiu alcançá-lo. Poole deu uma coronhada na nuca do homem, com um barulho repugnante. O motorista perdeu os sentidos; o Tenente o puxou para fora do assento, segurou o volante e, quando a limusine entrou numa área sem iluminação, pisou no freio. Pararam bruscamente sob a proteção dos galhos de um pinheiro, a menos de dois metros do tronco. Poole atirou a cabeça para trás, e respirou fundo.
- Acho que agora você podia me dar uma explicação - disse Neilsen, atordoada, do banco de trás. - Jackson, você está insinuando que um homem que disse abertamente para Tye pedir referências dele aos secretários de Estado e de Defesa e ao diretor da CIA é não só um mentiroso, mas alguma coisa pior ainda!
- Se eu estiver errado, vou pedir desculpas, abandonar as Forças Armadas e vou morar com a minha irmãzinha na Califórnia, para ficar rico que nem ela.
- Isto não é explicação, Tenente! Vamos, fale!
- Voltei para falar com os dois pilotos...
- É, você voltou lá, dizendo que não tinha se despedido, o que você com toda certeza tinha feito, sim, e depois anunciou que não tomava um banho quente há dias, quando você tinha acabado de passar quarenta e cinco minutos no chuveiro em San Juan.
- Espero que o Tye tenha entendido o meu recado...
- Que recado?
- Aquilo ali estava muito esquisito. Aqueles pilotos não costumam trabalhar para o Van Nostrand - explicou ele. - Os pilotos que ele costuma contratar estão de férias. Você lembra? Eles disseram que tinham feito um treinamento hoje de manhã.
- E daí? Nós estamos no verão. É normal as pessoas tirarem férias.
- O que é que a gente faz quando quer manter uma operação em sigilo?
- A gente substitui o pessoal, claro. De preferência com pessoal de outras bases. Mas e daí?
- Nenhum contato, certo?
- Claro.
- Então raciocine, Cathy. Aqueles dois pilotos estavam pedindo autorização para um plano de voo para o Aeroporto Internacional de Douglas, em Charlotte, na Carolina do Norte, onde haveria uma escolta do governo para levar o passageiro até a área de segurança do setor de embarque internacional. Este passageiro é um homem, com status de diplomata, autorizado pelo departamento de Estado. Eu vou lhe dizer uma coisa: aqueles dois nunca lidaram com um negócio desse nível. Eles estão meio nervosos, e eu acho que é porque tem alguma sujeira nessa história.
- O que é que você está dizendo, Jackson?
- Eles disseram que o passageiro é o próprio Van Nostrand, e eles devem decolar daqui a uma hora.
- Uma hora?
- Pouco tempo para um jantar magnífico e uma reunião tão importante, não é? Esses pilotos devem ser biscateiros, e devem fazer algum serviço sujo, tráfico de drogas ou coisa parecida, em alguma rede clandestina.
- Eu achei eles tão simpáticos...
- Você é uma moça do interior, Cath, eu sou de Nova Orleans. A gente toca trompete enquanto os ladrões batem sua carteira. Não que eu já tenha feito isso...
- E o que é que a gente faz agora?
- Bem, eu não quero ser alarmista, mas você ainda está com o revólver do Tye?
- Não. Ele levou o revólver preso na perna.
- Deixe eu ver o motorista... Nossa, ele tem dois! Um grande e outro pequenininho... Aqui, pegue o grande e fique no carro; eu vou guardar o outro aqui no meu bolso. Se alguém se aproximar, não faça perguntas, atire; e se este filho da puta se mexer, dê uma porrada na cabeça dele.
- Até parece, Tenente. Eu vou com você!
- Eu acho que você não devia, Major.
- Isto é uma ordem, Poole.
- Tem um artigo no regulamento da Força Aérea que diz claramente que...
- Esqueça o regulamento! Eu vou aonde você for! E o motorista?
- Mede uma mãozinha. - Jackson puxou o chofer para fora da limusine e começou a arrastá-lo pelo chão, sob o pinheiro. - Tire as roupas dele, primeiro os sapatos - continuou. Cathy arrancou os mocassins dos pés do motorista. - Agora as calças - acrescentou Poole, aproximando-se da sebe, onde parou. - Eu tiro o paletó e a camisa... deixe a cueca, eu tiro por último.
Em um minuto a figura completamente nua do chofer estava amarrada e amordaçada com tiras do tecido das suas roupas - nenhuma larga o suficiente para preservar a sua dignidade. O Tenente desferiu um último golpe na nuca do homem; o corpo estremeceu, num espasmo, e voltou à imobilidade.
- Você não matou ele, matou? - perguntou Neilsen, com uma careta.
- Se eu ficar aqui mais cinco minutos, sou bem capaz disso. Este miserável ia nos matar, Cathy, e eu vou provar isso para você.
- Do que é que você está falando?
- Vamos voltar para a limusine, tem um telefone lá. Tenho certeza absoluta de que eu tenho razão.
Poole ligou o motor, ativando o telefone celular e em seguida ligou para o serviço de informações para pedir o número do Shenandoah Lodge.
- Esta é uma chamada urgente da Base Aérea de Patrick - disse ele no tom monocórdio dos militares. - Por favor, passe a ligação para a major Catherine Neilsen ou para o tenente A. J. Poole. Repito, é uma emergência.
- Sim, senhor... sim, senhor! - respondeu a telefonista, nervosa. - Vou verificar agora mesmo nos nossos computadores. - Fez-se silêncio na linha; trinta e um segundos depois a telefonista, aliviada, voltou a falar. - Senhor, esses nomes não estão registrados aqui no Shenandoah.
- Você precisa de mais alguma prova, Major? - O Tenente pôs o telefone no lugar. - O miserável ia nos matar antes da gente chegar no tal hotel. Talvez daqui a dez anos encontrassem os nossos corpos em decomposição num desses pântanos da Virgínia.
- Temos que encontrar o Hawthorne!
- Agora você entendeu - disse Poole.
Hawthorne foi acompanhado até a enorme biblioteca de seu anfitrião, Nils Van Nostrand. Recusou a bebida oferecida pelo motorista do carrinho de golfe, que se postou em frente a um bar revestido de painéis de vidro.
- Obrigado, só bebo vinho branco - disse Tyrell. - Quanto mais barato, melhor, e em doses pequenas.
- Nós temos um excelente Pouilly-Fumé, senhor.
- Meu estômago não ia aguentar. Ele não está acostumado com esses buquês.
- O senhor é que sabe, Comandante, e o senhor me desculpe, mas eu devo lhe pedir que tire essa arma que está presa na sua perna direita.
- Na minha o quê...?
- Por favor, senhor - disse o chofer, tirando da orelha um plugue minúsculo. - O senhor passou por quatro máquinas de raios X, da entrada principal até aqui, passando pelo corredor. A arma foi detectada por todas as câmeras. Por favor, faça o que eu estou pedindo.
- É só um hábito antigo - disse Hawthorne, evasivamente, sentando-se na cadeira mais próxima e erguendo a perna da calça. - Se eu fosse visitar o Papa, faria o mesmo. - Puxou a fita de velcro, soltou o automático e o colocou no chão. - Satisfeito?
- Obrigado, senhor. O sr. Van Nostrand já vai chegar.
- Quer dizer que você é o segurança?
- O meu patrão é uma pessoa prudente.
- Ele deve ter um monte de inimigos.
- Pelo contrário, eu não sei de nenhum. Mas ele é muito rico, e como eu sou o chefe de segurança da casa, exijo certos procedimentos quando ele recebe a visita de um desconhecido. Eu também já trabalhei no serviço de inteligência, e tenho certeza de que o senhor concorda comigo.
- É óbvio que eu não posso fazer nenhum objeção. Onde é que você trabalhava, no G2 do Exército?
- Não, no Serviço Secreto, lotado na Casa Branca. O Presidente não queria que eu saísse do serviço, mas ele teve que entender que um homem casado, com quatro filhos indo para a universidade, não podia viver com aquele salário.
- Você trabalha bem.
- Eu sei. Quando o sr. Van Nostrand chegar, vou ficar ali fora, bem junto da porta.
- Deixe eu esclarecer uma coisa, sr. Serviço Secreto. Foi o seu patrão que me trouxe até aqui, não fui eu que me convidei.
- E que tipo de convidado é este que traz um Walther P.K. amarrado na perna? Se não me engano, esta é a arma favorita dos homens perigosos.
- Eu já lhe disse, é um hábito.
- Aqui não, Comandante. - Inclinando-se, ele pegou a arma no chão.
A porta se abriu e a figura imponente de Nils Van Nostrand entrou, com uma expressão jovial.
- Boa noite, Hawthorne - disse ele, aproximando-se de Tyrell e estendendo-lhe a mão, enquanto o visitante se levantava da cadeira. - Desculpe não ter ido receber você pessoalmente, mas eu estava no telefone, falando com uma das pessoas que eu sugeri que você procurasse, o secretário de Estado... Acho que estou reconhecendo a sua camisa. É da Safarics, em Johannesburg. Nota dez.
- Não. É da Tony’s Tropic, no aeroporto de San Juan.
- Mas é uma imitação perfeita. Eu andei trabalhando com tecidos uma época. O segredo dessas camisas são os bolsos; os homens gostam de muitos bolsos. Bem, de qualquer modo, peço desculpas por não ter comparecido ao seu desembarque.
- Não se preocupe, o tempo foi bem aproveitado - respondeu Hawthorne, examinando seu anfitrião, quase hipnotizado com a imagem de Van Nostrand. Um cara alto... de cabelos grisalhos, todo elegante... como naqueles anúncios de roupa de homem bacana. - O seu sistema de segurança é incrível.
- Ah, o Brian? - Van Nostrand deu uma risada leve, suave, e olhou para o chefe de segurança da casa. - Às vezes o meu amigo leva o trabalho a sério demais. Espero que não tenha havido algum inconveniente.
- Nenhum, senhor. - Discretamente, Brian enfiou o automático no bolso. - Eu ofereci um drinque ao Comandante, o seu Pouilly-Fumé, mas ele não aceitou.
- É mesmo? A safra dele foi excelente, mas quem sabe o Hawthorne não prefere um uísque?
- Muito obrigado - disse Tyrell - mas eu parei de beber uísque há muito tempo.
- É verdade, já tinham me dito isso. Brian, será que você podia nos deixar a sós? Eu e o nosso homem de Amsterdã temos que tratar de assuntos confidenciais.
- Pois não, senhor. - O ex-agente do Serviço Secreto retirou-se da biblioteca.
- Agora nós estamos sozinhos, Comandante.
- Estamos sozinhos, e você me fez uma afirmação inacreditável sobre a minha mulher e o capitão Henry Stevens. Eu quero saber que documentação você tem como prova.
- Na hora certa você vai ver. Sente-se, por favor, vamos conversar um pouquinho.
- Não estou interessado em conversar! Por que foi que você disse aquilo sobre a minha mulher? Primeiro você me responda, depois podemos falar de outras coisas, mas eu vou logo avisando que a nossa reunião vai ser a mais curta possível.
- Eu sei, fui informado de que você não vai poder ficar para o jantar, nem aceitar a minha hospitalidade por esta noite.
- Eu não vim aqui para jantar e nem para dormir. Vim para saber o que você tem a dizer sobre a morte da minha mulher em Amsterdã e sobre o capitão Stevens. Pode ser que ele saiba alguma coisa que eu não sei, mas você colocou essa história em outros termos. Agora explique!
- Eu não tenho nada que explicar. E assim como você está ansioso para saber o que aconteceu em Amsterdã, eu também estou cheio de curiosidade para saber o que aconteceu numa ilha obscura do Caribe.
Silêncio. Os dois estavam separados por uma distância de pouco mais de um metro, cada um com o olhar intenso sobre o outro. Por fim, Hawthorne resolveu falar.
- Você é o Netuno, não é?
- Sou, sou eu mesmo, Comandante. Mas esta informação nunca vai sair desta sala.
- Tem certeza?
- Absoluta. Você vai morrer, Hawthorne. Agora, Brian!
18
Os tiros romperam o silêncio da enorme propriedade no momento em que Catherine e Poole, em pânico, apertaram os gatilhos de suas armas, várias vezes seguidas, fazendo com que as janelas da biblioteca se estilhaçassem e os cacos de vidro caíssem espalhados dentro e fora da casa. O jovem tenente quebrou o que restava de uma das janelas e, entrando, rolou pelo chão e se pôs de pé, com o automático apontado para os corpos caídos.
- Você está bem? - gritou ele para Hawthorne que, atônito, tinha se agachado num canto, atrás de uma cadeira.
- Como é que você veio parar aqui? - perguntou Tyrell, sem fôlego, tentando equilibrar-se sobre os joelhos. - Ele ia me matar!
- Eu tinha imaginado uma coisa assim...
- Aquele excesso de despedidas dos pilotos? - interrompeu Hawthorne, tentando respirar normalmente, com a testa molhada de suor. - E o banho quente que você não tomava há dias?
- Depois eu explico tudo, mas nosso motorista está escondido no meio dos arbustos, e não vai a lugar nenhum. Eu e a Cathy demos a volta na casa, vimos você aqui, e quando aquele gorila entrou correndo com o revólver na mão, a gente achou que não dava mais tempo para pensar.
- Obrigado por vocês não terem pensado. Ele me disse que eu ia morrer.
- Temos que sair daqui!
- Será que alguém pode me ajudar a pular a janela sem me cortar toda? - queixou-se Cathy. - Acho bom vocês saberem que tem uns homens correndo do portão para cá.
- A gente dá um jeito neles - disse Hawthorne, ajudando Poole a erguer a Major pela janela e correndo em seguida para trancar a porta da biblioteca. Quando começaram a bater, Tyrell fez o melhor que pôde para imitar a voz profunda de Van Nostrand. - Está tudo bem, o Brian só estava me mostrando o revólver novo dele. Voltem para os seus postos.
- Sim, senhor - foi a resposta. Os guardas reagiram automaticamente àquele nome conhecido, pronunciado por uma autoridade inquestionável. Os passos se afastaram.
- Está limpo - disse Tyrell.
- Você está louco! - disse Cathy, num sussurro áspero. - Tem dois cadáveres aqui!
- Eu não disse que era para sempre, só por enquanto.
- O jato deve decolar daqui a trinta e cinco minutos - disse Poole. - Acho que a gente devia embarcar nele.
- Trinta e cinco minutos? - exclamou Hawthorne.
- Esta é só uma parte da história. O passageiro era para ser o Van Nostrand, que ia para o aeroporto internacional de Charlotte, na Carolina do Norte, com cobertura diplomática. Não ia dar tempo para um jantar agradável e uma estada de uma noite, a não ser que você considere uma cova no meio do mato um bom lugar para dormir.
- Meu Deus, estava tudo cronometrado!
- Vamos embora daqui correndo.
- Ainda não, Jackson - persistiu Tye. - A gente pode encontrar algumas respostas aqui. O Van Nostrand era o sr. Netuno do Alfred Simon, e isto significa que ele fazia parte da lista de passageiros da ilha de padrone... e isto significa que através dele a gente pode localizar a Bajaratt.
- Tem certeza disso?
- Claro que tenho, Tenente. Ele admitiu que era o Netuno, e ainda disse claramente que essa informação não ia sobreviver à minha execução.
- Uau!
- Quando a gente estava saindo, entrou um carro - disse Neilsen. - Será que isso pode ter alguma ligação com essa história toda?
- Vamos descobrir - disse Tyrell.
- Tem vários chalés em volta da casa, uns quatro ou cinco, pelo menos, devem ser para os hóspedes - disse Poole, ajudando Cathy a sair pela janela. - Eu vi de dentro da limusine.
- Mas não tem nenhuma luz acesa - replicou Hawthorne, contornando a ala leste da casa, vendo toda a extensão do gramado e da vegetação mergulhados na escuridão.
- Mas tinha agora há pouco, eu vi.
- Ele tem razão - disse Cathy. - Ali, naquela direção. - Apontou para o sudoeste; mais uma vez, não se via nada.
- Talvez fosse melhor eu voltar lá na pista e dizer para os pilotos que está tudo bem. Aqueles caras já estavam nervosos antes dos tiros, imagine agora.
- Boa ideia - concordou Tyrell. - Diga a eles que o Van Nostrand estava fazendo uma exibição da sua coleção de armas, que ele tem uma galeria de tiro ao alvo em casa.
- Ninguém ia acreditar nisso! - disse Cathy.
- Eles vão acreditar em qualquer coisa, desde que seja uma explicação. Eles estão achando que daqui a meia hora vão estar fora daqui, com o bolso cheio de dinheiro, e é só isso que interessa a eles... Na verdade, vão se reanimar ao ver vocês. Vá com Jackson, está bem?
- O que é que você vai fazer?
- Dar uma examinada no terreno. Se você e o Poole viram luzes agora há pouco, por que será que elas estão apagadas agora? Dentro de casa a gente sabe que só está a cozinheira, que não sabe da armação do Van Nostrand; e ele com toda a certeza não estava recebendo outros hóspedes, já que estava de partida.
- Tome o seu revólver - disse o Tenente, tirando o automático do cinto. - Eu peguei ele no bolso daquele filho da puta, e peguei também o Magnum que estava na mão dele. Pode ficar com você também. Estou me sentindo um depósito de munição, porque achei mais duas armas com o motorista da limusine.
- Você me deu uma delas, Jackson - disse Neilsen.
- Mas ela não vai adiantar muito, Cathy. Pelas minhas contas, você só tem mais uma bala.
- Que eu espero sinceramente não ter que usar...
- Vocês dois vão para a pista. Façam aqueles pilotos acreditarem que está tudo de acordo com a programação e que, se houver algum atraso, vai ser curto. O Van Nostrand está dando uns telefonemas para Deus ou para alguns membros do primeiro escalão do governo, com quem ele tem assuntos importantes a tratar. Vão indo, corram!
- Tive uma ideia, Tye - disse Poole.
- Qual?
- Eu e a Cathy podemos pilotar aquele avião...
- Nada disso - interrompeu Hawthorne. - Eu quero que esses pilotos desapareçam. Não quero que eles estejam aqui para serem interrogados na hora em que descobrirem os corpos. A minha morte foi preparada num circuito fechado; as únicas pessoas que poderiam nos identificar eram os dois motoristas e, pelo que eu sei, um está inconsciente e o outro, morto. Isto nos dá uma folga.
- Bem pensado, Comandante.
- Era para isso que eu era pago antigamente, Major. Vão indo.
Os dois oficiais da Força Aérea atravessaram rapidamente o gramado na direção da pista de pouso enquanto Hawthorne examinava o terreno que se estendia a sudoeste. Havia uma série de pinheiros dispostos simetricamente, como que para oferecer alguma privacidade aos chalés de hóspedes que ficavam mais adiante, quase invisíveis sob o luar errático. Do outro lado de uma alameda estreita, viam-se vagamente dois desses chalés, separados por uma distância de dezenas de metros. Um deles estava com as luzes acesas menos de dez minutos antes; qual dos dois seria? Tentar adivinhar não ajudaria em nada; aproximar-se, talvez. E aproximar-se significava mover-se com todo o cuidado, atento às nuvens intermitentes que bloqueavam a luz da lua, e decidir em que momentos rastejar no chão ou caminhar normalmente, para não ser visto quando a escuridão diminuísse. Mais uma vez as lembranças distantes de sua outra vida lhe vieram à mente. Incidentes ocorridos quando um funcionário de protocolo, um burocrata entendiado como qualquer outro, se transformava em outra pessoa, comandando agentes em encontros noturnos, conversando com homens e mulheres em campos e catedrais, em becos e postos de fronteiras penetrados por rebeldes inconformados. Onde a menor e mais simples indiscrição poderia resultar num tiro na cabeça, de um lado ou de outro. Na do inimigo ou na própria. Loucura.
Hawthorne olhou para o céu; um enorme cúmulo deslizava rumo ao sul; em questão de segundos, ele interceptaria a lua. Tyrell esperou esse momento, atravessou a alameda correndo e mergulhou na grama. Engatinhando, parou imediatamente quando a nuvem acabou de passar. Deitado na grama, imóvel, ele pôs a mão no automático ao seu lado.
Vozes! Baixas, levadas pelas brisas da Virgínia, da mesma maneira como os ventos lá no alto levavam as nuvens. Duas vozes. Parecidas, mas não eram as mesmas, os tons eram diferentes; uma era um pouco mais grave, talvez mais áspera, mas ambas agitadas, apressadas - porém numa língua que não era o inglês. O que era aquilo? Lentamente, Hawthorne levantou a cabeça... Silêncio. Em seguida, ouviram-se novamente duas vozes, mas elas não vinham do chalé mais próximo, e sim do mais afastado, do chalé à esquerda, de dezenas de metros de distância.
Uma luz! Pequena, minúscula, nada além de um ponto, uma microlantema, talvez, mas não um fósforo, pois era estável, não oscilava. Havia alguém andando ali dentro - o facho de luz movia-se rapidamente de um lado para outro - alguém apressado, procurando alguma coisa. Por algum motivo, de algum modo, eles estavam envolvidos! E como que para confirmar essas conclusões, luzes de faróis surgiram de repente, subindo velozes a alameda estreita que dividia o terreno entre a casa e os chalés, na parte sul da propriedade. Era uma outra limusine, sem dúvida a mesma que Poole e Neilsen tinham visto entrar quando se dirigiam ao portão. O carro agora estava voltando para buscar os alarmados passageiros, que haviam chegado há menos de meia hora; duas pessoas haviam escutado os tiros; eles não estavam procurando qualquer explicação, e sim abandonando a casa de Van Nostrand o mais rápido possível!
O segundo Cadillac fez o retorno no final da alameda, um gracioso beco campestre sem saída, eliminando a necessidade de manobrar o veículo para tomar o caminho de volta ao portão. Parou de súbito, numa freada que fez cantar os pneus, e duas figuras saíram correndo do chalé, a maior delas carregando duas malas. Tye não podia deixá-los escapar, tinha que impedi-los. Deu um tiro no ar.
- Fiquem onde estão! - gritou, levantando-se e correndo para a frente. - Não entrem nesse carro!
Do meio da escuridão, uma luz ofuscante centrou-se em Hawthorne, e seu facho iluminou dois homens entrando na limusine, com tanta rapidez que ele não pôde ver claramente... Holofotes à noite e figuras correndo faziam parte do seu passado; ele parou, rodopiou para a direita e em seguida, com uma guinada, atirou-se para a esquerda, rolando no chão para fora do facho de luz, e escondeu-se atrás de uma moita de arbustos, enquanto uma rajada de tiros pontilhava o gramado escuro, onde os inimigos supunham que ele estivesse procurando abrigo. O carro arrancou em disparada, os pneus girando a toda velocidade, levantando nuvens de poeira na superfície da alameda. Tye fechou os olhos, furioso, e investiu contra o chão com a coronha do revólver.
- Hawthorne, onde é que você está? - Era a voz de Cathy, a chamá-lo freneticamente, enquanto ela vinha correndo pela alameda.
- Nossa, Cath, foi uma verdadeira fuzilaria! - aderiu Poole, um pouco atrás dela. - Tye, diga alguma coisa! Ai meu Deus, será que ele levou um tiro...
- Não, não...!
- Não sei bem - disse Hawthorne, levantando a voz e, vagarosamente, com dificuldade, tentando se pôr de pé; fez uma pausa momentânea e pôs as mãos sobre os joelhos.
- Cadê você...?
- Aqui - respondeu Tyrell; as nuvens velozes no céu permitiram que a lua voltasse a brilhar por alguns instantes, a luz revelou a figura do Comandante contornando os arbustos com passos vacilantes.
- Olhe ele ali! - exclamou Neilsen, correndo para junto dele.
- Você está ferido? - perguntou o Tenente, quando ele e a Major, ofegantes, alcançaram Hawthorne. - Está ou não está? - insistiu Poole, segurando o braço de Tye.
- Dos tiros, não - respondeu Hawthorne, fazendo uma careta e curvando o pescoço.
- De quê, então? - perguntou Cathy. - Aqueles tiros eram de metralhadoras!
- Era uma só - disse Jackson - e pelo barulho era uma MAC, não era uma Uzi.
- Uma pessoa consegue atirar com uma MAC-10 ao mesmo tempo que dirige uma limusine numa alameda estreita? - perguntou Tyrell.
- Não é muito fácil, eu diria.
- Então eu poderia estar morto, mas é possível que você esteja errado, Tenente.
- Mas que diferença isso pode fazer? - protestou Neilsen.
- Nenhuma - admitiu Hawthorne. - Eu só estava querendo mostrar que o nosso papa de Pontchartrain também erra... Não, eu não estou ferido, só um pouco dolorido por causa de uma manobra de evasão que eu não praticava há muito tempo. Como é que estão os pilotos do Van Nostrand?
- Estão alucinados - respondeu Cathy - e eu tenho certeza de que isso tem alguma coisa a ver com o que o Jackson falou, que eles não são candidatos a nenhuma medalha de bom comportamento. Eles querem sair daqui o mais rápido possível!
- Vocês saíram de lá antes disso... dos tiros?
- Há uns três minutos no máximo - disse Neilsen.
- Então agora ninguém segura eles, e talvez seja melhor assim.
- Ah, mas tem uma coisa para segurar eles sim, Comandante - disse o Tenente.
- Do que é que você está falando? É só eles decolarem.
- E você está ouvindo algum barulho de avião decolando? - Poole sorriu. - Eu fiz uma brincadeirinha infantil com eles.
- Poole, o que foi que você fez? Eu posso botar você na frente de um pelotão de fuzilamento...
- Ah, porra, foi só uma brincadeira, e essas coisas simples sempre funcionam. Enquanto a gente estava lá discutindo com aqueles dois biscateiros histéricos, eu virei para trás, olhei para a cauda do avião e gritei: "Quem é que está aí?" Claro que eles viraram a cabeça, achando provavelmente que iam ver uma patrulha de motocicletas, aí eu me estiquei para dentro do avião e peguei a chave da porta em cima do console. Eles não desconfiaram de nada, lógico, porque depois eu disse que era só um veado que passou correndo; aí eles respiraram fundo até a pressão voltar ao normal e, enquanto isso eu fechei a única porta aberta, que tranca automaticamente... Eles não vão a lugar nenhum, Tye. E quando eles forem, se forem, a gente pode ir junto.
- A minha opinião sobre você estava certa, Tenente - observou Hawthorne, olhando para Poole. - Você tem uma intuição impressionante, e uma versatilidade incrível, duas coisas que combinam muito bem... que tal isto numa avaliação de desempenho?
- Nossa, ótimo. Muito obrigado, chefe.
- Não se precipite. Esses mesmos atributos poderiam nos botar numa confusão dos demônios.
- Como? - perguntou Cathy, na defensiva.
- Já que o avião não decolou, tudo vai depender do que estiver acontecendo no portão de entrada depois que os guardas ouviram os tiros de metralhadora, e do que vai acontecer quando a cozinheira não conseguir encontrar Van Nostrand e o marido dela. Todo mundo vai saber que a gente ainda está aqui porque o avião não decolou.
- Pelo que eu me lembro - disse Neilsen - o marido dela era o nosso motorista.
- E a limusine tem um telefone - acrescentou Tyrell.
- Puta que o pariu! Você tem razão! - exclamou Poole. - E se o pessoal da portaria encontrar a limusine vazia e chamar a polícia? E se já tiverem chamado? A polícia pode chegar a qualquer momento, atrás de nós!
- A minha intuição me diz que eles não vão chamar a polícia - disse Hawthorne - mas eu não confio mais nela como antigamente. Estou afastado há muito tempo.
- A questão toda é a portaria - resumiu Poole.
- Exatamente - concordou Hawthorne. - Se eu estou certo, deveria ter carros, ou carrinhos de golfe, ou pelo menos homens com lanternas correndo para essa área, mas não tem nada. Por quê?
- Talvez a gente devesse tentar descobrir - disse Jackson. - Talvez eu pudesse dar um pulo lá no portão para ver o que está acontecendo.
- E levar um tiro, seu idiota?
- Cathy, eu não vou chegar lá tocando tambor nem corneta.
- Mas ela tem razão - disse Tyrell. - Posso estar ultrapassado em algumas coisas, mas não nisto. Vou até lá, e a gente se encontra no avião.
- O que foi que aconteceu aqui? - perguntou Neilsen. - O que você viu?
- Do is homens, um bem alto, carregando malas, e outro mais baixo e mais magro, o chapéu. Eles entraram correndo no carro quando a luz acendeu em cima de mim.
- Quem é que usa chapéu com um tempo destes? - perguntou Poole.
- Um careca, Jackson - respondeu Hawthorne. - É uma marca registrada. Procedimento padrão... Leve a Cathy de volta para a pista e tente acalmar os pilotos...
- Ele não precisa me levar, sou perfeitamente capaz de...
- Ai, cale a boca, Cathy - interrompeu Poole. - Ele só está dizendo que se aqueles dois cagões resolverem se insubordinar, é melhor eu controlar a situação do que você dar um tiro neles. Só isso.
- Está bem.
- E escutem o que eu vou dizer - continuou Tyrell, com firmeza. - Se eu tiver algum problema, vou dar três tiros seguidos. Se eu der esse sinal, vocês peguem o avião e vão embora daqui.
- E deixar você para trás? - perguntou Neilsen, surpresa.
- Isto mesmo, Major. Acho que eu já disse que não sou nenhum herói. Não gosto de heróis porque a maioria deles morre, e essa perspectiva não me agrada nem um pouco. Se houver algum problema, prefiro me mandar daqui sozinho, sem nenhuma bagagem.
- Puxa, muito obrigada!
- Foi para isso que eu fui treinado, para isso que eu era pago.
- Ei, e se eu fosse com você? - sugeriu Poole.
- Você mesmo já respondeu a essa pergunta, Tenente. E se os pilotos resolverem se rebelar?
- Então vamos lá, Cath!
O Buick cinza-claro do Departamento de Defesa estava estacionado próximo à estrada, num lugar onde não podia ser visto, o capô e o para-brisa cobertos pelos galhos das árvores que o circundavam. Era o acesso à propriedade de Van Nostrand, uma estrada de menos de um quilômetro, no meio de um bosque; os quatros homens que ocupavam o carro estavam entediados, aborrecidos e ressentidos por terem recebido aquela incumbência fora do seu horário de trabalho, sem nenhuma autonomia para agir nem qualquer explicação sobre a razão de estarem ali. Eles deveriam apenas observar e, em hipótese alguma, ser observados.
- Lá vai ele! - disse o motorista, estendendo a mão para pegar um cigarro sobre o painel, quando uma limusine emergiu do portão de entrada de Van Nostrand e dobrou à direita. - Se algum carro sair de lá depois das nove horas, a gente pode ir para casa.
- Então vamos para casa - disse do banco traseiro um funcionário da segurança do Departamento de Defesa. - Isso tudo era bobagem.
- Alguém lá no alto deve estar querendo saber quem estava comendo quem - acrescentou uma segunda voz, do fundo do automóvel.
- Pura bobagem - disse o homem ao lado do motorista, pegando o rádio. - Vou avisar que estamos indo embora.
Sentada no banco traseiro da limusine, Bajaratt estava atônita, incapaz de concatenar as ideias. O homem sob o refletor era Hawthorne! Como era possível? Não podia ser, mas ele estava lá! Seria uma coincidência? Ridículo. Isto seria admitir o inadmissível - o que seria aquilo? O padrone? Seria isso? Meu Deus, era... O padrone, Marte e Netuno! A paixão da carne entrelaçada à idêntica paixão do poder e da supremacia. Um roubado ao outro, morto por um terceiro. Ah, aquele idiota! Van Nostrand não podia deixar que ele escapasse; ele havia chamado Hawthorne à sua casa para matá-lo - ele é meu, de mais ninguém - e Baj nunca mais teria notícias dele depois dessa noite.
Era uma partida de xadrez disputada no inferno, os reis e os peões num confronto irrevogável, incapazes de eliminar um ao outro sem uma ruptura que poderia destruir a ambos... Mas isso não podia acontecer. Ela estava tão perto... mais alguns dias e Ashkelon seria vingada, sua vida infeliz passaria a significar alguma coisa! Muerte a toda autoridad! Nada poderia impedi-la, jamais!
Paris. Ela tinha que descobrir.
- O que está acontecendo? - perguntou Nicolo num sussurro, ainda com a respiração ofegante e irregular provocada pelo tiroteio e pela fuga apressada. - Acho melhor você me contar.
- Não é nada conosco - replicou Bajaratt, pegando o telefone da limusine. Digitou os códigos para Paris e, em seguida, o número da Rue du Corniche. - Pauline? - perguntou, enfática. - É só com ela.
- Sou eu mesma - confirmou a mulher em Paris. - E a senhora é...
- A filha única do padrone.
- Isto basta. O que eu posso fazer pela senhora?
- Saba voltou a ligar?
- Certainement, madame. E bastante nervoso. Perguntou por que ele não tinha encontrado a senhora em Saba, e acho que consegui tranquilizar o seu amigo. Ele pareceu satisfeito.
- Satisfeito como?
- Ele aceitou a explicação de que seu tio se mudou para outra ilha e de que a senhora sabia onde procurar por ele quando voltasse para o Caribe.
- Ótimo. No Olympic Charters, em Charlotte Amalie, não é?
- Isto eu não sei, madame.
- Então esqueça o que eu disse. Vou deixar um recado para ele.
- Pois não, madame. Adieu.
Bajaratt desligou o telefone e em seguida ligou para o número 809 em St. Thomas, para falar com a Olympic Charters. O que ela ouviu era exatamente o que esperava ouvir àquela hora da noite.
Você ligou para a Olympic Charters, Charlotte Amalie. Nosso horário de atendimento começa às seis horas da manhã. Se for uma emergência, disque 1, e você será atendida pela patrulha da Guarda Costeira. Caso contrário, deixe o seu recado após o sinal.
- Meu bem, é Dominique! Eu estou num cruzeiro chatíssimo pela costa de Porto fino, e quase não estou aguentando mais! Mas a boa notícia é que estou voltando daqui a três semanas. Convenci o meu marido de que tenho que ir ficar com o meu tio, ele agora está na ilha do Cão. Desculpe eu ter esquecido de contar a você, mas eu disse que ele está sempre se mudando, não disse? Nossa, a Pauline me deu a maior bronca por eu não ter explicado direito. Mas não faz mal, logo, logo vamos estar juntos. Eu amo você!
Baj pôs o telefone no lugar, irritada com o olhar de Nicolo.
- Por que é que você diz essas coisas, Cabi? - perguntou o rapaz. - A gente vai voltar para o Caribe? Para onde estamos indo?... Esses tiros, agora há pouco, a gente fugindo desse jeito! O que é que está acontecendo? Você tem que me contar!
- Eu não posso contar uma coisa que eu não sei, Nico. Você ouviu o que o motorista disse, era um assalto. O dono daquela casa é milionário, a gente nem faz ideia da fortuna dele, e os tempos estão difíceis aqui nos Estados Unidos. É um crime atrás do outro. É por isso que tem aquela guarita na portaria e o terreno é todo cercado. Eles têm que estar preparados para esse tipo de coisa. Mas aquilo não teve nada a ver conosco, acredite em mim.
- É meio difícil de acreditar. Se eles têm guardas e toda aquela segurança, por que é que a gente está fugindo?
- A polícia, Nicolo! Eles chamaram a polícia, e é claro que eu e você não queremos ser interrogados. Somos estrangeiros, estamos aqui de visita; seria um constrangimento, uma humilhação... O que é que a Angelina ia pensar?
- Ah... - O olhar inflexível do rapaz tornou-se um pouco mais suave. - E por que nós viemos para cá?
- Porque eu soube através de um amigo que teríamos quartos só para nós, empregados só para nós... e o dono da casa ia me arranjar uma secretária, pois eu tenho um monte de cartas para escrever.
- Você fala tanto, e você é tantas pessoas ao mesmo tempo! - Por entre as sombras que passavam pelo automóvel, o jovem italiano continuou a fitar a mulher que salvara a sua vida no cais de Portici.
- Pense nas suas liras lá em Nápoles, querido. Tenho muitas coisas para resolver.
- Você podia resolver onde é que nós vamos passar a noite.
- Ah, agora sim você está pensando. - Baj apertou o botão do interfone para falar com o motorista. - Existe algum lugar aqui por perto que você ache razoável para passarmos a noite?
- Existe sim, senhora, eu já liguei para lá e fiz as reservas. Por conta do sr. Van Nostrand, claro. É o Shenandoah Lodge; vocês vão achar mais do que razoável.
- Obrigada.
Tyrell esgueirou-se pela beira do gramado, protegido pelas sombras dos pinheiros. A guarita de pedra com as cancelas que fechavam a estrada de mão dupla estava a menos de trinta metros, os últimos dos quais, porém, sem a cobertura dos pinheiros. Era um espaço aberto, um gramado entre a estrada e a cerca fortificada de três metros de altura, com grades roliças com pontas de metal ameaçadoras; não era preciso ser um especialista para saber que havia uma possante corrente elétrica ligando as pontas daquelas hastes. E tampouco eram necessários muitos anos de experiência para perceber que as duas cancelas atravessadas na estrada de acesso não eram meras pranchas de madeira; pela espessura, eram placas de aço laminado. Apenas um tanque poderia derrubá-las; um automóvel, qualquer que fosse o seu tamanho, sofreria um impacto capaz de destruí-lo como se tivesse batido numa muralha de ferro. As cancelas estavam fechadas agora.
Hawthorne observou a guarita. Era uma estrutura quadrada, de paredes de pedra; as janelas eram de vidro espesso, nos dois lados que ele conseguia ver, e o teto era arrematado por uma torrinha decorativa, como num castelo medieval. O finado Van Nostrand, ou Netuno, era um homem precavido; a entrada daquela propriedade fantástica era à prova de choque, à prova de bala, e ai do invasor incauto que tentasse escalar a cerca. Seria reduzido a torresmo.
Não havia ninguém à vista em nenhuma das duas janelas, e Tye atravessou correndo a área descoberta, escondendo-se atrás da parede de pedra ao alcançar a guarita. Com movimentos lentos, muito lentos, esticou a cabeça na direção da vidraça impenetrável. O que viu deixou-o boquiaberto - era absurdo! Sentado numa cadeira, com o corpo inerte sobre a mesa de formica a uns três metros da porta, estava um guarda uniformizado, com a cabeça ensanguentada. Ele havia levado não apenas um, mas vários tiros no crânio.
Hawthorne contornou a guarita e chegou à porta; estava aberta. Entrou correndo, tentando assimilar tudo o que havia para se ver. Era um caleidoscópio da alta tecnologia: dezenas de televisões dispostas em três camadas, todas ligadas, cobrindo cada trecho do terreno, inclusive captando sons. Os pios e grasnidos dos pássaros se misturavam ao farfalhar do vento nas folhas e no capim das áreas mais afastadas da propriedade.
Por que haviam matado o guarda? Por quê? Com que finalidade? E onde estavam os seus colegas de plantão? Um homem como Netuno, e muito menos o chefe da sua segurança, um paranoico, jamais entregaria o portão principal aos cuidados de um único indivíduo; seria uma loucura, e nem Van Nostrand nem o frio e eficiente Brian eram loucos - pervertidos, sim, mas não estúpidos. Tye examinou os equipamentos, desejoso de que Poole estivesse ali com ele; várias máquinas indicavam a gravação ininterrupta de fitas audiovisuais. Muitas respostas poderiam ser encontradas se se apertassem os botões certos, mas tudo poderia se apagar se fossem escolhidos os botões errados.
O maior mistério era o fato de aquele lugar estar deserto. O que teria provocado a debandada geral? Os tiros? Aquilo não fazia sentido; os guardas estavam armados, como testemunhara aquele homem morto na cadeira, ainda com um revólver 38 no coldre. E era óbvio que Van Nostrand contratava e pagava sua equipe de segurança em troca de absoluta lealdade; por que então suas tropas tão bem remuneradas e tão leais não haviam corrido para proteger seu generoso patrão? Num exame superficial, parecia duvidoso que eles pudessem encontrar um emprego melhor.
O telefone da guarita tocou, deixando Hawthorne não só perplexo, como também imobilizado... Imponha-se o máximo autocontrole, Comandante. Sangue-frio, neutralidade. Se acontecer o inesperado, faça tudo para transmitir a maior naturalidade.
Palavras de um antigo instrutor da inteligência naval, palavras que o próprio Ty reli já havia dito a tantos outros no passado... em Amsterdã.
Tyrell pegou o fone e tossiu várias vezes antes de começar a falar.
- Aloooô? - disse ele, com uma voz indistinta, num tom de hostilidade.
- O que é que está acontecendo aí fora? - gritou uma mulher, do outro lado da linha. - E não estou conseguindo falar com ninguém, nem com o sr. Van, nem com o Brian, nem com o meu marido, no carro... ninguém! E onde é que você estava nos últimos cinco minutos? Eu liguei várias vezes e nada!
- Eu estava dando uma olhada aqui em volta - respondeu Hawthorne num tom mal-humorado.
- E aqueles tiros, aquele monte de tiros?
- Devia ser alguém caçando veados - disse Tyrell, lembrando-se da brincadeira de Poole com os dois pilotos.
- Com uma metralhadora? De noite?
- Cada louco com a sua mania.
- Você é que está louco, está todo mundo louco nesta casa!
- É...
- Bem, se você conseguir falar com o sr. Van ou com alguém, diga que eu vou ficar aqui na cozinha com todas as portas trancadas. Se quiserem jantar, eles que me chamem! - Com esta declaração, a cozinheira bateu o telefone.
A situação era ainda mais espantosa - a mulher confirmara que todos haviam debandado, tendo matado talvez o único que não quisera ir com eles, e que poderia comprometer os companheiros. Era como se o fantasma de Armagedon tivesse penetrado na casa, sussurrando nos ouvidos de todos: Chegou a hora. Hoje à noite. Salve-se quem puder! O que mais poderia ser aquilo?... Ainda assim, havia respostas ali, mas a única resposta verdadeira, a única ligação com Bajaratt estava nas células mortas do cérebro morto de Van Nostrand.
Hawthorne retirou o 38 salpicado de sangue do coldre do guarda morto; prendeu-o entre o polegar e o indicador, levou-o até o lavabo, limpou-o com toalhas de papel e enfiou na cintura. Em seguida, voltou a examinar o equipamento da guarita e concentrou-se no painel que ficava acima do balcão mais próximo à entrada, achando que era dali que se comandavam as cancelas. Havia seis enormes botões coloridos formando dois triângulos idênticos, um ao lado do outro. Os botões do lado esquerdo de cada triângulo eram verdes; os da direita, marrons; e os de cima, bem maiores do que os de baixo, eram de um vermelho vivo. Abaixo de cada botão havia uma placa amarela com letras pretas onde se liam, na mesma ordem, as palavras "ABRIR", "FECHAR", e sob o botão vermelho, em letras mais graúdas, "ALARME".
Tyrell escolheu o triângulo da esquerda e apertou o botão verde, "ABRIR"; a cancela mais próxima começou a erguer-se. Apertou o botão marrom; ela voltou à posição horizontal. Parecia óbvio que o triângulo esquerdo era para a entrada de automóveis na propriedade e o direito, para a saída. Para se certificar, ele repetiu o procedimento no outro triângulo; a cancela mais afastada subiu e desceu. Tanta tecnologia para aquilo; não havia motivo para ativar o alarme e todos os motivos para não fazê-lo.
Ele havia-se decidido, considerando que o risco era mínimo, pelo menos temporariamente. Ia se encontrar com Neilsen e Poole na pista de pouso e anunciar a sua decisão. Eles poderiam optar entre tomar o avião com os dois pilotos e investigar a conexão de Charlotte, Carolina do Norte - descobrir especificamente quem era o responsável pela escolta de Van Nostrand até o portão de embarque internacional - ou permanecer com ele para vasculhar o escritório e Van Nostrand. A escolha seria deles e cada alternativa tinha o seu lado positivo. A "liberação" do aeroporto podia vir de várias pessoas, sua origem burocrática podia ser enterrada ou atribuída a um nome fictício, mas os membros da escolta poderiam constituir uma pista concreta para se descobrir o responsável. Por outro lado, Tyrell poderia dispor de dois pares a mais de olhos para pesquisar tudo o que pudesse ser encontrado no escritório de Van Nostrand, bem como no resto da casa. Ao deixar sua moradia, impondo-se circunstâncias tão desgastantes, não seria difícil que o senhor daquele feudo tivesse tido algum descuido, algum lapso de memória.
Hawthorne puxou o corpo do guarda, afastando-o da mesa empoçada de sangue e, segurando-o por baixo dos braços, arrastou o cadáver até o lavabo. Estava lavando as mãos na pia minúscula, quando escutou o ronco do motor de um automóvel - alto, furioso - que parou com uma freada abrupta e ruidosa... Ele estaria errado? A polícia estaria atendendo a um chamado de emergência? Com a mente tumultuada, saiu correndo do banheiro, pegou no chão o boné do vigia e postou-se de frente para a janela de vidro; sentiu um alívio imediato. Era um Chevrolet azul, um carro civil, e não estava entrando na casa, estava saindo. Tyrell olhou para o balcão e para os botões, lembrando-se instintivamente que deveria escolher o triângulo da direita, o da saída.
- Pois não - disse ele, aproximando-se do microfone embutido.
- Que história é essa de "pois não", seu panaca? - disse uma voz alvoroçada pelos alto-falantes da guarita. - Deixe eu sair daqui! E quando aquele imbecil do meu marido voltar com a limusine, diga para ele que eu fui para a casa da minha irmã; ele pode ligar para lá... Ei, espere aí! Quem é você?
- Eu sou novo aqui - disse Tyrell, apertando o botão verde do segundo triângulo. - Boa noite, minha senhora.
- Doidos, vocês estão todos doidos! É avião chegando, tiro disparando, o que mais?
O Chevrolet arrancou rumo à escuridão e Hawthorne fechou a cancela. Olhando em volta, ponderou se havia mais alguma coisa que pudesse fazer, que ele pudesse levar... Sim, provavelmente havia; sobre a mesa de fórmica estava um caderno espiral, molhado de sangue. Abriu o caderno e virou as páginas, quase soltas; elas continham os nomes, as datas e os horários de todas as visitas recebidas por Van Nostrand desde o início do mês, cerca de dezoito dias. Na pressa, ou ansiedade, era possível que Netuno tivesse cometido o primeiro erro. Tyrell fechou o caderno, colocou-o debaixo do braço - subitamente, ocorreu-lhe o óbvio, e ele, atirando o caderno de volta sobre a mesa, pôs-se a folhear as páginas onde estavam registradas as entradas daquela noite. A limusine que havia partido às pressas tendo como passageiros dois fugitivos, os hóspedes do chalé. Havia apenas um nome, o suficiente, porém, para incendiar o cérebro de Hawthorne! Ele continha parte de um nome que a visitante não imaginava que os seus caçadores soubessem, e seu ego maníaco exigia que ele estivesse ali, uma trilha a ser seguida por comissões oficiais e por estudiosos de fenômenos históricos. Esse reconhecimento máximo não seria negado a ela.
Madame Lebajerone, Paris.
Lebajerone.
Baj.
Dominique.
Bajaratt!
19
Tyrell saiu da guarita, deixando a porta entreaberta, e correu em direção a uma brecha no gramado gigantesco, por onde ele poderia cortar caminho para chegar à pista de pouso. Ao alcançar a grama, porém, ele diminuiu o passo, sentindo-se confuso, de início sem saber por quê; não custou a entender. Esperava ver uma faixa de luz âmbar ao se aproximar da pista. Ela não estava visível; só havia escuridão. Retomou a corrida, mais veloz do que antes, e cruzou uma passagem estreita na sebe alta que se estendia entre o jardim e o campo.
Imaginara que Neilsen e Poole estariam esperando por ele com os dois pilotos, e que poderia vê-los assim que chegasse na pista. Mas não havia ninguém; alguma coisa estava errada. Escondeu o caderno da portaria sob um arbusto, cobriu-o de terra e voltou os olhos para examinar o campo de aviação.
Silêncio. Nada. Apenas os contornos brancos do jato da Gulfstream.
Alguma coisa... um movimento! Onde? Ele vira pelo canto do olho - à direita, do outro lado do pavimento da pista. Concentrou o olhar naquela área, agora com a ajuda do luar, pois os raios se refletiam como se houvesse um espelho. Era a torre de controle, que não era uma torre, e sim uma construção de apenas um andar, na sua maior parte de vidro, com uma antena parabólica instalada muito acima, ancorada ao telhado através de fios. Alguém estava se movimentando atrás de uma das grandes janelas, e fora surpreendido pelos raios da lua no céu sem nuvens.
A noite voltou a escurecer e Hawthorne, acocorando-se no gramado, recuou até a sebe, onde se levantou e se pôs a correr de brecha em brecha, contornando a extremidade da pista. Em um minuto, estava a menos de cem metros da "torre", ofegante, com o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pelo pescoço, encharcando sua camisa. Teriam os pilotos subjugado Catherine e o jovem tenente, que estava armado? Considerando os talentos de Poole, essa hipótese não parecia provável, pelo menos sem um tiroteio, e isto não ocorrera.
Outro movimento! Uma figura opaca, ou uma sombra, havia-se aproximado rapidamente da enorme janela de vidro e desaparecido com a mesma rapidez... Eles o tinham visto quando ele correu pela passagem na sebe, e agora o estavam procurando. De repente, uma lembrança recente voltou à memória de Hawthorne, uma lembrança de três dias atrás - três noites atrás - numa ilha anônima ao norte da passagem de Anegada... Fogo. Uma das imagens mais poderosas para homens ou animais, confirmada pelos cães de guarda que corriam e rosnavam na fortaleza do padrone.
Ainda escondido atrás da sebe, Hawthorne começou a catar no chão galhos secos e folhas caídas, queimadas pelo sol do verão, e depois levantou-se, tentando encontrar galhos quebradiços em meio à folhagem; quanto mais no alto ele procurava, mais fácil se tornava achá-los. Em apenas quatro minutos de transpiração, havia erguido um monte de quase trinta centímetros de altura por cinquenta de largura; era uma "ignição" capaz de incendiar até carvão molhado. Meteu a mão no bolso da calça para pegar sua inseparável caixa de fósforos - inseparável desde a época em que era um fumante inveterado; com as mãos em concha, acendeu um deles. Pôs fogo na base, atirando a caixa de fósforos no meio da pira, e afastou-se de gatinhas, fazendo uma volta pela direita, até chegar à seção seguinte da sebe. Estava agora numa posição paralela à estrutura de vidro, a pouco mais de vinte metros da porta metálica.
O fogo se propagou pelos arbustos numa velocidade muito maior do que Tyrell poderia supor, e ele agradeceu aos deuses, quaisquer que fossem eles, pelo sol causticante do estado da Virgínia. As brisas úmidas da noite ainda não haviam chegado; a cobertura da sebe estava seca, e a folhagem interna fazia com que as chamas subissem em ondas, espalhando-se rapidamente para ambos os lados. Em instantes, a fogueira se transformou numa erupção assustadora de labaredas sucessivas, que cresciam para a direita e para a esquerda. Duas figuras - não, três - apareceram na janela de vidro dos fundos. Estavam agitadas; sacudiam as cabeças para baixo e para os lados; esticavam e recolhiam as mãos, vagando de um lado para o outro, indecisas, em pânico. A porta metálica se abriu e as três figuras surgiram no batente, uma na frente e duas atrás. Tyrell não conseguia ver os rostos, mas sabia que nenhuma daquelas pessoas era Neilsen ou Poole. Tirou o 38 do cinto e esperou, com três perguntas na mente: Onde estavam Cathy e Jackson? Quem eram aqueles três, e o que tinham a ver com o desaparecimento dos dois oficiais da Força Aérea?
- Meu Deus, os reservatórios de combustível! - gritou o homem da frente.
- Onde eles ficam? - A voz do segundo era conhecida de Hawthorne: o copiloto do jato da Gulfstream.
- Ali! - Tye pôde ver a figura a gesticular freneticamente em direção a algum ponto da pista. - Toda essa porra pode ir pelos ares! Os reservatórios comportam quase quatrocentos mil litros.
- Mas é tudo subterrâneo! - protestou o piloto.
- Eu sei, meu amigo, e eles são cobertos de placas de ferro. Mas os tanques estão pela metade; o vapor fica na parte de cima, e pode explodir se o metal esquentar demais. Vamos cair fora daqui!
- Mas a gente não pode abandonar os dois! - exclamou o piloto. - Eles vão morrer, e eu não quero ser responsável por isso.
- Vocês façam o que quiserem, seus babacas, eu vou embora!
O homem saiu correndo pela grama e sua silhueta passou pela frente das chamas. Os dois pilotos entraram na torre e desapareceram; Hawthorne seguiu em frente, esgueirando-se e andando de cócoras, até chegar a um dos cantos da estrutura de vidro. Examinou o terreno à sua volta. As labaredas na sebe ondulavam, erguendo-se em direção ao céu. De repente, Poole e Neilsen foram empurrados para fora da construção de vidro, amordaçados e com as mãos amarradas para trás; Cathy caiu no chão e Jackson se jogou sobre ela, cobrindo-a com seu próprio corpo, como se estivesse esperando tiros. Os pilotos da Gulfstream saíram em seguida, com ar assustado, inseguro.
- Vocês dois aí! - chamou o copiloto. - Levantem-se, vamos embora!
- Vocês não vão a lugar nenhum! - Tyrell estava de pé, com o 38 apontado ora para a cabeça de um, ora para a do outro. - Seus vermes nojentos, ajudem eles a se levantar! Tirem essas cordas e essas mordaças deles!
- Ei, cara, a gente não fez isso porque queria, não! - protestou o copiloto, enquanto seu colega se apressava em ajudar Neilsen e Poole a se levantarem e os desamarrava, deixando que cada um tirasse a sua mordaça. - Foi aquele operador de rádio que apontou a arma para nós todos.
- Ele mandou a gente amarrar e amordaçar os seus amigos - interveio o piloto. - Ele participou do treinamento de hoje de manhã, e como sabia que a gente estava trabalhando para o Van Nostrand, não criou problema para o nosso lado.
- Melhor do que isso - interrompeu o copiloto, olhando para a sebe em chamas. - Ele disse que a gente estava autorizado pela "segurança do sr. Van Nostrand", mas não sabia o risco que ele e os outros caras estavam correndo... Vamos sair logo daqui. Você ouviu o que ele disse, os reservatórios de combustível!
- Onde é que eles ficam? - perguntou Hawthorne.
- A um pouco mais de cem metros desta birosca de vidro - respondeu Poole. - Eu vi as bombas enquanto eu e a Cathy estávamos esperando você.
- Não quero saber onde é que fica nada! - gritou o copiloto. - O cara disse que pode ir tudo pelos ares!
- E pode mesmo - disse o Tenente - mas não é muito provável. As bombas têm isoladores térmicos, e para as placas de metal chegarem ao ponto de incendiar o combustível, só com a temperatura de um maçarico.
- E isso poderia acontecer?
- Poderia, Tye, uma chance em mil. Porra, não é à toa que é proibido fumar nos postos de gasolina.
Hawthorne voltou-se para os dois pilotos amedrontados.
- A sorte está a seu favor, companheiros - disse ele. - Me deem as carteiras e os documentos. Os passaportes também.
- Você está de sacanagem, não está?
- Não, não estou, e acho bom vocês fazerem o que eu estou mandando. Andem, passem tudo para cá! Depois eu devolvo.
- Você é da polícia federal, por acaso? - Relutante, o piloto remexeu os bolsos e entregou a Tyrell a carteira e o passaporte. - Espero que saiba que nós fomos contratados regularmente e não estamos transportando armas nem substâncias ilegais. Se você quiser, pode nos revistar, e a aeronave também. Não vai encontrar nada.
- Parece que você já passou por este tipo de rotina outras vezes... você também, seu pirata aéreo!
- Eu sou piloto profissional e trabalho como autônomo, prestando serviços - disse o copiloto, entregando a Hawthorne o que ele solicitara.
- Anote os nomes e as informações pertinentes, Major - continuou Tyrell, passando as carteiras e os passaportes para Neilsen. - Vá ali dentro e acenda a luz.
- Pode deixar, Comandante. - Cathy entrou na casa de vidro.
- Major... Comandante? - exclamou o piloto. - Que porra é essa? Tiros, uma pista de pouso pegando fogo numa casa destas, e militares...? Onde foi que esses filhos da puta nos meteram, Ben?
- Eu sou tenente - disse Poole.
- Não sei, Sonny, mas o que eu sei é que se a gente conseguir sair daqui, a gente nunca mais trabalha para eles!
- E quem são eles? - perguntou Hawthorne.
Os dois se entreolharam.
- Vá, diga para ele - disse o piloto. - Eles não têm nada a dizer de nós!
- Transporte Aéreo Internacional - respondeu o copiloto. - É um serviço de recrutamento, tipo uma agência de empregos de alto nível.
- Deve ser de alto nível mesmo. Onde é que fica?
- Em Nashville.
- Melhor ainda. Todos aqueles milionários do interior.
- A gente nunca transportou nenhum criminoso, nem ninguém que estivesse levando substâncias ilegais...
- Você já disse isto, sr. Piloto. Fora essa especialidade em assuntos legais, onde foi que vocês se formaram? Em alguma escola militar?
- De jeito nenhum - replicou o copiloto, raivoso. - Nas melhores escolas civis, credenciadas pela Agência Federal de Aviação, e com treinamento de mais de cinco mil horas de voo.
- Você tem alguma coisa contra os militares? - perguntou Poole.
- A hierarquia é muito rígida, atrapalha as iniciativas individuais. Nossos pilotos são melhores.
- Escute, espere aí um minuto...!
- Calma, Tenente - disse Hawthorne, vendo Catherine sair da casa. - Alguma surpresa? - perguntou, fazendo um sinal para que a Major devolvesse as carteiras e os passaportes.
- Só uma ou duas - respondeu Cathy, entregando os documentos dos pilotos. - Os nossos rapazes se chamam Benjamim e Ezequiel Jones. Eles são irmãos. Andaram viajando bastante de uns dois anos para cá. Lugares interessantes, como Cartagena, Caracas, Porto Príncipe, e Estero, na Flórida.
- Ali, perto de Everglades? - disse Tyrell.
- Aquela área é barra-pesada, não é, Ezequiel?
- A gente não vai embora daqui? - O suor escorria pelo rosto do copiloto, que não tirava os olhos das chamas.
- Vai, a gente já vai embora - respondeu Hawthorne - e vocês vão fazer exatamente o que eu mandar. O Tenente me informou que vocês receberam sinal verde de Charlotte...
- A hora da partida já passou, e a gente ainda não tem outro horário confirmado! - objetou Benjamim Jones. - Vai ser difícil a gente conseguir outra autorização para essa rota. Ela tem muito tráfego!
- Seria melhor vocês voltarem para uma daquelas escolas tão bem conceituadas - disse Jackson. - Na hora em que estiverem decolando, eu já vou ter conseguido autorização para outra rota, ou então confirmado a rota antiga.
- Você consegue fazer isso, Poole?
- Claro que consegue - respondeu Cathy. - Eu também. Esse equipamento aqui se comunica com todas as torres, desde Dulles até Atlanta. Como disse o Ben quando a gente estava vindo, o Van Nostrand não é qualquer um, não.
- Você quer que a gente pouse no meio de um bando de federais que estão esperando um passageiro que não vai estar no avião? - gritou Sonny-Ezequiel Jones. - Vocês estão é loucos!
- Você é que está louco, se está pensando em não ir - disse Tyrell com toda a calma, pegando no bolso um bloquinho de telefones e uma caneta, cortesia do hotel de San Juan. - Este é o número para onde vocês vão ligar quando chegarem em Charlotte. Usem o cartão de crédito, porque o telefone é nas Ilhas Virgens e vocês vão falar com uma secretária eletrônica.
- Você está louco! - berrou Benjamim Jones.
- Sinceramente, acho que vocês deviam fazer o que eu estou dizendo. Vejam bem, se vocês se recusarem, nunca mais vão pilotar nenhum avião regular neste país. Por outro lado, se me obedecerem, depois vocês estão liberados... com uma condição, que eu vou explicar quando chegar o momento.
- Que condição? O que é que a gente tem que fazer?
- Para começar, vocês não vão ser recebidos por nenhum bando, e sim pela escolta diplomática do Van Nostrand, só uma pessoa, no máximo duas. Quero saber o nome dessas pessoas; vocês só falem com eles depois que eles assinarem um recibo.
- Que recibo?
- A data, a hora e as assinaturas correspondentes aos documentos de identidade deles, e o nome da pessoa que deu sinal verde para o seu passageiro e autorizou a escolta. Eles não vão gostar, mas vão compreender; são os ossos do ofício.
- A gente vai pegar a informação, e depois? - perguntou Ben Jones, mais inteligente que o irmão. - O Van Nostrand não vai estar conosco!... Aliás, cadê ele?
- Ele está indisposto.
- E o que é que a gente vai dizer?
- Que são ordens do Van Nostrand. Pode ser até que eles compreendam melhor assim. Aí vocês procurem um telefone e liguem para este número. - Hawthorne enfiou o pedacinho de papel no bolso da camisa do copiloto.
- Ei, espere aí! - disse Sonny-Ezequiel. - E a nossa grana?
- Quanto vocês têm que receber?
- Dez mil, cinco para cada um.
- Por um dia de trabalho? Isto é que é inflação, Zeke. Aposto que dois mil para cada um é um preço mais realista.
- A gente faz por quatro para cada um, total de oito, e o meu nome é Sonny, não é Zeke!
- Olhe aqui, Sonny. Eu topo pagar os quatro mil se vocês conseguirem essa informação em Charlotte. Mas se vocês não conseguirem, não vão ganhar nada.
- Isso é conversa, Comandante - disse Benjamim Jones. - Tudo muito bonito, mas como é que você vai fazer para nos pagar?
- É a coisa mais fácil do mundo. Me dê doze horas depois que vocês ligarem de Charlotte. Deixem um recado na secretária eletrônica em St. Thomas, dizendo um lugar e um horário, e eu mando alguém entregar o dinheiro.
- Conversa.
- Você acha que eu sou algum idiota para querer enganar vocês dando um telefone onde podem me encontrar?
- E se ninguém atender? - insistiu o irmão mais moço.
- Vão atender, sim. Olhe, estamos perdendo tempo, e além disso vocês não têm outra opção. Podem ir. Vocês devem estar com a chave da ignição ou coisa que o valha.
- A chave está comigo - disse Sonny. - Mas é a chave da porta; para ligar o avião não precisa de chave, sua toupeira.
- Então vão indo.
- Você nem pense em sacanear a gente - disse Benjamim. - A gente não sabe o que foi que aconteceu aqui, mas se acha que nós engolimos aquela história de exibição de armas, está muito enganado, e o fato da pessoa que nos contratou não estar embarcando é muito suspeito. Já vi esse Van Nostrand no jornal; ele é conhecido, você está me entendendo? Se a gente não receber a grana, você vai ver só.
- Você está ameaçando um oficial da Marinha americana? Da inteligência naval, para ser exato?
- E você está nos subornando, Comandante? Com o dinheiro dos contribuintes?
- Você é muito espertinho, Jones, eu já aprendi que os irmãos mais novos são assim, e em geral isso é pior para eles... Vão embora. Daqui a duas horas eu ligo para St. Thomas.
- Me ligue pelo rádio - disse Poole. - E fique com o equipamento ligado.
Os dois irmãos se entreolharam. Sonny-Ezequiel deu de ombros e olhou para Hawthorne.
- Não se esqueça de ligar para a sua secretária, Comandante, para fazer o nosso pagamento. E nada de cheque, dinheiro vivo.
- Ben - disse Tyrell com firmeza, olhando para o mais novo dos Jones. - Quando vocês chegarem a Charlotte, façam o que eu mandei, senão eu vou até o fim do mundo atrás de vocês. E tem mais um aviso que eu quero dar: larguem o tráfico de drogas.
- Filho da puta! - murmurou o copiloto quando os dois homens viraram-se de costas e saíram correndo em direção à sebe mais baixa, que havia começado a pegar fogo, soltando mais fumaça do que chamas.
- O fogo está apagando - disse Cathy.
- A parte mais alta é seca, queima rápido - observou Jackson. - Faz mais luz do que calor, e por isso o gramado não pega fogo.
- Mas mesmo assim o fogo pode continuar se espalhando - disse Hawthorne.
- Não, não pode - corrigiu Poole, tomando a direção da estação de rádio. - Tem pelo menos trinta metros entre os arbustos e as bombas.
- É por isso que elas não vão explodir - observou Neilsen.
- Eu não quis ser tão específico, Cath... Bem, tenho que trabalhar. Conheço a torre de Andrews e eles vão conseguir a autorização num piscar de olhos. O Gulfstream já está a caminho de Charlotte.
- Depois vá nos encontrar lá na casa, na biblioteca - disse Hawthorne para Poole, quando o Tenente desapareceu pela porta da torre. - Vamos - acrescentou, voltando-se para a Major. - Quero virar aquilo lá pelo avesso. A gente tem que dar um jeito de entrar em contato com aquela outra limusine. A Bajaratt está nela.
- Nossa Senhora! Você tem certeza?
- Posso provar. Escondi o caderno da guarita, onde estão registradas todas as entradas; a prova está no nome, venha, vou mostrar para você.
Os dois foram correndo juntos, contornando a sebe, em meio às brasas e à fumaça, até o trecho onde Tyrell havia escondido o caderno. Ofegante, ele ajoelhou-se para pegá-lo.
O caderno não estava ali.
Como um faminto à procura de raízes comestíveis, Tye começou a escavar a terra, virando-se de um lado para o outro, tentando controlar o pânico. Por fim parou, com o olhar estarrecido.
- Tiraram ele daqui! - sussurrou, apertando os olhos, enquanto gotas de suor rolavam pelo seu rosto.
- Tiraram...? - Neilsen parecia perplexa. - Será que você não perdeu ele no meio daquela confusão?
- Eu pus o caderno bem aqui! - Hawthorne levantou-se, esticando o corpo como uma cobra enfurecida, e puxou o 38 da cintura. - E eu nunca perdi nada por causa de nenhuma confusão, Major.
- Desculpe.
- Deixe para lá... na verdade, eu já perdi coisas dezenas de vezes, mas desta vez, não. Em primeiro lugar era uma coisa muito grande e muito importante... Meu Deus, tem mais alguém aqui, alguém que a gente não está vendo mas que está nos vigiando!
- A cozinheira? Os guardas lá da portaria?
- Eu não estou entendendo, Cathy. Todo mundo foi embora, sumiu, até a cozinheira, eu mesmo abri o portão para ela. Ninguém está atendendo o telefone, foi o que ela me disse.
- Todo mundo?
- Menos um dos guardas, que foi morto com um tiro na cabeça, lá na guarita.
- Mas se o caderno não está aqui...
- Pois é. Alguém ficou, alguém que sabe que o Van Nostrand morreu e quer levar tudo o que puder desta casa cheia de objetos valiosos.
- Mas então por que esse caderno? Ele não é nem de prata, nem de cristal, enfim, não é nenhuma preciosidade.
Tyrell, com os olhos semicerrados, fitou Neilsen à luz da lua.
- Obrigado, Major, você acabou de me dizer uma coisa que já devia ter-me ocorrido. Esse ladrão misterioso não está aqui para levar obras de arte. Aquele caderno não vale nada, a não ser para quem sabe como ele é importante. Realmente estou afastado há muito tempo.
- E o que você pretende fazer?
- Não sei, mas temos que tomar o máximo cuidado. Você está armada, não está?
- O Jackson me deu o revólver que ele tirou do operador do rádio. Acho que é maior que aquele outro.
- E melhor. Segure ele de um jeito que fique bem visível, e venha comigo. Faça tudo o que eu fizer, mas para o lado oposto. Eu vou pela esquerda e você pela direita. E fique olhando à sua volta o tempo todo. Você vai conseguir?
- Não consegui pilotar um submarino que eu nunca tinha visto antes?
- Não é a mesma coisa, Major. Agora você não está lidando com uma máquina, você é uma máquina. Isto significa atirar numa sombra que pode ou não ser de uma pessoa, e não pode haver nenhuma desculpa para deixar de atirar. Um momento de indecisão pode acabar com a nossa vida.
- Já entendi, Tye, e se você está querendo me meter medo, conseguiu.
- Ótimo. Eu tenho medo de rasgos de bravura; a gente pode morrer por causa deles. - Andando com todo o cuidado, os dois atravessaram o gramado em direção à casa grande e aproximaram-se da janela da biblioteca; a luz tênue que vinha do interior enfatizava o contorno da vidraça estilhaçada. Tyrell bateu com o cano do revólver na parte inferior da janela para remover os últimos cacos, para que ele e Cathy não se cortassem ao entrar. - Pronto, eu pulo primeiro e ajudo você - disse Hawthorne, enquanto Catherine, nervosa, esperava atrás dele, olhando para a escuridão e apontando a arma para todos os lados.
- Não tenho certeza se mudei de opinião - disse Cathy. - Eu sempre detestei armas, mas agora estou me sentindo muito bem com esta coisa horrorosa na minha mão.
- Eu estou achando ótima a sua atitude, Major. - Tyrell pulou a janela, apoiando-se na mão esquerda e segurando o 38 com a direita. - Pronto - continuou, de dentro do escritório. - Ponha o seu revólver em qualquer lugar e segure o meu braço.
- Nossa, mas isto arranha que é um horror! - exclamou Neilsen, prendendo o revólver no cinto do vestido e agarrando o braço estendido de Hawthorne. - E agora?
- Apoie os pés na parede e vá escalando enquanto eu puxo você. É fácil, você vai conseguir... mas tome cuidado com o vidro, você está descalça.
- É que eu estava de salto alto, lembra? Eu não ia conseguir correr para salvar a minha vida. - A Major fez o que Tyrell tinha dito, puxando o vestido até os quadris para escalar a parede. - E o decoro que se dane - murmurou. - Se você ficar excitado de ver a minha calcinha, o problema é seu.
Os corpos de Van Nostrand e do chefe de segurança continuavam estendidos no lugar onde haviam caído; não havia nenhuma mudança, nenhum sinal de que alguém tivesse entrado na biblioteca depois dos tiros que os haviam matado. A fim de se certificar, Hawthorne foi até a pesada porta de madeira; ela continuava trancada.
- Vou ficar tomando conta da janela - disse Tye. - Verifique o telefone; deve ter alguma lista dos ramais internos. Veja se tem algum para falar com as limusines.
Encostado na parede, Hawthorne postou-se junto à janela enquanto Neilsen se dirigia à escrivaninha.
- Na parte da frente do telefone tem um quadrado de plástico que deve ser onde ficava a lista - disse Cathy. - Ele está rasgado; tem uns pedaços de um papel grosso grudados nas bordas, como se alguém tivesse arrancado alguma coisa.
- Procure nas gavetas, na cesta de lixo, em todos os lugares onde pudessem ter jogado fora a lista.
Rapidamente, as gavetas foram abertas e fechadas.
- Estão todas vazias - disse ela, pegando a cesta de latão e colocando-a sobre a cadeira da escrivaninha. - Aqui também não tem muita coisa... ei, espere um pouco.
- O que é?
- Um recibo de uma empresa de transportes marítimos, a Sea Lane Containers. Eu conheço essa empresa; é ela que faz a mudança dos oficiais do alto escalão quando eles são transferidos para outros países.
- E o que diz o recibo?
- "N. Van Nostrand, trinta dias de depósito, Lisboa, Portugal." Embaixo está escrito: "Vinte e sete caixotes, objetos de uso pessoal, sujeitos a inspeção pela alfândega." Está assinado por uma tal de srta. G. Alvarado, secretária de N.V.N.
- Só isso?
- Só tem mais uma coisa, nas instruções: "O remetente deverá recolher a carga no depósito da empresa em Lisboa." É isto... Por que é que alguém ia se desfazer de um recibo de vinte e sete caixotes que devem estar cheios de coisas valiosíssimas?
- A primeira coisa que me ocorre é que uma pessoa como o Van Nostrand não precisa disso para receber a bagagem dele. Tem mais alguma coisa aí na cesta de lixo?
- Não, nada de interessante... Três papéis de bala, meia dúzia de papeizinhos amassados sem nada escrito e uma listagem da Bolsa de Valores com a data de hoje.
- Bobagem - disse Tyrell, olhando para fora. - Ou não - acrescentou. - Porque Van Nostrand ia jogar fora esse recibo? Ou melhor, por que ele ia se dar ao trabalho de fazer isso?
- Você andou tendo aulas com o Poole? Eu não entendi nada.
- Ele tinha uma secretária; por que ele não deu o recibo para ela? É óbvio que era ela quem tomava conta de tudo, então por que ele guardou o recibo?
- Para pegar a bagagem em Lisboa... não, não, nada disso. Ele jogou fora o recibo.
- Por quê?
- Como é que eu vou saber, Comandante? Sou oficial da Aeronáutica, não sou psiquiatra.
- Nem eu, mas sou capaz de reconhecer uma planta, se eu engolir um cacto.
- Você é brilhante, mas não entendi o que quer dizer isto.
- Eu não sou brilhante, sou experiente. Por algum motivo que eu não estou entendendo, o Van Nostrand queria que o recibo fosse encontrado.
- Depois da morte dele?
- Claro que não. Ele nem imaginava que ia morrer; ele estava de partida para Charlotte, mas queria que o recibo fosse encontrado.
- Por quem?
- Por alguém que ia chegar a alguma conclusão equivocada... talvez. Não sei, é só uma intuição... Dê uma vasculhada geral. Em todos os lugares. Tire esses livros que ficaram na estante, examine os armários, o bar, tudo.
- O que é que eu estou procurando?
- Qualquer coisa que esteja escondida... - Tyrell calou-se abruptamente, dizendo em seguida: - Espere! Apague as luzes!
Neilsen apagou a luz do teto e depois a da escrivaninha. A sala ficou às escuras.
- O que foi, Tye?
- Alguém com uma minilanterna, eu estou vendo uma luzinha no gramado; é o nosso personagem misterioso, ele ainda não foi embora.
- O que é que ele está fazendo?
- Vindo bem na direção da janela.
- Com tudo apagado?
- Boa pergunta. Ele não parou, nem fez uma pausa, quando você apagou a luz. Continuou andando como se fosse um robô.
- Achei uma lanterna! - cochichou Neilsen detrás da mesa. - Eu me lembrei que tinha visto uma na gaveta de baixo.
- Se abaixe e me mande ela pelo chão.
Cathy obedeceu e Tyrell pegou a lanterna com a mão esquerda e puxou-a para o seu lado, enquanto a figura desconhecida continuava a caminhar na direção da casa, mais parecendo um zumbi. Em alguns instantes, ela chegou à janela. Subitamente, um grito histérico cortou o silêncio.
- Saia já daí! Você não tem nenhum direito de entrar na propriedade particular dele! Eu vou contar para o sr. Van. Ele vai mandar matar você!
Hawthorne acendeu a lanterna e apontou o 38 para a cabeça da figura. Para sua surpresa, era uma senhora idosa, com profundas rugas no rosto, cabelos brancos impecavelmente penteados e trajada com um elegante vestido preto. Trazia preso sob o braço esquerdo o caderno da guarita. Não carregava nenhuma arma, apenas uma lanterninha barata. Seu ar era patético e seus olhos brilhavam numa fúria desfocalizada.
- Por que o sr. Van Nostrand ia querer nos matar? - perguntou Tyrell, com delicadeza. - A gente veio a pedido dele; ele mandou até um avião para nos buscar. Como a senhora pode ver por esta janela quebrada, ele tinha todos os motivos para pedir a nossa ajuda.
- Quer dizer que vocês são do exército dele? - perguntou a velhinha, em voz mais baixa, mais controlada, mas ainda ríspida. Falava com um leve sotaque.
- Do exército dele? - Tye desviou o facho da lanterna dos olhos da velha senhora.
- Dele e do Marte, claro. - A mulher fez uma pausa, como que para tomar um fôlego que ela não tinha.
- Claro... Marte e Netuno, não é isto?
- Isto mesmo. Um dia ele me disse que ia chamar vocês; a gente sabia que estava chegando a hora, você sabe.
- A hora de quê?
- Da rebelião, lógico. - Mais uma vez a mulher respirou fundo, com o olhar vago, assustado. - A gente precisa se proteger, proteger o que é nosso... todo mundo que está conosco.
- Claro, dos rebeldes. - Hawthorne examinava aquele rosto intenso. Embora a mulher estivesse visivelmente fora do seu equilíbrio, sua aparência e seu comportamento, mesmo cheios de raiva e medo, davam-lhe o ar de uma aristocrata... da América do Sul? Era esse o sotaque, espanhol ou português... português, Rio de Janeiro? Marte e Netuno... Rio!
- Do lixo humano, isto sim! - O tom de voz da mulher era tão estridente quanto sua educação permitia. - O Nils trabalhou a vida inteira para melhorar a sorte deles, a vida deles, mas eles estão sempre querendo mais, mais e mais! E eles não merecem nada! São preguiçosos, relapsos; só fazem ter filhos, trabalhar, não!
- Nils...?
- Sr. Van, para você! - A mulher tossiu, uma tosse rouca, do fundo da garganta.
- Mas não para a senhora... naturalmente.
- Meu filho, eu estou há anos com os meninos, desde o começo. Eu era a relações públicas deles... todas aquelas festas, aqueles banquetes fantásticos, até mesmo os carnavais deles! Maravilhosos!
- Devia ser o máximo - concordou Tyrell. - Mas como a senhora estava dizendo, a gente tem que proteger o que é nosso, as pessoas que estão conosco. Foi por isto que a senhora pegou o registro da guarita, não foi? Eu tinha enterrado ele embaixo dos arbustos.
- Foi você? Então você é um pateta! Não se deve deixar para trás as coisas importantes, você não sabe disto? Eu vou ter que contar para o Nils essa sua negligência.
- Deixar para trás...?
- Nós vamos embora amanhã de manhã! - sussurrou a velhinha, tossindo novamente. - Ele não lhe disse?
- Disse, sim. Estamos fazendo os preparativos.
- Já está tudo pronto, seu bobo! O Brian acabou de pegar o nosso avião para tomar as últimas providências. Portugal! Não é uma maravilha? Nossa bagagem já foi despachada... Onde é que está o Nils... o sr. Van? Eu tenho que avisar a ele que já terminei.
- Ele está lá em cima, terminando de arrumar... as coisas dele.
- Isto é ridículo! Eu e o Brian arrumamos tudo hoje de manhã, e não esquecemos nadinha. Eu deixei só umas roupas, um pijama e as coisas de toalete, mas isso pode ficar para os tais árabes!
- Árabes? Vamos deixar os árabes para lá. Me diga o que foi que a senhora terminou... srta. Alvarado, não é este o seu nome?
- É este mesmo, senhora Gretchen Alvarado. O primeiro marido da minha mãe foi um grande herói na guerra, ele fazia parte do Alto Comando.
- A senhora é o máximo - disse Tyrell, em voz baixa.
- Madre de Dios - prosseguiu G. Alvarado, com ar sonhador. - Aquela época com Marte e Netuno foi mesmo magnífica, mas é claro que nós nunca conversamos sobre isto.
- O que foi que a senhora disse que tinha terminado?
- De rezar, ora. Ele pediu para eu ir até a nossa capela de pedra, que fica ali no morro, e rezar para Nosso Senhor por uma boa viagem. O senhor deve saber muito bem que o sr. Van Nostrand é tão devoto quanto todos os padres que a gente conhece... Na verdade, meu jovem, eu tive que encurtar as minhas preces, porque a capela estava muito abafada. A tubulação do ar devia estar com algum problema. Eu fiquei com o olho ardendo, lacrimejando, e tive falta de ar. Não conte nada a ele, mas eu estou com uma dor terrível no peito. Mas não conte nada. Ele ia ficar muito preocupado.
- Aí a senhora saiu da capela...?
- E fui descendo pela estradinha até que eu vi você correndo; eu pensei que era o Brian, aí comecei a correr atrás de você e vi você esconder o caderno.
- E depois?
- Não me lembro bem. Eu fiquei nervosa, lógico, e tentei chamar você, mas de repente perdi a respiração e comecei a ver tudo preto. Mas não conte nada para o Nils. Quando as coisas ficaram mais claras, eu estava caída no chão, e estava tudo pegando fogo! Eu estou apresentável? O Nils quer que eu ande sempre elegante.
- A senhora está ótima, sra. Alvarado, mas deixe eu lhe fazer uma pergunta. O sr. Van mandou eu ligar para uma das limusines. É uma emergência. Como é que eu faço para ligar?
- Ah, é fácil... Quando eu vi a luz acesa aqui, achei melhor ver quem... - A velha secretária de ar aristocrático não pôde prosseguir; começou a ter convulsões, tão fortes que o caderno caiu do seu braço, e ela levou as mãos ao peito. Seu rosto inchou, seus olhos se arregalaram.
- Calma! - gritou Tyrell, incapaz de alcançar a mulher através da janela. - Deite-se de lado... mas a senhora tem que me dizer! Como eu faço para ligar para as limusines? A senhora disse que era fácil; o que é que eu faço?
- Era... bem... fácil. - Arquejante, ela lutava para conseguir falar. - Agora não é mais. O Nils mandou eu... apagar tudo... da memória do telefone.
- E qual é o número?
- Não... não sei... há anos que... eu uso a memória. - Nesse momento, a mulher soltou um grito sufocado. Apertou a garganta, e seu rosto inchado foi ficando roxo sob o facho da lanterna de Tye.
Hawthorne pulou a janela e caiu de cócoras na grama, deixando que a lanterna escapasse da sua mão. Levantou-se e correu até Alvarado; Catherine Neilsen surgiu à janela.
- Este bar aí dentro - gritou Tyrell. - Acenda a luz e pegue um copo d’água!
Quando Hawthorne começou a massagear o pescoço da velha senhora, as luzes da biblioteca se acenderam, iluminando o jardim. Tye ficou imobilizado, invadido de náusea ao ver o rosto à sua frente. Era uma imagem grotesca: traços retorcidos, pele roxo-acinzentada, olhos vermelhos, pupilas dilatadas; e os cabelos impecáveis eram uma peruca caída, deixando à mostra metade da calva. A sra. Gretchen Alvarado estava morta.
- Aqui! - Ao chegar à janela, segurando uma jarra cheia d’água, Cathy viu o rosto inerte ao lado de Hawthorne. - Meu Deus! - murmurou ela, virando-se de costas como se fosse vomitar, e imediatamente recuperando o autocontrole. - O que aconteceu com ela? - perguntou, mais como um apelo do que como uma indagação.
- Se você sentisse o cheiro que está aqui, saberia... ou talvez não. É um gás poderosíssimo; até os químicos mais machões têm medo dele; a pessoa inala esse gás por um ou dois segundos e ele se espalha pelos pulmões como um fungo letal, cortando a saída de ar. Se o pulmão não for lavado, literalmente, na mesma hora, a pessoa morre em menos de uma hora.
- E se não houver um médico experiente para conter o processo de propagação do gás - disse Poole, emergindo das sombras -, o paciente sufoca. Já li sobre isso. Quem é ela?
- Uma factotum leal, e antiga relações públicas de Marte e Netuno - respondeu Tyrell. - Ela foi dispensada enquanto rezava por eles na capela. O meu palpite é que puseram o tal gás na tubulação de ar.
- Muy amigos.
- Ela sabia demais, Jackson. Venha, me dê uma mão. Vamos levar ela para a biblioteca, junto do patrão de quem ela gostava tanto, e vamos dar o fora daqui.
- Dar o fora? - perguntou Catherine Neilsen, perplexa. - Eu pensei que você quisesse virar a casa pelo avesso.
- Ia ser perda de tempo, Cathy. - Hawthorne agachou-se para pegar o caderno sujo de sangue e o enfiou desajeitadamente no cinto. - Esta senhora podia não estar muito boa da cabeça, mas ela era um verdadeiro robô para o Van Nostrand. Se ela disse que não tinha esquecido de guardar nada é porque não esqueceu mesmo... Pegue o recibo da transportadora, eu quero levá-lo conosco.
O motorista ainda estava inconsciente, nu e amarrado, e era mais conveniente que ele continuasse onde estava. Poole assumiu a direção da limusine em consideração, disse ele, ao estado de extremo desgaste físico de um ex-oficial da Marinha, já meio velho.
- Esse negócio de ficar correndo de um lado para o outro e pulando janela... caramba!
- A sua execução ainda não está descartada - disse Tyrell, sozinho no banco de trás, esticando as pernas doloridas. - Major, pegue esse telefone aí - ordenou ele a Neilsen, que estava na frente com o Tenente. - Veja se tem alguma instrução ou algum número para falar com a outra limusine. Procure no porta-luvas.
- Não tem nada - disse Cathy, enquanto Poole corria pela estrada de acesso, depois de ter aberto o portão de acordo com as instruções de Hawthorne. - Posso ligar para a telefonista e pedir a ela para localizar o carro.
- Você ia ter que dar o número, ou pelo menos a placa - disse Jackson. - Só assim elas dão alguma informação.
- Tem certeza?
- Absoluta, é o regulamento da Comissão Federal das Comunicações.
- Merda!
- E o capitão Stevens?
- Eu vou tentar de tudo! - exclamou Hawthorne, pegando o telefone do banco de trás, instalado entre as duas portas. Digitou os números rapidamente e, quando atenderam, disse que estava num carro numa área próxima e que a chamada era urgente. - Emergência quatro-zero, amigo.
- O que você está fazendo aqui? - gritou o chefe da inteligência naval. - Você não estava em Porto Rico, porra?
- Agora não dá tempo de explicar, Henry! Escute, tem uma limusine que pertence a um homem chamado Van Nostrand, placa da Virgínia, mas eu não sei o número...
- Van Nostrand? - interrompeu Stevens, atônito.
- Ele mesmo. Eu preciso do telefone dessa limusine.
- Você sabe quantas limusines existem no estado da Virgínia, principalmente aqui, perto de Washington?
- E quantas estão levando a Bajaratt?
- O quê?
- Procure, Capitão! - gritou Tyrell, tentando ler os dígitos, que se embaralhavam com o movimento do carro. - Depois me ligue de volta, anote aí o número. - Hawthorne disse o número e desligou o telefone, deixando-o cair duas vezes, no seu nervosismo.
- Para onde vamos, Comandante? - perguntou Poole.
- Dê umas voltas. Não quero parar em nenhum lugar antes dele me ligar de volta.
- Só para você se sentir um pouco melhor - continuou o Tenente -, o Gulfstream foi direto para Charlotte. Vai pousar daqui a uma hora e meia, mais ou menos, dependendo do teto.
- Não vejo a hora de descobrir quem autorizou aquele crápula a sair do país desse jeito. Sou capaz de jurar que foi alguém que está registrado no caderno da guarita.
- Você está se sentindo bem, Tye? - Neilsen voltou-se para trás e viu Hawthorne massageando as pernas estendidas.
- Por que está perguntando isto? Eu estou ótimo, só que sou velejador, não sou soldado.
- Posso parar e arranjar gelo - disse Poole.
O telefone tocou; Tyrell atendeu:
- Alô?
- Aqui é a telefonista, senhor. O seu número é...
- Pode deixar, telefonista, eu conheço essa voz - interrompeu a voz de Henry Stevens. - Nós ligamos para a limusine errada.
- Desculpe o inconveniente, senhor...
Tyrell desligou.
- Pelo menos ele está se mexendo - disse ele.
Continuaram a rodar pelo interior da Virgínia, passando pelas enormes propriedades dos milionários, sem conseguir ver muita coisa devido à escuridão; apenas alguns comentários esparsos preenchiam o silêncio. A tensão era tal que os três mal conseguiam conversar. Exatamente dezoito minutos depois, o telefone da limusine tocou outra vez.
- Que história é essa em que você se meteu? - perguntou o capitão Henry Stevens, frio como gelo.
- O que foi que você descobriu?
- Uma coisa que nenhum de nós quer ouvir. Descobrimos o número da outra limusine de Van Nostrand, e mandamos a telefonista verificar. Quando ela completou a ligação, só tinha aquela gravação de sempre, "o motorista não se encontra no veículo".
- E o que é que tem isso? Continuem tentando!
- Não vai ser preciso. Os nossos computadores captaram uma mensagem da polícia com o mesmo registro e a mesma placa...
- Eles foram detidos? Segurem eles...
- Eles não foram detidos - interrompeu Stevens, cada vez mais frio. - Você faz ideia de quem é o Van Nostrand?
- O que eu sei é que ele passou por cima de você para me procurar, Henry. - Quando Stevens, perplexo, ia começar a responder, Tyrell o interrompeu: - Você ficou de fora, Capitão, e devia dar graças a Deus por isso, porque eu poderia ter degolado você.
- Que história é essa?
- Fui convidado para a minha própria execução; por sorte, eu sobrevivi.
- Não acredito!
- Pois acredite, eu não minto quando se trata da minha vida. Nós temos que localizar a outra limusine, localizar a Bajaratt. Onde é que está o carro?
- No fundo de um precipício, numa estrada em Fairfax - respondeu o chefe da inteligência naval, em voz grave. - O motorista está morto.
- E os outros? Tinha do is passageiros na limusine, um deles, a Menina Sanguinária.
- Você está dizendo...
- Eu sei! Onde é que eles estão?
- Não tinha mais ninguém, só o motorista, morto com um tiro na cabeça... Eu vou perguntar de novo, Tye, você sabe quem é esse Van Nostrand? A polícia está indo para a casa dele!
- E vai encontrar ele na biblioteca, mortinho da silva. Tchau, Henry. - Hawthorne desligou o telefone e recostou-se no banco, com dores nos braços e nas pernas, a cabeça latejando de tensão e ansiedade. - A limusine já era - disse, levando as mãos aos olhos cansados. - Está tudo acabado, o motorista foi morto.
- Bajaratt? - Neilsen olhou em volta. - Onde ela está?
- Quem é que sabe? Em algum lugar num raio de cento e cinquenta quilômetros, é um palpite como qualquer outro, mas não vamos conseguir achar ela hoje. Talvez a gente descubra alguma coisa por este caderno da portaria, ou pelo aeroporto de Charlotte... ou talvez pela combinação das duas coisas. Vamos procurar um lugar onde a gente possa descansar e comer alguma coisa. Como dizia um antigo instrutor meu, descanso e comida também são armas.
- Nós passamos por um lugar com uma cara boa, agora há pouco - disse Poole. - E eu nem sei onde a gente poderia encontrar outro; foi o único hotel que eu vi, e a gente está rodando há um tempão. Na verdade, era para ter dois quartos reservados para mim e para a Cathy, cortesia do Van Nostrand. Mas é claro que não tinha reserva nenhuma.
- Era o Shenandoah Lodge, não era? - perguntou a Major.
- Isto mesmo - respondeu o Tenente.
- Então vamos voltar para lá - disse Tyrell.
20
Nicolo Montavi de Portici andava de um lado para o outro, com passos rápidos, trêmulo de medo e exaustão, o rosto molhado de suor, os olhos arregalados e vagos, sem conseguir disfarçar o pânico. Havia menos de uma hora que ele havia cometido não só um crime terrível, mas também um pecado mortal aos olhos de Deus! Havia presenciado a extinção de uma vida humana - o assassino não fora ele, graças aos céus - mas ele não fizera nada para impedi-la, naqueles momentos fugazes em que viu Cabrini tirar o revólver da bolsa. Estava confuso, horrorizado com a rajada de tiros que acompanhara a sua fuga daquela propriedade gigantesca. A signora havia mandado o chofer parar a limusine. Em seguida ela pegou o revólver e deu um tiro na nuca do homem, com a mesma naturalidade de alguém que estivesse... matando uma mosca, era isso! Logo depois ela mandou o jovem empurrar a limusine para fora da estrada, e o carro despencou por um barranco para o fundo de um precipício. Ele não podia desobedecer, pois a arma estava na mão dela, e ele sabia de coração - estava escrito nos olhos dela - que ela o mataria se ele se recusasse. Madonna della tristezza!
Amaya Bajaratt, sentada no sofá da minissuíte do Shenandoah Lodge, observava a histeria de Nicolo.
- Você quer me dizer mais alguma coisa, querido? Se quiser, por favor, fale baixo.
- Você é uma louca, uma insana! Matou aquele homem sem nenhum motivo; nós dois vamos para o inferno por sua causa!
- Eu fico muito contente por você ter entendido que está envolvido nisso tudo.
- Você matou ele do mesmo jeito que matou aquela empregada na ilha, ele era só um motorista! - interrompeu o jovem italiano, num tom febril. - Essas mentiras, essas roupas, esse jogo que a gente faz com essas pessoas tão importantes... ah, bueno, che cosa? Esses jogos com gente rica que paga bem, isso não é muito diferente do cais de Portici... mas matar duas pessoas como essas, não. Meu Deus, um reles motorista!
- Ele não era um reles motorista. Quando eu mandei você examinar os bolsos dele, o que foi que você encontrou?
- Um revólver - respondeu o rapaz em voz baixa, relutante.
- Um reles motorista anda armado?
- Na Itália muitos andam, para proteger os patrões.
- É possível, mas aqui nos Estados Unidos, não. Aqui existem leis que não existem lá.
- Não entendo nada de leis.
- Pois eu entendo, e estou lhe dizendo que aquele homem era um criminoso, um agente secreto que queria acabar com a nossa grande missão.
- E você tem uma missão tão grande assim?
- A maior de todas, Nicolo. Não existe nenhuma igual no mundo hoje em dia, e a própria Igreja nos abençoa em silêncio por termos dedicado a vida a ela.
- Il Vaticano? Mas você não é da minha igreja. Você não tem fé!
- Nessa área eu tenho, eu lhe dou a minha palavra solene, e isto é tudo o que eu posso dizer. Então veja, você não tem que ficar tão preocupado assim. Está entendendo agora?
- Não, eu não estou entendendo, Cabi.
- E nem precisa - disse Bajaratt, firme. - Pense na fortuna que você tem em Nápoles, na família que vai receber você em Ravello. E enquanto pensa nisso, vá para o quarto e desfaça as nossas malas.
- Você é uma pessoa muito difícil - disse Nicolo, em voz baixa, encarando-a sem piscar os olhos.
- E sou mesmo. Ande rápido, tenho que dar uns telefonemas.
Quando o jovem italiano retirou-se para dentro do quarto, Bajaratt pegou o telefone na mesinha ao lado do sofá. Ligou para o hotel em Washington e pediu para falar com a recepção. Depois de se identificar, deu instruções a respeito das malas que haviam ficado lá e perguntou pelos recados, em troca dos quais havia deixado uma generosa gorjeta.
- Obrigada pela sua bondade, senhora - disse uma voz melíflua, do outro lado da linha - e pode ter certeza de que nós estamos cuidando dos seus interesses com a maior dedicação. É uma pena que a senhora tenha tido que ir embora assim de uma hora para outra, mas esperamos recebê-la novamente quando a senhora voltar para a capital.
- Os recados, por favor.
Havia cinco. O mais importante, da parte do senador Nesbitt, de Michigan; outros, úteis, mas não vitais, e o último, enigmático. Era do jornalista ruivo, o consultor político que eles haviam conhecido em Palm Beach, o colaborador da página de opinião do New York Times, que os apresentara ao perigoso e inquisitivo repórter do Miami Herald - tão perigoso que Bajaratt tivera que eliminá-lo com a maior rapidez possível, com uma injeção do veneno do seu bracelete. Ela ligou em primeiro lugar para o Senador.
- Tenho notícias promissoras, Condessa, mas nada confirmado ainda. O meu colega do Senado está tentando marcar o encontro com o Presidente para daqui a três dias. Claro, nas condições que nós tínhamos combinado...
- Claro! - interrompeu Baj. - O barone vai ficar tão satisfeito, e nós nunca vamos nos esquecer do senhor, Senador, acredite.
- A senhora é muito gentil... A reunião vai ser extraoficial, ou seja, vai ficar fora da agenda do Presidente. Só vai ter um fotógrafo, aprovado pelo chefe de gabinete da Casa Branca, e a senhora vai ter que assinar uma declaração de que as fotos são para uso pessoal, e não vão ser divulgadas pela imprensa, nem aqui, nem em nenhum outro país. Seria um constrangimento pessoal terrível se esse compromisso não fosse cumprido.
- Discrição absoluta! - concordou Bajaratt. - O senhor tem a palavra de uma grande família italiana.
- Isto é mais do que suficiente - disse Nesbitt, num tom de voz despreocupado, permitindo-se uma leve risada. - Mas se os interesses econômicos do barão se mostrarem favoráveis politicamente, principalmente nas regiões mais deprimidas, eu garanto que o chefe de gabinete vai mandar publicar em todo o país a foto do Presidente com o filho do Barão. Para contornar essa eventualidade, eu e meu colega vamos mandar tirar algumas fotos do seu sobrinho.... sem o Presidente.
- Que interessante - observou Bajaratt, rindo suavemente.
- A senhora não conhece o chefe do gabinete - disse Nesbitt. - Se depender dele, a gente está perdido... Onde eu posso encontrar a senhora? No hotel disseram que estavam anotando os recados...
- É que estamos viajando muito, o senhor entende - interrompeu Baj, pressentindo um problema. - Em breve vamos fazer uma visita ao seu estado de Michigan, mas é que tudo está acontecendo muito rápido. O Dante Paolo tem a energia de seis touros.
- Eu sei que isso não é assunto meu, Condessa, mas acho que seria muito mais fácil para a senhora, e talvez mais eficiente, se a senhora tivesse um escritório e alguns assistentes, pelo menos uma secretária. Tenho certeza de que, com a quantidade de amigos que o barão tem aqui, isto não seria difícil. E eu também poderia ajudar, talvez até oferecer o meu próprio escritório.
- Seria uma bênção dos céus, mas, infelizmente, eu não posso fazer isso. O meu irmão é a dignidade em pessoa, e ele preza o sigilo tanto quanto a ética, sem dúvida porque isso é uma coisa muito rara no mundo das finanças. Nós só temos assistentes e secretárias em Ravello, em nenhum outro lugar. A gente se comunica duas, três vezes por dia. Eles trabalham há anos para o barão.
- Ele é um homem prudente - disse o Senador - e está certíssimo. Todos esses casos, BCCI, Watergate, Irã-contras, nos ensinaram isso. Só espero que os seus telefones sejam seguros.
- Nós usamos um misturador de vozes no ponto de origem, calibrados para as frequências de recepção, senhor. Existe alguma coisa mais segura?
- Nossa, isto é sofisticado mesmo. O Departamento de Defesa diz que os terroristas são especialistas nessa tecnologia. Impressionante.
- Nós não sabemos nada sobre esse tipo de gente, Senador, mas para nós esses recursos são uma medida de segurança... Mas não se preocupe, vou continuar pegando os recados no hotel de uma em uma hora, mais ou menos.
- Faça isso, Condessa. Do jeito que as coisas são em Washington, três dias podem virar amanhã ou ontem.
- Eu entendo perfeitamente.
- A senhora recebeu o resto do material que o meu escritório enviou?
- O Dante Paolo está no outro telefone, falando com o pai dele sobre os seus projetos. Ele está muito entusiasmado.
- A senhora sabe, Condessa, é realmente uma coisa formidável. Um rapaz jovem, tão inteligente, tão intuitivo. O Barão deve ter muito orgulho do filho. E da senhora também, uma irmã tão fina, culta, em quem ele pode confiar, e tão diplomática. Alguma vez a senhora já pensou em fazer política?
- Eu penso o tempo todo - respondeu Bajaratt, com um sorriso. - E como eu queria que todos os políticos desaparecessem... eles acabam comigo.
- Por favor, a gente precisa de emprego. Vou deixar um recado para a senhora com os detalhes sobre a sua visita à Casa Branca... E, claro, a senhora sabe onde me encontrar se receber alguma notícia de Ravello.
- Se receber, não, sr. Nesbitt, quando receber. Arrivederci.
Bajaratt desligou o telefone, com os olhos no papel timbrado do Shenandoah, onde anotara os nomes e os números que o hotel de Washington lhe havia fornecido. Três deles podiam esperar, assim como o último, mas a curiosidade forçou-a a pegar novamente o telefone e ligar para o jovem consultor político de Palm Beach.
- Você ligou para o escritório do Reilly - atendeu uma voz alegre na secretária eletrônica. - Se deseja contratar os meus serviços, disque 1. Se for outro assunto, desligue imediatamente e deixe alguém que valha a pena completar a ligação. Se quiser, deixe o seu nome e o seu telefone, mas eu não prometo nada.
Depois do longo sinal, Bajaratt começou a falar.
- Reilly, nós nos conhecemos em Palm Beach, e eu estou retornando a sua ligação...
- Muito prazer - interrompeu o consultor político. - Não foi nada fácil encontrar a senhora.
- E como foi que você conseguiu?
- Me desculpe, mas esta informação custa dinheiro - respondeu o jornalista, rindo. - Mas como a senhora não discou 1, eu não vou cobrar nada.
- Você é muito gentil.
- Não foi difícil. Eu me lembrei daqueles caras de Washington que estavam tão interessados em fazer negócios com a senhora, e liguei para as secretárias de alguns deles. Elas me disseram onde a senhora estava.
- Elas dão informações assim, tão fácil?
- Claro, depois que eu expliquei que tinha acabado de chegar de Roma e trazia um recado confidencial do Barão para a senhora, e que ele ficaria muito grato a quem conseguisse me ajudar. Também disse que elas podiam até ganhar uma pulseira de diamantes com o nome Ravello. A senhora sabe como esses italianos ricos são generosos.
- Você é muito esperto, Reilly.
- Eu tento ser, Condessa. Esta cidade é cheia de profissionais.
- E por que você queria falar comigo?
- Bem, isto vai custar dinheiro, minha senhora.
- Que tipo de serviço você acha que pode me prestar em troca de dinheiro?
- Informação.
- De que tipo? De que importância?
- São duas coisas diferentes, e para ser inteiramente honesto, eu posso responder à primeira, mas não posso pôr um preço na segunda. Só a senhora pode.
- Então responda à primeira.
- Está bem. Alguém está procurando duas pessoas, dois criminosos, que podem ou não ser a senhora e o rapazinho, com mais ênfase no não, porque isso seria fantasioso demais. Mas eu já disse que tenho imaginação delirante.
- Entendo. - Bajaratt estremeceu. Logo agora, tão perto! - Nós somos nós mesmos, Reilly - disse ela, fazendo tudo para se controlar. - Mas quem seriam esses outros dois?
- Dois criminosos, como eu já disse. Podem ser traficantes de drogas ligados à Máfia, que vieram expandir o mercado deles, ou simplesmente sicilianos inescrupulosos, artistas que sabem enganar os outros.
- E eu e o meu sobrinho poderíamos ser confundidos com essas pessoas?
- Nas aparências, não. A mulher é muito mais moça do que a senhora, e o rapaz é descrito como um analfabeto, um troglodita musculoso.
- Isto é um absurdo completo!
- É, foi isto o que eu achei, mas, como eu disse, a minha imaginação é incrível. A senhora quer marcar um encontro?
- Quero, sim, nem que seja para você esquecer essa loucura.
- Onde?
- Em Fairfax, num hotelzinho chamado Shenandoah Lodge.
- Eu conheço. Eu e a maioria dos homens casados de Washington; estou até surpreso da senhora ter conseguido um quarto. Daqui a uma hora eu estou aí.
- Me encontre no estacionamento - disse Bajaratt. - Não quero incomodar o Dante Paolo, barone-cadetto di Ravello.
- Ashkelon!
- Sempre. Alguma novidade?
- Nós estamos prestes a entrar na fase um. Se preparem para a contagem regressiva.
- Alá seja louvado; alá seja glorificado.
- Quem tem que ser louvado é um senador americano.
- Você está brincando?
- De jeito nenhum. Foi ele que abriu o caminho para nós. A estratégia funcionou!
- Algum detalhe?
- Você não precisa de detalhes. Mas em todo caso, se eu não sobreviver, o nome dele é Nesbitt. Pode ser que vocês precisem dele. E o seu Alá sabe, ele vai ficar vulnerável.
Poole entrou com a limusine no pátio do Shenandoah Lodge. O nome de Van Nostrand foi o suficiente para que eles conseguissem dois quartos duplos contíguos, apesar da hora adiantada e da aparência desleixada dos três viajantes.
- O que é que a gente vai fazer agora, Tye? - perguntou Cathy, entrando no quarto de Tyrell e Poole.
- Pedir alguma coisa para comer, descansar um pouco e dar uns telefonemas... ai, meu Deus!
- O que foi?
- O Stevens! - exclamou Hawthorne, correndo até o telefone. - A polícia... eles podem estragar tudo em Charlotte, prender os pilotos, pôr tudo por água abaixo!
- E você pode impedir que isso aconteça? - perguntou Neilsen, enquanto Tyrell discava freneticamente.
- Depende da hora que eles chegaram lá... Capitão Stevens, emergência quatro-zero!... Henry, sou eu. Escute, não importa o que esteja acontecendo na casa do Van Nostrand, você tem que fazer tudo o que puder para abafar! - Hawthorne calou-se, escutando com atenção por quase um minuto. - Eu tenho que retirar algumas coisas que falei de você, Capitão - disse ele, por fim, menos agitado, a voz aliviada. - Volto a ligar daqui a um tempo, com alguns nomes. Ponha cada um deles no microscópio, pegue todos os detalhes, telefones, contatos, toda essa sujeirada... Bem pensado, Henry. Por falar nisso, eu também andei pensando num outro assunto, reavaliando, talvez. Eu sei que pode parecer estranho, a esta altura, mas qual era o seu relacionamento com a Ingrid? - Um sorriso triste crispou o rosto de Tyrell, e seus olhos se fecharam por um instante. - Foi o que eu pensei. Volto a falar com você por volta da meia-noite. Você vai estar em casa ou no escritório?... Está certo, eu não devia ter perguntado. - Hawthorne desligou o telefone e, sem largar o aparelho, ergueu a cabeça e disse: - O Stevens já tinha se antecipado. Ele ordenou sigilo absoluto sobre a casa do Van Nostrand.
- Mas o cara está morto! - exclamou Poole. - E a casa está cheia de cadáveres! Como é que eles vão abafar aquilo tudo?
- Felizmente, só uma patrulha foi até lá, e o Stevens conseguiu falar com o quartel da polícia antes que eles chegassem. Ele mandou grampear todas as comunicações a respeito da morte do Van Nostrand e ainda implantou um código alternado de segurança, ou coisa parecida, direto para a inteligência naval.
- Assim, desse jeito?
- Parece que é assim, Tenente, que as coisas funcionam hoje em dia. Não se manda mais "abafar", os computadores fazem isto. Você não pode mais trabalhar no serviço de inteligência se não for um manual ambulante de equipamentos de alta tecnologia. Não é à toa que eu estou completamente ultrapassado.
- Você está se saindo muito bem até agora - disse Cathy. - Melhor do que qualquer outro.
- Eu bem que gostaria, de verdade. Nem que fosse para retribuir alguma coisa ao Cooke e ao Ardisonne... Quero que aquela vaca vá para o inferno, ela e todo mundo que está metido nisso! Eu quero pegar aqueles filhos da puta!
- Você está chegando perto, Tye.
Perto, pensou Hawthorne, tirando a camisa de algodão, agora manchada de suor e sujeira. Perto...? Ah, sim, ele já havia chegado perto, tão perto que a tivera nos braços, fazendo amor, como se os cacos de um sonho despedaçado tivessem voltado a se juntar, como se a noite escura tivesse terminado numa madrugada gloriosa, em que o sol rompia o horizonte trazendo um novo dia, um dia maravilhoso. Vá se foder, Dominique! Mentirosa, mentirosa, mentirosa. Você mentiu para mim o tempo todo. Mas eu vou encontrar você, sua vaca, e vou cegar você que nem você me cegou, vou fazer você sentir a mesma dor que eu estou sentindo. Vá se foder, Dominique, eu falava de amor e sentia amor; você falava de amor e era tudo trapaça. Pior - muito pior - por trás daquilo tudo havia ódio, ódio pelo objeto manipulado.
- Mas onde é que ela está, Jackson? - perguntou Tyrell em voz alta. - Esta é que é a questão, não é?
- Eu acho que nós estamos negligenciando uma coisa importantíssima - interrompeu Neilsen. - Você disse que ela está aqui, pertinho de Washington e que a segurança do Presidente vai ser reforçada ao máximo. Como, então, ela vai conseguir furar um esquema desses?
- O problema é que o Presidente não pode parar com todas as atividades dele.
- Mas, pelo que você disse, todas as aparições em público e até as viagens dele foram canceladas. Ele está isolado, de quarentena, como um prisioneiro dentro da própria casa.
- Eu sei disso tudo. Mas o que me preocupa é que ela também sabe, e nem por isto resolveu desistir.
- Estou entendendo. As informações, todas essas mortes, Charlie, Miami; você mesmo, em Saba e aqui, com o Van Nostrand. Quem serão essas pessoas que trabalham para ela? Meu Deus, por quê?
- Eu bem que gostaria de saber as respostas de todas essas perguntas. - Hawthorne sentou-se na cama e em seguida deitou-se, com a cabeça no travesseiro. - Eu tenho que voltar, voltar para Amsterdã, lembrar todo aquele jogo sujo, as mortes que nunca vinham a público, ninguém sabia quantas pessoas tinham morrido... A ameaça B por alguma razão; B ameaça C por outra, aparentemente sem nenhuma relação com a primeira; C ameaça D com outras palavras, e finalmente D chega a E, que é quem acaba fazendo o que A queria. É uma cadeia tão complicada que você não consegue acompanhar.
- Mas parece que você conseguiu - disse Neilsen, com uma ponta de admiração na voz. - A sua ficha deixa isso bem claro: você foi brilhante.
- Algumas vezes, nem sempre, e na maior parte das vezes, por acidente.
Poole, sentado à escrivaninha, alisava com a mão os cabelos castanho-claros.
- Eu anotei o que você acabou de dizer sobre A, B, C, D e E e, como sempre fui ótimo em matemática, inclusive em geometria, trigonometria, cálculo e até um pouco de física nuclear, você estava dizendo que essas pessoas de Amsterdã estavam programadas em esferas de calibre diferente? Como em quadrantes dissociados?
- Não tenho a menor ideia do que quer dizer isto.
- Mas foi o que você disse.
- Então eu mantenho a minha palavra. O que foi que eu disse?
- Que nenhum deles sabia exatamente o que estava acontecendo, a não ser o primeiro e o último.
- De uma maneira supersimplificada, é exatamente isso. Usar como elos pessoas que podem perceber alguma coisa, mas não têm nada de específico para revelar, e em geral não suspeitam de nada.
- E o que é que leva essas pessoas a fazer isto?
- A ambição, Tenente, dinheiro, em última instância. Ou recebendo pagamento adiantado ou então conseguindo informações para extorquir alguém em troca de quantias ainda maiores.
- E você acha que o que está por trás da Bajaratt é uma coisa desse tipo?
- Não, acho que não, é um núcleo organizado demais, poderoso demais. Mas, de qualquer modo, esse núcleo tem que usar outras pessoas para alguns objetivos secundários, às vezes nem tão secundários assim; para coisas que eles não querem que sejam rastreadas, e tomam o maior cuidado para que os principais envolvidos não sejam descobertos se alguma coisa for rastreada.
- Como um certo Alfred Simon em Porto Rico? - sugeriu Poole.
- É um controlador de voo que sempre esteve lá, mas sem que o Simon soubesse o nome dele? - perguntou Neilsen.
- Os dois estavam atolados até o pescoço no esquema da Menina Sanguinária e dos cúmplices dela - concordou Tyrell. - Eram dois objetos controlados, descartáveis; o Simon é um bom exemplo, ele não tinha nada de importante para dizer.
- Mas disse - objetou Cathy. - Ele deu um nome, dois, aliás.
- Um dos nomes era inútil, um advogado respeitadíssimo de Washington, que podia ter problemas psíquicos, mas fora isso, nada... e o segundo foi um acidente, Major. Eu não estava brincando quando disse que a minha ficha "brilhante" era cheia de acidentes, exatamente como a maioria dos meus ex-colegas mais bem-sucedidos. Uma palavra, uma frase, um comentário qualquer que por algum motivo você guarda e aí, mais adiante, aquilo se encaixa no quebra-cabeça. Dá um "clique" na sua cabeça, o que é outro acidente, porque a probabilidade de você se lembrar está sempre contra você.
- Foi isso que aconteceu quando você viu o Netuno, não foi? - perguntou Jackson.
- Foi. O Simon tinha dito alguma coisa assim, que ele era manipulado por um homem que parecia ter saído de uma revista de moda masculina, tipo Gentleman’s Quarterly. E era isso mesmo. O Van Nostrand, mesmo na hora em que alguém estava prestes a ser assassinado na frente dele, era o protótipo da elegância.
- Eu não diria que foi um acidente você ter associado uma coisa à outra - disse Neilsen. - Eu diria que isso se chama treinamento.
- Eu não disse que sou um idiota, só estava querendo mostrar que muitas coisas dependem do acaso. Uma informação aparentemente sem importância, dada pelo dono de um puteiro, naquela ressaca que ele estava, tremendo da cabeça aos pés, mal conseguindo articular as palavras. Não é o tipo de coisa que você anota no seu diário. Foi um acaso, como eu acabei de dizer.
Hawthorne deitou-se na cama e fechou os olhos. Estava morrendo de cansaço, os braços e as pernas doloridos, a cabeça latejante. Entreouviu a discussão amigável de Cathy e Poole em torno do cardápio do serviço de quarto, mas seu pensamento continuava concentrado nos acidentes. Os acidentes da sua vida, tão numerosos, a começar por aquele que o levara a entrar para a Marinha. Ele estava na universidade, e havia mudado tantas vezes de área de especialização, que já não sabia responder em que profissão iria se formar; a última foi a astronomia.
- Por que você não tenta a tapeçaria? - perguntara seu pai, o professor. - Aí você não tem que frequentar as minhas aulas, meu filho. Sua mãe nunca ia entender se eu reprovasse você.
Na verdade, o curso de astronomia não foi tão mau assim; ele já velejava desde a primeira vez em que entrara num barco, e veio a refinar sua prática de navegação astronômica a tal ponto que tornou-se capaz de velejar guiando-se apenas pelos astros, sem a ajuda do sextante. Era um atleta relativamente talentoso; sua altura e seu tipo físico o levaram à equipe oficial da universidade, mas sua falta de compromisso, bem como as companhias em que andava, inviabilizaram uma possível carreira esportiva; não tinha disposição nem para treinar, nem para sofrer contusões. Quando saiu da Universidade de Oregon, gratuita para filhos de professores, sentiu-se perdido; tinha conseguido uma média respeitável, pois os cursos que escolhera eram do seu interesse, mas poucos eram do interesse dos empregadores, que procuravam profissionais de administração, economia, engenharia e informática. Foi quando aconteceu o acidente número um.
Nas ruas de Eugene, dois meses depois de sua mãe ter emoldurado o seu diploma essencialmente inútil, ele passou por um escritório de recrutamento da Marinha. Se foi pelos cartazes exibindo navios atraentes, ou por estar ansioso para fazer alguma coisa, ou por uma combinação dos dois motivos, ele nunca soube dizer; mas entrou e alistou-se.
Sua mãe ficou chocada.
- Você não tem o menor perfil para o serviço militar! - disse ela.
O irmão mais moço, que estava no segundo grau e era o primeiro da classe, acrescentou:
- Tye, você já se deu conta de que vai ter que obedecer ordens?
Seu pai, estupefato, foi ainda mais contundente que os outros dois:
- Pegue um vagabundo e ponha metade de um cérebro nele, e você vai ter alguém que não tem nenhuma ambição na vida. Levante as âncoras, meu filho, e eu espero que Deus tenha piedade de você.
Felizmente a Marinha tinha o seu próprio conceito de piedade. Diante do notável desempenho de Hawthorne no comando de embarcações de grande porte, que lhe valeram diversos prêmios, ele emergiu da base de treinamento de San Diego como oficial responsável por um destróier, o que levou ao segundo grande acidente.
Depois de dois anos eles estava sofrendo de claustrofobia do ambiente dos navios de guerra. Precisava de alguma coisa mais arejada. Apareceram algumas oportunidades de trabalho em terra, mas eram serviços logísticos - em escritórios, o que não lhe interessava, mas havia um que lhe pareceu atraente; oficial de protocolo em Haia.
Ele obteve o posto, bem como a promoção que o transformou em tenente junior; nem lhe passava pela cabeça que o protocolo era o lugar onde ficavam em observação os potenciais funcionários da inteligência naval. Toda aquela diversão, recepções em embaixadas e passeios com pessoas ricas e importantes, civis e militares, faziam parte do curso. E numa manhã, seis meses depois, ele foi chamado à sala do chargé d’affaires, onde recebeu elogios exagerados à sua modesta contribuição, e foi informado de que fora promovido a tenente senior.
- A propósito, Tenente - disse o executivo. - Precisamos de um favorzinho seu. - Acidente número três. Ele aceitou.
Suspeitava-se que o homem que tinha o posto correspondente ao de Tyrell na embaixada da França estava passando informações franco-americanas para os soviéticos. Será que, sob o pretexto de convidá-lo para um jantar, o tenente Hawthorne poderia levar o homem para um bar e fazê-lo beber o suficiente para arrancar dele o máximo que pudesse?
- Aliás - disse o chargé d’affaires, entregando-lhe um frasquinho plástico de colírio Murine -, duas gotas disto num copo são capazes de soltar a língua até de um mudo.
Acidente número quatro. Hawthorne nem precisou usar o "colírio". O pobre Pierre estava arrasado e, depois de várias taças de vinho, revelou sua terrível confissão, dizendo que estava completamente endividado e que tinha um caso com uma agente soviética que poderia destruí-lo, expondo o relacionamento dos dois.
Acidente número cinco. Provavelmente devido ao excesso de uísque, Tyrell sugeriu que seu atormentado colega lhe desse os nomes de seus contatos no KGB; ele poderia dizer que o francês era de fato um patriota que estava trabalhando para a OTAN porque suspeitava que havia infiltrações na sua própria embaixada. Hawthorne passou uma semana com o rosto arranhado pelos beijos de gratidão do francês. O homem se tornou um valioso agente duplo, o que foi creditado ao oficial de protocolo. O que levou ao acidente número seis.
O secretário-geral da OTAN o chamou, um homem por quem Hawthorne tinha o maior respeito, porque não era um principiante, mas um verdadeiro chefe, informal e objetivo.
- Eu quero que você siga a carreira, Tenente, porque não só tem todas as qualidades como também, o que é mais importante, não faz propaganda delas. Não aguento mais viver cercado por esses egos. As coisas funcionam com pessoas assim, quietas, observadoras. Você concorda?
Concordar com quê? Sim, sr. Secretário, o senhor é que sabe. Tyrell estava tão impressionado com o homem que não deu maior atenção às instruções dadas num jargão militar sutil e, envaidecido, aceitou o seu novo futuro. O acidente seis o levou de volta à Geórgia para uma estada exaustiva de três meses, após a qual tornou-se oficial da inteligência naval.
Ao voltar para Haia para retomar suas atividades, os acidentes se sucederam, alguns mais acidentais, outros, menos. Ele estava se tornando bom na sua verdadeira profissão. Alimentada pela hipocrisia e pela corrupção generalizadas que infestavam a cidade através da OTAN, Amsterdã havia-se tornado o núcleo das redes de espionagem, em que o dinheiro valia mais que os compromissos de maior ou menor importância. Hawthorne comandou agentes por toda a Holanda, viajou por vários países da Europa, à caça dos mercenários que eram pagos para matar, bem como para encobrir fatos. Foram todas essas mortes, os assassinatos inúteis, que fizeram com que ele finalmente resolvesse seguir o seu próprio caminho.
De repente, Tyrell percebeu que Cathy estava ao pé da cama a olhar para ele. Levantou a cabeça.
- Cadê o nosso Tenente? - perguntou.
- Está no meu quarto, falando no telefone. Ele lembrou que tinha um compromisso hoje à noite; quatro horas atrás.
- Eu só quero ver que explicação ele vai dar.
- Imagine. Com certeza ele está dizendo a ela que estava testando um avião experimental, uma operação supersecreta, e que deu um mau jeito no pescoço durante um mergulho de dez mil metros.
- Ele é uma figuraça, esse cara.
- É mesmo... E você, estava fazendo o quê? Dormindo de olho aberto?
- Não. Foi só um desses momentos de reflexão, quando a gente fica se perguntando o que a gente está fazendo naquele lugar... e até por que a gente é aquela pessoa, talvez.
- Eu sei a primeira resposta. Você está procurando essa Bajaratt porque você foi um dos melhores oficiais do serviço de inteligência da Marinha.
- Isso não é verdade - disse Hawthorne, sentando-se e recostando-se no travesseiro, enquanto Neilsen sentava-se numa cadeira próxima à cama.
- O Stevens reconheceu que você era, mesmo que tenha sido a contragosto.
- Ele estava tentando tranquilizar você, só isto.
- Discordo. Eu vi você em ação, Comandante. Para que negar?
- Porque, Major, eu posso ter sido razoavelmente competente durante alguns anos, mas aí alguma coisa aconteceu, e mesmo que os meus superiores não tenham percebido, eu me tornei o pior de todos os agentes. Você entende, eu não estava mais interessado em saber quem ganhava ou perdia aqueles jogos estúpidos. Eu estava interessado em outra coisa.
- E você quer falar sobre isto?
- Acho que você não ia querer ouvir. Além disso, é uma coisa muito pessoal; nunca contei para ninguém.
- Vou propor uma troca, Tye. Também tenho um assunto pessoal, sobre o qual nunca falei para ninguém, nem para o Jackson e muito menos para os meus pais. Mas eu tenho vontade de contar para alguém. Talvez a gente pudesse conversar sobre essas coisas, já que provavelmente a gente nunca mais vai se ver depois que isto tudo acabar. Quer que eu conte para você?
- Quero - disse Tye, vendo a expressão ansiosa, quase suplicante, da Major. - O que é, Cathy?
- O Poole e a minha família acham que eu tenho vocação para ser militar, para pilotar um avião e tudo mais que isso acarreta.
- Se você me permite - interrompeu Hawthorne, com um sorriso suave -, eu acho que o Jackson acredita não só que você tem vocação, mas que você nasceu para isso.
- Pois ele está redondamente enganado - disse a major Catherine Neilsen. - Antes de eu ser aceita na escola militar, onde eu estudei de graça, eu sempre quis ser antropóloga. Assim como a Margaret Mead, viajar pelo mundo todo, estudar essas culturas de que ninguém nunca ouviu falar, descobrir coisas sobre as comunidades primitivas, que em certos aspectos levam uma vida muito melhor que a nossa. Às vezes eu volto a sonhar com isso... Eu não pareço uma boba?
- Lógico que não. Por que você não corre atrás disso?... Eu sempre quis ter o meu próprio barco, viver navegando com a minha própria bandeira, digamos assim. E passei dez anos fora da rota, mas e daí?
- Mas a sua situação era diferente, Tye. Você começou a treinar para isso desde criança. Eu não, eu teria que voltar a estudar, só Deus sabe por quanto tempo.
- O quê, alguns anos? Não é tão complicado assim. E você ainda pode aprender enquanto trabalha.
- Como assim?
- Você sabe fazer uma coisa que noventa por cento dos antropólogos não sabem: pilotar um avião. Pode levar eles para qualquer lugar que queiram.
- Isto é uma maluquice - disse Cathy em voz baixa, pensativa. Em seguida, aprumou-se na cadeira e limpou a garganta. - Agora que eu contei o meu segredo, Tye, você vai me contar o seu. Trato é trato.
- Nós estamos parecendo duas crianças, mas tudo bem... É uma coisa que volta e meia me vem à cabeça, eu acho que é a minha mania de racionalizar... Uma noite fui encontrar um soviético, um agente do KGB que era um cara como eu, da Marinha, só que ele era do mar Negro. Nós dois sabíamos que as coisas estavam fora de controle, que aqueles cadáveres todos no canal eram uma insanidade. Para quê? O pessoal da cúpula não se preocupava nem um pouco conosco, e a gente tinha resolvido que ia acabar com aquela loucura. Quando eu encontrei o cara, ele ainda estava respirando, mas a cara dele estava em carne viva, cortada com uma lâmina, parecia um hambúrguer. Entendi o que ele queria que eu fizesse, aí eu... livrei-o daquele martírio, daquela dor insuportável. E foi aí que entendi o que é que eu tinha que fazer. Não bastava perseguir os corruptos que ganhavam fortunas a troco de nada nem os agentes e os burocratas equivocados que foram criados com uma ideologia diferente da nossa, eu tinha que perseguir os fanáticos, os ensandecidos que eram capazes de fazer uma coisa dessas com uma pessoa igual a eles. Tudo em nome de uma lealdade absoluta e ilibada, que não tinha o menor valor para a História, pois as regras estão sempre mudando.
- Nossa, Comandante, que barra - disse Catherine. - E foi nessa época que você conheceu o capitão Stevens?
- Henry, o Horrível?
- Ele era... é?
- Às vezes. Digamos que ele é dedicado demais, de uma forma agressiva. Na verdade, eu conheci mais a mulher dele, ele conheci menos. Eles não tinham filhos, ela trabalhava na embaixada, na seção de transportes. Era ela que coordenava todas as viagens do pessoal, e eu tinha a minha cota. Era uma pessoa ótima, e eu desconfio que ela reprimia os excessos dele, mais do que ela própria admitia.
- Agora há pouco você perguntou a ele sobre a sua mulher. - Tyrell virou a cabeça para a esquerda, num movimento brusco, e seus olhos fixaram-se nos da Major. - Desculpe - disse ela, desviando o olhar.
- Eu já sabia a resposta, mas tinha que fazer aquela pergunta - disse ele, com a voz calma. - O Van Nostrand fez um comentário cruel... para me provocar, me deixar vulnerável.
- E o Stevens desmentiu - completou Cathy. - Você acreditou nele, claro.
- Sem sombra de dúvida. - Hawthorne sorriu, não de satisfação, mas por alguma lembrança; seus olhos se voltaram para o teto. - Agressividade à parte, o Henry Stevens é muito inteligente, muito perspicaz, mas o principal motivo de terem tirado ele do trabalho de campo e mandado para a sede é que ele não sabe mentir. Para começar, você sempre acha que ele está nervoso, só de ouvir a voz dele. É por isso que estou convencido de que ele sabe mais sobre a morte da minha mulher, o assassinato dela, do que ele me diz... Você ouviu o que eu perguntei a ele, você entendeu a minha pergunta. A resposta dele foi tão direta e decidida, a reação, tão rápida, instantânea, que eu tive certeza de que ele estava dizendo a verdade. Ele disse que só tinha visto a Ingrid uma vez, na recepçãozinha que a embaixada ofereceu no nosso casamento; ele foi acompanhando a mulher.
- Então era tudo mentira - disse Cathy.
- Eu nunca duvidei disso. Você também não duvidaria se tivesse conhecido a Ingrid.
- Eu gostaria de ter conhecido ela.
- Ela ia gostar de você. - Tyrell virou a cabeça lentamente e olhou novamente para a Major, sem qualquer traço de hostilidade. - Ela tinha mais ou menos a sua idade, e também tinha este temperamento independente, autoritário, até, mas você se impõe mais... ela nunca precisou.
- Porra, muito obrigada, Comandante.
- Ei, você é uma oficial das Forças Armadas; você tem que se impor mesmo. Ela era intérprete quadrilíngue; isso não era um requisito para ela. Eu não quis insultar você.
- Caramba, ela acreditou! - gritou Poole, entrando impetuosamente no quarto.
- Acreditou em quê? - perguntou Hawthorne.
- Que eu me ofereci como voluntário para ir para o fundo do mar num batiscafo e tive um vazamento de oxigênio no pulmão! Caramba!
- Vamos comer - disse Cathy.
O serviço de quarto chegou quarenta e cinco minutos depois; enquanto esperavam, Hawthorne examinava o caderno da portaria de Van Nostrand, Poole lia os jornais que havia comprado na recepção, e Catherine foi tomar um banho quente, na esperança de "mandar a tensão pelo ralo abaixo". Deixaram a televisão ligada, com o volume baixo, mas numa altura suficiente para que eles escutassem caso entrasse no ar alguma notícia a respeito de Van Nostrand. Felizmente, não houve nenhuma. Ao fim da refeição, Tyrell ligou para o escritório de Henry Stevens.
- Será que você podia bloquear a ligação?
- Você continua achando que tem alguém infiltrado aqui?
- Tenho certeza absoluta.
- Bem, se você souber de alguma coisa, me diga, porque há três dias que todas as ligações entre nós dois estão bloqueadas. O que significa que se houver alguém infiltrado, é aí do seu lado.
- Isto é absolutamente impossível.
- Ah, meu Deus, eu não aguento mais essa atitude de "eu-sei-de-tudo".
- Eu não sei tudo não, Henry, mas em geral eu sei mais que você.
- Também não aguento mais isso.
- Então me demita. É simples.
- Mas não fomos nós que contratamos você!
- Se você cortar a nossa verba, dá no mesmo. Por que você não faz isso?
- Ah, cale a boca... Você tem alguma novidade? Alguma notícia da Menina Sanguinária?
- Nada que você não saiba - respondeu Tyrell. - Ela está por aqui, a poucos quilômetros do alvo dela, e ninguém sabe onde.
- Não vai ter alvo nenhum. O Presidente está mais seguro do que se estivesse trancado num cofre. O tempo está a nosso favor.
- Eu aprecio muito a sua confiança, mas ele não pode ficar assim por muito tempo. Um presidente invisível não é um presidente.
- E eu não aprecio nada a sua atitude. O que mais? Você disse que ia me dar uns nomes.
- Anote aí, e ponha todos eles no microscópio mais potente que você tiver. - Hawthorne leu os nomes que havia selecionado do caderno, eliminando o pessoal do serviço da casa: um bombeiro hidráulico, o veterinário dos cavalos, um quarteto de dançarinos espanhóis contratados para um churrasco à moda argentina.
- Você está falando das pessoas de maior prestígio na administração! - explodiu Stevens. - Você enlouqueceu de vez!
- Todos eles estiveram lá este mês. E como não resta dúvida de que a Menina Sanguinária tem alguma ligação com o Van Nostrand, é perfeitamente possível que algum deles, ou alguns, estejam na agenda dela, mesmo que não saibam disso.
- Você tem noção do que está me pedindo? O secretário de Defesa, o diretor da CIA, aquele maluco do chefe do G2, o secretário de Estado! Você está louco!
- Eles estiveram lá, Henry. E a Bajaratt também.
- Você tem alguma prova? Pelo amor de Deus, esses caras podem acabar comigo!
- A prova está na minha mão, Capitão. As únicas pessoas que poderiam acabar com você são as que estão trabalhando para a Bajaratt, mesmo sem saber, como eu já falei. Agora se vire, vá trabalhar!... Aliás, daqui a uns vinte minutos vou lhe dar um nome, uma pista capaz de fazer você ser promovido a almirante, se não for morto antes.
- Que ótimo. E que diabo de pista é essa?
- A pessoa que está por trás da viagem do Van Nostrand para o exterior.
- O Van Nostrand morreu!
- Mas ninguém sabe disso no local de embarque dele. Vou repetir, vá trabalhar, Henry. - Tyrell desligou o telefone e olhou para Neilsen e Poole, que o contemplavam, boquiabertos. - O que foi? - perguntou.
- Você realmente pega pesado, Comandante - disse o Tenente.
- Não tem outro jeito, Jackson.
- E se você estiver errado? - perguntou Cathy. - E se ninguém dessa lista tiver qualquer ligação com a Bajaratt?
- Não acredito nisso. E se o Stevens não for capaz de descobrir nada, vou divulgar esta lista e mais toda a história, com tantas insinuações, mentiras e meias-verdades que vai haver um infarto em massa na estrutura do poder. Ninguém vai escapar, nem os verdadeiros santos de Washington.
- Isto é de um cinismo que chega a beirar a irresponsabilidade total - disse Neilsen.
- E é mesmo, Major, porque para encontrar a Menina Sanguinária, os que estão no centro do esquema de apoio dela têm que se apavorar. A gente sabe que eles estão lá e que penetraram os nossos círculos mais fechados, aqui, em Londres e em Paris. Basta um engano, uma pessoa tentando sair da reta e pronto, os especialistas vão botar o soro mágico deles para funcionar.
- Do jeito que você fala, parece simples.
- Mas na essência, não é tão complicado. A gente parte desta lista da guarita, pessoas que sabidamente tiveram um contato próximo com o Van Nostrand; depois a lista se expande com a investigação da vida de cada um deles. Quem são os amigos, os aliados, quem trabalha com eles e tem acesso aos arquivos confidenciais? Quais deles têm um padrão de vida acima das suas posses? Existem pontos fracos que poderiam tornar essas pessoas vítimas de extorsão? Tudo isso é fácil de descobrir, e a melhor arma é o medo, o pânico. - O telefone tocou. - Stevens? - Hawthorne franziu o cenho; tapou o bocal e fez um gesto para Poole. - É para você.
O Tenente pegou o telefone sobre a mesa.
- Aconteceu isto, Mac?... Há dez minutos? Está bem, obrigado... Como é que eu vou saber? Venda essa porra! Se eles tivessem tutano, tinham voado para Cuba. - Poole desligou e olhou para Hawthorne. - O jato do Van Nostrand aterrissou e parece que houve a maior confusão. A escolta de Washington teve um ataque com os irmãos Jones porque eles deixaram o avião lá e foram embora, dizendo que tinham sido dispensados pelo dono.
- Está na hora de ligar para St. Thomas - disse Tyrell, pegando o telefone e discando para o Caribe. Com o rosto contraído de ansiedade ele esperou e em seguida digitou o código para escutar os recados... Meu bem, é Dominique! Estou ligando de um cruzeiro chatíssimo pela costa de Portofino... Hawthorne empalideceu, seus olhos se arregalaram, os músculos do rosto se enrijeceram. Era uma fraude, como tudo o que dizia a respeito a Dominique; a falsidade de uma assassina, cuja vida era toda feita de mentiras. E Pauline em Paris fazia parte de toda a mentira, um fragmento que poderia ajudá-los a chegar mais perto de Bajaratt.
- O que houve? - perguntou Cathy, vendo a ansiedade no rosto de Tyrell.
- Nada - respondeu ele, em voz baixa. - Era só um engano. - Seguiu-se um novo recado; a tensão recomeçou.
De repente, vindo pela janela do hotel, ouviu-se um grito de furar os ouvidos; O grito se repetiu, ainda mais alto e, logo depois histérico. Neilsen e Poole correram para a janela.
- Ali no estacionamento! - exclamou o Tenente. - Olhe!
Na enorme superfície negra do estacionamento, cercada por holofotes acesos, via-se uma mulher loura e um homem de meia-idade. A mulher gritava de medo, agarrada no companheiro, que tentava desesperadamente acalmá-la e tirá-la dali. Poole abriu a janela; agora podiam escutar os apelos do homem grisalho.
- Cale a boca! A gente tem que sair daqui. Fique quieta, sua idiota, senão as pessoas vão ouvir!
- Ele está morto, Myron! Meu Deus, olhe só a cabeça dele, parece que arrancaram um pedaço! Meu Deus do céu!
- Cale a boca, sua vagabunda!
Vários garçons de paletó branco saíram correndo pela porta dos fundos, um deles com uma lanterna, cujo facho passeava de um lado para outro, apontando finalmente para a figura de um homem, o corpo caído pela porta aberta de um Porsche conversível, metade no banco do automóvel, metade no chão do estacionamento. Uma mancha escura em torno da cabeça cintilava à luz da lanterna; o crânio estava estilhaçado, e o sangue não parava de escorrer.
- Tye, venha cá! - exclamou Neilsen, com a voz abafada pelos gritos que vinham do térreo.
- Shhh! - Hawthorne tapou o ouvido com a mão esquerda, concentrando-se nas palavras que vinham de St. Thomas.
- Acabaram de matar alguém lá embaixo! - continuou Cathy. - Um homem num carro esporte. Estão chamando a polícia!
- Fique quieta, Major, tenho que prestar atenção aqui. - Tyrell fez algumas anotações no cardápio do quarto.
Do lado de fora do quarto, pelo corredor do Shenandoah Lodge, Amaya Bajaratt passou correndo em frente à porta de Hawthorne despindo um par de luvas cirúrgicas.
21
- Meu Deus, mas é o secretário de Estado - disse Tyrell para si mesmo. Perplexo, ele pôs o telefone no gancho, enquanto o barulho das sirenes invadia o estacionamento lá embaixo. - Eu não posso acreditar! - sussurrou, alto o suficiente, porém, para que os outros ouvissem.
- Acreditarem quê? - perguntou Catherine, virando-se para dentro do quarto. - Está um verdadeiro caos lá embaixo.
- Está um verdadeiro caos aqui também.
- Mataram alguém, Tye.
- Eu já entendi, mas isso não tem nada a ver conosco. No entanto, estamos envolvidos numa coisa que poderia provocar um colapso no país.
- O que é que você está dizendo?
- A escolta militar do Van Nostrand no aeroporto de Charlotte foi ordem direta do secretário de Estado.
- Caramba! - exclamou Poole, olhando para Hawthorne e fechando a janela. - E eu pensando que você estava maluco quando falou dele e daquelas outras pessoas.
- Tem que haver alguma explicação - interrompeu Neilsen - porque você tem razão, não pode existir nenhuma ligação entre ele e Bajaratt.
- Ele tinha uma ligação muito próxima com o Van Nostrand, o suficiente para ajudar o outro a sair do país em circunstâncias mais do que esquisitas, e o Van Nostrand, o sr. Netuno, tinha escondido a Menina Sanguinária no chalé de hóspedes, a menos de quinhentos metros da biblioteca. Voltando ao alfabeto, se A é igual a B e B é igual a C, então existe uma relação direta entre A e C.
- Mas você disse que tinha visto dois homens entrando na limusine, Tye. Um de chapéu...
- O que é o padrão para disfarçar os homens carecas - interrompeu Hawthorne. - Eu também disse isso, Jackson, e estava errado numa coisa e fui limitado demais na outra. Não eram dois homens; um deles era mulher; um chapéu não serve só para esconder uma careca, serve também para esconder o cabelo de uma mulher.
- Era mesmo a Bajaratt - sussurrou Cathy. - E a gente ali, tão perto!
- Tão perto - concordou Tyrell. - Nós não temos outra opção; eu não tenho outra opção e não posso perder tempo. - No momento em que pegou novamente o telefone, alguém bateu à porta. - Veja quem é, por favor, Poole.
Eram dois policiais uniformizados.
- É aqui que estão hospedados a major Neilsen, o tenente Poole e um parente, um tio da Flórida? - perguntou o homem da direita, lendo os nomes numa prancheta.
- É sim, senhor - respondeu o Tenente.
- A ficha de registro está incompleta, senhor - disse o segundo policial, espiando para dentro do quarto. - As leis da Virgínia exigem outras informações.
- Desculpem, amigos - disse Poole. - Fui eu que preenchi a ficha, e a gente estava morrendo de pressa.
- Posso ver a sua identidade? - Dando um empurrão no Tenente, o homem da prancheta entrou no quarto, seguido pelo colega, que ficou alguns passos atrás, bloqueando a porta. - E, por favor, digam onde vocês estiveram nas últimas duas horas.
- Nós não saímos daqui do quarto desde que chegamos, há muito mais de duas horas - disse Hawthorne, desligando o telefone. - E como somos maiores de idade, vocês não têm nenhum direito de se meter na nossa vida, por mais chocados que fiquem com o nosso comportamento.
- O quê? - A major Neilsen empalideceu e abafou a sua exclamação de protesto.
- Talvez o senhor não esteja entendendo - disse o policial. - Um homem lá embaixo levou um tiro, foi assassinado. Nós estamos interrogando todos os hóspedes e, se o senhor quer que eu seja claro, principalmente os que têm uma ficha de registro suspeita, como é o seu caso. Na sua ficha não tem o nome desse tio Joe aqui, não tem nenhum endereço na Flórida, só o nome da cidade, e nem o número do cartão de crédito.
- Eu já disse, a gente estava com pressa e pagou em dinheiro.
- Bem, com esses preços, vocês devem andar com uma mala de dinheiro. Talvez até duas.
- Isso não é da sua conta - disse Tyrell, ríspido.
- Olhe aqui, meu senhor, o homem lá no estacionamento foi vítima de uma armação - disse o policial. - Ele trouxe uma caixa de bombons caríssima para a pessoa que ia visitar. No cartão estava escrito: "Para uma pessoa muito querida."
- Fantástico! - exclamou Hawthorne. - Nós matamos o sujeito, ficamos aqui esperando a polícia, e nem pegamos os bombons!
- Aconteceram umas coisas estranhas.
- Sem dúvida - concordou o outro policial, metendo a mão no paletó do uniforme e tirando um aparelho de rádio. - Sargento, nós estamos com três suspeitos aqui, todos possíveis, nos quartos 505 e 506. Mande um reforço assim que puder... Você não sabe o que eu acabei de descobrir. Ande logo!
Quatro cabeças se voltaram para o outro lado do quarto, acompanhando o olhar do policial. Sobre a escrivaninha estavam o Walther P.K. automático de Poole e o revólver calibre 38 de Hawthorne.
Bajaratt olhava da janela a multidão lá embaixo. As lesões e os procedimentos não lhe interessavam, ela já conhecia bem demais essas coisas - os mexeriqueiros mórbidos acotovelando-se para ver o cadáver coberto de sangue e a polícia tentando manter uma aparência de ordem até que seus superiores chegassem com maiores instruções. Até então, o corpo mutilado teria que ficar ali; era carne para os espectadores alvoroçados, cujo apetite não arrefecia sequer diante do lençol ensanguentado que cobria o cadáver.
Baj não estava preocupada com a atividade infantil dos inúteis; tentava desesperadamente encontrar Nicolo, que ela mandara descer no instante em que retornara à suíte, com recomendações explícitas. Aconteceu uma coisa terrível e nós temos que ir embora. Arranje um carro, mesmo que tenha que se livrar do dono. Leve as malas e desça pela escada de incêndio. Lá estava ele! Na sombra de um poste de luz, a mão erguida, segurando alguma coisa, fazendo um sinal com a cabeça. Ele havia conseguido!
Bajaratt olhou-se no espelho, ajeitando a peruca de cabelos brancos e finos. O líquido adesivo no seu rosto mantinha as rugas acentuadas; o pó branco, as olheiras escuras e os lábios finos e pálidos davam-lhe a fisionomia de uma velhinha, uma velhinha excêntrica que usava um chapéu masculino marrom.
Abriu a porta do corredor, atônita por um momento diante do barulho e da sucessão de policiais que passavam correndo, com as armas na mão, convergindo para um quarto mais adiante. Prosseguiu em direção ao elevador, seguindo os uniformes; uma figura curvada, lutando contra o peso da idade.
- Seus filhos da puta, me larguem!
- Não cheguem perto de mim, seus porcos, senão vai ser pior para vocês!
- Não se atrevam a encostar a mão em mim!
Baj ficou subitamente paralisada, todos os seus músculos, tendões e juntas, inoperantes. Seus filhos da puta, me larguem. Apenas uma voz, apenas um homem. Hawthorne! Instintivamente, ela endireitou o corpo curvado, concentrando toda a sua atenção no tumulto dentro do quarto.
Entre os corpos e os braços estendidos que imprensavam Tyrell contra a parede, os olhos dos dois se encontraram, os dela, entreabertos, assustados; os dele, arregalados, perplexos, numa mistura de descrença e pânico.
Howard Davenport, um homem poderoso e influente, um gigante da indústria e, não obstante, frustrado e derrotado como chefe do inexpugnável Departamento de Defesa, serviu uma segunda dose de Courvoisier no bar de seu escritório e retornou a passos lentos para a escrivaninha. Sentia-se aliviado, um alívio que se devia a uma notícia recebida há cerca de duas horas; o carro da segurança do Departamento havia-se comunicado com o plantão noturno, confirmando que a limusine de Van Nostrand havia saído da casa com um ou mais passageiros no banco traseiro.
Se o Hawthorne sair na minha limusine, você vai saber que eu estava errado, e nunca vai tocar nesse assunto com ninguém.
Davenport não tinha qualquer intenção de fazer isso. A histeria muda em torno da caça à Menina Sanguinária já era mais do que suficiente. Sobrecarregar os caçadores com boatos espalhafatosos só serviria para aumentar o pânico - algum fanático pelo serviço de inteligência poderia inseri-los num computador, disseminando uma confusão ainda maior quando algum outro fanático os encontrasse. Van Nostrand compreendia isso perfeitamente; foi por esse motivo que ele deu aquelas últimas instruções, caso fosse constatado que o ex-comandante Hawthorne não pertencia ao famigerado mercado Alfa... Santo Deus, pensava Davenport, que espécie de secretário de Defesa era ele? Nunca tinha ouvido falar desse Alfa, fosse lá o que fosse!
Não, havia chegado a hora, pensou ele. Preferia que sua mulher estivesse em casa e não em Colorado, visitando a filha, que acabava de ter o terceiro bebê, mas não havia como separar mães, filhas e netos; este era um dado. Ele realmente gostaria que ela estivesse ali, pois finalmente escrevera a sua carta de demissão na velha Remington que seus pais lhe haviam dado há séculos. Os jornais sempre faziam comentários sobre a velha máquina de escrever; o herdeiro da fortuna de Short Hills ciscando as teclas, redigindo notas numa máquina antiquada, quando poderia ter o melhor dos computadores, isso sem falar de um exército de secretárias. Mas a velha "Rem" era uma amiga de longa data, uma amiga que o ajudava a pensar, portanto Davenport não via razão para trocá-la.
Sentou-se, girou a poltrona para a direita, de frente para o console da máquina, relendo sua breve carta para o Presidente. Sim, sua mulher devia estar com ele, pois ela detestava Washington e não via a hora de voltar para a fazenda de cavalos no interior de Nova Jersey, deliciando-se com aquela conspiração conjunta. Ela se divertia ainda mais porque os médicos da clínica Mayo, onde os dois haviam feito seu check-up anual, haviam declarado que seu estado de saúde era excelente. Davenport deu um gole no conhaque e sorriu.
Sr. Presidente,
É com enorme pesar que venho submeter a V. Excia. o meu pedido de demissão imediata, devido à descoberta recente de uma doença grave na minha família.
Permita-me dizer que para mim foi uma honra servir sob sua admirável liderança, com a certeza de que, de acordo com a orientação de V. Excia., o Departamento de Defesa continuará executando a sua missão com competência e comprometimento. Por fim, permita-me agradecer o privilégio de ter participado da equipe de V. Excia.
Minha esposa, Elizabeth, que Nosso Senhor a proteja, envia seus votos de felicidade, aos quais eu reúno os meus.
Atenciosamente
Howard Davenport
O Secretário deu mais um gole de conhaque e concentrou sua atenção numa frase, rindo baixinho durante alguns segundos. Para ser consistente com sua imagem de integridade, achava que talvez fosse mais honesto acrescentar a palavra "devido". A passagem passaria então a dizer... "de acordo com a orientação de V. Excia., o Departamento de Defesa continuará executando a sua missão com competência e o devido comprometimento."... Não, nada de recriminações, nada de lições de moral apontando os excessos alheios. Talvez uma série de artigos pudesse ajudar os seus sucessores - certamente chamariam a atenção deles - mas em última análise tudo dependia de quem viesse a ocupar o cargo. Se fosse a pessoa certa, veria os vícios do sistema e se encarregaria de corrigi-los com mão de ferro. Se fosse a pessoa errada, alguém sem força, nenhuma advertência externa ajudaria. E Howard Wadsworth Davenport compreendia que ele pertencia à segunda categoria; na verdade, havia fracassado.
Pôs o copo de conhaque sobre a escrivaninha; o copo escorregou e espatifou-se no assoalho de parquê. Estranho, pensou Davenport, ele o tinha posto longe da beirada - tinha mesmo? Sua visão estava se tornando turva, sua respiração, subitamente ofegante, difícil - onde estava o ar? Levantou-se, cambaleando, achando que o ar-refrigerado central estava com defeito e que a noite estava quente, úmida, cada vez mais sufocante. Mas não havia nenhum ar! Sentiu uma dor no peito, que rapidamente se espalhou por todo o tórax. Suas mãos começaram a tremer; em segundos, não conseguia mais controlar os braços, e as pernas não suportavam mais o seu peso. Caiu de frente no chão duro, esmagando o nariz, que começou a sangrar, e num esforço agonizante tentou levantar-se, contorcendo-se em espasmos, para finalmente cair de novo, os olhos fixos no teto, bem abertos, embora não vissem mais nada.
Escuridão. Howard W. Davenport estava morto.
A porta do escritório se abriu, revelando a figura de um homem vestido de preto, o rosto coberto por uma máscara, as mãos protegidas por luvas pretas de seda. Ele entrou e acocorou-se ao lado de um bujão metálico de gás venenoso, de pouco mais de meio metro de altura, com um tubo de borracha estreito e chato atarraxado à torneira, estendendo-se até a porta. Fechou a torneira, apertando-a com força mais duas vezes para ver se a saída de gás estava bem vedada. Em seguida levantou-se, atravessou o escritório e abriu um par de portas de vidro que davam para o terraço. O ar quente e úmido da noite encheu o recinto com o perfume do jardim. O homem dirigiu-se à máquina de escrever e leu a carta de demissão de Davenport. Arrancou-a do rolo, amassou-a e enfiou-a no bolso da calça. Colocou na máquina uma nova folha de papel timbrado de Davenport e escreveu:
Sr. Presidente,
É com todo o pesar que submeto a V. Excia. o meu pedido de demissão imediata, por um motivo pessoal de saúde que venho tentando esconder da minha querida esposa. Em suma, eu não estou mais em condições de trabalhar, um fato que muitos dos meus colegas poderão sem dúvida atestar.
Estou sob os cuidados de um médico da Suíça, cujo nome jurei manter em segredo, e ele me informou que agora é uma questão de dias...
A carta terminava abruptamente. Scorpio 24, obedecendo a ordens dadas na véspera pelo antigo Scorpio Um, recolheu seu equipamento letal e retirou-se pelo terraço, passando pela porta de vidro.
A polícia de Fairfax, Virgínia, havia-se retirado das duas suítes do Shenandoah Lodge, e no seu lugar encontrava-se o capitão Henry Stevens.
- Pelo amor de Deus, Tye, pare com isso!
- Está bem, Henry, está bem - disse Hawthorne, ainda pálido, sentado na beira da cama; Neilsen e Poole, do outro lado do quarto, esticavam-se nas suas cadeiras, ansiosos. - Isso parece loucura! Eu conhecia ela, conhecia aqueles olhos, e ela também me conhecia! Era uma velhinha, que mal conseguia andar, mas eu conhecia ela!
- Eu já falei - disse Stevens, olhando para Tyrell. - A mulher que você viu é uma condessa italiana chamada Cabarini ou coisa parecida, e é muito vaidosa, pelo que disseram na recepção. Ela não quis nem assinar a ficha de registro lá embaixo porque, veja só, não estava "bem vestida"; mandou trazerem a ficha aqui em cima. Eu já chequei o nome dela com a Imigração. Ela é uma pessoa cheia de prestígio, e milionária, além de tudo.
- E por que ela foi embora?
- Ela e mais vinte e dois hóspedes, e o hotel só tem trinta e cinco quartos. Mataram um homem no estacionamento, Tye, e os turistas não têm nenhuma obrigação de presenciar essas coisas.
- Está bem, está bem, eu vou "parar com isso". Só que não consigo parar de pensar naquele rosto! - repetiu Hawthorne, meneando a cabeça. - A idade, ela era tão velha, mas eu conhecia aqueles olhos, tenho certeza.
- Os geneticistas dizem que existem exatamente cento e trinta e duas variedades de cores e formatos de olho, nem mais nem menos - disse Poole. - É um numerozinho bem pequeno se você pensar na quantidade de gente que tem neste mundo. Esta é uma das perguntas mais frequentes de "Você sabia?".
- Obrigado pela ajuda. - Hawthorne voltou-se para Henry Stevens. - Antes dessa confusão começar, eu estava ligando para você. Eu não sei como você vai fazer, mas você tem que fazer alguma coisa.
- Fazer o quê?
- Primeiro me responda, e diga a verdade. Alguém sabe, alguém poderia saber que o Van Nostrand morreu?
- Não, ninguém sabe de nada, e a casa está bem guardada. O delegado e os dois policiais de Fairfax são profissionais, eles entenderam. E ninguém vai ficar sabendo de nada através deles; os três estão fora da área.
- Está certo. Então use todos os seus recursos e marque um encontro com o secretário de Estado para mim. Hoje à noite... de madrugada, agora. A gente não pode perder um minuto.
- Você está louco? Já é quase meia-noite.
- Eu sei disto, e também sei que o Van Nostrand ia sair do país clandestinamente porque o secretário de Estado abriu o caminho para ele. Oficialmente.
- Eu não acredito!
- Acredite. O Bruce Palisser, com toda aquela elegância, arranjou tudo, inclusive uma escolta militar e a máxima segurança para ele sair de Charlotte. E eu quero saber por quê.
- Meu Deus, eu também!
- Não vai ser tão difícil assim. Conte toda a verdade, ele deve saber de tudo, mesmo; que eu fui contratado pelo MI-6 e não por você nem por ninguém de Washington, porque eu não confio em muita gente por aqui. Diga a ele que eu tenho informações sobre a Menina Sanguinária que eu só vou revelar a ele, já que o meu chefe inglês foi morto. Ele não vai se negar; ele tem relações próximas com o governo britânico... Você pode até exagerar e dizer a ele que apesar de você não se dar bem comigo, eu sou muito bom profissional e devo realmente ter descoberto alguma coisa... O telefone está ali, Henry. Ligue.
O chefe da inteligência naval obedeceu; suas palavras com o secretário de Estado continham a mistura adequada de alarme, urgência e respeito. Quando terminou, Hawthorne o puxou num canto e lhe entregou um pedaço de papel.
- Este número é um telefone em Paris - disse Tyrell em voz baixa. - Entre em contato com o Deuxième e mande eles colocarem essa linha sob vigilância. Total.
- Que telefone é este?
- A Bajaratt ligou para esse número, basta você saber isto. É tudo o que eu posso dizer.
O táxi parou junto ao meio-fio numa rua de Georgetown, a área residencial mais seleta de Washington, onde vivia a elite da capital. A imponente casa de pedra de quatro andares erguia-se no alto de uma escada de três voltas, bastante íngreme, que terminava numa entrada profusamente iluminada, uma porta preta envernizada com detalhes em metal polido. A escada era branca, bem como os corrimãos de ferro esmaltado, obviamente para ajudar as pessoas que subissem durante a noite. Hawthorne pagou a corrida e saltou do táxi.
- O senhor quer que eu fique esperando? - perguntou o motorista, olhando para a camisa sem colarinho de Tyrell; sabia que era tarde e que aquela era a casa do secretário de Estado.
- Eu não sei quanto tempo isso vai demorar - respondeu Hawthorne, pensativo - mas você tem razão. Se puder, volte daqui a, vamos dizer, quarenta e cinco minutos, acho que é suficiente. - Tyrell pôs a mão no bolso, tirou uma nota de dez dólares e jogou-a pela janela dianteira. - Mas eu não tenho certeza; se eu não estiver aqui, pode ir embora.
- A noite está com pouco movimento, posso esperar um pouco.
- Obrigado.
Hawthorne começou a subir a escada, perguntando a si mesmo por que uma pessoa de mais de cinquenta anos moraria numa casa onde era preciso ser um cabrito montês para conseguir chegar à porta de entrada. Sua pergunta silenciosa não demorou a ser respondida, pois logo acima, num pórtico de pedra, havia uma grande cadeira rolante. O secretário Palisser não era tolo quando se tratava de conforto; em muitos aspectos ele não era tolo. Tyrell não era fã da ordem estabelecida de Washington, mas Bruce Palisser parecia estar um pouco acima da média. Hawthorne não sabia muito sobre ele, mas, pelo que lia nos jornais e via nas entrevistas transmitidas pela televisão, o Secretário tinha presença de espírito e um bom senso de humor. Tyrell suspeitava de qualquer político que não tivesse essas características. Em qualquer lugar. Qualquer país. Naquele momento, porém, ele estava muito ressabiado, desconfiado ao extremo, em relação ao secretário de Estado. Por que teria ele feito aquilo por Van Nostrand, amigo e anfitrião da terrorista Bajaratt?
A aldrava de metal brilhante era mais um ornamento do que um instrumento prático, e Hawthorne tocou a campainha. Em segundos, Palisser abriu a porta. Estava em mangas de camisa; seu rosto familiar, mesmo sonolento, era distinto, coroado pelos cabelos grisalhos; suas calças, porém, eram a antítese da sua reputada elegância - jeans desbotados, cortados na altura dos joelhos.
- Você é corajoso, Comandante, vou lhe dizer - declarou o Secretário. - Vamos entrando e, enquanto vamos até a cozinha, me diga uma coisa. Por que você não procurou o diretor da CIA, ou o G2, ou o seu próprio chefe, o capitão Stevens?
- Ele não é meu chefe, sr. Secretário.
- Ah, sim - disse Palisser, parando no vestíbulo e olhando para Tyrell. - Ele falou alguma coisa sobre os ingleses, MI-6, eu acho. Mas então por que cargas d’água você não procurou eles?
- Eu não confio na Tower Street.
- Você não confia...
- Não, e nem na CIA, nem no G2, nem... ah, esses outros órgãos que os senhor disse, sr. Secretário, está tudo infiltrado.
- Meu Deus, você está falando sério.
- Mas eu não vim aqui para falar disto, Palisser.
- Palisser...? Bem, acho que é melhor assim. Venha comigo, eu estou fazendo um café. - Os dois cruzaram a porta de carvalho e entraram na espaçosa cozinha branca com uma mesa de açougueiro no centro, sobre a qual borbulhava uma cafeteira elétrica antiquada. - Todo mundo tem essas coisas modernas que programam a hora, o número de xícaras e sei lá mais o quê, mas nenhuma delas enche a cozinha com este cheiro gostoso de café de verdade. Como é o seu?
- Preto.
- É a primeira coisa decente que você diz. - Depois de encher as xícaras, Palisser disse: - Agora me diga por que você veio aqui, rapaz. Eu vou aceitar essa história das infiltrações, mas você podia ter falado com Londres, com o chefe, pelo que eu entendi. Não é possível que você tenha algum problema com ele.
- Eu tenho problemas com qualquer comunicação que possa ser interceptada internamente.
- Entendo. E o que é que você sabe sobre a Menina Sanguinária que você só pode contar para mim, e pessoalmente?
- Ela está aqui...
- Eu sei, todo mundo sabe. O Presidente não poderia estar mais seguro.
- Mas não foi por isto que eu insisti em falar com você... pessoalmente.
- Você é um babaca arrogante, Comandante, e chato também. Diga logo.
- Por que você autorizou o Nils Van Nostrand a sair do país de uma maneira que só pode ser descrita como clandestina?
- Isto já é demais, Hawthorne! - O Secretário deu um murro na mesa. - Como você ousa interferir em assuntos confidenciais do Departamento de Estado?
- O Van Nostrand tentou me matar há menos de sete horas. Eu acho que isso me permite esta "ousadia".
- O que é que você está dizendo?
- Isto é só o começo. Você sabe onde o Van Nostrand está agora? - Palisser fitou Tyrell; sua preocupação rapidamente transformava-se em medo, um medo próximo do pânico. Levantou-se bruscamente, derramando o café na cadeira, e correu para um telefone na parede, um aparelho com várias teclas.
- Janet! - gritou ele. - Alguém me ligou hoje à noite?... E por que você não me disse? Está certo, tem razão, eu não olhei... Ele o quê? Meu Deus...! - O Secretário desligou o telefone, com os olhos amedrontados fixos nos de Hawthorne. - Ele não foi para Charlotte - sussurrou, como se estivesse fazendo uma pergunta. - Eu estava fora... no clube... a segurança do Pentágono ligou... o que é que houve?
- Se você responder à minha pergunta, eu respondo à sua.
- Você não tem esse direito!
- Então eu vou embora. - Tyrell se pôs de pé.
- Sente-se! - Palisser voltou para junto da mesa e, segurando a cadeira, limpou o café derramado com as costas da mão. - Responda! - ordenou, sentando-se.
- Responda você - disse Hawthorne, ainda de pé.
- Está bem. Sente-se... por favor. - Tye obedeceu, notando uma súbita expressão de tristeza no rosto do Secretário. - Eu me aproveitei da minha posição por motivos pessoais, que em nada comprometiam o Departamento de Estado.
- Isto você não pode saber, Secretário.
- Eu sei! O que você não sabe é o que aquele homem sofreu e tudo o que ele fez por este país.
- Se é esta a explicação por você ter feito o que fez, eu acho melhor me contar.
- Quem você pensa que é?
- No mínimo, alguém que pode responder à sua pergunta... Você não quer saber o que aconteceu? Por que ele não foi até Charlotte?
- Está bem - disse Palisser. - Tem um brigadeiro furioso no G2 que adorava dizer que eu não sei manter sigilo... Eu vou lhe contar, Comandante, mas a menos que você me dê um motivo de segurança da máxima importância, esta informação vai continuar sendo confidencial. Não vou sacrificar um homem daqueles e a mulher que ele ama por causa de uma bobagem sem fundamento. Está claro?
- Pode falar.
- Há muitos anos, na Europa, o casamento do Nils estava acabando; não importa de quem era a culpa, o casal se separou. Ele se apaixonou pela mulher de um político conhecidíssimo, que batia nela, diga-se de passagem, e os dois tiveram uma filha, que agora, vinte e poucos anos depois, está à beira da morte...
Hawthorne recostou-se na cadeira e escutou com expressão neutra até o Secretário concluir a sua história de amor, traição e vingança. Depois sorriu.
- O Marc, meu irmão, provavelmente diria que isto é pura literatura russa do século XIX, Tolstoi, Tchecov. Já eu diria que é pura mentira. Você tentou checar se ele foi mesmo casado na Europa?
- Claro que não, meu Deus! O Van Nostrand é um dos homens mais respeitados que eu conheço, um dos mais venerados, até. Ele já foi conselheiro de vários órgãos do governo, e até de presidentes!
- Se houve algum casamento, foi só uma formalidade; e se algum dia houve uma filha, ele deve ter-se esforçado bastante. O Van Nostrand não era chegado a um casamento. Ele mentiu para você, Palisser, e eu estou aqui pensando em quantos outros ele ludibriou.
- Explique-se! Você ainda não explicou nada!
- Isso fica para mais tarde, mas agora você merece que eu responda à sua pergunta... o Van Nostrand está morto, Secretário, ele levou um tiro enquanto ordenava a minha execução.
- Eu não acredito!
- Pois devia acreditar, porque é verdade... e a Menina Sanguinária estava ali do lado, num dos chalés de hóspedes.
- O que foi que aconteceu, Cabi? Por que mataram aquele homem no estacionamento? - O rapaz fez uma pausa e em seguida, desviando por um momento o olhar da estrada da Virgínia, fitou Bajaratt e perguntou, furioso: - Meu Deus, foi você?
- Você está louco? Eu estava escrevendo umas cartas enquanto você estava vendo televisão no quarto, com o volume tão alto que eu mal conseguia me concentrar!... Ouvi a polícia dizer que foi um marido ciumento; a vítima estava tendo um caso com a mulher dele.
- Você sempre tem uma explicação para tudo, contessa Cabrini. No que é que eu devo acreditar?
- Acredite no que eu lhe digo, ou então volte para Portici para ser morto no cais, junto com sua mãe e com seus irmãos! Capisci?
Nicolo ficou em silêncio e seu rosto, invisível no meio das sombras que passavam correndo, enrubesceu.
- O que é que a gente vai fazer agora? - perguntou, por fim.
- Levar o carro para dentro do mato, num lugar bem escuro, onde ninguém nos veja. Vamos dormir um pouco e quando amanhecer vamos pegar o resto da nossa bagagem no hotel. E aí vamos reassumir os nossos papéis de Dante Paolo e a tia, a contessa... Olhe ali! Tem um campo coberto de capim alto, como na parte de baixo dos Pireneus. Entre ali.
Nicolo fez uma curva tão brusca que Bajaratt foi atirada contra a porta. Ela olhou para ele, com ar intrigado.
Bruce Palisser, o secretário de Estado, deu um pulo da cadeira, derrubando-a no chão.
- O Nils não pode ter morrido!
- O capitão Stevens ainda está no escritório, lá na inteligência naval. Ligue para o plantão noturno e entre em contato com ele; ele vai confirmar.
- Meu Deus do céu, você não ia fazer uma afirmação tão absurda, tão inacreditável... se não pudesse provar.
- Seria perda de tempo, Secretário, e, na minha opinião, não há tempo a perder.
- Eu... eu não sei o que dizer. - Com dificuldade, como se fosse muito mais velho do que realmente era, Palisser inclinou-se e ergueu a cadeira. - Tudo isto é tão incrível.
- E é por isto que é verdade - disse Hawthorne. - Porque eles são tão incríveis. Aqui, em Londres, em Paris e em Jerusalém. Eles não atacam com bombas, armas nucleares, nada disso; eles não precisam, é contraproducente. Preferem demonstrar o ódio criando a instabilidade, o caos. E quer a gente aceite, quer não, eles são capazes disso.
- Não são, não, ela não é!
- O tempo está a favor dela, Secretário. O Presidente não pode passar a vida inteira escondido. Alguma hora, em algum lugar, ele vai ter que aparecer, e ela vai chegar até ele e cumprir a promessa que fez, e enquanto eles esperam, Londres, Paris e Jerusalém estão preparando os ataques contra os outros. Eles não são nada burros, meta isto na sua cabeça!
- Eu também não sou, Comandante. O que é isto? O que é que você está pensando?
- O Van Nostrand não ia conseguir fazer o que ele pretendia só com a sua ajuda. Tem que haver mais alguém.
- Como assim?
- Você disse que ele estava saindo do país definitivamente.
- É verdade. Foi o que ele me disse.
- E que tudo tinha acontecido muito rápido, em questão de dias, pelo que você disse.
- Ele disse, e não foram dias, foram horas. Ele tinha que chegar na Europa antes que o filho da puta daquele marido soubesse que ele estava lá. Foi essa a história que ele me contou! Ele tinha que encontrar a filha antes que ela morresse e levar embora a mãe da menina, para poder ficar com a mulher que ele amava, qualquer que fosse o custo.
- É essa parte que eu acho esquisita - disse Hawthorne. - O custo. Vamos começar por aquele verdadeiro latifúndio onde ele morava; aquilo deve valer milhões.
- Eu acho que ele disse que tinha vendido...
- Em poucos dias, ou melhor, em horas?
- Ele não entrou em detalhes, nem eu perguntei.
- E tudo o que ele tinha naquela casa, naquele terreno, mais alguns milhões, muitos milhões. Um homem como o Van Nostrand não deixa aquilo tudo para trás sem tomar as devidas providências, e essas providências levam tempo, muito mais do que algumas horas.
- Você está mal informado, Comandante. Nós estamos na era dos computadores, e se fazem negócios em segundos, de todas as partes do mundo. Os advogados e as instituições financeiras lidam com essas coisas todos os dias, e o dinheiro cruza os oceanos de um lado para o outro, milhões a cada minuto.
- E essas operações não são todas rastreáveis?
- A grande maioria, sim. Os governos não se sentem muito inclinados a abrir mão dos impostos.
- Mas você disse que o Van Nostrand ia desaparecer, que ele tinha que desaparecer. Se ele for rastreado, o plano dele vai por água abaixo, não é?
- É, eu acho que sim. E daí...?
- Daí que ele precisava de alguém que ocultasse todas as transações que pudessem levar à descoberta do paradeiro dele... Na minha outra vida, Secretário, eu aprendi que as pessoas espertas não fazem negócios com criminosos, capazes de resolver o problema na mesma hora, e não é por uma questão de princípios morais, mas sim para evitar futuras extorsões. Em vez disso, eles procuram as pessoas mais respeitáveis, e aí ou eles convencem ou corrompem essas pessoas para conseguir ajuda.
- Seu filho da puta! - disse Palisser, em tom de desprezo, empurrando a cadeira para trás, os olhos brilhando. - Você por acaso está insinuando que ele me corrompeu...
- Não, de jeito nenhum, ele convenceu você - interrompeu Tyrell. - Você não está mentindo, você engoliu toda a história dele. O que eu estou dizendo é que alguém com tanta legitimidade quanto você ajudou ele a desaparecer, realmente desaparecer, apagando o rastro das remessas dele.
- Mas quem poderia fazer isso, quem faria isso?
- Algum outro secretário Palisser, talvez, convencido de que estava agindo corretamente... Por falar nisso, você mandou emitir um passaporte falso para ele?
- Não, claro que não! Por que eu faria isso? Ele nunca me pediu.
- Na minha outra vida, eu já fiz isso dezenas de vezes. Nomes falsos, profissões falsas, antecedentes falsos, fotografias falsas. Eu precisava disso porque a minha verdadeira pessoa tinha que desaparecer.
- Eu sei, o capitão Stevens me disse que você era um agente secreto excepcional.
- Ele deve ter ficado com o estômago embrulhado de dizer isto, mas você sabe por que é que eu precisava de documentos falsos?
- Você mesmo já disse. O comandante Hawthorne tinha que desaparecer e ser substituído por outro. E o Van Nostrand precisou de outro passaporte para poder desaparecer - admitiu Palisser.
- Dois pontos para o secretário de Estado.
- Você é um cara muito insolente.
- Sou mesmo. Eu estou sendo muito bem pago e costumo me esforçar ao máximo quando me pagam bem.
- Não vou tentar entender esta sua justificativa debochada, Hawthorne, mas vou lhe fazer uma pergunta. Ninguém fora do Departamento de Estado pode emitir um passaporte legalmente, e já que você decretou que tudo o que diz respeito ao Van Nostrand é ilegal, onde acha que ele conseguiu um?
- Uma agência ou departamento do governo que tenha acesso à sua tecnologia e que seja capaz de usar essa tecnologia clandestinamente.
- Mas isso é corrupção!
- Ou convicção, Palisser. Você não foi corrompido. - Tyrell fez uma pausa. - Só mais uma pergunta, que talvez eu nem devesse fazer, mas vou perguntar, eu preciso. Você tem alguma ideia de como foi que eu vim de Porto Rico no avião particular do Van Nostrand para a minha própria execução, como eu disse agora há pouco?
- Não, eu nem pensei nisso. Achei que tinha sido através do capitão Stevens; pelo que sei, se ele não é o seu chefe, pelo menos é o seu contato aqui nos Estados Unidos.
- O Henry Stevens ficou chocado quando eu disse que estava aqui porque ele não conseguia entender como foi isso. Tudo o que eu já fiz até agora foi monitorado pelo círculo fechado dos caçadores da Menina Sanguinária, e era assim que eu queria que fosse. Mas isso devia ser do conhecimento de todos porque foi iniciativa de uma das principais figuras desse círculo. Ele passou por cima de você e de toda a comunidade do serviço de inteligência para conseguir fazer a carta do Van Nostrand chegar a mim. Eu mordi a isca, e se não fosse pela ajuda de duas pessoas extraordinárias, eu agora seria um cadáver lá em Fairfax e o Van Nostrand estaria desembarcando em Bruxelas, deixando a Bajaratt na casa dele para comandar as operações de lá.
- Quem fez isso? Quem fez a carta chegar até você?
- Howard Davenport, o secretário de Defesa.
- Eu não acredito! - gritou Palisser. - Ele é um dos homens mais honrados que eu já conheci na minha vida! Você está mentindo. Já foi longe demais. Saia da minha casa!
Hawthorne meteu a mão no bolso da camisa safári e tirou a carta de Van Nostrand, ainda no envelope de tarja azul.
- Você é o secretário de Estado, Palisser, e pode telefonar para qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo. Por que você não liga para o chefe da base naval de Porto Rico? Pergunte a ele como foi que eu recebi esta carta e a quem ele teve que prestar contas de que ela tinha sido entregue.
- Meu Deus...! - exclamou Bruce Palisser, a cabeça grisalha jogada para trás sobre o espaldar da cadeira, os olhos apertados. - Nós somos um governo de oportunistas ou reformistas bem intencionados e inconsequentes, muitas vezes predadores, que não têm o direito de governar. Mas esse não é o Davenport! Ele nunca teria feito o que fez por interesse pessoal, ele não sabia o que estava fazendo!
- Você também não, Secretário.
- Obrigado, Comandante. - Palisser endireitou o corpo e lançou um olhar penetrante para Tyrell. - Vou aceitar o que está dizendo...
- Eu quero que você endosse - interrompeu Hawthorne.
- Por quê?
- Porque o Van Nostrand é a nossa ligação com a Bajaratt, e como ela não sabe que ele morreu, ela vai tentar entrar em contato com ele.
- Você não respondeu à minha pergunta, não que eu não concorde em ligar para o capitão Stevens para checar tudo o que você me disse, mas responda, por quê?
- Porque eu quero usar o seu nome para seguir a trilha da Menina Sanguinária e não me agrada a ideia de passar trinta anos na cadeia por causa disso.
- Então é melhor nós discutirmos os seus planos, Comandante.
O telefone tocou, surpreendendo os dois homens. O Secretário levantou-se, olhou para o aparelho preso na parede e rapidamente atravessou a cozinha para atender.
- Aqui é o Palisser, o que houve?... Ele o quê? - As cores se esvaíram do rosto do secretário de Estado. - Mas isto é um absurdo! - Palisser voltou-se para Hawthorne. - O Howard Davenport se suicidou! A empregada encontrou...
- Se suicidou? - interrompeu Hawthorne, com calma. - Quer apostar que não?
22
Bajaratt, com o rosto coberto por um véu preto, estava sentada sozinha diante de uma escrivaninha no quarto de um hotel do interior, barato e distante, escolhido às pressas. Havia ligado para o senador de Michigan, alegando que estava exausta pela avalanche de telefonemas recebidos no hotel anterior, e acrescentando que a sua mudança por um dia para a casa de um conhecido fora, se possível, ainda mais árdua, pois seu amigo se revelara o rei da badalação social.
- Tenho a impressão de que eu disse que a senhora ia ficar sobrecarregada - disse Nesbitt. - Foi por isso que eu sugeri um escritório e alguns assistentes.
- E eu tenho a impressão de que lhe disse por que isso não era possível.
- É verdade, a senhora disse, e eu não posso culpar o Barão. Esta cidade é um antro de invasores, de pessoas que se metem onde não são chamadas.
- Então, talvez o senhor pudesse nos ajudar, a mim e ao Dante Paolo.
- Em tudo o que eu puder, Condessa, a senhora sabe disto.
- O senhor teria algum hotel para nos recomendar, um hotel, digamos, num lugar não muito movimentado, mas que tenha o padrão que nós exigimos?
- Acabei de pensar num - respondeu o legislador de Michigan. - O Carillon. Ele costuma estar sempre lotado, mas estamos no verão e ele é muito caro para a maioria dos turistas. Se a senhora quiser, posso providenciar tudo.
- O Barão vai ficar sabendo da sua gentileza e da sua cooperação.
- Eu ficaria muito satisfeito com isso. A reserva é no seu nome ou a senhora prefere ficar incógnita?
- Bem, eu não gostaria de fazer nada ilegal...
- Não é ilegal, Condessa, é um direito seu. Os nossos hotéis só estão interessados no pagamento; eles não se preocupam em saber por que os hóspedes preferem o anonimato. O meu gabinete vai cuidar disso e garantir a sua idoneidade perante o hotel; que nome a senhora gostaria de usar?
- Eu me sinto tão... como é que se diz?... tão estranha, fazendo isso.
- Não, não se preocupe. Diga um nome.
- Bem, acho que deveria ser um nome italiano... Vou usar o nome da minha irmã. Balzini, Senador. A sra. Balzini e o sobrinho.
- Está resolvido. Como eu faço para falar com a senhora?
- É... é melhor eu ligar para o senhor.
- Então me dê quinze minutos.
- Ah, o senhor é tão atencioso!
- Sem querer ser insistente, eu ficaria muito grato se a senhora dissesse isso ao Barão.
- Certo, signore!
O novo hotel, muito elegante, era perfeito; logo ao chegar, Baj reconheceu quatro membros da família real saudita. Nos velhos tempos ela teria matado os quatro imediatamente e fugido às pressas, mas agora o que estava em jogo era tão importante, a recompensa, tão magnífica, que ela se limitou a curvar a cabeça em sinal de respeito quando os herdeiros daquele nome manchado de sangue passaram por ela no saguão.
- Nicolo! - chamou ela, levantando-se da escrivaninha da sala de estar da suíte, ao notar a tecla acesa no telefone. - O que é que você está fazendo?
- Estou ligando para a Angel, Cabi! - respondeu a voz de dentro do quarto. - Ela me deu o telefone do estúdio.
- Desligue o telefone, por favor, meu bem. - Bajaratt correu até o quarto e abriu a porta. - Faça o que eu estou dizendo.
O jovem obedeceu, zangado e visivelmente perplexo.
- Ela não atendeu. Ela disse para eu deixar tocar cinco vezes e depois deixar o recado.
- E você deixou?
- Não, só tinha tocado três vezes quando você gritou comigo.
- Bene. Desculpe eu ter falado assim, mas você não deve nunca usar o telefone sem antes pedir a minha autorização.
- Usar o telefone...? Mas para quem mais eu ia ligar? Será que você é tão ciumenta...
- Não, Nico, você pode dormir com uma princesa ou com uma puta ou com uma mula que para mim não faz a menor diferença, mas você não pode fazer ligações de lugares onde possam nos descobrir.
- Mas você disse para eu ligar para ela, quando a gente estava naquele outro hotel...
- Lá a gente estava registrado com o nome que a gente está usando; aqui, não.
- Não estou entendendo...
- Você não tem que entender nada; isto faz parte do nosso contrato.
- Mas eu prometi ligar para ela!
- Prometeu...? - Baj refletia enquanto observava o menino de Portici. Nicolo andava se comportando de uma maneira estranha, dado a súbitas explosões de mau humor, como um animal enjaulado cada dia mais aborrecido com o cativeiro. Era isso; as restrições tinham que ser afrouxadas. A essa altura, tão perto do grandioso assassinato, seria tolice ter nas mãos um jovem tão contrariado. Além disso, ela tinha que fazer uma ligação e, como outras possivelmente se seguiriam, estabelecendo um "padrão", como advertira Van Nostrand, Baj não deveria ligar do hotel. - Você tem razão, Nico, estou sendo muito rígida. Vamos fazer o seguinte. Estou precisando de umas coisas da farmácia, então eu vou dar uma descida e, enquanto isso, você vai ter privacidade para telefonar. Ligue para a sua bella ragazza, mas não dê nem o nome nem o telefone do hotel para ela. Diga a verdade, Nico, pois você não deve mentir para a sua amiguinha tão encantadora. Se você tiver que deixar recado, diga que nós estamos de mudança e que você volta a ligar mais tarde.
- A gente acabou de chegar.
- Mas houve um imprevisto; os nossos planos mudaram.
- Madre de Dio, o que foi agora?... Já sei, já sei, isso não faz parte do nosso contrato. Se algum dia a gente voltar para Portici, eu vou apresentar você para o Ennio Il Coltello. Todo mundo tem medo dele, dizem que quando ele se zanga, ele corta o pescoço dos homens com a navalha dele, e ninguém nunca sabe onde ele vai estar nem o que vai fazer. Eu acho que ele ia ficar com medo de você, Cabi.
- Ele ficou, Nico - disse Bajaratt com simplicidade, um leve sorriso no rosto. - Ele me ajudou a encontrar você, mas agora ninguém lá nas docas precisa mais ter medo dele.
- Che?
- Ele morreu... Vá, ligue para a sua atriz tão linda, Nicolo. Eu volto daqui a quinze minutos. - Baj pegou a bolsa, foi até a porta ajeitando o véu e saiu.
Sozinha no elevador, ela repetiu em silêncio o número dado por Van Nostrand, agora programado para o novo Scorpio Um. A ordem que ela estava prestes a proferir teria que ser obedecida sem contestação, e no prazo de vinte e quatro horas, antes, de preferência. Se houvesse a mais leve hesitação, a ira do vale do Baaka, especialmente da Brigada de Ashkelon, recairia sobre toda a liderança dos Scorpios. Morte a todos os que interferissem na missão de Ashkelon!
A porta se abriu e Bajaratt, atravessando o saguão pequeno e de bom gosto, foi diretamente para a entrada decorada com filigranas douradas. Na calçada, cumprimentou com a cabeça o porteiro uniformizado.
- A senhora deseja um táxi, sra. Balzini?
- Não, grazie, mas é muita delicadeza o senhor saber o meu nome. - Escondida atrás do véu, Baj examinou o homem.
- É a política do Carillon conhecer os hóspedes, senhora.
- Incrível... Está uma tarde tão linda que eu tive vontade de sair para apanhar um pouco de ar fresco.
- Está um dia ótimo para um passeio, senhora.
Bajaratt curvou novamente a cabeça e seguiu pela calçada, parando em diversas vitrines, aparentemente interessada nos produtos expostos, mas, na verdade, tentando observar o solícito porteiro, para o qual lançava olhares eventuais, enquanto ajeitava o cabelo ou o véu. Não confiava na gentileza desses funcionários, capazes de vigiar as idas e vindas dos hóspedes do hotel; já havia subornado muitos deles na sua vida. Sua preocupação se esvaiu, porém, ao ver que o porteiro observava vagamente os pedestres, mas em nenhum momento olhava na sua direção. Não seria o caso, considerou ela; estava vestida normalmente sem aqueles enchimentos de matrona que Nicolo tanto detestava. Continuou a descer a rua e encontrou o que procurava: um telefone público do outro lado da rua, próximo à esquina. Correu até lá, repetindo mais uma vez o número que era tão crucial para Ashkelon. Tão crucial!
- Scorpione Uno? - perguntou Bajaratt com delicadeza, mas alto o suficiente para ser ouvida, apesar das buzinas dos automóveis que ocasionalmente passavam pela rua deserta.
- Eu imagino que você esteja falando italiano - respondeu uma voz enfadonha e hesitante.
- E eu imagino que todos esses barulhos estranhos depois que eu disquei significam que estou falando com a pessoa certa... e em sigilo total, sem medo de estar sendo escutada por outros.
- Pode estar certa disto. Quem está falando?
- Bajaratt.
- Eu estava esperando a sua ligação! Onde você está? Temos que nos encontrar o mais rápido possível.
- Por quê?
- O nosso amigo comum, que agora deve estar em algum lugar da Europa, deixou uma encomenda que ele disse ser fundamental para a sua... missão.
- E o que é?
- Eu dei a minha palavra que não ia abrir. Ele disse que era melhor para mim que eu não soubesse qual era o conteúdo. E disse também que você ia entender.
- Claro. Você poderia ser interrogado sob o efeito de produtos químicos, drogas... Quer dizer então que o Van Nostrand sobreviveu?
- Sobreviveu...?
- É, teve um tiroteio lá...
- Tiroteio? Eu não...
- Não importa. - Bajaratt interrompeu-se por um instante. A segurança de Van Nostrand o havia salvado do seu potencial assassino, Hawthorne. Afinal de contas, o agente secreto aposentado não era páreo para o diabólico Netuno. Van Nostrand mandara seguir Hawthorne e prendê-lo no Shenandoah Lodge, sem dúvida deixando um ou dois cadáveres na casa, comprometendo diretamente aquele arruaceiro da inteligência naval. Preso! Ela vira com seus próprios olhos! Que delícia, que sensação maravilhosa! - Quer dizer que o nosso outro Scorpio está seguro em outro país, e nós não vamos mais saber dele?
- Ah, sim, isto está confirmado - disse o novo Scorpio Um. - Onde você está? Eu vou mandar um carro para pegar você... e o menino, claro.
- Eu estou ansiosa para pegar a encomenda - disse Bajaratt - mas tem um outro assunto que tem que ser resolvido imediatamente. Eu conheci um rapaz, um consultor político, você já deve ter visto nos jornais. Ele morreu, o nome dele era Reilly, mas a informação que ele queria vender pode acabar com a nossa missão e deve ser destruída na fonte.
- Meu Deus, e que informação é essa?
- Um advogado chamado Ingersol, David Ingersol, lançou um alarme no meio da gente mais baixa desses guetos, mandando procurar uma mulher e um rapaz, provavelmente estrangeiros viajando juntos, e prometendo um prêmio de cem mil dólares para quem encontrasse os dois. Essa gentalha é capaz de matar a mãe e os irmãos por uma quantia destas! Essa busca tem que ser interrompida, abortada, e esse advogado tem que ser morto!... Não me interessa como isso vai ser feito, mas tem que ser a tempo de sair nos jornais de amanhã. Tem que ser!
- Nossa Senhora! - sussurrou a voz do outro lado da linha.
- São duas e meia da tarde - continuou Bajaratt. - Esse Ingersol tem que morrer antes das nove da noite, senão os facões do vale do Baaka vão degolar os Scorpios... Eu ligo para você para tratar da minha encomenda depois que eu ouvir a notícia no rádio ou na televisão. Ciao, Scorpione Uno.
David Ingersol, advogado, recém-promovido ao posto de Scorpio Um, ainda que apenas formalmente, desligou o telefone instalado num armário de aço escondido nos painéis de madeira da parede atrás da sua escrivaninha. Olhou pela janela, contemplando o céu azul de Washington. Era inacreditável. Acabara de ser encarregado da sua própria morte! Aquilo não estava acontecendo com ele, não podia estar acontecendo! Ele sempre estivera acima da violência, acima da sujeira; era o catalisador, o coordenador, um general orquestrando os eventos através da influência e do prestígio, não nas trincheiras da "gentalha", como essa Bajaratt se referia com tanta propriedade aos Scorpios interiores.
Os Scorpios. Ah, meu Deus, por quê? Por que havia feito aquilo, por que se deixara recrutar com tanta facilidade?... A resposta era absolutamente simples, absolutamente patética. Seu pai, Richard Ingersol, um advogado proeminente, um juiz de prestígio, um gigante da Suprema Corte... um homem muito visado.
"Dickie" Ingersol havia nascido entre os ricos, numa época em que eles estavam desaparecendo com uma rapidez alarmante. A década de 1930 não foi generosa com os generais da Wall Street, de um modo geral produtos de uma herança milionária, incapazes de apagar as lembranças das suntuosas mansões dos anos 20, com tropas de empregados, um luxo que, como eles pouco a pouco percebiam, não podiam continuar mantendo, assim como não podiam manter suas limusines, seus cotilhões e suas férias na Europa. Era um mundo injusto aquele em que estava entrando, injusto e indefensável; no final da década, então, veio a guerra, o que para muitos representou o Armagedon de uma era, de um estilo de vida ao qual poucos podiam renunciar. Muitos não esperaram pela convocação, muito menos por Pearl Harbor; grande parte do "grupo" ingressou no serviço britânico, todos muito românticos, acima da massa ignara, alinhados nos seus uniformes feitos sob medida. Como dizia um dos Roosevelt - os Roosevelt de San Juan Hill e de Oster Bay, não aquele do Hyde Park, traidor da sua classe: "Meu Deus, é melhor do que dirigir um Ford!"
Richard "Dickie" Ingersol foi um dos primeiros a se alistar no Exército americano, sob a promessa de ir para o corpo aéreo, garantidas as estrelas da sua farda. O Exército, porém, soube que Richard Abercrombie Ingersol havia acabado de passar no exame para o tribunal do estado de Nova York. Foi o fim de um sonho; ele foi alocado na área jurídica do Exército, pois havia falta de advogados de boa-fé, alguns, com certeza, que haviam passado no exame com uma classificação acima de "suficiente" e nenhum que tivesse conseguido vencer as árduas barreiras do tribunal de Nova York.
Dickie Ingersol passou a guerra instaurando processos e defendendo militares em cortes marciais, da África do Norte ao Pacífico Sul, odiando cada minuto de sua vida. Por fim, os Estados Unidos venceram a guerra em ambos os lados do mundo, e Dickie se viu no Extremo Oriente; era a ocupação do Japão, e abundavam os julgamentos de crimes de guerra. Muitos inimigos foram julgados e enforcados sob a agressiva gestão de Ingersol. Numa certa manhã de sábado, então, ele recebeu um telefonema de Nova York. A fortuna de sua família sofrera um colapso; não restara nada além da falência e da ignomínia; um estilo de vida havia desaparecido.
Mas o Exército tinha uma dívida com ele, a nação tinha uma dívida com toda a sua classe, que dirigia o país desde o início. Fizeram-se, então, negociações; dezenas de "criminosos de guerra" foram anistiados ou tiveram suas sentenças reduzidas em troca de dinheiro japonês, canalizado para contas secretas na Suíça, vindo das famílias dos grandes industriais de Tóquio, Osaka e Kioto. Junto com o dinheiro, contratos de "participação" nas futuras empresas que, como a Fênix, renasceriam das cinzas que se amontoavam sobre o Japão derrotado.
De volta aos Estados Unidos, e novamente amparado na sua riqueza, Ingersol descartou o "Dickie", transformou-se em Richard e criou sua própria empresa, com um capital maior do que o de qualquer outro advogado da sua idade na cidade de Nova York. Cresceu rapidamente, bem recebido pelas esferas superiores que, acolhendo um dos seus, aplaudiram quando o Segundo Tribunal de Recursos o nomeou juiz e exultaram quando o Senado o confirmou para a Suprema Corte. Uma das pessoas do "grupo" conseguira chegar lá, reafirmando o seu lugar de direito no paraíso celestial da legalidade.
Até que um dia, anos mais tarde, agora anos antes, numa outra manhã de sábado, um homem que se apresentou apenas como "sr. Netuno" chegou à casa de David, o filho do juiz Ingersol, em McLean, Virgínia. Nessa ocasião, Ingersol fils, com um currículo notável e passagem livre por toda a Justiça, já era o solicitado sócio da Ingersol & White, uma respeitada empresa de Washington, embora fosse um dado que o filho jamais levaria um caso ao mais elevado tribunal do país. A maioria dos clientes achava que isso não seria necessário; suas súplicas chegariam aos ouvidos das pessoas certas. Em McLean, o inesperado visitante foi recebido cordialmente pela mulher de David; sua elegância sobrepujava o mistério da sua aparição.
O sr. Netuno educadamente solicitou ao brilhante advogado alguns minutos de sua atenção para um assunto urgente; ele não pudera perder nenhum minuto procurando o telefone de Ingersol, que não constava dos catálogos. Era uma emergência que dizia respeito ao seu pai.
Sozinho com David no escritório, o desconhecido puxou um maço de extratos de contas que haviam escapado do sigilo de um dos mais antigos bancos de Berna, na Suíça. O portfolio continha não só a história dos depósitos iniciais feitos pelos japoneses, datada de 1946, mas também lançamentos presentes e futuros na conta 00572000, tudo documentado no nome do juiz Richard A. Ingersol, da Suprema Corte. Esses lançamentos eram feitos por muitas das empresas mais bem-sucedidas do Japão, bem como por diversos conglomerados controlados por japoneses, espalhados por todo o mundo. Por fim, anexo ao portfolio, vinham cópias de todas as decisões assinadas pelo juiz Ingersol, favorecendo essas empresas e conglomerados quanto às suas operações nos Estados Unidos.
A "solução" apresentada por Netuno era tão clara quanto concisa. Ou David aderia a uma organização altamente seletiva e restrita, ou "os de cima" seriam forçados a levar a público toda a história da riqueza de Ingersol no pós-guerra, bem como seus atos na Suprema Corte, destruindo, portanto, o pai e o filho. Não houve alternativa; o filho enfrentou o pai, que se exonerou da Corte, alegando cansaço e estagnação intelectual, um esgotamento que exigia um período de descanso, seguido de uma vida mais ativa. A justificativa do juiz Ingersol pareceu tão procedente que ele foi aclamado por sua coragem e retidão, ocasionando o surgimento de casos semelhantes envolvendo outros membros idosos da Suprema Corte. Na realidade, Ingersol père mudou-se para a Costa del Sol, no sul da Espanha, e sua "vida mais ativa" concentrou-se em torno de partidas de golfe, corridas de cavalos, críquete, pesca submarina, além de jantares festivos e dançantes. Se do ponto de vista geográfico Dickie se exilou, do ponto de vista pessoal era como se ele tivesse voltado para casa. E David Ingersol, o filho, tornou-se o Scorpio Três.
Agora, como Scorpio Um, acabava de receber a sua própria sentença de morte. Loucura! David pegou o interfone sobre a escrivaninha.
- Jacqueline, segure todas as ligações e cancele todos os meus compromissos até o fim do dia. Ligue para os clientes e diga que eu tive uma emergência para resolver.
- Pois não, doutor Ingersol... Posso ajudar em alguma coisa?
- Acho que não... pode, pode sim. Ligue para a locadora de automóveis e peça para eles mandarem um aqui neste instante. Eu vou estar esperando lá embaixo, na entrada lateral, daqui a quinze minutos.
- A limusine do senhor está na garagem, doutor Ingersol, e o motorista está na recepção...
- É um assunto particular, Jackie, eu vou usar o elevador de carga.
- Compreendo.
O advogado voltou-se novamente para o telefone escondido atrás dos painéis da parede. Pegou o aparelho e discou; depois de uma série de sinais, Ingersol digitou mais cinco teclas e disse em voz clara:
- Imagino que você esteja recebendo este recado daqui a alguns minutos. Para usar a mesma linguagem que você, é uma emergência quatro-zero. Vá me encontrar na beira do rio, no lugar de sempre. Já!
Do outro lado do rio Potomac, em sua sala na CIA, Patrick O’Ryan - Scorpio Dois... apenas formalmente - sentiu por baixo do paletó uma leve vibração do dispositivo eletrônico que estava no bolso da camisa. Contou os choques quase imperceptíveis e compreendeu: havia uma emergência que dizia respeito aos Provedores. Aquilo era problemático, pois ele tinha uma reunião sobre a Menina Sanguinária, marcada pelo diretor para dali a quarenta e cinco minutos, e esse assunto era a prioridade absoluta da Agência. Porra, e agora? Mas não havia nada a fazer; os Provedores eram os primeiros, sempre os primeiros. Pegou o telefone e ligou para o gabinete do diretor da CIA.
- Alô, Pat, o que foi?
- É sobre a reunião...
- Ah, sim - interrompeu o diretor. - Ouvi dizer que você tem novas conclusões para apresentar. Estou louco para saber o que é; na minha opinião, você é o nosso melhor analista.
- Obrigado, mas elas ainda não estão prontas. Preciso de mais umas duas horas para chegar a uma conclusão definitiva.
- Ah, que decepção, Patrick.
- Mais para mim do que para qualquer outra pessoa. Eu soube de um árabe que é capaz de me ajudar a preencher algumas lacunas. Acabei de falar com ele e ele aceitou se encontrar comigo, mas tem que ser daqui a uma hora... em Baltimore.
- Bem, neste caso, vá! Eu vou deixar a reunião para mais tarde, leve o tempo que precisar. Me ligue de Baltimore.
- Obrigado, eu ligo, sim.
A ponte Riverwalk atravessava um riacho sem importância que desaguava no Potomac, nos confins do interior da Virgínia. Na margem esquerda havia um restaurante rústico de qualidade duvidosa que servia cachorro-quente, hambúrguer e cerveja a uma clientela jovem; na margem direita estendia-se um bosque cheio de atalhos, onde dizia-se que o número de meninos e meninas que se tornavam homens e mulheres era maior do que nos tempos de Sodoma e Gomorra. Eram as relações públicas levadas ao exagero; os atalhos eram estreitos e o chão, cheio de pedras.
Patrick O’Ryan entrou no estacionamento, aliviado ao ver que havia apenas três carros no local; o restaurante tinha pouco movimento durante o dia. Scorpio Dois saltou, verificou se seu telefone portátil estava no bolso e, acendendo um charuto, tomou a direção da ponte. A voz de David Ingersol na secretária eletrônica de Patrick era de pânico e isso não era um bom sinal. Aquele veadinho de boa família era um advogado brilhante, mas nunca havia sido testado numa situação realmente perigosa. Davey-Boy era um fracote, apesar de seus dotes profissionais; os Provedores acabariam por descobrir isso, mais cedo ou mais tarde. Talvez mais cedo do que mais tarde.
- Ei, doutor! - Um rapaz bêbado saiu do restaurante e aproximou-se, trôpego. - Esses filhos da puta não me deixaram pendurar a conta! Se o senhor me emprestar cinco dólares eu vou agradecer pelo resto da minha vida! Acho que bebi demais.
O instinto do analista, que era sempre o de projetar o possível e o impossível, veio à tona.
- Se eu lhe der dez, ou vinte, quem sabe, você faz o que eu pedir?
- Ei, eu sou capaz até de tirar a roupa, se o senhor quiser. Eu preciso de grana!
- Não, não é isso que eu quero. E talvez você nem tenha que fazer nada.
- O senhor é que manda!
- Eu vou atravessar a ponte; venha atrás de mim, mas fique escondido quando eu entrar no bosque. Se eu assobiar, você vem correndo me encontrar. Entendeu?
- Entendi, claro!
- Pode ser até que eu lhe dê cinquenta.
- Maravilha, doutor, maravilha! Com cinquenta o meu problema está resolvido.
- Espero que sim...
O’Ryan atravessou a ponte larga e resistente sobre as águas agitadas e tomou a direita. Havia avançado menos de dez metros no caminho de terra coberto de pedras, quando a figura de David Ingersol emergiu de trás de uma árvore.
- Patrick, que loucura! - exclamou o advogado.
- Você falou com Bajaratt?
- É inacreditável. Ela exigiu que eu seja morto! Que David Ingersol seja morto. Eu, o Scorpio Um!
- Ela não conhece você, rapaz! Por que faria essa exigência?
- Eu divulguei uma ordem pelas ruas, entre os piores elementos, claro, para procurarem ela e o garoto...
- Você fez isso, Davey? Não foi uma ideia muito boa. Você devia ter conversado comigo antes.
- O’Ryan, pelo amor de Deus, você concordou comigo que essa loucura tinha que acabar!
- É verdade, eu concordei, mas não dessa maneira. Isso foi uma burrice, Davey, você devia ter-se protegido. Minha Nossa Senhora, eles descobriram que foi você quem deu a ordem? Se você fosse agente secreto, não ia durar nem dez minutos, sabia?
- Não, você está enganado, eu pensei em tudo; não tinha nenhuma brecha. A raison d’être tinha toda a aparência de legitimidade, era uma oportunidade tentadora...
- A raison d’être, é? - interrompeu o analista da CIA. - Isso é bonito, vou lhe dizer. Mas me diga uma coisa, essa história toda de legitimidade tentadora, nenhuma brecha, que diabo quer dizer isso?
- Era a firma que estava atrás deles, não uma pessoa física, não eu! Eu só era a pessoa que devia ser contactada por quem fosse receber o prêmio. E eu ainda consegui um documento autenticado declarando que a mulher e o rapaz tinham muito dinheiro, coisa da ordem de sete dígitos. Um prêmio de dez por cento é perfeitamente normal.
- Ah, fantástico, Davey, só que acho que você esqueceu uma coisa. As pessoas que receberam a ordem de procurar os dois nem sabem o que é um documento autenticado e não estão nem aí para legitimidade. Mas é mais fácil eles sentirem o cheiro de uma velhacaria do que o cheiro de um gambá numa cela de prisão... Não, Davey, você não ia durar nem cinco minutos se fosse agente secreto.
- E o que é que a gente faz... o que é que eu faço? Ela disse que a notícia da minha morte tinha que sair nos jornais de amanhã, senão o vale do Baaka... ai, meu Deus, as coisas estão escapando do nosso controle!
- Calma, Scorpio Um - disse O’Ryan, sarcástico, consultando o relógio. - Eu acho que se o seu "desaparecimento" sair nos jornais, a gente pode ganhar mais um ou dois dias.
- Como?!
- É só uma estratégia diversionista, Davey, eu sei o que estou dizendo. Primeira coisa, você tem que sair de Washington já... você é quase uma celebridade, Conselheiro, e quer passar alguns dias sem ser visto. Eu levo você ao aeroporto; a gente para no caminho para você comprar óculos escuros...
- Os meus estão aqui no meu bolso.
- Ótimo. Aí você compra uma passagem para onde quiser, em dinheiro, nada de cartão de crédito. Você tem bastante dinheiro aí?
- Tenho.
- Ótimo... Só tem um problema, uma coisa chata, rapaz. Por esses dias a gente vai ter que programar o telefone do Scorpio Um para mim. Se a Bajaratt ligar e ninguém atender, ou se ela deixar um recado e ninguém ligar de volta, o Baaka é capaz de explodir, principalmente o pessoal mais próximo dela, aquele bando de lunáticos. Era isso que o padrone me dizia.
- Mas então eu teria que voltar lá no escritório...
- É melhor você não fazer isso - interrompeu o analista. - Acredite em mim, Davey, eu sei como são essas coisas. Quem foi a última pessoa com quem você falou?
- A minha secretária... não, foi com o sujeito da locadora que foi me entregar o carro. Vim sozinho para cá; eu não quis usar a limusine.
- Fez muito bem. Quando o carro for encontrado aqui, eles vão começar a procurar. O que foi que você disse para a sua secretária?
- Que era uma emergência, um assunto particular. Ela entendeu: ela trabalha comigo há anos.
- Eu tenho certeza de que ela entendeu.
- Não é nada disso que você está pensando.
- Que nem Porto Rico... Você tinha algum compromisso hoje à noite?
- Ai, meu Deus! - exclamou Ingersol. - Eu tinha esquecido! Eu e a Midgie vamos jantar na casa dos Heflin, é aniversário de casamento deles.
- Não, Davey, você não vai. - Patrick Timothy O’Ryan sorriu com benevolência diante do pânico do advogado. - Vai dar tudo certo. Quer dizer, o seu sumiço por alguns dias... Vamos voltar ao assunto do telefone do Scorpio Um lá no seu escritório. Onde é que ele fica?
- Na parede atrás da minha mesa. Para abrir o painel você tem que virar uma chave na última gaveta da direita.
- Ótimo. Eu vou programar o telefone para o meu número depois que eu deixar você no aeroporto.
- Isso acontece automaticamente se eu não atender durante cinco horas.
- Mas com essa Bajaratt, é melhor a gente fazer isso logo.
- A Jacqueline, minha secretária, não ia deixar você entrar nunca. Ela ia chamar a segurança.
- Mas se você falar com ela, ela deixa, não é?
- Deixa, claro.
- Então faça isso, Davey - disse O’Ryan, tirando o telefone do bolso do paletó. - Esse troço não funciona muito bem no carro, por causa do movimento e também porque tem muito aço, e no aeroporto não vai dar tempo. Eu só vou deixar você na porta e ir embora.
- Você está falando sério, não é? Acha mesmo que eu devo sair de Washington imediatamente, agora à tarde. O que é que a minha mulher vai pensar?
- Ligue para ela amanhã, de onde você estiver. É melhor ela passar uma noite morrendo de preocupação do que passar o resto da vida sem você. Não se esqueça do vale do Baaka.
- Me dê o telefone! - Ingersol ligou para o escritório e falou com a secretária. - Jackie, eu estou mandando aí o sr... Johnson para pegar uns documentos para mim, na minha sala. É um assunto absolutamente confidencial, então eu gostaria que, quando a recepção avisar que ele chegou, você deixasse as portas destrancadas e saísse para tomar um café. Você pode fazer isso, Jackie?
- Claro, compreendo perfeitamente.
- Pronto, Patrick, vamos embora.
- Só um instantinho. Eu tenho que fazer um pipi, já que eu vou passar mais de uma hora dirigindo. Fique de olho na ponte; não podemos ser vistos juntos.
O’Ryan deu vários passos para dentro do bosque, olhando para o advogado, que vigiava o lado oposto. Porém, ao invés de urinar, ele agachou-se e pegou uma pedra grande e recortada, do tamanho de uma bola de beisebol. Em silêncio, voltou para junto do advogado que, nervoso, observava a ponte através da vegetação, e, usando toda a sua força, deu um golpe com a pedra no crânio de David Ingersol.
O’Ryan arrastou o corpo para fora da clareira e assobiou para o bêbado, seu empregado temporário; a resposta foi imediata.
- Estou aqui, doutor! - O recruta, animado, apareceu na entrada da clareira, cambaleando. - Já estou vendo o dinheiro aqui no meu bolso!
Foi a última coisa que viu, pois foi recebido com uma pedrada no rosto. Patrick O’Ryan consultou novamente o relógio; havia tempo de sobra para carregar os dois cadáveres para as águas que corriam ali embaixo. E para tirar algumas coisas dos bolsos de um deles colocando-as nos do outro. Depois disso, era apenas uma questão de programar os passos seguintes. Primeiro, a visita ao escritório de Ingersol; segundo, uma prestação de contas ao diretor da CIA, cheia de mágoa e humilhação - o árabe não comparecera ao encontro em Baltimore; terceiro, diversos telefonemas anônimos, um deles, talvez, de um informante não identificado que vira dois corpos na margem direita do riacho, embaixo da ponte Riverwalk.
Eram 10:15 da noite e Bajaratt caminhava de um lado para o outro na sala de estar da suíte do Hotel Carillon, enquanto Nicolo, no quarto, via televisão e devorava o jantar. Ele havia aceito a explicação de que os dois se mudariam na manhã seguinte e não naquela noite.
Baj também estava com a televisão ligada, mas no noticiário local das dez horas. A toda hora ela olhava para a tela, numa fúria crescente. De repente, porém, a fúria arrefeceu e um sorriso crispou-lhe os lábios; a locutora calou-se no meio de uma frase, interrompendo as glórias de algum time de basquete, no momento em que uma folha de papel foi posta à sua frente.
Acabamos de receber um boletim extra. O conhecido advogado de Washington, David Ingersol, foi encontrado morto há menos de uma hora embaixo da ponte Riverwalk, em Falls Fork, Virgínia. Ao seu lado estava o corpo de um homem mal vestido, identificado como Steven Cannock, que, segundo um restaurante próximo, estava bêbado e foi expulso por embriaguez e falta de dinheiro para pagar a conta. Os dois corpos estavam ensanguentados, o que levou a polícia a supor que o advogado Ingersol foi assaltado e reagiu, travando uma luta violenta com Cannock... David Ingersol, considerado um dos advogados mais influentes da capital, era filho de Richard Abercrombie Ingersol, que há oito anos surpreendeu a nação ao se aposentar da Suprema Corte alegando "estagnação intelectual", o que levantou discussões sobre o caráter vitalício do cargo de juiz da Suprema Corte...
Bajaratt desligou a televisão. Mais uma vitória para Ashkelon. A maior delas ainda não chegara, mas faltava pouco!
Eram quase duas horas da madrugada quando Jackson, afobado, entrou no quarto que dividia com Hawthorne.
- Tye, acorde! - exclamou ele.
- O quê...? Porra, eu acabei de pegar no sono! - Hawthorne apertou os olhos e ergueu a cabeça. - Pelo amor de Deus, o que é isto? Não tem nada que a gente possa fazer antes de amanhecer. O Davenport morreu e o Stevens está cuidando... foi o Davenport! Alguma novidade?
- O Ingersol, comandante.
- O Ingersol...? Aquele advogado excêntrico?
- Ele morreu, Tye. Foi assassinado num lugar chamado Falls Fork. Talvez ele não seja só um cara excêntrico.
- Como você sabe que ele foi assassinado?
- Para dizer a verdade, eu estava assistindo à reprise de ... E o Vento Levou; é um filmaço. Quando o filme acabou, deram a notícia.
- Cadê o telefone?
- Aí do seu lado.
Hawthorne afastou os lençóis, sentou-se na cama e pegou o telefone, enquanto Poole acendia as luzes. Ligou para a inteligência naval; o próprio Stevens atendeu.
- Henry... o Ingersol!
- Eu já soube. - A voz de Stevens estava extenuada. - Eu já soube há mais de quatro horas. Estava esperando você ligar, mas entre o secretário Palisser, que está apoplético, ativando os canais dele próprio para esclarecer a morte do Davenport, e a Casa Branca, onde o Ingersol sempre foi convidado de honra, e mais aquele crime aí no estacionamento do seu hotel, que a porra do New York Times não larga do meu pé para saber, eu não tive tempo de ligar para você.
- O Ingersol, porra! Cerque o escritório dele.
- Isto já foi feito, Tye-Boy... era assim que chamavam você lá no Caribe, não era?
- Você mandou cercar?
- Não, foi o FBI. É assim que as coisas funcionam.
- E agora?
- A coisa está feia.
- Está vendo o que ela está fazendo, Henry? É o limite. Uns estão correndo contra o relógio, outros, a favor, e acabam todos batendo de frente uns nos outros. Desestabilização. Quem é suspeito? Quem não é? Aquela vaca está fazendo a gente correr em círculos e, quanto mais rápido a gente corre, mais a gente bate nos outros, e é no meio dessa confusão que ela vai aproveitar para dar o pulo.
- Que nada, Tyrell. O presidente continua completamente isolado.
- Isso é o que você pensa. A gente não sabe quem mais está nas mãos dela.
- Nós já estamos investigando todos os nomes daquela sua lista.
- E se for alguém que não esteja na lista?
- Bem, aí eu não sei dizer. Eu não tenho poderes mediúnicos.
- É, mas estou começando a achar que a Bajaratt tem...
- Isso não ajuda em nada, só confirma as piores referências que nós temos dela.
- Ela tem um grupo aqui, uma estrutura de alto nível subordinada a ela... ou ao dinheiro dela.
- Isso é lógico. Você faria o favor de descobrir esse grupo?
- Eu vou fazer tudo o que puder, Capitão, porque agora o negócio é entre mim e ela. Eu quero encontrar a Menina Sanguinária, e eu quero ela morta. - Hawthorne bateu o telefone.
Mas o que ele queria não era apenas Bajaratt, era uma mentira viva chamada Dominique, que o havia dilacerado de uma maneira como um ser humano nunca deveria fazer com outro. Provocando o amor de outro e zombando dele, trocando os segredos mais recônditos da pessoa manipulada por mentiras do manipulador. Por um tempo tão longo, tão maravilhoso, tão remoto. Quantas vezes a assassina teria rido do tolo que com toda a sinceridade acreditava ter encontrado a pessoa amada?
Assassina.
Só que ela esquecera uma coisa. Ele também era assassino.
23
Patrick O’Ryan sentou-se na espreguiçadeira da varanda, pedindo aos céus que o verão terminasse e que as crianças voltassem para a escola - longe de casa, graças aos Provedores. Não que ele não gostasse dos filhos; gostava, sim, principalmente porque eles mantinham sua mulher ocupada e os dois tinham menos tempo para brigar. Não que ele não amasse a mulher; de certa maneira, amava, sim, mas os dois haviam-se distanciado demais ao longo dos anos, basicamente por sua causa, ele reconhecia. Um cara normal podia chegar em casa e reclamar do emprego, do chefe, do salário, mas ele não podia fazer essas coisas. Principalmente se queixar de falta de dinheiro, depois que os Provedores tinham entrado na sua vida.
Patrick Timothy O’Ryan pertencia a uma família irlandesa do distrito de Queens, em Nova York. Graças às freiras e a alguns padres da escola paroquial, ele havia se convencido a não escolher a carreira policial, pela qual seus três irmãos haviam optado, seguindo os passos do pai, do avô e do bisavô. Todos achavam que Patrick Timothy possuía uma inteligência privilegiada, tão acima da média que o encorajaram a tentar uma bolsa de estudos na Universidade de Fordham; ninguém tinha qualquer dúvida de que ele conseguiria. Mais tarde, tendo causado a melhor das impressões nos professores da Fordham, recebeu uma nova bolsa para cursar o mestrado na Universidade de Syracuse, no Departamento de Relações Internacionais, de onde saía a maior parte dos funcionários da CIA.
Entrou para "a Empresa" três semanas depois de receber o diploma. Passado um mês, seus superiores lhe comunicaram que existiam certas normas quanto à maneira de se vestir às quais ele deveria se submeter; calças de poliéster amarrotadas e camisa azul com gravata laranja junto com um paletó mal cortado, comprado numa liquidação da Macy’s, simplesmente não ia dar. Ele se esforçou para cumprir as regras, ajudado pela noiva, uma moça italiana do Bronx, que dizia achá-lo muito elegante, mas que, apesar disso, recortava todos os anúncios com fotos que mostravam como os homens respeitáveis de Washington deviam se vestir.
Os anos se passaram e, da mesma maneira que as freiras e os padres da sua infância, os dirigentes da CIA vieram a descobrir a extraordinária inteligência de Patrick Timothy O’Ryan. Ele não era o tipo de sujeito que alguém pensasse em enviar para um evento no Congresso; seu guarda-roupa havia melhorado um pouco, mas sua linguagem era rudimentar, chegando mesmo a tornar-se grosseira, indelicada e, muitas vezes, vulgar. Suas análises, porém, eram concisas, aguçadas e diretas, sem favorecimentos nem condescendências. Em 1987 ele previu o colapso da União Soviética para dali a três anos. Não só essa afirmação absurda foi arquivada imediatamente, como ainda O’Ryan foi chamado ao gabinete de um dos diretores-adjuntos, que o mandou "calar a boca". No dia seguinte deram-lhe uma promoção salarial, como se para enfatizar o axioma de que os bons meninos são recompensados.
O casal O’Ryan tinha cinco filhos, todos nascidos nos primeiros oito anos de casamento; era uma situação econômica difícil para um funcionário de baixo escalão da CIA. Mas Patrick Timothy conseguia suportar isso tudo porque seu emprego na Agência lhe dava acesso a empréstimos bancários com juros relativamente baixos. O que O’Ryan não podia tolerar, porém, era que os resultados do seu trabalho aparecessem frequentemente na imprensa e seu nome sequer fosse citado. Suas palavras eram repetidas nas sessões do Congresso por figurões de colarinho apertado que falavam como se tivessem nascido na Inglaterra, bem como por senadores de prestígio, por deputados e pelo pessoal do Gabinete, nos programas de maior audiência da televisão. Ele suava a camisa para produzir aquelas análises, mas era o único que não recebia o merecido crédito. Estava completamente exasperado com isso, e para aumentar a sua fúria, quando foi se queixar diretamente ao diretor da CIA, este o despachou sumariamente com as seguintes palavras:
- Você faz o seu trabalho, nós fazemos o nosso. Nós sabemos o que é bom para a Agência, você não sabe.
Merda!
Até que numa manhã de domingo, há quinze anos, um cavalheiro elegantíssimo que se apresentou como sr. Netuno veio à sua casa em Vienna, na Virgínia, trazendo numa pasta de executivo muitos dos relatórios de análise ultrassecretos de O’Ryan.
- Porra, onde foi que você arrumou isso? - perguntou O’Ryan, a sós com o homem na cozinha.
- O nosso trabalho é esse. E o seu trabalho eu sei muito bem qual é, e as suas preocupações, também. Onde você acha que vai chegar, trabalhando na CIA? Bem, pode ser que você chegue a G12, mas isso só representa um aumento salarial que não é grande coisa. Mas existem outras pessoas que podem usar as suas informações para escrever livros e ganhar centenas de milhares de dólares, e ainda são capazes de dizer que são especialistas quando, na verdade, usaram foi a sua experiência...
- O que é que você está querendo?
- Bem, em primeiro lugar, você tem uma dívida acumulada de trinta e três mil dólares com um banco em Washington e dois na Virgínia, em Arlington e McLean...
- Como é que...
- Eu sei, eu sei - interrompeu Netuno. - É uma informação confidencial, mas que não é muito difícil de ser obtida. Além disso, você tem uma hipoteca bem alta e as escolas paroquiais estão cobrando as anuidades... A sua situação não é nada invejável, sr. O’Ryan.
- Eu sei disso, porra! Você acha o que, que eu devia me demitir e ir escrever um livro?
- Não, legalmente você não pode. Você assinou um documento declarando que não faria isso... pelo menos sem submeter à censura da CIA. Se escrevesse trezentas páginas, provavelmente no final eles iam lhe devolver cinquenta... Mas eu acho que existe outra solução, que pode acabar com as suas dificuldades financeiras e permitir que você melhore bastante o seu padrão de vida.
- E o que é?
- A nossa organização é muito pequena, mas muito rica, e tem um único interesse: o bem do país. Você deve acreditar em mim, pois é verdade e eu estou aqui para lhe assegurar isto. Eu trouxe também um envelope com um cheque de duzentos mil dólares, da venda da propriedade de Sean Cafferty O’Ryan, seu tio-avô, de Kilkenny, que morreu há dois meses e deixou um testamento bastante estranho, mas legitimado pela Justiça. Você é o único parente vivo de quem ele tinha conhecimento.
- Eu não me lembro de ter nenhum tio com esse nome.
- Se eu fosse você, não me iria apoquentar com isso, O’Ryan. O cheque está aqui e é garantido. Ele era criador de cavalos da raça Thoroughbred, muito bem-sucedido; é só disso que você tem que se lembrar.
- Você trouxe mesmo esse cheque?
- Está aqui. - Netuno abriu a pasta e tirou um envelope. - Será que agora podemos conversar sobre a nossa organização e o que nós queremos para a nação?
- Bem, e por que não? - respondeu O’Ryan, aceitando o envelope.
Isso acontecera quinze anos antes e, Deus Todo-poderoso, como sua vida mudara! Todos os meses o Banco de Dublin lhe mandava um aviso de depósito em seu nome no Banco de Crédito Suíço, em Genebra. Os O’Ryan enriqueceram de uma hora para outra, e a lenda do tio-avô criador de cavalos tantas vezes foi repetida que se tornou uma verdade. As crianças foram para as melhores escolas e os filhos mais velhos para as melhores universidades, enquanto sua mulher enlouquecia nas lojas de departamentos. A família mudou-se para uma casa maior em Woodbridge e comprou uma bela casa de veraneio na praia de Chesapeake.
A vida era boa, muito boa, e a cada dia Patrick se aborrecia menos quando os outros lhe roubavam o crédito pelo seu trabalho, porque era do trabalho que ele realmente gostava. Essa tolerância em geral desaparecia quando algum palhaço pretensioso assumia uma pose pensativa numa sessão do Congresso ou em algum programa de TV e apresentava uma das brilhantes conclusões de Patrick.
E os Provedores? Ele fornecia todas as informações secretas que eles pedissem, desde as mais corriqueiras até as mais sigilosas. Claro, sempre através do Scorpio Um ou do padrone. Nossa Senhora, algumas dessas informações eram tão estratégicas, o Salão Oval não fazia ideia, o Senado, muito menos; aquela gente era descuidada demais politicamente, ou estúpida demais, ou então, completamente irresponsável... Em todo caso, os Provedores não eram nada disso. Fossem quem fossem, eles certamente não eram santos, mas já fazia muito tempo que O’Ryan determinara que os objetivos dos Provedores eram acima de tudo econômicos. Tinha certeza de que eles não eram comunistas e mais certeza ainda de que tinham todos os motivos para preservar e defender o país que lhes oferecia recompensas financeiras tão generosas. Era provável que isso fosse mais eficaz do que confiar nos políticos, amigos inseparáveis das pesquisas de opinião, capazes de se curvar diante de um peido de um colaborador generoso. Portanto, se os Provedores pagavam pela informação antecipada, provavelmente era um bom negócio a longo prazo; eles tinham todos os motivos para assegurar que a galinha dos ovos de ouro continuasse gozando de boa saúde... Havia ainda uma última consideração, da qual o analista do Queens, Nova York, jamais se esqueceria.
Uma tarde, em Langley, doze anos antes, três anos depois de ter-se tornado o Scorpio Dois, ele estava saindo de uma reunião de rotina com um grupo de analistas, quando um homem alto, bem vestido e elegante passou pelo corredor, encaminhando-se diretamente para a sala do diretor da CIA. Era Netuno! Sem pensar, O’Ryan se aproximou dele.
- Ei, você se lembra de mim?
- Perdão - respondeu o homem, em voz baixa, circunspecto, com olhos que pareciam duas pedras de gelo. - Eu tenho uma reunião com o diretor, e se você se aproximar de mim em público mais uma vez, sua família vai cair na miséria e você vai morrer.
Não era um cumprimento que alguém pudesse esquecer.
Mas agora, exatamente agora, hoje, pensava O’Ryan, contemplando o mar, da varanda de sua casa na praia de Chesapeake, havia alguma coisa errada com os Provedores, alguma coisa terrível. O finado Davey Ingersol tinha razão; o empreendimento de Bajaratt era uma insanidade. Algum grupo, ou rede, havia-se inserido no processo decisório - tivera poder suficiente para se inserir. Ou seria apenas um certo velho enlouquecido, à beira da morte, cujas ordens ainda tinham que ser obedecidas? A resposta, na verdade, não vinha ao caso; era preciso encontrar uma solução para que se mantivesse o status quo sem que os Scorpios fossem prejudicados. E era por essa razão que, seis horas atrás, ele havia compreendido que tinha que se tornar o Scorpio Um, com todos os direitos e privilégios decorrentes. Essa conclusão veio com as palavras de Ingersol: "Ela exigiu que eu seja morto, que David Ingersol seja morto!"
Então que fosse assim. Os Scorpios não podiam ser prejudicados. Alguma hora, em algum lugar, alguém iria procurá-lo e ele só teria uma explicação: a verdade. Mas neste momento, neste exato momento, tinha que pôr em funcionamento toda a sua maestria analítica; tinha que pensar e repensar não só a questão de Bajaratt e seus asseclas, mas também o governo dos Estados Unidos. Os Scorpios não podiam ser prejudicados.
Ouviram-se risadas na praia; sua mulher, as crianças e alguns amigos estavam em torno de uma fogueira acesa na areia. Era um piquenique ao entardecer na praia de Chesapeake. Ah, meu Deus, aquela vida era boa!... Não, os Scorpios não podiam ser prejudicados, as coisas não podiam mudar.
Um telefone tocou baixinho; era um sinal silencioso que, como todos na casa sabiam, só podia ser atendido pelo pai. Toda a família se referia a ele como o "telefone-fantasma" e as crianças volta e meia caçoavam do aparelho cinza no minúsculo escritório do pai. O’Ryan, complacente, aceitava a brincadeira, sabendo que isso reforçava a convicção geral de que era uma ligação de Langley, e às vezes inventava histórias absurdas e melodramáticas, fazendo com que os filhos menores arregalassem os olhos até que os maiores concluíssem: "Eles querem que o papai vá entregar uma pizza para eles, não é, zero-zero?"
Tudo aquilo era cômico, macabro mas cômico; e necessário, também. O telefone cinza nada tinha a ver com a Agência. Patrick Timothy levantou-se da espreguiçadeira e atravessou a pequena sala de estar em direção ao escritório. Pegou o aparelho, digitou o código e atendeu:
- Quem está falando? - perguntou em voz baixa.
- Quem é você! - Era uma voz feminina, com sotaque estrangeiro. - Você não é o mesmo homem.
- Eu sou um substituto temporário, nada de anormal.
- Eu não gosto de mudanças.
O’Ryan pensou rapidamente.
- Ele teve um problema na vesícula, o que é que eu posso fazer? Nós também ficamos doentes, fique sabendo, e se você pensa que eu vou dizer o nome dele e o hospital onde ele está, esqueça, moça. Você já teve o resultado que queria; o Ingersol está morto.
- É, eu soube, parabéns pela eficiência.
- A gente faz o que pode... O padrone disse para a gente fazer tudo o que fosse possível para ajudar você, e eu acho que a gente conseguiu.
- Tem um outro homem que tem que ser eliminado - disse Bajaratt.
A voz de Ryan esfriou:
- Matar não é o nosso negócio; é muito perigoso.
- Mas tem que ser - disse Amaya Bajaratt, num sussurro veemente. - Eu exijo!
- O padrone já morreu; talvez você tenha que limitar as suas exigências.
- Nunca! Eu mando os meus companheiros do Baaka atrás de vocês, através dos nossos contatos com Atenas, Palermo e Paris! Não brinque comigo!
O analista era prudente; além disso, conhecia muito bem a índole da terrorista, seu temperamento explosivo e violento.
- Está bem, está bem, fique fria. O que é que você quer?
- Você conhece um homem chamado Hawthorne, ex-oficial da Marinha?
- A gente sabe tudo sobre ele. Ele foi contratado pelo MI-6, de Londres, porque ele mora no Caribe. A última notícia que nós tivemos dele foi que ele estava em Porto Rico, resolvendo alguma coisa em San Juan.
- Ele está aqui, eu vi!
- Onde?
- Num hotel chamado Shenandoah Lodge, na Virgínia...
- Eu conheço - interrompeu O’Ryan. - Ele seguiu você?
- Mate esse homem! Mande os animates!
- Está certo, moça - disse O’Ryan, disposto a prometer qualquer coisa para aquela mulher fanática. - Pode deixar.
- Bem, quanto à encomenda...
- Que encomenda?
- O Scorpione Uno que está no hospital me disse que o antecessor dele deixou um pacote para mim. Eu vou mandar o menino buscar. Onde é?
O’Ryan afastou o fone do ouvido, tentando pensar rápido. O que será que o Ingersol tinha feito? Que pacote seria esse?... Ainda assim, ele podia dar um jeito no "menino". Qualquer que fosse seu objetivo, qualquer que fosse seu lugar nos planos de Bajaratt, ele podia ser eliminado.
- Diga para ele pegar a rodovia 4 até o número 260 e depois pegar a entrada para a praia de Chesapeake; a estrada é toda sinalizada. Quando ele chegar aqui, ele tem que ligar para mim de um restaurante aqui perto, na beira da estrada, que tem um telefone do lado de fora. Eu encontro ele em dez minutos num quebra-mar que fica na primeira praia pública.
- Está ótimo, eu estou anotando tudo... Espero que você não tenha aberto o pacote.
- De jeito nenhum, isso não é assunto meu.
- Bene.
- E não se preocupe com esse Hawthorne. Ele está finito.
- O seu italiano não é nada mau.
Nicolo Montavi, de pé sobre as pedras do quebra-mar, observava as lanternas traseiras do táxi que o trouxera até esse local retirado. O porteiro do hotel havia dado ordens expressas para que o táxi levasse o jovem aonde ele quisesse ir e não se preocupasse com a corrida de volta. Irritado com a viagem de quase duas horas, o motorista foi embora imediatamente. Nico esperava que o amigo de Cabrini lhe arranjasse um meio de voltar para o hotel. A escuridão agora era total, e o estivador das docas de Portici viu quando a figura apareceu no meio da noite úmida e cinzenta. À medida que o homem se aproximava, a inquietação de Nicolo aumentava, pois o sujeito estava com as mãos nos bolsos da capa de chuva e não trazia nenhum pacote; e uma pessoa indo ao encontro de outra à noite, debaixo de chuva, não caminhava tão devagar - não era natural. A figura escalou as pedras irregulares do quebra-mar artificial; na subida, escorregou e tirou as mãos dos bolsos para amortecer a queda. Na sua mão direita havia um revólver!
Nicolo esquivou-se e, pulando por cima das pedras, mergulhou nas águas escuras, enquanto os tiros ecoavam na noite; uma das balas passou de raspão pelo seu braço esquerdo, outra explodiu acima da sua cabeça. O jovem foi nadando por baixo d’água por quanto tempo seus pulmões aguentassem, apavorado, agradecendo em silêncio ao cais de Portici, que o havia preparado para aquilo. Subiu à tona a menos de trinta metros da praia, e olhou em volta até conseguir focalizar a barreira de pedras. Seu potencial assassino segurava agora uma lanterna apontada para a água, enquanto caminhava até o fim do quebra-mar, aparentemente satisfeito com o sucesso da sua empreitada. Nico continuou dentro d’água, e começou a voltar lentamente para o muro de pedra. Tirou a camisa e, esticando os braços para cima, torceu-a o melhor que pôde; ela boiaria por um minuto antes de afundar. Talvez isso fosse o suficiente, se ele conseguisse colocá-la na posição correta; foi nadando ao longo do quebra-mar, vendo a figura que tomava o caminho de volta em direção à praia. Faltavam apenas alguns instantes; pronto! O jovem atirou a camisa para um ponto mais adiante, enquanto a luz da lanterna passeava sobre a água.
Ouviu-se o barulho ensurdecedor dos tiros; o tecido perfurado foi sacudido pelo impacto e em seguida afundou. Nicolo, então, escutou o que esperava: o barulho oco e repetido do cartucho vazio. Saiu da água, as mãos sangrando, arranhadas pelas pedras pontiagudas, e, jogando-se para a frente, agarrou os tornozelos da figura corpulenta. O homem, atônito, tentou se defender, mas a sua massa não tinha agilidade para enfrentar o nadador de Portici, forte e esguio. O jovem italiano levantou-se de um pulo e deu dois murros no homem, um no estômago e outro no rosto; por fim, agarrou-o pelo pescoço e o arremessou do alto das pedras. Lá embaixo, o corpo permaneceu imóvel, a cabeça esmagada, os olhos bem abertos. Aos poucos, sob a chuva, o homem morto foi deslizando para dentro d’água.
Nicolo sentiu-se paralisado, invadido pelo pânico; o suor gotejava-lhe no rosto e no pescoço, a despeito da chuva fria e das roupas encharcadas - o que restara delas. O que ele havia feito? Mas o que mais ele podia fazer? Havia matado um homem, mas só porque o homem tentara matá-lo! Mesmo assim, ele estava num país estranho, era um estrangeiro numa terra onde pessoas que não estavam ali decidiam que aqueles que matavam deviam morrer, acreditando que suas sentenças representavam a vontade de Deus.
O que fazer agora? Suas calças estavam completamente molhadas, seu peito nu, arranhado e sujo de sangue, a ferida no ombro, aberta, embora não fosse profunda. Já havia sofrido ferimentos mais sérios em pedras e âncoras, nas excursões que fazia com os oceanógrafos no passado; mas essa não era uma explicação que ele pudesse apresentar à polizia da América. Eles diriam que isso não era pertinente; ele havia matado um americano; talvez fosse um capo-subalterno da odiada Máfia siciliana. Virgem Maria, ele nunca estivera na Sicília!
Nicolo percebeu que tinha que se controlar. Tinha que pensar, ao invés de perder tempo com hipóteses inúteis. Tinha que falar com Cabrini - Cabrini, aquela puta! Será que ela seria capaz de arriscar a vida dele por uma "encomenda" que não existia?... Não, ele era importante demais para a grande contessa; o barone-cadetto era importante demais. Alguma coisa estava indo mal para sua signora salvatora puttana; ela havia confiado num homem que só queria destruí-la - matando Nicolo Montavi, o menino das docas de Portici.
Correndo ao longo do muro escorregadio, molhado da chuva, decidiu que seria melhor e mais seguro resolver as coisas em terra firme. Num salto, alcançou a praia e atravessou a faixa de areia até o estacionamento; só havia um automóvel, sem dúvida o do assassino. Ficou imaginando se poderia arrancar os fios da ignição e fazer a ligação direta para ligar o motor, como já fizera tantas vezes com outros carros.
Não, não poderia. O automóvel era uma luxuosa macchina da corsa, um carro esporte de gente rica, que protegia seus investimentos. Ninguém tinha coragem de tocar neles em Nápoles e Portici; mesmo que alguém conseguisse abrir o capô, um alarme se faria ouvir num raio de trezentos metros, a bateria estaria automaticamente desligada e a direção trancada.
O restaurante na beira da estrada, com uma cabine telefônica do lado de fora! Ele tinha algumas moedas no bolso, várias delas atiradas pelo raivoso motorista de táxi, que depois pediu desculpas, quando Nico lhe deu uma mancia de dez dólares, dizendo que sabia como as gorjetas eram importantes. O rapaz começou a caminhar pelo acostamento, a todo momento olhando para os lados e escondendo-se atrás das árvores que margeavam a estrada toda vez que via as luzes de faróis.
Trinta e cinco minutos depois, ele chegou ao restaurante; na fachada, via-se um letreiro de néon com o nome ROOSTER’S NEST. Escondeu-se nas sombras próximas à casa, enquanto automóveis e caminhões passavam pela estrada; apenas uns poucos paravam em frente à cabine telefônica. O telefone do lado de fora era uma característica dos cafés italianos; um conforto que no mais das vezes acabava por atrair clientes para a comida e o vinho servidos lá dentro... De repente, uma mulher histérica, dentro da cabine, deu um grito tão alto que foi ouvida através da chuva. Em seguida, bateu com o fone na porta de vidro, com tanta força que a porta se estilhaçou, saiu cambaleando da cabine e vomitou no pé dos arbustos, no estacionamento. Vários recém-chegados correram na chuva para acudi-la, e Nico percebeu que a hora era aquela; a luz da cabine ainda estava acesa, refletindo-se ameaçadoramente nos cacos de vidro. Saiu correndo pelo pátio, com as moedas na mão.
- Informazioni... informações, por favor. O número do Hotel Carillon, em Washington?
A telefonista deu-lhe o número e ele, com outra moeda, arranhou os algarismos na prateleira do telefone. Nesse momento, um caminhão parou em frente à cabine; o motorista era um homem corpulento, com uma barba cheia e maltratada, e olhos vermelhos, brilhantes. Ao ver o sangue no peito de Nicolo, gritou:
- Quem é você, mané?
Movido pelo instinto, o rapaz, com toda a sua musculatura, abriu com violência a porta estilhaçada e gritou o mais alto que pôde:
- Me deram um tiro, signore! Eu sou italiano e este lugar está cercado de mafiosi. O senhor poderia me ajudar?
- Nem morto, seu maluco!
O caminhão arrancou e Nicolo completou a ligação.
- Você o quê? - perguntou Bajaratt, irada.
- Não brigue comigo, Cabi! - replicou Nicolo, furioso, no telefone de Chesapeake. - Aquele monstro veio me encontrar, mas não era para me entregar pacote nenhum, ele veio me matar.
- Eu não acredito!
- É porque não foi você que ouviu os tiros, nem foi você que quase perdeu o braço, fui eu, e o meu braço está inchado e ainda está sangrando um pouco.
- Il traditore! Bastardo!... Tem alguma coisa errada, Nico, deve ter acontecido alguma coisa terrível. Esse homem não só tinha que dar a vida para proteger você, como também tinha que me entregar um pacote.
- Não tinha pacote nenhum. Você não pode fazer isso comigo, e não venha me dizer que isso faz parte do nosso contrato! Eu não vou morrer por você, nem por todo o dinheiro de Nápoles!
- Nunca, meu menino, nunca! Você é o meu amorzinho, será que eu ainda não provei isso para você?
- Eu já vi você matar duas pessoas, uma empregada e um chofer...
- Mas eu já expliquei tudo. Você preferia que eles nos matassem?
- A gente vive correndo de um lado para o outro...
- Que nem nós fizemos em Nápoles, em Portici... para salvar a sua vida.
- Tem coisa demais que eu não consigo entender, signora Cabrini! Talvez esta noite tenha sido a última!
- Não diga isso, nem pense numa coisa destas! O que está em jogo é importante demais!... Não saia daí que eu estou indo buscar você... onde você está?
- Num restaurante chamado Rooster’s Nest, nesse lugar chamado Chesapeake.
- Então fique aí, eu estou indo o mais rápido possível. Pense em Nápoles, Nico, pense no seu futuro. Não saia daí!
Baj bateu o telefone com toda a força, furiosa, perturbada, sem saber o que fazer. Os Scorpios iam morrer, todos eles, mas a quem ela daria essa ordem? O padrone havia morrido, Van Nostrand estava em algum lugar na Europa, incomunicável, o homem que se dizia o Scorpio Dois fora morto por Nicolo e o Scorpio Um, um desconhecido, estava internado num hospital, e ela sequer sabia o seu nome. O menino das docas, com toda a sua candura, tinha razão; aquilo tudo era uma insanidade. Mas onde ela procuraria ajuda? A rede do Baaka se estendia pelo mundo inteiro, mas ela tinha confiado nos aliados americanos do padrone. Os Scorpios. Ah, meu Deus, será que a liderança dos Scorpios tinha-se voltado contra ela? Será que agora seus únicos e valiosos colaboradores representavam um perigo terrível?
Não podia ser! A realização definitiva da sua vida tão dolorosa, a única força que a fizera sobreviver à agonia dos Pireneus... Muerte a toda autoridad! Ela não podia ser impedida por homens de ternos escuros, com casas luxuosas e limusines enormes que os levavam de um centro do poder para outro, como os faraós assassinos do Egito nos seus carros de guerra. Não podia ser! O que sabiam eles sobre a brutal idade terrena, do horror de serem forçados a ver seus pais serem degolados pelas autoridades diante de seus olhos?... Era assim em tantos lugares; aldeias bascas incendiadas porque os moradores queriam alguma coisa de seu; o povo do seu marido bem-amado massacrado, seus lares ameaçados de sumir do mapa porque eles queriam o que era seu, roubados por pessoas que recebiam armas dos gigantes do mundo, que carregavam a culpa de não ter eliminado os assassinos dos judeus, com quem o povo do seu marido nada tinha a ver! Onde estava a justiça, onde estava a sensibilidade humana?... Não, as "autoridades" de todo o mundo tinham que aprender uma lição. Esses homens tinham que ser feridos, tinham que aprender que eles eram tão vulneráveis quanto aqueles a quem destruíam com seus interesses espúrios.
Bajaratt pegou o telefone e digitou os números que Van Nostrand lhe dera. Não houve resposta. Lembrou-se das palavras do padrone.
- Todos os meus aliados têm dispositivos, como marca-passos, que avisam quando eles têm que responder imediatamente a uma chamada, não importa em que situação. E se a situação não permitir que eles respondam por um certo tempo, o número de outro é programado automaticamente. Espere vinte minutos e ligue de novo.
- Mas se, mesmo assim, ninguém atender, meu pai?
- Não confie em ninguém. Com toda essa tecnologia extraordinária, os códigos eletrônicos podem ser adulterados. Seja precavida, minha filha, pense sempre no pior e desapareça.
- Mas e aí?
- Aí a Baj está sozinha, minha filha. Procure a ajuda de outros.
Bajaratt esperou vinte minutos e voltou a ligar. Nada. De acordo com as instruções do padrone, ela pensou no pior. Scorpio Dois tinha tentado matar Nicolo e fora morto nessa tentativa.
Por quê?
Eram 4:36 da manhã quando a campainha estridente do telefone despertou Hawthorne no quarto que ele dividia com Poole no Shenandoah Lodge.
- Você ouviu, Tye? - perguntou o Tenente, na outra cama, sempre mais alerta do que ele.
- Estou ouvindo, Jackson. - Tyrell tateou o fone e puxou-o para junto do travesseiro. - Alô? - atendeu.
- Você é o comandante Hawthorne?
- Eu fui, sim. Quem é você?
- Tenente Allen, John Allen, da inteligência naval, substituindo temporariamente o capitão Stevens, que tirou uma folga do serviço porque estava precisando descansar um pouco.
- Sim, o que houve, Tenente?
- As instruções que me deram foram mínimas, Comandante, mas eu gostaria que você fizesse uma análise rápida do seu ponto de vista sobre um desdobramento recente, que talvez me obrigue a perturbar o descanso do capitão Stevens...
- Pelo amor de Deus, cara, vá direto ao assunto!
- Você conhece, ou já ouviu falar, ou teve algum contato recente com um analista da CIA chamado Patrick Timothy O’Ryan?
Tyrell ficou calado por um instante e respondeu:
- Não, nunca ouvi falar. Por quê?
- O corpo dele foi encontrado em Chesapeake, preso numa das redes de um barco pesqueiro, há mais ou menos uma hora. Eu achei melhor ligar para você antes de incomodar o Capitão.
- De onde veio a notícia?
- Foi a G.C. de Chesapeake... a guarda costeira.
- A polícia local foi informada?
- Ainda não. Quando acontece esse tipo de coisa, como aquele comandante da Marinha que foi morto com um tiro num barco a remo, há uns dez ou doze anos, a gente tenta manter a informação só entre nós por um tempo, sem mexer em nada...
- Está certo, Tenente, eu já entendi. Deixe tudo como está até eu chegar aí. Onde você está?
- Na marina de River Bend, uns três quilômetros ao sul da praia de Chesapeake. Estou voltando para lá agora. Você acha que eu devo ligar para o capitão Stevens?
- De jeito nenhum, Tenente. Deixe o cara dormir. Eu cuido disso.
- Obrigado, Comandante. Ele pode ficar uma fera.
Hawthorne levantou-se da cama, enquanto Poole, já de pé, acendia as luzes.
- Vamos lá, Jackson - disse Tyrell. - Desta vez aconteceu uma coisa importante, muito importante.
- O que é que você está achando?
- Eu disse que não conhecia um tal O’Ryan, que foi morto agora há pouco, e realmente eu não conheço pessoalmente, mas sei que ele é o melhor analista que a CIA já teve... Ele também esteve em Amsterdã há uns seis ou sete anos, num desses exercícios de avaliação da CIA. As pessoas como eu fugiam dele como o diabo da cruz.
- E qual é a importância disso?
- Ele é o melhor, e a Bajaratt só usa os melhores, até não precisar mais deles. Aí ela mata essas pessoas por medida de segurança.
- Maravilha, Tye. Você está quase chegando lá.
- Pode ser, Jackson, mas eu estou achando, estou sentindo... esse cara deve ter sido só o primeiro. É nisso que eu tenho que pensar.
- Mas isso é uma coisa assustadora, Comandante. Você está falando do que há de melhor no serviço de inteligência.
- Eu sei, Tenente. Acorde a Major.
Numa rua arborizada de um bairro elegante de Montgomery, em Maryland, a campainha persistente de um telefone tocava junto à cama do senador Paul Seebank. O som era tão baixo que não era escutado nem por sua mulher, que dormia ao seu lado; um som como o de um violoncelo, que só poderia acordar alguém que estivesse bem próximo ao instrumento. Seebank abriu os olhos, pegou o aparelho e apertou uma tecla, interrompendo a campainha; em silêncio, pé ante pé, saiu do quarto e desceu para o escritório atopetado de livros. Apertou a tecla da memória, digitou o código de recepção e escutou as seguintes palavras, num inglês britânico enfadonho:
Houve um problema com os nossos associados e as nossas linhas não estão mais operando. Você vai receber todas as chamadas. Assuma toda a autoridade.
O senador Paul Seebank, um dos líderes do augusto corpo legislativo, digitou com os dedos trêmulos os números que davam acesso à rede clandestina dos Provedores. Ele era o Scorpio Quatro, agora, para todos os efeitos, o primeiro dos Scorpios.
O Senador sentou-se, paralisado, o rosto branco, lívido. Nunca se sentira tão aterrorizado na sua vida.
24
O cadáver emaranhado na rede de pesca estava branco e rígido, a carne inchada, túrgida por causa da água absorvida; o rosto, um balão que distorcia as antigas feições. No cais, sob a luz de um único holofote, estavam expostos os objetos pessoais, retirados dos bolsos da vítima pela patrulha da guarda costeira.
- Isto era tudo o que ele estava levando, Comandante - disse John Allen, o oficial da inteligência naval. - Ninguém mexeu em nada, e o material foi retirado com pinças. Como você vê, ele é da CIA, um funcionário de alto nível, com acesso a todas as informações, e está morto. O médico aqui, que fez um exame preliminar, disse que ele acha que o O’Ryan morreu com o impacto de um objeto sólido, ou vários objetos sólidos, na cabeça, que ficou esmagada. Ele tem dúvidas de que uma autópsia possa revelar mais alguma coisa.
- Bom trabalho, Tenente - disse Hawthorne. Poole e Catherine estavam ao seu lado, ambos chocados com a figura monstruosa estendida à sua frente. - Mande remover o corpo e dar andamento à autópsia.
- Posso fazer uma pergunta? - perguntou Poole.
- Eu já estava espantado de você estar calado há tanto tempo - replicou Tyrell. - O que é?
- Bem, eu sou só um cara do interior...
- Não comece com as suas histórias - interrompeu Catherine, em voz baixa. - Pergunte.
- Bem, o lago Pontchartrain, lá na Louisiana, tem trechos recuados, onde as águas ficam paradas. Aqui em Chesapeake a corrente é normal, do norte para o sul?
- Eu imagino que sim - respondeu Allen.
- Claro que sim - acrescentou um pescador barbado, que escutava a conversa enquanto soltava o cadáver da rede. - O que é que tem isso?
- Bem, o rio Nilo não confirma isto. Ele corre...
- Pare com isso - interrompeu Hawthorne. - Qual é a sua pergunta?
- Bem, considerando que a corrente é do norte para o sul, e que ele foi atingido por "objetos sólidos", existe alguma área de água represada ao norte daqui?
- O que é que você está querendo dizer, Jackson? - perguntou Catherine, temendo que seu subordinado fizesse perguntas tolas.
- Dê uma olhada, Major...
- Eu preferia não ter que fazer isso, Tenente.
- Qual é a sua dúvida, Poole? - perguntou Tyrell.
- Esse homem levou mais de uma pancada na cabeça, em vários lugares... é isso que eu estou dizendo, deem uma olhada nesses ferimentos todos. Não foi um "objeto sólido", foram vários. O cara foi atingido de todos os lados. É por isso que eu estou, perguntando, tem alguma área de água represada por aqui?
- Tem um monte de quebra-mar nesta região - respondeu o pescador, com as mãos na rede e os olhos em Poole. - É para os bacanas poderem nadar em frente de casa.
- E onde fica o mais próximo?
- Tem um ao norte da praia de Chesapeake - respondeu o pescador. - As crianças não saem de lá.
- Agora é a minha vez de dizer, Tye. Vamos lá.
- Será que você não pode ir mais rápido? - perguntou Bajaratt ao chofer da limusine do hotel, tentando controlar a impaciência.
- Se eu correr mais, a polícia vai parar a gente e aí vai demorar mais ainda.
- Só um pouquinho mais rápido, por favor.
- Estou indo o mais rápido possível, senhora.
O cérebro de Baj estava quase explodindo de preocupação. Não podia perder Nicolo, ele era fundamental! Ela havia planejado tudo com tanto cuidado, com tanta inteligência, orquestrando todos os passos, calculando todos os movimentos - faltavam poucos dias para o último feito da sua vida, o prelúdio do caos por todo o mundo. Muerte a toda autoridad!
Tinha que ser delicada, atenciosa, convincente. Uma vez que o menino das docas lhe abrisse as portas da Casa Branca, do gabinete do Presidente, ela não precisaria mais se preocupar com o barone-cadetto. Certamente não permitiriam que ele continuasse vivo por mais que alguns minutos, depois que a notícia do assassinato do Presidente fosse ouvida em todo o mundo.
Até lá, porém, ela tinha que zelar ao máximo pelo bem-estar de Nicolo, jurar por todos os santos que faria tudo para que os responsáveis por aquele crime terrível fossem punidos, fazer amor com o jovem Adônis de uma maneira como ele jamais sonhara - meu Deus, qualquer coisa! Ele tinha que voltar a ser o seu fantoche o mais rápido possível. O encontro no Salão Oval estava muito próximo. E essa viagem não acabava nunca!
- Chegamos em Chesapeake, senhora, o restaurante fica ali, do lado esquerdo - anunciou o chofer. - Quer que eu acompanhe a senhora até lá dentro?
- Entre sozinho, por favor - respondeu Baj. - Eu fico esperando o meu amigo no carro. Pode ser que eu precise de um cobertor. Tem algum aqui?
- Tem duas mantas ali, bem atrás da senhora.
- Obrigada. Agora vá.
- Foi isto mesmo, capitão Stevens - disse o tenente Allen, pelo telefone do automóvel da inteligência naval. - O Comandante foi explícito. Ele me disse para não perturbar o senhor... juro.
- Ele não é comandante e não pode lhe dar ordens! - gritou Stevens pelo telefone da mesinha de cabeceira. - Onde é que ele está?
- Eles disseram alguma coisa sobre um quebra-mar na praia de Chesapeake...
- No lugar onde o O’Ryan mora?
- Acho que sim, Capitão.
- A família foi avisada?
- Não, absolutamente. O Comandante...
- Ele não é comandante!
- Bem, as instruções dele foram para deixar tudo como estava, e isso é coerente com o nosso procedimento nesses casos. Eu concordei com ele. Temporariamente, claro.
- Claro - repetiu Henry Stevens, com um suspiro de resignação. - Eu vou informar o diretor agora mesmo; ele pode cuidar dessa parte. E você faça o favor de encontrar aquele filho da puta e mande ele me ligar imediatamente!
- Desculpe, Capitão, mas se o Hawthorne não é do serviço de inteligência, o que ele é, então?
- Um remanescente, Allen. Um moleque que todo mundo gostaria de ver pelas costas.
- Mas então por que ele está aqui, Capitão? Por que ele está trabalhando com o senhor?
Silêncio. Depois de um momento, Stevens respondeu em voz baixa:
- Porque ele era o nosso melhor agente. Nós acabamos entendendo isso, Tenente. Vá, descubra onde ele está.
Enquanto o chofer estava dentro do restaurante, Nicolo, sem camisa, ensanguentado, aproximou-se da janela molhada de chuva da limusine. Bajaratt abriu a porta e puxou o rapaz para o banco traseiro, abraçando-o com força e envolvendo-o com a manta.
- Pare com isso, Cabi - gritou ele. - Você já foi longe demais com essa história. Eu podia ter morrido!
- Você não está entendendo, Nicolo. Ele era um outro agente secreto, ele estava contra nós, contra mim, contra os desejos da sua Santa Igreja!
- Então por que tanto segredo? Por que você e os seus amigos e os padres da minha Igreja não denunciam essa coisa horrível, seja lá o que for isso?
- Porque não é assim que se faz, meu menino lindo. Você tentou denunciar um homem corrupto do cais do porto, e o que foi que você conseguiu? Todo mundo das docas de Portici quer ver você morto; nem a sua própria família, que você ama tanto, pode falar com você, senão todos eles vão ser mortos. Você não entende isso?
- O que eu entendo é que você está me usando, usando essa sua invenção de barone-cadetto para conseguir o que quer.
- É claro! Eu escolhi você porque você tem uma inteligência muito superior à de qualquer outro; eu vivo dizendo isso, não é verdade?
- Nem sempre. Você vive me chamando de idiota e ignorante.
- É que eu sou meio explosiva. O que você quer que eu diga?... Acredite em mim, Nico. Daqui a alguns anos, quando eu não estiver mais aqui e você estiver na universidade, graças ao seu dinheiro em Nápoles, vai olhar para trás e entender. E vai ficar orgulhoso de ter participado de uma missão tão importante.
- Mas então, pelo amor de Deus, me diga que missão é essa!
- Num sentido amplo, não é muito diferente do que você fez lá em Portici. Expor os corruptos, mas não num cais deserto à beira do mar, e sim no mundo inteiro.
Nico meneou a cabeça, tremendo sob a manta e batendo os dentes.
- É sempre a mesma coisa, um monte de palavras, um monte de coisas que eu não consigo entender.
- Você vai entender, meu bem. Na hora certa... Você está sofrendo! O que é que eu posso fazer para ajudar?
- Isto aqui é um restaurante, não é? Talvez um café ou um pouco de vinho. Estou morrendo de frio.
Baj puxou a maçaneta da porta e precipitou-se sob a chuva opressiva em direção à entrada do restaurante. De repente, dois automóveis entraram no estacionamento, derrapando no concreto molhado e com uma freada sonora pararam um ao lado do outro, no momento em que Bajaratt alcançava a porta. Ela escutou o diálogo através da chuva e do vento.
- Comandante, faça o que eu estou dizendo! É uma ordem!
- Vá se foder, seu babaca!
- Tye, pelo amor de Deus, escute o que ele está dizendo! - gritou uma mulher, enquanto aquela confusão de vozes veementes se aproximava da entrada do restaurante.
- Não! Eles já fizeram merda demais! Eu vou cuidar disso sozinho, descobrir tudo o que eu puder sobre o O’Ryan e o Ingersol. E pronto!
Era Hawthorne! Bajaratt, com seus trajes de matrona elegante da via Condotti, entrou correndo no restaurante e viu o motorista numa mesinha, comendo uma enorme fatia de torta.
- Já para fora! - sussurrou ela. - Já!
- Que diabo de... ai, meu Deus! Sim, senhora, já estou indo!
O chofer atirou três dólares sobre a mesa e levantou-se rapidamente; nesse momento, cinco pessoas entraram no restaurante, três delas engajadas numa discussão feroz.
- Fique sentado! - ordenou Bajaratt, batendo com a mão no ombro do motorista e empurrando-o de volta para a mesa, atrás de uma divisória. Os cinco intrusos ocuparam uma mesa comprida, junto à entrada; o inflamado debate cessou, mas Bajaratt compreendeu que seu ex-amante não seria demovido. Ela já vira isso muitas vezes. O agente de Amsterdã sabia quando a sua intuição acertava - na mosca. O homem que acabara de morrer era mais uma pista da Menina Sanguinária. "Muito bem, Tye-Boy", dizia ela para si mesma, escondida ao lado do motorista. "Eu nunca amei um inferior. Ah, e você, Tyrell, tão parecido com o meu marido, um animal sensível que só queria o melhor, e eu dei o melhor para ele, como eu também dei para você, meu bem. Mas por que, com toda a loucura desse mundo, você não estava do meu lado? Eu estou certa, e você sabe disso, meu bem. Deus não existe! Se ele existisse, não ia haver crianças morrendo de fome, cheias de dor, com as barrigas inchadas - o que esse Deus tem contra elas? Eu odeio o seu Deus, Tyrell! Se é que você tem um Deus; eu nunca soube disso, na verdade; você nunca me disse. E agora eu tenho que matar você, Tye-Boy. Eu não queria; e não consegui em St. Barts, embora devesse - acho que o padrone entendeu. Acho que ele percebia como eu amava você, mas nunca perguntou nada, porque ele também amava alguém que ele não era capaz de matar, embora soubesse que devia. A verdade, meu bem, é que os Scorpios entraram em colapso porque o meu único pai não fez o que devia ter feito há muitos anos. Netuno tinha que ter sido eliminado. Mas ele era emotivo demais quando se tratava de amor. Mas eu não sou, Comandante!" - Agora - disse ela para o chofer. - Levante devagar, vá até a porta e, quando chegar lá fora, corra até o carro. Não se preocupe, tem um rapaz ferido no banco de trás. É o meu sobrinho; ele foi assaltado e os ladrões machucaram ele. Traga o carro até a porta e buzine duas vezes.
- Senhora, ninguém nunca mandou eu me comportar dessa maneira!
- Mas agora eu estou mandando e você vai ganhar mil dólares por isso. Vá!
O motorista, nervoso, foi até a entrada muito mais rápido do que lhe fora recomendado e abriu a porta com tanta força que os ocupantes de várias mesas voltaram-se ao ouvir o barulho, inclusive Tyrell Hawthorne. Baj não podia ver seu rosto, nem sua expressão interrogativa, mas outra pessoa viu.
- O que foi, Tye? - perguntou Catherine Neilsen.
- O que um chofer nervoso estaria fazendo aqui?
- Você não ouviu o que o pescador disse? Ele disse que tem muita gente rica por aqui. Essas pessoas devem ter chofer, não é?
- É, pode ser.
Bajaratt também não escutou essa breve troca de palavras, pois seus ouvidos estavam concentrados no sinal da limusine. Logo em seguida, ouviram-se os dois toques da buzina.
- Um chofer? - perguntou Hawthorne, mais para si mesmo do que para os outros. - Van Nostrand! - exclamou em voz alta. - Deixe eu sair daqui! - gritou, empurrando Poole e depois Catherine, tentando abrir caminho entre as cadeiras.
Na mesma hora, Bajaratt levantou-se e encaminhou-se para a porta, de cabeça baixa. Havia agora duas figuras correndo para a entrada do restaurante, ambas querendo sair ao mesmo tempo.
- Desculpe! - disse Tyrell, que, ao passar correndo pela mulher, deu-lhe um esbarrão; empurrou a pesada porta com o ombro direito e saiu. Do lado de fora, a chuva continuava forte. - Você! - gritou ele, para o motorista da limusine, correndo pela escada em direção ao gigantesco automóvel. De repente, parou e virou-se, a mente iluminada por um raio súbito: a imagem da entrada do restaurante e da mulher que esbarrara nele segundos atrás. O Shenandoah Lodge, a velhinha - aqueles olhos! Dominique! Bajaratt!
Os tiros ecoaram na chuva; as balas atingiram o metal da limusine, ricocheteando no pavimento, e Hawthorne correu para a esquerda, com uma súbita sensação de frio na coxa. Fora atingido! Jogou-se no chão e se escondeu atrás de um caminhão estacionado; outra mulher saiu correndo pela porta do restaurante, gritando por ele. Bajaratt descarregou a munição restante na direção dela e, abrindo a porta, pulou para dentro do automóvel. Catherine Neilsen rolou pela escada, enquanto a limusine saía em disparada e sumia na rodovia escura.
Eram cinco horas da manhã e Henry Stevens estava atormentado por uma angústia que fazia parte do seu trabalho. Estava tão exausto que não conseguia dormir, ainda mais depois que o seu descanso inicial fora interrompido por um telefonema alarmante. Sua mente não conseguia parar, as perguntas se acumulando em progressão geométrica, enchendo seu cérebro com tantas possibilidades e probabilidades que o Capitão não podia mais se permitir ficar parado. Deitar-se significava apenas ficar virando de um lado para o outro, sem conseguir fechar os olhos, consciente de que sua mulher, na cama vizinha, perceberia seus movimentos e, como de hábito, iria se levantar para tentar acalmá-lo. Ela era boa nisso; sempre havia sido. Ele não era capaz de admitir esse fato, mas no fundo das suas reflexões silenciosas, sabia que, sem Phyllis, não teria chegado onde chegara. Ela era tão racional que chegava a ser irritante; sempre calma, com a força de um timoneiro capaz de manter o navio num curso seguro, nunca autoritária, mas sempre zelando para que seu marido enfrentasse as tormentas sem naufragar.
Não deixava de ser engraçado, refletia ele, sentado no sofá do jardim de inverno, que ele pensasse em termos náuticos. Só estivera no mar uma vez, no último ano em Anápolis, quando todos os formandos eram obrigados a enfrentar dez dias infernais num enorme veleiro, como se fossem navegadores do século XIX. Mal conseguia se lembrar daqueles dez dias, pois, na verdade, passara a maior parte do tempo vomitando no toalete.
Apesar disso, a Marinha reconhecera seus outros talentos, seus talentos para organização e administrativos. Ele era um excelente executivo; identificava os medíocres e os incompetentes e os demitia de imediato, sem dar atenção às suas explicações pouco convincentes. Se havia um trabalho a ser feito, que fosse feito; se havia um problema que alguém não conseguisse resolver, que viessem a ele, não ficassem chafurdando no pântano da indecisão. E ele sempre acertara - ou quase sempre.
E uma vez - uma única vez - ele havia cometido um erro. Um erro fatal. Em Amsterdã ele havia falado com Phyllis sobre Ingrid, a mulher de Hawthorne, e ela disse apenas:
- Você está errado, Hank, desta vez você está errado. Eu conheço o Tyrell e conheço a Ingrid, e sei que você está errado.
E quando o corpo de Ingrid foi retirado de um canal de Amsterdã, sua mulher saiu da embaixada para virão seu escritório.
- Você teve alguma coisa a ver com isso, Hank?
- Pelo amor de Deus, Phyllis, não! Foram os soviéticos, as marcas estavam todas lá!
- Acho bom, Henry, porque você está prestes a perder o melhor agente secreto que a Marinha já teve.
Phyllis só o chamava de Henry quando estava furiosa.
Merda! Como ele podia saber? Fora do sistema! Que disparate era esse?
- Hank?
Stevens sacudiu a cabeça e olhou para a porta do jardim de inverno.
- Oi, Phyll, desculpe, eu estava aqui pensando, só isto.
- Você não conseguiu mais dormir depois daquele telefonema. Quer conversar sobre isso... você pode conversar sobre isso, ou eu tenho que ficar de fora?
- É sobre o seu amigo Hawthorne.
- Ele está de volta? Se for isto, é realmente espantoso, Hank. Ele não gosta muito de você.
- Mas ele sempre gostou de você.
- Claro. Eu resolvia as viagens dele, não o destino dele.
- Você está dizendo que eu fiz isso?
- Eu não sei. Você me disse que não foi você.
- E não fui, mesmo.
- Então este capítulo está encerrado, não é?
- Está.
- O que é que o Tyrell está fazendo para você? Ou você não pode me contar? - Não havia nenhum ressentimento no comentário de Phyllis Stevens, pois era sabido que as mulheres e os maridos do pessoal de alto nível do serviço secreto eram vulneráveis; o que eles não soubessem não lhes poderia ser arrancado. - Há dias que você está trabalhando sem parar, então eu acho que deve ser alguma coisa muito grave.
- Eu acho que posso contar, sim, afinal de contas, tanta gente já sabe... É uma mulher, uma terrorista do vale do Baaka que jurou que vai assassinar o Presidente.
- Isto é uma piada, Hank! - interrompeu a mulher, calando-se de repente, com ar pensativo. - Não, talvez não. Na verdade, as mulheres podem fazer um monte de coisas e ir a um monte de lugares que os homens não podem.
- Pois é, ela já fez isso, e deixou pelo caminho várias mortes estranhas e "acidentes fatais".
- Acho melhor você não me contar mais nada.
- Eu também.
- E o Tyrell? Por que ele entrou nessa história?
- Porque a operação dessa mulher começou no Caribe, nas ilhas...
- E o Hawthorne trabalha lá, com aquele negócio de passeios turísticos.
- Exatamente.
- Mas como foi que vocês conseguiram trazer ele de volta para o serviço? Eu achava que isso seria impossível.
- Não fomos nós, foi o MI-6 que contratou ele. Nós só estamos complementando as diárias.
- O velho Tye. Ele nunca quis saber de desconforto, só em caso de emergência.
- Você gostava muito dele, não é?
- Você também ia gostar, se desse uma chance para ele, Hank - disse Phyllis, sentando-se numa poltrona de vime, de frente para o marido. - O Tye é inteligente, ele tem uma inteligência prática; é diferente de você, ele não tem um QI de cento e noventa, sei lá, mas tem intuição, e tem coragem para fazer o que acha que está certo, mesmo quando o pessoal de cima acha que ele está errado. Ele não tem medo de se arriscar.
- Nossa, parece até que você era apaixonada por ele.
- Todas as mulheres eram, menos eu. Eu gostava dele, sim; ficava fascinada com as coisas que ele fazia, claro, mas amar, em qualquer sentido da palavra, não. Era como se ele fosse um sobrinho esperto, engraçado, não chegava a ser um irmão, mas ele era interessante, porque desrespeitava as regras porém volta e meia acertava na mosca. Você mesmo dizia isto.
- É verdade. Ele era bom mesmo. Mas ele tumultuou um monte de redes, que a gente depois teve um trabalhão para reorganizar. Eu nunca falei com ele sobre a quantidade de agentes que queriam ir embora, dizendo que tinha um doido trabalhando para nós. Eles tinham medo; ele estava tentando negociar com os nossos inimigos. As mortes tinham que parar, era o que ele dizia. Mas os responsáveis por essas mortes não éramos nós, eram os outros!
- E aí a Ingrid foi morta.
- Foi. Pelos soviéticos, não por nós.
Phyllis Stevens cruzava e descruzava as pernas sob a camisola de seda, observando o homem com quem estava casada há vinte e sete anos.
- Hank - disse ela suavemente -, tem alguma coisa que está comendo você por dentro, e eu sei quando não devo me meter, mas você tem que contar para alguém o que é. Você está convivendo com uma coisa que não consegue mais suportar, mas eu vou lhe dizer uma coisa, querido, não existe ninguém na Marinha capaz de fazer o que você fez em Amsterdã. Você conseguiu manter toda a organização intacta, a embaixada, Haia e a OTAN. Você foi o cérebro por trás de tudo o que conseguimos, numa época em que era necessário uma inteligência brilhante para comandar as operações clandestinas. E você fez isso, Hank, com todo esse seu mau gênio, mas você fez, querido. E eu não consigo imaginar mais ninguém que fosse capaz disso, muito menos o Tye Hawthorne.
- Obrigado, Phyll. - Henry inclinou-se para a frente e cobriu o rosto pálido com as mãos, escondendo as lágrimas que começavam a brotar dos seus olhos. - Mas nós estávamos errados em Amsterdã, eu estava errado. Eu matei a mulher do Tye!
Phyllis levantou-se da poltrona, sentou-se no sofá ao lado do marido e o abraçou.
- Hank, o que é isso, não foi você quem matou a Ingrid, foram os soviéticos. Você mesmo disse, e eu li os relatórios. As marcas estavam lá!
- Mas fui eu que entreguei ela para os soviéticos... E agora o Tyrell está aqui, e porque eu errei, errei e errei, ele também pode ser morto.
- Pare com isto! - gritou a mulher de Henry Stevens. - Basta, Hank. Você está exausto, mas você é muito melhor do que isso, muito mais forte. Se é isto que está perturbando você, tire o Tyrell dessa história. Você pode muito bem fazer isso.
- Ele não vai querer; você não sabe como ele está se sentindo. Mataram amigos dele, vários amigos.
- Você pode fazer isso, nem que seja à força. - Nesse momento, o telefone tocou, num tom grave, anormal. Phyllis levantou-se do sofá e foi até um pequeno nicho no jardim de inverno, onde, atrás de um pequeno painel, viam-se três telefones, um ao lado do outro; um era bege, outro, vermelho, e o terceiro, azul-escuro. - Residência dos Stevens - disse ela, pegando o telefone vermelho, onde piscava uma luzinha.
- O capitão Stevens, por favor.
- Quem deseja falar, por favor? O Capitão passou setenta e duas horas acordado e está precisando muito descansar.
- Está certo, acho que não é preciso incomodar o Capitão a esta hora - disse a voz jovem do outro lado da linha. - Eu sou o tenente Allen, da inteligência naval, e estou ligando para avisar ao Capitão que o comandante... ex-comandante Hawthorne levou um tiro, na porta de um restaurante em Chesapeake, Maryland. Pelo que a gente sabe até agora, ele não está correndo risco de vida, mas até a ambulância chegar com o socorro, ninguém pode ter certeza. Mas a moça, a oficial da Força Aérea...
- Henry!
25
Poole, com o rosto lavado em lágrimas, estava sentado de frente para Hawthorne no corredor do hospital, do lado de fora do centro cirúrgico; Tyrell, numa cadeira, com um par de muletas ao seu lado, e Poole, num banco, com a cabeça apoiada nas mãos. Nenhum dos dois falava; não havia nada a dizer. Hawthorne tivera que se submeter a uma pequena cirurgia para a extração da bala e levara sete pontos na coxa; mal conseguira ficar deitado durante a operação, exigindo que o trouxessem para a sala de espera do centro cirúrgico, onde a Major Catherine Neilsen lutava contra a morte.
- Se ela morrer - disse Poole, quebrando o silêncio, a voz tensa, quase inaudível -, eu largo essa porra desta farda e vou passar o resto da minha vida, se for preciso, atrás dos filhos da puta que mataram ela.
- Eu entendo, Jackson - disse Tyrell, vendo o desespero do Tenente.
- Talvez não, Comandante. Um deles pode ser você.
- Até isso eu entendo, por mais equivocado que seja.
- Equivocado? Seu filho da puta! - Poole tirou as mãos do rosto e, erguendo a cabeça, olhou para Tye. - No meu vocabulário, que é muito superior ao seu, esta é a melhor justificativa que você podia dizer. Você também é responsável, Hawthorne. Você nem disse para mim e para Cathy que história era essa, só quando eu forcei você a contar, naquela ilha, depois que mataram o Charlie.
- E isso ia fazer alguma diferença... depois que o Charlie morreu?
- Como é que eu vou saber? - exclamou o Tenente. - Eu não sei de nada. Só acho que você não foi correto conosco.
- Eu fui o mais correto que pude, sem colocar a vida de vocês dois em risco com informações que não era para vocês terem.
- Isso é conversa para boi dormir!
- Pode ser, mas eu já vi muita gente morrer por saber de coisas que não deviam, mesmo que soubessem só uma parte. Eu estou afastado disso há um tempão, mas até hoje tenho pesadelos com essas pessoas.
A porta do centro cirúrgico se abriu e um médico apareceu, o jaleco branco manchado de sangue.
- Qual de vocês dois se chama Poole? - perguntou ele, com ar fatigado.
- Eu - respondeu Jackson, do banco, a respiração suspensa.
- Ela mandou dizer para você ficar frio... foi isto que ela disse.
- Como é que ela está?
- Eu já vou falar disso. - O cirurgião voltou-se para Tyrell. - Então você deve ser o Hawthorne, o outro paciente.
- É, sou eu.
- Ela quer falar com você...
- Que porra é essa? - Poole levantou-se de um pulo. - Se alguém vai falar com ela, essa pessoa sou eu!
- Eu mandei ela escolher, sr. Poole. Eu nem queria fazer isto, mas ela é muito teimosa. Só uma visita, no máximo dois minutos, e, se possível, menos; é mais aconselhável.
- Como é que ela está, doutor? - indagou Tye, repetindo a pergunta de Jackson, mas com uma autoridade que exigia resposta.
- Eu suponho que vocês estejam representando a família dela.
- Pode supor o que quiser - disse Tye. - Nós chegamos aqui juntos e o senhor com certeza está sabendo das recomendações do governo.
- É claro que estou. Duas internações sem registro, nenhum relatório policial, nenhuma informação, porque ninguém aqui sabe o que foi que aconteceu... e os pacientes em questão foram baleados. Bastante irregular, mas eu não posso contestar as autoridades. Eu nunca falei com ninguém que tivesse tantas credenciais no serviço de inteligência.
- Então responda à minha pergunta, por favor.
- As próximas vinte e quatro horas vão dizer.
- Dizer o quê? - explodiu Poole. - Se ela vai morrer ou não?
- Para ser franco, eu não posso prometer que ela não vai morrer, mas acho que essa possibilidade está eliminada. Mas eu também não posso prometer que ela vai se recuperar inteiramente, que vai voltar a ter todos os movimentos.
Poole jogou-se de volta no banco, novamente com a cabeça entre as mãos.
- Cathy, ai, Cathy... - soluçava ele.
- O tiro foi na cervical? - perguntou Tyrell, em tom reservado.
- Você entende disso?
- Digamos que eu já vi alguma coisa parecida. As terminações nervosas...
- Isto mesmo - concordou o cirurgião. - Se elas responderem, a paciente pode entrar em convalescença normal em poucos dias. Se não, aí eu não posso dizer.
- O que o senhor disse já basta, doutor. Posso entrar agora?
- Claro... Aqui, deixe eu ajudar você, eu sei que você também está recém-operado. - Hawthorne levantou-se, mal conseguindo se equilibrar, e dirigiu-se à porta. - As suas muletas - disse o médico, estendendo-as.
- Eu acabei de dispensar a ajuda delas, doutor - replicou Tyrell. - De qualquer modo, muito obrigado.
O Comandante foi escoltado até o quarto de Catherine por uma enfermeira que lhe comunicou, de maneira delicada, mas firme, que sua visita seria cronometrada. Hawthorne fitou a figura deitada na cama; algumas mechas dos cabelos louros escapavam por trás da touca cirúrgica; a luz suave da mesinha de cabeceira iluminava os traços bem desenhados daquele rosto encantador. Ao escutar os passos, ela abriu os olhos, virou a cabeça e, ao ver Hawthorne, fez um sinal para que ele se aproximasse, apontando uma cadeira ao seu lado. Mancando, ele cruzou o quarto e sentou-se. E lentamente, com hesitação, as mãos de ambos foram se aproximando, até que finalmente tocaram uma na outra.
- Me disseram que você estava bem - disse Cathy, com a voz fraca e um pálido sorriso de aprovação.
- Você também vai ficar - disse Tye. - Tenha fé, Major.
- Pare com isso, Tye, diga alguma coisa mais interessante.
- Eu estou tentando... o Jackson ficou meio nervoso porque você não pediu para falar com ele.
- Eu o amo demais, mas não é hora de falar daquele menino, nem dessa reação dele, tão previsível. - Neilsen falava com alguma dificuldade, com bastante esforço, mas com clareza, e sacudiu a cabeça quando Hawthorne levantou a mão esquerda, fazendo um sinal para que ela falasse mais devagar. - Não é para tomar esse tipo de decisão que nós, os oficiais, somos treinados? Eu acho que você me disse alguma coisa assim quando mataram o Charlie.
- Pode ser que eu tenha dito, Cathy, mas não sou muito bom professor. Eu era um oficial e mesmo assim eu desabei em Amsterdã, lembra?
- Mas agora você não vai desabar, não é?
- É estranho você dizer isto, mas eu espero que não. Eu estou furioso, Cathy, tão furioso quanto eu fiquei em Amsterdã, e um dos motivos é você... Por que você disse isso?
- Porque eu juntei algumas pecinhas, Tye, e estou com medo...
- Todos nós estamos com medo - interrompeu Tyrell, carinhoso.
- Eu estou com medo por você, porque sei que você sabe de alguma coisa... Lá em San Juan, quando você e o Jackson voltaram da casa do Simon, você estava diferente. Eu não sei dizer o que era, nem sei se eu quero saber, mas parecia uma coisa muito profunda, terrível...
- Eu tinha acabado de perder dois amigos - interrompeu Tyrell, nervoso - que nem você perdeu o Charlie.
- Aí, depois - continuou a Major, ignorando a interrupção - você ouviu um recado na sua secretária, no telefone do Shenandoah Lodge. Eu nunca vi alguém mudar de cara assim, você ficou pálido, depois roxo, os olhos brilhando. E disse que era um recado de alguém que ligou por engano. Mais tarde... eu sei que você não viu que eu estava escutando, você falou com o Henry Stevens e deu para ele um número de Paris.
- Aquilo era...
- Por favor... E aí hoje você saiu daquele restaurante correndo que nem um louco, como se quisesse matar o chofer... Eu saí correndo atrás e quando cheguei na porta, que já estava quase fechando, logo antes dos tiros, você gritou... não, você berrou: "Você!" E foi aí que a mulher abriu fogo.
- Foi - disse Tyrell, com os olhos fixos nos de Cathy.
- Era a Bajaratt, claro.
- Era.
- Você sabe quem ela é, não é mesmo? Quer dizer, você conheceu ela.
- Conheci.
- Você conheceu ela muito bem, não é?
- Eu achava que sim, mas estava enganado.
- Tye, que coisa horrível! Você não contou para ninguém, contou?
- Não tinha por quê. Ela é outra pessoa, não existe nenhuma ligação, enfim.
- Você tem certeza disto?
- Absoluta. O mundo dela é o vale do Baaka. Eu a conheci em outro mundo, que não tinha nada a ver com o Baaka.
- Naquele mundo maravilhoso, onde você vive velejando de uma ilha para outra e onde o pôr do sol é lindo?
- É.
- E esse telefone de Paris vai ser útil?
- Pode ser. Eu espero que sim. Quero que seja.
Catherine observou o rosto cansado do amigo, aqueles olhos que carregavam tanta dor e tanto ódio.
- Ai, meu Deus, que coisa horrível, que infelicidade a sua. Você não sabe como eu lamento que tenha sido assim, Tye... e não vamos mais falar disso.
- Eu fico muito comovido, Cathy... Você aí, deitada nessa cama, depois de ter passado pelo que você passou, e ainda consegue pensar em mim?
- Claro - respondeu ela, com a voz cada vez mais fraca, mas com um sorriso nos lábios. - É melhor do que ficar pensando em mim, não é?
Tyrell curvou-se para a frente e, soltando as mãos de Cathy, acariciou-lhe a face. Os dois rostos se aproximaram, até que seus lábios se encontraram.
- Você é linda, Cathy, muito linda.
- Ei, isto é melhor do que "competente", Comandante.
A porta se abriu; da entrada, a enfermeira soltou um leve pigarro.
- Acabou a visita - disse ela. - A paciente mais bonita do hospital tem que descansar.
- Aposto que você diz isso para todo mundo que sai de uma cirurgia - disse Neilsen.
- Se eu fizesse isso, eu seria uma grande mentirosa. Mas não é o seu caso.
- Tye?
- Oi - disse Hawthorne, levantando-se.
- Aproveite o Jackson, ele é um ótimo parceiro. Ele sabe fazer tudo o que eu faço, e até melhor do que eu.
- É claro que sim, mas você está dizendo isto por outro motivo.
- É que assim ele não vai ter tempo de ficar se preocupando comigo.
Phyllis Stevens atendeu o telefone. Eram quase dez horas da manhã, mas somente às seis e quinze ela tinha conseguido que seu marido fosse dormir, exausto e corroído pelo sentimento de culpa. A oficial da Aeronáutica tinha sido operada e ninguém sabia o prognóstico; Tye Hawthorne, porém, não havia sofrido ferimentos graves, o que aliviou a aflição momentânea de Henry Stevens, embora em nada amenizasse sua angústia mais profunda - por pouco ele não foi morto!
- Alô? - disse Phyllis em voz baixa, puxando o fio para o outro lado da cama.
- Aqui é do FBI, sra. Stevens. Eu poderia falar com o Capitão?
- Para ser franca, eu preferia que não. Ele passou três dias sem dormir, e agora finalmente ele pegou no sono. Você não pode deixar o recado comigo?
- Só uma parte, minha senhora.
- Eu compreendo perfeitamente.
- O que foi, Phyll? - Henry Stevens sentou-se na cama ao lado. - Eu escutei o telefone, tenho certeza, escutei o telefone!
- Ele é todo seu. - Phyllis suspirou e passou o fone para o marido, que já estava de pé.
- Aqui é o Stevens, o que foi?
- FBI, senhor, agente Becker, estou no escritório de Ingersol.
- Alguma novidade?
- É difícil de explicar, Capitão. Encontramos um telefone numa caixa metálica camuflado nos lambris de madeira, embutido na parede. A gente teve que arrombar a caixa...
- É um telefone normal? Se for, por que ele estava escondido?
- É isto que é mais estranho, Capitão. Os técnicos estão trabalhando aqui desde ontem e só agora descobriram alguma coisa.
- E o que foi?
- Uma antena parabólica no telhado, ligada exatamente nesse telefone, mas a única coisa que eles conseguiram descobrir é que ela capta e transmite as frequências do estado de Utah.
- Utah? E o que é que tem em Utah?
- Pode ser que lá existam mil antenas como essa recebendo centenas de transmissões. Talvez até mais.
- Isto é um disparate!
- É a nova tecnologia, Capitão.
- Então ponham esses computadores caríssimos para funcionar, esses equipamentos mágicos que custam os olhos da cara dos contribuintes, e descubram alguma coisa de útil.
- Nós estamos trabalhando nisso, senhor.
- Então trabalhem mais! - Stevens bateu o telefone e jogou-se novamente sobre os travesseiros. - Eles têm satélites - sussurrou. - É inacreditável.
- Eu não sei do que é que você está falando, Hank, mas se entendi o que você disse, fique sabendo que qualquer um de nós é capaz disso. Basta ter dinheiro.
- É o progresso - disse Stevens. - Não é incrível?
- Acho que depende de quem controla as coisas - ponderou a mulher. - Nós sempre pensamos que éramos nós... os melhores e mais inteligentes. Mas parece que não é bem assim.
Já era tarde da manhã e o hospital não tinha nada de novo a dizer sobre Catherine Neilsen, exceto que ela estava dormindo e que suas funções vitais estavam estabilizadas. Hawthorne, de cueca, testava a perna no quarto do Shenandoah Lodge, sob a supervisão de Poole.
- Está doendo, não é? - perguntou o Tenente. - Você está com dor.
- Nem tanto - respondeu Tyrell. - Até consegui dormir razoavelmente, coisa que eu não esperava. O mais importante é não sobrecarregar o lado esquerdo.
- Seria melhor você ficar de repouso uns dois dias - disse Poole. - Esperar o corte começar a cicatrizar.
- A gente não pode esperar dois dias. Pegue o esparadrapo e faça um curativo mais apertado. - O telefone tocou. - Deve ser o Stevens. A Phyllis prometeu que ia mandar ele me ligar quando acordasse.
- Deixe que eu vou ver - disse Jackson, dirigindo-se à mesa. - Alô?... Está, sim. Um instantinho, por favor. - O tenente virou-se para Hawthorne. - É um cara dizendo que é seu irmão, e eu acho que é mesmo. Ele fala que nem você, só que um pouco mais educado.
- Mas ele não é, não. É que ele finge bem, só isso. - Tyrell foi mancando até a cama e sentou-se com cuidado. - Eu liguei do hospital para St. Thomas ontem à noite. - Tye pegou o telefone sobre a mesinha de cabeceira. - Oi, Marc, imaginei que você ia chegar hoje.
- É, cheguei há mais ou menos uma hora, e fiquei muito feliz de saber que você ainda está vivo - disse Marc Anthony Hawthorne, irônico. - Você está vivo, não é?
- Pare com isso, cara, eu tenho andado ocupado, e não fique me fazendo perguntas porque essas ligações internacionais são caras.
- Tem gente que não acha...
- Quem? Eu não ouvi os recados.
- O primeiro é de um cara chamado B. Jones. Ele ligou ontem às 4:12 da tarde e deixou um telefone da Cidade do México e disse várias vezes para você não deixar de ligar para ele no máximo em vinte e quatro horas.
- Me dê o número. - Tyrell tomou nota num cardápio. - E o outro?
- É de uma mulher chamada Dominique, que disse que estava ligando de Montecarlo. Foi hoje às 5:02 da manhã.
- Me dê o recado!
- Eu vou ligar a secretária para você escutar. Não é o tipo de coisa que um irmão mais novo repita para o seu ídolo... Cara, você é mesmo um destruidor de corações!
- Deixe eu ouvir o recado, Marc, e fique na linha e pare com esses comentários.
- Sim, senhor, é para já.
Tyrell, meu bem, meu amor, sou eu, Domie! Estou ligando do L’Hermitage de Montecarlo. Eu sei que já está tarde, mas o meu marido está no cassino e eu tenho uma notícia maravilhosa! Eu me saí muito bem nestes últimos dias, mas sinceramente, estou cansada disso tudo, e sinto tantas saudades de você - assim como eu também sinto que tenho o dever de passar os últimos dias do meu tio junto dele.
Falei com o meu marido sobre o meu tio, e você não imagina a resposta dele! Ele disse: "Vá lá ficar com o seu tio, ele precisa de você, e eu tenho certeza de que você também precisa muito do seu namorado." Juro, eu fiquei surpresa. Aí eu perguntei se ele estava zangado, e a resposta dele foi uma dádiva de Deus. "Não, minha mulher querida, pois eu tenho os meus próprios planos para as próximas semanas. Pelo contrário, fico muito feliz por você."... Não é maravilhoso? Eu disse para você que ele era ótimo, embora não tivesse algumas qualidades masculinas. De qualquer modo, estou indo para o aeroporto de Nice para pegar o primeiro voo. Amanhã eu vou estar em Paris, correndo de um lado para o outro, claro, porque sempre tem um monte de coisas para fazer antes de umas férias assim, longas, mas se você quiser falar comigo, ligue para lá. Se eu não estiver em casa, fale só com a Pauline. Eu ligo de volta... Já estou sentindo os seus braços em volta de mim, o meu corpo juntinho do seu. Ai, meu Deus, eu estou parecendo uma menina apaixonada, já passei dessa idade! Em um ou dois dias, três, no máximo, vou estar chegando no Caribe, e ligo para você assim que eu desembarcar... Um beijo, meu bem.
Um grito primevo de fúria estava crescendo na garganta de Hawthorne; ele o conteve, mas não conseguia conter a violência do seu ódio. Palavras de amor usadas de forma tão maligna, tão insensível, para alimentar um mito letal. Ela havia ligado uma hora depois de tentar matá-lo! Não de um iate no Mediterrâneo, mas da escada de um restaurante em Maryland... Como era fácil alguém dizer que estava em qualquer lugar que lhe viesse à cabeça! Lembranças dos jogos de Amsterdã: mantenha a sua máscara a qualquer custo, pode ser que você precise dela. A Menina Sanguinária estava pondo na mesa as suas cartas mentirosas, acreditando que ele iria aceitá-las. Ele faria tudo para ela continuar acreditando nisso; ligaria para Paris, para a misteriosa "Pauline", e alertaria o Deuxième de antemão.
- Pronto, Tye - disse o irmão. - Eu já rebobinei a fita e a gente pode recomeçar a conversa. Você não está satisfeito por eu não ter feito nenhum comentário?
- Por hoje é só, Marc.
- Bem, mas você pediu para eu ficar na linha...
- Ah, meu Deus, desculpe, cara - interrompeu Hawthorne, caindo em si. - Questões práticas... Imagino que o dinheiro tenha sido depositado e que você esteja procurando os dois barcos para a gente comprar.
- Ei, Tye, espere aí, eu acabei de chegar, só faz uma hora! Mas, bem, eu entrei em contato com o Cyril, no Chase de Charlotte Amalie, e ele disse que nós recebemos uma remessa astronômica de Londres. Ele está cismado que a gente tem alguma conexão com o pessoal do velho Noriega!
- Se ele investigar, vai ver que o dinheiro é tão limpo quanto as calcinhas da Rainha. E você comece a correr atrás dos barcos.
- Sem você?
- Eu disse correr atrás, não disse fechar negócio. Se você encontrar alguma coisa interessante, faça uma proposta.
- Ah, sim, agora eu me lembrei, uma proposta. Quando é que você está pensando em voltar?
- Não vai demorar muito... de uma maneira ou de outra.
- Como assim, de uma maneira ou de outra?
- Eu não posso dizer. Eu volto a ligar daqui a uns dois dias.
- Tye...?
- Oi.
- Pelo amor de Deus, se cuide, hem?
- Pode deixar, cara. Você me conhece, eu não gosto de rasgos de bravura.
- Isto é o que você diz.
Hawthorne desligou o telefone, fazendo uma careta de dor ao se dobrar para a esquerda.
- Cadê as anotações que estavam no bolso da minha calça? - perguntou a Poole.
- Estão aqui - respondeu Jackson, pegando sobre a escrivaninha um bolo de papel amarrotado e entregando-o a Tyrell.
Hawthorne desdobrou os pedaços de papel e escolheu um. Pegou o telefone, fazendo outra careta ao se virar, e, lendo os números no papelzinho, discou.
- Por favor, o secretário Palisser pode atender? - pediu ele, com delicadeza. - É Hawthorne.
- Sim, senhor - respondeu a secretária. - Vou passar o senhor direto para ele.
- Obrigado.
- Comandante? - A voz de Palisser era como a pessoa dele: autoritária, mas não agressiva. - Você soube de alguma novidade?
- Mais um assassinato, e depois disso quase que foi a minha vez.
- Meu Deus, você está bem?
- Só uns pontinhos na perna, nada de mais.
- O que foi que aconteceu?
- Outra hora eu conto, Secretário, agora temos que tratar de outro assunto. Você conhece um analista da CIA chamado O’Ryan?
- Acho que sim. Ele estava assessorando o diretor da CIA na nossa última reunião. Pelo que sei, ele trabalha lá há muitos anos e é considerado um bruxo do serviço secreto. Pode ser que eu esteja enganado, mas acho que o nome dele era Ryan ou O’Ryan.
- Não, você não está enganado, e ele está morto, por obra da Menina Sanguinária.
- Meu Deus!
- E se eu entendi bem, ele era o principal informante da Bajaratt e do pessoal dela no serviço de inteligência.
- Você não está sendo contraditório? - interrompeu Palisser, atônito, mas pensativo. - Se ele era assim tão valioso para ela, ou para eles, por que iam querer que ele morresse?
- É só um palpite, mas pode ser que ele tenha cometido algum erro que pudesse nos levar a ela, ou então, mais provável ainda, ele já tinha desempenhado o papel dele e teve que ser eliminado por causa de tudo o que sabia. Queima de arquivo.
- Isso confirmaria a sua lese de que a penetração do Baaka em Washington chegou a proporções assustadoras.
- Mesmo que os próprios envolvidos não saibam, Secretário - disse Hawthorne, aproveitando a deixa. - Por exemplo, você ter ajudado o Van Nostrand foi um ato de compaixão, e não de cumplicidade. Você foi ludibriado.
- É difícil de acreditar...
- E mais, se a morte do Howard Davenport estiver relacionada com isso tudo, e eu estou convencido disto, nem mesmo a pessoa mais paranoica do mundo vai ter coragem de dizer que ele era amigo da Bajaratt, assim como ninguém diria isso de você. Vocês não são o tipo de pessoa que se prestaria a isso.
- Não, claro que não!
- Mas o O’Ryan era...
- Como é que você pode ter certeza?
- Ela estava a menos de dois quilômetros do lugar onde ele foi encontrado morto.
- Como é que você sabe?
- Eu já disse, ela tentou me matar.
- Você viu ela?
- Digamos que eu fiz tudo para ficar fora da mira dela... Por favor, Secretário, não vamos perder tempo com isso. Conseguiu os papéis que eu pedi?
- Daqui a meia hora, mas eu ainda tenho algumas dúvidas.
- E você tem outra opção... Nós temos outra opção?
- Não, se a sua ficha de antecedentes no serviço estiver correta e não tiver sido escrita pela sua mãe. Aliás, nós vimos a foto da sua última carteira da Marinha, que é de uns seis anos atrás. Você não envelheceu nem um pouco.
- A minha cara está melhor agora porque eu tenho um emprego melhor. Pergunte só a minha mãe.
- Obrigado, mas já basta um Hawthorne na minha vida, por mais encantadora que seja a sua mãe. Mande o Tenente passar aqui para pegar as coisas. Ele tem que pedir para falar com o subsecretário para assuntos do Caribe. O envelope vem com as suas credenciais: Agente Especial, Operações Consulares. Selado e escrito "Pesquisa geológica, Costa Norte: Montserrat."
- Que nem Bajaratt?
- A gente deve sempre pensar nos futuros inquéritos do Congresso, Comandante, e também na mentalidade dos inquisidores. Uma senha tão óbvia é capaz de dissipar as suspeitas.
- É?
- Claro... Um senador pergunta: "Montserrat é Bajaratt? Não é meio óbvio, sr. Secretário?"... "Ora, Senador, o senhor é muito perspicaz. Portanto, como o senhor percebeu de forma tão brilhante, nós não estávamos de má-fé quando recrutamos o ex-Comandante Hawthorne. Caso contrário, não teríamos sido tão óbvios, como o senhor observou."
- Em resumo, você está querendo proteger o Departamento de Estado.
- Com toda a certeza - concordou o Secretário. - E proteger você também, Comandante. Outra coisa, Hawthorne...
- O que é?
- Como é que você vai falar com os familiares?
- Curto e grosso.
- Bem, agora que eu preparei as suas credenciais, gostaria que você fosse um pouco mais específico.
- Confronto direto. Vou dizer que está havendo uma crise muito séria no Departamento de Estado e que o morto pode estar envolvido. Eu não tenho tempo para ficar consolando a família antes de começar o interrogatório.
- Pode ser que eles fiquem ressentidos, talvez até peçam para você se retirar.
- Tomara que eles fiquem bem ressentidos, porque eu também estou cheio de ressentimentos... Digamos que a minha motivação é muito pessoal. Além de tudo o que aconteceu, estou com uma amiga hospitalizada, e pode ser que ela nunca mais volte a andar. - Tyrell desligou o telefone e voltou-se para Poole, que olhava pela janela com ar acabrunhado. - Você foi eleito, Jackson. Vai falar com o Subsecretário para assuntos do Caribe; ele está com um envelope para me entregar... O que foi?
- As coisas estão acontecendo com uma rapidez assustadora, Tye - respondeu o Tenente, virando-se de costas para a janela, os olhos fixos nos de Hawthorne. - O número de mortos está aumentando tão rápido que mal dá para a gente acompanhar... O Van Nostrand e o chefe da segurança dele, mais o guarda da portaria, depois a velhinha, um dos motoristas, aquele cara ruivo, bem aqui no estacionamento, o Davenport, o Ingersol e agora esse O’Ryan.
- Você está esquecendo de alguns, não está? - perguntou Hawthorne. - Pelo que eu me lembro, grandes amigos meus e um grande amigo seu. Mas eu acho que não é hora para pacifismos evangélicos.
- Você não está entendendo, Comandante.
- Não estou entendendo o quê?
- A gente não está no Caribe, a milhares de quilômetros daqui, onde a gente tem controle sobre algumas coisas. Nós estamos encurralados pela geografia, e tem muitas pessoas que a gente não conhece que estão envolvidas nisso tudo.
- Isso é lógico. Nós estamos na linha de fogo e sabemos que a Bajaratt está eliminando sistematicamente qualquer pessoa que possa abrir o caminho até ela.
- Mas quem é que está do nosso lado? Quem vai ficar no controle?
- Vai ser como foi em San Juan - respondeu Hawthorne. - Você vai ficar no lugar da Cathy, tomando conta da base, aqui. E aí você vai coordenando os meus passos à medida que as informações novas forem chegando.
- De quem e com quê?
- Com um desses equipamentos de alta tecnologia que, pelo que dizem, vieram para substituir pessoas como eu... naquela época. Eu acho que tinha um desses lá, mas ele não tinha muito uso para nós, ou então os meninos do laboratório achavam que a gente não ia conseguir aprender.
- Qual é o equipamento?
- Primeiro, tem um aparelho chamado transreceptor...
- É um módulo de rastreamento em UHF - explicou Poole. - Até uma certa distância ele reproduz a sua posição num mapa.
- Foi isso que eu imaginei. Ele vem embutido num cinto que está no envelope. Depois tem um aparelho de busca que emite pequenas descargas elétricas para me avisar que alguém quer falar comigo; dois sinais repetidos duas vezes significam que é importante, três sinais repetidos várias vezes significam que é uma emergência. É um feixe de fibra ótica instalado num isqueiro de plástico, por isso ele passa no detector de metais.
- E quem vai ficar no controle?
- Você. Eu vou programar ele para isso.
- Então programe de uma maneira que eu saiba, de acordo com o código, quem é a pessoa da CIA ou do Departamento de Estado que está mandando a informação para você. O número deve ficar restrito ao pessoal de plantão, todos isolados, sob vigilância e sem acesso ao telefone.
- Você já trabalhou nisto, Poole?
- Não, Comandante, mas eu sou um analista senior de um AWAC. As informações falsas, deliberadamente falsas, são um pesadelo com o qual a gente é obrigado a conviver.
- Eu fico pensando aqui, onde estará o Sal Mancini?... Desculpe.
- De nada. Se eu algum dia encontrar ele de novo, você vai saber pelos jornais. Ele está liquidado, porque é tão responsável pela morte do Charlie quanto qualquer um dos outros! E você exija que as pessoas que estiverem mandando informações para você sejam as mesmas que examinam os gráficos.
- Que gráficos?
- Os gráficos impressos pelo computador, mostrando o seu paradeiro que vai ser transmitido pelo transreceptor. É melhor que tenha uma equipe só encarregada de tudo. Com mais de uma equipe as coisas ficam frouxas demais.
- Será que nós não estamos meio paranoicos? O Palisser me garantiu que só as pessoas mais experientes e de mais confiança da CIA é que iam trabalhar para nós.
- Em outras palavras - replicou o Tenente - uma dessas pessoas poderia ser alguém como o finado sr. O’Ryan.
- Eu vou falar com o Palisser e exigir que as coisas sejam feitas como você disse - concordou Hawthorne. - Tudo bem, então vamos começar. - Tyrell levantou-se da cama lentamente, tentando equilibrar-se, e apontou para a coxa. - Não se esqueça do que eu disse, Jackson. Prenda bem o esparadrapo.
- E a sua roupa? - Poole pegou a gaze adesiva sobre a mesa; Hawthorne ficou observando o Tenente enquanto este, com ar experiente, fazia o curativo no ferimento. - Você não pode ir para a casa dos O’Ryan e dos Ingersol só de cueca.
- Eu dei as minhas medidas para a secretária do Palisser. Daqui a uma hora vão entregar tudo aqui. Terno, camisa, gravata... tudo a que eu tenho direito. Um funcionário do Departamento de Estado tem que se vestir de acordo. - O telefone tocou; Hawthorne atendeu. - Alô?
- Tye, é o Henry. Você conseguiu dormir?
- Melhor do que eu esperava.
- E como é que você está? Como está o ferimento?
- Eu estou ansioso e os pontos estão no lugar. A Phyllis me contou que você disse que ia conseguir dormir, nem que tivesse que dar uma paulada na própria cabeça. Você nunca vai aprender a ser sutil, não é, Hank?
- Obrigado... pelo "Hank".
- De nada. Você está no meu livro de memórias, e talvez um dia venha a preencher as páginas que foram perdidas em Amsterdã, mas por enquanto nós estamos trabalhando juntos. Por falar nisto, você descobriu alguma coisa de novo? E o telefone em Paris?
- É uma mansão em Parc Monceau, que pertence a uma família riquíssima, uma dinastia, parece, chamada Couvier, muito antiga na França. Segundo o Deuxième, o dono da casa é o último dos grandes boas-vidas. Tem quase oitenta anos e é casado pela quinta vez, com uma mulher que até o ano passado vivia dando festas em St. Tropez.
- E eles registraram algum telefonema, quer dizer, algum telefonema internacional?
- Quatro. Dois do Caribe e dois do continente, isso nos últimos dez dias. Agora a linha está grampeada e de agora em diante eles vão rastrear as ligações. Vão descobrir exatamente para onde elas são feitas, para que áreas e para que números.
- E os Couvier estão em Paris?
- Não, a governanta-chefe disse que eles estão em Hong-Kong.
- Quer dizer que é essa governanta quem atende o telefone?
- É, foi o que o Deuxième disse. O nome dela é Pauline, e ela está sob vigilância total, eletrônica e física. Na hora em que estourar alguma coisa, eles vão nos avisar.
- Seria a melhor coisa que poderia acontecer.
- Será que eu posso perguntar como você descobriu esse telefone?
- Desculpe, Henry, mas agora não, talvez um dia... Mais alguma coisa?
- Uma coisa importantíssima. Nós temos provas de que o Ingersol estava envolvido no círculo da Bajaratt. - O Capitão relatou a descoberta do telefone camuflado no escritório do advogado, bem como da antena parabólica no telhado. - Parece óbvio que ele estava ligado em rede com o iate lá de Miami e com a ilha daquele velho louco.
- "Louco" é a palavra certa, Henry. O Van Nostrand eu consigo entender, mas pessoas como o O’Ryan e o Ingersol? Por que eles iam se envolver nisso? Não faz sentido.
- Claro que faz - replicou o chefe da inteligência naval. - Veja só o caso daquele piloto que vocês descobriram em Porto Rico, o Alfred Simon. Ele pensava que era acusado de uma coisa que faria ele passar quarenta anos na cadeia. Pode ser que o caso do O’Ryan e do Ingersol seja o mesmo tipo de coisa. Aliás, a CIA está mandando todas as informações disponíveis sobre eles.
- Por falar nisso, onde está o Simon? O que aconteceu com ele?
- Ele está tirando a barriga da miséria numa suíte de um hotel em Washington, cortesia do nosso querido Pentágono. Eles fizeram uma cerimônia particular, no Salão Oval, nada menos, onde o Simon recebeu várias medalhas e um contracheque substancial de pagamentos atrasados.
- Eu achei que o Presidente estava se comportando de uma forma mais reservada ultimamente...
- Você não prestou atenção. Eu disse que foi uma cerimônia particular, sem imprensa, sem fotos, coisa de cinco minutos.
- E como foi que o Simon se explicou... para dizer o mínimo, como ele explicou essa ausência tão prolongada? Esses anos todos!
- Ele foi muito esperto, pelo que me contaram. Ele deu uma explicação meio obscura, e foi o bastante para pessoas que, na verdade, não querem explicação nenhuma. A correspondência comunicando a absolvição dele foi enviada para o interior da Austrália e acabou se perdendo. Ele estava há anos correndo o mundo, como um verdadeiro expatriado, trabalhando aqui e ali como piloto, cada hora num país diferente. Ninguém quis saber maiores detalhes.
- Esse é o Simon - disse Hawthorne. - Não um advogado influente, convidado de honra da Casa Branca, nem um dos analistas mais respeitados da CIA. O Ingersol e o O’Ryan são farinha do mesmo saco, mas o Simon, não.
- Eu não disse que ele era, eu acho que ele é uma farinha um pouco melhor. - Ouviu-se o som de uma campainha através da linha telefônica. - Espere um instante, Tye, tem alguém tocando na porta e a Phyll está no banho.
Silêncio.
O capitão Henry Stevens não retornou ao telefone.
26
- Nós estamos de saída! - disse Bajaratt em voz alta, abrindo a porta do quarto e acordando Nicolo de um sono profundo. - Levante e faça as nossas malas, rápido!
O rapaz ergueu a cabeça dos travesseiros e esfregou os olhos, sob a luz brilhante do sol vespertino que entrava pela janela.
- Eu estou vivo por um milagre de Deus. Me deixe dormir.
- Você se levante e me obedeça, por favor. Eu já mandei chamar uma limusine e ela vai chegar daqui a dez minutos.
- Mas por quê? Estou tão cansado, com tanta dor.
- Para ser franca, pode ser que a boca do nosso chofer seja grande demais para ficar calada só com mil dólares, se bem que eu ofereci mais.
- Para onde é que a gente vai?
- Eu já tomei todas as providências; você não precisa se preocupar com isso. Ande logo! Tenho que dar mais um telefonema.
Baj voltou às pressas para a sala de estar da suíte e ligou para o número dos Scorpios.
- Identifique-se - atendeu uma voz desconhecida - e diga qual é o assunto.
- Não foi com você que eu falei da outra vez - disse Bajaratt.
- Houve algumas mudanças...
- Tem havido mudanças demais para o meu gosto - interrompeu Baj em voz baixa, ameaçadora.
- Foram para melhor - disse o homem - e, se você é quem eu estou pensando, isso foi melhor para você também.
- Como é que eu posso ter certeza? Como eu posso ter certeza de alguma coisa? Na Europa esse caos não seria permitido, e, se fosse no Baaka, vocês todos já teriam sido executados.
- Os Scorpios Dois e Três não estão mais por aqui, ou estão? Eles não foram executados, Menina Sanguinária?
- Não brinque comigo - disse Bajaratt, agora com a voz gélida.
- Nem você comigo, moça... Se você quer que eu prove que sou um Scorpio, tudo bem, eu provo. Eu faço parte desse círculo e sei de todos os passos que estão sendo dados para encontrar você. Uma das pessoas envolvidas é o capitão Henry Stevens, chefe da inteligência naval. Ele está trabalhando com um oficial aposentado chamado Hawthorne.
- Hawthorne? Você conhece esse...
- Isto mesmo, e eles foram atrás de você num lugar chamado Chesapeake. Todos nós recebemos um alerta pelo fax de segurança. Mas o capitão Stevens não vai mais incomodar você. Ele está morto, e mais cedo ou mais tarde alguém vai encontrar o corpo dele no meio dos arbustos, atrás da garagem da casa dele. Se o corpo for encontrado, você vai ler a notícia nos jornais da tarde. Ou nos jornais da noite, isto se não resolverem encobrir o fato.
- Basta, eu já estou satisfeita - disse Bajaratt, com a voz mais suave.
- Já? - perguntou o Scorpio. - Pelo que eu li e ouvi, nem parece que é você mesma que está falando.
- Eu já tenho a prova.
- A minha palavra?
- Não, um nome.
- Stevens?
- Não.
- Hawthorne?
- Já é o bastante, Scorpione Uno. Preciso de um equipamento. Está chegando a hora.
- Se for menor do que um tanque, não se preocupe.
- Não é nada grande, mas é muito sofisticado. Posso mandar vir um do Baaka em uma noite, via Londres ou Paris, mas eu não confio nos nossos técnicos. O equipamento falhou duas vezes em cinco. Eu não posso correr esse risco.
- Os homens que pensam como eu também não podem, e nós estamos espalhados por toda a cidade. Você se lembra de Dallas há trinta anos? Nós lembramos. Como você está pensando em proceder?
- Eu tenho aqui um esquema detalhado...
- Mande ele para mim - interrompeu o Scorpio.
- Como?
- Bem, eu suponho que não vai me dizer onde você está.
- É claro que não - disse Bajaratt. - Eu vou escolher um hotel e deixar uma cópia para você na recepção. Assim que eu fizer isso eu volto a ligar.
- Em nome de quem você vai deixar a cópia?
- Pode escolher.
- Racklin.
- Você escolhe rápido.
- É o nome adotado por um tenente que foi prisioneiro de guerra no Vietnã. Ele pensava igual a mim; sempre foi contra a nossa retirada de Saigon e detestava esses maricas de Washington que não davam poder de fogo para nós.
- Muito bem, então vai ser Racklin. Onde é que você vai estar, nesse mesmo número?
- Vou ficar aqui mais umas duas horas, só. Depois disso eu tenho que voltar para o escritório, tenho uma reunião... uma reunião sobre você, Menina Sanguinária.
- Eu fico tão lisonjeada com este apelido, tão carinhoso e ao mesmo tempo tão ameaçador - disse Baj. - Eu ligo para você... daqui a uma meia hora, no máximo. - Nicolo! - gritou ela, desligando o telefone.
- Henry! - gritou Tyrell pelo telefone. - Onde foi que você se meteu?
- O que houve? - perguntou Poole.
- Não sei - respondeu Hawthorne, sacudindo a cabeça. - O Henry sempre foi distraído; quando ele era interrompido, esquecia o que estava fazendo antes. Pode ser que ele tenha recebido algum relatório reservado, começou a ler e esqueceu que estava falando no telefone. Eu vou ligar mais tarde; de qualquer modo, ele não tinha mais nenhuma novidade para me contar. - Hawthorne desligou o telefone e olhou para o Tenente da Aeronáutica. - Vamos lá, termine logo esse curativo e se mande para o Departamento de Estado. Eu quero começar logo esse negócio. Não vejo a hora de apresentar os meus pêsames para as famílias do O’Ryan e do Ingersol.
- Você não vai a lugar nenhum antes dos seus documentos e as suas roupas chegarem. E, já que é assim, será que eu poderia sugerir, com todo o respeito, que até lá você ficasse deitado e descansasse um pouco? Eu fiz alguns cursos de triagem e primeiros-socorros de vítimas de armas de fogo e a minha opinião é de que o Comandante...
- Cale a boca, Jackson, e acabe de uma vez com a porra desse curativo!
Depois de telefonar para o Scorpio dando o nome do hotel, Bajaratt deixou um envelope contendo a cópia do seu plano fatídico na recepção do Carillon, com uma indicação clara: Racklin. Para ser entregue em mãos, com os selos intactos.
- Sono desolato! - sussurrou Nicolo, enquanto o funcionário do hotel punha a bagagem na limusine. - A minha cabeça ainda não está em ordem. Eu prometi que ia ligar para a Angel do nosso próximo hotel, e já estou atrasado!
- Eu não tenho mais paciência para isso - disse Bajaratt, dirigindo-se ao enorme veículo branco.
- Mas você tem que ter! - gritou o rapaz, segurando-a pelos ombros. - Você tem que me respeitar, e tem que respeitar ela também!
- Como é que você se atreve a falar assim comigo?
- Escute aqui, Cabi, eu passei por cada coisa terrível por sua causa e matei um homem que queria me matar... mas foi você que me trouxe para este mundo louco e foi você que me apresentou para essa menina que eu amo tanto. E você não vai me atrapalhar. Eu sei que sou novo, e já tive muitas mulheres, por todas essas coisas que você vive dizendo de mim, mas com essa menina é diferente.
- Você fica melhor falando italiano do que falando inglês... Tudo bem, você pode ligar da limusine para a sua namoradinha, se quiser.
Quando os dois entraram na limusine, Nicolo pegou o telefone imediatamente, enquanto o motorista, um negro mais velho, ligava o motor e voltava-se para trás.
- Me disseram lá na empresa que a senhora ia me dar o endereço.
- Só um instante, por favor. - Bajaratt tocou o rosto de Nicolo. - Fale baixo - disse ela em italiano. - Tenho que ser bem clara com o chofer.
- Então eu vou esperar; pode ser que eu dê um grito de felicidade.
- Se você esperasse um pouquinho mais, uma meia hora, mais ou menos, você ia poder gritar quanto quisesse.
- Ahh?
- Antes de ir para o hotel, a gente tem que fazer uma escala... eu tenho que fazer uma escala. Você não precisa me acompanhar, e vai poder ficar pelo menos vinte minutos sozinho no carro.
- Então eu vou esperar. Você acha que o motorista vai ficar ofendido se eu pedir para ele fechar essa janelinha do banco da frente?
- E por que ele ia ficar ofendido? - Bajaratt fez uma pausa e olhou para os lados. - Mas eu tenho certeza de que ele não entende italiano. Você só fala italiano com a sua atriz, não é?
- Por favor, Cabi, ela viu nos meus olhos que eu entendo inglês. Ela me disse isso antes de ir para a Califórnia, que eu ria com os olhos quando alguém dizia alguma coisa engraçada em inglês.
- E você admitiu que sabia falar inglês?
- A gente fala inglês o tempo todo quando eu ligo para ela, qual é o problema?
- O problema é que todo mundo pensa que você não fala inglês!
- Não, Cabi, você está enganada. Aquele jornalista lá de Palm Beach sabia que eu falava inglês.
- Ele não conta, ele...
- Ele o quê?
- Nada, deixe para lá.
- O endereço, senhora? - interrompeu o chofer, aproveitando a pausa no diálogo em italiano.
- Ah, sim, é este aqui. - Baj abriu a bolsa e tirou um pedaço de papel pardo onde estavam escritos alguns caracteres árabes, com palavras e números codificados. Decodificando-os de cabeça, ela leu em voz alta o nome de uma rua e um número em Silver Spring, Maryland. - O senhor sabe onde fica?
- Pode deixar que eu encontro, senhora - respondeu o motorista. - Não vai ter nenhum problema.
- Senhor, por favor feche esta janelinha.
- Pois não, senhora.
- Essa sua Angel fala de você para os outros? - perguntou Bajaratt, zangada, agressiva, voltando-se para Nico.
- Não sei, Cabi.
- As atrizes são ordinárias, exibidas, estão sempre correndo atrás de publicidade!
- A Angelina não é nada disso.
- Você viu todas aquelas fotos nos jornais, toda aquela fofoca...
- Aquilo que eles disseram foi horrível.
- E como é que você acha que aquilo tudo foi parar no jornal?
- Ela é famosa e todo mundo está cansado de saber disto.
- Foi ela que armou aquilo tudo! A única coisa que ela quer com você é publicidade; mais nada!
- Eu não acredito em você.
- Você é um estúpido, um menino do cais do porto, você não sabe de nada. Se ela soubesse quem você é de verdade, você acha que ia olhar para a sua cara?
Nicolo ficou em silêncio. Depois de alguns instantes, voltou a falar, a cabeça jogada para trás no encosto do banco.
- Você tem razão, Cabi, eu não sou nada, não sou ninguém. Eu me esqueci disso e acabei acreditando em coisas que não devia acreditar por causa de toda essa atenção e todas essas roupas chiques que fazem parte do seu jogo.
- Você tem a vida inteira pela frente, meu benzinho. Encare tudo isso como uma experiência de vida que vai ajudar você a se tornar um homem... E agora fique quieto, tenho que pensar numa coisa.
- Em quê?
- Numa mulher que vou encontrar em Silver Spring.
- Eu também tenho que pensar - disse o menino do cais de Portici.
Hawthorne vestiu suas roupas novas com a ajuda de Poole, que deu o nó da gravata, recuou um passo e deu a sua opinião:
- Sabe de uma coisa, você não fica nada mal vestido de civil.
- Pois eu estou me sentindo um palerma engomado - disse Tyrell, girando o pescoço no colarinho da camisa.
- Quando foi a última vez que você pôs uma gravata?
- Na minha formatura, juro que é verdade. - O telefone tocou e Hawthorne, tentando dar um passo para atender, encolheu-se de dor.
- Fique aí quietinho - disse Poole. - Deixe que eu atendo. - Foi até a mesa e pegou o aparelho. - Alô?... Aqui é o ajudante de ordens do Comandante. Um minuto, por favor. - Cobriu o bocal e voltou-se para Tyrell. - É do gabinete do diretor da CIA. Ele quer falar com você.
- Quem sou eu para fazer alguma objeção? - disse Hawthorne, sentando-se na cama, desajeitado, e pegando o telefone. - Aqui fala o Hawthorne.
- Aguarde um momento, por favor. O Diretor vai falar com o senhor.
- Boa tarde, Comandante.
- Boa tarde, sr. Diretor. Eu imagino que o senhor saiba que eu sou um oficial reformado.
- Eu sei muito mais, rapaz, e lamento muito tudo isso.
- Do que é que o senhor está falando?
- Eu conversei com o secretário Palisser. E eu, da mesma maneira que ele, participei da armação do Van Nostrand. Santo Deus, o homem era um gênio.
- Na posição dele não era difícil ser um gênio. Mas ele está morto.
- Ele sabia como conseguir as coisas; se as coisas tivessem acontecido de outra maneira, todos teríamos nos perdoado uns aos outros, em vista do que era considerado uma grande contribuição dele. Ele era um ator de primeira, e eu e meus colegas acreditávamos piamente nele.
- O que foi que o senhor fez por ele?
- Dinheiro, Comandante, mandei transferir mais de oitocentos milhões de dólares para várias contas da Europa.
- E agora?
- Bem, considerando o montante, eu acho que isto vai virar um litígio internacional. Primeiro que tudo, quando chegar o momento, nós vamos ter que revelar às autoridades superiores essas remessas ilegais. Eu vou me demitir, é claro, e todos os sonhos que eu tinha em relação ao meu cargo foram por água abaixo.
- O senhor recebeu algum dinheiro por essas remessas?
- Não, de jeito nenhum!
- Então por que o senhor vai se demitir?
- Porque, independente das minhas boas intenções, o que eu fiz foi ilegal. Eu me aproveitei dos privilégios do meu cargo para beneficiar um indivíduo, ignorando a lei e agindo às escondidas.
- Então o seu único erro foi ter-se deixado enganar; e não foi só o senhor. Na minha opinião, o fato do senhor estar disposto a reconhecer o que fez e o motivo pelo qual o senhor fez isso já são suficientes para que fique livre de culpa.
- Eu fico admirado de ouvir isto de um homem com a sua bagagem. Mas você pode imaginar a pressão que o Presidente vai sofrer? Uma pessoa indicada por ele para uma posição influente e vulnerável como a minha autorizando uma remessa ilegal de oitocentos milhões de dólares? A oposição vai armar um escândalo de abalar o país, que nem no caso Irã-contras.
- Esqueça essa bobagem, diretor - disse Hawthorne, com os olhos arregalados, vidrados, expressando uma mistura de raiva e medo. - Que bagagem é essa que o senhor disse que eu tenho?
- Bem, eu... eu achei que você tinha entendido.
- Amsterdã?
- É. Por que você está tão surpreso?
- O que o senhor sabe sobre Amsterdã? - perguntou Tyrell com a voz rouca.
- Bem, é difícil responder a essa pergunta, Comandante.
- Responda!
- A única coisa que eu posso dizer é que o capitão Stevens não foi o responsável pela morte da sua mulher. Foi uma falha do sistema, não uma falha individual.
- Esta é a declaração mais fria que eu já ouvi depois de "Eu só estava cumprindo ordens".
- Mas essa é a verdade, Hawthorne.
- A verdade de quem? Do senhor, dele, do sistema? Ninguém responde por nada, não é assim?
- Quando eu assumi este cargo, um dos meus grandes sonhos era curar essa doença. E eu estava indo muito bem antes de você e a Bajaratt entrarem em cena.
- Me deixe em paz, seu filho da puta!
- Você está nervoso, Comandante, mas eu poderia dizer a mesma coisa pra você. Deixe eu lhe dizer uma coisa. Eu não gosto de ver americanos como você, que receberam um treinamento de alto nível à custa dos contribuintes, prestando serviços para um governo estrangeiro em troca de dinheiro! Estou sendo claro?
- O que o senhor pensa ou deixa de pensar não me interessa. O senhor e o seu sistema mataram a minha mulher, e o senhor sabe disso. Eu não devo nada a esse bando de filhos da puta!
- Pois então vá cuidar da sua vida. Eu tenho uma dúzia de agentes secretos melhores que você; posso botar um deles no seu lugar e você não vai fazer a mínima falta. Me faça esse favor, vá embora.
- Nem morto! Vários amigos meus morreram, grandes amigos, e uma amiga que sobreviveu pode ficar paralítica! O senhor e esses outros figurões do governo têm feito as coisas da maneira mais inadequada possível. Eu estou indo fundo nesse caso e acho bom vocês me darem cobertura porque eu vou levar vocês até a Menina Sanguinária.
- Você sabe, Comandante, que eu acho isso perfeitamente possível, porque, como eu já disse, você foi bem treinado. Quanto à cobertura, você pode ficar tranquilo porque o seu equipamento vai estar sintonizado com os nossos computadores. Vamos nos ater aos negócios, Comandante. Conforme o seu pedido, que o Palisser me transmitiu, as unidades de comunicação não vão ter nenhum acesso a telefones externos. Sinceramente, eu acho isso um exagero, e o nosso pessoal não vai gostar; eles estão entre os nossos melhores funcionários.
- Que nem o O’Ryan. O senhor contou a eles o que aconteceu?
- Eu estou entendendo a sua preocupação. - O Diretor ficou em silêncio por alguns instantes e continuou: - Talvez eu conte, embora não tenha nenhuma prova concreta de que ele tenha-nos traído.
- E desde quando nós estamos num tribunal, sr. Homem da Inteligência? Ele estava lá e ela estava lá. Ela sobreviveu e ele, não. Será que os nossos princípios não são mais os mesmos?
- Não, eles continuam os mesmos. Não existem coincidências. Mas talvez baste eu explicar que há evidências de que houve infiltração no círculo da Menina Sanguinária. Se eu contar tudo, isso pode abalar o moral dos funcionários, e essas pessoas são todas de alto nível. Vou ter que pensar sobre isso.
- Não pense. Conte tudo sobre o O’Ryan! Do que mais o senhor precisa? Com um litoral desse tamanho, por que será que ele estava a uma distância de poucos quilômetros dela na hora em que foi morto?
- Isto não é conclusivo, Hawthorne...
- A morte da minha mulher também não foi, sr. Diretor. Mas o senhor sabe e eu sei por que foi que ela foi morta! Nós não precisamos pensar, nós sabemos. Se o senhor não aprendeu isto, o senhor não merece esse cargo.
- Eu aprendi isto, sim, rapaz, há muitos anos, mas o lugar onde eu estou agora exige que eu aprenda outras coisas... coisas menos teóricas, mais práticas. Tem um monte de coisas aqui que eu gostaria que mudassem, e eu não posso fazer com que elas mudem se eu for autoritário. Já houve autoritarismo demais aqui. Independente disso tudo, eu e você estamos trabalhando do mesmo lado.
- Não, sr. Diretor. Eu estou trabalhando do meu lado e por um mínimo de sanidade, se isso tranquiliza o senhor. Mas eu não estou trabalhando pelo senhor. Eu repito, não devo nada a vocês e o que vocês me devem ninguém no mundo pode pagar.
Transtornado de fúria, a cabeça latejando, Hawthorne bateu o telefone com tanta força que rachou o gabinete de plástico do aparelho.
Raymond Gillette, o diretor da CIA, debruçou-se sobre a mesa, massageando a testa com os dedos para aliviar a terrível dor de cabeça. Era espantoso, mas a lembrança do Comando Saigon lhe voltara à mente, enchendo-o de raiva e tristeza, e ele não sabia por quê. De repente, tudo ficou claro - era Tyrell Hawthorne... o que ele estava fazendo com o oficial reformado da Marinha. A semelhança com Saigon era pungente e dolorosa.
Na guerra do Vietnã, o avião de um jovem oficial da Força Aérea - um formando da Academia da Aeronáutica - foi bombardeado com toda a tripulação, e o piloto saltou de paraquedas do aparelho em chamas, próximo à fronteira do Camboja, a menos de dez quilômetros das rotas entrecruzadas de Ho Chi Minh. Como o rapaz sobreviveu na selva e nos pântanos enquanto fugia dos vietcongues só Deus sabe, mas ele conseguiu. Seguiu rumo ao sul, atravessando rios e florestas, alimentando-se de frutas silvestres, cascas de árvores e animais pequenos até conseguir sair do território inimigo. E o depoimento que ele apresentou mais tarde ao serviço de inteligência era inacreditável.
Existia um complexo do tamanho de vinte estádios de futebol, construído no interior de uma montanha, onde centenas de caminhões e tanques, carros-pipa de gasolina e veículos blindados desapareciam regularmente durante o dia para só reaparecer à noite, seguindo, então, para o sul. Segundo o jovem oficial, o lugar era também um depósito de munição, pois ele vira caminhões entrarem carregados e saírem vazios.
Visões de Peenemünde, a base espacial da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, enchiam a imaginação do responsável pelo interrogatório, que agora estava diante da sua mesa, como diretor da CIA. Bombardear aquele complexo gigantesco, destruindo-o completamente, seria não só uma enorme vitória estratégica mas também um estímulo psicológico da maior importância para uma máquina militar que estava sendo desgastada pela obstinação de um inimigo que não tinha interesse nem necessidade de encobrir o número de mortos.
Onde seria esse enorme refúgio, capaz de abrigar toda uma divisão militar e todo o seu poder de fogo? Onde?
O jovem oficial não era capaz de indicá-lo com precisão nos mapas aéreos; ele estivera no chão, escondendo-se e lutando pela sobrevivência. No entanto, conhecia as coordenadas do ponto de onde seu voo fora interrompido, e achava que, se saltasse novamente de paraquedas, seria capaz de reconstituir sua rota de fuga. Na reconstituição, ele tinha certeza de que chegaria à serra de onde observara o movimento na montanha fortificada. Não tinha apenas certeza, mas certeza absoluta; só havia uma serra como aquela, "como um sorvete verde de várias camadas" que, no entanto, não eram definidas pelas fotografias aéreas.
- Eu não posso lhe pedir uma coisa destas, Tenente - disse Gillette, na época. - Você perdeu mais de dez quilos e está muito debilitado fisicamente.
- O senhor não só pode como deve - replicou o piloto. - Quanto mais tempo a gente esperar, menos eu vou me lembrar das coisas.
- Mas, meu Deus, é só mais um depósito...
- Não, senhor, é o depósito. Eu nunca vi nada igual, em lugar nenhum, e o senhor também não. É como se a gente abrisse uma das paredes do Grand Canyon e entrasse. Deixe eu ir, Capitão, por favor.
- Eu estou estranhando uma coisa, Tenente. Por que você quer tanto ir? Você é um sujeito racional, com certeza não está atrás de medalhas insignificantes, e essa operação pode ser muito perigosa.
- Eu tenho uma razão muito justa, Capitão. Os meus dois tripulantes saltaram do avião junto comigo; eles aterrissaram num campo, perto um do outro, enquanto eu fui bater numas árvores, a uns quinhentos metros de distância. Eu joguei o meu paraquedas ali no meio do mato e corri o mais rápido que pude até o campo. Quando eu estava quase chegando lá, vi um grupo de soldados que vinha do outro lado; soldados de uniforme, não eram crianças de pijama. Eu me ajoelhei e vi aqueles filhos da puta matarem os meus companheiros com golpes de baioneta! Eles não eram só meus amigos, Capitão, um deles era meu primo. Soldados, Capitão! Soldados não fazem isso com prisioneiros!... O senhor entende, eu tenho que voltar para lá. Agora mesmo. Enquanto essa imagem ainda está bem viva na minha memória.
- Você vai ter toda a proteção que nós podemos oferecer. Vai ficar ligado no equipamento de comunicação mais sofisticado que temos e vai ser monitorado a cada passo do seu percurso. Os helicópteros Cobra vão estar sempre num raio de pelo menos cinco quilômetros, preparados para descer para pegar você a qualquer momento.
- O que mais eu podia querer, Capitão?
Muito mais, rapaz, pois você não entendia muito mais do que eu. O setor de operações secretas não funciona assim. Existe uma outra moral, uma outra ética, um outro credo que diz "cumpra a sua missão, custe o que custar ".
O jovem foi levado para o nordeste junto com um desertor dos vietcongues que já tinha morado na fronteira do Camboja. Os dois saltaram de paraquedas durante a noite na região em que o avião do rapaz havia sido atingido e, juntos, começaram a reconstituir a rota. Gillette, o oficial responsável pela missão, foi para o norte, próximo a Han Minh, e se reuniu à equipe que estava monitorando os dois homens.
- Onde estão os Cobras? - perguntou o oficial do Comando Saigon.
- Não se preocupe, Capitão, eles estão a caminho - foi a resposta de um coronel.
- Mas eles já deviam estar lá. O nosso piloto e o vietcongue estão avançando. Escute só!
- Nós estamos escutando - disse um Major, junto ao rádio. - Fique calmo. Os Cobras estão se aproximando do ponto Zero e nós sabemos exatamente a posição deles.
- Se eles derem o sinal, estão no máximo um quilômetro a oeste do ponto Zero - acrescentou o Coronel.
- Então mande os Cobras! - gritou o capitão de Saigon. - Foi isso que nós mandamos eles fazerem!
- Quando eles derem o sinal - disse o Coronel.
Nesse momento, houve uma súbita explosão de estática, acompanhada do barulho intermitente de tiros. Em seguida, silêncio - um silêncio terrível.
- Pronto! - exclamou o Major. - Eles estão fora. Entre em contato com os bombardeiros e mande eles descarregarem tudo! São essas as coordenadas!
- O que quer dizer isto, "eles estão fora"? - gritou Gillette.
- Obviamente eles foram encontrados e mortos pelas patrulhas do Vietnã do Norte, Capitão. Eles deram a vida por uma operação da maior importância.
- E onde é que estão os Cobras, os helicópteros que iam socorrer os dois?
- Que Cobras? - perguntou o Major, em tom sarcástico. - Você acha que a gente ia estragar a festa pondo helicópteros no ar a poucos quilômetros do ponto Zero? Eles iam ser detectados pelos radares, e essa montanha não é de brincadeira!
- Não foi isso o que nós tínhamos combinado! - urrou o Capitão. - Eu dei a minha palavra ao piloto!
- Foi a sua palavra, não a nossa - disse o Coronel. - Nós estamos tentando ganhar uma guerra que até agora estamos perdendo.
- Seus filhos da puta! Eu prometi ao piloto...
- Você prometeu; nós, não. Aliás, como é o seu nome, Capitão?
- Gillette - respondeu o Capitão, perplexo. - Raymond Gillette.
- Ah, eu já estou até vendo: Lâmina Gillette Corta Importante Rota de Suprimento! Nós também somos importantes no Departamento de Imprensa.
Raymond Gillette, diretor da CIA, ergueu a cabeça e pressionou novamente as têmporas com os dedos. A Lâmina Gillette lhe abrira as portas do sucesso à custa da vida de um jovem piloto, bem como da de seu companheiro vietnamita. Será que agora ele estava fazendo o mesmo? Com Hawthorne? Seria possível que houvesse outro O’Ryan nos altos escalões da CIA?
Tudo era possível, concluiu Raymond Gillette, levantando-se e encaminhando-se para a porta do gabinete. Decidira falar pessoalmente com cada funcionário da unidade de transmissões, olhando-os no fundo dos olhos e usando a experiência de toda a sua vida para detectar algum sinal suspeito. Ele devia isso ao piloto e ao vietnamita, mortos há tantos anos. E devia isso também a Hawthorne, a quem dera sua palavra há apenas alguns minutos. Tinha que se sair melhor desta vez; tinha que examinar uma por uma as pessoas que guardavam em suas mãos a vida de Hawthorne. Abriu a porta e chamou a secretária.
- Helen, eu quero que você dê um aviso ao grupo Menina Sanguinária. Mande todos eles virem me encontrar na sala cinco daqui a vinte minutos.
- Sim, senhor - respondeu uma mulher de meia-idade, de cabelos grisalhos, levantando-se e dando a volta na escrivaninha. - Mas antes disso, eu prometi à sra. Gillette que ia fazer o senhor tomar o seu remédio. - A secretária tirou um comprimido de um frasquinho de plástico, encheu um copo de papel com a água de uma garrafa térmica e entregou ambos ao diretor. - A sra. Gillette faz questão que o senhor só beba água mineral, senhor. É mais pura.
- Às vezes a sra. Gillette me irrita profundamente, Helen - disse o diretor, jogando o comprimido na boca e bebendo o copo d’água.
- É que ela se preocupa com a sua saúde, sr. Gillette. Ela também faz questão, como o senhor sabe muito bem, que o senhor fique sentado por um ou dois minutos para digerir o remédio. Portanto, sente-se.
- Vocês duas estão mancomunadas, Helen, e eu não admito uma coisa destas - disse Gillette sorrindo e sentando-se na poltrona de espaldar alto em frente à mesa da secretária. - Eu detesto essas porcarias; elas fazem eu me sentir como se tivesse tomado três doses de uísque sem o prazer de beber.
Subitamente, sem qualquer sinal de mal-estar, Raymond Gillette teve um espasmo, seu rosto se contorceu e ele pareceu sufocar; levou as mãos ao rosto e caiu no chão, a cabeça virada para a mesa da secretária, a boca aberta, os olhos esbugalhados. Estava morto.
A secretária correu até a porta do gabinete, trancou-a e voltou para junto do cadáver. Afastou-o da mesa e, arrastando-o para dentro da sala do diretor, colocou-o em frente ao sofá, próximo à janela. Voltou para a antessala, fechando a porta da sala do seu chefe, e, lentamente, respirando fundo, pegou o telefone. Ligou para o ramal interno da unidade de comunicações responsável pela Menina Sanguinária.
- Alô? - atendeu uma voz masculina.
- Aqui é a Helen, do gabinete do diretor. Ele me pediu para ligar e avisar que é para vocês começarem a testar o equipamento da sua unidade assim que o comandante Hawthorne entrar em contato.
- Nós sabemos disso; já acertamos tudo há uns quinze minutos.
- Acho que ele ficou preocupado, pensando que vocês iam ficar esperando por ele. Ele vai ficar ocupado a maior parte da tarde, em várias reuniões.
- Tudo bem. Nós estamos prontos para começara qualquer momento.
- Obrigada - disse Scorpio 17, desligando o telefone.
27
Eram 4:35 da tarde e Andrew Jackson Poole, sentado à escrivaninha na suíte do Shenandoah Lodge, estava impressionado diante do equipamento fornecido pela CIA. Ele recebera os dois componentes que havia exigido: uma linha reversa para se comunicar diretamente com Tyrell, sem interferência da CIA, com uma tela que indicava qualquer invasão através de um X amarelo; e uma segunda minitela com um blip móvel que confirmava o funcionamento do transreceptor de Tyrell. O pessoal de Langley estava ofendido, achando que sua integridade estava sendo contestada, mas Tye havia deixado claro para o diretor da CIA que poderia haver outro O’Ryan, mesmo que Gillette não quisesse considerar essa hipótese.
- Você está me ouvindo, Tye? - perguntou Poole, virando a chave do console para a linha que o conectava à frequência de Hawthorne.
- Estou - respondeu Tyrell do carro; sua voz ecoou pelo alto-falante. - Nós estamos sozinhos?
- Totalmente - respondeu o Tenente. - Só nós dois, ninguém de fora.
- Alguma novidade do hospital?
- Nada de bom nem de ruim. Eles só dizem que a Cathy está estável, seja lá o que for isto.
- É melhor do que a outra alternativa, Jackson.
- Cara, como é que você pode ser tão frio?
- Desculpe... Onde é que eu estou nos gráficos?
- Ah, sim, de acordo com a CIA, você está na direção sudoeste, rodovia 270, chegando numa bifurcação que vai dar na 301. A moça que está acompanhando na tela disse que conhece esse lugar. À sua esquerda tem um parque de diversões de última categoria, caindo aos pedaços; a roda-gigante vive enguiçando e ninguém ganha nada no tiro ao alvo porque as alças de mira são fixas.
- Acabei de passar por ele. Acho que estamos bem sintonizados.
O telefone do console começou a tocar.
- Espere aí, Tye, a minha conexão de emergência com Langley está soltando fumaça. Eu falo com você depois.
No carro do Departamento de Estado, Hawthorne olhava para a estrada e o trânsito do final da tarde, mas estava pensando em outra coisa. O que poderia causar uma emergência na sede da CIA? Toda e qualquer emergência deveria vir dele, não de Langley. Estava a uns quarenta e cinco minutos da praia de Chesapeake e da casa de veraneio dos O’Ryan; se houvesse uma emergência, seria lá. Tyrell sentiu no bolso da camisa o isqueiro de plástico, que emitia impulsos elétricos quando ele estava fora do automóvel e alguém queria falar com ele. Poole o havia testado; o aparelho funcionou, mas era fraco, talvez fraco demais. Será que a CIA tinha encontrado o defeito? Aquilo poderia ser uma emergência.
- Meu Deus do céu, que coisa terrível! - Jackson estava de novo na linha, a voz agitada. - Mas não houve nenhuma mudança. Vamos em frente!
- Que coisa terrível é essa?
- O diretor Gillette foi encontrado morto no gabinete dele. Foi o coração; ele tinha problemas cardíacos e estava se tratando.
- Quem foi que disse isso? - perguntou Hawthorne.
- O médico dele, Tye - respondeu Poole. - Ele disse para os médicos da CIA que era inevitável, mas que ele não esperava que fosse tão cedo.
- Escute aqui, Tenente, e preste atenção. Eu quero que seja feita uma autópsia independente. Imediatamente. Uma autópsia concentrada nas substâncias encontradas na traqueia, nos brônquios e no estômago. Isso tem que ser feito no máximo em duas horas. Providencie!
- Do que é que você está falando...? - gaguejou Poole. - Eu acabei de contar para você o que o médico disse.
- E eu vou contar para você o que o Gillette me disse há menos de três horas! "Não existem coincidências." E a morte do diretor da CIA, que, em última instância, é o responsável por esta operação, é uma coincidência grande demais! Mande eles procurarem algum sinal de dedaleira! É uma coisa tão antiga e tão eficaz quanto a escopolamina. A pessoa não precisa ser cardíaca para morrer do coração, e mesmo com uma disfunção leve, basta uma dose pequena para matar. E a substância desaparece do sangue em pouco tempo.
- Como é que você sabe tudo isso...?
- Puta que pariu, sei porque sei! Agora ande, e até a hora em que você conseguir uma análise externa, um laboratório que confirme que a morte foi natural, as nossas comunicações estão suspensas. Quando você conseguir o laudo, me dê cinco sinais pelo seu transmissor. Antes disso eu não atendo mais, não me importa se demorar a noite inteira!
- Tye, você não está entendendo. Ele foi encontrado há duas horas e meia. O corpo foi levado para a emergência do Walter Reed...
- O hospital do governo! - explodiu Hawthorne. - Vou desligar esta porra.
- Isto é bobagem - disse Poole. - Eu conheço esse equipamento e a CIA sabe que eu conheço. Não existe a menor hipótese de alguém entrar na linha. Ninguém vai escutar a nossa conversa.
- Eu conheço dezenas de histórias como esta, e estou dizendo que em Washington a gente nunca pode ter certeza de nada.
- Está bem, vamos admitir que você esteja certo, o que é uma maluquice, porque isto é impossível, e que em Langley existam outros traidores como O’Ryan, que estão dispostos a perseguir e matar você. A gente pode eliminar os gráficos, e não as comunicações.
- Eu vou tirar o meu cinto, onde este aparelhinho está escondido, e vou jogar pela janela - disse Tyrell, decidido.
- Será que eu posso sugerir para você pegar o próximo retorno, voltar para o parque de diversões e deixar ele por lá, perto da casa mal-assombrada, ou, quem sabe, da roda-gigante?
- Poole, você realmente tem futuro. Eu vou voltar lá. Não vejo a hora de alguém me dizer que o túnel do amor foi invadido por um grupo de agentes secretos.
- Ou, quem sabe, com um pouco de sorte, que eles ficaram enguiçados no alto da roda-gigante.
A mansão, com sua fachada de colunas, era uma réplica gigantesca da casa-grande de uma fazenda colonial. Bajaratt subiu os degraus que levavam a uma porta dupla, maciça, com baixos-relevos que retratavam as viagens de Maomé, depois que ele recebeu os ensinamentos do Corão através dos profetas da montanha. "Bobagem!", sussurrou ela para si mesma. Não existia nenhuma montanha sagrada, nenhum Maomé, e os profetas não passavam de pastores ignorantes! Também não havia nenhum Cristo. Ele era um agitador judeu radical inventado por essênios semianalfabetos que não sabiam cultivar a terra. Não havia nenhum Deus além da voz interior do indivíduo, os comandos internos que o levavam a fazer o que fosse preciso para lutar por justiça - por todos os oprimidos. O que mais havia? Baj cuspiu no pórtico de pedra e, recompondo-se, ergueu a mão com elegância e tocou a campainha.
Em instantes, surgiu à porta um árabe de cafetã, panos e mais panos que deslizavam no chão de madeira.
- A senhora está sendo esperada, e está atrasada.
- Se eu me atrasasse mais ainda, você não ia me deixar entrar?
- Se eu pudesse...
- Então eu vou embora. Agora. Como você se atreve?
Uma voz feminina veio de dentro da casa:
- Por favor, deixe ela entrar, Ahmet Ashad, e deixe a sua arma de lado, isto é muito indelicado.
- A minha arma está escondida, senhora - respondeu o empregado.
- Mais indelicado ainda. Deixe a nossa visitante entrar.
O recinto era uma sala de estar perfeitamente normal para uma casa daquele bairro quanto a janelas, cortinas e ao papel de paredes, mas o que havia de normal acabava aí. Não havia cadeiras, apenas almofadões espalhados pelo chão, cada um de frente para uma mesinha. Reclinada sobre uma dessas colinas de cetim escarlate, estava uma mulher morena, de beleza extraordinária e idade indeterminada; seu rosto era uma máscara de feições clássicas, suaves, porem, sem marcas de rigidez e de artificialismo. Quando ela sorria, seus olhos se iluminavam como opalas, transmitindo interesse e genuína curiosidade.
- Sente-se, Amaya Aquirre - disse ela numa voz macia, melíflua, que combinava com a seda verde-esmeralda das suas roupas. - Como você vê, eu sei seu nome e mais algumas coisas sobre você. E, como pode ver também, eu adoto o princípio dos árabes de que todo mundo deve ficar no mesmo nível; para nós, é o chão, como é a areia para os beduínos. É um costume simbólico, para que ninguém se sinta numa posição superior ou inferior à dos outros. Para mim, essa é uma das características mais atraentes dos árabes; tratamos assim até mesmo os nossos inferiores.
- Você está dizendo que eu sou inferior?
- Não, absolutamente, mas você não é árabe.
- Mas eu já lutei pela sua causa, o meu marido morreu pela sua causa!
- Numa expedição tola, que não serviu de nada, nem para os judeus, nem para os árabes.
- O Baaka permitiu, e nos abençoou!
- O Baaka permitiu porque o seu marido era um herói popular, e a morte dele, que, diga-se de passagem, eles já tinham previsto, ia fazer dele um símbolo, um grito de guerra. Ashkelon sempre! Você conhece essa expressão. Aquilo foi um erro, a não ser pelo apelo emocional.
- O que é que você está me dizendo? A minha vida, o meu marido, a gente não representava nada? - Baj levantou-se bruscamente da almofada; Ahmet assomou à porta da sala. - Eu estou disposta a morrer pela causa mais importante da História! Morte aos canalhas, aos detentores da autoridade!
- É sobre isso que nós temos que conversar, Amaya... Você pode sair, Ahmet, ela não está armada... A sua disposição para morrer não é uma coisa tão importante assim, querida. No mundo inteiro existem homens e mulheres dispostos a morrer por aquilo em que eles acreditam, e ninguém nunca ouviu falar da grande maioria deles, seja lá o que eles tenham feito... Não, eu quero mais do que isso para você, para nós.
- O que você quer de mim? - perguntou Bajaratt, sentando-se lentamente de volta na almofada, os olhos fixos nos da linda mulher à sua frente.
- Até agora você teve um desempenho brilhante, com alguma assistência, é claro, mas basicamente por causa do seu talento extraordinário. Numa questão de poucos dias você se tornou uma grande força, uma grande influência, uma figura dos bastidores, procurada por homens poderosos que acreditam em você. Nenhum de nós poderia ter feito isso por você; é o resultado da ideia, da trama que você criou, que foi absolutamente brilhante. O rapaz, um barão se preparando para assumir os negócios do pai, uma família em Ravello com milhões para investir. Até aquela menina, a atriz... uma atração paralela, tão envolvente. Você realmente merece a reputação que tem.
- Eu faço o que tenho que fazer, e deixo que os outros julguem. Mas, para ser franca, essas opiniões não significam nada para mim. E eu volto a perguntar, o que você quer de mim? O Conselho do Baaka me disse para procurar você quando chegassem os últimos dias da minha missão... possivelmente os últimos dias da minha vida. E é por isto que eu estou aqui.
- Você sabe que nós... eu não tenho nenhuma autoridade sobre você. Só os Conselhos Superiores têm.
- Eu sei, eu entendo. Mas devo respeitar você como uma verdadeira amiga, uma aliada da nossa causa, e ouvir o que tem a dizer... Eu estou ouvindo.
- Amiga, sim, mas aliada, só até certo ponto, querida. A gente não faz parte dos Scorpios do Van Nostrand, aquele grupo de oportunistas que só têm como objetivo servir aos Provedores em troca de dinheiro, que só pensam em riqueza e poder. Nós já temos o suficiente, tanto de riqueza quanto de poder.
- E quem são vocês? Vocês são muito bem informados.
- Ser bem informado faz parte do nosso trabalho.
- Mas quem são vocês?
- Os alemães tinham um termo muito apropriado durante a Segunda Guerra Mundial. Der Nachrichtendienst. Um grupo de inteligência que nem o Alto Comando do Terceiro Reich sabia que existia. Ele era composto de um número pequeno de pessoas, pessoas de uma certa idade, quase todos prussianos, todos aristocratas, que, juntos, reuniam quase oitocentos anos de especialização e experiência. Eram alemães até o fundo da alma, mas operavam de uma forma independente, acima das paixões da guerra, buscando só o que fosse melhor para a pátria; eles percebiam as desvantagens de ter uma nação conduzida por Hitler e seus capangas. Da mesma maneira que nós reconhecemos as desvantagens de haver terroristas assassinando mulheres e crianças em Israel. Isso é contraproducente.
- Eu acho que chega desta conversa! - disse Baj, pondo-se de pé. - Você e os seus elitistas já pensaram que existe um povo que foi expulso da sua própria terra? Vocês já estiveram em algum campo de refugiados? Já viram os israelenses invadindo e destruindo casas sem mais nem menos? Já esqueceram os banhos de sangue de Shatila e Sabra?
- Nós soubemos que o seu encontro com o Presidente está marcado para amanhã às oito horas da noite - disse a mulher num tom suave, reclinando-se ainda mais nas almofadas de cetim.
- Então é amanhã? Às oito?
- Primeiro foi marcado para as três da tarde, mas considerando o objetivo da visita da contessa à América, que envolve a questão dos investimentos estrangeiros, um assunto delicado para uma nação tão orgulhosa, foi sugerido à Casa Branca que um horário mais adiantado, à noite, talvez fosse mais apropriado. Haveria menos chance da imprensa saber que o Presidente estava dando tratamento preferencial a uma aristocrata estrangeira ambiciosa, interessada em tirar partido da situação econômica do país.
- E qual foi a reação...? - perguntou Bajaratt, perplexa.
- O chefe de gabinete concordou na mesma hora. Ele detesta fazer favores a senadores e congressistas, mas o Presidente, pelo lado dele, não quer criar problemas políticos. Além disto, se a visita for às oito, você vai ter muito mais chance de escapar, de escapar e voltar para a luta. É o horário da mudança de turno da segurança da Casa Branca, e os guardas que estão saindo passam para os que estão entrando os registros e as instruções; isto quer dizer que nesse horário é mais fácil arranjar uma brecha. Nós vamos mandar três homens lá para ajudar você, um deles de uniforme de motorista, que vai acompanhar você sob o pretexto de fugir da imprensa, pela saída dos fundos, onde vai ter uma outra limusine esperando. Nossa. Eles vão usar um nome para se identificar. Ashkelon. Espero que você esteja de acordo.
- Eu não estou entendendo - disse Bajaratt. - Por que você faria isso? Pelo que eu entendi, você não aprova...
- As suas outras intenções - interrompeu a mulher árabe. - Mas, em troca da sua vida, tem uma coisa que nós temos que pedir a você, exigir, para ser mais exato. Veja bem, não temos nenhuma objeção concreta ao assassinato do presidente dos Estados Unidos; ele é guiado pelas pesquisas de opinião, e não por princípios, e, portanto, não faz muita falta. O povo percebe isso; ele não desperta nenhuma paixão. Bem, é claro que vai ser um choque, e vai haver investigações infindáveis, mas que não vão dar em nada. O vice-presidente é muito popular. Quanto à França e à Inglaterra, nós achamos meio melodramático, mas somos até capazes de aceitar os assassinatos, se você faz questão. São governos sofisticados, governos europeus que não transformam seus líderes políticos em ídolos. Eles encaram a realidade, por mais dura que ela seja, e negociam. Para ser sincera, com o caos de um vazio de poder na América, podemos até aumentar a nossa influência aqui, mas o que interessa é que vai ser um recado para os sucessores do Presidente e os respectivos gabinetes. Nós podemos não ter o voto nem o dinheiro dos judeus, mas temos uma outra coisa, uma coisa digna do célebre Mossad. Nós não somos um mito ou uma fantasia de uma minoria enlouquecida. Somos reais. Como você disse agora há pouco, existem homens e mulheres dispostos a morrer para cortar a cabeça de uma cobra. É uma coisa visceral, querida, e como você provou com a sua estratégia brilhante, eles nunca vão saber de onde a gente vem e quando a gente vai aparecer, e nos bastidores do poder eles sempre vão pensar duas vezes antes de beijar os pés dos israelenses. Resumindo, a América também vai se sofisticar.
- O que vocês querem me pedir, exigir de mim, em troca da minha vida, que, aliás, não vale muita coisa?
- Não matem o Judeu. Cancele a operação em Jerusalém e Tel Aviv.
- Como é que você tem coragem de dizer isto? Vai ser o nosso ato final, a vingança de Ashkelon!
- E a morte de milhares e milhares de pessoas do nosso povo, Amaya. Israel age de uma forma unilateral, individualista. Eles não querem nem saber o que acontece fora das fronteiras, a não ser que seja alguma ameaça para eles; e se algum outro país pequeno como Israel tivesse passado pelo holocausto da Alemanha, iria agir da mesma forma. Eu disse para você, nós somos frios e objetivos. E eu estou lhe dizendo, se vocês matarem o líder dos judeus, centenas de aviões israelenses vão passar semanas sobrevoando e bombardeando os nossos campos e os nossos povoados, dia e noite, até destruírem tudo, reduzirem tudo a poeira e carniça queimada. Pense nos acontecimentos recentes: os judeus libertaram mil e duzentos prisioneiros em troca de seis soldados israelenses, depois exilaram mais de quatrocentos palestinos por causa da morte de um soldado. O líder deles deve valer uns dez mil soldados, porque ele é mais do que um homem, é o símbolo vivo da nação.
- Você está me pedindo um preço alto demais - disse Bajaratt, pouco acima de um sussurro. - Um preço que não estou preparada para pagar. Esperei a minha vida inteira por esse momento, esse momento maravilhoso que vai dar algum sentido à minha vida.
- Minha menina... - começou a mulher.
- Não! Eu não sou sua menina, nem sua nem de ninguém. - interrompeu Bajaratt, a voz distante, gélida. - Eu nunca fui menina. Muerte a toda autoridad!
- Eu não entendo você...
- Você não tem nada que me entender. Você mesma disse que não tem autoridade sobre mim.
- E não tenho mesmo. Eu só queria que você fosse mais razoável, para o seu próprio bem.
- Razoável? - sussurrou Bajaratt. - E existe alguma coisa razoável na vida de seu povo, na vida de meu povo? Os seus pelo menos vivem em acampamentos, imundos, é verdade, mas eles têm um lugar para viver; os meus são caçados que nem animais nas montanhas, executados, massacrados... decapitados. Muerte a toda autoridad! Em qualquer lugar que eles estejam, eles têm que morrer.
- Querida, por favor - disse a mulher de pele morena, com a expressão alarmada diante daquela figura hipnótica. - Por favor, eu não sou sua inimiga, Amaya.
- Agora eu estou entendendo - disse Bajaratt. - Você está querendo me impedir de ir até o fim, não é? O seu empregado está armado e você pode mandar ele me matar a qualquer momento.
- E provocar a cólera e a vingança do Baaka? Você é a filha predileta dele, a mulher do herói de Ashkelon, uma mulher tão respeitada que eles ouvem os seus conselhos e abençoam você. Pelo que eu sei, o Baaka mandou alguém acompanhar você até aqui.
- Nunca! Eu faço as coisas sozinha, sem a interferência de ninguém!
- Tenho certeza de que é isso que você pensa, mas eu não tenho nenhuma garantia, portanto nada de mal vai lhe acontecer nesta casa. Por favor, você está muito exaltada, e eu vou repetir o que disse. Não sou sua inimiga. Estou aqui para ajudar você.
- Me dizendo que quer que eu cancele a operação em Jerusalém? Como é que você pode dizer isso?
- Pelas razões que eu acabei de apresentar... entre elas a matança de um milhão de palestinos, talvez. Se for assim, a causa dos palestinos vai deixar de existir, porque o coração do povo vai ser arrancado do peito.
- Já tiraram as nossas terras, as nossas crianças, o nosso futuro, por que não o nosso coração?
- Palavras, Amaya, palavras tolas...
- A nossa alma ninguém vai conseguir tirar!
- Palavras mais tolas ainda. Uma alma sem corpo não consegue lutar. Para lutar, as pessoas têm que estar vivas. De todas as mulheres, você é a que mais devia saber disso. Você é a estrategista suprema.
- E você? Quem é você para me ensinar alguma coisa, morando numa casa destas? - Bajaratt fez um gesto em torno de si, chamando atenção para a opulência do ambiente.
- Ah, isso - disse a linda mulher, com uma risada macia. - A imagem da riqueza e da boa vida, uma combinação que denota poder e influência, pois neste mundo materialista uma coisa é consequência da outra. Todos nós somos exibicionistas. A imagem é sempre o mais importante, não é? Eu não preciso lhe dizer isto, você é uma imagiste extraordinaire... Você não é muito diferente, Amaya. Só que você age de uma forma diferente, age de dentro para fora. Enquanto isso, eu vou abrindo o meu caminho para o interior, e quando chega a hora, faço o casulo explodir, usando a munição que estiver à mão... E essa munição é você, minha menina. E não me diga que você não é a minha menina nesta causa, porque agora você é minha filha.
- Eu não sou mais filha de ninguém! Eu nasci da morte, presenciando a morte de frente!
- Você é minha. Por pior que seja o que você viu, o que você presenciou, isso não é nada, comparado ao que eu passei. Você falou de Shatila e Sabra, mas você não estava lá. Eu estava! Você diz que quer vingança, minha menina? Pois eu também quero, mais do que você pode imaginar.
- Então por que quer me impedir de matar o Judeu?
- Porque você vai desencadear milhares de ataques aéreos contra o meu povo. O meu, não o seu.
- Eu faço parte do seu povo, e você sabe disso! Eu já provei. Já dei a vida do meu marido por vocês e estou disposta a dar a minha.
- Não é muito difícil se desfazer de uma coisa que a gente despreza, Amaya.
- E se eu me negar a atender ao seu pedido, a essa sua exigência inoportuna?
- Você não vai chegar na Casa Branca, muito menos no Salão Oval.
- Isto é ridículo! O meu acesso à Casa Branca já está garantido! O homem que está providenciando a minha visita está interessado nos milhões do barão de Ravello, e ele não é nenhum bobo.
- E esse homem, o senador Nesbitt, do estado de Michigan, o que você sabe sobre ele?
- Então você sabe que é ele?
A mulher deu de ombros.
- A hora do encontro mudou, Amaya.
- Ah, sim, claro... Bem, ele parece ser um político americano típico, eu fiz uma boa pesquisa. Ele quer se reeleger num estado onde o desemprego está muito alto, e ele tem que convencer os eleitores de que merece o cargo. Existe maneira melhor de fazer isto do que trazer centenas de milhões de dólares de investimentos?
- Está certo, você fez a sua pesquisa, querida. Mas e ele, pessoalmente? Você diria que ele é um homem bom, honesto?
- Eu não sei e não quero saber. Soube que ele é advogado ou juiz, se é que isso quer dizer alguma coisa.
- Não. Isso não quer dizer quase nada; existem juízes e juízes... Você já pensou que ele pode ser um Scorpio? Que está ajudando você porque alguém mandou?
- Não, isso nunca me ocorreu...
- A gente sabe que existe um Scorpio no Senado.
- Ele teria me dito - defendeu-se Bajaratt. - Por que não? O Van Nostrand abriu o jogo comigo; ele até me deu os telefones para eu falar com os Scorpios.
- Transmissões via satélite, impossíveis de rastrear. Nós sabemos de tudo.
- Eu acho difícil de acreditar...
- Levamos anos, mas finalmente conseguimos encontrar e comprar o nosso próprio Scorpio. É uma mulher e você conheceu ela na Flórida. A dona da festa de Palm Beach. A casa dela é muito bonita, não é? A Sylvia e o marido nunca iam poder comprar aquela casa se alguém não desse uma boa ajuda. O único talento do marido dela é gastar dinheiro, ele acabou com uma herança de mais de setenta milhões de dólares em menos de trinta anos. Ela é a representante dos Scorpios na alta sociedade, descoberta pelo Van Nostrand. Muito útil. Não foi difícil, nós localizamos ela através do Van Nostrand, oferecemos mais que os Provedores e ganhamos uma aliada.
- Foi ela quem me apresentou ao senador Nesbitt... os dois são Scorpios!
- Ela é; o Senador, absolutamente não. Fui eu que tive a ideia de mandar ele para Palm Beach, por motivos políticos que ele considera perfeitamente legítimos. Ele não tem a mais vaga ideia de quem você realmente é e por que está aqui. Ele só conhece a condessa Cabrini, que tem um irmão milionário em Ravello.
- Então você está confirmando o que eu disse. A única coisa que você pode fazer para me impedir é me matar, e você mesma já mostrou que sabe muito bem qual seria a reação do Baaka. Então eu acho que a nossa conversa pode acabar por aqui. Eu já cumpri a minha obrigação com o Conselho, já escutei o que você tinha para me dizer.
- Escute só mais um pouquinho, Amaya. Não vai lhe fazer mal nenhum e talvez até seja instrutivo. - A árabe levantou-se lentamente, com a graça de um felino, deixando Bajaratt pasma com o seu tamanho. Ela era baixa, não passava de um metro e cinquenta, uma boneca elegante, exibindo, porém, uma enorme autoridade. - Nós sabíamos que você estava trabalhando com os Scorpios, a nossa aliada em Palm Beach tinha sido informada pela imigração de Fort Lauderdale. E como soubemos que estava chegando a hora de você ir à Casa Branca, eu quis ter certeza de que você viria aqui antes.
- Você sabia que eu vinha - disse Bajaratt. - Este encontro já estava programado há semanas lá no Baaka; as informações pertinentes estavam codificadas em árabe. Endereço, data e hora.
- Eu tenho toda confiança em você, mas eu não conhecia você; pode compreender a minha preocupação. Se você não viesse hoje à noite, alguém iria buscar a sra. Balzini no Carillon amanhã bem cedinho.
- Balzini... Carillon? Você sabia disso tudo?
- É claro que não foi pelos Scorpios - respondeu a mulher, cruzando a sala e se dirigindo a um interfone dourado - porque eles também não sabiam - continuou ela, virando-se para Bajaratt. - A nossa amiga de Palm Beach me ligou e disse que até ela não estava conseguindo falar com seus superiores pelos telefones dos Scorpios. Ela acabou resolvendo parar de insistir, com medo de se expor demais.
- Houve alguns problemas - disse Baj, sem maiores comentários.
- É, parece que sim... Mas nós não precisamos dos Scorpios, como você vai ver. - A mulher pequena e delicada pegou o interfone sem olhar e apertou uma tecla prateada. - Agora, Ahmet - disse ela, ainda com os olhos em Bajaratt. - O que você vai ver, minha querida Amaya, é um homem que tem duas personalidades distintas, duas identidades, até, pode-se dizer. O que você já conhece é tão verdadeiro quanto o que vai ver agora. O primeiro é um homem público dedicado, honesto, bom. O outro é alguém que teve que enfrentar a dor de uma vida infeliz, apesar de toda a aparência de poder... Infeliz é pouco; insuportável.
Atônita, Bajaratt viu um homem que ela mal conseguiu reconhecer descendo as escadas largas, acompanhado pelo empregado Ahmet e uma linda mulher loura vestida com um roupão transparente que revelava as formas do seu corpo, acentuando o volume dos seios e o movimento sinuoso dos quadris. O homem era Nesbitt! Cada acompanhante segurava o senador por um braço, ajudando-o a se equilibrar nos degraus. O rosto dele estava pálido, de uma palidez quase mortal, o olhos pareciam duas bolas de cerâmica desprovidas de movimento e sua expressão estava imobilizada, como que em transe. Estava com um roupão de banho azul e com os pés descalços.
- Ele tomou a injeção dele - disse a anfitriã de Bajaratt. - Não vai reconhecer você.
- Ele está drogado?
- Ele está sob efeito de remédios prescritos por um excelente médico. Ele é duplo.
- Duplo?
- Dupla personalidade, Amaya. Como o personagem do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, mas sem o lado mau, só com desejos insatisfeitos... Logo depois que ele se casou, há mais de quarenta anos, aconteceu uma coisa trágica. A mulher dele foi estuprada e isso fez com que ela ficasse prejudicada física e psicologicamente; ou seja, ela ficou frígida para o resto da vida. O ato sexual era repugnante para ela, só de pensar nisso ela entrava em histeria, e tinha uma boa razão para isso. O estuprador era um psicopata, um assaltante que invadiu o apartamento deles, amarrou o marido dela e obrigou-o a presenciar o estupro. Desse dia em diante, ela não pôde mais cumprir as obrigações conjugais. Mas ele era um marido devotado e, pior ainda, um homem religioso; não procurou nenhuma forma de liberar a sexualidade. E quando ela morreu, há uns três anos, esse peso o destruiu, ou melhor, destruiu uma parte dele.
- E como você o encontrou?
- Existem cem senadores, e nós sabemos que um deles é um Scorpio. Investigamos todos eles, por ordem alfabética, todos os aspectos da vida deles... Infelizmente, nunca conseguimos descobrir o Scorpio, mas descobrimos um homem profundamente perturbado, cujas faltas, frequentes e misteriosas, eram encobertas pela única pessoa amiga que ele tinha, a empregada, uma mulher de uns setenta anos, que trabalhava para ele há vinte e oito anos.
Nesbitt e os dois guardiães chegaram ao pé da escada e caminharam até a sala de estar.
- Ele não está vendo nada! - sussurrou Baj.
- Não - concordou a anfitriã. - Mais ou menos daqui a uma hora ele vai voltar a si, mas não vai se lembrar muito bem dos acontecimentos desta noite. Ele só vai perceber que está satisfeito, aquela sensação interior que faz a gente se sentir em paz.
- Ele faz isso com muita frequência?
- Uma ou duas vezes por mês, normalmente no final da tarde. No início, ele começava a cantarolar uma música estranha, uma música do passado dele. Depois começava a andar como um sonâmbulo e trocava de roupa; ele comprou um guarda-roupa completamente diferente, depois que a mulher morreu. Do jeito que se vestia para sair, parecia menos um senador poderoso do que um homem rico e devasso saindo pela noite. Casaco de camurça ou de couro, uma peruca ou uma boina, sempre de óculos escuros, mas nunca levava nenhum documento. Foi uma época terrível para a empregada. Hoje em dia, quando acontece isso, ela liga para cá e alguém vai lá buscá-lo.
- Ela colabora com vocês?
- Ela não tem outro jeito. É muito bem paga, assim como o outro empregado, que é motorista e guarda-costas ao mesmo tempo.
- Então vocês controlam o senador.
- Nós somos grandes amigos. Quando ele precisa de nós, estamos lá, e em algumas ocasiões, como agora, nós é que precisamos dele, precisamos do poder do gabinete dele.
- Entendo - disse Bajaratt, com frieza.
- Claro, o ideal seria descobrir quem é o Scorpio do Senado, pois já que os Provedores controlam ele, nós também podemos controlar. Mas isso é só uma questão de tempo, nós vamos acabar descobrindo. A sua própria ação, Amaya, vai nos ajudar, porque todos os membros do Congresso vão ser investigados, e na reação de cada um, vão aparecer os pontos fracos que atraíram o Van Nostrand.
- Isso é tão importante assim para você?
- Não se iluda, minha querida Amaya, é de uma importância vital. Eu repito o que já disse antes, nós temos muita simpatia pelo Baaka, e temos ligações próximas com eles, mas isso não se estende aos mercenários dos Scorpios. Eles são uma invenção do Van Nostrand e daquele louco lá do Caribe, são recrutados através de chantagens e mantidos na coleira por dinheiro, um dinheiro, aliás, que não é nada diante do que os Provedores ganham à custa deles. E esses Provedores, na verdade, sempre foram o padrone e o Van Nostrand, ninguém mais. Os Scorpios não têm nenhuma causa, a não ser o medo de serem descobertos e, claro, o dinheiro que eles recebem. Essas pessoas não têm nenhum ideal além daquela vidinha mesquinha, movidos pela ganância e pela inquietação. Eles têm que ser destruídos, têm que perder o poder... ou então vir trabalhar conosco.
- Eu gostaria de lembrar - disse Bajaratt - que os Scorpios me serviram muito bem, e dessa maneira serviram ao Baaka também.
- Por ordem do todo-poderoso Van Nostrand. Ele pode cortar o pagamento deles com um simples telefonema, isso sem falar nos crimes que eles cometeram no passado e continuam cometendo, que o Van Nostrand pode denunciar às autoridades. Você acha que eles estão preocupados conosco, com as coisas que são tão importantes para nós? Se você acha, então não é a mulher que eu pensava.
- O Van Nostrand se aposentou. Ele está em algum lugar da Europa, ou morreu. Ele não é mais o Scorpio Um.
- ... O problema de Palm Beach com os telefones - disse a árabe, a voz quase inaudível. - Esta notícia é surpreendente... Você tem certeza?
- Se ele está vivo ou morto eu não sei. O outro sobreviveu, um ex-oficial da inteligência chamado Hawthorne, que eu achei que estava preso; mas ele não está. Mas o Nils Van Nostrand foi embora; ele me disse que ia desaparecer.
- É surpreendente, e muito perturbador, também. Com o Van Nostrand lá, a gente podia monitorar os movimentos dele; nós tínhamos pessoas na casa dele, na portaria, informantes leais... Quem é o seu contato agora? Você tem que me contar!
- Eu não sei...
- A Casa Branca, Amaya!
- Eu não estou mentindo. Você disse que tem os números dos telefones, não é? Então ligue você mesma. Com toda a certeza a pessoa que atender não vai se identificar.
- Você tem razão, claro...
- Eu posso dizer que o Scorpio com quem falei da última vez é um homem privilegiado, que recebe até as informações mais secretas. Ele sabia de detalhes sobre o andamento da operação que o governo montou para me encontrar; detalhes precisos. Ele disse que pertencia ao círculo mais fechado da operação.
- Ao círculo mais fechado...? - A bela palestina franziu a testa, produzindo algumas rugas no seu rosto moreno de feições clássicas. - O círculo mais fechado... - repetiu ela, caminhando pensativa pela sala enorme, os dedos pequenos, de unhas pintadas, segurando o queixo delicado. - Se for o senador que nós estamos procurando, só existe um comitê que poderia dar essa informação confidencial. O serviço de inteligência do Senado. Claro, é tão óbvio, tão simples e ao mesmo tempo tão brilhante! Desde os escândalos de Watergate e Irã-contras, todas as agências de Washington fazem relatórios detalhados das operações secretas para o serviço de inteligência do Senado. Eles não podem deixar de fazer isso; ninguém quer se arriscar a ser acusado de alguma atividade ilegal diante de todo o Congresso... Está vendo, minha querida Amaya, você já nos deu uma ajuda imensa.
- E mais, ele é um homem capaz de matar, pelo menos foi o que ele me disse. Disse que matou um homem chamado Stevens, o chefe da inteligência naval, porque esse Stevens estava prestes a me descobrir. Devo isso a ele.
- Você não deve nada a ele! Ele estava obedecendo ordens, só isto... Se ele disse a verdade ou mentiu para ganhar a sua confiança não interessa. Só existe um homem no Senado que seria capaz de falar de uma forma tão crua, tão arrogante, nós estudamos todos eles... É o Seebank, o intolerável, o destemperado general Seebank. Obrigada, Baj.
- Se for ele, devo dizer que eu fiz um teste para ver se ele estava realmente comprometido comigo. Como você deve saber, em certas situações militares em que se tem que eliminar um obstáculo, ou até mesmo um posto de comando, escolhe-se um homem para entrar num determinado lugar, e ele sabe que não vai sair vivo. A arma dele é o sapato.
- A bota de Alá - disse a palestina. - Os explosivos ficam embutidos na sola e no salto, e explodem quando a pessoa dá uma topada num objeto sólido. A pessoa que está calçada morre e mata todo mundo em volta.
- É, e eu ainda dei o meu plano de ação para ele. - Baj curvou a cabeça, concordando. - Se ele me mandar exatamente o que eu pedi, vou saber que posso confiar nele. Caso contrário, vou cortar toda a comunicação. Se for de confiança, eu vou usar ele... e você vai ter o seu Scorpio.
- A sua habilidade não tem limite, Amaya?
- Muerte a toda autoridad, é só isso que você precisa saber.
28
O senador Paul Seebank caminhava por uma estrada nos arredores de Rockville, Maryland; anoitecia, e o céu estava coberto de nuvens. Nervoso, a todo momento ele acendia e apagava a lanterna que levava na mão. Os cabelos grisalhos, de corte escovinha, estavam cobertos por um boné e o rosto bem delineado, escondido pela lapela levantada de uma capa de chuva. Na realidade, o esguio e forte ex-general de brigada Seebank, agora o esguio, forte e arrogante senador Seebank, estava em pânico, a ponto de perder o equilíbrio. Não conseguia controlar o tremor das mãos nem as contrações crescentes que repuxavam o canto direito da sua boca em espasmos curtos e abruptos.
Tinha que manter a mente concentrada; não podia perder o controle. Mas, ao mesmo tempo, não conseguia conter o pavor por ter-se tornado o Scorpio Um.
Essa loucura começara oito anos antes, naquela mesma estrada - que levava às ruínas de um celeiro há muito desativado nos campos há muito abandonados de uma fazenda há muito esquecida, agora apenas uma extensão de terras inutilizadas e empobrecidas, onde o mato tomara o lugar das plantações.
Tudo havia começado com um telefonema obtuso e assustador na linha privativa do seu gabinete, a linha sacrossanta de um senador recém-eleito, que só tocava na sua mesa, privilégio da família e dos amigos mais íntimos. A pessoa que ligou, porém, não era um membro da família e muito menos um amigo; era um desconhecido que se apresentou como Netuno.
- Nós acompanhamos com muito interesse a sua campanha para o Senado, General.
- Quem é você e quem lhe deu o número deste telefone?
- Isso é irrelevante, os nossos negócios não são. Eu sugiro que marquemos um encontro para a data mais próxima possível, pois os meus superiores estão ansiosos por esse contato.
- Pois eu sugiro que você vá plantar batatas!
- Nesse caso, devo fazer uma outra sugestão. Examine a base, a essência da sua campanha. O heroico prisioneiro de guerra no Vietnã, que por causa de sua liderança e coragem conseguiu manter os seus homens, apesar das condições deploráveis. Nós temos amigos em Saigon, Senador. Será que eu preciso dizer mais alguma coisa?
- Que diabo...?
- Existe um celeiro abandonado numa estrada perto da cidade de Rockville...
Puta que o pariu! Eles sabiam de alguma coisa.
Seebank fora ao tal celeiro na tal estrada oito anos antes, da mesma maneira que estava indo agora, devido a outro telefonema de outro desconhecido. Mas oito anos antes, sob a luz fraca de uma lanterna, diante da figura obscura e elegante de Netuno, ele lera as declarações dos comandantes dos cinco campos de prisioneiros onde estivera com seus homens.
"O coronel Seebank era muito cooperativo e frequentemente jantava conosco..."
"O Coronel descrevia os procedimentos de fuga que os outros oficiais criavam..."
"Várias vezes nós fingimos que estávamos submetendo o Coronel a violência física e ele gritava para que os companheiros ouvissem..."
"Usávamos um ácido para descolorir a pele dele - geralmente enquanto ele estava bêbado e feliz - e mandávamos ele de volta para o alojamento com as roupas rasgadas..."
"Ele era cooperativo, mas nenhum de nós gostava dele..."
Estava tudo ali. O general de brigada Paul Seebank não era nenhum herói. Muito pelo contrário.
E ele era valioso para os Provedores, tão valioso que lhe deram uma posição de elite: Scorpio Quatro. Todas as futuras eleições estavam garantidas, pois ninguém era capaz de superar o seu poder econômico. Para ganhar o segundo mandato, enterrou o adversário numa avalanche de dinheiro. O Senador, um militar experiente, tinha apenas que comandar as verbas da Defesa, para que elas fossem parar nos cofres daqueles escolhidos pelos Provedores.
O velho celeiro já estava visível, uma silhueta estropiada desenhada contra o céu cinzento, na encosta de um morro coberto de mato. Seebank abandonou a estrada e subiu em direção ao ponto de encontro, com a lanterna acesa. Em seis minutos chegou à porta semidestruída e chamou:
- Estou aqui. Onde você está?
A resposta foi um lampejo rápido de uma segunda lanterna.
- Entre - disse uma voz na escuridão. - É um prazer encontrar o meu oficial superior... Num outro exército, claro... Apague a sua lanterna.
Seebank obedeceu.
- Nós servimos juntos? Eu conheço você?
- Nunca fomos apresentados. Mas talvez você se lembre de um número e de um posto, quem sabe até de um quartel... a "seção sul".
- Você foi prisioneiro! Nós fomos prisioneiros juntos!
- Isso foi há muito tempo, Senador - interrompeu a figura invisível. - Ou será que você prefere ser chamado de General?
- Eu prefiro é que você me diga por que me procurou e por que escolheu este lugar.
- Não foi aqui que você foi recrutado? Aqui neste celeiro? Eu também. Escolhi este lugar porque achei que você ia entender que era realmente uma emergência.
- Recrutado...? Você? Quer dizer que você é...
- Claro que sou. Por que outro motivo você viria até aqui? Deixe eu me apresentar, General. Eu sou o Scorpio Cinco, o último dos Scorpios de elite. Os outros vinte são tão importantes quanto nós, mas não têm nenhuma autoridade.
- Eu não posso negar o meu alívio. - As mãos de Seebank ainda estavam trêmulas; os espasmos do lábio inferior diminuíram. - É claro que a escolha deste lugar teve um impacto imediato sobre mim. Para ser sincero, achei que ia encontrar um dos nossos... nossos...
- Pode dizer, Senador, um dos nossos Provedores, não é?
- É, um Provedor.
- Diante dos extraordinários acontecimentos dos últimos dois dias, estou surpreso de saber que você não encontrou um deles... E também estou bastante aliviado.
- Como assim?
- Bem, de acordo com os códigos telefônicos, o Scorpio Quatro foi promovido a Scorpio Um, para todos os efeitos, não é?
- É, eu acho que sim. - Os espasmos de Seebank recomeçaram.
- E você sabe por quê?
- Não, não sei. - O Senador apertou a lanterna apagada com as duas mãos, tentando controlar o tremor.
- É, você não podia saber mesmo, você não tem acesso às informações. Felizmente, eu tenho, e já tomei as devidas providências.
- Pare com esses rodeios. Eu não gosto disso.
- Não me interessa o que você gosta. Os Scorpios Dois e Três foram eliminados. Eles deram para trás, porque não aguentaram a barra desta situação, e a Menina Sanguinária resolveu acabar com eles; é o bastante para mim.
- Eu não estou entendendo. Que Menina Sanguinária é essa?
- Eu achei que talvez você soubesse, mas não. Você trabalha para os Provedores em outra área, muito lucrativa mas muito diferente; seu negócio é outro. Considerando o que você é, o que a gente sabe que você é, você não tem estômago para isso. Você é um impostor, Scorpio Quatro, e já faz muitos anos que me disseram para ficar de olho em você... E agora você é um risco para nós.
- Como você se atreve? - urrou Seebank, em pânico. - Você é meu subordinado.
- Desculpe, mas eu não fui capaz de esperar até que isso mudasse, não fui capaz de esperar que os códigos fossem reprogramados para eu tomar o seu lugar. Se você pudesse falar com a sua mulher agora, ela ia dizer que um funcionário da companhia telefônica esteve na sua casa hoje às oito e dez, doze minutos depois que você saiu para o Senado. Ele mexeu no seu telefone secreto... Veja uma coisa, General, falta muito pouco para conseguirmos fazer este país voltar à ordem. Fomos espoliados, o orçamento militar sofreu cortes indiscriminados, nosso pessoal foi dizimado, o nosso poder armado, reduzido a uma titica. Existem vinte mil ogivas nucleares apontadas para nós em toda a Europa e em toda a Ásia, e a gente finge que não existe nada disso!... Bem, tudo vai mudar depois que a Menina Sanguinária concluir a operação dela. Nós vamos reassumir o poder, vamos governar a nação da maneira que ela tem que ser governada! O país vai estar paralisado, e aí, como sempre, vai caber a nós o governo e a defesa.
- Eu não estou contra você - foi o que o Senador, trêmulo, conseguiu dizer. - Essas palavras bem que poderiam ser minhas; tenho certeza de que você sabe disto.
- Porra, General, é claro que eu sei, mas são só palavras. Você é um homem de muitas palavras e pouca ação. A sua covardia é uma deficiência que nós não podemos tolerar. Você não ia segurar essa barra.
- Que barra?
- O assassinato do Presidente. O que você me diz disso?
- Meu Deus, você está louco! - sussurrou Paul Seebank, as mão subitamente imóveis, os lábios paralisados de puro terror. - Eu não acredito no que você está dizendo. Quem é você?
- É, acho que está na hora. - De trás da parede de alvenaria, emergiu uma figura sem um dos braços, a manga direita amarrada no ombro. - Está me reconhecendo, General?
Sem entender nada, Seebank fitou aquele rosto mais do que conhecido.
- Você...
- Será que a falta do meu braço faz você se lembrar de alguma coisa? Tenho certeza de que alguém lhe contou.
- Não!... Não me lembro de nada! Eu não sei do que é que você está falando.
- Claro que sabe, General, apesar de você nunca ter visto a minha cara naquele tempo. Eu era o Capitão X, você se lembra? Um Capitão X muito especial.
- Não... Não! Você está imaginando coisas, eu nunca conheci você!
- Eu já disse, pessoalmente, não, você não me conheceu. Você imagina como eu me divertia no Senado, ouvindo os seus discursos intermináveis, ouvindo você falar das suas qualidades como militar, o que é pura conversa fiada, uma invenção dos nossos benfeitores através do Scorpio Um? O Exército me forneceu uma prótese, um braço postiço, pois o Pentágono reconheceu que, com o meu talento, eu não precisava de um braço, só precisava do meu cérebro e de um mínimo de eloquência que se exige de um militar.
- Eu juro por Deus, eu só conheço você pelo seu cargo atual, não sei de nada do que aconteceu antes!
- Então deixe eu refrescar um pouco a sua memória. Você se lembra da seção sul? Você se lembra de ter ouvido falar de um capitão qualquer que montou um esquema de fuga perfeito? Um esquema que teria funcionado... Mas que não funcionou porque um oficial americano denunciou o plano para o comando do acampamento. Os inimigos entraram na minha cabana, me pegaram pelo braço e cortaram ele fora com uma daquelas espadas. E depois o intérprete deles disse num inglês quase perfeito: "Agora você tenta escapar."
- Eu não tive nada a ver com isso... Com você!
- Pare com isso, General, eu sei o que estou dizendo. Quando fui recrutado, o Netuno me mostrou os depoimentos de Hanói, inclusive um parágrafo que você nunca viu. Era do mesmo sujeito que me disse para ficar de olho em você, que me disse como alterar o seu telefone, se algum dia isso fosse necessário.
- Isso tudo já passou! Não interessa mais!
- Pois você acredita que para mim interessa? Eu estou esperando há vinte e cinco anos para lhe dar o troco.
Ouviram-se dois tiros sob a chuva fina que caía sobre o velho celeiro em ruínas próximo a Rockville, Maryland.
E o chefe do Gabinete Militar saiu caminhando pelo mato mal crescido em direção ao seu Buick escondido ali perto. Se não houvesse alterações na agenda, a Menina Sanguinária estava um passo mais próxima do seu objetivo.
Perplexo e frustrado, Hawthorne conduzia o carro do Departamento de Estado na direção de McLean, Virgínia, tentando entender o enigma da família O’Ryan. Ou eram os seres humanos mais tolos e ingênuos que ele já vira, ou haviam aprendido perfeitamente as lições de cinismo e desfaçatez de O’Ryan.
Hawthorne havia chegado à casa de praia pouco depois das cinco e meia e às sete horas começou a achar que Patrick Timothy O’Ryan era o irlandês mais discreto da história daquela raça gaélica. Na ficha de O’Ryan, fornecida pela Agência, as antenas de Tyrell logo detectaram uma omissão nos antecedentes do analista. A súbita mudança no padrão de vida da família, de uma casa modesta, compatível com um salário médio da CIA, para uma residência muito maior, além da compra de uma casa de veraneio respeitável, era algo suspeito demais para ser explicado pela herança de um tio que criava cavalos na Irlanda. A Agência se dera por satisfeita com a documentação jurídica; ninguém tentara investigar mais a fundo, o que, na opinião de Hawthorne, era o que deveriam ter feito. Afinal de contas, O’Ryan tinha irmãos mais velhos no departamento de polícia de Nova York. Onde estavam eles, e por que haviam sido relegados por um parente rico que, segundo a sra. O’Ryan, nunca havia visto nenhum dos sobrinhos?
- O tio Finead era um santo! - gritara Maria Santoni O’Ryan por entre as lágrimas. - Nosso Senhor disse a ele que Cristo amava o meu Paddy! Nesta hora de tristeza e tormento, o senhor tinha que vir fazer esse tipo de pergunta?
"Esta história não me convenceu, sra. O’Ryan", pensou Tyrell. "Mas estou vendo que a senhora não sabe a resposta." Os três filhos e as duas filhas, numa atitude de revolta ingênua, também não ajudaram em nada. Havia algo de podre, o mau cheiro se espalhava por toda parte, mas Hawthorne não conseguia localizar a origem.
Eram quase nove e meia quando ele tomou a estrada particular que levava à grande casa colonial onde moravam os Ingersol, em McLean, Virgínia. A longa entrada circular estava cheia de limusines e carros de luxo - Jaguares, Mercedes e alguns Cadillacs e Lincolns; uma outra área, à esquerda da casa, também servia de estacionamento, controlado por empregados que guardavam os carros dos participantes do velório.
Foi recebido à porta pelo filho de David Ingersol, um jovem agradável, sincero, gentil, com os olhos cheios de tristeza; foi essa a impressão de Tyrell, ao entrar e apresentar suas credenciais.
- Acho melhor eu chamar o sócio do meu pai - disse o filho do falecido. - Eu não ia poder ajudar muito... Qualquer que seja a razão da sua visita.
Edward White, da Ingersol & White, era um homem de altura média, careca e de olhos castanhos penetrantes.
- Deixe que eu cuido disso! - limitou-se a dizer, depois de examinar os documentos de Tyrell. - Fique na porta, Todd. Eu e este cavalheiro vamos lá para dentro. - Quando os dois entraram no corredor estreito, White continuou: - Dizer que eu estou estarrecido com a sua presença aqui nesta hora seria pouco. Uma investigação do Departamento de Estado, enquanto o pobre coitado ainda nem... nem foi enterrado? Como você pode fazer isto?
- É fácil explicar, White - replicou Tyrell. - Nós temos a máxima urgência em esclarecer este assunto.
- Mas por quê?
- Porque pode ser que o David Ingersol seja o principal envolvido numa operação de lavagem de dinheiro dos cartéis de Medellín e de Cali. Os dois tinham intermediários em Porto Rico.
- Isto é completamente absurdo! Nós temos clientes em Porto Rico, a maioria, clientes do David, mas nunca houve qualquer tipo de irregularidade. Éramos sócios, eu saberia, se houvesse.
- Talvez você saiba menos do que pensa. E se eu lhe disser que descobrimos através do Departamento de Estado que David Ingersol tinha contas em Zurique e em Berna, com valores de mais de oito dígitos, em dólares? Esse dinheiro não pode ter vindo da sua firma de advocacia. Vocês são ricos, mas não tão ricos assim.
- Você ou é um mentiroso ou um paranoico... Vamos para o escritório do David; aqui não é lugar para a gente conversar. Por aqui. - Os dois homens cruzaram a grande sala de estar atopetada de gente e tomaram outro corredor. Edward White abriu a porta do escritório. Lá dentro, tudo era de madeira e couro castanho-escuro - cadeiras, mesas, dois sofás, e até o espaldar alto da cadeira giratória atrás da enorme escrivaninha onde estavam empilhados os papéis de David Ingersol. - Não acredito em nada do que você disse - afirmou White, fechando a porta.
- Não vim aqui para prender ninguém, White, só estou participando de uma investigação. Se você tem alguma dúvida a meu respeito, ligue para o Departamento de Estado. Tenho certeza de que você sabe com quem falar.
- Não seja insensível, seu filho da puta! Pense na família do David!
- Eu estou pensando é em várias contas no exterior que podem ter sido abertas por um cidadão americano, que usou a influência pessoal para favorecer o tráfico internacional de drogas.
- Esta investigação é muito suspeita, Hawthorne. Você é o quê? Policial, juiz e júri, tudo ao mesmo tempo? Você já pensou em como é fácil abrir "contas no exterior" no nome de quem você quiser, com uma simples assinatura?
- Não, eu nunca pensei, mas, pelo visto, você já pensou.
- Já, porque eu fiz um estudo sobre isso, e qualquer cliente da nossa firma tem que ter um motivo muito bom para ter uma conta dessas, principalmente se é de lá que ele tira o dinheiro para nos pagar.
- Eu não entendo nada desse assunto - mentiu Hawthorne - mas, se o que você está me dizendo é verdade, basta a gente mandar a assinatura do David Ingersol pelo fax para Zurique e para Berna.
- Os espectrógrafos não aceitam documentos via fax. Estou surpreso de você não saber disso.
- O especialista aqui é você, não eu. Mas vou lhe contar qual é a minha especialidade: eu sou um excelente observador. Fico vendo vocês, os caubóis de limusine, rodando pela cidade, banhados em respeitabilidade, fazendo tráfico de influência para aquele que fizer a melhor oferta. E quando vocês saem da linha, estou lá para pegar vocês.
- Esta linguagem não é do Departamento de Estado; você parece mais um vingador paranoico de história em quadrinhos. Acho que vou dar aquele telefonema que você sugeriu...
- Não se preocupe, Edward. - Uma terceira voz no escritório sobressaltou os dois homens. Subitamente, a cadeira de espaldar alto atrás da escrivaninha girou, revelando um homem idoso, esbelto, visivelmente alto, tão bem vestido e elegante que Tyrell quase engasgou, achando por um momento que estava diante de Nils Van Nostrand. - O meu nome é Richard Ingersol, Hawthorne, ex-juiz da Suprema Corte. Acho que nós precisamos conversar; em particular, Edward, mas não nesta sala. Em nenhuma sala desta casa.
- Eu não estou entendendo, doutor Ingersol - disse, atônito, o sócio da Ingersol & White.
- E nem podia entender, meu caro. Por favor, mantenha a minha nora e o meu neto ocupados com esses... puxa-sacos. Eu e o Hawthorne vamos escapulir pela cozinha.
- Mas, juiz Ingersol...
- O meu filho está morto, Edward, e eu acho que ele não vai ligar para o que a coluna social do Washington Post disser desses ricaços que estão aí na sala; muitos deles sem dúvida já estão atrás dos clientes do David. - O velho senhor levantou-se e contornou a escrivaninha. - Vamos lá, Hawthorne, essas pessoas que estão aqui não têm nada para lhe contar. Além disto, a noite está ótima para uma volta lá fora.
Frustrado, White abriu a porta e o velho Ingersol saiu, seguido por Tyrell. Os dois desceram o corredor, atravessaram a cozinha, onde reinava o tumulto, e saíram pela porta dos fundos; lá fora, estendia-se um gramado em volta de uma piscina iluminada e, atrás dela, um enorme jardim cercado por uma sebe de uns seis metros de altura. O ex-juiz caminhou até a beira da piscina e começou a falar.
- Qual é o verdadeiro motivo da sua presença aqui, Hawthorne, o que é que você sabe?
- O senhor ouviu o que eu disse ao sócio do seu filho.
- Lavagem de dinheiro? Cartéis de drogas?... O que é isto, rapaz, o David não tinha nem inclinação e nem audácia suficiente para se meter nessas atividades. Mas a sua referência a contas na Suíça procede.
- Então, será que eu poderia perguntar o que é que o senhor sabe, juiz Ingersol?
- É uma história macabra com elementos de triunfo e agonia, além de um certo grau de tragédia... Um tragédia ateniense por excelência, mas sem a grandiosidade do teatro grego.
- Isto é muito eloquente, mas não me diz nada.
- Lá dentro, você me olhou de um jeito estranho - continuou Ingersol, ignorando o comentário de Tyrell. - E não foi pela surpresa de me ver ali; foi por outro motivo, não foi?
- O senhor me lembrou uma pessoa.
- Foi o que eu pensei. A maneira abrupta como você chegou aqui, essa estratégia de choque, de tentar desestruturar, aterrorizar, até, os outros. A sua reação à minha pessoa confirmou o que eu estava achando.
- Eu não sei do que é que o senhor está falando.
- Você sabe, sim. Do Nils Van Nostrand... sr. Netuno, se você prefere. A minha semelhança com ele deixou você surpreso; eu vi no seu rosto, mas posso garantir que só sou parecido com ele por fora. Na minha idade, homens que têm o mesmo tipo físico tendem a se parecer uns com os outros. No nosso caso a semelhança básica é o guarda-roupa. Você conhece o Van Nostrand, e o último lugar onde você esperava encontrar ele era nesta casa. Isto me disse muita coisa.
- Diante disso, o fato do senhor admitir que conhece o Netuno é uma surpresa para mim.
- Ah, mas isto faz parte da história - continuou Ingersol, passando por um portal de treliça e entrando num jardinzinho florido, uma pérgula afastada da casa e da multidão. - Antes de tudo começar, o Nils esteve várias vezes na Costa do Sol. Eu não sabia quem era ele, claro, mas acabamos fazendo amizade. Ele parecia um sujeito como eu e tantos outros... velhos ociosos com dinheiro suficiente para viver viajando de um lado para o outro, tentando aproveitar a vida. Cheguei até a recomendar a ele o meu alfaiate em Londres.
- E quando foi que o senhor descobriu que ele era o Netuno?
- Há cinco anos. Eu já estava começando a desconfiar de alguma coisa, aquelas visitas apressadas e aquelas partidas súbitas; e também a história da família dele, e até mesmo aquela fortuna toda. Que tinha uma origem meio obscura.
- É engraçado o senhor dizer isto - interrompeu Tyrell. - Não conheço muita gente do seu meio que saia mostrando a declaração de renda para os outros.
- Não, claro que não, mas em geral todo mundo sabe a origem das grandes fortunas. Alguém que inventou algum produto que não existia no mercado, ou que abriu um banco na hora certa, ou que investiu no mercado imobiliário; são essas coisas que estão por trás das tais declarações de renda. No meu caso, antes de eu me tornar juiz, eu era o fundador e sócio majoritário de uma firma de advocacia que dava lucros enormes, com escritórios em Washington e Nova York. Eu podia facilmente bancar a honraria de trabalhar na Suprema Corte.
- É verdade - disse Hawthorne, recordando o dossiê de David Ingersol, onde havia uma enorme quantidade de informações sobre o pai. A única peça que faltava era a verdadeira razão da renúncia de Richard Ingersol ao cargo de juiz. De repente, Hawthorne percebeu que logo teria essa peça nas mãos.
- Netuno - disse Ingersol, como se estivesse lendo os pensamentos de Tye. Sentou-se num banco de ferro branco, num canto isolado do jardim. - Esta é uma parte da história, uma parte bastante deprimente e de uma brutalidade desnecessária. Uma noite eu estava na varanda do Iate Clube, vendo a lua no Mediterrâneo, e o Van Nostrand, que era muito observador, perguntou: "Você me acha meio estranho, não é, Juiz?" Eu respondi que achava que ele era homossexual, mas que isso não fazia a menor diferença. O mundo estava cheio de homossexuais. Ele, então, com o sorriso mais diabólico que eu já vi, me disse: "Eu sou o homem que destruiu você, o homem que manda no futuro do seu filho. Eu sou o Netuno."
- Nossa Senhora! Ele falou assim com o senhor?
- Eu fiquei chocado, e perguntei por que ele estava me dizendo aquilo àquela altura. Que tipo de satisfação perversa e cruel ele poderia sentir? Eu já estava com oitenta e um anos de idade, e não tinha nenhuma condição de desafiar o Van Nostrand, muito menos de acabar com a vida dele. A minha mulher já tinha morrido e eu estava sozinho, e toda noite, quando eu ia dormir, eu me perguntava se na manhã seguinte ainda estaria vivo. "Por quê, Nils?", eu perguntei de novo. "Por que você fez isso, e para que me contar isso agora?"
- E ele respondeu?
- Respondeu, Hawthorne, respondeu, sim. Foi por isso que eu voltei para cá... O meu filho não foi morto por um vagabundo viciado em drogas; ele foi assassinado de forma premeditada pelas pessoas que me "destruíram" e que "mandavam" nele, para usar as palavras do Van Nostrand. Agora eu estou com oitenta e seis anos, e nem os meus médicos entendem como eu ainda estou vivo. E qualquer dia eu não vou acordar para ver a luz do sol, eu sei disto. Mas o que eu não aceito é levar para o túmulo o segredo que transformou uma vida desonrosa numa vida desgraçada, e ainda causou a morte do meu filho.
- E qual foi a resposta do Netuno? - pressionou Tyrell.
- Ele me respondeu com o mesmo sorriso maldoso e aqueles olhos gelados, mas que pareciam esconder uma fogueira. Eu me lembro exatamente das palavras dele, elas ficaram marcadas na minha memória... "Para mostrar do que nós somos capazes, meu velho Dickie, por duas gerações. Com o tempo, nós vamos controlar o governo dos Estados Unidos: Marte e Netuno. Eu queria que você visse isso, soubesse disso e entendesse que não pode fazer nada."... Era essa a satisfação dele, jogar isso na minha cara, na cara de um velho indefeso, que tinha reconstruído a sua fortuna através da corrupção. Mas depois que eles mataram o meu filho, eu vi que estava na hora de sair daquele paraíso de luxo que era o meu inferno e procurar alguém a quem eu pudesse contar toda a verdade. Eu não sabia bem por onde começar, pois existem certas coisas que nunca vão poder ser reveladas. Eu tenho que proteger o meu neto, que é um menino ótimo, sem dúvida muito melhor do que o pai e o avô, mas o resto tem que ser revelado. Então eu escutei você falando ali no escritório, Hawthorne, e virei a cadeira para ver você. Você foi o escolhido, rapaz; você tem alguma coisa que inspira confiança. - Os olhos de Ingersol perscrutaram os de Hawthorne. - Você não está só fazendo o seu trabalho - disse. - Você está comprometido com ele; eu acho que isto explica a energia com que você subiu aqui no nosso palco.
- Eu não sou ator, sr. Ingersol.
- Todos nós somos atores, Hawthorne, nós que vivemos entrando e saindo da vida de outras pessoas; seja por autopreservação, autopromoção ou por espírito de competição.
- E quem é que sobra?
- É o que eu disse, todos nós somos atores... Agora, quanto ao nosso contrato informal...
- Que contrato?
- Eu estou disposto a lhe dar certas informações, desde que fique entendido que a minha identidade não pode ser revelada. Eu sou a sua fonte "anônima", as nossas comunicações têm que ser particulares, e o que eu disser não pode ser investigado.
- Isto é impossível, eu preciso confirmar as informações.
- Então depois do enterro eu vou voltar para a Costa do Sol; e se o Van Nostrand aparecer por lá, o meu último ato vai ser tirar um revólver do bolso, dar um tiro na cabeça dele e esperar a misericórdia dos tribunais da Espanha. Um crime passional, em defesa da própria honra; não é uma coisa muito rara.
- O Van Nostrand não vai aparecer. Ele morreu.
O velho olhou para Tyrell.
- Não saiu nenhuma notícia, nenhuma reportagem sobre a morte dele...
- O senhor é um dos poucos que têm o privilégio de saber disto. A morte dele foi encoberta.
- Com que objetivo?
- Confundir o inimigo, acho que é uma boa resposta.
- O "inimigo?" Quer dizer que vocês sabem que existe uma estrutura organizada?
- Sabemos.
- Pessoas recrutadas, como o meu filho. Extorsão, chantagem, e castigo garantido para os candidatos que não se submeterem, e recompensa garantida para os que aceitarem.
- Fora os poucos que a gente encontrou, ou acha que encontrou, todos mortos, a gente não sabe quem são eles e onde eles estão. O senhor poderia nos ajudar?
- Eu acho que está perguntando se eu posso ajudar você.
- Vários amigos meus foram mortos, e uma provavelmente vai ficar inválida para o resto da vida...
- Está bem, eu vou aceitar a sua resposta... Eles se chamam Scorpios e cada um tem um número, de um a vinte e cinco; os cincos primeiros são superiores aos outros, na medida em que transmitem as ordens da diretoria, digamos assim.
- Que diretoria?
- Eles são conhecidos como os Provedores, um nome bastante apropriado.
- E quem são eles?
- Você aceita o meu contrato? Com você?
- Como é que o senhor pode pedir para eu ficar calado? O senhor não faz ideia do que está em jogo.
- O que eu sei é que eu não quero envolver o meu neto. O Todd tem a vida inteira pela frente, e eu não vou deixar que ele fique estigmatizado como o filho de um homem corrupto.
- O senhor sabe que eu poderia mentir para o senhor.
- Você pode pensar nisso, mas eu não acredito que você vai estar mentindo se me der a sua palavra. É um risco que eu vou correr... Você me dá a sua palavra?
Furioso, Tyrell deu alguns passos para a direita de Ingersol e lançou um olhar breve para a lua pálida; depois voltou-se e observou o olhar triste, porém firme, do velho juiz.
- O senhor está pedindo para eu tomar como verdadeiras as informações de uma fonte desconhecida? Isto seria uma loucura!
- Eu não acho. Os jornais sempre fazem isso sem expor a integridade deles.
- O senhor pode me dar informações concretas?
- Eu posso lhe dar pistas que eu considero da maior importância; o resto fica por sua conta.
- Então eu lhe dou a minha palavra - disse Hawthorne, finalmente. - E eu não estou mentindo... Pode falar.
- O Van Nostrand tinha uma villa no Iate Clube, pequena, mas caríssima, dessas feitas para uma pessoa sozinha que não recebe hóspedes, a não ser amantes, claro. Depois que ele me contou quem ele era e o que tinha feito, eu pus a villa dele sob o que o serviço de inteligência chama de microscópio. Subornei o empregado, a companhia telefônica local e as telefonistas do clube. Eu sabia que eu não podia matar aquele homem sem enfrentar as consequências, o que pouco me importava, mas se eu pudesse descobrir tudo o que fosse possível sobre aquele crápula, talvez conseguisse reverter o jogo que ele estava fazendo comigo e com o meu filho.
- Usando a mesma técnica que ele? - interrompeu Tyrell. - Extorsão? Ameaçando de levar a público o que o senhor descobrisse?
- Exatamente... junto com o que o meu filho tinha-me contado. Nós tínhamos que ter o máximo cuidado, você entende. Nada de cartas, telefonemas, nada disso... O David viajava muito, muitas vezes a serviço da própria CIA, que pedia a ele para cuidar de certos assuntos...
- É, eu soube disso - interrompeu Tyrell novamente. - Da primeira vez que eu falei o nome dele, o chefe da inteligência naval me chamou de idiota. O seu filho tinha o nome tão limpo que até a CIA usava os serviços dele.
- Isso tudo parece uma grande ironia, não é?... Mas, enfim, eu e o David marcávamos encontros secretos, tomando todo o cuidado para não sermos vistos juntos. No meio da multidão da Trafalgar Square, naqueles cafés barulhentos da Rive Gauche, em hoteizinhos escondidos no interior. O David me deu os códigos telefônicos, que, diga-se de passagem, são transmissões via satélite...
- Nós sabemos...
- Vocês avançaram bastante.
- Mas não o suficiente. Continue.
- Ele conhecia o Van Nostrand socialmente, o que era inevitável em Washington, no meio em que ele circulava, mas eles raramente se falavam em público. Até que um dia, devido a uma emergência que exigia ação imediata, a revisão urgente de uma análise da CIA, o Van Nostrand mandou o meu filho levar as informações revisadas para o Scorpio Dois.
- Scorpio Dois...? O’Ryan?
- É. O David era o Scorpio Três.
- Ele era um dos cinco primeiros, então.
- Mas com a maior relutância, pode ter certeza. Quanto ao motivo pelo qual ele foi parar lá, isso não faz parte das informações que vou lhe dar.
- Quem são os outros dois da cúpula dos Scorpios?
- Ele nunca soube, mas achava que um deles era um senador. Porque o Van Nostrand tinha dito a ele que o Comitê de Inteligência do Senado era uma excelente fonte de informação. E o quinto, o David disse que o O’Ryan sabia quem era, mas que só dizia que o Scorpio Cinco era um "peso-pesado, o mais pesado do Pentágono".
- O que mais tem no Pentágono é peso-pesado - observou Tyrell.
- É verdade. Mas isso confirma o que eu descobri na Costa do Sol. Quando o Van Nostrand estava lá, ele vivia ligando para Washington, e muitas dessas ligações eram para o Pentágono. Mas, como o David disse, essa lista de telefonemas é inútil. Se o Netuno quisesse falar com algum Scorpio, ele ia usar os códigos do satélite.
- A não ser que ele estivesse mandando recados através de intermediários - disse Hawthorne. - O seu filho tinha razão, esse caminho era inútil... E o senhor descobriu mais alguma coisa, fora esses telefonemas?
- Descobri a correspondência de uma administradora de imóvel em Lausanne. Parece que o Van Nostrand tinha uma casa num lago numa outra cidade, um lugar com um nome espanhol. Ele estava cadastrado como cliente.
- Isso também não adianta, ia levar muito tempo para a gente descobrir alguma coisa. O que mais?
- Só mais uma coisa. - Ingersol abriu um sorriso frágil. - Uma lista de vinte nomes e endereços numa folha de papel timbrado do Banco Gemeinschaft de Zurique. Estava no cofre do Van Nostrand há um ano e meio atrás. Paguei dez mil dólares para convencer um delinquente, que agora está preso em Estepona, a desligar os alarmes e abrir o cofre para mim. Vinte nomes, Hawthorne. Vinte.
- O mapa da mina! - sussurrou Tyrell. - O resto dos Scorpios. Seu filho soube disso?
- Eu sou um jurista experiente, Hawthorne. Sei quando eu devo ou não apresentar provas, principalmente se essas provas podem causar grandes prejuízos.
- Como assim?
- O David não foi criado nem preparado para a posição que ele foi forçado a assumir. Ele era um excelente advogado, trabalhava para as maiores empresas do país, mas nunca foi advogado de porta de cadeia, nunca teve nenhum contato com o mundo do crime. Ele se saiu bem no papel de Scorpio Três, mas era só isso, um papel que ele representava. Ele vivia com medo, e se tornou propenso a crises de depressão e de pânico. Se eu desse a lista para ele, era bem possível que, durante uma dessas crises de ansiedade, ele usasse ela para tentar se livrar daquela situação.
- E teria conseguido?
- Meu Deus, use a cabeça, rapaz! O Van Nostrand, amigo de vários presidentes, com conexões em todas as partes de Washington; o O’Ryan, um analista de alto nível, com acesso a todas as informações secretas; e uma lista de nomes desconhecidos entregue por um homem em pânico, incapaz de especificar quem são essas pessoas?
- E os códigos do satélite?
- Podiam ser cancelados a qualquer momento, se qualquer um dos Scorpios achasse necessário dar o alarme... Se eu estivesse envolvido no caso do assassinato do John Kennedy, seria capaz de mostrar com detalhes como é fácil despistar qualquer investigação; a Comissão Warren ia ficar desconcertada. Os Scorpios são a prova disso.
- E por que mataram seu filho?
- Porque ele entrou em pânico. Por que motivo eu não faço ideia, mas deve ter sido uma coisa recente. Como eu lhe disse, a gente só conversava pessoalmente. Ele estava convencido de que a casa e o escritório dele eram monitorados pelos Provedores.
- E são mesmo?
- A casa, não; o escritório, eu não sei. É uma firma grande, com um sistema telefônico complicado. Uma interferência dessas poderia levantar suspeitas.
- E a casa, o senhor tem certeza?
- Eu mesmo tenho pessoas que vêm todo mês verificar, mas nunca consegui convencer o David. Ele sempre dizia: "Você não sabe do que eles são capazes." Eu concordava que não sabia; mas insistia que nesta casa não havia nada. Se houvesse, seria fácil descobrir, você sabe.
- Quem são os Provedores?
- Não sei bem, mas posso dar algumas pistas. O Van Nostrand recebia visitas que chegavam em jatinhos particulares. É claro que eu molhei a mão dos funcionários do aeroporto de Marbella e do pessoal da alfândega. Hawthorne, eu tenho os nomes de todos esses visitantes e os lugares de onde eles vinham; alguns deles deviam fazer parte dos Provedores, mas, infelizmente, não consegui descobrir nada. Eu sei que é normal esses documentos terem informações falsas, mas o problema é que não havia nada em comum, nada que me desse alguma luz... Mas tinha um homem e uma mulher, ele, de Milão, ela, de Bahrain, que iam lá com uma frequência muito maior que os outros. No início eu achei que eram raisons de coeur, amantes que aproveitavam a hospitalidade e a privacidade da casa do Van Nostrand. Depois me dei conta da minha ingenuidade. Os dois eram velhos, gordos, obesos. Se fossem amantes, nenhum dos dois ia conseguir deitar em cima do outro sem alguém para ajudar... Não, Hawthorne, eles não eram amantes. Na minha opinião, tinham uma ligação intrínseca com os Provedores.
- Milão está na rota da Máfia, na rota para Palermo - disse Tyrell. - E Bahrain, com aquela montanha de dinheiro, é uma das maiores fontes do vale do Baaka. O senhor pode identificar esses dois, dizer quem eles são?
- Shh! - Ingersol levantou a mão direita. - Tem alguém por perto.
Hawthorne tentou olhar em volta, mas já era tarde. Um zunido cortou o ar, um tiro silencioso. A bala estilhaçou a testa do juiz. Tyrell jogou-se para a direita e mergulhou no meio de um roseiral, tentando pegar a arma no cinto, mas não houve tempo. Uma silhueta se abateu sobre ele, como uma ave gigantesca, e a escuridão tomou conta de tudo. Um objeto metálico atingiu-lhe o crânio, e ele não viu mais nada.
29
Hawthorne sentiu primeiro uma dor aguda, lancinante, e, em seguida, as gotas de sangue rolando pelo seu rosto. Ofegante, tentou erguer a cabeça, mas os espinhos se emaranharam nos seus cabelos e lhe arranharam o rosto. Estava preso numa roseira, cercado de ramos cheios de agulhas que lhe espetavam as roupas e lhe furavam a pele por todos os lados, como se alguém tivesse pisoteado os galhos sobre o seu corpo. E realmente alguém o fizera: a silhueta que acabara com a vida de Richard Ingersol, pai do Scorpio Três.
Lentamente, tentando se equilibrar e se desvencilhar daquela teia de espinhos, Tyrell começou a se levantar; subitamente, percebeu que havia uma arma na sua mão, grande e pesada demais para ser a sua, porém. Examinou a arma sob a luz que vinha da piscina. Era um Magnum calibre 38 com um silenciador encaixado no cano, a arma que matara o velho Ingersol. Uma cilada, pensou Hawthorne, só nesse momento percebendo uma vibração irritante no bolso do paletó - um, dois, três... Um, dois, três... - Poole estava tentando se comunicar com ele através do sinal de emergência. Há quanto tempo, ele não tinha como saber.
Pôs-se de pé na terra macia do jardim, concentrando-se ao máximo para tentar se orientar; puxou a fralda da camisa e limpou o sangue do rosto. Não havia mais ninguém ali, só o cadáver de Ingersol, com a cabeça encharcada de sangue; o rosto brilhante parecia uma máscara escarlate. Tye começou a correr, guiado por um instinto que lhe dizia para não perder tempo. Tirou o corpo de Ingersol do banco de ferro batido, colocou-o no chão e o arrastou até a base da sebe alta que cercava o jardim, onde o escondeu. Remexeu os bolsos do velho; havia apenas uma carteira, cheia de dinheiro e de cartões de crédito; deixou-a no lugar e tirou um lenço limpo do bolso do paletó de Ingersol. A luz que vinha da piscina... água!
Hawthorne enfiou o Magnum na cintura, correu até o portal de treliça e olhou em volta com atenção. Não havia ninguém. O som abafado de vozes distantes confirmava a presença das dezenas de pessoas que se movimentavam por trás das portas de vidro fosco da sala de estar. Molhou o lenço na piscina e o esfregou sobre o rosto e a cabeça. Se conseguisse passar pelo tumulto da cozinha sem ser notado e chegar à entrada do corredor, estaria a apenas alguns passos do escritório de Ingersol. Tinha que conseguir! Tinha que entrar em contato com Jackson, saber que emergência era aquela, contar o que acontecera. Viu uma toalha jogada sobre uma espreguiçadeira; pegou-a, sem saber exatamente o que fazer com ela além de tentar esconder a sujeira da sua roupa. Mas, de repente, entendeu o que o fizera sair do estado de inconsciência. A pulsação fraca, porém constante, das descargas elétricas do isqueiro de plástico no seu peito. Sem aquela interferência eletrônica, ele teria sido encontrado ao lado do corpo ensanguentado de Richard Ingersol e preso por assassinato. Desse modo, teriam sido eliminados dois homens, talvez as únicas pessoas, além da terrorista Bajaratt, que sabiam da existência da organização Scorpio. Vamos, agora!
Tyrell segurou a toalha contra o rosto e correu em direção à porta da cozinha. Passou pelo meio do alvoroço como se fosse um amigo do dono da casa que não pudera suportar a tristeza e bebera demais durante o velório. Os que notaram a sua figura deplorável viraram as costas; estavam ocupados com suas tarefas. Ao chegar ao corredor estreito, correu para o escritório, satisfeito ao ver que a porta continuava fechada. Entrou discretamente, trancou a porta e fechou as cortinas das janelas. A ferida na sua cabeça se abrira novamente, mas graças a Deus os pontos da perna haviam resistido, e o ferimento não sangrava; o curativo de Poole fora bem feito. Havia um lavabo no escritório de Ingersol. Tyrell cuidaria do talho na cabeça assim que pudesse, mas antes tinha que falar com o tenente A. J. Poole.
- Onde é que você estava? - gritou Poole, ansioso. - Eu estou tentando falar com você há quarenta e cinco minutos.
- Depois eu conto, Jackson. Primeiro quero saber o que houve. Foi alguma coisa com a Cathy?
- Não. No hospital disseram que ela continua na mesma.
- Então o que foi?
- Eu preferia não ter que contar, Tye, mas você tem que saber... O Henry Stevens foi morto com um facão atravessado no peito. A polícia encontrou o corpo atrás da garagem da casa dele. - O Tenente fez uma pausa e continuou: - Achei que você ia querer saber, a sra. Stevens não sossegou enquanto o secretário Palisser não deu o nosso telefone para ela. Ela mandou o recado para você. Eu anotei e jurei pela minha mãe que ia falar com você. O recado é o seguinte: "Tye, primeiro a Ingrid, agora o Henry. Quando é que isso vai parar? Desista, para o seu próprio bem."... O que quer dizer isso, Comandante?
- Ela está associando duas coisas que não têm nada a ver uma com a outra. - Tyrell não podia se permitir pensar na dor de Phyllis Stevens. Não havia tempo! - A polícia tem algum indício sobre o assassinato de Henry? - perguntou.
- Por enquanto, só que é um ferimento muito estranho. Mas tudo está sendo mantido em segredo. A polícia tem ordens para não divulgar nada, nem para a imprensa, nem para mais ninguém.
- E o ferimento?
- Foi uma lâmina muito grande e grossa, raríssima, eles disseram.
- Eles quem? Quem foi que disse isso para você?
- O secretário Palisser. Desde que o diretor Gillette morreu daquele ataque do coração, ou seja lá o que for, o Palisser se envolveu pessoalmente na operação, já que você está trabalhando para o Departamento de Estado. É ele quem está comandando agora.
- Quer dizer que você fala direto com ele?
- É meio assustador para um reles tenente, mas eu falo, sim. Ele me deu seus telefones diretos, em casa e no trabalho.
- Escute, Jackson, preste atenção e anote, e me interrompa se você não entender alguma coisa. - Hawthorne narrou em detalhes tudo o que havia acontecido na casa de Ingersol, especialmente sua conversa com Richard Ingersol e a morte violenta do ex-juiz no jardim.
- Você se machucou muito? - perguntou o Tenente.
- Acho que vou sobreviver, com mais alguns pontos e uma puta dor de cabeça. Agora ligue para o Palisser e conte a ele tudo o que eu disse. Diga a ele que eu quero ter acesso imediato aos arquivos da CIA sobre todos os senadores que participam dos comitês de inteligência e todos os funcionários de alto nível do Pentágono, todos que tiverem autonomia para tomar decisões.
- Estou escrevendo o mais rápido que eu posso - disse Poole. - Nossa Senhora, que situação!
- Você anotou tudo?
- Eu não costumo errar, Comandante. A minha memória é infalível. Pode deixar que eu digo tudo a ele... Ah, outra coisa, o seu irmão Marc ligou de novo. Ele estava meio nervoso.
- Ele está sempre nervoso. O que era, desta vez?
- Aqueles pilotos da casa do Van Nostrand, os irmãos Jones. Se você não entrar em contato com eles dentro de doze horas, eles vão aos jornais.
- Fodam-se. Deixe eles irem aos jornais. Todos os Scorpios vão entrar em pânico, e um deles está aqui, dentro desta casa! E ele me viu sair para o jardim com o velho, o pai do Scorpio Três. O Três morreu, o O’Ryan e o Van Nostrand também. Agora só sobraram dois dos cinco mais importantes. O pânico vai começar.
- Tye, como é que está a sua cabeça?
- Meio confusa e doendo paca.
- Arranje esparadrapo e faça um curativo apertado. E roube um chapéu.
- Eu mando o cheque pelo correio, doutor... Agora tenho que sair daqui. Diga ao Palisser que estou indo para Langley. Vou levar pelo menos vinte minutos, o suficiente para, quando eu chegar lá, eles me deixarem entrar e eu já encontrar os primeiros arquivos saindo dos computadores numa daquelas salinhas sem janela. Diga para ele se coçar, e deixe claro que fui eu que mandei.
- Você adora cuspir na cara das autoridades, não é?
- É uma das poucas coisas que ainda me divertem.
No laboratório do Hospital Walter Reed, os dois médicos encarregados da autópsia do cadáver do capitão Henry Stevens entreolhavam-se, perplexos. Sobre a bancada esterilizada de aço inoxidável à cabeceira da mesa de cirurgia, estavam espalhadas trinta e sete lâminas de todos os tipos, desde uma faca média de cozinha até os maiores instrumentos de cutelaria existentes.
- Meu Deus, foi uma baioneta - disse o médico da direita.
- É verdade - concordou o da esquerda. - Deve ter sido algum psicopata.
Bajaratt caminhava no meio da multidão em direção às portas eletrônicas da plataforma. Entrou no terminal da El Al e tomou a direita, na direção oposta à dos balcões, e encaminhou-se para o guarda-volumes. Abriu o compartimento lateral da bolsa, tirou uma chave minúscula, que havia recebido em Marselha, e começou a examinar os números dos escaninhos trancados. Ao encontrar o de número 116, ela abriu a porta e, esticando os dedos, apalpou a parte de cima do compartimento, onde estava preso um envelope. Baj o arrancou e, abrindo-o, retirou um bilhete de bagagem, que ela rapidamente jogou na bolsa, no lugar da chave que ficara no escaninho vazio.
Voltou para o meio da multidão e dirigiu-se à seção de bagagem da El Al; ao chegar ao balcão, pegou o bilhete com ar displicente e o entregou à funcionária da companhia.
- Um dos pilotos deve ter deixado um embrulho para mim - disse ela, com um sorriso gentil. - Quanto mais a gente fica velha, mais a gente gosta de perfume francês, não é?
A moça pegou o bilhete. Passaram-se alguns minutos. A ansiedade de Bajaratt foi aumentando; estava demorando demais. Enquanto os olhos de Baj se viravam de um lado para o outro, como os de um animal acuado, pressentindo a proximidade de uma armadilha, a funcionária retornou.
- A senhora me desculpe, mas eu acho que o seu amigo piloto confundiu os países - explicou a funcionária, entregando a Bajaratt um embrulho volumoso, coberto de fita adesiva. - Esta encomenda não veio de Paris, veio direto de Tel Aviv... Vou lhe contar um segredo, a gente guarda numa área separada as encomendas que chegam da nossa terra. As pessoas chegam aqui tão ansiosas para pegar as coisas... A senhora entende?
- Mais ou menos, mas, de qualquer modo, muito obrigada. - Baj pegou o embrulho; era leve; ela o sacudiu. - Aquele piloto não vale nada; ele deve ter passado em Tel Aviv antes e dado metade dos meus perfumes para outra mulher.
- Homens... - concordou a moça. - A gente não pode confiar neles, principalmente nos pilotos.
Bajaratt saiu carregando o embrulho em direção à entrada. Estava exultante; o esquema tinha funcionado. Se o material explosivo tinha passado pela segurança israelense, passaria por qualquer sistema que a Casa Branca fosse capaz de inventar! Menos de vinte e quatro horas! Ashkelon!
Cruzou as portas eletrônicas e, ao chegar à calçada, não viu a limusine; o motorista devia estar dando a volta, já que ali era proibido estacionar. Apesar de uma certa irritação, não se zangou; o sucesso da chegada da encomenda lhe renovara o ânimo. O embrulho não fora detectado por nenhum dos equipamentos instalados nos terminais de Tel Aviv desde as explosões da década de 1970. Ninguém sabia que aquele embrulho continha uma bolsinha; e que na costura do forro dessa bolsa havia um único fio de aço, de menos de um centímetro de comprimento, que ativava minúsculas baterias de lítio, produzindo uma explosão equivalente a várias toneladas de dinamite. Para detoná-la, bastava mover os ponteiros de um relógio de pulso para a posição de meio-dia e apertar o botão do relógio três vezes. Bajaratt sentia-se como se fosse novamente a menina de dez anos que enfiou um facão num soldado espanhol que tentara brutalmente tirar a sua virgindade. Muerte a toda autoridad!
- Você não é a moça que eu conheci no kibutz Bar-Shoen? - Estas palavras foram como um raio na cabeça de Baj, incendiando seu cérebro, despedaçando seus pensamentos. Ergueu os olhos e deparou-se com um estranho, que de estranho não tinha nada! Era um agente do Mossad, que tinha cabelos escuros quando os dois se conheceram e agora estavam tingidos de louro, com quem havia dormido anos antes, o mesmo que ela vira na recepção do Hotel Carillon. - Só que acho que o seu nome não é Rachela - continuou ele. - Acho que começa com B, de Bajaratt. Nós sabíamos que você tinha amigos em Jerusalém e em Tel Aviv, então achamos que o melhor lugar para você receber cartas e encomendas era exatamente o lugar onde ninguém poderia esperar que você aparecesse. Foi só um palpite, mas os nossos palpites são bons...
- Há quanto tempo, querido! - gritou Baj. - Me dê um abraço, um beijo, meu amor querido! - Bajaratt se jogou nos braços do agente do Mossad, sob os olhares e sorrisos de simpatia da multidão à sua volta. - Desde o tempo do kibutz Bar-Shoen! Vamos entrar, vamos até o café. A gente tem muito o que conversar!
Baj segurou o agente pelo braço e começou a levá-lo de volta para o terminal, abrindo caminho na multidão e congratulando-se com ele em hebraico. Lá dentro, conduziu o constrangido israelense até os guichês de passagens mais cheios. De repente, começou a gritar, como se estivesse tomada de puro terror.
- É ele! - Bajaratt gritava histericamente para todos os que estavam em volta, com os olhos arregalados de medo, as veias da garganta saltadas. - Ahmet Soud, do Hezbollah! Olhem, ele tingiu o cabelo, mas é ele! Ele matou os meus filhos e me estuprou na fronteira. Como é que ele pode estar aqui? Chamem a polícia, chamem a nossa segurança! Prendam este homem!
Enquanto vários homens saíam das filas e convergiam sobre o agente do Mossad, Baj saiu correndo pela porta do terminal e, depois, pela calçada, no sentido contrário ao dos carros.
- Vamos embora daqui! - berrou ela, parando com uma pancada no vidro a limusine que se aproximava lentamente e pulando no banco traseiro, o lado de Nicolo, visivelmente atônito.
- Para onde, senhora? - perguntou o motorista.
- Para o hotel mais próximo, o mais decente possível - respondeu Baj, sem fôlego.
- Aqui perto do aeroporto tem vários.
- Então nos leve para o melhor.
- Agora chega, Cabi! - exclamou Nicolo, com os grandes olhos negros cravados em Bajaratt; em seguida, fechou a divisória de vidro entre o motorista e o compartimento traseiro e continuou, em italiano. - Estou tentando falar com você há duas horas e você não me ouve. Agora vai ouvir.
- Eu já tenho coisas demais para pensar, Nico. Estou sem tempo...
- Pois trate de arranjar tempo, senão vou mandar o motorista parar o carro e vou saltar.
- Você o quê? Como é que você tem coragem?
- Não é tanta coragem assim, Cabi. Eu só vou mandar o motorista parar. Se ele não quiser obedecer, ele vai ter que parar à força.
- Você é um menino insolente... Está bem, estou ouvindo.
- Eu contei para você, falei com a Angelina...
- Contou, isso eu já sei. Os atores estão em greve na Califórnia e ela vai para casa amanhã.
- Ela vai para Washington antes, e eu vou me encontrar com ela no aeroporto às duas horas da tarde.
- Nem pensar - disse Bajaratt com firmeza. - Eu já tenho outros planos para amanhã.
- Então não conte comigo, tia Cabrini.
- Você não pode fazer isto!
- Você não manda em mim. Fica me dizendo que tem uma missão tão importante, e as pessoas morrem porque você diz que elas vão atrapalhar essa sua missão... Mas eu não consigo entender como é que uma empregada de uma ilha e um motorista podem ser tão perigosos...
- Eles iam me trair, me matar!
- Isso você já me disse, mas depois não disse mais nada. Você vive me dando ordens que eu não entendo. Se essa sua missão é tão importante e tão bem vista pela Igreja, por que é que nós temos que fingir que somos pessoas que nós não somos de verdade?... Não, acho que talvez seja melhor eu esquecer as liras que estão lá em Nápoles e não ter mais que ficar obedecendo às suas ordens, ouvindo você me proibir de ver a Angelina. Sou forte e não sou burro. Vou procurar um emprego; talvez o Papa Capelli me ajude, depois que eu contar a verdade para ele, e eu vou contar.
- Ele vai expulsar você da casa dele!
- Eu vou levar um padre comigo, para mostrar que eu me confessei e fui absolvido e abençoado. Ele vai ver que estou sendo sincero, que estou arrependido dos meus pecados... Mas não vou falar do homem que tentou me matar. Ele pagou pelo que fez, e eu não vou ser castigado pelo que tive que fazer.
- E de mim, você ia falar?
- Eu vou dizer que você não é a condessa, mas que é uma mulher muito rica e de boa família que gosta de brincar com as outras pessoas ricas, e que a gente sabe lá em Portici que os ricos têm mania dessas brincadeiras. Quantas vezes a gente não preparou os iates lá em Portici e em Nápoles para essa gente, que na verdade são os cafetões e as putas de Roma?
- Você não pode fazer isso, Nicolo!
- Não vou falar nada das coisas ruins; eu nem sei que coisas são essas, e você merece que eu não diga nada, porque foi você que trouxe a Angelina para a minha vida.
- Nico, escute uma coisa. Só mais um dia e você vai ficar livre e rico!
- O que é que você está dizendo...?
- Amanhã, só falta amanhã. De noite, vai ser uma coisa rápida! Depois disso eu não vou pedir mais nada, porque eu vou embora...
- Embora...?
- É, meu menino querido, e aí o dinheiro em Nápoles vai ser seu, a família em Ravello vai estar pronta para receber você como um filho de verdade... Você vai ter tudo, Nicolo! Esse é o sonho de milhares de crianças do cais do porto; não jogue tudo fora!
- Amanhã à noite?
- É, e não vai tomar mais que uma hora do seu tempo... E é claro que você pode ir se encontrar com a Angel à tarde; é que eu estava distraída e não prestei atenção no que você disse. Eu vou com você até o aeroporto. Combinado?
- E pare de mentir para mim, Cabi. Não esqueça que eu nasci no cais do porto. Acho que eu capto a verdade mais rápido que você.
No escritório de Ingersol, Hawthorne desligou o telefone e olhou em volta. Entrou no banheiro privativo e abriu o armário de remédios. Havia vários medicamentos, entre eles comprimidos de Valium e antiácidos, além de creme de barbear, um frasco de loção pós-barba, uma latinha de Band-Aid e um rolo de esparadrapo. Sobre a bancada havia uma caixa de mármore com lenços de papel. Tyrell pegou uns cinco ou seis, curvou-se em frente ao espelho, juntou as bordas do talho da cabeça e colocou os lenços sobre o ferimento. Com movimentos rápidos dos dedos, cortou tiras de esparadrapo e prendeu o curativo com o máximo cuidado para que ele não se soltasse. De volta ao escritório, abriu o closet do advogado e pegou um chapéu. O tecido grosso absorveria o sangue até que ele chegasse a Langley - era o seu desejo sincero.
Saiu pelo corredor, pensando na possibilidade de roubar o livro de assinaturas, colocado num lugar tão acessível, com os nomes dos visitantes que faziam tanta questão de aparecer. O caderno da portaria de Van Nostrand havia sido de grande utilidade - e havia alguém nessa casa que era um Scorpio. A morte do velho era uma prova, reforçada pela arma desconhecida na cintura de Tyrell. No entanto, todas as ideias de roubar o livro se anularam quando ele chegou à porta da frente.
- O senhor está de saída? - perguntou o jovem Todd Ingersol, reunindo-se a Hawthorne no vestíbulo.
- Infelizmente eu tenho que ir - respondeu Tyrell, percebendo uma raiva contida na voz do rapaz. - Vim aqui numa missão oficial, e tenho que voltar para o meu trabalho, mas já dei os pêsames para a sua família.
- Acho que a gente já recebeu pêsames demais. Este velório está começando a parecer uma festinha de confraternização ridícula, e eu queria encontrar o meu avô.
- Ahn?
- Ele detesta essas babaquices, igual a mim. Esses caras falam uma frase sobre o meu pai e daqui a pouco já estão falando deles mesmos. Olhe só aquele homem de Cro-Magnon, o general Meyers, ele já está lá, contando vantagem. O papai detestava ele, mas tinha que aturar.
- É lamentável, mas Washington é assim mesmo. - Subitamente, um homem corpulento, de cabeça quase raspada e terno azul liso entrou apressado pela porta da frente e passou ao lado de Hawthorne e do filho de Ingersol. Com passos rápidos, dirigiu-se a Meyers e começou a falar no seu ouvido com ar decidido, quase como se estivesse dando ordens ao General. - Quem é aquele? - perguntou Tyrell.
- É o assistente do Meyers. Ele está tentando tirar ele daqui há mais de meia hora. Eu vi ele segurando o braço do General agora há pouco... Cadê o meu avô? O sr. White disse que ele estava conversando com o senhor. Ele pode botar essa gente para fora daqui com toda a delicadeza. Eu não posso, porque eu não ia conseguir ser delicado e a minha mãe ia ficar uma fera comigo.
- Eu entendo. - Hawthorne observou rapidamente o rosto do rapaz. - Escute, Todd... O seu nome é Todd, não é?
- É, sim.
- Talvez o que eu vou lhe dizer não faça sentido para você agora, mas o seu avô ama você, e muito. Eu não conheço ele muito bem, mas pelos poucos minutos que eu conversei com ele, vi que ele é um homem excepcional.
- Todos nós sabemos disso...
- Nunca se esqueça disso, Todd, e nunca duvide... Pelo menos no que diz respeito a você.
- Por que o senhor está me dizendo isto?
- Eu não sei bem. Só quero que você saiba que eu estou saindo desta casa com as mãos limpas.
- O seu rosto, sr. Hawthorne. Olhe o seu rosto!
Tyrell sentiu as gotas de sangue escorrendo-lhe pela face. Virou-se e saiu correndo pela porta.
A meio caminho de Langley, Hawthorne deu uma freada brusca e parou o carro do Departamento de Estado no acostamento. Meyers! O chefe do Gabinete Militar! Um "peso-pesado" no Pentágono - a descrição de O’Ryan. Seria possível? A princípio, aquele nome não dissera nada a Tyrell; ele não se interessava pela estrutura militar e, na verdade, fazia questão de não ler essa seção nos jornais. Mas a figura grotesca do general ficara gravada na sua memória, e a pressa do assistente em levá-lo embora da casa de Ingersol era mais do que suspeita. General Michael Meyers. O mais pesado dos pesos-pesados!
Tyrell pegou o telefone que o ligava diretamente a Poole e apertou a tecla.
- Estou aqui - atendeu o Tenente no mesmo instante.
- Quais são as notícias da Cathy?
- Ela conseguiu mexer a perna esquerda; eles disseram que isso é uma esperança, mas que não é nada conclusivo. E você?
- Esqueça Langley. Ligue para o Palisser e diga que eu estou indo para a casa dele. Tenho uma outra bomba.
30
- Continue em frente! - ordenou Bajaratt, ao ver o motorista da limusine dobrar na entrada de um dos hotéis do aeroporto. - Prefiro um lugar mais afastado.
- Os outros também são perto, senhora - disse o chofer.
- Mas vamos procurar outro, por favor.
Baj ficou olhando para trás, procurando ver se eles estavam sendo seguidos, se havia algum carro hesitante, piscando os faróis - qualquer sinal. Sentia o pulso acelerado vibrando sobre o pacote que ela segurava no colo, o suor escorrendo-lhe pelo pescoço. O Mossad a descobrira, apesar de todos os túneis que ela cavara para se esconder! Jerusalém estava envolvida na operação, enviara o homem que era capaz de identificá-la mais rápido do que qualquer outro, um antigo amante que conhecia seus passos, seu corpo, os pequenos gestos que ficam gravados de forma indelével na memória de um agente secreto que leva para a cama o objeto da sua suspeita.
Como o Mossad se encaixava nisso tudo? Como? Qual era a sua conexão com o círculo da Menina Sanguinária em Washington?... O novo líder dos Scorpios saberia? Ele havia admitido com bastante clareza que não só sabia da missão de Baj, como também a aprovava. Você se lembra de Dallas há trinta anos? Nós lembramos, dissera ele, entusiasmado. Mencionara ainda que detestava esses maricas de Washington, que não nos davam poder de fogo no Vietnã. Valia a pena tentar; com ele, valia a pena.
- Por favor - disse Bajaratt, dirigindo-se ao motorista. - Entre num desses estacionamentos.
- Como, senhora?
- Desculpe, mas é que eu queria tirar umas coisas da mala.
- A senhora é que sabe.
- E, por favor, pare perto de um telefone público.
- Mas tem um aqui no carro.
- Eu prefiro um telefone público.
- É, a senhora tem razão. Eu vi na televisão que as pessoas escutam a conversa no telefone celular dos outros.
- Não estou preocupada com isso.
O que preocupava Baj era outra coisa. Um estacionamento ao ar livre era uma área fechada; os carros que entravam e saíam chamavam a atenção. Se estivessem sendo seguidos, ela logo saberia, e áreas grandes e escuras eram lugares bem conhecidos para Amaya Aquirre... Bajaratt. Ela apalpou a bolsa e sentiu o metal duro do automático. Carregado.
O único carro que entrou alguns minutos depois da limusine foi um jipe pintado de cores berrantes, ocupado por jovens barulhentos. A saída ficava a centenas de metros, do lado oposto, atrás de filas e filas de carros estacionados. Estavam seguros. Baj foi até a cabine telefônica.
- Sou eu - disse ela. - Você pode falar?
- Eu estou na minha carruagem do Pentágono; me dê dez segundos para eu ligar o misturador de vozes, já volto a falar com você. - Oito segundos depois, o chefe do Gabinete Militar retomou a ligação. - Você está muito ansiosa, mocinha. Entreguei o seu plano para um especialista que entendia tudo do assunto; ele já trabalhou no Oriente Médio. Ele vai ser entregue amanhã de manhã, antes da sete horas.
- Você é muito profissional, Scorpio Um, mas não foi por isso que eu liguei. Posso falar à vontade, ou a linha está grampeada?
- Você pode dizer o que quiser, ninguém vai interceptar a nossa conversa.
- Mas você está num automóvel...
- Um automóvel muito especial. Estou voltando do velório de um covarde, de quem me livrei graças a você. O filho da puta ia dar com a língua nos dentes e entregar todos nós.
- Pode ser que ele tenha feito isso.
- Impossível. Eu saberia.
- É verdade, você disse que sabe de tudo.
- E sei mesmo - disse Meyers. - Mas diga o que você quer comigo.
- O Mossad apareceu. O que você sabe sobre isso?
- Apareceu aqui?
- Exatamente.
- Ninguém no governo sabe disso, senão eu saberia. Eu tenho alguns amigos no Mossad, os bons, não os da esquerda.
- Eu não confio em nenhum deles.
- Eu tenho discernimento, moça. Mas primeiro eu penso em mim, os outros vêm depois.
- Eu também?
- Você é a minha prioridade absoluta no momento. Você vai nos trazer de volta ao lugar que merecemos ocupar, e por isso não há nada que eu não esteja disposto a fazer por você. Eu já estou sentindo o cheiro da pólvora, ouvindo os gritos dessa corja de covardes, vendo o avanço das colunas numa grande marcha. Nós vamos reassumir o poder.
- Muerte a toda autoridad!
- O que foi que você disse?
- Nada que interesse a você. Só a mim.
Bajaratt desligou o telefone do estacionamento, com ar intrigado. O homem era um fanático; ela gostava daquilo, desde que fosse verdade, e não apenas uma fachada. Ele estaria sendo sincero, ou seria apenas mais um cúmplice, plantado pelo mesmo círculo que ele dizia repudiar? Ela saberia pela manhã, quando desmontasse a bota de Alá, verificando sua estrutura e seus componentes como só uma ativista qualificada era capaz de fazer. Um técnico poderia montar uma cópia idêntica, mas havia três pontos de contato que não podiam ser reproduzidos sem consequências fatais. Amigo ou inimigo, isso não importava. Ela não lhe contara nada.
Baj pôs outra moeda no telefone e ligou para o Carillon, a fim de pegar os recados com a recepcionista. Havia vários, todos cheios de súplicas, menos um. O recado do gabinete do senador Nesbitt, de Michigan, era de uma precisão magnífica. A visita da condessa à Casa Branca está marcada para amanhã às oito horas da noite. O Senador ligará pela manhã.
Bajaratt voltou para a limusine, perscrutando instintivamente o estacionamento, à procura de carros recém-chegados, e o céu, à procura de aviões.
- Nos leve de volta para o primeiro hotel - disse ela ao motorista. - Eu me precipitei.
Hawthorne estava sentado à mesa da cozinha na casa do secretário de Estado; o anfitrião, raivoso e relutante, estava sentado ao lado da indestrutível cafeteira. A discussão esquentava.
- Você é uma mula, Comandante. Será que não consegue mais raciocinar?
- Palisser, se você não quiser me escutar, a mula aqui é você!
- Rapaz, não se esqueça que eu sou o secretário de Estado.
- Pois você está parecendo tudo menos um secretário!
- Não estou achando graça nenhuma na sua arrogância...
- Outro dia você me disse a mesma coisa sobre o Van Nostrand. Você estava errado, e continua errado agora. Será que podia fazer o favor de pensar e acompanhar o meu raciocínio?
- Eu escutei tudo que o seu assistente me disse, o... como é mesmo o nome dele? E a minha cabeça ainda está zonza.
- O nome dele é Poole, e ele é primeiro-tenente da Força Aérea, e é muito mais inteligente do que nós dois, e tudo o que ele disse é verdade. Eu estava lá; você, não.
- Vamos falar claro, Hawthorne - disse Palisser. - Que motivos você tem para levar a sério o que o juiz Ingersol disse? Ele já tem quase noventa anos, o filho dele foi assassinado de uma forma brutal, e ele passou o dia inteiro viajando de avião, com uma diferença de fuso de seis ou sete horas. Considerando a idade dele e o choque que ele sofreu, um velho como o Ingersol, abalado como está, poderia muito bem fantasiar, imaginar um exército de demônios saindo do inferno para fazer um estrago no mundo, inclusive matar o filho dele... Meu Deus! Uma rede secreta chamada Scorpio, com líderes de elite que obedecem às ordens de um grupo místico de Provedores! Isto é completamente improvável, é uma ficção absurda!
- O Schutzstaffel também era.
- O início do nazismo?
- Os mesmos bandidos que ganhavam uniformes e milhares de pares de botas de couro, numa época em que um carrinho de mão transbordando de marcos não dava para comprar um pão. Em pleno colapso econômico da república de Weimar.
- Do que é que você está falando?
- Estou falando de uma coisa muito relevante, Secretário. Alguém fornecia aqueles uniformes e aquelas botas; essas coisas não surgiam do nada; elas eram compradas e pagas por grupos de interesses muito específicos que queriam dominar um país! Esses Provedores aqui não são muito diferentes. Eles querem ganhar controle sobre o governo, e um meio para conseguir isso é através do assassinato do Presidente e do caos que vai ser depois. Eles estão no Senado e no Pentágono, isso é o que nós já sabemos, e devem estar também nos tribunais e nos meios de comunicação, prontos para ocupar o vazio de poder.
- O que você quer dizer com "nós já sabemos"?
- Os Ingersol, o pai e o filho, deduziram, a partir do que o filho sabia e do que o Van Nostrand contou para o velho na Costa do Sol.
- Van Nostrand...?
- Exatamente. Aquele engomadinho filho da puta era o chefe da organização. Ele contou tudo para o nosso juiz, e deixou claro que eles iam mandar em Washington e que nem o Ingersol nem o filho podiam fazer nada. Os dois eram a prova; por duas gerações.
- Isto é um absurdo!
- E assim como é certo que você e o secretário de Defesa estão limpos, o chefe do Gabinete Militar não está. Ele é um dos Scorpios.
- Você é um louco furioso...
- Eu estou furioso, Palisser, mas estou mais lúcido do que nunca, e levei um talho na cabeça para provar.
Hawthorne tirou o chapéu que roubara do escritório de Ingersol e curvou a cabeça para mostrar o curativo cheio de sangue.
- Isto foi na casa do Ingersol?
- Há menos de duas horas, e o general Meyers, o todo-poderoso chefe do Gabinete Militar, estava lá. Um dos Scorpios foi descrito como "um peso-pesado do Pentágono, o mais pesado de todos". Você precisa de um mapa para ir da casa do Ingersol até o Pentágono, Secretário?
- Nós vamos conversar com o velho na presença de um médico - disse Palisser, ríspido.
- Desculpe, mas eu vou usar uma técnica antiga. - Hawthorne baixou a voz e apoiou-se na mesa, com ar fatigado, os cabelos molhados de suor. - Uma técnica que eu aperfeiçoei em Amsterdã; quando eu queria convencer outra pessoa e ela relutava, eu usava um argumento definitivo... Você não pode conversar com o juiz Ingersol porque ele está morto. Com um tiro de Magnum 38 na testa, e me armaram uma cilada para todo mundo achar que o assassino fui eu.
Palisser empurrou a cadeira para trás no chão de pedra da cozinha.
- O que é que você...
- É verdade, Secretário.
- Se fosse verdade, eu já estaria sabendo! Todo mundo estaria sabendo!
- Não através do Pentágono, e é perfeitamente possível que ninguém na casa do Ingersol tenha ido até o jardinzinho atrás da piscina. Pode ser que o corpo só seja encontrado amanhã de manhã; o evento desta noite não é propício para banhos de piscina, a não ser que essas festinhas de Washington sejam de um mau gosto muito maior do que eu pensava.
- Quem matou ele e por quê? - O rosto de Palisser estava branco, os lábios entreabertos com o choque.
- Eu só posso dar um palpite, com base no que vi e no que me contaram, na hora em que me derrubaram e na hora em que eu estava saindo da casa. Eu vi o assistente do Meyers, nervosíssimo, correndo para falar com ele e praticamente obrigando o General a ir embora, o que não é exatamente o comportamento que se espera de um subordinado em relação ao chefe do Gabinete Militar. Aí o filho do Ingersol disse que o assistente estava há meia hora tentando tirar o General dali. Isso corresponde à hora em que o Ingersol foi morto e eu desmaiei.
- Nada disso faz sentido. Por que alguém haveria de querer matar o velho?
- Porque os Scorpios existem, são pessoas de carne e osso. Eu não sei o que foi que o assassino ouviu, mas o Ingersol estava prestes a me dar os nomes de duas pessoas que sempre visitavam o Van Nostrand na Costa do Sol. Ele achava que esses nomes eram uma chave para os Scorpios... ele estava obcecado com esse assunto. Estava disposto a tudo para acabar com o domínio que os Scorpios tinham sobre o filho dele.
- Você está dizendo, então, que foi o assistente do Meyers quem matou o velho Ingersol?
- Para mim, é a única explicação que faz sentido.
- Mas se quando você estava indo embora viu ele, como ele não viu você, a pessoa que tinha acabado de atacar com tanta violência? E se ele viu, por que não fez nada?
- O vestíbulo estava lotado e escuro e eu estava com este chapéu. Além disso, ele passou por mim e pelo garoto que nem um azougue. Parecia que ele só conseguia pensar numa coisa: ir embora dali.
- E com base nessas suposições vagas você quer que eu impugne a integridade e o patriotismo do chefe do Gabinete Militar, um homem que foi prisioneiro de guerra no Vietnã do Norte durante quatro anos? Quer que eu mande prender o General?
- Não, essa é a última coisa que eu quero que você faça! - respondeu Tyrell, enfático. - Eu quero que você me ajude a fazer o que eu já estava fazendo, me insinuando no meio dessas pessoas o mais rápido possível... Ele faz parte do "círculo", não é? É um dos poucos que são informados diariamente, a toda hora, sobre o andamento da operação Menina Sanguinária, certo?
- Claro, ele é o...
- Eu sei quem ele é - interrompeu Hawthorne. - Mas ele não sabe que eu sei que ele é um Scorpio.
- E daí?
- Marque um encontro, diga que eu quero falar com ele. Sou um especialista no caso da Bajaratt, e quase fui morto na casa do Ingersol.
- Meu Deus, se você estiver certo, ele mandou matar você!
- Mas eu não sei disto, e nem desconfio - disse Tyrell, com cinismo. - Eu acho que foi outra pessoa que estava na casa e, como ele estava lá, quero me unir a ele para descobrir quem foi. - Hawthorne virou-se subitamente e aproximou-se do forno embutido na parede; sua voz tornou-se dura, inquisitória. - Pense, General! Lembre-se de cada nome, de cada rosto que o senhor for capaz! É vital, alguém ali naquele meio está trabalhando para a Menina Sanguinária! - Tyrell virou-se novamente e olhou para Palisser. - Está vendo como é que se faz, Secretário?
- Ele vai desconfiar.
- Se eu fizer a coisa bem feita, não vai. Por falar nisso, vou precisar de um gravadorzinho daqueles pequenos, que cabem no bolso da camisa. Quero gravar tudo o que aquele filho da puta disser.
- Hawthorne, eu não preciso lhe dizer que se você estiver certo e o Meyers desconfiar que está sendo gravado, ele vai matar você.
- Se ele tentar, ele não vai ter muito futuro.
O general Meyers, chefe do Gabinete Militar, esperava, impaciente, com o tórax nu, enquanto seu assistente tirava seu braço postiço. Depois que todas as tiras foram retiradas, o General sacudiu o toco de braço que se projetava do seu ombro, aborrecido ao ver que a pele estava avermelhada; precisava de prendedores novos.
- Vou pegar a pomada - disse o assistente, acompanhando o olhar do seu superior e notando sua mudança de expressão.
- Primeiro prepare um drinque para mim, e anote na sua agenda um telefonema para os médicos do Walter Reed amanhã de manhã. Diga a eles para ver se acertam desta vez, está bem?
- Nós dissemos isto da outra vez - respondeu o suboficial, um homem de meia-idade - no ano passado. Eu já disse mais de mil vezes que, com o tempo, essa coisa estica, e quando ela fica frouxa, ela roça no ombro e machuca. Mas você nunca me escuta.
- Você é um pentelho...
- Não me insulte, seu babaca. Você tem uma dívida comigo por esta noite.
- Eu sei - disse o General, rindo. - Mas tome cuidado, senão eu tiro de você aquele Porsche lindo que está escondido lá em Easton.
- Pode tirar. Eu fico com a Ferrari que você guardou em Annapolis; ela também está no meu nome.
- Você não passa de um soldado raso, Johnny.
- Eu sei disto - disse o suboficial, servindo dois copos no bar e olhando para Meyers. - A gente trabalha junto há muito tempo, Michael. Tem sido uma vida boa, apesar de alguns episódios desagradáveis.
- E vai ficar ainda melhor - acrescentou o General, sentando-se numa espreguiçadeira, com os pés sobre uma almofada. - Nós estamos voltando para o lugar que sempre foi nosso.
- A história desta noite tem alguma coisa a ver com isso?
- Pode acreditar que sim - respondeu Meyers, pensativo, contemplando a parede. - Aqueles Ingersol, o pai e o filho, eram dois picaretas ordinários, dois covardes. Eles estavam ligados com aquele Hawthorne, os dois, e isso é um perigo.
- Hawthorne...? Aquele que estava com o velho? Se você não quiser, não precisa me dizer. Eu não sou curioso, só obedeço ao meu chefe.
- O Ed White me disse que ele estava lá fora com o velho. O White queria saber se eu tinha ouvido falar de uma investigação do Departamento de Estado sobre o sócio dele. Era tudo uma cortina de fumaça. O Hawthorne estava preocupado era com outra coisa. Péssimo.
- Agora você não precisa mais se preocupar. Os dois estão fora. - O telefone tocou, fazendo com que a atenção do suboficial Johnny se desviasse das bebidas. - Residência do general Meyers - atendeu ele. - Sim, senhor! - exclamou, alguns segundos depois, voltando-se rapidamente para o General, com uma expressão estarrecida. - Ele está no banho, sr. Secretário, mas eu peço para ele ligar de volta para o senhor assim que terminar. - O subordinado pegou um lápis e anotou o número num bloquinho de notas. - Sim, senhor, está anotado. Ele liga de volta daqui a pouco. - O homem desligou o telefone, ainda com os olhos no General; engoliu em seco antes de começar a falar. - Era o secretário de Estado! Devem ter encontrado os corpos... Nossa Senhora, e você ainda queria ficar mais tempo lá!
- Você tem certeza de que não foi visto no jardim?
- De jeito nenhum! Eu sou muito bom, você sabe disso. Quantas vezes não já fiz esse tipo de coisa com aqueles traidores amarelos em Hon Chow? Nove mortes sem nenhuma pista.
- Acredito em você. O que foi que o Palisser disse?
- Só que aconteceu uma coisa terrível e que eles, ele disse eles, precisavam da sua ajuda... Eu não quero me envolver nisto, Michael. Não quero dirigir o seu carro, não quero ser visto com você, pelo menos hoje!
- Você tem razão. Vá buscar o seu substituto, o Everett, e mande ele botar um terno escuro. No caminho, vá contando para ele tudo o que aconteceu naquela casa, principalmente as pessoas que você viu e cumprimentou.
- Já estou indo - disse Johnny, trazendo o drinque de Meyers e dirigindo-se à porta. - Não demore muito a ligar para o Palisser. Ele estava muito nervoso.
- Você se esqueceu de uma coisa, Sargento, a sua letra é horrível. Vou ter que decifrar o telefone do Secretário.
- Pelo amor de Deus, Michael, ele vai ligar de novo, não vai ficar bem para você.
- Não se preocupe. Os seus setes parecem dois, e os seus três parecem oitos...
- Seu idiota! Você podia me perguntar!
- Não foi possível, e isto em parte é verdade. Eu mandei você dar uma volta, caso o assunto do Secretário fosse confidencial. Só pessoas muito importantes podem receber informações sobre uma certa menina.
- Que porra é essa que você está falando?
- Está vendo o que eu digo? Vá indo, Johnny.
O assistente sacudiu a cabeça e saiu, murmurando palavrões. Meyers deu um gole no seu uísque canadense, pensativo, os olhos no telefone do bar. Bruce Palisser era corajoso, inteligente e, provavelmente, o homem mais honesto do governo, como a mídia sempre sugeria. Ele não protelava decisões; tomava qualquer atitude que julgasse necessária, muitas vezes contra a vontade dos seus assessores, e corriam boatos - sempre negados com toda a cordialidade - de que ele já havia repreendido o próprio Presidente a respeito de certas questões. Era respeitado por toda a administração, e um homem como ele não entrava nos jogos que se armavam em Washington; isso não fazia parte da sua personalidade. Se ele ligara pedindo ajuda, era porque queria a sua ajuda; era honesto demais para forjar qualquer pedido. No fundo, Meyers não gostava do secretário de Estado - acadêmicos não eram muito úteis no governo; eles gostavam de debates intermináveis, discutiam todos os aspectos de uma questão sem se comprometer com nenhum deles - mas ele respeitava o sujeito.
O General levantou-se lentamente, apoiando a mão esquerda no braço da poltrona de couro, pegou o copo e se dirigiu ao bar. Pousou o copo na superfície de mármore negro e virou o pulso para ver as horas. Johnny saíra há sete minutos; Meyers pegou o telefone e digitou os números, anotados com toda a clareza pelo assistente.
- Aqui é o Palisser - atendeu o secretário de Estado.
- Desculpe, Bruce - começou Meyers, com a voz firme. - O Sargento é um ótimo ajudante, mas a letra dele é ilegível. Eu liguei para três outros números até conseguir decifrar o seu. Eu mandei ele sair, claro, e podemos falar à vontade.
- Eu já ia ligar de novo, Michael. Aconteceu uma coisa terrível... terrível e absurda, mas que pode ter alguma ligação com a Bajaratt.
- Meu Deus, o que foi?
- Você esteve na casa do Ingersol hoje, não é?
- É, o pessoal do meu gabinete achou que eu devia dar um pulo lá. O David era amigo do Pentágono; volta e meia a gente pedia que ele nos desse uma consultoria jurídica sobre os contratos na área da Defesa.
- Talvez isso tenha sido um erro, mas vocês não tinham como saber.
- Não estou entendendo.
- Você está acompanhando os relatórios sobre a operação Menina Sanguinária, não está?
- Claro que estou.
- Então está sabendo que é certo que existe uma organização por trás dela, de que tipo nós não sabemos, mas são pessoas influentes que estão trabalhando para ela.
- Isso é óbvio - disse o General, com um sorriso maligno. - Se ela não tivesse a ajuda de alguém poderoso, já teria sido pega.
- Hoje tivemos um fato novo. Ainda não está circulando por falta de documentação suficiente, mas é um fato indiscutível. Esta noite foi a prova.
- Prova de quê?
- De que o Ingersol fazia parte do grupo da Bajaratt.
- O David! - exclamou Meyers, numa surpresa fingida. - Esta era a última coisa que eu esperava ouvir na minha vida.
- E tem mais. O pai dele, o juiz da Corte Suprema, também.
- É difícil acreditar nisso. Quem foi que descobriu?
- O comandante Hawthorne.
- Quem?... Ah, já me lembrei, aquele ex-agente da inteligência naval que foi contratado pelos ingleses.
- Ele escapou por pouco de ser morto. Ele também estava na casa do Ingersol.
- Escapou...? - Meyers estava chocado, mas logo se recuperou. - O que foi que aconteceu?
- Ele estava no jardim, atrás da piscina, conversando com o velho, que estava contando a ele uma série de detalhes escandalosos sobre ele e o filho. Parece que eles foram seguidos, e alguém deu um tiro na testa do Ingersol, que morreu na hora. E antes que o Hawthorne pudesse reagir, a mesma pessoa deu um golpe na cabeça dele e foi embora, deixando ele desmaiado e com a arma do crime na mão.
- Que coisa incrível! - disse o General, sem alterar a voz.
- A CIA mandou uma equipe de socorro para remover o cadáver. Eles disseram à sra. Ingersol e ao filho que o velho estava cansado e tinha ido para um hotel.
- E os dois acreditaram?
- O filho, pelo menos, acreditou. Ele disse que, se soubesse, teria ido junto com o avô. Já que o que aconteceu está ligado à Menina Sanguinária, temos que manter sigilo e pensar numa explicação para dar depois.
- Concordo, mas, Nossa Senhora, Bruce, eu não ouvi nenhum tiro, e teria reconhecido o barulho a um quilômetro de distância!
- Não teria, não. O Comandante trouxe a arma, é um Magnum 38 com silenciador. Ele voltou a si antes que descobrissem alguma coisa; foram os espinhos de uma roseira que fizeram ele acordar... Ele está aqui, e quer falar com você.
Antes que o chefe do Gabinete Militar, perplexo, conseguisse assimilar a notícia, Hawthorne já estava na linha.
- General Meyers?
- Sim...?
- Antes de mais nada, General, eu sou um grande admirador seu.
- Obrigado.
- Nós temos que conversar com urgência, mas não pelo telefone. Temos que analisar tudo o que nós vimos esta noite, todas as pessoas que o senhor viu e com quem conversou; eu não conhecia ninguém lá. A única coisa que sei é o seguinte, General: alguém que estava naquela casa está trabalhando para a Bajaratt.
- Onde você quer se encontrar comigo?
- Posso ir aí na sua casa.
- Então eu estou esperando, Comandante.
O general Meyers desligou o telefone e, por alguns instantes, ficou a contemplar o toco de braço que se projetava do seu ombro. Ele não chegara até ali para ser derrotado por um vira-casaca.
31
SEDE DO MOSSAD, TEL AVIV
O coronel Daniel Abrams, da divisão antiterrorismo encarregada do empreendimento Bajaratt, estava à cabeceira da mesa de reuniões. À sua direita, estava uma mulher de pouco menos de quarenta anos, a pele bronzeada pelo sol de Israel, os cabelos escuros penteados para trás, presos por um coque na nuca. À esquerda, um homem jovem, louro, quase careca, de olhos azuis; seu nariz fora reconstituído, depois de ter sido esmagado durante a sua captura pelo Hezbollah, o Partido de Deus, no sul do Líbano. Eram, respectivamente, uma major e um capitão, agentes do Mossad, especialistas em operações secretas.
- O nosso Yakov foi ludibriado pela Bajaratt - disse o Coronel. - Ele encontrou com ela no terminal da El Al, no aeroporto Dulles, mas ela passou a perna nele. Ela quase criou um tumulto, dizendo que ele era um terrorista palestino disfarçado, e fugiu. O Yakov quase foi linchado, mas aí o nosso pessoal resolveu deixar ele falar e ele mostrou os documentos.
- Ele nunca deveria ter-se aproximado dela sozinho - disse a Major. - É claro que ela ia reconhecer o Yakov; eles tiveram um caso no kibutz Bar-Shoen. Ela tinha uma vantagem imediata.
- Ou poderia ter sido o contrário - sugeriu o jovem capitão. - O Yakov não sabia que ela era a Bajaratt, quando eles estavam no kibutz. Nós descobrimos isto mais tarde, depois de Ashkelon, através dos nossos agentes no Baaka. Ele só suspeitava dela, achava que ela estava escondendo alguma coisa.
- E estava mesmo - disse Abrams. - Como foi que o Yakov deixou ela escapar?
- Ele não deixou. Ele começou a sair com ela, assim, sem compromisso, para ver se conseguia descobrir alguma coisa sobre ela. Ela também devia estar com as mesmas intenções, e descobriu mais coisas a respeito dele do que ele a respeito dela. Um belo dia ela não apareceu para tomar o café da manhã. Tinha ido embora.
- Então foi mesmo uma estupidez ele ter ido sozinho ao encontro dela, e ainda mais se confrontar com ela desse jeito.
- Escute, Major - disse o capitão -, você preferia que ela fosse cercada por um bando de agentes, o que ia resultar sem dúvida num tiroteio onde várias pessoas iam morrer, principalmente americanos? Nós decidimos que ele iria sozinho porque era capaz de reconhecer a Bajaratt, apesar do tão famoso talento que ela tem para se disfarçar. Além disto, o Yakov também se disfarçou: tingiu o cabelo de louro, mais louro do que o meu, do que me restou, e mudou a forma da sobrancelha. Não era nenhuma perfeição, isso só se ele fizesse uma plástica; mas era o suficiente, até para ele chegar perto dela.
- Os homens olham primeiro para o rosto, depois examinam o corpo. As mulheres prestam mais atenção no corpo, só depois é que elas olham para o rosto.
- Por favor - interrompeu o coronel Abrams. - Não vamos entrar nesse tipo de especulação.
- Mas está provado, Coronel.
- Pode ser, mas essa desventura produziu outros resultados, e temos que decidir como usar isso... Conseguimos fazer o nosso prisioneiro palestino abrir o bico, o cantor que entretinha tanto os nossos agentes superalertas, aqueles idiotas. Um guarda disse que o palestino tentou suborná-lo para fugir; então transferimos o nosso prisioneiro para o Negev e mandamos o guarda para outro posto.
- Eu achava que o pessoal de Ashkelon tinha jurado que mesmo que eles fossem torturados até a morte, não iam revelar nada - disse a mulher, com desdém. - Grande coragem, essa dos árabes.
- Que comentário estúpido, Major - censurou o Coronel. - Tudo indica que nenhuma tortura daria resultado. Aliás, a gente não usa esses métodos, pelo menos no sentido usual. Quando é que vamos aprender que essa gente é tão comprometida quanto nós? Só quando aceitarmos a paz. O que nós usamos foram drogas.
- Aceito a correção, Coronel. O que foi que descobrimos?
- Nós fizemos ele repetir tudo o que a Bajaratt disse nos vários telefonemas que ela deu dos Estados Unidos, cada palavra, cada nome, cada frase, para ver o que poderíamos descobrir. E acabamos descobrindo. - O agente do Mossad tirou do bolso da camisa um caderninho de anotações e o abriu. - Olhem aqui as palavras dela: "um senador americano... estratégia bem-sucedida... ele está nos ajudando... o nome dele é Nesbitt".
- Quem?
- Um senador do estado de Michigan chamado Nesbitt. Ele é a chave de tudo. Nós vamos transmitir essa mensagem para Washington, é claro, mas não através dos canais corriqueiros. Para ser franco, eu não confio mais nas telecomunicações: já teve coisa demais dando errado.
- Nós já poderíamos ter pego a Bajaratt, a esta altura - disse o jovem agente do Mossad. - É ridículo.
- A arrogância não resolve nada, Capitão. Nós não estamos lá, e ela é uma adversária muito competente. E obstinada, também, mais do que qualquer outra pessoa que eu já tenha estudado. Acho que isso vem lá da estância dela, e talvez esse seja o único meio de explicar tanto fanatismo.
- Que canal você pretende usar, Coronel? - A Major estava impaciente.
- Vocês dois - respondeu o oficial. - Vocês partem hoje à noite e chegam lá de manhã, pelo horário de Washington. Quando chegarem, vão procurar diretamente o Palisser, o secretário de Estado, mais ninguém... até lá já vou ter marcado uma audiência imediata.
- Por que ele? - perguntou o Capitão, num certo tom de protesto.
- Acho que você devia escolher alguém do serviço de inteligência.
- Eu conheço Palisser e confio nele. E acho que não conheço mais ninguém em quem possa confiar. Eu sei que vocês devem estar achando que eu sou paranoico, não é?
- Estamos, sim, Coronel - disse a Major.
- Pois que seja - replicou o Coronel.
Bajaratt estava junto à janela do hotel do aeroporto, uma janela de vidro espesso que abafava o som dos jatos que chegavam e partiam. O sol estava surgindo em meio à névoa, anunciando o dia mais importante da sua vida. O entusiasmo que ela sentia não era muito diferente da alegria que experimentara, há muitos anos, ao levar um soldado espanhol para o meio da floresta, com um facão afiado preso à cintura, por baixo do vestido. A semelhança estava aí, pois aquele animal selvagem fora a sua primeira vítima, o que a enchera de determinação, mas o dia de hoje estava muito distante daqueles sentimentos infantis. Hoje era o dia do triunfo de uma mulher, uma adulta racional que conseguira vencer pela esperteza a guarda pretoriana da nação mais poderosa do mundo. Ela iria entrar para a História, mudar o rumo da História; sua vida estaria finalmente justificada. Muerte a toda autoridad!
A menina do passado sorriu para ela, para o gigante que era a mulher, e nesse sorriso havia amor e gratidão pela vingança de tudo o que fora feito a elas duas. Nós vamos entrar juntas, minha menina, na glória sangrenta da vingança. Não tenha medo, minha menina que sou eu. Você não tinha medo naquele tempo, não tenha medo agora. A morte é um sono tranquilo, e talvez a pior coisa para nós seja sobreviver. Mas se for assim, menina, conserve o fogo que existe nos seus olhos, a fúria que existe no seu peito.
- Cabi - exclamou Nicolo, da cama. - Que horas são?
- Cedo demais para você acordar - respondeu Bajaratt. - A sua Angel ainda nem embarcou na Califórnia.
- Mas pelo menos já amanheceu - disse o rapaz, abrindo um bocejo barulhento e espreguiçando-se. - Passei a noite toda acordando, esperando o sol nascer.
- Ligue para a copa e peça um daqueles cafés da manhã pantagruélicos que você gosta; quando você acabar eu tenho uma tarefa para você. Quero que você se vista e tome um táxi até o Carillon. Chegando lá, pegue na recepção o resto da nossa bagagem e um pacote que está lá para mim, e traga tudo para cá.
- Ótimo, vai ajudar a passar o tempo... Quer que eu peça alguma coisa para você?
- Só um café, Nico. Vou tomar uma xicrinha, depois vou sair para dar um passeio, um longo passeio nesse sol brilhante e glorioso que sobe no céu.
- Isto é um poema, Cabi?
- Se for, não é dos melhores, mas para mim é divino. O dia está divino.
- Por que você está olhando pela janela e falando tão baixo?
Baj voltou-se e olhou para o menino das docas de Portici deitado na cama.
- Porque está chegando o fim, Nicolo, o fim de uma viagem muito longa e difícil.
- Ah, é verdade, você disse que a partir de hoje à noite eu estava livre para fazer tudo o que quisesse. Voltar para Nápoles, pegar todo aquele dinheiro que você deixou para mim, e até ia ficar com a família Ravello, que você disse ia me receber como um filho.
- É isso mesmo que você deve fazer.
- Sabe, Cabi, eu estive pensando. É claro que eu vou voltar para a Itália, e que vou pelo menos me apresentar para essa família tão boa e agradecer a eles, mesmo que eu não fique morando lá, mas será que isso não pode esperar mais um pouco?
- Para quê?
- E precisa perguntar, bella signora? Eu queria passar uns dias com a Angelina.
- Faça como você quiser.
- Mas você disse que ia embora hoje à noite...
- É verdade, eu disse - concordou Bajaratt.
- Então eu vou precisar de muito dinheiro, porque sou o barone-cadetto di Ravello e tenho que manter a minha imagem.
- Nicolo, o que é que você está me dizendo?
- Exatamente o que você ouviu, mia bella signora. - O jovem italiano atirou longe os lençóis e levantou-se, nu, encarando a sua benfeitora. - Não quero mais ser um menino do cais do porto, Cabi, mas em algumas coisas, eu nunca vou mudar. Estudei os fari al casos, as notas que você manda eu pedir nos hotéis e restaurantes, e prestei atenção em você... É só você dar um telefonema que mandam entregar dinheiro para você, geralmente à noite e sempre num envelope grosso. Palm Beach, Nova York, Washington; todas as vezes foi a mesma coisa.
- E como é que você queria que a gente vivesse? - perguntou Bajaratt, calma, com um sorriso meigo. - Com cartões de crédito?
- E como é que eu vou viver depois que você for embora? Eu quero ficar mais um tempo aqui. Acho que você não pensou nesse assunto, e isso me preocupa. Os meninos do cais do porto não saem de perto dos turistas porque têm medo que eles desapareçam sem dar a gorjeta.
- Você está me dizendo que quer dinheiro?
- Estou, sim, e acho que era melhor você me pagar logo, antes de hoje à noite.
- Hoje à noite...?
- Muito antes de hoje à noite. Num desses envelopes pesadões, que eu vou dar a Angel quando eu me encontrar com ela no aeroporto. Eu até já pensei numa quantia, que calculei pelas notas que trago para você - continuou Nicolo, ignorando a fúria que se estampava no rosto de Bajaratt. - Esta vida que a gente leva é tão cara... Vinte e cinco mil dólares está bom. Claro, você pode descontar esses dólares da minha conta em Nápoles, eu assino um papel autorizando.
- Você é um verme, não vale nada! Como se atreve a falar assim comigo? Fazer essas exigências descabidas a mim, quando fui eu que abri todas as portas para você? Eu me recuso a continuar esta conversa, isto é um ultraje!
- Então também me recuso a ir buscar a sua bagagem, e quando você voltar do seu passeio, não vai me encontrar aqui... E pode ir sozinha hoje à noite, nesse compromisso que você está fazendo tanto mistério. Uma dama como você não precisa de um verme como eu.
- Nicolo, você vai ser apresentado ao homem mais poderoso do mundo. Eu prometi isso a você! Você vai conhecer o Presidente dos Estados Unidos!
- Eu não tenho o menor interesse nele. E ele, será que ele tem algum interesse em mim? Ou é no barone-cadetto di Ravello, que não sou eu?
- Não faça assim comigo! - gritou Baj. - Eu vivi para isto, trabalhei para isto! Você não é capaz de entender?
- Eu sou capaz de entender um envelope, que eu tenho certeza que a Angelina não vai abrir até eu chegar na casa dela, no Brooklin. Sei que no fundo do meu coração, ela vai me ajudar a me livrar do menino do cais do porto. - Nico continuava de pé, os olhos furiosos crivados nos de Bajaratt. - Faça o que eu estou mandando, Cabi. Faça, senão eu vou-me embora.
- Seu filho da puta!
- Foi você quem me ensinou isso, bela signora. Quando a gente chegou naquela ilha estranha, depois de todas aquelas tempestades, eu disse que você era um monstro... você é pior que um monstro, é tão má que eu não consigo entender. Pegue o telefone e ligue para um dos seus subalterni. Me arranje o dinheiro até meio-dia, senão eu vou embora.
SEDE DO MI-6, LONDRES
Já passava da meia-noite quando um negro entrou correndo na sala de reuniões, fechou a porta e se dirigiu ao primeiro assento do lado esquerdo da mesa redonda. Usava um casaco de camurça marrom de franjas e calças cor de ferrugem cintilantes. Havia mais três homens presentes: no lado norte da mesa estava o diretor, Sir John Howell; à esquerda dele, um homem de terno escuro riscado; e ao lado do recém-chegado, uma figura de cafetã, o turbante pousado ao lado da pasta à sua frente. Sua pele era escura, nem preta, nem branca. Um árabe.
- Acho que fizemos uma descoberta importante - disse o recém-chegado, tentando alisar os cabelos rebeldes; seu sotaque era de um inglês da elite. - A primeira pista veio da garagem.
- Como assim? - perguntou o homem de terno riscado.
- Foi um dos mecânicos mais antigos da Downing Street. Ele notou em várias ocasiões que alguém tinha aberto o capô de dois carros diplomáticos para ver o motor enquanto esses carros estavam fora.
- E daí? - perguntou Sir John. - Se tinha algum problema com o tal motor, como é que alguém ia descobrir o que era sem abrir o capô?
- Mas são carros diplomáticos - disse o agente do Oriente Médio. - É proibido mexer neles.
- E todos os motoristas, antes de serem admitidos, passam por todos os tipos de testes, só falta submeterem eles a um encefalograma.
- Aí é que está, Sr. Diretor - interrompeu o negro com sotaque de Oxford. - Todos os problemas mecânicos, por menores que sejam, têm que ser comunicados aos encarregados. Além disso, todos os veículos têm um lacre de segurança na alavanca que abre o capô; se o lacre for quebrado antes das inspeções de rotina, aparece uma marca amarela na fita. Ninguém tinha comunicado nenhum problema com esses carros, e eles foram usados pelo mesmo motorista.
- Você está dizendo que talvez um desses encefalogramas tenha falhado? - perguntou o homem de terno riscado, permitindo-se um leve sorriso e olhando para o diretor.
- Ou então o sujeito é muito talentoso e bem treinadíssimo - respondeu o agente negro. - O suficiente para arranjar um emprego na garagem da Downing Street.
- Vamos em frente. Obviamente você sabe o nome desse motorista e mais alguma coisa.
- Muito mais, sr. Diretor. Ele está se fazendo passar por um egípcio naturalizado, um antigo chofer da casa de Anwar Sadat, mas os documentos dele não valem nada; são todos falsos, e muito bem falsificados, por sinal.
- Como foi que ele conseguiu a naturalização? - perguntou o homem de terno riscado. - Quer dizer, o que é que está escrito nos documentos dele?
- O golpe militar contra o Sadat previa que todo mundo que trabalhava para ele fosse morto. O motorista pediu asilo.
- Muito inteligente - disse Howell. - O Sadat era um grande amigo do Ministério das Relações Exteriores. O pessoal de lá abriu as portas para os aliados dele, muito mais do que nós gostaríamos, exatamente por essa razão: tinha muito peixe podre na rede. Continue.
- Ele atende pelo nome de Barudi, e eu passei uma boa parte da noite seguindo-o. Ele esteve no Soho, nos lugares de pior fama da cidade, devo acrescentar, e se encontrou com quatro pessoas diferentes, uma em cada bar... E aqui sou obrigado a fazer um elogio muito merecido.
- Que elogio?
- O treinamento em Sussex foi realmente excelente, sr. Diretor. Estou falando dos objetos em poder das pessoas que nos interessam, quando precisamos de informações adicionais que estão fora do nosso alcance imediato.
- Ahn?
- Eu acho que o James está se referindo ao ofício de bater carteiras - disse o homem de terno riscado. - Parece que ele conseguiu promover isso a uma arte.
- Consegui surrupiar as carteiras de dois desses cavalheiros; a bolsa da mulher foi impossível, e o outro sujeito parecia que não tinha nenhum bolso. Levei as carteiras para o banheiro, tirei cópia de todo o material com a minha minicopiadora, e devolvi aos donos o que lhes pertencia, um deles, infelizmente, para o bolso errado, mas não tive outro jeito.
- Fantástico - disse o Diretor. - E o que foi que você descobriu sobre esses amigos um tanto esquisitos do motorista?
- Bem, as coisas mais corriqueiras, como carteira de motorista e cartão de banco, pareceram autênticas, e devem ser, mesmo, a não ser pelos nomes. Mas em todas as carteiras, tão bem dobrados que ficaram do tamanho de dois selos postais, escondidos no fundo da carteira, encontrei estes papéis. - O agente do MI-6 enfiou a mão no bolso do casaco e tirou quatro rolinhos de papel e os abriu sobre a mesa. - Eu passei a minha copiadora nas duas folhas, e o resultado está aqui.
- O que é isto? - perguntou o homem de terno riscado, enquanto ele e os outros dois pegavam as tiras de papel.
- As linhas datilografadas estão escritas em árabe clássico - disse o homem do Oriente Médio. - Os manuscritos são as traduções.
- Árabe? - interrompeu Howell. - Bajaratt!
- Como vocês estão vendo, são listas de datas, horários e lugares...
- Estas traduções estão muito boas - disse o agente árabe -, os nomes de alguns desses lugares são quase intraduzíveis. Quem foi que fez isto?
- Eu liguei para o nosso arabista no Chelsea e passei lá por volta das nove horas. Ele não demorou muito para traduzir.
- É, eu imagino que não - disse o árabe. - Ele conhecia os nomes desses lugares, e traduziu pela fonética. Muito bom.
- E que lugares são esses? - insistiu o Diretor. - São esconderijos?
- Pois é, foi por isso que eu me atrasei. Passei as últimas três horas indo de um lugar para outro, são doze em cada lista, e no início fiquei desnorteado. Só quando cheguei no quinto lugar foi que comecei a entender. Aí voltei para os quatro primeiros para confirmar e me convenci. Não são esconderijos. São telefones públicos.
- Então, parece óbvio que essas pessoas estão recebendo telefonemas, e não ligando para fora - sugeriu o árabe.
- Por que você disse isto? - perguntou o inglês à sua esquerda.
- Se eles fossem ligar para fora, era só escrever os números de todos os telefones em árabe, mas nesse caso, haveria entre noventa e seis e cento e oitenta dígitos para serem decorados.
- E se só houver um número? - perguntou Jones.
- É possível - respondeu o árabe -, mas isso pressupõe que a pessoa que recebe as ligações está sempre no mesmo lugar, o que excluiria a Bajaratt. Além disto, é muito perigoso usar um número só numa operação como essa. E, finalmente, o perfil que todos conhecemos da Bajaratt indica que ela tem uma verdadeira obsessão pelo sigilo, o que significa que, sempre que possível, ela se recusa a usar intermediários. Ela fala diretamente com seus companheiros.
- Você me convenceu - disse Sir John. - Quando e onde é o próximo contato? - perguntou, examinando a tira de papel sobre a mesa.
- Amanhã ao meio-dia na Brompton Road, Knightsbridge, em frente à Harrods - respondeu o negro. - Sete da manhã, em Washington.
- Aquela multidão que vai fazer compras na hora do almoço - observou o homem de terno riscado. - Parece até uma estratégia do IRA.
- E depois desse, qual é o seguinte? - perguntou o diretor do MI-6.
- Vinte minutos depois, na esquina de Oxford Circus com a Regent.
- Outra multidão - sugeriu o agente de pele cor azeitonada. - Trânsito pesado.
- Eu acho que não preciso lhe dizer o que fazer, John - disse o diretor. - Um carro de comunicações em cada um desses lugares, linhas abertas tanto para Washington quanto para os computadores que controlam esses dois telefones públicos. Precisamos que essas ligações sejam rastreadas na hora, entendeu? Na hora.
- Sim, senhor. Eu tomei a liberdade de alertar a nossa divisão de comunicações, mas acho que o senhor vai ter que falar com o pessoal da companhia telefônica, eles nunca vão aceitar essa ordem de mim. Parece que é preciso autorização da Justiça para o rastreamento.
- Autorização da Justiça, essa não! - explodiu o diretor do MI-6, batendo na mesa com a mão imobilizada. - Pelo amor de Deus, eu mandei o Geoffrey Cooke ao encontro da morte, daqui desta sala. Os mapas estavam bem aqui em cima da mesa, e ele teve que virar as páginas para mim, me explicar as coisas que eu não sabia!... Eu quero ver essa mulher morta! Façam isso por mim, façam isso pelo agente Cooke!
- Nós vamos fazer tudo o mais rápido possível, eu prometo. - disse James, levantando-se.
- Espere! - Sir John Howell fez uma pausa; seu olhar intenso estava subitamente desfocado, e ele abaixou a cabeça, tentando se concentrar. - Eu disse para avisar a todos em Washington, mas isto é muito amplo, envolve gente demais. A própria Bajaratt deve ter companheiros infiltrados, que podem terminar sabendo de tudo. Vamos restringir. Vamos falar com uma pessoa só.
- Quem?
- Quem é que está no lugar do Gillette na CIA?
- Por enquanto, o diretor-adjunto. Os nossos amigos lá dizem que ele é muito bom.
- Ótimo, eu vou ligar para ele. E vou ligar também para aquele sujeito que está coordenando o Hawthorne. Como é mesmo o nome dele?
- Stevens, capitão Henry Stevens, da inteligência naval.
- E qualquer coisa que seja descoberta tem que ficar entre estas quatro paredes, em sigilo total até a gente decidir o que fazer.
A reunião noturna terminara havia dez horas e trinta minutos. Os carros estavam a postos em Knightsbridge e Oxford Circus. No aeroporto Dulles eram quase sete horas da manhã.
32
Bajaratt saiu do hotel do aeroporto, tomou a calçada de cimento e dobrou a esquina do edifício, atenta à entrada. Olhou para o seu relógio incrustado de brilhantes; eram 6:32. Ela havia ficado no quarto do hotel, vendo Nicolo se vestir e devorar um café da manhã digno de um leão e tentando apressá-lo, mas evitando alarmá-lo ainda mais.
Baj observava a entrada do hotel no momento em que o menino das docas, resplandecente, de paletó azul-marinho e calças de flanela cinza, saiu às pressas e se dirigiu ao meio-fio, onde um táxi estava à espera. Ele era sem dúvida a perfeita versão masculina de Galateia, esculpida pela mestra de todos os pigmaliões - um belíssimo ser humano, jovem e vibrante. Era justo que uma criação como aquela morresse na luta por um assassinato magnífico.
Eram 6:47. Ela podia voltar com calma para o hotel. Tinha que fazer cinco ligações - duas para Londres, uma para Paris, uma para Jerusalém, e a última para um banco onde estavam depositadas as reservas ilimitadas do vale do Baaka. Não importava que ela usasse o telefone do hotel, nada mais importava. Ela sairia dali logo em seguida e deixaria o endereço de outro hotel em Washington, para onde Nicolo deveria levar as malas, o único endereço onde ele poderia receber seu dinheiro. Um valor insignificante que ele nunca viria a usar.
KNIGHTSBRIDGE, LONDRES
Na Brompton Road, exatamente em frente à porta da Harrods, três homens esperavam uma caminhonete, na qual estava estampada a marca The Scotch House. O equipamento eletrônico interno estava muito além da compreensão de mortais que mal conseguiam ler os manuais de suas televisões. O veículo à prova de som tinha três janelas de vidro opaco de cada lado, acima dos equipamentos. Os que olhavam para foram viam tudo, mas os que estavam na rua não viam nada dentro do carro. O homem junto à janela próxima ao meio-fio era James, o negro, agente do MI-6. Seus olhos perscrutavam a área em torno da cabine telefônica enquanto seus dois companheiros testavam os equipamentos.
- Olhe ele ali - disse James, de forma abrupta, mas calma.
- Qual deles? - Um técnico de meia-idade, de mangas arregaçadas, ergueu os olhos para a janela.
- Aquele de terno cinza e gravata, com um jornal debaixo do braço.
- Ele não parece com a descrição de nenhum dos dois que você viu lá no Soho - comentou o terceiro, um homem magro, de óculos, girando na cadeira e afastando-se ligeiramente do painel eletrônico. - Parece mais um gerentezinho de banco da Strand.
- E pode ser mesma, mas ele agora está olhando para o relógio indo na direção da cabine... Olhem! Ele acabou de ver uma mulher que parece decidida a chegar lá antes dele!
- Coitada - disse o homem de mangas arregaçadas, com um sorriso. - Ele deve ser jogador de rúgbi, quase derrubou ela no chão.
- E ela não gostou, não - observou o outro, operando o equipamento do lado da rua. - Ela está olhando para ele com um ar furioso.
- É, mas ela também está com pressa demais para ficar ali fazendo cena - disse James, concentrando-se no desentendimento entre os dois desconhecidos. - Ela está indo para a cabine do outro quarteirão.
- Noventa segundos - emergiu uma voz do alto-falante do painel.
- Cheque novamente a sua linha com Washington - ordenou o agente do MI-6.
- Alô, D.C., você está aí, amigo?
- Estou pronto e à espera, Londres.
- Está confirmado que a nossa frequência não pode ser interceptada?
- Confirmadíssimo; nem por um astronauta em órbita. Mas nós queríamos repassar as informações que tivemos para a polícia das áreas mais próximas, para eles poderem mandar gente para o local o mais rápido possível. Eu só digo que é prioridade absoluta, sem entrar em detalhes desnecessários.
- Tudo bem, D.C., vá em frente.
- Obrigado, Londres.
- Tudo pronto - disse o agente do MI-6. - O rastreamento começou.
Silêncio.
Passaram-se oitenta e sete segundos e só se ouvia a respiração contida dos três funcionários do serviço de inteligência. De repente, uma voz de mulher, amplificada pelos alto-falantes, irrompeu em meio a uma subcorrente de estática.
- Ashkelon, sou eu!
- Parece que você está tensa, nossa bem-amada filha de Alá - disse uma voz atarantada, a menos de dez metros da caminhonete.
- É hoje, hoje de noitinha, meu amigo tão devotado!
- Mas já? Nós agradecemos muito, e estamos prontos! Você é de uma eficiência incrível.
- E isso espanta você?
- Em se tratando de você, nada me espanta. Eu sempre admirei a sua capacidade. Tem algum detalhe que a gente precise saber?
- Não, nenhum. Fiquem por perto do rádio. Quando vocês ouvirem a notícia, fiquem preparados para entrar em ação. Em todos os países os governos vão convocar reuniões imediatamente. As capitais vão entrar num caos, num tumulto. Preciso dizer mais alguma coisa?
- Acho que não. Vai ser noite aí e aqui. Escuridão e tumulto são um prato feito para quem está ansioso para matar alguém. E os esquemas de segurança vão ficar vulneráveis, porque eles não vão saber o que esperar. Caos.
- Você sempre foi um dos mais sábios...
- Espere! - O homem na cabine de vidro olhou para a esquerda.
- Meu Deus! - gritou James, dentro da caminhonete, segurando o binóculo. - Ele está olhando para cá!
- Saia já de onde você está! - urrou pelo alto-falante a voz a menos de dez metros de distância. - As janelas, elas são opacas, pretas! Saia já daí, eles estão rastreando você! - O homem de terno escuro largou o telefone, saiu correndo da cabine, esquivou-se pelo trânsito pesado da Brompton Road e desapareceu na multidão que entrava na Harrods.
- Puta que o pariu! - gritou o agente James. - Perdemos o sujeito!
- Washington, Washington! - repetiu o técnico. - Londres chamando, por favor, entre na linha, estamos com um problema aqui.
- Estamos sabendo de tudo, Londres - disse a voz do americano. - Nós escutamos a mesma coisa que vocês, esqueceram?
- E então?
- Já localizamos o telefone. É de um hotel no aeroporto Dulles.
- Excelente, cara. Então, vocês estão tomando as providências?
- Não é tão excelente nem tão fácil assim, mas estamos tomando as providências.
- Me explique isto, por favor! - gritou o agente do MI-6, inclinando-se sobre o painel.
- Bem, para começar - disse o americano - o hotel tem duzentos e setenta e cinco quartos, ou seja, duzentos e setenta e cinco telefones que não têm que passar pela telefonista para ligar para Londres ou para qualquer outro lugar do mundo.
- Você não pode estar falando sério! - gritou James. - Virem pelo avesso a porra da mesa telefônica!
- Seja mais realista, Londres, aquilo lá é um hotel, não é a CIA. Mas não fique tão nervoso, a segurança do Dulles já está avisada e vai estar lá o mais rápido possível.
- O mais rápido possível? Por que eles ainda não estão lá?
- Porque o Dulles ocupa uma área de mais de quarenta quilômetros quadrados, e acontece que nós estamos numa recessão, e muitos serviços sofreram cortes severos, entre eles o policiamento nas áreas públicas.
- Eu não acredito! Isto é uma emergência máxima!
O gerente do hotel do aeroporto Dulles levantou-se bruscamente da escrivaninha com o telefone na mão. Estava discutindo com um fornecedor de roupa de cama, quando a telefonista interrompeu a conversa, dizendo que havia uma emergência e que ele deveria permanecer na linha para atender à polícia. Seguiu-se a voz firme e fria de um homem que se identificou como o chefe da segurança do aeroporto. Sua solicitação foi breve e concisa. Os computadores e todos os elevadores do hotel deveriam ser desligados imediatamente; aos hóspedes deveria ser comunicado que houvera uma pane elétrica generalizada, ou qualquer explicação que o gerente julgasse apropriada, mas todas as saídas do hotel deveriam ser retardadas ao máximo e todos os serviços, suspensos. Agitado, o gerente dirigiu-se à sua secretária e transmitiu-lhe as ordens.
A dois quarteirões do hotel, o primeiro dos três carros de polícia se dirigia às pressas ao hotel; a sirene ligada abria caminho no trânsito.
- O que é que a gente está procurando? - perguntou o motorista. - Eu não estou escutando porra nenhuma.
- Uma mulher entre trinta e quarenta anos e um rapaz forte que não fala inglês - respondeu o colega, com a cabeça baixa para conseguir ouvir as ordens pelo rádio em meio ao clamor das sirenes e das buzinas à sua volta.
- Só isso?
- Foi só o que eles disseram.
- Porra, mas se os dois estiverem fugindo, eles podem ir cada um para um lado!
- Aí a gente vai atrás do garoto e depois, da mulher... Espere aí! - O policial gritou pelo microfone: - Repita, por favor, para eu ver se entendi direito... - Afastou-se do microfone e disse para o motorista: - Ele falou que os dois estão armados e que são considerados muito perigosos. A gente vai na frente, os outros vão cobrir as saídas, como as escadas de incêndio e as janelas.
- E o que mais?
- Se alguém conseguir encontrar um dos dois, a ordem é matar.
O telefone branco tocou no gabinete do diretor interino da CIA. Era a linha segura da operação Menina Sanguinária; o homem do outro lado da linha era frio e profissional. Ele insistia em falar diretamente com o novo diretor, o que, segundo a secretária, era impossível. Seu chefe estava numa reunião com os chefes de segurança de três governos estrangeiros, organizada pelo próprio Presidente, para mostrar a disposição do novo chefe da inteligência americana em cooperar com os países amigos. Não convinha interromper essa reunião.
- Deixe o recado comigo que eu passo imediatamente para ele.
- Faça isto, por favor, é uma urgência urgentíssima.
- Por favor, eu trabalho aqui há dezoito anos.
- Está bem, então escute. O recado é o seguinte: a Menina Sanguinária vai atacar hoje à noite não sei a que horas, mas vai ser cedo. A Casa Branca tem que ficar em estado de alerta!
- É mais garantido o senhor mandar um fax para cá... imediatamente.
- Já estou mandando, enquanto eu falo com você. Sem cópia do lado de cá, só no computador.
A folha de papel com a informação sobre a Menina Sanguinária começou a sair do aparelho de fax da secretária.
Scorpio Dezessete acendeu um fósforo e queimou a folha sobre uma cesta de papéis vazia.
Bajaratt fechou as duas malas e enfiou embaixo da cama as roupas que restavam. Correu para o banheiro, molhou uma toalha, esfregou-a com força no rosto, removendo toda a maquiagem, e pegou um tubo de base clara na prateleira onde estavam os artigos de toalete. Com a mesma rapidez com que removera a maquiagem, espalhou o creme de cor pálida sobre as faces, a testa e os olhos, voltou correndo para o quarto e pegou o chapéu em cima da escrivaninha; colocou-o na cabeça, cobriu o rosto com o véu de renda e pegou a bolsa a tiracolo e as duas malas. Foi até a porta e saiu para o corredor, olhando para todos os lados. Junto a uma placa indicando a saída de emergência, ela viu o óbvio.
Gelo. Bebidas.
Fechou a porta do quarto, arrastou as malas até o pequeno nicho onde estava instalada a máquina de refrigerantes e atirou-as num canto. Não ia demorar para que elas fossem roubadas, pensou ela. Endireitando o corpo, ajeitando o vestido e o véu, e dirigindo-se à escada.
Quatro andares abaixo, o saguão estava em polvorosa. As filas cresciam nos guichês e as bagagens se amontoavam junto às portas e na calçada do lado de fora. Baj logo entendeu: alguém havia dado ordens. Confundir, postergar, alegar problemas, até mesmo uma pane nos computadores - atrasar!
Os hóspedes reclamavam, dizendo que não iam conseguir embarcar, lamentavam não ter usado o checkout expresso; alguns diziam palavrões, atiravam as chaves no chão e ameaçavam ir embora sem pagar, gritando frases como: "Podem me processar", "Conversem com o meu advogado, seus mentecaptos incompetentes!", "Estou fodido se perder o avião!" e "Consertem esta porra desses elevadores!"
Tudo perfeito, pensava Bajaratt, curvada, caminhando com dificuldade até o ponto de táxi; uma senhora idosa, frágil e delicada. De repente, um carro da polícia, com a sirene no máximo, as luzes piscando, encostou no meio-fio, obstruindo a passagem do primeiro táxi; dois policiais saltaram, olharam para dentro do táxi e saíram correndo em direção à entrada, empurrando as pessoas para abrir caminho na calçada lotada. A área se encheu de gritos enfurecidos; os viajantes, ofendidos e frustrados, estavam no limite da sua paciência. Chegaram mais dois carros de polícia; a combinação das sirenes com as luzes giratórias aquietaram de súbito a multidão, e os gritos de protesto foram substituídos por discretas especulações sobre algum desastre de graves proporções.
Os policiais das duas últimas patrulhas saíram correndo em todas as direções, cada um com uma arma na mão. "Perfeito", pensou Bajaratt, arrastando os pés até o último táxi da fila.
- Por favor, me leve até a cabine telefônica mais próxima - disse ela, estendendo uma nota de vinte dólares para o chofer. - Vou dar um telefonema e depois lhe digo para onde o senhor vai me levar.
- Às suas ordens, minha senhora - disse o motorista de cabelos compridos, pegando os vinte dólares com avidez.
Menos de dois minutos depois o táxi encostou em frente a uma série de cabines telefônicas. Bajaratt saltou e correu para a primeira cabine desocupada. Da memória, da sua extraordinária memória, pensou com satisfação, ela tirou o número do Carillon, discou e pediu para falar com a recepção.
- Aqui é a sra. Balzini - disse ela. - O meu sobrinho já chegou aí?
- Ainda não - respondeu a voz melíflua do outro lado da linha. - Mas agora há pouco vieram entregar um pacote para a senhora.
- É, eu sei disto. Quando o meu sobrinho chegar, diga para ele me esperar. Estou indo me encontrar com ele.
Bajaratt desligou o telefone e voltou para o táxi, com a mente tumultuada. Como era possível alguém em Londres ter descoberto a programação dos telefonemas? Quem teria falhado ou quem - pior, o pior de tudo - teria sido descoberto e obrigado a confessar?
Não! Ela não podia perder tempo com especulações inúteis. Pelo menos hoje, hoje à noite! O sinal seria enviado para o resto do mundo como um relâmpago monstruoso, destruidor! Nada mais importava, só conseguir chegar ao final do dia.
Eram 2:48 da manhã quando Hawthorne saiu do condomínio onde morava o general Meyers, em Arlington, Virgínia. Ao tomar a estrada, ele tirou o gravador do bolso do paletó e sentiu-se aliviado ao ver que a luzinha vermelha ainda estava acesa; rebobinou a fita durante alguns segundos e começou a ouvir as duas vozes. Automaticamente, seu pé afundou no acelerador; era ao mesmo tempo uma atitude de satisfação e um desejo sincero de chegar o mais rápido possível ao Shenandoah Lodge. Tudo tinha corrido bem; agora ele dispunha de quase duas horas de gravação da sua conversa com o chefe do Gabinete Militar - da sua conversa com o último dos Scorpios de elite.
Ao vê-lo, Meyers o examinara com um olhar que misturava respeito, rancor e fúria; um homem poderoso observando o cadáver de um adversário que poderia se revelar mais perigoso morto do que vivo. Tyrell conhecia muito bem aquele tipo; havia muitos deles em Amsterdã, sempre preparados para o assassinato estratégico, todos com egos imensos. E Hawthorne havia apelado para o ego de Michael Meyers de uma maneira implacável, até que a vaidade sem limites do general não resistiu. Aquele admirador subserviente não passava de um idiota; Meyers podia dizer o que quisesse, pois seu reverente interlocutor sempre estaria na sua linha de defesa, caso algum dia essa defesa fosse necessária.
O chefe do Gabinete Militar precisava dessa defesa mais do que ele era capaz de perceber. Hawthorne compreendeu isso no momento em que o assistente do general abriu a porta para recebê-lo. À primeira vista, o subordinado não era muito diferente do homem que Tyrell vira no saguão escuro da casa de Ingersol, mas não era o mesmo. Era outra pessoa. O assassino fora dispensado.
Hawthorne entrou no estacionamento do Shenandoah Lodge às 3:30. Dois minutos depois, chegou ao quarto, onde encontrou Poole acordado, sentado à escrivaninha diante do equipamento eletrônico miniaturizado.
- Alguma notícia da Cathy?
- Não, e eu já liguei para lá mais de dez vezes desde aquela hora que eu falei com você.
- Você disse que ela mexeu a perna. Isto quer dizer alguma coisa, não é?
- Foi o que eles me disseram naquela hora, mas depois não disseram mais nada, só para eu parar de ficar ligando, que quando eles tivessem alguma notícia iam me ligar. Aí, para parar de pensar nisto, eu fiquei aqui, sacaneando o pessoal de Langley.
- Como assim, sacaneando?
- Alguém pegou o seu transreceptor e está deixando eles malucos. Eles não param de ligar para cá, perguntando se você está mantendo contato comigo e eu respondo que sim, que você liga a toda hora, e aí eles querem saber por que você parou em Wilmington, Delaware, e depois foi para Nova Jersey.
- E o que foi que você disse?
- Que o equipamento da Força Aérea é mil vezes melhor do que o deles, e que eu achava que você estava indo para a Geórgia.
- Pare de fazer isto; e se eles ligarem de novo, diga a verdade. Estou aqui e nós temos que trabalhar.
- A gravação? - Poole arregalou os olhos.
- Arranje umas folhas de papel para a gente tomar nota. - Hawthorne colocou o gravador sobre a cômoda. - Vamos lá - disse ele, indo até a cama e recostando-se com cuidado nos travesseiros, enquanto o Tenente pegava um bloco de papel ofício na mesa do café.
- Como está o talho na cabeça? - perguntou Poole, desligando o gravador e colocando-o sobre a escrivaninha.
- A empregada do Palisser pôs um quilo de gaze e um rolo de esparadrapo. Agora ligue de novo a porra desse gravador, e deixe a minha cabeça para lá.
Os dois escutaram em silêncio a gravação, que durou uma hora e vinte e três minutos. Ambos tomaram notas, e quando acabaram de ouvir, cada um queria escutar novamente algumas partes da conversa.
- Você sabe fazer as coisas, Comandante - disse Poole, em tom de admiração. - Por alguns momentos cheguei a achar que você gostava mesmo do Átila, o Huno.
- Acho que eu estou recuperando a forma, Tenente. Em parte, pelo menos... Vamos lá, vamos continuar.
- Está bem, vamos pegar parte por parte, desde o início da fita. Eu vou pulando de uma para outra, porque eu sei quais são as partes mais importantes do depoimento do nosso réu.
- Que história é essa, você agora é promotor?
- Ai, nem me fale nisso. O meu pai queria que eu fosse advogado, que nem ele, mas...
- Cara, me poupe - interrompeu Tyrell. - Ligue logo esse negócio.
(HAWTHORNE) General, tinha alguém na casa do Ingersol hoje que o senhor não esperava encontrar, alguém que tenha surpreendido o senhor?
(MEYERS) É difícil responder à sua pergunta, sr. Hawthorne. Em primeiro lugar, tinha uma verdadeira multidão e as luzes não estavam muito fortes; na verdade aquelas velas em cima do bufê eram a única iluminação, mas eu evito comer entre as refeições, então, nem cheguei perto. Um militar não pode perder a linha, não é?
(HAWTHORNE) O senhor tem toda a razão. Mas não se lembra de ninguém que tenha chamado a sua atenção? Ouvi dizer que o senhor tem uma memória impressionante. Me disseram que as suas táticas contra os vietcongues eram baseadas em fotografias aéreas que só o senhor lembrava.
(MEYERS) É verdade, é verdade, mas eu tinha alguns ajudantes, não vou dizer que não tinha... Bem, na verdade, a presença de alguns membros do Senado me deixou realmente espantado. Senadores de esquerda, e todo mundo sabe que o Ingersol era amigo do Pentágono.
(HAWTHORNE) O senhor poderia ser mais específico, General?
(MEYERS) Posso, sim. Aquele senador de Iowa, aquele que vive se lamuriando, dizendo que os agricultores são sacrificados pelas verbas da Defesa, quando na verdade são eles que mais recebem subsídios. Ele estava lá, com aquela pose de diácono do Centro-Oeste. Tinha uns outros esquerdistas, eu não estou lembrando o nome deles. Mas posso ver isso e falar com o senhor depois.
(HAWTHORNE) Seria uma grande ajuda, General.
(MEYERS) Eu não vejo muito como.
(HAWTHORNE) É importante sabermos quem são essas pessoas que o senhor não esperava encontrar na casa do Ingersol. Pode ser que eles tenham ido lá exatamente para desviar suspeitas. Nós fomos informados que está havendo desentendimentos entre os aliados da Bajaratt.
(MEYERS, interrompendo) Está havendo... mesmo?
(HAWTHORNE) Parece que sim, daqui a alguns dias, talvez algumas horas, nós tenhamos alguns nomes.
(MEYERS) Mas isto é incrível, Comandante... Só Deus sabe como eu desejo que o senhor esteja certo.
- Bem, este é o primeiro trecho - disse Poole, desligando o gravador. - Algum comentário? Quem escolheu foi você, Tye, não fui eu.
- É porque eu estava lá dentro, olhando do corredor, e vi o Meyers caindo de boca no bufê. E dava para ele ver muito bem; a luz das velas era forte, e ainda tinha algumas luminárias acesas na parede. As pessoas que ele viu não me interessam, eu só queria ver que nomes ele ia dizer, para poder concordar com ele.
- E botar um medinho nele com aquela história de desentendimento entre os aliados da Bajaratt, não é? - perguntou Poole, sorrindo.
- Hoje em dia chamam isso de abater o moral do adversário, Tenente. Mas eu chamo de cutucar a onça com vara curta. Vamos passar para o próximo.
- É um trechinho curto, mas eu achei interessante. E você também achou.
(HAWTHORNE) O David Ingersol, que, como sabemos agora, era um traidor e estava ligado à Menina Sanguinária, alguma vez deu algum mau conselho nas consultas que o Pentágono lhe fazia?
(MEYERS) Meu Deus, quantas vezes eu questionei as decisões dele! É claro, eu não sou advogado, mas sentia que alguma coisa não estava cheirando bem, isto eu posso dizer!
(HAWTHORNE) E o senhor manifestava as suas objeções?
(MEYERS) Claro que sim! Verbalmente, não por escrito. Afinal, ele jogava golfe com o Presidente!
- É uma evasiva perfeita - disse Poole. - Ninguém pode confirmar nada "verbalmente".
- De acordo - disse Tye. - O próximo.
- Também é curto, e nós dois escolhemos.
(HAWTHORNE) O Edward White, sócio do Ingersol, nos disse que perguntou se o senhor tinha conhecimento de uma investigação do Departamento de Estado sobre os negócios do David. O senhor certamente tem, General, porque o senhor está acompanhando a operação Menina Sanguinária e tem acesso a todas as informações sigilosas pelos computadores...
(MEYERS) Qual é a sua pergunta?
(HAWTHORNE) Vão é nenhuma pergunta, é só um agradecimento por o senhor ser tão cuidadoso numa situação como essa. Muita gente teria caído na armadilha.
(MEYERS) De revelar informações ligadas à segurança nacional? Não na minha equipe, eu mandaria matar o filho da puta que fizesse isso. É claro que eu sabia de tudo, mas através de mim, ninguém mais ia saber.
- Ele caiu direitinho - disse Tyrell. - Ele não tinha como saber. O Palisser arranjou tudo para mim, mas manteve tudo em segredo.
- Foi isso o que me chamou a atenção - concordou Poole. - Vamos para o próximo.
(MEYERS) O que o senhor realmente acha que aconteceu lá, Comandante?
(HAWTHORNE) Posso lhe mostrar o que aconteceu comigo, General. O senhor pode ver aqui na minha cabeça, se quiser. Não é nada bonito, mas está aqui.
(MEYERS) Terrível, é simplesmente terrível; claro, eu já vi coisa muito pior, mas foi na guerra, não num velório numa casa de família, pelo amor de Deus!
(HAWTHORNE) O senhor foi o melhor combatente.
(MEYERS) Não, meu jovem, os meus rapazes eram os melhores...
(HAWTHORNE) É uma modéstia incrível para um homem com o seu passado.
(MEYERS) Um homem não deve elogiar a si próprio, principalmente quando já vive recebendo elogios, certo?
(HAWTHORNE) Certíssimo, General... Mas alguém matou o Richard Ingersol e me atacou no jardim, antes que eu pudesse ver quem era, e nós temos que descobrir quem foi!
(MEYERS, interrompendo) O senhor devia ter sido treinado em Ranger, Comandante, o senhor teria aprendido muito mais do que na Marinha. Por outro lado, o senhor escapou por pouco da Menina Sanguinária lá no Caribe. Eu soube que dois antigos colegas seus foram mortos, um inglês e um francês, mas o senhor se safou. O senhor deve ter muito talento, Comandante...
- Pare, Jackson - disse Tyrell, inclinando-se para a frente enquanto Poole desligava o gravador. - Eu queria ter certeza de que tinha ouvido bem. Mais um furo dele. Ninguém sabia que o Cooke e o Ardisonne estavam ligados ao MI-6 e ao Deuxième. O Meyers soube disso através dos Scorpios. Aqui em Washington, isso nunca foi mencionado nos relatórios sobre o andamento da operação Bajaratt; a gente nunca fala do pessoal do serviço secreto de outros países e eles nunca falam de nós.
- Menos um ponto para o General - observou Poole. - Agora vamos tentar desvendar a personalidade dele. Nós dois escolhemos este trecho porque ele indica um perfil psicológico assustador. Você se saiu muito bem, Tye... Vamos ver.
(HAWTHORNE) Os seus antecedentes profissionais são impressionantes, General. É de dar inveja a qualquer soldado que já tenha servido à nação...
(MEYERS, interrompendo) É muita bondade sua, mas, como já disse, eu nunca estive sozinho. Mesmo nos piores momentos, nas câmaras de tortura do Vietcongue, eu sabia que tinha o apoio do povo americano. Nunca perdi a fé.
(HAWTHORNE) Se é assim, General, e esta é uma pergunta pessoal, que não tem nada a ver com o assunto que me trouxe aqui, como o senhor pode aceitar o desprestígio crescente das Forças Armadas? Eu estou perguntando isto na qualidade de seu grande admirador.
(MEYERS) Isto não vai continuar! Não pode continuar! Em todos os pontos do globo existem mísseis balísticos intercontinentais apontados para nós! Temos que nos armar de novo! Os soviéticos podem não existir mais, mas outros tomaram o lugar deles. Rearmamento, pelo amor de Deus, rearmamento! Nós temos que voltar para o nosso lugar!
(HAWTHORNE) Concordo com o senhor, claro, mas como isso pode ser feito? Os políticos dos dois partidos estão exigindo cortes, prometendo ao país um "dividendo de paz", principalmente por parte da Defesa.
(MEYERS, baixando a voz) Como isso pode ser feito? Eu vou lhe dizer, Comandante, e quero que esta conversa fique só entre nós... está bem?
(HAWTHORNE) O senhor tem a minha palavra, General.
(MEYERS, com a voz quase inaudível) Primeiro nós precisamos desestabilizar, Hawthorne, alarmar a nação, mostrar a todos que existem inimigos por toda parte! Quando o alarme se generalizar, vamos reassumir o nosso lugar de direito como guardiães do país.
(HAWTHORNE) Mas que tipo de alarme, General? Contra o quê?
(MEYERS) Contra o inevitável numa sociedade dilacerada, destroçada por agitadores e elementos indesejáveis. Temos que ser fortes e preencher o vazio com a nossa liderança.
- Ele seria uma piada - disse Poole, desligando o gravador -, uma verdadeira comédia, se tivesse algum senso de humor. Mas não, é um filho da puta, um sujeito grotesco.
- Ele é paranoico - acrescentou Tyrell. - É um Scorpio perfeito, dedicado aos Provedores. Ele não só está com as contas bancárias abarrotadas, se bem que não deve ligar a mínima para isso, como também realmente acredita que vai realizar esse sonho alucinado de tomar o poder. O que mais me assusta é que isso poderia acontecer numa questão de segundos; uma única bala, uma granada, atiradas por alguém que a gente não consegue encontrar, alguém que dedicou a vida inteira a esse assassinato. Onde... onde será que ela está?
33
Eram 8:12 quando o Hotel Carillon recebeu de volta a sra. Balzini e seu sobrinho; todas as formalidades ficaram a cargo de um funcionário obsequioso, fartamente recompensado por seu trabalho. Às 8:58, Bajaratt telefonou para o banco escolhido pelo vale do Baaka nas Ilhas Cayman, que lhe assegurou, ao ouvir sua senha, que a soma de cinquenta mil dólares seria entregue no hotel imediatamente, sem nenhuma pergunta quanto ao mecanismo de transferência. O dinheiro chegou num envelope.
- Posso pegar o dinheiro? - perguntou Nicolo, depois que o mensageiro do banco se foi.
- Você só vai pegar o que eu lhe der. Espero que o nobre menino do cais do porto compreenda que eu tenha feito uma provisão para mim mesma. Você vai receber os seus vinte e cinco, mas o resto é meu, é a recompensa pelo meu esforço. Porque você está me olhando assim?
- O que é que vai acontecer com você? Para onde você vai, o que você vai fazer?
- Você vai saber todas essas respostas hoje à noite, meu menino querido e adorado.
- Se você me adora tanto, por que não me conta? Você fica dizendo que vai embora hoje à noite; você vai desaparecer e eu vou ficar sozinho... Você não entende, Cabi? Eu me tornei uma parte de você. Eu não era ninguém e agora sou alguém por sua causa. Vou me lembrar de você pelo resto da minha vida. Você não pode ir embora desse jeito e me deixar assim nessa confusão, sem entender nada.
- Não vai ter confusão nenhuma, e você também não vai ficar sozinho; você tem a Angel, não tem?
- Isso é só uma vaga esperança.
- Chega de conversa - disse Bajaratt. Foi até a escrivaninha e abriu o envelope, de onde tirou vinte e seis mil dólares; deu mil a Nicolo e pôs vinte e cinco sobre a mesa. Em seguida, fechou o envelope com os vinte e quatro mil dólares restantes e o entregou a Nicolo. - Isto deve dar para as suas despesas em Nova York - disse ela. - Você acha que eu poderia ser mais justa ou mais honesta com você?
- Grazie - disse ele. - Hoje à tarde eu deixo o envelope com a Angelina.
- Você confia nela, menino?
- Confio. O mundo dela é diferente do seu, e é diferente do cais do porto também. Eu falei com ela agora há pouco, ela estava saindo para o aeroporto. Ela vai chegar às 14:25, portão 17. Eu não vejo a hora.
- E o que é que você vai dizer para a sua grande dama?
- Tudo o que o meu coração mandar, Cabi.
Bruce Palisser, o secretário de Estado, fora acordado pela Casa Branca às 5:46 da manhã e estava agora na sua limusine, a caminho do Salão Oval; eram 6:10. Síria e Israel estavam num impasse; as agressões - possivelmente nucleares - podiam começar a qualquer momento, a menos que, num esforço conjunto, Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha conseguissem acalmar os linhas-duras dos dois países. Às 6:13, a mulher de Palisser recebeu um telefonema do comandante Hawthorne, que pediu para falar imediatamente com o Secretário. Era um assunto urgente.
- Parece que ele teve outro assunto urgente para resolver - respondeu Janet Palisser. - Ele está na Casa Branca.
- O senhor me desculpe, mas nós temos ordens de não interromper a reunião do Conselho de Segurança em hipótese alguma...
- Escute - interrompeu Hawthorne -, e se houvesse um míssil balístico no ar, prestes a atingir a Casa Branca? Você passaria a ligação?
- O senhor está dizendo que tem um míssil balístico...
- Não, eu não estou dizendo isto! Eu estou dizendo que tenho que falar com o secretário de Estado imediatamente, é um assunto urgentíssimo!
- Ligue para o Departamento de Estado.
- Eu não posso ligar para o Departamento de Estado!... O Secretário deixou claro que eu só deveria falar com ele.
- Então ligue para o bip dele...
- Eu não sei o número...
- Se o senhor não tem o número, o senhor não pode ser tão importante assim.
- Por favor, eu tenho que dar um recado para o secretário Palisser!
- Espere um instante... como é mesmo o seu sobrenome?
- Hawthorne.
- Nossa Senhora, o senhor me desculpe. O seu nome está no final da listagem do computador. As letras são tão pequenininhas... Pode deixar o recado.
- É para ele me ligar imediatamente. Ele sabe o número, eu vou ficar esperando. Daqui a quanto tempo ele vai receber o recado?
- Eu vou passar agora mesmo, senhor - respondeu a telefonista, e desligou.
Hawthorne virou-se para Poole, que estava na poltrona à sua frente, escutando.
- Ele está numa reunião de emergência na Casa Branca, e a telefonista teve que ler toda a lista do computador para deixar eu avisar ao Palisser que um general louco, que provavelmente também está na reunião, está não só ajudando como também instigando o assassinato do Presidente.
- E agora?
- Vamos esperar - respondeu Tyrell. - Esta é a pior parte.
O casal saiu da alfândega e se dirigiu ao terminal do aeroporto Dulles. Pareciam dois estrangeiros quaisquer chegando aos Estados Unidos, mas eram agentes do Mossad e sua missão era a mais importante dos últimos tempos. Traziam a identidade do homem que era a chave do empreendimento de Bajaratt, um senador chamado Nesbitt, que, por razões inexplicáveis, estava levando a terrorista até a sua vítima. O assassinato poderia se dar a qualquer dia, a qualquer hora.
Os dois chegaram de Tel Aviv no voo 8.002 da El Al e, conforme a explicação dada a um funcionário da alfândega, sua estada seria curta. Eles eram engenheiros contratados pelo governo de Israel, e estavam em Washington para participar de uma reunião sobre captação de recursos para projetos de irrigação no deserto de Negev. Com ar desinteressado, o funcionário carimbou os passaportes dos dois visitantes, desejou-lhes um bom dia e ergueu a cabeça para atender o próximo da fila.
Os agentes do Mossad caminhavam com passos rápidos; a mulher trajava um tailleur preto e seu companheiro, um terno cinza igualmente sóbrio. Traziam apenas bagagem de mão e cada um carregava uma pasta de executivo, ambas idênticas. Ao se aproximarem de um conjunto de telefones públicos, a mulher disse:
- Vou ligar para o telefone direto dele no Departamento de Estado, o que o coronel Abrams nos deu.
- Ande logo - disse seu colega, um homem louro de cabelos ralos. - Mas não se esqueça, se tocar cinco vezes e ninguém atender, desligue.
- Está bem. - Depois de cinco toques, a Major desligou o telefone. - Ninguém atende.
- Então vamos ligar para a casa dele. A gente tem que evitar as mesas telefônicas.
- O número está aqui comigo. - A Major pegou de volta a moeda, colocou-a no telefone e discou.
- Alô? - atendeu uma mulher.
- Por favor, o secretário de Estado pode atender? É urgente.
- É muita urgência para um dia só - respondeu a voz, em tom de irritação. - Se você quer falar com o Secretário, ligue para a Casa Branca. Eu estou indo para a nossa casa de praia em St. Michaels.
- Ela desligou, e parecia que estava furiosa - disse, perplexa, a agente do Mossad, virando-se para o Capitão. - Ela disse para eu ligar para a Casa Branca...
- Nós estamos proibidos de fazer isso - interrompeu o subordinado. - A gente só pode falar com o secretário de Estado.
- Ele está na Casa Branca, óbvio.
- Mas a gente não pode passar pela telefonista; a gente não pode confiar em ninguém, só no Palisser. O Abrams mandou avisar pelos canais diplomáticos que ele ia receber a nossa visita. O secretário é amigo do coronel Abrams, e vai compreender a nossa urgência.
- Então eu discordo das instruções. Se o Palisser está na Casa Branca, eu não vejo nenhuma razão para a gente não ligar para lá e mandar o recado pela telefonista. O Abrams disse que qualquer minuto era vital.
- Mas que recado? A gente não pode se identificar.
- A gente diz que os primos de um amigo dele, o coronel Abrams, chegaram e vão ficar ligando até conseguir falar com ele, no telefone direto, na casa dele, até no gabinete, se for preciso...
- No gabinete? - interrompeu o Capitão, franzindo o cenho.
- Qualquer minuto é vital - disse a Major. - A gente não vai se identificar, e ele pode nos avisar através de algum assessor, ou da secretária, como a gente pode fazer para falar com ele. A gente tem que dar o nome do Nesbitt para ele... Vamos arranjar uma limusine... Com telefone.
O funcionário de ar distraído esperou alguns minutos para se assegurar de que o casal não voltaria à alfândega. Convencido de que eles tinham ido embora, colocou a placa vermelha sobre o balcão e pegou o telefone. Digitou três números, conectando-se no mesmo instante com a sala do chefe de segurança da imigração, em cuja parede, logo acima dos painéis eletrônicos, estavam alinhados diversos monitores de televisão.
- Dois israelenses - disse ele. - Um homem e uma mulher; a idade e as características correspondem à descrição.
- Profissão?
- Engenheiros. Foi o que eles disseram, e era o que estava nos passaportes.
- Motivo da viagem?
- Captação de recursos para projetos no deserto de Negev. Eles devem estar no terminal. A mulher é um pouco mais alta e está de preto; ele está de terno cinza, e os dois estão levando bagagem de mão e cada um está com uma pasta.
- Vamos descobrir onde eles estão pelos monitores e verificar. Obrigado.
O chefe de segurança da imigração, um homem de meia-idade, obeso, de rosto rechonchudo, levantou-se e foi até a sala vizinha, onde cinco pessoas estavam sentadas diante de seus respectivos painéis e monitores.
- Procurem um casal - ordenou ele. - A mulher é mais alta e está de preto, o homem está de terno cinza.
- Já os vi - disse uma mulher, menos de trinta segundos depois. - Estão conversando perto de um telefone.
- Ótimo. - O chefe da segurança aproximou-se do monitor. - Deixe eu dar uma olhada mais de perto. - A mulher apertou um botão no painel, ativando uma lente telescópica numa das câmeras do terminal. As duas figuras se ampliaram, mas a imagem foi alvo apenas de um comentário desgostoso do chefe. - Eles não parecem nem um pouco com as fotos. Deixem isso para lá, pessoal. Aquele carimbador lá embaixo se precipitou.
- Quem é que você está procurando, Stosh? - perguntou um dos homens.
- Um casal que talvez esteja fazendo contrabando de diamantes.
- Eu posso descer e acompanhar os dois até o meu joalheiro.
O superior riu da piada do seu subordinado e se dirigiu a porta do corredor.
- Depois dessa você fica aí atendendo o meu telefone. Eu tenho que dar uma passada no banheiro. - O chefe saiu, dobrou à esquerda e seguiu apressado até o fim do corredor estreito, onde havia uma sacada ainda mais estreita, de onde se via grande parte do terminal. Meteu a mão no bolso, tirou um aparelho de rádio portátil e o sintonizou em outra frequência. Trouxe-o para junto da boca e começou a falar, olhando disfarçadamente para a multidão lá embaixo até ver o que tinha visto no monitor. - Cascavel, aqui é o Gavião.
- Cascavel falando. O que foi?
- O alvo está confirmado.
- O casal M.? Onde?
- Eles estão indo para a plataforma das limusines. Ele está de terno cinza; ela é mais alta e está de preto. Ande logo!
- Já estou vendo! - sussurrou uma terceira voz. - Estão a menos de vinte metros. Cara, eles estão andando rápido, devem estar com pressa.
- Nós também estamos, Crocodilo - disse o chefe da segurança, listado entre os Scorpios com o número quatorze.
Os dois agentes do Mossad instalaram-se na limusine e empilharam a bagagem no assento lateral; a pasta do Capitão estava aberta. Ele segurava com a mão esquerda um cartão plastificado com todos os telefones de que pudesse precisar nos Estados Unidos, desde embaixadas, consulados, serviços de inteligência aliados e inimigos até restaurantes, bares e algumas mulheres que certamente lhe dariam toda a atenção.
- Onde você arranjou isto? - perguntou a Major.
- Fui eu mesmo que fiz - respondeu o Capitão. - Detesto procurar coisas no catálogo. Não se esqueça de que eu passei um ano e meio aqui a serviço do Mossad. - Passou o cartão de crédito pela ranhura do telefone e esperou o sinal para discar. - Agora fique quieta - continuou, digitando os números. - Estou ligando para a Casa Branca, e lá eles não perguntam nada, só tomam recados.
- Você já fez isto antes...?
- Várias vezes. Tinha uma moça que era uma gracinha, uma empregada que trabalhava no terceiro andar, na área privativa... Shhh! A telefonista atendeu.
- Casa Branca - atendeu uma voz feminina, num tom fatigado.
- A senhorita me desculpe, mas eu acabei de falar com a esposa do secretário de Estado, a sra. Bruce Palisser, e ela me informou que ele está numa reunião com o Presidente. Será que eu poderia deixar um recado para o sr. Palisser?
- O senhor está autorizado a interromper a reunião do Conselho de Segurança? Se não estiver, eu não posso passar a ligação.
- Eu não quero interromper nada, senhorita, eu só queria deixar um recado.
- Pois não, senhor.
- A senhorita diga a ele, por favor, que os primos do coronel Abrams, um grande amigo dele, estão na cidade e vão entrar em contato com a casa dele e com o gabinete. Ele pode mandar nos avisar qual é a melhor maneira de conseguirmos falar com ele.
- O senhor não quer deixar o seu telefone?
- Não, seria muita pretensão da nossa parte, e eu não quero causar problemas para a senhorita.
- Ele vai receber o recado assim que sair da reunião.
O capitão do Mossad desligou o telefone e se recostou no banco.
- Vamos nos revezar e ficar ligando de cinco em cinco minutos para o gabinete e para a casa dele. Como você disse, temos que dar o nome do Nesbitt para ele, nem que seja pelo telefone - disse. Em seguida, curvou-se para guardar seu cartão plastificado na pasta; ao se levantar, olhou para fora pela janela da esquerda. Uma segunda limusine estava tentando desviá-los para fora da estrada! As janelas traseiras estavam abertas... E naqueles espaços escuros viam-se armas! - Se abaixe! - gritou ele, atirando-se sobre a Major, enquanto uma infinidade de tiros explodia e as balas perfuravam o vidro e o metal, penetrando nos corpos dentro do automóvel. Uma granada entrou pela janela estilhaçada. A limusine saiu rodando para fora da estrada, capotou várias vezes no acostamento até bater num muro e explodir.
34
A estrada de acesso ao aeroporto Dulles estava num estado calamitoso. Trinta e sete veículos haviam-se engavetado, batendo uns nos outros, enquanto o incêndio resultante da explosão se espalhava, devido ao vazamento de gasolina do tanque da limusine. Em minutos, o som de sirenes e o ronco ensurdecedor de helicópteros encheram o ar matinal; logo em seguida, juntando-se a esse coro, pelo acostamento das duas pistas, começaram a chegar ambulâncias para socorrer as vítimas.
Não era apenas a morte dos mensageiros de Tel Aviv, era o fim da vida de vinte e dois inocentes que só queriam chegar em casa para se reunir às suas famílias depois de um expediente árduo. Era um ultraje, fruto de uma conspiração ainda mais ultrajante, fruto, por sua vez, de um acontecimento do passado, quando uma criança fora obrigada a presenciar a execução de seus pais nas montanhas dos Pireneus. Loucura, às 10:52 da manhã de um lindo dia de verão.
11:35
Bajaratt estava a ponto de perder o controle, senão a lucidez. Não conseguia falar com o senador Nesbitt! Primeiro fora atendida por uma recepcionista, depois por uma subsecretária, em seguida, pela secretária particular e, por fim, por um assessor do senador.
- Aqui é a condessa Cabrini - disse Baj, com firmeza. - Tenho certeza absoluta de que o senador quer falar comigo.
- É claro que ele quer, Condessa, mas infelizmente ele não está no gabinete. A senhora não se esqueça, Condessa, de que nós estamos no verão e o Senado está em recesso, e nessa época os nossos horários não são tão rígidos quanto no resto do ano.
- Você está me dizendo que não está conseguindo falar com ele?
- Estamos tentando, Condessa. Pode ser que ele esteja jogando golfe, ou visitando algum amigo...
- Ele tem uma empregada e um motorista. Eles têm que saber onde ele está.
- A empregada disse que ele saiu de carro, mas não sabe aonde ele foi, e o telefone do carro não para de repetir que o dono não está.
- Acho isso uma coisa intolerável. Eu quero falar pessoalmente com o Senador.
- E eu tenho certeza de que ele também quer falar com a senhora, Condessa, mas se o assunto é a visita à Casa Branca, eu posso lhe garantir que está tudo confirmado. A agenda está aqui na minha frente. O senador vai buscar a senhora no Hotel Carillon às 19:15 em ponto. É um pouco cedo, mas é por causa do trânsito.
- Então eu já fico mais tranquila. Muito obrigada.
12:17
No quarto do Shenandoah Lodge, Hawthorne pegou o telefone com um gesto brusco.
- Alô? - atendeu ele.
- Oi, Hawthorne, é o Palisser. Estou surpreso com o seu sumiço.
- Sumiço? Eu deixei um monte de recados.
- Deixou?... Que coisa estranha, eu deixei uma ordem para me avisarem na hora, se você telefonasse.
- Eu sei disso, as telefonistas me disseram. Todas as vezes que eu liguei, elas diziam que já iam mandar o recado para você.
- Mas ninguém mandou nada. Bem, mas até agora o meu dia foi uma confusão atrás da outra. Houve uma crise política internacional, mas parece que com sorte e algumas ameaças nós vamos conseguir contornar... O que aconteceu com o general Meyers? Sinceramente, ele se comportou como um idiota na reunião. Só falou bobagem o tempo todo.
- Ele é mais do que um idiota, ele é um dos Scorpios. Eu confirmei isso pela gravação. Ele sabia de coisas que só poderia saber através dos Scorpios. Não tenho mais nenhuma dúvida de que o General é um deles. Pode acreditar, sei o que eu estou dizendo. Prendam-no e façam-no confessar.
- Tem mais uma coisa. Um amigo meu de Israel, um coronel do Mossad que não confia mais em ninguém, mandou dois agentes dele para cá, com informações que ele considera vitais. Se não fosse assim, ele não tomaria uma medida tão drástica. Vamos esperar eles entrarem em contato comigo, depois a gente ataca em todas as frentes.
- Vamos pegar eles todos e mandar essa vaca para o espaço.
- Como é mesmo que se diz, Comandante? "Deus queira", não é? Vamos ver.
Hawthorne desligou o telefone; na televisão do hotel, o assunto era a carnificina na estrada de acesso de Dulles. As imagens, tomadas de um helicóptero nos arredores do aeroporto, mostravam carros pegando fogo, alguns explodindo, corpos carbonizados estendidos no asfalto, uma tragédia indescritível.
O obeso chefe de segurança da imigração sentiu os impulsos breves e intensos do seu monitor Scorpio; mais uma vez, pediu licença para se ausentar da sua sala e foi rapidamente até o telefone público mais próximo.
- Quatorze - disse ele, depois de digitar todos os códigos.
- Aqui é o Um - respondeu uma voz áspera. - Excelente, Quatorze, bom trabalho. Está em todos os noticiários.
- Eu espero sinceramente que tenha sido o casal certo - disse Scorpio Quatorze. - Achei que essa história de captação de recursos para o Negev era a chave.
- E era mesmo. O meu informante em Jerusalém me disse, e ele é um sujeito durão. Se ele pudesse, ele mesmo matava todo o pessoal dessa administração. Vou ligar para ele e contar as novidades. Ele quer a mesma coisa que eu, e nós vamos conseguir!
- Não me diga nada, Scorpio Um, eu não quero saber.
- Pode deixar.
A treze mil quilômetros de distância, na rua Ben Yehuda, em Jerusalém, um homem de uns setenta anos, corpulento, de tórax largo, estava debruçado sobre a escrivaninha, examinando o conteúdo de uma pasta. Seu rosto parecia feito de couro, com rugas profundas e olhos pequenos e hostis. O telefone direto tocou; se fosse alguém da família, a conversa teria que ser rápida, pois a linha tinha que ficar desocupada.
- Alô? - atendeu o velho israelense.
- Shalom, Mustang - disse a voz do outro lado.
- Porra, Stallion, por que você demorou tanto?
- Esta linha é segura?
- Não comece com essas perguntas idiotas. Fale.
- Os mensageiros mudaram de rota.
- Puta que o pariu, não tem ninguém ouvindo a nossa conversa, fale inglês!
- A limusine do casal se estraçalhou e depois explodiu...
- Algum documento? - perguntou bruscamente o israelense. - Instruções, identificações?
- É impossível ter sobrado alguma coisa da explosão, mas mesmo que tivesse sobrado, os peritos iam demorar vários dias para conseguir reconstituir alguma coisa. Seria tarde demais.
- Ah-hah! Você tem mais alguma coisa para me dizer?
- O nosso contato na CIA disse que vai ser hoje à noite. Londres interceptou o telefonema.
- Meu Deus, mas então eles vão alertar a Casa Branca!
- Não vão, não. Essa pessoa eliminou a informação, ninguém vai saber de nada. Pelo que o pessoal aqui de Washington acha, a operação do MI-6 nem chegou a ser executada, ou então foi um fracasso. Hoje à noite está tudo resolvido.
- Bravo, Stallion! Era tudo o que a gente queria, não é?
- Graças a você, Mustang.
- O terror vai se espalhar pelo mundo como uma fogueira gigantesca! E se Londres e Paris forem bem-sucedidos, que Deus permita na Sua santa sabedoria, o fogo vai virar uma conflagração mundial, e nós, os soldados, vamos voltar ao poder.
- Eu disse a mesma coisa agora há pouco. Mas isso não seria possível se você não tivesse falado comigo, meu velho amigo.
- Amigo? - interrompeu o israelense. - Não, nós não somos amigos, General; você é o maior antissemita que eu conheço. Nós precisamos um do outro, você pelos seus motivos, eu, pelos meus. Você quer ter todos os seus brinquedinhos de volta, e eu quero que Israel continue forte, o que não é possível sem a força da América. Quando isto acabar e os árabes do Baaka forem responsabilizados por todo esse horror, a sua administração e o seu Congresso vão abrir os cofres para nós, pois aqueles que queriam nos destruir fizeram esta coisa terrível com vocês, degradaram o seu país!
- Eu concordo com você, Mustang, e você não faz ideia de como eu estou grato por ter-me avisado.
- Você sabe por quê?
- Eu acho que você acabou de explicar.
- Não, não esse porquê, eu quis dizer como, antes do porquê.
- Não estou entendendo.
- Aquele intelectual conciliador, o coronel Abrams do todo-poderoso Mossad, confiou em mim. Imagine, um sujeito que é considerado um gênio da organização acha que eu estou do lado dele, que eu quero a paz com esses árabes asquerosos, só porque fui o maior soldado da história do país, mas ele não sabe que eu só aturo esses idiotas do governo para poder ficar no meu emprego e continuar circulando... Ele me disse, juro sobre a Torá que ele disse assim: "Eu não confio mais em ninguém, muita coisa já andou dando errado."... Aí eu perguntei: "Em quem você pode confiar?" e ele respondeu: "Só no Palisser. Quando eu era o chargé d’affaires da embaixada, eu sempre falava com ele, e até passei um fim de semana na casa de praia dele. A gente se dá bem."... Então eu disse para ele: "Mande um mensageiro, dois, aliás, é mais garantido, mas mande eles falarem só com ele. Faça eles passarem por engenheiros... todo mundo é engenheiro, e eu tenho uns projetos no Negev, eu ajudo você a armar a história."... E ele ficou todo feliz e disse que a minha ideia era maravilhosa, que eu era muito criativo. Agora a gente não precisa mais se preocupar com esse senador Nesbitt.
- Aí você me ligou.
- Isso, aí eu liguei para você - concordou o velho corpulento. - Nós nos encontramos duas vezes, meu amigo, e eu vi um homem cheio de ódio, um ódio igual ao meu, e por razões não muito diferentes. Era um risco que a minha intuição mandava eu correr. Eu expus os fatos, mas não tirei nenhuma conclusão, você fez isso por conta própria.
- A sua intuição estava certa.
- Soldados destacados e, principalmente, líderes treinados no campo de batalha aprendem a ver a alma dos outros, não é?
- Você só errou numa coisa. Eu não sou antissemita.
- É claro que você é e eu também sou! Eu quero primeiro os guerreiros, depois, os judeus, assim como você quer primeiro os guerreiros e depois os cristãos! Em geral os templos e as igrejas só servem para atrapalhar.
- Pensando bem, você tem razão.
- O que é que você vai fazer... hoje à noite?
- Vou ficar por perto da Casa Branca, talvez lá dentro, mesmo. Afinal de contas, vou ter que assumir imediatamente.
- É lá que tudo vai acontecer?
- Onde mais?... Eu acho que nós não vamos voltar a conversar.
- Também acho. Bom dia, Stallion.
- Shalom, Mustang. - O general Meyers, chefe do Gabinete Militar, desligou o telefone.
35
14:38
Angel Capell atravessou o portão 17 do aeroporto cercada de uma multidão de passageiros e fotógrafos, que, aos gritos, não paravam de lhe fazer perguntas. O barone-cadetto e a tia estavam à sua espera; um funcionário da companhia aérea levou os três para uma sala privativa.
- Desculpe, Paolo! Esta confusão toda deve ser uma chateação para você.
- Todo mundo adora você! Como é que eu posso ficar chateado com isso?
- Eu fico. A única coisa que me consola é pensar que quando o seriado acabar, todo mundo vai me esquecer, e quando as pessoas me virem passando, elas vão dizer assim: "Aquela ali não é aquela atriz, como é mesmo o nome dela?"
- Nunca!
Bajaratt interrompeu a conversa e entregou a Angel o envelope fechado.
- O pai do Dante Paolo só quer que ele veja o que tem dentro deste envelope amanhã.
- Por quê?
- Eu não sei de nada, Angelina. O meu irmão faz as coisas do jeito dele, e eu não costumo perguntar nada. Só sei que vou ter que viajar para tratar de negócios, e o Dante Paolo me disse que queria ir para Nova York amanhã de manhã para visitar você e a sua família.
- Se você quiser, Angel - acrescentou Nicolo, com ar de dúvida, as sobrancelhas arqueadas pela tensão.
- Se eu quiser? Nossa, é claro que eu quero! Arranjei uma casa na beira de um lago em Connecticut para o meu pessoal. Podemos ir todos passar o fim de semana lá, e aí vou mostrar para você uma atriz que sabe cozinhar, Barão!
O funcionário que os acompanhara até a sala abriu a porta.
- Srta. Capell, entramos em contato com o seu estúdio e eles concordaram. A senhorita vai para Nova York num dos nossos jatinhos particulares; vai ser bem mais simples e ninguém vai incomodar a senhorita.
- Essas pessoas não me incomodam. É o meu público, meu senhor.
- Mas é que fica todo mundo levantando da poltrona e atravancando os corredores durante o voo.
- Ah, já entendi. É a vocês que essas pessoas incomodam, então.
- É uma questão de segurança, srta. Capell.
- Bem, quanto a isso não posso reclamar de vocês.
- Muito obrigado. Se a senhorita concordar, gostaríamos de decolar o mais rápido possível. O portão 17 está um tumulto.
Angel voltou-se para Nicolo.
- Barão, você pode me dar um beijo de despedida se quiser. Não tem nenhum fotógrafo aqui, e nem o meu pai.
- Obrigado, Angel.
Os dois se abraçaram e se beijaram com carinho; a jovem estrela da televisão saiu da sala com o funcionário da companhia aérea, levando vinte e quatro mil dólares no espesso envelope pardo.
15:42
- Você conseguiu pegar ele? - perguntou Hawthorne pelo telefone. - Já se passaram quase três horas e você não deu nenhuma notícia! É uma grande sacanagem!
- E eu não recebi nenhuma notícia dos dois israelenses que vinham me trazer a tal informação tão importante, e esta é uma sacanagem maior ainda, Comandante - respondeu o secretário Palisser, esforçando-se para controlar a raiva.
- E o Meyers?
- Está sob vigilância cerrada; foi o máximo que o Presidente aceitou até termos provas mais concretas. Ele deixou bem claro que para a administração dele seria uma medida muito antipopular mandar prender um herói da estatura do Meyers. Ele acha melhor deixar o Senado cuidar desse assunto.
- Ele é valente mesmo, hein?
- Acho que ele não tem bastante firmeza, só isso.
- Está bem, mas onde é que está o Meyers?
- Ele está no gabinete, fazendo lá as coisas dele.
- O telefone dele está grampeado?
- Não, ele ia descobrir na mesma hora. Nem pense nisso.
- Alguma novidade na CIA?
- Nada. Falei diretamente com o diretor interino e ele disse que não recebeu nenhuma informação nova. Parece óbvio que a operação em Londres foi um fracasso, caso contrário o MI-6 e o nosso próprio grupo já teriam se manifestado. E parece que lá também tem tanto vazamento de informação que nem me atrevo a ficar fazendo perguntas, mesmo pelos canais supostamente mais seguros.
- Secretário, existe um velho ditado que diz que quando uma operação fracassa, a gente deixa o assunto morrer o mais rápido possível e sem alarde, e, se alguém falar nisso, a gente desconversa.
- E agora, o que é que a gente faz, Hawthorne? Ou, para ser mais exato, o que é que você pode fazer?
- Uma coisa que eu preferia não fazer, mas eu sei que é minha obrigação. Vou visitar a Phyllis Stevens.
- Você acha possível que ela saiba de alguma coisa, que possa dar alguma informação?
- É possível que ela saiba de muita coisa e nem se dê conta disso. Ela sempre foi superprotetora com o Henry. Ela era como um muro de concreto em volta dele, ninguém conseguia passar por ela. E essa é uma área que ainda não foi explorada.
- A polícia manteve tudo em sigilo, mas eles ainda não têm nenhuma pista...
- As pessoas com quem estamos lidando não deixam pistas - interrompeu Tyrell. - Pelo menos o tipo de pista que a polícia poderia encontrar. O que aconteceu com o Henry Stevens tem alguma coisa a ver comigo.
- Você tem certeza disso?
- Não, certeza eu não tenho, mas acho que as probabilidades são bem altas.
- Por quê?
- Porque Hank cometeu um erro, o mesmo que ele cometeu em Amsterdã. Apesar de toda a sua discrição profissional, ele às vezes falava mais do que devia. Foi exatamente o que ele fez em Amsterdã.
- Você podia ser mais claro, por favor?
- A esta altura, por que não? O seu diretor, o Gillette, sabia que eu tinha problemas com o Henry; ele próprio me disse. E, o que é infinitamente mais perigoso, ele sabia qual era a origem do problema, que era uma coisa muito pessoal. Menos um ponto para o Henry.
- Eu não consigo ver qual é a importância disso. Pelo que me lembro, você nunca fez nenhum segredo da sua hostilidade em relação ao capitão Stevens. Todo mundo sabia que ele não conseguiu recrutar você e que depois você foi contratado pelo MI-6.
- Hostilidade, sim, mas eu nunca me aprofundei nesse assunto nem com você nem com ninguém. Eu só deixei claro que ele não era meu superior.
- Eu acho que você está se preocupando com minúcias.
- Estou mesmo. O meu trabalho é exatamente este... Existe um outro axioma, do tempo em que os faraós mandavam espiões para a Macedônia. A vítima pode fazer todas as acusações que quiser, mas o agressor fica de bico calado. Por que o Henry contaria a alguém importante o problema que nós tivemos? Isso poderia levantar questionamentos sobre a conduta dele. O ponto que me interessa é o seguinte: para quem mais ele terá contado? Para alguém que ia ver imediatamente a vantagem de acabar com ele; com ele morto o meu contato estaria cortado, já que eu não seria mais encontrado.
- Realmente não estou conseguindo ver a ligação entre as duas coisas - protestou o secretário de Estado. - Que contato?
- Até eu conhecer você, ele era o meu contato com o governo, Palisser.
- Continuo não entendendo...
- Nem eu - interrompeu Tyrell. - Quem sabe a Phyllis nos ajuda a entender alguma coisa?
16:29
O vapor era tão denso que mal se podia ver a figura no canto da sauna. A porta se abriu, e uma segunda pessoa entrou, deixando a porta aberta, e levou uma toalha para o único ocupante do recinto, um homem nu, sentado na bancada de cerâmica. O vapor se esvaiu em ondas, revelando o corpo encharcado de suor do senador Nesbitt. Seus olhos estavam voltando ao foco, a boca aberta, aspirando os vapores restantes.
- Eu apaguei de novo, não foi, Eugene? - perguntou ele, rouco, levantando-se com dificuldade e aceitando a toalha com que seu chofer e guarda-costas lhe cobrira os ombros.
- Foi sim, senhor. A Margaret percebeu os sintomas logo depois do almoço...
- Meu Deus, já está de tarde? - interrompeu o senador, quase em pânico.
- Há muito tempo que isso não acontece - disse o guarda-costas, ajudando o patrão a sair da sauna e chegar à ducha, que ficava a poucos metros.
- Graças a Deus que estamos no verão e o Senado está em recesso... - disse o Senador, perturbado. - Você me levou para... Maryland?
- Não ia dar tempo. Mas o médico veio aqui. Ele deu umas injeções no senhor e disse o que a gente devia fazer.
- Não ia dar tempo...?
- O senhor tem um compromisso na Casa Branca, Senador. Nós temos que pegar a condessa e seu sobrinho às 19:15.
- Ai, meu Deus, e eu estou neste estado!
- Mas até lá o senhor se recupera, Senador. Depois da ducha a Maggie vai fazer uma massagem no senhor e lhe dar uma injeção de B1; aí o senhor ainda tem uma hora para descansar antes de se vestir. O senhor vai ficar em forma, patrão.
- Em forma, Eugene? - A expressão de Nesbitt era patética. - Eu temo que não, meu amigo, isso é um luxo que eu nunca vou experimentar. Vivo com esse pesadelo horrível. Ele me ataca sem aviso prévio, não tenho nenhum controle sobre ele. Às vezes penso que Deus Nosso Senhor está testando o limite da minha resistência para ver se eu vou cometer o pecado mortal de me suicidar para acabar com esta dor.
- Isto não vai acontecer enquanto a gente estiver aqui - disse o guarda-costas, ajudando o patrão a se sentar no banquinho de plástico debaixo do chuveiro e abrindo lentamente a torneira de água morna, e diminuindo pouco a pouco a temperatura, até que a água ficasse gelada e golpeasse com seus jatos o corpo do político. - Às vezes o senhor fica com a cabeça meio confusa, patrão, mas, como o doutor disse, normalmente o senhor funciona melhor do que muita gente boa... Agora a água vai ficar um pouco mais fria. Fique aí debaixo da ducha.
- Augh! - exclamou Nesbitt. Sentindo o jato gelado. - Chega, Eugene!
- Só mais um pouquinho, Senador.
- Mas eu estou congelando!
- Mais quinze segundos, conforme o que o doutor mandou.
- Eu não aguento mais!
- Quatro, três, dois, um... pronto. - Mais uma vez, o guarda-costas e enfermeiro enrolou seu paciente na toalha e o ajudou a se levantar. - Que tal, Senador? Agora o senhor voltou ao mundo dos vivos.
- Dizem que isto não tem cura, Eugene - disse o senador, com a voz branda, os olhos despertos, os músculos faciais relaxados; o motorista o ajudou a sair da ducha. - Dizem que ou isto vai embora com o tempo e a terapia, ou então a gente tem que se entupir de remédios para controlar as crises. Mas, claro, esses remédios são tão fortes que o cérebro da gente praticamente para de funcionar.
- Enquanto a gente estiver aqui, não vai acontecer nada disso com o senhor.
- Eu sei, Eugene, e fico tão grato por isto, que você e a Margaret vão receber uma boa recompensa depois que eu for embora deste mundo. Mas, meu Deus, eu sou duas pessoas! E eu nunca sei quando é que uma vai tomar o controle da outra. Isto é um inferno!
- A gente sabe disso, patrão, e os seus amigos lá de Maryland também sabem. Todos nós vamos tomar conta do senhor.
- Você se dá conta, Eugene, de que eu não tenho a mais vaga ideia de onde surgiram esses meus amigos de Maryland?
- É claro que o senhor sabe, patrão. O médico deles veio ver o senhor depois daquele probleminha que nós tivemos lá em Bethesda, naquele cinema pornô. O senhor não fez nada de errado, mas umas pessoas lá acharam que tinham reconhecido o senhor.
- Eu não lembro de nada disso.
- Foi isso que o doutor achou... Ei, mas tudo isso já passou, não é, patrão? O senhor está bem, e vai ter uma grande noite, certo? O Presidente, patrão! O senhor vai ganhar um monte de votos com essa condessa rica, que tem um sobrinho mais rico ainda, não é?
- É, eu acho que sim, Eugene. Vamos à massagem da Margaret, e depois eu vou tirar um cochilo.
17:07
A secretária particular do diretor interino da CIA acabara de receber a terceira ligação de Londres e, finalmente, conseguira deixar claro que seu chefe fora chamado pelo grupo encarregado da Menina Sanguinária e estava atolado até o pescoço em reuniões de emergência em todas as partes de Washington; no momento ele estava no gabinete do Presidente, na Casa Branca, e ligaria de volta para o diretor do MI-6 assim que fosse possível. Usara de toda a firmeza que sua posição permitia, talvez até de uma forma perigosa, mas não havia alternativa. Com o sucesso da operação no aeroporto Dulles, ela era a última barreira; não podia deixar que as notícias de Londres passassem adiante. Olhou para o relógio de cristal sobre a mesa; eram seus últimos minutos naquele escritório.
Scorpio Dezessete reuniu o material espalhado sobre a mesa, levantou-se e foi bater à porta da sala do chefe.
- Pode entrar - disse ele.
- Está na minha hora, sr. Diretor. - A secretária abriu a porta e entrou, carregando uma pilha de papéis e recados. - Estas são as notas que o senhor queria, e um monte de recado de pessoas que ligaram enquanto o senhor estava no telefone. Nossa Senhora, parece até o Quem é Quem de Washington; todo mundo quer falar com o senhor - disse ela, colocando os papéis sobre a mesa do diretor.
- Todo mundo quer me cumprimentar e fazer manifestações de amizade. É claro que tudo isso vai acabar depois que o presidente nomear alguém para este cargo.
- Eu pensei que o senhor soubesse...
- Soubesse de quê?
- O que estão dizendo é que ele gosta muito do senhor, que ele sabe que o seu trabalho aqui sempre foi muito respeitado e sabe também que o pessoal aqui da Agência quer que o senhor fique no cargo, em vez dele nomear um amador, alguém da área política.
- Eu ouvi falar nisso, mas não acho muito provável. Ele tem um monte de dívidas políticas, e um diretor-adjunto não tem muita chance.
- Bem, se o senhor não precisar de mais nada, vou para casa descansar.
- Nenhuma notícia sobre a Menina Sanguinária? Eles disserem que iam me informar imediatamente.
- O recado está aí na pilha. O senhor estava no telefone com o Vice-presidente.
- Como? Você devia ter-me interrompido!
- Não havia razão para isso, sr. Diretor. Eu não sei exatamente do que se trata, mas suponho que "nada feito em Londres" queria dizer que a operação não deu em nada.
- Merda! - explodiu o diretor. - Se eu conseguisse marcar um ponto nessa, talvez eu tivesse uma chance!... Onde é que está o... como é mesmo o nome dele?... O cara que coordena o grupo?
- Ele e os outros passaram o dia aqui, desde as três da manhã, mais de quinze horas, e eles quase não tinham dormido na véspera. Pelo que ele me disse, estava encerrando o expediente e indo para casa descansar.
- Tudo bem, eu falo com ele amanhã. E você pode ir também.
- Se o senhor quiser, eu posso ficar.
- Para quê? Para ficar vendo eu arrumar as minhas coisas e começar a me despedir deste gabinete magnífico? Não, pode ir para casa, Helen.
- Boa noite, sr. Diretor.
- O título soa bem, não é?
A secretária entrou no shopping center mais próximo, trancou o carro e foi até um telefone público em frente ao supermercado. Pôs uma moeda, discou um número há muito guardado na memória e esperou a sequência habitual de sinais. Em seguida, discou os cinco dígitos adicionais e, em instantes, uma voz atendeu.
- Utah?
- Dezessete... Como acaba acontecendo com quase todos nós, chegou a minha hora. Eu não posso voltar lá amanhã.
- Eu já tinha imaginado isso. Vou tirar você do país hoje à noite. Leve o mínimo de bagagem possível.
- Eu não tenho quase nada para levar. Todas as coisas que me interessam já estão na Europa há muitos anos.
- Onde?
- Isto eu não vou dizer nem para você.
- É razoável. A que horas você quer ir?
- O mais cedo possível. Só preciso passar em casa para pegar o meu passaporte e umas joias. Eu pego um táxi até lá. Vou deixar tudo do jeito que está, como se eu tivesse saído e não voltado nunca mais. Moro pertinho daqui, acho que em quinze, vinte minutos eu estou pronta.
- Então pegue um táxi para Andrews e procure a segurança. Você vai embarcar na próxima ponte diplomática para Paris.
- Boa escolha. A que horas?
- Mais ou menos daqui a uma hora e meia. Tudo de bom para você, Dezessete.
- Obrigada. Eu mereço.
36
Depois de recomendar a Poole que ficasse por perto do telefone do Shenandoah Lodge, basicamente para saber notícias de Catherine Neilsen, Hawthorne entrou no automóvel e se dirigiu à casa do capitão Henry Stevens, o chefe da inteligência naval assassinado. Ao chegar, viu na entrada um carro cinza da segurança do Departamento de Marinha. Um oficial de farda, armado, recebeu Tyrell; fez um sinal na direção da sala de estar, onde, postada à janela, estava uma mulher vestida de preto.
O encontro de Phyllis e Tye foi, a princípio, marcado pelo constrangimento de dois velhos amigos separados por uma terrível perda pessoal, que voltavam a se ver numa situação que, de forma dolorosa e inevitável, evocava a tragédia de Amsterdã. Tudo isso foi dito em silêncio, através dos olhares dos dois, até que Hawthorne se aproximou e ela se atirou nos seus braços, com lágrimas a rolar pelo rosto.
- Tudo isso é tão sórdido, tão sórdido!
- Eu sei, Phyll, eu sei.
- Claro que você sabe!
Os dois ficaram abraçados, ambos entendendo as palavras que não foram ditas; duas pessoas honestas que haviam perdido uma parte de suas vidas, incapazes de compreender a insensatez daquelas mortes. Passou-se um longo momento de silêncio, e Hawthorne se soltou dos braços da mulher de Henry Stevens.
- Você quer tomar alguma coisa, Tye? Chá, café, um drinque?
- Não, obrigado - disse Hawthorne. - Daqui a pouco, talvez.
- Na hora que você quiser. Vamos sentar. Eu sei que você não veio aqui só por amizade; você anda ocupado demais para isso.
- O que é que você sabe, Phyll?
- Bem, eu sou mulher de um oficial do serviço de inteligência, o que não quer dizer que eu seja muito inteligente, mas acho que consegui tirar mais conclusões do que o Henry pensava. Meu Deus, ele passou quase quatro dias sem dormir... e estava preocupadíssimo com você, Tye. Você deve estar exausto.
- Então você sabe que nós estamos caçando uma pessoa?
- Claro que sei. Uma mulher muito perigosa, cercada de outras pessoas tão perigosas quanto ela.
- O Henry disse para você que era uma mulher?
- Ele só me disse isto, que era uma terrorista do vale do Baaka. Se ele não estivesse tão cansado, eu duvido muito que ele me contasse.
- Phyllis - disse Hawthorne, curvando-se para a frente na cadeira próxima à da viúva, olhando com firmeza para a sua velha amiga da embaixada em Amsterdã. - Eu tenho que lhe fazer umas perguntas sobre os últimos dias, antes do Hank ser morto. Eu sei que não é uma boa hora, mas a gente não tem tempo...
- Eu entendo. Já estou mais do que acostumada com isso.
- Você está sozinha em casa?
- Não. A minha irmã veio de Connecticut para ficar comigo; ela deu uma saída.
- Mas você e o Hank moravam aqui só os dois...
- Ah, sim, mas com toda aquela parafernália de sempre. Carros da Marinha com homens armados patrulhando dia e noite, limusines para levar e trazer o Hank do trabalho, e um sistema de alarme sofisticadíssimo. A gente estava seguro, se é isto que você quer saber.
- Me desculpe, mas é óbvio que não estavam. Alguém entrou aqui e matou o Henry enquanto ele estava falando comigo no telefone.
- Eu não sabia que era com você, mas eu discuti isso tanto com a Marinha quanto com a polícia; o telefone da cozinha estava fora do gancho. Mas numa coisa você tem razão... óbvio. Volta e meia entram pessoas estranhas aqui, serviços de entregas, consertos, essas coisas. A gente não pode se isolar completamente, senão não dá nem para encomendar uma pizza. Geralmente o Hank chamava a patrulha quando a gente estava esperando alguém. Mas às vezes ele esquecia; isso era tão raro aqui, não era como em Amsterdã. Ele achava que era paranoia.
- Em outras palavras, qualquer pessoa que chegasse aqui teria entrado sem problemas, um sujeito de macacão com uma caixa de ferramentas, um homem de terno com uma pasta, ou um militar fardado - disse Tyrell, mais como uma afirmação do que como uma pergunta.
- Provavelmente sim - concordou a viúva - mas a polícia e a Marinha têm essa informação, a patrulha que estava de plantão naquele dia foi interrogada sobre todos os detalhes. Os dois homens disseram que, fora o entregador do jornal, ninguém chegou perto da casa.
- E esses carros ficavam estacionados na porta o tempo todo?
- Não, não era que nem esse carro que está ali fora, mas eu devo dizer que isso não é muito importante. Como eu disse, eles circulavam. O Hank fazia questão disso, tanto por razões de ordem prática quanto por causa dos vizinhos.
- Circulavam...?
- É, davam a volta no quarteirão, um percurso que leva no máximo um minuto e dez segundos.
- E a "razão de ordem prática" do Hank era essa - disse Hawthorne. - Uma patrulha estacionária, com ou sem identificação, sempre chama atenção.
- Sem identificação - interrompeu Phyllis. - E os nossos vizinhos não iam gostar nem um pouco de ter sempre um carro desconhecido estacionado aqui em frente. Este bairro é muito pacato, se bem que pode ser até que a rua ficasse mais animada. Se eu não fosse tão velha, eles iam pensar que eu tinha um amante.
- Você não é velha, Phyll, você é uma mulher muito bonita.
- Ah, lá vem o sedutor. Senti falta disso quando você saiu da embaixada.
- Quer dizer que qualquer pessoa que tivesse acesso à rotina da segurança poderia ter matado o Henry. Um minuto e dez segundos é uma hora e dez minutos em tempo tático, não cronológico.
- Você diz alguém da Marinha?
- Ou qualquer militar com a patente bastante alta.
- Por favor, seja mais claro - disse Phyllis, em tom severo.
- Não posso, pelo menos agora.
- Ele era o meu marido!
- Então eu vou lhe dizer o que o seu marido teria dito, e eu vou ser o mais honesto possível. Existem coisas que eu não posso contar para você por enquanto.
- Que história é essa, Tyrell? Eu tenho o direito de saber! Vinte e sete anos de casamento!
- Calma, Phyll. - Hawthorne pegou as mãos de Phyllis e segurou-as entre as suas. - Estou fazendo exatamente o que o Henry faria no meu lugar. Ao contrário do que eu sempre disse para ele, ele era um grande analista; talvez não o melhor no campo, que não era a área dele, mas para fazer previsões, não tinha muita gente à altura dele. Eu respeitava ele por isto... e mais ainda por ele ser casado com você.
- Ah, pare com isso, seu vaselina - disse Phyllis Stevens, com um sorriso breve e triste, apertando as mãos de Tyrell e soltando-as em seguida. - Continue com as suas perguntas.
- Eu só quero saber duas coisas. Quando e para quem ele falou de mim?
- Quando você levou um tiro, naquela praia em Maryland. Ele quase ficou louco, se sentindo responsável novamente...
- Novamente?
- Depois a gente fala disso, por favor, Tye - disse suavemente a viúva.
- Ingrid?
- É uma coisa complicada. Por favor, deixe isto para depois.
- Está bem. - Hawthorne engoliu em seco, o rosto vermelho do sangue que lhe subira à cabeça. - Continue.
- Ele disse o seu nome, umas três ou quatro vezes, exigindo que você fosse tratado com todas as regalias, e ameaçando punir quem não obedecesse a essa ordem.
- Para quem ele disse isso, Phyll?
- Droga, como é que eu vou saber? Alguém ligado ao seu trabalho. O Hank disse a ele que queria que fizesse circular um relatório completo, que não deixasse margem a dúvidas.
- O que significa que todo o círculo da Menina Sanguinária tomou conhecimento, inclusive o peso-pesado.
- Do que é que você está falando?
- Nada, não.
- Eu preferia que você parasse de dizer isto. Lá em Amsterdã, toda vez que alguma pessoa amiga via você chegar com o braço na tipoia ou com algum machucado e perguntava o que tinha acontecido, você sempre dizia a mesma coisa: "Nada, não."
- Desculpe, desculpe mesmo. - Tyrell sacudiu a cabeça devagar.
- Mais alguma coisa, meu amigo? - perguntou a viúva.
- Eu não consigo pensar em mais nada. Como o Henry sempre dizia, "Sempre existe um padrão, é isso que você tem que procurar", quando eu geralmente ficava procurando detalhes.
- Mas era quando você encontrava esses detalhes que o Hank visualizava os padrões. Ele sempre deu crédito a isso.
- Bem, pelo menos nós temos mais um indício contra um general psicopata, a menos que você tenha deixado de me contar alguma coisa, qualquer coisa, por mais insignificante que pareça, Phyll.
- Talvez as ligações de Londres...
- Londres?
- É, começou às sete ou oito da manhã; foi a minha irmã que atendeu, eu me recusei.
- Por quê?
- Porque eu não estava em condições, meu amigo! O Henry deu a vida dele por esta coisa toda, esta coisa sórdida, e eu não quero saber de nenhum serviço de inteligência, seja de Londres, de Paris, de Istambul ou do Curdistão. Pelo amor de Deus, ele morreu! Deixem ele em paz! Me deixem em paz!
- Phyll, essas pessoas não sabem que ele morreu!
- E daí? Eu mandei a minha irmã dizer para eles procurarem o Departamento de Marinha. Eles que inventem a mentira que quiserem, eu não aguento mais fazer isso.
- Onde é que fica o telefone?
- O Henry nunca quis ter telefone na sala, então a gente instalou ele no jardim de inverno, eles, aliás; são três, cada um de uma cor.
Hawthorne levantou-se e correu até o jardim de inverno. No canto esquerdo havia uma mesinha com três telefones: um bege, um vermelho e um azul-escuro, parcialmente escondido por um painel semiaberto. Pegou o telefone vermelho e ligou para a telefonista.
- Aqui é o comandante Hawthorne - disse ele -, adido temporário do capitão Stevens. Me ligue para o oficial responsável pelo plantão da inteligência naval.
- Pois não, senhor.
- Capitão Ogilvie, linha vermelha - atendeu uma voz. - Você é o Hawthorne?
- O próprio, capitão, e preciso lhe perguntar uma coisa.
- Nesta linha eu respondo a qualquer pergunta.
- Alguém ligou de Londres para o gabinete do capitão Stevens?
- Que eu saiba, não, Comandante.
- Eu não estou interessado em "que eu saiba", Capitão. Eu preciso de uma confirmação.
- Espere um pouco. - Depois de um silêncio de menos de dez segundos, Ogilvie retornou. - Nada de Londres, Comandante. Nenhum recado.
- Obrigado, Capitão. - Tyrell desligou o telefone e voltou para a sala de estar. - Ninguém ligou de Londres para o escritório do Henry.
- Que estranho! - disse Phyllis, erguendo a cabeça para Tyrell. - Eles ligaram várias vezes para cá.
- Você sabe para qual telefone?
- Não. Eu já disse, foi a minha irmã que atendeu. Ela só me disse que todas as vezes era a mesma pessoa, um oficial inglês, muito nervoso. E todas as vezes ela mandou ele ligar para o Departamento de Marinha.
- Mas ele não ligou - disse Hawthorne. - E continuou ligando para cá. Por que será?... O que mais a sua irmã disse?
- Mais nada, mesmo porque eu não estava prestando atenção.
- E onde é que ela foi?
- Ao supermercado, foi fazer umas compras. Ela já deve estar chegando; quando você chegou eu até achei que era ela. - Ouviu-se uma buzina. - Pronto, chegou. O segurança vai lá ajudar ela com os pacotes.
Pela rapidez das apresentações, a irmã de Phyllis percebeu que havia alguma emergência. Mandou o segurança descarregar as compras e dirigiu-se à sala de estar, acompanhada por Tyrell.
- Sra. Talbot - começou ele.
- Pode me chamar de Joan; a Phyll já me falou muito de você. O que foi que aconteceu?
- É isto que estamos tentando descobrir, e só você pode nos ajudar... As ligações de Londres, quem era?
- Ai, foi horrível, eu nunca me senti tão mal na minha vida! - exclamou Joan Talbot, atropelando as palavras. - O homem ficou perguntando pelo Henry, dizendo que era urgente, querendo saber como ele fazia para falar com ele imediatamente. E eu tendo que dizer que a gente estava tentando localizar ele e que ele tentasse falar com o Departamento de Marinha. E ele dizia que na Marinha ninguém sabia onde ele estava... meu Deus, o Henry morre e a Marinha não diz nada, e eu também não posso dizer nada! Isto é tudo um nojo.
- Nós temos motivos, Joan, bons motivos...
- Para fazer a minha irmã passar por este inferno? Por que é que você acha que ela não quer atender o telefone? Quem está atendendo sou eu, ou então o "almirante" ali da entrada. Deixe eu lhe dizer uma coisa. Durante este tempo todo, as pessoas ficam ligando para o Henry e ela tem que dizer: "Ele está no banho", ou "Ele foi jogar golfe", ou então "Ele saiu para uma reunião"... como se ela estivesse esperando ele entrar por aquela porta e perguntar o que vai ter para o jantar! Como vocês podem ser tão mórbidos?
- Chega, Joannie - disse a mulher de Henry Stevens. - O Tye está fazendo o trabalho dele, por mais desagradável que seja. Agora responda à pergunta dele. Quem foi que ligou?
- Era um sujeito muito do pernóstico, ainda mais com aquele sotaque britânico. Ele tinha uma voz meio sinistra.
- Quem era ele, Joan?
- Ele não disse o nome, só disse que era do M-não-sei-o-quê e não-sei-o-que-Especiais.
- MI-6? - respondeu Hawthorne. - Serviços Especiais?
- É, acho que é isso mesmo.
- Meu Deus, mas por quê? - sussurrou Tyrell para si mesmo, a boca entreaberta, o olhar vago, vendo apenas nuvens de indefinição. - Para qual telefone ele ligou?
- Para o azul, todas as vezes.
- Está certo, o "azulzinho". Essas linhas são diretas, exclusivas, e protegidas contra invasão.
- Agora estou começando a entender - disse Phyllis. - Sempre que o Hank queria falar com alguém importante na Europa ou no Oriente Médio, ele usava esse telefone.
- Faz sentido. É uma rede internacional, projetada para os chefes dos serviços de inteligência aliados e os chefes militares. O "azulzinho" é a maneira mais segura de ligar para fora do país, mas você tem que ter um número para ligar, e eu não tenho. Vou ligar para o Palisser, para ele me dar.
- Você está falando do número de Londres? - perguntou Joan Talbot. - Se for, está no bloquinho ao lado do telefone.
- Ele deu para você?
- Só depois de repetir duas vezes que o número ia ser "alterado amanhã de manhã, minha senhora", pronunciando cada palavra como se estivesse dando uma bênção satânica.
- Talvez não tenha que ser.
Hawthorne foi rapidamente até o jardim de inverno, pegou o bloco, e discou os quatorze dígitos do telefone de Londres. Ao fazer isto, sentiu uma dor aguda no peito, aguda mas inócua, um aviso que ele já recebera inúmeras vezes, que nada tinha a ver com sua saúde física, e sim com seu estado de espírito, fruto da sua intuição. Ao interrogar Phyllis, esperava encontrar uma lacuna, uma palavra, uma peça qualquer que revelasse alguma ligação entre ele e a morte de Henry Stevens. Sabia que encontrara essa peça: Henry havia mandado circular um relatório completo sobre o que acontecera em Chesapeake. A medida visava garantir que ele seria bem tratado, mas era inevitável que o relatório chegasse ao conhecimento de todo o círculo da Menina Sanguinária, inclusive de um Scorpio chamado Meyers, adversário ferrenho dos civis, um homem para quem seria fácil acessar a rotina da patrulha militar que guardava a casa de Stevens. Esta informação era o elo que ele estava procurando, mas os telefonemas do MI-6, diretamente para a linha azul da casa de Stevens, passando por cima da inteligência naval, eram uma ocorrência totalmente inesperada, uma tática que causava pânico, responsável pela dor no peito de Tyrell. Axioma: Cuidado com os eventos inesperados demais, principalmente quando eles vêm de um território amigo. Havia alguma coisa estranha naquilo.
- Alô? - gritou uma voz, de Londres.
- Aqui é o Stevens - mentiu Hawthorne, na esperança de que a rapidez da sua fala confundisse seu interlocutor, caso este conhecesse a voz de Henry Stevens.
- Pelo amor de Deus, Capitão, o que é que está acontecendo? Não consigo falar com o diretor da CIA, e estou tentando falar com você há quase dez horas!
- Foi um dia complicado...
- Deve ter sido mesmo. Bem, como não nos conhecemos, deixe eu me apresentar. O meu nome é Howell, John Howell... tem um Sir na frente, caso você queira checar no computador, mas pode deixar esse título para lá.
- MI-6, Serviços Especiais?
- Bem, eu apenas sirvo à Rainha. Imagino que vocês estejam tomando todas as precauções, da mesma forma como nós estamos, e Paris, também. Não temos notícias de Jerusalém, mas aqueles lá costumam ser mais prevenidos do que nós. Eles já devem ter escondido o homem em algum subterrâneo no Monte Sinai.
- Então nós estamos sincronizados, John, mas eu passei quase o dia todo numa reunião de emergência, e talvez esteja um pouco por fora das novidades. Você poderia me colocar a par?
- Você só pode estar brincando! - gritou Howell. - É você quem está coordenando o comandante Hawthorne, não é?
- Sou eu, sim, claro - respondeu Tyrell, tentando desesperadamente achar alguma lógica dentro do ilógico. - Por falar nisso, obrigado por ter recrutado o Comandante...
- Não fui eu, foi o Geoffrey Cooke, que Deus o tenha.
- É verdade, eu sei disso, mas, como eu ia dizendo, eu só recebi o seu recado agora, quando cheguei em casa. Não tinha nenhum recado lá no escritório.
- Porra, Capitão, eu não podia deixar o meu nome. Eu e o novo diretor da CIA concordamos em manter isso tudo em sigilo absoluto, só entre nós três; você foi incluído por causa do Hawthorne. Mas o que foi que aconteceu? O diretor da CIA não falou com você? A secretária dele, uma mulher muito grosseira e arrogante, por sinal, me disse que o chefe dela já tinha sido informado e que estava a par de tudo, mas como, se ele não falou com você?
- Nós tivemos um problema com Israel e Síria - disse Tyrell, tentando ser convincente. - É o assunto de todos os noticiários de rádio e TV agora à noite.
- Isto não tem cabimento! - interrompeu o diretor do MI-6, Serviços Especiais. - É só encenação da Síria e de Israel. E por mim, eles podem se destroçar um ao outro. A situação que estamos passando faz o teatrinho deles se tornar uma coisa insignificante.
- Espere aí, Howell - disse Tyrell, a voz contida, o rosto cada vez mais pálido, sentindo o pânico se avolumar no seu horizonte. - Você está se referindo à operação de escuta telefônica coordenada pelo seu pessoal e pela CIA?
- Isto é ridículo! Você está me dizendo que não sabe de nada?
- Não sei de quê, John? - A respiração de Hawthorne estava suspensa.
- É hoje! A Bajaratt disse que vai atacar hoje à noite! No horário de vocês!
- Meu Deus... - disse Tyrell num fio de voz, a respiração lenta, o rosto branco. - E você disse que o grupo da CIA transmitiu essa informação para o diretor?
- Claro.
- Você tem certeza?
- Meu amigo, eu falei pessoalmente com a secretária dele. Ela disse que o diretor tinha várias reuniões fora durante o dia e, da última vez que eu liguei, ela disse que ela estava na Casa Branca, reunido com o Gabinete do Presidente.
- Com o Gabinete?... Para quê?
- Stevens, esse é o seu país, não é o meu. Claro, se fosse o nosso primeiro-ministro, ele estaria, e está, sob a proteção da Scotland Yard, e não reunido com o Gabinete na Downing Street; alguns desses caras podem muito bem acabar com ele.
- Aqui também existe essa possibilidade.
- Como assim?
- Deixe para lá... Você está me dizendo que o diretor da CIA recebeu a informação e, portanto, já que ele esteve nessas reuniões, ele deve ter repassado a notícia para todas as pessoas de Washington que deveriam saber?
- Escute, Stevens, ele é novo no cargo, e deve ter entrado em pânico. Não seja muito duro com ele. Talvez eu devesse ter sido mais cuidadoso. Eu acreditei nas pessoas daí, que me disseram que ele era um cara ótimo, bastante experiente.
- E deve ser mesmo, mas houve uma pequena omissão.
- Qual?
- Eu acho que ele não recebeu informação nenhuma.
- O quê?
- Escute, você não precisa alterar este número, John. Eu vou queimá-lo e depois volto a falar com você pelos canais normais.
- Pelo amor de Deus, faça o favor de me dizer o que é que está acontecendo aí!
- Não vai dar tempo. Eu falo com você mais tarde. - Tyrell desligou o telefone azul, pegou o vermelho e apertou a tecla "O"; a telefonista não demorou a atender. - Aqui é o comandante Hawthorne...
- Sim, Comandante, o senhor falou comigo agora há pouco - disse ela. - Espero que o senhor tenha conseguido falar com o Departamento de Marinha.
- Consegui sim, obrigado. Mas agora eu estou precisando falar com o Sr. Palisser, o secretário de Estado, de preferência nesta linha, se for possível.
- Pois não, senhor, vou tentar localizar o Secretário.
- Eu espero na linha. É uma emergência.
Enquanto esperava, Tyrell tentava formular as palavras que usaria para dar a incrível notícia ao secretário de Estado, uma revelação na qual possivelmente Palisser se recusaria a acreditar. A operação de escuta telefônica entre Londres e Washington não fora um fracasso, tinha funcionado! Bajaratt fora interceptada, suas palavras estavam gravadas; ela atacaria naquela noite, não se sabia a que horas. O absurdo era ninguém saber disso!... Isso não estava certo, refletia Hawthorne, alguém sabia, e esse alguém havia segurado a informação. Droga, onde estaria Palisser?
- Comandante...?
- Sim, estou aqui.
- Nós estamos tendo dificuldade em localizar o Secretário, senhor. Temos o código do seu telefone vermelho, então, quando conseguirmos encontrá-lo, passamos a ligação na mesma hora, se o senhor quiser.
- Não, eu não quero. Vou continuar na linha.
- Pois não, senhor.
Fez-se silêncio novamente; a demora acentuava a dor no peito, que se recusava a ceder. Já eram mais de seis horas, pensava Hawthorne, virando o pulso para ver as horas - bem mais, eram quase seis e meia. Horário de verão ou não, a noite estava começando. Porra, Palisser, onde é que você está?
- Comandante...
- Sim?
- Não sei como explicar, mas nós não estamos conseguindo localizar o secretário de Estado de jeito nenhum.
- Você só pode estar brincando! - gritou Tyrell, inconscientemente imitando Sir John Howell.
- Falamos com a sra. Palisser em St. Michaels, Maryland, e ela disse que o Secretário ligou para lá, dizendo que ia passar na embaixada de Israel e que ia chegar em casa dali a mais ou menos uma hora.
- O que mais?
- O embaixador está em Jerusalém, então nós falamos com o substituto dele, que disse que o secretário Palisser passou menos de vinte e cinco minutos lá. Eles conversaram, segundo ele disse, sobre "assuntos do Departamento de Estado", e depois o secretário foi embora.
- Que assuntos eram esses?
- Nós não fizemos essa pergunta, senhor.
- Desde quando um secretário de Estado americano vai procurar a embaixada de Israel? O normal seria o contrário, não é?
- Eu não sei responder, senhor.
- Eu acho que sei... Me ligue para o substituto do embaixador e diga a ele que é uma emergência. Se ele não estiver lá, dê um jeito de encontrar ele.
- Sim, senhor.
Trinta e nove segundos depois ouviu-se uma voz grave na linha.
- Aqui fala Asher Ardis, da embaixada de Israel. Me disseram que era uma chamada de emergência, da parte de um oficial da inteligência naval americana. É isto mesmo?
- O meu nome é Hawthorne, e eu estou trabalhando com o secretário de Estado, o sr. Bruce Palisser.
- Uma pessoa muito agradável. Posso ajudar em alguma coisa?
- O senhor está a par de uma operação chamada Menina Sanguinária? Nós estamos na linha vermelha, o senhor pode falar à vontade.
- Eu poderia, sr. Hawthorne, mas eu não sei nada sobre essa operação. Suponho que seja uma operação conjunta com o governo do meu país, estou certo?
- Isto mesmo, sr. Ardis, com o Mossad. O Palisser lhe falou de dois agentes do Mossad que teriam vindo de Israel para entregar uma encomenda para ele? Isto é muito importante, meu senhor.
- Uma encomenda pode ser tantas coisas, não é, sr. Hawthorne? Pode ser uma folha de papel, uma pilha de documentos, ou até mesmo um caixote da nossa fruta predileta, não é?
- Não tenho tempo para esse tipo de pergunta, sr. Ardis.
- Nem eu, mas eu sou curioso. Fizemos a cortesia de emprestar ao secretário de Estado uma sala privativa com um telefone seguro para ele ligar para Israel e falar com o coronel Abrams, do Mossad. O senhor há de convir que se trata de um pedido bastante incomum e uma cortesia igualmente incomum.
- Eu não sou diplomata, não tenho como saber.
- O Mossad costuma operar por fora dos canais normais, o que é uma coisa bem irritante, mas a gente tenta compreender que ele quer fazer jus à imagem do polvo clandestino, do molusco com tentáculos que alcançam todos os lugares...
- Estou vendo que o senhor não é um grande admirador deles - interrompeu Tyrell.
- Eu posso citar vários exemplos de pessoas que foram presas e condenadas injustamente.
- E eu repito que não estou interessado nas suas rivalidades interdepartamentais, meu senhor, só estou interessado na visita que o secretário Palisser fez à sua embaixada. Ele conseguiu falar com o coronel Abrams? E, se conseguiu, o que foi que o coronel disse? Espero que o senhor entenda que, se eu estou num telefone vermelho, é porque tenho acesso a informações privilegiadas; nós estamos trabalhando juntos! Se o senhor precisar de alguma confirmação, aperte aí os seus botõezinhos e se informe!
- O senhor está muito nervoso, sr. Hawthorne.
- Eu estou é cansado desta conversa mole!
- Eu estou entendendo. A fúria de um homem inteligente revela a verdade.
- Eu não estou interessado em parábolas talmúdicas! O que foi que aconteceu quando o Palisser falou com o Abrams?
- Ele não conseguiu falar. O coronel do Mossad não estava lá, mas quando ele chegar, vai receber um recado urgente para entrar em contato com o secretário de Estado, que nos deu seis números de telefone, sendo que três deles são seguros. A sua pergunta está respondida?
Revoltado, Tyrell bateu o telefone e voltou para a sala de estar dos Stevens. Phyllis o recebeu junto à porta.
- O tenente Poole ligou para você pelo outro telefone, eu atendi na cozinha...
- Cathy? Era alguma coisa sobre a Major Neilsen?
- Não, era sobre o general Michael Meyers, chefe do Gabinete Militar. Ele telefonou e quer se encontrar com você imediatamente. Ele disse que é urgente.
- Eu imagino. Ele está atrás de um pato para treinar tiro ao alvo.
18:47
A limusine com a placa do Departamento de Estado corria em direção ao sul pela rodovia 50, a caminho de St. Michaels, no litoral de Maryland. No assento traseiro, o secretário de Estado não parava de apertar as teclas do seu telefone, numa irritação crescente. Por fim, exasperado, ele desceu o vidro da divisória do banco dianteiro e perguntou ao motorista:
- Nicholas, que diabo está acontecendo com este telefone? Ele está mudo!
- Não sei, sr. Secretário - respondeu o chofer cedido pelo Serviço Secreto. - Eu também estou tendo problemas com o rádio. Não consigo falar com ninguém.
- Ei, espere aí. Você não é o Nicholas. Onde é que ele está?
- Ele teve que ser substituído, senhor.
- Substituído? Por quê? Onde ele foi? Ele estava aí no seu lugar quando nós chegamos à embaixada de Israel.
- Talvez tenha sido alguma emergência na família dele. Só sei que me chamaram para ficar no lugar dele, senhor.
- Isto não está correto. O meu gabinete devia ter-me informado, a norma é esta.
- Ninguém sabia onde o senhor estava.
- Eles têm o meu número.
- O seu telefone não está funcionando, sr. Secretário.
- Espere aí! Se no meu gabinete ninguém sabia onde eu estava, como é que você sabia?
- Nós temos os nossos próprios meios, senhor. Recebemos ordens lá de cima.
- Responda!
- Só mandaram eu dar o meu nome, o meu posto e o meu número. É assim que a gente faz com o inimigo.
- O que foi que você disse?
- O senhor armou uma cilada para o general ontem à noite, uma cilada tão perigosa que a Casa Branca mandou colocar ele sob vigilância. Isso não é coisa que se faça com um homem como o general Meyers.
- Como você se chama, soldado?
- Pode me chamar de Johnny. - De repente, o motorista deu uma guinada para a esquerda e tomou uma estradinha de terra, cuja entrada era quase imperceptível. Ele acelerou e seguiu em alta velocidade pelo chão irregular e esburacado, até chegar a uma pequena clareira; o primeiro objeto que chamava a atenção era um helicóptero Cobra. - Pode saltar, sr. Secretário.
Aturdido, Palisser puxou a maçaneta; a porta se abriu e ele se viu no meio de uma grama alta e áspera. A três metros de distância estava o chefe do Gabinete Militar, de farda, com a manga direita dobrada e presa junto ao ombro.
- Você foi um grande soldado na Segunda Guerra Mundial, Bruce, mas esqueceu algumas lições. - disse o General. - Quando você penetrar no território inimigo, escolha com cuidado as pessoas em quem você vai confiar. Você se esqueceu de uma pessoa na Casa Branca. Se ele tivesse interrompido a reunião do Conselho de Segurança para lhe dar os recados, ele teria sido morto.
- Meu Deus - disse Palisser em voz baixa. - Você é mesmo tudo aquilo que o Hawthorne falou. Não só está disposto a permitir que o Presidente seja assassinado, mas ainda está ajudando o assassino.
- Ele é só um homem, Bruce, um político equivocado que está dizimando o poder armado dos Estados Unidos. Tudo isso vai mudar hoje à noite, o mundo vai mudar.
- Hoje à noite?
- Daqui a pouco mais de uma hora.
- O que é que você está dizendo?
- Está certo, você não tinha mesmo como saber. Os mensageiros do Mossad não chegaram a falar com você, não é?
- Abrams - disse Palisser. - O coronel Abrams.
- Um homem perigoso. - Meyers inclinou a cabeça. - Por causa daquela ética distorcida dele, ele não consegue ver os benefícios disso tudo. Aliás, ele estava certo em não confiar em ninguém, e mandou duas pessoas dele para falar com você e revelar um nome, o nome de um senadorzinho discreto que vai tornar tudo possível... Mais ou menos daqui a uma hora.
- Como é que você sabe disso?
- Através de uma pessoa que eu tenho certeza de que você nunca notou: um assistente do Conselho de Segurança, também discreto, o mesmo homem que hoje de manhã interceptou os recados que aquele vira-casaca do Hawthorne mandou para você. Ele é o nosso homem na Casa Branca; o Presidente gosta muito dele e os dois conversam muito. Ele é tenente-coronel e também já foi meu assistente, fui eu que pus ele lá. E nós dois também conversamos muito. - O general olhou para o relógio sob a luz dos últimos raios de sol. - Daqui a um pouco mais de uma hora, o Presidente, para atender a um pedido desse senadorzinho inofensivo, vai comparecer a um encontro com... Adivinhe quem, Bruce? Estou vendo que você já adivinhou, e é isto mesmo. Com a Menina Sanguinária... E aí, pooou! A explosão vai ecoar pelo mundo inteiro.
- Seu filho da puta! - Palisser aprumou o corpo envelhecido e jogou-se para a frente com os braços estendidos.
O chefe do Gabinete Militar levou a mão esquerda à parte de trás da túnica e puxou uma baioneta. Quando o secretário de Estado agarrou o pescoço do General, Meyers enfiou a enorme lâmina no seu estômago; em seguida, com um movimento brusco, arrancou-a.
- Despache o corpo - ordenou ele ao suboficial - e jogue essa limusine no mar.
- Deixe comigo, Mike.
- Cadê o motorista?
- Num lugar onde ele nunca vai ser encontrado. Garanto.
- Ótimo. Esta é apenas uma dessa lacunas na História, nada mais. Daqui a uma hora isso não vai mais ter nenhuma importância. Nada mais vai ter importância. Eu estou indo para a Casa Branca. Vou ficar no saguão do segundo andar.
- É melhor, mesmo. Alguém vai ter que assumir.
Numa ruela escura de Jerusalém, sob a chuva forte, uma figura jazia no chão; suas roupas estavam encharcadas, e o sangue que fluía do seu corpo se misturava com a água que caía do céu e corria pelo pavimento de pedra junto ao meio-fio. O coronel Daniel Abrams, o líder do empreendimento contra Bajaratt, levara seis tiros de uma pistola silenciosa. E um homem velho e corpulento caminhava pela Sharafat, seguro de que havia feito a coisa certa.
37
18:55
Bajaratt vestiu-se para o momento mais importante da sua vida, a justificativa de toda uma existência. Ao se olhar no espelho, viu a imagem de uma menina de dez anos fitando-a com assombro e adoração.
Nós conseguimos, minha coisa mais querida! Agora ninguém mais pode nos segurar, pois vamos mudar a História. Aquela dor do tempo das montanhas vai desaparecer quando o sangue correr pelo mundo inteiro, e nós duas vamos nos sentir recompensadas, vingadas do horror que nos foi infligido... Você se lembra quando as cabeças da mamãe e do papai rolaram pelas pedras, separadas dos corpos, com os olhos arregalados, protestando contra o Deus cruel que permitia uma coisa daquelas - protestando talvez por você e por mim, que guardaríamos aquela lembrança pelo resto da nossa vida? Muerte a toda autoridad!... Nós vamos conseguir, eu e você, porque somos uma só, e somos invencíveis!
A imagem se diluiu quando Baj se aproximou do espelho, examinando agora as mechas prateadas dos cabelos e a maquiagem clara, com sombras sob os olhos, tudo concebido para produzir um rosto mais velho do que o seu, com a máxima sutileza, porém. A roupa era tão cara e elegante quanto discreta: um vestido de seda azul-marinho abaixo dos joelhos com um enchimento embutido preenchendo o espaço entre o busto e os quadris, também feitos sob medida para dar a aparência de uma mulher de meia-idade que luta para manter a linha. Um colar de pérolas de duas voltas, meias azul-claras e sapatos Ferragamo azul-marinho completavam o traje. O resultado era a figura de uma riquíssima aristocrata italiana, frequentadora assídua da Via Condotti, a correspondente em Roma do Faubourg Saint-Honoré em Paris. E como complemento final, uma bolsinha azul-acinzentado com fecho de pérolas; ninguém teria dúvidas de que as duas pérolas eram tão autênticas quanto as do colar.
No pulso dessa decana da alta costura estava preso um delicado relógio incrustado de brilhantes, à primeira vista o mais sofisticado dos Piagets. Mas não era; era uma imitação perfeita, capaz de suportar a violência de um furacão no meio do oceano, com um mecanismo tão simples e, ao mesmo tempo, tão potente que poderia emitir um impulso eletrônico para um receptor a cinquenta metros de distância, penetrando em superfícies de vidro, madeira e argamassa, a partir de apenas três toques na sua corda. O receptor do impulso elétrico estava embutido na costura da bolsinha azul: um disco minúsculo, preso por um invólucro de plástico fino, que, quando detonado, causava uma explosão com o mesmo potencial destrutivo de setecentos gramas de nitroglicerina. Muerte a toda autoridad! Morte aos líderes que comandavam a morte em todas as partes do mundo, fosse por comissão ou por omissão.
- Cabi! - chamou Nicolo do quarto, sobressaltando Bajaratt, que se afastou do espelho e correu até a porta.
- O que foi?
- Eu não consigo prender essas coisinhas de ouro na manga da minha camisa! Na esquerda eu consegui, mas na direita, não...
- É porque você é destro, Nico - interrompeu Baj, entrando no quarto. - Você sempre teve problemas com as abotoaduras, lembra?
- Eu não consigo me lembrar de nada, só consigo pensar em amanhã.
- E hoje? O presidente dos Estados Unidos?
- Desculpe, Cabi, ele pode ser importante para você, mas para mim, não. O que é importante para mim está em Nova York, e eu estou tão ansioso! Você ouviu o que a Angel disse no aeroporto? Ela disse que a gente podia passar o fim de semana com a família dela num lago não sei aonde.
- Você vai poder conhecer ela melhor, Nico. - Bajaratt prendeu a abotoadura e recuou um passo para avaliar a sua obra. - Você está maravilhoso, meu menino do cais do porto.
- Mas eu continuo sendo um menino do cais do porto, não é? - disse Nicolo, com os olhos fixos nos da sua criadora. - Você nunca me deixa esquecer disso. Você me faz chegar aqui, tão alto, mas nunca me deixa esquecer. Sente algum prazer com isso?
- Eu fiz você chegar a um ponto em que pode ser o que Deus quiser que você seja.
- É estranho você dizer isto. Você já me disse que não tem nenhum Deus. Você pensa de uma maneira que eu não consigo entender, e eu lamento muito por você. Já chorei por você, porque você faz tantas coisas que eu sinceramente acho erradas, apesar dessa sua missão tão grandiosa que você nunca me explicou o que é.
- Não chore por mim, Nico. Eu já aceitei o meu destino.
- Destino? Que palavra mais forte, Cabi. O destino está fora do nosso alcance.
- Então deixe ele lá... Vista o seu paletó de botão dourado. - O jovem obedeceu, e a sua criadora deu mais um passo para trás, enamorada daquilo que era, em essência, a sua obra de arte. - Você está lindo. A sua altura, a largura dos seus ombros, o seu corpo esbelto, o seu rosto perfeito, coroado por esses cabelos escuros, ondulados. Splendido!
- Pare, você está me deixando encabulado. O meu irmão é mais alto do que eu, três centímetros mais alto.
- Eu sei, eu conheci o seu irmão; ele é um animale. Ele tem a cara achatada, um olhar tolo, e tem o raciocínio meio lento.
- Ele é um cara legal, Cabi, e é muito mais forte do que eu! Se alguém se meter com uma das nossas irmãs, ele é capaz de atirar o sujeito a três metros de distância; o máximo que eu consigo é um metro e meio.
- Me diga uma coisa, Nico, você respeita o seu irmão?
- Eu tenho que respeitar, porque ele é mais velho e, desde que o papai morreu, ele sempre protegeu a nossa família.
- Mas você tem respeito, tem admiração por ele?
- As minhas irmãs adoram ele, todas as três. Agora ele é o padrone, e protege todos nós com a força dele.
- Mas e você, Nico, você? Você também adora ele?
- Ah, pare com isso, Cabi, isso não tem a menor importância.
- Para mim tem, meu bem, porque eu quero que você saiba porque é que o escolhido foi você!
- Para quê?
- Mais uma pergunta que eu não vou responder. Diga! O que o seu irmão mais velho é para você?
- Aaaai - Nicolo sacudiu a cabeça. - Se você quer mesmo saber, eu acho que ele usa os músculos em vez de usar a cabeça. Ele só pensa em mandar nas docas através da força. E ele vai continuar fazendo isso até aparecer um outro lupo para dar cabo dele e tomar o lugar dele. Stupido!
- Está vendo só? Eu estava procurando a perfeição, e encontrei.
- Pois eu acho que você é uma louca. Posso ligar para Nova York, para falar com a Angelina? Ela já deve ter chegado.
- Claro que pode. Mas não demore mais de dez minutos. O Senador vem nos buscar daqui a vinte minutos.
- Eu queria que você me deixasse sozinho para eu falar com ela.
- Tudo bem - disse Baj, retirando-se do quarto e fechando a porta.
19:09
Hawthorne estava a ponto de explodir! Em todas as ligações que ele e Phyllis Stevens haviam feito para os serviços de inteligência de Washington, as respostas recebidas foram: "ele já foi", "ele não pode atender", ou "ele tem mais o que fazer do que falar com um comandante que ele nem conhece". A expressão Menina Sanguinária não surtira nenhum efeito; o sigilo havia sido tão rigoroso, o círculo tão restrito, que não havia ninguém que pudesse assumir a responsabilidade, já que essa autoridade não fora delegada a ninguém. Era o próprio circo da não responsabilidade; ninguém podia transmitir a emergência, pois ninguém tinha autoridade para se dirigir às autoridades superiores, uma vez que não estavam autorizados a isso! A mesa telefônica da Casa Branca fora a pior parte.
- A gente recebe esse tipo de telefonema o dia inteiro, senhor. Se for alguma coisa realmente séria, procure o Serviço Secreto ou o Pentágono.
O Serviço Secreto foi sucinto.
- O seu recado está devidamente anotado, senhor, mas nós podemos lhe assegurar que o Presidente está muito bem protegido. Agora temos que voltar ao trabalho, Comandante, e eu acho que o senhor também. Boa noite.
Tyrell não podia ligar para o Pentágono. Mike Meyers seria alertado; o chefe dos Scorpios cortaria todas as comunicações.
Era impossível encontrar Bruce Palisser, o secretário de Estado, bem como seu contato em Israel, o coronel Daniel Abrams, do Mossad. O que estaria acontecendo?
O telefone tocou no jardim de inverno; Phyllis Stevens, que estava mais perto, correu para atender.
- Tye! - gritou ela. - É de Israel. O telefone vermelho!
Hawthorne pulou da cadeira, correu até o telefone e o arrancou da mão de Phyllis.
- Alô? - disse ele. - Quem está falando?
- Vamos ser claros - disse uma voz, de Jerusalém. - Quem é você?
- Eu sou o ex-comandante Tyrell Hawthorne e estou trabalhando temporariamente com o Palisser, o secretário de Estado, e sou agente do capitão Henry Stevens, da inteligência naval. Por favor, não me peça para explicar isso tudo.
- Não precisa explicar nada, Comandante.
- O que você tem para me dizer, Jerusalém?
- Uma notícia terrível, mas vocês têm que saber... O coronel Abrams foi morto. A polícia encontrou o corpo agora há pouco...
- Eu lamento muitíssimo. Escute, o Abrams estava enviando dois agentes para falar com o Palisser!
- Eu sei, fui eu que arranjei os documentos deles. Eu sou... eu era o assessor particular do coronel Abrams. O secretário Palisser deixou seis números para o Coronel telefonar para ele quando chegasse. Um deles era o número do telefone vermelho do capitão Stevens.
- E você pode me dizer do que se trata?
- Posso, sim, e espero que isso possa ajudar vocês. É um senador chamado Nesbitt, do estado de Michigan; era essa a informação que os nossos agentes estavam levando para o Secretário.
- Um senador de Michigan? Mas o que significa isto?
- Eu não sei, Comandante, mas era essa a informação que os nossos agentes iam transmitir ao sr. Palisser. Pelo que o coronel Abrams falou, era uma informação vital, tanto que ele não quis confiar nem nos canais diplomáticos.
- Obrigado, Jerusalém.
- De nada, Comandante, e se você souber o que foi feito dos nossos agentes, eu agradeceria se nos avisasse o quanto antes.
- Pode deixar, eu vou descobrir. - Totalmente confuso, Tyrell desligou o telefone.
19:32
Alguma coisa estava errada! A limusine de Nesbitt estava atrasada, quase vinte minutos atrasada! Esse comportamento não era condizente com um político numa situação insegura, que, com uma rápida passagem pelo Salão Oval, poderia conseguir centenas de milhões de dólares para o seu estado, garantindo assim a sua reeleição para o Senado... O Senador vai pegar a senhora às sete e quinze em ponto. É um pouco cedo, mas é por causa do trânsito. Foram as palavras do assessor de Nesbitt. Sete e quinze em ponto... Santo Deus! Nesbitt teria sofrido um daqueles ataques? Teria ele se transformado subitamente naquele velho patético, de roupas estranhas e peruca, esquivando-se dos seus guardiães e aventurando-se pelas áreas decadentes da cidade, pelas ruas dominadas pelo sexo? Teria aquela personalidade demente aflorado exatamente nesse momento, o mais glorioso, o mais importante de uma vida que nascera no inferno dos Pireneus? Ela não poderia admitir isso, não iria admitir isso!
- Nicolo, meu bem - disse Bajaratt, num tom frio, contraditório àquele tratamento carinhoso. - Não saia daqui e fique de olho no carro do senador. Eu vou lá dentro tentar telefonar.
- Per certo - respondeu o rapaz, postado sob o toldo; sua aparência era tão resplandecente que os olhares de todos os passantes convergiam na sua direção, como se ele fosse uma celebridade que eles não chegavam a reconhecer, ou um astro do cinema, cujo nome lhes escapava.
No telefone público, em frente ao balcão da recepção do hotel, Baj ligou a cobrar para um número em Silver Spring.
- Sou eu - disse ela. - Está havendo uma emergência.
- Pode falar, Amaya, esta linha é segura - disse a árabe, da sua mansão no subúrbio.
- A limusine do Nesbitt está atrasada, muito atrasada, isto não é normal. Ele está bem?
- Ele teve uma recaída hoje à tarde, mas foi atendido pelo médico...
- Não pode ser! - sussurrou Baj, num tom gutural. - Então eu vou sozinha! O encontro está agendado!
- Infelizmente, eu acho que não. É um encontro extraoficial, e você nunca vai conseguir passar pelo portão sem ele.
- Eu vou, sim, eu preciso. Os Scorpios se voltaram contra mim! Eles estão tentando me impedir. Eles pegaram o Nesbitt!
- Isso é bastante possível, querida, porque eles são favorecidos pelo status quo que você está ameaçando. Mas não tome nenhuma atitude precipitada; espere na linha enquanto eu ligo para o carro do Senador pelo outro telefone.
Bajaratt esperou; seu corpo estava rígido e, pela expressão de seu rosto, parecia que era feito de concreto. De repente, percebeu uma figura atrás de si; voltou-se. Sem se deixar trair pelo choque, ela se deparou com a elegantíssima mulher de Palm Beach, a anfitriã de meia-idade, de cabelos azulados e dentes grandes demais para a boca. Na mão esquerda, ela trazia uma grande bolsa verde semiaberta. A mão direita segurava um automático.
- Você vai parar por aqui - disse a Scorpio.
- O que você acha que vai ganhar Com isso, além de mil facadas no pescoço? - perguntou Bajaratt, num tom gélido.
- Você já pensou no que vamos perder se você foder com tudo o que já conseguimos? - replicou a colunável de Palm Beach.
- Meu Deus, este é o linguajar de uma matrona da alta sociedade?
- É, e eu quero que as coisas continuem como estão, srta. Baaka - respondeu a mulher.
- Você está muito enganada - insistiu Bajaratt, calma. - O Baaka está do seu lado, sempre esteve do seu lado. O nosso padrone é a prova...
- Ele morreu - interrompeu a socialite. - A ilha dele foi pelos ares, todo mundo sabe disso; e agora ninguém mais consegue falar com os cinco primeiros. Todos eles desapareceram, e a culpa só pode ser sua!
- Vamos conversar, mas não aqui - disse Bajaratt, desligando o telefone. - Esta ligação não tem a maior importância, e certamente você não vai poder me dar um tiro aqui, no meio do saguão, seria contraproducente, você não acha? Você seria presa, ou levaria um tiro, também... Venha comigo, tem uma entrada lateral, onde param os caminhões de entrega e os carros diplomáticos, lá a gente pode conversar com calma. E eu lhe garanto que vou ser bem obediente, pois sei que você está armada, e eu não estou. - Enquanto as duas cruzavam o saguão e se dirigiam às portas laterais de molduras douradas, Baj continuou: - Me diga uma coisa, e esta minha pergunta é um elogio, como foi que você me encontrou?
- Eu acho que você não vai ficar surpresa se eu lhe disser que sou muito conhecida em Washington - disse a mulher, caminhando à direita de Bajaratt e esbarrando esporadicamente no seu quadril com a arma escondida na bolsa.
- Em se tratando de você, nada me causa surpresa...
- Porque eu sou uma Scorpio, naturalmente.
- Em primeiro lugar, me diga como você me encontrou?
- Eu sabia que você e o menino estavam escondidos, obviamente usando outros nomes, mas vocês não podiam mudar de aparência; ele, pelo menos, não. Eu pedi para a minha secretária ligar para todos os hotéis elegantes, perguntando por duas pessoas com tal e tal descrição, e dizendo que o meu marido, coitado, tinha esquecido o nome de vocês e o hotel onde vocês estavam, um hábito dele que todo mundo conhece. O resto foi fácil... sra. Balzini.
- Que coisa mais engenhosa! - disse Bajaratt, abrindo a porta, que dava para uma área que parecia um túnel cheio de exaustores ruidosos, com uma plataforma de frente para o movimento incessante da rua. - Não é à toa que você foi escolhida para ser uma Scorpio.
- O que eu quero continuar sendo - interrompeu a anfitriã de Palm Beach, com veemência. - Todos nós queremos! Sabemos o que você pretende fazer, e não vamos deixar você ir adiante!
- E o que é que vocês acham que eu pretendo fazer?
- Não minta para mim, srta. Baaka! - exclamou a mulher. - Uma das pessoas que trabalha conosco é, ou melhor, era a secretária particular do diretor da CIA, em Langley. A Helen agora está na Europa, mas ela me ligou e contou o que está acontecendo. Ela estava estupefata, morrendo de medo, mas o novo Scorpio Um mandou ela obedecer às ordens, e ela não tinha escolha, se quisesse continuar viva... Mas nós não recebemos nenhuma ordem e gostamos daquilo que é nosso, e ninguém vai mudar isso. Você pensa que o meu velho amigo Nesbitt está vindo pegar você?... Ah, não faça esta cara de espanto, queridinha, ele me chama de Sylvia e fui eu que apresentei você a ele, lembra? Com o que a Helen me contou e um telefonema para a casa dele, eu juntei as peças e pensei: "É isto!" Infelizmente, eu acho que a limusine dele sofreu um acidente, o que eu lamento muito. E agora você também vai sofrer um, uma bala perdida num desses assaltos tão comuns nas noites de Washington... E que lugar melhor do que esta caverna barulhenta, onde ninguém vai ver nada nem, muito menos, escutar? - Sylvia olhou à sua volta e começou a tirar o automático da bolsa.
- Eu, se fosse você, não faria isso - disse Baj, percebendo que um gigantesco caminhão de lixo se aproximava e parava junto ao portão da rua.
- Mas eu não sou você. Eu sou eu.
- A minha vida não significa nada - continuou Bajaratt - mas eu soube que você adora a sua, a ponto de trair os seus Scorpios.
- Do que é que você está falando...?
- De Silver Spring, Maryland. Ainda ontem eu fiz uma visita à casa real da abelhinha árabe... você trabalha para ela. Você traiu os Scorpios em troca de dinheiro, de mais dinheiro, como se já não fosse muito bem paga.
- Isto é um absurdo!
- Então explique isso para o Scorpio Um. Você não consegue falar com ele, mas eu consigo. Eu já falei. E se hoje eu não conseguir chegar até a Casa Branca, amanhã de manhã ele vai encontrar uma carta em cima da mesa dele, com todos os detalhes da sua traição... Você se esqueceu de uma coisa. Eu sou a Baj. Eu estou sempre pesquisando, sempre observando, e quando descubro uma fraqueza, faço tudo para que ela vire uma força a meu favor. - Bajaratt afastou-se lentamente para a direita; a anfitriã de Palm Beach, arregalando os olhos cheios de rímel, os dentes projetados por entre os lábios entreabertos, estava imobilizada. - Agora me diga uma coisa, Sylvia, você quer mesmo me matar?
Não houve resposta, pois Bajaratt deu um passo para trás, como se tivesse tropeçado em alguma coisa, e atirou-se para a frente, derrubando no chão a Scorpio, que rolou pelo pavimento por onde se aproximava o monstruoso caminhão de lixo. A freada estridente não foi capaz de evitar a tragédia. A ilustre personalidade de Palm Beach foi esmagada pelas rodas dianteiras do veículo.
- Eu vou chamar uma ambulância! - gritou Bajaratt, correndo em direção à entrada lateral. Ao invés disso, porém, no instante em que entrou no saguão, ela diminuiu o passo e, absolutamente controlada, dirigiu-se ao telefone mais próximo. Pôs uma moeda e fez uma nova ligação.
- Alô? - atendeu a felina de Silver Spring.
- Eles me descobriram - disse Baj. - O carro de Nesbitt sofreu um acidente.
- Eu sei. Já mandei uma outra limusine, ela deve chegar aí dentro de alguns minutos.
- Os Scorpios, eles se voltaram contra mim!
- Isso já era de se esperar, minha menina, nós conversamos sobre esse assunto.
- Aquela vaca de Palm Beach, foi ela!
- É, isto faz sentido. Ela é muito bem relacionada aqui em Washington, principalmente com a rede de informações dos Scorpios.
- Ela fez questão de me dizer isso, mas agora não vai dizer mais nada. Ela morreu atropelada por um caminhão de lixo, o que, aliás, é bem apropriado para ela.
- Obrigada por nos poupar desse problema. À medida que os Scorpios caírem, e eles vão cair, nós vamos subir... Agora, em retribuição a esse favor. A limusine vai levar você para a Casa. Branca, onde o encontro está mantido. Às oito horas, dois agentes do FBI, com crachá da segurança da Casa Branca, vão descer do saguão do segundo andar. Um motorista de libré, também de crachá, vai estar junto deles, armado, para a eventualidade de algum problema. Os três vão ficar no corredor do Salão Oval, esperando você aparecer. Como eu já lhe disse, a senha é "Ashkelon". Vá atrás deles.
- Agente do FBI...?
- Nós sabemos fazer as coisas, Amaya Aquirre. Basta você saber disso. Agora, vá em frente, filha de Alá.
- Eu não sou filha de Alá, nem sou filha de ninguém - disse Bajaratt. - Eu só sou eu mesma.
- Então vá, você mesma, cumpra a sua missão.
Bajaratt e Dante Paolo, barone-cadetto di Ravello, entraram na limusine e sentaram-se ao lado do senador de Michigan no espaçoso banco traseiro.
- Desculpem o atraso! - exclamou Nesbitt. - Mas vocês imaginem que nós tivemos um acidente, a frente do carro ficou estraçalhada, e o motorista do outro carro fugiu. Mas o meu gabinete foi muito eficiente e logo mandou outro carro.
- A sua equipe merece um elogio, signor Senatore.
- Eles são realmente ótimos. Deixe eu lhe dizer uma coisa, o Presidente está ansioso para conhecer vocês. Ele me disse que acha que conheceu o barão e o pai dele, o seu avô, quando ele aterrissou em Anzio, na Segunda Guerra Mundial. Ele disse que os grandes proprietários de terras ajudaram muito ele. Ele era um jovem tenente na época.
- É bem possível - disse a contessa, entusiasmada. - A nossa família sempre foi contra os fascisti, desde o início. Eles fingiam lealdade àquele porco, Il Duce, e enquanto isso ajudavam os pilotos a escapar.
- Então a senhora vai ter muito o que conversar com ele.
- Desculpe, Senador, mas quando eu nasci, a guerra já tinha acabado...
- Bem, é claro, naturalmente.
- O meu irmão é bem mais velho que eu.
- Eu não quis insinuar que a senhora já tinha nascido, Condessa, de jeito nenhum.
- Não se preocupe - disse Bajaratt, olhando para Nicolo e sorrindo. - Isso não tem nenhuma importância.
A limusine seguiu em direção ao leste sob o crepúsculo de Washington. Dependendo do trânsito, eles chegariam à Casa Branca em menos de quinze minutos.
19:33
Hawthorne ligou para a residência do senador Nesbitt; a telefonista da linha vermelha lhe dera o número. A mulher que atendeu ou não sabia de nada, ou se recusava a dizer o que sabia.
- Eu sou só a empregada, senhor. O Senador nunca me diz aonde vai, e nem tem que dizer, mesmo. A minha função é pôr a comida dele na mesa na hora que ele quiser.
- Porra! - desabafou Tyrell, batendo o telefone bege.
- Você já tentou o gabinete dele? - perguntou Phyllis, entrando no jardim de inverno.
- Claro que sim. Atendeu uma secretária eletrônica com uma mensagem cheia de baboseiras para agradar aos eleitores... "O Senador ou algum membro da equipe entrará em contato com você pelo telefone ou pelo correio, se você fizer a gentileza de deixar o seu nome, endereço e telefone. O Senador está sempre às suas ordens"... etc. e tal.
- E a tal da equipe? - insistiu a viúva. - Quando o Hank queria alguma informação e não conseguia encontrar a pessoa, ele falava com algum assessor. Era mais fácil e mais rápido.
- Só que isso não é tão simples assim. Eu não tenho a menor ideia de quem é que trabalha com esse Nesbitt.
- O Hank sabia - disse Phyllis, correndo até um móvel de menos de um metro de altura e meio de largura, feito de madeira escura ornamentada com entalhes orientais. - Isto aqui é um arquivo - continuou ela, curvando-se e passando os dedos pelo lado direito do móvel. - Meu Deus, ele está trancado, e eu não sei o segredo; o Henry dizia que era melhor eu não saber.
- Do que é que você está falando, Phyll?
- Este móvel na verdade é a caixa de um quebra-cabeça gigante, que nós compramos quando estivemos em Hong Kong. Quando ele está trancado, a gente tem que apertar essas figuras aqui do lado numa sequência que eu não sei qual é.
- O que eu quero saber é o seguinte: o que é que tem aí dentro?
- O Henry tinha os telefones de todo mundo em Washington, sempre atualizados, inclusive os dos assessores de todos os senadores e congressistas, porque ele achava que poderia precisar em alguma emergência. Ele era...
- Eu sei - interrompeu Hawthorne. - Ele era obcecado por esse tipo de coisa. Como é que a gente faz para abrir esse arquivo?
- Batendo nele. - Phyllis Stevens foi até uma pesada luminária de chão e tirou o fio da tomada. - Bata, Tye!
Hawthorne começou a bater com a base da luminária na tampa da caixa. No sétimo golpe, ela se despedaçou; Tyrell e Phyllis se acocoraram em frente à arca chinesa destruída, retirando os fragmentos de madeira quebrada e remexendo as pastas empilhadas ali dentro.
- Achei! - exclamou a viúva, puxando uma pasta volumosa. - "Casa Branca e Senado", está tudo aqui.
A primeira pessoa com quem Hawthorne conseguiu falar sem o intermédio de uma secretária eletrônica não estava no topo da lista da equipe do Senador, era um assistente de nível médio, cujo nome começava com a letra "A".
- Eu soube que ele ia à Casa Branca, Comandante, mas não sei exatamente o que ia fazer lá. Eu acabei de entrar para o gabinete, mas tenho mestrado em ciência política...
- Tudo bem - disse Tyrell, desligando o telefone e virando-se para Phyllis. - O próximo, e procure alguém com um cargo mais alto.
- Aqui tem uma opção melhor - disse Phyllis. - É a secretária particular dele.
A secretária de Nesbitt atendeu o telefonema. Ao ouvir as palavras dela, Tyrell sentiu-se congelar e a dor no seu peito explodir, espalhando-se por todas as partes do corpo.
- O Senador tem um encontro privativo com o Presidente. Ele vai acompanhar a condessa Cabrini e o sobrinho dela, filho de um barão italiano riquíssimo que vai investir milhões...
- Uma condessa e o sobrinho? - interrompeu ele. - Uma mulher e um rapaz bem novo?
- Isto mesmo. Eu acho que eu não deveria dizer isto, mas vai ser uma boa cartada do meu chefe. Todos aqueles milhões no nosso estado...
- A que horas é esse encontro?
- Por volta das oito, senhor. Entre oito e oito e quinze, pelo que eu sei. Mas a Casa Branca sempre é meio flexível nesses eventos extraoficiais.
- Eles vão se encontrar na área privativa?
- Não, senhor, a primeira-dama não quer saber de ninguém nas dependências da família, principalmente agora que os netos dela estão lá. Vai ser no Salão Oval.
Lívido, Hawthorne desligou o telefone.
- A Bajaratt está a caminho da Casa Branca! - sussurrou ele. Em seguida gritou: - O garoto está com ela! Meu Deus, ela conseguiu driblar todo o esquema de segurança!... Phyll, essa patrulha aí na frente, eles são bons?
- Eles não têm autorização para sair daqui, Tye.
- E eu não vou ter tempo de providenciar essa autorização. Mas sei o que eu vou fazer; eu sei o caminho, e estou com um carro do Departamento de Estado que tem um botão escrito "sirene".
- Você vai sozinho?
- Não tem outro jeito. Eu não consigo falar com o Palisser, nem com a CIA, não posso ligar para o Pentágono, o Serviço Secreto não me levou a sério, e a polícia iria me botar numa camisa de força!
- E o que é que eu faço?
- Ligue para todos os conhecidos do Henry, todos aqueles filhos da puta do Departamento de Marinha ou de qualquer outro serviço de inteligência onde ele tenha trabalhado e dê um jeito de eu ser admitido na entrada da Casa Branca.
- Já pensei em várias pessoas, inclusive um almirante que deve um grande favor ao Hank. Ele joga pôquer com o chefe da segurança da Casa Branca.
- Então faça isso, Phyll.
19:51
A limusine de Nesbitt parou no Portão Sul da Casa Branca; o nome do Senador foi confirmado numa lista e o guarda o cumprimentou, solícito. Segundos depois, como estava previsto, o motorista tomou a direita, em direção à entrada principal, ao invés de tomar a esquerda e se dirigir à Ala Oeste, onde ficava o Salão Oval. Quando o carro encostou, em frente a um pequeno lance de escada, Nesbitt fez sinal para que a condessa e o sobrinho saltassem, trocou algumas palavras rápidas e educadas com os guardas que rondavam a porta, e os três entraram.
- Este é o meu colega de Michigan - disse ele. - Ele é o outro senador do nosso estado. - Houve uma rápida troca de apertos de mão, e os nomes se perderam em meio à pressa; um fotógrafo emergiu à entrada com a câmera engatilhada. - Como eu já lhe disse, Condessa, o meu colega é do partido do Presidente, e ele foi muito importante para a organização deste encontro.
- Eu me lembro - disse Bajaratt. - O senhor queria uma fotografia dos três juntos, o senhor, o seu colega e Dante Paolo.
- E da senhora também, claro.
- Não, senhor, o importante é o meu sobrinho, não eu. Mas, por favor, vamos andar logo.
Enquanto o fotógrafo batia os flashes, uma outra figura apareceu, caminhando rapidamente pelo corredor.
- Vocês me desculpem! - exclamou um homem de terno escuro, aproximando-se. - Houve algum engano. Era para vocês terem entrado pela Ala Oeste.
- Engano coisa nenhuma - cochichou o senador mais jovem para o seu companheiro de legislatura. - Você acha que o chefe de gabinete ia permitir estas fotos?
- Shh! Reconheça o erro, Josh - murmurou Nesbitt.
- É verdade... claro.
- Se o guarda não tivesse nos avisado, vocês ficariam um bom tempo aqui esperando - disse o homem, sem dar importância a mais um erro da Casa Branca. - Venham comigo, eu vou acompanhar vocês até a Ala Oeste.
Em quarenta e seis segundos, depois de uma rápida excursão pelos corredores, o quarteto chegou ao Salão Oval e todos foram apresentados - dois, reapresentados - ao chefe de gabinete do Presidente. Era um homem magro, de rosto pálido e tenso, como se esperasse a qualquer momento um ataque vindo de alguma área fora do seu campo de visão. No entanto, tinha um ar agradável, inofensivo, e falava no tom franco e direto de uma pessoa assoberbada de trabalho.
- Prazer em conhecê-los - disse ele, apertando as mãos de Baj e Nicolo. - O Presidente já está descendo, mas eu espero que a senhora compreenda, Condessa, que o encontro vai ter que ser rápido.
- Mas nós não desejamos mais do que isto, signore. Só uma fotografia para o meu irmão, o Barone di Ravello.
- Bem, o Presidente quer que a senhora saiba, e provavelmente ele vai lhe dizer isso pessoalmente, que a razão para a brevidade deste encontro é que ele está muito ocupado resolvendo assuntos de estado muito graves, mas a verdade é que os onze netos dele estão passando uns dias aqui, e para a primeira-dama este é o compromisso mais importante da semana.
- Mas é claro, qual a mãe, ou melhor, a avó que não é assim? Na Itália nós também achamos que a família vem sempre em primeiro lugar.
- Obrigado pela sua compreensão. Vamos sentar.
- Que linda esta sala, não é, Dante Paolo?
- Non ho capito.
- La stanza. Magnifica!
- Ah, si, zietta.
- Esta casa abriga o poder do universo... é uma grande honra para nós.
- Do universo eu não sei, Condessa, mas certamente de uma grande parte do mundo... Senadores, sentem-se, por favor.
- Obrigado, Fred, mas eu prefiro ficar em pé - disse o senador mais moço. - Nós estamos com uma certa pressa, não é?
- Meu jovem...? Sr. Barão...?
- O meu sobrinho está nervoso demais para ficar sentado, signore.
- Ah, bene - disse Nicolo, como se tivesse entendido vagamente as palavras da tia.
De repente, no corredor que dava acesso ao Salão Oval, ressoou uma voz possante; os dois senadores, de pé junto à porta, bloqueavam a visão da figura que se aproximava.
- Nossa Senhora, se alguma dessas crianças me der mais um murro no estômago, ou lambuzar a minha cara, ou me der mais uma chave de braço, eu vou fazer propaganda do controle de natalidade!
Num movimento rápido e automático, o presidente Donald Bartlett apertou as mãos dos dois senadores e entrou na sala. Era um homem baixo, de quase setenta anos, cabelos lisos grisalhos e o rosto distinto de um ator envelhecido que, apesar das rugas, ainda mantinha o vigor do passado. Um político competente, capaz de reunir a energia e o humor exigidos para enfrentar qualquer situação. Era uma presença que nunca passaria despercebida.
- A condessa Cabrini e o sobrinho, o barão de... o barão, sr. Presidente - disse o chefe do gabinete.
- Meu Deus, mil desculpas! - exclamou Bartlett, com sinceridade. - Eu achei que estava adiantado... Scusi, Contessa. Non l’ho vista! Mi perdoni.
- Parlare italiano, Signor Presidente? - perguntou Bajaratt, surpresa, levantando-se.
- Mais ou menos - disse o presidente, cumprimentando-a. - Per favore, si sieda. - Baj sentou-se. - Eu tive que aprender um pouco durante a guerra. Participei da invasão da Itália, e deixe eu lhe dizer uma coisa, as grandes famílias do seu país nos ajudaram muito. A senhora sabe, as pessoas que não gostavam muito de Mussolini.
- Il Duce, aquele poltrão!
- Eu já ouvi isso muitas vezes, Condessa. Nós jogávamos os suprimentos do avião durante a noite, para evitar problemas, e as nossas tropas não podiam seguir para o norte. Essas famílias eram os nossos pontos de distribuição, como nós chamávamos. Aliás, eu cheguei a dizer para o Senador aqui que acho que conheci o seu irmão em Ravello.
- Deve ter sido o meu pai, sr. Presidente. Um homem muito digno, que nunca tolerou os fascisti.
- A senhora deve ter razão. Scuzzi di nuovo. Eu estou tão velho que para mim as décadas parecem anos! É claro que era o seu pai. A senhora era criança, se é que já tinha nascido.
- Em vários aspectos eu ainda sou criança, sr. Presidente, uma criança que se lembra de muitas coisas.
- Ahn?
- Non importa. Deixe eu lhe apresentar o meu sobrinho, o barone-cadetto di Ravello. - Bajaratt levantou-se e Bartlett apertou a mão de Nicolo, que estava devidamente compenetrado e um tanto temeroso. - O meu irmão, que está disposto a assumir grandes compromissos com a indústria americana, gostaria de uma foto do filho dele junto com o senhor.
- Não tem nenhum problema, Condessa. Mas deixe eu lhe dizer uma coisa, este rapaz pode ser o próximo barão, mas eu acho que ele devia era ser jogador de basquete... Ei, vocês aí, acho melhor eu subir numa caixa, este menino é muito mais alto que eu!
- Eu tenho uma ideia, sr. Presidente - disse o fotógrafo da Casa Branca. - Sugiro que a gente tire uma foto dos dois sentados atrás da mesa. Apertando as mãos, claro.
Enquanto o fotógrafo e o chefe de gabinete arrumavam as cadeiras, Bajaratt pousou sua bolsinha de fecho de pérolas no estofamento da cadeira e, enquanto os flashes pipocavam, ela a empurrou para baixo da almofada, escondendo-a completamente.
- Que maravilha, sr. Presidente! O meu irmão vai ficar tão feliz, tão agradecido!
- Eu é que vou ficar agradecido se as indústrias Ravello decidirem realmente instalar, digamos uma ou duas bases suas aqui no meu país.
- Quanto a isso, o senhor pode ficar tranquilo. O senhor pode até discutir os detalhes com os dois senadores. Eu já deixei bem clara a posição do meu irmão, e nós não vamos decepcionar o senhor, Presidente.
- É exatamente o que eu pretendo fazer, Condessa - disse Bartlett, sorrindo com simpatia enquanto ele e Nicolo se levantavam. - Nem que seja para poder tomar um drinque em paz e ficar mais alguns minutos longe daquelas pestinhas lá de cima.
- Pois sim - disse Bajaratt, rindo e apertando a mão do Presidente. - Eu sei que o senhor adora a sua família.
- E adoro mesmo. Mande lembranças para o seu irmão.
- Ma guardi - disse Bajaratt, olhando para o relógio incrustado de brilhantes; eram pouco mais de oito horas. - O meu irmão. Eu fiquei de ligar para ele do nosso telefone direto daqui a menos de meia hora.
- O meu carro vai levar a senhora de volta para o hotel - disse Nesbitt.
- Eu acompanho a senhora até a saída, Condessa - acrescentou o funcionário que os levara até o Salão Oval. - A limusine do senador está esperando.
- Nós já tomamos bastante o seu tempo, sr. Presidente. E o meu irmão vai ficar desapontado se eu não telefonar para ele.
- Essas comunicações de hoje em dia... telefone direto, frequência especial, satélite... - comentou o Presidente. - Acho que nunca vou me acostumar com essa parafernália eletrônica.
- O senhor derrotou os fascistas, tenente Bartlett! O senhor é um vencedor em termos humanos, existe vitória maior do que essa?
- A senhora sabe de uma coisa, Condessa, já disseram muita coisa de mim, que eu sou bom, que sou ruim, isso é uma coisa inerente à minha posição. Mas o que a senhora acabou de dizer é uma das coisas mais simpáticas que alguém já disse sobre um homem como eu.
- Pense sobre isso, sr. Presidente. Nesta vida, todos nós temos que ser vencedores em termos humanos. Se não for assim, tudo perde o valor... Vamos, Paolo, a gente não pode esquecer do seu pai.
20:02
Hawthorne entrou com o carro do Departamento de Estado pelo Portão Sul da Casa Branca, com o aval da mais alta autoridade da segurança; ninguém lhe pediu qualquer documento e o automóvel foi identificado pelo radar no instante em que fez a curva da entrada. Phyllis Stevens cumprira o seu papel, e muito bem. Tyrell dobrou à direita, na direção da Ala Oeste, e freou em frente à escada. Saltou, subiu correndo os degraus de mármore e dirigiu-se a um capitão da Marinha à frente de quatro fuzileiros navais do destacamento de segurança da Casa Branca.
- O Salão Oval - disse Hawthorne, com uma autoridade inequívoca.
- Eu espero que o senhor tenha boas credenciais, Comandante - disse o oficial, com a mão no coldre. - Disseram que o senhor tem, mas nunca aconteceu uma coisa dessas aqui, e eu é que vou me dar mal se o senhor for um maluco qualquer.
- Um maluco qualquer não consegue entrar por aquele portão, Capitão. Vamos lá.
- Espere aí! Por que o Salão Oval?
- Eu vou interromper uma reunião. Por onde é a entrada?
- O senhor não vai a lugar nenhum! - gritou o fuzileiro, recuando um passo, puxando seu Colt 45 do coldre e fazendo um sinal para os quatro guardas, que o imitaram.
- O que é que você está fazendo? - berrou Hawthorne, furioso, vendo cinco armas apontadas na sua direção. - Você recebeu ordens para me deixar passar!
- Não existem ordens quando alguém diz uma mentira como esta.
- O quê?
- Não tem nenhuma reunião! - disse o oficial, em tom de ameaça. - Fomos avisados há quinze minutos e fomos verificar. Eu mesmo fui lá verificar.
- Avisados por quem?
- Pela mesma pessoa que autorizou a sua entrada. Eu não quero nem saber como foi que o senhor conseguiu isto, mas daqui o senhor não passa...
- Pelo amor de Deus, do que é que você está falando?
- O aviso era o seguinte: "Localizem Zeus. Tirem ele da reunião e levem para o subsolo, com a máxima segurança."
- Então, esta parte você entendeu...
- Não! Não tem reunião nenhuma! Nós inspecionamos todas as salas do corredor, e quando chegamos no Salão Oval, só estava o chefe de gabinete. Ele nos disse, e eu ouvi muito bem, que a gente devia verificar as nossas agendas, que o Presidente não tinha nenhum compromisso hoje à noite; e que se a gente quisesse levar ele para algum lugar, a gente ia ter que subir lá na área privativa e convencer a primeira-dama, porque a família toda estava lá, inclusive um bando de netos!
- A informação que eu tenho não é esta, Capitão.
- Pois pode acrescentar isto à informação que o senhor tem, Comandante. Nós somos uma patrulha móvel, e o chefe de gabinete deixou bem claro que se a gente deixasse a imprensa bisbilhotara Casa Branca, a gente podia dar adeus ao melhor posto que existe no corpo de fuzileiros navais.
- Que estupidez...
- Eu não acho, e ele está certo em termos estritamente militares. Agora o senhor faça o favor de se retirar e pare de atrapalhar o trabalho da segurança...
- Pare com isso, seu idiota! - urrou Tyrell. - Eu não tenho nada a ver com o funcionamento da Casa Branca, mas sei muito bem o que eu vim fazer aqui! Escute bem, Capitão, eu vou sair correndo por aquele corredor o mais rápido que eu puder, e você pode atirar, se quiser, mas eu só estou tentando evitar que o Presidente seja assassinado!
- O que é que o senhor está dizendo? - balbuciou o oficial, atônito, subitamente imobilizado.
- A parte que você entendeu, Capitão. Tire ele da reunião.
- Mas não tem reunião nenhuma! O chefe de gabinete disse...
- Talvez ele não queira que você saiba da reunião, talvez seja por isto que ela não consta da sua agenda e, já que eu recebi autorização para entrar aqui... Talvez você devesse verificar!... Vamos!
Hawthorne saiu na frente em disparada pelo corredor extenso e largo; o chefe do destacamento olhou para os seus homens e fez sinal para que o acompanhassem. Em instantes, os quatro fuzileiros estavam atrás de Tyrell e o Capitão, ao seu lado.
- O que é que nós estamos procurando? - sussurrou o chefe, quase sem fôlego.
- Uma mulher e um menino...
- Um menino... pequeno?
- Não, um rapazinho, um adolescente.
- Como é que eles são?
- Não interessa, a gente vai reconhecer... Falta muito para chegar no Salão Oval?
- Não, é logo ali, depois de dobrar no fim do corredor, é uma porta grande do lado esquerdo - respondeu o Capitão, apontando para uma passagem transversal a uns cinco metros de distância.
Quando se aproximaram do fim do corredor, Tyrell ergueu a mão, mandando que os outros andassem devagar. De repente, ouviram-se vozes, uma cacofonia de "adios", "arrivedercis" e "boa noite"; em seguida, apareceram três homens do lado oposto do corredor; dois estavam de terno escuro e o terceiro com um uniforme cinza e boné de motorista, todos com crachás presos à lapela.
- Ashkelon! - exclamou o chofer, dirigindo-se a alguém do outro lado.
- Quem são vocês? - perguntou o Capitão, surpreso.
- FBI, lotados na segurança diplomática do Departamento de Estado - respondeu, sobressaltado, o homem mais próximo do chofer, olhando ora para o oficial, ora para o ponto de onde deveriam emergir as figuras que se retiravam do Salão Oval. - Nós vamos escoltar a condessa até o hotel. A nossa central não avisou vocês?
- Que central? Quando se trata de Salão Oval, a nossa segurança, e não o FBI, me avisa com antecedência mínima de uma hora, é a norma da casa!
- Ele está mentindo! - murmurou Hawthorne, escondendo-se atrás do Capitão e puxando o automático da cintura. - Eles disseram "Ashkelon", e este nome só significa uma coisa... Bajaratt! - Gritou ele subitamente, dando um tiro no teto.
No mesmo instante, Tyrell reconheceu a tolice que havia feito. Seu tiro de advertência provocou o início de um tiroteio, o Capitão dos fuzileiros navais foi o primeiro a ser atingido, e o sangue jorrou do seu estômago; os outros fuzileiros encostaram-se nas paredes do corredor. Os Ashkelons recuaram, atirando indiscriminadamente e gritando, com o único intento de atrair alguém que lhes desse cobertura enquanto eles tentavam acabar com o fogo cruzado. Um fuzileiro apareceu num dos cantos do corredor e disparou cinco tiros, derrubando os dois homens que se diziam agentes federais, um dos quais continuou atirando em posição fetal; uma mulher passou correndo pela passagem transversal, gritando:
- Matem ele, matem o menino! Ele não pode continuar vivo!
- Cabi... Cabi! - soou a voz do adolescente. - O que você está dizendo?...
Um segundo fuzileiro jogou-se para a frente e disparou dois tiros, explodindo a cabeça do chofer, que caiu na passagem de Bajaratt! Tyrell agarrou o fuzileiro.
- Mande o Presidente sair de lá! - gritou. - Mande todo mundo sair!
- O quê?
- Faça o que eu estou mandando!
Enquanto o fuzileiro, acompanhado por seus colegas, corria para o Salão Oval, Bajaratt empurrou o corpo do chofer para abrir caminho, pegou a arma dele e saiu em disparada pelo corredor. Hawthorne, com a arma apontada, pôs-se de cócoras e espreitou à sua volta, à procura da mulher que ele um dia amara, mas que agora odiava, uma cobra de olhos de vidro e a boca cheia de veneno. Ela estava chegando ao fim do corredor! Tyrell levantou-se com um movimento tão brusco que o ferimento da sua coxa reabriu e o sangue começou a se espalhar pela roupa enquanto ele corria atrás dela.
Quando Hawthorne estava na metade do corredor, ouviu-se uma explosão ensurdecedora no Salão Oval. Horrorizado, voltou-se para ver, e ficou assombrado com a fumaça e a chuva de entulho; sentiu um alívio imediato ao ver silhuetas indistintas e agitadas do lado de fora da casa, junto a uma porta na extremidade oposta do corredor. Os fuzileiros haviam cumprido a missão; o Presidente e várias outras pessoas corriam de um lado para o outro, em pânico, mas estavam todos fora da Casa Branca, longe do perigo. Tyrell voltou-se novamente, paralisado - onde estaria Bajaratt? Ela sumira! Continuou a correr, até chegar a um grande saguão redondo de onde, atrás de uma escadaria larga, saíam três corredores; ela havia escolhido um deles - qual? De repente, sirenes e alarmes de estilhaçar os ouvidos começaram a ecoar pelas cavernas ocas da mansão. Ouviram-se vozes - gritos, ordens, histeria coletiva - que pareciam vir de todos os lados. E, no meio do caos, uma figura alta desceu a escada lentamente, uma figura que só tinha um dos braços, com o rosto tenso, os olhos arregalados e brilhantes, como um homem cruel a observar um ato de brutalidade que o excita profundamente.
- Está feito, não é, General? - gritou Hawthorne. - O senhor conseguiu, não foi?
- Você! - gritou o chefe do Gabinete Militar, enquanto bandos de militares e civis surgiam pelas portas dos corredores e atravessavam correndo o saguão redondo, sem dar a mínima atenção ao ilustre General e ao homem que se aproximava da escada, mancando, com a perna ensanguentada. - E você chegou tarde demais, não é, comandante? - Ao ver a arma na mão de Tyrell, Meyers pôs o braço para trás. - Eu já enfrentei milhares de armas e nunca fiquei com medo de nenhuma.
- O senhor não precisa se preocupar com esta aqui, General. Eu posso até estourar as suas duas rótulas, mas eu quero o senhor vivo. Eu quero que o mundo inteiro veja o que restou da sua carcaça... Não cheguei tarde demais. O senhor perdeu.
Sem qualquer aviso, sem a mais leve contração do corpo, Meyers puxou a baioneta e, com um único movimento, desferiu um golpe da lâmina contra o peito de Hawthorne. Tyrell deu um pulo para trás e começou a atirar; o sangue começou a se espalhar pela camisa sob o paletó. Mike Meyers despencou pelos degraus; o pescoço do General era uma massa de tecido branco e carne vermelho-vivo, empapada de sangue.
Bajaratt! Onde?
Um tiro - um grito! No corredor da extrema direita, Dominique havia feito mais uma vítima - não, Bajaratt!
Puxando a fralda da camisa para tentar enxugar o sangue, Hawthorne entrou mancando no corredor de onde tinham vindo o tiro e o grito; as paredes eram amarelo-claras, iluminadas por lâmpadas e lustres de cristal e não por tubos de néon. Era um corredor curto com antessalas, duas à direita, duas à esquerda, provavelmente para funções sociais, onde os convidados se retocavam para os eventos oficiais. Não se via nenhum cadáver, mas havia marcas de sangue no chão, como se um corpo tivesse sido arrastado para a segunda sala à direita. A assassina, ao armar a cilada, havia cometido um erro que só outro assassino seria capaz de reconhecer. Numa situação como aquela, uma pessoa experiente, ao invés de seguir o rastro de sangue, olhava em outra direção. Tyrell esgueirou-se pelo corredor, encostado na parede esquerda; o ferimento da perna agora sangrava profusamente. Alcançou a primeira porta e, reunindo todas as suas forças, jogou-se contra ela e girou a maçaneta com a mão esquerda. A sala estava vazia; vários espelhos ornamentais refletiam a imagem de Hawthorne; com a maior rapidez possível, voltou mancando para o corredor, para o meio do pandemônio de sirenes e campainhas ensurdecedoras. Seguiu até a segunda porta da esquerda; era o refúgio ilogicamente lógico da assassina, ele sabia, sentia isso.
Mais uma vez, usando sua última reserva de força, ele girou a maçaneta e se jogou contra a porta, que se abriu, batendo na parede com um estrondo. Nada!... Nesse momento, num lampejo de um milésimo de segundo, Hawthorne compreendeu tudo e, sem perder tempo, virou-se e esquivou-se para a direita - conhecendo seu inimigo, Bajaratt havia invertido a armadilha! Ela entrou voando pela porta, vindo da sala do outro lado do corredor; suas roupas pareciam trapos e seu rosto, o rosto de alguém possuído pelo demônio, os olhos ferozes, as feições alteradas pela fúria. Disparou dois tiros; a primeira bala passou de raspão pela têmpora de Tyrell, que desviou a cabeça a tempo; a segunda espatifou o espelho de uma penteadeira. Na terceira tentativa... clic. O revólver que ela roubara do chofer morto estava sem munição.
- Atire! - gritou Bajaratt. - Me mate!
No cérebro de Hawthorne raios dardejavam, relâmpagos obscureciam sua visão interior, cegavam seus pensamentos, forçando-o, porém, à tortura da visão exterior. Lufadas opostas de ventos de amor e ódio colidiam dentro dele diante do rosto contorcido do monstro que dormira em seus braços em outro tempo, em outra vida.
- Quem é a mulher que eu vou matar? - perguntou ele, com a voz débil, respirando com dificuldade. - A Dominique ou a terrorista que chamam de Bajaratt?
- Que diferença faz? Nenhuma de nós pode mais viver, será que você não entende isso?
- Uma parte de mim, entende; a outra, eu não tenho certeza.
- Você é um fraco! Sempre foi fraco e sempre teve uma mania repugnante de autocomiseração! Você é patético! Ande logo, atire! Será que não tem coragem?
- Não acho que seja uma questão de coragem. Não é preciso ser muito valente para matar um cão raivoso encurralado. Mas talvez seja preciso um pouco mais de coragem para capturar e dissecar o bicho, para descobrir a causa da doença dele. E também para descobrir quem são os outros cães raivosos.
- Nunca! - gritou Bajaratt, sacudindo o bracelete de ouro e investindo contra Hawthorne. Com o equilíbrio solapado pela dor na coxa, Tyrell caiu para trás diante do ataque, com as energias esgotadas; quase não conseguia enfrentar a força alucinada daquela mulher fanática. Porém, quando o bracelete de ouro se aproximou do seu pescoço, afastado apenas pela sua mão que segurava o pulso de Bajaratt, ele viu o minúsculo orifício, de onde fluíam gotas de um líquido maligno. Hawthorne atirou. No peito de Bajaratt.
Ela arquejou e rolou pelo chão, no estertor da morte. "Muerte a toda..." A cabeça de Amaya Aquirre pendeu para a direita, confortada pelo ombro. De algum modo, seu rosto parecia mais jovem, as marcas do ódio diminuíram; uma menina de dez anos, em paz.
EPÍLOGO
The International Herald Tribune
Edição de Paris - (página 3)
ESTEPONA, Espanha, 31 de agosto - A polícia, acompanhada pelo embaixador americano, fechou ontem a villa do juiz aposentado da Suprema Corte dos Estados Unidos, Richard A. Ingersol, que sofreu um ataque cardíaco fatal durante os funerais do filho, no estado da Virgínia. O juiz Ingersol era um dos moradores do condomínio Playa Cervantes, um dos mais exclusivos da Costa do Sol. A presença do embaixador americano foi solicitada pela família de Ingersol, uma vez que uma série de documentos contendo informações confidenciais e pareceres do interesse do governo americano deverão ser retirados da casa e enviados de volta aos Estados Unidos.
The Washington Post
(Primeira página, embaixo, à direita)
WASHINGTON, D.C., 5 de setembro - O corpo do general Michael Meyers, chefe do Gabinete Militar, foi encontrado hoje de manhã no jardim do Memorial Vietnã. A morte foi atribuída a vários tiros no pescoço; a arma foi encontrada na mão do General. O motivo do suicídio pode ser descrito pelas palavras do próprio Meyers durante seu discurso na convenção América para Sempre, em maio deste ano: "Se algum dia a minha saúde não permitir que eu continue cumprindo os meus compromissos da melhor maneira possível, prefiro acabar com a minha vida a me tornar um fardo para este país que eu amo. E gostaria de ser enterrado junto com os soldados que serviram com tanta dedicação a mim e à nação." O General, ex-prisioneiro de guerra, foi vítima de inúmeros ferimentos no Vietnã.
Os principais dados sobre a vida e a carreira militar de Meyers estão no obituário deste jornal. Um porta-voz do Gabinete declarou que o Pentágono manterá as bandeiras arriadas por uma semana e que hoje ao meio-dia haverá um minuto de silêncio.
The New York Times
(página 2)
WASHINGTON, D.C., 7 de setembro - Fontes ligadas à CIA, à Inteligência Naval e ao Serviço de Imigração declararam que está em andamento uma reavaliação maciça de funcionários e prestadores de serviços dos três departamentos. Não há informações sobre a origem dessa medida, mas as fontes confirmaram que grande número de pessoas envolvidas estão presas.
The Los Angeles Times
(página 47)
CIDADE DO MÉXICO - Dois pilotos americanos, Ezequiel e Benjamim Jones, apareceram no escritório do jornal mexicano La Ciudad, dizendo que tinham informações sobre o "desaparecimento" de Nils Van Nostrand, o multimilionário financista internacional, conselheiro das três últimas administrações e dos mais importantes comitês do Congresso. Um porta-voz do sr. Van Nostrand declarou que nunca ouviu falar dos irmãos Jones e achou graça na notícia de que Van Nostrand teria "desaparecido", já que ele está apenas num cruzeiro de volta ao mundo, com duração prevista de três meses, um sonho que há muitos anos ele desejava realizar. Em Nashville, Tennessee, a agência de transportes aéreos pela qual os pilotos afirmam terem sido contratados declarou não ter conhecimento da referida contratação. Hoje pela manhã foi noticiado que dois homens com a descrição correspondente à dos irmãos Jones roubaram um jato Rockwell e, munidos de documentos falsos, voaram para o Sul, provavelmente para a América Latina.
- Agora vocês sabem de toda a verdade, famiglia Capelli - disse Nicolo, nervoso, sentado na borda da cadeira, o peito sufocado sob o paletó, o braço esquerdo numa tipoia. Estavam no espaçoso apartamento dos pais de Angelina, um andar acima do restaurante. - Eu não passo de um menino do cais de Portici, apesar de saber que existe uma família muito rica em Ravello disposta a me receber como se eu fosse um deles, pois eles perderam um filho parecido comigo... Mas não posso fazer isso, já menti demais, para mim mesmo e para os outros.
- Não seja tão duro consigo mesmo, Paolo... Nico - disse Angel Capell, sentada do outro lado da sala, de acordo com as recomendações do pai, ainda desconfiado. - O meu advogado falou com o pessoal do governo...
- O advogado dela, Papai? - exclamou o irmão mais moço da atriz, dando uma risada. - A Angelina tem um advogado!
- Basta! - disse o pai. - Se você se esforçar bastante, talvez você possa ser o avvocato da sua irmã... E o que foi que ele disse, Angelina?
- O governo resolveu manter tudo em silenzio. O Nicolo passou quatro dias detido, sendo interrogado por dezenas de funcionários do governo e contando tudo o que ele sabia. Teve gente que quis deixar ele preso, mas a lei exige um julgamento. Todo mundo que é acusado de um crime tem direito a um advogado de defesa... e eu garanto que ele vai ter o melhor de todos. - Angelina Capelli fez uma pausa e, corando levemente, sorriu para Nico. - É claro que vai ter um monte de publicidade sobre isso e também muito constrangimento porque, pelo que me disseram, muita gente conhecida, dentro e fora do governo, ajudou aquela terrorista, achando que ia arrancar dinheiro dela.
- Então? - bradou Capelli. - Isto é incredibile!
- Não, Papa. Em todos os depoimentos dos fuzileiros navais e do capitão da Marinha que estavam de plantão, eles disseram que ouviram muito bem a mulher dar ordem para matar o Nicolo... matar, Papa!
- Madre de Dio - sussurrou a sra. Capelli, olhando para Nicolo. - Ele é um menino tão bom, pode não ser perfeito, mas ele não é má pessoa.
- E não é mesmo, Mama. Ele foi criado na rua, do mesmo jeito que todos esses meninos que se metem em gangues e fazem um monte de besteiras aqui nos Estados Unidos, mas ele quer mudar de vida. Na Itália, quantos meninos do cais do porto completam o segundo grau? O Nico completou.
- Quer dizer que ele não vai para a cadeia? - perguntou o irmão Capelli.
- Não - respondeu Angel. - Como ele jurou que não sabia de nada, eles acabaram acreditando que ele foi só um fantoche para aquela mulher terrível. O advogado já conseguiu toda a papelada, e o Nico vai assinar hoje à tarde.
- Scusa - disse o velho Capelli, com os olhos arregalados, perplexo. - O seu amigo aqui, o barone-cadetto... Paolo, ou Nico, falou de uma soma muito grande de dinheiro que está lá em Nápoles, isto sem falar deste envelope, porque o que tem dentro dele eu levo seis meses para ganhar...
- Está tudo lá, Papa - respondeu Angel. - O meu advogado já checou com o Banco de Nápoles... As instruções são bem claras. O depósito está em nome de Nicolo Montavi; se ele se identificar e reclamar o dinheiro, é tudo dele. No caso da morte dele, o dinheiro volta para o depositante, que tem conta no banco; e se em seis meses ninguém reclamar, vai ser tudo transferido para uma conta numerada em Zurique.
- É tudo verdade, signor Capelli - disse Nicolo. - Eu não sabia nada do que ia acontecer, só sabia que ia ser uma sciarada, um jogo a dinheiro; e, para ser honesto, a gente está mais do que acostumado com isso, lá no cais de Portici.
- E esse dinheiro ainda está disponível? Você pode pegar?
- Na verdade, esse dinheiro não era para mim - admitiu o rapaz fechando os olhos por um instante, com um lampejo de fúria no rosto. - Conforme a Angelina disse para o senhor, aquela mulher mandou eles me matarem - acrescentou ele, em voz baixa.
- Mas agora ele é seu! - exclamou Angel. - O meu advogado disse que é só a gente pegar um avião para Nápoles, ir lá no banco, e é tudo do Nico!
- A gente...? Vocês dois juntos?
- Ele é um bobinho, Papa. Ele é capaz de pegar o avião errado.
- E quanto tem de dinheiro lá?
- Um milhão de dólares.
- Leve o seu avvocato com vocês, Angelina - disse Angelo Capelli, abanando-se com um cardápio. - Vocês vão precisar de alguém que entenda do assunto. Mas se o seu advogado for que nem o seu empresário, que mudou o seu nome, vou fazer uma maledizione para ele também!
Querida Cath,
Gostei muito de ver você ontem, e mais ainda de saber que você vai ficar boa daqui a algum tempo. Você estava linda, diga-se de passagem, se bem que para mim isso não é nenhuma novidade. Estou escrevendo esta carta para você não ter a oportunidade de fazer aquele ar de oficial-superior para cima de mim, ou de falar comigo como se eu fosse o seu irmãozinho bobalhão que sempre se perde no shopping, certo? Fiquei muito feliz do pessoal aqui me oferecer uma licença. Mas, para dizer a verdade, não estou pensando em sair. Sei que falo pouco sobre o meu pai, e que você nem sabia que ele era um grande advogado e tudo o mais, mas acho que você também não sabe que ele se aposentou no ano passado. Ele não é tão novo assim, Cath. Acho que posso dizer que eu e a minha irmãzinha somos filhos temporões, porque os dois já tinham passado dos quarenta quando nós nascemos. Na verdade, o papai diz que é por isso que eu e a minha irmã somos tão inteligentes, porque o cérebro dele e o da mamãe já estavam plenamente desenvolvidos. É claro que essa tese não resistiria a qualquer estudo biológico de hereditariedade. Mas eu não tenho nenhuma razão muito forte para ir para casa, porque não tem quase ninguém lá. Os dois estão passeando pela Europa como um casal de pombinhos, e quando não tiver mais nada para ver lá, eles vão para algum outro lugar - da última vez que eu soube era um lugar chamado Adelaide, na Austrália, onde existe um cassino famoso. A mamãe adora jogar, e o papai fica bebendo uísque com os gringos e se diverte horrores. Pensei em ir para ver minha irmã, a gente sempre se deu muito bem, mas ela conheceu um cara que tem uma empresa e quer que ela vá trabalhar lá, para ser como uma vice-presidente, e quando eu liguei, ela me disse: "Você nem pense em vir agora, senão ele vai oferecer o emprego é para você!" Eu acho que ela tem razão, Cath. Ela é competente, criativa, mas quase tudo o que ela sabe, fui eu que ensinei. Caramba, todo mundo no setor privado ia querer um cara como eu! Está bem, pode ser que eu esteja exagerando um pouco, mas acho que é melhor eu fazer o que ela pediu.
E então, o que é que eu vou fazer? Vou voltar para a única casa que tenho no momento, a base, e espero que você não fique chateada com isso - por eu ir embora sem me despedir pessoalmente. Agora, será que eu podia falar sobre um assunto que diz respeito a você, Major? Eu acho que você tem que pensar em muita coisa, se você me permite. Conheço você, Cathy, já faz mais de cinco anos, e eu não preciso dizer que amo você, às vezes até tenho fantasias, mas eu sei muito bem que não tenho chance. Além disso, você é pelo menos sete ou oito anos mais velha do que eu, e eu não quero me aproveitar... Brincadeira, Major! Eu só quero dizer que você tem algumas opções que eu não tenho e uma delas é com um cara que eu respeito muito, um cara que é um homem de verdade porque, entre outras coisas, ele não acha que tem que provar isso. Ele é, e pronto. Eu aprendi isso quando o Charlie morreu, e eu estava fora de mim. Você sabe como foi e, pelo que eu me lembro, ele teve uma conversa com você também. Coisas como essa revelam muito sobre uma pessoa, entende? O Tye tem lá aquele jeito dele, mas para mim ele é tudo o que está dito naquela expressão babaca, "um herói e um cavalheiro ". Ele é exatamente isto, embora eu ache que ele passaria o resto da vida sem falar comigo se eu dissesse isso para ele.
Eu sei que sempre disse que você nasceu para comandar a Força Aérea e coisa e tal, e é claro que você poderia, mas isso foi antes do Tye me contar o que você disse que teria feito se pudesse pagar uma faculdade. Talvez você pudesse fazer isso agora, como o Comandante sugeriu. Eu espero sinceramente que você pense nisso, e aí, quem sabe, eu vou comandar a Força Aérea.
O hospital me informou que você recebeu o uniforme. Mas, sinceramente, você fica linda de vestido.
Eu amo você, Cath, e nunca vou deixar de amar. Por favor, pense no que eu disse. Por falar nisso, eu daria um tio e tanto para os seus filhos. Quantas famílias têm um gênio como eu para ajudar nos deveres de casa? Brincadeira... mais ou menos.
Jackson
Vestida com seu uniforme azul, a major Catherine Neilsen estava numa cadeira de rodas, sozinha, à mesa do restaurante do hospital, um terraço de onde se via o rio Potomac. À sua frente estava um copo alto de café gelado; do outro lado da mesa, um balde de gelo com uma meia-garrafa de vinho branco. O sol alaranjado do entardecer aproximava-se do horizonte, projetando sombras longas sobre as águas ondulantes. Ao perceber um movimento na porta de vidro, ela olhou em direção à entrada e viu a figura de Tyrell Hawthorne que, andando com dificuldade, avançava por entre as mesas de outros pacientes e visitantes. Rapidamente, ela enfiou na bolsa a carta de Poole.
- Oi - disse Tyrell, sentando-se. - Em você, esse uniforme até fica mais feminino.
- Eu não aguentava mais aquela roupa do hospital e, como não podia sair para fazer compras, o Jackson mandou a base providenciar isso aqui... Pedi um Chardonnay, espero que esteja bom para você; eles não servem bebida destilada.
- Está bom até demais; o meu estômago é capaz de estranhar.
- Por falar em estômago...?
- Os pontos novos estão segurando direitinho, mas também, estão presos com um curativo que parece de cimento. O Capitão melhorou. A bala atravessou a barriga dele; fez um belo estrago, mas está tudo bem.
- E como foi a reunião?
- Imagine uma jaula cheia de jaguatiricas correndo de um lado para o outro no meio da lama... Eles não conseguem entender como isso tudo foi acontecer, apesar daquela segurança que eles consideram impenetrável.
- Ah, Tye, mas você há de convir que a estratégia toda foi muito engenhosa.
- Mais ou menos, Cathy. Foi só porque nós estávamos muito vulneráveis; as brechas eram tão grandes que até um caminhão poderia passar. Pense bem, o menino estava em todos os jornais; a falsa condessa ficou na retaguarda, é verdade, mas de qualquer modo ela estava na área, todo mundo sabia. Onde é que estavam os superagentes de contrainteligência, que usam aqueles computadores maravilhosos e cruzam e recruzam informações?
- Se você estivesse participando da operação desde o início e o Poole estivesse nos computadores teria sido diferente.
- Bem que eu gostaria de achar isso de mim mesmo, mas, como sempre, houve muitos acidentes... Quanto ao Poole, eu concordo. E você também, moça, você foi nota dez... Mas, como eu ia dizendo, o Howell, Sir John Howell, do MI-6, disse que Londres prendeu quatro cúmplices da Bajaratt; os outros, se houver mais algum, eles acham que fugiram, voltaram para o Baaka. Em Paris é que foi o máximo. O Deuxième divulgou a notícia que o pessoal do Baaka estava esperando. Às duas da manhã todas as estações de rádio e televisão anunciaram que o presidente tinha convocado uma reunião de emergência da Câmara dos deputados. Só uma catástrofe internacional, algum acontecimento terrível que estivesse sendo mantido em sigilo temporariamente, poderia provocar uma atitude como essa. Pegaram cinco terroristas na saída.
- E Jerusalém?
- Eles são uma beleza. Não dizem nada, só que está tudo sob controle. Ah, outra coisa, a morte do Van Nostrand vai ser encoberta. Qualquer hora dessas, vão divulgara notícia de que ele teve um infarto ou um acidente.
- A Casa Branca?
- Eles estão alegando a tal reforma do Salão Oval, que parece que está em andamento há umas duas semanas, e as visitas estão suspensas. Se for preciso, eles têm lá a cópia de um programa de obras do Corpo de Engenheiros do Exército e outra de uma empresa de construção.
- E isso vai colar?
- Quem é que vai desconfiar? Ninguém ficou sabendo de nada; o Presidente estava lá em cima com a família, e a explosão fez muito mais barulho na parte de dentro do que lá fora.
- Mas teve gente que morreu, Tye, o problema é esse!
- O Serviço Secreto sabe o que faz. - Uma garçonete se aproximou; enquanto ela abria a garrafa de vinho, os dois conversavam sobre amenidades. - Obrigado - disse Tyrell. - Daqui a pouco a gente faz o pedido.
- Então é isso - disse a Major, observando Hawthorne beber quase toda a garrafa em alguns goles; a aparência dele era de pura exaustão.
- É, é isso - concordou Tyrell. - Mas a história não vai acabar aí, você sabe; na verdade, isto é só o começo. Daqui a pouco as notícias vão começar a vazar, e eu já imagino a reação desses fanáticos: "Como eles chegaram perto, ela quase conseguiu!" O brado de "Ashkelon" vai ser substituído por "Bajaratt, vingança por Bajaratt"... conhecida também como Dominique, Dominique Montaigne. - Quase sem voz, Hawthorne continuou, enquanto enchia novamente o copo. - Espero que a gente tenha aprendido alguma coisa.
- O quê, por exemplo?
- Procurar cada elo da cadeia, conhecer todo mundo que está envolvido, ou então abrir o jogo. Levar tudo a público.
- Mas isso não poderia criar confusão, histeria, até?
- Eu acho que não, e tenho pensado bastante nisso. Numa guerra, os bombardeios aéreos são anunciados por meio de sirenes e refletores, e de um modo geral os cidadãos vão para os abrigos com toda a calma, sabendo que existem pessoas treinadas que vão fazer tudo para proteger a população e os interesses do país. O nosso caso não é muito diferente, e eu acho que isso poderia ser um excelente meio de intimidação... Imagine só se o FBI, junto com a CIA, fizesse um pronunciamento em rede nacional de televisão, declarando que uma mulher e um rapaz tinham entrado ilegalmente no país a mando do vale do Baaka... etc. etc. Você acha que a Dominique... - Hawthorne fez uma pausa, respirou fundo e pegou o copo - a Bajaratt ia conseguir passar ilesa por Palm Beach e Nova York? Eu duvido; algum jornalista mais ousado teria ligado uma coisa à outra, ou pelo menos feito perguntas que desmascarassem a fachada que ela tinha armado. Parece que um ou dois tentaram; um cara do Miami Herald e um outro, um especialista em escândalos, chamado Reilly.
- Talvez você tenha razão. Quer dizer, sobre isso de levar tudo a público.
- Eu não sei se tenho razão ou não, mas foi isso que eu propus hoje à tarde... Eu queria outra garrafa de vinho. - Tyrell fez sinal para a garçonete e apontou para o balde de gelo; ela entendeu, e se dirigiu ao bar.
- Você... - começou Cathy, cuidadosa - você disse a eles quem era a Bajaratt?
- Não - respondeu Hawthorne bruscamente, fitando Catherine com os olhos cansados e opacos. - Eu não tinha nenhum motivo para fazer isso, e tinha muitos para não fazer. Ela morreu, e levou todos os demônios dela. O que importa é a ligação dela com o vale do Baaka; o resto era acessório, e é melhor que fique tudo por isso mesmo para não prejudicar as pessoas que foram usadas... como eu fui.
- Não estou discutindo com você - disse Cathy, pondo a mão no braço de Tyrell. - Eu acho que você tomou a decisão certa. Não fique com raiva de mim, por favor.
- Desculpe, eu não estou com raiva, de você eu não estou, de jeito nenhum. Só quero é voltar logo para o Caribe para velejar no meu barco.
- É uma vida boa, não é?
- O "bálsamo supremo de Galaad", como diriam o meu pai e o meu irmão, que são dois eruditos. - Hawthorne sorriu, sem nenhum apelo ao sentimentalismo.
- É, deve ser mesmo - disse Cathy, compreendendo a amargura de Tyrell. - Olhe, eu lamento muito, lamento mesmo tudo o que aconteceu com você.
- Eu também lamento, mas não adianta nada ficar batendo nessa tecla, não é? Parece que tenho o dom de atrair mulheres que acabam sendo assassinadas, ou o dom de me deixar atrair por elas. Se eu pudesse industrializar esse dom, acho que eu ia evitar muitos divórcios.
- Que coisa mais horrível! Eu não acredito de jeito nenhum que você pense assim.
- E não penso, mesmo. É que eu não estou muito bem, entende? Esses fantasmas não param de me atormentar... Mas eu não quero falar de mim, eu estou farto de mim, completamente farto. Quero falar de você.
- Por quê?
- Você sabe por quê. Porque eu me interesso, porque eu me preocupo.
- Mas me diga por que, comandante Hawthorne? Porque você está magoado, terrivelmente magoado, e eu estou aqui? Porque eu sou alguém que se preocupa com você, alguém a quem você pode recorrer, como você fazia com a sua Dominique?
- Se é isso que você acha, Major - disse Tyrell, com frieza, empurrando a cadeira para trás e começando a se levantar -, a nossa conversa vai acabar por aqui.
- Faça o favor de sentar, seu idiota!
- O quê?
- Você acabou de dizer o que eu queria ouvir, seu bobalhão.
- E o que foi que eu disse?
- Que eu não sou Dominique, Bajaratt, ou seja lá qual for o nome dela. E eu não sou o fantasma da sua Ingrid... eu sou eu!
- Eu nunca pensei de outra maneira...
- Mas eu tinha que ouvir isto.
- Ah, meu Deus! - exclamou Hawthorne, sentando-se e recostando-se na cadeira. - O que mais você quer que eu diga?
- Me dê uma sugestão. O Presidente pessoalmente mandou a Força Aérea me conceder uma licença por tempo ilimitado para eu me recuperar, o que os médicos acham que vai levar de três a quatro meses.
- Eu soube que o Poole não aceitou a licença.
- Ele não tinha para onde ir, Tye. A Força Aérea é a vida dele, aqueles computadores e tudo mais. Mas ele é o Jackson, eu sou outra pessoa.
Lentamente, Hawthorne ergueu o corpo e se inclinou sobre a mesa, olhando para Cathy.
- Meu Deus - disse ele com a voz suave. - Será que eu estou vendo alguém largando o uniforme? Uma menina que queria ser antropóloga?
- Eu não sei. As Forças Armadas estão implorando por aposentadorias precoces; o país não pode mais sustentar as despesas militares. Eu realmente não sei.
- Mas você sabia que o Caribe está cheio de mistérios antropológicos para serem desvendados? Por exemplo, as colônias perdidas dos índios Ciboney e Couri, que estão sendo investigadas nas ilhas, nas Guianas e no Amazonas. E os Arawaks, que tinham leis para manter a paz que estavam centenas de anos adiante da época deles. Ou então a nação guerreira do Carib, que ocupava a maior parte das Antilhas Menores; eles desenvolveram táticas de guerrilhas tão eficazes que os conquistadores espanhóis tiveram que sair correndo para escapar das garras deles... e de virar o prato principal nos churrascos noturnos que eles faziam. Isso foi muito antes do tráfico de escravos; grandes civilizações dispersas no espaço, mas unidas pelo som de tambores enormes e pelas canoas de guerra e pelos líderes que levavam a justiça de ilha em ilha, como os juízes do Velho Oeste, quando eles não eram alcoólatras nem ladrões. Esses séculos são fascinantes, e se sabe muito pouco sobre eles.
- Nossa Senhora, você é que devia ir estudar. Que empolgação!
- Não, eu sou do tipo que senta na frente da fogueira e fica escutando as histórias. Eu não gosto de estudar. Mas você bem que podia.
- Eu teria que voltar para a escola, para uma universidade.
- Tem umas ótimas lá, desde a Martinica até Porto Rico; e eu soube que existem grandes antropólogos ensinando nessas universidades. É um começo, Cathy.
- Você deve estar inventando isso tudo... mas o que você está querendo dizer...
- É isso mesmo, Major, eu estou propondo que você venha comigo. A gente não é mais criança, depois de um tempo vai dar para sentir se era isto ou não. Vamos tentar, nenhum de nós dois tem outros compromissos, não é? Então, alguns meses... Para onde você iria, para a fazenda?
- Talvez por alguns dias. Depois disso o meu pai iria me mandar para o estábulo limpar a sujeira das vacas. E essa é a coisa que eu mais detesto neste mundo.
- Então, por que a gente não tenta, Cath? Você é uma mulher independente, pode ir embora na hora que quiser.
- Eu gosto quando você me chama de Cath...
- O tenente Poole sabe das coisas.
- É, sabe mesmo. Me dê o seu telefone.
- A sua resposta é esta?
- Não, Comandante. Eu vou para o Caribe, meu bem.
- Obrigado, Major.
Os dois sorriram; aos poucos, suas mãos foram se encontrando e os sorrisos, transformando-se em risadas.
Robert Ludlum
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