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Houve um breve período durante o qual o padre Brown gozou, ou melhor, não gozou, de algo semelhante à fama. Era ele o tema de sensação dos jornais; foi mesmo assunto de controvérsia nos semanários; as suas façanhas eram contadas com grande interesse e pouca exactidão em muitos clubes e salões, sobretudo na América. Por muito estranho e incrível que pareça a quem o tivesse conhecido, as suas aventuras como detective foram mesmo tema de contos publicados em revistas.
Coisa estranha, este êxito fugaz foi encontrá-lo no mais obscuro ou, pelo menos, no mais remoto de todos os lugares onde residiu. Tinha sido destacado para exercer o seu ministério, em parte como missionário, em parte como pároco, numa daquelas zonas da costa norte da América do Sul, onde certas fatias de território se encontram ainda precariamente sujeitas aos poderes europeus ou então ameaçam a torto e a direito transformar-se em repúblicas independentes, sob a gigantesca sombra do presidente Monroe. A população era de pele vermelha e morena com manchas cor-de-rosa, ou seja, era espano-americana e, sobretudo, espano-índio-americana, mas havia um grande aumento na infiltração de americanos de raça nórdica: ingleses, alemães, etc. E os sarilhos parecem terem começado quando um desses visitantes, acabado de chegar e muito irritado por ter perdido uma das suas malas, se aproximou do primeiro edifício que avistou - por sinal a residência da missão, com capela anexa, uma varanda corrida na frente com uma longa fila de postes em redor, à volta dos quais trepavam os troncos enegrecidos da vinha, com as suas folhas avermelhadas pelo Outono. Atrás delas, sentados em fila, quase tão rígidos como os troncos, encontrava-se um grupo de seres humanos, de cores em certa medida semelhantes às da vinha. Os seus olhos eram tão negros como os chapéus de aba larga com que se cobriam, ao passo que a pele de muitos deles parecia feita de madeira escura daquelas florestas transatlânticas. Alguns fumavam charuto preto, comprido e fino. Em todo aquele grupo só o fumo se movia. O estrangeiro tê-los-ia classificado de nativos, embora muitos deles se sentissem muito orgulhosos do seu sangue espanhol. Contudo, ninguém saberia fazer distinção entre espanhóis e peles-vermelhas e ele preferia classificá-los todos como nativos.
......
Tratava-se de um jornalista de Kansas City, um sujeito magro, de cabelos claros, com um daqueles narizes que Meredith classificaria de aventureiro; quase podíamos imaginar que ele se orientava pelo faro e se movia como a tromba de um papa-formigas. O seu apelido era Snaith e os pais, após obscura cogitação, haviam decidido chamar-lhe Saul, facto que ele teve o bom senso de esconder na medida do possível. De facto, acabara por adoptar o nome de Paulo como sendo o mais parecido, muito embora não o movessem as mesmas razões que inspiraram o apóstolo dos Gentios. Antes pelo contrário, dadas as suas opiniões em tal matéria, ter-lhe-ia assentado melhor o nome do perseguidor, visto que considerava a religião organizada com o desprezo convencional que se adquire mais facilmente com as leituras de Ingersoll que com as de Voltaire. Mas pelos vistos, não foi essa faceta do seu carácter que naquele momento levou a invectivar o grupo que se encontrava sentado em frente da varanda. Qualquer coisa no seu descarado repouso e indiferença lhe acendeu a fúria da eficiência; assim, ao ver que ninguém respondia às suas perguntas, desatou ele a falar.
Sob o sol escaldante, impecável no seu panamá, com o seu fato todo janota, a mão a segurar com força a aba do saco de viagem, pôs-se a insultar as pessoas que se encontravam sentadas à sombra. Começou por lhes dizer, aos berros, para o caso de nunca se terem debruçado sobre esse problema, por que motivo eram preguiçosos, sebentos, bestialmente ignorantes e inferiores a animais de vista baixa. Na sua opinião, tal facto devia-se à influência nefasta dos padres, que os mantinham tão miseravelmente pobres e tão irremediavelmente oprimidos, nada mais sabendo fazer do que ficarem sentados à sombra a fumar.
- Vocês não passam de uns palermas - declarava -, uma vez que se deixam subjugar por esses fantoches que se pavoneiam com as suas mitras, as suas tiaras, os seus cálices de oiro e as suas vestimentas vistosas; que olham para vocês de cima para baixo, como se vos considerassem esterco, e vos deslumbram com as suas coroas, os seus dosséis e as suas santas umbelas, as suas palhaçadas. E isto só porque um velho feiticeiro vaidoso se diz sumo-sacer-dote e se julga senhor do mundo! E vocês, que são, pobre idiotas? Estão a regressar ao barbarismo, é o que vos digo, não sabem ler nem escrever, nem...
Nesta altura o sumo-sacerdote saiu a correr porta fora de maneira muito pouco cerimoniosa. Não tinha nada o ar do senhor do mundo, parecia antes uma trouxa de roupa negra e usada, enfiada num travesseiro, como se fosse um espantalho. Não trazia a tiara, se é que a tinha, mas antes um velho chapéu todo amolgado, não muito diferente daquele que usavam os espano-índios, e que ele deitara para trás num gesto de impaciência. Ia para se dirigir aos índios imóveis, quando deu pela presença do estrangeiro e então disse logo:
- Oh, posso ajudá-lo em alguma coisa? Não quer entrar?
Paul Snaith entrou e isto foi o começo de um enorme aumento de informação jornalística acerca de muitas coisas. É possível que o seu instinto de repórter fosse mais forte que os seus preconceitos, como é vulgar nos jornalistas inteligentes. Fez muitas perguntas e as respostas interessaram-no e causaram-lhe surpresa. Descobriu que os índios sabiam ler e escrever pela simples razão de que fora o padre quem os ensinara; mas que só faziam uso desses conhecimentos quando não podia deixar de ser, pois preferiam utilizar uma forma de comunicação mais directa. Ficou a saber que essas estranhas criaturas ali sentadas na varanda, sem mexerem um cabelo, eram capazes de trabalhar duramente nas parcelas de terreno que lhes pertenciam; sobretudo aqueles que tinham mais de cinquenta por cento de sangue espanhol; e também ficou a saber, o que lhe causou um espanto ainda maior, que todos eles possuíam pedaços de terra mesmo deles. Isso também fazia parte de uma tradição tão antiga como a sua raça. Também aí, o padre desempenhara um certo papel, o seu primeiro e possivelmente último papel na política, embora apenas local. Naquela região verificara-se recentemente um daqueles surtos de ateísmo e de radicalismo quase anarquista que surge periodicamente nas zonas de cultura latina e começa geralmente por uma sociedade secreta para terminar quase sempre numa guerra civil, e pouco mais. O chefe do partido iconoclasta era um certo Alvarez; um aventureiro de nacionalidade portuguesa, mas de origem parcialmente negra, no dizer dos seus inimigos. Era o chefe de um certo número de lojas e templos de iniciação daquele tipo que, em zonas como aquela, conseguem revestir o próprio ateísmo em roupagens místicas. O chefe do partido conservador era um sujeito mais vulgar, um homem bastante rico, chamado Mendonza, dono de diversas fábricas e muito respeitável, mas nada interessante. Era opinião geral que a causa da lei e da ordem teria soçobrado inteiramente, caso ele não houvesse adoptado uma políticamais popular para o seu partido, a qual consistia em ceder terras aos camponeses; e este movimento tivera a sua origem principal na sede da pequena missão do padre Brown.
Enquanto este falava com o jornalista entrou Mendonza, o chefe conservador. Era um homem forte e moreno, com a cabeça calva como uma pêra e um corpo gordo do mesmo feitio; vinha a fumar um charuto perfumado, mas atirou-o fora, com um gesto talvez um tudo-nada teatral, quando chegou junto do padre, como se tivesse entrado na igreja, e fez uma vénia, inesperada num sujeito tão corpulento. Punha sempre uma grande seriedade em todos os seus gestos sociais, sobretudo quando se tratava de instituições religiosas. Era um daqueles leigos que se revelavam muito mais eclesiásticos que os próprios eclesiásticos. Isto causava grandes embaraços ao padre.
- Cá por mim acho que sou anticlerical - costumava dizer, sorrindo, o padre Brown - e penso que haveria muito menos cle-ricalismo se deixassem os padres resolver sozinhos esse assunto.
- Oh, Sr. Mendonza! - exclamou o jornalista com renovado entusiasmo -, penso que já nos conhecemos. O senhor não assistiu no ano passado ao Congresso Comercial do México?
As pesadas pálpebras do Sr. Mendonza moveram-se numa expressão de quem se recorda e sorriu com o seu sorriso lento:
- Recordo-me - murmurou.
- Que grandes negócios ali se fizeram numa hora ou duas! - exclamou Snaith com entusiasmo. - Calculo que para si foi muito bem.
- Tive bastante sorte - retorquiu modestamente Mendonza.
- Creio bem que sim! - tornou a exclamar Snaith. - A sorte bafeja sempre aqueles que sabem por que ponta lhe hão-de pegar; e o senhor é desses, sem dúvida nenhuma. Mas espero não estar a interromper os vossos assuntos?
- De modo algum - tornou o outro. - Tenho muitas vezes a honra de fazer uma visitinha aqui ao padre, só para lhe dizer duas palavras. Só duas palavrinhas.
Foi como se esta familiaridade entre o padre Brown e um homem de negócios tão próspero e mesmo tão famoso viesse completar a reconciliação entre aquele e o positivo Snaith. Pelos vistos, sentiu que uma nova respeitabilidade envolvia a missão e sentiu-se disposto a esquecer certos sinais bem visíveis da existência da religião, tais como a capela e o presbitério. Mostrou-se decididamente entusiasmado com o programa do padre, pelo menos com o seu aspecto secular e social, e declarou-se pronto a servir, em qualquer altura, de transmissor vivo para comunicar com o mundo distante. Foi precisamente nesta altura que o padre Brown começou a considerar o jornalista mais incómodo na sua simpatia que na sua hostilidade.
Snaith, dali em diante, empenhou-se vigorosamente em promover a figura do padre Brown. Enviou longos e entusiásticos elogios acerca dele através do continente para o seu jornal do mé-dio-oeste. Tirou instantâneos do infeliz sacerdote quando este se entregava às ocupações mais comezinhas e exibiu-as em gigantescas ampliações nos enormes jornais de domingo dos Estados Unidos. Transformou as suas frases em slogans e estava constantemente a oferecer ao mundo uma "mensagem" do reverendo senhor da América do Sul. Qualquer outro povo menos ingenuamente receptivo que a raça americana teria ficado logo farto do padre Brown. Mas o que aconteceu foi que este começou a receber convites para ir fazer uma série de conferências através dos Estados Unidos; e como recusasse respondiam-lhe apresentando melhores condições, com os protestos do mais profundo respeito. Uma série de histórias acerca dele, como sendo um Sherlock Holmes, foi planeada graças à imaginação de Snaith e apresentada ao herói pedindo-lhe que as aprovasse e lhes desse o seu apoio. Vendo que as histórias já tinham sido postas a correr, o padre não pôde sugerir outra coisa senão que se devia parar com elas. E isto foi aceite por Snaith como tema de uma discussão acerca da hipótese de o padre Brown desaparecer temporariamente, caindo de um rochedo, tal como sucedera ao herói do Dr. Watson. A todas estas solicitações o padre tinha de responder pacientemente por escrito, dizendo que consentiria nessa solução, a fim de que se acabasse com as histórias e pedindo que se fizesse um longo intervalo antes que começassem de novo. As notas que ele escrevia eram cada vez mais curtas e ao terminar a última, suspirou.
Escusado será dizer que esta estranha publicidade alcançada no Norte teve a sua repercussão no Sul, onde ele esperava viver uma vida solitária. A vasta população inglesa e americana, já ali residente, começou a sentir orgulho em possuir uma personagem tão ilustre. Os turistas americanos, do género daqueles que chegam ansiosos por verem a abadia de Westminster, chegavam aquela costa remota desejosos de avistarem o padre Brown. Vinham de enormes distâncias, em comboios especiais com o seu nome, cheios de uma multidão que o queria visitar como se ele fosse um monumento público. Incomodavam-no sobretudo os negociantes e os lojistas lá da terra, sempre atrás dele para que experimentasse os seus artigos e desse a sua opinião. E se essa opinião demorava, eles prolongavam a correspondência só para coleccionarem autógrafos. E como ele era uma pessoa amável, acabavam por conseguir muito daquilo que pretendiam. Foi precisamente a resposta a um negociante de vinhos de Francoforte, chamado Eckstein, a quem ele escrevera apressadamente algumas palavras num postal, que veio provocar uma terrível viragem na sua existência.
Eckstein era um homenzinho irrequieto com um cabelo crespo e um pince-nez. Estava ansioso não só porque o padre experimentasse o seu vinho medicinal, como queria também que ele dissesse onde e como o bebia, de acordo com a receita. O padre não se admirou muito com o pedido, pois já estava habituado às maluqueiras dos anúncios. Por isso, escreveu rapidamente qualquer coisa em resposta e voltou a sua atenção para outros assuntos mais úteis. Mas logo foi de novo interrompido por um recado do seu inimigo político Al varez a pedir-lhe que viesse encontrar-se com ele, a fim de entrarem em acordo a respeito de um certo assunto importante que precisava de ser resolvido; sugeria que se encontrassem nessa mesma noite, num certo café fora das muralhas da cidade. Também isto ele aceitou, enviando a resposta por um mensageiro militar, de farda vistosa, que estava à espera. Feito isto, como tinha ainda uma hora ou duas à sua frente, sentou-se e tentou despachar parte dos seus assuntos legítimos. Finalmente, serviu-se de um copo do célebre vinho de Eckstein e, depois de olhar para o relógio com um ar satisfeito, bebeu e saiu.
A Lua cheia iluminava a pequena cidade, de modo que, no momento em que ele chegou ao pitoresco local, com o seu arco rocócó e a fila de palmeiras do outro lado, aquilo lembrava o cenário de uma ópera espanhola. Uma comprida folha de palmeira muito recortada, e que parecia preta à luz da Lua, pendia do outro lado do arco e a sua silhueta parecia a boca aberta de um crocodilo. Esta imagem nunca teria permanecido na sua mente se não houvesse outro facto que chamou a atenção do seu olhar atento. O ar estava totalmente imóvel, não havia um sopro de vento, no entanto, ele viu distintamente a folha de palmeira mover-se. Olhou em torno e verificou que estava sozinho. As últimas casas haviam ficado para trás e ele caminhava agora entre dois muros altos feitos de pedras irregulares, nas quais cresciam de quando em quando os cactos espinhosos, muito vulgares na região, muros esses que seguiam paralelos até ao arco. O padre não conseguia ver as luzes do café, além do arco; este, provavelmente, ficava muito para lá. Nada mais avistava à sua frente senão o pavimento de lajes, que o luar branqueava, com os seus tufos de cactos que ostentavam um ou outro fruto coberto de picos. Tinha a sensação de estar sob uma ameaça de perigo; chegava mesmo a ser uma opressão física; mas nem por um momento lhe passou pela cabeça parar. A sua coragem, embora considerável, era, apesar de tudo, menor que a curiosidade que o movia. Toda a vida se regera por uma enorme sede de verdade, até mesmo em casos sem importância; procurava não cair em exageros, mas o sentimento lá estava. Quando ia mesmo a passar por debaixo do arco um homem saltou sobre ele, empunhando uma faca. No mesmo instante, outro que se esgueirava junto ao muro brandiu um cacete por cima da sua cabeça. O padre Brown voltou-se, vacilou e tombou por terra, mas ao cair a sua expressão era de uma enorme surpresa.
Nessa época vivia na mesma cidadezinha outro jovem americano totalmente diferente de Paul Snaith. Chamava-se John Adams Race. Era engenheiro electrotécnico e trabalhava por conta de Mendonza no sentido de equipar o velho burgo com as facilidades da civilização. A sua figura era muito menos conhecida nos meios da crítica e das intrigas internacionais que a do jornalista americano. Mas a verdade é que a sociedade americana conta um milhão de homens do tipo moral de Race para um do tipo de Snaith. Era um sujeito de uma competência excepcional na sua profissão, mas fora isso, de uma grande simplicidade. Começara a vida como empregado de farmácia numa aldeia do Oeste e conseguira subir na vida pelos seus próprios méritos; no entanto, considerava ainda a sua terra natal como o centro do mundo habitável. Crescera num meio muito puritano, ou puramente evangélico. Aprendera os preceitos do cristianismo no colo da mãe, baseados na Bíblia. Ainda hoje era esta a sua religião, se é que lhe sobrava tempo para se dedicar a alguma. Nem mesmo no deslumbramento das mais recentes e fantásticas descobertas, quando se encontrava a ponto de realizar uma experiência decisiva, produzindo milhares de luz e som, como se fosse um deus a criar novas estrelas e outros sistemas solares, nem por um momento ele deixou de considerar o sistema de vida "lá da terra"; a sua mãe, a Bíblia caseira, a calma e antiquada moral que ali se professava como as melhores coisas do mundo. Tinha a certeza de que a religião da Bíblia era, de facto, a verdadeira; e quando se encontrava no mundo moderno sentia uma vaga saudade de tudo isso. É evidente que não simpatizava com mitras e báculos, nem com as manifestações externas do catolicismo, e nisso estava do lado de Snaith, embora de um modo menos ostensivo. Não gostava das vénias e da sovinice de Mendonza, como também não o tentava o misticismo maçónico do ateu Alvarez. É possível que ele achasse aquela vida semitropical, bem como a pele vermelha dos índios e o ouro dos espanhóis, demasiado colorida para o seu gosto. De qualquer modo, quando afirmava que nada chegava aos calcanhares da sua terra natal, era sincero. O que ele queria dizer é que existia ali algo de puro, simples, despretensioso e comovente que ele respeitava acima de tudo. Mas sendo esta a atitude mental de John Adams Race numa estância da América do Sul, começara a insinuar-se nele um sentimento que contradizia todos os seus preconceitos e para o qual não conseguia encontrar explicação. Porque a verdade era esta: a única coisa que encontrara no decurso das suas viagens que lhe recordava os montes de lenha, a sua quinta na aldeia e a Bíblia que aprendera no colo da mãe era (não sabia por que razão estranha) a cara redonda e o velho guarda-sol do padre Brown.
Surpreendia-se a observar aquela figura vulgar ou até mesmo cómica com mórbida fascinação sempre que a via passar, como se ela fosse um enigma ambulante. Descobria nela qualquer coisa que não podia impedir-se de gostar no meio daquilo que sempre odiara; era como se tivesse sido atormentado por diabretes para acabar verificando que o diabo-mor não passava, por fim, de uma pessoa vulgar.
Assim sucedeu que, ao olhar pela sua janela, naquela noite de luar, ele viu passar o dito demónio, esse sujeito impoluto, na sua batina preta e chapéu de abas largas, a caminhar, estrada fora, em direcção à muralha. E pôs-se a observá-lo com um interesse que não sabia explicar. Perguntava a si próprio para onde é que ele iria e que é que iria fazer. E continuou a olhar para a estrada muito depois de a figura negra ter desaparecido. A certa altura observou outra coisa que o intrigou mais ainda. Outros dois homens, que ele também conhecia, passaram no rectângulo iluminado da sua janela como quem atravessa um palco. Qual luz da ribalta, o clarão azulado da lua punha como que um halo em redor da cabeleira hirsuta de Eckstein, o pequeno negociante de vinho, e sublinhava igualmente outra figura, mais alta e mais negra, com um chapéu alto também escuro. Tudo aquilo se assemelhava a uma pantomima de sombras. Race censurou-se por dar assim largas à sua fantasia, pois logo a seguir reconheceu as suíças e as feições vincadas do Dr. Calderon, um médico bem conhecido na cidade, que um dia encontrara à cabeceira de Mendoza quando este adoecera. No entanto, a maneira como os dois homens cochichavam entre si e olhavam a rua ao longe parecia-lhe estranha. Obedeceu a um impulso, saltou pela janela e seguiu atrás deles, pela estrada fora, de cabeça descoberta. No momento em que eles desapareciam sob a arcada, chegou-lhe aos ouvidos um grito medonho, forte e agudo, e tornava-se ainda mais arrepiante porque dizia qualquer coisa numa língua que Race não compreendia.
Seguiu-se um torpel de passos, mais gritos e logo a seguir um vozear confuso que fazia estremecer as ameias e as palmeiras da praça; a multidão de gente que se juntara moveu-se, como que a recuar para fora da arcada, e então ouviu-se uma voz que desta vez Race percebeu perfeitamente e que anunciava num tom de tragédia:
- O padre Brown está morto!
Race nunca soube o que cedeu dentro de si ou por que razão falhou aquilo com que sempre contara, o certo é que correu em direcção à arcada onde encontrou o seu compatriota jornalista, que saía precisamente do escuro, pálido de morte a torcer nervosamente os dedos.
- Não há dúvida - declarou com uma espécie de reverência. - Foi-se. O médico já o viu e diz que não há nada a fazer. Foi algum desses malditos mestiços que lhe deu uma cacetada, sabe-se lá porquê, quando ele ia a passar por debaixo do arco. Vai ser uma enorme perda para esta terra!
Race não disse nada, talvez não conseguisse falar, mas correu para ver a cena mais de perto. O pequeno vulto vestido de negro jazia no mesmo sítio onde caíra, num monte de pedregulhos, semeado de cactos verdes e espinhosos; a multidão que ali se juntara era mantida à distância quase só pelos gestos de uma figura gigantesca que se achava em primeiro plano. Muitas dessas pessoas avançavam segundo o movimento das suas mãos, como se se tratasse de um feiticeiro.
Alvarez, o ditador e demagogo, era um tipo alto e fanfarrão, que gostava de usar roupas vistosas, e, naquele momento, envergava uma farda verde, bordada a prata com desenhos, imitando cobras enroscadas por todo o lado. Ao pescoço usava uma condecoração suspensa de uma fita rosa. A sua cabeleira crespa e já grisalha contrastava com o tom da pele, que os amigos consideravam de um tom moreno e os inimigos diziam ser mulata, e que naquele momento brilhava como se fosse uma máscara de oiro.
O rosto, de feições rudes e habitualmente prazenteiro, mostrava-se agora grave e severo. Explicou que se encontrava no café, à espera do padre Brown, quando ouviu um barulho e o ruído de um corpo a cair. Ao sair cá para fora deparou-se-lhe o cadáver em cima das pedras.
- Sei o que vocês estão a pensar - declarou ele, olhando em redor com um ar de desafio -, e se não se atrevem a dizê-lo, digo-o eu. Sou ateu; quem não me quiser acreditar que não acredite. Mas dou a minha palavra de honra de homem e de soldado que nada tive a ver com isto. E se apanhasse o culpado, teria muito gosto em enforcá-lo naquela árvore.
- Não há dúvida de que todos ficamos satisfeitos ao ouvir essas suas afirmações - retorquiu o velho Mendoza num tom solene e altivo, de pé junto ao cadáver do seu ex-colaborador. - Foi um golpe muito duro e inesperado para que possamos, de momento, dizer o que nos vai na alma. Sugiro que levemos daqui o corpo do meu amigo e acabemos com esta estranha reunião. Pelo que me diz - acrescentou voltando-se para o médico, com ar grave -, não há a mínima esperança.
- Nenhuma - confirmou o Dr. Calderon.
John Race regressou aos seus aposentos com uma estranha sensação de tristeza e vazio. Parecia-lhe impossível sentir a falta de um homem que nem sequer conhecia. Ficou a saber que o enterro se realizaria no dia seguinte; todos eram de opinião que se devia resolver o assunto o mais depressa possível, com receio de tumultos, que ameaçavam rebentar de hora para hora. Quando Snaith vira os índios sentados na fila da varanda, estes pareciam uma série de esculturas astecas de madeira vermelha. Mas não os viu quando souberam que o padre Brown estava morto. A verdade é que teriam feito logo uma revolução, a fim de lincharem o caudilho republicano, se não os tolhesse, de momento, a necessidade de respeitarem o caixão do seu chefe religioso. Os verdadeiros assassinos, esses sim, mereciam naturalmente ser linchados, haviam desaparecido misteriosamente. Ninguém conhecia os seus nomes, ninguém sabia sequer se a vítima lhes chegara a ver a cara. Aquela expressão de surpresa que lhe ficara no rosto seria talvez devida ao facto de os haver reconhecido.
Alvarez repetia alto e bom som que nada tinha a ver com o crime. Assistiu ao funeral, seguindo atrás do caixão com a sua farda verde e prateada, arvorando um ar de reverência e ao mesmo tempo de desafio.
Atrás da varanda subia-se um lanço de escadas de pedra ladeadas por uma sebe de cactos, que atravessava a encosta íngreme. Foi por aí que transportaram, com grande esforço, o caixão, para o colocarem provisoriamente aos pés do enorme crucifixo que dominava a estrada e servia de sentinela ao recinto sagrado dos mortos. Em baixo, ficara um mar de gente a lamentar-se e a rezar as contas. Era o povo que se sentia órfão por haver perdido o seu pai. Apesar de todas as manifestações, que para ele representavam uma provocação, Alvarez manteve a calma e a compostura; e tudo teria corrido bem, dizia consigo Race, se ninguém se tivesse metido com ele.
Race cogitava amargamente que Mendoza sempre procedera como um velho idiota, e, desta vez, mantivera-se fiel à regra. Conforme o uso nas sociedades primitivas, o caixão ficara aberto e a cara do morto destapada, o que levou ao paroxismo o desgosto daquelas pobres criaturas. Uma vez que assim mandava a tradição, não havia nada de mal nisso; contudo, alguém responsável resolveu adoptar o costume dos livres-pensadores da França, que consistia em fazer discurso à beira da campa. Mendoza começou a proferir a sua alocução, bem comprida, por sinal, e quanto mais ele falava mais John Race se sentia enfadado com todo aquele ritual religioso. Alista das virtudes do falecido era repetida com a lentidão e a retórica de um orador que não sabe como terminar o seu brinde no fim de um banquete. Isto em si já era mau, mas Mendoza teve ainda a supina estupidez de se pôr a acusar e até a desafiar os seus inimigos. Em menos de três minutos conseguiu desencadear uma cena da mais extraordinária violência.
- Estamos no direito de querer saber! - exclamou ele, olhando altivamente ao redor -, estamos no direito de querer saber - repetiu - onde é que poderemos encontrar virtudes como estas entre aqueles que abandonaram a crença dos seus antepassados. É quando temos entre nós, ateus, e não só chefes teóricos mas também cabecilhas, que vemos essas teorias infames produzirem os seus frutos em crimes como este. Se procurarmos saber quem assassinou este santo homem, descobriremos facilmente...
Nos olhos de Alvarez, o mulato aventureiro, brilhou um clarão de selvagem ferocidade; Race pensou que aquele homem não passavainfelizmente de um primitivo e que todo o seu transcendenta-lismo "iluminado" tinha o seu quê de feitiçaria. De qualquer modo, Mendoza não pôde prosseguir porque Alvarez acabava de se erguer e gritava, em reposta, com muito mais força que o seu adversário:
- Quem o matou? Mas foi o vosso Deus! Foi o vosso Deus quem o matou! Segundo vocês afirmam é ele quem mata todos os fiéis servidores, tal comomatou este -fez um gesto violento, a apontar, não para o cadáver, mas para o crucifixo. E prosseguiu, esforçando-se agora para se controlar, num tom ainda furioso, mas menos agressivo: - Eu não acredito nisso, mas vocês acreditam. Mais vale não acreditar em nenhum Deus que ter um que vos prejudica desta maneira. Cá por mim, não tenho receio de afirmar que não há Deus. Neste mundo cego e estúpido não há nenhuma força que atenda as vossas orações e vos restitua o vosso amigo. Por muito que eu esconjure o céu para que ele ressuscite, ele não ressuscitará. E vou fazer aqui a prova: desafio aquele Deus que não existe a despertar este homem que dorme para sempre.
Seguiu-se um silêncio emocionado; o demagogo causara o efeito que pretendia.
- Devíamos ter previsto - começou Mendoza numa voz rouca e pastosa - quando permitimos que um homem como o senhor...
Mas foi interrompido por uma outra voz, e com sotaque americano:
- Calem-se! Calem-se! - gritava Snaith, o jornalista. - Passa-se qualquer coisa! Juro que o vi mexer...
E corria, escadas acima, parajunto do caixão, enquanto o povo, lá em baixo, se agitava num frenesim incrível. O americano voltava agora um rosto pálido de espanto e fazia sinal com o dedo ao Dr. Calderon para que se aproximasse. Este aproximou-se, correndo, do caixão e, quando ambos se afastaram um pouco todos puderam ver que a cabeça do morto mudara de posição. A multidão soltou um brado, que logo se calou, porque afigura do padre dentro do caixão emitiu um gemido e ergueu-se sobre o cotovelo a fitar a turba com um olhar turvo e espantado.
John Adams Race, que até ali só conhecia os milagres da ciência, nunca conseguiu descrever, mais tarde, a confusão dos dias que se seguiram. Julgava ter saído do espaço e do tempo para viver num mundo impossível. Em menos de meia hora toda a cidade e arredores se transformou numa confusão nunca vista; aquele povo medieval só parecia, por milagre, um conjunto de monges, ou então uma cidade grega sobre a qual houvessem descido os deuses. Nas estradas jaziam milhares de vultos prostrados por terra; centenas de pessoas proferiram logo ali os seus votos; e até mesmo os estrangeiros, como era o caso dos dois americanos, não conseguiam falar de outro assunto que não fosse o prodígio. O próprio Alvarez ficara transtornado, e com razão. Permanecia sentado com a cabeça entre as mãos.
No meio de toda esta confusão beatífica havia um homenzinho que se esforçava por se fazer ouvir. A sua voz era fraca e o barulho em volta ensurdecedor. Fazia gestos que denotavam sobretudo irritação. Chegou-se à borda do parapeito e acenou para a multidão, pedindo-lhe que acalmasse, com pequenos movimentos das mãos que lembravam o bater de asas de um pinguim. Houve uma suspensão do ruído e então o padre Brown manifestou pela primeira vez o grau de indignação que lhe era possível experimentar em relação aos seus filhos.
- Seus idiotas! - exclamou numa voz esganiçada. - Seus grandecíssimos idiotas!
Depois procurou visivelmente dominar-se e dirigiu-se à pressa para as escadas, que começou a descer com um passo mais normal.
- Onde vai, padre? - perguntou Mendonza num tom de extrema veneração.
- Vou ao telégrafo - respondeu apressadamente o padre Brown. - O quê? Não, claro que não foi nenhum milagre. Por que havia de ser um milagre? Os milagres não andam por aí aos pontapés!
E continuou a descer as escadas, enquanto o povo corria a ajoelhar-se para lhe implorar a bênção.
- Deus vos abençoe, Deus vos abençoe e vos dê juízo! - respondia ele apressadamente.
Em breve chegou ao telégrafo, donde enviou um telegrama ao sacerdócio do bispo; rezava assim:
Corre por aqui um boato estúpido acerca de um milagre. Espero, S. Ex. - Reverendíssima, que não o confirme. É tudo falso.
Após este esforço cambaleou um pouco e John Race segurou-lhe o braço, dizendo:
- Deixe-me levá-lo a casa. O senhor é mal empregado nesta gente!
John Race e o padre estavam sentados no presbitério; a secretária encontrava-se ainda coberta com os papéis em que este último estivera a trabalhar na véspera; a garrafa do vinho e o copo vazio achavam-se no lugar onde ele os poisara.
- Agora-murmurou o padre Brown-posso começar a reflectir.
- No seu caso, por enquanto, não me esforçava - aconselhou o americano. - O senhor precisa de descansar. De resto, por que motivo precisa de reflectir?
- Acontece que estive por diversas vezes encarregado da investigação de crimes - informou o padre Brown. - Desta vez calha investigar o meu próprio assassínio.
- Sendo assim, se eu fosse o senhor, começava por beber um pouco deste vinho.
O padre Brown pôs-se de pé, serviu-se de um copo, ergueu-o contra a luz e voltou a pousá-lo com um ar pensativo. Sentou-se de novo e declarou:
- Sabe qual foi a sensação que tive quando morri? Pode não acreditar, mas foi uma sensação de grande espanto.
- Bem - retorquiu Race -, o senhor ficou espantado por alguém lhe ter dado uma paulada na cabeça.
O padre Brown curvou-se para ele e confessou em voz baixa:
- Fiquei espantado por ver que ninguém me tinha batido na cabeça!
Race ficou a olhar para ele como quem pensa que a pancada tivera sérias consequências, mas respondeu apenas:
- Que quer dizer com isso?
- Quero dizer que, no momento em que aquele homem brandiu o cacete, fez um gesto largo mas não me tocou na cabeça. Do mesmo modo, o outro sujeito fingiu que me ia atacar com uma faca, mas não me fez sequer um arranhão. Foi tudo uma farsa. Penso que foi isso. Mas depois é que aconteceu uma coisa extraordinária.
Olhou, pensativo, para os papéis que tinha sobre a mesa e prosseguiu:
- Muito embora nenhum deles me tivesse tocado com o cacete ou com a faca, comecei a sentir as pernas a fraquejar e a vida a fugir-me. Sabia que alguma coisa me atingira, mas não aquelas armas. Sabe do que desconfio?
Apontou para o vinho sobre a mesa.
Race pegou na garrafa, observou-a e depois cheirou-a.
- Acho que tem razão - declarou. - Em tempos fui empregado de uma farmácia e estudei química. Não posso ter uma certeza antes de fazer uma análise, mas penso que há qualquer coisa de estranho nesta mistela. Existem drogas sobre das quais os asiáticos conseguem produzir um sono temporário que se assemelha à morte.
- É isso mesmo - tornou o padre calmamente. - Este milagre foi todo ele forjado por qualquer motivo. A cena do funeral foi minuciosamente preparada. Julgo que ela fazia parte dessa loucura publicitária que se apoderou de Snaith; só me custa a crer que ele fosse tão longe apenas por esse motivo. Porque, afinal, uma coisa é arranjar assunto à minha custa, fazendo-me passar por um pseudo Sherlock Holmes, e...
A medida que o padre falava a sua expressão ia-se alterando. Fechou subitamente as pálpebras enrugadas como se estivesse engasgado, depois estendeu a mão trémula e encaminhou-se para a porta.
- Onde é que vai? - perguntou o outro surpreendido.
- Se quer saber- respondeu o padre Brown, que se fizera muito pálido -, vou rezar. Ou melhor, louvar a Deus.
- Acho que não estou a perceber. Que é que se passa?
- Vou agradecer a Deus por me ter salvo de uma forma tão incrível e estranha. Agradecer-lhe por me ter salvo por um triz!
- É verdade - respondeu Race. - A minha religião não é a sua, mas acredite que basta para eu perceber isso. E claro que o senhor tem razão para agradecer a Deus tê-lo salvo da morte.
- Não é isso - tornou o padre. - Não se trata da morte, mas sim da vergonha.
Race ficou de boca aberta; estas palavras do padre quase o fizeram soltar um grito de espanto.
- E essa vergonha não me atingia só a mim, mas também a tudo aquilo que eu defendo; uma vergonha para a fé que eles dizem professar. Imaginem só o que poderia ter sido isto! O maior e mais terrível escândalo que nos atingia desde o tempo em que puseram as piores mentiras na boca de Titus Oats (1).
- Que está para aí o senhor a dizer? - exclamou o seu companheiro.
- Bem, o melhor é explicar já - respondeu o padre; e, sentando-se de novo, prosseguiu, mais calmo: - Compreendi tudo num repente quando mencionei o nome de Snaith e de Sherlock Holmes. Lembrei-me agora do que tinha escrito acerca desse esquema absurdo; achei muito natural escrever aquilo, mas vejo agora que eles me haviam manejado habilmente no sentido de eu escrever precisamente aquelas palavras. Era mais ou menos isto: "Estou disposto a morrer e a ressuscitar, tal como fizeram com Sherlock Holmes, se isso servir para alguma coisa." No momento em que me recordei disso, percebi que fora levado a escrever aquela frase e outras no género, todas elas com o mesmo sentido. Escrevi, como que de cumplicidade, afirmando que iria beber o vinho numa determinada altura. Está a ver?
(1) Titus Oats, o autor de uma falsa conspiração, chamada Conjura Papista, que teria como finalidade massacrar os protestantes, deitar fogo a cidade de Londres e matar o rei. (N. da T.)
Race pôs-se de pé, ainda com um ar de espanto:
- Sim - declarou. - Acho que começo a perceber...
- Eles iriam propagar o milagre. Depois haviam de desmentir esse milagre. E o pior de tudo é que iriam provar que eu tinha entrado na conspiração. Seria o nosso falso milagre. Era isto o que eles planeavam, nem mais nem menos. Ia sendo uma tragédia. - E acrescentou, após um silêncio, numa voz mais baixa: - Para eles seria uma propaganda tremenda.
Race olhou para a mesa e perguntou, carrancudo:
- Quantos daqueles brutos estariam metidos nisto? O padre Brown abanou a cabeça:
- Mais que podemos imaginar - respondeu. - Mas julgo que muitos não passavam de instrumentos. Alvarez deve estar convencido de que na guerra vale tudo; é um tipo muito estranho. Creio bem que aquele Mendonza é um velho hipócrita; nunca me inspirou confiança. E detestava a minha actuação nas questões industriais. Mas tudo isso pode esperar; agora só quero agradecer a Deus ter-me livrado. Agradecer especialmente o facto de eu ter telegrafado a tempo ao bispo.
John Race mostrava-se muito pensativo:
- O senhor disse-me muitas coisas que eu ignorava - confessou por fim - e acho que lhe devo explicar a única coisa que o senhor não sabe. Posso imaginar quais foram os cálculos desses sujeitos. Eles imaginavam que qualquer homem ao despertar dentro de um caixão, tido por santo e exibido como um milagre para todos os admirarem, teria tendência para ser levado pelos seus admiradores a aceitar a coroa de glória que lhe caía do céu. E penso que os seus cálculos estão de acordo com a psicologia da maior parte dos homens. Tenho conhecido toda a espécie de pessoas nos mais diversos lugares e confesso-lhe francamente que não julgo que exista um homem num milhão que fosse capaz de acordar nestas condições, na posse de toda a sua inteligência e que, ainda meio acordado, tivesse a lucidez, a simplicidade e a humildade de...
Com enorme espanto sentiu-se comovido e com a voz a tremer.
O padre Brown estava a olhar abstractamente para a garrafa com um ar um tanto malicioso. E alvitrou:
- Oiça lá, e se bebêssemos uma garrafa de vinho, mas do bom?...
A SETA DO PARAÍSO
Creio bem que deve haver mais de cem histórias policiais que começam com o assassínio de um milionário americano; acontecimento este que parece ser considerado como uma espécie de calamidade. Agrada-me referir que esta história começa com o assassínio de um milionário; de certo modo trata-se até do assassínio de três milionários, coisa que podemos considerar como um embarras de richesse (1). Mas é precisamente esta coincidência, ou sequência de política criminosa, que faz sair o caso da vulgaridade e o transforma no intrincado problema que é.
Toda a gente dizia que eles tinham sido vítimas de qualquer vingança ou praga relacionadas com a posse de uma relíquia de grande valor, tanto intrínseco como histórico: uma espécie de cálice encastoado de pedras preciosas, vulgarmente chamado a Taça Copta. A sua origem era obscura, mas pensava-se que fora destinada a fins religiosos. E havia quem atribuísse a má-sorte dos seus possuidores ao fanatismo de algum cristão oriental indignado com o facto de ela ter ido parar às mãos de pessoas tão materialistas. Porém, o misterioso assassino, quer se tratasse ou não de um fanático, tornara-se já numa personagem de interesse sensacional no mundo do jornalismo e dos boatos. Aquele sujeito que não tinha nome passou a ter um nome e uma alcunha. Mas a nós, neste momento, só nos interessa a história da terceira vítima; porque foi só neste caso que um tal padre Brown, que é a figura central destes contos, teve a oportunidade de revelar a sua presença.
Quando o padre Brown desembarcou pela primeira vez de um transantlântico em solo americano descobriu, tal como sucedera a outros ingleses, que era uma personagem muito mais importante que imaginara. A sua figura baixa, o seu ar simplório de míope, as
(1) Em francês, no original. (N. da T.)
suas roupas eclesiásticas russas, poderiam muito bem passar despercebidas no seu país natal, e só teriam de notável a sua insignificância. Porém, a América possui a particularidade de exagerar a fama das pessoas; e a sua actuação em um ou dois problemas de criminologia intrincados, juntamente com a sua prolongada relação com Flambeau, ex-criminoso e detective, transformara em fama o que em Inglaterra não passara de rumores. O seu rosto redondo ficou pasmado de surpresa ao ver-se rodeado, mal desembarcou, por um bando de jornalistas, como se fossem uma quadrilha de ladrões, fazendo-lhe perguntas acerca dos assuntos que lhe eram mais estranhos, tais como os pormenores da moda feminina e as estatísticas de criminologia daquele país que os seus olhos acabavam de ver pela primeira vez. Talvez fosse o contraste com aquele batalhão de figuras semelhantes, que tornou mais notório o contraste com outra figura que se mantinha à parte, silhueta negra no meio da luminosidade daquele dia de sol; tratava-se de um homem alto, de rosto amarelento e óculos grossos, que deteve o padre com um gesto no momento em que os jornalistas se afastavam.
- Desculpe - disse ele -, o senhor está à procura do capitão Wain?
O padre Brown deve ter murmurado uma desculpa. Devemos recordar-nos de que ele nunca tinha estado na América e sobretudo nunca vira uns óculos de tartaruga como aqueles; nessa altura, a moda ainda não chegara à Inglaterra. A sua primeira impressão foi de ter na sua frente um monstro marinho de olhos esbugalhados e um arremedo de capacete de mergulhador. Fora isto, o homem vinha muitíssimo bem vestido. Brown, na sua ingenuidade, achava que os óculos eram um disfarce muito esquisito para ser usado por um cavalheiro. Era como se um janota se houvesse enfeitado com uma perna de pau como supremo toque de elegância. Esta questão embaraçava-o. Um aviador americano chamado Wain, amigo de uns seus amigos franceses, encontrava-se de facto entre os nomes de umalonga lista de pessoas que desejavam encontrar-se com ele durante a sua visita à América; não esperava, no entanto, ter novas dele tão depressa.
- Desculpe - mumurou a medo. - O senhor é que é o capitão Wain? Ou então... conhece-o?
- Tenho a certeza de que não sou o capitão Wain - retorquiu o homem dos óculos, com mau humor. - Não me restaram dúvidas quando o deixei ainda há pouco à sua espera no carro. Mas a outra pergunta levanta mais problemas. Acho que conheço Wain, assim como também conheço o tio dele, um velhote chamado Mer-ton. Conheço o velho Merton, mas o velho Merton não me conhece a mim. Ele pensa que está de melhor partido, mas quem está de melhor partido sou eu. Percebe?
O padre Brown não estava a perceber mesmo nada. Piscou os olhos em face da paisagem marinha e dos torreões da cidade, depois observou o homem dos óculos espessos. Não era apenas o facto de este ter os olhos escondidos que dava a impressão de haver nele algo de impenetrável. O seu rosto amarelo fazia-o parecer quase asiático, ou mesmo chinês, e o palavreado dele consistia somente em frases soltas cheias de ironia. Era um tipo que se encontra mais ou menos por toda a parte naquela população activa e sociável; ele era o americano enigmático.
- Chamo-me Drage, Norman Drage - informou -, e sou cidadão americano, o que basta para explicar tudo. Pelo menos, calculo que o seu amigo Wain queira explicar-lhe o resto; por isso, vamos adiar o Quatro de Julho para outra ocasião.
O padre Browm foi arrastado, meio confuso, para um automóvel que se encontrava a uma certa distância, dentro do qual um rapaz com umas guedelhas loiras mal cuidadas e um ar de aborrecimento e preocupação lhe fez sinal de longe e se apresentou como sendo Peter Wain. Antes de se dar conta do que lhe acontecia, o padre Brown era metido no carro e levado a uma velocidade considerável a atravessar a cidade, saindo pelo outro extremo. Não estava habituado àqueles modos práticos e impetuosos dos americanos e sentia-se tão atordoado como se estivesse a ser levado para um país mágico num carro puxado por dragões. Foi neste estado de espírito que escutou pela primeira vez, contada em longos monólogos por Wain e em curtas frases por Drage, a história da Taça Copta e dos dois crimes já relacionados com ela.
Pelos vistos, este Wain tinha um tio chamado Crake, o qual por sua vez tinha um sócio de nome Merton, e que era o terceiro na série dos sujeitos muito ricos a quem a Taça pertencera. O primeiro de todos, Titus P. Trant, o Rei do Cobre, havia recebido cartas de ameaça de alguém que assinava Daniel Doom. Este nome talvez fosse um pseudónimo, mas serviu para designar uma personagem muito conhecida, se bem que pouco estimada, uma vez que a sua celebridade era um misto de Robin dos Bosques e de Jack, o Estri-pador. Não tardara a verificar-se que o autor das cartas não se limitava a proferir ameaças. Fosse como fosse, o caso é que o velho Trant apareceu uma bela manhã com a cabeça mergulhada no lago do seu jardim, sem que se descobrisse a sombra de uma prova de quem seria o assassino. Felizmente, a taça encontrava-se a salvo no banco e passava, com o resto da herança, de Trant para um seu primo, Brian Horder, homem igualmente muito rico, o qual também fora ameaçado pelo inimigo desconhecido. Brian Horder fora encontrado morto na base de um rochedo, junto à sua casa da beira-mar, a qual, pela mesma ocasião, sofrera um assalto de grande vulto. Apesar de a Taça haver escapado mais uma vez, foram roubados títulos e acções em quantidade suficiente para deixar as finanças de Horder muito abaladas.
- A viúva de Brian Horder - explicou Wain - teve de vender a maior parte dos seus valores, e penso que foi nessa altura que Brander Merton comprou a Taça, pois ela pertencia-lhe quando eu o conheci. Mas o senhor já está a ver que não é um objecto muito cómodo para se possuir.
- O Sr. Merton recebeu já alguma carta a ameaçá-lo? - inquiriu o padre Brown depois de uma pausa.
- Creio que sim - informou Drage; algo na sua voz fez que o padre olhasse para ele com curiosidade, verificando então que ohomem dos óculos se estava a rir baixinho, o que lhe causou uma espécie de calafrio.
- Eu tenho a certeza - acrescentou Peter Wain, de sobrolho carregado. - Nunca vi essas cartas. Só o secretário dele é que vê parte da sua correspondência, pois ele é muito secreto quanto aos negócios, como é costume em homens do seu tipo. No entanto, já o vi bastante preocupado por causa de certas cartas que recebia; cartas essas que ele se apressava a rasgar antes que o secretário as lesse. Este está a ficar muito nervoso e diz que vai acontecer qualquer coisa ao velho; em resumo, gostaríamos imenso que o senhor nos desse alguns conselhos a este respeito. Toda a gente conhece a sua reputação, padre Brown, e o secretário pediu-me que levasse o senhor imediatamente à casa do Sr. Merton.
- Compreendo - murmurou o padre Brown, que acabava de começar a perceber, finalmente, o significado do rapto aparente de que estava ser vítima. - Mas a verdade, é que julgo não poder fazer nada mais que os senhores a este respeito. Vocês estão a viver aqui e, por certo, dispõem de muito mais informações sobre o assunto que um simples visitante.
- Sim -respondeu secamente Drage. -As nossas conclusões são demasiado científicas para serem verdadeiras. Verifico que fosse o que fosse que atingiu Titus P. Trant só podia ter vindo do céu, sem esperar por qualquer explicação científica. Aquilo a que se pode chamar um raio vindo das nuvens.
- O senhor não está a insinuar - exclamou Wain - que se trata de qualquer coisa sobrenatural!?
Mas nunca era fácil descobrir o que é que Drage queria dizer; a não ser quando ele dizia que alguém era realmente esperto, pois nesse caso podíamos concluir que ele lhe estava a chamar burro. Drage manteve a sua imobilidade oriental mesmo depois de o carro ter parado há alguns instantes. Haviam sem dúvida chegado ao seu destino, um sítio bem estranho, por sinal. Tinham percorrido uma região pouco arborizada que desembocava numa planície. Em frente deles erguia-se uma construção que consistia numa parede única, ou antes, uma alta vedação, em redondo, que lembrava um circo romano ou então um aeródromo. Não parecia feita de madeira nem de pedra e, olhando bem, via-se que era toda de metal.
Desceram do carro e, após uma complicada manipulação, que mais parecia a abertura de um cofre-forte, uma pequena porta deslizou na parede. Porém, com enorme surpresa do padre Brown, o homem que dava pelo nome de Norman Drage não se mostrou disposto a entrar e despediu-se com uma jovialidade sinistra:
- Não entro-declarou.-Aminhapresençairia dar uma alegria excessiva ao velho Merton, estou convencido. Ele gosta tanto de me ver que era capaz de morrer de alegria.
E afastou-se, enquanto o padre Brown, cada vez mais espantado, era introduzido através de uma porta de aço, que logo se fechou sobre eles. Lá dentro havia um jardim enorme e bem tratado com plantas de cores vivas, mas sem árvores nem arbustos nem flores. No centro dele erguia-se uma casa de arquitectura harmoniosa e estranha, mas tão alta e estreita que mais lembrava uma torre. O sol ardente reflectia-se nas telhas de vidro do telhado, mas nos andares inferiores não se viam janelas. E em tudo se respirava aquele ar de limpeza impecável que é apanágio do ambiente americano. Uma vez transposta a entrada, viram-se rodeados de mármores, metais e esmaltes de cores brilhantes, mas escadas era coisa que não havia, apenas um ascensor que subia por entre as paredes maciças e cujas portas eram guardadas por um sujeito forte e espadaúdo, que parecia um polícia à paisana.
- A segurança é tremenda - murmurou Wain -, o senhor deve estar a pensar com estranheza, que espécie de pessoa será Merton que vive numa fortaleza como esta, onde nem sequer existe uma árvore atrás da qual alguém se possa esconder. Mas o senhor não imagina o que temos de enfrentar nesta terra. E talvez ignore o que significa o nome de Brander Merton. Ele é um homem bastante pacato que ninguém repararia ao passar por ele na rua; o que não seria fácil de acontecer hoje em dia, uma vez que raramente sai, e só em carro fechado. Mas se acontecesse alguma coisa a Brander Merton, seria o fim do mundo, desde o Alasca até às ilhas Caraíbas. Calculo que nenhum imperador desfrutou jamais de um tal poder sobre todas as nações. Afinal, penso que se o senhor fosse convidado para visitar o czar da Rússia ou o rei de Inglaterra, havia de sentir curiosidade suficiente para aceitar. Pode não estar muito interessado nos czares ou nos milionários, mas um poder tão grande como este é sempre interessante, e espero que não vá de encontro aos seus princípios visitar uma espécie de imperador moderno do tipo de Merton.
- De modo algum - asseverou o padre Brown com toda a calma. - E minha obrigação visitar os prisioneiros e todos os infelizes que vivem encarcerados.
Seguiu-se um breve silêncio e o rapaz cerrou o sobrolho com uma expressão um tanto ou quanto estranha no rosto comprido. Depois declarou abruptamente:
- Bem, o senhor deve recordar-se de que não são apenas os vulgares patifes, estilo Mão Negra, que o perseguem. Este Daniel Doom é um verdadeiro demónio. Veja só como ele conseguiu liquidar Trant no seu próprio jardim e Horder junto à sua casa e escapar.
O último andar, com as suas paredes espessas, consistia em dois compartimentos: uma antecâmara, que foi onde eles penetraram, e uma sala interior, que era o santuário do magnata. Naquele momento, vinham a sair de lá dois visitantes. A um deles Peter Wain cumprimentou-o, tratando-o por tio. Era um sujeito forte e activo, com a cabeça toda rapada, de modo a parecer calvo, e um rosto tão queimado que ninguém diria ter alguma vez sido branco. Era o velho Crake, vulgarmente chamado Hickory Crake, em memória do outro mais célebre, o velho Hickory, que se tornara famoso nas últimas guerras contra os peles-vermelhas. O seu companheiro formava com ele um vivo contraste - era um sujeitinho muito composto, de cabelos negros que pareciam envernizados, tal como a fita preta do monóculo. Chamava-se Barnard Blake, era o advogado de Merton e tinha vindo ali discutir com os sócios assuntos da firma. Os quatro homens encontraram-se a meio da antecâmara e pararam para uma troca de palavras de cortesia. Enquanto isto se passava outro sujeito permanecia sentado ao fundo da antecâmara, junto à porta de comunicação, imóvel e impassível, na média-luz coada pela janela interior. O seu rosto era o de um negro e possuía uns ombros enormes. Representava aquilo a que os americanos chamam por ironia a figura do Malvado; a quem os amigos chamam guarda-costas e os inimigos um assassino assalariado.
Este homem nunca se movia nem mudava de posição para cumprimentar ninguém. Porém, a sua presença ali parecia ter reavivado o nervosismo inicial de Peter Wain.
- Está alguém com o chefe? - inquiriu ele.
- Não te preocupes - troçou o tio. - Está lá Wilton, o secretário, e isso é quanto basta. Penso que Wilton nunca dorme para vigiar Merton. Só ele vale por trinta guarda-costas. E é rápido e silencioso como um índio.
- Bem, o senhor lá sabe - respondeu o sobrinho a rir.- Recordo-me dos truques dos peles-vermelhas que o senhor me costumava ensinar quando eu era garoto e gostava de ler histórias de índios. Só que nessas histórias eram sempre eles os vencidos.
- Na vida real isso não acontecia - respondeu muito sério o velho fronteiriço.
- Ah, não? - quis saber o delicado Sr. Blake. - Eu imaginava que eles não podiam nada contra as nossas armas de fogo.
- Vi uma vez um índio resistir a cem espingardas, tendo por única arma uma faca de mato, e com ela matar um branco que se encontrava no alto do forte - disse Crake.
- Oh, e como conseguiu isso? - inquiriu o outro.
- Atirando-a - replicou Crake. - Atirando-a num repente, antes de ser disparado um único tiro. Não sei onde é que ele aprendeu o truque.
- Só espero que o senhor não o tenha aprendido também... - disse o sobrinho, a rir.
- Penso - observou o padre Brown - que essa história deve ter a sua moral.
Enquanto eles falavam, Wilton, o secretário, saíra da sala interior e aguardava, de pé; era um sujeito pálido, de cabelo loiro, um queixo quadrado e olhar parado, semelhante ao de um cachorro; era fácil imaginar que possuía mentalidade de cão de guarda.
Declarou simplesmente:
- O Sr. Merton vai recebê-los dentro de dez minutos. - Mas foi o bastante para acabar com a conversa do grupo. O velho Crake disse que tinha de se ir embora e saiu acompanhado pelo sobrinho e pelo homem de leis, deixando o padre Brown só, com o secretário, uma vez que o gigante mestiço, no outro extremo da sala, não dava quaisquer sinais de ser um ente humano ou sequer de estar vivo. Continuava imóvel, de costas para o grupo, a olhar para dentro da outra sala.
- Temos aqui dispositivos muito complicados - murmurou o secretário. - Sem dúvida já lhe falaram desse tal Daniel Doom e das razões por que não é muito conveniente deixar o patrão sozinho.
- Mas neste momento ele está só, não é verdade? - observou o padre Brown.
O secretário fitou-o com os seus grandes olhos cinzentos:
- Apenas durante quinze minutos - informou -, das vinte e quatro horas que tem o dia, são os seus únicos momentos de solidão. E ele não os dispensa por um motivo muito importante.
- E qual é ele?
Wilton, o secretário, permaneceu de olhar fixo, mas a sua boca, de expressão até ali apenas séria, tornou-se grave:
- A Taça Copta, encontra-se guardada algures neste compartimento, e só ele sabe onde está; só a tira do esconderijo depois de todos termos saído da sala; temos de correr o risco durante este quarto de hora de o deixar só, a venerar a taça; creio bem que é a única coisa que ele adora. Não que isso represente qualquer perigo real, porque eu transformei esta casa numa fortaleza onde nem sequer o próprio Diabo conseguiria penetrar, e muito menos de cá sair. Se esse malvado Daniel Doom nos vier visitar, juro que terá de ficar para a ceia, ou até um pouco mais tarde!... Estou aqui sobre brasas durante estes quinze minutos, e se acaso ouvisse um tiro ou qualquer ruído de luta carregaria neste botão e logo uma corrente eléctrica percorreria a vedação do jardim e isso significaria a morte para quem a quisesse transpor. Claro que um tiro seria impossível, uma vez que a entrada é só esta, e a única janela junto da qual o patrão se senta, fica no alto da torre, que é tão lisa como um mastro encerado. De qualquer modo, aqui andamos todos armados, claro; e se acaso Doom conseguisse entrar não sairia daqui vivo.
O padre Brown mantivera-se a observar os desenhos escuros do tapete, até que declarou, erguendo subitamente a cabeça:
- Espero que não se ofenda com o que vou dizer, mas de repente ocorreu-me uma coisa a seu respeito.
- Diga? A meu respeito como?
- Acho que o senhor tem uma ideia fixa - declarou o padre Brown. - E desculpe que lhe diga, mas essa ideia parece-me que consiste mais em apanhar o Doom que defender Merton.
Wilton teve um ligeiro sobressalto e continuou a fitar o companheiro, depois, lentamente, a sua boca amarga esboçou um sorriso um tanto estranho.
- Como é que o senhor... que é que o faz pensar assim?
- Você disse que se ouvisse um tiro trataria de electrocutar imediatamente o inimigo em fuga - observou o padre. - De certo não esqueceu que esse tiro poderia ter sido fatal para o seu patrão, antes que o choque eléctrico fosse fatal para o inimigo. Não estou a insinuar que você não seria capaz de defender o seu patrão, mas isso parece vir em segundo lugar nas suas preocupações. O sistema de defesa é muito complicado, como diz, e pelos vistos foi o senhor que o concebeu, mas dá-me a impressão de que se destina mais a apanhar um criminoso que a salvar um homem.
- Padre Brown, o senhor é um homem muito inteligente - respondeu o secretário, que parecia ter recuperado o seu tom calmo -, mas para além disso há mais alguma coisa. É aquela espécie de pessoa a quem sentimos necessidade de falar verdade; de qualquer modo, o senhor viria a sabê-lo, pois, de certo modo, até gozam comigo a esse respeito. Todos me consideram um maníaco em virtude da minha ideia fixa de acabar com aquele malvado. Talvez tenham razão, mas vou dizer-lhe uma coisa que os outros não sabem: o meu nome completo é John Wilton Horder.
O padre Brown abanou a cabeça como se tivesse ficado esclarecido, mas o outro prosseguiu:
- Esse sujeito que dá pelo nome de Doom assassinou o meu pai e arruinou a minha mãe. Quando Merton precisou de um secretário aceitei o lugar, pensando que onde estivesse a Taça, o criminoso havia de aparecer, mais tarde ou mais cedo. Mas eu ignorava então quem ele era e limitava-me a esperar que desse sinal de vida; e era minha intenção servir fielmente Merton.
- Compreendo - retorquiu suavemente o padre. - E, a propósito, não será altura de irmos andando?
- Oh, sim! - exclamou Wilton com um novo sobressalto, o que levou a concluir que ele se entregara de novo à sua obsessão de vingança. - Entre, faça favor.
O padre Brown penetrou na sala. Não se ouviu qualquer frase de cumprimentos, apenas um silêncio de morte; volvidos instantes o sacerdote voltou a aparecer entre portas.
Nesse momento, o guarda-costas, que estava sentado em silêncio do lado de fora, pareceu voltar à vida e foi como se um móvel pesado tivesse caído no chão. A atitude do padre fora como que um sinal; a sua cabeça ficara iluminada pela janela lá de dentro e o rosto estava na sombra.
- Acho melhor carregar nesse botão - murmurou num suspiro.
Wilton deu um salto como se acabasse de acordar de um pesadelo e exclamou:
- Não ouvimos nenhum tiro!
- Depende daquilo a que chama tiro.
Wilton correu e penetraram juntos dentro da sala. Era um compartimento pequeno e mobilado com simplicidade e elegância. Na frente abria-se umajanela sobre a planície. Junto dela via-se uma cadeira e uma mesinha, como se o prisioneiro desejasse desfrutar ao máximo do ar e da luz durante aqueles bravos momentos de preciosa solidão.
Nessa mesinha, perto da janela, estava a Taça Copta; era evidente que o seu possuidor estivera a contemplá-la em plena luz. E valia a pena ser vista, pois a luz do Sol transformava as pedras preciosas que a adornavam noutras tantas chamas de mil cores, de modo que bem poderia passar por uma cópia do Santo Graal. Valia a pena ser vista, digo, mas nesse momento, Brander Merton não estava a vê-la. A cabeça pendia-lhe nas costas da cadeira, com a cabeleira branca caída para trás, a barbicha grisalha a apontar para o tecto e com o pescoço atravessado por uma comprida seta pintada de castanho com penas encarnadas na outra extremidade.
- Um tiro silencioso - comentou o padre Brown em voz baixa. - Eu tinha estado a pensar nesses novos inventos que conseguem silenciar as armas de fogo. Mas esta invenção é muito mais antiga e igualmente silenciosa.
E, passado um momento, acrescentou:
- Creio bem que ele está morto. Que tencionam fazer?
O secretário, pálido de morte, ergueu-se num gesto de súbita resolução:
- Vou carregar naquele botão, é claro - declarou. - Mas se com isso não apanhar Daniel Doom, hei-de persegui-lo até ao fim do mundo.
- Tenha cuidado, não vá atingir algum dos nossos amigos - observou Brown. - Devem estar ainda nas proximidades; seria melhor chamá-los.
- Eles sabem tudo acerca do muro - retorquiu Wilton. - Nenhum deles tentaria saltar, a não ser que estivesse muito apressado.
O padre Brown dirigiu-se à janela por onde entrara a seta e olhou para fora. O jardim, com os seus canteiros de plantas rasteiras, lembrava um mapa-múndi visto lá do alto. Toda a paisagem parecia deserta, com a torre a erguer-se no meio, de modo que lhe veio à memória a frase estranha:
- Um raio caído do céu!-murmurou. - Que é que alguém disse há pouco acerca de um raio caído do céu? Tudo aqui se me afigura tão afastado que me parece impossível uma seta vir de tão longe, a não ser que caísse do céu...
Wilton voltou-se, mas não disse nada, e o padre prosseguiu no seu monólogo:
- Podemos pensar nos aviões. Temos de interrogar o jovem Wain acerca de aviões.
- Aparecem muitos por aqui - informou o secretário.
- Há também o caso das armas muito antigas ou muito modernas - observou o padre Brown. - O seu velho tio deve conhecer algumas, temos de o interrogar acerca das setas. Esta faz-me lembrar uma seta de peles-vermelhas. Já não sei de onde é que o tal índio disparou; mas vocês estão lembrados da história que o velhote contou. Eu disse que ela devia ter uma moral qualquer.
- Se tinha - observou vivamente Wilton -, ela só poderia querer dizer que um índio verdadeiro seria capaz de disparar uma seta de muito mais longe que aquilo que imaginávamos. É disparate o senhor estabelecer uma ligação.
- Parece que você não está a perceber bem a moral da história - retorquiu o padre Brown.
Muito embora o pequeno sacerdote se tivesse misturado logo no dia seguinte com a imensa população de Nova Iorque e não fizesse qualquer tentativa para ser algo mais que uma pessoa comum, numa rua numerosa, o facto é que andou muitíssimo ocupado nos quinze dias seguintes com a incumbência que lhe fora confiada, pois receava, deveras, que viesse a ser cometido um erro judiciário. Sem dar o aspecto de os estar a separar dos outros que acabava de conhecer, achou maneira de estar em contacto com dois ou três sujeitos relacionados com o mistério; sobretudo com Hickory Crake, com quem manteve uma conversa muito interessante. Esta ocorreu num banco, em Central Park, onde o veterano se sentara apoiando as mãos e o rosto ossudo numa bengala de madeira vermelho-escura, que podia muito bem ter sido primitivamente o cabo de um machado de guerra.
- Bem, pode muito bem ter sido um tiro de longe - declarou o velho, abanando a cabeça. - Mas ninguém pode afirmar com exactidão a que distância um índio consegue disparar uma seta. Já tive ocasião de ver setas que acertam no alvo mais certeiras que balas, se tivermos em conta o seu longo percurso. Claro que hoje em dia é difícil ouvir-se falar num índio que ainda use o arco e as flechas, e muito mais difícil ainda aparecer algum por aqui. Mas se acaso andasse algum desses peles-vermelhas com o seu arco e flechas a passear por entre as árvores a muitos metros de distância da muralha, eu não poria as minhas mãos no fogo em como ele não seria capaz de mandar uma seta através da janela da casa de Merton; nem tão-pouco de acertar no velho Merton.
- Não duvido. Creio bem que o senhor deve ter cometido e presenciado façanhas como essa.
O velho Crake riu baixinho e murmurou, casmurro:
- Oh, isso é tudo história antiga.
- Há quem goste de estudar história antiga - tornou o padre. -Espero que não haja nada no seu passado que possa levar as pessoas a murmurarem a seu respeito em relação a este caso.
- Que quer dizer com isso? - perguntou Crake, com os olhos em viés pela primeira vez no seu rosto ossudo, semelhante, também ele, a um machado de guerra.
- Bem, digo isto porque o senhor conhecia profundamente todas as artes e manhas dos peles-vermelhas... -murmurou devagar o padre Brown.
Até ali, Crake mantivera uma posição de abandono, com o queixo apoiado na sua estranha bengala. Mas, de súbito, pôs-se de pé, muito direito, no meio do caminho, com ar aguerrido e empunhando a bengala como se fosse uma clava:
- Quê? - exclamou ele num grito rouco. - Que raio está o senhor para aí a dizer? Quer insinuar que eu poderia ter morto o meu próprio cunhado? Dos outros bancos do jardim muita gente se pôs a olhar para os dois contendores, que se enfrentavam no meio do arruamento: o homenzinho vivo e careca brandindo a sua estranha bengala como se fosse um cacete e a figura negra do eclesiástico, que o evitava, sem mover um músculo, com excepção das pálpebras dos olhos piscos. Durante um momento poderia imaginar-se que a figurinha atarracada do padre iria ser atingida na cabeça e derrubada com a rapidez e prontidão dos índios; ao longe, avistava-se já a silhueta avantajada de um polícia irlandês a caminhar naquela direcção. Mas o padre limitou-se a dizer com toda a calma, como quem responde a uma pergunta vulgar:
- Acerca disso tirei algumas conclusões, mas acho que não vou mencioná-las senão no meu relatório.
Porém, fosse por influência da aproximação do polícia, ou do olhar do sacerdote, a verdade é que o velho Hickory meteu a bengala debaixo do braço e enfiou o chapéu na cabeça, a resmungar. O padre desejou-lhe placidamente os bons-dias e saiu vagarosamente do paruqe em direcção ao átrio do hotel, onde sabia que encontraria o jovem Wain. Este correu a cumprimentá-lo. Parecia mais preocupado e nervoso que nunca, como que devorado por um receio oculto. E o padre desconfiou que o seu jovem amigo acabava de iludir, com êxito evidente, a última emenda à Constituição americana. Porém, logo que ouviu as primeiras palavras acerca do seu passatempo ou da sua ciência preferida, mostrou-se logo atento e concentrado. O padre Brown perguntara-lhe, como quem não quer a coisa, se havia muita gente a voar naquela direcção e confessara-lhe que, à primeira vista, confundira a cerca de Merton com um aeroporto.
- Admira-me que o senhor não tenha visto nenhum avião enquanto lá estivemos - respondeu o capitão Wain. - Eles, às vezes, são mais que as moscas ali à volta. Aquela vasta planície tem boas condições e não me espantaria que se tornasse num grande ninho, digamos assim, para esses estranhos pássaros do futuro. Eu próprio já lá voei bastantes vezes e conheço a maior parte dos tipos que por ali andam e que fizeram a guerra na aviação. Mas agora começam a aparecer outras aves em que nunca ouvi falar. Acho que vai acontecer como com os automóveis, não tarda que cada pessoa tenha o seu.
- Uma vez que foram dotados pelo Criador com o direito à vida, àliberdade e à prática do automobilismo, não falando já na aviação - murmurou, sorrindo o padre Brown -, podemos, pois, concluir que, se acaso um aeroplano desconhecido sobrevoasse a casa, poderia muito bem passar despercebido.
- Sim, acho que poderia.
- E mesmo que o piloto fosse conhecido - prosseguiu o outro -, penso que poderia apoderar-se de um aparelho que ninguém reconheceria como seu. Se o senhor, por exemplo, voasse de maneira normal, Merton e os seus amigos poderiam talvez reconhecer o seu equipamento; mas o senhor poderia passar muito perto daquela janela num tipo de avião diferente; o mais perto que fosse necessário para fins práticos.
- Sim - começou distraidamente o rapaz, mas logo se calou, fitando o sacerdote de boca aberta e os olhos esbugalhados:
- Meu Deus! - murmurou em voz baixa. - Meu Deus! - Depois ergueu-se do sofá, a tremer da cabeça aos pés, sempre a fitar o padre:
- O senhor está louco? - gritou. - Deve estar louco varrido! Seguiu-se um momento de silêncio e depois ele prosseguiu com voz sibilante:
- O senhor veio expressamente para insinuar...
- Não, vim apenas para coleccionar sugestões - repetiu o padre Brown, erguendo-se. -Já tirei algumas conclusões provisórias, mas acho melhor reservá-las de momento.
E depois de cumprimentar o outro com a mesma reserva cerimoniosa, saiu do hotel para prosseguir nas suas curiosas peregrinações.
Ao cair da noite, estas conduziram-no até às ruelas estreitas e às escadas que desciam até ao rio na parte mais antiga e irregular da cidade. Não tardou que sob a luz colorida de uma lanterna, que anunciava a entrada de um modesto restaurante, ele encontrasse uma figura já dele conhecida, muito embora neste momento apresentasse um aspecto bastante diferente.
Norman Drage continuava a olhar o mundo através dos seus óculos enormes, que em parte lhe cobriam o rosto como uma máscara de vidro. Mas fora isso a sua aparência sofrera uma grande transformação durante o mês que decorrera a seguir ao crime. Conforme o padre Brown havia observado, nessa altura ele vestia de maneira impecável, naquele estilo em que é difícil distinguir entre o janota e o manequim de montra de um alfaiate. Agora, porém, mudara para pior, de um modo misterioso; era como se o manequim se tivesse transformado em saca-rolhas. O chapéu alto ainda existia, mas estava todo amolgado; a roupa, degradada, e o relógio com a corrente e os outros pormenores haviam desaparecido. No entanto, o padre Brown dirigiu-se a ele como se o tivesse deixado na véspera e não hesitou em se sentar no mesmo banco daquele restaurante barato. Contudo, foi o outro quem falou primeiro.
- Então? - rosnou Drage. - Sempre conseguiu vingar o seu famoso milionário? Sabemos que todos os milionários são famosos e santos; é isso que diziam todos os jornais, no dia a seguir à sua morte; que passaram a vida guiados pela Santa Bíblia, que aprenderam no regaço da mãe. Ena! Se a mãe deles lesse algumas das passagens da Bíblia ficaria estarrecida. E até o próprio milionário, aposto. Esse velho livro está cheio de grandes tiradas que hoje em dia já não se usam. Uma espécie de sabedoria da Idade da Pedra que ficou sepultada com as pirâmides. Se alguém tivesse atirado com o velho Merton do alto da torre para ser devorado pelos cães, não-teria sido pior do que aconteceu a Jezebel. E Agag foi feito em pedaços apesar de ir a andar com muito cuidado. Merton andou sempre com muito cuidado até ficar de todo incapaz de andar. Mas o dardo do Senhor atingiu-o, como teria acontecido no velho livro, e matou-o no alto da torre para exemplo do povo.
- Este dardo, pelo menos, era real - murmurou o padre.
- As pirâmides também são reais e guardam lá dentro os reis mortos - ironizou o homem dos óculos. - Penso que essas velhas religiões materiais têm muito que se lhes diga. São esculturas que existem há milhares de anos e representam os deuses e os imperadores com os seus arcos curvos; e umas mãos que se nos afiguram capazes de dobrar aqueles arcos de pedra. São materiais, sim, e de que maneira! Não lhe acontece muitas vezes, olhando essas antigas figuras orientais, ficar com a impressão de que o velho Deus e Senhor ainda corre no seu carro, qual Apoio negro, lançando os seus negros raios mortíferos?
- Se assim é - replicou o padre Brown -, eu dar-lhe-ia outro nome. Mas não me parece que o velho Merton tenha morrido com um raio negro, nem com uma seta de pedra.
- Talvez o senhor o considere um S. Sebastião, por ter sido morto por uma seta - troçou Drage. - Um milionário tem de ser um mártir. Mas como é que sabe que ele não merecia aquela morte? Aposto que sabe muito pouco acerca do seu milionário. Pois, então, deixe que lhe diga que ele merecia mil vezes a sorte que teve.
- Nesse caso-murmurou suavemente o padre -, por que não o matou?
- Quer saber porquê? - perguntou o outro, espantado. - O senhor é um padre muito compreensivo.
- Nem por isso - respondeu o padre como quem dispensa o cumprimento.
- Acho que é essa a sua maneira de insinuar que eu o matei - rosnou Drage. - Se assim é, trate de o provar. Quanto ao milionário, penso que a morte dele não foi um grande prejuízo.
- Foi, sim senhor - retorquiu vivamente o padre. - Para si era um prejuízo. Por isso é que você não o matou.
E com isto foi-se embora, deixando o homem dos óculos completamente embasbacado.
Só perto de um mês depois é que o padre Brown voltou a visitar a casa onde o milionário havia sido vítima da vingança de Daniel Doom. Reunia-se ali um conselho formado pelas pessoas mais interessadas no caso. O velho Crake presidia à mesa, tendo o sobrinho à sua direita e o advogado à esquerda; o colosso de feições negróides, que, pelos vistos, se chamava Harris, estava ali com a sua presença imponente, mas apenas na qualidade de testemunha. Um tipo ruivo, de nariz aguçado, a quem chamavam Dixon, representava a agência particular Pinkerton, ou outra no género; o padre Brown veio sentar-se discretamente numa cadeira que ficara vaga, junto dele.
Todos os jornais do mundo haviam relatado largamente a catástrofe do colosso da finança, do grande organizador dos grandes negócios que avassalam o mundo inteiro. Porém, daquele pequeno grupo que estivera mais perto dele no momento da sua morte, ninguém sabia dizer nada. O tio, o sobrinho e o advogado afirmavam estar fora da cerca exterior quando fora dado o alarme; e os inquéritos junto dos porteiros das entradas revelaram respostas confusas, mas que por fim se confirmaram. Havia apenas a considerar uma pequena complicação. Parece que perto da hora a que o patrão fora morto tinha sido visto um desconhecido misterioso que andava perto da entrada e que perguntara pelo Sr. Merton. Ou criados haviam tido dificuldade em o perceber, pois falava uma língua esquisita; mas depois é que começaram a confiar nele, pois o homem dissera qualquer coisa acerca de uma pessoa má que seria destruída por uma palavra vinda do céu.
Peter Wain inclinou-se para a frente com os olhos a brilhar no rosto pálido e exclamou:
- Aposto que devia ser Norman Drage.
- E quem diabo é esse Norman Drage?
- Isso gostaria eu de saber - replicou o rapaz. - Eu bem lho perguntei, mas ele tem um jeito diabólico para iludir qualquer pergunta directa que se lhe faça... parece um esgrimista. Agarrou-se a mim a falar do navio voador do futuro, mas eu não lhe liguei grande importância.
- Mas que espécie de homem é ele? -inquiriu Crake.
- É um mistagogo - informou o padre Brown com inocente prontidão. - Há por aí muitos como ele; é o tipo de pessoa que nos aborda nos cafés das cidades ou nos cabarés de Paris ou de outras terras dizendo que conseguiu erguer o véu de Isis ou desvendar os segredos de Stonehenge. Para um caso como este não lhe deve faltar toda a espécie de explicações místicas.
A cabeça escura e lisa de Barnard Blake, o advogado, inclinou-se cortesmente para o padre, mas o seu sorriso era levemente hostil.
- Eu nunca imaginara, padre - observou ele -, que o senhor pudesse ter qualquer ideia preconcebida contra as explicações de natureza mística.
- Antes pelo contrário - retorquiu o padre Brown, piscando amavelmente os olhos. - É precisamente por isso que as contesto. Qualquer advogado manhoso pode enganar-me, mas não o enganará a si. Qualquer idiota vestido de pele-vermelha pode iludir-me e eu serei capaz de o comer pelo próprio Hiawatna; mas ali, o Sr. Crake, desmascarava-o logo. Um aldrabão poderia convencer-me de que sabia tudo acerca de aviões, mas nunca enganaria o Sr. Wain. E é isso que se passa com o outro sujeito. Precisamente porque sei qualquer coisa de mística é que não gosto de mistagogos. Os verdadeiros místicos não escondem os mistérios, revelam-nos. Colocam os casos em plena luz do dia e mesmo depois de os contemplarmos eles permanecem um mistério. Porém, os mistagogos conservam as coisas no escuro e quando as trazemos para a luz verificamos que era tudo uma aldrabice. Contudo, no caso do Drage, concordo que ele teria um motivo mais prático para falar de raios caídos do céu.
- E qual era esse motivo? - quis saber Wain. - Fosse ele qual fosse, acho que merece investigação.
- Bem - replicou o padre -, ele queria que nós pensássemos que os assassinos operam milagres... porque ele sabia muito bem que não é assim.
- Ah! - exclamou Wain numa voz sibilante. - Eu já esperava isso. Falando concretamente, é ele o criminoso.
- Falando concretamente, ele é o criminoso que não cometeu o crime - respondeu calmamente o padre.
- É essa a sua concepção de falar concretamente? - inquiriu melifluamente Blake.
- Agora o senhor pode dizer que eu é que sou o mistagogo - respondeu o padre Brown com um sorriso um pouco envergonhado - mas isto é um caso acidental. Drage não cometeu o crime, ou seja, este crime. O seu único crime era fazer chantagem com alguém, e era por esse motivo que ele andava por estas paragens; mas não é provável que ele quisesse divulgar o seu segredo, nem pretendesse que a morte lhe acabasse com o negócio. Mais tarde falaremos dele. De momento, quero deixá-lo à parte.
- A parte de quê? - quis saber o outro.
- À parte da verdade - replicou o padre, fitando-o tranquilamente sem pestanejar.
- Quer dizer com isso - gaguejou ele - que o senhor sabe a verdade?
- Penso que sim - retorquiu o padre com modéstia.
Fez-se um súbito silêncio, após o qual Crake exclamou a despropósito com uma voz áspera:
- Onde pára esse raio desse secretário? Wilton! Ele devia estar aqui!
- Eu estou em comunicação com o Sr. Wilton - respondeu gravemente o padre. - De facto, pedi-lhe para me telefonar para aqui dentro de alguns minutos. Devo confessar que, de certo modo, ambos combinámos tudo.
- Se combinaram tudo ambos, deve estar certo - resmungou Crake. - Sei que ele era uma espécie de cão-de-fila, sempre na pista desse malvado desconhecido, de modo que não é mal pensado caçar em cojunto com ele. Mas se o senhor já sabe a verdade acerca deste caso, onde raio é que a foi desvendar?
- Foi o senhor que ma desvendou - informou o padre no mesmo tom tranquilo, sem deixar de fitar o mal-humorado veterano. - Quero dizer, tive a primeira desconfiança quando o ouvi contar aquela história do índio que atirou uma faca e foi atingir o soldado no alto da fortaleza.
- Já o ouvi contar isso muitas vezes - observou Wain, intrigado -, mas não vejo a relação que possa ter com este caso, a não ser o facto de haver um homem assassinado por uma seta no cimo de uma casa que parece uma fortaleza. Só que a seta não é atirada, mas sim disparada, e que por isso vai muito mais longe. Desta vez foi mesmo muitíssimo mais longe. Mas não estou a ver onde é que isso nos leva...
- Parece-me que o senhor não está a ver bem - observou o padre Brown. - Se uma coisa vai longe, não devemos deduzir que outra pode ir mais longe ainda. O uso inadequado de um instrumento pode estragar tudo de diversas maneiras. O soldado da história de Crake, que se encontrava no forte, pensava que uma faca era uma arma para a luta corpo-a-corpo e nunca para ser utilizada como um dardo. Outras pessoas que conheço pensavam que uma seta só poderia ser utilizada como um dardo, esquecendo que, afinal, ela podia servir de lança. Em resumo, a moral da história é que, se uma faca pode ser transformada em seta, uma seta pode ser utilizada como faca.
Todos olhavam para ele, mas o padre Brown prosseguiu no mesmo tom indiferente:
- É claro que ficámos todos intrigados a cogitar quem teria disparado aquela seta através da janela, se teria sido de muito longe, etc. Mas a verdade é que não foi disparada por ninguém. Nem tão pouco entrou pela janela.
- Então donde veio?-inquiriu o moreno advogado, de expressão cada vez mais sombria.
- Penso que alguém a teria levado consigo - respondeu o padre Brown. - Não era coisa difícil de transportar ou de esconder. Alguém a tinha na mão, dentro da sala, junto do Sr. Merton. Alguém lha enterrou no pescoço como um punhal e depois teve a ideia inteligente de dispor as coisas num ângulo tal, que quem visse imaginava imediatamente que a seta voara como um pássaro através da janela.
- Alguém... - repetiu o velho Crake num tom de voz que pesava como chumbo.
Nesse momento o telefone tocou com um ruído estridente. Picava na sala ao lado e o padre Brown correu para lá antes que qualquer dos outros fizesse um movimento.
- Mas que raio quer dizer tudo isto? - exclamou Peter Wain, que parecia muito abalado.
- Ele disse que esperava um telefonema de Wilton - replicou o tio na mesma voz soturna.
- Creio que deve ser o Wilton ao telefone!? -inquiriu o advogado, como quem fala só para quebrar o silêncio. Mas ninguém lhe respondeu até que o padre Brown apareceu, de súbito, em silêncio, trazendo consigo a resposta.
- Meus senhores - começou ele, depois de se instalar de novo no seu lugar -, foram vocês que me pediram para procurar a verdade acerca deste enigma; e, tendo-a descoberto, tenho de a revelar sem pretender diminuir o choque que ela possa causar. Receio bem que todo aquele que mete o nariz em casos como este não pode estar com cerimónias em relação às pessoas implicadas.
- A meu ver - murmurou Crake, rompendo o silêncio que se seguiu-, isso significa que alguns de nós somos acusados ou tidos como suspeitos.
- Todos nós podíamos ser suspeitos - retorquiu o padre Brown. - Eu fui suspeito porque descobri o corpo.
- Claro que todos somos suspeitos - resmungou Wain. - O padre Brown teve a amabilidade de me explicar que eu podia muito bem ter rodeado a torre numa máquina voadora!
- Não - desmentiu o padre. - Você é que me explicou como o poderia ter feito. Essa é que foi a parte interessante.
- E, pelos vistos - resmungou Crake -, pensou igualmente que eu poderia ter cometido o assassínio com uma seta de pele-vermelha.
- Isso pareceu-me pouco provável - disse o padre Brown com uma careta. - Desculpem-me se fiz mal, mas não tinha outra maneira de os pôr à prova. Era muito pouco provável que o capitão Wain andasse às voltas por ali, no momento da morte, com uma máquina enorme, sem que alguém desse por isso; nem tão-pouco que um velho cavalheiro respeitável andasse a brincar aos peles-vermelhas entre os arbustos, armado de um arco e de uma seta, para matar alguém que teria tido ocasião de liquidar em muitas outras ocasiões, de maneira mais fácil. Mas eu precisava de provar que eles nada tinham a ver com o caso; tinha de os acusar a fim de provar a sua inocência.
- E como é que conseguiu provar essa inocência?-inquiriu vivamente o advogado, curvando-se para a frente.
- Apenas vendo a agitação que eles revelaram ao serem acusados.
- Que quer dizer com isso, exactamente?
- - Se me permite - respondeu o padre Brown com toda a compustura -, direi que era meu dever suspeitar de toda a gente. Suspeitei do Sr. Crake e suspeitei do capitão Wain, na medida em que considerei possível ou provável a sua culpabilidade. Disse-lhes que tirara conclusões a tal respeito e agora vou revelar quais foram elas. Fiquei com a certeza de que eram inocentes pelo modo como eles passaram, de um momento para o outro, da mais perfeita inconsciência à mais forte indignação. Enquanto não souberam que eram suspeitos deram-me todas as informações que poderiam reforçar a acusação. Explicaram-me praticamente como poderiam ter cometido o crime. Depois descobriram, com um sobressalto e soltando um grito de raiva, que eu estava a suspeitar deles. Perceberam isso muito depois de terem podido imaginar que eu suspeitaria deles, mas muito antes de eu os acusar. Ora nenhum culpado reagiria assim. Ou se mostrava arisco e desconfiado desde o princípio ou simulava inocência e inconsciência até ao fim. Porém, nunca começaria por agravar a situação para si próprio para depois dar um salto e começar a negar furiosamente aquilo que ajudara a sugerir. A atitude de ambos só se podia explicar por não terem, de facto, percebido o que eu estava a insinuar. O sentido de culpa de um assasssino estaria, pelo menos, bastante desperto para não o deixar esquecer a sua relação com o que acontecera e lhe lembrar depois que devia negar tudo. Por isso, risquei os vossos nomes e outros que não vale a pena agora mencionar. Por exemplo, havia o secretário... Mas esse fica para depois. Escutem, acabo de falar com ele pelo telefone, e deu-me licença para eu vos dar algumas novidades importantes. A estas horas já todos vós deveis saber quem era Wilton e o que pretendia.
- Sei que andava atrás de Daniel Doom e que não descansava enquanto não o apanhasse - respondeu Peter Wain. - E também ouvi dizer que ele era filho do velho Horder e por isso se arvorara em vingador do crime. De qualquer modo, creio que deve continuar à procura do homem chamado Doom.
- Ora bem -informou o padre Brown. -Agora já o encontrou!
Peter Wain pôs-se em pé de um salto, todo excitado:
- O assassino! - gritou. - Já está preso o assassino?!
- Não - respondeu muito sério o padre Brown. - Eu disse que as notícias eram graves, nada mais que isso. Receio bem que Wilton tenha tomado sobre si uma tremenda responsabilidade. Perseguiu o criminoso até ao fim e quando por fim o tinham encurralado... pois bem, fez justiça por suas mãos!
- Quer dizer que o Daniel Doom... - começou o advogado.
- Quero dizer que Daniel Doom está morto -confirmou o padre. - Houve uma luta renhida e Wilton matou-o.
- Foi muito bem feito! - rosnou Hickory Crane.
- Ninguém pode censurar Wilton por dar cabo de um patife como Doom, de mais a mais tendo em conta a razão de queixa que tinha contra ele - concordou Wain. - Foi o mesmo que esmagar uma víbora.
- Não concordo convosco - protestou o padre Brown. - Acho que estamos todos a falar levianamente, defendendo o linchamento e o desrespeito pelas leis; mas desconfio que, se acaso pusermos de parte as nossas leis e as nossas liberdades, não tardaremos a lamentá-las. Além do mais, não me parece lógico estarmos a apoiar o facto de Wilton ter cometido um assassínio sem sabermos se Doom teria também as suas razões para fazer o mesmo. Tenho as minhas dúvidas quanto a Doom ser um criminoso vulgar; podia muito bem ser um fora-da-lei com a ideia fixa de possuir a Taça, que fazia ameaças mas que só matava no meio de uma luta; as suas vítimas foram ambas encontradas fora das suas casas. A objecção que eu levanto, em face do procedimento de Wilton, é que Doom nunca teve oportunidade de dizer de sua justiça.
- Oh, não estou disposto a ouvir a defesa sentimental de tipos malvados e criminosos - berrou, furioso, Wain. - Se Wilton lhe acabou com a raça fez ele muito bem, e acabou-se!
- Apoiado! Apoiado! - exclamou o tio, a abanar vigorosamente cabeça.
A expressão do padre Brown ia ficando cada vez mais grave, enquanto observava lentamente os rostos à sua volta.
- É isso que vocês todos pensam? - perguntou.
E, entretanto, ia cogitando que ele próprio era um inglês no exilío. Sentia que se encontrava no meio de estrangeiros, muito embora amigos. Naquele círculo de estranhos ardia um a chama de inquietação a que ele não era alheio; o espírito cruel dos ocidentais que são capazes de se revoltar, de linchar e, sobretudo, de conspirar. E ele sabia que todos eles já tinham conspirado entre si.
O padre Brown suspirou e disse:
- Devo, pois, concluir que os senhores desculpam definitivamente o crime deste infeliz, este acto de justiça privada ou lá como queiram chamar-lhe. Nesse caso não o prejudica em nada que eu vos dê alguns esclarecimentos acerca do caso.
De repente, pôs-se de pé e, sem que os outros atribuíssem a esse movimento qualquer significado especial, a verdade é que todos tiveram a impressão de que a atmosfera da sala arrefecera.
- Wilton matou Doom de uma maneira muito curiosa - começou ele.
- Como? - interrompeu abruptamente Crake.
- Com uma seta - respondeu o padre Brown.
O crepúsculo ia envolvendo o compartimento e a luz reduzia-se a um clarão que vinha da janela interior, na sala onde fora morto o grande milionário. Os olhos de todos voltaram-se automaticamente para lá, mas não se ouviu nenhum som. Então a voz de Crake ergueu-se, num tom agudo e senil, uma espécie de coaxar:
- Que é que disse? Que é que disse? Brander Merton morto por uma seta... agora esse malandro morto por uma seta...
- A mesma seta - esclareceu o padre. - E no mesmo momento.
Mais uma vez se verificou um silêncio, tenso e opressivo, até que o jovem Wain começou:
- O senhor quer dizer que...
- Quero dizer que o nosso amigo Merton era Daniel Doom! - declarou firmemente o padre. - Era ele o único Daniel Doom que existia. O nosso amigo Merton sempre esteve obsecado pela Taça Copta, que todos os dias adorava como se ela fosse um ídolo; na sua juventude matara dois homens para a possuir, embora eu esteja convencido de que esses assassínios foram meros acidentes que ocorreram por ocasião do roubo. De qualquer modo, a Taça era dele. Esse tal Drage sabia da história e começou a fazer chantagem. Entretanto, Wilton perseguia-o por razões diferentes; creio que ele só descobriu a verdade quando veio para esta casa. De qualquer maneira, foi nesta casa e naquela sala que a caçada terminou e que ele liquidou o assassino do pai.
Durante muito tempo ninguém respondeu. Depois ouviu-se o velho Crake a tamborilar com os dedos no tampo da mesa e a murmurar:
- O Brander devia estar louco! Devia estar completamente louco!
- Mas, santo Deus, que vamos nós fazer agora? Que havemos de dizer? Isto agora é um caso muito diferente! Que dirão os jornais e o tipos da alta finança? Brander Merton era qualquer coisa como o presidente dos Estados Unidos ou o papa de Roma.
- Realmente, eu também penso que isto agora é diferente - começou o advogado Barnard Blake em voz baixa. - A diferença representa toda uma...
O padre Brown deu umas pancadas na mesa que fizeram estremecer os corpos que ali se encontravam. Todos julgaram então ouvir vagamente o eco do misterioso cálice que se encontrava na outra sala.
- Não! - exclamou ele num tom que mais parecia um tiro de pistola. -A diferença não é nenhuma. Eu dei-vos a oportunidade de sentirem pena do pobre diabo quando pensavam que ele fosse um criminoso vulgar. Vocês não me deram ouvidos; mostraram-se então adeptos da vingança pessoal. Concordaram todos em que ele devia ser abatido como uma fera sem ser ouvido por um tribunal e disseram que ele não merecia outra coisa. Muito bem, se Daniel Doom teve o que merecia, Brander Merton teve também o que merecia. Se isso se aplicava a Doom, também se pode aplicar a Merton, caramba! Tanto em nome da vossa justiça selvagem como da nossa monótona legalidade; mas, então, que Deus nos acuda! Haja uma só lei ou uma só ilegalidade!
Ninguém respondeu a não ser o advogado, que observou num tom malévolo:
- Que dirá a polícia se lhe dissermos que queremos desculpar um crime?
- Que dirá a polícia se eu lhes disser que o senhor já o desculpou? - replicou o padre Brown. - O seu respeito pelas leis chegou um pouco tarde, Sr. Barnard Blake. - E, após uma pausa, prosseguiu, num tom menos agressivo: - Para já, estou pronto a dizer a verdade se as autoridades competentes me perguntarem; do resto, podem vocês fazer o que quiserem. Mas vai fazer muito pouca diferença. Na realidade, Wilton some telefonou para dizer que eu estava autorizado a apresentar-vos a confissão dele, pois nessa altura ele já estaria a salvo.
O padre saiu lentamente da sala para o compartimento contíguo e parou aolado da mesinha junto à qual o milionário morrera. ATaça Copta continuava no mesmo lugar e o padre demorou-se ali uns momentos a comtemplar aquele conjunto de cores do arco-íris e, depois, mais para além, o abismo azul do céu.
O ORÁCULO DO CÃO
- Sim - declarava o padre Brown. - Gosto muito de cães, desde que os não tomem como deuses (1).
Aqueles que têm facilidade em falar nem sempre mostram disposição para ouvir. Por vezes, a sua verbosidade produz uma espécie de estupidez. O companheiro e amigo do padre Brown era um jovem muito vivaço chamado Fiennes, de olhos azuis e cabelos loiros, deitados para trás, que não pareciam penteados com uma escova, davam antes a impressão de terem sido varridos pelos ventos de todo o mundo. Parou de súbito a meio da sua torrente de palavras quando atingiu o significado da frase do padre.
- Quer o senhor dizer que os homens os valorizam demasiado? - inquiriu. - Bem, eu não sei. Acho-os umas criaturas maravilhosas e, por vezes, até penso que eles sabem mais que nós.
O padre não respondeu, mas continuou a afagar, com ar ausente, a cabeça do enorme cachorro.
- Olhe - prosseguiu Fiennes no seu monólogo -, havia um cão neste caso acerca do qual o venho consultar. Sabe, aquele caso a que chamam "O assassino invisível". É um caso estranho, mas, do meu ponto de vista, o cão é a coisa mais estranha de tudo aquilo. Claro que há o mistério do próprio crime. Não se sabe como é que o velho Bruce foi morto por alguém quando se encontrava completamente só na estufa...
A mão que coçava a cabeça do animal interrompeu o seu movimento rítmico e o padre perguntou com voz calma:
- Então isso passou-se numa estufa, hem?
- Pensei que o senhor tinha lido os jornais - respondeu Fiennes. - Espere aí! Acho que tenho aqui um recorte que lhe pode fornecer todos os pormenores. - E tirou do bolso uma tira do jornal,
(1) A tradução literal é: "Desde que não leiam a palavra de trás para diante." Em inglês dog, cão; God, Deus. (N. da T.)
que entregou ao padre. Este começou a lê-la, aproximando-a com uma das mãos dos olhos piscos, enquanto com a outra continuava aacarinhar distraidamente o cão. Lembrava a parábola do homem que não deixa que a mão direita saiba o que faz a esquerda.
Aquelas histórias acerca de pessoas que aparecem mortas em casas de portas e janelas hermeticamente fechadas por dentro e de criminosos que fogem sem que se conheça por que processo entraram ou saíram haviam-se tornado realidade com os estranhos acontecimentos ocorridos em Cranston, na costa do Yorkshire, onde o coronel Druce aparecera apunhalado pelas costas, tendo a arma desaparecido não só do local do crime como até das redondezas.
A estufa onde ele morrera tinha acesso, de um dos lados, através de uma porta vulgar, à rua central do jardim, que ficava na direcção da casa. Porém, mercê de uma série de acontecimentos, a que bem poderemos chamar coincidência, parece que tanto a porta como o arruamento estavam a ser observados durante os momentos fatais e havia uma cadeia de testemunhas que o confirmavam de umas para as outras. A estufa ficava ao fundo do jardim e dali não partia qualquer espécie de entrada ou saída. O arruamento central era ladeado por duas filas de delfínios plantados tão juntos que qualquer passagem entre eles teria de deixar vestígios. Tanto a rua como as plantas seguiam até à porta da estufa; portanto, qualquer coisa que ali passasse não poderia deixar de ser observada e não existia qualquer processo de entrada ou saída.
Patrick Floyd, secretário do morto, afirmava ter estado em posição de observar todo o jardim, desde o momento em que o coronel Druce aparecera vivo à porta até o terem encontrado morto, pois ele, Floyd, estivera sempre encarrapitado num escadote a podar a sebe do jardim. Janet Druce, a filha do coronel, disse que ficara sentada no terraço da casa durante todo esse tempo e daí via Floyd a cortar a sebe. Em relação a uma parte desse espaço de tempo havia ainda a confirmação do irmão dela, Donald Druce, que observara o jardim da janela do seu quarto, ainda em roupão, uma vez que se levantara tarde. Finalmente, todas estas declarações eram confirmadas por um vizinho, o Dr. Valentine, que fora lá a casa e estivera no terraço a conversar com Miss Druce, e pelo advogado do coronel, que, pelos vistos, fora a última pessoa a ver este com vida, se exceptuarmos o assassino, como é evidente.
Todos concordaram em como a sequência dos acontecimentos era a seguinte: cerca das três da tarde, Miss Druce descera a rua, afim de perguntar ao pai a que horas queria o seu chá; porém, este afirmara que não queria chá e pediu que lhe mandassem o advogado, quando este chegasse. A rapariga encontrara Traill no caminho de regresso e dissera-lhe para ir até à estufa, o que ele fizera. Dali a meia hora saíra, e o coronel acompanhara-o à porta, onde havia sido visto aparentemente de perfeita saúde e muito bem disposto. Algum tempo antes, tinha-se mostrado aborrecido com a hora tardia a que o filho se tinha levantado, mas voltara a recuperar o bom humor e recebera até outros visitantes, incluindo dois dos seus sobrinhos, que vinham ali passar o dia, numa disposição perfeitamente normal. Ambos, porém, tinham ido dar um passeio na hora da tragédia, por isso não haviam testemunhado. Dizia-se, é certo, que o coronel não estava de boas relações com o Dr. Valentine. Este, contudo, só viera conversar com a rapariga, a quem, pelos vistos, andava a fazer a corte.
Traill, o advogado, afirmava que deixara o coronel sozinho na estufa, e isto era confirmado por Floyd, do seu poleiro no alto do escadote, de onde vira que ninguém se aproximara da entrada da estufa. Dez minutos depois, Miss Druce, ao chegar a meio do caminho, avistara o pai, com o seu casaco branco, caído no chão. Ao ouvirem o grito dela, os outros tinham acorrido e deparara-se-lhes o coronel morto, junto à sua cadeira de verga, que também tombara no chão. O Dr. Valentine, que ainda estava por ali perto, verificara que a ferida fora produzida por uma espécie de estilete que penetrara por debaixo da omoplata e lhe atingira o coração. A polícia procurara a arma por todo o lado, sem encontrar vestígios dela.
- O coronel Druce andava então de casaco branco, é isso? - perguntou o padre Brown ao pousar o recorte de jornal.
- Era um hábito que lhe ficara dos trópicos - replicou Fiennes, intrigado. - Parece que tinha vivido por lá algumas estranhas aventuras, segundo ele próprio contava, e penso que a sua antipatia pelo Dr. Valentine, estava, de certo modo, relacionada com o facto de ele também ter estado nos trópicos. Mas é tudo uma confusão diabólica. Aqui o relato é bastante concreto; eu não assisti à tragédia, no momento da descoberta. Andava a passear com os sobrinhos e o cão, o cão de que lhe falei há pouco. Mas eu vi todo o cenário tal como o haviam descrito: o caminho a direito entre os canteiros de flores azuis que conduzia até à porta escura; o advogado a caminhar com o seu fato preto e o seu chapéu alto; acabeça ruiva do secretário subindo acima da folhagem verde, era a sebe que estava a cortar com a tesoura de podar. Aquela cabeça era inconfundível, quem diz que o viu ali durante todo o tempo não pode estar enfadado. Esse tal secretário ruivo é um tipo muito especial, cheio de energia, capaz de fazer qualquer trabalho, inclusive o de jardineiro. Creio que é americano; pelo menos pratica o estilo de vida americana, o que eles chamam a "a maneira de estar".
- E quanto ao advogado? - quis saber o padre.
Seguiu-se um silêncio e depois Fiennes falou, contra o seu costume, muito devagar:
- Traill deu-me a impressão de ser um homem muito estranho. Sempre de fato preto impecável, parece ser vaidoso, no entanto, não veste à moda. Tem umas patilhas pretas e compridas, como só se usavam na época vitoriana. O seu rosto é grave, tem boas maneiras, mas de vez em quando lembra-se de sorrir. Nessa altura mostra os dentes brancos e então perde toda a dignidade e há nele um certo ar de sabujo. Pode ser apenas timidez, pois anda sempre a torcer a gravata, ou o alfinete, objectos estes que também são esquisitos, tal como ele próprio. Se me fosse possível desconfiar de alguém... mas que adianta isso, se é tudo impossível? Ninguém sabe quem cometeu o crime. Ninguém sabe como teria sido possível. Nisso há pelo menos uma excepção, e foi por essa razão que eu lhe relatei tudo. O cão, esse, sabe.
O padre Brown suspirou com ar absorto e disse: - Você estava ali como amigo do jovem Donald. Ele não foi passear consigo?
- Não - replicou sorrindo Fiennes. - O patife tinha-se deitado pela manhã e só se levantou à tarde. Eu saí a passear com os primos, dois jovens oficiais da índia e só conversámos de assuntos triviais. Recordo-me de que o mais velho, que julgo chamar-se Herbert Druce e que é uma autoridade em matéria de criação de cavalos, falou todo o tempo de uma égua que tinha comprado e da maneira de ser do homem que lha vendera; entretanto, o irmão, Harry, parecia sucumbido com a sua má sorte no jogo em Monte-Carlo. Só falo nisto para lhe demonstrar, em face do que se passou durante a nossa conversa, que não havia nada de esquisito em qualquer de nós. O único ser estranho era o cão.
- De que raça é? - quis saber o padre.
- A mesma deste - respondeu Fiennes. - Por isso é que me lembrei de lhe contar a história, quando o ouvi afirmar que não acreditava na intuição dos cães. É um cachorro enorme, chamado Nox, nome bastante sugestivo (1). Penso que ele representa um mistério ainda maior que o próprio assassínio. Como sabe, a casa de Druce fica perto do mar. Nós caminhámos cerca de uma milha pela areia fora e depois voltámos para trás em sentido oposto. Passámos junto a um rochedo muito curioso, chamado Rocha da Fortuna, famoso naquela região por ser um daqueles enormes pedregulhos em equilíbrio em cima de outra pedra, de modo que parece bastar um leve empurrão para a fazer cair. Não é muito alto, mas a sua inclinação dá-lhe um ar sinistro, pelo menos foi a impressão que tive, porque não estou a ver os meus alegres companheiros
(1) Nox, deusa da Noite, na mitologia romana. (N. da T.)
interessados nos motivos pitorescos. Ou talvez fosse porque eu estava a pressentir algo de estranho. Nessa altura, lembrámo-nos de ver se seriam horas de voltar para o chá da tarde. Tal vez eu pressentisse então que a contagem do tempo viria a ter muita importância neste caso. Nem eu nem Herbert Druce tínhamos relógio, por isso perguntámos ao irmão, que ficara para trás a acender o cachimbo ao abrigo de uma sebe. Acontece que ele gritou para nós, na sua voz forte, que eram quatro e meia, no silêncio de crepúsculo e, não sei porquê, aquele grito afigurou-se-me como um mau presságio. O facto de ele não ter consciência disso tornava ainda tudo mais impressionante, mas é sempre assim que sucede com os maus pressentimentos; até o tiquetaque do relógio se me afigurava ameaçador nessa tarde. Na opinião do Dr. Valentine, o pobre Druce devia ter morrido precisamente a essa hora.
""Bem", disseram eles, "podemos ainda demorar-nos uns dez minutos." E caminhámos pela areia até um pouco mais longe, sem fazer nada de especial, a não ser atirarmos pedras e paus que o cão ia buscar ao mar. No entanto, eu sentia que, para mim, o cair da tarde se estava a tornar opressivo e até a sombra da Rocha da Fortuna parecia pesar sobre mim. Depois sucedeu uma coisa estranha. Nox acabara de trazer a bengala de Herbert, que este atirara para a água. Depois o irmão fez o mesmo à dele. O cão começou a nadar, mas, no momento exacto em que deviam ter batido as quatro e meia, o cão parou de nadar, voltou para a praia e parou na nossa frente. Depois ergueu a cabeça e soltou um uivo como eu nunca ouvi.
""Que diabo tem o cão?", perguntou Herbert, mas nenhum de nós sabia responder. Depois seguiu-se um silêncio e o cão não ganiu mais na praia deserta. Até que o silêncio foi quebrado. E foi quebrado por um grito de mulher, um grito longínquo e abafado, que vinha do interior, para lá das sebes. Não sabíamos ainda do que é que se tratava. Tinha sido, então, o grito que a rapariga soltara ao ver o corpo do pai.
- Vocês então voltaram para casa. E que sucedeu depois? - inquiriu pacientemente o padre Brown.
- Vou-lhe dizer o que aconteceu - respondeu Fiennes muito solene. - Quando voltei para o jardim, a primeira coisa que vi, foi Traill, o advogado. Parece que ainda o estou a ver com aquele seu chapéu preto e as patilhas negras, a sobressair da sebe de flores azuis que se estendia até à estufa, tendo como pano de fundo o pôr do Sol e a silhueta da Rocha da Fortuna lá ao longe. A cara e a figura dele ficavam em contraluz; mas posso jurar que lhe vi os dentes brancos e que ele estava a sorrir. No momento em que Nox viu aquele homem correu até meio do caminho e começou a ladrar-lhe furiosamente, como se quisesse dar cabo dele. Parecia mesmo que lhe estava a dirigir as piores injúrias carregadas de ódio. Então o tipo desatou a fugir pelo caminho fora, entre as flores...
O padre Brown pôs-se de pé num movimento de desusada impaciência e exclamou:
- Então o cão acusou-o, é isso? O oráculo do cão condenou-o. Você viu que espécie de pássaros andavam por ali voando, e se se encontravam à direita ou à esquerda? Consultou os augures acerca dos sacrifícios? Certamente, que não deixou de esventrar o cão para lhe examinar as entranhas... São esses testes científicos que vocês, os ateus humanitaristas, têm como certos quando resolvem tirar a vida e desonrar um homem!
Fiennes ficou um momento de boca aberta e sem fala, antes de conseguir murmurar:
- Oh, mas que mosca lhe mordeu? Que mal é que eu lhe fiz? Uma espécie de ansiedade transpareceu nos olhos do padre, a ansiedade de quem choca com um poste, às escuras, e, na primeira impressão, pergunta a si próprio se o magoou.
- Desculpe, desculpe - murmurou sinceramente atrapalhado. - Peço perdão por ter sido tão grosseiro; desculpe-me, pelo amor de Deus!
Fiennes olhou para ele intrigado:
- Às vezes penso que o senhor é mais misterioso que qualquer dos seus mistérios - observou. - De qualquer modo, se não acredita no mistério do cão, pelo menos tem de acreditar no mistério do homem. Não pode negar que, no momento exacto em que o cão uivou, a alma do dono abandonava o corpo em virtude de qualquer poder invisível que ainda nenhum homem descobriu ou nem sequer imaginou. E quanto ao advogado, não me estou a referir apenas ao indício do cão, há mais pormenores estranhos. Ele causou-me a impressão de uma criatura seráfica, sorridente, equívoca. Uma das suas manias sugere-nos qualquer coisa. Sabe que tanto o médico como a polícia compareceram ali muito rapidamente. Valentine voltou atrás precisamente quando ia a sair lá de casa e telefonou-lhes imediatamente. Este facto, juntamente com a localização isolada da casa e o número restrito das pessoas presentes, bem como tratar-se de um recinto fechado, tornou possível revistar rigorosamente todas as pessoas que se encontravam por perto, em busca da arma. A casa, o jardim e a praia foram passados a pente fino. A ausência do punhal é quase tão alucinante como a ausência do criminoso.
- A ausência do punhal - repetiu o padre Brown a abanar a cabeça. Parecia ter ficado subitamente atento.
- Bem - prosseguiu Fiennes. - Já lhe disse que esse tal Traill tinha a mania de estar sempre a mexer na gravata, e sobretudo no alfinete. Este, tal como o seu dono, era simultaneamente espalhafatoso e fora de moda. Era constituído por uma daquelas pedras formadas por anéis concêntricos e coloridos que lembram um olho. Fazia-me nervoso a preocupação que o homem revelava em relação a ele, lembrava-me um ciclope com um olho no meio do corpo. O alfinete, porém, não só era grande de mais como também muito comprido; e eu lembrei-me de que a mania que o sujeito tinha de estar sempre a ajustá-lo podia muito bem significar que ele era mais comprido que parecia; tão comprido, de facto, como um es-tilete.
O padre Brown acenou com a cabeça num gesto pensativo e perguntou:
- Alguém sugeriu que pudesse haver outro instrumento do crime?
- Houve outra sugestão - respondeu Fiennes - da parte do jovem Druce, refiro-me ao primo. A primeira vista, nem Herbert nem Harry Druce davam a impressão de poderem dar qualquer ajuda de natureza científica para a descoberta do assassino; mas enquanto Herbert era, na realidade, o tipo acabado do oficial de Dragões que se interessa por cavalos e por ser um bom ornamento da Cavalaria, o irmão mais novo, Harry, faz parte da polícia indiana e percebia bastante destes assuntos. Na verdade, é até muito esperto, à sua maneira; talvez esperto de mais. Quero dizer que ele levou a polícia a infringir algumas regras básicas, assumindo ele próprio um certo risco e uma certa responsabilidade. Fosse como fosse, ele era um detective, em férias, e meteu-se neste caso com um entusiasmo maior que seria de esperar de um simples amador. Foi com ele que eu discuti acerca da arma, discussão essa que nos levou a uma descoberta. Começou quando ele contradisse a minha afirmação de que o cão tinha ladrado ao Traill. Ele declarou que os cães quando estão zangados não ladram, rosnam.
- Nisso tinha ele razão - concordou o padre.
- O tipo continuou a falar, dizendo que já tinha ouvido o cão rosnar a outras pessoas sem ser o Traill, entre outros ao Floyd, o secretário. Retorqui que esse argumento caía pela base, pois o crime não podia ser atribuído a três pessoas, e entre essas muito menos ao Floyd, que estava tão inocente como uma criancinha. A hora do crime todos o tinham podido ver empoleirado no escadote com o penacho dos cabelos ruivos como uma catatua, a sobressair por cima da sebe.
""Sei que há provas em contrário", alegou o meu colega, "mas só quero que você venha por um momento até ao jardim."
"Isto passava-se no próprio dia da descoberta do crime e o jardim estava tal como nessa hora. O escadote continuava encostado à sebe e aí o meu colega parou e tirou um objecto meio escondido entre a relva alta. Era a tesoura utilizada para podar a sebe. Numa das pontas desta havia uma mancha de sangue.
Seguiu-se um curto silêncio, até que o padre perguntou de súbito:
- Que é que o advogado estava ali a fazer?
- Disse que o coronel o tinha chamado para alterar o testamento -informou Fiennes. - A propósito, há outra coisa relacionada com o testamento que devo mencionar. Fique sabendo que o testamento acabou por não ser assinado na estufa naquela tarde.
- Já calculava. Para isso eram precisas duas testemunhas - respondeu o padre Brown.
- O advogado tinha lá estado na véspera e de facto o testamento fora então assinado, porém, o velhote mandara-o chamar de novo no dia seguinte porque tinha certas dúvidas acerca de uma das testemunhas e queria que ele o tranquilizasse.
- Quem eram as testemunhas? - quis saber o padre Brown.
- Aí é que está - ripostou vivamente o outro. - As testemunhas eram Floyd, o secretário, e esse tal Dr. Valentine, o médico, ou lá o que ele é, que veio de fora; e os dois tinham discutido. Devo dizer que o secretário é um tipo intrometido. Tem um feitiobelicoso e é muito desconfiado. Um desses indivíduos de cabelo ruivo e temperamento esquentado, que acreditam em tudo ou não acreditam em nada, ou baralham tudo. É o homem dos sete ofícios, e em todos eles é melhor que os outros. Ele é que sabe tudo e anda sempre a prevenir todos contra todos. E isto que devemos ter em conta em relação às suspeitas que ele alimentava contra Valentine. Porém, neste caso particular, parece que havia uma certa razão. Ele dizia que o nome Valentine não era o seu verdadeiro nome. Afirmava que o conhecera algures sob o nome de De Villon. Afirmava também que iria invalidar o testamento; e tinha a amabilidade, claro está, de explicar ao advogado que a lei estava seu favor. Os dois mantinham uma guerra aberta.
O padre Brown riu-se:
- Isso já é costume quando duas pessoas são testemunhas num testamento - replicou. - Ao menos ficamos a saber que nenhum deles era contemplado. Mas que dizia o Dr. Valentine? Decerto, esse secretário universal sabia mais acerca do nome do Dr. Valentine que ele próprio, se bem que ele devia ter alguma explicação para dar a tal respeito.
Fiennes calou-se um momento antes de replicar:
- O Dr. Valentine teve uma atitude curiosa. A sua figura dá muito nas vistas e tem um ar de estrangeiro. Ainda é novo, mas usa uma barba quadrada; o seu rosto é pálido, horrivelmente pálido e tremendamente sério. Dá a impressão de que lhe doem os olhos, que devia usar óculos ou que arranjou uma dor de cabeça de tanto pensar. Mas é um homem bonito e sempre impecavelmente vestido, de chapéu alto, fato escuro com uma pequena roseta vermelha na lapela. Os seus modos são frios e altivos e tem uma maneira de fitar as pessoas que nos deixa desconcertados. Ao ser acusado de haver mudado de nome apenas ficou a olhar muito sério, como se fosse uma esfinge e depois disse que os americanos que não tinham nomes para poderem trocar. Ao ouvir isto o coronel também se irritou e disse-lhe meia dúzia de coisas desagradáveis. Tanto mais desagradáveis porquanto se tratava de uma pessoa que pretendia entrar para a família. Mas eu não teria ligado grande importância a isto se não tivesse ouvido certas palavras a princípio da tarde, no mesmo dia da tragédia. Não quero atribuir-lhe demasiado significado, pois não é o tipo de conversa que, em circunstâncias normais, qualquer pessoa gostaria de ter escutado. Quando eu ia a passar em frente do portal com os meus dois companheiros e o cão, ouvi vozes, pelas quais fiquei a saber que o Dr. Valentine e Miss Druce se haviam retirado para trás da casa, de tal maneira que ficavam ocultos por uma sebe florida, e conversavam em voz baixa num tom apaixonado, por vezes quase sibilante, aquilo parecia um encontro ou mesmo uma discussão de namorados. Em circunstâncias normais, ninguém repetiria a maior parte das coisas que eles disseram, porém, num caso grave como este, sinto-me na obrigação de dizer que ouvi mais que uma vez uma frase em que se falava de alguém matar outro. De facto, tive a impressão de que a rapariga lhe estava a pedir que não matasse uma determinada pessoa; dizia que nenhuma provocação justificava que se matasse alguém; isto pareceu-me uma conversa bastante estranha para se ter com um rapaz que veio tomar chá a casa.
- Sabe - perguntou o padre - se o Dr. Valentine ficou muito zangado depois da cena com o advogado e o coronel? Refiro-me ao facto de ele ser testemunha do testamento.
- Nada disso - replicou o outro. - O secretário estava muito mais furioso que ele. Entrou numa grande fúria depois de ter servido de testemunha.
- E agora - inquiriu o padre -, quanto ao próprio testamento?
- O coronel era um homem muito rico e o seu testamento era importante. Neste momento, Traill não nos quis dizer qual era a alteração. Mas eu depois ouvi dizer, de facto, foi mesmo esta manhã, que a maior parte do dinheiro tinha sido transferido do rapaz para a filha. Já lhe disse que Druce estava muito aborrecido com o Donald por causa dos seus horários extravagantes.
- O problema do motivo tem sido bastante posto de lado em face do mistério que apresenta o processo - observou pensativamente o padre Brown. Neste momento, é Miss Druce quem fica a ganhar com a morte do pai, pelo menos aparentemente.
- Santo Deus! Que maneira de falar tão cínica! - exclamou Fiennes, fitando-o. - Não está a insinuar que ela...
- Ela está para casar com o Dr. Valentine? - interrompeu o padre.
- Há quem diga que não - respondeu o outro. - Mas lá na terra todos o estimam e respeitam e é um médico competente e prestável.
.-Tão prestável que até trazia consigo instrumentos cirúrgicos quando veio visitar a namorada à hora do chá. Por que deve ter-se servido da lanceta ou coisa no género, e, pelos vistos, não chegou a ir para casa.
Fiennes pôs-se em pé de um salto e fitou o padre num assomo de curiosidade:
- Sugere então que ele utilizou a mesma lanceta...
O padre Brown abanou a cabeça:
- Todas estas sugestões, para já, são gratuitas - declarou. - O problema não é saber-se quem praticou o crime ou com quê. Podemos vir a encontrar muitas pessoas e até muitos instrumentos: alfinetes, tesouras de poder e lancetas. Mas como é que alguém conseguiu entrar dentro da estufa? Ou introduzir lá sequer um alfinete?
Enquanto falava, olhava com ar pensativo para o tecto. Porém, ao proferir as últimas palavras semicerrou de repente um olho, como se acabasse de descobrir ali uma mosca interessante.
- Bem, que é que o senhor vai fazer? - perguntou o rapaz. - O senhor tem muita experiência, que é que aconselha, então?
- Receio bem não ser de um grande auxílio - replicou o padre Brown, suspirando. - Não posso sugerir grande coisa sem ter estado perto do local e das pessoas. De momento, vocês devem prosseguir com os inquéritos no local. Pelo que me diz, o seu amigo da polícia indiana está mais ou menos encarregado do assunto. No seu caso, eu iria até lá para ver como ele se comporta. Veja como ele procede na sua qualidade de detective amador. A estas horas já deve haver algo de novo.
Logo que os dois visitantes, o bípede e o quadrúpede, desapareceram, o padre Brown voltou a pegar na caneta e a retomar a sua ocupação, que era fazer o plano de uma série de conferências acerca da Encíclica Rerum Novarum. O tema era vasto e ele teve de refundir o que escrevera por mais de uma vez. Assim, continuava entregue à mesma ocupação passados dois dias quando o enorme cachorro preto lhe entrou pela casa dentro e lhe veio pôr as patas nos ombros, cheio de entusiasmo e excitação. O dono que o seguia vinha também excitado, mas não de entusiasmo. A sua excitação manifestava-se de um modo bem menos agradável, pois os seus olhos azuis pareciam querer saltar nas órbitas e o seu rosto estava pálido.
- O senhor disse-me - começou ele abruptamente, sem preâmbulo - que fosse ver o que andava a fazer Harry Druce. Poi: quer saber o que ele fez?
O padre não respondeu e o rapaz prosseguiu, aos arrancos:
- Vou dizer-lhe o que ele fez. Matou-se.
O padre Brown moveu os lábios lentamente, a murmurar qualquer coisa que praticamente nada tinha com aquela história ou com o nosso mundo.
- O senhor à vezes causa-me arrepios - declarou Fiennes. -O senhor... estava à espera disto?
- Pensei que era possível - confessou o padre Brown -, por isso aconselhei a ir ver o que ele andava a fazer. Esperava que você não chegasse tarde de mais.
- Eu é que o descobri - murmurou Fiennes com voz rouca. - Foi a coisa mais horrorosa que vi até hoje. Entrei de novo naquele jardim e fui por ali fora, sentindo que havia ali qualquer coisa de estranho e diferente, para além do crime. As flores continuavam a florir de ambos os lados da entrada escura da velha estufa, mas as flores azuis só me lembravam demónios a dançarem em frentt de uma negra caverna do submundo. Olhei em redor e tudo me pareceu estar nos seus devidos lugares. No entanto, aquela sensação estranha aumentava dentro de mim, a ponto de me dar aimpressão de que o próprio céu estava diferente. Então, de súbito, vi o que era. A Rocha da Fortuna costumava erguer-se por detrás da seb( do jardim em frente ao mar. Mas a Rocha da Fortuna desaparecera.
O padre Brown ergueu a cabeça, muito atento.
- Para mim foi como se uma montanha tivesse saído de uma paisagem ou a Lua tivesse caído do céu; muito embora eu soubesse que em qualquer altura bastaria um empurrão para que isso acontecesse. Qualquer coisa me impeliu então de desatar a correr e transpor a sebe, como se esta fosse uma teia de aranha. Na realidade, era uma sebe pouco espessa, muito embora o seu ar bem cuidado fizesse que desempenhasse o papel de um muro. Na praia deparou-se-me o rochedo caído por terra e, debaixo dele, o pobre do Harry Druce. Tinha um dos braços a rodear a pedra como que num abraço. Ao lado, sobre a areia, escrevera em grandes letras as palavras: "A Rocha da Fortuna cai em cima do louco."
- Isso tudo foi culpa do testamento do coronel - observou o padre Brown. - O rapaz estava certo de vir a beneficiar com o facto de Donald ter caído em desgraça, sobretudo depois de o tio o ter mandado chamar ao mesmo tempo que o advogado e o ter recebido tão calorosamente. Sem isso estava perdido; perdera o seu lugar na polícia; ficara sem vintém em Monte Carlo. Então suicidou-se ao verificar que matara o tio sem proveito nenhum.
- Escute! Espere aí!-gritou Fiennes. - O senhor vai depressa de mais!
- A propósito, já que falámos do testamento - prosseguiu o padre Brown -, e antes que me esqueça, ou que falemos de outros assuntos mais importantes, penso que há uma explicação muito simples para aquele caso do nome do médico. Tenho a impressão de que já ouvi algures aqueles dois nomes. O doutor é, na verdade, um nobre francês com o título de marquês de Villon. Mas é, ao mesmo tempo, um republicano convicto, que largou o título e retomou o velho apelido da família. "Com o caso do vosso cidadão Riquetti, vocês intrigaram a Europa durante dez dias.
- Que vem a ser isso? - inquiriu o jovem, admirado.
- Não interessa - redarguiu o padre. - Na maioria dos casos a mudança de nome equivale a uma patifaria, mas, neste caso, representa uma atitude de fanatismo. Foi essa a razão do sarcasmo dele quando disse que os americanos não têm nomes para trocar, isto é, não possuem títulos. Hoje em dia, na Inglaterra, ninguém chama Mister Hartington ao marquês de Hartington, mas, em França, chamam M. de Villon ao marquês de Villon. Portanto, podemos considerar este caso como uma mudança de nome. Quanto à conversa em que se falava de matar alguém, acho que também isso era um ponto da etiqueta francesa. O médico falava em desafiar Floyd para um duelo e a rapariga tentava dissuadi-lo.
- Oh, estou aperceber - exclamou o rapaz, lentamente. - Agora percebo o que ela queria dizer.
- E a que se referia ela? - perguntou o padre, sorrindo.
- Bem - explicou o rapaz -, tratava-se de uma coisa que sucedera pouco antes de eu ter descoberto o corpo daquele infeliz; foi essa catástrofe que me fez esquecer isso. Acho que é difícil pensarmos num idílio romântico quando nos encontramos em plena tragédia. Mas quando eu ia a descer o caminho que levava à mansão do coronel cruzei-me com a filha deste, que vinha a passear com o Dr. Valentine. Estava vestida de luto, quanto a ele andava sempre de preto, como se fosse para um enterro. No entanto, nunca tinha visto duas pessoas com um ar mais radioso e feliz. Pararam para me cumprimentar e então participaram que se tinham casado e estavam a morar numa casinha nos arredores da cidade, onde o médico tinha a sua clientela. Isto surpreendeu-me, pois eu sabia que o pai dela lhe havia deixado a mansão; aludi delicadamente a isso, dizendo que me dirigia a casa do pai dela e que esperara encontrá-la ali. Porém, ela riu-se e respondeu:
""Oh, eu larguei tudo isso. O meu marido não gosta de herdeiras ricas!"
"Descobri então, com algum espanto, que eles haviam insistido em restituir a propriedade ao pobre Donald; portanto, espero que ele caia em si e trate de a conservar bem. O problema dele não era grave. Não passava de um rapaz muito novo e o pai mostrara-se pouco compreensivo quanto a isso. Mas tudo isto relacionava - se com aquilo que ela dissera e que eu, então, não tinha percebido; agora estou certo de que o senhor tinha razão. Ela afirmou com uma espécie de súbita e admirável arrogância, toda altruísta:
""Espero que isto faça que aquele ruivo estúpido deixe de se preocupar com o testamento. Será que ele julga o meu marido capaz de assassinar um velho senhor na sua estufa por causa de uma herança destas, ele que renunciou, só por uma questão de princípios, a um escudo e a uma coroa tão antigos como as Cruzadas?" Depois voltou a rir e acrescentou: "O meu marido não mata ninguém, a não ser na sua profissão. Ele nem sequer diz aos amigos que apareçam lá pelo consultório..." Agora percebo o que ela queria dizer.
- Claro, eu agora também a percebo, em parte. Mas o que significa isso de o secretário estar preocupado com o testamento?
Fiennes sorriu e respondeu:
- Só queria que o senhor conhecesse aquele secretário, padre Brown. Havia de ver como ele consegue pôr tudo a "mexer", como ele diz. Pôs toda a casa enlutada a mexer. Dirigiu o enterro com tanta energia e entusiasmo como se se tratasse de um acontecimento desportivo. Nada o consegue deter, em qualquer circunstância. Já lhe disse como ele dava ordens ao jardineiro acerca do modo de tratar o jardim, e como ensinava leis ao advogado. Escusado será dizer que também dava sentenças ao médico em questões de medicina, e como acontece que esse médico era o Dr. Valentine, era inevitável que ele o acusasse de qualquer coisa mais grave que o facto de não perceber nada de medicina. Ele meteu naquela sua cabeça ruiva que o médico é que tinha cometido o crime e, quando a polícia chegou, fez o seu brilharete. Apresentou-se logo ali como o maior dos detectives amadores. Nunca Sherlock Holmes deu maiores lições à Scotland Yard com tamanho ar de superioridade e desprezo como o secretário particular do coronel Druce deu à polícia na investigação deste assassínio. Digo-lhe que aquilo foi um gozo! O tipo passeava-se com um ar abstracto, a abanar as guedelhas ruivas, enquanto ia proferindo respostas secas e impacientes. Foi, de facto, esta atitude dele nos últimos dias que irritou tanto a filha de Druce. A teoria dele era aquela que se vê nos livros e ele só parecia uma personagem de ficção. Se assim fosse teria a sua graça e não chateava ninguém.
- E então qual é a teoria dele? - perguntou o padre.
- Tinha muita piada - replicou Fiennes, carrancudo. - Teria muito êxito se não caísse logo por terra passados dois minutos. Afirmava que o coronel devia estar ainda vivo quando o encontraram caído na estufa e que o médico é que acabara com ele com um instrumento cirúrgico ao fingir que lhe cortava a roupa.
- Compreendo - murmurou o padre. - Pelos vistos o coronel encontrava-se deitado de bruços, como quem dorme a sesta.
- É espantoso o que pode fazer a pressa! - prosseguiu Fiennes. -Penso que Floyd teria conseguido levar a sua teoria para os-jornais e, de qualquer maneira, faria que o médico fosse levado a tribunal se tudo não tivesse caído por terra com a descoberta do cadáver que jazia debaixo da Rocha da Fortuna. E assim chegámos a esta conclusão. Considero o suicídio como uma confissão. Mas a história completa, essa nunca virá a saber-se.
Seguiu-se um silêncio e depois o padre declarou num tom modesto:
- Eu penso que sei como tudo se passou.
Fiennes arregalou os olhos:
- Escute lá! - exclamou ele -, como é que conseguiu saber toda a história, ou sequer ter a certeza de que essa versão é a verdadeira? O senhor tem estado sempre aqui, a léguas de distância, muito sossegado a escrever um sermão; e vem dizer-me que já sabe como tudo se passou? Se chegou a uma conclusão, de onde é que partiu? Que foi que lhe deu a pista?
O padre Brown pôs-se em pé de um salto, com um entusiasmo desusado, e exclamou:
- Foi o cão! Claro que foi o cão! Vocês teriam visto logo a solução a partir do comportamento do animal na praia, se acaso o tivessem observado como deve ser. - Fiennes mostrava-se cada vez mais perplexo:
- Mas o senhor declarou-me logo no princípio que era disparate o que eu dizia acerca do cão, que ele nada tinha a ver com o caso...
- O cão tinha tudo a ver com o caso se vocês o tivessem considerado como um simples cão e não como Deus Todo-Poderoso a julgar a alma dos homens.
Calou-se por momentos, como que atrapalhado, e depois prosseguiu num tom comovente de conciliação:
- Acontece que eu, por acaso, tenho uma predilecção especial pelos cães. E afigura-se-me que, no meio de todas estas complicadas superstições, ninguém se estava a preocupar com o pobre do bicho. Comecemos por um ponto muito insignificante que é o facto de ele ter ladrado ao advogado ou rosnado ao secretário. Você perguntou-me como é que eu podia adivinhar coisas encontrando-me a léguas de distância; mas a verdade é que o mérito é todo seu, uma vez que me descreveu tão bem os personagens que eu fiquei a conhecê-los. Um homem do tipo de Traill, sempre carrancudo mas dado a sorrir repentinamente, que está sempre a mexer com as mãos, sobretudo a brincar com as coisas que traz ao pescoço, é um sujeito nervoso, que se atrapalha facilmente. Não me admirava nada que esse secretário, tão eficiente, fosse também nervoso e assustadiço; é muito frequente nesses americanos espertalhões. Se assim não fosse, não teria cortado os dedos com a tesoura de podar, que atirou ao chão quando ouviu o grito de Janet Druce. Ora os cães não gostam nada de pessoas nervosas. Não sei se se sentem também nervosos junto delas. Ou se, apesar de irracionais, são um pouco fanfarrões; ou então se ficam simplesmente ofendidos na sua vaidade canina, que é enorme, por essas pessoas não gostarem deles. Seja como for, não havia outro motivo para o pobreNox protestar contra essas criaturas, a não ser o facto de as não estimar por saber que tinham medo dele. Ora eu sei que você é muito inteligente e ninguém sensato o pode censurar por excesso de inteligência, mas, por vezes, penso que é demasiado inteligente para compreender os animais. Eles são muito terra-a-terra. Vivem num mundo de tuísmos. Veja este exemplo: um cão ladra a um homem e o homem foge do cão. O senhor não é suficientemente simples para perceber o facto: o cão ladrou porque não gostava do homem e o homem fugiu porque teve medo do cão. Nenhum deles tinha outros motivos nem eram precisos; mas o senhor viu aí razões psicológicas misteriosas e achou que o cão possuía uma visão sobrenatural e fazia parte de um conjunto de fatalidades. Decerto julgou que o homem ia a fugir não do animal mas sim do carrasco. E contudo, se pensar bem, todas essas presunções psicológica são altamente improváveis. Se o cão tivesse faculdades de reconhecer o assassino do seu dono não se limitaria a rosnar-lhe como figura estranha à casa. O mais provável seria saltar-lhe ao pescoço. Por outro lado, acha posssível que um homem de espírito tão frio que fosse capaz de assassinar um velho amigo e depois continuasse a sorrir para a família e para a filha deste se iria impressionar só porque um cão lhe ladrou? Pode ver nisso uma trágica ironia, que ele arreda do seu espírito como qualquer outra trágica ninharia. Mas nunca desataria a correr pelo jardim fora a fugir da única testemunha que ele sabe não ser capaz de falar. As pessoas costumam entrar em pânico quando receiam, não pequenas ironias, pequenos pormenores trágicos deste género mas sim quando têm medo dos dentes de um cão. Tudo isto é muito mais simples do que você pode imaginar. Porém, quanto ao que se passou junto à praia, as coisas tornam-se muito mais interessantes. Da maneira como você as relatou, eram até muito intrigantes. Eu não percebia essa história de o cão andar a sair e a entrar na água; isso não era um comportamento muito próprio desses animais. Se Nox estivesse preocupado com outra coisa qualquer ter-se-ia recusado pura e simplesmente a ir buscar o pau que lhe atiravam. Teria corrido a farejar noutra direcção onde pressentisse que havia sarilho. Mas quando um cão vai atrás de qualquer coisa, seja um pau, seja uma pedra, seja um coelho, a minha experiência diz-me que nada o faz parar, a não ser uma ordem severa do dono, e, por vezes, nem mesmo isso. Que ele volte costas porque lhe dá na real gana, a mim afigura-se-me impensável.
- No entanto, foi o que ele fez! Veio-se embora sem a bengala.
- Veio-se embora sem a bengala porque tinha muito boas razões para isso - replicou o padre. - Veio-se embora porque não conseguiu encontrá-la. E essa uma das razões porque os cães costumam ganir. O cão é um ser altamente ritualista. É tão exigente na repetição exacta de uma brincadeira como o é uma criança na repetição exacta de uma história de fadas. Neste caso, passava-se algo de estranho com a brincadeira. O animal queixava-se seriamente da maneira como a bengala se comportava. Tal coisa nunca havia acontecido antes. Nunca um animal tão respeitável como ele fora assim desconsiderado por uma miserável bengala!
- Mas então... que fizera a bengala? - inquiriu o rapaz.
- Afundara-se! - explicou o padre Brown.
Fiennes não replicou, mas continuou a olhar, muito sério. E foi o padre quem prosseguiu:
- Afundara-se porque não era uma bengala vulgar, mas sim uma vara de aço, metida numa bainha de cana, e com a ponta muito aguçada. Por outras palavras, tratava-se de uma bengala-espada. Penso que nunca nenhum assassino se desfez da arma do crime de um modo tão estranho e ao mesmo tempo tão natural; atirando-a ao mar para que um cão lha viesse trazer.
- Começo a perceber onde o senhor quer chegar - confessou Piennes. - Mas muito embora tenha sido utilizada essa tal bengala-espada, não consigo descobrir como isso foi feito.
- Comecei a descobrir logo no princípio, quando o meu amigo falou numa estufa - explicou o padre Brown. - E depois quando-me disse que Druce trazia um casaco branco. Uma vez que toda a gente andava à procura de um punhal curto ninguém pensava nisso; mas se admitirmos a existência de uma lâmina mais comprida, jáé possível.
O padre recostou-se para trás e começou a falar como quem recapitula:
. - Toda essa conversa acerca de histórias policiais tais como o Mistério do Quarto Amarelo, em que há um homem assassinado numa sala fechada onde ninguém podia penetrar, não se aplica ao caso presente, uma vez que aqui se trata de uma estufa. Quando falamos do quarto amarelo ou de qualquer outro quarto, partimos do princípio de que as paredes são homogéneas e impenetráveis. Uma estufa, porém, não é construída assim. Muitas vezes, como é o caso presente, é feita de ramos entrelaçados e ripas de madeira, com fendas aqui e ali. Era precisamente diante de uma dessas fendas que Druce se encontrava sentado, de costas para a parede. E como ele estava numa estufa, a cadeira devia ser também de verga. Também ela composta de vimes entrelaçados. E, por fim, a estufa estava situada mesmo por debaixo da sebe. Foi você que me disse que a sebe era pouco espessa. Lá de fora era possível a um homem distinguir, através do entrelaçado dos ramos e dos vimes, a mancha clara do casaco do coronel, tão distintamente como se fosse o centro de um alvo. Aqui você não me explicou bem a geografia, mas foi-me fácil deduzir. Disse-me que a Rocha da Fortuna não era muito alta. Mas que dali se podia dominar o jardim como do cimo de uma montanha. Por outras palavras, ela ficava muito perto do extremo do jardim, embora o vosso passeio vos tivesse levado bastante longe para lhe dar a volta. Também achei pouco provável que a rapariga tivesse gritado tão alto a ponto de se ouvir à distância de meia milha. Ela soltou um grito involuntário, e, no entanto, vocês ouviram-no na praia. Além disso, entre outras coisas interessantes, você afirmara que Harry Druce tinha ficado para trás a fim de acender o cachimbo ao abrigo da sebe.
Fiennes teve um leve estremecimento, ao dizer:
- Acha então que ele puxou da espada e a introduziu pela sebe dentro até atingir a mancha branca do casaco. Além do mais, ele ainda nem tinha a certeza de que o dinheiro do velho lhe vinha parar às mãos, o que, na verdade, nunca chegou a acontecer.
A expressão do padre Brown animou-se:
- Você não conta com a maneira de ser do sujeito - declarou, como se porventura o tivesse conhecido de perto. - Era um tipo curioso, mas vulgar. Se ele soubesse, de facto, que o dinheiro viria a ser dele, talvez nunca tivesse feito isto. Teria percebido que era um acto vil.
- Não lhe parece isso um paradoxo?
- O sujeito era um jogador - replicou o padre. - Estava desgraçado porque assumira compromissos e antecipara ordens. Devia tratar-se de algo muito desonesto, pois a polícia das colónias é mais semelhante à polícia secreta da Rússia. Ele fora longe de mais e falhara. Ora, tratando-se deste tipo de homem, a tentação de cometer uma loucura foi demasiado forte, porque o risco é maravilhosamente aliciante. Ele quer poder dizer de si para si: "Só eu seria capaz de agarrar esta ocasião pelos cabelos. Que estupenda visão eu tive ao imaginar tudo isto! Donald está na mó de baixo; o tio mandou chamar o advogado, ao mesmo tempo que nos convocou, ao Herbert e a mim, e bastava só ver a maneira como o velhote me sorriu e me apertou a mão! Não vai passar pela cabeça de ninguém que eu seja tão louco que me arrisque a uma coisa destas; mas é assim que as fortunas se fazem, com homens dotados de uma grande antevisão." Numa palavra, trata-se de uma questão de vaidade. A megalomania do jogador. Quanto mais incongruente for a coincidência, e mais súbita a decisão, mais pronto ele está a aproveitar a oportunidade. O simples acaso de avistar a mancha clara do casaco através da sebe embriagara-o como se aquilo representasse o seu destino. Uma pessoa tão inteligente para perceber semelhante conjugação de factos não poderia ter a cobardia de os não aproveitar! É assim que o Demónio tenta o jogador. Mas o próprio Diabo hesitaria em levar aquele infeliz a cometer o assassínio de um tio velho de quem ele esperara herdar, de uma maneira vulgar e comezinha. - Calou-se um momento e depois prosseguiu com uma certa ênfase: - Tente agora reconstituir a cena, muito embora tenha assistido a ela pessoalmente. Enquanto o homem estava embriagado com a visão desta diabólica oportunidade, ergueu os olhos e viu aquele estranho contorno que podia muito bem representar a imagem da sua alma vacilante: a gigantesca laje poisada sobre outra qual pirâmide invertida. E logo se recordou que lhe chamavam Rocha da Fortuna. Imagine-se que o tipo, em semelhante momento, viu naquilo um sinal! Penso que foi isso que o instigou a agir e até mesmo a estar vigilante. Ele era uma fortaleza, não podia deixar-se ir abaixo. Fosse como fosse, agiu. O problema agora era apagar os vestígios. Se encontrassem na sua espada uma bengala-espada, sobretudo manchada de sangue, ao fazerem a busca que decerto se seguiria, estava perdido. Se a abandonasse ali, decerto seria encontrada e identificada. Se a atirasse logo ao mar, esse seu gesto seria notado... a não ser que se lembrasse de qualquer maneira bastante natural de o camuflar. "Como sabe, ocorreu-lhe logo uma, deveras excelente. Uma vez que só ele trazia relógio, declarou que era ainda cedo para regressarem a casa, andou um pouco mais para a frente e começou a atirar paus ao mar para o cão lhos vir trazer. Mas calculo que deve ter percorrido com os olhos angustiados aquela praia desolada até se lhe deparar o cão...
Fiennes abanou a cabeça, pensativo, a olhar no vácuo. Parecia reflectir numa parte menos prática da narrativa. Até que murmurou:
- É engraçado como afinal o cão acaba por entrar na história.
- O cão quase podia contar ele a história, se soubesse falar - afirmou o padre. - O mal é que, uma vez que ele não sabia falar, você o fez falar, emprestando-lhe a linguagem dos anjos e dos homens. Isso faz parte de um fenómeno que eu venho a observar cada vez com mais frequência no mundo moderno, nas notícias dos jornais e nas conversas que escuto; algo que é muito arbitrário e carece de provas. As pessoas engolem facilmente tudo o que lhes apresentam sem estar comprovado. É uma atitude que está a submergir o nosso velho racionalismo e cepticismo, que avança como uma onda e tem o nome de superstição. -Pôs-se subitamente em pé, com o sobrolho franzido e no rosto uma expressão severa, e continuou a falar, como se estivesse sozinho: - Isto é o resultado de não se acreditar em Deus. Perde-se o senso comum e não se vêem as coisas tal como são. Tudo aquilo de que se fala e é apresentado como um bom presságio, fica imediatamente aceite. O cão é um anunciador de tragédias, o gato é um mistério, o porco é uma mascote, o percevejo é um escaravelho e tudo se refere ao conjunto de animais do politeísmo do Egipto e da velha índia: o cão Anúbis, o enorme Pashí, de olhos verdes, os toiros sagrados de Bashan; retrocedemos aos deuses bestiais da Antiguidade que se escondiam dentro de elefantes, cobras e crocodilos. E tudo isto porque temos medo destas palavras: "Ele foi feito Homem."
O rapaz pôs-se de pé, pouco à vontade, como se tivesse ouvido alguém a falar só para si. Chamou o cão e saiu da sala após uma despedida vaga, mas um pouco agitada. Teve porém de voltar para chamar o cão, que se quedara um momento imóvel, a fitar o padre Brown, tal como o lobo fitara S. Francisco.
O MILAGRE DE MOON CRESCENT
Moon Crescent fora concebido, em certo sentido, para ser tão romântico como o seu nome, e as coisas que lá aconteceram foram, no seu género, bastante românticas. Pelo menos, constituíram uma expressão do sentimento histórico e quase heróico que conseguiu sobreviver lado a lado com o comercialismo nas velhas cidades da costa leste da América. Na sua origem, tratava-se de uma curva de edifícios de arquitectura clássica, a recordar essa atmosfera do século XVIII, na qual certas figuras, tais como Washington e Jefferson, davam a impressão de serem demasiado republicanos para aristocratas. Os turistas, a quem era costume perguntar-se o que pensavam da nossa cidade, referiam-se, frequentemente, nas suas respostas, àquilo que os impressionara em Moon Crescent. Os próprios contrastes que lhe alteram a harmonia original são responsáveis pela sua sobrevivência. Numa das extremidades, ou ponta do crescente, as últimas janelas deitam para um recinto, uma espécie de parque senhorial, com árvores e sebes tão clássicas como um jardim do estilo Queen Anne. Mas logo ao voltar da esquina as outras janelas, talvez até pertencendo aos mesmos quartos ou, melhor, "apartamentos", têm como cenário a parede lisa e feia de um armazém que pertence a uma indústria qualquer. Os apartamentos de Moon Crescent, naquela extremidade, foram transformados no estilo monótono dos hotéis americanos e erguem-se a uma altura que, embora inferior à do gigantesco armazém, seriam considerados em Londres autênticos arranha-céus. Porém, a fita de arcadas que correm ao longo da frontaria que deita para a rua apresentam uma tonalidade cinzenta, manchada pelas intempéries, que evoca os Pais da República a deambular ainda por ali. No entanto, o interior das salas era tão moderno e impecável quanto é possível a uma instalação dotada com o mais moderno equipamento de Nova Iorque. Sobretudo aquela parte situada entre o jardim bem cuidado e a nnrede do armazém. Tratava-se de pequenos apartamentos, como se diz em Inglaterra, e constavam de uma sala, quarto de dormir e casa de banho tão semelhantes uns aos outros como os favos de uma colmeeia. No interior de um deles encontrava-se sentado à secretária o célebre Warren Wynd, a seleccionar cartas e a ditar ordens com incrível rapidez e eficiência. Fazia lembrar um furacão.
Warren Wind era um homenzinho baixo, de cabelos soltos e grisalhos, com um ar frágil mas extremamente activo. Possuía uns olhos maravilhosos, mais brilhantes que as estrelas e mais fortes que ímanes. Quem os visse uma vez dificilmente os esqueceria. Contavam-se inúmeras histórias, lendas, até, acerca da rapidez com que ele era capaz de emitir um juízo acertado, sobretudo acerca do carácter humano. Dizia-se que escolhera a esposa, que trabalhava com ele havia tanto tempo nas suas obras de caridade, ao vê-la passar num desfile de mulheres fardadas por ocasião de uma qualquer cerimónia oficial. Havia quem afirmasse que se tratava de escuteiras, outros de mulheres-polícias. Contava-se também a história de três vagabundos, igualmente imundos e vestidos de andrajos, que o haviam procurado para pedir uma esmola. Sem um momento de hesitação ele mandara um deles para um certo hospital onde tratavam doenças nervosas. Ao segundo deu-lhe uma recomendação para uma casa de desintoxicação de alcoólicos; e ao terceiro tomara-o ao seu serviço como criado particular, a ganhar um belo ordenado, lugar este que o homem desempenhava impecavelmente havia muitos anos. Falava-se também, claro está, em toda uma série de respostas prontas e críticas mordazes que lhe eram atribuídas nas suas entrevistas com Roosevelt, Henry Ford, Asquith e outras personalidades com quem um homem público americano tem forçosamente de manter contactos históricos, quanto mais não seja através dos jornais. É evidente que ele nunca se sentiria diminuído em presença de tais personagens; no momento que nos interessa prosseguia calmamente a sua distribuição centrífuga de papelada, muito embora o homem que estava na sua frente fosse também uma personagem de importância quase igual às outras a que nos referimos.
Silas T. Vandam, milionário e magnata do petróleo, era um homenzinho magro, de rosto comprido e pálido e cabelos de um negro-azulado, cores estas que se notavam menos porque o seu rosto se encontrava em contra-luz, na frente da janela e da parede branca do armazém lá de fora. Trazia um elegante sobretudo abotoado de cima para baixo, com gola de astracã. Em contrapartida, o rosto vivo e os olhos brilhantes de Wynd encontravam-se em plena luz, luz essa que vinha da outra janela sobranceira ao pequeno jardim, em frente da qual ficava a sua secretária; embora a expressão dele fosse preocupada, a causa disso não era de modo algum a presença do milionário. O escudeiro ou criado particular de Wynd, um sujeito alto e forte, de cabelos loiros e lisos, encontrava-se atrás da cadeira do amo, segurando um molho de cartas; o secretário particular, um jovem ruivo, de feições aguçadas, poisara já a mão na maçaneta da porta, como que a adivinhar uma ordem do patrão. A sala encontrava-se, não só numa ordem perfeita mas até mesmo austera, quase vazia, uma vez que Wynd, na sua preocupação característica de manter tudo impecável, tomara de aluguer o andar superior, que transformara em casa de arrumação. Era aí que ele guardava toda a sua papelada e mais pertences, metidos em caixotes e fardos, atados com cordéis.
- Dá isso ao contínuo, Wilson - disse Wynd ao criado que lhe vinha entregar as cartas. - E depois vá-me buscar a pasta sobre os Clubes Nocturnos de Minneapolis; deve estar no pacote marcado com a letra "G". Vou precisar dela daqui a meia hora, mas antes disso não me incomodem. Ora bem, Sr. Vandam, acho que a sua proposta parece muito prometedora; mas só lhe posso dar uma resposta definitiva depois de ver os relatórios. Devo recebê-los amanhã à tarde e telefono-lhe logo. Lamento não poder dizer nada de mais concreto por agora.
Vandam pareceu tomar estas palavras como uma despedida cerimoniosa e a expressão do seu rosto macilento e soturno revelava que ele considerava o facto com uma certa ironia.
- Bem, nesse caso, acho que vou andando - murmurou.
- Foi grande amabilidade sua ter vindo cá - retorquiu delicadamente Wynd. - Desculpe não o acompanhar, mas tenho aqui um assunto que preciso de resolver já. Fenner - acrescentou, dirigindo-se ao secretário -, acompanhe o Sr. Vandam até ao carro e só volte dentro de meia hora. Tenho aqui um caso que quero resolver sozinho; depois vou precisar de si.
Os três homens saíram para o corredor, fechando a porta. O corpulento criado Wilson dirigia-se para o gabinete do contínuo e os outros dois caminhavam na direcção do elevador, pois o apartamento de Wynd situava-se no décimo quarto andar. Mal tinham dado alguns passos quando se aperceberam de uma figura imponente que avançava pelo corredor. Tratava-se de um homem alto, de ombros largos, cuja corpulência se tornava mais evidente pelo facto de vir vestido de branco, ou quase, um cinzento muito claro, com um enorme chapéu panamá também branco e uma espessa franja ou auréola de cabelos da mesma cor. Enquadrado por essa franja, o seu rosto era de feições vincadas e agradáveis, como as de um imperador romano, com excepção do ar travesso, quase infantil, que se divisava no brilho dos olhos e na beatitude do sorriso.
- O Sr. Warren Wyn está? - perguntou amavelmente.
- O Sr. Warren Wynd está ocupado - respondeu Fenner. - Não quer ser incomodado seja por que motivo for. Mas eu sou o secretário dele e posso entregar-lhe qualquer recado.
- O Sr. Warren Wynd não pode receber ninguém, nem que seja o papa ou qualquer cabeça coroada? - acrescentou Vandam, o magnata do petróleo, com azeda ironia. - O Sr. Warren Wynd é muito esquisito. Estive com ele para lhe oferecer a bagatela de vin te mil dólares, mediante certas condições, e ele respondeu-me que voltasse cá, como se eu fosse um simples moço de recados.
- É muito bom ser-se moço - retorquiu o estrangeiro -, é melhor ainda ter um recado para dar; eu tenho um que ele tem de ouvir. É um recado que vem das belas e grandes terras do Oeste onde se está forjando o verdadeiro americano, enquanto vocês todos por aqui andam a dormir! Diga-lhe só que o Art Alboin, da cidade de Oclaoma, veio cá para o converter.
- Já lhe disse que ele não recebe ninguém - tornou severa mente o ruivo secretário. - Deu ordens para que ninguém o perturbasse antes de meia hora.
- Vocês todos, cá para o leste, não gostam de ser incomodados - retorquiu com bonomia Albouin -, mas presumo que se está levantar uma brisa do Oeste que os vai incomodar. Ele deve ter estado a calcular quanto dinheiro pode ser absorvido por esta velha e chata religião; mas eu garanto-vos que todo o sistema que põe ao lado o novo movimento do Grande Espírito, no Texas e em Oclaoma, renega a religião do futuro.
- Oh, conheço de gingeira essas religiões do futuro! - respondeu com desprezo o milionário. -Já as passei todas a pente fino e são mais que as mães! Havia uma mulher que dizia chamar-se Sofia; devia ter-se chamado Safira, acho eu. Que grande intrujona. Era ela quem puxava todos os cordelinhos. Havia também aquele trupe da Vida Invisível; diziam ser capazes de desaparecer sempre que quisessem. E desapareceram, de facto, e com eles desapareceram cem mil dólares que me pertenciam. Conheci o Júpiter Jesus lá em Denver; contactei com ele semanas a fio; não passava de um vulgar patife. Tal como o Profeta da Patagónia. Ia apostar que ele se pôs a mexer para a Patagónia! Não, cá por mim estou farto dessas coisas. Presentemente, só acredito naquilo que vejo. Creio que é a isto que chamam ser ateu.
- Parece-me que o senhor se engana a meu respeito - respondeu quase com vivacidade o homem de Oclaoma. - Acho que sou tão ateu como o senhor. No nosso movimento não existe nada de sobrenatural ou qualquer superstição; apenas a pura ciência. A única e verdadeira ciência é a saúde e a única e verdadeira saúde é a capacidade de respirar. Encha os pulmões com o ar puro das planícies e ficará com forças para deitar ao mar, com um sopro, todas as cidades do Leste e os seus homens, como se fossem flores de cardo. É isso o que fazemos lá na nossa terra: respiramos, não rezamos. Respiramos!
- Bem - respondeu enfadado o secretário. - Acredito. - Tinha um rosto inteligente, que mal conseguia esconder o enfado, mas escutou os dois monólogos com admirável paciência e boa educação, tão ao contrário da tradicional impaciência e insolência com que tais discursos costumam ser acolhidos na América.
- Nada de sobrenatural - prosseguia Alboin -, apenas o prodigioso facto natural que se encontra por detrás de todas as fantasias sobrenaturais. Para que é que os judeus querem um Deus senão para que Ele instile nas narinas dos homens o sopro da vida? Lá, em Oclaoma, somos nós que respiramos com o nosso próprio nariz. Qual é o significado da palavra "Espírito"? Apenas o termo grego que quer dizer exercícios respiratórios. A vida, o progresso, a profecia, tudo é respiração.
- - Há quem diga que é tudo vento - observou Vandam -, mas folgo em saber que o senhor se libertou desse fardo incómodo da divindade.
O rosto expressivo do secretário, pálido sob a cabeleira ruiva, revelou por momentos um estranho sentimento de amargura e disse:
- - Eu não folgo em saber isso. O que tenho é uma certeza. Vocês, pelos vistos, gostam de ser ateus; por isso só acreditam naquilo que querem acreditar. Mas quem me dera a mim que existisse um Deus! Só que ele não existe, pouca sorte minha!
Nesse momento, sem que se ouvisse qualquer som ou sussurro, todo o grupo reunido em frente da porta do Sr. Warren Wynd se apercebeu, com um calafrio que já não eram três, mas sim quatro pessoas que ali estavam. Há quanto tempo se achava ali aquela quarta figura, nenhum deles saberia dizê-lo, mas dava a impressão de que ela esperava respeitosa e até timidamente a oportunidade de dizer qualquer coisa importante. Contudo, dada a sensibilidade nervosa dos outros três, era como se ela tivesse brotado de repente, como um cogumelo. De facto, havia nela uma certa semelhança com um enorme cogumelo negro. Tratava-se de um homenzinho baixo e atarracado, quase totalmente escondido por um enorme chapéu preto de eclesiástico; a semelhança seria mais completa se os cogumelos costumassem trazer consigo um guarda-chuva, velho e deformado.
Fenner, o secretário, sentiu-se duplamente surpreendido ao verificar que se tratava da figura de um padre; mas quando este voltou para ele um rosto redondo sob o chapéu igualmente redondo e perguntou ingenuamente pelo Sr. Warren Wynd, respondeu com a costumada negativa, um pouco mais seca que o costume.
- O que eu quero é ver o Sr. Wynd - explicou o padre. - Pode parescer estranho, mas é isso mesmo que eu pretendo. Não quero falar-lhe, só quero vê-lo. Só quero saber se ele cá está e se pode ser visto.
- Pois bem, eu posso dizer-lhe que ele está aqui, mas não pode ser visto - retorquiu Fenner, cada vez mais aborrecido. - Que quer o senhor dizer com isso, de pretender saber se ele pode ser visto? Claro que ele está aqui. Deixámo-lo há cinco minutos e temos estado sempre diante desta porta.
- Pois, o que eu quero é saber se ele está bem - tornou o padre.
- Porquê? - interrogou o secretário, já furioso.
- Porque tenho para isso um motivo muito sério, direi mesmo solene - explicou gravemente o padre. - Acho que vos posso pedir o favor de me deixarem espreitar pela greta da porta antes de eu contar toda a história.
Calou-se um momento, como que a reflectir, e depois prosseguiu, sem se dar conta dos rostos admirados que o rodeavam:
- Vinha eu a caminhar em frente das arcadas quando avistei um homem andrajoso que dobrou a esquina a correr, lá ao fundo. Quando passou por mim vi que era um sujeito esquelético, uma cara que não me era estranha. Era o rosto de um desgraçado irlandês que eu tinha ajudado em tempos; não vou dizer como se chamava. Deteve-se ao ver-me, chamou pelo meu nome e disse:
""Santo Deus! É o padre Brown! Só o senhor é que conseguiria hoje assustar-me!" Percebi logo que ele acabava de fazer alguma asneira, mas acho que não foi grande o susto que lhe preguei, pois não tardou que me dissesse do que se tratava. E foi uma história muito estranha a que me contou. Perguntou se eu conhecia Warren Wynd. Disse-lhe que não, só sabia que ele morava no cimo deste prédio. Ele então declarou: "Esse sujeito julga-se um deus, mas se ele soubesse o que eu vou dizer a seu respeito era capaz de se enforcar." E repetia histericamente: "Sim, senhor, era capaz de se enforcar!" Perguntei se ele tinha feito algum mal a Wynd e a sua resposta foi: "Arranjei uma pistola, mas não a carreguei nem com bala nem com chumbo, mas sim com uma maldição." Pelo que consegui tirar dele, o sujeito tinha-se limitado a descer a viela entre o prédio e o armazém, com a pistola carregada de pólvora seca. Aí deu um tiro contra a parede, como se isso bastasse para fazer ruir o edifício. "Mas ao fazer isto", explicou ele, "roguei-lhe uma praga terrível, que a justiça de Deus o agarre pelos cabelos e a maldição do Inferno pelos calcanhares, para que fique feito em pedaços com um Judas e nunca mais ninguém saiba dele!" Bem, não interessa o que eu disse àquele infeliz para o apaziguar; ele foi-se embora um pouco mais calmo e eu dei a volta ao prédio para ver o que se passava. De facto, na estreita passagem junto à parede encontrei uma velha pistola toda ferrugenta; percebo o bastante de pistolas para verificar que esta havia sido car regada apenas com um pouco de pólvora; havia sinais escuros de pólvora e fumo sobre a parede e até a marca do cano, mas nada de vestígios de bala. Ele não deixara qualquer sinal de destruição a não ser as manchas escuras e a praga que rogara em face dos céus. Então vim até cá para saber do Sr. Warren Wynd e certificar-me de que ele se encontrava bem.
O secretário Fenner desatou a rir:
- Posso resolver já o seu problema e assegurar que ele está bem; deixámo-lo sentado à secretária, a escrever, há poucos minutos. Encontra-se sozinho no seu apartamento, que fica a trezentos metros acima da rua, e ele está num sítio que nunca poderia ser atingido por nenhum tiro, ainda que o seu amigo não tivesse disparado com pólvora seca. Este prédio não possui outra entrada além desta porta e nós não arredámos pé daqui.
- Seja como for - tornou o padre -, gostaria de ver com os meus olhos.
- Isso não é possível - retorquiu o secretário. - Cos diabos, não me diga que acredita em pragas!
- Você esquece - interveio o milionário com um certo ar de desprezo - que o negócio do reverendo consiste em benzeduras e pragas. Ora vamos, cavalheiro, se o homem foi vítima de uma maldição, porque não o abençoa para lha retirar? Qual a utilidade das suas benzeduras se elas não conseguem anular a praga de um irlandês desordeiro?
- Mas ainda haverá quem acredita em semelhantes coisas? - interrogou Westerner.
- Pelos vistos, o padre Brown acredita em muitas delas - interveio Vandam, que começava a sentir-se irritado com a recusa de ser recebido e agora com a conversa que se arrastava. - O padre Brown acredita que um eremita atravessou um rio montado num crocodilo que ele fez aparecer ali, por encanto, e ordenou que morresse, ao que o bicho obedeceu prontamente. O padre Brown acredita que um santo qualquer, depois de morto se dividiu em três cadáveres que foram distribuídos por três paróquias, como se cada uma delas fosse a terra natal do santo. O padre Brown acredita que um sujeito pendurou o seu manto num raio de sol e que outro fez dele um barco para atravessar o Atlântico. O padre Brown acredita que o jumento sagrado tinha seis patas e que a Casa do Loreto foi levada pelos ares. Ele acredita que cem virgens de pedra choram e pestanejam noite e dia. Para ele não tem nada de estranho um homem passar pelo buraco da fechadura ou desaparecer dentro de um quarto fechado. Pelo que julgo, ele não faz grande caso das leis da natureza.
- Seja como for, eu tenho de fazer caso das leis de Warren Wynd - declarou o secretário, mal humorado, e ele exige que o deixem sossegado quando assim o ordenar. Wilson pode confirmar aquilo que eu digo. - Nesse momento, o gigantesco contínuo que o patrão enviara para ir buscar o relatório atravessava calmamente o corredor com a pasta na mão e entrava na antecâmara. - Ele vai ficar sentado no banco junto à sua secretária a rodar os polegares até que o chamem, mas antes disso não entra. Nem eu, tão-pouco. Ambos sabemos perfeitamente quais são as nossas obrigações e seriam precisos muitos anjos e santos do padre Brown para que nós as esquecêssemos.
- Quanto aos anjos e aos santos... - ia a começar o padre Brown.
- Isso é tudo um disparate-repetiu Fenner. - Não quero ser desagradável, mas essas tretas são mais próprias para se relacionarem com catacumbas, claustros e outros lugares igualmente estranhos. Os fantasmas não conseguem atravessar a porta fechada de um hotel americano.
- No entanto, os homens são capazes de abrir uma porta mesmo num hotel americano - replicou pacientemente o padre Brown. - E a mim parece-me que seria mais simples o senhor abri-la agora.
- Seria tão simples que até me faria perder o emprego - retorquiu o secretário. - E Warren Wynd não gosta que os seus secretários sejam assim tão simples a ponto de acreditarem nas balelas em que o senhor parece acreditar.
- Bem - respondeu gravemente o padre -, é certo que acredito em bastantes coisas que o senhor provavelmente não admite. Mas seria demasiado longo explicar-lhe todas essas coisas e as razões por que acredito nelas. Enquanto a si bastariam dois segundos para abrir aquela porta e provar que eu estou errado.
Qualquer coisa nesta frase teve o condão de agradar ao temperamento vivo e irrequieto do homem do Oeste.
- Confesso que dava dinheiro para provar que o senhor está errado! - exclamou Alboin, caminhando rapidamente para a porta. - E é isso o que vou fazer.
Escancarou a porta da sala e olhou para dentro. Na primeira impressão viu-se logo que a cadeira de Warren Wynd estava vazia. E uma segunda inspecção revelou que a sala estava também deserta. Por sua vez, muito excitado, Fenner irrompeu pela sala dentro, dizendo secamente:
- Deve estar no quarto de dormir, sem dúvida.
Enquanto ele desaparecia no outro compartimento, os três homens ficaram a olhar em redor. A severidade e a simplicidade do mobiliário, que já haviam notado antes, impressionou-os agora como um desafio. Sem dúvida que naquele quarto não era possível esconder-se um rato, quanto mais um homem. Não havia cortinas, o que é raro numa decoração americana, e nem sequer um armario. A própria secretária era apenas uma mesa com uma gaveta pouco profunda e um tampo inclinado. As cadeiras eram de assento duro e costas direitas. Passado momentos o secretário regressou após haver inspeccionado os dois compartimentos interiores. Nos seus olhos lia-se uma negativa cheia de espanto e a sua boca movia-se, como que maquinalmente, a perguntar:
- Não o viram sair por aqui?
De certo modo os outros não viram necessidade de responder a esta pergunta negativa. O espírito deles encontrara pela frente algo semelhante à parede nua do armazém que avistavam pela janela do outro lado da rua e que ia passando lentamente do branco ao cinzento, à medida que o crepúsculo descia com a tarde. Vandam dirigiu-se ao peitoril, ao qual estivera encostado meia hora antes, e olhou para fora. Não havia ali nenhum cano nem escada de incêndio, nem cornija nem apoio de qualquer espécie na distância que o separava da rua, nem tão-pouco no espaço que subia muitos andares acima. Do outro lado, ainda menos, só a parede branca e lisa. Vandam olhou para baixo como se esperasse ver o filantropo caído por terra, vítima de um impulso suicida. Nada conseguiu distinguir, além de uma pequena mancha escura; devia ser a pistola que o padre afirmava ter visto ali no chão. Entretanto, Fenner encaminhara-se para a outra janela situada à mesma altura inacessível, mas que deitava para um pequeno jardim e não para uma rua lateral. Aí, um pequeno renque de árvores interceptava a vista do chão, mas não subiam a grande altura junto do enorme edifício. Ambos voltaram a enfrentar-se na penumbra da sala, onde o brilho dos últimos raios do dia se iam tornando cinzentos no tampo polido das mesas. Como se o crepúsculo o irritasse, Fenner premiu o interruptor e a luz eléctrica revelou de súbito todo o cenário.
- Como acaba de ver - declarou Vandam lugubremente -, nenhum tiro vindo lá de baixo poderia atingi-lo, mesmo que a pistola estivesse carregada. E ainda nesse caso nenhuma bala seria capaz de o fazer desaparecer como uma bola de sabão.
Mais pálido que nunca, o secretário fitou o rosto bilioso do milionário: - Mas por que está o senhor a evocar essas hipóteses trágicas? Quem fala aqui em balas ou bolas de sabão? Por que não há-de ele estar vivo?
- Sim, por que não? -retorquiu suavemente Vandam. - Se você me disser onde ele está, talvez eu lhe possa dizer como é que ele foi lá parar.
Depois de uma pausa, o secretário murmurou tristemente: - Acho que tem razão. Estamos precisamente em face daquilo de que falávamos há momentos. Era muito estranho que ambos acabássemos por acreditar que havia algum fundo de verdade nas maldições. Mas quem poderia fazer mal a Wynd, estando ele fechado aqui dentro?
O Sr. Alboin, de Oclaoma, estivera parado no meio da sala, de pernas afastadas, com a sua aura de cabelos brancos e os olhos esbugalhados de espanto. Nesta altura, murmurou em tom abstracto, como um enfant terrible que diz uma coisa fora de propósito:
- O senhor não o gramava, pois não?
O rosto comprido de Vandam pareceu tornar-se ainda mais comprido e sinistro quando respondeu, sorrindo, em voz baixa:
- Se falarmos em coincidências, foi o senhor, creio eu, quen afirmou que um vento do Oeste iria derrubar todos os nossos grandes homens como se fossem flores de cardo...
- Sei que o disse - concordou ingenuamente o outro -, mas de facto, como poderia isso acontecer?
O silêncio foi quebrado por Fenner, com uma impetuosidade que tocava as raias da violência:
- Neste caso, só há uma coisa que podemos afirmar. Não aconteceu. Não podia ter acontecido!
- Oh, sim - interveio o padre Brown lá do seu canto. - Não há dúvidas que aconteceu.
Todos estremeceram. Tinham-se esquecido daquele homenzinho insignificante que os convencera a abrir a porta. E essa descoberta levou-os a mudar subitamente de atitude; recordaram-Se de o haver rejeitado como um maluco supersticioso por ele ter sugerido a possibilidade daquilo que acabava de suceder perante os olhos deles.
- Raios! - exclamou o impetuoso Alboin, como se falasse sem pensar. - Afinal o que ele dizia sempre estava certo!
- Devo confessar - murmurou Fenner de sobrolho carregado - que as suspeitas do reverendo tinham o seu fundamento. Só queria saber se ele tem alguma coisa a dizer-nos a este respeito.
- Talvez nos saiba dizer que raio podemos fazer agora! - disse Vandam num tom sardónico.
O padre pareceu aceitar a situação com um ar modesto e natural.
- A única coisa que penso poder sugerir - disse - é que infor mem as autoridades em primeiro lugar e depois que procurem encontrar a pista do homem que largou a pistola. Ele desapareceu ao fundo das arcadas, onde fica o jardim. Ali há bancos e é um lugar muito frequentado pelos vagabundos.
Contactos directos com a direcção do hotel, que levaram a outros contactos com as autoridades policiais, ocuparam um tempo considerável, por isso era quase noite quando todos saíram para o semicírculo das arcadas, cuja forma de crescente se assemelhava à fria Lua que acabava de surgir, luminosa e espectral, por cima das árvores. A noite disfarça em grande parte a paisagem citadina e, assim, ao penetrarem no meio da sombra do arvoredo, aqueles homens tinham a impressão de se encontrarem num lugar muito distante. Após caminharem uns momentos em silêncio, Alboin, que era em certa medida um homem primitivo, explodiu:
- Desisto. Dou o braço a torcer. Nunca pensei chegar a esta si -tuação. Mas que se há-de fazer quando as coisas se metem pelos olhos dentro? Peço-lhe desculpas, padre Brown. Tenho de ceder no que respeita à suas histórias de milagres. Fico arrumado com isto. O senhor, Sr. Vandam, disse que era ateu e que só acreditava naquilo que via. Pois bem: que é que o senhor viu? Ou antes, que é que o senhor não viu?
- Entendo... - confessou Vandam, sorumbático.
- Em parte, a culpa é do luar e das árvores, que nos tornam nervosos - teimou Fenner. - As árvores parecem sempre esquisitas de noite, com os seus ramos retorcidos. Olhem só para aquela...
- Sim - concordou o padre Brown, parando a olhar a Lua por entre o renque de árvores. - Pensei que era só um ramo quebrado...
Mas desta vez, o tom da sua voz causou um arrepio nos circunstantes. Algo semelhante a um ramo quebrado pendia daquela árvore que se recortava negra, à luz da Lua; só que não era um ramo quebrado. Quando se aproximaram e viram do que se tratava, foi Fenner quem deu um salto para trás, ao mesmo tempo que proferia uma praga sonora. Depois correu a soltar a coroa que pendia pelo pescoço daquele corpo franzino, de cabelos grisalhos, a adejar. Antes de o retirar da árvore, já percebera que ele estava morto. Uma longa extensão de corda achava-se enrolada nos galhos da árvore, em contraste com o pedaço do qual pendia o pescoço da vítima. Uma selha estava caída ali perto, à laia de banco que os enforcados costumavam arredar debaixo dos pés.
- Oh, Santo Deus! - exclamou Alboin num tom que tanto podia ser uma invocação como uma praga. - Que foi que o tal homenzinho disse? Que se ele soubesse, era até capaz de se enforcar? Não foi isso, padre Brown?
Fenner escondera o rosto nas mãos e o padre segurou-lhe suavemente num braço, inquirindo:
- O senhor era muito amigo dele?
O secretário deixou cair os braços e o seu rosto estava lívido.
- Eu odiava-o - confessou. - Se ele morreu vítima de uma praga, talvez fosse uma daquelas que eu tanto lhe roguei...
O padre apertou-lhe mais o braço e afirmou com uma convicção de que não fizera uso até ali:
- Pode ficar tranquilo. Não foi a sua praga que o matou!
A polícia do sector teve muita dificuldade em lidar com as quatro testemunhas envolvidas no caso. Todas elas eram idóneas e até mesmo dignas de confiança no sentido vulgar do termo, sendo uma delas uma personagem importante e poderosa: Silas Vandam, da Sociedade de Petróleos. O primeiro funcionário da polícia que tentou manifestar o seu cepticismo em face da história que aquele lhe contava, provocou a ira do magnata:
- Não me fale em querer cingir-se aos factos - declarou com aspereza o milionário. - Antes de o senhor nascer já eu vira e apreciara muita coisa. Eu estou a contar-lhe os factos tal como eles se passaram e espero que o senhor tenha o bom senso de os aceitar correctamente.
O polícia em questão, um subordinado ainda novato, ficou com a vaga impressão de que o milionário era um sujeito demasiado importante para ser tratado como um vulgar cidadão; por isso, tratou de o passar, tal como os companheiros, para as mãos de um seu colega menos impressionável, o inspector Collins. Este era um tipo grisalho, de falas mansas e cordiais, mas que mostrava não estar disposto a ouvir disparates.
- Ora, ora - declarou, fitando com os olhos piscos os três homens que tinha na sua frente. - Isto está a parecer-me uma história muito esquisita...
O padre Brown já se fora embora, tratar da sua vida; Vandam, porém, suspendera os seus negócios importantíssimos por algumas horas, a fim de dar testemunho da sua notável experiência. O trabalho de Fenner cessara até certo ponto com a morte do patrão; quanto ao grande Art Alboin não tinha negócios em Nova Iorque, como de resto em parte alguma, a não ser divulgar a religião do "Sopro da Vida" ou do "Grande Espírito"; nada havia, pois, que de momento o afastasse daquele caso. Portanto, conservavam-se todos em fila no gabinete do inspector, prontos a confirmar os respectivos testemunhos.
- Para começar-declarou o inspector vivamente -, acho melhor preveni-los de que não resulta virem para cá com histórias de milagres. Sou um polícia e um homem prático, e essas coisas são boas para padres ou para frades. Esse padre vosso amigo deve ter-vos dado volta às cabeças com histórias de maldições e pragas; mas eu vou mantê-lo fora do assunto. Se Wynd não estava na sala, alguém o tirou de lá. E se o encontraram pendurado numa árvore, é porque alguém o pendurou.
- É evidente - respondeu Fenner. - Mas uma vez que nós podemos testemunhar que ninguém o fez sair dali, a questão é saber-se como é que alguém o pôde enforcar?
- Isso é tão evidente como ele ter um nariz no meio da cara - retorquiu o polícia. - Ele tinha um nariz no meio da cara e um nó de coroa em volta do pescoço. Estes são os factos. E, como já disse, sou um homem prático e regulo-me pelos factos. A coisa não aconteceu por milagre, teve de ser feita por um homem.
Alboin mantinha-se na retaguarda. De facto, a sua figura maciça parecia constituir o pano de fundo daquelas silhuetas mais frágeis e vivaças que tinha na frente. A sua cabeça branca estava curvada num certo jeito de abstracção; ao ouvir, porém, a última frase do inspector, ergueu o rosto e sacudiu a cabeleira como se acabasse de acordar, ainda meio tonto, mas bem desperto. Avançou para o meio do grupo e todos tiveram a impressão de que ele parecia maior que nunca. Tinham sido parvos em o considerar idiota ou charlatão; e ele não estava de todo errado ao afirmar que possuía um grande fôlego de vida, como que a força do vento, que é capaz, em certas alturas, de arrastar tudo consigo.
- Com que então o senhor é um homem prático, Sr. Collins - começou ele numa voz suave mas ao mesmo tempo carregada de sentido. - Deve ser a segunda ou a terceira vez que o senhor menciona isso nesta breve conversa, portanto, não me deixa lugar para dúvidas. Trata-se de um dado muito interessante para quem estiver encarregado de escrever a sua biografia, com a ajuda de cartas, conversas particulares, um retrato com a idade de cinco anos, um daguerreótipo da sua avó e postais ilustrados com as vistas da sua terra natal; e estou certo de que o seu biógrafo não esqueceria também o facto de o senhor ter um nariz achatado, com uma verruga na ponta e ser tão gordo que mal pode andar. E, como o senhor é um homem prático, talvez consiga praticar tanto que acabe por trazer Warren Wynd de novo à vida e descobrir como é que um homem prático é capaz de passar através de portas fechadas. Só que eu acho que o senhor está a ver tudo ao contrário. O senhor não é um homem prático. O senhor é praticamente uma anedota. É isso que o senhor é! O Todo-Poderoso estava a gozar connosco quando o inventou.
E com um profundo sentido do drama, encaminhou-se para a porta com um ar imponente, antes que o inspector, aturdido, conseguisse replicar. Depois já nenhuma recriminação lhe poderia roubar aquele momento de triunfo.
- Acho que o senhor tem toda a razão naquilo que disse - declarou Fenner. - Se isto é que são os homens práticos, prefiro os padres.
Quando as autoridades se aperceberam de quem eram os intervenientes e quais as suas implicações no caso, procuraram dar outra versão dos acontecimentos. Nessa altura, já a coisa fora relatada pela imprensa da forma mais sensacionalista e com os pormenores mais indiscretos: entrevistas com Vandam acerca desta sua extraordinária aventura, artigos sobre o padre Brown e as suas instituições místicas, em breve convenceram aqueles que têm por missão dirigir a opinião pública e tentar conduzi-la para caminhos mais sensatos. Da segunda vez, procuraram interrogar aquelas testemunhas incómodas de uma maneira mais prudente eindirecta. Informaram-nas, de um modo aparentemente casual, que um tal professor Vair se interessava imenso por experiências estranhas daquele tipo e mostrara uma curiosidade especial por este caso espantoso. O professor Vair era um psicólogo de grande fama; era conhecido o seu dedicado interesse pela criminologia; só mais tarde as testemunhas descobriram que ele colaborava, em certa medida, com a polícia.
O professor Vair era um cavalheiro muito cortês, discretamente vestido com um fato cinzento e uma gravata elegante. Usava uma barba loira e pontiaguda. Para quem não estivesse familiarizado com aquele tipo de sujeito lembrava mais um pintor de arte. Demonstrava não só uma atitude cortês, mas até mesmo franca.
- Sim, sim, compreendo - dizia ele a sorrir. - Calculo aquilo porque vocês passaram. A polícia não é brilhante quando se trata de inquéritos de natureza psíquica, não é verdade? Claro que o nosso bom Collins dizia que só queria saber de factos. Que erro mais absurdo! Num caso desta espécie, nós nunca queremos apenas factos. Torna-se até mais essencial sabermos as fantasias.
- O senhor quer dizer com isso - perguntou Vandam muito sério - que o que nós chamamos factos não passam de fantasias?
- De modo algum - retorquiu o professor. - Só quis afirmar que os polícias são estúpidos quando, nestas coisas, põem de parte o elemento psicológico. Porque, sem dúvida, o elemento psicoló gico tem um papel primordial em tudo, só que apenas começa agora a ser entendido. Para principiar, vejamos o elemento a que se chama a personalidade. Já antes eu tinha ouvido falar neste sujeito, o padre Brown. É um dos homens mais notáveis do nosso tempo. Os tipos como ele criam uma atmosfera muito especial à sua volta; e nenhum de nós consegue saber até que ponto os nossos ner vos e até mesmo os nossos sentidos podem vir a ser afectados por isso. As pessoas ficam hipnotizadas... sim, senhor, hipnotizadas porque a hipnose, como tudo o resto, tem os seus graus; faz de certo modo parte das nossas conversas diárias. Nem sempre é produzida por um sujeito de casaca em cima de um palco. A religião du padre Brown esteve sempre ligada à psicologia dos ambientes e conhece a maneira de apelar para tudo na devida altura. Aproveita, até, por exemplo, o sentido do olfacto. Compreende os efeitos produzidos pela música nos animais e nos seres humanos; podn mesmo...
- Ora bolas! - protestou Fenner. - O senhor não vai pensar que o padre andava pelos corredores com um órgão de igreja às costas...
- Nem precisava disso - respondeu, rindo, o professor. - Ele sabe a maneira de concentrar a essência de todos esses sons em imagens espirituais, até os cheiros, em toda uma arte ou escola de maneiras. Ele consegue concentrar as nossas mentes no sobrenatural, apenas graças à sua presença, de modo que as coisas naturais nos escapam, não vemos o que fica à nossa direita ou à nossa esquerda. Agora os senhores compreendem - prosseguiu ele retomando os assuntos práticos - por que é que nós quanto mais estudamos essa matéria mais estranhos nos parecem todos os testemunhos humanos. Não se encontra uma criatura em vinte capaz de observar as coisas tal como elas são. E não existe uma em cem capaz de observar com precisão e depois vir descrever exactamente aquilo que viu. Repetidas experiências científicas vieram revelar que certas pessoas em estado de tensão imaginaram que uma porta estava aberta quando de facto se encontrava fechada. E vice-versa. O testemunho de outras não coincidia quanto ao número de portas ou de janelas existentes numa parede que tinham diante dos olhos. Sofriam de ilusões de óptica em pleno dia. Isto tem acontecido mesmo sem o efeito hipnótico da personalidade; mas nós aqui temos uma personalidade muito forte e persuasiva, empenhada em fixar uma imagem apenas nas vossas mentes; a imagem de um rebelde irlandês, ameaçando o céu com uma pistola e disparando aquele tiro falso, cujo eco representava o trovão celeste.
- Professor - exclamou Fenner -, posso jurar por tudo quanto há que aquela porta nunca se abriu!
- Experiências mais recentes - prosseguiu muito calmo o professor - sugerem que o nosso estado consciente não é contínuo mas antes uma sucessão de impressões rápidas, como no cinema; é possível que alguém ou alguma coisa possa escapar-se, por assim dizer, entre essas cenas. Aconsciência só actua quando o pano está corrido. É possível que o palavreado desses mágicos e toda a sua habilidade de manipulação dependa daquilo a que podemos chamar os pontos escuros de cegueira entre os lampejos de visão. Ora este padre, pregador de ideias transcendentais, transmitiu-vos uma fantasia ou imagem transcendente: a imagem do Celta, qual Titã, abalando a torre com a sua maldição. Provavelmente, acompanhou isso com um gesto leve, mas persuasivo, dirigindo os vossos olhos e as vossas mentes para o atacante desconhecido que se encontrava lá em baixo. Ou talvez tivesse sucedi do qual quer outra coisa, ou alguém ali passasse que vos distraísse...
- Foi Wilson, o criado - resmungou Alboin. - Atravessou o corredor para se ir sentar no banco, à espera, mas penso que não reparámos muito nele.
- Nunca se sabe - replicou Vair. - Pode ter sido isso, ou o vosso olhar que seguiu um gesto do padre enquanto ele vos contava a sua história da carochinha. Foi durante um desses intervalos de escuridão que Warren Wynd se escapou pela porta fora para ir ao encontro da morte. É esta a explicação mais provável. E vem ilustrar a nova descoberta. A nossa mente não segue uma linha contínua, mas sim uma linha pontiaguda.
- Cheia de pontos! O senhor é que me saiu um bom ponto! - exclamou Fenner.
- Você imagina - inquiriu Vair - que o seu patrão ficou fechado na sala como se fosse dentro de uma caixa?
- prefiro isso a imaginar-me dentro de uma cela acolchoada. - respondeu Fenner. - É isso que eu censuro na sua sugestão, professor. Prefiro acreditar num padre que acredita em milagres, a duvidar de que qualquer homem tenha o direito de acreditar num facto. O padre afirma que qualquer homem pode apelar para um deus que eu desconheço para que o defenda, segundo leis que para mim são igualmente desconhecidas. Nada tenho a dizer senão que nada sei acerca disso. Mas, ao menos, se o pedido e a pistola do pobre Paddy puderam fazer-se ouvir lá nesse mundo superior, esse mundo pode agir de uma forma que a nós nos parece estranho. Porém, o que o senhor pretende de mim é que não acredite nos factos deste mundo que eu presenciei com os meus cinco sentidos. Na sua opinião, era possível que passasse por nós um cortejo de irlandeses armados de arcabuzes enquanto estávamos a conversar desde que tivessem o cuidado de caminhar sobre os tais pontos negros das nossas mentes. Aqueles outros milagres ridículos, tais como fazer surgir do nada um crocodilo, ou pendurar o manto num raio de sol, parecem factos comuns comparados com as suas teorias.
- Muito bem - replicou o professor secamente -, se você está decidido a acreditar no tal padre e no seu miraculoso irlandês, nada mais me resta dizer. Creio bem que o senhor nunca teve oportunidade de estudar psicologia?
- Não - respondeu Fenner com azedume -, mas tive já ocasião de estudar alguns psicólogos.
Com uma vénia cerimoniosa, conduziu o grupo para fora da sala e só falou quando chegou à rua; aí explodiu:
- Cambada de malucos! - exclamou numa fúria. - Que seria de nós se ninguém mais conseguisse saber se de facto tinha visto ou não alguma coisa? Só me apetecia rebentar-lhe aquela cabeça oca com um tiro de pólvora seca e depois desculpar-me dizendo que fizera aquilo num dos espaços negros. O milagre do padre Brown pode ou não ser verdade, mas o certo é que ele disse que aquilo ia acontecer, e aconteceu mesmo. Escutem lá: eu penso que temos obrigação para com o padre de confirmar a demonstração dele. Somos todos mentalmente sãos, homens positivos que nunca acreditaram em nada dessas coisas. Não estávamos bêbados. Não somos devotos. Simplesmente confirmamos que o caso sucedeu tal como ele havia previsto.
- Concordo plenamente - declarou o milionário. - Isto pode vir a ser o início de coisas muito importantes no campo espiritual. De qualquer modo, o homem que se situa nesse campo, o próprio padre Brown, deve ter arriscado muito neste caso.
Passados poucos dias o padre Brown recebeu um cartão muito amável, assinado por Silas T. Vandam, em que este lhe pedia para comparecer a uma certa hora no apartamento que fora teatro do desaparecimento de Wynd, no intuito de serem tomadas medidas para a confirmação de tão extraordinária ocorrência. A dita ocorrência começara já a fazer sensação através dos jornais e a ser aproveitada pelos entusiastas do ocultismo. Ao passar pelas arcadas de Moon Crescent, em direcção aos degraus que conduziam ao elevador, o padre Brown teve ensejo de ver os cartazes que anunciavam em letras berrantes: "Desaparece um suicida", e ainda: "A maldição que enforca o filantropo". Foi ali encontrar o mesmo grupo que lá deixara: Vandam, Alboin e o secretário. Agora, porém, havia uma atitude de respeito e até de reverência no tom com que estes se dirigiam a ele. Mantinham-se de pé, junto à secretária de Wynd, sobre a qual se via uma grande folha de papel e uma caneta.
- Padre Brown - começou o porta-voz do grupo, ou seja o ancião do Oeste, muito compenetrado da sua responsabilidade. - Pedimos-lhe para vir aqui, em primeiro lugar para lhe apresentarmos as nossas desculpas e os nossos agradecimentos. Reconhecemos que foi o senhor quem, logo de início, detectou a natureza espiritual deste caso. Todos nós éramos uns cépticos inveterados; mas descobrimos agora que o homem deve quebrar a carapaça da descrença para atingir aquilo que há de importante para além deste mundo. O senhor representa essas coisas importantes, representa a sua explicação sobrenatural. Nós temos de aceitar isso. Em segundo lugar, sentimos que este documento ficaria incompleto sem a sua assinatura. Estamos a relatar os factos exactos para os fornecer à Associação de Investigações Psicológicas, pois verificámos que esses factos relatados pelos jornais não primam pela exactidão. Descrevemos como a maldição foi proferida na rua; dizemos que o homem estava aqui encerrado neste quarto como que dentro de uma caixa; que a maldição o fez evaporar-se no ar, para o fazer aparecer depois enforcado num galho. Isto é tudo quanto podemos afirmar sobre o assunto; tudo isto nós sabemos porque o vimos com os nossos próprios olhos. E como o senhor foi o primeiro a acreditar no milagre, entendemos que deve ser o primeiro a assinar.
- Oh, não - disse o padre Brown muito atrapalhado. - Não creio que me agrade fazer isso.
- Diz que não quer ser o primeiro a assinar?
- Digo que não assino coisa nenhuma - respondeu modestamente o padre Brown. - Os senhores compreendem, não é próprio de uma pessoa da minha condição brincar com os milagres.
- Mas o senhor disse que isto era um milagre! - exclamou Alboin, espantado.
- Desculpe - retorquiu o padre Brown. - Penso que há aqui um equívoco. Eu nunca disse que era um milagre. Tudo o que eu disse é que aquilo poderia vir a acontecer. Vocês é que afirmaram que só poderia acontecer por milagre. Mas aconteceu. Então, vocês decretaram que era um milagre. Mas eu cá nunca pronunciei a palavra "milagre" nem falei em magias ou coisas semelhantes.
- No entanto eu pensava que o senhor acreditava em milagres - interrompeu o secretário.
- Sim - declarou o padre Brown. - Eu acredito em milagres Acredito que há tigres que comem os homens, mas esses não andam por aí. Se quero falar de milagres sei bem onde os posso ir buscar.
- Não compreendo a sua atitude, padre Brown - disse vivãmente Vandam. - A sua atitude afigura-se-me estúpida e o senhor não me parece ter nada de estúpido, embora seja padre. Então não vê que um milagre como este pode deitar por terra todos os pontos de vista materialistas? Vai revelar a todo o mundo, em letras garrafais, que o poder do espírito é capaz de actuar, e actua mesmo. O senhor vai servir a religião como nenhum padre o fez até hoje, estou certo.
O padre endireitou o busto e, apesar da sua figura atarracada dava a impressão de se ter revestido de uma dignidade involuntária e inconsciente:
- Ora bem, acho que os senhores não pretendem que eu sirva a religião através do que eu considero uma mentira. Não sei ao certo o que entendem por essa palavra, mas, para ser sincero, julgo que não a entendem mesmo. A mentira pode servir a religião mas estou certo de que não serve a Deus. E uma vez que insistem tanto em saber quais as coisas em que eu creio, acho melhor explicar:
- Não estou a perceber nada - murmurou o milionário, intrigado.
- Vocês dizem que este caso sucedeu por meio de forças espirituais? Não imaginam, certamente, que os anjos do céu pegaram no homem e o foram pendurar numa árvore. E, quanto aos outros, os anjos maus, também não foram eles. Os homens que fizeram is to cometeram uma maldade, mas nada mais que isso; não eram suficientemente malvados para utilizarem poderes espirituais Por mal dos meus pecados, sei umas coisas sobre satanismo, fui obrigado a estudar isso. Sei no que consiste, no que consiste quase sempre. O Demónio é orgulhoso e malvado. Quer mostrar-se superior; gosta de aterrorizar os inocentes com coisas que eles mal podem entender e pregam sustos às crianças. É por isso que essa gente gosta tanto de mistérios, de iniciações, sociedades secretas e coisas quejandas. Têm os olhos voltados para dentro, e, por muito graves e sérios que pareçam, ocultam sempre um sorriso manhoso - O padre estremeceu, como se recebesse uma corrente de ar. - Não se preocupem com eles, nada têm a ver com este caso, podem crer. Imaginam, por acaso, que aquele pobre diabo do irlandês que vinha a correr rua abaixo e desfiou metade da história quando me reconheceu, mas se pôs a fugir depois, com medo de descoser o resto acham que Satanás poderia querer confiar-lhe algum segredo? admito que ele devia fazer parte da conspiração, porventura juntamente com dois companheiros piores que ele; mas o certo é que estava possesso de uma fúria louca quando descia a rua a correr, ao mesmo tempo que proferia a maldição e disparava a pistola.
- Mas que significa tudo isto?-inquiriu Vandam.-Disparar uma pistola com um tiro de pólvora seca e largar uma maldição que não vale nada são coisas que nunca poderiam ter produzido o resultado que se viu, a não ser por milagre. Nada disso poderia ter feito desaparecer Wynd como por encanto. Nem reaparecer dali a pouco com uma corda enrolada ao pescoço.
- Isso não - respondeu prontamente o padre. - Mas qual o resultado que isso poderia provocar?
- Continuo a não perceber - retorquiu com ar grave o milionário.
- Repito, que resultado poderia isso produzir? - insistiu o padre, mostrando pela primeira vez uma animação que se aproximava do enfado. -Vocês continuam a afirmar que um tiro de pólvora seca de pistola não poderia causar isto ou aquilo; que se houvesse apenas isso não teria ocorrido o crime nem o milagre. Nunca vos ocorreu perguntar o que poderia ter aconteci do. Que faria o senhor se um desvairado desse um tiro de pistola debaixo da sua janela? Qual a primeira coisa que o senhor faria?
Vandam concentrou-se e respondeu:
- Acho que chegaria à janela para ver.
- Exactamente - aprovou o padre Brown -, chegaria àjanela para ver. É esse o ponto importante da história. Uma história triste, mas que tem circunstâncias atenuantes.
- Mas que mal poderia acontecer ao homem por chegar àjanela?- quis saber Alboin. - Ele não caiu dela abaixo, pois se assim fosse teria sido encontrado no chão...
- Não - explicou o padre Brown em voz baixa. - Ele não caiu para baixo. Foi lá para cima...
Algo na voz dele soava como um gemido, um dobre a finados, mas logo prosseguiu noutro tom:
- Subiu, não voou. Não foi levado pelas asas de nenhum anjo, bom ou ruim. Subiu pendurado numa corda, tal como vocês o viram lá em baixo, no jardim; mal deitara a cabeça fora da janela, o seu pescoço foi apanhado por um laço. Estão a ver Wilson, aquele criado gigantesco, ao passo que Wynd era um zé-ninguém? Recordam -se de Wilson ter ido ao andar superior buscar uma pasta que se encontrava num quarto cheio de pacotes atados com cordas e onde havia rolos de cordas pelos cantos? Alguém voltou a ver Wilson desde esse momento? Penso que não.
- Quer o senhor dizer que Wilson o pescou da sua própria janela, como se ele fosse uma truta na ponta da linha?
- Isso mesmo - respondeu o padre. - E depois fê-lo descer pela janela do outro lado, a que deita para o parque. Aí o outro cúmplice pendurou-o numa árvore. Recordem-se de que essa ruela estava sempre deserta e que a parede em frente não tinha janela-, nem portas; recordem-se de que tudo se passou durante os cinco minutos que se seguiram ao sinal dado pelo tiro de pistola. Estavam três sujeitos envolvidos na conjura, é claro; só quero saber se vocês adivinham quem eles eram.
Todos fitavam a parede nua em frente da janela e ninguém respondeu.
- A propósito, não vos censuro - prosseguiu o padre Brown por terem tirado conclusões de natureza sobrenatural em relação a este caso. Arazão disso é, na verdade, muito simples. Todos vocês afirmaram que eram materialistas convictos; quando, na verdade se encontravam à beira de acreditar fosse no que fosse. Hoje em dia, há milhares de pessoas como vocês; mas essa é uma posição muito incómoda. Não se descansa enquanto não se encontra algo em que acreditar; é por isso que o Sr. Vandam esquadrinhou todas as religiões, o Sr. Alboin cita as Sagradas Escrituras para apoiar a sua seita de exercícios respiratórios e o Sr. Fenner se queixa do próprio Deus que renega. É aí que vocês quebram; então é fácil acreditar no sobrenatural. Não é natural acreditar apenas em coisas naturais. Mas muito embora bastasse apenas um pequeno toque para vocês aceitarem estas coisas como sendo sobrenaturais, elas eram apenas pura e simplesmente naturais. E não fora isso, eram quase sobrenaturalmente simples. Penso até que nunca houve uma história tão simples como esta.
Finner riu-se, mas parecia intrigado:
- Há uma coisa que eu não percebo - declarou. - Se o autor do crime foi Wilson, como podia Wind ter ao seu serviço um homem daquela espécie, num pé de tanta intimidade? Como é que acaba por ser morto por um tipo com quem convivia diariamente há tanto tempo? Ele tinha fama de ser um bom juiz da natureza humana.
O padre Brown bateu com o guarda-chuva no chão com uma autoridade que raramente revelava.
- Sim! - exclamou impetuosamente -, por isso mesmo é que acabou por ser morto. Foi precisamente por essa razão. Morreu por se arvorar em juiz dos homens.
Os outros olharam para ele com espanto, mas o padre prosseguiu como se eles não estivessem ali:
- Quem somos nós para julgarmos os outros?-perguntou ele. - Estes homens eram aqueles três que um dia se apresentaram na sua presença e foram rapidamente colocados aqui e ali; como si para eles não existisse o manto da cortesia ou qualquer grau de intimidade, nenhum desejo de intimidade, mesmo. E vinte anos passados não conseguiram extinguir a indignação nascida naquele incrível insulto no momento em que ele teve o atrevimento de pretender conhecê-los à primeira vista.
- Sim - murmurou o secretário. - Compreeendo... e compreendo também como é que o senhor consegue compreender.- toda a espécie de coisas.
- Bem, diabos me levem se compreendo! - exclamou o impetuoso homem do Oeste, com ar agressivo. - O nosso Wilson e o seu irlandês, pelos vistos, eram assassinos vulgares que mataram o seu benfeitor. Cá por mim, no meu conceito de moral, seja ou não ele de natureza religiosa, não se admite um criminoso dessa espécie.
- Ele era um assassino da pior espécie, não há dúvida - declarou calmamente Fenner. - Não estou a defendê-lo; mas acho que o ofício do padre Brown é orar por todos os homens, até mesmo por sujeitos como...
- Sim - confirmou o padre Brown -, o meu ofício é orar por todos os homens, mesmo por homens como Warren Wynd.
A MALDIÇÃO DA CRUZ DE OIRO
Havia seis pessoas sentadas em volta de uma pequena mesa redonda, todas diferentes e estranhas umas às outras como se houvessem naufragado, uma por cada vez, na mesma ilha deserta. De facto, estavam rodeadas pelo mar, pois aquela pequena ilha encontrava-se incluída noutra ilha mais vasta, uma ilha flutuante, tal como a ilha de Laputa (1). Aquela pequena mesa era uma das muitas que enchiam o salão do enorme navio, o Moravia, que sulcava a noite e a imensidão deserta do Atlântico. Os componentes daquele pequeno grupo nada tinham de comum a não ser o facto de viajarem todos da América para Inglaterra. Pelo menos dois deles podiam ser consideradas pessoas célebres; os outros seriam personagens obscuras e um ou outro caso até de natureza duvidosa.
O primeiro era o famoso professor Smaill, uma autoridade em certos estudos arqueológicos relativos ao último império bizantino. As suas palestras, proferidas numa universidade americana, eram consideradas como matéria indiscutível até mesmo nos centros mais cultos da Europa. Os seus textos literários estavam de tal modo embebidos de uma suave e imaginativa simpatia pelo passado europeu que, muitas vezes, quem o não conhecesse ficava admirado de o ouvir falar com a pronúncia americana. Tinha uma cabeleira loira e comprida, puxada para trás, mostrando a testa quadrada; feições vincadas e uma expressão que era um misto de preocupação e vivacidade latente, como a de um leão que prepara distraidamente o próximo salto.
No grupo encontrava-se apenas uma senhora e era, como lhe costumavam chamar os jornalistas, a anfitriã por excelência, uma vez que estava habituada a desempenhar esse papel, para não dizermos o de imperatriz, em qualquer mesa a que presidisse. Tra-
(1) Laputa, ilha flutuante habitada por sábios e filósofos na obra de Swift, As Viagens de Gulliver. (N. da T.)
tava-se de Lady Diana Wales, a célebre exploradora das regiões tropicais, e não só. Nada havia, contudo, de rude ou de masculino no seu aspecto à hora dojantar. Era uma mulher bonita, no seu género semitropical, com uma vasta cabeleira ruiva; vestia-se com oestilo que osjornalistas apelidavam de ousado, porém o seu rosto era inteligente e os seus olhos tinham aquele brilho e o aspecto proeminente peculiar das mulheres que costumam fazer perguntas nas assembleias políticas. As outras quatro personagens pareciam à primeira vista como que meras sombras em face das presenças brilhantes das primeiras; porém, vistas de perto, apresentavam diferenças. Uma delas era um rapaz registado no livro de bordo sob o nome de Paul T. Tarrant. Era do tipo americano a que poderíamos chamar um antitipo. Todas as nações têm, provavelmente, um antitipo; uma espécie de excepção extrema, que só vem provar a regra nacional. Os americanos nutrem tanto respeito pelo trabalho como os europeus pela guerra. Vêem nele uma aura de heroísmo; e consideram aquele que foge ao trabalho como sendo um homem inferior. O antitipo torna-se notado por ser extremamente raro. É um dandy, ou janota, um esbanjador, que é muitas vezes representado como o vilão nos romances americanos. Paul Tarrant parecia não ter nada mais a fazer do que mudar de fato, o que acontecia umas seis vezes por dia, variando as tonalidades cinzentas das suas roupas desde o mais pálido ao mais escuro, tal como as nuvens do crepúsculo. Ao contrário da maioria dos seus compatriotas, usava umabarba curta bem cuidada e crespa; e, igualmente, em oposição às personagens do seu tipo, mostrava-se mais macambúzio que expansivo. Havia talvez algo de byroniano no seu silêncio e na sua melancolia.
Os dois outros viajantes pertenciam obviamente à mesma classe, pela simples razão de que eram ambos ingleses e professores, regressando duma excursão aos Estados Unidos. Um deles dava pelo nome de Leonard Smyth e era, pelos vistos, um poeta obscuro, mas que gozava de certa importância como jornalista. Tinha uma cabeça oblonga, os cabelos claros, vestia de maneira impecável e mostrava-se bem capaz de tomar conta de si. O outro formava com ele um contraste verdadeiramente ridículo, pois era baixo, forte, com um bigode preto que lembrava o das focas, e era tão taciturno quanto o companheiro se mostrava tagarela. Mas como havia sido acusado de roubar e depois louvado por ter salvo uma princesa ameaçada por um jaguar pertencente à menagerie ambulante, e tendo por isso figurado nas colunas da imprensa com notabilidade, era natural que as suas opiniões acerca de Deus, do progresso, da sua vida passada e do futuro das relações anglo-americanas se revelassem de um grande interesse para os habitantes de Minneapolis e de Omaha. A sexta personagem, e a mais insignificante de todas elas, era o modesto padre inglês que respondia pelo nome de Brown. Ia escutando as conversas com uma atenção respeitosa e naquele momento, começava a dar-se conta de que estas tomavam um rumo bastante curioso.
- Eu acho, professor - dizia Leonard Smith -, que esses seu estudos bizantinos devem lançar uma certa luz sobre aquela história do túmulo que foi encontrado algures na costa sul; perto de Brighton, não é isso? Brighton fica bastante longe de Bizâncio, claro. Mas eu li qualquer coisa acerca da maneira como o corpo havia sido enterrado, ou embalsamado, que levava a supor-se que era um túmulo bizantino.
- Os estudos bizantinos abrangem uma área muito vasta - replicou secamente o professor. - Fala-se muito em especialista mas acho que a coisa mais difícil que há no mundo é adquirir-se uma especialização. Neste caso, por exemplo: como pode alguém saber seja o que for acerca de Bizâncio, antes de saber tudo acerca de Roma, que vem antes, e do Islão, que vem depois? Grand parte das artes árabes, são antigas artes bizantinas. Ora vejamos quanto à álgebra...
- Mas eu não quero saber nada a respeito de álgebra! - exclamou a dama peremptoriamente. - Nunca quis nem quero. Mas estou altamente interessada no que respeita a embalsamentos. E, estava junto de Gatton, percebe, quando ele abriu os túmulos babilónicos. Desde então passei a considerar as múmias e os corpo embalsamados de um interesse apaixonante. Fale-nos deste caso.
- Gatton era um nome interessante - declarou o professor. -Aquela família era interessante. O irmão, que esteve no Parlamento, foi mais que um político vulgar. Nunca entendi os fascistas se não depois de lhe ouvir aquele discurso acerca de Itália.
- Bem, mas não vamos para a Itália nesta viagem - insistiu Lady Diana-, e penso que o senhor vai direitinho para aquele lugarejo onde descobriram o túmulo. Fica no Sussex, não é isso?
- O Sussex é muito vasto, tal como todos esses condados ingleses. Podemos, por vezes, andar por lá às voltas durante muito tempo; e é um sítio muito vasto para uma pessoa vaguear. É espantoso como aqueles montes vastos parecem grandes quando nos encontramos lá no alto...
Seguiu-se um silêncio inesperado, até que a senhora declarou:
- Oh, vou até à coberta. - Então levantou-se e os homens imitaram-na. Só o professor ficou para trás, tal como o padre, que foi o último a sair da mesa, dobrando cuidadosamente o guardanapo. Quando ficaram a sós, o professor perguntou de súbito ao seu companheiro:
- Que pensa desta conversa? Qual seria a ideia deles?
- Bem - respondeu o padre sorrindo -, já que mo pergunta, direi que houve uma coisa que me deu vontade de rir. Posso estar enganado, mas pareceu-me que os nossos companheiros fizeram três tentativas para levarem o senhor a falar acerca de um corpo embalsamado que teria sido descoberto no Sussex e que o senhor, por seu lado, preferiu falar, primeiro de álgebra, depois dos fascistas e, por último, da paisagem dos Downs...
- Em resumo - replicou o professor -, o senhor achou que eu estava disposto a falar de tudo menos daquele assunto. E não se enganou.
Calou-se, por momentos, a fixar a toalha da mesa. Depois ergueu-se e falou com um ímpeto que fazia lembrar o salto do leão.
- Escute, padre Brown... eu considero-o, talvez, o homem mais puro e mais sensato que já conheci até hoje.
O padre Brown era muito inglês, por isso ficava normalmente atrapalhado, sem saber o que fazer, quando lhe dirigiam assim um cumprimento cara a cara, à boa maneira americana. Limitou-se a responder com um murmúrio ininteligível e o professor prosseguiu no mesmo tom stacato e num tom de sinceridade:
- Ora veja. Até certo ponto a coisa é muito simples. Por debaixo de uma pequena igreja, em Dulham, na costa do Sussex, foi descoberto um pequeno túmulo medieval, provavelmente de algum bispo. Por coincidência, o vigário de lá interessa-se um pouco por arqueologia e já conseguiu descobrir coisas a esse respeito que eu ainda ignoro. Falou-se que o corpo fora embalsamado de uma maneira considerada exclusiva dos Egípcios e dos Gregos, mas que era desconhecida no Ocidente, sobretudo naquela data. Por isso, o Sr. Walters, isto é, o vigário, pensou, naturalmente, que houvesse ali influências bizantinas. Mas mencionou igualmente outra coisa que me interessa ainda mais directamente. - O seu rosto comprido e grave pareceu alongar-se mais ainda e ficar mais sério, sempre a fitar a toalha, de sobrolho carregado. Com o dedo ia riscando sobre o tecido alguns traços que lembravam os planos de cidades mortas, com os seus templos e os seus túmulos. - Por isso, eu vou dizer-lhe a si, e amais ninguém, por que razão, tenho de ter cautela e não falar disto diante de muita gente; e assim quanto mais interessados eles se mostrarem em discutir o caso, mais eu preciso de ter cautela. Parece que, dentro do caixão, havia uma corrente com uma cruz, à primeira vista uma cruz como qualquer outra, mas que ostentava nas costas um certo sinal que só foi encontrado numa outra cruz. Pertencia aos arcanos da igreja primitiva e pensa-se que vem provar o facto de S. Pedro ter estabelecido a sua sede em Antioquia antes de se instalar em Roma. Dizem que há nela uma maldição, mas nunca fiz caso disso. Mas exista ela ou não, o que há sem dúvida é uma conspiração, que, provavelmente, será constituída por um só homem.
- Um só homem? - repetiu maquinalmente o padre.
- Um louco, tanto quanto sei - informou o professor. - É uma história comprida e, até certo ponto, estúpida.
Calou-se de novo, sempre a traçar planos com a unha no tecido da toalha, e depois prosseguiu:
- Será talvez melhor eu começar do princípio, para o caso de o senhor descobrir na história algum pormenor que eu não tenha compreendido. Tudo começou há muitos, muitos anos, quando eu dirigia certas investigações por minha conta sobre a antiguidade de Creta e das ilhas gregas. Fiz grande parte do trabalho sozinho, por vezes com a ajuda dos habitantes rudes e ineficientes, mas na maior parte do tempo, literalmente só. Foi nestas circunstâncias que descobri um emaranhado de passagens subterrâneas que me levaram a um montão de destroços muito valiosos: ornamentos quebrados e pedras preciosas dispersas, que admiti serem os restos de algum altar arruinado, e no meio dos quais encontrei essa tal estranha cruz. Ao voltá-la descobri que tinha nas costas o Ichttus, ou seja, o peixe, que figurava nos antigos símbolos do cristianismo, mas com um feitio e um desenho bastante diferente daqueles que se encontram vulgarmente, segundo me pareceu bastante mais realista, como se quem a desenhou não pretendesse apenas traçar um conjunto de auréolas entrelaçadas, mas sim uma coisa mais parecida com um verdadeiro peixe. Afigurou-se -me que a parte achatada de uma das extremidades não representava só um simples ornato, mas também uma espécie de rude e selvagem espécime zoológico. De molde a explicar em poucas palavras o motivo por que considero este achado importante, devo mencionar o ponto em que foi feita a escavação. Para já, aquilo tinha o aspecto de ser uma escavação feita sobre outra escavação. Ti nhamos descoberto a pista não só de achados arqueológicos mas também dos arqueólogos da Antiguidade. Havia razões para crer pelo menos na opinião de alguns, que essas passagens subterrâneas, quase todas do período de Minos, à semelhança daquela outra tão famosa, conhecida como o Labirinto do Minotauro, não tinham ficado abandonadas e esquecidas entre a Era do Minotauro e os modernos exploradores. Nós pensamos que essas galerias, quase podemos chamar-lhes essas cidades ou aldeias subterrâneas, deviam já ter sido devassadas durante o período intercalar por pessoas que tinham algum motivo para o fazer. Acerca desse motivo, há diversas teorias: uns dizem que os imperadores tinham mandado fazer escavações motivados apenas pelo interesse científico; outros pensam que o interesse desenfreado que se verificara nos últimos tempos do Império Romano, por tudo quanto dissesse respeito às fascinantes superstições asiáticas, dera origem a uma qualquer seita anónima de maniqueus que se reuniam nas cavernas em barulhentas orgias, que não podiam ter lugar à face da Terra. Eu, pelo contrário, pertenço ao grupo que atribui a essas cavernas o mesmo papel das catacumbas. Isto é, nós pensamos que, durante certas perseguições que alastraram como o fogo por todo o Império Romano, os cristãos se escondiam nesses antigos labirintos pagãos. Ao encontrar essa cruz e ao descobrir o desenho que ela ostentava, o choque que senti, foi como se me caísse um raio aos pés; e maior foi ainda a minha alegria quando, ao regressar cá fora, ao encontro da luz do dia, através daquelas galerias sem fim, descobri, gravada na rocha das suas paredes nuas, a repetição da mesma imagem do peixe. Algo no seu aspecto fazia-o assemelhar-se a um fóssil de um peixe ou de qualquer outro organismo rudimentar, fixado para sempre num mar gelado. Eu não podia analisar ali essa semelhança, que de resto nada tinha a ver com um simples desenho gravado na pedra, pois o que o meu subconsciente me estava a dizer é que os primeiros cristãos deviam ter tido alguma semelhança com os peixes, mudos e ocultos num mundo de penumbra e silêncio, situado muito abaixo do nível onde caminham os homens, movendo-se na escuridão de um mundo sem sons. Todo aquele que tenha percorrido galerias de pedra sabe que temos a impressão de sermos seguidos pelo som de passos de fantasmas. O eco das passadas ora nos segue ora nos procede, de modo que se torna impossível à pessoa que se encontra só, acreditar, de facto, na sua solidão. Eu já estava habituado a estes efeitos do eco e de há muito não lhes prestava atenção quando descobri as figuras simbólicas gravadas nas paredes. Parei e, no mesmo instante, foi como se o meu coração tivesse parado também; porque os meus passos tinham-se detido, mas o som do eco continuava a ouvir-se. Corri para diante e os passos fantasmas correram também, mas não como a cópia exacta que caracteriza essa reverberação do som. Parei mais uma vez e os passos pararam também; no entanto, eu seria capaz de jurar que eles tinham parado uma fracção de segundo mais tarde; fiz uma pergunta em voz alta e ouvi a resposta, mas o que me respondeu não era a minha voz. Provinha de uma curva da parede, mesmo à minha frente, e durante toda esta estranha perseguição reparei que era sempre numa volta do caminho que ela parava para me falar. O pequeno espaço que a minha pilha eléctrica alumiava diante de mim estava sempre completamente deserto. Nestas condições mantive uma conversa não sei com quem, que durou todo o percurso até surgirem os primeiros clarões da luz do dia. E, mesmo então, não consegui descobrir de que maneira o desconhecido se sumiu. É certo que a entrada do labirinto era cheia de aberturas, fendas e rachas, portanto, seria fácil recuar e desaparecer de novo nas profundezas subterrâneas. Só sei que me encontrei cá fora nos degraus desertos de uma enorme montanha que lembrava um terraço de mármore, salpicada daquela vegetação de aparência tropical, em contraste com a pureza da rocha. Lembrava a invasão de plantas orientais que esporadicamente caem sobre as ruínas da clássica Hélada. Olhei para o imaculado do mar, para o Sol que brilhava, intenso, na solidão e no silêncio; nenhuma brisa agitava as ervas, não se avistava a sombra de um ser humano.
"Eu acabava de manter uma conversa terrível; tão íntima e tão particular, e, ao mesmo tempo, tão casual, num certo sentido Aquela criatura, sem corpo, nem rosto, nem nome, falara comigo nos confins das cavernas onde nos encontrávamos enterrado vivos num tom tão impessoal e desapaixonado como se estivéssemos sentados nos sofás de um clube. Mas também me afirmara que me mataria, sem dúvida, a mim ou a qualquer outro homem que estivesse na posse da cruz com a marca do peixe. Confessou-me francamente que não cometeria a loucura de me atacar ali, dentro do labirinto, pois sabia que eu tinha comigo um revólver carregado e que assim ele correria os mesmos riscos que eu. Mas declarou -me também com a mesma calma que iria planear a minha mort com a certeza do êxito, estudando todos os pormenores e todos os perigos com a minúcia que um artista chinês ou um especialista de bordados indianos põe nas suas obras. No entanto, tenho a certeza de que não se tratava de um oriental. Iria jurar que era um homem branco. Desconfio mesmo que seria um compatriota. A partir daí tenho recebido de tempos a tempos certos sinais e símbolos, estranhas mensagens anónimas, provando que se o sujeito é um louco é um monomaníaco. Está constantemente a lembrar-me, na sua maneira vaga, de que os preparativos da minha mort • e do meu funeral estão a correr de maneira satisfatória; e que o único processo de eu evitar que sejam coroados de êxito é entregar-lhe a relíquia que tenho em meu poder, ou seja a cruz única encontrada na caverna. Não me parece que ele manifeste qualquer fanatismo ou sentimento religioso em relação a ela; parece-me tratar-se apenas da paixão de um coleccionador de curiosidades. Isto leva-nu a crer que ele é um homem do Ocidente e não um oriental. Contu do essa curiosidade deve ter-lhe dado a volta à cabeça.
"E agora surge esta notícia, até este momento pouco pormenorizada, acerca da descoberta de um corpo embalsamado dentro de um túmulo no Sussex. Se o homem até ali era um maníaco, esta notícia transforma-o num ser demoníaco. Que existisse uma cruz nas mãos de outra pessoa, já era mau, mas que houvesse duas e nenhuma lhe pertencesse, isso seria uma tortura insuportável. As suas loucas mensagens começaram a chover como saraivadas de setas venenosas, declarando cada vez com maior certeza que eu morreria inevitavelmente na hora em que estendesse a mão criminosa para me apoderar da cruz achada no túmulo.
""O senhor nunca saberá quem eu sou, nunca conhecerá o meu nome", escreveu ele. "Nunca verá o meu rosto. Há-de morrer sem saber quem o matou. Encontrar-me-ei sob alguma forma entre as pessoas que o rodeiam; mas serei aquela para a qual o senhor se esqueceu de olhar."
"Destas ameaças deduzo que é muito provável que ele me venha a seguir secretamente nesta expedição; para me roubar a relíquia ou para me fazer algum mal pelo facto de eu a possuir. Mas como se trata de uma pessoa que eu nunca vi, ele pode ser qualquer sujeito que eu venha a conhecer. Logicamente, pode mesmo ser um dos criados que nos servem à mesa. - Ele pode até ser eu - sugeriu o padre Brown, com um nítido desrespeito pela gramática.
- Pode ser toda a gente - retorquiu Smaill muito sério. - Foi isso mesmo que eu quis dizer. O senhor é o único homem que eu tenho a certeza de não ser o inimigo.
O padre Brown pareceu mais uma vez embaraçado; depois sorriu e declarou:
- Pois bem, por estranho que pareça, não sou. Mas temos de considerar todas as maneiras de descobrir se ele se encontra ou não aqui antes que... antes que ele se mostre desagradável.
- Penso que há uma maneira de o descobrir - disse sombriamente o professor. - Logo que chegarmos a Southampton, alugo imediatamente um carro que me levará ao longo da costa; gostaria muito que o senhor me acompanhasse. Aparentemente, o nosso grupo vai dispersar-se. Se, no entanto, algum deles aparecer por lá nesse pequeno cemitério do Sussex, já saberemos de quem realmente se trata.
O programa do professor foi rigorosamente cumprido, pelo menos no que respeita ao carro e ao seu passageiro, o padre Brown. Seguiram pela estrada ao longo da costa, com o mar de um lado e as colinas do Hampshire e do Sussex do outro, sem que avistassem vestígios de qualquer perseguidor. Apenas nas imediações da aldeia de Dulham, encontraram um sujeito relacionado com o assunto; era um jornalista que acabava de visitar a igreja, amavelmente acompanhado pelo pároco até à capela recém-descoberta; mas as observações que fez eram do mais vulgar estilo jornalístico. No entanto, o professor Smaill, sempre desconfiado, não deixou de ver algo de estranho e preocupante na atitude do homenzinho, que era um tipo alto e esgalgado, com um nariz de papagaio e uns olhos encovados, além de uns bigodes pendentes que lhe conferiam um ar deprimido. Não parecia nada entusiasmado com a sua excursão, dava antes mostras de se querer afastar a passos largos do local, o mais depressa possível, quando os dois visitantes o fizeram deter com uma pergunta.
- Parece que se trata de uma maldição - explicou ele. - Uma maldição que paira sobre este local, segundo afirma o guia turístico, ou o padre, o mais velho habitante da aldeia, seja lá quem for que representa a autoridade sobre o assunto; e parece mesmo que é verdade. Com maldição ou sem ela, estou contente por ter saído dali para fora.
- O senhor acredita em maldições? - quis saber Smaill, cheio de curiosidade.
- Eu cá não acredito em nada, sou jornalista - respondeu o melancólico sujeito. - Chamo-me Boon, do Daily Wire. Mas naquela cripta há qualquer coisa que causa arrepios. E não nego que foi isso o que senti. - E lá seguiu para a estação do caminho -de-ferro, com um passo ainda mais apressado.
- Aquele tipo parece um corvo - observou Smaill enquanto se dirigiam para o cemitério. - Não chamam agoirentas a essas aves?
Entraram no cemitério, caminhando lentamente. O arqueólogo americano olhava, extasiado, para o velho pórtico e para as ramadas negras e insondáveis dos teixos que pareciam desafiar a luz do dia. O caminho subia entre sucalcos de terra, sobre os quais as lajes fúnebres jaziam colocadas em diversos ângulos como jangada de pedra a vogar sobre um mar de verdura até à beira da ravina. Para além desta, o verdadeiro oceano estendia-se qual chapa de ferro, com chispas de luz que brilhavam como aço. Quase aos pés deles, começava um emaranhado de arbustos marinhos, que ter minava na faixa de areias escuras e amareladas; e um pouco à frente dos arbustos sobressaía uma figura imóvel que se recortava sobre a cor plúmbea do mar. Se não fosse a cor cinzenta do fato dir -se-ia tratar-se de uma estátua fúnebre. Porém, o padre Brown em breve reconheceu aqueles ombros elegantemente descaídos e um ar um tanto agressivo da barba pontiaguda.
- Caramba! - exclamou o professor de Arqueologia. - Diabo-me levem se aquele não é Tarrant! - Eu não disse lá no barco que não tardava que tivéssemos a resposta às minhas dúvidas?
- Eu sempre pensei que o senhor iria ter várias respostas - retorquiu o padre Brown.
- Que quer dizer com isso? - inquiriu o professor, lançando -lhe um olhar de viés.
- Quero dizer - ripostou o outro suavemente - que me parece estar a ouvir vozes atrás das árvores. Acho que o Sr. Tarrant não deve estar tão solitário como quer dar a entender...
Enquanto este se voltava, sempre com o seu ar sombrio, veio a confirmação das palavras do padre. Uma voz dura e aguda, mas sem dúvida alguma feminina, exclamava com estudada ironia:
- Mas como poderia eu saber que ele estava aqui?
O professor Smaill percebeu logo que esta alegre observação não lhe era dirigida, por isso teve de concluir que havia ali uma terceira pessoa. Quando Lady Diana surgiu alegre e resoluta, como sempre, da sombra da árvore, ele notou que ela trazia consigo outra sombra humana. A figura esbelta e insinuante do homem de letras vinha imediatamente atrás da silhueta extravagante da senhora, todo sorridente, com a cabeça um pouco de lado como um cachorrinho.
- Bolas! - exclamou Smaill. - Cá estão eles todos. Todos, menos o palhaço com os bigodes de foca.
Ouviu o padre Brown rir baixinho nas suas costas: de facto, a situação tornava-se deveras cómica, como se se tratasse de um efeito de teatro. Porque enquanto o professor falava, as suas palavras sofriam amais cómica das contradições. Uma cabeça redonda ornada de uns bigodes negros e grotescos acabava de aparecer como se surgisse de um buraco do chão. Dali a pouco, ambos perceberam que se tratava de facto de um buraco, um buraco enorme, com uma escada de mão que descia para as profundezas do solo; era esta afinal a entrada para o subterrrâneo que eles vinham visitar. O homenzinho dos bigodes fora o primeiro a descer um ou dois degraus da escada e voltara a pôr a cabeça de fora para se dirigir aos companheiros. Só fazia lembrar um coveiro estapafúrdio numarepresentação do Hamlet. O que ele disse, através dos espessos bigodes, foi apenas isto:
- É cá em baixo.
Porém, neste momento, se bem que durante a viagem, que durara uma semana, ele se sentasse na frente de todos, às refeições, só agora se davam conta de que nunca o tinham ouvido falar; e, muito embora ele passasse por ser um professor inglês, a verdade, é que falava com um estranho sotaque estrangeiro.
- Bem vê, meu caro professor - exclamou Lady Diana com vivacidade -, a sua múmia bizantina era demasiado excitante para se perder. Eu tinha forçosamente de aqui vir para a ver; e tenho a certeza de que estes senhores pensaram da mesma forma. Tem de nos contar tudo que sabe a seu respeito.
- Não sei tudo a seu respeito - respondeu o professor num tom grave, para não dizer soturno. - Em alguns aspectos posso mesmo dizer que ignoro tudo. Parece sem dúvida estranho que nos tenhamos reencontrado todos tão depressa, contudo, suponho que, hoje em dia, a sede de informação não conhece limites. Mas se estamos aqui reunidos para visitar o local, acho bem que o façamos de uma maneira responsável e, se me permitem, sob uma direcção responsável. Temos de contactar com quem quer que esteja encarregado das escavações; pelo menos, teremos de escrever os nossos nomes num registo.
Neste momento sentia-se como que um desafio entre a impaciência da dama e as suspeitas do arqueólogo, mas, por fim, estas acabaram por prevalecer. O homem dos bigodes voltou a sair do buraco de má vontade e concordou tacitamente em fazer uma descida menos impetuosa. Entretanto, o vigário apareceu, um cavalheiro bem-parecido e de cabelos grisalhos, com um pescoço curvado que o peso dos óculos duplos acentuava ainda mais. Enquanto ele estabelecia com o arqueólogo amistosas relações de camaradagem, parecia observar aquele heteróclito grupo que o acompanhava com um ar apenas divertido.
- Espero que nenhum destes senhores seja dado a superstições. Para começar, devo dizer-lhes que impende toda a espécie de maldições e maus presságios sobre as cabeças de todos aqueles que se interessam por estes assuntos. Acabei justamente de decifrar uma inscrição latina que se encontra por cima da entrada da capela e parece que há pelo menos três maldições: uma para quem entre na cela fechada; uma segunda para quem abrir o caixão e uma terceira para quem tocar na relíquia de oiro que se encontra dentro. Nas duas primeiras, já eu incorri - acrescentou com um sorriso -, mas receio que também vocês tenham de incorrer nela se quiserem ver alguma coisa. Segundo a lenda, as maldições ocorrem de longe em longe, com largos intervalos e muito mais tarde. Não sei se isto vos consola. - E o Sr. Walters sorriu mais uma vez com o seu modo benevolente.
- Lenda? - quis saber o professor Smaill. - Que lenda vem a ser essa?
- É uma história longa e, tal como todas as lendas, tem algumas variantes - explicou o vigário. - Mas remonta, sem dúvida às origens do túmulo; encontra-se resumida na inscrição e reza mais ou menos assim: Guy de Gisors, senhor do solar, que aqui existia no século XIII, cobiçava um certo cavalo preto pertencente a um embaixador de Génova, um príncipe, de espírito bastant prático, o qual só o venderia por um preço deveras elevado. Cego pela ambição, Guy tratou de pilhar o escrínio e, segundo diz a lenda, foi ao ponto de matar o bispo que então aqui residia. Seja como for, o bispo lançou uma maldição que recairia sobre todo aquele que estivesse na posse da cruz de oiro ou fizesse qualquer tentativa para se apossar dela, depois de ela ter regressado aqui. O senhor-feudal conseguiu obter o dinheiro necessário para a compra do cavalo, vendendo a cruz a um ourives da cidade; porém, no primeiro dia em que montou o animal este empinou-se e atirou com ele ao chão, em frente do pórtico da igreja, quebrando-lhe a espinha. Entretanto, o ourives, até ali rico e próspero, ficou arruinado mercê duma série de acidentes inexplicáveis e acabou por cair nas garras de um judeu usurário que vivia no solar. Reduzido à fome o infeliz ourives veio a enforcar-se numa macieira. A cruz de oiro bem como todos os seus pertences, incluindo a casa, a loja, e as respectivas ferramentas, há muito haviam passado para as mãos do usurário. A certa altura, o filho e herdeiro do senhor feudal, impressionado com o castigo que atingira o seu sacrílego progenitor tornara-se um fanático da religião, naquele sentido primitivo e rude, comum na época. Resolveu, pois, castigar e perseguir toda forma de heresia entre os seus vassalos. Deste modo, o judeu, que havia sido cinicamente tolerado pelo pai, foi mandado queimar sem dó nem piedade pelo filho. Assim este, por sua vez, também veio a sofrer, em virtude da posse da relíquia; e após estes três castigos a cruz regressou ao túmulo do bispo e, desde então, nunca mais foi vista nem tocada por olhos ou mãos humanas até ao dia de hoje.
Lady Diana mostrava-se mais impressionada pela história que seria de esperar.
- De facto, isto causa arrepios - declarou. - Pensar que somos nós os primeiros, com excepção do vigário...
O pioneiro dos bigodes e do sotaque estrangeiro acabou por não descer pela escada de madeira, que na verdade servira apenas aos operários que haviam trabalhado na escavação; o vigário conduziu o grupo para uma entrada mais favorável, que ficava a cem metros dali e donde ele saíra havia pouco. A desci da não oferecia outras dificuldades além da escuridão, que era cada vez maior; não tardou que seguissem todos em fila indiana através de um túnel, onde a escuridão era total. Só dali a um bocado avistaram um raio de luz. Durante essa marcha silenciosa ouviu-se a certa altura o ruído de alguém que sustém a respiração, mas era impossível saber-se quem. De outra vez, foi um dos visitantes que soltou uma praga, mas num inglês sem sotaque.
Por fim, chegaram a um recinto circular, semelhante a uma nave com um círculo de arcadas em volta; aquela capela fora construída antes que o arco pontiagudo de estilo gótico tivesse furado a nossa civilização como uma lança. Um clarão esverdeado entre dois pilares marcava o sítio da outra abertura que dava para o inundo exterior e produzia a sensação de se estar debaixo do mar, sensação esta a que vinha acrescentar-se um ou dois pormenores de certo modo fantásticos, como seja a estrutura tradicional da arquitectura normanda, bem visível com as suas saliências em forma de dentes ao redor dos arcos e que lhes conferia o aspecto de outras tantas bocas escancaradas de enormes tubarões. Ao centro, o bojo negro do próprio túmulo, com o seu alçapão de pedra levantado, fazia lembrar as mandíbulas de algum monstro marinho.
Seja porque achasse esse tipo de iluminação mais adequado ou porque lhe faltassem os meios técnicos modernos, o certo é que pároco-arqueólogo escolhera para iluminar o local apenas quatro velas espetadas em quatro altas tocheiras de madeira. Quando entraram, apenas uma delas estava acesa e a sua luz alumiava escassamente as altas abóbodas que formavam a arquitectura do recinto. Logo que todos ficaram reunidos, o vigário acendeu os outros três castiçais e assim os visitantes puderam observar melhor o sarcófago e o seu conteúdo.
Os olhos de todos puderam assim fixar-se no rosto do cadáver, conservado através dos séculos, mercê de algum processo secreto do Oriente, segundo parecia, transmitido pela antiguidade pagã. mas desconhecido agora na nossa ilha. O professor mal conseguiu conter uma exclamação de espanto; aquela face, branca como a cera, mais parecia a de um homem que acabasse de adormecer. Era um rosto ascético, talvez mesmo do tipo fanático, com os ossos da face salientes; o corpo estava coberto por vestes de cores vivas e envolto numa capa de tecido dourado. Sobre o peito, junto à garganta, brilhava a famosa cruz de oiro, pendente de um cordão curto também de oiro, ou melhor, de um colar. A tampa do sarcófago fora erguida do lado da cabeça e mantinha-se apoiado em dois barrotes enfiados nos cantos superiores do túmulo. Portanto, pouco se podia ver da parte inferior, ou seja, dos pés do corpo, mas a luz incidia em cheio sobre a face; em contraste com o tom lívido da pele. a cruz de oiro cintilava como fogo.
Desde que o vigário aludira à história da maldição, na testa vasta do professor Smaill, cavara-se uma ruga profunda, que revelava preocupação. Porém, o sexto sentido feminino aliado, talvez, a um toque de histerismo, compreendeu melhor esse sentimento que os homens ali presentes. Assim, no meio do silêncio que reinava na cripta alumiada pelas velas, Lady Diana gritou súbitamente:
- Cuidado, não lhe toque!
O professor, porém, fizera já um dos seus rápidos movimentos leoninos, curvando-se sobre o sarcófago. No mesmo instante, todos os presentes deram um salto, uns para a frente, outros para trás, mas todos encolhendo a cabeça entre os ombros, como si receassem que o céu lhes caísse em cima.
Mal o professor tocara com os dedos na cruz de oiro, os dois barrotes que seguravam a tampa do sarcófago e que se achavam ligeiramente curvados com o peso, saltaram para fora e a tampa de pedra caiu do seu suporte. O espírito e o estômago dos circunstantes sofreram uma sensação como se tivessem sido atirados para um precipício. Smaill ainda tentara fugir com a cabeça, mas demasiado tarde; encontrava-se agora estendido ao lado do velho sarcófago, numa poça de sangue que lhe jorrava da testa. E o sarcófago fechara-se de novo, tal como se mantivera durante séculos; apenas uma ou duas lascas de madeira haviam ficado entaladas nas fendas, lembrando ossos triturados por um ogre. O monstro fechara de novo as suas mandíbulas de pedra.
Lady Diana contemplava a tragédia com um brilho eléctrico nos olhos que tinha algo de loucura; a sua cabeleira ruiva parecia escarlate junto à palidez das faces que a luz esverdeada acentuava. Smyth fitava-a, sempre com aquele jeito canino da cabeça; porém, a sua expressão era mais a de um discípulo que olha o mestre sem compreender bem o sentido da catástrofe que ele provocou. Tarrant e o estrangeiro tinham mais uma vez assumido as suas habituais atitudes sombrias, só que os seus rostos estavam agora de uma cor terrosa. O vigário parecia ter desmaiado. Ajoelhado junto do corpo do ferido, o padre Brown procurava verificar o seu estado. Com grande surpresa de todos, Paul Tarrant, o janota byroniano, aproximou-se para o ajudar.
- Seria melhor levá-lo lá para fora - sugeriu ele. - Talvez consiga escapar.
- Não está morto, mas penso que o seu estado é muito grave - declarou o padre Brown em voz baixa. - O senhor, por acaso, não é médico?
- Não, mas já tive de fazer face a muitos casos destes durante a minha vida - respondeu o outro. - Isso agora não interessa. Talvez se admire quando souber a minha verdadeira profissão.
- Não me vou admirar - replicou o padre com um sorriso. - Descobri qual era a meio da viagem. O senhor é um detective e anda a vigiar alguém. Bem, de qualquer modo, a cruz, agora, está ao abrigo dos ladrões.
Enquanto falavam, Tarrant levantara a figura franzina do ferido com espantosa força e habilidade e levara-o com todos os cuidados em direcção à saída. Respondeu por cima do ombro:
- Sim, a cruz, ao menos essa, está a salvo.
- Quer dizer com isso que mais ninguém está - replicou o padre Brown. - Também o senhor pensa na maldição?
Durante as duas horas que se seguiram o padre Brown andou obsecado com um problema que ultrapassava o choque do trágico acidente ocorrido. Ajudou a transportar a vítima para a pequena estalagem que ficava em frente da igreja, conferenciou com o médico, que considerou o ferimento muito grave e perigoso, mas não necessariamente fatal, e ao mesmo tempo ia transmitindo as notícias ao pequeno grupo dos viajantes que se juntara em volta da mesa, na sala da estalagem. Mas fosse onde fosse que estivesse, pairava sempre sobre ele a nuvem da mistificação, que parecia adensar-se quanto mais ele reflectia acerca do assunto. O mistério central tornava-se cada vez mais misterioso à medida que os mistérios menores se iam resolvendo na sua cabeça. À medida também que o significado das diversas figuras daquele grupo heterogéneo se iam explicando, o caso que sucedera tornava-se mais difícil de desvendar. Leonard Smyth viera, sem dúvida, porque Lady Diana tinha vindo; e Lady Diana tinha vindo porque muito bem lhe apetecera. Havia entre eles aquela relação de namoro que tantas vezes se verifica em sociedade e que é bastante ridícula por assumir um certo aspecto semi-intelectual. No entanto, o romantismo da senhora não estava isento de um toque de superstição, por isso ficara seriamente abalada com o desfecho terrível da sua aventura. Paul Tarrant era um detective particular, possivelmente contratado por um marido ou por uma esposa para espiar aqueles amores; é provável, também, que andasse a espiar o professor estrangeiro dos bigodes, que tinha todo o ar de um estranho indesejável. Mas se acaso ele ou qualquer outra pessoa tinham a intensão de roubar a jóia, o seu objectivo falhara. E, segundo as aparências, o que o fizera falhar fora uma coincidência extraordinária ou então a força da velha maldição.
Quando o padre se encontrava no meio da rua, entre a estalagem e a igreja, teve um choque de surpresa ao avistar uma figura que lhe era de há pouco familiar, mas que não esperava encontrá-la ali a subir a rua. Boon, o jornalista, parecia ainda mais esquelético à luz do Sol, com a sua indumentária desleixada, que lhe davam o aspecto de um espantalho. Os seus olhos negros e encovados muito aproximados um do outro de cada lado do nariz adunco, irritavam o padre. Este teve de o observar atentamente para se certificar de que aquilo que via por debaixo dos bigodes pretos e caídos era um melancólico sorriso.
- Pensei que o senhor se ia embora daqui - observou o padre Brown, não sem uma certa severidade. - Pensei que tinha tomado o comboio há duas horas.
- Sim, mas como vê estou aqui.
- Então por que voltou? - perguntou o padre secamente.
- É que esta terrinha não é propriamente aquele paraíso rural que o repórter abandona com facilidade - replicou o outro. - As coisas aqui sucedem-se com demasiada rapidez para que valha a pena regressar a um sítio tão chato como Londres. Além disso, ninguém pode agora deixar-me fora deste caso; refiro-me ao segundo caso. Fui eu que encontrei o corpo, ou, pelo menos, as roupas. Foi uma atitude suspeita da minha parte, não acha? Talvez pense que eu quisesse vesti-las. Não acha que eu daria um vigário jeitoso?
E o tipo esgalgado e narigudo assumiu subitamente uma posição grotesca no meio da praça; abriu os braços, espalmando as mãos cobertas por umas luvas pretas, e, num gesto cómico de bênção, declamou:
- Meus caros irmãos, seria meu desejo abraçar-vos a todos...
- Que está o senhor para aí a dizer? - exclamou padre Brown, batendo levemente com o guarda-chuva nas pedras da calçada. Sentia-se um pouco menos paciente do que lhe era habitual.
- Oh, se quiser saber tudo, vá perguntar ao seu grupo excursionista que está aí na estalagem - replicou Boon com ar enfadado. - Esse sujeito de nome Tarrant parece desconfiar de mim só porque fui eu quem encontrou o fato; também poderia ter sido ele, se chegasse um minuto mais cedo. Mas este caso está cheio de mistérios. O sujeitinho dos bigodes deve ter mais que se lhe diga do que parece. E, já agora, até o senhor podia ter morto o homem...
O padre Brown não se mostrou nada aborrecido com a primeira sugestão, porém, perturbou-o deveras a segunda hipótese. E inquiriu com simplicidade:
- Está a querer dizer que fui eu quem tentou matar o professor Smaill?
- De modo algum! - retorquiu o outro com o ar de quem faz uma amável concessão. - Tem outros mortos por onde escolher. Não sabe então que apareceu alguém bastante mais morto que o professor Smaill? E não vejo por que razão o senhor não havia de querer acabar com ele, nas calmas. Diferenças de religião, está-me a compreender?... Alamentável desunião da cristandade... calculo que é o seu desejo ver as paróquias inglesas voltarem ao redil...
- Vou para a estalagem - declarou calmamente o padre. - Você diz que as pessoas que lá estão sabem o que aconteceu e talvez me queiram explicar.
Na verdade, depois disto, as suas secretas dúvidas dispersaram-se momentaneamente com a notícia de uma nova calamidade. No momento em que entrou na pequena sala da estalagem, onde se achava reunido o resto do grupo, qualquer coisa que viu naquelas faces pálidas revelou-lhe que se encontravam abalados por algo que se passara depois do acidente do túmulo. Nesse preciso instante Leonard ia dizendo:
- Será que isto não vai nunca ter fim?
- Não vai ter fim, garanto-lhe, e vai ser o fim de todos nós - repetia Lady Diana, fitando o vácuo com os seus olhos vítreos. - Vamos ser vítimas da maldição, um por um; talvez leve tempo, segundo dizia o pobre do vigário; mas vai acabar connosco, tal como acabou com ele.
- Mas que foi que aconteceu agora? - perguntou o padre Brown.
Seguiu-se um silêncio, até que Tarrant murmurou com uma voz rouca:
- O Sr. Walters, o vigário, suicidou-se. Acho que ficou abalado com o choque. Mas não deve haver dúvida, Encontrámos o chapéu preto dele e a roupa, num rochedo saliente da praia. Deve ter-se atirado ao mar. Pensei que ele tinha ficado meio perturbado e talvez nós devêssemos tê-lo vigiado; mas havia tanta coisa a preocupar-nos...
- Você não podia fazer nada!-interrompeu a senhora. - Não vê que a sentença de morte vai seguindo uma ordem terrível? O professor tocou na cruz e foi o primeiro; o vigário tinha aberto o túmulo e foi o segundo; nós só penetrámos na capela e vamos...
- Basta! - ordenou o padre Brown numa voz severa que raramente utilizava. - Temos de acabar com isto!
Continuava a franzir o sobrolho, embora inconscientemente, mas nos seus olhos desaparecera a incerteza para dar lugar a um ar de terrível compreensão.
- Que louco eu fui! - murmurou. - Devia ter visto logo. Essa história de maldição explica tudo.
- Quer o senhor dizer - interrogou Tarrant - que podemos na verdade ser mortos por algo que sucedeu no século XIII?
O padre Brown abanou a cabeça e respondeu devagar e com ênfase:
- Não discuto se podemos ou não ser mortos por algo que sucedeu no século XIII; mas tenho a certeza absoluta que não podemos ser mortos por algo que nunca sucedeu no século XIII, algo que nunca aconteceu.
- Bem - respondeu Tarrant -, é refrescante encontrar um padre tão céptico acerca do sobrenatural!
- De modo algum - replicou o padre Brown. - Não é da parte sobrenatural que eu duvido, mas sim da parte natural. Encontro-me exactamente na posição do homem que diz: "Posso acreditar no impossível, mas não no improvável!"
- E a isso que se chama um paradoxo, não é verdade? - perguntou o outro.
- Chamo a isso senso-comum, como ele deve ser entendido - replicou o padre Brown. - É mais natural acreditarmos numa história sobrenatural relacionada com coisas que não entendemos, que numa história natural que contradiz aquelas coisas que todos entendemos. Se me disserem que o grande Gladstone, nos seus últimos momentos, era perseguido pelo fantasma de Parnell, ficarei céptico. Mas se me disserem que o Sr. Gladstone, quando foi apresentado à rainha Vitória, não tirou o chapéu ao entrar no salão, lhe deu uma palmada no traseiro e lhe ofereceu um charuto, aí já não sou apenas céptico. Não se trata de uma coisa impossível, mas sim incrível. Contudo, não estou muito mais certo de que isso não aconteceu que em relação ao facto do fantasma de Parnell; porque esse caso viola as leis do mundo que eu entendo. O mesmo acontece com a história da maldição. Não é a lenda que me faz desconfiar, mas sim a história.
Lady Diana recompusera-se um pouco do seu transe de Cassandra e a eterna curiosidade que nutria pelas coisas novas começou novamente a transparecer nos seus olhos vivos e proeminentes.
- O senhor é um homem muito esquisito! Por que é que não quer acreditar na história?
- Não acredito na história porque aquilo não é história-respondeu o padre Brown. - Para quem souber alguma coisa acerca da Idade Média, aquilo afigura-se tão provável como a hipótese de Gladstone oferecer um charuto à rainha Vitória. Mas será que alguém conhece alguma coisa da Idade Média? Alguém sabe o que era uma Guilda?Já ouviram falar do salvo managio suo? Sabem que espécie de pessoas eram os Servi Regis?
- Não, eu cá não sei - respondeu a senhora, um tanto agastada. - O que vai aí de latinório!
- Pois é, não sabe -retorquiu o padre Brown. - Se se tratasse de Tutankhamon e de uma data de múmias africanas, conservadas sabe-se lá por que processo no outro extremo do mundo; se se tratasse da Babilónia ou da China, ou de qualquer raça tão remota como o Homem da Lua, os jornais tratariam de revelar tudo a seu respeito até à mais recente descoberta de uma escova de dentes ou de um botão de colarinho. Porém, quanto aos homens que construíram as nossas igrejas, deram nome às nossas cidades e ofícios e às ruas por onde caminhamos, acerca desses, ninguém se lembra de investigar nada. Quanto a mim, não preciso de saber muito, mas sei o bastante para ver que essa história é uma aldrabice do princípio ao fim. Era ilegal um usurário apoderar-se da oficina e das ferramentas de um operário. É altamente improvável que a Guilda o não tivesse salvo de tamanha desgraça, especialmente se esta fosse causada por um judeu. As pessoas daquele tempo tinham os seus vícios e as suas tragédias; por vezes chegavam a torturar e a queimar gente. Mas a ideia de ter havido um homem que se arrastasse na vida sem eira nem beira e acabasse por morrer de fome porque ninguém se importava com ele, não é coisa própria da Idade Média. Um judeu nunca seria vassalo de um senhor feudal. Os judeus desfrutavam normalmente de um estatuto especial como servos do rei. E, finalmente, nenhum judeu seria queimado por causa da sua religião.
- Os paradoxos multiplicam-se - observou Tarrant. - Mas o senhor não vai negar que os judeus eram perseguidos na Idade Média...
- Seria mais exacto afirmar-retorquiu o padre Brown - que eles eram as únicas pessoas que não sofriam perseguições nessa época. Se quisermos censurar o medievalismo poderemos dizer que alguns pobres cristãos foram queimados vivos por terem cometido erros em relação ao Homoousion (1), enquanto um judeu rico era livre de passear pelas ruas falando mal de Jesus Cristo e da mãe de Deus. Ora bem, a história é isto. A outra nunca foi uma história dos tempos medievais; nem sequer uma lenda. Foi antes inventada por alguém cujos conhecimentos provinham dos romances e dos jornais e, provavelmente, até forjada naquele próprio momento.
Os outros ficaram um pouco baralhados com aquela digressão histórica e pareciam estranhar que o padre lhe desse tanta importância e a considerasse uma parte do enigma. Tarrant, porém, cuja profissão era tomar notas e seleccionar os pormenores práticos,
(1) Teoria teológica. (N. da T.)
arrebitara logo a orelha, espetara ainda mais o queixo barbudo, de olhos muito arregalados.
- Ah! - exclamou. - Foi então forjada no próprio momento.
- Talvez isso seja um pouco de exagero - confessou calmamente o padre Brown. - Direi antes que não foi inventada com tanto cuidado como o resto deste caso estranho. Acho que o seu autor nunca pensou que os pormenores da sua história medieva pudessem ter importância aos olhos de alguém. E, de um modo geral, este seu cálculo não deixava de estar certo, tal como os outros.
- Quais cálculos? Que é que não deixava de estar certo? -inquiriu a dama num assomo de impaciência.-De quem está o se nhor a falar? Já passámos bastantes sustos para que nos venha ainda causar mais calafrios com os seus enigmas.
- Refiro-me ao assassino - explicou o padre Brown.
- Qual assassino? - perguntou ela muito assanhada. - Está a dizer que o pobre do professor foi assassinado?
- Bem - resmungou Tarrant por entre a barba. - Não podemos dizer "assassinado" porque não sabemos se ele vai morrer.
- O assassino matou outra pessoa que não é o professor - declarou gravemente o padre.
- Quê? Quem mais poderia ele matar? - quis saber o outro.
- Matou o reverendo John Walters, vigário de Dulham - replicou o padre com precisão. - Só pretendia matar aqueles dois visto estarem na posse de relíquias de um feitio muito raro. O assassino era uma espécie de monomaníaco nesse aspecto.
- Tudo isto parece muito estranho - murmurou Tarrant. - É certo que não podemos afirmar que o vigário tenha morrido. Ainda não vimos o seu cadáver.
- Oh, já vimos, sim - declarou o padre Brown. Seguiu-se um silêncio tão repentino como após a badalada do gongo, um silêncio durante o qual a revelação produzida pelo subconsciente, tão apurado nas mulheres, quase fez que esta soltasse um grito.
- Foi isso mesmo o que vocês viram - prosseguiu o padre. Viram o seu cadáver. Nunca o tinham visto antes... o verdadeiro enquanto vivo. Mas viram-no depois de morto. Estiveram a olhar para ele, à luz daquelas quatro tochas; ele não se suicidou atirando-se ao mar, foi, sim, exibido em grande pompa, como um príncipe da igreja antes das Cruzadas.
- Em resumo - exclamou Tarrant -, o senhor quer fazer-nos crer acreditar que o cadáver embalsamado era, na realidade, o corpo de um homem assassinado.
O padre Brown calou-se por momentos e depois recomeçou como que a despropósito:
- A primeira coisa que me saltou avista foi a cruz. Ou melhor. o cordão em que estava suspensa. É claro que, para qualquer de vós, aquilo era apenas um colar de contas, sem nada de especial; mas também é certo que isso era mais da minha especialidade. Recordam-se que ficava muito rente ao pescoço, só deixando ver algumas contas, como se fosse bastante curto. Essas contas, porém, estavam arranjadas de um modo especial, primeiro uma, depois três e assim por diante; de facto, vi logo que se tratava de um rosário com uma cruz na ponta. Mas um rosário tem, pelo menos, cinco décadas de contas e mais algumas, e logo perguntei a mim mesmo onde estariam as outras. Seriam suficientes para dar mais de duas voltas ao pescoço do sujeito. De momento não percebi e só depois é que adivinhei onde estavam. Tinham sido enroladas em volta do pé da trave que segurava a tampa de pedra e que estava enfiada no canto do sarcófago. Assim, quando o pobre Smaill puxou pela cruz, a trave saltou do seu lugar e foi bater-lhe na cabeça como um maço de pedra.
- Cos diabos! Começo a perceber o que há de verdade no que o senhor diz. Se for exacta é uma história muito estranha.
- Quando descobri isto - prosseguiu o padre -, consegui adivinhar mais ou menos o resto. Em primeiro lugar lembrem-se de que nunca apareceu nenhuma autoridade em matéria de arqueologia, a não ser no que respeita à investigação. O pobre do Walters era apenas um curioso de antiguidades. Estava empenhado em abrir o túmulo, a fim de descobrir se havia algo de verdade na lenda dos corpos embalsamados. O resto não passava de boatos, como tantas vezes acontece, que exageram ou alteram as descobertas. Na realidade, o que ele descobriu é que o corpo não fora embalsamado e há muito que se encontrava desfeito em pó. Só que, enquanto ele trabalhava ali, sozinho, na cripta, à luz da vela, esta projectou outra sombra que não era a dele...
- Ah! - exclamou Lady Diana num grito sufocado. - Agora percebo o que o senhor quer dizer. Está a explicar que nós estivemos com o assassino, conversámos com ele, ouvimos a história romântica que ele nos impingiu e deixámo-lo ir embora...
- Para que ele pudesse largar o seu disfarce de padre em cima de um rochedo - terminou o padre Brown. - Foi tudo horrivelmente simples. O sujeito conseguiu chegar primeiro que o professor na corrida para o cemitério, talvez enquanto ele falava com aquele sinistro jornalista. Encontrou o velho vigário junto do túmulo vazio e matou-o. Depois vestiu-o com as vestes negras do defunto, embrulhou-o numa capa que fora descoberta nas escavações e meteu-o no sarcófago. Depois, prendeu o rosário na trave tal como eu vos descrevi. Tendo assim deixado a armadilha preparada para a sua segunda vítima veio até cá acima ao nosso encontro e acolheu-nos com a amável delicadeza que é própria de um padre de província.
- Corria um risco tremendo-observou Tarrant -, no caso de alguém conhecer Walters de vista.
- Admito que ele fosse meio louco - concordou o padre Brown. - E penso que vocês compreendem que lhe valia a pena correr esse risco, uma vez que, ao cabo e ao resto, conseguiu escapar.
- O que eu acho é que ele teve muita sorte! -resmungou Tarrant. - Mas afinal quem era ele?
- Diz muito bem, ele teve muita sorte - retorquiu o padre Brown -, sobretudo nesse aspecto. Porque aí está uma coisa que nunca conseguiremos saber -
baixou os olhos para a mesa durante uns momentos e depois prosseguiu: - Esse sujeito andou a perseguir e a ameaçar durante anos, mas a única coisa que ele tinha o cuidado de nunca dar a saber era a sua identidade; e conseguiu manter esse segredo. No entanto, se o pobre do Smaill conseguir escapar desta, estou certo de que o tipo voltará a dar sinal de vida.
- E o que pensa o senhor que o professor Smaill irá fazer? - perguntou Lady Diana.
- Acho que a primeira coisa que ele vai fazer será arranjar detectives para descobrir esse demónio assassino. Cá por mim, bem gostava de ajustar contas com ele - declarou Tarrant.
- Bem - observou o padre Brown, sorrindo pela primeira vez depois de longa cogitação -, eu creio saber o que ele devia fazer primeiro do que tudo.
- E qual é essa coisa? - quis saber Lady Diana num tom de amável curiosidade.
- Devia pedir desculpas a todos vós - respondeu o padre.
Mas não foi sobre esse assunto que o padre Brown veio a dissertar com o professor Smaill, junto da cama deste, durante a lenta convalescença do eminente arqueólogo. Nem sequer foi o padre Brown quem mais falou; porque embora o doente não tivesse licença para falar muito tempo, reservava-o quase todo para as suas entrevistas com o seu amigo eclesiástico. O padre Brown tinha um talento especial para escutar, o que animava Smaill a discorrer acerca de muitas coisas estranhas sobre as quais nem sempre é fácil falar; tais como as fases mórbidas da sua recuperação e os sonhos assustadores que muitas vezes acompanham o delírio. Por vezes, torna-se difícil recuperar o equilíbrio a seguir a uma pancada violenta na cabeça; e quando essa cabeça é tão interessante como a do professor Smaill até as suas perturbações e distorções conseguem ser originais e curiosas. Os sonhos dele eram como que vastos e ousados esquemas de um desenho, semelhantes àqueles que vemos nas artes primitivas que ele estudava; eram povoados de estranhos mantos, com resplendores quadrados e triangulares, com as suas coroas douradas em cima dos rostos negros e chatos, com águias orientais, homens barbudos com esquisitos penteados femininos. Só que, confessou ele ao seu amigo, havia um tipo muito mais simples e compreensível que todos os outros que a sua memória imaginativa lhes apresentava constantemente. Todos esses desenhos bizantinos desapareciam como ouro derretido pelo fogo para darem lugar a uma parede de rocha negra sobre a qual se via desenhada a figura de um peixe, como se fosse traçado com um dedo molhado na fosforescência dos mares. Era aquele sinal que ele contemplara no momento em que voltara a curva da galeria escura onde ouvira pela primeira vez a voz do seu inimigo.
- Até que enfim - confessou -Julgo ter descoberto o significado do desenho e da voz, coisa que até agora não tinha percebido. Por que me hei-de preocupar só porque um louco, entre um milhão de homens mentalmente sãos, me insulta e persegue, e me pretende matar? Aquele que desenhou na catacumba o símbolo de Cristo foi perseguido de maneira diferente. Nessa altura, era ele o louco solitário e toda a sociedade composta por homens mentalmente sãos estava ligada, não para o salvar, mas sim para lhe dar a morte. Muitas vezes, dei voltas à cabeça para saber se o meu perseguidor seria este ou aquele: podia ser Tarrant, podia ser Smith, podia ser qualquer um. E se fossem todos eles? Se fosse toda a gente que vinha no barco, todos os que viajavam no comboio, toda a gente da aldeia? Suponhamos que, em relação a mim, eram todos assassinos. Eu pensava que tinha o direito de me sentir assustado por que andava a rastejar nas entranhas da terra, às escuras, e havia um homem que queria dar cabo de mim. E o que sentiria eu se esse malvado estivesse cá fora, possuísse toda a terrra e fosse senhor das multidões? Como seria, se ele tivesse o poder de parar a terra, de me extrair do meu buraco, de me liquidar logo que eu pusessse o nariz de fora? Qual seria a sensação de encarar o assassino a essa escala? O mundo esqueceu todas estas coisas, tal como até há pouco havia esquecido a guerra.
- Sim - mumrurou o padre Brown. - Mas a guerra veio. O peixe pode ser obrigado a ocultar-se de novo debaixo da terra, mas voltará uma vez mais à superfície. E, tal como diz, com espírito, Santo António de Pádua: "Só os peixes sobrevivem ao Dilúvio."
O PUNHAL ALADO
Durante um certo período da sua vida, o padre Brown não conseguia pendurar o chapéu num cabide sem sentir um pequeno calafrio. Esta reacção era fruto de um pormenor inserido em acontecimentos deveras complicados; mas foi talvez esse pequeno pormenor que a sua memória reteve para lhe recordar todo caso no meio da sua vida tão ocupada. A sua remota origem pode atribuir-se aos factos que levaram o Dr. Boyne, médico da polícia, a recorrer ao padre numa fria manhã de Dezembro.
O Dr. Boyne era um irlandês alto e moreno, daqueles que se encontram por todo o lado, a discorrer grandes palavreados, a exibir as suas teorias científicas, caóticas, cínicas e materialistas mas sem nunca se referir a nada relacionado com os ritos da religião, a não ser os da religião tradicional praticada no seu próprio país. Torna-se difícil dizer se essa crença não passa de um verniz superficial ou se, pelo contrário, ela representa um substrato fundamental; deve tratar-se das duas coisas com uma grande dose de materialismo pelo meio. De qualquer modo, quando o nosso doutor pensava que poderia estar em causa qualquer destes dois aspectos apelava para o padre Brown, muito embora fingisse que não era isso o que o interessava especialmente.
- Não tenho a certeza de ir precisar de si, está a perceber - foi aquilo que ele disse à laia de saudação. - Não tenho ainda certeza de nada. Juro que não sei se isto é um caso para ser resolvido por um médico, por um polícia ou por um padre.
- Bem - retorquiu o padre, sorrindo -, você é médico e é polícia. Eu, pelos vistos, estou em minoria.
- Concordo que o senhor é aquilo a que os políticos chamariam Uma minoria especializada - replicou o doutor. - Sei que o senhor tem trabalhado tanto no seu campo como no nosso. Mas torna-se extremamente difícil distinguir se este caso pertence ao nosso foro, ao seu, ou simplesmente aos Comissários da Loucura. Acabámos de receber um recado da parte de um sujeito que vive aqui perto, naquela casa branca, lá em cima do monte, a pedir protecção contra uma ameaça de assassínio. Procurámos inteirar-nos dos factos o melhor que nos foi possível. Bem, é melhor que eu lhe conte a história desde o princípio, como parece ter sucedido. Um certo tipo chamado Aylmer, rico proprietário na região do Oeste, casou-se já tarde e teve três filhos: Philip, Stephen e Arnold. Porém, enquanto solteiro, e pensando que nunca viria a ter herdeiros, adoptou um rapaz que considerava muito inteligente e cheio de qualidades, o qual dava pelo nome de John Strake. As suas origens eram obscuras. Uns dizem que fora enjeitado; outros, que era filho de ciganos. Penso que esta última sugestão provinha do facto de Aylmer, para o fim da vida, se ter metido nas ciências ocultas, incluindo quiromância e astrologia, e os seus três filhos afirmavam que era Strake quem o incitava a isso. Além disto, dizem ainda muitas coisas mais. Dizem que Strake era um autêntico patife e sobretudo um notável mentiroso, genial para inventar mentiras à última hora e capaz de apresentá-las de maneira que enganavam o melhor detective. Mas isto pode muito bem ser um preconceito explicável em face do que aconteceu. O velho deixou praticamente tudo ao filho adoptivo; e quando ele morreu os outros impugnaram o testamento. Disseram que ele havia aterrorizado o pai para o fazer e, para cúmulo, tinha sido levado à loucura. Afirmavam que Strake tinha os processos mais maquiavélicos para conseguir os seus fins junto do velho. Apesar das enfermeiras e dos membros da família que o rodeavam, conseguira assustá-lo no próprio leito de morte. Fosse como fosse, devem ter conseguido provar qualquer coisa quanto ao estado mental do falecido, uma vez que o tribunal anulou o testamento e os filhos herdaram. Diz-se que Strake ficou furioso e jurou que havia de matar os três e que nenhum conseguiria escapar à sua vingança. É o terceiro e último dos irmãos que agora vem pedir protecção à polícia.
- O terceiro e último - repetiu gravemente o padre.
- Sim - confirmou Boyne -, os outros dois já morreram. Guardou um silêncio antes de prosseguir:
- É aqui que começam as dúvidas. Não há nenhuma prova de que tenham sido assassinados, mas podem ter sido. O mais velho, que herdou o título de squire, dizem que se suicidou no jardim. O segundo, que era industrial, foi apanhado por uma máquina da sua fábrica, que o atingiu na cabeça; também podia ter dado um passo em falso e caído. Mas se foi Strake que o matou, é muito habilidoso para ter conseguido o seu objectivo e escapado. Por outro lado, é mais provável que tudo isto não passe de mania de perseguição, reforçada por uma série de coincidências. Ora veja: o que eu pretendo é o seguinte. Pretendo que alguém dotado de bom senso e que não pertença à polícia vá falar com esse tal Arnold Aylmer que diga depois as suas impressões. O senhor conhece quando um homem está a contar uma patranha e quando fala verdade. Quero que o senhor faça de guarda avançada antes de tomarmos conta do caso.
- A mim parece-me estranho - observou o padre Brown - que os senhores não tenham já tomado conta dele. Se existe alguma coisa de estranho neste caso, isso parece vir a suceder há bastante tempo. Há qualquer razão particular para o sujeito vir só agora pedir ajuda, e não mais cedo?
- Também já pensei nisso, como pode calcular - respondeu o Dr. Boyne. - Ele dá uma explicação, mas confesso que essa é uma das coisas que me fazem pensar se isto não será mania de um velho pateta. Ele declarou que todos os seus criados fizeram greve subitamente e o abandonaram, por isso se viu obrigado a recorrer à polícia para lhe guardar a casa. Fiz os meus inquéritos e acabei por verificar que, de facto, tinha havido uma debandada geral dos criados da casa do monte; e, é evidente, a cidade está cheia de boatos bastante tendenciosos, confesso. O que eles contam é que o patrão se tinha tornado impossível com as suas exigências, as suas manias e os seus receios. Queria que lhe vigiassem a casa como se fossem sentinelas, ou passassem a noite a pé como enfermeiras do hospitais; que nunca deviam deixá-lo só sem darem explicações. Por isso, todos eles declararam alto e bom som que ele era louco e puseram-se a andar. Claro que nada disto prova que o tipo seja maluco, mas também é esquisito que hoje em dia alguém pretenda que os seus criados e criadas façam de guarda-costas.
- E então - disse o padre sorrindo - ele quer que a polícia faça o papel dos criados, uma vez que os criados não querem fazer o papel de polícias.
- Eu também achei isso estranho - concordou o doutor -, mas não posso arriscar-me a responder com uma recusa peremptória sem tentar um compromisso. E o compromisso é o senhor.
- Muito bem - respondeu o padre Brown com simplicidade -, vou visitá-lo imediatamente, se é isso que o senhor quer.
Toda a região acidentada que rodeava a cidade encontrava-se coberta de geada e o céu estava claro e frio como aço, excepto a noroeste, onde as nuvens com os seus luminosos contornos começavam a erguer-se no céu. Neste pano de fundo de cores mais escuras e sinistras a casa do monte recortava-se com a sua fila de colunas brancas, que formavam uma arcada de tipo clássico. Uma estrada sinuosa subia da cidade e embrenhava-se numa espessa mata de arbustos. Ao chegar aí, o ar parecia tornar-se cada vez mais frio, como se estivéssemos a aproximar-nos do pólo Norte. O padre Brown, porém, era uma pessoa mais prática e só encarava estas fantasias apenas como tais. Limitou-se a olhar de esguelha para a nuvem lívida que cobria a casa, declarando vivamente:
- Vai nevar!
Transpôs uma cancela de ferro forjado ao gosto italiano e entrou num jardim que apresentava aquele aspecto desolador próprio das coisas agora desmazeladas, que antes estiveram bem cuidadas. Os fartos maciços verdes estavam cobertos com a poeira cinzenta da geada, as ervas crescidas ocultavam o desenho dos canteiros com uma franja irregular, e a casa mergulhava até meio num matagal de silvas e arbustos. A vegetação era constituída sobretudo por plantas vivazes e resistentes; e, embora o aspecto do jardim fosse frondoso, era demasiado nórdico para se considerar luxuriante. Poder-se-ia descrever como uma selva árctica. De certo modo estava de acordo com a própria casa, com a sua fila de colunas na fachada clássica que poderia muito bem fazer face ao Mediterrâneo, mas que naquele momento era fustigada pelo vento do mar do Norte. Aqui e ali, alguns ornamentos de estilo clássico acentuavam o contraste; cariátddes e máscaras de comédia ou de tragédia olhavam do alto dos ângulos do edifício para o emaranhado das veredas do jardim; mas essas faces pareciam congeladas. Até as próprias curvas dos capitéis podiam muito bem ter encaracolado por acção do frio.
O padre Brown subiu os degraus musgosos até um alpendre quadrado que ladeava duas grossas colunas e bateu à porta. Decorridos quatro minutos bateu de novo. Depois, esperou pacientemente, de costas para a porta, a olhar a paisagem que escurecia pouco a pouco, graças àquela grande massa de nuvens que descia do Norte; ao olhar por baixo das colunas do alpendre, que lhe parecia negro e enorme naquela penumbra, podia ver o bojo opalescente da nuvem gigantesca que pairava sobre o telhado como um dossel. As suas bordas levemente coloridas pareciam descer sobre o jardim, até que o céu, ainda há pouco de um azul-pálido de Inverno, ficava reduzido aos farrapos negros e prateados de um crepúsculo doentio. O padre Brown continuava à espera e lá de dentro não vinha o menor som.
Então, tomou a súbita iniciativa de descer os degraus e dar a volta à casa em busca de outra entrada. Acabou por encontrá-la, uma porta na parede lateral, à qual voltou a bater, ficando em seguida à espera. Depois tentou dar volta ao puxador e descobriu que a porta estava aferrolhada; em seguida, começou a andar ao longo da casa, cogitando nas possibilidades da situação, pensando se o excêntrico Sr. Aylmer se teria barricado de tal forma no interior da casa, a ponto de não conseguir ouvir qualquer espécie de chamamento; ou talvez ele se barricasse assim pressentindo que qualquer chamamento só poderia vir da parte do malvado Strake. Era provável que os criados, quando se retiraram, tivessem deixado apenas uma porta por aferrolhar e que o patrão tivesse vindo fechá-la depois; mas, mesmo assim, era muito possível que eles, na pressa de partir, tivessem esquecido alguma entrada sem defesa. O padre prosseguiu na sua ronda: a casa não era excessivamente grande, embora talvez um pouco pretenciosa. Em breve verificou que já dera a volta completa. Não tardou a descobrir aquilo que desejava. A varanda de uma das salas, ornada de reposteiros ensombrada por trepadeiras, encontrava-se entreaberta, provavelmente devido a um esquecimento, e assim penetrou num compartimento, confortável, forrado com papel antigo. De um do lados partia uma escada, do outro via-se uma porta. Na parede fronteira abria-se outra porta com painéis de vidro vermelho, de um gosto demasiado faustoso para os tempos modernos. Algo que lembrava uma figura de vestes vermelhas em vidro fosco barato À direita, sobre uma mesinha redonda, via-se um aquário, no qual boiavam peixes e outras coisas semelhantes dentro de uma água esverdeada; e mesmo à frente, do outro lado, erguia-se uma espécie de palmeira com folhas largas e verdes. Tudo isto tinha um tom poeirento e vitoriano que o telefone instalado na alcova revestida de cortinados, causava uma certa surpresa.
- Quem está aí? - inquiriu uma voz, num tom severo e desconfiado, por detrás da porta de vidro.
- Desejo falar com o Sr. Aylmer - respondeu o padre amavelmente.
A porta abriu-se e apareceu um sujeito de olhar desconfiado, envergando um roupão verde-vivo. Os seus cabelos estavam emaranhados como se acabasse de sair da cama ou vivesse em completo desmazelo. O seu olhar, porém, não só era vivo e desperto, mas poderia mesmo dizer-se assustado. O padre Brown sabia que este ar contraditório era próprio de quem se esgotara de susto. De perfil, o seu rosto era de um belo desenho aquilino, porém, visto de frente, a primeira impressão que nos causava era de desleixo em virtude da barba crescida e hirsuta.
- Eu sou o Sr. Aylmer, mas há muito que não espero visitas -respondeu.
Algo na atitude do sujeito fez que o padre Brown achasse melhor ir direito ao fim. Se os temores do sujeito fossem produto de uma monomania, ele só poderia achar isso natural.
- Não sei se será exacto o que o senhor diz acerca de não esperar visitas...
- Tem razão - replicou prontamente o dono da casa. - Estou sempre à espera de uma, que deve ser a última.
- Oxalá que não - tornou o padre Brown. - Em todo o caso, folgo em verificar que em nada me pareço com ela.
Aylmer sacudiu-se numa espécie de gargalhada selvagem:
- De modo algum! - declarou.
- Sr. Aylmer - começou o padre Brown num tom convincente -Peço desculpa por ter tomado esta liberdade, mas uns amigos falaram-me do seu problema e eu vim saber se posso ajudar em alguma coisa. A verdade é que tenho uma certa experiência de casos como este.
- Não há mais casos como este - afirmou Aylmer.
- Quer dizer que as tragédias que ocorreram na sua família não foram fruto de mortes naturais?
- Quero dizer que nem sequer foram assassínios normais - tornou o outro. - O homem que nos persegue como um cão raivoso é o Diabo em figura de gente e os seus poderes são diabólicos.
- Todos os poderes maléficos têm a mesma origem - respondeu gravemente o padre. - Mas como é que sabe que não se trata de assassínios vulgares?
Aylmer respondeu com o gesto de oferecer uma cadeira ao visitante. Depois sentou-se noutra, muito devagar, de sobrolho carregado, com as mãos poisadas nos joelhos. Mas quando ergueu os olhos a sua expressão tornara-se mais suave e pensativa e o tom da sua voz era calmo e cordial.
- Escute - começou ele -, não quero que imagine que eu sou de modo algum uma pessoa desequilibrada. Cheguei a estas conclusões através do raciocínio, porque, infelizmente, foi ele que me levou a esta conclusão. Tenho lido muito acerca destes assuntos, porque fui o único que herdei os conhecimentos do meu pai sobre algumas matérias de certo modo obscuras, assim como herdei toda a sua biblioteca. Porém, aquilo que eu digo baseia-se no que vi e não naquilo que li.
O padre Brown fez que sim com a cabeça e o outro prosseguiu, como quem está a escolher as palavras:
- No caso do meu irmão mais velho, a princípio não tive bem a certeza. Não se via pegadas no lugar onde ele foi encontrado morto com um tiro e a pistola encontrava-se ao lado dele. No entanto, ele recebera, havia pouco, uma carta de ameaças, por certo do nosso inimigo, uma vez que vinha assinada com um desenho parecido com um punhal alado, que é um daqueles malditos sinais cabalísticos. E disse-me uma das criadas que tinha visto qualquer coisa a passar ao longo do muro do jardim, ao cair da noite, qualquer coisa grande de mais para ser um gato. Não digo mais nada, só que, se acaso foi o assassino que veio até lá, não deixou vestígios da sua passagem. Mas quando morreu o meu irmão Stephan, o caso foi diferente; e a partir daí eu fiquei a saber. Havia uma máquina a trabalhar debaixo de um telheiro aberto junto à torre da fábrica; eu subi à plataforma um momento depois de ele ter caído sob o peso do martelo de ferro que o derrubou; não vi mais nada que o pudesse ter atingido, mas isso vi eu. Havia uma enorme coluna de fumo entre mim e a torre da fábrica; mas no meio de uma lufada distingui lá no alto uma negra figura humana embrulhada numa coisa que parecia um manto escuro. Depois o fumo sulfuroso voltou a envolver-nos e, quando ele se dissipou, olhei de novo para a chaminé e já lá não estava ninguém. Sou um homem racional e pergunto a todos os homens racionais que me expliquem como é que essa figura chegou àquela torre inacesssível e como é que de lá saiu?
O homem fitou o padre com um ar esfíngico de desafio. Após um silêncio, exclamou subitamente:
- Os miolos do meu irmão saltaram por todos os lados, mas o corpo nem por isso ficou muito danificado. Num dos seus bolsos encontrámos uma das tais mensagens datada da véspera e assinada com a marca do punhal alado. Tenho a certeza - prosseguiu ele gravemente - que é esta a primeira vez que o símbolo do punhal alado não é apenas arbitrário ou acidental. Nada é acidental relacionado com aquele homem abominável. Ele só tem um desígnio, um desígnio obscuro e complicado. O cérebro dele é uma teia feita não apenas de esquemas tortuosos como também de linguagens secretas e de sinais, sinais mudos, imagens enigmáticas que representam coisas sem nome. Ele é o pior de todos os homens que há no mundo: o místico perverso. Ora eu não pretendo desvendar tudo quanto representa esse símbolo, mas parece mais que certo ele estar relacionado com tudo quanto há de estranho e mesmo de incrível, uma vez que andou sempre por perto da minha desgraçada família. Será que não existe uma relação entre a ideia de uma arma com asas e o mistério da morte de Philip, no seu jardim, sem que tivessem aparecido pegadas na relva nem no saibro? Não haverá relação entre um punhal alado, que voa como uma seta, e aquela figura que apareceu no alto da chaminé, envolta numa capa negra, que lembrava umas asas fechadas?
- O que o senhor quer dizer - observou o padre Brown, pensativo - é que ele se encontra num perpétuo estado de levitação?
- Simon Magus conseguiu-o - replicou Aylmer. - E uma dns profecias mais conhecidas da Idade Média diz que o Anticristo seria capaz de voar. Seja como for, a marca do punhal alado encontrava-se no documento. E quer ele voe quer não, o certo é que mata.
- O senhor reparou em que tipo de papel vinha a mensagem? - perguntou o padre Brown. - Papel vulgar?
O rosto enigmático de Aylmer abriu-se num riso áspero:
- O senhor pode ver com os seus olhos - respondeu, já sério -, porque esta manhã recebi uma.
Achava-se agora estendido na cadeira, com as pernas compridas a sair do roupão verde, demasiado curto para ele, e com o queixo barbudo espetado no peito. Sem mudar de posição, enfiou a mão no bolso e, com o braço rígido, estendeu ao padre um pedaço de papel que tremia. A atitude do homem sugeria uma espécie de paralisia, entre a rigidez e o colapso. No entanto, a observação que o padre Brown fez a seguir teve o curioso efeito de o espevitar.
O padre pôs-se a observar com o seu jeito de míope o papel que lhe era apresentado. Tratava-se de um tipo estranho de papel, grosso sem ser ordinário, como se fosse arrancado ao álbum de esboços de um artista, e nele via-se claramente desenhado um punhal enfeitado com asas semelhantes à da vara de Hermes, e acompanhado das seguintes palavras:
A morte virá no dia a seguir a este, tal como veio para os teus irmãos.
O padre Brown atirou o papel para o chão e sentou-se muito direito na cadeira, dizendo severamente:
- O senhor não deve permitir que semelhantes disparates o perturbem! Estes patifes tentam sempre enfraquecer-nos para nos tirarem o ânimo.
Com grande surpresa sua foi como se uma onda viesse agitar a figura prostrada. O homem saltou da cadeira como quem acorda de um sonho.
- Tem razão! Tem razão! - exclamou Aylmer com despropositada animação. - Esses malandros têm de se convencer de que, afinal de contas, eu não estou assim tão desanimado como isso. Talvez eu disponha de mais esperança e protecção do que o senhor imagina.
Ergueu-se, com as mãos nos bolsos, a fitar o padre, de modo que este, durante o minuto que se seguiu, perguntou a si próprio se o sujeito, em vista do perigo que há tanto tempo estava a correr, não teria o cérebro afectado. Mas quando ele falou, parecia estar em seu juízo:
- Penso que os meus infelizes irmãos falharam porque utilizaram as armas erradas. O Philip trazia consigo um revólver, e assim a sua morte pode ser considerada suicídio. O Stephen andava protegido pela polícia, mas também tinha a noção que tudo isso poderia fazê-lo cair no ridículo, como seja deixar que um polícia trepasse atrás dele por uma escada de mão até um andaime onde tencionava demorar-se apenas uns escassos minutos. Eram ambos muito trocistas e encaravam com cepticismo as ideias místicas que o nosso pai perfilhava no fim da vida. Mas eu sempre fui de opinião de que ele sabia mais que os meus irmãos pensavam. É certo que, através desses estudos, ele acabou por ficar sob o domínio da magia negra; a magia negra desse malvado Strake. Mas os meus irmãos não souberam escolher o antídoto. O antídoto contra a magia negra não é o materialismo grosseiro nem a sabedoria mundana. O antídoto contra a magia negra é a magia branca.
- Depende - observou o padre Brown - daquilo que o senhor entende por magia branca.
- Refiro-me à magia de prata - explicou o outro em voz baixa, como quem revela um segredo. E após um silêncio, acrescentou: - Sabe o que eu entendo por magia de prata? Dê-me licença por um momento.
Voltou-se para abrir a porta do centro, a que tinha vidros vermelhos, e seguiu pelo corredor. A casa era menos funda que o padre Brown supusera; em lugar de haver quartos interiores, o corredor dava para outra porta que abria para o jardim.
Nesse corredor ficava a porta de um dos quartos, sem dúvida o quarto de dormir do dono da casa, segundo deduzira o padre Brown quando o vira sair de lá em roupão. Desse lado não havia mais nada além de um bengaleiro, coberto, como é costume, de chapéus velhos e casacos; do outro lado, porém, achava-se algo mais interessante: um armário muito velho, em carvalho escuro, carregado de objectos de prata antigos e encimado por um troféu ou panóplia de armas também antigas. Foi diante deles que Arnold Aylmer se deteve a olhar para uma pistola muito velha com um cano em forma de sino.
A porta ao fundo do corredor achava-se entreaberta e, através da abertura, coava-se uma réstea de luz do exterior. O padre era dotado de um instinto muito apurado no que se relacionava com a natureza, por isso, o brilho intenso dessa réstea de luz informou-o do que se passara lá fora. Era precisamente o que ele previra ao aproximar-se da casa. Passou em frente, quase a correr, do dono da casa e abriu a porta, deparando-se-lhe um espectáculo de deslumbrante brancura. O que ele vislumbrara através da porta fora a cor negativa da luz diurna, mas sim a brancura positiva da neve. Tudo em redor se encontrava coberto por aquela palidez cintilante que possui ao mesmo tempo um ar vetusto e de inocência.
- Ora aqui temos nós a magia branca! - declarou o padre Brown na sua voz animada. Depois, voltando-se, acrescentou: - E também a magia da prata, calculo eu. - A luz lá de fora revertia a prata de esplendor e fazia cintilar, aqui e ali, o aço das armas antigas. A cabeça hirsuta de Aylmer revestia-se também de uma espécie de auréola de prata cintilante no momento em que se virou contra a luz, empunhando a estranha pistola.
- Sabe por que é que escolhi esta espécie de bacamarte? -inquiriu. - Porque o posso carregar com esta espécie de bala.
Tirara do aparador uma pequena colher de prata lavrada e quebrava violentamente a pequena figura que lhe ornava o cabo. - Vamos para a outra sala - acrescentou. - Já leu alguma coisa acerca da morte de Dandes? - inquiriu, quando se encontraram de novo sentados. Perdera o ar aborrecido que assumira ao ver o padre mover-se de um lado para o outro. - Trata-se de Graham de Daverhouse, que perseguia os Covenanters e possuía um cavalo preto capaz de subir qualquer precipício escarpado. Sabia que ele só podia dar tiros com uma bala de prata por ter vendido a alma ao Diabo? Para mim, o senhor tem uma vantagem: ao menos sei que acredita no Diabo.
- Oh, sim - retorquiu o padre Brown. - Acredito no Diabo, do Dundee é que eu não acredito. Refiro-me ao Dundee das lendas de Covenanting, nem no seu cavalo fantasma. John Graham foi apenas um soldado mercenário do século XVII, talvez mais valente que os outros. Se os venceu a todos é porque era um bom soldado de cavalaria, mas não um mágico. A minha experiência ensinou-me que não são esses espadachins fanfarrões que vendem a alma ao Diabo. Os adoradores de Satanás que eu conheci são muito diferentes. Para não revelar nomes, o que poderia causar complicações sociais, mencionarei apenas um homem da época de Dundee. O senhor já ouviu falar em Dairymple de Stair?
- Não - replicou o outro num tom casmurro.
- Mas conhece os feitos dele - tornou o padre -, que são piores que tudo quanto Dundee possa ter cometido; no entanto, este caiu no esquecimento. Foi ele o responsável pelo massacre de Glencoe. Era um homem culto, um advogado esclarecido, um homem de Estado com ideias largas e concretas acerca da maneira de governar, um homem muito calmo, possuidor de um rosto fino e intelectual. É esse o tipo de homem capaz de vender a alma ao Diabo.
Aylmer soergueu-se da cadeira num movimento de entusiasmo e concordância:
- Tem toda a razão, caramba! - exclamou. - Um rosto fino de intelectual! É esse o rosto de John Strake. - Depois pôs-se de pé e ficou a olhar para o padre com uma expressão concentrada. - Se for capaz de aguardar aqui uns minutos - murmurou -, queria mostrar-lhe uma coisa.
Voltou a sair pela porta do centro, fechando-a atrás de si. Dirigiu-se talvez ao velho armário, ou ao seu quarto de cama, pensou o padre Brown. Este deixou-se ficar sentado, a olhar distraidamente para uma mancha avermelhada sobre o tapete, reflexo do vidro da porta. Este ora brilhava como um rubi, ora escurecia conforme o sol lá fora, aparecia ou se ocultava por detrás das nuvens naquele dia tempestuoso. Nada ali se movia, com excepção dos seres aquáticos que se agitavam dentro da taça de vidro esverdeado. O padre Brown reflectia profundamente.
Dali a um ou dois minutos pôs-se de pé e dirigiu-se silenciosamente ao cubículo do telefone, donde ligou para o gabinete do seu amigo Dr. Boyne.
- Venho falar-lhe acerca do Aylmer e dos seus problemas - murmurou em voz baixa. - Trata-se de uma história muito estranha, mas penso que tem visos de verdade. No seu lugar mandava já para aqui alguns guardas, uns quatro ou cinco, talvez, para rodearem a casa. Se acontecer alguma coisa deve tratar-se de uma fuga espectacular.
Em seguida, o padre voltou a sentar-se e a fitar o tapete sobre o qual continuava a brilhar a mancha vermelha do reflexo. A luz que se infiltrava na sala fez, de certo modo, derivar os seus pensamentos até a primeira aurora luminosa antes do aparecimento das cores, todo esse mistério que alternadamente se esconde e se revia através dos símbolos das janelas e das portas.
Nisto, um grito desumano fez-se ouvir para além das portas fechadas e, quase ao mesmo tempo, soou um tiro. Antes que o ecy, se desvanecesse a porta abriu-se violentamente e o dono da cas;, entrou, vacilante, na sala, com o roupão meio rasgado no ombro e a pistola ainda fumegante nas mãos. Parecia tremer dos pés à cabeça, no entanto, o que o sacudia em parte, era um ataque de riso meio forçado.
- Bendita seja a magia branca! Bendita a bala de prata!.... - exclamou. - Aquele cão dos infernos foi longe de mais, mas agora os meus irmãos estão vingados, enfim!
Sentou-se pesadamente numa cadeira e a pistola caiu-lhe da mão. O padre Brown passou na frente dele e dirigiu-se para o corredor. Chegou a pôr a mão no fecho da porta do quarto, como se quisesse lá entrar, depois curvou-se um momento, fazendo menção de examinar qualquer coisa. Em seguida, correu para a porta exterior e abriu-a.
Na superfície da neve deserta, havia pouco jazia uma figura negra que, à primeira vista, lembrava um enorme morcego. Reparando bem, no entanto, via-se que era uma figura humana, caída de bruços, com a cabeça coberta por um largo chapéu, estilo sul-americano. A semelhança das asas negras era dada pelos dois folhos ou mangas soltas de um casaco preto muito largo, que se estendiam, talvez por acaso, em todo o seu comprimento, dos dois lados do corpo. As mãos estavam ambas escondidas, embora o padre Brown adivinhasse a posição de uma delas e vislumbrasse, debaixo do casaco, o brilho metálico de uma arma. No entanto o aspecto geral dava a ideia de qualquer fantasia heráldica, uma águia negra sobre um fundo branco. Depois de andar em volta do corpo e de espreitar por debaixo do chapéu, o padre conseguiu ver a cara do morto, que era, de facto, tal como o dono da casa havia dito, um rosto fino e intelectual, até mesmo céptico e austero: o rosto de John Strake.
- Caramba! - murmurou o padre Brown. - Parece realmente um vampiro que aqui veio poisar como um pássaro! - E de que outra maneira poderia ter chegado? - perguntou uma voz da soleira da porta. O padre Brown ergueu os olhos e viu mais uma vez Aylmer ali especado.
- Não teria vindo a pé? - perguntou evasivamente o padre. Aylmer esticou o braço num gesto que envolvia a paisagem branca:
- Olhe para a neve - disse numa voz profunda, um pouco arrastada. - Olhe para a neve, pura e intacta, tal como a magia branca a que o senhor aludiu. Não vê que está lisa numa extensão de algumas milhas, com excepção dessa nódoa preta que aí caiu? Não se avistam pegadas, a não ser as suas e as minhas, nenhumas outras se aproximam da casa por nenhum dos lados.
Depois fitou o padre com uma expressão concentrada e curiosa e acrescentou:
- E ainda lhe digo mais uma coisa: aquele casacão com que ele voa é demasiado grande para ele, que não é um homem alto. Deve arrastar pelo chão como um manto real. Se quiser estenda-o e verifique.
- Que é que se passou entre vocês dois? - perguntou abruptamente o padre.
- Foi demasiado rápido para que eu o possa descrever - ripostou Aylmer. - Já tinha olhado lá para fora e estava a voltar para dentro quando ouvi junto a mim uma espécie de rabanada de vento, como se fosse produzida por uma roda a girar. Dei meia volta e disparei à cegas. Depois não vi mais nada senão aquilo que o senhor está a ver agora. Mas tenho a certeza absoluta de que o senhor nunca veria isto se eu não tivesse uma bala de prata na minha pistola. Aquele corpo que ali jaz na neve seria outro...
- A propósito - replicou apressadamente o padre Brown -, vamos deixá-lo ali, ou trazemo-lo para o seu quarto? Suponho que é o seu quarto de dormir que fica ali no corredor?
- Não, não - apressou-se a responder Aylmer -, fica ali até a polícia o ver. Além disso, já passei hoje por muitas emoções e, para já, não aguento mais. Seja o que for que está para acontecer, tenho de beber qualquer coisa primeiro. Depois disso... enforquem-me, se quiserem!
Na sala do centro entre a palmeira e o aquário, Aylmer deixou-se cair numa cadeira. Ao entrar na sala quase atirara com a taça de vidro ao chão, mas acabou por conseguir encontrar a garrafa de brande depois de procurar às cegas, apalpando com a mão em vários armários e prateleiras. Não dava nada a impressão de ser uma pessoa metódica, no entanto, naquele momento, devia sentir-se muito abalado. Sorveu um longo trago e depois começou a falar febrilmente, como que para preencher o silêncio:
- Verifico que o senhor ainda duvida, se bem que tenha presenciado tudo com os seus próprios olhos. Pode crer que havia algo mais para além da contenda entre o espírito de Strake e o espírito da casa Aylmer. Demais, o senhor não tem o direito de ser descrente. Devia defender tudo aquilo que as pessoas estúpidas consideram superstição. Ora, confesse: não acha que existe alguma coisa de verdade nas histórias populares que falam de sinas e encantamentos, etc, incluindo balas de prata? Como católico, que tem a dizer a isto?
- Direi que sou agnóstico - respondeu o padre Brown, sorrindo.
- Que disparate! - exclamou o outro com impaciência. - O senhor tinha obrigação de acreditar nestas coisas.
- É claro que acredito em algumas coisas - concedeu o padre Brown. - Portanto, é claro, não acredito noutras.
Aylmer estava todo inclinado para a frente, a fitá-lo com estranha intensidade, quase como um hipnotizador.
- O senhor acredita... - dizia ele -, o senhor acredita em tudo. Nós acreditamos, mesmo quando estamos a negar tudo. Os que negam, acreditam. Os descrentes crêem. Lá no seu íntimo, o senhor acredita que estas contradições, na realidade, não se contradizem porque há um cosmo que as compreende a todas. As almas girar numa roda de estrelas, por isso, todas as coisas se repetem; é possível que eu e Strake tenhamos lutado sob várias formas: forma animal, de pássaro, e, talvez, continuemos a lutar para sempre. Mas uma vez que nos procuramos encontrar um ao outro, até mesmo esse ódio eterno corresponde a um amor eterno. O bem e o mal giram no mesmo círculo e são uma só coisa. O senhor acredita, por certo, para além de tudo aquilo em que crê, que só existe uma realidade, da qual nós somos as sombras; e que todas as coisas são apenas outros tantos aspectos de uma só coisa: um centro no que todos os homens se fundem e este homem em Deus?
- Não, não acredito - respondeu o padre Brown.
Lá fora começava a cair o crepúsculo numa daquelas tardes pesadas de neve, em que a terra se mostra mais luminosa que céu. No alpendre da porta principal, visível através das cortinas da janela, o padre Brown distinguia vagamente uma figura corpulenta. Olhou disfarçadamente para a porta envidraçada por onde entrara e na qual se recortavam duas silhuetas imóveis. Para além da outra que dava para o corredor e que se encontrava aberta, avistava também, no chão, duas sombras esguias, alongadas pela luz da tarde, mas que deixavam adivinhar duas figuras de homem.
O Dr. Boyne obedecera ao seu recado. A casa estava cercada.
- Que adianta negar? - insistia o dono da casa, sempre com o mesmo olhar fixo. - O senhor acaba de ver com os seus próprios olhos uma parte deste drama eterno. Viu como John Strake ameaçava assassinar Arnold Aylmer por artes de magia negra. E viu como Arnold Aylmer matou John Strake por artes de magia branca. Está a ver na sua frente Arnold Aylmer, bem vivo, que neste momento lhe está a falar. E nem mesmo assim acredita!?
- Não, não acredito - ripostou o padre Brown. E levantou-se da cadeira como quem dá por terminada a visita.
- Mas porquê? - insistiu o outro.
O padre mal levantou a voz, mas ela ressoou em todos os cantos da sala como um sino!
- Porque você não é Arnold Aylmer - respondeu. - Eu sei •quem você é. O seu nome é John Strake e foi você que assassinou o último dos seus irmãos, que jaz lá fora, na neve.
O outro arregalou os olhos que quase lhe saltavam das órbitas, a ponto de deixar ver um círculo branco em torno da íris, como se tentasse um último esforço para hipnotizar o companheiro. Depois fez um movimento súbito para se voltar de lado, mas nesse instante a porta atrás de si abriu-se para dar passagem a um enorme detective à paisana, que lhe poisou a mão no ombro. A outra mão pendia, segurando um revólver. O sujeito olhou em volta, aterrado, e viu polícias à paisana nos quatro cantos da sala, agora silenciosa.
Nessa noite, o padre Brown teve outra longa conversa com o Dr. Boyne acerca da tragédia da família Aylmer. Nessa altura, já ninguém duvidava do caso, pois John Strake confessara a sua identidade e os próprios crimes; seria mais exacto dizer que ele se gabara das suas vitórias. Comparado com o facto de ter consumado a tarefa da sua vida com a morte do último Aylmer, tudo o resto, incluindo a própria existência, parecia ser-lhe indiferente.
- O sujeito é uma espécie de monomaníaco - explicou o padre Brown. - Nada mais lhe interessava, nem sequer cometer outro crime. Devo-lhe esse favor, e esse pensamento é que me serviu de conforto por várias vezes esta tarde. Como você pode calcular, em vez de urdir todo aquele complicado romance acerca de vampiros com asas e balas de prata, o homem podia muito bem ter-me metido no corpo uma simples bala de chumbo e fugido de casa. Garanto-lhe que receei isso por diversas vezes.
- Não percebo por que ele o não fez - observou o Dr. Boyne -, e não percebo muitas coisas mais. Como raio é que o senhor descobriu tudo, e, ao certo, que é que o senhor descobriu?
- Oh, foi você quem me forneceu informações muito importantes - replicou modestamente o padre Brown -, especialmente uma, que foi fundamental. Refiro-me àquela afirmação de que Strake era um grande mentiroso, muito imaginativo, com grande presença de espírito para contar as suas invenções. Bem precisou dela esta tarde, mas esteve à altura. O seu único erro, talvez, foi escolher uma história sobrenatural; estava convencido de que eu, por ser sacerdote, acreditaria em tudo. Muita gente possui noções erradas a este respeito.
- Mas tudo isto não tem pés nem cabeça - tornou o doutor. - De facto, o senhor tem de começar pelo princípio.
- O princípio de tudo foi o roupão - começou com simplicidade o padre Brown. - Esse foi para mim o melhor disfarce. Quando encontramos um homem de roupão, partimos do princípio de que ele está na sua própria casa. Foi o que eu pensei; mas depois começaram a surgir pequenas coisas. Quando ele pegou na pistola premiu o gatilho, segurando-a com o braço esticado, como é costume fazer-se para ver se a arma está ou não carregada; ora ele devia saber se as pistolas que tinha no átrio estavam carregadas. Achei estranha a maneira como ele procurou o brande e também o facto de quase deitar ao chão o aquário. Quando temos em casa um ornamento assim frágil, habituamo-nos a evitá-lo maquinalmente. Mas tudo isso podia ser uma impressão minha. O ponto principal foi este: ele saiu do corredor entre duas portas; aí só havia outra porta que dava para um quarto e eu presumi que seria o seu quarto de cama e que ele viera de lá. Tentei dar volta ao trinco, mas a porta estava fechada à chave. Achei isso estranho e espreitei pela fechadura. O quarto estava totalmente vazio e deserto, sem cama nem nada. Portanto, o sujeito não viera dali, mas sim lá de fora. E quando verifiquei isto percebi logo tudo. O pobre do Arnold Aylmes dormia, e, provavelmente, fazia toda a sua vida no andar de cima. Desceu cá baixo, de roupão, e passou através da porta dos vidros vermelhos. Ao fundo do corredor, avistou a silhueta do seu inimigo, em contraluz. Viu um homem alto e barbudo, de chapéu de aba: largas e uma capa comprida e negra. Pouco mais lhe foi dado ver porque Strake lhe saltou em cima, estrangulando-o, ou apunha lando-o, isso só saberemos depois da autópsia. Nesta altura, Strake, enquanto contemplava o seu triunfo sobre o último dos inimigos, ouviu algo que não esperava ouvir: um som de passos na sala ao lado. Era eu que vinha a entrar pela porta envidraçada. O seu disfarce foi um milagre de rapidez. Imaginou não só o disfarce, mas também o romance improvisado. Tirou a capa e o chapéu, e envergou o roupão do defunto. Depois fez uma coisa espantosa; pelo me nos uma coisa que me espanta mais que tudo o resto. Pendurou o cadáver como se fosse um casaco num dos pregos do bengaleiro. Cobriu-o com a capa que lhe chegava abaixo dos calcanhares e tapou-lhe a cabeça com o chapéu de abas largas. Era a única maneira de o esconder no estreito corredor, que só tinha uma porta fechada à chave, mas era, de facto, uma maneira muito engenhosa. Eu próprio passei uma vez junto ao bengaleiro sem suspeitar que haveria ali outra coisa. Acho que hei-de recordar sempre com ur arrepio essa minha distracção. A coisa poderia ter ficado por aí mas havia a possibilidade de eu vir a descobrir o corpo de um momento para o outro. E, nesse caso, tinha de haver uma explicação para o cadáver se encontrar ali. Ele optou pela hipótese ousada de ser ele a descobrí-lo e a explicar a sua presença. Foi então que o seu espírito extremamente fértil e engenhoso concebeu a história da substituição: a inversão dos papéis. Ele já assumira o papel de Arnold Aylmer. Por que não atribuir ao morto o papel de John Strake? Esta estranha confusão deve ter seduzido aquela mente confusa. Era como um sinistro baile de máscaras em que dois inimigos mortais trocam os fatos. Só que esse baile seria uma dança de morte, uma vez que um deles já estava liquidado. Estou a ver o sujeito a imaginar tudo isto e a sorrir lá por dentro.
O padre Brown olhava no vácuo com os seus grandes olhos cinzentos, a feição mais notável do seu rosto quando não estavam ocultos pelo jeito que ele tinha de os estar sempre a piscar. E prosseguiu muito sério, com toda a simplicidade:
- Todas as coisas nos vêm de Deus; sobretudo a razão e a imaginação que representam dois dos nossos dons mais preciosos. São bons em si, e mesmo quando pervertidos, não devemos esquecer a sua origem. Ora, este homem possuía um dom muito nobre que perverteu: o dom de contar histórias. Seria um grande romancista; só que utilizou esse dom para fins práticos e perversos; para enganar o velho Aylmer com desculpas inventadas e engenhosas mentiras; porém, isto poderia não ter passado, no início, de histórias mirabolantes e patranhas, como as da criança que tanto pode afirmar que viu a rainha de Inglaterra como a rainha das fadas. Esse dom cresceu com ele a par com o vício que perpetua todos os vícios, ou seja, a vaidade; sentia-se cada vez mais orgulhoso por ser capaz de inventar histórias originais e de as desenvolver com subtileza. Seria isso a que se referiam os jovens Aylmer quando afirmavam que ele exercia um fascínio sobre o pai; e era verdade. Tratava-se do mesmo encantamento que a narradora de As Mil e Uma Noites exercia sobre o tirano. E assim ele ia vivendo com o orgulho de um poeta e a falsa e impenetrável coragem do mentiroso nato. Sempre que corresse perigo seria sempre capaz de inventar mais histórias das Mil e Uma Noites. E hoje ele corria perigo de verdade.
"Mas, como digo, estou certo de que ele gozava a situação ao mesmo tempo que a utilizava como defesa. Resolveu contar a história verdadeira, mas ao contrário: colocando o vivo no lugar do morto, e vice-versa. Envergara já o roupão de Aylmer; tratava-se agora de assumir o seu corpo e a sua alma. Olhava o cadáver que jazia na neve como se fosse o seu próprio cadáver. Estendeu-o daquele modo para sugerir a queda de uma enorme ave de rapina; e não se limitou a cobrí-lo com as suas negras vestes, como o envolveu também numa história sinistra, fazendo-o passar por uma ave agoirenta, que só poderia ser derrubada com uma bala de prata. Não sei se seria a prata que cintilava sobre o aparador, se o brilho da neve lá fora, que sugeriu ao seu temperamento extremamente artístico o tema da magia branca e da prata utilizada contra os feiticeiros. Mas fosse qual fosse a inspiração, ele soube utilizá-la como um poeta; e fê-lo com toda a rapidez de um homem prático. Completou a troca e a inversão dos papéis estatelando o corpo na neve como se fosse o cadáver de Strake. Fez o possível por criar uma imagem deste como algo de arrepiante que paira no ar, uma ave agoirenta dotada de asas e garras mortíferas, a fim de explicar a falta de pegadas e outros vestígios. Como autor de uma farsa do maior descaramento artístico, confesso a minha admiração por ele. Conseguiu transformar as contradições que o caso apresentava em argumentos a seu favor. Declarou que o facto de a capa ser demasiado comprida, provava que o outro nunca caminhara na terra como os simples mortais. Porém, ao dizer isto, fitava-me intensamente, e, então, qualquer coisa me disse que ele estava a tentar uma tremenda impostura.
O Dr. Boyne inquiriu, pensativo:
- E foi nessa altura que o senhor descobriu a verdade? Existe algo de estranho e de excitante em tudo quanto se relaciona com a identidade, penso eu. Não sei o que seria mais fantástico, neste caso, se adivinhar de repente ou lentamente o que estava a acontecer. Refiro-me ao momento em que o senhor desconfiou e em que teve a certeza.
- Penso que desconfiei realmente quando lhe telefonei - replicou o padre. - E foi nada mais nada menos por causa daquele reflexo de luz vermelha que ora brilhava ora escurecia sob a carpeta. Lembrava uma poça de sangue a clamar por vingança quando ficava mais viva. Qual o motivo daquela mudança de cor? Não podia ser o sol, que eu sabia não ter descoberto. Só podia tratar-se da porta do jardim a ser aberta e fechada. Mas se o homem tivesse ido lá fora e avistado o inimigo, teria logo dado alarme; e, só dali a momentos, se ouviu o barulho do tiro. Pressenti que ele fora lá fora fazer qualquer coisa... preparar fosse o que fosse... mas daí a ter a certeza ia uma distância. Percebi, no fim, que ele estava a tentar hipnotizar-me. Dominar-me com a magia negra dos olhos como talismãs e da voz como encantação. Era isso que ele fazia, sem dú vida, ao velho Aylmer. Mas não se tratava só do que ele fazia, mas também do que dizia. Era toda uma religião e uma filosofia.
- Eu cá por mim sou um homem prático - resmungou o dou tor, casmurro -, e não quero saber de religião nem de filosofia!
- Enquanto assim pensar nunca será um homem prático, meu caro doutor - retorquiu o padre Brown. - Ora, escute, o senhor conhece-me muito bem. Sabe perfeitamente que não sou um beatt, tacanho. Sabe que eu não ignoro o facto de que existem boas pessoas nas religiões más, e más pessoas nas religiões boas. Mas há um pequeno facto que eu aprendi simplesmente a conhecer por ex periência, como as manhas de um animal ou a marca de um bom vinho: raramente encontrei um criminoso que não discorresse neste sentido de orientalismo, de reincarnação, de rodas do destino e de serpentes a morderem a própria cauda, etc. Descobri, através da prática, que existe uma maldição a pesar sobre os súbditos dessa serpente; eles rastejarão sobre o ventre e comerão o pó; nunca se viu um malandro ou um patife nato que não fosse capaz de falar desse tipo de espiritualidade. Na sua origem verdadeira, as coisas devem ser diferentes, mas, aqui, no nosso mundo do trabalho, é esta a religião dos patifes; e eu percebi logo que era um patife que me estava a falar.
- Ora-interveio Boyne -, eu estava convenci do de que os patifes escolhiam a religião que muito bem lhes apetecesse.
- Sim - concordou o padre -, ele poderia ter escolhido professar qualquer outra religião; isto é, fingir que professava. Se se tratasse apenas de uma simples hipocrisia, não há dúvida de que podia ser levada a cabo por um simples hipócrita. Qualquer espécie de máscara pode ser colocada em qualquer espécie de rosto. Seja quem for, é capaz de decorar determinadas frases e afirmar verbalmente que professa certos pontos de vista. Eu também posso ir para a rua anunciar que sou cristão metodista ou de outra seita qualquer, embora receie não o fazer de modo muito convincente. Mas nós estamos a falar de um artista; e, para gozo do artista, a sua máscara deve ser de certo modo moldada sobre o seu próprio rosto. O que ele mostra para o exterior tem de corresponder a alguma coisa que ele tem lá dentro. Ele apenas tira efeitos dos materiais que compõem a sua alma. Suponhamos que ele poderia ter afirmado que era metodista; nunca conseguiria, porém, ser um metodista tão eloquente como o era na sua qualidade de místico fatalista. Estou a falar da espécie de ideal que professam aqueles que na verdade tentam ser idealistas. Todo o empenho dele era convencer-me de que era o mais idealista possível; e sempre que um sujeito daquela espécie pretende isso, vê-se logo que é deste ideal que se trata. Um tipo desta espécie pode estar a escorrer sangue, mas ainda assim é capaz de nos afirmar sinceramente que o budismo é melhor que o cristianismo. Mais ainda, é capaz de nos afirmar sinceramente que o budismo é mais cristão que o cristianismo. Basta isto para esclarecer de maneira chocante a ideia que eles fazem do cristianismo!
- Diabos me levem - exclamou o doutor rindo - se percebo. O senhor está a acusar ou a defender o homem?
- Afirmar que um sujeito é um génio não significa defendê-lo! - respondeu o padre Brown. - Muito longe disso. É uma questão psicológica o facto de um artista se trair pela sua sinceridade. Leonardo da Vinci não seria capaz de fingir que não sabia desenhar. Mesmo que o tentasse, seria sempre uma péssima imitação. Este homem seria um desastre se tentasse fingir que era metodista.
Quando o padre saiu para regressar a casa, o frio tornara-se mais intenso, mas, de certo modo, inebriante. As árvores lembravam candelabros de prata numa estranha candelária de purificação. Era um frio penetrante, como aquela espada de prata pura que trespassou um dia o coração da Pureza. E, contudo, não era um frio mortal, excepto no sentido em que parecia destruir todas as obstruções mortais à nossa imortal e incomensurável vitalidade. O verde-pálido do céu crepuscular, com uma estrela que recordava a estrela de Belém, lembrava, por estranha contradição, uma caverna de claridade. Era como uma fornalha esverdeada e fria que despertasse para o calor todas as coisas, e quanto mais profundamente elas mergulhassem nessa fria tonalidade cristalina, mais leves se tornavam, quais criaturas aladas, transparentes como o vidro. Tiniam ao contacto com a verdade e separavam a verdade do erro com uma lâmina transparente como o gelo; porém, tudo o que restava depois ficava mais vivo que nunca. Era como se toda a alegria fosse uma jóia no coração de um icebergue. O padre não conseguia perceber bem os seus sentimentos, à medida que ia avançando cada vez mais naquela verde luminosidade, a beber em longos haustos a pureza virginal do ar. Tudo o que era mórbido e confuso ficara para trás, a neve apagara com a sua brancura as pegadas do homem sanguinário. Enquanto prosseguia na sua caminhada em direcção a casa, sobre o caminho nevado, o padre Brown ia murmurando de si para si: "E, contudo, ele tinha razão quando falava de uma magia branca, só que não soube onde procurá-la...
A MALDIÇÃO DOS DARNAWAYS
Os dois pintores contemplavam a mesma paisagem, uma paisagem marinha, e ambos se sentiam estranhamente impressionados, muito embora as suas impressões não fossem precisamente as mesmas. Para um deles, um artista londrino em ascensão, ela constituía uma novidade, embora estranha. Para o outro, um artista local, se bem que a sua fama tivesse ido além do seu país, a paisagem era conhecida, embora talvez a achasse mais estranha ainda pelo que sabia a seu respeito.
Em termos de formas e de cores, tal como estes homens a viam, era apenas uma extensão de praias de areia, ao pôr do Sol, em gradações de tons sombrios, verdes-secos, bronzes e castanhos, tons esfumados que não eram propriamente monótonos, mas apareciam mais misteriosos que o oiro. O que vinha quebrar todas essas linhas horizontais era um edifício comprido que partia dos campos e se prolongava até à praia, onde as ervas secas e os caniços se vinham juntar às algas marinhas. O que nele havia de mais singular era a parte superior, com o aspecto de uma ruína, perfurada por tantas janelas e fendas que mais parecia um esqueleto na luz da tarde que morria; quanto à parte inferior, aí quase não havia janelas, estando estas na sua maioria inutilizadas e tapadas com tijolos, de modo que os seus contornos mal se distinguiam no crepúsculo. No entanto, restava ainda uma janela, a qual, coisa estranha, se achava iluminada.
- Quem diabo viverá naquele antro? - exclamou o pintor londrino, que era um jovem alto, com aspecto boémio e uma barba ruiva que o fazia parecer mais velho. Em Chelsea era conhecido pelo nome de Harry Payne.
- Algum fantasma, talvez - replicou o seu amigo, Martin Wood. - As pessoas que ali moram são, mais ou menos, todas fantasmas.
Pode parecer um paradoxo o facto de o artista londrino se revelar de humor quase bucólico ao manifestar-se maravilhado com o que via, ao passo que o pintor local, mais observador e experiente, olhava o outro com uma ironia amigável; ele era, de facto, um sujeito calmo e mais convencional, vestia roupas mais escuras e o seu rosto bem barbeado era quadrado e impassível.
- Claro que isto não passa de um sinal dos tempos - prosseguiu ele -, ou aquilo que o tempo faz às famílias antigas. O último dos grandes Darnaways habita naquela casa, e há poucos pobres que sejam tão pobres como eles. Nem sequer têm meios para tornar habitável o andar de cima; são obrigados a viver na parte de baixo, em ruínas, como os mochos e os morcegos. Possuem, no entanto, retratos de antepassados que remontam à Guerra das Rosas e aos primeiros pintores retratistas de Inglaterra, alguns deles mesmo muito bons; por acaso conheço-os, uma vez que em tempos me pediram a minha opinião sobre eles, como avaliador. Especialmente um dos primeiros, é tão bom que impressiona a ponto de causar arrepios.
- Toda aquela casa deve ser arrepiante, calculo pela sua aparência - replicou Payne.
- Tem razão - concordou o amigo. - É isso mesmo.
O silêncio que se seguiu foi quebrado por um leve roçagar entre os arbustos junto ao fosso; não é de estranhar que ambos experimentassem um ligeiro sobressalto ao verem uma silhueta escura passar ao longo da margem, movendo-se rapidamente como um pássaro assustado. Tratava-se apenas de um homem que caminhava apressado, com um saco preto na mão: um homem de rosto magro e alongado e uns olhos vivos, que observavam o pintor estrangeiro de um modo um tanto hostil e desconfiado.
- É o Dr. Barnet - explicou Wood com uma espécie de alívio - Boa tarde, doutor. Vai para aquela casa? Espero que ninguém esteja doente.
- Num lugar como aquele está sempre alguém doente - resmungou o médico -, só que às vezes estão todos tão mal que nem dão por isso. O próprio ar daquele sítio é uma moléstia e uma pestilência. Por mim, não queria estar na pele daquele moço da Austrália.
- E quem vem a ser esse moço da Austrália? -inquiriu Paynr num tom distraído.
- Ah - rosnou o médico -, então o seu amigo não lhe contou" Na verdade, penso que ele só chegou hoje. Aquilo é mesmo um romance dramático à moda antiga: o herdeiro que regressa das colónias ao seu castelo arruinado. Nem sequer ali falta o velho contrato de família que o obriga a casar com a dama que se encontra lá no alto do seu torreão coberto de hera. Coisas de outros tempos não é? Mas, que às vezes, ainda acontecem. Parece até que ele traz algum dinheiro, e isso é a única coisa agradável desta história.
- E que pensa disto a própria Miss Darnaway, lano alto da sua torre? - perguntou secamente Martin Wood.
- Pensa o mesmo que costuma pensar acerca do resto, de há muito tempo para cá - replicou o médico. - Naquele antro de superstições ninguém pensa, apenas sonham e divagam. Acho que ela aceita o compromisso daquele marido colonial como fazendo parte da maldição que pesa sobre os Darnaway. Estou mesmo convencido de que se o noivo fosse um preto corcunda, zarolho e com manias homicidas, ela acharia que isso seria um fim normal de toda aquela tragédia e que se integraria bem naquele escuro cenário.
- O retrato que o senhor está a apresentar ao meu amigo dos meus vizinhos da província não é lá muito animador! - exclamou, rindo, Martin Wood. - E eu tencionava levá-lo ali numa visita; nenhum artista deve perder a oportunidade de ver aqueles retratos dos Darnaways. Mas talvez seja melhor adiar a visita, uma vez que eles se encontram em plena invasão australiana.
- Oh, não deixe por isso de os ir visitar - exclamou entusiasticamente o médico. - Tudo o que possa animar a vida deles, tornará mais fácil a minha tarefa. Mas penso que, para os animar, seriam precisos muito mais primos australianos e mais alegres que este. Vamos, venham comigo!
Quando se aproximaram da mansão via-se que esta se encontrava isolada como uma ilha no meio de um fosso de água viscosa, que eles atravessaram por meio de uma ponte. Do outro lado, havia um vasto terraço ou cais de pedra coberto de rachas, das quais brotavam, aqui e ali, tufos de ervas secas e cardos espinhosos. Aquela plataforma parecia vasta e nua à luz do crepúsculo e Payne nunca imaginara que semelhante lugar pudesse representar àquele ponto a própria alma da solidão. Esta subia-se de um lado, qual gigantesco degrau e, mais adiante, via-se uma porta, uma arcada estilo Tudor, aberta de par em par, mas escura como uma gruta.
Quando o vivaço doutor os convidou, sem cerimónia, a entrar por ali dentro, Payne sentiu outro choque. Esperava ver-se a subir por uma estreita escada de caracol para a torre em ruínas; porém, agora os primeiros degraus no interior da casa eram a descer. Constituíam um curto lanço de escadas que dava para uns compartimentos sombrios, que poderiam muito bem ser as masmorras por debaixo do fosso do castelo se não fossem as prateleiras poeirentas carregadas de livros e as filas de retratos escuros nas paredes. Aqui e ali, uma vela espetada num castiçal antigo iluminava um ou outro pormenor de uma elegância morta; porém, o que mais impressionava ou deprimia o visitante não era tanto esta luz artificial, mas sim um reflexo da luz natural. A quem atravessasse aquela comprida sala deparava-se-lhe a única janela que se abria na parede, uma estranha e baixa janela oval estilo fins do século XVII. O que nela havia de anormal é que não se abria para o céu, mas sim para um reflexo deste, uma pálida nesga espelhada na água do fosso, à sombra da margem. Payne recordou-se da Dama de Shallot, que nunca na sua vida vira o mundo exterior senão no espelho. A Dama de Shallot, neste caso, não só via o mundo através de um espelho como também, de certo modo, via-o voltado ao contrário.
- É como se a casa dos Darnaways estivesse a cair, não só metaforicamente como também literalmente - murmurou Wood em voz baixa. - É como se ela se estivesse a enterrar pouco a pouco num pântano ou nas areias movediças, até que o mar acabe por a cobrir como um tecto verde...
Até mesmo o Dr. Barnet estremeceu com a chegada silenciosa da figura que os veio receber. De facto, a sala continuava tão silenciosa que todos se admiraram ao ver que não se encontrava deserta. Havia ali três pessoas: três figuras imóveis e obscuras na salaobscura; todas vestidas de negro, lembravam sombras negras. A que se encontrava mais próxima adiantou-se e acercou-se da janela, revelando um rosto que parecia tão cinzento como a sua cabeleira. Era o velho Vine, o mordomo, que havia muito se achava in loco parentis, desde a morte do excêntrico patriarca, o último Lorde Darnaway. Este poderia considerar-se um belo homem se não tivesse nenhum dente. Mas acontece que possuía um único que mostrava de vez em quando e lhe conferia um ar sinistro. Recebeu o médico e os companheiros com amável cortesia e conduziu-os até junto das outras duas personagens vestidas de negro que se encontravam sentadas. Uma delas, cogitou Payne, emprestava ao ambiente vetusto do castelo mais um toque de antiguidade, pelo simples facto de se tratar de um padre católico, que podia muito bem ter acabado de sair de um esconderijo do tempo das perseguições. Payne imaginava-o a murmurar orações ou a rezar as contas, a tocar os sinos, ou a fazer outras tantas coisas vagas e melancólicas naquele melancólico ambiente. De momento, podia-se imaginar que estava ali a ministrar à senhora o conforto da religião. No entanto, não parecia que esse consolo fosse muito eficaz, ou, de qualquer modo, animador. De resto, a figura do padre era insignificante, com feições vulgares e inexpressivas; quanto à dama, o caso era outro. O rosto dela estava longe de ser feio ou insignificante. Destacava-se do negrume do fato, do cabelo e do cenário com uma palidez tremenda, mas de uma beleza viva e quase terrível. Payne contemplou-a o mais longamente que pôde; e iria contem plá-la ainda durante muito mais tempo... até morrer...
Wood limitou-se a trocar com os seus amigos apenas as frases de boa educação necessárias para o seu objectivo de voltar a examinar os retratos. Pediu desculpa de vir ali num dia em que estavam a festejar a chegada de um parente; não tardou, porém, a verificar que a família ficara vagamente aliviada por ter visitas que a ajudassem a distrair-se e a quebrar o gelo. Portanto, não hesitou em conduzir Payne através da sala central de recepções até à biblioteca, onde se encontrava o retrato, pois a verdade é que havia um que ele estava sobretudo empenhado em mostrar, não só como quadro, mas também como um enigma. O padre acompanhou-os; pelos vistos, sabia tanto de pintura antiga como de antigas rezas.
- Sinto-me muito orgulhoso por ter feito esta descoberta-declarou Wood. -Julgo tratar-se de um Holbein. Se não é, devia ter existido nesse tempo algum pintor tão genial como Holbein.
O retrato era do estilo vigoroso, vivo e sincero da época, e representava um homem de vestes negras debruadas a ouro e peles. Tinha um rosto pálido e cheio e uns olhos penetrantes.
- Pena que a arte não tenha parado precisamente neste período de transição - murmurou Wood - e nunca mais avançasse! Não acha que a figura tem a realidade necessária para parecer real? Este rosto parece que fala, sobretudo porque se destaca num fundo de coisas menos importantes. E os olhos, se é possível, são ainda mais reais que o resto da cara. Juro que eles me parecem demasiado reais! Tenho a impressão de que estes olhos vivos e matreiros espreitam de dentro de uma enorme e pálida máscara!
- Eu penso que a rigidez do rosto se estende um pouco até à figura - observou Payne. - Nos fins da Idade Média, os pintores ainda não dominavam bem a anatomia. Pelo menos no Norte. Aquela perna esquerda não me parece lá muito bem desenhada.
- Eu não diria tal - retorquiu Wood calmamente. - Os sujeitos que pintavam quando o realismo teve o seu início, e antes de ele ser ultrapassado, eram por vezes muito mais realistas que podemos imaginar. Reproduziam certos pormenores que hoje julgamos meramente convencionais. Você pode pensar que as sobrancelhas e as órbitas deste sujeito estão um pouco tortas; mas eu aposto que, se o conhecêssemos, poderíamos verificar que ele tinha uma das sobrancelhas mais acima que a outra. E não me admirava que fosse coxo e que aquela perna estivesse torta de propósito.
- É estranho, o diabo do homem! - exclamou de súbito Payne. - Que vossa reverência desculpe a minha linguagem!
- Está desculpado. Mas eu acredito no Diabo - retorquiu o padre com uma expressão impenetrável. - E, é curioso, há uma lenda onde se diz que o Diabo é coxo.
- Ora vamos - protestou Payne. - O senhor não está a querer dizer-me que este tipo era o Diabo. Mas quem diabo era ele?
- Ele foi Lorde Darnaway, nos tempos de Henrique VII e de Henrique VIII - explicou o companheiro. - Também há lendas curiosas a seu respeito; uma delas vem mencionada na inscrição que rodeia a moldura e se encontra mais desenvolvida em algumas notas escritas num livro que aqui encontrei. Ambas as inscrições são muito curiosas. - Payne torceu o pescoço de modo a ler as frases arcaicas que rodeavam a pintura. Numa escrita e numa caligrafia arcaica, dizia mais ou menos este verso:
Renascerei no sétimo herdeiro,
Na sétima hora partirei,
Nessa hora ninguém me tomará a mão,
Desgraçada de aquela que possuir o meu coração.
- É de fazer calafrios - comentou Payne -, mas talvez seja porque eu não percebo o que isto quer dizer.
- Mesmo que percebesse, era de fazer calafrios - respondeu Wood em voz baixa. - A descrição que li no tal livro que encontrei, refere que, mais tarde, este belo sujeito resolveu suicidar-se, de maneira que a mulher veio a ser executada pelo assassínio dele. Outra nota refere-se a uma tragédia mais recente, na época dos Georges; conta como um Darnaway se suicidou, tendo antes o cuidado de envenenar o copo de vinho da esposa. Diz-se que ambos estes suicídios ocorreram às sete da tarde. Acho que alenda diz que o sujeito regressa no corpo de cada sétimo herdeiro e faz a desgraça de qualquer dama que tenha a triste ideia de se casar com ele.
- Nesse caso - observou Payne -, a lenda torna as coisas um bocado difíceis para o próximo sujeito que seja o sétimo herdeiro
Wood baixou ainda mais a voz para dizer:
- O próximo herdeiro é o sétimo.
Harry Payne sacudiu subitamente os largos ombros como quen alija um fardo, exclamando:
- Mas que tolices são estas que estamos para aqui a dizer?Somos todos homens cultos e acho que pertencemos a uma geração esclarecida. Antes de me encontrar nesta maldita e húmida atmosfera, nunca pensei que pudesse falar de semelhantes coisas, a não ser para me rir delas.
- Tem toda a razão - confirmou Wood.-Mas se você se demorasse mais algum tempo neste palácio subterrâneo, tenho a certeza de que pensaria de outra forma. Eu comecei a sentir de maneira diferente em relação a este quadro depois de lhe mexer tantas vezes. Chego a pensar que este rosto está mais vivo que as pessoas que vivem aqui dentro; que ele possui uma espécie de talismã ou de magneto; que ele comanda os elementos e influencia o destino dos homens e das coisas. Decerto que vocês acham tudo isto uma grande fantasia...
- Que barulho é este? - exclamou subitamente Payne. Todos se puseram à escuta. Parecia não haver mais nenhum ruído para além do marulhar distante do mar; depois começaram a perceber que havia mais qualquer coisa; era como que uma voz a chamar sobre o barulho das ondas, distante a princípio, mas que se ia aproximando cada vez mais. Logo adquiriram a certeza: alguém estava a chamar, lá fora, no escuro.
Payne voltou-se para a janela baixa que ficava atrás de si e curvou-se para olhar para fora. Dali nada mais se via além da água do fosso e do reflexo da margem e do céu. Porém, a imagem não era a mesma que vira havia pouco. Reflectiam-se agora na água duas sombras esguias, uns pés e umas pernas recortadas no páli do reflexo do crepúsculo na água. Mas talvez pelo facto de a cabeça se achar invisível, como que oculta nas nuvens, o som que se seguiu parecia ainda mais sinistro: era a voz de um homem a gritar qualquer coisa que eles não entendiam. Payne, que espreitava pela janela com uma expressão alterada, comentou com uma voz que também não era normal:
- Que modo estranho ele tem de estar de pé!
- Não é nada disso! - explicou Wood num murmúrio, como que a traquilizá-lo. -As coisas parecem muitas vezes alteradas no reflexo. É o movimento da água que lhe causa essa impressão.
- Que impressão? - inquiriu o padre secamente.
- De que ele tem a perna esquerda torta - explicou Wood. Payne considerara a janela oval como uma espécie de espelho mágico; parecia-lhe que via nela outras imagens de pesadelo. Havia algo para além da figura que ele não conseguia decifrar; na claridade do crepúsculo sobressaíam três pernas mais finas, como se o estrangeiro tivesse junto a si uma aranha monstruosa com três patas, ouumaave. Depois ocorreu-lhe aideiamenos trágica de um tripé, como o dos oráculos pagãos; mas tudo em breve desapareceu e até as pernas do homem deixaram de se ver.
Quando Payne se voltou, deparou-se-lhe o rosto do velho Vine, o mordomo, com a boca aberta, a mostrar o seu único dente, ansioso por falar:
- Ele já veio! - exclamou. - O navio da Austrália chegou esta manhã!
Ao passarem da biblioteca para o salão central ouviram os passos do recém-chegado que descia os degraus da entrada, arrastando atrás de si os diversos volumes da sua reduzida bagagem. Ao ver um destes, Payne riu-se com um certo alívio. As três pernas que ele vira eram apenas o tripé de uma máquina fotográfica portátil e desmontável; e o homem que a transportava era, pelos vistos, um ser igualmente normal e sólido. Envergava um fato escuro, despretencioso e informal; a camisa era de flanela cinzenta e as suas botas ressoavam com um barulho inconfundível nas salas silenciosas. Ao aproximar-se para cumprimentar a sua nova família mal se percebia que era coxo. No entanto, Payne e os companheiros ao contemplarem-lhe o rosto não conseguiam desviar os olhos.
O hóspede não tardou decerto a notar que havia algo de estranho e desagradável na recepção que lhe faziam, mas não havia dúvidas de que ele ignorava totalmente o motivo disso. A dama, que se dizia ser sua noiva, era suficientemente bela para lhe interessar, mas ao mesmo tempo tornava-se evidente que o assustava. O velho mordomo acolheu-o com uma espécie de respeito feudal, contudo, tratava-o como se ele fosse o fantasma da família. O padre continuava a olhá-lo com a sua expressão indecifrável, que acabava por se tornar enervante. Uma nova espécie de ironia, mais semelhante à ironia grega, começou a aflorar à mente de Payne. Imaginara o estrangeiro como sendo um demónio, mas parecia-lhe ainda mais trágico o facto de ele ser um agente inconsciente do destino. Parecia-lhe que ele se encaminhava em direcção ao crime com a monstruosa inconsciência de Édipo. Acercara-se da mansão familiar com o espírito tão alegre e descontraído que armara a máquina fotográfica para retratar as suas primeiras impressões, e até mesmo esse aparelho assumira a se melhança do tripé de uma pitonisa de tragédia.
Ao despedir-se, Payne ficou surpreendido ao ver que, afinal, o australiano não estava tão inconsciente acerca do que se passava à sua volta como parecia, porque lhe disse em voz baixa:
- Não se vá embora já... ou, pelo menos, volte breve. Você parece um ser humano. Este lugar causa-me, positivamente, arrepios...
Quando Payne emergiu dos subterrâneos para o ar fresco da noite, que cheirava a mar, pareceu-lhe que saía de um submundo de sonho, onde os acontecimentos se sucediam de um modo assustador e irreal. A chegada do parente desconhecido não correra nada bem e fora até pouco convincente. A semelhança do rosto do recém-chegado com o do retrato impressionara-o como se fosse um monstro de duas cabeças. E, contudo, não se tratava de um pesadelo; nem era o rosto dele que via com mais clareza.
- Que é que o senhor disse? - perguntou ele ao médico enquanto caminhavam os dois sobre a areia, junto ao mar que escurecia. - Disse que o rapaz era noivo de Miss Darnaway em virtude de um pacto de família ou coisa que o valha... Até parece um romance.
- Mas é um romance histórico - replicou o médico. - Os Darnaways desapareceram todos aqui há séculos, quando as coisas se passavam de um modo que hoje só lemos nos romances. Sim, acho que havia uma tradição na família, segundo a qual os segundos ou terceiros primos casavam entre si quando havia uma certa relação de idades, a fim de unir a propriedade. Uma tradição bem estúpida, digo eu, e, uma vez que se casaram muitas vezes desta maneira, isso explica, segundo as leis da hereditariedade, que tenham acabado por ficar bastante avariados...
- Eu não diria que são todos avariados-comentou Payne com uma certa aspereza.
- Bem - tornou o médico -, o rapaz não me parece avariado, muito embora seja coxo.
- O rapaz!-exclamou Payne, com súbita e inexplicável irritação. - Se o doutor acha que a senhora também parece avariada, o seu gosto é que deve estar avariado!...
O rosto do médico tornou-se ainda mais severo e respondeu secamente:
- A esse respeito sei mais que o senhor.
Terminaram a caminhada em silêncio, sentindo ambos que tinham sido irracionalmente mal educados e por isso haviam recebido uma resposta igualmente desagradável; e Payne ficou só, a cogitar no caso, uma vez que o seu amigo Wood ficara para trás, ocupado com qualquer assunto relacionado com os quadros.
Payne aceitou de braços abertos o convite formulado pelo primo da Austrália, que pretendia ter alguém junto de si para o animar. Nas semanas que se seguiram, passou grande parte do tempo no interior escuro da mansão dos Darnaway, muito embora não se possa afirmar que dedicou todo esse tempo a fazer companhia ao primo. A depressão da senhora devia ser mais antiga e necessitava de maior apoio; de qualquer modo, mostrou a maior boa vontade em a ajudar. Mas nem por isso era inconsciente, sentia-se mal disposto e inseguro. As semanas sucediam-se e ninguém conseguia descobrir, pelo comportamento do jovem Darnaway, se ele se considerava ou não sujeito ao velho compromisso. Vagueava pelas galerias escuras e quedava-se a contemplar vagamente o retrato sinistro. As sombras daquele castelo-prisão começavam certamente a exercer sobre ele o seu efeito e agora pouco restava do antigo à-vontade colonial que ostentava à chegada. Contudo, Payne considerava que nada disso lhe dizia respeito. Tentou uma vez fazer confidências ao seu amigo Martin Wood, que andava sempre ocupado com as suas actividades artísticas; mas daí não tirou grande satisfação.
- Acho que não te deves intrometer - aconselhou - por causa desse tal compromisso.
- Claro que não me vou intrometer se houver um compromisso - replicou o amigo. - Mas haverá? Ainda não lhe disse nada. Mas, pelo que percebi, penso que ela acha que não há, mesmo que julgue que pudesse haver. Ele não fala nisso nem dá a entender nada. Por mim, acho que estas evasivas são prejudiciais para todos.
- Sobretudo para ti - retorquiu Wood com certa aspereza. - Mas, se queres que te diga, penso que o sujeito está com medo.
- Medo de ser rejeitado? - inquiriu Payne.
- Não, medo de ser aceite - respondeu o outro. - Calma aí!
- Não estou a dizer que ele tem medo da rapariga. Digo que ele tem medo do retrato.
- Medo do retrato? - repetiu Payne.
- Isto é: medo da maldição - explicou Wood. - Não te lembras? do verso que fala da maldição que vai cair sobre ele e sobre ela?
- Sim, mas escuta lá! - exclamou Payne. - A maldição dos Darnaway não pode funcionar nos dois sentidos. Tu dizes primeiro que eu não tenho hipóteses por causa do compromisso e depois afir mas que o compromisso está comprometido por causa da maldição. Mas se a maldição pode destruir o compromisso, por que motivo há-de ela ficar ligada a esse compromisso? Se eles receiam casar um com o outro, por que raio não se hão-de casar com outras pessoas? E, assim, acaba, ficam livres de tudo. Por que hei-de ser eu a vítima de um compromisso que eles não vão respeitar? A tua opinião parece-me muito irracional.
- Tudo isto é uma grande trapalhada, claro - respondeu Wood, de mau humor. E continuou a martelar o caixilho de uma tela.
De repente, uma bela manhã, o novo herdeiro quebrou o silêncio. E fê-lo de uma forma curiosa, um pouco rude, como era a sua maneira de ser, mas com um desejo evidente de fazer as coisas correctamente. Pediu conselho, com toda a franqueza, não a um indivíduo em separado, como fizera Payne, mas, colectivamente, ao grupo. Quando falou dirigiu-se a todos, como um estadista ao seu povo. Chamou a isso "pôr as cartas na mesa". Felizmente, que a dama não fazia parte da assistência e Payne estremeceu ao pensar no que ela teria sentido se ali estivesse. Mas o australiano err. na verdade um tipo honesto; considerava que a coisa mais natural era pedir ajuda e esclarecimento, reunindo o conselho de família, perante o qual ele punha as suas cartas na mesa. Seria melhor dizer-se que as atirava para cima da mesa... E fazia-o com um ar desesperado, como quem tivesse passado dias e noites de preocupação, às voltas com o problema. Durante esse curto espaço de tempo, as sombras daquela casa de janelas fundas e soalhos arruinados haviam operado nele uma mudança que em todos avivou recordações.
Os cinco homens, incluindo o médico, estavam sentados em volta de uma mesa redonda e Payne reflectia vagamente que o seu fato claro e o seu cabelo ruivo eram as únicas notas coloridas dentre daquela sala, uma vez que o padre e o mordomo vestiam de preto e Wood e Darnaway de cinzento-escuro, quase negro. Talvez fosse esta excepção que tivesse levado o outro a considerá-lo um ser humano. Nesse preciso instante o rapaz voltou-se na cadeira e começou a falar. E não tardou que o pintor, aturdido, percebesse que ele estava a referir-se à coisa mais terrível que se possa ima ginar.
- Será que há nisto alguma verdade?-perguntava. - É o que venho a perguntar a mim próprio, isto tem-me enlouquecido. Nunca pensei que poderia vir a preocupar-me com estas coisas, mas acho que o retrato, os versos e as coincidências, ou como queiram chamar-lhes, fazem-me calafrios quando penso nelas. Haverá nisto alguma verdade? Existirá, de facto, aMaldição dos Darnaways? Terei eu o direito de me casar, ou vou atrair sobre mim e sobre outra pessoa qualquer coisa de horrível, que vem não se sabe de onde e que eu ignoro o que seja?!
Olhava em redor com os olhos arregalados e acabou por os fixar no padre, a quem parecia agora dirigir-se. O espírito prático de Payne insurgiu-se contra o facto de se pôr o problema da superstição perante aquele juiz por natureza supersticioso. Estava sentado junto de Darnaway e adiantou-se antes de o padre ter tempo de responder.
- Bem, eu concordo que as coincidências são curiosas - começou, com um esforço para falar despreocupadamente -, mas não há dúvida... - nisto calou-se, como se lhe caísse um raio em cima. Darnaway voltara a cabeça ao ouvir a interrupção e, ao mesmo tempo, a sua sobrancelha esquerda erguera-se muito acima da companheira. Assim, por breves instantes, a cara do retrato fitou-o com exagerada semelhança. Os circunstantes haviam observado a mesma coisa e todos tinham o ar de quem ficou ofuscado por um clarão. O velho mordomo soltou um gemido rouco e murmurou:
- Não há nada a fazer. Estamos perante qualquer coisa de horrível!
- Sim - confirmou em voz baixa o padre. - Estamos perante uma coisa horrível. A coisa mais horrível que eu conheço e o seu nome é "disparate"!
- Que diz o senhor? -inquiriu Darnaway, sempre a olhar para ele.
- Disse "disparate" - repetiu o padre. - Se não falei até agora foi porque não era da minha conta; eu andava apenas a exercer o meu ministério nesta região, e Miss Darnaway quis que eu aqui viesse. Mas já que o senhor pergunta de caras a minha opinião, é fácil eu dar uma resposta. Claro que não existe nenhuma maldição sobre os Darnaway que o proíba de casar com quem quer que seja, se forem boas as suas intenções. Nenhum homem foi fadado para cometer o mais leve pecado venial, quanto mais crimes tão graves como o suicídio e o assassínio! Ninguém pode cometer actos perversos contra a própria vontade, só porque o seu nome é Darnaway, tal como o meu é Brown. AMaldição dos Browns, talvez até soasse melhor.
- E é então o senhor, entre todos-exclamou, admirado, o australiano -, quem me diz para encarar assim as coisas?
- E digo-lhe mais - replicou vivamente o padre. - Que se passa com a moderna arte da fotografia? Que é feito da sua máquina fotográfica? Cá em baixo faz muito escuro, bem sei, mas aquelas arcadas lá de cima podiam muito bem ser transformadas num estúdio fotográfico de primeira ordem. Meia dúzia de operários colocavam ali num instante um tecto de vidro.
- Com franqueza! - protestou Martin Wood. - Nunca pensei que o senhor fosse capaz de querer adulterar aquelas maravilhosas arcadas góticas, a melhor herança que a sua religião deixou ao mundo. Sempre imaginei que o senhor tivesse um pouco de sensibilidade em relação a essas coisas da arte; o que não entendo é que se interesse assim tanto pela fotografia.
- Interesso-me principalmente pela luz clara - retorquiu o padre Brown -, sobretudo neste negócio tão escuro; porque a fotografia tem a virtude de estar dependente da luz. E se o senhor não percebe que eu seria capaz de reduzir a pó todos os arcos góticos que há no mundo para salvar a sanidade mental de um único ser humano, é porque não percebe nada da minha religião.
O jovem australiano pusera-se subitamente de pé como um homem que rejuvenesce:
- Caramba! Assim é que é falar!-exclamou. - Nunca julguei ouvir essa opinião da boca do senhor. E vou dizer-lhe uma coisa, meu caro reverendo. O que vou fazer há-de demonstrar que afinal não perdi a coragem!
O velho mordomo continuava a olhá-lo, com certa desconfiança, como se receasse que o desafio do jovem escondesse alguma finalidade.
- Oh! - exclamou ele. - Que vai o senhor fazer agora?
- Vou fotografar o retrato - replicou Darnaway. Contudo, foi dali a uma semana que a catástrofe desabou, como se caísse do céu, escurecendo o sol da sanidade mental, para a qual o padre apelara em vão, e mergulhando de novo o castelo no pesadelo da Maldição dos Darnaways. Fora bastante fácil adaptar o novo estúdio; visto por dentro, assemelhava-se a qualquer outro estúdio, totalmente vazio, mas cheio de uma luminosidade ofuscante. Quem viesse das salas escuras do andar inferior tinha a impressão de se encontrar de súbiito na atmosfera clara e deslumbrante do futuro. Por sugestão de Wood, que conhecia bem o castelo e já se recompusera das suas objecções de natureza estética, tinha-se transformado um pequeno cubículo no andar de cima em câmara escura, dentro da qual Darnaway se refugiava da luz ofus-cante para trabalhar sob os raios de uma lâmpada vermelha. Wood costumava dizer, por graça, que a lâmpada vermelha o reconciliara com o vadalismo; e que aquela escuridão trespassada de raios vermelhos era tão romântica como a caverna de um alquimista. Darnaway levantara-se de madrugada no dia em que tencionava fotografar o retrato misterioso e levara-o da biblioteca lá para cima, através da escadinha de caracol que ligava os dois andares. Aí, instalara-o em plena luz, sobre uma espécie de cavalete, e armara na sua frente o tripé fotográfico. Afirmava estar ansioso por enviar aquela reprodução a um conhecido antiquário a quem escrevera, falando-lhe das antiguidades existentes na casa; porém, os outros sabiam que para além deste motivo havia outros mais profundos. Tratava-se, quando não de um duelo espiritual entre Darnaway e o retrato demoníaco, pelo menos de um duelo entre ele, Darnaway e as suas próprias dúvidas. Ele queria colocar lado a lado a iluminação da fotografia a par da escura obra-prima da pintura; e verificar se a luz crua daquela nova arte seria capaz de afastar as sombras da arte velha.
Talvez fosse por este motivo que ele preferia fazer o trabalho todo, sozinho, embora alguns pormenores levassem bastante mais tempo a executar do que se imaginava. De qualquer modo, ele desencorajara os raros curiosos que procuraram visitar o estúdio no dia da experiência, e que o encontraram todo entregue à sua tarefa, numa atitude de isolamento impenetrável. O mordomo preparara-lhe uma refeição leve, visto ele ter recusado descer ao andar de baixo; o velhote fora encontrar os pratos mais ou menos vazios; porém, quando fora buscar o tabuleiro, só recebera como agradecimento um vago grunhido. Payne subira uma vez ao estúdio para ver como corriam as coisas, mas ao encontrar o fotógrafo nada disposto a conversar, voltara para baixo. O padre Brown dirigira-se sorrateiramente lá acima, a fim de entregar a Darnaway uma carta do especialista a quem ele iria mandar a fotografia. Poisara a carta numa bandeja e fosse o que fosse que pensara acerca daquela sala envidraçada, cheia de luz e devoção a um passatempo, um mundo que ele próprio de certa maneira criara, guardou-o para si e voltou a descer. Não tardaria a recordar-se de que fora ele o último a descer a escadinha solitária que unia os dois andares, deixando atrás de si um homem sozinho numa sala vazia. Os outros encontravam-se reunidos no salão contíguo à biblioteca, mesmo por debaixo do enorme relógio que lembrava um gigantesco caixão.
- Como estava Darnaway da última vez que o senhor foi lá acima? - perguntou Payne um pouco mais tarde.
O padre passara a mão pela testa, declarando com um sorriso triste:
- Não me diga que estou a ficar com maus pressentimentos. Acho que fiquei ofuscado com tanta luz e não via bem as coisas. Para lhe dizer a verdade, pareceu-me que havia algo que não estava certo na figura de Darnaway, parado, em frente do retrato.
- Era a perna dele - respondeu prontamente Barnet.-Todos sabemos isso.
- Olhem - murmurou de súbito Payne, baixando a voz. - Acho que nenhum de nós sabe nada acerca disso. Que tem a perna dele? E que é que tinha a perna do antepassado?
- Vem qualquer coisa a esse respeito no livro dos arquivos da família que estive a ler lá dentro - declarou Wood. - Posso ir buscá-lo. - E dirigiu-se à biblioteca.
- Penso - murmurou calmamente o padre Brown - que o Sr. Payne deve ter qualquer razão especial para fazer esta pergunta.
- O melhor é eu pôr já tudo em pratos limpos - declarou Payne em voz ainda mais baixa. - Afinal, pode haver uma explicação muito simples. O sujeito pode ter fingido para se parecer com o retrato. Que sabemos nós acerca deste Darnaway? O procedimento dele parece-me agora um bocado esquisito...
Os outros olharam para ele espantados, mas o padre parecia aceitar com calma a sugestão.
- Penso que o quadro nunca tinha sido fotografado - observou -, por isso ele quis retratá-lo. Acho que isso não tem nada de esquisito.
- De facto, trata-se da coisa mais vulgar deste mundo - observou Wood com um sorriso; vinha a entrar com um livro na mão. No momento em que ele falava ouviu-se um estalido no mecanismo do relógio atrás dele e a sala encheu-se com o som de sete badaladas. Juntamente com a última veio um estrondo do andar superior que abalou toda a casa; entretanto, já o padre Brown corria para as escadas.
- Meu Deus! - exclamou involuntariamente Payne. - Ele está lá em cima sozinho!
- Sim - retorquiu o padre Brown sem se voltar, já a desaparecer na volta da escada -, vamos encontrá-lo só.
Quando os outros voltaram a si do susto e correram, atropelando-se, pelas escadas acima até ao estúdio, é certo que o foram encontrar sozinho. Estava junto da máquina fotográfica toda partida, cujos pés se achavam cada um para seu lado; caíra por cima dela e a sua perna torta formava um ângulo juntamente com os destroços do tripé. À primeira vista dava a impressão de que ele lutara com uma aranha enorme. Bastou vê-lo e tocá-lo para se perceber que estava morto. Apenas o retrato se achava intacto, sobre o cavalete, e os seus olhos brilhantes pareciam sorrir.
Dali a uma hora, o padre Brown, que tentava acalmar a confusão dos habitantes da casa, aproximou-se do velho mordomo, cujos lábios repetiam certas frases com a mesma cadência com que há pouco o relógio batera as horas. Antes de ouvir as palavras, o padre Brown já sabia o que ele estava murmurando:
Na sétima hora voltarei! Na sétima hora partirei!
O padre ia para lhe dizer qualquer coisa, mas o outro pareceu acordar num desespero súbito e o seu murmúrio transformou-se num grito de raiva:
- Foi o senhor! O senhor e a sua luz! Veja lá se ainda pode afirmar que não existe nenhuma maldição sobre os Darnaways!
- Ainda penso da mesma maneira - retorquiu suavemente o padre Brown. E, depois de uma pausa, acrescentou: - Espero que vocês cumpram o último desejo do pobre Darnaway e enviem a fotografia.
- A fotografia? - exclamou o médico irritado. - Mas para quê? De facto, é estranho, mas a verdade é que não há nenhuma fotografia. Parece que ele não chegou a tirá-la, depois de ter estado às voltas com o retrato o dia inteiro.
O padre Brown voltou-se vivamente para ele:
- Nesse caso, tirem-na vocês. É extremamente importante que se tire essa fotografia.
Tal como os outros visitantes, o padre, o médico e os dois artistas saíram uns atrás dos outros num triste cortejo através do areal. A princípio conservaram-se mais ou menos calados, como que aturdidos. Realmente, o que sucedera relativamente àquela velha superstição, no momento em que quase a haviam já esquecido, fora uma espécie de trovão no meio de um dia claro, precisamente quando o médico e o padre acabavam de encher as cabeças dos outros de ideias racionalistas, e o fotógrafo de encher o seu estúdio de sol. Por muito racionalista que eles se professassem, o certo é que, em pleno dia, o sétimo herdeiro aparecera e, também em pleno dia e na sétima hora, ele perecera.
- Creio bem que todas as pessoas, daqui em diante, vão acreditar na Maldição dos Darnaways - declarou Martin Wood.
- Uma sei eu que não acredita - retorquiu azedamente o médico. - Por que hei-de acreditar em superstições, quando alguém resolve suicidar-se?
- Acha que o pobre Darnaway se suicidou? - inquiriu o padre.
- Tenho a certeza de que se suicidou - tornou o médico.
- É possível - replicou o outro.
- Ele estava sozinho e tinha uma quantidade de veneno na câmara escura. Além disso, já é costume dos Darnaways.
- Então acha que sempre existe alguma coisa de verdade na maldição daquela família?
- Sim, pode haver uma maldição na família, que é a constituição dessa família. Eu já disse que era um caso de hereditariedade. Eles são todos doidos. Quando uma família fica estagnada e procria e se propaga num pântano como este, não admira que fiquem degenerados, quer queiram, quer não. Não se pode fugir à leis da hereditariedade nem se podem negar as verdades da ciência. A cabeça dos Darnaways está transtornada, assim como as suas traves e as suas paredes estão caindo aos bocados, carcomidas pelo mar e pela água salgada. Suicídio? Claro que foi suicídio. Acho que os outros vão acabar por se suicidar também. E até será a melhor coisa que eles têm a fazer!
Enquanto o homem da ciência falava, veio subitamente à memória de Payne, com toda a clareza, o rosto da filha dos Darnaways, muito pálida, no meio daquela escuridão, mas ainda assim de uma beleza sobrenatural. Abriu a boca para falar, mas não conseguiu.
- Pelo que vejo - disse o padre Brown para o médico -, afinal o senhor sempre acredita na maldição!
- O que pretende o senhor dizer com isso, que eu acredito na maldição?! Eu acredito no suicídio por uma questão de necessidade científica.
- Quanto a mim não vejo grande diferença - tornou o padre - entre a sua superstição científica e a outra. Ambas acabam por deixar as pessoas tolhidas de pernas e braços, sem conseguirem defender as suas vidas nem salvar as suas almas. O verso dizia que era sina dos Darnaways ser assassinados, e o texto científico afirma que a sina dos Darnaways é suicidarem-se. De ambas as maneiras são escravos da maldição.
- Ora eu julgava ter-lhe ouvido dizer que o senhor perfilhava o ponto de vista científico nesta matéria - observou o Dr. Barnet.
- Então, não acredita na hereditariedade?
- Eu disse que acreditava na luz do dia - replicou o padre numa voz clara e audível -, por isso, não vou optar por um dos dois túneis de superstição, pois ambos terminaram no escuro. E a prova é esta: o senhor está absolutamente às escuras no que respeita ao que sucedeu naquela casa.
- Refere-se ao suicídio? - perguntou Payne.
- Refiro-me ao assassínio - corrigiu o padre Brown. E a sua voz, apenas num tom um pouco mais elevado, parecia ressoar por toda a praia. - Foi um assassínio, mas o crime depende da vontade do homem que Deus criou livre.
Payne nunca chegou a saber o que o outro respondeu. Aquela palavra teve sobre ele um curioso efeito; despertou-o como um toque de trombeta, mas ao mesmo tempo fê-lo parar; ficou imóvel no meio do areal e deixou os outros seguir em frente. Sentiu o sangue parar nas veias e experimentou aquela sensação que se chama ficar com os cabelos em pé. Mas ao mesmo tempo invadia-o uma felicidade estranha. Um processo psicológico demasiado rápido e complexo para que ele o conseguisse analisar fizera-o chegar a uma conclusão. Depois de ficar uns momentos imóvel, deu meia volta e regressou lentamente à casa dos Darnaways.
Atravessou o fosso com um passo tão decidido que fez estremecer a ponte, desceu as escadas e percorreu as salas com o mesmo passo firme e decidido até chegar ao sítio onde Adelaide Darnaway se encontrava, envolta no clarão da janela oval, qual santa esquecida na terra da morte. Ela olhou-o com espanto, o que tornava o seu rosto ainda mais belo.
- Que é isto? - inquiriu. - Por que voltaste?
- Vim buscar a Bela Adormecida - disse num tom que soava a riso. - Esta casa estava há muito adormecida, como disse o doutor; mas é uma tolice fingires de velha. Vem cá para fora para a luz, afim de ouvires a verdade. Trago-te uma palavra, uma palavra terrível, mas que vem quebrar o encanto do teu cativeiro!
Ela não percebia patavina de tudo o que ele dizia, mas qualquer coisa a fez erguer e permitiu que ele a conduzisse ao longo do corredor, pelas escadas acima, até chegarem lá fora, debaixo do céu nocturno. As ruínas de um jardim morto estendiam-se até ao mar. Uma velha fonte, com a figura de um tritão coberto de verdete, continuava ali, fingindo despejar uma cornucópia vazia num tanque seco. Muitas vezes, Payne contemplara aquela imagem desolada a recortar-se no céu e sempre lhe parecera que ela significava a vários títulos o protótipo das fortunas arruinadas. Não tardaria, sem dúvida, que aqueles lagos ficassem cheios, mas seria com as águas verdes e salgadas do mar e as flores seriam afogadas pelas algas. Por isso, ele dizia consigo mesmo que seria este o noivado da filha dos Darnaways; mas seria um noivado de morte, vítima de uma maldição irrevogável e impiedosa como o mar. Hoje, porém, poisou a mão sobre o tritão de bronze. Era como a mão de um gigante que o sacudisse e abanasse, como se pretendesse arrancar do jardim aquele ídolo ou deus maléfico.
- Que significa isto? - perguntou ela agora. - Que palavra é essa que nos vem libertar?
- A palavra é assassínio - respondeu -, e a liberdade que ela encerra é tão bela como as flores da Primavera. Não, eu não matei ninguém. Mas ofacto de alguém ter sido assassinado é uma boa notícia depois dos pesadelos que tens vivido. Não percebes? Nos teus sonhos, tudo o que te sucedia vinha de dentro de ti; a Mal dição dos Darnaways estava enraizada nos Darnaways e continuava a desabrochar como uma flor venenosa. Não havia qualquer hipótese de lhe escapar; era tudo inevitável; tanto nas histórias tolas de Vines como nas de Barnet, com a sua famosa hereditariedade. Porém, este homem que morreu não foi vítima de nenhuma maldição nem de uma herança de loucura. Foi assassinado, e, para nós, não passa de um acidente. Sim, paz à sua alma, mas foi um feliz acontecimento. Foi uma espécie de raio de luz, porque veio do exterior.
De súbito, ela sorriu:
- Sim, acho que estou a perceber. Parece-me que estás a falar como um louco, mas eu percebo. Quem foi que o matou?
- Não sei - respondeu ele calmamente -, mas o padre Brown sabe. E, segundo ele diz, o assassínio é fruto da vontade do homem livre como esta brisa do mar.
- O padre Brown é uma pessoa maravilhosa! - declarou ela após uma pausa. - Foi ele a única pessoa que iluminou a minha existência até...
- Até o quê? - perguntou Payne. Pez um movimento impetuoso, inclinando-se para ela e repelindo o monstro de bronze, que pareceu oscilar no seu pedestal.
- Até tu chegares - retorquiu ela, sorrindo de novo. Assim despertou o Palácio Adormecido e não compete a esta história descrever as várias fases do seu despertar, embora algumas delas se tivessem passado antes daquela tarde sinistra se ter abatido sobre a praia.
Quando Harry Payne regressou a casa, através das areias escuras da praia que tantas vezes atravessara nas mais diversas disposições de espírito, sentia-se tão feliz como nunca lhe sucedera. O mar que marulhava dentro de si atingira a sua maré mais alta. Nada lhe custava imaginar agora aquele jardim todo florido, e o tritão de bronze reluzente e doirado como um deus, a despejar na fonte água ou mesmo vinho. Mas todo esse esplendor era fruto de uma palavra apenas: "assassínio", palavra essa que para ele continuava incompreensível. Aceitara-a como verdadeira, e estava certo, pois era uma daquelas pessoas que sabem reconhecer o som da verdade.
Só um mês mais tarde é que Payne regressou à sua casa de Londres e marcou uma entrevista com o padre Brown, onde se fez acompanhar pela célebre fotografia. O seu romance prosperava, como convinha, à sombra de semelhante tragédia, mas essa sombra pesava agora menos sobre ele. No entanto, era difícil considerá-lo de outro modo que não fosse a fatalidade de uma família. Em muitos aspectos, Payne estivera bastante ocupado; só quando a casa dos Darnaways retomara a sua costumada rotina e o retrato voltara a ocupar o seu lugar na biblioteca, é que ele conseguira fotografá-lo com um flash de magnésio. Antes de o enviar para o antiquário, como ficara combinado, levou-o primeiro ao padre, conforme este lhe pedira insistentemente.
- Não compreendo a sua atitude em tudo isto, padre Brown - declarou. - O senhor procede como se tivesse resolvido todo o problema sozinho.
O padre abanou tristemente a cabeça:
- Nem por sombras! - respondeu. - Devo ser muito estúpido, mas estou confuso; estou confuso acerca do ponto mais importante de tudo. Este caso é muito estranho: tão simples até certa altura e depois... Mas deixe cá ver essa fotografia, se faz favor.
Aproximou-a por momentos dos seus olhos vivos e míopes e depois perguntou:
- Tem aí uma lupa?
Payne foi buscar uma, e o padre olhou através dela, por uns momentos, com toda a atenção, e depois disse:
- Está a ver o título daquele livro, mesmo rente à estante? E aHistória do Papa João. Eu só queria saber... Caramba! O outro, por cima trata de qualquer coisa acerca da Islândia. Meu Deus! Que estranha maneira esta de descobrir! Que burro, que idiota eu fui por não ter visto isso quando lá estava!
- Mas, afinal, que é que descobriu? - perguntou Payne com impaciência.
- O último elo da cadeia - respondeu o padre Brown -, e já não estou confuso - declarou. - Sim, acho que agora sei como é que esta triste história se passou, do princípio ao fim.
- Mas porquê?
- Porquê?-respondeu o padre, sorrindo. - Porque abiblioteca dos Darnaways continha livros acerca do papa João e da Islândia, para não mencionar outros que aqui vejo, cujo título começa assim: História da Religião de Frederico... e que não é difícil de completar. - Depois, ao ver o ar intrigado do outro, o seu sorriso desapareceu e falou mais sério: - Para dizer a verdade, este último ponto, embora represente o elo que faltava, não é o principal. Neste caso, há outras coisas muito mais interessantes. Uma delas tem o interesse da evidência. Deixe que eu comece por uma coisa que decerto o vai surpreender. Darnaway não morreu à sete horas daquele dia, já estava morto desde a véspera.
- Surpreender-me não é bem o termo - respondeu Payne com ar carrancudo -, uma vez que eu e o senhor o vimos depois disso a andar pelo estúdio.
- Não vimos, não - replicou suavemente o padre Brown. - Penso que ambos o vimos, ou julgámos ver, a regular a sua máquina. Quando você passou ele tinha a cabeça tapada com o pano preto? Quando eu passei era assim que ele estava. E foi isso que me fez sentir que havia algo de estranho em relação ao estúdio e à pessoa. Não se tratava da perna torta, mas sim o facto de a perna não ser torta. O fato dele era igualmente escuro, mas quando vemos uma pessoa a tentar imitar a posição de outra, verificamos que a sua atitude é forçada.
- O senhor quer dizer que se tratava de um homem desconhecido?
- Tratava-se do assassino - respondeu o padre Brown. - Ele já tinha morto Darnaway de madrugada e escondera-se juntamente com o cadáver na câmara escura, que era um excelente esconderijo, uma vez que normalmente ninguém entra ali, e, mesmo que entre, não consegue ver nada. Mas fê-lo cair no chão às sete horas, para que tudo pudesse ser explicado através da maldição.
- Não estou a compreender - observou Payne. - Por que é que ele não o matou à sete horas em vez de ficar com um cadáver às costas durante catorze horas?
- Deixe que lhe faça outra pergunta: por que é que não foi tirada nenhuma fotografia? Porque o assassino teve o cuidado de o matar da primeira vez que foi lá acima, antes de o outro ter tirado a fotografia. Era essencial para o assassino evitar que a fotografia chegasse às mãos do antiquário especializado nas relíquias dos Darnaways.
Seguiu-se um silêncio e então o padre prosseguiu em voz mais baixa:
- Está a ver como tudo é simples? Você próprio viu uma das possibilidades; mas a coisa foi ainda mais simples do que você imaginava. Você disse que um homem podia alterar a sua posição para se assemelhar ao quadro. Mas seria ainda mais simples alterar um quadro para que ele se assemelhasse ao homem. Numa palavra: a verdade é que nunca existiu a Maldição dos Darnaways... Nunca existiu nenhum retrato antigo, nem versos. Nunca houve a lenda do homem que provocou a morte da mulher. Houve, sim, um homem muito esperto e malvado que resolveu matar outro para lhe roubar a noiva.
O padre dirigiu a Payne um sorriso triste e explicou:
- Você pensou que eu desconfiava de si, mas o senhor não era o único que andava ali naquela casa por motivos sentimentais. O senhor conhece o sujeito, pelo menos julga conhecê-lo; porém, no íntimo do homem que se chama Martin Wood existem sentimentos ocultos que nenhum dos seus colegas de arte seria capaz de adivinhar. Lembre-se que ele foi chamado para classificar e catalogar os quadros; num meio aristocrático como aquele isso simplesmente significava dizer aos Darnaways que espécie de tesouros artísticos é que eles possuíam. Não ficariam nada surpreendidos se aparecessem por lá objectos de que nunca haviam dado fé. A coisa tinha de ser muito bem urdida, e foi, de facto; ele não estava longe da verdade quando disse que se o quadro não era de Holbein era de outro qualquer dotado de um génio semelhante.
- Estou completamente baralhado - confessou Payne -.porque há uma porção de coisas que eu ainda não entendo. Como é que ele sabia qual era o aspecto de Darnaway? E como é que ele o matou? Neste momento, os médicos parece que ainda não chegaram a uma conclusão.
- Eu vi uma fotografia que o australiano tinha mandado antecipadamente à rapariga - informou o padre -, e há uma porção de coisas de que ele poderia ter tomado conhecimento quando foi descoberto o novo herdeiro. Podemos não vir a conhecer nunca esses pormenores, mas isso não interessa. Lembre-se de que ele costumava ajudá-lo na câmara escura; esse lugar afigura-se-me ideal para picar o companheiro com uma agulha envenenada, uma vez que havia ali tantos venenos à mão de semear. Não, a dificuldade não era essa. A dificuldade que me atrapalhava era saber como é que Wood podia ter estado em dois sítios ao mesmo tempo. Como é que tinha conseguido tirar o cadáver da câmara escura e encostá-lo à máquina fotográfica, de modo que ele caísse dali a segundos, sem descer cá abaixo, quando tinha ido à biblioteca procurar um livro? E eu fui tão estúpido que nem sequer olhei nunca para os livros da biblioteca. E foi por sorte, uma sorte que eu não merecia, que reparei, ao ver este retrato, que havia ali um livro sobre o papa João.
- O senhor está a guardar a melhor charada para o fim - respondeu Payne carrancudo. - Que raio tem o papa João a ver com isto?
- Não se esqueça do outro livro sobre "qualquer coisa" da Islândia - lembrou o padre. - E também "A religião de alguém chamado Frederico". Falta perguntar que espécie de homem era o falecido Lorde Darnaway.
- Ah, sim? - perguntou Payne ainda mal-humorado.
- Era um homem culto, uma espécie de excêntrico, com senso de humor - prosseguiu o padre Brown. - Uma vez que era culto, sabia que nunca existiu nenhum papa João. E tendo senso de humor é fácil imaginar o que pensaria do títuloAs Cobras da Islândia, algo que não existe. Atrevo-me a reconstituir o terceiro título A Religião de Frederico, O Grande, que também nunca existiu. Ora, podemos calcular que estes títulos eram próprios para colocar na lombada de livros que não existiam, ou, melhor, numa estante que não era estante...
- Ah! - exclamou Payne. - Já percebo! Havia uma escada secreta...
- Que dava para o quarto onde Wood aconselhou a que se fizesse a câmara escura - terminou o padre, abanando a cabeça. - Desculpe. Não havia nada a fazer. Foi tudo uma coisa muito estúpida, tal como eu fui muito estúpido em todo este caso tão banal. Mas estávamos todos baralhados com uma história romântica e serôdia de nobreza decadente e de uma velha mansão arruinada; não podia faltar uma passagem secreta. Fora em tempos um esconderijo de padres, e eu bem merecia que me metessem lá dentro!
O FANTASMA DE GIDEON WISE
O padre Brown considerou sempre este caso como o mais estranho exemplo da teoria dos álibis; uma teoria segundo a qual, em contradição com o pássaro irlandês, ninguém pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Para começar, James Byrne, um jornalista irlandês, era, de certo modo, a coisa mais parecida com esse pássaro. Esteve mais perto do que ninguém de se achar em dois pontos opostos do mundo, social e político, no espaço de vinte minutos. O primeiro era o vasto átrio do Grande Hotel da Babilónia, local de encontro de três magnatas do comércio, empenhados em combinar um lock out do carvão, denunciando-o como greve. O segundo era uma estranha taberna sob afachada de uma mercearia, onde se reunia o mais secreto triunvirato daqueles que desejariam transformar o lock out em greve e a greve em revolução. O repórter passeava-se de cá para lá entre os três milionários e os três bolchevistas com aimunidade de um moderno arauto ou de um novo embaixador. Foi encontrar os três magnatas das minas, ocultos no meio de uma floresta de plantas de estufa e de outra floresta de colunas esguias e cobertas de floreados de gesso doirado; no alto das abóbodas revestidas de pinturas estavam suspensas gaiolas também doiradas, entre a folhagem das palmeiras; e nelas viam-se pássaros de cores variadas e cantos diferentes. Nenhuma ave das regiões selvagens cantara com tanto entusiasmo e nenhuma flor exalara melhor o seu perfume no ar deserto do que aquelas flores de estufa derramavam sobre as cabeças daqueles homens afadigados e tensos, quase todos americanos, que ali discutiam e passeavam de um lado para o outro. E no meio daquela avalancha de ornamentos rococós, a que ninguém prestava atenção, por entre o chilrear de aves raras e estrangeiras que ninguém escutava numa avalancha de vistosas tapeçarias e num labirinto de arquitecturas luxuosas, aqueles três homens sentavam-se a discutir entre si, chegando à conclusão de que o êxito da pessoa dependia de uma vigilância estreita sobre a economia, a frugalidade e do autodomínio de cada um. É certo que um deles falava menos que os outros; observava-os, porém, com uns olhos brilhantes e imóveis que pareciam ligados um ao outro pelo pince-nez. O seu sorriso constante sob o curto bigode preto assemelhava-se a um esgar. Este era o famoso Jacob P. Stein, que só falava quando tinha alguma coisa a dizer. O seu companheiro, porém, o velho Gallup, da Pensilvânia, um tipo gordo e enorme, com uma respeitável cabeleira branca e um rosto de pugilista, falava pelos cotovelos, e ora troçava ora apoiava o terceiro milionário, Gideon Wise, um sujeito seco, duro e anguloso, que os seus compatriotas comparavam a uma velha árvore. Usava uma barbicha grisalha e pontiaguda e os seus fatos e as suas maneiras eram as de um velho lavrador das planícies. Entre Wise e Gallup havia uma diferença de opiniões acerca de "associação" ou "competição". O velho Wise conservava, a par das maneiras de antigo colono, parte das opiniões destes como individualistas ferrenhos; pertencia, como diriam os ingleses, à Escola de Manchester; e Gallup passava o tempo a tentar convencê-lo a pôr de lado a competição e a fazer parte dos recursos mundiais em conjunto.
- Mais tarde ou mais cedo você terá de vir às boas, meu velho - afirmava jovialmente Gallup, no momento em que Byrne vinha a entrar. - É esta a corrente actual e não podemos remar contra a maré. O que temos a fazer é unirmo-nos todos.
- Se me permitem uma palavra - declarou Stein com o seu tom calmo -, diria que existe algo mais urgente que unirmo-nos do ponto de vista comercial. De qualquer modo, penso que devemos apoiar-nos politicamente; e foi por isso que pedi ao Sr. Byrne para vir aqui encontrar-se connosco. Temos de chegar a um acordo do ponto de vista político, pela simples razão que os nossos inimigos mais perigosos fizeram já um acordo entre eles.
- Oh, quanto a acordo político, concordo plenamente - resmungou Gideon Wise.
- Ora oiça, Sr. Byrne - disse Stein para o jornalista-, sei que o senhor conhece bem esses meios esquisitos e queria que nos prestasse oficiosamente um serviço. O senhor sabe onde esses homens se reúnem; entre eles há apenas uns dois ou três que contam: John Elias e Jake Halket, que é quem faz todas as discursatas, e, talvez, também o poeta, um tal Horne.
- Olha! Mas o Horne, dantes, era amigo de Gideon! - exclamou, trocista, Gallup. - Parece que andou com ele na escola dominical, ou coisa que o valha.
- Era cristão, nessa altura - declarou solenemente o velho Gideon. - Mas quando um homem se mete com os ateus, nunca se sabe. Ainda me encontro com ele de tempos a tempos. Estou do seu lado contra a guerra e o recrutamento militar, etc. Mas quanto a esses excomungados bolchevistas...
- Desculpe - interrompeu Stein -, mas o caso é muito urgente, por isso peço desculpa de querer apresentá-lo desde já ao Sr. Byrne. Devo informá-lo confidencialmente de que possuo informações, ou antes, provas, que poderiam levar pelo menos dois desses sujeitos à prisão, por longos períodos, em virtude de conspirações em que tomaram parte durante a última guerra. Mas não pretendo fazer uso dessas provas. Só lhe peço que vá ter com eles em particular, dizendo que estou disposto a utilizar essas provas, e fá-lo-ei já amanhã, caso eles não modifiquem a sua atitude.
- Bem-replicou Byrne -, o que o senhor propõe, poder-se-á considerar uma transigência com a traição ou mesmo uma tentativa de chantagem. Não acha isso um bocado perigoso?
- Penso que pode ser perigoso para eles-respondeu secamente Stein -, e peço que lhes diga isso mesmo.
- Está muito bem - retorquiu Byrne, pondo-se de pé com ar um tanto agastado. - Isso faz parte da minha profissão, mas se eu tiver alguma chatice, já o aviso de que o meto à bulha!
- Experimente, meu rapaz! - ripostou o velho Gallup com uma gargalhada.
É pois, isto o que resta, neste país, do velho sonho de Jefferson e daquilo a que os homens chamam Democracia. Se bem que os ricos ainda governem como tiranos e os pobres já não falem como escravos; mas tanto da parte dos opressores como dos oprimidos existe uma certa ingenuidade.
O ponto de reunião dos revolucionários era um compartimento nu, de paredes caiadas, que ostentavam uns dois ou três desenhos toscos a preto e branco, do estilo que poderia chamar-se Arte Proletária, acerca da qual nem sequer um proletário, num milhão, em todo o mundo, percebe patavina. O único ponto em comum que existia entre os dois centros de reunião, é que ambos violavam a Constituição americana, através de consumo de bebidas alcoólicas. Em frente de cada um dos milionários via-se uma colecção de cocktails de diversas cores. Quanto a Halket, o mais violento dos bolcheviques, entendia que só se devia beber vodca. Era um tipo alto e corpulento, que se curvava para a frente de forma ameaçadora, com um perfil agressivo como o focinho de um cão, em que o nariz quase tocava nos lábios. Estes estavam encimados por um espesso bigode ruivo, e tanto uns como os outros se curvavam para baixo numa expressão desdenhosa. John Elias era moreno e sisudo: usava óculos e possuía uma barbicha preta e pontiaguda; nos diversos cafés da Europa que frequentara habituara-se a beber absinto. A primeira impressão do jornalista foi a de que John Elias e Jacob P. Stein eram muito parecidos um com o outro. As suas caras, as suas mentalidades e maneiras de ser eram de tal modo idênticas que o milionário bem poderia desaparecer por artes mágicas do Hotel Babilónia e aparecer no antro dos bolchevistas que ninguém estranharia.
O gosto do terceiro homem, quanto a bebidas, era também bastante estranho e simbólico. O que o poeta Horne tinha na sua frente era um copo de leite. O certo é que a própria suavidade desse líquido parecia representar em si algo de sinistro; e a sua cor branca e opaca lembrava, naquele lugar, qualquer mistela mais nojenta e venenosa que o verde do absinto. E, no entanto, a doçura da bebida condizia com o sujeito. De facto, Henry Horne viera para as fileiras da revolução por caminhos muito diferentes dos de Jake, o orador característico, ou de Elias, o revolucionário cosmopolita que puxa os cordelinhos. Ele tivera o que se chama uma educação esmerada, frequentara a igreja durante a infância e mantivera-se durante toda a vida, um abstémio ferrenho em matéria de bebidas alcoólicas, mesmo depois de ter abandonado certas práticas tradicionais menos importantes como seja o cristianismo e o casamento. Tinha o cabelo loiro e um rosto belo, que poderia ter algumas semelhanças com Shelly, se acaso ele não alterasse o desenho do queixo com uma ligeira barba de modelo estrangeiro. Por estranho que pareça, essa barba dava-lhe um aspecto de certo modo feminino, como se ele não conseguisse produzir mais nada que aqueles raros pêlos loiros...
Quando o jornalista entrou, o célebre Jake estava a discursar, como era seu costume. Horne limitara-se a proferir alguns, raros, comentários convencionais, género: "Deus nos defenda!", ou outros semelhantes, que haviam provocado da parte de Jake uma torrente de impropérios.
- Deus nos defenda! Nunca Ele fez outra coisa! - exclamava o outro. - Defende que não devemos fazer isto ou aquilo. Não devemos fazer greve, não devemos lutar, não devemos dar um tiro nesses malditos usurários, nessas sanguessugas. Por que é que não os proíbe a eles, para variar? Por que é que esses teus malditos padrecas não se levantam para proclamar a verdade acerca desses brutos? Por que é que esse vosso Deus...?
Nesta altura, Elias deixou escapar um leve suspiro de cansaço e murmurou:
- Os padres, tal como afirmou Marx, pertencem à fase feudal do desenvolvimento económico e portanto não fazem já parte do problema. O papel dantes desempenhado pelos padres é hoje representado pelo capitalismo científico e...
- Sim - interrompeu o jornalista com uma careta de imparcialidade irónica -, já é tempo de vocês se convencerem de que alguns deles representam esse papel de maneira muito científica.
E, sem desviar a vista dos olhos brilhantes e parados de Elias, contou-lhe o recado de Stein.
- Já esperava deles qualquer coisa desse género-retorquiu Elias, sorrindo sem se mover. - Posso mesmo afirmar que estava preparado para isso.
- Cachorros! - explodiu Jake. - Se qualquer pobre diabo dissesse uma coisa dessas ia parar à cadeia. Mas penso que os espera outra coisa pior que a cadeia. Se não forem parar aos infernos, então eu não sei...
Horne fez um movimento de protesto, não tanto em face do que o outro dissera como do que poderia vir a dizer, e Elias cortou-lhe a palavra com fria exactidão:
- Não temos necessidade - afirmou, olhando Byrne fixamente através dos óculos -, não temos necessidade de trocar ameaças com a outra parte. Sabemos que as ameaças deles não têm qualquer efeito sobre nós. Também temos os nossos planos, e esses só aparecerão quando eles tomarem a iniciativa. Pelo que nos diz respeito, uma ruptura imediata e um ensaio de forças estaria de acordo com os nossos planos.
A medida que ele falava num tom absolutamente calmo e digno, algo na expressão do seu rosto pálido e no brilho dos seus óculos grossos causou um arrepio de terror na espinha do jornalista. Acara selvagem de Halket parecia ressumar desdém, mesmo vista de perfil; de frente, porém, a raiva contida dos seus olhos apresentava um vislumbre de ansiedade, como se o problema ético e económico fosse, enfim, demasiado complicado para a sua inteligência; quanto a Horne, esse parecia mais que nunca preso na teia das cogitações e da autocrítica. Contudo, o terceiro sujeito, de óculos grossos, que falava com tanta simplicidade e singeleza, tinha um ar deveras estranho: lembrava um homem morto a falar, ali sentado à mesa.
Quando Byrne ia a sair, levando a sua mensagem de desafio, ao passar na viela estreita, junto à mercearia, achou o caminho barrado por umafigura estranha, mas que no entanto lhe era familiar: um sujeito baixote e gordo, uma figura grotesca quando vista em contraluz, com a cabeça redonda e um chapéu de abas largas.
- Olha o padre Brown! - exclamou o jornalista espantado. - Acho que se enganou no número da porta. Não me parece que o senhor faça parte desta conspiração!
- A minha conspiração é muito mais antiga - retorquiu, rindo, o padre Brown -, mas também é muito mais vasta.
- Bem, mas eu imagino que qualquer dos que ali estão nada têm a ver consigo.
- Isso é uma coisa sempre difícil de se saber - retorquiu suavemente o padre -, porque, na verdade, está lá dentro uma pessoa que se encontra mesmo muito perto das minhas preocupações.
Dizendo isto desapareceu na entrada escura da viela, enquanto o jornalista seguia o seu caminho deveras intrigado. Mais intrigado ficou em face de um pequeno incidente ocorrido quando ia a chegar ao hotel para dar contas do recado aos seus clientes capitalistas. Para o átrio repleto de flores e gaiolas de pássaros, onde aqueles cavalheiros rabugentos se encontravam reunidos, subia-se por um lanço de escadas de mármore, ornado de ninfas e tri-tões. Por essa escada vinha a descer um jovem muito vivaço, com uns cabelos negros, o nariz arrebitado e uma flor ao peito, que lhe enfiou o braço, tomando-o de parte, sem o deixar subir a escada.
- Oiça - começou ele. - Chamo-me Potter, sou o secretário do velho Gideon. Aqui para nós, há tempestade no ar, é verdade ou não?
- A mim quer parecer-me - começou Byrne cautelosamente - que o Ciclope está a forjar alguma coisa na sua bigorna. Mas lembre-se de que o Ciclope, apesar de gigante, só tem um olho. Eu penso que o bolchevismo é...
Enquanto ele falava, o secretário mantinha uma imobilidade quase mongólica, em contraste com a agilidade das suas pernas e com a sua elegância. Mas quando Byrne pronunciou a palavra "bolchevismo", o rapaz desviou os olhos e murmurou rapidamente:
- Oh, que é que isso tem... ah, sim, uma espécie de raio. E mais fácil dizermos "bigorna" quando devíamos dizer "congelador".
E com isto o jovem desceu as escadas e desapareceu, enquanto Byrne continuava a subir, sentindo a cabeça cada vez mais baralhada.
Foi encontrar o grupo aumentado com a presença de uma quarta personagem, um sujeito de perfil anguloso, cabelos ralos, cor de palha, e monóculo, que vinha a ser uma espécie de conselheiro de Gallup, talvez seu advogado, muito embora não o apresentassem como tal. O nome dele era Nares e as perguntas que dirigiu a Byrne visavam sobretudo informar-se, não se sabe por que motivo, de quantos eram os homens que faziam parte da organização revolucionária. Byrne pouco sabia a tal respeito, mas ainda disse menos, e assim os quatro homens acabaram por se levantar das suas cadeiras. De todos eles, o que falara menos é que teve a última palavra:
- Muito obrigado, Sr. Byrne - disse Stein, enquanto guardava as lunetas. - Só nos resta dizer que está tudo a postos. Neste ponto concordo plenamente com o Sr. Elias. Amanhã, antes do meio-dia, a polícia terá prendi do o Sr. Elias em face das provas que eu vou fornecer, e os outros três estarão também na cadeia antes da noite. Como sabe, tentei evitar que isto acontecesse. Acho que é tudo, meus senhores.
Porém, Jacob P. Stein não forneceu as suas informações no dia seguinte pelo mesmo motivo que tantas vezes interrompem as actividades outros sujeitos tão activos como ele. E não o fez pela simples razão de que estava morto. Nem tão-pouco o resto do programa foi levado a efeito, e a explicação disso encontrou-a Byrne, exposta em letras enormes nos jornais da manhã: "TRÍPLICE ASSASSÍNIO. Três milionários mortos na mesma noite!" Seguiam-se outras frases exclamativas em letras mais pequenas, mesmo assim quatro vezes maiores que as normais. Insistia-se na característica especial do mistério: o facto de os três homens terem sido asassinados, não só ao mesmo tempo, mas também em sítios muito distantes uns dos outros: Stein na sua artística e luxuosa casa de campo, a cem milhas de distância, lá para o interior; Wise em frente ao seu chalé, na costa, onde levava uma vida simples, junto ao mar; e o velho Gallup num bosque, junto dos portões da sua enorme mansão, no interior do condado. Nos três casos havia provas evidentes das cenas de violência que teriam precedido as mortes, apesar de o corpo de Gallup só ter sido encontrado no dia seguinte, pendurado entre os ramos, no pequeno bosque, que o seu enorme peso quebrara. Wise devia ter sido arremessado ao mar, do alto dos rochedos, não sem se ter debatido, como revelavam as marcas profundas de pegadas mesmo à beira da rocha. Contudo, o primeiro alarme da tragédia fora dado quando alguém vira o seu chapéu de palha a flutuar nas ondas. O corpo de Stein mantivera-se oculto até que um leve rasto de sangue conduzira os investigadores até um balneário romano, que ele mandara construir no seu jardim; o milionário sempre revelara um gosto especial pelas coisas antigas.
Por mais que cogitasse, Byrne tinha de admitir que não havia, de momento, qualquer prova legal fosse contra quem fosse. O motivo não bastava. Mesmo a disposição moral para o crime não era suficiente. E Byrne não podia imaginar aquele jovem e pálido pacifista, Henry Horne, a assassinar um seu semelhante com uma violência brutal, embora essa atitude se lhe afigurasse possível em relação ao homem exaltado que era Jake. Até o judeu desdenhoso ele julgava capaz de tudo. A polícia e o homem que, pelos vistos, a estava a auxiliar (nem mais nem menos que o misterioso sujeito do monóculo que lhe havia sido qpresentado como o Sr. Nares) entendiam a situação de modo idêntico ao do jornalista. Sabiam que, de momento, os conspiradores bolchevistas não podiam ser presos nem condenados e que seria um falhanço estrondoso se acaso fossem acusados para no fim saírem absolvidos. Nares começou, com estudada ingenuidade, por os convocar, a pretexto de lhes pedir a opinião, para uma reunião particular, insistindo com eles para que dessem o seu parecer livremente, no interesse da humanidade. Começara as investigações no local que ficava mais perto da tragédia, o chalé à beira-mar; Byrne obteve licença para assistir a essa cena curiosa, que era simultaneamente uma conferência pacífica de diplomatas e um inquérito velado com o fim de investigar os suspeitos. Com grande surpresa de Byrne, aquele grupo de figuras díspares, sentadas ao redor de uma mesa redonda, no chalé à beira-mar, incluía a pessoa atarracada, semelhante a uma coruja, do padre Brown, se bem que a relação deste com o caso só mais tarde viesse a transparecer. A presença do jovem Potter, secretário do falecido, afigurou-se-lhe mais natural; contudo, a atitude dele pareceu-lhe muito pouco normal. Só ele conhecia bem aquele local, e por isso o seu papel era, de certo modo, o de um anfitrião; contudo, poucas ou nenhumas informações conseguiu fornecer. A expressão do seu rosto redondo, de nariz arrebitado, era mais uma expressão de enfado que de desgosto.
Quem falou mais, como de costume, foi Jake Halket; a um homem do seu tipo não podia escapar o facto de que ele e os seus amigos eram considerados suspeitos pela polícia, embora sob este diplomático disfarce. O jovem Horne, com os seus modos mais delicados, tentou moderá-lo quando ele começou a insultar os homens que haviam sido assassinados. Jake, porém, parecia tão disposto a descompor os amigos como os inimigos. Com um chorrilho de blasfémias, deu largas à sua raiva num discurso fúnebre muito fora do normal acerca de Gideon Wise. Elias mantinha-se mudo e quedo, aparentemente alheio por detrás dos óculos que lhe escondiam os olhos.
- Escusado será dizer-lhe - declarou friamente Nares - que considero indecentes as suas observações. Talvez o impressione mais se o avisar de que elas são imprudentes. O senhor confessou praticamente que odiava o falecido.
- E vai prender-me porisso, hem? - vociferou o demagogo. - Só que terá de construir uma cadeia para um milhão de pessoas se for prender todos aqueles que tenham motivos para odiar Gideon Wise. E o senhor sabe tão bem como eu que isto é apura verdade.
Nares ficou calado e ninguém mais falou até que Elias observou, com a sua pronúncia levemente ciciante:
- Esta discussão afigura-se-me totalmente estéril, tanto de um lado como do outro - declarou. - O senhor convocou-nos para virmos aqui para nos pedir informações ou para nos interrogar? Se confia em nós, temos a dizer-lhe que não possuímos quaisquer informações. Se não confia em nós, tem de nos dizer de que somos acusados, ou então tenha a delicadeza de guardar para si as suas desconfianças. Ninguém pode sugerir a mínima prova, em relação a qualquer de nós, de que somos tão responsáveis por essas tragédias como pela morte de Júlio César. O senhor não se atreve a mandar-nos prender e também não confia em nós. Então, que estamos aqui a fazer?
Levantou-se calmamente, abotoou o casaco, e os companheiros imitaram-no. Enquanto eles se dirigiam para a porta, o jovem Horne voltou atrás e, fitando os investigadores, declarou, com o seu ar fanático:
- Fiquem a saber que, durante a guerra, estive encerrado numa prisão horrível só porque me recusei a matar gente.
Dizendo isto saiu, deixando os outros membros do grupo a olhar uns para os outros, com ar sombrio.
- Não me parece - murmurou o padre Brown - que embora eles se tenham retirado, nem por isso ficámos vitoriosos.
- Há coisas que eu tolero-exclamou Nares -, mas não suporto ser insultado por esse energúmeno do Haket! Apesar de tudo, o Horne é bem-educado. Mas digam eles o que disserem, estou absolutamente certo de que têm alguma coisa a ver com isto. Pelo menos algum deles. Lançaram-nos um desafio, ao declararem que não conseguiríamos provar nada. Que pensa disto, padre Brown?
A pessoa em questão ergueu os olhos para Nares com um ar desconcertantemente suave e meditativo.
- É verdade - declarou - eu estar certo de que há aqui alguém que sabe mais que nos disse. Mas, por enquanto, acho preferível não adiantar nomes.
O monóculo de Nares caiu-lhe da órbita quando ele ergueu subitamente os olhos:
- Por enquanto nada disto é oficial - lembrou ele. - No entanto, espero que o senhor saiba que a sua posição pode ser muito grave se acaso ocultar informações.
- A minha posição é muito simples - retorquiu o padre. - Eu estou aqui para defender os legítimos interesses do meu amigo Halket. - Sendo assim, penso que será do seu interesse anunciar -vos que ele não tardará em quebrar a sua ligação com esse núcleo político e deixar de ser socialista dessa maneira. Tenho todas as razões para crer que ele, por fim, virá a ser católico.
- Halket!? - exclamou o outro, incrédulo. - Passa a vida a insultar os padres!
- Acho que o senhor não compreende aquele tipo de homem - retorquiu suavemente o padre Brown. - Ele acusa os padres porque estes, na sua opinião, falharam a sua missão de alertar o mundo para as questões da justiça, e por que razão acusa ele os padres de falharem essa missão se não os considerasse... aquilo que eles são, de verdade? Mas nós não estamos aqui para discutir a psicologia da conversão, só falei nisto porque talvez possa simplificar a vossa tarefa e restringir o círculo das investigações.
- Se for verdade, restringe, e de que maneira, até ficar reduzido a esse cara de fuinha do Elias. E isso nada me espanta, porque nunca vi tipo mais manhoso, mais cínico nem mais nojento.
O padre Brown suspirou:
- Ele sempre me fez lembrar o pobre do Stein - declarou. - Na realidade, acho que até eram parentes.
- Não me diga! - começou Nares. Mas o seu protesto foi interrompido por uma porta a abrir-se de repente, deixando passar a figura esgalgada e o rosto pálido de Horne; a sua palidez, porém, parecia agora sobrenatural.
- Olha! - exclamou Nares. - Você voltou, porquê? Horne atravessou a sala a tremer, sem proferir palavra, e deixou-se cair numa cadeira. Depois disse, como que em transe:
- Separei-me dos outros... perdi-me. Achei preferível voltar para trás.
Os restos das bebidas da tarde encontravam-se ainda sobre a mesa. Henry Horne, o eterno abstémio, serviu-se então de um copo de brande e bebeu-o de um trago.
- O senhor parece perturbado - observou o padre Brown. Horne levou as mãos à testa e falou como que do fundo de um poço. Era como se se dirigisse apenas ao padre, em voz baixa:
- Mais vale eu dizer. Vi um fantasma!
- Um fantasma?! - exclamou Nares, incrédulo. - O fantasma de quem?
- O fantasma de Gideon Wise, o dono desta casa! - respondeu categoricamente Horne. - Pairava por cima do precipício onde caiu.
- Oh, que disparate! Ninguém de juízo acredita em fantasmas.
- Isso não é bem assim-retorquiu o padre Brown com um leve sorriso. -Existem provas do aparecimento de fantasmas, assim como há provas de crimes.
- Bem, a minha profissão é perseguir os criminosos, por isso, deixo aos outros a tarefa de fugirem dos fantasmas - retorquiu Nares com certa aspereza. - Se alguém a esta hora se lembrar de ter medo de fantasmas, o problema é dele.
- Eu não disse que tinha medo de fantasmas. Só digo que poderia vir a ter-tornou o padre Brown. - Ninguém pode dizer nada antes de experimentar. De qualquer modo, acho que acredito o suficiente para querer ouvir o resto da história. Concretamente, que é que o senhor viu, Sr. Horne?
- Ele estava à beira daqueles rochedos prestes a desmoronar -se; como sabem, há uma espécie de fenda perto do sítio onde ele foi atirado. Os outros tinham ido à frente e eu ia a atravessar a duna em direcção ao caminho que segue pela falésia. Sigo muitas vezes por ali, porque gosto de ver o mar bravo a bater contra os penhascos. Hoje só pensava que o mar devia estar bastante agitado nesta noite de luar. Via a crista branca das ondas a aparecer e a desaparecer à medida que enormes vagas lambiam a costa. Avistei por duas vezes um jacto de espuma iluminado pelo luar e depois vi outra coisa incrível. O jacto de espuma prateada parecia ter-se fixado no céu. Não voltou a cair. Esperei, com uma ânsia louca, que ele caísse. Pensei que estava a ficar maluco, que a coisa desta vez se estava a prolongar demasiado. Depois, aproximei-me, e acho que até gritei em voz alta. Aquela espuma suspensa no ar, como se fossem flocos de neve que não chegam a cair, tomara a forma de uma cara e de um corpo, brilhante como a prata e terrível como um raio fixo.
- E diz você que era Gideon Wise?
Horne acenou com a cabeça em silêncio. Este foi quebrado por Nares, que se pôs de pé, com tanto ímpeto que derrubou a cadeira para trás.
- Tudo isso é uma loucura - declarou -, mas é melhor irmos lá ver!
- Eu não vou-declarou Horne com súbita violência. - Nunca mais seguirei por aquele caminho.
- Acho que todos devemos ir por lá esta noite - disse gravemente o padre -, muito embora concorde que é um caminho perigoso para mais de uma pessoa.
- Eu não vou... oh, meu Deus, vocês estão a pressionar-me! - exclamou Horne, com os olhos esbugalhados. Pusera-se de pé ao mesmo tempo que os outros, mas não saíra do lugar.
- Sr. Horne! - exclamou Nares com firmeza -, eu sou oficial da polícia e, talvez o senhor não saiba, mas esta casa está rodeada de polícias. Tentei orientar este caso de modo amigável, mas tenho de investigar tudo, até mesmo uma coisa tão estúpida como um fantasma. Peço-lhe, pois, que me leve ao local de que nos falou.
Seguiu-se novo silêncio, durante o qual Horne se quedou ofegante, preso de um terror indescritível. Depois voltou a sentar-se na cadeira e declarou num tom muito diferente e numa voz mais natural:
- Não posso. E mais vale eu dizer porquê. Mais tarde ou mais cedo viriam a saber. Fui eu que o matei!
Durante alguns instantes manteve-se um silêncio como se a casa tivesse sido atingida por um raio e estivesse cheia de cadáveres. Depois, a voz do padre Brown ergueu-se naquele enorme silêncio, fraca e aguda como o chiar de um rato:
- Matou-o de propósito? - inquiriu.
- Como é que se pode responder a uma pergunta dessas? -retorquiu o sujeito, que permanecia sentado na cadeira a roer uma unha com ar sucumbido. -Acho que eu estava louco. Bem sei que ele era insolente e insuportável. Eu estava dentro da sua propriedade e ele bateu-me. Atirámo-nos um ao outro e ele caiu do rochedo. Quando eu já estava longe da cena do crime voltei a mim e vi que tinha cometido um crime que me bania da sociedade dos homens. A marca de Caím estava gravada na minha testa e no meu cérebro. Percebi, pela primeira vez, que tinha, realmente, morto um homem. Sabia que teria de o confessar, mais cedo ou mais tarde.-De súbito, sentou-se muito direito na cadeira. - Mas não direi nada contra ninguém. Não adianta interrogarem-me quanto a conspirações ou cúmplices... Não direi mais nada.
- Visto à luz dos outros assassínios - começou Nares -, torna-se difícil acreditar que a coisa se tivesse passado assim, sem premeditação. Sem dúvida, alguém o mandou ir ali?
- Não direi nada seja contra quem for que tenha trabalhado comigo - respondeu altivamente Horne. - Sou um assassino, mas não sou traidor.
Nares passou em frente do rapaz e, chegando à porta, chamou todos para que saíssem.
- Para já, vamos todos até cá fora, mas este sujeito tem de ir sob prisão - disse ele em voz baixa para o secretário.
De um modo geral, todo o grupo sentia que, depois da confissão do assassino, era ridículo irem todos para os rochedos dar caça a fantasmas. Nares, porém, apesar de ser o mais céptico de todos, achou ser seu dever não deixar de pesquisar todos os campos, ou, melhor dizendo, todas as campas, porque, afinal, aqueles rochedos a esboroar-se, constituíam a única pedra tumular do infeliz Gideon Wise. Nares fechou a porta à chave, visto ser o último a sair de casa, e seguiu os outros através da duna até aos rochedos. Aí ficou espantado ao ver avançar para eles o jovem Potter, o secretário, quase a correr, com um rosto pálido como a Lua.
- Meu Deus! - exclamou, falando pela primeira vez naquela noite. - Está ali qualquer coisa. Parece... parece mesmo ele...
- Você está maluco! - gaguejou o detective. - Está toda a gente maluca!
- O senhor acha que eu não saberia reconhecê-lo quando o visse? - protestou o secretário com singular amargura. - Tenho boas razões para isso.
- Talvez você seja um daqueles que tinham boas razões para o odiar, conforme afirmava Halket - disse num tom severo o detective.
- Talvez - tornou o secretário. - Seja como for, conheço-o bem e garanto que ainda me parece estar ali a vê-lo, a olhar, sob aquela maldita Lua.
E apontava para a fenda entre os rochedos, onde todos viam algo que podia muito bem ser o clarão do luar, ou uma faixa de espuma, mas que começava a tomar uma forma um pouco mais sólida. Aproximaram-se uns metros e a coisa continuava ali imóvel. Mas agora parecia uma estátua de prata.
O próprio Nares empalideceu e parecia hesitante, sem saber o que fazer. Potter estava francamente aterrado, tal como Horne; e até mesmo Byrne, que era um repórter calejado, preferia não se aproximar. Não podia deixar de estranhar, portanto, que a única pessoa que não se mostrava assustada era precisamente aquela que afirmara abertamente ter medo de fantasmas, se acaso visse algum. Era, pois, o padre Brown quem continuava a avançar resolutamente no seu passinho miúdo, como quem vai consultar um placard de notícias.
- O senhor não parece nada perturbado - observou Byrne -, contudo, se não me engano, ainda há pouco confessou ser o único que acreditava em fantasmas.
- Já que fala nisso, você foi o único que declarou não acreditar - replicou o padre Brown. - Mas acreditar em fantasmas de um modo geral e acreditar num determinado fantasma são duas coisas muito diferentes.
Byrne sentiu-se envergonhado e pôs-se a olhar a crista dos rochedos iluminados pela luz fria da Lua, que era o ponto onde surgia a visão... ou a ilusão.
- Não acreditava até que o vi - confessou.
- E eu deixei de acreditar nele quando o vi - ripostou o padre Brown.
O jornalista ficou-se a observá-lo, admirado. O padre dirigiu-se apressadamente através do vasto espaço que subia em direcção à plataforma rochosa, dividida em duas partes por uma fenda. Sob a luz mortiça do luar, as ervas do chão lembravam uma cabeleira grisalha, penteada pelo vento só numa direcção, como que apontando para o local onde a quebra da rocha apresentava laivos brancos de calcário no meio da vegetação pardacenta e onde se erguia a pálida figura ou a sombra prateada que ainda ninguém sabia o que era. Entretanto, essa pálida figura continuava a dominar a paisagem desolada, solitária, a não ser pela silhueta negra e atarracada do padre que avançava na sua direcção. Nesta altura, o prisioneiro, conseguindo libertar-se dos seus guardas, soltou um grito penetrante e correu à frente do padre, atirando-se de joelhos diante do espectro.
- Já confessei - bradava ele. - Por que vieste para lhes dizer que fui eu que te matei?
- Eu vim para lhes dizer que não me mataste - respondeu o fantasma, deu um salto, soltando um grito, mas noutro tom. E todos se aperceberam de que aquela mão era de carne e osso.
Aquele caso de sobrevivência foi um dos mais célebres dos últimos anos, segundo afirmava o experiente detective e o não menos experiente jornalista. E, no entanto, ao fim e ao cabo, o caso fora simples. Pedregulhos e lascas de rocha estavam a cair continuamente naquela fenda, de modo a formarem uma espécie de plataforma ou degrau naquilo que se julgava ser o vácuo até ao mar escuro, lá em baixo. O sujeito, que era um velho rijo e seco, caíra nessa plataforma interior da rocha e passara vinte e quatro horas de pesadelo a tentar trepar pelas anfractuosidades que constantemente se esboroavam sob os seus pés, mas que acabaram, elas próprias, por formar uma espécie de escada de salvação. Podia ser esta explicação da ilusão de óptica de Horne quando via uma sombra branca que aparecia e desaparecia, acabando por ficar. Fosse como fosse, tratava-se de Gideon Wise, em carne e osso, com a sua cabeleira branca, o seu fato de camponês coberto de pó e o seu rosto duro, no entanto, um pouco menos duro que o costume. Talvez fizesse bem a todos os milionários passarem vinte e quatro horas num parapeito rochoso, a dois passos da eternidade! De qualquer modo, ele não só não se mostrou vingativo em relação ao criminoso, como fez também um relato do crime que modificava totalmente o caso. Declarou que Horne nunca o atirara ao mar; fora, sim, o chão que cedera debaixo dos seus pés. O outro fizera até um certo esforço para o segurar.
- Enquanto me encontrava em cima daquele degrau providencial - declarou ele solenemente -, prometi ao Senhor para perdoar aos meus inimigos. E o Senhor acharia muito mesquinho da minha parte não perdoar um simples acidente como este.
Horne, claro está, teve de sair dali ainda sob a escolta da polícia, mas o detective tinha como certo que a sua detenção não seria longa e o castigo, se castigo houvesse, muito leve.
- Foi um caso estranho - declarou Byrne quando todos regressavam pelo atalho rochoso, em direcção à cidade.
- É verdade - confirmou o padre Brown. - Nada disto diz respeito a si nem a mim. No entanto, gostava que parássemos um pouco para o discutirmos.
Seguiu-se um silêncio e então Byrne acedeu, dizendo:
- Creio que o senhor já estava a pensar em Horne quando afirmou que havia ali alguém que não dizia tudo quanto sabia.
- Quando eu disse isso - replicou o padre -, referia-me ao secretário, sempre calado, daquele que já não é o falecido nem saudoso (digamos) Sr. Gideon Wise.
- Bem, na única vez que Potter falou comigo pensei que era maluco - declarou Byrne, admirado -, mas nunca desconfiei que pudesse ser o criminoso. Ele disse qualquer coisa relacionada com um congelador...
- Sim, ele sabia qualquer coisa acerca do assunto - murmurou o padre Brown, pensativo. - Eu nunca disse que ele pudesse ter algo a ver com o crime... Penso que Wise teria tido a força suficiente para sair daquele precipício.
- Que está o senhor a dizer? - perguntou, admirado, o repórter. - Claro que saiu do precipício. A prova é que está ali vivo e são!
O padre não respondeu à pergunta, mas dali a pouco perguntou bruscamente:
- Que é que pensa de Horne?
- Bem, não se pode considerar exactamente um criminoso - respondeu Byrne. - Nunca se comportou como qualquer dos outros criminosos que tenho conhecido, e possuo uma certa experiência nesse capítulo; é certo que Nares tem mais que eu. Acho que nunca o considerámos como criminoso.
- Quanto a mim nunca o considerei outra coisa - replicou calmamente o padre. - Você pode saber muito acerca de criminosos. Mas há um tipo de pessoas que talvez eu conheça melhor que o senhor, ou até mesmo que Nares. Conheço-o muito bem e à maneira como reagem.
- Outro tipo de pessoas - repetiu Byrne, intrigado. - A que tipo de gente se refere?
- Refiro-me aos arrependidos - explicou o padre Brown. -Não estou a perceber bem - tornou Byrne.-Então o senhor não acredita neste crime?
- Não acredito na confissão dele - declarou o padre Brown. - Tenho ouvido muitas confissões e nunca ouvi uma que seja sincera, igual a esta. Era romântica, parecia tirada dos livros. Repare como ele falava da marca de Caím. Isso é mesmo dos livros. Não representa o que uma pessoa sente depois de cometer um acto que depois considera horrível. Imagine que você é um escriturário ou um caixeiro honesto e se sente chocado ao verificar que, pela primeira vez, roubou dinheiro. Pensará imediatamente que a sua acção é semelhante à de Barrabás? Suponha que matou uma criança num acesso de fúria. Irá rebuscar a História à procura de um acto semelhante ao seu, o caso de um potentado idumu chamado Herodes? Acredite que os nossos próprios crimes são por demais horríveis, pessoais e prosaicos para que o nosso pensamento vá logo procurar na História actos idênticos, por muitos que lá existam. E por que motivo começou ele logo a dizer que não denunciaria os camaradas? Com isto, estava precisamente a denunciá-los! Até então ninguém lhe tinha pedido que denunciasse fosse quem fosse. Não, eu não acredito que ele fosse sincero e, por mim, nunca lhe daria a absolvição. Seria bonito, as pessoas serem absolvidas por aquilo que nunca fizeram. - E o padre voltou a cabeça e ficou a olhar para o mar.
- Mas eu é que não percebo onde o senhor quer chegar! - exclamou Byrne. - De que serve agora rodeá-lo de suspeitas, se ele já foi perdoado? Seja como for, está fora de questão. Está livre.
O padre Brown deu meia volta como um pião e agarrou no casaco do companheiro, num gesto de grande e inesperada excitação:
- É isso mesmo!-exclamou com ênfase.-Livre de todo! Frio, frio! Por isso, é que ele é a chave de todo o negócio!
- Oh, socorro! - exclamou em voz baixa o jornalista.
- O que eu quero dizer - teimou o padre - é que ele faz parte da conjura, precisamente por estar fora dela. Está aí a explicação de tudo.
- Uma explicação muito explícita, direi eu - replicou Byrne com ironia.
Ficaram ambos a olhar para o mar durante um bocado e, depois, o padre Brown recomeçou com vivacidade:
- Voltemos ao caso do congelador. Onde vocês se enganaram foi onde se engana a maior parte dos jornais e dos homens públicos. Vocês convençam-se de que, no mundo moderno, a única coisa contra a qual se deve lutar é o bolchevismo. Esta história nada tem a ver com o bolchevismo, a não ser, talvez, como disfarce.
- Continuo a não perceber - objectou o jornalista. - Neste caso, temos três milionários assassinados...
- Não temos, não! - interrompeu o padre numa voz aguda. - Aí é que está! Não temos três milionários assassinados, temos dois; e temos o terceiro vivinho a saltar, pronto a dar o salto! Temos esse terceiro, livre, para sempre, da ameaça que os outros lhe colocavam diante dos olhos, em termos verdadeiramente civilizados, nessa conversa que você me relatou como tendo ocorrido lá no hotel. Gallup e Stein ameaçavam esse velho negociante com a mania da independência de que o congelariam se acaso ele não aderisse à combinação deles. Daí a imagem do congelador, é claro.
Depois de uma pausa prosseguiu:
- É evidente que existe no mundo moderno um movimento bolchevista, e não há dúvida de que deve ser combatido, embora eu não acredite muito na vossa maneira de o combater. Mas no que ninguém repara é que existe igualmente no mundo moderno outro movimento igualmente moderno e em actividade: o grande movimento em prol dos monopólios, ou seja, tendente a transformar todo o comércio em trusts. Isto é, também, uma revolução. Produz o mesmo que produzem todas as revoluções. Os homens matam por isso e contra isso, como sucede com o bolchevismo. Tem os seus ultimatos, as suas invasões e as suas execuções. Estes magnatas do trust possuem uma corte, tal como os reis; têm os seus guarda-costas e os seus capangas; têm também os seus espiões no campo inimigo. Horne era um dos espiões de Gideon Wise num dos campos do adversário; porém, aqui, foi usado contra outro inimigo: os rivais que iam arruiná-lo por ele querer ficar de fora.
- Ainda não estou a perceber de que forma ele foi usado - disse Byrne -, ou qual o proveito que ele daí tirava.
- Então não vê - exclamou vivamente o padre - que cada um deles fornecia um álibi ao outro?
Byrne continuava a fitar o padre, ainda desconfiado, mas a compreensão começava a reflectir-se-lhe no seu rosto.
- Foi isso o que eu quis dizer quando afirmei que ele fazia parte da combinação por estar fora dela! A maior parte das pessoas julgaria que eles nada tinham a ver com os outros crimes, uma vez que estavam implicados neste. De facto, tomaram parte nos outros dois porque não estavam metidos neste. Porque este nunca ocorreu! Tratava-se de uma espécie estranha e improvável de álibi. Improvável e, portanto, impenetrável. Quase toda a gente pensaria que um homem que confessa um crime é sincero. Não passa pela cabeça de ninguém que a coisa nunca aconteceu, por isso, um deles não tem nada a perdoar e o outro não tem nada a temer. Juntavam-se ali, naquela noite, através de uma história que era contra eles. Mas acontece que, nessa noite, nunca lá tinham estado: Horne estava a assassinar Gallup, no bosque, enquanto Wise estrangulava o judeuzito no seu balneário romano. Por isso é que eu pus em dúvida o facto de Wise ser suficientemente forte para esse feito de trepar pelos rochedos.
- Era, de facto, um grande feito-respondeu Byrne, desconsolado. - Ajustava-se bem na paisagem e era mesmo convincente.
- Demasiado convincente para convencer! - tornou o padre Brown, a abanar a cabeça. - Que belo efeito, o daquela espuma a saltar e a transformar-se num fantasma. Tão romântico! Horne é um patife e um sujeito repelente, mas não se esqueça de que, como tantos outros patifes e sujeitos repelentes da História, também é um poeta!
G. K. Chesterton
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