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Ela voltou a Berkeley Square para encontrar a casa num estado de grande agitação; Lord Ombersley, informado pela esposa sobre a participação de Cecília na noite anterior, enfureceu-se exasperado com a loucura, ingratidão e egoísmo peculiar às filhas; Hubert e Theodore tinham escolhido esse momento singularmente impróprio para deixar Jacko escapar da sala de aula. Ao chegar, Sophy era esperada por várias pessoas perturbadas, que não perderam tempo em despejar seus infortúnios e suas queixas em seus ouvidos. Cecília, abalada pela entrevista com o pai, queria levá-la imediatamente para o isolamento do seu quarto; a Srta. Adderbury desejava explicar que avisara repetidas vezes ao Sr. Hubert para não excitar o mico; Theodore queria convencer todo mundo que tudo acontecera por culpa de Hubert; Hubert pedia que ela o ajudasse a recuperar o mico antes que a fuga chegasse aos ouvidos de Charles; Dassett, depois de ter observado com desagrado o entusiasmo com que os dois lacaios tomavam parte na caçada, entregou-se a um monólogo gelidamente educado, cujo ponto principal parecia ser o de que animais selvagens perambulando à solta na residência de um nobre não era coisa que pudesse tolerar. Como esse discurso incluía a velada ameaça de informar Lord Ombersley, pareceu a Sophy que sua obrigação mais urgente era acalmar as suscetibilidades de Dassett, sobretudo depois que umas seis pessoas a informaram de que o tio se achava num estado de irritação pavoroso. Assim, ela prometeu a Cecília que logo iria até seu quarto, e apaziguou consideravelmente o mordomo ao dispensar os serviços dos lacaios. Cecília, que além da entrevista com Lord Ombersley tinha suportado alguns maus momentos com o irmão mais velho e meia hora com Lady Ombersley, não estava com disposição para micos, e declarou, um tanto histericamente, admitir que já deveria ter previsto que Jacko seria considerado mais importante que ela. Selina, que se deleitava com a atmosfera de drama e desgraça iminente que ameaçava a casa, sibilou:
— Psiu! Charles está na biblioteca!
Cecília replicou que pouco lhe importava onde ele estivesse e precipitou-se pelas escadas acima em direção ao seu quarto.
— Que agitação! — exclamou Sophy, divertida.
Sua voz, ao penetrar pela porta fechada da biblioteca, chegou aos ouvidos aguçados de Tina, que, durante sua ausência da casa, se aconchegara ao Sr. Rivenhall. Imediatamente exigiu que a deixassem encontrar sua dona, com uma insistência que levou o Sr. Rivenhall ao cenário da confusão, pois ele se viu obrigado a abrir a porta. Ao perceber que grande parte da sua família parecia estar reunida no vestíbulo, com um modo um tanto frio indagou a razão. Antes que alguém pudesse responder-lhe, Amabel, no portão, soltou um grito agudo de advertência, e Jacko subitamente lançou-se no vestíbulo, vindo das regiões inferiores. Tagarelando de modo incoerente ao avistar Tina, trepou nas cortinas da janela em busca de um lugar seguro, fora do alcance de todos. Amabel subiu, esbravejando, as escadas do porão, seguida de perto pela governanta, que apresentou um protesto arrebatado ao Sr. Rivenhall. O amaldiçoado mico, disse ela, destruíra espontaneamente dois dos melhores panos de prato e espalhara uma tigela de passas pelo chão da cozinha.
— Se esse maldito mico não pode ser controlado — disse o Sr. Rivenhall, sem pedir desculpas pela linguagem violenta —, é preciso que se livrem dele!
No mesmo instante Theodore, Gertrude e Amabel explodiram numa violenta acusação contra Hubert, que, afirmaram, provocara Jacko. Consciente de um rasgão no bolso do seu casaco, Hubert retirou-se para os fundos do aposento, e o Sr. Rivenhall, olhando para os irmãos menores com desagrado, dirigiu-se à janela e estendeu a mão, dizendo calmamente para o mico:
— Venha!
A resposta de Jacko a essa ordem, embora loquaz, era incompreensível. Contudo, como sua atitude de um modo geral era de insubordinação, todos se surpreenderam quando, à repetição da ordem pelo Sr. Rivenhall, ele se pôs a descer da cortina. De entusiástico acordo com Dassett e a governanta sobre a inconveniência de micos em residências de nobres, Tina provocou um ligeiro recuo do animal ao latir, porém Sophy apanhou-a no colo e a escondeu antes que Jacko tivesse tempo de retirar-se novamente para o alto da janela. O Sr. Rivenhall, ao pedir com voz áspera à sua audiência que se abstivesse de fazer qualquer ruído ou movimento súbito, novamente mandou Jacko descer. Satisfeito porque Tina estava sob severa guarda, Jacko foi descendo com relutância, permitiu ser agarrado, e com os dois braços esqueléticos cingiu o pescoço do Sr. Rivenhall. Sem se impressionar por essa demonstração de afeto, o Sr. Rivenhall entregou-o a Gertrude e preveniu-a para que não o deixasse escapar outra vez. Então o grupo de crianças retirou-se com ar circunspecto, mal podendo acreditar que seu animalzinho de estimação não lhe seria arrebatado; e Sophy, sorrindo calorosamente para o Sr. Rivenhall, disse:
— Obrigada. Há uma certa magia que faz todos os animais confiarem em você, creio eu. Quando fico muito irritada com você, só consigo me lembrar disso!
— A única magia, prima, está no fato de não alarmar um animal já assustado — ele respondeu, desalentado, e voltou para a biblioteca e fechou a porta.
— Ufa! — exclamou Hubert, surgindo do vão no topo da escada do porão. — Sophy, veja só o que esse selvagem fez no meu casaco novo!
— Me dê esse casaco! Eu o consertarei — e, pelo amor de Deus, criatura abominável, não faça mais estripulias por hoje! — disse Sophy.
Ele esboçou um largo sorriso, tirou o casaco e entregou-o a ela.
— O que aconteceu a noite passada? — ele indagou. — Não me lembro de ter visto meu pai tão apreensivo! Cecília vai se casar com Fawnhope?
— Pergunte a ela! — aconselhou-o Sophy. — Aprontarei seu casaco dentro de vinte minutos. Venha até meu quarto, e você o terá!
Ela subiu correndo as escadas e, antes de tirar o traje de montaria, sentou-se junto à janela para consertar o rasgão produzido pela fúria de Jacko. Era hábil costureira e já consertara metade do rasgo com seus pontos miúdos quando Cecília apareceu no quarto. Cecília era de opinião que Hubert poderia ter arranjado outra pessoa para fazer o conserto e suplicou-lhe que pusesse o casaco de lado. Sophy recusou-se a fazer isso, dizendo apenas:
— Posso ouvi-la enquanto trabalho, você sabe. Que tonta parecia a noite passada, Cecy!
Essa observação fez Cecília projetar o queixo. Declarou com muita clareza:
— Estou noiva de Augustus, e se não posso me casar com ele, não casarei com mais ninguém.
— Muito bem, mas fazer uma declaração dessas no meio do baile!
— Sophy, pensei que você se compadecesse de mim!
De repente ocorreu a Sophy que, quanto menos pessoas se mostrassem solidárias com Cecília, melhor seria; por isso manteve a cabeça inclinada sobre o trabalho e disse rapidamente:
— Bem, me compadeço mesmo, mas ainda assim penso que você escolheu um momento ridículo para fazer tal participação!
Cecilia começou a lhe contar de novo sobre as provocações feitas por Charles; ela concordou, porém numa atitude ausente, e parecia estar mais aflita com o rasgo no casaco de Hubert do que com as injustiças sofridas por Cecilia. Sacudiu o casaco no ar, alisou o cerzido que fizera, e, quando Hubert chegou batendo na porta, interrompeu Cecilia abruptamente, levantou-se de um salto e devolveu o casaco ao rapaz. O resultado disso tudo foi que quando, às 16 horas, Lord Charlbury mandou entregar seu cartão com um pedido para ver a Srta. Rivenhall, Cecilia, quase forçada a aquiescer à vontade dele, acabou encontrando no rapaz seu único simpatizante. Um olhar de relance para o rosto pálido da jovem, para os lábios trágicos, baniu da mente dele toda a ideia de duplicidade. Rapidamente deu um passo à frente, pegou na mão temerosa estendida, e disse num tom de voz profundamente preocupado:
— Não fique com esse ar infeliz! Na verdade, não vim para afligi-la!
Os olhos dela encheram-se de lágrimas; Cecilia retribuiu de leve o aperto da mão dele antes que fosse retirada; e conseguiu dizer algo, com voz sufocada, sobre a gentileza dele e o pesar dela. Charlbury obrigou-a a sentar-se, ocupando uma cadeira ao lado, e disse:
— Meus sentimentos não mudaram nada, jamais poderiam mudar! Contudo, segundo me contaram — e eu entendi —, os seus nunca chegaram a estar envolvidos. Creia-me, se não pode retribuir minha afeição, respeito-a por ter a coragem de o dizer. Que você pudesse ficar constrangida a aceitar meu pedido de casamento quando seu coração pertencia a outro, é um pensamento que me repugna! Perdoe-me! Acho que teve de suportar muito esse assunto, o que jamais pretendi, nem mesmo em sonho... Mas já falei o bastante! Permita-me apenas garantir uma coisa: farei tudo que estiver ao meu alcance para pôr um ponto final nessa insistência intolerável!
— Você é todo consideração — todo bondade! — Cecilia disse. Lamento muito sobre... sobre as esperanças, não está em meu poder realizá-las! Se minha gratidão por uma sensibilidade que lhe permite condoer-se de mim nesta situação difícil, por uma fidalguia que... — Sua voz ficou totalmente embargada pelas lágrimas; ela conseguiu apenas virar o rosto e fazer um gesto, implorando compreensão.
Ele tomou-lhe a mão e beijou-a.
— Não diga mais nada! Sempre considerei o prémio além do meu alcance. Embora me negue esse relacionamento mais íntimo que tão ardentemente desejo, podemos continuar amigos? Se houver algum meio de lhe ser útil, você me dirá? Seria realmente uma felicidade!
— Oh, não fale assim! Você é tão bom!
A porta se abriu; o Sr. Rivenhall entrou no aposento, deteve-se um instante na soleira quando viu Charlbury, e deu a impressão de que ia se retirar novamente. Contudo, Charlbury, levantou-se e disse:
— Estou contente por vê-lo em casa, Charles, pois acredito que posso resolver este problema melhor com você do que com qualquer outra pessoa. Sua irmã e eu concordamos que nossos génios não com-binam.
— Compreendo — respondeu o Sr. Rivenhall secamente. — Parece que não há nada que eu possa dizer de proveitoso, a não ser que lamento. Você deseja que eu informe meu pai que não haverá casamento?
— Lord Charlbury foi o que existe de mais gentil, mais magnânimo! — disse Cecília num sussurro.
— Nisso posso acreditar — respondeu o Sr. Rivenhall.
— Tolice! — Charlbury replicou, segurando a mão dela. — Eu a deixarei agora, mas espero que ainda possa visitar esta casa, em caráter de amizade. Sua amizade será sempre inestimável, sabe disso. Talvez não dance no seu casamento, mas desejo que venha a ser muito feliz, palavra de honra!
Apertou a mão da moça, soltou-a e saiu da sala, seguido do Sr. Rivenhall, que o acompanhou nas escadas até o vestíbulo, dizendo:
— É uma situação abominável, Everard. Ela perdeu o juízo! Mas quanto a se casar com aquele peralvilho... por Deus que não!
— Sua prima me assegurou que é tudo culpa minha por ter contraído caxumba de propósito! — disse Charlbury tristemente.
— Sophy! — exclamou o Sr. Rivenhall numa entonação onde só havia revolta. — Creio que não tivemos um dia de paz desde que essa moça entrou nesta casa!
— Não creio que tivessem — replicou o outro pensativamente. — É a moça mais singular que já conheci, mas confesso que gosto dela. Você não?
— Não, é claro que não! — respondeu o Sr. Rivenhall.
Ele levou Charlbury até o jardim, depois voltou para dentro da casa no momento exato em que Hubert descia as escadas aos pulos.
— Ei, aonde vai com tanta pressa? — indagou.
— Ora, a nenhum lugar específico! — respondeu Hubert. — Vou apenas sair!
— Quando volta para Oxford?
— Na próxima semana. Por quê?
— Gostaria de ir comigo a Thorpe Grange amanhã? Devo descer amanhã e pernoitar, creio eu.
Hubert sacudiu a cabeça.
— Não, não posso. Parto para ficar algumas noites com Harpenden.
— Não sabia disso. Em Newmarket? Hubert corou.
— Ora bolas, por que não posso ir a Newmarket?
— Não há razão para não ir, mas eu gostaria que escolhesse suas companhias com mais critério. Está resolvido a ir mesmo? Se quiser, poderíamos ir a Newmarket saindo de Thorpe.
— Muita gentileza sua, Charles, mas estou comprometido com Harpenden e não posso desistir agora! — replicou Hubert rispidamente.
— Muito bem. Então vá com calma!
Hubert deu de ombros.
— Sabia que diria isso!
— E vou dizer mais uma coisa, e pode acreditar nas minhas palavras! Não posso e não vou arcar com a responsabilidade de suas apostas nas corridas, portanto não aposte além das suas posses!
Não aguardou resposta, subiu novamente para a sala de estar onde encontrou a irmã ainda sentada no lugar em que a deixara, chorando mansamente num lenço em frangalhos. Jogou o seu lenço no colo dela.
— Se quer se debulhar em lágrimas, tome o meu! — recomendou. — Está satisfeita? Deveria estar! Não é qualquer moça que se pode vangloriar de ter rejeitado um homem como Charlbury!
— Não me vanglorio! — ela replicou, com raiva. — Não ligo a mínima para riqueza ou posição! São circunstâncias às quais meu afeto não se sente atraído..
— Contudo, talvez se importe com dignidade de caráter! Poderia procurar pela Inglaterra toda sem encontrar um rapaz melhor, Cecília. Não fique lisonjeada por tê-lo encontrado na figura do seu poeta! Tomara que não venha a lamentar a obra desse dia.
— Sei muito bem que Lord Charlbury tem todas as qualidades apreciáveis — disse ela com voz suavizada e secando as faces úmidas com o lenço do irmão. — Na verdade, creio que ele é o cavalheiro mais refinado que conheço, e se estou chorando é de pesar por ter sido obrigada a magoá-lo!
Ele encaminhou-se até a janela e ficou olhando a praça.
— Agora é inútil adverti-la. Depois da sua declaração da noite passada é pouquíssimo provável que Charlbury queira casar com vo-cê. O que pretende fazer? Posso lhe garantir que meu pai não consentirá que se case com Fawnhope.
— Porque você não permitirá que ele consinta! Não pode contentar-se em fazer um casamento de conveniência, sem desejar que eu faça o mesmo? — exclamou, exaltada.
Ele assumiu uma postura rígida.
— Não é difícil perceber a influência de minha prima em ação! — disse ele. — Antes de ela chegar a Londres, você não teria falado comigo assim!. Minha estima por Eugenia...
— Se você a amasse, Charles, não falaria de estima por Eugenia.
Foi nesse momento inoportuno que Dassett introduziu a Srta. Wraxton no aposento. Cecília escondeu rapidamente o lenço do irmão, uma onda rubra invadiu-lhe as faces; o Sr. Rivenhall afastou-se da janela e disse com visível esforço:
— Eugenia! Não contávamos com este prazer! Como vai você?
Ela estendeu-lhe a mão, mas voltou seu olhar para Cecilia.
— Diga-me que não é verdade! Nunca fiquei tão chocada em minha vida como quando Alfred me contou o que aconteceu ontem à noite!
Quase sem sentir, irmão e irmã fizeram um movimento para a frente ao mesmo tempo.
— Alfred? — repetiu o Sr. Rivenhall.
— Ele me contou, enquanto íamos para casa depois do baile, que não pôde deixar de ouvir o que Cecilia lhe disse, Charles. E Lord Charlbury! Eu não acreditaria ter sido isso possível!
Lealdade, bem como os laços de afeição, conservaram o Sr. Rivenhall do lado da irmã; contudo, parecia muitíssimo aborrecido, o que, na verdade, ele estava, pois achava indescupável Cecilia o ter colocado nessa situação. De modo reprovador, disse:
— Se está se referindo ao fato de Cecilia e Lord Charlbury terem chegado à conclusão de que não combinam, está totalmente certa. O que realmente não sei, é qual o interesse de Alfred nisso ou por que ele deveria dirigir-se a você para contar o que... ouve por acaso!
— Meu querido Charles, ele sabe que o que diz respeito à sua família também me diz respeito!
— Fico-lhe muito grato, mas não tenho vontade de discutir o assunto.
— Queiram me desculpar! Preciso ir ver minha mãe! — disse Cecilia. E deixou o aposento.
A Srta. Wraxton olhou de maneira significativa para o Sr. Rivenhall e disse:
— Não me admira que esteja aborrecido. Foi um assunto lamentavelmente mal conduzido, e calculo que não precisamos procurar muito longe a influência que inspirou a querida Cecilia a comportar-se de um modo que não é do seu feitio!
— Não faço a mínima ideia do que quer dizer.
O tom de voz intimidativo do rapaz advertia-a que ela mostraria sensatez em mudar de assunto, porém sua antipatia por Sophy tornara-se uma obsessão tão forte que a impeliu a continuar.
— Deve ter reparado, querido Charles, que nossa adorável irmã deixou-se cair totalmente sob o domínio da prima. Não consigo imaginar a que outra coisa isso possa levar senão ao desastre. Não há dúvida de que a Srta. Stanton-Lacy tem muitas qualidades excelentes, contudo sempre achei que você estava certo ao dizer que Sophy tinha pouquíssima sensibilidade de espírito.
O Sr. Rivenhall, que já decidira que Sophy era a culpada pelo procedimento da irmã, sem um instante de hesitação, disse:
— Está enganada. Jamais fiz semelhante observação!
— Não fez? Acho que me disse algo desse tipo certa vez, mas pouco importa! É lamentável que a querida Lady Ombersley tenha sido forçada a hospedá-la neste exato momento. Toda vez que entro nesta casa, noto uma mudança! Até as crianças...
— Está decididamente muito mais animada, sem dúvida — ele interrompeu-a.
Ela soltou uma risada um tanto artificial.
— Sem dúvida está menos pacifica! — Ela começou a alisar as rugas formadas em suas luvas. — Sabe de uma coisa, Charles, sempre admirei muito a atmosfera desta casa. Obra sua, sei muito bem! Só posso sentir um pouco de melancolia quando vejo aquela calma disciplinada — uma certa dignidade, eu diria — destruída por um génio rebelde. Pobrezinha da Amabel, pensei um dia desses, crescendo totalmente sem controle! É claro, a Srta. Stanton-Lacy a encoraja sem refletir. Não se pode esquecer que ela mesma recebeu uma educação estranhamente irregular!
— Minha prima — respondeu o Sr. Rivenhall, como quem não admite mais réplicas — tem sido extremamente bondosa com as crianças, e tem tratado minha mãe com muito amor e ternura. Devo acrescentar que é um prazer para mim ver a disposição de espírito de minha mãe tão melhor com a presença de Sophy. Tem alguma incumbência nesta parte da cidade? Posso acompanhá-la? Devo estar em Bond Street
dentro de vinte minutos.
Em face de uma desconsideração inequívoca como essa, foi impossível a Srta. Wraxton dizer mais alguma coisa. Um rubor subiu-lhe às faces e seus lábios enrijeceram, contudo ela conseguiu reprimir uma resposta mordaz, e dizer com uma aparência, ao menos, de amabilidade:
— Obrigada, tenho de passar na biblioteca para mamãe. Vim na caleça e ficaria realmente contente de levá-lo aonde quer que seja o seu destino.
Desde que o destino dele era o Salão de Boxe do Jackson, dificilmente ela teria imaginado que ficaria contente, pois não gostava de nenhum tipo de esporte e considerava o boxe uma forma peculiarmente vulgar de atividade. Todavia, exceto zombar maliciosamente do Sr. Rivenhall por sua óbvia preferência por uma companhia de pugilistas horríveis em vez dela, Eugenia não fez outros comentários.
Nesse ínterim, Cecília fugira da sala, não para junto de Lady Ombersley, mas para procurar a prima, a qual encontrou sentada diante da penteadeira, examinando uma tira de papel. Jane Storridge recolhia o traje de montaria do chão, mas quando Cecília entrou no quarto ela pareceu sentir que sua presença não era desejada, pois deixou escapar uma fungadela meio ruidosa, apanhou as botas de montaria de Sophy e afastou-se com elas debaixo do braço.
— O que imagina que possa ser isto, Cecy? — perguntou Sophy, ainda analisando com o cenho franzido o papel em sua mão. — Jane disse que o encontrou ao lado da janela e achou que devia ser meu. Que nomes engraçados! Goldhanger, Bear Alley, Fleet Lane. Não conheço a letra e não posso imaginar como... Oh, que tonta! Deve ter caído do bolso do casaco de Hubert!
— Sophy! — exclamou Cecília. — Tive a entrevista mais horrorosa do mundo com Charlbury!
Sophy pôs o papel de lado.
— Santo Deus! Como foi isso?
— Sinto minha alma totalmente oprimida! — declarou Cecilia, deixando-se afundar numa poltrona. — Ninguém... ninguém! — se teria comportado com uma sensibilidade mais apurada! Gostaria que você não me tivesse convencido a vê-lo! Nada poderia ter sido mais doloroso!
— Oh, não pense mais nele! — disse Sophy, animada. — Em vez disso, vamos pensar no que deve ser feito para arranjar uma colocação adequada para Augustus!
— Como pode ser tão desalmada? — perguntou Cecilia. — Enquanto ele estava sendo imensamente gentil, eu não via outra coisa exceto o quanto eu o havia magoado!
— Ouso afirmar que ele vai se recuperar muito rapidamente — Sophy respondeu, de uma maneira descuidada. — Aposto dez contra um que ele se apaixonará por outra mulher antes de findar o mês!
Cecilia não dava a impressão de achar essa profecia consoladora, porém, depois de um instante, disse:
— Sem dúvida desejo que ele consiga; não é uma coisa agradável saber que se arruinou a vida de um homem, garanto-lhe!
— Acha que vai chover? Será que devo usar meu novo chapéu de palha! Penso em eu mesma flertar com Charlbury. Gosto dele.
— Desejo que tenha êxito — respondeu Cecilia, um pouco empertigada. — Embora não o considere um homem dado realmente a flertes. Tem um modo de pensar muito distinto para dedicar-se a um passatempo desse género!
Sophy riu.
— Veremos! Diga-me, por favor! Que chapéu devo usar? O de palha é tão arrebatador, porém se começar a garoar...
— Não me interessa que chapéu você vai usar! — interrompeu-a bruscamente Cecilia.
XI
O RESTO DO DIA transcorreu tranquilamente, Sophy conduzindo Cecilia pelo Hyde Park em seu faéton, deixando-a nas imediações de Riding House para usufruir de um combinado passeio a pé com o Sr. Fawnhope e levando no lugar da prima Sir Vincent Talgarth, que só deixou de cortejá-la quando notou a Marquesa de Villacanas parada ao lado da cerca que separava Rotten Row do caminho para as carruagens. A marquesa, que chamava bastante atenção devido à quantidade e à altura das plumas de avestruz espiraladas no seu chapéu, cumprimentou-o prazerosa exibindo seu sorriso indolente, e contou a Sophy que achara as lojas de Londres muito inferiores às de Paris. Nada do que vira na Bond Street naquele dia a tentara a abrir a bolsa. Todavia Sir Vincent tinha conhecimento de uma modiste na Bruton Street, que certamente reconheceria num relance o estilo e a qualidade de uma freguesa de tal categoria, e ofereceu-se para acompanhar a marquesa àquele estabelecimento.
Sophy franziu o cenho ao ouvir isso, mas antes que tivesse tido tempo para pensar no assunto, sua atenção foi atraída por Lord Bromford. A educação a obrigava a convidá-lo para uma volta pelo parque no faéton. Ele agradeceu e sentou-se ao seu lado, e depois de lhe contar quanto prazer usufruíra no baile dos Ombersleys, fez-lhe um pedido formal de casamento. Sem hesitação e sem constrangimento, Sophy recusou-o. Desconcertado apenas por alguns instantes, Lord Bromford disse que seu ardor o tornara afoito demais, mas que ele não perdia as esperanças de um resultado feliz.
— Quando seu pai voltar a estas praias — disse — solicitarei formalmente licença para lhe fazer a corte, Sophy. Você está certa em fazer questão de muito decoro, e devo pedir-lhe perdão por ter infringido as leis da etiqueta. Somente a forte paixão da qual padeço... e devo acrescentar que nem os mais convincentes argumentos de minha mãe, um ser a quem, em meu dever filial, dedico o mais profundo respeito,
teve o poder de alterar minha decisão — somente, como já disse, esta paixão me teria induzido a esquecer...
— Creio — disse Sophy — que você deveria ocupar uma cadeira na Câmara dos Lordes. Já tentou isso?
— É estranho — respondeu ele, ligeiramente envaidecido — que me faça tal pergunta, pois estou a ponto de fazer isso. Serei apresentado por um padrinho ilustre por seu talento forense e não menos ilustre pela alta linhagem, e confio...
— Não tenho dúvida nenhuma de que esteja destinado a se tornar um grande homem — declarou Sophy. — Não importa quanto seus períodos possam ser extensos ou complicados, você jamais se perde nelês! Como é encantadora a folhagem daquelas faias! Conhece alguma árvore que se rivalize à faia? Pois eu não!
— Certamente é uma árvore graciosa — admitiu Lord Bromford, prestigiando a faia. — Contudo, difícil de igualar-se em imponência ao mogno, que se desenvolve nas índias Ocidentais, ou em utilidade, às árvores das Antilhas, de madeira resistente e flexível. Pergunto a mim mesmo, Srta. Stanton-Lacy, quantas pessoas sabem que a madeira desse tipo de árvore fornece varais para as suas carruagens?
— Nas províncias sulistas da Espanha — opôs-se Sophy — o sobro se desenvolve em grande profusão.
— Outra árvore interessante que se pode encontrar na Jamaica — disse ele — é a ballata. Temos também o pau-rosa (jacarandá), o ébano, o guáiaco...
— As regiões nortistas da Espanha — disse Sophy, desafiante — são mais notáveis devido à grande variedade de arbustos que lá crescem, incluindo o que chamamos dejarales e o ládano, e... e... Oh, lá está Lord Francis! Terei de fazê-lo descer, Lord Bromford!
Ele mostrou-se relutante, porém, uma vez que Lord Francis acenava para Sophy e manifestava desejo de falar com ela, não pôde insistir. Quando o faéton parou, ele desceu pesadamente do veículo, e Lord Francis subiu lepidamente, dizendo:
— Sophy, que baile excelente o da noite passada! Que criatura adorável é sua prima, sem dúvida!
Sophy pôs os cavalos em movimento outra vez.
— Francis, o sobro se desenvolve mesmo nas províncias sulistas da Espanha?
— Santo Deus, Sophy, por que eu deveria saber? Você estava estava em Cádis! Não se lembra? A propósito, quem se importa com sobros?
— Espero — disse Sophy afetuosamente — que quando não quiser mais ser o pior namorador da Europa, Francis, você ganhe uma esposa muito bonita, pois você merece! Sabe alguma coisa a respeito da ballata?
— Nunca ouvi falar em toda a minha vida! O que é? Uma nova dança?
— Não, é uma árvore, e se desenvolve na Jamaica. Espero que ela seja tão boa como bonita.
— Pode contar comigo para isso! Mas sabe, Sophy, não é pró prio de você ficar se aborrecendo a respeito de árvores! O que aconteceu?
— Lord Bromford — suspirou Sophy.
— Quê, aquele sujeito enfadonho que estava ao seu lado agora mesmo! Ontem à noite, ele estava contando para Sally Jersey como o capim-guiné era valioso para cavalos e gado; já ouvi falar dele! Nunca vi a pobre Silêncio tão silenciosa!
— Tomara ela lhe tenha passado uma descompostura. Quando chegarmos a Riding House, terei de fazê-lo descer, pois Cecília estará aguardando por mim.
Cecília e seu namorado foram encontrados no lugar indicado. Lord Francis desceu do faéton num salto, e foi ele quem deu a mão a Cecília para ajudá-la a subir, pois o Sr. Fawnhope ficara embevecido na contemplação de grande quantidade de narcisos, que o fizeram estender o braço e murmurar:
— Narcisos, que surgem diante das provocações dissimuladas!
A disposição de espírito de Cecília não demonstrava ter-se beneficiado muito pelo encontro com seu amado. Os planos dele para a futura manutenção de ambos pareciam um tanto vagos, porém o rapaz tinha em mente um poema épico, que poderia conferir-lhe fama da noite para o dia, achava ele. Enquanto o poema se achava em elaboração, ele não se oporia, disse, em aceitar uma colocação como bibliotecário. Mas, como Cecília se achava incapaz de imaginar que o pai ou o irmão pudessem sentir muita alegria em fazê-la casar-se com um bibliotecário, essa bonita concessão da parte do Sr. Fawnhope mal contribuiu para diminuir seu desânimo. Ela chegou até a sugerir que ele devia dedicar-se à profissão de político, porém ele apenas comentara: "Que sórdido!", o que não foi de bom augúrio para esse excelente plano. Quando ele acrescentara que desde a morte do Sr. Fox, dez anos antes, não havia um homem de sensibilidade, um líder, ao qual se pudesse ligar, esta observação servira apenas para mostrar a Cecília quanto era improvável que os princípios políticos dele caíssem mais nas boas graças da sua família do que suas inspirações poéticas.
Sophy, ao apreender das observações um tanto elípticas de Cecília o ponto principal, assumiu uma atitude animada, dizendo:
— Ora, muito bem! Precisamos encontrar um grande homem que esteja disposto a se tornar seu patrono! — o que deu a Cecília uma noção medíocre da sua compreensão.
Naquela noite, antes de descer para o jantar, Sophy pôde restituir a Hubert a tira de papel que caíra do seu bolso. Até esse momento, ela não pensara muito a respeito; contudo, o modo como ele recebeu o papel foi tão estranho, que se estabeleceram em sua mente várias especulações que o rapaz estava longe de aprovar. Ele quase arrancou o papel da mão dela, exclamando:
— Onde encontrou isto? — E quando a prima explicou, da for ma mais comedida, que devia ter caído do bolso do casaco que consertara para ele, o rapaz disse: — Sim, é meu, mas eu não sabia que o colocara no bolso! Não posso lhe dizer o que significa, mas, por favor, não fale disto a ninguém!
Ela assegurou que não tinha intenção de fazê-lo, mas ele pareceu ficar tão perturbado que algumas cogitações inevitáveis começaram a desenvolver-se na cabeça dela. Cogitações que não vieram a frutificar
até que o viu em seu regresso da visita ao amigo, Sr. Harpenden, oca- sião em que seu comportamento tanto se assemelhava ao de um ho- mem que recebera um golpe atordoante, que ela agarrou a primeira oportunidade para perguntar-lhe se havia acontecido algo. O Sr. Rive- nhall, que partira havia 24 horas para Thorpe Grange, a propriedade em Leicestershire que herdara do tio-avô, ainda não voltara para Londres; mas Hubert deixou claro à sua prima que mesmo que seu irmão mais velho estivesse em Londres, nem a mais terrível necessidade o teria induzido a recorrer a ele.
— Ele não tem papas na língua! Já me disse em termos categóricos que não... Oh, muito bem! Não tem importância!
— Ouso afirmar — disse Sophy, com seu modo calmo — que é bem provável que Charles diga mais do que você pensa. Gostaria que me informasse o que foi que saiu errado, Hubert! Presumo que talvez tenha perdido uma grande importância em Newmarket, não foi?
— Se fosse só isso! — exclamou ele imprudentemente.
— Bem, se não foi só isso, gostaria que me contasse tudo, Hubert! — insistiu ela, com um dos seus sorrisos amistosos. — Asseguro-lhe que está inteiramente a salvo em minhas mãos, pois Sir Horace ensinou-me a julgar que nada é mais odioso do que ser o tipo de pessoa que dá com a língua nos dentes. Mas sei que está em apuros, de alguma espécie, e não tenho dúvidas de que devo, caso não me conte nada, segredar uma indireta no ouvido do seu irmão, porque aposto 10 contra l que irá de mal a muito pior se continuar nesse caminho, sem ninguém para aconselhá-lo!
Ele empalideceu.
— Sophy, você não iria...
Ela chegou a piscar.
— Não, é claro que não iria! — admitiu. — Você está tão relutante para me contar seu problema, que sou forçada a lhe perguntar. Teria algo a ver com mulher... como Sir Horace chamaria... um pedaço de mau caminho, talvez?
— Sophy! Palavra de honra! Não! Nada disso!
— Dinheiro, então?
Ele calou-se, e depois de um instante, Sophy deu um tapinha convidativo no lugar ao seu lado do sofá e disse:
— Por favor, sente-se aqui! Não creio que seja nem a metade tão ruim quanto receia.
Ele soltou uma pequena risada, porém, depois de um pouco mais de persuasão, sentou-se ao lado dela e afundou a cabeça entre os punhos fechados.
— Atenderei ao seu pedido. Se acontecer o pior, um homem sempre pode alistar-se.
— Exatamente — ela concordou. — Mas sei alguma coisa sobre o exército e não creio realmente que a vida nas fileiras conviria a você Além disso, iria afligir demais a minha tia, como sabe!
Não era de supor que um jovem cavalheiro da classe de Hubert confiasse prontamente suas dificuldades aos ouvidos de uma mulher, e uma mulher não exatamente da mesma idade dele; contudo, depois de muita adulação, Sophy conseguiu extrair a história. Não era muito coerente, e diversas vezes durante o relato ela foi obrigada a fazê-lo lembrar-se de detalhes, porém finalmente concluiu que ele caíra nas garras de um agiota. Surgiram alguns problemas com débitos contraídos no ano anterior em Oxford, cujo total não ousara revelar ao irmão, na esperança de que, à antiquíssima maneira otimista da juventude, pudesse pagá-los ele mesmo. Conhecera amigos que estavam bem informados sobre todas as casas de jogo em Londres; com um pouco de sorte nos dados franceses ou na roleta, teria endireitado tudo; porém, durante as férias de Natal, quando ele buscara esse método de recuperar dinheiro, só o maior azar resultou dos seus esforços. Ele ainda estremecia ao recordar aquelas noites desastrosas, na verdade aterradoras, uma circunstância que levou sua sagaz prima a deduzir que o jogo não o atraía muito. Diante das grandes dívidas de honra, e já em apuros com seu severo irmão por causa de dívidas bem menores, o que poderia fazer senão atirar-se no rio ou procurar um agiota? E ainda assim, garantiu a Sophy, jamais se teria aproximado de um maldito agiota se não estivesse certo de poder saldar a dívida ao tubarão em seis meses.
— Quer dizer, quando completar a maioridade no mês que vem? — indagou Sophy.
— Bem, não exatamente — admitiu, corando. — Embora eu imagine que foi isso o que o velho Goldhanger pensou quando concordou em emprestar-me o dinheiro. Jamais lhe prometi isso, veja bem! Tudo que eu disse foi que devia entrar na posse de uma grande importância... e eu estava, Sophy! Eu achava que seria impossível não acontecer! Bob Gilmorton — um dos meus mais íntimos amigos — conhece bem o proprietário, e ele me garantiu que o cavalo não poderia perder!
Sophy, que tinha uma excelente memória, no mesmo instante reconheceu o nome Goldhanger como um dos que lera na tira de papel encontrada em seu quarto, mas não fez qualquer comentário, apenas indagando se o cavalo traiçoeiro perdera a corrida.
— Ficou fora do páreo! — respondeu Hubert, com um gemido.
Sensatamente, ela assentiu com a cabeça.
— Sir Horace diz que se algum dia confiarmos num cavalo para pôr em ordem nossa fortuna, ele sempre fica fora do páreo — comentou. — Ele diz também que se jogássemos quando nossas algibeiras não permitissem, perderíamos. Só quando estamos muito bem providos podemos esperar ganhar. Sir Horace tem sempre razão!
Depois de se recusar a discutir esse ponto, Hubert falou durante alguns exacerbados minutos sobre a corrida do seu cavalo, lançando graves queixas contra o proprietário, o treinador e o jóquei, do tipo que o teriam tornado passível de denúncia por calúnia se fossem ouvidas por alguém menos discreto que sua prima. Sophy o deixou continuar sem interrupção, ouvindo com simpatia, e só quando ele esgotou o assunto e calou, fê-lo voltar para o que considerava o ponto mais importante.
— Hubert, você ainda não atingiu a maioridade — disse. — E sei que é totalmente ilegal emprestar dinheiro a menores, porque quando o jovem senhor... bem, não importa o nome, mas nós o conhecíamos bem... quando um rapaz amigo meu ficou num apuro semelhante, ele foi procurar Sir Horace para pedir conselho, e foi isso o que Sir Horace disse. Creio que há punições extremamente pesadas para quem faz tal coisa.
— Bem, eu sei disso — Hubert respondeu. — A maioria dos agiotas não faria isso, mas... o negócio é que um amigo meu conhecia esse sujeito, o Goldhanger, e me deu o endereço dele, e... e me informou o que eu devia dizer, o tipo de juro que teria de pagar... Não que isso parecesse importar naquela ocasião, porque eu acreditava que...
— É muito alto? — Sophy interrompeu.
Ele assentiu com a cabeça.
— É, porque, embora eu mentisse sobre a minha idade, ele sabia, é claro, que eu ainda não tinha 21 anos, e... me pôs razoavelmente à sua mercê. E eu achava que seria capaz de liquidar tudo depois daquela corrida.
— Quanto pediu emprestado, Hubert?
— Quinhentas libras — ele disse baixinho.
— Santo Deus, perdeu tudo isso nas cartas? — ela exclamou.
— Não, mas eu queria 100 libras para apostar naquele matungo excomungado, compreende? — ele explicou. — Não adiantava pedir emprestado apenas o suficiente para pagar minhas dívidas, porque co-mo eu pagaria depois a Goldhanger?
Sophy não pôde deixar de rir diante desse ingénuo método financeiro, porém, como Hubert parecia bastante magoado, ela pediu-lhe perdão e disse:
— É evidente que o seu Sr. Goldhanger é um velhaco infame!
— Sim, é — concordou Hubert, parecendo um pouco desfigurado. — É um velho cruel e fui tolo inclusive em aproximar-me dele. Eu não sabia tanto a respeito dele como sei agora, é claro, mas ainda as sim, tão logo o vi... Bem, agora é tarde demais para ficar insistindo nesse assunto.
— Sim, tarde demais. Contudo, não há necessidade de perder as esperanças! Estou certa de que não tem nada a recear, porque ele deve saber que não pode recuperar seu dinheiro de um menor, e jamais ousaria processá-lo por isso.
— Ora bolas, Sophy. Preciso pagar ao sujeito o que devo! Além do mais, há uma coisa pior. Ele insistiu que eu lhe desse uma garantia, e... e eu dei!
Ele parecia tão culpado que várias possibilidades de arrepiar os cabelos passaram como um relâmpago pela cabeça de Sophy.
— Hubert, você não deu em garantia bens de família transmitidos de geração em geração ou... ou algo desse tipo, deu?
— Santo Deus, não! Não sou tão ruim assim! — ele exclamou, indignado. — Era meu, e eu não o chamaria exatamente um bem de família, embora se algum dia se descobrisse que o perdi acho que ha-veria uma confusão dos diabos e eu seria tratado como um batedor de carteira! Vovô Stanton-Lacy deixou-o para mim... uma coisa estúpida, acho, porque homens não usam mais isso. Ele usava, é claro, e minha mãe diz que vê-lo a faz lembrar-se do pai como nada mais conseguiria, porque nunca viu o pai sem ele... portanto você pode avaliar a situação se ela soubesse que eu o dei como garantia! É um anel, sabe, uma grande esmeralda quadrada, com diamantes em toda a volta. Imagine alguém usando uma coisa dessas! Ora, haveria de assemelhar-se a um Creso ou a um milionário exibicionista! Mamãe o guardava sempre e eu não soube que era meu até ir a um baile de máscara no ano passado, quando ela o deu a mim para usar e disse que era meu. E quando Goldhanger exigiu uma garantia, eu... não pude pensar em outra coisa, e... bem, eu sabia onde mamãe o guarda va... E não me diga que o roubei dela, não foi isso. Ela o guardava
porque, para mim, não tinha utilidade.
— Não, não, é claro que sei que você não roubaria! — Sophy apressou-se em dizer.
Ele ficou examinando os nós dos dedos com estranho interesse.
— Não roubaria. Veja bem, não estou dizendo que foi certo ou errado tirar do estojo de mamãe, mas... afinal, era meu!
— Ora, naturalmente que não devia ter tirado! — disse Sophy. — Acho que ela ficaria aborrecida com você, portanto precisamos recuperá-lo imediatamente.
— Tomara eu pudesse, mas não vejo como fazê-lo agora! Não sei o que fazer! Quando aquele cavalo não correu, eu estava pronto a estourar os miolos! Não farei tal coisa, porque suponho que não consertaria nada, só iria provocar um escândalo enorme.
— Que bom você ter me contado tudo! Sei exatamente o que deverá fazer. Confesse a história toda ao seu irmão! É provável que ele lhe passe uma tremenda descompostura, mas pode estar certo de que depois o ajudará a sair dessa enrascada.
— Você não o conhece! Descompostura, pois sim! Ele me faria sair de Oxford e me meteria no exército ou algo parecido! Tentarei tudo antes de recorrer a ele!
— Muito bem, emprestarei as 500 libras a você — disse Sophy.
Ele corou.
— Você é um grande cara, Sophy — não, não quis dizer isso — você é uma moça extraordinária! Fico-lhe muitíssimo grato, mas é claro que não posso tomar dinheiro emprestado de você. Não, não, por favor não diga mais nada! Está fora de questão! AJém disso, você não entende! O velho sanguessuga me fez assinar uma nota promissória estabelecendo juros de 15 por cento por mês!
— Santo Deus, você jamais deveria ter concordado com algo tão iníquo!
— Que mais poderia fazer? Precisava ter o dinheiro para pagar minhas dívidas de jogo e sabia que era inútil dirigir-me a Howard & Gibbs ou a qualquer um desses sujeitos, pois me teriam mostrado a porta da rua.
— Hubert, estou convencida de que não há nada que ele possa fazer para extorquir qualquer juro de você! Ora, por lei ele nem poderia cobrar a importância emprestada! Deixe-me emprestar-lhe 500 libras, leve esse dinheiro a ele e insista para que restitua a promissória que você assinou e o anel! Diga-lhe que se ele não se resolver a aceitar o principal, que faça todo mal que puder.
— E deixá-lo informar Oxford contra mim? Ouça, Sophy, ele é um rematado canalha! Me faria todo mal que pudesse! Não se trata de um agiota comum; na verdade, estou certo que ele é o que chamam de receptador de objetos roubados, você sabe. Além disso, ele se recu- saria a me devolver o anel, e mesmo se eu o obrigasse a prestar contas, diria que o vendeu, imagino.
Nada do que Sophy alegou teve o poder de convencê-lo. Ele simplesmente sentia um grande pavor do Sr. Goldhanger, e uma vez que ela acha isso incompreensível, pôs-se a imaginar que alguma ameaça ainda mais sombria do que a revelada pairava sobre a cabeça dele. Não fez nova tentativa para descobrir o que seria, pois estava razoavelmente certa de que não a teria impressionado. Assim, Sophy perguntou o que ele pretendia fazer para livrar-se da dificuldade, se preferia não recorrer ao irmão nem aceitar um empréstimo dela. A resposta não foi muito definida; Hubert ainda era bastante jovem para alimentar a inabalável crença da juventude em milagres oportunos. Diversas vezes disse que lhe restava um mês antes de se ver obrigado a fazer algo desesperador, e embora concordasse com relutância que poderia ser forçado a dirigir-se ao irmão, evidentemente sentia que algo aconteceria para tornar isso desnecessário. Procurando mostrar-se despreocupado, pediu a Sophy para não se inquietar a respeito, e ela, percebendo que seria inútil continuar a discussão, nada mais disse.
Quando Hubert a deixou, ela ficou sentada durante algum tempo com o queixo numa das mãos, refletindo sobre o assunto. Seu primeiro impulso, que fora o de colocar o assunto nas mãos do advogado de Sir Horace, ela descartou pesarosamente. Conhecia muito bem o Sr. Meriden para saber que ele combateria tenazmente a sua determinação em entregar 500 libras a um agiota. Qualquer conselho que ele lhe desse apenas levaria à revelação da loucura de Hubert, o que, naturalmente, era inconcebível. Pensou rapidamente nos inúmeros amigos, porém eles tiveram de ser descartados pela mesma razão. Mas, como não era de abandonar nenhum projeto uma vez que o iniciasse, nem por um instante alimentou a ideia de deixar o jovem primo resolver sozinho suas dificuldades. Parecia-lhe não haver outro caminho a seguir senão enfrentar o velhaco do Sr. Goldhanger. Essa decisão não foi tomada sem cuidadosa consideração, pois, embora não tivesse o menor medo do Sr. Goldhanger, sabia muito bem que senhoritas não visitavam usurários e que tal conduta seria considerada ultrajante por qualquer pessoa educada. Entretanto, como não havia razão por que alguém, exceto, talvez, Hubert, devesse saber do que se passava, ela acabou concluindo que preocupar-se com escrúpulos afetados seria tolo e desinteressante — não o tipo de comportamento que se esperaria da filha de Sir Horace Stanton-Lácy.
Depois de ter resolvido intervir no caso de Hubert, era típico dela não perder tempo com exacerbadas disposições de espírito. Também era típico dela não tentar convencer-se de que poderia, justificadamente, sacar dinheiro da conta de Sir Horace para saldar a dívida de Hubert. Na sua opinião, da qual o pai sem dúvida teria compartilhado, gastar 500 libras num baile para lançar-se à sociedade londrina era uma coisa, e forçá-lo a um ato de generosidade para com um sobrinho de cuja existência provavelmente nem tinha lembrança, era outra coisa muito diferente. Foi buscar seu porta-jóias, abriu-o e, depois de despejar o conteúdo, separou os brincos de diamantes que Sir Horace comprara para ela em Rundell & Bridge havia apenas um ano. Eram pedras particularmente belas, e custou-lhe uma ligeira pontada no coração separar-se delas; mas o resto das suas jóias mais valiosas eram herdadas de sua mãe, e, embora não tivesse a mínima lembrança dessa senhora, seus escrúpulos proibiam-na de desfazer-se delas.
No dia seguinte, ela conseguiu eximir-se de acompanhar Lady Om-bersley e Cecília a um grande estabelecimento de tecidos na Strand, e saiu sozinha em direção àqueles famosos joalheiros — Rundell & Bridge. Quando chegou, não havia nenhum freguês na loja, e, além disso, à vista de uma senhorita de altura e presença imponentes, vestida, como estava, no maior requinte da elegância, o chefe dos vendedores avançou apressado, todo ansioso para agradar. Era um excelente homem de negócios, que se orgulhava de jamais esquecer o rosto de um freguês considerado. Num relance reconheceu a Srta. Stanton-Lacy, providenciou uma cadeira para ela com suas próprias augustas mãos, e pediu que lhe dissesse o que poderia ter a honra de lhe mostrar. Ao descobrir a verdadeira natureza da visita, ficou boquiaberto, contudo ocultou rapidamente seu assombro, e, por um meneio das pálpebras, transmitiu a um inteligente subordinado uma ordem para convocar o próprio Sr. Bridge. Este, ao entrar na loja com passos leves, como quem desliza, e fazer uma reverência cortês à filha de um cliente que já comprara dele muitas quinquilharias dispendiosas (embora a maioria para uma classe de mulheres bem diferentes), solicitou a Sophy que o acompanhasse ao seu escritório particular, atrás da vitrina. O que quer que possa ter pensado sobre o desejo dela de desfazer-se de um par de brincos escolhidos com todo o cuidado por ela mesma apenas um ano antes, ele guardou para si mesmo. Depois que uma indagação educada a respeito de Sir Horace, e de saber que ele, naquele momento, se achava no Brasil, o Sr. Bridge tirou suas conclusões e resolveu no mesmo instante comprar os brincos por um preço generoso, em vez de, como fora sua primeira intenção e segundo o costume tradicional, explicar ao cliente por que o preço dos diamantes caíra tanto. Não tinha intenção de vender os brincos imediatamente; ele os guardaria até que Sir Horace voltasse do Brasil. Sagaz como era, desconfiava que Sir Horace os compraria de novo; e ficaria satisfeito em poder fazer isso, demonstrando sua gratidão, no futuro, com a compra de quinquilharias muito mais dispendiosas dos joalheiros que se comportaram de modo tão cavalheiresco com sua filha única. Portanto, a transação entre a Srta. Stanton-Lacy e o Sr. Bridge foi conduzida dentro das normas mais corteses, cada qual ficando perfeitamente satisfeito com a barganha. O Sr. Bridge, um modelo de discrição, manteve a Srta. Stanton-Lacy no seu escritório particular até que dois outros fregueses deixassem o estabelecimento. Imaginava que Sir Horace não iria gostar que soubessem que sua filha se vira reduzida a vender suas jóias. Sem pestanejar, concordou em pagar a Sophy 500 libras em notas; sem pestanejar, contou-as sobre a mesa, diante dela; e sem a mínima quebra do devido respeito, fez-lhe uma reverência do lado de fora da loja.
Com as notas socadas no regalo, Sophy alugou um coche e pediu ao condutor que a levasse a Bear Alley. De modo algum o veículo que escolhera era de primeira qualidade ou o mais elegante entre os que passaram estrondeando por ela — mas era conduzido pelo cocheiro de praça mais simpático. Era um homem troncudo, de meia-idade, com um rosto corado e expressão jovial, em quem Sophy sentiu que podia depositar certo grau de confiança, sendo essa crença fortalecida pelo modo como ele recebeu sua ordem. Depois de lançar-lhe um olhar sagaz e coçar o queixo com a mão enluvada (luvas sem as pontas dos dedos), ele opinou que ela se teria enganado de endereço, pois Bear Alley não era, no seu modo de pensar, o tipo de lugar ao qual uma dama de qualidade desejaria ser conduzida.
— Não me diga, trata-se de um bairro pobre e afastado? — perguntou Sophy.
— Não é lugar para uma senhorita — repetiu o cocheiro, recusando a comprometer-se nesse ponto. Pedindo que o perdoasse, acrescentou que tinha também duas filhas.
— Bem, bairro pobre e afastado ou não, é para onde desejo ir — disse Sophy. — Tenho um negócio a tratar lá com o Sr. Goldhanger, que, ouso afirmar, é um grande trapaceiro; e você me parece exa-tamente o tipo de homem que não partiria de lá deixando-me para trás.
Em seguida subiu no coche; o cocheiro fechou a porta, voltou para a boleia e, depois de expressar filosoficamente o seu desejo de ficar "sem vintém" se algum dia voltasse a dar sua opinião de novo, suplicou ao cavalo que se levantasse.
A leste de Fleet Market, Bear Alley era uma rua estreita e mal-cheirosa, onde lixo de toda espécie ficava deteriorando entre as pedras redondas e desniveladas da pavimentação. A sombra da grande prisão parecia estender-se sobre o distrito inteiro, e até as pessoas que caminhavam pelas ruas ou cochilavam na soleira das portas tinham um aspecto desanimado. O cocheiro perguntou a um homem que usava um cachecol seboso no pescoço se ele sabia onde ficava a residência do Sr. Goldhanger, e indicaram-lhe uma casa na metade da rua; o informante hesitara obviamente antes de responder, e não parecia inclinado a manter qualquer tipo de conversa.
Um coche desbotado, que outrora teria pertencido a um cavalheiro, atraía pouca atenção, mas quando ele parou e uma mulher jovem, alta e bem vestida desceu, suspendendo as saias guarnecidas de folhos para evitar sujá-las num monte de lixo, alguns vadios e dois meninos andrajosos aproximaram-se para observar com seus olhos arregalados. Foram feitos vários comentários, felizmente em termos de tal calão, que se tornaram totalmente incompreensíveis para Sophy. Ela ficara desconcertada em muitos povoados espanhóis e portugueses, mas agora já não ficava perturbada pela atenção que atraía, e depois de lançar um olhar de censura à sua plateia, acenou para um dos meninos e disse, com um sorriso:
— Diga-me, um homem chamado Goldhanger mora aqui?
O garoto ficou embasbacado diante dela, mas quando Sophy estendeu-lhe um xelim, tomou fôlego animadamente, e, esticando a mão que mais parecia uma garra, disse:
— Primeiro andar! — Depois agarrou a moeda e desapareceu antes que algum dos mais velhos o aliviasse do dinheiro.
À vista da liberalidade da moça, a turba convergiu em torno de Sophy; então o cocheiro desceu da boleia com o chicote na mão, e jovialmente convidou aquele que tivesse desejo de consumir algo caseiro que se aproximasse. Ninguém aceitou o convite, e Sophy disse:
— Obrigada, mas por favor, não comece a brigar! Quero que espere por mim aqui, por favor.
— Se eu fosse a senhora, dona — disse o cocheiro, sério —, ficaria longe de um lugar como este, é o que eu faria! Não sabe o que lhe pode acontecer!
— Bem, se alguma coisa me acontecer — respondeu Sophy alegremente —, darei um grito altíssimo e você pode vir e me resgatar. Eu não o deixarei, imagino, esperando por muito tempo.
Em seguida avançou com cuidado pela sarjeta e entrou na casa que lhe fora indicada. A porta estava aberta e um lance de escada sem tapete levava até o final de um pequeno corredor. Ela subiu os degraus e encontrou-se num pequeno patamar. Duas portas davam para esse patamar, portanto bateu nas duas, de modo imperativo. Houve uma pausa, e ela teve a desagradável sensação de que estava sendo observada. Olhou para todos os lados, mas não havia ninguém à vista, e só quando tornou a virar a cabeça observou que um olho inconfundível a espreitava por um buraquinho em um dos painéis da porta nos fundos da casa. O olho desapareceu no mesmo instante; ouviu-se o ruído da chave girando na fechadura e a porta foi lentamente aberta, para revelar um indivíduo franzino, trigueiro, com longos cabelos crespos e sebosos, um nariz de semita e um olhar de soslaio insinuante. Usava um traje preto desbotado, e nada à sua volta sugeria suficiente riqueza para emprestar 500 libras a alguém. Seus olhos de marginal rapidamente abrangeram cada detalhe da aparência de Sophy, desde as plumas espiraladas no chapéu de copa alta até as bem-feitas botas de pelica em seus pés.
— Bom dia! — cumprimentou Sophy. — É o Sr. Goldhanger?
Ele estava parado diante dela, um pouco curvo, esfregando as mãos.
— E o que poderia querer com o Sr. Goldhanger, minha senhora? — ele indagou.
— Tenho um assunto a tratar com ele — respondeu Sophy. — Portanto, se for ele, por favor, não me deixe parada aqui neste corredor sujo por mais tempo! Não consigo imaginar por que ao menos não varre o chão!
O Sr. Goldhanger ficou bastante confuso, uma coisa que há muito tempo não lhe acontecia. Estava acostumado a receber visitantes de todos os tipos e condições, desde pessoas furtivas que se introduziam clandestinamente na casa protegidas pela escuridão e que despejavam estranhas mercadorias sobre a escrivaninha, debaixo da luz de uma única lamparina, até rapazes elegantes com expressões desfiguradas pela ansiedade que precisavam aliviar-se de obrigações imediatas, porém jamais abrira a porta para uma jovem dama tão senhora de si e que o repreendia por não varrer o chão.
— Gostaria que deixasse de olhar espantado para mim desse modo tolo! — disse Sophy. — Já teve oportunidade de me examinar por aquele buraco na porta, e nesta altura deve ter-se convencido de que não sou um oficial de justiça disfarçado.
O Sr Goldhanger protestou. A insinuação de que não receberia com prazer a visita de um oficial de justiça pareceu ofendê-lo. Entretanto, recuou para permitir que Sophy entrasse na sala e convidou-a a sentar-se na cadeira em um dos lados da enorme escrivaninha que ocupava o centro do aposento.
— Concordo, mas ficar-lhe-ia grata se a espanasse primeiro — disse ela.
O Sr. Goldhanger desempenhava sua função nesse escritório usando um dos seus longos fraques. Ouviu a chave ranger atrás dele e voltou-se subitamente para ver a visitante retirá-la da fechadura.
— Não fará objeção a que eu tranque a porta — disse Sophy. — Não quero ser interrompida por algum dos seus conhecidos, compreenda. E como eu detestaria ser espionada, permita-me que meta meu lenço naquele seu visor traiçoeiro. — Enquanto falava, retirava uma das mãos do regalo de plumas de cisne e enfiava uma ponta do lenço no buraco.
O Sr. Goldhanger tinha a estranha sensação de que o mundo começara a girar ao contrário. Durante anos tomara o cuidado de jamais meter-se numa situação que ele não fosse capaz de dominar, e seus visitantes estavam mais acostumados a barganhar com ele do que a trancar a porta e mandá-lo espanar a mobília. Não via nenhum mal em particular ao permitir que Sophy ficasse com a chave, pois embora ela fosse jovem e forte, não duvidava de poder recuperá-la se houvesse tal necessidade. Seu instinto o fazia preferir, sempre que possível, manter uma atitude da máxima educação; por isso sorriu, fez uma reverência e disse que a senhora tinha toda a liberdade de fazer o que lhe agradasse em sua humilde residência. Em seguida dirigiu-se à cadeira do outro lado da escrivaninha e perguntou o que poderia ter a honra de fazer por ela.
— Estou aqui por uma questão muito simples — respondeu Sophy. — Vim apenas reaver uma promissória do Sr. Hubert Rivenhall e o anel de esmeralda que o senhor recebeu como garantia de uma dívida.
— Na verdade, trata-se de uma questão simples — concordou o Sr. Goldhanger, sorrindo da maneira mais insinuante. — Ficarei encantado em servi-la, minha senhora. Não preciso perguntar se trouxe o dinheiro, pois estou certo de que uma dama tão eficiente...
— Ora, isso é ótimo! — interrompeu Sophy cordialmente. — Noto que tantas pessoas imaginam que uma mulher possivelmente não tem cabeça para negocios e isso, é claro, leva a uma triste perda de tempo. Devo informá-lo sem demora que ao emprestar 500 libras ao Sr. Rivenhall o senhor fez empréstimo a um menor. Julgo não precisar explicar-lhe o que isso significa.
Enquanto falava, sorria da maneira mais cordial, e o Sr. Goldhanger retribuiu-lhe o sorriso, dizendo com voz suave:
— Sem dúvida alguma, uma senhorita bem informada! Se eu promovesse uma ação contra o Sr. Rivenhall por causa do meu dinheiro, jamais iria recebê-lo. Mas não creio que o Sr. Rivenhall gostaria que eu promovesse uma ação por causa disso.
— É claro que ele não gostaria — concordou Sophy. — Além disso, embora fosse extremamente errado de sua parte ter emprestado dinheiro a ele, parece injusto que o senhor não recebesse pelo menos o principal da dívida.
— Muito injusto — respondeu o Sr. Goldhanger. — Há também a questãozinha dos juros, minha senhora.
Sophy sacudiu a cabeça.
— Não, não lhe pagarei um níquel de juro, o que talvez lhe sirva de lição para ser mais cuidadoso no futuro. Trouxe comigo 500 libras em notas, e quando me tiver restituído a promissória e o anel eu lhe darei o dinheiro.
O Sr. Goldhanger não pôde deixar de esboçar uma curta risada diante dessas palavras, pois, embora não tivesse muito senso de humor, ele só podia achar engraçada a ideia de privar-se de seus juros por ordem de uma senhorita.
— Acho que prefiro conservar a promissória e o anel — disse.
— Já esperava que preferisse — replicou Sophy.
— Deve considerar, minha senhora, que eu poderia prejudicar muito o Sr. Rivenhall — salientou o Sr. Goldhanger. — Ele está cursando a Oxford, não está? Pois bem, creio que não ficariam satisfeitos se soubessem da sua transação comigo, ou...
— Não ficariam nada satisfeitos — respondeu Sophy. — Contudo, seria um pouco constrangedor, não seria? E talvez pudesse convencê-los de que o senhor não tinha ideia de que o Sr. Rivenhall fosse menor de idade.
— Uma senhorita tão inteligente! — sorriu o Sr. Goldhanger.
— Inteligente não, mas tenho muito bom senso, e ele me diz que se o senhor se recusar a ceder a promissória e o anel, o melhor caminho que eu teria a seguir seria procurar imediatamente a Bow Street e expor a questão toda diante do juiz.
O sorriso murchou; o Sr. Goldhanger a observava através dos olhos estreitados.
— Não creio que fosse inteligente para tanto — disse.
— Não crê? Bem, acho que seria a coisa mais sensata a fazer e tenho um forte pressentimento de que gostarão de ter notícias suas em Bow Street.
O Sr. Goldhanger compartilhava do mesmo pressentimento. Mas não acreditava que Sophy estivesse falando sério, seus clientes tinham a mais profunda aversão à publicidade. Ele disse:
— Penso que Lord Ombersley preferiria dar-me o dinheiro.
— Não nego que ele preferiria, razão pela qual não disse nada a ele a respeito, pois acho absurdo ser chantageado por uma criatura como o senhor só pela falta de um pouco de coragem.
Esse ponto de vista sem precedentes começou a produzir no Sr. Goldhanger um certo desagrado pela sua visitante. Sabia que as mulheres eram imprevisíveis. Inclinou-se para a frente em sua cadeira, e tentou explicar algumas das consequências mais desagradáveis que recairiam sobre o Sr. Rivenhall caso ele negasse qualquer parte de sua dívida. Falou bem, um pequeno e sinistro discurso que raramente deixava de causar impressão aos seus ouvintes. Dessa vez não causou.
— Tudo o que diz — falou Sophy, interrompendo-o bruscamente — é tolice, e deve saber disso tão bem quanto eu. Tudo que poderia acontecer ao Sr. Rivenhall seria ele receber uma repreensão e ficar desacreditado perante o pai por algum tempo, e quanto a ser expulso de Oxford, nada disso! Jamais saberão de coisa alguma, pois acredito que o senhor faça transações piores do que emprestar dinheiro com juros exorbitantes para menores de idade, e depois que eu tiver estado em Bow Street, aposto dez contra um que conseguirão pô-lo atrás das grades sob uma acusação diferente! Além disso, no momento em que se tornar conhecido dos oficiais de justiça que o senhor empresta dinheiro a menores, o senhor não irá recuperar um único níquel. Portanto, por favor, não me fale mais dessa maneira absurda! Não tenho uma gota de medo do senhor ou do que quer que possa fazer.
— É muito corajosa — declarou o Sr. Goldhanger gentilmente. — E tem muito bom senso, conforme me disse. Porém eu também tenho bom senso, minha senhora, e de fato não acredito que veio me ver com o consentimento ou sequer conhecimento de seus pais ou da sua criada ou mesmo do Sr. Hubert Rivenhall. Na verdade, talvez prestasse informações contra mim na Bow Street. Eu de fato não sei, tal vez nem lhe dessem a oportunidade. Ora, eu não gostaria de ser áspero com uma senhorita tão bonita, portanto vamos fazer um pequeno acordo? Você me dará as 500 libras que trouxe e essas lindas pérolas que lhe pendem das orelhas, e eu entregarei a promissória do Sr. Rivenhall, e ficaremos ambos satisfeitos.
Sophy riu.
— Imagino que o senhor ficasse mais do que satisfeito! — ironizou. — Eu lhe darei as 500 libras pela promissória e o anel, e nada mais.
— Mas talvez tenha pais amantíssimos que estariam dispostos a me dar mais, muito mais para tê-la de volta, viva e ilesa, minha senhora!!!
Ele levantou-se da cadeira enquanto falava, contudo sua desagradável visitante, em vez de mostrar um alarme decente, apenas retirou a mão direita do regalo. Nela empunhava uma arma pequena, porém muito útil.
— Por favor, sente-se de novo, Sr. Goldhanger! — ordenou. O Sr. Goldhanger sentou-se. Acreditava que nenhuma mulher pudesse suportar sequer os estrondos ruidosos, quanto mais puxar gatilhos, mas agora tinha visto mais que o suficiente de Sophy para colocar sua crença à prova. Suplicou-lhe que não fosse tola.
— Não precisa ficar com medo, pensando que não sei como manejar armas — disse-lhe Sophy tranquilamente. — Sou uma atiradora bastante satisfatória. Talvez deva lhe dizer que passei algum tempo na Espanha, onde, é claro, existem muitas pessoas desagradáveis, tais como bandidos. Meu pai ensinou-me a atirar. Não sou tão boa atiradora como ele, mas a esta distância garanto que faço uma bala atravessar qualquer parte da sua pessoa, à minha escolha.
— Está tentando assustar-me — disse o Sr. Goldhanger, queixoso —, mas não me assusto com armas em mãos de mulheres, e até sei que não está carregada!
— Bem, se sair dessa cadeira, vai descobrir que ela está carregada — replicou Sophy. — Poderá estar morto, mas creio que saberá como aconteceu.
O Sr. Goldhanger soltou uma risada nervosa.
— E o que aconteceria a você? — ele perguntou.
— Não julgo que muita coisa acontecesse comigo — respondeu ela. — E não posso imaginar como isso interessaria ao senhor depois de estar morto. Entretanto, se acontecer, lhe direi exatamente o que eu diria aos oficiais de justiça.
Esquecendo sua urbanidade, o Sr. Goldhanger, de mau humor, afirmou que não queria ouvir.
— Sabe de uma coisa — disse Sophy, fazendo uma ligeira carranca —, não posso deixar de pensar que seria uma coisa muito boa se eu afinal atirasse no senhor. Não era a minha intenção quando vim para cá, porque naturalmente não aprovo assassinatos, mas vejo agora que é um homem muito perverso e não posso deixar de perguntar a mim mesma se uma pessoa realmente corajosa não o mataria já, livrando o mundo de alguém que tem causado tanto mal.
— Largue essa arma e falemos de negócios! — o Sr. Goldhanger rogou-lhe.
— Não há mais nada para falar, e me sinto muito mais confortável com a arma na mão. Dê-me o que vim buscar ou irei a Bow Street me queixar de que tentou raptar-me.
— Minha senhora — disse o Sr. Goldhanger num tom lamuriento —, sou apenas um pobre homem! A senhora...
— Estará muito mais rico quando eu lhe devolver suas 500 libras — frisou Sophy.
Ele animou-se, pois de fato tinha-lhe parecido, por alguns minutos, que talvez fosse forçado a esquecer até dessa quantia.
— Muito bem — disse. — Não desejo nenhum desentendimento, portanto devolverei a promissória. O anel não posso devolver, porque me foi roubado.
— Nesse caso — declarou Sophy — irei mesmo a Bow Street, porque estou convencida de que eles não vão acreditar nisso mais do que eu acredito. Se não o tem, deve tê-lo vendido, e isso significa que pode ser processado. Perguntei a um joalheiro dos mais conceituados, esta manhã mesmo, o que reza a lei sobre artigos penhorados.
O Sr. Goldhanger, revoltado com esse conhecimento da lei pouco feminino, lançou-lhe um olhar cheio de ódio e disse:
— Eu não o vendi!
— Não vendeu e tampouco lhe foi roubado. Suponho que esteja numa dessas gavetas da escrivaninha, juntamente com a promissória, pois não posso imaginar por que o senhor teria comprado uma peça tão bonita, a menos que fosse para guardar objetos de valor. E pode ser que o senhor até conserve uma arma de sua propriedade nela, as sim talvez eu deva avisá-lo, caso puxe o gatilho mais rápido do que eu, que deixei uma carta em casa informando meus pais exatamente onde eu ia e com que objetivo.
— Se eu tivesse uma filha como você, ficaria envergonhado de reconhecê-la! — berrou o Sr. Goldhanger, com real sinceridade.
— Tolice! — replicou Sophy. — Provavelmente ficaria muito orgulhoso e me ensinaria a bater carteiras. E se tivesse uma filha como eu, ela teria esfregado este chão para o senhor e lavado sua camisa, assim estaria com aparência muito melhor do que está agora. Por favor, não me faça esperar mais, pois me cansei de conversar com o senhor, na verdade eu o achei, desde o início, um rematado chato!
O Sr. Goldhanger já fora chamado de canalha, sanguessuga, trapaceiro, demónio, asqueroso e inúmeros nomes diferentes e cruéis, mas jamais alguém lhe dissera que era um rematado chato, e jamais alguma de suas vítimas o olhara com tal divertido desprezo. Teria gostado de apertar seus dedos longos e ossudos em torno do pescoço de Sophy e estrangulá-la lentamente até a morte. Mas Sophy empunhava uma arma e por isso, em vez de matá-la, destrancou uma gaveta da escrivaninha e, com mãos trémulas, procurou o que queria. Atirou um anel e um retângulo de papel sobre a mesa, rugindo:
— O dinheiro! Me dê o meu dinheiro!
Sophy apanhou a promissória e conferiu; depois colocou-a, juntamente com o anel, dentro do regalo, e retirou dessa bolsa conveniente um maço de notas, depositando-o sobre a mesa.
— Aqui está — disse ela.
Mecanicamente, ele começou a contar. Sophy levantou-se.
— E, agora, por favor, queira ter a gentileza de virar a sua cadeira com o espaldar para a porta.
O Sr. Goldhanger chegou quase a rosnar, porém aquiesceu ao pedido, dizendo por sobre o ombro:
— Não precisa ter medo! Fico muito satisfeito de vê-la partir! — acrescentou, tremendo de raiva. — Prostituta!
Sophy deu uma risadinha. Introduzindo a chave na fechadura e dando a volta, disse:
— Bem, acredito de fato que preferiria ser prostituta a ser um nabo envolto em lençol para assustar meninos bobos!
— Nabo? — repetiu o Sr. Goldhanger. — Nabo...?
Mas sua indesejada visitante se fora.
XII
NAQUELA NOITE, Hubert subia as escadas para o seu quarto quando encontrou a prima descendo do andar da sala de aula. Ela exclamou:
— Hubert! Você é a pessoa que eu queria! Espere, tenho algo para lhe dar! — Ela entrou no seu quarto e voltou alguns minutos depois com um ar malicioso, dizendo: — Feche os olhos e estenda a mão!
— Ora, Sophy, é alguma coisa horrível? — perguntou, desconfiado.
— É claro que não!
— Bem, você está com uma expressão de alguém que pretende pregar uma peça — disse ele. Contudo, obediente, fechou os olhos e estendeu a mão. Sophy depositou nela o anel e a promissória, e disse que agora ele podia abrir os olhos. Hubert assim o fez e sentiu um choque tão grande que deixou cair o anel. — Sophy!
— Que criatura descuidada você é! — disse ela. — Não deixe de queimar esse tolo pedaço de papel! Quase fiz isso eu mesma, pois estou certa de que seria bem próprio de você deixá-lo no bolso, mas por outro lado achei que gostaria de se assegurar que realmente foi recuperado.
Ele abaixou-se para apanhar o anel.
— M-mas, Sophy, como... quem... como isto veio parar nas suas mãos?
— Foi-me entregue pelo seu Sr. Goldhanger, é claro.
O jovem soltou um grito sufocado.
— Obteve do... Você não foi à casa daquele velho demónio! Não poderia fazer isso!
— Sim, fiz. O que me impediria?
— Santo Deus! — exclamou. Agarrou-a pelo pulso e perguntou com voz áspera: — Por que ele cedeu a você? Diga-me, pagou-lhe o dinheiro que eu devia?
— Ora, não pense mais nisso! Por casualidade eu tinha 500 libras comigo, e você me pagará algum dia, suponho. Não há necessidade de ficar tão chocado, seu menino tolo!
— Sophy, não posso admitir isso! — disse, com voz estrangulada. — Além do mais, ele me emprestou o dinheiro a 15 por cento ao mês e sei muito bem que jamais iria desfazer-se da minha promissória por um níquel a menos do que lhe era devido! Sophy, diga-me a verdade!
— Eu consegui isso. É claro que ele não gostou muito, mas foi obrigado a fazer o que eu queria, porque lhe disse que iria a Bow Street se ele se recusasse. Acho que tinha razão a respeito dele, Hubert! Provavelmente negocia com todo ladrão de Londres, porque no momento em que fiz a ameaça pude notar como ficou inquieto, portanto é certo que ele não deseja de modo algum chamar a atenção dos magistrados.
— Goldhanger deixou-se intimidar a ponto de lhe entregar estas coisas? Goldhanger? — perguntou, incrédulo.
— Bem, que mais ele poderia fazer? Eu lhe disse que era ridículo supor que algo muito horrível acontecesse a você, se o caso fosse descoberto; e ele sabia que se eu chegasse a ir a Bow Street, ele jamais conseguiria reaver um centavo do seu dinheiro.
— Você com aquele velhaco nojento! Não ficou com medo, Sophy? — perguntou, admirado.
— Não, nem um pouco. — Depois acrescentou, justificando-se: — Sabe, eu não tenho um pingo de sensibilidade! Sir Horace diz que é muito chocante, e principalmente nada feminino. Mas, para ser sin-cera, achei Goldhanger uma pessoa ridícula. Decididamente fiquei com muito mais medo de El Moro! Um guerrilheiro e um patife horroroso. Certa noite ele e seus homens entraram em nossa casa à força na au-sência de Sir Horace... mas isso não tem importância! Pessoas que ficam contando suas aventuras a vida inteira são as mais tediosas!
— Sophy, ele poderia ter-lhe feito alguma maldade...!
— Podia, mas eu levei minha pistola, por isso logo mudou de ideia! — ela explicou.
— Sophy, Sophy, o que devo fazer? — exclamou Hubert.
— Nada. Não restou nada para fazer. Devo ir ou me atrasarei para o jantar. Não esqueça de queimar esse papel!
Ela desapareceu em seu quarto, interrompendo bruscamente os agradecimentos e protestos gaguejantes, e visto que não voltou a vê-la sozinha naquela noite, não pôde repeti-los. Tinha um compromisso com um grupo de amigos, e eles o acharam numa disposição de espírito insociável. Na verdade seus pensamentos estavam num melancólico tumulto, e embora o alívio por se ver livre da dívida com Goldhanger tivesse sido irresistível a princípio, esse alívio foi superado, tão logo ele teve tempo para refletir no assunto, por uma sensação de culpa das mais constrangedoras. Que Sophy, uma simples mulher (e mais jovem do que ele), não só liquidasse sua dívida, como também fosse visitar, em benefício dele, uma pessoa como Goldhanger, o fazia contorcer-se na cadeira. Seu esforço para se distrair pouco fez para clarear suas ideias, e quando voltou para Berkeley Square, nas primeiras horas da manhã, ele não estava mais próximo da solução da sua nova dificuldade do que estivera no começo da noite. A única ideia coerente em sua cabeça era que, de um modo ainda impreciso, ele tinha que pagar 500 libras à sua prima imediatamente.
No dia seguinte, o Sr. Rivenhall voltou de Leicestershire, chegando em Berkeley Square numa hora meio infeliz. Jane Storridge, cuja vigilância Sophy não levava em conta suficientemente, não só descobrira que os pingentes de diamantes estavam faltando na caixa de jóias da sua patroa, como também lançara um tamanho grito de protesto no alojamento dos criados que a Sra. Ludstock, a governanta, se sentiu na obrigação de informar a Lady Ornbersley que, embora não soubesse o que os criados de hoje pretendiam, ela prestaria juramento de morte que nenhuma das criadas sob seu controle tocara nos brincos da Srta. Sophy; e, além disso, qualquer um poderia ser perdoado por pensar que a criada — digna desse nome — de uma dama tomasse mais cuidado com os objetos de valor de sua patroa do que a Srta. Storridge parecia supor necessário. Dassett também desejava associar-se ao ponto principal dessas observações, e sua atitude era tão ofendida que Lady Ornbersley se perturbou muito ao compreender que se encontrava à beira de uma calamidade doméstica. Mandou chamar Jane Storridge, e o Sr. Rivenhall chegou a tempo de ouvir o final de um diálogo entre os três serviçais, diálogo esse de uma urbanidade tão gelada, tão encrespada com insinuações veladas, que aterrorizou a pobre Lady Ornbersley. Antes que ele tivesse a oportunidade de exigir uma explicação, a própria Sophy entrou, vestindo seu traje de passeio e dizendo que ela e Cecília iam sair para fazer algumas compras: por acaso a tia tinha alguma incumbência para elas? Lady Ornbersley recebeu-a com alívio, e imediatamente lhe perguntou por que ela não havia revelado o desaparecimento dos brincos.
Sophy manteve-se impassível, porém um ligeiro rosado subiu-lhe às faces. Respondeu com perfeita calma:
— Não desapareceram brincos meus, querida senhora. De que se trata?
— Oh, meu bem, sua criada queixou-se de que seus pingentes de diamantes desapareceram da sua caixa de jóias, e não vou admitir que aqui aconteça uma coisa dessas por nada deste mundo!
Sophy inclinou-se para beijá-la no rosto.
— Tia Lizzie, lamento muito! É tudo culpa minha, fui tão estúpida ao esquecer de avisar Jane! Não estão desaparecidos. Levei-os ao joalheiro para que os limpassem e reajustassem. Um dos ganchos esta-va um pouco frouxo. Que tolice preocupar minha tia, Jane, antes de me perguntar primeiro se eu sabia onde estavam os brincos!
— Limpá-los? — exclamou a Srta. Storridge. — Ora, Sophy, como se eu não tivesse levado todas as suas jóias para Rundell & Bridge para serem limpas quando viemos para Londres!
— Certo, mas na noite do baile achei que os pingentes pareciam muito opacos — respondeu Sophy. — Pode ir agora, Jane; minha tia já ficou bastante aborrecida!
Tinha perfeita noção dos olhos do primo fixos no seu rosto, e um olhar de relance em sua direção informou-a de que havia neles uma desagradável expressão indagadora. Contudo, ele nada disse, portanto livrou-se da criada, assegurou-se de que a tia não tinha nenhuma incumbência a lhe dar e foi embora, confiando, com devoção, que nem ela nem o Sr. Rivenhall notassem a ausência definitiva dos seus brincos de diamantes.
Contudo, no dia seguinte, no momento exato em que ela se sentava para fazer um lanche ligeiro com Lady Ombersley, Cecília, Selina e Hubert, o Sr. Rivenhall entrou na sala e entregou-lhe um pequeno embrulho.
— Seu brincos, prima — disse ele brevemente. — Creio que vai achar que, agora, limparam-nos a contento.
Por uma vez na vida, Sophy perdeu de todo o poder da fala. Felizmente, ele não pareceu esperar que ela dissesse alguma coisa, pois voltou-se para cortar uma fatia de presunto e se pôs a conversar com a mãe, desejando saber se, nesse ano, ela gostaria de passar uma parte do verão em Brighton. Lady Ombersley dirigiu a pergunta a Sophy. Brighton não fazia bem à sua constituição física, mas o Regente tornara a estação de veraneio tão elegante que grande número de pessoas ilustres afluía para lá em junho, e, se Sophy quisesse, ela alugaria uma casa para uma parte do verão.
Cecília, que tinha razões próprias para querer permanecer na capital, disse:
— Oh, mamãe, sabe que nunca passa bem em Brighton! Por favor, não vamos! Sem dúvida não há nada mais tolo do que aquelas festas no Pavilhão, e o excessivo calor nos quartos lhe tira totalmente o ânimo!
Imediatamente, Sophy negou qualquer desejo de visitar o local; e o resto da refeição passou-se em discutir as atrações rivais de Ombersley, Thorpe Grange e Scarborough, com algumas reminiscências de Lady Ombersley sobre um verão passado em Ramsgate antes do patrocínio do Regente a Brighton, o que lançara aquela estação de veraneio inteiramente à obscuridade.
Quando se levantaram da mesa, Hubert, que durante certo tempo estivera tentando infrutiferamente ficar a sós com a prima, perguntou abruptamente:
— Está ocupada, Sophy? Gostaria de caminhar um pouco no jardim?
— Obrigada! Daqui a pouco, talvez! Charles, posso trocar duas palavras com você, quando for possível?
Ele encontrou seu olhar direto, sério.
— Perfeitamente! Agora, se desejar.
Lady Ombersley pareceu vagamente surpresa; Selina exclamou:
— Segredos! Gostaria de saber: estão maquinando uma conspiração? Não podemos saber?
— Nada tão excitante — respondeu Sophy rapidamente. — Apenas Charles executou uma incumbência para mim.
Ela o acompanhou pelo vestíbulo até a biblioteca. Não era de ficar com rodeios; nem bem ele fechou a porta, ela perguntou direta-mente:
— Por favor, diga-me o que isto significa! Como soube que eu vendera meus brincos, e por que os comprou — como imagino — de novo?
— Comprei-os porque só posso imaginar duas razões pelas quais você os teria alienado.
— É mesmo? E quais podem ser, primo Charles?
— Nunca tive permissão para ver as contas do seu baile, porém tenho certa experiência nesses assuntos, e possivelmente posso fazer um cálculo aproximado do total. Se essa for a sua explicação, não pre-cisa de nenhuma outra. Desde o início, as providências não foram do meu agrado, sabe muito bem.
— Meu querido Charles, tenho muitas despesas das quais você não sabe absolutamente nada. Está sendo absurdo, saiba disso!
— Não creio que tenha despesas que seu pai não estivesse preparado para pagar.
Ela ficou calada por um momento. Depois disse:
— Ainda não me contou qual é a segunda razão que lhe ocorreu.
Ele lançou-lhe um olhar sob as sobrancelhas franzidas.
— Meu receio é que tenha emprestado o dinheiro a Hubert.
— Santo Deus! Nem pense nisso! — ela exclamou, rindo. — Diga-me, por que eu faria tal coisa?
— Espero que não o tenha feito. O jovem idiota estava em Newmarket com um grupo de sujeitos que eu gostaria de ver bem longe. Ele perdeu uma grande importância por lá?
— Sem dúvida ele contaria a você se tivesse perdido, em vez de contar a mim!
Charles encaminhou-se até a escrivaninha e, um tanto distraído, arrumou alguns papéis que ali estavam.
— Talvez estivesse com medo de me contar — disse. Ergueu os olhos. — Foi isso?
— Precisei do dinheiro por razões que não vou lhe contar — ela respondeu. — Devo salientar-lhe, Charles, que ainda não respondeu à minha outra pergunta. Como adivinhou que eu tinha vendido os brincos?
— Não foi uma suposição. Eu sabia.
— Como é possível? Não estava escondido na loja, presumo!
— Não, eu não estava. Mas ontem, ao voltar para casa, dei uma passada em Brook Street e vi a Srta. Wraxton. — Ele hesitou, e olhou para a prima de novo. — Deve compreender que a Srta. Wraxton achou que devia transmitir-me o seu receio de que você estaria em alguma dificuldade! Ela esteve na Rundell & Bridge com Lady Brinklow enquanto você efetuava essa venda. Parece que Bridge não fechou a porta do seu escritório como devia; a Srta. Wraxton reconheceu sua voz e não pôde deixar de ouvir algo que você disse a Bridge.
A mão dela, pousada no espaldar de uma cadeira, fechou-se com força na borda de madeira envernizada, porém tornou a relaxar depois de uns instantes. Num tom de voz em que fora banida toda a emoção, ela disse:
— Não há limite para a solicitude da Srta. Wraxton. Quanta gentileza da parte dela ter-se interessado por meus assuntos! Espero que tenha sido a sua sensibilidade que a impediu de falar comigo em vez de com você.
Ele corou.
— Precisa lembrar-se de que estou noivo da Srta. Wraxton. Nessas circunstâncias, ela achou seu dever mencionar-me o fato. Por não haver entre vocês um bom relacionamento, do tipo que possibilitaria a ela pedir-lhe uma explicação.
— Bem, isso sem dúvida é certo — replicou Sophy. — Nem entre nós, meu querido primo, há esse tipo de relacionamento! E se tem ideia de me pedir uma explicação sobre algo que resolvi fazer, deixe-me dizer-lhe que pode ir para o inferno!
Charles sorriu.
— Então talvez seja por isso que Eugenia não se arriscou a falar com você sobre o assunto, pois teria ficado muito chocada se a mandasse para o inferno! Sempre fala como seu pai quando perde a calma, Sophy?
— Não, nem sempre. Queira perdoar-me! Mas foi realmente intolerável!
— Não nego, mas eu não lhe teria pedido uma explicação se você não tivesse pedido esta entrevista.
— Você não devia ter dado atenção à Srta. Wraxton! Quanto a comprar novamente meus brincos, santo Deus, em que apuro você me colocou!
Enquanto ela falava, a porta abriu-se atrás dela e Hubert entrou no aposento. Parecia muito pálido, contudo perfeitamente determinado, e disse aos arrancos:
— Perdoem-me, mas estive querendo falar com Sophy o dia todo, e... e com Charles! Por isso, eu vim!
O Sr. Rivenhall permaneceu mudo, apenas lançou-lhe mais um dos seus olhares penetrantes. Sophy voltou-se e estendeu a mão.
— Sim, por favor, entre, Hubert! — disse ela, sorrindo.
Ele tomou-lhe a mão e apertou-a, tremendo um pouco.
— Cecília me contou sobre os seus brincos, e toda a confusão... Sophy, foi para aquilo! Pois se foi mesmo, de qualquer maneira não posso e não vou admitir! Eu preferiria bem mais contar tudo a Charles!
A mão dela retribuiu ao aperto antes de soltá-la. Depois disse na sua maneira tranquila de falar:
— Bem, você sabe, Hubert, sempre achei que cometia um erro não contando a Charles, pois o Sr. Wychbold me disse certa vez que a mais ninguém exceto Charles, de bom grado, recorreria numa dificuldade. E se ele podia confiar em Charles, quanta razão mais você devia ter para fazer o mesmo! Estou convencida de que ficarão melhor sem a minha presença, portanto vou deixá-los.
Não olhou para o Sr. Rivenhall em busca do efeito que suas palavras teriam causado, mas caminhou rapidamente para fora da sala. Haviam causado um efeito; o Sr. Rivenhall disse em voz baixa:
— Creio que já sei do que se trata, mas diga-me! Newmarket?
— Pior do que isso! Oh, sim perdi em Newmarket, mas é a parte menos importante! — respondeu Hubert.
O Sr. Rivenhall indicou uma cadeira com um gesto de cabeça.
— Sente-se. Qual é a parte pior?
Hubert não se aproveitou desse convite. A apreensão o fez assumir um tom beligerante que de modo algum expressava seus sentimentos.
— Bem pode avaliar que não lhe contei o montante das minhas dívidas, no ano passado!
— Jovem tolo! — comentou o irmão, sem entusiasmo.
— Sei disso, mas você me disse... Oh, bem, não tem importância falar sobre isso agora!
— Você já devia saber que quando estou zangado nem tudo que digo tenho a intenção de fazer. Entretanto, se minha língua deve levar a culpa, lamento. Continue!
— Sei que minha obrigação era ter-lhe contado — murmurou Hubert. — E oxalá tivesse, em vez de... — Ele parou, tomou fôlego e recomeçou: — Achei que talvez fosse capaz de resolver sozinho. Eu... você não vai gostar disso! Não precisa me dizer que estava errado, pois já sei! Mas outros sujeitos...
— Bem, então não direi que estava errado. Mas permita-me saber do que se trata, pois ainda continuo no escuro!
— Fui com... um homem que conheço... a... a um lugar em Pall Mall. E com outro em St. James's Place. Roleta e dados franceses! E perdi uma quantia enorme de dinheiro!
— Oh, meu Deus! — o Sr. Rivenhall exclamou asperamente. — Já não tivemos o bastante a respeito de jogo em nossa família?
A amargura em sua voz, que de repente se tornara ríspida, fez Hubert estremecer e escudar-se por trás da barreira da casmurrice.
— Bem, sabia que você ficaria furioso, mas não vejo por que foi tão ruim assim! Tomara eu não tivesse uma sorte tão abominável, afinal todo mundo joga.
Por um instante pareceu que o irmão ia dar uma resposta mordaz, mas ele se controlou, foi até a janela e ficou olhando para fora com o cenho franzido. Depois de uma pausa, perguntou abruptamente:
— Sabe qual é o montante das dívidas de jogo do nosso pai?
Hubert sentiu-se surpreso, pois o assunto jamais fora mencionado entre eles. Respondeu:
— Não. Isto é, sei que deve ter sido bastante pesado, é claro, mas jamais soube da importância exata.
O Sr. Rivenhall contou-lhe.
Fez-se um silêncio opressivo. Hubert rompeu-o finalmente.
— Mas... mas... Meu Deus, Charles! Você... você não está me pregando uma peça, está?
O Sr. Rivenhall soltou uma risada breve.
— Mas... Charles, você não pagou tudo isso, pagou?
— Quase. Liquidei uma parte, mas a propriedade ainda está sobrecarregada demais. Não preciso envolver você nisto. Agora que nosso pai passou o controle de tudo às minhas mãos, tenho alguma esperança de tirar a família do mar de dívidas. Porém entrar em acordo com credores, passar a vida maquinando recursos orçamentários com o nosso administrador é algo ruim como o diabo!
— Santo Deus, eu diria que sim, sem dúvida! Ouça, Charles, lamento muitíssimo ter acrescentado mais problemas!
O Sr. Rivenhall voltou para a escrivaninha.
— Sim, eu sei. Sua dívida não é grande coisa, mas se o jogo estiver em seu sangue também...
— Ora, não está! Não precisa recear isso, pois nunca me importei com cartas, e posso garantir que não tive prazer em ir àquelas mal ditas espeluncas! — Deu uma volta pelo aposento, um franzido concentrando-se em sua testa. Parou de repente e exclamou: — Por que não me contou? Ora bolas, já não sou criança! Devia ter me con tado!
O Sr. Rivenhall fitou-o, esboçando um meio sorriso.
— Sim, talvez devesse — admitiu brandamente. — Porém, quanto menos pessoas souberem, melhor. Nem nossa mãe sabe de tudo.
— Mamãe! De fato ela não sabe mesmo! Eu julgaria que não! Mas eu tinha o direito de saber, em vez de me deixarem continuar como se... É bem próprio de você, Charles, arcar com tudo, e imaginar que ninguém pode fazer alguma coisa exceto você mesmo! Ouso afirmar que deve haver uma dúzia de maneiras de eu poder ajudá-lo! Parece-me que devo deixar Oxford imediatamente e procurar uma colocação adequada ou entrar para o exército... Não, isso não serve porque teria de comprar um posto para mim, e mesmo se não me unisse ao regimento de cavalaria ou à guarda real...
— Certamente que não servirá! — interrompeu o irmão, divertido, e um tanto comovido. — Você me obsequiará ficando onde está! Ainda não chegamos às últimas. Ora, seu idiotinha simplório, o que imagina ser meu objetivo senão providenciar para que você, Theodore e as meninas não sofram as consequências da maldita loucura de nosso pai? Se resolver ajudar-me na administração da propriedade, pode fazê-lo, e ficarei grato, pois Eckington está ficando sem condições. Não posso me desfazer dele, tem estado conosco há tanto tempo que ouso afirmar que isso partiria seu coração, mas é de bem pouca utilidade e ainda não deposito um grau suficiente de confiança no jovem Badsey. Você tem aptidão para negócios?
— Não sei, mas aprendo muito rapidamente! — respondeu Hubert, com determinação. — Quando eu vier para as grandes férias, você pode me ensinar. E, lembre-se, Charles! Sem me ocultar nada!
— Muito bem, não ocultarei. Mas você ainda está me ocultando alguma coisa, sabe disso. Quando perdeu todo esse dinheiro? Sem dúvida não foi ultimamente, não é?
— No Natal. Bem, seria aconselhável eu confessar tudo minuciosamente! Procurei um agiota infame e pedi a ele 500 libras emprestadas por seis meses. Eu achava que recuperaria cada níquel desse dinheiro e, além desse, mais ainda, em Newmarket. Mas o maldito matungo não correu! — Viu a expressão do irmão e disse: — Não precisa ficar com essa cara! Juro que jamais farei isso de novo enquanto viver! É claro que eu devia ter vindo primeiro a você, mas...
— Você devia ter vindo a mim, e não o fazer deve ter sido muito mais culpa minha do que sua!
— Óh, bem, isso não sei! — Hubert respondeu, sentindo-se inquieto. — Suponho que se eu estivesse num termo de relacionamento melhor com você, o teria feito. Desde o princípio Sophy disse que eu deveria proceder assim, e Deus do céu, se eu tivesse tido a mínima ideia do que ela pretendia fazer, eu me dirigiria a você diretamente!
— Então você não lhe pediu o dinheiro?
— Santo Deus, não! Charles, você não pode imaginar que eu pedisse dinheiro emprestado a Sophy, não é?
— Não imaginei. Mas nem imaginei que nosso relacionamento fosse tão ruim que... Bem, não importa! Como Sophy veio a saber disso, e se você não lhe pediu dinheiro emprestado, por que Sophy vendeu os brincos?
— Ela calculou que eu estava completamente descontrolado. Obrigou-me a contar, e quando eu disse que preferiria não contar nem uma palavra a você, ofereceu-se para me emprestar o dinheiro. É claro que recusei! Mas ela soube onde Goldhanger morava, e, sem me dizer o que pretendia fazer, foi vê-lo e obteve de volta a minha nota promissória e meu anel. Tive de dar como garantia a esmeralda do vovô Stanton-Lacy, compreenda. Não sei como ela fez, pois jura que não pagou ao velho demónio um centavo de juros. Ela é uma moça formidável! Mas não consegui engolir isso, como pode ver!
— Sophy foi à casa do agiota? — repetiu o Sr. Rivenhall, incrédulo. — Tolice! Ela não pode ter feito uma coisa dessa!
— Bem, ela não é de contar lorotas, e foi o que ela disse! — declarou Hubert.
Poucos minutos depois, Sophy, que estava lendo no Salão Amarelo, foi interrompida pela chegada do Sr. Rivenhall, que entrou e fechou a porta atrás de si, dizendo sem preâmbulos:
— Parece que estou lhe devendo muito, prima. Isso mesmo, Hubert contou-me tudo. É difícil encontrar o que devo lhe dizer.
— Não está me devendo absolutamente nada — respondeu Sophy. — Já me restituiu os brincos! Não há nada a ser dito, realmente! Sabe que a Srta. Wraxton está na sala de estar com sua mãe? E também Lord Bromford, razão pela qual procurei refúgio aqui.
— Há muita coisa para ser dita, sim — ele respondeu, contestando. — Oxalá me tivesse contado!
— Estou convencida de que não poderia esperar, seriamente, que eu traísse a confiança de Hubert. Contudo, não deve pensar que o encorajei a conservá-lo na ignorância. Aconselhei-o, na verdade, a contar-lhe o apuro em que se encontrava, porém ele parecia estar com tanto medo que eu não poderia insistir. — Notou a expressão ligeiramente rígida do rapaz e acrescentou: — Creio que geralmente é assim, entre irmãos, quando há uma boa diferença de idade. E você é daqueles que de vez em quando inspiram temor, estou certa?
— Parece que é isso, realmente. Não pense que eu não esteja grato a você, Sophy! Não sei como descobriu o apuro em que ele se envolveu.
— Oh, não foi tão difícil! Desde que cheguei a Londres, o pobrezinho tem estado com uma aparência de quem anda perturbado com pesadelos! Depois do seu regresso de Newmarket, evidenciou-se claramente que algo de natureza catastrófica devia ter-se abatido sobre ele. Hubert não queria confiar em mim, porém uma ameaça de contar a você sobre minhas desconfianças fez vir à tona toda a ridícula história.
Ele olhou-a com uma expressão profunda e brilhante.
— Sei muito bem que eu é quem deveria ter percebido que havia algo afligindo a mente de Hubert!
Obviamente, ele estava bastante mortificado; ela disse:
— Você tem muitas outras coisas em que pensar, percebe-se. Os homens não observam com a mesma rapidez das mulheres. Estou muito contente por ele ter-lhe contado tudo. Não fique estendendo muito o assunto! Estou certíssima de que ele aprendeu uma lição e não se arriscará a esquecê-la.
— Creio que tem razão. Habituei-me a considerá-lo volúvel como... Bem, habituei-me a considerá-lo volúvel, porém ele não me dava motivos para alimentar a esperança de que eu estava enganado! Contudo, Sophy, ainda não sei como aconteceu toda essa história deplorável! Quem você contratou?
— Ninguém, palavra de honra! — ela garantiu-lhe imediatamente. — Considerei a questão em seus mínimos detalhes, e, embora estivesse muito inclinada, no início, a consultar o advogado de meu pai,logo compreendi que não conviria. Não havia ninguém a quem pudesse recorrer sem divulgar a participação de Hubert no negócio. Portanto resolvi agir sozinha!
— Sophy, não pode ter ido até aquela criatura sozinha.
— Sim, fui. Oh, sei que foi horrivelmente insensato e audacioso da minha parte, mas pensei que ninguém jamais saberia! Além disso pude refletir quanto você reprovaria que o caso de Hubert se tornasse conhecido fora do nosso círculo mais íntimo.
Ela viu que ele a fitava com visível descrença, e levantou as sobrancelhas de maneira indagadora.
— Hubert me contou o bastante sobre Goldhanger para tornar perfeitamente claro que tipo de homem ele é! — disse Charles. — Não me diga que ele, de boa vontade, devolveu-lhe a nota promissória e um objeto valioso que era a garantia do capital da dívida!
Ela sorriu.
— De muito má vontade! Mas imagine só a desvantagem em que ele estava! Emprestara dinheiro a um menor, e, se fosse a juízo, não receberia um níquel. Calculo que tenha ficado satisfeito por ver de novo seu dinheiro. No instante em que eu disse que iria a Bow Street — um palpite também — pude perceber que eu o inquietara. Meu querido Charles, o que Hubert achou naquela criatura para alarmá-lo, não consigo imaginar! Um papão para assustar crianças!
Com o cenho franzido, ele a observava atentamente.
— Isto me parece pura fantasia, Sophy! Pelo que deduzo, ele não era um agiota autorizado e sim um rematado velhaco! Você disse que ele não fez nenhum esforço para extorquir-lhe os juros?
— Não é bem isso, ele tentou assustar-me para que eu o pagasse ou lhe desse meus brincos de pérolas. Mas Hubert avisara-me com que espécie de pessoa eu teria de lidar, e tomei a precaução de levar minha pistola.
— O quê?
Ela surpreendeu-se e tornou a erguer as sobrancelhas.
— Minha pistola — repetiu.
Novamente a humilhação dele exprimiu-se por descrença.
— Isto só pode ser tapeação! Gostaria que contasse a verdade! Não me peça que acredite que carrega uma pistola na bolsa! Pois eu lhe digo que nisso realmente não acredito!
Ela levantou-se rapidamente, com uma centelha no olhar.
— Deveras? Espere! Não me demoro mais do que uns minutinhos!
Movendo-se agilmente, ela saiu da sala, reaparecendo logo depois
com sua arma de prata na mão.
— Não acredita, Charles? Não mesmo? — ela perguntou.
Com olhos arregalados, ele olhava para a arma.
— Santo Deus! Você? — Estendeu a mão, como quisesse tirar a arma da mão dela, mas Sophy recuou.
— Cuidado! Está carregada! Impaciente, ele ordenou:
— Deixe-me ver!
— Sir Horace — disse ela, provocante — sempre me aconselhou a ser cuidadosa e jamais entregar a arma nas mãos de alguém que eu não estivesse perfeitamente convencida de que poderia confiar.
Por um momento estarrecedor, o Sr. Rivenhall, que não era um atirador comum, olhou-a atentamente. As emoções enclausuradas em seu peito levaram a melhor. Ele precipitou-se em direção à lareira e arrancou da bela peça de marcenaria um convite que fora metido num canto do grande espelho com moldura dourada.
— Mantenha isto erguido, fique parada aí e me dê essa arma! — ordenou.
Sophy riu e obedeceu, conservando-se imóvel, sem demonstrar o menor medo, mantendo as costas contra a parede e erguendo o convite para o lado.
— É melhor avisá-lo de que a arma dispara levemente para a esquerda! — disse ela friamente.
Ele estava pálido de raiva, uma raiva que bem pouco tinha a ver com a insignificante referência que ela fizera à sua capacidade de manejar uma pistola, porém, mesmo enquanto apontava a arma, ele pareceu, até certo ponto, controlar-se, pois tornou a abaixá-la e disse:
— Não posso! Não com uma pistola que não conheço!
— Medroso! — zombou Sophy.
Ele lançou-lhe um olhar de desagrado, avançou para arrancar o convite da mão dela, e meteu-o no canto de um quadro pendurado na parede. Com grande interesse, Sophy viu-o afastar-se para a outra extremidade da sala, virar-se, levantar bruscamente o braço e atirar. Uma explosão, ecoando no espaço limitado da sala, rompeu a quietude, e a bala, lascando uma borda do convite, enterrou-se na parede.
— Eu avisei que ela tendia para a esquerda — Sophy lembrou, examinando sua obra com olhos críticos. — Vamos recarregá-la para que eu possa lhe mostar o que eu consigo fazer?
Trocaram um olhar. De repente o Sr. Rivenhall deu-se conta da barbaridade do seu procedimento e pôs-se a rir.
— Sophy, sua... seu demónio!
Isso fez Sophy rir também; assim, quando um grupo de pessoas assustadas irrompeu na sala alguns minutos depois, elas apenas depararam com uma cena de alegria desenfreada. Lady Ombersley, Cecília, a Srta. Wraxton, Lord Bromford, Hubert, um dos lacaios e duas criadas, todos agrupados na soleira da porta, evidentemente na expectativa de contemplar os resultados de um terrível acidente.
— Eu podia matar você, Sophy! — exclamou o Sr. Rivenhall.
— Injusto! Eu lhe disse para fazer isso? — ela rebateu. — Querida tia Lizzie, não faça essa cara tão alarmada! Charles estava... apenas certificando-se de que minha pistola funciona bem!
A essa altura, os olhares da maioria do grupo descobriram o buraco na parede. Lady Ombersley, agarrando-se ao braço de Hubert em busca de apoio, perguntou debilmente:
— Enlouqueceu, Charles?
Ele olhava com expressão de alguém que tinha a consciência um pouco pesada pelo estrago que fizera.
— Devo ter enlouquecido, imagino. Contudo, o estrago logo será restaurado. Ela realmente dispara para a esquerda, Sophy. Daria um bocado para vê-la atirar! É uma pena que eu não possa levá-la ao Manton's!
— É a pistola de Sophy? — perguntou Hubert, muito interessado. — Santo Deus, Sophy, você é uma jovem perfeita! Mas o que deuem você, Charles para atirar aqui? Deve estar louco!
— Foi um acidente, é claro — manifestou-se Lord Bromford. — Um homem em seu juízo, o que não colocamos em dúvida no caso de Rivenhall, não dispara, de propósito, uma pistola na presença de se-nhoras. Minha prezada Srta. Stanton-Lacy, deve ter sofrido um sério abalo nervoso. Não poderia ser o contrário. Permite que eu lhe peça para repousar alguns instantes?
— Não sou uma criatura tão insignificante! — Sophy respondeu, seus olhos ainda transbordantes de riso. — Charles confirmará minhas palavras, se houver alguma honestidade nele, de que não dei um pio e nem tremi! Hábitos maus como esses, Sir Horace cortava pela raiz, dando-me um forte tabefe!
— Sem dúvida você é sempre um exemplo para todos nós! — disse a Srta. Wraxton, com ironia. — Só se pode invejar seu controle de ferro! Eu, pobre de mim, sou feita de matéria mais fraca e devo confessar que fiquei muito sobressaltada com esse barulho sem precedentes nesta casa. Realmente, não sei o que esteve fazendo, Charles. Essa é mesmo a pistola da Srta. Stanton-Lacy e ela exibia sua habilidade para você?
— Ao contrário! Fui eu quem atirou, e por infelicidade fora do meu alvo. Posso limpá-la para você, Sophy?
Ela sacudiu a cabeça e estendeu a mão para que Charles lhe devolvesse a arma.
— Obrigada, mas gosto de limpá-la e carregá-la eu mesma.
— Carregá-la? — Lady Ombersley perguntou com voz sufocada. — Sophy, não pretende carregar essa coisa horrível de novo, não é certo?
Hubert riu.
— Eu disse que ela era uma jovem formidável, Charles! Sophy, você sempre a mantém carregada?
— Sempre, pois como saber quando se vai precisar dela, e qual a utilidade de uma pistola vazia? Você também sabe que é uma tarefa delicada! Não nego que Charles possa fazer isso num instante, mas eu não!
Ele devolveu-lhe a arma.
— Se neste verão formos a Ombersley, precisamos disputar uma partida, você e eu — disse ele. Quando as mãos de ambos se encontraram, e ela pegou a arma, a dele agarrou-a pelo pulso e reteve-o por um instante. — Uma coisa indigna a que foi feita! — disse ele, num tom ligeiramente mais baixo. — Queira me perdoar... e obrigado!
XIII
NÃO ERA de supor que esse incidente fosse agradar a Srta. Wraxton. Parecia haver entre o Sr. Rivenhall e a prima um certo entendimento que de modo algum era do seu agrado; embora não estivesse apaixonada por ele — na verdade, teria considerado tal emoção decididamente indigna da sua posição —, resolvera ser sua esposa e era feminina o bastante para se ressentir ao vê-lo dar, por mínima que fosse, atenção a outra mulher.
A sorte não sorrira para a Srta. Wraxton. Já nos tempos escolares, ela estivera comprometida por contrato com um nobre de impecável linhagem e respeitável fortuna, que morrera vítima de um surto de varíola antes de ela alcançar idade para ser formalmente sua noiva. Nos primeiros anos em que chegara à idade de casar, diversos cavalheiros aceitáveis mostraram tímidas tendências de pretenderem sua mão, pois era uma jovem bonita, tinha um belo dote; contudo, por variadas razões, nenhum deles dera prova de coragem, como o irmão mais velho dela, Lord Orsett, um tanto vulgarmente dissera. O pedido do Sr. Rivenhall fora feito num momento em que ela começara a temer que ficaria na prateleira, e então ele fora aceito gratamente. Educada dentro dos mais rigorosos padrões de decoro, a Srta. Wraxton nunca metera ideias românticas indesejáveis na cabeça e não vacilara quando informou ao pai que estava disposta a aceitar a corte do Sr. Rivenhall. Lord Brinklow, que nutria a maior aversão por Lord Ombersley, certamente não teria tomado em consideração o pedido do Sr Rivenhall não fora a morte providencial de Mathew Rivenhall. Porém a fortuna do velho nababo não era algo a desprezar, mesmo pelo mais hipócrita dos pares. Lord Brinklow informara à filha que o pedido de Charles Rivenhall trazia consigo sua bênção; e Lady Brinklow, uma moralista até mais severa que o esposo, indicara claramente a Eugenia onde o seu dever se impunha e através de que meios poderia talvez desvencilhar Charles de sua incorrigível família.
Sendo discípula competente, a Srta. Wraxton, depois disso, não perdera oportunidade de apontar a Charles, da maneira mais diplomática, as faltas e as características comuns indesejáveis de seu pai e de seus irmãos e irmãs. Era movida pelos mais puros motivos; julgava que a qualidade volúvel de Lord Ombersley e de Hubert era prejudicial aos interesses de Charles; desprezava sinceramente Lady Ombersley e com igual sinceridade condenara o exagerado sentimento com que Cecília contemplava o matrimónio com o filho caçula e sem vintém da família Fawnhope. Parecia-lhe que desvencilhar Charles de sua família devia ser seu primeiro objetivo; contudo, às vezes seduzia-a entreter-se com a ideia de recuperar a família Ombersley do abismo de impropriedade em que caíra.
Ao comprometer-se com o Sr. Rivenhall numa ocasião em que ele se achava irritado com os excessos do pai, suas palavras gentis caíram em solo fértil. De natureza genuinamente triste, educada sob princípios áridos, só conseguia perceber as tendências mais deploráveis na busca do prazer de uma família animada. Charles, em luta ferrenha contra uma pilha colossal de contas, estava muito inclinado a pensar que ela tinha razão. Só depois da chegada de Sophy os seus sentimentos pareceram sofrer uma mudança. A Srta. Wraxton não podia enganar-se ao menosprezar a influência prejudicial de Sophy no cará-ter de Charles; e por não ser muito inteligente, apesar de seus estudos, Eugenia tentou neutralizar essa influência de várias maneiras diferentes que somente serviram para irritar o rapaz. Quando ela indagou se Sophy lhe dera uma explicação sobre a sua visita a Rundell & Bridge, e, fazendo justiça à prima, ele se sentiu obrigado a contar-lhe uma parte da verdade, o génio mau de Eugenia a inspirara a sublinhar ao noivo a absoluta irresponsabilidade do caráter de Hubert, sua semelhança com o pai, e a natureza imprudente da pretensa conduta bondosa de Sophy no caso. Mas o Sr. Rivenhall já sofria os ataques de sua própria consciência, e uma vez que, com todas as suas faltas, não era do tipo que negasse um resultado evidente, essas observações não encontraram bom acolhimento por parte dele. Disse:
— Eu sou o culpado. O fato de que quaisquer palavras impensadas que proferi tivessem feito Hubert sentir que tudo seria preferível a me confiar suas dificuldades, será uma acusação eterna que farei a mim mesmo! Tenho de agradecer à minha prima por me mostrar quanto errei! Espero que possa fazer melhor para o futuro. Não tive intencão... porém vejo agora como eu devia parecer insensível ao meu irmão. Tomarei muito cuidado para que o pobrezinho do Theodore não cresça pensando que ele me deve ocultar seus pecadilhos a qualquer preço!
— Meu querido Charles, asseguro-lhe que isso é um excesso de sensibilidade! — disse a Srta. Wraxton delicadamente. — Você não deve se considerar responsável pelo comportamento de seus irmãos!
— Engana-se, Eugenia. Sou seis anos mais velho que Hubert, e desde que eu soube — ninguém melhor — que meu pai jamais se preocuparia com qualquer um de nós, tornou-se meu dever cuidar dos maisjovens! Não tenho escrúpulos em dizer isto a você, pois sabe qual éa nossa situação!
Sem hesitar, ela respondeu:
— Estou convencida de que sempre cumpriu com seu dever! Tenho visto como procura introduzir na casa de seu pai padrões de comportamento mais correios, maior noção de disciplina e controle. Hubert pode ter duvidado dos seus sentimentos nesta ocasião, e justificar seu comportamento — o qual devo considerar bem chocante — seria muito inadequado. A intervenção da Srta. Stanton-Lacy, expressa, é claro, do modo mais generoso, resultou de um impulso e não parece que foi ditada pela sua consciência. Embora pudesse ter sido doloroso para ela, certamente era sua obrigação contar-lhe tudo e imediatamente. Ter liquidado as dívidas de Hubert daquele modo serviu apenas paraencorajá-lo em sua tendência ao jogo. Calculo que um momento de reflexão deve tê-la convencido disto, porém, ai de mim, com todas assuas boas qualidades, receio que a Srta. Stanton-Lacy não é muito dada a nutrir pensamentos racionais!
Ele fitou-a de olhos arregalados, e com uma expressão que ela não conseguia interpretar.
— Se Hubert tivesse confiado em você, Eugenia, você teria vindo me contar essa história? — ele perguntou.
— Sem dúvida alguma — ela respondeu. — Sem um minuto de hesitação.
— Sem um minuto de hesitação! — ele repetiu. — Embora fosse uma confidência, na crença de que você não o trairia?
Ela esboçou-lhe um sorriso.
— Isso, meu querido Charles, é uma grande tolice. Vacilar diante de tal fato, quando o dever da pessoa está tão claro, é algo com que não tenho paciência! Meu interesse pela carreira futura do seu irmão me teria convencido de que não existia outro caminho a não ser revelar a você sua má ação. Tendências desastrosas desse tipo devem ser reprimidas, e uma vez que seu pai, como você declarou, não se preo-cupa com...
Ele interrompeu-a sem se desculpar.
— Talvez esses sentimentos façam honra à sua razão, mas não ao seu coração, Eugenia! Você é mulher; talvez não entenda que uma confidência feita a você deve — deve — ser considerada sagrada! Eu disse que gostaria que ela tivesse me contado, mas não era a verdade! Eu não poderia desejar que alguém traísse uma confidência! Santo Deus, será que eu mesmo faria isso?
Essas palavras pronunciadas rapidamente provocaram um rubor nas faces da moça que disse bruscamente:
— Deduzo que a Srta. Stanton-Lacy... presumo, sendo ela também mulher... entende isto?
— Entende — ele respondeu —, entende realmente. Talvez seja um dos efeitos de sua educação! Que, aliás, é excelente! Talvez ela soubesse qual seria o resultado da sua atitude; talvez tenha ido resgatar Hubert apenas por motivo de generosidade. Não sei; não lhe perguntei sobre isso! O resultado foi feliz... muito mais feliz do que teria sido se ela me tivesse revelado tudo! Hubert é muito homem e não se prote-geu atrás da prima; confessou-me tudo!
Ela sorriu.
— Receio que sua parcialidade o torne um pouco cego. Depois de descobrir que a Srta. Stanton-Lacy tinha vendido seus brincos, você dedicou-se a descobrir o resto. Se eu não tivesse estado na posição de informá-lo dessa ocorrência, gostaria de saber se Hubert teria confessado. Teria?
Sério, ele respondeu:
— Tais palavras não lhe fazem honra! Não sei por que você deveria ser tão injusta com Hubert ou por que deveria estar sempre querendo que eu pense mal dele! Pensei mal dele e agora sei que eu estava enganado! A culpa foi minha; tratei-o como se ele ainda fosse uma criança e eu seu mentor. Eu deveria ter procedido melhor para levá-loa aceitar meus conselhos. Nada disso teria acontecido se ele e eu fôssemos mais amigos. Ele me disse: se tivéssemos um relacionamento melhor. ..! Você pode avaliar meus sentimentos ao ouvir isso do meu irmão! — Soltou uma meia risada. — Demolidor mesmo! O próprio Jackson não me teria derrotado mais completamente.
— Receio que se você pretende — disse a Srta. Wraxton, no seu tom de voz mais suave — usar o jargão do boxe, não poderei jamais esperar entendê-lo, Charles. Talvez sua prima, com seu conhecimento superior, aprecie essa linguagem!
— Não ficaria de modo algum surpreso! — ele retorquiu, irritado. Nem todo o seu comedimento impediu-a de dizer:
— Você parece nutrir uma consideração extraordinária pela Srta. Stanton-Lacy!
— Eu? — exclamou ele, estupefato. — Por Sophy? Santo Deus! Pensei que meus sentimentos para com ela fossem suficientemente conhecidos! Tomara Deus nos livrasse dela, contudo julgo que não pre-ciso ser tão preconceituoso a ponto de não ver suas boas qualidades!
Ela ficou mais calma.
— Não precisa, realmente, e espero que nem eu tampouco! Que pena ela não dar acolhimento à corte de Lord Bromford! Ele é um excelente homem, tem bom discernimento e uma sobriedade de juízo que devem exercer, imagino, um efeito benéfico em qualquer mulher. —Ela viu que ele a olhava com uma expressão muito divertida e acrescentou: — Pensei que estivesse inclinado a encorajar a corte dele, não está?
— Nada tenho a ver com quem Sophy se case! — ele respondeu. — Contudo, ela nunca aceitaria Bromford! Melhor para ele!
— Receio que Lady Bromford tenha a mesma opinião que você — replicou a Srta. Wraxton. — É amiga de mamãe, você sabe, e pudeconversar com ela sobre o assunto. Que mulher extraordinária! Esteve me contando sobre a fragilidade da constituição física de Lord Bromford e de quanto se preocupa com isso. Quanta pena me causou! Não se pode deixar de concordar com ela de que sua prima jamais daria uma boa esposa para o filho!
— A pior! — ele respondeu, rindo. — Só Deus sabe por que esse rapaz meteu na cabeça a ideia de se apaixonar por Sophy! Pode imaginar como Cecília e Hubert zombam dela por causa disso! Quanto às histórias que inventam sobre as aventuras dele nas índias Ocidentais, até minha mãe divertiu-se muito com elas! Ele é uma pessoa da mais absurda esquisitice!
— Não posso concordar com você — declarou ela. — E mesmo que concordasse, não poderia ouvir a não ser com tristeza a sensibilidade de um homem ser transformada em motivo de zombaria.
Essa censura teve o efeito de fazer o Sr. Rivenhall lembrar-se de um compromisso na vizinhança que o obrigou a uma partida imediata. Nunca se encontrara antes tão pouco de acordo com a noiva.
Por outro lado, jamais estivera em tal disposição afetiva pela prima, uma situação feliz que durou quase uma semana. O que o inspirou a satisfazer um desejo expresso por ela de ver Kemble representar. Embora não fizesse segredo do fato de achar insuportável o modo afetado do grande artista, e a estranha pronúncia incorreta que destruía seus brilhantíssimos arroubos teatrais, ele comprou um camarote no Covent Garden e acompanhou Sophy, juntamente com Cecília e o Sr. Wychbold. Sophy ficou um pouco desapontada com o ator, sobre o qual ouvira tantos elogios, porém a noite transcorreu muito agradável, terminando no sofisticado hotel de Henrietta Street, conhecido como a Estrela. No hotel, provando ser um excelente anfitrião, o Sr. Rivenhall reservara uma sala de refeições privativa e encomendara um jantar muito elegante. Seu humor estava tão amável, que ele nem mesmo fez uma observação ligeira sobre a atuação de Kemble. O Sr. Wychbold mostrou-se conversador e obsequioso, Cecília exibia sua maior beleza e Sophy, encantadora, manteve desde o início o fluxo da conversação rolando alegremente. De fato, Cecilia disse, quando mais tarde deu boa-noite ao irmão, que há vários meses não se divertia tanto.
— Nem eu — ele respondeu. — Não posso imaginar por que não saímos juntos com mais frequência, Cilly. Julga que nossa prima gostaria de ver Kean? Acho que ele está se apresentando em uma nova peça, no Lane.
Cecilia não tinha dúvidas a respeito, porém, antes que o Sr. Rivenhall tivesse tempo de pôr em execução um plano que estivera arquiletando, o melhor entendimento iniciado entre ele e Sophy passara a declinar sensivelmente. Obedecendo às ordens de sua instrutora, Lord Charlbury solicitou a Lady Ombersley que o honrasse com sua presença, levando a filha e a sobrinha a uma pequena reunião organizada por ele, para irem ao teatro. O Sr. Rivenhall tolerou muito bem o fato, contudo, quando veio a saber, mais tarde, que o Sr. Fawnhope participara da tal reunião, sua calma sofreu um sério revés. Parecia que nada teria superado os prazeres da noite! Até Lady Ombersley, que ficara decididamente perturbada com a presença inesperada do Sr. Fawnhope, sucumbiu diante das atenções tanto do seu anfitrião como do seu amigo General Rarford, que por certo fora convidado para entretê-la. A peça, Bertram, foi considerada muito comovente; quanto à atuação de Kean, não havia elogio capaz de descrevê-la; e certamente um jantar encantador no Piazza rematara a noite. Grande parte disso o Sr. Rivenhall concluiu pelos relatos da mãe, mas alguma coisa soube por Cecilia, que fazia enorme esforço para contar-lhe quanto se divertira. Ela disse que Sophy estivera animadíssima, mas não mencionou que a disposição de espírito da prima tomara a forma de flerte com seu anfitrião. Naturalmente Cecilia estava satisfeita por saber que seu pretendente rejeitado não acalentava um coração partido e quase igualmente satisfeita por pensar que ela mesma não tinha propensão a uma forma de divertimento que mostrava sua encantadora prima sob um aspecto pouco lisonjeiro. Quanto a Lord Charlbury oferecer-se para mostrar a Sophy como o pai, um lamentável libertino, costumava levar tabefes de mulher, e Sophy, no mesmo instante, estender a mão, isso, pensou Cecilia, ultrapassara os limites! Estava feliz em pensar que Augustus jamais se comportaria de maneira tão audaciosa. Por certo ele não teve ideia de fazer isso naquela noite. A tragédia que presenciara estimulou-o com a ambição de escrever uma ópera, e conquanto fosse impossível criticar suas maneiras como convidado, Cecilia tinha forte suspeita de que seus pensamentos estavam noutro lugar.
Embora essa noite houvesse sido ruim, o pior estava para vir, na opinião do Sr. Rivenhall. Até o reaparecimento de Lord Charlbury, depois da sua enfermidade, o mais assíduo acompanhante de Sophy (ou, como o Sr. Rivenhall preferia cruelmente intitulá-lo, seu chichis-béu) fora Sir Víncent Talgarth. Todavia logo se viu Lord Charlbury superar Sir Vincent Todas as manhãs, a cavalo, ele a encontrava no parque; à tarde, na hora do footing, seria visto sentado em seu faéton; era seu par em duas danças no Almack's; levava-a em seu próprio cabriole para a inspeção militar, e até atuou como sua escolta numa visita que ela fez a Merton. Lord Charlbury não fez segredo do fato de ter gostado sobremaneira da excursão, quando seu senso de humor foi muito instigado pela personalidade rica e langorosa da marquesa. Ele contou a Sophy que teria ficado feliz se permanecesse o dobro do tempo na companhia dela. Declarou que uma mulher que, vencida pelo cansaço de receber visitas matutinas, fechasse os olhos e dormisse sob suas vistas aturdidas, era algo realmente fora do comum e merecia ser cultivado. Ela sorriu e concordou, porém, intimamente, ficou um pouco consternada. Para ela fora um choque encontrar Sir Vincent junto da marquesa.
Sir Vincent não fora seu único visitante; a breve estada da marquesa no Pulteney atraíra vários cavalheiros que já haviam usufruído da sua hospitalidade em Madri; mas ele era muito simplesmente seu visitante mais assíduo. O Major Quinton também tinha estado lá, bem como Lord Francis Wolvey e o Sr. Fawnhope. A presença do Sr. Fawnhope era facilmente explicada; sem dúvida ele pensou em escrever uma tragédia sobre Dom João da Áustria, cuja breve porém gloriosa carreira lhe parecia notavelmente adequada para uma ópera. Já havia composto alguns versos comoventes para o seu herói pronunciar em seu febricitante leito de morte, e julgava que era razoável esperar que a marquesa estivesse em condições de lhe contar muitos detalhes da vida e costumes espanhóis que provariam ser inestimáveis para ele ao escrever sua obra-prima. Nesse caso, o conhecimento da marquesa sobre os costumes existentes em seu país no século XVI era muito menor do que o dele, mas ela não era de tirar a coragem de um rapaz bonito para visitá-la, assim sorriu-lhe sonolentamente e convidou-o para que voltasse de novo quando ela não tivesse outra companhia para dedicar sua atenção.
Sophy, que jamais relacionara o Sr. Fawnhope com algum atributo másculo, ficou muito surpresa ao descobrir que ele cavalgara para visitar a marquesa numa mula puro-sangue que ela mesma não teria desdenhado possuir. Ele voltou para Londres cavalgando atrás do faéton e Sophy observou que o rapaz conduzia bem a bela e alegre montaria. Sophy segredou a Lord Charlbury que achava que seria conveniente para ele Cecilia não ver seu poeta sobre um cavalo.
Ele suspirou.
— Querida Sophy, não pense que eu não tenho muito prazer em sua companhia, mas para onde tudo isso está me levando? Talvez você saiba, mas eu não!
— Pode estar certo de que o está levando exatamente para onde deseja ir — ela respondeu, séria. — Por favor, confie em mim! De modo algum Cecilia gosta de vê-lo servindo-me obsequiosamente, asseguro-lhe!
Cecília não era a única a não obter prazer com esse espetáculo. O Sr. Rivenhall, possivelmente porque ainda alimentava esperanças de um casamento entre Charlbury e sua irmã, olhava tudo isso com o maior desagrado; e Lord Bromford, encontrando-se praticamente eliminado, manifestou contra seu rival tal grau de hostilidade que quase o impossibilitava de fitá-lo com ao menos uma aparência de amabilidade.
— Parece-me uma circunstância muito extraordinária — contou ele ao principal dos seus seguidores — que um homem que fica saracoteando atrás de uma mulher — como dizem —, durante mais semanas do que desejo enumerar, seja volúvel a ponto de transferir suas atenções para outra mulher em tão curto espaço de tempo! Confesso, nãocompreendo uma conduta dessa natureza. Prezada Srta. Wraxton, não tivesse viajado um pouco, e aprendido alguma coisa sobre a fragilidade humana, eu ficaria totalmente perplexo! Porém não tenho escrúpulos de lhe dizer que jamais gostei muito de Charlbury. O procedimento dele não me surpreende. Só estou magoado e, posso acrescentar, surpreso, por ver a Srta. Stanton-Lacy tão iludida!
— Sem dúvida — respondeu a Srta. Wraxton suavemente — era de esperar que uma dama acostumada a viver no Continente considerasse essas questões sob um prisma um tanto diverso daquele em que pessoas humildes e caseiras como eu consideram. Creio que o flerte é realmente um passatempo entre as senhoras estrangeiras.
— Minha cara senhora — replicou o rapaz —, devo dizer-lhe que, de modo algum, sou defensor da ideia de viagens para as senhoras. Não me parece ser uma coisa necessária à educação do sexo fraco, embora julgue ser indispensável para um homem. Não me causaria espanto saber que Charlbury jamais pôs o pé fora desta ilha, uma particularidade que me faz estranhar mais do que nunca a predileção da Srta. Stanton-Lacy pela companhia dele.
A hostilidade de Lord Bromford era do perfeito conhecimento de seu alvo. Charlbury, conduzindo o cavalo a meio galope ao longo da alameda com Sophy, disse-lhe sem demora:
— Se eu sair desta pantomima com o couro inteiro devo julgar-me um felizardo! Sophy, por acaso está querendo que eu seja assassinado, sua perversa?
Ela riu.
— Bromford?
— Ele ou Charles. Dos dois, espero que seja ele a me desafiar. Ouso afirmar que não consegue atingir um monte de feno a 10 metros de distância, mas Rivenhall sei que é um excelente atirador.
Ela virou a cabeça para olhá-lo.
— Acha mesmo? Charles?
Ele retribuiu o olhar, seus olhos zombando dela.
— Isso mesmo, Madame Inocência! Sem dúvida devido à desfeita à irmã! Diga-me — você é sempre leal —, tem o costume de determinar parceiros para todos, onde quer que vá?
— Não — ela respondeu. — Não, a menos que seja o melhor para eles.
Ele riu e riu, e ainda ria quando se encontraram com o Sr. e a Srta. Rivenhall, cavalgando lado a lado na direção deles.
Sophy cumprimentou a prima com verdadeiro prazer, deixando totalmente de expressar sua surpresa ao ver Cecília entregar-se a uma forma de desempenho ao qual não estava muito habituada. Ela e Charlbury alinharam os cavalos para cavalgarem com os Rivenhalls, e ela não se opôs quando, depois de um pequeno avanço, o Sr. Rivenhall obrigou-a a atrasar-se dos outros dois, e prosseguiu a um passo tranquilo pela alameda abaixo. Ela disse:
— Gosto desse seu baio, Charles.
— Pode gostar dele — respondeu o Sr. Rivenhall de modo desagradável —, mas não irá montá-lo!
Ela lançou-lhe um olhar de esguelha, transbordante de malícia.
— Não, querido Charles?
— Sophy — disse o Sr. Rivenhall, passando do modo autocrático à pura ameaça —, se ousar colocar sua sela no meu Thunderer, eu a estrangulo e jogo seu corpo no Serpentine!
Ela emitiu aquela risada em gorgolejo que nunca deixava de provocar o sorriso enviesado de Charles.
— Oh, não, Charles, você faria isso? Bem, não posso culpá-lo! Se algum dia eu o encontrar escarranchado em Salamanca, certamente dou-lhe um tiro — e eu posso levar em conta uma arma que dispara um pouco para a esquerda!
— Pode? — replicou o Sr. Rivenhall. — Bem, minha querida prima, quando formos a Ombersley, terei muita satisfação de conferir a sua pontaria certeira! Você me mostrará o que consegue fazer com as minhas pistolas de duelo. Elas não disparam para a esquerda nem para a direita. Sou um tanto exigente na escolha das minhas armas!
— Pistolas de duelo! — exclamou Sophy, muito impressionada. — Não o havia julgado capaz disso, Charles! Quantas vezes já ficou exposto! Sempre mata seu adversário?
— Raramente! — ele replicou. — É triste, mas o duelo saiu de moda, querida Sophy! Lamento ser obrigado a desapontá-la!
— Desapontar-me, não — disse ela, sacudindo a cabeça. — Eu realmente não contava ouvir que você já havia feito algo tão chocante.
Isso o fez rir. Lançou a mão para o alto, no gesto característico de um espadachim ao reconhecer um golpe certeiro.
— Muito bem, Sophy! Touchél
— Você esgrima?
— Sofrivelmente. Por quê?
— Oh, eis uma coisa que jamais aprendi!
— Santo Deus, como aconteceu isso? Julgara que Sir Horace devia ter-lhe ensinado a manejar um espadim!
— Não — respondeu Sophy, dando aos lábios uma expressão afetada. — E não me ensinou a boxear tampouco, portanto são duas coisas, Charles, que você deve ser capaz de fazer melhor do que eu!
— Na realidade você me deixou para trás — concordou ele suavemente. — Sobretudo na arte dos jogos amorosos!
No mesmo instante ela o desconcertou ao fazer um ataque direto.
— Jogos amorosos, Charles? Você não está, espero, me acusando de flertar, está?
— Então não estou? — perguntou ele, carrancudo. — Esclareça-me, eu lhe peço, a natureza da sua conduta com Charlbury!
Ela exibiu-lhe um rosto inocente.
— Mas, Charles, qual é a razão disto? Sem duvida eu não poderia estar enganada! Está tudo acabado entre ele e Cecilia! Não é possível que você acredite que eu encorajaria as investidas dele se assim não fosse!
O cavalo baio tentou forçar uma marcha a meio galope e foi detido. Furioso, o Sr. Rivenhall disse:
— Tolice! Não procure me tapear, Sophy! Charlbury e você! Ora, que imbecil deve me julgar!
— Ora, nada disso! — Sophy assegurou-lhe, de modo comovente. — Mas não há nada que eu não fizesse para agradar a Sir Horace, e eu gostaria muito mais de casar com Charlbury do que com Brom-ford!
— Às vezes me parece — replicou o Sr. Rivenhall — que a sensibilidade é uma virtude totalmente desconhecida para você!
— É mesmo, fale-me sobre ela! — disse Sophy, com imensa cordialidade.
Ele não se aproveitou desse convite, porém disse em tom cortante:
— Eu talvez devesse preveni-la de que a perseguição firme de Charlbury está rapidamente fazendo de você o tema de falatório da cidade. Se dá alguma importância a isso não sei, mas desde que minha mãe é responsável por você, devo confessar que lhe ficaria grato se pudesse comportar-se com um pouco mais de discrição!
— Certa vez você me falou sobre algo mais que eu poderia fazer algum dia se desejasse agradar-lhe — comentou Sophy pensativamente. — Confesso, espero que jamais venha a desejar isso, pois, por mais que eu tente, não consigo me lembrar do que se tratava!
— Esteve determinada, não esteve, a fazer-me não gostar de você desde o primeiro dia que nos conhecemos? — perguntou ele.
— De modo algum. Não gostou de mim sem o mínimo encorajamento!
Ele cavalgou em silêncio durante alguns instantes, dizendo finalmente com um tom de voz tenso:
— Está enganada. Não desgosto de você. Isto é, houve muitas ocasiões em que gostei muito de você. Nem precisa imaginar que esqueci o quanto lhe devo.
Ela interrompeu-o:
— Não me deve nada! Poupe-me de continuar ouvindo a respeito, por favor! Fale-me sobre Hubert! Ouvi você contar à minha tia que recebeu uma carta dele. Ele está bem?
— Perfeitamente, imagino. Apenas escreveu para pedir-me que lhe mande um livro que ele esqueceu. — Esboçou um sorriso largo de repente. — E para informar-me sobre sua determinação de comparecer a todas as aulas! Se eu não julgasse que essa revolução deve falhar, eu iria a Oxford imediatamente! Tal virtude só poderia levá-lo buscar alívio no mais chocante dos excessos. Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Sophy! Que eu nunca disse. Fomos interrompidos antes que eu pudesse fazê-lo, e nunca encontrei uma oportunidade desde então! Serei sempre grato a você por mostrar-me, conforme o fez, quanto estava errado no meu modo de lidar com Hubert.
— Isso é tolice, mas eu poderia mostrar-lhe, se me permitisse, quanto está errado no modo como trata Cecília! — disse ela.
A expressão do rosto dele enrijeceu.
— Obrigado! Sobre esse assunto é provável que não concordemos!
Ela não disse mais nada, e permitiu que Salamanca desenvolvesse uma marcha a meio galope e alcançasse Lord Charlbury e Cecília.
Encontrou-os conversando à vontade, depois que o constrangimento que Cecília sentira ao ver-se obrigada a cavalgar só com ele foi rapidamente banido pela cordial naturalidade das suas maneiras. Nem por uma palavra ou por um olhar ele a fez lembrar-se do que houvera entre eles; ao contrário, começou logo a falar sobre um assunto genérico que ele sabia iria interessá-la. Isso proporcionou a ela uma mudança agradável, pois a conversa do Sr. Fawnhope, no momento, se limitava quase inteiramente ao objetivo e à estrutura da sua grande tragédia. Ouvir um poeta discutir com ele mesmo — pois dificilmente teriam dito que ela participara da discussão — sobre os méritos dos versos brancos como um meio-termo dramático era naturalmente um privilégio do qual qualquer senhorita deveria orgulhar-se, contudo não se poderia negar que conversar durante meia hora com um homem que ouvia com interesse qualquer coisa dita por ela, era, se não exatamente um alívio, pelo menos uma variação recebida com prazer. Não era à toa que Lord Charlbury já vivera 10 anos mais que seu jovem rival. O rosto bonito e o sorriso cativante do Sr. Fawnhope poderiam deslumbrar os olhos femininos, porém o Sr. Fawnhope ainda não aprendera a arte de transmitir a uma dama a impressão agradável de que ele a via como uma criatura frágil, a ser tratada com carinho e considerada sob todos os aspectos. Talvez por temperamento Lord Charlbury fosse incapaz de consagrá-la como ninfa ou de comparar de modo desfavorável as campainhas com os olhos dela, porém Lord Charlbury infalivelmente providenciaria uma capa para se o tempo estivesse inclemente, a suspenderia diante de um obstáculo que ela não pudesse superar sozinha, e a convenceria de todas as maneiras que, aos olhos dele, ela era um ser precioso a proteger com todo o cuidado.
Seria exagero dizer que Cecília estava lamentando sua rejeição à corte de Lord Charlbury, mas quando Sophy e Charles se juntaram ao casal, a moça sem dúvida sentiu uma vaga sensação de descontentamento depois que seu tête-à-íête foi interrompido.
Mais tarde, como que desinteressada, ela tentou discutir o assunto com Sophy, porém achou curiosamente difícil expressar qualquer um dos sentimentos que a envolviam. Por fim, inclinou a cabeça para o bordado que fazia e perguntou à prima se Lord Charlbury já pedira para lhe fazer a corte.
Sophy riu.
— Santo Deus, não, sua tonta! Charlbury não tem intenções sérias a meu respeito.
Cecília continuou de olhos baixos.
— Deveras? Eu diria que ele mostrava o mais decidido interesse por você.
— Minha querida Cecy, não vou provocá-la, referindo-me a esse assunto, mas estou convencida de que Charlbury oculta o que sente. Não me admiraria se ele acabasse seus dias como solteirão.
— Não creio — respondeu Cecília, cortando com a tesoura o fio de seda. — E calculo que nem você, Sophy. Ele a pedirá, e... e espero que o aceite, porque se um não estivesse apaixonado pelo outro, não posso imaginar que outro cavalheiro se poderia preferir a ele.
— Bem, veremos! — foi só o que Sophy disse.
XIV
DEPOIS QUE a ideia de escrever uma tragédia apoderou-se com todo o vigor de sua mente, o Sr. Fawnhope pareceu banir qualquer plano imediato de procurar um emprego remunerado. Em várias ocasiões ele chegou a Berkeley Square, totalmente impermeável às rudes afrontas do Sr. Rivenhall, levando no bolso o mais recente fascículo da sua peça, que lia para Cecília e Sophy, e uma vez até para Lady Ombersley que, depois, queixou-se de não ter entendido uma palavra. Ele parecia também passar muitas tardes em Merton, mas quando Sophy lhe perguntava sobre os outros convidados de Sancia, ele jamais conseguia lembrar com muita clareza quem estivera presente. Todavia, quando Sir Vincent veio fazer uma visita em Berkeley Square, não fez segredo do fato de que ele ia a Merton com muita frequência. Sophy, uma criatura sem cerimónia, disse-lhe francamente que não confiava nele e agradeceria se ele se lembrasse de que Sancia era noiva de Sir Horace.
Sir Vincent riu gentilmente e pegou em seu queixo com força, segurando-o por um instante longo demais e elevando o rosto dela.
— Agradeceria, Sophy? — perguntou ele, zombando. — Mas quando lhe propus casamento você não quis nada comigo! Seja razoável, Juno! Se você me rejeita, não pode esperar que eu reaja docilmen-te à sua vontade de controlar meus movimentos.
Ela ergueu a mão para agarrar o pulso dele.
— Sir Vincent, o senhor não vai cometer uma falsidade contra Sir Horace! — disse ela.
— Por que não? — ele perguntou friamente. — Pensa que ele não faria o mesmo comigo? Você é uma ingénua esplêndida, adorável Juno!
Visto que o Sr. Rivenhall escolheu esse momento mais inauspicioso para entrar na sala de estar, Sophy não pôde dizer mais nada. Sem constrangimento, Sir Vincent soltou-a e encaminhou-se na direção do seu anfitrião para cumprimentá-lo. A recepção do outro, porém, foi gélida; não o encorajou a prolongar sua visita; e nem bem ele se despedira, partindo, o Sr. Rivenhall deu à prima, sem reserva, o benefício da sua opinião sobre o seu comportamento ao encorajar um notório libertino a usar de familiaridades com ela. Sophy ouviu-o com ar de grande interesse, mas, se ele esperara desconcertá-la, ficou desapontado, pois tudo que ela disse em resposta foi:
— Considero suas repreensões de primeira ordem, Charles, pois jamais tem dificuldade de escolher uma palavra! Mas você me chamaria de namoradeira incorrigível!
— Sim, chamaria! Você encoraja todo casaco vermelho que um dia conheceu a frequentar esta casa! Provoca comentários na cidade com sua conduta escandalosa ao conservar Charlbury saracoteando atrás, e não contente com isso, permite que um tipo como Talgarth se comporte como se você tivesse sido criada de uma estalagem.
Ela arregalou os olhos.
— Charles! É isso que vocês fazem? Apertam os queixos das moças? Ora, nunca fiquei mais assombrada! Não pensei que o fizessem!
— Não ponha minha calma à prova durante um tempo longo demais, Sophy! — disse ele, em tom de ameaça. — Se soubesse a comichão que minhas mãos sentem de lhe dar um tabefe, tomaria cuidado!
— Oh, estou certa de que jamais dariam! — disse ela, sorrindo. — Sabe que Sir Horace não me ensinou a boxear, e como seria injusto, então! Além disso, por que você haveria de dar alguma importância ao que faço? Não sou uma de suas irmãs!
— Graças a Deus!
— Graças a Deus mesmo, pois você é o mais horrível dos irmãos, saiba disso! Pare de fazer papel de bobo! Sir Vincent é um caso lamentável, mas jamais me faria qualquer mal, eu lhe asseguro. Isso estaria totalmente contra seu código de honra, pois me conheceu quando eu era menina e é amigo de Sir Horace. Devo dizer que ele é uma criatura muito estranha. Quanto à Sancia, está perfeitamente claro que ele não a considera nem um pouco sagrada. — Ela franziu a testa. — Estou muito mais receosa sobre o que ele pode fazer nessa direcão. Eu gostaria de saber se devo dizer que me casarei com ele, afinal!
— O quê? — exclamou o Sr. Rivenhall. — Casar-se com aquele tipo? Não, enquanto estiver sob este teto!
— Certo, mas não posso deixar de pensar que talvez deva isso a Sir Horace — explicou. — Admito, seria um sacrifício, mas estou cer-ta de que ele confia em que tomo conta de Sancia enquanto ele está ausente, e não sei realmente como posso impedir que Sir Vincent roube o afeto de Sancia, a menos que eu me case com ele. Sir Vincent é um galanteador consumado, você sabe!
— Você me parece — disse o Sr. Rivenhall severamente — ter perdido o juízo. Difícil esperar que eu acredite que você alimenta a ideia de se casar com aquele homem!
— Mas, Charles, acho você muito desarrazoado! — ela salientou. — Nem bem há uma semana, você afirmou que quanto mais cedo me casasse e saísse desta casa, mais satisfeito você ficaria, mas quando eu disse que talvez me casasse com Charlbury, você se enfureceu, e agora também não quer nem ouvir falar no pobre Sir Vincent!
O Sr. Rivenhall não tentou dar uma resposta. Apenas lançou um olhar sombrio para a prima e disse:
— Só uma coisa poderia me surpreender, e seria saber que Talgarth lhe propôs casamento!
— Bem, então pode surpreender-se — respondeu Sophy placidamente —, porque ele já o fez dezenas de vezes. Já se tornou um hábito dele, creio. Mas sei o que quer dizer, e tem razão; ele ficaria muito desconcertado se eu o levasse a sério. Eu poderia, é claro, ficar comprometida com ele, e desistir quando Sir Horace regressasse, mas parece uma coisa meio indigna, não parece?
— Extremamente indigna!
Ela suspirou.
— Isso mesmo, e ele é tão inteligente que ouso afirmar que adivinharia o que eu estava tramando. Creio que poderia retirar-me para Merton, e isso, sem dúvida, ficaria constrangedor para Sir Vincent. Mas receio que Sancia não ia gostar nem um pouco.
— Sou solidário com ela!
Sophy fitou-o. Sob o olhar aturdido e estarrecido do rapaz, grandes lágrimas iam se empoçando lentamente em suas pálpebras e rolavam faces abaixo. Ela não fungou nem engoliu as lágrimas, nem mesmo soluçou; apenas deixou que se acumulassem e caíssem
— Sophyl — exclamou o Sr. Rivenhall, visivelmente abalado. Involuntariamente, deu um passo para a frente, controlou-se e disse um tanto trémulo: — Por favor, não faça isso! Não pretendia... Não tinha a intenção... Sabe o que se passa comigo? Digo mais do que pretendo e... Sophy, pelo amor de Deus, não chore!
— Oh, não me impeça! — pediu Sophy. — Sir Horace diz que é meu único dom!
O Sr. Rivenhall olhou-a, espantado.
— O quê?
— Pouquíssimas pessoas são capazes de fazè-lo — Sophy garantiu. — Descobri por puro acidente quando eu tinha apenas sete anos. Sir Horace disse que eu devia cultivá-lo, pois viria a achar esse dom muito útil.
— Sua, sua... — O Sr. Rivenhall não encontrava as palavras. — Pare imediatamente com isso!
— Oh, já parei! — disse Sophy, enxugando as lágrimas cuidadosamente. — Não consigo continuar se não mantenho pensamentos tristes na minha cabeça, como, por exemplo, você dizendo coisas desa-gradáveis para mim ou...
— Não acredito que sinta a mínima vontade de chorar! — declarou o Sr. Rivenhall, sem rodeios. — Você só fez isso para me colocar em desvantagem! Você é, sem exceção, a criatura mais abominável, desavergonhada... Não comece outra vez!
Ela riu.
— Muito bem, mas se sou tão horrível, talvez fosse melhor ficar com Sancia.
— Compreenda uma coisa! — disse o Sr. Rivenhall. — Meu tio deixou-a expressamente aos cuidados de minha mãe, e nesta casa permanecerá até o dia em que ele retornar à Inglaterra! Quanto a essas ideias ridículas sobre a marquesa, você não é responsável por qualquer coisa que ela decida fazer!
— Onde entra o bem-estar das pessoas às quais se está ligado, é impossível dizer que não se é responsável — Sophy respondeu simples mente. — Deve-se fazer um esforço para ser útil. Embora não perceba o que poderia fazer nesse caso. Gostaria que Sancia pudesse ficar na própria casa de Sir Horace!
— Em Ashtead? De que modo adiantaria?
— Não fica tão próximo da capital — ela considerou.
— Uns 26 ou 27 quilómetros apenas, creio!
— Contudo, duas vezes mais distante que Merton. Porém é inútil ficar falando a respeito. Sir Horace disse que o lugar está em mau estado, praticamente impróprio para morar. Ele pretende colocá-lo em ordem quando voltar para a Inglaterra. Só desejo que não seja tarde demais!
— Por que seria tarde demais? — perguntou o Sr. Rivenhall, interpretando-a mal de propósito. — Presumo que a Mansão Lacy não fica inteiramente vazia! Meu tio não deixa alguns criados para tomar conta?
— Apenas os Claverings e um empregado, creio, para cuidar dos jardins e da fazenda. Mas você sabe muito bem que não foi isso o que eu quis dizer!
— Se quer um conselho — sentenciou o Sr. Rivenhall —, não se meta nos assuntos da marquesa! — Depois acrescentou sarcasticamente: — Ou nos de qualquer outra pessoa! E poupe-se o trabalho de me di-zer que não pretende aceitar meu conselho, pois isso já sei!
Sophy cruzou as mãos no colo e começou a girar os polegares (na falta do que fazer), tendo uma expressão tão absurda de docilidade no semblante que ele foi obrigado a sorrir.
No entanto, à medida que a temporada prosseguia, ele passou a sorrir cada vez com menos frequência. Uma vez que ainda não fora apresentada à Corte, Sophy não recebeu convite para a grandiosa festa do Regente em Carlton House; contudo, dificilmente havia outro acontecimento social que não abrilhantasse. Moralmente obrigado, o Sr. Rivenhall acompanhava a mãe e as duas pessoas sob os seus cuidados a muitas dessas funções, porém, como era forçado a passar boa parte do seu tempo observando a irmã a dançar com o Sr. Fawnhope e a prima a flertar de maneira ultrajante com Charlbury, quase não foi surpresa o fato de ele se sentir instigado a dizer que ficaria grato quando o verão encontrasse a família Ombersley alojada a salvo na Mansão Ombersley. Ele expressou também o desejo de que Sophy fizesse sua escolha entre os vários pretendentes, de modo que ele pudesse um dia regressar a uma casa vazia de visitas. A Srta. Wraxton disse que era de esperar que Sir Horace talvez não ficasse muito mais tempo ausente da Inglaterra; mas como a única missiva até agora recebida desse cavalheiro errante não mencionara uma perspectiva de breve regresso do Brasil, não se podia levar o retorno em grande consideração.
— Se — disse a Srta. Wraxton, baixando os olhos, em sinal de bastante acanhamento — ela ainda estiver com a querida Lady Ombersley em setembro, Charles, acho que devo pedir-lhe para que seja uma das minhas damas. Seria apenas por educação!
Ele concordou, mas só depois de um instante de pausa.
— A essa altura espero que meu tio já tenha regressado. Só Deus sabe que dano ela irá descobrir para me atormentar... nos atormentar... em Ombersley — mas sem dúvida descobrirá algo!
Quando julho chegou, não houve novas conversas sobre Ombersley. O Sr. Rivenhall, cumprindo uma velha promessa, levou as três irmãs mais jovens ao Anfiteatro Astley, para comemorar o aniversário de Gertrude e, uma semana depois dessa dissipação, o Dr. Baillie foi chamado para atender Amabel.
Ela começara a mostrar sinais de enfermidade quase imediatamente, e embora o médico mais tarde garantisse reiteradas vezes ao Sr. Rivenhall que não havia como dizer onde ela teria contraído aquela febre, ele continuou obstinadamente culpando a si mesmo. Era evidente que a menina estava muito mal, a cabeça doendo sem parar, a febre aumentando de maneira alarmante à noite. O assustador espectro do tifo atingiu seu ponto culminante, e nem todas as garantias do Dr. Baillie — de que as lamúrias de Amabel externavam a forma mais branda da moléstia manifestar-se, nem tão infecciosa nem tão perigosa — conseguiram apaziguar os temores de Lady Ombersley. A Srta. Adderbury, com Selina e Gertrude, foram enviadas imediatamente para Ombersley; Hubert, passando as primeiras semanas das férias grandes com parentes em Yorkshire, recebera aviso expresso para não se aproximar de Berkeley Square até passar todo o perigo. Lady Ombersley teria afastado também Cecília e Sophy se pudesse persuadi-las a atenderem às suas súplicas, porém ambas permaneceram irredutíveis. Sophy disse que tinha tido muita experiência com febres bem mais severas do que a de Amabel e que ainda não apanhara nenhuma infecção pior do que o sarampo; e Cecília, agarrando-se afetuosamente à mãe, disse-lhe que nada teria forças para arrancá-la do seu lado. A pobre Lady Ombersley só pôde abraçar-se à filha e chorar. Sua constituição física não era forte o bastante para permitir-lhe suportar com coragem as doenças dos filhos. A despeito de todo o desejo do mundo para cuidar de Amabel com suas próprias mãos, não aguentou ver o mal-estar da filha. Sua sensibilidade foi mais forte que sua determinação; a mera visão do rubor febril nas faces de Amabel provocou um dos seus piores espasmos nervosos, de modo que Cecília teve de tirá-la do quarto da doente, levá-la para o seu próprio leito, e mandar sua criada pedir ao Dr. Baillie que lhe fizesse uma visita antes de deixar a casa. Lady Ombersley não podia esquecer a morte trágica, em circunstâncias semelhantes, da filhinha que nascera depois de Maria, e, desde o início da doença de Amabel, perdeu a esperança de que ela se recuperasse.
Era realmente lamentável que o Sr. Rivenhall também tivesse ido passar uns tempos com a tia, em Yorkshire, pois sua presença sempre exercera um efeito calmante em sua mãe nas ocasiões de grande tensão; e Amabel, quando a febre aumentava, chamava com frequência por Charles. Confiava-se que uma voz masculina pudesse acalmá-la, assim o pai foi introduzido no quarto, e tentou, desajeitadamente, com agrados e lisonjas, fazê-la recuperar o raciocínio. Ele não tinha medo do contágio depois que o médico lhe dissera que era raro uma pessoa adulta contrair a doença, porém, embora ficasse muito contrafeito ao ver o estado de Amabel, nunca dera muita atenção aos filhos e agora não conseguia acalmá-la. Na verdade, suas lágrimas corriam tão abundantemente que ele foi obrigado a sair do quarto.
Ao lançar à velha babá um olhar duvidoso, o Dr. Baillie sacudiu a cabeça e mandou que a Sra. Pebworth viesse a Berkeley Square. A Sra. Pebworth, uma mulher volumosa, de olhos lacrimosos e um chapéu enorme, sorriu ternamente para as duas senhoritas que a receberam e, numa voz rouca, garantiu-lhes que nada receassem, visto que a queridinha estaria segura sob os seus cuidados. Contudo, 12 horas depois ela dirigia observações vituperiosas â porta fechada da mansão, depois de ter sido, por ordem da Srta. Stanton-Lacy, conduzida ao lado de fora da casa pela temível Jane Storridge. Uma enfermeira, Sophy informou claramente ao Dr. Baillie, que se revigorava continuamente com o conteúdo de uma garrafa sempre cheia e que dormia a noite inteira numa poltrona ao lado do fogo, enquanto sua paciente se agitava e gemia, elas bem que poderiam dispensar. Assim, quando o Sr. Rivenhall, depois de viajar apressadamente para o sul logo que recebeu as notícias de Londres, chegou em Berkeley Square, encontrou a mãe sofrendo de palpitações nervosas, o pai procurando alívio no White's ou no Wattier's, a irmã roubando uma hora de sono em sua cama e a prima no comando do quarto da doente.
Quando as dificuldades se abatiam sobre seu lar, Lady Ombersley esquecia todas as maneiras desagradáveis de Charles e ficava muito inclinada a considerá-lo seu único apoio. Sua alegria ao vê-lo entrar em seu quarto de vestir só não foi total devido ao medo de que ele pudesse apanhar o tifo. Ela se achava reclinada no sofá, porém ergueu-se para passar os braços em torno do pescoço do filho, exclamando:
— Charles! Oh, meu querido filho, graças a Deus que veio! É tão terrível, e sei que ela me será tomada como aconteceu com a minha pobre Clara!
Quando terminou de falar, rompeu em prantos, e durante alguns minutos ele se ocupou totalmente em acalmar sua agitada disposição de espírito. Logo que a mãe ficou mais calma, ele arriscou-se a perguntar-lhe sobre a natureza da doença de Amabel. As respostas da mãe eram desconexas, mas ela disse o suficiente para convencê-lo de que o caso era desesperador, e que a enfermidade fora contraída no Anfiteatro de Astley. O rapaz ficou tão consternado que não pôde falar por alguns momentos, porém levantou-se abruptamente da cadeira ao lado do sofá, caminhou em largas passadas até a janela e ficou olhando para fora. Enxugando os olhos, a mãe disse:
— Se ao menos eu não fosse tão deploravelmente fraca! Você sabe, Charles, quanto anseio ficar à cabeceira de minha filha! Contudo, vê-la tão esgotada, tão corada pela febre, provoca as minhas piores palpitações, e se ela me reconhece, logo se põe mais aflita! Quase não me permitem entrar no quarto!
— Não convém mesmo — respondeu ele, como um autómato. — Quem cuida dela? Addy está aqui?
— Não, não, o Dr. Baillie achou mais prudente mandar as outras crianças para Ombersley! Ele nos trouxe uma criatura pavorosa... Nunca vi a mulher, mas Cecilia disse que era uma bêbada miserável... e Sophy despediu-a. A velha babá está encarregada de tudo, e você sabe como ela é de confiança! E as meninas a ajudam, de modo que o Dr. Baillie me garantiu que não preciso ficar inquieta. Disse que a querida Sophy é uma excelente enfermeira, e que a doença está seguindo seu curso normal, mas oh, Charles, não consigo convencer-me de que ela me será poupada!
Imediatamente o filho voltou para o lado dela e devotou-se à tarefa de confortar seus receios com mais paciência do que seria de esperar de alguém com um temperamento tão impaciente. Quando pôde escapar, ele foi para o andar de cima à procura da irmã. Ela acabara de levantar da cama e estava saindo do quarto quando Charles chegou ao patamar. O aspecto dela era de palidez e cansaço, contudo seu rosto iluminou-se ao vê-lo, e ela exclamou num tom de voz confidencial:
— Charles! Sabia que poderíamos contar com você! Já esteve com mamãe? Ela sentiu tanto a sua falta!
— Saí neste instante do quarto dela. Cilly, Cilly, ela me disse que Amabel adoeceu poucos dias depois daquela amaldiçoada noite em Ãstley!
— Psssiiu! Venha ao meu quarto! Amabel está no quarto de hóspedes azul, e você não deve falar tão alto aqui! Nós também julgávamos que fosse isso, mas o Dr. Baillie duvida. Lembre-se de que as outras duas estão bem! Ainda ontem recebemos notícias de Addy. — Ela fechou com cuidado a porta do quarto. — Não devo ficar além de um minuto. Mamãe poderá precisar de mim.
— Minha pobre menina, parece morta de cansaço!
— Não, não, não estou! Ora, não há quase nada para eu fazer, às vezes fico terrivelmente irritada quando vejo Sophy, e aquela boa e gentil empregada que tem, carregando todos os fardos em seus ombros! Pois a babá está ficando muito velha para poder cuidar de tudo, você sabe, e além disso ela se põe muito triste por ver a coitadinha da Amabel na quele estado. Mas se uma de nós não fica o tempo todo com mamãe, ela chega a ter um dos seus espasmos de tanta agitação... você já conhece o temperamento dela! Mas agora que está aqui, poderá aliviar um pouco minhas obrigações! — Sorriu e apertou-lhe a mão. — Nunca pensei ficar tão contente em ver alguém! E Amabel ficará também! Chama por você o tempo todo, e quer saber onde anda! Se não soubesse que viria, eu teria mandado chamá-lo! Não receia contrair a infecção? — Ele fez um gesto de impaciência. — Não, eu estava certa de que você não pensa ria nisso. Sophy saiu para dar uma volta. O Dr. Baillie nos fez recomendações quanto à necessidade de exercícios ao ar livre e somos muito obedientes, asseguro-lhe! À tarde, a babá fica com Amabel.
— Posso vê-la? Não ficará agitada?
— Não mesmo! Creio que deve até acalmá-la. Se ela estiver acordada e... e consciente. Quer vir até o quarto dela agora? Você vai encontrá-la lamentavelmente mudada, coitadinha!
Ela o levou até o quarto da doente e entraram de mansinho. Ama- bel estava inquieta e muito quente, rejeitando, irritada, qualquer su gestão para o seu bem-estar; porém quando viu o irmão favorito, seu; olhos apáticos animaram-se visivelmente e um débil sorriso dominou lhe o rosto afogueado. Estendeu a mão, que o irmão pegou, e ele falou gentil e alegremente com ela, de um modo que pareceu fazer-lhe bem Ela não queria deixá-lo ir embora, mas diante de um sinal de Cecilia ele soltou a mão febril que agarrava a sua, prometendo voltar logo se Amabel fosse uma boa menina e bebesse o remédio que a babá lhe preparara.
Charles ficou muito chocado com a aparência da menina e achou difícil acreditar na previsão de Cecília, de que quando a febre passasse a paciente recobraria logo o peso perdido. Ele também achava que a babá não era apta para ter o comando do quarto da doente. Cecilia concordou, mas confortou-o ao dizer que quem estava no comande era Sophy.
— O Dr. Baillie diz que ninguém dirigiria melhor, e na verdade. Charles, você não duvidaria se pudesse ver como Amabel fica bem com ela! Sophy tem tal determinação, tal firmeza! A pobre babá não gosta de forçar a menina a fazer o que ela não quer, e além disso tem noções antiquadas que não combinam com o Dr. Baillie. Mas em nossa prima ele diz que tem confiança, que ela obedece às suas orientações implicitamente. Oh, você não consegue afastá-la de Amabel! Seria fatal, pois ela fica agitada se Sophy se ausenta muito tempo do quarto.
— Somos muito gratos a Sophy — disse ele. — Mas não é justo que ela fique fazendo esse trabalho! Sem falar no risco de contaminação, ela não veio à nossa casa para servir de enfermeira.
— Certo — concordou Cecília. — Ela não veio para isso, é claro, mas... mas... não sei qual a razão, mas Sophy parece ser tanto parte da nossa família que não se pode considerar as coisas desse modo!
Ele ficou calado, e ela o deixou, dizendo que precisava ver a mãe. Mais tarde, quando ele viu Sophy e tentou se impor a ela, a moça o interrompeu bruscamente.
— Estou encantada por ter voltado, meu querido Charles, pois nada seria melhor para Amabel. Também sua pobre mãe precisa do apoio da sua presença. Mas se pretende me falar dessa maneira tola, logo estarei desejando você a centenas de quilómetros daqui!
— Você tem seus próprios compromissos — ele insistiu. — Acho que devo ter visto uma dúzia de convites sobre o consolo da lareira do Salão Amarelo! Não acho certo você renunciar a todos os seus divertimentos por causa da minha irmãzinha!
Os olhos de Sophy riram para ele.
— Não, realmente! Que coisa chocante o fato de eu ser obrigada a renunciar a alguns bailes! Como sobreviverei, gostaria de saber. Que encantador da minha parte ficar exigindo que minha tia me acompanhe às festas com a casa sofrendo tal perturbação! Ora, por favor, não me faça ouvir mais nada, e em vez de se aborrecer com essas tolices, veja o que pode fazer para distrair o espírito de minha tia! Você conhece o seu temperamento nervoso e como a menor coisa abala sua constituição física! A incumbência de mante-la animada e calma recai inteiramente sobre a pobre Cecy, pois seu pai, se não ficar ofendido por eu dizer, não é da menor utilidade nesta crise!
— Eu sei — ele respondeu. — Farei o que puder. Posso bem imaginar que tarefa árdua Cecília deve enfrentar. Na verdade, fiquei chocado ao vê-la tão esgotada! — Ele hesitou e disse, um pouco rígido: — A Srta. Wraxton talvez pudesse ser útil neste caso. Eu não sugeriria que entrasse no quarto de Amabel, mas estou certo de que se ela ficasse com minha mãe de vez em quando, seria benéfico! Possui tal sensisilidade de espírito que... — Ele parou, percebendo uma mudança na expressão da prima, e disse, um tanto áspero: — Sei que não gosta da Srta. Wraxton, mas até você admitirá que seu tranquilo bom senso deve ser de valor nesta situação difícil!
— Meu querido Charles, não me reprove! Não tenho dúvidas de que é exatamente como diz! — Sophy respondeu. — Experimente ver se ela poderá vir a esta casa!
Ela não diria mais nada, contudo não demorou muito para o Sr. Rivenhall descobrir que sua noiva, embora sinceramente solidária com a família dele nessa aflição, não queria expor-se aos perigos de uma contaminação. Ela disse, apertando-lhe a mão afetuosamente, que a mãe a proibira expressamente de entrar na casa até que todo o perigo passasse. Era verdade. A própria Lady Brinklow disse isso ao Sr. Rivenhall. Ao saber que ele cometera a imprudência de visitar Amabel, ela alarmou-se visivelmente e pediu-lhe que não repetisse a visita. A Srta. Wraxton acrescentou a importância do seu próprio conselho:
— Na verdade, Charles, não é sensato. Além do mais, não há necessidade de você correr tal risco. Os cavalheiros ficam totalmente deslocados em quartos de doentes!
— Está com medo de que eu possa apanhar a doença e transmitila a você? — ele perguntou, de modo indelicado. — Queira me perdoar! Eu não deveria ter vindo visitá-la! Não o farei de novo enquanto Amabel não estiver bem.
Lady Brinklow saudou sua decisão com evidente alívio, mas essa era uma medida extrema para a filha que, no mesmo instante, garantiu ao Sr. Rivenhall que ele dizia tolices e que sempre seria um visitante bem-vindo em Brook Street. Charles agradeceu, mas despediu-se dela quase imediatamente.
Sua opinião sobre a noiva não melhorou ao descobrir, no seu regresso a Berkeley Square, que Lord Charlbury estava sentado ao lado da mãe dele. Logo se constatou que era um visitante regular da casa, e, quaisquer que pudessem ser os seus motivos, o Sr. Rivenhall só podia fazer-lhe honra por sua indiferença ao perigo da contaminação.
Outro visitante regular era o Sr. Fawnhope, mas como seu único objetivo era ver Cecília, o Sr. Rivenhall pôde facilmente abster-se de sucumbir a qualquer sentimento de gratidão por suas intrépidas visitas. Cecilia, porém, parecia tão cansada e ansiosa que, com rara moderação, ele reprimia a língua amarga e não fazia nenhuma referência à presença frequente do seu amado na casa.
Mas Charles não sabia que as visitas do Sr. Fawnhope proporcionavam a Cecilia exatamente tão pouco prazer como ele teria desejado. Estavam a meio caminho da segunda semana da doença de Amabel, e que ela estava seriamente enferma o Dr. Baillie não negava às suas enfermeiras. Cecilia não se sentia propensa a qualquer forma de frivolidade, nem tinha interesse em criar um drama poético. Ela levou para o quarto da doente um cacho de uvas de excelente qualidade, dizendo em voz baixa a Sophy que Lord Charlbury o oferecia a Amabel, depois de enviar um mensageiro até sua mansão rural para trazê-lo. Diziam que ele possuía algumas das mais belas casas do país, herança de família, além de um pinheiral do qual, ele prometeu, daria os melhores frutos a Amabel logo que ficassem maduros o suficiente para serem deglutidos.
— Quanta gentileza! — exclamou Sophy, colocando o prato na mesa. — Eu não sabia que Charlbury tinha vindo. Pensei que fosse Augustus.
— Os dois estiveram aqui — respondeu Cecilia. — Augustus quis me dar um poema... sobre uma criança doente.
Seu tom de voz era neutro. Sophy disse:
— Cruzes! Quero dizer, que encantador! Era bonito?
— Não nego que pudesse ser. Acho que não gosto de poemas sobre esse assunto — Cecilia respondeu em voz baixa.
Sophy permaneceu calada. Depois de um instante, Cecilia acrescentou:
— Embora me seja impossível retribuir a consideração de Lord Charlbury, hei de ter sempre consciência da delicadeza do seu comportamento e a extrema gentileza que nos tem demonstrado em nossa aflição. Eu... eu desejo que você possa ser encarregada de recompensálo, Sophy! De um modo geral, você está aqui em cima, e assim não pode saber as horas incontáveis que ele tem passado com minha mãe, conversando, jogando gamão, só, acredito, para nos aliviar um pouco dessa obrigação.
Sophy não pôde deixar de sorrir.
— Não para aliviar-me, Cecy, pois ele deve saber que a tarefa de cuidar da minha tia não recaiu sobre mim! Se a cortesia for intencional, certamente deve entender que é para você mesma.
— Não, não, é apenas bondade! Que ele tenha um motivo oculto, não acredito. — Sorriu e acrescentou, zombeteira: — Gostaria que seu outro namorado fizesse pelo menos a metade!
— Bromford? Não me diga que ele tomou coragem de se aproxi mar cem passos da casa. Certamente não vou acreditar em você!
— Não mesmo! E soube pelo Charles que Bromford o evita como se ele também estivesse contagiado. Charles faz troça disso, mas a conduta da Eugenia ele nem menciona.
— Seria esperar demasiado dele.
Um movimento produzido na cama pôs um fim na conversa, e as primas não voltaram a abordar o assunto. Ao atingir seu clímax, a doença de Amabel afastou todos os outros pensamentos de suas mentes. Durante vários dias, os mais graves temores dominaram a mente dos que continuamente viam a enferma; e a velha babá, obstinada, ao recusar-se a acreditar em doenças modernas, acarretou um dos piores ataques de espasmos nervosos a Lady Ombersley, quando confiou-lhe que, desde o início, ela reconhecera a doença como sendo tifo. Foram precisos os esforços conjugados do filho e da filha de Lady Ombersley e do médico para tirar de sua mente o engano dessa convicção odiosa; enquanto Lord Ombersley, para quem ela fizera a comunicação, buscou alívio do único modo que lhe parecia possível, e, em consequência, não só teve de ser levado do clube para casa, como também sofreu um recrudescimento tão sério da sua gota que, depois, não pôde deixar o quarto por vários dias.
Todavia Amabel superou a crise. A febre começou a ceder; e embora seus danos a tivessem deixado apática e emaciada, o Dr. Baillie sentia-se capaz de assegurar à mãe que, contanto que não houvesse recaída, ele agora alimentava razoáveis esperanças de sua recuperação completa. Generoso, reconheceu muito o mérito de Sophy para a melhora no estado da menina; e Lady Ombersley, vertendo lágrimas, disse que estremecia ao pensar onde estariam, qualquer um deles, sem a sua querida sobrinha.
— Ora, ora, ela é uma senhorita muito competente, bem como a Srta. Rivenhall — declarou o médico. — Enquanto elas estiverem com a Srta. Amabel, pode ficar tranquila, senhora!
Cinco minutos depois, o Sr. Fawnhope, ao ser introduzido no quarto, foi o primeiro a receber as notícias alvissareiras, e no mesmo instante escreveu às pressas uns versinhos líricos em comemoração à saída de Amabel do perigo. Lady Ombersley achou-o particularmente comovente e pediu que lhe desse uma cópia; contudo, uma vez que o poeta tratava mais do belo quadro de Cecília curvada sobre o leito da doente do que dos sofrimentos de Amabel, a obra literária não agradou nem um pouco à pessoa para quem foi dedicada. Com muito mais gratidão, Cecília recebeu um belo buque de flores trazido por Lord Charlbury para sua irmãzinha. Ela o viu apenas para agradecer-lhe. Ele não insistiu em permanecer em sua companhia, porém disse, ao vê-la desculpar-se imediatamente:
— Eu compreendo! Não tinha sequer esperança de que me concedesse um minuto do seu tempo. Muito próprio de você ter descido. Se ao menos pudesse estar certo de que não interrompi seu descanso tão duramente conquistado!
— Não, não! — protestou ela, mal podendo dominar a voz. — Estava com minha irmã, e quando suas flores foram levadas para o quarto dela, não pude deixar de vir correndo para informá-lo do pra-zer dela. Muita bondade, muita gentileza! Perdoe-me! Preciso ir!
Julgara-se que, quando a enferma começasse a melhorar, a assistência constante da irmã e da prima se tornaria menos necessária; contudo logo se descobriu que ela estava fraca demais para ser paciente e ficava agitada se a abandonavam durante muito tempo aos cuidados da babá ou de Jane Storridge. Certa ocasião, um pouco depois da meia-noite, ao entrar de mansinho no quarto da doente, o Sr. Rivenhall ficou chocado ao descobrir que não era a babá e sim Sophy quem estava sentada ao lado do pequeno fogo mantido aceso na lareira. Ela costurava à luz de um candelabro, porém ergueu os olhos quando a porta se abriu, e sorriu, pondo um dedo nos lábios a pedir silêncio. Havia um biombo entre as velas e a cama, de modo que o Sr. Rivenhall só conseguia distinguir a irmã indistintamente. Ela parecia estar dormindo. Charles fechou a porta silenciosamente e aproximou-se do fogo, sussurrando:
— Pensei que fosse a babá quem ficava com ela à noite. Como se explica isso? É muito esforço para você, Sophy!
Ela olhou de relance para o relógio sobre o consolo da lareira e começou a dobrar o trabalho. Fazendo um sinal com a cabeça em direção à porta entreaberta que dava para o quarto de vestir, respondeu em voz baixa:
— A babá está deitada no sofá, naquele quarto. Pobre alma, ficou arrasada! Amabel está muito inquieta esta noite e passou o dia todo assim. Não fique alarmado! É um bom sinal quando o paciente se põe animoso e difícil de lidar. A menina habituou-se tanto a impor sua vontade com a babá, que já não lhe obedece como deveria. Sente-se. Vou esquentar um pouco de leite para ela, e, se quiser, pode fazer-lhe uns agrados e ver se consegue convencê-la a toma-lo quando acordar.
— Você deve estar morta de cansaço! — disse Charles.
— Não, de modo algum. Dormi a tarde toda — ela respondeu, colocando uma panelinha na prateleira lateral da lareira. — Como o duque, posso dormir a qualquer hora! A pobre Cecy não consegue ti-rar uma soneca durante o dia, assim decidimos que ela não devia passar a noite acordada.
— Quer dizer que você decidiu — disse ele.
Sophy sorriu apenas e sacudiu a cabeça. O primo não disse mais nada, porém ficou a observá-la enquanto ela se ajoelhava ao lado do fogo, com a atenção no leite que se aquecia lentamente na prateleira. Alguns minutos depois, Amabel começou a se mexer. Antes que seu brado febril e lamentoso de "Sophy!" fosse pronunciado, a prima se levantara e dirigira-se para a cabeceira da cama. Amabel estava quente, com sede, inquieta, pouco inclinada a acreditar que algo lhe pudesse fazer bem. Quando a ergueram para sacudir os travesseiros, pôs-se a chorar; ela queria que Sophy lhe molhasse sua testa, e quando ela o fez, queixou-se de que a água de lavanda lhe irritava os olhos.
— Pssiiuu, você vai deixar sua visita mal impressionada se chorar! — disse Sophy, alisando os cabelos em caracóis emaranhados. — Sabe que um cavalheiro veio vê-la?
— Charles? — Amabel perguntou, esquecendo por um minuto seus infortúnios.
— Sim, Charles, portanto deve me deixar arrumá-la um pouco e ajeitar as cobertas. Pronto! Charles, agora a Srta. Rivenhall terá o prazer de recebê-lo!
Afastou o biombo, de modo que a luz das velas incidisse sobre o leito, e assentiu com a cabeça para Charles estimulando-o para sentar-se ao lado da irmã. Ele sentou-se, pegou na mãozinha que se assemelhava a uma garra e ficou conversando com a menina de um modo alegre que logrou distraí-la até Sophy trazer uma xícara de leite à cabeceira da cama. À visão do leite, imediatamente ficou irritada. Não queria; beber leite lhe daria náuseas; por que Sophy não a deixava em paz?
— Espero que não pretenda ser tão indelicada a ponto de recusar-se a bebê-lo, quando vim especialmente para segurar a xícara para você — disse Charles, tirando a xícara da mão da prima. — Além do mais, uma xícara com rosas! Ora, onde conseguiu isto? Estou certo de que não a conheço.
— Cecília deu-a para mim, para meu próprio uso — respondeu Amabel. — Mas não quero leite. Já é madrugada, uma hora imprópria para se beber leite!
— Espero que Charles tenha admirado suas rosas de verdade — disse Sophy, sentando-se na beira da cama e levantando Amabel para apoiar-se em seu ombro. — Estamos com tantos ciúmes, Charles, Cecilia e eu! Amabel tem um namorado tão encantador que nós duas fomos lançadas à sombra. Veja só o buque que ele lhe trouxe!
— Charlbury? — ele perguntou, sorrindo.
— Ele mesmo, mas gosto mais do seu ramo de flores — disse Amabel.
— É claro que gosta — confirmou Sophy. — Então beba um gole do leite que ele está lhe oferecendo. Devo avisá-la que os sentimentos de um cavalheiro se ferem com muita facilidade, minha querida, e isso, você sabe, jamais seria bom!
— Exatamente — Charles corroborou. — Ficarei pensando que você tem mais consideração por Charlbury do que por mim, e isso provavelmente me deixará triste.
A frase fê-la rir debilmente, e assim, entre tolices e agrados, ela acabou persuadida a beber quase todo o leite. Delicadamente, Sophy tornou a deitá-la, mas nada a satisfaria se Charles e Sophy não ficassem ao lado dela.
— Ficaremos, mas sem mais conversa — disse Sophy. — Vou lhe contar mais uma de minhas aventuras, e se me interromper perderei o fio da história.
— Oh, sim, conte sobre aquela vez em que você ficou perdida nos Pireneus! — pediu Amabel, sonolenta.
Sophy contou, sua voz diminuindo quando as pálpebras da menina começaram a se fechar. Imóvel e calado, o Sr. Rivenhall achava-se do outro lado da cama, observando a menina. Logo a respiração mais profunda de Amabel revelava que ela dormia. A voz de Sophy cessou; ela ergueu os olhos e encontrou os do Sr. Rivenhall. Ele a fitava fixamente, como se uma ideia, ofuscante em sua novidade, lhe tivesse ocorrido. O olhar do primo permaneceu firme, um pouco indagador. Ele levantou-se abruptamente, fez menção de estender a mão, mas deixou-a cair de novo, e, voltando-se, saiu rapidamente do quarto.
XV
No DIA SEGUINTE, Sophy não se encontrou com o primo. Ele visitou Amabel num período em que sabia que Sophy estava repousando e permaneceu fora de casa até a hora do jantar. Lady Ornbersley temia que algo acontecera para aborrecê-lo, pois, embora suas maneiras com ela fossem, como sempre, pacientes, e ele não tivesse reduzido absolutamente os cuidados para o seu bem-estar, mostrava o cenho nublado e respondia às suas observações muito ao acaso. Entretanto, foi buscar as cartas para a penitência de jogar uma partida de cribbage com ela; e quando o jogo foi interrompido com a chegada do Sr. Fawnhope, que trazia uma cópia do seu poema para Lady Ornbersley e um buque de rosas-musgosas para Amabel, ele foi suficientemente senhor de si para cumprimentar o visitante, se não com entusiasmo, pelo menos com urbanidade.
Depois de ter escrito uns trinta versos da sua tragédia no dia anterior, com os quais ficou satisfeito, o Sr. Fawnhope estava de um humor condescendente, nem perseguindo um epíteto evasivo nem meditando sobre um verso infeliz. Disse tudo que era adequado, e, quando todas as indagações sobre o estado de saúde da enferma se esgotaram, conversou sobre vários assuntos, tão parecido com um homem sensato que o Sr. Rivenhall sentiu-se muito benevolente com ele e só saiu da sala ante o pedido de Lady Ombersley para que o poeta lesse em voz alta seu poema lírico sobre a libertação de Amabel do perigo. Nem essa abominável afetação conseguiu dissipar os sentimentos mais indulgentes com que ele considerava Fawnhope, cujas visitas constantes à casa deram-lhe uma opinião melhor do poeta do que realmente merecia. Cecilia poderia ter-lhe dito que a intrepidez do Sr. Fawnhope procedia mais de uma sublime inconsciência do risco de contágio do que de qualquer heroísmo deliberado; porém, uma vez que ela não costumava comentar com o irmão sobre o bem-amado, Charles continuou num feliz estado de ignorância, um homem muito prático para compreender a densidade do véu em que um poeta poderia envolver-se.
Ele nunca mais visitou o quarto da doente nas ocasiões em que poderia encontrar a prima, e quando se encontravam à mesa do jantar, seus modos com ela eram lacónicos a ponto de tocar as raias da brusquidão. Sabendo quanto ele se sentia grato a Sophy, Cecilia estava atónita, e mais de uma vez insistiu com a prima para lhe contar se tinham brigado. Mas Sophy apenas sacudia a cabeça e lhe lançava um olhar malicioso.
Embora lentamente, com muitos retrocessos e todas as irracionais crises de irritação de uma convalescente, Amabel continuava a melhorar. Durante 12 horas, nada estaria bem para ela a menos que lhe trouxessem Jacko para o quarto. Só os protestos enérgicos de Sophy impediram o Sr. Rivenhall de viajar até a Mansão Ombersley para trazer o mico indispensável, tão ansioso estava ele em que nada pudesse retardar a recuperação da irmãzinha. Contudo Tina, até agora excluída, para sua grande indignação, de acompanhar a dona ao quarto da doente, serviu de excelente substituta para Jacko, e ficou muito contente de se enroscar na colcha sob a mão acariciadora de Amabel.
No início da quarta semana da doença, o Dr. Baillie começou a falar sobre a conveniência de levar sua paciente para o campo. Contudo, nesse ponto ele encontrou uma oposição inesperada e firme de Lady Ombersley. Ele chegara a mencionar a possibilidade de uma recaída, e isso assumira um domínio tão forte sobre sua mente que nenhum motivo serviria para fazê-la consentir que Amabel ficasse fora do alcance dos seus hábeis cuidados clínicos. Ela o fez ver a insensatez de restituir Amabel à companhia das irmãs e do ruidoso irmão que logo estaria gozando as férias de verão em Ombersley. A menina ainda estava fraca, sem disposição para qualquer esforço e assustando-se aos ruídos súbitos. Seria melhor ela ficar em Londres, sob a observação do medico e aos cuidados extremosos de sua mãe. Agora que todo o perigc passara, o instinto maternal de Lady Ombersley podia fazer valer seus direitos. Ela, e só ela, deveria assumir a responsabilidade da convalescença de sua filha mais jovem. Desse modo, deitar no sofá do quarto de vestir da mamãe, passear tranquilamente com ela na caleça harmonizava-se bem ao humor atual de Amabel, e assim ficou estabelecido depois que Cecilia e Sophy negaram qualquer desejo de trocar Londres pelo campo.
A cidade estava bastante vazia de gente, mas o tempo não era tão abafado que tornasse as ruas desagradáveis. Corria um mês de chuvas, e poucos eram os dias em que mesmo as jovens elegantes se arriscavam a sair sem uma pelica ou um xale.
Além da família Ombersley, outros mais resolveram permanecer na capital até agosto. Lord Charlbury ainda seria encontrado em Mount Street; o Sr. Fawnhope em seus aposentos nas proximidades de St. James’s; Lord Bromford, surdo às súplicas da mãe, recusou-se a partir para Kent; e os Brinklows encontraram diversas desculpas excelentes para permanecerem em Brook Street. Assim que todo o perigo de contágio passou, a Srta. Wraxton seria vista novamente em Berkeley Square, graciosa com todos, até mesmo carinhosa com Lady Ombersley e Amabel, e repleta de planos para o casamento. O Sr. Rivenhall encontrou negócios urgentes para tratar em suas propriedades; e se a Srta. Wraxton decidisse supor que suas frequentes ausências da cidade eram responsáveis pelo desejo dele de pôr a casa em ordem a fim de recebê-la, tinha plena liberdade de fazê-lo.
Menos resistente que a prima, Cecília não se recuperou tão rapidamente da ansiedade e do esforço despendido nas quatro semanas de confinamento. Estava muito desanimada e perdera um pouco da sua louçania. Também permanecia um tanto calada, fato que não escapou aos olhos do irmão; ele cobrou-lhe isso; e, quando ela deu uma resposta evasiva e procurou sair da sala, ele a deteve, pedindo:
— Não vá, Cilly!
Ela aguardou, lançando-lhe um olhar indagador. Um momento após, ele perguntou abruptamente:
— Você não está feliz?
O rubor subiu-lhe às faces, os lábios tremeram, contra a vontade dela. A moça fez um gesto de protesto e virou o rosto, pois era impossível explicar-lhe o remoinho que devastava seu coração.
Para sua surpresa, ele tomou-lhe a mão, apertou-a e disse, constrangido, mas em tom suave:
— Nunca pretendi que fosse infeliz. Não julguei... Você é uma boa moça, Cilly! Veja, se o seu poeta se empenhar em alguma profissão respeitável, retirarei minha oposição e permitirei que você faça como quiser.
O assombro deixou-a sem ação, seus olhos espantados percorriam o rosto dele. Ela deixou que sua mão continuasse na dele até que o irmão a soltou e postou-se de costas, como se não quisesse encontrar os seus olhos arregalados.
— Você me considera cruel... insensível! Sem dúvida devo ter demonstrado isso, mas jamais desejei outra coisa senão a sua felicidade! Não direi que estou contente com a sua escolha, mas se você já decidiu, Deus me livre de contribuir para o seu afastamento da pessoa a quem sinceramente ama ou a promoção do seu casamento com um homem de quem não gosta!
— Charles! — ela exclamou debilmente.
Por sobre o ombro, ele disse com certa dificuldade:
— Parecia-me que nada exceto infelicidade resultaria desse casamento. Você pelo menos não ficará destinada a uma vida de arrependimento. Falarei com nosso pai. Sei que se ressentia com a minha influência sobre ele. Desta vez será exercida a seu favor.
Em qualquer outra ocasião estes termos a teriam levado a indagar sobre o seu real significado, porém o choque parecia ter paralisado todas as suas faculdades. Não encontrava uma palavra para dizer, e sentia a maior dificuldade em abster-se de romper em prantos. Ele voltou a cabeça e disse, com um sorriso:
— Que monstro devo ter parecido a você, para tirar-lhe a respiração, Cilly! Não me olhe dessa maneira tão descrente! Você se casará com seu poeta; conte comigo!
Automaticamente, ela estendeu a mão e conseguiu falar duas palavras:
— Muito obrigada! — e saiu correndo da sala, incapaz de acrescentar mais alguma coisa ou de controlar as emoções.
Foi em busca do refúgio do seu quarto, seus pensamentos tão confusos que levou muito tempo para abrandar sua agitação.
Jamais uma oposição fora cancelada num momento tão inoportuno; jamais uma vitória parecera mais vazia! Quase sem que ela mesma percebesse, seus sentimentos, nas últimas semanas, tinham sofrido uma mudança. Agora que o irmão lhe concedera permissão para casar com o homem da sua escolha, ela descobria que seus sentimentos por Augustus tinham sido apenas o capricho que Charles sempre julgara ser. A oposição é que o promovia, levando-a a cometer o fatal erro de anunciar quase publicamente sua inabalável determinação de casar-se com Augustus e só com ele. Lord Charlbury, tão superior a Augustus sob todos os aspectos, aceitara a rejeição à sua corte e voltara a atenção para outro lugar; e quaisquer esperanças inconfessas que tivesse alimentado de ver seu afeto por ela reavivar-se estavam agora totalmente eliminadas. Confessar a Charles que desde o princípio ele estivera certo, e ela lamentavelmente enganada, parecia impossível. Ela fora longe demais; nada lhe restava agora senão aceitar o destino que insistira em determinar para si mesma; e, por orgulho, mostrar ao mundo um rosto sorridente.
Primeiro, exibiu-o a Sophy, pedindo-lhe resolutamente que a cumprimentasse, desejando-lhe felicidades. Sophy ficou estupefata.
— Santo Deus! — ela exclamou, assombrada. — Charles apoiará esse casamento?
— Ele não deseja que eu seja infeliz. Nunca desejou. Agora, convencido de que o caso é sério, não colocará obstáculos. Na verdade, ele foi muito bom e prometeu que falará com papai por mim. Isso de-ve resolver. Papai sempre fez o que Charles quer. — Viu que a prima a olhava seriamente e continuou, falando rápido: — Nunca vi Charles tão gentil! Falou da infelicidade de ser forçado a um casamento contra a vontade. Disse que eu não passaria uma vida inteira de lamentações. Oh, Sophy, será que ele não gosta mais de Eugenia? Só se pode deduzir isso!
— Santo Deus, ele jamais gostou dela! — respondeu Sophy, desdenhosa. — E se só agora ele descobriu, isso não é motivo para... — Interrompeu-se, lançando um olhar rápido para Cecília e percebendo muito mais do que a prima teria desejado. — Bem! Hoje é o dia dos milagres mesmo! — disse. — É claro que a felicito, de todo o coração, querida Cecy! Quando irá anunciar o seu noivado?
— Bem, depois que Augustus estiver encaminhado numa... carreira respeitável! — Cecília respondeu. — Mas isso não vai demorar, estou certa! Talvez sua tragédia seja aceita, quem sabe!
Sophy concordou sem pestanejar e mostrou um simulado interesse pelos vários planos de Cecília para o futuro. Que eram expressos em termos um tanto melancólicos, ela deixou passar sem fazer comentários, apenas repetindo as congratulações e desejando à prima toda a felicidade. Todavia, por trás dessas mentiras, seu cérebro funcionava rápido. Entendeu perfeitamente o apuro em que Cecília estava, e nem por um minuto pensou em perder tempo em conversas, requerendo explicações. Era preciso algo muito mais drástico do que explicações nesse caso, pois não seria de esperar que uma moça, depois de assumir um compromisso apesar da oposição paterna, desistisse no próprio instante em que obtinha o consentimento que com tanta insistência exigira. De bom grado Sophy teria esbofeteado o Sr. Rivenhall. Permanecer inflexível, quando a oposição só conseguiria fortalecer a resolução da irmã, fora muito ruim; retirar a oposição no momento em que provavelmente Charlbury devia expulsar o poeta da afeição da moça era um ato de tamanha insanidade que eliminava toda a paciência que Sophy tinha com ele. Graças à vocação de Alfred Wraxton para mexericar, o noivado secreto de Cecília com o Sr. Fawnhope tornou-se amplamente conhecido. Além disso, ela se dera o trabalho de mostrar à sociedade sua determinação de casar com ele. Realmente ia ser preciso algo muito drástico para convencer uma jovem de educação tão requintada a contrariar todas as convenções. Se o Sr. Rivenhall havia concordado com o casamento, Sophy achava que o noivado oficial não demoraria muito para ser anunciado; e uma vez que aparecesse na Gazette, nada, ela julgava, faria Cecilia estigmatizar-se como "a moça que desfez o noivado". Seria até duvidoso poder-se convencê-la a romper o noivado antes do anúncio, pois ela talvez estivesse muito mais sujeita à força do afeto do Sr. Fawnhope do que a perspicaz prima estaria a par; e seu terno coração esquivar-se-ia de levar tal dor a uma pessoa que fora um apaixonado tão fiel.
Quanto à extraordinária mudança de expressão do Sr. Rivenhall, talvez não fosse tão inexplicável para Sophy quanto para a irmã; porém, embora só a gratificassem os sentimentos que inspiravam tal mudança, ela sentia-se incapaz de se iludir ao pensar que ele tivesse alguma intenção de terminar o noivado com a Srta. Wraxton. Não era de se esperar isso dele; talvez Charles não desse muita atenção às aparências, mas nenhum homem da sua educação faria tal afronta a uma dama. Nem Sophy julgaria que a própria Srta. Wraxton, certamente cônscia da natureza cálida da consideração dele pela prima, pusesse fim a uma aliança que pouca perspectiva de felicidade futura oferecia a qualquer uma das partes comprometidas. A constante conversa da Srta. Wraxton abordava unicamente as núpcias que se aproximavam, e era mais do que certo que o casamento com um homem com quem mal partilhava uma ideia fosse preferível à existência triste de solteirona. Com o queixo apoiado na mão em concha, Sophy urdia os planos de uma árdua tarefa, impávida diante de uma situação que certamente teria desencorajado uma mulher menos implacável. Aqueles que a conheciam melhor teriam ficado um pouco alarmados, pois sabiam que, uma vez tomada uma decisão, nenhuma consideração pelo que era próprio ou impróprio a impediria de embarcar em esquemas que tanto poderiam ser ultrajantes como eram originais.
— A surpresa é a alma do ataque.
Essa frase, certa vez pronunciada em sua presença por um general, veio-lhe à mente. Refletiu sobre ela e considerou-a boa. Nada a não ser surpresa faria Charles ou Cecília arredarem pé do caminho da convenção; portanto, surpresa teriam, e no mais alto grau.
O resultado imediato de toda essa cogitação foi uma entrevista com Lord Ombersley, apanhado em seu regresso a Berkeley Square depois de um dia nas corridas. Firmemente conduzido aos próprios aposentos, Lord Ombersley sentiu o perigo e apressou-se a informar a sobrinha que ele estava pressionado pelo tempo, pois tinha um jantar e devia obedecer rigorosamente ao horário.
— Esqueça-o! — disse Sophy. — Viu Charles hoje, senhor?
— É claro que vi Charles! — respondeu Lord Ombersley, com mau humor. — Eu o vi pela manhã!
— Mas depois não o viu mais? Ele falou com o senhor sobre o caso de Cecília?
— Não, não falou! E vou lhe dizer uma coisa, Sophy! Não quero mais ouvir falar do caso de Cecília! Já resolvi. Não quero que ela se case com esse rapaz poeta!
— Meu querido senhor — disse Sophy, agarrando-lhe a mão ca lorosamente —, não mude de ideia! Devo informar-lhe que Charles está a ponto de aconselhá-lo a consentir nesse compromisso, e o senhor não deve concordar!
— O quê? — admirou-se Lord Ombersley. — Sem dúvida está enganada, Sophy! Charles nem quer ouvir falar sobre isso, e desta vez, ele tem razão! O que deu naquela tontinha para fazê-la rejeitar um homem tão bom, um homem como não se encontra igual... Jamais fiquei tão furioso! Despedir Charlbury, e toda a sua fortuna...
Com firmeza, a sobrinha arrastou-o até o sofá e obrigou-o a sentar-se ao lado dela.
— Querido tio Bernard, se ao menos fizer exatamente como eu disser, ela se casará com Charlbury! — garantiu. — Mas deve prometer sinceramente que não permitirá a Charles dominar sua opinião!
— Ora, Sophy, estou lhe dizendo...
— Charles prometeu a Cecília que não irá mais negar seu consentimento.
— Santo Deus, ele também perdeu o juízo? Você deve estar enganada, menina!
— Palavra de honra que não estou! É a coisa mais idiota, e provavelmente vai estragar tudo, a menos que se possa confiar que o senhor permaneça firme. Agora, meu querido tio, esqueça a razão por que Charles tomou essa atitude inesperada! Apenas me dê atenção! Quando Charles falar com o senhor a respeito disso, é preciso que o senhor se recuse a alimentar a ideia de Cecília casar-se com Augustus Fawnhope. Na realidade, seria um excelente estratagema se o senhor dissesse que não mudou de ideia e que pretende casá-la com Charlbury!
Ligeiramente desnorteado, Lord Ombersley entabulou um débil protesto:
— De que benefício seria, se Charlbury acabou de renunciar ao seu pedido!
— Isso não tem absolutamente nenhuma importância. Charlbury ainda deseja muitíssimo casar-se com Cecília, e se o senhor quiser, pode dizer isso a ela. Cecília responderá que pretende casar-se com o seu maçante Augustus, porque agora sente que é um dever de honra fazê-lo. Pode enfurecer-se com ela o quanto desejar — tanto quanto o fez quando ela tomou a resolução que o senhor não ignora! Mas a coisa mais importante, querido senhor, é que permaneça inflexível! Eu farei o resto.
Ele lançou-lhe um olhar desconfiado.
— Ora, Sophy, isso não vai funcionar! E foi você quem ajudou Cecília a cair sob o domínio daquele poeta, segundo Charles me contou!
— Certo, e veja só com que esplêndidos resultados! Ela já não tem mais vontade de se casar com ele e veio a compreender o quanto Charlbury é superior! Se Charles não tivesse interferido, tudo teria saído exatamente como o senhor desejaria!
— Não estou entendendo uma só palavra! — queixou-se Lord Ombersley.
— Provavelmente não está. Em grande parte deve-se à doença da pobrezinha Amabel.
— Mas — insistiu o tio, esforçando-se numa tentativa de seguir o fio da argumentação da sobrinha — se ela agora está disposta a atender Charlbury, por que cargas d'água ele não renova seu pedido?
— Ouso afirmar que ele renovaria, se eu permitisse. Seria inútil. Imagine só, senhor, em que apuro a pobre Cecília se encontra! Durante meses ela manteve Augustus pavoneando-se atrás dela e jurou que se casaria com ele ou mais ninguém! Basta o senhor consentir no casamento, e ela se sentirá na obrigação de casar com ele! Custe o que custar, evite-se qualquer anúncio de noivado oficial! O senhor pode cuidar disso e eu lhe peço que o faça! Não dê ouvidos a nada que Charles possa dizer! — Seus olhos expressivos sorriram para ele. — Seja desagradável com Cecília como o senhor já foi antes! Nada conviria mais ao nosso objetivo!
Ele deu-lhe um beliscãozinho na face.
— Sua tratante! Mas se Charles mudou de ideia... o fato, Sophy, é que não sou hábil numa discussão!
— Então não discuta com ele! O senhor só precisa enfurecer-se vigorosamente, e isso, sei, está bem apto a fazer!
Ele deu uma risadinha, vendo um cumprimento nessa declaração.
— Certo, mas se não me deixarem em paz...
— Meu querido tio, o senhor pode refugiar-se no White's! Deixe o resto comigo! Se fizer ao menos a sua parte, imagino que poderei fazer a minha. Só preciso acrescentar uma coisa! De modo algum deve revelar que falei com o senhor sobre o assunto! Promete?
— Òh, muito bem! — concordou Lord Ombersley. — Quer saber de uma coisa, Sophy? Aceitaria o jovem Fawnhope na minha família com o mesmo estado de ânimo com que aceitaria aquela criatura azeda que o Charles deve trazer para cá.
— Bem, estou certa disso! — ela respondeu friamente. — Aquela jamais nos serviria! Percebi desde que cheguei em Londres, e agora alimento uma razoável esperança de pôr um fim naquela complicação. Apenas faça a sua parte, e todos nós sairemos vitoriosos!
— Sophy! — exclamou o tio, numa explosão. — Que diabo pretende fazer agora?
Mas ela limitou-se a rir e saiu rapidamente da sala.
O resultado final dessa entrevista deixou a família atordoada. Excepcionalmente, o Sr. Rivenhall não alcançou submeter o pai à sua vontade. Sua exposição a Lord Ombersley sobre a natureza sofrida da paixão de Cecilia não conseguiu sequer de longe atingir seu objetivo e só serviu para causar um ataque de raiva que o surpreendeu. Sabendo que seu herdeiro se apressaria a discutir com ele — e o que mais temia era lutar contra uma vontade muito mais forte do que a sua —, Lord Ombersley mal lhe deu oportunidade para abrir a boca. Disse que, por mais arbitrário que Charles fosse na administração de suas propriedades, ainda não era o tutor da irmã. E acrescentou que sempré considerara Cecília praticamente prometida a Charlbury e não consentiria que ela se casasse com outro.
— Infelizmente, senhor — disse Charles secamente —, Charlbury já não gosta mais da minha irmã. Seus olhos estão voltados para outra direção.
— Ora bolas! Tolice! O rapaz não sai desta casa!
— Exatamente, senhor! Encorajado por minha prima!
— Não acredito numa só palavra sua! — replicou o pai. — Sophy não o teria encorajado. — Charles deu uma pequena risada. — E se ele a pedisse, eu ainda não permitiria que Cecília se casasse com aquele seu paspalhão e pode dizer isso a ela!
O Sr. Rivenhall assim o fez, e quando acrescentou, para a consolar, que poucas dúvidas tinha de acabar convencendo o pai a pensar como ele, não ficou surpreso diante da maneira tranquila com que a irmã recebeu a notícia. Nem mesmo uma tirada de Lord Ombersley, proferida à mesa do jantar, abalou muito a sua serenidade, embora ela tivesse a maior aversão por vozes zangadas, não podendo deixar de estremecer um pouco e mudar de cor.
A pessoa menos afctada pela decisão de Lord Ombersley foi o Sr. Fawnhope. Ao ser informado por Cecília de que não poderiam publicar imediatamente a notícia do noivado nos jornais da sociedade, ele pestanejou e perguntou distraiclamcnte:
— Estávamos em vésperas de fazer isso? Você falou comigo? Talvez eu não tivesse prestado atenção. Estou muito preocupado com Lepanto, como sabe. É inútil negar que as cenas de batalha no palco não são muito apropriadas, mas como evitá-las? Passei quase a noite toda andando de um lado para outro e não estou mais próximo de resolver o problema.
— Devo lhe dizer, Augustus, que provavelmente não casaremos este ano — acrescentou Cecília.
— Ora essa, provavelmente não! — concordou ele. — Não creio que pudesse pensar em casamento até me livrar da peça.
— Não pode mesmo e, além disso, não devemos esquecer que Charles estipulou que você deve encontrar um emprego respeitável antes de anunciarmos o noivado.
— Então isso resolve inteiramente o problema — disse o Sr. Fawnhope. — A questão é até onde se pode empregar com propriedade os métodos dos dramaturgos gregos para superar as dificuldades.
— Augustus! — exclamou Cecília, em tom desesperado. — Sua peça significa mais para você do que eu?
Surpreso, ele olhou-a e notou que ela não estava brincando; imediatamente tomou-lhe a mão, beijou-a e disse, sorrindo para a jovem:
— Que absurdo acaba de dizer, meu anjo lindo! Como poderia alguma coisa ou alguém significar mais para mim do que a minha Santa Cecília? É por amor a você que estou escrevendo a peça. Desagrada-lhe a ideia de um coro, no estilo grego?
Ao descobrir que seu rival continuava, mesmo sem a desculpa de indagar sobre o estado de saúde de Amabel, a visitar Berkeley Square, Lord Charlbury assustou-se e passou a exigir uma explicação de sua instrutora. Ele a estava conduzindo a Merton em seu cabriole, e quando ela lhe respondeu com toda a franqueza o que tinha ocorrido, ele manteve os olhos fixos na estrada à sua frente e se manteve calado durante alguns minutos. Por fim, com visível esforço, disse:
— Compreendo. Quando poderei ler o anúncio?
— Nunca — respondeu Sophy. — Não fique com essa cara tão assustada, meu caro Charlbury! Asseguro-lhe que não é preciso. A pobre Cecy descobriu nestas últimas semanas que interpretou mal o pró-prio coração!
Com isso, ele virou a cabeça rapidamente para fitá-la.
— Isso é verdade? Sophy, não brinque comigo! Confesso, cheguei a pensar... eu esperava... Então tentarei minha sorte mais uma vez, antes que seja tarde demais!
— Charlbury, para um homem sensível, diz as coisas mais ridículas! — disse Sophy. — Diga-me, como imagina que ela irá reagir a essa situação difícil?
— Mas se ela já não sente mais amor por Fawnhope... se ela talvez lamente ter acabado comigo...?
— Ela lamenta, é claro, mas é uma dessas coisas que parecem ser fáceis até que se pensa um pouco mais profundamente. Pense, então! Se a situação de ambos fosse invertida — você, o poeta pobre, e Augustus o senhor de grande fortuna —, talvez ela fosse levada a dar atenção a você. Mas esse não é o caso! É o seu poeta, com quem ela declarou que se casará, a despeito da oposição da família inteira... e você deve admitir que ele lhe tem sido fiel de uma maneira pouco comum!
— Ele...! Se ele desse atenção a outra coisa além dos seus versos insignificantes, confessar-me-ia espantado!
— Ele não dá, é claro, porém dificilmente você poderá esperar que meu primo acredite nisso! Antes mesmo de eu chegar à Inglaterra, Augustus já se apegara tanto a Cecília a ponto de excluir todas as demais mulheres, e isso, você sabe, aos olhos do mundo deve classificar-se como devoção do tipo mais extraordinário! Você, meu pobre Charlbury, encontra-se com todas as desvantagens de classificação e sorte! Como Cecília deveria ser cruel para rejeitar o seu poeta e casar-se com você! Pode estar certo de que esta circunstância tem valor para Cecilia! Ela é de temperamento terno. Sem um forte motivo, não causará sofrimento a uma pessoa que ela acredita que a ama de todo o coração. Só há uma coisa a ser feita. Devemos dar-lhe um bom motivo.
Ele conhecia Sophy bastante bem para sentir um certo grau de inquietação.
— Pelo amor de Deus, Sophy, o que pretende fazer!
— Ora, fazê-la sentir que é você quem deve, afinal, ser lamentado.
Um pressentimento íntimo ocupou o lugar da inquietação.
— Santo Deus! Como?
Ela riu.
— Devo afirmar que será mais conveniente que você não saiba, Charlbury!
— Ora, Sophy, quero que me escute!
— Não, por que eu deveria? Você não discute o que é realmente importante, e, além disso, já chegamos e não há tempo para começarmos uma discussão. Deve continuar confiando em mim, por favor!
O cabriole já se arremessava pelo caminho em curva que levava à porta da marquesa.
— Só Deus sabe que não confio e jamais confiei — retorquiu ele.
Encontraram a marquesa sozinha, c, o que mais surpreendeu, acordada. Ela recebeu Sophy afetuosaincnlc, mas com certo constrangimento, e logo revelou que acabara de regressar, apenas há dois dias, de Brighton, onde passara um período de quinze dias.
— Brighton! — exclamou Sophy. — Você não me falou nada, Sancia! Diga-me, o que a levou tão de repente para lá?
— Mas, Sofia, como lhe poderia contar qualquer coisa se esteve confinada num quarto de doente e não me visitou mais? — queixou-se a marquesa. — Ficar sempre num lugar só... majadero!
— Certo, mas sua intenção era viver isolada até o regresso de Sir Horace. Acho que recebeu notícias dele...
— Não, asseguro-lhe! Nem uma palavra!
— Oh! — exclamou Sophy, ligeiramente desconcertada. — Bem, a viagem dele foi auspiciosa, e acho que estará conosco a qualquer momento. Pois não é provável que, nesta época do ano, eles venham a encontrar um tempo muito desfavorável, você sabe. O Duque de York tem estado com o irmão?
A marquesa arregalou seus olhos sonolentos.
— Ora, Sofia, como eu iria saber? São parecidos, os príncipes reais... Corpulentos e... como se diz?... embotados! Não consigo distinguir um do outro.
Sophy foi obrigada a ficar satisfeita. Quando foram embora, seu acompanhante, curioso, perguntou:
— Por que ficou aborrecida, Sophy? A marquesa não deveria ir a Brighton como todo mundo?
Ela suspirou.
— Não, se Sir Vincent Talgarth também estava lá, e isso é o que eu temo. Nunca vi Sancia tão animada!
— Decepcionante! Ela chegou a me comover, uma vez, ao adormecer diante dos meus olhos!
Sophy riu e não disse mais nada, um ligeiro alheamento dominou-a até chegar em Berkeley Square e encontrar o Sr. Rivenhall aguardando o seu regresso, bastante mal-humorado. No mesmo instante isso a reanimou, e ela não hesitou em informá-lo, ao ser inquirida, onde havia estado.
— Você foi sozinha?
— De jeito nenhum. Charlbury me levou.
— Compreendo. Primeiro você põe a cidade mexericando com Talgarth, agora com Charlbury! Ótimo!
— Eu realmente não entendo você — respondeu Sophy, como uma pessoa inocente à procura de esclarecimento. — Pensei que sua objeção a Sir Vincent fosse por ele ter a reputação de grande libertino. Certamente não suspeita o mesmo de Charlbury! Ora, você inclusive já desejou, certa ocasião, casar sua irmã com ele!
— Estou mais desejoso ainda que minha prima não adquira a putação de pessoa volúvel!
— Por quê? — perguntou Sophy, olhando-o diretamente nos olhos. Charles não respondeu, e depois de um instante ela perguntou: — Que direito você tem, Charles, de se opor ao que eu resolvo fazer?
— Se o seu bom gosto...
— Que direito, Charles?
— Nenhum! — ele respondeu. — Faça como bem lhe aprouver! Para mim não tem importância! Com Everard, sua vitória será fácil. Eu não o julgava tão instável. Cuidado para não perder o seu outro pretendente ao encorajar este flerte... pois não creio que seja outra coisa!
— Bromford? Ora, que coisa chocante! Você fez bem em alertar-me! Charlbury vive apavorado de ser desafiado por ele.
— Eu já devia saber que não encontraria outra coisa em você a não ser leviandade!
— Por que me repreende de maneira tão absurda? Não sou sempre assim.
— Sophy...! — Impetuoso, ele deu um passo à frente na direção dela, a mão erguendo-se, porém quase imediatamente a abaixou de novo. — Oxalá jamais tivesse vindo para esta casa! — disse ele, e virou-se para apoiar o braço ao longo do consolo da lareira e ficar olhando fixamente a grade vazia.
— Isso não é gentil, Charles.
Ele permaneceu calado.
— Bem, logo ficará livre de mim, acho eu. Conto ver Sir Horace a qualquer momento. Você ficará satisfeito.
— Devo ficar. — As palavras foram pronunciadas quase inaudivelmente, e ele não levantou a cabeça nem fez qualquer movimento para impedir que ela deixasse o aposento.
Essa troca de palavras acontecera na biblioteca Ela saiu para ovestíbulo no momento exato em que Dassett abria a porta da frente para admitir o Sr. Wychbold, muito elegante numa capa de viagem, com várias pelerines, botas brilhantes, e um grande buque de flores na lapela. Ele estava depositando a cartola numa mesa com tampo de mármore, porém, à vista de Sophy, usou-a para fazer um floreio à sua reverência.
— Srta. Stanton-Lacy! Seu humilde criado, senhora!
Sophy ficou surpresa ao vê-lo, pois ele estivera fora da cidade durante algumas semanas. Enquanto se apertavam as mãos, ela disse:
— Que grande prazer! Eu não sabia que estava em Londres! Como vai?
— Só cheguei à cidade hoje, senhora. Soube dos seus problemas por Charlbury. Nunca fiquei tão chocado em minha vida! Vim imediatamente para saber das notícias!
— É bem do seu feitio! Obrigada, a menina está quase boa agora, embora assustadoramente magra, coitadinha, e ainda apática! O senhor é a pessoa que eu desejava ver! Precisa falar com meu primo neste instante ou me levaria antes a dar uma volta pelo parque?
Ele estava dirigindo o próprio faéton, e só poderia haver uma resposta para esse pedido. Com a maior galanteria, levou-a, após todas as formalidades, avisando-a, porém, de que, na presente estação, ela encontraria unicamente pessoas do povo no parque.
— O senhor tem algum recado para o Sr. Rivenhall? — perguntou Dassett, fixando seu olhar reprovador num ponto acima do ombro esquerdo do Sr. Wychbold.
— Oh, diga-lhe que estive aqui e que lamentei não encontrá-lo em casa! — respondeu o Sr. Wychbold com uma despreocupação que o mordomo achou ofensiva.
— Tem saído com o seu faéton, senhora? — o Sr. Wychbold perguntou, enquanto dava a mão para que Sophy subisse na carruagem. Como estão seus baios?
— Muito bem! Entretanto, hoje não saí com eles, mas estive em Merton com Charlbury.
— Oh... sim? — exclamou ele, com uma ligeira tosse e um olhar de esguelha.
— Isso mesmo, tornou-me o assunto da cidade! — disse Sophy, alegremente. — Quem lhe contou? Satanás?
Ele pôs a parelha em movimento, assentindo sombriamente com a cabeça.
Encontrei-a ao passar pela Bond Street. Senti-me obrigado a parar . Ela tirou o luto!
— Isso significa que deve casar com Charles no próximo mês! — replicou Sophy, que, depois de ter adquirido o hábito de comunicar-se naturalmente com o Sr Wychbold, jamais fazia cerimónia com ele.
— Eu não lhe disse? — ele replicou, com certa satisfação melancólica.
— Disse, sim, e eu respondi que talvez precisasse dos seus bons ofícios. Vai fazer uma estada prolongada na cidade ou parte imediatamente de novo?
— Na próxima semana. Mas o que se há de fazer, senhora? É uma pena, mas é isso mesmo!
— Veremos. O que acha que aconteceria se o senhor contasse a Charles qualquer dia desses que me viu saindo da cidade com Charlbury numa carruagem puxada a quatro cavalos?
— Ele me acertaria um soco — respondeu o Sr. Wychbold, sem hesitar. — Aliás, não o culparia!
— Oh! — exclamou Sophy, desconcertada. — Bem, certamente não desejo que ele faça isso. Mas, e se for verdade?
— Ele não acreditaria em mim. Não há necessidade de você sair da cidade com Charlbury. Também ele não é o tipo de pessoa que se envolva nessas excentricidades.
— Sei disso, mas talvez se conseguisse. Ele não lhe daria um soco se o senhor apenas lhe perguntasse por que eu estava deixando a cidade com Charlbury como escolta, daria?
Depois de dar à pergunta a devida consideração, o Sr. Wychbold admitiu que, nessas condições, talvez fosse poupado do soco.
— Fará isso? — Sophy pediu-lhe. — Se eu lhe mandasse um recado, o senhor se asseguraria de que Charles ficasse sabendo? Ele não está sempre à tarde no White's?
— Bem, geralmente pode-se encontrá-lo nesse local, mas eu não diria que sempre — respondeu o Sr. Wychbold, cauteloso. — Além disso, eu não a verei deixando a cidade!
— Mas pode ver, se resolver dar-se ao trabalho de passear nas proximidades de Berkeley Square! — ela retorquiu. — Se receber um recado meu, saberá que é verdade e poderá contar a Charles com a consciência limpa. Cuidaria para que viesse a saber quando vem para casa, contudo às vezes ele não chega para o jantar, e isso estragaria tudo! Bem, talvez não estrague tudo, mas acho que é uma excelente ideia matar dois coelhos de uma cajadada, sempre que possível!
O Sr. Wychbold deu a isso uma profunda consideração. Depois de revirar na mente todas as implicações das palavras de Sophy, perguntou de súbito:
— Sabe o que eu penso? Não, diga-me.
— Não quero levantar obstáculo, veja bem! — respondeu o Sr. Wychbold. — Charlbury não é meu amigo íntimo. Muito bom sujeito, creio, porém acontece que ele não frequenta muito os mesmos lugares que eu.
— Mas o que acha? — perguntou Sophy, impaciente com essa divagação.
— Acho muito provável que Charles possa desafiá-lo — respondeu o Sr. Wychbold. — Pensando bem, será obrigado a desafiá-lo! Charles é um atirador extremamente bom. Apenas achei que deveria mencionar isso! — acrescentou, como se justificando.
— Tem razão, fico-lhe muito grata por me lembrar dessa possibilidade! — respondeu Sophy calorosamente. — Por nada deste mundo eu colocaria Charlbury em perigo! Mas não haverá a mínima necessidade de tal medida, sabe?
— Ah, bem! — exclamou o Sr. Wychbold, aliviado. — Acho, então, que ele não fará mais do que derrubá-lo algumas vezes! Tirandolhe algum sangue, esmurrando-lhe o nariz, quero dizer!
— Pugilismo? Oh, não! Sem dúvida ele não faria tal coisa!
— Bem, ele fará — garantiu o Sr. Wychbold, sem hesitar. — Da última vez que vi Charles, não tenho escrúpulos em lhe dizer, estava tão zangado com Charlbury que disse que seria maravilhoso se lhe plantasse um vigoroso soco qualquer dia desses! Com suas luvas, Charles é um rapaz dos diabos! Não sei como Charlbury se apresenta; contu do, acho que não seria páreo para Charles. — Entusiasmando-se, acrescentou: — Para um amador, o melhor pugilista que já vi na vida! Excelente habilidade e base, jamais brinca ou trapaceia! Não fica se exibindo, e muito raramente não atinge o alvo! — De repente lembrou-se, interrompeu-se meio confuso e pediu desculpas.
— Está bem, esqueça! — disse Sophy, com a testa franzida. — Preciso pensar nisso, pois não seria bom de modo algum. Se eu deixar Charles zangado, o que, devo confessar, pretendo fazer...
— Pouca dificuldade neste particular — interrompeu o Sr. Wychbold, de modo encorajador. — Génio irritadiço! Sempre teve!
Ela assentiu com a cabeça.
— E serviria de esplêndida desculpa para atacar alguém, não tenho dúvidas. É claro, vejo como poderia impedir que ele cometesse um engano com Charlbury. — Ela tomou fôlego. — Resolução é tudo quanto se precisa! — disse. — Afinal, nunca se deve recuar diante da execução de tarefas desagradáveis para obter um objelivo louvável! Sr. Wychbold, fico-lhe muitíssimo grata! Agora vejo exatamente o que devo fazer, e eu não ficaria nada surpresa se se ajustasse admiravelmente a ambos os propósitos.
XVI
Ao SABER QUE o Sr. Rivenhall consentira no casamento da irmã com o Sr. Fawnhope, a Srta. Wraxton ficou tão chocada que não pôde abster-se de protestar. Com seu costumeiro bom senso, ela salientou as funestas consequências desse matrimónio, pedindo-lhe que considerasse bem antes de apoiar Cecília em sua loucura. Ele ouviu-a em silêncio, e quando ela esgotou seus argumentos, replicou bruscamente:
— Dei minha palavra. Posso, porém, concordar com grande par- te do que acaba de dizer. Realmente, o matrimónio não é do meu agrado, mas não vou colaborar no sentido de forçar minha irmã a aceitar um casamento que ela não deseja. Eu acreditava que logo ela deveria recuperar-se do que me parecia um simples capricho. Isso não aconteceu. Sou forçado a reconhecer que seu coração está envolvido, não é apenas um capricho.
Eugenia ergueu as sobrancelhas, sua expressão era de leve desagrado.
— Meu querido Charles! Isso não é próprio de você! Ouso afirmar que não tenho de procurar muito longe a influência que o inspirou a pronunciar um tal discurso, contudo confesso que dificilmente contava que você reiterasse sentimentos tão discordantes com o seu tem peramento e, devo acrescentar, sua educação.
— Ora essa! Você terá de explicar o que quer dizer com mais detalhes, se devo compreendê-la, Eugenia, pois estou totalmente confuso.
Ela respondeu gentilmente:
— Nota-se que não está! Conversamos tantas vezes sobre esse assunto! Você não concorda que há algo muito irregular no fato de uma filha fazer vingar sua vontade em oposição à dos pais?
— De um modo geral, concordo.
— E em particular, Charles, quando se trata do casamento dela. Os pais devem ser os melhores juizes daquilo que será mais adequado para a filha. Há algo muito petulante e desagradável numa moça apaixonar-se, como é a frase comum. Sem dúvida, pessoas vulgares têm esse costume, mas imagino que um homem de alta linhagem e educação preferisse ver um pouco de comedimento na dama com quem se casa. A linguagem que você adotou — perdoe-me, querido Charles — certamente pertence mais ao palco do que à sala de estar de sua mãe!
— Pertence? — ele indagou. — Diga-me, Eugenia! Se eu tivesse pedido sua mão sem o consentimento de seu pai, você teria aprovado minha corte?
Ela sorriu.
— Não precisamos pensar em coisas absurdas! De todos os homens, você não teria feito tal coisa!
— Mas se tivesse?
— Certamente eu não aprovaria — ela respondeu, serena.
— Fico-lhe grato! — replicou ele, irónico.
— Deveria ficar mesmo — disse ela. — Dificilmente teria desejado que a futura Lady Ombersley fosse uma mulher sem reserva ou obediência filial!
O olhar dele era duro e penetrante.
— Começo a compreendê-la — disse.
— Eu sabia que compreenderia, pois é um homem de bom senso. Não defendo, é escusado dizer, um casamento onde não haja estima mútua. Dificilmente teria êxito! Sem dúvida, se Cecília nutre aversão por Charlbury, teria sido um erro forçá-la a casar-se com ele.
— Generosa!
— Espero que sim — replicou ela gravemente. — Não desejaria ser outra coisa senão generosa com suas irmãs — com toda a sua família! Deve ser um dos meus principais objetivos promover o bem-estar deles, e asseguro-lhe que pretendo fazer isso!
— Obrigado — ele respondeu, num tom de voz insípido.
Ela virou o bracelete que lhe enfeitava o braço.
— Você está inclinado a considerar a Srta. Stanton-Lacy com in dulgência, eu sei, mas creio que admitirá que a influencia dela nesta casa não foi feliz, em muitos aspectos. Sem o encorajamento da prima, arrisco-me a pensar que Cecília não se teria comportado como fez.
— Não sei nada disso. Você não diria que a influencia dela não foi feliz se a tivesse visto cuidando de Amabel, dando apoio a Cecília e à minha mãe em sua ansiedade. Urna coisa que jamais esquecerei.
— Estou certa de que ninguém desejaria que o fizesse. Fica-se contente por elogiar sua conduta sem reserva naquela emergência.
— Também devo a ela o fato de que agora me encontro em ótimas relações de amizade com Hubert. Nesse aspecto eía não fez outra coisa a não ser o bem!
— Bem, nesse ponto sempre discordamos, não discordamos? — ela perguntou, numa voz agradável. — Mas não tenho vontade de discutir com você sobre esse assunto! Só espero que Hubert continue se conduzindo bem.
— Muito bem. Eu quase poderia dizer bem demais, pois o que iria fazer aquele ridículo rapaz senão considerar-se na obrigação moral de recobrar o estudo perdido durante as férias! Foi a uma conferência! — Subitamente, riu. — Se não cair num estado de melancolia depois de toda essa virtude, sem dúvida devo esperar que ele breve esteja numa entaladela chocante!
— Receio que esteja certo — ela concordou, séria. — Há aí uma instabilidade de propósitos que deve afligir você continuamente.
Incrédulo, ele olhou-a atentamente, porém, antes que pudesse falar, Dassett introduzira Lord Bromford no aposento. Imediatamente adiantou-se para dar um aperto de mão, cumprimentando o recém-chegado com mais amabilidade do que a habitual, porém, dizendo:
— Receio que esteja sem sorte; minha prima saiu, dirigindo o faéton.
— Fui informado á porta... Como vai, senhora?... Contudo considerei apropriado subir para felicitá-lo sobre a feliz recuperação de sua irmã — respondeu Lord Bromford. Tive oportunidade de consultar nosso bom Baillie — excelente homem — e ele jurou por sua honra que não havia mais o menor perigo de infecção.
Ao julgar, pelos lábios crispados do Sr. Rivenhall, que ele estava a ponto de dar uma resposta irónica, a Srta. Wraxton interveio às pressas!
— Não tem passado bem, caro Lord Bromford? É uma triste notícia! Espero que não seja grave, não é?
— Baillie não considera assim. Julga que a estação tem estado excepcionalmente insalubre, com esse tempo inclemente, como sabe, e é provável que cause infecções de garganta, à qual tenho certa suscetibilidade peculiar. Como pode imaginar, minha mãe se preocupa muito, pois minha constituição física é delicada... Seria inútil negar que
é delicada! Fui obrigado a permanecer no quarto mais de uma semana.
O Sr. Rivenhall, apoiando os largos ombros no consolo da lareira, enfiou as mãos nos bolsos da calça e ficou com toda a aparência de um homem disposto a se divertir. Lord Bromford não reconheceu os sinais, mas a Srta. Wraxton sim, o que a fez lançar-se num tormento de apreensão. Mais uma vez, apressou-se a falar:
— Creio que as infecções de garganta têm predominado ultimamente. Não é de admirar que Lady Bromford ficasse ansiosa. Sei que foi muito bem cuidado!
— Certo — ele concordou. — Não que minha queixa fosse dessa natureza, do tipo que... Resumindo, até mamãe confessou-se comovida pela devoção da Srta. Stanton-Lacy à sua priminha! — Virou-se para o Sr. Rivenhall, que inclinou graciosamente a cabeça em sinal de reconhecimento pela cortesia, apenas estragando o efeito com um sorriso largo e forçado, singularmente sombrio. — A propósito disto, lembrei-me de certos versos de Marmion.
A Srta. Wraxton, que já ouvira o suficiente sobre as perfeições de Sophy no quarto da doente, só pôde ser grata ao Sr. Rivenhall por interromper:
— Sim, nós os conhecemos bem!
Lord Bromford, que começara a declamar "Oh, mulher, em nossas horas de alívio!", ficou desconcertado com a interrupção, porém recobrou-se prontamente e pronunciou:
— Quaisquer dúvidas que se pudesse alimentar sobre a autêntica feminilidade do caráter da Srta. Stanton-Lacy, devem, arrisco-me a dizer, ter sido afastadas de vez.
Nesse momento, Dassett reapareceu para anunciar que a carruagem de Lady Brinklow estava à porta. A Srta. Wraxton, que só descera em Berkeley Square enquanto a mãe se desincumbia de uma missão na Bond Street, foi obrigada a despedir-se. Lord Bromford disse que, uma vez que nem Lady Ombersley nem sua sobrinha estavam em casa, ele não abusaria da hospitalidade por mais tempo, e em poucos minutos o Sr. Rivenhall pôde soltar suas risadas à vontade. Lord Bromford,pessoa de marcante popularidade junto a Lady Brinklow, foi convidado a ocupar um lugar no pequeno landô, e durante o curto trajeto até Brook Street foi convencido a fazer um relato minucioso dos sintomas da sua recente indisposição.
Não obstante sua resolução de manter a prima a distância, o Sr. Rivenhall não pôde resistir à tentação de contar-lhe essa passagem. Sophy gostou da brincadeira, exatamente como imaginara que ela gostaria, porém a prima pôs um fim abrupto ao divertimento, ao exclamar involuntariamente:
— Como ele e a Srta. Wraxton combinariam bem! Ora, por que não pensei nisso antes?
— Possivelmente — respondeu o Sr. Rivenhall, gélido — você deve ter-se lembrado de que a Srta. Wraxton é minha noiva!
— Acho que não foi essa a razão — replicou Sophy, pensativa. Ergueu uma sobrancelha ao fitá-lo. — Ofendido, Charles?
— Estou! — respondeu o Sr. Rivenhall.
— Oh, Charles, fico assombrada com você! — disse ela, com sua irreprimível risada gutural de prazer. — Tão falsol
Enquanto ela batia em retirada estratégica depois de pronunciar essas palavras, ele ficou só, olhando com expressão feroz para a porta, impassível.
Sem rodeios, queixou-se à mãe que a conduta de Sophy ia de mal a pior, mas a capacidade total da sua iniquidade só foi explodir sobre ele dois dias depois, quando, ao mandar o cavalariço atrelar sua mais recente aquisição ao tílburi, ficou abalado ao saber que a Srta. Stanton-Lacy saíra nessa equipagem havia menos de meia hora.
— Ela saiu no meu tílburi? — ele repetiu. Sua voz ficou mais exasperada. — Com que cavalo? — perguntou.
O cavalariço não pôde evitar um estremecimento.
— O... cavalo novo, senhor!
— Você... atrelou... o cavalo novo para a Srta. Stanton-Lacy dirigir? — perguntou o Sr. Rivenhall, dando às suas palavras um peso tão terrível que quase privou seu homem de confiança de todo o poder da fala.
— A senhorita disse... a senhorita estava certa... que o senhor não faria objeção, patrão! — gaguejou o infeliz. — E vendo como ela por duas vezes conduziu os cinzentos, senhor, e não tendo recebido nenhuma ordem contrária, e ela afirmando que tudo estava certo... pensei que tivesse sua permissão, senhor!
Em poucas e dolorosas palavras, o Sr. Rivenhall aboliu essa ilusão da mente do cavalariço, acrescentando uma cláusula adicional que derrubava sumariamente quaisquer pretensões que o cavalariço pudesse ter alimentado de ser capaz de pensar realmente. O desventurado rapaz, não ousando arriscar uma explicação sobre as circunstâncias, aguardou em triste silêncio a sua demissão. Ela, porém, não veio. O
Sr. Rivenhall era um patrão severo, mas também justo, e mesmo em sua ira teve uma noção bem clara dos meios que sua inescrupulosa prima empregara para alcançar seus fins. De repente conteve-se e perguntou em linguagem rude:
— Aonde ela foi? Para Richmond? Responda!
Ao ver o culpado praticamente incapaz de controlar-se, o cavalariço de Lord Ombersley interveio, dizendo obsequiosamente:
— Oh, não, senhor! Não, mesmo! A minha senhora e a Srta. Cecilia partiram na caleça para Richmond há uma hora! E a Srta. Amabel foi com elas, senhor!
O Sr. Rivenhall, que sabia do acerto de uma visita à prima que morava em Richmond, olhou-o atentamente, com as sobrancelhas franzidas. Sem dúvida ficara combinado que Sophy devia acompanhar a tia e as primas, e ele estava perplexo, imaginando o que teria feito a prima mudar de ideia. Todavia, esse era um problema insignificante. O baio novo, com que ela tivera a temeridade de sair, era um animal voluntarioso, totalmente desacostumado com o tráfego da cidade e por certo inadequado para uma dama conduzir. O Sr. Rivenhall podia controlá-lo, mas, mesmo um condutor notável como o Sr. Wychbold admitira liberalmente que o animal era um bocado raro. Ao pensar em algumas das menores proezas do baio, o Sr. Rivenhall sentiu-se gelar de apreensão. Foi esse temor que deu margem à sua ira. Um certo grau de raiva sempre havia sentido, depois de saber que tinham levado seu cavalo sem permissão, mas nada se comparava com a fúria assassina que agora o consumia. Sophy comportara-se de maneira imperdoável — e que sua conduta, por estranho que pareça, não condizia com ela, Charles não estava disposto a considerar — e talvez agora mesmo estivesse estirada sobre as pedras que pavimentavam as ruas, com o pescoço quebrado.
— Selem Thunderer e o cavalo castanho! — ordenou subitamente. — Rápido!
Os dois cavalariços precipitaram-se para executar sua ordem, trocando olhares que mostravam as boas finalidades de ambos. Nenhum palafreneiro, treinado para mudar os cavalos de um coche em 50 segundos, teria trabalhado mais rápido, e enquanto os dois empregados ainda permaneciam embasbacados diante daqueles acontecimentos extraordinários, o Sr. Rivenhall, seguido a uma discreta distância por seu cavalariço, cavalgava rapidamente na direção do Hyde Park.
Charles julgara corretamente, mas foi talvez uma infelicidade ele ter alcançado a prima no exato momento em que o baio novo, procurando erguer-se entre os varais à vista de um menino empinando um papagaio, tentou com todo seu vigor escoicear a tábua do assoalho da carruagem. O Sr. Rivenhall, que quase acreditara que poderia perdoar tudo se ao menos encontrasse a prima sã e salva, descobriu que estivera enganado. Pálido de raiva, desmontou, lançou as rédeas por cima da cabeça de Thunderer, meteu-as na mão do cavalariço, com uma breve ordem para levar o cavalo para casa, subiu no tílburi de um impulso e apoderou-se das rédeas. Por alguns instantes, ele ficou totalmente ocupado com o cavalo, e Sophy teve tempo para admirar-lhe a habilidade. Não lhe parecia ter lidado tão mal com o cavalo, pois, com a melhor disposição do mundo para o fazer, o baio não disparara com ela; mas Sophy não fingiu diante do domínio do Sr. Rivenhall sobre um animal altamente nervoso e apenas meio domado. Atenuar a ira do Sr. Rivenhall não fazia parte dos seus planos, e foi contra a vontade que ela exclamou:
— Ah, você é um excelente condutor! Não sabia quanto era bom até hoje!
— Não preciso que me diga isso! — ele falou repentinamente, expressão e voz numa curiosa variação com suas mãos firmes. — Como ousou fazer isto? Como ousou? Se tivesse quebrado o pescoço, seria uma recompensa merecida! Que não tenha quebrado os joelhos dos meus cavalos, devo considerar um milagre!
— Ora bolas! — respondeu Sophy, reparando o erro anterior de se pôr na defesa, preferindo a prática de assá-lo em fogo lento.
O resultado foi o que ela esperava. A viagem de volta para Berke-ley Square não levou muitos minutos, mas o Sr. Rivenhall preencheu-os com toda a exasperação reprimida nas duas últimas semanas. Destruiu o caráter da prima, condenou suas maneiras, falou-lhe do seu forte desejo de discipliná-la, e, no mesmo fôlego, lamentou o homem que seria tolo o bastante para casar-se com ela. Terminou assegurando que fervorosamente aguardava com ansiedade o dia de ficar aliviado da indesejável presença dela na sua casa.
Seria duvidoso Sophy ter detido a maré da sua eloquência. Portanto, ela não tentou fazê-lo, apenas ficou sentada com as mãos cruzadas e os olhos baixos, ao lado do seu acusador. Que a fúria dele fora ativada, quase irracionalmente, a um estado de grande agitação ao encontrá-la sã e salva, Sophy não tinha absolutamente a menor dúvida. Houve momentos durante a sua saída em que ela duvidara da própria capacidade de escapar — ela mesma ou o cavalo — a salvo. Nunca ficara mais satisfeita de ver o primo; e um olhar de relance no seu rosto fora suficiente para assegurar-lhe que ele sofrera um grau de ansiedade desproporcional, maior do que se poderia esperar que o condutor mais zeloso sentisse por seu cavalo. Charles poderia dizer o que lhe aprouvesse; ela não estava decepcionada.
O primo fê-la desembarcar em Berkeley Square, dizendo-lhe rudemente que poderia descer sem a sua ajuda. Ela obedeceu, e sem aguardar ao menos vê-la entrar na casa, Charles afastou-se em direção às cavalariças.
Passava um pouco do meio-dia. O Sr. Rivenhall não regressou a casa, e, tão logo ela se convenceu de que não devia ter receio de ele entrar e surpreendê-la, a indisciplinada prima de Charles chamou um lacaio e mandou-o numa pequena missão: às cavalariças de aluguel mais próximas; em seguida, sentou-se para escrever diversos recados cuidadosos. Por volta das 14 horas, John Potton, aturdido porém não desconfiado, percorria a trote o caminho que levava a Merton, com um desses recados no bolso. Tivesse ele o privilégio de conhecer seu conteúdo, não teria cavalgado tão alegremente ao sair de Londres.
"Querida Sancia", Sophy escreveu. "Encontro-me numa situação das mais assustadoras e preciso sinceramente pedir-lhe que venha ter comigo na Mansão Lacy imediatamente. Não deixe de me atender ou estarei totalmente desonrada. Ashtead fica apenas a 16 quilómetros de Merton, portanto não tema ficar fatigada. Deixo Londres dentro de uma hora e tudo depende de você. Para sempre sua devotada Sophy."
Ao voltar de sua incumbência, o lacaio ficou satisfeito ao receber meio guinéu por seu esforço e tornou a partir com alegria para entregar duas cartas lacradas. Uma delas ele deixou na residência do Sr. Wychbold; a outra levou da casa de Lord Charlbury até a Galeria de Tiro ao Alvo de Manton, e de lá até o Brooks's Club, onde ele finalmente encontrou sua caça depois de longa procura. Lord Charlbury, chamado ao vestíbulo para receber pessoalmente o bilhete, leu-o bastante aturdido, porém recompensou generosamente o portador e encarregou-o de informar à Srta. Stanton-Lacy que permanecia inteiramente à sua disposição.
Nesse meio-tempo a Srta. Stanton-Lacy, que bondosamente dera à sua zelosa criada um dia de folga, instruiu a atónita empregada da casa que pusesse sua roupa de dormir numa valise, e sentou-se para escrever mais duas cartas. Ainda estava ocupada com essa tarefa quando Lord Charlbury foi introduzido no salão. Ela ergueu os olhos, sorrindo e disse:
— Sabia que podia contar com você! Obrigada! Deixe-me apenas terminar este bilhete!
Ele aguardou até que a porta se fechasse atrás de Dassett antes de perguntar:
— Em nome de Deus, Sophy, o que aconteceu? Por que precisa ir a Ashtead?
— É meu lar, a casa de Sir Horace!
— É mesmo? Eu não sabia... Mas tão de repente! Sua tia... sua prima...?
— Não se preocupe! — ela pediu. — Explicarei a você no caminho, se for bom o suficiente para me oferecer sua companhia! Não é longe... pode-se ir numa diligência.
— É claro que acompanharei você! — ele respondeu imediatamente. — Rivenhall está ausente de casa?
— Para mim, é impossível pedir-lhe que vá comigo. Por favor, deixe-me terminar este bilhete para Cecília!
O lorde pediu-lhe desculpas e afastou-se até uma cadeira ao lado da janela. As boas maneiras o proibiam de insistir com ela por uma explicação que Sophy visivelmente relutava em dar, mas ele estava muitíssimo confuso. Ô usual olhar malicioso desaparecera completamente dos olhos dela; a jovem parecia estar numa disposição de espírito séria, fora do comum — um fato que o fez relaxar a guarda e ficar unicamente ansioso para lhe ser útil.
O bilhete para Cecília logo estava pronto, fechado e lacrado. Sophy levantou-se da escrivaninha, e Charlbury arriscou-se a perguntar-lhe se desejava que ele a conduzisse a Ashtead em seu cabriole.
— Não, não, contratei uma diligência! Deve chegar aqui agora mesmo. Não veio no seu cabriole, veio?
— Não, caminhei do Brook's até aqui. Vai passar uma temporada no campo?
— Ainda não sei. Espera por mim enquanto ponho meu chapéu e minha capa?
Ele assentiu com a cabeça, e Sophy afastou-se, mas logo regressou com Tina saltitando à sua volta, na expectativa de ser levada para um passeio. A carruagem de aluguel já aguardava à porta, e Dasset, aturdido tanto quanto Lord Charlbury, mandara um lacaio amarrar a valise da Srta. Stanton-Lacy na traseira. Sophy passou às mãos dele os dois últimos bilhetes que escrevera, recomendando-lhe que se certificasse de que o Sr. e a Srta. Rivenhall os recebessem imediatamente após chegarem em casa. Cinco minutos mais tarde, ela encontrava-se sentada na diligência ao lado de Charlbury, expressando a esperança de que a tempestade que ameaçava desabar só o fizesse depois que tivessem alcançado a Mansão Lacy. Tina pulou para o colo de Sophy e ela contou ao rapaz que havia encontrado no Green Park outro galgo italiano, que não fizera segredo de sua admiração por Tina. O coquetismo de Tina teve de ser descrito; isto conduziu a um relato divertido sobre os ciúmes do spaniel do Sr. Rivenhall, trazido por ele do campo há alguns dias; e desse modo, numa progressão tranquila, Lord Charlbury surpreendeu-se discutindo a caça ao faisão, à raposa, e várias outras atividades esportivas. Esses tópicos duraram até ultrapassarem a estrada de Kennington, e a essa altura as faculdades mentais do rapaz, a princípio atordoadas, estavam bem vigilantes. Pareceu-lhe que a malícia voltara aos olhos de Sophy. Em Lower Tooting, ele deixou que seu olhar se dirigisse, cortesmente, à curiosa torre da igreja, com sua forma circular, encimada por uma estrutura quadrada de madeira, com uma agulha não muita elevada de ripas no topo; mas quando Sophy tornou a recostar-se em seu canto da diligência, ele perguntou, observando-lhe as feições:
— Sophy, por acaso estamos fugindo juntos?
A melodiosa risadinha característica irrompeu de dentro dela:
— Não, não, não tão ruim assim! Preciso lhe dizer?
— Sei muito bem que você tem algum plano abominável em an-
damento! Diga-me agora mesmo!
Ela lançou-lhe um olhar de esguelha, e agora ele já não tinha dúvidas de que a malícia voltara aos seus olhos.
— Bem, Charlbury, a verdade é que raptei você.
Depois de um instante de aturdimento, ele começou a rir. Nisso Sophy prontamente juntou-se a ele, e quando o rapaz recuperou-se do primeiro impacto do absurdo daquela ideia, disse:
— Eu já devia ter imaginado que havia diabrura a caminho quando notei que seu fiel Potton estava ausente! Mas do que se trata, Sophy? Por que estou sendo raptado? Com que fim?
— Para eu estar tão comprometida que você seja obrigado a se casar comigo, é claro — respondeu prosaicamente Sophy.
Essa explicação alegre teve o efeito de fazê-lo sentar-se ereto como um fuso, exclamando:
— Sophy!
Ela sorriu.
— Oh, não fique tão alarmado! Mandei John Potton com uma carta para Sancia pedindo-lhe para ir imediatamente à Mansão Lacy.
— Santo Deus, você inventou alguma dependência para forçá-la a proceder assim?
— Oh, sim, certamente! Ela tem um coração muito bom, sabe, e jamais deixaria de atender a um apelo meu. Ele tornou a descansar, apoiado no encosto estofado, porém disse:
— Não sei o que você merece! Ainda estou completamente aturdido. Por que fez isso?
— Ora, não compreende? Deixei uma carta para Cecília, contando-lhe que estou a ponto de me sacrificar..
— Obrigado! — interrompeu Lord Charlbury.
— ... e sacrificar você — continuou Sophy serenamente — para que meu tio fique finalmente calado. Você sabe, pois já lhe contei, que o convenci a anunciar à pobre Cecy sua inalterável decisão de que ela devia casar-se com você! Se conheço Cecy, o choque irá trazê-la a Ashtead a toda pressa, para nos resgatar a ambos. Meu querido Charlbury, se você não tirar proveito dessa eventualidade, lavo minhas mãos!
— No íntimo, sinto desejar que tivesse feito isso há mais tempo! — foi a ingrata resposta dele. — Ultrajante, Sophy, ultrajantel Ê se nem ela nem a marquesa aparecerem na Mansão Lacy? Permita-me dizer-lhe de que nada servirá para me convencer a comprometer-me com você!
— Não, realmente! Causar-me-ia excessivo desagrado! Se isso acontecer, receio que será obrigado a passar a noite em Leatherhead. Não fica muito distante de Mansão Lacy, e acredito que possa encontrar um conforto tolerável no Cisne. Ou poderá alugar um coche para levá-lo de volta a Londres. Mas Sancia, pelo menos, virá.
— Contou a Cecilia que me raptou! — ele perguntou. Sophy assentiu com a cabeça, e o lorde exclamou: — Eu poderia matá-la! Que sujeira para fazer com alguém! E que papelão devo estar fazendo eu!
— Ela não vai pensar nisso. Lembra-se de que lhe falei no outro dia: que ela devia sentir pena de você e não de Augustus? Além disso, estou convencida de que Cecilia padecerá verdadeiros tormentos de ciúmes! Imagine só! Eu estava praticamente parada até que me lembrei do que certa vez ouvira de um militar muito importante: "A surpresa é a alma do ataque!" Que circunstância mais feliz!
— Não é? — indagou ele, com ironia. — Estou muito inclinado a descer na próxima paragem!
— Se o fizer, estragará tudo.
— É abominável, Sophy!
— Abominável seria se o motivo não fosse puro!
Ele não disse nada e também ela permaneceu calada por alguns minutos. Por fim, depois de ter ponderado o assunto, Charlbury disse:
— Seria conveniente que me contasse tudo. Que eu apenas ouvi a metade, não tenho a menor dúvida. Onde Charles Rivenhall se encaixa nisso tudo?
Ela cruzou as mãos sobre as costas de Tina.
— Pobre de mim! Tenho tido brigas tão horríveis com Charles que me sinto obrigada a buscar refúgio na Mansão Lacy! — disse ela, pesarosa.
— E sem dúvida deixou um bilhete para informá-lo disso! É claro!
— Já prevejo uma feliz reunião! — ele comentou, com amargura.
— Essa — reconheceu ela — foi a dificuldade! Mas acho que posso superá-la. Prometo-lhe, Charlbury, você sairá disto com a pele intacta... bem, talvez, não muito intacta, mas quase isso!
— Você não sabe o quanto aliviou minha mente! Ouso afirmar que não sou páreo para Rivenhall, seja com as pistolas, seja com os punhos, contudo faça-me justiça: não sou exatamente um grandessíssimo poltrão para temer o encontro com ele!
— Faço — ela assegurou. — Mas será inútil para Charles pô-lo a nocaute... falei corretamente?
— Muito corretamente!
— ...ou meter-lhe uma bala — ela terminou com serenidade inabalável.
Ele foi obrigado a rir.
— Vejo que Rivenhall deve ser mais digno de pena do que eu! Por que brigou com ele?
— Eu tinha de arranjar uma desculpa para fugir de Berkeley Square! Entenda que eu não pude pensar em outra coisa a não ser sair com o novo baio que ele acabou de comprar. Uma belíssima criatura! Es-páduas inclinadas, magníficas! Um porte e tanto! Mas totalmente in domável para o tráfego de Londres e decididamente forte demais para uma mulher conduzir!
— Já vi o cavalo. Está falando sério, Sophy, que saiu com ele?
— Saí... chocante, não foi? Asseguro-lhe, senti verdadeiro remorso em minha consciência! Contudo, não houve dano nenhum! Ele não disparou comigo, e Charles veio em salvação antes que eu me encontrasse em apuro de verdade. As coisas que ele me disse...! Nunca o vi tão furioso! Se ao menos eu pudesse lembrar da metade dos insultos que me dirigiu! Mas não importa; eles me deram o motivo que eu precisava para fugir da sua proximidade.
Charlbury fechou os olhos por um momento angustiante.
— Informando-o, sem dúvida, que procurava minha proteção?
— Não, não havia necessidade; Cecy lhe contará isso!
— Que circunstância feliz, não há dúvida! Espero que pretenda contribuir com uma bela coroa de flores às minhas exéquias.
— Certamente! Pela ordem natural das coisas, é provável que você morra antes de mim.
— Se eu sobreviver a esta aventura, pode haver dúvidas sobre isso. Seu destino está claramente escrito: você será assassinada. Não consigo imaginar como não fizeram isso há mais tempo!
— Que estranho! Charles certa vez me disse o mesmo ou algo parecido!
— Não há nada estranho; qualquer homem sensato vai lhe dizer isso!
Ela riu, depois disse:
— Não, você é injusto! Nunca fiz o menor mal a quem quer que seja! Pode ser que com relação a Charles meus estratagemas não tenham sucesso; no seu caso, estou convencida de que devem ter! Bem que isso pode nos deixar contentes. Pobre Cecy! Imagine só que horrível ser obrigada a casar com Augustus e passar o resto da vida ouvindo os poemas dele!
Esse aspecto da situação atingiu Lord Charlbury tão violentamente que ele caiu em silêncio. Não disse nada sobre abandonar Sophy quando parassem na estação seguinte, agora parecia resignado à sua sorte.
A Mansão Lacy, que ficava a pouca distância da estrada principal, era uma casa de estilo elisabetano, bastante ampliada pelas gerações subsequentes, mas ainda conservando muito da sua beleza original. Chegava-se a ela por uma avenida de árvores nobres e outrora fora estabelecida entre jardins formais em terreno montanhoso. Esses jardins, devido ao fato de Sir Horace ser não apenas um proprietário ausente, como também negligente, cresceram demais nos últimos anos, de modo que as moitas de arbustos não se distinguiam de uma selva, e as roseiras não podadas desenvolviam-se de maneira desenfreada nos canteiros de flores, junto com as ervas daninhas. O dia todo o céu ficara encoberto, porém um caprichoso raio de sol, filtrando-se pelas nuvens mais baixas, revelou as janelas com mainel da casa muito carente de limpeza. Um rastro de fumaça saía de uma chaminé, único sinal visível de que a casa ainda era habitada. Descendo do coche, Sophy olhava em volta com olhos críticos, enquanto Charlbury puxava o cordão do sino de ferro ao lado da porta da frente.
— Tudo parece estar numa desordem impressionante! — ela observou. — Preciso falar com Sir Horace que assim não está certo! Ele não devia abandonar a casa dessa maneira. Há trabalho aqui para um exército de jardineiros! Meu pai jamais gostou do lugar, sabe? Muitas vezes perguntei a mim mesma se era porque minha mãe morreu aqui. — Lord Charlbury produziu um som simpático com a garganta, e Sophy continuou alegremente: — Mas ouso afirmar que é só porque ele é extremamente indolente! Toque o sino de novo, Charlbury!
Depois de um prolongado intervalo, ouviram o ruído de passos dentro da casa, seguido imediatamente pelo rangido dos ferrolhos e o som agudo de uma corrente sendo retirada da porta.
— Sinto-me apaziguado, Sophy! — anunciou Charlbury. — Jamais esperei encontrar-me entre as capas de um romance! Haverá teias de aranha e um esqueleto debaixo da escada?
— Receio que não, mas imagine só que encantador se houvesse! — retorquiu ela. Acrescentou, quando a porta foi aberta e um rosto surpreso apareceu: — Bom-dia, Clavering! Sim, sou eu mesma e vim para casa ver como você e Mathilda estão passando!
O mordomo, um homem magro de grisalhos cabelos encaracolados e costas curvas, perscrutou-a por um momento antes de dizer com voz entrecortada:
— Srta. Sophy! Deus do céu, senhorita, se imaginássemos que viria! Tamanho susto me deu ouvir o sino tocando! Venha cá, Matty, olhe! É a Srta. Sophy!
Uma figura feminina, tão robusta quanto a do marido era esguia, apareceu em segundo plano, pronunciando sons aflitos e tentando desatar as tiras do avental encardido. Muito atrapalhada, a Sra. Clavering pediu à jovem patroa para entrar na casa e desculpar a desordem em toda parte. Não tinham recebido aviso da sua chegada. O patrão dissera que tomaria medidas quando regressasse do estrangeiro. Ela duvidava que houvesse um pingo de chá na casa. Se ao menos tivesse sabido da intenção da Srta. Sophy de visitá-los, teria varrido a lareira, limpado a melhor sala e retirado as capas de holanda.
Sophy procurou acalmar a agitada mulher com a certeza de que viera preparada para encontrar a casa em desarranjo, e passou para o vestíbulo. Este era um cómodo grande, revestido de lambris; possuía um telhado de águas de pequena empena, do qual, numa das extremidades, uma bonita escada de carvalho se elevava em lances que davam acesso aos andares superiores da casa. Todas as cadeiras estavam cobertas com capas de holanda, e uma película de poeira jazia sobre a mesa-consolo, cujas abas se apoiavam em pernas móveis e que se encontrava no centro do aposento. O ar parecia desagradavelmente úmido, e uma grande mancha de mofo numa das paredes tornou esse fato facilmente compreensível.
— Precisamos abrir todas as janelas e acender as lareiras! — disse Sophy animadamente. — A marquesa... uma dama espanhola já chegou?
Garantiram que nenhuma dama espanhola fora vista na mansão, circunstância pela qual os Claverings pareciam achar que mereciam ser congratulados.
— Ótimo! — exclamou Sophy. — Ela estará logo aqui, e precisamos nos esforçar para tornar as coisas um pouco mais confortáveis antes de a recebermos. Traga um pouco de lenha e gravetos para esta lareira, Clavering, e você, Matty, tire essas capas dos móveis! Se não houver chá na casa, estou certa de que há cerveja! Traga um pouco para Lord Charlbury, por favor! Charlbury, queira me perdoar por convidá-lo para uma casa tão abandonada! Espere, Clavering! Os estábulos estão mais ou menos decentes? Não quero que o coche se afaste, os cavalos precisam receber ração e uma escovada, e os postilhões devem ser alimentados!
Ao abandonar os escrúpulos ao prazer da situação, Lord Charlbury disse:
— Você me permite cuidar desse assunto? Se Clavering me mostrar o caminho para os estábulos...
— Sim, por favor, faça isso! — disse Sophy, grata. — Preciso ver quais os quartos que convém mais usar, e, até termos um fogo aceso, será muito desagradável para você.
Lord Charlbury, interpretando corretamente que isso significava que ele atrapalharia muito se ficasse na casa, saiu com Clavering para levar os postilhões aos estábulos, felizmente ainda perfeitos e sob a responsabilidade de um idoso servidor aposentado, cujos olhos remelo-sos se iluminaram visivelmente à vista de animais tranquilos como os cavalos de aluguel. Um cavalo robusto, de pernas curtas, e uma parelha de cavalos de fazenda eram os únicos ocupantes dos espaçosos estábulos, mas o servidor garantiu-lhe que havia palha e forragem suficientes, e mais adiante incumbiu-se de regalar os postilhões em sua própria casa, que ficava anexa aos estábulos.
Então Lord Charlbury caminhou pelos jardins até que pesadas gotas de chuva o fizeram voltar para casa. Lá descobriu que as capas tinham sido retiradas dos móveis do vestíbulo, que um espanador fora usado, e um fogo aceso crepitava na gigantesca lareira.
— Não está realmente frio — disse Sophy —, mas fará tudo parecer mais alegre.
O rapaz, olhando com expressão duvidosa para os rolos de fumaça que saíam da lareira e invadiam o aposento, concordou humildemente com o que ela dissera, e até fez uma exibição de aquecer as mãos diante das pequenas labaredas azuis que apareciam em meio às brasas. Uma lufada mais violenta de fumaça o fez afastar-se, acometido de um acesso de tosse. Sophy ajoelhou-se para meter um atiçador de brasas sob a massa negra, levantando-a para permitir a passagem de uma corrente de ar.
— É capaz de haver uma ninhada surpreendente na chaminé — ela observou calmamente. — Contudo, Mathilda diz que o fogo sempre faz fumaça durante algum tempo quando as chaminés estão frias. Veremos! Encontrei um pouco de chá em um dos armários da despensa, e Mathilda vai prepará-lo para nós agora mesmo. Ela não fazia ideia de que o chá estava lá. Gostaria de saber quanto tempo ficou escondido no armário!
— Gostaria de saber? — repetiu Lord Charlbury, fascinado com a ideia dessa relíquia dos tempos esquecidos da Mansão Lacy.
— Felizmente, o chá não deteriora — disse Sophy. — Pelo menos... ou deteriora?
— Não faço ideia, mas isso também veremos — respondeu Charlbury. Começou a caminhar pelo vestíbulo, inspecionando os quadros e os enfeites. — Que pena esta casa ficar abandonada à ruína! — observou. — Ali está um conjunto Dresden encantador e apaixonei-me totalmente por aquele Arlequim ali. Pergunto a mim mesmo por que seu pai não prefere alugar esta casa para pessoas respeitáveis enquanto ele está ocupado no estrangeiro em vez de deixá-la estragar-se!
— Bem, durante muitos anos ele permitiu que minha tia Clara morasse aqui — explicou Sophy. — Era muito excêntrica, mantinha gatos, e morreu há dois anos.
— Penso que ela não cuidava muito da casa — replicou Charlbury, colocando os óculos para examinar uma paisagem numa maciça moldura dourada.
— Não, receio que não cuidava. Esqueça! Logo Sir Horace colocará tudo em ordem. Nesse meio-tempo, Mathilda deve arrumar a sala de almoço, e podemos nos sentar lá e ficarmos aconchegados. — Ela franziu ligeiramente a testa. — A única coisa que me preocupa um pouco é quanto ao jantar — confessou. — Não me parece que Mathilda tenha alguma noção de cozinha, e devo confessar que também não tenho. Talvez você diga que esta é uma circunstância trivial, mas...
— Não — interrompeu o rapaz, com grande firmeza. — Eu não diria uma coisa desse tipo! Vamos jantar aqui? Precisamos?
— Oh, sim, estou certa de que precisamos nos decidir a isso — ela respondeu. — Estou em dúvida de quando iremos ver Cecília, porém creio que dificilmente ela chegará aqui antes das 19 horas, pois ela foi a Richmond com minha tia, sabe, e é muito provável que passem a tarde lá. Está interessado em quadros? Gostaria de subir para que eu lhe mostre a Longa Galeria? Os melhores acham-se lá em cima, creio eu.
— Obrigado. Gostaria de vê-los. Espera que Rivenhall faça com panhia à irmã?
— Bem, imagino que sim. Afinal, ela dificilmente sairá sozinha e sem dúvida ele deve ser a pessoa para quem ela se voltaria em tal situação. Não há como dizer, é claro, mas pode estar certo de que se Charles não vem com Cecy, ele a seguirá rapidamente. Vamos subir para a galeria até o chá ficar pronto.
Ela ia na frente em direção às escadas, parando ao lado de uma cadeira para apanhar sua grande bolsa de viagem. A galeria, que se estendia ao longo do lado norte da casa, estava numa escuridão sepulcral, pois pesadas cortinas tinham sido corridas em suas altas janelas. Sophy começou a puxar as cortinas, dizendo:
— Há dois Van Dycks, e algo que dizem ser um Holbein, embora Sir Horace duvide. Aquele é o retrato de minha mãe, feito por Hoppner. Não me lembro dela, mas Sir Horace jamais se importou com esse retrato; ele diz que o quadro a mostrava pretensiosa, o que jamais foi.
— Você não se parece muito com ela — Charlbury observou, olhando para o retrato.
— Oh, não! Minha mãe era considerada uma beldade! — disse Sophy.
Ele sorriu, mas não fez comentários. Passaram para o quadro seguinte, e foram percorrendo toda a extensão da galeria, quando Sophy imaginou que Mathilda já teria colocado a bandeja com o chá para eles. Pareceu-lhe que as cortinas deviam ser cerradas de novo, e Charlbury foi até as janelas para executar essa tareia. Ele já havia fechado duas delas e tinha estendido a mão para agarrar uma das cortinas da terceira quando Sophy, atrás dele, disse:
— Fique exatamente como está por um instante, Charlbury. Consegue ver a casa de verão de onde está?
Ele ficou imóvel, o braço cruzando a janela:
— Posso ver algo entre as árvores que talvez seja... — Então ouviu-se um disparo, e ele moveu-se rápido para o lado, agarrando oantebraço, que caiu como se um ferro em brasa o tivesse cauterizado. Por um momento, seus sentidos ficaram inteiramente aturdidos pelo choque; depois ele se conscíentizou que a manga do casaco estava cha muscada, com um furo, e que havia sangue correndo entre seus dedos; e que Sophy punha de lado uma pequena e elegante pistola.
Ela parecia um pouco pálida, mas sorriu-lhe de maneira tranquilizadora, e disse, enquanto vinha em sua direção.
— Queira realmente me perdoar! Uma coisa infame para fazer, mas julguei que provavelmente seria pior se eu o avisasse!
— Sophy, enlouqueceu? — perguntou, furioso, começando a enrolar o lenço no braço. — O que pretende com isso?
— Venha para um dos quartos e deixe-me amarrá-lo para você. Tenho tudo pronto. Receava que você pudesse ficar um pouco zangado, pois estou certa de que deve tê-lo machucado abominavelmente. Fazer isso custou-me a maior resolução a tomar — ela respondeu, empurrando-o gentilmente para a porta.
— Mas, por quê? Em nome de Deus, o que lhe fiz para que você precisasse meter uma bala em mim?
— Oh, você não fez absolutamente nada! Aquela porta, por favor, e tire o casaco. Meu pavor era que a minha pontaria pudesse falhar, e eu quebrasse seu braço, mas estou certa de que não quebrei, quebrei?
— Não, é claro que não quebrou! A bala passou raspando, mas ainda não entendo por que...
Ela ajudou-o a tirar o casaco e a enrolar a manga da camisa.
— Não foi sério, apenas um ferimento superficial. Fico tão grata!
— Eu também! — replicou o rapaz, carrancudo. — Posso considerar-me um felizardo por não estar morto, suponho!
Ela riu.
— Que tolice! Àquela distância? Entretanto, imagino que Sir Horace teria ficado orgulhoso de mim, pois meu alvo era tão firme como se eu estivesse atirando numa hóstia e não teria sido nada maravilhoso se minha mão tivesse tremido. Sente-se para que eu possa lavar o ferimento!
Ele obedeceu, sustentando o braço sobre a bacia de água que ela, tão prudentemente, providenciara. Charlbury tinha um senso de humor muito jovial, e agora que o primeiro choque passara, não pôde evitar que seu lábio tremesse.
— Sim, realmente! — ele retorquiu. — Pode-se prontamente calcular o prazer de um pai diante de tal façanha! Dificilmente a palavra coragem serve para isso, Sophy! Você nem faz menção de desmaiar à vista de sangue.
Ela levantou rapidamente os olhos da tarefa de passar uma esponja pelo ferimento.
— Santo Deus, não! Não sou melindrosa, fique sabendo!
Diante disso, ele lançou a cabeça para trás e desatou numa gargalhada.
— Não, não, Sophy! Você não é mesmo melindrosa! — disse, acrescentando com voz sufocada pelo riso, quando finalmente conseguiu falar: — A Magnífica Sophy!
— Gostaria que não se mexesse! — disse ela com severidade, enxugando o braço dele e dando umas pancadinhas com uma toalha macia. — Veja, quase não sangra mais! Vou espalhar basilicão em pó e enfaixar seu braço para que se sinta novamente confortável.
— Não estou nem um pouco confortável e logo provavelmente ficarei com febre alta. Por que fez isso, Sophy?
— Bem — ela respondeu, muito séria. — O Sr. Wychbold disse que Charles ou desafiaria você para um duelo por causa desta fuga ou que o poria nocaute numa luta, e não desejo de modo algum que qualquer coisa desse tipo lhe aconteça.
Efetivamente, isso colocou um ponto final no divertimento do rapaz. Agarrando-a pelo pulso com a outra mão, ele exclamou:
— É verdade? Por Deus, tenho muita vontade de esbofeteá-la! Pensa que tenho medo de Charles Rivenhall?
— Não, acho que não tem, mas imagine só que coisa horrível seria se Charles por acaso matasse você, tudo por minha causa!
— Tolice! — ele replicou, zangado. — Como se fôssemos loucos o bastante para deixarmos chegar a esse ponto, o que, asseguro-lhe, não somos...
— Vocês não são loucos, creio que tem razão, mas também acho que o Sr. Wychbold estava certo ao pensar que Charles iria... como ele disse?... acertar-lhe um soco!
— Muito provável, mas embora eu não seja páreo para Rivenhall, ainda poderia ter êxito!
Ela começou a enrolar uma tira de linho no antebraço do rapaz.
— Não seria a solução — disse. — Se você derrotasse Charles, Cecy não iria gostar nem um pouco; e se imagina, meu querido Charlbury, que um olho preto e um nariz sangrando ajudarão sua causa com ela, deve ser um grande tolo!
— Pensei — disse ele, com ironia — que ela tenderia a penalizar-se de mim!
— Exatamente! E foi essa a circunstância que me decidiu a atirar em você! — replicou Sophy, triunfante.
Novamente, ele não pôde deixar de rir. Contudo, no momento seguinte, de mau humor, chamou a atenção dela para o fato de que fizera a atadura tão grossa que o impossibilitava de enfiar a manga do casaco.
— Bem, a manga está muito estragada, portanto não tem importância não vesti-la — disse Sophy. — Você pode abotoar o casaco, dei xando o braço de fora, e vou ajeitar uma tipóia. Não há dúvida de que se trata de um ferimento de superfície, mas pode sangrar nova mente se ficar com o braço abaixado. Vamos descer e ver se Mathilda já fez o chá!
A Sra. Clavering não só se esgotara ao preparar o chá, como também mandara o filho do jardineiro correndo ao povoado para trazer em seu auxílio uma robusta donzela de faces coradas, a qual, orgulhosamente, apresentou a Sophy como a filha mais velha de sua irmã. Fazendo uma reverência saltitante, a moça disse chamar-se Clementina Ao considerar que a Mansão Lacy talvez fosse solicitada a acomoda: várias pessoas naquela noite, Sophy mandou-a apanhar mantas e len çóis e arejá-los diante da lareira da cozinha. A Sra. Clavering, ainda labutando para tornar habitável a sala de almoço, colocara a bandeja do chá no vestíbulo, onde o fogo começara a arder com mais firmeza. De vez em quando, lufadas de fumaça ainda jorravam no aposento, mas Lord Charlbury, afundado numa poltrona e usando uma almofada como apoio para o braço ferido, achava que seria grosseiro fazer críticas sobre o fato. O chá, que parecia ter perdido um pouco do seu aroma devido à longa permanência no armário da despensa, era acompanhado de algumas fatias de pão com manteiga e um grande bolo inglês, um tanto pesado, do qual Sophy comeu com grande apetite. Do lado de fora, a chuva caía com força e o céu tornara-se tão plúmbeo que pouquíssima luz penetrava nos aposentos da mansão com telhado de águas de pequena empena. Uma busca rigorosa não conseguiu revelar a existência de outras velas além das de sebo, mas logo a Sra. Clavering trouxe uma candeia para o vestíbulo, a qual, assim que ela fechara as cortinas, fez o cómodo parecer muito aconchegante, comentou Sophy com Lord Charlbury.
Pouco tempo depois seus ouvidos foram assaltados pelo ruído de alguém que chegava. Imediatamente Sophy levantou-se de um salto.
— Sancia! — exclamou, e lançou ao hóspede um sorriso atrevido. — Agora pode ficar tranquilo! — Ela apanhou a candeia de sobre a mesa e levou-a para a porta, que escancarou, permanecendo parada na soleira, a candeia erguida bem alto para jorrar sua luz o mais longe possível. Através da chuva vigorosa, viu o coche-landô da marquesa parar no pórtico, e enquanto ela observava, Sir Vincent Talgarth descia agilmente da carruagem e se voltava, dando a mão para a marquesa descer. Noutro instante, o Sr. Fawnhope também descia e parava petrificado, olhando para a figura na entrada, enquanto a chuva caía sobre sua cabeça descoberta.
— Oh, Sophy, por quê? — gemeu a marquesa, alcançando a proteção do pórtico. — Esta chuva! Meu jantar! É muita maldade sua!
Sophy, não dando atenção às queixas, dirigiu-se ferozmente a Sir Vincent.
— Ora, que diabo isto significa? Por que teve de acompanhar Sancia, e por que cargas d'água precisou trazer Augustus Fawnhope?
Ele foi sacudido por uma pequena risada.
— Minha querida Juno, deixe-me entrar para livrar-me deste aguaceiro! Sem dúvida sua própria experiência sobre Fawnhope deve tê-la ensinado que ninguém o traz, ele vem! Fawnhope estava lendo os dois primeiros atos da sua tragédia para Sancia quando seu mensageiro chegou. Continuou lendo durante a viagem, até cessar a claridade. — Ergueu a voz, chamando: — Entre, poeta extasiado! Vai ficar ensopado se continuar parado aí por mais tempo!
O Sr. Fawnhope, com um sobressalto, dirigiu-se para a casa.
— Oh, bem! — exclamou Sophy, procurando tirar proveito da situação —, calculo que devo admiti-lo, mas é o maior azar!
— É você! — anunciou o Sr. Fawnhope, fitando-a com olhos arregalados. — Por um momento, enquanto estava aí parada, a candeia erguida acima de sua cabeça, pensei que contemplava uma deusa! Uma deusa ou uma virgem vestal!
— Bem, se eu fosse você — intrometeu-se Sir Vincent, prático — sairia da chuva até que me resolvesse.
XVII
VOLTANDO DE RICHMOND no final da tarde, Lady Ombersley e suas filhas assumiram uma expressão séria ao chegarem a Berkeley Square e encontrarem a Srta. Wraxton aguardando por elas. Depois de abraçar Lady Ombersley afetuosamente, ela explicou que se aventurara a sentar-se e esperar, uma vez que era portadora de um recado da mãe. Lady Ombersley, um pouco ansiosa por causa de Amabel, que parecia cansada e se queixara de uma leve dor de cabeça durante a viagem de regresso, respondeu distraidamente:
— Agradeça muito à sua mãe, minha querida. Amabel, venha ao meu quarto de vestir, onde colocarei compressas de vinagre na sua testa! Logo ficará melhor, meu amor!
— Coitadinha! — exclamou a Srta. Wraxton. — Ela ainda parece lamentavelmente abatida! Já deve saber, senhora, que retiramos nossas luvas pretas. Mamãe deseja realizar uma reunião formal em homenagem ao acontecimento que se aproxima — na verdade uma pequena reunião, pois muitas pessoas importantes estão fora da cidade! Contudo, por nada neste mundo ela fixaria uma data que não se ajustasse aos preparativos da senhora. Está contemplando a mensageira dela!
— Quanta gentileza de sua mãe! — murmurou Lady Ombersley. — Ficaremos muito felizes — qualquer dia que sua mãe marcar. Te-mos pouquíssimos compromissos no momento! Queira me desculpar, não posso continuar aqui! Amabel ainda não está de todo bem, como sabe! Cecília combinará tudo com você. Diga à sua mãe tudo que for apropriado dizer da minha parte! Venha, querida!
Enquanto falava, conduzia a filha mais jovem para a escada, não prestando absolutamente atenção a Cecília, para quem Dassett discretamente entregara o bilhete de Sophy; Cecília também não prestava atenção às palavras que sua mãe dizia. Sob o olhar interessado do mordomo, Cecília, ao ler a carta no mais absoluto aturdimento, empalidecia de modo alarmante. Ao terminar a leitura, ergueu os olhos e fixou-os à sua frente, os lábios abertos, como se desejasse chamar a mãe. Em seguida conseguiu refazer-se e procurou conservar a calma. Porém as mãos com que dobrou a carta de Sophy tremiam visivelmente, e toda sua aparência era a de alguém que sofrera um sério abalo. A Srta. Wraxton notou isso e moveu-se em sua direção, dizendo, solícita:
— Parece que não está se sentindo muito bem! Não recebeu más notícias, recebeu?
Dassett, cujos dedos formigaram de ansiedade para romper o lacre da carta de Sophy, tossiu e disse, afetando desinteresse:
— A Srta. Stanton-Lacy regressará à cidade esta noite, senhorita? A criada dela está num estado de grande apreensão, por não ter tido qualquer indicação de que a patroa estava indo para o campo.
Cecília olhou-o de modo um tanto confuso, porém controlou-se o bastante para responder com tolerável serenidade:
— Sim, acho que sim. Oh, sim, certamente ela voltará esta noite!
Se essa resposta não satisfez a curiosidade de Dassett, pelo menos fez a Srta. Wraxton ficar alerta. Tomando Cecília pelo braço, levou-a para a biblioteca, dizendo com sua voz bem modulada:
— A viagem deixou-a fatigada. Seja gentil, Dassett, leve um copo com água à biblioteca juntamente com sais aromáticos! A Srta. Rivenhall está se sentindo um pouco tonta.
Cecília, cuja constituição física não era forte, realmente parecia tonta e só pôde sentir-se grata depois que foi obrigada a deitar-se no sofá da biblioteca. Habilmente, a Srta. Wraxton retirou-lhe o lindo chapéu e começou a friccionar-lhe as mãos, surrupiando de uma delas o bilhete que Cecília agarrava tão febrilmente. Dassett logo entrou com os requisitos encomendados, que a Srta. Wraxton tomou dele com tranquilas palavras de agradecimento e dispensa. A tontura, que fora apenas momentânea, já estava passando, e Cecília pôde sentar-se e beber a água aos golinhos, bem como reanimar-se depois de cheirar diversas vezes o frasco de sais estimulantes. Nesse meio-tempo, a Srta. Wraxton, da maneira mais audaciosa possível, apanhara a carta de Sophy e assenhoreava-se do seu conteúdo:
"Você ficou surpresa, querida Cecília, porque afinal eu não quis acompanhar vocês a Richmond. Que este bilhete seja minha explicação. Há muito tempo venho pensando na infeliz situação em que você se encontra, e só vejo um meio de acabar com a angústia que tem sofrido por causa da implacável determinação de meu tio em vê-la casada com C. Acredito ter sido ele encorajado nessa decisão pelo próprio C., mas não vou magoá-la mais, continuando a escrever sobre o assunto. Se C. fosse afastado, só posso acreditar que meu tio logo irá ceder com respeito a F.
"Charles lhe contará que brigamos. Embora deva confessar que a culpa original foi minha, o modo dele me tratar, a linguagem que empregou... tão violenta, tão descontrolada!... impossibilita-me permanecer por mais tempo sob esse teto. Resolvi retirar-me imediatamente para a Mansão Lacy e convenci C. a servir-me de escolta. Confio tornar impossível que ele deixe a Mansão Lacy ainda esta noite! Ele é um cavalheiro, e, embora seu coração jamais possa seu meu, estou convencida de que vai me propor casamento, e você poderá ficar finalmente tranquila.
"Nada tema por mim! Sabe muito bem que desejo constituir família, e embora minha afeição não esteja mais comprometida do que a de C., e devo estremecer só em pensar nos meios que a indiferença dele me forçam a empregar, acho que conseguiremos viver toleravelmente juntos. Se lhe posso ser de alguma ajuda desse modo, minha querida prima, terei minha recompensa. Para sempre sua devotada Sophy."
— Santo Deus! — exclamou a Srta. Wraxton, saindo de sua calma com um sobressalto. — Isto é possível? Embora eu tenha julgado sua conduta péssima, não teria acreditado que ela chegasse a tal extremo! Moça infeliz! Não há uma palavra de arrependimento! Nem um sopro de vergonha! Minha pobre Cecília, não me admira que ficasse nesse acabrunhamento! Você foi miseravelmente enganada!
— Ora, sobre o que está falando? — exclamou Cecília, levantando-se. — Eugenia, você não tinha o direito de ler minha carta! Me dê isso imediatamente, por favor, e jamais ouse mencionar o seu conteú-do a um ser vivo!
A Srta. Wraxton devolveu a carta, mas disse:
— Em vez de chamar Lady Ombersley para você, julguei que preferia que eu descobrisse o que a transtornara tanto. Quanto a não mencionar o conteúdo, imagino que esta notícia deve estar espalhada por Londres inteira amanhã! De fato não sei de outra ocasião em que fiquei mais abalada.
— Por Londres inteira! Não, isso não acontecerá! — disse Cecilia com veemência. — Sophy! Charlbury! Não pode ser, não deve ser"! Partirei para Ashtead agora mesmo. Como poderia ela fazer uma coisa dessas? Como poderia? Tudo por causa da sua bondade... do seu desejo de ajudar-me, mas como ousou ela partir com Charlbury? — Procurou ler a carta de novo, mas amassou-a na mão, estremecendo. — Uma briga com Charles! Oh, mas ela deve saber que Charles não fala sério as coisas que diz quando está furioso! Ela sabe disso! Ele irá comigo e a traremos para casa! Onde está ele? Alguém deve ir ime-diatamente ao White's!
A Srta. Wraxton, que estivera pensando, pousou a mão no braço da jovem, para detê-la.
— Por favor, acalme-se, Cecília! Pense um pouco! Se sua desventurada prima brigou de maneira tão desagradável com Charles, é provável que a ida dele só poderia fazer mais mal do que bem. Contudo, creio que está certa nisso, que não é bom deixar as coisas correrem por si mesmas. O escândalo capaz de resultar seria tal que nenhum de nós poderia contemplar sem sofrimento. Receio o efeito que possa causar à querida Lady Ombersley acima de tudo. Aquela moça lamentavel deve ser salva dos próprios atos!
— E Charlbury! — Cecília aparteou, torcendo as mãos. — Tudo por causa da minha loucura! Preciso partir imediatamente!
— Você partirá e eu irei com você — declarou a Srta. Wraxton nobremente. — Permita-me apenas tempo suficiente, enquanto você dá ordens para aprontarem o coche de seu pai, a fim de escrever um bilhete para minha mãe. Acho que um dos criados o levaria rápido a Brook Street. Vou informá-la de que fui convencida a passar a noite aqui com vocês, e ela não achará isso extraordinário.
— Você? — exclamou Cecilia, arregalando os olhos. — Oh, não, não! Quero dizer, é extrema gentileza de sua parte, querida Eugenia, mas eu preferiria que não fosse!
— Dificilmente poderá ir sozinha — a Srta. Wraxton lembrou-a.
— A criada de Sophy me fará companhia. Peco-lhe, não permita que seus lábios deixem escapar uma palavra sobre isto.
— Minha querida Cecilia, certamente não faria de uma criada sua confidente, não é? Seria o mesmo que contar ao pregoeiro da cidade! Se não aceitar minha companhia, vou considerar-me obrigada a revelar tudo a Lady Ombersley. Considero meu dever ir com você, e estou convencida de que é o que Charles desejaria que eu fizesse. O fato de eu estar na Mansão Lacy deve conferir decoro de um modo geral, pois uma mulher comprometida, como sabe, impõe mais respeito do que uma jovem sem compromisso.
— Oh, eu realmente não sei o que dizer! Quisera Deus que você jamais tivesse posto os olhos na carta de Sophy!
— Acho que pode ser melhor para todos nós que eu tenha posto os olhos nela — respondeu a Srta. Wraxton, com um sorriso. — Dificilmente você tem condições adequadas, querida Cecilia, para conduzir este caso delicado com um grau de serenidade, permita que lhe diga. O que deve ser feito? Irei com você, ou você prefere que eu revele tudo a sua mãe?
— Muito bem, venha, então! — disse Cecilia, quase irritada. — Não sei por que faz questão disso, quando está claro que realmente você não gosta de Sophy. Não consigo entender.
— Sejam quais forem os meus sentimentos com respeito à sua prima — declarou a Srta. Wraxton, com um ar de santa —, espero jamais possa esquecer meu dever de cristã.
Um ligeiro rubor afluiu às faces de Cecilia. Ela era uma jovem tolerante, mas essas palavras a deixaram tão contrariada que disse num tom irritadiço:
— Bem, acho que Sophy conseguirá fazè-la parecer tola, o que ela sempre faz, e isso será bem-feito para você, Eugenia, por se meter no que não é da sua conta!
Mas a Srta. Wraxton, percebendo que sua hora de triunfo chegara, limitou-se a sorrir de maneira irritante e recomendou-lhe pensar no que seria melhor dizer à sua mãe.
Com dignidade, Cecilia respondeu que sabia exatamente o que dizer, e dirigiu-se à porta. Antes de alcançá-la, ela se abriu e Dassett entrou novamente, oesta vez para informá-la de que Lord Bromford chegara e pedia o favor de uma palavra com ela.
— Você devia ter dito que eu não podia! — Cecília disse. — Não posso ver Lord Bromford agora!
— Bem, senhorita — concordou Dassett. — Mas Lord Bromford parece muito resolvido a vê-la ou a ver Lady Ombersley, e Lady Ombersley está com a Srta. Amabel e não quer ser perturbada. — Ele emitiu sua tosse de reprovação. — Talvez devesse mencionar que Lord Bromford, ao saber que a Srta. Sophy deixou a cidade, está extremamente desejoso de saber para onde foi.
— Quem contou a ele que a Srta. Sophy saiu da cidade? — Cecília perguntou com voz aguda.
— Isso eu não poderia arcar com a responsabilidade de informar, senhorita. Não tendo recebido qualquer ordem em contrário, não considerei minha obrigação negar o fato quando Lord Bromford dignou-se a indagar de mim se era verdade.
Cecília lançou um olhar de impotência para a Srta. Wraxton, que imediatamente assumiu o controle da situação com mãos eficientes.
— Por favor, peça a Lord Bromford que entre neste aposento! — ordenou ela.
Dassett fez uma reverência e retirou-se.
— Eugenia! Cuidado com o que vai fazer! O que pretende dizer a ele?
A Srta. Wraxton respondeu gravemente:
— Isso deve depender da circunstância. Não sabemos de quanto ele já está ciente, e não devemos esquecer que ele tem tanto interesse em sua prima quanto qualquer um de nós.
— Nada disso! — replicou Cecília. — Sophy jamais se casaria com ele.
— Certamente ela tem se mostrado indigna da devoção dele. Espero que ela não tenha motivo para ficar grata por se casar com qualquer homem respeitável que a peça em casamento.
Como Lord Bromford foi introduzido na sala naquele exato momento, Cecília foi poupada da necessidade de responder-lhe.
Lord Bromford parecia extremamente ansioso, contudo a ansiedade não bastaria para fazê-lo moderar os termos formais de seus cumprimentos. Estes foram apresentados com riqueza de expressões, e ele não esqueceria do respeitoso pedido de informação sobre o estado de saúde de Amabel. Em seguida, pediu perdão por importunar a Srta. Rivenhall com aquela audiência, e, somente depois de um pequeno circunlóquio, chegou ao ponto de sua visita. Ele tinha visto a Srta. Stanton-Lacy passar por Piccadilly num coche de aluguel puxado por quatro cavalos, com Lord Charlbury ao seu lado e a bagagem presa na parte traseira do veículo.
— Minha prima foi chamada inesperadamente para fora da cidade — respondeu Cecília com uma frieza que talvez pudesse desencorajar quaisquer pretensões.
— Apenas com aquele rapaz por companhia? — ele exclamou, muito chocado. — Além disso... e é uma circunstância que torna a coisa mais extraordinária... eu havia combinado sair com ela esta tarde!
— Ela deve ter esquecido — respondeu Cecília. — Ficará penalizada! O senhor deve perdoá-la.
Por um momento ele ficou a olhá-la intensamente, e o que viu em sua expressão obrigou-o a voltar-se para sua companheira e dizer seriamente:
— Srta. Wraxton, apelo para a senhora! É inútil dizer que a Srta. Stanton-Lacy não deixou Londres clandestinamente! Como teria Rivenhall permitido que ela viajasse dessa maneira? Queira perdoar-me, mas as atenções de Charlbury — expressas, deve concordar, além dos limites do decoro — têm dado origem às mais horríveis suspeitas em minha mente. Não pode ignorar que também sou uma pessoa interessada nela! Iludira-me pensando que com o regresso de Sir Horace Stanton-Lacy à Inglaterra... Mas esta partida súbita... bagagem amarrada na traseira...! — Ele parou, aparentemente acabrunhado.
A Srta. Wraxton disse suavemente:
— A Srta. Stanton-Lacy é sempre intolerante com as convenções. Ela foi para a sua casa em Ashtead, mas estou confiante de que os conselhos da Srta. Rivenhall e os meus devem ter valor para ela, e Sophy regressará a Londres conosco esta noite. Estamos a ponto de partir para Ashtead imediatamente.
Ele pareceu ficar muito abalado e disse sem demora:
— Tão próprio da senhora! Creio que a compreendo! Nestas últimas semanas reconheci naquele rapaz um libertino! Pode estar certa; ele a iludiu completamente! Rivenhall acompanha vocês?
— Nós vamos sozinhas — respondeu a Srta. Wraxton. — O senhor deduziu a verdade e apreciaríamos muitíssimo que nossos esforços agora se fixassem na manutenção deste infeliz acontecimento longe dos ouvidos do mundo!
— Sim, é claro — ele respondeu, ansioso. — Mas não é de se supor que duas mulheres de fina educação empreendam tal missão sem o apoio da presença firme de um homem! Acho que deveria acompanhá-las. Sim, é isso que eu deveria fazer. Exigirei explicações de Charlbury. Sua conduta neste caso mostrou-me o que ele é. Iludiu grosseiramente a Srta. Stanton-Lacy e responderá por isso!
Um protesto indignado formou-se nos lábios de Cecília, mas a Srta. Wraxton interveio rapidamente para dizer:
— Seus sentimentos o enobrecem, e, da minha parte, devo dizer que ficarei grata pela proteção da sua escolta. Só a mais rigorosa necessidade conseguiria convencer-me de assumir tal missão sem o apoio de um cavalheiro responsável!
— Mandarei selar meu cavalo imediatamente! — ele declarou num tom de voz de severa resolução. — Posso lhe dizer uma coisa será inacreditável se eu não desafiar Charlbury! De um modo geral não defendo o costume bárbaro do duelo, mas as circunstâncias, como sabe, alteram os argumentos, e uma conduta dessas não deve ficar impune! Irei até em casa imediatamente e estarei com vocês de novo no menor espaço de tempo possível!
Ele nem esperou para segurar a mão de ambas as moças antes de sair precipitadamente da sala. Cecília, positivamente chorando pela contrariedade sofrida, começou a repreender a Srta. Wraxton, porém ela, sem perder um pingo do seu autodomínio, respondeu:
— Foi desastroso, talvez, que ele ficasse ciente da fuga da Srta. Stanton-Lacy, mas não seria bom deixar essa suspeita na mente dele. Confesso, a presença de um homem de bom senso será um conforto para mim, e se a sua natureza cavalheiresca, minha querida Cecília, o levasse a renovar seu pedido da mão de sua prima, seria uma solução para todas as nossas dificuldades, e, devo acrescentar, muito mais do que ela merece!
— Esse maçante! — Cecilia exclamou.
— Sei muito bem que os méritos de Lord Bromford têm sido muito depreciados nesta casa. Quanto a mim, considero-o um homem sensível, que sente exatamente como devem ser sentidos os assuntos sérios, e que tem muitas informações interessantes a compartilhar com aqueles que não são frívolos e sabem dar-lhe atenção.
Incapaz de controlar suas emoções muito fortes, Cecilia saiu correndo da sala quase inclinada a tomar a mãe para confidente.
Mas Lady Ombersley, depois de considerar que o pulso de Amabel batia rápido demais, achava-se tão absorvida com a menina convalescente que pouca atenção tinha para mais alguém. Já sabendo do delicado estado de nervos da mãe, Cecilia absteve-se de aumentar suas ansiedades. Disse-lhe apenas que uma mensagem da Mansão Lacy levara Sophy a toda pressa para Surrey, porém, visto que julgava inadequado para a prima permanecer numa casa deserta sozinha, ela estava partindo, ou para fazer-lhe companhia ou para convencê-la a regressar a Londres. Como Lady Ombersley mostrasse certo espanto, ela revelou que Sophy brigara com Charles. Isso angustiou Lady Ombersley, mas pouco a surpreendeu. Ela bem que conhecia a língua amarga do filho! Por nada neste mundo ela deixaria uma coisa dessas acontecer, e iria, afirmou, ela mesma atrás de Sophy se Amabel não parecesse tão indisposta. Não lhe agradava pensar na filha viajando sozinha, porém ante a decisão da Srta. Wraxton de ir junto com Cecilia, pôde tranquilizar-se de novo e dar sua permissão para a viagem.
Nesse meio-tempo, a Srta. Wraxton, ocupada escrevendo na biblioteca, não resistiu à tentação de escrever também um bilhete para o noivo. Finalmente, Charles agora seria levado a reconhecer a torpeza moral da prima, e a magnanimidade dela, Eugenia! Entregou os dois bilhetes a Dassett com instruções para sua entrega imediata, e logo estava pronta a embarcar no coche de viagem da família Ombersley com a consciência feliz de ter cumprido escrupulosamente sua obrigação. Nem mesmo a rabugice de Cecilia teve o poder de reduzir sua vaidade. Cecília nunca se mostrara tão zangada! Respondia às reflexões morais da companheira com os monossílabos mais breves, e estava tão insensível, que, quando a chuva começou a cair, chegou a recusar categoricamente que retirassem o terceiro assento da carruagem para acomodar Lord Bromford, que ia cavalgando lamentavelmente atrás do veículo, com a gola do casaco erguida e, no rosto, uma expressão de mais aguda tristeza. A Srta. Wraxton queria pedir a um dos batedores, criados a cavalo que precediam a carruagem, que levasse o cavalo de Lord Bromford, enquanto o cavalheiro viajaria com mais conforto dentro do coche; mas só o que Cecilia encontrou para dizer foi que ela esperava que o odioso homem apanhasse uma pneumonia e morresse.
Quase uma hora mais tarde, a chegada de uma segunda diligência em Berkeley Square pôs Dassett em situação embaraçosa tanto quanto uma pessoa da sua dignidade e experiência poderia ficar. Essa diligência, também um veículo de aluguel, puxado por quatro cavalos sua-rentos, estava empastada de lama até os eixos. Muitos baús e valises achavam-se empilhados na traseira e na capota. Um indivíduo sobriamente vestido desceu primeiro do veículo com um pulo e subiu correndo os degraus da Mansão Ombersley para repicar o sino da porta. No momento em que a porta foi aberta por um lacaio e Dassett permaneceu parado, pronto para receber os visitantes na soleira, uma figura muito maior desceu vagarosamente do coche, e depois de lançar vários guinéus aos postilhões e trocar algumas palavras joviais com eles, galgou sem pressa os degraus até a porta da entrada.
Dassett, que depois descreveu seu estado para a governanta como completamente bestifiçado, viu-se incapaz de fazer outra coisa além de gaguejar:
— B-boa noite, senhor! Nós-nós não o esperávamos, senhor!
— Eu mesmo não esperava — respondeu Sir Horace, retirando as luvas. — Viagem extremamente boa! Dois meses, nem um dia mais, no mar! Mande seu pessoal cuidar que todos aqueles trastes sejam car-regados para dentro da casa! Sua patroa está bem?
Dassett, ajudando-o a retirar sua capa de viagem com pelerine, disse que a patroa estava tão bem como se poderia esperar.
— Isso é bom — respondeu Sir Horace, caminhando em direção a um grande espelho e dando alguns toques hábeis na gravata. — Como está minha filha?
— Eu-eu creio que a Srta. Sophy está gozando excelente saúde, senhor!
— Sim, como sempre. Onde está ela?
— Lamento informá-lo, senhor, que a Srta. Sophy saiu da cidade — respondeu Dassett, que teria ficado satisfeito por discutir o mistério do desaparecimento de Sophy com quase qualquer outra pessoa.
— É? Bem, verei sua patroa — replicou Sir Horace, mostrando, na opinião do mordomo, um desinteresse artificial pelo paradeiro de sua única filha.
Dassett levou-o à sala de estar e ali o deixou enquanto ia em busca da criada de Lady Ombersley. Não fazia muitos minutos que Amabel tinha acabado de cair no sono quando Lady Ombersley entrou apressada na sala de estar e quase se lançou no peito másculo do irmão.
— Oh, meu querido Horace! — exclamou. — Como estou contente por vê-lo! Que triste pensar... Mas você está a salvo, em casa!
— Bem, não há necessidade de você estragar o laço da minha gravata só por causa disso, Lizzie! — respondeu o reservado irmão, desvencilhando-se do abraço dela. — Nunca estive em perigo, que eu soubesse! Você não tem uma aparência muito forte! Na verdade, parece esgotada! O que se passa? Se for problema de estômago, conheci certa vez um sujeito, dez vezes pior do que você está, que se curou com magnetismo e cerveja quente. Verdade!
Lady Ombersley apressou-se a assegurar que se ela parecia esgotada era apenas devido à ansiedade e começou logo a relatar a doença de Amabel, estendendo-se ternamente sobre a bondade de Sophy durante esse período fatigante.
— Oh, Sophy é uma excelente enfermeira — respondeu ele. — Como está se saindo com ela? Onde está a garota?
Essa pergunta aturdiu Lady Ombersley, sem dúvida tanto quanto aturdira Dassett. Balbuciante, ela disse que Sophy ficaria tão penalizada! Se ela ao menos tivesse imaginado que o pai estava a caminho de Londres, certamente não teria partido!
— Sim, Dassett me informou que ela está fora da cidade — replicou Sir Horace, acomodando sua corpulência numa poltrona e cruzando as pernas bem torneadas. — Não esperava encontrar nenhum de vocês aqui nesta época, mas, é claro, se uma das crianças está doente, explica-se. Para onde foi Sophy?
— Eu penso... eu estava tão atarefada com Amabel quando Cecilia me disse, mas creio que ela disse que a querida Sophy tinha idopara a Mansão Lacy!
Ele pareceu surpreso.
— Que diabo a levaria lá? A casa não tem condições de ser habitada! Não me diga que Sophy está arrumando a casa, pois estou certo que... de modo algum... Bem, não importa!
— Não, não, não penso que ela tivesse uma ideia dessas! Pelo menos... Oh, Horace, não sei o que vai me dizer, mas receio muito que Sophy fugiu de nós por causa de algo que aconteceu hoje!
— Eu não pensaria assim de maneira alguma — respondeu Sir
Horace calmamente. — Não é próprio da minha pequena Sophy fazer tragédia. O que aconteceu?
— Eu realmente não entendo bem. Eu não estava aqui! Mas Cecilia parece achar que... que Sophy e Charles se desavieram! Naturalmente, sei que ele tem um génio horrível, mas estou convencida de que não pode ter falado sério... E Sophy nunca deu a mínima atenção quando ele... Porque não é a primeira vez que brigam!
— Ora, Lizzie, não fique tão apreensiva — recomendou Sir Horace, mantendo sua placidez sem esforço. — Ela e Charles se desavieram? Bem, suspeitei que isso ia acontecer. Ouso afirmar que fará bem a ele. Como está Ombersley?
— Francamente, Horace! — disse a irmã, indignada. — Poderse-ia supor que você não tem um pingo de afeição pela querida Sophy!
— Aí é que você se engana, minha cara, pois gosto extremamente dela — o irmão respondeu. — Embora isso não signifique que vou fazer o papel de bobo nas suas artimanhas. Acho que ela não me agradeceria por me meter. Pode estar certa de que ela está tramando alguma travessura!
Como Dassett entrasse naquele momento com um farto lanche para o viajante, a conversa teve de ser suspensa. Depois que ele se retirou, Lady Ombersley resumiu o assunto, dizendo:
— Pelo menos posso lhe garantir que você verá Sophy esta noite, pois Cecília e a Srta. Wraxton foram buscá-la!
— Quem é essa Srta. Wraxton? — indagou Sir Horace, servindo-se de um cálice de Madeira.
— Se você ouvisse uma palavra quando alguém fala com você, Horace, saberia que a Srta. Wraxton é a moça com quem Charles está a ponto de se casar!
— Ora, por que não me disse logo? — perguntou Sir Horace, bebendo o vinho em pequenos goles. — Não pode esperar que eu traga na cabeça um monte de nomes! Mas lembro-me agora; uma moça que você disse era uma rematada chata?
— Nunca disse uma coisa dessas! — retorquiu Lady Ombersley. — Sem dúvida, não consigo gostar realmente... Mas foi você quem disse que ela dava a impressão de ser uma rematada chata!
— Se eu disse, pode estar certo de que eu tinha razão. Bastante tolerável este vinho. Agora, lembrando bem, você me contou que Cecilia estava prestes a se casar também... com Charlbury, não é isso?
Lady Ombersley suspirou.
— Ai de mim, não há mais casamento! Não conseguimos convencer Cecília a aceitá-lo. E agora Charles deixou de se opor a Augustus Fawnhope, e embora Ombersley diga que jamais aprovaria, devo afirmar que aprovará. É melhor que saiba, Horace, que Lord Charlbury tem mostrado a Sophy uma atenção das mais distintas.
— Por Deus, tem mesmo?
Foram interrompidos pelo som de passos impacientes na escada, seguido um instante mais tarde pela entrada violenta na sala do Sr. Rivenhall, que segurava uma folha de papel aberta em uma das mãos e não havia parado sequer para retirar o casaco de dirigir antes de subir precipitadamente ao andar de cima à procura da mãe.
O Sr. Rivenhall parecia extremamente assustador e também um pouco pálido. Depois de alojar o baio no estábulo, naquela tarde, ele se dirigira a Bond Street para descarregar um pouco da sua raiva num sparring com Jackson, e depois se encaminhara para o White's, onde passara uma hora jogando bilhar e lutando contra o impulso de voltar a Berkeley Square para dizer à sua provocante prima que não dissera a sério uma única palavra. Quando deixava o salão de bilhar, encontrou seu amigo, o Sr. Wychbold. Este, obediente às ordens que recebera, perguntou-lhe para onde a Srta. Stanton-Lacy estava indo e, ao ouvir a resposta lacónica: — Que eu saiba, a lugar nenhum — disse, não sem uma apreensão interior.
— Mas ela foi, meu rapaz! Eu a vi partindo numa diligência puxada por quatro cavalos. Além disso, Charlbury estava com ela.
Arregalando os olhos, o Sr. Rivenhall fitou-o:
— Partindo numa diligência puxada por quatro cavalos! Certamente você está enganado!
— Não poderia estar! — respondeu o Sr. Wychbold, sustentando seu papel corajosamente.
— Embriagado, então. Minha prima está em casa! — ele acrescentou, enquanto o amigo parecia inclinado a discutir o assunto. — Além disso, Cyprian, agradeceria se não espalhasse essa história pela cidade.
— Oh, não, não sonharia fazer tal coisa! — o Sr. Wychbold apressou-se em garantir-lhe.
Depois o Sr. Rivenhall dirigira-se à sala dos sócios, com a intenção de jogar algumas partidas de uíste. Todas as mesas estavam formadas, e foi enquanto observava a atitude de um jogador, com os olhos nas cartas e a mente insistindo obstinada e intranqúilamente no ridículo engano do Sr. Wychbold, que o bilhete da Srta. Wraxton lhe foi entregue. Sua leitura cuidadosa surtiu o efeito de na mesma hora matar qualquer vontade de jogar uíste e de despachá-lo para Berkeley Square sem uma palavra de desculpa para os que o tinham convidado a participar na próxima partida. Abriu a porta e entrou em casa; encontrou a carta de Sophy sobre a mesa do vestíbulo, leu-a e imediatamente subiu as escadas de dois em dois degraus, à procura de Lady Ombersley.
— Talvez, mamãe, possa explicar-me... — ele começou a dizer num tom de voz irado, e em seguida interrompeu-se abruptamente ao perceber que ela não estava sozinha. — Queira perdoar-me! Não sabia... — Tornou a interromper-se quando Sir Horace ergueu o monóculo para observá-lo melhor. — Oh! — exclamou, com um significado sinistro na voz. — Então é o senhor, não é? Esplêndido! Não poderia ter vindo num momento mais oportuno!
Abalada com o tom desrespeitoso que ele adotara, Lady Ombersley arriscou-se a um débil protesto:
— Charles! Por favor...!
Ele não deu atenção à mãe, mas avançou em largas passadas pela sala.
— Sem dúvida gostará de saber, senhor, que sua preciosa filha fugiu com Everard Charlbury! — anunciou.
— Fugiu? — repetiu Sir Horace. — Por que ela faria isso, eu gostaria de saber! Não faço objeção a que ela se case com Charlbury! Boa família, bela propriedade!
— Ela fez isso — declarou o Sr. Rivenhall — para enfurecer-me! E quanto a casar-se com Charlbury, ela não fará tal coisa!
— Oh, ela não fará? — repetiu Sir Horace, mantendo o monóculo no mesmo nível do rosto do sobrinho. — Quem diz isso?
— Eu digo isso! — falou bruscamente o Sr. Rivenhall. — Aliás, ela não tem a mínima intenção de fazê-lo! Se não conhece sua filha, eu conheço!
Lady Ombersley, que ficara ouvindo em mudo desânimo essa troca de palavras, encontrou voz suficiente para dizer debilmente:
— Não, não, ela não fugiria com Charlbury! Você deve estar enganado! Ai de mim, Charles, receio que isto seja obra sua! Deve ter sido horrivelmente indelicado com a pobre Sophy!
— Oh, horrivelmente indelicado, senhora! Eu realmente tive a barbaridade de censurar o fato de ela ter roubado o novo baio do estábulo, e, sem me dizer uma palavra, levou-o ao parque! Que não esteja estirada com o pescoço quebrado neste momento não é por culpa dela!
— Ora, isso foi errado da parte dela — concordou Sir Horace, imparcial. — Na verdade, estou surpreso em saber que se comportou de maneira tão inadequada, pois não é de modo algum próprio de Sophy. O que teria dado nela para induzi-la a fazer tal coisa?
— Apenas o seu abominável desejo de procurar briga comigo! — respondeu o Sr. Rivenhall com amargura. — Vejo tudo claro agora, claro o suficiente, e se ela não for cuidadosa, descobrirá que se saiu vitoriosa melhor do que planejou.
— Receio, meu rapaz — disse o tio com um brilho irrepreensível no olhar —, que não gosta da minha pequena Sophy!
— Sua pequena Sophy, senhor, não me tem concedido... não nos tem concedido... um momento de paz ou bem-estar desde que chegou a esta casa! — disse o Sr. Rivenhall francamente.
— Charles, você não devia dizer uma coisa dessas! — exclamou a mãe, enrubescendo. — É injusto! Como pode... como pode, ao se lembrar da sua bondade, do seu devotamento...! — A voz ficou embargada; procurou pelo lenço às apalpadelas.
Um rubor também elevou-se às faces do Sr. Rivenhall.
— Não esqueço, senhora. Mas esta façanha...!
— Não posso imaginar onde foi buscar uma ideia dessas! Não é verdade! Sophy partiu devido à sua linguagem imoderada, e quanto a julgar que Charlbury estava com ela...
— Eu sei que Sophy estava com ele! — interrompeu o filho. — Se precisasse de prova, tenho-a neste bilhete que ela foi gentil em me deixar! Não faz segredo disso!
— Nesse caso — disse Sir Horace, recolocando o monóculo —, sem dúvida ela está tramando alguma travessura. Experimente este Madeira, meu rapaz. Digo-lhe isto por seu pai, ele é um excelente juiz de vinho!
— Mas, Charles, isso é terrível! — falou Lady Ombersley, com voz sufocada. Graças a Deus não proibi Cecília de ir atrás dela! Imagine só que escândalo! Oh, Horace, por favor, acredite, eu não fazia ideia!
— Santo Deus, não estou culpando você, Elizabeth! Eu lhe disse para não deixar Sophy preocupá-la! Ela sabe muito bem tomar conta de si mesma; sempre soube!
— Confesso, Horace, você ultrapassa todos os limites! Não significa nada para você que sua filha provavelmente esteja destruindo a própria reputação?
— Destruindo a própria reputação? — repetiu o Sr. Rivenhall desdenhosamente. — Acredita mesmo nesse conto de fadas, senhora? Conviveu com minha prima durante seis meses sem conseguir julgá-la? Se aquela espanhola não está também na Mansão Lacy neste momento, dou-lhe permissão para chamar-me de estúpido!
— Oh, Charles, rezo para que esteja certo!
Sir Horace começou a limpar o monóculo com bastante assiduidade.
— Sancia? Eu pretendia falar com você a respeito dela, Lizzie. Ela ainda se encontra em Merton?
— Diga-me, Horace, onde mais ela deveria estar?
— Só estava pensando — ele respondeu, analisando o resultado dos seus esforços. — Acho que Sophy lhe contou sobre minhas intenções nesse sentido.
— É claro que contou, e lhe fiz uma visita, como imagino que você teria gostado que eu fizesse! Mas devo dizer, meu querido Hora ce, que não consigo imaginar o que deu em você para pedi-la em casamento!
— Essa é que é a questão — ele respondeu. — Uma pessoa acaba se entusiasmando, Lizzie! E não há como negar que ela é uma mulher extremamente refinada. Na verdade, não ficaria surpreso em saber que mais alguém andasse atrás dela. Pena eu a ter instalado em Merton! Mas aí está! A gente faz esse tipo de coisa impulsivamente, e só quando encontra tempo disponível para refletir... Contudo, não pretendo me queixar!
— Muitas beldades no Brasil, senhor? — indagou o sobrinho com ironia.
— Dispenso as suas insolências, meu rapaz — respondeu Sir Horace jovialmente. — Na verdade, duvido que eu seja um homem casadouro.
— Bem, se for de algum consolo para o senhor — replicou o Sr. Rivenhall —, saiba que minha prima tem se esforçado o máximo para afastar Talgarth da marquesa!
— Ora, por que cargas d'água — exclamou Sir Horace, inflamando-se — Sophy devia se meter? Talgarth, é? Eu não sabia que ele estava na Inglaterra! Ora, ora! Ele tem muita habilidade como galanteador, isso tem, e além do mais, aposto como está de olho na fortuna de Sancia!
Diante disso, Lady Ombersley, sentindo-se muito insultada, interrompeu, exclamando:
— Acho que você é totalmente desavergonhado! E o que tem tudo isso a ver com a fuga da pobre Sophy? Fica sentado aí, como se não tivesse interesse pelo caso, enquanto ela, o tempo todo, está tentando desonrar-se! E pode dizer o que quiser, Charles, mas se for verdade que ela fugiu com Charlbury, é a coisa mais chocante imaginável! Ela deve ser trazida de volta imediatamente!
— Ela será — respondeu o Sr. Rivenhall. — Ainda tem dúvida, quando a senhora mesma mandou Cecília e Eugenia, no mais alto estilo romanesco, resgatá-la?
— Não fiz tal coisa! Eu de nada sabia, mas, é claro não deixaria sua irmã ir sozinha; portanto, quando ela me contou que Eugenia fora gentil o bastante para se oferecer a acompanhá-la, o que poderia fazer senão sentir-me grata? — Ela parou, impressionada por um fato inexplicado. — Mas como soube que elas foram resgatá-la, Charles? Se Dassett perdeu todo o senso de responsabilidade de sua posição a ponto de mexericar com você...
— Nada disso! Estou grato à própria Eugenia pela informação! E devo pedir permissão para dizer, mamãe, que se a senhora e minha irmã tivessem feito o favor de guardar essa notícia para si mesmas, eu teria sido poupado de uma impertinente e abominável carta de Eugenia! O que deu em vocês para confiarem tal história a ela é algo que jamais deixará de me surpreender! Santo Deus, não sabem que ela espalhará por toda a cidade que minha prima se comportou de maneira ultrajante?
— Mas eu não falei nada! — a mãe respondeu, quase gemendo. — Charles, eu não contei!Uma de vocês deve ter feito isso! — ele replicou, com impaciência. Virou-se para o tio. — Muito bem, senhor, pretende ficar aqui louvando o bom gosto do meu pai por vinhos ou pretende acompanhar-me a Ashtead?
— Partir para Ashtead a esta hora, quando venho viajando há dois dias? — perguntou Sir Horace. — Ora, meu rapaz, tenha um pouco de bom senso! Por que eu deveria ir?
— Suponho que seu sentimento paterno, senhor, lhe deve fornecer a resposta! Caso contrário, que assim seja! Eu parto imediatamente!
— O que pretende fazer quando chegar à Mansão Lacy? — indagou Sir Horace, olhando-o com ar divertido.
— Torcer o pescoço de Sophy! — respondeu o Sr. Rivenhall com selvageria.
— Bem, você não precisa da minha ajuda para isso, meu caro rapaz! — replicou Sir Horace, acomodando-se mais confortavelmente na poltrona.
XVIII
Os PRIMEIROS minutos que se seguiram à chegada do grupo de Merton que acompanhava a marquesa foram gastos com as queixas livremente expressas dessa dama sobre a situação em que ela se encontrava. A corrente de ar ocasionada pela abertura da porta da frente fez com que o fogo expelisse novas nuvens de fumaça irritante no vestíbulo e nem todos os esforços frenéticos da Sra. Clavering bastaram para fazer esse aposento parecer outra coisa além de negligenciado. Muito impressionada com a suntuosidade dos trajes da marquesa, a Sra. Clavering ficou o tempo todo fazendo reverências para ela; e a marquesa, totalmente indiferente à Sra. Clavering, disse:
— Madre de Dios! Se eu tivesse trazido Gaston, talvez, ainda fosse suportável, e se tivesse trazido também meu cozinheiro, melhor ainda! Por que precisei vir ter com vocês nesta casa, Sophy? Por que me mandou chamar tão de repente, e em tempo de chuva, ainda por cima? Su conducta es perversa!
Imediatamente Sophy contou-lhe que ela fora chamada para desempenhar o papel de duena, explicação que no mesmo instante empolgou uma pessoa em cujas veias corria o mais puro sangue castelhano. Tão satisfeita ficou a marquesa que esqueceu completamente de perguntar a Sophy por que ela se colocara numa situação que não exigia a presença de outra duena senão a tia, mas disse, aprovando, que Sophy se conduzira com grande propriedade, e que, nesse caso, a fadiga não era motivo de ressentimento. Depois, conscientizou-se da presença de Charlbury, e com um esforço de memória chegou a lembrar-se do seu nome.
— Alo, está ferido? — perguntou Sir Vincent, apontando com a cabeça a tipóia no braço do rapaz. — Como aconteceu isso?
— Esqueça! — disse Sophy, livrando Charlbury da necessidade de responder. — Por que está aqui, Sir Vincent?
— Essa, minha querida Juno — respondeu ele, os olhos cintilando enquanto a fitava —, é uma longa e delicada história. Talvez, sabe, eu pudesse lhe perguntar o mesmo. Não perguntarei, é claro, porque as explicações podem ser maçantes, e o que no momento provoca minha maior curiosidade é o muito mais importante assunto do jantar. Receio que não estava esperando um grupo tão grande!
— Realmente não estava, e só Deus sabe o que encontraremos para comer — admitiu Sophy. — Julgo que talvez eu devesse ir até a cozinha e descobrir o que pode haver na despensa. Pois é muito provável, devo confessar, que minha prima Gecilia venha jantar aqui. E mais do que provável, Charles também!
— Ora, Srta. Sophy, se ao menos nos tivesse avisado! — exclamou a Sra. Clavering, angustiada. — Realmente não sei como conseguir um jantar, não para gente distinta como a senhorita, pois não estou acostumada, e não há nada pronto exceto um pernil de porco, de que Clavering havia reservado um pouco para o seu jantar.
— É evidente — disse a marquesa, retirando o chapéu com plumas dos seus luxuriantes cabelos encaracolados e depositando-o numa cadeira — que esta moza de cocina não sabe nada, de modo que devo esforçar-me um pouco. Isso é ruim, porém pior, infinitamente, do que passar fome! E não esqueça, Sophy, e seja grata a mim, portanto não brigue comigo! Pois preciso lhe contar, de una vez, que afinal acho que não me será conveniente estar casada com Sir Horace, pois ele é muito agitado e eu não gostaria do Brasil, prefiro permanecer na Inglaterra, contudo não com uma cozinheira inglesa! Por isso casei-me com Sir Vincent e agora não sou a Marquesa de Villacanas, e sim Lady Talgarth, um nome que não consigo pronunciar convenientemente, mas não importa! A gente se acostuma.
Naturalmente, esse discurso deixou sua audiência muda de espanto por alguns momentos. Sir Vincent retirou do bolso a caixa de rapé e inalou delicadamente uma dose da sua mistura favorita. Foi ele quem rompeu o silêncio:
— Não fique com essa cara horrorizada, Sophy! Lembre-se de que a nossa querida Sancia deve preparar o jantar!
— Esta é uma casa de beleza singular! — declarou subitamente o Sr. Fawnhope, que não estivera atento a uma só palavra do que se dizia. — Vou percorrê-la de ponta a ponta.
Em seguida apanhou a candeia que estava sobre a mesa e dirigiu-se a uma das portas que se abria para o vestíbulo. Sir Vincent tirou-a da mão dele e tornou a colocá-la no mesmo lugar, dizendo gentilmente:
— Você poderá ir, meu jovem e querido amigo, mas leve esta vela, por favor.
— Sir Vincent — exclamou Sophy, com um brilho belicoso no olhar —, se eu fosse homem, você pagaria por esta traição!
— Querida Sophy, você atira melhor do que nove entre dez homens que conheço, portanto, se alguém aqui teve a prudência de trazer um par de pistolas de duelo...
— Ninguém — disse a marquesa, com decisão — vai disparar uma pistola, porque, de todas as coisas, é a que mais detesto, e, além disso, o importante é que preparemos o jantar!
— Suponho — disse Sophy, pesarosa — que deve ser isso mesmo. É preciso comer! Porém agora percebo como meu primo Charles estava certo ao avisar-me de que nada tivesse com você, Sir Vincent! Não pensei que praticasse uma ação má contra Sir Horace!
— No amor e na guerra, querida Sophy, vale tudo! — respondeu ele solenemente.
Ela foi obrigada a reprimir a resposta que brotou em seus lábios. Sir Vincent sorriu de maneira compreensiva e caminhou na direção dela, tomando-lhe a mão e dizendo em voz baixa:
— Reflita, Juno! As minhas necessidades são maiores do que as de Sir Horace! Como poderia resistir?
— Amor ch 'a null'amato amar perdona — citou sonhadoramente o Sr. Fawnhope, cuja peregrinação pelo vestíbulo o levara a uma distância em que ainda podia ouvir.
— Exatamente, meu poeta! — respondeu Sir Vincent cordialmente.
— Preciso da Srta. Wraxton para traduzir isso — disse Sophy —, mas se significa o que estou pensando, está errado! Contudo, não há nada mais tolo do que ficar fazendo muito barulho em torno do que não se pode remediar, portanto não direi mais nada. Além disso, tenho coisas mais importantes em que pensar!
— Sem dúvida, é isso mesmo — concordou a marquesa. — Há um modo de preparar galinha recém-abatida, portanto Vincent vai matar imediatamente duas galinhas; esta mulher me disse que há galinhas em abundância, e com elas darei um jeito.
Então a marquesa retirou-se com a Sra. Clavering para as dependências da cozinha, a meia cauda de fina e macia musselina varrendo regiamente o chão atrás dela e apanhando muita poeira no caminho. Sophy e Sir Vincent a seguiam; e como o Sr. Fawnhope, a essa altura, já havia descoberto a biblioteca e nela entrara para examinar os livros à luz da sua vela de sebo, Lord Charlbury ficou sozinho. Logo reuniu-se a ele Sir Vincent, que voltava carregando uma velha garrafa e alguns copos.
— Xerez — disse ele, colocando os copos na mesa. — Se o meu destino é a chacina de galinhas, devo fortificar-me. Mas confio que convencerei o mordomo a cometer a verdadeira façanha. Como você feriu o braço?
— Sophy meteu uma bala nele — respondeu o rapaz.
— Ela fez isso? Uma mulher formidável, sem dúvida! Suponho que tivesse suas razões.
— Não as razões que você talvez fosse perdoado por imaginar! — retorquiu Charlbury.
— Jamais me entrego a pensamentos banais — replicou Sir Vincent, limpando cuidadosamente o gargalo da garrafa e começando a servir o vinho. — De modo algum com relação à Magnífica Sophy. Tome, experimente isto! Só Deus sabe há quanto se encontra na adega! Deduzo que não bebo à sua fuga, pois não?
— Santo Deus, nada de fuga! — respondeu Charlbury, quase em palidecendo com a ideia. — Sou devotado a Sophy — total e imutavelmente devotado a ela —, mas que Deus me livre de casar com ela!
— Se Deus não o livrasse, calculo que Rivenhall o faria — comentou Sir Vincent. — Este vinho é perfeitamente tolerável. Não acabe com a garrafa antes de eu voltar e não o desperdice com o poeta!
Ele tornou a afastar-se, provavelmente para supervisionar a execução no poleiro das galinhas, e Lord Charlbury, inativo graças ao braço ferido, serviu-se de um segundo copo de xerez. Depois de um curto intervalo, o Sr. Fawnhope surgiu da biblioteca, trazendo na mão um volume roído pelas traças. Reverentemente, exibiu-o a Lord Charlbury, dizendo simplesmente:
— La hermosura de Angélica! Nunca se sabe onde pode existir por acaso um tesouro. Preciso mostrá-lo à marquesa. De quem é esta casa fascinante?
— De Sir Horace Stanton-Lacy — respondeu Charlbury, com certo divertimento.
— A Providência deve ter-me guiado. Eu não podia imaginar o que me trouxe aqui, mas isso não importa. Quando vi Sophy parada na soleira da porta aberta, erguendo no ar a candeia, o véu caiu dos meus olhos e todas as dúvidas se resolveram. Tenho um compromisso para jantar em algum outro lugar, mas não farei caso.
— Não acha que deveria, talvez, voltar à cidade para honrar seu compromisso? — sugeriu Lord Charlbury.
— Não — respondeu o Sr. Fawnhope simplesmente. — Prefiro ficar aqui. Há também um volume da Galatéia, porém não um exemplar original.— Sentou-se à mesa e abriu o livro, nele ficando absorto até ser interrompido por Sophy, que chegou com um punhado de velas debaixo do braço e uma caixa de madeira pouco profunda cuidadosa mente mantida entre suas mãos. Ao seu lado, numa mistura de curiosidade e ciúmes, saltitava a pequena galga, de vez em quando erguendo-se para alcançar a caixa.
O Sr. Fawnhope levantou-se de um salto e estendeu as mãos para tirar-lhe a caixa.
— Me dê isso! Uma travessa você poderia trazer, mas não uma imunda caixa!
Sophy entregou-a, dizendo ao seu jeito prático:
— A Sra. Clavering trará a chaleira logo mais, ainda é cedo para a bandeja do chá, sabe disso. Nem sequer jantamos! Cuidado! Coitadinhos, eles não têm mãe!
— Sophy, o que...? — exclamou Charlbury, ao notar que a caixa continha uma ninhada de patinhes amarelos. — Espero que não pretenda cozinhá-los para o jantar, não é?
— Santo Deus, não! Ocorre que a Sra. Clavering os está criando no calor da cozinha, e Saneia se queixa de que vão correr para baixo dos seus pés. Ponha a caixa no chão, neste canto, Augustus. Tina não irá molestá-los!
Ele obedeceu, e os patinhos, grasnando energicamente, esforçaram-se para sair da caixa; um deles, mais aventureiro do que os demais, dispôs-se a fazer uma excursão exploradora. Sophy apanhou-o e segurou-o nas mãos em concha, enquanto Tina, muito aflita, pulava para uma cadeira e se deitava, meneando a cabeça acintosamente. O sorriso do Sr. Fawnhope estampou-se no seu rosto, e ele citou:
— "Lo, como uma dona-de-casa cuidadosa, corre para apanhar uma de suas criaturas emplumadas que escapava!"
— Certo, mas creio que se estendêssemos algo sobre a caixa, eles não poderão escapar — disse Sophy. — A capa de viagem de Charlbury vai servir esplendidamente! Você se importa, Charlbury?
— Sim, Sophy, eu me importo! — respondeu o rapaz com firme za, tirando o abrigo das mãos dela.
— Muito bem, então... — Ela parou, pois Tina havia levantado a cabeça, de orelhas empinadas, e soltara um latido estridente. Ouviu-se logo o ruído de cavalos e rodas de carruagem. Sophy virou-se para o Sr. Fawnhope, dizendo rapidamente: — Augustus, por favor, quer ir até a cozinha — vai achá-la no final do corredor, ali nos fundos — e pedir à Sra. Clavering para lhe dar um pano, uma colcha, qualquer coisa assim? Não precisa apressar-se, acho que Saneia gostaria que você depenasse uma galinha!
— A marquesa está na cozinha? — perguntou o Sr. Fawnhope. — O que ela está fazendo lá? Gostaria que ela visse este livro que encontrei na biblioteca!
Sophy apanhou-o de sobre a mesa e entregou-o.
— Isso, por favor, mostre-o a ela! Saneia vai gostar extremamente! Não dê atenção se por acaso ouvir o sino da porta. Eu mesma vou abrir!
Sem cerimónia, empurrou-o em direção à porta nos fundos do vestíbulo, e, depois de tê-lo visto atravessá-la a salvo e fechá-la, gritou em tom conspiratório:
— Cecília! Cuidado com os patinhos!
Ela ainda segurava aquele que havia apanhado, quando escancarou a porta. A chuva cessara, e o luar brilhava através de uma brecha nas nuvens. Mas Sophy abrira a porta e a prima quase caiu em cima dela.
— Sophy! Oh, minha querida Sophy... Não, foi chocante demais da sua parte! Você devia saber que eu talvez desejasse... Sophy, Sophy, como pôde fazer tal coisa?
— Cecy, por favor, cuidado! Este pobre patinho! Oh, santo Deus! Srta. Wraxton!
— Sim, Srta. Stanton-Lacy, eu! — respondeu a Srta. Wraxton, juntando-se ao grupo no pórtico. — Imagino que não esperava me ver!
— Não esperava, e você vai atrapalhar muito! — respondeu Sophy francamente. — Entre, Cecy!
Deu um delicado puxão na prima, que permanecia do outro lado da soleira, enquanto falava. Cecilia ficou paralisada quando Charlbury, levantando-se da cadeira ao lado do fogo, deu um passo à frente, o braço esquerdo repousando com elegância na tipóia. Cecilia carregava uma bolsa e um regalo de penas, e deixou-os cair em sua consternação.
— Oh! — ela exclamou debilmente. — Você está ferido! Oh, Charlbury!
Adiantou-se com as mãos estendidas, e Lord Charlbury, procedendo com grande presença de espírito, apressou-se em desvencilhar o braço da tipóia e recebeu-a num amplexo compreensivo.
— Não estou ferido, querida Cecilia! É apenas um arranhão! — garantiu-lhe.
Tal heroísmo fez com que Cecilia derramasse lágrimas.
— Tudo por culpa minha! Minha abominável loucura! Jamais deixarei de culpar-me! Charlbury, diga que me perdoa!
— Nunca, por usar um chapéu que me impede de beijá-la! — respondeu ele, sacudido pelo riso.
Depois dessas palavras, Cecilia ergueu a cabeça, sorrindo através das lágrimas, e ele conseguiu beijá-la apesar do chapéu. Bloqueando a entrada com eficiência, Sophy observou essa passagem com ar de alguém muito satisfeito com seus esforços.
— Quer ter a gentileza de nos deixar entrar? — perguntou a Srta. Wraxton, com entonação gélida.
— Nós? — perguntou Sophy, olhando rapidamente à sua volta. Notou uma figura robusta atrás da Srta. Wraxton, num casaco ensopado e uma cartola igualmente encharcada, e depois de perscrutar incredulamente por um momento, exclamou: — Santo Deus! Lord Bromford! Ora, que diabo significa isso?
Cecilia, que lançara seu chapéu no chão para reunir-se ao regalo, levantou a cabeça do amplo ombro em que a apoiara, para dizer com voz rouca:
— Oh, Sophy, por favor, não fique zangada comigo! Na verdade, não foi obra minha! Charlbury, o que aconteceu? Como veio a se ferir?
Lord Charlbury, ainda apertando-a contra o peito, desviou um olhar angustiado para Sophy. Esta veio prontamente em seu socorro.
— Apenas um ferimento superficial, querida Cecy! Ladrões de estrada... ou devo dizer salteadores?... sim, salteadores! Uma verdadeira rajada de tiros, sabe, e o pobre Charlbury teve o azar de ser atingido! Mas foram postos a correr e não tivemos nenhum outro ferido. Charlbury comportou-se com a maior presença de espírito imaginável... perfeitamente frio, e mais do que um páreo para aqueles velhacos!
— Oh, Charlburyl — suspirou Cecília, conquistada pela ideia dessa conduta intrépida.
Lord Charlbury, batendo-lhe suavemente no ombro, não pôde resistir à tentação de perguntar:
— Quantos desses rufiões desesperados eu derrotei, Sophy?
— Isso — respondeu Sophy, subjugando-o, franzindo a testa — jamais saberemos.
A voz fria da Srta. Wraxton intrometeu-se na cena. Por mais contente que pudesse estar ao ver o quiproquó entre Cecília e Charlbury resolvido, seu senso de decoro estava realmente lacerado pelo espetáculo de Cecília aninhada nos braços do rapaz.
— Minha querida, por favor, controle-se! — pediu ela, enrubescendo e desviando o olhar.
— Eu na verdade não sei o que fazer! — anunciou de repente Lord Bromford, com entonações lamurientas. — Vim com o propósito de exigir explicações desse rapaz, e acabei apanhando um resfriado!
— Se isso é comigo — replicou Charlbury —, um resfriado pode bem ser o menor dos males que em breve se abaterão sobre você! Não pise nos patinhes!
— Não pise mesmo! — disse Sophy, arrebatando um deles que escapara por um triz de morrer sob os pés de Bromford. — Que criatura desajeitada você é! Por favor, preste atenção onde pisa!
— Eu não me surpreenderia se já tivesse febre — disse Bromford, olhando inquieto para os patinhos. — Srta. Wraxton, aves! Não se mantém aves dentro de casa! Eu realmente não entendo por que estão correndo pelo chão. Ali está outro! Não gosto disso. Não condiz com o modo como fui acostumado.
— Tenho a impressão, caro Lord Bromford, de que nada do que aconteceu hoje condiz com o modo como eu ou o senhor fomos acostumados — respondeu a Srta. Wraxton. — Permita que lhe peça para tirar a capa de viagem! Acredite, não era meu desejo que o senhor fosse obrigado a cavalgar em meio a tal aguaceiro! Se causou à sua constituição física algum mal duradouro, jamais me perdoarei por ter aceitado sua escolta! Suas botas estão inteiramente molhadas! Nada pode ser mais prejudicial do que pés gelados! Srta. Stanton-Lacy, seria pedir demais que se chamasse um criado — presumo que haja um criado aqui, não? — para retirar as botas de Lord Bromford?
— Há um criado, sim, mas saiu para matar galinhas — respondeu Sophy. — Cecy, me ajude a recolher os patinhes e colocá-los na caixa de novo! Se pusermos o seu regalo sobre eles, provavelmente vão pensar que é a própria mãe e sossegarão!
Por não encontrar falha nesse esquema, Cecília colocou-o imediatamente em execução. A Srta. Wraxton, que depois de muita lisonja conseguira convencer Lord Bromford a se acomodar numa poltrona ao lado do fogo, disse:
— Essa frivolidade não é oportuna, Srta. Stanton-Lacy! Até você mesma vai admitir que sua conduta requer certa explicação! Conhece as terríveis consequências que deveriam seguir-se a esta... esta fuga, se sua prima e eu não tivéssemos vindo para salvá-la da desgraça que você parece aceitar tão levianamente?
Lord Bromford espirrou.
— Oh, pssiuu, Eugenia! — pediu Cecília. — Como pode falar as sim? Tudo está bem quando termina bem!
— Você deve ter esquecido todo o escrúpulo da sensibilidade feminina, Cecília, se consegue pensar que fica bem sua prima exibir uma expressão tão desavergonhada depois de perder tanto o caráter quanto a reputação!
A porta aos fundos do vestíbulo abriu-se para admitir a entrada da marquesa, com um avental de aniagem em torno da cintura e uma enorme colher de pau na mão.
— Ovos, preciso deles imediatamente! — comunicou. — Lope de Vega sem a menor dúvida é um excelente poeta, mas não na cozinha! Alguém tem de ir ao galinheiro e falar com Vincent para me trazer ovos. Quem são essas pessoas?
Talvez se pudesse imaginar que o surgimento da marquesa em cena enchesse de alívio a alma da Srta. Wraxton, mas essa emoção não se tornou visível no seu semblante, o qual, pelo contrário, se enregelou numa expressão de grande desgosto, a ponto de a tornar quase ridícula. Não encontrava uma palavra para dizer e parecia incapaz de controlar-se sequer o suficiente para receber a marquesa com um aperto de mão.
Sempre meticuloso, Lord Bromford levantou-se da poltrona e fez uma reverência. Sophy apresentou-o, e ele pediu perdão por ter contraído o que receava ser um perigoso resfriado. A marquesa conservou-o a distância com o colherão, dizendo:
— Se tem um resfriado, não se aproxime de mim! Agora vejo que é a Srta. Rivenhall, que tem uma beleza inteiramente britânica, e aquela outra, também no estilo inglês, porém menos bonita. Não creio que duas galinhas sejam suficientes, portanto este homem com resfriado deve comer pernil de porco. Mas agora eu preciso de ovos!
Depois de lançar este ultimato ela retirou-se, não dando a mínima atenção ao agitado protesto de Lord Bromford, de que todas as formas de carne de porco eram um veneno para ele, e que uma tigela de mingau ralo era tudo que se sentia capaz de engolir. Tinha-se a impressão de que a Srta. Wraxton era a única pessoa entre os presentes que provavelmente simpatizava com ele, pois para ela Lord Bromford parecia lastimável. Eugenia respondeu imediatamente, garantindo-lhe que ninguém o obrigaria a comer pernil.
— Ah, se fosse possível retirá-lo deste vestíbulo cheio de correntes de ar! — disse ela, lançando um olhar furioso para Sophy. — Se eu soubesse que estava vindo para uma casa que parece algo entre galinheiro e hospício, jamais teria deixado a cidade!
— Bem, então devo dizer que eu gostaria que soubesse — respondeu Sophy candidamente. — Teríamos ficado confortáveis o suficiente se ao menos você e Lord Bromford cuidassem da própria vida, e agora calculo que sejamos obrigados a preparar mingau e escalda-pés de mostarda!
— Um escalda-pés de mostarda — repetiu Lord Bromford, ansioso — seria o ideal! De fato, não digo que detenha inteiramente a marcha da friagem; não devemos elevar nossas esperanças alto demais! Mas se pudermos evitar que se abata sobre os pulmões, será uma grande coisa! Obrigado! Fico-lhe muito grato!
— Santo Deus, sua criatura absurda, eu não quis ser tão pessimista! — bradou Sophy, desatando a rir.
— Não quis! — exclamou a Srta. Wraxton. — Podemos certamente acreditar que não tem uma gota de compaixão feminina, Srta. Stanton-Lacy! Não fique apreensivo, Lord Bromford! Se quaisquer esforços de minha parte puderem preservá-lo de uma doença, não serão poupados!
Ele apertou-lhe a mão de modo eloquente e deixou que ela o forçasse gentilmente a sentar-se de novo na poltrona.
— Nesse meio-tempo — disse Charlbury — não vamos esquecer dos ovos que a marquesa precisa! Seria melhor eu tentar encontrar Talgarth e o galinheiro.
Sophy, que parecia pensativa, disse pausadamente:
— Isso mesmo. Eu acho... Charlbury, traga uma vela para a sala de almoço e vejamos se já está o bastante quente para Lord Bromford sentar-se lá!
O lorde acompanhou-a até aquele cómodo, e no mesmo instante em que ultrapassava a soleira ela agarrou-lhe o pulso e disse num sussurro ansioso:
— Esqueça dos ovos! Vá aos estábulos e mande os criados de Ombersley atrelarem novamente os cavalos! Você pode mudá-los na esta lagem do povoado ou, se não lá, em Epsom! Leve Cecília de volta para Londres! Imagine só que embaraçoso para ela ser obrigada a encontrar se com Augustus agora! Ela não iria gostar nem um pouquinho! Além disso, é muito ridículo tantas pessoas ficarem apinhadas nesta casa, de modo algum eu contava com isso. Ele fez uma careta, mas disse:
— Se partirmos, você virá conosco?
— O quê, viajar apertada entre vocês dois? Não, obrigada.
— Mas não posso deixá-la aqui!
— Tolice! ainda não é conveniente que eu vá para Londres!
Ele colocou o castiçal sobre a mesa e tomou-lhe as mãos, segurando-as firmemente.
— Sophy, tenho com você uma dívida de gratidão. Obrigado, minha querida! Pode me pedir o que quiser. Quer que eu leve a Srta. Wraxton comigo?
— Não, pois tive uma ideia excelente a respeito dela. Eugenia ficará para cuidar de Bromford, provavelmente vão acabar acertando casamento.
Ele chegou a sacudir os ombros com o riso.
— Oh, Sophy! Sophy!
— Não, por favor, não ria! Eu acho mesmo que devo assegurar o futuro dela! Não posso permitir que se case com Charles e torne todos infelizes na casa Ombersley, ao passo que estou convencida de que ela e Bromford vão se entender às mil maravilhas! Não me faça mais nenhum discurso bonito, vá aos estábulos imediatamente! Falarei com Cecy!
Em seguida empurrou-o de novo para o vestíbulo, e, enquanto ele saía de casa, voltou para o grupo ao lado do fogo e disse:
— A sala de almoço está toleravelmente tépida, e se ficar lá um pouquinho, Lord Bromford, um dos quartos será preparado para o senhor, e mandarei Clavering descalçar-lhe as botas. Por favor, leve-o, Srta. Wraxton, e cuide para que fique alojado confortavelmente!
— Espero que a lareira da sala não solte fumaça da mesma maneira horrível que esta! — disse a Srta. Wraxton asperamente. — Na da poderia ser pior! Lord Bromford já tossiu duas vezes!
— Que chocante! Você deveria levá-lo em seguida.
Lord Bromford, que permanecia todo curvado e comprimido, com uma aparência lamentável, tremendo e espirrando, agradeceu com voz fraca e levantou-se da poltrona com a ajuda gentil da Srta. Wraxton. Mal tinham ido para a sala de almoço o Sr. Fawnhope surgiu no vestíbulo, dizendo em tom grave:
— O abate das galinhas é revoltante! Ninguém deveria ser convocado para testemunhar tal operação! A marquesa precisa de ovos.
Cecília, que tivera um violento sobressalto e mudara perceptivelmente de cor, exclamou:
— Augustus!
— Cecília! — exclamou ele por sua vez, fitando-a, aturdido e com os olhos arregalados. — Você não estava aqui antes, estava?
— Não — respondeu ela, enrubescendo de fúria. — Oh, não! Eu... eu vim com a Srta. Wraxton!
— Oh, foi? — indagou ele, um tanto aliviado. — Bem me pareceu que não a tinha visto antes.
Resoluta, mas um pouco agitada, ela disse:
— Augustus, não vou brincar com você! Preciso lhe dizer uma coisa: descobri que houve um grande equívoco. Não posso me casar com você.
— Nobre, nobre moça! — exclamou o Sr. Fawnhope, muito comovido. — Respeito-a por essa franqueza e devo considerar-me sempre um felizardo por ter tido permissão de adorá-la. A experiência me purificou e fortaleceu. Você inspirou-me com um fervor poético pelo qual o mundo talvez ainda venha a lhe agradecer, como eu agradeço! Mas o casamento não é para uma pessoa como eu. Preciso pôr a ideia de lado. Realmente a coloquei de lado! Você deveria casar-se com Charlbury, mas também permitir que eu dedique minha peça a você!
— O-obrigada! — gaguejou Cecília, muito surpresa.
— Bem, ela vai se casar com Charlbury — disse Sophy, reforçando a ideia. — E agora que isso está determinado, Augustus, por favor, quer ir procurar os ovos para Sancia?
— Não entendo nada sobre ovos — ele declarou. — Fui buscar Talgarth na adega, e já tinha saído em busca deles. Vou escrever um poema que há uma hora vem tomando forma no meu cérebro. Faria objeção a que eu o intitulasse "Para Sophia, segurando uma candeia"?
— Nenhuma — respondeu Sophy afavelmente. — Tome esta vela e vá para a biblioteca! Devo pedir a Clavering que acenda o fogo para você?
— Não é importante, obrigado — respondeu, distraído, e recebendo o castiçal da mão dela, afastou-se, devaneando, em direção à biblioteca.
Nem bem a porta se fechara atrás dele e Cecília disse, um pouco confusa:
— Será que ele me entendeu? Por que não me disse que Augustus estava aqui, Sophy? Não sei como encará-lo!
— Não sabe e nem vai precisar, querida Cecy! Charlbury já foi providenciar o coche. Você precisa voltar para Berkeley Square imediatamente! Imagine só a ansiedade da minha tia!
Cecília, que estivera a ponto de contestar, hesitava perceptivelmente. Encontrava-se ainda hesitante quando Lord Charlbury voltou para a casa, anunciando alegremente que o coche estaria à porta em cinco minutos. No mesmo instante, Sophy apanhou o chapéu da prima e ajustou-o de maneira apropriada sobre os cachos dourados. Em meio aos seus esforços e os de Lord Charlbury, Cecília foi logo escoltada, indefesa, para fora de casa, e levada pela mão a subir na carruagem. O rapaz, parando apenas para dar um abraço afetuoso em sua benfeitora, subiu de um pulo depois dela; os degraus foram levantados, a porta batida diante do feliz casal, e a carruagem partiu. Depois de acenar um último adeus do pórtico, Sophy virou-se para entrar em casa, onde encontrou a Srta. Wraxton aguardando por ela num estranho estado de indiferença. A Srta. Wraxton, ao perceber (disse ela) que não era preciso esperar ajuda da marquesa, queria ser conduzida à cozinha, onde tencionava preparar um posset feito com leite quente, cerveja e vinho, bebida usada por sua família durante gerações na cura de resfriados. Sophy não só a conduziu à cozinha, como também abrandou os protestos da marquesa e mandou os Claverings porem água para ferver e prepararem um escalda-pés de mostarda. Os desventurados Claverings subiram com esforço as escadas dos fundos, transportando brasas, mantas e latas de água quente. Mantiveram-se totalmente ocupados por quase meia hora, e, no final desse período, Lord Bromford foi levado gentilmente para o melhor quarto de hóspedes no andar superior, despido de suas botas e seu casaco, convencido com agrados a vestir um roupão que Sir Vincent tivera a prudência de trazer em sua valise, e instalado numa bergère ao lado da lareira. Os protestos de Sir Vincent ao lhe arrebatarem não só o roupão, como também a camisola e o gorro de dormir, foram silenciados pela informação de Sophy de que ela mesma estava cedendo à Srta. Wraxton sua valise com todos os acessórios (inclusive roupa de dormir).
— E considerando como o seu comportamento foi mesquinho, Sir Vincent, devo dizer que talvez julgue extremamente indigno de sua parte a recusa em prestar-me esse servicinho! — ela declarou sem rodeios.
Ele lançou-lhe um olhar de esguelha, malicioso.
— E você, Sophy? Não vai pernoitar aqui? — Riu, vendo-a incapaz de dar uma resposta, e disse: — Em tempos passados, você teria sido queimada na fogueira, e com justiça, Juno! Muito bem. Participarei do seu jogo!
Meia hora depois dessa passagem, Sophy, sentada à mesa do vestíbulo que ela arrastara para um canto da lareira, ouviu o ruído que estivera aguardando. Entretinha-se na construção de castelos de cartas, depois de ter encontrado um velho e imundo baralho na sala de almoço, e não fez nenhuma tentativa para atender ao badalar autoritário do sino. Vindo dos fundos da casa, Clavering entrou no vestíbulo, parecendo fatigado, e abriu a porta. As entonações decisivas do Sr. Rivenhall assaltaram prazerosamente os ouvidos de Sophy:
— Mansão Lacy? Muito bem! Quer ter a bondade de conduzir meu palafreneiro aos estábulos? Eu mesmo me anunciarei!
Em seguida, o Sr. Rivenhall pôs o idoso servidor fora da casa e entrou no vestíbulo sacudindo as gotas de chuva da sua cartola de aba revirada. Seus olhos pousaram em Sophy, absorvida na arquitetura, e ele disse com a maior amabilidade imaginável:
— Boa noite, Sophy! Receava que já tivesse desistido definitivamente de mim, mas está chovendo, sabe, e o luar ficou oculto pelas nuvens!
A essa altura, Tina, que ficara pulando diante dele num êxtase de prazer, começou a latir, obrigando-o a tomar conhecimento das suas boas-vindas antes que pudesse fazer-se ouvir novamente. Sophy, depositando delicadamente uma carta no alto da estrutura, disse:
— Charles, é muita gentileza sua! Veio para salvar-me das consequências da minha indiscrição?
— Não, vim para torcer-lhe o pescoço!
Ela arregalou os olhos.
— Charles! Não sabe que destruí minha reputação?
Ele despiu a capa de viagem, sacudiu-a e jogou-a sobre o espaldar de uma cadeira.
— É mesmo? Nesse caso, enganei-me. Estava disposto a jurar que encontraria a marquesa com você!
Um riso espontâneo despontou nos olhos dela.
— Você é odioso! Como adivinhou?
— Conheço-a muito bem. Onde está minha irmã?
Sophy prosseguia na construção do seu castelo.
— Oh, ela voltou para Londres com Charlbury! Acho que a carruagem deles deve ter cruzado com a sua no caminho.
— Provavelmente. Seja como for, não fiquei observando os brasões das portas dos veículos que passavam. A Srta. Wraxton acompanhou-os?
Ela ergueu os olhos para Charles.
— Não; como sabe que a Srta. Wraxton veio com Cecília? — perguntou.
— Ela foi bastante cortês para mandar um recado ao White's, informando-me sobre a sua intenção — respondeu sombriamente. — Ainda encontra-se aqui?
— Bem, encontra-se, mas imagino que esteja muito ocupada — replicou Sophy. Curvou-se para apanhar um dos patinhos, que, ao despertar de um sono restaurador sob o regalo de Cecília, tornara a sair da caixa e tentava instalar-se no babado da saia dela. — Segure isto, querido Charles, enquanto lhe sirvo um copo de xerez!
Ao estender automaticamente a mão, o Sr. Rivenhall viu-se de posse de uma bola de penugem amarela. Não parecia valer a pena perguntar por que lhe fora dado um patinho para segurar, portanto ele sentou-se na beirada da mesa e ficou acariciando a criatura com um dedo enquanto observava a prima.
— Isso, naturalmente — disse Sophy com ar sereno —, explica por que você veio.
— Não explica nada e você bem sabe! — respondeu o Sr. Rivenhall.
— Como sua capa está molhada! — observou Sophy, abrindo-a diante do fogo. — Espero que não se tenha resfriado!
— É claro que não me resfriei! — respondeu ele, impaciente. — Além disso, só choveu nesta última meia hora!
Ela entregou-lhe o copo com xerez.
— Fico muito aliviada! O pobre do Lord Bromford contraiu um resfriado impressionante! Ele pretendera pedir satisfações a Charlbury, sabe, mas quando chegou aqui só conseguia espirrar.
— Bromford? — Charles exclamou. — Não está pretendendo me dizer que ele está aqui!
— Bem, é isso mesmo. A Srta. Wraxton o trouxe. Penso que contava que ele pedisse minha mão, assim salvando minha honra, mas o pobre homem ficou muito prostrado com seu horrível resfriado, que ele teme possa atacar-lhe os pulmões. Isso afastou tudo o mais da sua cabeça, e não é de causar surpresa a ninguém.
— Sophy, está tentando aturdir-me? — indagou o Sr. Rivenhall, desconfiado. — Nem Eugenia impingiria aquele idiota a você.
— A Srta. Wraxton não o considera um idiota. Ela diz que é um homem de bom senso, um homem que...
— Obrigado! Já ouvi o suficiente. Tome, pegue esta criatura de volta! Onde está Eugenia?
Ela recebeu o patinho da mão estendida e restituiu-o à companhia de seus irmãos na caixa.
— Bem, se ela ainda não estiver preparando possets na cozinha, suponho que irá encontrá-la com Bromford no nosso melhor quarto de hóspedes — ela respondeu.
— O quê?
— Convencendo-o a engolir um pouco de mingau ralo — explicou Sophy, parecendo a imagem da inocência. — Segunda porta, no topo da escada, querido Charles!
O Sr. Rivenhall bebeu de um gole o copo de xerez, colocou-o sobre a mesa, informou a prima, ameaçadoramente, que se ocuparia dela dentro em pouco, e partiu com passadas largas em direção às escadas, acompanhado de Tina, que saltava alegremente atrás dele, aparentemente convencida de que ele estava a ponto de fornecer-lhe um divertimento extraordinário. Sophy dirigiu-se ao corredor para informar à apoquentada marquesa que dois dos convidados para o jantar haviam partido e outro aparecera no lugar.
Nesse ínterim, o Sr. Rivenhall galgara as escadas, e, sem cerimónia, escancarara a porta do melhor quarto de hóspedes. Seu olhar insultado deparou com uma cena doméstica. Numa cadeira colocada ao lado de um fogo brilhante, achava-se Lord Bromford, e um biombo fora colocado de modo a protegê-lo da corrente de ar que vinha da janela; ambos os pés estavam mergulhados num banho fumegante de mostarda e água; uma manta sobre os ombros servia para reforçar o roupão de Sir Vincent, e em suas mãos havia uma tigela com mingau e uma colher. Solícita, a Srta. Wraxton rondava a seu lado, pronta para acrescentar ao banho mais água quente da chaleira conservada no calor da lareira ou para substituir a tigela de mingau pelo posset do seu preparo.
— Palavra de honra! — exclamou o Sr. Rivenhall, numa explosão.
— A corrente! — protestou Lord Bromford. — Srta. Wraxton! Sinto o ar soprando na minha cabeça!
— Por favor, feche a porta, Charles! — disse a Srta. Wraxton asperamente. — Não tem consideração? Lord Bromford está extremamente indisposto.
— Posso perceber! — retorquiu ele, entrando no quarto. — Talvez, minha querida Eugenia, gostasse de me explicar que diabo pretende com isto?
Ela respondeu no mesmo instante, seu rubor se intensificando.
— Graças à desumanidade — não posso chamar de outra coisa — de sua irmã ao negar-me permissão para oferecer um lugar a Lord Bromford na carruagem, ele contraiu um impressionante resfriado, que eu só rezo não tenha efeito duradouro na sua constituição física!
— Jamais julguei Cecília com tanto bom senso! Se ela tivesse tido o suficiente para impedi-la, e a você, de partirem numa aventura que não só era desnecessária, como também intrometida, eu ficaria até mais grato! Por uma vez na vida, Eugenia, você esteve completamente equivocada! Que lhe sirva de lição para ser um pouco menos ativa no futuro!
Aqueles que melhor conheciam os poderes de expressão do Sr. Rivenhall teriam considerado este discurso uma censura muito branda. A Srta. Wraxton, em cuja presença ele, até então, guardara a língua com muito cuidado, mal podia acreditar em seus ouvidos.
— Charles! — ela exclamou, ultrajada.
— Por acaso imaginou que me faria pensar mal de Sophy com sua carta tola e despeitada? — perguntou. — Você tentou colocar-me contra ela desde o princípio, mas hoje você se excedeu, minha pequena! Como ousou escrever-me naqueles termos? Como pôde ter sido de uma estupidez tão crassa para supor que Sophy algum dia precisaria do seu apoio para redimi-la aos olhos do mundo, ou que eu acreditaria numa só palavra de difamação contra ela?
— Senhor! — exclamou Lord Bromford, com tanta dignidade quanta se poderia esperar de um homem com ambos os pés num banho de mostarda. — Responderá a mim por essas palavras!
— Sem dúvida! Quando e onde lhe aprouver! — respondeu o Sr. Rivenhall, com uma presteza larmante.
— Suplico-lhe que não dê atenção a ele, Lord Bromford! — exclamou a Srta. Wraxton, muito agitada. — Ele está fora de si! Se fosse realizado um duelo entre vocês por minha causa, eu jamais levantaria a cabeça de novo! Por favor, acalme-se! Estou certa de que seu pulso está agitado, e como poderei encarar outra vez a querida Lady Bromford?
Ele agarrou-lhe a mão controlada e ficou segurando-a, dizendo com voz comovida:
— Criatura boa demais, excelente demais! Com todos os seus dotes e sua educação, ainda conserva os atributos peculiares à sua feminilidade! Só posso pensar nos versos do poeta...
— Cuidado! — interrompeu o Sr. Rivenhall de maneira desagradável. — Pensou neles com relação à minha prima, e não fica bem repetir-se!
— Senhor! — exclamou Lord Bromford, fitando-o. — Eu estava a ponto de dizer que a Srta. Wraxton tem se mostrado muito confortadora...
— Um anjo prestativo! Eu já sabia! Tente outro poeta!
— Devo pedir-lhe, senhor — disse a Srta. Wraxton gelidamente —, que deixe este aposento imediatamente — e leve este horrível cãozinho da Srta. Stanton-Lacy com você! Só posso ficar agradecida porque meus olhos se abriram para o seu verdadeiro caráter antes que fosse tarde demais! O senhor me faria o obséquio de mandar um comunicado à Gazette informando que nosso compromisso foi rompido?
— Tratarei disso imediatamente, — respondeu o Sr. Rivenhall, fazendo uma reverência. — Por favor, aceite minhas profundas desculpas e o meu desejo mais sincero por sua felicidade futura, senhora!
— Obrigada! Se não posso felicitá-lo pelo contrato que sem dúvida está a ponto de celebrar, pelo menos posso rezar para que não fique lamentavelmente desapontado sobre o caráter da dama com quem pretende se casar! — respondeu a Srta. Wraxton, dois sinais de rubor queimando-lhe as faces.
— Não, não penso que ficarei desapontado — respondeu o Sr. Rivenhall, com um súbito e deplorável sorriso largo. — Chocado, enfurecido e aturdido, talvez, mas não desapontado! Vamos, Tina!
Ao descer novamente para o vestíbulo, ele encontrou Sophy sentada no chão ao lado da caixa dos patinhes, frustrando suas tentativas de fuga. Sem erguer os olhos, ela disse:
— Sir Vincent encontrou várias garrafas de excelente Borgonha na adega, e Sancia disse que, afinal, não seremos obrigados a comer pernil de porco.
— Talgarth? — exclamou o Sr. Rivenhall, enfurecendo-se com hostilidade. — Que diabo o trouxe aqui?
— Ele veio com Sancia. É a coisa mais chocante, Charles, e não sei como vou encarar Sir Horace! Ele casou-se com Sancia! Não consigo pensar no que se deve fazer!
— Absolutamente nada. Seu pai ficará encantado! Esqueci de informá-la, minha querida prima, que ele chegou um pouco antes de eu partir e agora mesmo está em Berkeley Square, aguardando seu regresso. Parece que o grau de aborrecimento dele não foi pequeno ao saber dos seus esforços para salvar a marquesa de Talgarth.
— Sir Horace em Londres? — Sophy exclamou, a expressão do seu rosto animando-se. — Oh, Charles, e eu não estava lá para dar-lhe as boas-vindas! Por que não me disse logo?
— Tinha outras coisas para pensar. Levante-se!
Ela permitiu que ele a colocasse de pé, mas disse:
— Charles, está livre da sua complicação?
— Estou — ele respondeu. — A Srta. Wraxton rompeu o nosso noivado.
— E Cecy rompeu o dela com Augustus, portanto agora posso...
— Sophy, não pretendo saber por que ela teria feito isso, mais do que compreender por que conserva uma ninhada de patinhos dentro de casa, mas nenhum desses problemas me interessa muito particularmente no momento! Tenho algo mais importante para lhe dizer
— Naturalmente! — replicou Sophy. — Seu cavalo! Bem, na verdade, Charles, lamento muito tê-lo desagradado tanto!
— Não! — exclamou o Sr. Rivenhall, agarrando-a pelos ombros e sacudindo-a. — Você sabe... Sophy, você sabe que eu não pretendia... Você não fugiu de Londres por causa daquilo, não foi?
— Mas, Charles, naturalmente que fugi! Eu precisava ter uma dêsculpa! Deve compreender que eu precisava!
— Demónio! — exclamou o Sr. Rivenhall, e envolveu-a num abraço tão apertado que ela protestou. Tina dançava ao redor deles, latindo excitadamente. — Quieta! — ordenou o Sr. Rivenhall! Segurou o pescoço de Sophy entre as mãos, fazendo-a erguer o queixo. — Quer casar comigo, sua criatura vil e abominável?
— Quero, mas, veja bem, é só para evitar que torça meu pescoço! — respondeu Sophy.
A abertura da porta da biblioteca fez com que ele a soltasse e olhasse rapidamente por sobre o ombro. O Sr. Fawnhope, exibindo um ar de abstração quase total, entrou no vestíbulo com um papel na mão.
— Não há tinta — queixou-se —, e quebrei a ponta do meu lápis. Abandonei a ideia de louvá-la como virgem vestal; há algo inábil nessas sílabas. Meu verso de abertura agora se lê Deusa, cujas mãos f irmes sustentam... Mas preciso de tinta!
Com essas palavras, e sem prestar a mínima atenção ao Sr. Rivenhall, ele caminhou até a porta que levava às dependências dos fundos e desapareceu por ela.
O Sr. Rivenhall virou o rosto, onde se estampava um horror indisfarcado, para Sophy:
— Santo Deus! — exclamou. — Poderia ter-me avisado que ele estava aqui! E que diabo quis dizer com aquela tolice?
— Bem, acho — disse Sophy confidencialmente — que agora ele julga estar apaixonado por mim, Charles. Ele gosta do jeito com que eu ergo uma candeia e diz que gostaria de me ver trazendo uma travessa.
— Bem, ele não vai ver você com uma travessa! — replicou o Sr. Rivenhall, revoltado. Lançou um olhar pelo vestíbulo, viu uma pe liça pousada numa cadeira, agarrou-a. — Vista isso! Onde está seu chapéu?
— Mas, Charles, não podemos deixar a pobre Sancia com todas essas pessoas horrorosas na casa! É revoltante!
— Sim, podemos! Não imagina que eu vá sentar-me para jantar com Eugenia e aquele maldito poeta, não é? Este é o seu regalo? Precisamos levar estes patinhes?
— Não, o regalo é de Cecilia, e agora eles ficarão pelo chão novamente! Charles, como você gosta de provocar!
Sir Vincent, que entrava no vestíbulo com algumas garrafas, depositou-as na lareira, dizendo:
— Como vai, Rivenhall? Sophy, há tinta na casa? O poeta está à procura de tinta na despensa e levando a minha pobre Sancia à loucura.
— Talgarth — disse o Sr. Rivenhall, agarrando firmemente Sophy pela mão —, peco-lhe que cuide destes infernais patinhos, e desejo-lhe uma noite bastante agradável! Sir Horace acaba de chegar, e devo restituir-lhe a filha imediatamente.
— Rivenhall — disse Sir Vincent, muito sério —, entendo você perfeitamente e aplaudo sua presença de espírito. Permita-me oferecer-lhe minhas felicitações! Transmitirei suas desculpas à minha esposa. Devo aconselhá-lo a não retardar sua partida! O poeta voltará dentro de pouquíssimo tempo!
— Sir Vincent! — exclamou Sophy, arrastada irresistivelmente para a porta. — Dê minha valise à Srta. Wraxton, e diga-lhe para fazer uso do conteúdo como lhe aprouver! Charles, isto é uma loucura! Você veio no cabriole? E se começar a chover novamente? Ficarei encharcada
— Então será bem feito para você! retorquiu o primo, descortês
— Charles! — exclamou Sophy, chocada. Não é possível que me ame.
O Sr. Rivenhall fechou a porta atrás deles, e de uma maneira muito rude tomou-a nos braços e beijou-a.
— Eu não a amo. Detesto-a extremamente! — replicou com selvageria.
Encantada com essas palavras típicas de um namorado, a Srta. Stanton-Lacy retribuiu o abraço com fervor, e, humildemente, deixou-se levar para os estábulos.
Georgette Heyer
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